Dicionário Teológico do Novo Testamento - compêndio dos mais avançados estudos bíblicos da atualidade - Daniel G. Reid.

April 20, 2017 | Author: Evelyn Henrique | Category: N/A
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C o m p ê n d i o dos mais avançados e s t u d o s b í b l i c o s da a t u a l i d a d e

DICIONÁRIO TEOLÓGICO

DO NOVO TESTAMENTO

D ados Internacionais de Catalogação na Publicação (C I P ) (Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dicionário teológico do Novo Testamento / editor Daniel G. Reid; tradução Márcio L. Redondo, Fabiano Medeiros, — Sáo Paulo: Vida Nova, 2012. Título original: The IV P dictionary o f the New Testament

ISBN 978-85-275-0518-5 1. Bíblia, N .T - Dicionários I. Reid, Daniel G.

12-12233

CDD-225.3 índice paxa catálogo sistemático:

1. Bíblia : Novo Testamento : Dicionário

225.3

DICIONÁRIO TEOLÓGICO

DO NOVO TESTAMENTO C o m p ê n d i o dos mais avançados es tudos bíblicos da at ua lid ad e DANIEL G. REID, EDITOR TRADUÇÃO M Á R C I O RED ON DO F A B IA N O MEDEIROS (LETRAS "A", "U" E "V")

VIDA IMOVA

Edições Loyola

©2004, de InterVarsity Christian Fellowship/EUA Título do original: The r/p dictionary o f the New Testament Traduzido da edição publicada pela I n t e r V a r s i t y P re s s ,

Downers Grove, Illinois, EUA/Leicester, Inglaterra. 1.^ edição: 2012 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por So c ie d a d e R e l ig io s a E d iç õ e s V

id a

N

ova,

Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970. Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275-0518-5 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

S u p e r v is ã o

e d it o r ia l

Marisa K. A. de Siqueira Lopes C

o o r d e n a ç ã o e d i t o í &a l

Fabiano Medeiros Valdemar Kroker Pa d r o n i z a ç ã o

Josemar de Souza

Pint@

R e v is ã o

Judson Canto C

o o r d e n a ç ã o d e p r o B u ç Ão

Sérgio Siqueira Moura R e v is ã o

d e provas

Josemar de Souza Pinto D

ia g r a m a ç Ão

Luciana Di lorio C apa

Wesley Mendonça

S u m á r io Prefácio...........................................................................................................................................................VI Prefácio à edição em português................................................................................................................... IX Como usar o Dicionário teológico do Novo Testamento................................................................................. X Abreviaturas..................................................................................................................................................XII Transliteraçâo do hebraico e do g r e g o ......................................................................................................XXV Colaboradores...........................................................................................................................................XXVI Verbetes............................................................................................................................................................ 1

Glossário..................................................................................................................................................... 1274 índice de verbetes...................................................................................................................................... 1281

P r e f á c io O Dicionário teológico do N ovo Testamento

[dtnt)

reúne os verbetes mais importantes de uma série de di­

cionários publicada pela editora evangélica americana InterVarsity Press. A série é composta dos seguintes volumes: Dictionary o f Jesus and the Gospels [Dicionário de Jesas e os Evangelhos], Dicionário de Paulo e suas cartas (publicado por Vida Nova em coedição com as editoras Paulus e Loyola], Dictionary o f the later New Testament and its developments [Dicionário do período final do Novo Testamento e seus desdo­ bramentos] e Dictionary o f New Testament background [Dicionário das origens do Novo Testamento]. A referida série vem provando seu valor desde 1992, quando veio a público o primeiro volume. Na categoria de obras de referência na área bíblica ou teológica, cada volume da série conquistou o Gold Medallion Book Award, o prêmio de melhor livro conferido anualmente nos Estados Unidos pela Associação de Editores Cristãos Evangélicos. Enquanto este prefácio é redigido, alguns volumes da série encontram-se já traduzidos ou em processo de tradução para vários idiomas, entre os quais: francês, russo, espanhol, português, chinês e coreano. A série, a seu modo, ainda que sem muito estardalhaço, está exercendo um impacto positivo em todo o mundo. Os verbetes que compõem o

dtnt

foram selecionados tendo em mente o estudante e a sala de aula.

Acreditamos, no entanto, que outras pessoas que não possam colecionar a série completa ~ entre essas pessoas aqueles diretamente envolvidos no ministério ~

encontrarão nesta obra um valioso acréscimo

à sua biblioteca. Na maioria dos casos, os verbetes aparecem da mesma forma que nos dicionários de origem. Cumpre ressaltar que este volume não é uma condensação — ou uma espécie de resumo — dos outros quatro dicionários da série. Proceder dessa forma seria cometer uma violência para com a maioria dos verbetes, além de frustrar o objetivo original da série, que era oferecer verbetes de dimensões enciclo­ pédicas, capazes de tratar de seus temas com mais profundidade que um simples dicionário bíblico. No processo de edição de cada volume da série, adotou-se o seguinte método: se um dicionário bíblico co­ mum de um só volume fosse capaz de versar sobre determinado tema a contento e em um único verbete, talvez não houvesse necessidade de incluir esse mesmo tema nos volumes da série. Decidimos então nos restringir aos temas mais importantes, oferecendo, porém, sempre “algo mais” : mais profundidade, mais detalhes, mais informações acadêmicas e especializadas, mais bibliografia etc. Na maioria dos casos, os verbetes foram escritos não por generalistas, mas por estudiosos especializados no(s) tema(s) tratado(s). Em alguns casos, foi possível ter acesso a importantes manuscritos inéditos sobre certos temas, e vários verbetes da série passaram a ser considerados epitomes (no sentido grego antigo de “compêndios") abahzados de pesquisas da área. Vale a pena chamar a atenção, no entanto, para algumas pequenas alterações de caráter editorial. As referências a obras em outros idiomas que não o inglês foram eliminadas das listas bibliográficas sempre que essas obras não estivessem intrinsecamente ligadas ao texto do verbete. Já outras obras recentes e de grande relevância, especialmente comentários, foram muitas vezes acrescidas às listas bibliográficas, sobretudo no caso dos verbetes que tratam de documentos específicos do Novo Testamento. Em sua forma original, os verbetes temáticos extraídos do Dictionary o f the later New Testament and its developments também tratam dos pais apostólicos. No entanto, essa perspectiva pós-apostólica não foi incluída neste volume, a menos que fosse indispensável ao desenvolvimento de determinado assunto. Com o passar dos anos, ao longo do processo de produção dos volumes da série que originaram este Dicionário, o organizador teve contato com muitas pessoas que usaram os primeiros volumes como ferra­ mentas de ensino nas salas de aula de seminários e faculdades teológicas. Também teve a oportunidade

Prefácio

de verificar como os estudantes reconheciam o notável valor da série. Mas há muitos casos em que está fora de cogitação a hipótese de um professor adotar três ou quatro volumes, mesmo para programas que dedicam mais de um semestre (ou ano letivo) à disciplina de “ Introdução ao Novo Testamento”. Além disso, em contextos universitários, o uso da série completa tem se mostrado quase impraticável do ponto de vista financeiro (ainda que alguns professores tenham corajosamente tentado adotá-la). No decurso dos anos, portanto, recebemos solicitações para produzir uma edição de um só volume que fosse capaz de reunir os verbetes mais importantes da série. E concordamos que se trata de uma excelente ideia, capaz não somente de servir aos alunos, mas também divulgar a série e seus objetivos. Este volume é assim nossa tentativa de atender a essa necessidade. Não obstante, a tarefa de decidir quais verbetes seriam os mais importantes não foi tão fácil quanto parecia a princípio. Começamos tentando imaginar como seria um curso típico de Introdução ao Novo Testamento. Obviamente incluiríamos os verbetes que tratam dos documentos do N ovo Testamento em si. Depois, incluiríamos os temas teológicos de maior relevância: c e ia d o S e n h o r , m o r t e d e C r is t o , r e s s u r r e iç ã o , e s c a t o lo g ia

c r i s t o l o g i a . D e u s , E s p ír it o S a n t o , b a tism o ,

etc. Mas onde deveríamos parar, uma vez que já

nos aproximávamos com tanta rapidez dos limites de espaço idealizados para o projeto? Não poderíamos omitir os verbetes sobre os gêneros literários do Novo Testamento, nem sobre áreas importantes relacio­ nadas às origens do Novo Testamento. Uma longa “ lista de verbetes desejados” foi dolorosamente sendo reduzida com a ajuda de pessoas que haviam usado os outros volumes em sala de aula. Mas, em última análise, as decisões caberiam ao editor, que deveria chegar a um meio-termo entre as exigências do as­ sunto e as limitações de espaço impostas pelo projeto.

E,

mesmo na undécima hora editorial, deu-se o

ju ízo final, e inúmeros verbetes foram eliminados com choro e ranger de dentes — tanto por parte do juiz quanto por toda a sua equipe! Há algum consolo em saber que organizadores diferentes teriam chegado a soluções diferentes para esse mesmo problema, ou seja, seria impossível chegar a um consenso sobre o que incluir e o que cortar. Muitos verbetes excelentes, dentre os quais alguns dos meus favoritos, tiveram de ser excluídos. Um recurso foi criado, porém, que poderá ajudar a compensar essa tensão editorial, além de todo o re­ morso. No final dos verbetes, além das remissões iniciadas por “ Ver também” , as quais remetem a outros verbetes dentro do mesmo volume, inserimos remissões a verbetes afins extraídos dos quatro volumes da série (nem todos publicados em português). Elas em geral remetem apenas ao volume de origem de determinado verbete (i.e., se o verbete foi extraído do Dictionary o f Jesus and the Gospels dirá respeito a outros verbetes do próprio

d jg

[d jg ] ,

a remissão

que sejam relacionados ao assunto). Esse recurso tem por

objetivo servir tanto a estudantes ávidos por se aprofundar mais no assunto quanto a professores mais exigentes. Também dá aos leitores uma noção do valor do uso da série completa de quatro volumes. Verbetes sobre um mesmo tema, extraídos dos quatro volumes da série (e.g..

R e in o d e D e u s

nos Evan­

gelhos, em Paulo e no período final do N ovo Testamento) em geral são apresentados separadamente, seguindo a ordem do cânon bíblico. 0 vocábulo principal do verbete vem seguido dos algarismos romanos (i, II e iii) e de um subtítulo que designa o grupo de escritos bíblicos ah tratados: “ Evangelhos” , “ Paulo” ou “ outros livros do Novo Testamento”. Em alguns poucos casos, esses verbetes foram condensados em um só, mas não achamos que esse método seria sempre útil ou aconselhável. Isso porque, para início de conversa, os vários colaboradores e as várias perspectivas às vezes mantêm entre si certa tensão — ha­ vendo até mesmo crítica de uma perspectiva em relação a outra em alguns casos. Considerando o fato de que essas múltiplas perspectivas são uma característica que enriquece tanto a série quanto este volume, pareceu-nos que a tentativa do editor de fundi-las em um só verbete seria uma verdadeira afronta. Para os que são novos no campo dos estudos do Novo Testamento, um “ Glossário” foi incluído no final da obra, com definições que foram na maior parte extraídas do Pocket dictionary o f biblical studies.^ Esse

•Publicado no Brasil sob o título Dicionário de estudos bíblicos: mais de 300 termos definidos de forma clara e concisa: edição de bolso, de Arthur G. Patzia e Anthony J. Petrotta (trad. Pedro Wazen de Freitas, São Paulo: Vida, 2003,168 p.).

VII

Dicionário teológico do Novo Testamento

pequeno “ dicionário dentro do D icionário” ajudará os alunos que pela primeira vez se aventuram pelo universo e vocabulário pouco conhecidos dos estudos do Novo Testamento. Reler este material e trabalhar mais uma vez com ele serviu para lembrar da grande contribuição e do imenso sacrifício feito por inúmeros estudiosos em prol de todos os volumes da série que vieram a dar origem a este volume. E também trouxe à lembrança o labor paciente dos oito coeditores que conduziram

0 trabalho em cada volume até sua pubhcação. Esses estudiosos contribuíram com muito mais tempo e trabalho, com sua pesquisa e escritos, do que muitos autores mais populares jamais poderiam supor ou sonhariam conseguir. Por terem já uma imensa carga de responsabilidades nas áreas de ensino e adminis­ tração, para muitos deles escrever e editar são atividades reservadas para o pouquíssimo tempo que sobra de seus dias, semanas e carreiras, e a recompensa monetária desse labor geralmente não é de fazer inveja a ninguém. Ainda assim, como um guia que conduz turistas morro acima até uma vista extraordinária que só pode ser apreciada do pico da montanha, esses que são chamados ao ensino e à pesquisa com certeza se sentem ricamente recompensados por descortinar aos olhos do grande público o mundo fascinante em que eles têm o privilégio profissional de viver: o universo do Novo Testamento com seu texto, seu mundo e sua mensagem. E, embora essa imensa sala de aula nem sempre permita aos professores usufruírem da­ queles momentos gratificantes em que os olhos dos alunos se iluminam, repletos de curiosidade ou com­ preensão, ao menos chega ao conhecimento deles a informação de que tudo isso acontece dia após dia, invariavelmente. E assim, com a esperança de que essa troca silenciosa entre autores e leitores se estenda e se amphe ainda mais e orando para que isso de fato aconteça, enviamos esta obra, por eles produzida, de volta ao mundo e com nova roupagem. Daniel G. Reid, Editor, InterVarsity Press

V lli

P r e f á c io

à e d iç ã o e m

PORTUGUÊS Nas últimas décadas, os estudos neotestamentários, principal foco desta obra, passaram por diversas mu­ danças e atualizações em decorrência de trabalhos desenvolvidos por vários pesquisadores da área. Não foram poucos os livros lançados na tentativa de ajudar o leitor a acompanhar essa evolução. No entanto, toda essa riqueza encontrava-se dispersa em muitas obras, dificultando o esforço do leitor para se manter atualizado. Da necessidade de reunir em um só local o que havia de mais atual sobre o assunto, nasceu esta obra. Ela é um compêndio que reúne os mais avançados estudos bíblicos da atualidade. Há muito o público de língua portuguesa aguardava um trabalho como este. Uma obra desse porte, no entanto, não era um desafio que estivesse à altura de um único autor. Daí a reunião de mais de noventa colaboradores com o intuito de alcançar o propósito que esta obra se propôs. Não haveria como dar conta de tão grande desafio de outro modo. E digno de nota, contudo, o fato de que uma conseqüência direta dessa diversidade de autores é, logi­ camente, a diversidade de pontos de vista. 0 leitor encontrará na unidade desse compêndio uma diversi­ dade de posições e até mesmo alguns pontos polêmicos. Um deles, por exemplo, diz respeito à autoria do Evangelho de João; outro induz a um questionamento ao menos de parte do livro de Daniel; há também um trecho que faz uso da teoria documentária que hoje é rejeitada em muitos círculos acadêmicos. Elencamos apenas alguns deles, a fim de que o leitor, quando deparar com um desses pontos, esteja ciente de que Edições Vida Nova não concorda com tais posicionamentos, nem os abona, e tem histori­ camente adotado uma posição ortodoxa. No entanto, por se tratar de uma obra traduzida, foi necessário mantê-los na íntegra. Assim, com relação ao posicionamento teológico, é importante destacar que esta obra como um todo pode ser classificada dentro da postura conservadora de Edições Vida Nova. Portanto, ela é predominan­ temente e seguramente comprometida com a inspiração das Escrituras, com a inerrância bíblica e com todos os demais pontos cardeais da melhor e mais confiável teologia conservadora, comprometida com a sã doutrina. A ínfima porcentagem de pontos polêmicos dos quais discordamos não compromete o valor da obra. Esses pontos de divergência não tiram, de forma alguma, o mérito da obra em si, nem levantam questio­ namento algum acerca da decisão de publicá-la. Sem dúvida, o leitor é maduro o suficiente para dialogar com pessoas que defendam pontos dos quais discorda. Isso não coloca em risco nossa fé nem deturpa nossa teologia; apenas nos torna mais humildes na tarefa de fazer teologia e faz lembrar que um dia todas as divergências serão solucionadas, pois “Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido” (IC o 13.12). Os Editores

C omo

u s a r e s t e d ic io n á r io

A breviatu ras Nas páginas xii-xxv, o consulente terá acesso a listas completas de abreviaturas tanto de caráter geral quanto relativas a obras clássicas ou de cunho bíblico e acadêmico. Au toria dos verbetes Os autores são indicados ao final de cada verbete pela(s) inicial(is) do(s) primeiro(s) nome(s) seguida(s) do sobrenome. Os verbetes compostos com base em uma combinação de verbetes anteriores têm o nome dos autores entre colchetes no final do material que especificamente lhes diga respeito. Uma lista completa de co­ laboradores pode ser encontrada nas páginas xxvi-xxix por ordem alfabética de sobrenome. Nessa lista, após a identificação de cada autor ou autora, segue(m)-se o(s) verbete(s) específico(s) em que ele(a) contribuiu. Listas bibliográficas Uma lista bibliográfica foi acrescentada ao final de cada verbete. Essas listas incluem as obras citadas nos verbetes, além de outras obras importantes e relacionadas ao tema em questão. 0 registro na bibliografia se faz pelos sobrenomes dos autores dispostos em ordem alfabética; quando um autor tem mais de uma obra citada, os títulos é que são ordenados alfabeticamente. Nos verbetes que se concentram nos livros do Novo Testamento, a bibliografia é dividida em duas categorias: “ Comentários” e “ Estudos”. Rem issões O DTNT está repleto de remissões a verbetes dos quatro dicionários da série, com o objetivo de ajudar os leitores a desfrutar ao máximo do material que aparece ao longo de todo este volume e nos outros quatro volumes de onde os verbetes foram extraídos. Serão encontrados cinco tipos de remissões: L As remissões breves, situadas por ordem alfabética ao longo do Dicionário, remetem o leitor e con­ sulente a verbetes em que aquele tema específico é tratado:

v id a a p ó s a m o r t e .

V.

RESSURREIÇÃO.

2. Os vocábulos que aparecem em

v e r s a le t e

no corpo do verbete indicam que outro verbete que tem

por título o(s) mesmo(s) vocábulo(s) (ou uma redação aproximada) aparece no Dicionário. Por exemplo: “ F ilh o d e D eu s”

remete o leitor aos verbetes com esse título:

F ilh o d e D eu s.

Em geral, esses termos aparece­

rão em versalete apenas na primeira ocorrência da palavra dentro do verbete. 3. Remissões entre parênteses, no corpo de um verbete, remetem o leitor a um verbete com aquela designação. Por exemplo: (v.

c r is to lo g ia ).

4. As remissões acrescidas ao final dos verbetes têm por objetivo remeter o leitor a outros verbetes relacionados de modo significativo ao assunto: Ver também

a u a n ç a , n o v a a l i a n ç a ; C r i a ç ã o , n o v a c r i a ç ã o ; E s p ír it o S a n t o .

5. No final dos verbetes, antes da bibliografia, encontram-se remissivas a verbetes que se encon­ tram nos dicionários de origem: Dictionary o f Jesus and the Gospels, Dicionário de Paulo e suas cartas.

C o m o usar este d ic io n á rio

Dictionary o fth e later New Testament and its developments e Dictionary ofN ew Testament background. Em alguns casos, são feitas remissões a mais de um dicionário. índice de verbetes 0 “ índice de verbetes” no final do

dtnt

permite ao leitor fazer uma rápida análise da extensão dos temas

tratados e selecionar os que melhor atendem a seus interesses ou necessidades. Quem deseja localizar os verbetes escritos por determinados autores verá que eles se encontram mencionados junto ao nome do autor na lista de colaboradores. Transliteraçâo O grego e o hebraico foram transliterados de acordo com o sistema apresentado na página xxv.

A

b r e v ia t u r a s

A breviatu ras gerais a

a.C. amp. AT B

c. c cap., caps. of. col. cp. D

d.C. ed., eds. ed. rev. 2. ed., 3. ed. e.g. espec. frag. grhebr. i.e. km lat. LXX

marg. mmM MS, mss

n.s. NT

Códice alexandrino antes de Cristo (edição) ampliada Antigo Testamento Códice Vaticano circa: cerca de, por volta de (datas aproximadas) Códice efraimita (ou de Efraim, o Siro] capítulo, capítulos conferir coluna comparar com Códice de Beza depois de Cristo edição; editado por; editor. editores edição revista segunda edição, terceira edição exempli gratia: por exemplo especialmente fragmento (de documento) grego hebraico id est: isto é quilômetro latim Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento) margem manuscritos do mar Morto manuscrito, manuscritos nova série Novo Testamento

org., orgs. Ppar. j j

passim pi. prescr. Q

reimpr. rev. s.a. s.d. sec., s to . Sim. Sir tb. Tg TI TM

v. x kt A

§

organização; organizado por; organizador, organizadores página (s) passagem paralela em outro(s) Evangelho (s) em diversos lugares; aqui e ali plural prescrito coleção de declarações que serve de base aos Evangelhos Sinóticos reimpressão revisado por série antiga sem data século, séculos Tradução grega do Antigo Testamento feita por Símaco Siríaca também Targum tradução inglesa Texto massorético (texto-padrão do Antigo Testamento hebraico) ver; versículo (s); volume (s) vezes (2x = duas vezes etc.) Códice sinaítico etc. (grego) número (s) de seção ou parágrafo (que, em geral, faz referência ao sistema numérico criado pela Loeb Classical Library [Biblioteca de Clássicos de James Loeb] para a obra de Josefo)

Traduções em inglês JB KJV (O U AV) NEB NIV

Jerusalem Bible King James version New English Bible New international version

NRSV REB RSV RV

New revised standard version Revised English Bible New revised standard version Revised version (1881-1885)

Traduções (o u versões) da B íblia em português A21 ACF

Versão Almeida século 21 (Vida Nova) Versão Almeida; edição corrigida e revisada, fiel ao texto original ( sbtb )

ARC

Versão Almeida, revista e atualizada ( sbb ) Versão Almeida, revista e corrigida

BJ

Bíblia de Jerusalém (Paulus)

ARA

( sbb )

Abreviaturas

Bíblia na linguagem de hoje ( sbb ) Nova tradução na linguagem de hoje ( sbb )

BLH NTLH

Bíblia do Peregrino (Paulus) TVadução da c n b b Nova versão internacional ( sbi)

BP CNBB

NVI

Livros da Bíblia

Antigo Testamento Gn Êx Lv Nm Dt Js Jz Rt 1 e2Sm 1 e2Rs 1 e2Cr Ed Ne

Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Josué Juizes Rute 1 e 2Samuel 1 e 2Reis 1 e 2Crônicas Esdras Neemias

Et Jó Pv SI Ec Ct Is Jr Lm Ez Dn Os

Ester Jó Provérbios Salmos Eclesiastes Cântico dos Cânticos Isaías Jeremias Lamentações de Jeremias Ezequiel Daniel Oseias

!

J1 Am

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Miqueias

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Naum

Hb

Habacuque

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Sofonias

Ag

Ageu

Zc

Zacarias

Ml

Malaquias

Novo Testamento Mt Mc Lc Jo At Rm 1 e2Co

Mateus Marcos Lucas João Atos dos Apóstolos Romanos 1 e 2Coríntios

1 i !

Ef Fp Cl 1 e2Ts 1 e2Tm Tt

Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 e 2Tessalonicenses 1 e 2Timóteo Tito

Fm Hb Tg 1 e2Pe 1, 2e3Jo Jd Ap

Filemom Hebreus Tiago 1 e 2Pedro 1, 2 e 3João Judas Apocalipse

Os Apócrifos e a Septuaginta Ac Et Br BI 1 e2Ed Eo Ep Jr Jt

Acréscimos a Ester Baruque Bel e 0 dragão 1 e 2Esdras Eclesiástico (ou Sirácida) Epístola de Jeremias Judite

j

1,2, 3 e4 M c Or Az Or Mn 1, 2, 3 e4Rn Sb Sn Tb

1, 2, 3 e 4Macabeus Oração de Azarias Oração de Manassés 1, 2, 3 e 4Reinos Sabedoria de Salomão Susana Tobias

Jé e As M r Is Or si Ps-Fo SlSa

José e Asenate Martírio de Isaías Oráculos sibilinos Pseudo-Focílides Salmos de Salomão

Os Pseudepígrafos do Antigo Testamento AdeEv Ai An bí Ap Ab 2Ap Br 3Ap Br Ap El Ap Ms Ap Sd Ap Sf Ar Asc Is Ass Ms 1, 2 e 3En Jb

Vida de Adão e Eva Aicar Antiguidades bíblicas (de pseudo-Filo) Apocalipse de Abraão Apocalipse siríaco de Baruque Apocalipse grego de Baruque Apocalipse de Elias Apocalipse de Moisés Apocalipse de Sidraque Apocalipse de Sofonias Epístola de Arísteas Ascensão de Isaías Assunção de Moisés (ou Tesíameuto de Moisés) Enoque (etíope, eslavônico e hebraico) Jubileus

Testamentos dos doze patriarcas Te Rb Testamento de Rúben Te Si Testamento de Simeão Te Le Testamento de Levi Te Ju Testamento de Judá Te Ic Testamento de Issacar Te Zb Testamento de Zebulom TeDã Testamento de Dã Te Na Testamento de Naftali Te Ga Testamento de Gade Te As Testamento de Aser Te Jé Testamento de José Te Be Testamento de Benjamim

X ili

D icionário teológico do Novo Testamento

Te Ab Telq TeJó

Testamento de Abraão Testamento de Isaque Testamento de Jó

Te Ms Vdpf

Testamento de Moisés Vida dos profetas (seguida do nome dos profetas)

In, Ef In, Es In, R In, Mg In, Po In, Rm In, ir Ma Po Po, Fp

Inácio, Caria aos efésios Inácio, Carta aos esmimeus Inácio, Carta aos filadelfenos Inácio, Carta aos magnésios Inácio, Carta a Policarpo Inácio, Caria aos romanos Inácio, Carta aos tralianos Martírio de Policarpo Policarpo, Carta aos filipenses

Os pais apostólicos Bn ICI 2Cl Dg Di He, “Or” He, “Si” He, “Vi”

Epístola de Barnabé 1Clemente 2Clemente Epístola a Diogneto Didaquê 0 pastor, de Hermas, “Mandamentos” 0 pastor, de Hermas, “Parábolas” 0 pastor, de Hermas, “Visões”

Literatura cristã prim itiva A

A fraates

Dm

Demonstrações

At Al At Pa e Te At Pi At To

A gostinho

Ci De Cf Cs

DeTr Do ch Ep Ha Hm Qu Ev

De civitate Dei [A cidade de Deus] Confessiones [Confissões] De consensu Evangelistamm [Sobre o consenso entre os evangelistas] De Trinitate De d o c tr in a C h ris tia n a [Sobre a doutrina cristã] Epistulae [Cartas] De haeresibus [Sobre as heresias] Homilia Quaestiones Evangeliorum [Questões sobre os Evangelhos]

to s

Atos de Apolônio Atos de Paulo e Tecla Atos de Pilotos Atos de Tomé

C ipr iano

Do Or Ep Lp

De Dominica Oratione [Sobre a Oração Dominical] Epistulae [Epístolas] De lapsis [Sobre os que caem]

CiRiLO DE J erusalém

Ca mi Ep ap

Catequeses mistagógicas Epistola apostohrum [Epístola dos apóstolos]

C lemente de A lexandr ia A mbrósio

A fTg Ab ExLc

Ps Vr A

Ecpf

Apócrifo de Tiago De Abrahamo [Sobre Abraão] Expositio Evangelii secundum Lucam [Exposição do Evangelho segundo Lucas] In Psalmos [Sobre Salmos] De virginibus [Sobre as virgens]

Ex Fr Ad

FrJd Pd Pr

p o c a l ip s e s

Ap Pa Ap Pe

Apocalipse de Paulo Apocalipse de Pedro

Qi di

A ristides

Al

Apologia St Te

A tanäsio

Ar Ca fe Fg

Adversus arianos [Contra os arianos] Cartas festivas Apologia pro fuga sua [Apologia de sua fuga]

Eclogae propheticae [Seleções com base nas Escrituras proféticas] Excerpta ex Theodoto [Epitomes dos escritos de Teódoto] Fragmente in Adumbrationes [fragmentos dos Comentários sobre algumas das Epístolas Gerais] Fragmento da Epístola de Judas Paedagogus [O instrutor] Protreptikos [Exortação aos pagãos] Quis dives salvetur [Quem é o rico para que seja salvo?] Stromateis [Miscelâneas] Carta a Teodoro

C risóstomo

Hm Gn HmMt

Homilias sobre Gênesis Homilias sobre Mateus

E pifânio

He Pa

A tenägoras

Lg Su

Legatio pro christianis [Embaixada (ou Apologia] a favor dos cristãos] Supplicatio pro christianis [Petição em favor dos cristãos]

Haereses [Heresias] Panarion

E usébio

De ev

XIV

Demonstratio evangelica [Demonstração do evangelho]

Abreviaturas

Ec th

De ecdesiastica theologia [Sobre a teologia da Igreja] Historia ecdesiastica [História da Igreja] Comentário sobre os Salmos Praeparatio evangelica [Preparação para o evangelho]

Hi ec In Ps Pr ev

E

O rígenes

Cm Jo Cm Mt Co Ce Depr Ex ma Fr Pa HmEz

vang elh os

EvBa Ev eb Eveg EvFi Ev hb EvMr Ev na EvNi EvPe Ev To Ev In To

Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho (= Evangelho de pseuda-Tomê]

Fr mu

HmLc Po be Pa Pe Fe Pe ar PtTg Se Ps

P seudo - C lementino

Hm Re

Fragmento mwatoriano

H ilár io de P oitiers

Tr Hipe

Comentário de João Comentário de Mateus Contra Celsum [Contra Celso] De principiis [Sobre os princípios] Exhoriatio ad martyrium [Exoriação ao mariírio] Fragmentos de Papias Homiliae in Ezechiel [Homilias em Ezequiel] Homiliae in Lucam [Homilias em Lucas] Papiro berolinense Paixão de Perpétua e Felicidade Peri archon [Sobre os princípios] Protoevangelho de Tiago Selecta in Psalmos [Seleções em Salmos]

Homilias Reconhecimentos

R ufino

De Trinitate [Sobre a Trindade]

Hi ec

Hino da pérola

Historia ecdesiastica [História da Igreja]

T acl \n o H ip ó u t o

De ha Dm Cr

Ph Re Trap

Orgr

De haeresibus [Sobre as heresias] Demonstratio de Christo et Antichristo [Tratado sobre Cristo e 0 Anticristo] Philosophoumena Refutação de todas as heresias ou Philosophumena Tradição apostólica

T eófilo DE A n t io q u ia

Au

Ad ux Ap Avju Ad na De an De ba De ca

Adversus haereses [Contra as heresias]

J erónimo

CmGl CmMq CmMt Ep Pre Ev PróMt Vi il

Comentário de Gálatas Comentário de Miqueias Comentário de Mateus Epistulae [Epístolas] Prefácio aos quatro Evangelhos Prólogo a Mateus De viris illustribus [Sobre homens ilustres]

De cl fe De CO De id De je

De or Depd De pr

J u stin o M ártir

Ap I, II Co gr D lTr Re

Apologia I, II Cohoriatio ad graecos [Discurso aos gregos] Diálogo com o judeu Trifon Sobre a Ressurreição

De re De sp

LACTÂNaO

Dv in MaJu

OdSa

Ad Autolycum [A Autôlico]

T er t u u a n o

I reneu

He

Oratio ad graecos [Discurso aos gregos]

Mr

Divinae institutiones [Instituições divinas] O mariírio de Justino e companheiros

Px Pp Px Sc

Odes de Salomão XV

Ad uxorem [À esposa] Apologeticus [Apologético] Adversus judaeos [Contra os judeus] Ad nationes [Aos pagãos] De anima [Sobre a alma] De baptismo [Sobre o batismo] De came Christi [Sobre a carne de Cristo] De cultu feminarum [Sobre a moda feminina] De corona [Sobre a coroa] De idololatria [Sobre a idolatria] De jejunio adversus psychicos [Sobre o jejum, contra os materialistas] De oratione [Sobre a oração] De pudicitia [Sobre a pudicícia] De praescriptione haereticorum [Sobre a prescrição dos hereges] De resurrectione camis [Sobre a ressurreição da carne] De spectaculis [Sobre os espetáculos] Adversus Marcionem [Contra Marcião] Paixão de Perpétua e Felicidade Adversus Praxeas [Contra Prdxeas] Scorpiace [Antídoto para o ferrão do escorpião]

Dicionário teológico do Novo Testamento

Escritores e fontes clássicas e helenistas D emóstenes

A m ónio

Advo di

Co Lá

De adfinium vocabulomm differentia [Sobre as diferenças das expressões sinônimas]

Contra Conon Contra Lácrito

DiÃo CAssio

Hi

A nácarse

Ep

Epístola a Tereu

A ntipátride

An pa

DiÃo C risóstomo De Ho

Anthologia palatina [Antologia palatina]

Di Or De re

A pia n o

Gr mi Grcv H im

Guerras mitridáticas Guerras civis História romana

D iodoro S ículo

Metamorfoses

D iógenes L aércio

Phaenomena [Fenômenos]

D lH a

Ebhi

História de Roma De Homero et Socrate [Sobre Homero e Sócrates] Discursos Orationes [Orações] De regno [Sobre o governo]

Bibliotheca histórica [Biblioteca histórica]

A puleio

Me

Vi

A rato

Ph

Ac

Po Pb Re

Dc Ds En

Thesmopkorizousai [As tesmoforiantes] Achamenses [Os acamenses]

De caelo [Sobre o céu] Ethica nicomachea [Ética a Nicômaco] Política [Política] Problemata [Os problemas] Retórica

De na an

Pe S tcTh Su E stobeu

Eg Noctes atticae [Noites áticas]

Ge Epigrammata [Epigramas]

Hp Quéreas e Calírroe

De le D eof De or De re Ph Ra pe Tc Co he

Hyppolytus [Hipólito]

F ilo

Ab Ae md

C ícero

CoJu De am Dedv

Geografia

E urípides

C ár iton

Qs e Ca

Ecloge [Éclogas]

E strabão

C a l Im aco

Ep

Persae [Os persas] Septem contra Thebas [Sete contra Tebas] Supplices [As suplicantes]

Oneirocriticon [Oneirocrítica]

A ülo G éuo

No at

De natura animabim [Sobre a natureza dos animais]

ÉSQUILO

A rtemidoro

On

Discursos Dissertationes [Dissertações] Enchiridion [Manual]

Eu a n o

A ristóteles

Ca Et ni

Dionísio de Halicarnasso

E pícteto

A ristófanes

Th

Vitae [Vidas]

Código de Justiniano De amicitia De divinatione [Sobre a adivinhação] De legibus [Sobre as leis] De officiis [Sobre os deveres] De oratore [Sobre a oratória] De republica [Sobre a república] Orationes philippicae [Orações filípicas] Rdbirio perduellionis [A traição de Rabírio] Tusculanae disputationes [Debates em Tüsculo] Corpus hermeticum [Coletânea hermética]

Ar Colg

Ch Dl Ds im D tpt in

XVI

De Abrahamo [Sobre Abraão] De aeteraitate mundi [Sobre a eternidade do mundo] De agricultura [Sobre a agricultura] De confusione Unguamm [Sobre a confusão das línguas] De congressu emditionis gratia [Sobre a união com os estudos preliminares] De cherubim [Sobre os querubins] De Decalogo [Sobre o Decdlogó] Quod Deus sit immutabilis [Que Deus é imutável] Quod deterius potiori insidiari soleat [Que os piores tendem a atacar os melhores]

Abreviatur; Eb n Fu Gi }f LeGa Lgal M i Ab Mu no Om pb Op mu Pd PI Pmpn Po Ca QuEx Qu Gn Re Di he Sa So Spie Vi Vi CO Vi Ms

De ebrietate [Sobre a embriaguez] In Flaccum [Em Flaco] De fuga et inventione [Sobre a fuga e a invenção] De gigantibus [Sobre os gigantes] De Josepho [Sobre Josefo] Legatio ad Gaium [Sobre a embaixada, para Gaio] Legum allegoriae [Interpretações alegóricas] De migratione Abrahami [Sobre a migração de Abraão] De mutatione nominum [Sobre a mudança de nomes] Lib. quod omnis probus liber sit [Que todo homem bom é livre] De opificio mundi [Sobre a criação do mundo] De providentia [Sobre a providência] De plantatione [Sobre a plantação] De praemiis et poenis [Sobre recompensas e punições] De posteritate Caini [Sobre a posteridade de Caim] Quaestiones in Exodum [Questões em Êxodo] Quaestiones in Genesin [Questões em Gênesis] Quis Remm Divinarum heres sit [Quem é o herdeiro das coisas divinas?] De sacrificiis Abelis et Caini [Sobre os sacrifícios de Abel e de Caim] De somnis [Sobre os sonhos] De specialibus legibus [Sobre as leis especiais] De virtibus [Sobre as virtudes] De vita contemplativa [Sabre a vida contemplativa] De vita Mosis [Sobre a vida de Moisés]

In Co

The inscriptions of Cos [As inscrições de Cós], org. W.

R.

Paton e E. L. H icks (1891) I sócrates

De Pg Pt

Demonicus [Carta a Demônico] Panegyricus [Panegírico] Panathenaicus [Panatenaico]

J osefo

An Co Áp Guju Vida

Antiguidcules judaicas Contra Ápion Guerras judaicas Vida de Flávio Josefo (ou Autobiografia)

J ustiniano

Co iu

Corpus iuris civilis

J uvenal



Satirae [Sátiros]

L lvio , T ito

Ep Hi L uciano

Epitomae [Epitomes] História de Roma de

Samósata

Al Hr Ph Pr Tx

Alexandre, o Fcdso Profeta Hermotimus [Hermotimo] Philopseudes [Filopseudo] De morte Peregrini [A passagem de Peregrino] Toxaris [Sobre a amizade]

M arco A uréuo

Me

Meditações

M arcial

Ep

Epigramas

M u Ru

M u sô n io Rufo

N icolau de D amasco

Vi Cs

Vita Caesaris [Vida de Cêsax]

F ilóstrato

ViAp PrÓT

Vita Apollonii [Vida de Apolônio]

O rósio

Pg

Fragmentos órficos

G alen o

De pi An gr

O vídio

De placitis Hippocratis et Platonis [Sobre as opiniões de Hipócrates e Platão] Antologia grega

Me

Dc

Descrição da Grécia

P etrônio

Opera et dies [Os trabalhos e os dias]

Sa PGM

H omero

II Od

Metamorfoses

P aüsAnio

ÜESfODO

Op

Adversus paganos [Contra os pagãos]

Ilíada Odisseia

P índaro

Sátiras

P latão

It

Satyricon [Satiricon] Papyri-Graecae magicae [Papiros gregos sobre mxigia]

Isthmia [ístmicas]

H or Acio

Sd

Al Ag Cr

J âm blic o

De my

De mysteriis [Sobre os mistérios]

XVII

Alcibíades [Alcibíades] Apologia [Apologia] Cratylus [Crdtilo]

Dicionário teológico do Novo Testamento

Go Le Ph Pt Re So Sy Ti

Gorgias [Goí^ios] Leges [Leis] Phaedms [Fedro] Protagoras [Protdgoras] Res publica [A república] Sophista [Sofista] Symposion [0 banquete] Timaeus [Timeu]

PZnCa

Zenon papyri [Papiros de Zenão], org. C. C. Edgar, Cairo: Catalogue générale des antiquités égyptiennes du Musée du Caire, 1925-1931, V . 1-4).

Q u in t iu a n o

P línio J ovem

Ep

commentarius [Comentário a Timeu de Platão]

In or

Epístolas

Institutio oratoria [A instrução oratória]

P línio V elho

Nahi Pn

Nataralis historia [História natural] Panegyricus [Panegírico]

S êneca

Be Br vi Decl Ep Lu Ep mo

P lutarco

Ad Al An Ca Cn pr Co Cv De or Fa lu Fo rm Ge So Id e Os Li ed Mo Mu vi Non posse

Po Pr ge re Ro Se nu vi Vi

De adulatore et amico [Como distinguir o bajulador do amigo] De Alexandro [Sobre Alexandre] De Antonio [Sobre Antonio] De Caesar [Sobre César] Coniugalia praecepta [Conselho para a noiva e o noivo] Adversus Colotem [Contra Colotes] Quaestiones convivales [Conversa à mesa] De defectu oraculorum [Sobre a obsolescência dos oráculos] De fade in orbe lunae [Em face da órbita lunar] De fortuna romanorum [Sobre a fortuna dos romanos] De genio Socratis [0 gênio de Sócrates] De Iside et Osiride [Sobre Îsis e Osiris] De liberis educandis [Sobre a educação dos filhos] Moralia [Preceitos morais] Muliemm virtutes [Virtudes das mulheres] Non posse suaviter vivi secundum Epicumm [A vida agradável proposta por Epicuro não é possível] De Pompeio [Sobre Pompeio] Praecepta gerendae reipublicae [Conselho sobre a vida pública] Quaestiones romanae [Questões romanos] De sera numinis vindicta [Sobre a demora da vingança divina] Vitae [Vidos]

De beneficius [Sobre os benefícios] De brevitate vitae [Sobre a brevidade da vida] De dementia [Sobre a clemência] Epístolas a Lucílio Epistulae morales [Epístolas morais]

SÓFOCLES

El Oe 7ÿ

Electra Oedipus Tyrannus [Édipo Tirano]

SU ETÔ N IO

Cláudio Domiciano Galba Júlio Nero Tibério Tito Vespasiano

Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares

T ácito

An

Hi

Annales ab excessu Divi Augusti [Anais, depois da morie do divino Augusto] Historiae [Histórias]

T eão

Pg

Progymnasmata [Exerdcios preliminares]

T ucídides

Hi

História da Guerra do Peloponeso

V alério M á x im o

Fc ac di

Factorum ac dictomm memorabilium libri [Livros de feitos e ditos memoráveis]

V egécio R enato

Ep re ml

Epitoma rei militaris [Resumo de assuntos militares]

POLÍBIO

Hi

Histórias

X enofonte

H igr Me

P roclo

In Ti

In Platonis Timaeum

XVIII

Historia graeca [História grega] Memorabilia Socratis [Ditos e feitos memoráveis de Sócrates]

Abreviaturas

Manuscritos do mar Morto e textos afins Documento [Regra] de Damasco (encontrado num depósito [genizá] de uma sinagoga do Cairo) Qumran

CD

Q IQ. 3Q. 4Q etc. IQapGen IQH IQIsa^* IQM IQMyst IQpHab IQPs' IQS IQSa IQSb 3QCopper Scroll 4Q139 4Q169 4Q171 4Q174 4Q176 4Q181 4Q186 4Q246 4Q400-407 4Q504 4Q513-14 4QDibHam= 4QEnGiants 4QEn*-s 4QEnastr=-8 4QFlor 4QMess ar 4QMMT 4QpNah 4QPhyl 4QpPs37 4QPrNab 4QPsDanA‘' 4QPssJosh 4QShirShabb 4QTestim 4QtgJob 4QtgLev 5Q15 11QH llQMelch llQpaleoLev llQPs* llQTemple (ou 11QT) llQtgJob

Números das cavernas de Qumran onde foram encontrados os manuscritos; essa sigla vem acompanhada da abreviação ou do número do documento a que se refere Gênesis apócrifo (1Q20) Hinos de ação de graças (ou Hodayot) Primeira e segunda cópias de Isaías Manuscrito da Guerra (ou Milhamah) Mistérios (1Q27) Comentário [Pésher] de Habacuque Cópia do fragmento de Salmos (IQIO) Regra (ou Preceito) da comunidade, Manual de disciplina (ou Serek ha-Yahad) Regra messiânica, apêndice A de IQS Regra das bênçãos, apêndice B de IQS Pergaminho de cobre da caverna 3 de Qumran (3Q15) Ordenanças ou comentários sobre as leis bíblicas Comentário {Pésher) de Naum Comentário {Pésher) de Salmos (V . 4QFlor) Consolações (ou Tanhumim) Eras da Criação (v. 4QMess ar) (v. 4QPsDanA'‘) (v. 4QShirShabb) Palavras dos luminares Ordenanças ou comentários sobre as leis bíblicas Palavras dos luminares‘ (4Q504) fragmentos de lEnoque, do Livro dos gigantes (4Q203) fragmentos de lEnoque (4Q201-212) fragmentos de lEnoque, do Livro astronômico (4Q208-211) Florilegium ou Midrashim escatológicos (4Q174) Texto “messiânico” aramaico (4Q534) Miqtsat Ma'ase ha-Torah (4Q394-399) Comentário pésher de Naum (4Q169) Filactérios (4Q128-148) Comentário [Pésher) de Salmos 37 de Qumran Oração de Nabonido (4Q242) Escritos do pseudo-Daniel (4Q246) Salmos de Josué (4Q379) Cânticos do sacrifício do Sábado ou Liturgia angélica (4Q400-407) Testimonia (4Q175) Targum de Jó (4Q157) Targum de Levítico (4Q156) Nova Jerusalém Hinos (11Q15-16) Melquisedeque (11Q13) Levítico em escrita paleo-hebraica (llQ l) Pergaminho dos Salmos (11Q5) Pergaminho do Templo (11Q19) Targum de Jó (IIQIO)

Material targúmico Tg Et /,// Tgfrag Tg iem TgIs TgKet

Primeiro ou Segundo Targum sobre Ester Targum fragmentário Targum iemenita Targum sobre Isaías Targum sobre os Escritos

TgNeb Tg Neof

XiX

Targum sobre os Profetas Targum neofiti i (com esse nome por ter permanecido de 1602 a 1886 no Collegium Ecclesiasticum Neophytum [ou Pia Domus Neophytum])

Dicionário teológico do Novo Testamento

Tg Jõ Tg Ôn Tg ps-J

Targum de Jônatas Targum de Ônquelos sobre a Torá Targum de pseudo-Jônatas sobre o Pentateuco

Tg sa

Targum samaritano

Tg Yer i

Targum hierosolimitano i

Tg Yer ii

Targum hierosolimitano ii

Ordem e tratados da Mishná [Repetição/Explicação], da Toseftá [Suplemento] e do Talmude [Instrução] Os tratados da Mishná (mais antiga compilação da Lei oral, redigida em aramaico sob a supervisão de Judá HaNasi), da Toseftá (segunda compilação da lei oral no período de redação da Mishná), do Talmude babilónico e do Talmude de Jerusalém que tenham o mesmo nome são diferenciados respectivamente pelas letras m .,t.,b.e y. ‘Abod. Zar ’Abot Arak. B. Bat. Bek. Ber. Betsa Bik. B. Mets. B. Qam. Dem. •Ed. ‘Erub. Git. Hag. IJal. Hör. IJul. Kelim Ker. Ketub. Kil. Ma'ai Ma'ai. Sheni Mak Maksh. Meg. Me'il. Menah. Mid. Miqw. Mo'ed Mo ‘ed Qat Nashim

Aboda Zara [Idolatria] Abot [País] ‘Arakin [Votos de avaliação] Baba Batra [Último portão] Bekorot [Primogênitos] Berakot [Bênçãos] Betsa [= Yomjob) [Dias festivos] Bikkurim [Primeiros frutos/ Primícias] Baba MetsVa [Portão do meio] Baba Qamma [Primeiro portão] Demai [Produto sem dízimo certo] 'Eduyyot [Testemunhos] ‘Erubin [Fusão dos limites do sábado] Gittin [Certidões de divórcio] IJagiga [Oferta festiva] Halla [Oferta de massa] Horayot [Instruções] IJullin [Animais mortos para comer] Kelim [Vasos] Keritot [Extirpação] Ketubot [Certidões de casamento] KiVayim [Tipos diversos] Ma ‘aserot [Dízimos] Ma 'aser Sheni [Segundo dízimo] Makkot [Açoites] Makshirin ( = Mashqin) [Os que legam de antemão] Megilla [Rolo de Ester] Me‘ila [Sacrilégio] Menahot [Ofertas de manjares] Middot [Medidas] Miqwa’ot [Tanques de imersão] Mo'ed [Festas fixas] Mo ‘ed Qafan [Dias de meia-festa] Nashim [Mulheres]

Nazir Ned. Neg Nez. Nid. Ohol. ‘Or Para Pe’a Pesah. Qidd. Qinnim Qod. Rash Hash. Shabb. Sanh. Sheb. Shebu. Sheqal. Sota Sukk Ta'an. Tamid Tem. Ter Tohar T Yom ■Uq. Yad. Yebam. Yoma Zabim Zebah. Zer

Nazir [0 voto do nazireado] Nedarim [Votos] Nega‘im [Sinais de lepra] Neziqin [Danos] Niddah [A menstruada] Oholot [Tendas] 'Orla [Fruto das árvores novas] Para [A novilha vermelha] Pe’a [Respigos] Pesahím [Festa de Páscoa] Qiddushin [Noivados] Qinnim [Ofertas de aves] Qodashin [Coisas sagradas] Rosh Hashshana [Ano-novo] Shabbat [Sábado] Sanhedrin [Sinédrio] ShebVit [Sétimo ano] Shebu‘ot [Juramentos] Sheqalim [Sidos pagáveis] Soja [A adúltera suspeita] Sukka [Festa dos Tabemáculos] Ta‘anit [Jejum] Tamid [0 holocausto diário] Temura [Oferta substituída] Terumot [Ofertas alçadas] Toharot [Limpeza] Tebul Yom [Aquele que se emergiu naquele dia] 'Uqtsin [Hastes] Yadayim [Mãos] Yebamot [Cunhadas] Yoma (= Kippurim) [Dia da Expiação] Zabim [Os que sofrem fluxo] Zebahim [Ofertas de animais] Zera'im [Sementes, em relação às contribuições]

Outras obras rabínicas Abot R. Nat. Ag. Ber Bab. Bar Der. Er Rab. Der. Er Zuõ.

Abot [Pais] do rabino Natã 'Aggadat Bereshit [Midrash de Gênesis] Gemará babilónica Baraita [Material externo ou excluído] Derek Erets Rabba (Um dos tratados) menores do Talmude) Derek Erets Zuta (Um dos tratados) menores do Talmude)

Gem. Kalla Mek. Midr Pal. Pesiq. R. Pesiq. Rab Kah. Pirqe R. El. X

Gemará [Completude] Kalla [Ti-atado extracanônico sobre 0 Talmude] Mekilta [Comentário] Midrash [Estudo textual] (citado ao lado de abreviações de livros da Bíblia) Gemará palestina Pesiqta [Homilia] Rabbati Pesiqta [Homiiía] de Rab Kahana Pirqe de Rabi Eliezer

Abreviatura! Pirqe Ab. Rab.

Sipra Sipre

Pirqe Aboth [Dizeres dos pais] Rabbah [Comentário] (seguido de abreviações de livros da Bíblia: Rab. Gn = Rabbah de Gênesis) Sipra [Midrash de Levítico] Sipre [Midrash de Números e Deuteronômio]

Sop. S. ‘OlamRab. Talm. Tsem. Yal.

Soperim [Escribas] Seder ‘Olam Rabbah [A grande ordem do mundo] Talmude Tsemahot Yalqut [Antologia] (seguido do nome do autor)

Manuscritos da Biblioteca de Nag Hammadi AtPe 12 Ap Alógenes AfTg AfJo ApAd lA p T g 2Ap Tg Ap Pa ApPe Asclepio Di sv Dc8,9 En of Ep Pe Fi Eugnostos Exal Eveg EvFi Ev To Ev vd Grpo Hi ar Hypsiph. In CO Marsanes

Atos de Pedro e dos doze apóstolos Alógenes Apócrifo de Tiago Apócrifo de João Apocalipse de Adão Primeiro apocalipse de Tiago Segundo apocalipse de Tiago Apocalipse de Paulo Apocalipse de Pedro Asclépio 21—29 Diálogo do salvador Discurso sobre o oitavo e o nono Ensinamento oficial Epístola de Pedro a Filipe Eugnostos, 0 Abençoado Exegese da alma Evangelho dos egípcios Evangelho de Filipe Evangelho de Tomé 0 evangelho da verdade 0 conceito de nosso grande poder Hipóstase dos arcontes Hypsiphrone Interpretação do conhecimento Marsanes

Ml Norea Un Ba A BaB BaC Eu A EuB Or mu Pf Sem OrPa Orgr Se Sx So Js Cr Es Se En Si Te vd To Co TY Tdrs TdSe Tdtr Pr tr Ex va Zo

Melquisedeque 0 pensamento de Norea Sobre a unçno Sobre o batismo A Sobre o batismo B Sobre o batismo C Sobre a eucaristia A Sobre a eucaristia B Sobre a origem do mundo Paráfrase de Sem Oração do apóstolo Paulo Oração de ação de graças Sentenças de Sexto A sophia de Jesus Cristo As três esteias de Sete Os ensinamentos de Silvano Testemunho da verdade Livro de Tomé, o Combatedor Thjvão, mente perfeita Tratado sobre a ressurreição Segundo tratado do grande Sete Tratado tripariite Protenoia trimórfica Exposição valentiniana Zostrianos

Obras de consulta avulsas ou em coleções e periódicos AARAS

AB ABD

ABQ ABR ACNT

AGJU

AGSU

A JT ALGHJ

AnBíb ANRW

A N TC

ArBib

American Academy of Religion academy series Anchor Bible Anchor Bible dictionary, org. D. N. Freedman American Baptist Quarterly Australian Biblical Review The Augsburg commentary on the New Testament Arbeiten zur Geschichte des antiken Judentums und des Urchristentums Arbeiten zur Geschichte des Spätjudentums und des Urchristentums American Journal of Theology Arbeiten zur Literatur und Geschichte des hellenistischen Judentums Analecta biblica Aufstieg und Niedergang der römischen Welt Abingdon New Testament commentary The Aramaic Bible

AThANT ÄTR

AusBR AUSS

BAFCS

BACD

BAR BBB BBR Ba BDB

BDF

XXI

Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments Anglican Theological Review Australian Biblical Review Andreas University Seminary Studies The Book of Acts in its first century setting W. Bauer, W. F Arndt, F W. Gingrich, F. W. Danker, A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature Biblical Archaeology Review Bonner biblische Beiträge Bulletin for Biblical Research Brown classics in Judaica Francis Brown, S. R. Driver e Charles Briggs, Hebrew and English lexicon of the Old Testament F. Blass, A. Debrunner, R. W. Funk, A Greek grammar of the New Testament and other early Christian Literature

Dicionário teológico do Novo Testamento BECNT

BETL

BGU

Bib BIS BJS

BibRes BJRL

BNTC

Bsac BT BTB BTS BZNW

CAH CBET

CBQ CBQMS

Baker exegetical commentary on the New Testament Bibliotheca ephemeridwn theologicarum lovaniensium Ägyptische Urkunden aus den Museen zu Berlin Griech. Urkunden (15 v., 1895-1983) Biblica Biblical interpretation series Broun Judaic studies Biblical Research Bulletin of the John Rylands University Library of Manchester Black’s New Testament commentary Bibliotheca Sacra The Bible Translator Biblical Theology Bulletin Biblisch-Theologische Studien Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Cambridge ancient history Contributions to biblical exegesis and theology Catholic Biblical Quarterly Catholic Biblical Quarterly monograph series Cambridge Commentaries on writings of the Jewish and Christian world 200 B.C. to A. D.

200 CGB CGNH

CGTC

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Col ConB ConBNT ConNT CovQ aUNT CTJ

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Códice gnóstico de Berlim Códices gnósticos de Nag Hammadi Cambridge Greek Testament commentary Corpus Inscriptionum Latinarum Colloquium: The Australian and New Zealand Theobgical Society Coniectanea biblica Coniectanea biblica neotestamentica Coniectanea neotestamentica Covenant Quarterly Compendia rerum iudaicarum ad novum testamentum Calvin Theological Journal Concordia Theological Monthly Criswell Theological Review Communio viatorum Dissertationes humanaram litterarum Dictionary of Jesus and the Gospels, org. J. B. Green, S. McKnight e I. Howard Marshall Dictionary of the later New Testament and its developments, org. R. P. Martin e P. H. Davids Dictionary of New Testament background, org. C. A. Evans e S. E. Porter Dicionário de Paulo e suas carias, org. R. P. Martin, G. F. Hawthorne e D. G. Reid

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Downside Review Daily study Bible The expositor’s Bible commentary Epworth commentaries Exegetical dictionary of the New Testament, org. H. Balz e G. Schneider The Expositor’s Greek Testament Ecumenical Studies in Worship Erfurter Theologische Studien Evangelical Quarterly Evangelische Theologie An International Journal for the Theological Interpretation of Scripture Expository Times Facet books Facet books, biblical series Foundations and facets Fontes iuris romani antejustiniani The foundation of Judaism Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments Guides to biblical scholarship Grove liturgical studies Good news studies Grace Theological Journal Horizons in biblical theology Harvard dissertations in Religion Hermeneia Handbuch zum Neuen Testament Harper's New Testament commentaries History of religions Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testament Harvard Theological Review Harvard theological studies Hebrew Union College Annual Hermeneutische Untersuchungen zur Theologie Historische Zeitschrift Irish Biblical Studies International critical commentary Interpreter’s dictionary ofthe Bible Interpreter’s dictionary ofthe Bible, supplementary volume Israel Exploration Journal Inscriptiones latinae selectae (Berlim, 1892) Interpretation Interpretation commentaries Issues in religion and theology International standard Bible encyclopedia (ed. rev.) InterVarsity Press New Testament commentary Journal of the American Academy of Religion Journal of Biblical Literature Journal of Bible and Religion Journal of Comparative Sociology and Religion Journal of Ecclesiastical History

Abreviaturas

JES JETS jjs jp T s u p

JQR JR ms js j

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jTs (n.s.) JTSA KP LEO Louw-Nida LSJ

Journal of Ecumenical Studies Journal of the Evangelical Theological Society Journal of Jewish Studies Journal of Pentecostal Theology Supplement Series Jewish Quarterly Review Journal of Religion Journal of Roman Studies Journal for the Study of Judaism in the Persian, Hellenistic and Roman Period Journal for the Study of the New Testament Journal for the Study of the New Testament Supplement Series Journal for the Study of the OM. Testament Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series Journal for the Study of the Pseudepigrapha and Related Literature Supplement Series Journal for Theology and the Church Journal of Theological Studies Journal of Theological Studies (nova série) Journal of Theology for Southern Africa Der kleine Pauly Library of early Christianity Greek-English lexicon, org. J. P. Louw e E. A. Nida Liddell, Scott e Jones, GreekEnglish lexicon

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NTAbh NTC NTCOm

N IC NTS N TT OB T

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PBSR

PC PEO

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L

LW

Luther's works, org. J. Pehkan e H. T. Lehmann Monumenta Asiae Minoris antiqua J. H. Mouhon e G. Milligan, The vocabulary of the Greek Testament, illustrated from the papyri and other non-literary sources (1930) Moffatt New Testament commentary A manual of Palestinian Aramaic texts Moravian Theological Seminary: Bulletin Le Museon Nestle-Aland Novum Testamentum graece, 26. ed. NatioTwl association of baptist professors of religion special studies The New American commentary New century Bible commentary New Clarendon Bible Neotestamentica New documents illustrating early Christianity, org. G. H. R. Horsley Nag Hammadi codices

MAMA

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Nag Hammadi studies The new interpreter’s Bible commentary The new international commentary on the New Testament New international dictionary of New Testament theology Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento New international Greek Testament commentary New International Version application commentary Novum Testamentum Supplement to Novum Testamentum New studies in biblical theology Neutestamentliche Abhandlungen TPI New Testament commentaries New Testament commentary (Baker) New Testament guides New Testament Studies New Testament theology Overtures to biblical theology Oxford classical dictionary Orientis graeci inscriptiones selectae, org. W. Dittenberger The Old Testament Pseudepigrapha, org. J. H. Charlesworth Papers of the British School at Rome Proclamation commentaries Palestine Exploration Quarterly Patrologiae graeca, org. J.-P. Migne. 152 v. Patristic Greek lexicon, org. G. W. H. Lampe Patrologia latina, org. J.-P. Migne. 217 v. Pillar New Testament commentary Perspectives in religious studies Princeton Seminary Bulletin supplementary issue Pittsburgh theological monograph series Quaestiones disputatae Reallexikon für Antike und Christentum Revue biblique Risk book series Review and Expositor Revue de Qumran Religion in Geschichte und Gegenwart Religions in the Graeco-Roman world Revue d'histoire ecclésiastique Revue d'histoire et de phibsophie religieuses Restoration Quarterly Ricerche Religiose Religious Studies Bulletin

T r a n slit e r a ç â o E DO H

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n = p

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P = b

TT =

P = R

=

=

0 0

P

= d

1= ô

r = G

= h

1 = ü

y = g

P = r

= w = z

^ = ã

A = D

S = S

ô = d

a/ç = s

E = E

T = T

£ = e

T =

Z = Z

Y = Y

Ç = z

o = y

H = E

= ph

0 = Th

X = Ch

9 = th

X = ch

1= I

»F = Ps

i = i

= ps

= ts

K = K

fi = Õ

P= q

K = k

(J = õ

A =L

'P = Rh

íl? = s

X =1

p = rh

u; =

M = M

‘ = h

= h

= ê = õ

D = t

’ = y

Vogais breves = a

D = k

■ 7= 1

D= m

. ^

^ = i

: = n

, = 0

D = s

. = u

V = ‘ D =

p

"I = r

Semivogais

(se sonora)

sh

li = m

n = t

t

= nx

N =N

yy = ng

V =n

au = au

H =X

£u =

eu

^ =X

ou =

ou

ui = ui

XXV

Dicionário teológico do Novo Testamento RTF

SacP SAJ SANT

SB SBBC

SBL SBLASP

SBW S

SBLMS

SBLSBS

SBLSP

SBT

Schürer

scs SE

SEA SEG

SIC SHR SHT

SJ SJLA

SJT sn o p SNTW

SNTSMS

SNTSU

SPB SR

Reformed Theological Review Sacra pagina Studies in Ancient Judaism Studien zum Alten und Neuen Testament Sources bibliques Studies in the Bible and early Christianity Studies in biblical literature Society of Biblical Literature abstracts and seminar papers Society of Biblical Literature dissertation series Society of Biblical Literature monograph series Society of Biblical Literature sources for biblical study Society of Biblical Literature seminar papers Studies in biblical theology E.Schiirer, The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175 a.C.-135 d.C.), rev. e ed. G. Vermes et al. (3 v.; Edimburgo: 1973-1987) Septuagint and cognate studies Studia evangelica Svensk exegetisk ãrsbok Supplementum epigraphicum graecum (Leiden. 1923-) Suomen eksegeettisen seuran julkaisuja South Florida studies in the history of Judaism Sylloge Inscriptionum Graecarum Studies in the history of religions Studies in historical theology Studia judaica Studies in Judaism in Late Antiquity Scottish Journal of Theology Scottish Journal of Theology Occasional Papers Studies in the New Testament and its world Society for New Testament studies monograph series Studien zum Neuen Testament und seiner Umwelt Studia post-biblica Studies in Religion

ST STDJ

Str-B StudLit SWJT TBC TD TDGR

TD NT

TEH

TheolRev Tl

Tj (n.s.) TLZ TNTC

TOP TPINTC

TS

TSFBul TToday TU

TynB TZ USQR VC

VoxEv VT VTSU p WA WBC WEC W MANT

WTJ WUNT

z s :n t

ZThK

XXIV

Studia theologica Studies on the texts of the deseri of Judah Strack e Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament Studia liturgica Southwestern Journal of Theology Torch Bible commentaries Theology digest Translated documents of Greece and Rome, org. R. K. Sherk Theological dictionary ofthe New Testament, org. G. Kittel e G. Friedrich Theologische Existenz heute (nova série) Theological Review (Beirute) Theological inquiries Trinity Journal (nova série) Theologische Literaturzeitung Tyndale New Testament commentary Theology occasional papers Trinity Press International New Testament commentaries Theological Studies TSF Bulletin Theology Today Texte und Untersuchungen Tyndale Bulletin Theologische Zeitschrift Union Seminary Quarterly Review Vigiliae christianae Vox evangelica Vetus Testamentum Vetus Testamentum supplements Weimar Ausgabe Word biblical commentary Wycliffe exegetical commentary Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament Westminster Theological Journal Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Zeitschrift für Religions und Geistesgeschichte Zacchaeus Studies: New Testament Zeitschrift für Theologie und Kirche

C o la bo r a d o r es A l l i s o n J r .,

Dale C., ph.D . Professor da cátedra Er-

Barry L., ph.D. Professor, Atlanta Chris­

B la c k b u rn ,

rett M. Grable de Exegese do Novo Testamento

tian College, East Point, Geórgia,

e Cristianismo Primitivo, Pittsburgh Theologi­

r e la t o s d e m ila g re s I.

cal Seminary, Pittsburgh, Pensilvânia,

eua: es­

Clinton

E .,

ph.D. Professor de Lingua e

Literatura do Novo Testamento, Talbot School of Theology, La Mirada, Califórnia,

eua; E fé s io s ,

A une, David E., ph.D. Professor de Origens do Novo Testamento e do Cristianismo, Universi­ ty of Notre Dame, Notre Dame, Indiana,

eua;

John M. G„ ph.D. Professor de Origens do

Novo Testamento e do Cristianismo, University of Glasgow, Glasgow, Escócia;

Jesus e P a u lo .

Paul W., ph.D. Bispo jubilado da Igre­

ja Anglicana do Norte de Sydney, Diocese de Sydney, Sydney, South New Wales, Austrália: Scott, ph.D. Diretor do

u c la

Center for

the Study of Religion [Centro de Estudos da Re­ ligião da

u c la ]

e professor adjunto de Origens

Cristãs e História da Religião no Departamento de História, University of California, Los Ange­ les, Califórnia, B au ckh am ,

Seminary, Dallas, Texas, eua;

mes A. Maxwell de Teologia Bibhca, Seminário silvânia,

cátedra Rylands de Crítica e Exegese Biblica, University of Manchester, Manchester, Reino Unido; B u rge,

C a lv e r t - K o y z is ,

caster, Ontário, Canadá; C a m p b e ll,

David R., ph.D. Professor de Estudos Bíbli­

cia; C h ilt o n ,

eua; F ilh o d e D a v i; F ilh o d e D eu s i.

Gregory K., ph.D. Professor da cátedra Ken­

neth T. Wessner de Estudos Bíblicos, professor de Novo Testamento, Wheaton College Gradua­ eua; e s c a t o lo g ia hi.

George R. [in memorian). Profes­

sor de Novo Testamento, Southern Baptist The­ ological Seminary, Louisville, Kentucky, batism o ii; A p o c a lip s e , L iv r o de.

A b ra ã o .

William S., ph.D. Livre-docente de Estu­

University of Birmingham, Birmingham, Reino

cos, Asbury Theological Seminary, Wilmore,

B e a s le y - M u r r a y ,

Nancy, ph.D. Professora de Religião

e Teologia, Redeemer University College, An-

a lia n ç a . N o v a A u a n ç a ; I s r a e l ii.

Chrys

C.

th.D. Professor de Exegese do

Novo Testamento, Lund University, Lund, Sué­

P e d r o , S egu n d a C a r t a de.

te School, Wheaton, Illinois,

eua;

J o ã o , C a r ta s de.

Unido;

B e a le ,

P a u lo em A t o s e n as c a rta s .

Gary M., ph.D. Professor de Novo Testamen­

C a r a g o u n is ,

S t.

eua; ju s t iç a / r e t id ã o ii.

F. F., D. D. [in memorian). Professor da

B ru c e ,

Mary’s College, Uni­

Kentucky,

Lu ca s, E v a n g e lh o de.

Manfred T , ph.D. Professor da cátedra Ja­

B ra u c h ,

dos Religiosos e Teológicos, Westhill College,

eua: com u n h ã o À mesa.

Richard J., ph.D. Professor de Estudos

do Novo Testamento,

B a u e r,

c o n h a b ilid a d e

Darrell L., ph.D. Professor Pesquisador de-Es-

versity of St. Andrews, St. Andrews, Reino Unido:

E v a n g e lh o s ,

to, Wheaton College, Wheaton, Illinois,

a d v e r s á rio s i; a p ó s t o lo ; s a lva çã o hi. B a r tc h y , s .

B o ck ,

eua:

DOS.

Teológico Batista do Leste, Wynnewood, Pen­

a p o ca lip tism o .

B a rn e tt,

ver, Colorado, h is t ó r ic a

tudos do Novo Testamento, Dallas Theological

C a r t a aos.

B a r c la y ,

Craig L., ph.D. Professor com distinção

B lo m b e rg ,

de Novo Testamento, Denver Seminary, Den­

c a t o lo g ia I. A r n o ld ,

eua; m ila g re s ,

eua;

R e in o d e D eu s i.

Bruce D., ph.D. Professor da cátedra Ber­

nard Iddings Bell de Religião, Bard College, Annandale, Nova York,

eua; ju daísm o e o

Novo

T e s ta m e n to ; t r a d iç õ e s e e s c r ito s ra b ín ico s. C o r le y ,

Bruce, th.D. Professor de Novo Testamen­

to, Southwestern Baptist Theological Seminary, Fort Worth, Texas, D a vid s,

eua; Jesus, ju lg a m e n t o de.

Peter H., ph.D. Consultor acadêmico. Igreja

Vineyard, Stafford, Texas,

eua; m ila g re s , r e la t o s

DE m ila g re s II; RIQUEZAS E POBREZA I.

Colaboradores

David A., ph.D. Professor de Novo Testa-

D e S ilv a ,

mento e Grego, Ashland Theological Seminary, Ashland, Ohio,

eua: A p ó c r ifo s e P s e u d e p íg ra fo s .

G ile s ,

Kevin N., th.D. Ministro, Igreja St. Michaels.

North Carlton, Austrália: G reen ,

I g r e j a hi.

Joel B., ph.D. Deao de Assuntos Acadêmicos

John M., ph.D. Professor real (nomeado e

e da Escola de Teologia, Professor de Interpre­

aprovado pela Coroa do Reino Unido) de Gre­

tação do Novo Testamento, Asbury Theological

D illo n ,

go, Trinity College, Dublin, Irlanda:

Seminary, Wilmore, Kentucky,

fi l o s o f i a .

David, ph.D. Diretor e professor de Estu­

D ock ery,

dos Cristãos, Union University, Jackson, Ten­ nessee,

D.

D. Diretor, Centro de Estudo do

Cristianismo e da Sociedade Contemporânea, University of Stirling, Stirling, Reino Unido:

F i­

James D. G., D. D. Professor da cátedra Li-

ghtfoot de Teologia, University of Durham, Durham, Reino Unido:

rária de Novo Testamento, Departamento de Teologia e Estudos Religiosos, University of Aberdeen, Aberdeen, Reino Unido:

versity of Western Ontario e Conrad Grebel College, University of Waterloo; pastor. Igreja Batista de Frank Street, Wiarton, Ontário, Ca­ nadá: E lu s ,

eua: M a r c o s , E va n ­

G u t h r ie ,

Donald, ph.D. (in memorian). Palestrante

D eu s ii.

Scott J., th.D. Cátedra Gerald F. Hawthor­

ne de Grego Neotestamentário, Wheaton College, Wheaton, Illinois,

eua: C o rín tio s , C a rta s aos.

G. Walter, th.D. Diretor do Instituto de

H an sen ,

Testamento, Fuller Theological Seminary, Pasa­ dena, Califórnia, H a w th o r n e ,

eua: G á la ta s , C a r t a aos.

Gerald P., ph.D. Professor emérito de

Grego e Exegese do Novo Testamento, Whea­ ton College, Wheaton, Illinois,

I s r a e l i.

E. Earl, ph.D. Professor pesquisador de Teo­

logia, Southwestern Baptist Theological Semi­ nary, Fort Worth, Texas,

London Bible College, Northwood, Inglaterra:

Pesquisa Global e professor assistente de Novo

R om a.

Mark A., ph.D. Professor adjunto. Uni­

E lu o tt,

nary, Pasadena, Califórnia, g e l h o de.

H a fem an n ,

R o m a n o s, C a r t a aos.

Ruth B., ph.D. Palestrante sênior hono­

E d w a rd s ,

Robert A., th.D. [in memorian). Professor

G u eu ch ,

de Estudos do Novo Testamento e vice-diretor,

l h o d e D eu s hi. Dunn,

dos

de Novo Testamento, Fuller Theological Semi­

eua: batism o i.

John W.,

D ra n e,

eua: A t o s

A p ó s t o lo s ; C r is t o , m o rte d e i; C r is t o , m o r te d e h.

eua: E s p írito S a n ­

t o ih; F iu pen ses, C a r t a aos.

William R., ph.D. Delo do Corpo Do­

H e r z o g h,

cente e professor de Interpretação do Novo

eua: C a r ta s P a s t o r a is .

Richard J., ph.D. Professor assistente de

Testamento, Colgate Rochester Divinity Scho­

Novo Testamento, Fuller Theological Seminary

ol/ Bexley Hall/Crozer Theological Seminary,

E r ic k s o n ,

Northwest, Seattle, Washington, E van s,

Nova York,

eua: c a r n e .

Craig A., ph.D. Professor com distinção da

H u rst,

Estudos da Religião, University of California,

cátedra Payzant de Novo Testamento, Acadia

Davis, California,

Divinity College, Wolfville, Nova Escócia, Ca­ nadá:

H u rta d o ,

a p o ca lip tism o .

eua: te m p lo , p u rific a ç ã o d o .

Lincoln D., ph.D. Professor assistente de

eua: é t ic a i.

Larry W., ph.D. Professor de Lingua, Li­

Stephen G., ph.D. Professor de Pregação e

teratura e Teologia do Novo Testamento, The

Adoração. Knox College, Toronto School of Theo­

University of Edinburgh, Edimburgo, Reino

F a r ris ,

logy, Toronto, Ontário, Canadá: F e rg u s o n ,

Unido:

a d o ra ç ã o / c u lto i.

Everett, ph.D. Professor emérito, Abilene

Christian University, Abilene, Texas,

eua: r e l i ­

K een er,

K im ,

S e r v o d e Jave.

Ronald Y. K., ph.D. Jubilado, Acadêmico e

palestrante residente, China Graduate School of Theology, Hong Kong: G e d d e rt,

Wynnewood, Pensilvânia,

Richard T , ph.D. Jubilado, Diretor, Wycli­

ffe Hall, Oxford, Reino Unido: Fung,

Craig S., ph.D. Professor de Novo Testa­

mento, Eastern Baptist Theological Seminary,

g iõ e s g r e c o -ro m a n a s . France,

c r i s t o l o g i a ii; D eu s i; e v a n g e lh o ( g ê n e r o );

S e n h o r ii; F ilh o d e D eu s ii.

Timothy J., ph.D. Professor assistente de

n.

Fuller Theological Seminary, Pasadena, Califór­ nia, K r e itz e r ,

c o r p o d e C r is t o .

eua: m u lh eres

Seyoon, ph.D. Professor de Novo Testamento, eua: r e in o d e D eu s ih.

Larry J., ph.D. Professor de Novo Tes­

tamento, Regent’s Park College, University of

Novo Testamento, Mennonite Brethren Biblical

Oxford, Oxford, Reino Unido:

Seminary, Fresno, Califórnia,

c a t o l o g i a ii; r e in o d e D eu s ii; r e s s u rr e iç ã o h.

eua: a p o ca u p tis m o .

XXVII

A d ã o e C r is t o ; es­

Dicionário teológico do Novo Testamento

K

Catherine C., ph.D. Professora assisten­

roeger,

O

Metodistas Unidas de Rancocas e Masonville,

Clássicos e Ministeriais, Gordon-Conwell The­ ological Seminary, South Hamilton, Massachu­ setts, K

le, Vitória, Austrália: ane,

William

L .,

mento, Trinity Evangelical Divinity School, De­ P

a ig e ,

th.D. Professor de Estudos Bíbli­

ghton, Nova York, P

eua;

E s p í r it o S a n t o

ii.

Arthur G., ph.D. Professor de Novo Testa­

a t z ia ,

Califórnia, Menlo Park, Califórnia,

H

ebreus,

C

arta aos.

John R., ph.D. Professor de Novo Testa­

e v is o n ,

arshall,

eua;

C r ia ç ã o ,

i;

P

a r t in

,

F il h o

ton, Ontário, Canadá: P

ow ers,

P

.

R

D

eus

ii;

Mark, ph.D. Professor assistente de Estu­

dos BibUcos, Bethel College, St. Paul, Minneso­ eua:

S c h m id t ,

cu lto ii; a d o r a ç ã o /c u lto iil cG rath ,

a u lo , conversão e c h a m a d o d e .

ta,

ad o raç ão /

pecad o h.

Janet Everts, ph.D. Professora assistente de

easoner,

com distinção. Fuller Theological Seminary, eua:

F il e ­

Religião, Hope College, Holland, Michigan, e u a :

Senhor

Ralph P., ph.D. Acadêmico em Residência

Pasadena, Califórnia,

eua;

.

Testamento, McMaster Divinity School, Hamil­

ig r e j a i ; c e ia d o

do hom em

a

Stanley E., ph.D. Diretor, Professor de Novo

orter ,

n o v a c r ia ç ã o .

1. Howard, D. D. Professor emérito de

salvação ;

, C arta

mom

norário de Pesquisa, University of Aberdeen,

R

om a.

Thomas E., ph.D. Santa Bárbara, Califórnia,

e u a : r iq u e z a s e p o b r e z a i i ; r iq u e z a s e p o b r e z a

Alister E., ph.D. Diretor, Wycliffe Hall,

m.

David M., th.D. Professor de Novo Testa­

Sch o ler ,

Professor de Teologia Histórica, Oxford Univer­

mento e vice-reitor do Centro de Estudos Teoló­

sity, Oxford, Reino Unido:

gicos Associados, Fuller Theological Seminary,

c K n ig h t ,

j u s t if ic a ç ã o .

Scot, ph.D. Professor da cátedra Karl A.

Pasadena, Califórnia,

Olsson de Estudos da Religião, North Park Uni­ versity, Chicago, Illinois,

eua:

M

ateus,

S c h r e in e r ,

Seminary, Louisville, Kentucky,

M ichaels, J. Ramsey, th.D. Professor emérito. Sou­

Sco tt,

thwest Missouri State University, Springfield, Missouri,

eu a: P e d r o ,

e u a : m ulh eres i.

Thomas R., ph.D, Professor de Novo

Testamento, The Southern Baptist Theological

E vangelho

d e ; j u s t iç a / r e t id ã o i .

P rimeira

eua:

L

e i h i.

James M., th.D. Professor de Estudos da

Religião, Trinity Western University, Langley, CoMmbia Britânica, Canadá:

C a r t a de.

Moo, Douglas J., ph.D. Professor da cátedra Blan­

S e if r id ,

a d o ç ã o , f il ia ç ã o .

Mark A., ph.D. Professor assistente de

chard de Novo Testamento, Wheaton College

Novo Testamento, The Southern Baptist Theo­

Graduate School, Wheaton, Illinois,

logical Seminary, Louisville, Kentucky,

M

o r r is ,

M

ott,

eua:

L

ei i .

Leon, ph.D. Jubilado, Melbourne, Victoria,

Austrália:

C r is t o ,

salv a ç ão ii; p e c a d o i .

S im p s o n ,

Stephen C., ph.D. Pastor, Igreja Metodista

chusetts, ew m an

,

eua:

a l ia n ç a ;

D

ÉTICA II.

Snodgrass,

eu a: a l ia n ç a ,

eua:

j u íz o h i .

C artas

eua:

T

e s s a l o n i-

aos.

Klyne R., ph.D. Professor da cátedra

Paul W. Brandel de Estudos Neotestamentários, North Park Theological Seminary, Chicago, Illi­

nova

nois,

e u s h i ; j u s t iç a / r e t id ã o h i .

O’Brien, Peter T , ph.D. Pesquisador sênior, Moore

C r is t o ;

John W. Jr., ph.D. Editor, William B. Eerd-

censes,

Carey C., ph.D. Diretor, Editora da Univer­

sidade Baylor, Waco, Texas,

m o r t e d e h i; e m

mans. Grand Rapids, Michigan,

Unida de Cochesett, West Bridgewater, Massa­ N

ph.D. Professor assistente de

mento, Fuller Theological Seminary, Norte da

eua;

Aberdeen, Reino Unido:

M

e u a : r e s s u r r e iç ã o i .

shington,

Exegese do Novo Testamento e professor ho­

M

P .,

Walls, Seattle Pacific University, Seattle, Wa­

shington,

M

Terence

Novo Testamento, Houghton College, Hou­

mento, Seattle Pacific University, Seattle, Wa­ M

erfield, lUinois,

apó sto lo .

cos da cátedra em honra do falecido Paul T.

L

e u a : j u s t iç a / r e t id ã o i i .

Grant R, ph.D. Professor de Novo Testa­

sborne,

e u a : m u lh e res iii,

Pós-gradução, Bible College of Victoria, LilydaL

Nova Jérsei, O

Colin C., ph.D. Coordenador de Pesquisa na

ruse,

Karen L., ph.D. (Cand.) Pastora, Igrejas

n e s t i,

te temporária ou de tempo parcial de Estudos

Stam ps,

eu a: parabo las.

Dennis L., ph.D. Diretor, West Midlands

Theological Seminary, Newtown, New South

Ministerial Training Course, The Queens Foun­

Wales, Austrália:

dation for Ecumenical Theological Education,

ig r e ja

ii;

C o lo s s e n s e s ,

C a rta

Birmingham, Reino Unido:

a o s ; c a r t a s , fo r m a s d e c a r t a s i.

XXVIII

r e t ó r ic a .

Colaboradores

University, Durham, Carolina do Norte,

w. Richard, ph.D. [in memorian] Profes­

Stegner,

sor de Novo Testamento, Garrett-Evangelical Theological Seminary, Evanston, Illinois, P

au lo ,

S t e in ,

eua:

atson,

eua; T ia g o , C a r t a de.

Duane P., ph.D. Professor de Novo Tes­

CARTAS, FORMAS DE CARTAS II.

eua:

Ú

l t im a

C e ia ;

P

ro blem a

W ebb,

eua:

Robert L., ph.D. Professor assistente tempo­

Jerry L., ph.D. Professor de Estudos Bíbli­

rário ou de tempo parcial de Novo Testamento,

cos, Lexington Theological Seminary, Lexing­

McMaster Divinity College, Hamilton, Ontário, Canadá:

a d v e r s á r io s i i .

Frank S., ph.D. Professor presbiteriano

W

il k in s ,

Judas, C a r t a de.

Michael

J .,

ph.D. Professor de Lingua e Li­

de Teologia, Beeson Divinity School, Birmin­

teratura do Novo Testamento, Deão acadêmico,

gham, Alabama,

Talbot School of Theology, La Mirada, Califór­

h om pso n,

eua;

L

ei ii.

ological Seminary, Pasadena, Califórnia, JoAo, r a v is ,

E vangelho

e u a : d is c íp u l o s ; p e c a d o r e s .

Michael O., ph.D. Professor de Bíblia e His­

lege, Saint Paul, Minnesota, MAR M W

e u a : m a n u s c r it o s d o

o rto .

i t h e r in g t o n h i,

Ben, ph.D. Professor de Novo Tes­

tamento, Asbury Theological Seminary, Wil­

i i ; r e s s u r r e iç ã o h i .

Max M. B., ph.D. Professor de Estudos

Neotestamentários, London Bible College, Nor­ thwood, Reino Unido:

is e ,

tória, Consultor acadêmico. Northwestern Col­

eua:

Stephen H., ph.D. Vice-diretor, St. John's

do: jufzo i; jufzo

e rh e y,

W

de.

College, Nottingham, Nottingham, Reino Uni­

urner,

nia,

Marianne Meye, ph.D. Professora de

Interpretação do Novo Testamento, Fuller The­

W

ton, W

isville, Kentucky,

h ie l m a n ,

V

Robert W., th.D. Professor de Escrituras Cris­

tamento, Malone College, Canton, Ohio,

ton, Kentucky, USA:

T

e u a: ba­

h.

Southern Baptist Theological Seminary, Lou­

S iNÓTICO.

T

Senhor

tãs, Seattle Pacific University, Seattle, Washing­

Robert H., ph.D. Professor da cátedra Mil­

SuM NEY,

T

W a ll,

o Ju d e u .

dred e Ernest Hogan de Novo Testamento, The

T

t i s m o h i ; c e ia d o

E s p í r it o S a n t o

more, Kentucky, i; C

r is t o

ii;

C

S e n h o r i; S e n h o r

i.

Allen D., ph.D. Professor da cátedra Evert

Y a m au ch i,

eua:

r is t o

Je su s,

n a s c im e n t o d e ;

i h ; c r is t o l o g i a

i;

h i.

Edwin M., ph.D. Professor de História,

J. e Hattie E. Blekkink de Religião, Hope Col­

Miami University, Oxford, Ohio,

lege, Holland, Michigan,

Mo; sin a g o g a .

a in w r ic h t ,

e u a : é t ic a m i .

Geoffrey, th.D.,

dd.

Professor da

cátedra Cushman de Teologia Cristã, Duke

XXIX

C r is t o

Jo ã o B a t is t a ;

eua: g n o s tic is -

A

ba

.

Ver a d o ç ã o ,

trava batalhas contra alguns reis (Gn 14.1-16)

f il ia ç ã o .

encontra-se com Melquisedeque (Gn 14.17-20) A

braão:

N

ovo

T

estam ento

Personagem-chave na literatura judaica primitiva,

Deus firma aliança com ele (Gn 15.7-21; 17.2,4) une-se com Agar e nasce Ismael (Gn 16.1-15); Deus

Abraão é mencionado nos quatro Evangelhos e

ordena que Abraão e seus descendentes sejam cir­

desempenha um papel fundamental nas cartas de

cuncidados (Gn 17.9-14); o nascimento de Isaque é

Paulo aos Gálatas e aos Romanos. Autores posterio­

prometido (Gn 17.15-21); nasce Isaque (Gn 21.1-7);

res do NT continuam a valer-se de Abraão, de modo

Abraão dispõe-se a entregar Isaque em oferta

significativo em Atos e Hebreus e em grau menor

(Gn 22.1-19); Sara morre e é sepultada (Gn 23.1-20). Quatro temas primordiais são encontrados no

em Tiago e 1Pedro. 1. 0

AT

e a literatura judaica

relato de Gênesis: a promessa divina de que Abraão

2. Os Evangelhos Sinóticos

teria muitos descendentes (Gn 12.2; 13.16; 15.5

3. 0 Evangelho de João

17.2,4; 22.17); a dádiva de uma terra (Gn 12.7

4. Atos dos Apóstolos

13.14,15; 15.7); a obediência de Abraão (Gn 12.1-4

5. As cartas de Paulo

17.1; 22.16-18); a bênção posterior de todas as na­

6. Hebreus

ções por meio de Abraão (Gn 12.3; 22.18). No

7. Tiago e IPedro

AT,

Abraão exerce três funções principais.

Em primeiro lugar, ele é o pai do povo judeu 1. O AT e a literatura judaica

(Gn 25.19; 26.15,24; 28.13; 32.9; 48.15,16; Êx 3.6;

O papel desempenhado pelos patriarcas foi sendo

Dt 1.8; 6.10; 9.5; 30.20; Js 24.3; ICr 1.27,28,34;

cada vez mais importante para o povo judeu depois

16.13; SI 105.6; Is 41.8; Jr 33.26; Mq 7.20). Em

de retornar do Exílio na Babilônia. Abraão foi um

segundo lugar, é a fonte originária das bênçãos

desses personagens importantes, cuja elevada re­

que recaem sobre o povo judeu (Gn 26.24; 28.4

putação repercute tanto no

nt

quanto na literatura

judaica extrabíblica. 1.1

35.12; 50.24; Êx 2.24; 6.3-8; 32.13; 33.1; Nm 32.11 Dt 1.8; 6.10; 9.5,27; 29.13; 30.20; 34.4; 2Rs 13.23

Abraão no xr. Relatos posteriores de Abraão ICr 16.15,16; 2Cr 20.7; SI 105.7-11,42; Is 51.2

baseiam-se nas histórias encontradas em Gênesis a

Mq 7.20). Em terceiro lugar, seu nome é usado para

respeito do patriarca. A vida de Abraão é retratada no

identificar o Deus do povo judeu como “ o Deus de

primeiro livro da Bíblia hebraica, desde sua inclusão

Abraão” (Gn 28.13; 31.42,53; 32.9; Êx 3.6,15,16;

na genealogia do pai, Terá (Gn 11.27), até sua morte

4.5; IRs 18.36; ICr 29.18; 2Cr 30.6; SI 47.9).

e sepultamento (Gn 25.7-10). Os principais aconteci­

Abraão exerce ainda três outras funções dignas

mentos da vida de Abraão são: separa-se do pai e sai

de nota. Sua obediência a Deus e às leis divinas

do lugar de nascimento (Gn 12.1); permanece algum

(Gn 26.4,5; v, tb. Ne 9.7,8) serviu de base para as

tempo no Egito e em Gerar (Gn 12.10-20; 20.1-18);

bênçãos de que seus descendentes foram alvo. Às

A b r a ã o : N o v o T estamento

vezes, recorre-se à compaixão de Deus para com o

Abraão está vivo (4Mc 7.19; 16.25; Te Le, 18.14;

povo judeu, tendo por base a aliança que ele fir­

Te Ju, 25.1; Te Be, 10.6) e elogia os que morrem

mou com Abraão (Dt 9.27; 2Rs 13.23; Mq 7.18-20).

para cumprir a Lei (4Mc 13.13-18). Abraão fir­

Por último. Deus tirou Abraão do meio da idola­

mou a aliança ao ser circuncidado (Eo 44.20).

tria (Js 24.2,3).

Além de tudo isso, ele se destaca pelo que é ca­

1.2 Abraão na literatura judaica primitíva.

paz de conquistar por meio da intercessão [Te

Os autores da literatura judaica de 200 a.C. a 200

Ab, 18.10,11A) e por sua ascensão aos céus, onde

d.C. fizeram uso de muitos temas encontrados

recebe revelação

nos relatos do

W— U ;A p A b , 15.4-30).

at,

relacionando-os às circunstân­

(P s e u d o - F ilo ,

An bí, 18.5; Te Ab,

cias específicas desses mesmos autores. Josefo e Filo retratam Abraão como alguém que assimila a

2. Os Evangelhos Sinóticos

cultura pagã, sobretudo a helem'stica (e.g.,

J o sefo ,

Abraão é mencionado em todos os Evangelhos

Ab, 88). Em outros tex­

Sinóticos (Mt 1.1,2,17; 3.9; 8.11; 22.32; Mc 12.26;

tos, Abraão é alguém que se isola da influência

Lc 1.55,73; 3.8,34; 13.16,28; 16.22-30; 19.9; 20.37).

An, 1.8.2, § 166-8;

F ilo ,

An bí, 6.4). Os

2.1 Tradiqões sobre Abraão comuns aos três

autores desses textos têm motivações apologéticas

Sinóticos. Abraão é mencionado apenas uma vez

gentílica {Jb, 22.16;

P s e u d o -F ilo ,

e didáticas. Os judeus são instruídos a viver em

em Marcos (Mc 12.26), e aí no contexto da pergun­

suas circunstâncias da mesma maneira que a li­

ta feita pelos saduceus a respeito do estado conju­

teratura retrata Abraão vivendo em seu tempo e

gal, na ressurreição, da mulher que se havia casado com sete irmãos consecutivamente (Mc 12.18-27;

circunstâncias. Quatro temas principais são encontrados nes­

V.

tb. Mt 22.23-33; Lc 20.27-40). Os saduceus, que

ses textos. Primeiro: o realce sobre Abraão como

não criam na ressurreição (Mc 12.18; Mt 22.23;

monoteísta ferrenho, muitas vezes retratado como

Lc 20.27), apresentam a ideia como um absurdo

0 primeiro do tipo, é predominante em textos da

dentro dos relacionamentos humanos da época.

Palestina e da Diáspora de 200 a.C. a 200 d.C. 11.16,17; 12.1-5,16-21; 20.6-9;

(J b ,

An bí, 6.4; J o s e fo , An, 1.7.1, § 154-7;

Em Marcos e Mateus, Jesus dá aos saduceus

P s e u d o - F ilo ,

uma resposta em duas direções, uma vez que eles

Ab, 68-

nem conhecem “as Escrituras nem o poder de

71,88; Ap Ab, 1—8). Segundo: Deus estabelece

Deus” (Mc 12.24; Mt 22.29). Pelo poder de Deus,

uma aliança com Abraão por meio da qual seus

os que ressuscitaram dos mortos são como anjos

descendentes são abençoados [Jb, 15.9,10;

P se u ­

e não se casam. Assim, o casamento torna-se ob­

An bí, 7.4; IQapGen 21.8-14), sendo eles

soleto. Em segundo lugar, Jesus usa a identifica­

d o - F ilo ,

F ilo ,

An

ção que Deus faz de si mesmo a Moisés na sarça

bí, 30.7; SI Sa, 9.8-11; Te Le, 15.4; Aç Ms, 3.8,9).

ardente (Êx 3.6) como prova de que Deus é Deus

No entanto, às vezes é preciso obedecer às estipu­

de vivos, não de mortos. Deus é fiel às promessas

lações da aliança para permanecer inserido nela

que fez aos patriarcas, segundo as quais seria o

{Jb, 15.26,27). No final de tudo, outras nações

Deus deles (no caso de Abraão, v. Gn 17.7) e, na

seriam abençoadas também (Eo 44.21). Terceiro:

seqüência, também do povo de sua ahança. O re­

também alvo de sua compaixão

( P s e u d o - F ilo ,

o caráter de Abraão é exaltado. Ele é íntegro [Te

lato de Lucas divide os modos de vida em presen­

Ab, I.IA ), hospitaleiro (Te Ab, 1.1-3A;

Ab,

te e futuro (Lc 20.34,35), acrescentando “para ele

An, 1.11.2, § 196) e de boa mo­

todos vivem” (Lc 20.38). 0 autor de 4Macabeus,

107-110; ral

JosEFo,

Ab, 68). Ele é

de forma semelhante, retrata os patriarcas como

fiel (Eo 44.20; IM c 2.52; Jb, 17.17,18). Ele ama a

os que “ não morrem para Deus, mas vivem em

Deus

[ou ‘para’] Deus” (4Mc 7.19; 16.25).

(J o s e fo ,

(J b ,

An, 1.7.1, § 154;

F ilo ,

F ilo ,

17.18) e é até mesmo chamado “amigo

de Deus” (CD 3.2-4). Josefo afirma que Abraão e sua descendência são recompensados por causa da virtude e da piedade do patriarca [An, 1.13.4, § 234). Quarto: Abraão vivia de acordo com a Lei

2.2 Ti-adições sobre Abraão comuns a Mateus e a Lucas 2.2.1

As genealogias. Embora Mateus e Lucas

incluam Abraão nas genealogias que registram

mosaica (Jb, 15.1,2; 16.20; Eo 44.20) ou de acor­

(Mt 1.1,2,17; Lc 3.34), ele se reveste de maior

do com a lei natural/filosófica

importância em Mateus. 0 EvangeUsta introduz o

(F ilo ,

Ab, 3—6).

I 2

A b r a ã o : N o v o T estamento

2.2.3 Abraão no banquete escatológíco (M t 8.10,

Evangelho com a designação “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi [v. lho de Abraão” (Mt

1 .1 ).

F ilh o de D a v i],

fi­

11: Lc 13.28,29). Mateus e Lucas falam do ban­ quete escatológíco (v.

A transição para a genea­

com u n hão à m esa ),

no qual

logia é simples, uma vez que começa com Abraão,

presidirão Abraão, Isaque e Jacó (Lucas acrescen­

“pai de Isaque” (Mt

ta “todos os profetas” em Lc 13.28). É comum na

1.2;

v. tb. ICr

1.34 ).

Abraão

é mencionado uma terceira vez em Mateus

tradição judaica encontrarmos Abraão, Isaque e

1.17,

em que o Evangelista esboça momentos decisivos

Jacó associados com os justos (v.

da história israelita, com catorze gerações desde

V. W a r d ,

ju s tiç a / re tid ã o ;

p. 176; cf. 4Mc 13.17; Te Le, 18.14; Te

Abraão até Davi, catorze gerações de Davi ao Exí­

Ju., 25.1; Te Be, 10.6. V. tb. At 3.13 e 7.32, em

lio e catorze gerações do Exílio a Cristo.

que ocorrem os três). O relato de Mateus apare­ ce na conclusão da história do centurião gentio

É importante que Jesus seja filho de Abraão por três razões principais: 1) significa que Jesus

(Mt 8.1-13;

é judeu e, portanto, descendente biológico de

correspondência nem entre judeus (Mt 8.10). Em

Abraão; 2) embora o título “filho de Abraão” não

Lucas, a cena do banquete escatológíco é inserida

V.

Lc 7.1-10), cuja fé não encontra

para que

na parábola da porta estreita (Lc 13.22-30). Am­

0 Messias transmitisse a seu povo as bênçãos inicia­

bos os contextos, no entanto, retratam a inclusão

das com Abraão, precisava ser ele mesmo descen­

dos gentios no banquete escatológíco do reino

seja messiânico

(D a v ie s & A l u s o n ,

p.

158),

dente de Abraão; 3) Abraão deu origem à história

de Deus (Mt 8.11; Lc 13.29; v. SI 107.3; Is 49.12),

israelita, ao passo que Jesus surge como aquele que

bem como a exclusão de certos judeus (Mt 8.12;

conduz essa mesma história ao ápice (Mt

Lc 13.27,28). Nesses relatos, Abraão é primordial­

1.17).

Embora a genealogia de Lucas apenas mencio­

mente uma figura escatológica, embora o Evange­

ne Abraão (Lc 3.34), ainda assim é significativo

lista, tanto em Mateus quanto em Lucas, procure

que Jesus seja um “ filho de Abraão” , uma vez

estabelecer uma “relação e uma continuidade en­

que, como tal, ele é judeu e canal de bênçãos

tre a história de Abraão e os acontecimentos sobre

para o povo de Deus. Em Lucas, a genealogia de

os quais está escrevendo”

Jesus, que aí remonta a Adão e a Deus, pode ser

de Abraão ser retratado como figura celestial cer­

uma forma de manifestar o tema da expansão da

tamente não é algo novo, tampouco sua reputação

salvação até os gentios, uma vez que contempla

de estender hospitalidade até mesmo aos gentios

seu relacionamento com toda a espécie humana

(v. 1.2 acima; Te Ab Rec A, 1.1,2).

na qualidade de Filho de Deus (v. F itzm ye r ,

v.

2.2.2

1,

p.

F ilho

de

(D a h l ,

p. 140). 0 fato

2.3 Referências a Abraão feitas especifica­

D eus;

mente por Lucas

19 0).

2.3.1

Filhos de Abraão a partir de pedras

Os hinos. Lucas é o único a incluir hinos

(M t 3.9; Lc 3.8). Ambos os Evangelistas mencio­

em sua narrativa da primeira infância de Jesus.

nam Abraão no cenário mais amplo do ministério

Lucas pode ter usado material de fontes exter­

de João Batista no rio Jordão (Mt

3.1-9;

nas na composição desses hinos. No entanto, “a

João adverte os que o procuram

aceitação dessas fontes não significa dizer que

V.

Jo

8.33 ,39 ).

3.1-17;

Lc

para ser batizados (fariseus e saduceus em Mt “multidões” em Lc

Lucas não as tenha editado, seguindo estilo pró­

3.7;

prio”

de que não podem mais

3.7)

(F it z m y e r , v .

1, p. 309). Dois desses hinos

fiar-se em seu privilégio étnico, na qualidade de

fazem referência a Abraão (Lc 1.46-55,67-79). 0

descendentes de Abraão, como garantia de que

Magnificat é o hino de Maria, em que ela exulta

serão protegidos da ira divina. Deus pode suscitar

no antegozo do nascimento de Jesus (v. tb. ISm

“filhos” (Mt 3.9; Lc 3 .8) a Abraão a partir de pedras

2.1-10). 0 tema do hino é que Deus socorre seu

(v. Is

povo no presente da mesma forma que no pas­

51.1,2; P s e u d o -F ilo ,

18.10-14).

An bí,

23.4,5;

Gn

17.17;

A árvore genealógica de Abraão (Is

V. W a l l a c e - H a d r i l l )

sado. Por toda a história, ele destruiu os pode­

11.1;

rosos e ricos (v.

está até mesmo em perigo de

riq u e z a s e p o b r e z a );

socorreu os

pobres e os oprimidos (Êx 2.24). Deus continua

destruição. Não é o fato de descender de Abraão que os salvará da ira de Deus, mas um procedimen­

a agir a favor dos pobres e oprimidos no tempo

to que seja “condizente com uma reforma interior

presente (Lc 1.47,48). Esse auxílio baseia-se na

de vida”

fidelidade de Deus para com os descendentes (lit.,

(F itz m y e r, v . 1,

p.

468;

v. tb. Jo 8.39 ). 3

I

Abraão; Novo Testamento

“semente”; v. tb. At 3.25; 7.1-5) de Abraão por cau­

são agora incluídos, enquanto os tidos por escolhi­

sa das promessas feitas a ele por Deus (v. 1 acima;

dos são excluídos.

Mq 7.20). Abraão não tinha terra nem descendência

A cura da mulher encurvada é sinal de salva­

antes de ser abençoado por Deus (Gn 17.7,8; 18.18;

ção ocorrida em cumprimento do ministério de

22.17,18). A experiência de Maria “não é um acon­

Jesus, 0 “Senhor do sábado” (Lc 6.5). É digno de

tecimento isolado; antes, parte da lembrança miseri­

nota que ela seja curada no sábado, dia que cele­

cordiosa da parte de Deus, que deseja cumprir suas

bra a libertação dos israelitas do cativeiro (Dt 5.15;

promessas de salvação”

V.

(Z

o r r il l a ,

p. 233). Sucessi­

Lc 13.16), e é nesse dia que o cativeiro da mulher

vas gerações também experimentarão a compaixão

é retirado. Ao repreender a enfermidade, Jesus está

de Deus (Lc 1.48).

também repreendendo Satanás (Lc 13.16; v. tb.

O Benedictus é uma profecia dada por Zaca­

G

reen,

p. 653). Ela pode estar entre os incluídos no

rias a respeito de seu filho, João. João preparará o

banquete escatológíco presidido por Abraão e seus

caminho diante do Senhor (Lc 1.76), que por sua

descendentes (Lc 13.28-30; v. 2.2.3 acima).

vez trará salvação a seu povo (Lc 1.68,69). Essa

2.3.3 O seio de Abraão. 0 Abraão celestial

salvação, cujo propósito é capacitar pessoas a ser­

(v. 1.2 acima) é incluído nessa pericope, que con­

vir a Deus sem temer os inimigos (Lc 1.71,73), é

dena 0 rico e exalta o pobre Lázaro. (V. análises

baseada na misericórdia prometida aos antepas­

de contos populares semelhantes em FrrzM VER, v. 2,

sados judeus para a qual serve de fundamento a

p. 1126.) Após morrer, Lázaro é carregado por an­

aliança (ou juramento, Gn 22.16,17; 26.3) jura­

jos “para junto [tradicionalmente, ‘para o seio’] de

da a Abraão (Lc 1.72,73; SI 105.7-11). N. A. Dahl

Abraão”. “Junto de Abraão [seio de Abraão]” não é

(p. 146-7) enxerga a redenção messiânica descrita

sinônimo de Paraíso, embora essa passagem reflita

de um modo “que relembra a libertação do do­

a tradição segundo a qual se acredita que Abraão

mínio do Egito, sendo vista como o cumprimen­

esteja no céu (v. 1.2 acima). 0 pobre desfruta uma

to do juramento de Deus a Abraão” (SI 106.10;

comunhão íntima com Abraão

Gn 15.13,14; At 7.2-8,17).

talvez relembrando a intimidade entre Abraão e

2.3.2

(M

arshall,

p. 636),

Uma filha de Abraão. A mulher “encur­ Jacó, retratada em Jubileus 23.1-3 (v. tb. Lc 13.29).

vada” que é curada no sábado (Lc 13.10-17) é cha­

O rico morreu e reside no hades [inferno; também

mada “filha de Abraão” (Lc 13.16). Esse é o único

traduzido por morte, profundezas ou sepulcro], se­

uso da expressão “filha de Abraão” na Bíbha grega.

parado de Abraão por um grande abismo (Lc 16.26;

Em Lucas, somente os judeus são chamados filhos

cf. lEn, 22). O rico clama a Abraão, chamando-

de Abraão

p. 151). Na pericope em ques­

-o “ pai” (Lc 16.24,27,30) e exigindo o auxílio de

tão, o sábado e a sinagoga “afastam essa mulher

Lázaro. Abraão responde-lhe, chamando-o “filho”

(D

ahl,

necessitada da ajuda divina”

p. 649). Jesus

(Lc 16.25). A condição de filho de Abraão desfru­

reconhece que, como filha de Abraão, ela é alguém

tada pelo rico não lhe proporciona nenhum alívio.

para quem a salvação estava prometida (Lc 1.46-55;

0 pai Abraão recusa-se a ajudá-lo (Lc 16.25,26;

(G

reen,

2.3.1 acima). A fidelidade de Deus aos descen­

sobre Abraão como juiz, v. Te Ab, 10.6-16A).

dentes de Abraão continua por causa das promes­

Abraão nem mesmo enviará Lázaro à família do

sas que ele fez ao patriarca. Isso se vê sobretudo no

rico para adverti-los, porque eles já têm a Lei de

V.

caso dos excluídos e dos párias. A filha de Abraão,

Moisés (Lc 16.31). Lucas está frisando que a sal­

que é excluída pela estrutura religiosa, é curada

vação implica uma “reação de fé”

(v. 2.3.2 acima). Zaqueu, o filho pária de Abraão,

p. 1129), que o rico não tinha. Foi assim condena­

recebe também a salvação que lhe é estendida. 0

do, embora fosse judeu. Abraão também se encai­

interesse especial de Lucas pelos oprimidos é per­

xa nessa pericope porque, ao contrário do rico, foi

ceptível quando o rico, embora também filho de

muitas vezes retratado como alguém que seguia a

(F

it z m y e r , v

Abraão, não recebe permissão para unir-se a Láza­

Lei (v. 1.2 acima), que não lhe era um fardo

ro, que está “no seio” de Abraão (v. 2.3.3 abaixo),

Ab, 5; Dt 30.11-14).

.

2,

( F il o ,

por causa de sua falta de compaixão para com

2.3.4 Zaqueu como filho de Abraão. Zaqueu

Lázaro enquanto ambos estavam ainda em vida.

é um rico chefe de cobradores de impostos para

Assim, aqueles tidos por excluídos dos escolhidos

o governo romano (Lc 19.2) e, como tal, um

A b r a ã o : N o v o T estamento

pecador (Lc 6.24), sobretudo aos olhos dos ju­

do Apocalipse de Abraão 31.1, que menciona o “es­

deus

p. 321-3). De­

colhido” de Deus. Abraão tinha um conhecimento

pois de interagir com Jesus, Zaqueu se arrepende

especial acerca de Deus (v. 1.2 acima, sobretudo

18.9-14; 19.7; v. tb.

(L c

L oew e,

6.1-7; cf. a história do jovem rico e

assim nas obras de Filo; v. Jo 8.32), o que, da pers­

importante, Lc 18.18-25). A salvação é estendida

pectiva do pensamento judaico contemporâneo,

por Jesus, que “veio buscar e salvar o que se ha­

queria dizer que ele escapou à idolatria [Ap Ab,

via perdido” (Lc 19.10; Ez 34.16), a Zaqueu, o “fi­

6—8; Jb, 12) e à consequente escravidão ao pecado

(Lc 19.8;

V. L v

lho de Abraão” que antes estava perdido. Zaqueu

(Jb, 20.6-10). Essa descrição de Abraão harmoniza-

é também um filho verdadeiro de Abraão e, assim

se com 0 tema da liberdade (Jo 8.32) e da escravi­

como outros párias judeus, recebeu no ministério

dão (Jo 8.34,35) em João 8.

de Jesus o cumprimento das promessas feitas a Abraão (Gn 17.7; v. 2.3.2 acima;

D a h l,

p. 149-54).

4. Atos dos Apóstolos Em Atos, Abraão não desempenha um papel

3. O Evangelho de João

exemplar para os cristãos imitarem, como ocor­

0 nome de Abraão, embora não ocorra em ne­

re nas cartas pauUnas, mas continua sendo o pai

nhuma outra parte nos escritos joaninos, é en­

dos judeus. Usando Abraão exclusivamente nos

contrado dez vezes em João 8.31-59. Por todo

sermões, Lucas comprova que há relação e conti­

o relato, Jesus ressalta que, embora os judeus

nuidade entre Abraão e os acontecimentos sobre

que 0 estão interrogando sejam descenden­

os quais está escrevendo

(D a h l,

p. 140).

tes de Abraão em sentido físico (Jo 8.37), eles

4.1 Atos 3. Pedro emprega a figura de Abraão

contradizem essa descendência por suas ações

durante seu discurso no pórtico de Salomão

p. 357). Em primeiro lugar, não são como

para identificar o Deus de Abraão, de Isaque e

Abraão porque se esforçam por matar a Jesus,

de Jacó (At 3.13,25; cf. At 7.32; Êx 3.6) como o

ura mensageiro de Deus (Jo 8.40,42; Gn 18.1-15;

Deus de quem Jesus era “servo” e por cujo nome

talvez Jo 8.35 se refira a EUézer e a Isaque, o

Pedro tinha acabado de curar o pedinte aleijado

escravo doméstico e o filho; v. Gn 15.2; 17.19).

(At 3.6,16). O uso já aqui tão cedo do título “servo”

(B r o w n ,

Em segundo lugar, enquanto Abraão é conhecido

(cf. At 3.26) em referência a Jesus, incomum que

por seu caráter exemplar (v. 1.2 acima), os adver­

era o uso desse termo, pode ser um sinal de que

sários de Jesus são declarados filhos do Diabo,

se está aludindo aqui ao Servo Sofredor de Isaías

cujos desejos eles realizam (Jo 8.44). Em terceiro

(Is 52.13— 53.12). Ao usar esse cognome, Pedro

lugar, os adversários de Jesus são diferentes de

claramente acusa os judeus de terem matado a Je­

Abraão porque não reconhecem que Jesus é Deus

sus, o servo escolhido de seu Deus (At 3.15). Não obstante, em Atos 3.25 Pedro lança mão

(Jo 8.58,59; sobre Abraão como o primeiro mono­ 1.2 acima). Outras referências a Abraão

da bênção sobre Abraão, mediante a qual, por sua

no capítulo dizem respeito à morte de Abraão

descendência, todas as famílias da terra seriam

teísta,

V.

(Gn 25.8, em que não se faz menção a nenhum

abençoadas (Gn 22.18; cf. Gn 12.3; 18.18; G1 3.8).

testamento; v. Te Ab, que apresenta uma explica­

A

ção para essa lacuna) e ao júbilo de Abraão por

pretado como “gentios”. Já Pedro usa o ambíguo

contemplar o dia de Jesus (Jo 8.56).

Lxx

traz “nações” [ethnê), que poderia ser inter­

“famílias” {patriá), que provavelmente se refere

Exatamente como Abraão viu o dia de Jesus

em primeiro lugar aos judeus (cf. At 3.26) e por

permanece sem explicação. R. E. Brown refere-se a

imphcação aos gentios. Assim, Pedro declara a

Jubileus 16.17-19: “Abraão foi informado de que era

seus ouvintes que eles são descendentes dos profe­

por meio de Isaque que descenderia o povo santo

tas e relembra a aliança que prefigurou o Messias,

de Deus, e que tanto Abraão como Sara exultaram

Jesus (At 3.22,23), o qual foi o cumprimento dessa

com a notícia”

(B r o w n ,

p. 360; v. Gn 17.17; 21.6).

Talvez o Evangelista esteja se referindo ao relato de

mesma ahança com Abraão por meio de quem os judeus e outras famílias podem ser abençoados.

Gênesis, sabendo que Jesus viria desse povo santo.

4.2 Atos 7. 0 discurso de Estêvão oferece a

Outra explicação poderia ser que Abraão tivesse

estrutura para várias alusões a Abraão (At 7.2-

recebido uma revelação acerca do futuro, como a

8,16,17,32), nas quais ele aparece como receptor

5 I

Abraão: Novo Testamento

das promessas por meio das quais seus descen­

confirmava a promessa de Deus de lhe conceder descendentes (Gn 21.1-4), dentre os quais os ou­

dentes mais tarde se beneficiariam. A afinidade de Lucas com o judaísmo helenista

vintes de Estêvão.

é percebida mais nitidamente em Atos 7.2-8 (Dahl,

Estêvão volta a mencionar Abraão ao dizer

p. 142). Em Atos 7.2, Estêvão situa o chamado de

que Jacó, José e seus parentes foram sepultados

Deus a Abraão em Ur, não em Harã (Gn 12.1). A

na caverna que Abraão comprara nas proximi­

tradição de Lucas poderia ter sido extraída de tex­

dades de Siquém (At 7.16). Em Gênesis, Abraão

tos do AT (Gn 15.7; Ne 9.7) nos quais há o indício

comprou a caverna de Macpela, que ficava perto

de um chamado em Ur. Filo supõe que houve

de Hebrom (Gn 23), não de Siquém. Existe um

um chamado divino a Abraão em ambos os luga­

relato que dá conta de que Jacó foi sepultado na

res (Filo, Ab, 62,85), enquanto Josefo considera

caverna que Abraão comprou próximo a Hebrom

as duas migrações um único êxodo (Josefo, An,

(Gn 49.29-32; 50.13), ao passo que José foi enter­

1.7.1, § 154). Lucas ainda observa (At 7.4) que

rado em Siquém (Js 24.32), numa terra que Jacó

Abraão deixou a terra dos “caldeus” , termo usado

havia comprado (Gn 33.18-20). Estêvão pode ter

muitas vezes em referência a astrólogos e intér­

fundido os dois relatos de aquisições de terra

pretes de sonhos (Jb, 11.8; Filo, Ab, 69,71) nas

em Canaã, assim como fundiu acontecimentos

tradições vinculadas a Abraão antes de seu cha­

anteriores (v. At 7.2,7), e desse modo atribuiu a

mado (Jb, 12.16; Filo, Ab, 70;

Abraão a compra da sepultura em Siquém.

J o s e fo ,

An, 1.7.1,

§ 156; A pA b, 7.9; cf. Js 24.2).

4.3

Numa tradução livre de Gênesis 17.7, Estêvão

Atos 13. No discurso proferido na sina­

goga de Antioquia da Pisídia, em sua primeira

mantém-se fiel ao relato de Gênesis, segundo o

viagem missionária, Paulo refere-se a seus ouvin­

qual Abraão não possuía terra alguma, apenas

tes judeus como “ filhos da linhagem de Abraão” ,

a promessa de uma terra (At 7.5; cf. Gn 12.7;

a quem a mensagem de salvação fora enviada

13.15; 48.4) para si e sua descendência. Abraão

(At 13.26). Paulo convoca-os a serem diferentes

seguiu a Deus, embora não tivesse tomado posse

dos habitantes de Jerusalém, que rejeitaram o

de nenhuma porção de terra (cf. Dt 2.5), nem

Messias, Jesus, cumprindo a mensagem dos pro­

tivesse ainda seus descendentes, os quais só her­

fetas (e.g.. Is 52.13—53.12) quando o condena­

dariam a terra ao fim de tudo. Enquanto alguns

ram à morte (At 13.27-29). Seu Messias viera por

autores ressaltam o fato de Abraão tomar posse

meio do povo de Davi, os escolhidos em Abraão

da terra (IQapGen 21.15-19), Estêvão realça a

(At 13.22-25). Mais tarde, os judeus tragicamente

confiança que Abraão depositou em Deus (cf.

rejeitariam a mensagem de salvação (At 13.45).

Rm 4.16-22). Ao incluir referências à profecia feita a Abraão sobre o cativeiro de seus descendentes no Egito

S. As cartas de Paulo 5.1 Gálatas

(Gn 15.13,14; cf. Êx 2.22), com duração de qua­

5.1.1 A situação na Galácia. A carta deixa evi­

trocentos anos (At 7.6; cf. Êx 12.40; G1 3.17), Lu­

dente que cristãos gentios faziam parte da comuni­

cas ressalta a fidelidade de Deus para com seu

dade da Galácia (G14.8), e que se infiltraram entre

povo em meio à crise. Numa expansão de Êxo­

eles algumas pessoas que contradiziam o evan­

do 3.12 (At 7.7), Lucas abandona o termo “mon­

gelho de Paulo e confundiram os recém-converti-

te” (oros), usado em referência ao Sinai na

lx x ,

dos (G1 1.7-9; 5.8-10). Os contraditores de Paulo

substituindo-o pelo termo “lugar” (topos) — uma

persuadiam os convertidos gentios a obedecer às

referência a Jerusalém ou ao próprio templo (cf.

estipulações da Lei mosaica (G1 3.1,2; 4.8-10), so­

At 6.13,14). A fidelidade de Deus ã promessa que

bretudo a circuncisão (G1 5.2,3; 6.12,13). Em vista

fez a Abraão é demonstrada no fato de que Estê­

de alguns fatos que ficam bastante evidentes na

vão e os judeus habitantes de Jerusalém de seu

carta, é bem provável que os oponentes de Paulo

tempo podiam adorar a Deus nesse “ lugar”. Estêvão faz referência também à “aliança da

fossem cristãos judeus (G1 4.30; Paulo afirma que eles estavam pregando “outro evangelho” , 1.6-9).

circuncisão” (diathêkê peritomês, At 7.8) firma­

Muitos especialistas no assunto já observaram

da com Abraão (Gn 17.10,12), aliança essa que

que Abraão devia desempenhar um papel central

A b r a à o : N o v o T estamento

nos argumentos dos adversários de Paulo. Por

criador [Jb, 11.16,17; 12.16-21), mas também ob­

exemplo, segundo J. C. Beker, os adversários de

serva estipulações da Lei mosaica como a festa

Paulo pensavam que não bastava aos gentios vol­

dos tabernáculos [Jb, 16.20; cf. 22.1,2). Nas obras

tar-se para Cristo. Para estarem seguros de que a

de Filo, Abraão é retratado como alguém que se­

bênção de Deus repousava sobre eles e de que

gue a lei natural

eram filhos verdadeiros de Abraão, tinham de

da natureza e a Lei de Moisés são a mesma coi­

participar plenamente da Torá

sa. Somente uma lei que foi revelada por Deus, o

(B e k e r ,

p. 42-4).

5.1.2 O texto de Gálatas 5.1.2.1

(F ilo ,

Ab, 275-6). Para Filo, a lei

criador da natureza, pode estar de fato de acordo

Gálatas 3.1-14. O tom zangado de Pau­ com a lei natural. Ao cumprir a lei natural, Abraão

lo torna-se evidente já no início de sua Carta aos

torna-se para seus descendentes um exemplo de

Gálatas, uma vez que não se acha ali a seção de

obediência à Lei

(F ilo ,

Ab, 6).

ação de graças normalmente presente em suas

Filo é o único a nos informar que Gênesis 15.6

cartas. Ele os chama “insensatos” (G1 3.1,3) por

era interpretado como significando que Abraão

terem sido seduzidos (G1 3.1) a obedecer às exi­

creu no único Deus criador, não em outros deu­

gências da Lei (G1 3.2,3,5). Suas perguntas con­

ses ou filosofias. Gênesis 15.6 declara: “Abrão

tundentes em Gálatas 3.1-5 servem para definir e

creu no

alistar seus temas no debate que se segue.

justiça”. Filo descreve Abraão com as seguintes

S e n h o r;

eo

S enh or

atribuiu-lhe isso como

Nesse interrogatório cheio de farpas, Paulo es­

palavras: “Fala-se dele como o primeiro a crer em

tabelece uma antítese entre “obras da lei” [ergõn

Deus, uma vez que foi o primeiro a apreender

nomou) e a “fé naquilo que ouvistes” [qkoês

de forma firme e inabalável a verdade segundo

pisteõs). Será que Deus operou milagres entre eles

a qual existe uma só Causa acima de tudo e de

pelo fato de eles cumprirem as “ obras da lei” , ou

todos, a qual sustém o mundo e tudo o que nele

foi pela fé naquilo que ouviram (G1 3.5)? A prin­

há”

cipal preocupação de Paulo aqui é alertar seus

mencionado na

leitores para o contraste entre a “fé naquilo que

guém que creu em Deus. Na maioria das vezes,

ouvistes” e as “obras da lei” e levá-los a conside­

os que falavam sobre a fé que Abraão possuía

rar 0 erro grosseiro em que haviam caído.

referiam-se a ela como uma fé no único Deus

0 argumento com base escriturística apresen­

(F ilo ,

(J o s e fo ,

Vi, 216). Abraão é o primeiro a ser lx x

e na Bíblia hebraica como al­

An, 1.7.1, § 155-6; Ap Ab, 7.10;

P se u d o -

tado por Paulo, que vem a ser sua resposta às

F ilo ,

perguntas retóricas que ele mesmo fizera anterior­

idolatria. A lei, quer mosaica, quer natural, era

mente

p. 130), gira em torno de Abraão:

um corolário necessário de sua fé em Deus. Como

“Assim foi com Abraão, que creu em Deus, e isso

se acreditava que Abraão havia incorporado essas

lhe foi atribuído como justiça” (G1 3.6). Byrne sa-

características, ele era tido como representante

henta que o uso de kathõs (“assim [foi]”) implica

ideal do povo judeu.

(B e tz ,

que 0 que se segue corresponde ao que acabou de ser descrito

(B y r n e ,

p. 148). Abraão passa a ser

An bí, 6.4; 23.5], num contraponto com a

Em Gálatas 3.7, Paulo ordena aos crentes gálatas que reconheçam, com base na prova que

aquele que creu em Deus e, pela ação de Deus,

ele apresenta em Gálatas 3.6 (cf. Gn 15.6;

foi considerado justo. Isso corresponde ao Espírito

p. 141), que “os da fé é que são filhos de Abraão”.

B e tz ,

concedido por Deus, em virtude da fé dos crentes

O menos familiarizado dentre eles com as tra­

gálatas. A recepção do Espírito por parte dos cren­

dições de Abraão como o primeiro monoteísta

tes gálatas corresponde à recepção da justiça por

e anti-idólatra perceberia que o povo judeu ha­

parte de Abraão

via interpretado Abraão desde o começo como o

(B a r c la y ,

p. 80; v.

E sp írito S a n t o ).

Ao fazer uso do exemplo de Abraão para dis­

homem de fé. Essa declaração de Paulo faria en­

correr sobre o contraste fé versus obras, Paulo na

tão pleno sentido. Para eles, os descendentes de

realidade inaugura uma nova maneira de se referir

Abraão — os judeus — seriam as pessoas que têm

a Abraão. Antes, o judaísmo visualizava a fé e as

fé em Deus.

obras de Abraão num só conjunto. Por exemplo,

Paulo mais uma vez faz uso das Escrituras

em Jubileus, Abraão não apenas é o primeiro a

para fundamentar a sua afirmação de que os fi­

se separar de sua família e a adorar o único Deus

lhos de Abraão são os que têm fé em Deus. Em 7 I

Abraão: Novo Testamento

Gálatas 3.8,9, ele declara: “A Escritura, prevendo

Abraão encontradas nos textos judaicos mencio­

que Deus iria justificar os gentios pela fé, anun­

nados acima: a fé e a Lei. Até aqui Paulo argu­

ciou com antecedência a boa notícia a Abraão, di­

mentou energicamente contra a Lei. Os gentios

zendo: Em ti serão abençoadas todas as nações”.

receberam a bênção de Abraão, o Espírito, unica­

Paulo personifica a Escritura ao afirmar que ela

mente em conformidade com sua fé. Se os opo­

viu de antemão que Deus justificaria os gentios

nentes recorrem a Abraão em seus argumentos

pela fé e antecipadamente declarou o evangelho

para convencer os gentios de que estes devem ser

a Abraão, para que todos os gentios fossem aben­

obedientes à Lei mosaica, especialmente no que

çoados nele (G1 3.8; Gn 12.3). Paulo entende a

diz respeito à circuncisão, pareceria natural dedu­

promessa de que Abraão seria uma bênção para

zir que eles estivessem cientes da tradição sobre

as nações (gentios) como a pregação do evange­

a obediência de Abraão à Lei e assim fazendo uso

lho feita antecipadamente a Abraão. Como a men­

dessa tradição (v. tb. S.1.2.2

sagem do evangelho era que a justificação ocorre

H ansen,

p. 172).

Gálatas 3.15-18. Paulo inicia essa

pela fé, e assim os gentios estavam incluídos na

seção citando um exemplo cotidiano, a saber,

justificação, o anúncio de que Deus abençoaria os

o testamento de alguém, o qual não é anulado nem sofre acréscimos depois de ratificado. Pau­

gentios por meio de Abraão antevia o evangelho.

lo emprega esse exemplo para falar de Abraão,

Nesse ínterim, Paulo puxa o outro fio de seu argumento, as “ obras da lei” (G1 3.10). Fazendo

mostrando que as promessas feitas primeiramen­

uso de Deuteronômio 27.26, de Habacuque 2.4 e

te a Abraão e a sua descendência (G1 3.16) não

de Levítico 18.S, Paulo argumenta que a obediên­

foram feitas a muitos, mas a somente um, que na

cia à L e i não traz a justiça. Ele cita Deuteronômio

realidade se refere a Cristo (Gn 12.7; 22.17,18).

21.23 para mostrar que a era da fé agora chegava

Paulo faz um jogo com a palavra “descendente

por meio do fato de Cristo se fazer maldição e

[semente]” , que, em hebraico e em grego (hebr.,

oferecer redenção da maldição da Lei (G1 3.13;

zera‘; gr., sperma), está no singular coletivo

provável que aqui Paulo este­

(Ems, p. 73). Esse descendente. Cristo, represen­

ja utilizando exatamente as mesmas passagens a

ta não apenas o cumprimento das promessas fei­

que recorriam seus oponentes em sua mensagem

tas a Abraão (G1 3.8,14), mas também o cabeça

a favor da Lei

da raça espiritual e, consequentemente, a solida­

B y rn e ,

p. 156).

É

(L o n g e n e c k e r ,

p. 116-21,124).

Em Gálatas 3.14, Paulo inclui duas orações

riedade (no sentido de mútua representatividade)

adverbiais finais (ou seja, de finalidade). Cristo

dos crentes. Os gentíos, antes considerados não

se fez maldição e providenciou redenção da mal­

pertencentes aos descendentes de Abraão, agora

dição da Lei a fim de que em Cristo Jesus a bên­

são incluídos no âmbito de sua descendência, em

ção de Abraão pudesse alcançar os gentios (cf.

virtude de sua fé em Cristo.

G1 3.8). A segunda dessas orações adverbiais fi­

A seguir, Paulo argumenta de uma perspec­

nais é paralela à primeira: “...a fim de que recebês­

tiva cronológica. A Lei veio 430 anos depois da

semos a promessa do Espírito pela fé” (G1 3.14).

aliança que Deus firmou com Abraão (G1 3.17).

0 Espírito passa a ser a bênção de Abraão, que

Aliás, a Lei foi “acrescentada” (Gl 3.19). A pro­

veio sobre os gentios

messa de Deus a Abraão é fundacional e imutável

(B e tz ,

p. 143). Essa bênção

é pela fé (G1 3.1-5) em Cristo (G1 3.14). Anterior­

(Gl 3.16,18). Os que são filhos de Abraão “em

mente, a promessa feita a Abraão dizia respeito a

Cristo” beneficiam-se da promessa e da herança

terra e descendentes. Mas agora a promessa diz

que ele recebeu antes do advento da Lei.

respeito ao Espírito, que é o antegozo da heran­ ça do mundo por vir

Se os adversários de Paulo na Galácia estão

p. 156-7). E se os

fazendo uso da tradição popular segundo a qual

gentios da Galácia têm o Espírito, que é a bênção

Abraão obedeceu à Lei (v. acima), então eles de­

prometida a Abraão em Cristo, eles têm o sinal de

viam ter incluído em seu argumento o fato de

que são membros dos descendentes de Abraão.

que Abraão fora obediente à Lei antes de Moisés

(B y r n e ,

Digno de nota na carta até aqui é que Paulo

a haver promulgado. Se era esse o exemplo de

alude a dois aspectos do judaísmo também re­

Abraão que os oponentes estavam apresentando

lacionados às tradições mais importantes sobre

/aos crentes da Galácia, Paulo precisa argumentar

8

A b r a ã o ; N o v o T estamento

energicamente que a Lei mosaica surgiu depois

contrapõe a unidade de Deus, que fez a promes­

de a promessa ter sido feita a Abraão. Se a Lei

sa a Abraão, à pluralidade de intermediários por

mosaica chegou séculos depois da promessa a

meio de quem a Lei foi outorgada, claramente

Abraão, então Abraão não poderia ter sido obe­

demonstra mais uma vez a superioridade sobre a

diente a essa lei. Essa nova cronologia (anu­

Lei da promessa feita a Abraão (v.

lando o princípio da lei eterna encontrado, por

D

eus)

.

Observou-se acima que, entre as tradições po­

exemplo, em Jubileus] estabelece a prioridade do

pulares sobre Abraão encontradas na literatura

evangelho de Paulo, o da justificação pela fé, em

judaica, estava a opinião de que Abraão foi o pri­

detrimento da insistência dos oponentes na obe­

meiro monoteísta e que obedeceu à Lei antes de

diência à Lei.

ela ser outorgada. Se os oponentes de Paulo tam­

S.

1.2.3 Gálatas 3.19-22. Nessa seção, Paulo bém defendiam essas mesmas tradições, o fato de

versa sobre as razões por que a Lei era necessária

eles recorrerem ao exemplo de Abraão provavel­

(Gl 3.19). Fora acrescentada por causa das trans­

mente teria alguma relação com seu monoteísmo

gressões até que o descendente (Cristo) viesse

e obediência à Lei. Em Gálatas 3.20, usando as

àqueles aos quais as promessas tinham sido feitas

alegações dos oponentes e as tradições populares

(Gl 3.19; cf. Gl 3.16). De acordo com Paulo, Deus

que vinculavam Abraão ao monoteísmo e à Lei,

concedeu a Abraão essa herança diretamente por

Paulo demonstra que a Lei é de segunda catego­

meio da promessa, “pois se a herança provém da

ria quando comparada às promessas de Deus a

lei, já não provém mais da promessa. Mas foi pela

Abraão. Consequentemente, se as promessas são

promessa que Deus a concedeu gratuitamente a

superiores à Lei, e se é por meio das promessas

Abraão” (Gl 3.18). Paulo declara que a Lei, no

feitas a Abraão que os unidos em Cristo (o único

entanto, “ foi ordenada por meio de anjos, pela

descendente, Gl 3.16) recebem a herança, a Lei

mão de um mediador” (Gl 3.19). A crença de que

torna-se supérflua. Não apenas o fato de alguém

os anjos haviam outorgado a Lei fazia parte de

ser descendente de Abraão deixa de significar

uma tradição judaica comum

que essa pessoa precisa seguir a Lei judaica, mas

[ lxx,

Dt 33.2; Jb,

At 7.38,53; Hb 2.2). Pau­

também a obediência à Lei, que se baseia numa

lo desvia-se da tradição quando argumenta que

pluralidade, é agora uma contradição da unicidade

a outorga da Lei por anjos é tomada como argu­

de Deus.

2.2; lEn, 60.1; v. tb.

n t,

S.

mento contra a Lei, o que se torna evidente no

1.2.4 Gálatas 3.23-29. Nessa seção, Paulo

usa o exemplo do

versículo seguinte. Em Gálatas 3.20, Paulo faz uma declaração

p a id a g õ g o s [ nrsv ,

“discipUna-

dor”) para expUcar a função da Lei. 0 uso do era prática corrente nos dias de Paulo.

que há muito tem deixado perplexos os intér­

p a id a g õ g o s

pretes de Gálatas: “O mediador não representa

Implicava deixar um filho ou filhos sob o cuidado

apenas um, mas Deus é um só”. A pluralidade

e a supervisão de um escravo de confiança até

associada ao “mediador” tem sido entendida de

que a criança alcançasse o fim da adolescência.

p. 141-2). Os intér­

0 que exatamente Paulo tinha em mente quando

pretes têm buscado encontrar o referente exato de

relacionou o p a id a g õ g o s à Lei tem sido objeto de

Paulo em sua alusão à pluralidade dos anjos que

muito debate. Em vez de enxergar o

serviram de mediadores participantes da outorga

da perspectiva da severidade, como acontecia an­

da Lei (cf.

teriormente

várias maneiras

W

(L

r ig h t

ongenecker,

quanto ao ponto de vista de que

(B e t z ,

p a id a g õ g o s

p. 177-8), mais recentemente

Moisés é o mediador). Mas isso é perder o argu­

os estudiosos têm se concentrado nos aspectos

mento de Paulo como um todo. O elemento mais

positivos do

importante, que precisa ser colhido da declaração

de guardião do paidagõgos: ele protegia a criança

de Paulo, é que, de algum modo, a Lei outorgada

sob seus cuidados de influências imorais externas e

p a id a g õ g o s .

Por exemplo, o aspecto

Em Gálatas 3.24, Paulo associa

por meio de anjos e pela instrumentalidade de

(Y o u n g

um mediador impUca mais de um intermediário,

a Lei ao p a id a g õ g o s , que funcionava como “nosso

em contraposição a Deus, que fez a promessa a

guia para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela

Abraão e que é um só. Tratando-se do monoteís­

fé fôssemos justificados”. Uma vez chegada a fé,

mo judaico da época, esse tipo de declaração, que

o p a id a g õ g o s deixava de ser necessário (Gl 3.25).

I 9 I

G o r d o n ).

A b r a ã o : N o v o T estamento

A literatura judaica atesta que uma das funções

Em Gálatas 4.8, Paulo dirige-se exclusivamen­

primordiais da Lei era servir para separar e pro­

te aos gentios. Na era passada, não conheciam a

teger Israel de seus vizinhos gentios [Jb, 20.6-10;

Deus nem eram reconhecidos por Deus. Eram es­

21.21-24; 22.16-19;

Aa, 1.10.5, § 192). A

cravizados por coisas “que por natureza não são

Lei também servia para identificar os judeus [Qn

deuses”. 0 segmento de frase “ não eram deuses”

J o s e fo ,

Gn, 3.49; cf. Jb, 15.26). No contexto da Carta aos

era comum nos escritos da l x x em que se refere a

Gálatas, Paulo fala principalmente dos aspectos

ídolos (2Cr 13.9,10; Is 37.18,19; Jr 2.11-28). Paulo

da Lei que eram em especial conhecidos como

acusa-os de retornarem à antiga idolatria (Gl 4.9).

identificadores do povo judeu (a circuncisão, as

No ambiente das condições da Galácia, es­

leis ahmentares e a observância do sábado e dos

ses crentes gentílicos estão sendo persuadidos

dias festivos). Uma das maneiras em que a Lei

a obedecer a diferentes aspectos da Lei judaica

funcionava como paidagõgos era guardar o povo

(Gl 5.2,3; 6.12,13; 4.10). Paulo compara a obe­

judeu das influências externas da idolatria e da

diência que eles prestam à Lei com a idolatria

imoralidade. Paulo afirma que, agora que a fé

que praticavam anteriormente (Gl 4.8,9) e com

chegara, a Lei não se fazia mais necessária. A Lei

os tempos de sua escravização aos “princípios

como recurso protetor numa comunidade como

elementares do mundo”. A obediência à Lei e

a da Galácia, onde convivem cristãos gentios e

a idolatria são formas de escravização a esses

cristãos judeus, é obsoleta, porque todos eles têm

“princípios elementares do mundo”. A obediência

fé e pertencem à mesma comunidade “em Cristo”

à Lei tornou-se equivalente à idolatria.

(Gl 3.26). A separação por meio da Lei é agora

Observou-se acima que nas tradições judaicas

desnecessária. Além disso, o símbolo identifica­

sobre Abraão ele era retratado como alguém que

dor da circuncisão não é mais necessário. Todos

acreditava no único Deus criador, não em ou­

os crentes da Galácia eram agora somente um

tros deuses ou filosofias. Na maioria das vezes,

em Cristo Jesus (Gl 3.28). Por serem somente

os judeus que falavam da fé que Abraão possuía

um em virtude de sua fé em Cristo, os crentes da

a concebiam como a fé no único Deus em con­

Galácia são descendentes de Abraão e herdeiros

traposição à idolatria [Jb, 11.16,17; 12.2-8,16-24;

da promessa feita a ele (Gl 3.29; cf. Gl 3.8).

P s e u d o - F ilo ,

5.1.2.5

An bí, 6.4; 23.5;

F ilo ,

Ab, 68-71; Ap

Gálatas 4.1-11. Em Gálatas 4.1,2, Paulo Ab, 1—8). Para Paulo, tanto os judeus quanto os

usa a figura do herdeiro, que, enquanto é criança,

gentios que creem são agora filhos legítimos de

está sujeito a “tutores e administradores” até o mo­

Abraão (Gl 3.29; 4.6,7). Como tais, não devem

mento determinado pelo pai. Paulo provavelmente

mais estar escravizados aos princípios elementa­

está se referindo a práticas da lei romana em que

res do mundo, que antes assumiam a forma de

os pais nomeavam guardiães sobre seus filhos me­

paganismo gentílico e Lei judaica. Ao equiparar

nores de idade, quer num testamento, quer diante

a observância da Lei ã idolatria, Paulo faz da Lei

de um tribunal

p. 63). 0 pai poderia

a proibição máxima para um verdadeiro filho

também estipular a idade a partir da qual a criança

de Abraão. A exemplo de Abraão, que rejeitou

não estaria mais sob a custódia desses guardiães.

a idolatria, esses filhos de Abraão devem fugir

Paulo assevera a natureza temporária da Lei, e fica

da idolatria. Em Gálatas 4.1-10, então, agora que

evidente que o herdeiro não tem o controle dos

esses filhos de Abraão têm uma nova identidade

(B e l l e v i l l e ,

próprios negócios. Nesse sentido, o herdeiro não é

“em Cristo”, a idolatria a ser evitada é a obediên­

em nada melhor que o escravo.

cia à Lei.

Eram os menores, provavelmente os judeus (cf. Gl 3.23,25; 4.1,2;

5.1.2.6

Gálatas 4.21—5.1. O discurso final de

p. 165), que

Paulo sobre os descendentes abraâmicos acha-

se viam escravizados aos “princípios elementares

se em sua alegoria em torno de Sara e Agar

L o n gen eck er,

do mundo” [stoicheia tou kosmon). No entanto,

(Gl 4.21—5.1). A exegese aparentemente arbitrá­

agora que veio a “plenitude dos tempos” (Gl 4.4;

ria que Paulo faz dessa alegoria pode indicar não

cf. Gl 4.2), gentios e judeus são igualmente her­

ser esse o texto que ele teria escolhido (Gn 16.15;

deiros, e o Espírito é a prova de que eles não são

21.2-12), mas era o que estava sendo empregado,

mais escravos (Gl 4.6,7).

por conveniência, pelos seus oponentes

I 10 I

( L in c o ln ,

A b r a ã o : N o v o T estamento

p. 91). Paulo constrói a alegoria

evangelho é o “poder de Deus para a salvação

em torno dos filhos biológicos de Abraão: Isaque

de todo aquele que crê” , tanto judeus quanto

e Ismael. Agar é interpretada como representante

gregos (Rm 1.16), e que por meio da fé nesse

da aliança da escravidão, a Lei (Gl 4.24,25). Sara

evangelho a justiça de Deus é revelada (Rm 1.17;

p.

12;

B a r c la y ,

é interpretada como representante da ahança da

ZiESLER,

liberdade (Gl 4.24,26). Qualquer um (mesmo em

mostra que tanto os gentios idólatras e imorais

p. 186-7). Em Romanos 1.1— 3.20, Paulo

Jerusalém, Gl 4.25) que esteja acorrentado à Lei

(Rm 1.18-32; cf. Jb, 22.11-23; lEn, 91.7-10; embo­

(Gl 4.24) está escravizado e não receberá herança

ra os judeus, sem dúvida, possam ser idólatras,

com os filhos verdadeiros. Os filhos da promessa,

V. H

que descendem de Isaque (Gl 4.28), são membros

gloriam de seu relacionamento com Deus e com

da Jerusalém celestial (Gl 4.26) e são mais nume­

a Lei (Rm 2.1-29, esp. Rm 2.17) são condenados

rosos que os escravizados (Gl 4.27).

diante de Deus (Rm 3.9-20).

ays,

p. 93-4) quanto os judeus que se van­

Paulo conclui a alegoria em Gálatas 4.28—5.1.

Em Romanos 3.21-26, Paulo mostra como

Ele identifica os gálatas como semelhantes a Isa­

Deus continua sendo justo, mas agora à parte

que, filhos da promessa (Gl 4.28). Atualmente, a

da Lei (Rm 3.21; cf. Rm 1.17). A participação no

perseguição que estão experimentando é como a

domínio da justiça de Deus

que Isaque sofreu nas mãos de Ismael (Gn 21.9;

deve agora ser encontrada por judeus e gentios

Gl 4.29;

V.

tb.

B e tz ,

p. 249-50). Paulo utiliza-se de

Gênesis 21.10 como instrução para o presente: os

(Z i e s l e r ,

p. 186-7)

(Rm 3.22) por meio da fé em Jesus Cristo: não há nenhuma distinção. S.2.2.2

gálatas que estão sendo perseguidos por não se­

Romanos 3.27—4.25. Romanos 3.27—

rem obedientes à Lei devem expulsar aqueles que

4.25 funciona como um esclarecimento do assun­

os perseguem (Gl 4.30;

to que Paulo acabou de tratar, servindo também

L in c o ln ,

p. 22-9). Os gála­

tas são filhos da livre: Cristo os libertou da Lei.

de introdução ao exemplo de fé fornecido por

Eles têm ordem de não mais se submeterem à Lei,

Abraão. Paulo usa o princípio do monoteísmo

0 “jugo de escravidão” (Gl 5.1; v. tb. Gl 4.3,9).

judeu contra a alegação comum de exclusivismo

5.2 Romanos. A maior parte do debate sobre

judaico. Visto que Deus é um só, ele é Deus de

Abraão acha-se em Romanos 4, em que Paulo usa

judeus e de gentios (Rm 3.29). E, porque Deus

0 patriarca para mostrar de que maneira os gen­

é um, ele justifica judeus e gentios com base no

tios, bem como os judeus, podem agora ser justos

mesmo critério: a fé (Rm 3.30). Os judeus e os

diante de Deus em virtude de sua fé em Jesus Cris­

gentios, portanto, têm igual acesso à salvação.

to. Em Romanos 9— 11, Paulo de novo se refere a

“Esse é praticamente um argumento contra a lei

Abraão para mostrar como as promessas de Deus

como algo necessário, de uma maneira ou de ou­

ao seu povo escolhido não falharam (Rm 9.6).

tra, para a salvação”

5.2.1 A situação em Roma. O propósito de Paulo ao escrever Romanos tem sido objeto de

(S a n d e r s ,

1977, p. 489). Pau­

lo apresenta o exemplo de Abraão para mostrar que sua interpretação sustenta a Lei (Rm 3.31).

É provável que as igrejas em

Paulo primeiramente identifica Abraão em

casas (Rm 16.5,10,11,14,15) a que Paulo escreve

sentido estritamente judeu, como “nosso pai

debate

(D o n f r i e d ) .

estivessem, até certo ponto, influenciadas pela

[ou antepassado] humano” (Rm 4.1), e pergun­

comunidade judaica

C a lv e r t,

ta o que foi que Abraão “alcançou” (o verbo é

1993) e enfrentassem dificuldades no que tange

heuriskõ). Várias tradições a respeito de Abraão

(D u n n ,

p. xlvi-xlvii;

ao relacionamento que os cristãos gentios agora

dizem que ele encontrou o único Deus (v. acima;

desfrutavam com Deus (Rm 4.2,11,12), sobretu­

esp.

do à luz das práticas relacionadas à Lei judaica

em que é retratado num ato em que ele discerne a

(Rm 14.2,5,6,21;

existência de Deus a partir da Criação). É de con­

W ed d erb u rn ,

p. 33-4).

5.2.2 O texto à luz das tradições abraâmicos 5.2.2.1

F ilo ,

Ab, 68-71 e

J o s e to ,

An, 1.7.1, § 154-7,

senso que Paulo, em Romanos 1.18-32, tem uma

Romanos 1.1—3.26. Depois dessa se­ dívida para com o pensamento judaico helenista

ção, que traz um texto de ação de graças e apre­

subjacente a Sabedoria 12— 15, se não para com

senta planos de viagem (Rm 1.8-15), Paulo faz

o próprio texto

a declaração de sua tese, proclamando que o

Sabedoria 13.6-9 fala de pessoas procurando 11 I

(D u n n ,

p. 56-7;

C a lv e r t,

1993).

A b r a ã o : N o v o T estamento

encontrar [heuriskõ) a Deus. Outros textos que

Em Romanos 4.9-12, Paulo mostra em que sen­

se referem a pessoas “encontrando” a Deus por

tido Abraão é o pai dos judeus (circuncisos) e dos

meio de uma descoberta intelectual estão tam­

gentios (incircuncisos). A figura de Abraão estava

bém presentes na l x x

hgada à circuncisão no mundo judaico, porque

(I s

SS.6; 65.1), nas obras de (At 17.26,27;

Abraão foi o primeiro a participar da ahança da cir­

Rm 10.20). Em Romanos 4.17, Paulo também se

cuncisão (Gn 17.9-14; Eo 44.20). Referindo-se aos

Filo [Sp le, 1.36; Lg al, 3.47) e no

nt

refere a Abraão crendo em Deus, o Criador. Essa

“bem-aventurados”, cujos pecados são perdoa­

fé no único Deus como criador estava no alicerce

dos (Rm 4.7,8; cf. S1 32.1,2), Paulo pergunta se

do monoteísmo judaico. 0 Deus dos judeus só se­

essa bênção é “somente para os da circuncisão,

ria 0 Deus verdadeiro se fosse também o criador

ou também para os da incircuncisão” (Rm 4.9).

(cf. O t si, frag., 1.7). No contexto da idolatria, em

Para responder à pergunta, Paulo começa para­

Romanos 1, em razão do uso da expressão “um

fraseando Gênesis 15.6; foi a fé de Abraão que

único Deus”, para provar que judeus e gentios

redundou no perdão de Deus, porque Abraão, em

são justificados pela fé (Rm 3.29,30), e de sua

consequência de sua fé, recebeu a própria fé como

introdução ao exemplo de Abraão, talvez se possa

uma atribuição de justiça. Com outras perguntas

supor que o desejo de Paulo seja que seus leitores

retóricas em Romanos 4.10-12, Paulo prova que

pressuponham que ele falará de Abraão, o qual

Abraão recebeu essa atribuição de justiça quando

“alcançou” (“encontrou”) o único Deus criador.

ainda era incircunciso (Rm 4.10; cf. Gn 15.6;

Mas Paulo tem outro assunto em mente, que ele

Gn 17). Para Paulo, a circuncisão era um selo da

revelará na conversa que se segue.

justiça que Abraão tinha por fé quando ainda era

Alguém que conhecesse bem as tradições a

incircunciso (Rm 4.11). Assim, Abraão é o pai

respeito de Abraão talvez conhecesse também a

de todos os que creem e não são circuncidados

tradição sobre sua obediência à Lei antes de ter

e a quem se atribui a fé como justiça (gentios;

sido outorgada a Moisés, Paulo prevê essa inter­

Rm 4.11), e daqueles que não somente são cir­

pretação na declaração que faz em Romanos 4.2:

cuncidados, mas também seguem o exemplo

“Se foi justificado pelas obras, Abraão tem do que

de fé de Abraão quando ainda era incircunciso

se gloriar, mas não diante de Deus”. Paulo já utiU-

(judeus; Rm 4.12). Enquanto no passado a cir­

zou esse “gloriar-se” para mostrar que os judeus

cuncisão marcava os descendentes de Abraão

se vangloriavam da condição de privilegiados que

(Gn 17.9-14), Paulo mostra que, em virtude de

consideravam ter (Rm 2.17,23; 3.27). Abraão,

sua fé comum em Cristo, gentios e judeus têm

tido por obediente à Lei antes de ela ter sido ou­

Abraão como pai.

torgada e representante do judeu ideal, podia de

A questão que interessa a Paulo em Roma­

fato gloriar-se, mas não diante de Deus (Rm 4.2).

nos 4.13-17 é a promessa a Abraão e a sua des­

Paulo prova por que Abraão não pode gloriar-

cendência. Ele afirma que a promessa não veio

se em suas obras diante de Deus ao citar Gêne­

por meio da Lei, mas por meio da “justiça da fé”

atri­

(Rm 4.13). O que Abraão estava para herdar aqui,

buiu-lhe isso como justiça”. Abraão passa a ser

como em outras obras da hteratura judaica, não

um tipo paradigmático da maneira em que Deus

era somente a terra da promessa, mas o mundo

sis 15.6; “Abrão creu no

S e n h o r;

torna os seres humanos justos

e o

S enh or

(S a n d e r s ,

1983,

p. 33). Ao esclarecer o que quer dizer com “atri­

(Rm 4.14; Eo 44.21; Jb, 17.3; 22.14; 32.19; So, 1.175;

Dunn,

F ilo ,

p. 213). A indispensabilidade da

buiu” , Paulo faz uso da analogia do trabalhador,

Lei para o povo judeu constituía parte importan­

que recebe seu salário não como um presente,

tíssima de sua identidade. Paulo está refutando

mas como algo que lhe é devido (Rm 4.4), em

a ideia de que, para ser herdeiro da promessa

contraposição ao que crê naquele que justifica o

de Abraão, é preciso ser judeu da perspectiva

ímpio (Rm 4.S). Tudo isso é dito para que Paulo

da obediência à Lei mosaica. Paulo afirma ainda

possa responder à sua primeira pergunta sobre

que, se “os que vivem pela lei” [hoi ek nomou)

0 que Abraão alcançou. Por sua fé, Abraão al­

são os herdeiros, então "esvazia-se a fé, e anula-

cançou graça (Rm 4.4; cf. Gn 18.3; 30.27; 32.5;

se a promessa” (Rm 4.14). De acordo com Dunn,

33.8,10,15; 34.11; 39.4; 47.25,29; 50.4).

deve se entender a expressão “ os que vivem pela

12 I

A b r a ã o : N o v o T estamento

lei” em referência aos que viam na continuidade

atribuída “como justiça” (Rm 4.22; cf. Gn 15.6),

de sua existência como judeus algo que depen­

não por causa de Abraão somente, mas por causa

desse da Lei. a qual determinava tudo o que

de Paulo e de seus leitores também (Rm 4.23,24).

fosse característico ou bem definido em tudo o

A fé será tida como justiça para os que creem na­

que eram e faziam como povo de Deus

(D u n n ,

quele que ressuscitou a Jesus dos mortos, o qual

p. 213-4). Se os que se identificam como povo

foi entregue à morte pelas transgressões deles e

de Deus por causa da obediência à Lei são her­

ressuscitado para a justificação deles (Rm 4.25).

deiros, então a fé é esvaziada por não ser a base

A fé monoteísta de Abraão, que era tão funda­

da herança. Além disso, a Lei traz a ira e revela a

mental para a tradição judaica, foi transformada

transgressão (Rm4.15).

por Paulo. A fé dos crentes que seguem no en­

A maioria dos judeus teria entendido a função

calço da fé de Abraão está agora depositada no

da Lei de uma perspectiva positiva como algo que

único Deus criador, que ressuscitou Jesus Cristo

os identificava e os separava das outras nações. Em

dos mortos para que eles também pudessem ser

vez disso, Paulo aqui salienta funções negativas

feitos justos. S.2.2.3

da Lei. Ele apresenta ainda outra razão pela qual a

Romanos 9— 11. Em Romanos 9— 11,

promessa deve ser de acordo com a fé: a promessa

Paulo prossegue de modo geral para mostrar em

deve ser de acordo com a graça, de modo que possa

que sentido a promessa de Deus a Israel não fra­

ser garantida a todos os descendentes de Abraão.

cassou (Rm 9.6). O patriarca fundacional que

Ela não é exclusiva dos cristãos que se identificam

Paulo utihza em seu debate é Abraão (Rm 9.3-9;

como povo de Deus em razão de sua obediência à

11.1). O primeiro argumento de Paulo é que a

Lei (Rm 4.16), mas pertence também aos cristãos

promessa de Deus não fracassou porque “ nem

que compartilham da fé de Abraão, que é o “pai de

por serem descendência de Abraão são todos

muitas nações” (Rm 4.17; 12.3). Abraão não é pai

seus filhos” (Rm 9.7). Para provar seu argumen­

apenas da nação eleita de Israel.

to, ele cita Gênesis 21.12: “... porque a tua des­

A fé de Abraão é descrita por meio de duas

cendência será reconhecida por meio de Isaque”.

expressões muito conhecidas, extraídas da lite­

Em seguida, Paulo esclarece, em Romanos 9.8,

ratura judaica (Rm 4.17). A fé de Abraão esta­

que os filhos segundo a carne (todos os judeus

va incluída na capacidade criativa de Deus de

étnicos) não são filhos de Deus, mas os filhos da

fazer nascer o que existia a partir do que não

promessa são tidos por descendentes de Abraão

existia (2Ap Br, 21.4; 48.8;

(v.

F ilo ,

Re Di he, 36;

Is r a e l).

Sp Le, 4187; 2Mc 7.28). E Abraão tinha fé “ no

Citando Gênesis 21.12, Paulo mostra que os

Deus que dá vida aos mortos” (Rm 4.17). Essa

cristãos judeus de Roma já sabem que a descen­

descrição de Deus era também popular no ju­

dência étnica a partir de Abraão não é o mesmo

daísmo, como se comprova por seu emprego

que ser seu descendente verdadeiro. Foi por meio

em referência à conversão dos gentios [Jo e As,

de Isaque que os descendentes verdadeiros de

27.10). No entanto, em Romanos 4.18-22, Paulo

Abraão foram assim chamados (cf. Rm 9.10,13).

explica a fé de Abraão no Deus que deu vida aos

Nem Ismael nem os filhos de Quetura (Gn 25.1-4)

mortos fazendo referência à narrativa de Gêne­

foram tidos por verdadeiros descendentes de

sis. A fé de Abraão na promessa de Deus de que

Abraão. De acordo com a prova de Paulo, a razão

ele se tornaria o pai de muitas nações (Rm 4.18;

disso é que Isaque foi o descendente da promes­

Gn 15.5) não se enfraqueceu nem mesmo quan­

sa de Deus. Para dar ainda maior sustentação a

do ele considerou o próprio corpo, que já “não

seu argumento, Paulo inclui a promessa do anjo a

tinha vitalidade” (impotente; Rm 4.19), ou quan­

Abraão: “Por este tempo virei, e Sara terá um fi­

do considerou que a madre de Sara “ não tinha

lho” (Rm 9.9; Gn 18.10). Nem Agar nem Quetura

vida”. Paulo está descrevendo a fé que Abraão

foram a mulher por meio de quem a promessa foi

tinha em Deus (Rm 4.21) e a promessa divina de

realizada. Somente Sara, cujos anos de fertiUdade

um descendente (Rm 4.20), a despeito da inca­

tinham passado havia muito (Rm 4.19), era a mu­

pacidade física por parte do casal: dele e de Sara.

lher por meio de quem Deus cumpriu a promessa de dar um descendente a Abraão.

Por isso foi escrito que a fé de Abraão lhe foi

13

I

A b r a ã o : N o v o T estamento

0 último emprego que Paulo faz do exemplo

6.1 Hebreus 2.14-16. No contexto da demons­

de Abraão em Romanos ocorre em Romanos 11.1,

tração de que o Filho de Deus é solidário (no sen­

em que ele se denomina “israelita, da descendên­

tido de representatividade) com a família humana

cia de Abraão”. Em vista do debate anterior so­

pelo fato de se haver tornado um deles (Hb 2.14),

bre a definição de um verdadeiro descendente de

o autor de Hebreus primeiramente emprega a fi­

Abraão (Rm 4.13-18; 9.7,8], é razoável supor que

gura de Abraão para identificar aqueles a quem

aqui Paulo não esteja simplesmente se referindo à

Jesus Cristo veio libertar (Hb 2.15,16). Os agora

sua herança étnica judaica. Paulo insiste em que

chamados descendentes de Abraão são os que

a promessa de Deus não fracassou (Rm 9.6), ao

pertencem ao remanescente fiel (cf. Is 41.8-10),

mostrar que o tropeço de Israel trouxe salvação

homens e mulheres oprimidos de quem Jesus

aos gentios (Rm 11.11-13), que foram enxertados

toma posse para libertar do cativeiro de Satanás

no povo de Deus por causa de sua fé (Rm 11.20).

e trazê-los para debaixo da autoridade do Filho

Segundo o argumento de Paulo, ocorreu um “en­

exaltado.

durecimento” numa parte de Israel, e na incre­

6.2 Hebreus 6.13-20. Nessa passagem, ressal-

dulidade de então (Rm 11.29) os judeus étnicos

ta-se a promessa que Deus fez de dar descenden­

foram cortados (Rm 11.20). Os judeus, no entan­

tes a Abraão (Hb 6.13-15; Gn 12.2,3; 15.5; 17.5).

to, podem ser outra vez enxertados na oliveira

O autor repete uma expressão extraída da narrati­

(Rm 11.24). Isso leva Paulo a afirmar que, no que

va que descreve o sacrifício de Isaque concernen­

diz respeito ao evangelho, os judeus étnicos são

te a um juramento que Deus fez “por si mesmo”

inimigos, mas, com respeito ã sua eleição, são

(Hb 6.13; Gn 22.16), porque não havia ninguém

amados “por causa dos patriarcas” (Rm 11.28).

maior por quem Deus pudesse jurar (Hb 6.16,17)

Nesse caso, Paulo dá provas de conhecer a tra­

para garantir a promessa. O autor relembra os

dição sobre o fato de os descendentes étnicos

leitores da tradição popular acerca do sacrifício

de Abraão receberem consideração especial [An

de Isaque, quando ele é amarrado sobre o al­

bí, 30.7; 35.3). A promessa original de Deus não

tar, reforçando assim o retrato de Abraão como

fracassou (Rm 9.6). Os judeus étnicos também

protótipo da paciência fiel (Hb 6.15), o qual, em

estarão mais uma vez entre os descendentes

obediência, estava disposto a sacrificar seu único

verdadeiros de Abraão, não em virtude de uma

filho, recebendo dessa maneira as promessas de

identidade resultante da obediência à Lei, mas por

Deus. A exposição oferece aos destinatários da

causa da sua fé. Essa fé seguirá o exemplo da fé de

carta um exemplo a ser seguido, na expectativa

Abraão (Rm 4.17-25), uma fé que foi se aprofun­

de que receberão o que Deus lhes prometeu por­

dando, desde seu começo no monoteísmo judai­

que seu sumo sacerdote, Jesus Cristo, já obteve

co, para incorporar a fé em Jesus Cristo (v.

as promessas e é o precursor deles (Hb 6.19,20).

5.3

D

eus) .

6.3 Hebreus 7.1-10. Dentro do objetivo mais

ZCoríntios. Em 2Coríntios 11.22, Paulo,

em resposta ã jactância de seus oponentes em Co­

amplo de provar que o ofício sacerdotal de Jesus é

rinto, afirma ser também descendente de Abraão.

maior que o sacerdócio levítico, o autor interpreta

A maioria dos estudiosos concorda com o fato de

o episódio do encontro de Abraão e Melquisede-

que, por se designar descendente de Abraão, Pau­

que (Gn 14.17-20; cf. SI 110.4) com o propósito de

lo tem em mente mais que uma simples origem

mostrar que Melquisedeque é maior que Abraão

étnica. Por exemplo, R. P. Martin sugere que Pau­

e que os sacerdotes levíticos (Hb 7.7). Sua pro­

lo usa o termo com referência a si mesmo “como

va reside na cena em que Abraão, o patriarca

um distintivo de honra para estabelecer sua au-

exaltado (Hb 7.4), entrega a Melquisedeque

toidentificação cristã, em detrimento de seus ri­

um décimo dos espólios de guerra (Gn 14.20).

vais”

Como os sacerdotes levíticos recebiam dízimos

(M

a r t in ,

p. 375).

(cf. Nm 18.21,24,26-28; Ne 10.38,39; 20.9.8, § 181; 20.9.2, § 206-7;

6. Hebreus

Josefo,

Josefo,

An,

Vida, 15,

Na Carta aos Hebreus, Abraão é o protótipo da

§ 80) e uma vez que Abraão representava os levitas

perseverança fiel, que deve ser imitada pelos lei­

como antepassado de Israel, esse fato significava

tores crentes.

que Levi estava dando o dízimo a Melquisedeque

I 14 I

A b r a ã o : N ovo T estamento

(Hb 7.5,6,8-10), que é assim maior que o progeni-

era o cumprimento da promessa (Hb 11.17-19).

tor de Israel. Não está claro em Gênesis quem deu

Esse acontecimento, que serviu de teste para

dízimos a quem, mas o autor de Hebreus reflete

Abraão (Eo 44.20; IMc 2.52; v. 3.2 acima), do­

a tradição segundo a qual Abraão foi o que deu

minou 0 imaginário exegético judeu do judaísmo

0 dízimo (cf. IQapGen 22.17;

pós-bíbUco [Jb, 17.15— 18.19;

J o s e fo ,

An, 1.10.2,

F ilo ,

Ab, 167-297;

J o s e fo ,

An, 1.13.1-4,

§ 181). 0 autor ainda oferece um contraste entre

4Mc 7.11-14; 13.12; 16.18-20;

Abraão, que recebeu as promessas (Hb 7.6), e os

§ 222-36;

levitas, que receberam seu ofício de acordo com

40.2,3). A ação de Abraão foi celebrada como

P s e u d o - F ilo ,

An bí, 18.5; 23.8; 32.1-4;

a Lei (Hb 7.5). Para o autor, a promessa denota

modelo de fidelidade e obediência a Deus na tra­

algo efetivo e garantido (v. Hb 6.13), ao passo

dição literária em torno dos modelos judaicos de

que a Lei implicava o que era inefetivo. Assim,

fé (Eo 44.20; Jt 8.25,26; IMc 2.52; 4Mc 16.20; cf.

o contraste entre Melquisedeque e os sacerdotes

Tg 2.21-24; ICl, 10.7). Os detalhes incluídos na

levíticos realça o sacerdócio de Melquisedeque,

apresentação de Hebreus sugerem que o autor foi

porque os sacerdotes levíticos coletavam o dízi­

influenciado por essa tradição.

mo de acordo com a Lei, ao passo que Melqui­

0 tempo e o aspecto sacrificial do verbo ofe­

sedeque recebeu dízimos daquele a quem Deus

receu [prospherõ, Hb 11.17) sugere que em algum

havia feito promessas (Hb 7.6) e daquele a quem

sentido o sacrifício era um acontecimento reaU-

ele é superior (Hb 7.7), abençoando-o.

zado por causa da intenção de Abraão

6.4

Hebreus 11.8-12,17-19. Nesse capítulo, o 177;

P s e u d o - F ilo ,

An bí, 32.4;

S w e tn a m ,

(F ilo ,

Ab,

p. 122). O

autor emprega Abraão mais que qualquer outro

segundo emprego do verbo (Hb 11.17, a segunda

personagem como exemplo de fé. Abraão primei­

parte do versículo) mostra que Abraão não fez o

ramente é exemplo de fé pela obediência ao cha­

sacrifício, mas foi interrompido por intervenção

mado de Deus (Hb 11.8; Gn 12.1,2; cf. Gn 15.7;

de Deus. A tradição judaica faz referência a san­

Ne 9.7; At 7.2-8;

gue que foi derramado durante o sacrifício. Por

F ilo ,

Ab, 60,62,85,88).

A fase de Abraão como estrangeiro mostra seu

isso. Deus escolheu Abraão e sua família

estado de peregrinação, sem direitos nacionais e

F ilo ,

civis, “habitando em tendas” (Hb 11.9; Gn 12.8;

gue tinha algum tipo de valor expiatório.

(P se u d o -

An bí, 18.5,6), talvez implicando que o san­

13.3; 18.1), ou seja, como nômade. Sua obediên­

A referência do autor a Gênesis 21.12 (Hb 11.18)

cia não garantiu um assentamento imediato na

e a referência seguinte a Deus ressuscitando “ [al­

terra prometida, mas uma vida de permanência

guém] dos mortos” (Hb 11.19; cf. PirqeR. E l, 31)

temporária para si e para seus descendentes, onde

estão associadas ao mesmo tempo a Hebreus 11.12,

quer que estivessem (Hb 11.9), enquanto ele olha­

em que Abraão é apresentado como “ sem vigor

va para o alvo supremo. De acordo com o autor

físico” no que diz respeito à sua capacidade de

de Hebreus, esse alvo não era Canaã, mas a cida­

procriação. A implicação é que Abraão tinha fé

de firmemente estabelecida de Deus (Hb 11.10; cf.

em que Deus seria capaz de ressuscitar alguém

Hb 11.1; SI 48.8; 87.1-3; Is 14.32). A tradição apo­

dos mortos — a saber, Isaque — por meio da pro­

calíptica judaica afirma que Abraão viu a cidade

criação e ao salvá-lo do sacrifício. Os leitores cris­

celestial [2Ap Br, 4.2-5; cf. 4Ed 3.13,14).

tãos também veriam o sacrifício de Isaque como

Abraão também exemplifica a fé por ter con­

um prenúncio do dia em que Deus ressuscitaria a

fiado que Deus lhe daria um filho, embora ele e a

Jesus dentre os mortos. Disso eles poderiam obter

esposa nunca tivessem gerado filhos e não fossem

fé no Deus que é fiel às suas promessas

mais fisicamente capazes de fazê-lo (Hb 11.11,12;

p. 122-3,128). 6.5

cf. Rm 4.19-21; Gn 15.1-6; 17.15-22; 18.9-15). A

(S w e tn a m ,

Hebreus 13.1,2. O autor recomenda a seus

confiabilidade de Deus é realçada no contraste en­

leitores que tenham a atitude de acolher os cris­

tre o Abraão singular e a multidão de seus descen­

tãos que sejam estrangeiros ou de fora. A hospi­

dentes (Hb 11.12; cf. Hb 11.11), em conformidade

talidade era uma marca não somente das pessoas

com a promessa (Gn 15.5; 22.17; cf. Hb 6.13-15).

cultas, mas também dos cristãos, que se reuniam

Por último, Abraão exemplifica a fé na sua dis­ posição de sacrificar seu único filho, Isaque, que

nos lares de outras pessoas. A hospitalidade era necessária, especialmente no caso dos pregadores 15 I

A b r a ã o : N o v o T estamento

7.2

itinerantes. Na comunidade cristã, a relação con-

IPedro 3.4,5. No contexto de um código

vidado-anfitrião adquiria uma qualidade quase

doméstico, o foco recai sobre Sara, cujo exem­

sacramental, uma vez que tinham por certo que

plo precisa ser seguido pelos leitores. Surpreende

Deus desempenharia um papel significativo no

que o autor não evoque a situação do relato do

intercâmbio entre convidados e anfitriões

AT,

(L

ane

,

em que Sara se ri diante da promessa de um

p. 512). Faz-se aqui uma alusão a Abraão, conhe­

filho, dizendo que seu “senhor” é velho demais

cido por sua hospitalidade (ICl, 31; TeAb, 1.1-3A;

(Gn 18.12).

F il o ,

Ab, 107-10;

J osefo,

Talvez muitas das

An, 1.11.2, § 196), com

respeito a seu encontro com três visitantes em

m ulh eres

que leram a car­

ta tivessem marido descrente. Por meio do seu

sua tenda, em Manre, quando ele e a esposa re­

procedimento é que elas devem trazer o marido

ceberam a promessa do nascimento de seu filho,

para o evangelho (IPe 3.1,2). O princípio é que o

Isaque (Hb 13.1,2; Gn 18.1-21; ICl, 10.7).

cônjuge é influenciado pelo comportamento mo­ derado e digno de respeito. Na cultura da época, isso queria dizer que as esposas deveriam acatar

7. Tiago e IPedro

Tiago 2.21-24. Abraão, conhecido por a autoridade do marido.

7.1

Ver também

sua fé exemplar (v. 3.4 acima), também era re­ verenciado por sua obediência a Deus, quando se

Novo T e s t a m e n t o ;

dispôs a sacrificar Isaque (v. 3.2 acima), história popular nos círculos judaicos (v. 3.4 acima). Tia­

G á la ta s ,

C a s ta

aos ; ju d a ís m o e

o

R o m a n o s , C a r t a aos.

DPc: A n t i g o T e s t a m e n t o em P a u l o ; c ir c u n c is ã o ; f é ; g e n t i o s ; j u d a iz a n t e s ; o b r a s d a l e i .

go 2.21-24 agrega essas duas tradições; Abraão H. w. Hebrews. Philadel­

torna-se o exemplo daquele que completa a sua

B

fé com as obras.

phia: Fortress, 1989. (Herm.] ■ B a i r d , W. Abraham

Como Tiago 2.21 dá a entender que Abraão foi justificado

[d ik a io õ ]

pelas obras e isso soa como

ib l io g r a r a .

A

t t r id g e ,

in the New Testament: tradition and the new identity. Int, v. 42, p. 367-79, 1988. •

B arclay,

J.

contradição das declarações de Paulo sobre a jus­

Obeying the truth: a study of Paul’s ethics in Ga­

tificação (cf. Gl 2.15,16; Rm 3.22) exclusivamente

latians. Edinburgh; T & T Clark, 1988. ■ B e k e r , J.

pela fé, algumas observações se fazem necessá­

C. Paul the Apostle: the triumph of God in life and

rias. Para começar, o sentido em que d ika ioõ é usa­

thought. Philadelphia: Fortress, 1980. •

do em Tiago relaciona-se à comprovada fidelidade

le ,

B e lle v il­

L. L. “Under Law” : structural analysis and the

de Abraão, talvez em referência ao tema das pro­

Pauline concept of Law in Galatians 3:21—4:11.

vações (Tg 1.2,12). Assim, Deus declara Abraão

JSNT, V.

“justo” ou “fiel”. O sentido em que Paulo usa

a commentary on Paul’s Letter to the churches

d ik a ioõ

refere-se ao ato escatológíco em que Deus

declara que os pecadores estão agora num rela­

26, p. 53-78, 1986.

• B e tz,

H. D. Galatians:

in Galatia. Philadelphia: Fortress, 1979. •

B row n ,

R. E. The Gospel according to John (i-xii). Garden

cionamento correto com ele. Assim, Paulo pode

City: Doubleday, 1985.

dizer que Abraão foi feito justo por fé (Gl 3.6-9;

o f God, seed o f Abraham: a study of the idea of

Rm 4.22). Além do mais, o sentido de “obras” nas

the sonship of God of all Christians in Paul against

duas cartas é diferente. Em Tiago, refere-se a atos

the Jewish background. Rome: Biblical Institu­

de obediência e de compaixão que devem brotar

te, 1979. ■

da fé em Cristo (Tg 2.14-17) e que completam a fé.

Paul’s comparison of obedience to the Law to ido­

C a lv e r t,

(a b ,

29a.) ■ B y r n e ,

B.

Son

N. L. Abraham and idolatry;

As obras (como em “ obras da lei”) contra as quais

latry in Galatians 4:1-10. In: E v a n s , C. A . & S a n d e r s ,

Paulo constrói sua polêmica em torno da ideia de

J. A. Paul and the Scriptures of Israel. Sheffield:

Abraão tornar-se justo pela fé somente são aqueles

js o t ,

marcadores (e.g., a circuncisão) que anteriormen­

theism and the people o f God: the significance of

te identificavam o povo de Deus e ainda são usa­

Abraham for early Jewish and Christian identity.

dos por alguns para identificar o povo de Deus em

T & T International, no prelo. • ______ . Traditions

1993. [jsNTSup, 83.) • ______ . Paul, 'mono­

Cristo. Paulo usa Abraão como exemplo de justiça

of Abraham in middle Jewish literature: implica­

pela fé porque está contestando aqueles que de­

tions for the interpretation of Paul’s Epistles to the

sejavam minar o fundamento do seu evangelho.

Galatians and to the Romans. 1993. Dissertação.

16 I

A d ã o e C risto : Paulo

(Ph.D.) - University of Sheffield,



1993.

Minneapolis: Fortress, 1991, p. 157-74. ■

D a h l,

N. A. The story of Abraham in Luke-Acts. In: L. E. & M a r t y n ,

K eck,

J.

L., orgs. Studies in Luke-

metaphor. NovT, v. 29.2, p. 150-76, 1987. ■ Z ie s ­

Acts: essays presented in honor of Paul Schubert.

le r ,

Nashville: Abingdon,

1966.

1989. ■

W.

C. The Gospel according to

D.

& A lu s o n

J r ., D .

p.



139-58.

Saint Matthew. Edinburgh: T & T Clark, 1.

(;c c .)

■ D o n fr ie d ,

K.

1— 8.

1991.

Dallas: Word,

■Dunn,

J. A. Paul’s Letter to the Romans. London: Z o r r illa ,

justice. In:

V.

scm,

C. H. The Magnificat: song of

B ra n son ,

M. L. &

P a d illa ,

C. R., org.

Conflict and context: hermeneutics in the Ameri­

P., org. The Romans debate.

Ed. rev. Peabody: Hendrickson, G. Romans

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1988.

Young,

N. H. Paidagõgos: the social setting of a Pauline

cas. Grand Rapids: Eerdmans, 1986, p. 220-37. N.

J. D .

C a lv e r t - K o y z is

1988. (w b c , 38 a .)

■ Elus, W. E. E. Paul's use o f the Old Testament.

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Edinburgh: OUver & Boyd, 1957. ■ Fitzmyer, J. A.

c a rta s .

Ver

c a r ta s , fo rm a s de

The Gospel according to Luke. Garden City: Dou­ bleday, 1981, 1985. (ab, 28 a , 28 b .) ■ Green, J. B. Je­

A

sus and a daughter of Abraham (Luke 13:10-17):

Embora não sejam numerosas as referências à

test case for a Lucan perspective on Jesus' mira­

figura veterotestamentária de Adão nas cartas de

cles.

Paulo, ele a emprega sempre de modo significati­

p. 643-54, 1989. ■ Gordon, T. D. A

V. 51,

CBQ,

dão

e C r is t o : P a u l o

v . 35,

vo, uma vez que Adão serve de veículo para passar

p. 150-4, 1989. ■ Hansen, G. W. Abraham in Ga­

as subhmes verdades teológicas sobre casamento,

latians: epistolary and rhetorical contexts. Shef­

pecado, morte, natureza humana e esperança es­

field: JSOT, 1989. ■ Hays, R. B. Echoes o f Scripture

catológica. Mais importante ainda é que “Adão”

in the Letters o f Paul. N ew Haven: Yale University

vem a ser uma das partes teologicamente corres­

Press, 1989. • Lane, W. L. Hebrews. Dallas: Word,

pondentes entre si no ensino cristológico de Paulo,

1991. 2 V. (wbc.) ■ Lincoln, A. T. Abraham goes to

em que Adão e Cristo se apresentam como as duas

Rome: Paul’s treatment of Abraham in Romans 4.

metades de uma analogia claramente formulada

note on paidagogos in Galatians 3:24-25.

In: Wilkins,

M.

n ts ,

ministry in the early church. Sheffield: jscrr, [jsmsup,

em Romanos 5 e em ICoríntios 15.

J. & Paige, T. Worship, theology and

Essa analogia apresenta Adão e

1992.

C r is t o

como

cabeças de duas ordens contrastantes de existên­

8 7 .) ■ Loewe, W. P. Towards an interpre­

p. 321-31,1974. ■

cia, podendo ser tomada como uma das maneiras

Longenecker, R. N. Galatians. Dallas: Word, 1990.

mais reveladoras em que o pensamento teológi­

I. H. Commentary on Luke.

co do apóstolo se manifesta: Adão representa a

tation of Luke 19:1-10.

(w b c , 4 1 .)



M a r s h a ll,

cbq,

v . 36,

Grand Rapids: Eerdmans, 1978.

R. P. 2 Corinthians. Waco: Word, 1986. ■ S a n d ers,

M a r t in ,

humanidade caída, e Cristo, a humanidade re­

(w b c , 4 0 .)

dimida. Assim, nesses dois capítulos, vemos o



[n ig t c .)

entrecruzamento de vários interesses teológicos

E. P. Paul and Palestinian Judaism. Phi­

ladelphia: Fortress, 1977. ■ ______ . Paul, the Law,

fundamentais, a saber, antropologia,

and the Jewish people. Philadelphia: Fortress,

soteriologia e eclesiologia. Justamente pelo fato

1983. •

c r is t o lo g ia ,

J. Jesus and Isaac: a study of

de tantos temas pauhnos de fundamental im­

the Epistle to the Hebrews in light of the Aqedah.

portância convergirem na analogia Adão-Cristo,

Rome: Biblical Institute Press, 1981. ■

podemos afirmar que ela está muito próxima do

S w e tn a m ,

W a lla c e -

D. s. a suggested exegesis of Matthew

âmago do pensamento de Paulo. É precisamente

3:9,10 ( = Luke 3:8,9). ExpT, v. 62, p. 349, 1950-

por causa de sua importância fundamental que

1951. •

a analogia Adão-Cristo continuou a ser, ao longo

- H a d r ill,

W ard ,

R. B. Abraham traditions in early

Christianity. In:

N ic k e ls b u r g

Jr., G.

W.

E. Studies

dos anos, uma importante área de concentração da hermenêutica neotestamentária.

on the Testament o f Abraham. Missoula: Scholars, 1976, p. 173-84.

(scs,

1. Adão: o termo em sentido genérico

6.) ■ W e d d e r b u r n , A. J. M.

2. Adão: a figura histórica

The reasons for Romans. Minneapolis: Fortress, 1991. ■ W r i g h t ,

N.

3. Adão: a figura tipológica

T. The Seed and the Mediator:

Galatians 3:15-20. In: ______ . The climax o f the

4. Adão e a imagem de Deus

covenant: Christ and the law in Paulim theology.

5. Adão e o corpo de Cristo

17

I

A d ão e C risto : Paulo

1. Adão: o termo em sentido genérico

apoios textuais talvez representem precisamen­

0 nome Adão ocorre somente sete vezes no cor-

te uma influência em sentido inverso (ou seja, é

pus paulino (Rm 5.14 [2x]; ICo 15.22,45 [2x];

mais provável que o tema bíblico tenha sido to­

ITm 2.13,14), embora certos estudiosos conside­

mado por empréstimo pelos escritores gnósticos

rem que alguns dos debates mais generalizados

posteriores; v.

g n o s t ic is m o )

.

acerca do “homem” [anthrõpos] também têm

Todos esses subsídios documentais, de algu­

certo lastro adâmico no pensamento de Paulo.

ma forma relacionados com o tema, ajudam-nos

Isso se deve ao fato de que o termo hebraico

a compreender o interesse que a tradição em

adãm pode referir-se não apenas ao indivíduo

torno de Adão, o primeiro ser humano criado,

“Adão” , mas também à “humanidade” de forma

suscitou entre os escritores antigos, e como estes

genérica. É perfeitamente cabível conceber o uso

chegaram a fundamentar-se nela e assim refleti-la

que Paulo faz de Adão como expediente intima­

em seus escritos. Quando se reconhece esse fato,

mente relacionado às várias outras imagens e ex­

0 debate paulino em torno do tema é visto como

pressões de cunho antropológico que ele mesmo

plenamente compatível com outros documentos

utiliza para discorrer sobre a experiência cristã, a

de sua época, embora o emprego especificamen­

nova vida que há em Jesus Cristo. Entre essas ima­

te cristológico que o caracteriza torne distinto o

gens, podemos hstar: velho homem/novo homem

tratamento de Paulo. Paulo parece ser o primeiro

(Rm 6.6; Cl 3.9,10; Ef 2.15; 4.22-24); homem exte­

a apresentar Jesus Cristo como “o último [ou se­

rior/homem interior (2Co 4.16; Rm 7.22; Ef 3.15);

gundo] Adão [homem]” (ICo 15.45,47), designa­

homem natural/homem espiritual (1 Co 2.14-16).

ção que inequivocamente chama a atenção para o

Relacionadas a esse sentido antropológico mais

caráter escatológíco do pensamento do apóstolo.

amplo de Adão estão aquelas passagens em que Paulo usa o pronome “eu” (explícita ou implici­

2. Adão: a figura histórica

tamente), dando a entender que tem em mente a

Sem dúvida, Adão era tido por muitos no sécu­

raça humana, ou a humanidade fora dos limites

lo

da nova experiência que para o crente é possível

Isso explica por que Judas 14 (citando lEn 1.9)

em Cristo (v.

I

como a primeira pessoa da história humana.

Um bom exemplo dis­

se refere a Enoque como “ o sétimo a partir de

so está em Romanos 7.7-25, em que o apóstolo

Adão” (nv/). Lucas oferece uma avaliação seme­

parece usar o pronome “eu” em sentido coletivo,

lhante quando inclui Adão na genealogia de Jesus



em

C r is t o ” ) .

0 que acaba por caracterizar certa sobreposição

(Lc 3.38). A historicidade de Adão como primeira

com o tema adâmico de contornos genéricos.

pessoa criada parece ter sido tomada por certo

É praticamente tido como certo que a narrati­

pelo apóstolo Paulo, embora tal historicidade não

va de Gênesis 2—3 serve de lastro para o uso de

seja o foco principal dos dois principais textos

“Adão” nas cartas pauhnas, uma vez que fornece

pauhnos que versam sobre o tema Adão-Cristo.

os subsídios para esse emprego. 0 mesmo fascí­

2.1

Adão (e Eva) como exemplo(s) ético(s).

nio pela figura de Adão também pode ser visto

Não obstante, a historicidade de Adão (e de Eva)

em vários documentos judeus e cristãos do sécu­

parece mesmo estar por trás dos ensinamentos

lo

presentes nas cartas pauhnas sobre o relaciona­

I,

dentre os quais 4Esdras, ZApocalipse deBam-

que e o Apocalipse de Moisés, como ressalta J. R.

mento homem-mulher e, por extensão, sobre o

Levison. Vastamente documentadas também, nos

relacionamento entre Cristo e sua igreja. Seme­

escritos de Qumran e em obras de Filo de Alexan­

lhantemente, as figuras de Adão e Eva são usadas

dria, contemporâneo de Paulo, estão as especu­

umas poucas vezes nas cartas paulinas para su-

lações em torno de Adão. Pelo fato de que Adão

bhnhar a questão da autoridade dentro da ordem

figura com regularidade nos escritos gnósticos,

da Criação, estabelecida por Deus. Nesses dois

como os textos de Nag Hammadi, alguns estudio­

casos, o(s) papel (éis) de Adão (e de Eva) como

sos vêm tentando enxergar um elo entre o tema

exemplo (s) ético (s) é (são) de suma importân­

adâmico e as ideias gnósticas de “um segundo

cia, embora a historicidade do primeiro homem

homem”. Em geral, tal hipótese não tem sido re­

(e mulher) pareça ser pressuposta como parte do

conhecida como válida, ainda mais quando os

argumento ético. O uso que se faz de Adão (e de

I 1

A d ão e C rísto : Paulo

Eva) como modelo (s) ético (s) abre caminho para

modelos comportamentais a evitar (como no caso

o emprego mais tipológico de Adão na analogia

do engano de Eva e suas consequências). Como

Adão-Cristo de Romanos 5 e de ICoríntios 15.

em outros momentos, a historicidade do relato de

2.1.1 Adão (e Eva): casamento e papéis se­ xuais. Paulo alude à história de Adão e Eva em

Gênesis parece ser tomada por certa aqui nessa análise ética do relato.

ICoríntios 6.16 valendo-se de uma citação de Gênesis 2.24. Embora não sejam aqui emprega­

3. Adão: a figura tipológica

dos os nomes do primeiro casal de cônjuges, fica

Quando passamos a examinar as passagens rela­

claro que servem de modelos éticos primordiais

cionadas de Romanos 5 e ICoríntios 15, encon­

de como se deve dar na vida da igreja o relaciona­

tramos um uso muito mais complexo e amplo

mento sexual adequado entre homem e mulher.

de “Adão” feito por Paulo. Aqui o foco muda de

Paulo aqui realça a importância e a santidade da

Adão como mera figura histórica para Adão como

união sexual de um homem com uma mulher

personagem tipológico ou figurado em relação a

como meio de exortar os crentes corintios a um

Jesus Cristo (em Romanos 5.14, o termo typos,

estilo de vida mais digno e para imprimir neles o

“figura” [“tipo” na nw], é usado em referência a

fato de que pertencem ao corpo de Cristo (v.

co rpo

Adão). Comentando sobre a importância de Adão

. A história de Adão e Eva também serve

no pensamento do apóstolo, C. K. Barrett obser­

de fundamento para o conselho oferecido em Efé-

va que “Paulo enxerga a história convergindo

sios 5.22,33 a respeito da união no relacionamen­

em pontos nodais e cristalizando-se em figuras

to marital. Aqui, mais uma vez, Efésios constrói

extraordinárias — homens notáveis por si sós

DE C r is t o )

sobre as imagens veterotestamentárias de Adão

como indivíduos, mas ainda mais notáveis como

e de Eva e sobre o entendimento da união deles

figuras representativas”

com aquele “mistério” que existe entre Cristo e a

vemos que, em Romanos 5 e em ICoríntios 15,

igreja (v. esp. em Efésios 5.32).

Paulo justapõe Adão a Cristo, usando várias ca­

(B

arrett,

p. 5). Assim,

2.1.2 Adão (e Eva): o pecado e a ordem (ou se­

racterísticas fundamentais do ambiente veterotes-

qüência) da Criação. O texto de ITimóteo 2.13,14

tamentário para transmitir verdades cristológicas

também demonstra clara dependência da narra­

sobre Jesus Cristo, que encerra a humanidade em

tiva da história de Adão e Eva em Gênesis 2—3.

si mesmo. Poderíamos até mesmo à guisa de sín­

Numa seção dedicada ao ensino ético (ITm 2.9-15),

tese dizer que Paulo entendia a redenção cristã

0 argumento volta-se para o relato sobre Adão e

como uma transição do estar “em Adão” para o

Eva em Gênesis como fundamentação escriturís­

estar “ern Cristo” , uma transferência de cunho

tica para a compreensão da estrutura de autori­

salvífico de uma esfera da vida, de um âmbito

dade — a ordem da Criação — que existe entre

da existência, para outro. Dado o fato de que a

homens e mulheres. A ênfase recai sobre a prio­

teologia de Paulo brota de uma mentalidade es­

ridade da criação de Adão (ITm 2.13) e a priori­

catológica (v.

dade do engano de Eva (ITm 2.14) no jardim

que a nova criação suplantou a antiga (v.

do Éden. Recorre-se então a Adão e Eva como

NOVA

exemplos normativos de como homens e mulhe­

Cristo como um reflexo do ensino paulino acer­

res devem se relacionar e do que pode acontecer

ca do que R. Scroggs denominou “humanidade

se a estrutura correta de autoridade for abraçada

escatológica”. 3.1

por pessoas de épocas posteriores. Em suma, a questão é que ITimóteo apresenta Adão e Eva de

c r ia ç ã o ) ,

e s c a t o l o g ia ) ,

com ênfase no fato de c r ia ç ã o ,

é apropriado enxergar o tema Adão-

Adão e a humanidade escatológica. 0

texto de ICoríntios 15 consiste num debate in­

maneira específica, como meio de regular a con­

dependente sobre a

duta na vida da igreja, especialmente nas práticas

propósito primordial não é tanto corroborar a ver­

r e s s u r r e iç ã o

dos mortos, cujo

de adoração. Eles são apresentados tanto como

dade da ressurreição de Jesus (uma vez que já é

exemplos éticos do passado a serem seguidos

tida como fato) quanto explicar sua importância

(como no caso da devida submissão de Eva a

para a vida dos fiéis. Assim, o capítulo trata da

Adão com base na dependência em relação a ele

realidade da ressurreição de Cristo e suas implica­

estabelecida na ordem da Criação) quanto como

ções na vida dos cristãos. Nesse debate, a analogia 19 I

Adão-Cristo é usada claramente em dois momentos:

22b: do mesmo modo em Cristo todos serão

em ICoríntios 15.20-22 e em ICoríntios 15.44-49.

vivificados.

A ressurreição de Cristo é o acontecimento que

Os dois versículos devem ser interpretados

inaugura e estabelece o fato de ele ser “o primei­

conjuntamente, uma vez que o segundo esclarece

ro” (“as primícias” , na n v i ) entre os que morreram

o significado do primeiro. A perspectiva essen­

(ICo 15.20,23). É em relação a essa ideia que a

cialmente escatológica da analogia é demons­

analogia Adão-Cristo é introduzida pela primeira

trada pelo uso do verbo no futuro passivo em

vez. M. Thrall entende que o debate cristológico

ICoríntios 15.22b.

que se desetu'ola em Corinto brota tanto da apre­

Surge aí certo debate em torno da salvação uni­

sentação anteriormente feita por Paulo a respeito

versal que ICoríntios 15.22 parece dar a entender.

do tema adâmico quanto do equívoco em torno

Que peso deve ser dado aos dois usos de “todos”

do tema por parte da igreja coríntia. Tal ideia está

em ICoríntios 15.22? Estaria Paulo ensinando a

longe de ser comprovada e pressupõe um vacilo

salvação, em última análise, de toda a humani­

no pensamento de Paulo que é muito mais inten­

dade em Cristo, assim como afirma a morte uni­

cional do que tal teoria faria crer.

versal de toda a humanidade em Adão? A maioria

3.1.1

Cristo como o último M ã o : as primícias. dos comentaristas concorda em que tal ideia é

0 primeiro uso da analogia Adão-Cristo é introdu­

incompatível com o restante do ensino de Paulo.

zido por uma afirmação (ICo 15.20) construída

Por toda a carta, Paulo faz menção àqueles que

sobre a declaração de ICoríntios 15.3-5 acerca

perecem (ICo 1.18; 3.17; 5.13; 6.9; 9.27). À luz

da ressurreição de Cristo. Na segunda metade de

disso, parece que somos obrigados a enxergar de

ICoríntios 15.20, o significado da ressurreição de

outro ângulo as duas orações com o sujeito “to­

Cristo é ampliado — Cristo é também o “primeiro

dos” de IConntios 15.22 (ou ao menos a segunda

entre os que faleceram” (nw: “as primícias den­

delas), considerando “em Adão” e “em Cristo” não

tre aqueles que dormiram”). Desse modo, mais

adjuntos adverbiais que complementam os verbos

um argumento é introduzido como elemento no

“morrem” e “serão vivificados”, mas quaUficado-

debate sobre a ressurreição de Cristo, a saber, a

res (ou orações adjetivas restritivas) do próprio

unidade do Senhor ressurreto com aqueles que

sujeito — “todos”. Assim, podemos entender o sig­

nele creem. Os corpos ressurretos dos remidos (é

nificado do versículo da seguinte forma: “Todos os

importante ressaltar que o foco do debate recai

que estão em Adão morrem, ao passo que todos os

justamente sobre essa questão “ somática”) hão

que estão em Cristo serão vivificados”.

de corresponder ao de Cristo e dele decorrer, as­

3.1.2

sim como a colheita corresponde aos primeiros

Cristo como o Último M ã o : o espírito que

dá vida. Temos em ICoríntios 15.45-49 uma cita­

frutos e deles decorre.

ção do comentário midráshico sobre Gênesis 2.7.

É com 0 propósito de realçar a relação entre

A seção está alicerçada sobre a declaração que

Cristo e seus crentes, para assim explicá-la

Paulo faz em ICoríntios 15.44b: “Se há corpo

melhor, que a analogia Adão-Cristo é usada por

natural [“físico” na

Paulo. A tipologia Adão-Cristo passa a ser um

piritual”. Essa declaração de ICoríntios 15.44 é

argumento a favor da garantia de ressurreição

um resumo do parágrafo anterior, o qual começa

n r s v ],

há também corpo es­

para a comunidade de crentes e, nas palavras

em ICoríntios 15.35 e contém um debate sobre a

de J. Lambrecht, estabelece para nós um rela­

natureza do corpo ressurreto. Paulo fala aqui de

cionamento “temporal, bem como causai” entre

um sõma psychikon (“corpo natural”) e um sõma

o Senhor e aqueles que creem nele. Em 1Corin­

pneumatikon (“corpo espiritual”), eficazmente

tios 15.21,22, Paulo delineia um paralelismo du­

driblando seus oponentes corintios

plo, mostrando esse relacionamento;

A exata identificação desses oponentes vem sen­

21a; Porque, assim como a morte veio por um

(D u n n ,

1973).

do ao longo dos anos objeto de amplo debate

homem,

acadêmico. B. Pearson, no entanto, identifica o

21b; também por um homem veio a ressurrei­

uso que eles faziam da terminologia pneumati-

ção dos mortos.

kos-psychikos como um dos seus pontos de atrito

22a: Pois, assim como em Adão todos morrem. I

com Paulo. É na tentativa de explicar a relação

20

I

A d ão e C risto : Paulo

existente entre esses dois sõmata ( “corpos”, tanto

É significativo que as duas referências estru­

pneumatikos quanto psychikos) que Paulo se vol­

turadas relativas à analogia Adão-Cristo de 1Co­

ta mais uma vez para a analogia Adão-Cristo de

rintios 15 (ICo 15.21 e ICo 15.45) são seguidas

ICoríntios 15.45-49.

por passagens que falam de Jesus Cristo em lin­

Paulo cita Gênesis 2.7 a partir da l x x , acrescen­

guagem grandiloquente e às vezes são entendidas

tando as palavras “primeiro” e “Adão” ao texto do

como uma expressão do entendimento paulino da

AT a fim de estabelecer o contraste tipológico com

doutrina de preexistência. Assim, em ICoríntios

Cristo que se segue em ICoríntios 15.45b: “O úl­

15.25-28, há o uso cristológico de Salmos 8.6 e de

timo Adão [tornou-se] espíríto que dá vida”. Ao

Salmos 110.1, ao passo que em ICoríntios 15.47-49

estabelecer o contraste dessa maneira, Paulo está

há referências repetidas ao “ homem [...] do céu/

tratando da questão dos “corpos” da existência

celestial”. A pergunta que então precisa ser for­

natural e da espiritual, como se pode perceber

mulada é: Existe alguma relação entre o fato de

no uso dos artigos definidos neutros (no original

Paulo chamar Jesus Cristo de “último Adão” e a

grego) de ICoríntios 15.46 (sendo o antecedente

linguagem grandiloquente vinculada à expressão

“corpo”), em vez de artigos masculinos (no origi­

“homem do céu” atribuída a ele em ICoríntios

nal grego; o masculino se referiria a “homem”).

15.25-28 e em ICoríntios 15.47-49? Se existe tal

0 argumento é que Adão, por ter “corpo físico”

associação, podemos encontrar aí um elo entre a

também se tornou “ ser vivente” ; Cristo,

teologia adâmica de Paulo e sua crença na pree­

por tornar-se “corpo espiritual” , também se tor­

xistência de Cristo, ou mesmo um traço ou vestí­

nou espírito “ que dá vida”. Paulo não está aqui

gio da figura do “Filho do homem”. Muitos (como

( n r s i' ) ,

apenas fazendo uma afirmação antropológica so­

Dunn)

bre Cristo como o “último Adão”. O que ele quer

e assim significa forçar as evidências; devemos

sentem que isso não passa de especulação

dizer vai além disso: está também fazendo uma

prosseguir com cautela. De todo modo, não de­

declaração cristológica sobre o Senhor ressurre­

vemos permitir que a questão fascinante de uma

to que se manifestou na igreja como o Espírito

sobreposição entre as ideias da preexistência e da

regenerador. A passagem de Gênesis prestava-se

linguagem grandiloquente vinculada à expressão

a esse propósito, embora, como observa N. T.

“ homem do céu” nos desvie do caráter essencial­

Wright, a relação desse ponto cristológico com o

mente escatológíco da analogia Cristo-Adão como

debate principal sobre o “corpo espiritual” não

encontrada nessa carta. 3.2

esteja evidente à primeira vista.

Adão e a origem do pecado. Em grande

Em certo sentido, portanto, o uso que Paulo

parte por causa da narrativa de Gênesis 3, a figu­

faz da analogia Adão-Cristo não é de todo unifor­

ra de Adão tem sido um dos pontos centrais nos

me. Ao chamar Cristo o “espírito que dá vida”,

debates sobre a pecaminosidade humana, tanto

Paulo está fazendo uma declaração sobre a obra

no judaísmo quanto no cristianismo (v.

de Cristo na igreja que não tem nenhum corres­

Romanos 5.12-21 contém o tratamento mais am­

pecad o ).

pondente no lado adâmico da analogia. 0 fator

plo desse tema nas cartas paulinas. Esse texto

que motiva Paulo a fazer uso da analogia é seu

vem exercendo enorme influência na teologia

desejo de mostrar que existe um relacionamento

cristã ao longo dos séculos, à medida que vários

entre Adão e o restante da humanidade. Mas a

intérpretes têm buscado aferir as profundidades

maravilha do que Deus havia feito pela raça hu­

do ensino do apóstolo sobre a origem do pecado.

mana por meio de Cristo é tão superior que a ana­

Sem dúvida, Paulo associa a entrada do pecado e

logia Adão-Cristo se desmantela. Foi empregada

da morte no mundo à transgressão de Adão. Em­

pelo apóstolo apenas à medida que se mostrou

bora em Romanos 5 ele esteja (como se presume)

útil para demonstrar a solidariedade (no senti­

pensando historicamente na Queda, fica patente,

do de mútua representatividade) dos dois Adões

de imediato, que ele tem em mente muito mais

com seus respectivos representados, mas, quan­

que uma avaliação histórica de Adão e de seu ato

do não conseguiu mais transmitir nem carregar a

de rebeldia. Na realidade, o uso que Paulo faz de

mensagem do poder de Cristo que transforma a

Adão em Romanos 5.12-21 tem um realce proto-

vida do crente, foi abandonada.

lógico (que aponta para o começo). Adão serve

I 21

I

A d ão e C risto : Paulo

de meio para explicar a entrada do pecado e da

para Romanos 5.12d e observa que, na história

morte no mundo e (por extensão) para descrever

da igreja, é possível encontrar apoio para cada

a condição da raça humana depois dessa primeira

uma delas. G. Bonner lamenta que Agostinho não

transgressão. 0 foco é deslocado de Adão e Cristo

tenha se concentrado “mais na concepção rica e

como pessoas coletivas, em ICoríntios, para seus

profunda da antítese entre os dois Adões, em vez

respectivos atos, em Romanos 5.

de perder tempo com a teoria horripilante da par­

Isso não significa afirmar que toda a pers­ pectiva de Romanos 5 é simplesmente uma

ticipação da humanidade ainda por nascer no pri­ meiro pecado do primeiro Adão”

retrospectiva (um olhar para trás), pois ao mesmo

(B o n n e r ,

p. 247).

É importante ressaltar que, embora Paulo de

tempo é verdade que tudo que aconteceu em

fato aponte Adão como o instrumento pelo qual o

Adão é transcendido pelo que acontece em Jesus

pecado ingressou no mundo, ele não nos informa

Cristo, 0 Último Adão. Como Paulo afirma em Ro­

0 meio pelo qual esse pecado é transmitido de

manos 5.14, Adão é “um tipo daquele que haveria

uma geração a outra. A mecânica permanece sem

de vir” (nw). 0 ato de desobediência de Adão é

explicação, além da declaração simples de que

contraposto ao ato de obediência de Cristo, que

“toda a humanidade pecou” (tradução mais correta

carrega consigo uma promessa de vida futura na

de Romanos 5.12). A responsabilidade de Adão

nova criação. Na realidade, em Romanos 5.15-21,

pelo ingresso do pecado no mundo é corroborada

numa seção muito bem estruturada de sua argu­

por Paulo ao lado de uma confirmação também

mentação. Paulo faz 0 que está ao seu alcance

da responsabilidade do indivíduo pela presença

para deixar claro que Jesus Cristo reverteu, em

do pecado em sua vida. No entender de Paulo,

todos os sentídos, os efeitos negativos da trans­

atuam os dois elementos (culpa e responsabilidade

gressão de Adão: a transgressão é resolvida pela

pessoal, bem como culpa e pecado universal em

obediência; a condenação, pela justificação; a

Adão). Esse paradoxo fica claro pelo modo em que

morte, pela vida. A argumentação a minori ad

o pensamento de Paulo transita livremente da de­

maius (“ do menor para o maior”) é empregada

claração profundamente pessoal de Romanos 5.12

do começo ao fim. e assim se ressalta a tremen­

(“porque todos os homens pecaram”

da verdade concernente à suplantação do pecado

a declaração mais determinista de Romanos 5.19

[nrsv] )

para

e de seus efeitos por meio da graça de Deus em

(“pela desobediência de um só homem muitos fo­

Cristo. No entanto, a dimensão protológica da

ram feitos pecadores”). 0 ensino de Paulo é ecoa­

analogia Adão-Cristo de fato é ressaltada aqui de

do em lApocalipse de Baraque 54.15,19: “Pois,

uma maneira que não é em ICoríntios 15.

embora Adão tenha pecado primeiro e tenha trazi­

0 fato de Romanos 5.12 ser uma frase ina­

do morte sobre todos os que ainda nem existiam,

cabada no grego motivou diversas tentativas de

cada um dos que nasceram dele preparou para

interpretar a direção que o argumento de Paulo

si mesmo o tormento vindouro. [...] Adão não é,

estava tomando. Como F. W. Danker observa,

portanto, a causa, a não ser para si mesmo, mas

parte do dilema é a dificuldade de concluir qual

cada um de nós se tornou seu próprio Adão” (ed.

seja 0 antecedente do pronome relativo dativo hõ

C h arlesw o rth ) .

(“pecado” , “ morte” , “Adão” ou nenhum deles, antes, com a preposição epi {eph’], consistindo

4. Adão e a imagem de Deus

numa expressão idiomática com o sentido de “ra­

A teologia adâmica também desempenhou um

zão pela qual” , “porque” , “porquanto” , “ pois”).

papel importante em várias outras passagens-

Além do mais, a tradução que Agostinho fez de

chave das cartas paulinas. notadamente estas,

Romanos 5.12 — "em quem [Adão] todos peca­

como 0 material hínico de Filipenses 2.6-11 e de

ram” (em lat., in quo omnes peccavemnt] — tem

Colossenses 1.15-20, e também da declaração

desde então, para nossa vantagem ou desvanta­

de 2Coríntios 4.4, que se referem a Jesus Cris­

gem, dado 0 tom para a interpretação teológica

to como “a imagem de Deus”. Aqui, o histórico

que a igreja tem feito dessa declaração a respeito

veterotestamentário de Adão dá conta de alguém

de Adão. C. E. B. Cranfield alista seis possibilida­

criado “à imagem de Deus” [morphé é usado

des interpretativas dignas de consideração apenas

em Fp 2.6, e eikõn, em Cl 1.15 e em 2Co 4.4).

22 I

A d ão e C risto : Pa ulo

A designação da “glória de Deus [ou do homem]”

Cristo como a expressão verdadeira daquilo que

também figura no debate nesse ponto. Essa con­

a imagem de Deus significa (pensamento de

fluência de imagens e designações recentemente

Bultmann)?

levou alguns estudiosos a ver a preponderância

Essas duas abordagens interpretativas de­

da linguagem da “ imagem de Deus” encontrada

pendem, em parte, de como se entende que se

em todas as cartas paulinas como mais uma ma­

devam encaixar as duas metades de Romanos 5

nifestação da teologia adâmica. J. D. G. Dunn

(Rm 5.1-11 e Rm 5.12-21). Assim, Barth, de for­

(1980), por exemplo, argumenta fortemente a fa­

ma convincente, situa Romanos 5.12-21, com sua

vor de uma leitura adâmica do hino filipense. M.

descrição da raça humana adâmica, dentro dos

D. Hooker enxerga um tema adâmico subjacente

limites de Romanos 5.1-11, em que se declara a

a Romanos 1.18-32, em que o apóstolo se refere

real condição da raça humana em Cristo. Já Bult­

à terrível situação da humanidade da perspectiva

mann ahcerça Romanos 5.12-21 no estilo de vida

da queda de Adão. A. J. M. Wedderburn oferece

motivado pelo exemplo de fé de Cristo e ressalta

alguns esclarecimentos à teoria de Hooker. Além

que Romanos 5.1-11 se ocupa com a existência

disso, existem boas razões para considerar que

paradoxal dos crentes em estado de esperança.

a queda de Adão está por trás da declaração de

Ou seja. Romanos 5.12-21 é interpretado como

Paulo em Romanos 3.23.

expressão mais plena dessa vida do crente, e é

4.1

Imagem de Deus: natureza e existência apenas nesse aspecto que o componente cristoló­ gico, por assim dizer, é introduzido no esquema.

em Romanos 5. Intimamente relacionada a esse

4.2

assunto está a consideração de como o ser criado

Imagem de Deus: estágios da história

“à imagem de Deus” opera como uma descrição

da salvação. Outra maneira de representar essa

da natureza e da existência humanas. Eis uma

divergência fundamental na interpretação do

questão que por muito tempo ocupa a atenção de

sentido de humanidade (se é a humanidade adâ­

comentaristas cristãos, muitos dos quais, como

mica ou a nova humanidade em Cristo) criada “à

João Calvino (na observação de R. Prins), têm

imagem de Deus” é por meio de uma ilustração

procurado se deter nas cartas de Paulo na tenta­

de etapas sucessivas transpostas na história da

tiva de tratar da questão. É interessante observar

salvação. A estrutura escatológica subjacente a

que Romanos 5 como um todo, particularmente

todo o pensamento de Paulo enxerga que a an­

a analogia Adão-Cristo de Romanos 5.12-21, se

tiga era, à luz do advento de Cristo, deu lugar

torna decisiva nesse aspecto.

a uma nova era, como demonstram textos como

As interpretações de Romanos 5 oferecidas

2Corintios 5.17.

por K. Barth e R. Bultmann são comparações

J. A. Ziesler apresenta esse quadro como um

úteis nesse caso, pois são interpretações que se

possível esquema de três etapas, em que “estado

concentram respectivamente nas metades cristo­

original-Queda-estado restaurado” constítui uma

lógica e antropológica da analogia. Assim, Barth

forma de mapear esse desdobramento. Tal esque­

concentra-se no elemento cristológico da analo­

ma de três etapas tenderia ao tipo de interpretação

gia e enxerga a passagem essencialmente como

oferecida por Bultmann. No entanto, Ziesler argu­

expressão da natureza da humanidade. Bultmann

menta que a visão que Paulo tinha do homem é

concentra-se no elemento antropológico da ana­

tão esmagadoramente dirigida à perspectiva esca­

logia e enxerga a passagem essencialmente como

tológica do Últímo Adão que esse esquema de três

expressão da existência da humanidade. Em resu­

etapas se torna irrelevante em qualquer debate a

mo, a pergunta fundamental é como compreen­

respeito de Paulo. Ele observa que em nenhum

demos o fato de a raça humana (Adão) ser criada

lugar Paulo identifica Adão como alguém “à ima­

“à imagem de Deus”. É em Adão ou em Cristo

gem de Deus”. Assim, com base nisso, sugere que

que de fato contemplamos a “imagem de Deus”?

um esquema de duas etapas está mais próximo do

Começamos com Cristo e daí passamos para in­

ensino essencial de Paulo. Isso esboçaria as etapas

terpretar a raça humana como a imagem de Cris­

da história da salvação num desdobramento mais

to (pensamento de Barth)? Ou começamos com

simples (Queda-estado restaurado) e tenderia

a raça humana e daí passamos para interpretar

para a interpretação proposta por Barth.

23

I

/~KU/-\U C

( M U LU

Haveria boas razões para sustentar essa rup­

e Filipenses 3.4-11, e enxerga nelas um tema adâ­

tura tão radical entre Adão e Cristo como imagem

mico subjacente. S. Kim sustenta que essa pers­

de Deus? As ideias de Ziesler precisam ser mo­

pectiva congrega dois fundamentos distintos para

dificadas ligeiramente por meio de uma análise

o pensamento cristológico de Paulo; uma crlsto-

mais rigorosa de ICoríntios 11.3-9, em que Paulo

logia sapiencial e uma cristologia imagética, e

emprega o relato da Criação, de Gênesis, como

ambas convergem na pessoa de Jesus Cristo, o

base para um comportamento ético adequado

Segundo Adão no pensamento de Paulo.

entre homens e mulheres no que diz respeito a cobrir a cabeça durante o culto. 0 versículo fun­

5. Adão e o corpo de Cristo

damental é ICoríntios 11.7; “O homem não deve

Uma vez que Paulo vê a raça humana incorpo­

ter a cabeça coberta por véu, uma vez que ele é

rada tanto em Adão quanto em Cristo, não redi­

a imagem e o reflexo de Deus; mas a mulher é o

mida e redimida, respectivamente, ele demonstra

reflexo do homem” (nrsv). A questão aqui é que

(ou contribui para) uma sobreposição conceituai

Paulo demonstra alguma flexibilidade no seu uso

entre uma teologia adâmica e a ideia do corpo

de “imagem de Deus”, disposto que está a aplicar

de Cristo (v.

o conceito de forma mais ampla se isso contribuir

po de Cristo é constituído de crentes congrega­

para seus propósitos, ainda que seja verdade que

dos para formar uma humanidade unida, a do

co rpo

de

C r is t o ) .

Ou seja, esse cor­

a passagem, como ressalta Ziesler, de fato ocorre

Último Adão. Embora não haja uma referência

num contexto não soteriológico. Todavia, não de­

clara a Adão nos textos-chave em debate aqui,

vemos ignorar o traço adâmico desse versículo —

está claro que a humanidade adâmica e caída é

Paulo quer dizer que o homem, ou seja, cada ser

espiritualmente reconstituída (Ef 1.10) em Cris­

humano, carrega de alguma maneira a imagem

to de tal modo que a linguagem adâmica e as

e a glória (ou “ reflexo” , como na

de Deus,

imagens do corpo de Cristo se fundem. Vemos

Não se quer com isso negar que, de acordo

paulinas, dentre as quais Colossenses 3.12-17 e

nrsv)

como o primeiro Adão.

esse realce específico em várias partes das cartas

com Paulo, há um forte sentido em que a glória

Efésios 2.13-18.

da raça humana como a imagem de Deus encon­

Nos dias de hoje, W. D. Davies encabeça uma

tra realização em Cristo. Em Filipenses 3.20,21,

investigação do tema ao ressaltar os antecedentes

encontramos isso claramente representado no

judaicos e rabínicos desse entendimento acerca de

fato de o crente ser transformado do “corpo da

Adão com sua pertinência a um estudo do ensino

[...] humilhação” para o “corpo da sua [de Cristo]

de Paulo sobre um Cristo coletivo. No âmago da

glória”, e em Romanos 8.29 faz-se referência aos

questão está o reconhecimento de que o debate a

crentes como pessoas “conformes à imagem de

respeito de Adão não é primordialmente um deba­

seu [de Deus] Filho”.

te sobre a raça humana em si mesma, sendo mais,

4.3

Imagem de Deus: cristofania. Seria possí­ porém, um debate em torno da nação de Israel vis­

vel identificar a origem do entendimento de Paulo

ta de uma perspectiva escatológica, como afirma

a respeito de Jesus Cristo como o Último Adão,

N. T. Wright. Não se deve subestimar a tremenda

bem como sua conexão com o tema da “imagem

contribuição que um senso do coletivo, visto que

de Deus”? Parece haver uma estreita relação entre

quer como humanidade adâmica quer como corpo

a imagem-cristofania e as referências ao Senhor

de Cristo, faz à análise das cartas paulinas. Tal rein-

Jesus Cristo ressurreto que se fundamentam na

terpretação das promessas do

tradição veterotestamentária da teofania e são

do ponto de vista da nova criação em Cristo parece

corretamente designadas “cristofania”. Significa

subentendida em Gálatas 6.15,16 e certamente

at

à

nação de Israel

dizer que as passagens em que Paulo faz refe­

adquire caráter inequívoco em alguns dos escritos

rência ou alusão à sua experiência de conversão

de líderes cristãos posteriores, como Justino Mártir,

e à sua visão de Cristo podem ser tomadas como

para quem a igreja cristã é “o verdadeiro Israel

suplementos de uma cristologia adâmica. Isso

espiritual”

traz para o debate passagens como ICoríntios

constitui “Israel” é uma questão difícil de definir

9.1; 15.8-10; 2Coríntios 3.4—4.6; Gálatas 1.13-17

nas cartas de Paulo como um todo, e não se pode

I 24

(J u s t in o ,

Dl TY, 11.5). No entanto, quem

ADOÇÃO, f il ia ç ã o : P a u l o

sustentar facilmente a substituição da nação pela

Adam in Paul’s Letter to the Romans. In:

igreja em cada um dos casos, sobretudo à luz de

ne

versículos difíceis como Romanos 11.26.

Paul and other New Testament authors. Sheffield;

Ver também c r i s t o l o g i a ;

,

L iv in g s to ­

E. A., org. Studia Biblica, 1978, v. 3. Papers on

Academic, 1980. p. 413-30 [jsNTsup, 3.) ■

“ em C r i s t o ” ; e s c a t o lo g ia .

W r ig h t,

N. T. Adam, Israel and the Messiah. I n : _______.

DPC: IMAGEM, IMAGEM DE D eU S ; NOVA NATUREZA E VE­

The climax o f the covenant: Christ and the law in

LHA n a t u r e z a .

Paulim theology Minneapolis: Fortress, 1991. p. 18B ib u o g r a fia . B a r r e t t , C . K .

40. ■ Z i e s l e r , J. A. Anthropology of hope. ExpT, v.

From first Adam to last.

90, p. 104-9, 1978-1979.

London: A & C Black, 1962. ■ B a r t h , K. Christ and

L. J.

Adam: man and humanity in Romans 5. Edinbur­ gh: Oliver & Boyd, 1956. (sjtop, 5.) ■ Augustine on Romans 5:12. In;

C ross,

B on n er,

K r e itz e r

G.

F. L., org.

a d m in is t r a ç ã o p r o v i n c i a l r o m a n a .

Ver

R om a.

Studia evangelica 5. Berlin; Akademie Verlag, 1968, p. 242C-7. ■

B u lt m a n n ,

AD O ÇÃO ,

R. Adam and Christ

f il ia ç ã o

: P

aulo

S n y d er,

Nas cartas paulinas, o vocábulo grego huiothe-

G. R, orgs. Current issues in New Testament inter­

sia é empregado ou em referência aos israelitas

according to Romans 5. In:

K la s s e n ,

W. &

(Rm 9.4) ou em referência aos crentes (GI 4.5;

pretation: essays in honor of O. A. Piper. London: The Epis­

Rm 8.15,23; Ef 1.5) como filhos de Deus. Há, no

tle to the Romans. Edinburgh: T & T Clark, 1975.

entanto, certa divergência quanto à melhor forma

2

de traduzir o termo: se por “adoção” ou, de ma­

scm ,

1962, p. 143-65. ■ C r a n f i e l d ,

V.



NTS,

V.

D a n k er,

C.

E.

B.

F. W. Romans 5:12: sin under law. D.

neira mais genérica, por “ filiação”. É preciso re­

Paul and rabbinic Judaism. 4. ed. Philadelphia:

solver esse problema antes mesmo que se possam

Fortress, 1980. ■

debater os antecedentes específicos do termo.

14, p. 424-39, 1967-1968. ■

Dunn,

J.

D.

D a v ie s ,

W.

G. Christology in the

making. Philadelphia: Westminster, 1980, p. xviii-

1. O significado de huiothesia em Paulo

xix, 98-128. ■ _______. 1 Corinthians 15.45— Last

2. Os antecedentes da “adoção [divina] de filhos” em Paulo

Adam, life-giving Spirit. In; Lindars, B. & Smalley,

3. A fiUação dos crentes em Paulo

S., orgs. Christ and Spirit in the New Testament: studies in honor of C. F. D. Moule. Cambridge: Cambridge University Press, 1973, p. 127-41. ■

1. O significado de huiothesia em Paulo

Hooker, M. D. From Adam to Christ: essays on Paul.

Às vezes, tem se negado que Paulo tivesse feito

Cambridge: Cambridge University Press, 1990. ■

uso de huiothesia no sentido de “adoção” , o que

Kim, s. The origin o f Paul’s Gospel. Grand Rapids:

favoreceria então que o termo fosse traduzido por

Eerdmans, 1982. ■ Kreitzer, L. J. Christ as Second

“ filiação” (e.g.,

Adam in Paul, cv, v. 32, p. 55-101, 1989. ■ Lambre­

lexical, no entanto, dificilmente apoia tal assertiva

B y r n e ).

A esmagadora evidência

cht, J. Paul’s Christological use of Scripture in 1

(v.

Corinthians 15.20-28.

v. 28, p. 502-27, 1982. ■

tes extrabíblicas de sua época, huiothesia sempre

Levison, J. R. Portraits o f Adam in early Judaism.

denota ou o processo ou o estado de ser adota­

Sheffield: Academic, 1988. {jspsup, 1.) ■ Pearson,

do como filho (s). Isso é confirmado não somente

B. The pneumatikos-psychikos terminobgy in 1 Co­

pelo uso unívoco e disseminado do termo em fon­

rinthians. Missoula: Scholars, 1973. ■ Prins, R. The

tes literárias e não literárias, mas também por an­

image of God in Adam and the restoration of man

tigos lexicógrafos gregos que datam do período do

in Jesus Christ,

n t.

s jt , v

.

n ts,

25, p. 32-44,1972. ■ Scroggs,

ScoTT,

1992). Em Paulo, assim como em fon­

o uso que Paulo faz de huiothesia obviamente

R. The Last Adam. Oxford: Basil Blackwell, 1966.

se apropria desse uso normal do termo, visto que

■ Thrall, M. Christ crucified or Second Adam? A

a construção de Gálatas 4.5 encontra correspon­

Christological debate between Paul and the Corin­

dentes muito próximos na literatura helenística

thians. In: Lindars, B. & Smalley, S., orgs. Christ

(cf.

and Spirit in the New Testament: studies in honor

qualquer tentativa de traduzir o termo de modo

of C. F. D. Moule. Cambridge: Cambridge Univer­

mais genérico por “ filiação” iniciaria o estudo dos

sity Press, 1973, p. 143-56. ■ W e d d e r b u r n , A. J. M.

antecedentes do termo pela via errada. 25

I

N ic o la u d e D a m a sco ,

Vi Cs, 130.55). Por isso,

ADOÇAO, FiUAÇAO; KAULO

2. Os antecedentes da divina “adoção de

4.180]). As religiões de mistério foram às vezes

filhos” em Paulo

apontadas como possível origem (cf.

Entre os autores para quem huiothesia denota

não há nenhuma evidência de adoção divina nos

“adoção” , há divergência de opinião quanto aos

mistérios (v.

antecedentes do termo. Isso se deve em parte ao

2.2.2

B e tz ),

mas

r e lig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ).

A adoção como metáfora judicial. Muito

fato de que Paulo parece ser o primeiro a usar o

estudiosos têm sugerido que o conceito de adoção

termo num contexto teológico (e mais especifi­

de Paulo é uma metáfora jurídica que o apóstolo

camente ainda num contexto de adoção divina)

construiu ad hoc (propositadamente para o caso

e, mesmo assim, jamais explica o que quer dizer

em questão) a partir de seus subsídios greco-ro-

com o termo. O apóstolo evidentemente pressu­

manos. Entre esses especialistas, alguns a consi­

põe que seus leitores sabem o que ele quer dizer

deraram uma metáfora extraída da lei helenística,

com adoção de filhos de Deus.

porque ah a adoção é uma instituição vinculada

2 .1 Adoção como abstração teológica. Alguns

sobretudo à herança, e Gálatas 4.5 trata da ado­

estudiosos tratam o conceito de adoção em Paulo

ção que torna os crentes herdeiros (cf.

simplesmente como uma abstração que é vincu­

Mais frequentemente, no entanto, os proponentes

W e n g e r ).

lada a outro conceito paulino. Dessa maneira, a

desse tipo de abordagem (e.g.,

questão em torno dos antecedentes é tirada de

tendem o conceito de adoção em Paulo levando

L y a ll

e

B ru ce)

en­

cena completamente. Por exemplo, H. Hübner

em consideração a intricada cerimônia romana

entende adoção como sinônimo de “ liberdade”

em que o menor a ser adotado era emancipado

[eleutheria], no sentido de ser livre em relação

da autoridade do pai natural e posto sob a nova

à Lei. R. Bultmann e outros que seguem em seu

autoridade do pai adotivo, muitas vezes para fins

encalço tratam “adoção” como termo da esfera

de manobra social ou política, ou as duas coi­

forense-escatológica, correspondente a “ justiça”

sas. Gálatas 4.5 de fato traça um paralelo entre

[dikaiosyné]. S. Kim considera o conceito de hnio-

redenção e adoção, mas a teoria segundo a qual

thesia de Paulo uma dedução secundária baseada

o testemunho do Espírito (v.

na cristofania da estrada de Damasco, na qual

Romanos 8.16 reflete o testemunho na cerimônia

Paulo enxerga no Senhor ressurreto a imagem de

romana merece pouca consideração. Provas cir­

Deus ou do

E s p ír it o S a n t o )

de

cunstanciais como a cidadania romana de Paulo

F ilh o de D eu s.

2.2 A adoção em relação aos antecedentes

e 0 predomínio das adoções romanas nos dias de

greco-romanos. Quando o conceito de adoção

Paulo também não dão conta de consolidar a me­

divina em Paulo é analisado, como é comum

táfora jurídica como explicação absoluta.

acontecer, levando-se em conta um fundo greco-

2.3

A adoção em relação aos antecedente

romano, ele é normalmente comparado ou com

veterotestamentários/judaicos,

um caso específico de adoção divina na mitologia

thesia ocorre no

nt

O termo huio­

somente em Paulo e jamais

greco-romana, ou com a prática efetiva de adoção

na LXX ou em outras fontes judaicas. Apesar de

no direito greco-romano.

reiteradas afirmações em contrário, no entanto, o

2.2.1A adoção divina na mitologia greco-roma-

conceito de adoção — mesmo a adoção divina —

na. A adoção divina desempenha um papel muito

era conhecido no

pequeno nas fontes greco-romanas. Afora Paulo,

temente de se alguma vez tenha sido praticado

at

e no judaísmo, independen­

huiothesia nunca é usado em relação a essas ado­

(v. Scorr, 1992, e

ções no período em apreço. Os poucos exemplos

sível que as raízes do conceito de Paulo sejam

inequívocos de adoção divina que podem ser adu­

encontradas aqui.

zidos de fontes greco-romanas que empregam ou­

2.3.1

M a lu l).

Portanto, não é impos­

Gálatas 4.5. O contexto da ocorrência

tros termos para adoção não fornecem um fundo

mais antiga do termo, em Gálatas 4.5, oferece,

para o conceito de Paulo (cf. a adoção de Héracles

por sinal, uma pista decisiva para entender huio­

por Hera

thesia, levando-se em conta antecedentes vete-

[ D i o d o r o S íc u lo ,

4.39.2], a de Alexandre,

o Grande, por Amon-Zeus

A l, 50.6], a

rotestamentários/judaicos. Isso porque, quando

[P lu t a r c o , M o ,

31 8C] e a

Gálatas 4.1,2 é corretamente compreendido não

da deusa líbia “Atena” por Amon-Zeus

[H e r ó d o t o ,

como ilustração da lei greco-romana, mas como

de Sólon por Fortuna

[P lu ta r c o ,

I 26

ADOÇÃO, f il ia ç ã o : P a u l o

fica claro que

7.14, além do mais, Gálatas 4.4-6 vincula a ado­

Gálatas 4.5 está situado num contexto emoldura­

ção divina com a recepção do Espírito (da nova

do por uma tipologia extraída do Êxodo (GI 4.1-7).

ahança) no coração. Assim, embora o contexto

Assim como Israel, na qualidade de herdeiro da

de huiothesia de Gálatas 4.5 não dê motivo para

promessa abraâmica (v.

foi redimido

supor antecedentes greco-romanos para o termo,

como filho de Deus da escravidão do Egito no

toda a linha de argumentação de Gálatas 3— 4,

tempo determinado pelo Pai (GI 4.1,2; Os 11.1;

com seus correspondentes paulinos, conduz ine­

uma alusão ao

at

( v . S c o t t , 1 9 9 2 ),

A

braão ) ,

Gn 15.13), os crentes foram redimidos para a

quivocamente a origens veterotestamentárias/

adoção como filhos de Deus da escravidão aos

judaicas do termo (cf. Rm 9.4), especificamente à

“ princípios elementares do mundo” na plenitude

tradição de 2Samuel 7.14 (cf. 2Co 6.18). Ou seja,

dos tempos e dessa forma se tornaram herdeiros

crentes que são assim batizados (v.

da promessa abraâmica (GI 4.3-7).

Filho messiânico de Deus e tomam para si o pró­

0

b atis m o )

no

fato de que “a” huiothesia deve ser consi­ prio clamor que ele faz ao Pai — “Aba” (GI 4.6;

derada aqui em relação a antecedentes veterotes-

Rm 8.15; cf. Mc 14.36) — participam com ele da

tamentários/judaicos específicos fica ainda mais

promessa davídica de adoção divina e da promes­

comprovado por Romanos 9.4, em que o termo

sa abraâmica de soberania universal (cf. GI 4.1).

precedido de artigo no original grego ocorre numa

2.3.2

Romanos 8.15,23. Essa interpretação

lista de privilégios históricos de Israel (cf. Êx 4.22;

huiothesia em Gálatas 4.5 aplica-se igualmente

Os 11.1) e, mais especificamente, pelo contexto

ao uso do termo na passagem proximamente

mais amplo de Gálatas 3— 4, que deixa claro que

correspondente de Romanos 8. Pois aqui tam­

os crentes são filhos e herdeiros ao participarem

bém a participação por adoção no Filho messiâ­

pelo batismo (GI 3.27) do Filho de Deus que foi

nico de Deus que é enviado (Rm 8.3; cf. GI 4.4)

enviado para redimi-los (GI 4.4,5; cf. GI 3.13,14).

está inseparavelmente associada ao recebimento

Isso porque, rigorosamente falando. Cristo é o

do Espírito que habita em quem crê, de modo

descendente de Abraão (GI 3.16) e o Filho mes­

que agora o Espírito pode ser chamado “ Espí­

siânico de Deus prometido em 2Samuel 7.12,14.

rito de adoção” (Rm 8.15), o Espírito por quem

Vista em seu contexto, portanto, “a adoção” de

também as justas exigências da Lei são cum­

Gálatas 4.5 deve se referir à expectativa escatoló­

pridas (Rm 8.4). À semelhança de Gálatas 4.5,

gica judaica fundamentada em 2Samuel 7.14.

além disso, o contexto de Romanos 8, em que o

Pode se demonstrar que 2Samuel 7.14 ("Eu

termo huiothesia está inserido, contém elemen­

serei seu [de Davi] pai, e ele será meu filho”) con­

tos da tipologia do Êxodo, e a filiação adotiva

tém uma fórmula de adoção (cf. Êx 2.10; Et 2.7;

por parte de Deus implica herança com Cristo

Gn 48.5), que o judaísmo posterior aplicou não

na promessa abraâmica (Rm 8.17). Diferente­

somente ao Messias davídico, mas, sob a influên­

mente de Gálatas 4.5, no entanto. Romanos 8

cia da teologia da

(cf. Os 2.1, citado

desenvolve a ideia de que a participação no Fi­

em Romanos 9.26), também ao povo escatológíco

lho messiânico de Deus por adoção se estende

de Deus. De acordo com a estrutura presente em

não somente ao presente (Rm 8.15), mas, por

Deuteronômio de pecado-exílio-restauração, essa

meio do Espírito, também ao futuro (Rm 8.23).

tradição em torno de 2Samuel 7.14 tem por certo

Pois, assim como Jesus uma vez recebeu o Es­

que, no advento do Messias, Deus redimiria seu

pírito em seu batismo e foi declarado o Filho

povo do exílio num segundo êxodo; ele o restau­

de Deus (cf. Mc

raria a um relacionamento aliancístico; ele o ado­

crentes hoje recebem o Espírito de adoção em

taria, com o Messias, como filhos (cf. Jb, 1.24; Te

seu batismo. Espírito pelo qual, também, os

Ju, 24.3; 4QFlor 1.11). Na verdade, 2Coríntios 6.18

crentes compartilham da exclamação que o Fi­

cita a fórmula de adoção de 2Samuel 7.14 (h-

lho dirige ao Pai: “A b a !” (Rm 8.15). Da mesma

no v a a l ia n ç a

1.11

par.), assim também os

Is 43.6), e isso no contexto da mesma tipologia

forma, assim como Jesus, na qualidade de des­

do Êxodo, da mesma teologia da nova aliança e

cendente de Davi, foi investido de poder como

da mesma forma generalizada, como na tradição

Filho messiânico de Deus pelo Espírito Santo na

judaica. Assim como na tradição de 2Samuel

ressurreição proléptica dos mortos (Rm 1.3,4; 27 I

ADOÇÃO, FtuAÇÃo: P a u l o

cf. 2Sm 7.12,14), assim também os crentes, que

especificar gênero no original grego, “ filhos”

têm 0 Espírito como meio de ressurreição (Rm 8.11),

[tekna; cf. Rm 8.16,17,21) de Deus. 0 texto de

avidamente esperam a sua revelação (Rm 8.19), a

2Coríntios 6.18, sob a influência de Isaías 43.6,

sua ressurreição/adoção predestinada na ima­

claramente amplia o conceito de adoção e inclui

gem glorificada do Filho ressurreto (Rm 8.23,29;

"filhas”. Assim, homens e mulheres são incluídos

cf. Ef 1.5), quando então o Filho será o prim o­

no conceito paulino de “ filiação" divina. Em Fi­

gênito dentre muitos irmãos e irmãs (Rm 8.29;

lipenses 2.14,15, Paulo instrui seus leitores a fa­

cf. SI 89.27). Nesse dia, os filhos de Deus to­

zer “ todas as coisas sem queixas nem discórdias,

marão parte na promessa abraâmica de sobera­

para que vos torneis filhos de Deus irrepreensí­

nia universal como co-herdeiros com Cristo, o

veis, sinceros e íntegros no meio de uma gera­

Messias (Rm 8.17; cf. Rm 4.13; 8.32; GI 4.1).

ção corrupta e perversa”. A referência aqui aos

Assim, os aspectos presente e futuro de haiothe-

“ filhos” de Deus “ irrepreensíveis” (amõmd) faz

sia em Romanos 8 refletem etapas sucessivas de

alusão a Deuteronômio 32.5, em que, por have­

participação no Filho pelo Espírito e, como tais,

rem pecado, os israelitas são caracterizados como

constituem maneiras em que os crentes compar­

“corrompidos” (mõmêtd) e como “ não [...] filhos”

tilham com o Filho da promessa davídica.

no contexto do cântico de Moisés, que prediz a

2.3.3

Conclusão: o lugar da adoção na teologia tríade pecado-exílio-restauração. Dessa maneira,

paalina. Em suma, há antecedentes veterotesta-

Paulo contrasta a situação que conduziu à pu­

mentários/judaicos coesos e específicos para a

nição dos israelitas como filhos de Deus com a

“adoção de filhos” [huiothesia) das cartas pau­

maneira em que os crentes, como filhos de Deus,

linas: a palavra ocorre quatro vezes no sentido

agora devem se comportar (cf. 2Co 6.14— 7.1;

de adoção prenunciado pela tradição em torno de

Rm 8.4,12-14).

2Samuel 7.14 (cf. 2Co 6.18), e isso ou no aspecto

Ver também Espírito Santo ; Filho

de

D eus.

presente (GI 4.5; Rm 8.15) ou futuro (Rm 8.23; Ef 1.5), dependendo do momento cristológico e

B ib lio g r a fia .

relativo à história da salvação ressaltado em cada

on Paul’s Letter to the churches in Galatia. Phila­

B etz , H. D. Galatians: a commentary

contexto. A palavra ocorre uma vez no sentido

delphia: Fortress, 1979. [H erm .]. ■ Bruce, F. F. The

de um tipo relacionado ao Êxodo que está na

Epistle to the Galatians: a commentary on the Greek

base dessa huiothesia da salvação messiânica nas

text. Grand Rapids:

outras quatro ocorrências (Rm 9.4; cf. GI 4.1,2).

■ B ultmann , R. Theology o f the New Testament.

Eerdmans,

1982.

(mgtt.)

Todo o conceito deve ser visto à luz da teologia

New York: Scribner’s, 1951, 1955. 2 v. ■ Byrne ,

da restauração de Paulo (cf. Sanders, que, mesmo

B. "Sons o f God’’ — “Seed o f Abraham”: a study

sem discorrer sobre toda a estrutura presente em

of the idea of the sonship of God of all Christians

Deuteronômio, inconscientemente apresenta uma

against the Jewish background. Rome: Biblical

alternativa judaica importante para o “ nomismo

Institute, 1979. [AnBib, 83.) ■ H engel, M. The Son

pactuai” aceito larga e inquestionavelmente [cf.

o f God: the origin of christology and the history

Scorr, 19931).

of Jewish-Hellenistic religion. Philadelphia: For­

3. A filiação dos crentes em Paulo

Edinburgh: T & T Clark, 1984. ■ K im , S. The origin

A interpretação precedente de huiothesia que tem

o f Paul’s Gospel. Grand Rapids: Eerdmans, 1981.

tress, 1976. ■ H übner, H. Law in Paul’s thought.

como antecedente a tradição relativa a 2Samuel

■ L yall, F. Slaves, citizens, sons: legal metaphors

7.14 constitui o ponto de partida lógico e neces­

in the epistles. Grand Rapids: Zondervan, 1984. ■

sário para interpretar as referências mais gerais

M alul, M. Foundlings and their adoption in the

de Paulo à filiação dos crentes, pois a adoção

Bible and in Mesopotamian documents: a study

como filhos de Deus oferece o meio de ingresso

of several legal metaphors in Ezek 16:1-7.

na fiUação divina. Por isso, as passagens pauli­

V. 46, p. 97-126, 1990. ■ Sanders, E. P. Jesus and

nas que atribuem adoção aos crentes também os

Judaism. Philadelphia: Fortress, 1985. ■ Scott, J.

chamam “ filho (s )” (masculino no original; cf.

M. Adoption as sons o f God: an exegetical inves­

GI 3.26;

tigation into the background of Y IO 0E S IA in the

4.6,7;

Rm

8.14,19;

9.26)

ou,

sem I 28

js o t ,

A d o r a ç à o / cu lt o i : E v a n g e l h o s

corpus paulinum. Tübingen: Mohr Siebeck, 1992

(v.

[wunt, 2.48.) ■ _______. “ For as many as are of

que as práticas religiosas de seu povo fossem acei­

works of the law are under a curse” (Gal 3:10).

táveis para Jesus, com exceção dos casos em que

In:

J. A., orgs. Paul and

os Evangelhos registram algum ataque contra elas.

the Scriptures o f Israel. Sheffield: Sheffield Acade­

Havia três grandes centros de adoração ju­

E van s,

C. A. &

San ders,

mic, 1993, p. 187-221. [jSNTSup, 83.) ■ W Adoption.

RAC, V.

en g er,

L.

1, p. 100.

ju d a ísm o e o

Novo

T e s ta m e n to ). É

daica no período: o lar, a

razoável supor

s in a g o g a

e o templo.

Do primeiro, os Evangelhos falam muito pouco. J. M.

S c o tt

Sabemos ser costume de Jesus, como de todos os judeus piedosos, abençoar [bendizer] a Deus

A

d o r a çã o /culto

i:

E vangelh os

Poucas vezes os Evangelhos falam sobre adora­

antes de compartilhar o pão. [Deus, não pão, de­ via ser usado como objeto do verbo “abençoar

ção de forma geral ou sobre o culto de maneira

[bendizer]” em tais casos.) Os Evangelhos Sinóti­

específica. Os vários termos gregos que poderiam

cos também descrevem a

ser considerados seus correspondentes [latreia,

refeição pascal, fazendo supor que Jesus também

Ú l t i m a C e ia

como uma

leitourgia, proskynésis etc.) e os vários termos

compartilhava das práticas do lar judeu nesse as­

técnicos associados à adoração não ocorrem fre­

pecto. Era também seu costume orar, geralmente

quentemente nesses escritos neotestamentários.

em particular. Também recomendava a seus discí­

Além disso, muitas referências à adoração ou ao

pulos a prática da oração em particular (Mt 6.6).

culto ocorrem quase de passagem. São às vezes

É especialmente digno de nota que em suas ora­

fornecidos o momento e o lugar de um milagre

ções os quatro Evangelhos informam que Jesus

de cura: o sábado numa sinagoga, por exemplo.

se dirigia a Deus como “ Pai” (provavelmente com

Embora as referências à adoração sejam muitas

0 aramaico Aba [ ’abba]]. Às vezes aparece o vo-

vezes casuais, a adoração em si não é de modo

cativo simples “ Pai” ; às vezes liga-se a ele um

algum de importância secundária. Está tão pre­

termo qualificador designando a transcendência

sente nos Evangelhos quanto o ar que Jesus e

de Deus. Pouco se pode afirmar além disso.

os discípulos respiravam. Justamente por ser tão

Está claro também que Jesus participava da

onipresente, é mais pressuposta que mencionada.

vida coletiva de adoração de Israel nas sinago­

Pode se falar de adoração nos Evangelhos de

gas da Galileia. A palavra de Jesus a respeito da

duas maneiras: práticas de adoração de Jesus e

oração em particular (Mt 6.6) não deve ser inter­

dos discípulos e o que se pode inferir das práticas

pretada como crítica à adoração coletiva: o foco

de adoração das igrejas cristãs primitivas em que

está na hipocrisia e na ostentação. É na sinagoga

os Evangelhos foram redigidos. Os Evangelhos

que Jesus habitualmente ensina e prega. Ao que

não dão informações tão claras sobre essas úl­

tudo indica, ele é um convidado bem-vindo nas

timas questões quanto Atos dos Apóstolos ou as

assembleias de sua província natal. É somente em

várias cartas, mas podem mesmo assim dar uma

Lucas 4.16-30, quando o autor relata a rejeição

contribuição significativa ao nosso conhecimen­

em Nazaré, que se encontra alguma referência,

to da adoração cristã na era do

Este verbete

mesmo que de passagem, ao culto na sinagoga.

tratará dessas duas áreas e também da teoria se­

Ah Jesus é convidado a ler a lição, ao que parece

gundo a qual os Evangelhos foram formados de

um procedimento perfeitamente normal, que não

acordo com o lecionário das leituras do

é, em si, nenhuma surpresa. Apenas a interpreta­

n t.

at

em uso

nesse período. 1. A adoração de Jesus e dos discípulos

ção que se segue à leitura de Isaías 61 é que soa como uma afronta.

2. A adoração da igreja primitiva 3. Os Evangelhos e os lecionários judaicos

Nos tempos de Jesus, os cultos da sinagoga aconteciam três ou talvez quatro vezes no sába­ do. 0 padrão normal do culto da sinagoga parecia

1. A adoração de Jesus e dos discípulos

incluir a recitação do Shemáy uma combinação

Jesus e seus discípulos eram, naturalmente, ju­

de Deuteronômio 6.4-9 e 11.13-21 com Núme­

deus. Como tais, tanto Jesus quanto os discípu­

ros 15.37-41; 0 Tefild, também conhecido como

los participavam da vida religiosa do povo judeu

0 Amidahy ou o Shemoneh Esreh, oração coletiva, 29 I

A d o r a ç â ü / c ulto i : E v a n g e l h o s

longa e elaborada; e a leitura e interpretação das

excessos e à corrupção do sistema. Os cambistas,

Escrituras, talvez com base num lecionário. Não

os vendedores de animais e os animais são indis­

há nenhum comentário sobre essas questões em

pensáveis ao funcionamento do sistema. Expulsá-

nenhum dos Evangelhos. A adoração da igreja

los, portanto, pode simbolizar uma rejeição não

primitiva tendia a seguir as práticas de adora­

somente da corrupção associada à venda de ani­

ção da sinagoga. Embora essa afinidade resulte

mais para os sacrifícios, mas também do próprio

principalmente de outros fatores que não a or­

sistema sacrificial. O templo funciona corretamen­

dem nem o exemplo de Jesus, é difi'cil imaginar

te não como lugar de sacrifício, mas como "casa

a igreja primitiva desenvolvendo uma forma de

de oração” (Mc 11.17 e par.). O templo é um lugar

adoração que lembrasse tanto a sinagoga se Jesus

acessível e adequado à adoração, mas, visto que

tivesse condenado tal adoração. Nesse caso, o ar­

o sistema sacrificial não é mais válido na nova era

gumento do silêncio parece convincente.

inaugurada pela vida, morte (v.

C r is t o , m o r t e d e )

e

RESSURREIÇÃO de Jesus Cristo, deixa de ser um lugar

Com respeito ao templo, o quadro é mais complexo. O templo é tido em alta conta nos

essencial para a adoração ao Deus de Israel.

Evangelhos Sinóticos, especialmente por Lucas,

Talvez esse último argumento seja mais bem

que situa boa parte de suas narrativas da primei­

simbolizado pelo rasgar do véu do templo no m o­

ra infância (v.

e boa parte

mento em que Jesus morre na cruz (M t 27.31;

dos primeiros trechos de Atos dentro de suas

Mc 15.38; Lc 23.45). O velho sistema, com seu

Jes u s , n a s c im e n t o d e)

dependências. É acertadamente uma casa de

meio de acesso a Deus limitado e cuidadosa­

oração (M c 11.17 e par.), e, visto que a oração

mente regulado, está morto. Os Evangelhos e na

era de fato parte regular da liturgia do templo,

realidade o

esta podia acertadamente ser considerada como

mundo inteiramente nova e diferente com res­

algo que se devia valorizar. É digno de nota que

peito ao relacionamento entre Deus e a huma­

Atos apresente cristãos primitivos como Pedro e

nidade. A distinção entre o sagrado e o profano

João (At 3.1-3) indo ao templo para orar. Pau­

é radicalmente alterada, não pela diminuição do

lo, por insistência de Tiago, chega até mesmo

domínio do sagrado, como na secularização de

nt

como um todo têm uma visão de

a se envolver indiretamente com o culto sacri­

nossos dias, mas na sacraHzação daquilo que an­

ficial (At 21.17-26). Jesus está disposto a pagar

teriormente era considerado profano (cf. At 10 e

0 imposto que mantém o templo, embora a dis­

a Carta aos Hebreus). Todas as práticas religiosas

posição resulte principalmente do desejo de evi­

humanas perdem importância porque em Jesus

tar um desagrado desnecessário (M t 17.24-27).

Cristo a nova era invade o mundo. As velhas prá­

Também em João, boa parte da ação do Evan­

ticas, portanto, já não são necessárias; velhas for­

gelho acontece dentro do templo. Ele é o centro

mas de falar sobre a adoração a Deus já não são

espiritual do judaísmo, e a "salvação vem dos

suficientes (v.

r e in o d e

D eu s ) .

judeus” (Jo 4.22). Mas não é realmente neces­

A maneira em que se avalia a exatidão desses

sário para a correta adoração. João afirma v i­

vários relatos a respeito das atitudes de adoração

gorosamente que, na nova era inaugurada por

e das práticas de Jesus depende muito da atitude

Jesus, a adoração correta é "no Espírito e em

geral que se tem com respeito à confiabilidade

verdade” (Jo 4.23). Além do mais, será, afinal de

histórica dos Evangelhos (v.

contas, destruído, e não ficará pedra sobre pedra

b il id a d e

h is t ó r ic a

dos) .

E vangelh os, c o n h a -

Há uma coerência signifi­

(Lc 21.6). A implicação clara é que o templo não

cativa entre os relatos das atitudes e práücas de

é mais essencial.

Jesus, de um lado, e os das atitudes e práticas da

A principal dificuldade aqui reside, ao que

igreja primitiva, de outro. Esse mesmo fato torna­

parece, na razão de ser do templo: o sistema sa­

ria esses relatos suspeitos aos olhos de um críptico

crificial. O exame de uma perícope-chave, a da

adepto do critério da dessemelhança (princípio

purificação do templo, pode ser útil nesse caso

segundo o qual se devem aceitar como históricos

(Mt 21.1-11; Mc 11.15-19; Lc 19.45-48; Jo 2.13-22;

primordialmente os ditos ou relatos que sejam

Esse ato carregado de

dessemelhantes ou distintos dos antecedentes

simbolismo pode ser mais que uma reação aos

judaicos dos tempos de Jesus e dos ensinos ou

V, TEMPLO, PURIFICAÇÃO D o ).

I

30

A d o r a ç ã o / culto i : E v a n g e l h o s

práticas da igreja posterior). A aplicação do cri­

que os cristãos vindos do judaísmo, ao menos,

tério parece imprópria nesse caso, entretanto.

continuaram a oferecer louvor de maneira muito

Embora, por um lado, se possa duvidar da histo­

semelhante à de como sempre haviam feito.

ricidade de perícopes específicas, por outro pare­

É possível recordar a esta altura a maneira tão

ce não haver nenhuma razão para se duvidar da

favorável em que os Evangehstas se referem às

exatidão do quadro geral das práticas e atitudes

sinagogas, sem quase nada da ambivalência que

de Jesus com respeito à adoração apresentado pe­

se percebe com respeito ao templo. A palavra si­

los Evangelhos.

nagoga é às vezes usada na verdade em referência às assembleias de cristãos (cf. Tiago 2.2 e várias

2. A adoração da igreja prim itiva

fontes extracanônicas). Tudo isso tende a apoiar

Os Evangelhos também informam a respeito da

— embora não possa provar — a afirmação de

adoração da igreja primitiva ou, para sermos

que a adoração cristã primitiva era, em vários as­

mais precisos, das primeiras igrejas conhecidas

pectos, uma continuação da adoração judaica.

pelos Evangelistas. É importante não falar com

Os hinos de Lucas não são exemplos isolados

excessiva precisão a respeito da adoração da igre­

de louvor nos Evangelhos. A aclamação angélica

é marcada por grande

de Lucas 2.14 e as várias formas de aclamação hu­

ja primitiva. A era do

nt

diversidade em muitas áreas da vida cristã, dentre

mana na entrada de Jesus em Jerusalém (Mt 21.9

as quais a adoração. Além do mais, não se pode

e par.) são outros exemplos da explosão de louvor

com segurança total aplicar ao século i as práticas

que parece ter acompanhado os primeiros anos

e atitudes do século iii, período sobre o qual nos­

do cristianismo. Essas manifestações efusivas de

so conhecimento das práticas da adoração é bem

louvor, talvez mais bem definidas como “ brados

mais aprofundado. Generalizações sobre a adora­

de vitória” , são parecidas com certos fragmentos

ção nesse período seriam arbitrárias e perigosas.

de louvor de Apocalipse. Talvez todos esses ma­

Está também razoavelmente claro que a ado­

teriais sejam indícios do tipo de louvor produzido

ração cristã primitiva tem uma grande dívida para

nos primeiros anos do cristianismo.

com a adoração judaica, especialmente a da si­

0 prólogo do quarto Evangelho (Jo 1.1-18)

nagoga. N o entanto, mais recentemente, os es­

provavelmente contém mais um hino primitivo.

tudiosos têm demonstrado mais receio de fazer

Os estudiosos divergem quanto à extensão exa­

afirmações a respeito das formas e práticas litúr-

ta do hino original entalhado nesses versículos

gicas judaicas da era do

nt,

como era comum na

(ao menos as referências a João Batista são inter­

geração anterior.

polações do Evangelista), mas de maneira geral

Com certa dose de cautela, no entanto, algu­

concordam em que aí tenhamos de fato um hino.

mas observações podem ser feitas com respeito

Nesse caso, o louvor se sobrepõe à confissão de

à adoração cristã primitiva. Algumas passagens

fé. Comunidades definem-se por meio do louvor

dos Evangelhos podem ter origem na adoração

que expressam, bem como pelas doutrinas que

da igreja primitiva. Os Evangelhos, por exemplo,

professam. Esse hino impressionante pode ter

talvez nos forneçam vários exemplos de louvor

funcionado dessa maneira para a comunidade do

cristão primitivo. Nas narrativas do Evangelho

discípulo amado (v.

Jo ã o , E v an g elh o de) .

de Lucas sobre a primeira infância de Jesus,

Com respeito à oração, parece também haver

encontramos três salmos magníficos de louvor:

uma vinculação entre o material dos Evange­

os cânticos de Maria (Lc 1.46'55), de Zacarias

lhos e a prática da igreja primitiva. O pai-nosso

(Lc 1.68-79) e de Simeão (Lc 2.29-32), identifica­

certamente era usado pelos cristãos primitivos.

dos por muitos estudiosos como hinos da igreja

A Didaquê, manual de instrução primitivo dos

judaico-cristã primitiva inseridos por Lucas para

cristãos, apresenta uma versão da oração quase

enriquecer a sua narrativa. Esses hinos são tão

idêntica à de Mateus e recomenda que ela seja

judaicos em seu vocabulário e forma que é difícil

repetida três vezes ao dia. Parece que temos aí a

provar de forma razoável e sem sombra de dúvi­

continuação da prática de judeus piedosos, qiiie

da que sejam de fato cristãos. 0 caráter judaico

recitavam o Tefilá três vezes ao dia. Sabemos, da

desses salmos leva a crer, como seria de esperar, 1

mesma forma, que os cristãcs p iir::í:” cs ^1

A dor aç âo / culto i : Ev angelhos

0 exemplo de Jesus, dirigindo-se a Deus como

com 0 desinformado Ló. Em alguns casos, alega-

Aba, Pai (Rm 8.15; Gl 4.6).

se, os Evangelistas criaram pericopes dos Evange­ (Mt 26.26-30;

lhos de acordo com as regras um tanto elásticas

Mc 14.22-26; Lc 22.14-23; cf. ICo 11.23-25) re­

Os relatos da

do midrash, método judaico de interpretação das

Ú l t im a

C e ia

fletem em sua variedade não apenas os aconte­

Escrituras, para fornecer correspondências na vida

cimentos da noite anterior à crucificação, mas

de Cristo às leituras prescritas do dia.

também as práticas eucarísticas das igrejas dos

A hipótese é ousada e de grande abrangência.

Evangelistas. Por exemplo. Marcos e Mateus têm

Em alguns casos, a maior parte do

orações diferentes para o pão e para o cálice, ao

trechos do

passo que em Lucas e em Paulo as duas orações

princípio. A hipótese não encontrou aprovação ir­

foram nitidamente reunidas numa só oração de

restrita, contudo. São incertos a forma exata dos

ação de graças, padrão que se manteve nas litur­

lecionários judaicos desse período e o grau em que

at

nt

e grandes

são explicados de acordo com esse

gias de séculos posteriores. Também parece que a

eram estruturados. As reconstruções empregadas

própria frase interpretativa “isto é o meu corpo”

são, portanto, altamente especulativas. Quando o

não fazia parte das orações, como em muitas li­

leitor atento se põe a examinar passagens especí­

turgias posteriores, mas estava associada ao com­

ficas dos Evangelhos, textos do

partilhar dos elementos. As palavras são dirigidas

postas leituras dos lecionários em geral parecem

at

que não as su­

aos discípulos, não a Deus (observem-se as for­

mais claramente hgados às passagens em questão.

mas verbais na segunda pessoa do plural). Além

Alguns proponentes desconsideram as evidências

do mais, em cada caso, as palavras traduzidas

acumuladas ao longo de décadas de estudos es-

por oração (seja eucharisteõ, “dar graças” , seja

peciahzados e esmerados, realizados em torno

eulogeõ, “abençoar”; ambas parecem sinônimas

de fontes subjacentes aos nossos Evangelhos, e

nesse contexto) estão no particípio aoristo. Essa

assim conferem um grau de criatividade aos Evan­

forma, que em geral indica a ação do particípio,

gelistas que poucos acham provável. Em resumo,

precede a ação dos verbos principais da frase.

a hipótese é mais imaginosa qüe persuasiva. Ver também

3. Os Evangelhos e os lecionários judaicos Vários estudiosos apresentaram, de diferentes for­

d jg :

s in a g o g a .

M a ry’s

S on g;

S im eon ’ s

Song;

te m p le ;

Z e c h a r ia h ’ s S o n g .

mas, a impressionante teoria de que os Evange­ lhos foram formados e algumas de suas pericopes

B ib lio g r a fia :

compostas com o propósito de atender às necessi­

weekly worship of the primitive church in relation

dades da adoração cristã. A teoria começa com a

to its Jewish antecedents. EvQ, v. 56, p. 65-80,

B e c k w ith ,

R.

T. The

daily

and

observação, aceita sem questionamento, de que as

139-58, 1984. ■ B ra d sh a w , P. F. The search for the

igrejas cristãs parecem ter continuado a prática da

origins of Christian hmrgy; some methodological

sinagoga de ler e interpretar a Torá e os Profetas.

reflections. StudLit, v. 17, p. 26-34, 1987. ■ Dunn,

Afirma-se, então, que as igrejas também observa­

J. D. G. Jesus and the Spirit. Philadelphia: West­

vam o calendário sagrado judaico e seguiam um

minster, 1979. ■ ______ . Unity and diversity in the

lecionário judaico fixo. Os Evangelistas, afirma-se,

New Testament. Philadelphia: Westminster, 1977,

dispuseram as várias pericopes dos Evangelhos

p. 124-49. ■ G o u ld e r , M. D. The Evangelists’ calen­

não de acordo com a vida do Jesus histórico ou dos

dar. London:

programas teológicos deles, mas de acordo com os

o f the early church. Philadelphia: Fortress, 1973.

spc k ,

1978. ■

H ahn,

F. The worship

textos da Lei e dos Profetas do hipotético lecioná­

■ M a rsh a ll,

rio. Assim, para dar apenas um exemplo, a história

Grand Rapids: Eerdmans, 1981. ■

da estrada de Emaús, de Lucas 24, em que o Cristo

Worship in the early church. Ed. rev. Grand Rapids:

ressurreto se senta à mesa com dois discípulos de-

Eerdmans, 1974. ■

sinformados, corresponde à leitura hipotética, no

Philadelphia: Jewish Publication Society of Ame­

I.

H.

Last Supper and Lord’s Supper.

M il l g r a m ,

M a r t in ,

R. P.

A. Jewish worship.

quarto sábado do mês de nisã, de Gênesis 18—22,

rica, 1971. ■ M o r ris , L. The New Testament and the

capítulos que incluem relatos sobre o Senhor, na

Jewish lectionaries. London: Tyndale, 1964.

forma de três homens, comendo com Abraão e

I 32

S.

C.

F ar r is

A dor aç ão / culto ii : Pa ulo

A

d o r a ç ã o / c u lto ii:

P aulo

lugar dos deuses e das deusas, correspondendo a

Embora na literatura bíblica não haja definição for­

uma percepção natural do divino (no sentido de

mal do significado ou das impUcações da adoração

nnmen, influência divina ou sensação misterio­

a Deus, pode se afirmar com segurança que, nos

sa experimentada pelos adoradores). No antigo

períodos dos dois Testamentos, a adoração nasce

mundo grego, as divindades de Homero e Hesío-

da compreensão de Deus como criador e reden­

do eram aceitas como seres superiores, ligados

tor. (As referências bíblicas a seguir são extraídas

às virtudes, e que exigiam obediência. Formavam

principalmente do corpus paulino.) Deus é acla­

uma sociedade situada no monte Olimpo e eram

mado Senhor soberano, que trouxe o mundo à

presididos por Zeus, pai e rei dos deuses. 0 tri­

existência (Rm 4.17) e é o autor de tudo que existe

buto de Paulo em ICoríntios 8.5 refere-se às di­

(Rm 11.36; ICo 8.6). Ele agiu por meio de seu Fi­

vindades “no céu”, presumivelmente do panteão

lho (Cl 1.15-20;

a fim de criar e

homérico, e “na terra” , relacionadas às manifes­

resgatar, tomando as providências salvíficas para

tações do divino como espíritos de fertihdade ou

restaurar o Universo quando este caiu de seu esta­

talvez na pessoa de reis e governantes deificados.

V. F il h o

de

D

eus)

do original e salvar a humanidade emaranhada no

No centro da reügião grega tradicional estava a

pecado (Rm 5.1-21; 8.18-23). Ouvem-se notas de

ideia de que os deuses eram guardiães da ordem

louvor que anunciam o alvorecer de uma nova era

moral e deviam ser reverenciados em cultos por

de ações reconciliadoras e renovadoras da parte de

meio de ofertas e também por meio de orações que

Deus (2Co 5.17-21), e a igreja de Jesus Cristo é

assegurassem uma “ sorte” favorável neste mundo

vista como o alvo da redenção (Ef 1.1-14), sendo

e no submundo do hades. 0 “destino”, em gran­

o lugar em que a atividade salvífica de Deus é re­

de parte imprevisível, que aguardava a pessoa que

citada e demonstrada (Ef 3.9,10). A cena é tanto

partisse desta vida, contribuía para uma incerte­

terrena quanto situada nas regiões celestiais, pro­

za e um temor que tornavam a adoração feita nos

piciada pela obra do Cristo reinante, que é ao mes­

santuários e nos templos uma experiência cheia

mo tempo 0 unificador do céu e da terra e o meio

de sobressaltos. A ligação do culto com o ciclo da

pelo qual os louvores da terra se unem à adoração

natureza e com o desejo de boas colheitas tornou

celestial e angéUca.

a prática religiosa uma característica importante

Dessa forma, o entendimento da adoração nas

da vida cotidiana. Contudo, só fazia aumentar a

igrejas paulinas acha-se nas afirmações funda­

incerteza da vida, caso as colheitas falhassem e os

mentais de Paulo com respeito à supremacia que

rebanhos fossem acometidos de peste. Muito da

tem a graça divina em satisfazer a necessidade

religião tradicional possuía um elemento profilá­

humana e cósmica e ao papel essencial desig­

tico, ou seja, tentava assegurar a prosperidade ao

nado a Jesus Cristo, que foi crucificado e agora

repehr a doença e o perigo.

encontra-se ressurreto. Senhor que ascendeu aos

0 advento de Roma como potência militar de

céus, glorificado, como cabeça da igreja e rei de

proporções mundiais deu ensejo a que as divin­

toda a criação (Fp 2.6-11; cf. ITm 3.16). Essas

dades homéricas fossem associadas às aspirações

duas afirmações correspondentes acham-se no

da nação e, mais tarde, aos imperadores reinan­

cerne da prática paulina da adoração, vista em

tes. O talento romano para o governo e para a

seus louvores, orações e confissões de fé e igual­

ação política ajudou a criar um senso de dever

mente contemplada no tipo de atividade celebra-

para com o Estado e uma obrigação por parte dos

tória da qual ele esperava que suas congregações

cidadãos. Assim, a reUgião assumiu seu papel em

participassem.

consonância com sua verdadeira etimologia, qual

1. O cenário nos dias de Paulo 2. O ensino paulino

seja, 0 latim religare, com o sentido exatamente de “ religar” , a saber, a humanidade aos deuses. As observâncias rehgiosas, no ambiente domésti­

1. O cenário nos dias de Paulo 1.1

co e em cerimônias oficiais, serviam a esse inte­

Religião e culto greco-romanos. O mi­ resse mais amplo. Havia uma obrigação coletiva

nistério de Paulo estava inserido numa cuhura e numa civilização que havia muito reconheciam o

e uma contratual, e a vida comum e tradicional foi ligada aos vários deuses e suas consortes de 33 I

M U U K A t^ A U /L U L ÍU li. TAU LU

maneira não exclusivista, mas sincretista. As

comum; foram banidos para as regiões exteriores

ideias de incerteza eram reforçadas reconhe­

do espaço sideral. À medida que os astrólogos e

cendo-se que tychê (“sorte”, “acaso”) residia no

ocultistas do mundo oriental passaram a explorar

cerne das coisas, e os deuses muitas vezes eram

fatidicamente essas novidades astrológicas e teo­

tratados, de maneira supersticiosa, como capazes

lógicas, a religião foi entrando em nova fase, a de

de interferir no destino. Os deuses da família (os

um grande pessimismo e desespero. Uma vez que

lares e penates) eram considerados guardiães da

a existência de deuses e deusas pessoais era ou

lareira e da casa contra as más influências ou

negada (mas com pouca evidência de ateísmo, no

contra o “ destino” incerto. Uma figura extraordi­

sentido filosófico de hoje), ou “desmitologizada”

nariamente reveladora do Homem Supersticioso é

(reduzindo ou mesmo dispensando com justifi­

traçada por Teofrasto em seu Caracteres (v. texto

cativas sua identidade pessoal, como em Platão),

e comentário em M a r t in .

não parecia restar nenhuma alternativa, a não ser

1978.

v.

2.

p.

3 6 -8 ).

Há comprovação de que em ocasiões festivas

a triste conclusão de que todas as coisas aconte­

e nos santuários eram utilizados hinos, orações,

cem por acaso. O movimento seguinte foi colocar

ofertas votivas e sacrifícios, recorrendo-se a vá­

a deusa Tyc/ié ( “sorte”) no trono desocupado por

rias divindades como fontes de vida e bem-estar

Zeus

e como doadoras de cura (notadamente no culto

do acaso, que o Acaso é nosso deus”). Então acon­

a Asclépio) e de prosperidade. Buscava-se a dire­

teceu que tudo no cosmo — na terra, no ambiente

ção divina em centros como Delfos. onde o orá­

subterrestre e na esfera celeste — foi posto sob o

(P

l ín io ,

Na hi, 2.5.22: “Ficamos tão à mercê

culo. pelas mãos das sacerdotisas de Apoio, dava

controle dos deuses estelares, que controlavam e

orientações ao inquiridor. Há registros de tributos

decidiam a sorte da raça humana. O resultado foi

de louvor, chamados “aretologias” . destinados

que homens e mulheres passaram a se sentir im­

a deidades como Apoio e Zeus (o notável Hino

potentes e desamparados, e a religião foi marcada

de Cleanto

pelo “colapso da intrepidez” (usando a expressão

1978,

V.

é

um excelente exemplo; cit.

M

a r t in ,

2, p. 42).

de

M

urray).

Com as conquistas de Alexandre, as quais aba­

No entanto, o escape foi prometido e busca­

laram 0 mundo no século iv a.C., o mundo antigo

do de acordo com certos métodos, cada um com

experimentou mudanças de caráter irreversível.

seu sistema bem definido de valores e práticas de

A vida nunca mais seria a mesma, notadamente

adoração. Em primeiro lugar, oferecia-se, nas reU-

na questão da influência religiosa e da adoração.

giões de mistério, comunhão com um deus mais

Dois fatores entraram em cena: 1) Confusões

forte que a “necessidade”. Essas religiões pratica­

políticas seguiram-se à influência global de Ale­

vam um intricado ritual de iniciação como parte

xandre e seu declínio repentino. As guerras e as

de um culto batismal que incluía uma refeição de

perturbações do equilíbrio de poder trouxeram

caráter ritualístico. Em segundo lugar, a adora­

apreensão à vida das pessoas comuns por todo o

ção a Serápis, a ísis e ao deus da cura Asclépio

mundo mediterrâneo e no Levante Sírio. Esse fato

incluía a promessa de que os adoradores seriam

contribuiu para o sentimento de inutilidade que

capazes de chegar a um destino vitorioso, ten­

recaiu sobre o espírito da sociedade helenística

do assim uma esperança. Em terceiro lugar, por

como um todo nas décadas anteriores à missão

meio de uma vida de renúncia e de ascetismo,

de Paulo. 2) Contudo, havia uma dimensão mais

bem como pela prática da magia, um anseio por

grave da condição humana no mundo de Paulo

salvação e por harmonia com o mundo eterno era

que influenciou diretamente a forma em que a

expresso e celebrado em louvores, rituais, sacra­

adoração passou a ser concebida.

mentos e experiências. A ênfase recaía no conhe­

Uma nova concepção acerca do cosmo fora

cimento de uma tradição secreta que ofereceria o

introduzida pelos cientistas gregos, com repercus­

passaporte para a união com o divino e serviria

sões imediatas na teologia tradicional de Homero,

de ponte sobre o abismo que separava o mundo

que situava as divindades no monte Olimpo. Num

superior do mundo inferior. O que Paulo afirma

só golpe, esses deuses tornaram-se supérfluos no

em Atos 17.22 com respeito aos filósofos atenien­

que diz respeito a tentar situá-los na esfera da vida

ses se aplica na verdade a um público muito mais

I 34

A doração / culto ii : Paulo

amplo que sua plateia, representada por homens

muita preparação para o sábado, responsabilida­

e mulheres de todo o mundo greco-romano: “Vejo

de que recaía sobre a mãe e dona de casa judia,

que sois excepcionalmente religiosos”.

principalmente a de acender a lâmpada do sá­

1.2 Práticas judaicas 1.2.1

bado, simbolizando com isso também seu papel

Templo e casa. No período em que a como alguém que deveria dar exemplo de vida

Palestina sofria a influência de Alexandre, a mu­

consagrada.

dança mais observável na adoração judaica foi a

Na Páscoa, o tema recebia destaque especial,

crescente helenização da cultura de herança ju­

quando de forma solene se procurava e tirava

daica. A influência grega, sobretudo na educação

de casa todo fermento que se pudesse encon­

e nas formas de pensar, pode ser vista na vida

trar, como prelúdio da observância pascal, que

da

Embora houvesse muitos desafios à

só permitia pães asmos na casa e na cozinha (v.

teocracia de Israel, surgindo sobretudo do conflito

a aplicação de Paulo em ICo 5.1-13). A Páscoa

macabeu, em meados do século ii a.C., tão logo se

comemorava a libertação de Israel em relação ao

dissipou a ameaça política, as mudanças culturais

Egito, com uma recapitulação dramatizada da

resultantes na vida judaica serviram apenas para

redenção em todas as épocas, apontando para

fomentar a crença num só Deus e na santidade de

a esperança futura de Israel: a vinda do Mes­

SINAGOGA.

sua casa. o templo de Jerusalém. Daí em diante,

sias que os libertaria (m. Pesalf., 10). Essas duas

a crença em “um só Deus, uma só terra” ficaria

ideias, de comemoração e de expectativa, seriam

arraigada em todos os tipos de louvores litúrgicos.

depois retomadas no relato pauUno sobre a

0 santuário de Jerusalém continuou sendo o centro da adoração nacional, uma vez que (como

Do S e n h o r ,

c e ia

também inserida num cenário pascal

(ICo 11,17-34).

se afirmava) o mundo repousa sobre o fundamen­

O Dia da Expiação, observado anualmente, era

to tríplice da Torá, do culto realizado no templo e

na reaUdade um jejum cujos detalhes são desen­

da prática de esmolas (m. ’A bot 1.2), A Lei era a

volvidos no tratado mishnaico Yoma [Dia da Expia­

base do judaísmo pós-exílico, sendo inquestioná­

ção], baseado em Levítico 16. Paulo pouco utiliza

vel seu lugar de dominância na liturgia. Ela pro­

essa linguagem, exceto em Romanos 3.24-26, que

porcionava a revelação divina de toda a verdade

pode ser a forma editada de um credo judaico-cris-

necessária, e o estudo dela e a obediência a ela

tão (mais detalhes em M

a r t in ,

1989, p. 81-9).

eram a porta de entrada para a salvação e o viver

Em Colossenses 2.16,23, Paulo demonstra sa­

santo. O templo era o ponto de convergência da

ber de que formas as práticas cultuais, em parte

adoração congregacional e proporcionava o local

judaicas, em parte pagãs, podem deturpar o que

físico para as reuniões, sendo o lugar onde podia

é para ele a essência da fé. O emprego que ele faz

ser feita a celebração das festas anuais. Estas es­

de ideias e expressões idiomáticas que giram em

tavam prescritas na Lei e eram obrigatórias para

torno do cuho no templo é invariavelmente espi­

todos os judeus que viviam quer em Israel quer

ritualizado com alguns resuhados importantes: o

na Dispersão. As três grandes festas de peregrina­

templo passa a ser o novo templo da habitação

ção (Páscoa, Pentecostes e cabanas ou tabernácu­

de Deus na igreja (Ef 2.21), na quahdade de c o r p o (ICo 3.16,17; 6.19,20) e de templo do

los) só podiam ser observadas na Terra Santa. O

DE C

resuhado era que judeus leais vinham a Jerusa­

Espírito (v.

lém para participar dessas cerimônias religiosas

máticas ligadas ao sacrifício são agora associadas

(v. At 2.5-11; e, quanto a Paulo, At 20.16).

à adoração do Espírito (Rm 12.1,2), às manifes­

Embutida na maneira de viver do judeu estava

r is t o

E s p í r it o S a n t o ) .

E as expressões idio­

tações tangíveis de contribuição financeira para a

a observância do sábado. O sétimo dia da Criação

missão apostólica (Fp 4.18-20) e à coleta levanta­

era tido em alta estima, como presente gracioso

da em prol dos pobres de Jerusalém (2Co 8—9;

de Deus a seu povo e como ocasião de alegria.

no que diz respeito à profusão de termos cultuais

Era muitas vezes tomado como uma figura da era

agora elevados a uma nova dimensão, v. os co­

por vir, além de imprimir nos judeus uma identi­

mentários alistados na bibliografia). 1.2.2

dade de povo separado do restante da sociedade mundial. A adoração dentro dos lares envolvia

Sinagoga. Os dois locais da adoração ju­

daica até agora examinados são o templo e o lar 35 I

AOORAÇAO/CULTO li: MULO

Quanto ao lar, devemos lembrar que só no século

por Israel, exigindo em resposta o compromisso

IV surgiram as construções da igreja cristã. Até en­

de amor do povo para com seu Deus. Em orações

tão, os cristãos reuniam-se nas casas para adorar,

como essas. Deus é “abençoado [bendito]” , ou

prática que remonta às cenas em Atos 2.42,46,47;

seja, seu nome é honrado e exaltado, havendo em

16.15,34,40; 20.7-12, sendo também uma carac­

seguida alguma exphcação sobre seus atributos

terística comprovada das igrejas paulinas, que

e caráter. Daí: “Bendito és tu, ó Senhor, que em

se reuniam em casas (v. Cl 4.15,16; Fm 2; cf.

amor escolheste teu povo Israel". Nas cartas de

Rm 16.5; v.

Paulo, o exórdio, ou abertura, muitas vezes anun­

ig r e j a ) .

0 terceiro ambiente da adoração judaica era

cia a ação de Deus como incentivo ao louvor e

a sinagoga. Sendo ela própria o cenário que con­

apresenta as razões que temos para invocar suas

gregava boa parte do que caracterizava a vida

bênçãos (2Co 1.3-7; Ef 1.3-10), além de comuni­

comunitária e os negócios judaicos no século i

car 0 tema epistolar a ser desenvolvido no corpo

d.C., servindo de escola, tribunal e fórum da ci­

da carta. Parte do objetivo desse traço retórico é

dade, a sinagoga originou-se (é o que se supõe)

garantir um bom relacionamento com os leitores,

no desenvolvimento histórico do judaísmo, como

convidando-os a unir-se a ele num ensaio de lou­

ponto de encontro para a adoração aos sábados

vor. Outra parte é lembrar que as cartas de Paulo

e mesmo em outros dias agendados na semana,

tinham por objetivo ser lidas em púbhco, na as­

normalmente nos dias úteis. 0 formato da ado­

sembleia, em voz alta, quando as congregações se

ração ficou conhecido em grande parte com base

reunissem de forma plenária nas casas para o cul­

em fontes posteriores, depois que sábios judeus

to litúrgico (v. ICo 5.3-5; Cl 4.16; ITs 5.27; Fm 2).

regularam e desenvolveram minuciosamente o

Na adoração da sinagoga, imediatamente após

papel inconfundível da sinagoga na manutenção

essas orações vem o credo judeu, o Shemá, que

do modo de vida nacional. Ainda que nenhum do­

é ao mesmo tempo uma confissão de fé e uma

cumento da época forneça detalhes precisos, algu­

bênção jubilante. 0 título do Shemá é extraído da

mas fontes valiosas de informação são fornecidas

palavra de abertura de Deuteronômio 6.4; “ Ouve

em Lucas 4.15-21 e Atos 13.13-43. Três elementos

[sh‘ma'], 6 Israel: o

principais caracterizavam essencialmente a adora­

S e n h o r ”.

ção na sinagoga: louvor, oração e instrução. Como

reahdade exclusiva de Deus, o que sempre tem

Senhor

nosso Deus é o único

O termo “único” realça a unicidade e a

normalmente se acredita que o entendimento de

sido uma afirmação judaica fundamental. Rece­

Paulo a respeito da adoração cristã, sobretudo em

be, então, destaque especial na liturgia — como,

Corinto (ICo 12— 14), incorporasse esses compo­

de fato, é retomado e aprofundado na teologia

nentes, cumpre passarmos a observar os princi­

(Rm 3.30; ICo 8.6; 12.5; Gl 3.20; cf. ITm 2.5) e

pais destaques do culto na sinagoga.

na doxologia (Rm 11.36; Fp 2.9-11) paulinas. (So­

Louvor. 0 louvor coletivo ou congregacional

bre 0 fato de Paulo interagir com o monoteísmo

é a nota que abre o culto. 0 princípio talmúdico

judaico como arcabouço para a sua cristologia,

posterior é assim enunciado: “Sempre devemos

V. H

urtado;

v.

D

e us ) .

primeiro proferir louvores, e depois orar”. O lou­

A segunda divisão das orações da sinagoga

vor é ilustrado na hturgia utihzada na sinagoga

começa com o lembrete de que as promessas de

para a oração matinal chamada 'Alenu: “É nosso

Deus são garantidas e confiáveis. Esse lembrete

dever louvar ao Senhor de todas as coisas". A

é expresso na oração intitulada “Verdadeiro e fir­

adoração é assim dirigida ao Deus da ahança com

me” (cf. 2Co 1.18-22, no que se refere ao uso que

Israel, na quahdade de Criador de todas as coisas

Paulo faz dessa convicção como um estratagema

e 0 Único digno de receber a honra de seu povo.

apologético; e, em Rm 3.4, 2Co 11.31 e Gl 1.20,

Orações. Essas orações classificam-se em duas

ele recorre ao mesmo atributo de Deus, em forma

categorias. 0 primeiro grupo contém dois interes­

doxológica). Nesse momento, o líder da sinagoga

ses especiais. A Yôsêr (que quer dizer “aquele que

convoca um membro da assembleia para dirigir

forma”) abrange o tema de Deus como Criador, ao

a “ Oração propriamente dita”, ou seja, as Dezoi­

passo que a 'Affbâ (termo que significa “amor”)

to Bênçãos, Shemoneh Esreh, as quais exaltam o

é relacionada com a realidade do amor de Deus

caráter abençoador de Deus, à medida que são

I 36 I

A doração / culto i i : Paulo

relembrados seus benefícios e misericórdias a

descrição feita por Paulo de um culto incipien­

Israel. As Dezoito Bênçãos cobrem um vasto le­

te (em Corinto) inclui o uso de cântico religioso

que de temas. São em parte uma manifestação de

como um “hino” {psalmos) trazido à assembleia

louvor, em parte súplica pelos necessitados (exi­

(ICo 14.26; cf. Ef 5.19,20; Cl 3.16,17). Se a eti­

lados, juizes, conselheiros e o povo eleito). No

mologia rigorosa for o fator determinante, psal­

corpus paulino, pode se encontrar um correspon­

mos sugere composições semelhantes ao Saltério

dente em ITimóteo 2.1-4, bem como no interesse

hebraico, que na

de Paulo pelo governo sadio e por uma ord'em so­

psalmoi (cf. Lc 24.44). Entretanto, num ambiente

cial estável (Rm 13.1-7; Cl 3.18-4.6; 2Ts 3.6-13).

helenista como Corinto, não há nenhuma certeza

Instrução. Uma vez proferidas as orações, o

de que psalmos seria interpretado de acordo com

culto assume o formato que conferiu à sinago­

sua origem na l x x . Além disso, o “ hino” de ICo-

ga seu sistema inconfundível de valores. Na rea­

ríntios 14.26 parece claramente uma composição

Udade, os próprios judeus chamam a sinagoga

nova, produzida e oferecida por um membro da

“casa de instrução” (bêt hamidrãsh), pois nada

igreja com o dom da música. Esses tributos evi­

está mais em harmonia com a adoração judaica

dentemente deveriam ser cantados (como em

lx x

aparecem com a epígrafe

que o destaque conferido à leitura e exposição

ICo 14.15), embora os preceitos de Colossenses

das Escrituras. A instrução é dada por dois ins­

3.16 e Efésios 5.19 realcem que a melodia deve

trumentos. Em primeiro lugar, a Lei e os Profetas

encontrar eco "no coração” e ser uma expressão

são hdos por membros da congregação que so­

verdadeira de devoção interior, não apenas um

bem até a tribuna para dividir a tarefa. Ao longo

ato irrefletido de louvor. Os termos musicais de

da história, como a língua hebraica não era mais

ICoríntios 13 não parecem condizer com o co­

entendida por todos os presentes, um tradutor

nhecimento que temos do louvor da igreja primi­

vertia as lições das Escrituras para o vernácu­

tiva (v.

S m it h ) .

Uma última palavra precisa ser acrescentada

lo, normalmente para o aramaico. Em segundo lugar, a leitura era seguida por uma homilia ba­

à questão dos dias santos judaicos. Obviamen­

seada nas passagens lidas (quanto aos deveres

te, o sábado tinha lugar de destaque, observado

transferidos ao pastor paulino, v., e.g., Lc 4.20,21;

num ciclo semanal como sinal da obra criadora

At 13.15,16; ITm 4.13,16). Qualquer pessoa da

de Deus e como acontecimento na história da

assembleia considerada apta era convidada a

redenção (Dt 5.12-15). A suplantação do sétimo

transmitir esse sermão, como nos casos de Naza­

dia judeu pelo “primeiro dia” da semana cristã é

ré e Antioquia da Pisídia. O culto era encerrado

uma questão espinhosa, uma vez que a transi­

com uma bênção e com um “amém” congrega­

ção parece ter ocorrido apenas lentamente. Resta,

cional (corroborado em ICo 14.16; 2Co 1.20)

no entanto, pouca dúvida de que o foco mudou

cujo objetivo era confirmar a fidedignidade de

de um tema rememorativo (Êx 20.8) para um

tudo que o cuho transmitiu ao fiel, o qual profere

dia de celebração como consequência direta da

uma palavra de concordância e de aplicação em

valorização e da gratidão pelo que Jesus realizou

harmonia com o precedente veterotestamentário

"no primeiro dia” . Ele ressuscitou para uma

(e.g., Ne 5.13).

nova vida e compartilhou uma refeição com seus

Ainda não se tem certeza se os salmos eram cantados nas sinagogas palestinas

(B

radshaw

,

seguidores como Senhor vivo (cf. o relato dos Evangelhos sobre as aparições pós-ressurreição,

p. 22-4). Não há confirmação clara. Foi proposto

e o Evangelho dos hebreus, com seu registro de

p. 78-9) que, ao contrário das sinago­

uma palavra dominical dada a Tiago: "Meu ir­

gas helenistas do mundo da Diáspora, nas quais

mão, come teu pão, pois o Filho do homem res­

Filo, da seita dos terapeutas, relata e confirma o

suscitou dentre os que dormem”). No que tange

uso do canto {Vi co, 80), bem como em Qumran

aos registros paulinos, há uma consciência de

(IQS 10:9; IQH 11:3,4), o canto não era permitido

que o “primeiro dia da semana” é a ocasião em

pelos fariseus. Talvez considerassem a prática he­

que os corintios se reúnem (ICo 16.1,2), o que

rética, já que era observada por grupos que eles

inclui levar dinheiro para a assembleia. A propos­

julgavam divisionistas. Em contrapartida, a única

ta de J. Héring de que o primeiro dia da semana

(H

eng el,

37 I

era dia de pagamento em Corinto não é suficiente para exigir atenção séria

um padrão fixo de adoração (v. a tentativa arroja­

p. 183). Paulo

da de Cuming de construir uma ordem neotesta­

mais provavelmente está revestindo um dia se­

mentária de culto), não há nada definitivamente

cular com matizes teológicos em tributo a esse

normativo. O único indício possível está em ITes-

(H

é r in g ,

dia como sendo “ dia do Senhor” , assim como

salonicenses 5.16-24, que pode ser organizado

ele pode apropriar-se do lugar da “festa ágape-

em versos, com cada verso pretendendo ser um

ceia do Senhor” e designá-la “mesa do Senhor”

título de uma parte do culto. (A disposição, pri­

(ICo 10.21;

meiramente proposta por

V. R

ord o rf,

p. 274-5).

De acordo com Atos 20.7-12, os crentes de

donada por

M

a r t in ,

J.

Trôade reuniam-se “no primeiro dia da semana”

aprovada em parte por

para compartilhar uma refeição e ouvir Paulo fa­

a cautela recomendada por

lar. Evidentemente, tratava-se de uma ocasião à

M.

R

o b in s o n ,

é aban­

1975, p. 135-8, e desde então H

il l ,

B

p, 119-20, Mas veja radshaw

,

p, 30-55,)

Em ITessalonicenses 5,16-22, frases curtas

noite, já que; 1} o pobre Êutico foi tomado pelo

são cuidadosamente construídas, 0 verbo ocor­

sono, sentado numa janela, e 2) a retomada do

re no final, e há uma predominância de palavras

discurso de Paulo fez com que Paulo e sua platéia

iniciando com a letra grega p, produzindo assim

se estendessem até a aurora, antes de partirem.

certo ritmo, A sequência é digna de nota, Primei­

Desenvolvimentos posteriores da igreja pós-pau-

ramente se faz soar a nota de adoração alegre

lina conferem uma convicção mais arrazoada

(“Alegrai-vos sempre”). Oração e ação de graças

para o dia santo como o começo de uma nova era

ocorrem juntas — vínculo com origem na sina­

(Bíi, 15.9; Di, 14,1; Ap 1.10) e situaram o culto

goga, Os cristãos são aconselhados a entregar o

na madrugada (a correspondência entre Trajano

controle total nas mãos do Espírito, especialmen­

e Plínio [Ep, 10.96] localiza a reunião “antes do

te ao permitir que se ouçam palavras proféticas

raiar do dia”), provavelmente para anunciar o sol

(cf, Di, 10,7), mas são advertidos da necessidade

nascente sob perspectivas cristológicas (cf. o hino

de testar os espíritos. Acima de tudo, nada fora

cristão primitivo “Salve, luz que nos alegra”).

dos padrões aceitáveis deve entrar na assembleia,

Mas a cena retratada em Atos 20.7-12 de fato

sugerindo um controle sobre práticas de adoração

desempenhou um papel mais determinante na

desenfreadas, A parte final dessa suposta “ ordem

evolução do culto cristão, a saber, estabeleceu o

na igreja” contém uma oração abrangente para

padrão da forma dúplice de liturgia — a pregação

todo o grupo (ITs 5,23) e uma declaração de con­

e o partir do pão, a missa catedmmenorum, aberta

fiança em Deus (ITs 5,24),

a todos, seguida pela missa fidelium, restrita aos crentes, que lá por meados do século ii

Há quem acredite haver uma correspondência

(J u s t in o ,

com ICoríntios 14, com a associação entre louvar

Ap, 166) se tornou procedimento padrão. 0 padrão

e “cantar hinos”, bem como entre oração e ação

duplo, a incluir uma liturgia da Palavra e uma litur­

de graças (ICo 14,13-18), É necessário controlar

gia do Cenáculo, como são às vezes denominadas,

a profecia e os discursos inspirados pelo Espíri­

tem sua origem genética em Atos 20 e em Paulo em

to, especialmente por mulheres que profetizam

ICoríntios 11— 14; a origem de uma pode estar di­

(ICo 14,34-36), E em ambos os relatos predonú-

retamente associada à sinagoga, e a outra talvez te­

na a necessidade da boa ordem (ICo 14,40),

nha surgido da tradição eucarística (ICo 11.23-26) que Paulo herdou e transmitiu aos corintios.

Do ponto de vista do procedimento, é mais fácil resumir o ensino de Paulo com tópicos mais simples, a saber; 1) evidência do uso de compo­

2. O ensino paulino

nentes litúrgicos em suas igrejas; 2) medidas cor­

Não há nenhuma declaração sistematizada sobre

retivas que Paulo adotou para hdar com o que ele

o que Paulo entendia ser uma prática adequada

considerava abusos e distorções; 3) inferências

de culto, tampouco há algo que se assemelhe a

sobre sua teologia da adoração com base nas in­

um conjunto de preceitos em livros posteriores de

formações assim evidenciadas. Não são questões

culto. O ensino de Paulo está espalhado por toda

independentes umas das outras, e serão tratadas

a sua correspondência, e, embora alguns autores

de passagem, bem como de forma mais detalha­

sejam da opinião de que ele incorporou partes de

da, em algumas seções.

I 38

A doração / culto n: Paulo

2.1 Evidências de formas de adoração e dis­

R o b in s o n )

. Seguramente, deve refletir um uso cor­

curso. Numa etapa posterior, necessitaremos es­

rente em Corinto; caso contrário, por que Paulo

clarecer as maneiras em que Paulo se apropriou

confundiria seus leitores com um termo sem ex­

de peças e alusões litúrgicas preestabelecidas

plicação? Seu grau de importância, no entanto, é

para incorporá-las no fluxo epistolar de seus es­

o que conta. As evidências em torno dessa antiga

critos (v, 2.1.1 e 2,1.2 abaixo). Ficará claro, as­

pista oferecem uma torrente de esclarecimentos

sim esperamos, que ele agiu dessa forma para

sobre o modo em que os cristãos judeus adora­

se aproximar de seus leitores, que nem sempre

vam seu Senhor Aqui está a mais antiga oração

estavam bem-dispostos com ele, com seu aposto­

cristã registrada, atribuindo ao Senhor da igreja

lado e com sua teologia. Se ele puder demonstrar

a mais elevada honra e dando indicação de um

familiaridade com um credo comum a todos ou

culto centrado nele. Também mostra que aque­

um hino bem-aceito, imediatamente passará a se

les que anteriormente invocavam o nome de seu

identificar com eles, ainda que ele ache neces­

Deus, o Deus da ahança, na liturgia da sinago­

sário editar a tradição que está utilizando para

ga agora vinham aplicar o mesmo título divino a

sublinhar determinado aspecto ou harmonizá-lo

Jesus, 0 Messias.

com a convicção dele, Ainda outra razão possível

“Invocar o nome do Senhor” era também

para ele citar exemplares litúrgicos está no empre­

uma maneira de se referir à iniciação dos crentes

go pretendido de suas cartas, Elas eram seu alter

(Rm 10.12-17), sendo também uma autodesigna-

ego, compensando sua ausência forçada, e ainda

ção da igreja (ICo 1.2) como um grupo de ho­

assim transmitindo a proximidade de sua pessoa

mens e mulheres que oravam ao Senhor (Jesus;

àqueles de quem a distância ou as circunstâncias

cL 2Co 12.1-10; At 7.55-60; 9.14; 22.16). Orações

o mantinham separado (v, ICo 5,1-12; Cl 2,5),

a Jesus e em nome de Jesus eram facilmente as­

Lançar mão de um repositório comum de hinos,

sociadas entre si, de uma maneira que pode nos

orações, lembretes batismais ou catequeses, repi­

parecer paradoxal, mas evidentemente se permi­

ta-se, tornaria sua presença nitidamente conhe­

tia que a tensão permanecesse nos círculos pau­

cida de seus leitores, que muitas vezes, ao que

linos, ao passo que um monoteísmo rigoroso e

tudo indica, concluíam que ele os havia esqueci­

uma adoração dirigida ao Senhor ressurreto esta­

do (2Co; Fp) ou abandonado (ITs),

vam lado a lado, com pouca tentativa de correla­

2.1.1 Formas tradicionais. Um dos indícios

cioná-los (cf. Fp 2.9-11).

mais evidentes de que Paulo tomava empresta­

Também se permitiu que surgissem lado a

do dos tesouros litúrgicos encontra-se em ICo-

lado formas triádicas, oração-louvor-confissão

ríntios 16.22, O vocábulo de sonoridade estranha

(e.g., 2Co 1.20,21; ICo 12.4-11; Ef 4.4-6), à medi­

maranatha seria tão enigmático para o coríntio

da que as pessoas da Divindade (como mais tarde

falante do grego quanto para o leitor de nosso

foram formuladas) eram associadas a vários mi­

tempo. A expressão aparece no texto sem comen­

nistérios e ofícios. Em Efésios 1.3-14, há (numa

tários, tradução ou aplicação. Até seu significa­

leitura variante do texto) um formato trinitário,

do é fonte de debate: “o Senhor está vindo” ou

uma vez que se diz que o Pai escolheu os crentes,

“nosso Senhor, vem !” são possíveis, havendo

0 Filho de seu amor os redimiu e o Espírito auten­

um debate linguístico recente (v,

que

ticou a salvação na experiência humana ao aph-

faz a balança pender para a segunda formulação

car o selo experiencial (Ef 4,30; cf, 2Co 1,20-22;

(como em Ap 22.20), 0 uso de uma invocação

5,5 no batismo?).

F it z m y e r )

aramaica de oração só pode ser satisfatoriamente

Formas específicas de oração e de louvor ocor­

explicado com base na suposição de que perten­

rem principalmente nas seções de abertura das car­

cia a um vocabulário htúrgico de um ambiente

tas de Paulo e foram estudadas em profundidade (v, e

O consenso é que Paulo usou

palestino ou biUngue primitivo. Ficou arraigado

Sch u ber t

na hturgia da Didaquê (10.6) como parte de um

esse artifício para declarar o contexto epistolar do

culto em preparação para a mesa do Senhor (que

que estava para se seguir e para incentivar a boa

O ’ B r ie n ) ,

bem pode ser sua função no final da Carta de

vontade mútua ao estabelecer relações amigáveis

ICoríntios [ICo 16.22-24]: v.

com seus leitores (gr, philopronêsis). As evidências

B ornkam m

e J. A. T.

I 39 I

linguísticas em constmções, como o encadeamento

preexistência com Deus e seu papel na Criação e

de particípios, o uso de pronomes relativos e as ex­

na subjugação escatológica de todos os poderes

pressões copiosamente elogiosas (e.g., Ef 1.6, “para

hostis, especialmente os “espíritos elementares”

o louvor da glória da sua graça”) parecem demons­

[stoicheia tou kosmou, Cl 2.8,20) — serviu para

trar que Paulo tem uma dívida com o vocabulário

garantir à igreja que nenhum poder hostil irá se

litúrgico (e.g., 2Co 1.3; Cl 1.9-14; Ef 1.3-14; 1.15-23;

interpor entre Deus e o mundo (Rm 8.38,39).

sobre as formas gregas de abençoar [bendizer] a

O problema tratado nesses tributos confessio-

Deus,

nais/hínicos ao senhorio de Cristo (Rm 10.9,10;

V. B r a d s h a w ,

2.1.2

p. 44-5).

Hinos e credos. É bem conhecido o hábito Fp 2.11) é aquele apresentado pelo dualismo

que Paulo tem de inserir credos ou hinos na

gnóstico, que tornava partes do Universo hostis

sequência epistolar de seus escritos, e há certos

e alienadas (v.

critérios que denunciam a presença de material

em Cristo, agora estabelecido e celebrado em can­

citado. Embora recentemente tenha havido cer­

ção e credo, era a resposta cristã. A contribuição

ta resistência à ideia de que Paulo fazia uso de

singular de Paulo foi: 1) ancorar a redenção e a

material poético, hínico ou confessional já exis­

reconciliação no feito de amor da cruz, não num

tente (v.

não parece possível abalar as con­

decreto cósmico (Fp 2.8; Cl 1.20; cf. Cl 2.15); 2)

clusões principais estabelecidas por E. Stauffer

afastar a igreja — que cantava esses hinos e pro­

L

ash) ,

g n o s t ic is m o ) .

0 domínio de Deus

(p. 338-9} e O. Cullmann em seus debates semi­

feria essas confissões — de um triunfalismo falso

nais, agora suplementados por monografias como

que negasse a realidade ainda presente do mal,

a de Deichgrâber. Vocabulário raro e formal; uso

à medida que se concentrava mais no futuro do

de recursos retóricos como particípios, pronomes

que no presente (v.

relativos e figuras de Unguagem; o fato de que o

Paulo insere a condição escatológica de um fator

e s c a t o l o g ia ) .

No lugar disso,

material hipoteticamente inserido pode ser des­

“ainda-não” (ICo 15.20-28) e sustenta que hinos

prendido do contexto — esses sinais, vistos con­

de triunfo oferecidos em adoração devem ser

juntamente, apontam para o fato de que Paulo

temperados pela avaliação realista da luta conti­

fez uso de formas tradicionais como apoio a seu

nuada na expectativa de um reino futuro, agora

apelo exortatório (e.g., Fp 2.6-11, no contexto de

iniciado, mas ainda não plena e definitivamente

Fp 2.1-4,12,13), bem como utilizou “a história de

alcançado. O elemento de tensão permanece na

Cristo” como paradigma da ação ética (2Co 8.9,

soteriologia de Paulo, e alguns dos sinais de ad­

outra vez no contexto de contribuição e serviço

vertência presentes no modo em que ele lida com

generosos).

os problemas da adoração visam a esse destaque

Os principais exemplos são Filipenses 2.6-11,

falso, que se evidencia em exagero mesmo quan­

Colossenses 1.15-20 e ITimóteo 3.16 (recente­

do o culto é irrefreado e exuberante demais, como

mente agrupados e estudados por Fowl). Além

em Corinto (IC o 4.8; 12— 14).

da função parenética dessas citações, dispensa-

Um exemplar da hinódia paulina (Ef 5.14)

se atenção às percepções que essas composições

é um lembrete de que nem todas as formas de

hínicas nos permitem ter do culto cristão nas igre­

adoração eram estritamente teocêntricas e diri­

jas paulinas.

gidas ao louvor de Deus. Aqui as palavras “Por

Pode se afirmar que o tema predominante é a

isso se diz...” parecem ter sido acrescentadas ex­

obra cosmológico-redentora de Cristo, o Senhor

pressamente como preâmbulo para a citação de

da igreja que veio de Deus na qualidade de Deus.

uma passagem conhecida (que de outra forma

Ele, por sua morte e exaltação, conquistou uma

não seria reconhecida; não no

reconciliação cósmica, unindo assim os reinos

um ritmo trocaico oscilante e um recurso retóri­

at).

0 estilo, com

díspares do céu e da terra (satisfazendo assim

co pelo qual os finais dos primeiros dois versos

uma necessidade evidente na religião greco-ro-

combinam por assonância, prova que se trata de

mana, como já foi observado) e tornou seu triun­

um hino cuidadosamente composto. Mas é diri­

fo reconhecido no submundo dos demônios e dos

gido a crentes, presumivelmente recém-converti-

poderes cósmicos (submetendo todas as partes

dos e talvez recém-batizados, para chamá-los à

do Universo a seu controle). O realce duplo — sua

ação e prometer-lhes a iluminação de Cristo. As

40

A d oração / culto ii : Paulo

expressões idiomáticas associadas a despertar/

quando confundida com um decreto gnosticizado

dormir, ressurreição/morte e a luz/trevas deixam

sem considerações morais. Daí a advertência de

prever o cenário de um rito iniciatório para o qual

Paulo em ICoríntios 10.

esses versos servem de canto de acompanhamen­

2.1.4

to. Seriam palavras que indelevelmente fixariam

A ceia do Senhor. Paulo tomou e enrique­

ceu várias tradições relacionadas a uma refeição

0 significado do batismo na mente dos novos

de ceia (v.

crentes.

cia à intenção do Senhor “na noite em que foi

2.1.3

Batismo. A valorização do

b a t is m o

c e ia d o

Senhor) ,

realizadas em obediên­

era traído” e entregue ã morte (ICo 11.23). Num está­

evidentemente uma característica importante na

gio anterior (i.e., pré-paulino) de desenvolvimen­

instrução catequética oferecida a recém-conver-

to, a estrutura da ceia parece ter consistido nos

tidos e adeptos nas igrejas de alicerce pauUno.

seguintes elementos: uma refeição comum basea­

Às vezes (como em Corinto), havia a urgência de

da num costume judaico de desfrutar comunhão

desfazer crenças distorcidas a respeito da prática

à mesa, que incorporava, acreditamos, as orações

do batismo (ICo 1.13-17; 10.1-17; 15.29). Com

judaicas pelo alimento e pela bebida (com um

maior destaque ainda, Paulo toma por certo a

toque cristão visto em Di, 9— 10); e, quando se

realidade do que o batismo impUca, e constrói

tomavam o pão e o cáUce, seguindo o modelo

a partir daí (Rm 6.1-14; Cl 2.12). Para Paulo, o

deixado no Cenáculo [a “grande sala mobiliada” ,

batismo, que é a resposta confiante, obediente

A 2 i],

e individual à palavra do evangelho (Rm 1.16;

memória de mim”. O rito simples apontava para

10.9,10), era considerado o meio de entrada na

além de si mesmo, para uma esperança futura na

a presença do Senhor era relembrada “em

comunidade do novo Israel, semelhantemente ao

chegada do r e in o

papel desempenhado pela circuncisão num am­

temente em resposta direta a problemas sociais

biente de fé (Rm 2.27-29; ICo 7.19; Cl 2.11,12).

em Corinto, foi enriquecer e aplicar essas ideias

Então, ICoríntios 12.13 e Gálatas 3.27 precisam

básicas com uma consequência prática, a saber, a

naturalmente ser assim compreendidos. A filia­

distinção entre a festa ou refeição de amor (uma

ção à comunidade eleita era marcada pelo rito de

refeição compartilhada) e um culto eucarístico

passagem que incluía o uso de água como puri­

mais solene. A razão dessa distinção reside nos

ficação e iniciação. Paulo pode, portanto, funda­

abusos predominantes em Corinto, onde comida

mentar um apelo ético na realidade de que seus

e bebida em demasia levaram à tolerância de ex­

leitores foram batizados (Rm 6.15; 13.14; Cl 3.10;

cessos e onde os crentes pobres que chegavam

cf. Ef 4.24). O fato de serem identificados com

atrasados não compartilhavam da refeição social

de

D

eus.

O que Paulo fez, eviden­

Cristo em sua morte e na nova vida, de novo

(ICo 11.17-22). As divisões dentro da comunida­

representado no batismo, deve ser concretizado

de haviam levado a koinõnia a um colapso, bem

no chamado para o morrer diário (2Co 4.11,12).

como à recusa da aceitação mútua de maneira

Paulo acredita haver no batismo uma ação sacra­

cristã (IC o 11.18,19, cf. ICo 1.10,11; 3.3,4,21).

mental genuína, em que Deus está em operação

Paulo encontra a resposta a essa doença ao desta­

(Cl 2.12). Deus aplica aos crentes a eficácia sal­

car mais uma vez a expressão “somente um pão” ,

vífica da morte e da ressurreição de Cristo, nas

que simboliza “um só corpo” (ICo 10.16,17), e

quais eles morreram e foram ressuscitados, e os

mostra como a dimensão horizontal da “comu­

põe numa esfera de vida divina (Gl 2.19-21), na

nhão do sangue [...] [e] do corpo” do Senhor faz

qual o pecado é derrotado (Rm 6.7,9-11). Daí em

dobrar o sino da morte do espírito partidário e da

diante, o cristão é convocado a desenvolver as im­

busca egoísta dos próprios interesses.

plicações do significado do batismo (Rm 6.12-14),

0 tema da “memória” está presente no re­

da mesma forma que os israelitas circuncisos

lato paulino (ICo 11.24,25). Ele chega a in­

precisavam confirmar sua circuncisão por meio

terpretar isso na frase “proclamais a morte do

de uma vida de obediência no contexto da alian­

Senhor”. Igualmente, a esperança futura é realça­

ça. Ressalta-se assim a importância da confissão

da e mostrada na referência “até que ele venha”

no batismo (Rm 10.9,10; Ef 5.25-27). Mas a ação

(ICo 11.26). Os dois acréscimos pauhnos devem

sacramental pode ser apresentada erroneamente

ser entendidos no contexto pascal (cf. ICo 5.1-8).

I

41

M U U K A Ç A U /L U L IÜ IK TA U LÜ

Eles realçam, para Paulo; 1) o destaque soterloló-

do teste de todos os dons espirituais (charismata),

gico da morte de Cristo pelos pecados (ICo 15.3-5;

que eram exercidos no culto da assembleia (cf.

Rm 5.1-10; 2Co 5.18-21; Gl 3.13) para obter uma

D

redenção maior que a libertação do Êxodo; 2) a

rio era constituído dos seguintes elementos;

unn,

p. 293-7;

M

a r t in ,

1982, p. 194-200). O crité­

lembrança escatológica de que o fim ainda não

1) 0 nexo bem estabelecido entre a tradição

chegou (ICo 15.20-28), mas virá por ocasião da

de Jesus e o Cristo da experiência (ICo 12.1-3)

parusia do Senhor (ICo 16.22; v.

e s c a t o l o g ia ) .

situava a cruz no centro (ICo 5.5,7; 11.26) e mos­

Será uma vinda definitiva e um prenúncio da rea­

trava que a igreja vive entre os dois adventos,

Udade última, quando então ele se assentará com

num estado de expectativa não realizada, a qual

seu povo à mesa.

só será plenamente cumprida na parusia e no rei­

2.2 As medidas corretivas de Paulo. O ensi­

no final. Nesse ínterim, os crentes têm o Espírito

no pauUno sobre a adoração inclui o aspecto raro

Santo que habita neles e os inspira à adoração

de que certas crenças e práticas em suas igrejas

(ICo 3.16,17; 6.19; 12.3), sendo ele as primícias

o forçaram a alguns protestos com o objetivo de

da redenção futura prometida, mas ainda não rea­

reformar e corrigir. Suas contramedidas enqua­

lizada. Nenhuma visão do batismo que promova

dram-se em duas categorias.

a noção de uma ressurreição já alcançada é cor­

Em primeiro lugar, certos credos e hinos foram

reta para Paulo, uma vez que negaria o caráter

tomados por Paulo e por ele editados no processo

futuro da esperança da ressurreição (Fp 3.10-15).

antes de ele considerar sua inclusão apropriada ã

2) A primazia do amor (gr.,

agapé,

dentre as

instrução epistolar. Acréscimos como o de Filipen­

116 ocorrências do

ses 2.8. “e morte de cruz”, e o de Colossenses 1.18,

que todos os exercícios espirituais situam-se sob

“ que é a igreja” , para expUcitar o sentido de “ele

o poder de uma energia que é o dom de Deus em

n t,

75 estão em Paulo) significa

[...] é a cabeça do corpo”, mostram a tônica dessas

Cristo (Rm 5.1-10; 2Co 5.14), o qual deve regular

revisões, a saber, impor a centralidade da cruz e

e dirigir todos os movimentos e demonstrações de

contrapor-se a qualquer ênfase gnosticizante. No

adoração por canais condizentes com o caráter e o

credo de Romanos 3.24-26, ele evidentemente

projeto divino para a vida de seu povo (Ef 5.1,2).

editou uma fórmula expiatória judaico-cristã para destacar a universaUdade da fé.

3) A meta da adoração no plano horizontal é a edificação (gr.,

Depois, em Corinto, Paulo enfrenta uma situa­ ção transitória, em que o cuUo se tornara desor­

o ik o d o m ê ),

que, para Pau­

lo, é mais que um sentimento de bem-estar ou uma experiência extática. Antes,

o ik o d o m ê

(em

ganizado e maculado por características que ele

ICo 14.3,12,17,26; cf. ICo 12.7) é um esforço re­

reprovava. Sua preocupação era: 1) deter qual­

soluto para promover a vontade de Deus na vida

quer exuberância indevida causada por um con­

humana, tanto na do nosso próximo quanto na

ceito falso de “Espírito” (ICo 12.1-3; v.

E s p ír it o

nossa (ICo 8.9; 10.33; Rm 15.2 no contexto litúr-

e uma escatologia realizada que negava

gico de Rm 15.5,6; Fp 2.3,4, no contexto estabele­

um fim futuro com base na suposição equivocada

cido pelo hino de Fp 2.6-11). No culto, os crentes

Sa n t o )

de que o reino já havia chegado em sua plenitu­

devem buscar ativamente o bem de toda a igreja

de (ICo 4.8; 15.20-28); 2) implementar controles

e assim glorificar a Deus (ICo 10.31), e desfrutar

para manter a boa ordem, refrear a glossolalia

de sua presença, ao mesmo tempo lembrando-

irrestrita e sem interpretação, promover a profe­

se de que Deus realmente está no meio deles com

cia a um ofício elevado e silenciar as expressões

santo juízo e com graça renovadora (ICo 14.25;

descuidadas e estranhas de mulheres (profetisas)

cf. ICo 5.3-5; 11.29-32; 16.22).

na assembleia (v. mais detalhes nos comentários e em

M

a r t in ,

1984, caps. 5— 7).

Ver também b a t is m o ;

c h a do

Senhor.

DPc: b ê n ç ã o , in v o c a ç ã o , d o x o l o g i a , a ç ã o d e g r a ­

2.3 As características inconfundíveis de Paulo. 0 modo em que Paulo lida com os problemas de

ç a s ; e le m e n t o s l i t ú r g i c o s ; h in o s , f r a g m e n t o s d e h in o s , c â n t i c o s , c â n t i c o s e s p ir it u a is ; o r a ç ã o .

Corinto serve principalmente para acentuar os ele­ mentos positivos do culto cristão. Ele fez isso so­

B ib u o g r a f ia .

bretudo por meio da introdução do critério trípUce

rience. London:

I 42

B ornkam m , scm,

G. Early Christian expe­

1969. •

B radshaw ,

P. F. The

ad o r a ç ã o / culto

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Tudo que se pode dizer sobre culto e adoração

and Paul: studies in the earliest history of Christiani­

a partir do que é compreensível nas evidências

ty. Philadelphia: Fortress, 1983. p. 78-96. ■ H ér in g ,

presentes nos escritos pauhnos (v.

J. Commentary on First Corinthians. London: Ep-

t o ii)

worth, 1962. ■

Ou seja, com base nas tradições de fé e prática

H il l,

D. New Testament prophecy.

e r a is ,

A

po caupse

ad o r aç ão /cu l­

vale também para os escritos não pauhnos.

L. W. One

herdadas do judaísmo, o entendimento que os cris­

God, one Lord. Philadelphia: Fortress, 1988. • L a s h ,

tãos tinham de Deus e o louvor que lhe rendiam

Atianta: John Knox, 1979. ■

H u rtad o ,

C. J. A. Fashionable sport: hymn-hunting in 1 Peter.

expressavam-se no fato de o reconhecerem como

7 [Texte und Untersuchungen, 126], p. 293-7,

criador e redentor. Deus também é aclamado

SE, V .

R. P. Carmen Christi: Phiüppians

como Senhor soberano, cujo decreto trouxe o

2:5-11 in recent interpretation and in the setting of

mundo à existência (Hb 11.3; Ap 4.11) pela me­

early Christian worship. Cambridge/Grand Rapids:

diação do

Cambridge University Press/Eerdmans, 1967/1983.

cuja vontade a criação é sustentada (Ap 4.11; cf.

{smsMS, 4.) [ = A hymn of Christ: PhUippians 2:5-11

Cl 1.15-18). O mesmo Deus agiu salvificamente na

1982. ■

M a r t in ,

C

r is t o

cósmico (Hb 1.2; Jo 1.3) e por

in recent interpretation and in the setting of early

vinda de Cristo para resgatar e restaurar a criação

Christian worship. Downers Grove: InterVarsity,

perdida. Apocalipse 5.9-14 expressa esse júbilo

1997.] ■______ . New Testament foundations. Grand

em forma lírica, enquanto o cenário cósmico da

Rapids: Eerdmans, 1978, v. 2. ■ ______ . Patterns of

nova era que Cristo inaugurou é visto na “Canção

worship in New Testament churches,

jsn t,

v.

37,

da estrela”, de Inácio (In, Ef, 19.1-3; sobre esse

p. 59-85,1989. ■ ______ . Reconciliation: a study of

texto como um hino de Cristo, v.

Paul’s theology. Grand Rapids: Zondervan, 1989.

mais observações em

M

a r t in

,

L

ohm eyer,

p. 64;

1997, p. 10-13). Em

■ ______ . The Spirit and the congregation: studies

fórmula de credo concisa e precisa, IPedro 1.20

in 1 Corinthians 12— 15. Grand Rapids: Eerdmans,

oferece, no contexto do sacrifício (IPe 1.18,19) e

■______ . Worship in the early church. Grand

da vitória (IPe 3.21,22) de Cristo, uma sinaliza­

Rapids: Eerdmans, 1975. • ______ . The worship

ção da encarnação ocorrida nos limites da his­

o f God. Grand Rapids: Eerdmans,

■ M oule ,

tória da redenção. Assim, o louvor é dirigido ao

C. F. D. Worship in the New Testament. London:

Deus de Israel, conhecido como Pai de Jesus Cris­

1984.

Lutterworth, 1961. ■

1982.

G. Five stages of

to (IPe 1.3) e Pai daqueles cuja confiança está

Greek religion. Oxford: Oxford University Press,

nele (IPe 1,17; Hb 2.10-13; IJo 1.3; 2.1,13; 3.1),

1925. ■

os quais fazem parte da nova criação que celebra

O ’ B r ie n ,

M u rray,

P. T. Introductory thanksgivings

I 43

A D O RAÇÁO /CULTO 111’. A t OS, H e BREUS, C a RTAS G e RAIS, A p OCAUPSE

sua graça (Tg 1.18) em hinos, palavras e atos de

pensar que o Apocalipse inteiro é praticamente

adoração (Ap 1.12-18; 19.10; 22.8,9; quanto aos

uma transcrição de um rito de iniciação pascal,

textos que proíbem a adoração sempre que seres

composto como um comentário simultâneo sobre

angelomórficos foram considerados rivais do úni­

o que acontecia liturgicamente. O mesmo se pode

co Deus, v.

afirmar acerca da reconstrução igualmente imagi­

Stuckenbru ch) .

Este verbete examina­

rá as evidências desses e de outros textos do

nt,

bem como de escritos pós-apostólicos, em busca de padrões cristãos primitivos de adoração, con­ siderados geograficamente, desde a era do

nt

até

meados do século ii.

nativa que F. L. Cross faz do cenário que está por trás de IPedro como uma liturgia batismal. Embora tais propostas, algo bizarras, não con­ vençam por não resistirem ao olhar perscrutador da crítica, isso não nos permite lançar dúvida

1. Incentivos e precauções

sobre as tentativas mais arrazoadas de descobrir

2. Método e abordagens

fragmentos de formas hínicas e confessionais,

3. O legado paulino

imagens e lembretes batismais, orações eucarís­

4. Evidências da Síria-Palestina

ticas e instruções catequéticas em diversos luga­

5. 0 eixo Roma-Ásia Menor

res do corpus do

6. Padrões joaninos e sua influência

de enxergar dados litúrgicos em toda parte, não

7.

Algumas conclusões

n t

.

Ainda que atentos ao perigo

somos impedidos de investigar a forma literária, estilística e contextuai das passagens sob análise com o fito de situá-las num Sitz im Leben conve­

1. Incentivos e precauções Assim como os estudiosos, que ao aplicar o mé­

niente da vida e da prática de adoração das igre­

todo da crítica da forma às cartas paulinas iden­

jas, se for para esclarecer suas origens e dar uma

tificaram várias passagens como litúrgicas, assim

dimensão extra à sua mensagem.

pelas mesmas técnicas algumas partes de IPedro,

Duas outras considerações servem-nos de ad­

Hebreus, Tiago e Apocalipse foram tratadas como

vertência na hora de deduzir como era a adoração

passagens que incluem formas e fragmentos de

nas congregações abordadas em nossos textos. A

adoração. Na realidade, foram propostas teorias

tentação de harmonizar é a primeira armadilha.

que tentavam apresentar livros inteiros do

nt

No caso dos materiais paulinos, a tarefa de cons­

como se brotassem de um contexto litúrgico e

truir um quadro da vida de adoração de suas co­

incorporassem diretrizes rudimentares de culto.

munidades não foi impedida por uma diversidade

Essa tendência causou descrédito a toda a abor­

impossível. As igrejas de alicerce pauhno, embo­

dagem, com acusações de “ panliturgismo” , ou

ra diferentes em suas origens, perspectivas cultu­

seja, a confiança equivocada de que se podem

rais e problemas enfrentados, estavam ao menos

“ detectar reverberações de liturgia no Novo Testa­

agrupadas por uma sujeição comum a Paulo e a

mento mesmo onde nenhuma nota htúrgica tenha

seus colegas, enquadrando-se como um só corpo

soado originariamente” Dunn,

1990,

p.

3 6 ).

cf.

num período administrável. Os livros bíblicos em

Um exemplo que merece ser

análise neste verbete não têm esse fio unificador.

(M

oule ,

1961,

p.

7;

ressaltado ilustrará o perigo. Raciocinando com

Eles representam um amplo espectro de culturas,

base na celebração da Páscoa que pode estar por

interesses, composições e desafios diversos, sem

trás da ordem de Hipólito na TYadição apostólica

falar da natureza multiforme dos gêneros (Atos,

(c.

cartas, literatura apocalíptica) que estamos pro­

215

d.C., em Roma),

M.

H. Shepherd

(1 9 6 0 )

propôs que a estrutura paralela percebida por ele

curando abranger. Dadas essas incongruências,

em Apocalipse continha o arcabouço de uma li­

organizar os estilos e as práticas de adoração,

turgia batismal plenamente desenvolvida, consti­

com seus significados, percorrendo um território

tuída de interrogações, jejuns preparatórios que

tão amplo em um quadro inteligível é um em­

conduziam à iniciação em si, lições da Lei, dos

preendimento quase impossível. E procurar har­

Profetas e dos Evangelhos, além da salmódia e de

monizar as diferentes características e resultados

uma eucaristia batismal. À parte da discussão so­

com 0 objetivo de oferecer um padrão comum é

bre se todos esses elementos de adoração são ou

correr o risco de uma harmonização incorreta,

não encontrados em Hipólito, suscita ceticismo

que distorcerá as evidências e transmitirá uma

I 44

ado ração / culto

lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

impressão equivocada. Se a intenção é fazer um

É igualmente verdade que as configurações da

resumo, essa advertência precisará ser levada em

vida e da adoração cristãs, associadas a aspectos

conta, e um ponto de interrogação terá de ser im­

mais importantes de fé e prática, mudaram de

posto a qualquer tentativa por demais minuciosa

acordo com os lugares que deram origem à lite­

de encontrar uma unidade litúrgica fundamental

ratura nascida nessas regiões. Uma vez que em

na parte final do período apostólico (v.

ann,

vários casos é problemático o vínculo existente

A outra armadilha é a mencionada no -manual

de nos contentar com as conjecturas mais emba-

de P. F. Bradshaw, The search for the origins of

sadas à nossa disposição e às vezes até mesmo

Christian worship [A busca das origens da adora­

com simples especulações, ainda assim é inegá­

p. 7-36;

B radshaw ,

C ullm

entre a locahdade e o escrito em si, e temos então

1992, p. 37).

ção cristã], que já no título confessa reconhecer

vel a existência de uma pluriformidade de ensi­

a natureza experimental de qualquer reconstru­

nos e de modos de vida tidos como aceitáveis.

ção da adoração primitiva, bem como o perigo de

Essa mesma pluriformidade é representada não

lhe impor, com base nas liturgias posteriores, as

só nos documentos posteriores do

evidências que, com muita facilidade, afirmamos

bém em seus desdobramentos, nos chamados

encontrar nos primeiros documentos do

nt

,

mas tam­

Esse

pais apostólicos, e é uma realidade comprova­

método foi a característica predominante da ce­

da. Ela fornece uma estrutura conveniente para

lebrada monografia de H. Lietzmann, Mass and

a evolução de estilos e práticas de adoração. A

Lord’s Supper

íntima relação entre fé e adoração, casualmente,

[A

nt

.

missa e a ceia do Senhor]

(T I,

1953, 1978), que buscou fazer um trabalho no

é agora um dado óbvio no princípio lex orandi,

sentido inverso, a partir dos hvros de culto e ma­

lex credendi (a maneira em que uma pessoa ora

nuais posteriores seguindo em direção aos dados

manifesta as suas crenças). Os dados ilustrarão

mais fragmentários e debatidos. Como técnica,

amplamente essa hgação à medida que apresen­

isso pode até ser defensável, mas dá aos leitores

tarmos as evidências que estão sendo analisadas

a falsa impressão de que a adoração cristã se de­

de acordo com os ramos ou as linhagens geográ­

senvolveu de modo hnear e que nos permite por

ficas hipotéticas. A funcionalidade dessa abordagem, espera­

isso rastrear as linhas de desenvolvimento com

mos, ficará clara, e seu benefício há de ser per­

segurança irrestrita.

cebido, uma vez que ela impede o tratamento 2. Método e abordagens

simphsta dado aos livros do

Não obstante, o mérito da abordagem de Lietzmann

ou em seqüência canônica. Uma abordagem al­

nt

isoladamente e/

foi que ela conferiu o respeito necessário às

ternativa poderia ter sido seguir a orientação de

origens dos padrões de adoração nas diferentes

H.

áreas geográficas de onde os livros de culto pro­

ou Unhas de desenvolvimento que eles propõem,

Koester e de J. iVI. Robinson, com as trajetórias

cediam, usando uma técnica que W. Bauer tam­

ao passarmos cada aspecto das práticas de ado­

bém empregou no mesmo período em que veio ã

ração analisadas e observarmos, por exemplo,

luz a obra de Lietzmann

em 1934; Messe

como o batismo era entendido a partir de seus

und Herrenmahl, de Lietzmann, em 1926). Em­

começos cronológicos na(s) igreja(s) pós-Pente-

bora a abordagem de Bauer e de Lietzmann esteja

costes até as congregações do século ii de Inácio,

(B

auer,

e

de Justino e dos conventículos marcionitas. Esse

a crítica diminui quando se per­

método bem poderia servir aos interesses dos

cebe que uma apreciação semelhante da expan­

leitores, não fosse a possível impressão equivo­

são geográfica está por trás das obras de

cada que deixaria de que as observâncias litúrgi-

sujeita a críticas em vários aspectos (v. T.

A.

R

o b in s o n ) ,

T

urner

B.

H.

Streeter. Não há como negar que o cristianismo

cas primitivas se desenvolveram num sistema de

primitivo se expandiu através de áreas-chave do

evolução contínua. A verdade, antes, é que em

mundo antigo, desde o Levante Sírio, passando

geral as condições locais que surgiam em regiões

por grandes centros e até áreas remotas e pou­

diversas e distintas forneciam pontos de pressão

co desenvolvidas das províncias greco-romanas,

que determinavam o crescimento ou a formação

incluindo-se Roma.

anômala da adoração tanto quanto do surgimento 45 I

de “heresia e ortodoxia”. Foi assim até aparecer o

especial, a necessidade de consolidação da ig r e j a ,

chamado “cristianismo normativo” (para usar a

agora denominada “coluna e ahcerce da verda­

nomenclatura de Hultgren), que passou a ser do­

de” (ITm 3.15), fica evidente diante de novas

minante e foi considerado como tal à luz das de­

doutrinas, e seu testemunho precisa ser salva­

clarações embrionárias dos credos incorporadas

guardado contra falsos mestres que negam a res­

às tradições e à regula fidei a partir de meados ou

surreição futura. Assim, nas confissões batismais

fins do século ii. Em cada caso, os itens aprecia­

(2Tm 2.11-13; Tt 3.4-7), às vezes prefaciadas pela

dos como normativos tomaram forma no cenário

fórmula “Esta palavra é fiel” , e em hinos cristo-

cultural do lugar geográfico, bem como sob as h-

lógicos (e.g., ITm 3.16, introduzido por “Sem dú­

mitações dos problemas locais e de suas soluções.

vida”), 0 evangelho pauUno é reafirmado como merecedor de toda aceitação (ITm 1.15). Isso

3. O legado paulino

é acompanhado pelos ensinos cardinais de um

As contribuições ao tema provenientes da cor­

único Deus e mediador (ITm 2.5-7), conhecidos

respondência de Paulo com suas congregações já

como a forte convicção de Paulo. A linguagem

foram observadas em outra parte deste dicionário

de oração judaico-cristã está espalhada por essas

(v.

cartas (e.g., ITm 1.17), em parte para demonstrar

a d o r a ç ã o / c u lto

ii) .

Em resumo, essas caracte­

rísticas singulares estavam relacionadas à neces­

os fortes laços da igreja com suas raízes, e em

sidade de regular o uso dos dons espirituais numa

parte para reafirmar a crença judaica na bondade

situação como a de Corinto, que se tornara caótica

da criação de Deus, que é santificado pela oração

e desenfreada. A resposta de Paulo assume a for­

com base em Salmos 24.1 (ITm 4.4,5).

ma de uma reiteração prática da tensão entre os

Os ensinos batismais de Colossenses-Efésios

elementos “já” e “ainda não” da salvação cristã.

deram origem a debates, principalmente sobre a

Os crentes estão agora no domínio de Deus, onde

questão de se eles divergem ou não da distinção

o senhorio de Cristo é reconhecido na adoração

cuidadosa de Paulo, como vimos, entre o que é

(ICo 12.3). IVIas a plenitude da redenção deles

real agora (estamos sendo salvos) e a esperan­

está situada no futuro, na parusia, quando o reino

ça futura (seremos salvos — na esperança da

definitivo de Deus será estabelecido (ICo 15.28).

parusia, Rm 5.9,10; 6.1-14). Colossenses ressal­

A exclamação de adoração “Deus está entre vós”

ta a posse presente da

(ICo 14.25) precisa ser ouvida nesse contexto, de

reconciliação (Cl 1.21,22) por meio do hino.de

salvação

(Cl 1.12-14) e da

modo a unir a realidade da salvação presente com

Colossenses 1.15-20, inserido para celebrar a

sua necessária futuridade, no tempo do fim, que

integralidade da restauração do Universo à har­

introduzirá a r e s s u r r e iç ã o dos mortos (ICo 15.42).

monia com a vontade do Criador e a pacificação

No ínterim da vida da igreja, “entre os tempos” ,

dos poderes do mal (Cl 2.15). Os crentes passam

as ênfases de Paulo giram em torno de um exer­

a desfrutar dos benefícios do triunfo cósmico de

cício de amor e gratidão pelos atos de Deus em

Cristo no batismo (Cl 2.12,13), sem nenhuma

Cristo e o chamado altruísta para edificar o corpo

cláusula escatológica explícita sobre o que ainda

de crentes (ICo 14.3,12,17,26; ICo 12.7).

aguarda conclusão na parusia. Mas a esperança

Essas mesmas ênfases, intrepidamente ob­

escatológica, embora sUenciada, vem soar em

servadas em sua correspondência aos corintios

Colossenses 3.3, de modo que se pode afirmar

(v.

C o r in t io s , C a r t a s

aos) ,

aparecem em escritos

com justiça que Colossenses reflete a verdadeira

posteriores de Paulo, sejam estes considerados

tradição paulina nesse aspecto.

suas últimas reflexões numa prisão romana perto

Menos segurança é gerada, no entanto, no

do fim de seus dias, ou sejam eles tidos como o

caso de Efésios. Aqui o cenário batismal implícito

legado do apóstolo a seus seguidores, os quais

de Efésios 1.13,14, em que “ selados com o Espí­

por sua vez publicaram cartas às igrejas que se

rito” se tornou a forma abreviada de se referir ao

diziam fundadas por Paulo, em Colossos, em

batismo de uma pessoa

Éfeso e nas cercanias (v.

aos;

de fato para a posse futura da salvação, parece

. Como seria de esperar, há no­

antes situar a esperança da igreja no presente

vas ênfases quando novas situações surgem. Em

(Ef 2.1-10; 5.14) e refletir o desvanecimento de

E f é s io s , C a r t a

aos)

C olo ssenses, C a r t a

46

(L

am pe),

embora aponte

a do ra çã o / culto

lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

uma parusia iminente. A igreja já está elevada nos

voz que lhe permita falar ao presente dele. Os su­

lugares celestiais (Ef 2.6), onde o Cristo reinante

cessivos quadros da igreja em adoração traçados

já começou seu reinado (Ef 1.22,23, um fragmen­

por Lucas são organizados para realçar uma men­

to de credo, acredita-se). Esse nobre poema em

sagem; o cuho em sua igreja precisa recuperar

prosa celebra o senhorio de Cristo em termos su­

os destaques e as características que marcaram a

blimados e hieráticos, extraídos das expressões

primeira geração, com o poder do Espírito Santo

de adoração das igrejas asiáticas. Tal echpse do

em evidência (At 4.31; 13.1-3), dando margem a

desenlace apocalíptico, associado ao retorno de

grande liberdade e alegria (At 2.46,47) e fidelida­

Cristo dos céus, pode ser explicado pela finali­

de às normas apostólicas (At 2.42).

dade singular de Efésios, caso seu propósito seja

A iniciação na vida da comunidade se dá por

mais doxológico que edificador ou polêmico. As

meio do batismo — baseado em lavagens ritu­

nuanças da hnguagem litúrgica deram origem à

ais praticadas nas diferentes vertentes do juda­

ideia da igreja como triunfante e transcendente

ísmo, tanto as tradicionais quanto as sectárias

em sua glória celestial agora, e de fato já tomando

(Qumran, terapeutas) — em nome de Jesus

seu lugar na confissão no credo (Ef 4.4,5), como

(At 2.38). Essa foi uma prática que se espalhou

se a igreja professasse fé em si mesma — um pre­

com a disseminação da mensagem para a recep­

cursor da frase no Credo apostólico (“ Creio [...]

ção de discípulos em Samaria (At 8.12), em Cesa-

na igreja una, santa, católica e apostólica...”) — e

reia (At 10.47,48) e em Damasco (At 9.18 e par.),

tivesse seu lugar na história da salvação segura­

bem como nas regiões mais remotas e não espe­

mente fundamentado sobre uma verdadeira base

cificadas, como a faixa de Gaza (At 8.36; At 8.37,

apostólica (Ef 2.20; 3.5).

marg., no texto ocidental, oferece um relato mais detalhado do interrogatório e da resposta batis­ mais). A iniciação “em nome” de Jesus (Cristo)

4. Evidências da Síria-Palestina 4.1

Jerusalém. Não é fácil distinguir nos da­ tinha por objetivo evidente confessar que ele era

dos e nas características apresentados em Atos

o cabeça messiânico da nova comunidade, além

entre o que são relatos históricos objetivos da

de declarar o lugar que cada pessoa ocupava nes­

vida e da prática eclesiásticas na cidade e na Ter­

se grupo messiânico como sinal da nova era ins­

ra Santa, estendendo-se até mesmo ã província

taurada por Jesus. Além disso, existe bem pouca

da Síria, de Damasco até Antioquia (At 8.1; 9.19;

teologização sobre o batismo, embora Atos 19.1-7

11.19-29; 13.1-3), e o que são tentativas conscien­

aponte os problemas associados a grupos que co­

tes de Lucas de idealizar as cenas em prol das

nheciam apenas o batismo de João. Se Atos 10

próprias concepções teológicas. Talvez a verdade

(batismo e recepção do Espírito na casa de Corné-

se encontre numa posição intermediária. Partindo

lio) tem por objetivo sinalizar o Pentecostes dos

do pressuposto de que o propósito do escrito

gentios (cf.

de Lucas era a edificação (como quer

aench en,

1975, p. 154-6), então o batismo dos discípulos

p. 33), seria natural supor

de João acompanhado de imposição de mãos e

p. 103-10;

M

ar sh all,

H

L am pe,

cap. 5;

D

unn

,

1970, p. 80-2;

que o autor relembra os primeiros dias da igreja

dos dons de línguas e de profecia pode muito

não de maneira nostálgica, mas com o propósito

bem ser para os leitores de Lucas uma indicação

de chamar a atenção para algumas hções aphcá-

de como os “ discípulos” se tornam crentes plenos

veis à igreja dos dias dele. Ele conta a história

em Jesus como Senhor.

com base no relato confiável de testemunhas ocu­

De modo mais imediato e evidente, o regis­

lares, às quais confere o devido crédito (Lc 1.1-4;

tro de Atos apresenta quadros representativos da

At 1.1), a respeito de como eram as coisas nos

vida de adoração/vida comunitária em Jerusalém

primórdios, quando o Espírito desceu pela pri­

(sobretudo em At 2.41-47; 4.32-35) na qualidade

meira vez sobre a nova

de Deus. Ele faz

de cenas ideais, com o propósito de desafiar e

soar o lema do ad fontes-, de voha à nascente,

repreender a perda posterior da “ simphcidade

aos primeiros momentos da igreja, mas age as­

apostólica”. As características marcantes da pri­

c r ia ç ã o

sim na intenção de trazer à memória o passado,

meiríssima comunidade imediatamente após a

à medida que o reconta, para emprestar-lhe uma

experiência do Pentecostes, na qual irradiava a 47 I

A U U K A Î^A U /L U L IU 111. M l U b , n t B K t U S , L.A R T A S O E R A Î S , A P O C A L I P S E

alegria do Espírito (At 2.26 baseado em SI 16.8-11;

jaz] ressuscite” , assim invocando a Jesus como

cf. At 2.46), incluem acima de tudo o tema do

Senhor da ressurreição (segundo

louvor exultante, seja o local para essa manifes­

NTS, V.

B.

G u s t a fs s o n ,

3, p. 65-9 [1956-1957]; no entanto, essa

tação 0 próprio templo (At 3.1-10), ou as resi­

interpretação dos rabiscos ainda é contestada; v.

dências de propriedade particular (At 1.3; 2.46;

J. P.

9.11,36-43; 10.1-8,24; 12.12). Faziam-se orações

palavra composta, devendo quase certamente ser

pedindo orientação (At 1.23-25) e coragem diante

desmembrada em mãrana ta

das ameaças e perigos (At 4.23-31), embora a re­

significado “ Nosso Senhor vem”, denotando as­

ferência a “orações” (At 2.42) faça supor que se

sim uma oração de invocação ao Senhor (i.e., Je­

mantinham ligados à liturgia judaica do templo

sus) para que se fizesse presente ou na eucaristia

(D

ugm ore).

K a n e , peq ,

(C u llm a n n ), o u

p. 103-8, 1971). Maranata é uma com o

(F it z m y e r ),

no tempo do fim. As evidências

O “ensino dos apóstolos” tem sido considera­

em torno dessa questão estão bem equiUbradas;

do normalmente um sinal de instrução catequé­

Didaquê 10.6 faz parte de uma liturgia de refei­

tica primitiva, ao passo que a “comunhão” deve

ção, ao passo que Apocalipse 22.20 ( “Amém.

ser uma referência generalizada à vida comum

Vem, Senhor Jesus!”) parece ser uma variante de

ou, mais especificamente, às contribuições mate­

maranata e tem contornos escatológicos. O cená­

riais esperadas, mas não exigidas, de cada mem­

rio talvez não seja exclusivamente um ou outro;

bro (At 4.32; 5.1-11; J. Jeremias chegou a crer que

o que conta é a existência de um culto, ainda que

At 2.42 se referia às ofertas como koinõnia, mas

rudimentar, no qual o Cristo ressurreto é invoca­

acabou mudando de ideia; v.

C u llm

ann

,

p. 120).

O “partir do pão” é uma expressão judaica rela­

do em oração, prefigurando assim invocações e hinos posteriores e mais desenvolvidos.

cionada às refeições, presumivelmente um acon­

Se estamos certos em fazer constar no rol de

tecimento social em comunidade, no qual uma

representantes do cristianismo judaico primitivo

refeição era compartilhada e consumida em sinal

as cartas de Tiago e Judas, o quadro pode en­

de amor mútuo (daí o nome agapê-, v. Jd 12, em

tão ser ampliado. A Carta de Judas é famosa por

que mestres intrusos “corrompem” essas reu­

seu desfecho litúrgico grandiloquente (Jd 24,25).

niões comunitárias; 2Pe 2.13, se a leitura for

Essa característica nos permite um vislumbre

agapais, não apatais; v.

1983; In, Es,

da maneira em que a oração cristã correspon­

8.2; Atos de Paulo e Tecla 5 e 25, que comprova

deu à necessidade humana numa das primeiras

Bauckham ,

essa prática ainda em décadas posteriores). Se

cartas do

Didaquê 9— 10 apresenta o texto das orações fei­

(B

tas nas ceias de amor (v. 4.2 abaixo), pode se ter

nesses dois versículos correspondem exatamente

auckham

nt

).

,

oriunda do cristianismo palestino

As expressões idiomáticas da oração

aí a explicação de como essas refeições especiais

à necessidade percebida pela comunidade, uma

eram compreendidas, e a maneira em que o ága-

vez que estava exposta aos perigos dos intrusos

pe funcionou como uma espécie de prelúdio da

antinomianos (Jd 4) e à ameaça de apostasia

posterior eucaristia solene do sacrifício do Senhor

em relação a uma fé comum (Jd 3,22;

(Di, 14.1) fica evidente, talvez exphcando a asso­

C

ciação que se faz em ICoríntios 11.17-22 com um

representada pela família sagrada (Jd 1) e pelas

hester,

M

a r t in

&

p. 80-1). Os elos com a herança davídica

rito preparatório de compartilhamento, preparan­

tradições catequéticas dos apóstolos (Jd 17) mos­

do o caminho para a refeição pauhna solene de

tram afinidade com a situação refletida na Dida­

ICoríntios 11.23-26.

quê. A função de ensino exercida pelos profetas e

Cumpre fazer uma menção especial à oração

líderes era o baluarte contra algumas influências

de invocação maranata (encontrada sem tradu­

de pessoas que se vangloriavam de experiências

ção, em sua forma aramaica, em ICo 16.22; Di,

extáticas e da confiança na inspiração espiritual

10.6). Pode se afirmar que aqui temos o mais

imediata (Jd 8;

antigo exemplar de oração que possa ter sobre­

M

a r t in

& C hester,

p. 83-4).

É bem provável que a Carta de Tiago in­

vivido, com uma única exceção possível: uma

corpore tradições judaicas anteriores

inscrição num ossário encontrado em Jerusa­

que remontam a comunidades palestinas. Tais

lém com a frase “Jesus, [que aquele que aqui

tradições e ensinos podem ter sido levados a

I 48

(D

a v id s ) ,

ad o r a ç â o / culto hi:

A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

Antioquia da Síria, onde um editor os transfor­

(Tg 5.12-20). Ainda assim, os três documentos

mou na carta que hoje temos em mãos, com

com certeza compartilham elementos comuns

seu excelente grego e seus floreios Uterários.

(cf.

As práticas Utúrgicas talvez reflitam esse cená­

das logia (declarações do Senhor; Q; v.

rio duplo e incluam forte realce na oração feita

podem ser justificadamente situados nas congre­

com fé (Tg 1.6), especialmente no caso de se

gações da mesma região geográfica, a saber, ao

desejar a cura de alguém quando os presbíteros

redor de Antioquia, às margens do Orontes.

Sh eph erd ,

1956), e os três, associados

à

fonte

M a r t in ) ,

estivessem orando (Tg 5.13-16), uma vez que

Para nossos propósitos, podemos ressaltar

estão presentes a confissão e o perdão, e o óleo

alguns elementos da vida de adoração dessas

é aphcado (sobre a possível importância do uso

comunidades.

do óleo aqui, v.

1993, p. 124-6). A igre­

1) Confere-se muita importância ao papel do

ja tem um honroso papel de ensino (Tg 3.1-12),

mestre, que deve ser honrado (Mt 13.52; Di, 4.1-4;

M

a r t in ,

com possíveis indícios de falas extáticas como

13.2; 15.2; Tg 3), com a devida advertência de

causadoras de problemas

que ninguém aspire ao ofício de modo precipita­

(M

a r t in ,

1988, p. 103,

123-4). 0 “bom nome” (Tg 2.7) é aquele invo­

do (Mt 23.1-12; Tg3.1).

cado no batismo. E apresentou-se como pos-

2) O batismo é ministrado no nome trino e

sibiUdade que Tiago 2.2,3 se refira de modo

uno, num desenvolvimento diferenciado em rela­

velado à presença de um porteiro de igreja/sina­

ção à iniciação em nome do (Senhor) Jesus pre­

goga, conhecido na igreja posterior como ostiário (C

a b a n is s ,

4.2

1954, p. 29).

sente em Atos (v. Mt 28.18-20; Di, 7.1-3; Tg 2.7 pode estar fazendo uma alusão ao batismo quan­

Antioquia da Síria. É mais vasto o do usa a expressão “bom nome” , atribuído aos

material associado à parte norte da Síria-Pales-

crentes messiânicos).

tina. Se pudermos fundamentar em descobertas

3) Orações formuladas com linguagem e ex­

recentes nossas suposições acerca dos documen­

pressões idiomáticas tomadas diretamente da

tos pertinentes dessa região, então os livros do

adoração na sinagoga judaica (Mt 6.7-13, que in­

nt

incluirão a versão editada de Tiago e do Evange­

corpora a oração “pai-nosso”; v. C h a r l e s w o r t h ) são

lho de Mateus, aos quais podemos acrescentar a

apresentadas na Didaquê (8.2,3) na forma em que

Didaquê e as cartas de Inácio. Quando se alistam

aparecem em Mateus, com instruções para que

esses escritos cristãos, é interessante observar

se ore dessa maneira três vezes ao dia. Em Tia­

que os primeiros três se unem por pelo menos

go 1.13-16, o uso da oração é tratado como uma

uma característica compartilhada: dependem ou

questão pastoral. Todos os documentos realçam

fazem citações dos oráculos/ensinos do Senhor,

a função da oração coletiva baseada no papel de

que a pesquisa atual tem identificado como “a

Deus como Pai celestial (Mt 5.16; 6.9; 16.17; Di,

fonte comum” dos Evangelhos Sinóticos, a saber,

9.1; 10.1; Tg 1.17,27; 5.13-18), com um destaque

Q. Antioquia foi identificada desde o tempo de

especial conferido à necessidade de perdão e de

Streeter como o lugar mais provável em que essa

confissão mútuos, o que conduz a reconciUação

compilação das declarações do Senhor foi coligi­

e absolvição (Mt 5.21-26; 6.12,14,15; 18.21,22,35;

da e utilizada. Os três documentos principais não

Di, 1.4; 2.7; 4.3,4; 14.1-3; Tg2.8; 4.11; 5.16,19,20).

pertencem à mesma categoria literária. Mateus

O jejum é um símbolo de adoração verdadeira,

compartilha do gênero “evangelho” (Mt 1.1).

junto com as esmolas (Mt 6.1-4,16-18; Di, 1.5,6;

A Didaquê faz as vezes tanto de regulamento

4.5-8; 7.4; 8.1-3; 13.3-7; Tg 1.27; 2.15,16 sobre a

eclesiástico quanto de “manual de disciplina”,

contribuição aos necessitados).

e comuns

4) A confissão de fé no único Deus (marca do

conhecidas como as Duas Vias (ou Dois Cami­

cristianismo judaico extraída do Shemá do judaís­

nhos; Di, 1—6; Bn, 18—20). Tiago normalmente

mo, Dt 6.4) está presente em todos esses docu­

é classificado como uma miscelânea parenética

mentos (Mt 19.17; 22.37; 23.9; Di, 6.3 contra a

incorporando tradições primitivas

(D

ib e l iu s ,

p. 3), mas recebeu acabamento editorial

idolatria; Tg 2.19).

para se adaptar ao gênero retórico de “epístola” ,

5) Chama-se atenção especial à observância

com abertura (Tg 1.1) e desfecho típicos de carta

do culto eucarístico baseado nas palavras da

49 I

ADORAÇÃO/CUITO iii: A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

Última Ceia registradas em Mateus 26.26-29 (v.

tradição judaica, nas quais o Jesus de Mateus te­

CEIA DO Senhor). Em geral, essas declarações do­

ria inserido matizes de seu sacrifício expiatório.

minicais conferem com a redação de Marcos, com

Didaquê 14 ecoa esse aspecto, embora de manei­

a importante exceção de que a palavra “cálice” é

ra empalidecida, em sua alusão a sacrifício/ofer­

ampliada, vinculando o “sangue da aliança” , re­

ta, extraída de Malaquias 1.11,14.

presentado pelo cálice, com o perdão dos pecados

6)

Na forma dialógica das orações de Dida­

( “derramado em favor de muitos para perdão dos

quê 10.6, está a pequena estrofe acompanhada de

pecados”). Tem se aventado, por motivos teoló­

resposta:

gicos, uma vez que a remissão de pecados era evidentemente uma questão premente na comu­

Que venha a graça, e que este mundo passe.

nidade mateusina, que o Evangelista transferiu a

Hosana ao Deus de Davi.

promessa de perdão, presente na versão apresen­

Se há alguém santo, que venha!

tada por Marcos sobre o papel de João Batista

Se não há, que haja arrependimento!

(Mc 1.4; cf., no entanto, Mt 3.4-6), para a ver­

Marana tha [nosso Senhor, vem!]!

são que ele mesmo, Mateus, apresenta da Última

Amém.

Ceia. Teria agido assim para relacionar o perdão mais de perto com a morte iminente do Senhor

A estrutura faz supor um chamado ao auto-

(v. Cristo, morte de). Os temas sacrificais pre­

exame (já a mesa está “vetada” em Di, 9.5, dt.

sentes no relato que Mateus faz da Última Ceia,

Mt 7.6) antes da refeição congregacional, ã se­

no Cenáculo, conferem com Didaquê 14.1-3,

melhança dos preceitos que Paulo dá a entender

que seria mais bem interpretado como uma re­

em ICoríntios 11.27-34 e 16.22,23 (v.

ferência à eucaristia dominical da igreja, numa

1969; J. A. T.

contradistinção ao ensino expresso nas orações

diálogo é a imediação do juízo/convite e das bo­

de Didaquê 9— 10, passagem mais conveniente­

as-vindas, que brotam da presença do Senhor no

mente explicada como uma referência à refeição

meio de seu povo. Ele vem encontrá-los e saúda

ágape. Elas não contêm nenhuma alusão ã morte

os penitentes, oferecendo no mesmo instante sua

do Senhor (a menos que “pão partido” , klasma,

graça, num prelúdio de sua vinda no último dia

R o b in s o n ) .

Bornkamm ,

0 que se percebe nesse

faça essa associação, porém é mais provável que

[Di, 16.7,8, observando Mt 24.30), nota escatoló­

tenha sido extraído do contexto não eucarístico

gica que soa em Mateus 26.29 e é freqüente em

de Jo 6) e são modelados segundo as orações ju­

Tiago 5.7-11. Mas é a consciência do Senhor vivo

daicas feitas à mesa [birkath hammazon; quanto

no meio dos seus que mostra como os cristãos

a esses exemplos de graças após as refeições, v.

sírios captaram a essência da adoração primitiva

p. 9-10), apesar de a celebração

como um encontro com o Cristo ressurreto que

ser intitulada eucharistia na Didaquê (9.5). Um

vem se encontrar com os que estão reunidos em

Jaspe r &

C

u m in g ,

dado convincente acha-se também na Didaquê

seu nome (Mt 18.20; 28.20; uma variante encon­

(“Mas depois que se encherem [de comida]...” ,

tra-se em Ev To, 30, cf. 77), uma vez que a ex­

10.1), o que sugere que as refeições em vista em

clamação que fazem a ele é: “Hosana” ; ou seja:

Didaquê 9— 10 têm o propósito de satisfazer a

“Salva agora” ! “Bendito o que vem em nome do

fome natural, não servir de lembrete sacramental.

Senhor! Hosana nas alturas!” (Mt 21.9).

A questão, no entanto, ainda não está resol­ vida (v.

p. 18-25; em

Inácio de Antioquia, em sua declaração au­

1992,

torizada, vale-se de maneira exata da percepção

p. 132-7, encontramos uma sinopse das opi­

que acabamos de mencionar: “Onde quer que Je­

S raw ley,

B radshaw ,

niões). As conclusões mais seguras são que tan­

sus Cristo esteja, ali está a igreja universal” (In,

to 0 Evangelho canônico quanto a Didaquê são

Es, 8.2), como que para realçar o caráter irrestri­

dados experimentais para as raízes profundas da

to do Senhor ressurreto, que vem unir-se a seu

liturgia na teologia aUancística judaica e que os

povo enquanto este canta seus hinos por meio

padrões da comunhão à mesa e das celebrações

de Cristo ao Pai (In, Ef, 4.2) e reconhece que ele

solenes têm associação íntima com o culto da

está habitando neles (In, Ef, 15.3) como mem­

sinagoga e com as graças proferidas à mesa na

bros do Filho de Deus (In, Ef, 4.2). A descrição

I 50 I

ad o r a ç ã o / culto iii :

anterior (In, Ef, 4) oferece o belo quadro de uma

A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

planetárias também se uniriam em coro (In, Ef,

assembleia cristã em que, “por vossa concórdia e

19.2), desde que vinculemos o texto com a Carta

harmonioso amor, Jesus Cristo é cantado”, com

aos romanos (de Inácio), 2.2: “Vocês formam um

a sua sugestão de que Cristo não é somente o

coro de amor ao cantar ao Pai em Cristo Jesus”.

mediador, mas também o objeto do louvor hínico (assim em K r o l l , p. 19;

Um tributo a Cristo semelhante a esse, com

1924, p. 204). Con­

contornos confessionais, é oferecido como parte

siderando que Inácio está mencionando aspectos

da polêmica antidocetista de Inácio (e.g., em In,

Bauer,

da liturgia — sobretudo o uníssono, a harmonia,

Tr, 9.1,2; cf. In, Es, 1.1— 3.3), que também pode

o tom correto na música [eine Tonart, segundo

ser formulada em forma de versos (por

N

orden,

p. 127) — para ressahar a necessidade

p. 266). Esse texto cristológico repassa os prin­

de unanimidade na igreja e da união de todos

cipais acontecimentos da vida de Cristo: nasci­

na retaguarda em apoio e submissão aos líderes

mento, carreira terrena, condenação “ sob Pôncio

D

õ lg er,

eclesiásticos (In, Ef, 5.3), ainda assim fornece al­

Pilatos” (alusão ao Credo apostólico), morte na

guma confirmação da centralidade de Cristo nos

cruz (atestada por todas as potestades, celestiais

quadros de adoração que apresenta.

e demoníacas, Fp 2.10 em Paulo, exatamente com

Os exemplares da hinódia inaciana são vistos em Efésios 7.2

as mesmas palavras) e ressurreição. Todos esses

p. 20, destaca os matizes

acontecimentos são hgados pelo advérbio “ver­

semíticos, o estilo grandiloqüente, as frases an-

dadeiramente” e, por conseguinte, assentam o

titéticas e suas inter-relações para propor frag­

alicerce para a vida “verdadeira” na ressurreição

mentos de material hínico-credal; cf.

da igreja.

(K

r o ll,

N

orden,

p. 256-7). Assim lemos;

O apelo de Inácio às formas credais e hínicas obviamente revela uma tônica polemística. Ain­

[Há] Um médico,

da assim, esse apelo ilumina o modo em que ele

que é tanto carne quanto espírito,

concebia a adoração congregacional nos centros

nascido, mas não nascido.

aos quais escreveu. Seu grande temor era que as

Deus em homem, vida verdadeira na morte,

igrejas se tornassem fragmentadas e se dissipas­

tanto de Maria quanto de Deus,

sem por cismas. Por isso, seu chamado é para que

primeiro, sujeito ao sofrimento,

se agrupem em volta do bispo e de seus oficiais

depois, impassível,

(In, Fp, 3.1-3), o que o leva a promover o papel

Jesus Cristo, nosso Senhor (In, Ef, 7.2.)

crucial da eucaristia a foco central da igreja, sen­

Esse padrão antitético ocorre também na ho­

Es, 8.1,2; In, Po, 6.1,2). Além do mais, a euca­

do o episkopos o ministrante indispensável (In, milia de Melito e é ampliado na Carta aos efé­

ristia para Inácio agora assume uma importância

sios, de Inácio, no capítulo

que expõe sobre

praticamente mágica, o que se vê com mais clare­

(na mesma carta), em que

za em sua Carta aos efésios, 20.3, que a denomi­

o “ silêncio” de

15.2

19,

três mistérios foram realizados: a virgindade de

na “o remédio que leva à imortalidade, o antídoto

Maria, o fato de ela ter dado à luz e a morte do

para que não venhamos a morrer, mas possamos

Senhor. Ele foi revelado às “eras”

(B u ltm a n n , v . 1,

viver para sempre em Jesus Cristo”. Além disso, é

e, na aparição de sua estrela natahna, que

possível que as limitações dos falsos ensinamen­

iluminou os céus com brilho indescritível e atraiu

tos, que por sua vez conduziram à rebelião contra

p.

177)

a veneração das constelações, dentre as quais o

“o bispo e o presbitério” , tenham levado Inácio a

Sol e a Lua, nasceu a nova era. “Quando Deus

esse ensino sobre a eucaristia, redigido de modo

apareceu em forma humana para trazer a novida­

tão intenso, uma vez que a frase é introduzida

de da vida eterna” , todo o cosmo foi afetado: os

com um novo chamado à unidade com base no

antigos poderes astrais (demoníacos) foram der­

“partir um pão” (cf. ICo 10.17, em Paulo).

rotados e a própria morte foi vencida.

Quando Inácio escreve sobre práticas de ado­

Essa celebração da vitória e do remado de

ração, principalmente batismo, confissão, fórmu­

Cristo evidentemente tinha por objetivo ser en­

las credais e eucaristia, é difícil saber se ele está

toada como veneração, quando as potências

se referindo a tradições comuns em Antioquia,

I 51

A U U K A íj A U / C U L íU H l. r t l U i ,

R t B K t U i , U A K I A S O t K A I S , M P U L A L Ih ^ Sb

onde era bispo, ou nos vários centros pelos quais

3)

0 cenário de Atos 20 sugere uma programa­

passou ou aos quais enviou delegações. Podemos

ção em duas partes: discurso público (por Pau­

supor algumas práticas cultuais comuns, uma

lo) e refeição (At 20.11), com mais discurso na

vez que essas alusões são para ele a base de seu

sequência. Essa inter-relação entre sermão e sa­

apelo, tudo inserido numa estrutura trinitária (In,

cramento serviu de base para o desenvolvimento

Mg, 13.1), tipificando o ministério clerical tríplice

posterior da hturgia da Palavra seguida da htur­

(bispo, presbítero, diácono).

gia do Cenáculo [a “grande sala mobiliada”, a 2 i ] , Uma das ilustrações mais claras desse ritmo em

5. O eixo Roma-Ásia Menor

dois tempos é, por sinal, fornecida em Justino,

É interessante que os parâmetros desta seção

que assim nos informa: “ São lidas as memórias

sejam definidos por duas cenas que oferecem,

dos apóstolos ou os escritos dos profetas. [...]

primeiro, uma representação da adoração primi­

Quando o leitor termina a leitura, aquele que pre­

tiva na Ásia Menor (At 20.7-12) e, quase um

side o discurso insta [conosco] e [nos] convida

século mais tarde, uma descrição mais detalhada

a imitar essas coisas nobres. [...] E, como disse­

de como a adoração era entendida em Roma por

mos antes

volta de 150 d.C.

Ap I, 167). Embora es­

do pão e de um cáhce de água e vinho, a respeito

ses dois relatos estejam separados pelo tempo e

dos quais oferecem-se orações de agradecimento,

(J u s t i n o ,

[J u s t i n o ,

Ap I,

65,

refere-se

à

entrega

por antecedentes distintos, são significativos os

sendo tido por consagrados e depois comparti­

elementos que partilham.

lhados e distribuídos aos ausentes], quando fi­

1) 0 tempo é o “primeiro dia da semana” ,

nalizamos a oração, o pão é trazido, com vinho

mais tarde vindo a ser conhecido como “o dia

e água”, seguido de orações e da oferta. Justino

chamado domingo”

(J u s t i n o ,

Dl Tr, 41.4; 138.1).

Bamabé (15.3-9) apresenta o raciocínio teológico

resume: “Todos realizamos essa reunião santa no domingo”.

por trás dessa mudança do sábado para o dia se­

A absoluta simphcidade desses detalhes cap­

guinte, “o oitavo dia”, quando Jesus ressuscitou

ta algo dos ingredientes básicos da adoração no

e se manifestou, ascendendo aos céus, assim rei­

período por volta de 50-150 d.C., com as devidas

vindicando para si o dia da celebração (Ap 1.10;

variações que são características de cada parte do

Di, 14.1; Ev Pe, 12.50) como o Senhor ressurreto

eixo Roma-Ásia Menor.

que saudou seu povo numa refeição eucarísti­

Para o que se desenvolveu na Ásia, precisa­

ca dominical, de acordo com as evidências dos

mos nos voltar para os escritos joaninos. Mas

Evangelhos (Jo 20.19; Lc 24.30,41-43; cf. At 1.3,4;

0 testemunho presente nas cartas cognatas de

R

ord o rf,

1992;

M

Colossenses-Efésios, no corpus paulino, deve

cK ay) .

2) A natureza da comunidade reunida é en­

constar de qualquer estudo sobre a adoração e

tendida como uma “reunião” {synêgmenõn em

como era praticada nas igrejas fundadas por Pau­

Atos 20.7, forma verbal [“reunimo-nos”] da qual

lo. Colossenses 3.16,17 (par. Ef S.19,20) fornece

se origina o termo “sinagoga”; cf. Tg 2.2; Hb 10.25

evidência de assembleias congregacionais que se

quanto a esse verbo/substantívo), quando pes­

reuniam para se admoestar mutuamente com ins­

soas se encontram, com ênfase mais no ato de se

trução (“em toda a sabedoria”; cf. ICo 12.8 quan­

associarem que num edifício ou espaço consagra­

to a “palavra de sabedoria” como um carisma

do. Nessa época, os cristãos se encontravam em

espiritual), com hinos entoados (evidentemente

congregações reunidas em casas. As estruturas es­

composições cristológicas), com salmos (talvez

peciais devem ser datadas no século iii ou iv, sendo

extraídos do Saltério hebreu ou dos cânticos ju-

o exemplo mais antigo e mais bem documentado

daico-cristãos) e com “cânticos espirituais” (cf.

0 de Dura-Europos, na Síria, por volta de 256 d.C.

Od Sa, 14.7). Todos esses tributos tinham por ob­

. Mas o formato e a natureza da adoração

jetivo manifestar gratidão a Deus, e assim faziam

(H

o p k in s )

na sinagoga (v.

com uma abordagem mais

parte do gênero hodayah/eucharistia, que, assim

foram transportados para a

sustenta Bradshaw (1982, p. 30-7; 1992, p. 44)

sinaxe (termo técnico para tal reunião, como a pa­

com certa plausibilidade, eram mais característi­

lavra dava a entender) cristã.

cos do cristianismo primitivo que o tipo berakah/

cautelosa em

M

M

o r r is ,

cK ay)

I 52

ADORAÇÃO/CULÍO lii: A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

eulogia. Manifestações de louvor ocorrem em Co­

credais (e.g., Ef 4.4-6) e amostras de discursos

lossenses 1.3,12-14, com uma versão mais longa,

em forma de oração, constituem sinais de que

mais refinada e mais bem elaborada em Efésios

essas cartas estavam imersas numa atmosfera li­

1.3-14, texto que apresenta o plano fundamental

túrgica. Tinham por objetivo ser hdas em voz alta

da história da salvação segundo uma estrutura

na assembleia reunida (Cl 4.16) e transmitidas a

trinitária

1992, p. 13-5). Na reahdade,

igrejas vizinhas, evidentemente em reuniões de

tem se acreditado que os primeiros três capítu­

adoração, quando seu apelo pastoral e didático

los de Efésios se basearam numa transcrição de

teria maior eficácia para gerar uma atmosfera de

louvor conhecida nas congregações da Ásia e

louvor e de exultação (esp. Efésios, como em ge­

celebravam os temas característicos do êxito do

ral nas bênçãos de abertura de Paulo; v.

evangelho paulino em rechaçar os desafios que

e para incentivar os ouvintes a que participassem

o afrontaram (cf. ITm 1.15), celebrando também

das reivindicações de verdade que faziam e, as­

0 papel crucial do apóstolo como seu principal

sim, as aceitassem.

(M

a r t in ,

propagador.

O ’ B r ie n )

Inácio, também refletindo o cenário da vida

Os exemplares hínicos são identificados sem

nas igrejas da Ásia, seguiu essa tradição de es­

nenhuma dificuldade nessas cartas. Colossenses

crever cartas. Como observamos, muitas de suas

1.15-20 evidentemente passou por uma revisão

alusões ã música, ao credo e à adesão aos ensinos

autoral, e é bem possível (se não provável) que

são citadas para repelir o que ele considerava erro

incorpore uma versão pré-cristã em louvor à re­

e pareciam ter em mente o quadro de igrejas em

denção gnóstica

adoração. Na reahdade, como entende H. Schlier

(K

asem ann,

1964: v. a crítica nos

comentários). Na forma em que a passagem se

(p. 48-9), a Carta aos efésios 4, de Inácio, mostra

encontra, ela proclama a reconciliação universal

que ele estava familiarizado com a representação

que se fundamenta na obra redentora de Cristo

que Paulo faz da igreja reunida para adoração no

(Cl 1.20) e inclui sua autoridade como cabeça

texto canônico de Efésios 5.15-21.

do corpo eclesiástico (Cl 1.18). Esses dois temas

Não é demais pensar que o regimento da

são importantes no uso polêmico que se faz de­

vida eclesiástica nas Cartas Pastorais, igualmen­

les, como se vê em Efésios 2.11-22 (incorporan­

te de procedência asiástica, pode ter conduzido

do, possivelmente, uma versão pré-paulina) e

à opinião defendida por Inácio de um governo

no ensino sobre o verdadeiro cabeça, quando se

estritamente hierárquico de bispos, presbíteros e

destrincha o papel de Cristo como noivo celes­

diáconos (v. ITm 3.1-3; Tt 1.7-9), apresentados

tial (Ef 5.32). Além do mais, Efésios 5.14 contém

como fiéis na manutenção da disciphna e no im­

uma das evidências mais claras da hinódia batis­

pedimento de qualquer desvio das normas apos-

mal nas igrejas da Ásia, com seu ritmo vivo e tro­

tólico-pauhnas, para isso inculcando um ensino

caico e com seus temas de parênese (exortação)

sadio e promovendo a adoração de maneira ade­

e aplicação ecoados no toque de despertar para

quada (ITm 4.11-16). As falsas crenças devem ser

que se prossiga na luz de Cristo, a qual primeira­

desmascaradas e denunciadas, devendo Timóteo

mente brilhou sobre o candidato ao batismo, que

recorrer às confissões de fé e às fórmulas credais da igreja (ITm 3.16, cuja frase introdutória é

é purificado nas águas (Ef 5.26). gêmeas,

um sinal do tributo cristológico que se segue,

temos contato com a vida vibrante de adoração

de características hínico-poéticas e composto de

que pulsava em todas aquelas comunidades ao

seis versos; 2Tm 2.11-13). A adoração funciona

Claramente,

nessas

duas

cartas

mesmo tempo que o(s) autor (es) enfrentava (m)

nas

ameaças ao apostolado de Paulo e ã autorida­

m^arca estabilizante, delimitadora de fronteiras

de na Ásia. 0 uso de expressões idiomáticas de

(v.

M

congregações acD o nald

),

dos

pastores

como

uma

cujo efeito é cerrar fileiras numa

cunho litúrgico (como “para o louvor da glória da

comunidade introspectiva. Esse corpo de htera­

sua graça”, Ef 1.6,12,14), recordações batismais

tura dá expressão a uma característica da igreja,

(em Cl 1.12-14; 2.11-14; Ef 5.26) e linguagem eu­

compartilhada por Inácio e por Efésios (a carta

carística [eucharisteõ, “agradecer” , é um conceito

canônica): a de assumir um papel na história da

frequente em Efésios), associadas a expressões

salvação centrado nela mesma como um artigo de

I 53 I

ad o r a ç ã o / culto iii :

A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

sua fé (Ef 4.4, e muitas outras vezes em Inácio;

a favor da qual ela é mediada, renovadamente se

cf. ITm 4.15). Estamos aqui no limiar da histó­

apropria dela. Hebreus 13.17 menciona os líderes

ria eclesiástica, onde a própria igreja faz parte do

que servem a comunidade; 1Clemente 41—44 re­

plano salvífico de Deus (Ef 3.10) e não enxerga

flete um debate em torno das autoridades legíti­

nenhuma incongruência — aliás, se regozija —

mas na igreja (em Roma?), que deveriam suceder

no fato de que professa crer em si mesma. “ Creio

aos apóstolos na apresentação dos “sacrifícios e

[...] na igreja una, santa, catóhca e apostóhca” é

serviços” da igreja [ICl, 40.2), a saber, um debate

uma frase pronta para ser inserida no credo.

em torno da credibihdade de outras pessoas apro­

Se quisermos entender como os atos litúrgicos da igreja foram sendo integrados no entendimen­

vadas, que na condição de supervisores “ ofere­ ciam os sacrifícios” (ICÍ, 44.4).

to que ela possuía da sua mensagem e missão, a tônica transmitida na Carta aos

H

ebreus

é um

0 público-alvo de Hebreus precisa ter essa concepção de si mesmo como povo escatológi-

bom estímulo. Seguindo o consenso, esse docu­

co, compartilhando do triunfo do anfitrião celes­

mento formulado com características de sermão

tial (Hb 12.22-24; a escatologia reahzada desses

(Hb 13.22) reflete o cristianismo romano das dé­

versículos põe essa parte de Hebreus em contato

cadas pós-70 d.C. do primeiro século cristão. O

com a ênfase do “já consumado” de Efésios), um

propósito do autor é declarado sem deixar mar­

povo que deve igualmente enfrentar as severas

gem para dúvidas: mostrar o caráter definitivo e

realidades da sua vida na terra como peregrinos

superior da nova economia instaurada por Cristo,

e estrangeiros (Hb 11.13-16; v.

que é ministrante (Hb 2.10-13; 8.2) e sacrifício

m ann

(Hb 9— 10) no novo santuário. Repetidamente,

e para os leitores, é permanecer comprometido

,

Jo h n s s o n

e

K ãse-

1984). A maneira de vencer, para esse autor

seus argumentos e apelos são pontuados com ex­

com os votos batismais primitivos (e.g., Hb 4.14;

pressões idiomáticas de cunho litúrgico, muitas

V. B o r n k a m m ,

vezes extraídas dos protótipos levíticos, mas sem­

intactas (Hb 10.19-25) as linhas de comunicação

pre cobertas com matizes cristãos e por estes cor­

com Deus, estabelecidas na adoração coletiva.

rigidas (e.g., Hb 13.10-16). A linguagem da oferta

A tentação de se afastar das reuniões públicas é

e do sacrifício é trabalhada para destacar a gran­

evidentemente grande em tempos de provação

1963) e manter abertas (Hb 4.16) e

diosidade imensurável da nova aliança, baseada

(Hb 10.32-39), de modo que o autor faz da fi-

no sacrifício melhor de Jesus (já que foi reahzado

dehdade nas reuniões da assembleia um foco de

de uma vez por todas) e na melhor eficácia (as­

resistência e de renovação, conferindo assim à

segurando um perdão pleno e definitivo). Mas o

adoração seu valor pragmático e sua dimensão

ministério sacerdotal de Jesus continua num san­

socializante.

tuário celeste (e.g., Hb 7.25; 9.24; 13.10, às vezes interpretado em sentido eucarístico, v.

Em outro documento também associado a

u n n il l ,

Roma, evidencia-se uma maneira paralela de

p. 240-2), e se faz o chamado subentendido

perceber a adoração como algo capaz de forne­

para que a igreja compartilhe dessa adoração a

cer marcadores de identidade para o novo Israel,

D

Deus por meio daquele que é o adorador perfeito

como também capaz de gerar confiança. Em 1Pe­

(Hb 2.11,12; 13.12-16).

dro (v.

Temos aqui um aspecto da adoração rece­ bendo um destaque singular no

P

edro,

P r im e ir a C a r t a

de) ,

os

destinatários

estão perdendo a fé, mas por motivos diferen­

mas com re­

tes. Em Hebreus, em que a esperança desempe­

percussões que seriam ampliadas e sentidas nas

nha um papel fundamental (Hb 6.9-20; 11.1), os

décadas (e.g., ICl, 36.1; 40.1-5) e séculos pos­

conflitos eram domésticos, internos, e havia um

teriores. A adoração é tanto “por intermédio de

questionamento teológico sobre a parusia imi­

Cristo” (Hb 13.15) quanto “em Cristo” , tornando

nente (Hb 10.37-39). O chamado à esperança em

nt

,

a igreja uma com o autossacrifício dele (Hb 7.25).

IPedro (IPe 1.3,13,21; 3.5) é formulado sobre um

Assim, os sacrifícios de louvor da igreja se unem

cenário diferente. Aqui, a hostilidade provém de

à única oferta que é não apenas completa (de

fora (IPe 2.12; 4.1-6) e é dirigida contra as igre­

uma vez por todas, eph’ hapax], mas sempre re­

jas do Ponto e da Bitínia (IPe 1.1); não parece

novada, uma vez que a comunidade de crentes,

haver nenhum questionamento sobre a salvação

I 54 I

a d o r a ç ã o / culto hi:

A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

definitiva deles no momento da aguardada apa­

p. 95, 110-7). Para nossos propósitos, basta inda­

rição do Senhor (IPe 1.5,13; 4.7). 0 problema

gar como os versos citados poderiam funcionar

fiindamental enfrentado em IPedro é a perda da

como um hino. A solução desse problema seria

identidade social e a sensação de estarem desar­

possivelmente observar que a seção inclui uma

raigados, sensação comum a pessoas que abando­

dramatização da odisseia de Cristo, marcada es­

naram seu ambiente pagão e se uniram

truturalmente por duas ocorrências do verbo “ir”

à

igreja,

aceitando seus costumes e sua forma de vida. Os

(representadas acima em itálico). Ele foi visitar o

sofrimentos físicos deles estão causando proble­

reino demoníaco; ele foi após seu triunfo tomar

mas do campo da teodiceia, enquanto buscam en­

seu lugar no trono do Universo, estando todos os

tender as contrariedades e incertezas da vida no

poderes cósmicos sujeitos a ele. O tema da ida

momento em que sua fé recém-descoberta é posta

[foi e tendo entrado] é a chave que desvenda o

à prova (IPe 1.6; 2.19; 4.12).

problema principal, que é saber em que grau essa

A resposta do autor nesse documento exorta­

peça de supra-história eclesiástica influiria na

tório (IPe 5.12) é transmitir uma identidade social

vida dos leitores de Pedro, que também são lem­

aos leitores, a de “povo de Deus”, estendendo-se

brados de seu batismo (por sua vez tipificado na

até Abraão e Sara no passado (IPe 3.5,6), e avan­

arca pela qual a famíha de Noé foi salva do meio

çando ao ideal de “família da fé” , que logo há de

de uma geração que os pensadores judeus con­

ser cumprido (IPe 2.4-10; 4.17-19). O autor garan­

sideravam a pior imaginável e causa da influên­

te que os planos de Deus não fracassam quando as

cia demoníaca no mundo). No batismo cristão

igrejas passam a perceber como a vitória de Cristo

— pensamento possivelmente inserido por Pedro

sobre todos os inimigos é algo a ser compartilha­

no credo-hino pré-formulado — , existe uma apro­

do por seus seguidores, que seguem seus passos

priação da identificação de Cristo com os poderes

(IPe 2.21; 3.18-22; v.

das trevas e sua posterior vitória sobre eles.

M a r tin

&

C h e s te r,

p. 100,

n. 26). As ênfases litúrgicas desempenham seu

Aqui o batismo recebe um tratamento que sem

papel ao fazer valer exatamente esses pontos,

dúvida o vincula a Paulo (em Rm 6; cf. Cl 2.12;

sobretudo na passagem de estrutura poética

3.1), acrescentando-lhe, todavia, uma dimensão

(IPe 2.1-10; v. comentários, esp.

que ce­

de efeitos consideravelmente pictóricos, até mes­

lebra a igreja como o novo Israel de Deus, em que

mo mitológicos. Proclama que os crentes compar­

pessoas antes estranhas e separadas encontram

tilham das realizações de Cristo em seu horror

seu novo lar como adoradores e como família, e

e em sua glória. Ele se fez um com o homem

S e lw y n )

no hino cristológico de IPedro 3.18-22, cuja forma

na escravização humana ao mal e depois em

original pode ter sido algo mais ou menos assim:

seu triunfo sobre ele (v.

M a r tin ,

1994, p. 114-7,

em referência a Ap 1.18). Assim, Pedro associa Que sofreu uma única vez pelos pecados,

sua teologia cinético-dramática com outros hinos,

para levar-nos a Deus;

principalmente Filipenses 2.6-11, bem como com

morto na carne,

o cenário em Evangelho de Pedro 10.41,42 e Atos

mas vivificado no espírito,

de Pilatos 5.1—8.2, na seção “A descida de Cris­

no qual ele foi e pregou aos espíritos era prisão,

to ao inferno”, e naturalmente com a declaração

[mas] tendo entrado no céu, sentou-se à di­

do Credo apostólico (em Roma, c. ISO d.C., como

reita de Deus,

credo batismal;

anjos, e autoridades, e poderes sob seu controle.

sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia res­

K e lly ):

"... crucificado, morto e

surgiu dos mortos; que subiu ao céu...” O tema São muitas as complexidades do debate em

do Christus Victor (Cristo vencedor) alcança seu

torno dessa passagem obscura (v. comentários

ápice no reconhecimento e na proclamação de

de

no que diz respei­

que no batismo estão derrotados todos os agen­

to aos tratamentos mais fundamentais — todos

tes demoníacos que oprimiriam a igreja e fariam

reagindo

de 1947;

dela sua presa, pois Cristo conhecia o poder que

quanto a pesquisas e referências bibliográficas,

eles tinham para ferir e sabia que esse poder seria

V.

R e ic k e ,

M

a r t in

à

,

D

alton,

B o is m a r d

obra seminal de 1978, p. 335-44;

Bultm ann,

M

a r t in

&

C hester,

neutralizado. 0 resultado lógico e litúrgico desse 55 I

ado ra çâ o / culto

lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

teologúmeno será o uso das fórmulas de exorcis­

1) A adoração é “ pelo Espírito” (IJo 3.24),

mo e de renúncia usadas como prelúdio do ba­

como em realidade, e em grande medida inde­

tismo em si. Essas fórmulas são encontradas na

pende de formas, situações e cerimoniais exter­

Tradição apostólica de Hipólito

(J a s p e r & C u m i n g ) .

nos (Jo 4.20-24). A água dos ritos de purificação judaica é maravilhosamente transformada no vi­

6. Padrões joaninos e sua influência

nho da nova era, onde a glória de Jesus brilha

Se é correto aceitar como hipótese a presença

como o logos universal (Jo 2.1-11).

no eixo Roma-Ásia de estilos de adoração que se

2) 0 amor por Deus e pelos membros de sua

voltavam para os depositórios de ensino de Paulo

famíha é a prova real da espiritualidade autêntica

e de Pedro como base para sua formação, com as

(IJo 3.1-18; 4.7-21) em oposição a uma rigidez

práticas universalmente aceitas do batismo como

credal e a uma confiança cega nos sacramen­

rito iniciatório e da ceia do Senhor como celebração

tos. O alegado antissacramentalismo do quarto

da vitória da ressurreição de Cristo, inseridas numa

Evangelho

estrutura que tendia a respeitar a autoridade dos

tuno, mesmo que superenfatizado, contra a vi­

líderes, então nos escritos joaninos a ênfase recai

são oposta de O. Cullmann, que vê o batismo,

em outros elementos (v.

a unção e a eucaristia em toda parte, em quase

Jo ã o ,

c a rtas de) .

(B

u ltm ann,

1971) é um protesto opor­

As fortes influências encontradas nas Pas­

cada página. Não há uma instituição explícita da

torais, na Didaquê, em Inácio e em 1Clemente,

ceia do Senhor em João 13, passagem que, no

ocupadas com orações fixas (a permissão de Di,

entanto, contém uma refeição no Cenáculo. Mas

10.7, “permite que os profetas deem graças como

0 EvangeUsta incorpora um discurso ocorrido na

desejarem” , precisa ser lida à luz de Di, 15.1,2,

sinagoga de Cafarnaum (Jo 5) como que para re­

em que os profetas itinerantes estão de saída e de­

alçar que a eucaristia tem um significado interior,

vem ser sucedidos por “bispos e diáconos” , como

individuaUzado, que não é nada menos que um

em In, Es, 8; ICl, 44), com ministérios regulares,

alimentar-se de Cristo, o pão da vida, assim como

com uma adoração ordeira (JC/, 20) e um sistema

um capítulo anterior de João (Jo 4) retrata Jesus

sacramental incipiente (In, Ef, 20), não parecem

como 0 doador da água viva a uma mulher de

enfrentar desafio algum. Mas existe outra corrente

Samaria. A mesma nota se faz ecoar em Apoca-

que espelha uma reação nas igrejas asiáticas nas

Upse 3.20: “Se alguém ouvir a minha voz e abrir

quais a influência joanina é forte. Esse corpo de

a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele...”

escritos (Evangelho de João, cartas joaninas e até

3) Não pode ser fortuito que esse corpo de

certo ponto o Apocalipse) dirige-se a uma situa­

literatura simplesmente não use o termo “igreja”

ção em que as ênfases, em parte cristológicas, em

(ekklêsia). (Apocalipse é a exceção, e é notável

parte eclesiológicas, competem entre si na “comu­

por sua inclusão de tributos litúrgico-hínicos que

nidade do discípulo amado”

ligam a velha adoração judaica [Ap 4.8,11; 7.12;

(B

rown).

Podemos

até mesmo pressupor uma ameaça à adoração,

15.3,4] à nova era da redenção [Ap 5.9-14] e da vi­

como temiam os discípulos de João. Tanto o Evan­

tória [Ap 12.10-12] do Messias.) No entanto, para

gelho de João quanto as cartas joaninas levantam

João, os crentes de fato formam uma sociedade

uma advertência contra a tendência à superinsti-

segundo as figuras de um rebanho (Jo 10.1-15;

tucionalização. João percebe o perigo de sufocar

cf. Jo 11.52) e de uma vinha (Jo 15.1-11), mas

o Espírito ao ressaltar em demasia a ortodoxia

inevitavelmente nessas figuras o que importa é

credal, confiando pesadamente em formas estru­

o relacionamento pessoal que o crente mantém

turais e limitando a espontaneidade que vimos ser

com 0 Senhor. Assim como a ovelha ouve a voz

evidente nas descrições de Lucas. É discutível se

do pastor quando ele chama cada uma pelo

0 protesto de João pode ser dirigido a uma situa­

nome (Jo 10.3-5; cf. Hb 13.20; IPe 5.2-4 refere-

ção exatamente como a contemplada nas Cartas

se ao pastor supremo com muitos subpastores a

Pastorais, IClemente e posteriormente em Inácio.

cuidar do rebanho, e Pedro assumirá esse papel

De todo modo, para João, a forma de avançar

em Jo 21), assim também não há possibilidade de

é realçar a participação individual do crente na

vida se os ramos separados não forem ligados ao

espiritualidade verdadeira, como a chamou.

tronco da videira (Jo 15.4,5). A concepção que

I 56

ADORAÇÃo/cutro iii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

João tem da igreja rege seu conceito de adoração. A igreja

é

composta de crentes individuais

(M

ou­

acabaram por refrear o improviso e a espontanei­ dade na adoração vistos em Corinto. Paulo emi­

1962} unidos um a um ao Senlior pelos laços

tira 0 aviso: “Tudo [na assembleia em adoração]

muito pessoais do batismo e do novo nascimen­

deve ser feito com decência e ordem” (ICo 14.40,

le ,

to (Jo 3.1-6}. A adoração que oferecem brota da

frase evidentemente usada por ICl, 40: panta ta­

experiência de um individualismo enriquecido:

xei poiein opheilomen]; e a força e a autoridade

"A direta e completa união do crente coni Jesus

crescentes conferidas a líderes devidamente de­

Cristo põe seu selo na organização da igreja joa­

signados (nas Pastorais e em Ef 4.11-16; v. co­

nina”

mentários;

(S cH W E izE R ,

p. 124). Isso vale também para

a sua liturgia, notável pela ausência de formas

M

a r t in ,

1992) tínham a tendência de

direcionar o holofote para os controles hierárqui­

fixas e pelo fato de João ignorar muito do que ou­

cos necessários ã promoção da unidade (In, Es, 8,

tros cristãos em outras partes podem ter tomado

por exemplo) e ã manutenção do ofício episco­

por certo.

pal [ICl, 44). Ao longo do caminho, começando pelo quadro do igualitarismo congregacional até

7. Algumas conclusões

chegar ao reconhecimento de um ministério esta­

O levantamento acima de materiais e padrões de

belecido (ponto de transição visto em Di, 9— 15),

adoração, extraídos de escritos de várias épocas e

podemos observar o apelo ao ensino apostólico

de um amplo espectro geográfico e cultural, não

(At 2.42; Jd 17; Di, parte; Hb 13.7; cf. Hb 2.3;

pode aspirar à abrangência completa. As son­

cartas joaninas; ICl, 42) para rechaçar ideias sem

dagens que fizemos são típicas, na melhor das

fundamento que começavam a despontar.

hipóteses, assim esperamos, das regiões mencio­

7.2

Foco trinitário emergente. A natureza

nadas. Mas 0 quadro ainda está incompleto, e as

esporádica de boa parte da hnguagem litúrgica,

situações propostas ainda são conjecturas. É, por­

resuhante das contingências dos problemas e de­

tanto, difícil traçar uma trajetória ou apresentar

safios congregacionais, não nos deve cegar para

como hipótese um padrão em desenvolvimento

algumas constantes bem documentadas. Entre

com qualquer grau convincente de coerência.

essas podemos incluir:

Dificilmente convence a tentativa arrojada pro­

1) A valorização de Deus como o objeto sa­

posta por G. J. Cuming [StudLit, v. 10, p. 88-105

grado da adoração e do louvor cristãos. 0 lega­

[1974]}, abrangendo desde saudação (graça e

do das tradições judaico-veterotestamentárias

paz), passando por intercessões e leituras da Es­

não é desprezado, mas estendido e enriquecido

critura até chegar a doxologia, ósculo da paz e

pela fé trinitária emergente — por exemplo, o

1992, p. 190, n. 6). Boa par­

“ Santo, santo, santo” de Isaías 6.3 é ouvido em

te do material brota das pressões de ordem social

despedida (v.

Apocalipse 4.8, embora a história do Sanctus

sobre os autores e sobre as congregações destina­

na liturgia eucarística seja ainda uma questão

M

a r t in

,

tárias. O máximo que podemos esperar é traçar

complexa (cf. ICl, 34.6;

certas interseções pelo caminho. E, à medida que

Todos os documentos de nosso período realçam

S p in k s ,

esp. p. 46-54).

as observamos, podemos propor que certas ten­

a transcendência e a dignidade de Deus, sem as

dências ficam evidentes.

quais a adoração (como classicamente entendi­

7.1

Sistematização crescente da ordem. Na da) fracassa.

hteratura pauhna/deuteropaulina posterior, há

2) Em contrapartida. Deus é louvado como in­

uma tendência crescente ã sistematização, com

timamente próximo em Cristo, seu Filho, cuja ver­

base em vários fatores: a supressão do fervor ca­

dadeira encarnação, morte em lugar de pecadores

rismático parece ser uma ocorrência concomitan­

e ressurreição vitoriosa sobre todas as forças do mal

te inevitável com a ênfase crescente nos papéis

são acontecimentos-chave na história da salvação

da instrução/ensino (eles mesmos em resposta

(cf. as formas hínico-credais de IPe; Hb 1.1-4;

a noções equivocadas que desafiavam o legado

IJo 4.1-6; 5.20; Ap 5.1-14; In, Ef, 19). Esse

da doutrina de Paulo, e.g., nas Pastorais e em

fato prepara o terreno para a doutrina do ofício

Colossenses-Efésios). 0 crescimento das preocu­

sacerdotal do Cristo exaltado como intercessor e

pações da igreja com respeito a ordem e fixidez

participante dos ofícios da igreja (Hb 7.25; ICl,

I 57

ADORAÇAo/cuLTO III: A t os , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

40; 59—62.3; ICl, 61.3 é um exemplar interessan­

Ep, 10.96.7 para esse texto, c. 112 d . C . ; v.

te dos discursos em forma de oração, com nove

1989, p. 11-8).

dísticos correspondentes [em ICÍ, 59.3], consis­

Ver também

tindo em predicações divinas e frases hínicas [J.

dlntd

M . Robinson] o fe r e c id a s p o r m e io d e “ Jesus C ris­ to ,

0 sum o

:

C a b a n is s ,

b a tis m o ; c e ia d o S e n h o r ; D e u s .

C e n te rs

of

C h r is tia n ity ;

H ym ns,

Songs;

L i t u r g i c a l E le m e n t s ; L o r d ’ s d a y ; P r a y e r ; T e m p le .

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[stato die

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a r t in

1.1

Judaizantes. Essa opinião é classicamen­

te representada por F. C. Baur e repetida com A

P aulo

aprimoramentos por Barrett, M. E. Thrall e R. P.

Com muita frequência, pressupõe-se a existência

d v e r s á r io s i :

Martin. Ela defende a ideia de que os recém-

de adversários nas cartas de Paulo, que não são

chegados a Corinto eram judeus palestinos com

tratados teóricos, mas réplicas arrazoadas a situa­

a tendência de querer amoldar os corintios gen­

ções reais nas igrejas. As respostas epistolares de

tílicos à estrutura do judaísmo. Muito pode ser

Paulo muitas vezes refutam uma oposição, seja

afirmado a favor dessa hipótese.

a ele diretamente, seja a seus ensinos. Às vezes,

No entanto, com base em ICoríntios 1.12,

essa oposição é genérica e simplesmente indica

Baur também sustenta que os oponentes eram

uma resistência local às doutrinas de Paulo, casos

emissários de Pedro que haviam chegado a Corin­

que consideramos fora do alcance deste verbete.

to alegando serem “de Cristo” (2Co 10.7). Além

Outras vezes, no entanto, Paulo refere-se a adver­

do mais, Baur faz distinção entre os falsos após­

sários de fora que se infiltraram nas igrejas por

tolos (pseudapostoloi, 2Co 11.13-15) e os supe-

ele estabelecidas com o objetivo de minar suas

rapóstolos (hyperlian apostolai, 2Co 11.5; 12.11),

doutrinas e influência. No material que se segue,

dos quais saíram os falsos apóstolos, a saber, os

limitaremos nosso debate aos de fora, que se in­

apóstolos de Jerusalém (v.

troduziram nas assembleias pauUnas.

apó sto lo ).

Contra isso, deve se observar, em primeiro lu­

Os estudiosos têm dedicado amplos esforços

gar, que nem Pedro nem Tiago são mencionados

para identificar esses oponentes. Tamanha é a

no contexto de 2Coríntíos, e Paulo não hesita em

importância de se conhecer a identidade dos

referir-se a eles pelo nome em outras ocasiões — às

oponentes em 2Coríntios que C. K. Barrett a

vezes de maneira negativa (Gl 1.18,19; 2.9,11-14;

considera “uma das questões mais decisivas

ICo 1.12; 9.5).

para a compreensão do Novo Testamento e das

Além disso, a diferenciação entre hyperlian

origens do cristianismo” , ideia com a qual estamos

apostolai e pseudapostoloi parece arbitrária. R.

plenamente de acordo.

Bultmann sustenta que a transição de pseuda-

A Segunda Carta aos Corintios, em que a opo­

pastalai (2Co 11.1-4) para hyperlian apostolai

sição a Paulo recebe tratamento mais evidencia­

(2Co 11.5) é tão brusca que nem chega a fazer

do, foi submetida a uma profunda investigação e

sentido. A distinção talvez seja uma exigência

demonstrou ser o ponto de partida mais adequa­

da tese de Baur, que não iria tão longe a ponto

do para nosso estudo.

de sugerir que Paulo chamou Pedro e Tiago de

1. Pesquisa de opinião

“ falsos apóstolos [...] disfarçando-se de após­

2. Os adversários de Paulo em Corinto: “ ser­

tolos de Cristo. [...] seus [de Satanás] servos”

vos da justiça”

(2Co 11.13,15). Hyperlian apostolai, expressão de

3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém

som menos estranho, é mais uma espécie de tri­

4. Os adversários nas igrejas da Galácia

buto aos líderes de Jerusalém.

I 60

A dversários i : Paulo

Além do mais, a única referência explícita a

1.3

Homens divinos. Mais recentemente, D.

pseudapostoloi está intercalada entre as duas

Georgi desenvolveu a hipótese segundo a qual

referências a hyperlian apostolai numa parte da

os oponentes de Paulo alegavam ser — com base

carta (2Co 10— 12} em que Paulo utiliza a ideia

em seus dons e sinais — “homens divinos” , su­

de hyper (“superior”) ironicamente. Paulo em­

cedendo numa mesma linha a Jesus e a Moisés,

prega palavras antepostas como o prefixo hyper

os quais eram figuras carismáticas e operavam

para atacar os pseudapostoloi por seu imperialis­

milagres. Tratava-se então de missionários judeus

mo missionário ( “estendendo os nossos limites”,

helenistas e itinerantes cujos métodos e crenças

hyperektenein, 2Co 10.14} em terras além de sua

brotaram no ambiente helenístico. Suas reivindi­

jurisdição [ta hyperekeina, 2Co 10.16}, por se

cações presunçosas e as pesadas exigências que

vangloriarem de uma abundância de revelações

impunham aos corintios faziam parte de sua le­

{têhyperbolè íõn apokalyseõn, 2Co 12.7} e pela eu­

gitimidade como theoi andres, em que insistiam,

foria delas resultante (hyperairesthai, 2Co 12.7}.

em detrimento das fraquezas evidentes de Paulo.

Para desmascarar a jactância deles, Paulo van­

Uma variação dessa teoria pode ser encontra­

gloria-se ironicamente de ser “mais [...] muito

da em G. Friedrich, para quem os modelos aos

mais” (hyper) servo de

no que tange aos

quais os recém-chegados se referiam não eram

sofrimentos alistados (2Co 11.23-33). A íntima

extraídos do mundo helenístico, mas do cristia­

associação de hyper com os pseudapostoloi torna

nismo primitivo. De acordo com Friedrich, Estê­

bastante provável que os hyperlian apostoloi e os

vão e Filipe, os líderes helenísticos operadores de

pseudapostoloi sejam as mesmas pessoas.

milagres de Atos 6, reuniram defensores que ago­

1.2

C r is t o

Gnósticos. Oposta à tese de Baur, está a ra vinham até Corinto com poderes semelhantes

opinião de que os antagonistas eram “pneumáticos

para apresentar Jesus como um segundo Moisés

gnósticos”, que subestimavam o Jesus terreno a fa­

triunfante, em contraposição à figura sofredora

vor de um

pregada por Paulo.

Senh o r

celestial e forçavam as doutrinas

da graça ensinadas por Paulo a extremos antinomia­

Mas a teoria de Georgi é frágil, pois os theioi

nos. Segundo essa teoria, uma vez que os oponen­

andres não são o tipo claramente definido que ele

tes pregavam “outro Espírito” (2Co 11.4), deviam ser

pressupõe, e as referências a eles de modo geral

antinomianos, já que a

L ei

e o Espírito (v.

E s p ír t id

surgem de textos posteriores ao

nt

( v . B lac kbu rn) .

S.wro) são mutuamente excludentes. Considera-se

Quando argumenta que eles alegam ser “prepara­

2Coríntios 6.14—7.1 a reação de Paulo ao antino-

dos” e “capazes” (hikanos, hikanotês, 2Co 2.16;

mismo deles. Eles desprezam a gnõsis (2Co 11.6) in­

cf. 2Co 3.5), isso não exige que se entenda que

ferior de Paulo e a fraqueza que ele mesmo confessa

eles se apresentavam como “homens divinos” :

ter (2Co 10.10). Apresentam-se como detentores de

bastaria interpretar a alegação como mera supe­

wna gnõsis apoiada por “sinais” miraculosos e visio­

rioridade em relação a Paulo.

nários. Essa hipótese considera a oposição a Paulo

A hipótese de Friedrich, embora útil nas pro­

em 2Corintios uma extensão das tendências gnósti­

postas que apresenta, não leva em conta os mui­

cas evidentes em ICoríntios.

tos pontos em que a teologia de Estêvão pode ter

Um dos primeiros defensores dessa teoria foi W. Lütgert (v.

G

u n th er) ,

que situava as origens

se adiantado às doutrinas de Paulo e na realidade servido de fonte para elas, não sendo aversa a elas.

desses adversários no judaísmo liberal da Diáspo­

Embora o conhecimento crescente do mundo

ra. Lütgert, por sua vez, influenciou as exposições

do NT sem dúvida alguma estimule novas teo­

mais recentes de Bultmann e de W. Schmithals.

rias acerca da identidade e das intenções desses

Mas essa ideia perde vigor pelo caráter forte­

adversários, visto que só encontramos os adver­

mente hebraico/israelita dos que se opõem a

sários de Paulo quando ele os refuta incidental-

Paulo (2Co 11.22) e pela mensagem deles, que

mente é improvável que se chegue a um consenso

parece concentrada em Moisés e, portanto, na Lei

acadêmico. A evidência presente nas cartas de

C2Co 3.4-16). Além do mais, estamos longe da cer­

Paulo é tão pouco sistematizada e tão polêmica que

teza de que o g n o s t ic is m o estivesse tão definido nos

não nos permitirá chegar a conclusões históricas

tempos de Paulo quanto exige essa hipótese.

plenamente confiáveis, em última análise.

I 61

A dversários í : Paulo

2. Os adversários de Paulo em Corinto:

entendemos que esses homens eram na realida­

“servos da justiça”

de judaizantes e que seu conceito de “justiça de

2.1

Evidência a partir de ICoríntios. A cha­ Deus” por meio da “letra” residia no âmago da

ve da identidade dos oponentes de Paulo em

mensagem que proclamavam, sendo esse o maior

Corinto acha-se nesta sua declaração: “Esses ho­

diferencial em relação ao apóstolo aos gentios.

mens são falsos apóstolos, obreiros desonestos,

Infelizmente, podemos apenas especular so­

disfarçando-se de apóstolos de Cristo [...]. Por­

bre o exato conteúdo de sua mensagem. Mais

tanto, não surpreende que também os seus [de

uma vez, no entanto, a palavra

Satanás] servos se disfarcem de servos da justiça”

em nosso auxiUo. Ela não ocorre nenhuma vez

(2Co 11.13-15).

nas cartas aos tessalonicenses e apenas uma vez



j u s t iç a ”

pode vir

Da perspectiva de como se apresentaram,

em ICoríntios. A única ocorrência de “justiça”

os adversários vieram como “apóstolos de Cris­

até esse momento, numa carta escrita a uma igre­

to” , “ obreiros” e “ servos” , ou seja, exatamente

ja grega, leva a crer que as questões associadas à

como Paulo (2Co 11.12), com um vocabulário de

justiça não haviam sido aventadas na Macedônia

ministério idêntico ao dele. A desonestidade e

nem na Acaia até a composição de 2Coríntios em

os disfarces estavam no fato de arrogarem para

cerca de 56 d.C.

si a condição de “servos da justiça”

[d ia k o n o i

2.2

Evidência a partir de Romanos. Como

geralmente se aceita. Romanos foi escrita em Co­

d ik a io s y n ê s ).

Anteriormente, Paulo havia contraposto dois

rinto por volta de 56 ou 57 d.C., não muito de­

— o de Moisés e o de Cris­

pois da composição de 2Coríntios, que se deu na

to (2Co 3.4-18). Aquele, uma “letra” que “mata” ;

Macedônia. AU a palavra “justiça” aparece 49 ve­

este — “uma

zes, com inúmeras ocorrências das palavras afins

ministérios

[d ia k o n ia íj

nova a lia n ç a ” —

, “o Espírito [que] dá

vida” (2Co 3.6). Aquele é um “ministério n ia ]

[d ia k o -

que traz a condenação”; este, “um ministério

(d ik a io õ ]

e “justo”

(d ik a io s ;

v. j u s t i f i c a ­

Uma vez que a família de palavras ligadas a

2Co 3.9).

“justiça” está presente no cerne do argumento de

Como “este ministério” , que Paulo afirma ter

Romanos (v. o texto-chave, Rm 1.17), é possível

[d ia k o n ia ]

que traz a justiça”

“justificar” ç ã o ).

(d ik a io s y n ê s ,

(2Co 4.1), pode mediar “vida” e “justiça”? É pela

que ali Paulo esteja tratando das mesmas ques­

morte de Cristo, declara Paulo, que “ Deus fez um

tões e dos mesmos (tipos de) oponentes de 2Co-

sacrifício pelo pecado [...] para que nele fôssemos

ríntios. Embora Paulo não faça nenhuma menção

feitos justiça

ã circuncisão em 2Coríntios, é bem provável que

[d i k a i o s y n ê ]

Esse é “o ministério

de Deus” (2Co 5.21). da reconciliação” ,

a circuncisão fizesse parte do debate em Corinto,

a “mensagem da reconciliação” que Deus confiou

pois é proeminente tanto em Romanos quanto em

a Paulo (2Co 5.18,19; cf. 2Co 6.3).

Gálatas.

[d ia k o n ia ]

Paulo é, portanto, um diakonos na “diakonia

A Carta aos Romanos tem grande probabiUda-

que traz a justiça” por meio da cruz de Cristo,

de de ser a resposta mais bem calculada de Paulo

enquanto os oponentes são diakonoi da diakonia

à questão da justiça, tão dolorosamente aventa­

da justiça de Moisés por meio da “letra”, que não

da em Corinto e tratada em 2Coríntios de forma

traz “justiça”, mas “condenação” (2Co 3.9). O

tão apaixonada, mas tão desigual. Sem dúvida,

“engano” dos adversários reside em sua “ men­

ecos da polêmica ainda podem ser ouvidos em

sagem” aos corintios de que

imputa justí-

Romanos, relacionados aos mesmos oponentes

ça pela “letra” , não por meio da cruz. Por terem

de 2Coríntios. Há os que caluniam Paulo como

proposto aos corintios uma alternativa à morte

se ele houvesse afirmado: “ Façamos o mal para

de Cristo como meio para “a justiça de Deus”,

que venha o bem” (Rm 3.8; cf. Rm 6.1; Gl 2.17).

Paulo declara esses homens “ servos” de Satanás

Seus comentários defensivos acerca dos judeus

D

eus

(2Co 11.15).

(Rm 3.1,9; 4.1; 9.3-5; 11.1) condizem com acu­

A expressão “servos da justiça” , portanto, é

sações que talvez tenham brotado de um apos­

fundamental na identificação dos oponentes de

tolado judaizante cuja mensagem se baseava na

Paulo em Corinto. Por exercerem um ministé­

justiça por meio da observância das obras da lei

rio “da letra” , ou seja, de “Moisés” (2Co 3.6,7),

(cf. Rm 3.21—4.3,16; 10.3,4). Talvez a frase “os

I 62

A dversários i : Paulo

que causam divisões e colocam obstáculos ao en­

propensos a impor “Moisés” (a Lei) aos corintios

sino que aprendestes” (Rm 16.17) represente a

(2Co 11.22; 3.4-16). Corinto era uma metrópo­

advertência geral de Paulo aos cristãos romanos

le greco-romana. Como explicar que “hebreus”

sobre a mensagem judaizante resultante dos re­

tivessem distinção suficiente para ser aceitos

centes problemas encontrados em Corinto.

diante de tal público, demonstrando ainda pro­

2.3

Recém-chegados a Corinto. É inegável, ficiência nas artes retóricas da “vanglória” e da

com base em ICoríntios, que os adversários de

“comparação”? Ao que parece, esses “hebreus”

Paulo em Corinto eram um grupo (“tantos ou­

estavam se comportando como gregos.

tros” , 2Co 2.17) de pessoas [hoi kapêleuntes,

As duas principais teorias sobre os oponentes

“caixeiros viajantes” ou “ mascates” , 2Co 2.17)

— as de que devem ter sido judaizantes ou gnós­

que haviam chegado à cidade (2Co 11.4,5) vin­

ticos — são perfeitamente compreensíveis, dada

dos de fora (as “cartas de recomendação” deles,

a inegável contradição implícita nas evidências a

2Co 3.1), de lugares em que eles e sua mensagem

seu favor presentes em 2Coríntios.

tinham sido recebidos, acolhidos e suportados (2Co 11.4,20).

Novas informações disponíveis, no entanto, refazem todo o nosso conceito da vida como ela

Decorre de 2Coríntios que esses recém-che­

era na Judeia do século i. Com base em inscrições

gados legitimavam sua diakonia em Corinto

funerárias, M. Hengel sustenta que pode ter havi­

gloriando-se [kauchasthai, 2Co 10— 12, passim)

do até 16 mil judeus de fala grega em Jerusalém,

de suas realizações, “comparando” [synkrinein,

numa população calculada em 100 mil

2Co 10.12) os pontos fortes deles com as fra­

10) pessoas. Ele defende que muitos deles devem

quezas de Paulo. Em sua viagem missionária a

ter tido acesso a um nível elevado de instrução

Corinto. eles percorreram uma distância maior, e

clássica. É concebível, portanto, que os “hebreus”

(H

eng el,

p.

Paulo, uma distância bem menor (2Co 10.13,14).

que chegaram a Corinto falassem um bom grego e

Eles trazem “cartas de recomendação” (de Jeru­

tivessem habilidades em r e t ó r i c a . Saulo/Paulo não

salém?); Paulo não tem nenhuma (2Co 3.1-3).

era nem um pouco desprovido de habilidades nes­

Eles são figuras "preparadas” , triunfantes; Pau­

sa área, sem falar em seu colaborador Silas/Silva-

lo é incapaz, uma figura que causa dó enquan­

no, o profeta judeu-cristão de Jerusalém, a quem

to manqueja de uma parte a outra em derrota

é atribuída a Primeira Carta de Pedro, escrita em

(2Co 2.14—3.5; 4.1,16). Inferindo de observa­

linguagem elegante (At 15.32; 2Co 1.19; IPe 5.12).

ções feitas por Paulo a respeito de si mesmo, al­

Que dizer então do êxtase paranormal, das vi­

guns estudiosos afirmam que essas experiências

sões, revelações e milagres de que os oponentes

estavam sendo arrogadas por seus adversários.

de Paulo dependiam, ao menos em parte, para

Eram homens dotados de poder divino (sem juí­

serem aceitos em Corinto? 0 estudo da história

zo, 2Co 5.13), “arrebatado[s] [...] fora do corpo

da Judeia no período de 44 a 66 d.C. revela um

[...] ao paraíso”, onde receberam “visões” e ou­

cenário de desintegração política, ativismo re­

viram “revelações” de “palavras inexprimíveis”

volucionário e fervor apocalíptico expressos em

(2Co 12.1-5), ao passo que Paulo era banal, um

inspiração profética e sinais milagrosos (v., e.g.,

ministro sem poder, comum e fraco (2Co 10.3-6;

Jo sefo,

12.1-10; cf. 2Co 5.12,13). Talvez tivessem “as

a Judeia na época representasse o tipo de ambien­

características de um apóstolo” (2Co 12.12),

te religioso de onde poderiam ter surgido os pseu-

Guju, 2.13.4, § 258-9).

É

bem possível que

ao passo que Paulo, segundo queriam eles,

dapostoloi. É desnecessário, portanto, exigir uma

não as possuía. Eram poderosos em palavras

procedência gnóstica desses recém-chegados.

(2Co 11.5,6) e em sabedoria, enquanto Paulo era sem “instrução em oratória” e em geral “louco”

3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém

(2Co 11.1— 12.13). Em todas as coisas, ele era

Se os recém-chegados a Corinto, como 2Corín-

“inferior” (cf. 2Co 11.5), porém eles eram supe­

tios parece indicar, eram judaizantes, seriam

riores, “muito mais” {hyper, 2Co 11.23).

então emissários dos apóstolos de Jerusalém,

Aqui reside a dificuldade em identificar es­ ses adversários como

“hebreus” judaizantes

como pretende Baur? 0 relacionamento de Paulo com a igreja de Jerusalém e seus apóstolos é

63 I

A dversários i : Pa ulo

apresentado com clareza em Gálatas, especial­

A terceira ocasião, também em Jerusalém,

mente nos capítulos 1 e 2. Ao contrário da tese

ocorreu “depois de catorze anos” (Gl 2.1-10), ou

de Baur, depreende-se desses capítulos que, em­

seja, catorze anos após o seu importante “chama­

bora houvesse tensões entre Paulo e os apóstolos

do” , um divisor de águas, no caminho de Damas­

de Jerusalém, eles constituíam um grupo ainda

co. Preocupado em saber se o evangelho que ele

distinto dos adversários dele de Jerusalém e de

pregava “entre os gentios” seria aceito por Tiago, Cefas e João — um evangelho que não exigia a

Antioquia. Paulo esboça seu relacionamento com os

circuncisão deles — , Paulo trouxe consigo o incir­

apóstolos de Jerusalém referindo-se a quatro

cunciso Tito — um caso que poderia obter status

ocasiões críticas do próprio ministério. Escreve

de precedente. Embora a autoridade apostóli­

autobiograficamente, mas com o propósito de es­

ca de Paulo fosse independente de Jerusalém, era

tabelecer junto aos gálatas a natureza delicada do

importante que seus gentios convertidos e incir­

relacionamento com “ os que já eram apóstolos

cuncisos fossem aceitos, com os judeus crentes,

antes” dele em Jerusalém (Gl 1.17).

como herdeiros espirituais de

A

braão .

Em primeiro lugar, ele se refere a seu “cha­

Apesar das tentativas de alguns “falsos ir­

mado” a caminho de Damasco (Gl 1.15-17; v.

mãos” (gr., pseadadelphoi, Gl 2.4) de fazer com

Foi Deus, não os

que Tito fosse circuncidado, os “apóstolos-colu-

apóstolos de Jerusalém, quem “chamou” Paulo e

nas” — Tiago, Cefas e João — não fizeram esse

“ se agradou em revelar seu Filho” a ele para que

tipo de exigência do companheiro gentio de Paulo

P

a u lo , conversão

e cham ado

de).

ele “o pregasse entre os gentios” (Gl 1.16). Nem

(Gl 2.6). Antes, os três apóstolos de Jerusalém

mesmo depois de seu chamado Paulo “consultou

formalmente reconheceram que a Paulo fora con­

[lit., ‘procurou corroboração de’] carne e sangue”

fiado, por Deus, “o evangelho da incircuncisão”,

ou seja, os apóstolos de Jerusalém. Ele par­

em relação ao qual eles deram a mão direita a

tiu para a Arábia e depois foi para Damasco. 0

Paulo e a Barnabé numa “comunhão” do evan­

conhecimento que Paulo tinha do Cristo ressur­

gelho. Assim, Paulo e Barnabé podiam ir “aos

reto foi mediado diretamente a Paulo por Deus.

gentios”, enquanto o triunvirato de Jerusalém se

(ara),

A segunda ocasião foi em Jerusalém (Gl 1.18-

dedicava “à circuncisão” (Gl 2.7-9).

21). Somente “Depois de três anos” de seu “cha­

Em outras palavras, os apóstolos de Jerusa­

mado” , Paulo subiu a Jerusalém para “conhe­

lém reconheciam dois apostolados: um a judeus,

cer Cefas”, com quem permaneceu quinze dias

liderado por Pedro, e outro aos gentios, enca­

(Gl 1.18). A palavra “conhecer”

beçado pelos delegados de Antioquia, Paulo e

[a r a :

“avistar-

me com”] (gr., historêsai] usada por Paulo, cujo

Barnabé. Apesar da decisão de aprovar dois apos­

significado é muito debatido, pode ser interpre­

tolados racialmente distintos, houve um acordo

tada como “encontrar” ou talvez “indagar de”,

amplo quanto aos fundamentos do evangelho,

sugerindo certa dívida para com Cefas quanto

com base na morte e ressurreição de Cristo (v.

a informações a respeito do Cristo histórico em

ICo 15.3-5,11).

oposição ao Cristo celeste (v.

. Paulo

A quarta ocasião foi em Antioquia da Síria,

ressalta sua autonomia apostólica ao comentar de

igreja de constituição mista, formada por judeus

passagem: “Não vi nenhum dos outros apóstolos,

e gentios (Gl 2.11-14). Cefas chegou (de Jerusa­

a não ser Tiago, irmão do Senhor” , sugerindo não

lém) a Antioquia, onde compartilhou da comu­

mais que uma visita de cortesia. Suas palavras,

nhão à mesa com membros gentios (incluindo a

cuidadosamente escolhidas, são realçadas pela

CEIA DO S e n h o r ? ) ,

garantia solene que faz: “Sobre tudo isso que vos

estava preparado, após a conversão de Cornélio

J esu s

e

P au lo )

para a qual ele presumivelmente

escrevo, declaro diante de Deus que não estou

(Gl 2.14; cf. At 10.28). Embora judeu, Pedro agora

mentindo” (Gl 1.20; mas cf. At 9.26-30). Ainda

vivia “como os gentios” (Gl 2.14), isto é, havia

não sendo “conhecido pessoalmente pelas igre­

comido com eles, o que significa comer o que eles

jas de Cristo na Judeia” (ou seja, em Jerusalém e

comiam.

ao redor dela), ele viajou para a Síria e a Cilícia (Gl 1.21,22; cf. At 9.30).

Mas uma divisão séria de contornos raciais e religiosos tomou corpo na igreja de Antioquia

I 64

A dversários i : Paulo

com a chegada dramática de "alguns da parte de

respeito dos “ falsos irmãos que haviam se intro­

Tiago” (em Jerusalém, At 15.23,24; cf. At 15.1), a

metido e secretamente vieram espiar a liberdade

quem Paulo chama "os que eram da circuncisão”.

que temos em Cristo Jesus, para nos escravizar”

Cefas “ foi se retirando e se separando deles” (para

(Gl 2.4). Talvez estejam associados ou, mais pro­

não comer com os membros gentios da igreja).

vavelmente, identificados com os “alguns da par­

O restante dos membros judeus, dentre os quais

te de Tiago” que vieram a Antioquia e exerceram

o próprio Barnabé, agiu com “hipocrisia”. Paulo

tão notável efeito nas práticas alimentares de Ce­

enfrentou Cefas “abertamente, pois merecia ser

fas, Barnabé e dos crentes judeus (Gl 2.12,13).

repreendido” (Gl 2.11-13) por se retirar para uma

A mesma distinção acha-se em

A

to s dos

A

pós­

mesa de comunhão exclusivamente de judeus.

to lo s.

Era hipócrita da parte de Pedro viver “como os

teros” da igreja de Jerusalém (At 15.2,6,22,23),

gentios” e agora, com essa atitude, obrigar “os

e Pedro (At 15.7) e Tiago (At 15.13) são citados,

gentios a viver como judeus” (Gl 2.14).

De um lado, há os “apóstolos” e “presbí­

ao passo que do outro lado estão “alguns do gru­

0 que estava em jogo em Antioquia era “a ver­

po religioso dos fariseus, que haviam crido” , os

dade do evangelho” (Gl 2.14), em razão da exi­

quais disseram que era “necessário circuncidá-los

gência de que os cristãos judeus se separassem

[os gentios] e mandar que obedecessem à lei de

dos crentes gentios para comer, fato que teve o

Moisés” (At 15.5; cf. At 15.1). Quer identifique­

efeito de exigir dos gentios a adoção de costumes

mos, quer não a reunião dos representantes de

alimentares judaicos. Paulo usou a forte expres­

Antioquia e dos “apóstolos-colunas” (Gl 2) com o

são “a verdade do evangelho” no incidente ante­

chamado Concilio de Jerusalém (At 15), é prová­

rior, em Jerusalém, quando se opôs à necessidade

vel que os “ falsos irmãos” de Gálatas 2.4 devam

de circuncisão do gentio Tito (Gl 2.5). Ou seja,

ser equiparados aos “do grupo religioso dos fari­

“a verdade do evangelho” é preservada quando

seus” de Atos 15.5.

a circuncisão e as leis alimentares judaicas são

Atos 15.5, portanto, contém um indício pre­

consideradas alheias ao evangelho e não compul­

cioso, não encontrado em nenhum outro lugar,

sórias para os gentios.

que contribui grandemente para resolver o mis­

Essa longa passagem autobiográfica (Gl 1.15—

tério da identificação dos adversários de Paulo

2.14), que cobre uma década e meia da vida de

em Jerusalém. Os “falsos irmãos” de Jerusalém,

Paulo, é inestimável para identificar o grau de di­

que chegaram “da parte de Tiago [de Jerusalém

ferença entre Paulo e vários membros da igreja

a Antioquia], [...] os que eram da circuncisão”

de Jerusalém. Podemos distinguir entre “os que

(Gl 2.4,12) eram “ do grupo religioso dos fariseus,

já eram apóstolos antes” em Jerusalém — com

que haviam crido”.

os quais certas tensões são perceptiveis — e ou­

Qual seria, então, o relacionamento entre os

tros com os quais há oposição total. Assim, Paulo

“apóstolos-colunas” da igreja de Jerusalém —

insiste em que seu “chamado” para ser apóstolo

Tiago, Cefas e João — e esses homens?

aos gentios foi mediado pelo próprio Deus e de­ pois de alguns anos formalmente reconhecido pe­

4. Os adversários nas igrejas da Galácia

los “apóstolos-colunas” de Jerusalém. Ele cedeu

Há divergências entre os estudiosos quanto à data

a Cefas numa situação, mas se opôs ferozmente

da Carta aos Gálatas. Alguns a datam no fim da

em outra. A respeito de Tiago, há certa ambiva­

década de 40 do século i, situando a disputa em

lência. Em sua primeira visita a Jerusalém, ele

Antioquia (Gl 2.11-14) às vésperas do Concilio de

apenas “viu” Tiago. Ele reconhece, pela ordem

Jerusalém. Outros acreditam que a carta foi escri­

de nomes, a primazia de Tiago na segunda reu­

ta na mesma época que 2Coríntios e Romanos, ou

nião em Jerusalém, porém ao mesmo tempo dá

seja, em meados da década de 50. Sem dúvida, o

a entender uma crítica a esse apóstolo, já que o

vocabulário em torno da “justiça” é proeminen­

problema em Antioquia foi causado por “alguns

te na carta, sugerindo que estavam em jogo as

da parte de Tiago”.

mesmas questões de 2Coríntios e Romanos. Mas

Não obstante, Cefas e Tiago não são adversá­ rios. Nenhuma observação qualificativa é feita a

isso não nos obriga a defender a ideia de que Gálatas foi escrita em meados da década de 50. 65 I

Paulo pode ter usado o vocabulário associado ao

e em Gálatas, usadas para refutar a justiça que se

termo “justiça” sempre que veio à tona a questão

origina das obras da Lei judaica, torna mais níti­

judaizante.

do o perfil judaizante dos oponentes em Corinto.

Diferentemente do que ocorrera em Antio­

Gálatas ajuda-nos a ver que, embora houvesse

quia e em Corinto, não há nenhuma menção

tensões importantes entre Paulo e os apóstolos

a alguém de fora chegando ã igreja da Galácia

de Jerusalém, é importante diferenciar estes das

(2Co 11.4; Gl 2.12). As igrejas estavam sendo in­

pessoas que ele denomina “ falsos irmãos [...] os

comodadas por um grupo de judeus liderados por

que eram da circuncisão”, os quais já consegui­

um indivíduo não identificado (Gl 5.10,12; 3.1;

mos identificar mais de perto como pertencentes

1.7,9), para quem a circuncisão era um pré-re­

ao “ grupo religioso dos fariseus”.

quisito para se tornar membro do

de Deus

Os “ falsos irmãos” , que são também os “fal­

(Gl 3.6-14; 6.16). Esses “agitadores” e seu líder

sos apóstolos” , constituem também o grupo dos

estavam pressionando os crentes judeus a obri­

“superapóstolos” [hyperkian apostoloi, 2Co 11.5;

Israel

gar os membros gentios à circuncisão (Gl 6.12).

12.11). Depreende-se de 2Coríntios que a alega­

Eles alegavam que Paulo devia sua autoridade ao

ção de superioridade deles se baseia, em parte,

apostolado de Jerusalém (Gl 1.15—2.9) e que ele

no fato de se jactarem de terem viajado gran­

pregava “a circuncisão” (Gl 5.11).

des distâncias, possivelmente mais que Paulo

Seriam esses agitadores e seu hder naturais

(2Co 10.13-18). Paulo rejeita essa alegação com

da região da Galácia, ou teriam na verdade vindo

base no acordo missionário firmado em Jerusa­

de outro lugar? A carta do Concího de Jerusalém

lém no final da década de 40 entre os “apóstolos-

aos “irmãos dentre os gentios em Antioquia, Sí­

colunas” e Paulo e Barnabé (Gl 2.7-9). Com sua

ria e Cilícia” reconhece que “alguns [...] vos têm

vinda a Corinto, os “superapóstolos” cruzaram a

perturbado” (At 15.23). Se tais agitadores tives­

linha de demarcação e entraram na esfera do la­

sem vindo de Jerusalém para a Cilícia, não teria

bor missionário de Paulo estabelecida no acordo:

surpreendido se tivessem seguido viagem para

0 ministério aos gentios. Eles estenderam “os nos­

o sul da Galácia. Como o foco de Gálatas recai

sos Umites além do que convém”, gloriando-se

sobre a circuncisão relacionada ã liberdade cris­

“além da medida no trabalho dos outros”.

tã (v., e.g., Gl 5.1,2), tema que também recebe

Evidencia-se em 2Corintios um perfil fascinan­

destaque na seção autobiográfica, na qual “falsos

te desses homens, de sua missão e do modo de le­

irmãos” em Jerusalém espiam “a liberdade [...]

gitimá-la. Movidos, com toda a probabilidade,

para nos escravizar” , exigindo a circuncisão de

por um intenso zelo religioso resultante da rápida

Tito (Gl 2.3-5), é razoável pensar que os recém-

deterioração dos relacionamentos entre romanos

chegados eram na realidade os “falsos irmãos”

e judeus na Judeia sob o famigerado regime de

de Jerusalém, os “do grupo reUgioso dos fariseus,

Félix, os “superapóstolos”, ao que tudo indica,

que haviam crido” (At 15.5).

muniram-se de um arsenal de capacidades paranormais calculadas para impressionar os gentios

5. Os adversários de Paulo: um perfil

de Corinto e assim suplantar Paulo como após­

Com base no estudo de 2Coríntios, Romanos e

tolo. A sua resolução de anular Paulo talvez dei­

Gálatas, fica manifesto um padrão que nos per­

xasse prever também a percepção que tinham do

mite definir com mais acerto os adversários de

êxito dele em estabelecer as assembleias messi­

Paulo em Corinto, conforme refletido em 2Co-

ânicas entre os gregos. Mas, no que concernia a

ríntios. A substituição da “letra”, associada a

esses apóstolos, tais assembleias, embora conec­

Moisés, por “uma nova aliança” (v.

a l ia n ç a , no va

tadas ao Messias Jesus, eram cismas de Israel,

“uma diakonia da justiça”, somada ao

porque não davam lugar real a Moisés e ã Lei

a l ia n ç a ) ,

fato de Paulo rejeitar os oponentes em Corinto

(At 15.1,5).

como “ servos da justiça”, sugere que os recém-

Em sua contramissão, os adversários de Pau­

chegados tinham a missão de submeter os co-

lo demonstraram um zelo comparável ao dele

ríntios gentios ã letra mosaica. A proliferação de

próprio. Opuseram-se a ele em Jerusalém e dah

“justiça” e de palavras relacionadas em Romanos

viajaram para Antioquia, Siria-Cilícia e Galácia,

I 66

A dversários i : Paulo

visitando as igrejas pelo trajeto, e agora cliegaram

Pedro (e João?) e possivelmente pelos outros

à cidade de Corinto, na Acaia. Temos aí um fenô­

apóstolos. O último vislumbre da igreja de Jeru­

meno histórico notável. Eles afirmavam, diz ele,

salém em Atos, por ocasião da visita final de Pau­

ser “servos de Cristo” (2Co 11.23), mas, do ponto

lo, é de um enclave inteiramente judeu.

de vista dele, estavam tão equivocados quanto

Apesar da forma favorável em que Atos des­

ao ministério da “justiça” que ele os chama "ser­

creve a reunião, é suficientemente claro que os

vos” , mas de Satanás (2Co 11.14). A missão e as

presbíteros de Jerusalém expressaram profundo

atividades deles constituíam uma séria ameaça à

descontentamento com Paulo. Não há menção

sobrevivência das igrejas pauUnas e o levaram a

a nenhum discurso de gratidão pela coleta feita

escrever cartas que estão entre os seus escritos

nas igrejas gentílicas, embora Lucas soubesse da

mais veementes. É justo afirmar que a falta de

existência da coleta (At 24.17). Em vez disso, os

percepção acerca da identidade e do programa

presbíteros dão agudo destaque às dimensões e

zeloso desses homens por parte de leitores atuais

ao caráter judaico da comunidade de Jerusalém,

obstrui significativamente a nossa compreensão

cujas convicções, amplamente defendidas, eram

do argumento de Paulo nessas cartas, que expres­

de que Paulo havia traído a causa do judaísmo

sam sua reação às doutrinas deles.

da Diáspora. É entendimento deles que Paulo ensinou os judeus a abandonar Moisés e a não

6. Os judaizantes, Tiago e Paulo

circuncidar os filhos (At 21.21), não exigindo dos

Fica evidente, com base no argumento acima,

gentios a implementação das decisões do Concí-

que não podemos estabelecer uma relação estrei­

Uo de Jerusalém sobre as questões rituais e mo­

ta demais entre o nome de Pedro e os oponentes

rais (At 21.25).

de Paulo. O incidente de Antioquia (Gl 2.11-14)

Essas acusações são instrutivas, uma vez

mostra que Pedro era suscetível à influência de­

que claramente refletem a visão dos presbíteros

les, mas não a fonte dessa influência. Mas que

de Jerusalém. Mas as opiniões estão vinculadas

dizer de Tiago, o irmão do Senhor, um “apósto­

e assemelham-se de perto ao comprometimento

lo antes” de Paulo, que no fim da década de 40

com Moisés por parte dos homens da Judeia que

surgiu como coluna da igreja de Jerusalém? Seria

uma década e meia antes haviam saído de Jerusa­

Tiago a fonte da oposição que fluiu de Jerusalém

lém para insistir com os gentios de Antioquia em

para as igrejas dos gentios?

que aceitassem a circuncisão como pré-requisito

Tiago foi membro da igreja de Jerusalém desde

para a salvação e que, como já argumentamos,

o começo até morrer, em 62 d.C., um período

pertenciam ao "grupo religioso dos fariseus, que

de aproximadamente trinta anos. No início, o lí­

haviam crido” (At 15.1,5).

der era Pedro, apoiado por João Zebedeu. Mas no

Não se sugere que tenham sido necessaria­

fim da década de 40 Tiago, não Pedro, era o líder

mente os mesmos homens, mas que havia já na

(Gl 2.9; At 15.13-22). Na época, havia apóstolos

década de 40 uma corrente teológica defendida

e presbíteros em Jerusalém (At 15.2,4,6,22,23).

na comunidade messiânica de Jerusalém que, in­

No entanto, quando Paulo visitou Jerusalém pela

fluenciada pelo farisaísmo, promovia uma versão

última vez, por volta de 57 d.C., nenhuma refe­

nacionalista e, portanto, mosaica da fé. Por isso,

rência é feita aos “apóstolos” : permaneciam na

eles observavam a missão de Paulo aos gentios

cidade apenas os presbíteros, sendo Tiago o líder

com profundo desconforto. 0 crescente nacio-

inegável.

naUsmo religioso durante a crise na Judeia, nas

Nesse período de trinta anos, a igreja de Jeru­

décadas de 40 e 50, somado à influência cada vez

salém tornou-se mais conservadora do judaísmo,

menor de Uderes mais liberais, comO Estêvão,

sem dúvida refletindo o surgimento do naciona-

Filipe, João e Pedro, e ao surgimento de Tiago

ism o religioso judeu em face do agravamento

como líder incontestável — ninguém menos que

das relações entre romanos e judeus na Judeia

0 irmão do Senhor — , criou o ambiente propício

yosEFO, Ga ju, 2.12.1— 13.7, § 223-71, passim).

ao surgimento de uma missão de resistência à

Piimelro emigraram os helenistas, na década de

influência de Paulo na Diáspora. Mas essas pes­

30. No fim da década de 40, foram seguidos por

soas nunca são mencionadas por nome, seja por 67

I

Paulo, seja em Atos. Permanecem “alguns” [tines,

Tiago fosse a fonte da oposição que fluiu de Jeru­

At 15.1,5; Gl 2.12), que, por causa de seu assalto

salém para as igrejas pauUnas. Na reaUdade, um

às doutrinas de Cristo, Paulo retratará como “fal­

dos mofivos de Paulo para a coleta pode ter sido

sos irmãos” , “ falsos apóstolos” e mesmo “seus

manter um companheirismo no evangelho entre

[de Satanás] servos”.

seu apostolado aos gentios e aquele outro apos­

Tiago deve ter sido um figura significativa em Jerusalém no fim da década de 50, uma vez que

tolado, dirigido a judeus e sediado em Jerusalém, onde Tiago era o líder inconteste.

ele liderava uma comunidade religiosa tão gran­

Uma impressão comparável de Tiago pode

de (At 21.18-20). Em seu relato sobre a morte

ser discernida no relato de Lucas sobre o Concí­

de Tiago em 62 d.C., Josefo corrobora essa im­

lio de Jerusalém. Tiago não exige a circuncisão

pressão. 0 sumo sacerdote Anano ii aproveitou a

dos gentios e nega que os que foram de Jerusa­

oportunidade apresentada pela morte inesperada

lém “ perturbar” os gentios de Antioquia, da Síria

do procurador Festo para mandar apedrejar Tia­

e da Cilícia o tenham feito sob sua autoridade

go. Claramente, Tiago devia ser importante para

(At 15.19,23,24). Na visita final e tensa de Pau­

representar uma ameaça ao sumo sacerdote. Mas

lo a Jerusalém, as queixas contra o apóstolo aos

sua morte provocou um protesto por aqueles ha­

gentios vêm da boca de presbíteros, não de Tiago

bitantes de Jerusalém que eram “considerados os

(At 21.18-25).

de mente menos preconceituosa, sendo rigorosos em sua observância da Lei”

(J o s e f o , A

r

,

20.9.1,

§ 201), 0 que só pode significar cidadãos simpá­

7. Oposição em Colossos: o gnosticismo judaico

ticos aos fariseus.

Levando-se em consideração as teorias impor­

Assim, Tiago parece ter desfrutado de grande

tantes, segundo as quais os oponentes de Paulo

respeito na comunidade mais ampla de Jerusa­

eram ou judaizantes, ou gnósticos, uma boa so­

lém. De seu ponto de vista, como líder de uma

lução seria identificar os adversários de Paulo,

comunidade messiânica em Jerusalém, a missão

particularmente os de Corinto, onde tanto se diz a

de Paulo aos gentios na Diáspora deve ter levan­

respeito deles, como judeus gnósticos. A existência

tado dificuldades agudas para os relacionamen­

de tais pessoas se torna provável pela refutação

tos entre a comunidade messiânica judaica e a

por parte de Paulo do que é geralmente conside­

comunidade judaica mais ampla numa época de

rada uma espécie de

nacionalismo religioso que se desenvolvia tão

colossense (v.

rapidamente.

velmente, havia uma corrente do cristianismo em

g n o s t ic is m o

C o lo ssenses, C a r t a

judaico na igreja aos)

. Inquestiona­

Da perspectiva de Paulo, pode ter havido cer­

Colossos caracterizada por circuncisão, ascetismo,

ta tensão em relação ao irmão do Senhor, uma

observância do calendário judaico, misticismo e

vez que seus oponentes parecem ter vindo da

adoração de anjos (Cl 2.8-23).

comunidade de Tiago. É fato que Paulo se recu­

Esses elementos em grande parte estão ausen­

sa a permitir que seu apostolado seja vinculado

tes na rejeição de Paulo ao ensino de seus opo­

a Tiago (Gl 1.19; cf. Gl 1.17), e até certo pon­

nentes em Corinto. A apresentação que Paulo faz

to ele desaprova a autoridade dos apóstolos de

da pessoa e obra de Cristo aos corintios — da

Jerusalém (Gl 2.6-9), além do que, na reaUdade,

perspectiva do cumprimento da promessa divina

exprime uma queixa zangada sobre "alguns da

e da justiça da Lei (2Co 1.19,20; 3.4-9; 5.18-21)

parte de Tiago” que criaram divisão em Antio­

— tem uma ênfase muito diferente do Cristo

quia (Gl 2.12). Não obstante, Paulo reconhece o

cósmico da Carta aos Colossenses (Cl 1.15-20;

apostolado de Tiago e na realidade a sua prima­

2.9,10,19; 3.1-S).

zia como apóstolo de Jerusalém (Gl 1.19; 2.9).

Não há nenhuma sugestão em Colossenses

Não há nenhum boa razão para acreditar que as

sobre a origem do gnosticismo judaico, se au­

"cartas de recomendação” trazidas pelos recém-

tóctone ou importado. Sabe-se, no entanto, que

chegados a Corinto (2Co 2.17—3.1) levassem o

o judaísmo prosperou mesmo nas regiões remo­

nome de Tiago. Dificilmente Paulo teria perseve­

tas da AnatóUa, como no vale do Lico. A expli­

rado com a coleta para a igreja de Jerusalém se

cação mais provável é que uma versão local do

I 68 I

A dversários i : Pa ulo

gnosticismo judaico encontrara espaço na vida da

Não há indício algum de que essas pessoas

igreja de Colossos. Em todo caso, Paulo não ti­

tivessem vindo de Jerusalém para Roma a fim

nha visitado a região. Os judaizantes mais típicos

de atormentar Paulo. Talvez o movimento judai­

parecem ter sido atraídos a igrejas estabelecidas

zante, assim como a missão de Paulo, tivesse por

pelo apóstolo.

ora desenvolvido força própria, sem nenhuma conexão direta com a cidade-mãe, Jerusalém.

8. Oposição em Filipos: os judaizantes

Isso pode dar sustentação ao argumento de que o

De acordo com muitos estudiosos, Paulo escreveu

programa judaizante não estava diretamente as­

sua Carta aos Filipenses em Roma, no começo

sociado a Tiago, que talvez já estivesse morto na

da década de 60. Uma vez mais, fica evidente

época em que Paulo escreveu aos fihpenses.

a oposição a Paulo por parte de crentes judeus. Mas a natureza da oposição a Paulo em Filipos é

9. Oposição nas Cartas Pastorais

discutível (v.

O encarcera­

Limitamos nosso debate aos oponentes vindos de

mento de Paulo incentivou os “irmãos” de Roma

fora que se infiltraram nas igrejas estabelecidas

a “falar sem medo a palavra de Deus” (Fp 1.14).

por Paulo. Em nossa opinião, os falsos mestres

F il ip e n s e s , C a r t a

aos) .

Alguns deles, no entanto, o faziam “por inveja

e outros oponentes mencionados nas

e discórdia [...], não com sinceridade, pensando

t o r a is

que assim podem aumentar o sofrimento das mi­

E. E. Ellis: “ Diferentemente das cartas anteriores,

nhas prisões” (Fp 1.15,17). Muito provavelmente,

entre os oponentes parece haver um número con­

esses são os “da falsa circuncisão” (Fp 3.2), os

siderável de ex-colaboradores, cuja apostasia ti­

que se propunham circuncidar os crentes gentios,

nha gerado uma situação especialmente amarga”

cujo “ deus [...] é o estômago” (Fp 3.19), pois ob­

(E

servam os regulamentos ahmentares judaicos.

l l is ,

artas

P

as­

p. 214).

Ver também

Como ocorre com outras cartas — Gálatas e

C

eram naturais das igrejas. Nisso, seguimos

a p ó s t o l o ; g n o s t ic is m o ;

L

e i.

D P c : ju d a iz a n t e s .

Romanos —, em que a imposição da circuncisão Paul’s theological adver­

aos gentios está sendo promovida, notamos o uso

B m u o G R A n A . A g n e w , F. A .

que 0 apóstolo faz de “justiça [...] que procede da

sary in the doctrine of justification by faith: a con­

fé em Cristo” (v. Fp 3.6,9).

tribution to Jewish Christian dialogue, ms, v. 25, p.

Desde o tempo da chegada dos crentes à capi­

538-54, 1988. •

B a rn e tt,

P. Opposition in Corinth.

v. 22, p. 3-17, 1984. ■

tal mundial, havia problemas na comunidade ju­

JSNT,

daica como um todo. Ela foi forçada a se retirar de

opponents in 2 Corinthians,

Roma em 49 d.C. “por causa de Cresto IChrestus]”

1971. •

(S u E T ô N io ,

Cláudio, 25.4; cf. At 18.1), provável gra­

B la c k b u r n ,

B a rre tt, nts,

v.

C. K. Paul’s

17, p. 233-54,

B. Miracle working Theioi an­

dres in hellenism (and hellenistic Judaism). In: C., orgs. Gospel perspec­

fia equivocada de Cristo [Christus]. É possível que

W enham , D . &

a conversão de judeus a Jesus, o Cristo, tivesse

tives 6: the miracles of Jesus. Sheffield:

criado tumulto na comunidade judaica, a ponto

p. 185-218. •

de Cláudio expulsar todos os judeus. A ascensão

tween Paul and Jerusalem according to Galatians

B lo m b e r g ,

Dunn,

J.

D.

js o t ,

1986.

G. The relationship be­

de Nero ao trono em 54 d.C. significava que os

1

judeus podiam retornar à cidade, mas sem dúvida

and the Law: studies in Mark and Galatians. Louis­

temerosos de que mais perturbações significas­

ville: Westminster; John Knox, 1990. p. 108-26]. ■

sem mais represálias por parte das autoridades.

E llis , E . E .

Sendo Paulo conhecido como “agitador” por onde

org. Christianity, Judaism and other Greco-Roman

quer que passasse, é possível que os seus opo­

cults. Leiden: E. J. Brill, 1975. p. 264-98. ■ F o r b e s ,

nentes cristãos judeus em Roma tenham mesmo

C. Paul’s opponents in Corinth. Buried History, v.

and 2.

nts,

v.

28, p. 461-78, 1982 [ = Jesus, Paul

Paul and his opponents. In:

N eu sn er,

J.,

se utihzado do expediente de pregar a Cristo —

19, p. 19-23, 1983. ■ G e o r g i , D. The opponents of

na versão deles, naturalmente — para precipitar

Paul in Second Corinthians. Philadelphia: Fortress,

uma inquietação no meio da comunidade judaica

1986. ■ G u n t h e r , J. J. St. Paul’s opponents and their

e assim prejudicar a audiência da defesa de Paulo,

background. Leiden: E. J. Brill, 1973. [NovTSup,

que estava prestes a acontecer.

35.) • 69 I

H e n g e l,

M. The “Hellenization” o f Judaea in

ADVERSARIOS li: LARTAS (aERAIS, LARTAS PASTORAIS, APOCALIPSE

the first century after Christ. Philadelphia: TMnity,

porém, reconhecem a diversidade entre os rejei­

1989. • K ee, D. Who were the “super-apostles” of

tados pela ortodoxia que se desenvolveu nesse

2 Corinthians 10— 13?

23, p. 65-76, 1980.

período e assim com menos frequência simples­

C. G. The offender and the offense in 2

mente pressupõem um tipo específico de adver­



K ruse,

rq,

v.

Corinthians 2:5 and 7:12. EvQ, v. 60, p. 129-39,

sário nesses escritos.

1988. ■ ______ . The relationship between the op­

1. Definição dos adversários

position to Paul reflected in 2Corinthians 1— 7 and

2. Apocalipse

10— 13. EvQ,

V.

61, p. 195-202, 1989. ■

M

a r t in ,

R. P. The opponents of Paul in 2Corinthians: an old issue revisited. In:

H

aw th o rn e ,

G. F. &

B etz,

O., orgs. Tt-adition and interpretation in the New

3. Cartas joaninas 4. Judas 5. 2Pedro 6. Cartas Pastorais

Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1987. p. 27989. •

M c C le lla n d ,

S. E. “Super-apostles, servants

of Christ, servants of Satan” : a response,

jsn t,

v.

1. Definição dos adversários Os adversários, entendidos como aqueles que

14, p. 82-7, 1982. • M urphy-O’Connor, J. Pneuma-

se identificam como cristãos (o que Paulo dá a

tikoi and judaizers in 2 Cor 2:14—4:6.

34,

entender em seu discurso de despedida em At

p. 42-58, 1986. • Oostendorp, D. W. Another Jesus:

20.29,30), mas são rejeitados e enfrentados por

a b r, v.

a gospel of Jewish Christian superiority in 2 Corin­

um autor em particular, não são causa de ne­

thians. Kampen: Kok, 1967. • Sanders, E. P. Paul

nhum dos escritos posteriores do

on the Law, his opponents, and the Jewish people

Carta

in Philippians 3 and 2 Corinthians 11. In: Richard­

incomodados pela perseguição e se dispõe a

P. & Granskou, D., orgs. Anti-Judaism in early

animá-los e ajudá-los a interpretar e a suportar

son ,

de

n t.

A P rimeira

P edro, por exemplo, dirige-se a cristãos

Christianity 1. Waterloo: Wilfred Laurier Univer­

a perseguição, mas não tem em mente nenhum

sity, 1986. p. 75-90. •

J. Identififing Paul’s

adversário cristão. Outros escritos mencionam

SuM NEY,

opponents. Sheffield: jsor, 1990. (jsNTSup, 40.) •

tendências inaceitáveis, embora sem ter como

______ . The role of historical reconstructions of

objetivo primordial derrotar os que defendem es­

early Christianity in identifying Paul’s opponents.

sas correntes. Por exemplo, o propósito central da

PRS, V.

16, p. 45-53, 1989. •

T h r a ll, M .

E. Super­

apostles, servants of Christ, and servants of Satan. JSNT, V.

6, p. 42-57, 1980.

Carta

de

T iago é transmitir instruções éticas, em­

bora faça alusões a algum uso do ensino paulino que a carta rejeita (2.18-26). Essa corrente é refu­

P. W.

B arnett

tada apenas de passagem, mas o ataque aos que a defendem não é o propósito central de Tiago.

A

d v e r s á r io s i i :

C artas G

C a r t a s P a s t o r a is , A

e r a is ,

É também

Vários escritos posteriores do

necessário

distinguir entre

a

correção de tendências ou visões perigosas ou

p o c a l ip s e

combatem o

inaceitáveis e o combate de adversários. Nem

que seus autores entendem como convicções e

todos os que defendiam teorias passíveis de

práticas inaceitáveis. Ao fazê-lo, estabeleceram

correção pelos nossos autores eram vistos como

nt

os Umites da diversidade do cristianismo primi­

adversários. A

tivo. Os intérpretes normalmente identificavam

atração por práticas cultuais associadas ao tem­

os adversários da maioria desses escritos como

plo de Jerusalém ou à sua substituição. Quem

gnósticos de alguma espécie. Essa identificação

tivesse tais inclinações não era, no entanto, trata­

baseava-se numa reconstrução do fim do século i

do como herege ou como adversário, mas como

e começo do ii, a qual considerava o gnosticis­

cristão necessitado de instrução.

mo a mais importante heresia enfrentada pelos

C arta

aos

H

ebreus

opõe-se a certa

Quando a meta primordial é derrotar os ad­

cristãos. Por isso, simplesmente se supôs que,

versários, os escritos posteriores do

como esses escritos se originaram nesse período,

ral assumem um tom polêmico, o que significa

seus adversários talvez fossem gnósticos e pudes­

que muitas de suas acusações e denúncias não

sem ser identificados como tais, a despeito das

podem ser atribuídas a seus adversários de ma­

pouquíssimas evidências. Estudos mais recentes,

neira direta. Em escritos cristãos primitivos e em

I 70

nt

em ge­

A dversários i i : C artas G erais , C artas Pasto rais , A pocaupse

escritos não cristãos anteriores, as polêmicas fre­

comer aUmento sacrificado a ídolos, bem como

quentemente envolviam acusações rotineiras de

de fornicação. Talvez a acusação de fornicação

imoralidade aplicadas a qualquer oposição que

seja figurada, significando infidelidade reUgiosa.

se encontrasse. Muitas vezes, procedia-se dessa

Esse é seu significado normal em Apocalipse.

maneira na certeza de que o desvio do que era

Além do mais, a fornicação era associada à idola­

aceitável inevitavelmente conduzia a esse com­

tria desde muito tempo (v. Nm 25.1,2, que ime­

portamento. Assim, precisamos ser cautelosos

diatamente se segue à história de Balaão; v. tb.

quando tais acusações aparecem.

0 decreto apostólico de At 15.23-29). Como essa acusação tem contornos metafóricos e polêmicos,

2. Apocalipse

esses balaamitas não são libertinos. A única ou­

é um caso especial. Seu propósito pri­

tra acusação levantada contra eles é que comem

mordial é encorajar os que estão sob perseguição,

carne consagrada a ídolos. Tal conduta era vista

mas a seção de abertura (Ap 1—3] trata como

como acomodação inaceitável à cultura da época.

A

po cau pse

adversários alguns membros das comunidades

João condena os de Tiatira por tolerarem Je-

endereçadas. Acredita-se que as sete cartas às

zabel, acusada de ensinar e praticar fornicação e

igrejas tratam de um único tipo de adversário.

comer carne sacrificada. Essa Jezabel, que ale­

Mas alguns intérpretes resistem a esse pressu­

gava ser profetisa, deve ter sido um membro in­

posto e as examinam separadamente antes de

fluente dessa igreja. A acusação de fornicação é

estabelecer relações. Os adversários rejeitados

mais uma vez metafórica. Então a única prática

em Apocalipse 1— 3 são identificados como li­

pela qual Jezabel é condenada é a de comer carne

bertinos gnósticos ou libertinos com tendências

sacrificada a ídolos, a mesma acusação feita con­

gnósticas. Alguns intérpretes encontram aí uma

tra os nicolaítas/balaamitas. No entanto, o viden­

disputa entre cristãos judeus moderados e con­

te [João] acrescenta que os que seguem Jezabel

servadores, na qual João assume a postura mais

chamam seus ensinos “coisas profundas de Sa­

conservadora. Muitos intérpretes identificam es­

tanás”. É duvidoso que os seguidores de Jezabel

ses adversários como cristãos dispostos a se ajus­

atribuíssem seus ensinos a Satanás, mas devem

tar à cultura por meio da participação de reuniões

alegar algum tipo de introspecção que se concilie

de agremiações comerciais, que eram realizadas

com seu hábito de comer carne de ídolos e com

em templos e incluíam uma refeição em que se

sua conduta cristã. Em resumo, todos os adversários mencio­

consumia comida sacrificada. Somente as cartas a Éfeso, a Pérgamo e a Tia-

nados são acusados apenas de comer carne de

tira lidam com adversários na igreja. Os nicolaí-

ídolos e, assim, de serem infiéis. Desse modo,

tas são mencionados nas mensagens a Éfeso e a

a oposição de João a eles baseia-se no fato de

Pérgamo. João elogia os efésios por odiarem os

se conformarem à cultura circundante e contra

nicolaítas e rejeitarem alguns que alegam ser

quaisquer razões que apresentem por se permi­

apóstolos. Se esses apóstolos eram nicolaítas,

tirem isso. Não há nenhuma evidência que nos

como parece provável, essa corrente de ensino foi

permita associar qualquer tendência desses ad­

levada para Éfeso por professores que arrogavam

versários, quer tomados individualmente, quer

para si alguma autoridade. Mas parece que não

em grupo, com qualquer outro grupo conhecido.

obtiveram êxito ali. Não há nenhum indício do conteúdo do ensino deles. João repreende a igreja

3. Cartas joaninas

de Pérgamo por ter em sua congregação nicolaí­

Os adversários de 1 e 2João (v.

tas e aqueles que apoiam os ensinos de Balaão.

normalmente são tratados conjuntamente, e

Embora inicialmente pareça tratar-se de grupos

3João é geralmente incluída também na mesma

distintos, 0 nome Balaão provavelmente é usa­

situação abrangente. Os adversários de 1 e 2João

do metaforicamente para designar os nicolaítas,

são reconhecidos como ex-membros da comuni­

Jo ão, C

artas

de)

porque os dois nomes têm significados semelhan­

dade joanina que se separaram daquele grupo.

tes. Aqui também nenhum ensino dos nicolaítas

A quase totalidade dos intérpretes entende que

é identificado. Os balaamitas são acusados de

o debate gira em torno da interpretação correta 71 I

A dversários i i : L artas ü e r a is , C artas Pasto rais , A pocalipse

das tradições agora encontradas em João. Por

parte na interpretação que faziam do primeiro

toda a primeira metade do século xx, a maio­

capítulo do Evangelho de João.

ria dos intérpretes identificou esses separatistas

Mas essa parte da cristologia dos adversários

como gnósticos libertinos e docetas. No entan­

pode não estar em questão aqui. O debate talvez

to, muitos dos intérpretes atuais negam que es­

se ocupe especificamente de quando ou se o Fi­

ses adversários fossem gnósticos, libertinos ou

lho se separou de Jesus. A maioria dos intérpretes

plenamente docetas. Vários deles (e.g.,

Brown)

enxerga a referência ao sangue em IJoão 5.5,6

sustentam que esses oponentes negam apenas a

como uma alusão à crucificação. A estrutura an-

importância salvífica da vida terrena de Jesus,

titética desses versículos sugere que essa menção

não a realidade de sua existência material. Al­

ao sangue se opõe a algum ensino advogado pe­

guns intérpretes também encontram em IJoão

los separatistas. Se for o caso, eles parecem negar

uma oposição à

adocianista e defen­

que o Filho (ou o Cristo) tenha sido crucificado,

dem que os separatistas veem a vida de Jesus

aceitando que só Jesus enfrentou a crucificação.

como uma fase da obra do “Verbo divino”. Se­

Essa partida prematura do Filho — na visão de

c r is t o l o g i a

melhantemente, Painter identifica-os como pneu­

IJoão — era inaceitável, porque no mínimo nega­

máticos que veem Jesus como mero exemplo de

va implicitamente a importância daquela morte

vida da pessoa espiritual.

para o perdão dos pecados, função que IJoão afir­

3.1

IJoão. A Primeira Carta de João oferece ma como fundamental (IJo 1.7; 2.1,2,12; 4.9,10).

clara evidência de que seus adversários se se­

Esse entendimento de IJoão 5.5,6 também é pos­

pararam da comunidade destinatária da carta e

sível caso os separatistas sejam docetas.

são agora vistos como inimigos; são até mesmo identificados como anticristos (IJo

Assim, o máximo que podemos afirmar com

2.18,19).

relativa certeza é que esses separatistas advoga­

Duas questões predominam em IJoão: guardar

vam uma cristologia que não afirma uma identi­

os mandamentos, particularmente o mandamen­

ficação suficiente de Jesus com o Filho de Deus.

to do amor, e a cristologia.

Essa insuficiência pode implicar alguma forma de

Estrutura-se de tal modo em IJoão o debate

docetismo ou então uma cristologia adocianista

cristológico que negar que Jesus é o Cristo equi­

que não identifica Jesus de forma completamente

vale a negar “ o Filho” (IJo 2.22,23) e também a

suficiente com o Filho e entende que o Filho dei­

negar a “Jesus” e não confessar que “Jesus Cris­

xa Jesus antes da crucificação. Nenhuma dessas

to veio em corpo” (IJo 4.2,3). Essas declarações,

teorias requer uma teologia gnóstica, mas apenas

cuidadosamente redigidas, mostram que os ad­

um esquema que leve em conta um redentor que

versários separavam o Jesus terreno do Filho de

desce e depois sobe, esquema defendido pela co­

uma maneira inaceitável a IJoão, talvez negan­

munidade joanina.

do que o Cristo celestial pudesse ser plenamen­

Além da acusação mais ampla de que eles não

te identificado com o Jesus humano. 0 prólogo

guardam os mandamentos, a única acusação re­

da carta (IJo 1.1-4) apoia a ideia de que esses

corrente contra a ética dos adversários é que lhes

adversários tinham tendência docética, como

falta amor pelos companheiros cristãos. Essa acu­

acontece em IJoão 4.3, texto em que a questão

sação provavelmente tem origem no fato de que

é tratada como a negação de Jesus. Se eram do­

se separaram da comunidade joanina. Sua falta

cetas, não eram necessariamente gnósticos, pois

de amor é demonstrada pela ausência deles na

basta aceitar a desvalorização helenista comum

assembleia da comunidade remanescente. Assim,

da matéria para achar o docetismo atraente. No

a acusação revela pouco sobre a conduta ética

entanto, a questão talvez não fosse a respeito de

dos separatistas e certamente não indica que se­

Jesus ter corpo físico ou não, mas se ele deve­

jam libertinos.

ria ser plenamente identificado com o

de

Parece, com base em IJoão 1.8,10, que os se­

por quanto tempo seria tal identificação.

paratistas alegam ser livres de pecado. Com base

Os oponentes talvez esposassem uma cristologia

no uso, no original, do tempo verbal perfeito em

D

eus o u

F il h o

adocianista, segundo a qual o Filho desceu sobre

IJoão 1.8 (traduzido por “não temos pecado”),

Jesus em seu batismo. Isso poderia basear-se em

alguns intérpretes discernem um perfeccionismo.

I 72

A d v e r s á r io s h : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a l ip se

baseado em crenças gnósticas, que ou defende

3.2 ZJoão. Os adversários de 2João são des­

que a existência material é tão sem importância

critos de modo essencialmente idêntico aos de

que o pecado não os afeta, ou que a natureza

IJoão. Também em 2João esses adversários são

espiritual deles os tornou “ intrinsecamente sem

tidos como separatistas (2Jo 7) que não permane­

pecado”

ceram no “ensino de Cristo” (2Jo 9). O Presbítero

(B o g a r t ,

p. 33). No entanto, essas de­

clarações são provavelmente a interpretação de

adverte seus leitores de que tomem cuidado com o

IJoão das ideias dos adversários, não citações

Anticristo, que não confessa que “Jesus Cristo veio

das afirmações deles. Ainda assim, deviam ad­

em corpo” (2Jo 7,8). Essa abreviação do ensino

vogar um tipo de perfeccionismo que o autor de

dos adversários dá mais peso ã ideia de que se­

IJoão rejeita, mesmo quando abraça um perfec­

jam docetistas, mas, à luz do uso dessa expressão

cionismo de outro tipo em IJoão 3.4-9.

em IJoão, ela continua por demais ambígua, es­

0 perfeccionismo rejeitado pode estar correla­

tando essa interpretação longe de ser conclusiva.

cionado com a negação que os separatistas faziam

Essa carta pode representar uma etapa posterior

da função expiatória da crucificação: se alegas­

a IJoão nessa disputa, porque agora há “muitos”

sem jamais ter pecado, então a expiação seria

enganadores (2Jo 7). Infelizmente, embora seja

supérflua (v.

Mas essa interpre­

possível verificar que IJoão e 2João tratam dos

tação da morte de Jesus pode estar baseada numa

mesmos adversários, 2João não esclarece de modo

compreensão diferente do meio da salvação, não

satisfatório quem são esses oponentes.

C r is t o , m o r te de ) .

sendo necessariamente uma antropologia de

3.3 3João. A Terceira Carta de João identifica

contornos gnósticos. Talvez o que sustentassem

0 adversário por nome: Diótrefes. 0 Presbítero

como elemento vital fosse que o Filho trouxera a

escreve informando que Diótrefes gosta de man­

vida eterna de Deus, ato que em nada se relacio­

ter uma posição de liderança, não reconhecendo

na com a morte de Jesus (cf.

1979). Como

a autoridade do Presbítero, fazendo acusações

IJoão rejeita as afirmações deles com relação à

falsas contra o Presbítero e negando-se a receber

impecabilidade em IJoão 1.8,10, com o refor­

pregadores itinerantes associados à comunidade

ço de comentários sobre a função expiatória da

do Presbítero. Alguns intérpretes encontram aqui

B row n,

morte de Jesus em IJoão 1.7,9 e 2.1,2, esses dois

uma desintegração ainda maior da comunidade

pontos ou são citados nos ensinos dos adversá­

joanina nas mãos dos adversários de IJoão e

rios, ou são inseparáveis da perspectiva de IJoão.

2João. Segundo essa interpretação, os adversá­

Embora esses adversários pareçam defender um

rios agora podem alegar que possuem um adep­

avançado estado espiritual, que inclui a impeca­

to com autoridade institucional no seio daquela

bilidade, há evidências insuficientes para amarrar

comunidade. Outros identificam Diótrefes como

essa alegação a qualquer sistema de pensamento

um dos primeiros bispos monárquicos, situando

(e.g., gnosticismo ou uma

reahzada).

a disputa entre ele e o Presbítero no âmbito das

Talvez IJoão lhes negue essa condição por causa

questões sobre a estrutura eclesial. Como susten­

da cristologia deles e por estarem separados da

ta E. Kasemann, Diótrefes detinha legitimamente

comunidade dele — afinal, ele espera ausência de

0 ofício que logo viria a ser o episcopado monár­

pecado de quem é “nascido de Deus” (IJo 3.9).

quico. Ocupando essa posição, Diótrefes, afirma

e s c at o lo g ia

Nosso entendimento a respeito desses separa­

Kãsemann, excomungou o Presbítero por ser este

tistas deve permanecer vago. Podemos confirmar

um entusiasta do encontro imediato e presencial

que eles se recusam a identificar plenamente o

com Cristo, acima da tradição.

Filho de Deus com Jesus, como IJoão exige, e

O propósito de 3João é duplo: trata-se de um

que negam a importância expiatória da morte de

elogio a Gaio, sendo também uma carta de reco­

Jesus. Além do mais, alegam um estado espiritual

mendação para Demétrio, em trânsito pela região

que provavelmente inclui a afirmação de que es­

em que Gaio e Diótrefes são líderes eclesiásticos.

tão além de qualquer pecado. Não há nenhuma

Gaio e Diótrefes provavelmente eram membros

boa evidência de que sejam libertinos ou gnósti­

de diferentes igrejas nas casas na mesma região,

cos nem de que pertençam a qualquer outro gru­

ambos em função de liderança. 0 assunto princi­

po conhecido.

pal de 3João é a recusa de Diótrefes em oferecer 73 I

A d v e r s á r io s ii : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lip se

hospitalidade aos pregadores itinerantes enviados

e acusações, quase sempre exageradas. Conse­

pelo Presbítero. O Presbítero interpreta essa ação

quentemente, identificam seus adversários como

como uma afronta à sua honra — um valor pri­

hbertinos. F. Wisse demonstra que tais acusações

mordial na cultura greco-romana. Era, portanto,

eram típicas de polêmicas tanto em escritos cris­

uma questão pessoal, que afetava sua posição na

tãos anti-heréticos quanto no ambiente helenísti­

comunidade cristã como um todo naquela região.

co mais amplo.

Embora a atitude de Diótrefes pudesse ser

Os adversários de Judas eram mestres viajan­

motivada por controvérsias doutrinárias, não há

tes, talvez carismáticos (Jd 4,8), que participa­

explicitação de nenhuma controvérsia dessa na­

vam dos cultos de adoração das igrejas (Jd 12). A

tureza. Se as falsas acusações levantadas contra

presença e o ensino deles estavam causando di­

o Presbítero envolviam alguma questão doutriná­

visões: alguns aceitavam seus ensinos, e outros,

ria, o texto não apresenta nenhum indicio de que

não (Jd 18,19). Isso é tudo o que sabemos com

seja esse o caso. Não há evidência que apoie a

clareza. Mesmo que Judas constantemente acuse

teoria de Kasemann, segundo a qual o Presbítero

esses adversários de imoralidade, o nível da po­

foi excomungado como herege. 0 Presbítero tra­

lêmica põe em dúvida se devemos vê-los como

ta 0 problema daquela maneira (e.g., parece es­

libertinos. Essas acusações provavelmente indi­

tar na defensiva de acordo com Kãsemann) por

cam que Judas e esses mestres de fato discordam

causa da posição de Diótrefes na igreja, não por

sobre algum aspecto do comportamento cristão.

ter sido excomungado. Talvez a disputa girasse em

Mas é difícil imaginar que o público um tanto am­

torno da questão da estrutura eclesial, mas aqui

plo de Judas (basicamente todos os cristãos, Jd 1)

também não há evidência que apoie essa teoria;

necessitasse de instruções especiais para rejeitar

poderia igualmente dizer respeito ao exercício, por

a espécie de mestres sexualmente devassos que

Diótrefes, de um ofício reconhecido. Assim, embo­

muitos intérpretes entendem que sejam os recha­

ra possamos identificar esse adversário por nome,

çados pela carta. As acusações de contaminação

não podemos identificar nem supor a presença de

“ [d]o corpo” (Jd 8) ou mesmo de libertinagem

quaisquer questões doutrinárias, eclesiásticas ou

(Jd 4) não fazem necessariamente crer que esses

éticas além da ausência de hospitalidade para com

adversários não tivessem código moral algum. No

os itinerantes como a raiz dessa luta por controle

máximo, as acusações mostram que eles permi­

por parte de um segmento da comunidade joanina.

tiam alguma(s) coisa(s) que o autor reprovava.

4. Judas

imersa nas tradições judaicas, é provável que o

Uma vez que a Carta de Judas está totalmente Os adversários de Judas e de 2Pedro são muitas

autor e o público fossem judeus cristãos. É bem

vezes identificados conjuntamente, e tomados

possível que Judas represente uma perspectiva

como sendo os mesmos, já que 2Pedro faz tantos

de maior observância da Lei que a defendida

empréstimos de Judas. Contudo, tal associação é

pelos mestres itinerantes. Se a “autoridade” de

um equívoco metodológico. Embora 2Pedro utili­

Judas 8 são os anjos envolvidos na outorga da

ze boa parte da polêmica de Judas, ele pode estar

Lei (como querem muitos intérpretes), a “difa­

aplicando o mesmo material estereotipado a um

mação” dos adversários é que eles não guardam

grupo diferente. Assim, como acontece com todos

parte da Lei. Eles não precisam estar desprovidos

os escritos do

os adversários devem ser identi­

de moral para insultar a Lei e seus mediadores:

ficados unicamente com base no texto em apreço.

basta desconsiderar um aspecto dela. Além do

A maioria dos intérpretes identifica algum

mais, se os arqui-inimigos tradicionais do povo

n t,

tipo de gnósticos ou protognósticos como alvo do

de Deus citados em Judas 11,12 têm por objetivo

ataque de Judas. Mas tal identificação só pode­

retratar os adversários de Judas de modo especí­

rá ser apoiada se impusermos a Judas mais do

fico, a inclusão de Coré pode ser significativa. Na

que suas declarações razoavelmente permitem.

tradição judaica, ele é conhecido não apenas pela

A maioria dos intérpretes também deixa de levar

rebeldia, mas também por não guardar a Lei cor­

em consideração a natureza polêmica de Judas

retamente — embora sem nenhum indício de an-

e assim aceita pelo valor de face suas denúncias

tinomismo. Ficamos quase sem pistas sobre qual

I 74

A d v e r s á r io s n: C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a u p s e

aspecto da Lei os mestres deixam de cumprir. 0

eles negam a parusia (2Pe 3.3,4). E baseiam essa

fato de Judas os caracterizar como problemáticos

rejeição em dois fatores: a passagem da primeira

nas refeições de comunhão (Jd 12) pode indicar

geração de cristãos, para quem a parusia ocorreria

a não observância das leis alimentares ou algu­

enquanto vivessem (2Pe 3.8-10), e a ausência da

ma outra regra de purificação que compUcasse a

ação de Deus contra o mal no mundo (2Pe 3.4-6).

associação à mesa, mas estamos longe de estar

Referências à realidade da parusia no começo e

certos disso.

no fim da seção polêmica (2Pe 1.16—3.13) mos­

Portanto, os adversários de Judas são mestres

tram que essa é a questão principal. Em 2Pedro

itinerantes cuja ofensa principal envolve o enten­

1.16, o autor afirma que a parusia não é um mito

dimento que eles têm das responsabilidades dos

e interpreta a negação da parusia como uma re­

cristãos com respeito à Lei. Podem citar experiên­

jeição ao testemunho apostólico. Pode ser que os

cias visionárias como evidência de sua autorida­

adversários rejeitassem categoricamente o ensino

de. Adotando uma posição de maior observância

apostólico, mas parece improvável. Embora 2Pe-

da Lei, Judas os rejeita, considerando-os falsos

dro interprete a visão desses oponentes dessa ma­

mestres dos últimos dias e caracterizando-os

neira, é difícil imaginar como eles conseguiram

como ímpios, sem lei e arrogantes. Eles sem dú­

granjear influência (2Pe 2.2) numa comunidade

vida tinham uma imagem diferente de si mesmos.

que reverenciava os apóstolos (como mostra a atribuição da carta a Pedro), se eles rejeitavam

5. 2Pedro

0 testemunho apostólico. Em vez disso, eles pro­

Muitos intérpretes também identificam os adver­

vavelmente afirmavam que os apóstolos tinham

sários de 2Pedro como gnósticos ou protognósti­

sido mal interpretados, e 2Pedro 1.16-19 pretende

cos, em grande medida porque negam a parusia.

mostrar que essa afirmação é insustentável.

Mas temos aí evidências insuficientes para esta­

Parece que esses adversários não esperam ne­

belecer uma associação com o gnosticismo, pois

nhum juízo posterior, mas essa pode ser apenas

nenhuma ideia central do gnosticismo é combati­

a interpretação de 2Pedro do que significa negar a

da em 2Pedro. Rejeitando uma associação gnósti­

parusia. Alguns intérpretes combinam a rejeição

ca, J. H. Neyrey identifica esses adversários como

ao juízo por parte dos adversários com as acu­

mestres que se valiam de ideias epicuristas imis­

sações de 2Pedro sobre a Ucenciosidade deles

cuídas na cultura mais ampla. Especificamente,

para defender a ideia de que eram libertinos. No

a negação que faziam da parusia era a manifes­

entanto, a polêmica aguda dessa seção proíbe-

tação de dúvidas populares acerca da realidade

nos de interpretar as acusações literalmente. Es­

do juízo divino. R. J. Bauckham (1983) entende

sas denúncias tinham por objetivo prejudicar a

ser o ceticismo escatológíco a doutrina central de­

condição dos adversários, não descrevê-los com

les, mas não vincula o ensino deles a convicções

precisão. O autor de 2Pedro não tem nenhuma

epicuristas. Com base na negação que fazem do

dúvida de que as crenças dos adversários condu­

juízo, Bauckham sustenta que eles advogam o

zem ã corrupção moral, mas essas denúncias po­

antinomismo.

lêmicas não são evidência suficiente de que eles,

Assim como Judas, 2Pedro é um documento polêmico. Mas também nesse caso a polêmica di­

por exemplo, “têm prazer na luxúria à luz do dia” (2Pe 2.13) — acusação polêmica de rotina.

reta e mordaz deve ser lida com cuidado, levando-

Afirma também 2Pedro que esses adversários

se em consideração as acusações comuns feitas

difamam “seres gloriosos superiores” (2Pe 2.10),

com o propósito de desacreditar, não exatamente

expressão extraída de Judas (lá traduzida por

descrever, os adversários, pois 2Pedro 1.16—3.13

“autoridade”), mas que recebe novo significado

como um todo tem por objetivo refutar, acusar

aqui. Sugere 2Pedro 2.11 que esses “ seres glorio­

e denunciar os adversários, não descrevê-los de

sos superiores” são seres espirituais sujeitos ao

modo objetivo.

juízo de Deus. A acusação de calúnia pode ser a

0

que há de mais inequívoco a respeito desses interpretação que 2Pedro faz da rejeição à parusia

adversários, que antes faziam parte das comuni­ dades a que 2Pedro se destina (2Pe 2.1,15), é que

por parte dos adversários e também ao juízo que lhe segue. Se esses “ seres gloriosos superiores” 75 I

A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lipse

estão associados ao juízo, como entende Neyrey,

que a negação que fazem da parusia seja um sinal

talvez sejam seres que acusam os humanos dian­

de tal rejeição. A negação da parusia por parte

te de Deus no juízo. Assim, a difamação dos ad­

deles pode incluir a rejeição a um juízo divino fi­

versários consiste na descrença, por parte deles,

nal — pelo menos 2Pedro apresenta os dois como

de que tal juízo e acusação ocorram.

necessariamente relacionados. A negação de um

Esses mestres tambám “prometem [...] liber­

juízo final não precisa impUcar a remoção de to­

dade” aos que aceitam suas ideias. Embora 2Pe-

das as limitações morais (analise os saduceus),

dro não apresente nenhum indício claro do que

mas 0 autor está certo de que conduzirá à hcen-

esteja em jogo nessa liberdade, muitos a veem

ciosidade. As crenças deles sobre a parusia e o

como uma liberdade em relação às restrições

juízo parecem lhe permitir arrogar a si a liberdade

morais, talvez por estar justaposta à acusação de

do temor de certos seres espirituais, talvez acusa­

que os adversários são “escravos da corrupção”.

dores no juízo. Claramente, a questão primordial

IVIas também aqui essas acusações polêmicas são

para o autor de 2Pedro é a rejeição à parusia por

principalmente formas de denúncia. Se os “seres

parte desses adversários, o que ele considera uma

gloriosos superiores” de 2Pedro 2.10 são acusa­

rejeição às Escrituras, à autoridade apostólica e à

dores no juízo, a hberdade de 2Pedro 2.19 pode

moralidade. Assim, todas as questões e acusações

ser liberdade do medo diante de tais seres, Isso

originam-se desse tema central,

se encaixa bem com a negação da parusia por 6. Cartas Pastorais

parte dos adversários, mas não podemos ter cer­ teza de nenhuma interpretação a respeito dessa

Embora a autoria e a data das Pastorais ainda

liberdade. Em 2Pedro, esses adversários também

sejam objeto de debate (v.

são acusados de desprezar toda autoridade ou

opinião da maioria dos estudiosos é que elas são

todo senhorio. Temos aí uma inferência polêmica

pseudepigráficas e datam da era pós-paulina. No

que 0 autor extrai da negação que eles fazem em

entanto, os que defendem a autoria paulina das

relação à parusia.

Pastorais normalmente datam essas cartas em

C a r t a s P a s t o r a is ) ,

a

Esses adversários são ainda acusados de “ dis­

meados da década de 60, no desfecho da vida e

torcer” as Escrituras (2Pe 3.15,16; cf. 1.20,21). A

do ministério de Paulo, considerando-as o reflexo

Segunda Carta de Pedro menciona Paulo como

de um momento de transformação. Sejam elas

uma autoridade que concorda em que a demo­

paulinas, sejam pós-paulinas, a identidade dos

ra da parusia seja um sinal da paciência de Deus

adversários retratados nas Pastorais tem sido há

(2Pe 3.15), mas depois acrescenta que alguns fa­

muito tempo uma questão presente nas recons­

zem mau uso dos escritos de Paulo e de outras

truções do cristianismo primitivo e no estudo dos

passagens das Escrituras. Não existe aqui ne­

textos sob análise neste volume.

nhuma base para identificar esses mestres como

A maioria dos estudiosos aceitava como hipó­

hiperpaulinistas nem para afirmar que eles o rei­

tese que as três Cartas Pastorais tratam de um

vindicam como autoridade máxima. Ele pode ser

único tipo de adversário. Essa única frente é em

simplesmente um apóstolo a que eles recorrem.

geral identificada como um tipo de gnosticismo

Por importante que Paulo seja, a referência a ele

judaico ou protognosticismo. Alguns intérpretes,

mostra que os adversários não rejeitam o teste­

no entanto, identificam esses adversários como

munho apostólico. A “distorção” que fazem dos

cristãos judaizantes, caracterizados por um regi­

profetas mostra que interpretações particulares

me ascético e por uma escatologia realizada, ou

das Escrituras contribuem significativamente para

como cristãos judeus que adotavam uma exegese

a defesa que eles apresentam dos ensinos deles.

rabínica, realçando a guarda da Torá e das práti­

A Segunda Carta de Pedro, portanto, opõe-se

cas ascéticas. Outros os identificam como judeus

a mestres que antes esposavam as mesmas con­

helenistas legalistas.

vicções sobre a parusia que o autor defende, mas

como principal problema o fato de que esses mes­

agora negavam sua realidade, usando as Escritu­

tres são vistos como uma ameaça por aqueles que

Outros ainda entendem

ras para dar sustentação à sua teoria. Não rejeitam

estão em posição de autoridade. Barrett comenta

a autoridade apostóhca, mas 2Pedro interpreta

que as Pastorais parecem mencionar cada heresia

I

76

A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lipse

que vem à mente do autor, não se dirigindo, por­

celibato ou a emancipação das mulheres. Ainda

tanto, a nenhum adversário específico. Fiore en­

assim, é possível que eles tivessem alguma ten­

tende que esses adversários são em grande parte

dência ascética. Mesmo que fosse o caso, suas

indefinidos e apresentados do mesmo modo em

regras alimentares teriam como origem provável

que os escritos parenéticos da época em gerai

as leis alimentares do judaísmo, uma vez que ou­

costumavam classificar os mestres rejeitados.

tras passagens fazem referência a questões sobre

6.1

ITimóteo. Um número crescente de estu­ a Lei. Uma delas é ITimóteo 1.8-11, que distingue

diosos identifica separadamente os adversários

entre empregos adequados e inadequados da Lei.

dessas cartas. Entre os tipos de oponentes que

Talvez ITimóteo 2.5-7 inclua uma defesa passa­

os intérpretes têm proposto para ITimóteo, en­

geira da missão de Paulo aos gentios, dando a

contramos protognósticos, libertinos, elitistas do

entender que a observância da Lei é uma questão

próprio meio, alguns defensores de uma escato­

a ser considerada.

logia plenamente realizada, cristãos judeus que

A Primeira Carta a Timóteo também acusa

guardam as leis ahmentares do judaísmo e um

os adversários de propagar mitos, genealogias e

círculo de cristãos judeus que tentam guardar a

fábulas contadas por velhas (ITm 1.3,4; 4.7,8).

Torá e incluíam o autor de Apocalipse como um

Alguns intérpretes modernos têm utilizado essas

dos seus. Os intérpretes identificam os oponentes

caracterizações para identificar esses adversários

de 2Timóteo como gnósticos, protognósticos e

como gnósticos. Mas essas acusações eram comu-

paulinistas entusiastas com uma escatologia rea­

mente empregadas como artifício polêmico, com o

lizada. Para Tito, os estudiosos têm encontrado

objetivo de menosprezar os adversários, não im­

protognósticos, judaizantes e talvez marcionitas,

portando quais fossem seus ensinamentos. Parece

missionários judeus rivais e os mesmos dois tipos

ser essa aqui também a função dessas acusações.

de cristãos judeus observantes da Lei propostos

Ainda que essas declarações tenham em mente en­

para ITimóteo.

sinamentos específicos, não há informações claras

Como as outras Pastorais, ITimóteo oferece

sobre o conteúdo desses ensinamentos. Nem mes­

poucas informações específicas sobre seus adver­

mo a referência ao ensino deles como gnõsis (“co­

sários. O interesse principal não é delimitar algum

nhecimento”) em ITimóteo 6.20 é suficiente para

ensino falso e a ele se opor, mas estimular de­

atribuir tendências gnósticas a esses adversários,

terminado tipo de comportamento, colocando-o

pois muitos grupos usavam essa Unguagem para

assim em contraponto com outro tipo. Em harmo­

designar seus ensinamentos nesse período.

nia com esse propósito, sua polêmica é um tanto

As evidências, portanto, são insuficientes pa­

estilizada, fazendo uso de acusações e denúncias

ra associar os ensinamentos desses adversários

gerais. Ainda assim, algumas coisas são discerní-

com as ideias gnósticas ou protognósticas. Com

veis a respeito desses adversários. A primeira de­

certeza, esses oponentes defendem um maior

las é a afirmação do autor, em ITimóteo 1.6,7, de

cumprimento da Lei do que permite o autor de

que eles querem ser "mestres da lei”. Isso nos faz

ITimóteo. 0 fato de insistirem em proibições re­

supor que eles exigem mais observância da Torá

lacionadas aos alimentos e ao casamento pode

do que ITimóteo exige e pode ser corroborado

ser um sinal de que tinham algumas tendências

por ITimóteo 4.3, em que encontramos a infor­

ascéticas. Os comentários de ITimóteo sobre es­

mação de que eles exigem abstinência de certos

ses adversários não nos oferecem nenhuma outra

alimentos não especificados. A proibição ahmen-

informação sobre eles. 6.2

tar normalmente é tomada como sinal de que

2Timóteo. Os adversários de 2Timóteo são

esses adversários eram de tendência ascética, es­

identificados por nome e por um ensino proble­

pecialmente por estar aliada a uma supressão do

mático em 2Timóteo 2.17,18; são eles Himeneu

casamento. Mas a proibição do casamento tam­

e Fileto, os quais afirmam que a ressurreição já

bém poderia estar associada ã suposição de que a

aconteceu. Talvez 2Timóteo 2.17,18 seja uma re­

parusia fosse iminente (v. os comentários de Pau­

formulação polêmica do ensino deles, procuran­

lo em ICo 7) ou a vários outros argumentos lógi­

do mostrar esse ensino como o mais inaceitável

cos, dentre os quais uma relação entre profecia e

possível para os leitores. Mas o texto revela ainda 77 I

A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A p o c a l ipse

que eles defendem uma escatologia segundo a qual os cristãos participam agora (ou ao menos

6.3

Tito.

Tito identifica seus adversários

como “os da circuncisão”, grupo que ativamente

podem participar) das bênçãos que o autor acre­

propagava uma mensagem que incluía “fábulas

dita estarem reservadas para a parusia. O ensino

judaicas, [...] mandamentos de homens que se

deles sem dúvida exclui uma ressurreição cor­

desviam da verdade” (Tt 1.10-14). Essa mesma

pórea futura, mas talvez não negue todo tipo de

passagem também indica que são naturais de Cre-

vida futura com Deus. Embora alguns intérpretes

ta. A menção a “fábulas” aqui, da mesma forma,

usem essa escatologia mais plenamente realizada

é fundamento insuficiente sobre o qual apoiar a

para identificar esses adversários como gnósticos,

ideia de que sejam gnósticos. Esses adversários

não temos aí provas suficientes de tal tendência.

são cristãos judeus que começaram a exigir ob­

Não somente há outros fundamentos que deno­

servância de partes da Lei além do que esse autor

tam uma escatologia mais plenamente realizada,

permite. A confirmação de que as ordens dos ad­

como também nenhum outro ensino gnóstico é

versários dizem respeito à Lei está em Tito 3.9-11,

refutado nessa carta.

em que Tito é exortado a não se envolver em dis­

Esses oponentes são também identificados

cussões sobre a Lei e a excluir da comunidade

como os falsos mestres escatológicos já preditos

qualquer pessoa que imponha tais debates. Mais

(2Tm 3.1-9). A licenciosidade atribuída a eles

confirmações da origem e talvez uma especifica­

nessa função de ensino mais uma faz vez par­

ção das ordenanças desses adversários estão em

te da polêmica comum contra um adversário e

Tito 1.15. Imediatamente após a apresentação

por isso não deve ser tomada pelo seu valor de

condenatória das ordenanças instituídas pelos

face sem evidência que a corrobore. A função

adversários, em Tito 1.14, o autor se volta para

dessa caracterização tem dois aspectos em 2Ti-

a questão do que é “puro” e “impuro” para os

móteo: torna os oponentes odiosos aos leitores,

cristãos. Assim, os adversários provavelmente in­

e serve de fundo de realce contra o qual se pode

sistiam em algumas regras de purificação da Torá.

apresentar e recomendar a maneira adequada de

Além de defender essas ideias, a acusação de que

vida (e.g., 2Tm 3.10-15). As referências restantes

eles ensinam “motivados pela ganância” (Tt 1.11)

aos adversários em 2Timóteo apenas os acusam

demonstra serem mestres ativos, que aceitam sa­

de participar de disputas inúteis e prejudiciais

lário de seus seguidores.

(2Tm 2.14-17,23-26), acusação que se aplica qua­ se a qualquer adversário.

Embora esses adversários de fato pareçam dedicados a espalhar sua mensagem, não há

Talvez 2Timóteo 1.15 deixe entrever que es­

indícios de que façam parte de algum grupo de

ses mestres, que defendiam uma escatologia mais

missionários itinerantes. Embora possam até per­

plenamente realizada, eram bem-sucedidos, por­

tencer a tal grupo, este deveria ser composto por

que afirma que todos na Ásia haviam abando­

pessoas naturais de Creta. Isso estabelece como

nado Paulo. Alguns intérpretes usam isso como

improvável uma conexão direta entre esses adver­

evidência de que 2Timóteo representa uma etapa

sários e os de ITimóteo, ainda que os dois grupos

posterior na batalha com os mesmos adversários

apresentem tendências semelhantes.

encontrados em ITimóteo. No entanto, 2Timóteo

Quando as Pastorais são examinadas separa­

2.24-26 não somente incentiva Timóteo a corrigir

damente, as evidências mostram que essas cartas

esses adversários de forma amável, mas também

não tratam todas dos mesmos adversários. Perce­

acena com a possibilidade de que eles podem

be-se que ITimóteo e Tito de fato tratam de ad­

se arrepender. Isso dificilmente soa como uma

versários com tendências semelhantes, mas não

etapa posterior da controvérsia que provocou as

temos nenhuma evidência de que façam parte do

acusações de ITimóteo. Mais importante ainda,

movimento maior de cristãos judeus observantes

nada em 2Timóteo vincula seus adversários aos

da Lei. 0 debate sobre a Lei, particularmente en­

de ITimóteo, além da rejeição ampla e de rotina

tre cristãos judeus, continuou até o século iv e

ao ensino deles como algo que nem vale a pena

mesmo depois. Qualquer judeu que se unisse à

contestar. Assim, os adversários de 1 e 2Timóteo

comunhão cristã teria de enfrentar as questões

não parecem relacionados.

sobre a observância da Lei por parte dele (e dos

I 78

A d v e r s á r io s ü: C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a u p s e

cristãos gentios) e poderia acabar adotando uma

1984. (aaras, 46.) ■ Johnson, L. T. 2 Timothy and

postura mais voltada para a observância da Lei

the polemic against false teachers: a reexamina­

6-7, p. 1-26, 1978-1979. ■ Karris, R.

do que ITimóteo e Tito consideravam aceitável.

tion.

Assim, os adversários das duas cartas não tinham

J. The background and significance of the pole­

de necessariamente fazer parte de um movimento

mic of the Pastoral Epistles,

grande ou organizado. Diferentemente dos adver­

64, 1973. ■ Kasemann, E. Ketzer und Zeuge: Zum

sários de ITimóteo e Tito, os de 2Timóteo não

johanneischen Verfasserproblem, zthk, v. 48, p.

parecem interessados na observância da Torá.

292-311, 1951. ■ Klun, A. F. J. & Reinink, G. J. Pa­

Antes, a acusação principal contra eles é que

tristic evidence for Jewish-Christian sects. Leiden:

defendem uma escatologia falha e prejudicial,

E. J. Brill, 1973. [NovTSup, 36.) ■ Knight iii, G.

mais plenamente reahzada do que a que ITim ó­

The Pastoral Epistles: a commentary on the Greek

teo pode aceitar. Nossa descoberta de que essas

text. Grand Rapids: Eerdmans, 1992. [n i g t c .] ■

JRS, V.

jb l,

92, p. 549-

v.

W.

cartas tratam de tipos de adversários significati­

Lieu, J. The Second and Third Epistles o f John:

vamente distintos exige mais estudo a respeito

history and background. Ed. J. Riches. Edinbur­

delas, que nos permita tratá-las isoladamente,

gh: T & T Clark, 1986. ■ Malherbe, A. J. Social

em vez de apenas considerá-las parte das Cartas

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The Epistles of

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M u rp h y -O ’ C o n n o r,

d l n t d : A n c e s to r s ; A n t ic h r is t ; D o c e t is m ; E b io NiTEs;

F alse

J. 2 Timothy contrasted with

1 Timothy and Titus,

FÉ; g e n t io s ; ju d a iz a n te s ; o b ra s da le i.

P r o ph e t s ; G n o s is , G n o s t ic is m ; J e w is h

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[n h s ,

3.) J. L.

o n th e re s titu tio n o f C h ristia n ity . C h ic o : S ch ola rs,

79 I

Sum ney

U,

ÁGAPE.

Ver CEIA

I IC D K tU i

presumido de forma geral nem sempre precisa ser

DO S e n h o r i i .

claramente manifesto. Isso se aplicaria à teologia A l e g o r ia .

Ver

da aliança no caso de alguém como Paulo, que

G á latas, C arta a o s .

fora criado numa tradição farisaica (v. A

l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a :

A

tos,

H

Paulo,

Ju d e u ) .

P aulo, o

Além disso, deve ter havido boas razões

para ele não ter usado o termo com mais frequên­

ebreus

Aliança implica relacionamento, promessa e ex-

cia, como a possibilidade de que seus oponentes

pectaiva. Na tradição bíblica, a aliança remete

0 usassem e interpretassem de forma diferente.

ao relacionamento singular que Javé estabeleceu

Em vista disso e cientes de quanto os temas

com 0 mundo por meio de Israel, além de se re­

“antiga e nova aliança” são fundamentais à in­

ferir à promessa sagrada e imutável de Javé de

terpretação do

permanecer fiel a esse relacionamento especial,

examinando as ocorrências do termo “ahança” em

NT,

prosseguiremos com cautela,

referindo-se também a uma expectativa legítima

cada uma das cartas de Paulo, sempre que possível

por parte de Javé de que seu povo correspondes­

permitindo que o texto se imponha por si só, sem

se como convinha (i.e., vivendo como o povo da

impor a ele o conteúdo de outras partes do

aliança). Assim, a aliança desempenha um papel

1.1

nt.

Gálatas. A teologia da aliança é fun­

central, se não dominante, na compreensão da

damentalmente uma maneira de designar o

identidade, da história e do lugar de Israel nos

relacionamento de Deus com seu povo. Esse re­

propósitos de Deus.

lacionamento não existe no vácuo, mas encontra

0 cristianismo primitivo também compreen­

um lugar no tempo e no espaço. Assim, surge a

dia seu relacionamento com Deus da perspecti­

questão em torno do entendimento da revelação

va ahancística. Na morte sacrificial de Jesus (v.

e da atividade divina na história, mais especifica­

bem como por meio dela. Deus

mente em relação à história de Israel. A Carta aos

demonstrou de uma vez por todas sua fideUdade

Gálatas, embora dedique grande parte do debate

C r is t o , m o r te de ) ,

ahancística. Quando os cristãos comemoravam

à história de Abraão, não confere grande impor­

ritualmente a morte de Jesus como o começo

tância ã história de Israel como tal, pelo menos

de uma “nova aliança” (ICo 11.25; cf. Mt 26.28;

não como o faz Romanos.

Mc 14.24; Lc 22.20), isso fazia suscitar muitas

Em Gálatas 3.15-17, Paulo, valendo-se de um

questões acerca da relação histórica e teológica

exemplo humano de ratificação da aliança, bus­

entre judaísmo e cristianismo.

ca defender a prioridade e a inviolabihdade da

1. Paulo

ahança abraâmica. Assim como os testamentos

2. Atos e Hebreus

humanos não podem conter acréscimos nem ser modificados, a não ser pelo testador, a aliança de

I. Paulo

Deus com Abraão (v.

Nas cartas aceitas de modo geral como paulinas,

são incorporados em Cristo, o “ descendente” de

há oito ocorrências de “aliança” (diathêkê)-. Roma­

Abraão, não é anulada nem acrescida pela alian­

nos 9.4; 11.27; ICoríndos 11.25; 2Coríntios 3.6,14;

ça sinaítica posterior, que lhe é suplementar.

A braão) ,

na qual os cristãos

Gálatas 3.15,17 (nas duas ocorrências aqui tra­

Gálatas 4.21-31 é uma passagem midráshi-

duzida por “testamento”); 4:24 (cf. tb. Ef 2.12).

ca, na qual Paulo talvez esteja enfrentando os

Dignas de destaque entre essas passagens estão

argumentos e as citações escriturísticas de seus

Gálatas 4.24 (“ duas ahanças”), 2Coríntios 3.6

oponentes. Por isso, parte do conteúdo pode

(único uso de “nova aliança” por Paulo — kainê

não ser caracteristicamente paulino, embora ele

diathêkê — afora a passagem eucarística de ICo

sem dúvida compartilhasse elementos de fé com

II.25) e 2Coríntios 3.14, em que encontramos a

outros judeus e cristãos judeus. Paulo aqui se

única referência à antiga aliança: palaia diathêkê.

refere a duas alianças (dyo diathêkê), contudo

As referências acima podem revelar que a

não deixa dúvidas de que se trata de uma “ale­

ahança não era um tema predominante na teolo­

goria”. Além do mais, a impressão que se tem

gia de Paulo, mas há pouca concordância nessa

não é a de uma aliança sendo suplantada por

questão. Pode se argumentar que aquilo que é

outra, mas de duas opções paralelas de aliança

I 80 I

A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s

que talvez alegoricamente se referissem a duas

Em 2Coríntios 3.6, numa seção da carta que

missões simultâneas aos gentios: 1) uma que ti­

deu margem a inúmeras interpretações divergen­

nha por elemento principal a observância da Lei,

tes, encontra-se a única outra referência em Paulo

sendo comandada pelos adversários de Paulo,

a “ nova aliança”. Em 2Coríntios 3.14, encontra­

em oposição à 2) outra representada pela mis­

mos a única referência em Paulo a “antiga alian­

são do próprio Paulo aos gentios. É bem possível

ça” {palaia diathêkê). A ocorrência sem paralelos

que a intenção de Paulo ao mencionar a ahança

nos escritos paulinos dos adjetivos “antiga” e

de Sara não era fazer referência ao cristianismo

“ nova” em relação à aliança na correspondência

(em contraposição à aliança de Hagar, i.e., o ju­

coríntia provavelmente remete a algum fator em

daísmo), mas à missão gentílica desprovida da

Corinto que conferiu importância especial a essas

Lei. Todo o debate pode ser visto como dois pro­

designações. Por exemplo, D. Georgi entende que

cessos de gerar “ filhos de Deus” (v.

f i­

foram os oponentes de Paulo que introduziram o

adoção

,

Na missão pauhna, bem como por meio

termo “ nova aliança”. A teologia cristã tendeu, no

dela, os gálatas receberam o Espírito “ pela fé

passado, a enxergar em 2Coríntios 3 um contraste

naquilo que ouvistes” ; nenhuma contramissão

entre a nova e a antiga dispensações. Por mais

que advogasse a circuncisão ou a observância da

que esse contraste seja abahzado, não está claro

Lei para os gentios tinha condições de melhorar

que fosse o foco imediato do pensamento de Pau­

a posição dos que estavam em Cristo pela fé.

lo quando a carta foi enviada aos corintios. Há

Eles são exortados a permanecer na liberdade de

concordância entre alguns comentaristas de que

Cristo (Gl 5.1). Uma missão aos gentios que se

Paulo por três vezes emprega um argumento a

orientasse pela observância da Lei é agora trata­

fortiori ( “quanto mais ainda”) para contrastar os

da como anacronismo.

diferentes graus de glória que acompanham cada

l ia ç ã o ) .

Esse entendimento do texto exonera-nos de

um dos dois ministérios. Êxodo 34 está claramen­

qualquer interpretação que o considere uma refe­

te em debate aqui, e também pode ser verdade

rência de Paulo a duas ahanças sequenciais — a

que as interpretações midráshicas da passagem

primeira, do judaísmo, seguida pela segunda, do

estejam por trás dos comentários de Paulo. O

cristianismo. 0 problema dessa passagem, natu­

fato de Moisés ser inserido no debate tem levado

ralmente, é seu conteúdo midráshico e o uso que

alguns intérpretes a enxergar aqui um contras­

Paulo faz de uma alegoria. Não obstante, o que

te simples e inequívoco entre a antiga e a nova

de mais importante Paulo deseja realçar é que,

dispensações.

no ato de gerar filhos, o tipo ou a qualidade dos

O contexto, no entanto, mostra Paulo entriste­

filhos depende da linhagem dos pais. Isso corres­

cido pelo fato de os corintios estarem impressio­

ponde ao sentido geral de aliança, que necessa­

nados com cartas de recomendação enviadas por

riamente traz no âmago algum tipo de vinculação

missionários rivais. Paulo não deseja recomendar

imediata — ainda que não seja uma vinculação

a si mesmo nem necessita, como no caso de al­

terrena, mas apenas teológica — dos que foram

guns, de tais cartas. A “carta” de Paulo são os

gerados pela Palavra de Deus.

corintios, e o autor dessa carta é Cristo; a carta do

1.2

1 e 2Coríntios. Temos em ICoríndos 11.25 apóstolo é escrita pelo Espírito do Deus vivo, não

a seguinte versão das palavras de Jesus na Última

com tinta sobre papiro (v.

E s p ír it o S a n t o ) .

Paulo tem em mente Ezequiel 11.19, não Jere­

Ceia: “Este cáhce é a nova aliança [kainë diathêkê] no meu sangue”. Lucas também inclui o adjeti­

mias 38.31

vo “nova”, mas há uma forte tradição acadêmica

a temática do coração é extraída da passagem de

que considera ainda mais antiga a forma marca-

Ezequiel, que inclui o tema do Espírito, totalmen­

na dos termos da instituição da ceia

te ausente no texto de Jeremias. Ele também cha­

(J e r e m i a s )

.0

(lxx).

s. J. Hafemann insiste em que

que importa para nosso estudo é saber se com o

ma atenção para o fato de que, quando tomamos

acréscimo de “nova” pretendia-se fazer menção

como ponto de partida as passagens que Paulo

a algo realmente diferente. Talvez seja somente

realmente tinha em mente, não precisamos esta­

a explicitação de algo já implícito na morte de

belecer uma contraposição rigorosa entre tinta e

Cristo (v.

espírito, ou entre pedra e coração, nem mesmo

CEIA

do

Senhor) .

81 I

M L I A N l jA , N U V A A L IA N Ç A .

rAULU, MTOS, HEBREUS

desenvolver esses contrastes numa antítese abso­

apoiadas pela maioria dos manuscritos, parece

luta entre a dispensaçâo da L ei e a nova díspen-

que aqui Paulo tem primordialmente em vista a

sação do evangelho. Ezequiel não pensava que

aliança abraâmica. 0 foco está no chamado e na

a esperança da obra futura de Deus no coração

eleição de Abraão, que em Romanos 4 é retratado

alterasse a validade da Lei. A comparação que

como um paradigma do crente.

se pretende aqui é que Paulo entendia seu minis­

Em Romanos 11.27, Paulo faz um amálgama

tério a seus convertidos como o correspondente

de duas citações, Isaías 59.12 e Isaías 27.9, a fim

escatológíco da outorga da Lei. Paulo enxerga a si

de apresentar uma promessa de redenção futura

mesmo no ministério do evangelho como o canal

para Israel, a despeito de sua recusa ao evange­

do Espírito, exatamente como Moisés fora o canal

lho na época; “Esta é a minha aliança com eles,

da Lei, o legislador.

quando eu tirar os seus pecados”. O argumento

A relação entre a atividade de Deus em Moi­

da oliveira, bem como de forma geral o tema de

sés, o canal da Lei, e sua nova atividade em Pau­

Romanos, é que, apesar do antagonismo da época

lo, 0 canal do Espírito, é mais bem expressa no

em relação ao evangelho, a eleição de Israel ain­

argumento do tipo qal wahomer (“quanto mais

da se mantém. “Deus não rejeitou o seu povo [...]

ainda”). 0 movimento se dá a partir de algo

Israel” (Rm 11.1,2,7). A aliança está assegurada,

glorioso para algo ainda mais glorioso. De todo

e a eleição de Israel não é posta em dúvida, pois

modo, quando Paulo afirma, em 2Coríntios 3.13,

“os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis”

que Moisés pôs um véu sobre o rosto para que

(Rm 11.29).

os israeUtas não fixassem os olhos no to telos tou

Embora não possamos insistir na afirmação de

katargoumenou ( “restante [da glória] que se dis­

que a teologia de Paulo era aliancística no senti­

sipava”), ele não pode de maneira alguma estar

do em que ele explicitamente usou a terminologia

se referindo ã aliança como passageira, já que

da aliança, pode ser que houvesse em Roma uma

diathêkê é um substantivo feminino, e o esplendor

compreensão equivocada da aliança com Israel,

passageiro é assinalado por um particípio neutro.

resultante do êxito da missão de Paulo aos gentios

A questão imediata de ZCoríntios 3—4 são

(v.

C am pbell).

Em vista disso, Paulo concentrou

dois conceitos de ministério cristão. Paulo não

seu pensamento em Romanos no tema da aliança.

está se dirigindo aos israelitas no Sinai, mas aos

Enquanto em Gálatas Cristo é “o descendente”,

cristãos corintios e aos adversários dele. Foi a

em Romanos o povo da fé é a “descendência”, e

mente destes que se tornou insensível, e é sobre

há uma continuidade “de fé em fé” , abrindo-se a

0 coração destes que repousa um véu. Concluí­

ahança para incluir também os gentios.

mos, portanto, que, apesar da ocorrência sem

1.4

Conclusão. R. D. Kaylor sustenta que o

paralelo de “antiga aUança” nessa passagem, não

papel da aliança opera em dois níveis na teolo­

temos autorização para lhe impor a leitura de um

gia de Paulo: no nível das ideias e no nível das

contraste absoluto entre duas formas antitéticas

convicções. Paulo talvez nem sempre tivesse essa

de salvação, típicas de algumas teologias cristãs

distinção em mente, Kaylor afirma, mas, ainda as­

posteriores.

sim, a aliança na qualidade de convicção funcio­

1.3

Romanos. Pode estar implícito um rela­ nava como presença persistente e como realidade

cionamento aliancístico quando Paulo se refere

dominante na vida, obra e pensamento de Paulo.

aos romanos como agapêtoi theou (“amados [de

Se Romanos tivesse sido escrita antes de

Deus] ”) e klêtoi hagioi (“chamados [para serdes]

Gálatas, seria possível afirmar que o pensamen­

santos”). Há somente duas referências explícitas

to aliancístico ou heilsgeschichtlich (relacionado

a aliança na carta: Romanos 9.4 e Romanos 11.27.

ã história da salvação) é um vestígio do pensa­

Em Romanos 9.4,5, Paulo menciona a ahança

mento judaico passado de Paulo, que será pos­

como um dos privilégios a que Israel tem direito,

to de lado a certa altura. Mas a questão é bem

junto com a fihação (v.

a glória,

mais complexa. Concentra-se no problema do

a promulgação da Lei, o culto, as promessas e

significado de “descendência de Abraão”. No

a d o ç ã o , f il i a ç ã o ) ,

os patriarcas. Quer sigamos a leitura no singular

caso de Sara — em que descontinuidade e rup­

de “aliança” em P'“', quer as “alianças” plurais

tura da ahança pareciam inevitáveis — , Deus

I 82

A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H eb r eu s

interveio milagrosamente para gerar um herdeiro

Por várias razões, ao que tudo indica, Paulo

(cf. Is 54.1). Isso podia ser interpretado como um

não fazia uso freqüente de uma terminologia cla­

sinal de que Deus manteria uma continuidade

ramente aliancística. No entanto, ela ocorre em

terrena (cf. Rm 4.19), mas podia ser também o

pontos importantes de alguns de seus escritos.

oposto — a atividade divina da nova criação. De­

A frequência de “chamado” , “eleição” e termos

vemos ressaltar, no entanto, que no caso de Sara

relacionados em ICoríntios, por exemplo, pode

se trata de criatividade divina em relação ao povo

ser um indício de que era significativo no pensa­

da promessa. Só mais tarde na história é que essa

mento de Paulo. Mas, seja qual for a conclusão

criatividade se estendeu além de Israel e alcançou

a que chegarmos com base no que se afirmou

os gentios, mesmo assim por meio de Jesus Cris­

acima, está bem claro que, quando Paulo fez uso

to, “ da descendência de Davi”.

dos termos “antiga aliança” e “ nova aliança”, não

0 conceito aliancístico denota continuidade no

incluiu muitas das ideias associadas de um cris­

propósito divino na história. Depende primordial­

tianismo posterior e mais desenvolvido. Como

mente da fidelidade de Deus (e.g., Rm 3.21-26).

lembra W. D. Davies, Jeremias não aguardava

Mas como é possível expUcar suficientemente

com expectativa uma nova lei, mas “ minha lei” ,

uma continuidade terrena no encadeamento fé-

e 0 adjetivo hãdãsh, de Jeremias 31.31, pode ser

Abraão-Isaque-Jesus? Em Romanos 9.7, Paulo

aplicado à lua nova, que é simplesmente a velha

afirma que não são os descendentes físicos so­

lua a uma nova luz. [W. S.

mente que são filhos de Abraão, mas os descen­

C am pbe ll]

dentes físicos que também compartilham a fé de seu pai Abraão. Só em Romanos 9.22-24, Paulo

2. Atos e Hebreus 2.1

menciona a inclusão dos gentios. Os gentios não

Observações lexicais. A palavra “aliança”

são incluídos isoladamente, mas nos fiéis e com

[diathêkê] aparece poucas vezes nos escritos pos­

os fiéis de Israel (cf. Ef 2.11-22).

teriores do NT — duas vezes em Atos (At 3.25

E.

Kãsemann corretamente insiste em afirmar 7.8), dezessete vezes em Hebreus (Hb 7.22

que o relacionamento correto e a retidão só po­

8.6,9[2x],10; 9.4[2x],15[2x],16,17,20; 10.16,29

dem ser nossos à medida que Deus no-los con­

12.24; 13.20) e uma vez em Apocalipse (Ap 11.19

cede novamente cada dia (i.e., em fé). Mas isso

v.

quer dizer que a revelação de Deus chega ao ser

ça” [kainê diathêkê] aparece com ainda menos

A p o c a l ip s e , L iv r o de ) . A

expressão “ nova alian­

humano apenas de modo pontual, como “ um raio

frequência — três vezes em Hebreus (Hb 8.8[cit.

inesperado”? Ou a revelação tende a ocorrer no

Jr 38.31,

contexto de uma família de crentes ou de uma

meros praticamente se mantêm quando se acres­

comunidade mais ampla de fé? 0 problema com a

centam as construções que comportam a mesma

lxx;

Jr 31.31,

tm ];

9.15; 12.24). Os nú­

última visão é que a história não é simplesmente

carga semântica — “aliança melhor” [kreitton

o registro de conquistas divinas, mas também da

diathêkê, Hb 7.22; 8.6), “aliança eterna” [diathêkê

pecaminosidade humana. Foi o desespero de Je­

aiõniou, Hb 13.20) e a referência ã “primeira

remias diante dessa pecaminosidade que o levou

aliança” [prõtê [diathêkê]], Hb 9.15; cf. Hb 9.1: hê

a apresentar uma “ nova aliança”.

prõtê [diakaiomata]], que faz supor uma segunda

Os cristãos têm a tendência de considerar a

ou nova aliança.

“nova aliança” de Jeremias a base clara para o

Essa relativa ausência de emprego do termo

conceito cristão plenamente desenvolvido de

pode parecer surpreendente, sobretudo porque

uma nova dispensaçâo. Essa interpretação então

a Bíbha cristã é dividida em dois “testamentos”

é imposta de forma geral aos escritos de Paulo via

(lat-, testamentum: “aliança”) e porque aliança é

Carta aos Hebreus. Não está, no entanto, de ne­

a “ metáfora-chave” para representar o judaísmo p. 4). No entanto, a ausência de uma Un­

nhuma maneira claro que a “ nova aliança” fosse

(S eg al,

um termo amplamente utilizado no cristianismo

guagem aliancística perceptível e de vasto empre­

mais primitivo. É sem dúvida razoavelmente cor­

go nos escritos cristãos primitivos talvez se deva a

reto afirmar que a “nova aliança” era um conceito

vários fatores. 1) A identidade e os feitos de Jesus

raro até os tempos da morte de Paulo.

como mediador ofuscaram o que ele mediou, a

I 83 I

H L I A I M l,« , N U V A A LIA IM l,A . T A U L U , M I U S ,

n tB R tU i

nova aliança. O contraste resultante não era entre

que as bênçãos de Javé seriam uma consequência

uma antiga aliança judaica e uma nova aliança

da obediência, que o juízo dele seria derramado

cristã, mas entre a primeira aliança e Jesus. Para

sobre a desobediência deles e que o perdão das

0 cristianismo primitivo, a cristologia passou a ser

transgressões poderia ser obtido por meio do ar­

um modo de falar sobre a nova aliança. 2) A iden­

rependimento e do sacrifício. Como demonstra E.

tificação de Jesus com a nova aliança talvez ope­

P. Sanders, esse “padrão de religião” (a que de­

rasse num nível tão profundo de convicção cristã

nomina “nomismo aliancístico”) era um recurso

compartilhada que raramente necessitava de uma

unificador de vários grupos judaicos a partir de

explanação mais abrangente nos escritos cristãos,

Deuteronômio.

0 que de fato não aconteceu. 3) Os cristãos, ao

A ahança é também um fio comum que per­

mesmo tempo que tentavam mostrar a deficiência

corre todo o

teológica de seus contemporâneos judeus, procu­

cada ao desenvolvimento e exphcação da aliança

ravam fundamentar sua identidade nas Escrituras

firmada por meio de Moisés. Os livros históricos

judaicas. 0 impulso por demonstrar um vínculo

mostram as dificuldades persistentes de Israel,

AT.

Boa parte do Pentateuco é dedi­

histórico e teológico com predecessores judeus

apresentando-as como resultado da desobediên­

pode muito bem ter moderado a apropriação cris­

cia à ahança. Também para os profetas, os des­

tã de uma nova linguagem aliancística. Diante

lizes aliancísticos de Israel são a principal razão

desses fatores, afinal, por que o cristianismo ain­

para o castigo do ExíUo. Os profetas também se

da assim usou uma linguagem aliancística?

referem ao futuro em termos aliancísticos. Deus

2.2

Antecedentes veterotestamentáiios. O vo­ restabelecerá a aliança mosaica, retratada como

cábulo hebraico bérít é com muita frequência tra­

aliança ora de amor (Os 2.16-20), ora de paz

duzido por “aliança”, embora possua um espectro

(Ez 34.25; 37.26), ora “eterna” (Is 61.8; Jr 32.40;

semântico muito mais amplo (v.

50.5). 0 profeta Jeremias até mesmo fala de uma

B arr) .

De especial

relevância é o uso de bérít em referência ao relacio­

“nova aliança” que implica perdão, reconcihação

namento especial de Javé com seu povo.

e recriação sem precedentes (Jr 31.31-33). Os pro­

Quatro alianças em especial assumem impor­ tância destacada para a tradição judaica e do

fetas também universalizam a aliança particular

at:

dada a Israel: a futura aliança inclui o mundo in­

a aliança incondicional de Deus com o mundo

teiro (Is 42.6; 49.6-8). Essa concepção aliancísti­

por meio de Noé (Gn 6.18; 9.8-16); a promessa

ca de contornos escatológicos e universais — que

de terra e de posteridade a Abraão (Gn 12.1-3;

reflete de forma autêntica as ahanças que Deus

15.18,19; 17.1-4), reiterada aos ancestrais Isaque,

estabeleceu com Davi, Israel, Abraão e Noé —

Jacó e José (Gn 26.1-5; 28.13-15; 48-50, pas­

proporciona a estrutura conceituai para a com­

sim); a aliança régia e posteriormente messiâni­

preensão da hnguagem da nova aliança no

ca com Davi (2Sm 7.1-17; SI 89; Is 9.2-7; SI Sa,

2.3

nt.

A aliança em Atos. Em várias ocasiões.

18— 19); e a aliança condicional firmada entre

Atos recorre à história da ahança de Israel para

Deus e Israel no Sinai (Êx 19—24; 34; Dt 5—28).

identificar os seguidores do Jesus ressurreto

Apesar da multiplicidade de alianças e de qual­

como herdeiros genuínos da aliança. Atos logra

quer tensão que possa ter existido entre elas, a

fazê-lo mesmo sem uma vasta referência à pa­

aliança mosaica é aquela por meio da qual todas

lavra diathêkê (que aparece apenas duas vezes:

as outras devem ser entendidas

At 3.25; 7.8), usando em vez disso a palavra

( C h il d s ,

p. 419).

No âmago da aliança mosaica está a escolha

“promessa” para mostrar como o cristianismo se

de Israel por Javé para ser seu povo e a promessa

identificava como o povo da ahança com Deus

feita por Javé, de que ele seria o Deus de Israel.

(At 1.4; 2.33,39; 7.17; 13.23,32; 23.21; 26.6).

De sua parte, Israel devia corresponder obedecen­ do à

L e i.

A eleição e a Lei assim davam forma ã

Os sermões de Pedro em Atos 2—3 ilustram essa identificação. Pedro proclama que a ressur­

prática religiosa judaica. Os judeus acreditavam

reição de Jesus cumpre o “juramento” que Deus

que haviam sido eleitos pela graça, que deviam

prometera a Davi (de que um dos descendentes

corresponder às manifestações históricas da mi­

de Davi herdaria o trono, At 2.30; cf. SI 132.11) e

sericórdia de Javé por meio da obediência à Lei,

a promessa feita a Moisés (de que Deus levantaria

a 84 I

A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s

um profeta como ele, At 3.22; cf. Dt 18.15,16).

dele. Vê-se isso com mais clareza no relato da con­

Além disso, o arrependimento, o batismo, o per­

versão de Cornélio (At 10.1— 11.18) e do Concílio

dão e a recepção do Espírito Santo confirmam a

Apostólico (At 15.1-29). Foi necessária uma visão

“promessa” de Deus (At 2.39) e tornam os cren­

celestial e uma ordem repetida três vezes para

tes “filhos dos profetas e da aliança” (At 3.22-26).

convencer também a Pedro de que não significa­

0 sermão de Estêvão ressalta como a aliança

va nenhum rompimento aliancístico “ misturar-se

de Deus com Abraão (At 7.2-8) resume a histó­

com não judeus ou aproximar-se deles” (At 10.28).

ria de Israel e assim também a do cristianismo.

A vinda impressionante do Espírito (At 10.44-48),

A aliança de Deus com Abraão é vista como um

não diferente daquela ocorrida no Pentecostes,

começo em que realizações parciais estão inter­

confirmou para ele e a igreja de Jerusalém que a

ligadas a novos começos; histórias com novas

promessa de perdão e salvação de Deus por meio

promessas estão embutidas em outras narrativas

de Jesus era para todos (At 11.17,18). O Concí­

mais antigas e fundacionais

Por exemplo,

lio Apostólico (At 15) não somente sancionou de

a predição feita por Moisés de um novo profe­

modo oficial a inclusão dos gentios, mas também

ta encontra-se na história de Abraão (At 7.37).

esclareceu o papel da circuncisão e da Lei de Moi­

Jesus, como profeta semelhante a Moisés, é as­

sés na salvação. Pedro sustenta que Deus não faz

sim situado sem rodeios na aliança abraâmica. A

nenhuma distinção: todos são salvos “pela graça

força retórica dessa sutura de narrativas alcança

do Senhor Jesus” (At 15.11). Tiago relaciona a in­

o ápice no apelo final. Estêvão ridiculariza os ju­

clusão dos gentios com a ahança citando uma se­

deus que 0 ouvem por serem “teimosos” e “ in­

quência de textos proféticos (Am 9.11,12; Jr 12.15;

circuncisos de coração” , um povo que “sempre

Is 45.21). Os cristãos não só são o verdadeiro povo

[resiste] ao Espírito Santo” (At 7.51). Faz isso

da aliança, mas também agora se entende que a

precisamente porque eles não conseguiram ver a

aliança inclui os gentios.

(D

ah l).

associação que há entre Jesus e a própria história

Em Atos, as promessas aliancísticas dadas a

aliancística deles (At 7.52,53). 0 fato de ele recor­

Israel jamais são retiradas. Israel não é rejeitado

rer de forma sistemática a Abraão dentro de seu

(At 15.46; apesar de 28.25-28). É melhor falar de

sermão situa assim os que seguem a Jesus como

uma separação dentro de Israel, com a igreja (des­

o verdadeiro Israel.

crita em Atos como “crentes”, “ irmãos” , “santos”

O sermão de Paulo em Antioquia da Pisídia

ou “ discípulos” ; mas v.

ig r e j a

quanto a uma lei­

vincula explicitamente a mensagem a respeito de

tura diferente da eclesiologia de Lucas) dando

Jesus à história da aliança de Israel. A história da

continuidade à linhagem ininterrupta desde

aliança de Israel inclui eleição, Êxodo, peregrina­

Abraão. Não há nenhum “ novo” Israel. A igreja é

ção no deserto, conquista, a promessa da terra, os

o verdadeiro Israel, o verdadeiro povo aliancístico

juizes, os profetas e o ofício de rei (At 13.17-21).

de Deus. Atos não realça a inadequabilidade da

Essa aliança agora inclui outra, pois, da descen­

aliança mosaica (mas cf. At 13.39; 15.10), mas

dência de Davi, “conforme a promessa. Deus

apenas a desobediência do povo. Na reaUdade,

trouxe a Israel o Salvador, Jesus” (At 13.23; 26.6).

Atos destaca o caráter profético da aUança: seus

Na reahdade, o evangelho de Paulo é que todas as

elos narrativo e promissório com a mensagem e

promessas aliancísticas de Deus se cumprem em

com 0 movimento em torno de Jesus. Atos retra­

Jesus (At 13.33). O sermão de Paulo assim ecoa

ta a comunidade e a mensagem invariavelmente

os temas já ouvidos no discurso de Pedro e no

como o destino pretendido de Israel. 2.4

de Estêvão, a saber, o cristianismo é o verdadeiro herdeiro das promessas da aliança judaica.

A nova aliança em Hebreus. Nenhum do­

cumento do NT reflete tão extensamente a nova

Se a história da aliança de Israel fosse capaz

aUança quanto Hebreus. Embora o livro esteja re­

de mostrar que os seguidores judeus de Jesus

pleto de figuras e de terminologia, é a seção cen­

eram os herdeiros genuínos, então um recurso à

tral (Hb 4.14— 10.18 que ressalta a relação entre a

aliança também mostraria que os gentios, povo

nova aUança e a antiga.

tradicionalmente compreendido como excluído

A seção central de Hebreus pode ser dividi­

da aliança, são (e sempre foram?) também parte

da em duas partes: a primeira metade sustenta 85 I

que Jesus foi designado sumo sacerdote supe­

de transformação moral que o purificará comple­

rior, eterno segundo a ordem de Melquisedeque

tamente (Hb 9.14; 10.14).

(Hb 5.1— 7.28), ao passo que a segunda metade

S. G. Wilson percebe nesses e em outros con­

(Hb 8.1— 10.18) examina o caráter do ministério

trastes de Hebreus um esforço inegável, ainda que

sacerdotal de Jesus (Hb 8.1-6), a natureza da nova

difícil de aceitar, por “ denegrir” a antiga aliança

aliança, da qual ele é o mediador (Hb 8.7-13)

e assim o judaísmo — inferência não necessaria­

e a oferta da nova aliança que está incluída em

mente exigida pelas evidências. Wilson chama

seu ministério (Hb 9.1— 10.18. 0 autor começa

atenção para a conotação pejorativa de expres­

e termina essa segunda seção citando a profecia

sões como “ fraqueza e inutilidade”, “ sombra” e

de Jeremias 31 sobre a nova aliança (Hb 8.8-12;

“anulado” (v.

10.16,17). Assim, diante do cenário do sistema

deva negar a natureza comparativa de boa parte

sacrificial e sacerdotal do

W il s o n ,

p. 117-21). Embora não se

e no horizonte de

de Hebreus, sobretudo de Hebreus 8.1— 10.18,

esperança gerado pela profecia bíblica, Hebreus

tampouco o papel positivo da primeira aUança

at

apresenta uma argumentação expositiva bem

deve ser desconsiderado. Afinal, a nova aUança,

fundamentada, identificando Jesus como o sumo

que Jesus estabeleceu, “auxilia [...] a descendên­

sacerdote superior, celeste e sem pecado, media­

cia de Abraão” (Hb 2.16).

dor de uma aliança nova e melhor.

A valorização que Hebreus faz da nova alian­

Inúmeros contrastes podem ser detectados

ça em detrimento da antiga não era uma polê­

na segunda metade dessa seção central. A anti­

mica antijudaica propositada, como Wilson quer

ga aliança era terrena; a nova aUança é celestial

nos fazer crer, mas uma consequência natural da

(Hb 8.1; 9.1). O ministério da antiga aUança era

natureza escatológica da nova aUança. A antiga

figura e sombra (Hb 8.5; 9.23; 10.1); a nova aUan­

aUança, atada a este “tempo presente” (Hb 9.9),

ça é verdadeira (Hb 9.24; 8.2) e real (Hb 10.1). A

era vista como algo que “ se torna antiquado e en­

antiga aUança contava com sacerdotes humanos

velhece” e “está perto de desaparecer” (Hb 8.13);

destinados a morrer; a nova aUança tem um sumo

a nova aUança a supera porque está fundada em

sacerdote que vive eternamente (Hb 9.28). A ad­

“melhores promessas” (Hb 8.6), as da vida da

ministração de um sacerdote sob a antiga aUan­

ressurreição. 0 contraste resultante não é entre

ça ocorria segundo os ditames da Lei (Hb 8.4); a

algo mau (antiga aUança/judaísmo) e algo bom

nova aliança é administrada direta e divinamente

(nova aliança/cristianismo), mas entre algo bom

(Hb 8.1,2). Um sacerdote sob a antiga aUança

(antiga aUança) e algo melhor (nova aUança).

tinha de oferecer sacrifícios pelos próprios pe­

Essa é uma maneira muito judaica de raciocinar

cados (Hb 9.7); a impecabiUdade de Jesus signi­

conhecida como qal wahomer, o argumento que

fica que ele não ofereceu sacrifício por si mesmo

vai do menor para o maior: se a antiga aliança era

(Hb 9.7). Sob a antiga aUança, múltiplos sacerdo­

boa, então quão melhor há de ser a nova? 0 argu­

tes tinham de entrar repetidas vezes no santuário

mento de Hebreus sobre o relacionamento entre

para oferecer inúmeros sacrifícios (Hb 9.6,7,25;

a antiga e a nova alianças nesse ponto é assim

10.11); sob a nova aliança, um único sumo sa­

muito semelhante ao argumento de Paulo (2Co 3)

cerdote, Jesus, entra no santuário celestial uma

sobre as duas alianças.

vez (por meio de sua morte e ressurreição) e ofe­

0 autor de Hebreus usa figuras espaciais e

rece um único sacrifício de uma vez por todas

temporais para demonstrar a natureza compa­

(Hb 9.12,26; 10.10,12). A antiga aliança continha

rável, mas provisória da aUança do Sinai. As

0 sangue do sacrifício de animais (Hb 9.18-22);

refinadas analogias entre os elementos terrenos

sob a nova aliança, Jesus oferece o próprio san­

e celestiais da antiga e da nova alianças servem

gue (Hb 9.12,26). A eficácia das ofertas da anti­

para mostrar semelhança, enquanto as citações

ga aUança era limitada (Hb 10.1,2); a eficácia do

estratégicas de Jeremias 31 demonstram que des­

sacrifício da nova aliança foi definitiva — não há

pontou um novo dia na história da salvação.

mais ofertas pelos pecados. Sob a antiga aUança,

2.5

Resumo. Atos e Hebreus concordam em

0 adorador não podia ser aperfeiçoado (Hb 9.9);

que Deus demonstrou fidelidade aUancística na

sob a nova aUança, entra em vigor um processo

morte de seu FUho. No entanto, cada um assume

I 86

A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s

uma posição diferente quanto à relação da nova

B a s s le r ,

aliança com a antiga. Atos invariavelmente apre­

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senta os que seguem a Jesus como o verdadeiro

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87 I

Ver Jesus,

julg am ento d e .

/ - r r u v - M L ir :) !:, l í v r u

A n tic ris to .

uc

Ver A p o c a l ip s e ,

L

O exemplo mais notável de apocalipse no

iv r o d e . at

A n t ít e s e s .

Ver

é 0 livro de Daniel, que passou a servir de

modelo para escritos apocalípticos posteriores.

L ei i .

Mas outras obras proféticas também contêm A

p o c a l ip s e ,

L iv r o

traços relacionados ao pensamento e ao modo

de

Apocalipse é tido por hermético pela maioria dos

de

leitores da atualidade. Isso se deve em grande

exemplo, é por vezes denominado “ pai do gênero

expressão

apocalípticos.

Ezequiel,

por

parte ao desconhecimento reinante em relação

apocalíptico” . Muitos trechos de Isaías 40—55

aos Uvros proféticos do

bem como à quase to­

prefiguram o estílo e o conteúdo apocalípticos,

tal ignorância em relação aos escritos apocalípti­

ao lado de Isaías 25—27 e Zacarias 9— 14. Todas

cos judaicos e ao ambiente histórico do livro que

essas passagens do

determina seu conteúdo. Neste verbete, tentare­

presentações da intervenção de Deus com o pro­

mos elucidar esses aspectos para assim permitir

pósito de salvar seu povo.

at,

que se capte com maior facilidade a mensagem

at,

e outras ainda, contêm re­

Apocalipse inicia-se com as palavras “ Re­ velação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu...”

do último livro da Bíblia. 1. Gênero

Não podemos ter absoluta certeza de que João

2. Data

pretendia classificar sua obra como gênero apo­

3. Situação histórica

calíptico. Estaria ele dando a entender que essa

4. Conteúdo e estrutura

revelação, dada por Deus a Jesus (Ap 1.1,2), con­

5. Autoria

sistia na declaração definitiva daquilo que outros

6. Expectativa do Anticristo

escritos do gênero buscavam oferecer? A natu­

7. Propósito de Apocalipse

reza do que se segue pode ser vista como uma

8. Importância de Apocalipse para hoje

forma de confirmar essa teoria. Se admitirmos

9. ApocaUpse nos mais antigos escritos pós-

que 0 livro de fato se apresenta dessa forma, essa

neotestamentários

autoapresentação seria da maior importância na interpretação da linguagem e do simbolismo

1. Gênero

do livro. Boa parte dos ensinamentos de Jesus

1.1 Literatura apocalíptica. Apocalipse é a úni­

é transmitida por meio de

ca obra desse gênero no

mas havia muitas

Apocalipse emprega figuras parabólicas para de­

outras semelhantes no mundo antigo, escritas

linear sua representação do passado, do presente

especialmente por judeus, mas posteriormente

e do futuro da história. A compreensão do uso

também por cristãos. Tais obras também leva­

de tais parábolas em literaturas afins é de valor

vam 0 nome de Apocalipse, termo grego oriundo

inestimável para a interpretação das parábolas

do verbo apokalyptõ, que quer dizer “descobrir”,

do apocaUpse de João. A linguagem pictórica

“revelar” ou “expor” o que está oculto. Em ge­

dos apocalipses judaicos está arraigada no

ral, essas obras tinham por intuito manter viva

os autores do

nt

,

at

parábo las;

o

livro de

at

,

e

por sua vez usavam figuras co­

a chama da fé em momentos de dificuldades e

muns às nações do Oriente Médio. Sem dúvida, o

conservar a esperança em relação à chegada do

profeta João estava familiarizado com todo esse

dia do Senhor e do reino de Deus (v. D

e us) .

de

cenário, pois a quase totalidade dos estudiosos

Por conseguinte, o movimento apocalíp­

reconhece que sua obra reflete uma mente embe­

r e in o

tico não raro é visto como filho da profecia. Os

bida do

apocalipses judaicos, no entanto, não se ocupam

Escrituras hebraicas. Conhecer esses anteceden­

exclusivamente da esperança escatológica do

tes é condição sine qna non para o entendimento

povo judeu, pois muitas vezes contêm também

correto de seu livro.

descrições dos céus, da terra e de seus habitan­ tes, incluindo as forças angelicais e demoníacas.

1.2

at,

sendo sua linguagem dominada pelas

Profecia. A segunda declaração de Apoca­

lipse é: “Bem-aventurados os que leem [a outros]

Ainda assim, é a escatologia dos escritos apoca­

e também os que ouvem as palavras desta profe­

lípticos 0 que mais se tem em mente quando se

cia e guardam as coisas que nela estão escritas”.

fala de literatura apocalíptica.

Fica evidente que João sabe ter sido encarregado

I 88

A p o c a l ip s e , L iv r o de

pelo Senhor de escrever essa profecia e que foi

Não resta dúvida de que as sete cartas tinham

incluído no rol dos profetas de Deus. Como tal,

por objetivo beneficiar todas as sete igrejas ende­

ele compreende que se acha em linha de sucessão

reçadas. De modo significativo, todas as cidades

com os profetas da nova aliança. Mais de uma

em que as sete igrejas estavam localizadas eram

vez isso é mencionado em seu livro. 0 epílogo

centros de administração pública e de distribui­

relata o momento em que João se prostra aos pés

ção postal em sua região. Era possível, portanto,

do anjo que lhe mostrara as visões com o objetivo

que cópias de toda a profecia fossem despachadas

de adorar esse anjo, mas isso lhe foi proibido:

a igrejas situadas em outras cidades da província.

“ Não faças isso, porque eu sou conservo teu e de

As cartas do

teus irmãos, os profetas, e dos que guardam as

claro de serem lidas diante de congregações reu­

nt

foram escritas com o propósito

palavras deste livro. Adora a Deus” {Ap 22.8,9).

nidas, e o mesmo se aplica a Apocalipse como

Em Apocalipse 19.10, o anjo diz a João: “Sou con­

um todo, como deixa claro a bem-aventurança de

servo teu e de teus irmãos, que têm o testemunho

Apocalipse 1.3 e o epílogo: Apocalipse 22.6-21. Se

de Jesus [...], pois o testemunho de Jesus é o es­

Apocalipse era então uma carta às igrejas da Ásia

pírito da profecia”. Isso parece dar a entender que

romana, fica patente que era dirigida às circuns­

0 Espírito Santo, que inspira a profecia, também

tâncias dessas igrejas.

capacita os profetas a dar testemunho da revela­

Nesse aspecto. Apocalipse faz um contraponto

ção que Jesus trouxe e traz. Isso condiz com a

com 0 parágrafo de abertura de lEnoque, segundo

apresentação que se faz do conteúdo do/a Apo­

o qual aquilo que o profeta via era não “para esta

calipse/Revelação na primeira frase, na qual se

geração, mas para uma geração distante, ainda

afirma que é “a palavra de Deus e o testemunho

por nascer”. As circunstâncias e as necessidades

de Jesus Cristo” (Ap 1.2). À luz dessas declara­

das igrejas às quais João escreve estavam vivas

ções, relativas na realidade ao conteúdo do livro

em sua mente, tanto quanto estavam vivas para

como um todo, precisamos reconhecer que o/a

Paulo e outros líderes cristãos as circunstâncias

ApocaUpse/Revelação é obra do Espírito, o qual,

e as necessidades daquelas igrejas às quais es­

do Pentecostes em diante, capacitou os cristãos a

tes também escreveram. Reconhecer esse fato

dar testemunho profético da “palavra de Deus e

traz importantes consequências para a interpre­

[do] testemunho de Jesus”. Esse testemunho in­

tação da obra como um todo. 0 profeta recebeu

clui a palavra de Deus a respeito de sua vontade

a ordem de escrever às igrejas da Ásia romana

para a humanidade no presente e no futuro.

em vista de acontecimentos que estavam se de­

É evidente, portanto, que a obra de João

senrolando na época dessas igrejas, mas ele tinha

não deve ser vista nem como apocalipse exclu­

também por objetivo preparar essas igrejas para

sivamente, nem como profecia apenas, como se

o futuro. Assim como o restante das cartas do

esses termos fossem mutuamente excludentes. É

NT exige que se conheçam as circunstâncias das

preciso reconhecer que ela detém características

igrejas às quais eram endereçadas para que seu

dos dois gêneros, ou seja, deve ser definida como

conteúdo seja compreendido, o mesmo se dá com

profecia apocalíptica ou apocalipse profético, ou

Apocahpse. A desconsideração desse fato tem le­

receber as duas designações conjuntamente.

vado inúmeros leitores a tirar conclusões equivo­

1.3

Carta. Depois do primeiro parágrafo, João cadas do livro quando relacionam as personagens

saúda seus leitores seguindo a forma convencio­

e os acontecimentos nele contidos com pessoas e

nal em que se escreviam as

(Ap 1.4,5). De

acontecimentos da época em que vivem. Esse erro

igual modo, encerra a profecia com uma bênção,

de interpretação é corrigido sempre que fazemos

como é costume nas cartas do n t (Ap 22.21). Além

algum esforço para enxergar as circunstâncias

disso, João recebe ordem de escrever o que estava

tratadas no livro e entender a mensagem do h-

para ver e enviar a obra a sete igrejas na província

vro para os que viviam essas circunstâncias, bem

romana da Ásia (Ap 1.11). Todas essas igrejas con­

como para todas as gerações posteriores.

c a rta s

1.4

tam com uma breve carta endereçada a elas. A car­ ia sempre traz a exortação: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (e.g., Ap 2.11).

Liturgia. Não são poucos os livros do

que refletem elementos litúrgicos, especialmente orações, hinos e confissões de fé (v.

89 I

a d o ra çã o /

nt

> ^ r u i - M L i r > c ;, i

culto ) .

Exemplos que vêm

à

mente são Efésios 1

Jerusalém, ocorrida no ano 70 d.C. Se ApocaUp-

e a oração de Efésios 3.14-21; o hino cristológico

se 11.1,2 for interpretado literalmente, a passagem

de Filipenses 2.6-11 e o de Colossenses 1.15-20;

pode indicar que Jerusalém sofreu prolongado

0 breve fragmento de hino de Efésios 5.14 (tido

ataque e que o altar e o pátio externo do templo

por alguns estudiosos como uma composição fei­

ou foram sitiados, ou não puderam ser protegidos

ta especialmente para a celebração do batismo) e

das tropas romanas, ao passo que o santuário em

as várias “declarações de fideUdade” das Cartas

si foi conservado por Deus.

Pastorais. Apocalipse contém mais canções como

Nos capítulos finais do livro, Roma é chamada

essas espalhadas por suas páginas que qualquer

“ Babilônia” (v. Ap 14.8; 16.19; 17.5; 18.2,10,21).

outro escrito do

A substância e o contexto des­

A razão mais provável para Roma ser chamada

ses cânticos levaram M. H. Shepherd a propor que

de Babilônia é que, assim como Nabucodonosor,

a liturgia pascal primitiva das igrejas foi na ver­

rei da Babilônia, destruiu Jerusalém em 586 a.C.,

dade 0 modelo de Apocalipse. Essa interpretação

também Roma o fez nessa época. 0 canto fúne­

nt.

não encontra eco na maioria dos estudiosos, mas a

bre sobre Babilônia, em Apocalipse 18, enxerga a

presença de formas litúrgicas em tantas seções do

tirana Roma da época como mais uma Babilônia.

livro tem a sua importância; sua combinação com

Os apocalipses 4Esdras e ZApocalipse de Baraque

outras formas Utúrgicas precisa ser reconhecida.

foram escritos no fim do século i da era cristã e

1.5

Literatura dramática. Na tradição grega, também deram o nome Babilônia a Roma, pela

adoração e arte dramática estão intimamente re­

mesma razão.

lacionadas. A presença de muitos hinos em Apo­

Em Apocalipse 13.3 (cf. Ap 13.14), lê-se que

calipse impulsionou alguns intérpretes a enxergar

uma das cabeças da “besta”, o Anticristo, so­

na obra uma representação teatral dos tempos do

freu uma ferida mortal, mas reviveu e recebeu

fim. J. G. Bowman observa que o livro se compõe

de Satanás autorização para reger o império (cf.

de sete atos e sete cenas. Os hinos têm função

Ap 17.8). Parece tratar-se aí de uma referência à

semelhante à dos coros da dramaturgia grega: ilu­

crença da época segundo a qual a “cabeça” ferida

minam as divisões do livro. E. Schüssler Fiorenza

era Nero, que não tinha sido morto, nem por ele

reconhece isso quando afirma: “Eles [os hinos de

mesmo, nem por outrem, mas escapara e retor­

Apocalipse] atuam da mesma maneira que os co­

naria para governar o império. Apocalipse 17 tem

ros do teatro grego, preparando e comentando os

uma forma desenvolvida dessa teoria e represen­

movimentos dramáticos da trama”. Contudo, ela

ta a crença de que a besta Nero ressurgira dentre

também afirma que Apocalipse não é uma peça

os mortos e viria do Oriente com um exército con­

de teatro

p. 166), e com isso

federado para destruir a grande Babilônia. Essa

concorda a maioria dos estudiosos, ao mesmo

expectativa exigiria uma data posterior à morte

tempo que não hesitam em reconhecer que nesse

de Nero.

(S chü ssler F io r e n z a ,

livro se trata de uma obra de contornos notavel­

A opinião da maioria quanto ã data de Apo­

mente teatrais.

calipse é a de Ireneu, que escreveu o seguinte

2. Data

po depois, mas quase em nossos dias, próximo

a respeito do livro: “Isso se viu não muito tem­ Os estudiosos têm sustentado e continuam sus­

ao fim do reinado de Domiciano”

tentando duas possibilidades principais quanto ao

5.30.3). Eusébio citou essa opinião com aprova­

tempo de composição de Apocalipse, a saber, ou

ção

no turbulento período imediatamente posterior à

a respeito da data de Apocalipse encaixa-se com

(E usébio ,

( I reneu,

He,

Hi ec, 3.18-20; 5.8.6). Essa avaliação

morte de Nero (68-69 d.C.), ou mais para o fim do

outras evidências acerca da natureza e do conte­

reinado de Domiciano, por volta de 95 d.C.

údo do livro, acima de toda tentativa de represen­

A primeira teoria é sustentada com base na

tar 0 Anticristo como outro Nero.

possibilidade de que João tenha sobrevivido ã

A expUcação em Apocalipse 17.9-11 quanto ao

medonha perseguição dos cristãos encetada por

significado das sete cabeças da besta vem sen­

Nero e também no fato de não haver no livro

do detalhadamente examinada com o objetivo

nenhuma referência inequívoca ã destruição de

de apurar a data de Apocalipse, mas ainda sem

I 90

A p o c a l ip s e , L iv r o de

êxito. Dois significados são sugeridos no texto;

Domiciano, em cujo reinado, acredita-se, foi

um que identifica as sete cabeças com as sete co­

escrito Apocalipse, tinha a reputação de ser um

linas de Roma, e o outro, segundo o qual elas re­

monstro, o que levou ao extremo o culto ao impe­

presentam sete imperadores. As duas explicações

rador. Conta-se que ele erigiu um número imen­

são secundárias, uma vez que são uma forma de

so de estátuas dele próprio, exigiu ser tratado

aplicar a uma situação da época o antigo mito ou

de “nosso Senhor e Deus” (.dominus et deus] e

saga do monstro das profundezas, de sete cabe­

encetou uma perseguição cruel contra as igrejas.

ças, que se opunha aos poderes do céu. A lista

Thompson examinou com cuidado a veracida­

de imperadores até Domiciano é Júho César, Au­

de dessas afirmações e chegou à conclusão de

gusto, Tibério, Gaio, Cláudio, Nero, Galba, Oto,

que são infundadas. O retrato de Domiciano foi

Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano — doze ao

traçado alguns anos após sua morte por um cír­

todo. Desses, João informa que cinco caíram, um

culo de escritores reunidos em torno de Plínio,

ainda existe (o sexto), um está por vir (por

o Jovem, que incluía Tácito, Dião Crisóstomo e

um breve período apenas), o oitavo é um dos sete

Suetônio. Após o assassinato de Domiciano, Ner-

e será o Anticristo. A começar por Júho César,

va tornou-se imperador, mas seu reinado durou

João estaria escrevendo no reinado de Nero, mas

apenas dois anos (96-98 d.C.). Foi sucedido por

ainda permanecem as dificuldades apontadas. A

Tl-ajano, que reconheceu a necessidade de escri­

solução mais simples seria supor que os “cinco”

tores e oradores que pudessem promover suas

que “caíram” representam a maioria, o sexto é o

ideias. Encontrou-os em Plínio e seus amigos, e

imperador reinante, Domiciano; o sétimo reinará

todos eles procuravam seguir a política de exaltar

por pouco tempo, e depois virá o Anticristo.

Trajano contrapondo-o a Domiciano. Plínio, por exemplo, escreveu acerca do prazer de ter sido

3. Situação histórica

nomeado cônsul em setembro, mês de tríplice jú­

3.1 O culto ao imperador na Ásia romana. É

bilo, “o qual contemplou o afastamento do pior

preciso ter em mente que as igrejas às quais

dos imperadores [Domiciano], a ascensão do me­

Apocahpse

lhor [Nerva] e o nascimento de um ainda melhor

foi

escrito

estavam situadas

na

província da Ásia romana e que o culto (i.e.,

que o melhor” (i.e., Trajano; v.

P

l ín io

,

Pn, 92.4).

adoração) ao imperador havia sido adotado

Sobre esse procedimento, Thompson comen­

com entusiasmo na região, talvez mais que em

ta: “Os propagandistas de uma nova era precisam

qualquer outra parte do Império Romano. L. L.

afiar ambos os fios de sua espada de dois gumes;

Thompson salienta que o culto ao imperador teve

tanto o presente ideal quanto o passado perverso

seu apogeu no reinado de Augusto: “ Os discursos

precisam ser exagerados”

laudatórios feitos ao imperador eram expressos

trariando a afirmação de que Domiciano exigia ser

em Unguagem grandiloquente, à semelhança

tratado de "nosso Senhor e Deus”, Estácio relata

( T h o m pso n ,

p. 115). Con­

( T ho m pso n,

que, quando Domiciano foi aclamado Dominus

p. 159). Todas as cidades das sete igrejas tinham

em uma de suas saturnais, ele proibiu os que as­

dos discursos oferecidos aos deuses”

em seu meio a adoração ao imperador. Em mui­

sim procederam de tratá-lo dessa maneira

tas cidades, realizavam-se festas anuais, espe­

Silvae [Florestas], 1.6, p. 81-4). Não há nenhuma

(E stácio ,

cialmente no aniversário do imperador, e esses

referência a Domiciano como dominus et deus em

festivais eram financiados por pessoas de todas

qualquer inscrição, moeda ou medalhão da era do-

as camadas sociais. Thompson, no entanto, insis­

miciana. Sem dúvida, houve quem se referisse a

te em que não devemos exagerar a importância

Domiciano como dominus et deus, mas Thompson

da adoração ao imperador para os cristãos pri­

insiste em que se leve em conta o oportunismo

mitivos. Para ele, a questão principal girava em

popular entre os que procuravam obter benefícios

torno do relacionamento dos cristãos com os

do imperador

( T ho m pso n,

p. 105-6).

adeptos das seitas religiosas tradicionais, não da

Se Thompson elaborou uma boa Unha de ar­

relação deles com o culto ao imperador, pois tam­

gumentação para limpar a fama de Domiciano

bém eram oferecidos sacrifícios naquelas seitas

como monstro obcecado por sua divindade her­

(v.

dada, com outros ele subestima a ameaça que o

RELIGIÕES g r ec o - r o m a n a s ) .

91 I

culto ao imperador representava às igrejas e em

oferecer sacrifícios a ele próprio como represen­

vez disso atribui ao profeta João uma obsessão

tante de Zeus; a tentativa de Caligula de pôr uma

com o elemento apocalíptico judaico. Embora

estátua sua no templo de Jerusalém, e o pânico

reconheça que os escritos apocalípticos muitas

que esse plano causou entre os judeus de Jerusa­

vezes foram motivados pelas crises precipitadas

lém; a crueldade pavorosa de Nero em sua perse­

pela perseguição, Thompson nega que nos dias

guição aos cristãos de Roma durante o tempo de

de João existisse tal ação por parte das autori­

vida de João.

dades governantes na Ásia romana. Ele cita o

João conhecia o ensinamento do livro de Da­

conceito de “crise imaginada” proposto por J. J.

niel e sua atitude diante de governantes que afir­

ColUns, ou seja, o apocalíptico enxerga na situa­

mavam ser não somente divinos, mas também

ção em que ele vive uma crise que é inexistente,

estar acima dos deuses. Não que na interpreta­

mas “imaginada” por meio de uma interpretação

ção dele o imperador reinante se via dessa for­

das circunstâncias elaborada pela perspectiva das

ma, mas é evidente que ele conseguia enxergar

crenças apocalípticas (J. J.

p. 2-8). Longe

na busca entusiasmada do culto ao imperador a

de ser uma análise objetiva da sociedade da épo­

preparação para o surgimento de um Anticristo

ca, Thompson afirma, “a vida romana do século i

que não apenas declararia guerra à igreja, mas,

C o l l in s ,

aconteceu [...] num dos períodos mais integrados,

de modo surpreendente, destruiria o império (v.

pacíficos e significativos da história para a maio­

Ap 17.12-17).

ria dos que viviam no império. Essa confusão de

3.2

Perseguição. Opiniões anteriores de que

uma localidade social específica com a socieda­

Domiciano já havia começado uma persegui­

de como um todo não é incomum no estudo do

ção atroz contra a igreja não são comprovadas

cristianismo primitivo”

em Apocahpse. Referências como Apocalipse 2.10

( T ho m pso n,

p. 237, n. 10).

No entanto, é difícil compreender uma de­

e Apocalipse 2.13 dão sinais de uma hostilidade

claração como essa quando se tem em mente 1)

presente contra os cristãos, mas falam de uma in­

que a sociedade romana dependia de sessenta

tensificação futura dessa oposição. Não obstante,

milhões de escravos, cuja vida de escravidão, em

o fato de que João fora transferido para Patmos de­

grande parte, devia-se à subjugação de seu país

monstra que as autoridades governantes da Ásia

pelos exércitos de Roma, 2) que havia muitos

romana estavam tomando medidas contra a igreja

escravos compulsoriamente transformados em

cristã. João tinha sido desterrado em Patmos por

gladiadores para o divertimento das multidões

ser um ministro poderoso da Palavra de Deus e

nos anfiteatros, e 3) que havia muitas escravas

uma testemunha de Jesus, sendo visto pelas auto­

também compulsoriamente transformadas em

ridades, portanto, como um perigoso líder da seita

prostitutas. O profeta João refere-se a isso em seu

cristã. Dessa forma, a percepção dele acerca da

cântico de lamento pela queda da Babilônia e en­

natureza do cuho ao imperador era condicionada

cerra a lista de atividades comerciais da cidade

por sua experiência, não por discriminação.

com os itens “bois, ovelhas, cavalos e carros, es­ cravos e até almas humanas” (Ap 18.13). Ele não era um homem de mente tacanha, limitado a uma

4. Conteúdo e estrutura 4.1

Introdução (A p 1). O capítulo de abertura

congregação isolada numa área restrita. Exercia

é também uma introdução ao Uvro, com um pró­

um ministério influente sobre um grupo de igre­

logo (Ap 1.1-8) e uma visão do Cristo ressurreto

jas numa área que talvez fosse a mais cristiani­

recebida pelo profeta João (Ap 1.9-20). O prólogo

zada do Império Romano no fim do século i d.C.

dá a conhecer a origem e a natureza do livro, in­

Tinha condições de saber o que acontece quan­

voca sobre seus leitores e ouvintes as primeiras

do imperadores tomam medidas contra aqueles

sete bem-aventuranças da obra, transmite uma

súditos cuja consciência lhes proíbe reconhecer

saudação da parte do Deus trino e uno, dirige

a divindade desse governante. Por exemplo: a

uma doxologia a Cristo e faz duas declarações

ação de Antíoco Epifânio de compelir os judeus

proféticas a respeito do tema do Uvro. A visão

a abandonar sua religião e adotar a religião do

que se segue contém uma ordem a João para que

restante do território por ele dominado, incluindo

escreva o que está vendo a sete igrejas da Ásia

I 92

A p o c a l ip s e , L iv r o de

romana. A forma em que o Senhor ressurreto é

Deus: “Até quando?” Mas o sexto selo conduz os

retratado faz eco à maneira em que Daniel 7.9

juízos a seu ponto culminante, ao mencionar um

apresenta o Ancião de Dias

grande terremoto, o Sol escurecendo como tecido

[a r a :

“ancião bem

idoso”] e também em que o anjo poderoso é re­

de crina negra, a Lua tornando-se vermelha como

tratado em Daniel 10.5,6.

sangue, as estrelas caindo sobre a terra, o céu de­

4.2 Cartas às sete igrejas (Ap 2—3). Os capí­

saparecendo como um pergaminho que se enrola e

tulos 2 e 3 de Apocalipse trazem uma série de sete

cada ilha e montanha sendo retirada de seu lugar.

cartas endereçadas às igrejas citadas em Apoca­

Os reis e os poderosos gritam às rochas das monta­

lipse 1.11. São cartas bastante breves, lembrando

nhas para que caiam sobre eles e os escondam da

os oito breves oráculos de Amós 1—2. As cartas

face de Deus e da ira do Cordeiro, pois “chegou o

apresentam estrutura idêntica: uma declaração

grande dia da ira deles! Quem poderá subsistir?”.

introdutória do Cristo ressurreto, extraída da vi­

A passagem é constituída de referências proféti­

são de abertura e em geral pertinente ao conteú­

cas veterotestamentárias ao dia do Senhor (e.g.,

do da carta; elogio das qualidades da igreja e/ou

Is 13.10,13; 34.4; Sf 1.14,15), cujo sentido não é

crítica às suas falhas; uma promessa ao vencedor

a destruição do Universo, mas uma representação

relacionada às bênçãos que serão concedidas no

pictórica do pavor geral que será sentido quando o

reino de Cristo; e uma exortação para que se dê

Deus do céu se manifestar para julgar o mundo (cf.

ouvidos ao que o Espírito está dizendo às igrejas.

a cena do juízo final, Ap 20.11).

4.3 Visão da sala do trono celeste (Ap 4— 5j.

Em Apocalipse 6.12-17, chega-se ao fim da

Assim como a visão de Cristo em Apocalipse 1

rebelião da raça humana na história. Com a aber­

conduz às sete cartas, a visão do céu de Apoca­

tura do sétimo selo, em Apocalipse 8.1-5, são

hpse 4— 5 conduz ao corpo da obra. Ela abre a

respondidas as orações dos mártires que estão

sucessão de acontecimentos que conduzem ao

debaixo do trono de Deus e dos santos na terra, e

desvendamento do reino final de Deus (Ap 6— 19)

se desenrolam os acontecimentos concomitantes

e ao mesmo tempo determina o simbolismo da pri­

à vinda de Cristo em seu reino (com Ap 8.5; cf.

meira série de juízos messiânicos (Ap 6.1—8.5).

Ap 11.19; 16.17,18).

4.4 Selos, trombetas e taças (Ap 6— 16). A

Os juízos das sete trombetas são descritos de

esta altura, precisamos decidir como interpretar

forma semelhante à maneira em que se apresen­

a relação entre as três séries de juízos que do­

tam os juízos da abertura dos sete selos. Os juízos

minam a maior parte de Apocalipse (Ap 6.1—

das primeiras quatro trombetas são adaptações

19.10), retratadas por três símbolos: a abertura

dos juízos sobre o Egito, no Êxodo. São seguidos

dos sete selos de um documento que está nas

do anúncio de três ais que recairão sobre a terra,

mãos de Deus (Ap 6.1—8.5), o ressoar das sete

mas o terceiro ai é suspenso por um tempo, e, no

trombetas (Ap 8.6— 11.19) e o derramamento das

lugar dele, em Apocalipse 11.15-18, entoa-se um

sete taças da ira (Ap 15— 16). A interpretação que

cântico de triunfo que celebra a consumação do

se tem feito dessas três séries de juízos é que elas

reino de Deus:

se seguem uma à outra em sequência cronológica (v., e.g.. C ourt,

C h a r le s ,

p. 74-5;

l:xxi-ii;

R ow land,

Farrer,

1964, p. 9-23;

O reino do mundo passou a ser de nosso Se­

p. 416).

nhor e de seu Cristo, e ele reniará pelos sécu­

Há, no entanto, uma característica fundamental

los dos séculos. Os vinte e quatro anciãos que

das três séries de juízos que toma quase inaceitá­

estavam assentados em seus tronos diante

vel essa interpretação: cada uma delas encerra-se

de Deus prostraram-se sobre o rosto e adoraram

com uma descrição do dia do Senhor, que leva a

a Deus, dizendo: Graças te damos. Senhor Deus

uma revelação do reino fineil de Deus. A primei­

todo-poderoso, que és e que eras, porque assu­

ra série de juízos guarda estreita correspondência

miste teu grande poder e começaste a reinar.

com aspectos do discurso escatológíco de Marcos 13, embora pareça empregar a figura dos quatro ca­

Observe que, se os anciãos de Apocalipse 4.8

valeiros, uma adaptação de Zacarias 1 e 6. O quinto

cantavam: “... aquele que era, que é e que há de

selo revela o grito dos mártires debaixo do trono de

vir” , agora cantam “... que és e que eras” , pois

I 93

I

Deus já veio, e instaurou-se seu reinado de sal­ vação definitiva no reino concretizado de Deus.

no reino final de Deus. Da mesma forma, entre a sexta e a sétima trombetas, ocorre um interlúdio

O mesmo alvo foi sem dúvida conquistado no

mais extenso, no qual João é confirmado em seu

final do derramamento das sete taças de ira. Uma

ministérío profético (Ap 10), e um oráculo revela a

voz do templo e do trono proclama “Está feito”

vocação da igreja para executíir o testemunho pro­

(Ap 16.17; cf. Ap 21.6, em que o brado signifi­

fético poderoso esperado de Elias e de Moisés nos

ca que se chegou à realização final do propósito

últimos dias (Ap 11.1-13). Apocalipse 12— 14 for­

de Deus na Criação). Parece que, com o fim de

nece a mais longa interrupção nas visões de juízo.

cada série de juízos messiânicos, chegou também

Esses capítulos situam a oposição entre o culto ao

0 fim da história que precede o triunfo do reino

imperador e a igreja no contexto do antigo conflito

de Deus. 0 que se infere dessa correspondência,

entre os poderes das trevas e o Deus do céu.

ou paralelismo, entre as séries de juízos é que o

4.6

A cidade do Anticristo e a cidade de

período de juízos divinos não é estendido numa

Deus (Ap 17.1—22.5). Seria natural imaginar

interminável série de castigos; trata-se, antes, de

que, depois de concluída a apresentação dos juí­

um período comparativamente curto de intensos

zos messiânicos, João retrataria imediatamente

juízos executados pelo Senhor da história.

a vinda de Cristo e de seu reino. Em vez disso,

É importante observar, no entanto, que João

porém, ele revela a ruína do império do Anti­

relacionou as três séries por meio de um expediente

cristo, que se torna vítima das próprias forças

que vem sendo denominado “sobreposição ou

de destruição (Ap 17 e 18), revelando também

entrelaçamento”

(B a u c k h a m ,

cadeamento” (A. Y. da “intercalação”

CoLUNS,

1994, p. 8-9), ou “en­

o louvor do povo de Deus e das hostes celestes

1976, p. 16-8), ou ain­

acima dele (Ap 19.1-10). Só então João está livre

p. 172-3).

para descrever a vinda de Jesus, na qual derrotará

No intervalo entre o süêncio nos céus e a oferta

os inimigos de Deus por sua palavra onipoten­

de orações a Deus pela chegada do reino, são

te (Ap 19.11—21.3); 0 reino de Cristo no mundo

(S chüssler F io r e n z a ,

apresentados os sete anjos que devem fazer soar

(Ap 20.4-6); a última tentativa frustrada de Sata­

as trombetas (Ap 8.1-5). Depois do soar da séti­

nás de derrotar esse reino (Ap 20.7-10); o juízo

ma trombeta, menciona-se a abertura do templo

final sobre a raça humana (Ap 20.11-15); o novo

de Deus no céu, e assim é vista a arca da alian­

céu e a nova terra (Ap 21.1-8); a cidade de Deus,

ça (Ap 11.19). De modo semelhante. Apocalipse

a nova Jerusalém (Ap 21.9—22.5).

15.5,6 fala da abertura do santuário no céu, o ta­

É importante

observar

que,

estrítamente

bernáculo da aliança, do qual procedem os anjos

falando, a história da salvação, o novo Êxodo,

com as sete últimas pragas, transpondo assim a

encerra-se em Apocalipse 21.8, com sua represen­

imensa lacuna entre Apocalipse 12 e Apocalip­

tação da nova criação. A descrição da cidade de

se 14

1994, p. 8-9). Por esse método

Deus, a noiva do Cordeiro, é feita com a clara

de repetição e desenvolvimento, João desenvolve

intenção de contrapô-la ã cidade do Anticristo,

a narrativa num crescendo, até chegar ao ponto

descrita em Apocalipse 17. Apocalipse chega a

(B a u c k h a m ,

culminante do advento de Cristo, que infunde te­

seu ápice com a história da prostituta e da noiva.

mor e reverência.

Trata-se na verdade de um conto de duas cidades!

4.5

Interlúdios: vislumbres da igreja e seus

4.7Epílogo (Ap 22.6-21) . Os parágrafos finais

conflitos (Ap 7: 10.1— 11.13; 12— 14). Entre as

de Apocalipse resumem e fixam na consciência

três apresentações dos juízos messiânicos são

dos leitores e ouvintes as lições práticas do livro.

inseridos episódios que lançam luz sobre o que

Realçam acima de qualquer outra coisa a confia­

acontece ã igreja durante o período da tribulação,

bilidade do livro como revelação verdadeiramen­

bem como sobre a natureza de sua tarefa.

te divina, frisando também a proximidade do

Em Apocalipse 7, entre a abertura do sexto e do

cumprimento de sua mensagem.

sétimo selos, ocorrem duas visões: a primeira rela­ ta o selamento do povo de Deus, para proteção, no

5. Autoria

tempo do juízo (cf. Ez 9.1-11); a segunda oferece

0 autor dá-se a conhecer no primeiro parágrafo de

uma apresentação proléptica da alegria desse povo

Apocalipse como “seu [de Deus] servo [escravo]

I 94

A p o c a l ip s e , L iv r o de

João”. 0 uso do termo “escravo” choca o leitor

crítica de Apocalipse, as questões eram na reali­

dos nossos dias, como aconteceu com os traduto­

dade muito mais complicadas do que ele mesmo

res da Versão do rei Tiago [Autorizada;

pois,

foi capaz de perceber. Não resta dúvida de que

embora o termo ocorra muitas vezes nas línguas

estava correto em seu último argumento: João de

originais dos dois Testamentos, ocorre apenas uma

fato transgride várias vezes as regras da gramá­

kjv ) ,

vez no

AT

nt

tica grega, mas nem sempre por falta de conhe­

da

(Ap 18.13). Paulo inicia assim a Carta aos

cimento; já se afirmou que, para cada solecismo

KJV

da kjv (Jr 2.14) e apenas uma vez no

Romanos: “Paulo, servo [escravo] de Jesus Cris­

em Apocalipse, há um exemplo de uso correto

to, chamado para ser apóstolo”. João escreveu da

de Unguagem (observe-se, e.g., a recusa por par­

mesma forma, mas, ainda que muitas vezes faça

te de João de decUnar o nome divino depois de

referências a si próprio em seu hvro, nunca fala

uma preposição em Ap 1.4, imediatamente segui­

de si mesmo como apóstolo (contraste-se ICo 1.1;

do do uso correto em relação aos sete espíritos

2 C o l.l;G ll.l;E fl.l;C ll.l).

que estão diante do trono de Deus). Hoje se reco­

A partir do final do século ii passou-se a tomar por certo que o quarto Evangelho (v.

nhece de modo geral que por trás de Apocahpse

Jo ã o , E v a n g e ­

está a mente de um autor semítico, alguém cuja

e o U-

língua pátria era o hebraico ou o aramaico, mas

vro de Apocahpse tinham sido todos escritos por

não há certeza de como isso se relaciona com o

João, 0 filho de Zebedeu. Não obstante, desde o

estilo e a Unguagem do Uvro.

l h o de ) ,

as cartas de João (v.

J o ã o , C a r ta s de )

começo se reconheceu também que há dificulda­

R. H. Charles era da opinião que João pensava

des com essa hipótese, notadamente com respeito

em hebraico e escrevia em grego

às diferenças entre Apocahpse e o Evangelho. As

H. H. Rowley defendia a ideia de que a língua pá­

questões foram claramente expostas por Dionísio,

tria de João era o aramaico; assim ele pensava em

bispo de Alexandria, no século in. Ele ficara inco­

aramaico enquanto escrevia em grego (convicção

( C h a r le s ,

1:cxlUi).

modado com a disseminação do ensino milenista

que ele comunicou numa carta a este autor). C. C.

em sua diocese e desejava coibi-lo. Assim, procu­

Torrey insistia em que João escreveu seu Uvro em

rou primeiramente assegurar que Apocalipse não

aramaico e outra pessoa o traduziu para o grego

fosse interpretado literalmente e depois demons­

de forma muito literal, movido por um senso de

trar que o Uvro não podia ter sido escrito pelo

reverência em relação ao mestre

apóstolo João. Quanto a esse último posiciona­

Caso fôssemos adotar a opinião de Torrey, ficaria

mento, apresentou três razões.

ainda mais complicado o debate em torno das di­

( T o r rey,

p. 158).

Primeira: o autor não se apresentou como o

ferenças linguísticas entre a linguagem e o estilo

discípulo amado, nem como irmão de Tiago, nem

do Evangelho e os de Apocalipse. Ironicamente,

como uma testemunha ocular e ouvinte do Senhor,

no entanto, C. F. Burney escreveu um Uvro inti­

como fez João, o Evangelista; muitos cristãos aten­

tulado The Aramaic origin o f the fourth Gospel [A

diam pelo nome de João, e havia dois líderes cris­

origem aramaica do quarto Evangelho] (Oxford:

tãos com esse nome na Ásia romana, além de dois

Oxford University Press, 1922), para demonstrar

túmulos em Éfeso tidos como o túmulo de João.

que o Evangelho de João foi escrito em aramaico

Segunda: há muitos pontos de contato entre

e mais tarde traduzido para o grego. É preciso per­

ideias do Evangelho de João e das Cartas de João,

ceber que os estudiosos recentes são geralmente

mas Apocalipse é totalmente diferente, destas e

cautelosos em aceitar que livros inteiros do

daquele: “Ele mal tem, por assim dizer, uma úni­

nham sido escritos em aramaico e depois traduzi­

ca sílaba em comum com aqueles escritos”. Terceira: o estilo do Evangelho e das cartas é

nt

te­

dos para o grego. Nesse caso, o argumento chegou a um beco sem saída.

diferente do de Apocalipse; aqueles são escritos

A declaração de Dionísio de que Apocalipse

em grego de alto nível, mas este é muitas vezes

não tem uma sílaba em comum com o Evangelho

cheio de erros gramaticais e usa formas estrutu­

e com as Cartas de João é exagerada. Parte do

rais e estilísticas impuras ou incorretas.

problema em apurar a relação existente entre o

Embora Dionísio tenha sido aclamado pela

Evangelho e Apocalipse reside precisamente nas

grande perspicácia que demonstrou na avaliação

diferenças e nas semelhanças entre os dois. As 95 I

,1 w v - M U ir jc , L i v r í u U t

duas obras sâo as únicas, por exemplo, a em­

a considerar o apóstolo João o autor de Apocalip­

pregar o termo logos (a “Palavra”) em referência

se, dissociando assim o problema da autoria des­

a Cristo; ambas enxergam no Cordeiro de Deus

se livro do outro problema, o da autoria do quarto

uma fusão dos conceitos do Cordeiro guerreiro

Evangelho, mas sempre desejou se manter aberto

de Apocalipse com o Cordeiro pascal (v.

nessa questão

B easley-

(S w e te,

p. cbcxx-clxxxv).

1978, p. 124-6; 1986, p. 24-5, 354-5).

M. Kiddle, quarenta anos mais tarde, adotou

Além do mais, os termos “testemunho” , “vida” ,

uma atitude semelhante e declarou: “A autoria de

M urray,

“morte” , “sede” , “fome” e “vencer” em senti­

Apocalipse talvez demonstre ser aquele mistério

do espiritual ou moral ocorrem tantas vezes no

do livro que jamais será revelado neste mundo”

Evangelho e em Apocalipse que levam a crer que

( K id d l e ,

exista uma relação concreta no campo da soterio­

depois de Kiddle, escreveu: “ Nada mais sabemos

logia entre as duas obras.

sobre o autor de Apocahpse senão que era um

Ainda assim, os dois livros quase de forma

p. xxxvi). W. G. Kümmel, uma geração

profeta cristão judeu que atendia pelo nome de

singular são a expressão da mente e da personali­

João”

dade de dois autores. Suas obras foram compostas

Em nenhum outro livro da Bíblia a identidade do

com cuidado extremo e de forma particularmente

autor é tão pouco importante, pois não é, como

complexa. Cresce cada vez mais o consenso de

queriam edições antigas da Bíblia, “a Revelação

(K üm m el,

p. 331). Necessitamos saber mais?

que 0 quarto Evangelho contém material que não

[o sentido de ‘apocalipse’] de João, o Divino” ,

somente recebeu uma reflexão cuidadosa, mas

mas a “Revelação de Jesus Cristo [...] a seu ser­

também foi muito pregado ao longo dos anos.

vo João”. A questão da autoria não se resolve

Esse mesmo material demonstra um conheci­

pelo nome da pessoa que recebeu a revelação

mento de primeira mão acerca do pensamento

e a anotou, mas pela natureza da obra, que na

rabínico e da teologia filosófica grega. Apocalipse

providência de Deus encerra e coroa o cânon das

origina-se de uma mente imbuída do

Escrituras.

at,

mas tam­

bém reflete um conhecimento de primeira mão dos escritos rabínicos, de modo que João acha

6. Expectativa do Anticristo

natural expressar-se nesse estilo de composição.

Já observamos a relação que há entre o culto ao

Como explicar então a relação entre as duas

imperador e a expectativa da aparição de um An­

obras? Seus autores deviam se conhecer muito

ticristo que governará não somente o império,

bem. Ultimamente, tem se postulado sobre uma

mas também o mundo. Essa expectativa domina

possível escola de João que explicaria a origem

Apocalipse 12— 14 e Apocalipse 16— 17, passa­

dos escritos joaninos, hipótese bastante plau­

gens em que o estilo apocalíptico chega ao ápice

sível. Há, no entanto, mais um elemento nessa

em Apocalipse. A figura de uma mulher vestida

questão; nunca ocorreu a Dionísio que o filho de

com 0 Sol, tendo a Lua embaixo dos pés e doze

Zebedeu pode ter sido o profeta João, não o autor

estrelas sobre a cabeça, e a de um dragão nos

do Evangelho.

céus que lança para a terra um terço das estrelas

H.

B. Swete, em sua pesquisa sobre a autoria claramente refletem fontes antigas, conhecidas

de Apocalipse, mostrou-se impressionado com a

não apenas dos escritores do

afinidade entre o caráter do apóstolo João confor­

as nações do Oriente Médio, sendo utilizadas

at,

mas de todas

me ele aparece nos Evangelhos Sinóticos e o que

de várias maneiras. Comum a todas elas era um

se esperaria do profeta João. Ele e seus irmãos fo­

monstro do mar que combateu os deuses do céu

ram chamados por Jesus de “ Boanerges”, isto é,

e procurou derrotá-los. Essas figuras ficam claras

“ filhos do trovão” (Mc 3.17); João proibiu alguém

em passagens como Isaías 27.1: “ O

que não era membro do grupo apostólico de ex­

gará com sua espada destruidora, grande e forte,

pulsar demônios em nome de Jesus; queria fazer

o Leviatã, a serpente fugitiva; o Leviatã, a serpen­

S enh or

casti­

descer fogo dos céus sobre os samaritanos que

te veloz, e matará o dragão do mar”. A visão dos

recusaram hospitalidade a Jesus e aos discípulos

impérios mundiais em Daniel 7, simbolizados por

(Lc 9.52-55); foi testemunha da transfiguração de

bestas que emergem do mar, culminando num

Jesus e de sua ressurreição. Por isso, Swete tendia

aterrorizante adversário de Deus e do homem.

I 96 I

A p o c a l ip s e , L iv r o de

era a aplicação dessa mesma figura a um tirano

eles não tinham nenhuma razão para amar Nero

da época que não só oprimia o povo de Deus,

(a guerra romano-judaica começou em seu reina­

mas também buscava dominar o mundo.

do), e teria se tornado de conhecimento comum

Esse simbolismo foi aplicado muitas vezes no

entre as igrejas, assim como Aba e Maranata se

como uma espécie de cartum ou charge de go­

tornaram conhecidos entre todas elas. A confir­

vernantes opressores, os quais estavam fadados

mação disso encontra-se numa leitura alternativa

a ser destruídos pelo Deus de Israel, o Senhor do

de Apocalipse 13.18 em alguns manuscritos; ou

céu e da terra. A mesma charge foi aplicada pelo

seja, 616, que é o número hebraico da forma lati­

AT

profeta João ao esperado imperador anticristo.

na de Nero. Em contrapartida, era de conhecimen­

Deve se ressaltar, no entanto, que João não con­

to geral no começo entre os cristãos que o nome

siderava o imperador reinante o Anticristo. Para

Jesus em grego totaliza 888, que representa um

ele, o culto ao imperador preparava o caminho

avanço em relação à perfeição (777), assim como

para o verdadeiro Anticristo, que o exploraria

0 Anticristo demonstra consequentemente um de­

em sua totalidade, de maneira semelhante à refe­

créscimo em relação a ele. Isso mostra que o Anti­

rência que Paulo faz em ITessalonicenses 2.7 ao

cristo de Satanás fica tão longe de ser o libertador

“mistério da impiedade” como algo já em opera­

da humanidade quanto o Cristo de Deus excede

ção no mundo. Mais precisamente, João apUcou

todas as esperanças humanas de um redentor.

o símbolo do dragão a Satanás (Ap 12), ao Anti­

Quanto ao Nero histórico, Suetônio informa

cristo (Ap 13) e à cidade e ao império sobre os

que, quando Nero soube que o senado romano

quais ele governava (Ap 17).

o havia declarado inimigo público e as tropas

Contudo, João vai mais adiante, uma vez que

estavam a caminho para capturá-lo, ele cometeu

alia o conceito do Anticristo à expectativa comum

suicídio cortando a garganta e foi sepultado no

em sua época em relação ao retorno de Nero a

túmulo da família

Roma. Isso se vê primeiramente quando ele apre­

de Nero não ter sido sepultado à vista do púbhco

senta 0 Anticristo acometido de uma ferida mor­

gerou a dúvida de que ele tivesse de fato morrido.

tal, recobrando a vida depois disso (Ap 13.3),

Isso se espalhou por toda parte e contribuiu para

e depois fica perceptível em Apocalipse 13.18:

a hipótese de que ele havia fugido para o Qriente.

“ Quem tiver entendimento, calcule o número da

Nos anos seguintes, nada menos que três homens

besta, pois é número de homem. Seu número é

se apresentaram como Nero, um no ano seguinte

seiscentos e sessenta e seis”. A possibiUdade de

à sua morte (69 d.C.), o segundo em 80 d.C. e o

representar um nome por um número reside no

terceiro em 88-89 d.C.; esse último quase conven­

fato de que o hebraico e o grego não tinham si­

ceu o rei de Pártia de que era mesmo Nero e por

nais distintos para os números: usavam em vez

pouco não ocasionou uma invasão do Império

disso as letras do alfabeto, de modo que “a” =

Romano. Se nos primeiros anos muitas vezes se

1, “b” = 2, “c ” = 3, e assim por diante. Des­

supunha que Nero estivesse ainda vivo, na gera­

se modo, qualquer nome podia ser calculado

ção seguinte pensava-se que ele havia ressurgido

somando-se os valores de suas letras. A. Deiss-

dos mortos para se vingar de Roma. É o que se lê

mann, por exemplo, cita uma inscrição numa

nos Uvros iii, iv e v dos Oráculos sibilinos.

parede de Pompeia com a seguinte frase: “Amo aquela cujo nome é 545”

( D e is s m a n n ,

p. 275).

(S u e t ô n io ,

Nero, 49-50). 0 fato

João aproveitou-se dessa expectativa, disse­ minada por toda parte. Em Apocalipse 13.3, ele

Ao longo dos séculos, foram sugeridos mui­

descreve uma das sete cabeças da besta “como

tos nomes que somam 666 como a resposta ao

se estivesse ferida de morte” , maneira peculiar de

quebra-cabeça proposto por João, mas em anos

declarar isso, “mas sua ferida mortal foi curada”.

recentes há um consenso em grau cada vez maior

Faz lembrar Apocahpse 5.6, em que o Cordeiro

de que o nome que João tinha em mente era Nero

“parecia estar morto”. 0 cristo de Satanás é cla­

César em hebraico. Se alguém perguntar como as

ramente uma paródia do Cristo de Deus, nesse

congregações de fala grega teriam sabido isso, a

e em todos os outros aspectos (v. Rissi, 1966,

resposta é que quase certamente a questão surgiu

p. 66). A adaptação da expectativa em torno de

entre judeus falantes do hebraico e do aramaico;

Nero ao Anticristo vindouro reaparece outra vez 97 I

MPOCAUPSE, LIVRO DE

em Apocalipse 17.7-18, mas com uma ênfase di­

deificação do poder

ferente, uma vez que a besta representa o império

Mostra a história, e disto não está isento o último

e o Anticristo. De um lado, a besta sobre a qual

século, que tal deificação é capaz de reaparecer

a mulher está montada “era e já não é; todavia

com resultados pavorosos. A humanidade des­

está para subir do abismo e irá para a perdição”

considera isso para seu próprio prejuízo.

(B auc kham ,

1994, p. 451-2).

(Ap 17.8); de outro, “a besta, que era e já não é, também é o oitavo rei [cabeça], está entre os sete

7. Propósito de Apocalipse

e irá para a perdição”.

E. F. Scott define Apocalipse como “um toque

À luz de Apocalipse 13, o oitavo rei sem

de trombeta para despertar a fé” (Scorr, p. 174).

dúvida é Nero, em quem estavam incorporados

Para os cristãos da época de João, especialmente

a natureza e o destino do império do Anticristo.

na Ásia romana, a exaltação de Roma e a popu­

Ambos têm a semelhança do dragão (Satanás),

laridade do culto ao imperador tornavam a vida

ambos se opõem ao Senhor e seu povo, ambos

cristã difícil e o futuro desalentador, por causa da

pertencem ao “abismo” e ambos estão fadados

pressão para que se unissem à maioria na cele­

a sofrer o destino daqueles que fazem guerra

bração da divindade de César e da prontidão dos

contra o Cordeiro (Ap 15.14). Mas uma diferença

informantes em relatar às autoridades a recusa

importante fica evidente nas representações do

dos cristãos em fazê-lo. No entanto, ceder a essa

Anticristo em Apocalipse 13 e em Apocahpse 17.

pressão implicava negar a fé cristã em sua tota-

No capítulo 13, 0 império recebe um empurrão

hdade, o que era impensável. João, portanto, es­

do Anticristo, de modo que todos no mundo,

creveu seguindo a ordem do Senhor ressurreto de

exceto aqueles cujos nomes foram escritos no

fortalecer a fé e a coragem dos crentes, de muni-

“livro da vida” do Cordeiro, recebem a marca da

-los para a batalha contra as forças do Anticristo

besta e o adoram (Ap 13.8,16-18). No capítulo

no mundo e de ajudá-los a dar testemunho do

17, cumprem-se os temores de muitos, e o cristo

único e verdadeiro Senhor e Salvador.

de Satanás convence os reis do Oriente a unir-

Todo 0 livro de Apocalipse está arraigado em

se a ele para atacar a “grande Babilônia” , e a

sua descrição do Deus onipotente como Senhor

cidade é destruída e incendiada (Ap 17.15-17).

da história e em sua atividade redentora em Cris­

Esse é 0 resultado do culto ao imperador. A besta

to. Tão certo quanto o fato de Jesus ter vencido

e seus aliados permanecem na mão do Deus que

a primeira e mais importante etapa da redenção

eles desafiam, e por impulso do Diabo cumprem

da humanidade, ele reaUzará a tarefa que lhe foi

as palavras de Deus (Ap 17.16,17; sobre isso, v.

designada de garantir a vitória do reino de Deus

Bauckham ,

1994, p. 329-417).

e, assim, a emancipação total da humanidade

Um ponto deve ser esclarecido a respeito do

em relação aos poderes do mal. Os seguidores

uso que João faz do chamado “mito de Nero”.

do Cordeiro não podem presumir que escaparão

Não resta dúvida de que João entendia que Nero

de uma participação em seus sofrimentos, daí o

retornaria literalmente dos mortos para cumprir o

chamado às igrejas já no começo das cartas: “ Sê

papel de Anticristo. Ele fez uso da expectativa da

fiel até a morte, e eu te darei a coroa da vida”

época para retratar as obras do Anticristo como

(Ap 2.10). E isso significará participar da vida

trabalho de outrv Nero, e isso por uma boa razão:

eterna na companhia de Deus e dos remidos na

Nero foi o primeiro imperador romano a perse­

cidade eterna de Deus.

guir a igreja cristã, e o fez com tamanha cruelda­ de que serviu de modelo para a besta de Satanás

8. Importância de Apocalipse para hoje

em sua guerra contra o Cordeiro (Ap 11.7-10;

Apocalipse tem sido uma inspiração para a igreja

13.7; 17.12-14). Ao apresentar o Anticristo como

ao longo dos séculos, sobretudo quando ela teve

outro Nero, João deixa claro que o culto ao impe­

de enfrentar a oposição feroz das autoridades go­

rador é uma projeção do que ocorrerá quando as

vernamentais. De quando em quando, no entan­

sementes de seu início estiverem prontas para a

to, tem sido criticado como um livro subcristão. R.

colheita. Não podia ser diferente. 0 culto ao im­

Bultmann, para citar apenas um exemplo, declara

perador, como R. J. Bauckham observa, era uma

que o Uvro apresenta “um judaísmo fracamente

I 98

A p o c a u p s e , L iv r o de

cristianizado”

(B u ltm a n n ,

1955, v. 2, p, 175). A

tinha de ser contida. A hostilidade ao cuho ao

critica de Bultmann reflete sua rejeição a tudo

imperador é inevitável em qualquer geração, e

que apresente contornos apocalípticos, embora

há boas razões para o uso das charges extraídas

esteja ciente de que o

apresenta a expiação

das religiões do antigo Oriente Médio. No que

como algo que abarcava tanto o amor quanto o

diz respeito à violência na aplicação dessas char­

julgamento de Deus. Vemos isso especialmente

ges, é essencial recordar a tradição da hipérbole

em João 12.31,32, mas também em João 3.16-21;

utilizada pelos profetas do

sobre a última passagem, Bultmann faz o impres­

mais marcantes são as formas de expressão de

sionante comentário: “ Não haveria simplesmen­

Sofonias. Em Sofonias 1.2-6, os juízos de Deus

te nenhum juízo não fosse o acontecimento do

são apresentados implicando a destruição de to­

amor de Deus”

das as criaturas vivas no dia do Senhor. 0 mes­

A.

nt

(B u ltm a n n ,

1971, p. 154).

at.

Um dos exemplos

Y. Collins cita D. H. Lawrence, para quem mo estilo é repetido em Sofonias 3.8: “ Esta terra

0 livro ventila a raiva, o ódio e a inveja do mais

toda será consumida pelo fogo do meu zelo”. A

fraco contra o forte, contra a civilização e mes­

isso imediatamente se segue Sofonias 3.9: “ En­

mo contra a natureza (cit. A. Y.

tão darei lábios puros aos povos, para que todos

C o luns,

1984, p.

169). A avaliação que Lawrence faz de Apocahpse

invoquem o nome do

é típica de sua perspectiva sobre a vida, mas é

mesmo espírito”.

Senhor

e o sirvam com o

perturbador que exegetas cristãos adotem essa vi­

Tamanha contradição não pode ser interpre­

são. Collins considera que João procurava superar

tada hteralmente, mas o juízo e a salvação dos

a tensão entre a realidade e a fé, entre o que é e o

judeus e dos gentios é a intenção das passagens,

que deve ser. A fé abrange o fato de que Deus é o

como deixa claro o restante do livro. O mesmo

regente de tudo e todos, que Jesus é Rei de reis e

se confirma em Apocalipse, como mostram Apo­

Senhor de tudo e todos e que no reino messiânico

cahpse 11.10 e 15.3,4; a sobrevivência dos habi­

todos os cristãos reinarão com ele. A realidade é

tantes da terra no milênio. Apocalipse 20.4-6; os

0 poder de Roma e a impotência dos cristãos, o

reis da terra trazendo presentes à nova Jerusalém

medo que tinham de ser denunciados às autori­

(Ap 21.24-27). O quadro da cidade de Deus em

dades romanas, a recordação que guardavam da

Apocahpse 21.9— 22.5 vai muito além de amai­

perseguição de Nero, da destruição de Jerusalém

nar uma suposta raiva ou inveja dos cristãos; sua

e do exílio de João. Isso despertou sentimentos

motivação última é revelar a realização do obje­

agressivos de inveja em relação aos abastados, de

tivo de Deus para sua criação numa humanidade

frustração em relação ao cuho ao imperador e de

redimida em comunhão com ele. Ao declarar essa

desejo de vingança contra os atos violentos do im­

revelação, o profeta João foi sem dúvida dirigido

pério. Mas essas imagens violentas foram trans­

pelo Espírito (Ap 19.10). A igreja de hoje faz bem

feridas para Deus e para Cristo em Apocahpse.

em atender ao apelo que aparece em cada uma

Assim, Jesus fará guerra com a espada de sua boca

das cartas às sete igrejas: “Quem tem ouvidos,

contra os seguidores de Balaão, contra os nicola­

ouça o que o Espírito diz às igrejas”.

ítas e contra Jezabel (“companheiros cristãos” !), bem como contra os generais, os ricos, os fortes

9. Apocalipse nos mais antigos escritos

(Ap 6.15-17) e os exércitos que seguem o Anticris­

pós-neotestamentários

to (Ap 19.21;

Vários pais apostólicos demonstram que Apoca­

V.

A. Y

Colu ns,

1984, p. 156-7).

Muito mais é escrito nessa linha de pensamen­

lipse influenciou seus escritos, embora nem todos

to, 0 que exige muito mais espaço de resposta do

deixem isso claro. Didaquê, IClemente, as cartas

que nos é possível aqui. Algumas considerações,

de Inácio e a Carta aos filipenses, de Policarpo,

no entanto, precisam ser feitas. Se a questão é

mostram pouco ou nenhum reflexo de Apocalipse

realismo, eis uma coisa que não falta a João. Os

e estão mais preocupadas com a vida da igreja, sua

seguidores de Balaão, os nicolaítas e Jezabel não

ordem e

são cristãos de mente aberta, mas aqueles in­

(Di, 16) contém um “posfácio apocalíptico”, mas

a d o r a ç ã o / c u lto .

A conclusão da Didaquê

fluenciados pelo antinomismo dos gnósticos que

claramente ecoa o discurso escatológíco dos Evan­

despontavam naqueles dias, e a influência deles

gelhos (Mc 13 e corresps.), e, não de Apocalipse. 99 I

A p o c a u p s e , U v r o de

A Epístola de Bamabé adota a interpretação da

Ver também

criação em seis dias como uma figura da semana

d ln td

a p o c a lip tis m o ; e s c a t o lo g ia .

A n tic h r is t;

:

B a b y lo n ;

B e a s ts ,

D ra g on ,

cósmica da história: esta dura seis mil anos e é

S ea , C o n f l i c t M o t i f ; B o w ls ; H ea v e n , N e w H ea ven ;

seguida pelo descanso sabático do reino de Deus

Jeru salem , Z io n , H o l y C it y ; Lam b; L i t u r g i c a l E l e ­

(Bn, 15). Talvez seja essa uma das tradições que

m en ts; M a r t y r d o m ; M ille n n iu m ; O l d T e s ta m e n t in

contribuíram para a figura do milênio, utilizada

R e v e la tio n ;

por João. É também encontrada em ZEnoque 33,

p h ets, F a ls e P r o p h e ts ; S c r o l l s , S e a ls , T ru m p ets; V i ­

um livro talvez do mesmo período que Apocalipse.

sion , E c s ta tic E x p erien c e; W r a t h , D e s t r u c tio n .

P a ro u s ia ;

P e r s e c u tio n ;

Proph ecy,

P ro­

As “Visões” , de O pastor, de Hermas, seguem Comentários:

D. E. Revelation.

também a tradição apocalíptica. Dizem respeito

BiB u oG RA nA .

à vida da igreja e estão, portanto, próximas de

Dallas: Word, 1997-2000.

Apocalipse. 0 mesmo se pode dizer das “ Similitu­

Book of Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.

A u ne,

■ B e a le , C. K. The

( w b c .)

■ B e a s le y -M u r ra y , G. R. The Book of Reve­

des” , também de O pastor, especialmente no des­

(m c tc .)

taque conferido aos anjos, representados como

lation. Ed. rev. Grand Rapids: Eerdmans, 1978. ■

I. T. The Apocalypse of John.

responsáveis pela criação, e um anjo bom e um

(n cb c.)

mau são designados para os humanos (He, “Si” ,

New York: Macmillan, 1919. ■ B o rin g , M. E. Revela­

B e c k w ith ,

tion. Louisville: John Knox, 1989. (/nfC.) ■ C a ir d ,

6,2.1;He, “Vi” , 3.4.1). Papias, mais que qualquer outro, era entu­

G.

B.

The Revelation of St. John the Divine. New

siasta do milênio. Sua famosa declaração, que

York: Harper & Row, 1966.

relatava a extraordinária fertilidade da terra nesse

A critical and exegetical commentary on the Revela­

período, é atribuída ao “Senhor” , conforme dado

tion of St. John. Edinburgh: T & T Clark, 1920. 2 v. ■ F a rrer,

■ C h a r le s , R. H.

( h ntc.)

The Revelation of St. John the

a saber por parte de “presbíteros que viram João”.

(jc c .)

As vinhas terão “dez mil videiras, e cada videi­

Divine. Oxford: Clarendon, 1964. ■ F o rd , J. M. Reve­

A. M.

ra dez mil ramos, e cada ramo dez mil rebentos,

lation. New York: Doubleday, 1975.

e em cada rebento haverá dez mil cachos, e em

r in g to n ,

cada cacho dez mil uvas, e cada uva quando es­

Press, 1993. (SacP, 16.) •

premida renderá vinte e cinco medidas de vinho”.

Grand Rapids: Zondervan, 2000. (wmc.) ■ K id d le ,

Tal crescimento se aphcará a campos de trigo, a

M. The Revelation of St. John. New York: Harper,

(a b .)



H a r­

W. J. Revelation. Collegeville: Liturgical K e e n e r , C . S.

Revelation.

árvores de frutas, a sementes e ervas, e os ani­

1940. (mntc.) ■ L a d d , G. E. A commentary on the

mais que deles comerem serão dóceis uns para

Revelation o f John. Grand Rapids: Eerdmans, 1972.

com os outros e para com o homem (relatado por

■ L iu e , H .

Ireneu, He, 5.33.3-4). Um relato afim, embora

Muhlenberg, 1957. ■

menos extravagante, acha-se em lEnoque 10.19.

Downers Grove: InterVarsity, 1997.

Segundo cria L. Gry, o conceito de Papias acer­

ris,

The last book of the Bible. Philadelphia: M ic h a e ls ,

J. R. Revelation. (jv p n tc .)

■M o r­

L. The Revelation of St. John. 2. ed. Leicester:

ca do milênio foi obtido dos seguidores de Arís-

InterVarsity, 1987.

tion e do presbítero João. É evidente que as ideias

of Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1977. •

de Papias eram comuns na igreja de seu tempo e

O sb o rn e,

levaram ao esforço de Dionísio por enfraquecer a

2002.

influência de Apocahpse. Ainda assim, a interpre­

tion. London:

(t n t c . )

• M o u n c e , R. H. The Book

G. R. Revelation. Grand Rapids: Baker,

( b e c n t .)



S co tt,

scm,

E. F. The Book o f Revela­

1939. ■ S w e e t, J. P. M. Revela­

tação milenista de Apocahpse 20 era firmemente

tion. Philadelphia: Westminster, 1979. ■ S w e te , H.

defendida por Justino Mártir, Ireneu, Hipólito e

B. Commentary on the Book of Revelation. 3. ed.

Vitorino. Orígenes, no entanto, era “o veemen­

London: Macmillan, 1909. Estudos:

te adversário do milenismo”

The Apocalypse of John and the problem of genre.

( B e c k w it h ,

p. 323).

A une,

D. E.

Ticônio, em seu comentário, seguiu no encalço

Semeia, v. 36, p. 65-96, 1986. ■

de Orígenes, e Agostinho sepuhou o quiliasmo

The climax of prophecy. Edinburgh: T & T Clark,

B au c kh am ,

R. J.

por sua doutrina do milênio como a era da igreja.

1994. ■ ______ . The theology of the Book o f Reve­

Nem é preciso dizer que a doutrina do reino terre­

lation. Cambridge: Cambridge University Press,

no de Cristo foi ressuscitada em séculos posterio­

1993.

res e defendida por muitos intérpretes.

Word, 1986.

I 100 I

( n t t .) ■ B easle y - M u r r a y , ( w b c .) ■ B o w m a n ,

G. R. John. Waco:

J. G. The Revelation

A p o c a l íp t ís m o : N o v o T e s t a m e n t o

of John: its dramatic structure and message. Int, v.

Revelação [apokalyspsis] de Jesus Cristo, que

9, p. 436-53, 1955. •

D eus

R. Gospel o f John.

Bu ltm an n ,

lhe deu para mostrar a seus servos as coisas

Oxford: Blaclcwell, 1971. ■ ______ . Theology of the

que em breve devem acontecer” (Ap 1.1). Depois

New Testament. New York: Scribners,

de Apocalipse 1.1, o termo apocalipse vem sendo

■ C o lu n s ,

chael Glazier,

1979. ■ ______

the Book of Revelation. (hdr,

1951, 1955.

A. Y. The Apocalypse. Wilmington: Mi­

9 .) ■

. The combat myth in

em

M is sou la : Scholars, 1976.

______ . Crisis and catharsis:



C ollins , J. J.



and history in the Book of Revelation. K n o x , 1979.

East.

A. M.

2.

■ D eissmann , A . Light from the Ancient

A rebinh of images.

As origens do apocaliptismo

3. Características do apocaliptismo

A tla n ta: Joh n

R eim pr. G ran d R a pid s: Baker, 1978.

Luecke, especiahsta alemão

1. Definição de “apocaliptismo”

Myth

C ourt , J. M .

F.

(1791-1854), como termo genérico para

melhantes ao Apocalipse de João.

The apocalyptic imagination.

N e w York: C rossro ad , 1984.

NT

designar documentos de conteúdo e estrutura se­

th e p o w ­

e r o f th e A p o c a ly p s e . P h ila d elp h ia : W estm in ster, 1984.

usado desde o começo do século xix, quando foi popularizado por

4. Jesus e o apocahptismo

■ F arrer ,

5. Paulo e o apocahptismo 6. Os escritos neotestamentários posteriores

W e stm in ster: D acre,

e 0 apocahptismo

1949. ■ G ry , L. H e n o c h X ,19 et les b e lle s p ro m e s s ­ es d e Papias. rb , v. 53, p. 197-206, 1946. ■ H emer , C. J.

The Letters to the seven churches of Asia in

their local setting W . G.

S h e ffield :

jsot,

Introduction to the New Testament.

v ille : A b in g d o n , 1975. ■ M ichaels , J. R.

ing the Book o f Revelation. 1992. ■ M oyise,

o f Revelation.

s

.

1. Definição de “apocaliptismo” O termo “apocahptismo” é uma designação con­

1986. ■ K ümmel ,

temporânea largamente usada em referência a

N ash­

Interpret­

uma cosmovisão que caracteriza segmentos do judaísmo primitivo de cerca de

G ran d Rapid s: Baker,

The Old Testament in the Book

a.C. a

200

Rissi,

intervenção iminente de Deus na história hu­

an e x e g e tic a l stu d y o f

mana, de uma maneira decisiva, para salvar seu

R e v e la tio n 19.11— 22.15. 2. ed . L o n d o n : scm, 1972.

povo e punir os inimigos, destruindo a presente

• ______ . Time and history. Richmond: John

ordem cósmica decaída e restaurando ou recrian­

M.

S h e ffield : A c a d e m ic , 1995.

The future o f the World:

'(s b t .)

Knox,



1966.

R o w la n d ,

New York: Crossroad,



200

d.C. Essa visão era centrada na expectativa da

C. C. The open heaven.

O conhecimento de segredos cósmicos (uma das

E. The Book o f Revelation: justice and judgment.

contribuições da tradição sapiencial para o apo­

Philadelphia: Fortress,

The

caliptismo) e dos planos escatológicos iminentes

paschal liturgy and the Apocalypse. Richmond:

de Deus foi revelado a apocaliptistas por meio de

John Knox,

■ Th om pson , L. L. The Book of

sonhos e visões, e os apocalipses que eles escre­

Seuelation: Apocalypse and empire. Oxford: Ox-

veram eram acima de tudo narrativas das visões

1960.

f3rd University Press,

1985.



do o cosmo em sua perfeição original, prístina.

S c h ü ss ler F io re n z a ,

1982.

• S hep herd, M.

H.

D ocu-

que haviam recebido e que lhes foram exphcadas

'^^ents o f the primitive church. New York/London:

por um anjo, que as interpretava. Acredita-se que

Harper,

todos os apocahpses judaicos existentes sejam

1990. • T o r r e y ,

C. C.

1941.

G. R.

pseudonímicos, ou seja, escritos como se fossem

B e a s l e y - M u rray

da autoria de antigas figuras judaicas de destaque A

p o c a l ip t is m o :

N

ovo

T

como Adão, Enoque, Moisés, Daniel, Esdras e Ba-

estam ento

O iermo "apocaliptismo” tem origem no termo

ruque. Apenas os apocalipses cristãos mais anti­

giego apokalypsis, que significa "revelação” , "des-

gos, o Apocalipse de João e O pastor, de Hermas,

ciTiinamento”. 0 autor do Apocalipse do

foram escritos sob o nome de seus verdadeiros

n t , ou

Apocalipse de João, foi o primeiro autor judeu ou

autores. A razão mais provável do fenômeno da

cristão a empregar o termo apokalypsis para de­

pseudonímia apocalíptica é que se tratava de uma

signar 0 conteúdo de seu hvro. O hvro é no fundo

estratégia para aduzir credenciais e assim garan­

2 narrativa de uma série de visões revelatórias

tir a aceitação desses escritos revelatórios num

ÇTie põem a descoberto os acontecimentos que

momento da história israehta em que a reputação

rarcam o fim iminente da era presente: "[Esta é a]

dos profetas havia chegado ao ponto mais babco.

101 I

a p o c a l ip t is m o :

N o v o I e st a m e n t o

“Apocaliptismo”, portanto, é um termo usado em

fenômeno do apocaliptismo. Seguindo a trilha

referência ao tipo específico de expectativa esca­

de F. Luecke a partir de meados do século xix,

tológica característico dos primeiros apocalipses

muitos estudiosos consideraram o apocahptismo

judeus e cristãos. Entre as composições religio­

favoravelmente, como um desenvolvimento da

sas judaicas geralmente consideradas apocalipses

profecia do

estão Daniel 7— 12 (o único apocalipse do

lusão do período pós-exílico, que incluiu sujeição

at),

at,

talvez em consequência da desi­

os cinco documentos que compõem lEnoque

a nações estrangeiras e tensão no seio da comu­

(1—36, o Livro dos Vigilantes; 37— 71, as Simi-

nidade judaica. Outros estudiosos que discerni­

litudes de Enoque; 72—82, o Livro de Luminares

ram uma forte ruptura entre a profecia do

Celestes; 83—90, o Apocalipse Animal; 92— 104,

0 apocahptismo posterior aventaram a hipótese

at

e

a Epístola de Enoque], ZEnoque, 4Esdras, ZApoca-

de que boa parte das características fundamentais

lipse de Baruque, íApocalipse de Baruque e Apo­

do apocaliptismo se originou no antigo Irã, tendo

calipse de Abraão. Entre os primeiros apocalipses

penetrado o pensamento judaico durante o perío­

cristãos, constam o Apocalipse de João (o único

do helenístico (c. 400-200 a.C.), ou surgiu, de ma­

apocalipse do

neira mais geral, das tendências sincretistas do

nt)

e O pastor, de Hermas.

Quatro aspectos do apocaliptismo precisam ser distinguidos.

período helenístico, quando se vê uma fusão das ideias rehgiosas do Ocidente com as do Oriente.

A escatologia apocalíptica é um tipo de

esc ato ­

2.1 O cenário do apocaliptismo. 0 fato de os

encontrada nos apocalipses ou semelhante

apocahpses serem pseudonímicos em sua maio­

à escatologia dos apocalipses, caracterizada pela

ria dificultou a reconstrução das circunstâncias

tendência de enxergar a realidade da perspectiva

sociais em que foram escritos e às quais corres­

da soberania divina (e.g., as escatologias da co­

ponderam. Nâo obstante, há um amplo consenso

munidade de Qumran, de Jesus e de Paulo).

de que os apocalipses judaicos foram escritos ou

l o g ia

0 apocaliptismo ou milenismo é uma forma

revisados em períodos de crise social ou políti­

de comportamento coletivo baseado nessas cren­

ca, embora essas crises pudessem estar inseridas

ças (e.g., o movimento dirigido por João Batista

numa ampla escala que ia do real ao imaginado.

e as revoltas de Teudas, relatadas em Atos 5.36,

Concentrando sua atenção no período de 400 a

de Josefo, em An, 20.5.1, § 97-8, e do egípcio

200 a.C., O. Ploeger discerniu uma divisão na co­

não identificado de Atos 21.38; J o s e f o , An, 20.8.6,

munidade judaica pós-exílica em dois segmentos

§ 169-72;Guju, 2.13.5, §261-3).

bem definidos, o partido teocrático (os sacerdotes

0 apocalipse é o tipo de escrito em que es­

aristocratas reinantes), que interpretava a esca­

sas crenças ocorrem em sua forma mais básica

tologia profética da perspectiva do Estado judeu,

e completa, um escrito centrado na revelação do

e o partido escatológíco (precursores dos apo­

saber cósmico e do fim dos tempos.

caliptistas), que aguardava o cumprimento das

As figuras apocalípticas são os vários temas

predições escatológicas dos profetas. Mais recen­

que constituem a escatologia apocalíptica, usados

temente, P. D. Hanson sustentou que o apocaUp-

de várias formas nos primeiros escritos judeus e

tismo é um desenvolvimento natural da profecia

cristãos.

israehta com origem na luta interna entre profe­

0 foco deste artigo recairá sobre a escatolo­ gia apocalíptica judaica e sobre as formas em que Jesus e os autores do

tas visionários e sacerdotes hierocráticos (zadoqueus) ocorrida entre o século vi e o iv a.C.

adaptaram alguns dos

2.2 Escatologia e apocaliptismo. De forma

temas e estruturas básicos da escatologia apoca­

geral, tem se feito uma distinção entre escatologia

líptica em seu pensamento teológico.

e apocaliptismo. “ Escatologia” foi um termo que

2. As origens do apocaliptismo

classificar aquele aspecto da teologia sistemática

nt

começou a ser usado no século xix como forma de Foram apresentadas várias propostas a respei­

que lidava com os temas relacionados ao futu­

to das origens do apocaliptismo, propostas que

ro do indivíduo (morte,

muitas vezes refletiam a atitude positiva ou ne­

eterna, céu e inferno) e à escatologia coletiva ou

gativa que os estudiosos tinham em relação ao

nacional, ou seja, o futuro da igreja ou do povo

102

r e s s u r r e iç ã o ,

j u íz o ,

vida

A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o

judeu (e.g., a vinda do Messias, a grande tribula­

0 autor acredita que o apocaliptismo surgiu dos

ção, a ressurreição, o juízo, a segunda vinda de

escritos sapienciais do

Cristo, o reino messiânico temporário, a recriação

aos escritos sapienciais e apocalípticos, e que

do Universo). É muito comum a distinção entre

fazem supor uma relação entre os dois tipos de

escatologia profética e escatologia apocalíptica, o

literatura, estão os seguintes elementos; 1) tanto

que é muito útil para realçar o que se manteve,

os sábios e experientes quanto os apocaliptistas

bem como o que mudou na expectativa escato­

são chamados “sábios” , e ambos preservam seus

lógica judaico-israelita. Seguindo esse modelo, a

ensinos na forma escrita, muitas vezes realçando

escatologia profética era uma perspectiva otimis­

seu “conhecimento” especial e a antiguidade des­

ta que antevia Deus restaurando no fim de todas

se conhecimento; 2) ambos mostram tendências

as coisas as circunstâncias prístinas e originaria­

individualistas e universalistas; 3) ambos se preo­

mente idílicas, e faria isso atuando por meio de

cupam com os mistérios da natureza pela pers­

processos históricos. O profeta israelita proclama­

pectiva celestial; 4) ambos refletem uma visão

va ao rei e ao povo os planos de Deus para

determinista da história.

Isra­

at.

Entre os temas comuns

da perspectiva de acontecimentos e processos

A teoria de que a mãe do apocaliptismo ju­

históricos e políticos de fato. A profecia enxerga

daico era a sabedoria de Israel, não a profecia

o futuro brotando a partir do presente, ao passo

israelita, encontrou parco apoio acadêmico na

que a escatologia apocalíptica vê o futuro inter­

forma em que foi proposta por Von Rad. Ainda

rompendo 0 presente; aquela é essencialmente

assim, inegavelmente, existem elos entre os es­

el

otimista, ao passo que esta é pessimista.

critos sapienciais e apocalípticos (Sb 7.27; Eo

2.3 Profecia e apocaliptismo. A questão do

24.33), ambos fenômenos da tradição dos escri-

relacionamento entre profecia e apocaliptismo é

bas. A tradição sapiencial em Israel sem dúvida

apenas um aspecto do problema em relação ao

foi uma das muitas influências sobre o desenvol­

grau de continuidade ou ruptura que se imagi­

vimento do apocaliptismo judaico. Ainda assim,

na existir entre o apocaliptismo judaico e as

é importante distinguir entre dois tipos de escri­

anteriores tradições israelitas de cunho político

tos sapienciais: sabedoria proverbial e sabedoria

e religioso. É importante reconhecer que a pro­

mântica. A última está relacionada ao papel do

fecia e 0 apocaliptismo apresentam tanto ele­

“ sábio” de interpretar sonhos como refletido nas

mentos de continuidade quanto de ruptura. Os

tradições bíblicas em torno de José e Daniel, am­

agudos contrastes normalmente imaginados entre

bos capazes de expUcar o significado de sonhos

a profecia e o apocaliptismo são de algum modo

revelatórios ambíguos por meio de uma sabedo­

atenuados quando reconhecemos que a profecia

ria de origem divina (Gn 40.8; 41.25,39; Dn 2.19-

sofreu várias mudanças e que há semelhanças

23,30,45; 5.11,12). A figura do angelus interpres

impressionantes entre a profecia tardia e o

(“anjo intérprete”) ocorre com frequência nos

eiemento apocalíptico inicial

Entre os

apocalipses judaicos, nos quais ele desempenha

livros proféticos posteriores que mostram as ten­

o papel análogo de revelador sobrenatural capaz

dências que surgiriam depois de modo mais ple­

de desvendar o significado mais profundo dos so­

(H anson).

namente desenvolvido nos escritos apocalípticos

nhos e das visões experimentados pelo apocalip-

judaicos, estão as visões de Zacarias 1—5 (com a

tista (Dn 7— 12; Zc 1—6; 4Esdras).

presença de um intérprete angélico), Isaías 24— 27 e 56— 66, Joel e Zacarias 9— 14.

2.5

Farisaísmo e apocaliptismo. A monu­

mental obra em três volumes sobre o judaísmo

2.4 Escritos sapienciais e apocaliptismo.

de G. F. Moore baseou-se na suposição de que o

Maitos estudiosos sustentam que havia uma rup­

judaísmo “ normativo” dos primeiríssimos sécu­

tura fundamental entre a profecia e o apocalip-

los da era cristã, “a era dos tanains”, não incluía

ásmo. G. von Rad, por exemplo, rejeita a teoria

o apocaliptismo judaico. Semelhantemente, A.

de que as raízes do apocaliptismo deviam estar

Schweitzer distinguiu precisamente o ensino dos

na profecia israelita. Para ele, o apocaliptismo

apocaliptistas (e, portanto, de Jesus) do ensino

ccasistia em dualismo de contornos definidos,

dos rabinos. Não obstante, o realce dispensado

ranscendência radical, esoterismo e

pelos fariseus ã ressurreição, à era vindoura e ao

g n o s t ic is m o .

I 103 I

A p o c a l ip t is m o : N o v o T e st a m e n t o

Messias torna difícil distinguir com precisão os

Não estão listadas aqui todas as característi­

interesses religiosos e políticos dos apocaliptistas

cas, mas é o bastante para nos concentrarmos em

em relação aos dos fariseus, ainda que estes pa­

alguns aspectos inconfundíveis da cosmovisão

reçam ter se desencantado com muitos aspectos

apocalíptica.

do apocaliptismo logo após a primeira revolta de­

3.2 Sequências apocalípticas possíveis. Como

sastrosa contra Roma (66-73 d.C.}. W. D. Davies

as narrativas que circunstanciam os acontecimen­

sustenta que há vários elos entre o apocaliptismo

tos em torno do encerramento da era presente e

e 0 farisaísmo: 1) ambos compartilham uma reli­

da inauguração da era futura são no fundo um

giosidade e uma atitude semelhante em relação à

tipo de folclore, há muitas exposições divergen­

Torá; 2) ambos partilham visões semelhantes em

tes dos acontecimentos futuros esperados, com

relação a temas escatológicos, como as dores de

pouca congruência entre elas. Dessa maneira, na

parto da era messiânica, o recongraçamento dos

apresentação de uma síntese da grande varieda­

exilados, os dias do Messias, a nova Jerusalém,

de de sequências apocalípticas possíveis encon­

o juízo e a geena; 3} ambos mostram tendências

tradas nos escritos apocalípticos, a ênfase deve

populistas e escolásticas.

recair sobre as características mais tipicamente encontradas nessas exposições. O apocaliptis­

3. Características do apocaliptismo

mo, ou escatologia apocalíptica, está centrado na

3.1 Principais aspectos do apocaliptismo. Há

crença de que a presente ordem mundial, que é

várias características da escatologia apocalíptica

ímpia e opressiva, encontra-se temporariamente

sobre as quais existe algum consenso entre os

sob o controle de Satanás e de seus cúmplices hu­

estudiosos:

manos. A presente ordem mundial ímpia será em breve destruída por Deus e substituída por uma



dualismo temporal das duas eras;

nova e perfeita ordem, correspondente ao Éden.

• ruptura radical entre esta era e a era vin­

Na presente era, o povo de Deus consiste numa

doura, aliada a um pessimismo em relação

minoria oprimida que espera fervorosamente a

à ordem presente e acrescida de esperança

intervenção de Deus ou de seu agente especial­

em relação a outro mundo e a uma ordem

mente escolhido, o Messias. A transição entre a

futura das coisas;

era antiga e a nova, o fim da velha era e o começo

divisão da história em segmentos (quatro,

da nova era ocorrerão por meio de uma série final

sete, doze), refletindo um plano predeter­

de batalhas travadas pelo povo de Deus contra





minado para a história;

os aliados humanos de Satanás. 0 resultado, no

expectativa da chegada iminente do rei­

entanto, jamais é posto em xeque, visto que os

no de Deus como ato divino, decretando

inimigos de Deus estão predestinados à derrota

a condenação das circunstâncias terrenas

e à destruição. A inauguração da nova era come­

presentes;

çará com a chegada de Deus ou de seu agente

• perspectiva cósmica em que a situação pri­

autorizado para julgar os ímpios e recompensar

mordial do indivíduo nâo se situa mais

os justos e será concluída pela recriação ou pela

dentro de uma entidade coletiva, como Is­

transformação do Universo.



• •

rael ou o povo de Deus, e a crise iminente

3.3 Dualismo limitado. Uma das característi­

não é localizada, mas apresenta dimensões

cas fundamentais do apocaliptismo é a convicção

cósmicas;

de que o cosmo está sempre sujeito a uma de

a intervenção cataclísmica de Deus resul­

duas forças sobrenaturais. Deus e Satanás, que

tará em salvação para os justos, concebi­

representam as qualidades morais do bem e do

da como a restauração das circunstâncias

mal (dualismo cosmológico). No entanto, a con­

edênicas;

vicção judaica de que Deus é absolutamente so­

introdução de anjos e demônios para explicar

berano implica que é o originador do mal e que o

acontecimentos históricos e escatológicos;

dualismo resultante do bem e do mal não é nem

introdução de um novo mediador com fun­

eterno nem absoluto (como o dualismo da antiga

ções régias.

religião iraniana), mas limitado. Esse dualismo

I 104 I

A p o c a l ip t is m o ; N o v o T e s t a m e n t o

cosmológico essencialmente limitado foi enten­

20.1-5;

dido em várias formas, embora relacionadas en­

res humanos podem viver de acordo com um ou

V.

Jo 14.17; 15.26; 16.13; IJo 4.6), e os se­

tre si, de pensamento dualista no apocaliptismo

com outro. 0 Príncipe das Luzes controla a vida

judaico primitivo: 1) o dualismo temporal ou es-

dos filhos da justiça, ao passo que o Anjo das

catológico estabelece marcante distinção entre a

Trevas tem domínio sobre os filhos da falsidade

era presente e a era por vir; 2) o dualismo ético

(IQS 3.17—4.1; 4.2-11; IQM 13.9-12). No entan­

baseia-se numa distinção moral entre o bem e o

to, mesmo os pecados dos filhos da justiça são,

mal e enxerga a humanidade dividida em dois

em líltima análise, causados pelo espírito do erro,

grupos, os justos e os perversos, de maneira que

pois ambos os espíritos lutam para ganhar a su­

corresponde aos poderes sobrenaturais do bem e

premacia no coração do indivíduo (IQS 4.23-26;

do mal; 3) o dualismo psicológico ou microcósmi-

Te As, 1.3-5). Entretanto, o domínio do espírito

co é a interiorização do esquema das duas eras

do erro é temporariamente Umitado, pois Deus o

que enxerga as forças do bem e do mal lutando

destruirá no fim de todas as coisas (IQS 4.18,19).

por supremacia dentro de cada indivíduo.

A doutrina segundo a qual o espírito da verdade

3.3.1 Dualismo escatológico ou temporal. A

e 0 espírito do erro lutam para garantir a supre­

crença em duas eras sucessivas, ou mundos su­

macia no coração de cada pessoa é semelhante à

cessivos, desenvolveu-se apenas de modo gra­

doutrina rabínica dos impulsos bons e maus. 3.4

dual no judaísmo. A ocorrência mais antiga da

Expectativa messiânica. O messianismo

expressão rabínica “o mundo por vir" é encon­

não era um aspecto fixo dos vários esquemas

trada em lEnoque 71.15 (c. 200 a.C.). A doutrina

escatológicos que formavam o apocaliptismo

das duas eras já estava plenamente desenvolvida

judaico. Durante o período do segundo templo,

por volta de 90 d.C., pois, de acordo com 4Es-

havia pelo menos dois tipos principais de mes-

dras 7.50, “ 0 Altíssimo criou não uma, mas duas

sianismos judaicos: o restaurativo e o utopista.

Eras” (v. 4Ed 8.1). O dia do Juízo é considerado o

0 messianismo restaurativo aguardava com ex­

ponto de transição entre as duas eras (4Ed 7.113),

pectativa a restauração da monarquia davídica e

pois “ será o fim desta era e o começo da era imor­

era centrado numa expectativa de aprimoramento

tal que está por vir”.

e aperfeiçoamento do mundo presente por meio

3.3.2 Dualismo ético. Daniel 12.10 faz uma

do desenvolvimento natural (SI Sa, 17), seguindo

distinção entre os “ímpios” e os “ sábios” ; Jubi­

o modelo de um período histórico idealizado; a

leus faz a distinção entre os israelitas, que são “a

lembrança do passado é projetada no futuro. 0

nação justa” [Jb, 24.29), “uma geração justa” (Jb,

messianismo utopista antevia com expectativa

25.3), e os gentios, que são pecadores (Jb, 23.24;

uma era futura que superaria tudo que se conhe­

24.28); o Manuscrito da Guerra, de Qumran, faz

ceu anteriormente. 0 messianismo judaico tinha

uma distinção semelhante entre o povo de Deus e

a tendência de se concentrar não na restauração

os kittim (IQM 1.6; 18.2,3); o Testamento de Aser

de uma dinastia, mas exclusivamente num rei

contrasta pessoas “ boas e de uma só cara” (Te As,

messiânico enviado por Deus para restaurar a sorte de Israel. No entanto, como símbolo teocrá­

4.1) com “pessoas de duas caras” (Te As, 3.1). 3.3.3 Dualismo microcósmico ou psicológico.

tico, 0 Messias é dispensável, uma vez que nem

Nesse tipo de dualismo, os poderes cósmicos so­

sempre há um Messias presente na expectativa

brenaturais e antitéticos, concebidos nas catego­

escatológica judaica como um todo. Nenhuma

rias morais do bem e do mal, correspondem de

figura assim, por exemplo, tem um papel a de­

forma análoga à luta entre o bem e o mal expe­

sempenhar nas sequências escatológicas apresen­

rimentada por indivíduos. Em algumas linhas do

tadas em Joel, Isaías 24— 27, Daniel, Eclesiástico,

pensamento apocalíptico judaico, notadamente

Jubileus, Testamento de Moisés, Tobias, 1 e 2Ma-

da comunidade de Qumran e dos círculos que

cabeus. Sabedoria de Salomão, lEnoque 1— 36

produziram os Testamentos dos doze patriarcas,

(o Livro dos Vigilantes), 90— 104 (a Epístola de

dia-se que Deus havia criado dois espíritos, o

Enoque) e ZEnoque.

espírito da verdade e o espírito do erro (i.e., o es­

3 .S 0 reino messiânico temporário. Há pouca

pírito do mal chamado Belial, IQS 1.18-24; Te Ju,

congruência no material apocalíptico judaico a

I 105 I

A p o c a l ip t is m o ; N o v o T e s t a m e n t o

respeito da chegada do reino de Deus. Esse reino

(4Ed 7.32), e o Altíssimo tomará seu lugar no

era concebido por alguns como a chegada de um

trono do juízo e executará o juízo sobre todas

reino eterno, mas por outros como um reino mes­

as nações (4Ed 7.36-43). De acordo com 4Es-

siânico temporário que seria sucedido por um

dras 12.31-34, no entanto, o Messias davídico

reino eterno (v. ICo 15.24). A concepção de

sentar-se-á no trono do juízo e, depois de repro­

um reino messiânico temporário, que funcionaria

var os ímpios e maus, os destruirá (4Ed 12.32).

como uma transição entre a presente era ímpia

Esse juízo exercido pelo Messias ocorre antes do

e a era por vir, entre a ihonarquia e a teocracia,

juízo final, que será executado por Deus após a

resolvia o problema de como encarar a transição

chegada do fim (4Ed 12.34). Em nenhuma parte

do Messias para o reino eterno de Deus (onde

de 4Esdras, porém, o Messias tem um papel a de­

tal concepção estava presente). De forma geral,

sempenhar no reino teocrático eterno inaugurado

no pensamento apocalíptico judaico o reino de

com a ressurreição.

Deus recebe uma importância mais central que

3.5.3

O 2Apocalipse de Baruque. Depois de

a figura de um Messias. Um interregno messiâ­

doze períodos de tribulação [2Ap Br, 27.1-5), o

nico, portanto, funciona como uma expectativa

reino messiânico é retratado como um período de

do estado teocrático perfeito e eterno que existirá

abundância fenomenal, inaugurado pela aparição

quando o estado originário das coisas for resta­

do Messias (2Ap Br, 29.3) e concluído com seu

belecido eternamente. Acreditava-se que esse

retorno à glória (2Ap Br, 30.1). Os eleitos que vi­

reino provisório seria transitório, uma vez que

veram durante o reino messiânico se unirão aos

seu retrato mostra a conciliação de algumas ca­

justos ressurretos, mas as almas dos ímpios teme­

racterísticas desta era com as da era por vir. No

rão o juízo [2Ap Br, 30.1-5). O autor não declara

apocaliptismo cristão, a expectativa de um reino

abertamente, mas pressupõe o fato de que os que

messiânico temporário é claramente refletida em

viveram durante o reino messiânico experimenta­

Apocalipse 20.4-6 e, segundo alguns estudiosos,

rão uma transformação num modo ressurreto de

também refletida em ICoríntios 15.20-28. A ex­

existência como os justos ressurretos. Em 2Apo-

pectativa de um reino messiânico temporário no

calipse de Baruque 39—40, a queda preconizada

futuro é encontrada em somente três apocalipses

do quarto reino (Roma) será seguida pela reve­

judaicos primitivos, o Apocalipse das Semanas,

lação do Messias [2Ap Br, 39.7), que destruirá

ou lEnoque 91.12-17 e 93.1-10 (escrito entre 175

os exércitos do último regente iníquo, que será

e 167 a.C.), 4Esdras 7.26-44; 12.31-34 (escrito c.

trazido amarrado até Sião, onde será julgado e

90 d.C.) e 2Apocalipse de Baruque 29.3—30.1;

executado pelo Messias [2Ap Br, 40.1,2). O rei­

40.1-4; 72.2-74.3 (escrito c. 110 d.C.). Embora

no do Messias durará “eternamente” , ou seja, até

haja quem afirme que a concepção de um rei­

ser extinto o mundo de corrupção, o que significa

no messiânico temporário se encontra em ZEno­

que esse reino é temporário, sem contudo se es­

que 32.2—33.1 e Jubileus 1.27-29 e 23.26-31, não

pecificar sua duração. Por fim, em 2Apocalipse

há provas convincentes.

de Baruque 72.2— 74.3, o guerreiro Messias con­

3.5.1 Apocalipse das Semanas. Em lEnoque

vocará todas as nações numa só reunião, pou­

91.12-17 e 93.1-10, um apocalipse anterior inseri­

pando uns e executando outros [2Ap Br, 72.2-6).

do na Epístola de Enoque [lEn, 91— 104), a histó­

Depois desse período de juízo, haverá uma era

ria é dividida em dez semanas (i.e., dez eras). Um

em que será restaurado na terra o estado edênico

reino não messiânico temporário surge na oitava

das coisas {2Ap Br, 73.1-7). Como em 4Esdras, o

semana, e um reino eterno chega na décima se­

Messias não tem nenhum papel a desempenhar

mana (lEn, 91.12-17).

no reino eterno que é inaugurado depois que ele

3.5.2 4Esdras. De acordo com4Esdras 7.26-30,

sobe aos céus.

0 Messias aparecerá nos últimos dias e viverá com os justos por quatrocentos anos. Então, o Mes­

3.6

O antagonista escatológico. Na literatura

apocalíptica judaica, há duas tradições a respeito

sias morrerá, com os demais habitantes da ter­

de uma figura escatológica perversa que funcio­

ra, e o mundo retornará aos sete dias de silêncio

na como um agente de Satanás, ou Belial, para

primevo. Depois disso, ocorrerá a ressurreição

desencaminhar o povo de Deus, opor-se a ele

I 106 I

A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o

e peisegui-lo; ambas as tradições representam

nos escritos apocalípticos como o ato escatológi­

tistoricizações do antigo mito de combate. Uma

co final e definitivo. No fundo, a expectativa de

tradição destaca um regente tirânico e ímpio que

uma nova criação ou de uma criação renovada é

suagLrá na última geração para se tornar o prin­

uma aplicação específica do esquema das duas

cipal adversário de Deus ou do Messias. Acredi-

eras, em que a primeira criação é identificada

tava-se que esse agente satânico conduziria as

com a presente era ímpia (ou mundo) e a nova

j3iças do mal na batalha definitiva entre as forças

criação é identificada com a era (ou mundo) por

do mal e o povo de Deus (IQM 18.1; IQS 4.18,19;

vir. Conquanto haja muitas referências à nova

TeDn, 5.10,11; Te Ms, 8).

criação nos escritos apocalípticos, não está sem­

A historicização do mito de combate já é enrantrada no

pre claro se a presente ordem da criação é redu­

onde os monstros do caos, Raa-

zida ao caos antes do ato da recriação (lEn, 72.1;

be e Leviatã, às vezes são usados para simbolizar

91.16; Or si, 5.212; Jb, 1.29; 4.26; An bí, 3.10;

apressores estrangeiros como o Egito (SI 74.14;

Ap El, 5.38; 2Pe 3.13; Ap 21.1,5; v. 2Co 5.17;

at,

S7.4; Is 30.7; Ez 29.3; 32.2-4). Várias tradições do

Gl 6.15), ou se o que se tem em mente é a re­

fiT serviram de base para a concepção apocalíp-

novação ou transformação do mundo existente

ttca posterior acerca do adversário escatológico,

(lEn, 45.4,5; 2Ap Br, 32.6; 44.12; 49.3; 57.2; An

zicltiindo-se a figura de Gogue, o governante de

bí, 32.17; 4Ed 7.30,31,75; v. Rm 8.21). Em muitas

Mdgogue no oráculo de Gogue e Magogue de Eze-

dessas passagens, o padrão da criação nova ou

ç jie l 38—39 (v. Ap 20.8; 3En, 45.5), as referências

transformada baseia-se nas condições edênicas

a um vago “inimigo do norte”, encontrado em vá-

que se acreditava existirem na terra antes da que­

das profecias do

da de Adão e Eva.

at

(Ez 38.6,15; 39.2; Jr 1.13-15;

3.18; 4.6; 6.1,22), e o fato de Antíoco iv Epifânio,

[D. E.

A une]

o “chifre pequeno” de Datúel 7 e 8, ser retratado como o opressor do povo de Deus. A carreira do

4. Jesus e o apocaliptismo

rei greco-sírio Antíoco iv Epifânio (175-164 a.C.),

Durante o século xix, estudiosos da área bíblica

cajas ações contra o povo judeu são descritas em

tentaram defender Jesus das acusações de ser ele

IMacabeus 1.20-61 e 2Macabeus 5.11—6.11, é

um sonhador apocalíptico que equivocadamente

apresentada como uma figura apocalíptica mitolo-

predissera um fim precoce e cataclísmico para a

^zada em Daniel 11.36-39, afirmando ser Deus ou

ordem mundial existente. Alguns o defendiam

ser semelhante a Deus (Dn 11.36,37; Orsi, 5.33,34;

afirmando que ele não se referia a acontecimen­

As Is, 4.6; 2En [Rec. J] 29.4).

tos futuros de forma literal para o mundo, mas

Mais tarde, as características do adversário es­

apenas ao aspecto espiritual. As predições apoca­

catológico foram ampliadas e refinadas por tradi-

lípticas, era o que se afirmava, foram todas cum­

çães em torno dos imperadores romanos Caligula

pridas espiritualmente.

e Xero, os quais tinham pretensões divinas que

Outros, em defesa dele, acusavam de erro a

seus contemporâneos romanos consideravam es­

igreja primitiva e os autores dos Evangelhos. Uma

farrapadas e ultrajavam os judeus. A outra tradi­

dessas teorias entendia que capítulos como Mar­

ção ocupa-se do falso profeta que executa sinais

cos 13 não advinham de nada que Jesus tívesse

e maravilhas para legitimar seu ensino falso (cf.

de fato proferido. Antes, um apocalipse judaico

Dt 13.2-6). Por vezes. Satanás e o antagonista

primitivo fora usado pelos autores dos Evange­

escatológico são identificados como a mesma

lhos e erroneamente atribuído a Jesus. A teoria

ressoa, como nos Oráculos sibilinos 3.63-74 e em

desse “pequeno apocalipse” , primeiramente pro­

Ascensão de Isaías 7.1-7, nos quais Nero (= o

posta por T. Colani, passou a ser defendida desde

ardagonista escatológico) é considerado a encar­

então por vários estudiosos.

nação de Belial (= Satanás).

Muitos estudiosos do século xix retratavam

3.7 A recriação ou. transformação do cosmo.

Jesus como um professor afável que ensinava a

E n Isaías 65.17 e Isaías 66.22, temos a predição

proximidade de Deus. Infelizmente, lamentavam,

da criação de novo céu e nova terra. O tema da

Jesus foi representado nos Evangelhos como um

recriação ou renovação da criação é retomado

pregador fanátíco do juízo vindouro.

I 107 I

A p o c a l ip t is m o : N o v o T e st a m e n t o

Na virada do século xix para o xx, J. Weiss e A. Schweitzer dissiparam esse consenso ao fa­

interpretadas dessa perspectiva, ou se referiam à criação da igreja primitiva.

zer uma reconstrução de um Jesus histórico que

Tanto a escatologia consistente quanto a rea­

era completamente apocalíptico em suas ideias,

lizada parecem problemáticas. Muitos estudiosos

aliás mais ainda que aqueles que conservavam

conservadores como G. E. Ladd, E. E. Ellis e I. H.

as tradições a respeito dele. Segundo essa nova

Marshall adotaram a posição conciliatória primei­

avaliação, Jesus acreditava que a aguardada in­

ramente defendida por W. G. Kümmel. O reino,

tervenção divina, a qual inauguraria a nova era,

paradoxalmente, é “presente” e está “ainda por

ocorreria em algum ponto de seu ministério. Suas

vir”. A missão de Jesus era inaugurar o reino, mas

expectativas foram frustradas mais de uma vez, e

ele ensinava que a consumação se daria no futu­

por fim ele se entregou para morrer, imaginando

ro, após a segunda vinda.

que ao fazê-lo seguramente impeliria Deus a agir.

Os autores dos Evangelhos fielmente con­

Coube à igreja primitiva o desafio de conferir a

servam essa posição paradoxal. Usam imagens

Jesus uma imagem mais respeitável, encobrindo

apocalípticas para relatar e interpretar aconteci­

seus erros e apresentando seus ensinos de modo

mentos da vida terrena de Jesus (e.g., Mt 27.51-53;

que atendesse às necessidades de uma comuni­

28.2-4) e também imagens apocalípticas para se

dade para a qual o fim (e o

não

referir a acontecimentos futuros (o ato divino fi­

havia chegado como fora predito, mas que, ainda

nal e definitivo de juízo e salvação na vinda do

assim, acreditava que logo chegaria.

Filho do homem; cf. Mt 25.31-46; Mc 13.24-27).

re in o de

D eus ]

Essa perspectiva, em suas várias formas, ge­

A abordagem já/ainda não pode ser passível

ralmente conhecida como “escatologia consisten­

da acusação de ser uma solução muito cômoda

te” , exerceu forte influência no século xx. Alguns,

(uma hipótese, alguns diriam, que não se pode

como R. Bultmann, não se preocuparam em de­

provar falsa, sendo, portanto, indefensável), mas

fender a perspectiva apocalíptica de Jesus, ou

se alguma interpretação paradoxal como essa não

nem mesmo tentaram reconstruir um retrato do

puder ser adotada não será possível compreender

Jesus histórico. O famoso programa de desmito-

satisfatoriamente nem a posição de Jesus nem a

logização do

de qualquer dos autores dos Evangelhos.

nt

proposto por Bultmann não ten­

tava despojar Jesus de seus adornos mitológicos

[T. J.

G ed d e rt ]

(como fizeram muitos intérpretes do século xix), mas reinterpretar esses elementos míticos da

5. Paulo e o apocaliptismo

perspectiva de seu significado existencial. Com­

S.l

As fontes e os problemas. A crítica es­

preendida a partir dessa perspectiva, a mitologia

pecializada considera que as sete cartas paulinas

inerente ao ensino apocalíptico de Jesus era um

geralmente reconhecidas oferecem uma base fir­

meio de apresentar a homens e mulheres a neces­

me para analisar a teologia de Paulo. Entre essas

sidade de estarem abertos para o futuro de Deus

cartas estão Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas,

— um futuro bem próximo para cada indivíduo.

Filipenses, ITessalonicenses e Filemom. As car­

Outros estudiosos, como R. H. Hiers, não veem

tas sobre cuja confiabilidade ainda paira alguma

nenhuma dificuldade em pensar em Jesus como

dúvida (2Tessalonicenses; Colossenses) ou cuja

alguém com expectativas equivocadas que fez

autoria paulina é geralmente rejeitada (Efésios;

predições incorretas.

1 e 2Timóteo; Tito) são usadas apenas para

Entretanto, nem todos os intérpretes do sé­

suplementar os dados encontrados no corpus

culo XX estavam convencidos de que Jesus era

básico das sete cartas. 0 livro de Atos é outra

um pregador apocalíptico que predisse um fim

fonte importante para conhecermos a vida de

iminente para o mundo. C. H. Dodd e outros

Paulo, mas também deve ser usada apenas como

insistiam numa escatologia realizada, susten­

suplemento para o âmago das cartas genuínas.

tando que Jesus cumpriu as esperanças proféti­

Um dos problemas mais importantes no es­

cas do AT e pregou um reino que foi inaugurado

tudo da vida e do pensamento de Paulo é apurar

em seu ministério. As passagens que levavam a

até que ponto é apropriado rotular o pensamento

crer num cumprimento futuro ou precisavam ser

paulino de “apocalíptico”. Há um consenso bem

I 108 I

A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o

disseminado segundo o qual Paulo foi influen­

importantes estão: 1) história da salvação, ou

ciado pelo pensamento apocalíptico, mas ainda

seja. Deus, que é o agente principal da história,

iemos um problema crítico: saber até que pon­

teve desde o início um alvo em última análise sal­

to ele modificou o apocaliptismo à luz de sua

vífico para a humanidade, a princípio centrado

J. Baumgarten sustenta que Paulo

em Israel e por fim em todo aquele que cresse

desmitologiza as tradições apocalípticas quando

em Cristo — uma estrutura evidenciada de forma

sistematicamente as aplica à vida presente da

especial em Romanos 9— 11; 2) escatologia apo­

comunidade.

calíptica. No entanto, a história da salvação e a



em

C r is t o .

Outro problema reside na questão da origem do

escatologia apocalíptica não devem ser conside­

pensamento apocalíptico de Paulo. Baumgarten

radas antitéticas, visto que esta é simplesmente

acredita que as tradições apocalípticas chegaram

uma versão mais específica e detalhada daquela.

a Paulo por meio dos helenistas de Antioquia.

Além do mais, é uma questão de contínuo debate

5.2

O centro ou a estrutura do pensamento se essas hipóteses constituem o horizonte ou o

paulino. A complexidade do pensamento teoló­

cerne do pensamento de Paulo.

gico de Paulo aumenta diante do fato de que as

S.

3 Paulo como visionário e místico. Os

provas primárias de seu pensamento encontram-

autores dos apocalipses, embora muitas vezes

se em cartas esporádicas, escritas numa varie­

ocultassem a verdadeira identidade por meio de

dade de contextos específicos com o objetivo

pseudônimos, recebiam revelações divinas por

de tratar de problemas e questões específicos;

meio de visões e por essa razão estruturavam os

são comunicações pastorais ligadas à histó­

apocalipses que escreviam numa narrativa das

ria. Além disso, 0 corpus básico de sete cartas

visões que haviam recebido de fato ou diziam ter

dificilmente pode ser considerado uma amostra

recebido. Existia um estreito relacionamento en­

representativa do pensamento paulino. Apesar

tre o misticismo merkabah judaico (baseado em

das dificuldades, muitas têm sido as tentativas

Ezequiel 1) e o apocahptismo

de compreender a coerência do pensamento de

bora as visões fora do corpo fossem mais comuns

Paulo e, com base nisso, identificar o âmago

naquele, e as ascensões em corpo ao céu, mais

de seu pensamento. Alguns estudiosos não estão

comuns neste. A despeito de não haver nenhu­

(G ru enw ald) ,

em­

certos de que o pensamento de Paulo partia de

ma prova de que Paulo escreveu um apocalipse,

uim “âmago” assim, ou se a evidência das sete

ele afirma ter recebido visões revelatórias ou ex­

cartas esporádicas é suficiente para tal tarefa.

periências extáticas (Gl 1.11-17; ICo 9.1; 15.8;

Entre as mais importantes identificações possíveis

V.

da mensagem central do pensamento de Paulo

18; 27.23,24). Em Gálatas 1.12, ele se refere à

estão: 1) o evangelho; 2) a c r is t o l o g ia ; 3) a morte

sua experiência na estrada para Damasco como

e ressurreição de Jesus; 4) o tema

(ca-

um apokalypsis (“revelação”) de Jesus Cristo e

legorias participativas); 5) a eclesiologia; 6) a jus-

em 2Coríntios 12.1 fala de “visões e revelações

“ em C r is t o ”

At 9.1-9; 16.9; 18.9,10; 22.6-11,17-21; 26.12-

ãficação pela fé (a visão tradicional luterana); 7)

[apokalypseis] do

a antropologia

É evidente, no

aludem a experiências pessoais. É possível que

entanto, que muitos desses temas estão intima-

Paulo seja o homem a respeito de quem ele fala,

rnente relacionados a outros, de modo que a esco-

o qual experimentou uma viagem ao terceiro céu,

]ia do âmago do pensamento paulino passa a ser

onde ouviu palavras inexprimíveis (2Co 12.1-10).

(B a u r

e

Bu ltm an n) .

ama questão de nuança. Está claro, por exemplo, aue a polêmica doutrina paulina da

5.4

Senhor” ,

que presumivelmente

Sequências apocalípticas possíveis. Há

j u s tific a ç ã o

desdobramentos apocalípticos relativamente ex­

pela fé é um aspecto de sua cristologia e que os

tensos nas cartas paulinas, três dos quais se con­

:emas da antropologia e da eclesiologia são duas

centram na parusia de Jesus (ITs 4.13-18; 2Ts

maneiras de considerar o cristão, que ao mesmo

1.5-12; ICo 15.51-57), e o chamado “apocalip­

:empo é membro do povo de Deus.

se paulino” , centrado na vinda do antagonista

Outros estudiosos entendem que o mais

escatológico (2Ts 2.1-12). Há também várias

importante é identificar a estrutura do pensa-

sequências apocalípticas mais breves, cuja na­

ziento de Paulo. Entre as duas propostas mais

tureza parece seguir certas fórmulas, sendo.

I 109 I

A poc aliptism o : N o v o T estamento

portanto, de origem pré-paulina ou extrapaulina

da salvação, traz em si a ideia apocalíptica das

(ITs 1.9,10; 3.13; 5.23).

duas eras sucessivas. Isso fica evidente em Ro­

S.S

Dualismo limitado. A concepção paulina manos 5.12-21, trecho em que Paulo esquemati­

acerca da soberania de Deus (Rm 9— 11) torna

za a história da perspectiva dos dois reinos, o de

evidente que ele compartilha das convicções dua­

Adão e o de Cristo, ambos fazendo parte da expe­

listas fundamentais do apocaliptismo judaico do

riência presente. Portanto, Paulo faz a distinção

fim do período do segundo templo.

“já”/“ainda não” destacada pelo uso do indicativo

5.5.1

Dualismo

escatológico ou temporal. e do imperativo em passagens como Gálatas 5.25:

Seguindo a linha do pensamento duaUsta tem­

“ Se vivemos [indicativo] pelo Espírito, andemos

poral do apocaliptismo judaico, Paulo também

[imperativo] também sob a direção do Espírito”.

contrastava a presente era ímpia com a próxi­

Ainda que a carne tenha sido crucificada com

ma era de

(Gl 1.4; Rm 8.18; ICo 1.26;

Cristo (Gl 2.20; 3.24; 6.14; Rm 6.2,6,7,22; 8.13),

Ef 5.16) e acreditava estar vivendo no fim das

os desejos da carne ainda representam áreas de

eras (ICo 10.11). Ainda assim, Paulo atenuou

tentação para os cristãos (Gl 5.16-18; Rm 6.12-14;

consideravelmente a distinção aguda comum no

8.5-8). A obediência diária do cristão proporciona

pensamento apocalíptico entre essas duas eras.

a confirmação continuada e indispensável do ato

Ele entendia a morte e a ressurreição de Jesus

original de crer em Cristo até que se concretizem

V.

salvação

no passado como acontecimentos escatológicos

a redenção futura da criação e a liberdade dos

cósmicos que separavam “este mundo” (Rm 12.2;

filhos de Deus (Rm 8.19,20).

ICo 1.20; 2.6), ou “este mundo mau” (Gl 1.4),

5.5.2

Dualismo espacial. A antiga cosmologia

da “era por vir”. A era presente é dominada por

israelita considerava o cosmo em três níveis: o

governantes, potestades demoníacas fadadas à

céu, a terra e o Sheol. Essa mesma concepção do

destruição (ICo 2.6,7).

Universo foi transmitida ao judaísmo primitivo,

A crença de Paulo na ressurreição de Jesus, o

embora o realce sobre a transcendência de Deus

Messias, convencia-o de que os acontecimentos

que caracterizou o judaísmo do fim do período do

escatológicos tinham começado a se desenrolar

segundo templo pressupunha uma distinção mais

dentro da história e que a ressurreição de Jesus

acentuada entre o mundo celestial e o mundo ter­

fazia parte da expectativa judaica tradicional pela

reno. Esse duahsmo espacial (o céu como lugar da

ressurreição dos justos (ICo 15.20-23). Para Pau­

morada de Deus e de seus anjos; a terra como o

lo, 0 presente é um período temporário entre a

lugar de habitação da humanidade) coincidia com

morte (e também a ressurreição) de Cristo e seu

o duahsmo temporal ou escatológico no sentido

retorno em glória, no qual aqueles que creem

de que o reino de Deus, ou a era por vir, era uma

no evangelho compartilham os benefícios sal-

realidade celeste que por fim tomaria o lugar da

víficos da era vindoura (Gl 1.4; 2Co 5.17). Esse

realidade terrena deste mundo mau ou da presen­

período temporário é caracterizado pelo dom

te era ímpia. Para Paulo, “as [coisas] visíveis são

escatológico do Espírito de Deus, que é experi­

temporais, ao passo que as que não se veem são

mentado como presente dentro da comunidade

eternas” (2Co 4.18; v. Fp 3.20; 2Co 5.1-5). Há,

cristã em geral, bem como no interior de cada um

portanto, três domínios cósmicos: o céu, a terra

dos crentes membros da comunidade cristã (Rm

e a região abaixo da terra (Fp 2.10), embora a

8.9-11; ICo 6.19; 12.4-11; ITs 4.8). Embora Paulo

tônica normalmente recaia sobre os dois domínios

não empregue abertamente a expressão “era por

cósmicos principais: céu e terra (ICo 8.5; 15.47-50;

vir” , em 2Coríntios 5.17 e Gálatas 6.15 mencio­

V.

na a “ nova criação” , expressão com associações

habitação de Deus e seus anjos (Rm 1.18; 10.6;

Cl 1.16,20; Ef 1.10; 3.15). O céu é o lugar da

apocalípticas (Is 65.17; 66.22; Ap 21.1). Embora

Gl 1.8;

a consumação final ainda se encontre no futuro,

assentado, à mão de Deus, tradição baseada na

para os cristãos a nova era estava presente, por­

interpretação cristã pré-pauhna de Salmos 110.1

que 0 Messias tinha vindo.

V.

Ef 6.9) e o lugar onde agora Cristo está

(Rm 8.34; Cl 3.1). 0 céu é o lugar do qual Jesus

A estrutura básica do pensamento de Pau­ lo, construído em torno do conceito da história

I 110

retornará no futuro próximo como salvador e juiz (ITs 1.10; 4.16; Fp 3.20; v. 2Ts 1.7).

A poc aliptism o : N o v o T estamento

5.5.3 Dualismo ético. Para Paulo, os dois po-

história era considerada paradigmática na com­

isrss cósmicos antitéticos eram Deus e Satanás,

preensão da natureza humana. Para todos os efei­

j z e representam, respectivamente, as qualidades

tos, o cristão está situado no centro da história,

nrrais do bem e do mal. Deus é a fonte do amor

no sentido de que é no cristão que os poderes

a a 5.5; 8.39; 2Co 13.14). Foi Deus quem expres-

opostos que dominam o cosmo travam uma ba­

523 amor para com a humanidade ao enviar seu

talha. Assim como a variante cristã — própria de

J:lio para padecer a morte expiatória no lugar

Paulo — do pensamento apocalíptico é caracteri­

ieles (Rm 5.8). A influência do Espfrho de Deus,

zada por um duahsmo histórico ou escatológíco

seja, da presença ativa de Deus no mundo, é

que consiste na justaposição da nova era à antiga,

r=2etida em virtudes éticas, como amor, paciên­

a posição paulina sobre a natureza humana refle­

cia, bondade e domínio próprio (Gl 5.22,23). Há

tia uma estrutura duahsta semelhantemente ho­

semelhança fundamental entre as listas de

móloga. Isso fica evidenciado em 2Coríntios 5.17:

IQS 4.2-6,9-11, em que as virtudes fomentadas

“Se alguém está em Cristo, é nova criação; as coi­

7slo espírito da verdade sâo contrastadas com

sas velhas já passaram, e surgiram coisas novas”.

vícios promovidos pelo espírito do erro, e as

Aqui Paulo emprega a expectativa apocalíptica

l3las de Gálatas 5.16-24, passagem na qual os

fundamental em torno da criação renovada (i.e.,

vírios são as obras da carne, ao passo que as vir-

a inauguração da era por vir) após a destruição

:j;ies são fruto do Espírito. Muitas vezes. Satanás

da presente era perversa como paradigma para

i apresentado como o adversário sobrenatural

a transformação experimentada pelo cristão, que

i e Deus e dos cristãos, além de ser considerado

partiu da descrença para a fé. Assim, a expecta­

; fonte do mal no mundo (Rm 16.20; ICo 7.5;

tiva apocalíptica de uma iminente transformação

ICo 2.11; 11.14; 12.7; ITs 2.18).

cósmica da presente era perversa para uma era

: d.

5.5.4 Dualismo microcósmico ou psicológi-

futura de salvação passou a ser um paradigma da

Partindo do pressuposto de que a estrutura

transformação de cada crente.

ra teologia de Paulo é em parte produto de sua

Como essa transformação apocalíptica exerce

£Íaptação do apocaliptismo judaico como ar-

influência apenas sobre os que estão “em Cristo”,

i3bouço para a compreensão do significado da

o mundo externo e seus habitantes permanecem

~3rte e ressurreição de Jesus, o Messias, esse

sob o domínio da antiga era. A nova era encontra-

~esmo arcabouço apocalíptico exerceu um efeito

-se dessa forma ocuha na antiga. A “nova criação”

rrofundo na forma em que ele entendia os efeitos

refere-se à renovação ou recriação do céu e da

la salvação em cada cristão. A estrutura básica

terra após a destruição do velho cosmo (Is 65.17;

apocaliptismo judaico consistia num duahsmo

66.22; lEn, 91.16; 72.1; 2Ap Br, 32.6; 44.12; 49.3;

:s3iporal ou escatológíco que compreendia duas

57.2; An bí, 3.10; 2Pe 3.11-13; Ap 21.1). 0 en­

iras, a era presente (um período de opressão por

tendimento existencialista que Bultmann adotou

rarte dos ímpios), a qual será sucedida por uma

em relação aos termos antropológicos de Paulo

rssi-aventurada era futura. Conquanto o apoca-

(i.e., o ser humano como agente livre e respon­

.giismo judaico tívesse uma orientação em gran-

sável pelas próprias decisões) e a compreensão

medida futura, o fato de Paulo reconhecer que

de contornos apocalípticos ou cosmológicos que

r=SHS era o Messias, sendo assim uma figura do

E. Kâsemmann sustentava para a antropologia de

rassado, mas também do presente e do futuro,

Paulo (i.e., 0 ser humano é vítima das forças cós­

-rvou-o a introduzir algumas alterações significa-

micas sobrenaturais) não são categorias mutua­

::vas. A mais significativa é a atenuação da distin-

mente excludentes. Paulo também compreende a

z l j entre esta era e a era por vir com o realce que

luta no interior de cada cristão como o conflito

;;rJeriu à presença oculta da era por vir dentro

entre o Espírito e a

carne,

como em Gálatas 5.16:

era presente.

“Andai pelo Espírito e nunca satisfareis os desejos

Paulo demonstra uma tendência de conceitua-

da carne”.

-.331 a natureza e a existência humanas numa

5.6

Jesus, o Messias. Um dos mais importan­

re^ão microcósmica de escatologia apocalíptica

tes obstáculos que impedem a crença dos judeus

rnstianizada. Ou seja, a estrutura apocalíptica da

em Jesus como o Messias da expectativa judaica

11 1 I

A p oc aliptism o : N o v o T estamento

era o fato da crucificação (ICo 1.18-25; Gl 5.11;

2Tm 4.1). Paulo refere-se à parusia não apenas

Hb 12.2). Um dos problemas ainda por solu­

como “revelação [apokalypsis] de nosso Senhor

cionar na investigação do cristianismo primitivo

Jesus Cristo” (ICo 1.7), mas também (numa

V.

é a razão por que os cristãos primitivos reconhe­

analogia com a expressão do

ceram a condição messiânica de Jesus, a despeito

nhor”) como 0 “dia de nosso Senhor Jesus Cris­

do fato de ele não cumprir nenhuma das funções

to” (ICo 1.8; Fp 1.6; 3.12-21; Rm 14.7-12,17,18;

básicas que os judeus esperavam ver na figura do

2Co 5.10; ITs 4.13-18; ICo 15.20-28,50-58).

at



o

dia do Se­

Messias davídico, entre as quais seu papel como

5.8 A ressurreição. Para Paulo, a ressurreição

sumo sacerdote escatológico, como rei paradig­

de Jesus não era um acontecimento milagroso

mático todo-poderoso e de disposições benevo­

isolado, mas a primeira etapa da ressurreição ge­

lentes, como juiz e destruidor dos ímpios e como

ral dos justos mortos (ICo 15.20-23). Na quali­

libertador do povo de Deus [SI Sa, 17; 4Ed 12;

dade de acontecimento escatológico, Paulo está

2ApBr, 40).

certo de que a ressurreição dos justos ocorrerá

Nas sete cartas indiscutivelmente paulinas, o

quando Cristo retornar (Fp 3.20; ITs 4.13-18;

termo Chrístos, que significa “Ungido” , “ Cristo”

ICo 15.51-53). Os que ressurgirem dos mortos

ou “Messias” , ocorre 265 vezes, geralmente como

serão transformados num novo modo de existên­

nome próprio para Jesus (e.g., “Jesus Cristo”),

cia (ICo 15.51-53; Fp 3.20,21). Uma expectativa

em muitos casos com algum traço de titulação

semelhante ocorre nos escritos apocalípticos ju­

(evidente no nome “ Cristo Jesus”) e vez por ou­

daicos (Dn 12.3; lEn, 39.4,5; 62.15; 2En, 65.10;

tra como um nome para um Messias específico,

2Ap Br, 49.3). Mas a ressurreição de Jesus, que

Jesus (Rm 9.5). Contudo, jamais aparece como

garante a ressurreição dos crentes, não é sim­

termo genérico em referência a um libertador es­

plesmente um acontecimento passado com con­

catológico dentro do judaísmo. Nas sete cartas

sequências futuras. Tampouco a morte de Jesus

que formam o cerne da obra reconhecidamente

se resume a um fato histórico. Para os cristãos,

pauhna, Chrístos jamais é usado como predicado

0 BATISMO representa uma verdadeira identificação

(e.g., “Jesus é o Cristo”), Chrístos nunca é pre­

com Cristo em sua morte e ressurreição, sinah-

cedido de artigo definido, após o nome “Jesus”

zando a morte da velha vida e a ressurreição para

(e.g,. “Jesus, 0 Cristo”) e Chrístos jamais é acom­

a nova (Rm 6.1-14; 8.10,11; v. Cl 3.1-3; Ef 2.1-10).

panhado por um substantivo no genitivo (e.g., “ o

5.9 O antagonista escatológico. A doutrina

Cristo de Deus”). É seguro concluir que Paulo não

cristã a respeito da encarnação de Cristo prati­

tinha nenhuma dúvida da condição messiânica

camente tornou inevitável que um homólogo

de Jesus, tampouco era um assunto que o preo­

satânico de Cristo íosse incorporado na expec­

cupava. Paulo pressupõe, embora não procure

tativa apocalíptica do cristianismo primitivo.

demonstrar, que Jesus é o Messias.

No apocalipse sinótico, temos a predição de que

5.7

A parusia e o juízo final. Os últimos pro­ no fim surgirão falsos messias e falsos profetas

fetas do AT muitas vezes se referiam ao dia do

(Mc 13.21,22; Mt 24.23,24). Essa figura é chama­

Senhor como a ocasião em que Deus julgaria o

da Anticristo nos escritos joaninos (IJo 2.18,22;

mundo (Am 5.18-20; Sf 1.14-16; J1 2.2). Nos es­

4.3; 2Jo 7). Em Apocalipse, as duas principais

critos apocalípticos judaicos, a inauguração do

tradições em torno do Anticristo — o governan­

eschaton ocorre com a vinda de Deus ou de um

te ímpio e tirânico e o profeta falso e sedutor —

agente autorizado por Deus, o Messias, para tra­

aparecem separadamente. 0 governante ímpio é

zer salvação e juízo. Embora Paulo fale sobre “ o

chamado a Besta que Subiu do Mar (Ap 13.1-10;

dia do Senhor” (ITs 5.2) e sobre o papel de Deus

16.13; 19.20), ao passo que o falso profeta é cha­

como juiz escatológico (Rm 3.6), o centro de sua

mado a Besta que Surgiu da Terra ou Falso Profeta

esperança escatológica deslocou-se de Deus para

(Ap 13.11-18; 16.13; 19.20). Nas cartas paulinas,

Cristo, de modo que ele pode falar sobre o dia

existe apenas uma exposição extensa a respeito

iminente do Senhor (ITs 5.2), mas afirmar que

da vinda do antagonista escatológico (2Ts 2.1-12),

naquele dia Deus julgará os segredos dos seres

embora, estranhamente, não haja mais nenhuma

humanos por meio de Cristo Jesus (Rm 2.16; v.

alusão a essa figura em nenhuma outra parte das

I 1 12 I

A poc aliptism o ; N o v o T estamento

cartas de Paulo. Ali, Paulo funde num só persona­

reconheça apenas uma ressurreição, seja no co­

gem as duas tradições mais importantes a respei­

meço, seja no fim do reino messiânico. Essa alte­

to do antagonista escatológico, a do governante

ração foi motivada pela crença de Paulo na morte

ímpio e tirânico e a do profeta falso e sedutor.

e na ressurreição de Jesus, o Messias.

Essa pessoa é chamada “homem do pecado” e

ressurreição permite aos crentes que morreram,

A

primeira

“ filho da perdição” (2Ts 2.3; v. Dn 11.36,37; Orsi,

assim como aos cristãos vivos que participam do

5.33,34; As Is, 4.6; 2En [Rec. J] 29.4), que inves­

reino messiânico, desfrutar um modo ressurreto

tirá a si mesmo de autoridade no templo de Deus,

de existência.

se autoproclamará Deus (2Ts 2.4) e realizará mi­

A

reconstrução feita por Schweitzer da escato­

lagres que legitimem suas alegações (2Ts 2.9; v.

logia paulina está sujeita a várias críticas. 1) Não

Mc 13.22; Mt 24.24; Ap 13.13,14). Esse oponente

há nenhuma prova em ITessalonicenses 4.13-18

escatológico ainda não apareceu porque alguém

nem em ICoríntios 15.20-28 de que Paulo conta­

ou algo ainda o detém (2Ts 2.7), embora não haja

va com a chegada de um reino messiânico inter­

nenhum consenso quanto a quem seja essa força

mediário

detentora ou restritiva: Satanás, o Império Roma-

que Paulo tinha por certa uma ressurreição geral

ao, o imperador romano ou alguma força sobre­

dos mortos justos e ímpios.

( W ilcke ) .

2) Não há nenhuma prova de

natural. Esse adversário escatológico será morto

Várias razões levam a crer como hipótese

pelo Senhor Jesus quando ele retornar para julgar

mais provável que ICoríntios 15.20-28 na verda­

iodas as coisas (2Ts 2.8).

de deixa prever que a parusia será imediatamen­

5.10

O problema de um reino messiânico te seguida da ressurreição e do juízo, os quais,

temporário. É discutível a relação que há entre

em conjunto, introduzirão a consumação final da

ICoríntios 15.20-28 e a posição do judaísmo pri­

história

mitivo e do cristianismo primitivo acerca de um

o reino de Deus é um reino que jamais acabará

( D a v ie s ,

1970, p. 295-7). 1) Para Paulo,

reino messiânico intermediário e temporário, em­

(ITs 2.12; Gl 5.21; ICo 6.9,10; 15.50; v. 2Ts 1.4,5;

bora a opinião geral seja que não existe prova im­

Cl 4.11). 2) 0 único texto que menciona o “ reino

parcial e convincente de que Paulo, assim como

de Cristo” (Cl 1.12,13) entende que se trata de

o autor de Apocahpse (Ap 20.1-6), contasse com

um fato presente. 3) Paulo vincula a parusia com

a chegada de um interregno messiânico.

o juízo que advirá sobre o mundo (ICo 1.7,8;

Schweitzer resume da seguinte forma as cren­

2Co 1.14; Fp 1.6,10; 2.16). É provável que Paulo

ças apocalípticas de Paulo: 1) retorno repentino

tenha no fundo historicizado a concepção apoca­

e inesperado de Jesus (ITs 5.1-4); 2) ressurrei­

líptica de um reino messiânico temporário como

ção de crentes mortos e transformação de cren­

um período provisório entre os acontecimentos

tes vivos, todos os quais irão encontrar-se nos

da crucificação e da ressurreição de Jesus e o fato

ares com o Jesus que voltará (ITs 4.16,17); 3)

anunciado de sua parusia.

juízo messiânico presicUdo ou por Cristo (2Co

[D. E.

A une]

5.10) ou por Deus (Rm 14.10); 4) inauguração do reino messiânico (não mencionado por Paulo,

6. Os escritos neotestamentários

mas dado a entender em ICo 15.25 e Gl 4.26); 5)

posteriores e o apocaliptismo

transformação de toda a natureza da mortalidade

Nos escritos neotestamentários posteriores, a ex­

para a imortalidade durante o reino messiânico

pectativa da parusia é enriquecida por previsões

CRm 8.19-22) e a luta contra as poderes angéli­

de um céu e de uma terra renovados, incluindo-

cos (Rm 16.20) até que a morte seja vencida

se uma Jerusalém renovada. Em 2Pedro 3.10-14,

3Co 15.23-28); 6) encerramento do reino mes­

menciona-se uma transformação cósmica, na

siânico (Paulo não menciona sua duração); 7)

qual “ o dia do Senhor virá como ladrão, no qual

ressurreição geral por ocasião do encerramento

os céus passarão com grande estrondo, e os ele­

do reino messiânico (ICo 6.3); 8) juízo de toda

mentos, queimando, se dissolverão, e a terra e as

a humanidade e dos anjos derrotados. De acordo

obras que nela há serão descobertas” (2Pe 3.10).

com Schweitzer, Paulo introduz duas ressurrei­

Hebreus 12.18-24 e 13,14 refere-se à nova Jeru­

ções, embora a escatologia judaica que o precede

salém, tema vislumbrado em vários manuscritos

I 113 I

A pócrifos e Pseudepígrafos

de Qumran (e.g., 1Q32, 2Q24, 4Q554-555, 5Q15,

Scholars, 1979. (Semeia, 14.) ■______ . Apocalypti

11Q l8) e fundamentalmente inspirado pelas vi­

cism in the Dead Sea Scrolls. London: Routledge

sões de Ezequiel. Esse tema é tratado no

nt

em

detalhes em Apocalipse 21—22. De acordo com

1997. •

D avies ,

W.

D.

Apocalyptic and pharisaism

In:______ . Christian origins and Judaism. Phila

aquele que recebe a visão: “Então vi um novo

delphia: Westminster, 1962. p. 19-30. ■ ______

céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a

Paul and rabbinic Judaism. 3. ed. London:

primeira terra já se foram, e o mar já não existe.

1970. ■

spck

I. Apocalyptic and Merkavah

G ru enw ald,

Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia

mysticism. Leiden:

do céu, da parte de Deus, enfeitada como uma

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J. Brill, 1980. ■

E.

H anson,

P.

noiva preparada para seu noivo. E ouvi uma forte

1975. ■ H iers, R.

voz, que vinha do trono e dizia: 0 tabernáculo

John Knox, 1981. ■

de Deus está entre os homens, pois habitará com

of primitive Christian apocalyptic. In :______ . New

H.

Jesus and the future. Atlanta: K ã s e m a n n , E.

On the subject

eles. Eles serão o seu povo, e Deus mesmo es­

Testament questions of today. Philadelphia: For­

tará com eles. Ele lhes enxugará dos olhos toda

tress, 1969. p. 108-37. ■ K o c h ,

lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto,

apocalyptic. Naperville: Allenson, 1970.

nem lamento, nem dor, porque as primeiras coi­

■ K r e itzer ,

sas já passaram” (Ap 21.1-4). A descrição dessa

gy. Sheffield:

nova Jerusalém, que realça o número doze, fun­

Weisheit und Apokalyptik. In: Anderson,

de elementos apocalípticos judaicos com o realce

al., orgs. Congress volume. Oppsala, 1971. Leiden:

que os cristãos conferem a Jesus, o “cordeiro” de

E.

Deus, cujo retorno é ansiosamente aguardado.

Theocracy and eschatology. Richmond: John Knox,

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P s e u d e p íg r a f o s

Rapids: Eerdmans, 1986. ■ B ecker , J. Erwägungen

O termo “Apócrifos” é aphcado por cristãos pro­

zur apokalyptischen lïadition in der pauhnischen

testantes aos livros incluídos no

Theologie. EvT, v. 30, p. 593-609, 1970. ■ B eker , J.

Católica Romana, Copta e Ortodoxa Oriental, não

at

pelas igrejas

C. Paul the Apostle. Philadelphia; Fortress, 1980.

sendo, porém, encontrados no cânon judeu ou



. Paul’s apocalyptic gospel: the coming

protestante. O termo “Pseudepígrafos” refere-se

triumph of God. Philadelphia: Fortress, 1982. ■

a um corpo muito maior de textos, a maioria dos

H. D. On the problem of the rehgio-histori-

quais compartilha o expediente literário de ter

B e tz ,

cal understanding of apocalypticism, 134-56, 1969. •

B ra n ick ,

6, p.

sido escrita sob o pseudônimo de um persona­

V. P. Apocalyptic Paul?

gem importante ou antigo da herança de Israel

jt c ,

v.

J., org..

(autores católicos romanos e ortodoxos normal­

Apocalypse: the morphology of a genre. Missoula:

mente se referem a esse corpo de escritos como

CBQ, V.

47, p. 664-75, 1985. •

C o lu n s , J.

I 1 14 I

A pócrifos e P seudepígrafos

“apócrifos”). Essas compilações conservam vozes

Qumran mostram que tais obras foram conserva­

importantes que testemunham o pensamento, a

das não somente em círculos cristãos — Sirácida,

piedade e os diálogos no judaísmo do período

Tobias e a Epístola de Jeremias foram todos acha­

do segundo templo, o que nos revela os antece­

dos entre os manuscritos do mar Morto, além de

dentes da teologia, cosmologia, ética, história e

inúmeros pseudepigráficos [lEnoque, Jubileus e

cultura dos autores do

outras obras pseudepigráficas desconhecidas até

nt

e formadores da igreja

primitiva, muitos dos quais conheciam, estima­

então;

vam e faziam uso das tradições preservadas nes­ ses textos.

St o n e ) .

A falta de consenso sobre quais hvros perten­ cem aos Apócrifos dá testemunho da presente

1. Definição de termos

variedade no cânon do at entre as igrejas cristãs.

2. Conteúdo e ideias principais

Todos esses hvros são considerados canônicos por

3. Importância

algumas comunidades cristãs. J. H. Charlesworth mostra a necessidade de uma delineação unifor­

1. Definição de termos 1.1

me e exclusiva dos Apócrifos, seguindo as hstas

Apócrifos. A palavra "apócrifos” (gr., da maioria dos manuscritos da

lx x

,

em lugar da

"coisas ocultas”) era a princípio um título hon­

Vulgata. Ele excluiria 3 e 4Macabeus, a Oração

roso para livros que contivessem uma sabedo­

de Manassés e 2Esdras (2Ed 3— 14 = 4Esdras)

ria esotérica especial que fosse “tão sagrada ou

dos Apócrifos e os incluiria entre os Pseudepígra­

profunda que nâo podia ser exposta a ninguém

fos. As mais recentes Bíbhas de estudo (Meeks,

que não o iniciado”

Metzger e Murphy) optam por uma compilação

( C h a r le s ) .

Alguns estudiosos

situam a origem do termo em 4Esdras 14.44-47

mais abrangente dos Apócrifos (todos os de­

( = 2Ed 14.44-47), que menciona os "livros ocul­

zoito). Nos manuscritos da

tos” com sabedoria divina para os “ sábios dentre

4Macabeus têm a seu favor uma forte presença,

0 povo” , distintos da compilação canônica que

evocando grande respeito na Igreja Ortodoxa

contém sabedoria tanto para o indigno quanto

Grega. C. A. Evans observa acertadamente que

para o sábio

No encalço das

a linha entre os Apócrifos e os Pseudepígrafos

controvérsias da igreja primitiva e, além disso,

não está claramente traçada, sendo ainda mais

(R ow ley

e

F rftsch ) .

lx x

,

3Macabeus e

no período posterior à Reforma, o termo adquiriu

obscurecida quando examinamos a relação entre

conotações negativas, referindo-se a livros que

Judas, lEnoque e Assunção de Moisés (Evans, p.

foram retidos por causa de seu valor "secundá­

22; Russell, 1993). Talvez nunca cheguemos ao

rio ou questionável”

consenso a que Charlesworth nos convoca.

( C h a r le s )

e eram potencial­

mente “falsos, espúrios ou heréticos”

( C h a r le s

e

0

Os livros contidos nos Apócrifos tiveram uma história estigmatizada no processo de aceitação

R o w le y) .

termo é agora empregado em círculos pro­ por parte da igreja, e nem todos os dezoito (ou

testantes para designar de treze a dezoito textos

treze) se saíram igualmente bem nessa história (v.

incluídos como parte do

p R rrscH

at,

dentre os quais há

para um debate mais aprofundado). Paulo

obras históricas (1 e 2Macabeus, lEsdras), contos

sem dúvida conhecia e fazia uso de Sabedoria de

(Tobias, Judite, 3Macabeus, Acréscimos a Ester,

Solomão, e ecos do Sirácida aparecem nos dizeres

outros contos sobre Daniel), literatura sapiencial

de Jesus. Os pais apostóhcos (Policarpo, Clemente,

(Sabedoria de Salomão, Sirácida ou Eclesiástico),

Pseudo-Barnabé) ou citam Sabedoria de Solomão,

escritos proféticos pseudepigráficos (Baruque,

Tobias e Sirácida, ou lhes fazem alusão como es­

Epístola de Jeremias), textos litúrgicos (Oração de

critos autorizados, e há também inúmeras alusões

Manassés, salmo 151, Oração de Azarias e o Cân­

a outros apócrifos. Algumas figuras de destaque na

tico dos Três Jovens), um apocalipse (2Esdras) e

igreja, como Jerônimo e Orígenes, reconheciam a

um encômio filosófico (4Macabeus). Essas obras,

diferença entre a compilação das Escrituras do

à exceção de Oração de Manassés e 4Esdras,

usadas pela igreja e o cânon hebreu, e Jerônimo

at

acham-se em inúmeros manuscritos da txx, sen­

especialmente propõe uma distinção prática entre

do claramente valorizadas pela igreja primitiva

os textos "canônicos” e os "eclesiásticos”, que são

e hdas como Escritura. Descobertas recentes em

úteis e edificantes, mas não da mesma estirpe.

I 1 15 I

Outros personagens, como Clemente de Alexan­

greco-romanos do período poderia, no entanto,

dria e Agostinho, abraçam a compilação mais am­

ajudar o estudante a avahar as implicações da

pla como sendo de uniforme inspiração e valor.

pseudepigrafia canônica

( E van s) .

Somente a Reforma Protestante forçou uma

Esse termo, assim como “apócrifos”, adquiriu

decisão. Martinho Lutero decisivamente separou

conotações negativas. 0 levantamento feito por

os livros ou as partes dos hvros (e.g.. Acréscimos

Charlesworth em vários verbetes de dicionário

a Ester e Daniel) que não estivessem inclusos no

mostra que em hnguagem comum o termo de­

cânon hebreu de seu a t como “hvros que não po­

nota “ obras espúrias” que “não são consideradas

dem ser contados entre os livros canônicos, mas

canônicas nem inspiradas”. Esses dicionários, co­

0 res­

menta Charlesworth acertadamente, perpetuam

tante dos reformadores protestantes seguiu sua

uma equiparação enganadora entre pseudepigra­

prática. Os hvros apócrifos continuaram a ser im­

fia e ilegitimidade. Além do mais, ele também

são úteis e bons para leitura” (cit.

R ow ley) .

pressos e recomendados como material edifican­

está certo em propor que se faça um esclareci­

te, mas não podiam ser usados como base para

mento em relação à questão da canonicidade e

doutrina ou ética à parte dos livros canônicos. A

da inspiração. Vários desses hvros são citados

Igreja Catóhca Romana respondeu no Concilio de

como textos autênticos e autorizados. Devemos

Trento (1546) ao declarar esses livros (excluindo

guardar-nos, então, de atribuir juízos modernos

1 e 2Esdras, Oração de Manassés e 3 e 4Maca-

de valor a uma prática literária antiga. 0 termo é usado pelos estudiosos em referên­

beus) plenamente canônicos. A opinião de muitos protestantes a respeito

cia ao “restante dos ‘hvros de fora’ ”

( R o w ley) o u

dos Apócrifos decaiu consideravelmente em rela­

a “escritos semelhantes aos Apócrifos, mas não

ção à avaliação de Lutero. A ênfase no sola scrip-

incluídos neles”

tnm (“ somente a Escritura”) e na “suficiência

culo XX testemunhou a publicação de duas im­

das Escrituras”, estimulada por séculos de tensão

portantes compilações de livros pseudepigráficos

(S t o n e ,

1984). A virada do sé­

entre a Igrejas Catóhca Romana e as igrejas pro­

( K autzsc h

testantes, fez com que os Apócrifos passassem a

“reducionistas” , contendo apenas uma dezena

e

C h a r le s ) ,

embora fossem compilações

ser mais suspeitados que respeitados, e a falta de

ou mais de textos

familiaridade com os textos por parte da maio­

sua equipe buscaram um delineamento mais am­

ria dos protestantes acabou por intensificar essa

plo desse corpo de escritos, incluindo 63 textos

( C h a r le s w o r t h ) .

Charlesworth e

aversão. Não obstante, a compilação de textos in­

que correspondiam à designação geral proposta

cluídos nos Apócrifos merece atenção cuidadosa,

para o corpo. Esses textos 1) eram quase exclu­

não apenas com base em seu testemunho às cor­

sivamente judeus ou cristãos; 2) foram muitas

rentes e desenvolvimentos no judaísmo durante

vezes atribuídos a personagens ideais no passa­

0 período intertestamentário, mas também com

do de Israel; 3) habitualmente alegavam conter a

base na influência que esses textos exerceram na

palavra ou a mensagem de Deus; 4) fundamen­

igreja durante seus séculos formativos.

tavam-se em narrativas ou ideias do

at;

5) foram

l.ZPseudepígrafos. 0 termo “pseudepígrafos”

escritos entre 200 a.C. e 200 d.C. (ou, se escritos

(gr., “coisas a que se atribuiu título ou autor fal­

posteriormente, pareciam conservar de modo

so”) realça em primeiro lugar uma característica

substancial tradições anteriores). Charlesworth

literária de muitos escritos dos períodos helenísti­

afirma que esses critérios têm por objetivo definir

co e greco-romano, ou seja, escrever sob o nome

uma compilação, não propor normas rígidas para

suposto de um grande personagem do passado

legitimar os hvros pseudepigráficos.

distante. 0 termo em si não distingue dos escritos

Há corpos importantes de textos que não estão

canônicos o corpo de textos a que se refere, uma

agrupados entre os Pseudepígrafos. Filo e Josefo

vez que inúmeros estudiosos sustentam haver

deixaram uma vastidão de materiais, mas como

obras pseudepigráficas no próprio cânon (e.g.,

a atestação autoral não é pseudepigráfica, suas

Daniel, Cântico dos Cânticos, Deutero-Isaías,

obras ficam de fora dessa categoria. Os manus­

vários salmos). 0 estudo do fenômeno mais am­

critos do mar Morto contêm muitos textos pseu­

plo da pseudepigrafia entre os escritos judeus e

depigráficos, mas como o “canal de transmissão”

I 116 I

A pócrifos e P seudfpígrafos

muito bem definido, eles são tratados

acrescenta, acertadamente, que alguns pseudepi­

como um corpus à parte. Por último, há os tar-

gráficos são anôrúmos, não pseudônimos (e.g., 3 e

gnns (v.

4Macabeus), e que, mesmo quando a designação

(S t o n e ) é

e outras

TRADIÇÕES E ESCRITOS RABíNicos)

reformulações dos textos bíblicos que contêm

é correta, ela “realça indevidamente uma caracte­

muita coisa em comum com livros como Jubileus,

rística de menor importância”.

mas não estão incluídos nos Pseudepígrafos.

Problemas com ambos os termos levaram

O fenômeno da pseudepigrafia é complexo. R.

muitos estudiosos a tratar dos escritos judeus não

H. Charles buscou a origem da prática no sur­

fazendo uso dessas categorías em geral cheias de

gimento de uma ortodoxia judaica monolítica

juízos de valor ou anacrônicas, mas por gênero,

baseada num cânon fechado de Lei e Profetas,

origem geográfica ou período

que não permitiria a outros autores arrogar para o

b u rg ;

próprio nome o status de inspiração. A imagem de

Apócrifos e os Pseudepígrafos figuram lado a lado

um judaísmo normativo anterior ao ano 70 d.C.

sob as categorias de escritos sapienciais, escritos

tem sido amplamente refutada. Talvez mais útil

históricos, peças litúrgicas e afins. Fritsch e D.

seja a sugestão de

Cohen de que os judeus do

RusseU defendem o uso do termo “apócrifo” para

período do segundo templo viveram uma era pós-

cobrir todos os textos protestantes não canônicos,

S.

S chürer; K ra f t

&

( N e w s o m e ; N ic ke ls ­

N ic k e ls b u r g ; S t o n e ) .

Os

S.

clássica: essa consciência levou alguns autores

seguindo o costume da sinagoga moderna (“h-

a conectar sua obra com algum personagem do

vros de fora”), embora essa sugestão acabe tam­

período clássico (pré-exílico ou exílico). No caso

bém por denunciar certo preconceito canônico.

dos apocahpses, o fenômeno pode ser ainda mais

Apesar dessas dificuldades, existe algum valor

complexo, pois alguns autores se identificam, em

em manter os termos

alguma experiência extática, com o personagem

os Apócrifos uma compilação dá testemunho à se­

do passado, conferindo nova voz ao antigo digni­

leção feita pela igreja primitiva de certos escritos

tário. A escolha do pseudônimo pode indicar uma

judaicos que, embora não pertencessem ao cânon

tentativa consciente de vincular a própria obra

hebreu, eram ainda assim tidos por inspirados e

(C h a r le s w o r th ).

Considerar

à “tradição de ensino recebida” e relacionada a

de valor especial, exercendo uma influência im­

esse nome

Evans ecoa essa teoria com

portante na igreja desde seus primórdios. Desde

aprovação, estendendo-a até o período posterior

que se reconheça que essas categorias poderiam

à era apostóhca, durante a qual a autoridade era

permanecer algo fluidas (testemunhado pelo uso

(S t o n e ) .

mediada apenas pelos personagens clássicos da

que Judas faz de lEnoque e Assunção de Moisés e

primeira geração da igreja, e a pseudepigrafia ou­

pela inclusão de 3 e 4Macabeus em muitos códi­

tra vez se tomou um fenômeno comum.

ces da l x x ] , os termos continuam sendo importan­

Os estudiosos chamam a atenção para as hmitações de ambos os termos. Em primeiro lugar, “apó­

tes como forma de priorizar o vasto repositório de escritos judaicos que chegaram até nós.

crifos” e “pseudepigráficos” não são termos iguais. Um deriva de debates canônicos e do uso; o ouüro,

2. Conteúdo e ideias principais

de uma característica literáría singular. “Apócrífo”

Embora haja significativa sobreposição entre as

é um termo especialmente problemático para o es­

duas compilações, este verbete as tratará separa­

tudo históríco desses documentos, uma vez que

damente para melhor clareza e definição.

as decisões sobre o cânon são muito posteríores

2.1

Apócrifos. Os dois hvros históricos 1 e

ao período em que os textos foram produzidos e

2Macabeus

frequentemente ocorrem apenas séculos depois

sobre uma série de acontecimentos que deram

oferecem

informações

essenciais

que um documento esteve em uso e exerceu im­

forma à consciência judaica durante o final do

portante influência (cf.

periodo do segundo templo. O programa forçado

C h a r le s w o r t h ; N ickelsburg ) .

Ao usar o termo “Pseudepígrafos” em referência a

de helenização imposto pelos sumos sacerdotes

um corpo de textos de fora do cânon protestante

Jasão e Menelau (175-154 a.C.), a ascensão da

e dos Apócrifos, obscurecemos a natureza pseude­

família asmoneia como salvadores de Israel e a

pigráfica de muitos textos contidos nesses corpos

união do sumo sacerdócio com a realeza sob essa

de literatura

mesma dinastia teve desdobramentos de longa

( N ickelsburg ; R ussell) .

C.

T. Frítsch

I 1 17 I

duração para o período. O sistema de valores do

a coragem e a resistência dos mártires da crise

movimento zelote posterior, a noção de um mes­

de helenização (que recebem o elogio do autor).

sias militar e a aversão por diminuir os limites

Especificamente aqueles mandamentos que sepa­

entre judeus e gentios (e.g., a resistência judaica

ram os judeus dos membros de outras raças — as

à missão de Paulo), tudo isso tem raízes fortes

leis que frequentemente ensejam o desprezo aos

nesse período. Foi também nesse período que se

não judeus — mostram-se particularmente capa­

formaram as principais seitas dentro do judaísmo

zes de conduzir ã virtude e à honra.

— em geral numa reação contra (e.g., os essênios

Os Apócrifos contêm ainda inúmeros contos

de Qumran, os fariseus) ou a favor (saduceus)

edificantes, assim abrindo janelas úteis que nos

da administração asmoneia do templo. Segundo

permitem visuahzar a religiosidade do período.

IVIacabeus também fornece um dos primeiros tes­

Ester recebeu acréscimos para incluir referências

temunhos importantes da crença na ressurreição

diretas a Deus e expressões de consagração (ora­

dos justos e de uma crescente angelologia.

ção, pureza dietética). Tobias, uma narrativa do

Sabedoria de ben-Siraque (Eclesiástico ou Sirá­

tempo da Diáspora e talvez o livro mais antigo

cida), escrito em Jerusalém por volta de 180 a.C.,

dentre os Apócrifos, conta uma história a respeito

apoia o compromisso com a Torá como o único

da providência de Deus, da atividade de anjos e

caminho para a honra e como o caminho da verda­

demônios, da eficácia da oração e do exorcismo.

deira sabedoria. Contém instruções sobre uma in­

A história promove o ato de dar esmolas e outras

finidade de temas, mas seus ensinos sobre oração,

ações de caridade na comunidade judaica, bem

perdão, esmolas e uso correto das riquezas dei­

como 0 valor da endogamia e dos parentescos.

xaram uma marca indelével nas instruções éticas

Judite, talvez uma obra palestina do período ma­

posteriores do judaísmo e na igreja primitiva. Sa­

cabeu, é 0 relato de uma heroína que usa seu en­

bedoria de Salomão, produto do judaísmo egípcio

canto para enredar e eliminar um opressor gentio.

da virada da era, também promove o modo de vida

A história confirma a importância da oração, a pu­

judaico, realçando a importância eterna do vere­

reza ahmentar, a virtude da castidade e o cuidado

dicto de Deus na vida de alguém, as recompensas

de Deus pelo seu povo em tempos de adversidade.

e a natureza da sabedoria e as ações de Deus a

Podemos classificar 3Macabeus também como

favor do povo de Deus, Israel. O autor leva ao mais

uma lenda edificante que registra uma saga para

alto nível a personificação da Sabedoria, e isso

o judaísmo da Diáspora correspondente à histó­

exerceu muita influência sobre a reflexão da igreja

ria de 21Vlacabeus. Afirma o cuidado especial de

primitiva acerca da divindade e da preexistência

Deus e sua proximidade dos judeus que vivem na

de Jesus. Sabedoria de Salomão ajuda os judeus

Diáspora e estão separados da terra prometida;

a permanecer dedicados ã Torá também por meio

ela confirma as tensões entre judeus fiéis, judeus

da demonstração da insensatez da reUgião gentí-

apóstatas e a cultura gentíhca dominante. Pode

hca, e muito disso é reproduzido nos ataques de

se incluir lEsdras nesse grupo, embora seja mais

Paulo à depravação dos gentios e à idolatria. Aqui

uma reescrita de livros bíblicos (2Cr 35.1—36.23;

talvez pudéssemos também mencionar a Epístola

Esdras; Ne 7.38—8.12). O único trecho original

de Jeremias, que reforça a convicção judaica de

desse livro é um conto palaciano sobre a sabe­

que os ídolos não sâo nada e que os gentios estão

doria de Zorobabel (lEd 3.1— 5.6). Dois contos

separados da verdadeira religião.

sobre o herói Daniel (escritos separadamente)

Embora não seja propriamente um livro de

aparecem na versão grega expandida desse livro.

sabedoria, 4Macabeus também promove a ade­

O primeiro, a História de Susana, como lEsdras

são ao judíúsmo, assegurando aos leitores judeus,

3.1— 5.6, celebra a sabedoria de um líder judeu.

por meio de uma demonstração filosófica, que a

O segundo, Bel e o dragão, demonstra a insensa­

obediência rigorosa à Torá instrui a pessoa em

tez da idolatria quando Daniel abala a credibih­

todas as virtudes cardinais tão apreciadas e va­

dade de uma imagem de Bel e de uma serpente

lorizadas pela cuhura greco-romana. De fato, os

viva, ambos tidos como deuses.

judeus instruídos pela Torá suplantam todos os outros no exercício da virtude, como demonstram I

Vários textos litúrgicos estão incluídos nos Apócrifos. 0

118 I

salmo 151 relembra que Deus

A pócrifos e Pseudepígrafos

escolheu a Davi e relembra o triunfo de Davi so­

da Torá serão punidos. Durante esse período tu­

bre 0 gigante filisteu — seguramente uma ima­

multuado, essa visão foi muitas vezes alterada,

gem poderosa do lugar de Israel entre os reinos

esperando-se a recompensa ou o castigo na vida

gentílicos gigantescos que dominaram a nação

futura (seja por meio da ressurreição, como em

por todo esse período, exceto no tempo da Di­

2Macabeus, seja pela imortalidade da alma, como

nastia Asmoneia. Os poetas judeus ficavam

em Sabedoria), porém jamais foi abandonada.

atentos em busca de pontos na história bíblica

Boa parte dessa hteratura ocupa-se do cuidado de

que exigissem uma oração ou um salmo, mas

Deus pelo seu povo, o que significa viver como

não os registravam. Dois acréscimos a Daniel e

povo fiel e obediente e como reagir de maneira

a Oração de Manassés proporcionam o que falta

correta às pressões que ameaçam essa lealdade.

às narrativas: uma oração de arrependimento e

2.2

Pseudepígrafos. Entre os Pseudepígrafos

um pedido de ajuda na fornalha ardente (Oração

encontram-se amostras de uma ampla variedade

[ou Cântico] de Azarias), um salmo de libertação

de gêneros: apocahpses, testamentos, expansões

(Cântico dos Três Jovens) e outra oração de peni­

de narrativas bíblicas, escritos sapienciais, escri­

tência (Oração de Manassés), a qual afirma que

tos filosóficos, textos htúrgicos, obras históricas,

nenhum pecador está além da misericórdia e do

poesia e drama — todos estão aí representados.

poder de Deus para perdoar. Apesar de Baruque

Muitos dos Pseudepígrafos enquadram-se no

ser em essência um livro profético pseudepigráfi-

gênero apocalíptico. Desses, o mais importante e

co, também contém muito material litúrgico. Os

acessível talvez sejam lEnoque e lApocalipse de

capítulos de abertura (Br 1.1—3.8) apresentam

Baruque. Os estratos mais antigos de lEnoque,

orações de penitência que afirmam a justiça de

obra que se constitui de partes separadas, mas

Deus por trazer sobre Israel e Judá as maldições

inter-relacionadas, talvez datem do século iii a.C.

de Deuteronômio, mas também abrem a porta

Essa obra apresenta uma viagem aos lugares pre­

para a esperança de retorno à medida que Deus é

parados para o castigo dos maus e para a recom­

novamente lembrado na terra do exílio. Segue-se

pensa dos justos, uma angelologia avançada, com

um salmo de sabedoria, identificando a sabedo­

base na história dos “ Vigilantes” (cf. Gn 6.1-4),

ria total e exclusivamente com a Torá de Moisés,

e um esquema histórico que situa os destinatá­

de forma semelhante a Sirácida (Br 3.9—4.4). As

rios da carta perto do tempo em que Deus invade

seções finais assumem um tom mais profético, in­

a malha da história para executar seu juízo. As

troduzindo oráculos que prometem a reunião dos

Similitudes [lEnoque 37— 71), compostas talvez

iudeus da Diáspora, o juízo sobre as cidades que

durante o século i d.C., dá testemunho dos de­ senvolvimentos da figura do Filho do homem

oprimiram os judeus e a exaltação de Sião. Por último, a compilação inclui um apocalip­

e assim fornece material relacionado para o es­

se, 2Esdras (também chamado 4Esdras). 0 autor

tudo desse título nos Evangelhos. A obra como

escreve em resposta à destruição de Jerusalém em

um todo debcou sua marca em Judas (que cita

70 d.C. e mais diretamente em resposta à lentidão

lEnoque 1.9) e especialmente em Apocalipse.

de Deus em punir Roma, o instrumento da destrui­

Como 4Esdras, ZApocalipse de Baruque é uma

ção. Em sua negação de esperança para aquela era,

resposta apocalíptica à destruição de Jerusalém.

sua esperança de recompensa para a era vindoura,

Também aconselha um renovado compromisso

suas visões da águia de muitas cabeças e o homem

com a Torá como o caminho para Deus vindi-

do mar, o texto abre uma janela importante para o

car a nação castigada, assegurando aos leitores

apocaliptismo judaico com paralelos elucidativos

a proximidade da libertação executada por Deus

para o material apocalíptico do

e a certeza do castigo de Roma. Outros apoca­

nt.

Em todo esse corpus, percebe-se a proeminên-

hpses dignos de nota são ZEnoque, os Oráculos

da da teologia da aliança de Deuteronômio — a

sibilinos, 0 Apócrifo de Ezequiel, o Apocalipse de

convicção, arraigada nas bênçãos e nas maldições

Abraão e o Tratado de Sem.

de Deuteronômio 28—32 de que a nação e os in­

Intimamente relacionados aos apocalipses

divíduos que seguirem a Torá serão recompensa­

estão os textos que se enquadram no gênero de

dos, e a nação ou os indivíduos que se afastarem

testamento. São em geral discursos feitos no leito

I 1 19

I

de morte por grandes vultos do passado de Is­

foi totalmente cristianizado, apresentando Isaías

rael e apresentam uma revisão narrativa da vida

como uma testemunha explícita de Jesus e da his­

do personagem (em geral como modelo de uma

tória da igreja primitiva (Ma Is, 3.13-31).

vida virtuosa), exortações éticas e predições mui­

Nessa categoria também poderíamos consi­

tas vezes escatológicas, encerrando com a morte

derar a Carta de Arísteas, escrita em grego perto

e 0 sepultamento do herói. Os mais importantes

do final do século ii a.C. Essa obra não se baseia

desse gênero são os Testamentos dos doze patriar­

diretamente numa narrativa ou personagem bíbli­

cas, que conservam exemplos importantes de de­

co, mas é mais um conto edificante em defesa da

senvolvimentos na angelologia, na demonologia,

LXX, a tradução grega das Escrituras hebraicas, e

nas funções sacerdotais e régias do Messias e na

do caráter racional da vida vivida de acordo com

ética. 0 Testamento de Jó destaca ainda mais a

a Torá. Fala da sabedoria dos estudiosos judeus

insensatez da idolatria, mas também apresenta

que traduziram a Torá para o grego e da compa­

materiais importantes para o desenvolvimento da

tibilidade entre a obediência à Torá e as melho­

figura de Satanás. O Testamento de Moisés, em

res tradições da filosofia ética grega e sustenta

essência uma expansão de Deuteronômio 31—34,

a confiabilidade da

atesta a consideração que Moisés desfrutava

notáveis de narrativas bíblicas, estão José e Ase-

lxx.

Entre outras ampliações

como profeta, mediador e intercessor perpétuo,

nate. Vida de Adão e Eva e Liber Antiquitatum

oferecendo assim informações preliminares úteis

Biblicarum [Antiguidades bíblicas], obra também

para reflexões do

conhecida como Pseudo-Filo.

nt

a respeito de Moisés. A posi­

ção de resistência não violenta advogada por esse

Entre os Pseudepígrafos, estão também os tex­

livro contrapõe-se nitidamente às ideologias mais

tos litúrgicos. A compilação dos dezoito Salmos

militaristas do período, e a ideia de um dia de

de Salomão reflete a corrupção da casa asmoneia

arrependimento que preceda a vinda do reino de

em suas últimas décadas, a intervenção de Pom-

Deus corresponde ao chamado de Jesus ao arre­

peu, o Grande (que sitiou Jerusalém a pedido de

pendimento como uma preparação para a chega­

alguém que arrogava a si o direito ao trono asmo-

da de Deus (cf. Mc 1.14,15).

neu e adentrou o Santo dos Santos do templo), e a

Dentre as ampliações de narrativas bíblicas,

morte de Pompeu no Egito. Entende-se que todos

as mais importantes são Jubileus e Martírio de

esses acontecimentos demonstram o princípio de

Isaías. Datando do fim do século ii a.C., Jubileus

Deuteronômio, segundo o qual o desvio da Lei

reescreve as histórias de Gênesis e de Êxodo, sen­

por parte do povo atrai o castigo, mas também

do de grande valor para o testemunho que presta

que 0 instrumento gentflico de punição não ficará

dos desenvolvimentos da teologia da Torá. A lei

impune. Os salmos falam da provisão generosa

revelada a Moisés é apresentada como uma lei

de Deus para toda a criação, promovem o modo

eterna, escrita em tábuas celestiais e obedecida

de vida do justo, criticam a hipocrisia e o orgu­

até por arcanjos. As narrativas patriarcais sâo re­

lho, afirmam o valor da correção de Deus e retra­

contadas para realçar a obediência deles à Torá,

tam 0 advento da era messiânica sob a liderança

particularmente as observâncias rituais e litúrgi­

de um filho de Davi, o Senhor Messias. De espe­

cas. 0 livro também reforça os limites entre ju­

cial interesse são também as Orações Sinagogais

deus e gentios (especialmente idumeus) e situa

Helenísticas, que mostram a fusão de piedade ju­

a origem do mal na atividade de Satanás e seus

daica e cristã na igreja primitiva e que, despidas

anjos, em vez de na fraqueza de Adão. 0 autor

de seus acréscimos cristãos, oferecem uma visão

aguarda com expectativa o dia de uma renovação

singular da piedade da sinagoga. Entre esses tex­

iminente de obediência à Torá que resultará num

tos poéticos, há também vários outros salmos de

retorno à longevidade primitiva. 0 Martírio de

Davi e as Odes de Salomão, coletânea cristã com

Isaías relata a apostasia de Manassés, bem como

fortes afinidades com o quarto Evangelho.

a prisão e execução de Isaías (foi serrado ao meio;

Vários textos sapienciais, em geral mostrando

cf. Hb 11.37) por instigação de um falso profeta,

até que ponto os judeus podiam adaptar e usar a

Belquira, um demônio que trabalhava para des­

filosofia, as máximas e a ética gregas, são também

garrar Jerusalém. Em sua forma atual, o Martírio

incluídos na coletânea, bem como obras hterárias

I 120 I

A pócrifos e Pseudepígrafos

(poesia 0 drama) que muitas vezes constituem

B ib u o g r a h a .

uma imitação consciente das formas gregas. Por

pha and Pseudepigrapha of the Old Testament

último, a compilação inclui fragmentos de histo­

in English. Oxford: Clarendon Press, 1913. 2 v.

C h a r le s ,

R. H., ed.. The Apocry­

riadores que investigam a história primitiva dos

■ C h a r le s w o r t h ,

Judeus de uma maneira que faz lembrar as Anti­

modem research, with a supplement. Chico:

guidades de Josefo.

Scholars, 1981. (scs, 7.) ■ ______ . The Renais­ sance

3. Importância

of

J. H. The Pseudepigrapha and

Pseudepigrapha

studies;

the

SBL

Pseudepigrapha project, jsi, v. 2, p. 107-14, 1971.

O período entre os Testamentos não é uma era

■ C h a r le s w o r t h ,

silenciosa. Os textos contidos nos Apócrifos e

Pseudepigrapha. Garden City: Doubleday, 1985. 2

nos Pseudepígrafos apresentam ao leitor de hoje

V.

muitas vozes importantes e influentes dos pe­

Philadelphia; Westminster, 1987. ■ D eS ilva , D. A.

ríodos helenístico e romano. Sem esses textos,

Introducing the Apocrypha: message, context, and

nossa visão do judaísmo, no qual a igreja nas­

significance. Grand Rapids: Baker, 2002. ■ E v a n s ,

ceu, seria seriamente deficiente. Essas vozes de­

C.

monstram a diversidade no judaísmo durante o

interpretation. Peabody: Hendrickson, 1992. ■

■ Cohen,

S.

J. H., org. The Old Testament

From the Maccabees to the Mishnah.

A. Noncanonical writings and New Testament

período do segundo templo, visão que suplantou

F rttsch ,

as concepções do começo do século xx sobre um

p 161-6. ■ ______ . Pseudepigrapha.

judaísmo “normativo” (legalista) antes de 70 a.C.

s.d.].

(C h a r le s w o r t h v s . C h a r le s )

. Tratou-se de um perío­

do dinâmico de “fermento” no judaísmo

V.

C. T. Apocrypha, idb., [S.l.: s.n., s.d.], v. 1, 3, p. 960-4.

■ H elyer ,

L.

R.

idb.,

[S.L: s.n.,

Exploring Jewish

literature o f the second temple period: a guide for

(R u s s e ll,

New Testament students. Downers Grove: Inter­

1993), de uma luta corpo a corpo com a identi­

Varsity, 2002. ■ K a u t z s c h , E., ed. Die Apokryphen

dade judaica e de lealdade aliancística em meio

und Pseudepigraphen des Alten Testaments.

a grandes pressões sociais e convulsões políticas.

desheim: Georg Olms, 1962 [1900], 2 v. ■ K r a f t ,

0 estudo desses textos leva a uma compreen­

A. &

R.

N ic ke lsb ur g ,

H il­

G. W. E., orgs. Early Judaism

são mais profunda do judaísmo e de uma varíe-

and its modem interpreters. Philadelphia: For­

dade de tradições judaicas que dão formato à

tress; Atlanta: Scholars, 1986. ■ M

proclamação de Jesus e da igreja primitiva — e

The HarperCollins study Bible. New York: Harper-

W. A., org.,

esse não é o judaísmo das Escrituras hebraicas

Collins, 1993. ■ M

somente. As vozes intertestamentárias destacam

the Apocrypha. Oxford; Oxford University Press,

partes da tradição do

at

que se mantiveram es­

pecialmente importantes, mas também ajudam

1957. ■ M

etzg e r ,

etzg e r ,

B.

M.

B.

eeks ,

&

M.

An introduction to

M urphy, R .

E. The new

Oxford annotated Bible with the Apocrypha. New

a confirmar novos desenvolvimentos, ênfases

York: Oxford University Press, 1991. ■

e linhas de interpretação que não nasceram na

J. D. Greeks, Romans, Jews. Philadelphia; Tt'in-

igreja primitiva, mas eram por ela pressupostos.

ity, 1992. ■ N ic ke lsb ur g , G. W. E. Jewish literature

A cosmologia, a angelologia, a

between the Bible and the Mishnah. Philadelphia:

escatologia ,

a

cris -

N ew som e,

TOLOGiA e a ética da igreja primitiva devem muito

Fortress, 1981. ■

aos desenvolvimentos desse período efervescente.

Apocalyptic. London: Athlone, 1944. ■ R u ssell , D.

Alguns desses textos lançam luz sobre a ideologia

S. Between the Testaments. London:

daqueles que se opuseram ao movimento de Jesus



R ow ley, H . H .

. Pseudepigrapha. In;

The relevance of scm,

M e t zg e r ,

B.

1960. M. &

ou à missão de Paulo. Muitos outros eram os

C oogan,

parceiros de debate de vultos fundacionais na igre­

the Bible. Oxford: Oxford University Press, 1993.

M. D., orgs. The Oxford companion to

ja, e nossa plena valorízação da obra destes depen­

p. 629-31. ■ S c h ü r e r , E. The history o f the Jewish

de de quão familiarízados estamos com aqueles.

people in the age of Jesus Christ (175 b.c.-a.d. 135).

Ver também ju d aísm o

e

o Novo

T e s t am e n to ; t r a -

Ed. rev. G. Vermes, F. Millar e M. Goodman. Edin­ burgh: T & T Clark, 1986. v. 3. p. 1. 3 v. ■ S t o n e ,

31ÇÕES E ESCRITOS RABÍNICOS. Jewish I jt e r a t u r e : H isto ria n s a n d P o e ts;

M. E. I. The Dead Sea Scrolls and the Pseudepigra­

Pseudonimity a n d Pseudepigraphy; Rabbinic L it e r a tu ­

pha. Dead Sea Discoveries, v. 3, p. 270-95,1996. ■

r e ; R e w ritt e n B ib le in Pseudepigrapha a n d Q u m ran .

______ . Pseudepigrapha. iDBSup, p. 710-2. ■ St o n e ,

dntb:

I 121 I

A póstolo : N o v o T estamento

M. E., org. Jewish writings o f the second temple pe­

1.1.1 Apostolos. No grego clássico, apostolos

riod. Assen: Van Gorcum; Philadelphia: Fortress,

era usado de modo impessoal, por exemplo, em

1984.

relação ao envio de uma frota ou de um exército

CRiNT, V .

2, p. 2. D.

A.

DE S il v a

e depois em relação à própria frota ou ao próprio exército. Há umas poucas ocorrências isoladas do

A

pó sto lo:

N

ovo

T

uso de apostolos de forma pessoal. No entanto, é

estam ento

0 termo “apóstolo” (apostolos) é usado nos Evan­

digno de nota o fato de que nesses casos é secun­

gelhos para designar os doze discípulos chama­

dária a ideia de um agente autorizado: a qualidade

dos e enviados por Jesus a pregar o evangelho do

de ser enviado é o aspecto mais fundamental.

REiNo e dar mostras de sua presença pela realiza­

Apostolos

ção de sinais e maravilhas. O termo não é aplica­

(3Rs 14.6 par. IRs 14.6 t p ) , o que é surpreenden­

do a Jesus nos Evangelhos. Não obstante, há boas

te, uma vez que o

razões para crer que ele via a si mesmo como

a mensageiros enviados por Deus. Nos papiros,

apóstolo de Deus, enviado ao mundo para pro­

o termo é empregado de forma impessoal (e.g.,

clamar e inaugurar o reino de Deus. Há também

para designar uma fatura que se faz acompanhar

é

encontrado uma única vez na

at

lx x

contém muitas referências

boas razões para crer que a origem do apostolado

de uma remessa de trigo). Josefo usa apostolos

cristão deve remontar a Jesus, especialmente ao

duas vezes, e um desses casos refere-se a emis­

momento em que ele envia os Doze numa mis­

sários judeus que vêm a Roma requerer de César

são à Galileia, e boas razões há para crer que a

a Uberdade de viverem de acordo com as leis de­

ideia do apostolado revela certa afinidade com

les. O sentido aqui se aproxima do uso de apos­

a instituição judaica do shãliah (“enviado”). Por

tolos nos Evangelhos, mas sem dúvida ainda não

sua vez, isso nos permite compreender melhor

lhe corresponde plenamente. 0 uso de apostolos

a natureza do apostolado cristão, o qual vemos

presente nos Evangelhos, e também como termo

desenvolvido em Atos, que dá prosseguimento à

técnico mais importante, encontrado por todo o

história dos

d is c íp u l o s

de Jesus.

NT,

O ofício de apóstolo, que Paulo utilizou para de modo enfático se referir a si mesmo, é de im­

designando alguém enviado (por Cristo) para

transmitir uma mensagem da parte de Deus, é raro nos escritos antigos.

portância singular no estudo de sua vida e mi­

1.1.2 Apostellõ e pempõ. No grego secular, os

nistério. Tem havido um grande debate sobre os

verbos apostellõ e pempõ são usados em referência

critérios para o apostolado e sobre a natureza da

ao envio de pessoas e coisas. Há, no entanto, uma

autoridade que Paulo afirmava possuir sobre as

diferença inegável no uso dos dois termos. Pempõ

igrejas dos gentios, que era questionada ou rejei­

é usado quando se quer indicar não mais que um

tada por outros.

simples envio, ao passo que apostellõ se refere ao

1. “Apóstolo” nos Evangelhos

envio de pessoas com uma comissão e, em alguns

2. “Apóstolo” nas cartas de Paulo

casos, denota envio e autorização divinos.

3. “Apóstolo” em Atos, Hebreus, nas Cartas Gerais e em Apocahpse

Na

LXX,

o verbo apostellõ

é

usado mais de 709

vezes, quase sempre como tradução equivalente do verbo hebraico shãlah ( “enviar”). Shãlah trans­

1. “Apóstolo” nos Evangelhos 1.1

mite de modo geral a ideia de ser enviado com

Terminologia. Além da palavra apostolos, uma comissão, seja por outro agente humano,

dois outros termos são significativos para nossa

seja por Deus. Pempõ ocorre com muito menos

compreensão do apostolado nos Evangelhos. Pri­

frequência, e apenas cinco vezes como tradução

meiramente, 0 verbo cognato apostellõ (“enviar”),

de shãlah. Josefo usa os dois termos, às vezes

usado nos quatro Evangelhos. Em segundo lugar,

como sinônimos (quando tem em mente um sim­

o verbo pempõ (“enviar”), usado sinonimamente

ples envio), mas escolhe apostellõ quando quer

no Evangelho de João. Já muitas vezes se docu­

passar a ideia de envio com uma comissão.

mentou 0 emprego desses termos em fontes extrabíblicas (v., e.g.,

R

e n g sto rf) ,

e só precisam ser

tratados aqui de maneira esboçada.

No NT (exceto no Evangelho de João), pode se afirmar que pempõ é empregado sempre que se quer passar a ideia de um simples envio, e

I 1 22 I

A p ó s to lo : Novo T esta m e n to

j^ostellõ, quando está em jogo algum tipo de co-

adjetiva em alguns manuscritos de Marcos pode

isissão. No Evangelho de João, todavia, os dois

ter acontecido em decorrência da glosa de algum

iermos são usados intercambiavelmente.

copista.

1.2 A origem da ideia do apostolado. São raros os casos do termo apostolos fora do

nt

,

o

Se deixarmos de lado Marcos 3.14 e Lucas 6.13, então o que nos resta nos Evangelhos são

que estabelece um acentuado contraste com a

vários textos em que os Evangelistas se referem

írequência de seu uso no

aos Doze como apóstolos (Mt 10.2; Mc 6.30;

nt

.

exemplo, apenas uma vez na acorre 79 vezes no

nt

.

É encontrado, por ao passo que

Lc 9.10; 17.5; 22.14; 24.10); uma declaração de

Como explicar esse fenô­

Jesus em Lucas 11.49 (“Diz a Sabedoria de Deus:

lx x ,

meno? De onde surgiu o uso cristão de apostolosl

eu lhes mandarei profetas e apóstolos; e eles ma­

1.2.1 A visão tradicional. Marcos 3.14 e Lu­

tarão uns e perseguirão outros”), que sem dúvida

cas 6.13 afirmam que Jesus escolheu doze

d is c í -

inclui uma referência a apóstolos, mas é omitida

ri5Los, “aos quais também chamou de apóstolos”,

na afirmação correspondente de Jesus em Ma­

remontando assim a Jesus o ato de dar aos Doze

teus 23.34; uma única declaração de Jesus no

o nome de apóstolos. Pode parecer a muitos que

Evangelho de João (“Em verdade, em verdade

isso resolva a questão. Os que remontam a ideia

vos digo: O escravo não é maior que seu senhor,

do apostolado cristão a Jesus reconhecem que

nem o mensageiro [apostoíos] é maior que aquele

e!e não deve ter utilizado o termo grego aposto­

que o enviou” [Jo 13.16]), uma declaração que

las. Mais provavelmente, teria empregado ou o

sem dúvida não está relacionada em primeiro lu­

ajuivalente aramaico (_sh‘ltha’], ou o hebraico

gar ao apostolado cristão.

[shãliah). Os que defendem essa teoria afirmam

Em segundo lugar, embora a instituição do

que apostolos, em nossos Evangelhos, deve ser

shãliah (“enviado”) seja bem documentada nos

eatendido em relação à instituição judaica do

escritos rabínicos, não é possível datar essa do­

shãliah (“enviado”), conceito que Jesus conhecia

cumentação de período anterior ao século ii d.C.

aem e que aplicou à concepção que tinha do rela­

Não há nenhum uso conhecido da forma nomi­

cionamento com seus discípulos.

nal shãliah antes dessa data. É muito difícil sus­

A instituição do shãliah é bem documentada

tentar a ideia de que o uso da palavra apostolos

em escritos rabínicos (cf., e.g., m. Ber., 5.5), nos

nos Evangelhos demonstra que ou a origem do

quais ele se refere a alguém que recebeu autoriza­

apostolado cristão pode ser remontada a Jesus,

ção para exercer certas funções em nome de outra

ou que Jesus a compreendia à luz da instituição

pessoa. 0 adágio: “ 0 enviado de um homem a

judaica do shãliah. Isso levou alguns estudiosos a

ele corresponde” ocorre muitas vezes nos escri-

buscar outras maneiras de explicar a origem do

:os rabínicos e ressalta o caráter representativo do

apostolado cristão.

shãliah, indicando que ele carrega a plena auto­ ridade de seu outorgante. Aventa-se, assim, a hi­

1.2.3

Teorias alternativas. Um fator que pare­

ce apontar na direção de uma possível explicação

pótese de que Jesus entendia seu relacionamento

alternativa para a origem do apostolado é a dis­

C3m seus discípulos à luz dessa instituição, e o

tribuição bastante desigual da palavra apostolos

zso de apostolos nos Evangelhos origina-se do

no

-jso que ele faz dessa ideia.

68 acham-se em Lucas-Atos e no corpus paulino

nt

como um todo. Das 79 ocorrências no

nt

,

1.2.2 Dificuldades da visão tradicional. A vi­

— documentos relacionados de modo especial à

são tradicional não é tão forte quanto parece à

missão cristã da igreja primitiva. Isso levou vá­

primeira vista, por duas razões. Primeiramente,

rios estudiosos (e.g.,

cs melhores manuscritos omitem as palavras “aos

ideia do apostolado cristão não surgiu no tem­

qjais também chamou de apóstolos” em Marcos

po da missão de Jesus, mas no começo do perío­

3.14. Isso faz de Lucas 6.13 um testemunho soli-

do da missão pós-Páscoa da igreja.

S c h m it h a l s )

a afirmar que a

:ário do fato de que foi Jesus quem deu aos Doze

Essa teoria deve ser levada a sério. As car­

' nome de apóstolos. O texto de Lucas pode ba-

tas paulinas mais importantes estão entre os

sear-se numa variante de Marcos reconhecida por

documentos mais antigos do

poucos, e a inclusão dessa oração subordinada

mente foram escritas antes de qualquer um dos

I 1 23 I

nt

e quase certa­

apo sto lo:

Novo l estamento

Evangelhos. Portanto, o surgimento da ideia cristã

Voltando-nos para os Evangelhos, descobri­

de apóstolo, ao menos da perspectiva literária,

mos que, embora seja esparso o uso do subs­

deve remontar a esses escritos. É, portanto, teori­

tantivo apostolos, é considerável a ocorrência do

camente possível que a ideia do apostolado cristão

verbo

se tenha originado na fase inicial da missão cris­

também do uso de p e m

tã e só depois encontrado expressão literária nas

lhos usa

mais importantes cartas pauhnas, sendo somente

casos que poderíamos considerar usos técnicos,

mais tarde usada pelos Evangelistas quando estes

nos quais está presente a ideia de ser enviado com

escreveram os relatos em que Jesus aparece voca­

uma comissão. Em cada um dos Evangelhos, os

cionando e comissionando seus discípulos.

termos técnicos ocorrem em trechos narrativos

Outra opinião é que o conceito se originou num

a p o s te llõ

(e, no caso do Evangelho de João,

a p o s te llõ

p õ ).

Cada um dos Evange­

muitas vezes, incluindo-se os

do Evangelista e em declarações de Jesus que o

gnosticismo judaico ou judaico-cristão da Síria.

Evangelista inclui em sua narrativa. Esses termos

Como Antioquia (na Síria] é considerada o ponto

técnicos, como aqueles encontrados nas cartas

de partida da missão da igreja, sustenta-se que

paulinas, correspondem ao uso da terminologia

0 conceito pode facilmente ter sido tomado por

de envio do a t presente em s h ã l a h / a p o s t e l l õ , deno­

empréstimo e assim incorporado ao pensamento

tando 0 envio de uma pessoa com uma comissão

da primeira missão cristã enviada daquela locali­

(v. 1.2 acima). Assim, parece claro que o conceito

dade. No entanto, a última hipótese de forma ge­

cristão do apostolado tem elos inegáveis com a

ral não tem recebido a aceitação dos estudiosos,

ideia do

até porque os documentos a que se recorre para

por sua vez corresponde ao papel do s h ã l i a h judeu

demonstrar a existência de um gnosticismo pré-

conforme é documentado nos escritos rabínicos.

at

de enviar com uma comissão, e isso

cristão não datam do período pré-cristão. Muitos

No entanto, a pergunta permanece: podemos

estudiosos, portanto, são mais favoráveis à ideia

remontar a Jesus o ato de forjar essa vinculação,

de que o conceito do apostolado teria surgido na

sendo ele, portanto, quem forneceu à igreja o en­

experiência missionária da igreja.

tendimento que ela tem do apostolado? Teorica­

1.2.4

Retomo a uma visão tradicional modifi­ mente, esse elo pode ter sido forjado no período

cada. Em tempos mais recentes, um número cada

da primeira missão cristã, e, uma vez forjado o

vez maior de estudiosos tem aceitado a ideia de

vínculo, a ideia resultante do apostolado pode

que 0 apostolado cristão remonta aos tempos

ter sido usada de forma anacrônica pelos Evan-

de Jesus. No entanto, os que assim procedem

geUstas em seus relatos, nos Evangelhos, acerca

relutam em vincular o conceito de forma muito

do ministério de Jesus. Haveria como tomar uma

estreita à instituição do s h ã l i a h (“enviado”) docu­

decisão responsável a favor de uma dessas teorias

mentado nos escritos rabínicos, como fizeram os

alternativas?

primeiros defensores dessa teoria. Em vez disso, a atenção agora se volta para a terminologia de envio em torno de AT

e no

s h ã la h / a p o s te llõ

que ocorre no

1.2.5

Jesus e o apostolado cristão. A tese se­

gundo a qual a ideia do apostolado cristão re­ monta a Jesus ganharia irrefutabilidade caso se pudesse demonstrar que há declarações autên­

N T.

A abordagem mais recente começa, como de­

ticas de Jesus nos Evangelhos (esp. nos Sinóti­

veria ser, com as mais antigas referências literá­

cos) nas quais se pode encontrar o uso técnico

rias ao apostolado cristão, ou seja, as das cartas

de

de Paulo. Nessas cartas, Paulo muitas vezes se

declarações como essas cuja autenticidade pode

a p o s te llõ

mencionado acima. Aliás, há várias

refere a si mesmo como apóstolo (apostolos) de

ser argumentada bem fortemente com base em

Jesus Cristo e faz menção ao fato de que Cristo

sóUdos argumentos. Entre elas, estão as afirma­

o enviou

ções de Jesus a respeito de ter sido enviado pelo

(a p o s t e llõ )

com a comissão para procla­

mar o evangelho aos gentios. Assim, apostolos/ a p o s t e llõ ,

nas cartas de Paulo, carrega o mesmo

significado básico da terminologia t e llõ

Pai e as declarações sobre ter ele próprio enviado os Doze e os Setenta.

s h ã la h / a p o s -

Entre os exemplos de declarações relaciona­

do A T , que diz respeito a uma pessoa enviada

das a Jesus, temos Mateus 15.24, em que ele diz

com uma comissão.

à mulher cananeia: “ Eu fui enviado somente às

I 124 I

A póstolo ; N o v o T estamento

ovelhas perdidas da casa de Israel”; e Lucas 4.18,

estreha afinidade com o entendimento que se tí­

em que Jesus cita Isaías 61.1; “0 Espírito do

nha da função do shãliah conforme encontrada

Senhor está sobre mim, porque me ungiu para

nos escrhos rabínicos.

anunciar boas-novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos...”.

Agora podemos tirar nossa atenção dos ar­ gumentos de que a ideia do apostolado cristão

Um exemplo das declarações relacionadas ao

se originou em Jesus a fim de procurar entender

fato de os discípulos de Jesus terem sido enviados

o que, de acordo com os Evangelhos, implicava

por ele é Lucas 22.35, em que Jesus lhes pede:

esse apostolado. Começamos com um debate so­

“Quando vos enviei sem sacola, sem bolsa de via­

bre a autopercepção apostóhca de Jesus.

gem ou sem sandáhas, acaso vos fahou alguma

2.3

Jesus, apóstolo de Deus. O termo apos­

coisa?”. Ainda há uma série de declarações nas

tolos é aphcado apenas uma vez a Jesus no

quais Jesus comenta que aqueles que recebem a

(Hb 3.1), e em parte alguma dos Evangelhos.

seus discípulos a ele recebem, e aqueles que o

No entanto, há várias declarações de Jesus nos

nt

recebem também recebem aquele que o enviou

Evangelhos Sinóticos em que ele deixa entrever

(Mt 10.40/Lc 10.16; Mc 9.37/Lc 9.48/Mt 18.5).

uma consciência de ter sido enviado por Deus

Pode se argumentar fortemente, com base em

(Mt 15.24; Lc 4.18; Mt 10.40; Mc 9.37; Lc 9.48;

sóhdos argumentos, que todas essas declarações

10.16). O Evangelho de João atribui a Jesus 39

repousam numa tradição autêntica acerca de Je­

declarações mostrando que ele foi enviado por

sus. Por exemplo, o fato de Mateus preservar a

Deus, incluindo-se as declarações que usam tan­

passagem que encontramos em Mateus 15.24 com

to apostellõ quanto pempõ (e.g., Jo 5.30,36,38;

sua nota exclusivista (“somente às ovelhas per­

6.29,57; 7.16,29; 8.16,42; 10.36).

didas da casa de Israel”), apesar da complicação

1.3.1

A fonte da autopercepção apostólica de

que isso possa ter causado numa igreja envolvida

Jesus. Parece-nos, com base nos Evangelhos, que

com a missão aos gentios na era pré-pauhna (cf.

o aspecto primordial da autopercepção de Jesus

At 10.1-48; 11.20-24), denota sua natureza asso­

era seu relacionamento filial com o Pai (e.g., a

ciada a Jesus como o Senhor. A confiabihdade da

resposta do menino Jesus a seus pais em Lc 2.49:

tradição subjacente a Lucas 4.18, com sua chação

“ Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu

de Isaías 61.1, é ressaltada pelo fato de que se faz

Pai?”), e o fato de que tinha sido enviado pelo Pai

uma alusão a Isaías 61.1 em outras declarações de

para executar sua missão (Lc 4.43: “É necessá­

Jesus (Lc 6.20/Mt 5.3-6 e Mt 11.2-6/Lc 7.18-23)

rio que eu anuncie o evangelho do reino de Deus

que levam o selo de autenticidade. No caso de Lu­

também às outras cidades; pois foi para isso que

cas 22.35, pode se argumentar que toda a períco­

fui enviado”). A percepção de ter sido enviado

pe em que a passagem se encontra (Lc 22.35-38),

por Deus é fortemente realçada pelo quarto Evan­

com seu conselho para lançar mão da espada, não

gehsta. O aspecto secundário da autopercepção

é o tipo de declaração que a igreja desejaria pôr

apostóhca de Jesus é o fato de ter recebido a ca­

aos lábios de Jesus, enquanto tentava ao mesmo

pacitação do Espírito (v.

tempo preservar a lembrança dele livre de qual­

cutar a comissão que o Pai lhe havia designado.

E s p ír it o S a n t o )

para exe­

quer associação com os zelotes. (Para um debate

Cada um dos Evangelhos relata como Jesus rece­

mais completo a favor da autenticidade da tradi­

beu 0 Espírito no momento de seu batismo. Em

ção subjacente a essas declarações e outras men­

várias ocasiões, Jesus recorre a essa capacitação

cionadas acima, v.

K

ruse,

p. 13-29.)

como prova de que ele é o enviado de Deus para

Uma vez que há fortes argumentos a favor

declarar o momento em que o

at

seria cumpri­

da autenticidade dessas declarações, há também

do. Por exemplo, em Lucas 4.16-21, Jesus cha a

um forte motivo para se afirmar que a ideia do

profecia de Isaías 61.1,2, afirmando que essa pro­

apostolado cristão teve origem em Jesus e que

fecia agora estava cumprida. Em Mateus 12.28,

e!e 0 compreendia de maneira semelhante àque­

ele responde aos que afirmam que ele expulsa

la refletida no

no uso da terminologia shãlah/

demônios pelo poder de Belzebu: “Se é pelo Es­

apostellõ. Isso significa, por sua vez, que a com­

pírito de Deus que expulso os demônios, então o

preensão que Jesus tinha do apostolado mantém

reino de Deus chegou a vós”.

at,

I 1 25 I

A póstolo : N o v o T estamento

Parece, então, que a autopercepção apostólica

que sofriam com doenças e opressão demoníaca.

de Jesus estava arraigada em seu senso de rela­

Mas, acima de tudo, ele se aproximou para per­

cionamento filial singular com o Pai e na convic­

doar os pecados de todos os que atendessem ao

ção de ter sido encarregado por ele de inaugurar

chamado ao arrependimento e para estabelecer

o tempo de cumprimento. A atividade do Espírito

um relacionamento restaurado com eles.

em seu ministério foi algo para o qual ele chamou

Contudo, havia também um lado escuro e

a atenção do povo, a fim de que reconhecesse

misterioso no que Deus estava fazendo quando

que ele fora enviado por Deus, em vez de ser a

se aproximou na pessoa e na missão de Jesus. 0

prova por meio da qual ele mesmo foi convencido

reino tinha não apenas de ser proclamado e inau­

de seu chamado.

gurado. Um caminho precisava ser aberto por

1.3.2 O alcance do apostolado de Jesus. Um

meio do qual o ser humano pudesse participar do

aspecto do apostolado de Jesus um tanto impres­

que Deus estava fazendo. A parte crucial da mis­

sionante é seu alcance hmitado. De acordo com

são de Jesus era a entrega de sua vida em resgate

Mateus 15.24 (“ Eu fui enviado somente às ove­

por muhos (Mc 10.45), o derramamento de seu

lhas perdidas da casa de Israel”), Jesus entendia

sangue para a remissão de pecados (Mt 26.28;

sua missão como limitada ao povo judeu, e isso

Mc 14.23,24; Lc 22.20). Para alcançar esse fim,

é refletido no fato de que os Evangelhos Sinóti­

acima de tudo, Jesus foi enviado como apóstolo

cos jamais o retratam com o propósito deliberado

de Deus.

de evangelizar não judeus. Ele foi enviado para

1.4 O apostolado dos discípulos de Jesus.

anunciar a chegada do reino de Deus entre as cida­

Cada um dos Evangelhos Sinóficos relata que Je­

des judaicas da Gahleia e da Judeia (Mc 1.35-39/

sus chamou os Doze e os enviou numa missão

Lc 4.42,43). Mesmo o notável ministério exercido

gahleia. Algumas dúvidas surgiram sobre a histo­

em Samaria e relatado em João 4 não é apresenta­

ricidade dessa missão, mas há fortes razões para

do como algo que estivesse nos planos de Jesus,

rejehar essas objeções. Não menos importante é

como o ministério que ele exerceu nas cidades

a referência a essa missão na declaração de Jesus

judaicas.

em Lucas 22.35; “Quando vos enviei sem sacola,

1.3.3 Um apostolado profético e cumpridor de

sem bolsa de viagem ou sem sandáhas, acaso vos

profecias. A missão de Jesus era profética, uma

fahou alguma coisa?”. Deixando de lado, então,

vez que, como outros grandes profetas anteriores

a questão da historicidade, podemos explorar as

a ele, ele proclamava a chegada do reino de Deus

tradições sobre missão presentes nos Evangelhos

(Mc 1.14,15/Mt 4.17). No entanto, ultrapassou

para descobrir o que elas revelam acerca da natu­

tudo que os profetas fizeram, uma vez que ele

reza do apostolado dos Doze.

foi enviado não apenas para proclamar o reino,

1.4.1

A missão dos Doze. Em Marcos 3.13,14

mas também para inaugurá-lo. Assim, segundo

lemos: “Jesus subiu a um monte e chamou os

Lucas, Jesus entendia que a grande profecia de

que ele mesmo quis; e estes foram até ele. Então

Isaías 61.1,2 estava se cumprindo em sua mis­

designou doze para que estivessem com ele, e os

são (Lc 4.16-21; cf. Lc 6.20/Mt 5.3-6; Mt 11.2-6/

enviasse a pregar”. Marcos realça que a missão e 0 apostolado dos Doze têm origem no chama­

Lc 7.18-23). 1.3.4 O apostolado de Jesus e o reino. 0 que

do de Jesus. 0 propósito para o qual eles foram

significava na prátíca Jesus inaugurar o reino? A

chamados é claramente demonstrado: “para que

declaração de Jesus “O reino de Deus está próxi­

estivessem com ele, e os enviasse a pregar”. Há

mo” na verdade significa que o próprio

duas partes no chamado, e a segunda estava inti­

D

eus

está

próximo. E o que Deus fez quando se aproximou

mamente relacionada à primeira.

na pessoa e na missão de Jesus? Começou sua

A primeira parte (estar com ele) implicava

obra de introduzir uma nova era. Chamou uma

percorrer toda a região, de cima a baixo, com ele,

nação ao arrependimento, sentou-se à mesa com

compartilhando ahmento e acomodação com ele,

cobradores de impostos, pecadores, fariseus e ou­

experimentando a mesma acehação e rejeição

tros; retirou o fardo pesado da tradição rehgiosa

que ele encontrava e observando o ministério que

dos ombros dos habitantes da terra e hbertou os

ele estava realizando, às vezes participando desse

I 126 I

A póstolo : N o v o T estamento

ministério. A segunda parte (ser enviado para

Ambas as leituras encontram-se nos manuscritos,

pregar) dependia da primeira (estar com ele),

e as testemunhas parecem igualmente divididas.

pois, como veremos, o ministério de pregação

Outras considerações, como o simbohsmo dos Se­

deles era essencialmente uma extensão do dele.

tenta (e Dois), impedem um consenso acadêmico

Marcos 6.7-13, Mateus 10.1-42 e Lucas 9.1-6 apre­

quanto à leitura original.

sentam a incumbência de Jesus aos Doze.

Segundo: o material encontrado na incumbên­

Há vários aspectos significativos de compa­

cia marcana (Mc 6.7-13) e mateusina (Mt 10.1-42)

ração entre a missão deles e a missão de Jesus.

feita aos Doze aparece uma parte na incumbên­

Primeiro: Jesus, que afirmou não ter sido envia­

cia lucana aos Doze (Lc 9.1-6) e outra parte na

do senão às ovelhas perdidas da casa de Israel

incumbência lucana aos Setenta (Lc 10.1-16).

(Mt 15.24), insistiu em afirmar que as mesmas

Supondo, como ainda quer a maioria dos estu­

limhações se aphcavam à missão dos Doze: “ Não

diosos, que Marcos tenha sido escrito primeiro

ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de sa-

e que Mateus e Lucas tenham utihzado alguma

marhanos, ide antes às ovelhas perdidas da casa

forma de Marcos, bem como alguma fonte de de­

de Israel” (Mt 10.5,6). Segundo: a tônica da mis­

clarações

são deles devia ser a mesma. Deviam proclamar

parece que Mateus usou seu material marcano

( q)

na composição de seus Evangelhos,

que 0 reino do céu estava próximo, e a presença

mais as declarações de missão de

desse reino seria demonstrada por obras prodi­

sua incumbência aos Doze, enquanto Lucas usou

q

ao compor

giosas (Mt 10.7,8). Terceiro, e talvez o mais im­

as mesmas fontes para compor as duas incum­

portante: Jesus declarou que a recepção que seus

bências — a dos Doze e a dos Setenta.

discípulos recebessem do povo seria considerada

Terceiro: quando Lucas retrata Jesus referin­

a recepção que as pessoas desejavam dar a ele e

do-se à missão dos Doze (Lc 22.35), faz-se re­

ao Pai, que o tinha enviado (Mt 10.40).

ferência a um material incluído na incumbência

Tudo isso tem grande importância para o en­

aos Setenta. Pode se inferir daí que Lucas não

tendimento da missão dos Doze e da natureza

estava tentando reproduzir literalmente incum­

do apostolado. As hmitações aphcadas à missão

bências diferentes, a pessoas diferentes, mas rela­

deles, sua tônica essencial e a importância da res­

tando 0 tipo de instrução que Jesus teria dado a

posta do povo a tudo isso cortespondem de perto

dois grupos diferentes.

às caracteristicas essenciais da missão de Jesus

Levando-se tudo isso em consideração, resta

e constituem um forte indício de que a missão

perguntar se a missão dos Setenta tem algum

deles era na realidade uma extensão da dele. Isso

fundamento histórico ou se deve ser considerada

sugere, por sua vez, que a terminologia de en­

uma criação hterária do Evangehsta. Aventou-

vio com apostellõ, que, como já vimos, é usada

se a hipótese, por exemplo, de que Lucas tenha

por Jesus nos Evangelhos Sinóticos (e em João),

inventado a história como forma de prefigurar a

reflete um entendimento do relacionamento exis­

missão mais ampla da igreja aos gentios. Desse

tente entre ele e seus discípulos do ponto de vista

modo, insiste-se, assim como a missão dos Doze

da instituição do shãliah. Seus discípulos foram

fala de uma missão às tribos de Israel, a missão

encarregados de atuar como seus representantes,

dos Setenta fala da missão às nações do mundo.

sob sua autoridade, proclamando sua mensagem

(Gênesis 10 contém uma hsta de nações com o

e exercitando seu poder. No caso dos discípulos

total de 70 nomes no

de Jesus, portanto, as palavras do adágio rabínico

tese é que Lucas inventou a missão dos Setenta

“ O enviado de um homem a ele corresponde” ca­

para hdar com a tensão entre a tradição da igreja

bem perfehamente.

a respeito da missão dos Doze e seu reconheci­

1.4.2

tm

e 72 na l x x . ) Outra hipó­

A missão dos Setenta. Cada um dos mento da missão de um grupo muito mais amplo

Evangelhos Sinóticos relata uma missão gahleia

de testemunhas.

dos Doze, mas Lucas também relata uma mis­

No entanto, há outras maneiras de exphcar

são dos Setenta. Há problemas em torno desta.

os fenômenos. Primeira; é teoricamente possível

Primeiro: há a dúvida se o texto de Lucas 10.1

que Lucas considerasse a existência do material

[e Lc 10.17) traz “ setenta” ou “ setenta e dois”.

sobre a missão nas duas fontes de que dispunha

I 1 27 I

A póstolo : N o v o T estamento

como prova de que tivesse havido

dos Evangelhos (mas em Marcos apenas no final

duas missões diferentes, e assim usou essas fon­

(Marcos e

longo) e em Atos. Em Mateus e em Lucas, Jesus

q)

tes para compor duas incumbências de missão.

(re) comissiona os Doze (menos Judas Iscariotes),

Segunda, e mais provável: Lucas era depositário

dessa vez para fazer discípulos de todas as na­

de uma tradição fidedigna sobre as duas missões

ções (Mt 28.18-20) e proclamar arrependimento

históricas, e ao compor seu Evangelho usou o

e remissão de pecados em seu nome a todas as

material sobre a missão de suas duas fontes para

nações (Lc 24.44-49). Isso reflete a convicção

fornecer um relato do tipo de instrução que Jesus

dos Evangelistas de que o Jesus que chamou e

teria dado ao enviar os dois grupos.

comissionou os Doze para a missão gaUleia Umi-

1.4.3

A missão pós-Páscoa dos discípulos de tada recomissionou os mesmos homens (menos

Jesus. Enquanto os relatos de missão dos Evan­

Judas) para serem apóstolos da missão mundial.

gelhos Sinóticos (não há nenhum em João) se re­

Também mostra o entendimento da igreja primi­

lacionam a uma atividade no período pré-Páscoa,

tiva de que as restrições aplicadas à missão de

parece haver alusões nas incumbências a uma

Jesus, também aplicadas por ele à missão galileia

missão posterior e mais ampla dos discípulos no

dos Doze, agora estavam propositadamente sus­

período pós-Páscoa. Por exemplo, a afirmação

pensas, e se impunha uma missão a samaritanos

“Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos...”

e a gentios, bem como a judeus.

(Mt 10.16/Lc 10.3) de certa maneira não se en­ quadra bem na experiência de missão galileia dos

l.S

Nuanças na compreensão dos quatro

Evangelistas a respeito do apostolado. Cada um

discípulos (e.g., Lc 10.17-20). Parecem ter sido

dos quatro evangelistas retrata o apostolado de

dias tranquilos. Isso tem levado alguns a supor

uma maneira diferente. Algumas coisas são co­

que essa afirmação e outras declarações que pre­

muns a todos os Evangelistas ou à maioria deles,

nunciam grandes dificuldades e perseguição para

mas outras recebem um realce característico ex­

o grupo de missionários é uma tradição que ema­

clusivamente em um ou em outro.

nou do período pós-Páscoa, quando a igreja pas­

1.5.1 Elementos comuns. Comum a todos os

sava por perseguição. No entanto, tal conclusão

Evangelistas é a convicção sólida de que a condi­

não é inevitável. Jesus por certo estaria ciente da

ção de membro no apostolado é uma questão de

tensão cada vez maior criada por sua missão e

escolha por parte de Cristo: não há voluntários.

teria sido capaz de prever a oposição cada vez

Cada um dos Evangelhos Sinóticos deixa isso cla­

mais forte que enfrentaria e que culminaria em

ro, mostrando que Jesus tomou a iniciativa quan­

sua morte, em Jerusalém. Não seria necessário

do chamou determinadas pessoas para segui-lo

grande percepção ou pré-conhecimento profético

(Mt 4.18-22; 9.9; Mc 1.16-20; 2.14; Lc 5.1-11,

da parte de Jesus para ver que seus seguidores

27,28). E, no que se refere à nomeação dos Doze,

experimentariam perseguição

semelhante em

outra vez Jesus chamou aqueles que ele desejou

Tudo isso faz crer que o material agora uni­

bora o Evangelho de João nâo contenha um regis­

ficado nas incumbências de missão pode incluir

tro da nomeação dos Doze, refere-se a eles dessa

tempo posterior.

chamar (Mt 10.1-4; Mc 3.13-19; Lc 6.12-16). Em­

não apenas as afirmações diretamente relaciona­

forma várias vezes (Jo 6.67,70,71; 20.24) e tam­

das à missão galileia pré-Páscoa, mas também

bém ressalta que a condição dejnembro no apos­

aquelas afirmações de Jesus que prenunciam a

tolado dependia da escolha de Cristo (Jo 6.70;

missão pós-Páscoa de seus seguidores. Mais tar­

13.18; 15.16,19).

de, eles enfrentariam a mesma hostilidade com

Todos os Evangelhos Sinóticos indicam que o

que ele deparou no fim de seu ministério. Isso,

compromisso dos Doze era (pelo menos no iní­

por sua vez, oferece apoio à teoria de que o papel

cio) para uma missão galileia, em que eles exe­

apostólico dos Doze no período pós-Páscoa foi no

cutariam em nome de Jesus o mesmo tipo de

mínimo previsto pelo Jesus histórico.

atividade em que ele estava envolvido (Mt 10.5-8;

A missão pós-Páscoa é pressuposta nas de­

Mc 6.7-13; Lc 9.1-6).

clarações da comissão pós-ressurreição encon­

1.5.2 Elementos diferentes. Embora todos os

tradas de uma forma ou de outra em cada um

Evangelhos e Atos contenham uma comissão

I 128 I

A póstolo : N o v o T estamento

pós-ressurreição feita por Cristo, elas revelam aspec­

até os confins da terra” (At 1.8). 0 que está em

tos e/ou entendimentos diferentes do apostolado.

jogo nesse testemunho é explichado no relato da

1.5.2.1 Mateus. Em Mateus, Jesus diz aos

nomeação de Matias para suceder a Judas Isca­

Onze: “Toda autoridade me foi concedida no

riotes: “É necessário que dentre os homens que

céu e na terra. Portanto, ide, fazei discípulos de

conviveram conosco todo o tempo em que o Se­

todas as nações, batízando-os em nome do Pai,

nhor Jesus andou entre nós, começando desde o

do Filho e do Espírho Santo, ensinando-lhes a

batismo de João até o dia em que dentre nós ele

obedecer a todas as coisas que vos ordenei; e

foi elevado ao céu, um deles se torne conosco

eu estou convosco todos os dias, até o final dos

testemunha da sua ressurreição” (At 1.21,22).

tempos” (Mt 28.18-20). As quatro ocorrências da

Por último, há na comissão de Lucas uma ên­

palavra “todo” são o indício que temos de que

fase na capachação pelo Espírito que os apóstolos

Mateus realça a natureza da tarefa apostóhca: ela

tinham de receber para executar sua tarefa (isso é

repousa sobre a autoridade do Cristo ressurreto

também desenvolvido com mais detaUies em Atos). 1.5.2.4

(“Toda autoridade me foi concedida [...]. Portan­

João. No Evangelho de João, Jesus apa­

to, ide...”); seu alcance deve abranger “todas as

rece a seus discípulos depois de sua ressurreição

nações” ; seu conteúdo ensina “todas as coisas

e lhes diz: "Paz seja convosco! Assim como o Pai

que vos ordenei” ; sua promessa é; “... e eu estou

me enviou, também eu vos envio” (Jo 20.21). A

convosco todos os dias, até o final dos tempos”.

redação da comissão aqui dá a entender que a

1.5.2.2 Marcos. Em Marcos, a comissão é

tarefa apostóhca envolvia uma extensão do mi­

encontrada somente no final longo, e há muita

nistério de Jesus. Nos versículos que se seguem

dúvida quanto a considerá-lo parte autêntica do

(Jo 20.22,23) Jesus sopra sobre os discípulos e

Evangelho (v. Marcos, Evangelho

A declara­

diz: “Recebei o Espírho Santo. Se perdoardes os

de) .

0 seguinte: “ Ide por todo o mundo, e pre­

pecados de alguém, eles lhe serão perdoados; se

gai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for

os retiverdes, eles lhe serão retidos”. Isso torna

batizado será salvo, mas quem nâo crer será con­

possível a afirmação de que a missão deles era

denado” (Mc 16.15,16). 0 realce aqui recai sobre

uma extensão da dele (por causa do Espírho Santo

a natureza universal da comissão apostóhca e as

a eles outorgado), além de explicar parte de seu

sérias imphcações da resposta humana ã mensa­

significado (o perdão e a retenção dos pecados —

gem apostóhca.

presumivelmente por pregar o evangelho e infor­

ção diz

1.5.2.3 Lucas. No Evangelho de Lucas, a co­ missão é redigida da seguinte maneha: “ Está

mar as pessoas das consequências de recebê-lo ou rejehá-lo, exatamente como Jesus havia feho). [C. G.

escrito que o Cristo sofreria, e ao terceiro dia res-

K

ruse]

suscharia dentre os mortos; e que em seu nome se pregaria o arrependimento para perdão dos

2. “Apóstolo” nas cartas de Paulo

pecados a todas as nações, começando por Jeru­

Uma das questões mais hnportantes relacionadas

salém. Vós sois testemunhas destas coisas. Envio

ao apostolado de Paulo é o caráter e a autorida­

sobre vós a promessa de meu Pai. Mas ficai na

de desse apostolado. A ideia tradicional de que o

cidade, até que do alto sejais revestidos de poder”

chamado de Cristo (v.

(Lc 24.46-49). Mais uma vez, é realçado o alcance

de)

P

a u lo , co nversão e c h a m a d o

na estrada para Damasco conferiu a Paulo a

imiversal da comissão apostóhca ("a todas as na­

autoridade do Senhor sobre as igrejas gentíhcas,

ções”). Além do mais, Lucas ressaha que o papel

que se transfere para o estado canônico de suas

do apostolado é dar testemunho da morte e da

cartas para as igrejas de hoje, vem sendo desafiada

ressurreição de Jesus Cristo, convocar ao arre­

por definições mais amplas de apostolado. Ahás, essas redefinições tornam a autoridade apostóli­

pendimento e oferecer perdão em seu nome. A visão da tarefa apostólica como testemu­

ca de Paulo nas igrejas relativa e condicional. R.

nho é desenvolvida com mais detalhes ainda

Schnackenburg, por exemplo, sustenta que Paulo

em Atos, hvro em que os apóstolos recebem a

não encontrou nenhuma definição uniforme de

ordem de ser “testemunhas [de Cristo], tanto em

apóstolo quando se tornou cristão nem forne­

Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e

ceu um critério sistemático para o apostolado,

I

12 9 I

A póstolo : N o v o T estamento

considerando apóstolos apenas os “pregadores e missionários de Cristo”

A exphcação mais lógica dessa diferenciação

p. 302). J.

entre os Doze e os apóstolos é que “ os Doze” era

A. Kirk afirma que, “para Paulo, o apostolado não

um termo aphcado aos doze discípulos de Jesus

(S c h nackenb urg ,

é algo que se possa comprovar apresentando-se

desde o tempo da missão gahleia e que “apósto­

alguma credencial exclusiva, mas pelos frutos da­

los” eram esses e outros, que na primeira Páscoa

queles que o exercem”

estavam entre os comissionados pelo Senhor res­

(K

p. 261), e “o mesmo

ir k ,

ministério apostólico, em circunstâncias históricas diversas, existe até hoje”

(K

ir k ,

surreto (v. 1.2.5 acima).

p. 264).

Podemos afirmar, portanto, que o apóstolo —

2.1 Evidência nas cartas de Paulo. Como as cartas de Paulo são os escritos mais antigos do

tão comum nas cartas de Paulo — é de data ante­

nt

rior a essas cartas e remonta à primeira Páscoa na

e uma vez que ele emprega apostolos mais que

Palestina — na reahdade, ainda antes. O mesmo

qualquer outro autor do

n t

,

todas as investiga­

ções históricas da origem, significado e importân­

se pode afirmar a respeho do entendimento a res­ peho dos Doze.

cia da palavra devem começar com suas cartas.

2.2

Apóstolos nas cartas de Paulo. Falando

No entanto, para que não se pense que o con­

de maneira geral, Paulo emprega o termo “após­

ceito de apóstolo se originou em Paulo, deve se

tolo” de duas maneiras: no sentido não técnico e

ressaltar que ele escreve sobre “ os que já eram

no sentido formal.

apóstolos antes de mim” (gr., tous pro emou

2.2.1

"Apóstolo": termo não técnico. Há duas

apostolous). Esses apóstolos estavam alocados

referências nos escritos de Paulo a “apóstolo” no

em Jerusalém (Gl 1.17). A tradição credal que ele

sentido não técnico. Na primeira delas, Paulo es­

repete aos coríntios e que ele “recebeu” muitos

creve da Macedônia a fim de preparar os coríntios

anos antes menciona que o Senhor ressurreto

para a chegada de dois homens, sobre os quais ele

apareceu [na Palestina] “a todos os apóstolos”

escreve uma breve recomendação (2Co 8.16-24).

antes de aparecer a Paulo (ICo 15.7,8), levando

A finalidade da visita era apressar a conclusão

a supor que havia “apóstolos” na época ou próxi­

da coleta entre os coríntios para os santos em

mo da ressurreição de Jesus.

Jerusalém. Paulo escreveu: “ [Com Tho] estamos

Essa tradição credal (ICo 15.5-9) é útil tam­

enviando Isynepempsamen] o irmão cujo louvor

bém em outro sentido, a saber, que distingue en­

por seu trabalho no evangelho tem se espalhado

tre os Doze e "todos os apóstolos” :

por todas as igrejas”, a quem Paulo chama “ou­ tro irmão nosso, o qual já se mostrou dedicado

[Cristo] apareceu

muitas vezes e em muitas coisas”. Paulo decla­

a Cefas,

ra que esses dois “irmãos [...] são mensageiros

e depois aos Doze [...].

[apostoloi] das igrejas [macedônias] ” à igreja de

Depois apareceu

Corinto (2Co 8.23), enviados numa missão prá­

a Tiago,

tica e financeira. Esse uso de apostolos parece

e a todos os apóstolos.

assemelhar-se ao shãliah de escritos rabínicos

E, depois de todos, apareceu

posteriores, que podia ser enviado em missão de

também a mim, [...]

Jerusalém às sinagogas da Diáspora.

0 menor dos apóstolos...

No segundo caso, Paulo escreveu da prisão (talvez em Roma) à igreja em Filipos, para ex­

Há uma simetria aqui no que tange às apa­

phcar que por motivo de enfermidade Epafrodito

rições do Senhor ressurreto na Palestina. Cefas

estava retornando para eles. Epafrodito era aque­

é mencionado junto com os Doze, e Tiago, com

le “a quem enviastes [apostolos] para me socorrer

todos os apóstolos. Como há uma referência em

nas minhas [de Paulo] necessidades” (Fp 2.25).

outro lugar a Cefas como apóstolo (Gl 1.18,19;

Esse papel do apóstolo era prático, não direta­

2.8; cf. IPe 1.1; 2Pe 1.1), concluímos que os Doze

mente religioso. Mais uma vez, a semelhança en­

eram chamados “apóstolos” , mas que havia após­

tre o conceito de shãliah e o papel de Epafrodho,

tolos além dos Doze, e que entre eles estavam

apóstolo da igreja de Filipos, parece estreita de­

Tiago e Paulo, como este afirma (ICo 15.9).

mais para se caracterizar uma coincidência.

I 130 I

A póstolo : N o v o T estamento

Essas duas referências apoiam a ideia de que

contexto da primeira Páscoa na Palestina, como

os "mensageiros [apostoloi] das igrejas” já esta­

os outros apóstolos antes dele, mas viu o Senhor

vam bem estabelecidos nas igrejas paulinas lá por

celeste e glorificado um ano ou dois depois disso.

meados do século i, na década de 50. A explica­

A expressão rara e muito debatida “como a um

ção mais provável para a origem desses apóstolos

nascido fora do tempo certo” [tõ ektrõmati, ICo

é que Paulo tenha tomado a ideia por empréstimo

15.8), qualquer que seja seu significado, reflete

da prática judaica e aphcado a suas igrejas.

a defesa que Paulo faz da autenticidade de seu

2.2.2

“Apóstolo”: termo formal. Com isso, que­ apostolado, a despeito da aparição do Senhor a

remos dizer “apóstolos de Cristo” (como, e.g.,

ele ocorrida de forma isolada e em época poste­

ITs 2.6). Esses apóstolos não são enviados por

rior. Do ponto de vista de Paulo, a natureza sin­

pessoas comuns numa missão corriqueira. Quem

gular da aparição do Cristo ressurreto serve para

envia é Cristo, o Messias de Deus. O número es­

marcar o fim dessas aparições e, portanto, o pon­

magador de referências de Paulo a apóstolos per­

to final da nomeação apostóhca.

tence a essa categoria, a qual, no entanto, pode

Deve ter havido numerosos apóstolos, uma

ser dividida ainda em outros apóstolos e o pró­

vez que o credo se refere a “todos os apóstolos”

prio Paulo.

(ICo 15.7), e Paulo faz referência aos "demais

2.2.2.1

Outros apóstolos. Há “apóstolos antes” apóstolos” (ICo 9.5). Não sabemos o número exa­

de Paulo (Gl 1.17), alocados em Jerusalém. Com

to, exceto que havia outros além dos Doze, que era

base na reflexão de Paulo sobre seu chamado

o grupo principal. Os Doze talvez servissem de fun­

apostóhco a caminho de Damasco, o qual pode­

dação shnbólica da nova comunidade do Cristo res­

mos datar em meados da década de 30, fica claro

surreto. Os apóstolos extrafram seu caráter do nome

que já havia apóstolos na igreja primitiva — aliás,

deles: foram enviados por Cristo para ir a outros. Na

desde o tempo da primeira Páscoa ("Cristo [...]

reunião missionária de Jerusalém havia dois "apos­

apareceu [...] a todos os apóstolos”, ICo 15.7). Houve apóstolos depois de Paulo? Existe um

tolados” (apostolai), 0 que envolveu dois envios; um aos chcuncisos, outro aos gentios (Gl 2.7-9). Sabemos os nomes de alguns, mas não de

ponto na história após o qual, de acordo com

todos os apóstolos. Tiago é associado a “todos

Paulo, não houve mais apóstolos? Essas importantes perguntas são tratadas em

os apóstolos” (ICo 15.7; cf. Gl 1.19), fazendo

ICoríntios 15.5-11. As palavras de Paulo: “ [Cris­

supor que, embora não fosse contado entre os

to] apareceu a Cefas, e depois aos Doze. Depois

Doze, Tiago era o mais honrado entre os após­

apareceu a mais de quinhentos irmãos [...]. De­

tolos. É possível que o relacionamento de Tiago

pois apareceu a Tiago, e a todos os apóstolos. E,

como “irmão do Senhor” lhe tívesse conferido

depois de todos, apareceu também a mim...” pa­

esse lugar especial (cf. Gl 1.19). Os "irmãos do

recem demarcar uma sucessão de aparições após

Senhor” que não são chados por nome, mas en­

a ressurreição, iniciando-se com Cefas e finah-

tre os quais Tiago estaria incluído, são provavel­

zando com Paulo. Paulo não diz: "Então ele apa­

mente também tidos como apóstolos (v. contexto

receu a mim” , mas: “ E, depois de todos, apareceu

de ICo 9.5). Claramente, João deve ser contado

também a mim...” , fazendo supor ter sido essa a

entre os apóstolos (Gl 2.7-9). O elo entre Barnabé

última aparição. Paulo pode prosseguir a ponto

e Paulo também leva a crer que Barnabé deve

de afirmar: “Sou o menor dos apóstolos [...] pela

ser considerado apóstolo (ICo 9.6; cf. At 14.4).

graça de Deus, sou o que sou [apóstolo]” , porque

Os únicos outros citados como apóstolos nos es­

os apóstolos são limhados em número. Ele pode

critos de Paulo são seus parentes “Andrônico e

dizer que é o “menor dos apóstolos”, uma vez

Júnias, [...] os quais se destacam entre os após­

que é, na realidade, o apóstolo "depois de todos” ,

tolos” (Rm 16.7). Se aos Doze acrescentarmos

a quem o Senhor “apareceu”. A primeira e mais

Tiago, Barnabé, Andrônico, Júnias e Paulo (úl­

fundamental prova de apostohcidade é a alega­

timo e menor), sabemos os nomes de dezessete

ção: "Vi Jesus, nosso Senhor” (IC o 9.1).

apóstolos, mas o número era maior.

A natureza da aparição de Cristo a Paulo

Paulo tem os apóstolos em alta estima. Como

era atípica. Ele não viu o Senhor ressurreto no

fundadores de igrejas, os apóstolos são pessoas

I 131 I

A póstolo : N o v o

I estamento

preeminentes no cristianismo primitivo. Paulo

Por volta do ano 55 d.C., Paulo reconheceu

declara: “ Na igreja. Deus designou alguns primei­

que seu apostolado estava sendo questionado;

ramente apóstolos” (ICo 12.28; cf. Ef 2.20; 4.11).

“Se para os outros não sou apóstolo...” (ICo 9.2).

Além do mais, eles tinham um ministério proféti­

Esses “outros” talvez sejam os judaizantes, cujas

co revelatório, iluminando o significado de Cristo

opiniões ele provavelmente reflete em Gálatas,

e do evangelho. Paulo afirma que ele e os outros

quando escreve que ele não é “apóstolo” apenas

apóstolos desfrutavam a revelação de Deus pelo

“aos santos e fiéis”, mas “de Cristo Jesus pela

Espírito (v.

vontade de Deus” (Cl 1.1). Ou seja (como eles

E s p ír it o S a n t o )

para entender os mis­

térios do evangelho (Ef 3.1-9; cf. ICo 2.6-16). Os

diziam), Paulo não passava de um

apóstolos davam a conhecer essa revelação de

incumbência imposta pela igreja de Jerusalém,

Deus oralmente e em seus escritos (Rm 16.25,26;

um mero delegado.

ICo 2.13; Ef 3.3,4). 2.2.2.2

s h ã lia h

numa

As outras críticas feitas por eles podem ser

Paulo, o apóstolo. Paulo refere-se a si detectadas nos comentários de Paulo em ICo-

mesmo muitas vezes como “apóstolo”. Muitas ve­

ríntios 15.8,9, texto em que ele afirma seu apos­

zes se apresenta a seus leitores como “apóstolo

tolado, embora não estivesse presente quando o

de Jesus Cristo” ou por designações semelhan­

Senhor ressurreto apareceu aos apóstolos antes

tes (ICo 1.1; 2Co 1.1; Ef 1.1; Cl 1.1; ITm 1.1;

dele. A aparição de Cristo a Paulo (diziam eles)

2Tm 1.1; Tt 1.1). É “por meio de [Jesus Cristo]”

era recuada no tempo, de uma espécie diferen­

que Paulo recebeu o “apostolado” [apostole,

te e exclusiva dele. Nesse caso, não se deu uma

Rm 1.5; cf. Gl 1.1), porque Jesus “chamou” Paulo

aparição quando da ressurreição propriamente

para ser apóstolo e o “ separou” para o evange­

dita. Por isso, ele não deveria ser contado entre

lho de Deus (Rm 1.1; ICo 1.1), a fim de gerar a

os apóstolos.

obediência da fé entre os gentios (Rm 1.5; 11.13).

Paulo, ainda assim, insistia em afirmar que

Tudo isso se deve ao fato de o Cristo ressurreto

era apóstolo, não obstante seu nascimento “ fora

aparecer a Paulo “depois de todos” enquanto o

do tempo certo” e o fato de que tinha visto o Se­

perseguidor viajava para Damasco.

nhor de maneira diferente dos outros. Se era o

De acordo com S. Kim, Paulo várias vezes faz

“menor dos apóstolos”, isso se devia ao fato de

alusão a seu encontro na estrada de Damasco

ter sido perseguidor, o que ele tentou compensar,

com Cristo. Além de passagens mais prontamente

trabalhando “ muito mais que todos eles”. Se eles

reconhecidas

pregavam a Cristo crucificado e ressurreto, ele

como

ICoríntios

9.1;

15.8-10;

Gálatas 1.13-17; Filipenses 3.4-11, há outras

também o fazia (ICo 15.3-5,11).

(e.g., Rm 10.2-4; ICo 9.16,17; 2Co 3.4—4.6; 5.16;

2.3.1 ICoríntios: o apostolado de Paulo éposto

Ef 3.1-13; Cl 1.23-29). Kim sustenta que, em grau

em dúvida. Tons defensivos semelhantes podem

considerável, a cristofania de Damasco tingiu e

ser ouvidos anteriormente na carta, refletindo um

formou 0 vocabulário e o pensamento de Paulo.

questionamento de seu apostolado naquela igreja

2.3

O apostolado de Paulo é questionado. Não local: “ Não sou eu apóstolo? Não vi Jesus, nosso

há nenhum indício nas cartas de Paulo aos tessalo­

Senhor?” (IC o 9.1).

nicenses de que na época em que as escreveu seu

Aqui 0 questionamento não se relaciona com

apostolado estivesse sendo questionado nas igre­

a base histórica da afirmação de Paulo de ser um

jas gregas (c. 50-52 d.C.). Paulo toma a liberdade

apóstolo, mas com seu estílo ministerial, que al­

de agrupar Silvano e Timóteo consigo em pé de

guns achavam inaceitável no ambiente greco-ro­

igualdade e incluí-los como “apóstolos de Cristo”

mano de Corinto, a saber, que ele não aceitasse

(ITs 2.6; cf. ITs 1.1). Mas, a partir desse período,

remuneração. Com base em sua “defesa para com

indubitavelmente devido à intensificação da críti­

os que me acusam” (ICo 9.3), a qual se segue

ca, Paulo passou a declarar categoricamente sua

(ICo 9.4-18), parece, de acordo com alguns co-

condição de apóstolo (Gl 1.1; ICo 1.1; 2Co 1.1;

ríntios, que a recusa dele em aceitar patrocínio

Rm 1.1) e teve o cuidado de se distanciar como

era o reconhecimento tácito de que ele não era

apóstolo em relação a vários outros colaboradores

apóstolo em nenhum sentido real. Um apóstolo

(ICo 1.1; 2Co 1.1; Cl 1.1; cf. Fp 1.1).

genuíno aceitaria pagamento integral.

I 1 32 I

A póstolo : N o v o T estamento

Não obstante, tratava-se de uma quebca fac­ cionai, não representativa. Paulo sentiu-se capaz

haviam minado suas bases, pelo menos aos olhos dos coríntios.

de dizer: “Pelo menos o sou [apóstolo] para vós [coríntios]” (ICo 9.2). 2.3.2

Paulo defende seu apostolado em 2Coríntios da seguinte maneira. Em primeiro lugar, o cha­

2Coríntios: o apostolado de Paulo enfren­ mado na estrada de Damasco pelo Senhor res­

ta oposição. Num período de não mais de um ou

surreto está implícho por toda a carta. Ele era

dois anos, no entanto, o questionamento do apos­

um apóstolo “pela vontade de Deus” (2Co 1.1)

tolado de Paulo por parte de alguns coríntios se

que usava a “autoridade [exousia] que o Senhor

transformara em oposição generalizada. Explica-

nos concedeu para a edificação” das igrejas gen­

se esse desenvolvimento trágico pela chegada

tíhcas (2Co 10.8; 13.10; cf. 11.17; 12.19). Ele

recente de alguns “ ministros” ou “apóstolos”

exerceu esse ministério (“de uma nova ahança” ,

autodeclarados (2Co 11.13,23) que haviam lan­

3.6) pela misericórdia de Deus (i.e., em conse­

çado uma missão contrária a Paulo e sua versão

quência do chamado de Damasco, 2Co 4.1; cf.

do cristianismo (2Co 2.17—3.1; 11.4,12; v.

adver­

ICo 15.9; Gl 1.15; ITm 1.16). Ele falava “ na pre­

0 vocabulário do ministério deles brota

sença de Deus” [ek theou katenanti theou, 2Co

de 2Coríntios e inclui termos como “palavra de

2.17; cf. 2Co 12.10), e sua “capacidade” para ser

s á r io s ) .

Deus”, “evangelho” , “Jesus” , “Espírito” e “justi­

um “ministro de uma nova aliança” (v.

ça” (2Co 2.17; 4.1; 11.4,15).

NOVA

Esse era agora um ataque amplo ao apostola­

auança

)

a l ia n ç a ,

vem de Deus [hikanotês [...] ek tou

theou, 2Co 3.5,6).

do de Paulo, da parte de alguns recém-chegados,

Se o chamado de Damasco era a base do apos­

que procuraram desalojar Paulo de seu lugar em

tolado de Paulo, a legitimidade desse apostolado

Corinto. Eles eram superiores, e Paulo, inferior

é demonstrada pela quahdade de seu ministério,

(2Co 11.5,23), aos quais Paulo ridiculariza, cha­

especialmente quando visto em contraste com

mando-os “ superapóstolos” (2Co 11.5; 12.11). Se

os novos ministros de Corinto. Ele se recusa a

ele veio a eles, eles vieram de mais longe ainda

“distorcer a palavra de Deus” (2Co 4.2), agindo

(2Co 10.12-14 — Jerusalém comparada a Antio­

de modo diferente daqueles que são “mercená­

quia?). Se ele é apóstolo, onde estão seus “sinais,

rios da palavra de Deus” (2Co 2.17). Enquanto

fehos extraordinários e milagres” (2Co 12.12)? Se

promovem uma visão da "justiça de Deus” — ba­

ele alegou ter “visto” o “Senhor” (IC o 9.1; 15.8),

seada na circuncisão ou em outras obras da lei?

eles se vangloriam de uma abundância de “visões

(2Co 11.15) — , Paulo é fiel ã mensagem confiada

e revelações do Senhor” (2Co 12.1,7), cuja evidên­

a ele por Deus, de que a j u s t iç a / r e t id ã o de Deus só

cia é a fala extáüca (2Co 5.12,13; cf. 2Co 12.2-4).

é encontrada em Cristo, que se tornou pecado por

As credenciais deles como “hebreus [...] israeli­

nós (2Co 5.19-21; cf. 2Co 3.9). Apesar das alega­

tas [...] descendentes de Abraão” são impecáveis,

ções deles em benefício próprio e do ataque con­

tornando-os superiores em cada aspecto.

tra ele, eles são "falsos apóstolos [...] [servos de]

De sua parte, Paulo é denegrido, tido como

Satanás” (2Co 11.13-15). Por meio do ministério

incapaz, impotente e mundano, um “tolo” a ser

de Paulo, no entanto, há uma igreja em Corinto,

“tolerado” (2Co 2.17; 3.5; 10.1-6). Paulo é um

uma "carta [viva] de Cristo” como prova da legiti­

“astucioso” (2Co 4.2,3; 12.16), uma flgura de

midade de Paulo (2Co 3.2,3; 10.7) como apóstolo

dar dó enquanto manqueja de dertota em derrota

que eficientemente “convence” as pessoas a se

(2Co 2.14-16; 4.1,7,8,16; 6.3-10; 11.23— 12.10).

tornarem cristãs (2Co 5.11-13). Cristo de fato fala

Qual é a prova de que “Cristo fala por [...] in­

poderosamente por meio de Paulo (2Co 13.4) e

termédio” desse homem (2Co 13.3; 10.7; cf.

por meio de Paulo subjuga pessoas resistentes à

ICo 2.13; 14.36)?

obediência ao evangelho (2Co 10.4-6).

Como Paulo respondeu a esse ataque devas­

Em segundo lugar, Paulo aceitou a observação

tador ao seu apostolado? É importante ressahar

sobre sua fraqueza, e até a expandiu, chegando a

que ele não reiterou as aparições do Senhor a ele

se gloriar de seus sofrimentos em três passagens

(cf. ICo 9.1; 15.8; Gl 1.15,16). As “ visões e reve­

importantes (2Co 4.7,8; 6.3-10; cf. 11.23-12.10;

lações do Senhor” (2Co 12.1) de seus adversários

cf. ICo 4.9-13; 15.30,32). Paulo proclamava aquele

I 133 I

A póstolo : N o v o T estamento

que se tornara pecado, proclamando também o

cuidadosas ao afirmar que Cristo ‘‘depois de

fato de que havia experimentado em sua vida, em

todos, apareceu também a mim” (ICo 15.8) de­

alguma medida, os sofrimentos do Jesus que ele

monstram que, embora houvesse apóstolos antes

pregava. Implícha nessas hstas de tribulações está

dele, não houve apóstolos após ele. De acordc

a ahrmação de que os sofrimentos de Cristo são re­

com Paulo, ele é “o menor” apóstolo e o últimc

produzidos num apóstolo que é flel a ele (2Co 1.5).

apóstolo, o apóstolo “depois de todos”.

Sem ser declarado, mas talvez subentendido, está

0 questionamento ou a rejeição cabal à au­

o fato de que o triunfalismo poderoso dos “supe­

toridade de Paulo como “apóstolo de Cristo” de

rapóstolos” nasce de seu evangelho sem cruz e

modo algum se limitou aos dias de Paulo. Alguns

serve apenas para desquahficá-los (2Co 2.14; 5.16;

estudiosos da atuahdade tentam alargar tanto a

11.4). A “falsidade” desses apóstolos repousa em

definição de “apóstolo” (e.g., como “ missionário”

seu “outro” Jesus, seu evangelho “diferente”.

ou "plantador de igrejas”) que a autoridade in­

2.4

Resumo. 0 emprego da palavra apostolos confundível de Paulo fica pulverizada. Paulo re­

é praticamente restrho aos autores do

Como

sistia a duras penas às tentativas de o degradarem

Paulo faz mais uso da palavra que outros escri­

dessa forma. Se o apostolado de Paulo não signifi­

nt

.

tores do NT e seus escritos foram os primeiros a

cava e não significa mais que isso, então ele tinha

ser produzidos, fica claro que um estudo histó­

e continua a ter pouca autoridade real nas igrejas.

rico dessa palavra deve começar com as cartas de Paulo.

Não deve restar nenhuma dúvida de que Paulo afirmava ser apóstolo com base no fato de ter vis­

Fica evidente nos escritos de Paulo, no entan­

to o Senhor ressurreto e ter sido encarregado por

to, que havia “apóstolos antes de [Paulo]” , já por

ele de h aos gentios (ICo 9.1; 15.8; Gl 1.11-17).

ocasião das aparições pós-ressurreição de Jesus

Com certeza, ele chamou atenção para sua efi­

em Jerusalém e em outras partes da Palestina.

ciência no estabelecimento de igrejas, para o fato

A ocorrência do vocabulário em torno do termo

dos próprios sofrimentos como uma confinuação

“apóstolo” no Evangelho de Marcos torna possí­

da história dos sofrimentos de Cristo e para a pró­

vel considerarmos a ideia de apóstolo presente na

pria integridade, mas todos esses fatos serviram

história do evangelho.

apenas para legitimar um ministério que tinha

Jesus, seguido por Paulo e por outros líderes da igreja primitiva, parece ter sido influenciado

sua base na reahdade de que Cristo o enfrentou na estrada de Damasco.

a usar a palavra “apóstolo” pelo conceito judai­

[R W.

Barnett]

co do shãliah, que no judaísmo posterior servia para denotar alguém que representava pessoas e

3. “Apóstola” em Atos, Hebreus, nas Cartas

instituições diante de outros. Embora esteja claro

Gerais e em Apocalipse

que o uso não técnico de “apóstolo” por Paulo se

3.1 Atos dos Apóstolos

assemelhe ao shãliah secular de escritos judaicos

3.1.1 Os doze apóstolos. 0 uso fundamental

posteriores, o uso técnico ou “formal” da palavra

da palavra “apóstolo” em Atos designa os Doze.

assume caráter especial nas circunstâncias asso­

A esse respeito. Atos segue o Evangelho de Lu­

ciadas ao advento do cristianismo primitivo.

cas, no qual “apóstolo” quase sempre se refere

Gálatas, Romanos e as duas cartas à igreja de

aos doze discípulos que Jesus chamou (Lc 6.13;

Corinto refletem o crescimento da oposição dian­

cf. Lc 9.1,10; 22.14,30), mas, após a deserção de

te do fato de Paulo reconhecer a si mesmo como

Judas, é usado em relação aos Onze (Lc 24.9,10).

apóstolo de Cristo. Embora parte dessa oposição

Foi aos Onze que Cristo deu instruções após

fosse local, por causa de uma crítica pessoal a

sua ressurreição (At 1.2). Foi ao número total

Paulo, de longe a maior rejeição ao seu apostola­

deles que outra pessoa foi acrescentada após a

do surgiu dos judaizantes, que na melhor das hi­

ascensão de Cristo para substituir Judas e assim

póteses buscavam classiflcá-lo como um humilde

reconstituir os Doze (At 1.15-22). Somente os

shãliah da igreja de Jerusalém.

que haviam acompanhado os Onze durante todo

0 próprio Paulo buscou estabelecer a limi­

0 tempo em que o Senhor Jesus estivera entre

tação do número de apóstolos. Suas palavras

eles (de seu batismo à sua ascensão) tinham o

I 134 I

A póstolo : N o v o T estamento

direito de concorrer à escolha (At 1.21,22). A

objetivos, eles desaparecem de cena em Atos. E

escolha flnal coube ao Senhor, a quem foi feita

digno de nota que nenhuma tentativa foi feita

uma oração; depois lançaram sortes, resultando

para reconstituir o grupo dos Doze pela escolha

na escolha de Matias (At 1.24-26). É a esse grupo

de outro substituto quando o apóstolo Tiago foi

reconstituído de Doze que a maioria das referên­

morto por Herodes (At 12.1,2). Quando os Doze

cias a apóstolos se aplica (At 1.26; 2.37,42,43;

como grupo saem de cena, o foco da atenção em

4.33,34,36,37; 5.2,12,18,29,40; 6.6; 8.1,14,18;

Atos muda para os papéis desempenhados por

9.27; 11.1). A importância de completar outra

Pedro, Tiago (o irmão do Senhor, que não era um

vez o número dos Doze pode ser mais bem com­

dos Doze) e principalmente Paulo.

preendida à luz da promessa de Jesus de que os

3.1.2 O apostolado de Pedro. As atividades

Doze se sentariam em tronos para julgar as doze

de Pedro dominam os primeiros doze caphu-

tribos de Israel (Lc 22.30). K. H. Rengstorf afirma

los de Atos, assim como as atividades de Paulo

que “ o restabelecimento do apostolado dos Doze

dominam os últimos dezesseis. Pedro assume o

prova que o Senhor ressurreto, assim como o Je­

papel principal na igreja de Jerusalém nos pri­

sus histórico, não renunciou à sua afirmação de

meiros anos. Ele toma a iniciativa de procurar um

incorporar as doze tribos de Israel em seu Reino”

substituto para Judas Iscariotes (At 1.15-26). Pe­

(R

eng sto rf,

1962, p. 192).

dro é o porta-voz principal. Ele fala em nome dos

0 ministério dos Doze consistia essencialmen­

Doze no dia de Pentecostes (At 2.14-40), dirige-

te em pregar a ressurreição de Cristo e dela dar

se ã multidão depois da cura do paralítico que

testemunho (At 1.22; 4.33), ensinar (At 2.42) e

pedia esmolas (At 3.11-26), responde em nome

orar (At 6.2-4). A pregação deles era muitas vezes

dele mesmo e de João quando chamados a se ex­

acompanhada de sinais e maravilhas (At 2.43;

phcar pelos líderes judeus (At 4.5-22) e respon­

5.12). Eles sentiam a responsabilidade especial

de em nome dos Doze quando são interrogados

de continuar pregando em Jerusalém, por isso lá

pelo Sinédrio (At 5.27-32). Ele assume a questão

permaneceram, mesmo depois de muhos crentes

do engano de Ananias e Safira (At 5.1-10) e do

terem fugido da cidade por causa da perseguição

mal-intencionado Simão, o Mago (At 8.18-24).

(At 8.1). Também se sentiram responsáveis pelos

Pedro está presente em quase todos os episódios

novos grupos de crentes que surgiam à medida

de cura dos primeiros doze capítulos (At 3.1-10;

que a mensagem de Cristo ia sendo levada para

5.15; 9.32-43). Toma parte na expansão da igreja

fora das fronteiras nacionais pelos que iam sendo

em Samaria (At 8.14-25) e na conversão de Cor-

dispersos (At 8.4-17; 11.19-26). Foi pela imposi­

nélio, 0 gentio temente a Deus (At 10.1-48). Pe­

ção de mãos dos apóstolos que os crentes sama­

dro também defende a inclusão de gentios sem

ritanos receberam o

(At 8.14-17).

circuncisão entre o povo de Deus, com respeito a

Em Atos 15, os apóstolos e presbíteros formavam

Corného (At 11.1-18), e aos convertidos por meio

o grupo com o qual Paulo e Barnabé, enviados

da obra missionária de Paulo (At 15.7-11).

E s p í r it o S a n t o

pela igreja de Antioquia, discutiram a necessida­

Destaca-se em tudo isso o fato de que o apos­

de ou não de os crentes gentios se submeterem à

tolado de Pedro não era restrito aos judeus, assim

chcuncisão.

como o de Paulo também não era voltado exclusi­

Os Doze proporcionam um elo importante

vamente para os gentios. Embora a área principal

entre o ministério de Jesus no Evangelho de Lu­

de responsabihdade de Pedro fosse os da circun­

cas e 0 ministério da igreja primitiva em Atos.

cisão (cf. Gl 2.7-9), ele também estava envolvido

Quando Atos 1.2 fala dos apóstolos que Jesus

até certo ponto na missão gentíhca. Isso confere

escolheu [exelexato), relembra Lucas 6.13, que

com o que encontramos em IPedro (v. 3.2 abai­

relata a ocasião em que Jesus chamou seus dis­

xo) e com os indícios encontrados em cartas de

cípulos e escolheu [ek lexamenos) doze deles. Os

Paulo sobre o ministério de Pedro entre os gentios

Doze forneceram o testemunho fundacional da

(cf. ICo 1.12; 3.22; 9.5; Gl 2.11,14).

ressurreição de Cristo (At 2.14; 4.33; 5.29-32) e

3.1.3 O ministério conjunto de Bamabé e Pau­

legitimaram a missão aos samaritanos e aos gen­

lo. Paulo e Barnabé não estavam incluídos entre

tios (At 8.14; 11.1-18). Uma vez cumpridos esses

os Doze, nem tinham as credenciais para tal.

I 135 I

A póstolo : N o v o T estamento

uma vez que não acompanharam os Onze des­

3.1.4 O apostolado de Paulo. Em Atos 13.2,

de o tempo do batismo e da ascensão de Jesus.

o Espírito Santo instrui os profetas e mestres a

O primeiro indício de um ministério especial de

separar Barnabé e Paulo para a obra à qual eles

Barnabé é encontrado em Atos 11.22, em que ele é

tinham sido chamados. O chamado de Paulo é

enviado pelos apóstolos de Jerusalém a Antioquia

anterior a isso e deve remontar ao seu encontro

em resposta à notícia de um grande movimento

com o Cristo ressurreto na estrada de Damasco

do Senhor entre os gregos nessa cidade. Barnabé

(At 9.3-6; 22.6-11; 26.12-18). Foi nessa ocasião,

e Paulo mais tarde foram enviados como emissá­

por meio de Ananias, que Paulo pela primeira vez

rios da igreja de Antioquia, incumbidos de levar

recebeu os detalhes de sua comissão (At 9.10-19;

doações para os santos de Jerusalém (At 11.27-30).

22.12-16). Ele deveria tornar conhecido a todos

Em Atos 13.1-3, os profetas e mestres da igre­

os povos o que tinha visto e ouvido — aos gen­

ja de Antioquia, orientados pelo Espírito Santo,

tios e seus reis e ao povo de Israel — , de modo

separaram Barnabé e Paulo para a obra que ele

que pudessem se arrepender e voltar-se para

lhes havia designado. Os profetas e os mestres os

Deus (At 9.15; 22.14,15,21; 26.16-20). A natureza

hberaram para esse ministério (At 13.3), e, sen­

abrangente dessa comissão (envolvendo a prega­

do enviados pelo Espírito Santo, Barnabé e Paulo

ção tanto aos gentios quanto ao povo de Israel) é

rumaram para Chipre (At 13.4-12). Em Atos, só

refletida nos relatos da obra missionária de Pau­

depois de terem sido separados para o trabalho

lo em Atos. Cidade após cidade, ele pregava pri­

missionário é que Barnabé e Paulo são apresenta­

meiro na sinagoga judaica e depois aos gentios.

dos como apóstolos (At 14.4,14).

Atos mostra que era prática de Paulo designar

Cumpre ressahar que o agente de envio nes­ se contexto não é a igreja, como muitas vezes se

presbíteros nas igrejas que ele fundava (At 14.23, cf. 20.17).

supõe, mas o Espírito Santo. Ele instruiu os pro­

Às vezes, essa apresentação da obra missio­

fetas e mestres a separar {aphorisaté] Barnabé e

nária de Paulo é rejeitada como uma invenção do

Paulo para o trabalho para o qual ele os havia

autor de Atos. É rejeitada por causa das próprias

chamado (At 13.2). Os profetas e mestres impu­

declarações de Paulo em Gálatas 2.6-9 (que tinha

seram as mãos sobre Barnabé e Paulo, oraram por

sido comissionado como apóstolo aos gentios, e

eles e então os despediram (apelysan, At 13.3).

Pedro, como apóstolo aos judeus). Embora isso

Enviados [ekpemphthentes] pelo Espírito Santo,

sem dúvida represente a distinção mais ampla en­

Barnabé e Paulo então partem para Chipre (13.4).

tre os ministérios apostólicos de Paulo e de Pedro,

Foi 0 Espírito Santo quem chamou Barnabé e Pau­

não deve ser interpretado como confirmação de

lo, foi o Espírito Santo quem orientou os profetas

que Pedro não exercesse nenhum ministério entre

e os mestres a separá-los e foi o Espírito Santo

os gentios e Paulo não tivesse nenhum ministério

quem os enviou. 0 papel dos profetas e mestres

entre os judeus. Que Paulo ministrava entre ju­

resumiu-se a orar por eles e despachá-los.

deus assim como entre gentios é confirmado pelo

A missão de Barnabé e Paulo inicialmente

próprio relato de suas perseguições pelas mãos

consistia em proclamar a Palavra de Deus entre

de judeus (2Co 11.24,26), que foram causadas

judeus nas sinagogas de Chipre (At 13.4,5). Foi

em parte pela recusa dele em pregar a circunci­

ampliada a ponto de incluir gentios quando Bar­

são (G15.il).

nabé e Paulo foram convocados pelo procônsul

3.1.5 Os apóstolos e o Espíríto em Atos. Tal­

em Pafos, que também queria ouvir a Palavra de

vez a característica mais destacada do apostolado

Deus (At 13.6-12). No entanto, quando sua men­

como se vê em Atos seja o envolvimento do Espíri­

sagem mais tarde foi rejehada pelos judeus em

to Santo no ministério apostólico. 0 Jesus ressur­

Antioquia da Pisídia, eles se voharam intencional­

reto prometeu aos apóstolos que eles receberiam

mente para os gentios, crendo que Deus ordenara

poder e seriam suas testemunhas quando o Espí­

que assim fizessem (At 13.46,47). Essa decisão

rito Santo descesse sobre eles (At 1.5,8). Tendo

foi confirmada por Deus quando ele os capaci­

sido cheios do Espírito no dia de Pentecostes, eles

tou a executar sinais e maravilhas (At 13.8-12;

prosseguiram para dar seu testemunho da res­

14.1-3,8-10).

surreição (At 2.4; 4.8; 5.32). Foi pela imposição

I 136 I

A póstolo : N o v o T estamento

de mãos dos apóstolos que os crentes samarl-

de que, pelo ministério dele, os filhos de Deus

tanos receberam o Espírito Santo (At 8.14-17).

possam ser trazidos à glória.

Quando foi chamado e comissionado para ser

3.2.2 IPedro. Em IPedro, o autor apresenta-

apóstolo, Paulo também foi cheio do Espírito San­

se como apóstolo de Jesus Cristo e dirige-se a

to (At 9.17). Foi o Espírito Santo quem preparou

seus leitores como exilados da Dispersão no Pon­

Pedro para pregar o evangelho a Cornélio, o gen­

to, na Galácia, na Capadócia, na Ásia e na Bití-

tio temente a Deus, e foi por meio do ministério

rha (IPe 1.1). À primeira leitura, pareceria estar

de Pedro que a casa de Corného recebeu o Espíri­

de acordo com a ideia de que Pedro se limhou

to (At 10.19,44-48; 11.12-17).

a um ministério entre os judeus, nesse caso seu

Barnabé, designado apóstolo com Paulo em

ministério entre os judeus da Diáspora. Vimos já

Atos 14.4,14, é apresentado como um homem

que Atos retrata Pedro trabalhando entre gentios

bom e cheio do Espírito Santo (At 11.24). Foi o

e judeus, e uma leitura atenta de IPedro revela o

Espírito Santo quem disse aos profetas e mestres

mesmo fato. Por sinal, IPedro é escrita aos gen­

de Antioquia que separassem Paulo e Barnabé

tios. O período pré-conversão da vida dos leito­

para o trabalho missionário para o qual ele os

res é descrito como um tempo em que faziam “a

havia chamado e quem os enviou na que seria a

vontade dos gentios, andando em libertinagem,

primeira viagem missionária de Paulo (At 13.1-4).

prazeres, embriaguez, orgias, bebedeiras e ido­

Na segunda viagem missionária de Paulo, o Espí­

latrias repulsivas” (IPe 4.3,4). Os leitores eram

rito Santo impediu a ele e a seus companhehos

claramente gentios, e, portanto, o fato de Pedro

de empreender uma obra nas regiões da Ásia e da

se dirigir a eles como "peregrinos da Dispersão”

Bitínia (At 16.6,7): eles deveriam atravessar para

é metafórico. Refere-se a sua condição como es­

a Macedônia após a visão de Paulo em Trôade

trangeiros e exhados cristãos num mundo hosth.

(At 16.8-10). 0 Espírito desceu sobre os crentes

3.2.3 2Pedro e Judas. Em 2Pedro, o autor

efésios quando Paulo impôs as mãos sobre eles

apresenta-se se como apóstolo de Jesus Cristo

(At 19.6). Por fim, foi por impulso do Espírito

(2Pe 1.1). Ele exorta seus leitores a lembrarem

Santo que Paulo foi levado a seguh para Jerusa­

a ordem do Senhor e Salvador proferida de ante­

lém, apesar dos avisos terriveis a respeho do que

mão pelos santos profetas e “vossos” apóstolos

o aguardava ah (At 20.22,23).

(2Pe 3.2) e adverte que os que torcem o ensino

Em Atos, é 0 Espírito Santo quem impele os

das cartas de Paulo, bem como outras passagens

apóstolos em círculos cada vez mais largos de

das Escrituras, o fazem para a própria destruição

ministério e autentica a nússão aos gentios. A

(2Pe 3.15,16). Na Carta de Judas, os leitores são

promessa e a outorga do Espírito Santo por Cristo

exortados a lembrar-se das palavras faladas de

constituem um elo importante entre o ministério

antemão (sobre os últimos dias) pelos apóstolos

do Jesus histórico e o dos apóstolos.

do Senhor Jesus Cristo (Jd 17). Nessas duas car­

3.2 Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse 3.2.1

tas, portanto, a função dos apóstolos realçada é

Hebreus. Há em Hebreus uma única re­ 0 ensino, especialmente a transmissão do ensino

ferência ao apostolado, e isso em relação à co­

de Jesus. A menção de "vossos” apóstolos, em

missão dada por Deus a Cristo. Os leitores são

2Pedro 3.2, parece referir-se não aos Doze, mas

instados a pensar em Jesus, o apóstolo e sumo

aos missionários por meio de quem os leitores

sacerdote da confissão deles, que foi flel ao que

primeiramente ouviram o evangelho, dentre os

o designou (Hb 3.1-6). Essa é a base para exor­

quais presumivelmente estava o apóstolo Paulo

tar os leitores a serem fiéis como Jesus e a não

(cf. 2Pe 3.15,16).

repetirem a incredulidade da geração do Êxodo

3.2.4 l-3João. Em 3João, o presbftero elogia

(Hb 3.7—4.11). No contexto de Hebreus, o papel

Gaio por oferecer hosphahdade aos pregadores

de Jesus, que reflete a natureza de seu apostola­

itinerantes que viajavam “por causa do Nome”

do, inclui proclamar a Palavra de Deus e suportar

e insta com ele a que continue a proceder dessa

o sofrimento e a morte, de modo a poder se tor­

forma (3Jo 5-8). Ele critica um certo Diótrefes, ao

nar sumo sacerdote a favor do povo de Deus, e

que tudo indica um personagem importante na

3 sacrifício expiatório pelos pecados deles, a fim

comunidade cristã da cidade em que Gaio vivia.

I 137 I

A póstolo : n o v o l estamento

por ter lhes recusado hospitalidade (3Jo 9,10).

B ib u o g r a h a . A g n e w ,

Em 2João, o presbítero adverte a “senhora elei­

apostolos. CBQ,

ta” a respeho de certos enganadores que saíram

The origin of the

pelo mundo — pessoas que negavam que Jesus

research,

Cristo veio em carne. Ele insiste com a “ senhora

C. K.

jbl , v .

F. On the origin of the term

38, p. 49-53, 1976. ■ ______ .

V.

nt

apostle-concept: a review of

105, p. 75-96, 1986. ■

B a rre tt,

The signs o f an apostle. London: Epworth.

eleita” a que não estenda hospitalidade a esses

1970. ■ B r o w n . S. Apostleship in the New Testa­

itinerantes, pois isso seria como tomar parte em

ment as an historical and theological problem.

sua maldade (2Jo 7-11). Em IJoão, o autor adver­

NTS,

te seus leitores sobre certas pessoas que haviam

ship: evidence from the New Testament and early

se separado de sua comunidade e começaram a

Christian hterature. VoxEv, v. 19, p. 49-82, 1989.

V.

30. p. 474-80. 1984. ■ C l a r k . A.

Apostle­

C.

viajar a fim de propagar um ensino falso a res­

■ ______ . The role of the apostles. In:

peito da pessoa de Cristo, desviando as pessoas

H. & P e t e r s o n , D.. orgs. Witness to the gospels: the

(IJo 2.18,19,22,23,26).

theology of Acts. Grand Rapids: Eerdmans. 1998.

Embora as Cartas de l-3João não usem a

p. 169-90. •

E h rh a rd t.

M a r s h a ll,

I.

A. The apostolic ministry.

palavra “apóstolo” , com certeza refletem o fato

Edinburgh: Oliver & Boyd, 1958. [sjt, Occasional

de que mais para o fim do século i pregadores

Papers, 7.) ■ ______ . The apostolic succession in

itinerantes, alguns ortodoxos, outros heréticos,

the first two centuries o f the church. London: Lut­

transhavam pelas igrejas, pelo menos na área em

terworth, 1953. ■

que essas cartas foram escritas. Esses pregadores

the gospel traditions. London:

não podiam exigir o reconhecimento desfrutado

K.

The origins of

G e r h a rd s s o n , B . scm ,

1977. ■ G ile s ,

Apostles before and after Paul. Churchman, v.

por qualquer um dos Doze nem por Paulo, e as

99, p. 241-56, 1985. • ______ . Patterns o f min­

congregações precisavam exercer o discernimen­

istry among the first Christians. Melbourne: Col­

to antes de lhes estender hospitahdade e assim

hns Dove, 1989. ■ H e r r o n , R. W. The origin of the

apoiar seu trabalho. (Situação semelhante é re­

New Testament apostolate.

fletida na Didaquê.] Temos em IJoão o critério

1983. •

Jerem ias, J.

wtj , v .

45. p. 101-31,

Jesus’ promise to the nations.

ético e doutrinário pelo qual os leitores devem

Philadelphia: Fortress. 1982. •

testar as alegações de pregadores itinerantes (v.

o f Paul’s Gospel. Grand Rapids: Eerdmans. 1981.

Jo ão , C artas

• K ir k . J.

3.2.5

de).

S. The origins

A. Apostleship since Rengstorf: towards

Apocalipse. Apocahpse faz referência aos a synthesis,

que se dizem apóstolos, mas não são (Ap 2.2), e

Kim .

nts , v .

21, p. 249-64, 1975. •

K ru s e,

C.

New Testament foundations for ministry. Lon­

G.

aos apóstolos verdadeiros, que são instados a sen­

don: Marshah, Morgan & Scott, 1983. • ______ .

tir a mesma alegria que os santos e profetas por

New Testament models for ministry: Jesus and

causa da queda da “ Babilônia” (Ap 18.2). Tam­

Paul. Nashville: Nelson. 1984. •

bém faz menção aos nomes dos doze apóstolos

The name and office of an apostle. In: ______ .

escritos nas doze fundações do muro da Jerusa­

Saint Paul’s Epistle to the Galatians. Reimpr.

lém celestial, um símbolo da igreja (Ap 21.9-14).

Grand Rapids: Zondervan, 1953, p. 92-101. ■ Mos-

L i g h t f o o t , J.

B.

Com base na úhima referência pode se inferir que

bech, H .

o autor de Apocalipse acredhava que o ministério

p. 166-200, 1948. ■

dos doze apóstolos era fundamental para a edifi­

and the Twelve, sr. v. 3. p. 96-110, 1950-1951. ■

cação da igreja. A pregação do evangelho por eles

P fitz n e r ,

assentava o ahcerce da igreja.

and Spirh in the Acts of the Apostles. In: [C . G . K

Ver também m ado

d is c íp u l o s ;

P au lo,

ruse]

conversão e c h a ­

W.

Apostolos in the New Testament,

V.

C.

DPc: a n g ú s t ia s , t r i b u l a ç õ e s , p r o v a ç õ e s ; a u t o r i d a ­

& B a ch m a n n , M . ,

R e n g s to rf, K . H .

H au beck,

E.

K.

H.

J. BriO, 1980, p. 210-35. ■

Apostolos.

tdnt .

[S.l.: s.n.. s.d.].

1. p. 407-47. ■______ . The election of Matthias:

V.

P a u l o c o m o ; s in a is , p r o d íg io s , m ila g r e s .

Acts 1.15 ff. In:

DER, G o v e r n m e n t ; M is s io n , E a r l y N o n - P a u l i n e .

2,

orgs. Wort in der Zeit: Neu-

testamentliche Studien. Festschrift for

d e ; c o l a b o r a d o r e s , P a u l o e seu s ; m in is t é r io ; p a s t o r ,

dlntd: A p o s t o lic F a th e rs ; A u t h o r it y ; C h u rc h O r-

st , v .

J. Paul, the apostles

“ Pneumatic” apostleship? Apostle

Rengstorf. Leiden:

DE.

M u nck,

K la s s e n ,

W. &

S n y d e r,

G. F.. orgs.

Current issues in New Testament interpretation: essays in honor of Otto A. Piper. London:

I 138 I

scm.

A tos dos A póstolos

W. The office of

têm dúvidas acerca da classificação de Atos como

apostle in the early church. Nashville: Abingdon,

1962. p. 178-92. ■

historiografia em geral acabam por maximizar as

1969. ■

discrepâncias formais entre os prefácios lucanos

S c h m it h a l s ,

R. Apostles before and

Sc h nack enb u r g ,

during Paul’s time. In:

R.

e os da historiografia helenística, e entendem que

P., orgs. Apostolic history and the gospel. Grand

o prefácio ao terceiro Evangelho não tem em vista

Rapids: Eerdmans, 1970. p. 287-303.

a narrativa de Atos e/ou sustentam que, pelo fato

G

W. W. &

asque,

C. G.

K

ruse

M

e P. W.

a r t in ,

de Atos não ser fidedigno como relato histórico,

Barnett

não deve ser tido como exemplo do gênero da A

r is t ó t e l e s , a r is t o t e u s m o .

A

scensAo

Ver nLosoFiA.

historiografia antiga. R. I. Pervo, por exemplo, sustenta que Atos é

.

Ver A

A

tos dos

pó sto lo s;

L

ucas,

um antigo romance histórico escrito com o fim

E vangelho

de entreter e edificar seus leitores. Ao defender

DE.

sua tese, Pervo caricatura alguns dos estudos A

s t r o l o g ia .

Ver r e u g iõ e s

mais radicais de Atos (e.g.,

g r e c o -r o m a n a s .

H

aenchen)

como se

eles demonstrassem que Lucas era um historia­ A

tos do s

A

dor “ desajeitado e incompetente” , em vez de um

póstolos

Atos dos Apóstolos é o quinto livro no cânon do

escritor “brilhante e criatívo”. 0 problema com

situado entre compilações de Evangelhos e

essa caracterização de Lucas, de acordo com Per­

N T,

cartas. Embora não seja o primeiro documento

vo, é que ela injustamente pressupõe que Atos

cristão ou neotestamentário que tenha incorpora­

tívesse a pretensão historiográfica. Caso se reco­

do um interesse na história narrativa, junto com

nheça Atos como ficção histórica, observa ele, o

o Evangelho de

impasse fica então desfeito, e Atos pode ser lido

L ucas

é o exemplo mais antigo de

pelo que ele é, não pelo que ele deixa de reali­

historiografia cristã. 1. O gênero de Atos

zar. Pervo corretamente reconhece o humor e a

2. O texto de Atos

perspicácia de Atos, mas é incapaz de forçar o

3. Os discursos de Atos

hvro como um todo para dentro do molde exigido

4. Unidade narrativa de Lucas-Atos

pelo prazer estético. Mesmo aquelas característí-

5. Teologia e propósho de Atos

cas formais que Atos compartüha com o romance não são próprias dos romances da Antíguidade. Em seu tratado Como se deve escrever a história,

1. O gênero de Atos

do século

Em especial por causa do conteúdo de Atos e

II,

Luciano aconselha os historiadores a

também da natureza dos prefácios a Lucas-Atos

dar a seu púbhco leitor “o que lhes interessará e

ÍLc 1.1-4; At 1.1-3; cf.

os instruirá” (§ 53).

J osefo,

Co Áp, 1.1, § 1-5;

2.1, § 1-2), Atos há muho é tido como o primei­

Potencialmente, mais útíl é a identificação de

ro exemplo de historiografia cristã. Após a obra

(Lucas-)Atos como “biografia” , uma vez que os

influente de H.

biógrafos antigos, como os historiadores, lidavam

J.

Cadbury, nos primórdios do sé­

o estudo de Atos até bem pouco tempo

com pessoas reais e acontecimentos reais. No

identificou a obra dentro do gênero da historio­

entanto, a narrativa de Atos, como fica evidente,

grafia antiga. Questões a respeito da veracidade

não se concentra nos atos de uma única pessoa,

iiistórica da narrativa de Atos, aliadas a constan-

de modo que é difícU impor-lhe a classificação do

íes reavaliações de Atos dentro do contexto da

gênero biográfico. C. H. Talbert tenta superar esse

literatura da antiguidade judaica e greco-romana,

obstáculo, sugerindo que Lucas-Atos é uma “nar­

suscharam um debate vigoroso em torno do pro­

rativa de acontecimentos seriados” de cunho bio­

blema do gênero de Atos. Atos, portanto, situa-

gráfico, análoga à Vida dos filósofos, de Diógenes

se em um dos três gêneros mais importantes

Laércio (meados do

culo

XX,

mundo romano — historiografia, romance e

iii

d.C.). Essas biogra­

a um formato tríplice: a vida do fundador, uma

i^iografia. 1.1

séc ulo

fias, ele propõe, conformam-se de certa maneira

Atos: Romance? Biografia? Ti-atado cien­ descrição da comunidade de seus seguidores e

tífico? Historiografia antiga? Os estudiosos que I

um resumo dos ensinos da comunidade em sua

139

I

M I Ü S D U S A P Ü iT O L O S

forma contemporânea. Assim, o primeiro volume

As afinidades entre Lucas e a tradição cienti'-

de Lucas, o terceiro Evangelho, destaca a vida de

fica não negam, contudo, a identificação de Lu­

Jesus (o fundador), enquanto Atos se concentra

cas 1.1-4 e Lucas-Atos com a historiografia. Em

nos feitos e ensinos de seus seguidores (v. Lu­

primeiro lugar, o fato de que Lucas-Atos não cor­

D. E. Aune critica essa abor­

responde em todos os aspectos às características

dagem, questionando a existência de qualquer

formais da historiografia greco-romana não repre­

gênero assim e realçando as discrepâncias sig­

senta nenhum problema imediato, pois o gênero

ca s,

Evangelho

d e ).

V id a s

era facilmente manipulado. Mais ainda, Lucas foi

de Laércio e Atos (Aune, p. 78-9). Além do mais,

influenciado também pela historiografia judaica

nificativas entre as funções respectivas de

Lucas sinaliza um interesse não tanto por pesso­

e veterotestamentária, sobretudo no que se refe­

as em particular quanto por “ fatos” (Lc 1.1-4),

re ao uso das sequências históricas que formam

e as duas partes da obra de Lucas são agrupa­

uma teologia narrativa. Além disso, os antecesso­

das mais basicamente pelo propósito central e

res de Lucas na historiografia israelita e judaica

dominante da redenção de Deus que pela vida

não refletiam sobre seus objetivos e procedimen­

de um ou mais indivíduos, como seria de esperar

tos dentro do contexto da composição da obra em

numa biografia. Que Lucas foi influenciado em

si. Além do mais, ao apresentar sua obra como

sua composição do material por características do

diëgësis ( “narração”, Lc 1.1), Lucas identifica seu

gênero biográfico está claro, ainda que Atos não

projeto como um longo relato narrativo de muitos

possa simplesmente ser identificado como um es­

acontecimentos, para o que os mais importantes

pécime do gênero biográfico antigo.

protótipos eram as histórias gregas primitivas de

Outra abordagem foi adotada por L. C. A. Alexander, estudiosa que chama atenção para

Heródoto e Tucídides (cf. mata

2; L

u c ia n o

,

H

erm ógenes,

Progymnas-

Como se deve escrever a história,

as diferenças formais entre o prefácio de Lucas

§ 55). Por fim, inúmeros componentes da obra de

(L c l. 1-4) e os dos historiógrafos gregos. 0 prefácio

Lucas — banquetes, narrativas de viagem, cartas,

de Lucas parece breve demais, contendo uma

discursos — apoiam uma comparação positiva da

única frase, em comparação com as aberturas

obra de Lucas com a historiografia greco-romana.

mais desenvolvidas dos historiadores gregos. A

Vários estudos recentes têm fortalecido o

transição do prefácio de Lucas para a narrativa

consenso anterior de que Atos é um exemplo

é surpreendentemente brusca. Diferentemente

do gênero da historiografia antiga. Por exemplo,

do que acontece em geral, Lucas não se ocupa

enxergando Atos no contexto das descrições da

de uma crítica explícita de seus antecessores. O

historiografia helenística, israelita e helenístico-

prefácio de Lucas exibe um estilo tão pessoal,

judaica, Aune conclui que “Lucas era um cris­

com' seus pronomes em primeira pessoa e suas

tão helenista eclético que narrou a história dos

dedicatórias, que não parece apropriado incluir

primórdios do cristianismo desde as origens no

no gênero da “historiografia desapaixonada e

judaísmo com Jesus de Nazaré, passando por

atemporal”. E a abertura de Lucas, de maneira ge­

sua ascensão como movimento religioso relativa­

ral, não oferece nenhuma reflexão moral, comum

mente independente e aberto a todos os grupos

entre os historiadores gregos. Tais problemas

étnicos”

levaram Alexander a uma reavaliação do mapa

Atos como pertencente ao gênero “história ge­

literário da redação grega de prefácios, resultan­

ral”. G. L. Sterling, no entanto, sustenta que Atos

do que ela encontra as maiores semelhanças a

pertence a um tipo de história cujas narrativas

(A

une,

p. 138-9). Isso qualifica Lucas-

Lucas 1.1-4 e Atos 1.1 na “tradição científica”,

“relatam a história de determinado povo heleni­

ou seja, nos escritos técnicos e profissionais de

zando intencionalmente suas tradições autócto­

medicina, matemática, engenharia e áreas afins.

nes”

Alexander propõe que a apresentação narrativa

monografia histórica e história política) também

( S t e r l in g ,

p. 374). Outros subgêneros (e.g.,

que Lucas faz de Jesus e do movimento cristão

são propostos. Um trabalho fundamental em

primitivo é científica, no sentido de que se ocupa

historiografia começou a realçar o papel apolo­

de transmitir a tradição do ensino acumulado so­

gético de toda historiografia (v. 1.2 abaixo), e é

bre esse assunto.

exatamente o que se dá com Atos, escrito para

I 140 I

A tos dos A póstolos

defender o desenrolar do propósito divino, des­

(v., e.g.,

de Israel, passando pela vida e pelo ministério de

torno do qual tem girado o debate sobre o histo­

Jesus até a igreja primitiva, com sua inclusão

riador Lucas está muito menos relacionado com

de crentes gentios como plenos participantes, e

a natureza de Lucas-Atos que com as concepções

assim para legitimar o movimento cristão de que

problemáticas da atualidade a respeito do empre­

Lucas fazia parte.

endimento do historiador ou com a separação

1.2

G

ree n ,1

9 9 6 ).

O principal problema em

Historiografia e historicismo. Mas em absurda e concomitante dos acontecimentos em

que sentido é correto referir-se à narrativa de

relação à interpretação. As opiniões dos últímos

Atos como história? 0 que fazer com a negação

dois séculos, de que a investigação histórica está

de Atos como historiografia, com base em sua

interessada em confirmar a veracidade de certos

alegada fraude em questões históricas? Dois pon­

acontecimentos e em objetivamente informar es­

tos merecem reflexão. Em primeiro lugar, a tenta­

ses fatos, estão sendo eclipsadas por uma concep­

tiva de apresentar as matérias dentro da estrutura

ção do projeto historiográfico em que Lucas teria

geral da historiografia não é garantia, de maneira

se sentido mais à vontade. A questão fundamen­

nenhuma, de veracidade histórica: escolha de

tal não é: “Como o passado pode ser apreendido

gênero e qualidade de desempenho são questões

com exatidão?” ou: “Que métodos permitirão a

independentes. Consequentemente, ainda que os

recuperação do que de fato aconteceu?” , para

críticos mais radicais estejam corretos em acusar

cada vez mais se reconhecer que a historiografia

Atos de historicidade precária, isso não seria o

é sempre teleológica. Ela impõe importância ao

mesmo que excluir uma identificação genérica de

passado pela escolha de acontecimentos a regis­

Atos como historiografia.

trar e ordenar, bem como pelos esforços inerentes

Ao mesmo tempo, é preciso admitir que tais

de postular a esses acontecimentos uma origem

acusações contra Lucas como historiador não

e/ou um fim. A ênfase então se desloca da vah-

são tão firmemente embasadas, como às vezes se

dação para a significação, de modo que a questão

alega. 1) Embora o estudo de Atos como histó­

é: “ Como o passado está sendo representado?”

ria continue a sofrer de uma escassez relativa de

O interesse de Lucas na verdade ou na precisão

provas corroborativas, quer literárias, quer físi­

(v. Lc

cas, um exame recente dessa evidência, feito por

do passado.

1 .4 )

reside em sua interpretação narrativa

C. J. Hemer, fomentou uma avaliação muito mais

A identificação de Atos como historiogra­

positiva da confiabilidade histórica de Atos (v. tb.

fia antiga aumenta as expectativas que pode­

2) Os relatos de cura às vezes espeta­

mos levar à narrativa. Ao lado das intenções

culares de Atos (e.g., At 5.15,16; 19.11,12) têm

professadas por Lucas (Lc 1.1-4), é de esperar

levado alguns estudiosos a hesitar em aceitar o

que encontremos uma narrativa em que a

todo como um relato historicamente fiel. No en­

história recente receba destaque, que questões

tanto, seguindo a epistemologia pós-moderna e à

de causação e de teleologia sejam privilegiadas

luz da crítica crescente do paradigma biomédico

e que a pesquisa resoluta seja posta a serviço de

em busca de encontrar sentido nos relatos não

uma instrução persuasiva e cativante.

H

e ng el) .

ocidentais de cura, esses fenômenos milagrosos — antes entendidos como manifestações de frau­

2. O texto de Atos

de, patologia mental, superstição, fantasia e/ou

A crítica textual de Atos apresenta um dilema

de uma cosmovisão pré-científica — não são tão

especial por causa da existência de dois tipos

facilmente descartados e começam a ser reexami­

textuais primordiais e díspares, o Alexandrino

nados por sua importância socio-histórica.

(a B

Em segundo lugar. Atos foi muitas vezes — e em alguns rincões continua a ser — avahado

c 81) e 0 Ocidental (esp. o Códice de Beza

ou Cantabrigense

[d ]). 0

livro de Atos, na tradi­

ção ocidental, é quase 10% mais longo que na

como historiografia, com base em cânones moder­

alexandrina, e a natureza de cada um dos dois

nistas, positivistas, ou seja, com base em critérios

tipos textuais é distinta. A pergunta fundamental

que em si se tornaram problemáticos e são ana­

é: “Qual é a procedência do texto ocidental? Será

crônicos em relação a Lucas como historiógrafo

o produto de uma revisão cuidadosa de Atos? Em

I 141 I

A tos dos A póstolos

caso afirmativo, será que se pode atribuir esse es­

ocidental é negligenciado, na suposição de que

forço a uma proveniência específica? Ou será que

represente uma revisão intencional e continuada

o texto ocidental dá testemunho de um processo

do livro de Atos; em outros, as leituras do tipo

continuado de emendas? Será o texto ocidental

ocidental sâo consideradas caso a caso. Pelo fato

inteiramente secundário em relação ao alexandri­

de essa situação ainda não ter uma solução defi­

no? Será que pode de fato remontar à pena do ter­

nitiva, podemos esperar que sejam atendidos os

ceiro Evangelista? Ou ele compõe um amálgama

apelos para que se produza uma edição crítica do

de leituras secundárias mais ou menos originais,

texto de Atos.

que devem ser examinadas (de acordo com o mé­ todo eclético da crítica textual) caso a caso? Na

3. Os discursos de Atos

história da pesquisa sobre o texto de Atos, várias

Entre os elementos narrativos mais marcantes em

propostas relacionadas têm vindo à tona (v. as

Atos, os discursos chamaram especial atenção,

pesquisas em

na narrativa tanto quanto no cenário do último

S tra n g e ,

p. 1-34;

B a rre tt,

p. 2-29).

Já no fim do século xvii, aventou-se que Lucas

século de trabalho acadêmico sobre Atos. iVIui-

era responsável por duas recensões de Atos e que

tos são discursos missionários, proferidos diante

isso expUcaria a existência dos dois tipos impor­

de públicos judeus e gentios. Entre eles, estariam

tantes de texto. Essa vertente ganhou novo impul­

sermões importantes como o que foi pregado

so desde o surgimento da crítica da redação, no

por Pedro no dia de Pentecostes (At 2.14-40) e

século

em consequência da descoberta de su­

por Paulo em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41).

postos lucanismos nas versões ocidentais. É repre­

Esses discursos desempenham papéis programá­

sentada hoje por iVI.-É. Boismard e A. Lamouille,

ticos dentro de seu contexto narrativo. Essa cate­

que postulam duas versões autenticamente luca-

goria de discursos, os sermões missionários, tem

nas de Atos, das quais o Códice de Beza

e o Có­

estado no centro do debate acadêmico: “ Com que

são os melhores representantes,

grau de precisão Lucas reproduziu os discursos

embora não imaculados. Na concepção deles, os

missionários cristãos primitivos?”. Outros discur­

XX,

dice Vaticano

(b )

(d )

tipos textuais ocidentais originam-se da primeira

sos, no entanto, desempenham papéis importan­

edição de Atos, ao passo que o alexandrino reflete

tes dentro da narrativa, incluindo o discurso de

a perspectiva posterior e revisada de Lucas. Pode

defesa de Estêvão diante do conselho de Jerusa­

se comparar a obra de W. A. Strange a essa pers­

lém (At 7.2-53). o discurso de despedida de Paulo

pectiva; ele acreditava que Atos havia sido publi­

aos anciãos de Éfeso (At 20.18-35). os discursos

cado postumamente por editores, que deixaram

forenses de Paulo diante das autoridades roma­

duas versões de Atos agora representados pelos

nas (e.g.. At 24.10-21; 26.2-23), os discursos de

dois tipos de manuscrito.

Pedro e Tiago no Concílio de Jerusalém (At 15.7-

A despeito de teorias dessa natureza, a maio­

11,13-21) e assim por diante. Dos cerca de mil

ria dos estudiosos continua a defender que as

versículos de Atos, 365 situam-se no contexto de

testemunhas da chamada tradição ocidental não

discursos e diálogos de maior ou menor impor­

contêm algo que se aproxime do texto original

tância

de Atos e nega que a tradição ocidental nos dê

ponsável por mais da metade do livro.

acesso a uma revisão, primária ou secundária, da pena do terceiro Evangelista. Concordando com

3.1

(S o a r d s ,

p. 1), sendo o discurso direto res­

O debate em tom o das fontes e das tradi­

ções. As prioridades para o estudo moderno dos

uma das primeiras obras, como a de M. Dibelius

discursos públicos em Atos foram estabelecidas

(p. 84-92), eles presumem que, embora o texto

pelo trabalho de Dibelius, primeiramente publi­

ocidental não se apresente como original, pode

cado em 1949

conter leituras superiores em alguns pontos.

discursos de Atos dentro da matriz da historiogra­

Embora reste pouca concordância quanto ã

(t i

1956). Ele procurou situar os

fia antiga, na qual, insistia ele, o discurso era “ o

natureza do texto original de Atos, permanece o

complemento natural dos atos”

fato de que a maioria dos estudos de Atos prosse­

Assim, a questão principal não era a transcrição

gue com base na relativa superioridade do tipo de

de um discurso em especial, mas a finalidade do

texto alexandrino. Em alguns casos, o tipo textual

discurso nas mãos do historiógrafo — ou seja.

I 142 I

(D ib e liu s ,

p. 139).

A tos dos A póstolos

dentro do escrito histórico como um todo. 0

intérpretes começaram a negligenciar as questões

discurso poderia transmitir ao leitor uma intros­

de tradição e história e a examinar como o cenário

pecção na situação total da narrativa, uma intros­

e os elementos de cada discurso são empregados a

pecção interpretativa do momento histórico, no

fim de determinar a importância de cada discurso

caráter de quem discursava e/ou nas ideias gerais

como uma ação na narrativa que se desenrola (v.

que talvez explicassem melhor a situação. Além

N eyrey,

1984; T a n n e h il l , 1991;

S oards ).

Um importante reexame da redação de discur­

disso, o discurso poderia dar andamento à ação p. 139-40). Mas a inclusão dos

sos na historiografia antiga feito por C. H. Gempf

discursos nos escritos históricos não constituiria

veio à tona por meio de um canal que vence o

nenhuma reivindicação de historicidade do dis­

obstáculo desses paradigmas contraditórios de

curso. No seu exame dos discursos de Atos,

D i-

estudo. Gempf insiste em que a questão princi­

beUus estava preocupado com a função deles no

pal no que se refere à historiografia antiga não

livro como um todo.

é: “ É precisa ou imprecisa em sua representação

do relato

( D ib eliu s ,

Com a hegemonia, em geral, da abordagem

desse discurso?” , assim apresentando uma es­

estudos posterio­

colha falsa entre alternativas ou um continuam

res dos discursos públicos de Atos remetiam a

interessado principalmente na fideUdade a uma

diacrônica ao estudo do

n t , os

Dibelius principalmente pela sua teoria de que

suposta fonte. Em vez disso, os escritores antigos

os discursos eram composições de Lucas (v. esp.

procuraram alcançar um equilíbrio duplo entre o

Embora praticamente ninguém afirme

que era aceitável artística e historicamente. Isso

que os discursos de Atos são representações hte-

porque os discursos são incluídos nas representa­

rais do que foi de fato proferido, é com referência

ções narrativas da história não para fornecer uma

a exatamente essas categorias que o debate em

transcrição do que foi falado em dada ocasião,

torno de sua historicidade vem sendo estrutura­

mas para documentar o acontecimento do dis­

do. Com base em argumentos que agora se mos­

curso. Os historiógrafos (como Lucas) estariam

traram capciosos, os estudiosos têm recorrido à

ocupados, portanto, em compor discursos que

coerência de linguagem e estilo entre um discurso

se harmonizassem com a obra como um todo da

público e outro e entre discurso direto e indireto,

perspectiva da linguagem, do estilo e do conteú­

e à coerência de conteúdo entre um discurso pú­

do (a dimensão literária) e que nâo fossem consi­

blico e outro, a fim de negar sua historicidade.

derados anacrônicos nem destoantes do que era

H aench en) .

Entendidos principalmente como um proble­ ma tradicional-histórico, os discursos de Atos

sabido a respeito da pessoa a quem o discurso era atribuído (a dimensão sócio-histórica). Isso significa que, contrariamente ao consen­

foram estudados por sua historicidade. Com pou­ 1942), esses exames le­

so atual no debate sobre a tradição e as fontes

varam a conclusões em grande parte negativas,

nos discursos de Atos, as aspirações literárias

ainda que, em questões de detalhes, a marca da

não interferem no valor histórico, e a presença

cas exceções (e.g.,

B ru ce ,

tradição apostólica possa ser discernida aqui e ali

do estilo e da teologia de Lucas nos discursos de

(e.g., At 13.38,39; 20.28, textos em que se encon­

Atos não conduz necessariamente à inferência de

tram as categorias de tipo paulino). A maioria dos

que esses discursos sejam de origem lucana. Com

estudiosos concluiu que os discursos de Atos são

respeito à aceitabilidade histórica, a questão não

lucanos em composição, geralmente com pouca

é estreitamente definida pela perspectiva da exati­

ou nenhuma base tradicional, e que servem so­

dão. Em vez disso, o autor comporia um discurso

bretudo de instrumento de discurso da parte do

em harmonia com o que podia ser sabido dos da­

autor de Atos para seu público.

dos históricos a ele disponíveis. 3.2 O papel dos discursos

Até bem pouco tempo, os estudiosos não

3.2.1

ievavam tão a sério o fato de que por “composição”

Uma cosmovisão anificada. Como mui­

Dibelius não queria dizer apenas “invenção de

tas vezes ficou demonstrado, é possível discernir

Lucas”, mas também e fundamentalmente perícia

um padrão nos discursos missionários de Atos:

artística de Lucas. Com o crescimento do interesse

o apelo para que se prestasse atenção, incluin­

pelas críticas narrativa e retórica, no entanto, alguns

do uma conexão entre a situação e o discurso; o

I 143 I

A tos dos A póstolos

querigma cristológico apoiado com provas biljli-

situar os acontecimentos históricos numa teia in­

cas; a oferta de salvação; muitas vezes a inter­

terpretativa, reunindo para isso num fio narrativo

rupção do sermão pelo público ou pelo próprio

o passado, o presente e o futuro da atividade sal­

narrador. Tomados como um todo, os discursos

vífica de Deus. Dessa perspectiva, o significado

de Atos proferidos por seguidores de Jesus evi­

dos dados históricos não aparece por si só: eles

denciam um querigma que é esmagadoramente

precisam ser interpretados, e a interpretação legí­

cristocêntrico, mas que também caracteriza uma

tima é produto da revelação divina. 0 discurso de

mistura de temas recorrentes, incluindo a centrali­

Paulo move-se intencional e naturalmente da ati­

dade da exaltação de Jesus (i.e., ressurreição e/ou

vidade divina no

ascensão) e seu efeito salvífico; arrependimento

e para a necessidade de uma resposta presente,

e/ou perdão de pecados; oferta universal de salva­

oferecendo assim interpretações cristológicas das

ção; o Espírito Santo; a garantia, muitas vezes por

Escrituras e da história.

interpretação bíblica, de que a mensagem dessa salvação é a manifestação da vontade divina.

3.2.4

at

para a obra de João e de Jesus

Atos como obra testemunhal. A quanti­

dade de espaço narrativo concedida aos discur­

Como seria de esperar, cada um desses temas

sos quando comparado com outros exemplares

é inseparável da teologia de Lucas (v, 5 abai­

da historiografia antiga (ou da biografia, ou do

xo), mas isso não faz dos discursos de Atos um

romance) mostra mais um papel narrativo dos

mero depósito compilado do pensamento lucano.

discursos de Atos. Aliado ao fato de que em Atos

Quando há material comparativo à disposição,

os discursos são normalmente proferidos por tes­

um exame detido indicará que os discursos de

temunhas, ou a favor ou contra a testemunha,

Atos lutaram por manter em tensão os objetivos

presume-se que por meio dos discursos Lucas

às vezes conflitantes da redação dos discursos

está dando testemunho, relatando “tudo o que

na historiografia e na fidelidade literária e sócio-

Deus havia feito por meio deles” (At 14.27). “Em

histórica. Esses casos de repetição dentro da nar­

Lucas-Atos, os discursos são uma característica

rativa de Atos demonstram mais particularmente

essencial da ação em si, que é a propagação da

a preocupação de Lucas em promover por meio

palavra de Deus”

(A u n e ,

p. 125).

desses discursos uma visão diferente (embora não singular em todos os pontos) do propósito de

4. Unidade narrativa de Lucas-Atos

Deus. Essa perspectiva é então propagada pelas

4.1 Lucas-Atos ou Lucas e Atos. Desde que

figuras mais importantes que servem de testemu­

H. J. Cadbury propôs o hífen entre Lucas e Atos,

nhas da redenção em Atos.

já no começo do século xx, para indicar o enca­

3.2.2 Elocuções performativas.Tamhém conhe­

deamento entre os dois escritos, a relação entre

cidas como “atos de fala”. Não seria apropriado

esses dois hvros tem sido mais presumida que

em cada caso catalogar esses discursos como co­

examinada. Apesar da separação canônica de am­

mentários, ainda que, como pausas intencionais

bos, até pouco tempo a maioria dos estudiosos

na ação, tenham uma função interpretativa. Em

supunha que o terceiro Evangelho e Atos compar­

vez disso, os discursos muitas vezes têm papéis

tilhavam 0 mesmo autor, o mesmo gênero e uma

performativos; propulsionam a ação da narrati­

perspectiva teológica comum, supondo também

va à medida que fornecem a lógica e o ímpeto

que a narrativa de Atos foi escrita como a conti­

para mais desdobramentos na concretização do

nuação calculada da narrativa do Evangelho. Tais

objetivo da narrativa de Lucas-Atos. Os discursos

suposições foram questionadas por M. C. Parsons

de Estêvão e Pedro em Atos 7.2-53 e 10.34-43 (e

e R. 1. Pervo, entre outros. Embora concordem

At 11.5-17), por exemplo, aparecem em momen­

em que Lucas e Atos compartilham sua autoria,

tos importantíssimos, propelindo a narrativa para

eles questionam se os dois livros pertencem ao

além de Jerusalém e da Judeia, em direção a Sa­

mesmo gênero, se são teologicamente harmôni­

maria e até “os confins da terra” (At 1.8).

cos entre si e se juntos compõem uma única nar­

3.2.3 “História revelada." O sermão de Paulo

rativa continuada.

em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41) exemplifica

As questões suscitadas por Parsons e Pervo

um interesse comum dos discursos de Atos por

são importantes se considerarmos apenas o fato

I 144 I

A tos dos A póstolos

de que sua observação central está correta: a uni­

0 comprimento máximo de um rolo de papiro

dade de Lucas-Atos tem sido mais pressuposta

estendia-se até onze metros, e os dois volumes

que justificada e examinada. Mas seus argumen­

de Lucas, os hvros mais extensos do

tos são difíceis de apoiar.

exigido cada um deles um único rolo de papiro.

nt,

teriam

Como os estudiosos não cliegaram a um

Além do mais, em tamanho os dois mais ou

consenso na identificação do gênero de Lucas e

menos se equivalem — o Evangelho de Lucas

Atos, Parsons e Pervo concluem que Lucas e Atos

com aproximadamente 19.400 palavras. Atos com

não compartilham da unidade no m'vel do gênero.

cerca de 18.400 palavras — , de modo que teriam

Esse debate exige que se formulem perguntas

exigido rolos de papiro mais ou menos do mes­

importantes: Dada a fluidez dos gêneros na

mo comprimento. Assim, a divisão entre Lucas e

Antiguidade, por que alguém precisa laborar

Atos adaptou-se ao desejo dos autores contempo­

no nível alto de precisão de que depende essa

râneos de manter uma simetria entre o tamanho

rejeição da unidade do gênero? Com respeito ao

de seus livros (cf.

terceiro Evangelho, por que devemos supor que

Co Áp, 1.35, § 320). De outras maneiras também,

Lucas trabalhou com hmitações no que diz res­

o plano de Lucas e Atos faz supor uma propor­

D io d o r o ,

1.29.6; 1.41.10; J o sefo ,

peito ao gênero de evangelho em desenvolvimen­

cionalidade intencional. Ambas as narrativas

to? Não estaria Lucas se propondo a fazer algo

iniciam-se em Jerusalém. O Evangelho termina,

para o qual os modelos e as formas anteriores

e Atos começa com narrativas de comissões as­

tinham se mostrado insatisfatórios? E os possíveis

sociadas a relatos da ascensão de Jesus. 0 tempo

análogos de volumes seriados que usavam multi­

coberto em cada volume é de aproximadamente

plicidade de gênero pelos autores (e.g., l-4Reinos

trinta anos. A narrativa de Lucas sobre os últimos

e l e 2Macabeus) dificilmente são essenciais, em

dias de Jesus em Jerusalém (Lc 19.28—24.53) e

razão do nosso entendimento da composição e da

sobre a prisão, julgamentos e chegada de Paulo a

unidade desses livros.

Roma (At 21.27—28.31) ocupa 25% de cada livro,

Ademais, Parsons e Pervo negam a unidade

respectivamente. E Lucas regularmente desenvol­

narrativa ao propor a identificação em poten­

veu paralelos entre Jesus no Evangelho de Lucas

cial de dois narradores diferentes (textualmente

e seus discípulos em Atos dos Apóstolos.

construídos), um para Lucas, outro para Atos

Além disso, embora Parsons e Pervo não exami­

— isso a despeito do fato de que a apUcação da

nem essa questão em sua obra de 1993, Lucas 1.1-4

oarratologia a até mesmo um desses livros traz

serve de prólogo para toda a obra de Lucas, os dois

à tona múltiplos narradores e níveis de narra­

volumes: Lucas-Atos. Isso se deduz do paralelo en­

ção

tre o primeiro prefácio e o prefácio de recapitula­

(K u rz) .

Tampouco os autores Udam de modo

construtivo com a possível alegação do narrador

ção em Lucas-Atos e de Contra Ápion, de Josefo.

de Lucas 1.1-4 de ter pertencido ao círculo da­

Além do mais. Atos 1.1 não apenas se refere a um

queles (“ nós”) entre os quais (alguns deles) esses

“primeiro relato”, mas também designa como tema

acontecimentos “se realizaram” (cf. as passagens

daquele primeiro livro “tudo o que Jesus começou

iniciadas por “ nós” em Atos, 4.5 abaixo). Muitos

a fazer e a ensinar”. Temos aí um resumo inegável

menos ainda aventam a possibilidade de que Lu­

do terceiro Evangelho, que dá continuidade ao real­

cas e Atos compartilhem de um único propósito

ce caracteristicamente lucano ã relação inseparável

narrativo e de que nisso resida sua unidade nar­

entre palavra e ato. Com o termo “começou”, esse

rativa essencial.

resumo faz supor a continuação da missão de Jesus,

De modo mais construtivo, é importante real­

uma expectativa que não é frustrada, pois os segui­

çar que a divisão Lucas-Atos em dois volumes

dores de Jesus “invocam o seu nome” (e.g., At 2.21;

não significa que um relato tinha terminado e

9.21; 15.17; 18.15; 22.16) — um nome que significa

outro começado ou que o volume 2 se dedica­

a presença continuada de Jesus para trazer inte­

ria a um assunto diferente. Antes, numa questão

gralidade de vida (e.g., At 3.6,16; 4.7,10,12,17,30;

de conveniência física, os escritores antigos di­

8.12; 9.15,34; 10.43; 16.18). O Evangelho de

vidiam suas obras extensas em hvros, cada um

Lucas e Atos dos Apóstolos narram uma úni­

dos quais conforme coubesse num rolo de papiro.

ca história continuada (v.

I 145 I

A g o s tin h o ,

Cs, 4.8),

ATOS DOS APÛSTOLOS

portanto, e a expressão os “fatos que se realizaram

ter sido concluídos e disponibilizados ao grande

entre nós” (Le 1.1-4) refere-se tanto à história de

público separadamente, no século ii d.C. o Evan­

Jésus quanto à atividade da igreja primitiva.

gelho de Lucas veio a ser situado com os demais

O Evangelho de Lucas prenuncia assim Atos

Evangelhos de modo que se pudesse formar o

dos Apóstolos e também autoriza a narrativa de

grupo de quatro Evangelhos. Não surpreende, en­

Atos, que continua a narrativa dos poderosos atos

tão, que 0 primeiro volume de Lucas tenha sido

salvíficos de Deus iniciados com o nascimento de

considerado antes de tudo um Evangelho. Vale

João e Jesus (Lc 1—2), ao mesmo tempo mos­

a pena refletir na possibilidade de que nos dias

trando que a importância da história de Jesus

de Lucas não havia essa forma literária, de modo

podia ser elaborada e articulada para tempos em

que estaríamos equivocados em pensar ou que

transformação. Atos, portanto, se constrói sobre

Lucas se pôs a escrever um Evangelho, ou que

o alicerce assentado em Lucas, demonstrando a

seus leitores teriam entendido sua obra dentro

relação continuada da igreja com a realidade de

dessa categoria. Lucas refere-se a seus antecesso­

Jesus ao interpretar a importância de Jesus peira

res como “narrativas” , não como “Evangelhos” , e

um novo tempo.

não há nenhuma razão a priori para imaginar que

A unidade narrativa de Lucas-Atos tem im­

0 propósito de Lucas era escrever uma história de

portantes implicações para nossa leitura da obra

Jesus à qual ele mais tarde anexou um relato da

de Lucas. Mais significativamente ainda, requer

igreja primitiva. Antes, a narrativa que ele dese­

que nossa compreensão do propósito de Lucas

java relatar desenvolveu-se natural e intencional­

em escrever e assim nosso entendimento da(s)

mente da história do ministério terreno de Jesus

necessidades (a) que ele tinha de escrever e do

para a narrativa da missão de Jesus continuada

público a que se dirigia expliquem toda a evidên­

na igreja primitiva.

cia, tanto do Evangelho quanto de Atos. Seme­

Não obstante, de acordo com a lógica da loca­

lhantemente, é fundamental entendermos que

lização canônica de Atos, o segundo volume de

episódios do Evangelho prenunciam aspectos da

Lucas encontra-se em relacionamento interpreta-

história narrada apenas (de modo definitivo) em

tivo com as cartas paulinas. Por sinal, as primei­

Atos. Notadamente, em Lucas 2.2S-3S, Simeão

ras Ustas de livros do

percebe que na criança, Jesus, chegou uma salva­

Atos às vezes antes, às vezes depois do corpus

ção que será experimentada como uma “luz para

paulino. Presumivelmente como uma ponte que

nt

normalmente situavam

revelação aos gentios” (Lc 2.32), mas durante seu

ia da história de Jesus até o ministério de Paulo,

ministério, conforme registrado no Evangelho de

Atos acabou na posição atual, entre os Evange­

Lucas, Jesus raramente interage com não judeus.

lhos e as cartas. A consequência de sua locali­

É preciso esperar Atos para ver que a missão aos

zação no cânon é que Atos veio a fornecer uma

gentios se iniciou, se legitimou e assumiu uma

estrutura posterior, biográfica e missionária den­

forma consistente por ordem de Deus e guiada e

tro da qual se podia enquadrar as cartas paulinas

energizada pelo Espírito Santo. 0 último capítulo

— estrutura presumida na maior parte dos estu­

do Evangelho encerra aspectos significativos do

dos bíblicos, embora alguns estudos acadêmicos

enredo da história, mas há uma intenção mais

fundamentais tenham trazido à superfície tensões

dominante na obra, o propósito redentor de Deus

importantes entre os retratos de Paulo e sua mis­

para todas as pessoas. Visto diante desse propósi­

são disponíveis a nós em Atos e em suas cartas.

to, o Evangelho de Lucas é incompleto em si, pois abre possibilidades no ciclo narrativo que não se

4.3

Lucas-Atos: um só alvo narrativo. A

conclusão sobre a unidade de Lucas-Atos tem

concretizam no Evangelho em si, mas se materia-

como consequência imediata a rejeição a qual­

hzam em Atos dos Apóstolos.

quer finalidade proposta para a composição de

4.2

Lucas, Atos e o cânon do

n t.

A unidade Lucas que não explique a evidência de ambos os

de Lucas-Atos — dois volumes, uma história —

volumes. Embora o propósito primordial de Atos

facilmente escapa ao leitor moderno em grande

possa ter como corolário, por exemplo, uma de­

parte por causa da disposição canônica dos dois

fesa de Paulo (como já se sustentou), essa formu­

livros no

lação não contempla a totalidade de Lucas-Atos.

n t.

Embora o Evangelho e Atos possam

I 146 I

A tos dos A póstolos

Uma conclusão de unidade narrativa em Lucas-

judeu cada vez maior ao movimento cristão, e a

Atos pressupõe que o todo pode ser examinado

igreja parece cada vez mais gentílica em sua cons­

como 0 desenrolar de um único ciclo narrativo

tituição. Isso também é propósito de Deus, de

contínuo a mover-se da expectativa para possibi­

acordo com o narrador, falando acima de tudo por

lidades narrativas, para probabilidades, para con­

seu porta-voz Paulo, (e, por meio de Paulo, as Es­

cretizações e para consequências, servindo a um

crituras), ainda que continuassem os esforços para

único fim narrativo principal.

mostrar aos judeus que a interpretação de Moisés

Se enxergamos Lucas-Atos na ampla tela da

e dos profetas mostravam ser Jesus o Messias.

análise narrativa, é possível ver em sua totalidade

4.4

Atos 1.8 e o esboço do Livro de Atos. A

um objetivo narrativo a se desenrolar num ciclo

história relatada em Atos inicia-se em Jerusalém

de narrativa simples. Nele, vemos o desenrolar de

e termina em Roma. Assim, o plano do livro dá

um único objetivo: o propósito de Deus de leveir

forma ao molde centrífugo da missão que ele re­

salvação em sua plenitude a todos

lata. Não seria raro um escritor helenista de hvros

(G

r e e n ,1 9 9 4 ,

p. 62-3). Essa finalidade é prenunciada pelas vo­

sequenciais fornecer num segundo livro ou num

zes angélicas e proféticas que falam em nome de

livro posterior um prefácio que incluísse um resu­

Deus (Lc l.S—2.52). É possibilitada pelo nasci­

mo da obra anterior e um esboço da atual. Muitos

mento e pelo desenvolvimento de João e Jesus

leitores de Atos encontram nas palavras de Jesus

em lares que honram a Deus. De acordo com a

em Atos 1.8 — “Recebereis poder quando o Espí­

narrativa lucana do nascimento, no entanto, não

rito Santo descer sobre vós; e sereis minhas tes­

se trata de uma finalidade que será alcançada fa­

temunhas, tanto em Jerusalém como em toda a

cilmente ou sem oposição. Nem todos responde­

Judeia e Samaria, e até os confins da terra” — um

rão favoravelmente ao agente salvífico de Deus,

resumo esboçado de Atos. Muitos dos que veem

Jesus, o que resultará em antagorúsmo, divisões e

um esboço do livro em Atos 1.8 ainda identificam

conflitos. A concretização dos objetivos de Deus

“os confins da terra” como Roma. Embora as pa­

é possibilitada por meio da missão preparatória

lavras de Jesus possam ser consideradas o esbo­

de João e por meio da vida, morte e exaltação de

ço de Atos, ainda que num sentido superficial, é

Jesus, com o comissionamento e capacitação

quase certo que a identificação de Roma como

concomitantes de seus seguidores para levarem a

“os confins da terra” é equivocada.

mensagem a toda a humanidade (Lc 3—At 1). O

Atos 1.8 registra a resposta de Jesus à pergun­

próprio Jesus prepara o caminho para essa mis­

ta dos discípulos sobre a restauração do reino de

são universal, dissipando sistematicamente as

Israel. Jesus não propõe no lugar de uma missão

barreiras que predeterminam e têm como conse­

universal uma esperança nacionalista e provin­

quência a divisão entre grupos étnicos, homens e

ciana de restauração do domínio de Israel, mas

mulheres, adultos e crianças, ricos e pobres, jus­

situa 0 futuro de Israel dentro do plano de Deus,

tos e pecadores, e assim por diante. Em seu mi­

agora mais largamente definido. As referências

nistério, mesmo o conflito é entendido dentro dos

de Jesus a uma missão em Jerusalém, na Judeia

limites do propósito salvífico de Deus, a morte de

(i.e., “a terra dos judeus” — cf. Lc 4.44; At 10.37)

Jesus como uma exigência divina e sua exaltação

e em Samaria representam um progresso signi­

como a confirmação de seu ministério e um ato

ficativo nessa direção e estendem o desenvolvi­

poderoso de Deus que torna possível estender a

mento da missão de Atos 2—8.

salvação a judeus e gentios, semelhantemente.

Além de Samaria, a missão capacitada pelo

A história posterior em Atos consiste na nar­

Espírito deveria continuar até “ os confins da ter­

ração da concretização do propósito de Deus, so­

ra”. Várias opções foram apresentadas para dar

bretudo em Atos 2— 15, à medida que a missão

sentido à expressão heõs eschatou tès gês. Al­

cristã é dirigida por Deus, de modo a se tomarem

guns a consideram uma localização geográfica:

as medidas necessárias para formar a comunida­

Etiópia, Espanha, Roma ou mesmo a “terra [de

de do povo de Deus, composta por judeus, sa-

Israel]”. Outros veem nela uma referência mais

maritanos e gentios. Os resultados desse objetivo

simbólica a uma missão universal que inclui os

narrativo (At 16—28) destacam um antagonismo

gentios, ou seja, uma missão ao mundo inteiro.

I 147 I

A tos dos A póstolos

Dificilmente se pode confirmar que em Atos 1.8

povos”, “além de todos os limites”. A dependên­

Lucas tivesse em mente uma conotação pura­

cia inegável de Lucas em relação ã visão escato­

mente geográfica (como muitas vezes se ressal­

lógica de Isaías em outras partes apresenta provas

ta), pois o espaço jamais é medido em termos

que nos permitem concluir que a narrativa incen­

puramente geográficos, mas é sempre imbuído de

tiva uma identificação de “confins da terra” com

poder simbólico. A geografia — e principalmen­

uma missão a todos os povos, judeus e gentios.

te marcadores geográficas como "Judeia” e “Sa­

Isso reforça o elo histórico-redentivo entre esse

maria” — não é um “ dado recipiente ingênuo” ,

texto e 0 pré-texto de Isaías (v. tb. Is 8.9; 45.22;

mas uma produção social que reflete e configura

48.20; 62.11; cf. Dt 28.49; SI 135.6,7; Jr 10.12;

a presença no mundo. Observe, por exemplo, a

16.19; lM c3.9).

identificação de Jerusalém como a localização

Somente num sentido bem limitado alguém

do templo e da morada de Deus na perspectiva

poderia interpretar Atos 1.8 como um esboço de

judaica e lucana e as susceptibilidades religiosas

Atos. Muito mais significativa é a maneira em

que teriam sido transgredidas pela justaposição

que a passagem identifica o objetivo de Deus

de “Judeia” (terra dos judeus) a “ Samaria” (terra

dentro da narrativa e, seria possível presumir,

dos samaritanos; cf. Lc 10.30-37; 17.11-19). Nem

para a história, enquanto ela se expande além

é necessário restringir o referente dessa expressão

da narrativa de Atos. À medida que esclare­

a uma localização dentro da narrativa de Atos:

ce os propósitos de Deus, também nos oferece

outras possibilidades geradas dentro desse relato

uma medida que torna possível averiguar quais

ficam sem se concretizar em seu encerramento

pessoas dentro da narrativa se orientavam pela

(outros exemplos de prolepse externa incluem a

determinação em servir aos propósitos de Deus.

execução de Paulo e a parusia de Jesus).

Ou seja, os que obedecem ao programa missio­

Alem disso, Lucas jamais identifica Roma

nário de Atos 1.8 aparecem depois atuando sob a

como o ponto final da missão. Roma pode servir

orientação e o poder do Espírito e assim seguin­

como nada mais que um novo ponto de partida

do 0 plano de Deus. São retratados como teste­

para a missão, como Jerusalém e Antioquia an­

munhas autênticas.

teriormente. Devemos ainda lembrar que no pró­

A importância de Atos 1.8 nâo é diminuída

prio livro de Atos “testemunhas” precedem Paulo

caso não seja considerado o esboço ou nâo este­

em Roma, de modo que Atos 27—28 leva Paulo,

ja indicando a estrutura de Atos, pois sua decla­

não 0 evangelho, a Roma.

ração dos objetivos de Deus dentro da narrativa

Embora na literatura greco-romana da Anti­

deixa sua marca na forma da narrativa. Não é

guidade a expressão “confins da terra” fosse usa­

difícil seguir a forma centrífuga da missão, em­

da em referência à Espanha, Etiópia, e assim por

bora às vezes a progressão da missão seja me­

diante, deve se investigar como essa expressão

nos geográfica e mais teológica, como quando

funciona nesse contexto. Nesse ponto de Atos, o

as testemunhas de Jesus retornam a Jerusalém a

significado de “os confins da terra” é polissêmico

fim de desenvolver melhor as bases teológicas da

— ou seja, quase nada nos é dado por meio de

missão, a qual inclui os que vivem nos “confins

diretrizes interpretativas para identificarmos o re­

da terra” (At 11.1-18; 15; 21.1—26.32). Além do

ferente dessa expressão. Por conseguinte, pode se

mais, nossa identificação dos "confins da terra”

1er a narrativa indagando em vários momentos:

como referência a um alcance universal, não a

“Esse é ‘os confins’?”.

caso seja, o domínio

uma meta geográfica da missão, leva a crer que a

de Deus será agora concretizado?”). 0 uso grego

história de Atos não se encerra com o fechamento

em outras passagens dá margem a essa abertura

da narrativa, em Atos 28.31. Antes, o desafio à

(cf.

missão alcança muito além da narrativa, chegan­

E s tr a b ã o ,

( “ E,

Ge). IVIas essas várias possibilidades

interpretaüvas

estreitam-se

consideravelmente

do aos leitores posteriores de Lucas.

depois da leitura de Atos 13.47, uma citação de

4.5

O autor e o narrador de Atos. O exame

Isaías 49.6, em que a expressão “confins da terra”

de Atos como narrativa suscita a questão da voz

é outra vez encontrada, mas agora com o sentido

por meio da qual a história é narrada, ou seja,

mais aclarado; “ Em toda parte”, “entre todos os

a identidade do narrador. 0 autor pode escolher

I 148 ■

A tos dos A póstolos

adotar uma voz que não a sua, e, na teoria da

Muito antes dos primórdios da crítica da nar­

narrativa, os narradores divergem sobre quanto

rativa, esse último conjunto de observações levou

decidem contar, o grau de sua confiabilidade e

os leitores de Atos a identificar seu autor como

até que ponto estão dispostos a interferir na nar­

Lucas, o colega de ministério de Paulo

rativa em si. Os críticos da narrativa concordam

e às vezes companheiro, um médico (Cl 4.11,14;

(F m

24)

em que os narradores dos Evangelhos e de Atos

2Tm 4.11). Eusébio, por exemplo, identifica o au­

são informados e estão dispostos a alertar seu pú­

tor de Atos como Lucas, um antioqueno, médico

blico leitor acerca de realidades que não aquelas

e companheiro constante de Paulo

encontradas na superfície dos acontecimentos

3.4.1), como o fazem Jerônimo [V i il, 7) e muitos

relatados — as motivações dos personagens den­

outros (v.

Ba rrett,

No século

tro da história (e.g., At 24.27; 25.3); que são tão

II,

p. 30-48;

( E u sébio ,

F it z m y e r ,

Hi ec,

p. 1-26).

Ireneu identificou Lucas, o com­

confiáveis que suas perspectivas são coerentes

panheiro de Paulo, como o autor de Atos, embora

com aquelas expressas por Deus e pelos agentes

ele também dê um passo além, definindo o rela­

de Deus dentro das narrativas; e que são geral­

cionamento entre Lucas e Paulo como “ insepará­

mente discretos, sem chamar atenção para si, ao

vel”

contar a história. Ao mesmo tempo, o narrador

subjaz a rejeição crítica a Lucas como autor de

de Atos pode às vezes acrescentar um comentá­

Atos, uma vez que, alega-se, o autor de Atos de­

rio explanatório ao leitor (e.g., At 9.35 [o nome

turpou a mensagem de Paulo e assim não poderia

da Tabita em grego é Dorcas]; At 12.9 [os pensa­

ter sido seu companheiro constante. Mas a inse­

mentos de Pedro]), e em Atos 16.10-17; 20.5-15;

parabilidade de Lucas e Paulo não é uma inferên­

21.1-18; 27.1—28.16 (i.e., nas passagens inicia­

cia necessária de Atos. Na realidade, é contradita

das por “nós”) ele finca os pés na história como

por Atos, que reiteradas vezes nos informa que

um personagem. Hoje, quando muitos estudiosos

o narrador fazia parte de um grupo cuja progra­

falam de “Lucas” com referência à mão por trás

mação de viagem sobrepunha-se ocasionalmen­

de Lucas-Atos, referem-se a Lucas como narrador,

te à de Paulo, mas não se uniu regularmente ao

muitas vezes sem necessariamente nenhuma in­

grupo de Paulo, de forma permanente ou mesmo

ferência a respeito da identificação do verdadeiro

durante períodos prolongados.

( I re n e u ,

He, 3.1.1,4). A essa última inferência

Somos ainda relembrados de que o retrato de

autor dessa obra. Lucas-Atos, assim como os Evangelhos de Ma­

Paulo apresentado a nós por meio de suas cartas

teus, Marcos e João, são documentos anônimos

é em si tendencioso, moldado por relacionamen­

(contudo,

Jo 21.24,25), e as passagens inicia­

tos às vezes cheios de tensão com seu público lei­

das por “nós” nada fazem no âmbito literário para

tor; que os debates em torno das incongruências

modificar esse estado de coisas. Ou seja, mesmo

entre o Paulo de Atos e o Paulo da correspondên­

quando se expressa na primeira pessoa, o narrador

cia paulina às vezes sofreram de hipérbole crítica;

de Atos identifica-se não como um indivíduo, com

que em todo caso o narrador de Atos está mais

um nome, mas como alguém que pertence a um

preocupado em contar a história da concretização

grupo. Está presente, às vezes como participante,

do propósito salvífico de Deus que em desenvol­

outras vezes como observador, em alguns aconte­

ver personalidades; e que os personagens de Atos

V.

cimentos, mas o foco não é sua identidade indi­

são mais importantes pelo que acrescentam à his­

vidual. Antes, 0 “nós” de sua narração contribui

tória do que em referências às histórias pessoais.

para a vivacidade do relato e convida seu púbhco

Portanto, as grandes preocupações que levaram

leitor a participar ativamente da narrativa. O fato

à negação da identidade de Lucas como autor de

de que a narração em primeira pessoa acontece

Atos dissipam-se consideravelmente.

somente em trechos selecionados do relato ressal-

Não obstante, vale a pena investigar o que está

:a que o narrador não alega em nenhum momento

em jogo na identificação do verdadeiro autor de

ser companheiro constante de Paulo e seu círculo

Atos. É seguramente intrigante, por exemplo, que

de cooperadores. Também faz supor que a narra­

C. K. Barrett possa engajar-se numa leitura crítica

ção na primeira pessoa é mais que um expediente

de Atos sem primeiro decidir a questão da autoria,

literário calculado para dar vida à narrativa.

especialmente quando lembramos que Lucas nâo

I 149 I

A tos dos A póstolos

faz nenhum esforço patente de se afirmar na nar­

no entanto, não significa imediatamente negar

rativa com 0 objetivo de atender a interesses da ve­

que Lucas tenha tido tais preocupações, pois o

racidade histórica. A resolução final da questão da

Evangelista pode ter sido motivado por múltiplos

autoria não entabularia questões de exatidão his­

objetivos que não estivessem associados ã narra­

tórica, e, como não sabemos quase nada dos ante­

tiva como um todo.

cedentes do Lucas histórico, insistir em que ele é

Nosso entendimento do objetivo de (Lucas-)

o responsável por Atos não acrescenta quase nada

Atos flui de nosso entendimento de seu gênero

ao nosso entendimento e à sua narrativa. Como

e da finalidade narrativa. Já vimos que o gênero

acontece com os Evangelhos canônicos, então, o

de Atos leva a supor um interesse de Lucas na

mesmo se dá com Atos: nossa leitura flui melhor

legitimação e na apologética. Nosso debate sobre

com base no que somos capazes de discernir sobre

o objetivo narrativo de Atos destacou a centrali­

seu narrador a partir do interior da narrativa.

dade dos propósitos de Deus em levar a salvação a todos. No mundo em conflito do Mediterrâneo

S. Teologia e propósito de Atos

do século

Inúmeras propostas para os objetivos de Atos

co como um todo, não é difícil perceber como

vêm sendo defendidas por estudiosos recente­

esse entendimento dos propósitos de Deus e sua

mente, entre as quais as seguintes:

encarnação no movimento cristão teriam sido

I,

não menos dentro do mundo judai­

fonte de controvérsias e incertezas. Podemos en­ 1. Atos é uma defesa da igreja cristã diante de Roma. 2. 3.

4.

5.

6.

tão presumir que o propósito de Lucas-Atos teria sido fortalecer o movimento cristão em face da

Atos é uma defesa de Roma diante da igreja

oposição, conferindo-lhes segurança em sua in­

cristã.

terpretação e experiência do propósito redentor

Atos é uma apologia a favor de Paulo e con­

de Deus e chamando-os ã fidelidade e ao teste­

tra os judaizantes, que tomaram partido

munho continuados dentro do projeto salvífico

dos judeus não cristãos contra a opinião de

de Deus. Assim, o propósito de Lucas-Atos seria

Paulo de que o cristianismo é o verdadeiro

acima de tudo eclesiológico, centrado no convite

sucessor do judaísmo.

para participar do projeto de Deus.

Atos é uma obra de edificação destinada

Nossa compreensão do objetivo de (Lucas-)

a fornecer um corretivo escatológico para

Atos deve também exphcar seus destaques teológi­

uma igreja em crise.

cos primordiais. Estudos recentes têm identificado

Atos foi escrito para tranquiUzar crentes

repetidas vezes a salvação como o tema primor­

que lutavam com a confiabilidade do que­

dial de Lucas-Atos, tema que vem sendo entendido

rigma, seja no que se refere à sua verdade

como aquele que unifica outros elementos textuais

e aplicabilidade, seja com respeito à sua só­

da narrativa. Para poder fazer sentido o tema da

lida fundação na história do povo de Deus.

salvação e para mostrar o grau em que é integra­

Atos tinha por objetivo ajudar o movimen­

do no propósito geral de fortalecer a igreja (como

to cristão a legitimar-se, em oposição ao

acabamos de demonstrar), devemos desenvolvê-lo

judaísmo.

dentro do que pode ser somente um esboço de te­

7. Atos foi escrito para incutir nos cristãos

mas teológicos mais importantes.

uma fidelidade fundamental a Jesus, que

5.1

O propósito de Deus. 0 propósito ou o

exigia um posicionamento social e político

plano de Deus é de fundamental importância para

básico dentro do império.

Atos, e sua presença na narrativa e por trás dela é exibida numa variedade de formas. Esse tema se

À luz de nossos comentários anteriores sobre

faz presente sobretudo por meio de uma miríade

a unidade narrativa de Lucas-Atos, alguns desses

de manifestações dos propósitos de Deus (e.g., bou-

itens podem ser excluídos já de saída, a saber,

lê/boulomai [“conselho determinado” — At 2.23;

aqueles centrados em objetivos particulares a

4.28; 13.36; 20.27], dei [“devia” — At 1.16,21;

Atos e/ou a Paulo (i.e., At 1—3] — uma vez que

3.21; 4.12; 5.29; 9.16; 14.22; 16.30; 17.3; 19.21;

não explicam o todo da narrativa de Lucas. Isso,

20.35; 23.11; 27.24,26], horizõ [“determinar” —

I 150 I

A tos dos A póstolos

At 2.23; 10.42; 17.26,31]); por meio de anjos, vi­

a se juntar ao grupo em viagem do oficial da corte

sões e profecias; por uma conjunção divina de

etíope; 4) o fato de ele poder servir como intér­

acontecimentos; e pela ação do Espírito.

prete das Escrituras. Depois do batísmo do eunu­

Esse realce mais que destacado na vontade divina está presente em Atos para garantir que

co, Fihpe é arrebatado pelo Espírito do Senhor; o encontro divino chega a sua conclusão.

a direção da missão cristã é legítima, mas não

O encontro de Filipe com o eunuco pode ter

para eclipsar a decisão e a participação humanas

iniciado a missão aos gentios, mas essa inova­

na missão. Na realidade, a extraordinária quahda­

ção não é do conhecimento de ninguém dentro

de da narrativa é notadamente intensificada pelo

da narrativa. Filipe não relata o que aconteceu

conflito gerado no momento em que algumas

a Jerusalém, e o eunuco deve ter voltado para

pessoas escolhem opor-se aos objetivos divinos.

casa. Por isso, o encontro entre Pedro e Corné­

Deus não coage as pessoas a servir sua vontade,

lio (At 10.1— 11.18) inicia a missão aos gentios a

mas tampouco os planos de Deus serão em última

seu modo, uma vez que nesse caso os crentes de

análise descarrilados por causa da oposição que

Jerusalém são incluídos no relato. Como aconte­

se levante contra ele. A comunicação de seu pro­

ceu com Filipe, também aconteceu com Pedro: a

pósito vem como um convite para que as pessoas

novidade ocorre por ordem de Deus, por meio da

se alinhem com esse propósito: alguns podem se

orquestração cuidadosa no palco da história de

recusar a fazê-lo, mas outros (e o convite é para

mensagens visionárias e angelicais que anunciam

todos) abraçarão sua vontade, receberão o dom

os propósitos divinos (At 10.1-16).

da salvação e participarão de suas atividades re­ dentoras (v. ainda 5.1.1

S q u ir e s ; G r e e n ,

1995, p. 22-49).

Em ambos os casos, mas mais claramente no último, a importância da vontade humana não é

O propósito divino. Embora Deus jamais minimizada. Cornélio e Pedro recebem diretrizes

entre na narrativa de Atos como um personagem

divinas separadas, nenhuma delas completa em si

do enredo, sua presença é visível em toda parte

mesma. De acordo com essa orquestração, ambos

por meio da ação do Espírito Santo (v. 5.1.3 abai­

devem obedecer ao que lhes foi revelado, a fim

xo) e de anjos e por meio de visões e profecias.

de compreenderem melhor como Deus está tra­

Por meio desses agentes e dessas intermediações.

balhando e o que está realizando nesse encontro.

Deus orquestra os encontros e os acontecimentos

Como que para outra vez realçar que a missão aos

humanos e confirma que a missão aos gentios

gentíos é obra de Deus, quando eles cumprem os

está em harmonia com a sua vontade.

propósitos de Deus, o Espírito Santo invade o en­

Dois estudos de caso nessa orquestração di­

contro, caindo sobre “todos os que ouviam a pa­

vina (Fihpe e o eunuco etíope; Pedro e CornéUo)

lavra” (At 10.44). Essa obra do Espírito autônomo

acompanham a narração dos primórdios da mis­

é considerada prova de que a missão aos gentios,

são aos gentios. Não há nenhuma razão sócio-his­

com a plena comunhão entre estes e os crentes

tórica ou narratológica para se suspeitar de que o

judeus, era plano de Deus (At 1.17,18).

eunuco etíope não seja um gentio (At 8.26-40). 0

Os anjos se engajam em ações em outros

encontro com Filipe na estrada para Gaza se dá

momentos também (cf. At 5.19;

na intersecção destes fatores; 1) o fato de o etíope

27.23,24), mostrando a direção constante de Deus

12.7-11,23;

ter feito uma peregrinação, a exemplo de muitos

e seu cuidado providencial, como se dá com as

gentios do antigo Mediterrâneo, para adorar em

visões (At 10.10-16; 16.6-10; 18.9-20; 22.17-21).

Jerusalém; 2) o fato de ele estar lendo um texto (Is 53.7,8) que ressalta a humildade do “servo”

5.1.2

As Escrituras de Israel. Por Escrituras de

Israel, queremos dizer a l x x , especialmente Deute­

de Isaías e assim declara a sohdariedade do servo

ronômio, os Salmos e Isaías, pois esses são os tex­

de Javé com o eunuco em sua condição humilde

tos autorizados que mais aparecem em Atos. Dois

(ainda que ele tenha ido adorar em Jerusalém,

fatores caracterizam o uso das Escrituras por porta-

como eunuco estava excluído da assembleia do

vozes de Deus em Atos. Em primeiro lugar, os

Senhor; cf. Dt 23.1; Is 56.3-5); 3) o fato de Filipe

personagens em Atos estão preocupados em mos­

ser conduzido por um anjo do Senhor para viajar

trar que 0 que aconteceu com Jesus e o que acon­

na mesma estrada, depois instruído pelo Espírito

tece com 0 movimento daqueles que o chamam

I 1 51

I

A tos dos A póstolos

Senhor está vinculado às Escrituras. Em segundo

Senhor jamais controlam nem possuem o Espírito,

lugar e inseparavelmente relacionada, temos uma

mas tentam acompanhar a obra do Espírito, cuja

condição importante, a saber, não são as Escritu­

atividade muitas vezes surpreende.

ras em si que falam autorizadamente, mas são as

Assim como estivera ativo em todo o ministério

Escrituras à medida que apoiam o testemunho do

de Jesus (cL Lc 3.21,22; 4.1,14,15,18,19 etc.], assim

propósito de Deus, uma interpretação acessível

o Espírito capacitaria a missão das testemunhas do

somerne à luz da missão, da morte e da exalta­

Senhor em Atos (esp. At 1.8]. 0 Espírito dirige a

ção de Jesus de Nazaré. Assim, ainda que seja

missão (e.g., At 13.1-4; 16.6,7] e capacita as teste­

fundamental que as ações da comunidade cristã

munhas em palavra e ação. Em Atos, os sinais e as

estejam ancoradas na Escritura, que suas formu­

maravilhas comprovam a presença de Deus no mi­

lações cristológicas tomem a forma de diálogo

nistério de suas testemunhas, legitimando o alcance

com a Escritura e que eles entendam a rejeição

universal da salvação à medida que eles autenticam

da mensagem por alguns judeus e a missão aos

a mensagem entre os gentios (At 14.3; 15.12; cf. At

gentios por meio de precedentes bíblicos, as Es­

2.19,22,43; 4.30; 5.12; 6.8; 7.36; 8.6,13].

crituras falam com autoridade apenas quando le­ gitimamente interpretadas.

Um dos propósitos primordiais do retrato que Lucas faz da atividade do Espírito é a legitimação

Isso indica que a importância primordial das

para a destruição de barreiras que separam ju­

Escrituras em Atos é eclesiológlca e hermenêuti­

deus e gentios. O dom do Espírito é um dos meios

ca, à medida que a comunidade cristã luta com

primordiais em que Lucas articula o conteúdo da

a própria identidade, não menos contra os que

salvação (v. 5.2.2 abaixo], e na economia da sal­

também leem as Escrituras, mas rejeitam a fé em

vação apresentada por Lucas aqueles em quem

Cristo. Na visão de Lucas, é pelas Escrituras que

0 Espírito foi derramado são crentes. 0 Espírito

os seguidores de Jesus estão aptos para confir­

assim esclarece a condição de crentes, sobretudo

mar sua condição como herdeiros das Escrituras,

dos gentios (At 10.45-47; 11.15-18; 15.8).

0 povo de Deus servindo à missão de Deus. A

O papel de autorização do Espírito vai mais

disputa com o povo judeu e suas instítuições em

longe, contudo. É por meio do Espírito que os

Atos é essencialmente hermenêutica: “ Quem in­

profetas profetizam em Atos, e isso comprova que

terpreta as Escrituras fielmente?”. Ou, de modo

suas mensagens estão ancoradas na vontade di­

mais cabal: “Qual interpretação tem o imprimatur

vina. O enredo da narrativa, atrás e por meio da

divino? A interpretação de quem recebe a legiti­

qual 0 Espírito está ativo, é assim mostrada como

mação divina?” Em Atos, a resposta é simples: Je­

uma interpretação fiel da missão cristã primitiva.

sus foi abonado por Deus (At 2.22] e confirmado

Além do mais, como a apresentação que Lucas

em sua ressurreição e ascensão (e.g., At 2.23-36;

faz do Espírito está no fundo vinculada ao en­

3.13-25]. Os que vivem de modo semelhante a ele

tendimento do Espírito no judaísmo do segundo

são suas testemunhas, e sua pregação carismá­

templo, ele retrata a missão cristã, que prosse­

tica inclui interpretação bíbhca autorizada (e.g.,

gue com a orientação e a capacitação do Espí­

At 4.8-13]. A validade de sua mensagem é ainda

rito, como o cumprimento de Israel, embora na

confirmada pelos sinais e maravilhas que Deus

concepção de Lucas a atividade do Espírito seja

opera por meio deles (At 14.3).

remodelada por contornos cristológicos: o tes­

5.1.3

O Espírito Santo. Se Deus não aparece vi­ temunho capacitado pelo Espírito concentra-se

sivelmente na narrativa de Atos, seu substituto é

em Cristo, e é por meio do Messias exaltado que

praticamente o

e é por meio da ação

o Espírito é derramado (At 2.33]. Como conse­

do Espírito que o propósito de Deus é conhecido, a

quência, pode se entender que a pneumatologia

missão é direcionada e a universalidade do evange­

de Lucas proporciona uma apologética a favor de

lho é legitimada. Não que o Espírito Santo seja para

Deus. 0 Espírito substancia a direção que os pro­

Lucas a imanência de Deus, como muitas vezes se

pósitos de Deus tomam em Atos: de Israel, pas­

E spírfto S a n t o ,

quer fazer supor, mas porque o Espírito destaca a

sando pela vida e pelo ministério de Jesus até a

transcendência de Deus, sua liberdade de propó­

igreja primitiva, com a inclusão de crentes gen­

sitos. Por todo o livro de Atos, as testemunhas do

tios como plenos participantes.

I 1 52 I

A tos dos A póstolos

5.2

A salvação.

S alva ç ã o

é o tema principal necessidade divina (dei) do sofrimento de Jesus é

de Atos, com sua narrativa centrada na concre­

uma advertência bastante de que a salvação não

tização do propósito de Deus para levar salvação

se deu a despeito da crucificação de Jesus. Mais

em toda a sua plenitude a todas as pessoas. Há

ainda, a linguagem especificamente aliancística

um conflito que surge dentro da narrativa em

usada em Atos 20.28 (peripoieomai, “comprou” ;

consequência da divisão entre os que abraçam e

cf. Êx 19.5; Is 43.21) e Atos 20.32; 26.18 (hagiazõ,

servem a esse objetivo, que se unem à comunida­

“são santificados”; cf. Dt 33.3) lembra-nos do re­

de do povo de Deus que dá testemunho da obra

gistro feito por Lucas da última refeição de Jesus

salvífica de Deus, e os que se recusam a fazê-lo

com seus discípulos, na qual ele ancora a “nova

(cf. Lc 2.34; sobre 5.2, v.

aliança” na própria morte (Lc 22.19,20). Embora

5.2.1

G reen,

1997).

Deus como Salvador, Jesus como Salva­ pouco mencionado, o efeito salvífico da cruz não

dor. Para Lucas, a salvação vem sempre e acima

está ausente em Lucas, ainda que não seja plena­

de tudo de Deus. Deus inicia a salvação e, mesmo

mente tecido na malha da teologia lucana da cruz

na atividade salvífica de Jesus, é sempre o agente

(v.

C r is t o , m o r te de ) .

silencioso, mas ainda assim primordial. Os feitos

A perspectiva mais ampla de Lucas sobre o

poderosos de Jesus são repetidas vezes atribuídos

sofrimento do Messias pode ser esboçada em três

a Deus (At 2.22; 10.38). Deus o designou Senhor

aspectos inter-relacionados.

e Messias; Deus o glorificou, enviou-o, ressusci-

Primeiro: a rejeição de Jesus pelos líderes ju­

tou-o e assim por diante. A soteriologia de Lucas

deus em Jerusalém leva à ampliação da missão de

é cristocêntrica, mas acima de tudo é teocêntrica.

modo que possa abraçar todos os povos, judeus

(Dada a força dessa ênfase, não surpreende [con­

e gentios. Na realidade, o sofrimento e a rejeição

tra aqueles que encontram em Atos um retrato

forçam a propagação da Palavra (cf. Lc 21.13-19;

“divino-humano” dos apóstolos e de Paulo] que

At 13.44-49; 14.1-18; 18.2-6; 28.17-29). Como Lu­

jamais seja afirmado que aqueles que se alinham

cas aprecia a narração, a luta e a oposição não

com 0 objetivo salvífico de Deus em Atos pos­

são impedimentos, mas parecem promover o pro­

suem o poder de ministrar a salvação. Os sinais

gresso do evangelho: “... em meio a muitas tribu­

e maravilhas, que parcialmente constituem sua

lações nos é necessário entrar no reino de Deus”

atividade missionária, são efetuados por Deus,

(At 14.22; cf., e.g., At 6.1,7; 8.1-4).

concedidos pelo Senhor [cf., e.g., At 3.12,16;

Segundo: a paixão de Jesus serve de paradig­

4.10,29,30; 5.12,38,39; 8.18-24; 14.3,14,15 etc.].)

ma para todos os que seguem a Jesus (cf. Lc 9.23;

Não obstante, Jesus é o agente de Deus na

At 9.16). Para Lucas, a theologia crucis está ar­

salvação, o Salvador (Lc 2.11; At 5.30,31); como

raigada não tanto numa teoria da expiação. Ele

Senhor, Jesus é aquele a quem as pessoas invo­

apresenta o caminho da cruz numa descrição nar­

cam para serem salvas. Como Jesus alcançou essa

rativa da vida de discípulos fiéis.

condição? Para Lucas, Jesus, por ter sido ressus­

Terceiro: ao descrever a crucificação de Jesus,

citado, agora administra a promessa do Pai (cf.

Atos ecoa as palavras de Deuteronômio 21.22,23.

Lc 11.13; 24.49; At 1.4), o dom do Espírito, ou

Jesus foi pendurado “num madeiro” (At 5.30;

seja, a salvação (At 2.29-36). Semelhantemente,

10.39; 13.29). A narrativa, portanto, sinaliza a

em Atos 5.30,31, encontramos uma afirmação sem

desonra da execução de Jesus ao mesmo tempo

rodeios de que a confirmação de Jesus como Sal­

que situa a morte de Jesus como exigência dos

vador, como aquele que “concede” perdão e arre­

propósitos de Deus. A desonra maior, a maldição

pendimento, está ancorada em sua ressurreição e

da parte de Deus, é um antecedente da exaltação.

ascensão. Como o Entronizado (Messias), como o

Assim, em seu sofrimento e ressurreição, Jesus

3enfeitor de seu povo (Senhor), o Jesus exaltado

incorporou a plenitude da salvação interpretada

£gora reina como Salvador, derramando a todos

como uma inversão de condição. Sua morte foi o

£= bênçãos da salvação, entre as quais o Espírito,

ponto central da luta divino-humana sobre como

o qual foi ungido no início de seu ministério.

a vida deve ser vivida, em humildade ou em au-

Que dizer então sobre a crucificação de Je-

toglorificação. Embora ungido por Deus, embo­

5'23? As diversas referências em Atos sobre a

ra justo diante de Deus, embora inocente, ele é

I 153 I

A T O S DOS a p o s t o l o s

morto. Rejeitado pelo povo, ele é ressuscitado por

dos que se opõem aos propósitos de Deus, e em

Deus — e com ele os menores, os perdidos, os

outras partes Lucas emprega uma tipologia do

abandonados são também ressuscitados. Em sua

Êxodo para caracterizar a salvação (At 3.17-26;

morte e em consequência de sua ressurreição por

7.25). A salvação como hvramento de peri­

Deus, 0 caminho da salvação é exemplificado e

gos toma forma concreta em outros momentos,

tornado acessível a todos os que o seguirão.

quando a linguagem é usada para se referir a

5.2.2

A mensagem da salvação. Lucas desen­ uma viagem segura, apesar da ameaça de uma

volve o conteúdo da salvação de cinco maneiras

emboscada (At 23.16-24), ou de tempestades em

relacionadas.

alto-mar (At 27.31,43—28.6), ou fuga da prisão e

Primeira: salvação implica incorporação e par­ ticipação na comunidade cristocêntrica do povo

ação da turba (cf. At 5.17-21; 12.1-19; 16.19-40; 19.23-41).

de Deus. São pessoas cuja unidade é enfática na

Que dizer da salvação em relação ao domínio

narrativa (e.g., At 1.14,15,24; 14.1; cf. At 2.44,45;

estrangeiro (como previsto no cântico de Zaca­

4.32— 5.11;

De of,

rias)? Embora Lucas não informe a derrocada do

Gn

domínio romano, com certeza ele narra a relafi-

1.16.51;

P latão,

A ristó teles ,

Re, S.46.2c;

C íc er o ,

Et ni, 9.8.1168b;

J o sefo ,

ju, 2.8.3, § 122-3), que juntos invocam “ o nome

vização da soberania que Roma procurava mos­

do Senhor [Jesus]” e são batízados em seu nome

trar, como sugere R. J. Cassidy. Mais importante

(At 2.21,22,38; 8.16; 9.14,21; 10.48; 19.5; 22.16);

para Lucas, o inimigo real do qual é preciso se

que curam (At 3.6,16; 4.10,30; 19.13) e pregam

libertar não é Roma, mas o poder cósmico do mal

(At 4.12; 5.28,40) em seu nome; que sofrem por

residente e ativo por trás de todas as formas de

seu nome (At 5.41; 9.16; 21.13).

oposição a Deus e ao povo de Deus. Essa forma

0 que pode surpreender é a identificação dos

de salvação — do poder das trevas, de Satanás —

que pertencem a essa comunidade. 0 convite é

recebe destaque em Atos (e.g., At 26.17,18; 5.16;

para todos, para “vós, para vossos filhos e para

13.4-12; 16.16-18; 19.8-20).

todos os que estão longe” (At 2.39; cf. Is 57.19;

Terceira: salvação é perdão de pecados. Em

At 1.8; 2.5,9-11,17,21; 10.1— 11.18 etc.). Ao der­

Atos, Lucas continua a tônica do perdão firme­

ramar sobre eles a bênção do perdão e o dom

mente arraigado na missão de Jesus de acordo

do Espírito, Deus confirma a autenficidade da

com o terceiro Evangelho (v. At 2.38; 3.19; 5.31;

inclusão dos gentios como membros do povo de

10.43; 13.38; 15.9; 22.16; 26.18). Isso sinaliza um

Deus e confirma que “ não fez distinção alguma

relacionamento novo ou renovado com Deus, mas

entre eles e nós” (At 15.9; cf. 11.15-18). Jesus

também com o povo de Deus: assim como o peca­

é Senhor de todos (At 10.43). “Salvos” também

do é o meio pelo qual as pessoas se excluem ou

são aqueles separados do discurso social normal

são excluídas da comunidade do povo de Deus, o

por doença e possessão demoníaca (e.g., At 3.1—

perdão marca o retorno delas ã comunidade.

4.12; 5.12-16; 8.7; 14.8-10). Isso nos lembra que

Quarta: salvação é receber o Espírito Santo.

a soteriologia de Lucas não estabelece nenhuma

Pedro também promete que os que responderem

distinção entre o físico, o espiritual e o social; que

ã mensagem receberão “ o dom do Espírito Santo”

no mundo greco-romano como um todo a “ sal­

(At 2.38), realce que reaparecerá repetidamente

vação” seria reconhecida na cura de desordens

(At 9.17; 10.43,44; 11.15-17; 15.8). 0 dom do

físicas; que a restauração física tinha como uma

Espírito confirma pessoas, quer gentios, quer ju­

de suas ramificações a reintegração aos relaciona­

deus, como membros da comunidade do povo de

mentos sociais.

Deus e assim esclarece a condição daqueles que

Segunda: salvação imphca livramento “ dos

creem, especialmente os gentios.

nossos inimigos” (cf. Lc 1.68-79). A salvação

Quinta e última: a oferta da salvação exige

como resgate divino não parece receber destaque

resposta. A necessidade de resposta é delineada

em Atos, mas há importantes pistas nessa dire­

programaticamente na narração do discurso de

ção. Por exemplo, o uso de Joel 2.28-32 em Atos 2

Pentecostes, quando Pedro é interrompido pelos

põe em cena conotações apocalípticas, lembran­

que 0 ouvem com a pergunta: “ Que faremos”?

do-nos de que a vinda de Deus significa a queda

(At 2.37; cf. 16.30-34). Qual a resposta adequada

I 154 I

A tos dos A póstolos

à boa notícia da salvação? Lucas trata dessa per­

Em primeiro lugar, a centraUdade do templo

gunta com um arsenal de possibilidades — cha­

e da SINAGOGA, o uso continuado das Escrituras de

mados para crer (At 2.44; 3.16; 11.17; 13.39; 14.9;

Israel, a primazia da missão para o povo judeu e

15.7; 16.30,31; 18.8), para ser batizados (At 2.41;

outros fenômenos relacionados dentro da narrati­

8.12,36; 9.18; 10.47,48; 16.15) e para voltar-se

va de Atos deixam prever até que ponto a história

para Deus ou se arrepender (At 2.38; 3.19; 5.31;

da comunidade cristã preserva vínculos com a

11.18; 17.30; 20.21; 26.20). Há outras respostas

antiga história do povo de Deus.

em potencial, incluindo algumas que empregam

Em segundo lugar, no entanto, a perspectiva

a metáfora da iluminação (e.g., At 26.17,18),

crítica sobre o templo e a sinagoga, por exemplo,

contudo não se destaca nenhum padrão especial

e a natureza contestada do relacionamento entre

de resposta como paradigma. Deus agiu gracio­

0 movimento cristão e as estruturas judaicas fa­

samente em Cristo para levar salvação a toda a

zem supor até que ponto o ju d a ísm o do qual Lucas

humanidade, que é chamada para receber a boa

se ocupa é um judaísmo interpretado. Ou seja,

notícia, para se mostrar receptiva e assim parti-

“a reUgião de Israel — suas instituições, práticas,

ïïiar dessa salvação não somente como alvo, mas

e assim por diante — deve ser incorporada ple­

íambém como quem serve aos objetivos reden­

namente quando entendida em face do propósito

tores de Deus.

redentor de Deus. Mas, para ser assim compreen­

5.2.3 Escatologia. Estudiosos de Atos há muito

dida, a reUgião de Israel deve coadunar-se com o

perceberam que a esperança escatológica não foi

propósito de Deus conforme articulado pelo pró­

desenvolvida na narrativa (v.

. Embo­

prio agente interpretativo autorizado por Deus, o

ra 0 futuro da salvação não esteja ausente (e.g.,

Filho de Deus, Jesus de Nazaré, e em Atos pe­

At 3.21; 10.42; 17.31), o foco transportou-se do

las testemunhas do Senhor, que servem como

e sc ato lo g ia )

eschaton para o presente. Em Atos 1.6-8, Jesus

agentes interpretativos

reorienta preocupações com a restauração do

rei ­

perspectiva sobre a questão do judaísmo em Atos

a Israel, uma preocupação escatológica, para

destaca a natureza da luta fundamental entre o

no

(G reen,

1995, p. 75). Essa

a importância do testemunho fiel no presente,

movimento cristão e seus representantes de um

ísso não deve ser tomado como uma tentativa da

lado e 0 judaísmo de outro, e também oferece

parte de Lucas de minimizar a importância da pa­

uma explicação lógica para a oposição enfrentada

rusia (como sustenta C o n z e l m a n n ) . Ao aconselhar

por esse movimento.

a incerteza sobre “ os tempos ou as épocas” esta­

5.3

Discipulado. Talvez em nenhum outro

belecidos pelo Pai (At 1.7), Jesus realça a impre-

lugar a interdependência entre o Evangelho de

visibilidade da parusia. “Lucas procura reforçar

Lucas e Atos esteja tão evidente como na pers­

a fé escatológica viva, o tempo todo convocando

pectiva lucana sobre o discipulado. Especialmen­

seus leitores ao serviço vigilante e fiel”

te quando comparado aos outros Evangelhos

(C arroll,

í». 166). Ou seja, Lucas emprega a escatologia

Sinóticos, 0 terceiro Evangelho chama atenção

í»ara motivar o povo à missão.

pelo fato de apresentar uma participação muito

5.2.4 Judaísmo. A questão do relacionamento

pequena dos discípulos no ministério de Jesus.

de Lucas com as instituições judaicas e o povo ju­

Isso é facilmente explicado, uma vez que o tercei­

deu é uma das mais debatidas no estudo de seus

ro Evangelho pode fornecer instrução e modelos

escritos. Alguns estudiosos sustentam que a teo­

para o discipulado ao mesmo tempo que permite

logia de Lucas é irremediavehnente antijudaica,

ao livro de Atos documentar de modo mais pleno

enquanto outros insistem em que o pensamento

0 serviço ativo dos discípulos na obra missionária

de Lucas se origina de uma igreja cristã vivamente

de Jesus. Entre os temas que podem ser desenvol­

rjdaica. Muitas outras opiniões enquadram-se en-

vidos, dois são de especial importância: a koino-

nE esses dois polos. Assim, de que maneira o trata-

nia econômica, e o testemunho e compromisso

laento dispensado por Lucas ao povo judeu e aos

de fideUdade.

assuntos judaicos aponta para o propósito geral de

5.3.1

Koinonia econômica. Por todo o terceiro

Lucas? Mesmo sem se empenhar plenamente nes­

Evangelho, a mensagem de Jesus encontrou repe­

se debate maior, duas observações são possíveis.

tidas expressões para minar a rigidez das relações

I 1 55 I

A tos dos A póstolos

sociais que insistiam em se basear nos cânones

(At 8.1-4) e Paulo (e.g., At 13.45-49). O conflito

bastante difundidos de status, bem como para

em torno desses personagens centrais, cuja fide­

afirmar a redefinição de relações econômicas

lidade é ressaltada repetidamente pelo narrador

dentro da comunidade de seus seguidores. Esses

(e.g., At 3.14,15; 5.38,39; 6.8-10; 7.55; 25.25;

dois pontos tratam do mesmo conjunto de ques­

26.32; 28.17-22), prognostica a oposição que

tões, uma vez que o intercâmbio econômico é

testemunhas fiéis fora da narrativa, incluindo-se

uma das funções e representações das relações

pessoas do público leitor de Lucas, podem tam­

sociais. Os patronos, por exemplo, têm um status

bém encontrar no decurso da missão.

mais elevado que seus clientes, e em seus atos

Ou seja, a oposição no transcurso da missão

de benfeitoria obrigam outros a corresponder

da igreja não deve necessariamente ser interpreta­

com lealdade, reconhecimento e veneração. Entre

da como sinal de que estamos equivocados quan­

amigos e em grupos familiares, no entanto, dar e

to aos propósitos divinos. A fidelidade exige um

receber não prescinde das estipulações trazidas

compromisso fundamental de fidelidade a Jesus

da ética patronal que perpassava o império. Nes­

como Senhor, que exige um posicionamento so­

ses casos, dar é uma função não de obrigações e

cial e político básico dentro do império

divida, mas de mutualidade, generosidade, soli­

e isso bem pode gerar oposição. Pedro, João, Es­

dariedade e necessidade. A koinonia econômica

têvão e Paulo podem assim servir de modelo para

assim cresceria a partir de uma visão de parentes­

os cristãos que, no decurso da missão da igreja,

co, sendo também um símbolo dela.

enfrentem lutas semelhantes.

0 que Jesus exigiu em seu Sermão da Planície (Lc 6.27-38, esp. Lc 6.35; v.

S er m ã o d o M o n t e ) —

Ver também L u c a s ,

E v a n g e lh o

de

;

( C a s s id y ) ,

P a u lo em A t o s

E NAS c a rta s .

disposições de parentesco dando origem a práti­

d l n t d : C o r n e liu s ; E va n gelism in t h e E a r ly C h u r­

cas de generosidade material — é evidenciado na

ch ; G e n t ile s , G e n t ile M is s io n ; H e lle n is t s ; M is s io n ,

vida da igreja primitiva (At 2.44,45; 4.32— 5.11; v.

E a r ly N o n - P a u u n e ;

tb. At 6.1-6; 11.27-30). 0 que Lucas descreve nas

ta m e n t IN A c t s ; P a u l a n d Pau u nism s in A c t s ; P e n ­

declarações de resumo de Atos 2.44,45 e 4.32-35,

te c o s t;

no entanto, não é comunitarismo, seja como re­

W o n d e r s ; S te p h e n ; T o n g u e s .

P h ilip

th e

N a r r a tiv e

E v a n g e u s t;

C ritic is m ; O l d

S am a ria ;

Tes­

S ign s a n d

quisito para pertencer ao povo de Deus, seja como ideal. Em vez disso, ele delineia uma disposição

B ib u o g r a f l \.

de parentesco e generosidade, uma orientação

o f the Apostles. Edinburgh: T & T Clark, 1994. 2

voltada para as necessidades dos outros e para a

V. (/cc.) ■ B ru ce ,

generosidade de Deus que caracteriza a comuni­

the Greek text with introduction and commen­

dade cristã fora das limitações normais do ciclo

tary. 3. ed. Leicester/Grand Rapids: InterVarsity

Comentários: B a r r e t t , C. K. The Acts F. F. The Acts o f the Apostles:

de reciprocidade e de dar por obrigação. Assim,

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Barnabé é apresentado como figura exemplar que

the Acts. Ed. rev. Grand Rapids: Eerdmans, 1988.

incorporava o ideal de parentesco que deveria ca­

( m c n t .) ■ C o n z e lm a n n , H .

racterizar a comunidade inteira (At 4.32,36,37).

a commentary on the Acts of the Apostles. Phi­

Semelhantemente, Ananias e Safira demonstram

ladelphia: Fortress, 1987. (Herm.) ■ H a e n c h e n , E.

The Acts o f the Apostles:

por sua falsidade e pelo que combinaram guardar

The Acts o f the Apostles: a commentary. Oxford/

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H. The Acts of the Apostles: an introduction and

5.3.2

Testemunho e compromisso de fidelida­ commentary. Leicester/Grand Rapids: InterVarsi-

de. Uma das marcas da narrativa de Lucas é a

ty/Eerdmans, 1980.

constância com que testemunhas fiéis atraem

Nashville: Broadman, 1992.

oposição e com que a oposição leva à expansão

R. C. The narrative unity o f Luke-Acts: a litera­

do evangelho. Entre os exemplos estão Jesus,

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AuTO BioG RAnA DE P a u l o .

I 158 I

Ver P a u l o ,

o

Ju d e u .

G reek

B anquete.

Ver c o m u n h ã o

(e.g., Mc 1.4], do batismo de Jesus e/ou de seus

A m esa.

discípulos realizado durante seu ministério públi­ B arnabé.

Ver a p ó s t o l o .

co (e.g., Jo 3.22,26] e do batismo com o/no Es­ pírito Santo e com/no fogo (e.g., Mt 3.11,14]. No

B arrabás.

Ver J esus ,

último, a palavra assume sentido metafórico, que

j u l g a m e n to d e .

pode ser entendido em termos da imagem escato­ B aru q u e, Segundo.

Ver

B a t is m o

E vangelh os

A pócrifos e P s e u d e epíg ra fo s .

lógica existente no judaísmo e que apresenta um ribeiro, um dilúvio ou uma inundação de fogo que

i ; os

purificaria os justos e destruiria os ímpios (v. Es­

0 batismo está associado a um grupo geral de prá­ ticas relacionadas com o ato de lavar. Além dos

p ír it o

Santo].

A forma substantiva baptisma não é encontrada

vocábulos costumeiros [baptõ, baptizõ, baptisma,

fora do

baptismos, baptistês), também é preciso ter ciên­

aplica não apenas ao ato exterior do batismo, mas

cia de vocábulos associados ao ato de ablução,

também denota o significado e a força interiores do

nt

e aparece apenas no singular. 0 termo se

completa ou parcial (louõ, niptõ). Aqui faremos um

ato. O batismo pode, por isso, ser apropriadamente

levantamento da terminologia usual associada ao

empregado para designar tanto o batismo do Espí­

batismo, dos antecedentes e contexto do batismo

rito quanto o batismo de água.

no

nt

e da prática do batismo nos ministérios de

J oão B a t is t a

e de Jesus.

2. Antecedentes e contexto

1. Terminologia

2.1

2. Antecedentes e contexto

Religiões do mundo. O batismo não é uma

ideia distintiva nem unicamente cristã. A prática

3. O batismo de João

do batismo é muito difundida. Os exemplos abran­

4. O batismo de Jesus

gem os rituais hindus no rio Ganges, o ritual de purificação do culto babilónico de Enki, as práticas

1. Terminologia Das cinco diferentes palavras encontradas no

egípcias de purificar crianças recém-nascidas e os nt

que se formam a partir da raiz bap-, duas são ver­

ritos, também egípcios, de revivificação simbólica realizados com os mortos. Baptizõ e palavras re­

bos e três são substantivos. A forma básica é o ver­

lacionadas foram empregadas para definir práticas

bo grego baptõ, que ocorre três vezes (Lc 16.24; Jo

rituais da antiga religião cretense, da religião da

13.26; Ap 19.13] com o sentido literal de “ mergu­

Trácia, das religiões de mistério dos eleusianos e

lhar” ou “tingir”. De outro lado, a forma intensiva,

de vários grupos e seitas gnósticos.

baptizõ, que aparece 77 vezes, é utilizada sempre

Existem elementos comuns associados a essas

ou quase sempre no sentido ritualístico das ablu-

bem difundidas práticas batismais. Exceto quando

ções judaicas (e.g., Mc 7.4], do batismo de João

empregado metaforicamente, o batismo é sempre

D A I I b M U I. U b C V A N b t L M U b

associado à água. 0 batismo é realizado em con­

o momento decisivo de deixar o paganismo para

junto com a remoção da culpa, a purificação e a

trás acontecia na circuncisão (v.

concessão de um novo início. O batismo cristão

tismo ou banho ritual preparava aquele que aca­

partilha desses traços e contextos e também pos­

bara de se fazer judeu para oferecer um sacrifício

sui contextos históricos e importância teológica

como 0 ato inicial de adoração.

M c K n ig h t )

. 0 ba­

específicos que lhe proporcionam um significado

A conversão do paganismo para o judaísmo

distintivo. 0 contexto do batismo de João e do

era vista como deixar a morte e entrar na vida

pelo judaísmo

— a fonte para a doutrina cristã acerca da nova

e pelas práticas da comunidade de Qumran (v.

vida que tem aquele que se converteu a Cristo.

MANUSCRITOS DO M AR M O R T O ) .

Deve se ressaltar, contudo, que no judaísmo o

batismo cristão é oferecido pelo

2.2

at,

Práticas judaicas. Os seguidores de João conceito é associado apenas secundariamente

Batista que participaram do rito batismal, judeus

com 0 batismo de prosélitos e só aparece em tra­

ou gentios, certamente não consideraram essa

dições tardias. 0 entendimento cristão distintivo

prática totalmente estranha. A água é o elemento

do batismo como morrer e ressurgir baseia-se no

naturalmente usado na limpeza do corpo, e seu

relacionamento que o convertido tem com Cristo,

uso simbólico se fazia presente em quase todas as

que morreu e ressuscitou dos mortos

religiões, e em nenhuma delas de um modo mais

M u r r a y ; B ec k w íith ,

( B ea s l e y -

p. 144-5).

completo que nas práticas judaicas. Os rituais de purificação do judaísmo ressaltavam a pureza e

3. O batismo de João

a dignidade para servir ao Senhor (Lv 13— 17;

Assim como João foi o predecessor de Jesus, seu

Nm 19). 0 ritual de lavar era semelhante ao ba­

batismo precedeu o batismo cristão. Contudo, o

tismo em suas implicações purificadoras (Mc 7.4;

ambiente do batismo de João contínua sendo ob­

Hb 9.20). Em Salmos 51.2,7, o salmista suplica

jeto de acalorados debates. 0 contexto cultural e

pela purificação divina. Especialmente significa­

religioso da época de Jesus exige que vários fato­

tivo é Isaías 4.4: um pedido para que os pecados

res sejam considerados.

sejam removidos com uma ablução com o “espí­ rito de ardor”

(arc),

O batismo judeu de prosélitos como an­

no judaísmo do século i um protótipo do batísmo

João retoma em seu batismo. Além desses exemplos do a t ,

3.1

tecedente do batismo de João. É natural procurar

um vislumbre do tema que equivalente ju­

de João. Mas determinar a relação entre as prá-

daico à prática cristã estava em seus rituais com

tícas e o entendimento que os judeus tínham do

o

prosélitos. Não se sabe ao certo quando teve

batismo ou purificação cerimonial e as práticas e

início 0 batismo de prosélitos pelos judeus. Al­

0 entendimento de João ou da igreja primitiva é

guns estudiosos acreditam que começou na mes­

tarefa complicada.

os

ma época do rito cristão

enquanto

Na sua forma mais desenvolvida, o batismo

( B easle y- M u rray) .

judeu de prosélitos era um rito de iniciação rea­

( M c K n ig h t ) ,

outros alegam que foi antes

0 relato sobre o leproso Naamã (2Rs 5), que é

lizado apenas uma vez com o gentio convertido,

possivelmente uma ablução de purificação, é se­

como era também o caso do batismo de João e

melhante ao batismo de prosélitos de mais tarde.

do batismo cristão. Em consonância com as pu­

Bem mais tarde (até o século iii d.C.), foi aceito

rificações cerimoniais do

que prosélitos do sexo masculino se batizassem

prosélitos servia para purificar o convertido, re­

na presença de testemunhas sete dias depois da

movendo impureza moral e cerimonial. 0 batis­

at, o

batismo judeu de

circuncisão. Em tradições posteriores, o judaísmo

mo de João para a remissão de pecados reflete

exigia três coisas dos convertidos: circuncisão,

um conceito semelhante. J. Jeremias entende que

batismo ou banho ritual e a apresentação de sa­

Testamento de Levi 14.6 apoia um batismo judeu

crifícios. Os rituais da circuncisão e da ablução

de prosélitos antes da era cristã. A passagem, a

eram, muito provavelmente, precedidos de ins­

que se atribui a data do final do século ii a.C., diz:

trução catequética. O Talmude refere-se a um pro­

“A prostitutas e adúlteras serás unido, e as filhas

sélito batizado como uma criança recém-nascida

dos gentios tomarás por esposas, purificando-as

[b. Yebam., 22a). No entanto, para o judaísmo

com purificações ilegítimas” [katharizontes autos

160

B a t is m o i : o s E v a n g e l h o s

katharismõ parartomõ). Ele defende que a termi­

pela comunidade de Qumran (v.

nologia, teologia, instrução catequética e execu­

mar

M or to ) .

MANUscRrros do

Numerosos estudos têm sido feitos

ção do rito pelos cristãos têm semelhança com

sobre a relação entre o batismo de João e as puri­

a maneira em que os judeus executam o rito (v.

ficações cerimoniais mencionadas no Manual de

J e r e m ia s ,

p. 29-40;

D aub e,

p. 106-8).

disciplina (IQS 3.4-9; 6.14-23; v.

B a d ia ) .

É pos­

Não existe, contudo, nenhuma prova clara an­

sível sustentar tal relação sem que se tenha de

terior a 70 d.C. de que prosélitos se submetiam

aceitar sugestões como a de que João foi membro

ao batismo como uma exigência de conversão

de uma comunidade essênia estabelecida na área

(v.

ao redor do rio Jordão.

M c K n ig h t ) . I s s o

foi defendido energicamente,

apesar da citação contínua de textos como Orácu­ los sibilinos (4.165) e Epícteto (Ds, 2.9.19). Além

A comunidade de Qumran funcionava

à

parte

do culto no templo e considerava os sacerdotes

disso, podemos apresentar os seguintes argu­

maus e impuros. Assim, os únicos rituais dispom'-

mentos contra a ideia de que o batismo judeu de

veis eram os banhos e as purificações cerimoniais

prosélitos foi o antecedente básico do batismo de

descritas no

João ou do batismo cristão. Não existe nenhuma

integrada ao seu chamado ao arrependimento e

menção a batismo de proséUtos no

at,

em Filo ou

à

at.

A prática do batismo por João,

renovação, seria um bom complemento. A co­

em Josefo. Passagens como Testamento de Levi

munidade de Qumran estava fortemente voltada

14.6, na melhor das hipóteses, são ambíguas ou

para o cumprimento escatológico (v.

não levam a nenhuma conclusão. Por isso é du­

g ia ) ,

vidoso que, na época de João, o batismo de pro­

radora do caminho. A mensagem de João tinha

sélitos tenha existido, pelo menos como um rito

duplo foco; 0 chamado ao arrependimento e a

claramente análogo.

vendo-se,

à

e sc atolo ­

luz de Isaías 40.3, como prepa­

expectativa e preparativo escatológicos (Mt 3.2;

A. Oepke assinala que o batismo judeu era po­

Mc 1.4,7,8; Jo 1.23).

lítico e ritualista, ao passo que o de João era ético

Semelhantemente a comunidade de Qumran

e escatológico (semelhante a SI 51.7; Is 1.15,16;

reconhecia que, sem o verdadeiro arrependimento

4.4; Jr 2.22; 4.14; Ez 36.25; Zc 13.1). Do ponto

as abluções são incapazes de purificar a pessoa.

de vista gramatical, existe uma distinção impor­

A pregação e o batismo de João também criaram

tante. O

utiliza (basicamente) as formas ativa

essa tensão (Mt 3.7-9). À semelhança dos sectá­

e passiva de baptõ e baptizõ, ao passo que textos

rios de Qumran, João não entendia que a água

que se referem ao batismo judeu de prosélitos

purificasse sem haver arrependimento (Mt 3.11;

empregam, na maioria das vezes, formas médias

Lc 3.7). As práticas batismais de João estão

ou reflexivas

mais próximas das purificações cerimoniais de

nt

(O e p k e ,

p. 530-5). Desse modo, o

que era autoadministrado no judaísmo era visto,

Qumran que do batismo judeu de prosélitos. Não

no cristianismo primitivo, mais como um ato de

devemos, contudo, perder de vista a distinção

Deus e de entrega a ele.

principal entre João e Qumran; enquanto o rito

É especialmente significativo que o batismo

da comunidade de Qumran era autoadministra-

de João foi recebido por judeus, não pelos gen­

do e praticado diariamente (ou frequentemente)

tios. João exigiu que os fariseus se arrependes­

e seria mais bem classificado como “purificações

sem moralmente e se purificassem. É claro que

cerimoniais” , o batismo de João era um rito de

0 batismo judeu de prosélitos servia como rito

iniciação realizado uma única vez.

de iniciação para os gentios, mas os judeus, uma

3.3

A importância do batismo de João. Não

vez que já eram o povo de Deus, não precisavam

temos de necessariamente concluir que João esta­

do rito. Se o batismo de João se desenvolveu a

va buscando converter o povo numa comunidade

partir de práticas judaicas com os prosélitos, ele

messiânica. Pelo contrário, ele estava interessado

o transformou significativamente.

em despertar uma consciência messiânica dentro

3.2

As ablações de Qumran como anteceden­ dos parâmetros de um arrependimento genuíno.

tes do batismo de João. Uma alternativa melhor

Não teve precedentes o chamado de João aos que

de ambiente para o batismo de João pode ser en­

haviam nascido judeus para um batismo singu­

contrada nas purificações cerimoniais praticadas

lar. Ele insistia em que a linhagem ancestral não

161

B a t is m o i : o s E v a n g e l h o s

era apropriada para garantir o relacionamento da

batizado, aparentemente porque o batismo deixa

pessoa com Deus. 0 novo compromisso era cele­

implícito que a pessoa tem pecado do qual deve

brado solenemente no batismo. Não há provas de

se arrepender. João parece reconhecer a própria

que João tenha permitido que os que se tornaram

pecaminosidade, em comparação com Jesus, e observa que os papéis de ambos deviam ser tro­

seguidores de Jesus fossem rebatizados. Os autores dos Evangelhos enfatizam os elos

cados — Jesus é quem deveria estar batizando

entre o início que Jesus dá a seu governo messiâni­

João. A resposta de Jesus indica que ele entendia

co e a pregação e o batismo de João. Seria errôneo

a lógica do raciocínio de João, mas ainda assim, e

entender o batismo de João como perfeitamente

por um motivo diferente, pede para ser batizado.

análogo ao batismo cristão primitivo, embora os

Teologicamente, o batismo de Jesus o identifica

autores dos Evangelhos não se deem o trabalho de

como 0 servo messiânico que se mostra solidário

estabelecer uma distinção entre o batismo de João

com seu povo. Como seu representante, ele veio

e o batismo cristão primitivo. O batismo cristão

“cumprir toda a justiça” (Mt 3.15). No Evangelho

primitivo era um rito óbvio de iniciação na igreja,

de Mateus, “justiça” refere-se àqueles que são

embora mantivesse a ênfase na pureza e na puri­

virtuosos e cumpridores da Lei, obedientes e fiéis

ficação morais (At 2.38). João agia a partir do seu

aos mandamentos de Deus (v.

enfoque, que era o da j u s t iç a pela perspectiva do a t

apresenta Jesus como aquele que cumpre profe­

P

r z y b y l s k i)

. Mateus

e, aparentemente, dentro de um arcabouço análo­

cias específicas, bem como temas bíblicos mais

go ao de Qumran, onde o batismo era considerado

gerais. Agora ele cumpre as exigências morais da

tanto um meio de realizar a purificação necessária

vontade de Deus. Ao fazê-lo, identifica e sanciona

quanto um sinal de arrependimento. Conquanto

o ministério de João como divinamente determina­

haja óbvias ligações entre João e a igreja primitiva,

do e sua mensagem como digna de toda atenção.

devemos propor cautelosamente um relacionamen­

Jesus deu início ao seu ministério com a mes­

to de dependência. De fato, embora o batismo não

ma exigência de arrependimento, confirmando a

tenha sido parte do ministério de Jesus, no início

obra batismal de João. Contudo, há uma diferen­

ele permitiu que seus discípulos continuassem a

ça importante; Jesus batizaria com fogo e com

prática (Jo 3.22), embora mais tarde aparentemen­

o Espírito (Mt 3.11; Lc 3.16). A relação entre o

te tenha descontinuado o rito (Jo 4.1-3). 0 minis­

batismo de água e o batismo do Espírito veio a

tério de João apontava para o futuro, esperando o

ter importância maior nas cartas e em Atos, mas

reino vindouro (v.

sua relevância no relato dos Evangelhos mostra,

r e in o

de

D

eus) ,

ao passo que o

ministério de Jesus celebra o estabelecimento do

conclusivamente, que Jesus jamais pensou no ba­

reino no tempo presente.

tismo como um ato meramente mecânico.

4. O batismo de Jesus

Quando os filhos de Zebedeu pediram a Jesus

4.2 4.1

O batismo com o qual Jesus é batizado.

Jesus é batizado por João. 0 batismo de para se sentar ao lado dele, um à esquerda e o

Jesus pelas mãos de João Batista é explicado com

outro à direita (Mc 10.35-39), um pedido que evi­

certos detalhes em Mateus 3.13-17, brevemente

dentemente veio da mãe deles (cf. Mt 20.20,21),

relatado em Marcos 1.9-11, mencionado em Lu­

Jesus fez referência ao ato de beber um cálice

cas 3.21,22 e deixado implícito em João 1.29-34.

amargo e ser batizado, cada ato fazendo alusão a

De acordo com todos os quatro relatos, o batismo

algum tipo de aflição física, que, declarou Jesus,

tem ligação direta com a unção de Jesus com o

os filhos de Zebedeu iriam experimentar. Mas ele

Espírito e com a declaração de ele ser o Filho de

próprio ainda não tinha o direito de distribuir

Deus (v.

. É essa unção que inaugu­

assentos no reino. 0 significado desse uso me­

ra o ministério de Jesus, o qual se caracterizará

tafórico do batismo parece ser o de “destino dolo­

pelo poder do Espírito do novo tempo (Mt 12.1;

roso” — nesse caso, a morte ou o martírio. Com

Lc 4.18; 11.20; At 10.38).

base na gramática, embora Marcos 10.38 deixe

F il h o de D eus )

Qual a relevância do batismo de João para

implícito que os irmãos não podem partilhar do

Jesus? Jesus precisou se arrepender? Só Mateus

mesmo destino de Jesus (uma vez que a morte de

nos conta que João tentou impedir Jesus de ser

Jesus é um momento singular do juízo de Deus),

162

B a t is m o i i : P a u l o

Marcos 10.39 dá um passo atrás e admite que eles

thought. Cambridge: Cambridge University Press,

também poderão morrer por causa de sua ligação

1980.

(s n tsm s ,

41.)

com Jesus (cf. Mc 8.34-38). Ao mesmo tempo,

D. S.

D

o ckery

a forma lucana dessa declaração (Lc 12.50) su­ gere que o “batismo” também inclui a persegui­

B a t is m o

ção que conduziu à morte de Jesus e o interpreta

Com base em referências ao batismo encontradas

como uma tribulação escatológica.

nas cartas de Paulo, é patente que ele pressupõe

ii:

P aulo

4.3 A ordem de batizar dada por Jesus. Mateus

que todos os crentes em Cristo são batizados.

28.19 apresenta o batismo como parceiro do ensino

Um único exemplo bastará para demonstrar esse

no processo de fazer discípulos. “Fazei discípulos”

aspecto. A exposição que Paulo faz do batismo

.

em Romanos 6 começa citando uma objeção a

“Batizando-os” e “ensinando-lhes” são os dois pro­

seu ensino sobre a justificação pela fé sem par­

cedimentos associados com a consecução do man­

ticipação das obras da lei: “Que diremos, então?

dado. Dessa maneira, a comissão de Mateus, que

Permaneceremos no pecado, para que a graça se

não é diferente do batismo no quarto Evangelho

destaque?” A essa objeção Paulo responde ape­

(Jo 3.22-24), une batismo e discipulado.

lando para o significado do batismo: “ Nós, que

é o mandado do Cristo ressurreto (v.

ressurrhção)

Todavia, o mandamento da ressurreição tem

morremos para o pecado, como ainda viveremos

um significado mais amplo. É um compromisso

nele?”. Ele prossegue: “Todos nós, que fomos ba­

com (“em nome do” é, lit., “para dentro do nome

tizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua

do", deixando implícito que se está fazendo uma

morte”. E conclui: “Assim, também, considerai-

aliança) o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e os

vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus,

três estiveram envolvidos no batismo de Jesus

em Cristo Jesus”. É evidente que as expressões

(Mt 3.16,17). Mateus quer que seus leitores sai­

“nós, que morremos para o pecado” , “todos nós,

bam que Jesus assumiu seu lugar junto do Pai e

que fomos batizados em Cristo Jesus” e “consi-

do Espírito como objeto da adoração e do com­

derai-vos mortos para o pecado” incluem Paulo

promisso dos discípulos. 0 emprego singular que

e todos os seus leitores. De outra maneira, cairia

Mateus faz da fórmula trinitária oferece, no lin­

por terra seu argumento contra o suposto efeito

guajar mais formal da comunidade, um sumário

antinomiano da doutrina da justificação pela fé.

do que Jesus ensinou a seus discípulos acerca de

Exemplos semelhantes da pressuposição de que

Deus, instrução que deixara implícito um relacio­

todos os cristãos são batizados podem ser vistos em Gálatas 3.26-28; Colossenses 2.12; ICorín-

namento único entre Jesus e o Espírito com o Pai. Ver também

c e ia d o

Senhor;

tios 12.13. A exposição acerca da ética batismal é

a d o r a ç ã o /c u lto .

encontrada em Colossenses 2.20— 3.15.

d jg : G e n t ile s ; R e p a n ta n c e .

Visto que Paulo havia recebido o batismo e B ib lio g r a fia .

B a d ia ,

L. F.

and John the Baptist’s baptism.

Lan h am : U n i­

1980. ■

B easley-M urray,

versity Press o f A m erica, G. R.

Baptism in the New Testament.

pids: Eerdm ans,

1962. ■

tinha motivos para acreditar que os demais cris­

The Qumran baptism

tãos eram batizados, fica claro que o rito existia antes de sua

co nversão.

(A conversão de Paulo é

G ran d Ra­

costumeiramente datada de quatro anos depois

&.

da morte de Jesus.) Uma vez que o batismo exis­

B e a s le y -M u r ra y , G. R.

B e c k w ith , R . T. Baptism , n i d n t t [s.l.: s.n., s.d .]. v.

tia antes da conversão de Paulo, é razoável vê-

1.

lo como coexistente com o início da igreja. Essa

p.

143-61. ■ D aube,

D . G.

1956. ■ D u nn ,

conclusão está em harmonia com os dados neo­

Baptism in the Holy Spirit.

Philadelphia:

testamentários acerca do ministério de batismo

Westm inster,

1970. • Jerem ias, J. Infant baptism in

the first four centuries. 1962. ■

M c K night , S.

M in neapolis: Fortress,

de J o ã o

B a t is t a

(Mc 1.4-8), de Jesus (v. Jo 3.25,26;

Philadelphia: Westminster,

4.1-3], dos apóstolos a partir do dia de Pentecos­

A light among the gentiles.

tes (At 2.37-41] e da comissão missionária do Se­

1991. ■ O epke,

nhor ressurreto, registrada em Mateus 28.19.

TDNT. [S.l.: S .n ., s.d .]. v. ski, B.

The New Testament and

Lon don : Athlone,

rabbinic Judaism. J.

D.

1,

p.

A.pdTTTu k t A .

529-46. ■

1. A linguagem e os atos do batismo

P rzybyl­

2. Q batismo e Cristo

Righteousness in Matthew and his world of

163

D A I I b M U M. T A U L U

3. 0 batismo e o Espírito

shem = “nome”). O termo possui um sentido bem

4. 0 batismo e a igreja

elástico. Tem basicamente o significado de “com

5. O batismo e a ética cristã

relação a”, mas o contexto determina a exata co­

6. O batismo e o Reino de Deus

notação. P. Billerbeck apresenta três ilustrações de seu uso em sua análise do batísmo em Ma­

1. A linguagem e os atos do batismo

teus 28.19. 1) Quando os pagãos eram comprados

1.1 Batismo “em nome de Jesus”. Nas cartas de

por judeus como escravos, estes eram batizados

Paulo, assim como no livro de Atos, o batismo

“em nome da escravidão”, ou seja, com o objetivo

é tipicamente representado pelo batismo “ no

de serem feitos escravos; quando eram libertados,

nome” de Jesus. Isso reflete significativamente no

eram batizados “em nome da liberdade”, ou seja,

modo em que Paulo lida com as divisões na igreja

para a liberdade. 2) Um sacrifício de animal era

em Corinto. Ele cita o que seus membros estão

feito em nome de cinco coisas: em nome da ofer­

dizendo: “Eu sou de Paulo” ; “Eu sou de Apoio” ;

ta (i.e., acerca de sua intenção, fosse holocausto,

“Eu sou de Cefas [= Pedro]” ; “Eu sou de Cristo”

oferta pelo pecado ou oferta pacífica); em nome

(ICo 1.12). Um tanto indignado, Paulo pergunta:

de Deus (por amor a ele e à sua glória); em nome

“ Será que Cristo está dividido? Foi Paulo crucifi­

do fogo do altar (para que fosse devidamente ace­

cado em vosso favor? Fostes batizados em nome

so); em nome do aroma suave (pelo prazer que

de Paulo?” A última indagação ecoa a linguagem

dava a Deus); em nome do bom prazer de Deus

batismal em nome de Jesus. No contexto, seu em­

(em obediência à sua vontade). 3) Um israelita

prego sugere que seu uso normal é fazer da pes­

pode circuncidar um samaritano, mas um sama-

soa uma seguidora de Jesus, a ponto de pertencer

ritano não pode circuncidar um israelita, porque

a ele, e de alguma forma estar envolvida com sua

os samaritanos circuncidam “em nome do monte

crucificação e desfrutar um relacionamento espe­

Gerizim”, ou seja, com a obrigação de adorar ao Deus dos samaritanos, que é ali adorado

cial com ele. Tem havido muito debate em torno da expres­

B illerb e c k ,

(S t r a c k -

p. 1054-5). À luz de tais dados, Biller­

são “em nome de” — se ela reflete uma expressão

beck afirma: “ 0 batísmo estabelece as bases para

idiomática grega ou hebraica (e aramaica), pois

uma relação entre o Deus trino e o batízado, a

é vista nos três idiomas. W. Heitmüller demons­

qual 0 último tem de afirmar e expressar, reconhe­

tra que, enquanto a expressão eis to onoma (“no

cendo o Deus em cujo nome é batizado”.

nome”) não aparecia na literatura grega clássica,

Por isso, é evidente que os usos grego e he­

era rotineira em documentos, com o senüdo de “a

braico da expressão “em nome” são notavelmen­

crédito de” , analogamente a operações bancárias

te parecidos, especialmente quando aplicados ao

e vendas comerciais. Ele cita, com aprovação, A.

batísmo, e devem ter sido interpretados de modo

Deissmann, que define “no nome de [alguém]”

semelhante em círculos de fala grega e hebraica,

como expressão que denota “ o estabelecimento

a despeito da maior elasticidade de sentido no

da relação de pertencer a [alguém]”. Heitmüller

hebraico.

“ De modo geral, nosso vocábu­

Às vezes, vê-se em Paulo uma expressão mais

lo ‘para’ reproduz adequadamente o sentido”

acrescenta:

breve, batismo eis Christon, que pode ser traduzi­

p. 105). Ao empregar essa expressão,

da por “para dentíro de Cristo” ou “para Cristo” ,

naturalmente se segue o nome da pessoa a fa­

que é possivelmente uma abreviação consciente

vor de quem a posse é entregue. De acordo com

da expressão em sua forma plena “em nome de

( H e it m ü l l e r ,

Heitmüller, então, o batismo em nome de Jesus

Cristo” (v. Rm 6.3,4; Gl 3.27). É significativo que

significa 0 estabelecimento da relação de perten­

tanto a preposição grega eis quanto o prefixo he­

cer a Jesus.

braico 1‘ podem ter o sentído de “com relação a”

Essa explicação é, contudo, rejeitada por al­

e também um sentído final ou dativo de interesse,

guns estudiosos, a favor de uma origem hebraica

“para”

da expressão. Na literatura judaica, inclusive o a t ,

contexto ajudará a determinar a intenção do texto.

(e a g d ,

p. 228; b d b , p. 514-5). Em tais casos, o

com frequência deparamos com um equivalente

Um elemento importante de interpretação

à expressão grega, a saber, l‘shêm (/* = “para”.

surge associado a essa fórmula. Assinalamos a

164

B a t is m o i i : P a u l o

afirmação de A. Deissmann de que “em nome”

cenário de Ef 5.14, texto com frequência interpre­

estabelece “a relação de pertencer a [alguém]”.

tado como cântico batismal dirigido aos cristãos

Da mesma forma, Billerbeck afirma que o batis­

recém-iniciados; v. comentários). Entretanto, ne­

mo em nome do Deus trino “estabelece as bases

nhuma dessas realidades espirituais pode ocorrer

para uma relação entre o Deus trino e o batizado”.

mediante a simples realização dos atos simbólicos

Quem é visto como aquele que toma a iniciativa

apropriados. Elas dependem dos atos divinos rea-

de estabelecer esse relacionamento? Na aplicação

hzados uma única vez em Cristo, de acordo com

do batismo. Deus e os seres humanos estão en­

0 evangelho, e da ação divina nos crentes quan­

volvidos. 0 batizador invoca o nome de Jesus so­

do eles atendem ao chamado de Deus no evan­

bre o batizando, e o batizando clama pelo nome

gelho. Por esse motívo, o uso que Paulo faz da

do Senhor enquanto é batizado (quanto ao pri­

linguagem batísmal (em ICo 10.1-12) indica uma

meiro,

Tg 2.7; quanto ao último, v. At 22.16).

situação em que os leitores imaginavam que o ato

E provável que, em Romanos 10.9, Paulo tenha

sacramental transmitia poder eficaz e operante,

ambos os aspectos em mente. É universalmente

não importando as escolhas morais. Paulo, no en­

reconhecido que “Jesus é Senhor” é a confissão

tanto, insiste em que os “ sacramentos” do

primitiva de fé em Cristo que era feita por oca­

duziram ao juízo uma geração idólatra e imoral.

V.

a d o r a ç ã o / culto ) .

con­

Tendo essas considerações em mente, passe­

sião do batismo. Dela se desenvolveram os de­ mais credos da igreja (v.

at

mos a examinar as afirmações que Paulo faz em

Mas a

suas cartas acerca da relevância do batismo.

salvação concedida mediante a confissão de fé ocorre em virtude do ato divino, ocorrido uma única vez, da morte e ressurreição de Cristo e de

2. O batismo e Cristo

suas ações na vida daqueles que creem. A priori­

0 batismo “em nome de Jesus” distingue-se das

dade da ação divina aplica-se à reconciliação do

abluções de todas as outras religiões, em virtude

mundo em Cristo e à reconciliação de cada crente

de sua relação com Cristo. Os crentes são unidos

que a aceita (2Co 5.18-21). Por esse motívo, no

com Cristo em seus atos redentores de morte e

batismo o Senhor se apropria do batizando, e o

ressurreição e, assim, passam da velha vida para

batizando tem a Jesus como Senhor e se submete

a nova. 2.1

a seu senhorio. 1.2

Revestindo-se de Cristo. A relação entre

Simbolismo e realidade. É importante 0 batismo e a união com Cristo é indicada não

observar que Paulo jamais se refere ao batismo

apenas mediante sua ministração “ no nome de

como um rito meramente exterior, seja como

Jesus”, mas também na declaração batismal bá­

“simples símbolo” de confissão de fé em Cristo,

sica de Paulo, Gálatas 3.26,27: “Todos sois filhos

seja como rito que efetua aquilo que simboliza.

de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos

Reconhecidamente, para Paulo e para toda a

os que em Cristo fostes batizados, de Cristo vos

igreja primitiva, é clara a natureza simbólica do

revestistes”. O formato da análise é determinado

batismo. Em sua forma mais óbvia, simboliza a

pelo contexto da discussão sobre quem seriam os

purificação do pecado (cf. At 22.16). E esse sig­

filhos de Abraão, pois a promessa divina de que

nificado parece claro numa pericope que é mais

ele herdaria o mundo por vir foi feita ao patriarca

bem compreendida como reflexo de uma antiga

e a seus descendentes (Rm 4.16). Para os judeus,

prática batismal cristã e de sua relevância para

a resposta era clara: eles são os descendentes de

a congregação (Ef 5.25-27: v. comentários, esp.

Abraão, e quem quer que seja incluído com eles

ad loc.). 0 ato de tirar as roupas para o

tem de receber o sinal da aliança (circuncisão)

batismo e vesti-las depois do batismo proporcio­

e viver em obediência à Lei de Moisés. De sua

na o símbolo de “desvestir-se” da velha vida e

parte, Paulo sustenta que a “descendência de

“vestir-se” da nova vida em Cristo e, até mesmo,

Abraão” , a quem a promessa se referiu, é Cristo

vestir-se de Cristo (Gl 3.27; Cl 3.9,12). 0 ato de o

e todos os que estão unidos a ele. Daí a pertinên­

batizando mergulhar na água e emergir simboliza

cia de Gálatas 3.26: “Todos sois filhos de Deus

vividamente o sepultamento e a ressurreição de

pela fé em Cristo Jesus”. São filhos não apenas

Cristo (Rm 6.3,4; os atos batismais compõem o

de Abraão, mas de Deus. Pois estão “em Cristo”,

L in c o l n ,

165

o Filho único de Deus. Isso ocorre “mediante a fé” (Gl 3.26,

asa),

“porque todos os que em Cris­

Antes de tudo, deve se observar que nessa passagem Paulo não está apresentando basica­

to fostes batizados, de Cristo vos revestistes”

mente uma explicação teológica da natureza do

(G13.27).

batismo, mas expondo seu significado para a

Já anahsamos o simbolismo dessa passagem.

vida. Está preocupado em refutar a acusação de

0 ato de despir a roupa velha e vestir roupas no­

que a doutrina da justificação pela fé incentiva

da transforma­

0 pecado. Por isso, ele aconselha a nós, “que

ção de caráter (cf., e.g.. Is 52.1; 61.10; Zc 1.1-5). O

morremos para o pecado”, a não mais vivermos

simboUsmo é peculiarmente apropriado ao batís­

pecando. “Mortos para o pecado” é o sentido

vas é uma figura frequente, no

at,

mo cristão dos tempos apostólicos, visto que nor­

de nosso batismo. Quando fomos “batizados

malmente ocorria por imersão e, aparentemente,

em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte”

estando a pessoa nua. O batismo judeu de pro­

(Rm 6.3; ecoando Gl 3.27). Essa é a conseqüência

sélitos insistia nisso. Quando as mulheres eram

de se tornar um só com o Senhor, que morreu e

batizadas, os rabinos ficavam de costas para elas,

ressuscitou para conquistar o pecado e a morte.

enquanto elas entravam na água até a altura do

Ademais, “fomos sepultados com ele na morte

pescoço. Então eram feitas perguntas, e elas res­

pelo batismo”. Observe-se que Paulo não disse:

pondiam. Os cabelos tinham de estar soltos, para

“Fomos sepultados como ele” , mas “ sepultados

garantir que nenhuma parte do corpo ficasse sem

com ele”. Ou seja, fomos colocados com ele em

ser molhada pela água. Esse aspecto reaparece em

seu sepulcro, em Jerusalém! De modo que a mor­

Hipólito, Tradição apostólica, c. 215 d.C. Mais tar­

te experimentada por Cristo na cruz foi também

de, Cirilo de Jerusalém escreveu um comentário,

a nossa morte. Isso imphca, no que diz respeito à

no qual dizia ser apropriado estar nu para o ba­

morte de Cristo pela perspectiva do mundo, uma

tismo, pois Jesus morreu na cruz nessa condição.

forma diferente daquela que seria esperada.

Mais importante que o simbolismo é a realida­

Quando lemos em Romanos 5 que Cristo

de exposta por meio dele: o batizando “despiu”

morreu por nós enquanto ainda éramos pecado­

a sua velha vida e “vestiu” a Cristo, tornando-

res, pensamos em Cristo como nosso substituto.

se um com ele e, desse modo, qualificando-se

Aqui, entretanto, Paulo diz que Cristo é nosso re­

a participar da vida no reino de Deus. As duas

presentante. Se ele morreu na cruz como nosso

declarações de Gálatas 3.26,27 se complemen­

representante e se essa morte foi aceita, então foi

tam. Gálatas 3.26 afirma que todos os crentes

aceita como nossa morte, de maneira que, quan­

são filhos de Deus “ mediante a fé” [ar a ), e em

do ele morreu, nós morremos (v.

Gálatas 3.27 a entrada na faimlia de Deus está

de) .

associada e baseada na união com Cristo e no

um passo além, unidos com ele em sua morte

fato de ele partilhar com o batizando a própria

pelo pecado, ressurgimos com ele para viver a

C r is t o ,

m orte

Ele foi um representante de verdade! Indo

condição de Filho de Deus. Esse é um exemplo

vida de ressurreição. Por meio da fé expressa no

paulino em que o apóstolo associa fé e batísmo

batísmo, o que foi feito fora de nós [extra nos)

de tal maneira que a compreensão teológica é a

torna-se fé eficaz dentro de nós. Em Cristo, so­

única e a mesma tanto da fé que se volta para o

mos filhos reconciliados de Deus.

Senhor em busca de salvação quanto do batísmo mediante o qual a fé é declarada. 2.2

Um elemento adicional, porém, está envolvi­ do nessa exposição do batismo. As duas últimas

União com Cristo na morte e na res­ frases ecoam a afirmação de Paulo acerca do

surreição. Como 0 batismo possui o sentido de

evangelho em 2Coríntios 5.14,15: “Concluímos

união com Cristo, Paulo via nesse ato algo que

que, se um morreu por todos, logo, todos mor­

se estende à união com Cristo em seus atos re­

reram. E ele morreu por todos, para que os que

dentores, pois 0 Cristo que salva é, para sempre,

vivem não vivam mais para si mesmos, mas para

o redentor antes crucificado e agora ressurreto.

aquele que por eles morreu e ressuscitou”. “ Os

Essa é a mensagem da exposição que Paulo faz

que vivem” são aqueles que, tendo aprendido

do batismo em Romanos 6.1-11 (v. uma análise

que Cristo morreu como seu representante, com

da interpretação desse texto em

gratidão confiam nele, professam fé no batismo.

W

edderburn)

.

166

B a t is m o h : P a u l o

partilham da vida de ressurreição de Cristo e vi­

em novidade de vida”. Dessa forma, Paulo apre­

vem em Cristo, para a glória dele.

senta o motivo pelo qual o cristão nunca pode,

Esse aspecto do batismo, o fim da vida sem

intencionalmente, viver “no pecado, para que a

Deus e o começo da vida com Deus, é declara­

graça se destaque”. Na morte de Cristo, os cren­

do explicitamente em Colossenses 2.11,12. À

tes morreram para o pecado; na ressurreição de

semelhança da passagem de Gálatas, o texto re­

Cristo, eles ressurgiram, a fim de viver para Deus,

futa uma tentativa de persuadir os cristãos a se

que os redimiu em Cristo (cf. 2Co 5.15).

submeterem à circuncisão. No entanto, Colos­ senses 2.11,12 adota uma abordagem diferente,

3. O batismo e o Espírito

enfatizando que é desnecessário o rito de Israel,

Uma consequência importante do surgimento do

pois em Cristo os crentes sofreram uma circunci­

pentecostalismo moderno e do movimento caris­

são mais drástica: "Nele [Cristo] também fostes

mático é levantar a questão da relação entre o

circuncidados com a circuncisão que não é feita

rito do batismo e o batismo no Espírito (v.

por mãos humanas, o despojar da carne pecami­

to

nosa, isto é, a circuncisão de Cristo”. Evidente­

entende que o batismo no Espírito é radicalmente

mente, Paulo retrata a morte de Cristo como uma

distinto do batismo na água, e é naquele que re­

circuncisão. 0 ato de cortar fora o prepúcio do

cai a ênfase. 0 ponto de vista é característico dos

órgão sexual masculino é substituído pelo rasgar

dois grupos, embora isso ocorra por motivos dife­

de todo o corpo físico de Cristo. Nele, isso acon­

rentes (v. análise detalhada em

teceu para nós; aconteceu no batismo, no sentido

é se Paulo fez tal distinção.

Sa n t o )

E s p ír i ­

. A maioria dos membros desses grupos

D unn)

. A questão

de batismo como nossa conversão a Deus pela

W. H. Griffith Thomas expressa uma dúvida

fé. Fomos “ sepultados com ele no batismo”. Isso

comumente ouvida hoje em dia: “ Como pode algo

não é tanto um avanço em relação ao ensino de

que é físico ter efeito naquilo que é espiritual?”

Paulo registrado em Romanas 6, mas um escla­

Com base nessa questão, alguns intérpretes sus­

recimento do que ele escreveu ali. Quem ouve o

tentam que passagens como Romanos 6.1-11,

evangelho, dá atenção a ele, crê nele e o confessa

Gálatas 3.26,27, Colossenses 2.11,12, Efésios 5.26

no batismo, termina a velha vida sem Deus e co­

e Tito 3.5-7, todas unindo o batismo a “efeitos

meça uma vida no Cristo ressurreto. Colossenses

espirituais”, se referem ao batismo do Espírito,

2.12 deixa claro: “ [Fostes] sepultados com ele no

não ao batismo de água, dessa forma eliminando

batismo, com quem também fostes ressuscitados

a maioria das referências de Paulo ao batismo.

pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou den­

Mas tal questionamento da relação entre o físico

tre os mortos”. Qualquer eficácia no batismo se

e 0 espiritual suscita, logicamente, a questão da

deve ao poder de Deus atuante “pela fé”. Paulo

ênfase paulina na encarnação (e.g., Rm 8.3) e na

está claramente falando de batismo-conversão, o

morte física de Cristo, que resulta na “redenção

qual incorpora o evangelho e a resposta do con­

do nosso corpo” (Rm 8.23). O corolário desse

vertido a essa mensagem. Alguns estudiosos en­

argumento a favor do batismo como unicamente

tendem que Paulo emprega o verbo “ selar” (em

obra do Espírito, sem o batismo na água, é tornar

2Co 1.22) para incluir aquele último elemento,

os cristãos paulinos espiritualmente sublimes de­

quando Deus corrobora a resposta humana.

mais e destituídos de qualquer relação com práti­

Contudo, um terceiro aspecto é inerente ao ba­

cas cristãs primitivas (cf., e.g., At 18.8; IPe 3.21).

tismo conforme exposto por Paulo em Romanos

Gálatas 3.26,27 associa o batismo à união com

6. O batismo que estabelece a identificação dos

Cristo. Agora, Paulo deixa claro que as pessoas

crentes com Cristo em sua morte e ressurreição

podem estar “em Cristo” apenas mediante o Es­

e 0 fim da vida longe de Deus em troca da vida

pírito Santo. Isso é declarado em Romanos 8.9-11

em Cristo requer a renúncia da vida imprópria

e pressuposto em 2Coríntios 3.17,18. Uma vez

para o novo tempo. Quando se remove a oração

que para Paulo o batismo em água e o batismo

intercalada inserida em Romanos 6.4, a passagem

no Espírito são idealmente a mesma coisa (as­

diz: “ Fomos sepultados com ele na morte pelo ba­

sim como a conversão e o batismo fazem parte

tismo, para que [...] assim andemos nós também

de um único processo), está claro que o apóstolo

167

faz uma associação entre o batismo, de um lado,

Em Gálatas 3.26,27, o pensamento de Paulo salta

e, de outro, a unidade com Cristo e tudo que de­

imediatamente da ideia de “vestir” a Cristo no

corre disso. Por isso, a única referência nas car­

batismo para a ideia do corpo em que perdem

tas de Paulo ao batismo no Espírito (ICo 12.13)

força todas as distinções entre seres humanos. A

com certeza diz respeito ao batismo no sentido

mesma relação é visível no apelo ao comporta­

que Paulo utiliza em outras passagens: "Todos fo­

mento digno de batismo encontrado em Colossen­

mos batizados por um só Espírito para ser um só

ses 3.5-15, em que a figura de linguagem batismal

corpo” , no sentido de que foram desfeitas todas

encontrada em Gálatas 3.27 é extensamente apU-

as barreiras raciais e sociais. Isso é precisamen­

cada: “Já vos despistes do velho homem com suas

te declarado em Gálatas 3.26-28 em relação ao

ações, e vos revestistes do novo homem, que se

batismo.

renova para o pleno conhecimento, segundo a

A segunda metade de ICoríntios 12.13 é, em

imagem daquele que o criou [i.e.. Cristo, a ima­

geral, traduzida por “e a todos nós foi dado beber

gem perfeita de Deus]; nesse caso, não há mais

de um só Espírito” (v.

quanto a uma re­

grego nem judeu, nem circuncisão nem incircun­

ferência ao batismo nessa passagem). Com toda a

cisão, bárbaro, cita, escravo ou homem livre, mas,

probabilidade, o texto se refere ao derramamento

sim. Cristo, que é tudo em todos”.

C u m m in g

do Espírito nos últimos dias (Is 32.15; J1 2.28,29)

A pergunta que com certa frequência tem sido

e pode ser parafraseado assim: “Todos nós rece­

feita é: “Para qual igreja o batismo dá entrada?

bemos a maré inundante do Espírito” (i.e., todos

Para a local, ou para a universal? Para a visível,

fomos saturados com o Espírito). O fato de essa

ou para a invisível?”. A pergunta é, em sua es­

experiência pertencer ao início da vida cristã ofe­

sência, um tanto moderna, e teria sido inconce­

rece uma pista para uma consideração importan­

bível para Paulo. A

te: a conversão não é apenas resultado de decisão

do povo de Deus, cuja “vida está escondida com

humana, mas é possibiUtada pelo Espírito. Ele

Cristo em Deus” (Cl 3.3). O batismo é um ato vi­

igreja

é a manifestação visível

não é apenas o fruto do batismo-conversão: é o

sível com significado espiritual. É, portanto, bem

verdadeiro batizador, o agente que faz com que

apropriado como forma de entrada numa comu­

0 batismo seja aquilo que deve ser: o ingresso na

nidade visível do povo de Deus e no corpo que

vida em Cristo.

transcende qualquer local ou momento. Apresen­

Uma Unha de raciocínio semelhante acha-se

tar uma expressão satisfatória dos elementos ex­

em Tito 3.5: “ Não por méritos de atos de justiça

terior e interior, quer do batismo, quer da igreja,

que houvéssemos praticado, mas segundo a sua

é um perpétuo problema pastoral. Esse dilema,

misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar da

contudo, desafia os crentes a se reformar de acor­

regeneração e da renovação reahzados pelo Espí­

do com a Palavra de Deus, em vez de tolerar o

rito Santo”. A última oração pode ser traduzida

descuido na doutrina e na prática.

assim: “Ele nos salvou [...] mediante o lavar ca­ racterizado pelo novo início e a renovação que o

S. O batismo e a ética cristã

Espírito Santo opera”. 0 texto prossegue, dizendo

Sem dúvida, é significativo que a mais longa ex­

que ele “ derramou [o Espírito] amplamente sobre

posição do batismo nas cartas de Paulo seja fei­

nós” , que ecoa Joel 2.28.

ta com um propósito ético. Romanos 6.1-14 está repleto de apelos a uma vida em conformidade

4. O batismo e a igreja

com a redenção de Cristo, vida que se encontra

Desde o início, o batismo nas comunidades do

no cerne do evangelho: “ Nós, que morremos para

NT era entendido como um rito do grupo, bem

0 pecado, como ainda viveremos nele? [...] fo­

como do indivíduo. Já vimos que, para Paulo, era

mos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados

axiomático esse entendimento sobe o batismo, e

na sua morte [...] assim andemos nós também

em Corinto apela-se ao batismo como forma de

em novidade de vida. [...] a nossa velha natureza

protesto contra o individualismo levado ao extre­

humana foi crucificada com ele, para que o corpo

mo. Ser batizado em Cristo era ser batizado no

sujeito ao pecado fosse destruído, a fim de não

corpo de Cristo (ICo 12.13; v.

servirmos mais ao pecado. [...] Assim, também.

c o r p o de

C risto ) .

168

B a t is m o i i : P a u l o

considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos

nova criação: quando Jesus ressuscitou dos mor­

para Deus, em Cristo Jesus”.

tos, a nova criação veio a existir nele, por isso

Esse apelo é desenvolvido de modo mais exten­

Paulo pôde dizer: “Se alguém está em Cristo, é

so em Colossenses 2.20—3.14. Aí o fato de que o

nova criação; as coisas velhas já passaram, e sur­

crente morreu e ressuscitou em Cristo é não ape­

giram coisas novas” (2Co 5.17). A existência cris­

nas motivo para uma vida semelhante à de Cristo,

tã não é nada menos que a vida na nova criação.

mas também a base para o crente realizar o padrão

Por ser assim, a vida cristã é uma peregrina­

batismal de morrer para o pecado e ressurgir para

ção rumo ao reino consumado, no qual o crente

a justiça: “Eliminai vossas inclinações carnais:

ingressa por meio da ressurreição final. Por isso,

prostítuição, impureza, pabcão, desejo mau e ava­

Paulo declara, em Romanos 6.5: “Se fomos uni­

reza, que é idolatria; [...] mas, agora, livrai-vos de

dos a ele na semelhança da sua morte, certamente

tudo isto [...] pois já vos despistes do velho ho­

também o seremos na semelhança da sua ressur­

mem com suas ações, e vos revestistes do novo

reição” — naturalmente, agora e, por fim, no dia

homem [...]. Então [...] revesti-vos [...] de compai­

de sua vinda nesse reino. Isso é explicado de ma­

xão [...]. E, acima de tudo, revesti-vos do amor”.

neira mais completa em ICoríntios 15 — o âmago

Isso levou G. Bornkamm a afirmar que, nos

dessa passagem acha-se em ICoríntios 15.20-28.

escritos de Paulo, “o batismo é a apropriação da

É interessante que isso significa que o batismo, à

nova vida, e a nova vida é a apropriação do ba­

semelhança da c e ia

tismo”

1958, p. 50). Para dar forma

os dois polos da redenção: de um lado, a morte e

prática a esse princípio, a igreja primitiva elabo­

a ressurreição de Jesus; de outro, a vinda futura

rou um sistema de ética que se reflete nas seções

de Jesus. Estando entre um e outro, o cristão olha

práticas de várias cartas do

para trás e contempla a salvação realizada; olha

(B

ornkamm

,

nt

,

especialmente as

Senh o r,

do

situa o crente entre

de Paulo. A essa tradição Paulo se refere even­

para a frente e vê a salvação a se consumar; no

tualmente e de forma notável em Romanos 6.17:

presente, olha para o Senhor ressurreto em busca

“ Graças a Deus porque, embora tendo sido es­

de graça, a fim de persistir até alcançar o alvo e

cravos do pecado, obedecestes de coração à for­

viver dignamente de tal amor infinito.

ma de ensino a que fostes entregues”. Com base

Ver também

C r is t o ,

nessa declaração, fica evidente que os crentes a

r it o

quem eram dirigidas essas palavras foram instruí­

ç ã o ; a d o r a ç ã o /c u lto .

dos nos elementos do viver cristão que decorrem

Sa n to ; “

D Pc:

em

m o r t e d e ; e s c a t o l o g ia ;

C r is t o ” ;

c e ia

do

Se nh o r;

E s p í­

r e s s u r r e i­

c ir c u n c is ã o ; c r ia ç ã o e n o v a c r ia ç ã o ; m o r r e r e

do batismo (v. tb. ITs 4.1-7; 2Ts 3.6,11-13).

r e s s u s c it a r c o m

6. O batismo e o reino de Deus

E iB L io G R A n A . B a r t h , M .

O batismo de João Batista foi essencialmente um

Zollikon-Zürich: Evangelischer Verlag, 1951. ■ B e -

rito escatológico, prenunciando a vinda do Mes­

a s le y - M u r r a y ,

sias, 0 dia do Senhor e o

London:Macmillan, 1962. ■Bieder, W.ßaTrri^oj

r e in o d e D eu s. 0

batismo

C r is t o ;

v id a e m o r t e .

Die Taufe ein Sakrament?

G. R. Baptism in the New Testament. k tA .

de Jesus pelas mãos de João Batista viu a inaugu­

EDNT [s.L: s.n., s.d.], v. 1. p. 192-6. •

ração daquele reino: os céus se abriram, o Espíri­

Das Ende des Gesetzes, Paulusstudien, Gesammel­

B o rn k a m m ,

G.

to desceu sobre Jesus, a voz de Deus foi dirigida a

te Aufsätze I. München: Kaiser, 1958. • ______ .

ele, declarando que ali estava o Servo messiânico

Early Christian experience. London;

do Senhor (cp. Mc 1.11; cf. SI 2.7; Is 42.1). Seu

B u r n is h ,

serviço ao reino atingiu o clímax com sua morte

1985. ■ C a r l s o n , R. P. The Role of Baptism in Paul’s

scm ,

1969. •

R. The meaning of baptism. London:

spc k ,

e ressurreição. Paulo entendeu o batismo cristão

Thought. Int, v. 47, p. 255-66, 1993 ■ C a r r i n g t o n ,

como a participação naquela inauguração do rei­

P. The primitive Christian catechism: a study in the

no de Deus por intermédio de Jesus.

batizan­

Epistles. Cambridge: Cambridge University Press,

do partilha da morte e ressurreição do Senhor,

1940. ■ C l a r k , N. An approach to the Theology of

0

as quais deram im'cio a um novo tempo. Desse

the sacraments. London:

modo, o crente vive agora nesse novo tempo.

Early Christian baptism and the creeds. London;

Paulo expressa a mesma verdade em termos de

Burns, Oates & Washburn, 1950. ■

169

scm ,

1956. ■ C r e h a n , J. H. C u llm an n ,

0.

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e

Baptism in the New Testament. 1950.

■ C um ing , G.

12.13.

NTS, V.

27,

283-85, 1981.

p.

Baptism in the Holy Spirit. F lemington , W . F.

baptism.

procedimento contradizia o fato de terem mor­

C hicago: Regnery,

J. Epotisthemen 1 •

rido para o pecado quando foram batizados na

C orinthians

D unn,

J.

L on d on ; scm ,

morte de Cristo. Em ICoríntios 12.12,13, o batis­

D . G.

1970.

mo deles por um só Espírito em um só



The New Testament doctrine of

c o r po

de

significava que os vários dons dos corin­

The

tios deveriam servir ao bem comum. Em Gála­

Lon d on : Independent,

tas 3.27,28, o batismo em [para dentro de] Cristo

1948.

L on d on : sp ck ,

church and the sacraments.

C r is t o

• F o r s y t h , P. T.

a fresh

é visto como algo que opera uma unidade que

attempt to understand the rite in terms o f Scrip­

anula as diferenças entre judeus e gregos, escravos

1953.

■ G ilmore,

A.,

Christian baptism:

org.

e livres, homens e mulheres (v.

ture, history an d theology. Lon d on ; Lutterw or­

b a t is m o i i ) .

Mateus

Im Namen Jesu, Eine

registra a ordem dada pelo Senhor ressurreto de

Sprach-und religionsgeschichtliche Untersuchung

fazer “ discípulos de todas as nações, batizando-os

zum Neuen Testament, speziell zur altchristlichen

em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”

1959. ■

th,

Taufe.

W.

H e it m ü lle r ,

(Mt 28.19;

1903.

Göttingen: V an den hoeck & Ruprecht,

V.

b a t is m o i ) .

Existem aqui, então, indi­

a

cações fundamentadas nas Cartas e nos Evange­

study in the doctrine o f ba ptism an d confirm ation

lhos de que o batismo foi, desde data bem antiga,

in the N e w Testament an d the Fathers. L on d on /

o rito universal de admissão na igreja.

{f rla n t ,

1.2.) ■ L ampe ,

The seal of the Spirit:

G.

N e w York; L o n gm an s G reen,

Ephesians. ra y,

1951.

1990.

D allas; W o rd ,

J. Christian baptism.

T.

Atos dos Apóstolos relata aqui e ali essa práti­

42.) ■ M ur­

ca em forma narrativa. Em outras passagens dos

• L incoln ,

(w b c ,

Philadelphia;

A.

escritos posteriores do

Com ­

Presbyterian C h u rch ],

1952.

line theology. O xford; B lack w ell,

a study

1964.

in

■W

que envolve indícios de ritos associados ao ato de

agner ,

banhar-se, confirmados pela primeira vez só nos

the

séculos

p ro b le m o f the Pauline doctrine o f baptism in Ro­

1967.

II

e

III.

Os mais antigos escritos pós-escriturísticos

m ans 6:1-11 in the light o f its religious-historical parallels. Edinburgh: O liver & Boyd,

existem algumas claras

motivo de controvérsia entre os estudiosos, visto

P au­

Pauline baptism and the pagan mysteries:

G.

,

alusões a ele. A identificação das últimas pode ser

■ S chnackenburg , R.

Baptism in the thought o f St. Paul:

nt

referências ao batismo e várias outras possíveis

m ission on Christian Education [T h e Orthodox

acrescentam alguns detalhes acerca de como o

■ W e­ stu­

batismo era entendido e praticado na época, mas

dies in Pauline th eology against its G raeco-R om an

só com Justino Mártir, em meados do século ii,

d d erb u rn ,

A. J.

M.

Baptism and resurrection:

b ackgroun d, {w v n t , ck,

Tübin gen ; M o h r Siebe­

encontramos uma descrição ritual relativamente

soteriology of the myste­

completa da prática batismal. E só no final do

1/44.)

1987. ■ ______ . T h e

NovT,

ries an d Pauline baptism al theology. p.

53-72, 1987.

1960.

29,

século II vamos encontrar uma reflexão teológica

The biblical doc­

sólida, no tratado De baptismo, de Tertuliano. Os

L on d on : H o d d e r & Stoughton,

primeiros dados patrísticos sobre a iniciação cris­

• W

trine o f initiation.

v.

hite,

R. E. O.

Baptism, eu-

tã completam-se com a antiga ordem eclesial que

charist, ministry. Geneva: wcc, 1982. • ______ .

a maioria dos estudiosos do século xx identificou

One Lord, one baptism. London;

1960. ■ Y s e -

com a Tradição apostólica, de Hipólito. TertuUano

j. Greek baptismal terminology: its origins

e Hipólito também fornecem a primeira prova in­

baert,

■ W o r l d C ouncil o f C hurches.

scm,

and early development. Nijmegen: Dekker & Van

conteste do batismo de crianças. Confrontado com o material fragmentário e

de Vegt, 1962. G. R.

B easley-M

alusivo do NT acerca do batismo (nos Evangelhos,

urray

nas cartas de Paulo e em outros escritos), o his­ B a t is m o G

e r a is ,

iii:

A

A

tos,

H

ebreus,

toriador e exegeta tem de tomar decisões acerca

C artas

da relação do texto com entendimentos e práticas

p o c a l ip s e

Para o apóstolo Paulo, foi possível pressupor que

atestados somente em, digamos, Justino, Tertulia­

os destinatários de suas cartas haviam recebi­

no e Hipólito. Será que os dois últimos esclarecem

do 0 batismo. Em Romanos 6, ele mostra o ab­

diretamente o que era crido, dito e feito a respeito

surdo de continuarem no pecado, visto que tal

do batismo na época do

170

n t?

Ou ,

em vez disso.

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lip se

os textos patrísticos representam acréscimos ou

vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o

alterações aos ritos e doutrinas dos apóstolos?

perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do

Ou será possível (numa espécie de meio-termo)

Espírito Santo” (At 2.38). O resultado foi notável:

que 0 século ii tenha sido testemunha de desen­

“Os que acolheram a sua palavra foram batiza­

volvimentos litúrgicos que desenvolveram o que

dos; e naquele dia juntaram-se a eles quase três

era embrionário no século i, ou deram expressão

mil pessoas” (At 2.41).

concreta a algo que existia no nível da afirma­

Para a prática e a compreensão do batismo

ção teológica nos escritos apostólicos? Qualquer

na igreja, alguns pontos precisam ser observados

abordagem séria do batismo segundo o n t precisa

com base nessa narrativa. Em primeiro lugar, os

levar em conta essas questões.

ouvintes de Pedro são convocados a se arrepen­

1. A água e o Espírito em Atos dos Apóstolos

der por causa da participação que tiveram na

2. Cartas não paulinas e Apocahpse

morte de Jesus, com a promessa de que seus pe­

3. Primórdios do período pós-apostólico

cados serão perdoados. O batismo cristão haverá

4. Fim do século ii

de ser entendido como o selo do arrependimento

5. O batismo de crianças

humano e do perdão divino diante de tudo que Jesus suportou em sua obra redentora na cruz, como 0 Servo Sofredor (cf. Lc 3.22; 24.25-27;

1. A água e o Espírito em Atos dos Apóstolos 1.1

O dia de Pentecostes. De acordo com At 3.12-21; 10.43; 13.38,39).

Atos 1.4,5, o Senhor ressurreto ordenou a seus

Em segundo lugar, o batismo se dá precisa­

apóstolos que aguardassem em Jerusalém “a pro­

mente em “ nome de Jesus Cristo”. Muita tinta já

messa do Pai” (cf. Lc 24.49; Jo 14.26; 15.26) — o

foi gasta para discutir a expressão (cf. At 8.16;

cumprimento da palavra de Jesus de que “João

10.48; 19.5). Parece suficiente interpretar “em

batizou com água, mas vós sereis batizados

nome de” como indicação de que Jesus é “a re­

com o Espírito Santo dentro de poucos dias” (cf.

ferência fundamental do rito”. L. Hartman sugere

At 11.16; v. tb. Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16). Atos

que essa foi a apUcação, feita pela igreja palesti­

2, portanto, conta a história do primeiro Pente­

na, de uma conhecida expressão semítica

costes cristão. Com um som parecido com o de

em hebraico, ou

um golpe bem forte de vento e a aparição de lín­

nha de raciocínio, Lucas deixou que Pedro se ex­

guas como de fogo sobre cada receptor, o

pressasse com as formas preposicionais típicas do

Sa n to

E s p ír it o

desceu dos céus e encheu os apóstolos e

le s h ú m ,

estilo bíbUco da l x x de Atos 2.38

seus companheiros, de modo que “começaram a

Atos 10.48

[e n t õ n o m a t i],

[le s h e m ,

em aramaico). Nessa li­

(e p i t õ n o m a ti)

e

ao passo que a narrati­

falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes

va de Atos 8.16 e 19.5 utiliza eis to onoma como

concedia que falassem” (At 2.4). À multidão que

a forma que o próprio Lucas havia aprendido,

se ajuntava, Pedro interpretou esse acontecimen­

sendo que eis é a preposição que Paulo empre­

to com base na profecia de Joel: “Acontecerá nos

ga com relação ao batismo (Rm 6.3; ICo 1.13,15;

últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu

Gl 3.27). Foi proposto que os primórdios do ba­

Espírito sobre todas as pessoas [...]. E acontecerá

tísmo cristão caminham de mãos dadas com o

que todo aquele que invocar o nome do Senhor

reconhecimento da ressurreição de Jesus e de sua

será salvo” (At 2.17-21; cf. J1 2.28-32

[lx x

3.1-5)).

condição de Cristo e Senhor

0 apóstolo recita, então, para os “homens ju­

(P

o k o r n í) .

Não sa­

bemos se, bem no início, o ministro pronunciava

deus” a vida, morte e ressurreição de Jesus, que

ritualmente a expressão “em nome de [o Senhor]

“matastes, crucificando-o pelas mãos de ímpios;

Jesus [Cristo]” nos batismos. Informações dos

e Deus o ressuscitou” (At 2.23,24). Estando agora

séculos

“exaltado à direita de Deus” (At 2.33) como “ Se­

ga de invocação do nome divino no batismo era

nhor e Cristo” (At 2.36) e “tendo recebido do Pai

uma pergunta ou perguntas feitas ao candidato:

III

e

IV

sugerem que a “forma” mais anti­

a promessa do Espírito Santo”, Jesus “derramou

“Você crê em...?”

o que agora vedes e ouvis” (At 2.33). Tocados

é Senhor” pode ter sido uma confissão de fé da

no coração, os ouvintes perguntam o que fazer,

parte do candidato por ocasião do batismo (cf.

e Pedro responde: “Arrependei-vos, e cada um de

(W

h it a k e r ,

Rm 10.9,13; ICo 12.3).

171

1965). No

nt

,

“Jesus

B a t is m o iii: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e

do reino de Deus e do nome de Jesus” (At 8.12;

Em terceiro lugar, não liá indicação de que os apóstolos tenham sido batizados com água (tal­

cf. At 8.4,5). Muitos “ deram crédito”

vez tivessem recebido o batismo de João) quan­

creram, e foram batizados, “tanto homens quanto

do receberam o Espírito Santo, mas a mensagem

mulheres” (At 8.12), entre eles Simão, “ que pra­

imediata de Pedro conclamava seus ouvintes ao

ticava artes mágicas, causando a admiração do

batismo “em nome de Jesus Cristo” com a pro­

povo de Samaria” (At 8.9,12). Essa nova etapa na

messa de que também receberiam “o dom do

missão requereu, aparentemente, supervisão da

Espírito Santo”. Com base nessa passagem, pa­

parte de Jerusalém, pois os apóstolos enviaram

rece que a experiência pós-pentecostal esperada

Pedro e João a Samaria (At 8.14). Pedro e João

(a r a ),

isto é,

é o batismo com água resultante na recepção do

“oraram” pelos crentes samaritanos, “para que

Espírito; à semelhança do perdão de pecados,

recebessem o Espírito Santo, pois ele ainda não

continua sendo prerrogativa divina outorgar o

havia descido sobre nenhum deles, mas haviam

Espírito. 0 batismo de água será a ocasião (ou o

sido apenas batizados em nome do Senhor Jesus” (At 8.15,16). “Então lhes impuseram as mâos, e

meio) de Deus outorgar o Espírito.

eles receberam o Espírito Santo” (At 8.17).

Contudo, os episódios narrativos de Atos são comphcados, como teremos oportunidade de ob­

Essa passagem suscita várias questões. Como

servar, e a sequência variada de acontecimentos

os samaritanos puderam crer no evangelho e ser

nesses episódios torna difícil chegar a conclusões

batizados em nome de Cristo sem receber o Espí­

teológicas entre o batismo de água e a dádiva do

rito Santo? 0 impacto do trabalho de Pedro e João

Espírito. À luz dos vários episódios narrados em

sobre Simão, o Mágico, deixa a impressão de que

Atos, J. D. G. Dunn, por exemplo, aceita que,

havia faltado uma manifestação espetacular do

para Lucas, o batismo de água nâo é mais que

Espírito Santo; “Quando Simão viu que o Espírito

um “veículo de fé” , um meio pelo qual os crentes

Santo era concedido pela imposição das mãos dos

“alcançam a Deus”

p. 90-102). No entan­

apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro, dizendo; Dai-

to, numa leitura sacramental de Atos 2.38 a água

me também este poder, para que aquele sobre

(D u n n ,

batismal passa a ser um rito estabelecido por

quem eu impuser as mãos, receba o Espírito San­

Deus mediante o qual ele regularmente outorga

to” (At 8.18,19). Em outro nível, a passagem tem

0 Espírito Santo quando alguém se aproxima dele

sido tradicionalmente interpretada como a base

com a atitude correta. Posicionado entre ambas

apostóhca para a “confirmação” ou imposição de

as ideias, G. Barth entende que Atos 2.38 afirma

mâos episcopais na conclusão ritual do batismo

uma ligação “normal” entre o batismo de água e

de água.

a recepção do Espírito, embora os episódios nar­ rativos de Atos demonstrem que o Espírito é livre

1.3

O eunuco etíope. 0 evangelho avança,

espalhando-se por “todas as nações” (Lc 24.47;

também para vir antes ou depois do batismo de

cf. Mt 28.19; At 1.8), como se vê no relato do

água

batismo do eunuco etíope (At 8.26-39). Com base

(B a r t h ,

p. 60-72).

Os batizandos são, dessa maneira, “acrescen­

na passagem de Isaías 53, que trata do Servo

tados” à companhia dos que “perseveravam no

Sofredor, Fihpe anuncia ao cortesão africano o

ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do

evangelho de Jesus e o instrui na fé. A reação do

pão e nas orações” (At 2.41,42). O batismo leva

ouvinte é rápida: “Aqui há água; que me impede

ao ingresso na igreja, que se caracteriza por uma

de ser batizado?” (At 8.36). O texto ocidental de

fé comum, uma adoração comum e uma vida co­

Atos 8.37 continua, então, o diálogo entre o evan­

mum (v.

O “ falar em outras lín­

gelista e 0 eunuco; “ Filipe respondeu; É lícito, se

guas” (cf. At 2.4) não volta a ser mencionado na

crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse:

comunidade apostólica cheia do Espírito, mas a

Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus”. Assim,

ousadia no testemunho, sim (At 4.23-33).

“ desceram ambos ã água [...] e Filipe o batizou”

CEIA DO S e n h o r ) .

1.2. Samaria. 0 episódio batismal seguinte

(At 8.38). 0 eunuco, “alegre, seguiu o seu cami­

ocorre em Atos 8.1-25 com a disseminação do

nho” (At 8.39). A alegria é uma característica da

evangelho pela Judeia e Samaria (cf. At 1.8). Fili­

comunidade primitiva, associada às suas refei­

pe foi a uma cidade de Samaria e “pregava acerca

ções comuns (At 2.46; cf. 16.34; Rm 14.17).

172

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e

1.4

Paulo. 0 batismo seguinte, em Atos 9.18, “santificado” (hêgiasmenois) é também associado

é o de Paulo, o apóstolo aos gentios. Nesse pri­

ao batismo em ICoríntios 6.11: “Alguns de vós

meiro relato, Ananias impôs as mãos sobre Sau­

éreis assim. Mas fostes lavados, santificados e

lo/Paulo, para que este “recuperasse a vista”

justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e

(At 9.12,17,18) depois da visão ofuscante na

no Espírito do nosso Deus”. Finalmente, em Atos

estrada de Damasco. E Paulo, “ levantando-se,

26.23, Paulo se refere às profecias, agora cum­

foi batízado. E, tendo-se alimentado, fortaleceu-

pridas, de “como o Cristo deveria sofrer, e como

se” (At 9.18,19). Não é especificado mediante

ele seria o primeiro que, pela ressurreição dos

qual ação Paulo ficou “cheio do Espírito Santo”

mortos, anunciaria luz a este povo e também aos

(At 9.17), embora tenha imediatamente come­

gentíos”. A morte e a ressurreição são temas ba­

çado “a pregar Jesus” (At 9.20). Ao relatar os

tismais nos escritos paulinos (esp. Rm 6.1-23), e,

acontecimentos à multidão em Jerusalém, em

conforme veremos, pelo menos a partír do século

Atos 22.16, o apóstolo revela que Ananias, de­

II “iluminação” era uma palavra que designava o

pois de curá-lo, disse: “Levanta-te, sê batizado

batísmo (cf. talvez já em Ef 5.14).

e lava os teus pecados, invocando o seu nome”.

1.5 Cornélio. O incidente seguinte (At 10.1—

Os imperativos baptisai e apolousai estão na voz

11.17) é 0 caso de Cornélio, centurião romano

média, em grego (“ Cuida que sejas batizado e

do regimento militar chamado Italiano, homem

que teus pecados sejam lavados”), mas não ne­

temente a Deus, assinalando, assim, uma etapa

cessariamente deixa implícito que o batismo foi

importante na disseminação do evangelho entre

autoministrado. Ao contrário do batismo de pro­

os gentios (At 10.44; 11.1,18), em direção a Roma.

sélitos judeus (v. BATISMO i), parece que o batismo

Na casa de Cornélio, Pedro conta a história de

cristão sempre foi ministrado por outra pessoa (a

Jesus Cristo e conclui com a promessa de que

história da mártir Tecla é a exceção que compro­

“todo o que nele crê receberá o perdão dos pe­

va a regra). No entanto, é o próprio Paulo que

cados” (At 10.43), 0 que também pode ser a dá­

tem de invocar o nome do Senhor (cf. At 4.12;

diva do “arrependimento para a vida” (At 11.18).

Rm 10.9,13). Entre os pecados de Paulo incluem-

Imediatamente, “o Espírito Santo desceu sobre

se, claramente, ter perseguido a Jesus ao fazê-lo

todos os que ouviam a palavra” (At 10.44). Eles

com seus seguidores (At 9.4,5; 22.7,8).

começaram “a falar em línguas e engrandecer a

O último relato da conversão de Paulo apare­

Deus” (At 10.46). A conclusão de Pedro é que “es­

ce em seu pronunciamento diante do rei Agripa

tes [...], como nós, receberam o Espírito Santo”

(At 26.2-23). Seu discurso faz alusões ao batismo.

(At 10.47). “Deus lhes concedeu o mesmo dom

A missão que Paulo recebeu como apóstolo foi

que concedera também a nós, ao crermos no Se­

“lhes abrir os olhos a flm de que se convertam

nhor Jesus Cristo” (At 11.17). Pedro não pôde se

das trevas para a luz, e do poder de Satanás para

“opor a Deus” (At 11.17), de modo que ninguém

Deus, para que recebam o perdão dos pecados e

podia “recusar a água” (At 10.47). Por esse mo­

a herança entre os que são santíflcados pela fé

tívo, Pedro “ordenou que fossem batízados em

em mim [o Senhor Jesus]” (At 25.18). Além dos

nome de Jesus Cristo” (At 10.48). Aparentemente

temas da fé em Cristo e do perdão dos pecados,

os “parentes e amigos mais chegados” de Corné­

vistos em conexão com o batismo, a troca das

lio foram batizados com ele (At 10.24).

trevas pela luz e do poder de Satanás pelo poder

A importância básica do episódio está clara­

de Deus encontra expressão nos ritos de renúncia

mente na historiografia de Lucas, na extensão da

ao Diabo e de profissão de fé confirmados pela

missão — nas pegadas de Deus, por assim dizer

patrística e, de forma impressionante, nas ceri­

— aos gentíos. Conquanto o relato revele indubi­

mônias orientais da apotaxis e syntaxis. Nessas

tavelmente a liberdade divina de ação ao outorgar

cerimônias, o candidato olha para o oeste, o lugar

0 Espírito e até mesmo na manifestação do dom

das trevas, a fim de renunciar a Satanás (em al­

na glossolalia, é objeto de controvérsia até que

guns ritos, até mesmo cuspir nele!); depois, vira-

ponto se pode afirmar que o modo da conces­

se para o leste, na direção do sol nascente, a fim

são do Espírito é parte normal da doutrina mais

de se juntar a Cristo e à santíssima Trindade. Ser

geral da “graça preveniente”. Ressalte-se que

173

Cornélio e sua “casa” já temiam a Deus (At 10.2)

imposição de mãos pelos apóstolos como prova

e de alguma forma conheciam a história de Jesus

da “confirmação episcopal” depois do batismo.

(At 10.36). Foi a pregação de Pedro que despertou

Em tempos mais recentes, o relato tem sido usado

a fé deles em Cristo (como fica implícito em At

pelos pentecostais e outros como confirmação do

10.43 e 11.17). 0 batismo, portanto, selou a fé

“batismo no Espírito”, caracterizado pela glosso-

que já tinham em Cristo e o perdão dos pecados

laha, como uma segunda etapa após o batismo de

(At 10.43,48) — no caso deles, a dádiva do Espí­

água na geração de cristãos.

rito Santo, que já haviam recebido.

1.8

Conclusões. Com base em Atos, é difícil

1.6 O carcereiro de Filipos. Quando um ter­

concatenar uma compreensão sistemática do ba­

remoto noturno abriu as portas da prisão em

tismo ou de um ritual consistente de iniciação

Filipos, onde Paulo e Silas estavam detidos, o

cristã. Existem diferenças nas circunstâncias dos

apavorado carcereiro perguntou: “ Senhores, que

episódios relatados e na sequência de aconteci­

preciso fazer para ser salvo?” (At 16.30). Aprovei­

mentos dentro de cada relato. De qualquer modo,

tando a ambiguidade do verbo sõzõ (“ salvar”), os

a preocupação principal de Lucas é com o quadro

evangelistas responderam: “ Crê no Senhor Jesus,

maior da propagação inicial do evangelho. Talvez

e tu e tua casa sereis salvos” (At 16.31). Então,

seja mais sábio nos hmitarmos a assinalar um fei­

pregaram aos presentes “a palavra de Deus” , e

xe de temas recorrentes que mais tarde aparecerão

com isso 0 narrador quer dizer (como sabemos

em várias configurações na história teológica e

com base em casos semelhantes) “o evange­

litúrgica: anúncio do evangelho, arrependimento,

lho de Jesus Cristo”. A pregação foi frutífera, e

fé, o nome do Senhor Jesus Cristo, lavagem com

o carcereiro “ foi batizado, ele e todos os seus”

água, perdão dos pecados, imposição de mãos, o

(At 16.33). Ele “ pôs a mesa para eles e alegrou-se

recebimento do Espírito Santo, glossolaha, vida e

muito com toda a sua casa, por haver crido em

salvação, ingresso na comunidade cristã.

Deus” (At 16.34). A mesa e o regozijo apontam para a refeição comunitária dos cristãos (v. DO S e n h o r ) .

2. Cartas não paulinas e Apocalipse

c e ia

Sem dúvida, mais tarde ocorreu a prá­

2.1

tica, testificada por Justino Mártir, de os recém-

Hebreus. Essa carta (v.

H

ebreus,

C arta

aos)

contém duas passagens que requerem conside­

batizados participarem imediatamente da santa

ração: Hebreus 5.11—6.6 e 10.19-25. A primeira

comunhão.

passagem lembra os destinatários de que certos

1.7 Éfeso. 0 aspecto mais intrigante de Atos

aspectos de sua admissão inicial no cristianismo

19.1-7 é que desde o início se afirma que aquele

não precisam e talvez não possam ser repetidos:

pequeno grupo de pessoas que Paulo encontrou

aprender “ os princípios elementares da palavra

em Éfeso eram “discípulos” que haviam crido

de Deus”, “ os aspectos elementares do ensino de

(At 19.1,2). Parece que eram discípulos de João

Cristo”, os quais são comparados com o leite, que

Batista, e haviam sido batizados “no batismo de

é seguido de alimento sólido: “o ahcerce do ar­

João” (At 19.3). Nunca tinham ouvido “ que há

rependimento de obras mortas e da fé em Deus,

Espírito Santo” (At 19.2,3). Parece que haviam

o ensino sobre batismos [abluções, baptismoi],

captado apenas parte da mensagem de João (tal­

imposição de mãos, ressurreição dos mortos e

vez o “batismo de arrependimento”), por isso

juízo eterno”. Até aqui parece que as referên­

Paulo teve de acrescentar que João tinha dito “ao

cias são tanto à evangelização que dá origem ao

povo que cresse naquele que vinha depois dele,

arrependimento e à fé quanto à catequese, que

isto é, em Jesus” (At 19.4). Quando ouviram isso,

instrui os discípulos nas crenças cristãs básicas e

imediatamente “foram batizados em nome do Se­

na relevância dos ritos do batismo em água e da

nhor Jesus” (At 19.5). Fica claro que não foi uma

imposição de mãos, os quais selarão sua entra­

repetição do batismo cristão. Em seguida, “quan­

da na comunidade cristã. O uso da forma plural

do Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo

baptismoi talvez seja exphcado pela necessidade

veio sobre eles, e eles começaram a falar em lín­

de serem os batizandos ensinados a respeito da

guas e a profetizar” (At 19.6). IVadicionalmente,

diferença entre o batismo cristão e as abluções de

recorre-se a essa sequência de batismo de água e

174

outras religiões existentes na época.

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

Então, 0 texto passa a mencionar, com o tem­

que possuem (Hb 10.23; o substantivo homolo-

po aoristo, certos acontecimentos que se deram

gia, “confissão” , tornou-se um termo técnico para

uma única vez para cada participante. Eles foram

a confissão batismal, e o exegeta bizantino Teo-

“iluminados, experimentaram o dom celestial e

filacto ressoa a orientação escatológica do credo

se tornaram participantes do Espírito Santo, e ex­

batismal quando escreve: “Quando fizemos as

perimentaram a boa palavra de Deus e os poderes

alianças de fé, confessamos crer na ressurreição

do mundo vindouro”. Esses aspectos podem des­

dos mortos e na vida eterna”). O fundamen­

crever diferentes facetas do ingresso na esfera da

to originário do batismo é o “ sangue de Jesus”

salvação e/ou as partes correspondentes de um

(Hb 10.19), e sua derradeira perspectiva é o “Dia

complexo processo ritual de iniciação. O termo

[que] se aproxima” (Hb 10.25). O verbo “lavar”

“iluminados” passou a ser sinônimo de batiza­

tem sido invocado a favor da aspersão e da afu-

dos. O dom do Espírito Santo foi associado à água

são como modos de batismo.

e à imposição de mãos. 0 ato de provar a bon­ dade da Palavra de Deus, na expressão tomada

2.2

IPedro. 0 batismo é diretamente men­

cionado em IPedro 3.20, passagem que diz: “A

por empréstimo de Salmos 34.8, foi aplicado pela

água, a qual, figurando o batismo, agora também

igreja primitiva na santa comunhão. No contexto

vos salva, não sendo a remoção da imundícia da

de Hebreus, tudo isso faz parte da exortação para

carne, mas a indagação [i.e., súplica] de uma boa

avançar e da advertência de não retroceder, pois,

consciência para com Deus [ou apelo a Deus para

no que diz respeito aos que cheguem ao ponto

ter uma boa consciência], por meio da ressurrei­

de “cometer apostasia” , “é impossível que [...]

ção de Jesus Cristo”. 0 poder do batismo deriva

sejam outra vez renovados para o arrependimen­

da ressurreição de Cristo, a qual se torna dispo­

to”. Mais tarde, a igreja iria, gradualmente, desen­

nível para os crentes por causa da vida de justiça

volver um sistema penal para a readmissão de

em Cristo (cf. IPe 3.8-18; 4.1-19). O ato exterior

pecadores que cometiam faltas graves, mas um

do batismo tem um significado interior: a dádiva

segundo batismo sempre foi rejeitado. Isso equi­

salvadora de Deus tem ali um encontro com a

valeria a tornar a crucificar a Cristo, disse João

resolução da fé. O vocábulo eperõtêma, traduzido

de Damasco, numa aplicação de Hebreus 6.6, em

tanto por “ suplicar a” quanto por “comprometer-

sua obra Sobre a fé ortodoxa 4.9.

se a”, aparentemente vem do jargão de contratos

Na outra passagem [Hb 10.19-25), que usa

e é possível que se refira ao compromisso ético

como ilustração um ritual levítico (Lv 8 e 16), o

do batizando

autor parece estar lembrando aos que já foram

“assumem o compromisso de viver à altura”)

batizados o significado e o resultado do batismo:

ou ao responsio (“resposta”) às perguntas feitas

é uma garantia, no presente, do acesso a Deus

no batismo

por meio de Cristo e uma conclamação ao en­

passagem dá a entender que o batismo cristão

corajamento e ao amor mútuos na comunidade

foi prefigurado na ocasião em que Deus salvou

(J u s t i n o ,

(T

e r t u l ia n o ,

Ap, 1.61: os candidatos

De re, 48; De co, 3). A

cristã. A convocação à ação no presente baseia-

Noé e sua famíha, nos dias do Dilúvio, tema que,

se na realidade duradoura, expressa por parti­

paralelamente a outros “tipos” veterotestamen-

cípios perfeitos, de ter “o coração purificado de

tários (como o êxodo através do mar Vermelho;

má consciência e [...] o corpo lavado com água

cf. ICo 10.1,2), ecoará mais tarde em orações e

limpa” (Hb 10.22). Essa frase, que não estabe­

comentários batismais.

lece uma antítese entre as coisas interiores e as

A carta inteira de IPedro possui, de acordo

exteriores, mas que, num "paralelismo retórico”

com muita pesquisa recente, um molde batismal

positivo, reúne, isto sim, o interior e o exterior

(v.

em "uma realidade una e indivisível”

easley-

uma moldura epistolar, o grosso do material está

(B

adoração).

Alguns entendem que ali, dentro de

apresenta uma ideia de batismo como

estruturado de acordo com o modelo de um rito

"um sinal exterior e visível de uma graça interior

de iniciação completo, em que a palavra “agora”,

e espiritual” (citando o Catecismo anglicano]. O

frequentemente repetida, constitui um vestígio

rito encena um encontro entre o Deus fiel da pro­

do desempenho propriamente dito. 0 protestante

messa e os crentes que confessam a esperança

alemão H. Preisker encontra na carta o “ depósito”

M

urray) ,

175

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e

[Niederschlag] de um culto batismal constituído

alguns homihastas patrísticos bem antigos, como

de hinos, sermões e orações: um salmo de oração

Melito de Sardes e Hipólito de Roma, fazem uma

{Gebetspsalm] como introito (IPe 1.3-12); uma

ligação linguística (fantasiosa) entre esse verbo e

fala instrucional (belehrende Rede] que faz eco a

ta pascha (“páscoa”), e, por meio de Tertuliano

fórmulas confessionais e litúrgicas (IPe 1.13-21);

{De ba, 19), sabemos que a versão cristã daquela

o batismo (entre IPe 1.21 e 1.22), seguido de

festa era a época preferida para a ministração do

uma breve exortação aos batizandos, os quais

batismo, pelo menos a partir do final do século n

têm agora a “vida purificada” e foram “regenera­

(por esse motivo, era a época provável do ano

dos” (IPe 1.22-25); um hino festivo em três ver­

para a realização da liturgia batismal descrita na

sos oferecido por alguém inspirado pelo Espírito

ordem da igreja antiga, liturgia que boa parte dos

(IPe 2.1-10); uma exortação [Parãnese] feita por

estudos acadêmicos do século xx identificava com

outro pregador (IPe 2.11—3.12), interrompida

a que é, de outra forma, a obra perdida de Hipóli­

por um tradicional hino a Cristo [Christaslied]

to, Tradição apostólica].

entoado pela congregação (IPe 2.21-24); um dis­ curso escatológico [Offenbarungsrede] apresenta­

Na

avaliação

da

maioria

dos

exegetas,

Preisker e Cross foram excessivamente ambicio­

do por um vidente apocalíptico (IPe 3.13—4.7a);

sos em suas respectivas reconstruções da liturgia

uma oração de encerramento [Schlussgebet] e

batismal em IPedro, mas há ampla concordância

uma doxologia cantada, concluindo o culto ba­

em que o linguajar da carta guarda muitas as­

tismal propriamente dito (IPe 4.7b-ll); um culto

sociações com 0 batismo. Quer façam referência

de encerramento para a igreja toda [Schlussgot-

a ritos de iniciação já existentes quer não, es­

tesdienst der Gesamtgemeinde], consistindo em

ses termos sem dúvida ajudaram a estabelecer

uma revelação escatológica (IPe 4.12-19); uma

0 repertório temático do batismo cristão e, desse

exortação [Mahnrede] aos presbíteros, membros

modo, a prenunciar o que só mais tarde assu­

mais novos da igreja e ao grupo todo (IPe 5.1-9);

miu concretude ritual. Dentro desse contexto, em

uma bênção [Segenspmch] pronunciada por um

que repetidas vezes é relembrada a pregação do

presbítero (IPe 5.10) e uma doxologia pela con­

evangelho e a resposta de fé, os itens a seguir

gregação toda (IPe 5.11).

merecem atenção em particular por sua associa­

0 anglo-católico F. L. Cross enxerga em IPedro

ção com a compreensão e a prática do batismo:

de um modo ainda mais claro a parte do celebran­

a atividade regeneradora de Deus manifesta na

te na liturgia do batismo numa vigília pascal. Esta

ressurreição de Cristo (IPe 1.3) e na Palavra pre­

é a sequência dos atos do bispo: oração solene de

gada (IPe 1.23), pois os receptores são chama­

abertura (IPe 1.3-12); exortação aos candidatos,

dos “bebês recém-nascidos” (IPe 2.2), fazendo

baseada no tema do Êxodo como um “ tipo” do

lembrar que João 3.3-7 fala do nascer da água

batismo (IPe 1.13-21); [batismo seguido de] boas-

e do Espírito e Tito 3.5-7 se refere ao batismo

vindas aos recém-batizados, agora participantes

como 0 “lavar da regeneração e da renovação

da comunidade redimida (IPe 1.22-25); mensa­

realizados pelo Espírito Santo” ; o relato esbo­

gem sobre os fundamentos da vida sacramental

çado da obra salvadora de Cristo (IPe 3.18,22)

(i.e., batismo, eucaristia, santificação, sacerdó­

que ressoa o querigma de Paulo e Atos e pre­

cio do povo de Deus; IPe 2.1-10); [consagração

nuncia a confissão de fé em credos batismais; a

eucarística e comunhão, seguidas de] mensagem

passagem das trevas para a “maravilhosa luz” de

sobre os deveres do discipulado cristão, abar­

Deus (IPe 2.9), observando-se que “iluminação”

cando as responsabilidades morais dos cristãos

é termo encontrado em Justino Mártir (c. 150)

em seus vários chamados (IPe 2.11—3.12) e a

com o sentido de batismo; a menção ao “leite

vocação do cristão à “vida pascal” (i.e., a vida

espiritual” e à experiência de que “ o Senhor é

de sofrimento místico em Cristo; IPe 3.13—4.6);

bom” , em IPedro 2.2,3, o que talvez explique a

admoestações finais e doxologia (IPe 4.7-11). A

prática de acrescentar uma xícara de leite e mel

carta emprega doze vezes o verbo paschõ com o

à comunhão eucarística de neófitos, mencionada

sentido de “sofrer”. Foi o que levou Cross a si­

por Tertuliano {De co, 3) e descrito em Tradição

tuar a suposta liturgia na vigília da Páscoa, pois

apostólica, de Hipólito.

176

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e

2.3 IJoão. Duas passagens dessa carta (v.

reflete uma hturgia pascal já existente, embora re­

João , C a r t a s d e )

vêm à nossa consideração. O

conhecendo que alguns elementos do livro canô­

treciio de IJoâo

5 .6 -8

afirma que Jesus Cristo

nico podem, até certo ponto, ter servido de “fonte

veio “pela água e pelo sangue” e que “ os que

de inspiração e de ideias para refinamentos pos­

dão testemunho sâo três: o Espírito, a água e o

teriores da hturgia cristã”. (Nesse caso, em oposi­

sangue”. A referência primordial é talvez ao ba­

ção à tese de Shepherd, é possível afirmar que “as

tismo de Cristo (“a água”) e à sua morte (“o san­

pessoas enxergam em Apocalipse a hturgia pascal

gue”), porque o Espírito esteve sobre ele durante

de tempos posteriores, em vez da de Apocalipse”.)

todo o seu ministério

A referência

As sete cartas de Apocalipse 1— 3 corresponde­

também pode ser ou ao “sangue e [à] água” que

riam ao “escrutínio” ou avahação final dos can­

jorraram do lado perfurado do Cristo crucificado

didatos antes do batismo. Apocalipse 4—6 põe

nos quais autores patrísticos como

de vigíha a assembleia que está diante de Deus.

(Jo 1 9 . 3 4 ) ,

Ambrósio [Vr,

(Jo 1 . 3 2 - 3 4 ) .

e Crisóstomo (e.g.. Hm

A “pausa” de Apocalipse 7 abriga “a cerimônia

Jo] viram a origem do batismo e da eucaristia,

iniciatória de lavar e selar”. Apocalipse 8— 19

ou ao Espírito, que ficou ao alcance dos crentes

eqüivale à sinaxe eucarística, com orações, lei­

assim que Jesus foi “glorificado” (Jo

turas da Lei, dos Profetas e dos Evangelhos e o

3 .5 .2 2 )

7 .3 7 - 3 9 ).

De um modo ou de outro, haverá então uma re­

cântico dos salmos do hallel (cf. Ap 19.1-8). A

ferência secundária aos ritos de iniciação cristã,

“ceia das bodas do Cordeiro” (Ap 19.9,

que oferecem um testemunho indireto de Cristo

refere à eucaristia, “uma participação na adora­

associado a eventos básicos — sua vida, morte e

ção dos céus e também uma antecipação dessa

ressurreição.

adoração” , “ o penhor da consumação final da

ar a ]

se

Conjecturou-se (Dix) que essa passagem na

era vindoura” (Ap 20—22). 0 certo é que a visão

carta corresponde a um padrão sírio antigo de

dos mártires (Ap 7) apresenta aspectos que, mais

iniciação cristã com a sequência da dádiva do

cedo ou mais tarde, foram associados com o ba­

Espírito (que Dix equipara à “confirmação” , mas

tismo: “lavar” no sangue do Cordeiro, a imersão

que pode ter sido ou “pentecostal” ou exorcis­

na morte salvadora de Cristo; “selar” as testas,

ta), do batismo de água (que no entendimento

seja com uma cruz como sinal de pertencer ao

sírio estava principalmente associado à adoção

Senhor crucificado (cf.

do cristão como filho) e da primeira comunhão

com o nome de Deus (cf. Ap 14.1), que era invo­

Mr, 3.22) ou

Embora seja teme­

cado sobre os iniciandos em vários momentos do

rário encontrar correspondências tão detalhadas

processo batismal; “vestir roupas brancas”, tendo

entre as afirmações teológicas existentes nas Es­

se “vestido de Cristo” (cf. Gl 3.27; Cl 3.9,10) ou

crituras e práticas rituais que só mais tarde foram

da “roupa de justíça” (como no rito bizantino);

(W

h it a k e r ,

1970,

p.

T e r t u lia n o ,

1 2 -2 3 ).

confirmadas, não pode haver dúvida de que as

as alusões, em Apocalipse 7.15-17, aos salmos

Escrituras alimentaram a interpretação litúrgica

23 e 42, cuja imagem de pastor, águas e cervo

subsequente, embora nem todos os elementos

aparecem em batistérios antigos. Se, de um lado,

litúrgicos estivessem presentes na época da com­

0 martírio, conforme visto pelo vidente bíbUco,

posição das Escrituras. Considerações semelhan­

refletiu ou inspirou os ritos de batismo, de outro

tes aplicam-se a outra passagem de IJoâo: duas

lado 0 batismo propiciou uma categoria para des­

vezes, em rápida sucessão, a carta declara que

crever o martírio — o “batismo de sangue” (como

os cristãos receberam uma “unção” da parte do

quando Tradição apostólica fala de a salvação do

Santo (IJo

catecúmeno estar garantida mediante o “batismo

2 .2 0 ,2 7 ),

a qual traz verdade e vida.

Será que uma unção com óleo, como na crisma,

no próprio sangue”).

encontrada nas liturgias patrísticas de iniciação (atestadas a partir de Tertuliano), transmitem, já

3. Primórdios do período pós-apostólico

no período apostólico, a ideia de selo conferido pelo Espírito (cf. 2Co

1 . 2 1 ,2 2 ;

Ef

3.1

2.4 Apocalipse. M. H. Shepherd propõe que a estrutura de Apocalipse (v.

A

p o c a l ip s e ,

L

iv r o d e )

A Didaquê. Esse documento, que talvez

seja uma formulação da prática síria por volta do

1 .1 3 ,1 4 ; 4 .3 0 )?

final do século i, apresenta, em seus primeiros seis capítulos, 0 que parece ser material catequético.

177

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

ao expor os "dois caminiios” de "vida” e “mor­

e dirigida ao imperador Antonino Pio, Justino

te”. Então, em Didaquê 7 o documento prescre­

Mártir apresenta a mais antiga descrição direta

ve: “Batizai em água corrente, em nome do Pai

e intencional do processo de iniciação cristã, o

e do Filho e do Espirito Santo”. Só em Mateus

qual denomina “o modo em que nos dedicamos a

28.19 é especificado que o trípUce nome divino

Deus quando feitos novas pessoas por intermédio

era invocado: talvez tenha sido algo tratado na

de Cristo”. Apologia 1 61 relata:

troca de perguntas e respostas entre o ministro e

0 candidato acerca da fé deste (como em Tradição

Tantos quantos estão convencidos e acredi­

apostólica, de HipóUto), pois não dispomos de

tam que essas coisas que ensinamos e descre­

nenhuma prova anterior ao século iv de que ocor­

vemos são verdadeiras e se propõem viver de

resse um pronunciamento declaratório: “Eu te ba­

acordo com elas, esses são ensinados a orar e,

tizo em nome de...”. A tradução literal de “água

enquanto jejuam, a pedir a Deus o perdão de

corrente” é “água viva” [hydõrzõn), que está bi­

seus pecados; e nós oramos e jejuamos com

blicamente associada à graça divina (e.g., Jr 2.13;

eles. Então, nós os conduzimos a um local

17.13). Conquanto água corrente seja preferível,

onde existe água, onde renascem do mesmo

não é indispensável: “Se não tiverdes água cor­

modo em que nós também já havíamos re­

rente, batizai em outra água; e, se não puderdes

nascido. Pois são, então, lavados na água em

em água fria, então batizai em morna”. Alguma

nome do Pai e Senhor Deus de todas as coisas,

forma de imersão é vislumbrada, embora a afu-

e de nosso Salvador Jesus Cristo, e do Espíri­

são seja permitida, caso não haja água corrente

to Santo [...]. Sobre aquele que agora escolhe

ou parada: “Se não tiverdes nem uma nem outra,

renascer e se arrepende de seus pecados é pro­

derramai água três vezes sobre a cabeça”. Tanto

nunciado o nome do Pai e Senhor de todas as

0 ministro quanto o candidato devem chegar em

coisas [...]. Esse lavar é denominado “ilumina­

jejum ao evento, com “tantos quantos puderem”;

ção” , porque os que estão experimentando es­

o jejum do candidato deve ser de um ou dois dias.

sas coisas tiveram a mente iluminada. E aquele

Didaquê 9.5 estipula que ninguém, com exceção

que está sendo iluminado é lavado em nome

dos batizados em nome do Senhor, pode comer

de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio

ou beber nas refeições de ação de graças da co­

Pilatos e que, em nome do Espírito Santo, por

munidade, de acordo com a ordem do Senhor de

intermédio dos profetas, predisse todas as coi­

não dar aos cães o que é santo (v.

sas a respeito de Jesus.

3.2 lo

II,

c e ia d o

Senhor) .

Inácio de Antioquia. No início do sécu­

Inácio declarou que “ sem o bispo não é váli­

Apologia I 65 prossegue:

do seja batizar, seja realizar uma refeição ágape” (Es, 8.2). Posteriormente a história verá o pastor

Após termos, assim, lavado aquele que está

principal supervisionando a admissão à comuni­

convencido e declara sua aceitação, nós o con­

dade mantida de várias formas quando o rito de

duzimos àqueles chamados “ irmãos”, onde

água é reahzado por outros ministros. De modo

estão reunidos, e fazemos oração comum a fa­

característico, as igrejas ocidentais reservarão

vor de nós mesmos, daquele que foi iluminado

para o bispo a imposição pós-batismal das mãos

e de todas as pessoas em todos os lugares para

e/ou a unção, num gesto com o sentido da dádiva

que, por acolhermos a verdade, sejamos vistos

do Espírito Santo (mais tarde denominado “con­

em nossa vida como cidadãos bons e obedien­

firmação”); as igrejas orientais permitirão que os

tes e também alcancemos a salvação eterna.

presbíteros batizem e “carismem” , mas sempre

Quando concluímos as orações, nós nos sauda­

com 0 emprego do myron (lit., “unguento”) con­

mos mutuamente com um beijo.

sagrado pelo bispo. Segue-se um breve relato da eucaristia, da 4. Fim do século ii 4.1

qual os recém-batizados terão participado pela

Justino Mártir. Em sua Apologia i, es­ primeira vez, “pois ninguém pode participar dela,

crita em Roma por volta de meados do século ii

178

a menos que esteja convicto da verdade de nosso

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

ensino, tenha sido purificado com a lavagem para

nas palavras de sua ordem” (De sp, 4): “Quando

perdão dos pecados e regeneração e viva confor­

estamos a ponto de entrar na água, afirmamos

me Cristo pregou”.

então e ali, como um pouco antes fizemos na

Justino afirma ou deixa claramente impUcitos

igreja sob a direção do bispo, que renunciamos

os seguintes aspectos do processo de iniciação

ao Diabo e à sua ostentação e a seus anjos. De­

cristã. Aqueles que respondem positivamente

pois disso, somos imersos três vezes, ao mesmo

à mensagem da igreja têm de passar um tempo

tempo que respondemos a perguntas bem mais

não especificado de aprendizagem (o termo téc­

demoradas, que nosso Senhor prescreveu no

nico passará a ser “catecumenato”), o que inclui

Evangelho” (De co, 3). Conforme revelado em De

instrução doutrinária e moral, bem como oração

baptismo 13, a referência é à ordem de Mateus

e jejum. Essas pessoas devem expressar seu ar­

para batizar no nome trípUce, e Adversus Praxeas

rependimento, fé e compromisso. Seu batismo

26 deixa explícito que “não apenas uma, mas três

ocorre fora da congregação. Perdão dos peca­

vezes, somos mergulhados [tinguimur] dentro de

dos e renascimento estão associados ao batismo

cada uma das três pessoas em cada um dos vários

mediante o tríplice nome divino, e esse batismo

nomes”. A fraseologia de TertuUano está de acor­

parece desempenhar um papel instrumental na

do com a prática encontrada em Tradição apostó­

transmissão desses dons divinos. O batismo tam­

lica, de Hipólito, em que o ministrante apresenta

bém é chamado “ lavagem” e “iluminação”. Os re­

aos batizandos perguntas na forma de um “credo

cém-batizados são levados à assembleia litúrgica,

interrogatório” tríplice e os “batiza” a cada res­

e ah se fazem orações por eles (alguns estudio­

posta afirmativa.

sos veem nisso uma espécie de “confirmação”,

Então, “ saímos da água do lavar e somos

a qual, de outra sorte, inexiste.) Então, eles se

ungidos com a unção bendita” , que é associada

unem, pela primeira vez, no beijo de paz e na

à unção com que Moisés ungiu Arão para ser

comunhão eucarística.

sacerdote e à unção de Cristo pelo Pai com o Es­

4.2

Tertulixmo. Outra descríção, hgeiramente pírito [De ba, 7). “ Em seguida, vem a imposição

posterior, dos ritos de iniciação e de uma reflexão

das mãos na bênção, convite e boas-vindas ao

teológica mais completa sobre seu significado e

Espírito Santo” , e aqui o “tipo” do

resultado pode ser montada com base nos escri­

de Jacó sobre Efraim e Manassés, com “mãos

tos de Tertuliano, autor do norte da África. Seu

cruzadas” (cf. Gn 48.12-14), prefigurando “a

tratado De baptismo pode ser suplementado por

bênção que existiria em Cristo” (De ba, 8). Ten­

passagens de vários outros escritos. É assim a

do recebido as boas-vindas à assembleia no seu

preparação imediata para o ritual: “ Os que estão

todo, os neófitos recebem, por ocasião da comu­

at

é a bênção

a ponto de entrar por meio do batismo devem

nhão, também uma xícara de leite e mel (De co,

orar, suplicando, jejuando, dobrando os joelhos

3;cf. Mr, 1.14).

e fazendo vigílias de noites inteiras — tudo isso

Quanto ao ministro que batiza: “ 0 direito su­

frequentemente — com a confissão de todos os

premo de dar pertence ao sumo sacerdote, que é

pecados, de modo a se tornarem uma cópia do

o bispo; depois dele, pertence aos presbíteros e

batismo de João [i.e., em seu aspecto de arrepen­

diáconos, por motivo da dignidade da igreja; pois,

dimento]” [De ba, 20). A água batismal é aben­

quando isso está seguro, a paz está segura. Com

çoada numa oração de invocação, tecnicamente

exceção disso, até os leigos possuem o direito”

denominada “epíclese” : “Toda a água, quando

(De ba, 17). Quanto ã época do batismo: “A Pás­

Deus é invocado, adquire o significado sagrado

coa [i.e., 0 Domingo de Páscoa] proporciona o dia

de transmitir santidade, pois o Espírito desce ime­

da mais elevada solenidade para o batismo, pois

diatamente dos céus e permanece sobre a água,

foi nesse dia que se deu a paixão de nosso Senhor

santificando-a de dentro de si, e, quando ela é,

e nesse dia fomos batizados [...]. Depois disso, o

desse modo, santificada, absorve o poder de san­

[o período de cinquenta dias de] Pentecostes é

tificar” (De ba, 4). À beira da água, os candidatos

um tempo muitíssimo auspicioso para organizar

devem manifestar uma renúncia ao Diabo. Uma

batismos, pois foi nele que, várias vezes, a ressur­

vez dentro da água, “ fazem profissão da fé cristã

reição de nosso Senhor se fez conhecida entre os 179

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

discípulos e a graça do Espírito Santo foi outor­

dependerá de sua disposição para abandonar os

gada pela primeira vez. [...] Por tudo isso, todo

caminhos errados e ocupações proibidas. O ca-

dia é dia do Senhor; qualquer hora, qualquer es­

tecumenato normalmente dura três anos, mas o

tação, é apropriada para batismo. Se existe uma

tempo pode ser encurtado, “caso a pessoa seja

diferença quanto à solenidade, não faz nenhuma

sincera e persevere, porque nâo é o tempo que é

diferença para a graça” [De ba, 19). 0 fato de a

julgado, mas a conduta”. O ensino é acompanhado

Páscoa e o Pentecostes serem especialmente apro­

de oração. Quando os catecúmenos são “escolhi­

priados para o batismo tem correspondência nos

dos” para receber o batísmo (na tradição romana

temas pauhnos do batismo como participação na

serão chamados de electi durante as semanas que

morte e ressurreição de Cristo (Rm 6) e do ba­

precedem um batismo que, tipicamente, ocorre na

tismo pelo Espírito uno no corpo uno de Cristo

Páscoa), a vida deles é examinada em busca de

(ICo 12.12,13).

boas obras. Podem, então, “ouvir o evangelho”,

Quanto à importância e ao resultado do ba­

isso provavelmente se refere a uma cerimônia que

tismo, a obra poderosa de Deus se realiza me­

é mais tarde descrita de um modo mais completo,

diante meios incrivelmente simples: "Uma pessoa

em que os ouvidos dos candidatos se abriram aos

recebe instrução para descer à água, é lavada ao

quatro Evangelhos. A partir desse momento, são

mesmo tempo que bem poucas palavras são ditas

exorcizados diariamente e, finalmente, pelo bispo.

e sai da água pouco ou nada mais limpa do que

Na quinta-feira, eles se banham e na sexta e no

estava” — e assim mesmo “recebeu eternidade”

sábado jejuam. No sábado (geralmente na noite

[De ba, 2). Tertuliano assim descreve a operação

desse dia), o bispo reúne os candidatos para um

sacramental: “ Naquela água, o espírito é lavado

exorcismo definitivo. A noite é passada em vigflia,

corporeamente, enquanto naquela mesma água

com instrução e leitura das Escrituras.

a carne é purificada espiritualmente” (De ba,

Ao cantar do galo, é feita uma oração sobre

4). Ou, distribuindo o resuhado entre os vários

a água, a qual deve ser “ Umpa e corrente”. Os

elementos do rito e trazendo à tona a crença de

candidatos se despem, prontos para o batísmo.

TertuUano de que “a carne [caro) é a dobradiça

Primeiro é a vez das crianças, “e, se podem res­

[cardo] da salvação” : “A carne é lavada para que

ponder por si mesmas, que respondam; mas, se

a alma fique imaculada; a carne é ungida para

não podem, que o respondam seus pais ou al­

que a alma seja consagrada; a carne é consagra­

guém da família”. Então, é o momento dos ho­

da [com a cruz] para que a alma também seja

mens e, finalmente, das mulheres, “que soltarão

protegida; a carne é obscurecida pela imposição

o cabelo e porão de lado seus enfeites de ouro”.

de mãos para que a alma também seja iluminada

Um presbítero pede aos candidatos que digam:

pelo Espírito; a carne se ahmenta do corpo e do

“Renuncio a ti. Satanás, e a todo o teu serviço e

sangue de Cristo para que a alma também esteja

a todas as tuas obras” , ungindo-os com o “óleo

repleta de Deus” [De re, 8).

do exorcismo” já preparado pelo bispo. Então

4.3

A tradição apostólica. Caso a ordem ba­ outro presbítero assume a direção, auxiUado por

tismal da igreja antiga reconstruída pelos estudio­

um diácono. Na água, o batizador impõe as mãos

sos do século

esteja corretamente identificada

sobre o batizando e indaga: “ Crês em Deus Pai

com Tradição apostólica, de TertuUano (obra que

todo-poderoso?” Diante da resposta: “Eu creio” ,

de outra forma estaria perdida), então ela dá tes­

o candidato é imediatamente “batizado [baptiza-

XX

temunho da prática de iniciação cristã na igreja

tur)” pelo ministro. E, semelhantemente, mais

em Roma por volta da virada do século ii para o

duas outras vezes, depois de perguntas relativas

século

Esse testemunho é de vital importância

ao credo a respeito de “Cristo Jesus, o Filho de

para a leitura de mão dupla dos elementos vistos

Deus” e do “ Espírito Santo na Santa Igreja, e da

no NT e dos escritos patrísticos mais antigos.

ressurreição da carne”. Ao sair da água, o batí-

III.

De acordo com Hipólito, os interessados de­

zando é ungido com “o óleo de ações de graças”

vem ser examinados pelos mestres da igreja

já abençoado pelo bispo, ocasião em que o pres­

acerca dos motivos para desejarem “ouvir a Pa­

bítero diz: “Em nome de Jesus Cristo, eu te unjo

lavra”. Quanto a serem admitidos para instrução

com óleo santo”.

180

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

Os recém-batizados enxugam-se e se vestem.

primeiros séculos, o batismo é ministrado com

Então, entram na assembleia principal. Ali o bis­

base numa confissão de fé por parte do receptor.

po impõe as mãos sobre eles, orando: “Ó Senhor

No entanto, a pergunta que surge é se o batis­

Deus, que concedeste a estes o perdão dos peca­

mo também era dado a alguém — especialmente

dos mediante o banho da regeneração do Espírito

crianças — que estava, de alguma forma, “cober­

Santo, envia sobre eles tua graça, para que te sir­

to” pela fé de outros ou a alguém “em cujo nome

vam de acordo com tua vontade” (versão latina);

outros podiam falar” , conforme vemos ritualmen­

ou: "Ó Senhor Deus, que concedeste a estes o

te codificado pela primeira vez em Tradição apos­

perdão dos pecados mediante o banho de rege­

tólica, de Hipólito (“ Se [as crianças] não podem

neração, enche-os agora com teu Santo Espírito

[responder por si mesmas], que seus pais o façam

e envia tua graça para estar sobre eles” (versões

ou então alguém da família”). Com frequência

orientais). (A diferença nas versões tem sido con­

os historiadores e exegetas têm grande interesse

siderada relevante em debates sobre a “confir­

eclesial e eclesiológico aqui, pois a resposta, ain­

mação” e 0 momento da dádiva do Espírito.) Em

da que não ofereça uma solução definitiva, afeta

seguida, o bispo derrama óleo consagrado sobre

0 debatido tema da impropriedade, legitimidade

cada cabeça e, repousando ali as mãos, declara;

ou necessidade do batismo de crianças pequenas.

“Eu te unjo com óleo santo em Deus Pai todo-po-

Alguns autores dos séculos iii e iv mencionam

deroso, e em Cristo Jesus, e no Espírito Santo”.

o batismo de crianças pequenas como um costu­

(A dupla unção pós-batismal, pelo presbítero e

me apostólico. Dos tempos apostólicos, a única

pelo bispo, é uma peculiaridade do rito romano.)

prova potencialmente concreta que existe é a re­

O bispo “sela” a fronte com o sinal da cruz, bei­

ferência ao batismo de “casas” ou “ famflias” em

jando o neófito e dizendo: “ 0 Senhor seja conti­

Atos (até quatro casos) e em Paulo (uma vez).

go” , recebendo a resposta: “ E com o teu espírito”.

De acordo com Atos 10.2, Cornélio temia a Deus

Então, pela primeira vez, os recém-batizados

“com toda a sua casa [synpanti tõ oikõ autou]”, e

oram com a congregação toda e trocam o beijo

Pedro foi enviado a lhe anunciar “palavras pelas

de paz. A eucaristia vem em seguida, momento

quais serás salvo, tu e toda a tua casa” (At 11.14).

em que os neófitos não apenas recebem o pão

Para a visita de Pedro, Cornélio chamou “ seus

( “o antítipo do corpo de Cristo”, entregue com as

parentes e amigos mais chegados” (At 10.24), e,

palavras “ 0 pão celeste em Cristo Jesus”), mas

depois que “ o Espírito Santo desceu sobre todos

também provam três cálices: de água (“com o

os que ouviam a palavra” anunciada por Pedro

sentido de lavar, a fim de que o homem interior,

(At 10.44), 0 apóstolo ordenou que fossem bati­

a alma, também receba as mesmas coisas que o

zados (At 10.48). De acordo com Atos 16.14,15,

corpo”), de leite e mel (“em cumprimento da pro­

Lídia, cujo coração o Senhor havia aberto para a

messa feita aos pais”, em que agora Cristo nutre

mensagem de Paulo, foi “batizada com sua casa

os crentes “como criancinhas, fazendo com que

[kai ho oikos autês]

a amargura do coração se torne doce mediante a

e Silas disseram ao carcereiro filipense: “Crê no

Segundo Atos 16.31,32, Paulo

suavidade de sua Palavra”) e de vinho misturado

Senhor Jesus, e tu e tua casa [sy kai ho oikos sou]

(“ o antítipo do sangue que foi derramado por to­

sereis salvos.” Então eles “pregaram a palavra de

dos que creem nele”).

Deus a ele e a todos os que eram de sua casa

S. O batismo de crianças pequenas

cereiro foi “batizado, ele e todos os seus [kai hoi

Dos documentos mais antigos vêm à tona certos

autou hapantes]’’ (At 16.33), e “alegrou-se muito

[pasin tois en tê oikia autou] ” ; imediatamente o car­

fatos sobre o batismo. Do lado divino, o batismo

com toda a sua casa \panoikei], por haver crido

é uma ocasião (ou mesmo um meio) e certamen­

em Deus” (At 16.34). De acordo com Atos 18.8,

te um testemunho da atividade salvadora de Deus

“Crispo, chefe da sinagoga, creu no Senhor com

numa pessoa com base na obra redentora de Cris­

toda a sua casa [syn holõ tõ oikõ autou]. Também

to. Mas, do lado humano, em nenhum momento

muitos dos corintios, quando o ouviam, criam e

é dispensada a fé humana. Nos casos mais clara­

eram batizados”. Em ICoríntios 1.16, Paulo es­

mente demonstrados do período apostólico e dos

creve que batizou “a família de Estéfanas [ton

181

B a t is m o i i i ; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e

Stephana oikon\”, a quem chama “as primícias

em Cipriano; um recém-nascido “ não pecou, ex­

da Acaia”

e a respeito de quem diz “têm

ceto pelo fato de que, por ter nascido na carne de

se dedicado ao serviço dos santos” (ICo 16.15).

acordo com Adão, contraiu a mais antiga morte

[ara]

Pela maneira em que as histórias são relatadas

em seu nascimento primevo; contudo, justamen­

em alguns desses casos, é possível identificar os

te por causa disso, ele recebe mais facilmente o

batizados como aqueles que ouviram a Palavra e

perdão de pecados, pois não são seus pecados

creram, mas em outros a “casa” que foi “salva”

que são perdoados, mas os de outro” [Ep, 65; acrescenta passagens semelhantes da lavra

pode ter sido mais ampla. Em especial, os que

A la n d

buscam provas apostólicas a favor do batismo de

de Orígenes). Mais tarde, Agostinho de Hipona

crianças pequenas defendem que as “casas” que

iria apelar à prática eclesiástica de batizar crian­

foram “ salvas” e “batizadas” deviam ter crianças

cinhas — quando o batismo é “para a remissão

pequenas. Na avaliação dos que se opõem ao ba­

de pecados” — como prova litúrgica da doutrina

tismo de crianças, dificilmente se poderia dizer

do pecado original (e.g.. Sermão 174,

que crianças pequenas teriam ouvido a Palavra e

p. 944-5; Epístola 194,

pl,

v.

pl,

v.

38,

33, p. 889-91).

No plano teológico, defensores do batismo

crido e, por isso, não foram batizadas. 0 debate clássico dos últimos tempos sobre os

infantil apresentam vários relatos, isolada ou

primórdios da história do batismo de crianças foi

conjuntamente, da relação entre fé e tal batismo.

0 travado entre J. Jeremias e K. Aland. Enquan­

Uma criança pode ter fé (como, no exemplo de

to Jeremias, tendo o

Lucas, 0 João embriônico que saltou no ventre

at

como base, sustenta que

uma “ fórmula oikos’’ quase ritual inclui crianças

de Isabel quando diante do Verbo, que estava no

— e, talvez por isso mesmo, especialmente assim

ventre de Maria); uma criança pode receber fé

— , Aland considera que o sentido da palavra ge­

mediante o batismo; representantes podem se

nérica “casa” em qualquer texto depende do con­

responsabilizar pela fé da criança; a comunidade

texto e assinala que crianças bem pequenas não

de fé pode “ fornecer” a fé daquele que lhe está

são mencionadas em lugar algum nas passagens

sendo acrescentado; a criança pode ser batiza­

relevantes do

Aland também não se deixa im­

da com vistas ã sua fé futura. Além do mais, a

pressionar com 0 apelo de Jeremias a provas lite­

prática do batismo de crianças pequenas é vista

rárias indiretas do início e de meados do século ii

como coisa autorizada ou mesmo necessária por

(como a confissão de Cristo pelo mártir Policar­

sua congruência com uma variedade de temas da

po; “Há 86 anos venho sendo seu escravo”) ou

soteriologia e antropologia bíblicas; a necessida­

aos dados de inscrições funerárias, as quais, de

de que a humanidade decaída tem de redenção;

qualquer maneira, pertencem ao século iii. Aland

a unidade da aliança de Deus (em que o batismo

encontra no tratado de Tertuliano De baptismo a

é a circuncisão cristã); a preveniência da graça;

pista para o início do batismo de criancinhas. Ali

a universalidade do oferecimento do evangelho;

Tertuliano se opõe ao que, para Aland, soa como

a justificação imerecida; o poder intercessor de

uma nova prática de levar crianças pequenas para

outros; a solidariedade da família. Os que rejei­

serem batizadas. Reconhecendo que o Senhor

tam 0 batismo de criancinhas a favor do batismo

disse “Não os embaraceis de vir a mim” (^;;^),

apenas mediante profissão de fé pelo candidato

Tertuliano chega à seguinte conclusão: “De modo

defendem que a fé inclui uma capacidade de

que deixai que venham, quando estão aprenden­

compreensão e é pessoalmente insubstituível.

do, quando estão sendo ensinados naquilo que

Além do mais, a “nova” aliança exige circuncisão

nt

.

devem ser; deixai que se tornem cristãos quando

“do coração” ; a preveniência da graça e a uni­

se tornarem capazes de conhecer a Cristo” (De

versalidade do evangelho estão apropriada e su­

ba, 18). Para Tertuliano, a infância continua sen­

ficientemente incorporadas na pregação do Verbo

do uma idade de inocência (innocens aetas): “Por

a todos; o pecado original não implica culpa pes­

que a tenra idade teria de se apressar para a re­

soal em cada ser humano desde o nascimento; a

missão de pecados?” De acordo com Aland, o ba­

justificação pode ser “por fé somente” , mas não

tismo infantil deve ter surgido com a aceitação da

ocorre “ sem a fé” ; pais, responsáveis e a igreja

ideia de pecado original, finalmente representada

exercem devidamente suas responsabilidades e

182

B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

privilégios para com as crianças mediante oração

baptism in the first four centuries. London:

e ensino, assim como fazem com os catecúme­

1960. • ______ . The origins of infant baptism: a

nos na preparação para o batismo; assim mes­

further study in reply to Kurt Aland. London:

mo, existe, de acordo com o ensino do Senhor

1963.

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Spirit: a study in the doctrine of baptism and con­

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E van g elh o s

como.

(gênero).

nts,

Infant

B

183

l a s f ê m ia .

Ver J e s u s ,

julg am ento d e .

V

er

evang elh o

C abeça,

a u t o r id a d e .

Ver m u l h e r e s

il

(e.g., “Humanidade” ou “Rebeldia humana”) e en­ volveria 0 estudo dos outros termos que perten­

C a if á s .

Ver J e s u s ,

julg am ento d e.

cem ao campo escolhido (e.g., “ mundo” , “corpo” , “ser humano”, “pecado”, “espírito”, “promessa”).

C a r c e r e ir o

de

F il ip o s .

C

Ver

Ver

b a t is m o i i i .

A opção 2 é, então, a melhor aqui; permite aces­ so a todos os campos a que o termo paulino sarx

a r is m a t a .

E s p í r it o S a n t o

ii.

pertence. Isso, contudo, leva-nos a conjecturar se não existem outros conceitos que Paulo poderia ter

C ar n e: P aulo

pretendido ao empregar sarx em suas cartas, mas

Há muito tempo os intérpretes reconliecem que é

por algum motivo não o fez.

complexa a maneira em que Paulo utiliza a palavra

1. Os campos semânticos retratados

grega sarx, frequentemente traduzida por "carne” ,

2. Impressionantes aspectos contextuais de ca­

e a linguística contemporânea tem lançado mais luz sobre a natureza dessa complexidade. Mesmo

ráter formal 3. Comparação entre outros autores judeus e os autores cristãos

assim, os intérpretes de Paulo ainda tendem a falar do "ponto de vista de Paulo a respeito da carne”.

4. Questões teológicas

Mas esse proceder implica definir se com a palavra “carne” queremos dizer 1) as várias noções a que o

1. Os campos semânticos retratados

termo se refere na língua portuguesa, 2] as noções

Paulo emprega sarx em pelo menos seis sentidos

a que Paulo se refere quando usa o termo sarx ou

diferentes.

3) um dos empregos paulinos mais típicos.

1.1

A matéria física. Paulo usa sarx para se

Deve se rejeitar a opção 1, pois implicaria que

referir à matéria física que forma o corpo vivo de

Paulo escreve como um falante de português do

seres humanos e animais. O exemplo mais óbvio

De todo modo, é impossível existir uma

desse sentido é ICoríntios 15.39, em que Paulo

correlação consistente entre as várias aplicações do

menciona várias partes de carne de animais vivos

século

XXI.

termo português “carne” e as do grego sarx, como

(em oposição â carne para comer). Nesse contex­

Paulo as usava. A opção 3 é uma escolha melhor,

to, Paulo usa a palavra sõma, “corpo”, fazendo

visto ser reconhecido que, até mesmo no contexto

paralelo com sarx (ICo 15.38,39; cf. Cl 1.22). Em

de um único idioma, uma palavra pode ter inú­

outras passagens, na metáfora paulina do “espi­

meros sentidos, alguns sem relação alguma entre

nho na carne” (2Co 12.7) e na sinédoque “car­

si. Falar da ideia paulina a respeito da carne im­

ne e sangue" (ICo 15.50; Gl 1.16; invertida em

plicaria escolher um sentido ou campo semântico

Ef 6.12; “o sangue e a carne” ,

no universo de sentidos a que sarx pertence. Isso,

em Sb 12.5), sarx refere-se â matéria física. Esse

no entanto, suscita a pergunta; qual? Tal escolha

detalhe nem sempre é notado, pois em cada caso

iria requerer um título diferente para este verbete

a expressão indica, respectivamente, “problema”

ara

;

cf. uso literal

C a r n e : Pa u l o

ou “humanidade”. De modo similar, na expressão

passagem mais ambígua é Romanos 8.3b (“ Deus

paulina “tábuas de carne” Uím; lit., “corações de

0 fez [...] enviando o seu próprio Filho em seme­

carne” [kardiais sarkinois], 2Co 3.3} sarx faz par­

lhança da [sane] pecaminosa”), o que pode ser

te de uma metáfora mais ampla que designa a

Udo como “em semelhança de humanidade pe­

vida dos crentes. Romanos 2.28 [en sarkiperitomê,

caminosa”. É possível que a referência de Paulo

“circuncisão na carne”) talvez também faça parte

à nação judaica na sua totalidade como “minha

dessa categoria, aqui empregada como eufemis­

carne” (Rm 11.14,

mo, embora possa ser incluída na próxima (v. 1.2

usos relacionados no item 1.4 (v.

abaixo; observe-se a locução adverbial en tõ pha-

1.4

nerõ, “exteriormente”).

arc)

seja resultado de certos Is r a e l).

A esfera moralmente neutra. No grupo

com essa rubrica estão aquelas passagens que

1.2 O corpo humano. Por meio de sinédoque,

tratam de relacionamentos humanos baseados

em ICoríntios 6.16 sarx dá a ideia do corpo intei­

em processos humanos de nascimento. De algu­

ro ( “Ou não sabeis que quem se une a uma pros­

ma forma, todas essas passagens dizem respei­

tituta torna-se um corpo [sõma] com ela? Como se

to a Israel, suas tradições e seus descendentes

disse, os dois serão uma só carne [ío/t] ”, numa

(ICo 10.18; Rm 1.3; 4.1; 9.3,5,8). Dentre essas

citação de Gn 2.24; cf. Ef 5.29,30; Cl 2.1; 1.22?;

referências, o contraste entre sarx e pneuma em

2.11; Eo 25.26). Aqui sarx aparece em paralelo

Romanos 1.3 é feito entre a existência natural

com sõma e talvez também com meios, “ membro”

de Cristo — “nasceu da descendência de Davi”

(ICo 6.15) e é posta em contraste com pneuma,

—, de um lado, e, de outro, sua exaltada posição

“espírito” (ICo 6.17). Dessa maneira, sõma atrai

divina (cf. ITm 3.16; Fp 2.9-11). Nesse caso, ao

sarx para sua esfera, para seu campo semântico

contrário de outras passagens, a palavra sarx não

(cp. ICo 15.38,39 em 1.1 acima).

adquire uma ideia negativa (v. 1.6 abaixo).

Nessa

categoria

devemos

incluir

As

2Corín-

ocorrências

encontradas

em

Gálatas

tios 7.1, em que Paulo pode fazer um contraste,

4.23,29 são, porém, mais ambíguas. Paulo faz

respectivamente, entre a carne, que é corruptível

um contraste entre Ismael, o “ filho da escrava”,

e exterior, e o espírito, que é interior (cf. Cl 2.5;

que nasceu “ segundo a carne” [kata sarka,

dianoiai, Ef 2.3).

e Isaque, o filho da “livre” , que nasceu “ median­

arc),

Sarx como corpo humano também está sujeita

te uma promessa”. Se Paulo está pensando no

a condições fisiológicas e ritos religiosos. Na pri­

primeiro filho de Abraão, a saber, Ismael, como

meira vez em que Paulo pregou na Galácia, isso

alguém que nasceu por causa da incredulidade

aconteceu em razão de alguma enfermidade no

rebelde do pai, sarx transmitiria um sentido mais

corpo [d i’astheneian têssarkos, Gl 4.13,14), e seus

de acordo com o uso descrito no item 1.6 (“A

oponentes naquela localidade queriam circunci­

natureza humana rebelde”). O contraste subse­

dar os crentes para se vangloriar do estado do

quente em Gálatas 4.29 entre aquele que nasceu

corpo deles [hina en tê hymetera sarki kauchêsõntai,

kata sarka e aquele que nasceu kata pneuma ( =

Gl 6.13, em que essa condição é contrastada com

Espírito Santo?) tende a confirmar isso.

a cruz de Cristo em Gl 6.14). O uso que Paulo

A essa categoria também pertencem referên­

faz da palavra em 2Coríntios 7.5, “a nossa carne

cias ao andamento e comportamento normais da

[sarx] não teve repouso algum”

vida humana: Gálatas 2.20, Filipenses 1.22,24

(a r c ),

pode ser

mais bem classificada no item 1.3 (v. 2Co 2.13,14,

e provavelmente ICoríntios 7.28, em que se es­

em que o assunto central são as ansiedades que

tabelece um paralelo com kosmos ( “mundo” ,

Paulo tem no íntimo; cf. SI 62.2,

lxx

ICo 7.31). Em Filemom 16, o texto diz que o rela­

[63.1]).

cionamento de Onésimo com Filemom tem uma

1.3 A pessoa humana, a espécie humana. Imitando o uso da

lxx

,

carne”,

arc,

dimensão social [en sarki, “na carne”) em con­

posa sarx, Gálatas 2.16

e ICoríntios 1.29 (“ ninguém”,

ara

-,

traste com uma dimensão especificamente cristã

“nenhuma

[en kyriõ, “no Senhor”). É possível que a “ nos­

lit., “toda carne”, ambas as passa­

gens com 0 sentido de “ser humano”) e também

sa carne mortal” [tê thnëtë sarki hêmõn,

Romanos 3.20 referem-se à humanidade inteira

que se manifesta a vida de Cristo (2Co 4.11; cf.

ou talvez a um indivíduo (cf. Mt 24.22). Uma

arc) ,

em

Cl 1.24), se refira ao corpo humano (v. 1.2 acima;

185

l a r n e : kaulo

cf. 0 paralelo com sõma em 2Co 4.10), porém o

pois emprega pneuma para designar o espírito

mais provável é que seja referência à vida terrena

humano. Mesmo assim, sarx nâo se refere ao cor­

normal de Paulo. O uso que Paulo faz em Roma­

po. Dependendo da data atribuída a Gálatas e às

nos 6.19 (“ falo como ser humano, por causa da

Cartas aos Tessalonicenses, o sentido é, provavel­

fraqueza da vossa carne” , astheneian tês sarkos;

mente, um desdobramento posterior para Paulo.

cp. Gl 4.13 em 1.2 acima) vai além da fraqueza

Aqui ele não está elogiando a enfermidade ou a

física (cf.

morte, mas a destruição da rebeldia, resultado

n v i:

“limitações humanas”). Em ICo-

ríntios 9.11 e Romanos 15.27, Paulo afirma que

que é sinônimo da crucificação da carne, o ob­

quem proporciona bênçãos “espirituais” tem o

jetivo do Espírito na luta contra ela (Gl 5.24,17).

direito a sustento físico.

No pensamento de Paulo, a alternativa inaceitá­

2.5 A esfera moralmente negativa. Com isso

vel para os crentes é que deem oportunidade para

queremos dizer o emprego pauUno de sarx quando

essa rebeldia ceder a seus desejos (Gl 5.13,16,19-

a palavra é aphcada ao “mundo”, os sistemas de

21; 6.8; Rm 13.14). Não existe nada de bom em

valores da humanidade que se opõem ao de Deus.

viver na natureza rebelde, pois, por meio dela,

Em Filipenses 3.3,4, que introduz uma exposição

serve-se à lei do pecado (cf. Rm 7.5, num con­

elaborada de um sistema de valores baseado na

traste com a Lei e o código escrito; Rm 7.18, num

cultura judaica, e em Gálatas 6.12, que é um texto

paralelo com o ego de Paulo; Rm 7.25, num con­

que pressupõe esse sistema, Paulo descreve a to-

traste com nous, “mente”). Como já menciona­

tahdade como en sarki (v.

Outro

do (v. 1.4 acima), em Gálatas 4.23,29 o contraste

sistema de valores, baseado na cultura helénica,

ocorre entre aquele que nasce ou pela impaciência

mas tão daninho quanto o primeiro, é o foco de

rebelde do pai ou pelo processo natural de repro­

ICoríntios 1.26. Aqui Paulo pode descrever os “ sá­

dução humana, de um lado, e, de outro, aquele

P

au lo , o

Ju d e u ) .

bios” [sophoi] como pessoas kata sarka, que ele

que nasceu pela intervenção do Espírito nesse

põe em paralelo com “mundo” em ICoríntios 1.27

processo. Em Gálatas 4.23, o contraste entre sarx

(cf. 2Co 1.12). Paulo é acusado de tomar decisões

e epangelia (“promessa”) sugere rebeldia da par­

e viver a vida com base nesses valores (2Co 1.17;

te de Abraão. Romanos 8.1-14 é o texto clássico

10.2). Ele nega isso: é possível alguém viver no

sobre o assunto, em que a sarx rebelde e a vida

meio de tal sistema sem que nele molde seus mé­

que dela se origina fazem contraste com a vida no

todos (2Co 10.3,4). Pessoas, até mesmo Cristo,

Espírito (v. item 4 abaixo).

podem ser avaliadas com base nessa perspectiva

O uso que Paulo faz de sarkinos em 1Corin­

falsa (2Co 5.16), e a consequência natural é uma

tios 3.1 soa como uma crítica ad hominem a al­

arrogância sem sentido (2Co 11.18).

guns crentes residentes em Corinto que tinham

1.6 A natureza humana rebelde. Em Paulo, o uso mais característico e frequente de sarx é

tendências gnósticas. Nesse caso, é provável que

0 sentido seja “imaturos”, não “rebeldes”.

sua aplicação ã natureza humana pecaminosa (v. pecad o )

. Bem mais da metade desses casos acon­

2. Impressionantes aspectos contextuais de

tece em Romanos, na maior parte em Romanos

caráter formal

8. Os demais, com uma exceção (ICo 5.5; cf. tb.

São dignas de nota algumas correlações entre a

ICo 3.3), aparecem em Gálatas. De modo análo­

estrutura gramatical formal e a atribuição ou es­

go, em mais de dois terços dos inúmeros casos

colha de campo semântico:

de contraste entre sarx e pneuma, sarx refere-se

1)

Quando Paulo emprega kata sarka (“ segun­

à natureza humana caída. A maioria dos casos

do a carne”) -i-

acha-se em Gálatas 5 e 6 e Romanos 8. Quanto

campo semântico é o de ideias moralmente ne­

aos demais (Gl 3.3; Rm 7.5; ICo 5.5), Gálatas 3.3

gativas (v. 1.5 acima). Quando utiUza kata sarka

verbo

(e.g., 2Co 1.17; 5.16), o

é representativo do grupo todo (v. item 4 abaixo).

+ SUBSTANTIVO (e.g., Rm 4.1; 9.3), o campo se­

Um texto peculiar é ICoríntios 5.3,5 (“ 0 autor

mântico é o de neutralidade moral (v. 1.4 acima).

de tal infâmia seja [...] entregue a Satanás para a

Isso foi observado por R. Bultmann (p. 236-7) e

destruição da carne [sare], a fim de que o espíri­

é confirmado aqui (cf. kata anthrõpon, “de modo

to [pneuma] seja salvo no Dia do Senhor” , a r a ) ,

usual”, ICo 3.3).

186

C a r n e : Pa u l o

2) As ocorrências de sarx com conotação ne­

decididamente paulino, com raízes na literatura

gativa (v. 1.5 acima) não trazem artigo. Isso pro­

apocalíptica judaica. É talvez imitado, mas não

vavelmente seja resultado do emprego que Paulo

adotado sem reservas pelos outros autores cris­

faz de expressões estereotipadas em que se usam

tãos dos primórdios.

preposições. Todos os contextos formais trazem ou a forma kata sarka (“segundo a carne”) + VERBO

(e.g., 2Co 10.2,3) ou a forma en sarki (“ na

carne”) -i-

verbo

(e.g., Fp 3.3,4; Gl 6.12).

4. Questões teológicas Devido às implicações teológicas desses dados, os campos 1.1-1.4 e 1.5-1.6 constituem dois gru

3) Todos os usos de sarx no sentido amplo de

pos distintos: o primeiro indica um aspecto natu

“humanidade” (v. 1.3 acima), com uma exceção,

ral da criação, e o segundo, uma oposição a Deus

seguem o estilo da l x x : pasa sarx (“toda carne”).

4.1 A carne como aspecto natural da criação.

4) As ocorrências de sarx que designam a re­

0 emprego do termo sarx em 1.1-1.4 (i.e., matéria

beldia humana (v. 1.6 acima) aparecem, quase

física, corpo humano, pessoa/raça humana, esfe­

invariavelmente, com o artigo. Nessa categoria,

ra moralmente neutra), especialmente no sentido

também se enquadram quase todas as ocorrên­

de esfera natural em que se dá a vida terrestre

cias de sarx em que a palavra é entendida seja

(cf. Rm 1.3), deixa implícito que Paulo continua­

como sujeito, seja como objeto direto de um ver­

va a partilhar a herança judaica de ter a criação

bo (em que este geralmente aparece na forma de

em alta conta. Na ótica paulina, o dualismo onto­

substantivo abstrato), a menos que seja quaUfica-

lógico de pensadores helenistas é posto de lado,

do por um pronome possessivo, casos em que se

pois, visto que o corpo de carne e a humanidade

refere ao corpo humano.

são geralmente fracos e suscetíveis de corrup­

3. Comparação entre outros autores judeus

rimentar ressurreição. A ideia de Paulo de que

e os autores cristãos

tanto a carne quanto o espírito (humano) podem

Parece que na

termo nunca é empregado

experimentar corrupção (2Co 7.1) significa, pro­

com sentido moralmente negativo (v. 1.5 acima)

vavelmente, que ele não acolhia nenhuma ideia

nem como designação de rebeldia humana contra

de dualismo ético entre as naturezas superior e

Deus (v. 1.6 acima). Isso contrasta com Paulo,

inferior que coexistem numa pessoa e são natu­

em quem ambos os sentidos aparecem na metade

rais em tal pessoa. Não se deve interpretar que a

das vezes em que ele emprega o termo sarx. 0

atitude aparentemente negativa expressa em 2Co-

paralelo mais próximo ao uso de sarx por Paulo

ríntios 5.1-10 com relação ao corpo da existência

é 4Macabeus 7.18. Embora esse documento seja

terrena deixe implícita uma ideia duaUsta.

ção, mesmo assim podem ser resgatados e expe­

lxx

o

da época de Paulo, nessa passagem o sentido está

4.2 A carne em oposição a Deus. R. Jewett

mais de conformidade com o dualismo ético hele-

demonstra que o desenvolvimento dos vários

nizante de Filo que com o emprego paulino.

conflitos de Paulo prepara o cenário e oferece ex­

No entanto, “carne” (gr., sarx; hebr., bãsãr)

pUcação para as inconsistências encontradas em

é palavra utihzada nos rolos de Qumran (e.g.,

seu uso do termo em 1.5 e 1.6 (i.e., esfera moral­

IQS 11.7[?],9[?],12; IQM 4.3) e na literatura apo­

mente negativa e natureza humana rebelde).

calíptica judaica (e.g.. Te Ju, 19.4; Te Zb, 9.7)

Daí podemos fazer as seguintes observações.

como designação da humanidade caída ou de

Gálatas 3.2,3 expõe cuidadosamente o dualismo

uma esfera cósmica maligna. É surpreendente

que caracteriza o uso peculiar de sarx por Paulo.

que, aqui, os pais apostólicos praticamente acom­

É um duaUsmo entre carne e espírito no sentido

não altera

de carne como a confiança independente nos fei­

muito o quadro: o vocábulo é usado uma vez (?)

tos pessoais, em oposição ao espírito de depen­

para indicar uma atitude moral negativa (Jo 8.15)

dência em Deus e de submissão ao seu domínio

panhem a l x x . Mesmo o restante do

nt

e cinco vezes para se referir ã rebeldia (esp. em

(v. esp. Rm 8). Na controvérsia com os nomistas,

2Pe e Jd; cf. IJo 2.16). O emprego de sarx para in­

em Gálatas 3.2,3, isso se traduz por um contraste

dicar a humanidade caída e o sistema maligno de

entre “ obras da lei” e “ ouvir com fé” (lit.; “pre­ gação da fé” , ara), a dependência de sistemas e

valores deste mundo é, portanto, um fenômeno

187

instituições com valores humanos para alcançar

meaning of lápÇin 1 Corinthians 5:5: a fresh appro-

poder e posição, bem como a indulgência liberti-

ach in the light of logical and semantic factois. ot,

nista como meio de conquistar a “vida”

26, p. 204-28, 1973.

(J e w e t t )

são, igualmente, manifestações de independência rebelde, as quais se distanciam da promessa divina

R. C arta

de

A

r ís t e a s .

Ver A

p ó c r if o s e

v

.

J . E r ic k s o n

P s e u d e p íg r a f o s .

de provisão de vida e dignidade pessoal mediante a fé em Cristo. Ironicamente, ao confiar na “car­

C a r t a s , fo rm a s

ne”, a pessoa não alcança a vida, mas a morte.

A palavra grega epistole ( “epístola”, “carta”) ori­

de

c a r t a s i: P a u l o

Esse é, na verdade, um dualismo apocalíptico

ginariamente se referia a uma comunicação oral

que antecipadamente enxerga o cristão regenera­

enviada por mensageiro. No mundo antigo, o ter­

do como alguém que, pela fé, já está “no Espí­

mo “cartas” era designação ampla para indicar ti­

rito” , sob o domínio de Deus, ao mesmo tempo

pos diferentes de documentos e podia incluir uma

que ainda vive uma existência “na carne” , na era

grande variedade de documentos comerciais, go­

presente. A solução para a tensão assim criada é

vernamentais e legais, bem como relatórios políti­

fazer morrer continuamente a carne e suas obras.

cos e militares e outros tipos de correspondência,

Mas a “ morte da carne” é odiosa e só pode ser su­

especialmente de tipo pessoal. Paulo adaptou os

portada pela promessa divina de que já se outor­

modelos de carta dos gregos e romanos, tendo em

gou à humanidade vida ressurreta em Cristo (cf.

vista os propósitos cristãos. Suas cartas, que por

Rm 5.12-21). Morrer essa morte e “revestir-se”

gerações têm fascinado muita gente, foram elabo­

de Cristo é colocar-se de novo, como outrora no

radas quase sempre num modelo semelhante às

Éden, sob a proteção e provisão divinas, tornar-

cartas helénicas. Mas o apóstolo, que tinha um

se dependente e confiante. Isso também resulta

senso de liberdade quanto às questões literárias,

no amor pelo próximo, que provém da segurança

não estava preso a modelos fixos e, com frequên­

que se tem em Cristo (cf. Gl 5.22-26).

cia, combinava costumes helénicos não judaicos

Ver também

com costumes judaico-helênicos.

pecad o ; pecadores.

1. Cartas particulares, pessoais? B ib u o g r a fia .

B ruce, F. F.

PauL

Apostle o f the heart

set free. Grand Rapids: Eerdmans,

R. Theology of the New Testament. R. By light, light:

■ B uit m ann ,

■ G oodenough,

Desde que A. Deissmann estabeleceu distinção

1935.

entre “cartas” , que eram compreendidas como

w ith em ­

expressões espontâneas, cotidianas e referentes a

Soma in biblical theology:

phasis on Pauline anthropology. Cam bridge: C am ­

1976.

Testament theology. ■ Jewett ,

situações específicas, e “epístolas”, vistas como

New

documentos formais, artísticos e literários, tem

D ow n ers Grove: InterVarsity,

havido considerável debate acadêmico sobre as

bridge University Press,

1981.

1. Cartas particulares, pessoais?

the mystic gospel of Hellenistic

Judaism. N e w Haven: Yale University Press, • G undry, R. H.

3. O uso de outras tradições literárias

N e w York: Scrib­

1951, 1955, V. 1, p. 232- 46. 2 v.

ners, E.

1977.

2. A forma das cartas paulinas

■ G uthrie, D.

R. Paul’s anthwpobgical terms:

cartas de Paulo, se devem ou não ser considera­

a

study of their use in conflict settings. Leiden: E. J.

das cartas pessoais e particulares. Sem dúvida,

BriU, 1971.

■ K uhn , K. G. N e w light on temptation,

eram cartas pessoais se comparadas aos ensaios

sin and flesh in the N e w Testament. In: Stendahl, K.,

literários, que adotavam uma forma epistolar,

org.

The scrolls and the New Testament.

Harper,

1957.

p.

T h s e lt o n , a

p.

identificado, universal, e às cartas oficiais, que

1974.

não eram escritas no contexto de um relacio­

B aumgartel, F. a o p ^ k t A .

namento pessoal. Gálatas, por exemplo, é uma

G. E.

Grand Rapids: Eerdmans,

■ S chweizer, E.; M eyer,

[S.L;

mas eram escritos destinados a um púbhco não

A theology of

94-113. ■ L add ,

the New Testament.

TDNT.

N e w York:

R.;

s.n., s.d.]. v.

7. p. 98-151. ■ Seebass,

H. &

carta estritamente pessoal, escrita a um grupo es­

s.n., s.d.].

pecífico de pessoas que desfrutavam um relacio­

The Pauline view of man

namento direto com Paulo. Por abrangente que

. C. Flesh, n i d n t t . v .

671-82. ■ Stacey, W.

D.

1. [S.L;

in relation to its Judaic and Hellenistic background

seja 0 grupo de destinatários, a saber, “as igre­

1956. ■

jas da Galácia”, a carta foi enviada a um grupo

London: M acm illan,

T m se u d n , A . C. The

188

C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : P a u l o

re la tiv a m e n te p o u c o im p o r ta n te d o m u n d o g re c o -

“santos” , “amados” ou “a igreja de Deus que está

r o m a n o (H ansen ).

em...” A saudação helénica de praxe, chairein

As cartas de Paulo, porém, eram mais que

(“ saudação”), é substituída por charis kai eirênê

pessoais. Ele escreveu tendo consciência de que

(“graça e paz”). Essa bênção é uma afirmação

era

seja, um representante do Cristo

sobre a graça e a paz de Deus, das quais os recep­

ressuscitado (observe-se a ênfase no apostolado

tores já participam, e uma oração para que reco­

em Gl 1.1,15,16; 5.2), com o objetivo de instruir,

nheçam e experimentem essas bênçãos de forma

aconselhar e repreender (observem-se ITs 5.27 e

ainda mais completa.

a p ó s to lo , ou

2Ts 3.14,15 quanto ao impacto na igreja de Tessa-

2.2

Agradecimento ou bênção introdutó­

lônica). A maioria das cartas de Paulo foi dirigida

ria. Ocasionalmente, as cartas mais pessoais do

a comunidades de crentes em Cristo com o obje­

período helénico começavam com um agradeci­

tivo de que fossem usadas em público dentro das

mento aos deuses por benefícios pessoais rece­

congregações. Eram escritos ocasionais e contex­

bidos. Paulo adotou o modelo epistolar helénico,

tuais que tratavam de situações específicas (repa­

expressando no início de suas cartas sua gratidão

re-se, porém, Efésios) e substituíam a presença

a Deus, o Pai de Jesus Cristo, por tudo que Deus

pessoal de Paulo. Ele estava preocupado com a

havia operado na vida dos leitores, predominan­

condição da vida de seus leitores, mas nunca

temente gentílicos (e.g., ICo 1.4; Fp 1.3; Cl 1.3;

da forma impessoal que caracterizava muitas

ITs 1.2; 2Ts 1.3; Fm 4). Mas o apóstolo não foi

das cartas helénicas. Paulo tratava cada situação

um imitador mecânico dessa convenção epistolar,

como única e importante. Ao mesmo tempo, suas

visto que suas estruturas eram altamente desen­

cartas contêm ensinos teológicos significativos e

volvidas e requintadas.

expressam, no que diz respeito à vida, uma com­

Dois tipos básicos de estrutura ocorriam nos

preensão cristã que vai além da situação histórica

parágrafos de gratidão de autoria paulina. O

especifica.

primeiro, constituído de até sete elementos bá­

2. A forma das cartas paulinas

e terminava com uma oração subordinada hina

Na Antiguidade, as cartas antigas, escritas por

ou equivalente, que expunha o conteúdo da in­

escribas profissionais, eram muitas vezes estiliza­

tercessão do apóstolo pelos leitores (Fp 1.3-11;

sicos, começava com o verbo de agradecimento

das, com cada parte sendo basicamente determi­

Cl 1.3-14; ITs 1.2—3.13; 2Ts 1.2-12; 2.13,14;

nada por convenção, nâo importando a ocasião

Fm 4-7; cf. Ef 1.15-19). 0 segundo apresentava

ou o motivo. 0 modelo geral da carta helénica

uma forma mais simples. Também iniciava com

incluía a abertura, o corpo e a conclusão. A for­

um agradecimento a Deus e terminava com uma

ma básica da carta paulina, na qual havia uma

oração subordinada hoti, que assinalava o moti­

progressão normal, em vez de alguma estrutura

vo de ter expressado essa gratidão (ICo 1.4-9; cf.

estereotipada ou mecânica, continha os seguintes

Rm 1.8-10).

elementos: 2.1

Embora a estrutura dos períodos pauhnos de

Abertura. As cartas de Paulo, que seguem gratidão fosse helénica, descontando-se os ele­

a costumeira abertura das cartas helénicas (“ De

mentos cristãos, 0 conteúdo revelava influência

A para B, saudações”), regularmente expandem

do pensamento veterotestamentário e judaico.

esse padrão básico (e.g., Rm 1.1-7; Gl 1.1-5;

Esses parágrafos, que começam com uma decla­

ITs 1.1; Tt 1.1-4), e esses desenvolvimentos

ração de agradecimento a Deus, possuem uma

apontam, frequentemente, para os propósitos

função epistolar, a saber, introduzem e apresen­

específicos da carta. A identificação do autor

tam os temas principais da carta, geralmente de­

(com frequente menção ao nome de colaborado­

terminando o tom e o clima. Muitos têm função

res) e dos destinatários é seguida de descrições

didática, de modo que, seja pelo ensino de algo

expandidas de ambas as partes referentes à sua

novo, seja pela revisão de instrução prévia, o

posição com Deus em Cristo. Paulo geralmente se

apóstolo expõe questões teológicas que conside­

identifica com epítetos como “apóstolo” e “ ser­

ra importantes (v. esp. Cl 1.9-14). Um propósito

vo” , ao passo que os destinatários são chamados

exortativo também aparece em algumas dessas

189

L a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : Ha u l o

passagens (e.g., Fp 1.9-11). Ademais, as palavras

0 conteúdo parenético ou exortativo era, em

de gratidão e petição aí incluídas dão mostra da

grande parte, constituído de conteúdo tradicional

profunda preocupação pastoral e apostólica de

(incluíam “instruções aos membros da casa” ; cf.

Paulo pelos leitores. Ao mesmo tempo, o apósto­

Cl 3.18-4.1; Ef 5.22-6.9), derivado do

lo relata suas reais orações de gratidão e petição

literatura judaica, bem como de tradições morais

por eles.

helénicas (cf. Fp 4.8,9).

at

e da

Empregando uma forma de oração típica do

Outro aspecto típico do corpo das cartas de

AT e dos judeus, que denota louvor (cf. as conclu­

Paulo é a “parusia apostólica” (i.e., presença

sões doxológicas dos livros do Saltério: SI 41.13;

planejada), em que o apóstolo revela seus pla­

72.19,20 etc.), Paulo inicia duas de suas cartas

nos de viagem, inclusive a intenção de estar com

(2Co 1.3,4; Ef 1.3-14; cf. IPe 1.3-5) com uma

os leitores, e de seus contatos passados e futuros

bênção — ou eulogia [eulogêtos, "bendito”) — in­

com eles por intermédio de seus colaboradores

trodutória. Conquanto suas palavras de gratidão

(ICo 4.17-21; 16.5-12; Fp 2.9-30; ITs 2.17-3.11;

ressaltem a obra de Deus na vida de outras pes­

Fm 22). Visto que Paulo nâo tinha condições de

soas, suas eulogias louvam a Deus por bênçãos

estar com seus leitores, suas cartas eram um subs­

de que ele próprio participa. A fórmula, que tem

tituto direto de sua presença pessoal e “deviam

contexto judaico, aparentemente era mais apro­

receber um peso igual

priada quando o próprio Paulo estava envolvido no contexto da bênção. 2.3

à

sua presença”

(D

o ty).

Tópicos epistolares, ou seja, temas ocasionais e recorrentes das cartas antigas, também apare­

Corpo. 0 corpo das cartas de Paulo mostra cem nas cartas de Paulo. Incluem os temas da

variedade considerável, pois é aqui, mais que em

composição das cartas (Rm 15.14; ICo 4.14),

qualquer outro lugar, que elas refletem as dife­

saúde (2Co 1.8-11; Fp 2.25-30), assuntos domés­

rentes situações epistolares. Ao que tudo indica,

ticos (ICo 5.1—6.11; Fp 4.2-4) e reencontro com

0 apóstolo estava mais inclinado a tomar o seu

os destinatários (Rm 15.14-33; ITs 2.17—3.13).

próprio rumo dentro do corpo de suas cartas e

2.4

Encerramento. Paulo fazia uso da típica

menos preso a estruturas epistolares. Tem havido

saudação de encerramento das cartas helénicas a

alguma dificuldade em determinar onde inicia e

fim de estabelecer vínculos entre as congregações

onde termina a seção do corpo das cartas (e.g.,

e seu ministério itinerante (cf. Rm 16.3-16,21-23;

em 1 e 2Tessalonicenses, parece que o corpo foi

2Co 13.12,13; Cl 4.10-17). Mas nâo incluía o cos­

totalmente assimilado pelo agradecimento). En­

tumeiro voto de saúde ou a palavra grega de des­

trementes, algumas possíveis aberturas têm sido

pedida. Em vez disso, uma invocação de bênção

identificadas por meio de frases com o verbo pa-

(ICo 16.23; Gl 6.16,18; Ef 6.23,24; 2Ts 3.16,18)

rakaleõ (“Irmãos, rogo-vos...”, ICo 1.10; ITs 4.1;

ou uma doxologia (Rm 16.25-27; Fp 4.20; cf.

cf. Rm 12.1; 15.30), a fórmula de anúncio (“ não

Hb 13.20,21) cumpriam a mesma função. A súpli­

quero que ignoreis”, Rm 1.13; Gl 1.11; Fp 1.12), a

ca final de bênção, que era a conclusão definitiva

expressão de júbilo (Fm 7), a expressão de cons­

da carta, expressava quase sempre o forte desejo

ternação (Gl 1.6) ou a declaração de consentimen­

de Paulo (e.g., que a graça do Senhor Jesus Cristo

to (Gl 1.8,9), ao passo que o término do corpo

estivesse com todos eles, ICo 16.24) e transmite

era ocasionalmente caracterizado por conclusões

um tom de confiança.

escatológicas (Rm 11.25-36; ITs 3.11-13) ou infor­ mações sobre suas viagens (v. 2.4 abaixo).

Outras convenções de encerramentos usadas por Paulo incluem referências a uma ou duas fra­

0 agrupamento de várias fórmulas epistola­

ses escritas de próprio punho (ICo 16.21; Gl 6.11;

res em certos pontos estratégicos assinala pau­

Cl 4.18; 2Ts 3.17), aos préstimos de um amanuen­

sas significativas ou pontos decisivos nas cartas

se (Tércio, Rm 16.22; cf.

(M

u l l in s ) .

a

transição clara de uma seção mais

R

ic h a r d s )

e um beijo san­

to (e.g., Rm 16.16).

didática para uma longa seção parenética é as­ sinalada ocasionalmente com uma doxologia de

3. O uso de outras tradições literárias

conclusão e uma das fórmulas de transição (e.g.,

As cartas de Paulo apresentam não apenas

Rm 11.36— 12.1; Ef 3.21—4.1; ITs 3.11—4.1).

uma ampla variedade estilística, mas também

190

C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : P a u l o

empregam diversas tradições literárias, inclusi­

p o r três e le m e n to s : n o p r im e ir o , q u e é c o n c ilia tó ­

ve formas retóricas e métodos de persuasão da

rio , e le e lo g ia os le ito r e s p e lo q u e fiz e r a m n o p a s ­

época, estruturas quiasmáticas, diatribes, méto­

sa d o . 0 s e g m e n to d o m e io c o n s is te e m c o n s e lh o ,

dos exegéticos midráshicos, em que se recorre à

e n q u a n to a s e çã o fin a l tra z u m a p a rê n e s e ( A u n e ) .

autoridade do

bem como material hínico tra­

R. N. Longenecker afirma que, em Gálatas

dicional e fórmulas confessionais do cristianismo

como em outras cartas, “Paulo parece ter aprovei­

primitivo. Parece que Paulo não se prendeu a ne­

tado quase inconscientemente formas retóricas

nhuma convenção estilística — epistolar, homilé-

disponíveis, adaptando-as às estruturas epistola­

tica ou oratória. A forma epistolar desenvolvida

res que havia herdado e preenchendo-as com mé­

nas cartas de Paulo era mais rica que as breves

todos exegéticos e temáticas recorrentes judaicos

cartas pessoais ou que os ensaios epistolares

que fossem particularmente significativos para se

mais desenvolvidos do helenismo. Observemos

opor ao que os judaizantes estavam dizendo aos

rapidamente o seguinte:

convertidos do apóstolo”

at,

3.1 Formas litúrgicas. O propósito das car­

(L

p. cxix).

ongenecker,

V er ta m b é m e v a n g e l h o ( g ê n e r o ) ; r e t ó r i c a .

tas do apóstolo era que fossem lidas em voz alta

D PC: BÊNÇÃO, i n v o c a ç ã o , d o x o l o g i a , a ç ã o d e g r a ­

às congregações a que se destinavam (ITs 5.27;

ças;

Cl 4.16). É possível que essa situação desejada

d ia t r ib e ;

explique a inclusão de fórmulas litúrgicas em car­

p r e t a ç ã o DE P a u l o ; rriN E R ÁR ios, p la n o s d e v ia g e m , v i a ­

tas cristãs. Estudos recentes sugerem que os se­

g e n s , p a ru s ia a p o s t ó l i c a .

CASAS

E c ó d ig o s

e le m e n t o s

DOMÉSTICOS;

litú r g ic o s ;

CRÍTICA

RETÓRICA;

h e r m e n ê u tic a / in te r ­

guintes elementos pertencem a essa categoria: 1) invocações de “graça” ; 2) bênçãos (Rm 1.25;

B iB L iO G R A n A . A u n e , D .

9.5); 3) doxologias (Rm 11.36; Gl 1.5); 4) hinos

literary environment. Philadelphia: Westminster,

(cf. Cl 3.16); 5) confissão e reconhecimento

1987. ( l e g ) . ■ B a h r ,

(Rm 10.9; ICo 12.3).

PauUne Letters,

3.2 A retórica greco-romana. Paulo explicita

m ann, A .

E.

G.

jb l, v.

J.

The New Testament in its The subscriptions in the

87,

p.

27-41, 1968. ■ D e is s ­

Light from the Ancient East. 2. ed. Lon­

sua tarefa apostólica básica como sendo pregar

don: Hodder & Stoughton. ■

0 evangelho (Gl 1.16). Quando escreve suas car­

in primitive Christianity. Philadelphia: Fortress,

tas, ele o faz como um pregador do evangelho.

1973. • F u n k ,

Suas cartas, embora reais, ainda assim, em mui­

Word of God. New York: Harper and Row,

tos aspectos, são semelhantes à expressão oral.

p.

D o ty ,

W. G. Letters

R. W. Language, hermeneutic and

250-74. • ________ . T h e

1966.

apostoUc parousia: form

Por esse motivo, qualquer análise epistolar tem

an d s ig n ific a n c e . In: F arm er , R . W .; M oule , C. F.

de ser suplementada por uma averiguação da

D. & N iebuhr , R . R ., orgs.

retórica de sua argumentação. Os métodos per­

interpretation:

suasivos dos manuais de retórica clássica eram

C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv e r s ity Press, 1967. p.

Christian history and

stu d ies p r e s e n te d to J oh n K n o x .

bem conhecidos nos dias de Paulo, e não era ne­

249-68. ■ H ansen ,

cessário treinamento formal em retórica para usar

e p is to la ry a n d r h e to ric a l c o n te x ts. S h e ffie ld :

G.

tais métodos. Cada tipo de fala podia ser formado

1989. [ j s n t , 2 9 .) ■ L ongenecker , R. N .

W.

Abraham in Galatians: jsot,

Galatians.

por quatro elementos: 1) exordium (introdução);

D a llas: W o r d , 1990. [w b c , 4 1 ). ■ M u llins , T. Y. F or­

2) narratio (apresentação dos fatos); 3) probatio

m u la s in N e w T e sta m e n t E p istles, j b l , v . 91, p.

(raciocínio); 4) peromtio (conclusão). 0 objetivo

380-90, 1972. ■ ________ . T o p o s as a N e w Testa ­

da introdução e da conclusão era influenciar o

m e n t fo rm . JBL, v. 99, p. 541-7, 1980. • O ’B r ien ,

público, conquistando seu interesse e boa vonta­

P. T.

de, e concluir com uma recapitulação dos argu­

Paul.

Introductory thanksgivings in the Letters of

mentos e com a apresentação de um pedido. 0

■ Richards, E. R.

corpo da fala procurava demonstrar os argumen­

PfluZ.T ü b in g e n : J. C. B. M o h r, 1991. ( w u n t , 2 .4 2 .) •

tos. A maior parte das cartas cristãs primitivas

Sanders, J. T. T h e tra n s itio n fr o m o p e n in g e p is to ­

L e id e n : E. J. B rill, 1977.

[NovTSup,

4 9 .)

The secretary in the Letters of

foi escrita basicamente para servir de orientação.

la ry th a n k s g iv in g to b o d y in th e P a u lin e co rp u s.

Excetuadas as fórmulas epistolares de abertura e

JBL, V.

encerramento, as cartas de Paulo são constituídas

writing in Greco-Roman antiquity.

191

81, p. 348-62, 1962. ■ Stow ers, S. K .

Letter

P h ila d e lp h ia :

C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i i :

Westminster, 1986.

H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lip se

J. L. Introduc­

a grande maioria das cartas na Antiguidade. Ma­

tory formulae in the body of the Pauline Letter.

nuais epistolares antigos classificam as cartas em

90, p. 91-7, 1971. ■ ______ . Light from

seus muitos tipos: amizade, família, louvor e acu­

JBL, V.

(lec.) ■ W

h it e ,

ancient letters. Philadelphia: Fortress, 1986. ■

sação, exortação e conselho, entre outros. Esses

______ . The form and function of the body o f the

são os tipos ideais que podem ser trabalhados e

Greek Letter. Missoula: Scholars, 1972.

misturados com outros tipos.

[ sb ld s,

2.)

Cartas antigas da época do

P T. O ’B rien

nt

foram influen­

ciadas por convenções retóricas e podem ser C artas,

fo r m as de car tas ii:

H

ebreus,

C artas G

A

p o c a l ip s e

classificadas de acordo com três tipos de retórica:

e r a is ,

judicial (acusação e defesa), deUberativa (persua­ são e dissuasão) e declarativa (elogio e acusa­

A igreja primitiva dependeu da carta pela neces­

ção). Por exemplo, cartas de acusação e apologia

sidade de transmitir a longas distâncias assun­

são judiciais; cartas de conselho e exortação são

tos importantes do evangelho e da comunidade

deliberativas; cartas de recomendação e louvor

cristã. Vários fatores peculiares à igreja primitiva

são declarativas.

influenciaram a forma em que essas cartas foram

Quanto mais se comparam as antigas cartas

escritas. Além de muitos outros, podemos citar a

cristãs com cartas hterárias, não com cartas do­

compreensão do relacionamento entre cristãos no

cumentais (como aconteceu no passado), mais

que diz respeito aos vínculos de famíha, ã autori­

se percebe o seu requinte retórico. As primeiras

dade singular dos apóstolos e de seus sucessores,

cartas cristãs apresentam padrões de argumenta­

ao desejo de apresentar de modo convincente o

ção e estruturação e muitos aspectos estilísticos

evangelho e suas consequências práticas para a

de convenção retórica greco-romana emprega­

vida e a influência da linguagem litúrgica. No

dos em cartas hterárias. A anáhse retórica tem

cristianismo primitivo, os que escreveram cartas

sido útil para determinar o corpo indefinível da

(e cujas obras se encontram dentro e fora do

carta, o qual estava menos preso a convenções

nt)

adaptaram as formas epistolares e retóricas do

epistolares.

mundo greco-romano para dar origem a requin­ tadas criações hterárias

Em geral, as cartas cristãs primitivas são uma mistura dos tipos ideais de cartas e classifica­

1. Classificação das cartas cristãs primitívas

ções retóricas, mas nem sempre adequadamente

2. A forma das cartas cristãs primitivas

classificados num modelo de carta ou num tipo

3. A forma da Carta aos Hebreus, das Cartas

retórico. Hebreus e as Cartas Gerais são costumei­

Gerais e de Apocalipse

ramente classificadas como cartas de exortação e conselho, mas também revelam características de

1. Classificação das cartas cristãs primitivas

outros tipos. Em parte ou no todo, têm sido clas­

No início do século xx, A. Deissmann estabeleceu

sificadas de acordo com os três tipos de retórica.

uma distinção questionável entre cartas não Uterá-

Determinar o modelo de carta e classificar o tipo

rias e documentais (tratando de situações específi­

retórico são tarefas interdependentes, visto que,

cas e pessoais) e epístolas literárias (escritas para

em vários pontos, as cartas eram influenciadas

a posteridade, públicas, retoricamente requinta­

por convenções retóricas.

das), uma distinção que persiste até hoje. Ele clas­ sificou as cartas do

nt

como documentais, mas a

análise retórica das cartas do

2. A forma das cartas cristãs primitivas

demonstrou que

As cartas cristãs seguiram as convenções das car­

elas se enquadram num meio-termo entre as cate­

tas gregas com algumas modificações, que podem

nt

gorias de Deissmann, sendo situacionais e ainda

ser atribuídas à experiência cristã. Cartas gregas,

assim possuindo requintes de retórica.

especialmente na abertura e no encerramento, são

As antigas cartas eram de vários tipos, depen­

determinadas pela convenção. Começam com a

dendo do contexto em que surgiam e o objetivo

abertura da carta (ou pré-escrito), constituída da

a que serviam. Os relacionamentos de amizade,

seguinte fórmula: remetente [superscriptio] para

de famflia e entre comerciante e freguês geravam

destinatário [adscriptio], saudações [salutatio].

192

C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i i : H e b r e u s , C a r t a s G é r a is , A po c a lipse

As cartas cristãs elaboram tipicamente o pré-es-

pontes para alguma comunicação adicional. Cos­

crito, descrevendo o remetente e o destinatário na

tuma iniciar com a forma imperativa da fórmula

sua relação com Deus (e.g., “apóstolo”, “eleitos

de divulgação, usando o verbo ginõskõ (“ saber” ,

por Deus”). A saudação da carta grega emprega

“conhecer”), e prossegue com declarações de res­

um verbo de saudação (chairõ) e um desejo pela

ponsabilidade, instando os destinatários a prestar

saúde {hygianõ) do destinatário, mas nas cartas

atenção ao conteúdo da carta e a responder con­

cristãs esses elementos se tornam, respectivamen­

forme desejado. Pode notificar os destinatários da

te, “graça” {charis] e “paz” {eirênê], em geral apre­

intenção do remetente em visitá-los, cujo motivo é conversar face a face, em vez de usar tinta e

sentados na forma de uma invocação de bênção. Na carta grega, a saudação é quase sempre se­

papel. Também pode conter uma recomendação

guida dos seguintes elementos: votos de saúde a

sobre uma terceira parte, que irá entregar a carta.

favor do destinatário [hygianõ], uma expressão de

A conclusão ou pós-escrito da carta mantém

júbilo com o recebimento de carta enviada pelo

contato entre remetente e destinatário e promove

destinatário [chairõ], uma ação de graças pela

a amizade entre eles. Isso é alcançado median­

boa saúde e livramento de catástrofe [eucharis­

te o uso de saudações [aspazomai], um desejo

teõ, “regozijar-se”), um relato de orações a favor

de saúde e/ou palavras de despedida. Nas cartas

dos destinatários [proskynêma] e/ou uma menção

cristãs, uma doxologia ou uma invocação de bên­

de que o remetente se lembra dos destinatários

ção pode substituir as duas últimas.

[mneia]. Nas cartas cristãs, esses elementos apa­ recem na palavra de ação de graças ou numa

3. A forma da Carta aos Hebreus, das

invocação de bênção, que introduz os tópicos

Cartas Gerais e de Apocalipse

principais da carta.

0 grau em que os livros de Hebreus, das Cartas Gerais e de Apocalipse se conformam com as

O corpo das cartas grega e cristã possui três partes: introdução do corpo, meio do corpo e con­

convenções das formas da carta grega e do cris­

clusão do corpo. A introdução do corpo estabelece

tianismo primitivo varia de acordo com o propó­

as bases comuns entre o remetente e o destinatá­

sito e os gêneros associados.

rio, mediante alusão a informação partilhada en­

3.1 Hebreus. A Carta aos Hebreus tem sido

tre ambos ou apresentação de informação nova.

identificada como uma homiha ou sermão ju-

Apresenta o motivo ou propósito principal que

daico-helênico e cristão primitivo que recebeu

está levando o remetente a escrever a carta e in­

influência da retórica clássica. Mais recentemen­

troduz os pontos principais que serão desenvolvi­

te, foi classificada como um discurso clássico de

dos na carta. É possível expressar o propósito da

encômio. Hebreus não se enquadra na forma de

carta de três maneiras: 1) uma fórmula integral

carta, nem mesmo possui um pré-escrito formal

de divulgação que apresenta o desejo ou ordem

de carta. Possui, sim, um pós-escrito que incorpo­

do remetente de que os destinatários saibam de

ra uma invocação de bênção (Hb 13.20,21), uma

algo ( “Quero que saibais que...”), consistindo em

petição formal que funciona como uma declara­

um verbo de divulgação [thelõ, boulomai] e um

ção de responsabihdade [parakaleõ, Hb 13.22),

verbo de conhecimento [ginõskõ]; 2] uma razão

um anúncio dos planos que o remetente tem de

para escrever [graphõ]; 3) uma petição para que

visitar os destinatários (Hb 13.23), saudações

os destinatários façam algo específico, caso em

por parte do remetente e saudações adicionais

que a fórmula é constituída de um verbo de súpli­

por parte daqueles que estão com ele [aspazomai,

ca [parakaleõ, erõtaõ], e o motivo para a petição.

Hb 13.24) e uma segunda invocação de bênção

0 meio do corpo tanto desenvolve o(s) as­

(Hb 13.25). 0 apelo para que os destinatários

sunto (s) apresentado (s) na introdução do corpo

obedeçam à exortação (Hb 13.22) indica que o

quanto introduz material novo. Em geral, começa

principal motivo de escrever a carta foi obter tal

com uma fórmula de divulgação indicando que

obediência.

o remetente deseja ou ordena que os destinatá­

3.2 Tiago. Tiago é hteratura persuasória em

rios saibam algo. A conclusão do corpo acentua e

forma de carta. Seu objetivo é persuadir os desti­

reitera a razão principal de escrever e estabelece

natários a viver uma vida virtuosa. Começa com

193

LA R T A S , FORMAS DE CARTAS li: HEBREUS, LA R TA S G ER AIS, A p OCALIPSE

um pré-escrito que inclui remetente, destinatários

é como carta circular enviada a várias congre­

e saudação [chairõ, Tg 1.1). O pré-escrito indica

gações. Dentre outros materiais tradicionais, ela

tratar-se de uma carta circular, a ser distribuí­

incorpora um código doméstico, descrevendo

da a inúmeras igrejas (as “doze tribos da Dis­

o papel dos membros da casa uns para com os

persão”). Tiago não contém introdução, meio ou

outros (IPe 2.18—3.7). Embora alguns estudio­

conclusão do corpo que sejam claros, nem traz

sos acreditem que um catecismo ou uma litur­

um pós-escrito. Entretanto, Tiago 1.2-27 funcio­

gia batismal permeia o corpo da carta, é possível

na como introdução ao apresentar tópicos que

atribuir esses aspectos à tradição que os cristãos

são desenvolvidos em Tiago 2.1—5.12, e Tiago

primitivos partilhavam entre si.

5.13-20 serve como conclusão do corpo, ao re­

3.4 ZPedro. Essa carta é a palavra de despedi­

capitular alguns tópicos. Também incluídos na

da ou testamento em que um moribundo líder co­

forma de carta encontram-se elementos de dia­

munitário, judeu ou cristão, comunica sua morte

tribe (diálogo e pergunta e resposta em busca

iminente e exorta a comunidade a se manter fiel

da verdade), parênese (instrução moral) e três

às tradições depois de sua morte. O remetente de

exemplos de elaboração completa de um raciocí­

2Pedro cria a combinação incomum de testamen­

nio conforme a retórica greco-romana (Tg 2.1-13;

to na forma de carta. Isso permite que o reme­

2.14-26; 3.1-12).

tente, na era pós-apostólica, descreva o apóstolo

3.3

IPedro. A Primeira Carta de Pedro confor­ Pedro como alguém que se comunica ao longo do

ma-se apenas em parte ao antigo formato episto­

tempo com os destinatários.

lar. Começa com um pré-escrito (IPe 1.1,2), que

A Segunda Carta de Pedro inicia com o típi­

contém uma referência ao remetente (Pedro) e

co pré-escrito que traz remetente, destinatários

aos destinatários (exilados da Diáspora), cada um

e invocação de bênção (2Pe 1.1,2). Após o pré-

com uma descrição teológica (IPe 1.1,2) e uma

escrito vêm elementos tomados por empréstimo

saudação na forma de invocação de bênção. Ao

do gênero testamentário: a recitação das tradições

pré-escrito segue-se uma invocação de bênção,

centrais da comunidade (2Pe 1.3-11) e um anún­

que substitui o desejo de saúde ou o agradeci­

cio da morte de Pedro (2Pe 1.12-15). Esse anún­

mento (IPe 1.3-9). Não é fácil dividir o corpo da

cio funciona como introdução do corpo da carta

carta (IPe 1.3—5.12) em introdução, meio e con­

(2Pe 1.12-15). Lembrar os destinatários acerca

clusão do corpo. A introdução do corpo começa

dos ensinos tradicionais funciona como uma fór­

com uma petição na forma de uma ordem: “espe­

mula integral de divulgação ( “para vos lembrar”)

rai inteiramente na graça que vos é oferecida na

e uma razão para escrever. O meio do corpo de

revelação de Jesus Cristo” (IPe 1.13). Um pedido

2Pedro (2Pe 1.16— 3.13) desenvolve o tema re­

no imperativo em geral é o início da introdução

corrente da vinda de falsos mestres, comum num

do corpo. Apresenta o motivo principal para o re­

testamento, refutando suas principais doutrinas.

metente escrever e o que será elaborado no corpo

A conclusão do corpo (2Pe 3.14-18) é indicada

da carta. A conclusão do corpo contém a fórmu­

pelo vocativo “amados” e uma declaração de res­

la da razão para escrever e uma declaração de res­

ponsabilidade (2Pe 3.14). Uma doxologia serve

ponsabilidade que faz eco ao pedido com que se

de pós-escrito (2Pe 3.18).

inicia a introdução do corpo: “... nela [a verdadei­

3.5 IJoão. A Primeira Carta de João (v. JoAo,

ra graça de Deus] estai firmes” (IPe 5.12). 0 pós-

C artas

escrito (IPe 5.13,14) é constituído das saudações

tura típica, necessárias para classificar um docu­

de uma terceira parte e do remetente [aspazomai;

mento como carta. A abertura (IJo 1.1-4) segue os

IPe 5.13,14) e uma invocação de bênção.

moldes do prólogo do quarto Evangelho (Jo 1.1-

de)

não apresenta as convenções da aber­

A Primeira Carta de Pedro tem sido identifi­

18) e introduz tópicos a serem desenvolvidos no

cada como uma carta de Diáspora, seguindo os

restante da obra. A conclusão de IJoão 5.13-21

moldes das cartas do

quando os judeus de

reitera os tópicos principais, mas não contém as

Jerusalém escreveram para os exilados (cf. IPe

convenções de conclusão de carta. Deve se obser­

at,

1.1), mas a carta de Diáspora não é um gêne­

var que 0 motivo para escrever (IJo 1.4; 5.13) é a

ro específico. A melhor identificação de IPedro

única convenção característica de carta.

194

C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s h : H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

3.6 2João. Em contraste com IJoão, 2João

com a fórmula “procedes com fidelidade” [piston

está conforme as convenções epistolares. Co­

poieies, 3Jo 5,6), uma variação do “farás bem”

meça com um pré-escrito (2Jo 1-3), em que há

[kalõspoieseis). O meio do corpo (3Jo 7-12) con­

referência ao remetente (o “ presbítero”) e aos

tém declarações de responsabihdade (3Jo 8,11) e

destinatários (a “ senhora eleita”), acompanhada

recomendação de uma terceira parte, o portador

de descrição teológica destes (2Jo 1,2). Uma in­

da carta (Demétrio, 3Jo 12). A conclusão do cor­

vocação de bênção substitui a saudação (2Jo 3).

po (3Jo 13,14) faz referência ao ato de escrever e

Embora formalmente não seja uma palavra de

informa o destinatário acerca da visita que o re­

gratidão, 2João 4 funciona como tal, pois expres­

metente fará num futuro próximo, técnicas que

sa regozijo com o bem-estar dos destinatários.

permitem que a conclusão do corpo construa uma

A introdução do corpo (2Jo 4,5) inicia com uma

ponte para haver ainda mais comunicação. O pós-

expressão de alegria [echarên liarí), faz alusão a

-escrito é formado de uma invocação de bênção

coisas em comum entre as duas partes de modo

e de saudações da parte do remetente e de uma

a proporcionar uma base comum para tratar dos

terceira parte [aspazomai, 2Jo 15).

assuntos do corpo da carta (o mandamento) e

3.8 Judas. Foi proposto que Judas é uma ho­

apresenta um pedido. O pedido é padrão: 2João 4

milia em forma de carta ou que ela incorpora um

oferece o contexto ( “andando na verdade”), e

midrash em Judas 5-19. No mínimo, é possível

2João 5 apresenta o pedido [erõtaõ, “ peço-te [...]

dizer que elementos desses gêneros foram in­

[que] amemos uns aos outros”; i.e., que conti­

corporados numa carta retoricamente complexa

nuem a andar na verdade).

que tenta provar que os adversários são os ím­

0 meio do corpo (2Jo 6-11) desenvolve as preo­

pios de quem os profetas falaram. Judas começa

cupações apresentadas na introdução e traz outras

com um pré-escrito que indica remetente (Judas)

preocupações de igual importância. É indicado

e destinatários (descritos no seu relacionamento

pela presença de declarações de responsabihdade

com Deus) e contém uma invocação de bênção

(2Jo 8,10) e a breve seção de conclusão parenéti­

(Jd 2). O corpo da carta (Jd 3-23) está dividido

ca, comum em cartas cristãs (2Jo 11). A conclusão

em introdução (Jd 3,4), meio (Jd 5-16) e conclu­

do corpo (2Jo 12) reitera e acentua o que foi dito.

são do corpo (Jd 17-23), cada elemento contendo

Apresenta a razão de a carta ter sido escrita (“Em­

o vocativo transicional “amados”. A introdução

bora eu tenha muitas coisas para vos escrever...”),

do corpo (Jd 3,4) começa com uma referência

estabelece uma ponte para posterior comunicação

à “ salvação que nos é comum” , apresentando

e informa os destinatários da visita próxima que

uma base geral para a carta. Indica que o motivo

0 remetente fará para tratar de outros assuntos. A

da carta foi um pedido [parakaleõ, Jd 3) e infor­

conclusão da carta apresenta saudações tradicio­

ma seus antecedentes (Jd 4). O meio do corpo (Jd 5-16) apresenta outros antecedentes para o

nais de uma terceira parte [aspazomai, 2Jo 13). 3.7 3João. A Terceira Carta de João também

pedido, começando com uma fórmula integral

segue as convenções do gênero carta. 0 pré-es­

de divulgação que emprega a ideia de desejar

crito menciona o remetente (o “ancião”) e o des­

[boulomai) que os destinatários saibam [oida) de

tinatário (Gaio), mas não traz a saudação típica.

algo. A conclusão do corpo (Jd 17-23) tem início

Embora 3João 2 contenha um voto de saúde con­

com a forma imperativa da fórmula de divulgação

vencional [hygiainõ] num relato de oração pelo

(“lembrai-vos”, mnSsthête) e contém muitas de­

destinatário, sendo ambos os elementos típicos

clarações de responsabilidade na forma de exor­

de um pré-escrito, o vocativo inicial, “amado”, em

tação. O pós-escrito é uma doxologia (Jd 24,25).

3João 2, assinala a transição para a introdução do

3.9 Apocalipse. É possível classificar Apoca­

corpo (3Jo 2-6). A introdução contém uma expres­

lipse em vários gêneros, inclusive carta, profe­

são de regozijo com o bem-estar do destinatário

cia e literatura apocalíptica. Não se vê no Uvro

[echarên lian, 3Jo 3,4) e um pedido que expressa

quase nenhum aspecto da tradição epistolar gre­

0 propósito do corpo da carta (3Jo 5,6). A petição

ga. Depois de um rápido prólogo (Ap 1.1-3) há

contém a petição propriamente dita (“ farás bem” ,

uma abertura de carta com menção ao remetente

kalõs poieseis, 3Jo 6) e seu contexto, que se inicia

(João) e aos destinatários (as “sete igrejas que

195

C a r t a s P a s t o r a is

estão na Âsia” , Ap 1.4), uma invocação de bên­

Westminster, 1986.

ção {Ap 1.4,5) e uma doxologia (Ap 1.6). Depois

rhetorical strategy of 1 Peter: with special regard

(lec,

5.) ■

T

hurén,

L. The

de um epílogo (Ap 22.6-20), a carta termina com

to ambiguous expressions. Âbo: Âbo Academy

uma invocação de bênção (Ap 22.21). 0 restan­

Press, 1990. p. 84-8. •

te do livro é dominado pelas formas dos gêneros

rangement and style: rhetorical criticism of Jude

profecia e literatura apocalíptica.

and 2 Peter. Atianta: Scholars, 1988.

Deve se fazer menção às cartas às sete igrejas,



W

atson,

D. F Invention, ar­ ( sbld s,

104.)

. A rhetorical analysis of 2 John accor­

em Apocalipse 2 e 3. Cada uma das sete cartas

ding to Greco-Roman convention,

possui alguma semelhança com as cartas da An­

104-30, 1989. • ______ . A rhetorical analysis of

nts,

35, p.

v.

tiguidade, inclusive, no pré-escrito, referência a

3 John: a study in epistolary rhetoric,

destinatários (cada uma das sete igrejas) e reme­

p. 479-501, 1989. ■ W h t t e , J. L. Ancient Greek let­

tente (Cristo), e uma referência ao que se deve

ters. In:

conhecer {oida), que frequentemente principia

and the New Testament. Atianta: Scholars, 1988.

a introdução do corpo. No entanto, uma análi­

p. 85-105.

se cuidadosa feita por D. E. Aune mostra que as

Greek letter. Missoula: Scholars, 1972.

sete cartas devem ser classificadas como éditos

• ______ . Light from ancient letters. Philadelphia:

A une,

cbq,

v.

51,

D. E., org. Greco-Roman literature

[ sb lsb s,

21.) ■ ______ . The body o f the [ sb ld s,

2.)

ou proclamações reais ou imperiais da Antiguida­

Fortress, 1986. ■______ . New Testament epistolary

de. 0 método usado é o dos oráculos parenéticos

literature in the framework of ancient epistologra-

salvação-juízo da profecia cristã primitiva.

phy. ANRw , 2.25.2, p. 1730-56,1984. • ______ . Saint

Ver também d ln td

:

e vang elh o

H e r m e n e u t ic s ;

( gênero) ;

Paul and the apostolic Letter tradition,

r e t ó r ic a .

L i t u r g i a l E le m e n t s ; P s e u ­

D. F.

d e p ig r a p h y ; R h e t o r i c a l C r it ic is m .

B ib lio g r a fia . A u n e ,

cbq,

D. E. The form and function of

v.

45,

p. 433-44, 1983. W

atson

C a r t a s P a s t o r a is

the proclamations to the seven churches (Revela­

Denominadas Cartas Pastorais desde o século

tion 2—3).

xviii, 1 e 2Timóteo e Tito, com Filemom, são as

N T S , V.

36, p. 182-204, 1990. ■ B r o w n , R.

Appendix v; General observations on epistolary

cartas pertencentes ao corpus paulino que foram

format. In; ______ . The Epistles of John. Garden

escritas a indivíduos. À semelhança de outros

City: Doubleday, 1982, p. 788-95.

E.

Trata de 2 e

textos do NT escritos sob o nome de Paulo, empre­

3João; V. p. 86-92 sobre IJoão. ■ C h a r l e s , J. D. Litera­

gam a forma de carta para transmitir não apenas

ry strategy in the Epistle of Jude. Scranton: Universi­

informações pessoais, mas basicamente ensinos e

(a b .)

ty of Scranton Press, 1993. p. 20-64. • D e is s m a n n , A.

exortações, entre os quais alguns eram tradições

Bible studies. Edinburgh: T & T Clark, 1901. p. 3-59.

já estabelecidas e em uso nas congregações pau­



. Light from the Andent East New York:

linas

(E

l l is ,

1999). Em face de defecções e dos

Doran, 1927. p. 146-251. ■ D o t y , W. G. Letters in

danos causados pelos falsos mestres, as cartas

primitive Christianity. Philadelphia: Fortress, 1973.

ressaltam instruções sobre o ministério, a ordem

■ Du R a n d , J. A. Structure and message of 2 John.

na igreja e assuntos relacionados, a fim de prote­

Neot, V. 13, p . 101-20,1979. • ______ . The structure

ger as congregações do apóstolo na Ásia Menor e

of 3 John. Neot, v. 13, p. 121-31, 1979. ■ F r a n c i s ,

na Grécia, nos liltimos anos de sua vida.

F

O. The form and function of the opening and clo­

1. Canonicidade e autoria

sing paragraphs of James and 1 John, z n w

2. Motivação e data

110-26, 1970. • F u n k , of 2 and 3 John, j b l ,

R.

v.

, v.

61, p.

W. The form and structure

86, p. 424-30, 1967. ■ L ie u , J.

3. Situação histórica 4. Composição: crítica literária

The Second and Third Epistles of John: history and

5. Esboço

background. Ed. J. R ic h e s . Edinburgh: T & T Clark,

6. Temas

1986. p. 37-51.

isNTW .)



M a r t in ,

T. W. Metaphor

and composition in 1 Peter Atlanta: Scholars,

1. Canonicidade e autoria

1992. p. 41-79.

Na igreja patrística, a recepção desse grupo de

[sblds,

131.) •

S to w e r s , S.

K. Letter

writing in Greco-Roman antiquity. Philadelphia:

cartas no cânon do

196

nt

dependeu de sua autoria

C artas P a s t o r a is

paulina, pois, no dizer de Serapião, bispo de An­

da tendência de alguma “escola de pensamen­

tioquia falecido por volta de 211 d.C., “recebemos

to” que transmita apenas os ensinos de determi­

Pedro e os demais apóstolos tanto quanto rece­

nado apóstolo.

bemos a Cristo, mas rejeitamos os Pseudepígra­ fos em nome deles”

(E u s éb io ,

1.2 O debate do século xix. J. B. Lightfoot e

Hi ec, 6.12.3). Essa

T. Zahn opuseram-se à escola de Baur com as ob­

avaliação era praticamente unânime, claramente

servações de que 1) as circunstâncias históricas

testemunhada no cânon muratoriano e em Ireneu

diferentes e 2) a organização eclesiástica mais

(c. 180 d.C.;

He, 1.16.13; 2.14.7; 3.14.1)

elaborada estariam bem explicadas, caso houves­

e provavelmente deve ser inferida com base em

sem transcorrido alguns anos entre as primeiras

textos mais antigos, tanto em citações (cf.

T e ó f il o ,

cartas de Paulo e a época em que escreveu as Pas­

Au, 3.14; Po, Fp, 4.1) quanto em alusões (cf. In,

torais, ou seja, depois de ser solto de seu primeiro

Ef, 14.1). Com 2Tessalonicenses e Filemom, as

aprisionamento pelos romanos, soltura bem con­

I reneu,

Pastorais só estão ausentes num único manus­

firmada em IClemente 5 (c. 95 d.C.;

crito incompleto das cartas de Paulo (P‘'^ c. 200

e na literatura do século ii (cânon muratoriano;

L ig h t f o o t )

d.C.) e foram rejeitadas apenas por alguns mes­

12Ap [Vercelli]). Antecedendo a crítica do século

tres heréticos: 1 e 2Timóteo por Taciano e Basüi-

xx, Lightfoot afirmava que 3) os falsos mestres

des (cf.

gnosticizantes já estavam agindo durante o mi­

C lem e nte ,

St, 2.11, fim;

J e r ô n im o ,

prefácio), e todas as três por Marcião (cf. l ia n o ,

Cm Tt,

nistério de Paulo (cf.

T e r tu ­

1993, p. 89-95) e atri­

buiu 4) as mudanças de vocabulário, estilo e 5)

Mr, 5.21). No entanto, enfrentaram sérias

as ênfases teológicas à origem das Pastorais nos

objeções na crítica hterária do século xix. 1.1

E l l is ,

A escola de Baur. Em 1835, F. C. Baur, anos finais do ministério do apóstolo. No século

tomando por base questões literárias mais anti­

XIX,

estudiosos dos enfoques tra­

gas sobre as Cartas Pastorais, chegou à conclusão

dicional e hipotético pressupunham que Paulo

de que elas refletiam um contexto pós-paulino

escrevera as cartas de próprio punho ou então

e, em sua reconstrução hegehana da história do

que as ditara, palavra por palavra. Consequente­

cristianismo primitivo, identificou-as como falsi­

mente, imaginavam que, se as cartas principais

ficações do século

F. C. Baur and his

servissem de critério, seria possível determinar

school, 1999). Suas ideias foram desenvolvidas

a autenticidade das demais por meio de crité­

por H. J. Holtzmann, que assim resumiu as obje­

rios de vocabulário, estilo e temas teológicos re­

ções à autoria paulina: 1) a situação histórica; 2)

correntes. As diferenças limitavam-se apenas à

II

(v.

Elus,

a condenação dos falsos mestres gnosticizantes;

questão sobre serem essas variações suficientes

3) o grau de organização eclesiástica; 4) voca­

para rejeitar a autoria paulina (tradição Baur/

bulário e estilo; 5) as ideias e temas teológicos.

Holtzmann) ou se estavam dentro da capacidade

Baur não estava muito seguro sobre o impacto

literária de um escritor versátil como o apóstolo

de sua crítica sobre a canonicidade das Pastorais,

(tradição Lightfoot/Zahn). O debate, que prosse­

mas seus seguidores, na maioria, concluíram que

guiu e se desenvolveu pelo século xx, chegou a

não devia ter impacto algum, afirmando, apesar

certo impasse

das informações contrárias, que na Antiguidade a

a ideia pseudepigráfica foi minada por três novas

pseudonímia era um recurso inofensivo (v.

( P r io r

e

E l l is ,

1979). No entanto,

E l l is ,

descobertas da crítica do século xx: o papel do

Pseudonymity, 2001, p. 17-29). Atribuíram várias

secretário, a função dos coautores e a presença

das Pastorais a discípulos de Paulo e citaram,

de um considerável número de expressões nâo

como precedentes, as escolas de Pitágoras e Pla­

paulinas já existentes em quase todas as cartas

tão, as quais escreveram cartas em nomes daque­

de Paulo.

les filósofos. No entanto, nâo há indício de que

1.3 Desenvolvimentos no século xx. Na men­

tenha existido uma escola de Paulo após a morte

te de muitos estudiosos, o problema das Pastorais

do apóstolo. Os escritores pós-apostólicos mais

continuou sendo seu vocabulário e estilo, sua

antigos, como Clemente de Roma, Papias, Inácio

organização eclesiástica mais desenvolvida e a

e Policarpo, citam ou mencionam vários apósto­

dificuldade em situá-las no contexto das missões

los, sem demonstrar que tenham conhecimento

pauhnas em Atos. 197

C artas Pastorais

Vocabulário. No que diz respeito ao voca­ é provável que tenha permitido que a igreja de

1.3.1

bulário, não foi apenas a divergência de termino­

onde escrevia fizesse uma cópia da carta para uso

logia em relação à literatura paulina reconhecida,

próprio e que talvez tenha deixado ou instruído

mas também a ausência de muitos grupos de pa­

os destinatários a fazer cópias para si mesmos ou

lavras comuns em Paulo (e.g., apokalyptõ, ener-

para as congregações vizinhas (cf. 2Co 1.1, Acaia;

geõ, kauchaomai, perisseuõ, hypakouõ, phroneõ]

Gl 1.2; Cl 4.16). Desse modo, o apóstolo desen­

e o emprego de terminologia diferente para os

cadeou, praticamente desde o início, diferentes

mesmos conceitos nas áreas da escatologia (cp.

e inevitáveis variações textuais no texto de sua

epiphaneia com parousia), organização eclesiás­

correspondência. Por isso, “ parece ser impossível que um inter-

tica [presbyteroi com prohistamenoi e poimenes] e soteriologia (cf.

D ibelius ) .

Ao

polador, que em algum momento no transcorrer

mesmo tempo,

muitas expressões paulinas nessas cartas eram

da tradição inseriu arbitrariamente três versícu­

óbvias a todos.

los, tenha conseguido pôr sob sua influência toda

Houve três tentativas de solucionar o pro­

a tradição textual (que hoje temos diante de nos­

blema. Os autores que faziam parte da tradição

sos olhos de uma forma bem diferente da de qual­

Baur/Holtzmann atribuíram os traços paulinos a

quer geração que nos precedeu) [...] de sorte que

um esforço consciente do falsificador para imi­

não tenha restado uma única testemunha textual

tar Paulo, a fim de granjear alguma autoridade

contrária”

apostóhca para seu engano

me­

ca da Carta aos Romanos também se aplica às

diante a reelaboração de certas tradições pauli­

Pastorais. Qualquer teoria de que certos versícu­

( D o nelson) , o u ,

(A land,

p. 141). Essa constatação acer­

nas, apresentar, usando o nome do apóstolo,

los são acréscimos posteriores terá de apresen­

0 que imaginava que Paulo podia ter ensinado

tar algum manuscrito que omita os versículos ou

caso tivesse estado ali

Alguns segui­

deixará de ter qualquer probabilidade histórica.

dores da tradição Lightfoot/Zahn afirmavam que

As seções que Harnack acreditava serem inter­

0 papel do secretário e o uso que Paulo fez de

polações posteriores não estavam ausentes em

( W olter ) .

tradições compostas por outros explicavam as

nenhum manuscrito. Por isso, com toda a proba-

diferenças de estilo, vocabulário e expressões

biUdade faziam parte das Pastorais desde o início. 1.3.2

teológicas das Pastorais (v. item 4 ababco). No

Organização eclesiástica. Tanto a tradi­

início do século xx, uns poucos estudiosos acre­

ção Baur quanto A. von Harnack supunham que

ditavam que as Pastorais eram cartas paulinas

as qualificações exigidas para o ministério do

autênticas suplementadas por interpolações do

bispo ou supervisor ( =

século

principalmente na questão da ordem na

ITm 3 e 5; Tt 1) refletiam uma estrutura ecle­

que eram produtos do início

siástica desenvolvida que era pós-paulina, com

que incorporavam alguns fragmen­

base em duas pressuposições: as congregações

igreja

II,

(H arnack) , o u

do século

II

“presbítero, ancião”?;

A hipótese

mais antigas não tinham ministério estruturado,

fragmentária não chegou a convencer a muitos

e a teologia e prática cristãs primitivas avança­

porque não conseguia expUcar como e por que

ram gradualmente em bloco. Essas conjecturas

um falsificador teria usado os fragmentos de for­

estavam profundamente arraigadas na consciên­

ma tão estranha

Na época, a

cia do século XIX e tinham origem nas teorias do

hipótese de interpolação era uma possibiUdade.

igualitarismo, do processo histórico e social e da

Mas, com os avanços da crítica textual e com a

evolução biológica. No entanto, confhtam com a

compreensão das práticas de redação no mundo

estrutura eclesiástica variada das congregações

greco-romano, perdeu credibilidade.

apostólicas e com o reconhecimento, nos dias de

tos paulinos autênticos

(G u t h r ie

( H a r r is o n ) .

e

D ibelius ) .

Como era costume na Antiguidade (cf. De ara, 7.25.1;

R ic h a r d s ,

hoje, de que o desenvolvimento pode ser gradual,

C íc er o ,

p. 6-7), Paulo mantinha

mas também extremamente rápido.

uma cópia de suas cartas para consulta posterior

Desde o início, as congregações de todas as

(cf. ICo 5.9,10; 2Co 7.8; 2Ts 2.15) e também de­

missões apostólicas tinham algum tipo de organi­

vido ao risco de perda ou dano durante o trans­

zação eclesiástica. A igreja em Jerusalém, sob a

porte (cf.

Uderança de apóstolos residentes, especialmente

C íc er o ,

De am, 16.18, fim). Também

198

C artas Pastorais

Pedro (c. 33-42 d.C.; Gl 1.18; At 2.14; 3.12; 5.3

ministério na região do mar Egeu, durante o qual

8.14; 9.32; 12.17) e Tiago (c. 42-62 d.C.; Gl 2.9

seria possível situar ITimóteo e Tito. A tradição

At 12.17; 15.13; 21.18), e presbíteros (At 11.30

é reforçada por duas considerações: 1) relatos do

15.2; 21.18; cf. Tg 5.14), tinha uma organização

século

mais estruturada, provavelmente semelhante à das

170-190 d.C.) sobre a viagem final do apóstolo a

II

e subjacentes em Atos de Paulo (9-11; c.

sinagogas e à da comunidade de Qumran (e.g.,

Roma numa rota diferente da encontrada em Atos

Lc 7.3; CD 13.9,10; IQS 6.14,15,19,20: nfbaqqêr,

27 e 28 e seu subsequente martírio no governo de

pãqíd; cf. Schurer,

Nero

feld ) .

v.

2, p. 427-39; Thiering e Wein-

De acordo com IPedro (IPe 5.1-3; cf. 1.1; c.

( R ord o rf; Z a h n , v .

2, p. 84) e 2) indícios bem

antigos de uma missão que Paulo empreendeu à

64 d.C.) e Atos (At 14.23; 20.17; cf. 20.28; c. 65

Espanha depois de Atos 28.

d.C.), certas igrejas fundadas pelas missões petri-

2.1

A missão de Paulo ã Espanha. A probabi­

na e paulina na Ásia Menor e na Grécia também

lidade de uma viagem missionária à Espanha sur­

possuíam uma estrutura eclesiástica reconhecida,

ge, em grande parte, 1) da expectativa de tal tarefa

ainda que o termo “ presbíteros” {presbyteroi, i.e.,

em Romanos 15.24, Atos 1.8 e Atos 13.47; 2) dos

“anciãos”) seja, em Atos, uma expressão que Lu­

indícios a seu favor em IClemente 5.7 (c. 70 d.C.,

cas utiliza para indicar ministérios que, nas cartas

cf.

de Paulo, recebem designações diferentes. Essas

(provavelmente Ásia Menor, c. 160-180 d.C.) e no

R o b in s o n ) ,

nos Atos de Pedro [Vercelli] 1-3, 40

cartas revelam ministérios de liderança estabele­

cânon muratoriano (Roma, c. 170-190 d.C.). Os

cidos na administração e no ensino, embora os

dois últimos textos são testemunhas independen­

identifiquem com maior frequência como ativida­

tes de uma tradição bem difundida de que Paulo

des (Rm 12.8; ICo 12.28; Gl 6.6; ITs 5.12,13) do

viajou de Roma para a Espanha, e Atos de Pedro

que como funções designadas (cf. Fp 1.1). As Pas­

relata que ele voltou a Roma para ser martirizado.

torais dão mais proeminência a ministérios desig­

Clemente de Roma tem conhecimento de sete

nados e às quahficações para tais ministérios por

aprisionamentos de Paulo e chama Paulo e Pe­

causa da crescente ameaça que falsos mestres re­

dro “nossos bons apóstolos”. E, de acordo com

presentavam para as igrejas de Paulo, entre outras

Ireneu {He, 3.3.3; c. 180 d.C.), Clemente foi ensi­

coisas (Ellis, 1999, p. 314-8;

1993, p. 113-5).

nado aos pés deles. Ele afirma que Paulo pregou

Eles representam um desenvolvimento compreen­

no Ocidente, o que, para um escritor que estava

sível de seu uso mais antigo.

em Roma, significava a Espanha ou a Gáha (cf.

1.4

id e m ,

Conclusão. O papel do secretário

( R ic h a r d s

2Tm 4.10), e que alcançou “os limites extremos

e o uso de tradições já existentes (v.

do Ocidente” {to terma tês dyseõs). A última ex­

item 4.3 abaixo) na composição das Pastorais ti­

pressão, à semelhança de “até aos confins da ter­

raram 0 chão da hipótese pseudepigráfica, com

ra” {heõs eschaton tês gês, At 1.8), designava, na

suas pressuposições errôneas, baseadas em ideias

época, a região da Espanha ao redor de Gades (=

e

R oller)

acerca da natureza da autoria.

Cadiz), para onde o apóstolo provavelmente via­

Exigem que o estudante criterioso confira valor

jou depois de ser solto de seu primeiro aprisiona­

do século

XIX,

fundamental às alusões feitas a remetentes na in­

mento pelos romanos (cf.

trodução das cartas e às evidências históricas ex­

p. 53-63: End of the Earth). Essas fontes têm o

ternas, pois tanto aquelas quanto estas sustentam

apoio de tradições posteriores acerca da soltura

E l l is ,

1991;

id e m ,

de Paulo e de seu ministério pós-Atos 28

solidamente a autoria paulina.

2001,

(E u s éb io ,

Hi ec, 2.22.1-8: logos echei, 2). Uma vez que Orí­ 2. Motivação e data Em geral, mas nem sempre

genes aparentemente desconhecia a viagem de ( R e ic k e

e

Paulo à Espanha (cf.

R o b in s o n ) ,

E u s éb io ,

Hi ec, 3.1.3) e que

os defensores da autoria paulina das Pastorais

essa mesma viagem não produziu na Espanha ne­

pressupõem a tradição de que Paulo foi soho

nhuma igreja que declarasse ter origem paulina,

de seu primeiro aprisionamento pelos romanos

essa missão pode ter sido muito breve (c. 63-64

(At 28), corretamente considerado por Harnack

d.C.), levada a efeito logo após sua soltura (cf.

(v.l, p. 240, nota) “um fato histórico incontes­

Zahn, v .

tável” , e que depois disso realizou um segundo

igrejas na região do Egeu.

199

2, p. 64-6), de onde retornou para suas

2.2

A situação de ITim óteo e Tito. A situa­ na Macedônia (ITm 1.3] e também na Acaia, du­

ção de ITimóteo e Tito difere da do ministério

rante cerca de um ano, passando o inverno de

anterior de Paulo na região do Egeu (c. 53-58

65-66 (ou 66-67] em Nicópolis, na província do

d.C.; cf.

K elly,

p. 6-10). Agora sua missão ha­

via se estendido

Gália (2Tm 4.10;

Épiro (Tt 3.12;

Z ahn v .

2, p. 27-35, 66]. Escre­

2,

veu ITimóteo e Tito bem no início desse perío­

p. 25-6], e suas congregações ao redor do mar

do, provavelmente em 65. No final da primavera

Egeu tinham se multiplicado e abrangiam Cre­

de 66 ou 67, visitou Mileto, onde deixou Trófimo

à

Z ahn, v .

ta, Mileto e Nicópohs (Tt 1.5; 3.12; 2Tm 4.20].

(2Tm 4.20], e Trôade, onde deixou sua capa de

Essas congregações corriam grande risco por

inverno e vários hvros e cadernos de apontamen­

causa de um trabalho missionário contrário, de

tos [membrana], que provavelmente incluíam

natureza gnóstico-judaizante (ITm 1.3-7,19,20;

cópias das cartas que havia escrito anteriormente

4.1,2; 6.20; 2Tm 4.3,4; Tt 1.10-16; cf.

1993,

e materiais recebidos da tradição que eram úteis

p. 92-3, 113-15] que incluía líderes das igrejas e

em seu ensino e na composição de novas cartas

E l l is ,

provavelmente antigos companheiros de trabalho

(2Tm 4.13,20; cf.

(2Tm 1.15-18; 2.16,17; 3.6-9; 4.10; Tt 3.9-14].

rece, saiu de Trôade com destino a Roma, com a

Algumas igrejas em casas haviam sido devasta­

intenção de voltar antes do inverno.

das e tinham praticamente desaparecido, como

2.3

R ic h a r d s ,

p. 158-60]. Ao que pa­

A situação e a data de 2Timóteo. Pau­

se percebe nas instruções de Paulo a Tito: "...

lo empreendeu sua última viagem missionária,

te deixei em Creta, para que pusesses em boa

deslocando-se do Egeu para Roma, onde voltou

ordem o que faltava, e que em cada cidade es-

a ser preso, escreveu 2Timóteo e, logo depois, foi

tabelecesses presbíteros [...]. Porque há muitos

decapitado na via Ostiense (2Tm 4.6,7; At Pa e

insubordinados, [...] principalmente os da circun­

Te, 11;

cisão [...], pois [...] transtornam casas inteiras”

tenha sido preso em Éfeso

(Tt 1.5,10,11]. Essa ameaça pode ter levado Paulo

ou Tl-ôade

a retornar da Espanha.

O mais provável, de acordo com tradições do sé­

E u s éb io ,

( F ee ,

Hi ec, 2.25.5-8]. É possível que (S p ic q , v .

1, p. 141]

p. 244-5] e levado preso a Roma.

Para enfrentar o problema, Paulo adotou

culo II citadas em Atos de Paulo e Tecla (9 e 10],

uma nova estratégia em seus escritos. Ele con­

é que tenha voltado a Roma como homem livre

tinuou trabalhando a partir de uma cidade-

(R ordorf,

polo

trar a uma igreja que estava sofrendo as “repeti­

(2Tm 4.20]

e visitando várias igrejas,

p. 323; cf.

Zahn, v.

2, p. 67] para minis­

como, por exemplo, Macedônia (ITm 1.3], Creta

das tribulações e reveses” [ICl, 1.1] resultantes

(Tt 1.5], Nicópolis (Tt 3.12], Mileto (2Tm 4.20]

da contínua perseguição empreendida por Nero.

e Éfeso (ITm 1.3; 3.14; 4.13; 2Tm 1.15-18; 4.19;

Pode ter viajado pelas vias Ignácia e Ápia (Trôa-

mas v.

2, p. 17-9], Todavia, ao contrário

de-Filipos-Apolônia-Brundísio-Roma), viagem de

do que costumava fazer (ICo 4.17; 2Co 7.6,12,13;

três semanas, ou, também de acordo com tradi­

Ef 6.21,22; Cl 4.7,8; cf. Fp 2.25], não pôde enviar

ções do século 11, por uma rota que sai de Trôade,

uma carta a cada uma das muitas congregações

passa por Filipos, vai a Corinto e dali para a Itáha

por mãos de um colega para explicá-la e aplicá-la.

e Roma (cf. 2Tm 4.20;

Z ahn, v .

Em vez disso, enviou as cartas a colaboradores

R ordo rf] .

De acordo com a Crônica de Eusébio (c. 303

de confiança: Tito em Creta e Timóteo em Éfeso.

d.C.; cf.

As cartas eram tanto um instrumento de comu­

zado com Pedro no ano 14 de Nero, 67-68. No en­

nicação e encorajamento pessoal quanto manuais

tanto, nem 1Clemente 5 nem Ascensão de Isaías

J e r ô n im o ,

Vi il, 1, 5, 12] Paulo foi martiri­

que concediam autoridade apostólica ao ensi­

(4.2-5; c. 90 d.C.) sugerem que os dois apóstolos

no que ministravam.

morreram juntos, e Dionísio, bispo de Corinto (c.

Quanto ao itinerário do segundo ministério

170 d.C.; cf.

E u sébio ,

Hi ec, 2.25.8], diz apenas

de Paulo no Egeu, não há muito a fazer senão

que foram executados na mesma época. Pedro

conjecturar, pois as cartas de Paulo e outras fon­

provavelmente morreu perto do início do massa­

tes não oferecem quase nenhuma ajuda. O após­

cre promovido por Nero, no inverno ou na prima­

tolo provavelmente retornou da Espanha só no

vera de 65, e Paulo, no final de 67 — de qualquer

final de 64 d.C. e trabalhou em Creta (Tt 1.5],

maneira, antes do suicídio de Nero, em 9 de

200

C artas Pastorais

junho de 68 (cf.

Zahn, v .

2, p. 61-7;

V.

ocorrido defecções nas igrejas de Paulo no Egeu,

Edmundson,

p. 147-52; para uma opinião diferente, v.

H arnack,

conforme atestado nas Pastorais. No entanto, nos

1, p. 240-3). Nesse caso, Paulo teria escrito 2Ti-

dez anos de 57 a 67 as congregações paulinas na

móteo no final do verão ou no outono de 67 d.C.

Grécia e na Ásia haviam aumentado bastante em termos numéricos e geográficos, e o número to­

3. Situação histórica 3.1

tal de membros pode ser estimado na casa dos

Congregações. As igrejas não tinham pré­ milhares.

dios próprios nos dias de Paulo e, em geral, se

3.2 Colaboradores. Dos colaboradores de Pau­

reuniam nas casas de membros prósperos. Al­

lo, vários são mencionados em Atos (Trófimo)

gumas dessas casas podiam acomodar, na sala

e nas cartas anteriores: Apoio, Demas, Erasto,

principal [atrium] ou num jardim com colunata

Lucas, Marcos, Priscila e Áquila, Timóteo, Tito,

{perístylium] mais atrás na casa (cf. Ems, 1989,

Tiquico. Outros aparecem só em Tito (Ártemas,

p. 139-45, 144), uma congregação de cem a du-

Zenas) ou em 2Timóteo (Cláudia, Crescente, Êu-

zentas pessoas (em pé). Nas congregações egeias

bulo, Lino, Onesíforo, Prudente, Carpo?), em que

de Paulo, havia membros prósperos, como as Pas­

aparecem como trabalhadores da igreja em Roma

torais deixam claro nos comentários que Paulo

ou como participantes do contínuo esforço mis­

faz acerca de escravos e senhores e também sobre

sionário de Paulo.

a atitude correta que os cristãos de posses devem

3.3 Adversários. Os adversários fazem o mes­

ter (ITm 6.1-7,17-19; cf. Rm 16.23; Ef 6.5-9).

mo tipo de oposição ao longo de todas as Pas­

É provavelmente dessas igrejas nas casas que

torais

Paulo está falando quando se refere à “casa” de

uma única e desenvolvida forma de ensino falso,

determinados indivíduos (ITm 3.15; 2Tm 1.16;

que desde o início infestou as missões de Paulo

4.19; Tt 1.11; ITm 5.13).

e de outros apóstolos. Tiveram origem no grupo

( K e lly ,

p. 10-1; Dibelius, p. 65-7), ou seja,

Plínio [Ep, 10.96.9,10; c. 110 d.C.), governa­

“judaizante” dos hebraíoi, de ritual bem estrito,

dor da Bitínia e Ponto, relata que as conversões

ou seja, “os [do partido] da circuncisão” em Jeru­

maciças ao cristianismo haviam praticamente

salém (cp. At 11.2 com Tt 1.10), que combinavam

esvaziado os templos pagãos da província “por

a exigência de que os gentios aderissem às regras

um longo período” (c. 100 d.C.?). Em meados da

mosaicas e praticassem um rituahsmo asceta com

década de 60, as Pastorais sugerem que as con­

uma ênfase em visões de anjos e, pelo menos na

versões no entorno do Egeu já eram maciças.

Diáspora, com tendências gnosticizantes de pro­

Cartas anteriores de Paulo revelam que já na

mover experiências com uma sabedoria e um

década de 50 havia pelo menos duas igrejas em

conhecimento divinos distorcidos e menosprezar

casas de Colossos (Fm 2; Cl 4.15), duas em Éfeso

a matéria e a ressurreição e redenção do corpo

(ICo 16.19; cf. 2Tm 1.16; 4.19) e provavelmente

(cp. ICo 15.12 com 2Tm 2.18; v.

quatro em Corinto (Rm 16.23; ICo 1.11; 16.15,16;

vezes, 0 ascetismo de que se vangloriavam pro­

At 18.7,8). Havia quatro ou cinco em Roma (Rm

duzia uma arrogância disposta a uma sutil licen­

g n o s t ic is m o ) .

À s

16.5,10,11,14,15; cf. Fp 4.22). Quando uma igreja

ciosidade sexual (cf. Gl 4.9; 5.13-21; Cl 2.18,23

em casas é especificada, pelo menos uma outra

com ITm 4.3; 2Tm 3.6,7; Tt 1.10,15). Enquanto

fica implícita. O número de membros de muitas

Paulo afirmava que na era messiânica as leis éti­

dessas igrejas era da ordem das dezenas, mas al­

cas do a t eram váhdas, mas as leis rituais estavam

gumas provavelmente eram congregações de 100

ultrapassadas (Cl 2.17; cf. Gl 4.9,10) e não eram

a 150 pessoas, contando-se os servos da casa. 0

mais obrigatórias (Rm 10.4; 13.8-10; Gl 3.24,25),

tamanho e o impacto da igreja em Éfeso refletem

seus adversários alegavam que as leis rituais con­

no tumulto provocado pelos ourives (At 19.23-40),

tinuavam obrigatórias e, ao mesmo tempo, inva-

que dificilmente seria tão notório se a ameaça às

hdavam os mandamentos éticos por causa de sua

suas vendas fosse insignificante.

conduta (cf. Ellis, 1993, p. 36-8, 51-2, 61, 80-115,

Em meados da década de 60, a igreja em

116-28, 230-6; v.

Roma sofreu o martírio de “ uma grande multi­ dão” [ICl, 6.1; cf.

T á c it o ,

An, 15.44), e haviam

L ei) .

Nas Pastorais, os judaizantes de tendên­ cia gnóstica ficaram conhecidos como “ os da

201

LARTAS Pastorais

circuncisão” (Tt 1.10) e continuaram alegando

A intenção do apóstolo era que suas cartas

que eram “mestres da lei” (ITm 1.7), embora,

fossem usadas por mais pessoas que os destina­

diferindo de Gálatas, aparentemente já não enfa­

tários imediatos (v. 1.3.1 acima) e deviam ser es­

tizassem a obrigatoriedade da circuncisão. Proi­

pecificamente “lidas na igreja” (Cl 4.16; ITs 5.27;

biam o casamento, promoviam leis alimentares

cf. ICo 7.1,25; 8.1; 12.1; 16.1,12). À luz de sua

e afirmavam ter a capacidade de transmitir “co­

bagagem judaica em que não se podiam ler nem

nhecimento” (gwõiw) cuja fonte, nas palavras de

mesmo targumim, mas apenas as Escrituras ca­

um oráculo aplicado a eles, eram espíritos demo­

nônicas “na igreja” [b. Meg., 32a; cf.

níacos (ITm 4.1-3; 6.20). Foi uma etapa de contí­

CRINT 2.1, p. 238-9), elas foram escritas e recebi­

nuo trabalho contramissionário, que aparece em

das como “Palavra de Deus”, ou seja, como au­

Inácio (Mg, 8-11; 7^, 9; c. 110 d.C.) como um típo

toridade inspirada e normativa para as igrejas

A lexander,

de “cruzamento de judaísmo com gnosticismo”

(cf. ITs 2.13 com 2Ts 2.15). Eram ensinos de um

que negava não somente a ressur­

profeta apostólico que, ao contrário de outros

( L ig h t f o o t )

reição de Cristo, mas também sua encarnação e

ensinos e escritos proféticos nas congregações,

morte físicas, e que mais tarde, no século ii, se

não estavam sujeitos a “testes” ou escrutínios

desdobrou em heresias gnósticas bem elaboradas

de outros profetas (ICo 9.3, anakrinõ; ICo 14.29,

ou nelas se fundiu. Enquanto alguns adversários

diakrinõ; com ICo 14.37,38). Ou seja, eram obras

na missão surgiram do “partido da circuncisão”,

de ensino vestidas de cartas. Filemom trata de

outros haviam sido mestres nas congregações

uma questão pessoal; outras, como ICoríntios,

paulinas e tinham abandonado a teologia de Pau­

dão atenção a problemas imediatos da congre­

lo, entre eles antigos associados ou colaboradores

gação ou, como Romanos ou Efésios, abordam

(ITm 1.3-5; 2Tm 1.15,16; Tt 1.10,11).

questões teológicas mais gerais e recorrentes;

4. Composição: crítica literária

— são manuais de tradição que têm afinidades

ITimóteo e Tito — e até certo ponto 2Timóteo Questões literárias sobre as Pastorais dizem

de gênero hterário com o Manual de disciplina

respeito ã sua forma epistolar, o papel do se­

de Qumran. O apóstolo emprega a forma de carta

cretário e, talvez o mais significativo, o uso de

por vários motivos, especialmente porque com

tradições preexistentes (cf.

ela ele pode combinar informação e relaciona­

1999;

E l l is ,

id e m

,

1989,

p. 104-7). 4.1

mentos pessoais com seu objetivo básico de en­ Forma da carta. Há

fa z ia - s e d is t in ç ã o e n t r e

as

cerca d e c e m anos,

4.2

e n t e n d id a s c o m o p r o d u ç õ e s n ã o lit e r á r ia s e s c r it a s apenas

p a ra

os

e as

d e s t in a t á r io s ,

te , t e m

se

(G. A.

de para se escrever cartas, com exceção das mais

D eissm ann ) . M a i s r e c e n t e m e n ­

t e n t a d o id e n t i f i c a r

g ê n e r o l it e r á r io

a

d is t in ç õ e s f e it a s p o r D e is s m a n n

curtas, visto que a baixa qualidade da pena, da tinta e do papel tornava lento e laborioso esse tra­

“ ca rta ” c o m o u m

(v . c a r t a s , fo rm a s d e c a r t a s ).

Secretário. Por motivos de ordem prática,

na Antiguidade o secretário era uma necessida­

e p ís t o la s

l it e r á r ia s m a is f o r m a is , v o l t a d a s p a r a u m c ír c u lo m a is a m p lo

sinar e edificar crentes na verdade do evangelho de Cristo.

“ c a r ta s ” d e P a u lo , a q u i

As

fo r a m , n a m e ­

balho (cf.

Q u in t ilia n o ,

In

o t,

10.3.31; 10.3.19-22)

e podia exigir mais de uma hora para a produção

l h o r d a s h ip ó t e s e s , e x a g e r a d a m e n t e s im p lis t a s e

de uma página pequena

p r o v a v e lm e n t e e r r ô n e a s , e te n ta tiv a s p o s te r io r e s

geral, o secretário fazia o registro primeiro numa

1999;

prancha com cera ou numa tábua de madeira, em

d e c la s s if ic a ç ã o i n d u z ir a m a e r r o ( c f . E l l i s , m a s V. M a lh e r b e , a n r w ,

2:26.1, p. 192-3, 325-6). A

( R o lle r ,

p. 13-4, 6-9). Em

forma de taquigrafia, usada na escrita grega e la­

p r o p ó s it o , n a A n t i g u i d a d e a s c a r t a s p o d i a m a s s u ­

tina do século

m i r p r a t ic a m e n t e q u a lq u e r f o r m a , c o m o r e s s a lt a

transcrevia no papiro por extenso. Esse tipo de

P. L.

S c h m id t [ kp, v .

C íc e r o

tos

[De am, 2.3),

t ip o s ” , e m b o r a

2,

p.

p. 24-43), e em seguida

ajudante é explicitamente mencionado em Roma­

d e a co rd o co m

e r a m s im p le s m e n te “ d e m u i­

nos 16.22 e está implícito em passagens nas quais

e le

Paulo, segundo o costume, acrescenta uma nota à

c la s s if ic a s s e a s p r ó p r ia s

c a r t a s c o m o in f o r m a t iv a s d e s c o n t r a íd a s ,

325), e,

I (R ic h a r d s ,

e

e as sérias e

com o

“as

fa m i l i a r e s

e

margem (e.g., Fm 19a; ICo 14.34,35;

E llis ,

1989,

p. 67-8) ou uma conclusão (e.g., ICo 16.21-24;

s o le n e s ”.

202

C artas Pastorais

Gl 6.11-18; Cl 4.18; 2Ts 3.17; cf. ITm 6.20,21;

4.4

Classificação das tradições. Composições

2Tm 4.19-22; Tt 3.15) ao texto que o secretário

preexistentes abrangem uma variedade de tópi­

acabou de escrever. No caso das Pastorais, inúme­

cos e formas literárias (cf.

ras peculiaridades verbais e estilísticas permitem

encontram-se doxologias (ITm 1.17; 6.15,16),

El u s ,

1999). Entre eles,

inferir o uso de um secretário, e a sugestão plausí­

uma lista de imoralidades (ITm 1.9,10), regras

vel feita por estudiosos é que esse secretário tenha

congregacionais acerca da conduta das viúvas

sido Lucas (2Tm 4.11; cf.

(ITm 2.9— 3.1a) e requisitos para ministérios

S tr o b e l ,

p. 210; M o u l e , p.

p. 51, talvez; mas

(ITm 3.1b-13), profecias preditivas (ITm 4.1-5;

p. 10-6). O trabalho do secretário ia de

2Tm 3.1-5), confissões que às vezes são híni­

copiar ditados até participar como coautor, e pa­

cas (ITm 2.5,6; 3.16; 2Tm 1.9,10; Tt 3.3-7; cf.

434;

S p ic q , v .

V. M e t zg e r ,

1, p. 199;

K n ig h t ,

rece que nas Pastorais ele teve uma participação

ITm 1.15) e outros hinos (ITm 6.11,12,15,16;

maior que em outras cartas paulinas (cf.

R ic h a r d s ,

2Tm 2.11-13; Tt 2.11-14). Alguns desses textos

p. 23-4, 193-4). Contudo, para a forma literária

acham-se na forma midráshica implícita e explí­

das Pastorais são mais significativas as numerosas

cita, ou seja, de comentário sobre textos do

tradições preexistentes, em grande parte não pau­

(ITm 1.9,10; 2.9—3.1a; 5.17,18; 2Tm 2.19-21; cf.

linas, que são empregadas nessas cartas.

El u s ,

4.3

at

1993, p. 188-97, 147-237: Prophecy as exe­

Ti-adições. No que diz respeito às Pasto­ gesis). Uma passagem combina midrash e uma

rais, faz tempo que as tradições têm sido reconhe­

forma hínica (Tt 3.3-7), sendo ambas característi­

cidas em algumas passagens, como a confissão

cas da profecia cristã primitiva (cf.

em ITimóteo 3.16 e os cinco ditos “fiel é a pa­

The prophetic hymn).

A une,

p. 453-5;

Algumas tradições também podem ser iden­

lavra” ipistos ho logos; v. 4.4.1 abaixo). Em ou­ tras passagens também podem ser identificadas

tificadas e classificadas por três fórmulas

mediante o uso de critérios adequados. Algumas

que as introduzem ou concluem: “ fiel é a pala­

(ara),

pericopes já existentes haviam sido compostas

vra” (pistas ho logos'), “ sabendo isto: que” {touto

por Paulo, e algumas por outros que o apóstolo

ginõskein/idein hoti) e “estas coisas” {tauta). Tais

reconhecia que tinham o dom profético de mediar

passagens são relativamente independentes do

a revelação divina.

contexto e identificadas por outros critérios, re­ lacionados acima.

Os critérios para identificar um trecho citado

4.4.1

ou transmitido pela tradição incluem: 1) uma fór­

"Fiel é a palavra”. Essa fórmula intro­

duz (ITm 1.15; 4.9,10; 2Tm 2.11-13) ou conclui

mula que em outra passagem introduz ou conclui material citado (e.g., ITm 4.1; cf. At 20.23; 28.25;

(ITm 2.9—3.1a; Tt 3.3-8a) cinco passagens que,

Hb 3.7); 2) a passagem é completa em si mesma;

à exceção de ITimóteo 2.9—3.1a, são declara­

3) um número relativamente grande de hapax le-

ções confessionais de temas soteriológicos pau-

gomena, expressões idiomáticas e estilo que di­

hnos, cujo vocabulário é geralmente paulino. A

vergem do restante da carta e de outros escritos

fórmula não aparece em cartas mais antigas de

do mesmo autor; 4) uma passagem notavelmente

Paulo (mas v. ICo 10.13) e, aparentemente, teve

parecida em outro escrito do qual não existe a

origem entre profetas apocalípticos judeus ou em

probabilidade de nenhuma dependência literá­

Qumran (cf. 1Q27 1.8). No entanto, foi utiliza­

ria. Um único critério pode não ser significativo,

da na missão joanina (Ap 22.6) e veio a ser em­

visto que vocabulário ou expressão idiomática

pregada por Paulo e seus colaboradores durante

diferentes podem indicar apenas que o assunto

seu primeiro aprisionamento romano, isto é, em

mudou, que o secretário é diferente ou que a car­

Cesareia. Por analogia com o emprego de “fiel”

ta foi escrita numa época diferente. Além disso, é

em Sirácida (Eo 46.15; 48.22) para designar as

possível que uma citação não seja uma tradição

profecias de Samuel e Isaías, a fórmula introduz

transmitida (e.g., Tt 1.12), e tradições transmiti­

uma palavra que não é um dito qualquer, mas

das podem ser parafraseadas e incorporadas sem

uma palavra profética de Deus aos ouvintes. Por

uma fórmula de citação. De todo modo, a satisfa­

isso, 0 ancião que ensina (= bispo) deve manter-

ção de vários critérios em determinada passagem

se “firme na palavra fiel” (Tt 1.9), e o texto diz

fornece diretrizes para avaliar as probabilidades.

que, em seu ministério, Timóteo é sustentado por

203

L a r t a s P a s t o r a is

essas “palavras fiéis” e é aconselhado a transmiti-

1.8— 11 0 correto uso da Lei

las às suas congregações (2Tm 2.11-13,14). Em

1.12-17 0 exemplo de Paulo

razão dos temas e do vocabulário paulinos que

I.18-20 Timóteo contrastado com os falsos

apresentam, na sua maioria os ditos associados

mestres

à expressão “fiel é a palavra” provavelmente são composições de Paulo, mas ITimóteo 2,9—3.1a (e

II. 2.1—4.10 Regras congregacionais

talvez Tt 3.3-8), passagens de autoria de outros,

2.1-8 As orações e sua finahdade

são variantes de uma tradição em comum com a missão petrina (cf. IPe 3.1-5,18-22; ICo 14.34,35). 4.4.2 “Sabendo isto: que”. Essa expressão e ou­ tras semelhantes nem sempre assumem caráter formular (e.g., ITs 1.4,5), mas às vezes são utili­ zadas como fórmulas para introduzir a paráfrase de uma citação bíblica (At 2.30; cf. SI 132.11; cf. Po, Fp, 4.1) e outras tradições citadas (Rm 6.6;

2.9—3.1a Uma “palavra fiel” para maridos e esposas 3.1b-13 Qualificações de bispos (superviso­ res) e ministros 3.14-16 A finahdade e o fundamento cristoló­ gico das regras 4.1-10 Uma

advertência profética

e

sua

aplicação

Ef 5.5; cf. ICo 6.9,10). Nas Pastorais, são usadas como fórmulas para introduzir a lista de imo­

III. 4.11— 6.2 Instruções a Timóteo

ralidades que parafraseia os mandamentos, do

4.11—5.2 Seu exemplo para outros

quinto ao nono (ITm 1.9,10), e transmitir uma profecia (2Tm 3.1-5).

5.3-6.2 Seu trabalho de supervisão da con­ gregação; viúvas, anciãos, escravos e outros

4.4.3 “Estas coisas”. Essa fórmula acha-se no final do material citado e introduz a aplicação

5.23 Um interlúdio pessoal: pureza não exige ascetismo

do material à situação vigente. Aparece no final de pericopes identificadas acima como textos transmitidos por tradição (ITm 4.6; 2Tm 2.14; cf. Tt 1.15,16; 2.1). Também pode ocorrer no final de uma regulamentação para o ministério (ITm 3.1b-13,14; cf. Tt 1.7-9) que é distinta de seu contexto

(H arn a ck, v .

1, p. 482-3;

K elly,

p.

IV. 6.3-19 Admoestações finais 6.3-10 Acerca de falsos mestres e suas motiva­ ções financeiras 6.11-16 Acerca das motivações e da conduta do “homem de Deus” 6.17-19 Acerca de crentes abastados

231) e de regras congregacionais e regras para membros da casa (ITm 5.5,6,9,10,17-20; 6.1,2; Tt 2.2-14,15), que provavelmente são também

V. 6.20,21 Admoestação e invocação de bên­ ção pela mão de Paulo

tradições preexistentes incorporadas nas cartas. 4.4.4 Conclusão. Várias outras passagens são,

5.2 Tito

provavelmente, material tradicional reelaborado; confissões hínicas (ITm 2.5,6; 2Tm 1.9,10), uma doxologia (ITm 1.17), uma comissão

(ITm 6.11-16) e outros ditos (ITm 6.7,8,10a; 2Tm 1.7). Juntos, os materiais preexistentes constituem cerca de 43% de ITimóteo, 16% de 2Timóteo e 46% de Tito

( E l l is ,

I. 1.1-4 Saudação

doxologia

1999).

II. 1.5—2.1 Instruções para Tito 1.5-9 Quahficações dos presbíteros (supervi­ sores) 1.10—2.1 Acerca dos falsos mestres

S. Esboço

III. 2.2-15 Supervisão congregacional e a

5.1 ITimóteo

base para isso

I. 1.1-20 Introdução 1.1,2 Saudação

IV. 3.1-11 Responsabilidades dos crentes

1.3-20 Responsabilidade de se opor a judai­ zantes de tendência gnóstica

3.1.2 Como cidadãos 3.3-8 Seu fundamento numa “palavra fiel”

1.3-7 Seus erros

3.9-11 Acerca de falsos mestres

204

C artas Pastorais

V. 3.12-15 Uma palavra de conclusão

na história da salvação (ITm 3.16; Tt 2.11-14), in­

3.12,13 Acerca dos colaboradores

clusive a identidade de Cristo como Deus (Tt 2.13),

3.14 Uma admoestação repetida

sua preexistência (ITm 1.15), a Unhagem humana

3.15 Saudações e invocação de bênção pela

davídica (2Tm 2.8), o ministério fiel (ITm 6.13),

mão de Paulo

a obra salvadora (ITm 2.5,6a; 2Tm 1.9,10), a res­ surreição (2Tm 2.8) e a vinda e o reinado futuros

5.3 ITimóteo

(ITm 6.14; 2Tm 2.11,12; 4.8,18).

I. 1.1-5 Saudação e ação de graças

P a u l o ; o r d e m e g o v e r n o d a i g r e i a ; P a u l o n a t r a d iç ã o

D P c : c â n o n ; c a t o u c is m o

p r i m i t iv o

; c r o n o l o g ia d e

DA i g r e j a p r i m i t iv a .

II. 1.6—2.13 Súplica a Timóteo 1.6—2.7 Por um testemunho flel diante da

Comentários:

B iB L io G R A n A .

oposição 2.8-13 À luz do exemplo de Paulo

D ib e l iu s ,

M. &

Fortress, 1972. (Herm.) ■ F e e ,

G. D.

The Pastoral

Epistles. Peabody: Hendrickson, 1988. ■ III. 2.14—4.5 Advertências contra falsos

C on­

H. The Pastoral Epistles. Philadelphia:

zelm an n ,

G u t h r ie ,

D. The Pastoral Epistles. 2. ed. Grand Rapids: Eer­

mestres

dmans, 1990.

(t n t c .)

■ H oltzmann, H. J. Die Pas-

2.14-26 Evitar os vãos caminhos deles

toralbriefe. Leipzig: Engelmann, 1880. ■ K elly, J.

3.1-9 Uma profecia acerca dos falsos mestres e

N. D. The Pastoral Epistles. London: Black, 1963.

respectiva aplicação

• K night

3.10-17 O motivo e a maneira de enfrentar fal­

iii,

G. W. The Pastoral Epistles. Grand

Rapids: Eerdmans, 1992. (mgtc.) ■ L ea, T. D. &

sos mestres

Griffen Jr., H. P. 1, 2 Timothy, Titus. Nashville:

4.1-5 Exortação a um ministério fiel

Broadman, 1992.

(n a c .)

■ L iefeld, W. L. 1 and 2

Timothy, Titus. Grand Rapids: Zondervan, 1999. IV. 4.6-18 A situação e as perspectivas de

(n i v a c . )

Paulo

■ Lock, W. The Pastoral Epistles. Edin­

burgh: T & T Clark, 1958 [1924], (icc.) ■ M arshall,

4.6-8 Sua morte está próxima

I. H. A critical and exegetical commentary on the

4.9-16 A necessidade de Timóteo ir ter com

Pastoral Epistles. Edinburgh: T & T Clark, 1999.

4.17,18 Sua confiança na presença de Deus e

Word, 2000.

ele

(icc) • M ounce, W. D. The Pastoral Epistles. Dallas:

na redenção final

(w b c . )

■ Spicq, C. Les épitres pasto­

rales. Paris: Gabalda, 1969. 2 v. ■ T owner, P. H. 1-2 Timothy, Titus. Downers Grove: InterVarsity,

V. 4.19-22 Saudações e invocação de bênção

1994.

pela mão de Paido

(iv p N T C .)

• Estudos: Aland, K. Neutesta-

mentliche Textkritik und Exegese. In: Lohse,

E. &

Aland, K., orgs. Wissensckaft und Kirche, FS. Bie­

6. Temas

lefeld: Luther, 1989. p. 132-48. ■ Aune,

Os ensinos das cartas encontram-se, em grande

Odes of Solomon and early Christian prophecy.

parte, nas tradições reelaboradas e transmitidas e

NTS, V .

em suas aplicações. Tratam dos falsos mestres e da

nannten Pastoralbriefe. Tübingen: Gotta, 1835. ■

D.

E. The

28, p. 435-60, 1982.■ Baur, E C. Die soge-

devida resposta a eles (ITm 1.3-20; 4.1-10; 6.3-10;

D o n e ls o n ,

Tt 1.10—2.1; 3.9-11; 2Tm 2.14—4.5) e das estritas

ment in the Pastoral Epistles. Tübingen: Mohr Sie­

qualificações para o exercício de ministérios à luz

beck, 1986. •

das ações dos adversários (ITm 3.1b-13; Tt 1.5-9).

in the first century. London: Longmans, 1913. •

De alguma forma também relacionadas com

Ellis, E. E. “ The end of the earth” (Acts 1:8).

essa situação estão outras normas acerca da or­

V.

dem na igreja (ITm 2.1—3.1a; 5.3-25; Tt 2.1-14)

pretation. Leiden:

e da conduta dos crentes (ITm 6.1,2; Tt 3.1-8).

making of the New Testament documents. Leiden:

L. R. Pseudepigraphy and ethical argu­

E d m u n d so n ,

G. The church in Rome

b b r,

1, p. 123-32,1991. ■ ______ . History and inter­ E.

J. Brill, 2001. ■ _______. The

Como nas demais cartas paulinas, todos os ensina­

E. J. Brill, 1999. ■ _______. The Old Testament in

mentos recebem uma fundamentação cristológica

early Christianity. Tübingen: Mohr Siebeck, 1991.

205

• ______ . The Pastorals and Paul. ExpT, v. 104, p.

memorial da morte sacrificial do Senhor com

4S-7, 1992-1993. • ______ . Paul and his recent in­

base numa tradição que descreve a Última Ceia.

terpreters. 5. ed. Grand Rapids; Eerdmans, 1979,

Estudos recentes têm destacado a importância de

p. 49-57. • ______ . Pauline theology: ministry and

fatores sociais na explicação das divisões entre

society. Grand Rapids; Eerdmans, 1989. ■ ______ .

ricos e pobres na igreja. Essas divisões causaram

Prophecy and hermeneutic in early Christiani­

os abusos e também a resposta de Paulo, na qual

G u t h r ie ,

ele destaca a refeição como um centro de conver­

D. Introduction to the New Testament. Ed. rev.

gência da unidade e do amor cristão mútuo que

ty. 4. ed. Grand Rapids; Baker, 1993. ■

Downers Grove; InterVarsity, 1990. p. 636-46; ■

se despe das distinções de classe e outras mais.

A. Chronologie. In; ______ . Geschichte

São improváveis as teorias de que a refeição do

H arnack,

der altchristlichen Literatur. 1958 [1904]. P.

2.

tom o

v.

Leipzig;

The problem of the Pastoral Epistles.

N.

don; O x ford University Press, J. B.

The

tipo paulino era significativamente diferente das

Hinrichs,

reahzadas em outras áreas da igreja primitiva.

1 p. 480-85. ■ H arrison , 1921. ■

1. Introdução

Lon­

2. Refeições religiosas no mundo antigo

L ightfoot ,

The

date o f the Pastoral Epistles;

3. A refeição da igreja em Corinto

close

4. A resposta de Paulo diante da situação de

of the Acts. In :______ . Biblical essays. London:

Corinto

MacmiUan, 1893, p. 399-437. ■ M e t z g e r , W. Die

5. A ceia do Senhor segundo Paulo e a práti­

letzte Reise des Apostels Paulus. Stuttgart: Calver, 1976. ■ M

o u le ,

C.

ca em outros lugares

D. The problem of the Pas­

E

torals; a reappraisal,

v.

b jr l,

47, p. 430-52, 19641. Introdução

1965. ■ P r i o r , M. Paul the Letter-writer Sheffield: js o t ,

1989.

23.)

{ js N T S u p ,

der Pastoralbriefe.

tlz,

B. Chronologie

Em ICoríntios 10.1-3, Paulo assinala o perigo

101, p. 82-94, 1976. ■

de que cristãos que acreditam estar firmes na fé

■ R e ic k e ,

v.

The secretary in the Letters o f Paul.

caiam em grande tentação, participando de idola­

Tübingen; Mohr Siebeck, 1991. ■ R o b in s o n , J. A. T.

tria. O povo de Israel, que havia experimentado

Redating the New Testament. London;

R ic h a r d s , E . R .

1976.

um notável ato da graça divina quando foi liber­

O. Das Formular der paulinischen Briefe.

tado da escravidão no Egito, ainda assim caiu na

Stuttgart; Kohlhammer, 1933. • R o r d o r f , W. Noch­

idolatria e na imoralidade que a acompanha. Tra­

mals; Paulusakten und Pastoralbriefe. In;

E l l is , E .

ta-se de uma advertência aos corintios. Paulo re­

O., orgs. Uadition and

força o paralelo que está traçando, fazendo uma

interpretation in the New Testament, FS. Grand

analogia com a forma em que os israehtas "todos

• R oller,

E.;

H a w th o rn e ,

G. E;

B e tz ,

Rapids: Eerdmans, 1987. p. 319-27; •

scm ,

A.

foram batizados [...]. Todos comeram do mesmo

Schreiben des Lukas? Zum sprachhchen Problem

alimento espiritual, e todos beberam da mesma

der Pastoralbriefe.

bebida espiritual”. Assim como a experiência que

1969. •

T h ie r in g ,

nts,

v.

15, p. 191-210, 1968-

B. E. Mebaqqer and Episkopos in

the hght of the Temple scroU. 1981. •

S t r o b e l,

jbl,

v.

100, p. 59-74,

os israelitas tiveram com a nuvem e o mar é vis­ ta da perspectiva do

b a t is m o

cristão, seu comer e

M. The organizational pattern

beber deve ser visto como algo análogo à refeição

and the penal code of the Qumran sect. Gottingen;

cristã, mencionada mais adiante, no mesmo ca­

Vandenhoeck & Ruprecht, 1986. •

M. Die

pítulo (ICo 10.15-17). Aqui, portanto, encontra­

Pastoralbriefe als Paulustradition. Gottingen; Van­

mos a primeira menção explícita (embora alguns

denhoeck & Ruprecht, 1988. •

estudiosos encontrem uma possível alusão era

W e in f e l d ,

W o lter,

Z ahn, T.

Introduc­

tion to the New Testament. Minneapohs; Klock,

ICo 5.6-8) de Paulo à refeição eclesial com sua

1977 [3. ed. 1909; 1. ed. 1899]. v. 2. p. 1-133. 3 v.

comida e bebida espirituais. Da mesma forma,

E. E. E llis

temos aqui uma das poucas passagens em que o batismo e a ceia do Senhor aparecem associados

C e ia

do

Senhor

i:

P aulo

como os dois ritos praticados na igreja. Em ICo-

Abusos na hora da refeição eclesial em Corin­

ríntios 12.13, há uma referência exclusivamente

to fizeram com que Paulo lembrasse a igreja

ao batismo, em duas expressões paralelas, mas

do verdadeiro significado dessa refeição como

não ao batismo com o Espírito (v.

206

E s p ír it o S a n t o )

C eia do S enhor i : Pa ulo

0 pôr do sol do dia anterior, tinha caráter espe­

nem ao beber o Espírito por ocasião da ceia do Senhor, que é uma ideia sem fundamento algum.

cial, e havia refeições especiais associadas com

Mais adiante, na mesma carta, Paulo se re­

a Páscoa e outras festas. No movimento religioso

fere a uma refeição eclesial denominada “ceia

Ugado aos fariseus, grupos pequenos conhecidos

do Senhor” {ICo 11.20; cf. “ mesa do Senhor”,

como hãbzrot se reuniam para celebrar e dar gra­

ICo 10.21), sem dúvida celebrada com frequência

ças a Deus. Era também um ato de dedicação.

na igreja de Corinto. Referências em Atos indicam

As refeições diárias dos judeus começavam com

que um evento denominado “partir do pão” era

uma palavra de agradecimento a Deus associada

celebrado na igreja de Jerusalém, em Trôade “ no

com o partir do pão e terminavam com um agra­

primeiro dia da semana” {At 20.7) e, por exten­

decimento adicional. Os banquetes realizados em

são, nas demais igrejas. Uma vez que em Corinto

ocasiões especiais, inclusive nos dias de descan­

a coleta de dinheiro para atender às necessida­

so, outras festas e refeições com convidados, in­

des da igreja também era feita no primeiro dia da

cluíam vinho, que não era bebido nas refeições

semana (ICo 16.2), é razoável supor que esse

comuns do dia a dia. Davam-se graças por cada

dia tinha um significado especial para a igreja e

cáUce de vinho

que uma reunião da igreja acontecia naquele dia

ção da Páscoa, seguia-se um procedimento mais

da semana.

elaborado. Um elemento importante era a expU­

(K lau ck,

1982, p. 66-7). Na refei­

Detalhes sobre o que acontecia na celebração,

cação do simbolismo Ugado às várias partes da

quer nas igrejas paulinas, quer nas demais, são

refeição, inclusive o cordeiro, o pão ázimo e as

ínfimos, e um comentário frequente é que, não

ervas amargas. A finalidade desse “anúncio” (cf.

fossem os abusos cometidos em Corinto, talvez

katangellõ, ICo 11.26) era fazer com que a ocasião

jamais tivéssemos conhecimento dela. Entre­

se tornasse uma lembrança (Êx 12.14; 13.9; cf.

tanto, o fato de a tradição citada por Paulo rela­

anamnêsis, ICo 11.24,25) do que Deus havia feito

cionada com a ocasião conter um mandamento

pelo seu povo.

dado pelo Senhor a seus seguidores para que o

H.

J. Klauck (1982) descreve, quase à exaus­

fizessem em memória dele indica com bastante

tão, a situação no mundo helênico. Ele anahsa,

clareza que essa celebração era considerada um

uma por uma, as refeições associadas a oferendas

dever, onde quer que a tradição fosse conhecida.

e sacrifícios religiosos, promovidas por associa­

Para Paulo, a origem dessa refeição foi a Úl­

ções, celebradas no culto dos mortos, associadas

tima Ceia de Jesus com seus discípulos, ocorri­

com as várias reUgiões de mistério no helenismo

da “na noite em que foi traído” , isto é, quando

e no judaísmo e praticadas pelas seitas gnósti­

foi entregue às autoridades judaicas (o que foi,

cas (v.

em última instância, um ato de Deus), para ser

comunais

executado em seguida (ICo 11.23). Paulo aphcou

particularmente importantes e tinham caráter

ao incidente a maneira em que entendia a ceia.

reUgioso. Os convertidos ao cristianismo podiam

Entretanto, a natureza e a teologia dessa refeição

estar famiUarizados com refeições desse tipo e

g n o s t ic is m o ) .

Ele ressalta que as refeições

promovidas por associações

eram

nas cartas de Paulo e sua relação com a Última

com algumas das práticas das várias reUgiões de

Ceia e com as refeições cristãs em geral suscitam

mistério (v.

vários problemas.

r e l ig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ) .

Havia uma complicada mistura de práticas religiosas em Corinto. Muitos membros da igreja

2. Refeições religiosas no mundo antigo

estavam familiarizados com refeições associadas

As refeições comunais eram importantes no juda­

a templos pagãos, e alguns deles acreditavam que

ísmo e em religiões helénicas. Atendiam a finali­

não havia problema em continuar participando

dades sociais, reunindo os adeptos, e, de diversas

delas. Isso não significa que, para eles, o que

maneiras, cumpriam uma função reUgiosa.

acontecia nessas refeições e na ceia do Senhor

Para os judeus em geral, toda refeição era re­

era a mesma coisa. Além disso, é importante ob­

Ugiosa, desde que se dessem graças a Deus pela

servar que as críticas diretas e severas que Paulo

comida. A principal refeição da noite no início

faz à refeição da igreja em Corinto não parecem

do dia de descanso (sábado), que começava com

ter nenhuma ligação com as crenças ou práticas

207

V -tIA U U J t N M U K i. T A U L U

pagãs que haviam sido nela introduzidas. Talvez

Corinto quando Paulo escreveu. Tem se alegado

os cristãos de Corinto achassem que o simples

que a seqüência pão-refeição-cáhce era seguida

fato de participar da refeição os protegia do juízo

em Corinto

divino, mas a instrução de Paulo não tem a inten­

p. 295) entende que, por não haver indicação de

ção de corrigir um entendimento errôneo sobre a

que os membros mais pobres da igreja fossem

( T heissen

e

L am pe) .

Klauck (1982,

refeição, mas é um apelo a que se abstenham da

excluídos do partir do pão, a refeição precedia o

idolatria. De modo que os abusos eram de nature­

partilhar do pão e do cálice.

za social e refletiam as práticas do mundo secular

Uma interpretação é que os membros mais

em geral, não das religiões pagãs em particular.

ricos chegavam cedo e comiam e bebiam far­

3. A refeição da igreja em Corinto

dos mais pobres, que traziam bem menos comi­

tamente antes (cf. gr., prolambanõ) da chegada Uma vez que Paulo era o fundador da igreja e se

da consigo

refere ao que lhes dissera (sem dúvida, durante a

membros mais pobres tinham de se satisfazer

visita a Corinto, quando a igreja foi estabelecida),

com pão e não muito mais que isso, enquanto os

depreende-se que a refeição eclesial fora estabe­

ricos tinham carne e inúmeras iguarias. Paralelos

lecida por Paulo, mas na sua ausência assumiu

extraídos do mundo greco-romano indicam que

características que ele não podia aprovar. A igreja

a refeição se dava em pelo menos duas etapas

estava se reunindo regularmente para celebrar a

distintas, situação em que os ricos acentuavam

ceia do Senhor, mas de uma forma que, segundo

as diferenças em relação aos irmãos mais pobres,

Paulo, não podia ser chamada “ceia do Senhor”

que também tinham vindo a convite dos ricos

(ICo 11.20).

para a reunião da igreja. Desse modo, embora os

(T

h e is s e n ) .

Alguns destacam que os

0 problema básico parece ter surgido das

ricos abrissem as casas para a igreja, eles o fa­

tensões entre os pobres e os ricos. Uma vez que

ziam de uma forma que enfatizava as divisões so­

não existiam prédios de igrejas, as refeições acon­

ciais. Talvez seja oportuno mencionar que o fato

teciam nas casas dos membros. Os crentes se

de esses problemas refletirem divisões sociais foi

reuniam em grupos de tamanho máximo deter­

reconhecido muito antes de Theissen (v., e.g., G.

minado pelo tamanho das casas que estavam à

G.

disposição. Foi demonstrado de modo convincen­

fez foi indicar com mais clareza que os ricos le­

te que os grupos se reuniam nas casas dos ricos,

varam práticas do mundo secular para dentro da

pois só estes tinham condições de acomodá-los.

igreja e pecaram contra os irmãos mais pobres.

F in d l a y , e g t ,

v

. 2,

p.

8 7 9 ). 0

que sua pesquisa

Nessas ocasiões, havia fartura de comida e bebi­

Houve ainda pesquisas adicionais e com­

da — pelo menos para alguns membros. Os ricos

parações com refeições helênicas para as quais

levavam bastante comida, inclusive carne para si,

um anfitrião recebia convidados. A refeição era

enquanto os mais pobres tinham de se contentar

servida em duas etapas: a refeição principal e a

com o pouco que podiam trazer.

“sobremesa” ou “confraternização” , a qual podia

0 que acontecia exatamente nessas refeições

incluir convidados que não haviam participado

é objeto de discussão. A tradição sobre a Última

da etapa anterior

Ceia sugere que o comer do pão e o partilhar do

a reunião “religiosa” em Corinto correspondia à

cálice, a que Jesus atribuiu significado especial,

parte de “ sobremesa e bebidas” e que, para os ri­

foram separados um do outro pela refeição (cf. a

cos, era precedida pela “refeição principal” , para

frase “ depois da ceia, tomou o cáhce” , Lc 22.20

a qual cada um trazia a própria comida (por ana­

= ICo 11.25). Apesar disso, o fato de a tradição

logia, com um eranos grego). Os membros mais

trazer o pão lado a lado com o cálice e a forma

pobres da igreja não podiam chegar tão cedo (em

em que a interpretação é simetricamente expressa

razão dos deveres profissionais) nem trazer comi­

indicam que o ato de “lembrar a morte do Se­

da da mesma quahdade.

( L a m pe) .

P. Lampe afirma que

nhor” veio a ser visto como uma única ação e

Uma interpretação alternativa é que os ricos

que essa lembrança ocorria após a refeição pro­

estavam comendo sua comida na presença dos

priamente dita. Há, contudo, muito debate para

mais pobres, sem partilhá-la com eles

saber se essa justaposição já havia acontecido em

0 problema é se o gr., prolambanõ, em ICo 11.21,

208

( W in t e r ;

C eia d o S enhor i : Pa ulo

tem 0 sentido de comer antes dos demais ou se,

forma de uma visão ou numa revelação particular

como uma forma intensiva de lambanõ, “ tomar” ,

( M accoby) . É

significa simplesmente “devorar”).

ção eclesial que tinha por trás a autoridade do

mais provável que fosse uma tradi­

Apesar das incertezas quanto às exatas cir­

Senhor (cf. o emprego de palavras do Senhor, que

cunstâncias, a ideia central é bem clara. Havia

sem dúvida chegaram a Paulo por meio da tradi­

excessos da parte dos ricos e sentimento de in­

ção eclesial, em ICo 7.10; 9.14).

veja da parte dos pobres, que se sentiam inferio­

A tradição descreve o que aconteceu na Úl­

res por causa da situação (cf. ICo 12.15). Para

tima Ceia, quando o Senhor apanhou o pão e

Paulo, isso era incompatível com o propósito da

0 cálice e os deu aos discípulos, acrescentando

refeição. Fome e embriaguez eram inadmissíveis

a esses gestos a interpretação de que esses ele­

numa refeição eclesial. De igual modo, comemo­

mentos representavam seu corpo e a nova alian­

rações caracterizadas por desordem e divisões

ça em seu sangue. Ele orientou os discípulos a

sociais tornavam a ocasião sem sentido.

fazer “isto” (i.e., repetir a prática) em memória

4. A resposta de Paulo diante da situação

um memorial de sua morte, por meio do qual ela

de Corinto

seria anunciada. A consequência lógica é que a

O ensino de Paulo em ICoríntios 11 é dirigido

conduta contrária ao espírito de autoentrega visto

contra essas práticas e demonstra que a refeição

na morte de Jesus seria uma negação do anúncio.

dele. A refeição teve, portanto, o propósito de ser

havia perdido seu caráter de refeição do Senhor.

Por isso, 0 que provocou a ira de Paulo foi o des­

No que diz respeito a interromper concretamente

prezo e a faha de amor pelos membros mais po­

o abuso, Paulo ordena que os membros da igre­

bres da igreja.

ja deem boas-vindas uns aos outros quando se

Os membros da igreja deviam fazer uma

reúnem nessas ocasiões. Ou seja, os ricos devem

pausa antes de tomar parte da refeição, para se

dar as boas-vindas aos pobres e tratá-los (como

assegurar de que não estavam cometendo esse

todos os membros da igreja devem tratar uns

pecado, que era contra o corpo e o sangue de

aos outros) com cortesia e atenção. A refeição

Cristo e traria juízo sobre eles. Conduzir-se dessa

deve ser mantida, mas a imphcação talvez seja

maneira era agir “indignamente” e representava

a partilha da comida

não “discernir o corpo” (ICo 11.29,

( W in t e r

entende ser esse o

ará).

É difícil

sentido de ekdechomai em ICo 11.33), de modo

determinar o exato sentido que, aqui, tem a pa­

que ninguém se sinta em desvantagem. Além

lavra “ discernir” (gr., diakrinõ). Depende do que

disso, Paulo estabelece que, caso desejem uma

significa “corpo”: se “ o corpo [e o sangue do Se­

refeição mais substancial ou mais requintada, os

nhor crucificado]” ou “a igreja”

ricos devem comer em casa, evitando assim le­

Ou Paulo está dizendo que os que comem indig­

var as divisões sociais para a reunião da igreja.

namente não estão reconhecendo que a comida

(F e e ,

p. 562-4).

Com isso, Paulo não está aconselhando que se

simboliza o corpo (e o sangue) de Jesus ou não

elimine a refeição e a ocasião se torne aquilo que

estão agindo como é próprio dos receptores da

mais tarde veio a ser, isto é, o consumo simbólico

salvação, ou então o apóstolo está dizendo que

de um pequeno pedaço de pão e de um gole de

eles não estão reconhecendo que as pessoas

vinho. Ele promete transmitir pessoalmente ins­

reunidas para a refeição estão presentes como o

truções adicionais, porém jamais saberemos que

corpo de Cristo (feitas um só mediante o parti-

instruções foram essas.

Ihamento do único pão, ICo 10.17) e devem ser

Paulo apresenta sua ideia central, que põe o

tratadas com amor cristão.

fimdamento teológico para o conselho prático,

De um modo ou de outro, o que Paulo diz

citando a tradição que havia recebido e num mo­

aqui é reforçado pelo seu comentário anterior de

mento anterior passado verbalmente à igreja. A

que os “ muitos” dos que participam do único pão

Unguagem utilizada indica que se tratava de uma

na ceia são “um só corpo” em virtude dessa par­

tradição aceita e normativa. Paulo diz que a rece­

ticipação (ICo 10.16,17). Ele entende que os que

beu “do Senhor”, o que, no entender de alguns,

participam do sangue e do corpo de Jesus são,

significa que veio a ele diretamente do Senhor na

209

dessa maneira, levados a uma unidade mútua.

C eia do S enhor i ; Paulo

em que não se pode permitir a existência de dis­

os israehtas no deserto (ICo 10.3,4;

tinções sociais.

p. 234-9). Os estudiosos catóhcos-romanos ten­



diferença de opinião também

W

edderburn,

quanto à comunhão com o corpo e o sangue de

dem, com base na frase “Isto é o meu corpo”, a

Cristo: se significa “uma união (participação)

interpretar que o Senhor está presente no pão e

com 0 Cristo ressurreto”

p. 805), ou uma

no cáhce, ao passo que os intérpretes protestan­

participação comum entre os membros, ligando-

tes alegam que, na verdade, o sentido da frase é:

(H

au ck,

-os uns aos outros com base no Senhor, sua morte

“Isto simboliza o meu corpo”. 0 debate gira em

e ressurreição

p. 564), ou ainda uma parti­

torno de ICoríntios 10.20,21, em que parece ha­

cipação comum nos beneficios que a morte de

ver uma analogia entre ter parte com os demônios

(F ee,

1968, p. 232).

mediante a participação no cáhce e na mesa dos

Qualquer que seja a maneira exata em que enten­

próprios demônios e o que acontece por ocasião

damos a expressão, Paulo ressalta que participar

da ceia do Senhor. No entanto, não há nenhuma

dessa refeição e tomar parte de refeições idólatras

indicação de que os dois acontecimentos sejam

são coisas incompatíveis. Sua ênfase no fato de

exatamente paralelos. De qualquer forma, não

que a refeição eclesial une os crentes como um só

é sugerido que os adoradores estejam ingerindo

pode indicar que qualquer membro que partici­

demônios ou que os demônios estejam presentes

pa da idolatria está contaminando a comunidade

no alimento. O paralelo sugere que, assim como

Cristo lhes assegurou

(B

arrett,

toda. Mas o pensamento principal é provavel­

os que participam de banquetes idólatras são in­

mente 0 que também se vê em ICoríntios 6: a im-

duzidos a um relacionamento com demônios, de

possibihdade de se estar ao mesmo tempo unido

igual modo os que participam da ceia do Senhor

a Cristo e ao que é pecaminoso/demoníaco.

são conduzidos a um relacionamento com o Se­ nhor, que está presente como anfitrião. Admite-se

Em ICoríntios 11, Paulo, com base na tradi­ ção, discorre sobre a importância teológica da

que a figura de “anfitrião e convidados” vai além

ceia. Ele lembra os leitores de que o corpo de

do que Paulo diz expUcitamente, mas se encai­

Cristo, representado pelo pão, foi dado “por vós”.

xa no conceito de banquetes promovidos sob a

Essa expressão faz parte de uma série de afirma­

proteção de um deus no paganismo e de festas

ções que ensinam que Cristo morreu por outras

celebradas “ na presença do Senhor” no a t e no ju­

pessoas (Rm 5.8; 8.32; ICo 15.3; 2Co 5.15 [3x];

daísmo (cf. Ap 3.20). Não há nenhuma indicação

Gl 2.20; 3.13; Ef 5.2,25; ITm 2.6; Tt 2.14) e que

de que Paulo entendesse o acontecimento como

ocorrem ao longo de todo o

(Mc 10.45 [gr.,

sacrificial: não há compararão com a oferenda

anti]; Jo 10.11,15; 11.52; Hb 2.9; 9.24; IPe 2.21;

de animais no altar, mas ao comer o alimento à

3.18; IJo 3.16). Desse modo, a morte de Jesus

mesa, onde os participantes recebem os símbolos

nt

é vista como a entrega de si mesmo na morte a

que indicam que uma morte sacrificial já ocorreu

favor e em benefício de outras pessoas, a fim de

no Calvário. A ceia, portanto, deve ser entendida

que sejam redimidas do pecado e do juízo que o

como uma refeição pós-sacrificial.

acompanha e sejam justificadas. É possível que

Não existe outra referência explícita à ceia nos

essa autoentrega “ por vós” também tenha o obje­

textos de Paulo. Entretanto, se havia o propósito

tivo de servir de exemplo

(W

in t e r ,

p. 79).

de que ICoríntios fosse hdo como um dos mo­

O cálice é visto como símbolo da nova aliança

mentos da refeição eclesial, pode se entender que

no sangue de Cristo. Tendo Êxodo 24.8 e Jere­

a maldição contra os que não amam ao Senhor

mias 31.31-34 como ilustração, o cálice indica que

(ICo 16.22) reforça o sentido de comunidade en­

a morte de Jesus é o sacrifício que estabelece a

tre aqueles que, na refeição, declararam amar ao

nova aliança entre Deus e seu povo, desse modo

Senhor e se separaram dos que anunciavam ou­

estabelecendo o novo povo de Deus.

tro evangelho (quanto à maldição, cf. advertência

Como resultado das diferenças teológicas na

semelhante em Rm 16.17,18 e Gl 1.8,9). 0 bei­

igreja de hoje, discute-se muito se o ensino de

jo de paz, mencionado no final de várias cartas,

Paulo indica que o Senhor está presente na ceia.

também passou a ter significado como expressão

Ele parece considerar “espirituais” a comida e a

de unidade e amor. Finalmente, a expressão Ma­

bebida, como a provisão enviada dos céus para

ranata, que pode ser entendida como afirmação

210

C eia do S enhor i : Pa ulo

ou como oração, deve ser interpretada como ex­

As refeições comunais eram celebradas por

pressão do anseio pela vinda final de Jesus como

toda a igreja primitiva, e Lucas identifica sua ori­

Senhor, não como oração por sua presença na

gem nos primeiros dias da igreja em Jerusalém.

ceia do Senhor.

Não existe nada de improvável nisso. Os primei­ ros cristãos, num contexto judaico, parecem ter

5. A ceia do Senhor segundo Paulo e a

agido de modo análogo ao dos fariseus ou mesmo

prática em outros lugares

de qualquer grupo judeu que se reunisse para co­

Como 0 material pauhno se relaciona com outros

mer. A refeição é denominada “ o partir do pão”

Os Evangelhos

— sem nenhuma menção a beber vinho. Embora

Sinóticos apresentam testemunho uniforme sobre

ensinamentos sobre a ceia no

essa expressão se refira estritamente ao ato ini­

a ocasião em que Jesus se encontrou com seus

cial de uma refeição, ou seja, partilhar o pão e

nt?

discípulos para o que é identificado como uma

render graças, fica claro que se está falando de

refeição pascal. Ele usou essa oportunidade para

uma refeição de verdade. De modo semelhante,

anunciar aos discípulos sua morte iminente e

em Apocalipse as metáforas de refeição mostram

para partilhar com eles o tradicional pão da Pás­

que seu significado religioso era reconhecido na

coa e um dos cáhces de vinho, ao mesmo tempo

área geográfica coberta por esse livro — a Ásia.

que declarava que eles simbolizavam seu corpo e

A questão que agora surge é se a prática era

seu sangue. As palavras dos relatos variam entre

uniforme por toda a igreja primitiva. Teria havido

os Evangelhos, porém Mateus e Marcos são bem

duas ou mais formas de refeição na igreja primiti­

parecidos, praticamente com as mesmas palavras

va: uma do tipo mais comemorativo, “o partir do

(Marcos: “Tomai; isto é o meu corpo. [...] Isto é

pão”, que não era um memorial da morte do Se­

0 meu sangue, o sangue da aliança derramado

nhor nem se baseava na tradição da Última Ceia;

em favor de muitos”), enquanto Lucas traz uma

outra mais associada ao uso do pão e do vinho

formulação mais próxima do que foi preservado

para lembrar a morte do Senhor, o tipo de ocasião

por Paulo (Lucas: “Isto é o meu corpo dado em

defendido por Paulo?

favor de vós; fazei isto em memória de mim. [...]

Uma teoria desse tipo foi especialmente ela­

Este cálice é a nova aliança em meu sangue, der­

borada por H. Lietzmann. Ele afirmava que a re­

ramado em favor de vós”). A natureza um tanto

feição original de Jerusalém foi substituída pela

estilizada dos relatos sugere que a formulação

refeição paulina. Outros estudiosos propuseram

havia se “ fixado” como parte de uma declaração

teorias parecidas.

litúrgica usada em encontros eclesiais e estava in­

que é possível ter sido Paulo quem fez a asso­

corporada nos Evangelhos (v.

(B arrett,

1985, p. 61, 67-8, acha

ciação entre a refeição semanal de comunhão da

adoração).

A variação de formulação entre Mateus/Mar­

igreja, em que se comemorava a ressurreição, e a

cos e Lucas/Paulo tem recebido diferentes expli­

Última Ceia.) No entanto, revelou-se impossível

cações. Talvez a maioria dos estudiosos considere

identificar a existência independente da suposta

a formulação de Marcos a mais antiga, e a lu-

ceia de Jerusalém. O máximo que se pode dizer

cana/paulina, um desenvolvimento da marcana,

é que, em Atos, a expressão “partir do pão” pode

porém uma minoria significativa (com a qual este

abranger celebrações da ceia do Senhor e outras

autor se identifica) entende que o movimento se

refeições eclesiais sem vinho, que normalmente

deu no sentido inverso. Há divergência de opi­

não era bebido em refeições comuns. A refeição

niões também quando se trata de saber se essa

em Corinto incluía o partir do pão e o uso de vi­

tradição remonta à ocasião histórica descrita ou

nho. A única testemunha a favor de uma ceia do

foi desenvolvida a partir de palavras expressas de

Senhor apenas com pão seria Lucas, se isso é o

forma mais simples e menos carregadas de signi­

que ele está descrevendo, e os vínculos estreitos

ficado teológico. A ideia de que o relato inteiro

de Lucas com o cristianismo paulino tornam

é uma criação da igreja e de que não temos ne­

improvável que ele queira descrever algo que

nhum conhecimento histórico sobre essa última

não seja a prática pauhna. Não há fundamento

refeição de Jesus com seus discípulos não deve

na ideia de que um autor pós-pauhno esteja

ser levada a sério (v.

situando nos dias da igreja primitiva uma ceia

Ú

l t im a

C e ia ) .

211

1-.EIA DO iENHOR i: t'AULO

“só pão” comum em sua época. Assim, não

do Senhor, mencionada em ICo 11.) Daí surgiu

temos nenliuma prova histórica da existência

0 texto de Lucas, que mostra uma combinação

simultânea de dois tipos de refeição.

secundária dos temas apocalíptico e eucarístico

Portanto, precisamos indagar se existe algum

e, então, o texto de Marcos, que suprime quase

indício de uma evolução nas refeições da igreja

totalmente o aspecto apocalíptico. Assim, a ceia

primitiva, se teriam deixado de ser simples reu­

do Senhor é uma criação paulina e não deve ser

niões de comunhão para se tornar memoriais da

confundida com o partir do pão de Atos.

morte de Jesus, adquirindo um significado teo­

A teoria de Maccoby tem vários pontos falhos.

lógico cada vez mais elaborado e refletido nas

Não há indício claro no

várias formas das chamadas “palavras de insti­

sial com a sequência vinho-pão (ICo 10.16,17,

tuição da ceia”. A Última Ceia foi uma reinterpre-

texto a que ele acertadamente não recorre, traz a

tação de uma refeição de Páscoa, e isso pode ter

ordem invertida para permitir que Paulo elabore

sugerido uma celebração anual, em vez de sema­

sobre a importância do único pão), e não se deve

nt

de uma refeição ecle­

nal. Alguns cristãos comemoravam uma “páscoa

dar preferência ao conteúdo da Didaquê em de­

cristã” anual, como se vê em ICoríntios 5.6-8,

trimento de fontes mais antigas. Seria estranho se

mas esse detalhe também mostra que Paulo não

o Atos pós-pauhno atribuísse a Paulo um “partir

tinha dificuldade em manter uma páscoa cristã

do pão” (At 20) que fosse diferente do costume

anual e uma ceia do Senhor semanal (v.

paulino conhecido do autor. Paulo emprega a

J e r e m ia s ,

p. 901-4). Voltamos, portanto, a nos perguntar se

expressão “partir do pão” para se referir ã ceia

0 relato da Últíma Ceia é historicamente plausível

do Senhor (ICo 10.16). E a expressão “ o cálice

e confiável e se ele influenciou a igreja desde os

da bênção” (i.e., “o cálice com que bendizemos

primórdios. Com respeito a Lucas, vale lembrar

a Deus”), empregada por Paulo em ICoríntios

a refeição de Emaús com o Senhor ressuscitado,

10.16, foi usada para se referir ao terceiro cálice

descrita por Lucas de uma forma que sugere ter

na refeição pascal [Str-B, v. 4, p. 1, 72). Em suma,

sido um padrão para o que seguiria, em termos

0 argumento não é convincente.

que fazem lembrar a Última Ceia. É evidente que no pensamento do EvangeUsta não havia nenhum problema quanto ã continuidade entre as duas.

Ver também b a t is m o ; C artas

ao s;

Ú

C e ia ;

l t im a

co rpo de

C r is t o ; C o r i n t i o s ,

a d o r a ç ã o / cu lto .

DPC: a l i m e n t o o f e r e c i d o a o s í d o l o s e l e i s d i e t é t i c a s

A ideia do desenvolvimento foi defendida por

ju d a ic a s ;

e le m e n t o s

lit ú r g ic o s ;

h e r m e n ê u tic a / in te r ­

H. Maccoby. Ele afirma que nas refeições judai­

p r e t a ç ã o DE P a u l o ; r e f e i ç ã o f r a t e r n a ; s a c r i f I c i o , o f e ­

cas comuns o ato inicial era o “partir do pão” ,

r e n d a ; SOLIDARIEDADE, COMUNFLÃO, PARTILHA; TRADIÇÃO.

distribuído entre os participantes com uma ora­ ção de agradecimento, em que Deus era bendito

B ib u o g r a f ia .

por sua provisão. Entretanto, nas orações cerimo­

the Corinthians. New York: Harper & Row, 1968.

B ar r ett,

C.

K.

The First Epistle to

niais do sábado e em festas, esse ato era prece­

[h ntc .]

dido pela participação no vinho, com ações de

in the New Testament. Exeter: Paternoster, 1985.

■ ___________

. Church, ministry and sacraments

graças a Deus. Ele alega, então, que na igreja de

■ F ee,

Jerusalém o “partir do pão” seguia o padrão das

Grand Rapids: Eerdmans, 1987.

refeições judaicas comuns. Mas a última refeição

K01VÓÇ

de Jesus com seus discípulos seguiu o padrão de

J e re m l« ,

uma refeição festiva com a sequência vinho-pão,

904. •

conforme atestado em Lucas e em Didaquê 9 e 10.

Kult: eine religionsgeschichtliche Untersuchung

Originariamente, havia um tema puramente “apo­

zum ersten Korintherbrief. Münster: Aschendorff,

G. D. The First Epistle to the Corinthians.

j. naoxa.

K lauck, H .

[n ic n t .] ■ H auck,

F.

[S.l.: s.n., s.d.]. v. 3. p. 789-809. ■

k t A. T D N T .

td n t.

[S.L: s.n., s.d,]. v. S. p. 896-

J. Herrenmahl und hellenistischer

calíptico”, quando Jesus ansiava pela iminente

1982.

inauguração do reino de Deus. Então Paulo teve

v. 4. p. 362-72. •

uma visão pela qual soube que na Última Ceia Je­

renmahl im Schnittpunkt hellenistisch-römischer

sus havia distribuído pão e vinho (nessa sequên­

Mahlpraxis und pauUnischer Theologia Crucis (1

cia!) e a interpretou como uma referência à sua

Kor 11, 17-34).

morte. (Essa é a tradição recebida [diretamente]

m ann

212

,



______ . Lord’s Supper,

znw

L

,

am pe,

v

.

ab d

.

[S.l.: s.n., s.d.].

P. Das korinthische Her­

82, p. 183-213, 1991. ■ L ie t z -

H. Mass and Lord’s Supper. Leiden: E. J. Brill,

C eia d o S enhor ii ; A t o s , H ebreus, C artas G erais, A pocalipse

1953-1979. ■ NTS, V .

M

acco by,

H. Paul and the Eucharist.

Tanto os Evangelhos Sinóticos quanto Paulo

I. H. Last Su­

relatam que Jesus instituiu, por ocasião da Última

37, p. 247-67, 1991.

■ M

arsh all,

pper and Lord’s Supper Exeter: Paternoster, 1980. ■

Ceia, um rito com pão e vinho como um memo­

E. The Lord’s Supper according to the New

rial para ele mesmo (Mt 26.26-29; Mc 14.22-25;

S c h w e iz e r ,

Testament. Philadelphia: Fortress, 1967. ■ T h e is s e n , G.

Lc 22.17-20,29,30; ICo 11.23-26; v. Última Ceia).

The social setdng of Pauline Christianity: essays on

Atos dos Apóstolos menciona as refeições que

Corinth. Philadelphia: Fortress, 1982. •

edderburn,

provavelmente constituem atos memoriais da

A. J. M. Baptism and resurrection: studies in Pauli­

igreja primitiva. Alguns outros ecos da refeição

ne theology against its Greco-Roman background.

ritual são encontrados em outras passagens, em

Tübingen: J. C. B. Mohr, 1987. ■ W

escritos posteriores do

W

in t e r ,

B. W . After

I. H.

M

nt

.

As informações mais

importantes para o desenvolvimento no sécu­

Paul left Corinth. Grand Rapids: Eerdmans, 2001.

lo II estão na Didaquê, nas cartas de Inácio de

arsh all

Antioquia e nas Apologias de Justino Mártir e C e ia

do

Senhor

C artas G No

NT,

e r a is ,

ii;

A

A

tos,

H

ebreus,

de Tertuliano. 1. 0 partir do pão em Atos

p o c a l ip s e

2. As cartas nâo pauhnas e Apocalipse

a expressão “ceia do Senhor” , kyriakon

deipnon, ocorre só em ICoríntios 11.20 (v. 00 S enhor

i) .

3. O período primitivo pós-apostólico

c e ia

4. Distinção entre agapê e eucaristia

Os cristãos de Corinto se reuniam

5. Conclusão

“como igreja [en ekklêsia]” (ICo 11.18), e essa reunião incluía uma refeição na qual se comia o pão e se bebia o cálice que anunciam “a morte do

1. O partir do pão em Atos

Senhor, até que ele venha” (ICo 11.26). Não está

Ora usando substantivo, ora usando verbo,

claro se esse pão e esse cáhce emolduravam a

no livro de Atos Lucas menciona cinco vezes

refeição completa — pão no início e cáhce no fim

o “partir do pão” : Atos 2.42,46, como parte de

(como seria o caso se a prática em Corinto tivesse

uma descrição da igreja de Jerusalém logo após

assumido a mesma forma do relato que o apósto­

0 derramamento do Espírito no dia de Pentecos­

lo Paulo faz da Última Ceia de Jesus, ICo 11.23-

tes; Atos 20.7,11, na narrativa da visita de Paulo

25) — ou se o pão e o cáhce eram servidos juntos,

à igreja em Trôade; Atos 27.35, no relato de como

depois de o povo ter comido e bebido na refeição

Paulo encorajou os companheiros de navio a se

principal. É certo que com seu comportamento

ahmentar, quando corriam o risco de naufrágio.

insultante — “ Cada um toma antes a sua pró­

A questão das “ mesas” , em Atos 6.1-6, também

pria refeição. Assim, um fica com fome, e o ou­

é relevante.

tro se embriaga” (ICo 11.21) — os corintios, no

Na prática judaica, o pão era partido quando

julgamento do apóstolo Paulo e, evidentemente,

Deus era bendito no início de uma refeição. No

também no de Deus (ICo 11.27-34), estão desca­

cristianismo primitivo, o partír do pão carregava

racterizando “a ceia do Senhor”. Em geral, os es­

a estampa distíntiva que havia adquirido em ra­

tudiosos concordam em que uma conduta como

zão de seu uso significativo por Jesus. No Evan­

a detectada em Corinto foi o motivo provável de

gelho de Lucas, à luz do qual Atos tem de ser lido

uma separação que, por fim, se consolidou entre

de modo particular, Jesus partiu os pães quando

0 agapê — ou ágape, ou banquete (festa) de amor

alimentou os cinco mil (Lc 9.16); o Salvador par­

(nessas circunstâncias, uma designação repleta

tiu 0 pão quando o deu aos discípulos por oca­

de ironia) — e o sacramento (falando anacroni-

sião da Última Ceia, dizendo: “ Isto é o meu corpo

camente do período apostólico). Na discussão

dado em favor de vós; fazei isto em memória de

e os escritos do início do período pós-

mim” (Lc 22.19); o Senhor ressurreto partiu o

apostóhco, será necessário considerar o agapê

pão em Emaús (Lc 24.30) e foi reconhecido pelos

e a eucaristia como inseparáveis, mas, à medi­

dois companheiros “ no partir do pão” (Lc 24.35).

da que o século ii avança, surge uma distinção

Em torno dessas ocasiões de grande significado,

mais clara entre o banquete ou festa de amor e

agrupam-se, portanto, as inúmeras palavras e fei­

a santa ceia.

tos de Jesus que envolvem comida e bebida e que

sobre o

nt

213

L eia do íe n h o r ii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

também dão peso e textura à observância daquilo

bens, de sorte que “o partir do pão” pode então

que, por metonímia, a igreja de Atos denominou

designar ou um agapê, ou a eucaristia, ou ambos.

“ o partir do pão”.

De um modo ou de outro, o contexto indica que

Jesus havia comparado o reino vindouro de

os crentes tinham várias coisas em comum: nâo

Deus a um banquete: “Muitos virão do Oriente e

apenas a instrução apostólica, “o partir do pão”

do Ocidente, do Norte e do Sul, e se sentarão à

e as orações, mas também a frequência ao tem­

mesa no reino de Deus” (Lc 13.29). Além do ato

plo (At 2.46) e a distribuição de bens materiais

messiânico de já alirnentar as multidões numa

conforme surgiam as necessidades (At 2.44,45).

prenunciação do reino, Jesus também tinha sido

Assim, o partir do pão é associado a uma fé co­

notório por comer e beber com publicanos e

mum, a uma adoração comum a Deus e a uma

pecadores (Lc 7.34; 15.1,2; v.

vida de serviço mútuo. 0 “partir” tem o propósito

c o m u n h Ao

à

m esa).

Nessas ocasiões, ele os convidava ao arrependi­

de “partilhar” , como insiste X. Léon-Dufour [le

mento (Lc 5.30-32), pois apenas comer e beber

partage du pain) , e assim expressa a unidade que a

em sua presença não era garantia de salvação

comunidade tem em Cristo. 0 partir do pão acon­

(Lc 13.22-30). Na Última Ceia, ele falou de sua

tecia nas casas dos crentes, com uma refeição que

condição de estar entre seus discípulos como a

era feita “com alegria e simplicidade de coração”

de “quem serve” (Lc 22.27), mas pôde também

(At 2.46; cf.

lhes prometer um lugar à sua mesa no reino que

du

T

o it ) .

A alegria que caracterizava essas refeições

seu Pai lhe havia outorgado (Lc 22.28-30). De­

levou alguns estudiosos, notadamente H. Lietz­

pois da ressurreição, sua aparição em Emaús não

mann, a postular que havia uma ceia do Senhor

foi a única em que participou de uma refeição

original do “tipo Jerusalém” em contraste com a

com seus seguidores. Ele comeu com outros dis­

do tipo pauUno, tendo o apóstolo, talvez influen­

cípulos em Jerusalém (Lc 24.36-43), e em Atos

ciado por refeições memoriais helênicas, mudado

Lucas apresenta a declaração bem resumida feita

0 tema para a morte do Senhor. Embora ênfases

por Pedro: “Deus o ressuscitou [a Jesus] ao ter­

diferentes possam ter caracterizado a refeição

ceiro dia e lhe concedeu que se manifestasse [...]

cristã em momentos e lugares diferentes, é de-

a nós, que comemos e bebemos com ele, depois

saconselhável e desnecessário aumentar, nesse

que ressuscitou dentre os mortos” (At 10.40,41).

assunto, a diferença entre Jerusalém e Paulo.

(At 1.4 deixa implícita a mesma coisa, caso syna-

De acordo com Lucas, a igreja em Jerusalém es­

lizomenos seja associado com hals, “sal” , e então

tava bem consciente de que o preço pago pela

entendido como uma referência ao Jesus ressus­

redenção de que se regozijava tinha sido a cruci­

citado comendo com os apóstolos, como de fato é

ficação do Senhor (At 2.23). Mas é possível que

a tradução encontrada nas versões latina, siríaca

Paulo, ao lembrar que a ceia anunciava a morte

e copta.) Essas sâo, portanto, as associações que

do Senhor até que ele venha, estivesse corrigindo

acompanham as reuniões de ceia perpetuadas

uma suposição irrefreada existente entre os cris­

pela igreja primitiva após a exaltação do Senhor.

tãos corintios segundo a qual o reino de Deus já

1.1

Atos 2.41-46. De acordo com Atos 2.41-46, estava presente. A alegria [agalliasis] que carac­

os que se arrependeram no dia de Pentecostes e

terizava as refeições da igreja de Jerusalém foi

foram batizados, foram acrescentados ao grupo

experimentada pelo carcereiro de Filipos [êgallia-

dos que “perseveravam no ensino dos apóstolos

sato, At 16.34), que, depois de ser batizado, “pôs

e na comunhão [gr., koinõnia], no partir do pão

a mesa” [parathêken trapezan) para Paulo e Silas.

e nas orações”. É difícil identificar a exata rela­ ção entre esses quatro elementos, especialmente

1.2

Atos 6.1-6. As “mesas” tinham sido mo­

tivo de divergência entre os falantes de grego

em razão da dificuldade de expUcitar o significa­

( “helenistas”) e de aramaico ( “hebreus”) na co­

do de uma palavra elástica como coinonia. Já se

munidade cristã de Jerusalém (At 6.1-6). A igreja

propôs que os quatro itens constituem um culto,

primitiva herdou a tradição judaica de cuidar de

em sequência litúrgica, de pregação, agapê, eu­

pobres e necessitados em refeições festivas, o que

caristia e orações (v.

adoração)

. Outra proposta

se estenderia a todos os irmãos e irmãs necessi­

é

que coinonia designe uma coleta de dinheiro ou

214

tados em suas reuniões regulares

(R

e ic k e ,

1948).

C eia do S enhor i i : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

Os helenistas queixavam-se de que suas viúvas

para uma adoração totalmente cristã assim que

não estavam sendo tratadas de modo justo na

0 sábado terminava

distribuição de alimento. Aparentemente, a dis­

judaico-cristã teve impacto na igreja de Trôade,

tribuição diária de mantimentos vinha ocorren­

então a assembleia de Atos 20.7-12 teria aconteci­

do sob a supervisão geral (mas não direta) dos

do de sábado para domingo. Mas o entardecer de

apóstolos (“ Não faz sentido que deixemos a pa­

domingo pode ter se imposto na igreja primitiva

lavra de Deus e sirvamos às mesas”). Os apósto­

como 0 momento para a reunião semanal mais

los propuseram que sete outros homens fossem

importante em razão da lembrança das refeições

designados para a tarefa. Foram escolhidos sete

do primeiro domingo de Páscoa, de que o Senhor

pessoas de nomes gregos, e os apóstolos oraram e

ressurreto participara com seus discípulos.

(R ie s e n fe ld )

. Se tal influência

impuseram as mãos sobre eles. Tradicionalmente,

De todo modo, lemos que Paulo pregava, “ten­

esse acontecimento é visto como a origem do dia-

do prolongado seu discurso até a meia-noite”. Só

conato como ordem ministerial. Agora, os após­

então, depois de incidentalmente ter ressuscitado

tolos podiam se dedicar “à oração e ao ministério

0 desafortunado Êutico, foi que o apóstolo par­

da palavra”. Alguns têm lamentado o afastamento

tiu o pão e comeu. Esse padrão de pregação e

entre o ministério da pregação e o diaconal. De

refeição — o que faz lembrar os momentos em

um modo ou de outro, é triste que, como aconte­

que 0 Senhor ressurreto expôs as Escrituras aos

ceu em Corinto, a partilha de alimentos se tornas­

dois discípulos na estrada de Emaús e se revelou

se motivo de divisão entre os cristãos. A questão

a eles no partir do pão (Lc 24.27-35) — talvez já

da comunhão à mesa — dessa vez inegavelmente

revele uma prática regular de “palavra e mesa” na

uma questão de princípio teológico entre cristãos

principal reunião semanal dos cristãos. 1.4

judeus e gentios — surgiu, mais uma vez, em

Atos 27.33-38. Em Atos, o caso mais intri­

Atos 10 e 11, no episódio que envolve o após­

gante de “partir o pão” ocorre durante o naufrá­

tolo Pedro e o centurião Cornélio. O assunto foi

gio de Paulo. Atos 27.33-38 diz:

resolvido com o reconhecimento de que “Deus Enquanto amanhecia, Paulo pedia com in­

concedeu também aos gentios o arrependimento

sistência a todos que comessem alguma coisa,

para a vida” (At 11.18). 1.3

dizendo: Hoje já é o décimo quarto dia que

Atos 20.7-12. A ocorrência seguinte do

“partir do pão” na narrativa de Atos se dá durante

esperais e permaneceis em jejum, sem comer

a visita do apóstolo Paulo a Trôade (At 20.7-12).

coisa alguma. Recomendo-vos, portanto, que

Os cristãos reuniram-se “a fim de partir o pão [...]

comais alguma coisa, porque o vosso livramen­

no primeiro dia da semana”. A reunião aconteceu

to depende disso; pois nem um cabelo cairá da

(o verbo usado é synagõ) durante o entardecer e

vossa cabeça. Dito isso, tomou o pão, deu gra­

a noite.

ças a Deus na presença de todos e, partindo-o,

Não está certo se essa reunião aconteceu no

começou a comer. Então todos se animaram e

entardecer e na noite de sábado para domingo ou

também comeram. Éramos ao todo duzentas e

de domingo para segunda. Se Lucas está usan­

setenta e seis pessoas no navio. Depois de se

do o sistema romano de contagem do tempo, em

satisfazerem com a comida, começaram a ali­

que o dia começa de manhã, então a reunião co­

viar o navio, jogando o trigo ao mar.

meçou no entardecer de domingo. Se, no entanto, está usando o sistema litúrgico judaico, a assem­

0 que chama a atenção é que as ações de

bleia deve ter começado no entardecer de sába­

Paulo espelham o que Jesus fez na Última Ceia e

do, 0 início do “primeiro dia da semana”. Já se

prenunciam o que a erudição atual denomina “eu­

propôs que o domingo cristão teve origem como

caristia na forma de quatro ações” (Dix): o após­

um prolongamento do dia de descanso judeu:

tolo tomou um pão (o “ ofertório”), deu graças (a

os cristãos guardavam o sábado ao participar da

“oração eucarística”), partiu o pão (a “ fração”),

adoração judaica, e então, uma vez que o sába­

comeu (a “comunhão”). Desse modo, Paulo es­

do já não era mais adequado, pois fora cumprido

tava presidindo uma refeição partilhada por to­

por Jesus, eles passaram a se reunir em casas

215

dos os que estavam no navio, presumivelmente

C eia do S enhor i i : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

marinheiros e passageiros pagãos, pois não há

entre agapais (“ festas de amor”) e apatais (“pra-

indicação de duas refeições diferentes, uma para

zeres” , “dissipações” ; “mistificações” , a r a ) . I. H.

Paulo, Aristarco e o “redator do diário de viagem”

Marshall sugere que a primeira leitura pode ser

e outra para os pagãos. Por isso, a opinião geral é

resultado de um trocadilho intencional apagado

que não pode ter sido uma eucaristia. Era o caso,

por um escriba. De qualquer maneira, a veemen­

isto sim, de Paulo simplesmente observar o costu­

te Carta de Judas declara que a reunião cristã

me judaico de agradecer antes da refeição.

fora infiltrada por “homens ímpios, que mudam

Um exegeta recente tentou ser mais fiel à

a graça de nosso Deus em libertinagem e negam

nuança “eucarística” de Atos 27.35. B. Reicke

0 nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”.

entende que Atos 27.33-38 seja um relato ainda

São, nas palavras de Judas, “ manchas em vos­

mais estiUzado de um incidente ao qual Paulo já

sas festas de amor, banqueteando-se convosco, e

havia imprimido um rótulo quase eucarístico na

apascentando-se a si mesmos sem temor”

época em que ocorreu. Paulo permitira às pes­

2.2

(a c f).

Hebreus. Alguns entendem que na Carta

soas a bordo participar de “uma prefiguração da

aos Hebreus não existe nenhum ou praticamen­

eucaristia cristã como um preparativo em poten­

te nenhum indício de que, da parte do seu autor

cial para um discipulado posterior” , e o autor de

ou da comunidade de cristãos a que a carta foi

Atos, entendendo o episódio da mesma forma,

dirigida, tenha havido envolvimento na fé e na

empregou o incidente ocorrido na viagem para

prática eucarística. Ahás, foi até mesmo suge­

descortinar a perspectiva do trabalho que Paulo

rido que, para o autor de Hebreus, “o sacrifício

faria no contexto mais amplo da missão, quando

de Cristo foi de tal natureza que tornou obsoleta

chegasse a Roma (cf. At 28.28-30). Talvez nem

toda forma de adoração que inserisse um meio

essa interpretação tenha avançado o suficiente.

material de comunhão sacramental entre Deus e

Os que estavam a bordo de um navio que rumava

o adorador”

contra as rochas (At 27.29) foram confrontados

a Carta aos Hebreus está repleta de alusões à

(W

il u a m s o n ) .

Para outros exegetas,

com “as coisas derradeiras” : era uma questão de

eucaristia. 0 certo é que Hebreus apresenta um

vida e morte, física e — para os pagãos — es­

linguajar que a tradição cristã posterior associou

piritual. Não se deve excluir a possibilidade de

com a eucaristia.

que o apóstolo, ao sugerir que todos se ahmen-

Dois versículos despertam interesse em parti­

tassem, estava lhes dizendo: “Isto será a vossa

cular: “Por intermédio dele [Jesus], ofereçamos

salvação” (At 27.34;

21:

vosso livramento

sempre a Deus um sacrifício de louvor, que é fru­

depende disso”), tendo-lhes já anunciado que o

to dos lábios que declaram publicamente o seu

a

“o

destino de cada um estava nas mãos do Deus de

nome. Mas não vos esqueçais de fazer o bem e de

Paulo, o Deus cuja vontade era que não houvesse

repartir com os outros, porque Deus se agrada

nenhuma perda de vida entre eles (At 27.21-26),

de tais sacrifícios” (Hb 13.15,16). O “sacrifício de

ele então celebrou para eles a refeição que é vida

louvor

para todos os que escolhem a vida. Esse episódio

designação da eucaristia. João Crisóstomo, ao dis­

sem dúvida proporciona o exemplo mais claro da­

correr sobre a história do leproso curado, relatada

quilo que, para J. Wanke, é um tema eucarístico

no Evangelho, comenta que damos graças a Deus

recorrente que caracteriza os relatos de Lucas en­

não porque Deus precise de alguma coisa, mas

[e ação de graças] ” tornou-se uma

volvendo refeições: o Senhor está presente para

para nos aproximarmos dele [Hm Mt, 25;

proteger e salvar seu povo.

V.

pg ,

57, p. 331, Migne). Na passagem de Hebreus, o

sacrifício não está hmitado à confissão verbal do 2. As cartas não paulinas e Apocalipse 2.1

nome de Deus: também inclui partilha (coinonia)

Judas 12. Esse versículo talvez represen­ e boas obras. com o

De modo mais geral, a Carta aos Hebreus tem

sentido de banquete ou festa de amor (o senti­

te o único uso, no

sido considerada importante na tradição litúrgica

do normal de

n t,

da palavra

a g a pê

é simplesmente “amor”). Os

cristã por descrever a contínua intercessão que

manuscritos de 2Pedro 2.13, passagem que guar­

Cristo faz depois que, do Calvário, entrou no

da estreita relação com Judas 12, estão divididos

Santo dos Santos: o entendimento tradicional é

agapê

216

C eia do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

que a eucaristia represente, em forma de rito, o

d.C. As opiniões estão divididas no que diz res­

trabalho de Cristo como sumo sacerdote perante

peito às orações em estilo judaico a serem feitas à

0 Pai. Além do mais, as referências em Hebreus

mesa e apresentadas nos capítulos 9 e 10. O texto

ao "sangue da aliança” fazem lembrar as palavras

diz 0 seguinte:

do cálice ditas na eucaristia e, de um modo par­ ticular na missa católica romana, as palavras de

Sobre a ação de graças, assim agradecei.

consagração ("Este é o cáhce do meu sangue, o

Primeiro acerca do cáhce: “Damos-te graças,

sangue da nova e eterna ahança”) são um eco de

nosso Pai, pela santa videira de teu servo

Hebreus 13.20.

(gr., pais] Davi, que nos tornaste conhecido

2.3 IPedro 2.3. A expressão de Salmos 34.8,

por meio de teu servo [pais] Jesus; a ti seja

espelhada em IPedro 2.3, sobre "provar que o Se­

glória para sempre”. E acerca do pão partido:

nhor é bom” tem sido usada como versículo de

“ Damos-te graças pela vida e pelo conheci­

comunhão em hturgias tradicionais da eucaristia.

mento que nos fizeste saber por meio de teu

No contexto petrino, aproxima-se da noção do

servo Jesus; a ti seja glória para sempre. Assim

cristão como “casa espiritual”, “sacerdócio santo,

como este pão partido esteve espalhado pelas

a fim de oferecer sacrifícios espirituais agradáveis

montanhas e, quando recolhido, se tornou um

a Deus, por meio de Jesus Cristo” (IPe 2.5).

só, deixa que tua igreja seja recolhida desde

2.4 Apocalipse. No início de Apocahpse, o

os confins da terra para o teu reino; pois teus

vidente diz que estava “em espírito, no dia do

são a glória e o poder, por meio de Jesus Cris­

Senhor” (Ap 1.10, aím). Alguns estudiosos con­

to, para sempre”. Mas que ninguém coma nem

temporâneos acreditam que Apocalipse reflete

beba da tua ação de graças, senão aqueles que

a adoração da igreja, em que João se inspirou,

foram batizados no nome do Senhor. Pois a res­

seja a reunião dominical da congregação, seja a

peito disso 0 Senhor também disse: “Não deis

liturgia anual de Páscoa, dependendo de como

aos cães o que é santo”.

se entenda o sentído de “ dia do Senhor”. Nos

E,

depois de vos fartardes, dai graças assim:

ritos cristãos tradicionais, os participantes são

“ Damos-te graças, santo Pai, pelo teu santo

convocados pelo sarsam corda (“erguei vos­

nome que preservaste em nosso coração e pelo

sos corações”) a se unir na adoração celestial e

conhecimento e fé e imortalidade que nos fi­

acrescentar a voz ao coro angelical, cantando o

zeste conhecer por meio de tua criança Jesus;

Sanctus: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus,

a tí seja glória para sempre. Tu, Mestre todo-

0 Todo-Poderoso” (Ap 4.8). Além do louvor a

poderoso, criaste todas as coisas por amor do

Deus, a vida na cidade de Deus inclui o banquete

teu nome e deste comida e bebida aos seres hu­

messiânico, a “ceia das bodas do Cordeiro” (ajm).

manos para deleite deles, para que te dessem

Na missa católica-romana, o convite à comunhão

graças; mas a nós concedeste comida e bebida

baseia-se em Apocahpse 19.9: “Eis o Cordeiro de

espiritual e vida eterna por meio de tua criança

Deus [...]. Felizes aqueles que são chamados a

Jesus. Acima de tudo te damos graças porque és

esta ceia”. 0 Jesus de Apocalipse estende o con­

poderoso; a ti seja glória para sempre. Que ve­

vite: “Estou à porta e bato; se alguém ouvir a mi­

nha a graça e que este mundo passe. Hosana ao

nha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e

Deus de Davi.” Se alguém é santo, que venha;

cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20).

se não é, que se arrependa. Maranata. Amém.

3. O período primitivo pós-apostólico 3.1

Embora a palavra introdutória seja a respei­

A Didaquê. O material não escriturísti- to da “ação de graças” [eucharistia], é provável

co mais antígo pertinente à ceia do Senhor e ao

que as duas primeiras orações, pelo cálice e pelo

banquete de amor talvez provenha da Didaquê

pão, pertençam a um agapê (a sequência cáhce

ou “Ensino dos doze apóstolos” , provavelmente

antes do pão talvez seja encontrada na refeição

elaborada na virada do século i para o n, embora

comunal conforme praticada na ordem de culto

as datas que os estudiosos proponham para esse

que existiu mais tarde e que os estudiosos moder­

texto, redescoberto em 1875, variem de 60 a 200

nos reconstituíram e identificaram com Tradição

217

C eia do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

3.2 A Carta de Plínio. Dos primeiros anos do

apostólica de Hipólito, embora o texto esteja bem confuso em torno dos capítulos 25 e 26; também,

século

talvez, ICo 10.16,17). Toda comida pela qual se

natureza fragmentária, acerca da prática da re­

deu graças é santificada (cf. ITm 4.4,5), e, por

feição ritual dos cristãos na Ásia Menor. Plínio,

esse motivo, aplicar a declaração do Senhor em

autoridade no império, envia ao imperador TVaja-

Mateus 7.6 ( “Não deis aos cães o que é santo”)

no relatório de suas investigações sobre o grupo

não implica necessariamente uma eucaristia sa­

(P

l ín io

II,

,

surgem dados externos e internos, de

Ep, 10.96).

cramental. A expressão introdutória “depois de Num dia determinado [presumivelmente o do­

vos fartardes” deixa implícito que houve uma refeição antes da oração seguinte. Entretanto,

mingo], [os cristãos estavam] acostumados a se

essa oração tem um matiz mais redentor que as

encontrar antes da alvorada e a recitar antifoni­

anteriores, próxima dos temas da eucaristia pro­

camente um hino a Cristo, como a um deus, e a

priamente dita. No século iv, o compilador das

se comprometer mediante um juramento [sacra-

Constituições apostólicas vii não teve dificuldade

mentum] [...]. Depois da conclusão dessa ceri­

em tornar o texto inconfundivelmente sacramen­

mônia, era costume deles ir embora e voltar a se

tal. Ele entendeu que todas as orações da Dida­

reunir para comer, mas essa era comida normal e inócua, e eles interromperam essa prática após

quê tinham esse sentido.

meu édito pelo qual, de conformidade com tuas

Qualquer que seja a questão dos capítulos 9 e

ordens, proibi sociedades secretas.

10 da Didaquê, os estudiosos concordam em que o capítulo 14 se refere ao que seria denominado

Alguns estudiosos veem no encontro matutino

“eucaristia”. 0 texto diz:

uma referência distorcida á eucaristia, ao passo No dia dominical do Senhor, reuni-vos, parti

que a última reunião teria sido para um agaps. A

0 pão e dai graças, tendo primeiro confessado

suspeita de que os cristãos praticavam o caniba­

vossas transgressões, para que vosso sacrifício

lismo reaparecia periodicamente na Antiguidade,

seja puro. Mas que ninguém que tenha um de­

algo sem dúvida provocado pela comunhão no

sentendimento com seu companheiro se una a

corpo e no sangue do Senhor.

vós até que tenham se reconcihado, para que

3.3 Inácio de Antioquia. As cartas de Inácio,

vosso sacrifício não seja contaminado. Pois isto

bispo de Antioquia (martirizado c. 110 d.C.), con­

é aquilo de que falou o Senhor: “Em todo lugar

têm várias referências a agapê e eucaristia. Uma

e em toda hora oferecei-me um sacrifício puro,

passagem na Carta aos esmimeus sugere que a

pois sou um grande rei, diz o Senhor, e meu

eucaristia era celebrada junto com um agapê:

nome é maravilhoso entre as nações”. Que seja considerada válida como eucaristia 0 momento é o domingo, embora alguns estu­

aquela que é celebrada sob a direção do bispo

diosos tenham procurado fazer com que a reda­

ou de alguém nomeado por ele. Onde o bispo

ção bastante estranha se refira apenas à Páscoa.

está presente, que aU se reúna a congregação,

A exigência de confissão prévia de pecado talvez

assim como, onde Jesus Cristo está presente,

derive de Levítico 5.5,6, ao passo que a exigên­

aU está a igreja catóUca. Sem o bispo, não é

cia de reconciliação na comunidade certamen­

legítimo batizar nem celebrar um banquete de

te procede da declaração de Jesus, em Mateus

amor (In, Es, 8.1,2).

5.23,24 (texto mais tarde evocado em associação com a eucaristia, e.g., por

He, 4.18.1, e

De todo modo, aqui a principal preocupação

Ca mi, 5.3). A apUcação de

do autor é com a unidade da congregação, a qual

Malaquias 1.11 sobre as “ofertas puras” foi repe­

está fundamentada cristológica, sacramental e

tida em Justino [Dl Tf, 41; cf. 117) e Ireneu (He,

ministerialmente:

C iR iL o DE J e r u s a l é m ,

Ireneu,

4.17.5), e passou a ser lugar-comum a ideia de a eucaristia ser oferecida “ sempre e em todo lugar”

Cuidai de observar uma só eucaristia, pois exis­

[semper et ubique).

te uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo, e

218

C eía do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

um só cálice para nos unir com seu corpo, e um

líder. Ele ajuda órfãos e viúvas e aqueles que,

só altar, assim como existe um só bispo com o

por causa de enfermidade ou de qualquer ou­

presbitério e os diáconos, meus companheiros

tro motivo, passam por necessidade, e os que

de serviço, a fim de que aquilo que fizerdes,

estão presos e os estrangeiros de viagem entre

façais de acordo com Deus (In, Fi, 4.1).

nós. Em suma, ele cuida de todos os que pas­ sam por necessidade.

A realidade sacramental corresponde à reali­

E todos nos reunimos no domingo, porque é o

dade da encarnação:

primeiro dia, em que Deus transformou as trevas e a matéria e fez o mundo; e Jesus Cristo, nos­

[Os docetas] se abstêm da eucaristia e da ora­

so Senhor, ressuscitou dentre os mortos naquele

ção porque não confessam que a eucaristia é a

dia, pois o crucificaram no dia antes do sábado;

carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que so­

e, no dia depois do sábado, que é o domingo,

freu por nossos pecados e que o Pai, em sua

ele apareceu a seus apóstolos e discípulos e lhes

bondade, ressuscitou (In, Es, 7.1).

ensinou estas coisas que vos temos apresentado para vossa consideração

(J u s t in o ,

Ap i, 67).

Inácio menciona o “partir do único pão” , que é “um remédio de imortalidade e um antídoto

Vale ressaltar vários pontos, alguns dos quais

contra a morte, para que a pessoa viva em Jesus

podem ser suplementados por outras passagens

Cristo para sempre” (In, Ef, 20.2).

de Justino, particularmente sua descrição da eucaristia celebrada depois de batismos {Api, 65):

4. Distinção entre agapê e eucaristia

1) O domingo é o dia escolhido para reunião

4.1 Justino Mártir. Lá pela metade do século ii,

litúrgica de comemoração e celebração da criação

Justino Mártir, ao descrever a igreja em Roma,

e da ressurreição de Cristo, dia que ficou marcado

diz que ela realizava cultos dominicais regulares

pelas aparições do Senhor a seus seguidores.

com palavra e mesa, ou seja, à leitura e exposição

2) 0 serviço incluía a leitura do que veio a ser

das Escrituras seguiam-se orações e a eucaristia

0 N T (“as memórias [apomnêmoneumata] dos após­

do corpo e do sangue do Senhor. A descrição na

tolos”) e também do

Apologia I de Justino é como segue:

tas”), e aquele que preside expõe essas Escrituras

at

(“ os escritos dos profe­

numa homília. No dia denominado domingo se realiza uma

3) Não há mais detalhes que permitam a iden­

reunião num só lugar, da qual participam todos

tificação de quem preside, mas, caso a prática

os que moram na cidade ou no campo, e as me­

seja aquela estipulada por Inácio, é o bispo ou

mórias dos apóstolos ou os escritos dos profe­

alguém nomeado por ele.

tas são Udos conforme o tempo permite. Então,

4) Pão e vinho são a comida e a bebida, sendo

quando o leitor termina, o líder discursa, nos

0 vinho provavelmente misturado com água (a pa­

admoestando e nos exortando a imitar essas

lavra krama, “mistura”, é empregada em Ap i, 65).

boas coisas. Então todos juntamente nos co­

5) Aquele que preside faz uma oração espon­

locamos de pé e oramos aos céus; e, conforme

tânea de ação de graças (“da melhor maneira

já dissemos, quando terminamos de orar, são

possível”), embora provavelmente de acordo com

trazidos pão e vinho e água, e o líder, de igual

certos parâmetros. Ele “faz aos céus uma oração

maneira e da melhor maneira possível, ora aos

de louvor e glória ao Pai de todos em nome do

céus e dá graças, e o povo se senta, dizendo:

Filho e do Espírito Santo” {Ap i, 65). A anuência

“Amém”. Então se distribuem os elementos pe­

do povo (“Amém”) é significativa, pois é mencio­

los quais se agradeceu, e todos participam. E,

nada nos dois capítulos.

por meio dos diáconos, são enviados àqueles que não estão presentes.

6) Só os batizados podem participar da euca­ ristia: “Damos a esta comida o nome de 'ação de

E os abastados que assim o quiserem dão

graças’, e ninguém pode participar dela, a menos

aquilo que desejarem, conforme sua vontade;

que esteja convicto da verdade de nosso ensi­

e aquilo que é coletado fica depositado com o

no, tenha sido purificado com a lavagem para o

219

C eia d o S enhor m: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

perdão de pecados e a regeneração e viva confor­

A descrição mais ampla existente nesse texto cita

me Cristo instruiu” [Ap i, 66). Mas é importante

nominalmente um banquete de amor:

que os cristãos desfrutem seu privilégio:

e to­

dos participam. E, por meio dos diáconos, [o pão

Nossa ceia {coena] se explica pelo próprio

e o vinho] são enviados àqueles que não estão

nome, que é a tradução da palavra grega para

presentes” (presumivelmente têm-se em mente

amor [i.e., agapê]. Qualquer que seja o custo

os enfermos e os aprisionados).

as despesas em nome da piedade são ganho

7) A razão da restrição da comunhão aos cren­

pois é a favor dos necessitados que nos benefi

tes batizados e o propósito de sua participação

ciamos com esse banquete [refrigerio isto] [...] Primeiramente, provamos a oração a Deus, an

estão expressos em Apologia i 65:

tes de nos reclinarmos para comer; comemos Pois não recebemos estas coisas como pão

apenas o que sacia a fome e bebemos só o que

comum ou como bebida comum. Porém, assim

é apropriado aos puros. Satisfazemos o apetite

como nosso Senhor Jesus Cristo, que é encar­

como pessoas que se lembram de que, mesmo

nado por meio da palavra de Deus, assumiu

à noite, devem adorar a Deus. Conversamos

carne e sangue para nossa salvação, de igual

como pessoas que sabem que estão sendo ou­

maneira fomos ensinados que a comida pela

vidas pelo seu Senhor. Depois de trazerem água

qual se deu graças mediante uma palavra de

para lavar as mãos e também as luzes, todos

oração, a qual ele fez, comida mediante a

são chamados à frente para cantar louvores a

qual nossa carne e sangue são alimentados

Deus, quer louvores extraídos das Escrituras

por transformação, são tanto a carne quanto o

Sagradas, quer da própria composição. E essa

sangue daquele Jesus encarnado. Pois, nos re­

é uma prova da medida de bebida. 0 banquete

gistros que compuseram e que são denomina­

é encerrado da maneira que começou: com ora­

dos Evangelhos, os apóstolos nos transmitiram

ção. Vamos embora não como uma turba de ar­

aquilo que lhes foi ordenado: que Jesus tomou

ruaceiros, nem como um bando de vadios, nem

pão, deu graças e disse: “Fazei isto em memó­

para cair na licenciosidade, mas tendo tanto

ria de mim. Isto é o meu corpo”. E, de modo

interesse em nossa modéstia e pureza como se

semelhante, tomou o cáUce, deu graças e disse:

tivéssemos tido uma lição moral, em vez de par­

“Isto é 0 meu sangue” ; e deu apenas a eles.

ticipado de uma ceia

(T

e r t u l ia n o ,

Ap, 39.16-19).

8) 0 cuidado material com os necessitados lem­

Aqui não existe nada especificamente eucarís­

bra a situação de Atos 2.42-47. Justino não men­

tico, mas em outros escritos Tertuliano se refere

ciona nenhum agapê, mas, para alguns autores que

ao que só pode ser a eucaristia sacramental: por

viveram mais tarde, durante certo tempo a igreja

exemplo: “ o sacramento da eucaristia [eucha-

continuou uma prática que considerava apostólica:

ristiae sacramentum]" [De co, 3; Mr, 4.34); “ o

“Quando a assembleia [synoxis] terminava, depois

sacramento do pão e do cálice [panis et calicis

da comunhão dos mistérios, todos iam para um

sacramentum]” [Mr, 5.8); “ o corpo do Senhor

banquete [euõchia] comum, em que os ricos tra­

[coípiís dom ini]” [De id, 7; De or, 19). Não há in­

ziam seus alimentos e os pobres e miseráveis eram

dicação clara de como essa eucaristia estava litúr­

convidados, e todos se banqueteavam juntos. Mas,

gica ou ritualmente associada às assembleias em

depois, essa prática também se corrompeu”

que haviam Escrituras, salmos, orações, coletas

s ó s to m o ,

4.2

(C r i­

Hm ICo, 67; PC, v. 61, p. 223-4, Migne).

e agapê. Suas expressões conviviam dominicum

Tertuliano. No final do século ii, Tertulia- [Ad ux, 2.4) e coena Dei [De sp, 13) podem se

no oferece um relato sobre o propósito de os cris­

aplicar a um agapê, à eucaristia ou a ambos.

tãos se reunirem (“As Escrituras são lidas, salmos são cantados, sermões são apresentados, orações

5. Conclusão

são feitas” . De an, 9). E a orações. Escrituras e

Na anônima Epístola a Diogneto, talvez de mea­

exortações ele acrescenta contribuições modestas

dos do século

e voluntárias para os necessitados (Ap, 39.5,6).

o autor afirma: “Eles preparam uma mesa comum

220

II,

ao descrever a vida dos cristãos,

C eia do S enhor h : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

[trapezan koinên paratithentai], embora não uma

Scribner’s, 1966. •

cama comum [lendo-se koitên\" [Dg, 5.7). A fre­

table fellowship and eschatology at Emmaus. Col-

A. A. The ongoing feast:

Ju st,

quência de cenas de mesa nos murais das cata­

legeville: Liturgical Press, 1993. ■ K e a t in g , J . F. The

cumbas cristãs oferece testemunho vivido da

agape and the eucharist in the early church. Lon­

importância da refeição comum. Nessas cenas,

don: Methuen, 1901. ■

pães e pebces também são um tema recorrente.

und hellenistischer Kult. Münster: Aschendorff,

K

lau ck ,

H.-J. Herrenmahl

É impossível saber se a referência é ao agapê ou

1982. ■ K o d e l l , J. The eucharist in the New Testa­

à eucaristia. Na época do

comportamento

ment. Wilmington: Michael Glazier, 1988. ■ K o e n ig ,

dos participantes das refeições vai do idílico ao

J. The feast of the world’s redemption. Harrisburg:

problemático, e deste ao repreensível. Nos sécu­

Trinity, 2000. •

los II e III, os apologetas defendiam a comunidade

ristie bread: the witness of the New Testament.

nt

,

o

L

é o n -D u f o u r ,

X. Sharing the eucha­

contra acusações de depravação e canibalismo,

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explicando a natureza beneficente do banquete

Lord’s Supper Leiden: E. J . Brill, 1953,1979. ■ M

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sh all,

L

ie t z m a n n ,

H. Mass and ar­

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Senhor com o pão e o vinho. Perto do final do

Rapids: Eerdmans, 1981. ■ M

século

encontramos Agostinho e outros bispos

des apôtres et l’eucharistie. I n : ________ . Jésus-Christ

e sínodos africanos proibindo o agapê por causa

et la foi. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé, 1975.

de excessos (e.g.,

p. 63-76. ■ R e ic k e , B. Diakonie, Festfreude und Ze-

IV,

A

g o s t in h o ,

Ep, 22, a Aurélio:

enoud,

P. H. Les Actes

33.90-92, Migne). Ao mesmo tempo, com a

los in Verbindung mit der altchristlichen Agapen­

oficialização do cristianismo pelo Império Roma­

feier. Uppsala: Lundequistska Bokhandeln, 1948.

PL,

no, começa a declinar a participação regular na

• ______ . Die Mahlzeit mit Paulus auf den Wellen

comunhão eucarística que havia sido, de acordo

des Mittelm eeres Act.

com Inácio de Antioquia e Justino Mártir, a marca

10, 1948.

registrada dos que eram membros da igreja.

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C o leta P

221

para

au lo em

A

os

SANTOS.

Ver

tos e n a s c a r t a s .

C o r in t io s , C a r t a s

aos;

COLOSSENSES, C a RTA AOS

COLOSSENSES, C a RTA AOS

Mesopotâmia

Colossenses, uma das cartas mais breves de Paulo,

acordo com inscrições sepulcrais da região, por

(J o s e f o ,

An, 12.3.4, § 147-53). De

foi escrita à jovem igreja de Colossos, cidade si­

volta do século i a.C. os judeus haviam se torna­

tuada no vale do Lico, na província da Ásia. Essa

do parte da cultura da província da Ásia. Desse

comunidade cristã não havia sido fundada por

modo, parece que a Colossos dos dias de Paulo

Paulo, mas veio a existir durante seu ministério

era cosmopolita, em que se mesclavam diferentes

em Éfeso (c. 52-55 d.C.) pelos esforços de Epa-

elementos culturais e religiosos.

fras, um dos colegas do apóstolo. Embora não seja um tratado teológico, Colossenses tem muito a dizer sobre a importância do

2. A igreja em Colossos

sobre a

Os crentes de Colossos, que são tratados como

pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, especial­

irmãos amados em Cristo (Cl 1.2), não se con­

evang elh o ;

mente como Senhor na Criação e como autor da

verteram por intermédio do ministério do próprio

reconciliação (Cl 1.15-20); sobre o povo de Deus;

Paulo. Essa comunidade cristã surgiu durante

sobre a escatologia; sobre ser Uvre do legaUsmo;

um período de vigorosa atividade missionária

sobre a vida cristã.

e evangelística associada ao ministério de Pau­

1. Colossos e seus cidadãos

lo em Éfeso (c. 52-55 d.C.), registrado em Atos

2. A igreja em Colossos

19. Mas, durante seu trabalho missionário na

3. Motivo da carta

Ásia Menor, o apóstolo não chegou a Colossos,

4. A ameaça à fé e a heresia colossense

no vale do alto Lico (cf. Cl 2.1). Os “ diálogos”

5. Como Paulo lida com a filosofia colossense

evangelísticos diários que mantinha na escola de

6. Algumas questões cruciais

Tirano, em Éfeso, foram tão eficazes que Lucas pôde afirmar “que todos os que habitavam na

1. Colossos e seus cidadãos

Ásia, tanto judeus como gregos, ouviram a pa­

1.1 A cidade. A antiga cidade de Colossos fi­

lavra do Senhor” (At 19.10). Embora o trabalho

cava na Frigia, na margem sul do rio Lico (atual

estivesse sob a direção de Paulo, ele teve a ajuda

Turquia), a 160 quilômetros a leste de Éfeso, e

de vários colaboradores, por meio de quem vá­

seu vale fértil produzia grande quantidade de fi­

rias igrejas foram plantadas na província da Ásia.

gos e azeitonas. Colossos estava situada junto à

Entre essas igrejas, estavam as congregações de

estrada principal que ia de Éfeso e Sardes até o

Colossos, Laodiceia e Hierápolis, as quais, pelo

Eufrates. Nos séculos v e iv a.C., era populosa,

que inferimos, foram fruto dos esforços evange­

grande e abastada, sendo sua importância co­

lísticos de Epafras (Cl 1.7; 4.12,13). Epafras, que

mercial resultado de sua indústria lanífera. Mais

era natural de Colossos (Cl 4.12) e pode ter se

tarde, a cidade perdeu a importância, de maneira

tornado cristão durante uma visita a Éfeso, foi

que, na época romana, havia se tornado “uma

um “fiel ministro de Cristo” e, na condição de re­

cidadezinha”

presentante de Paulo (Cl 1.7), ensinara a verdade

(E

strab ão ,

Ge, 12.8.13, embora o

texto seja discutível) e tenha sido superada por

do evangelho aos colossenses.

Laodiceia e Hierápolis, que também ficavam no

As muitas alusões ao passado não cristão dos

vale do Lico. À época em que Paulo escreveu aos

leitores sugere que em sua maioria eram gentios

cristãos que viviam em Colossos, a importância

convertidos. Outrora haviam estado em total de­

comercial e social da cidade já estava decaindo,

sarmonia com Deus, enredados na idolatria e na

embora moedas e inscrições deem testemunho da

escravidão ao pecado, sendo hostis a Deus em

vida cívica da cidade nos séculos ii e iii d.C.

sua mente e ímpios em seus atos (Cl 1.21; cf.

1.2 Seu povo. Laodiceia, Hierápolis e Colos­

Cl 1.12,27). Tinham estado espiritualmente mor­

sos pertenciam à província proconsular da Ásia.

tos por causa de seus pecados e da “ incircuncisão

A população de Colossos consistia principalmen­

da [...] carne” , o que indica que eram pagãos e

te em frígios nativos e colonizadores gregos, mas

ímpios (Cl 2.13).

no início da primeira parte do século ii a.C., An-

Deus, porém, havia operado uma mudança

tíoco III assentou na Lídia e na Frigia duas mil

poderosa na vida deles. Ele os havia reconciUado

famílias judaicas provenientes da Babilônia e da

consigo mesmo num acontecimento bombástico.

222

C olossenses, C arta aos

a saber, a morte física de Cristo na cruz (Cl 1.22).

vez de um sistema definido com ideias nítidas,

Ele os havia livrado da tirania das trevas e os

e sugerem que os recém-convertidos estavam

transferira para um reino que seu Filho amado

sofrendo pressões externas para se conformar

governava (Cl 1.13). Agora possuíam a redenção

às crenças e práticas de seus vizinhos judeus e

e o perdão dos pecados (Cl 1.14; 2.13; 3.13).

pagãos

(H

ooker) .

É

um entendimento que, acer-

Pelo fato de, ao aceitarem o evangelho pelas

tadamente, destaca a avaliação positiva que Pau­

mãos de Epafras, terem recebido a Cristo Jesus, o

lo faz da vida e da estabilidade da congregação

Senhor, como sua tradição [paradosis, Cl 2.6), os

(Cl 1.3-8; 2.5) e adverte contra o perigo de cair

cristãos de Colossos foram admoestados a se con­

num raciocínio circular, ao reconstruir a situação

duzir como pessoas que haviam sido unidas com

por trás dos escritos de Paulo. No entanto, à luz

Cristo em sua

Sendo Cristo

de Colossenses 2.8-23, pelas referências à “pleni­

Jesus a garantia mais que suficiente contra as vãs

tude” , injunções ascéticas específicas (Cl 2.21),

tradições humanas, os cristãos são aconselhados a

regras sobre alimentos e dias santos, expressões

cuidar para que sua maneira de viver e pensar seja

incomuns que parecem ser lemas dos adversários

sempre conforme ao ensino de Cristo (Cl 2.6-8).

de Paulo, e pela forte ênfase no que Cristo já con­

m orte

e

r e s s u r r h ç Ao

.

Dessa maneira, pinta-se o quadro de uma con­

quistou mediante sua morte e ressurreição, pare­

gregação cristã obediente ao ensino apostólico e

ce apropriado supor que uma heresia começava a

a qual o apóstolo pode, de coração, agradecer a

se infiltrar na congregação.

Deus (Cl 1.4-6). Ele sabe do amor que eles têm

4.2 Algumas características inconfundíveis

“no Espírito” (Cl 1.8) e ficou muito satisfeito em

da heresia. 0 falso ensino é classificado como

saber que levavam uma vida cristã disciplinada e

“filosofia” (Cl 2.8) e tem base na “tradição” (pa­

que sua fé em Cristo era estável (Cl 2.5).

radosis denota antiguidade, dignidade e caráter revelacional), que, acreditava-se, transmitia co­

3. Motivo da carta

nhecimento verdadeiro (Cl 2.18,23). Parece que

Epafras havia feito uma visita a Paulo em Roma

Paulo está citando lemas dos adversários em seu

(v. 6.2 abaixo) e informado o apóstolo acerca do

ataque contra o que ensinavam: “toda a pleni­

progresso do evangelho no vale do Lico. Embo­

tude” (Cl 2.9); “ humildade ou culto aos anjos”;

ra boa parte do relatório fosse encorajador (cf.

“baseando-se em coisas que tenha visto” (talvez

Cl 1.8; 2.5), havia um detalhe perturbador: o en­

“em visões” , Cl 2.18); “ não toques, não proves,

sino atraente, mas falso, que fora recentemente

não manuseies” (Cl 2.21); “devoção voluntária” e

introduzido na congregação e que, se não fosse

"disciplina do corpo” (Cl 2.23,

confrontado, subverteria o evangelho e levaria

manter esses tabus na “filosofia” estava relacio­

os colossenses à servidão espiritual. A carta de

nado com a submissão obediente aos “princípios

Paulo é escrita como resposta a essa necessidade

elementares deste mundo” (Cl 2.20,

arc) ,

Além disso,

n v í) .

urgente. Talvez Epafras tenha achado difícil lidar

4.3 Interpretando essas características in­

com os argumentos falsos e a humildade fingida

confundíveis. Entre os estudiosos, não se chegou

dos que disseminavam esse ensino e, por isso,

a um consenso quanto à natureza do falso ensi­

precisou da sabedoria maior do apóstolo.

no. Parece que a heresia era judaica, a julgar pe­ las referências a regras alimentares, ao sábado e

4. A ameaça à fé e a heresia colossense

a outras prescrições sobre o calendário judaico. A

4.1 Houve uma heresia colossense? Em parte

circuncisão é mencionada (Cl 2.11), mas não apa­

alguma da carta o apóstolo apresenta uma expo­

rece como exigência legal. (Para W

sição formal da heresia. Só é possível detectar

era de origem exclusivamente judaica.)

seus principais aspectos reunindo e interpretan­

Mas que tipo de

j u d a ís m o ?

A

o

r ig h t ,

a heresia

que parece, não

do os contra-argumentos concretos de Paulo (v.

era do tipo mais escancarado, contra o qual as

Em tempos recentes, alguns

igrejas da Galácia tiveram de ser advertidas, e sim

estudiosos questionaram se esses contra-argu­

caracterizado pelo ascetismo e pelo misticismo,

mentos apontam, de fato, para uma heresia colos­

segundo o qual os anjos e principados haviam de­

sense. Preferem acreditar que são tendências, em

sempenhado um papel proeminente na Criação e

ADVERSÁRIOS i: P a u l o ) .

223

C olossenses , C arta aos

na outorga da Lei. Acreditava-se que estes contro­

tentando seduzir os colossenses. Embora apre­

lavam a comunicação entre Deus e a humanida­

sentassem seu ensino como “ tradição”, Paulo

de, e, por isso, era preciso apaziguá-los mediante

rejeita qualquer possibiUdade de terem origem

a estrita guarda de observâncias legais.

divina. Era fabricação humana (“ segundo a tradi­

Já foram propostas importantes teorias quan­

ção dos homens”) antagônica à tradição de Cris­

to à natureza da filosofia colossense, desde um

to — a tradição que tem origem nos ensinos de

culto pagão de mistério

Cristo e que também se personifica nele (Cl 2.6).

(D

ib e l iu s )

e um sincreüs-

mo de judaísmo gnosticizado com elementos pa­

Numa passagem de louvor magnífica, em que

— 0 “culto aos anjos” (Cl 2.18)

exaha a Cristo como Senhor da Criação e da re­

foi considerado um elemento pagão do ensino

conciliação (Cl 1.15-20), Paulo declara que Cristo

falso, mas deve ser entendido como “a adoração

é aquele por meio de quem todas as coisas fo­

angelical [a Deus] ” — até um judaísmo essênico

ram criadas, inclusive os

do tipo gnóstico

tão proeminentes na heresia colossense. Todas

gãos

(B

ornkamm

daizante

(L

)

(L

ig h t f o o t )

e um sincreüsmo ju-

p r in c ip a d o s

e po testad es,

as coisas foram feitas nele, como o domínio, por

yo n n et).

Entretanto, em tempos recentes muitos es­ tudiosos passaram a considerar que esse falso

meio dele, como o agente e para ele, como o ob­ jetivo último de toda a Criação (Cl 1.16).

ensino, que ia além do evangelho elementar de

Os que foram incorporados em Cristo vieram

Epafras, deve ser entendido à luz de formas ascé-

a experimentar plenitude de vida naquele que é

tícas e mísUcas da piedade judaica, como vistas,

senhor sobre todo principado e poder (Cl 2.10).

por exemplo, em Qumran (v.

Não precisam buscar perfeição em nada mais,

m a n u s c r it o s

do

m ar

. Era dirigido a uma elite espiritual que es­

senão nele. É nele, aquele em cuja morte, sepul-

tava sendo impelida a uma busca insistente de

tamento e ressurreição foram unidos (Cl 2.11,12),

M

o rto )

sabedoria e conhecimento, de modo a alcançar a

que a totalidade da sabedoria e do conhecimento

verdadeira “plenitude”. “Disciplina” (Cl 2.18,23,

se concentram e se tornam disponíveis a todo o

ARc) era um termo empregado pelos adversários

seu povo, não apenas a uma elite.

para indicar práticas ascéticas eficazes para o

Cristo Jesus é o único mediador entre Deus e a

recebimento de visões de mistérios celestiais e

humanidade. Os colossenses não devem permitir

nas experiências místicas. Os “maduros” conse­

que os falsos mestres os enganem, levando-os a

guiam, assim, entrar no céu e se unir ao “culto

pensar que é necessário obedecer às potestades

angelical de Deus” como parte da experiência

angelicais, as quais, pelo que se afirmava, con­

presente (Cl 2.18).

trolavam a comunicação entre Deus e a humani­ dade. Esse caminho estava agora sob o controle

5. Como Paulo lida com a filosofia

de Cristo, o qual, mediante sua morte, se revela­

colossense

ra 0 conquistador dos principados e potestades

Embora a apresentação de Paulo vá progredindo

(Cl 2.13-15).

paulatinamente, só em Colossenses 2.4 ( “Digo

São devastadoras as críticas do apóstolo aos de­

isso para que ninguém vos engane com palavras

fensores da filosofia colossense, caracterizada por

capciosas”) o apóstolo menciona expressamente

falácias e comportamento aberrante (Cl 2.16-23).

os perigos que rondam a congregação. Ele tem

Por causa de seu legalismo, os falsos mestres dei­

consciência dos métodos dos falsos mestres e

xavam de reconhecer as boas dádivas de Deus e

faz uma dura advertência aos colossenses, a fim

0 propósito que ele teve ao concedê-las, a saber,

de que estejam precavidos e não sejam levados

que todas deviam ser apreciadas e consumidas

como presas de guerra (Cl 2.8; sylagõgeo — “ se­

mediante seu devido uso (Cl 2.22). As coisas

questrar”, “levar como despojo” — é uma pa­

referidas nos tabus eram objetos perecíveis do

lavra rara e contundente, demonstrando a séria

mundo material, destinados a se estragar depois

preocupação de Paulo com relação aos desígnios

de usados. Pertenciam a uma ordem transitória

maUgnos daqueles que buscavam influenciar a

(Cl 2.17) e por isso não passavam de invenções

congregação). “Por meio de filosofias e sutilezas

humanas que não tinham caráter absoluto, mas

vazias” (Cl 2.8), os charlatães espirituais estavam

se posicionavam contra a revelação da vontade

224

C olossenses , C arta aos

de Deus (cf. Cl 2.22). Submeter-se a regras e re­

de experiências visionárias e coisas semelhantes.

gulamentos como os de Colossenses 2.21 é retro­

Mas Cristo já fez tudo que era necessário para

ceder à escravidão — é pôr-se debaixo das forças

a salvação dos colossenses. Eles morreram com

pessoais já derrotadas por Cristo (Cl 2.20). Por

Cristo, foram ressuscitados com ele e receberam

meio de sua morte, ele os havia libertado dos

nova vida com ele. Agora, portanto, devem bus­

principados e potestades. Os colossenses não de­

car com zelo as coisas do alto (Cl 3.1,2), aquela

viam menosprezar a transformação de vida que

nova ordem centrada no Cristo exaltado, e assim

experimentaram. Conquanto as proibições (cf.

demonstrar que possuem uma mente verdadei­

Cl 2.21) transmitissem uma aura de sabedoria nas

ramente voltada para as coisas celestiais (cf.

esferas da adoração voluntária, da humildade e

Cl 3.5,8,12; 3.8-4.1).

da severa disciplina do corpo, na realidade essas práticas estavam espiritual e moralmente falidas.

6. Algumas questões cruciais

Esses esforços enérgicos eram insuficientes para

6.1 Autoria. Não apenas na saudação inicial

manter a carne sob controle. Em vez disso, as re­

(Cl 1.1), mas também no corpo da carta (Cl 1.23)

gras autoimpostas na verdade apenas satisfaziam

e na conclusão (Cl 4.18), fica claro que o apóstolo

a carne (Cl 2.23).

Paulo é o autor. A personalidade de Paulo, confor­

Em sua resposta ao ensino falso, Paulo explica

me conhecemos de outras cartas, reluz por toda

a doutrina do Cristo cósmico de um modo mais

a Carta aos Colossenses. Nunca houve questio­

completo que em suas cartas anteriores (v.

c r is -

namento acerca da autenticidade de Colossenses

haviam aparecido

no período inicial da igreja, e a carta foi incluída

em Romanos 8.19-22 e ICoríntios 1.24, 2.6-10 e

na lista canônica de Marcião e também no cânon

8.6, mas Colossenses 1.15-20 e 2.13-15 consti­

muratoriano. No entanto, a autoria paulina tem

tuem uma exposição mais detalhada. Contra os

sido ocasionalmente posta em dúvida nos últi­

falsos mestres que se vangloriavam de suas su­

mos 150 anos. Os motivos apresentados têm rela­

blimes experiências espirituais, das novas reve­

ção com a linguagem e o estilo da carta e com as

lações e de sua participação na plenitude divina,

alegadas diferenças entre Colossenses e a teologia

as críticas do apóstolo são incisivas; eles são ar­

das principais cartas paulinas.

t o l o g ia ) .

Alguns vislumbres



rogantes e correm o risco de se separar de Cristo (Cl 2.18,19).

6.1.1 Linguagem e estilo. Diversos aspectos formais de Colossenses revelam similaridades

Quando trata do falso ensino colossense, Pau­

com as outras cartas de Paulo, inclusive sua

lo destaca a escatologia realizada (v. esp. Cl 2.12;

estrutura (a introdução, Cl 1.1,2; a conclusão,

3.1-4). Dentro da tensão entre o já e o ainda não,

Cl 4.18; a oração de gratidão, Cl 1.3-8), os conec­

a ênfase recai sobre o primeiro, que, em razão das

tivos e as locuções (Cl 2.1,6,16; 3.1,5) e a lista

circunstâncias da carta, é o foco da atenção. Os

de mensagens e saudações (cf. Cl 4.8,10,12,15).

colossenses possuem uma esperança preservada

Muitas expressões são de estilo paulino — por

para eles nos céus (Cl 1.5; cf. 3.1-4). Eles se tor­

exemplo, o uso desnecessário de “e” depois de

naram aptos a participar da herança dos santos

“porquanto” (Cl 1.9; cf. ITs 2.13; 3.5), expres­

na luz (Cl 1.12). Estando já livres da tirania das

sões como “ seus santos” (Cl 1.26; cf. ITs 3.13)

trevas, foram transferidos para o reino do Filho

e “ por causa de” (Cl 2.16; cf. 2Co 3.10; 9.3) e

amado de Deus (Cl 1.13). Eles não apenas morre­

também verbos como charizomai, com o sentido

ram com Cristo, mas também foram ressuscitados

de “perdoar” (Cl 2.13; 3.13; cf. 2Co 2.7,10). As se­

com ele (Cl 2.12; 3.1; cf. 3.3). Embora o aspecto

melhanças estendem-se à terminologia teológica,

“ainda não” da salvação apareça na carta (esp.

com o emprego de expressões como “em Cristo”

Cl 3.4), 0 “já” precisa ser reafirmado repetidas ve­

(Cl 1.2,4,28), “no Senhor” (Cl 3.18,20 etc.), e a

zes, opondo-se aos que estavam interessados na

ideia de unir-se a Cristo no batismo (Cl 2.11,12),

“plenitude” e na esfera celeste, mas tinham fal­

de ser liberto do poder das regulamentações

sas concepções a respeito delas, acreditando que

(Cl 2.14,20,21), do contraste entre a velha pessoa

elas podiam ser alcançadas por meio de obser­

e a nova (Cl 3.5-17) e da relação entre o indicati­

vâncias legalistas, de um conhecimento especial.

vo e o imperativo nas exortações (Cl 3.5-17).

225

C olossenses , C arta aos

Há, no entanto, diferenças linguísticas entre

quando influências gnósticas clássicas haviam

Colossenses e as outras cartas paulinas: 34 pala­

começado a se impor. Mas é desnecessário recor­

vras aparecem em Colossenses, mas em nenhu­

rer a um possível cenário de influências gnósticas

38 palavras não ocorrem

plenamente desenvolvidas do século ii. Se um ce­

nas outras cartas pauUnas; 10 palavras de Co­

nário judaico do tipo místico ascético for plausí­

lossenses aparecem apenas em

ma outra parte do

nt

;

Mas, ao

vel, não há necessidade alguma de procurar além

avahar essas estatísticas, deve se ter em mente

da era apostólica. Assim, a autoria paulina não

que muitas dessas palavras aparecem no parágra­

pode ser descartada.

E f é s io s .

As objeções que, com base na teologia, se fa­

fo hínico de Colossenses 1.15-20 ou na interação com 0 falso ensino, seja citando os lemas da fi­

zem à autoria pauhna são as seguintes: 6.1.2.1 Cristologia. Tem se afirmado que a c r is ­

losofia colossense, seja como parte do ataque do

de Colossenses se desenvolveu com base

autor. Além disso, hapax legomena e expressões

t o l o g ia

incomuns aparecem em número considerável nas

em Colossenses 1.15-20 e vai além do que Paulo

demais cartas paulinas. A ausência de uma pa­

afirma em ICoríntios 8.6 e Romanos 8.31-39, pois

lavra ou conceito pode ser resultado do assunto

ensina que em Cristo toda a plenitude da divin­

diferente que está sendo discutido.

dade habita “corporalmente” (Cl 2.9) e que ele é

Em contraste com o vocabulário, entre os

“a cabeça de todo principado e poder” (Cl 2.10).

aspectos característicos de estilo está o material

No entanto, a última declaração expõe detalha­

litúrgico com longas orações introduzidas por

damente as implicações de Colossenses 1.15-20,

pronomes relativos, orações adverbiais causais

que é uma passagem fundamental da carta, ao

e orações reduzidas de particípio, expressões si­

passo que Colossenses 2.9 aplica as palavras do

nônimas combinadas (“ fortalecidos com todo o

hino à situação colossense, deixando claro que a

vigor” , Cl 1.11; “orar [...] e [...] pedir” , Cl 1.9),

total plenitude da divindade habita em Cristo, ou

uma série de genitivos dependentes (“ palavra da

seja, em forma corpórea mediante sua encarna­

verdade do evangelho” , Cl 1.5, a r c ) e construções

ção. A dimensão cósmica do governo de Cristo,

infinitivas conectadas de maneira um tanto solta

em torno do tema do senhorio universal de Cris­

(“para que possais viver de maneira digna do Se­

to, é apresentada aqui de maneira mais completa

nhor” , Cl 1.10).

e sistemática que nas cartas anteriores de Paulo

Essas peculiaridades estilísticas têm sido in­

(ICo 8.6; cf. Cl 1.24; 2.6-10) por causa da relação

terpretadas como prova de que Colossenses foi

estreita com o ensino falso de Colossos, servindo-

escrita por um autor que, embora dependesse

lhe de corretivo. Não há, portanto, necessidade

bastante de Paulo, raciocinava de modo diferente

de procurar num autor que não seja Paulo a fonte

do apóstolo. Mas tal julgamento parece excessi­

de tais ideias.

vamente negativo e pressupõe uma percepção

6.1.2.2 Eclesiologia. Afirma-se também que o

quase infalível do que Paulo podia ou não podia

conceito de Cristo como “cabeça do corpo que é a

ter escrito. Além do mais, não explica as grandes

igreja” reflete um desenvolvimento pós-paulino.

semelhanças entre Colossenses e as cartas geral­

Em ICoríntios 12.12-27 e Romanos 12.4,5, Paulo

mente aceitas como paulinas. O mais provável

emprega a terminologia do corpo (v.

é que as peculiaridades estilísticas tenham sido

to)

motivadas pelo conteúdo da carta, claramente as­

relações e obrigações mútuas dos cristãos. Nessas

sociado à situação que a ocasionou.

referências, a cabeça não desfruta nenhuma posi­

6.1.2

co rpo de

C

r is ­

e as partes que o compõem para se referir às

Ensino. Para estudiosos como E. Lohse, ção ou honra especial: é considerada um membro

as supostas diferenças teológicas entre Colossen­

comum (ICo 12.21). Em Colossenses e Efésios,

ses e as cartas geralmente aceitas como paulinas

a linha de raciocínio experimenta um avanço,

são decisivas contra a autoria apostólica de Co­

deixando para trás a linguagem de símile, como

lossenses, mesmo que as questões de linguagem

em ICoríntios e Romanos, e adota a ideia de um

e estilo não o sejam. Alguns intérpretes alegam

envolvimento real e interpessoal, avanço prova­

que a cristologia pós-paulina do autor perten­

velmente estimulado pela reflexão de Paulo sobre

ce a um período posterior da história da igreja.

as questões envolvidas na heresia colossense, e

226

C olossenses, C arta aos

faz pleno sentido. Além disso, a melhor maneira

encontrado em Colossenses 1.15-20 e outros ma­

de entender o termo

teriais tradicionais a fim de combater heresia na



ig r e j a ”

(Cl 1.18), ainda que

geralmente interpretado com o sentido de povo

era subapostólica

de Deus em todo o mundo, a igreja universal ou

é especialmente enfatizado na lista de saudações

mundial, em que Cristo exerce, aqui e agora, seu

de Colossenses. Esse documento, que é uma

senhorio cósmico, é uma assembleia celestial

espécie de carta pastoral, tinha a finalidade de

reunida em torno do Cristo ressuscitado e exalta­

conferir autorização apostólica a Epafras, cujos

do (cf. Cl 3.1-4; Ef 2.6). Essa reunião celeste que

ensinos representavam o pensamento de Paulo.

tem Cristo no centro manifesta-se agora na terra.

De acordo com M. Kiley, o autor de Colossenses

A mesma palavra, “igreja” , pode ser usada para

empregou duas cartas paulinas da prisão (Fili-

designar uma congregação local em Colossos

penses e Filemom) como modelos para escrever a

ou mesmo uma pequena comunidade nas casas

carta de recomendação de Epafras. 0 objetivo da

(K

ãsem ann)

. 0 nome de Epafras

(Cl 4.15,16). A congregação nos céus manifesta-se

carta, a qual apresenta aspectos do “catolicismo

e se torna visível como a esfera em que Cristo go­

primitivo” da era subapostólica, era mostrar que

verna e em que irmãos santos e fiéis em Cristo se

“o ensino de Paulo não está estritamente limita­

reúnem (Cl 1.2).

do às exigências do tempo e do espaço”

6.1.2.3 Escatologia. Alega-se que a

(K

il e y ,

e s c a t o l o g ia

p. 107). “ De um modo novo e poderoso, o autor

futura recuou nessa carta, sendo Colossenses 3.4

de Colossenses transmite a mensagem do apósto­

a única referência explícita a esse acontecimento

lo às comunidades”

(L

ohse,

p. 183).

futuro. Em vez disso, segundo alguns estudiosos,

No entanto, em Colossenses 1.23—2.5 é o

predominam conceitos espaciais, ao passo que

evangelho que valida o ministério de Paulo. 0

nenhuma das ideias tipicamente paulinas — pa-

parágrafo não confere legitimidade ao evangelho

rusia, ressurreição dos mortos e juízo do mundo

por meio do ofício apostólico de Paulo para em

— é encontrada na carta. Além disso, diferente­

seguida afirmar (Cl 1.7; 4.7-13) a legitimação de

mente das cartas paulinas autênticas, Colossen­

Epafras por causa de seu relacionamento com o

ses afirma que os crentes já foram ressuscitados

apóstolo. Ambos servem ao evangelho como co­

com Cristo (Cl 2.12,13; 3.1), e isso serve de base

laboradores e ministros da Palavra. Nessas pas­

para o imperativo ético.

sagens, não há nenhuma tentativa de conferir

Em Colossenses, existe de fato uma ênfase na

autorização apostólica a Epafras ou a quem quer

escatologia realizada, mas isso foi causado pelas

que seja por estar em sucessão apostólica ou seu

circunstâncias. Além do mais, existe escatologia

ensino representar o pensamento de Paulo.

futura não apenas em Colossenses 3.4,6,24, mas

As denominadas diferenças entre Colossen­

também em Colossenses 1.22,28 (cf. Cl 4.11).

ses e as cartas geralmente aceitas como paulinas

Conceitos espaciais são empregados a serviço

não constituem motivo suficiente para rejeitar a

da escatologia, ao passo que perspectivas esca-

autoria apostólica dessa carta. Existem, é claro,

tológicas e transcendentes são vistas, lado a lado

diferenças de ênfase, mas é melhor interpretá-las

e em antítese, nas cartas paulinas incontestes e

como resultado das circunstâncias existentes em

em Colossenses 3.1-4. Há uma motivação esca-

Colossos.

tológica em Colossenses, talvez não dominante,

6.2

Lugar de origem e data. A opinião tradi­

porém mesmo assim presente (Cl 3.5 baseia-se

cional de que Paulo escreveu Colossenses duran­

em Cl 3.1-4 com sua ênfase escatológica). Ao

te seu aprisionamento em Roma é mais provável

mesmo tempo, além da escatologia há outros mo­

do que a possibilidade de ele ter redigido a carta

tivos para exortação nas cartas geralmente aceitas

quando estava em Éfeso ou em Cesareia. Nenhum outro aprisionamento em Atos parece constituir

como paulinas. 6.1.2.4 Tradição. Alguns estudiosos acredi­

uma alternativa concreta (há dificuldades quan­

tam que as supostas diferenças nas áreas acima

to ao aprisionamento em Cesareia, descrito em

mencionadas derivam de uma “tradição de esco­

At 24.27, mas v.

la paulina”, provavelmente baseada em Éfeso.

senses 4, as saudações enviadas por colegas su­

O autor pós-paulino apropriou-se do hino agora

gerem que eles tinham acesso direto ao apóstolo.

227

F iu p e n s e s , C a r t a

ao s) .

Em Colos­

C olossenses , C arta aos

0 que se harmoniza com o aprisionamento em

A autoria paulina do hino tem sido questiona­

Roma, mencionado em Atos 28.30. A referência

da com base em argumentos linguísticos e estru­

a Onésimo, que remete à Carta a Filemom, pode

turais. De uma forma ou de outra, os argumentos

ser entendida no contexto da capital do império,

a favor e contra a autoria paulina não são decisi­

embora alguns aleguem que a distância entre

vos, por isso devemos aceitar a passagem como

Colossos e Roma seja um obstáculo para a carta

autêntica. Desse modo, há considerável discus­

ter partido de Roma. Não é seguro basear-se no

são sobre ter o apóstolo incorporado ou não em

desenvolvimento do pensamento de Paulo como

sua carta um hino já existente. Isso é possível, mas, caso tenha acontecido, ele entreteceu o res­

critério para determinar a data de Colossenses. Caso a hipótese romana seja aceita, a data

tante da carta em torno do hino, e o destaque ã

mais provável é o início do primeiro aprisiona­

supremacia de Cristo tem o propósito de forta­

mento de Paulo em Roma, ou seja, por volta de

lecer os leitores e corrigir as ideias errôneas dos

60-61 d.C. Os que defendem Éfeso como alter­

falsos mestres. Pré-paulina ou não, a passagem

nativa situam a carta por volta de 54-57 d.C. ou

adaptou-se perfeitamente aos objetivos que o

mesmo antes, em 52-55 d.C.

apóstolo teve ao escrever Colossenses.

6.3

Ver também

O hino em louvor a Cristo. Colossenses

1.15-20 é uma grandiosa passagem de louvor que

c r is t o l o g i a ;

E f é s io s ,

C arta

aos;

g n o s t ic is m o ; ig r e j a .

exalta a Cristo como Senhor da Criação (Cl 1.15-

DPc: a u t o r id a d e s e p o d e r e s ; m is tic is m o ; p le n it u d e ;

17) e 0 autor da reconciliação (Cl 1.18-20).

TRIUNFO.

Quanto à estrutura do hino, entre os estudiosos Comentários:

T. K. The Epis­

não se chegou a nenhum consenso acerca do

B

número e do conteúdo das estrofes. É melhor

tles to the Ephesians and to the Colossians. Edin­

considerar certos paralelos (cf. Cl 1.15,18), com

burgh: T & T Clark, 1897. [icc.) ■ B r u c e , F. F. The

orações adjetivas expUcativas ou adverbiais cau­

Epistles to the Colossians, to Philemon, and to the

sais (Cl 1.16,19), o emprego frequente de “tudo” ,

Ephesians. Grand Rapids: Eerdmans, 1984

“toda” , “todas” e o quiasmo formal de Colossen­

■ C a ir d ,

ses 1.16c e Colossenses 1.20 (v. tb. Cl 1.17,18).

Oxford University Press, 1976. ■

ib l io g r a f ia .

A

bbott,

e do judaísmo rabínico tenha sido proposto como

Grand Rapids: Eerdmans, 1996.

fonte das ideias do hino, um cenário geral da

den,

no

AT

e no judaísmo helenista

(S

D

unn

,

J.

D.

G.

The Epistles to the Colossians and to Philemon.

Embora o contexto do gnosticismo pré-cristão

b e d o r ia

(n ic n t.)

G. B. Paul’s Letters from Prison. Oxford:

sa­

j.

L.

(m g tc)



H

o u l-

Paul’s Letters from Prison. Philadelphia:

Westminster, 1970. ■ L ig h t f o o t , J. B. Saint Paul’s

c h w íe iz e r )

Epistles to the Colossians and to Philemon. Lon­

provavelmente seja o correto. Mas o contexto não permite exphcar como os predicados e atividades

don: Macmillan, 1890. ■ L o h s e , E. Colossians and

atribuídos à Sabedoria vieram a ser aplicados a

Philemon. Philadelphia: Fortress, 1971. [Herm.) R. P. Colossians and Philemon. Grand

Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado den­

■ M

tre os mortos havia pouco tempo.

Rapids: Eerdmans, 1981.

Esse parágrafo hínico não é uma digressão ou

a r t in ,

( ncbc.)

■ ______ . Ephe­

sians, Colossians, and Philemon. Louisville: John

divagação cristológica, mas algo fundamental no

Knox, 1991. (IntC.) ■ M

contexto em que se encontra. A longa oração de

of Paul the Apostle to the Colossians and to Phi­

Paulo (Cl 1.9-14) conduz ao hino, e os temas

lemon. Cambridge: Cambridge University Press,

C. F. D. The Epistles

do hino são retomados e aplicados ao longo de

1957.

todo 0 restante da carta (cp. Cl 1.19 com Cl 2.9;

Waco: Word, 1982.

Cl 1.20 com Cl 1.21-23 e Cl 2.15). Embora a pas­

lossians, Philemon, Ephesians. San Francisco:

sagem louve a Cristo, é surpreendente que os

Harper & Row, 1984. ■ S c h v í e i z e r , E. The Letter to

nomes “Jesus”, “ Cristo” e “ Senhor” não apa­

the Colossians: a commentary. Minneapolis: Au­

reçam nela. A estrofe começa simplesmente

gsburg, 1982. ■ W

assim; “ Este é...” No entanto, fica claro que as

to the Colossians and to Philemon. Grand Rapids:

palavras de louvor não podem ser aplicadas a

Eerdmans, 1986.

outra pessoa.

G. The heresy of Colossians. In:

228

(c g tc .)

■ O ’ B r ie n ,

o u le ,

P.

T. Colossians, Philemon.

[ wbc ,

44.) ■ P a t z i a , A. G. Co­

r ig h t,

N. T. The Epistles o f Paul

(tn tc .)

■ Estudos:

B orn k a m m ,

F r a n c is ,

F. 0. &

C o m u n h ã o à m e s a : Evan gelho s

M eeks, W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2. ed. Missoula: Scholars, 1975. p. 123-45.

{s b ls b s ,

3. Os hábitos de Jesus à mesa, de acordo

4.) ■

com Marcos

Cannon , G. E. The use of traditional materials in

4. Os “banquetes” abertos de Jesus, de acor­

Colossians. Macon: Mercer University Press, 1983.

do com Lucas 5. Conclusão

• Dibeuus M. The Isis initiation in Apuleius and related initiatory rites. In: Francis, F. O. & Meeks,

W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2. ed. Missoula;

1. A importância das refeições em conjunto

Scholars, 1975. p. 61-121.

■ Francis, F. O.

É difícil exagerar a importância da comunhão à

Meeks, W., orgs. Conflict at Colossae. Missoula;

mesa para as culturas do entorno do Mediter­

&

Scholars, 1975.

(s b ls b s )

4.) ■ Hooker, M. D. Were

râneo no século I de nossa era. O momento da

there false teachers in Colossae? In: Lindars, B. &

refeição era muito mais que uma oportunida­

Smalley, S. S., orgs. Christ and Spirit in the New

de para alguém se alimentar. Ser bem recebido

Testament: Studies in honor of Charles Francis

numa mesa com o objetivo de se alimentar na

Digby Moule. Cambridge; Cambridge University

companhia de outra pessoa havia se tornado uma

Press, 1973. p. 315-31. ■ Kãsemann, E. A primiti­

cerimônia com rico simbolismo de amizade, in­

ve Christian baptismal liturgy. I n : _______. Essays

timidade e unidade. Por esse motivo, trair uma

on New Testament themes. Naperville; Allenson,

pessoa com quem se tivesse partilhado uma refei­

1964. p. 149-68.

ção ou de alguma maneira ser infiel a ela era visto

(s b ls b s ,

(s b t .)

• Kiley, M. Colossians as

pseudepigraphy. Sheffield:

1986. ■ Lincoln,

como algo particularmente reprovável. Da mes­

A. T. Paradise now and not yet. Cambridge: Cam­

ma forma, quando uma pessoa estava afastada,

bridge University Press, 1981. [sntsms, 41.) ■ Lyon­

0 convite para estar à mesa abria as portas para

net, S. Paul’s adversaries in Colossae. In: Francis,

a reconciliação. Até mesmo as refeições do dia a

F. O. & Meeks, W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2.

dia eram acontecimentos complexos, em que se

ed. Missoula: Scholars, 1975. p. 147-61. [sblsbs,

reforçavam valores, limites, níveis e hierarquias

4.) ■ Sanders, J. T. The New Testament Christo-

sociais. Qualquer um que desafiasse essas catego­

logical hymns. Cambridge: Cambridge University

rias e limites enfrentaria julgamento por ter agido

Press, 1971. [sntsms, 15.) • Sappington, T. J. Reve­

de modo desonroso, uma acusação séria em cul­

js o t,

lation and redemption at Colossae. Sheffield; Aca­

turas baseadas nos valores de honra e vergonha.

demic, 1991. • Tannehill, R. C. Dying and rising

Transgredir de forma constante e persistente es­

with Christ. Berlin: Topelmann, 1967. [bznw , 32.)

ses costumes faria da pessoa um inimigo da esta­

■ W right, N. T. Poetry and theology in Col. 1:15-

bilidade social.

20. NTS, v. 36, p. 444-68, 1990.

A família estendida era o contexto usual em que se consumiam as refeições. Reunir-se para co­

P T. O’ Brien

mer era ocasião para tornar a sentir que a pessoa C o losso s.

Ver

desfrutava aceitação e era importante no grupo.

C o lo ssenses , C arta a o s .

Além da família, preferia-se comer com pessoas Com unhão .

Ver

ceia d o

da mesma classe social. As refeições entre pes­

S e n h o r ; a d o r a ç ã o / culto .

soas do mesmo nível reforçavam os sistemas de C om unhão

à m esa:

E vangelh os

estratificação social, e a disposição dos assentos

Um aspecto distintivo do ministério de Jesus foi

ajudava a distinguir a importância relativa de

a prática de uma comunhão à mesa radicalmente

cada convidado. Os convidados eram pessoas

inclusiva e não hierárquica como estratégia cen­

que correspondiam social, religiosa e economica­

tral de seu anúncio e redefinição do irromper do

mente ao anfitrião, ou seja, aqueles que estavam

reino de Deus. Agindo assim, Jesus desafiou o ex­

em condições de retribuir o favor num relaciona­

clusivismo inerente e a consciência de nível social

mento de reciprocidade equilibrada.

existentes nas práticas sociais e reUgiosas aceitas e apresentou uma parábola viva do

I srael

Em Israel, uma divisão social bem perceptível

renovado.

1. A importância das refeições em conjunto 2. O Jesus histórico e a comunhão à mesa

fora criada pela classe sacerdotal que, obrigada pela Torá (Lv 17—26), tinha de viver num esta­ do especial de pureza durante pelo menos seis

229

CoM U NH Áo À m esa: E v a n g e lh o s

semanas por ano, enquanto se preparava para

por Jesus, é lembrada pelo

servir e, depois, enquanto servia no templo. Cum­

vas e hierárquicas que outros grupos judeus tinham

prir essa obrigação causou certa distância física e

para se alimentar, como os essênios, não desempe­

social entre as famílias sacerdotais e os demais

nham nenhum papel explícito em nenhum docu­

israelitas, que os sacerdotes consideravam mais

mento do cristianismo primitivo. Os Evangelhos

nt.

As práticas exclusi­

Sinóticos são consistentes quando, num contraste

ou menos impuros.

acentuado e específico entre Jesus e a prática fari­

Durante a helenização forçada que levou à Revolta Macabeia (167-164 a.C.), muitos judeus,

saica, 0 apresentam como aquele que ensina e cura

inclusive um número alarmante de sacerdotes de

e, em nome de Deus, recebe de bom grado à mesa

destaque, abriu mão tanto de sua pureza quanto

uma surpreendente variedade de pessoas, tanto de

de sua identidade, ao oferecer sacrifícios a deuses

boa quanto de má reputação. Isso deixa a forte im­

pagãos e adotar costumes gregos. A reação veio

pressão de que, para Jesus, a comunhão aberta à

daqueles que passaram a ser conhecidos como

mesa foi uma estratégia empregada para questio­

fariseus, que lembraram o povo do chamado para

nar 0 exclusivismo social e religioso onde quer que

se afastar dos caminhos pagãos, apelo que carac­

isso fosse aceito como algo normal ou oficialmente

terizou a restauração de Israel depois do Exílio

sancionado

(cf. Ed 10.11;

V. ju d aísm o ) ,

(K o e n ig ,

p. 20).

e exortaram todos os

judeus a acentuar sua santidade e seu sentimen­

2. O Jesus histórico e a comunhão à mesa

to de identidade exclusiva mediante um viver

Existe, entre os estudiosos, um elevado nível de

voluntário de acordo com as leis sacerdotais de

concordância de que Jesus praticou uma comu­

pureza todos os dias do ano. Os fariseus não re­

nhão à mesa radicalmente inclusiva como es­

jeitavam 0 sacerdócio ou o culto no templo, mas,

tratégia central em seu anúncio e redefinição do

tendo em vista a vulnerabilidade dos sacerdotes

irromper do governo de Deus (v.

e do templo à impureza, tentavam renovar Israel,

Embora uns poucos autores tenham questionado

redirecionando para os lares o centro da santida­

a historicidade dos relatos de que Jesus comeu

reino de

D eus ) .

de. Isso resultou numa atenção especial à pureza

com “publicanos e pecadores”

dos alimentos no dia a dia e às companhias acei­

bem fortes os indícios a favor de uma mesa in­

tas à mesa em cada refeição.

tencional e simbolicamente aberta, sendo encon­

(S m it h ,

1989), são

Os fariseus acreditavam que as mesas nas ca­

trados em múltiplas fontes e em várias formas de

sas podiam fazer as vezes do altar do Senhor no

tradição. As fontes incluem Marcos, a fonte de

templo e, por esse motivo, se esforçavam por man­

textos sinóticos (o), o material peculiar a Lucas

ter, nas casas e entre os companheiros de refeição,

e provavelmente o Evangelho de Tomé. As for­

0 estado de pureza ritual exigido dos sacerdotes

mas incluem relatos de controvérsia (Mc 2.15-17

no serviço do templo

Era necessário

par. Mt 9.9-13; Lc 5.29-32), as parábolas do rei­

o procedimento adequado para com a comida,

no (Lc 14.15-24 par. Mt 22.1-13; Ev To, 64), pro­

( N eusner ) .

dando o dízimo correspondente, preparando-a e

nunciamentos (Lc 7.36-50; 19.1-10), declarações

servindo-a, mas em si mesma ela não simbolizava

breves (Mt 8.11,12 par. Lc 13.28,29; 14.12-14), crí­

nenhum acontecimento (a Páscoa era exceção).

ticas de adversários (Mt 11.18,19 par. Lc 7.33,34)

Os fariseus não prescreviam nenhuma oração

e um sumário (Lc 15.1,2).

especial ou alimento incomum para as refeições,

Os estudiosos mostram-se intrigados com a

mas insistiam em que se comesse apenas na com­

estranha declaração de Jesus encontrada na fonte

panhia de pessoas com “mãos puras” (Mc 7.2-4),

dos Sinóticos

isto é, com pessoas em estado de pureza ritual

paralelo, Lucas 7.31-35. A forma em que a decla­

(q ),

em Mateus 11.16-19 e em seu

(cf. Êx 30.19-21). Os fariseus ansiavam por uma

ração aparece revela pouca ou nenhuma ideali­

época em que todo o Israel viveria em estado de

zação pós-ressurreição de Jesus. Por isso, parece

santidade. Acreditavam que a identidade e o futu­

apresentar um vislumbre autêntico do próprio

ro abençoado de Israel dependiam disso.

ambiente de Jesus, ao ressaltar a crítica do povo,

É nesse contexto que a prática da comunhão à mesa, uma comunhão radical e aberta, adotada

230

segundo a qual

J oão B atista

“tem demônio” e

Jesus é “glutão e bebedor de vinho, amigo de

C o m u n h ã o à m e sa : Evan gelho s

publicanos e pecadores”. A acusação contra João é sem igual no

Ademais, pode se apresentar um forte argu­

e parece estranha, à luz da lem­

mento a favor da historicidade da crítica de Je­

brança dos primeiros cristãos de que Jesus fora

sus aos relacionamentos humanos hierárquicos,

nt

acusado de ser possuído por demônio (Mc 3.22

encontrada em Marcos, no material peculiar a

par.). A acusação contra Jesus também não tem

Lucas e no material pecuUar a Mateus, e lembra­

paralelo e deve ter sido fonte de constrangimento

do na forma de pronunciamentos (Mc 9.33-37

para a igreja primitiva, especialmente porque o

par. Lc 9.46-48; Mc 10.42-45 par. Mt 20.25-28 e

insulto não é refutado na passagem.

Lc 22.24-30), parábolas (Lc 14.7-11; 18.9-14),

Em nenhuma outra tradição cristã a comunhão

declarações breves (Mt 23.11,12) e narrativa de

aberta à mesa, praticada por Jesus, é denunciada

gestos simbólicos e comentário (Jo 13.3-16). As

de modo tão contundente, e é possível que aqui

distinções da sociedade eram reforçadas por oca­

Jesus esteja ridicularizando seus contemporâneos

sião dos eventos sociais, de modo que o cenário

galileus pelas conclusões a que chegaram acerca

em que Jesus questionou essa prática social, isto

de João e dele próprio. Ao reproduzir o espírito

é, à mesa, enfatizado em Lucas 14.7-11 e 22.24-30

dos comentários do povo, expressos em forma de

e em João 13.3-16, por certo pareceu autêntico

insuhos claros e diretos contra si mesmo, Jesus

para os leitores no mundo antigo.

pode ter tido o propósito de desconcertar seus crí­ ticos

p.

D os

evangelistas, parece que Marcos e Lucas

Seja como for, as circunstân­

estão particularmente interessados no papel de

cias do Jesus histórico, não as das comunidades

refeições nas congregações de seus leitores. Ex­

cristãs pós-ressurreição, proporcionam o contexto

pressam essa preocupação apresentando as tra­

mais plausível para esse contundente jogo de pa­

dições acerca da crítica de Jesus contra posições

lavras. A favor dessa avaliação ocorre, na declara­

hierárquicas tradicionais nas refeições e sua co­

ção de Jesus, o uso peculiar de “amigo” {philos}.

munhão à mesa, caracterizada por uma inclusivi­

Em nenhuma outra passagem Jesus aparece em­

dade ofensiva, com ênfases singulares e notáveis.

(K o e n ig ,

2 3 ).

pregando o termo para se referir a si mesmo, nem a palavra é usada em qualquer outra acusação

3. Os hábitos de Jesus à mesa, de acordo

contra ele. Ser censurado como “amigo de publi­

com Marcos

canos” situa Jesus plausivelmente num contexto

Marcos apresenta os hábitos de Jesus à mesa

galileu, região onde a maioria do povo evitava os

como uma metáfora do discipulado cristão em

coletores de impostos de Herodes não tanto por

geral. A crescente incapacidade que os discípu­

causa da impureza ritual, porém mais por causa

los tinham de compreender o significado dessa

da reputação de serem desonestos, extorquindo

estratégia de Jesus simboUza o fato de eles não

ricos e pobres.

compreenderem a natureza de toda a missão de

Por esse motivo, é bem provável que Jesus te­

Jesus

(K lo sinsk i ) .

Para Marcos, a Última Ceia é a

nha se unido várias vezes a esses imorais, à mesa

refeição decisiva e crucial, em que o discipulado

e em outros lugares. E, na condição de alguém

entra em colapso. Marcos enfatiza que, juntos, o

que reivindicava falar em nome de Deus, a au­

governo de Deus e o discipulado cristão são uma

sência de discriminação era ofensiva à maioria

comunidade alternativa que praticava uma ética

do povo, que havia sido prejudicada por pessoas

social que solapava fronteiras e subvertia catego­

como Levi (Mc 2.13-17). Em sua mensagem e em

rias tradicionais de posição social e hierarquia.

sua prática à mesa, comendo com quem desejasse

Para essa comunidade, a virtude social básica era

estar à mesa com ele, Jesus questionou o papel

servir (que era o trabalho do escravo), simboliza­

fundamental desempenhado pela comunhão à

do no serviço uns aos outros numa mesa inclusi­

mesa, que era deixar claros os limites e as posi­

va em que o próprio Jesus era o exemplo maior

ções sociais, que, conforme se acreditava, eram

(Mc 10.43-45; cf. Jo 13).

sancionados por Deus. 0 uso da comunhão à

Marcos descreve vividamente a estratégia de

mesa como ferramenta divina para solapar limites

Jesus no relato sobre a comemoração que segue

e hierarquias o tornaram, aos olhos da liderança

a resposta positiva de Levi ao chamado que lhe

da época, um inimigo da estabihdade social.

faz Jesus para ser seu discípulo (Mc 2.15-17; cf.

231

C o m u n h ã o à m e s a : E van gelho s

juntos, Jesus e o traidor umedeceram cada um

Mt 9.10-13; Lc 5.29-32). Nesse banquete (o grego de Marcos debca implícito que estavam reclinados

seu pedaço de pão na tigela comum; Judas, não

para uma refeição formal), Jesus e seus seguido­

Jesus, tirou a mão da mesa

res, que “eram em grande número” , cruzaram

única refeição em que, na narrativa de Marcos,

barreiras sociais significativas ao comer com

Jesus e os Doze celebram sozinhos, todos segui­

“muitos publicanos e pecadores” , provocando

ram Judas ao tornar o pão do perdão no pão de

uma crítica feroz por parte dos escribas e dos

deserção. Só as mulheres, inclusive a discípula

fariseus [também teriam sido convidados?). Isso

anônima que ungiu Jesus para seu sepultamento

constitui o contexto para a observação genérica,

enquanto ele estava reclinado à mesa na casa de

feita por Jesus, de que “ os sãos não precisam de

Simão, o leproso, permaneceram fiéis (Mc 14.3-11;

(B a r tc h y ,

p. 56). Na

médico, mas sim os doentes; eu não vim chamar

15.40,41). Para Marcos e sua comunidade, o dis­

justos, mas pecadores”.

cipulado fiel é aquele que entende o que movia Jesus quando partilhou o pão à mesa e vive de

Em Marcos 7.1-23, os fariseus acusam alguns discípulos de Jesus de comer com “mãos impu­

acordo com sua prática de serviço.

ras” e, presumivelmente, de não se importar se as mãos de alguns companheiros de mesa estavam

4. Os “banquetes” abertos de Jesus, de

sem lavar, ou seja, de praticar a comunhão aberta

acordo com Lucas

à mesa e ignorar os limites estabelecidos pelas

Lucas dá atenção à etiqueta e à comunhão à mesa

tradições dos anciãos. Jesus defende a prática dos

e às casas em que as refeições eram feitas mais

discípulos, alegando que a pureza ritual do corpo

que qualquer outro autor do

ou do aUmento é irrelevante para Deus. A ques­

g elh o de )

tão importante é como a pessoa trata os outros.

mento de comida como ocasiões que revelam o

No entanto, os discípulos são apresentados como

contraste acentuado entre a inclusividade radical

nt

(v.

L ucas, E van­

. Ele realça a hospitalidade e o partilha-

pessoas resistentes, que não aprendem a lição,

da missão de Jesus e os vários graus de exclusi­

exigindo instrução especial (Mc 7.17-19).

vidade exigidos por aqueles que competiam com

Relacionado tematicamente a essas passa­

ele pela renovação de Israel, os fariseus e os es­

gens está 0 relato da alimentação dos cinco mil

cribas, que repetidas vezes acusaram Jesus, di­

(Mc 6.30-44; Mt 14.13-21; Lc 9.11-17; Jo 6.5-13),

zendo: “Este recebe pecadores e come com eles”

a única tradição de um milagre atribuído a Je­

(Lc 15.1,2).

sus que aparece nos quatro Evangelhos (v. tb.

Entre os estudiosos que têm pesquisado o as­

a alimentação dos quatro mil em Mc 8.1-9 par.

sunto das refeições no mundo antigo, criou-se o

Mt 15.32-39). Comum aos quatro autores, ha­

consenso de que a forma singular em que Lucas

via uma tradição que se tornou extraordinária

apresenta Jesus como mestre nesse contexto foi

em razão do grande número que participou da

influenciada pelo fato de o Evangelista estar cien­

abundância inesperada de alimento, sendo Jesus

te da tradição de banquetes, que era popular na

o anfitrião. A comida foi partilhada com todos os

literatura greco-romana

presentes, sem limites ou testes de pureza. Pecu­

com essa tradição, que tinha os Banquetes de Pla­

Uar a Marcos é a aparente intenção de associar

tão e de Xenofonte como arquétipos, o banquete

a alimentação dos cinco mil e a dos quatro mil

era a festa para se beber e conversar, que vinha

com a refeição final de Jesus com seus discípulos,

logo após a refeição formal. Era a oportunidade

(S m it h ,

1987). De acordo

como sugere o ato de Jesus “abençoar, partir e

não apenas de comer com seus iguais, mas tam­

distribuir” o pão nas três passagens.

bém de contar histórias engraçadas e tratar de

Na apresentação da IJltima Ceia em Marcos

assuntos sérios de interesse mútuo. Muitos lei­

(Mc 14.18-25), a crescente incapacidade que os

tores de Lucas devem ter participado de banque­

discípulos tinham de entender Jesus e sua missão

tes, que constituíam a principal atividade social

culmina com a traição. Nessa última oportunidade

de grupos como os populares clubes funerários,

de comunhão à mesa antes da crucificação, Jesus

as associações comerciais e as escolas filosóficas.

continuou a praticar o perdão que já caracteri­

Nas refeições formais, os participantes, instala­

zava seus hábitos à mesa. Marcos ressalta que.

dos em poltronas geralmente dispostas em “U”,

232

CoM U NH Ào À m esa: E v a n g e lh o s

o triclínio, reclinavam-se ao redor de uma mesa

uma refeição tensa, é a presença de uma mulher

central. Uma vez que o lugar ocupado pela pes­

descrita como “pecadora” , que entrou sem ser

soa à mesa revelava sua posição social em relação

convidada por Simão, o fariseu. 0 texto apresenta

aos demais convidados, o anfitrião tomava todo o

Jesus e Simão discordando fortemente a respeito

cuidado na hora de distribuir os lugares de honra,

da presença dela, se era apropriada ou não. Ela

principiando pela direita da entrada.

se sentia à vontade na companhia de Jesus, que

Lucas 14.7-11 apresenta Jesus reclinado (o

perdoara seus muitos pecados, e o cercava de

grego de Lucas deixa implícita uma situação de

atenção, tratando-o de um modo que evidenciava

banquete formal) e ensinando ã mesa de um fari­

o fato de Simão haver debcado de demonstrar as

seu, cujos muitos convidados haviam buscado as

marcas costumeiras de hospitalidade. Tendo em

posições de honra. Nessa parábola, exclusiva de

vista a Usta singular, que vem logo em seguida,

Lucas, Jesus aconselha os convidados a não bus­

na qual aparecem os nomes de Maria chamada

car homa, mas deixá-la para outros, “pois todo

Madalena, Joana, Susana e “muitas outras” mu­

o que a si mesmo se exaltar será humilhado, e

lheres, tanto na condição de mantenedoras do

aquele que a si mesmo se humilhar será exalta­

ministério itinerante de Jesus na Galileia quanto

do” (Lc 14.11), uma declaração que Mateus 23.12

na de companheiras de viagem (Lc 8.1-3), é pro­

e Lucas 18.4 apresentam em outros contextos. A

vável que o objetivo de Lucas aqui seja desta­

estrutura de Lucas sugere influência adicional do

car que, à sua mesa, Jesus dava as boas-vindas

banquete (gênero literário), não apenas na am-

a todo tipo de mulher (v.

bientação de um diálogo (Lc 14.7,12,15), mas

também o relato exclusivo de Lucas, em que ele

também na menção específica ao anfitrião, ao

apresenta Jesus dando as boas-vindas a Maria

convidado de honra e ao orador principal (Jesus),

como sua discípula no contexto de uma refeição

aos convivas convidados e aos não convidados

que estava por ser servida (Lc 10.38-42).

m ulheres).

Observe-se

A ordem do padrão do banquete parece estar

(Lc 14.13,23,25; 15.1). Talvez a prova mais notável do interesse de

invertida na ceia pós-ressurreição que Jesus tem

Lucas na forma do banquete é a cena em Lu­

com dois discípulos em Emaús (Lc 24.13-35),

cas 22.24-27 para a tradição anti-hierárquica

pois, embora o relato da refeição mostre que se tra­

encontrada em Marcos 10.35-45. Enquanto está

tava do momento em que se reclinavam, o discur­

reclinado com os discípulos, por ocasião da Úl­

so veio primeiro, enquanto estavam na estrada. E,

tima Ceia, Jesus lhes dirige palavras fortes sobre

conquanto os dois tivessem convidado a Jesus, ele

quem dentre eles devia ser considerado o maior e

rapidamente se tornou o anfitrião. Lucas buscou

pergunta: “Pois quem é maior? Quem está ã mesa

tanto em Marcos quanto na fonte dos Sinóticos (q)

ou quem serve? Não é quem está à mesa? Eu,

tradições sobre o hábito de Jesus comer com “pu­

porém, estou entre vós como quem serve”. Com

blicanos e pecadores” e desenvolveu esse tema ao

essas palavras, Lucas por certo pretendia motivar

caracterizar todo o ministério de Jesus como uma

seus leitores a modificar seus próprios hábitos

missão especial aos pobres, cativos, cegos, oprimi­

tradicionais à mesa.

dos e marginalizados da sociedade.

Lucas 7.36-50 e 11.37-52 fornecem dados adi­

Lucas emprega especialmente o imaginário

cionais acerca da ênfase helénica às refeições

das refeições como importante meio de transmitir

como contexto para o ensino de Jesus, descreven­

as boas-novas de Jesus. Elementos centrais desse

do mais duas ocasiões em que Jesus se rechnou

tema são recordados no relato lucano exclusivo

à mesa e ensinou na casa de um fariseu. Lucas

do incidente em que Jesus come com Zaqueu,

emprega esses cenários para tornar ainda mais

apresentado ao mesmo tempo como “chefe de

vívido 0 contraste entre a mensagem radicalmen­

publicanos” e como “pecador” (Lc 19.1-9) num

te inclusiva de Jesus, reforçada por seus hábitos à

cenário que, provavelmente, teve o propósito de

mesa, e os limites absolutos de pureza estabeleci­

lembrar o leitor da notável refeição inclusiva de

dos pelos fariseus e escribas às próprias refeições.

que Jesus participou na casa de Levi (Lc 5.27-32).

Peculiar ao cenário da tradição especial de

E, na apresentação lucana do grande banquete

Lucas 7.36-50 (mas v. tb. Mc 14.3-9), em que há

(Lc 14.15-24), uma parábola baseada na fonte

233

C O R ÍN TIO S , CARTAS AOS

dos Sinóticos, estão entre os convidados de Jesus

Jesus. Ed. rev. New York: Scribner’s, 1966. Reim-

à mesa, sob a autoridade divina, "os pobres, os

pr. Philadelphia: Fortress, 1977. ■ K lo sinsk i , L. E.

aleijados, mancos e os cegos” (a versão de Ma­

The meals in Mark. 1988. Dissertação. (Ph.D.)

teus, em Mt 22.10, menciona convidados “tan­

Claremont Graduate School, 1988. ■

to maus quanto bons”). A ênfase de Lucas foi,

New Testament hospitality. Philadelphia: Fortress,

K o e n ig ,

J.

provavelmente, difícil de engolir pela elite cristã

1985. ■ M o x n es , H. Meals and the new community

de seus leitores, pois a participação numa comu­

in Luke,

nidade assim socialmente inclusiva pode muito

Two pictures of the Pharisees: philosophical cir­

bem tê-los arrancado das redes sociais de que

cle or eating club?

participavam anteriormente e das quais dependia

N ey r ey ,

sua posição social. Da perspectiva conjunta de

meals and table-fellowship. In:

Atos e Lucas, Deus quer que a nova comunidade

The social world o f Luke-Acts. Peabody: Hendri­

sea, v

.

51, p. 158-67, 1986. ■ N eu s n e r , J. a tr, v .

64, p. 525-38, 1982. •

j. H. Ceremonies in Luke-Acts: the case of N eyr ey ,

J. H., ed.

ofereça reconciliação e solidariedade entre judeus

ckson, 1991. p. 361-87. ■ S m it h , D. E. From sym­

e gentios, homens e mulheres, ricos e pobres.

posium to eucharist. Minneapolis: Fortress, 2003.

5. Conclusão

the Gospel of Luke,

Aparentemente, um dos objetivos da estratégia

______ . The historical Jesus at table. In:

de Jesus com a comunhão inclusiva à mesa era

J., org. Society o f Biblical Literature 1989 Seminar

apresentar a si mesmo e a seus seguidores como

Papers. Atlanta: Scholars, 1989. p. 466-89.

■ ______ . Table fellowship as a literary motif in jb l, v .

106, p 613-38, 1987. ■

uma parábola viva de como um Israel renovado

L ull,

D.

S. S. B artchy

podia, de fato, viver unido com base na abun­ dância divina

(K o e n ig ,

p. 28). Jesus apresentou o

C o m u n id a d e j o a n in a .

Ver JoÃo,

C artas d e .

governo de Deus, empregando imagens de comi­ da, bebida e lar como um salão de banquete iti­

C o n v e r s Ao e c h a m a d o d e P a u l o .

nerante, para o qual Deus procurava os israelitas,

são

Ver

P aulo, conver­

E CHAMADO DE.

primeiro como convidados e depois como anfitri­ ões. À mesa, ofereceu-se a eles reconciliação com

CORÍNTIOS, CARTAS AOS

Deus, um verdadeiro lar e abundância espiritual

As Cartas aos Corintios representam pelo me­

e material. Assim, poderiam oferecer todas essas

nos duas das quatro ou mais cartas que Paulo

benesses uns aos outros, a outros que ainda vi­

escreveu à sua igreja em Corinto, com as igrejas

riam e até mesmo aos inimigos. Uma declaração

da região da Acaia, que cercava essa importante

de Jesus, provavelmente preservada na fonte dos

cidade romana (ICo 1.2; 2.1; cf. Rm 16.1). Na

Sinóticos, associava a prática da comunhão in­

condição de fundador da igreja (ICo 4.14,15;

clusiva à mesa com a consumação final: "Digo-

2Co 10.13,14), Paulo conhecia bem a história,

vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente

a natureza e os problemas da igreja. Temos em

e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e

ICoríntios o exemplo mais detalhado dentro do

Jacó no reino do céu” (Mt 8.11 par. Lc 13.29; cf.

corpus paulino de como Paulo aplicava suas con­

Is 25.6-8).

vicções teológicas, especialmente a cr istolo gia e a

Ver também

p ec ad o r es ;

r iquezas

e

p o b r e za ;

ESCATOLOGIA,

às questões práticas com que a igreja

se defrontava. Em contraste, em razão das cir­

Ú lt im a C e i a .

cunstâncias que mais tarde surgiram em Corinto, BiBLioGRAnA. B a r t c h y ,

S. S. Table fellowship with

Jesus and the “ Lord’s meal” at Corinth. In:

com a chegada de alguns adversários de Paulo,

O w ens,

2Coríntios contém, entre todas as cartas de Paulo,

orgs. Increase in learning: essays

a mais firme defesa de sua autoridade apostólica.

in honor of James G. Van Buren. Manhattan: Ma­

Além disso, as duas cartas tratam da coleta para

nhattan Christian College, 1979. p. 45-61. ■ B or g ,

os santos de Jerusalém, que era muito importante

M. J. Conflict, holiness and politics in the tea­

para Paulo (ICo 16.1-9; 2Co 8 e 9).

R. & H a m m ,

B .,

chings o f Jesus. New York: Edwin Mellen, 1984.

1. Conteúdo de ICoríntios

p. 71-143. ■ Jer em ia s ,

2. Conteúdo de 2Coríntios

J.

The eucharistic words of

234

CO R ÍN TIO S, CARTAS AOS

3. Corinto e seus cidadãos

A despeito dos problemas vigentes entre os co­

4. A igreja e seu apóstolo

ríntios, Paulo começa expressando sua gratidão

5. Algumas questões cruciais

a Deus pela suficiência dos dons espirituais que

6. Temas teológicos de 1 e 2Corintios

possuíam (i.e., a expressão concreta da graça de Deus concedida a eles), visto que Paulo está, des­

1. Conteúdo de ICoríntios

sa forma, seguro de que Deus chamou de modo

1.1 A saudação. A saudação de Paulo em ICoríntios 1.1-3 é típica de

irrevogável os coríntios e, portanto, os susterá

antigas pelo fato de

fielmente até o dia do juízo. Por essa razão, o

identificar o remetente e, então, os destinatários,

problema dos coríntios não é a questão dos dons

após o que é feita uma saudação. A saudação de

espirituais em si, mas a atitude que tinham diante

Paulo em ICoríntios é, no entanto, distinta, pois

dos dons e o uso que deles faziam (cf. ICo 12—

cartas

estende a identificação do remetente (Paulo e

14). Fica evidente que os coríntios estão se van­

Sóstenes) e dos destinatários (a igreja em Corin­

gloriando do próprio chamado e dos dons ( =

to, “com todos os que em todo lugar invocam o

graça), pelos quais somente a Deus é que se deve

nome de nosso Senhor Jesus Cristo” , ICo 1.2). De

agradecer (ICo 1.26-32; 4.7).

um lado, a autoria conjunta de uma carta antíga

1.3

Respostas aos relatos acerca de Corin­

é rara. Não temos certeza de quem era Sóstenes

to. O corpo da carta inicia em ICoríntios 1.10

(cf. 0 “ Sóstenes” de At 18.17, que é o dirigente da

e introduz a primeira grande seção (ICo 1.10—

sinagoga de Corinto) ou sua contribuição para a

6.20). Essa seção contém as respostas de Paulo

carta, pois no transcorrer de ICoríntios fica claro

às questões que ouviu de pessoas “da família de

que só Paulo está falando. Além do mais, a posi­

Cloé” (ICo 1.11; i.e., um grupo, muito provavel­

ção de Paulo como “apóstolo de Jesus Cristo” é

mente de Éfeso, que estava em contato com a si­

distinta da pessoa de Sóstenes, que é identificado

tuação de Corínto) e também de outros relatos

apenas como “irmão” (ICo 1.1). De outro lado,

orais (ICo 5.1; cf. ICo 16.15-18). Nessa primeira

temos aqui a mais longa e ampla identificação

grande seção, Paulo também procura esclarecer

dos destinatários nas cartas de Paulo. 0 apóstolo

0 equívoco que os coríntios cometeram na lei­

indica que entende ser a igreja em Corinto o cen­

tura da carta anterior que lhes havia enviado

tro de um agrupamento de igrejas nas casas na

(ICo 5.9,11). Na primeira unidade dessa seção (ICo 1.10—

região ao redor. Contudo, são mais notáveis na saudação as

6.20), Paulo trata das causas da dissensão e da

duas orações explicativas, que apresentam o mo­

rivalidade que haviam tomado corpo entre alguns

tivo geral de Paulo escrever (i.e., porque, pela

coríntios, por causa da lealdade que devotavam a

vontade de Deus, foi chamado para ser apóstolo

vários líderes cristãos, inclusive Paulo, e também

de Cristo Jesus) e de escrever aos coríntios (i.e.,

apresenta a solução para o problema. (Identificar

porque eles também foram chamados para serem

divisões ou “partidos” reais dentro da igreja é for­

“ santos” como indivíduos “santificados em Cristo

çar a interpretação de ICoríntios 1.10-12.) As mui­

Jesus”). Nos dois casos, o fato de a saudação es­

tas tentativas de verificar a origem e a perspectiva

tar centrada em Cristo aponta para o fundamento

teológica distintiva dos que afirmavam pertencer

cristológico dos argumentos de Paulo em 1Corín­

a Paulo, Apoio, Cefas e, mais geralmente, a Cristo (ICo 1.12) não têm sido bem-sucedidas. Também

tios. A oração/desejo de ICoríntios 1.3, “graça uma forma cristianizada

fracassou a tentativa, primeiramente proposta

e uma ampliação da saudação típica usada em

por F. C. Baur, de ler esse texto como prova de um

cartas antigas: “saudações

conflito disseminado dentro da igreja primitiva

[ch a ris]

a vós”

[ara), é

[ch a irein ]

a vós”.

1.2 Ação de graças na abertura. De novo, de

entre Pedro, que representava os judeus cristãos,

acordo com seu costume, após saudar os destina­

e Paulo, que representava os gentios.

tários, Paulo dá graças pela sua igreja, em ICo-

Contudo, pode se dizer com certeza que o

ríntios 1.4-9. Mais que uma simples expressão

problema era que os coríntios tinham uma com­

espontânea de louvor pessoal, a ação de graças

pulsão por poder, prestígio e orgulho, representa­

introduz o tema central da carta como um todo.

dos na tradição retórica helenista, com sua glória

235

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

na sabedoria e realização humanas e no corres­

pai, excomungando-o com o objetivo de, no final,

pondente estilo de vida escandaloso e extrava­

alcançar sua restauração (ICo 5.3-5). Em segui­

gante. É essa “ sabedoria de palavra” dos gregos

da, Paulo deixa claro que a nova condição que

(ICo 1.17,20,26; 2.1; 3.19) que Paulo combate,

se tem em Cristo e a adoração que é oferecida

chamando a atenção para a “ sabedoria” e o

a ele exigem pureza e separação correspondente

“ poder” opostos de Deus que se manifestaram

não do mundo, mas dentro do mundo (ICo 5.6-

primeiramente na cruz de Cristo (ICo 1.18-25),

13), pois “ os injustos não herdarão o reino de

então no chamado aos coríntios (ICo 1.26-31)

Deus” (ICo 6.9). A atual condição dos coríntios,

e, finalmente, na natureza intencional do mi­

que foram justificados e santificados em Cristo,

nistério de Paulo e seu modo de vida apostólico

deve resultar numa vida de obediência crescente

(ICo 2.1-5; 4.1-13).

às exigências de Deus, pois eles são o templo do Espírito de Deus (ICo 6.11,12-20). Embora para

No entanto, uma vez que “a palavra da cruz ;

0 crente todas as coisas sejam “permitidas”, o

cf. ICo 2.14), só aquele cujo coração foi trans­

Espírito não hbera o cristão do chamado à san­

formado pela operação do Espírito será capaz de

tidade nesta era, antes o libera para a santidade

aceitar a sabedoria e o poder verdadeiros de Deus,

(ICo 6.12).

é loucura para os que se perdem” (ICo 1.18,

ara

conforme revelados no evangelho (ICo 1.20-24;

Em meio a essa discussão, Paulo trata do fato

2.6-16). Por esse motivo, Paulo adverte os corín­

de que os coríntios estão buscando resolver suas

tios de que o fato de se orgulharem de si mesmos

disputas nos tribunais seculares. Aqui também a

e de seus vários líderes espirituais é um sinal pe­

espiritualidade dos coríntios deve torná-los capa­

rigoso de que o Espírito não está prevalecendo na

zes de expressar a sabedoria de Deus, em vez de

vida deles, pois estão agindo como a pessoa que

permitir que capitulem diante do mundo, espe­

ainda é “natural” ou “não espiritual” (ICo 2.14—

cialmente quando estão sendo preparados como

3.4). Caso tal atitude e respectivo comportamen­

povo de Deus para participar do juízo derradeiro

to continuem a existir, os coríntios também serão

de Deus sobre o mundo (ICo 6.1-6). E, na hi­

alvo do juízo de Deus, que destruirá a sabedoria

pótese de que não se possa chegar a nenhum

deste mundo e todos os que agem para destruir

acordo, os que são espirituais devem estar dis­

a igreja, que é templo do Espírito, construída

postos a sofrer injustamente o dano por amor a

sobre o alicerce da cruz de Cristo (ICo 1.19,20;

Cristo (ICo 6.7,8). Como se vê claramente em

3.10-23). Por isso, os coríntios devem se arrepen­

ICoríntios 8.1— 11.1 e no capítulo 13, esse é o

der de sua arrogância, reconhecer que tudo que

verdadeiro caminho do amor como o de Cristo, a

possuem é uma dádiva e seguir o padrão de seu

verdadeira expressão do poder, maturidade e ha­

apóstolo, cuja vida de fraqueza e sofrimento ma­

bilidade espirituais.

nifesta 0 poder do reino de Deus e a realidade da cruz (ICo 1.31; 2.3-5; 4.6-13,14-21).

1.4

A reação de Corinto em relação à car­

ta. Principiando com ICoríntios 7.1, Paulo volta

A mesma arrogância e a competição espiritual

sua atenção para as questões acerca das quais os

baseada nos dons espirituais e nos líderes de cada

coríntios haviam recentemente escrito a Paulo,

um, que alguns coríntios haviam unido a uma

pedindo que esclarecesse suas ideias e as impli­

vanglória com os feitos da sabedoria helenista

cações dessas ideias. 0 tratamento que Paulo dis­

(IC o 1.10—4.21), também se haviam manifes­

pensa a esses assuntos constitui a segunda grande

tado na forma de imoralidade flagrante dentro

seção da carta, que vai até ICoríntios 16.12 (cf.

da igreja e de ações judiciais entre irmãos da

0 emprego repetido da fórmula “ quanto a” em

igreja (ICo 5.2,6; 6.9). Em ICoríntios 5.1—6.20,

ICo 7.1; 8.1; 12.1; 16.1,12).

Paulo agora trata desses problemas e dos moti­

Em ICoríntios 7.1-40, Paulo analisa o casa­ mento e 0 celibato. Ele está ciente das tensões

vos subjacentes. No primeiro caso, Paulo responde exercen­

e ansiedades que resultam de viver numa era

do sua autoridade. Com a cooperação e o con­

maligna entre a primeira e a segunda vindas de

sentimento da igreja de Corinto, ele disciplina o

Cristo (ICo 7.25-35) e também das necessida­

homem que está vivendo com a esposa de seu

des e desejos físicos e emocionais que Deus deu

236

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

ao seu povo (ICo 7.1-5,36,38]. 0 fundamento

0 treinamento para o amor de que todos devem

da instrução paulina é, mais uma vez, o papel

participar, os quais, à semelhança de Paulo, são

determinante que o chamado e a capacitação

chamados a perseverar no autocontrole a fim de

divinos desempenham na vida de alguém (cp.

buscar o prêmio do evangelho (ICo 9.23-27).

ICo 7.15,17-24 com ICo 1.26-31). Embora Paulo

Em ICoríntios 10, Paulo passa a advertir os

prefira ser solteiro como o modo de vida mais

crentes de Corinto acerca do que acontecerá se

adequado para servir a Deus (ICo 7.8,32-34,38),

deixarem de perseverar em amor e usarem mal

o objetivo é viver, como casado, viúvo ou sol­

seu conhecimento e sua experiência, como pre­

teiro, no tipo de devoção ao Senhor que tanto

texto para praticar continuadamente a imoralida­

corresponde ã obra de Deus na vida da pessoa

de e o mal (ICo 10.11,12). A exemplo de Israel

quanto reflete o caráter de Deus (ICo 7.19,20,35).

no deserto, eles serão destruídos (ICo 10.1-10).

Em ICoríntios 8.1— 11.1, Paulo trata os pro­

Na verdade. Deus preparou um meio de esca­

blemas que surgiram pelo fato de os mais instruí­

pe mesmo da tentação mais forte, de modo que

dos dentro da igreja estarem ingerindo comida

não há desculpa para não permanecer no amor

que foi sacrificada num templo pagão. Eles che­

produzido pela fé genuína (ICo 10.13). Como

garam à conclusão de que os ídolos não existem

amostra, Paulo apresenta parâmetros teológicos

(ICo 8.4-6). Mas seu comportamento se tornou

e conselhos práticos para lidar com a tentação de

pedra de tropeço para os que ainda não pensam

participar da comida oferecida a ídolos. Essa ten­

dessa maneira, corrompendo as consciências

tação era comum entre os coríntios em geral, para

mais fracas e destruindo sua fé (ICo 8.7,9,11,12).

quem era costume social comer nas dependên­

Paulo considera que, tendo por base os próprios

cias de templos pagãos. Mas Paulo adverte con­

direitos e conhecimentos, essa desconsideração

tra os perigos espirituais inerentes, raciocinando

para com o modo de pensar dos outros é um pe­

que, embora um ídolo não seja “nada”, quem

cado não apenas contra eles, mas também con­

participa da comida oferecida a ídolos está par­

tra Cristo. Aquele que verdadeiramente conhece

ticipando da mesa de demônios (IC o 10.14-30).

a Deus e é por ele conhecido empregará sua li­

Paulo finalmente retorna ao seu estilo apostó­

berdade e seu conhecimento com o propósito de

Uco de não procurar vantagens para si, mas de

edificar os outros na fé, ainda que isso implique

viver para agradar a outros por amor a Cristo

negar os próprios e legítimos direitos como crente

(ICo 10.31,32). Também nisso Paulo é um exem­

(ICo 8.1-3,13). Esse é "o amor [que] edifica” , não

plo para os coríntios, convidando-os mais uma

o conhecimento isolado, que apenas “ dá ocasião

vez a serem seus “imitadores” , assim como ele é

ã arrogância” (ICo 8.1).

de Cristo (ICo 11.1; cf. ICo 4.16).

Em apoio a essa ideia, Paulo ilustra o princí­

Em ICoríntios 11.2-34 e 12— 14, Paulo con­

pio do amor, chamando a atenção para a decisão

centra sua atenção em três questões sobre o

que tomou de se sustentar financeiramente du­

comportamento na adoração, comparado com

rante sua estada em Corinto (ICo 9.1-27). Embo­

0 de Cristo: 1) o relacionamento entre homens

ra os coríntios aceitassem Paulo como apóstolo

e mulheres na adoração conforme expresso na

(ICo 9.1,2), outros o criticavam por não exercer

prática cultural do uso do véu pelas mulheres

seu legítimo direito apostóUco de receber sustento

[ICo 11.2-16; ao contrário da resposta que ofe­

financeiro (ICo 9.3-14), mesmo quando isso sig­

rece aos dois problemas seguintes, aqui Paulo

nificou privações e sofrimentos excessivos para

elogia os coríntios e escreve tão somente para

ele (ICo 4.11-13). A resposta de Paulo é que ele

lhes dar uma base teológica à sua prática); 2) o

abrira mão de seus direitos como apóstolo por cau­

enquadramento das distinções de classe estabe­

sa do progresso do evangelho e pela recompensa

lecidas por eles durante a celebração da

que Deus havia prometido por tais atos de amor

Senh or

c eia do

como abuso do significado desse evento

(ICo 9.15-18). Desse modo, Paulo se faz “escravo

(ICo 11.17-34); 3) o devido uso da profecia e de

de todos para ganhar o maior número possível”

línguas na adoração (ICo 14.1-40), tendo como

(ICo 9.19), embora seja livre para agir de acordo

fundamento a importância dos dons espirituais

com 0 que for mais apropriado em Cristo. Esse é

237

em geral (ICo 12.1-31).

V w UK lI N Il Ui , L A K I A b A UÍ )

Observando-se os argumentos que Paulo apre­

para a morte e ressurreição de Cristo como o

senta até aqui em ICoríntios, não é de surpreen­

ponto central do evangelho, o qual Paulo havia

der que em cada um desses casos a abordagem

recebido como a tradição comum da igreja e, en­

de Paulo seja deixar claro que a verdadeira espi­

tão, transmitido aos coríntios como a base para a

ritualidade e a verdadeira realidade dos dons não

salvação deles. Esse é o relato mais antigo que te­

são compatíveis com vanglória e a competição

mos do esboço da mensagem cristã primitiva e de

arrogante baseadas na função que alguém exerce

seu fundamento histórico. Paulo suplementa esse

no

na sociedade nem com o

fundamento com a narração de outras aparições

hábito de exibir seus dons diante dos outros (cf.

do Jesus ressurreto. Ele conclui com a experiên­

ICo 11.18-22; 12.14-26; 14.6-12). A espiritualida­

cia que ele mesmo teve com o Cristo ressuscitado

de genuína manifesta-se na interdependência e

e as consequências dessa ressurreição para sua

complementaridade tanto de homens e mulheres,

vida de “ o menor dos apóstolos” (ICo 15.9-11).

coRPO DE C risto o u

tendo em vista seus papéis distintos, quanto da­

Ao se dirigir aos coríntios com base na

ressur­

queles que, dentro da igreja, detêm os vários dons

r e iç ã o

espirituais. Os mesmos princípios também devem

tríplice. Primeiro: ninguém pode concluir que não

se manifestar na questão da diversidade cultural

existe ressurreição dentre os mortos (ICo 15.12-

de Cristo, Paulo estabelece um significado

e das diferenças econômicas (cf. ICo 11.11,33,34;

19,29-34). Segundo: a ressurreição de Cristo são

12.4-31; 14.26-40). E, em cada caso, essa espiri­

as “ primícias”

tualidade prática está alicerçada na teologia, seja

que estiverem “em Cristo” por ocasião da sua se­

a obra criadora de Deus (ICo 11.2-16), seja a obra

gunda vinda, quando “o último inimigo”, a morte,

(ar a)

do que acontecerá a todos

redentora de Cristo (ICo 11.17-34), seja a dádiva

for destruído e todas as autoridades forem outra

dos dons do Espírito (ICo 12— 14).

vez postas em sujeição ao reino de Deus. Por isso,

Finalmente, como o “caminho sobremodo excelente”

[ara]

esboçado em ICoríntios deixa

ao contrário da convicção dos coríntios, segundo a qual na vida que viviam no Espírito já estavam

claro, 0 critério para determinar a aplicação apro­

experimentando a plenitude da era vindoura da

priada dessa teologia é o do amor, cujo caráter é

ressurreição (e.g., sua escatologia plenamente

resumido em ICoríntios 13.4-7 (cf. sua aplicação

realizada), a ressurreição final não é de modo

em ICo 12.4-11; 14.6-19). Por conseguinte, se a

algum uma simples experiência de poder e ca­

fé em Cristo não estiver se expressando em amor

pacitação espirituais no presente (ICo 15.20-28),

pelo corpo de Cristo, nem a participação na ceia

e sim uma existência corpórea qualitativamente

do Senhor nem a notória posse de dons espiri­

diferente, que só pode ser obtida mediante a ou­

tuais garantem que a pessoa esteja numa posição

torga de um novo corpo, ressuscitado e espiritual

correta diante de Deus. Na verdade, ela estará sob

(ICo 15.35,36). Terceiro: agora os crentes vivem

o juízo de Deus (cf. ICo 11.16,27-32; 14.37,38),

entre as duas ressurreições, a de Cristo e a deles

visto que só o amor, na condição de expressão

próprios. Vivem numa era que ainda é maligna,

exterior de fé e esperança, permanece para sem­

mas que pode ser suportada e superada median­

pre (ICo 13.1-3,8-13). Dessa forma, Paulo pode

te a confiança segura de que, por estarem “em

admoestar os coríntios, que se orgulham de seus

Cristo”, participarão da experiência e vitória da

dons e experíências espirituais, e dizer-lhes: “Já

ressurreição que ele, como o Último Adão, ob­

que estais desejosos de dons espirituais, procurai

teve sobre a morte (ICo 15.42-54). A implicação

desenvolver os que servem para a edificação da

prática dessa esperança é que os crentes são en­

igreja” (ICo 14.12).

corajados a serem “ firmes e constantes, sempre

Paulo inicia a carta fundamentando sua seção inicial na cruz de Cristo (ICo 1.18-25) e agora con­

atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil” (ICo 15.58).

clui sua aplicação de verdades teológicas a pro­

Como último dos assuntos tratados na Primei­

blemas práticos, tratando em ICoríntios 15.1-58

ra Carta aos Coríntios, Paulo conclui suas respos­

da certeza e da natureza da ressurreição futura

tas, esboçando algumas instruções a respeito da

em face da ressurreição de Cristo. Primeiramen­

administração da coleta que está sendo levan­

te, Paulo chama a atenção, em ICoríntios 15.1-5,

tada a favor dos crentes pobres de Jerusalém,

238

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

mencionando seus planos de viagens futuras,

parte de 2Coríntios são patentes desde o início da

recomendando Timóteo e, por fim, apresentando

carta. Em contraste com a ação de graças inicial

uma rápida explicação para o motivo de Apoio

de Paulo na primeira carta (lCl.4-9), Paulo não

não visitar Corinto (ICo 16.1-12).

começa 2Coríntios agradecendo a Deus a obra di­

1.5

Observajções finais. A carta termina com vina de graça entre os coríntios, mas louvando a

uma série de admoestações e saudações finais da

Deus por consolar o apóstolo e livrá-lo da adver­

parte de Paulo e dos que estavam com o após­

sidade (2Co 1.3-11). Ao fazê-lo, Paulo emprega

tolo na Ásia (ICo 16.13-24). No que é um clí­

em 2Coríntios 1.3 uma fórmula típica da adora­

max apropriado para a carta, essas admoestações

ção judaica ( “Bendito seja Deus”) e que chama a

giram em torno da necessidade de perseverar

atenção para as bênçãos das quais ele participou.

na fé à medida que esta se concretiza em amor

Nas cartas de Paulo, as ações de graças têm a

(ICo 16.13,14) e do anúncio correspondente do

função de introduzir os temas principais sobre os

juízo de Deus contra aquele que “ não ama o Se­

quais irá escrever, para expressar sua maneira de

nhor”. Paulo então expressa seu anseio pela volta

vê-los e para apresentar a seus leitores um apelo

de Cristo (ICo 16.22).

implícito a que respondam.

2. Conteúdo de 2Coríntios

logético ao tema que vem em seguida: em vez

Assim, é 2Coríntios 1.1-11 que dá o tom apo­ 2.1 A saudação. Em 2Coríntíos 1.1,2 a sauda­

de pôr em dúvida o apostolado de Paulo, seu so­

ção segue o mesmo padrão de ICoríntios 1.1-3,

frimento consubstancia seu chamado. Deus cha­

embora a identificação do remetente e dos desti­

mou Paulo a sofrer a fim de que, por meio do

natários seja abreviada. É mais uma vez expressa

consolo misericordioso do poder sustentador de

a identidade apostólica de Paulo como resultado

Deus e do seu livramento definitivo, que Paulo

da vontade de Deus. Dessa vez, ressalta-se que

experimenta em sua aflição, ele seja capaz de tor­

Timóteo é o corremetente. No entanto, como no

nar conhecido ao mundo o poder e o consolo de

caso de Sóstenes, aqui também Timóteo é iden­

Deus (2Co 1.6,7,10). Dessa forma, Paulo pode in­

tificado apenas como “ irmão” , o que mais uma

terpretar seu sofrimento (= “morte”) em termos

vez realça claramente o ofício apostólico de Pau­

da morte de Cristo e seu livramento desse sofri­

lo. Ainda que tenha havido considerável deba­

mento como um tipo de ressurreição (2Co 1.9).

te sobre o uso da primeira pessoa do plural em

Dessa forma, o sofrimento e o livramento de Pau­

2Coríntíos 1— 7, na dúvida de que se refira a um

lo também se tornam um meio pelo qual a igreja

círculo mais amplo de colaboradores (cf., e.g.,

é encorajada a se manter fiel em meio à adversi­

2Co 1.19; 8.16-23), os indícios internos sugerem

dade (2Co 1.7). Sendo o veículo por meio do qual

que só Paulo é o sujeito e o objeto da discussão

se manifesta o consolo divino, o sofrimento de

ao longo de toda a carta, com exceção dos tex­

Paulo é, portanto, a marca de seu real chamado

tos em que há explícita indicação contrária (e.g.,

apostólico. Por isso, Paulo conclui a seção convi­

2Co 3.18; a palavra dirigida aos coríntios em

dando os coríntios a se unir a ele, agradecendo a

2Co 6.14— 7.1; 8—9). Os destinatários da carta

Deus 0 sofrimento e livramento do apóstolo, exa­

continuam sendo as igrejas nas casas em Corinto

tamente o que seus adversários afirmavam que o

e os crentes espalhados em pequenos grupos ao

desqualificava para o apostolado (2Co 1.11).

redor desse centro. A saudação também é a mes­ ma de ICoríntios.

2.3

A defesa de Paulo a favor de sua mu­

dança nos planos de viagem. Na primeira grande

2.2 Ação de graças na abertura. Ao contrário

seção da carta de Paulo, 2Coríntios 1.12—2.13,

da situação que enfrentou em ICoríntios, agora

Paulo explica a lógica da recente e inesperada mu­

Paulo se vê envolvido em nova polêmica, na qual

dança de seus planos de viagem (2Co 1.15,16).

sua legitimidade como apóstolo foi duramente

0 objetivo de Paulo é demonstrar que seu

questionada em Corinto e ainda está sendo posta

comportamento tem sido uma expressão de

em dúvida por uma minoria significativa dentro-

sinceridade de motivos que só Deus é capaz de dis­

da igreja (v. 4.2 abaixo). A controvérsia e o tom

cernir (2Co 1.12). Ao mesmo tempo, as ações de

apologético correspondente que caracteriza boa

Paulo não são resultado de “sabedoria carnal”

239

(2Co 1.12) nem das vacilações de alguém que

fé (2Co 2.9). Quem experimenta a misericórdia

faz planos “segundo a carne”. Isso pode ser refle­

divina não tem outra escolha senão estender mi­

xo de uma alegação, aparentemente feita pelos

sericórdia aos que pecaram contra ele, mas agora

adversários de Paulo, de que o apóstolo era cul­

se arrependeram. Paulo conclui a seção, portan­

pado de um golpe muito bem tramado, que en­

to, lembrando aos coríntios do propósito último

volvia enganar os coríntios com a coleta para a

de suas admoestações: impedir que Satanás use a

igreja em Jerusalém e a prática de pregar de gra­

situação contra a igreja (2Co 2.11).

ça (2Co 1.17; cf. 2Co 2.17; 7.2; 8.20,21; 11.7-11; 12.13-18).

Por fim, Paulo faz a transição para a divisão seguinte de sua carta, chamando a atenção para

Em 2Coríntios 1.15—2.4, a mensagem de

as mudanças mais recentes de seus planos. Quan­

Paulo é que sua decisão anterior de não visitar

do, ao contrário do combinado, Tito não chegou,

Corinto em sua viagem da Macedônia para Je­

Paulo não pôde usar as oportunidades de exercer

rusalém (cf. ICo 15.5-9) e a decisão posterior

seu ministério em Trôade e foi se encontrar com

de não voltar a Corinto segunda vez (2Co 1.23)

Tito na Macedônia (cf. 2Co 7.5-7), por causa de

foram ações de alguém que o Espírito “ selou” e

sua profunda preocupação com Tito e do since­

que, portanto, está agindo de modo semelhante a

ro desejo de ouvir as notícias que Tito ia trazer

Cristo. Sendo a plena concretização das promes­

de Corinto (2Co 2.12,13). Tendo em vista o que

sas de Deus (2Co 1.19,20), Cristo deixa claro que

diz 2Coríntios 11.28, essa ansiedade por seu “ir­

o propósito divino ao agir com seu povo é firmar

mão” e pelos coríntios foi mais uma expressão do

a misericórdia antes do juízo. Da mesma forma,

imenso sofrimento de Paulo como apóstolo. Essa

as mudanças nos planos de viagem de Paulo fo­

transição aparentemente insignificante leva-nos,

ram todas motivadas por seu desejo de estender

assim, de volta ao tema central da carta.

a misericórdia aos coríntios, a fim de operar a res­

2.4

Defesa contandente de Paulo a favor de

tauração deles, em vez de vir para executar juízo

sua autoridade apostólica. Em vez de questionar

(2Co 1.23,24). Paulo alterou seus planos de via­

a legitimidade de seu apostolado, o sofrimento de

gem a fim de dar aos coríntios uma oportunidade

Paulo, conforme relatado em 2Coríntios 2.12,13,

de arrependimento (2Co 7.8-13), decidindo não

leva-o mais uma vez a louvar a Deus em 2Corín-

retornar a Corinto depois de sua visita dolorosa

tios 2.14, assim como ocorre em 2Coríntios 1.3-11.

(“visitá-los com tristeza”), mas, em vez disso,

Além do mais, aqui também, em 2Coríntios 2.14,

escrevendo a “carta pesarosa” (2Co 2.1-5). Lon­

Paulo emprega uma fórmula típica judaica de

ge de ser expressão de comportamento carnal,

ação de graças ( “graças a Deus”), a fim de marcar

as mudanças dos planos de Paulo foram, desse

a introdução ao tema central da seção seguinte

modo, uma extensão da ação divina em Cristo.

(2Co 2.14— 7.16): “Mas, graças a Deus, que em

Em 2Coríntios 2.5-11, Paulo torna a concen­

Cristo sempre nos conduz em triunfo [thriambeuõ]

trar sua atenção naqueles coríntios que, como

à morte em Cristo e por meio de nós manifesta

resposta à “carta pesarosa” do apóstolo, já se ar­

em todo lugar o aroma do seu conhecimento” (v.

rependeram de sua deslealdade ao apóstolo (cf.

H afe m a n n

2Co 2.5,8,9; 7.7-16). Paulo os admoesta a que o

para uma defesa dessa tradução).

Assim como em ICoríntios 4.9 pôde descrever

sigam em suas pegadas. Assim como Paulo ha­

a si mesmo como alguém sentenciado à morte

via agido para estender a misericórdia aos corín­

por Deus na arena romana e em 2Coríntios 1.9

tios, estes também deviam estender misericórdia

como alguém que recebeu “a sentença de morte” ,

ao ofensor arrependido que havia causado tanta

Paulo agora apresenta seu sofrimento de após­

dor a Paulo. Devem recebê-lo de volta com boas-

tolo tomando como ilustração o cortejo triunfal

vindas, para que não seja “consumido por tris­

romano, em que os que foram feitos cativos pelo

teza excessiva” (2Co 2.7). Além do mais, assim

vencedor (como Paulo levado por Cristo) são

como as ações de Paulo para com os coríntios

conduzidos à morte como escravos (2Co 2.14).

demonstram sua autêntica postura apostólica,

Assim, Paulo encara seu sofrimento como o meio

a disposição deles de estender misericórdia a

divinamente orquestrado pelo qual o conheci­

esse indivíduo assume o caráter de um teste de

mento de Deus se revela no mundo. Tendo esse

240

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

texto como introdução, a seção apresenta a defe­

foi chamado da mesma forma que Moisés, então

sa mais detalhada que Paulo faz de seu ministério

como seu ministério é diferente do de Moisés?

apostólico. Aqui a defesa de Paulo é dirigida aos

Paulo responde a essa pergunta, estabelecendo

que questionaram seu apostolado por causa de

um contraste entre os acontecimentos de Êxodo

seu sofrimento (cf. 2Co 4.7-15; 6.3-10; 11.23-33),

32— 34, com sua importância para a compreen­

sua presença pessoal que causava pouco impacto

são da natureza e do propósito da antiga alian­

(cf. 2Co 10.10; ICo 2.1-5) e seu compromisso de

ça, e a nova aliança em Cristo. A ideia básica de

pregar o evangelho à própria custa. Seus adver­

Paulo é que, desde o início, a Lei teve a função

sários interpretaram tais coisas como sinais de

de “ matar” Israel, condenando o povo por cau­

inferioridade em seu apostolado, como indício

sa de sua pecaminosidade. Isso ocorreu não porque

de uma mensagem de pouca autoridade e como

a Lei era deficiente, mas porque a vasta maioria

parte de um estratagema de enganar os coríntios

de Israel se mostrou obstinada, de modo que

(2Co 2.17; 11.7-15; 12.13-19).

foi incapaz de cumprir a aliança (cf. Êx 32.1-10;

No centro da defesa que Paulo faz de si

33.3,5; 34.9). Como consequência, Israel não po­

mesmo está o duplo argumento de 2Corín-

dia suportar a glória de Deus sem ser destruído

tios 2.14— 3.6, com que defende sua aptidão e

(Êx 33.3,5). Por esse motivo, Moisés teve de se

ousadia como apóstolo. De um lado, Paulo afirma

cobrir com um véu — não porque a glória estava

que está qualificado para o chamado apostólico

se desvanecendo, mas para que os efeitos da gló­

(2Co 2.16) justamente porque sua vida apostólica

ria de Deus contra um povo obstinado pudessem

de sofrimento, como o meio de revelação do co­

ser contidos [katargeõ; 2Co 3.7,11,12, tendo em

nhecimento de Deus, opera no mundo o mesmo

vista Êx 34.29-35). Isso permitiria que a presença

efeito duplo que o apóstolo atribuiu ã palavra da

de Deus continuasse no meio de Israel, a despeito

cruz, em ICoríntios 1.18-25 (2Co 2.15,16). Além

da natureza obstinada do povo. 0 véu de Israel

do mais, ao contrário de seus adversários, por

torna-se, assim, uma metonímia que designa a

vontade própria Paulo tomou sobre si esse sofri­

dureza dos corações em Israel sob a antiga a l i a n ç a

mento, quando, como prova de sua sinceridade

(2Co 3.14,15).

e chamado divino (2Co 2.17), pregou de graça

A “ letra” [gramma] de 2Coríntios 3.6 é, por­

o evangelho. De outro lado, Paulo pode apontar

tanto, a Lei sem o poder do Espírito, a qual, por

os coríntios como prova concreta e adicional de

si mesma, pode apenas declarar a vontade de

sua quaUficação, visto que a conversão e a vida

Deus e pronunciar juízo por não realizar essa

deles no Espírito, causadas por Paulo, são teste­

vontade, mas é incapaz de dar a alguém forças

munhas da natureza genuína do ministério de

para obedecer a ela. Somente o Espírito de Deus,

Paulo no meio deles (2Co 3.2,3). Dessa forma,

que agora está sendo derramado na nova alian­

0 ministério de sofrimento de Paulo e o Espírito

ça como resultado da obra de Cristo, é que “ dá

se unem, apoiando a afirmação do apóstolo de

vida” (2Co 3.6) e opera a justiça (2Co 3.8,9).

que sua suficiência procede de Deus e que Deus

Por esse motivo, agora, “com o rosto descober­

0 fez ministro “ de uma nova aliança” do Espírito,

to” , os crentes podem, no Espírito, encontrar-se

cumprindo Ezequiel 36 e Jeremias 31 (2Co 3.4-6).

com a mesma glória de Deus com que Moisés se

Em 2Coríntios 3.7-18, uma das passagens

encontrou (2Co 3.16,17). Como resultado, em

mais complexas do corpus paulino, o apóstolo

vez de serem julgados e destruídos pela presen­

passa a comparar seu papel de apóstolo da “ nova

ça de Deus, são por ela transformados na imagem

aliança” estabelecida por Cristo com o papel de

de Deus (2Co 3.18). Enquanto Moisés teve de se

Moisés como mediador da “antiga aliança” esta­

cobrir com o véu (2Co 3.12,13), como apóstolo

belecida no Sinai. Tal comparação se torna ne­

da nova aliança Paulo pode ser ousado em seu

cessária pelo fato de que em 2Coríntios 2.16 e

anúncio do evangelho porque está confiante de

2Coríntios 3.5 a suficiência de Paulo como após­

que foi chamado para um ministério do Espírito

tolo se baseia em seu chamado de acordo com o

(2Co 3.8). Dessa forma, ã medida que o minis­

padrão do chamado de Moisés, conforme descrito

tério de Paulo intermedeia a glória de Deus para

em Êxodo 4.10

(l x x ,

ouk hikanos eimí). Se Paulo

241

aqueles que tiveram o coração transformado e.

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

por isso, não precisam ter o receio de ser destruí­

de que, no presente, ele tem o Espírito Santo

dos, seu ministério vai “eclipsando” o da antiga

(2Co 5.5). Essa confiança leva o apóstolo não

aliança [2Co 3.10,11).

apenas a ansiar corajosamente que isso se torne

Em ICoríntios 4.1-6, Paulo chega à necessária

realidade (2Co 5.2-4), mas também a se esforçar

conclusão do raciocínio que havia apresentado.

por agradar a Deus, sabendo que todos terão de

De um lado, o apostolado de Paulo é legítimo,

se apresentar diante do trono do juiz, que é Cris­

pelo fato de que, por meio de sua pregação e de

to, para serem recompensados pelos seus feitos

seu modo de vida, ele se mostra eficaz para tor­

(2Co 5.9,10). Esse salutar temor de Deus tam­

nar conhecida a “ luz do evangelho da glória de

bém motiva Paulo em seu ministério e na defesa

Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4).

de seu apostolado (2Co 5.11), não por si mes­

Foi esse o propósito do chamado de Paulo, des­

mo, mas a fim de que os coríntios tenham jus­

crito em 2Coríntios 4.6 nos termos de uma nova

to motivo de se orgulhar de Paulo (2Co 5.12-15)

criação, em que Deus “brilhou em nosso cora­

e afirmar a verdade do evangelho paulino da re­

ção, para iluminação do conhecimento da glória

conciliação (2Co 5.14,16-21).

de Deus na face de Cristo” (v.

conversão e

Fica então clara a consequência do ministé­

De outro lado, isso só pode significar

rio de Paulo. Os que foram reconciliados com

que quem rejeita Paulo e a sua mensagem age as­

Deus em Cristo são “nova criação” (2Co 5.17; v.

sim porque teve a mente endurecida por Satanás,

CRIAÇÃO,

“ o deus deste século” (2Co 4.3,4).

implícito não apenas um novo relacionamento

CHAMADO

de) .

P au lo ,

nova

c r ia ç ã o ) ,

que, pelo contexto, deixa

Em 2Coríntios 4.7— 6.13, Paulo retorna ao

com Deus, mas também um modo de vida novo

tema de seu sofrimento, dessa vez introduzindo

e justo, em que a pessoa desenvolve o caráter

e concluindo o bloco de pensamento com a se­

de Deus em Cristo ao viver a vida pelos outros

gunda e a terceira de suas “listas de sofrimen­

(2Co 3.18; 4.5,14,15; 5.21). Em vez de rejeitar

to” (2Co 4.7-15 e 2Co 6.3-13 respectivamente;

Cristo por causa do sofrimento, como Paulo fa­

cf. ICo 4.11-13). Depois de ter defendido a legi­

zia, quando considerava Cristo de um ponto de

timidade e a finalidade de seu sofrimento, Paulo

vista não espiritual (i.e., “ segundo a carne”), os

passa a tratar da questão da necessidade de seu

que foram feitos nova criatura veem Cristo e os

sofrimento, que, como diz em 2Coríntios 4.7, é

demais ã luz do propósito divino da reconciliação

demonstrar que o poder e a glória que se revelam

(2Co 5.16,19,21).

nele são claramente de Deus, não dele próprio.

Paulo conclui a seção e ao mesmo tempo

A maneira de chegar a isso é a repetida experi­

introduz a seguinte, convidando os que são da

ência de sofrimento de Paulo (i.e., “trazendo

igreja de Corinto e ainda rejeitam Paulo e sua

sempre no corpo o morrer de Jesus”, 2Co 4.10;

mensagem a se reconciUar com Deus, não abu­

“ somos sempre entregues à morte por causa de

sando da graça e da misericórdia divinas. Com

Jesus” , 2Co 4.11; o fato de que “em nós atua a

esse cuidado, demonstrarão que não foi em

morte” , 2Co 4.12), a fim de que o poder de Deus

vão que aceitaram a graça de Deus (2Co 5.20;

de sustê-lo seja visto (i.e., “para que também a

6.1). Pois, na condição de embabcador de Cristo

vida de Jesus se manifeste em nosso corpo mor­

(2Co 5.20), Paulo, à semelhança do “ servo” de

tal” , 2Co 4.10,11) e experimentado por outros

Isaías 49.8, é chamado a levar o povo de volta

(2Co 4.12). Assim, Paulo segue as pegadas dos

para Deus (2Co 6.2). A hsta de sofrimentos de

justos sofredores do

(cf. a citação de SI 115.1,

2Coríntios 6.3-13 tem o objetivo de reforçar esse

em ICo 4.13) e do Justo Sofredor, Jesus,

apelo, novamente demonstrando que, em vez de

suportando o sofrimento por amor aos outros

pôr em xeque sua legitimidade, seus adversários

(cf. 2Co 4.15) e confiando que, no futuro. Deus

devem observar que a resistência de Paulo em

LXX,

at

0 confirmaria e o recompensaria com justiça

meio às adversidades o recomenda como após­

(2Co 4.14,16-18).

tolo. A seção termina, portanto, com um apelo

A confiança de Paulo de que sua posição será

adicional aos coríntios ainda sob a influência dos

confirmada no futuro, quando for “ habitar com

adversários de Paulo para que se reconciliem com

0 Senhor” (2Co 5.8,

0 apóstolo (2Co 6.11-13).

ara]

,

baseia-se na garantia

242

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

Tendo em vista o fato de que a igreja de Corin­

(2Co 8.8,24; 9.13), e Tito é apresentado como

to está dividida acerca da legitimidade do apos­

exemplo de uma fé assim genuína e do amor que

tolado de Paulo e da maneira em que ele entende

ela produz (2Co 8.16,17). Para assegurar a con­

Jesus e 0 Espírito (cf. 2Co 11.4), 2Coríntios 6.14—

clusão e a credibilidade da coleta para a glória de

7.2 trata da relação entre crentes e incrédulos,

Deus, Paulo enviará, com Tito, dois irmãos não

sendo estes agora implicitamente identificados

identificados, mas bem conhecidos e respeitados

como aqueles que não se arrependerão nem se

(2Co 8.18-23; 9.1-5).

reconciliarão com Paulo, negando-se a aceitá-lo

Em 2Coríntios 9.6-15, Paulo retorna ao fun­

como apóstolo do evangelho. A admoestação de

damento teológico da coleta e, dessa maneira,

Paulo é direta. Baseado em seu entendimento da

conclui sua análise sobre o assunto. A coleta é

igreja como templo de Deus (2Co 6.16) e na exi­

necessária porque expressa a confiança que os

gência bíblica de que o povo de Deus se separe da

cristãos de Corinto têm de que Deus cuidará de

idolatria a fim de serem “filhos e filhas” de Deus

suas necessidades, de tal maneira que estão dese­

(2Co 6.18), Paulo convoca os coríntios fiéis a se

josos e em condições de contribuir de boa vonta­

separar dos que, entre eles, insistem em rejeitar

de (2Co 9.6-9). Deus é fiel e responderá a tais atos

Paulo e seu evangelho (2Co 6.14,15; 7.1).

de fé, agindo para suprir as necessidades dos que

Em 2Coríntios 7.2-16, Paulo retoma o relato

contribuem e recompensando os que usam seus

dos acontecimentos recentes em Corinto, concen­

recursos em benefício de outros (2Co 9.8,10-12).

trando-se nas boas notícias que recebeu quando

Ao prosseguir com a coleta, os coríntios estarão

finalmente se encontrou com Tito. Embora de iní­

glorificando a Deus, afirmando com suas ações o

cio lamente a dura reprimenda que lhes passou,

evangelho de Cristo (2Co 9.13) e levando outros

Paulo fica aliviado com o fato de que aquela carta

a se unir a eles na glorificação a Deus (2Co 9.12).

(2Co 7.5-8) tenha provocado entre a maioria dos

A coleta também criará um vínculo de oração e

crentes coríntios o tipo de tristeza piedosa que

de gratidão entre os coríntios e a igreja de Jerusa­

conduz ao arrependimento, em vez da “tristeza do

lém (2Co 9.14), o que leva Paulo, diante disso, a

mundo”, que traz apenas a morte (2Co 7.9-13).

concluir a seção com louvor a Deus por seu “dom

Consequentemente, a defesa que, em 2Corín-

inexprimível” (2Co 9.15).

tios 2.14— 7.16, Paulo faz de seu apostolado termi­ na com uma grande expressão de regozijo, consolo

2.6

A defesa final de Paulo e seu ataque aos

adversários. Na última grande seção de 2Coríntios

e confiança nos coríntios como um todo, visto que

(2Co 10.1— 13.10), o tom, o estilo e o assunto vol­

a resposta positiva deles às advertências anteriores

tam a mudar notavelmente, deixando para trás as

de Paulo e à missão de Tito era um sinal seguro da

admoestações pastorais de 2Coríntios 7.2-15 e dos

natureza genuína da fé que possuíam e do vínculo

capítulos 8 e 9. Vê-se aqui uma apologética agres­

entre Paulo e sua igreja (2Co 7.2-5,11-16).

siva e um contra-ataque dirigido àqueles que são

2.5

A coleta. Em 2Coríntios 8.1—9.15, o as­ da igreja e ainda se opõem a Paulo (2Co 13.5-10) e

sunto é outro. Paulo retoma a questão da base

a seus adversários que são de fora de Corinto e es­

teológica e da administração da coleta a favor dos

tão nas sombras por trás dos coríntios (2Co 10.10;

crentes de Jerusalém, à qual ele tinha dado inicio

11.4,12-15,21,23; v.

em Corinto, mas que, em razão de alguns pro­

da são a fraqueza e o sofrimento pessoais de Paulo

a d v e r s á r io s i) .

As questões ain­

blemas na igreja, não havia terminado conforme

(2Co 10.1,10; 11.23-33), o fato de se sustentar por

o previsto (2Co 8.6,7,10,11; 9.2; cf. ICo 16.1-4).

conta própria (2Co 11.7-15; 12.13-17) e sua apa­

A coleta era necessária não só por causa da ne­

rente falta de poder carismático (2Co 12.12; 13.3).

cessidade da igreja de Jerusalém e da capacidade

Em consequência, a visita de Paulo num futuro

dos coríntios em ajudar (2Co 8.14,15), mas tam­

próximo domina a seção, na esperança de que será

bém por causa das implicações da entrega de si

um tempo construtivo de cura, em vez de juízo

mesmo que Cristo fizera a favor dos que estão

para a igreja (cf. 2Co 10.2; 12.14,20,21; 13.1-4).

sob seu senhorio (2Co 8.8,9). Por isso, a contri­

A passagem de 2Coríntios 10.1-6 é o apelo fi­

buição para suprir as necessidades do próximo

nal à reconciliação que Paulo faz à igreja, a fim

torna-se um teste da autenticidade da própria fé

de que, quando ele chegar, “não seja obrigado a

243

C o r ín t io s , c a r t a s a o s

usar de coragem com firmeza” e castigar a de­

caso, porém, Paulo se mostra bem hesitante, sa­

sobediência, embora esteja pronto para fazê-io

bendo que tal vanglória é a síntese da tolice, jus­

(2Co 10.2,6]. Em 2Corintios 10.7-11, numa pas­

tamente o motivo que levou Deus a lhe dar “um

sagem em que reforça esse apelo, Paulo reafirma

espinho na carne” , para evitar essas manifesta­

sua legitimidade como cristão e como apóstolo,

ções (2Co 12.6-10]. Além do mais, Paulo declara

justificando-a com base na natureza correta de

que o motivo real de seus adversários o terem

sua conduta recente, inclusive sua enérgica de­

criticado por pregar sem nada cobrar, por seu so­

monstração de autoridade sobre os coríntios. Que

frimento e por sua recusa em se gloriar nas pró­

a atitude de Paulo está correta é algo que se torna

prias experiências espirituais é que seu modo de

evidente assim que se aplica o critério correto de

vida e práticas questionam a legitimidade deles

legitimidade apostólica, a saber, a demonstração

como apóstolos, por estar baseada em cobrança

concreta da obra de Deus por meio dele, vista na

financeira e em relatos de experiências espirituais

atividade apostólica de Paulo de fundar a igreja

(2Co 11.12]. A mensagem de Paulo é que nem

em Corinto (2Co 10.12-18]. Por isso, quando rei­

características humanas nem linhagem religiosa

vindica autoridade, Paulo não está se recomen­

tornam alguém servo de Cristo (cf. 2Co 11.21-23],

dando (2Co 10.12], mas se gloriando “ no Senhor”

e sim a fraqueza, pois Deus declarou que seu “po­

daquilo que Deus realizou por meio dele para de­

der se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9].

monstrar que é um daqueles a quem o Senhor

Em 2Coríntios 12.11— 13.10, Paulo conclui a se­ ção, pela última vez lembrando os coríntios de sua

“recomenda” (2Co 10.17,18). Uma vez que Deus já recomendou Paulo por

sinceridade e legitimidade apostólica, conforme

meio de seu trabalho apostólico, é “loucura” a ne­

demonstrada em seu ministério do Espírito e do

cessidade de se gloriar do próprio comportamento

sofrimento decorrente da decisão de não ser um

ou de suas realizações (cf. 2Co 11.1,16-21; 12.11].

fardo para os coríntios (2Co 12.11-18]. Os que ain­

Entretanto, em 2Coríntios 11.1— 12.10, Paulo se vê

da rejeitam Paulo devem, portanto, arrepender-se

forçado a fazer justamente isso, a fim de refutar

enquanto aguardam sua visita final (2Co 12.19—

as afirmações de seus adversários e reconquistar

13.10]. Deixar de fazê-lo significará estar sob o juí­

os que haviam caído sob a influência de tais ad­

zo de Deus, visto que Paulo identifica sua pessoa e

versários. O cerne da questão é a afirmação dos

mensagem com a glória de Deus em Cristo e com

adversários de que eles, não Paulo, representam os

0 verdadeiro evangelho (2Co 11.4; 12.21; 13.1-4].

“superapóstolos” de Jerusalém e estão no nível de­

Desse modo, o teste derradeiro da natureza autên­

les. Nessa seção, Paulo se esforça para mostrar que

tica da fé dos coríntios é se eles irão ou não se re­

ele é que é apóstolo autêntico, em pé de igualdade

conciliar com Paulo (2Co 13.5-9]. Por esse motivo

com os líderes da igreja-mãe (2Co 11.5; 12.11], ao

a autodefesa cuidadosa de Paulo não foi feita por

passo que seus adversários, afirmando ter alguma

causa do apóstolo, mas para o bem dos coríntios

ligação com os líderes de Jerusalém, são, na verda­

(2Co 12.19], pois Paulo está escrevendo “essas coi­

de, “falsos apóstolos” e “obreiros desonestos” , que

sas estando ausente, para que, quando presente,

se disfarçam de “ministros de justiça” (2Co 11.12-

não venha a usar de rigor, segundo a autoridade

15). Desse modo, em 2Coríntios 11.5 e 2Corín-

que o Senhor [lhe] deu para a edificação e não

tios 12.11, Paulo se compara positivamente com

para a destruição” (2Co 13.10].

os “superapóstolos”, ao passo que em 2Coríntios

2.7.

Saudações finais. Em 2Coríntios 13.11-13

11.12-15, estabelece a mais clara distinção possível

(14], Paulo encerra a carta, convidando a igreja a

entre ele próprio e seus adversários.

endireitar seus caminhos, a resolver as rivalida­

Por esse motivo, nessa seção Paulo se “glo­

des e a viver em harmonia e em paz. Esse ape­

ria” primeiro de sua decisão de pregar o evange­

lo final baseia-se na promessa de que, se agirem

lho em Corinto, sem cobrar nada (2Co 11.7-12]

assim, “o Deus de paz” estará com os coríntios.

e então de seus outros sofrimentos (2Co 11.2333] como as verdadeiras marcas da legitimidade

3. Corinto e seus cidadãos

de seu apostolado, só para finalmente se glo­

Talvez mais que qualquer das outras cartas de

riar de suas experiências espirituais. No último

Paulo, as características sociológicas, associadas

244

CO R iN TIO S, CARTAS AOS

ao ambiente religioso e filosófico da região, in­

ístmicos, as quais eram feitas de aipo seco (cf.

fluenciam a interpretação que se faz de 1 e 2Co-

M u r p h y - 0 ’C o n n o r ,

p. 17).

ríntios. Corinto está situada no sopé do monte

Como centro abastado para comerciantes e

Acrocorinto, com 566 metros, no lado sul do ist­

marinheiros, Corinto era, evidentemente, reco­

mo de 7,2 quilômetros que liga o Peloponeso ao

nhecida pela sua imoralidade, especialmente a

restante da Grécia e faz separação entre os golfos

corrupção sexual, e por seus muitos templos e

Sarônico e de Corinto. Sua localização era estraté­

ritos religiosos. Em vista da reputação da cidade,

gica, militar e comercialmente. Corinto controla­

Aristófanes (c. 450-385 a.C.) até mesmo cunhou

va o movimento por terra entre a Itália e a Ásia e

0 verbo korinthiazesthai ( “agir como um corín-

também o tráfego entre os portos de Lequeu, 2,4

tio” , i.e., “cometer fornicaçâo”). Platão utilizou a

quilômetros ao norte, e Cencreia, 8,1 quilôme­

expressão “ moça coríntia” como eufemismo para

tros a leste. O transporte das embarcações entre

“ prostituta” (Murphy-0’Connor, p. 56). E, embora

os dois portos, que se fazia através de Corinto,

se questione a precisão histórica dessa afirmação,

permitia evitar que se navegasse pelas águas trai­

o relato de Estrabão de que havia mil prostitutas

çoeiras ao redor do Peloponeso. 0 transporte era

no templo de Afrodite parece refletir a imagem

facilitado por uma via pavimentada que atraves­

da cidade, em que os muitos templos davam sua

sava o istmo e que foi construída no século vi

contribuição em particular para o ambiente im o­

a.C. Por esse motivo, Corinto era conhecida como

ral da vida em Corinto (v. Estrabão, Ge, 8.6.20,

cidade abastada, por causa de sua taxação e de

escrito inicialmente em 7 a.C. e ligeiramente re­

seu comércio, e como importante centro para as

visto em 18 d.C.).

ideias e o comércio do mundo (v. Estrabão, Ge,

Depois de ter sido restabelecida em 44 a.C.,

8.6.20-23). Em termos de indústria, Corinto era

agora como cidade romana, Corinto passou a re­

especialmente conhecida por seus valorizadíssi-

ceber um rápido afluxo de pessoas. Logo se tor­

mos objetos de bronze, um dos quais era usado

nou a terceira cidade do império, atrás de Roma

no teatro como "acentuador de ressonância” (cf.

e Alexandria. Além dos veteranos e dos muitos

ICo 13.1; Murphy-O’Connor, p. 50, 76).

representantes das classes mais baixas que se

A história da antiga Corinto é um conto de

mudaram para Corinto, a cidade foi colonizada

duas cidades. Como entidade política, a história

em grande parte por escravos libertos de Roma,

de Corinto remonta ao século viii a.C., e até mea­

cuja posição de servos alforriados ficava pouco

dos do século II a.C. florescia como cidade-estado

acima da de um escravo.

grega. Mas sua posição de líder da liga acaia re­

rinto deu a Roma a oportunidade de diminuir seu

sultou em sua destruição por Roma, em 146 a.C.

problema de superpopulação e aos libertos uma

Corinto ficou então em ruínas até 44 a.C., quan­

chance de aproveitar a oportunidade socioeconô-

do Júlio César a refundou como colônia romana,

mica proporcionada pela nova cidade. Além do

0

repovoamento de Co­

não demorando a que ela voltasse a ocupar uma

mais, Corinto também abrigava uma significa­

posição de proeminência

tiva comunidade de judeus, que exerciam o di­

No século

I,

(A p ia n o ,

Hi ro, 8.136).

Corinto já era o mais importante

centro comercial do sul da Grécia.

reito de administrar seus negócios internos (cf.

partir de

At 18.8,17). Filo relaciona Corinto como uma das

27 a.C. foi a residência do procônsul da região

cidades da diáspora judaica (Le Ga, 281 e 282),

e a capital da província senatorial da Acaia até

e foi encontrada uma verga com a inscrição “si­

A

15 d.C., quando se tornou província imperial.

nagoga dos hebreus” , embora não seja possível

Também ficou famosa por administrar os jogos

determinar sua data com precisão (cf.

ístmicos, competição atlética bienal que só per­

0 ’C0NN0R,

M urph y-

p. 79). Percebe-se que na época de Pau­

dia em importância para os jogos olímpicos. Esse

lo Corinto havia se tornado uma salada de frutas

contexto é refletido em ICoríntios 9.24-27, quan­

de culturas, filosofias, estilos de vida e religiões e

do Paulo emprega a metáfora do atietismo e sua

possuía uma atmosfera de pujança.

ênfase na coroa imperecível reservada para os

As categorias em que Paulo, em 1Corín­

crentes. Para os coríntios, isso representaria um

tios 12.13, classifica as pessoas da igreja refle­

contraste com as coroas conquistadas nos jogos

tem, portanto, a constituição da cidade, como o

245

C o ríntio s , cartas aos

fazem os vários nomes judeus, romanos e gre­

depois do qual houve ampla reconstrução da ci­

gos mencionados nas cartas (os judeus Áquila,

dade. Quanto à época de Paulo, até o momento a

Priscila, Crispo; os romanos Fortunato, Quarto,

arqueologia confirmou a existência de um templo

Justo; os gregos Estéfanas, Acaico, Erasto). Com

da deusa Fortuna e templos ou santuários dedica­

base em ICoríntios 7.20-24, sabemos que alguns

dos a Netuno, Apoio, Afrodite (no Acrocorinto),

dos crentes de Corinto eram escravos. Além do

Vênus, Otávia, Asclépio, Deméter, Core e Posei-

mais, uma vez que agora na Corinto romana não

don (cf.

M

urph y-

0 ’C onnor).

existia nenhuma aristocracia baseada na proprie­ dade de terra, logo se desenvolveu uma “aristo­

4. A igreja e seu apóstolo

cracia monetária”, acompanhada de um espírito

A igreja de Corinto era gentílica em grande par­

de feroz independência (assim entende

p. 2).

te (embora não na sua totalidade), conforme se

Essa distinção de classes baseada na riqueza é

percebe pelos seus antecedentes na idolatria pagã

F ee,

refletida nas tensões e facções existentes durante

(ICo

a celebração da ceia do Senhor (ICo 11.17-34),

ção em banquetes nos templos (ICo

visto que a maior parte da igreja provinha, apa­

Também era comum os gregos e romanos resol­

6.9-11; 8.7; 12.2)

e na questão de participa­ 8 .1 — 11.1).

rentemente, da classe socioeconômica mais baixa

verem suas disputas nos tribunais seculares, ao

ou média, e apenas umas poucas famílias abasta­

passo que os judeus eram proibidos de fazê-lo,

das estavam representadas na comunidade cristã

0 que ajuda a explicar essa prática em Corinto

(ICo 1.26,27).

(cf. ICo

A lei, a cultura e a reUgião romanas eram do­

6 .1 -6 ).

A aceitação da prostituição, que

é analisada em ICoríntios

6.12-20,

e as atitudes

minantes em Corinto, e o latim era a língua oficial

diante do casamento refletidas em ICoríntios

da cidade, mas as tradições e as filosofias gre­

também estão mais em consonância com um con­

gas da região e os cultos de mistério originários

texto gentílico.

do Egito e da Ásia também estavam fortemente

A

7

ig r e ja e m C o r in to se r e u n ia e m v á ria s casas,

representados (cf. ICo 1.20-22). Diógenes, fun­

p o is n ã o h a v ia p o s s ib ilid a d e d e u m m o v im e n to

dador da escola cínica, esteve associado com Co­

re lig io s o r e c é m -c o n s titu íd o , a in d a s e m

rinto e com 0 Craneu, área residencial próxima de

n h e c im e n to g o v e r n a m e n ta l, v ir a te r u m lo c a l

Corinto. Aliás, acredita-se que Corinto foi a “cida­

p ú b lic o p a ra e n c o n tro , c o m o u m a s in a g o g a (c f.

de mais helenista do Novo Testamento”

Rm

(F ee,

p.

o reco­

1 6 .2 3 ). C o m b a se n a e s c a v a ç ã o d e q u a tro

4, n. 12). Nos dias de Paulo, o teatro de Corinto

casas n a C o r in to d o p e r ío d o r o m a n o

comportava 1.400 pessoas

é p o c a d e P a u lo ) e n a lista d o s c a t o r z e m e m b r o s

(M

u rphy-

0 ’C

onnor,

(u m a da

p. 36), e isso transparece na metáfora de 1Co­

d e se x o m a s c u lin o d a ig r e ja d e 1 e 2 C o rín tio s ,

ríntios 4.9 e 9.24,25. Ademais, embora os relatos

J.

que tenhamos da imoralidade bem disseminada

ig r e ja e m

de Corinto sejam da Corinto grega e não se deva

(M urphy - 0 ’ C o n n o r , p. 1 5 8 ). M a s u m a r e u n iã o da

M u r p h y - 0 ’ C o n n o r c a lc u la q u e, n a su a ba se, a C o r in to c o n ta v a cin q u e n ta m e m b r o s

interpretar que se apliquem à Corinto dos dias de

“ ig r e ja t o d a ” era in c o m u m , p o is e m g e r a l a ig re ja

Paulo, 0 caso é que tal problema também veio a

se reu n ia e m g ru p o s m e n o re s n o s la res d e v á r io s

prevalecer na nova cidade, a romana, por causa

m e m b r o s (c f. I C o 16.19; R m 16.5; C l 4 .1 5 ; F m 2 ).

da sua posição de importante centro geográfico e porto marítimo, atmosfera que vemos refletida

4.1

Os problemas por trás de ICoríntios. 0

comentário de G. D. Fee sobre ICoríntios é a mais

em ICoríntios 5.1,2 e 6.9-20. Por fim, nos dias

completa apresentação da interpretação apologé­

de Paulo Corinto estava repleta de locais de cul­

tica dos problemas por trás de ICoríntios. Segun­

to pagãos (cf. ICo 8.4-6; 10.14,20-30). Com seu

do essa interpretação, a situação histórica por

Descrição da Grécia, volume 2, Pausânio (mor­

trás de ICoríntios é fundamentalmente de con­

to c. 180 d.C.) é 0 autor do mais antigo guia de

flito entre Paulo e a igreja na sua totahdade. Pelo

Corinto, descrevendo pelo menos 26 lugares sa­

que se depreende, no âmago do problema está

grados do panteão greco-romano e dos cultos de

o fato de os coríntios rejeitarem a autoridade de

mistério. Deve se ter em mente que boa parte de

Paulo como fundador da igreja. Por esse motivo,

Corinto foi destruída num terremoto em 77 d.C.,

para Fee, a divisão mais séria da igreja é aquela

246

C o r ín tio s , cartas aos

entre

a maioria da comunidade e Paulo

evangelho por causa da influência de alguns

(F ee, p.

8). Interpreta-se como agressivo o linguajar de

recém-chegados, que eram adversários do após­

Paulo ao longo de toda a carta, e suas referências

tolo (cf. 2Co 11.4). Desde então, um segmento

ao próprio apostolado são lidas apologeticamente

significativo da igreja se arrependeu e passou ou­

(cf. esp. ICo 4.1-21; 9.1-27; 15.8-11).

tra vez para o lado de Paulo, mas sua autoridade

No entanto, é preferível entender o propó­

apostólica já não é denominador comum entre ele

sito de Paulo em escrever ICoríntios como ba­

e a igreja inteira. Entre os coríntios, ainda existe

sicamente didático, em vez de apologético. Em

uma oposição considerável a ele, e os adversários

momento algum na carta Paulo defende sua auto­

de Paulo estão à espreita por trás dessa oposição.

ridade como apóstolo em si, visto que ele conti­

Como consequência, a igreja agora se encontra

nua pressupondo que os coríntios o reconhecem

dividida quanto a Paulo e à legitimidade de seu

como o fundador da igreja (ICo 4.15) e como

apostolado. A situação vigente é refletida na au­

seu apóstolo legítimo, embora outros de fora da

sência, em 2Coríntios, de um chamado para imi­

igreja talvez não o reconheçam (ICo 9.1,2). Pau­

tar Paulo, na atenção constante dedicada à sua

lo prefere escrever para “ lembrar” os coríntios de

autoridade como apóstolo ao longo da maior par­

seus “caminhos em Cristo” (ICo 4.17) e chamar

te de 2Coríntios e, o que é mais claro, nos diferen­

a atenção deles para o fato de que, sendo ele seu

tes papéis que o sofrimento de Paulo representa

“pai” (IC o 4.15), é o “caminho” dele, o caminho

nas duas cartas. Em ICoríntios 4.8-13 e 9.1-27,

da cruz, que deve ser imitado (ICo 4.16; 11.1).

o sofrimento do apóstolo serve para apoiar suas

Por isso, em nenhum lugar de ICoríntios existe

alegações de sempre buscar o bem-estar dos co­

a afirmação de que o sofrimento de Paulo é con­

ríntios, ao passo que em toda 2Coríntios Paulo

veniente. Pelo contrário, funciona como premis­

tem de defender a legitimidade de seu sofrimento

sa básica para os argumentos de Paulo (cf. esp.

(cf. 2Co 2.17; 11.7-15; 12.13-18). Por esse motivo,

ICo 1.10—4.21; 8.1-11.1; cap. 13; 14.18,19), que

enquanto os problemas de ICoríntios eram inter­

por sua vez se baseiam em sua autoridade pater­

nos da igreja, o problema central a se resolver

nal em Cristo sobre os coríntios (ICo 4.14-21). 0

em 2Coríntios é o da autoridade e legitimidade de

fato de Paulo poder citar sua prática de pregar de

Paulo como apóstolo.

graça como argumento a favor de seu propósito

4.3

A fonte dos problemas em Corínto e a res­

exortativo em ICoríntios 8— 10 indica que o modo

posta de Paulo. É possível identificar a fonte dos

de vida e a autoridade apostólicos ainda eram ti­

problemas de Corinto, sejam os de ICoríntios,

dos em alta conta. Caso contrário, o argumento

sejam os de 2Coríntios, na cultura helénica, que

mais elaborado de Paulo em ICoríntios 8— 10,

tanto influenciou os habitantes daquela cidade. A

cujo clímax é o apelo do apóstolo a que o imi­

questão-chave era o que significava ser “espiritu­

tem (ICo 11.1), cairia por terra. Ao longo de toda

al” (cf. 0 uso da palavra pneumatikos, que Paulo

a carta, os argumentos de Paulo se concentram,

usa catorze vezes só em ICoríntios, em contras­

portanto, nos coríntios e em seu comportamento,

te com apenas quatro vezes nas demais cartas

e Paulo se dirige a eles não em tom apologético,

paulinas incontestes). Mesmo sendo crentes, os

mas orientador. A capacidade paulina de emitir

coríntios se apegavam à parte do dualismo hele-

juízos oficiais sobre o comportamento dos corín­

nista — corpo/alma ou material/imaterial — que

tios ao longo de toda a carta baseia-se na pressu­

fazia pouco caso do mundo físico, a favor do co­

posição de que sua autoridade apostólica ainda

nhecimento e da sabedoria “ superiores” da exis­

é aceita em Corinto. Os problemas tratados em

tência espiritual. Embora constitua anacronismo

ICoríntios são essencialmente internos, não são

falar de gnósticos ou de gnosticismo em Corinto,

tensões entre a igreja e seu apóstolo.

é possível falar de um “gnosticismo incipiente”

4.2

Os problemas por trás de 2Coríntios. na teologia dos coríntios (assim entende seguindo

Quando Paulo escreveu 2Coríntios, tudo havia

B ruce;

v

.

g n o s t ic is m o ) .

M

a r t in

,

Sob tal influência,

mudado. Por algum tempo, no período entre

os coríntios eram inclinados ao orgulho intelec­

escrever a primeira e a segunda carta, a igre­

tual, dando grande valor a seu “conhecimento”

ja esteve em rebelião aberta contra Paulo e seu

e às suas experiências espirituais (cf. ICo 1.5;

247

C or ín tio s , cartas aos

8.1,7,10,11; 12.8; 13.2 etc.). O resultado foi uma

No entanto, à época de 2Coríntios os adver­

atitude de vanglória e competição dentro da igre­

sários de Paulo haviam chegado de fora e se

ja, reforçada ainda por conta de sua arrogância

aproveitado da escatologia plenamente realizada

cultural e por sua admiração pelo poder, estilo e

dos coríntios, pregando um conceito de Cristo e

refinamemo públicos da tradição retórica sofista.

do Espírito que os coríntios estavam dispostos a

Tal atitude os convenceu de que não havia nada

receber (2Co 11.4). Em vez de, com base na res­

de errado em levar seus assuntos aos tribunais

surreição e vindicação futuras, conclamar os co­

humanos (cf. ICo 5.1— 6.20) e em participar da

ríntios a fielmente suportar as provações em meio

imoralidade e, ao mesmo tempo, levou-os a prati­

à adversidade, os adversários de Paulo lhes pro­

car um ascetismo indevido (cf. ICo 7.1-5).

metiam uma vida no Espírito que se caracterizava

Contudo, igualmente importante é esse dualis­

pela ausência de sofrimento e por uma dieta rica

mo que proporcionou a base conceituai que tornou

de experiências rehgiosas. Sustentavam a afirma­

os coríntios tão suscetíveis a uma escatologia plena­

ção de serem apóstolos com cartas de recomen­

mente realizada que espiritualizava a ressurreição

dação enviadas por outras igrejas (cf. 2Co 3.1),

futura como algo que já estava ocorrendo em suas

com suas marcantes peculiaridades étnicas como

experiências (cf. ICo 4.8; cap. 15). Dessa maneira,

judeus (2Co 3.4-18; 11.21,22) e com a vanglória

entendia-se que a vida presente já participava da

de suas realizações espirituais e de seus sinais

plenitude da realidade celeste do mundo vindou­

sobrenaturais, aliados às suas habihdades retóri­

ro. A escatologia plenamente realizada inflou ain­

cas (2Co 10.10,12; 11.12,18; 12.12). A apologética

da mais o valor que os coríntios atribm'am ao seu

de Paulo em 2Con'ntios 3 permite postular que,

conhecimento espiritual, aos seus dons espirituais

de alguma forma, também associavam seu mi­

e às suas experiências religiosas, especialmente o

nistério ao de Moisés e à Lei, embora, diferindo

dom de línguas, que viam como indicação de que

de Gálatas, as questões de pureza ritual e de cir­

também participavam da existência espiritual dos

cuncisão não sejam mencionadas em 2Coríntios.

anjos (cf. ICo 13.1; 14.37). Essa atitude, por sua

Além do mais, os adversários de Paulo validavam

vez, provocava mais vanglória e desunião na igreja,

suas afirmações ao exigir dinheiro dos coríntios

bem como a consequente rejeição à legitimidade

como sinal do valor e legitimidade de sua mensa­

do apostolado de Paulo e ao seu evangelho.

gem (2Co 2.17). Entretanto, a fim de fazer essas

A resposta de Paulo em ICoríntios está de­

afirmações e exigir pagamento, eles eram obriga­

cididamente baseada no duplo fundamento do

dos a atacar Paulo e sua legitimidade apostóhca,

e da cristologia (cf. sua resposta, baseada

0 que punha em questionamento o evangelho e o

AT

no AT, ao problema de se vangloriar na sabedoria,

modo de vida deles.

em ICo 1.18—3.23, com citações diretas do a t em

Como resposta, Paulo precisou defender sua

ICo 1.19; 1.31; 2.9; 2.16; 3.19,20). Os dois funda­

legitimidade como apóstolo a fim de comprovar a

mentos deixam claro que o poder e a sabedoria de

veracidade de seu evangelho. Mais uma vez ele o

Deus agora se revelam em Crísto e em sua cruz.

faz, retornando ao a t e à cristologia para demons­

Ao mesmo tempo, a mensagem paulina da cruz

trar a necessidade e o propósito de seu sofrimen­

(ICo 1.17-19) e sua experiência apostólica de so­

to em relação ao seu ministério do Espírito sob a

frimento (ICo 4.8-13) demonstram que o reino

nova aliança.

de Deus, embora esteja aqui em poder, ainda não está presente em sua plenitude. Por esse motivo, caso o sofrimento e a fraqueza sejam característi­ cas essenciais do ministério apostólico em que se

5. Algum as questões cruciais 5.1

Autoria. Ambas as Cartas aos Coríntios

são, na saudação, atribuídas a Paulo e revelam

baseia a vida dos coríntios, na condição de filhos

todos os indícios históricos e literários da autoria

de seu pai espiritual a vida dos coríntios também

paulina. De fato, a autoria paulina de ICoríntios

deve se caracterizar pelo poder da cruz, não por

nunca foi questionada, e a carta já é atestada na

vanglória em feitos ou líderes espirituais. O con­

década de 90 do século i por Clemente de Roma

selho mais básico de Paulo, por isso, é este: “ Sede

(cf. ICl, 37.5; 47.1-3; 49.5) e na primeira década

meus imitadores” (ICo 4.16; 11.1).

do século II por Inácio (cf. In, Ef, 16.1; 18.1; In,

248

C or Intio s , cartas aos

Rm, 5.1). Embora 2Coríntios não seja claramente

sua vez, está respondendo a uma variedade de

documentada até o cânon de Marcião (140 d.C.),

temas e questões que lhe foram apresentados por

a partir dessa data é inconteste como parte do

carta pela igreja e também por meio dos relatos

corpus paulino. Até mesmo a erudição moderna

que ouviu.

mais crítica tem aceito consistentemente essas

Na época em que escreveu ICoríntios, Paulo

cartas como autênticas, à exceção de ICoríntios

pretendia voltar a Corinto depois de permane­

1.2b, 14.34b,35, que, segundo a alegação de al­

cer em Éfeso até o Pentecostes e, então, visitar

guns estudiosos, são interpolações não paulinas.

a Macedônia (v. ICo 16.5-8). Nesse ínterim, ele

Mas os indícios favoráveis à remoção desses tex­

enviou Timóteo para visitar os coríntios em seu

tos não convencem a maioria dos estudiosos,

nome (ICo 16.10,11; At 19.22). Timóteo desco-

visto que nenhuma tradição de manuscrito omite

bríu que a tensão entre Paulo e os cristãos de

esses versículos, e pode se ver que as duas pas­

Corinto havia aumentado, o que se deveu muito

sagens se encaixam na sequência do pensamento

provavelmente ao fato de alguns adversários de

de Paulo. Outros estudiosos têm defendido que

Paulo, vindos de fora, terem chegado a Corinto.

0 vocabulário e o tema peculiares de 2Coríntios

Como resposta, Paulo partiu imediatamente para

6.14— 7.1 indicam que Paulo adotou essa passa­

Corinto, o que se tornou uma “visita dolorosa”,

gem, tirando-a de um escrito paulino anterior,

durante a qual a igreja questionou duramente a

de uma fonte judaica não paulina (frequente­

autoridade e o evangelho de Paulo. Um dos lí­

mente associada ao movimento essênio ou aos

deres da igreja enfrentou Paulo e o ofendeu (cf.

MANUSCRITOS DO MAR

MoRTo)

OU

de uma tradição

2Co 2.1,5-8; 7.8-13; 11.4).

judaico-cristã. Contudo, ainda que essa hipótese

Paulo deixou Corinto sob ataque, decidido a

prevaleça sobre as ideias dos que defendem que

não fazer aos coríntios outra “visita dolorosa”

seu caráter distintivo se deve aos textos do a t cita­

como essa (2Co 2.1,2). Em vez disso, enviou-lhes

dos nessa seção, Paulo integra plenamente a pas­

Tito com uma “carta chorosa” de repreensão e

sagem em sua linha de raciocínio em 2Coríntios.

advertência, como tentativa de reconquistá-los

5.2

Unidade entre 1 e ICoríntios e o motivo (cf. ICo 2.3-9; 7.8-12). O fato de que Tito também

que ocasionou as cartas. A fundação da igreja

estava incumbido de organizar a coleta (2Co 8.6)

de Corinto por Paulo, registrada em Atos, acon­

indica, contudo, que Paulo ainda não havia perdi­

teceu no período de 49 a 51 d.C. como parte da

do as esperanças com os coríntios e considerava

segunda viagem missionária de Paulo. Quando

que pudessem se arrepender. A “carta chorosa”

Paulo partiu de Corinto, dezoito meses depois, a

se perdeu, embora alguns estudiosos tenham pro­

nova igreja florescia. Mais tarde, Paulo, de Éfeso,

curado identificá-la com a ICoríntios canônica ou

escreveu uma carta aos coríntios, um documento

com os quatro capítulos de 2Coríntios 10— 13.

não mais existente, no qual tratava de algumas

Mas ICoríntios não é suficientemente dura nem

questões éticas específicas que incomodavam os

dolorosa para se qualificar como tal, nem o as­

novos crentes. No entanto, os coríntios tiveram

sunto tratado se enquadra na natureza da descri­

dificuldade de entender as admoestações de Pau­

ção de 2Coríntios 2.1-4, visto que em ICoríntios

lo e aplicaram-nas de modo errado no contexto

não se analisam consistentemente a rejeição de

em que viviam (cf. ICo 5.9-13). A igreja, então,

Paulo pelos coríntios, nem a influência dos ad­

enviou a Paulo uma carta por mãos dos mensa­

versários de Paulo em Corinto, nem o ofensor de

geiros relacionados em Atos 16.15-17, a fim de

2Coríntios 2.5-11.

obter maiores esclarecimentos. Em resposta a

Enquanto Paulo aguardava o retorno de Tito

essa carta, Paulo escreveu a ICoríntios canônica.

com seu relatório sobre o impacto dessa carta,

0 objetivo de Paulo era esclarecer sua posição e

sua mente não conseguia sossegar. Estava ansio­

responder a outras informações que tinha ouvi­

so com a situação em Corinto (2Co 2.12,13). Por

do a respeito de sérios problemas surgidos em

esse motivo Paulo partiu de ’nrôade para se en­

Corinto (ICo 1.11; 5.1; cf. ICo 16.15-18; v. 4.2

contrar com Tito, e, quando o fez, Tito deu a Pau­

acima). A natureza um tanto desconexa e tópica

lo a boa notícia de que sua “carta chorosa” havia

de ICoríntios é fruto do fato de que Paulo, por

de fato reconquistado a maioria dos coríntios

249

C or ín tio s , cartas aos

(2Co 7.6-13). Ademais, pelo fato de a igreja ter

de 2Coríntios 10— 13 é a última defesa e ataque

reagido de modo tão positivo, Paulo pode ago­

diretos de Paulo aos seus adversários, depois de

ra planejar visitá-los outra vez {cf. 2 Co 2.3; 9.5;

basicamente ter se dirigido à maioria reconciliada

12.20-13.1).

da igreja em 2Coríntios 1—9 e talvez depois de al­

Na expectativa dessa terceira visita, Paulo es­

gum intervalo de tempo ou da chegada de novas

creve a 2Coríntios canônica ou, pelo menos, 2Co-

e ameaçadoras informações. Essa é a abordagem

ríntios 1—9 como a temos hoje. 0 fato de que a

adotada na visão geral de 2Coríntios acima.

maioria da igreja havia se arrependido e voltado

No outro extremo, uns poucos estudiosos

para Paulo, enquanto um segmento significativo

têm buscado isolar cada uma das seções, tratan-

ainda resistia à sua autoridade e ao seu evange­

do-as como um texto separado e identificando

lho, explica por que essa seção é mesclada. Nela,

cada uma com a história da interação de Paulo com

Paulo consola e encoraja a maioria da igreja, ao

os coríntios, conforme esboçada acima. Nesse ce­

mesmo tempo que defende seu apostolado, a fim

nário, como já ressaltamos, alguns entendem que

de fortalecer os que se arrependeram e reconquis­

2Coríntios 10— 13 faz parte da “carta chorosa”; 2Co-

tar a minoria recalcitrante. Além do mais, por trás

ríntios 2.14—6.13 faz parte de uma cartaperdida,

dos coríntios estavam à espreita os adversários

em que Paulo se defende; 2Coríntios 1.1—2.13 e

de Paulo, aos quais Paulo não se dirige direta­

7.5-16 compõem a carta de reconciliação de Pau­

mente, mas sem dúvida são eles a fonte primá­

lo após 0 relatório de Tito; 2Coríntios 6.14— 7.1

ria do problema. Por isso, o objetivo de Paulo ao

faz parte de ainda outro texto perdido, paulino

escrever a carta é preparar os coríntios para sua

ou não paulino, ou mesmo parte da “carta ante­

visita seguinte, durante a qual terá de julgar os

rior” de ICoríntios 5.9. O consenso crescente é

que insistem em rejeitar a ele e ao seu evangelho.

que 2Coríntios 1—9 é uma composição unifica­

Paulo de fato voltou a Corinto (cf. At 20.2), de

da escrita depois do encontro entre Paulo e Tito

onde menos de um ano depois escreveu sua carta

(cf. 2Co 7.5-13). Interpreta-se 2Coríntios 10— 13,

aos Romanos.

portanto, como uma obra subsequente, escrita de­

Tendo em vista esse cenário, a questão da

pois de um novo surto de problemas em Corinto e

unidade literária de 2Coríntios foi respondida de

anexada à seção anterior em algum momento no

várias maneiras, por causa das transições e mu­

início da história dessas tradições, visto que não

danças de assunto notoriamente abruptas no cor­

há nenhum dado crítico-textual de que 2Coríntios

po da carta. As questões-chave são as notórias

10— 13 tenha chegado a circular independente­

interrupções de pensamento — entre 2Coríntios

mente de 2Coríntios 1—9 (v., e.g., os comentários

2.13 e 14; 7.4 e 5; 6.13 e 14; 7.1 e 2 — e os as­

de

M

a r t in

e

F u r n is h ) .

suntos tratados claramente de forma separada:

5.3 Local e data. A Primeira Carta aos Corín­

a coleta, em ICoríntios 8—9; a unidade distinta

tios foi escrita em Éfeso, entre a época em que

de 2Coríntios 10.1— 13.14. Se cada uma dessas

Paulo deixou Corinto (51-52 d.C.) e três anos

transições representa um documento distínto,

depois, entre o outono de 52 d.C. e a primave­

2Coríntios se torna uma combinação destes seis

ra de 55 d.C., sendo a determinação da data de­

importantes fragmentos, os quais foram poste­

pendente dos seguintes fatores: a data do édito

riormente unificados numa única carta: 2Corín-

de Cláudio e a duração do mandato de Gálio (cf.

tios 1.1—2.13 e 7.5-16; 2Coríntios 2.14—6.13;

At 18.2,12); a época em que Paulo partiu de Co­

2Coríntios 6.14— 7.1; 2Coríntios 8; 2Coríntios 9;

rinto (At 18.18); a subsequente duração de sua

2Coríntios 10— 13.

estada posterior em Éfeso. A Segunda Carta aos

Um grupo minoritário de estudiosos ainda

Coríntios (vista como um todo ou pelo menos

sustenta a unidade literária da carta. Os que de­

2Co 1—9) foi concluída aproximadamente no ano

fendem esse ponto de vista buscam explicar a

seguinte a ICoríntios e escrita na Macedônia.

integridade das transições em cada ponto dentro

5.4 Os adversários de Paulo. As passagens-

da carta. Além disso, entendem que as mudanças

chave para identificar a oposição a Paulo em Co­

de tema ao longo de 2Coríntios são resultado da

rinto têm sido, tradicionalmente, ICoríntios 1.12;

natureza mista da comunidade coríntia. 0 texto

3.22; 9.5; 2Coríntios 3.1-18; 11.4,22,23. Com base

250

C oríntio s , cartas aos

nesses textos, fica claro que os adversários de

sincretista, mais parecido com o essenismo que

Paulo eram judeus que, de um lado, estavam fa­

com qualquer outro grupo

miliarizados com o mundo helenista e esposavam

Mas, na tentativa de criar um consenso entre os

valores e técnicas retóricas sofistas e, de outro,

treze enfoques diferentes que catalogou, Gunther

confiavam em sua herança espiritual judaica (v.

ampliou tanto a base desse consenso que sua des­

4.3 acima). Fora esse esboço bastante simples,

crição é indefinível.

(G

u n th er ,

p. 315).

determinar com maior precisão a identidade e a

Por esse motivo, deve se dar as boas-vindas à

teologia dos adversários de Paulo é uma tarefa

recente proposta de J. L. Sumney. Ele adotou uma

de reconstrução para os estudiosos, visto que 1

metodologia baseada numa “abordagem minima­

e 2Coríntios são os línicos dados de que dispo­

lista” para identificar os adversários de Paulo. A

mos, embora material proveniente de Filipenses

proposta de Sumney inclui: 1) ênfase na priorida­

(quando essa carta é datada no período de Paulo

de da exegese num “método centrado no texto”;

em Éfeso) tenha sido introduzido por alguns es­

2) insistência numa avaUação equilibrada das de­

tudiosos (v. comentários).

vidas fontes; 3) apUcação rigorosamente limitada

Desde o século xvii, os estudiosos têm apre­

da “técnica de espelhamento” (i.e., a prática de

sentado três teorias básicas sobre a identidade

ler as afirmações de Paulo como reflexo direto das

dos adversários de Paulo em 2Coríntios. A elabo­

ideias contrárias de seus adversários); 4) rejeição

ração dessas hipóteses foi, predominantemente,

à tentativa de abordar o texto a partir de uma

resultado da leitura dos argumentos de Paulo em

reconstrução previamente determinada e funda­

contraste direto com as opiniões de seus adver­

mentada externamente. Mas, tendo em vista a

sários (a denominada técnica de espelhamento).

história da pesquisa, é significativo que Sumney,

As teorias propostas são: 1) gnósticos; 2) judai-

ao aplicar seu método a 2Coríntios, não ofereça

zantes legalistas semelhantes àqueles que Paulo

nenhuma ideia nova sobre a identidade dos ad­

combatia em outros lugares; 3) uma mistura de

versários de Paulo. Sumney conclui concordando

elementos legalistas e gnósticos e/ou ardorosos

com a proposta anterior de E. Kãsemann, segun­

e espirituais de várias tendências. Esses são os

do a qual os adversários por trás de 2Coríntios

pontos de vista principais, que têm sido repeti­

10— 13 eram espiritualizantes, não judaizantes,

damente aprimorados e combinados de várias

tampouco os gnósticos ou os “homens divinos”

maneiras, de modo que, entre 1908 e 1940, um

de Georgi, e que o pouco espaço de tempo en­

línico estudioso expressou nada menos de onze

tre os fragmentos de 2Corintios 1—9 e 2Coríntios

sugestões diferentes sobre 2Coríntios. Desde en­

10— 13 leva à “conclusão razoável” de que nos

tão, essas três opiniões básicas foram defendidas

dois casos os adversários fazem parte do mesmo

vigorosamente por R. Bultmann e W. Schmithals

grupo

(a hipótese gnóstica), C. K. Barrett (a hipótese ju-

(S

um ney,

p. 183).

Hoje, a hipótese gnóstica está morta em razão

daizante) e D. Georgi (espiritualidade helem'stico-

da falta de provas da existência do gnosticisimo

judaica e missionários de origem palestina que

na era pré-cristã ou do

esposavam a teologia do “homem divino” [theios

gi, com sua reconstrução baseada em missioná­

anêr] centrada em Moisés).

rios judeus antigos e a compreensão de Moisés

nt

. E

a proposta de Geor­

Depois do surgimento dessas abordagens,

como um “homem divino”, enfrenta sérias crí­

o úrúco grande estudo sobre os adversários de

ticas. A saída para o impasse é perceber que o

Paulo em geral. St. Paul’s opponents and their

motivo da preocupação dos judaizantes com a

background, de J. J. Gunther, não ofereceu uma

Lei não era apenas o desejo de manter sua tradi­

metodologia nova nem apresentou uma saída cla­

ção, mas também de ter acesso a uma experiên­

ra para o impasse. A tese de Gunther é de que

cia mais profunda do Espírito (v.

0 ambiente dos adversários de Paulo deve ser

0 divórcio artificial entre a Lei e o Espírito, que

encontrado nos escritos de Qumran e nos textos

leva os estudiosos a postular dois tipos distintos

apócrifos judaicos, de modo que os adversários

de adversários, tem, portanto, de ser superado.

de Paulo são originários de um judaísmo mís­

Com base na herança judaica, a questão suscita­

tico, apocalíptico, ascético, não conformista e

da pelos adversários de Paulo era essencialmente

251

E s p í r it o S a n t o ) .

C oríntio s , cartas aos

a mesma levantada pelos coríntios, baseados em

a cruz (cf. ICo 1.10—4.21) e a ressurreição de

sua cosmovisão helenística: como alguém conse­

Cristo (ICo 15) emolduram teologicamente a in­

gue participar plenamente do poder do Espírito?

sistência de Paulo, vista em toda ICoríntios, na

A resposta dos adversários baseava-se numa teo­

ligação inextricável entre fé e obediência. No final

logia de glória plenamente realizada, segundo a

das contas, portanto, ICoríntios demonstra que

qual a participação no evangelho que anuncia­

a eclesiologia e a escatologia estão arraigadas na

vam, o qual era vinculado à antiga aliança, as­

maneira em que Cristo é entendido “segundo as

segurava que a pessoa estava livre do pecado e

Escrituras” (cf. ICo 15.3-5).

do sofrimento neste mundo. No centro do debate,

Em 2Coríntios, o tema central passa a ser a

estava a relação entre a antiga aliança e a nova

relação entre o sofrimento e a glória conforme

aliança, surgida na questão da autoridade e papel

determinados e ilustrados na experiência apos­

de Moisés e da Lei em relação ao papel de Paulo

tólica de Paulo. Aqui também os argumentos de

como apóstolo de Cristo e mediador do Espírito

Paulo estão fundamentados em sua escatologia e

(cf. 2C0 2.16; 3.14-18).

cristologia, ambas desenvolvidas dentro de um arcabouço do

at

e consistentemente aplicadas

à

6. Temas teológicos de 1 e 2Coríntios

sua vida de apóstolo. A ideia de Paulo é tão sim­

É notável que em ICoríntios a maioria das or­

ples quanto profunda. Em vez de questionar sua

dens gire em torno de algum aspecto da unidade

legitimidade como apóstolo, os sofrimentos de

da igreja (cf. ICo 1.10; 3.1-3; 4.14,16; 5.4,5,7,8;

Paulo são um veículo que Deus determinou para

6.1,4,6,7,18,20; 8.9,13; 10.14; 11.33,34; 12.14

validar seu apostolado e revelar o conhecimento

etc.). Fica claro que a preocupação básica de

de seu poder e glória, agora revelados no evange­

Paulo são a natureza e a vida verdadeiras da

lho de Cristo. O ministério paulino do sofrimen­

igreja, tornando a eclesiologia o tema principal

to e do Espírito não constitui uma tensão não

de ICoríntios. Na condição de “igreja de Deus”

resolvida que questione sua suficiência como

(ICo 1.2), os coríntios são “ santuário de Deus” ,

apóstolo da verdade, pois tanto a cruz quanto o

pelo fato de terem recebido o Espírito Santo

poder divino da ressurreição estão se revelando

(ICo 3.16,17; 14.24,25), e o “corpo de Cristo” ,

na vida de sofrimento divinamente ordenada de

pelo fato de estarem submissos ao senhorio de

Paulo. E, conquanto nem em ICoríntios nem em

Cristo (ICo 6.17; 10.17; 11.29; 12.12-16,27). Mas,

2Coríntios exista alguma convocação a todos os

ao concentrar a atenção nos coríntios como povo

cristãos para o sofrimento nem sinal de uma teo­

de Deus, o arcabouço escatológico da teologia

logia do martírio, Paulo afirma que o povo de

paulina também fica em relevo em ICoríntios.

Deus, sempre que é levado a passar pela mes­

Por toda a carta, Paulo se esforça para deixar cla­

ma espécie de sofrimentos a que ele foi chama­

ro que, embora já tenha chegado a alvorada do

do como apóstolo, também se tornará veículo

reino de Deus, o que fica demonstrado no poder

para a manifestação do poder de Deus em meio

da ressurreição de Cristo e no derramamento do

ã adversidade (2Co 1.7). Em apoio a essa ideia

Espírito na vida dos coríntios (cf. ICo 4.20), as­

principal e ao raciocínio apologético correspon­

sim mesmo o reino ainda não está aqui em sua

dente a favor de sua autoridade apostólica, Paulo

plenitude, uma ressalva claramente vista no so­

esboça a natureza da nova aliança em relação

frimento de Paulo e na natureza qualitativamente

à

diferente da futura ressurreição corpórea e do fim

nova criação no meio da antiga (2Co 4.6— 5.21)

aliança do Sinai (2Co 3.6-18), a natureza da

dos tempos. Ao mesmo tempo, Paulo também

e 0 alicerce cristológico para viver em razão dos

precisa deixar claro aos coríntios que, conquan­

outros porque agora se vive por causa de Cristo

to o reino de Deus ainda não esteja presente em

(2Co 5.15; 8.1-9.14).

sua plenitude, a vida ética do seguidor de Cristo ainda deve ser controlada pela realidade alvore-

Ver também C r is t o ;

a d v e r s á r io s ;

e s c a t o l o g ia ;

apó sto lo ;

E s p í r it o S a n t o ; L

c o r po

de

e i ; r e s s u r r e iç ã o .

cente da era vindoura, na qual o Espírito capaci­

D P c : a u t o r id a d e ; c o l e t a p a r a o s s a n t o s ; c r u z , t e o ­

ta a pessoa a guardar os mandamentos de Deus

l o g i a d a ; d o n s d o e s p ír it o ; g l ó r i a , g l o r i f i c a ç ã o ; M o i ­

(cf. ICo 5.7,8; 6.1-6; 7.29-31; 10.11 etc.). Por isso.

s és; p o d e r ; s a b e d o r ia ; s o f r i m e n t o .

252

C orpo de C risto : Paulo

B

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313-5.

o r ín t io s ,

C artas

aos.

Ver b a t is m o

h i.

Os escritos paulinos empregam a expressão exata “corpo de Cristo” apenas quatro vezes (to sõma

1

tou Christou: Rm 7.4; ICo 10.16; Ef 4.12; sõma Christou, ICo 12.27). Há também expressões equivalentes: “o corpo do Senhor” (ICo 11.27);

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P h ila ­

Cl 1.24); “meu corpo” (ICo 11.24). Intimamente

St. Paul’s

relacionados com as expressões acima estão os

a study of a p o ­

termos “ o corpo” (IC o 11.29; Ef 5.23; Cl 1.18;

calyptic a n d J ew ish sectarian teachings. Leiden ;

2.19) e “um só corpo” (Rm 12.5; ICo 10.17;

d elp h ia: Fortress,

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■ G unther , J. J.

opponents and their background:

253

C orpo de C risto : Paulo

adoração a ídolos (ICo 10.14), sugere que, pela

12.13; Ef 2.16; 4.4; Cl 3.15). Essas 21 expressões podem, de acordo com o contexto, seguindo o

analogia do corpo em ICoríntios 10.16,17, a men­

esboço abaixo, ser classificadas em três grupos.

sagem de Paulo não é tanto a unidade do cor­

É significativo, porém, que todas digam respeito

po formado por cristãos, mas sua solidariedade

ou ao corpo físico (crucificado ou ressurreto) de

como único corpo em união com Cristo, o que

Cristo ou ao corpo metafórico de Cristo, a igreja.

impede uma união semelhante com demônios

1. O corpo físico de Cristo

(cf. ICo 10.21). Isso implica que o “um só corpo”

2. 0 corpo de Cristo em contextos eucarísticos

de ICoríntios 10.17 se refere ao corpo de Cristo,

3. 0 corpo de Cristo como designação da

a igreja. Uma mudança semelhante, em que o signifi­

igreja

cado deixa de ser o corpo crucificado de Cristo e 1. O corpo físico de Cristo

passa a ser a igreja como corpo de Cristo, ocorre

Em Romanos 7.4, “o corpo de Cristo”, que é o

em ICoríntios 11.23-32. Por ocasião da instituição

instrumento por meio do qual os crentes foram

da ceia do Senhor, o pão significa ou representa

considerados mortos e, desse modo, livres da

0 corpo concreto de Cristo que está na iminência

Lei, refere-se ao corpo físico de Cristo em que ele

de ser oferecido na cruz (ICo 11.24). Em decor­

sofreu a morte na cruz. De modo semelhante, o

rência disso, comer o pão de modo indigno é ser

“corpo da sua carne” é um hebraísmo (com pa­

culpado do “corpo [...] do Senhor” (ICo 11.27).

ralelos em Qumran) que denota o corpo físico de

Há consenso de que essa expressão seja uma refe­

Cristo, que mediante a morte se tornou o meio

rência ao corpo crucificado de Jesus, por estar li­

pelo qual reconciliou pecadores consigo mesmo.

gada (cf. ICo 10.16) ao “ sangue do Senhor”. Mas

0 acréscimo “carne” insiste, opondo-se à heresia

a expressão “ sem discernir o corpo” , em ICorín-

colossense, na verdadeira humanidade do Jesus

tios 11.29

encarnado. Em Filipenses 3.21, o “corpo da sua

deixa de discernir no pão da eucaristia o corpo do

glória” opõe-se, num paralelismo antitético, ao

Senhor entregue na cruz (cf. ICo 11.24,27), mas

“corpo da nossa humilhação” e se refere ao corpo

a deixar de reconhecer no grupo de crentes reuni­

ressurreto com o qual se aguarda o retorno do

dos para a ceia do Senhor o corpo metafórico de

Senhor Jesus do céu (cf. Fp 3.20).

Cristo (ICo 10.17), erro que resultou nos vergo­

(ara),

talvez não se refira àquele que

nhosos abusos descritos em ICoríntios 11.17-22 2. O corpo de Cristo em contextos

(B o r n k a m m ,

p. 190-5).

eucarísticos Às vezes, em ICoríntios, o conceito de corpo apa­

3. O corpo de Cristo como designação da

rece associado bem de perto à eucaristia, ou

igreja

c eia

Os textos revelam uma relação íntima

Esse emprego do conceito de corpo, do qual dois

entre o corpo físico de Cristo, que foi crucificado,

exemplos já foram mencionados (ICo 10.17;

DO S e n h o r .

11.29), é peculiar a Paulo no

e a igreja como o corpo do Cristo ressuscitado.

nt.

Antes de exami­

Desse modo, ingerir o cálice e o pão na eu­

nar o uso do conceito nos demais escritos pauli­

caristia tem o sentido de participar do sangue e

nos, analisaremos as questões sobre a origem e a

do corpo de Cristo (ICo 10.16), ou seja, dos be­

natureza desse conceito.

nefícios de sua morte e da comunhão com ele. O

3.1

A origem do conceito. Já houve muita

paralelismo estrito entre “ o corpo de Cristo” e "o

especulação acerca das possíveis fontes que Pau­

sangue de Cristo” mostra que aquele se refere ao

lo utilizou para a ideia de “corpo de Cristo”. 1)

corpo de Jesus entregue à morte (cf. ICo 11.24) e

No passado, costumava-se associá-la ao concei­

que este diz respeito ao sangue derramado como

to gnóstico de homem primevo, cujo corpo era

expiatório (cf. ICo 11.25; v. Jeremias). Assim

concebido como cósmico (cf.

como existe um único pão na eucaristia, de igual

m a n n ).

modo os que participam conjuntamente do único

pelo fato de os indícios serem tardios (séc. iii).

B u ltm ann

e

K ase-

Hoje, a ideia é em geral desconsiderada,

pão constituem um único corpo (IC o 10.17). 0

2) Com certeza, é exagerada a ideia de que o

contexto, com a exortação de ficarmos longe da

templo de Asclépio, com suas ofertas votivas de

254

C orpo de C risto : Pa ulo

p a rte s d e s m e m b ra d a s d o c o r p o q u e fo ra m c u ra ­

1)

sid o

0

de membros interdependentes é um clichê es-

e le m e n t o c a ta lis a d o r p a ra a fo r m a ç ã o d o

c o n c e ito p a u lin o

(H ill).

3)

A comparação do Estado {polis] ou Estado

mundial [cosmopolis] com um corpo constituído

d a s re p re s e n ta d a s e m im a g e n s d e b a rro , te n lia m

toico e, como ressalta C. F. D. Moule (p.

P a re c e d u v id o s a a

84 -5 ),

p r o p o s ta d e q u e a e x p re s s ã o p a u lin a “ c o r p o d e

paralelos bem claros com o emprego paulino da

C r is to ” ten h a s id o cria d a c o m b a s e na a n a lo g ia

analogia são dados, por exemplo, por Sêneca,

c o m a e x p re s s ã o “ c o r p o d e A d ã o ” , s u p o s ta m e n ­

que se dirige a Nero como “a alma da república

te im p líc ita n o u so r a b ín ic o (v . Davies) ou , p e lo

[que] é 0 teu corpo” [De cl,

m e n o s , in flu e n c ia d a p e la id e ia ju d a ic a d e “ c o r p o

bém se refere a Nero como a cabeça, de quem

d e A d ã o ” (J e w e t t ), v is to q u e n a litera tu ra rab í-

depende a boa saúde do corpo, que é o império {De cl,

n ic a n ã o h á e x e m p lo s d is p o n ív e is d a e x p re s s ã o “ c o rp o d e A d ã o ” , e

é

2 .2 .1 ).

Sêneca tam­

Diz ainda; “Somos membros de um

grande corpo”

r e c o n h e c id o q u e “ a id e ia

1 .5 .1 ).

(S ê n e c a ,

Ep mo,

9 5 .5 2 ).

Filo, num

ju d a ic a d o c o r p o d e A d ã o n ã o n o s o fe r e c e u m

contexto diferente, afirma que, quando oferece

sõma

sacrifício pela nação, ele tem o propósito de que

p a r a le lo e x a to c o m o c o n c e ito p a u lin o d e

Christou

[c o r p o d e C r is t o ]” (J e w e tt, p. 2 4 5 ). 4 ).

“cada idade [de pessoas] e todas as partes da na­

A id e ia (R aw lin son e C onzelm ann) d e q u e P a u lo

ção sejam fundidos numa única e mesma família,

b a s e o u su a e x p r e s s ã o “ c o r p o d e C r is to ” n a tra ­

como se fosse um único corpo” {Sp le,

d u ç ã o e u c a rís tic a — p o r o c a s iã o d a eu c a ris tia a

2)

3.131).

Paulo estava familiarizado com o conceito

hebraico de “personalidade corporativa” , com sua

p a r tic ip a ç ã o s a c ra m e n ta l a d q u ir id a n o c o r p o d e C risto to r n a o s p a rtic ip a n te s o c o r p o d e C risto

oscilação entre o indivíduo e a corporação, e sua

“comer

noção sobre a inclusão dos muitos num só: pode

p. 8 7 ). 5)

se considerar que um personagem que sobressai

— d e p a r a c o m a s im p le s o b je ç ã o d e q u e

0

co rp o n ã o

é ser o

c o rp o ” (M

oule ,

É p o u c o p r o v á v e l a p r o p o s ta d e q u e P a u lo , c o m

(e.g.,

b a s e n o c o n c e ito d e Is ra e l c o m o n o iv a d e D eu s

sua pessoa, aqueles nela representados. É essa

A d ão; A b ra ã o;

Noé; Moisés) incorpora, em

(Jr 2 .2 ) e m e d ia n te a t e o lo g ia d a n o v a a lia n ç a (v.

ideia de solidariedade entre o um e os muitos, da

ALIANÇA, NOVA

união entre crentes e Cristo, que Paulo enfatiza em

a l ia n ç a )

, ten h a d e s e n v o lv id o o c o n ­

c e ito d e “ c o r p o d e C r is to ” c o m o p a r a le lo p a ra o

sua apresentação da igreja como corpo de Cristo.

n o v o Isra el, a ig r e ja (B ass , p. 5 3 0 -1 ), v is to q u e a

A

lin h a m a is ló g ic a d e d e s e n v o lv im e n t o

é

analogia, de um lado, entre todos os homens

e mulheres “em Adão” pelo nascimento natural

d e Isra el

c o m o n o iv a d e Jesu s p a ra a ig r e ja c o m o n o iv a d e

e, de outro, entre todos os crentes “em Cristo” ,

C risto . 6 ) A a fir m a ç ã o d e q u e G ê n e s is 2 .2 4 — “ 0

em razão do novo nascimento (Rm

h o m e m debcará seu p a i e su a m ã e e se u n irá à

ICo

su a m u lh er, e e le s s e rã o u m a só c a r n e ” (c it. e m

logia paulina.

E f 5.31) — “ p a r e c e p r o p o r c io n a r a ló g ic a b íb lic a

1 5 .2 2 ,4 5 ),

3)

5.12-21;

é um elemento importante da teo­

A ideia de solidariedade entre Cristo e seu

povo encontra expressão no ensino de Jesus

e o a lic e r c e c o n c e itu a i pa ra o e n te n d im e n to q u e , a o lo n g o d e su as ca rta s, o a p ó s to lo d e m o n s tr a

(Mc

a c e rc a d o c o n c e ito d e ig r e ja c o m o c o r p o d e C ris­

na associação que o Senhor ressurreto faz de si

t o ” (E llis , p. 4 2 ) fa z le m b ra r a te n ta tiv a , fe ita p o r

mesmo com seu povo perseguido (At

C. Chavasse,

quanto seja provavelmente impossível ter certeza

d e id e n tific a r a o r ig e m d a e x p re s s ã o

9 .37

par.; cf. Mt

18.5; 2 5 .4 0 )

e está implícita 9 .4 ).

Con­

p a u lin a n a u n iã o n u p c ia l e m q u e n o iv o e n o iv a

absoluta sobre a origem exata (ou as origens exa­

se to r n a m “ u m a ú n ic a c a r n e ”. M a s p a ra F. F B ru ­

tas) da expressão pauhna, pode ser que Paulo a

c e “ ta n to a a p lic a ç ã o e u c a rís tic a q u a n to a n u p ­

tenha cunhado com base na imagem costumeira

c ia l d o p e n s a m e n to d e P a u lo a r e s p e ito d e r iv a m

que a filosofia popular fazia do corpo e no concei­

d e se u c o n c e ito d e ig r e ja c o m o c o r p o d e C risto ,

to hebraico de personalidade corporativa, sendo

n ã o o c o n tr á r io ” (B r u c e , 1984, p . 69, n. 141).

as palavras do Jesus ressuscitado ditas a Paulo na

Em vez de ser algo que se possa atribuir a

estrada de Damasco o germe da concepção em

imia só fonte, o mais provável é que o conceito

sua mente ou, então, o elemento catalisador para

de corpo de Cristo seja resultado da interação de

a formação da expressão peculiar a Paulo (v. Kim,

algumas influências.

p.

255

2 5 2 -6 ).

C orpo de C risto : Paulo

3.2 A natureza do conceito. Fica óbvio que

indivíduo crente com o Senhor: não há nenhu­

0 conceito de corpo de Cristo não é usado ale-

ma referência aos crentes como uma entidade

goricamente. Em ICoríntios 12, por exemplo, as

corporativa.

diferentes partes do corpo não representam indi­

Mais tarde, na mesma carta, Paulo diz à con­

víduos ou segmentos diferentes da igreja de Co­

gregação local de Corinto: “Vós sois corpo de

rinto. Já foi dito que a expressão “corpo de Cristo”

Cristo e, individualmente, membros desse corpo”

(no sentido de igreja) “é empregada realística,

(ICo 12.27; a expressão grega não traz artigo an­

ontológica e, por isso, metafórica, simbólica ou

tes de “corpo” nem antes de “ Cristo” , mas é como

p. 256-7, n. 1),

se ambos os substantivos tivessem o artigo — um

porém o mais costumeiro é descrever seu uso ou

exemplo da regra gramatical conhecida como “câ­

analogicamente”

( R ic h a r d s o n ,

como realístico/ontológico ou analógico/metafó­

none de Apolônio”). Essa metáfora surge como

rico. 0 entendimento realístico da expressão, de­

um sumário e clímax dos quinze versículos pre­

fendido por estudiosos como A. Schweitzer, para

cedentes (ICo 12.12-26), em que a natureza do

quem os eleitos entram em união corpórea com

conceito de corpo como símile é claramente in­

0 Cristo ressuscitado, e J. A. T. Robinson, para

dicada na frase inicial: “Assim como

quem a igreja está literalmente identificada com o

corpo é uma só unidade e tem muitos membros

[k a t h a p e r ]

o

corpo ressurreto de Cristo, viola os claros indícios

[...] assim também

de uma comparação apresentados em Romanos

ção a Cristo” (ICo 12.12; cf.

12.4,5 e ICoríntios 12.12 (“assim também [...]

um só corpo” [grifo nosso]). Uma vez que Paulo

assim como”). Além disso, ignora a cuidadosa

não diz: “... assim também é a igreja” nem “... o

[h o u tõ s ]

acontece com rela­ neb:

“ Cristo é como

distinção entre a ressurreição de Cristo no passa­

corpo de Cristo” , mas apenas “ [o] Cristo” , alguns

do e a (ainda aguardada) ressurreição dos crentes

intérpretes concebem a ideia de Cristo como o

no futuro. Podemos, portanto, com o apoio da

todo, do qual os vários membros são parte. Con­

maioria dos intérpretes protestantes de tempos

tudo, tendo em vista ICoríntios 12.27, 28, parece

recentes, entender o conceito de corpo de modo

melhor considerar que aqui Paulo está fazendo

metafórico, não literal, biológico ou místico.

uso de metonímia ( “corpo de Cristo” no lugar de

3.3 O conceito no uso de Paulo. Podem se

“Cristo”) ou omitindo o passado lógico interme­

distinguir duas etapas no uso que Paulo faz do

diário: o próprio Cristo pode ser descrito como

conceito de corpo quando se refere

um corpo com muitos membros, uma vez que a

ã ig r e ja :

em

grande parte como um símile, em ICoríntios e Romanos (a igreja é como um corpo); como uma

igreja é o corpo de Cristo. Dentro desse “ um só corpo” é que os crentes

metáfora, em Colossenses e Efésios (a igreja é o

— aqui o “todos nós” [hêmeisp a n t e s ,

corpo do qual Cristo é a cabeça). “ 0 avanço da

se referir a um grupo maior que o “vós” [hymeis]

linguagem de símile em ICoríntios e Romanos

do versículo 27 e poderia incluir todos os cristãos

para a de envolvimento interpessoal real expres­

— batizados num só Espírito (ICo 12.13; presumi­

ara]

parece

so no linguajar de Colossenses e Efésios pode ter

velmente, 0 batizante é Cristo: cf. Mt 3.11; Lc 3.16;

sido estimulado pelas considerações, feitas por

V. E s pírito S a n t o )

Paulo, sobre as questões envolvidas na heresia

te, por desígnio divino (ICo 12.18), uma multi­

colossense”

plicidade de membros e funções (ICo 12.14-16),

3.3.1

( B ru ce ,

1977, p. 421).

. Dentro desse corpo único exis­

As primeiras cartas: ICoríntios e Roma­ necessária não apenas para o corpo como um

nos. Diz ICoríntios 6.15 que os corpos dos crentes

todo (ICo 12.17,19,20), mas também para os

são “membros de Cristo”. Aqui a palavra “mem­

membros (ICo 12.21), os quais estão todos en­

bros”

significa “partes do corpo” , deixando

volvidos numa solidariedade de experiência ou

implícito que os crentes são membros do “corpo”

unidade de destino (ICo 12.26). Por conseguinte,

[m e lé ]

de Cristo. No entanto, Paulo passa imediata­

não há espaço para ressentimentos resultantes de

mente a falar do próprio corpo como “membros

um senso de inferioridade (IC o 12.15,16) nem

[plural] de Cristo”, que ele não transformará em

para a arrogância que surge do senso de supe­

“membros de uma prostituta”. Isso mostra que

rioridade (ICo 12.21). Aliás, os membros deno­

aqui sua preocupação está no relacionamento do

minados “ mais fracos” do corpo humano são, na

256

C orpo de C risto : Paulo

verdade, indispensáveis [ICo 12.22). E, mais uma

num sentido “ecumênico”, por amor de quem os

vez por desígnio divino (ICo 12.24), está em ação

apóstolos sofrem. Colossenses 1.18 chama Cristo

no corpo humano certo princípio de compensa­

“cabeça do corpo, que é a igreja”.

ção ou complementaridade que, conforme Paulo

A maioria dos estudiosos acredita 1) que Co­

deixa implícito, proporciona um padrão para a

lossenses 1.15-20 é um hino pré-pauUno inserido

conduta cristã (ICo 12.23-25).

na linha de raciocínio da carta; 2) que nesse hino

As mesmas locuções correlativas emprega­

o “corpo” cujo “cabeça” é Cristo é originariamen­

das em ICoríntios 12.12 aparecem em Roma­

te o Universo, ou cosmo; 3) que a expressão “a

nos 12.4,5: “Assim como [kathaper] em um corpo

igreja” , em Colossenses 1.18, é uma glosa acres­

temos muitos membros [...] assim também [hou­

centada por Paulo ou pelo redator final da carta,

tõs] nós, embora muitos, somos um só corpo em

de modo a reinterpretar a referência cosmológi-

Cristo”. Assim como em ICoríntios 12.27 o símile

ca original de acordo com ideias eclesiológicas

do corpo é aplicado à congregação local de cris­

(S c h w e it z e r ,

tãos, com uma mudança terminológica de “o cor­

questionada (v., e.g.,

po de Cristo” para “um só corpo em Cristo” , a

versículo (Cl 1.18) pode ser entendido simples­

última expressão destaca a ideia de que a unidade

mente como está. 0 resultado é que a igreja como

orgânica dos cristãos como um corpo está alicer­

corpo de Cristo está agora definitivamente rela­

p. 1074-7). Essa teoria, porém, foi O ’ B r ie n ,

1982, p. 48-9): o

çada na incorporação comum em Cristo. Contu­

cionada a Cristo, de quem ele é a cabeça. Embora

do, uma vez que é razoável considerar que esses

uns poucos estudiosos (de forma mais notável

dois versículos de Romanos sejam um sumário do

R id d erb o s ,

tratamento mais abrangente de ICoríntios 12.12-

outros textos paulinos “cabeça” e “corpo” não

p. 379-83) insistam em que nesse e em

26, 0 “um só corpo em Cristo” refere-se à mesma

formem uma metáfora, mas devam ser conside­

reahdade também como “corpo de Cristo”.

rados imagens independentes, a leitura natural

Em ICoríntios 12 e Romanos 12, o tema da

do presente texto parece mostrar com clareza um

imagem do corpo é o de “um só corpo, muitos

relacionamento orgânico em que Cristo, a cabeça,

membros”, de “ diversidade dentro da unidade”

exerce controle sobre seu corpo, a igreja.

da igreja como corpo de Cristo. Até agora, a figu­

Em Colossenses 2.19, a metáfora apresenta o

ra do corpo enfatiza, basicamente, os relaciona­

novo elemento de crescimento: Cristo, como ca­

mentos e obrigações mútuos que os crentes têm

beça do corpo, é a fonte do crescimento do corpo

uns com os outros e, secundariamente, sua união

[ex hou, “de quem [Cristo]” , em vez de ex hês,

com Cristo, mas a imagem deixa indefinida a exa­

“da qual [cabeça]” , provavelmente um exemplo

ta relação que a igreja como corpo de Cristo tem

de construção conforme o sentido). A ideia se­

com Cristo: em ICoríntios 12.21, a “cabeça” do

guinte, de 0 corpo inteiro ser entretecido e crescer

corpo é, aparentemente, algum membro presun­

junto, é apropriada, tendo em vista o fato de que

çoso da igreja local.

ser cabeça envolve direção e controle. W. A. Gru­

3.3.2

As cartas posteriores: Colossenses e Efésios. dem apresenta vários textos de Filo e Plutarco e

Apesar das aparências, em Colossenses 2.17 as pa­

também de Platão que dizem explicitamente ser

lavras finais no grego [to de sõma tou Christou] não

a cabeça a parte que governa o corpo.

são uma referência ao “corpo de Cristo”, mas signi­

Desse modo, em Colossenses o uso da metá­

ficam “a substância [em contraste com a sombra]

fora de corpo difere daquela das cartas anteriores

pertence a Cristo”. Em Colossenses 3.15, os crentes

pelo fato de que se abandona a aplicação explí­

de Colossos são descritos como pessoas que foram

cita ao relacionamento mútuo entre os crentes —

chamadas para “um só corpo”, por isso são mem­

embora a noção de sua união e funcionamento

bros de um único organismo. Se esse organismo,

harmoniosos estejam implícitos na descrição de

possivelmente por imphcação, for o corpo de Cris­

Colossenses 2.19 — e se introduz em seu lugar a

to, então, como nas duas cartas anteriores, temos

direção de Cristo como cabeça e o crescimento da

aqui a mesma ênfase na unidade do corpo de Cris­

igreja como um organismo vivo.

to. Em Colossenses 1.24, o corpo de Cristo é defi­

Conquanto nas três cartas já examinadas o ter­

nitivamente identificado como a igreja, claramente

mo “corpo” seja também usado de outras formas.

257

C orpo de C risto : Paulo

em Efésios é empregado exclusivamente em co­

Ef 4.13), ocorre 1) quando o corpo está devida­

nexão com a igreja. Aqui a metáfora é desen­

mente ligado à cabeça, firmemente presa a ela

volvida de modo ainda mais abrangente que em

(cf. Cl 2.19) e dela recebe sustento (cf. Ef 1.23);

Colossenses ou pelo menos suas implicações são

2) quando os membros do corpo estão devida­

formuladas de maneira mais explícita. Em Efé­

mente ligados uns aos outros, cada um dando

sios 1.22,23, a igreja é chamada “corpo de Cris­

sua contribuição, de acordo com a medida de seu

to”, e Cristo é a “cabeça suprema”

0 texto

dom e função, para a edificação do todo em amor.

introduz um elemento inteiramente novo: Cristo

É menos provável a leitura alternativa de Efésios

enche seu corpo da mesma forma em que preen­

4.16 que considera que os particípios (traduzidos

che o Universo. (Interpretamos passivamente o

na ARA por “ajustado e consolidado”) não indicam

substantivo plêrõma, “plenitude” , e o particípio

0 relacionamento mútuo entre os crentes, mas o

( n eb ) .

plêroumenou como voz média, “enchendo”, em

relacionamento entre crentes, de um lado, e Cris­

vez de passivo, “ sendo cheio”; cf. Ef 4.10.) Em

to, de outro. Também não é provável que “todas

Efésios 2.16, a expressão “ um só corpo” , no qual

as juntas” , de Efésios 4.16, se refira ao ministério

ocorrem a reconciliação do judeu (v.

de Efésios 4.11, interpretação segundo a qual es­

I sra e l )

e do

gentio com Deus e a reconciliação entre o judeu

sas juntas seriam os ligamentos que unem a igre­

e o gentio, é uma referência à igreja (o mesmo

ja a Cristo (como defendido por

L

in c o l n ,

ad loc.).

Em Efésios 4.25, o fato de os crentes serem

que o “ novo homem” de Ef 2.15), não ao corpo crucificado de Cristo. A favor dessa conclusão

“ membros uns dos outros” (cf. Rm 12.5), com o

acham-se o emprego de “um só corpo”, em vez

sentido de “membros no ‘um só corpo’, que é o

de “seu corpo” , e a ordem da expressão “ambos

corpo de Cristo”, proporciona a motivação para

em um só corpo” {tous amphoterous en heni sõma-

relações honestas uns com os outros. Em Efésios

ti). Aqui a unidade do corpo, que não diz respei­

5.23, a construção no grego descreve Cristo como

to a indivíduos, mas a duas grandes divisões da

“cabeça da igreja” e “ o Salvador do corpo”, não

humanidade (cf. Ef 3.6, que utiliza um adjetivo

exatamente como “a cabeça de seu corpo, a igre­

cognato, syssõmos, “corporativo” , “ que partilha

ja” , nem mesmo “cabeça da igreja, seu corpo” , de forma que é possível alegar que, pelo

do mesmo corpo”), apresenta mais uma vez um

(rsv;

novo aspecto da metáfora do corpo, mas o “um

menos aqui, “cabeça” e “corpo” não formam uma

só corpo” não é especificamente chamado corpo

imagem composta. No entanto, o fato de Efésios

n v í)

“ de Cristo”. Semelhantemente, em Efésios 4.4 o

5.30 dizer que os crentes são “membros do seu

“ um só corpo” vivificado por “um só Espírito”

corpo” sugere que, também em Efésios 5.23, a

(que em Efésios 2.18 cria a unidade do “um só

descrição de Cristo como “cabeça da igreja” en­

corpo” de crentes judeus e gentios) é distinto do

volve a figura correlata da igreja como seu corpo

“um só Senhor” de Efésios 4.5, sendo uma sim­

(cf. Ef 1.22,23; 4.15,16), muito embora não haja

ples descrição da comunidade cristã como unida­

essa correspondência no relacionamento entre

de. A unidade do corpo proporciona a motivação

marido e mulher. Desse modo, a metáfora do corpo em Efésios

para manter a unidade do Espírito (Ef 4.3). Em Efésios 4.12-16, texto em que a igreja é

combina as expressões do conceito empregadas

de novo (cf. Ef 1.22,23) designada como corpo de

anteriormente nas outras três cartas e vai além

Cristo (Ef 1.22), a unidade da igreja é outra vez

delas, mostrando que a igreja foi preenchida por

(como já visto em Ef 4.4, Rm 12 e ICo 12) des­

Cristo e, na sua unidade, abarca judeus e gentios.

crita em termos de membros individuais, e sua

Outro aspecto do uso da metáfora do corpo em

dependência mútua é considerada necessária

Efésios, 0 qual também é especialmente digno de

para o crescimento do corpo, sobre o qual se afir­

nota, é a fusão com outras metáforas da igreja. 0

ma que tanto procede de Cristo (Ef 4.16: ex hou,

edifício do templo cresce (Ef 2.21) ao mesmo tem­

“ de quem” , como em Cl 2.19) quanto é para ele

po que 0 corpo é edificado (Ef 4.16; cf. 4.12). Em

(Ef 4.15: eis auton, “ naquele” , “para aquele”).

Efésios 5.22,23, passagem em que o conceito de

Parece indicar que o crescimento do corpo, que

união corpórea propicia o vínculo entre as ideias

tem como objetivo a conformidade a Cristo (cf.

(Gn 2.24; Ef 5.31), a figura da igreja como corpo de

258

C o r p o d e C r is t o : P a u l o

Cristo é suplementada pela figura do corpo. Os as­

4) Cristo, na condição de cabeça, está não so­

pectos gêmeos do senhorio de Cristo sobre a igreja

mente unido à igreja, seu corpo, sendo fonte de

e de sua união com ela, os quais estão ligados ao

vida para ela, mas também acima dela, como seu

conceito de corpo, são apresentados de modo a

governante absoluto (Cl 1.18; Ef 1.22,23; 4.15;

ilustrar e enfatízar 1) a obrigação que a igreja tem

5.23), preenchendo-a com todos os recursos de

para com Cristo (a esposa [cf. a igreja como cor­

seu poder e graça (Ef 1.23).

po] deve estar sujeita ao marido [cf. Cristo como

5) A igreja cresce na medida em que seus

cabeça]); 2) o amor de Cristo pela igreja (o marido

membros se relacionam devidamente com Cristo,

deve amar a esposa como ao próprio corpo, assim

sua cabeça, e uns com os outros como membros

como Cristo [a cabeça] amou a igreja [seu corpo]).

do mesmo corpo (Cl 2.19; Ef 4.16) .

3.3.3

Resumo e conclusão. À guisa de resumo

6) A combinação de metáforas talvez indique

e conclusão, com base no emprego paulino do

não haver uma metáfora única, em si mesma

conceito de corpo de Cristo como designação da

suficiente para transmitir a mensagem completa

igreja, é possível afirmar;

acerca da natureza e da função da igreja. Ape­

1) Paulo aplica a figura do corpo de Cristo a

sar disso, praticamente não há dúvida de que,

tmia congregação local (ICo 12.27), a cristãos

mais que qualquer outro, o quadro do corpo de

que não eram necessariamente membros da mes­

Cristo representa as reflexões mais maduras de

ma congregação (Rm 12.4,5; cf. 16.3-15) e tam­

Paulo sobre o assunto. Conforme já foi demons­

bém a um grupo mais amplo que talvez incluísse

trado em outro verbete, é com esse conceito de

todos os crentes em Cristo (ICo 12.12,13). Não

igreja que o conceito paulino de carisma (v.

há dúvida de que Cristo, a cabeça do corpo, é o

do

E s p í r it o )

dons

está em perfeita correspondência, e

Senhor exaltado e celeste (Ef 1.20,21), mas ale­

nos termos dele que se deve entender, em grande

gar que, em Colossenses e Efésios, "a imagem do

parte, a doutrina paulina do ministério (v.

‘corpo’ é empregada para denotar uma entidade

esp. p. 15-20).

Fung,

celestial”, visto que o corpo de Cristo, a igreja,

7) A imagem da igreja como corpo de Cristo

também se encontra onde ele está, ou seja, no

olha para o interior (para o relacionamento mú­

céu

tuo dos crentes como membros do corpo) e para

( O ’ B r ie n ,

1987, p. 112, 170; mas v.

ig r e j a ) ,

é esquecer a natureza do conceito de corpo de

cima (para o relacionamento entre o corpo e sua

Cristo como metáfora. Quando se afirma que os

cabeça), mas não para fora (para o relacionamen­

crentes ressuscitaram e estão assentados nos lu­

to entre a igreja e o mundo). A ideia de que Paulo

gares celestiais com Cristo (Cl 3.1; Ef 2.6), isso

considerava a igreja uma extensão da encarnação

não se faz em conjunto com a imagem de corpo.

no mundo é certamente descartada pelo fato de

2) A igreja como corpo de Cristo é uma enti­

que a metáfora do corpo mantém uma clara dis­

dade orgânica, viva, composta de uma multiplici­

tinção entre Cristo como cabeça e a igreja como

dade de membros (i.e., crentes individuais, não

corpo. Esse ponto de vista ignora a diferença fun­

congregações individuais), cada um necessário

damental entre Cristo como alguém sem pecado

ao outro e ao crescimento do todo (ICo 10.16,17;

e a igreja, que ainda não é perfeita.

12.12-27; Rm 12.4,5; Cl 1.24; 3.15; Ef 4.16). A

8) 0 corpo de Cristo constitui, em geral, o lo-

imidade, vista de outro ângulo, diz respeito às di­

cus do ministério cristão. 0 dom de evangelismo é

versas raças do mundo (Ef 2.16-18).

de fato dirigido às pessoas de fora, e aquele “que

3) Essa dimensão horizontal de unidade ba-

usa de misericórdia” (Rm 12.8) presta um serviço

seia-se na unidade vertical entre a igreja como

que extrapola os limites da comunhão cristã. IVIas

corpo de Cristo e Cristo como cabeça da igreja.

não se pode negar que, quando Paulo fala do mi­

Com respeito a seus membros, a igreja une-se

nistério, sua ênfase recai sobre como o ministério

a Cristo mediante o batismo num só Espírito

deve servir a igreja, não sobre como deve servir

(ICo 12.13; Ef 2.18) e mantém essa união me­

0 mundo, e que o propósito de se equipar a igre­

diante participação na eucaristia (ICo 10.16,17),

ja com o ministério não é para servir o mundo,

de modo que Cristo e o Espírito são a fonte da

mas para edificar a si mesma (Ef 4.12,16). Em

unidade da igreja (cf. Ef 4.4,5).

grande parte, pode se afirmar que, para Paulo, o

259

C r ia ç à o , n o v a c r ia ç ã o : P a u l o

“ m in is t é r io é d o c o r p o , p a r a o c o r p o e p e l o c o r ­

church...” coming to terms with metaphor. EvQ,

p o ” (E l l is , p . 1 4 ).

V.

Ver também

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in the early church. Sheffield; 62. [jsNTSup, 87.) ■ E l l is ,

n o v a c r ia ç ã o :

P

aulo

“ Nova criação”, kainê k tisis, é uma expressão que

1992, p. 146-

Paulo emprega em ZCoríntios 5.17 e Gálatas 6.15.

Pauline theology:

Está intimamente hgada à expressão “novo homem

jsot ,

E . E.

C r ia ç ã o ,

ministry and society. Grand Rapids: Eerdmans,

[nova humanidade] ”, kainos a n th w p o s , encontrada

1989. •

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V.

29.) ■ H i l l , A. E. The temple of Asclepius:

99, p. 437-9, 1980. ■ Jerem ias,

J.

sociadas a ela ocorrem em vários textos literários e tradições do judaísmo do segundo templo. 1. Necessidade de uma nova criação

Cambridge: Cambridge University Press, 1976. an alternative source for Paul’s body theology,

expressão não é peculiar a Paulo. Ela e ideias as­

2. Alcance da nova criação 3. Características da nova criação

jbl,

The eucharis­

1. Necessidade de uma nova criação

tic words of Jesus. New York: Charles Scribner’s,

Muitos antigos intérpretes judeus acreditavam

1966. ■

que Deus havia criado o mundo bom com a me­

J ew ett,

Leiden: E.

R. Paul’s anthropological terms. 10.) ■ K ãsem ann , E.

diação da Sabedoria (Pv 8.22-31; Eo 24; Sb 7.22—

The theological problem presented by the motif

8.1). Paulo identifica essa Sabedoria com Jesus

of the body of Christ. In :______ . Perspectives on

Cristo (ICo 1.17-25; Cl 1.15-20). Também re­

J.

Brill, 1971.

{a g j u ,

Paul. Philadelphia: Fortress, 1971. p. 102-21. •

K im ,

conhece que o pecado provoca danos a essa

S. The origin o f Paul’s gospel. Grand Rapids: Eer­

boa criação, ao sujeitar a humanidade à morte

dmans, 1981. ■ Word, 1990.

A. T. Ephesians. Dallas:

(Rm 5.12-14; ICo 15.21,22; cf. 4Ed 7.116-131; 2Ap

42.) ■ M o u le , C. F. D. The origin

Br, 54.13-19) e o mundo natural à deterioração

L in c o ln ,

( wbc,

of christology. Cambridge: Cambridge University

(Rm 8.19-22; cf. 4Ed 7.11-14; 2Ap Br, 56.6-10).

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A desilusão com a situação vigente levou mui­

Philemon. Waco: Word, 1982.

44.) ■ ______ .

tos dos antigos intérpretes judeus a esperar uma

The church as a heavenly and eschatological

nova criação numa nova era vindoura, quando

entity. In:

a criação toda seria Ubertada da futilidade e res­

C arson,

( w bc,

D. A., org. The church in the

Bible and the world. Grand Rapids: Baker, 1987.

taurada à sua bondade original (e.g., 4Ed 7.75;

p. 88-119. ■ P e r r im a n , A. “His body, which is the

2Ap Br, 73— 74). Para Paulo, essa era viria com a

260

C r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o : P a u l o

pamsia, a apariçao futura de Jesus (Rm 8.18; Ef 1.9,10; Cl .1-4; v.

em que “nem a circuncisão nem a incircuncisão são coisa alguma”. Em Efésios 2.11-22 (e Cl 3.11),

e s c a t o l o g ia ) .

a nova humanidade é composta de judeus e tam­ 2. Alcance da nova criação

bém de gentios, os de “longe” (cf. Is 57.19). Por

Em 2Coríntíos 5.17, Paulo sugere que essa realida­

esse motivo, a igreja é um novo Israel, em que

de futura já está presente. Há três maneiras de ex­

judeus e gentios estão unidos em paz.

plicar exatamente como se deve entender a nova

2.3

Cosmo. Muitos intérpretes apocalípticos ju­

criação: por meio de indivíduos convertidos, por

deus desenvolveram, em detalhes, a esperança dos

meio da comunidade de fé ou por meio do cosmo

novos céus e da nova terra mencionada por Isaías

como um todo. Cada opção reflete uma opinião

56—66. São variadas as ênfases, inclusive: a res­

diferente sobre quais antigos textos e tradições ju­

tauração de Israel [Jb, 4.26; lEn, 45.4,5); a trans­

daicos em particular eram preeminentes na mente

formação do justo numa ressurreição final (2Ap

de Paulo quando ele se referia à nova criação.

Br, 51.1-16); a libertação do mundo natural {lEn,

2.1 Convertidos. No Rabbah de Gênesis 39.4,

51.4,5); a volta da criação a seu estado original de

0 gentio convertido ao judaísmo é considerado

bondade [2Ap Br, 73— 74). A convicção contínua

nova criação: "Quem quer que leve um pagão a

da perspectiva apocalíptica é que a nova era que

se aproximar de Deus e o converter é como se o

está por vir será decididamente diferente da atual,

tivesse criado”. Na lenda judaica de José e Ase-

que é má, e qualitativamente superior a ela.

nate, um ser celeste diz a Asenate, logo após sua

Paulo reflete esse contexto apocalíptico quan­

conversão ao judaísmo; “Serás renovada e feita

do, em 2Coríntios 5.17,18, descreve uma disjun­

de novo” [Jo e As, 15.4). É possível que Paulo,

ção radical entre “as coisas velhas” (ía archaia] e

como seus compatriotas, cresse que o convertido

as “novas” [kaina]. Tais palavras indicam muito

a Cristo fosse uma nova criação.

mais que transformação individual. Na verdade,

2.2 Comanidade da fé. Em Isaías 65.17-19, o

Paulo afirma que Deus reconciliou “tudo” (ía

autor estabelece um paralelo entre uma recriação

panta] por meio de Cristo, inclusive, pelo que

cósmica e a recriação de Jerusalém e seus habi­

se presume, a totalidade do mundo natural. Se

tantes: “Criarei novos céus e nova terra [...] vou

2Coríntios 5.16,17 proporciona um vislumbre do

criar Jerusalém para regozijo, e seu povo para

início da nova criação, outras passagens ofere­

alegria”

Em Isaías 66.22,23, o autor expan­

cem um prenúncio de sua conclusão. De acordo

de seu pensamento, quando prediz que, nessa

com Romanos 8.18-25, “a própria criação [será]

nova criação, Israel experimentará um grande

libertada do cativeiro da degeneração” (Rm 8.21),

afluxo de gentios para adorar a Deus.

enquanto, de acordo com Efésios 1.10, “todas as

[ n v í] .

Ambos os elementos — a recriação de uma nova comunidade de crentes e o afluxo de gen­

coisas, tanto as do céu como as que estão na ter­ ra” serão reunidas em Cristo (cf. ICo 15.24-28).

tios — destacam duas das passagens paulinas

Não é possível fazer uma escolha definitiva

que contêm referências à nova criação ou à nova

entre essas opções. Nem é necessário, pois as três

humanidade. Nos dois textos, a nova criação

se esclarecem mutuamente. 0 convertido, como

ou nova humanidade é uma realidade partilha­

parte da comunidade de fé, passa a participar do

da por todos. Em Gálatas 6.15,16, Paulo chega

drama cósmico de recriação, ao qual Deus deu

a fazer um paralelo entre a nova criação e uma

início por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo

comunidade específica, “o Israel de Deus”. Em

e concluirá por ocasião da parusia (v.

e s c a t o l o g ia )

.

Efésios 2.14-16, a nova comunidade é constituída de comunidades, em vez de indivíduos: “Ele é a

3. Características da nova criação

nossa paz. De ambos os povos fez um (...) para

Um estudo dos contextos paulinos das expressões

em si mesmo criar dos dois um novo homem [ou

“nova criação” e “ nova humanidade” revela os

humanidade] ”.

valores últimos que caracterizam a comunidade

Concomitantemente, nas duas passagens os

de fé. Ao incorporar esses valores, a comunidade

gentios são a comunidade incluída nos judeus. Em

introduz e já realiza antecipadamente a restaura­

Gálatas 6.15, a nova criação é uma comunidade

ção cósmica e final da bondade da criação.

261

t.RiSTO

i: os

3.1

tV A N G E L H O S

Recontíliação.

O

conceito-chave

que

B ib lio g r a fia .

D ah l, N .

A.

W.

Christ, creation, an d the

The

acompanha as referências de Paulo à nova criação

church. In: D avies,

ou nova humanidade é a reconciliação. 0 tema

background o f the New Testament and its escha­

dominante de 2Coríntios 5.17-21 é que os crentes,

tology.

que foram reconciliados com Deus, devem, por

1956.

meio do ministério apostólico de proclamação e

Judaism. 4.

testemunho, anunciar a reconciliação do mundo

36-57, 119-31. ■ D e r r e t t ,

D . & D aube , D ., orgs.

C am b rid ge: C am b rid ge U niversity Press,

p.

422-43.

■ D avies,

W.

D.

Paul and rabbinic

ed. Ph ilad elph ia: Fortress,

com Deus, à qual Deus deu imcio por meio de

Q u m ran , Paul, the church, a n d Jesus.

Jesus. A ênfase de Gálatas 6.15, Efésios 2.11-22 e

p.

597-608, 1988. •

Colossenses 3.10,11 é que a nova criação e a nova

G ard en City: D ou b le d a y, [a b ,

trora divididos são de fato reconciliados em Cristo.

doctrine o f

3.2 Rejeição aos padrões mundanos. A re­

32A.) ■ L a m p e , ktisis.

V.

F u r n is h ,

humanidade surgem somente quando povos ou­

1984.

W. H.

G. s jt,

v.

p.

p.

RevQ,

13,

v.

2 Corinthians.

P.

309-16, 329-33.

T h e N e w Testam ent

17,

p.

P arsons , iVI. T h e n e w creation.

449-62, 1964. ■

ExpT,

v.

99,

p.

3-4,

conciliação só pode acontecer quando os crentes

1987. ■

deixam de viver e de julgar os outros pelos pa­

tion. ABO, V.

drões humanos. A presença de uma nova cria­

The new creation:

ção significa que novos padrões de unidade e paz

o f creation, innocence, sin a n d redem ption. N e w

substituem os velhos padrões de juízo e divisão.

York: Pageant,

R u s s e ll,

3,

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Partnership in n e w crea­

161-71, 1984. ■

T aylor, L .

H.

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1958.

A divisão racial entre judeu e gentio, em parti­

J. R. L eVISON

cular, baseia-se num critério obsoleto: “ De nada vale ser circuncidado ou não. 0 que importa é ser

C r is t o

uma nova criação” (G1 6.15, nv/; cf. Ef 2.11-22).

A palavra grega traduzida por “cristo” (christos)

i : os

E vangelh o s

De modo semelhante, a rivaUdade entre indivídu­

aparece 531 vezes no

os não tem lugar na nova criação. A referência de

sendo “ Cristo” um dos termos mais comuns pe­

Paulo à “nova criação” em 2Coríntios 5.17 [nvj) é

los quais Jesus é conhecido no

polêmica. Com essa referência, ele confronta os

cristã posterior. Os Evangelhos canônicos apli­

nt

(N

estle- A l a n d

nt

,

26. ed.),

e na tradição

padrões falhos de seus adversários em Corinto,

cam o termo a Jesus, mas cada um apresenta

os quais o julgam de conformidade com padrões

uma variação própria e interessante na maneira

mundanos, como capacidade retórica e força fí­

em que Jesus é apresentado como “ Cristo”. 0

sica (e.g., 2Co 10.1-11). Paulo alega que na nova

uso de “Cristo” nos Evangelhos reflete a origem

criação ninguém é julgado “ do ponto de vista hu­

judaica (v.

mano” , pois até mesmo Cristo não é mais julgado

tianismo e os ajustes da tradição judaica que

por padrões humanos (2Co 5.16,

Os novos

caracterizam a fé cristã primitiva. Para todos

padrões aplicam-se não apenas a grupos étnicos

os Evangehstas, Jesus é “ o Cristo” , o Messias

n v í) .

j u d a ís m o e o

Novo

T

estam en to )

do cris­

ou a líderes de igreja, mas também a todo crente,

da esperança de Israel. Mas todos eles também

que participa da nova humanidade. Ele deve pôr

refletem a convicção de que Jesus é também o

de lado a conduta que caracteriza a “velha huma­

Filho de Deus, além de transmitirem a ideia de

nidade” , como cobiça, maledicência e crueldade

que ele é divino, ou é pelo menos à semelhança

(Cl 3.5-9; Ef 4.25-30), e se vestir do novo homem,

do divino. Além disso, a crucificação de Jesus é

“ o qual está sendo renovado em conhecimen­

apresentada como um aspecto decisivo de sua

to, à imagem do seu Criador” (Cl 3.10,

obra messiânica, embora não pareça haver pre­

n v i;

cf.

Gn 1.26). Essa nova humanidade caracteriza-se

cedentes judaicos para considerar que a obra do

por compaixão, paciência, verdade (Cl 3.12-17;

Messias incluía uma morte violenta (v.

Ef 4.23,24,32) e, novamente, pela reconciliação

MORTE

A

dão e

C r is t o ;

C

r is t o ,

.

Para analisar o uso do vocábulo nos Evan­

de povos outrora hostis entre si (Cl 3.11). Ver também

de)

gelhos canônicos, temos também de avahar

e s c a t o l o g ia .

D Pc: c e n t r o d a t e o lo g ia d e P a u lo ; m u n do, cosm o­

algumas questões afins, especialmente os ante­

l o g i a ; NATUREZA NOVA E NATUREZA VELHA; P a U L O , RECON-

cedentes do termo e as expectativas escatológicas

CIUAÇÃO; RESTAURAÇÃO DE ISRAEL.

relacionadas ao judaísmo antigo, bem como o

262

C r ist o i : o s E v a n g e l h o s

uso do termo Cristo no cristianismo primitivo do

de um “messias”, e parece que houve algumas

período anterior aos Evangelhos.

variações na descrição das figuras messiânicas (e.g.,

1. Origem, significado e antecedentes 2. Uso neotestamentário fora dos Evangelhos

N

eusner,

G

reen

& F r e r ic h s ;

De J o n g e ) .

Nos textos de Qumran, por exemplo (150

3. “ Cristo” nos quatro Evangelhos

a.C.-170 d.C.; v.

4. Conclusão

contramos 0 que parece ser a expectativa de duas pessoas

1. Origem, significado e antecedentes

m a n u s c r it o s

“ ungidas”

do

m ar

(e.g.,

M

o rto ) ,

IQS

en­

9.10,11;

CD 12.22,23) que no futuro presidiriam sobre os

0 termo “cristo” é a forma aportuguesada da

eleitos: um “messias de Israel” (provavelmente

palavra grega christos, que era na origem um ad­

um personagem régio) e um “ messias de Arão”

jetivo com a acepção de “ungido” (com unguen-

(um personagem sacerdotal). A comunidade de

to ou óleo), adjetivo que provém do verbo

c h r iõ

Qumran aparentemente considerava o último per­

( “ungir” ou “untar com óleo ou unguento”). Na

sonagem hierarquicamente superior ao “messias”

Antiguidade, antes da influência judaica e cristã,

régio (v. S.

a palavra christos não tinha nenhum significado

Entretanto, nos Salmos de Salomão (final do sé­

reUgioso especial (sobre a história do vocábulo,

culo I a.C.) a esperança de restauração de Israel

et al.). Nos antigos círculos judeus

está vinculada ao surgimento, por designação di­

e cristãos de fala grega, christos é tradução do

vina, de um descendente de Davi como “o ungido

termo hebraico

(c. 45 vezes na l x x ) , que,

do Senhor” (christos kyriou, SI Sa, 17.32; 18.7), e

de igual modo, significa “ungido” (com óleo),

aqui o messianismo é exclusivamente régio. Em

V. G r u n d m a n n

m ã s h ia h

T

alm o n,

in:

N

eusner,

G

reen

& F r e r ic h s ) .

mas transmite um sentido especial, dada a práti­

lEnoqne, temos outra imagem; o personagem

ca israelita de ungir com óleo a pessoa designada

messiânico ( “o eleito”, “ o filho do homem”) é

para um cargo especial, como o rei ou o sacerdo­

apresentado em termos elevados na glória ce­

te (e.g., ISm 9.15,16; 10.1, Saul; ISm 16.3,12,13,

leste, e parece ser identificado como Enoque (cf.

Davi; Êx 28.41, Arão e filhos; ICr 29.22, Zadoque

Gn 5.21-24). Não está claro se esse é outro tipo

e Salomão). Nesses contextos, a unção indicava

de messianismo ou se o autor fez uso da imagem

que a pessoa estava comissionada e aprovada

régio-messiânica para descrever outro tipo de per­

(por Deus e pelo povo) para a função ou tarefa

sonagem subUme associado a esperanças de uma

especial. O termo m ã s h ia h

salvação escatológica.

é

especialmente signifi­ associadas ao

Não temos como analisar aqui em mais de­

rei israelita (e.g., ISm 24.6; 2Sm 1.14; cf. SI 2.2),

talhes as esperanças escatológicas judaicas do

nas quais o termo parece ser um título real ( “o

pen'odo pré-cristão, nem a diversidade de expec­

ungido do

tativas messiânicas. Deve se ressaltar, no entanto,

cativo em algumas passagens do

S en h or”

at

etc.), e a conotação religiosa

que, nos textos judaicos, as expectativas e espe­

é enfatizada. descobre-se a

culações sobre um ou mais messias estão ligadas

esperança de uma monarquia (davídica) restau­

a outras aspirações, sendo por elas obscurecidas.

rada, descrita em dimensões e qualidades impo­

Entre essas outras aspirações estão: a libertação

Em textos pós-exflicos do

at,

nentes (e.g., Ag 2.20-23; Zc 9.9,10; 12.7-13.1).

do povo judeu de sob o domínio gentílico, e/ou o

Com base nessa esperança, mas provavelmente

triunfo de determinada visão religiosa da vontade

apenas em algum tempo já no período helenísti-

divina (e.g., Qumran), e/ou um anseio mais gené­

co (depois de 331 a.C.), os judeus vieram a usar

rico pelo reino de Deus ou por seu triunfo sobre a

mãshiah (e o equivalente grego christos) como de­

iniquidade e a injustiça. Ou seja, a esperança ju­

signação de um agente futuro (“ messias”) a ser

daica de um (ou mais) messias nunca foi em si o

enviado por Deus, geralmente para restaurar a

centro da preocupação religiosa, mas funcionava

independência e a justiça de Israel. No entanto,

como parte da tentativa de projetar o triunfo esca­

pesquisas recentes mostram que as antigas ex­

tológico de Deus e a concretização de aspirações

pectativas escatológicas dos judeus quanto ã li­

associadas a esse triunfo. Isso contrasta com a for­

bertação e à santificação dos eleitos nem sempre

ma em que a pessoa de Jesus se tornou central e

incluíam a antecipação explícita ou proeminente

vital já bem no início da devoção cristã.

263

C r ist o i : o s E v a n g e l h o s

se estabelece uma relação entre

a 100 d.C., alguns decênios após o início do movi­

Jesus e os antecedentes religiosos judaicos, parece

Quando no

mento cristão. Para acompanhar o uso de christos

que 0 tipo de expectativa messiânica mais aludido

nas décadas iniciais, os indícios mais importantes

nt

e pressuposto é aquele que se assemelha ao mes­

de que dispomos se encontram nas cartas incon­

sianismo régio dos Salmos de Salomão. Isso suge­

testavelmente paulinas, em geral datadas de cer­

re que a ideia de um agente régio nomeado por

ca de 50 a 60 d.C., que são os escritos cristãos

Deus para livrar e purificar a nação não era estra­

mais antigos que ainda existem. Cumpre apenas

nha a alguns círculos judaicos (e.g., At 2.30-36),

rever aqui algumas questões relativas ao uso de

mas não está claro qual tenha sido o grau de acei­

christos nos Evangelhos.

tação dessa esperança.

Para começar, podemos comparar o uso que Paulo faz de christos com o emprego que ele

2. Uso neotestamentário fora dos

mesmo faz de outros títulos cristológicos impor­

Evangelhos

tantes nesses escritos. As ocorrências de christos

Merece destaque a distribuição do termo christos

nas sete cartas inegavelmente paulinas consti­

no

Das 531 ocorrências do termo, 383 estão

tuem 51% do total de ocorrências do termo no

no corpus paulino, e, dessas, 270 ocorrem nas

NT (72% acham-se nos escritos neotestamentários

sete cartas cuja autoria é praticamente inquestio­

atribuídos a Paulo). Ficam em evidência dois da­

nt

.

nável: Romanos, ICoríntios, 2Coríntios, Gálatas,

dos pertinentes a christos: dentre os mais antigos

Filipenses, ITessalonicenses e Filemom. Também

títulos cristãos para Jesus, christos é, de longe, o

em outros escritos do

preferido de Paulo; tendo por base a antiguidade

nt

o

emprego de christos

é bem fiequente tendo em vista o tamanho de

das cartas de Paulo, podemos concluir que, já nos

cada texto: IPedro (22); IJoão (8); Judas (6). Em

primeiros anos do movimento cristão, christos

alguns textos mais longos, porém, o termo não

tornou-se título de destaque para designar Jesus.

é tão freqüente: Hebreus (12); Apocalipse (7).

Entretanto, um exame cuidadoso do emprego

Levando-se em conta o tamanho, os Evangelhos

de christos nas cartas de Paulo mostra que ele uti­

(esp. os Sinóticos) não usam christos com muita

liza 0 termo quase como nome ou parte do nome

frequência: Mateus (16); Marcos (7); Lucas (12,

de Jesus, não caracteristicamente como título. Por

mais 25 ocorrências em Atos); João (19).

exemplo, em Paulo christos aparece nas seguintes

Esse panorama da distribuição de christos no

fórmulas: “ Cristo Jesus” , “Jesus Cristo”, “ Senhor

revela três coisas. Primeira: a variação na fre­

Jesus Cristo” e às vezes simplesmente “ Cristo”.

quência do termo pode revelar diferentes graus

Isso tem levado alguns a indagar se Paulo de fato

nt

de importância que os vários autores do

atri­

associava o termo christos a uma compreensão de

buem à palavra. Mas pode também ser explicada

Jesus como o “Messias” ou quão bem o fazia, e

nt

pelas diferenças de tema e de propósito entre os

também até que ponto christos representava para

vários autores. Segunda: a grande concentração

Paulo, assim como os nomes próprios, uma sim­

de ocorrências de christos nas cartas de Paulo (os

ples maneira de ele se referir a Jesus. Na resposta

mais antigos dos escritos do

a essa pergunta, alguns fatores são importantes.

nt)

sugere que bem

cedo o termo se tornou parte importante do vo­

Primeiro: fica claro que, para os gentios, não

cabulário da fé cristã. Terceira: na totalidade do

familiarizados com as expectativas messiânicas

a ocorrência notadamente pequena de christos

dos judeus, o significado religioso do termo chris­

NT,

nos Evangelhos e a variação no número de ocor­

tos não era imediatamente percebido. Por exem­

rência da palavra entre eles tornam pertinente

plo, os documentos existentes mostram que não

indagar o significado e o papel do termo nesses

raro os pagãos confundiam a palavra christos com

escritos. Contudo, antes da análise detalhada do

o substantivo grego chrestos ( “útil”), usado espe­

uso de christos nos Evangelhos, será proveitoso

cialmente para designar os escravos (cf.

comentar um pouco mais o uso que os cristãos

Cláudio, 25.4).

fizeram dessa palavra antes dos Evangelhos. 2.1

S u e t ô n io ,

Segundo: é provável, no entanto, que Paulo,

Uso anterior aos Evangelhos. Costuma se como judeu famiharizado com a tradição de seus

atribuir aos Evangelhos a data aproximada de 65

264

ancestrais (G1 1.13,14), conhecesse a relevância

C r ist o i : o s E v a n g e l h o s

de christos em associação com as expectativas

usar 0 termo christos quase como um nome para

messiânicas dos judeus. Com toda a probabilida­

Jesus sugere que, entre seus convertidos gentios,

de, o termo christos começou a ser usado entre

a associação com as expectativas messiânicas dos

cristãos judeus para se referirem a Jesus antes

judeus não recebia destaque. Mas, como vemos

mesmo da missão apostólica de Paulo. Christos

demonstrado nos Evangelhos, a declaração de

deve ter sido um termo que cristãos judeus to­

que Jesus é o Messias continuou fazendo parte

maram de círculos judaicos de faia grega, fun­

da fé cristã primitiva bem depois que o movimen­

cionando como tradução da palavra mãshiah; de

to se expandiu além de sua etapa inicial como

outra forma, é impossível explicar o surgimento

seita do judaísmo antigo. Como mostraremos nas

de christos como título de Jesus. A maneira fre­

seções seguintes, embora os primeiros cristãos

quente e desenvolta com que Paulo utiliza o ter­

tenham alterado a conotação do termo christos

mo reflete um emprego bem consolidado entre os

à luz da morte de Jesus e da experiência deles

cristãos, sendo forte indício de que christos fazia

com a glória de sua ressurreição, o termo man­

parte do vocabulário religioso dos grupos cristãos

teve algo do sentido de designar Jesus como o

dos primeiros anos (30-50 d.C.).

“Messias” , o agente de salvação divinamente

Terceiro: embora nas cartas de Paulo a palavra

nomeado.

christos tenha características sintáticas mais pró­

2.2

Uso de Christos em outros escritos neotes­

prias de nome do que de título (como “ o Cristo”)

tamentários. Nas muitas ocorrências de christos

para Jesus, parece que em Paulo o termo conser­

no corpus paulino cuja autoria é questionada por

va algo de sua conotação messiânica. Isso aconte­

estudiosos ou sobre a qual repousa um grande

ce não apenas em passagens como Romanos 9.5,

número de dúvidas — às vezes denominadas car­

com sua referência explícita a Jesus como "o Crís­

tas deuteropaulinas: Efésios, Colossenses, 2Tes-

to” (ho christos], mas também no padrão mais

salonicenses, 1 e 2Timóteo e Tito — , o emprego

extenso do uso paulino. Assim como demons­

é basicamente idêntico ao encontrado nas cartas

tra W. Kramer, Paulo costuma empregar chris­

incontestavelmente paulinas. No entanto, o uso

tos (seja isoladamente, seja em associação com

do termo em escritos neotestamentários fora dos

“Jesus”) em passagens que se referem à morte

Evangelhos e do corpus pauUno é relevante para

e à ressurreição de Jesus (e.g., ICo 15; Rm 3.23;

entendermos os antecedentes do uso de christos

5.6,7; G1 3.13), e é provável que essas passagens

nos Evangelhos. Por exemplo, IPedro utiliza o

reflitam duas coisas: ele não só estava famiUari-

termo 22 vezes, quase sempre associado ao tema

zado com a convicção cristã primitiva de que a

do sofrimento — de Cristo e/ou dos cristãos: os

crucificação de Jesus fazia parte de sua missão

profetas do

como “IVIessias” , mas também procurava enfati­

Cristo (IPe 1.11); o sofrimento redentor de Cris­

zar essa mesma convicção. (A ideia de F.

at

predisseram os sofrimentos de

,

to é mencionado algumas vezes (IPe 2.21; 3.18;

p. 161-2, de que a declaração cristã mais antiga

4.1; 5.1); os cristãos partilham dos sofrimentos

de Jesus como Messias estava associada exclusi­

de Cristo. A relação entre o termo christos e o

H

ahn

vamente à esperança de seu retorno escatológico

sofrimento talvez reflita a ênfase cristã primitiva

não faz justiça a essa íntima associação entre o

mencionada anteriormente — a crucificação de

termo christos e a ideia de morte e ressurreição de

Jesus foi um acontecimento messiânico. Também

Jesus em Paulo, que é o dado mais antigo de que

mostra que a ideia de Jesus como Messias sofre­

dispomos sobre seu uso pelos cristãos.)

dor foi usada para inspirar os cristãos a suportar

Assim, embora as cartas de Paulo não pareçam

os sofrimentos em nome dele.

enfatizar nem exphcitar a conotação messiânica

Em Apocalipse, nas ocorrências mais formula­

do termo “ Cristo”, elas apresentam indícios de

res de christos (“Jesus Cristo”, e.g., Ap 1.1,2,5),

que o termo teve origem nos círculos de cristãos

existem passagens interessantes em que o termo

judeus em que essa conotação era enfatizada,

é usado como título: “messias” (e.g., Ap 11.15,

além de mostrarem que a proclamação de Jesus

“ de nosso Senhor e de seu Cristo” ; Ap 12.10, “a

como Messias fazia parte da fé cristã primitiva.

autoridade do seu Cristo”). Essas passagens des­

Alguns estudiosos entendem que o fato de Paulo

crevem o triunfo escatológico de Deus com uma

265

C r ist o i ; o s E v a n g e l h o s

linguagem tomada de empréstimo da expectativa

Nas palavras iniciais de Marcos 1.1, percebe-

messiânica dos judeus e, assim, confirmam a per­

se que 0 autor conhece e aceita a aphcação do

cepção ininterrupta nos círculos cristãos do sé­

termo a Jesus ( “evangelho de Jesus Cristo”), e

culo I segundo a qual “Cristo” é uma designação

em vários outros momentos ele utihza o termo

messiânica.

como forma de se referir a Jesus. Por exemplo,

De modo semelhante, em IJoão 2.22 e 5.1, a

em Marcos 9.41 há uma promessa de recompensa

confissão de que Jesus é “o Cristo” reflete a afirma­

a quem der um copo de água aos discípulos de

ção messiânica. IVIas o mesmo documento mostra

Jesus, “porque sois de Cristo” (cf. Mc 10.42).

0 surgimento de divergências quanto a doutrinas

Em Marcos 13.21,22, a advertência quanto

caracteristicamente cristãs sobre a reahdade ou a

aos tempos vindouros de crise, quando alguns

importância da natureza humana de Jesus (e.g.,

dirão “Aqui está o Cristo!” , e a admoestação a

IJo 4.2,

“Jesus Cristo veio em carne”), e o

respeito dos “falsos cristos” mostram implicita­

autor cunha o termo “anticristo” para designar

mente que para Marcos o título só pode ser apli­

aqueles cuja cristologia considera imprópria (IJo

cado a Jesus, cuja vinda em glória não exigirá

2.22). Em IJoão, vemos outra vez que christos tan­

nenhum anúncio desse tipo (Mc 13.26,27). Nessa

to pode servir de título de Jesus, do ponto de vista

passagem, christos é usado como título, e o tex­

messiânico, como de nome para ele.

to insiste no fato de que o único cumprimento

ara

:

Esse breve apanhado do uso da palavra chris­ tos nos escritos do

genuíno das esperanças messiânicas — do qual

fora dos Evangelhos nos

falsamente se apropriam os enganadores — será

permite uma compreensão geral dos antecedentes

a aparição de Jesus como “ Filho do homem [...]

cristãos no século i de um termo que se pressupõe

nas nuvens, com grande poder e glória”. A ad­

conhecido dos leitores dos Evangelhos. Com isso

vertência acerca dos enganadores provavelmente

em mente, estamos agora em condições de anah-

reflete um conflito entre afirmações cristãs mais

nt

sar com mais detalhes o emprego que cada Evan­

antigas a respeito de Jesus como Messias e ou­

gelista faz do termo ao contar a história de Jesus.

tras esperanças messiânicas que circulavam em grupos judeus. (Cf. em Mc 13.6 uma referência

3. “Cristo” nos quatro Evangellios

a enganadores que afirmam acerca de si mes­

Como já dissemos, cada EvangeUsta aplica chris­

mos: “Sou eu” ) A variação encontrada em alguns

tos a Jesus, porém o faz com ênfases e nuanças

manuscritos: “Eu sou o Cristo” talvez seja obra

particulares. Por isso, analisaremos caso por

de algum escriba que procurou harmonizar a

caso, e, seguindo a opinião geralmente aceita en­

passagem com Mateus 24.5. Há dúvida entre os

tre os estudiosos, examinaremos os Evangehstas

estudiosos se “ Sou eu” significa uma afirmação

por ordem cronológica.

messiânica ou uma alegação de divindade, numa

A investigação acadêmica da cristologia do

alusão à autoidentificação de Deus (v., abaixo, a

nt

tem dedicado bastante esforço hoje em dia à anáhse dos títulos cristológicos nos Evangelhos e nos demais escritos do

Em outras passagens, porém, christos é usado

Apesar disso,

com certa reserva ou sutileza, o que tem gerado

continuam existindo discordâncias nos debates

debate entre os estudiosos em torno do objetivo

contemporâneos, o que faz com que uma análi­

de Marcos. Talvez a mais conhecida seja Mar­

se como essa se torne uma empreitada difícil. Até

cos 8.29,30, em que Pedro saúda Jesus como “o

certo ponto, as conclusões sobre um título especí­

Cristo” [ho christos] e, com os demais discípu­

fico, como christos, estão associadas a conclusões

los, recebe de Jesus ordens imediatas para “ que

nt

(e.g.,

análise de Mc 14.61,62.)

H

ah n).

sobre o uso que os Evangelistas fazem dos demais

a ninguém contassem que ele era o Cristo” (cf.

títulos, e isso se refletirá no debate a seguir.

Mt 16.16-20; Lc 9.20,21). Acreditando que Jesus

3.1

Marcos. Marcos, o mais antigo dos Evan­ não via a si mesmo como o Messias, alguns es­

gelhos canônicos, mostra a complexidade de aph-

tudiosos são de opinião que a resposta que Jesus

car 0 termo christos a Jesus (v.

E vang elh o

de fato deu à aclamação de Pedro foi repreendê-

De diferentes maneiras, essa complexidade

-lo: “Para trás de mim, Satanás!” (Mc 8.33). Isso

de) .

M

arcos,

caracteriza os quatro Evangelhos.

indicaria que Jesus, portanto, rejeitou o título

266

C risto i : o s E v a n g e l h o s

messiânico. Segundo essa interpretação. Marcos

que ele tinha de sua tarefa, sendo ainda passível

remodelou o ocorrido, introduzindo a ordem de

do que ele considerava grave erro de julgamento.

sigilo (Mc 8.30) e apresentando a repreensão

Assim, é plausível que a ordem para manter se­

como se ela se aplicasse ao fato de Pedro rejei­

gredo em Marcos 8.30 seja tão autêntica quanto

tar os sofrimentos de Jesus (Mc 8.31-33). Duas

a reprimenda de Jesus a Pedro em Marcos 8.33.

questões, portanto, estão em jogo: a atitude de

Por isso, o debate sobre o que Jesus pode ou

Jesus diante do título “messias” e como Marcos

não ter sentido acerca do termo “messias” é mais

nessa passagem trata o termo “messias/chrístos”.

complicado do que alguns estudiosos reconhe­

A última destas é a nossa principal preocupação,

cem. Determinar o objetivo de Marcos é compa­

mas também cabem alguns comentários sobre a

rativamente mais fácil, embora a tarefa não esteja

autenticidade do cenário descrito por Marcos.

livre de problemas. Em vista do uso que Marcos

É provavelmente malconcebida a tentativa de

faz de christos nas passagens examinadas, temos

reconstruir, por especulação, o diálogo original

de concluir que, para ele, o fato de Pedro chamar

entre Pedro e Jesus, como vimos acima. Quase

Jesus de “ Cristo” deve ser interpretado positiva­

não há fundamento para considerar uma inven­

mente pelo menos em algum sentido. A ordem

ção de Marcos a ordem de sigilo expedida por

de Jesus em Marcos 8.30 é que não se diga nada

Jesus em Marcos 8.30 e ao mesmo tempo aceitar

a seu respeito a outras pessoas; não é uma rejei­

como autêntica a repreensão de Jesus a Pedro em

ção do termo christos. Contudo, Marcos 8.30-33

Marcos 8.33. De um lado, ambos os elementos

revela uma reserva em relação ao termo, e o

funcionam muito bem na cena como intervenção

motivo parece ser que nenhuma das definições

editorial, e seria possível explicá-los com base

pré-cristãs de christos preparou as pessoas para

nos propósitos editoriais de Marcos (Lc 9.20-22

entender a missão de Jesus, como revela a rea­

não inclui a reprimenda de Jesus a Pedro). De

ção de Pedro diante da predição dos sofrimentos

outro lado, ambas as afirmações podem igual­

de Jesus. Dessa maneira. Marcos 8.29-33 insinua

mente ser atribuídas a Jesus. Se Jesus de fato

que o termo christos alcança seu significado mais

predisse que seria rejeitado e morto (o que não

adequado como título de Jesus quando também

é muito improvável, tendo em vista a antiga tra­

levamos em conta seus sofrimentos divinamente

dição judaica da rejeição aos profetas por Israel

estabelecidos (a exigência divina se percebe em

0 martírio de João Batista, com quem Jesus an­

Mc 8.31: “ Era necessário que [...] sofresse”). Ou

dou), a reação negativa de Pedro é compreensí­

seja, o texto sugere que Jesus é o Cristo, mas não

vel, bem como a repreensão de Jesus a Pedro em

pode ser assim identificado sem que se reconheça

e

Marcos 8.33. E a ideia de que Jesus não via a si

sua crucificação como algo fundamental em sua

mesmo de uma perspectiva messiânica se funda­

tarefa messiânica.

menta, até certo ponto, na pressuposição de que

0 fato de o título “Cristo” aparecer em Marcos

0 termo “ messias” comportava apenas um senti­

8.27-30 também deve ser considerado à luz da

do, vinculado a um personagem davídico, régio,

narrativa desse Evangelho como um todo. Antes

com intenções militares. Há um amplo reconhe­

desse episódio, em várias passagens de Marcos

cimento de que não se pode comparar Jesus com

há indagações a respeito de Jesus (Mc 1.27; 2.7;

esse personagem e de que ele não via a si mesmo

4.41; 6.2,3) ou declarações sobre ele (Mc 1.24;

dessa maneira. Mas a diversidade evidente nas

3.22; 5.7; 6.14-16). Em Marcos 8.27-30, porém, é

antigas especulações messiânicas judaicas (e.g.,

Jesus quem indaga sobre a própria identidade e

SMrrH; Neusner; Green & Frerichs; De Jonge) leva a

exige uma resposta dos Doze, o que tem o efeito

crer que Jesus pode ter rejeitado essa ou aquela

de tornar explícita a pergunta já latente acerca da

forma de especulação messiânica, sem deixar de

verdadeira importância de Jesus. Marcos 8.27-30,

entender sua missão à luz de uma maneira pró­

portanto, é um ponto decisivo nesse Evangelho. A

pria de ver o ofício messiânico. Por esse motivo,

pergunta de Jesus deve ser analisada levando em

Jesus pode ter ordenado a seus discípulos silêncio

conta as narrativas precedentes de seu ministé­

sobre o uso do título Messias/Cristo porque o tí­

rio. Essa mesma pergunta condensa tudo o que se

tulo em si não comunicava claramente a visão

passou antes disso em Marcos. Estruturalmente,

267

C risto i : os E v a n g e l h o s

a pergunta antevê também a indagação do sacer­

E a intenção de Marcos 12.35-37 é mostrar que o

dote, em Marcos 14.61, que é o clímax do julga­

termo “Filho de Davi” é insuficiente para exphcar

mento de Jesus e de sua rejeição pelos judeus (v.

quem é o Cristo, pois Davi o chama “Senhor” (gr.,

Nesse episódio, pergunta-se

kyrios; hebr., adõnãy], dando a entender que o

Je su s,

ju lg a m e n to de) .

a Jesus sobre sua identidade, e ele ratifica a acla­

Cristo é muito superior a Davi. Ou seja, Davi não

mação messiânica de Pedro.

é o modelo ideal para a obra ou a pessoa de Cris­

Em Marcos 14.61,62, o sumo sacerdote inter­

to. Aqui também, christos é implicitamente aceito

roga Jesus: “1\i és o Cristo, o Filho do Deus ben­

como título de Jesus, mas uma das concepções

dito?”. Jesus responde afirmativamente — “Eu

populares do termo (atribuída aos “escribas”,

sou” [egõ eimi) — e prediz que isso será confir­

Mc 12.35) é tida como insuficiente. Em vista das

mado quando estiver “à direita” de Deus. A forma

passagens em que Deus identifica Jesus como o

marcana da resposta de Jesus é mais enfática que

Filho divino (Mc 1.11; 9.7) e de outros sinais em

nos textos paralelos dos demais Evangelhos (cf.

Marcos sobre a importância de Jesus ser seme­

Mt 26.64; Lc 22.70; as variantes em algumas das

lhante a Deus (e.g., acalmar a tempestade em

cópias de Marcos são provavelmente harmoniza­

Mc 4.35-41; v. esp. a pergunta cheia de espanto

ções que escribas fizeram levando em conta esses

dos discípulos em Mc 4.41), espera-se que o leitor

textos paralelos). Também é possível que com o

veja que Jesus, “o Cristo”, está bem acima das

“eu sou” , possível alusão à linguagem autodes-

concepções costumeiramente aceitas do Messias.

critiva de Deus no

(e.g.. Is 43.10,13), Marcos

A última ocorrência de christos nesse Evan­

tivesse a intenção de mostrar a transcendência do

gelho acha-se em Marcos 15.32, texto em que

at

significado de Jesus.

observadores da crucificação de Jesus se dirigem

Isso se torna ainda mais provável aqui pela

zombeteiramente a ele como “ o Cristo, o rei de

alusão à glorificação do “filho de homem” de

Israel”. Eis um dos muitos exemplos de ironia em

Daniel 7.13,14. Na resposta inequívoca à per­

Marcos (freqüente no relato da Paixão) e uma das

gunta do sacerdote, Jesus assevera que, embora

várias passagens em que se pergunta se Jesus é

não pareça se enquadrar em algumas expectati­

0 rei de Israel ou dos judeus na narrativa do jul­

vas messiânicas (como o modelo régio-davídico

gamento e da crucificação (cf. Mc 15.2,9,12,18-

mencionado em Mc 12.35), ele é legitimamente

20,26;

christos, e sua condição será confirmada em di­

Marcos, especificamente na zombaria que se faz

V.

Ju e l) .

A ironia presente no texto de

mensões gloriosas. Contrariando as ideias de al­

do “ Cristo” em 15.32, é que, ao contrário do que

guns estudiosos mais antigos, a expressão “Filho

pensam os zombadores, Jesus é “o Cristo, o rei

do homem” (Mc 14.62) não é título de nenhum

de Israel”, embora a derradeira confirmação disso

personagem conhecido da especulação escatoló­

seja sua crucificação e aparente fracasso. A forma

gica judaica (v., eg.,

pagã da zombaria, vista no título que é afixado à

C asey) ,

e Moisés não teve o

propósito de usá-la como título preferido em lu­

cruz (“o

gar de christos (v, esp.

qual foi executado, mas também é uma verdade

K

in g s b u r y ,

1983). Para Mar­

cos, Jesus é o Cristo (Messias), o

F il h o

de

D

e us,

e a alusão à cena de triunfo divino que Daniel

REI DOS

jud eus”

),

apresenta o crime pelo

irônica; Jesus era, de fato, o “rei” legítimo, rejei­ tado pelos líderes pagãos e judeus.

descreve deixa claro que “ o Filho do homem”,

É interessante ressaltar a distribuição do uso

rejeitado pelos líderes judeus, será confirmado

de christos em Marcos. As ocorrências de chris­

como christos e Filho divino na glória celestial (v.

tos concentram-se na segunda metade do Uvro,

F il h o

onde a sombra da morte iminente de Jesus paira

do hom em )

.

Outra passagem bastante discutida é Mar­

sobre a narrativa. Depois das palavras introdutó­

cos 12.35-37 (cf. Mt 22.41-45; Lc 20.41-44). A per­

rias de Marcos 1.1, christos não volta a ocorrer

gunta de Jesus sobre como é possível dizer que o

no Evangelho, a não ser em Marcos 8.29,30, em

Cristo é 0 Filho de Davi não é teórica. Espera-se

um conjunto de materiais que reúne a pergunta

que 0 leitor entenda que a pergunta, ainda que

explícita de Jesus sobre sua importância e a pri­

de maneira um tanto indireta, tem relação com

meira predição de seus sofrimentos (as variantes

a verdadeira identidade e importância de Jesus.

de Mc 1.34 são provavelmente harmonizações

268

C risto i : o s E v a n g e l h o s

que escribas fizeram com Lc 4.41). Depois disso,

espelhou a associação que se fazia entre christos

à exceção de Marcos 9.41, christos aparece no ma­

e a morte de Jesus. Mas, ao contrário dos outros

terial que descreve a confiontação final de Jesus

Evangehstas, o uso de christos em Marcos é qua­

com autoridades judaicas em Jerusalém, que cul­

se totalmente confinado ao material da Paixão,

mina em sua execução. A verdadeira estatura de

tornando mais enfática a associação do termo à

“o Cristo” é aquela incômoda pergunta que Jesus

morte de Jesus.

faz na lista de perguntas analisadas em Marcos

3.2

11.27— 12.40. 0 discurso de Jesus sobre o futu­

Mateus. Como 90% de Marcos aparece

em Mateus, não é de surpreender que um nú­

ro (Mc 13.5-37) inclui a destacada referência a

mero considerável de usos marcanos de christos

“falsos cristos” , que devem ser distinguidos do

reapareça em Mateus. Mas, no uso do termo por

verdadeiro Cristo. No julgamento diante dos ju­

Mateus, há também peculiaridades dignas de

deus, a pergunta sobre Jesus ser o Cristo é o ápice

nota, dentre as quais o padrão de uso (v.

do interrogatório. E, no relato da crucificação, a

Evan g elh o

de)

M

ateus,

.

aclamação zombeteira de Jesus como “o Cristo” é

Para começar, há várias ocorrências de christos

a infâmia final e irônica que seus atormentadores

no início do livro. As palavras iniciais de Mateus

lançam sobre ele. Marcos emprega christos espar-

(Mt 1.1) referem-se a “Jesus Cristo, filho de Davi,

samente, mas cada ocorrência é significativa.

filho de Abraão”. Aí está um exemplo do tom ju­

Desse modo, embora Marcos empregue outros

daico próprio do relato de Mateus e prefigura a

títulos cristológicos em referência a Jesus (de es­

maneira em que o autor associará Jesus à história

pecial importância “Filho de Deus” e variantes em

e às esperanças reUgiosas de Israel no material

Mc 1.1,11,24,34; 3.11,12; 5.7; 9.7; 15.39; v., e.g.,

que se segue. A natureza judaica da apresentação

1983), christos também é um termo

de Jesus também fica evidente em Mateus 1.16,

importante na aclamação que Marcos faz de Je­

que encerra a genealogia de Jesus referindo-se a

sus. A concentração do uso de christos nos relatos

ele simplesmente como “o Cristo”

do conflito final de Jesus com o sistema religioso

entre Jesus e Israel é ilustrada em Mateus 1.17,

K in g s b u r y ,

(a r a ) .

A relação

judaico, quando foi rejeitado por eles e executa­

que apresenta a história de Israel em três etapas,

do nas mãos do governante romano, reflete duas

também culminando com “ o Cristo”.

coisas: a íntima relação existente, na proclamação

A ênfase dada por Mateus às conotações ré­

primitiva e em Marcos, entre o termo christos e a

gias do termo “ Cristo” é já insinuada em Mateus

morte de Jesus; o reconhecimento de que a identi­

2.1-4, quando os magos indagam sobre o nasci­

ficação cristã de Jesus como christos envolve uma

mento do “ rei dos judeus” , e Herodes responde,

afirmação em que se faz especial referência a espe­

inquirindo acerca de profecias do

ranças e crenças religiosas judaicas.

local de nascimento do “ Cristo”.

at

acerca do

Marcos insiste que christos só recebe seu sig­

Mas, depois desse grupo de ocorrências, chris­

nificado verdadeiro como título de Jesus levando

tos só volta a aparecer em Mateus 11.2, quando

em conta o próprio Jesus, seu sofrimento divi­

João Batista, que estava preso, ouve “falar das

namente determinado e seu significado transcen­

obras de Cristo” , dos feitos de Jesus (cf. Lc 7.18).

dente como “Filho do homem”. Marcos mostra

A frase pode estar se referindo à totahdade do

que a identificação de Jesus como christos impli­

relato anterior sobre o ministério de Jesus (Mt

ca uma reivindicação que desafiava a liderança

1— 10). Se for assim, ela confere à narrativa, como

religiosa judaica pela forma com que ela lidara

um todo, um tom exphcitamente messiânico.

com seu ministério e por sua constante reação ne­

Em Mateus, a confirmação do título christos

gativa diante da proclamação da igreja primitiva

também fica evidente na ocorrência seguinte

acerca de Jesus.

(Mt 16.16), passagem em que Pedro aclama Jesus

A concentração de usos de christos nos ca­

como “o Cristo, o Filho do Deus vivo”. 0 texto

pítulos finais do relato sobre Jesus também é

é um paralelo de Marcos 8.29. A segunda parte

observada em Mateus e Lucas, como veremos.

da aclamação expande a forma mais simplificada

Assim, nesse aspecto. Marcos influenciou os ou­

de Marcos e faz com que cada título interprete

tros Evangehstas e/ou, com os demais Sinóticos,

o outro. Ou seja, “ Filho do Deus vivo” ressalta

269

C risto i : os Evangelhos

a posição exaltada de Jesus, e "o Cristo” enfa­

paralelos marcanos omitem o termo. Além dis­

tiza que o Filho divino concretiza todas as es­

so, em Mateus ocorre uma associação mais clara

peranças messiânicas. O texto de Mateus 16.20

entre christos e Israel, aspecto particularmente

preserva a ordem de Jesus em Marcos 8.30 para

observável no relato da natividade. Entretanto,

que guardassem segredo quanto ao título chris­

como em Marcos, Mateus apresenta uma concen­

tos, mas essa ordem é mais expUcita em Mateus

tração de ocorrências no relato sobre o conflito

que em Marcos. Assim como em Marcos, existe

final entre Jesus e os líderes judeus e sobre sua

uma concentração de ocorrências de christos nos

execução. E, também como em Marcos, para Ma­

capítulos que tratam dos dias finais de Jesus em

teus é Jesus, não outros, quem define o termo

Jerusalém. Mateus 22.41-45 apresenta a pergun­

“Cristo/Messias”. As expectativas judaicas sobre

ta sobre o Cristo como Filho de Davi (discutida

0 Messias não são suficientes para avaliar as rei­

abaixo) e, assim como Marcos, faz dessa pergun­

vindicações messiânicas de Jesus. Assim, Jesus,

ta o ápice de uma série de debates entre Jesus e

o Cristo, é 0 “ Filho do Deus vivo” , e sua rejeição

seus críticos. Mas, em uma declaração exclusiva

e crucificação constituem parte importante de sua

de Mateus (Mt 23.10), os discípulos ouvem di­

missão messiânica, em que as duas reivindica­

zer que seu verdadeiro "Guia” [kathêgêtês] é “ o

ções constituem modificações significativas na

Cristo”. Isso reflete a ênfase de Mateus no fato de

especulação messiânica pré-cristã.

que “ o Cristo” é o mestre oficial da comunidade, tema muitíssimo evidente nos grandes blocos de

3.3

Lucas-Atos. Ao considerar o uso de chris­

tos em Lucas, temos de levar em conta o segun­

material de ensino nesse Evangelho (Mt 5— 7; 10;

do volume da obra do autor. Atos dos Apóstolos,

13; 18; 23—25).

que examinaremos rapidamente num primeiro

As demais ocorrências de Mateus aparecem em passagens com paralelos em Marcos. Mas em Mateus a forma das passagens geralmente deixa

momento (v. g elh o d e ;

A

F it z m e y e r ,

tos dos

3.3.1

A

p. 197-200; v.

pó sto lo s)

L

ucas,

E van­

.

Uso em Atos. Pouco mais da metade (13)

mais explícito o tema da condição messiânica

das 25 ocorrências de christos em Atos encon­

de Jesus. Em Mateus 24.5, a falsa reivindicação

tram-se em referências formulares a Jesus: “Jesus

dos enganadores, que conflita com a condição

Cristo” (At 2.38; 3.6; 4.10; 8,12; 9.34; 10.36,48;

legítima de Jesus, tem conotações claramente

16.18), “Cristo Jesus” (At 18.5; 24.24), “Senhor

messiânicas: “Eu sou o Cristo” (cf. Mt 24.23;

Jesus Cristo” (At 11.17; 15.26; 28.31). Descon­

Mc 13.6: “ Sou eu”). Em Mateus 26.63,64, indaga-

siderando Atos 4.26, em que christos aparece

se de Jesus se ele

“ o Cristo, o Filho de Deus”. A

em uma citação de Salmos 2.2, as outras onze

feita com a ordem de que Jesus jure

ocorrências se encontram em situações em que

solenemente. E, conquanto a resposta de Jesus

cristãos tentam convencer judeus de que Jesus é

pergunta

é

é

seja menos direta (“Tu o disseste” ,

inter­

“o Cristo”, ou seja, apresentam Jesus como cum­

pretada como um “ sim”, confirmado em Mateus

primento das esperanças messiânicas. Nesses ca­

26.68 pela forma pecuhar com que Mateus se re­

sos, 0 termo é utilizado como título, e seu sentido

fere ã zombaria dos que atormentam a Jesus, “ Ó

obviamente tem origem no contexto das expecta­

Cristo, profetiza-nos” (cf. Mc 14.65; Lc 22.64).

tivas judaicas de um Messias. Algumas das pas­

Por último, em uma forma de expressão típica de

sagens de Atos refletem a tentativa de apresentar

Mateus, Pilatos pergunta duas vezes o que os ju­

os sofrimentos de Jesus como cumprimento de

deus querem que ele faça com “Jesus, chamado

textos do

Cristo” (Mt 27.17,22), tornando bem explícita a

(At 2.31; 3.18; 17.3; 26.23). Outras passagens

questão da condição messiânica de Jesus.

contêm afirmações mais genéricas de que Jesus

ara),

é

É claro que para Mateus christos é título cris­

at

considerados profecias messiânicas

é o Messias (At 2.36; 3.20; 5.42; 8.5; 9.22; 18.28).

tológico importante. Em comparação com Mar­

Atos afirma apresentar a pregação dos primei­

cos, parece que em Mateus o título é elemento de

ros decênios do cristianismo. Por se somar a isso

maior destaque no vocabulário religioso. “ Cristo”

a redação própria de algumas passagens de Atos,

aparece em Mateus mais que o dobro de vezes

para alguns estudiosos, com base nesse livro é

do que aparece em Marcos e nas passagens cujos

possível reconstruir formas antigas de fé cristã

270

C risto i: os Evangelhos

que podem ser distinguidas daquelas mais desen­ volvidas, encontradas em outros escritos do

o Messias, seria confirmado de forma grandiosa

.

num futuro triunfo dos propósitos de Deus. É

Essa teoria às vezes se baseia em Atos 2.36, texto

preciso que se repita, no entanto, que nada em

nt

em que lemos que Deus fez Jesus igualmente “Se­

Atos 3.20 exige a conclusão de que o texto con­

nhor e Cristo”, ou em Atos 3.20, que define Jesus

serva vestígios de uma compreensão puramente

como “ o Cristo, que já vos foi predeterminado”,

futurista sobre o messiado de Jesus. Só é possí­

isto é, designado para Israel. Como querem alguns,

vel entender que a passagem refhta algum tipo

na primeira passagem talvez tenhamos vestígios

de adocianismo ou messianismo puramente fu­

de um típo antigo de cristologia adocianista, se­

turista se antes presumirmos o que ainda precisa

gundo a qual Jesus recebe o nome de Messias por

ser demonstrado: que essas ideias caracterizavam

ocasião de sua ressurreição. Na segunda passa­

os círculos cristãos primitivos. No entanto, para

gem, alguns enxergam indícios da ideia de Jesus

formularmos nossas cristologias primitivas, pre­

como uma espécie de Messias nomeado que exer­

cisamos certamente estar ancorados em mais do

cerá sua função apenas no futuro, quando enviado

que meras pressuposições.

a presidir a restauração escatológica de Israel. Os

Em suma, o uso de christos em Atos reflete

estudiosos que propõem essa teoria acreditam que

três características: 1) “ Cristo” faz parte da for­

talvez possamos encontrar vestígios do desenvol­

ma comum de designar Jesus, ou atribuir-lhe um

vimento e da transformação no entendimento cris­

nome, nos círculos cristãos primitivos. 2) O ter­

tão inicial de Jesus como Messias.

mo era também usado como título sempre que o

0 autor de Atos não acolhe nenhuma das

autor desejava explicitar a reivindicação de que

formas de cristologia acima. Por exemplo, a nar­

Jesus era o cumprimento das esperanças de Israel

rativa lucana do nascimento de Jesus (Lc 1—2)

para a redenção de Deus. 3) 0 autor está espe­

mostra que o autor considera Jesus o Messias a

cialmente preocupado em insistir no fato de que

partir do momento de sua concepção miraculosa

a crucificação de Jesus foi predita no

(v.

desqualifica como Messias (v.

Jesu s,

n a s c im e n t o

de).

E é duvidoso que Lucas

tenha incorporado a seu relato do cristianismo

3.3.2

C r is t o ,

at

e não o

m o rte de).

Uso no próprio Evangelho. As frequentes

primitivo ideias cristológicas conflitantes com

ocorrências de christos como título em Atos de­

as suas, sem mostrar que se tratava de falhas.

vem ser postas lado a lado com o uso sistemático

Isso não resolve a questão do significado original

do termo em doze ocorrências no Evangelho de

das afirmações, mas sugere que o autor de Atos

Lucas. A única possível exceção é Lucas 2.11, em

não entendia tais afirmações da maneira que são

que o anjo anuncia o nascimento do “Salvador,

compreendidas por alguns estudiosos modernos.

que é Cristo, o Senhor” (christos kyrios]. Contu­

A verdade é que não existe nada em nenhuma

do, mesmo aqui é provável que o autor esteja

das duas passagens que transmita as ideias cristo­

empregando o termo como título: “ Cristo, o Se­

lógicas que alguns lhes atribuem. Os títulos “ Se­

nhor” (cf. At 2.36; pressupondo-se que a varian­

nhor” e “ Cristo” (kyrios e christos], em Atos 2.36,

te confirmada em algumas versões — “ o Cristo

apresentam uma ideia sublimada de Jesus, e a

do Senhor” [christos kyriou] — não seja a leitura

passagem assevera que é pela vontade de Deus

original).

que Jesus está assim exaltado. Nada exige a con­

Sem dúvida, em todas as ocorrências de

clusão de que Jesus se tornou Messias somente

christos em Lucas, o termo é empregado como

por ocasião de seu batismo ou da ressurreição. É

título (Messias), ficando evidente o fato de que

anacrônico enxergar uma cristologia adocianista

ali Jesus é associado a antigas esperanças mes­

nessa passagem. De modo semelhante. Atos 3.20

siânicas judaicas. Essa associação fica evidente

ressalta que, apesar de rejeitar Jesus, Israel ainda

em Lucas 2.26, passagem em que somos apre­

pode participar do cumprimento das esperanças

sentados a Simeão, que aguardava “a consolação

messiânicas se o reconhecer como seu único e

de Israel” e recebera de Deus a promessa de que

verdadeiro Messias. Aqui temos um reflexo da

viveria para ver “o Cristo do Senhor”

tendência escatológica da fé cristã em seus pri­

modo semelhante, em Lucas 3.15 pergunta-se a

mórdios, a qual incluía a convicção de que Jesus,

João Batista se ele é “ o Cristo” , e ele responde

271

(ara).

De

C risto i : os Evangelhos

contrastando a si próprio com o “mais podero­

mesmo tempo, essas passagens mostram que a

so” que virá depois dele. Em Lucas 4.41, o co­

condição messiânica de Jesus implica um afasta­

nhecimento que os demônios detinham de Jesus

mento significativo das expectativas messiânicas

tem relação direta com sua condição messiânica,

judaicas mais conhecidas, especialmente levando

“pois sabiam que ele [Jesus] era o Cristo” (cf.

em conta sua crucificação. Mostram também que

Mc 1.34). Depois disso, christos não volta a apa­

nem mesmo os discípulos de Jesus estão prepa­

recer, senão em Lucas 9.20, na aclamação em que

rados para sua execução (“ Ó tolos, que demorais

Pedro chama Jesus “o Cristo de Deus” , a qual soa

a crer no coração...”, Lc 24.25), e o Jesus res­

mais judaica que as versões de Mateus 16.16 e

surreto “lhes abriu o entendimento” para lerem

Marcos 8.29. (V. tb. Lc 23.35, quando os judeus

o AT e compreenderem tudo que estava predito

zombam de Jesus.)

(Lc 24.27,45).

Como acontece com os outros Sinóticos, Lu­

Assim, como acontece nos outros Sinóticos, a

cas também apresenta um agrupamento de ocor­

afirmação de que Jesus é “ Cristo” em Lucas não

rências de christos no material que descreve os

é mera identificação dele com as expectativas ju­

dias finais de conflitos enfrentados por Jesus em

daicas, mas uma redefinição da função messiâni­

Jerusalém. Temos a pergunta de Jesus sobre o

ca, baseada quase inteiramente na vida de Jesus

Messias ser ou não o Filho de Davi (Lc 20.41),

e criando uma noção caracteristicamente cristã

pergunta que já discutimos em nossa anáhse de

de “ o Cristo”. Lucas ressalta os sofrimentos do

Marcos. Ao contrário de Mateus e de Lucas, em

“ Cristo” como conclusão divinamente predita e

21.8 deste último a predição de Jesus de que ha­

cerne de sua obra terrena, resultantes na procla­

veria enganadores não menciona explicitamente

mação de perdão a Israel e ao mundo (Lc 24.47)

falsos messias: refere-se apenas aos que dirão:

anunciada em Atos (e.g., At 1.8).

“ Sou eu”. No entanto, no julgamento judaico, o

À semelhança de Mateus, Lucas associa Jesus

sacerdote exige saber se Jesus se declara “ o Cris­

enfaticamente ao

to” (Lc 22.67). A pergunta seguinte — “Logo, tu

padrão das ocorrências de christos comuns a am­

és 0 Filho de Deus?” (Lc 22.70) — também deve

bos os Evangelhos. Mateus e Lucas apresentam

ser entendida como investigação acerca da reivin­

ocorrências importantes nas narrativas da nativi­

dicação messiânica de Jesus. A resposta de Jesus

dade, além do agrupamento de ocorrências em

parece aqui menos direta que na versão de Marcos

seus capítulos finais, e ambos os relatos da nati­

(Mc 14.62), mas não há dúvida de que deve ser

vidade interpretam o nascimento de Jesus como

at

e a Israel. Isso se reflete no

interpretada como confirmação. Como já vimos,

cumprimento de esperanças messiânicas. Aliás,

Lucas claramente apresenta Jesus como o Mes­

Mateus e Lucas também interpretam a condição

sias, contando ainda com a corroboração da ver­

messiânica de Jesus como momento decisivo

são lucana, em Lucas 23.2, das acusações contra

para Israel e mostram que a rejeição de Jesus pe­

Jesus perante Pilatos, a qual inclui a informação

los judeus era o mesmo que deixarem de acolher

de que Jesus afirmou ser “o Cristo, um rei”

0 verdadeiro rei de Israel. Os estudiosos de hoje

[ n v i] .

Assim, Lucas associa os julgamentos judaico e ro­

têm dispensado bastante atenção à crítica que se

mano a considerações sobre o caráter messiânico

faz aos judeus nesses Evangelhos. À luz do tra­

de Jesus, pois, a despeito de Pilatos ter afirmado

tamento dispensado pelas sociedades cristãs aos

considerar Jesus inocente de todas as acusações

judeus ao longo dos séculos, essa crítica causa

(Lc 23.13-16,22), a zombaria dos judeus e roma­

certo desconforto. Mas essa forma fortemente

nos (Lc 23.35-37) e a inscrição afixada na cruz

negativa de descrever os adversários judeus de

(Lc 23.38) tornam a execução de Jesus uma rejei­

Jesus não surgiu por pura maldade. Ela reflete

ção de sua reivindicação messiânica.

como era importante para os primeiros cristãos

As afirmações finais acerca do caráter messiâ­

a convicção de que Jesus era “ o Cristo” , o Mes­

nico de Jesus encontram-se em Lucas 24.26,27 e

sias, prometido por Deus, como entendiam, no

24.44-47, passagens em que o Jesus ressuscitado

AT e descrito de várias maneiras (imprecisas, aos

se identifica como “o Cristo” , cujos sofrimentos

olhos desses cristãos) na antiga tradição judaica.

e subsequente glória estão preditos no

Para os cristãos, cuja fé se reflete nos Evangelhos,

at.

Ao

272

C risto i : os Evangelhos

Jesus era superior ao Messias das expectativas

Deus” (Jo 1.34), mas esses títulos devem ser li­

judaicas, e eles jamais deixaram de afirmar que

dos junto com João 3.25-30, em que João Batista

Jesus também era o verdadeiro Messias.

nega, mais uma vez, que seja “o Cristo” , aph-

3.4

João. No que diz respeito ao início do cando o título a Jesus. 0 autor apresenta João

cristianismo, a profunda redefinição da condição

Batista como testemunha autêntica de Jesus, e

messiânica e a tensão com as tradições messiâni­

as aclamações de João Batista referem-se tanto à

cas judaicas em nenhum lugar são mais evidentes

condição de Filho de Deus, desfrutada por, quan­

que em João. Das dezenove ocorrências de chris­

to à sua posição como Messias.

tos em João, apenas duas são formulares (“Jesus

O messianismo implícito na aclamação de Jesus

Cristo” , Jo 1.17; 17.3). Nas demais ocorrências,

por João Batista é confirmado nas narrativas que

christos aparece como título, e há menção às ex­

mostram a reação a Jesus por parte dos seguido­

pectativas messiânicas judaicas. Embora a cris­

res de João Batista, entre outros. Em João 1.41,

tologia de João ultrapasse em muito a afirmação

André refere-se a Jesus como “o Messias” [mes­

de Jesus ser o Messias, a frequência compara­

sias], e esse termo aramaico transhterado, explica

tivamente maior de christos em João e a forma

o autor, significa christos. Em João 1.45, Fihpe

enfática em que o termo é usado na narrativa dei­

descreve Jesus como aquele que foi predito na

xam claro que o caráter messiânico de Jesus é um

Lei e nos Profetas. A declaração imediatamente

dos aspectos de destaque da fé do autor (v. JoAo,

posterior de que Jesus era “o Filho de Deus [...]

E vangelho

0 rei de Israel” (Jo 1.49) confirma que ele está

d e)

.

Talvez a passagem mais importante para ava­

pensando no Messias. Como faz supor a resposta

liar o significado de christos seja João 20.31, texto

de Jesus a Natanael (Jo 1.50,51), os discípulos

em que o autor debca claro seu objetivo: procurar

não percebem a plenitude da pessoa e da posição

promover a crença de que “Jesus é o Cristo, o

de Jesus, mas João quer que entendamos o

Filho de Deus”. De um lado, a aclamação de Je­

fato de que, até certo ponto, é correto aclamar

sus como “ o Cristo” constitui elemento central da

Jesus com categorias messiânicas.

súmula que o próprio autor faz da fé cristã, sen­

Em João 7.25-44, as especulações messiânicas

do um dos dois títulos que o autor escolhe aqui

dos judeus são confrontadas com a identidade

para apresentar Jesus. De outro lado, “o Cristo”

messiânica de Jesus. A multidão fica imaginan­

também é “o Filho de Deus” , e João considera

do se as autoridades admitem em segredo que

categoria cristológica fundamental a condição de

Jesus é “o Cristo” (Jo 7.26), mas alguns têm di­

Filho de Deus desfrutada por Jesus, que implica­

ficuldade de conciliar essa interpretação de Jesus

va o entendimento de que Jesus era preexisten­

com a tradição segundo a qual, “ quando vier o

te e partilhava ricamente da glória divina (e.g.,

Cristo, ninguém saberá de onde vem” (Jo 7.27,

Jo 17.1-5). Assim, João 20.31 reflete as afirma­

tradição messiânica não confirmada em outros

ções de que Jesus é o Messias e de que esse Mes­

lugares). Em João 7.31, há uma alusão ao Mes­

sias é muito mais subUme que o permitido nas

sias como aquele que realiza sinais, e alguns en­

especulações messiânicas dos judeus. Essas afir­

tendem que os sinais de Jesus são um indício de

mações também se refletem de várias maneiras

que ele ocupa a posição de Messias. Um pouco

nos outros Evangelhos canônicos, mas em João

mais adiante (Jo 7.40-44), lemos que, se alguns

são expressas com particular força.

concluem ser Jesus “o Cristo” , outros têm difi­

Bem mais que os demais Evangelistas, João

culdade de conciliar os antecedentes galileus de

emprega as especulações messiânicas judaicas

Jesus com a tradição de que o Messias virá de

como contraposto na apresentação de Jesus. Em

Belém e será descendente de Davi.

João 1.19-28, ele nos apresenta às especulações

Mais uma vez, em João 12.34 a multidão se

judaicas, em que os líderes judeus interrogam

refere a uma tradição segundo a qual “o Cristo

João Batista para saber se ele alega ser “ o Cris­

permanece para sempre” e pergunta se é pos­

to” , Ehas ou “o profeta” — e a cada pergunta ele

sível conciliar isso com a predição de Jesus de

responde “não”. João Batista aclama Jesus como

que ele será “levantado”. E a mulher samaritana menciona a tradição de que o Messias “ nos

“ o Cordeiro de Deus” (Jo 1.29,36) e “ o Filho de

273

C risto i : os Ev angelhos

anunciará todas as coisas” (Jo 4.25). concluindo

objetivo é muito mais que a mera identificação

que o notável conhecimento que Jesus revela ter

de Jesus como o Messias da expectativa judaica.

a respeito dela sugere que talvez ele seja “o Cris­

Nesse episódio, o problema dos judeus não é a

to” (Jo 4.29).

dificuldade de encaixar o que sabem a respeito

A precisão das referências de João às tradi­

de Jesus em alguma tradição messiânica, mas

ções messiânicas dos judeus é uma questão inte­

a incapacidade de aceitar a afirmação de que o

ressante, mas não pode nos deter aqui. Algumas

Messias Jesus é o Filho de Deus, que partilha da

delas não são claramente confirmadas em outros

divindade com o Pai (Jo 10.37,38).

lugares, mas pesquisas recentes dão conta de que

Outras passagens confirmam que christos é

João inclui algum material de procedência da Pa­

título cristológico importante em João e que o au­

lestina, e essas referências a tradições messiâni­

tor deseja apresentar Jesus como o Messias ver­

cas dos judeus podem ser mais valiosas do que

dadeiro. Em João 9.22, a confissão de que Jesus

alguns gostariam de admitir (v., e.g..

Jonge,

é o “Cristo” provoca sua expulsão da sinagoga.

Mais pertinente a esta análise é a questão

hoje em dia, refletia as controvérsias cristológicas

sobre qual seja a ideia central do autor nessas

entre os cristãos joaninos e as autoridades judai­

passagens. Resumidamente, parece que João

cas da época. De forma especial entre os autores

D

e

1972-1973).

Essa passagem, segundo geralmente se interpreta

está empregando ironia nas passagens em que

dos Evangelhos, duas vezes João claramente as­

os judeus não conseguem conciliar Jesus com as

socia 0 termo christos ao termo semítico Messias

tradições messiânicas. Sem perceber, os judeus

[messias, Jo 1.41; 4.25), O Evangelista considera

demonstram desconhecimento das próprias tradi­

imperfeitas as definições judaicas sobre o Mes­

ções ou não sabem o bastante a respeito de Jesus,

sias, mas na descrição de Jesus não abre mão da

achando que o conhecem e que podem muito fa­

categoria fundamental.

cilmente descartá-lo. Dessa maneira, consideran­

No episódio que envolve Lázaro, estrutural­

do passagens como João 1.1-18 e 6.41-45, o leitor

mente importante por ser o sétimo e culminante

percebe que os judeus realmente não sabem de

“ sinal” em João, a aclamação feita por Maria de

onde Jesus procede (do céu), nem que Jesus é, na

que Jesus é “o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 11.27),

verdade, o cumprimento da tradição segundo a

confirma a identificação que ele faz de si mesmo

qual a origem do Messias é desconhecida. Seme­

como “a ressurreição e a vida” e corresponde à

lhantemente, em João 12.34, o Filho do homem,

descrição pelo Evangelista da correta confissão

que deve ser “levantado”, também “permanece

cristã de João 20.31.

para sempre”, pois desceu dos céus e ascende

A tensão entre tradições messiânicas judaicas

de volta à glória celeste com Deus, cumprindo

e o entendimento joanino de Jesus tem levado

assim a mencionada tradição messiânica. Talvez

alguns estudiosos a propor que christos não era

devamos interpretar João 7.40-42 como texto

um título assim tão importante para João (e.g.,

igualmente irônico — João toma por certo que

M

seus leitores conhecem a tradição cristã segundo

[de Deus]” é a chave para a cristologia do autor

a qual Jesus nasceu em Belém e, assim, cumpre o

e o tema dominante de sua apresentação de Je­

que “afirma a Escritura” acerca do lugar de nasci­

sus. É com “ o Filho” que se revela o verdadeiro

mento do Messias.

significado transcendente de Jesus. Mas João não

aloney).

a ideia joanina de Jesus como “ o Filho

A interação entre o messianismo judaico e a

considera christos um título insatisfatório. Pelo

redefinição cristã em seus primórdios também

contrário, para ele as especulações messiânicas

é evidente em João 10.22-39, Aqui, “ os judeus”

judaicas é que são insuficientes para a correta

perguntam diretamente a Jesus se ele é “ o Cristo”

compreensão de quem é o Messias, e ele consi­

(Jo 10,24), e a resposta de Jesus é uma afirmati­

dera as autoridades judaicas incapazes de aceitar

va indireta (Jo 10.25-39). Mas em seguida Jesus

a devida definição de Messias e de Filho divino.

também faz declarações sobre a relação Pai-Filho

João não rejeita christos como título cristológico

para descrever sua posição, e o fato de isso ser

a favor de outros, como “Filho do homem” ou

ofensivo aos judeus (Jo 10,33,39) mostra que o

“Filho de Deus”. Ele exige que se reconheça que

274

C rísto í : os Evangelhos

Jesus, o Filho divino e o Filho do homem, é “o

desconsiderem a verdade irônica de suas zomba­

Cristo”. Ele também reflete a redefinição da cate­

rias e acusações, espera-se que o leitor de João

goria “o Cristo” que leva em conta o significado

perceba a verdade maior da filiação divina de

divino de Jesus e assim prefere unir “ Cristo” e

Jesus e de sua condição de rei. Diferentemente dos Evangelhos Sinótícos, em

“Filho de Deus” como forma de confessar Jesus da forma correta.

que a palavra christos está confinada em sua qua­

Para João, Jesus é mais que o rei mosaico de

se totahdade aos relatos da Paixão e da nativida­

Israel: é o rei messiânico, ainda que de estatura tão

de (Mateus e Lucas), em João, christos aparece

transcendente, jamais imaginada pelos “judeus”.

por todo o livro, demonstrando a importância

E, justamente por causa do enfoque de Jesus como

do título para esse evangelho. João não apenas

Messias, o autor critica de modo contundente as

deixa claro que João Batista não é o Messias,

autoridades judaicas por rejeitarem a Jesus. Je­

mas também menciona que o Batista endossou o

sus foge da multidão que tenta fazê-lo rei ã força

messiado de Jesus. João também menciona com

(Jo 6.15) após 0 milagre dos pães, mas não se deve

exclusividade o fato de que os primeiros discípu­

interpretar isso como absoluta rejeição da função

los de Jesus o aclamaram usando diversos termos

régio-messiânica, pois em outras passagens João

messiânicos. Jesus é reconhecido como Messias

declara que Jesus é o rei verdadeiro. Por exemplo,

pela mulher samaritana, e em alguns momentos

na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, a mul­

João destaca a incapacidade dos “judeus” em re­

tidão o saúda como “o rei de Israel” (Jo 12.13).

conhecer a condição messiânica de Jesus. Diante

Nesse episódio, Jesus vê o cumprimento de Zaca­

de todos esses dados, flca evidente que o autor

rias 9.9, que prediz a vinda do rei de Sião ã cidade

acredita ser Jesus o Messias verdadeiro, com sig­

(Jo 12.14-16). Dessa maneira, por mais superficial

nificado especial para a fé cristã.

que seja o entendimento da multidão quando acla­

João não joga um título cristológico contra ou­

ma Jesus como rei, o EvangeUsta entende que o

tro, embora empregue de modo profuso os títulos

título régio é cabível a Jesus.

honoríficos — muito mais que os demais Evange­

0 entrelaçamento das ideias do autor acerca

lhos — para descrever Jesus (e.g., as várias fór­

de Jesus como Messias régio e Filho transcen­

mulas “ Eu sou”). “Filho do homem” não é uma

dente de Deus também aparece na narrativa da

alternativa preferida para “ Cristo” (ao contrário

Paixão. Em João 18.33-38, Pilatos pergunta a

do que afirma

Jesus se ele se declara “rei dos judeus” — in­

desceu dos céus, é “o Cristo, o Filho de Deus” —

terpretação romana da afirmação messiânica. A

e isso está no âmago da fé de João.

M

aloney)

. O Filho do homem, que

resposta de Jesus consiste na rejeição da realeza 4. Conclusão

terrena, igual às demais, ao mesmo tempo que confirma sua realeza superior e a consequente

Os estudiosos da atualidade têm sido acertada-

missão de “ dar testemunho da verdade” de Deus.

mente criticados pelo fato de que, quando bus­

Na sequência, o autor continua a entrelaçar o

cam identificar a natureza da cristologia do

tema da realeza de Jesus com o de sua condição

dependem demais dos estudos sobre os títulos

nt

,

de Filho de Deus. Às vezes, os romanos tratam

cristológicos do

Jesus com pouco caso, chamando-o “rei” (Jo

em parte ou no todo será capaz de revelar ple­

nt

.

Nenhuma análise dos títulos

18.39; 19.3,14,15), e em João 19.19-22 o tema da

namente a fé cristológica dos autores do

realeza é destacado no fato — registrado apenas

títulos como “Cristo” são indicadores significati­

nt

.

Mas

em João — de Püatos se recusar a tirar o títu­

vos da fé de autores como os quatro Evangehstas.

lo da cruz. Em João, as acusações contra Jesus

Nos quatro Evangelhos, “ Cristo” é sempre uma

aUam os aspectos messiânico e transcendente

referência significativa a Jesus. Pode se dizer

de sua cristologia. Em João 19.12, “ os judeus”

que, para os Evangehstas, é termo cristológico

acusam Jesus de se pretender rei em oposição

fundamental. Mas todos revelam ter consciência

a César, mas em João 19.7 Jesus é acusado de

de que, em seus primórdios, a fé cristã envolvia

blasfêmia por se pretender “Filho de Deus”. Em­

uma apropriação e uma importante adaptação do

bora os adversários judeus e romanos de Jesus

significado do termo em sua aphcação a Jesus.

275

C risto ii : Paulo

De diferentes maneiras, os Evangelhos refle­

M. Christology in context. Philadelphia: Westmins­

tem duas modificações significativas no conceito

ter, 1988. • ______ , Jewish expectations about the

de Messias. 1) A crucificação representou um for­

“Messiah” according to the foirrth Gospel, nts , v . 19,

te obstáculo para os judeus na aceitação de Jesus

p. 246-70,1972-1973. • ______ . The use of ho chris­

como Messias, exigindo fundamentação no

a t,

e

tos in the Passion narratives. In:

J., org. Je­

D u p o n t,

foi o acontecimento que demandou dos primeiros

sus aux origines de la christologie. Leuven: Leuven

círculos cristãos uma reformulação da maneira

University, 1975, p. 169-92. ■______ , The use of the

em que entendiam a natureza e a obra do Mes­

w o rd “anointed” in the time o f Jesus.

sias. 2) A convicção cristã inicial sobre o signi­

132-48,1966.

ficado ou natureza transcendente de Jesus faz

Lukei-ix.

com que a natureza do Messias seja muito mais

(a s .)

• F ttzmyer, J.

s.n., s.d.]. V,

na vida religiosa do que a tradição judaica estava

sus in christology.

preparada para admitir. (Seria anacrônico ler os

M.

Evangelhos inserindo neles detalhes da cristolo­

65-77.

gia das duas naturezas, discutida séculos depois.

V.

Mas a leitura superficial dos Evangelhos mante­

M issoula; Scholars,

rá ocultos 0 papel e as qualidades sublimes, até

D.

mesmo transcendentes, atribuídos de diferentes

Fortress,

maneiras a Jesus pelos Evangehstas.)

tology, kingdom .

Nas modificações da categoria messiânica e na

1981.

G arden City: D oubleday,

• G rundmann , W . et al. x p iw

sublime e que ele seja mais importante e central

9. p. 493-580.

NovT,

v. 8, p.

The Gospel according to

Between Jesus and Paul.

td n t. [S.L:

The titles o f Je­

■ H a h n , F.

1969.

N e w York: W orld ,

192-219.

p.

k t A.

• H engel ,

London: scm ,

1983.

p.

■ Jones, D . T he title christos in Luke-Acts. cbq,

32, p. 69-76,1970.

■ Juel, D.

1977.

Messiah and temple.

(s b ld s ,

31.)

■ K in g s b u r y , J.

The christology o f Mark’s Gospel.

K ram er,

1983, ■ ______ . Matthew: W.

Philadelphia:

structure, chris­

1975.

Philadelphia: Fortress,

Christ, Lord, Son of Cod.



London: scm ,

contínua insistência em manter “Cristo” como tí­

1966.

tulo para Jesus, vemos algo da essência da fé cris­

presentation of Jesus as “the Christ” and J. A . T.

(s b t,

50.)

■ Maloney, F T he fourth G ospel’s

tã em seus primórdios, um movimento religioso

Robinson’s redating.

que surgiu como desenvolvimento particular da

239-53, 1977.

tradição bíblica pré-cristã. Nele, Jesus tornou-se

Acts. In; K e c k , L.

“ o Cristo” para todas as nações, não apenas para

in Luke-Acts.

Israel. Mas os Evangelhos mostram que no im'cio

85.

Downside Review,

95,

v.

p.

■ M oule, C. F. D . T he christology of

E. &

M artyn, J. L., orgs.

1966.

N e w York; A bin gd on ,

• N e u s n e r , J.; G r e e n , W , S.; F r e r ic h s ,

Studies p.

159-

E. Judais­

os cristãos vinculavam sua confissão de Jesus

ms and their messiahs at the turn of the Christian

como “o Cristo” à herança bíblica e às esperan­

era.

ças que Israel tinha de um redentor. Por mais que

■ ReNGSTORF, K .

Cam bridge: C am bridge University Press, XpiOTÓÇ. NEINTT.

[S.I.:

1987.

s.n,, s.d.]. V.

“Cristo” tenha se tornado parte do nome-fórmula

2.

referente a Jesus, para os Evangelistas o termo

again. In: L indars,

preservou uma associação com antígas visões da

and Spirit in the New Testament.

intervenção escatológica visível de Deus a favor

bridge University Press,

de seu povo. Para os Evangelistas, a rejeição a Je­

W h a t is im plied b y the variety o f messianic figures?

sus representou a rejeição ao Messias de Israel,

JBL, V.

p.

334-43.

■ Smalley , S, S. T he christology of Acts

B. &

Smalley ,

1973.

p.

S. S.,

orgs.

Christ

Cam bridge: C am ­

79-94,

■ S mhti, M .

78, p. 66-72, 1959.

Talvez como em nenhum outro título cristoló­

L. W.

H

u rtado

gico, o uso que os Evangehstas fazem de “ Cristo” desnuda as raízes judaicas da fé cristã e a inova­

C r is t o

ção que essa fé representou.

A

Ver também c r is t o l o g i a ; hom em ;

F il h o

de

D

eus;

F il h o

ii:

P aulo

frequência extraordinária com que Paulo em­

prega o termo Christos exige explicação. Paulo

do

usava 0 termo praticamente como um segundo

Se nh o r.

nome para Jesus ou para fazer distinção entre M. Son of Man. London:

spck,

esse Jesus e todos os outros de mesmo nome.

1979. ■ C u l l m a n n , 0. The christology of the New Tes­

Vários textos também mostram que Paulo esta­

tament. Ed. rev, Philadelphia: Westminster, 1963.

va bem consciente da implicação mais ampla do

N. The crucified Messiah and other essays.

termo Christos/mãshiah. Também é notável que

B ib u o g r a r a . C a s e y ,

■ D

ah l,

Miimeapolis: Augsburg, 1974. p. 37-47. •

D

e

Jo n g e ,

276

Paulo se abstenha de usar o termo Christos de

C risto ií : Pa ulo

certas maneiras. Por exemplo, jamais encontra­

se ressaltar, porém, que nenhum dos livros mais

mos a expressão “Jesus, o Cristo”. Um estudo cui­

recentes do

dadoso dos antecedentes judaicos e gregos não

rência à pessoa da realeza, no futuro, que seria

at

utihza o termo christos em refe­

explica a frequência e a maneira em que Paulo

como Davi (cf., e.g., Zc 9.9,10; 12.7— 13.1). Em

emprega o termo Christos. A melhor explicação

Isaías 45.1, o termo se refere a Ciro e, em Habacu-

é o fato de que Paulo recebeu uma tradição que

que 3.13 parece designar alguém que reinava na

associava o termo Cristo ao âmago da mensagem

época. Além do mais, na hteratura judaica mais

cristã primitiva: a morte e a ressurreição de Jesus

antiga, o termo é visto com pouca frequência

(cf. ICo 15.3,4). Essa tradição recebida, aliada ã

(cf. SI Sa, 18.5; 4QPBless 3; CD 12.23,24; 14.19;

experiência singular que Paulo teve com Cristo na

19.10,11; lEn, 48.10; 52.4) e não parece ter sido

estrada de Damasco (v.

“uma designação essencial de qualquer futuro re­

do de)

P

a u lo , conversão e c h a m a ­

, esforça-se bastante para explicar as ideias

dentor”

bem definidas que associava ao fato de Jesus ser

(D e JoNGE,

1966, p. 147).

Houve diversas formas de expectativas mes­

0 Cristo. Não existe, contudo, nenhuma exphca-

siânicas no início do judaísmo, mas parece que

ção ou lógica que justifique, de modo claro, as

os termos traduzidos em nosso idioma por “Mes­

alterações e combinações que encontramos nas

sias” não foram muito usados, e provavelmente

cartas de Paulo, onde ele justapõe Cristo a vários

nem fossem termos técnicos para designar um

outros nomes e títulos. Parece que, na maioria

redentor futuro. A esperança messiânica dos pri­

das vezes, Christos é usado nas ocasiões em que

mórdios do judaísmo podia incorporar a ideia de

estão em jogo a morte, a ressurreição e o retor­

um ou mais personagens messiânicos, como é o

no de Cristo. De muitas maneiras, a fórmula en

caso dos que foram ungidos como rei ou como sa­

Christõ é a que melhor sintetiza a ideia de Paulo

cerdote nos textos de Qumran (e.g., IQS 9.10,11;

sobre a condição e a posição dos cristãos: eles es­

CD 12.22,23), ou mesmo nenhum, quando se

tão

cria que Javé finalmente resgataria seu povo



em

C r is t o ” .

Nas cartas cuja autoria paulina é

contestada, o uso do termo Christos pouco difere

(e.g., IQM 11,12).

do que encontramos naquelas cartas geralmente consideradas autênticas, exceto pelo fato de que

2. Uso grego

há mais ênfase no que se pode chamar “cristolo­

É surpreendente que o termo Christos seja usado

gia cósmica”.

com tanta frequência por Paulo (270 vezes den­

1. Antecedentes judaicos

tre os 531 usos no

2. Uso grego

usado como nome de Jesus, não como título ou

nt)

e que, ao que parece, seja

3. Origem do uso de Christos entre os cristãos

termo descritivo. Isso impressiona especialmen­

4. Uso paulino

te porque, em geral, Paulo estava escrevendo a

5. A fórmula en Christõ

gentios que podiam ou não ter tido alguma fami­

6. Christos nas cartas paulinas contestadas

liaridade com os antecedentes judaicos do termo. No uso grego secular, o termo christos tem sim­

1. Antecedentes judaicos

plesmente 0 sentido de unguento ou cosmético,

O adjetivo grego christos, formado a partir de um

mas ao que tudo indica nunca designava a pessoa

particípio (vindo depois a ser usado como subs­

ungida (cf.

tantivo), e seu equivalente hebraico mãshiah fo­

fragmento de um manuscrito, escrito por Diodo-

E u r íp id e s ,

Hp, 516;

M

o u le ,

p. 32). Um

ram termos usados no início do judaísmo e do

ro Sículo (Ib; 38-39, 4) pouco antes da época de

cristianismo em referência a uma pessoa ungida

Jesus, emprega o termo neochristos para indicar

e separada para uma tarefa especial, e, em par­

um prédio “recém-rebocado”. Por isso, faz-se

ticular, a um personagem régio e/ou messiânico.

necessária uma explicação para o prolífico uso

Na esfera política, o termo foi usado para desig­

paulino do termo Christos, quase como um nome

nar reis davídicos (SI 18.50; 89.20; 132.10-17).

de Jesus. Ainda mais quando existia uma pala­

Nesse aspecto, 2Samuel 7.8-16 é de valor funda­

vra grega própria para designar alguém que fosse

mental, pois expressa a esperança de que Deus

ungido: êleimmenos (do verbo aleiphõ, “ungir”).

providenciaria o governante davídico ideal. Deve

E,

277

por sinal, foi o termo que Áquila utilizou para

C risto ii : Paulo

traduzir a palavra hebraica mãshiah em sua cita­ ção do AT traduzida do grego.

uma importância inequívoca. Todos esses termos e expressões se referem à mesma pessoa no re­

A hipótese de que o uso do termo Christos com

lacionamento com seu povo. Estudos detalhados

a função de sobrenome de Jesus tenha surgido no

sobre o emprego paulino do termo “ Cristo” têm

cristianismo gentílico, em que as conotações ju­

deixado claro que Paulo utiliza o vocábulo de vá­

daicas originais de natureza régia ou messiânica

rias maneiras e em combinações com outros no­

não eram mais entendidas, não explica por que

mes e títulos, e só raramente é possível exphcar

Paulo, um judeu, foi quem mais utilizou o termo

essas modificações. A impressão é que não existe

entre os autores do

0 entendimento

razão teológica para Paulo às vezes usar a expres­

que Paulo tinha do sentido do termo fica claro

são “Cristo Jesus” em vez de “Jesus Cristo” ou

nt

(H

engel).

com base em 2Coríntios 1.21, texto no qual en­

preferir a expressão “o Senhor Jesus Cristo” a

contramos o seguinte jogo de palavras: “É Deus

apenas “ Cristo”.

quem nos mantém firmes convosco em Cristo

É possível demonstrar que Paulo emprega o

[eis Christon] e foi ele quem nos ungiu [chrisas] ”.

termo Christos e suas variantes especialmente em

Contudo, 0 que é bastante surpreendente, Paulo

contextos cuja base seja uma tradição pré-paulina

pouco menciona “o Cristo” , e sim lêsous Christos

ou ao refletir sobre o significado escatológico da

( “Jesus Cristo”) e às vezes Christos lêsous (“Cris­

morte, da ressurreição e da parusia (v.

to Jesus”) ou mesmo ho Kyrios lêsous Christos (“o

g ia ) .

Senhor Jesus Cristo”). É um forte indício de que

motivo básico de Paulo empregar “Jesus Chris­

esc ato lo ­

Esses acontecimentos momentosos são o

antes de Paulo escrever suas cartas o termo Chris­

tos” (cf.

tos era amplamente usado nos primórdios do cris­

é possível encontrar uma síntese da cristologia

tianismo como parte do nome de Jesus. Se não

pauhna. Cristo é aquele que morreu — de uma

fosse assim, era de esperar que, em algum mo­

vez por todas — e ressuscitou a fim de que vivam

mento, Paulo explicasse a seus leitores o sentido

para ele aqueles a quem redimiu. Esses aconteci­

do termo. Precisamos examinar rapidamente os

mentos dão testemunho do amor sacrificial que

H

engel,

p. 146-8). Em 2Coríndos 5.14-21,

dados que sinalizam o uso pré-paulino do termo

Cristo manifestou por seu povo e que este, por

Christos em referência a Jesus.

sua vez, deve imitar. Cristo é, portanto, o gran­ de reconciliador entre os seres humanos e Deus

3. Origem do uso de Christos entre os

(2Co 5.19) e dos seres humanos uns com os ou­

cristãos

tros (Cl 3.28). São os acontecimentos salvíficos

Em ITessalonicenses, uma das cartas mais anti­

culminantes do final da vida de Jesus que levam

gas de Paulo, provavelmente escrita na década

Paulo, de modo especial, a chamar Jesus de Cris­

de 50 do século i, se não antes, aparece uma va­

to. A importância desses acontecimentos na defi­

riedade de usos de Christos. Por exemplo, Pau­

nição do Cristo é algo que também fica claro com

lo menciona o “ Senhor Jesus Cristo” (ITs 1.1;

0 quase silêncio de Paulo acerca dos milagres de

5.23,28), “ Cristo” (ITs 2.6), “em Cristo Jesus”

Jesus. Além do mais, embora em ICoríntios e

(ITs 2.14) e o que haveria de se tornar uma

em outras passagens Paulo se baseie na tradição

das expressões favoritas de Paulo: “em Cristo”

sobre as declarações de Jesus, ele não as utiliza

(ITs 4.16). Isso mostra que, no início da déca­

como se fossem a essência ou querigma de seu

da de 50 ou mesmo antes, o termo Christos já

evangelho, nem como o cerne da confissão de fé

havia se tornado, na prática, um nome para Je­

que os primeiros cristãos faziam de Cristo.

sus, sendo, como tal, reconhecido pelos leitores

É importante ressaltar que, quando Paulo reci­

de Paulo na Macedônia. Em ICoríntios, obser-

ta a parodosís, a sagrada “tradição” dos primeiros

va-se uma variedade semelhante de uso e de

cristãos, que fora transmitida por ele e por ou­

pressuposições. Por exemplo, encontramos não

tros, ele dá a entender que ela incluía a confissão

apenas a expressão “ Cristo Jesus” (ICo 1.1-40),

de que “Cristos morreu pelos nossos pecados”

mas também “Cristo” (ICo 1.6), bem como “ nos­

(ICo 15.3). Essa fórmula extraordinária, da qual

so Senhor Jesus Cristo” e “Jesus Cristo, nosso

não se conhece nenhum precedente no judaísmo

Senhor” (ICo 1.2,7-10). Essa variação não tem

primitivo, é considerada por Paulo o âmago da

278

C risto i i : Paulo

fé cristã, que havia aprendido com aqueles que

(G r u n d m a n n ,

estavam “em Cristo” antes dele. Isso significa

a essa regra encontra-se em Colossenses 3.24,

que, no período entre 30 d.C. e o ponto em que

em que encontramos tõ kyriõ Christõ douleuete

p. 542-3). A única possível exceção

Paulo recebeu essa tradição (sem dúvida antes de

(“servi a Cristo, o Senhor” [como escravos]), mas

suas viagens missionárias), o termo Christos não

kyrios pode ter aqui o sentido secular de “amo,

era usado pelos cristãos apenas como referência

senhor” , não de Senhor divino (cf. Cl 3.22,23).

exclusiva a Jesus, mas já estava intimamente li­

Segundo: Paulo jamais acrescenta um genitivo

gado à morte de Jesus como meio de salvação

[correspondente em português ao adjunto ad-

escatológica.

nominal restritivo] ao termo Christos (como se

N. A. Dahl acredita que seja possível identifi­

observa no judaísmo primitivo; e.g., “ o Ungido

car as origens desse desenvolvimento no fato de

do Senhor”). Aliás, ele não utiliza o termo em

Jesus ter sido crucificado como um messias em­

nenhuma expressão possessiva, como “Cristo do

busteiro. Há margem, no entanto, para duvidar

Senhor” (mas cf. ICo 3.23). Nas cartas paulinas,

disso, pois é muito possível que o título na cruz

Christos também nunca é usado como simples

trouxesse a inscrição Basileus, Melek e Rex (em

adjetivo. E a expressão “Jesus, o Cristo” também

grego, hebraico e latim, respectivamente), em vez

nunca é encontrada

de Christos, mãshiah e Christus. É mais provável

lo não acha necessária a fórmula “Jesus é o Cris­

que 0 uso inicial e mesmo pré-paulino da palavra

to”, nem defende essa ideia. No entanto, entre

Christos, na prática um nome de Jesus, se expli­

outros termos, ele utihza o que se considera a

que pelo fato de que, durante seu ministério, de

mais antiga das confissões cristãs: “Jesus é Se­

(D a h l,

p. 37). Por sinal, Pau­

alguma maneira Jesus se identificou como o agen­

nhor” (Rm 10.9,

te final de Deus [mãshiah) e exphcou sua morte

que o fato de Jesus ser ou não o Messias não era

em termos semelhantes àqueles que encontramos

objeto de debate nas comunidades paulinas e que

em Marcos 10.45 (cf.

1990, p. 251-

Paulo entendia ser isso já um pressuposto para as

6). Também é possível que os primeiros cristãos

demais confissões. Por exemplo, nas cartas, ele

judeus de origem helênica soubessem que, para o

não tenta fazer uso de provas textuais para de­

falante médio de grego, a palavra Christos, como

monstrar que Jesus era o Messias. Sobre isso, J.

ocorreu com o vocábulo mais conhecido Christus

D.

(cf.

S u e t ô n io ,

W

it h e r in g t o n ,

G.

N V Í}.

Aí está um forte indício de

Dunn afirma que Paulo

Cláudio, 25, em que fica evidente

que Christus é lido como Chrestus], seria enten­

não faz nenhuma tentativa de provar que Jesus

dida como se fosse um nome, fazendo distin­

é o "Cristo", apesar de seu sofrimento e morte.

ção entre esse Jesus e outros de mesmo nome.

Já não é necessário demonstrar que "Cristo" é

Além do mais, é possível que o nome composto

um título cabível para ser aplicado a Cristo. A

Jesus Cristo tenha em parte se tornado comum

crença em Jesus como o Cristo tornou-se tão

pelo desejo dos primeiros cristãos de ressaltar a

firmemente estabelecida na mente de Paulo

dignidade régia de seu Salvador. Assim, eles lhe

que ele a aceita sem nenhum questionamento,

teriam dado um nome composto, à semelhança

e "Cristo" é tão-somente um modo de se referir

de outros personagens notáveis do período, como

a Jesus, como um nome próprio (é o caso mes­

César Augusto.

mo em ICo 15.3)

4. Uso paulino

(D

unn

,

p. 43).

Das formas do termo Christos empregadas

Independentemente de quando Paulo tenha ouvi­

por Paulo, uma das mais importantes é a ousada

do Jesus ser chamado pela primeira vez de Chris­

expressão que tem o objetivo de quahficar sua

tos, como uma espécie de segundo nome, ele não

pregação: Christos estaurõmenos (“ Cristo crucifi­

perdeu de vista o fato de que no início Christos

cado” , ICo 1.23). A expressão deve ter chocado

deve ter sido um título. Vários indícios apontam

os ouvintes judeus, pois não há provas conclusi­

para isso. Primeiro: Paulo jamais justapõe Kyrios

vas de que, nos primórdios, os judeus aguardas­

a Christos apenas, pois isso significaria combinar

sem um Messias crucificado. A crucificação era

dois títulos, 0 que seria um tanto deselegante

um castigo reservado para os piores criminosos 279

C rísto ii : Paulo

e revolucionários. Parece que os judeus, com

com seus leitores, em grande parte gentios, que

base numa leitura de Deuteronômio 21.23 (cf.

a salvação, num primeiro momento, procede dos

G1 3.13), entenderam a crucificação como um si­

judeus e é para os judeus, sendo agora também

nal de que a pessoa crucificada era amaldiçoada

para os gentios (Rm 1.16; v.

Israel).

por Deus. Não há evidência conclusiva de que

Paulo estava ciente das antigas concepções

Isaías 53 tenha, em algum momento, sido aphca-

judaicas de um Messias nascido sob a Lei (cf.

do ao Messias antes dos dias de Jesus (é discutí­

G1

vel a evidência encontrada em Tg ís, 53).

Rm 1.3), e tem a satisfação de atribuir tudo isso

4.4) e pertencente à linhagem davídica (cf.

Um exame minucioso do uso paulino do termo

a Jesus. Além disso, em várias passagens Paulo

Christos faz supor que, de modo geral, o signifi­

se refere ao caráter inteiramente humano desse

cado adotado por Paulo não se baseava em ideias

Christos (Rm 5.17-19; Fp 2.7; Rm 8.3). Ele tam­

judaicas já existentes acerca do ungido de Deus,

bém sabia que, de modo geral, os antigos judeus

e sim em tradições sobre o fim da vida de Jesus

não imaginavam o Messias como um personagem

e seus desdobramentos, associadas à experiência

sobre-humano, e sim como um ser humano mo­

do próprio Paulo na estrada de Damasco. Esses

delar especialmente ungido pelo Espírito de Deus

acontecimentos forçaram o apóstolo a repensar o

(G

que era necessário para que alguém fosse consi­

que sugerem um personagem sobre-humano, tal­

derado 0 Messias davídico

vez o “filho do homem” de Dn 7,

(K

im

)

. 0 fato de Paulo

e outros cristãos da igreja primitiva terem usado o

rundm ann,

p. 526; mas cf. as parábolas em lEn, ar a).

Entre­

tanto, aqui também parece que Paulo foi muito

termo Christos em referência a alguém que havia

além do que a maioria de seus contemporâneos

morrido na cruz e ressuscitado dos mortos mos­

judeus entendiam sobre o Messias davídico, pois

tra de modo geral até que ponto o significado do

a maneira mais natural de ler a expressão gra­

termo sofreu transformação. Christos trouxe re­

maticalmente difícil de Romanos 9.5 é: “... vem

denção a seu povo quando morreu, ressuscitou e

0 Cristo que sobre todos é Deus bendito para

foi exaltado a uma posição de autoridade e poder

sempre”

à direita de Deus, acima de todos os principados.

entendimento de Paulo, não apenas Cristo assu­

Ele não garantiu a redenção afastando o jugo do

mia funções nos céus, mas em certo sentido era

domínio romano durante seu ministério terreno.

cabível chamá-lo Deus. Isso está em harmonia

Em resumo, Paulo está pensando em algo bem

com Filipenses 2.11, em que Jesus Christos é cha­

diferente do que se acha em textos como Salmos

mado pelo nome divino usado na

de Salomão 17— 18, nos quais o Messias é vis­

(“ Senhor”) — e com Colossenses 1.19 (“Foi da

to como um herói conquistador que lança fora o

vontade de Deus que nele habitasse toda a pleni­

jugo de um governo estrangeiro.

tude [p/êrõma]...”). Ressalte-se que em Romanos

(M

e tzg er ) .

Is so

nos leva a crer que, no

lx x

— kyrios

Contudo, não seria totalmente correto dizer

9.5 Paulo cita “o Cristo”, o que mais uma vez nos

que “a compreensão acerca do Messias perde seu

permite perceber como ele entendia o significado

significado nacional, político e religioso, e assim

maior do termo.

o significado do Messias na história humana é

0 uso do termo Christos nas saudações das

confirmado e explicado. Esse é um feito teológico

cartas paulinas também indica uma visão exal­

característico de Paulo”, como afirma W. Grund­

tada de Jesus. Por exemplo, Filipenses 1.2 afir­

mann (p. 555). Em Romanos 15.8, Paulo relata

ma que a graça e a paz procedem não apenas de

com muita clareza o fato de Cristo ter se tornado

Deus Pai, mas também do Senhor Jesus Cristo.

servo da circuncisão, e apresenta a esperança de

Segundo C. F. C. Moule, “é no mínimo descon­

salvação para muitos judeus no fim dos tempos

certante a posição que Jesus ocupa em relação a

(Rm 11.25,26). Só agora Cristo é Salvador dos

Deus, tanto aqui quanto em muitas outras fórmu­

gentios por meio de seus ministros e apóstolos,

las introdutórias nas cartas neotestamentárias —

como Paulo (cf. Rm 15.16,18), mas na mente

especialmente quando se considera que foi algo

de Paulo isso não anula o significado do serviço

escrito por judeus monoteístas acerca de um per­

que Cristo prestou anteriormente em sua missão

sonagem histórico do passado recente”

aos judeus. Aliás, o objetivo de Paulo é insistir

p. 150). Nesses casos, Jesus Cristo é visto como

280

(M

oule,

C risto ii : Paulo

aquele que outorga algo que somente Deus pode

(v.

verdadeiramente conceder: shalom.

te uma das expressões prediletas de Paulo. Apa­

0 trecho de Romanos 1.16 contém uma pos­



em

C r is t o ” ) .

En Christõ é inquestionavelmen­

rece 164 vezes nas principais cartas pauhnas e

sível pista que sinaliza por que Paulo emprega o

outras 6 nas Pastorais, na expressão en Christõ

termo Christos com tanta persistência e por que

lêsou (“em Cristo Jesus”), fato muito impressio­

também às vezes dá a entender que o termo era a

nante, uma vez que os outros autores do

princípio um título, mas não usa um termo como

ticamente não utilizam a expressão (mas cf., e.g.,

nt

pra­

Sõtêr (“ Salvador”) para se referir a Jesus. Embora

IPe 3.16; 5.10,14). Paulo jamais utiliza o termo

Paulo fosse o apóstolo aos gentios, queria conti­

Christianas (“cristão”). A esse adjetivo, parece

nuar afirmando e, por vezes, talvez até mesmo

preferir en Christõ (cf. ICo 3.1). Em outras pas­

ressaltando para seu público que a salvação pro­

sagens, a expressão en Christõ parece ter sentido

cede dos judeus e é para os judeus, antes de ser

mais fecundo, indicando o ambiente ou atmos­

para qualquer outro grupo. Uma forma de fazê-lo

fera em que vivem os cristãos — ou seja, eles

era justapondo os dois termos: lêsous Christos. Na

estão “em Cristo”. A. Deissmann, em seu estudo

condição de judeu, Paulo desejava que ninguém

pioneiro Die Neutestamentliche Formei “in Christo

jamais esquecesse que Jesus só pode ser Salvador

Jesu” (1892), declara que essa fórmula tinha sen­

do mundo por ser o Messias judeu. Por isso, tal­

tido tanto local quanto místico: Cristo, como uma

vez 0 uso paulino do termo Christos como nome

espécie de Espírito universal, é a própria atmosfe­

para Jesus e as formas em que evitou utilizar o

ra em que os crentes viviam.

termo não fossem mera questão de hábito, mas

Um bom exemplo desse uso acha-se em 2Co-

uma tentativa de lembrar a uma igreja cada vez

ríntios 5.17; “Se alguém está em Cristo, é nova

mais gentílica a origem e a natureza judaicas do

criação” (cf. Fp 3.8,9; v.

Salvador e de sua salvação.

outra possível tradução é: “Se alguém está em

c r ia ç ã o ,

nova

c r ia ç ã o ;

0 termo Christos, estudado no contexto dos

Cristo, ah há uma nova criação”). Em outras pa­

vários usos no corpus paulino, revela que o após­

lavras, pode se dizer que congregações inteiras

tolo se baseou em algumas concepções antigas

estão “em Cristo”, assim como é possível dizer

do Messias e assim as amphou, transformando-as

que estão “em Deus” (cp. Cl 1.22 e Fp 1.1 com

e transcendendo-as. Para Paulo, o conteúdo do

ITs 1.1). Em várias outras passagens, parece

termo Christos teve origem principalmente no ad­

haver um sentido locativo (ITs 4.16; G1 2.17;

vento de Cristo e na experiência que ele próprio

ICo 1.2; 15.18). A. Schweitzer, em The mysticism

teve do acontecimento. Sua pregação a respeito

of Paul the Apostle (1931), rejeita grande parte do

de Cristo conduziu a três elementos dos quais se

raciocínio de Deissmann, alegando que a sohda-

desconhecem precedentes no antigo judaísmo:

riedade que Paulo imaginava haver entre os cris­

1) o Messias é chamado Deus; 2) afirma-se que

tãos e entre eles e Cristo era em parte de natureza

o Messias foi crucificado e que sua morte tem

física, ocorrendo por meio do rito do batismo de

efeito redentor; 3) espera-se que o Messias vol­

água, e não mediante alguma experiência subjeti­

te à terra. Os judeus não cristãos desconheciam

va alcançada mediante a fé. Sem dúvida, isso ex­

a ideia de um Messias crucificado, bem como a

trapola as informações contidas em textos como

de uma segunda vinda do Messias. Também não

Gálatas 2.16 e Romanos 5.2, além de contradizê-

há indícios de que os antigos judeus estivessem

las. Ao que parece, a ideia de Schweitzer é pro­

dispostos a chamar o Messias de “Deus” ou a

duto mais da própria compreensão da escatologia

considerá-lo alguém em quem habitava a pleni­

judaica antiga do que do pensamento de Paulo.

tude da Divindade.

É fato que para Paulo Cristo está no crente (G1 2.20; Rm 8.10), mas a ideia não é tão caracte­

5. A fórmula en Christõ

rística do apóstolo quanto a expressão en Christõ.

Foi provavelmente por uma reflexão cuidadosa

Não nos parece possível alegar que Paulo este­

sobre alguns dos três elementos relacionados

ja simplesmente empregando um linguajar que

acima que Paulo veio a utilizar a expressão en

denota transferência de um domínio para outro,

Christõ (“em Cristo”) da maneira que a utiliza

nem seria possível eliminar totalmente o sentido

281

C risto ii : Paulo

en Christõ

den ota em vários casos.

Deus em Cristo proporcionou salvação e reconci­

T am po uco se p o d e explicar esses textos apen as

liação a todos os povos, judeus e gentios, e até

c om o outra fo rm a d e d ize r q u e a lg u é m pertence

mesmo para o cosmo inteiro. A esfera cósmica

a Cristo ou qu e, p o r m eio de Cristo, h á conquistas

do papel de Cristo é particularmente evidenciada

locativo q u e

é um

nessas duas cartas. Por isso, não é de surpreen­

conceito central d a perspectiva tanto lógica q u a n ­

der que essas cartas paulinas deem mais ênfase

p ara o crente. Para Paulo, estar en

Christõ

ao papel contínuo do Cristo exaltado que a maio­

to teológica. N ã o se p o d e faze r n a d a com Cristo N in ­

ria das anteriores, embora não estejam ausentes

g u ém p o d e se a proxim ar do Pai m edian te o Filho

referências à morte e à ressurreição de Cristo.

o u p o r ele, a m enos q u e se esteja

en Christõ.

en Christõ.

Nessas duas cartas. Cristo é visto não apenas

então essa p esso a está

como salvador de indivíduos, mas também como

(v. Filho d e D e u s ) , a m en o s q u e esteja Se a lg u é m está

en Christõ,

[v. igreja). O s resul­

governante cósmico. Em Cristo, acha-se o depó­

tados de estar em Cristo são os m ais diversos: a

sito da sabedoria e do conhecimento de Deus

n o c orp o dele — a

ekklêsia

tran sform ação espiritual do ser h u m an o p o r m eio

(Cl 2.2-10), embora o mistério não seja esotérico,

d a m orte p ara o p ec a d o , a p osse do Espírito [v.

uma vez que está relacionado com a obra pública

Espírito Santo), o ato de se tornar n o v a criação ou

de Cristo na cruz e, em ambas as cartas, é cuida­

criatura, a experiên cia d a ren o vação do ser inte­

dosamente relacionado à comunidade da fé. De

rior e d a mente, a obten ção d a esperan ça e da

acordo com Efésios 1.22, Cristo está no controle

certeza de u m a ressurreição corp órea com o a de

do cosmo em prol da igreja, e em Efésios 5.32 se

Cristo e o fato de ser espiritualm ente u n id o a u m a

vê que o mistério diz respeito ao relacionamento

im ensa m ultidão de outros crentes, u m a entidade

de Cristo com sua igreja. Ademais, o relaciona­

v iv a q u e Paulo c om p ara a u m corpo.

mento entre o domínio de Cristo sobre o cosmo

As imphcações teológicas da expressão en

e seu domínio sobre a igreja torna-se evidente

Christõ foram habilmente sintetizadas por Moule:

no hino de Colossenses 1.15-20 sobre Cristo, no qual tanto o cosmo quanto a igreja são mencio­

Se é de fato verdade que Paulo imaginava a si

nados lado a lado.

mesmo e a outros cristãos "incluídos" ou "si­

Entre as “palavras fiéis” que caracterizam as

tuados" em Cristo [...] isso revela um concei­

Cartas Pastorais (q.v.), apenas duas acrescentam

to mais que individualista da pessoa de Cristo

algo novo ao conceito de Cristo revelado nas car­

[... e] uma pluralidade de pessoas pode se

tas pauhnas anteriores. Em ITimóteo 6.13, faz-se

achar "em Cristo", assim como os membros es­

referência ao testemunho de Cristo diante de Pila­

tão inseridos no corpo

tos, desse modo apontando para um momento de

(M oule ,

p. 52, 65).

importância cristológica anterior ao da morte de Significa então que Paulo imagina o Cristo

Cristo. Anteriormente, em ITimóteo 1.15, lemos

exaltado como um ser divino em quem cristãos

que Cristo “veio ao mundo” com o objetivo espe­

de qualquer lugar podem habitar. Ou seja, as

cífico de salvar pecadores. Esse tema situa ainda

ideias de Paulo sobre a incorporação dos crentes

mais atrás, na história de Jesus, os momentos de

em Cristo e o resultado disso, a saber, o fato de

importância cristológica, no mínimo chegando ao

estarem, portanto, em Cristo, sugerem a ideia de

início da vida humana de Jesus e, possivelmente,

um ser divino "em” quem todos os crentes po­

com uma alusão à preexistência de Cristo (v.

dem habitar, ao mesmo tempo que revela um ser

t o l o g ia ) .

divino que pode estar “em” todos os crentes me­

mais clara em outras passagens, nos hinos de Fili­

diante a presença do Espírito.

c r is ­

Paulo expressa a última ideia de forma

penses 2.6-11 e Colossenses 1.15-20 sobre Cristo. Em ITimóteo 2.5, a ênfase recai na humanidade de Jesus como mediador entre Deus e a humani­

6. Christos nas cartas paulinas contestadas Em Colossenses e em Efésios, encontramos um

dade. Por fim, deve se assinalar que as Pastorais

desenvolvimento ainda maior da cristologia pau­

refletem certa predileção pela expressão “ Cristo

lina. Ele concentra a atenção no que é denomi­

Jesus” ou, vez por outra, por “ Cristo Jesus” , ao

nado “o mistério de Cristo”. Esse mistério é que

lado de “ nosso Senhor”.

282

C risto hi: A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

O estudo do uso do termo Christos por Pau­

e cristãos como equivalente do termo hebraico

lo nos permite captar a natureza do pensamento

mãshiah. Quando empregados como substantivos,

cristológico paulino, mas isso deve ser suplemen­

os termos hebraico e grego referem-se a uma pes­

tado por um estudo detalhado de outras ideias

soa ungida (v.

cristológicas importantes, como Senhor, Último

tos fosse adjetivo. Às vezes, os judeus usavam o

Adão e Filho de Deus.

termo mãshiah para designar um indivíduo ungido

Ver também c r is t o l o g i a ; d n tb : M



i) ,

embora na origem Chris­

por Deus, um rei (SI 18.50; 89.20) ou um sacer­

C r is t o ” .

em

C r is t o

dote

e s s ia n is m .

(c D

12.23,24; 14.19) ou viam essa pessoa

como aquela que viria restaurar ou renovar Israel. B

ib l io g r a f ia .

C ullm

ann,

0.

The christology o f the

É tênue a evidência de que, antes da época do

New Testament. Ed. rev. Philadelphia: Westmins­

NT,

ter, 1963. ■ D a h l , N. A. The messiahship of Jesus

técnico para designar “ messias”

mãshiah — quanto mais Cristo — fosse termo (D

e

Jonge,

1986).

in Paul. In: ______ . The crucified Messiah and

Apesar disso, o uso do termo Christos na an­

other essays. Minneapolis: Augsburg, 1974. p. 37-

tiga literatura cristã pressupõe esperanças judai­

47. ■ D e Jonge , M. Christology in context. Philadel­

cas de alguém ungido e se fundamenta nessas

phia: Westminster, 1988. ■ ______ . The earliest

mesmas esperanças, especialmente em alguém

Christian use of xpicrróç: some suggestions,

da hnhagem de Davi (v.

V.

32, p. 321-43, 1986. ■ ______ . The use of the

w o r d “a n o in ted ” in the time o f Jesus. p.

nts,

132-48, 1966.

■ D u n n , J. D . G.

versity in the New Testament:

NovT,

m ento )

v. 8,

Unity and di

j u d a ís m o e o

Novo

T

esta­

. Nos Evangelhos e em Paulo, encontramos

0 uso de Christos como título ou termo que se refere a esse personagem muito aguardado, mas

an in qu iry into the

também vemos o termo sendo usado como se­

character o f earliest Christianity. Philadelphia:

gundo nome de Jesus. Por exemplo, o Evange­

W estm inster,

1977.

lho de Marcos começa anunciando que contará

■ G ru n d m a n n , W . XpiOTÓç

9.

540-62. ■ H engel,

M

as boas notícias a respeito de “Jesus Cristo” , não

“ C hristo s” in Paul. In:

Between Jesus arul Paul

de “Jesus, o Cristo” , embora não haja dúvida de

Ph ilad elph ia: Fortress,

1983,

TDNT.

[S.L: s.n., s.d .]. v.

p.

The origin o f Paul’s gospel m ans,

1982.

L on d on :

1966.

(s b t,

■ K im , S

que Marcos sabia que o termo antes era um títu­

G ran d R apids: Eerd

lo (Mc 13.21,22). Essa dualidade também se vê

Christ, Lord, Son of God.

■ K ramer , W .

scm ,

65-77.

p.

50.)

■ M arshall,

origins o f New Testament christology. 1990 [1976].

cia, o termo é empregado como nome de Jesus,

D o w n e rs

especialmente no início de cartas (e.g., Rm 1.1;

B.

M.

ICo 1.1). Também está claro que Paulo conhece os antecedentes judaicos do termo. Por exemplo,

Christ and Spirit in the New

ele não justapõe “Cristo” a “ Senhor” , pois isso

studies in h on or o f C. F. D. M ou le.

significaria unir dois títulos, e parece que o uso

Smalley , S. S., orgs.

9:5.

■ M etzger ,

In: L indars ,

C am b rid ge : C am b rid ge U niversity Press,

95-112. •

nos escritos de Paulo, onde, com maior frequên­

The

H.

B. &

G rove: InterVarsity,

T h e pun ctuation o f R om ans

Testament:

I.

M oule , C. F. D .

1973.

que Paulo faz do termo é basicamente resulta­

p.

The origin of christology.

C am b rid ge : C am b rid ge University Press,

do de sua reflexão sobre a narrativa do flm da

1977. ■

vida de Jesus (ICo 1.23).

Judaisms

Fora dos Evangelhos e do corpus paulino, o

and their Messiahs at the turn o f the Christian era.

uso do termo Christos também se enquadra em

N eusner , J.; G reen , W . S.; F rerichs, E.

C am b rid ge: C am b rid ge U niversity Press,

V.

2.

p.

334-43. •

o f Jesus.

W

itherington ,

M in n e ap o h s: Fortress,

[S.L:

1987. ■

certos padrões definidos, alguns dos quais sus­

s.n., s.d .].

tentam a ideia de que “ Cristo” era frequentemen­

B. The christology

te usado como outro nome para Jesus de Nazaré

1990.

e, às vezes, para descrever um papel, função ou

B.

posição que assumiu em algum momento de sua

R engstorf , K. H. XpiaTÓç. n i d n t t .

W

it h e r in g t o n hi

carreira. 0 fato de que, em várias ocasiões, o C r is t o

h i:

G e r a is , A

A

tos,

H

ebreus,

C artas

mesmo documento (como Atos ou 1Pedro) pode refletir o uso de Christos tanto como título quanto

p o c a l ip s e

O termo grego Christos, traduzido por “Cristo”

como nome próprio mostra a flexibilidade com

em nosso idioma, é usado em contextos judaicos

que era possível utilizar o termo.

283

C risto iii : A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

Lucas ressalta a necessidade dos sofrimentos

1. Atos

e da ressurreição de Jesus (Lc 24.26,27), e nes­

2. Hebreus 3. Tiago 0 Judas

se contexto assevera que o plano de Deus reve­

4. 1 0 2Pedro

lado nas Escrituras era que “ o Cristo” sofresse

5. Cartas joaninas e Apocalipse

(At 17.2,3) e ressuscitasse (At 2.31, cit. SI 16.10;

6. Conclusões

V.

M

o essner) .

Nessas questões, o cumprimento

das Escrituras é ressaltado quando o contexto é 1. Atos

o da sinagoga ou de um púbhco judeu. Quando o

As 26 ocorrências de Christos em Atos referem-

púbhco é composto de gentios na maioria ou na

se a Jesus. Só raramente o termo ocorre em uma

totalidade, não simpatizantes da sinagoga nem

citação do

sem diivida porque é bem raro no

ligados a judeus, não aparece o termo Christos

grego. Mesmo assim, é fato que Atos 4.26 de

nem como título nem como descrição. Em vários

alguma forma cita Salmos 2.2, fazendo distinção

casos, não aparece nem mesmo em tais contextos

at

at,

entre Deus, como Senhor, e “ seu Ungido” (em

(v. os discursos de Paulo aos moradores de Listra

Atos, tou Christou autou). Textos como esse e

em At 14.15-17, e aos de Atenas em At 17.22-31).

outros, em que o possessivo “seu” aparece (cf.

Para um púbhco judeu, era crucial confessar que

At 3.18), deixam claro que o autor conhece o

Jesus é 0 Cristo (At 9.22; 17.3), ao passo que para

sentido da raiz da palavra Christos e entende sua

os ouvintes gentios era de suma importância con­

natureza relacionai. Se alguém é o Cristo, tem de

fessar que alguém chamado Jesus Cristo é o Se­

ser ungido por outra pessoa; nesse caso, o Pai.

nhor (cp. At 15.23 com 15.26). A comunidade de

Assim, quando encontramos a expressão “ nosso

judeus e gentios cristãos partilhava a confissão

Senhor Jesus Cristo” em Atos 15.26 e 20.21, ve­

de Jesus como “nosso Senhor” (At 15.26; 20.21).

mos implícitos ambos os relacionamentos: Jesus

A pessoa devia ter fé nele (At 24.24; 20.21).

é 0 ungido de Deus e o Senhor do crente.

Não se deve ficar muito impressionado com

O autor de Atos debca claro que, para ser cris­

Atos 2.36, pois, embora o texto não diga que

tão, é essencial confessar que Jesus é “o Cristo”

Deus fará Jesus se “tornar” o Messias (presu­

[ho Christos, At 9.22; 17.3). No testemunho aos

mivelmente após a crucificação; v.

judeus na sinagoga, há uma insistência no assun­

de) ,

to, justamente o assunto que teve de ser demons­

fre (At 17.3). Na melhor das hipóteses. Atos 2.36

C r is t o ,

m orte

em outra passagem ele é o Messias que so­

trado com base nas Escrituras, para que os judeus

dava a entender para o autor que Jesus, depois da

se tornassem seguidores de Jesus. Em Atos, pa­

morte, entrou numa nova etapa em seus papéis e

rece que “ Cristo” funciona principalmente como

deveres messiânicos. É notável que esteja ausente

nome, quando o público é gentílico, mas pode se

de Atos a ideia pauhna de estar

prestar à descrição funcional ou título quando o

dos cristãos como participantes de seu corpo (v.

“ e m C r is t o ”

ou

público é judeu. A expressão “em/pelo nome de

CORPO

Jesus Cristo” ou alguma variante (At 2.38; 4.10;

de Cristo. A cristologia do autor já foi descrita

8.12; 10.48; 15.26; 16.18) mostra, entretanto, não

como “cristologia ausente” , uma vez que Lucas

apenas que Christos podia ser usado como par­

ressalta que Cristo ascendeu aos céus e governa

te de um nome, mesmo num contexto judaico

de lá (cf. At 3.11-26;

de

C r is t o ) ,

ou

ainda a ideia da preexistência

R

o b in s o n

e

M

o ule).

(At 4.18, ressaltando-se que as autoridades ju­ daicas deixam de fora a palavra “ Cristo”), mas

2. Hebreus

também que se acreditava que confessar, invocar

Ao contrário de Atos, em Hebreus as referên­

e proclamar seu nome ou orar e exorcizar em seu

cias a Cristo parecem muito mais próximas do

nome produziria acontecimentos miraculosos (v.

uso paulino (v.

MILAGRES, RELATOS DE M iLAG REs),

sões e curas. 0

íncluíndo-se conver-

W

it h e r in g t o n ,

1991), não só na

frequência com que Cristo aparece como nome

“em nome de Jesus Cristo”

e não tanto como uma descrição ou título, mas

é entendido como o rito característico de entra­

também na ideia de partilhar ou ser parceiro de

da para judeus e cristãos na comunidade cristã

Cristo (Hb 3.14). Parece que “ Cristo” é um nome

(At 2.38; 10.48; v.

(Hb 5.5; 6.1; 9.11,24,28) para um ser humano

b a t is m o

Jones).

284

C risto hi; A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

de carne e osso (Hb 9.14; 10.10), mas é também

4. 1 e 2Pedro

muito mais que isso, pois “Jesus Cristo é o mes­

As cartas IPedro e 2Pedro refletem uma variedade

mo, ontem, hoje e eternamente” (Hb 13.8), sendo

de usos do termo “ Cristo”, e, como cada uma das

também aquele por quem Moisés pôde sofrer an­

duas cartas manifesta uma tendência diferente,

tecipadamente (Hb 13.26).

elas merecem ser tratadas de forma separada. Por

Em Hebreus,

nota-se algo característico,

exemplo, em IPedro encontramos a fórmula en

que é a ideia de filiação relacionada ao termo

Christõ (IPe 3.16; 5.14). Já em 2Pedro encontra­

“ Cristo” (cf. Hurst;

mos a expressão “ nosso Senhor e Salvador Jesus

v

. F il h o

de

Deus). O texto

de Hebreus 3.6 afirma que Cristo, na condição

Cristo” (2Pe 1.11; 2.20; 3.18)

(R

ic h a r d ,

p. 380-96).

de Filho, é fiel sobre a casa de Deus, e, em He­

Em IPedro, há uma importante ênfase no so­

breus 5.5, Cristo é quem recebe glorificação,

frimento e na ressurreição de Cristo (IPe 1.2,3,

sendo aquele a quem Deus eleva à realeza, pois

11,19; 2.21; 3.18,21; 4.1; 5.1). O autor também

foi Deus quem lhe disse: “Hi és meu Filho, eu

destaca, no estilo paulino, que o crente pode par­

hoje te gerei” (cit. SI 2.7, parte de um poema de

tilhar desses sofrimentos ou de outros de nature­

coroação). Notadamente ausente em toda a rica

za semelhante (IPe 4.13; cf. Fp 3.10). O autor de

análise cristológica de Hebreus é a discussão ou

IPedro também não reluta em se referir à volta

a explicação de Jesus como o Cristo, o Ungido,

de Cristo, nesse caso denominada “revelação de

a menos que consideremos que as ponderações

Jesus Cristo” (IPe 1.7, en apokalypsei lêsou Chris­

em torno da filiação tomem o lugar dessa aná­

tou; IPe 1.13). Também existe, em IPedro 1.11, a

lise. O autor está muito mais interessado no pa­

menção ao Espírito de Cristo, que inspirou e ilu­

pel de Jesus como sacrifício e sacrificador — o

minou os profetas do at. O autor parece endossar

sumo sacerdote celestial. A influência pauhna

a preexistência de Cristo, mas não discorre sobre

sobre esse documento torna improvável a teoria

0 assunto (cf. IPe 1.20; 2.4; Hanson e Craddock;

de J.

G. Dunn, segundo a qual em Hebreus

cp. com Dunn, 1980). Ele também emprega a ex­

1—2 o autor está se referindo à preexistência de

pressão “o nome de Cristo”, o qual pode desper­

uma ideia, não à preexistência da pessoa do Fi­

tar o ódio contra os que o levam consigo ou que

lho/Cristo (cf.

dele dão testemunho (IPe 3.15). O autor parece

D.

D

unn

,

1980, e também Craddock

e Schweizer).

entender o caráter relacional do termo “Cristo” , pois se refere ao “Deus e Pai de [...] Jesus Cristo”

3. Tiago e Judas

(IPe 1.3).

Quase nada precisa ser dito sobre o uso de Chris­

Em 2Pedro, o uso é menos variado, sendo a

tos em Tiago, visto que o termo aparece apenas

passagem mais intrigante aquela que faz refe­

duas vezes (Tg 1.1; 2.1) — nos dois casos, um

rência ao “nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”

único e longo nome próprio, “o [nosso] Se­

(2Pe 1.1). Parece ser um exemplo claro do

nhor Jesus Cristo” , sendo “Cristo” usado como

que Jesus é chamado Deus (cf.

H

a r r is ,

nt

em

1992). A

nome. Há seis referências a Cristo em Judas, to­

carta ressalta a ligação do termo “ Cristo” com o

das do mesmo tipo que encontramos em Tiago

termo “ Salvador” [sõíêr]. Das oito referências

(Jd 4,17,21,25) ou mesmo mais curtas (“Jesus

a Cristo nessa carta, metade delas (2Pe 1.1,11;

Cristo”, Jd 1 [2 vezes]). Tiago, Judas e Hebreus

2.20; 3.18) associa os dois termos.

contêm pouca reflexão acerca de Jesus como o

fase especial no conhecimento de Jesus Cristo



uma ên­

Cristo, embora pareçam cartas dirigidas a um

(2Pe 1.16; 2.20; 3.18). Ao longo de todo o tex­

púbhco com um bom número de judeus ou cris­

to, o autor emprega claramente o termo “Cristo”

tãos judeus. Talvez a explicação esteja no fato

como parte de um nome (e.g., 2Pe 1.1), como

de esses documentos não serem apologéticos ou

ocorre em IPedro. Em 2Pedro, Jesus Cristo não

evangelísticos: foram escritos para aqueles que já

é visto como simples herói da Antiguidade, pois

estão convencidos de que Jesus é o Cristo. Em

em 2Pedro 1.14 ele revela ao autor que o tem­

contraste, Lucas-Atos, que, conforme se acredita,

po de sua morte estava próximo. É possível que

é o único documento no wi escrito por um gentio,

2Pe 1.16—2.4 seja uma fonte petrina para essa

demonstra interesse considerável pelo assunto.

passagem, pois essa seção tem fortemente em

285

C risto iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

comum com IPedro não só o vocabulário, mas

Jesus Cristo ou a respeito dele (Ap 1.1; provavel­

também as ideias, incluindo-se a forma em que o

mente a primeira está sendo ressaltada), a qual

termo “ Cristo” é usado nessa subseção (cp. IPe

também é um testemunho [martyrian] acerca

3.1 com 2Pe 1.16; v.

W

it h e r in g t o n ,

1985).

de Jesus Cristo (Ap 1.2), abrangendo tudo o que vem em seguida em Apocahpse. Jesus Cristo é a

5. Cartas joaninas e Apocalipse

testemunha fiel que revela todas essas coisas e

À semelhança do autor de Hebreus, o autor das cartas joaninas (v.

Jo ão , C artas

de)

tende a aliar

delas testifica. O autor sabe que Christos é mais que um

ideias sobre fihação com o nome Jesus Cristo.

nome, como fica claro na alusão a ideias do

Lemos repetidamente acerca de “seu Filho Jesus

que se referem a Deus como Senhor e ao Cristo

Cristo” (IJo 1.3; 3.23; 5.20; 2Jo 3). Há também

de Deus (Ap 11.15, apoiado num grande nú­

at

uma ênfase especial à necessidade de o crente

mero de textos, entre os quais SI 10.5; 22.28;

verdadeiro confessar que “Jesus Cristo veio em

Dn 7.14; Zc 14.9). O texto de Apocalipse 12.10,

carne” (IJo 4.2; 2Jo 7), provavelmente num refle­

que fala do poder ou autoridade do Messias de

xo da necessidade de combater ensinos docéticos

Deus, também deixa isso claro. Entende-se que

ou protognósticos (v.

disseminados

os mártires de Apocalipse 20.4 são os que ressus­

por alguns falsos mestres que haviam frequen­

citarão e reinarão com Cristo durante mil anos,

tado a comunidade joanina (v.

g n o s t ic is m o )

. Em

dando a entender que o papel de Cristo não aca­

IJoão 2.22, percebemos que confessar que Jesus

bou com o que Jesus realizou durante seu minis­

é 0 Cristo também é entendido como algo crucial

tério terreno. 0 texto diz que esses mártires são

a d v e r s A r io s )

para sua comunidade.

sacerdotes não somente de Deus, mas também

Nessas cartas, não se deve menosprezar o

de Cristo (Ap 20.6). 0 autor não tem nenhuma

interesse especial pela confissão, e é impressio­

dificuldade em fazer distinção entre Deus e Cris­

nante a natureza encarnacional do que se deve

to, mas também claramente define Cristo em ter­

confessar. Enganadores e anticristos são aqueles

mos, papéis e funções divinos (Ap 19.16). Cristo

que não confessam que o Cristo veio em carne,

é aquele que, dos céus, dispensa graça ao povo

na pessoa de Jesus (2Jo 7). Tendo em vista o

de Deus (Ap 22.21). Assim, tanto o título “Cristo”

conteúdo da confissão, o texto mais importante

quanto essa mesma palavra usada como nome

(IJo 5.6) refere-se não aos sacramentos, mas ao

são evidentes nessa obra, embora o uso como

nascimento (água) e à morte (sangue) de Jesus

nome seja notável apenas no início do documen­

Cristo — os dois meios pelos quais ele vem ao

to. Talvez o objetivo seja orientar o ouvinte ou

crente (v.

leitor, que está na iminência de ser apresentado a

W

it h e r in g t o n ,

1989). 0 autor das cartas

também conhece o conceito de komõnia em Jesus

uma multidão de imagens apocalípticas (cf.

Cristo e com ele (IJo 1.3). Em IJoão 5.20, ele faz

d m ann).

referência ao fato de o crente estar não apenas na

ginal messiânico de Christos ainda era conhecido

verdade, mas também “em seu Filho Jesus Cris­

no úldmo decênio do século i (cf.

G

run­

Apocahpse mostra que o significado ori­ D

e

Jo ng e ,

1992).

to”. Permanecer em Cristo implica permanecer no ensino de Cristo (2Jo 9), provavelmente aquele

6. Conclusões

mencionado nas declarações confessionais. Jesus

Esforçamo-nos para mostrar o rico e variado uso

Cristo é entendido como alguém intimamente as­

da palavra Christos nas cartas não paulinas e em

sociado ao Pai, de modo que as bênçãos divinas

Apocalipse. As conclusões a seguir parecem en­

da graça, da misericórdia e da paz chegam ao

tão confirmadas.

crente vindas da parte de ambos (2Jo 3).

Ao que tudo indica, não existe clara distin­

0 termo Christos não aparece em 3João.

ção entre a forma em que os cristãos helénicos

Apesar da profusão de imagens de Cristo

e os cristãos judeus lidavam com o conceito do

em Apocalipse (v.

termo

“ Cristo” como simples nome, e alguns documen­

“Cristo” aparece ali apenas oito vezes, metade

tos supostamente menos judaicos refletem algum

A

p o c a l ip s e ,

L iv r o

de) ,

o

nos versículos iniciais e finais do documento. 0

conhecimento dos antecedentes judaicos desse

vidente João recebe uma revelação da parte de

conceito.

286

C risto in: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

0 termo “ Cristo” é às vezes usado indiscri­

DLNTo: D o c e t is m ; L a m b ; P r e e x i s t e n c e ; S h e p h e r d ,

minadamente para designar qualquer das fases

F lo c k ; S to n e , C o r n e r s to n e .

da carreira de Cristo, ou mesmo todas elas, in­ cluindo-se, aparentemente, sua existência pré e

B ib u o g r a fia .

pós-encarnação. Pode se dizer que há pouquíssi­

Christ in the New Testament. Nashville: Abingdon,

C rad d ock ,

The préexistence of

B.

F.

ma ou mesmo nenhuma evidência de tendências

1968.

adocianistas.

tament. Philadelphia: Westminster, 1963. ■

• C u llm a n n , O.

The christology of the New Tes­ D a h l,

“ Cristo” é muitas vezes usado como nome e

N. A. Jesus the Christ: the historical origins of chris-

às vezes como título, mas também aparece como

tological doctrine. Minneapolis; Augsburg, 1991. ■

descrição de um relacionamento. Jesus é o ungi­

D e Jonge,

do de Deus, mas o Senhor do crente.

914-21,1992. • ______ . The earliest Christian use of

É notável que os textos em questão evitem

Christos.

M. Christ,

[S.L: s.n., s.d,]. v. 1. p.

abd.

32, p. 321-43, 1986. • ______ . The

NTS, V.

justapor os dois títulos, “Senhor” a “ Cristo” , o

use of the expression ho Christos in the Apocalypse

que sugere que os primeiros autores cristãos co­

of John. In:

nheciam os antecedentes do termo “ Cristo” e sa­

nique et l’apocalyptique dan le Nouveau Testament.

biam que não era meramente um nome, mesmo

Gembloux: Duculot/Louvain: Leuven University,

org. VApocalypse johan-

J.,

L a m b re c h t,

quando não tornam isso explícito ao deixar de

1980.

chamar Jesus de “o Cristo”.

making. Philadelphia; Westminster, p. 51-6,1980. •

Uma ausência notável em todo esse material é F il h o

do h om em

53.)

• D unn,

______ . Christology ( n t ) .

a tentativa de explicar o termo “ Cristo” mediante

0 emprego da expressão “o

{b e tl,

979-91.

9.

p.

T.

fontes que estivemos examinando, mas é possí­

1965.

G. Christology in the

[S.L: s.n., s.d.]. v. 1. p.

abd.

527-80.

EDNT. [S.I.; S.n., s.d.]. v.

mo Chrístos não são enfatizados na maioria das

D.

• G rundmann , W . X p i u XpiaTOÇ k t A . td n t.

[S.I.; s.n,, s.d.]. v.

”.

Os antecedentes régio e messiânico do ter­

J,

3.

p.

■ H ah n , F. XpiaTÔç.

478-86.

Jesus Christ in the Old Testament. ■ H arris, M , J.

Jesus as God:

■ H anson , A. L ondon:

spck,

the N e w Testa­

vel alegar que são determinantes no modo em

ment use of

Theos

in reference to Jesus. G rand Ra­

que 0 termo é empregado na maioria dos casos

pids: Baker,

1992.

• H engel, M .

(cf.

Paul.

H

ahn

).

Como defendem alguns, o distanciamento

Philadelphia: Fortress,

T he priestly M essiah,

Between Jesus and

1983.

■ H iggins, A . J. B.

13,

211-39, 1967.

nts, v .

p.

entre judaísmo e cristianismo primitivo no final

H ughes, P.

do século I acelerou o processo, e Jesus passou a

p.

ser aberta e frequentemente chamado Deus. Isso

brew s

pode ter acontecido, mas é digno de nota que al­

The glory o f Christ in the New Testament.

guns antigos judeus tenham chegado a empregar

O xford University Press,

um vocabulário de exaltação ao se referir a vários

do,

agentes, sobrenaturais (angéhcos) e humanos,

1988.

■ Jon es,

CBQ, V.

32,

entre Deus e a humanidade (cf.

H

u rtado) .

Nos­

E. T he

19-27,1985.

L.

christology of Hebrews,

D.

• H urst, L.

1 and 2. In;

H urst, L.

p.

D.

The christology o f H e ­

D. & W

1987.

One God, one Lord.



swjr, v. 28,

p.

right,

N . T., orgs.

151-64

Oxford: • H urta­

Philadelphia; Fortress,

T he title Christos in Luke-Acts.

69-76, 1970.

■ M oessn er,

D.

T he script

sa hipótese é que o linguajar vividamente cris­

of the Scriptures; suffering and the cross in Acts.

tológico usado pelos primeiros cristãos remonta,

In: W i t h e r i n g t o n iii, B., org.

History, literature and

em última instância, a uma parte da linguagem

society in the Book of Acts.

Cam bridge: C am bridge

sapiencial que Jesus e cristãos primitivos judeus

University Press,

utilizaram para apresentar o homem oriundo de

tology of Acts. In: K eck, L.

Nazaré como a Sabedoria de Deus manifesta em

Studies in Luke Acts.

Nashville: A bingdon ,

carne

159-85.

E. Johannine christology and

(W

it h e r in g t o n ,

Sage, 1994). Jesus e sua

1996.

• P o l l a r d , T.

■ M o u l e , C. F.

D.

autoapresentação são um meio-termo entre três

the early church.

ações: particularizar a Sabedoria como se na ter­

Press,

ra residisse na Torá (Eo), hipostasiar a Sabedoria

gy of First Peter In: T a l b e r t , C, H., org.

(Sb) e usar o termo theos para designar Cristo (no

ves on First Peter.

nt

e em P l In i o )

1986.

.

Ver também

1970.

p.

L., orgs.

1966.

p.

Cam bridge: Cam bridge University

• Richard,

121-39.

T he chris­

E. & M artyn , J .

E.

T he functional christolo­

Perspecti­

M acon: M ercer University Press,

■ _______ .

Jesus one and many:

the

christological concept of New Testament authors.

c r is t o l o g ia .

287

C rísto , morte de i : Evangelhos

Wilmington; Michael Glazier, 1988. •

R

o b in s o n ,

J. A. T. The most primitive christology of aU? In;

1.1

Crucificação: uma prática cruel. Dentre

as penas de tortura mencionadas na hteratura

______ . Tivelve New Testament studies. London;

da Antiguidade, a crucificação era uma das mais

1962. p. 139-52. ■ S c h w e iz e r , E. Paul’s christo­

horrendas. Não causava danos em nenhum ór­

SCM,

logy and gnosticism. In; S.

il s o n ,

gão vital, nem provocava sangramento excessivo. Com isso, a morte chegava lentamente, às vezes

H

of C. K. Barrett. London; S m alle y, S. S. L

M. D. & W

G., orgs. Paul and Paulinism: essays in honor

in d a r s ,

B. &

ooker,

1982. p. 115-23. •

depois de vários dias, quando o condenado entra­

The christology of Acts again. In;

va em choque, ou por consequência do processo

orgs. Christ and Spi­

doloroso de asfixia, à medida que os músculos

spc k,

S m a l l e y , S . S .,

rit in the New Testament. Cambridge; Cambridge

empregados na respiração sofriam fadiga cada

University Press, 1973. p. 79-94. •

vez maior. Com frequência, o que aumentava a

W

it h e r in g t o n

III,

B. The influence of Galatians on Hebrews,

V.

37, p. 146-52, 1991. ■ ______ . Jesus the Sage:

nts,

the pilgrimage of Wisdom. Minneapolis; Fortress,

desonra é que não se concedia permissão para enterrar a pessoa, e o corpo ficava na cruz, ser­ vindo de carniça ou apodrecendo.

1994. • ______ . Paul’s narrative thought world:

A crucificação era, em última instância, um

the tapestry of tragedy and triumph. Louisville;

assunto púbhco. Nua e presa a um poste, cruz ou

Westminster/John Knox, 1994. ■ ______ . A Petri-

árvore, a vítima era submetida a escárnio cruel

ne source in 2nd Peter?

p. 187- 92, 1985. ■

pelos transeuntes, ao mesmo tempo que o povo

______ . The waters of birth—John 3;5 and 1 John

em geral era lembrado do horrível destino dos

5;6-8.

que se punham contra a autoridade do Estado.

NTS, V.

sb lsp,

35, p. 155-60, 1989. B.

W

i t h e r i n g t o n iii

Na literatura que sobreviveu da Antiguidade, são raras as descrições do ato da crucificação. 0

C r is t o , d iv in d a d e d e .

Ver c r is t o l o g i a

motivo não é a falta de frequência dessa forma de

ii.

execução, e sim as preocupações de ordem estétiC r is t o ,

m orte de i:

E vangelh o s

co-literária. Membros da elite literária e culta he­

A crucificação de Jesus sob o comando de Pôncio

sitavam em se delongar sobre esse ato horrendo e

Pilatos figura entre os acontecimentos da vida de

brutal. Aliás, até mesmo as narrativas da Paixão

Jesus que são mais inegáveis da perspectiva histó­

nos Evangelhos, que M. Hengel considera as mais

rica e mais fecundos do ponto de vista teológico.

detalhadas descrições do gênero

1. A crucificação no mundo antigo

(H

engel,

1977,

p. 25), são notadamente breves quando relatam o

2. A crucificação de Jesus

ato da crucificação em si. Evitando todos os deta­

3. Por que Jesus foi crucificado?

lhes, simplesmente relatam que “ o crucificaram”

4. A morte de Jesus no Evangelho de Mateus

(Mt 27.35; Mc 15.25; Lc 23.33; Jo 19.18).

5. A morte de Jesus no Evangelho de Marcos 6. A morte de Jesus no Evangelho de Lucas

Mesmo quando encontramos descrições, fica óbvio que a crucificação não era praticada de

7. A morte de Jesus no Evangelho de João

maneira uniforme ou de acordo com um padrão. A verdade é que os relatos nem sempre deixam

1. A crucificação no mundo antigo

claro se a crucificação aconteceu antes ou depois

Apesar de sua crueldade como forma de castigo,

da morte da vítima, nem se em cada caso a víti­

a crucificação foi praticada em todo o mundo an­

ma foi amarrada ou pregada ao poste, ou se uma

tigo. Era usada como método de execução. Em

trave era sempre empregada. No mundo romano,

algumas ocasiões, foi usada para empalamen-

porém, a forma de crucificação era, ao que tudo

to após a morte entre persas, indianos, assírios

indica, mais uniforme; incluía um açoitamento

e outros; e, mais tarde, entre gregos e romanos.

prévio, e as vítimas em geral carregavam a trave

Alguns indícios dão conta de que a crucificação

até o local da crucificação, onde eram pregadas

foi empregada como método de execução pelos

ou amarradas à cruz, com os braços estendidos

judeus antes da época de Herodes, o Grande

e erguidos para cima, talvez sentadas numa se-

sefo,

(J o ­

C uja, 1.4.6, ■ 97-8; An, 13.14.2, ■ 379-83;

llQTemple 64.6-13).

dícula ou pequeno assento, isto é, uma pequena cavilha de madeira

288

(H

eng el,

1977, p. 22-32).

C risto , morte de i : Evangelhos

Mesmo no mundo romano, o procedimento

tinha os pés colocados um de cada lado da viga

estava sujeito a variações, dependendo do ca­

vertical. Além disso, não tendo encontrado ne­

pricho dos carrascos. Por exemplo, no relato de

nhum claro indício de ferimento traumático nos

Josefo sobre o cerco romano a Jerusalém, o qual

ossos dos antebraços ou das mãos, ambos pro­

ele presenciou, o autor observa que centenas de

põem que a vítima foi amarrada, não pregada à

prisioneiros judeus foram “açoitados e submeti­

trave. Por fim, questionaram a teoria de que os

dos a tortura de toda espécie [...] e depois cruci­

ossos dos membros inferiores foram quebrados

ficados do lado oposto aos muros da cidade”. Na

antes da morte.

esperança de que a cena repulsiva induzisse os

Embora essa descoberta acrescente dados

judeus a se render, Tito, o comandante romano,

arqueológicos às descrições literárias da crucifi­

deu a seus soldados a liberdade de prosseguirem

cação, ainda assim fica claro que a escassez de

com as crucificações como bem quisessem. “Mo­

dados antropológicos dessa natureza restringe o

vidos de raiva e ódio, os soldados se divertiam,

grau de certeza com que podem ser interpretados.

pregando os prisioneiros em diferentes posições” (JosE FO ,

1.2 Crucificação: punição militar e política.

Gaju, 5.11.1, § 449-51).

Como regra, os cidadãos romanos eram poupa­

Dados arqueológicos relacionados com a prá­

dos dessa forma de execução, embora, em casos

tica da crucificação na Palestina do século i são

extremos (e.g., traição à pátria), fosse possível

ainda mais esparsos. Em 1968, foi encontrado

impor morte por crucificação. Entre os romanos,

um ossuário que estava numa caverna encoberta

de modo mais geral, a crucificação era uma pena

em Giv’at ha-Mivtar, no norte de Jerusalém. Con­

reservada aos de nível social inferior, a saber,

tinha os ossos de um homem adulto que havia

bandidos perigosos, escravos e o populacho de

morrido depois de crucificado no período entre

províncias estrangeiras. Entre eles, a crucificação

o início e a metade da década de 60, do século i

era um meio de afirmar a autoridade romana e

d.C. Um estudo inicial do que restou do esquele­

manter a lei e a ordem. Desse modo, na província

to mostrava a possibihdade de um prego ter sido

da Judeia, revelou-se uma arma eficaz contra a

fincado nos antebraços, tendo os ossos calcâne-

resistência à ocupação romana.

os sido perfurados por um único prego de ferro.

1.3 Crucificação: estigma interpretativo. No

Descobriu-se que esse prego ainda estava preso

importante levantamento que fez na literatura an­

ao que os investigadores interpretaram como os

tiga a respeito do tratamento dispensado à cruci­

ossos de ambos os calcanhares. Fragmentos de

ficação, Hengel pesquisou se fora do cristianismo

madeira encontrados em ambas as extremidades

primitivo a morte por crucificação chegou a ser

do prego davam sinal de que o prego atravessara

interpretada de modo positivo. No mundo gen­

primeiro uma pequena placa de madeira, depois

tílico, ele encontrou no estoicismo o emprego da

os pés da vítima e por úhimo uma viga de ohvei-

crucificação como metáfora “para o sofrimento

ra na posição vertical. Ao que parece, num ges­

do qual o sábio consegue se hvrar apenas me­

to de misericórdia, as canelas foram quebradas

diante a morte, que liberta a alma do corpo a que

intencionalmente.

está presa”

(H e n g e l,

1977, p. 88; cf. p. 64-8). En­

J. Zias e E. Sekeles recentemente reavaharam

tretanto, com exceção disso, a crueldade da cruz

0 que restou do esqueleto encontrado no referido

parece ter proibido toda interpretação ou metáfo­

ossuário, comparando-o a fotografias, moldes e

ra positiva da morte por crucificação.

radiografias. Com base nesse exame, propuseram

Se isso era válido para o mundo gentio, mais

várias correções a descobertas anteriores. Mais

ainda seria para o judeu. Uma vez que os roma­

importante ainda, chegaram à conclusão de que

nos faziam amplo uso da crucificação como meio

0 prego de ferro, ainda intacto, havia passado do

de intímidar o nacionalismo judaico, é natural

lado direito para o lado esquerdo do osso do cal­

concluir que a cruz era símbolo de martírio. Con­

canhar (calcâneo) direito. 0 resultado é um qua­

tudo, além da humilhação e da brutalidade asso­

dro diferente do homem crucificado, pois nessa

ciadas a essa forma de execução, para os judeus

reconstrução os pés não estavam afixados com

havia um obstáculo adicional de natureza profun­

um único prego, mas a vítima ao que tudo indica

damente religiosa.

289

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

Já no século i de nossa era, sabia-se que a ví­

cronológica gira, portanto, em torno da relação

tima da crucificação se enquadrava nas palavras

dessa sexta-feira com a Páscoa. Admitíndo-se o

de Deuteronômio 21.22,23, a saber, especifica­

sistema judaico, em que o dia ia de um pôr do

mente "o que for pendurado no madeiro é mal­

sol a outro, a refeição da Páscoa teria sido comida

dito de Deus”

na noite de 15 de nisã. Os Evangelhos Sinótícos

(ar a).

Nesse contexto, a passagem

refere-se à exposição pública do cadáver de um

(e.g., Mc 14.12-16) relatam a Última Ceia como

criminoso executado. Mas há no

uma refeição pascal ocorrida na noite da quinta-

nt

indícios de

que esse sentido havia se amphado considera­

feira, 15 de nisã. Com isso, no cálculo deles, o dia

velmente dentro da igreja primitiva, a ponto de

da prisão, do julgamento e da morte de Jesus foi

incluir pessoas que haviam sido crucificadas. Isso

15 de nisã, o dia da Páscoa. Entretanto, o Evange­

se vê nas alusões a Deuteronômio 21.22,23 (e.g.,

lho de João dá 14 de nisã como a data da morte

At 5.30; 13.29; IPe 2.24) e na inegável citação

de Jesus, o dia dos preparativos para a Páscoa

de Deuteronômio 21.23 que Paulo faz em Gála­

(13.1-4; 18.28; 19.14,31).

tas 3.13. Antes, com exceção do cristianismo, da­

Se compararmos essas conclusões com os

dos presentes na literatura de Qumran (4QpNah

dados astronômicos relacionados, supondo que

3—4.1.7-8; llQTemple 64.6-13) e também nos

Jesus tenha sido crucificado por volta de 30 d.C.,

escritos de Filo, judeu alexandrino do século i [Sp

chegamos às seguintes opções; de acordo com o

le, 3.152; Po Ca, 61; So, 2.213), confirmam que no

cômputo joanino, Jesus foi executado ou em 3 de

judaísmo as vítimas de crucificação podiam ser

abril de 33 d.C., ou em 7 de abril de 30 d.C.; de

tidas como malditas. Desse modo, a cruz não po­

acordo com o cômputo dos Sinótícos, 27 d.C. ou

dia ser interpretada positivamente como símbolo

34 d.C. seriam os anos prováveis. Devemos acei­

da resistência judaica.

tar o cômputo joanino ou o dos Sinóticos?

2. A crucificação de Jesus

problema. Para alguns estudiosos, os Sinóticos

A crucificação de Jesus de Nazaré sob o comando

preservaram a cronologia correta e João revisou

Há três caminhos propostos para a solução do

de Pôncio Pilatos é bem confirmada em fontes

a tradição para apresentar Jesus mais completa­

cristãs e não cristãs. É relatada nos quatro Evan­

mente como 0 Cordeiro Pascal. É verdade que

gelhos, no centro de relatos da Paixão altamente

João tem uma preocupação teológica dessa na­

minuciosos, e citada como acontecimento históri­

tureza (cf. Jo 1.29,36; 18.28; 19.14,31,36,37). No

co em todo o

especialmente em Paulo. O his­

entanto, um estudo recente de crítica da redação

toriador latino Tácito menciona a morte de Jesus

revelou como altamente provável que a crono­

nos Anais: “ Cristo [...] sofreu pena de morte no

logia joanina lhe tenha chegado por meio de

nt

,

reinado de Tibério, por sentença do procurador

sua tradição da Paixão

Pôncio Pilatos” (15.44). Num texto de autentici­

Outros acreditam que o relato dos Sinóticos é

dade questionada, Josefo relata que Pilatos con­

tendencioso, resultado da tentatíva criatíva de

denou Jesus a ser crucificado

An, 18.3.3,

Marcos de apresentar a Última Ceia como uma

§ 63-4). Por essas e outras razões, a historicidade

refeição pascal. Essa opinião deixa de considerar

da morte de Jesus na cruz está fora de dúvida

0 caráter integrado que têm os elementos da Pás­

(J o s e f o ,

(D

auer,

p. 133-6, 140-2).

1988, p. 1). No entanto, três aspectos en­

coa na tradição sinótíca, bem como o grau em

contram vários problemas: nossa capacidade de

que até mesmo a narratíva joanina da Última Ceia

datar a crucificação, a historicidade de alguns de­

é de caráter pascal

(G

reen,

talhes registrados nos relatos da crucificação e a

(G

reen,

1988, p. 113-6).

Muitos intérpretes têm procurado harmonizar

interpretação da morte de Jesus por ele próprio e

as cronologias sinótíca e joanina. Duas dessas

por seus primeiros seguidores.

teorias são especialmente dignas de nota. Na pri­

2.1

A data da crucificação de Jesus. Os qua­ meira, alguns têm defendido a ideia de que ga-

tro Evangelhos narram a execução de Jesus numa

Mleus (como Jesus e seus discípulos) e fariseus

sexta-feira — ou seja, no dia anterior ao dia judeu

contavam o dia de um nascer do sol a outro, ao

de descanso, o sábado (Mt 27.57,62; Mc 15.42;

contrário dos da Judeia e dos saduceus, que con­

Lc 23.54; Jo 19.31,42). A principal questão

tavam de um pôr do sol a outro. Desse modo.

290

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

a refeição pascal (Última Ceia) foi celebrada na

Alguns estudiosos continuam a prática, agora

noite de quinta-feira, 14 de nisã, por Jesus, seus

ultrapassada, de ir retirando as camadas de in­

discípulos e outros galileus. Os da Judeia partici­

terpretação teológica para chegar ao núcleo his­

param da refeição pascal na noite de sexta-feira,

tórico do relato. No entanto, os acontecimentos

15 de nisã. Para outros, é mais plausível a teoria

relatados, justamente pelo fato de serem relata­

de que a Páscoa foi celebrada em dois dias dife­

dos, são sempre interpretados. Por esse motivo,

rentes no ano da crucificação, por causa da dis­

embora a tarefa de apurar a plausibilidade his­

paridade entre os calendários dos fariseus e dos

tórica desses acontecimentos narrados continue

saduceus. Ambas as interpretações exigem dois

sendo importante, são desencaminhadas as ten­

dias consecutivos de sacrifícios pascais, uma pos­

tativas de separar a teologia da história.

sibilidade para a qual não dispomos de indícios

2.2.1

As tradições a respeito da crucificação.

claros. Ao mesmo tempo, podemos imaginar que

A maioria dos estudiosos supõe que Marcos foi a

isso era permitido para manter a paz entre os di­

única fonte narrativa que Mateus obteve sobre a

ferentes grupos dentro do judaísmo do século i (v.

crucificação. Com toda a probabilidade, o quar­

a análise em

to Evangehsta empregou uma fonte própria, que

M

arsh all,

p. 57-75, 184-5).

Resta concluir que Jesus foi crucificado em

não era marcana

(D

auer;

G

reen,

1988, p. 105-34).

14 de nisã — ou seja, 7 de abril de 30 d.C. ou

No passado, alguns comentaristas trabalharam

3 de abril de 33 d.C. A última data é corrobora­

bastante com a hipótese de que o relato de Lucas

da pela necessidade que Pilatos tinha de aplacar

também fosse, na maior parte, independente da

os judeus e assim se manter “amigo de César”

narrativa marcana (e.g.,

(Jo 19.12), sendo também confirmada por sua

mente, porém, tem se conferido maior destaque à

recém-estabelecida amizade com Herodes (cf.

modelagem criativa por parte de Lucas do relato

Lc 23.12). Esses dois fatos são mais bem enten­

marcano (e.g..

M

atera,

T

aylo r ).

p. 150-220;

Mais recente­

N

eyrey) .

didos se levarmos em conta a mudança na polí­

Entretanto, vários indícios apontam para o

tica de Pilatos para com os judeus depois de 32

fato de que Lucas, em seu relato da crucificação

d.C.

p. 71-114). Entretanto, a data de

de Jesus, fez uso de material antigo, de tradição

33 d.C. apresenta alguns problemas, pois compri­

não marcana, embora os estudiosos discordem

me o tempo disponível para o movimento cristão

quanto

subsequente e a missão pauhna.

86-101). Primeiro; ele inclui material significativo

(H

2.2

oehner,

à

natureza desse material

(G

reen,

1988, p.

Os relatos da crucificação. Assim como não encontrado em Marcos, o qual, submetido a

o restante do relato da Paixão, a crucificação de

anáhse literária cuidadosa, não parece ser fruto da

Jesus não é recontada apenas para registrar o que

habilidade criativa de Lucas. Esse material inclui;

aconteceu. Esse acontecimento, a execução de

a advertência a Jerusalém, em Lucas 23.27-31;

Jesus numa cruz, foi algo tão chocante e infame

a oração intercessora de Jesus feita na cruz, em

que exigiu interpretação e legitimação. 0 resulta­

Lucas 23.34; a interação de Jesus com os crimi­

do é uma tapeçaria firmemente entretecida que

nosos crucificados, em Lucas 23.39-49; a des­

reúne tanto o acontecimento em si quanto sua

crição do arrependimento das multidões, em

interpretação, e o último dependendo em grande

Lucas 23.48.

parte de referências do

Assim, as vestes de

Segundo; em alguns casos, Lucas narra epi­

Jesus são divididas (SI 22.18). Ele é crucificado

sódios também relatados em Marcos, mas apre­

com dois criminosos (Is 53.12). É ridicularizado

sentados de forma diferente o bastante para levar

(SI 22.7; 70.3) e insultado (SI 42.10). Oferecem-

a crer que ele está usando o material de outra

lhe vinho (SI 69.21; Pv 31.6). Ele clama da cruz

tradição. Exemplo desse fenômeno é o uso de

(SI 22.1; 31.5). É reconhecido como Filho de Deus

Salmos 22.7 quando se menciona que Jesus era

(cf. Sb 2, 4—5) ou como o Justo (Is 53.11) e, des­

zombado pelos que passavam. É interessante

sa forma, é vindicado depois desse tratamento

que Marcos 15.29,30 revela a influência da parte

cruel (Is 52.13-15; 53.10-12). As narrativas da

final de Salmos 22.7 (“balançavam a cabeça”),

at.

crucificação demonstram que Cristo morreu “se­

enquanto Lucas 23.35 foi influenciado pela pri­

gundo as Escrituras”.

meira metade (“ ridicularizavam”). Isso sugere a

291

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

importância de Salmos 22.7 na tradição primiti­ va da Paixão e indica que essa tradição chegou

Vários outros aspectos da crucificação de Je­ sus merecem uma rápida análise.

até Marcos e Lucas de modo independente um

A localização do Gólgota. Todos os Evange­

do outro. Outros exemplos que merecem nota in­

lhos mencionam o Gólgota como local da execu­

cluem os relatos sobre as palavras finais de Jesus

ção de Jesus. Mateus, Marcos e João traduzem o

proferidas na cruz (v. abaixo] e a confissão do

aramaico gülgaltâ (hebr., gulgôlãt] por “Lugar da

centurião.

Caveira”. Lucas evita topônimos aramaicos e diz

Terceiro; alguns aspectos da narrativa lucana

simplesmente “ Caveira”, tradução mais precisa.

que se distanciam de Marcos encontram parale­

Muitas tentativas foram feitas para exphcar o sig­

lo em outras fontes. Por exemplo, a reação das

nificado do nome desse lugar. Seria uma cohna

muhidões de Lucas 23.48 é parecida com a en­

em formato de caveira? Ou uma elevação rochosa

contrada no Evangelho de Pedro 7.25 (“ Então os

em que a vegetação não conseguia crescer?

judeus, e os anciãos, e os sacerdotes, percebendo

O lugar exato do Gólgota é objeto de debate,

0 grande mal que haviam feito para si, começa­

embora nosso conhecimento sobre a crucificação

ram a lamentar e a dizer; ‘Ai de nossos pecados.

no mundo romano e nos relatos dos Evangelhos

O juízo e o fim de Israel se aproximam’ ”]. Por

faça supor um local público fora dos muros de Je­

último, os pontos em que Lucas se desvia de Mar­

rusalém (Jo 19.20; cf. Hb 13.12), talvez próximo

cos do ponto de vista linguístico e sintático não

de uma estrada movimentada (e.g., Mc 15.29,40).

são facilmente exphcáveis apenas com base na

De acordo com João 19.41, o local da crucificação

criatividade de Lucas.

de Jesus ficou nas proximidades do túmulo que

Esses elementos levaram alguns estudiosos

recebeu emprestado.

a supor que Lucas tinha conhecimento de uma

Fortes evidências do entorno da Igreja do San­

segunda narrativa da Paixão, de alguma forma

to Sepulcro, localizada dentro da Cidade Velha

ligada à primeira. Para outros, Lucas estava fa­

de Jerusalém, apoiam a ideia de que o Gólgota

miliarizado com várias tradições não marcanas

ficava na região em que agora ela está situada. De

discrepantes, orais ou escritas. É plausível que,

acordo com achados arqueológicos da década de

nos Evangelhos canônicos, três relatos primitivos

1960, interpretados em conjunto com a descrição

da crucificação corram mais ou menos em parale­

que Josefo apresenta das fortificações da cidade,

lo. Isso depõe a favor da antiguidade da tradição,

esse local teria sido bem fora dos muros da cida­

que pode ter feito parte de uma narrativa maior e

de. Antes da expansão da cidade, era uma pedrei­

mais antiga da Paixão.

ra em que vários túmulos haviam sido escavados.

2.2.2

História e interpretação na crucificação.

Antes que os investigadores da atuahdade per­

Voltando aos relatos, vemos que todos concor­

cebessem que na primeira terça parte do século

dam com o fato de que Jesus foi conduzido ao

I de nossa era o perímetro dos muros da cidade

local da crucificação. A menção do nome de Si-

era menor, as buscas eram concentradas na área

mâo de Cirene não serve a nenhum objetivo teo­

ao norte da Cidade Velha. Ali identificaram uma

lógico, embora seu recrutamento para carregar a

colina rochosa cuja superfície de pedra lembrava

cruz faça lembrar as palavras de Jesus acerca do

uma caveira. K. M. Kenyon ressalta, contudo, que

discipulado ( “tome a sua cruz”, Mc 8.34). Simão

o atual formato da colina se deve em grande parte

está ausente da narrativa joanina, provavelmente

à extração de pedra feita posteriormente,

por causa do propósito de João que é mostrar de

A oração de Jesus. Só Lucas registra que, após

todos os modos que, mesmo na Paixão, Jesus está

sua crucificação, Jesus orou pelos responsáveis

no controle do próprio destino. Outros, porém,

por sua morte (Lc 23.34). Essa oração está au­

veem no ato de Jesus carregar “a própria cruz”

sente de vários manuscritos importantes, presu­

(Jo 19.17) uma referência ao quase sacrifício de

mivelmente porque mais tarde alguns copistas

Isaque — ou seja, à tentatíva joanina de desen­

se sentiram pouco à vontade com o fato de Je­

volver um paralelo entre a Paixão de Jesus e o

sus estender misericórdia a seus adversários ju­

episódio em que Isaque foi amarrado (v. Gn 22.6,

deus. Os temas principais da oração — perdão

em que o pai põe a lenha sobre Isaque).

e ignorância — são importantes em Lucas-Atos 292

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

(cf. Lc 1.77; 7.47-50; At 2.38; 3.17; 5.31; 10.43;

cruz, e Lucas ainda acrescenta que os soldados se

13.27,38; 14.16). Ademais, a presença da oração

uniram no escárnio (cf. Mc 15.16-20). Em suma,

é importante para estruturar o relato da Paixão,

insistem em afirmar que, se Jesus fosse quem

que narra uma declaração de Jesus em cada se­

ele dizia ser, não estaria naquela situação vergo­

ção principal. Para alguns estudiosos, Lucas criou

nhosa e terrível. Por três razões, é quase certa a

a oração com base no pedido semelhante feito por

historicidade das linhas gerais desse relato. Pri­

Estêvão em Atos 7.60. Mas por que Estêvão ha­

meira: condiz com o que sabemos sobre a prá­

veria de servir de modelo para a oração de Jesus,

tica romana, que o ato da crucificação se dava

não o contrário? Além do mais, o pedido de Jesus

na arena púbUca, justamente para estimular esse

para que seus perseguidores fossem perdoados

tipo de escárnio. Segunda: encaixa-se muito bem

está em harmonia com o que, baseados em outros

com o que sabemos acerca de atitudes em rela­

textos, sabemos acerca do ensino de Jesus sobre a

ção à morte no judaísmo tardio, como dão conta

atitude que se deve ter diante da hostihdade (e.g.,

textos como Salmos 22.7,8 e Sabedoria 2.18,20.

Mt 5.44;

Os que mantêm um relacionamento especial com

V. L o h s e ,

p. 129-30).

A distribuição das vestes de Jesus. Os Evange­

Deus não sofrerão morte vergonhosa. Terceira: o

hstas estão de acordo quando narram a divisão

conteúdo da zombaria é uma sátira das acusa­

das vestes de Jesus entre os soldados. Alguns in­

ções que levaram à execução de Jesus.

dícios sugerem que essa distribuição das roupas

As últimas palavras de Jesus. Uma questão

da vítima era algo natural na Antiguidade, mas a

mais difícil é suscitada pelas palavras finais de

redação de Salmos 22.18 influenciou claramente

Jesus na cruz, relatadas de diferentes maneiras:

a maneira em que o episódio foi relatado. A inscrição na cruz. É impressionante o fato

Marcos 15.34, citando Salmos 22.1: “Deus

de que todos os Evangelhos registram a inscrição

meu! Deus meu! Por que me desamparaste?”

na cruz de forma sistemática, cada um assina­

Lucas 23.46, citando Salmos 31.5: “Pai, nas

lando que foi como “ 0 rei dos judeus” que Jesus

tuas mãos entrego o meu espírito!”

foi executado. Historicamente, essa menção teria

João 19.30: “Está consumado”.

identificado Jesus como um pretendente messiâ­ nico ao trono. Não há dúvida de que os primei­

Os argumentos a favor da historicidade da ver­

ros seguidores de Jesus viam nessa acusação um

são marcana (seguida por Mt 27.46) são os mais

anúncio irônico da verdadeira identidade de Je­

fortes, embora para vários intérpretes da atuali­

sus, e esse fato foi realçado nos detalhes que João

dade a citação de Salmos 22.1 em Marcos 15.34

apresenta em sua narrativa (Jo 19.19-22).

seja a maneira de Marcos indicar o conteúdo do

No passado, costumava-se afirmar que uma

grito sem palavras registrado em Marcos 15.37.

inscrição desse tipo ficava presa ã cruz em

Além de isso exigir que Marcos narrasse apenas

uma crucificação romana. Mas o reexame recente

um grito em vez de dois, o obstáculo mais im­

dos dados disponíveis revela o oposto. Era pos­

portante para essa ideia é o caráter ofensivo de

sível exigir que, antes da execução, os condena­

Salmos 22.1 nos lábios de Jesus. Esse é também

dos exibissem a acusação pela qual haviam sido

o argumento mais forte a favor de sua autentici­

sentenciados à morte, mas a inscrição relatada

dade. Pressupondo-se que Lucas tivesse o Evan­

nos Evangelhos não encontra correspondentes.

gelho de Marcos como fonte para a Paixão de

Por esse motivo, não se deve questionar a vera­

Jesus, em seu relato ele desconsidera esse grito

cidade histórica dessa medida. Como ressalta A.

de abandono. Além disso, em alguns manuscritos

E. Harvey, “por consequência, os primeiros his­

de Marcos 15.34, “desamparaste” foi substituído

toriadores da morte de Jesus não precisam ter se

por “censuraste”, e consequentemente o peso das

sentido compelidos a inventar [tal informação] ”

palavras do salmo foi muitíssimo enfraquecido.

(H

arvey,

p. 13).

Isso nos proporciona um indício hterário do cará­

A zombaria. Marcos, Mateus e Lucas concor­

ter ofensivo da citação na igreja primitiva.

dam com 0 fato de que os líderes judeus zom­

Alguns intérpretes acreditam que aqui o ob­

baram de Jesus enquanto este se encontrava na

jetivo de usar Salmos 22.1 foi chamar a atenção

293

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

para a confirmação do Justo, prometida no salmo

texto quem foram os responsáveis pela crucifi­

quando lido como um todo. Será que, no judaísmo

cação, Lucas continua sua estratégia de exone­

do século

a citação das palavras iniciais de um

rar as autoridades romanas de responsabilidade,

salmo tinham o objetivo de recordar o salmo em

ao mesmo tempo que culpa a hderança judaica.

sua totahdade? Dados que indiquem esse fenôme­

No entanto, as esperanças frustradas dos segui­

I,

no são bem posteriores. Ficamos com o clamor

dores de Jesus é o que realmente está em foco

absoluto que Jesus profere na cruz, um clamor

aqui. Com essas palavras, Cleopas e seu amigo

de tal modo absoluto que depõe incisivamente a

expressam choque e desânimo com a morte de

favor de sua historicidade. Quem inventaria que

Jesus. Também tocam no âmago do problema

Jesus teve uma explosão tão escandalosa?

hermenêutico criado por um Messias crucificado

Que dizer então da citação de Salmos 31.5 no

(v.

C r is t o

i:

E vangelhos).

relato lucano? Será que Lucas simplesmente subs­

É certo que a apologética cristã encontrada

tituiu uma citação de Salmos por outra? TVês evi­

em Isaías 52.13—53.12 é uma profecia sobre o

dências convergem para a ideia de que Lucas não

Messias sofredor (e.g.,

é 0 único responsável pelo uso de Salmos 31.5

v., mais tarde,

nesse contexto

Mas a expectativa judaica messiânica do século

(G

reen,

1988, p. 97-8]. Primeira;

A

At

t a n á s io ,

3.13-18; IPe 2.21-24; Sobre a encarnação].

encontramos uma coincidência verbal interessan­

I concentrava-se sobretudo num régio e glorioso

te quando comparamos Lucas 23.46 com a forma

Filho de Davi. O Messias não é mencionado na

em que Mateus e João relatam a morte de Jesus.

passagem de Isaías, e o judaísmo posterior não

Lucas, nas palavras do salmo, registra que Jesus

usa esse texto para desenhar o retrato do aguar­

afirmou “ Entrego o meu espírito” , ao passo que

dado libertador.

Mateus 27.50 relata que ele “entregou o espírito” ,

Se 0 conceito de um Messias sofredor vai de

e João 19.30 narra que Jesus “ rendeu o espírito”

encontro ao que sabemos sobre as especulações

(asa]. Lucas é o único a citar Salmos 31.5 aqui,

messiânicas no século i, muito mais deve ter

mas os textos paralelos sugerem o uso comum de

parecido paradoxal a ideia de um Messias cru­

uma tradição bem antiga, cujas raízes estavam

cificado. Afinal, de acordo com a interpretação

no salmo.

vigente na época de Deuteronômio 21.22,23, a

Segunda; embora em outros textos Lucas uti­ lize o

AT

grego

(lxx]

vítima de crucificação era amaldiçoada por Deus.

de forma sistemática, aqui a

citação é tirada do texto hebraico

No entanto, o “Messias” é literalmente o “Un­

Lucas, que

gido de Deus”. Fica claro que a cruz de Cristo

não dá nenhuma indicação de que conhecia he­

apresentou um enigma flagrante que clamava por

braico, parece ter emprestado o material de uma

reinterpretação.

( tm ].

fonte que já havia traduzido o texto hebraico para

0 grego.

Alguns intérpretes consideram a ressurreição de Jesus a chave mestra para superar a ignomínia

Terceira: alguns estudiosos acreditam que as

da cruz. Não se deve minimizar o papel que a res­

alusões a Salmos 31.5 em Atos 7.59 e em IPe­

surreição, a despeito da cruz, teve em autenticar

dro 4.19 revelam o uso geral do salmo em con­

a missão de Jesus. Ao mesmo tempo, estaríamos

textos de perigo. Pode até mesmo ter sido usado

terrivelmente enganados, caso supuséssemos que

como uma bênção noturna no judaísmo tardio.

a cruz de Cristo não tem significado sem a res­

Isso mostra que Salmos 31.5 é um texto apropria­

surreição. Na verdade, seria melhor dizer que a

do para os momentos finais da Paixão de Jesus e

ressurreição autenticou a missão e a mensagem

deixa aberta a possibihdade da autenticidade da

de Jesus, incluindo a mensagem de sua morte

declaração.

numa cruz. Como veremos, os Evangelhos apre­

2.3

A crucificação de Jesus como um proble­ sentam a cruz como o ponto alto de sua missão

ma interpretativo. “ Os principais sacerdotes e as

(cf. e.g., Mc 10.45; Lc 24.25-27; Jo 12.23-28). A

nossas autoridades o entregaram para ser conde­

essa altura, vale a pena refletir rapidamente sobre

nado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos

duas questões intimamente relacionadas, a saber,

que fosse ele o que traria a redenção a Israel”

como Jesus entendia a própria morte e como foi

(Lc 24.20,21). Sem identificar exphcitamente no

interpretada pelas igrejas mais antigas.

294

CmSTO, MORTE DE li E v ANGELHOS

Aliando sua reflexão criativa sobre o desenvol­

relaçao entre sua missão e sua morte. Por exemplo,

vimento da teologia da expiação no cristianismo

Jesus indagou dos discípulos: “ Quem dizeis que

mais primitivo com sua síntese do pensamento

eu sou?” (Mt 16.13-26; Mc 8.27-38; Lc 9.18-26).

acadêmico tradicional sobre o assunto, Hengel

Será que seu interesse era apenas conseguir que

afirma que a interpretação da morte de Jesus

confessassem quem ele era? Entendidos dessa

como sacrifício vicário e expiatório tem raízes no

maneira, a pergunta de Jesus e o ensino poste­

entendimento do próprio Jesus sobre sua morte.

rior sobre o sofrimento do Filho do homem só

0 ponto de partida é o material paulino e algumas

podem ser interpretados como uma tentativa de

tradições pré-paulinas que garantem ser possível

Jesus associar, da maneira mais íntima possível,

identificar a origem da interpretação da morte de

sua execução e missão. Assim, Jesus considerava

Jesus como acontecimento salvífico com as mais

que sua morte iminente era, de alguma maneira,

antigas comunidades cristãs de fala grega (e.g.,

parte de sua missão, que era trazer a redenção a

Rm 4.25; ICo 15.3-5; 01 2.20,21).

Israel e às nações (v.

M

eyer,

p. 216-9).

Avançando um pouco mais, Hengel insiste

Uma preocupação mais premente a ser susci­

em afirmar que, para entender a crucificação de

tada contra o estudo de Hengel é sua afirmação

Jesus como a execução do Messias, os cristãos

de que recuperou a interpretação mais antiga e

judeus tinham de atribuir àquela morte um sig­

única da morte de Jesus. Ele, porém, não está

nificado extraordinariamente positivo. As cate­

sozinho nessa armadilha. A despeito da rica va­

gorias interpretativas oferecidas pelas principais

riedade de imagens empregadas no

correntes de estudiosos contemporâneos — Jesus

com a morte de Jesus, a história da reflexão so­

nt

para hdar

como “ o sofredor que é justo” e como “o mártir-

bre a cruz está entulhada de tentativas de, com

profeta” — são consideradas por Hengel insu­

termos pobres, discernir sua importância. Na

ficientes para entender a crucificação. A única

realidade, assim como a crucificação de Jesus

resposta satisfatória é que também os primeiros

é, dentre os acontecimentos da vida de Jesus, o

discípulos entenderam a morte de Jesus como um

mais historicamente seguro, é também o mais

sacrifício expiatório.

amplamente interpretado.

Indo mais adiante, Hengel indica que a ori­

Outra perspectiva sobre sua morte que se

gem dessa interpretação está na declaração so­

afirma estar baseada no pensamento de Jesus foi

bre o resgate e nas palavras de Jesus por ocasião

esboçada por D. C. Ahison. Ele faz um levanta­

da Última Ceia (Mc 10.45; 14.24). Desse modo,

mento interessante sobre a expectativa, na lite­

Jesus antecipou sua morte, percebendo que nela

ratura judaica, de uma grande tribulação final. A

cumpria o papel do Servo Sofredor do Senhor

partir daí, demonstra que a ideia de uma grande

(Is 52.13— 53.12). Hengel conclui que “não eram

tribulação era quase sempre associada à vinda da

basicamente as reflexões teológicas deles pró­

era escatológica da salvação, mas não de acordo

prios, mas acima de tudo as declarações interpre­

com algum modelo determinado. Retrocedendo

tativas de Jesus durante a Última Ceia que lhes

aos relatos da Paixão nos Evangelhos, ele desco­

mostrou como entender devidamente sua morte”

bre que a morte de Jesus assinalou o início do

(H

eng el,

1981, p. 73; cf.

L

cumprimento da expectativa escatológica, e que

ohse) .

Contra essa reconstrução, alguns estudiosos

a morte de Jesus pertence aos “ais” messiânicos

questionam o fato de Hengel aceitar a autenticida­

que marcam o nascimento da nova era.

de das declarações atribuídas a Jesus em Marcos

Essa interpretação centrada na crise é sugeri­

10.45 e 14.24. Ao mesmo tempo, vale a pena no­

da por alguns acontecimentos da Paixão — dentre

tar que um número crescente de estudiosos já ad­

os quais trevas ao meio-dia (Mc 15.33), o rasgar

mite a probabihdade de Jesus ter antecipado sua

do véu do templo (Mc 15.38) e a ressurreição dos

execução pelas autoridades romanas. Em face do

santos (Mt 27.51-53). Allison também peneirou

conteúdo de sua mensagem, dificilmente poderia

os Evangelhos à procura de indícios de que Jesus

ter agido de outro modo (v. abaixo). No entanto,

entendia seu ministério da perspectiva da aflição

admitir isso implica absorver seu corolário, a sa­

escatológica (e.g., Mt 11.12,13; Lc 12.49-53). Com

ber, a possibilidade de que Jesus refletia sobre a

isso, “Jesus previu para si mesmo sofrimento.

295

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

morte e justificação no drama escatológico, que ele interpretava como já em andamento”

Jesus, portanto, foi executado por sedição.

luso n,

Mas, em vez de responder ã nossa pergunta ini­

p. 142). Em suma, a morte e a ressurreição de

cial, essa conclusão apenas a torna mais pungen­

Jesus assinalaram a alvorada do grande dia do

te. Deixa-nos intrigados pelo possível nexo entre

Senhor (v.

e s c a t o l o g ia i )

(A

0 que sabemos sobre a vida de Jesus e a lógica

.

Essas são apenas outras duas interpretações

de sua sentença de morte. “A descrição de Jesus,

que examinam mais acuradamente a execução de

como nos é apresentada não só nos Evangelhos,

Jesus e afirmam basear-se no entendimento de Je­

mas por todo o Novo Testamento, não pode ser

sus acerca de sua missão e morte. Ainda mais

conciüada com essa explicação de sua morte”

fundamental que isso é a realidade generalizada

(H

arvey,

p. 14; v. p. 11-35;

Sanders,

p. 294-318).

de que o sofrimento e a morte de Jesus foram

Na verdade, ao ser preso Jesus nega que es­

reconhecidos e proclamados por sua centrahda-

teja liderando alguma revolta contra o Estado

de no plano redentor de Deus. O enigma de um

(Mt 26.55; Mc 14.48; Lc 22.52). Ademais, os se­

Messias crucificado clamava por interpretação.

guidores de Jesus não foram ajuntados e sumaria­

Seguindo as pistas oferecidas no entendimento

mente executados, o que seria de esperar se Jesus

de Jesus, os primeiros discípulos viram na cruz o

estivesse à frente de um movimento de insurgên-

cumprimento do propósito divino.

cia (cf., e.g.,

Josefo,

An, 20.5.1—20.8.10, § 97-

188; Gaja, 2.12.3—2.14.1, § 232-72). Além disso, 3. Por que Jesus foi crucificado?

depois da morte de Jesus seus discípulos tiveram

No capítulo mais recente sobre a busca pelo Je­

permissão para formar uma comunidade em Jeru­

sus histórico, uma pergunta da maior importân­

salém, um desdobramento impensável caso se ti­

cia é: "Por que Jesus foi crucificado?” Em uma

vesse conhecimento de que formavam um partido

dimensão, a pergunta é respondida com bastante

sedicioso. Por fim, se Jesus tivesse incitado a re­

facilidade. Dados históricos externos aos Evan­

sistência política contra Roma, seria natural que,

gelhos sinalizam claramente a realidade de que,

após sua morte, seus seguidores se envolvessem

em uma província romana como a Judeia, uma

em uma oposição agressiva contra o Estado. Tudo

execução desse tipo só podia ser levada a efeito

isso nos deixa, portanto, diante de um conjunto

sob as ordens do procurador romano. Além do

de circunstâncias muitíssimo enigmáticas.

mais, como já vimos, nas províncias romanas

Um estudioso que encarou seriamente o

empregava-se a crucificação como recurso visto,

problema foi E. P. Sanders. Ele tentou solucio­

acima de tudo, como capaz de conter as sedi­

nar o quebra-cabeça fazendo referência espe­

ções. Por inferência, podemos concluir que Jesus

cial ao protesto físico de Jesus contra o templo

foi crucificado sob Pôncio Pilatos como insurgen­

(Mt 21.12,13; Mc U .15-17; Lc 19.45,46). Esse ato,

te. Nisso, temos o apoio dos Evangelhos, pois ali

insiste Sanders, não teve o objetivo de purificar o

a acusação apresentada a Pilatos é claramente

templo, mas de servir como advertência de sua

de sedição.

destruição (v.

No único registro mais claro das acusações

tem plo ,

p u r if ic a ç ã o

do).

Sanders

alega que esse foi o último ato público de Jesus

levantadas contra Jesus em Lucas 23.2,5, lemos:

após o qual começou a se armar a trama decisi­

“Achamos este homem perturbando a nossa na­

va contra sua vida. Situado no contexto da pro­

ção, proibindo pagar o imposto a César e dizendo

clamação do reino de Deus por Jesus e também

ser ele mesmo o Cristo, um rei. [...] Ele coloca

de sua capacidade de suscitar as esperanças do

o povo em alvoroço e ensina por toda a Judeia,

povo, o ato contra o templo foi o suficiente para

vindo desde a Galileia até aqui”. A pergunta de

que os romanos começassem a ver Jesus como

Pilatos a Jesus, relatada nos quatro Evangelhos,

uma ameaça política. Ele foi executado, então,

é igualmente direta e sem rodeios políticos; “Tu

a pedido da liderança judaica, que o apresentou

és 0 rei dos judeus?” (Mt 27.11; Mc 15.2; Lc 23.3;

como um homem perigoso, mas não como o líder

Jo 18.33). Por último, Jesus é executado ao lado

de um partido insurgente.

de dois insurgentes, e a inscrição na cruz declara que esse também foi seu crime.

Embora plausível, a reconstrução que Sanders oferece da lógica por trás da execução de Jesus

296

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

desconsidera aspectos importantes dos relatos

entre as várias formas de judaísmo então exis­

dos Evangelhos. Ele não consegue explicar de

tentes, e externamente, com Roma. A missão de

maneira satisfatória o papel dos líderes judaicos

Jesus, interpretada de forma ampla como a res­

no processo da Paixão de Jesus. Aliás, sua hipó­

tauração de Israel no contexto da vinda do gover­

tese praticamente não deixa espaço para a con­

no universal de Deus, deve ter representado uma

tribuição dos judeus nessa ação, visto que, no

ameaça à estrutura social e de poder do judaísmo

entendimento de Sanders, o conflito entre Jesus e

do século

I.

É claro que nada menos que a procla­

judeus (fariseus) registrado nos Evangelhos é

mação do reino escatológico feita por Jesus teria

um anacronismo. Além disso, não é convincente

representado uma ameaça política aos que mais

a decisão de deixar de lado material que aparece

apoiavam a ordem vigente, entre os quais as au­

registrado cronologicamente nos Evangelhos en­

toridades romanas. Embora Jesus não represen­

tre o ato no templo e o início do relato da Paixão.

tasse nenhuma ameaça de golpe mihtar violento,

Embora possamos acreditar que o ato no templo

assim mesmo sua mensagem de hbertação e sua

tenha sido um incidente significativo para a pri­

crescente popularidade tornavam-no um perigoso

são e condenação de Jesus, parece improvável

risco político. Essa ameaça, acentuada pela ativi­

os

que tenha sido a causa imediata.

dade de Jesus posterior à sua chegada a Jerusa­

Harvey, no entanto, acredita que os líderes

lém para a Páscoa, conduziu-o à execução.

judeus de fato entregaram Jesus às autoridades romanas, mas só depois de terem fracassado em

4. A morte de Jesus no Evangelho de

hdar efetivamente com esse judeu, a quem consi­

Mateus

deravam uma ameaça à paz e à segurança geral.

Qualquer anáhse da morte de Jesus no primeiro

Nesse aspecto, o que atrai Harvey é o relato luca­

Evangelho tem de ir além dos hmites da narrati­

no, segundo o qual os líderes judeus não conside­

va da Paixão registrada em Mateus. Qualquer que

ravam Jesus culpado nem merecedor de pena de

seja a história da tradição do relato da Paixão,

morte (Lc 22.66-71; At 13.27,28; cf. Jo 18.19-23).

ele agora se encontra cuidadosamente integrado

Com isso, Harvey conclui que houve no Sinédrio

no Evangelho como um todo. Analisaremos a

uma audiência informal, cujo propósito foi decidir

descrição que Mateus oferece da morte de Jesus,

se era necessário entregar Jesus a Pilatos e com

considerando quatro aspectos: a rejeição a Jesus

que fundamento. 0 que falta na exphcação de Har­

e ao Evangelho; a morte de Jesus e a cristologia

vey é uma discussão sobre o motivo pelo qual o

de Mateus; o caminho da cruz; a morte de Jesus

Sinédrio teria considerado Jesus uma ameaça.

e a nova era de salvação.

Uma pista nessa direção aparece em João 11.4553. Aqui, 0 Sinédrio, reunido informalmente, co­

4.1

A rejeição a Jesus e ao evangelho. O trá­

gico relato mateusino acerca da rejeição ao Mes­

meça a tramar contra Jesus, porque teme sofrer

sias de Deus por parte de Israel serve de principal

represálias da parte de Roma: "Se o deixarmos

enredo para o Evangelho de Mateus. Esse tema

em paz, todos crerão nele; então os romanos vi­

atinge o auge em Mateus 27.25, texto em que os

rão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa

judeus aceitam plena responsabihdade pela exe­

nação” (Jo 11.48). A verdade é que nos decênios

cução de Jesus: "O sangue dele caia sobre nós e

anteriores à guerra judaica, a Palestina foi palco

sobre nossos filhos”. Essa rejeição está no âmago

de repetidos movimentos libertacionistas, e a re­

da narrativa de Mateus sobre a vida e sobre o

petida reação de Roma foi matar os hderes desses

ministério de Jesus, e é possível perceber seu de­

movimentos com seus seguidores.

senrolar desde a história de Herodes e os magos

Nisto Sanders está correto: Jesus não teria re­

vindos do Oriente (v.

Jesu s,

n a s c im e n t o d e ) .

presentado nenhuma ameaça imediata, não fos­

0 trecho de Mateus 2.1-12 está estruturado

se por seus seguidores. Ao mesmo tempo, não

de tal maneira que destaca a natureza das várias

precisamos seguir Sanders e rejeitar totalmente

reações diante do nascimento de Jesus. A impor­

o registro da hostihdade entre Jesus e os judeus

tância desse relato e das reações que registra tem

encontrado nos Evangelhos. 0 judaísmo do sécu­

ligação com o fato de ser a primeira narrativa em

lo I caracterizava-se pelo conflito: internamente.

que o nascimento de Jesus se tornou púbhco e 297

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

em que o leitor tem consciência da identidade de

vocabulário e de ideias caracterizam a execução

Jesus como “Emanuel” , aquele que salvaria seu

de João como episódio que prenuncia o destino

povo de seus pecados (Mt 1.21-23). De que ma­

semelhante de Jesus.

neira Herodes, o rei dos judeus, reagiria à notícia do nascimento desse rei dos judeus?

Entre a introdução de João, registrada em Mateus 11.1, e sua reaparição, em Mateus 14.1,

Tendo descoberto o local do nascimento do

encontram-se ainda outras descrições dessa hos­

Messias, os magos vão a Belém para adorá-lo.

tilidade e rejeição. Em Mateus 12.1-13, surge um

Herodes, porém, e com ele os principais sacer­

conflito entre Jesus e os fariseus acerca da atitude

dotes e mestres da lei, sabia qual era a cidade do

correta em relação ao sábado. Isso leva à primei­

nascimento do Messias, mas não foi lhe dar as

ra menção em Mateus 12.14 de uma conspiração

boas-vindas, nem render tributo. Pelo contrário,

dos judeus contra Jesus. Seguem-se outros regis­

o espírito atribulado de Herodes cede à maldade,

tros de conflito: Mateus 12.24-32, passagem em

e ele ordena a morte dos meninos da região de

que os fariseus acusam Jesus de expulsar demô­

Belém. Contra os planos de Herodes de matar Je­

nios pelo poder de Belzebu; Mateus 12.38-42, em

sus prematuramente. Deus intervém repetidas ve­

que os fariseus e os mestres da lei, comparados

zes para proteger a criança (Mt 2.12,13,22). Mas

a uma geração má e adúltera, pedem um sinal

a sorte está lançada; a rejeição e a morte violenta

miraculoso; Mateus 13.53-58, em que Jesus é re­

de Jesus são claramente prenunciadas.

jeitado até mesmo pelo povo de sua cidade.

Embora no início da missão de Jesus as mul­

No meio dessa seção caracterizada por hosti­

tidões reajam favoravelmente à sua mensagem

lidade e pela antecipação da rejeição final de Je­

(e.g., Mt 7.28,29), esta traz consigo presságios da

sus por Israel, Mateus introduz um contraponto:

crise vindoura: “Bem-aventurados os perseguidos

Jesus é 0 Servo ungido pelo Espírito e escolhido

por causa da justiça” (Mt 5.10; cf. Mt 5.44). Não

por Deus (Mt 12.17-21, cit. Is 42.1-4). Se ele é re­

há dúvida de que, para Mateus, Jesus, que esta­

jeitado por Israel, isso é resultado da obediência

va comprometido com o caminho da justiça, era

à sua missão divina. Durante o ministério púbhco

o derradeiro exemplo dessas palavras. Jesus não

de Jesus, os fariseus e os mestres da lei apare­

buscava a morte, mas reconhecia que uma vida

cem rotineiramente como seus adversários. Com o

de retidão era uma vida vivida em oposição às

início da narrativa da Paixão, em Mateus 26.1-5,

convenções de seu mundo. 0 resuhado só podia

os principais sacerdotes e os anciãos assumem

ser perseguição.

esse papel e fazem acordo com um dos discípulos

A mudança aparentemente inevitável de atitu­

de Jesus (Mt 26.14-16). Então, incitam as multi­

de diante de Jesus é prefigurada pela introdução

dões contra Jesus. Por último, o círculo progres­

de João Batista em Mateus 11.1-19. Jesus com­

sivo de hostilidade atinge o auge: “todo [pas] o

para seu destino ao do João aprisionado: assim

povo” pede a morte de Jesus (Mt 27.25).

como rejeitaram João, de igual modo rejeitarão

Desse modo, a sombra da cruz se projeta por

a Jesus. Esse tema recorrente se cumpre em Ma­

todo 0 Evangelho de Mateus. Por meio de prog­

teus 14.1-12, em que Mateus narra a decapitação

nóstico e de ameaça, a realidade cruel dessa

de João. A correspondência entre as execuções de

sombra está presente nos temas recorrentes de

João e de Jesus é digna de nota. Em cada relato,

hostilidade e rejeição.

a conspiração contra o protagonista é impedida

4.2

A morte de Jesus e a cristologia de Ma­

por sua popularidade (Mt 14.3-5; 21.45,46; 26.3-

teus. Os interesses cristológicos de Mateus já são

5). Ambos os relatos mostram que o respectivo

manifestos na introdução, quando em Mateus 1.1

governante romano está relutante em proceder à

ele apresenta Jesus como Messias, filho de Davi

execução, mas cede à pressão externa (Mt 14.9,10;

e filho de Abraão (v.

27.11-26). Depois de sua morte, os discípulos de

da genealogia de Jesus (Mt 1.2-18) acentua sua

João aparecem, levam seu corpo e o sepultam

identidade como Messias.

A

braão).

0 registro seguinte

(Mt 14.12); de igual maneira, após a morte de Je­

Algo também evidente logo no início e de

sus, um de seus discípulos aparece, leva o corpo

importância fundamental para a cristologia de

e 0 sepulta (Mt 27.57-60). Essas semelhanças de

Mateus é sua apresentação da solidariedade entre

298

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

Jesus e 0 povo de Deus e entre Jesus e o propósito

De igual modo, na cena da prisão, Jesus faz

divino. Como revela o registro genealógico, a vin­

referência a “ meu Pai”. Nesse contexto, a auto­

da de Jesus está arraigada profundamente na his­

ridade de Jesus como Filho de Deus ocupa papel

tória da relação entre Deus e Israel (Mt 1.1-18).

central, mas ele não exerce poder como meio de

O relato do nascimento de Jesus e seus paralelos

fuga. Ter agido dessa maneira significaria contra­

com 0 passado de Israel acentuam esse tema. Ele

dizer o próprio ensino (Mt 5.44) e rejeitar a von­

nasce em meio à hostilidade, é obrigado a seguir

tade de Deus (Mt 26.54,56).

para o exílio, sendo depois trazido do Egito de

Tema semelhante e também recorrente é visto

volta para a terra de Israel (Mt 2.1-23). 0 empre­

em Mateus 27.40, na referência ao Filho de Deus.

go, por Mateus, de citações do a t para indicar que

Ao zombar de Jesus, os transeuntes dizem: “ Se és

Jesus é 0 cumprimento de promessas veterotes-

Filho de Deus, desce da cruz”. Com isso, seguem

tamentárias (e.g., Mt 1.22,23; 2.15-18) também

o modelo de tentações que o Diabo apresentou a

se encaixa nesse esquema, arraigando Jesus inse­

Jesus em Mateus 4.3,6: “ Se és Filho de Deus...”

paravelmente na história de Israel e das promes­

A inferência em cada caso é que, na condição de

sas divinas. Assim, a missão de Jesus revela a

Filho de Deus, Jesus podia fazer o que seus ten­

vontade de Deus e está entretecida com a dor e a

tadores lhe pediam. Fazê-lo, porém, seria negar o

esperança de Israel de forma inexorável.

caráter de obediência a Deus inerente à sua natu­

Jesus foi crucificado como embusteiro mes­

reza de Filho (v.

tentação de

J esu s) .

siânico, mas isso não teria impedido os leitores

Em suma, referir-se a Jesus como o Filho de

de Mateus de perceber um sentido mais pro­

Deus corresponde a falar de forma incisiva da

fundo na recorrência dessa acusação (Mt 26.63;

fidelidade que devotava à sua missão, de sua

27.11,17,22,27-31,37). Irônica e inconscientemen­

obediência total a Deus. Esse tema recorrente

te, 0 sumo sacerdote, Pilatos e os soldados pro­

também é ressaltado quando, no relato da Paixão,

clamam — todos eles — a verdadeira identidade

Mateus retrata Jesus como Servo. As repetidas re­

de Jesus. Entretanto, para ocorrer essa guinada

ferências ao silêncio (Mt 26.63; 27.14) e à inocên­

interpretatíva, títulos como “Messias” e “rei dos

cia (Mt 27.4,18,19,23,24) de Jesus revelam que a

judeus” têm de ser preenchidos com novo con­

Paixão é 0 cumprimento de seu papel como Servo

teúdo, pois nesse contexto precisam de alguma

de Deus por meios que ressaltam sua fidelidade à

forma estar relacionados com a morte de Jesus.

missão divina (cf. Is 53.7,11).

Não é de surpreender, então, que “Cristo” seja

Com o tema recorrente do Servo, Mateus

interpretado ao lado de outras imagens cristoló­

expande o campo teológico de sua narrativa da

gicas no relato da Paixão. As principais delas são

Paixão. Isso fica evidenciado nas palavras inter­

“ Filho de Deus” e “Servo”. No relato da Paixão,

pretativas de Jesus por ocasião da Última Ceia,

a associação de Cristo com o título Filho de Deus

em que terminologias como “em favor de” são

está mais clara no pedido do sumo sacerdote:

reminiscentes da obra do Servo de Isaías 52.13—

"Ordeno que jures pelo Deus vivo e diga-nos se

53.12. Na interpretação dessas palavras, a morte

tu és 0 Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26.63). Tam­

de Jesus é eficaz, mostrando como cumpriria a

bém pertinente é a zombaria contra Jesus quan­

promessa de que “ele salvará seu povo dos seus

do ele está na cruz, momento em que “Filho de

pecados” (Mt 1.21). E isso nos ajuda a apreciar

Deus” e “rei dos judeus” são mencionados lado a

a importância do insulto registrado em Ma­

íado (Mt 27.40,42,43). A questão crucial, portan­

teus 27.42: “Salvou os outros e não consegue sal­

to, diz respeito a qual significado atribuir a esse

var a si mesmo”. A missão de Jesus é salvífica,

emprego. A primeira pista para resolver o enigma

mas ele só pode abrir o caminho da salvação me­

é o episódio do Getsêmani, pois ah Jesus se di­

diante o sacrifício da própria vida (cf. Mt 16.25).

rige a Deus em oração, chamando-o “ meu Pai”

É comum os comentaristas mencionarem a

CMt 26.39,42). Essa oração é, acima de tudo, um

exaltada cristologia do relato mateusino da Pai­

ato de submissão a Deus. Na condição de Filho

xão quando comparado ao de Marcos. Logo de

de Deus, Jesus atende à vontade de Deus com

início, Jesus anuncia sua execução iminente

obediência total e sem reservas.

(Mt 299

26.1,2).

Declara

que

chegou

o

tempo

C r is t o , m o r t e d e i ; E v a n g e l h o s

determinado (Mt 26.18). Profetiza sua traição

Paixão, o fracasso dos discípulos é selado quan­

0 identifica o traidor (Mt 26.21,25). Abre cami­

do, por medo, abandonam Jesus no momento de

nho para Judas concretizar a traição (Mt 26.50).

sua prisão (Mt 27.56). O comportamento desleal

Declara ser capaz de escapar milagrosamente

deles é acentuado pelas ações de personagens

de seu destino (Mt 26.53). Jesus é apresentado

bem menos conhecidos. A mulher que unge Je­

como aquele que tem poder e está no controle

sus em Betânia (Mt 26.6-13), José de Arimateia

dos acontecimentos de sua Paixão. E é aí que a

(Mt 27.57-60) e a mulher fiel ao pé da cruz e

atenção se concentra no retrato cristológico pin­

junto ao túmulo (Mt 27.55,56,61) são exemplos

tado por Mateus. Jesus não exerce o poder na

de pessoas que, na narrativa da Paixão, recebem

condição de Messias, Filho de Deus, para fugir da

destaque por suas reações autênticas diante das

morte. E isso não acontece por estar desprovido

boas-novas (v.

evang elh o

[g ênero ] ) .

de uma posição régia ou de autoridade. Pelo con­

Para compreender o caminho da cruz, não é

trário, Jesus exerce esse poder de maneira inespe­

demais relembrar a importância da última predi­

rada; em obediência a Deus e derramando a vida

ção sobre a Paixão. Aqui o ministério de Jesus

pelos outros.

de salvar e redirrúr é expresso com termos relati­

0 relato da morte de Jesus em Mateus é, des­

vos ã morte sacrificial; “0 Filho do homem [...]

sa maneira, o relato de sua fidelidade a Deus, de

não veio para ser servido, mas para servir e para

sua devoção a sua missão e de sua sohdariedade

dar a sua vida em resgate de muitos” (Mt 20.28).

intencional para com a dor e a esperança de seu

Empregando essa terminologia e começando pela

povo.

apresentação que Mateus já fizera de Jesus como

4.3

O ccaninho da cruz. Até que ponto Ma­ Servo Sofredor (cf. Mt 8.17; 12.17-21), a cruz é

teus entende a cruz como expressão última da

perfeitamente encaixada no centro da vida e da

missão de Jesus se vê, mais que em qualquer ou­

obra de Jesus.

tro lugar, na série de predições da Paixão; 16.21-

4.4

A morte de Jesus e a nova era de salva­

27, 17.22,23 e 20.17-28. Nessas predições, Jesus

ção. A rejeição a Jesus e à mensagem dele para

caracteriza sua missão como uma viagem a Jeru­

Israel não sigiúfica o fim da história para Mateus.

salém e, consequentemente, ao Gólgota.

Mesmo em suas predições de sofrimento e morte,

A primeira é emoldurada pela confissão de

os olhos de Jesus permanecem fixos na ressurrei­

Pedro de que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus

ção (Mt 16.21; 17.23; 20.19). De modo semelhan­

vivo” (Mt 16.16) e pela reprimenda que o discí­

te, a interpretação que ele faz na Última Ceia, a

pulo leva de Jesus após o anúncio do próprio so­

qual é tão centrada em sua Paixão, prenuncia seu

frimento iminente. Fica claro que o entendimento

futuro no reino de Deus (Mt 26.29). E, em Ma­

que Jesus tem de si mesmo, abrangendo o “dever

teus 26.32, ele prediz sua ressurreição e seu papel

divino” (dei) de sua Paixão, afasta-se das expec­

futuro de reconstítuir o grupo disperso dos dis­

tativas messiânicas mais comuns, mesmo entre

cípulos. Mesmo sem recorrer ã narrativa da res­

seus discípulos. Jesus, no entanto, está conven­

surreição em si, o véu do templo agora rasgado,

cido de que o sofrimento está no âmago de sua

0 terremoto e a confissão do centurião dão teste­

missão como Cristo, Filho de Deus, e até mesmo

munho de que Jesus estava vindicado, a despeito

estende essa definição à sua ideia de discipula­

de ter sido rejeitado por Israel (Mt 27.51-54).

do. A exemplo de Jesus, seus discípulos se veem diante do desafio de perder a vida.

Acerca da confissão do centurião, abrimos mais um espaço para debate. Não apenas de

Embora os discípulos de Jesus tenham uma

modo sutil, mas também de forma transparente,

“pequena fé” (e.g., Mt 14.31; 17.20), são incapa­

Mateus proclama que o reino de Deus passará

zes de entender o caminho da cruz. Depois da se­

de Israel para “ um povo que dê os seus frutos”

gunda predição da Paixão, “eles se entristeceram

(Mt 21.43). Na mente do Evangelista, o redire-

muito” (Mt 17.23). E, no contexto da terceira, pa­

cionamento do reino tem relação direta com a

recem não entender absolutamente nada do que

crise de rejeição — Israel entregando o Messias

Jesus quis dizer, pois ficam preocupando-se com

para ser crucificado. Por exemplo, observa-se a

posições de destaque e autoridade. No relato da

mudança no papel de Jesus como Salvador. Em

300

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

Mateus 1.21, “ele salvará seu povo dos seus pe­

seu púbhco acerca da verdadeira natureza de Je­

cados”, mas, em Mateus 26.28, ele é “derramado

sus, e faz isso por meio de uma narrativa orienta­

em favor de muitos [i.e., de todos], para perdão

da em torno da cruz.

dos pecados”. O tempo da derradeira rejeição de

Alusões que prenunciam a Paixão de Jesus

Jesus por Israel será de morte, mas a morte con­

ponteiam a paisagem do Evangelho de Marcos,

duz à vida, a uma nova era de salvação para “to­

demonstrando a relação íntima entre a identidade

das as nações” (Mt 28.18-20).

de Jesus e seu sofrimento. Já em Marcos 2.19,20,

0 caráter de novidade dessa era é assinalado

Jesus insinua sua morte repentina, inesperada

de forma diferente pelas declarações interpreta­

e intrigante. Em outros textos, autoridades re­

tivas de Jesus na Última Ceia. Ao usar na mes­

ligiosas e políticas tramam sua morte (Mc 3.6;

ma frase as expressões “aliança” e “perdão [ou

11.18; 12.12), e Jesus anuncia profeticamente que

remissão] dos pecados” (Mt 26.28), Jesus inter­

será rejeitado e morto (Mc 8.31; 9.12,31; 10.32-

preta sua missão com base em Jeremias 31.31-34.

34,38,39,45). Como no texto correspondente de

“ Dias virão”, anuncia Jeremias, em que o Senhor

Mateus (v. 4.1 acima), também em Marcos 6.14-29

fará uma “nova ahança”. De acordo com Jesus,

o relato joanino da Paixão prefigura o sofrimento e

esse tempo chegou. Com sua morte, ele inaugu­

a morte de Jesus.

rará a nova ordem de salvação.

Em nenhuma outra passagem o vínculo entre a

Mais uma vez percebemos aqui indícios de

morte de Jesus e sua identídade é mais perceptível

que, para Jesus, a morte não era um acontecimen­

do que no relato da crucificação, pois Marcos en­

to inesperado, sem relação com sua vida e obra.

tende o momento da morte de Jesus como a hora

Em sua morte, manifesta-se sua obediência a

da revelação divina. Só ao morrer Jesus pode ser

Deus, e assim a cruz é entendida como âmago da

plena e devidamente avahado. Esse é o significado

missão de abrir para todos o caminho da salvação.

da confissão do centurião, a única pessoa em todo o Evangelho a reconhecer Jesus como o Filho de

5. A morte de Jesus no Evangelho de

Deus (Mc 15.39). No relato da crucificação. Mar­

Marcos

cos ressalta que o centurião faz sua confissão so­

A avaliação feita há já um século, e muito citada,

mente depois de ver Jesus dar seu último suspiro.

de que o Evangelho de Marcos seria uma narra­

Ou seja, na cruz Jesus é devidamente reconhecido

tiva da Paixão com uma introdução mais longa

como o Filho de Deus. No corpo do Evangelho,

ressalta a proeminência que a morte de Jesus ti­

Deus afirma Jesus como Filho de Deus no início

nha para o Evangelista. Contudo, sua narrativa

oficial de sua missão, em seu batismo (Mc 1.9-11)

deixa de estabelecer o nexo teológico e literário

e na curta revelação da glória de Jesus no episódio

entre a vida e a morte de Jesus. Por sinal. Marcos

da transfiguração (Mc 9.2-8). A relação entre esses

apresenta o ministério de Jesus como um avan­

três acontecimentos na carreira de Jesus ressalta a

ço incansável de acontecimentos cujo clímax é o

centrahdade da morte para a missão da qual fora

Gólgota. Na cruz, Jesus é revelado como o Filho

incumbido por Deus.

de Deus, que obtém salvação para a nova comu­

O correspondente desse entendimento, que

nidade de fé, uma comunidade chamada a segui-

gira em torno da posição de Jesus como Filho

lo em discipulado sacrificial.

de Deus, é a descrição que Marcos faz de Jesus

5.1

A morte de Jesus e a cristologia de Mar­ como o Filho do homem. De fato, é justamente

cos. Quem é Jesus? Essa pergunta constitui um

como Filho do homem que Jesus sofrerá rejeição

importante tema recorrente do segundo Evange­

e morte (e.g., Mc 8.31; 14.21). Como Filho do ho­

lho. Embora logo de início sejamos informados de

mem, a missão divina de Jesus se consuma quan­

que Jesus é Messias e Filho de Deus (Mc 1.1-15),

do ele entrega a vida a serviço da humanidade,

os personagens do relato de Marcos não têm co­

em resgate por muitos (Mc 10.45). Como Filho do

nhecimento dessa informação (e.g., Mc 5.41),

homem, Jesus também aguarda sua justificação e

e, de qualquer forma, a narrativa já segue bem

glória (e.g., Mc 8.38; 14.62).

avançada quando fica claro o que significam es­

Qual é, para Marcos, a importância do Filho

ses títulos cristológicos. Marcos deseja instruir

crucificado de Deus? Das referências prefigurativas

301

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

já citadas, as de maior implicação para interpre­

da crucificação. Nesse aspecto, são de suprema

tar 0 significado da morte de Jesus são as três

importância as seis ocorrências de “rei” como

predições da Paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.32-34) e a

designativo de Jesus (Mc

menção do resgate (Mc 10.45). Elas destacam a

associadas à tríplice zombaria ao pé da cruz

centralidade da cruz no plano redentor de Deus e

(Mc 15.29-32). Condenado por sua pretensão ao

a obediência de Jesus ao carregar a cruz (cf. Mc

trono, ironicamente Jesus tem direito à condição

14.32-49), e, desse modo, situam a crucificação

de realeza, mas não como alguém poderia ter

no âmago de sua missão. Essa interpretação é

premeditado. Sua obediência à vontade divina

manifesta não apenas no tema do “dever divi­

expressou-se com mais clareza na cruz — sinal de

no” das predições (dei), mas também na repetida

sua condição de realeza que se tornará evidente a

15.2,9,12,18,26,32)

associação, feita mais tarde, entre os aconteci­

todos após sua justificação e sua vinda na condi­

mentos da Paixão e a promessa do

ção de glorioso Filho do homem.

at.

A cruz de

Cristo leva à consumação da vontade revelada de Deus, como em Marcos 14.21, passagem que

S.2

O caminho da cruz. Na visão de Marcos,

o Gólgota não é apenas a expressão máxima da

provavelmente devemos considerar como uma

missão do Cristo. Há também, para os discípulos

alusão a todo o

de forma geral, uma via dolorosa, um caminho

at,

grupo de textos do cos do

at

não a apenas algum texto ou at

.

Contudo, textos específi­

cumprem-se na Paixão de Jesus (e.g.,

Zc 13.7, cit. em Mc 14.27). De maior destaque,

da cruz. 5.2.1

“... tome a sua cruz". Marcos 8.22— 10.52

deixa claro o encontro entre a cristologia e o dis­

são as várias maneiras em que Jesus é apresen­

cipulado ao redor da cruz. Essa seção é emol­

tado tipologicamente como o Servo Sofredor e o

durada por dois milagres de cura. O primeiro

Justo Sofredor.

(Mc 8.22-26) serve de parábola; só vagamente os

0 papel desempenhado pela morte de Je­

discípulos entendem Jesus. Necessitam de uma

sus no centro do plano redentor de Deus vem

visão mais completa e aguçada da identidade de

à luz em dois textos de Marcos: 10.45 e 14.24.

Cristo. Até aqui têm conhecimento de seu poder,

A importância do primeiro se percebe por sua

de sua vitória sobre as forças malignas de toda

posição no fim da seção central do Evangelho

espécie. Embora Pedro o confesse como Cristo,

(Mc 8.22— 10.52), logo antes da entrada triunfal.

não está preparado para a conversa subsequente

Nessa seção, que esboça ousadamente a correla­

sobre sofrimento e morte (Mc 8.27-33). Contudo,

ção entre o caminho de Cristo e o dos discípulos,

para Jesus a messianidade só pode ser entendida

dificilmente a declaração do resgate, ao contrário

na sua plenitude, no contexto do Filho do homem

do que alguns estudiosos têm defendido, seria

sofredor. Além do mais, de acordo com Jesus, se

uma passagem secundária para Marcos. O segun­

o caminho de Cristo é o caminho do sofrimen­

do texto serve de ápice da cena da Última Ceia.

to, será esse também o caminho do discipulado

Nos dois casos, a morte de Jesus é interpretada

(Mc 8.34).

como salvífica. Nesse ato derradeiro de serviço,

Antes do segundo relato de cura (Mc 10.46-52),

Jesus entrega a vida em sacrifício adunatório ou

pela terceira vez Jesus (Mc 10.32-45) anuncia

reconciliatório (que inclui os aspectos expiatório

sua Paixão. Ele e os discípulos estão a caminho

e propiciatório) para salvação da humanidade. A

[hodos) de Jerusalém, lugar de traição e morte.

ironia representada pela cena da zombaria junto

Aparentemente ainda acreditando que “Cristo”

ã cruz pode ser assim entendida: é por se recusar

significa “rei glorioso” , Tiago e João manifestam

a salvar a si mesmo que ele é capaz de salvar a

0 desejo de terem assentos de honra no reino vin­

outros (Mc 15.31; cf. Mc 8.35).

douro. Jesus redireciona o pensamento deles para

A ironia do relato da Paixão em Marcos é ain­

o sofrimento e a adversidade, deixando entrever

da mais disseminada, estendendo-se ao longo da

que partilhariam do destino que ele experimenta­

aparição de Jesus diante do Sinédrio (e.g., mesmo

ria. O discipulado é um serviço mais bem exem­

quando Jesus está sendo ridicularizado como fal­

plificado na morte de Jesus. É interessante que, à

so profeta, cumpre-se a profecia acerca da negação

semelhança do relato de cura de Marcos 8.22-26,

de Pedro [Mc 14.66-72]) e chegando até o relato

é possível ler como parábola o relato seguinte de

302

C r is t o , m o r t e d e i : E v a n g e l h o s

Bartimeu. O fiel e persistente Bartimeu, visto no

5.2.3

A incapacidade dos discípulos e a nova

início sentado à beira do caminho {hodos], agora,

comunidade. Repetidas vezes, o Evangelho de

depois de ter sido curado por Jesus, enxerga cla­

Marcos deixa entrever a incapacidade dos dis­

ramente e segue Jesus pelo mesmo caminho (ho­

cípulos, por causa de seu coração endurecido

dos]. O convite para segui-lo é uma convocação a

(Mc 6.52), de entender o significado da missão

trilhar o caminho da cruz.

de Jesus. Essa incapacidade chega ao ponto máxi­

5.2.2

O sofrimento da comunidade. Esse tema mo em Marcos 14.50-52, quando eles abandonam

recorrente prossegue e é aprofundado na rela­

Jesus nas mãos do grupo que o prende no Getsê­

ção que Marcos estabelece entre o sofrimento da

mani. É verdade que Jesus prevê a reabilitação

comunidade (Mc 13) e o sofrimento do Messias

dos discípulos (Mc 14.27,28), mas a narratíva que

{Mc 14— 15). Os sinais de tribulação são apre­

aparece entre um ponto e outro já proporciona ce­

sentados em paralelo na Paixão de Jesus, como

nas inesperadas de fidelidade. Em deliberada con­

se vê a seguir:

traposição com as ações dos líderes judeus e com as de Judas ( “um dos Doze”), a mulher anônima

13.2

Destruição do

14.58; 15.38

unge Jesus para o sepultamento (Mc 14.1-11).

templo 13.9,11,12

Entrega

Simão de Cirene torna-se discípulo modelar: 14.10,11,18,

aquele que leva a cruz (Mc 15.21; cf. Mc 8.34).

passim

Um grupo de discípulas mantém-se fielmente do lado de Jesus enquanto ele morre (Mc 15.40,41).

13.12,13

Traição

14.10.21,43

13.24

Trevas

15.33

Ainda mais importantes pelo papel que de­

Filho do homem: 13.26

tribulação,

sempenham na teologia lucana da Paixão de Je­ sus são 0 rasgar do véu do templo (Mc 15.38)

14.62

parusia

e a confissão do centurião. Como já vimos, es­

13.32,33

A “hora”

14.32-42

13.5,9,23,

Vigilância

14.34,37,38

33,35,37

escatológica

13.25

fornece a

ses acontecimentos juntos revelam a identidade de Jesus, mas também falam do tema do disci­ pulado. A primeira passagem, utilizando-se de

14.17— 15.1

material do templo, já antes encontrado no se­

cronologia para 13.36

Voltar, achar,

gundo Evangelho, demonstra que Jesus é o Mes­ 14.37,40

sias que destrói o templo e o reconstitui como

dormir

comunidade dos fiéis. A importância da última passagem nesse contexto repousa no fato de que

No âmbito literário, esses paralelos amarram

é justamente um centurião gentio que confessa

o destino de Jesus com o de seus discípulos e

que Jesus é Filho de Deus. Dificilmente se pode­

também são de profunda importância teológica.

ria encontrar uma palavra mais enfática sobre as

De um lado, significam que o sofrimento dos

implicações universais da morte de Jesus.

discípulos é uma participação no sofrimento do Cristo. De outro lado, indicam as ramificações

6. A morte de Jesus no Evangelho de Lucas

cósmicas desse sofrimento. A cruz de Cristo é

0 terceiro Evangelista não deixa seus leitores em

o ponto decisivo na história, é o parto de uma

dúvida quanto ã centrahdade da morte de Jesus

nova era, a chegada do reino de Deus ao mun­

para seu Evangelho. Ele arma o palco para a Pai­

do. Isso acentua a seriedade dos sofrimentos dos

xão de Jesus ao acentuar sua narrativa da vida de

discípulos de Jesus. Como ele, sofrerão rejeição.

Jesus acima de tudo como uma história de confli­

Aliás, parece que o público-alvo de Marcos já

to. Além disso, ao longo de Lucas-Atos, ele ecoa

antevia um ambiente de perseguição. A justapo­

o refrão: “ 0 Cristo tem de sofrer”. 0 que é menos

sição de imagens em Marcos 13— 15 comprova

transparente para Lucas é o significado da morte

que 0 sofrimento deles também faz parte do pla­

de Jesus.

no divino e que a dor deles faz parte do proces­

6.1

A rejeição ao Messias. Lucas caracteriza a

so pelo qual o reino de Deus está irrompendo

vida de Jesus como um relato de conflito e rejei­

no mundo.

ção — preditos por Simeão (Lc 2.34,35), previsão

303

C r is t o , m o r t e de í : E v a n g e l h o s

paradigmaticamente representada pela oposição

Pedro é relacionada com a influência de Sata­

a Jesus em Nazaré {Lc 4.16-30) e tragicamente

nás (Lc 22.31-34). Ao relatar a prisão de Jesus,

cumprida quando Pilatos entrega Jesus à vonta­

Lucas está visivelmente calado acerca dos dis­

de dos principais sacerdotes e do público judeu

cípulos, e 0 resultado é que o destino deles flca

(Lc 23.25). Em certo sentido, esse retrato de Jesus

indefinido. Eles não abandonam Jesus, como

não passa daquilo que seria de esperar. Para Lu­

em Mateus e Marcos. Na verdade, os discípu­

cas, Jesus é um profeta (cf., e.g., Lc 4.24; 7.16,39;

los estão “com” Jesus de uma forma que não

24.19; At 3.17-26; 7.37), e a rejeição e a morte

encontra correspondência nos outros Sinóticos

são o destino de todos os profetas (cf. Ne 9.26;

(Lc 22.28). Esse fato terá importantes repercus­

Lc 4.24; 6.23; 11.47-51; 13.33,34; At 7.52). Em

sões em nossa leitura da ligação entre a cru­

Lucas, o profeta Jesus atrai oposição principal­

cificação de Jesus e os discípulos, tema a que

mente por se preocupar com um tipo de justiça

retornaremos em seguida.

que colidia com aquela praticada pela liderança religiosa e, ao mesmo tempo, por estar aberto aos

6.2

“Era necessário que o Filho do homem

sofresse”. É verdade que Lucas herdou de Mar­

enjeitados da sociedade mediante a prática da co­

cos a ênfase sobre a necessidade da Paixão de

munhão ã mesa

. No Evangelho de Lucas,

Jesus (e.g., Mc 8.31). Mas, em Lucas, Jesus re­

os principais adversários de Jesus parecem ser

vela, no que diz respeito à cruz, uma determina­

os líderes religiosos de Jerusalém, e entre eles os

ção sem correspondência nos Sinótícos. Ele não

(K

a r r is )

principais sacerdotes são destacados e recebem

apenas “manifestou o firme propósito de ir para

especial atenção. Em contraste com sua malevo­

Jerusalém” (Lc 9.51), lugar de rejeição e morte

lência, vê-se uma hderança política relativamente

(Lc 18.31,32), mas também no início da Paixão

benigna. Em cada um dos Evangelhos canônicos,

revela uma surpreendente presciência acerca dos

descobrimos que a principal parcela de culpa pela

detalhes de sua traição, prisão e morte. Mais que

morte de Jesus é atribuída aos judeus, especial­

nos outros Sinótícos, aqui Jesus está no controle

mente aos líderes judaicos, não aos romanos.

dos acontecimentos que envolvem sua Paixão.

Isso fica especialmente claro no Evangelho de

Quando Jesus prediz seu sofrimento e rejei­

Lucas, em que a inocência de Jesus é três vezes

ção, ele ressalta, usando a linguagem da história

declarada por Pilatos e confirmada por Herodes

da salvação [dei], que eles são necessários. A ca­

(Lc 23.4,14,15,22).

racterização prossegue mesmo depois do relato

0 tema recorrente do conflito, encontrado em

da Paixão, para demonstrar que o Jesus crucifica­

Lucas, não se limita, porém, à interação de Jesus

do podia ser o Messias de Deus: “Acaso o Cristo

com os personagens humanos desse Evangelho.

não tinha de sofrer essas coisas e entrar na sua

A unção divina de Jesus para sua missão é situa­

glória?” (Lc 24.25-27). Expressões semelhantes

da no contexto imediato da tentação pelo Diabo

aparecem outras vezes em Lucas-Atos.

(Lc 3.21—4.13), e a narrativa seguinte demonstra

Faz muito tempo que os estudiosos de Lucas-

as contínuas dimensões cósmicas de oposição a

Atos têm consciência da seriedade da morte de

Jesus (e.g., Lc 13.10-17). Com o início do relato

Jesus para Lucas. Observando, porém, que o peso

da Paixão, o conflito sobrenatural desloca-se ou­

do interesse teológico de Lucas recai sobre a res­

tra vez para o centro do palco; Satanás entra em

surreição e a exaltação de Jesus, ficam intrigados

Judas (Lc 22.3; cf. 22.31), e a luta de Jesus no

com o significado da cruz. De que maneira a mor­

monte das Ohveiras, como ao longo de toda a sua

te de Jesus é crucial para o propósito redentor de

missão, é pintada em matizes cósmicos e escató-

Deus? Parece que, nesse problema teológico, Lu­

logicos (Lc 22.53; cf. peirasmos, “tentação” , em

cas não foi tão claro. Aliás, de acordo com muitos

LC4.13; 8.13; 22.28,40,46).

intérpretes, parece que, para a pergunta “Por que

Nesse cenário, é significativo que Lucas não oponha os discípulo a Jesus, como ocor­ re nos outros Sinóticos. Embora Judas de fato

Jesus teve de morrer?”, Lucas responde tão so­ mente: “Porque Deus quis!” 6.2.1

A morte de Jesus e a soteriologia luca­

traia Jesus, ele o faz sob o poder de Satanás

na. No passado, muitos comentaristas pressupu­

(Lc 22.3). De modo semelhante, a negação de

seram que Lucas atribuísse à morte de Jesus o

304

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

significado salvífico encontrado em outras passa­ gens do

NT.

6.2.2

Tanto que Lucas, à semelhança dos

outros autores do

nt

,

A morte de Jesus: martírio? A interpreta­

ção da morte de Jesus como martírio conquistou

afirma que “Jesus morreu

amplo apoio no século

xx

(v.

B eck) .

Essa ideia

pelos nossos pecados”. Pesquisas mais recentes,

explora as hgações entre a Paixão lucana e a li­

no entanto, contestam essa leitura, insistindo que

teratura de martírio do judaísmo recente. Temas

é preciso 1er Lucas isoladamente, não atrelado às

comuns incluem a) a presença de conflito sobre­

categorias teológicas da teologia pauhna da cruz.

natural e a ajuda divina, b) a inocência e a per­

Por conseguinte, os estudiosos têm ressaltado que

sistência da vítima e c) a descrição de como o

Lucas omite a declaração do resgate em sua pas­

martírio se deu para exemplo dos fiéis.

sagem paralela a Marcos 10.41-45 (Lc 22.24-27);

Embora essa interpretação atribua significado

que os sermões de Atos não estabelecem uma re-

positívo à morte de Jesus em Lucas e reconheça

iação direta entre a cruz e o perdão de pecados;

vários aspectos importantes da narratíva lucana,

que 0 material de Lucas-Atos tomado por emprés­

ela se viu objeto de um exame minucioso em

timo de Isaías 52.13— 53.12 deixa de mencionar

anos recentes. Em primeiro lugar, houve questío-

a importância vicária e propiciatória da morte do

namento de até onde Lucas previa que os discí­

Servo (e.g., Lc 22.37; At 8.32,33).

pulos seriam convidados a seguir os passos de

É claro que as palavras eucarísticas de Jesus

Jesus. Dessa maneira, o chamado a tomar a cruz

vLc 22.19,20) ancoram a salvação humana na

(Mc 8.34) tornou-se, em Lucas, um chamado a

morte de Jesus (v.

um estílo de vida caracterizado pela cruz (“cada

TJl t i m a C e ia ) .

Entretanto, ob­

servando que estão ausentes em algumas teste­

dia”, Lc 9.23), não uma referência à perseguição

munhas textuais, vários estudiosos afirmam que

iminente. Em segundo lugar, vários detalhes es­

elas não constavam do texto original de Lucas

senciais a histórias de mártires estão faltando

{cf. Bj, nota). Os que acreditam que essas pala­

em Lucas, especialmente os detalhes horrendos

vras fazem parte da narrativa original lucana fi­

sobre o modo de execução. Em Lucas, além do

cam assim mesmo impressionados pelo fato de,

mais, Jesus, ao contrário dos mártires da hteratu­

üinguisticamente, esses versículos soarem como

ra judaica, aparece como aquele que luta contra

aão lucanos. Assim como em Atos 20.28 (a outra

a perspectiva de morte (Lc 22.39-46). Em terceiro

única passagem no corpus lucano que claramente

lugar, como deixa claro o estudo continuado do

baseia a salvação humana na morte de Jesus),

contexto religioso do século i, os temas dos es­

parece que Lucas está repetindo terminologia an­

critos martirológicos não são exclusivos daquele

tiga, sem identificá-la com sua teologia.

corpus. Por isso, pode se pressupor que Lucas e

Conclusão semelhante se confirma nas passa­

a hteratura de martírio beberam de uma visão de

gens em que Lucas deixa transparente seu enten­

mundo comum. Por último, tornou-se claro que

dimento sobre o meio da salvação. Em Atos 2.33,

o conceito de Jesus como mártír não faz justíça

5.30.31 e 10.43, percebemos a preocupação de

à rica pintura lucana da Paixão de Jesus. Embo­

Lucas em mostrar que o meio da salvação é a

ra Jesus como mártir possa ser um dentre outros

exaltação de Jesus. Dessas três passagens. Atos

interesses de Lucas, está longe de ser um resumo

5.30.31 é de particular interesse, por dois moti­

da teologia lucana da morte de Jesus.

vos. Primeiro: é aqui que a lógica é mais clara.

6.3

Do Justo Sofredor para o Servo Sofredor.

Em consequência de sua exaltação Jesus é en­

Outros estudiosos de Lucas observaram os repe-

tronizado como Príncipe e Salvador, e nessas

tídos indícios da inocência de Jesus em Lucas 23

competências pode oferecer salvação. Segundo:

e os muitos paralelos entre Jesus e o Justo Sofre­

o texto ressalta outra vez a necessidade da morte

dor de Salmos e de Sabedoria de Salomão. Com

de Jesus para a história da salvação.

base nisso, entendem que Lucas apresenta uma

Está claro que, para Lucas, a morte de Jesus

interpretação da Paixão de Jesus como o sofri­

tem significado positivo, mas é igualmente claro

mento e a morte do Justo Sofredor de Deus que

que esse significado não está centrado numa in­

caminha para a morte, apesar de sua inocência,

terpretação da cruz como sacrifício vicário. Como,

mas é depois justificado por Deus. Esse enfoque

então, esse significado pode ser entendido?

capta 0 tema recorrente da inocência visto no

305

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

relato da Paixão, harmoniza-se com as “fórmulas

Em segundo lugar, a ênfase de Lucas no Servo

de contraste” existentes nas declarações de Atos

proporciona um arcabouço para extrair as impli­

(e.g., “ Vós 0 matastes, crucificando-o pelas mãos

cações universais da missão de Jesus. 0 fato de

de ímpios; e Deus o ressuscitou” , At 2.23,24) e

que ele seria “luz para revelação aos gentios” foi

demonstra na vida de Jesus a maneira em que

predito por Simeão (Lc 2.32; Is 49.6), por isso

Deus reverte a injustiça, tema importante em

vale ressaltar que, por ocasião da morte de Jesus,

Lucas-Atos.

um gentío o aclamou Justo. Entretanto, a morte

mesmo tempo, está claro que essa inter­

de Jesus não é importante apenas para os gentios,

pretação também é insuficiente para chegar ao

mas também para os judeus (e.g., Lc 23.34,48) e

Ao

cerne do entendimento de Lucas sobre a morte

os criminosos (Lc 23.43). Ou seja, na morte de

de Jesus, pois não explica a necessidade divina

Jesus, percebe-se o auge de uma vida vivida a

da cruz da perspectiva da história da salvação.

favor de outros, incluindo-se os de fora.

Um modelo interpretativo mais bem-sucedido

Em terceiro lugar, ao descrever a carreira de

concentra-se no Servo Sofredor de Isaías, que é

Jesus (especialmente sua morte e ressurreição)

uma personificação mais clara do Justo Sofredor

como a do Servo Sofredor, Lucas demonstra de

do

modo definitivo como ele entende o caminho da

AT ( G r e e n ,

1990).

Lucas está mais interessado no Servo Sofredor,

salvação. Na vida de Isabel e de Zacarias, Lucas

e isso é visível no relato da Paixão e em outras

revela que a salvação divina vem por um padrão

passagens de sua obra, escrita em duas partes. No

de reversão (Lc 1). Para Lucas, a chegada do rei­

relato da Paixão, Jesus cita Isaías 53.12 como alu­

no de Deus assinala uma transposição de papéis,

são geral a seu sofrimento e morte, comunicando

quando Deus, que é fiel, justifica quem é fiel. A

assim que, em sua Paixão, cumpre o papel do Ser­

carreira de Jesus ilustra esse tema de reversão,

vo Sofredor. Jesus é declarado inocente repetidas

pois ele é o Servo inocente que sofre até a morte,

vezes e aclamado “justo” pelo centurião, alusão a

mas é ressuscitado e nomeado Príncipe e Salva­

Isaías 53.11 (cf. a ligação de dikaios [“justo” ] com

dor. Ao pôr de lado os planos de autoglorificação

o sofrimento de Jesus em At 3.13,14, em que se

e adotar obedientemente o papel do Servo (cf.

descreve a Paixão de Jesus com palavras empres­

Lc 12.37; 22.25-27), Jesus personifica a retidão e

tadas de Is 52.13—53.12). Jesus recusa-se a falar

a humilhação do Servo. A cruz é a consequência,

em defesa própria (Lc 23.9; Is 53.7). E, ao ser

mas Deus reverte essa humilhação, justificando

zombado, é chamado “escolhido”, designação do

seu Servo, exaltando-o e, assim, abrindo o cami­

Servo de Deus (Lc 23.35; Is 42.1). Fora do relato

nho do arrependimento e do perdão. Para Lucas,

da Pabcão, aparecem várias referências ao papel

esse é o caminho da salvação e o caminho do

de Jesus como Servo, sendo a mais explícita a ci­

discipulado.

tação de Isaías 53.7,8 em Atos 8.32,33 e a referên­ cia profética à missão de Jesus por Simeão com

7. A morte de Jesus no Evangelho de João

palavras emprestadas de Isaías 49.6 (Lc 2.32).

Até alguns anos atrás, os estudiosos do quarto

Para Lucas, são três os fatores importantes na

Evangelho minimizavam a importância da Paixão

identificação da Paixão de Jesus com a do Servo

para João ao apresentar Jesus. Alguns intérpretes

Sofredor. Em primeiro lugar, mostra que Lucas

chegavam a postular um abismo teológico entre

pode realçar a necessidade histórico-salvífica da

os capítulos 17 e 18 de João, sugerindo que o jul­

cruz e dirigir a atenção para a exaltação ou jus­

gamento e a execução de Jesus não se coaduna­

tificação de Jesus como acontecimento salvífico.

vam com a imagem do Jesus glorioso encontrada

A descrição do Servo Sofredor de Isaías reforça

em outras partes desse Evangelho. Mas a ideia

esses temas gêmeos recorrentes, particularmente

começou a cair em descrédito entre os estudiosos

Isaías 53.11, passagem na qual, após seu sofri­

de João, pois as pesquisas vêm mostrando nume­

mento, o Justo de Deus justificará a muitos. Ou

rosas alusões ã Paixão nas seções anteriores do

seja, a caracterização lucana de Jesus como o Ser­

Evangelho (cf. Jo 2.12-22; 3.14), além do fato de

vo revela a necessidade de sua morte e a conse­

que oito capítulos do Evangelho diretamente liga­

quência salvífica de sua justificação.

dos à Paixão (Jo 12— 19) começam a demonstrar

306

C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s

de novo a integração da cruz com a totalidade da

mas também nas claras tentativas de, no relato da

cristologia de João. Analisaremos o significado da

Paixão, João descrever a morte de Jesus como sa­

morte de Jesus para João, primeiro mediante a

crifício de Páscoa. Nesse aspecto, é possível assi­

menção de dois temas secundários — a soberania

nalar os seguintes detalhes: coincidência da hora

de Jesus no relato da Paixão e a morte de Jesus

da morte de Jesus com a hora do sacrifício pascal

como sacrificio — e depois mediante a observa­

(Jo 19.14; cf. 18.28); o hissopo e uma vasilha pre­

ção de que a cruz se relaciona com a peregrina­

sentes na crucificação (Jo 19.29; cf. Êx 12.22);

ção do Filho de Deus, da encarnação ã exaltação.

ênfase no sangue que escorre do lado de Jesus

7.1 Jesus, o Rei soberano. Quando o leitor

(Jo 19.34; Êx 12.13); os soldados não quebram

se afasta das versões sinóticas e se aproxima do

as pernas de Jesus (Jo 19.31-37; Êx 12.46). Essa

relato joanino do sofrimento e da morte de Jesus,

ênfase na Páscoa provavelmente tem relação com

fica imediatamente impressionado com a majes­

o discurso expandido sobre Jesus como o Pão da

tade de Jesus em João. Muito antes de ser traído,

Vida (Jo 6.25-59). Quem participa da carne e do

ele já sabe quem o fará (Jo 6.70) e põe em anda­

sangue de Jesus terá essa vida.

mento 0 ato de traição (Jo 13.27). Na cena da pri­

De modo semelhante, João 3.16 vincula a en­

são, não é Judas nem o grupo que vem prendê-lo

carnação do Filho de Deus à oferta de vida. 0

quem está no controle da situação, mas Jesus,

linguajar característico da adunação, encontrado

revelando-se como o “ Sou eu” [egõ eimi] e ne­

de maneira mais disseminada em Paulo, também

gociando a soltura dos discípulos (Jo 18.1-11).

tem espaço na narrativa joanina. Assim, João

Na audiência perante Pilatos, ele é apresentado

emprega hyper (“pela vida de”) para ressaltar

como rei e até assume o papel de juiz (Jo 18.28—

a natureza redentora da cruz (Jo 6.51; 10.11,15;

19.16). Sem precisar de nenhuma ajuda, car­

11.50-52; 18.14). Por fim, João entende o lava-

rega ele mesmo sua cruz (Jo 19.17). Na cruz,

pés durante a refeição final de Jesus com os dis­

revela preocupação com a mãe (Jo 19.25-27)

cípulos não apenas como uma demonstração de

e, antes que os soldados possam lhe desfe­

comportamento exemplar, mas também como

rir o golpe de misericórdia, quebrando-lhe as

símbolo da morte salvífica de Jesus (Jo 13.8-11).

pernas para lhe acelerar a morte, ele morre por

7.3

vontade própria (Jo 19.20-33).

Crucificação e exaltação. Da perspectiva

da integração da morte de Jesus com a cristo­

Dessa maneira, João demonstra a verdade

logia joanina como um todo, o tema recorren­

das palavras de Jesus: “Dou a minha vida para

te mais disseminado é o de “levantamento” ou

retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou

“exaltação”. Somos repetidas vezes informados

espontaneamente” (Jo 10.17,18). Fica claro que

que esse é o destino de Jesus, o Filho do homem

João está interessado em relacionar a Paixão de

(Jo 3.14,15; 8.28; 12.32,33). Esse “ ser levantado”

Jesus com a representação mais ampla que faz

[hypsoõ, Jo 3.14; 8.28; 12.32) sem dúvida tem du­

da gloriosa peregrinação de Jesus na terra (cf.

plo sentido. De um lado, no esquema de João,

Jo 1.14b) como ato de autoentrega.

está associado ã terminologia da glorificação. De

7.2 A morte de Jesus: vida para o mundo.

outro, em João 8.28 lemos que os judeus serão

Embora o sacrifício na cruz não seja um elemento

os agentes mediante os quais Jesus será levanta­

estrutural do pensamento de João sobre a morte

do, e em João 12.32,33 o Evangelista observa que

de Jesus, ainda assim é de importância para seu

“levantar” é uma metáfora que designa a maneira

Evangelho. Esse tema recorrente aparece inicial­

em que Jesus será executado (cf. Jo 18.32).

mente em João 1.29,36, em que o perdão de pe­

João, portanto, percebe algumas ligações ín­

cados é associado ao título “ Cordeiro de Deus”

timas entre a crucificação de Jesus e sua exalta­

para Jesus. Embora “ Cordeiro de Deus” também

ção, e isso sugere que a morte de Jesus deve ser

possa ter outras nuanças, pelo menos é associa­

situada no retrato joanino mais abrangente da

do com 0 mundo teológico do cordeiro da Pás­

carreira terrena de Jesus. Para o Evangehsta, a

coa. Isso é sugerido não apenas pela teologia da

melhor maneira de entender a vida do Filho de

adunação (aunação, adunamento; obra, sacrifício

Deus é enxergá-la como uma jornada: ele vem de sua condição preexistente nos céus, habita

ou morte reconciliatória) existente em João 1.29,

307

C r is t o , m o r t e d e i : E v a n g e l h o s

entre a humanidade e então retorna aos céus.

Westminster, 1982. ■ H e n g e l , M. The atonement:

Aquele que desceu da glória tem de ascender à

the origins of the doctrine in the New Testament.

glória (e.g., Jo 3.13,31; 6.38; 8.23; 13.1-3).

Philadelphia: Fortress, 1981. ■______ . Crucifixion

Como estaria a Paixão de Jesus relacionada

in the ancient world and the folly of the message

com esse movimento cristológico? É o meio me­

o f the cross. London:

diante o qual ele retorna para o Pai. Ou seja, João

Chronological aspects o f the life o f Christ. Grand

scm ,

1977. ■ H o e h n e r ,

H.

W.

supera o escândalo da cruz, interpretando-o da

Rapids: Zondervan, 1977. ■ J u e l , D. Messiah and

perspectiva da exaltação de Jesus. Essa leitura é

temple: the trial of Jesus in the Gospel of Mark.

estimulada pelo fato de que, nas passagens em

Missoula: Scholars, 1977.

que é mais clara a referência ao “levantamento”

J.

de Jesus (Jo 3.14; 8.28; 12.32-34), João desenvol­

rative as literature. New York: Paulist, 1985. (n.)

( sbld s,

31.) ■ K a r r i s , R.

Luke: artist and theologian: Luke’s Passion nar­

ve 0 tema mais amplo da jornada do Filho desde

■ K

Deus e retornando para o próprio Deus. Assim, a

Ed. rev. P. Moorey, P. R. S. Atlanta: John Knox,

K.

enyon,

M .

The Bible and recent archaeology.

cruz é interpretada pelo tema recorrente da jor­

1987. •

nada como a forma pela qual o Filho do homem

Jesus. In:

deixou 0 mundo de baixo para retornar para o

Spirit. Collegeville: Liturgical Press, 1979. p. 221-

mundo de cima

30. ■ L i n d a r s , B. The Passion in the fourth Gospel.

(N

ic h o l s o n ) .

Mais importante ainda, a morte de Jesus, en­

In:

K

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urken,

J e rve ll, J. & M

D .,

org. Sin, salvation, and the

W. A., orgs. God’s Christ

eeks,

tendida como levantamento (Jo 3.14), aparece

and his people: studies in honor of Nils Alstrup

como a manifestação máxima do amor, o presen­

Dahl. Oslo: Universitetsferlaget, 1977. p. 71-86.

te de Deus (Jo 3.16). Aliás, o amor de Jesus por

■ L

seus seguidores atinge o ápice em seu serviço e

chungen zur urchristhchen Verkündigung vom

morte sacrificiais (Jo 13.1; 15.13).

Sühntod Jesu Christi. 2. ed. Göttingen: Vande-

Ver também S ervo

de

d /g t iv e ;

R

P

Javé; Ú

: B u r ia l

Jesu s,

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Sekeles,

man from Giv’at ha-Mivtar: a reappraisal. V.

Deixando de lado, por enquanto, a variedade

E. The crucifled

de materiais tradicionais relacionados ã morte de Jesus que Paulo incorporou em sua correspon­

ie j,

35, p. 22-7, 1985.

dência, é possível dar o exemplo de ICoríntios. J. B.

G

Cerca de 25 anos após a crucificação de Jesus,

reen

Paulo escreve sobre o escândalo central e sobre a C r is t o ,

m o r te d e ii:

P aulo

loucura da cruz (IC o 1.18,23), o que insinuava as

A morte de Cristo, em geral mencionada com sua

duras realidades que seriam encontradas na ativi­

ocupa posição central na represen­

dade missionária inicial. Historicamente, a execu­

tação paulina do evangelho. Mediante fórmulas

ção de Jesus numa cruz fez com que sua morte

RESSURREIÇÃO,

confessionais e tradições hínicas, Paulo reconhe­

fosse vista como a de um criminoso comum, hu­

ce, emprega e desenvolve o significado redentor

milhado no meio de seu povo — aliás, até mesmo

dessa morte. Provavelmente, ele está familiariza­

amaldiçoado por Deus (cf. Dt 21.22,23). Como

do com a história do sofrimento e da morte de

esse Jesus poderia ser o “Ungido” (i.e., o Mes­

Jesus e relembra a história a seus leitores. Assim,

sias)? A despeito desse problema, Paulo afirma

desenvolve a importância da Pabcão de Cristo

que, enquanto se encontrava entre os coríntios,

em contextos relacionados a todos os aspectos

havia decidido “ nada saber [...] a não ser Jesus

de sua mensagem apostólica, especialmente sua

Cristo, e este, crucificado” (ICo 2.2). Não é exa­

soteriologia,

Este

gero dizer que a igreja primitiva tinha de resolver

verbete, embora não de maneira exclusiva, trata

a questão da cruz de Cristo justamente por ser

c r is t o l o g i a ,

e s c a t o l o g ia

e

é t ic a .

dessa atribuição, feita por Paulo, de significado

esse Jesus crucificado e morto que estava sendo

adunatório ao sofrimento e morte de Cristo.

proclamado como o Messias

(G

reen,

p. 157-74).

1. A centralidade da morte de Cristo

Como teólogo da cruz, Paulo desempenhou pa­

2. A importância da cruz: pluralidade de me­

pel fundamental na exploração do significado do

táforas (figuras)

C r is t o

3. A morte de Cristo e o propósito de Deus

crucificado.

É evidente que Paulo fez uso das tradições

4. A morte de Cristo e a condição humana

cristãs preexistentes acerca da Paixão de Jesus,

5. 0 Messias crucificado e a vida cristã

sendo esse material então incorporados em sua correspondência (cf., e.g., as referências caracte­

1. A centralidade da morte de Cristo

rísticas ao processo de transmissão da tradição,

Para Paulo, a cruz de Cristo era fundamental à re­

ICo 11.23-25; 15.3-5; cf.

flexão e à vida cristãs, especialmente como meio

também evidente que ele exercitou a própria cria­

de salvação proporcionado por Deus e instrumen­

tividade ao modelar a tradição, o que não é de

to e paradigma da nova vida em Cristo.

K e r te lg e ,

p. 116-24). É

surpreender, pois uma das motivações básicas

É de grande importância o fato de as cartas

para sua resoluta oposição ao movimento cristão

de Paulo, que são os mais antigos escritos cris­

antes de seu encontro com o Senhor ressurreto

tãos de que se tem notícia, já documentarem a

deve ter sido a contradição do querigma cristão,

relevância central da cruz de Cristo. A mesma

pois apresentava a exaltação divina do “amaldi­

importância tem esse fato para a nossa com­

çoado”. Quando Paulo abraçou “o evangelho de

1 1.6-17), isso implicou uma conversão

preensão do cristianismo primitivo, pois oferece

Cristo”

indícios de quão rapidamente os seguidores de

teológica que o capacitou a ir muito além da in­

(G

Jesus foram alertados para o problema teológi­

terpretação negativa que inicialmente fez da cruz.

co da crucificação. Sua importância também se

Também sugere uma das influências por trás de

reflete na compreensão do próprio Paulo, pois

sua posterior reflexão sobre a cruz. Vale ressaltar

revela a intensidade com que ele se debateu com

que Paulo resolveu a aparente contradição de um

a cruz e quanto a prezou, demonstrando que seu

Cristo crucificado não negando que ela causasse

pensamento estava em harmonia com a reflexão

perplexidade, mas mostrando que Deus justificou

cristã entendida em sentido mais amplo nos anos

Cristo ao dar à sua morte aparentemente infame

iniciais do movimento de Jesus.

um sentido positivo e inesperado.

309

C r is t o , m o r t e d e ü : P a u l o

Em contraposição, a experiência apostólica de Paulo ressaltou até que ponto o

s o f r im e n t o

e

15.3: “Cristo morreu pelos nossos pecados” (v. tb. Rm 5.6,8; 14.9; ICo 8.11; 2Co 5.14,15; G1 2.21;

a impotência faziam parte inseparável da vida

ITs 5.10). A expressão de Paulo “ Cristo morreu

cristã, a despeito da ressurreição de Jesus. Pela

por nós” é, de acordo com M. Hengel, “a declara­

perspectiva paulina, a fraqueza apostólica encon­

ção confessional mais frequente e mais importan­

trou significado no sofrimento de Cristo. Assim,

te das cartas paulinas e ao mesmo tempo de toda

depois de lembrar aos coríntios que entre eles o

a tradição cristã primitiva de língua grega que

apóstolo havia buscado apenas apresentar Cristo,

está por trás dessas epístolas”

(H

eng el,

p. 37).

e este crucificado, Paulo chama a atenção deles

Essa tradição que lhe serve de base é impor­

para o comportamento que teve enquanto viveu

tante para mostrar a intensidade com que Paulo

entre eles: "Estíve convosco em fraqueza, em te­

se ahnha com a fé comum da igreja primitiva. Ou

mor e em grande tremor” (ICo 2.2,3; cf. Cl 1.24).

seja, suas cartas empregam o vocabulário comum

Consequentemente, vemos que uma inspiração

das comunidades cristãs; suas inovações em ex­

adicional para o trabalho incessante de Paulo

pressões teológicas baseiam-se no ahcerce da fé

para traduzir o significado da cruz era a vida —

compartilhada. Mais especificamente, diante do

sua e da igreja — em Cristo, a qual não desco­

antagonismo como o que Paulo enfrentou em Co­

nhecia fraqueza, oposição ou sofrimento. Assim,

rinto e na Galácia, a repetição de materiais de tra­

para Paulo, a importância da cruz está ahcerçada

dição relacionados com a cruz serve para indicar

em seu encontro com o Senhor ressuscitado e nas

como 0 apóstolo legitimou sua autoridade diante

exigências de seu ministério apostólico.

da oposição (v.

1.1 A cruz e o querigma. Como a centrahdade

1.3

a d v e r s á r io s ) .

A história de Jesus. Com isso não se

da cruz se manifesta para Paulo? Tal centrahdade

quer dizer que Paulo fosse devedor apenas à

está implícita nas expressões que emprega para

tradição formular que partilhava com o cristia­

denotar o querigma. Assim, em ICoríntios 1.18,

nismo primitivo. Há também indicações de que

“a palavra da cruz” é, na prática, sinônimo de

ele conhecia a história do sofrimento e da morte

Em 2Coríntios, 5.19, a “mensagem

de Jesus, que lhe teria sido transmitida. Tal refe­

da reconciliação” é empregada de maneira seme­

rência talvez esteja por trás de Gálatas 3.1, em

lhante, em um contexto em que o acontecimento

que o linguajar ( “ Não foi diante de vós que Jesus

salvífico é apresentado no seguinte paralelismo:

Cristo foi exposto como crucificado”) sugere uma

“Ele morreu por todos, para que os que vivem

característica visual de sua proclamação, abrindo

não vivam mais para si mesmos, mas para aquele

a possibihdade de que sua pregação missionária

que por eles morreu e ressuscitou” (cf. Fp 2.16:

tenha feito uso de uma narrativa da Paixão. De

“a palavra da vida”; At 13.26: “a palavra desta

modo semelhante, a tradição da Última Ceia, “ na

salvação” ; K e r t e l g e , p. 124-7).

noite em que foi traído” (IC o 11.23-25), pres­



ev an g e lh o ”.

1.2 Expressões formulares. Uma leitura cui­

supõe um conhecimento compartilhado de um

dadosa das cartas paulinas também revela duas

contexto narrativo para a tradição eucarística (v.

expressões estereotípicas para a importância

IJltima Ceia). Também são sugestivos os temas

adunatória da cruz

A primeira

com os quais Paulo descreve o próprio sofrimento

fala da “entrega” de Jesus para a salvação da hu­

em 2Coríntios. Por exemplo, em 2Coríntios 6.3-10

( H eng el,

p.

3 4 - 9 ).

manidade, seja como ato divino (e.g., Rm

4 .2 5 :

ele relaciona os sofrimentos, a graça e os aspectos

“Ele foi entregue à morte por causa das nossas

paradoxais de seu serviço de um modo que ecoa

transgressões” ; Rm

a história da Paixão de Cristo. Então, não dife­

8 .3 2 ;

“Aquele que não pou­

pou nem o próprio Filho, mas, pelo contrário, o

rentemente do que se encontra no Evangelho de

entregou por todos nós...”), seja como autoentre­

Marcos, Paulo tem um entendimento próprio do

ga (e.g., G1 1 .4 ; “ [Jesus] se entregou a si mesmo

“caminho da cruz” , o caminho de sofrimento por

pelos nossos pecados”; G1

se entregou

meio do qual alguém se identiflca com o sofri­

por mim”). A segunda expressão, a “fórmula da

mento de Cristo. Por fim, embora pauhna apenas

morte”, é encontrada várias vezes; por exemplo,

no sentido amplo da palavra, a passagem de I T i­

na celebrada tradição representada em ICoríntios

móteo 6.13 alude ao julgamento

2 .2 0 : “ ...

310

de

Jesus perante

C rísto , morte de ii ; Pa ulo

Pôncio Pilatos de uma forma que pressupõe pelo

e sangue, Cristo; “Foi da vontade de Deus que

menos um conhecimento rudimentar do relato da

[...], havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz,

Paixão. Nesses e em outros textos, reconhecemos

por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas

que a teologia de Paulo tem qualidade narrativa,

as coisas” (Cl 1.19,20; cf. Cl 1.14; 2.13,14; 3.13).

ou seja, ele entende a experiência cristã dentro do

Desse modo, Paulo se contrapõe a um estilo de

quadro mais amplo da atividade divina que vai

vida vohado a aplacar os poderes estelares, como

desde a formação do povo de Deus até a parusia,

se fossem o meio de os seres humanos terem

e, como destaque dentro dessa narrativa maior,

acesso a Deus, e, contra uma espiritualização

encontra-se a narrativa da crucificação de Jesus.

algo gnóstica do caminho do discipulado, afirma

Embora Paulo revele pouquíssimo interesse pelos

de modo apaixonado a importância do comporta­

detalhes históricos da Paixão de Jesus como fato

mento ético neste mundo material.

histórico em si, parece que tinha consciência de­

Em outros momentos, Paulo apresenta a

les e estava interessado em seu significado para a

morte de Jesus como o apogeu de sua vida. Em

fé e a vida cristãs (v.

Filipenses 2.6-11, parece acrescentar a um hino

1.4

Jesus e P a u l o ) .

O padrão de Cristo. Além do mais, isso antigo de louvor a Cristo as palavras “e morte de cruz”. Aqui a vida de Jesus como o Filho obe­

aponta para a intensidade com que Paulo está pronto a apresentar a cruz de Cristo como a base

diente de Deus está no centro do palco, e essa

da fé e da vida cristãs. De fato, a referência de

obediência é vista mais profundamente quando

Paulo ã tradição da Última Ceia é situada no con­

ele se dispõe a aceitar a rejeição, o sofrimento

texto de sua anáhse da refeição comunitária, a

humano e uma morte horripilante por crucifica­

fim de atacar o problema das divisões em Corinto

ção. Desse modo, Paulo sustenta que a morte de

(ICo 11.17-34; cf. ICo 1.10-17). Aqui, um lem­

Cristo “é a mais completa expressão de [sua] vida

brete da autoentrega sacrificial de Jesus é a base

e estabelece [para nós] o padrão de uma vida de

para o chamado paulino a uma vida modelada

amor e obediência”

segundo o caminho da Paixão de Jesus e voltada

de várias outras maneiras, Paulo mostra que o

para o serviço, sendo cruciforme (v.

pensamento e a vida cristãos estão ahcerçados no

Ú lt im a C eia ) .

Em Corinto, assim como em Colossos, Pau­

( T am ba sco ,

p. 72). Dessas e

acontecimento básico da cruz de Cristo.

lo reflete em boa parte do texto o significado do Cristo crucificado, de modo que se opõe a ideias

2. A importância da cruz: pluralidade de

concorrentes. No caso de sua correspondência

metáforas (figuras)

com 03 coríntios, a palavra da cruz opõe-se a

Assim como a morte de Jesus encontra-se no

ideias desatinadas sobre a natureza da existência

alicerce da teologia de Paulo, da mesma forma

presente, como se fosse o tempo de triunfalismo

parece que Paulo jamais se cansa de acrescentar

após a consumação da nova era. Contra a “ sabe­

novas figuras de hnguagem a seu vocabulário in­

doria do mundo” e a tendência de seu púbhco

terpretativo, como meio de esclarecer a importân­

greco-romano em Corinto de valorizar a posição

cia dessa morte.

social, Paulo postula a escandalosa cruz de Cristo

É verdade que Paulo está muito mais interes­

como o “poder de Deus [...] para nós, que es­

sado em estabelecer a importância da morte de

tamos sendo salvos”. Normas sociais, filosóficas

Cristo que nas circunstâncias históricas, e comu­

ou mesmo soteriológicas são arrancadas quando

nica essa importância acima de tudo do ponto de

Paulo põe em foco “as coisas fracas do mundo” ,

vista de seus benefícios para a humanidade. Em

“as coisas insignificantes do mundo, as despre­

reflexão teológica posterior, esses benefícios fo­

zadas” , ou seja; “Cristo crucificado” e a comu­

ram desenvolvidos com a nomenclatura de “adu­

nidade que busca estar em torno desse Cristo

nação” (adunamento, aunação; obra, sacrifício ou morte reconcihatória), e isso representa dois

(ICo 1.18-31). Para os colossenses, Paulo fundamenta sua

problemas para o intérprete moderno.

apresentação do Cristo cósmico — que com Deus

Primeiro; a palavra adunação pode compor­

reconciliou o cosmo, incluindo-se os poderes es­

tar várias definições. De um lado, muitos hoje

telares — na vida e na morte de alguém de carne

remontam o sentido do termo a suas origens

311

C risto , morte de i i : Paulo

latinas, conforme o uso por teólogos medievais

A maior parte deste verbete é dedicada ao

— ad-una-mentum — e assim o entendem como

exame da teologia pauhna da aunação. Antes,

sinônimo de reconciliação (e.g.,

Essa

porém, é importante chegar a um acordo sobre

associação estabelece, por consequência, uma ci­

a realidade mais básica de que Paulo não possui

são entre adunação e noções de expiação, propi­

um meio exclusivo de deixar claro o significado

ciação e outras ideias relacionadas à substituição

da cruz. Embora o Cristo crucificado esteja no

ou satisfação. iVlais especificamente, a impor­

centro de sua teologia, a verdade central per­

tância adunatória da morte de Jesus está assim

mite múltiplas interpretações. A verdade é que

F it zm ye r ) .

dissociada de qualquer consideração da parte de

Paulo é capaz de fazer uma apresentação da im­

Paulo a respeito do meio pelo qual se alcança a

portância da morte de Jesus sob medida para as

“a-una-ção” ou reconciliação.

necessidades de seu púbhco, em circunstâncias

Depois de séculos de discussão, hoje é difícil ler

particulares e contextuahzadas (v.

D river ; B o ff ,

Paulo sem o revestimento de uma ou mais das de­

p. 78-84;

nominadas teorias clássicas da adunação (as cha­

phcações para a contínua missão transcultural da

madas teorias da expiação) (v.

p. 37-67),

igreja, pois sugere que os intérpretes, ao extrair

especialmente a “teoria dramática” , que apre­

0 significado da crucificação de Jesus, devem

D river ,

CousAR,

p. 82-7). Esse fato tem sérias im­

senta a obra salvadora de Cristo como um dra­

continuamente buscar metáforas que falem a de­

ma cósmico de conflito e vitória; a “teoria da

terminada cultura e/ou circunstância. Abertos a

satisfação”, que apresenta a cruz de Cristo como

criar maneiras específicas e contextuahzadas de

meio pelo qual se ehmina a barreira entre Deus

comunicar o significado da morte de Cristo, os

e a humanidade, de sorte que por meio da morte

intérpretes contemporâneos que desejam ser fiéis

de Cristo se dá “satisfação” a Deus; a “teoria da

a Paulo serão guiados pelo testemunho apostólico

influência moral” , que se concentra na cruz como

da cruz; estarão fundamentados nas Escrituras,

demonstração, para a humanidade, do amor de

conhecendo a forma em que nelas se baseia sua

Deus, que é sem limites e deve ser imitado. A

tarefa hermenêutica, mostrando-se sensíveis às

ascendência da “teoria da satisfação”, com o fre­

imagens e metáforas que, no mundo contemporâ­

quente corolário de satisfação penal ou forense

neo, transmitem sentido redentor; demonstrarão

(i.e., uma vez que os seres humanos foram consi­

estar vitalmente interessados na relação entre es­

derados culpados diante do juiz, que é Deus, eles

ses três (v.

G reen & B ak er ) .

têm de ser punidos, mas Cristo é levado a sofrer o

Das dezenas de metáforas que Paulo emprega

castigo) como forma de entender a teologia pauli­

para expor os benefícios da morte de Cristo, aqui

na da cruz tem se revelado especialmente proble­

só será possível mencionar algumas delas. São

mática no debate teológico contemporâneo. Para

convenientemente apresentadas em dois textos

alguns, parece que Paulo apresenta Deus como

paulinos: 2Coríntios 5.14—6.12 e Gálatas 3.10-14.

um sádico que castiga e Jesus como o masoquista

Um exame da apresentação das consequências

que suporta o castigo com gosto. Qualquer tenta­

da morte de Jesus em 2Coríntios 5.14—6.12 res­

tiva de separar os interesses e a atividade de Deus

salta o grau de sobreposição das inúmeras cate­

e Cristo, como se a cruz fosse a manifestação da

gorias com que Paulo expõe o significado da cruz.

ira de Deus, mas da misericórdia de Cristo, seria

Embora a reconcihação esteja no centro da passa­

problemática na lógica paulina (v. abaixo). E, de

gem (2Co 5.18,19,20), outras categorias também

fato, é bem improvável que os que formularam a

estão em destaque: substituição vicária ( “por to­

interpretação substitutiva da morte de Cristo re­

dos” , 2Co 5.14,15), representação (2Co 5.14,21)

conhecessem essa caracterização moderna de seu

ou troca (expressão usada por

ponto de vista, mesmo que essa teoria clássica da

1978), sacrifício (2Co 5.21; cf.

adunação tenha se revelado presa fácil dessa lei­

JUSTIFICAÇÃO

tura problemática em alguns hinos e na interpre­

(2Co 5.19) e nova criação (2Co 5.16,17; v.

tação popular (v. a proveitosa anáhse em

NOVA criação ) .

B eker ,

H outs;

p. 208-11; sobre o uso do termo "aduna­

ção” , V. tb.

mor te d e cristo

I

e

312

1984,

p. 42-3),

(implicitamente, 2Co 5.19,21), perdão c r iaç ã o ,

Além do mais, a cruz e a ressurrei­

ção de Cristo aparecem lado a lado como aconte­ cimentos salvíficos (2Co 5.15).

iii).

H oo ker ,

D unn,

C risto , morte de ii : Paulo

Reconciliação é um termo que não se encon­

( W r ig h t ,

p. 137-56; cf. em

H oo ker , o

conceito de

tra com frequência no corpus paulino. Além da

troca); justificação (G1 3.11); redenção (G1 3.13),

passagem citada, aparece em Romanos 5.10,11,

evocando o Êxodo e temas exílicos (cf. o corolário

em referência à reconciliação da humanidade

com a adoção, G13.26-29); substituição (“por nós”,

com Deus; em Colossenses 1.20, em referência

G13.13, Axc); sacrifício (imphcitamente, G1 3.13; cf.

à reconciliação do cosmo com Deus; em Efésios

W righ t ,

2.16, em referência à reconciliação de judeus e

0 triunfo sobre os poderes.

p. 153); a promessa do Espírito (G1 3.14);

gentios com Deus e uns com os outros. Quer con­

0 último tema recorrente surge de forma

sideremos Efésios paulina, quer não, nesse pon­

semelhante em Efésios 2.14,15, em que a Lei

to sua mensagem é claramente pauhna, pois em

aparece como barreira de divisão entre judeus e

Paulo essa noção de relacionamento restaurado

gentios. Ah a morte de Cristo destrói a “parede de

abrange sistematicamente a presença dinâmica

separação”. Em Gálatas, contudo, a Lei é caracte­

do amor divino para restaurar o relacionamento

rizada mais como uma força, como os espíritos

divino-humano e estender um chamado e uma

elementares deste mundo, mantendo cativo o

capacitação aos seres humanos, de modo que de­

povo judeu (G1 4.1,3). Numa abordagem deter­

monstrem uns aos outros a mesma restauração

minada pelo contexto, Paulo insiste que a morte

social. Ademais, especialmente em 2Coríntios e

de Cristo triunfou não mediante a negação da Lei,

Colossenses, a obra da reconciliação é estendida

mas ao demonstrar sua vahdade e executar a bên­

a toda a criação.

ção da ahança.

Em 2Coríntios 5, Paulo escolhe os termos e a

Interpretadas conjuntamente, a mensagem da

lógica de raciocínio sob medida para o contex­

cruz de 2Coríntios e de Gálatas (e de outras pas­

to em questão, pois aqui não apenas precisa se

sagens do corpus pauhno) suscita duas questões

contrapor ã vanglória triunfalista de seus adver­

que exigem elucidação mais clara. De um lado,

sários, mas também deseja superar a desarmonia

é preciso dar atenção à importância apocalíptica

entre ele próprio e seus “filhos” de Corinto. An­

da cruz: no horizonte apocalíptico, a cruz tem

corando a mensagem da reconcihação na morie

repercussões cósmicas. Essa é a importância do

sacrificial de Jesus e afirmando que essa recon­

emprego de expressões como “nova criação” , em

ciliação implica não viver mais para si mesmo, e

2Coríntios 5.17 e em Gálatas 6.15, pois é preci­

sim para Cristo e, desse modo, para o próximo,

so que se veja que o foco desses textos não é

ele cumpre seu primeiro objetivo. Espera que seu

0 indivíduo, mas o papel da morte de Jesus no

apelo apaixonado aos coríntios a que se reconci­

fim da velha era e na apresentação da nova. A

liassem com Deus (2Co 5.20; 6.1,2), seguido da

morte de Cristo assinala o fim do governo dos

afirmação de que seu coração está aberto para os

poderes apocalípticos (cf.

coríntios (2Co 6.11-13; 7.2), atingirá o segundo

2.15) e o livramento “ deste mundo mau” (G11.4;

objetivo, que é restaurar seu relacionamento com

V. esc atolo gia ) .

os coríndos.

contemporânea tem, para Paulo, consequências

De igual modo, Gálatas é constituído de uma

B eker ,

p. 189-92; Cl

A intrusão do novo mundo na vida

de longo alcance para os que desejam seguir o

convergência de imagens de categorias teológi­

Cristo crucificado e personificar na vida comuni­

cas, em que Paulo expõe o caráter salvífico da

tária a nova criação revelada na cruz. Os velhos

cruz de Cristo. A unidade maior, Gálatas 3.1-14,

modos de relacionamento (e.g., vangloriar-se

deixa claro que a experiência do recebimento

numa disputa contínua por superioridade no es­

do Espírito pela fé significou para os gálatas o

forço por alcançar posição social) e de diferen­

cumprimento da promessa divina de abençoar os

ciação entre judeus e gregos, escravos e livres,

gentios por meio de Abraão e que esse cumpri­

homens e mulheres são apresentados exatamente

mento se tornou possível por meio da morte de

como são — velhos, ultrapassados e percebidos

Cristo. Os benefícios da morte de Cristo são apre­

dessa forma (cf., e.g., G1 3.26-29; Fm).

sentados em Gálatas 3.10-14 mediante uma com­

De outro lado, vemos no entendimento que

binação de imagens: Cristo como representante

Paulo tem sobre a cruz uma contínua reflexão

de Israel por cuja morte a aliança atinge o ápice

sua sobre

313

I srael

e, particularmente, uma inclusão

C risto , morte de ii : Paulo

de crentes gentios no “Israel de Deus” (G1 6.16). Para Paulo, os crentes, por terem sido incluídos

3.1

A justiça de Deus. A precedência que

Paulo atribui ã questão de Deus em sua teologia

na obra salvífica de Cristo, partilham dos benefí­

da adunação é, talvez, mais bem destacada na

cios da nova criação e, dessa forma, da identida­

passagem fundamental e bastante densa de Ro­

de que detêm como povo de Deus. Como Paulo

manos 3.21-26. Nos versículos anteriores, surgem

reconhece: “Já estou crucificado com Cristo. Por­

duas questões relativas ao caráter de Deus (v.

tanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo

C ou sA R ,

quem vive em mim” (G1 2.19,20). Mesmo que a

dade de Deus, em comparação com as promessas

questão do papel escatológico de Israel no pensa­

das alianças que fez com o povo judeu? Se, como

mento pauhno não esteja resolvida, assim mesmo

Paulo raciocinou anteriormente, judeus e gentios

p. 37-41): 1) Que faremos com a fideli­

está claro que a morte de Cristo assinala o novo

estão, perante Deus, lado a lado, envolvidos no

éon, ou era, na qual, em Cristo, os gentios podem

pecado, que faremos da história da aliança en­

ser acolhidos como filhos de Abraão.

tre Deus e Israel? “A infidelidade deles anulará

Podem se mencionar muitas outras categorias

a fidelidade de Deus?” (Rm 3.3). 2) Se a salva­

ou imagens interpretativas nas cartas paulinas,

ção está disponível fora da Lei, não deveríamos

pois o apóstolo faz uso de uma rica variedade

nos dedicar ao mal para que a bondade de Deus

de metáforas como meio de compreender a cruz

se destaque (Rm 3.8)? Ou, fazendo a pergunta

e de estimular tanto o entendimento quanto a

de modo que se leve mais em conta o caráter de

resposta entre os vários grupos a que se dirige.

Deus: se a bondade de Deus está ao alcance dos

Essa multiplicidade sugere que se tenha cautela

pecadores, como ele pode julgar o mundo? A pri­

e não se avance rápido demais na defesa de que

meira pergunta é sobre a confiabihdade de Deus;

Paulo teve uma única teoria da adunação (ou

a segunda, sobre sua integridade moral.

uma que tenha sido central entre outras). Para

Essas perguntas conduzem a

j u s t iç a

de Deus

ele, é difícil esgotar a riqueza do significado da

ao banco dos réus, pois no

morte de Cristo.

declarada como fundamental, exprimindo a fide-

at

a justiça divina é

hdade de Deus ã aliança e estabelecendo o pa­ 3. A morte de Cristo e o propósito de Deus

drão para o comportamento de Israel diante dele.

Para Paulo, a questão do significado primeiramen­

Paulo não desconsidera isso. É na revelação pré­

te diz respeito a Deus — teologia — e só depois ã

via da justiça de Deus (“atestada pela Lei e pelos

antropologia e à soteriologia. Sua teologia da cruz

profetas” , Rm 3.21) que ele baseia a anáhse das

está ancorada em seu entendimento do propósito

duas questões. Então desenvolve sua perspectiva

divino e de Deus como o ator principal do drama

acerca da fidelidade de Deus, com claros ecos de

da salvação. Embora declare que Cristo “ se entre­

ocasiões do passado de Israel, em que se fez e se

gou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos

guardou uma ahança (cf. “redenção”, Rm 3.24;

hvrar deste mundo mau” , ele aflrma que Cristo

“ sacrifício propiciatório” , Rm 3.25). Além disso,

agiu assim “ segundo a vontade de nosso Deus

ele 0 faz por meio de uma fórmula tradicional

e Pai” (G1 1.4). Ou seja, a autoentrega de Cristo

judaico-cristã, ressaltando que essa representa­

significa sua identificação e solidariedade com o

ção do caráter de Deus está arraigada na história

objetivo salvífico de Deus. Com essa afirmação,

da interação de Deus com a comunidade do povo

desaprova-se qualquer ideia de que, para Paulo, a

de Deus.

adunação (morte de Cristo) faça distinção entre a

Nesse contexto, a morte salvífica de Cristo

atividade de Deus e a do Filho. Apesar disso, no

demonstra, por assim dizer, a confiabilidade e a

centro do palco se acha a iniciativa divina (e.g.):

integridade de Deus, querendo dizer que a justí­

“ Deus estava em Cristo reconciliando consigo

ça de Deus se manifesta na intervenção divina

mesmo o mundo” (2Co 5.19), e “Deus o fez en­

para trazer salvação a uma humanidade atolada

viando 0 seu próprio Filho” (Rm 8.3). A teologia

no pecado. E ela é manifesta justamente na re­

paulina da adunação tem, assim, suas raízes em

velação de Deus na cruz como aquele que cum­

seu entendimento de

pre suas promessas. Deus não passa por cima do

D

eus

e, especialmente, da

justiça, da ira e do amor divinos.

pecado, mas, por meio da obediência fiel e da

314

C risto , morte de ii : Paulo

morte sacrificial de Jesus Cristo, redime todos os

declarações de fundamental importância. Primei­

que creem, judeus ou gentios. Dessa forma, não

ra: é impossível mensurar o amor de Deus pela

apresenta um caminho de salvação que anula a

humanidade, pois não existem análogos antro­

Lei, mas um que a sustenta [cf. Rm 3.31). Conse­

pomórficos em que se possa basear tal medição;

quentemente, Paulo afirma que a justiça de Deus

embora alguém possa ter a coragem de morrer

se revela em Cristo não apenas como descrição

por um justo (Rm 5.7), Cristo morreu pelos “ím­

de Deus no papel de juiz, mas também e mais

pios” (Rm 5.6), pelos “pecadores” (Rm 5.8), pe­

ainda como a atividade divina de fazer e cumprir

los “inimigos” de Deus (Rm 5.10).

a ahança. Na morte de Cristo, a justiça de Deus

Segunda: os destinatários de Paulo podem es­

é demonstrada no ato de Deus que hvra o povo

tar certos de que o sofrimento deles tem sentido,

dos pecados.

visto que o sofrimento de Cristo se revelou sig­

3.2 A ira de Deus. Em alguns aspectos, a obra

nificativo. Por meio de sua morte, fomos “justi­

de Deus é o corolário da justiça de Deus: “Uma

ficados”, “salvos da ira” de Deus e “reconciliados

vez que a fideUdade divina ã aliança requer res­

com Deus” (Rm 5.9-11). Em meio à nossa impo­

posta e responsabilidade humanas, a ira é aquilo

tência, Cristo assumiu nossa condição e morreu

que se experimenta quando se rejeita o ofere­

em nosso lugar; em consequência de sua morte,

cimento divino de justiça”

partilhamos de sua vida e descobrimos que nosso

T ravis ) . N o

(T am basco,

p. 33; cf.

entanto, é imperativo reconhecer que,

sofrimento tem significado.

para Paulo, a ira de Deus não é uma propriedade

Terceira: numa guinada incomum de raciocí­

divina ou um atributo essencial, mas a presença

nio (Rm 5.8), 0 texto diz que Deus demonstra

ativa do

de Deus contra “ toda impiedade e

seu amor por meio daquilo que Cristo fez. Era

injustiça” (Rm 1.18). A ira de Deus não é uma

de esperar que o amor de Deus se manifestasse

juízo

indignação vingativa, nem o impulso de retribuir,

melhor nos feitos divinos. Essa forma de expres­

mas a resposta divina à infidehdade humana.

são assegura que “a morte de Cristo não apenas

Para Paulo, a ira de Deus é futura, escatológica

expressa seus sentimentos [...] mas os de Deus;

(Rm 2.5,8; ITs 1.10; 5.9; Cl 3.6). Também já está

ou, em outras palavras, a atitude de Deus diante

presente, pois Deus agora entregou os seres hu­

do mundo é demonstrada da forma mais perfeita

manos às consequências do pecado que escolhe­

na ação de Cristo”

ram (Rm 1.18,24,26,28; cf. Sb 11.15,16; 12.23).

uma vez, encontramos em Paulo a afirmação ine­

Por isso, em qualquer tentativa de entender

( C o u s er ,

p. 45). Assim, mais

xorável da unidade de propósito e de atividade de

a teologia pauhna da adunação é vital saber o

Deus e do Filho de Deus na cruz.

que ele pensava da ira divina. Paulo não apre­ senta um Deus irado que precisa ser acalmado.

4. A morte de Cristo e a condição humana

Para ele, a ira divina é um meio de ressaltar a

Afirmar que Paulo entende a morte de Cristo

seriedade com que Deus encara o pecado, mas

como algo profundamente teocêntrico não im­

não é uma quahdade afetiva nem um sentimento

plica minimizar seu interesse na necessidade de

da parte de Deus. No presente, a justiça divina

adunação no lado humano da equação. Pelo con­

é eficaz para salvar, mas, quando o ser huma­

trário, isso mostra a aguda distinção que Paulo

no resiste, ele experimenta a justiça divina como

enxerga entre Deus e a humanidade, ou seja, en­

condenação.

tre a fidehdade de Deus e a infidehdade humana

3.3 O amor de Deus. De acordo com Roma­

(v., e.g., o jogo de palavras em Rm 1.17,18; a

nos 5.6-8, a morte de Cristo é a expressão má­

justiça [dikaiosynê] de Deus contra a perversão

xima do amor irrestrito de Deus: “Deus prova o

[adikia] do ser humano). 0 retrato que Paulo

seu amor para conosco ao ter Cristo morrido por

pinta da humanidade “antes de Cristo” é o de

nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8).

pessoas, colefiva e individualmente, presas na

Essa declaração acompanha a afirmação de que

armadilha do pecado, escravizadas a poderes

a experiência humana do amor divino assegura

dos quais são incapazes de fugir. Com o peca­

que 0 sofrimento conduzirá a uma esperança

do, acontece o mesmo que com a propiciação: de

que não decepcionará (Rm 5.3-5). Aqui há três

um arsenal linguístico, Paulo consegue apanhar

315

C risto , morte de ii : Paulo

termos que o ajudam a descrever a humanidade afastada de Deus.

outros e com o cosmo (v. Rm 1.26-32). Além de tudo, Paulo reconhece que o objetivo da impieda­

De especial interesse nesse resumo da antro­

de e da injustiça é a autolegitimação: a humani­

pologia paulina é Romanos 1.18-32. Aqui “peca­

dade acolhe uma mentira (Rm 1.25) e recebe uma

do” (no sentido amplo do termo; os vocábulos

mente corrompida (Rm 1.28), com a consequên­

que Paulo emprega em Rm 1.18 são “impieda­

cia de que ela define como justos seus caminhos

de” e ‘injustiça”) não é identificado com ações

injustos.

individuais perversas, mas com uma disposição

Por conseguinte, não é de admirar que a

generalizada de recusa em honrar a Deus como

pregação paulina da cruz e a identificação do

tal e em ser grato a ele, de substituir o Criador por

apóstolo com ela despertasse oposição e mal-en-

coisas criadas, ou seja, desviar-se da existência

tendidos. Uma humanidade que se voltou contra

humana autêntica ao se afastar de Deus.

si mesma da mesma forma que se rebelou contra

Nessa passagem, quatro aspectos das refle­

Deus não sancionará com tanta faciüdade um re-

xões de Paulo são de particular interesse. Primei­

ordenamento tão revolucionário do mundo como

ro: Paulo não está apresentando a autobiografia

0 que se exige com essa ênfase no Cristo cruci­

de indivíduos; não está inclinado a esboçar como

ficado. Isso exigiria uma forma aparentemente

cada pessoa, na própria experiência, se envolve

caótica de entender o que significa ser humano,

no pecado. Sua apresentação é universal, um

uma inversão do sistema social. Poder arraigado

diagnóstico da condição da família humana vista

na impotência? Isso realça o profundo papel que

como um todo (cf. Rm 3.9).

a palavra da cruz desempenhava na concepção

Segundo: os atos de perversidade que Paulo

e na experiência que Paulo tinha da vida cristã

passa a enumerar à guisa de ilustração não são

(v. 5, abaixo) e também a terrível condição que a

em si mesmos o problema. Concupiscência, fo­

obra salvadora de Deus teria de tratar.

foca, inveja, engano, atividade homossexual, rebeldia contra os pais e tudo o mais são mani­ festações do pecado.

5. O Messias crucificado e a vida cristã Por último, exploraremos mais diretamente a

Terceiro: dentro da linha de raciocínio de Pau­

pergunta: “ De que maneira a morte de Cristo é

lo, essas atividades são expressões da ira de Deus,

eficaz?”. É claro que, para Paulo, a cruz é o meio

um testemunho da integridade moral de um

pelo qual Deus providenciou a salvação e o ins­

Deus que leva o pecado a sério. É o caráter moral

trumento e medida da nova vida em Cristo. Como

de Deus que Paulo defende aqui, e a maneira de

é que a cruz opera nesse aspecto? Paulo não ofe­

fazê-lo é mostrando o avanço do pecado. Ele co­

rece uma resposta única a essa pergunta, embora

meça pela recusa humana em honrar a Deus com

possamos verificar certos parâmetros nas cartas

a consequente negação da vocação humana de

paulinas.

viver um relacionamento com ele, passa pelo ato

5.1

A morte adunatória de Cristo. Para Pau­

em que Deus entrega a humanidade aos próprios

lo, a morte de Jesus não é interpretada com me­

desejos, dando ã humanidade, por assim dizer, a

táforas extraídas dos tribunais, mas da história

vida que ela buscava longe dele, e daí chega aos

da aliança entre Deus e Israel. Assim, Paulo não

atos humanos perversos, que, na verdade, não

imagina que Cristo foi castigado mediante exe­

despertam a ira de Deus, mas já são eles próprios

cução na cruz, a fim de satisfazer a justiça de

a consequência da presença ativa dessa ira.

Deus

Quarto e último: é notável que, para Paulo, o pecado assinala uma ruptura no relacionamen­ to divino-humano e também se manifesta nos

( T ravis

e

T am basco) .

A cruz de Cristo pode

ser entendida como substitutiva, mas dentro da estrutura do conceito de sacrifício no Embora o

at

at.

não elabore em profundidade

relacionamentos humanos e nas relações do ser

a lógica por trás do sistema sacrificial, J. D. G.

humano com a natureza criada. Por isso, nesse

Dunn acredita que a ideia de “identificação” ou

sentido amplo, o pecado jamais pode ser enten­

de “representação” é fundamental, se quisermos

dido como algo particular ou individualista, pois

entendê-lo. Ou seja, de alguma forma a oferta

sempre se manifesta no relacionamento com

pelo pecado veio a representar os pecadores em

316

C risto , morte de ii : Paulo

seu pecado. Assim, ao impor as mãos sobre a ca­

está sugerindo que Paulo não tivesse consciência

beça do animal no ritual de sacrifício, os peca­

dessas interpretações martirológicas da morte en­

dores se identificavam com o animal, indicando

contradas em textos como 2Macabeus 7.37,38 e

que 0 animal agora representava o pecador em

4Macabeus 6.28,29. Mas esses textos desenvol­

seu pecado {i.e., na condição de pecador). Em

vem temas veterotestamentários sobre o sacrifício

consequência, o pecado do pecador era identifi­

e 0 Servo, empregando material de Isaías sobre o

cado com 0 animal, e a vida deste se perdia, “da

Servo Sofredor (Is 52.13— 53.12), como fizeram a

mesma forma em que Cristo, tomando a inicia­

igreja primitiva e Paulo (v.

tiva do outro lado, se identificou com [os seres

tudo, 0 possível grau de endividamento de Paulo

humanos] em seu estado decaído (Rm 8.3) e se fez pecado (2Co 5.21)”

(D

unn,

p. 44).

S ervo d e Javé ) .

Além de

com 0 judaísmo helénico por via dos contos de martírio da literatura macabeia é afetado pela for­

Essa lógica introduz o papel duplo de Cristo

te influência das ideias retributivas desses textos.

em sua morte: tomar o lugar da humanidade pe­

Paulo ressalta mais profundamente a iniciativa

rante Deus e diante da justiça de Deus e ficar no

divina de providenciar o sacrifício, e a preocupa­

lugar de Deus diante do pecado humano.

ção evidente do apóstolo é estabelecer a universa­

O hnguajar característico da representação para

lidade dos benefícios adunatórios de Cristo, que

nos ajudar a entender a substituição não tem o

não se limitam a rituais religiosos e memoriais

propósito de negar o sentido de que Cristo alcan­

israelitas que requerem repetição e reencenação

çou algo objetivo com sua morte. De fato, de acor­

( H engel,

do com Paulo, Cristo se entregou por nós para que

e de sua preocupação com a manutenção do rela­

pudéssemos viver nele (cf. ITs 5.9,10; Rm 8.3,4;

cionamento entre Deus e seu povo da aliança, do

14.9; 2Co 2.15,21;

p. 51). Além do sistema sacrificial do

at

Por mais significativo

Servo Sofredor de Isaías e da martirologia judaica,

que seja para Paulo o tema da participação na mor­

os estudiosos têm encontrado também, por trás

te e na ressurreição de Cristo (cf., e.g., Fp 3.10), a

do pensamento de Paulo, reflexos da noção ju­

possibihdade dessa participação tem base no fato

daica do quase sacrifício de Isaque (cf.

de que ele primeiramente morreu “por nós”.

D u n n , H e n g e l, B r o w n

T

r a v is ) .

De onde Paulo tira esse modo de interpre­

T a m basco,

et al.).

Como diz Hengel, não basta examinar o

at

e

tação? Nos últimos decênios, várias tentativas

os textos judaicos posteriores em busca de pre­

foram feitas para identificar um precedente greco-

cursores para a interpretação salvífica pauhna da

romano para o pensamento de Paulo acerca da

morte de Jesus. Uma influência de proporções

morte adunatória de Cristo — ou bem distinto

significativas acha-se muito mais próxima, a sa­

do

(S eeley ) ,

ber, a interpretação da cruz de Cristo mediada

( W illiam s ) .

pela repefição da Úhima Ceia nas comunidades

AT

e do judaísmo do segundo templo

ou mediado pelo judaísmo helénico

Contudo, não está claro por que seria preciso

cristãs primitivas. Paulo conhece e repete as pala­

estabelecer distinções assim tão rígidas entre a

vras eucarísticas de Jesus (ICo 11.23-25), que in­

influência do

terpretam como redentora a autoentrega de Jesus.

at

e a filosofia greco-romana, parti­

cularmente levando-se em conta o grau em que o helenismo e o judaísmo se haviam amalgamado por voha do início do século i d.C.

S.2

A morte de Cristo e o seguir a Cristo. De

acordo com Paulo, a morte e a ressurreição de Cristo assinalam o início de uma nova época que

0 mais provável é que as interpretações de

avança em direção ao tempo da parusia (cf.

H en­

morte redentora no judaísmo helénico e em Pau­

gel )

lo se baseiem na mina comum das Escrituras de

entender a vida no presente. Para começar, ter

Israel e das práticas sacrificiais. O sistema sacri­

consciência de que a morte e a ressurreição de

ficial do AT proporciona uma fonte imediata de

Cristo instituíram uma nova época permite que

. Isso modifica fundamentalmente o modo de

especulações sobre a relação entre a morte ino­

se vislumbre uma nova vida em contraste com as

cente e o perdão de pecados, em particular desde

velhas maneiras de viver e que se acolha o poder

o período do segundo templo, quando os sacrifí­

de Deus exigido para a nova vida. Além disso,

cios em geral foram interpretados pela perspec­

considerar o presente à luz do passado mofiva

tiva da redenção. É claro que, com isso, não se

os crentes a agir com gratidão pelo livramento da

317

C rísto , morte de ii ; Paulo

escravidão ao pecado. Por fim, o reconliecimento

A morte de Cristo desempenha um papel

desse novo tempo estimula os crentes a reconhe­

central na teologia de Paulo. Ele emprega uma

cer ainda mais que a vida no presente é determi­

abundância de imagens por meio das quais deixa

nada pela cruz. Isso significa que um efeito da

claro seu sentido, tanto ao escavar os ricos re­

cruz é a possibilidade da humanidade restaurada

cursos que estão a seu alcance nas Escrituras de

— em seus relacionamentos com Deus, consigo

Israel e na fé comum da igreja primitiva quan­

mesma e com toda a criação. Também significa

to ao relacionar mais diretamente a mensagem

que a definição de existência apresentada pela

da cruz àqueles a quem se dirige em seus vários

humanidade pecadora foi alterada radicalmente,

contextos e em várias circunstâncias. A cruz de

de modo que os que seguem a Cristo devem bus­

Cristo encontra-se na interseção das principais

car nele a expressão da humanidade restaurada.

rotas de sua teologia e de seu entendimento do

“A igreja cuja teologia é moldada pela mensa­

que seja um viver fiel antes que Cristo retorne.

gem da cruz deve assumir uma vida cruciforme,

Para Paulo, os crentes aqui e agora manifestam

para que sua teologia transmita credibihdade”

sua obediência a Cristo ao anunciar sua morte

(CousAR, p. 186).

até que ele venha.

Na prática, isso significa, acima de tudo, as­

Ver também

ceia do S en h o r; c ris t o lo g ia ; escato­

sumir a forma de obediência a Deus representada

lo g ia ; ju stific aç ã o; ressu rreição; salvação; S ervo de

na vida que Cristo viveu, expressa definitivamen­

Javé.

te em sua morte. Esse pensamento está por trás

DPC. CENTRO DA TEOLOGIA PAULINA; CRUZ, TEOLOGIA

do emprego que Paulo faz do hino a Cristo, em

da;

Filipenses 2.6-11, e também da defesa de seu mi­

MALDIÇÃO, MALDITO, ANATEMA; MORRER E RESSUSCITAR COM

crucifixão ;

ex pia ç ão ,

pr opic iação ,

propiciatório ;

nistério apostólico, da percepção de que em sua

C risto ; p a z , r ec o n c ilia ç ão ; p er d ão ; r e d e n ç ã o ; sacri ­

fraqueza e sofrimento ele está comprometido com

fíc io , of e r e n d a ; t r iu n f o .

a imitação de Cristo e com a participação no sofri­ mento do Messias (cf. 5.3

P o b ee ; H a n s o n ; B l o o m q u is t ) .

B ib lio g r a fia .

B eker,

J. C. Paul the Apostle: the

A morte de Cristo e a vida do povo de triumph of God in life and thought. Philadelphia;

Deus. A cruz de Cristo também tem o efeito de

Fortress, 1980. ■

restaurar a humanidade em outro sentido. Pau­

o f suffering in Philippians. Sheffield; Academic,

B l o o m q u is t ,

L. G. The function

lo entende que a cruz é um acontecimento que

1993.

destrói fronteiras (cf. Driver, esp. cap. 13). As­

passion o f the world: the facts, their interpretation

sim, Paulo pode afirmar em ICoríntios que os

and their meaning yesterday and today. Maryk-

que seguem o exemplo de Cristo em sua morte

noh; Orbis, 1987. ■ B r o w n , C. A. The peace-offe-

abnegada não alimentarão, dentro da comunida­

rings (G’ dViz;) and Pauline soteriology. Immanuel

[js N T S u p ,

78.)

■ B o ff,

L. Passion o f Christ,

de cristã, divisões provocadas por posição social,

[The New Testament and Christian-Jewish Dialo­

mas alcançarão compreensão e reconhecimento

gue: Studies in Honor o f David Flusser], v. 24/25,

mais profundos do corpo de Cristo (ICo 11.17—

p. 59-76, 1990. ■ C a r r o l l , J. T. &

12.31;

death of Jesus in early Christianity. Peabody; Hen­

V. coRPo DE

Cristo). Afinal, essa é uma ma­

G reen ,

J.

B.

The

nifestação da nova aliança no sangue de Cristo

drickson, 1995. ■ C o u s A R ,

(ICo 11.25). Mas Paulo também pode afirmar

cross: the death of Jesus in the Pauline Letters.

C. B.

A theology of the

que a identificação fiel com Cristo em sua obra

Minneapolis; Fortress, 1990.

salvífica se contrapõe a fronteiras étnicas, sociais

derstanding the atonement for the mission of the

(o b t.)

■ D r i v e r , J. Un­

e de gênero ainda mais fundamentais, “pois to­

church. Scottdale; Herald, 1986. ■ D u n n , J.

dos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus”

Paul’s understanding of the death of Jesus as sa­

D. G.

(Cl 3.26; cf. Cl 3.27-29; Ef 2.11-22). Portanto, des­

crifice. In ;______ . S y k e s , S. W., org. Sacrifice and

se modo a cruz não apenas viabihza uma nova

redemption: Durham essays in theology. Cambrid­

vida, mas também aponta para além de si mesma

ge: Cambridge University Press, 1991. p. 35-56. ■

a fim de revelar as normas dessa vida e inaugura

F it z m y e r ,

a nova era, em que a vontade salvífica de Deus

In; To advance the gospel: New Testament studies.

se realizará.

New York: Crossroad, 1981. p. 162-85. ■

318

J. A. Reconciliation in Pauhne theology. G

reen,

C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

J.

The death o f Jesus: tradition and interpreta­

B.

tion in the Passion narrative. Tübingen: J. C. Mohr,

J.

1988. (w u n t, 2 .3 3 .) • G reen ,

de pensamento não exclui outras. A cruz também

B.

é vista como uma vitória divina, um ato em que a

B. & B ak er,

humanidade foi liberta do pecado e do mal, uma

M. D. Recovering the scandal o f the cross. Downers

revelação de

Grove: InterVarsity,

T. The pa­

de obediência. Nenhuma forma de descrição é

radox o f the cross in the thought of St. Paul. Shef­

exaustíva. Os aspectos mais profundos da obra

field:

de Deus na cruz são necessariamente incapazes

2000, ■ H a n so n , A .

js o t, 1987. (jsNTSup, 17.) ■ H e n g e l,

M. The

D eu s

e de seu amor e um padrão

atonement: the origins of the doctrine in the New

de ser expressos em hnguagem humana, como

Testament. Philadelphia: Fortress,

revelam a hnguagem metafórica do

1981. • H o o k e r,

M, D. Interchange and atonement, 462-81, 1978. • ________ .

b j r l , v , 60,

Interchange in Christ,

p.

n t

e a mulü-

phcidade de imagens. Entretanto, não podemos afirmar, obviamente,

j ts ,

V. 22, p. 34 9 -6 1 ,1 9 7 4 . ■ H ou ts, M . C lassical a to n e ­

que nada se possa saber ou dizer sobre os efeitos

m en t im a g e ry : fe m in is t a n d e v a n g e lic a l c h a lle n ­

salvadores da morte de Cristo. Da maneira que é

ges.

Catalyst,

característica aos autores do

v. 19, p. 1, 5-6, 1993. ■ K e rte lg e ,

Der Tod Jesu:

n t

,

eles depositam a

culpa objefiva e o perdão radical e escatológico

K . D as V erstä n dn is d es T o d es Jesu b e i Paulus. D eu tu n g e n im

no centro da estrutura da salvação, fazendo com

N e u e n T esta m e n t. 2. e d . F reib u rg: H erd er, 1976.

que os demais aspectos da cruz resultem daí. A

Persecution and

vitória na cruz é vitória porque garante o perdão

In: K e rte lg e , K ., org .

p. 114-36. (oD , 7 4 .) • Pobee, J. S.

martyrdom in the theology ofPaui.

S h e ffie ld : jso t,

dos pecados. A libertação em relação ao poder do

The noble death:

pecado resuha da libertação em relação à culpa

G rec o -R o m a n m a r ty r o lo g y a n d P a u l’ s c o n c e p t o f

objetiva. A cruz revela o amor de Deus pelo fato

s a lv a tio n . S h e ffie ld : jso t, 1990. (jsNTsup, 2 8 .)



de Deus ter entregue seu FUho por nossos peca­

Travis, S. H . C hrist as b e a re r o f d iv in e ju d g m e n t in

dos. 0 enfoque da salvação como perdão pleno

P a u l’ s th o u g h t a b o u t th e a to n e m e n t. In: Green, J.

estabelece uma disfinção entre os escritos do

1985. (jsNTSup, 6 .) ■ Seeley, D.

B. & T u rn er, M ., orgs.

Jesus of Nazareth:

nt

e as obras do período pós-apostólico. As várias

L o r d an d

C hrist. Essays o n th e h is to ric a l Jesus a n d N e w

imagens da salvação e os textos do

T esta m e n t ch ris to lo g y . G ran d R a pid s: E erdm an s,

dos como ponto de partida dessas imagens são

1994. p. 332-45. ■ T ambasco , A . J.

A theology of

atonement and Paul's vision o f Christianity. Jesus’ death as saving event:

retomados no cristianismo primitívo do século ii. No entanto, ocorre uma mudança na estrutura

ilu a m s ,

das ideias, de modo que nesse período passa-se

th e b a c k g ro u n d

a imaginar que salvação é atíngir a incorrupção e depende da obediência por parte do crente.

a n d o r ig in o f a c o n c e p t. M is so u la : Scholars, 1975. (h d r ,

2 .) ■ WRiGirr, N . T.

The climax o f the cove­

1.

Atos

nant:

C h rist a n d th e la w in P a u lin e th e o lo g y . M in ­

2.

Hebreus

3. 1Pedro

n e a p o h s: Fortress, 1991. J. B. G reen

C r is t o ,

m o r t e d e iii :

C a r t a s G e r a is , A Os escritos do

emprega­

C o lle ­

g e v ille : L itiu 'gic a l Press, 1991. ( zs ; n t .) • W S. K .

at

A

tos,

H

4.

IJoão

5.

Apocalipse

ebreus,

1. Atos

pocaupse

que aqui examinaremos (Atos,

A maneira em que a morte de Cristo é entendida

Hebreus, IPedro, IJoão e Apocahpse) interpre­

em Lucas-Atos tem estado, em anos recentes, no

tam a morte de

nt

fundamentalmente da pers­

centro do interesse acadêmico. Estudos mais anti­

pectiva sacrificial. Isso não quer dizer que esse

gos na área da crítica da redação, particularmente

entendimento da cruz ou a própria morte de Cris­

os de P. Vielhauer, H. Conzelmann e E. Haenchen,

C risto

to sempre recebam o destaque. Entretanto, nos

consideraram que o autor de Lucas-Atos não teve

escritos em que aparecem, a salvação (em suas vá­

nenhum interesse na morte de Jesus como adu­

rias dimensões) é apresentada como algo que foi

nação (v. sobre o assunto no verbete anterior) e,

alcançado no perdão assegurado mediante a mor­

concomitantemente, o acusaram de acolher uma

te de Cristo a favor de pecadores. Essa categoria

teologia da glória que mensurava o favor divino

319

C risto , morte de iii : A t os , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse

com base no sucesso externo da

ig reja .

remontam ao século ii e não conseguem resolver

N ovos

estudos têm caminhado em diferentes direções.

a questão. Em casos como esse, a testemunha

Vários estudiosos têm conclamado a que se reco­

ocidental, mais breve, deve ser levada a sério.

nheça um entendimento distintamente lucano da

As exphcações costumeiras para uma omissão

morte de Cristo, vendo-a basicamente como um

são insatisfatórias (a saber, que escribas estavam

padrão para a obediência cristã (e.g.,

motivados pelo desejo de harmonizar o relato de

G r een; C a r -

Alguns poucos defendem a ideia

Lucas com Mateus e Marcos ou de manter em se­

de que a morte de Jesus como adunação ocupa

gredo as palavras eucarísticas). 0 vocabulário e,

r oll ;

G ar r ett ) .

mais espaço no pensamento de Lucas do que ge­

mais importante que isso, a teologia do material

ralmente se reconhece

adicional são contrários ao estilo e ao pensamen­

( M oessner ) ,

e outros têm

reafirmado que Lucas rejeita tal entendimento da morte de Jesus

to de Lucas. Apesar de Ehrman recorrer ã importância da

(E h r m a n ) .

Quando todos os dados são levados em conta,

variante ocidental mais breve, o fato de ela estar

fica claro que Lucas entende a morte de Jesus

restrita a algumas testemunhas ocidentais susci­

como adunação vicária e que esse entendimento

ta, no mínimo, alguma indagação acerca de sua

é básico para a mensagem de Lucas-Atos. Ob­

originalidade, mesmo que não solucione o pro­

viamente, Lucas ressalta a natureza salvífica da

blema. E, embora Ehrman tenha acertadamente

de Jesus, mas, ao fazê-lo, reforça,

destacado que não são convincentes as exphca­

ressurreição

em vez de diminuir, a importância adunatória

ções usuais das abreviações do texto pelos escri­

da morte de Jesus, que para ele é também pa­

bas, uma possibilidade adicional e convincente

radigmática e exemplar. Contudo, a despeito da

se apresenta por si mesma. Embora a intenção de

atração que exerce nos dias atuais como categoria

Lucas seja sem dúvida fazer o leitor entender que

para entender a morte de Jesus em Lucas-Atos,

Jesus está dizendo que, depois dessa ceia, não

essa visão não é mais proeminente que a inter­

mais comerá nem beberá em companhia dos discí­

pretação que Lucas faz da cruz como adunação.

pulos, aparentemente a interpretação presente na

Por fim, a ênfase de Lucas no propósito divino

tradição representada no Códice de Beza dá conta

por trás da morte de Jesus não reduz a responsa­

de que as palavras de Jesus significam que ele

bilidade humana por ela.

não participará daquela Páscoa. Em Lucas 22.15,

1.1 A morte de Jesus como adunação

a coluna grega de Beza divide touto de modo que

1.1.1 Considerações crítico-textuais sobre Lu­

a leitura fique epethymêsa [tou to] to pascha pha-

cas 22.19,20. Embora durante o século xx a crítica

gein; os artigos genitivo e acusativo assim criados

textual tenha tendido cada vez mais a considerar

sugerem que o desejo de Jesus de comer a Páscoa

original a versão mais longa da instituição da ceia,

com os apóstolos não se cumpriu (cf. ITm 3.1; Êx

B. D. Ehrman (p. 198-209) defendeu convincente­

34.24, l x x ; Pv 23.3,6, l x x ; Eo 16.1). Além do mais,

mente a avaliação de Westcott e de Hort de que

em Lucas 22.16, Beza traz: “ Certamente não mais

a versão mais curta é, provavelmente, a autênti­

comerei (gr., ouketi mêphagomai; latim, iam non

ca. 0 texto mais breve, uma das chamadas não

manducabo] dela até que seja comida (brõthê;

interpolações ocidentais de Westcott e de Hort,

edatur) de novo no

está preservado no Códice de Beza e em vários

escriba em Lucas 22.19,20 elimina a referência

rein o de D e u s ”.

A omissão do

manuscritos da Antiga latina e omite o material

problemática ao ato de comer de Jesus (Lc 22.20)

em itáhco: “Tomando o pão e tendo dado graças,

e às palavras que instituem a ceia. Levando-se

partiu-o e o entregou a eles, dizendo: Isto é o meu

em conta os paralelos nos outros Sinóticos e em

corpo dado em favor de vós; fazei isto em memória

Paulo, as palavras que correspondem à institui­

de mim. Da mesma forma, depois da ceia, tomou

ção da ceia quase exigem a menção subsequente

0 cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em

ao segundo cálice, que em Lucas necessariamen­

meu sangue, derramado em favor de vós. Mas a

te se distingue do primeiro pela referência ao fato

mão do que me trai está comigo à mesa”.

de Jesus já ter comido. Emendada dessa maneira,

0 raciocínio de Ehrman é o seguinte: as evi­

a passagem também se harmoniza com a reda­

dências externas a favor de ambas as leituras

ção de Mateus e de Marcos a respeito do pão, os

320

C rísto , morte de iií : A tos , H ebreus, C artas G eraís , A pocalipse

quais se afastam de Lucas justameme nesse pon­

peso menor a probabihdades teológicas intrínse­

to, deixando Lucas com um único cálice, ainda

cas. A vahdade da afirmação de Ehrman de que

que isso fuja à seqüência costumeira (v., contu­

em nenhum outro lugar, seja em Lucas, seja em

do, Di, 9.1-5). A única questão que essa emenda

Atos, 0 Evangelista apresenta a morte de Jesus

deixa aberta é a da conjunção adversativa plên,

como adunação depende de três considerações:

que dá início a Lucas 22.21. Na versão mais curta,

a interpretação de Atos 20.28, de que trataremos

a afirmação “a mão do que me trai está comigo à

em seguida; a ausência de desenvolvimento ex­

mesa” contrasta com as palavras de Jesus “isto é

plícito do tema da morte de Jesus como adunação

0 meu corpo” , uma justaposição impossível, uma

pelo PECADO, a despeito das numerosas alusões ao

vez que a mão do traidor não se opõe à morte

Servo isaiano que sugerem tal entendimento (v.

de Jesus, mas é justamente o meio de sua morte

1.1.4.1 abaixo); a decisão de Lucas de não incluir

(i.e., seu “corpo”). Parece que a versão mais curta

a declaração do resgate de Marcos 10.45. As duas

em Beza e provavelmente na tradição ocidental

últimas observações oferecem apenas argumen­

em geral representa uma tentativa de solucionar

tos baseados no silêncio, que são frágeis, espe­

uma dificuldade que se percebia no texto lucano

cialmente nesse caso.

e de tirar a participação de Jesus na Páscoa.

É de considerável importância que Lucas

As probabilidades intrínsecas de vocabulário

transponha a disputa que os discípulos travam

não enfraquecem e podem fortalecer essa avalia­

pela grandeza, retirando-a da posição que ocu­

ção. Palavras inexistentes em outras passagens

pa em Marcos, logo após a terceira predição da

de Lucas-Atos aparecem no texto mais longo, em

Paixão (Mc 10.41-45), e situando-a, em seu Evan­

particular as referências ã “ memória” de Jesus e

gelho, após a

ã nova aliança. Entretanto, esse fenômeno não é

terial caracteristicamente lucano na versão mais

diferente das falas registradas em Atos, cada qual

longa das palavras de instituição (“ dado em favor

contendo vocabulário característico. Ademais,

de vós” , “ nova aliança em meu sangue”) talvez

vários itens do vocabulário associam o texto mais

funcione como substituto da declaração que ele

longo ao material circundante. A linguagem na

optou por omitir. A troca de material feita por Lu­

segunda pessoa do plural (“por vós” [2x]) tem

cas (ou 0 emprego de uma tradição alternativa;

Ú lt im a C eia

(Lc 22.24-27). 0 ma­

correspondência bem próxima no contexto lu­

G r een,

cano, incluindo-se o desejo de Jesus de comer

nia consideráveis à narrativa. Enquanto Jesus fala

1988, p. 44-6) acrescenta pungência e iro­

a Páscoa “convosco” e sua instrução acerca do

de sua afeição e autoentrega, os discípulos estão

primeiro cálice; “Tomai-o e reparti-o entre vós”

envolvidos na busca dos próprios interesses e em

(Lc 22.17,18). 0 “sangue derramado em favor de

disputas. Enquanto em Marcos a grandeza é des­

vós” (Lc 22.20) diverge de Marcos e Mateus, que

crita pelo que se faz, em Lucas consiste naquilo

dizem; “ derramado em favor de muitos” , o

que a pessoa é. O maior deve ser como o mais jo­

que corresponde a referências ao martírio em

vem e como aquele que serve, assim como Jesus

outras

11.50;

é o que serve. Essa ênfase corresponde à apre­

At 22.20). Além disso, como faz Marcos, Lu­

sentação que Lucas faz de Jesus como o Servo

passagens

de

Lucas-Atos

(Lc

cas mostra que Jesus deu o pão aos discípulos

obediente de Deus (v. 1.1.3 abaixo) e, portanto,

(Lc 22.19; Mc 14.22). E, distintamente da versão

talvez explique por que Lucas deixou de fora a

paulina (ICo 11.24), Jesus mostra (Lc 22.19) que

declaração do resgate. Ele prefere concentrar-se

seu corpo é “dado por vós”. É concebível que um

na humildade e na submissão de Jesus ã vontade

copista tenha entremeado artisticamente o “dar”

divina a focar-se no desejo pessoal de Jesus. 0

de Marcos com o “por vós” de Paulo, porém é

enredo da autoentrega de Jesus está inextricavel-

mais provável que seja uma composição lucana,

mente associado ao fato de Deus o haver enviado

associando Lucas 22.19 a seu contexto (v. tb.

(v. 1.1.4.3 abaixo).

en,

G re­

1988, p. 28-42).

1.1.2

Resumo de Lucas 22.19,20. Podemos

Em razão do espaço que abrem para juízos

dizer com segurança que o peso dos indícios

subjetivos, na avaliação da autenticidade de

externos e internos favorece a originahdade de

qualquer variante redacional deve se atribuir o

Lucas 22.19,20 (outra análise em

321

G reen,

1988,

C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

p. 35-42). Nesse caso, Lucas claramente vincu­

morte de Jesus, mas o anúncio de sua ressurrei­

la um significado adunatório à morte de Jesus,

ção que traz o arrependimento.

especialmente na alusão a Jeremias 31.31-34.

Declarações que falam do “sofrimento de

0 corpo de Jesus é entregue, e seu sangue é der­

Deus” , do “Deus crucificado” ou mesmo do

ramado “por vós” , assegurando a nova

a l ia n ç a

“ sangue de Deus” são comuns entre os autores

em que pecados e transgressões são perdoados.

cristãos até o final do século ii, quando conceitos

Essa passagem é essencial para Lucas-Atos, pois

(monarquianistas) de que Deus existia em modos

informa ao leitor o motivo pelo qual o

de

sequenciais forçaram uma definição mais precisa

arrependimento de João é insuficiente e a fé em

a fim de evitar conotações de patripassionismo

b a t is m o

Jesus é necessária (cf. Lc 3.3; 24.27; At 19.4). Lu­

(e.g., In, Ef, 1.1; v.

cas não deseja que o leitor se esqueça disso e

tivo, não devemos ficar surpresos por encontrar

tem por propósito que se leia a narrativa posterior

essas expressões nos autores do

de Atos, em sua inteireza, ã luz dessas palavras,

antecedente ao sangue de Jesus (Lc 22.19,20) dei­

conforme Atos 20.28 deixa claro.

xa claro que, quando Lucas emprega a expressão

1.1.3

Ehrm an,

p. 87-8). Por esse mo­ nt.

A referência

Atos 20.28. A segunda referência explí­ “o sangue do próprio Deus”, está pensando no

cita à morte de Cristo como sacrifício adunató­

sangue de Cristo e, como aconteceu com os auto­

rio aparece em Atos 20.28, em que questões de

res cristãos do século ii, essa afirmação represen­

crítica textual e de interpretação estão outra vez

ta uma ousada atribuição de divindade a Cristo.

entremeadas. Embora os dados externos não fa­

0 fato de Lucas ser direto em sua declaração não

voreçam nenhum lado da questão, é provável que

é de surpreender, pois em outras passagens ele

0 texto original trouxesse “a igreja de Deus” , não

ressalta que Jesus é

a forma variante “a igreja do Senhor”. A última

nuanças de divindade (e.g., At 2.21). E Paulo, em

expressão muito provavelmente representa a obra

cuja boca aparecem essas palavras, é bem capaz

de um escriba que tentou melhorar a difícil cons­

de fazer tal afirmação (Rm 9.5; ICo 8.6).

Senh o r , o

que traz consigo

trução “a igreja de Deus, que ele comprou com o

Não devemos desprezar as alusões bíblicas

próprio sangue”, que aos ouvidos modernos su­

comunicadas pelo linguajar de Lucas. A palavra

gere patripassionismo (i.e., afirma-se que o Pai é

que a a r a traduz por “comprou”

quem sofre), como também deve ter acontecido

rip o iê sis)

com os escribas do século iii em diante. Como no

lhor tradução pode ser “poupou para si mesmo”

caso de algumas traduções bíblicas (e.g.,

bj) ,

a

{p e r ip o ie õ ;

cf. p e -

transmite nuanças salvíficas, e uma me­

ou “livrou para si mesmo” (v. Lc 17.33; Ml 3.17,

maioria dos comentaristas opta por ler a passa­

lxx;

gem como se ela falasse da “igreja de Deus, que

palavra também transmite a ideia de posse, por

Nm 22.33,

ele comprou com o sangue do próprio Filho” ,

isso relembra o Êxodo, quando Deus adquiriu um

caso em que a palavra “Filho” é acrescentada.

povo para si mesmo a fim de salvá-lo. São sua

lxx;

SI 78.11,

lx x ;

Jt 11.9). Mas a

Isso é gramaticalmente possível, mas improvável.

“propriedade exclusiva”

Lucas tem o hábito de pôr adjetivos e locuções

Êx 19,5; Dt 7,6; 14.2; 26.18; cf. IPe 2.9; SI 73.2,

adjetivas na forma em questão. Caso seu objetivo

lxx) .

fosse falar do “próprio Filho de Deus” , por certo

de Deus como rebanho está baseada no Êxodo

[s^gullã; p erio u sia s, l x x ;

De modo semelhante, a descrição do povo

teria incluído o substantivo ao final (cf. Rm 8.32).

(SI 78.52; cf. Nm 27.15-17). Portanto, a referên­

O que temos então diante de nós é o linguajar

cia ao “ próprio sangue de Deus” provavelmente

incomum com que Lucas descreve a morte de

relembra a Páscoa e sugere uma tipologia em que

Cristo. Mas como vamos entendê-la?

Cristo transcende a Páscoa original. A redação in­

Não é convincente a afirmação de Ehrman

comum de Lucas assinala, então, um contraste

(p. 202-3) de que Lucas não considera o sangue

entre a Páscoa original e a cruz. Se essa leitura

de Jesus uma adunação, mas algo que salva por

do texto está correta, no discurso de Paulo em

trazer um reconhecimento de culpa. Mas a acu­

Mileto temos uma poderosa lembrança das pala­

sação de culpa pela morte de Jesus está presente

vras de Lucas relativas à instituição (22.19,20),

apenas nos discursos em Jerusalém e desaparece

em que ele relata a interpretação que Jesus dá à

depois de Atos 7. Além do mais, em Atos não é a

própria morte (mais precisamente a seu sangue)

322

C risto , morte de iii : A to s , H ebreus , C artas G érais , A pocalipse

como uma nova aliança. Noções de cumprimento

na morte injusta do Servo de Deus, porém assim

estão presentes nas duas passagens. E a incomum

mesmo algumas noções de propiciação se encon­

atribuição de divindade a Cristo caracteriza Atos

tram provocadoramente próximas (Is 53.6) e vêm

20.28 como texto essencial.

à mente de quem deseja conhecer as palavras de

Na narrativa, em oposição ao discurso teológi­ co direto, o papel do falante e o contexto da fala

Jesus por ocasião da Última Ceia e o contexto isaiano mais amplo.

dizem muito. A frequência com que um pensa­

A citação de Isaías 53.7,8 não está sozinha

mento ou uma expressão aparece é bem menos

em Lucas-Atos. Referências à identidade de Jesus

importante do que quem o diz e de quando se

como o Servo isaiano remontam à definição que

diz. Por isso, não devemos deixar de observar que

Jesus apresenta de seu ministério (Lc 4.18,19;

essa única referência explícita em Atos à morte de

Is 61.1,2) e avançam no relato de sua Paixão

Jesus como adunação aparece num ponto deci­

(Lc 22.37; Is 53.12). Como assinala J. B. Green,

sivo, na boca daquele a quem Lucas apresenta

a última referência é o único caso no

como vaso escolhido de Cristo, a testemunha

se encontra material acerca do Servo nos lábios

nt

em que

apostóhca em quem se cumpre a promessa de

de Jesus

Atos 1.8. Sem depreciar o testemunho ininter­

lucano da morte de Jesus faz supor que o centu­

rupto de Paulo, Lucas apresenta seu discurso em

rião que observava os acontecimentos reconhe­

Mileto como o encerramento de seu ministério

ceu Jesus inconscientemente como o “justo” , o

( G r een ,

1990, p. 22). E apenas o relato

às igrejas. Isso é visível em todas as partes do

Servo (Lc 23.47; Is 53.11; v.

discurso, desde a predição de Paulo de que não

Lucas, as passagens do Servo em Isaías refletem

tornaria a ver os anciãos de Éfeso (At 20.25} até

um entendimento bíbhco mais amplo sobre o pa­

a vigorosa

pel do Messias (Lc 24.25-27,44-49), incluindo sua

cr istolo gia

que se observa. Em certo

sentido, os anciãos são responsáveis não apenas

K arris ) .

De fato, para

missão aos gentios (At 13.47).

pela igreja de Éfeso, mas também pela “igreja

0 papel de Jesus como o Servo dá substância

de Deus”. Por isso, quando Paulo diz que Deus

aos discursos de Atos, onde o tema contínuo da

“hvrou a igreja para si mesmo com seu próprio

reversão se baseia no tema bíblico recorrente da

sangue”, Lucas está mostrando que a morte

justificação do Justo Sofredor, ideia central na pas­

adunatória de Jesus está por trás de tudo o que

sagem do Servo em Isaías 52.13— 53.12. Quando

ele operou entre judeus e gentios desde a cruz

Pedro proclama que Deus “glorificou seu Servo

(Lc 22.19,20). Em vez de ter papel insignificante,

[pais] Jesus” e afirma que o povo rejeitou “o Santo

as duas referências explícitas à morte adunatória

e Justo”, ele faz menção a Isaías 52.13 e 53.11. O

de Jesus formam um parêntese junto com toda a

elemento próprio da imagem do Servo, que o faz

narrativa interveniente e assim a esclarecem.

sobressair na categoria mais ampla do Justo So­

1.1.4

Alusões à morte de Jesus como aduna­ fredor, é a ideia de que o perdão é concedido por

ção. Por que Lucas emprega inúmeras alusões bí­

intermédio dele (Is 53.4-6,10,11). Esse tema carac­

blicas à morte de Jesus como adunação, mas ao

teriza a narrativa de Lucas. 0 oferecimento de sal­

mesmo tempo não as desenvolve? A resposta está

vação ao ladrão na cruz e a omissão das palavras

em parte em sua ênfase sobre a ressurreição de

que expressam o abandono levam a narrativa luca­

Jesus e em parte no parêntese que acabamos de

na da Paixão para longe da apresentação marcana

observar. As palavras de instituição e a afirma­

de Jesus como sofredor justo e ao mesmo tempo

ção seguinte de Paulo fornecem a interpretação

para perto do conceito presente em Isaías (cf.

da morte de Jesus como adunação, o que Lucas

en,

reforça mediante repetidas alusões ao Servo de

perdão é básico na proclamação do Cristo em Atos

Isaías, ao partir do pão e à necessidade divina da

(At 2.38,39; 3.18-20; 10.43; 13.38,39).

morte de Jesus. 1.1.4.1

G re­

1990, p. 23). De igual modo, o oferecimento de

Por esse motivo, Lucas não considera a mor­

Jesus como o Servo de Isaías. A mais te de Jesus a de um mártir, ou herói, ou mesmo

proeminente dessas alusões é a seção de Isaías 53,

do Justo Sofredor da Bíblia, mas a do Messias-

que o eunuco etíope estava lendo ao encontrar

Servo Sofredor por meio de quem Deus oferece o

Filipe (At 8.32,33; Is 53.7,8). Lucas concentra-se

perdão dos pecados. Esse conceito de Jesus e o

323

C risto , morte de iii : A t os , H ebreus, C artas G érais , A pocaupse

contexto isaiano que Ihe serve de fonte reforçam

10.43; 13.27; 17.3; 26.23). Sendo o Messias, Jesus

as duas referências lucanas à morte adunatória

está destinado a cumprú o papel prescrito para

de Jésus, as quais dão substância à representa­

ele como o Servo Sofredor. Esse tema recorrente

ção inteira. Levando-se em conta as abundantes

ressalta sutilmente a interpretação que Jesus dá

alusões de Lucas ao Servo isaiano, é muito prová­

ã sua morte como adunatória (Lc 22.19,20), vis­

vel que ele queira que seus leitores estabeleçam

to que nessa interpretação temos a única vez em

essa associação.

Lucas-Atos em que o propósito divino para a cruz

1.1.4.2 0 partir do pão. Lucas também dese­

é revelado. Lucas não apenas afirma que o Mes­

ja que seus leitores entendam o “partir do pão”

sias morreu porque Deus o quis, mas apresenta a

da comunidade crente como uma expressão de

interpretação de Jesus para essa morte.

fé e obediência ã ordem de Jesus: “Fazei isto em

Entretanto, o tema da necessidade do sofri­

memória de mim” (Lc 22.19). Como observa D.

mento do Messias também serve a uma finalidade

P. Moessner (p. 182), o equívoco e a decepção

maior e apologética em Atos. Longe de desquali­

dos discípulos no caminho de Emaús são rever­

ficar Jesus como o Messias prometido, sua mor­

tidos não apenas mediante a exphcação pelo Je­

te injusta cumpre as palavras dos profetas (e.g.,

sus incógnito, mas no ato em que Jesus parte o

At 13.27). Essa apologia da cruz e a interpretação

pão, sugerindo que suas palavras por ocasião da

lucana da morte de Jesus como adunação estão

Última Ceia representam o auge do testemunho

amarradas uma ã outra, como em sua ênfase na

bíbhco e o ponto central da revelação (Lc 24.30-

ressurreição.

32). Além disso, como acontece nas referências

1.1.5

A morte adunatória de Jesus e sua res­

que Lucas faz à morte adunatória de Jesus, suas

surreição salvífica. Lucas apresenta, em Atos, a

menções ao “partir do pão” comunal emolduram

ressurreição de Jesus como evento salvífico cen­

sua apresentação da disseminação do evangelho.

tral, para assim ressaltar as afirmações exclusivas

Ele a inclui em seu esboço sobre a vida piedosa

de seu evangelho. A ressurreição não apenas con­

da igreja nascente (At 2.42,46) e torna a mencio-

firma Jesus como o Messias-Servo, mas também

ná-la no encontro final entre Paulo e a igreja de

o eleva ao papel de Senhor ressurreto. As pro­

iVôade (At 20.7,11). Os crentes “partem o pão”

messas salvadoras de Deus a Israel e às nações

concomitantemente com o ensino, a comunhão e

se cumpriram agora nele. Tendo derramado o

a oração (At 2.42) e se reúnem para isso no pri­

Espírito (v.

meiro dia da semana (At 20.7). Tendo em vista o

mundo, enviando a mensagem de salvação aos

E spírito S a n t o ) ,

agora está atuando no

lugar que ocupam na narrativa, essas descrições

confins da terra (v.

têm 0 objetivo de mostrar que tais práticas eram

portanto, o único mediador da salvação para a

comuns nas igrejas. Assim, Lucas mostra que os

humanidade. Não é apenas o profeta semelhan­

primeiros discípulos seguiam a ordem de Jesus de

te a Moisés, a quem todo o

lembrar sua morte adunatória. Lucas espera que

(At 3.22-26), mas também aquele que julgará os

seus leitores façam o mesmo.

vivos e os mortos e a quem o mundo inteiro terá

1.1.4.3 A morte de Jesus como exigência divi­ na. Assim como acontece em Mateus, em Marcos

c r iaç ã o , no v a criação ) .

I srael

Ele é,

deve obedecer

de prestar contas (At 10.42; 17.31). A salvação é concedida apenas em seu nome (At 4.12).

e em João, a morte de Jesus em Lucas-Atos não é

Na condição de cumprimento da promes­

0 simples resultado de ignorância e erro humanos

sa, a ressurreição também serve de apologia da

que Deus corrige com a ressurreição. Na verdade,

cruz, confirmando Jesus como Messias e Se­

o sofrimento do Messias é a vontade e o plano de

nhor. Essa preocupação é especialmente visível

Deus, que tem de se cumprir. Esse tema aparece

nas referências de Lucas à morte de Jesus “ num

não somente nas predições da Paixão (Lc 9.22,44;

madeiro” (At 5.30; 10.39,40; 13.28-30), o que

18.31) e na predição da traição (Lc 22.21), mas

reflete a antiga interpretação judaica de Deute­

também na referência que Jesus faz a seu papel de

ronômio 21.22,23, que fala da crucificação como

Servo isaiano (Lc 22.37; Is 53.12). A necessidade

castigo imposto aos culpados de crimes graves

divina da morte de Jesus consiste no que está es­

(W iLCOx;

crito a respeito dele (Lc 24.26,27,44-47; At 3.18;

da culpa e da inocência estão presentes nas três

324

cf. llQTemple 64.7-9). Questões na área

C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

ocorrências dessa descrição da morte de Jesus.

mas a defende nas próprias circunstâncias, ao

Em cada caso, o falante aponta para a ressurrei­

proporcionar o arcabouço detalhado e a base de

ção como a exculpação de Jesus e a confirma­

sua aceitação.

ção do favor divino sobre ele. A ênfase de Lucas

Duas últimas afirmações ajudam a confirmar

na ação de Deus sugere que ele tem consciência

essa conclusão. Primeira: embora seja verdade

de que Deuteronômio 21.22,23 era considerado

que a ressurreição recebe atenção maior em Atos

a maldição divina proferida contra os culpados;

e que Lucas não associa diretamente o perdão

contudo, ele não alega que Jesus tenha carregado

dos pecados à morte de Jesus, também é verdade

maldição em lugar de outros (cf. G1 3.13). Sua

que a exaltação de Jesus e o perdão dos pecados

atenção está concentrada na eliminação de quais­

não são independentes da cruz. A ressurreição e a

quer dúvidas acerca da defesa de Jesus por parte

exaltação não são vistas como algo abstrato, mas

de Deus.

como um ato divino no Servo crucificado (e.g.,

Aqui somos levados de volta a uma das ques­

At 2.33; 5.30,31). 0 perdão não é proclamado

tões mais prementes sobre o entendimento de

independentemente da morte de Jesus (At 2.38;

Lucas acerca da salvação. A tendência tem sido

3.18-21; 5.30, 31; 10.40-43; 13.38,39; 26.18,23).

supor que, uma vez que Lucas não desenvolve

Segunda e mais importante: os autores do

0 tema da morte de Jesus como adunação e põe

tumam atribuir significado salvífico tanto ã cruz

nt

cos­

na ressurreição sua ênfase maior, ele não entende

quanto ã ressurreição, sem sugerir que o signifi­

a morte de Jesus como adunatória

e

cado de um ofusque o do outro (e.g., Rm 4.25).

a rejeita, ou, embora tenha cons­

Ambas são elementos essenciais da obra salva­

C onzelmann), o u

( V ielhauer

ciência dela, não a acolheu para si (v.

M ar sh all,

1970, p. 169-75).

dora de Deus em Cristo. Se isso ocorre em ou­ tras passagens, não devemos nos surpreender em

Contudo, esses juízos desconsideram o cará­ ter de Atos como narrativa e a função da ênfa­

encontrá-lo em Lucas-Atos. 1.2

0 sofrimento de Jesus como padrão para

se de Lucas na ressurreição. Como já dissemos,

os crentes. Lucas também fornece sinais de que

não é importante o fato de haver poucas referên­

considera o sofrimento e a morte de Jesus um

cias à morte de Jesus como adunação. Na narra­

paradigma para os que creem nele. O chamado

tiva, o personagem que fala e o momento da fala

ao discipulado no Evangelho de Lucas inclui uma

pesam bem mais. Além do mais, Lucas deseja

aplicação geral. Os seguidores de Jesus devem

dar segurança a um círculo de leitores que já re­

tomar a cruz a “cada dia” (Lc 9.23). Quem não

ceberam instrução básica (Lc 1.1-4), segurança

carrega uma cruz não pode ser discípulo de Jesus

que necessariamente imphca confirmação dos

(Lc 14.27). Além do mais, os apóstolos são os que

acontecimentos em que tal instrução se baseou.

estiveram com Jesus nas tribulações pelas quais

Ao se concentrar na ressurreição e na exaltação

ele passou e a quem ele conferiu um reino, assim

de Jesus, Lucas apresenta uma apologia das

como o Pai lhe conferiu (Lc 22.28-30; v.

afirmações de seu evangelho, reforçando e não

D eus ) .

diminuindo o entendimento de que a morte de

está em operação. Assim como é preciso que o

Jesus foi uma adunação vicária. Além do mais,

Messias sofra, é necessário àqueles que creem

r eino de

Algo além de seguir o exemplo de Jesus

o papel central da exaltação de Jesus em Atos é

nele “entrar no reino de Deus” (At 14.22). Essa

indicativo da perspectiva histórico-salvífica, que

instrução de Paulo às igrejas de Listra, Icônio e

é essencial para entender a morte de Jesus como

Antioquia da Pisídia é a única afirmação explícita

adunação. Do ponto de vista de Lucas, a menos

sobre o assunto em Atos. Lucas, contudo, sinahza

que Jesus tenha ressuscitado dentre os mortos,

para seus leitores sua expectativa de sofrimento

não faz sentido falar dessa maneira acerca de

ao descrever as experiências da igreja primitiva

sua morte. E, a menos que haja um juízo vin­

(At 8.1-3) e de seus líderes (At 5.41), do primeiro

douro, não faz sentido falar de perdão de peca­

mártir, Estêvão (At 6— 7), e de Paulo, o “instru­

dos. Lucas não enfrenta uma situação em que

mento escolhido” do Senhor, a quem Jesus pro­

se dá menos valor ã obra adunatória da cruz,

mete revelar “ quanto lhe é necessário sofrer pelo

como acontece com Paulo e o autor de Hebreus,

meu nome” (At 9.16).

325

C rísto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

É notável o paralelo com o tratamento que Lu­

pois Lucas entende que Pilatos havia decidido

cas dispensa à morte de Jesus como adunação.

soltar Jesus, mas enfrentou a oposição do povo

Além de mais, temos inúmeras alusões ao lado de

(Lc 23.13-25; At 2.23; 3.13; 10.39; 13.27,28). Em

um único pronunciamento esclarecedor, que deve

Jerusalém, os líderes são declarados culpados

ser entendido como típico. E, nesse caso, Lucas

(Lc 22.66—23.5; At 3.17; 5.30,31).

oferece ainda menos informações sobre essa ex­

Mesmo assim, essa culpa não exclui ninguém

periência. Obviamente, ele considera que o povo

da salvação. Líderes e povo agiram na ignorân­

de Deus está identificado com o Messias. Isso fica

cia e são convidados a se arrepender, crer e ser

claro quando Estêvão, morrendo, vê o Filho do

batizados, para que recebam as promessas que

homem de pé à direita de Deus (At 7.55) e quan­

Deus fez a Israel (At 2.38,39; 3.17-21; 5.31). Lu­

do as palavras do Jesus ressuscitado atingem o

cas considera que a porta da salvação continua

atônito Saulo (“Por que me persegues?” , At 9.4

aberta para Israel. As palavras finais de Paulo no

etc.). E, assim como Cristo se identifica com eles,

hvro de Atos não o contradizem (At 28.25-28). 0

Lucas deixa implícito que eles se identificam com

endurecimento do coração de Israel não significa

Cristo. A vontade de Deus foi realizada no caso

que nenhum judeu creu ou que chegará a fazê-lo,

de seu Servo [pais], e seus servos [douloi] oram

mas que ainda está por chegar a época em que a

para que também opere neles (At 4.23-31). En­

nação toda se voltará para o Messias (At 3.19-21).

tretanto, Lucas não dá detalhes sobre a nature­ za e a base dessa relação. De uma perspectiva,

2. Hebreus

a perseguição aos crentes é resuhado de darem

A morte de Cristo, formando par com sua exal­

testemunho do nome de Jesus (At 5.41; 9.16;

tação, é o ponto principal e a base da exortação

15.17; 26.9). Há em Lucas também um leve in­

homilética de Hebreus. Para sua interpretação da

dício do papel do Messias como segundo Adão

cruz, o autor extrai seu arcabouço basicamente

(At 26.13). Qualquer que seja sua base em Lucas-

do culto do

Atos, o tema da conformação à morte de Cristo,

dotal do Dia da Expiação (Lv 16). A morte de

que é bem diferente da ideia de imitação, reapa­

Cristo opera a purificação do pecado e capacita

rece nas cartas paulinas, em Hebreus, em IPedro,

a pessoa a se aproximar de um Deus gracioso

AT,

em particular do serviço sacer­

em IJoão e em Apocahpse (v. Apocalipse, Livro

(Hb 4.14-16). O sacerdócio levítico, o tabernáculo

com a interpretação da morte de Jesus como

no deserto e seus sacrifícios prenunciaram a im­

d e) ,

adunação pelo pecado. 1.3

portância salvífica da morte de Cristo, oferecendo

A responsabilidade humana pela morte um padrão ou tipo terreno dos benefícios celes­

de Jesus. A despeito da considerável ênfase de

tiais que Cristo conquistou (Hb 8.5; 9.23). O sa­

Lucas ao propósito divino por trás da morte do

crifício de Cristo é superior aos prescritos na

Messias, ele não diminui a responsabilidade hu­

pois estes são meras cópias e sombras das reali­

mana pela crucificação de Jesus. Aliás, aqui a

dades eternas alcançadas na cruz (Hb 8.5; 9.23;

L ei,

tensão bíblica entre a soberania divina e a res­

10.1). Se, de um lado, o culto do

ponsabihdade humana atinge o nível máximo. A

do, seu mundo conceituai foi mantido solidamen­

cruz não é uma tragédia da qual Deus, de algu­

te como base para entender a morte de Cristo (ao

at

foi suplanta­

ma forma, extrai algum bem: ela faz parte de seu

contrário de

plano, predito pelos profetas. Contudo, os que

na concisa introdução à obra salvadora do Filho.

perpetraram o mal não são eximidos de responsa­

Ela afirma que ele fez “a purificação dos peca­

bilidade, mas chamados a se arrepender.

dos” (Hb 1.3), interpreta a cruz da perspectiva

T u c k et t , v .

1, p. 521). Isso é evidente

Ao contrário dos escritores cristãos do século ii,

sacrificial e prenuncia o tema posterior do perdão

Lucas evidencia cuidadosamente a culpa pela mor­

como efeito inigualável da cruz. Outras maneiras

te de Jesus. Ele considera responsáveis pela morte

de interpretar a morte de Cristo suplementam e

de Jesus todos os que participaram de seu julga­

expandem essa ideia. A morte de Cristo retirou do

mento e execução: Herodes e Pilatos, os gentios e

Diabo o poder da morte. Além disso, abriu para

0 povo de Israel (At 4.23-28; cf. 7.51-53), mas os

todos os filhos de Deus o caminho até a presença

judeus de Jerusalém são especialmente acusados.

divina (Hb 2.10,14-16).

326

C risto, morte de iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

2.1 Um grande sumo sacerdote. 0 autor in­

sacerdotes terrenos [Hb 7.26-28). A entrada de

troduz o tema recorrente de Cristo como sumo

Cristo no céu, associada à sua cruz (Hb 9.12), é

sacerdote à guisa de resumo da encarnação,

seguida do ato de se assentar à direita de Deus,

tema de destaque na primeira parte do material

como ressalta o autor [Hb 1.3; 8.1; 10.11-13).

[Hb 2.1-18; 4.14—5.10). Jesus teve de partilhar

Essas considerações têm grande peso contra a

“carne e sangue”, incluindo o sofrimento da mor­

interpretação de que, em Hebreus, o ministério

te, a fim de “ ser um sumo sacerdote misericor­

de Cristo inclui uma aplicação de seu sangue no

dioso e fiel”. Esse pensamento é recorrente e tem

santuário celeste após sua morte. Pelo contrário,

um desfecho impressionante em Hebreus 5.7-

a totalidade da obra de Cristo é realizada na cruz,

9, quando o autor, relembrando a antíga tradi­

de uma vez por todas [Hb 7.27; 9.28; 10.10). Seu

ção cristã da oração no Getsêmani, descreve a

ministério como sumo sacerdote não implica

experiência totalmente humana de Jesus, que

uma oferta perpétua, mas sua presença diante de

enfrentou a provação da cruz, afirmando que,

Deus a nosso favor [Hb 4.14-16; 6.19,20; 7.26-28;

“com grande clamor e lágrimas, Jesus ofereceu

9.23-28).

orações e súplicas àquele que podia livrá-lo da

Esse ministério celeste possui dois aspec­

morte”. Até mesmo o Filho aprendeu a obediên­

tos inter-relacionados. Primeiro: Cristo serve de

cia no sofrimento e foi “aperfeiçoado” no papel

mediador, intercedendo eternamente por aque­

de sumo sacerdote. Esse atributo o distíngue do

les que, por meio dele, se aproximam de Deus,

sacerdócio terreno e o qualifica a um sacerdócio

e proporcionando graça e misericórdia (Hb 2.18;

eterno [Hb 4.15; 5.2,3; 7.26-28;

p. 104-

4.16; 7.25). Segundo: sua entrada na presença

25). Seu sofrimento o capacita a ter compaixão de

de Deus por nós é uma entrada à frente de nós.

nossa fraqueza moral [astheneia; cf. Hb 5.2; 7.28)

Com suas lutas, sofrimento e morte, ele instituiu

e a nos ajudar [Hb 4.16). O Filho tornou-se não

a peregrinação de seus irmãos até a presença de

apenas um sumo sacerdote misericordioso e fiel,

Deus (Hb 6.19,20). Na humanidade de Jesus, a

mas também “um grande sumo sacerdote” que

humanidade foi “aperfeiçoada” , tendo ele pas­

entrou no céu [Hb 4.14). Este é o tema dominante

sado obedientemente pelo sofrimento e entrado

de Hebreus 7— 10, em que o autor apresenta a

no céu. Em razão do propósito salvador de Deus

superioridade de Cristo tanto no caráter eficaz do

para a raça humana (não por um plano material,

sacrifício que fez “ de uma vez por todas” quanto

como entendem Inácio ou Ireneu), o linguajar do

em sua condição eterna de sumo sacerdote, uma

sumo sacerdote flui e avança sobre a imagem de

justaposição que suscita a questão do ministério

progresso e conquista. Cristo é o “líder do clã”

P eter son ,

[archêgos; cf. Êx 6.14; Nm 10.4; Dt 33.21) no que

eterno de Cristo. 2.2 O sacrifício 2.2.1

diz respeito à salvação (Hb 2.10; 12.2) e é seu

Sangue. Para o raciocínio do autor aperfeiçoador [Hb 12.2). Ele entrou na presença

é fundamental a afirmação de que o sangue

de Deus como precursor, por nós (Hb 6.20). Con­

de Cristo proporciona purificação do pecado

tudo, o papel singular de Cristo como sumo sa­

(Hb 9.14,22,23; 10.22). Nesses contextos, “san­

cerdote não é posto de lado diante dessas outras

gue” significa morte sacrificial, não a vida da ví­

ideias. Só ele é o mediador sem pecado que age

tima, como entendem alguns (v. esp. Hb 9.15-22;

misericordiosamente com pecadores (Hb 2.17;

cf. Hb 10.5,10, em que aparece o termo paralelo

7.26-28). O caminho para a presença de Deus ba­

“corpo”). Ao esclarecer a obra de Cristo, o autor

seia-se no perdão assegurado na cruz, não numa

não faz uso de todos os aspectos do ritual adu­

divinização da humanidade. E o perdão de uma

natório e, em particular, não faz menção de uma

vez por todas assegurado possui sua aplicação na

apresentação de sangue no santuário celeste [cf.

ajuda essencial que propicia aos “filhos” no difí­

Lv 16.15-19). Cristo entra nos céus não com seu

cil caminho para a glória.

sangue, mas por meio de seu sangue, ou seja,

2.2.2

Oferta. Ao expor a relação entre os sa­

por meio de sua morte na cruz (Hb 9.12). Além

crifícios da antiga aliança e a morte de Cristo, o

do mais, a finalidade da oferta de Cristo estabe­

autor geralmente emprega o bem conhecido vo­

lece uma distinção entre seu ministério e o dos

cabulário da “oferta”. No entanto, é significativo

327

C risto , morte de iií : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

que, no início e na conclusão do argumento prin­

0 castigo deles. Não significa apenas que na cruz

cipal, apareçam termos teológicos interpretativos.

ele os representou, mas que o castigo destinado a

O autor introduz o papel de Jesus como sumo

eles passou a ser dele, de modo que agora aguar­

sacerdote, descrevendo seu propósito de “fazer

dam salvação, não juízo condenatório (contra

propiciação pelos pecados do povo” (eis to hi-

H o o ke r ) .

laskesthai tas hamartias tou laou, Hb 2.17). Tem

sacrificial, aqui o autor pressupõe a realidade e a

sido o tema de amplo debate se o verbo grego hi-

validade desse ato substitutivo (sobre esse tópi­

laskesthai significa, no grego bíblico, a propiciação

co,

Assim como faz com toda a estrutura

V. H i l l ; M o r r is , 1 9 6 5 ).

2.2.3

da ira divina, como no grego secular, ou a expiação

Adunação. Como ocorre em outros

de pecados. No entanto, uma vez que se reconhe­

contextos do

ça que a eliminação dos pecados desvia a ira divi­

terpretada como adunação. Deus é não apenas

n t,

em que a morte de Cristo é in­

na, como é 0 caso aqui (v. 2.2.3 abaixo), chega-se

o objeto do sacrifício de Cristo (Hb

ã ideia da “propiciação”. Excluir o desvio da ação

também seu sujeito (Hb

punitiva de Deus é eliminar o sacrifício bíblico de

arcabouço baseado na aliança (e.g., Hb

seu contexto aliancístico, no qual o meio de propi­

Foi Deus quem ordenou o ministério sacerdotal

ciação é uma dádiva de Deus (e.g., Lv 17.11). Nos

e escolheu Cristo como sumo sacerdote eterno

9 .2 8 ),

2 .1 7 ),

mas

como evidencia o 8 .6 - 1 3 ).

escritos bíblicos, o entendimento pessoal e alian­

(Hb

cístico acerca do relacionamento divino-humano

cado (Hb

Ele ofereceu Cristo para levar o pe­

continua decisivo, não importando quão significa­

ofereceu seu corpo para a santificação do povo de

5 .1 - 6 ).

9 .2 8 ),

e, pela vontade de Deus, Cristo

tivo sejam o “espaço” e os implementos de culto,

Deus (Hb

como evidencia a íntima associação entre sacri­

para o perdão de pecados, mas também a supriu

fício e perdão (e.g., Êx 30.30-32; Lv 4.20; caps. 26,

em seu Filho.

1 0 .1 0 ).

2.3.

31 e 35; v. esp. Lv 16.15-22). Na passagem em questão, está claro que para

Deus não só exigiu uma morte

O efeito da morte de Cristo. À seme­

lhança dos sacrifícios da Lei, a morte de Cristo

o autor a morte de Jesus desvia a ira de Deus.

“aduna” (reconcilia), “ purifica” e “santifica”. No

É muito significativo que, sem dar justificativa,

entanto, somente a cruz, não os sacrifícios prece­

ele alterne entre perdão dos pecados e elimina­

dentes, assegura o perdão (Hb

ção do pecado, tudo no contexto da linguagem

vez que os pecados tenham sido eliminados e

sacrificial (Hb 9.22,26; 10.4,18). Se as cláusulas

perdoados, não há mais necessidade de sacrifício

1 0 .4 ,1 1 ).

E, uma

da aliança forem rejeitadas, a ira divina será di­

(Hb

rigida contra os desobedientes e incrédulos (Hb

fício e o sacerdócio de Cristo trazem “perfeição” ,

2.1-4; 3.7-19; 4.7,8; 12.25-29). A sintaxe dessa

em contraposição aos sacrifícios da Lei.

passagem tem paralelo na

lx x

em apenas umas

8 .1 2 — 9 .2 6 ; 1 0 .1 8 ).

2.3.1

Da mesma forma, o sacri­

Perdão. Em Hebreus, “ santificar” em

poucas passagens de Eclesiástico, nas quais a

geral significa não a operação de melhoria

propiciação está intimamente associada a evitar

moral progressiva, mas perdão (Hb

a ira de Deus (v. esp. Eo 3.30; 28.5). Além dis­

1 0 .1 0 ,2 9 ;

so, o autor destaca que a misericórdia é um dos

em foram santificados “ uma vez por todas” por

principais deveres do sumo sacerdote (Hb 2.17;

meio do oferecimento do corpo de Jesus Cristo

cf., contudo, Hb

5.2), deixando implícito que o juízo estrito é a

(Hb

alternativa ã mediação.

perdão dos pecados (v. Hb

A segunda passagem, em que o autor interpre­

1 0 .1 0 ).

ney (p.

126)

1 2 .1 4 ).

2 .1 1 ; 9 .1 3 ;

Os que cre­

Essa santificação é nada mais que o 1 0 . 2 ,1 8 ).

James Den-

comenta; “ Na Epístola aos Hebreus

ta o linguajar relativo a “ oferta”, corrobora essa

a palavra

leitura de Hebreus 2.17. Ao concluir sua apresen­

possível ao vocábulo paulino SiKaioOv. A santifi­

ó y ióÇ e iv

corresponde o mais próximo

tação da morte de Cristo como sacrifício superior,

cação de um autor é a justificação do outro; e o

o autor descreve a cruz como ato em que Cristo

TTpoaoycjyri, ou acesso a Deus, que Paulo enfatiza

se ofereceu “uma só vez para levar os pecados de

como a bênção básica da

muitos” (Hb 9.28). Aqui ele obviamente recorda

toda parte em Hebreus como o ato religioso bási­

a oferta substitutiva do Servo isaiano (Is 53.4-12).

co de ‘aproximar-se’ de Deus por meio do Grande

Ao carregar os pecados “ de muitos” . Cristo levou

Sumo Sacerdote”.

328

ju stificação,

aparece em

C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse

2.3.2

Perfeição. A “perfeição” dos crentes sig­ [metathesis, Hb 7.12; 11.5; cf. Hb 1.10-12). Por

nifica sua participação nas bênçãos salvadoras

esse motivo, em Hebreus a salvação não envolve

da era vindoura mediante o perdão conquistado

uma jornada do material para o imaterial, mas do

na cruz. Não era possível alcançar a “perfeição”

mundo presente para a era vindoura.

por meio do sacerdócio levítico, pois a Lei não

De modo correspondente, embora com nu­

tomava nada “perfeito”, nem tinha condições

anças variadas, o vocabulário em torno do con­

de “aperfeiçoar” os que ofereciam sacrifícios

ceito de “perfeição” tem ímpeto escatológico. O

(Hb 7.11,19; 10.1). Mas com um timco sacrifício

contraste entre a tenda terrena e o maior e “ mais

Cristo “aperfeiçoou para sempre” os que estão

perfeito” tabernáculo em que Cristo entrou quan­

sendo santificados (Hb 10.14). As provisões da

do ofereceu seu sacrifício é estritamente escato­

Lei eram temporárias e tinham apenas efeito

lógico (Hb 9.11). Por isso, o tema da perfeição

externo, purificando “a carne” e as cópias das

abordado pelo autor é essencialmente histórico-

coisas celestiais. Mas com sua morte Cristo al­

salvífico, ressaltando a conclusão dos propósitos

cançou a redenção e purifica a consciência. Agora

redentores de Deus. Em virtude do plano divino,

exaltado, apresenta-se “por nós” diante de Deus

a salvação eterna e completa só ocorre nestes úl­

(Hb 9.1-15,23-28).

timos dias por meio do Filho (Hb 11.40; 1.2; cf.

Como termo escatológico, a “perfeição” en­

Hb 9.10).

volve uma distinção fundamental entre as ordens

A perfeição dos crentes é obtida à custa da

material e espiritual, mas não um dualismo ir­

perfeição do Filho, mediante sofrimento (Hb 2.10;

restrito. Por isso, é um equívoco interpretar He­

5.9; 7.28). Aqui também o sentido escatológico é

breus com base no platonismo ou no

g n o s t ic is m o ,

básico. A condição de Cristo não ter pecado ja­

como era comum, a despeito do óbvio emprego

mais é questionada em Hebreus — na verdade, é

de terminologia reUgiosa helenista. A oposição

realçada (Hb 4.15; 7.26-28; 9.14). Sua “perfeição”

“verticeil” não é absoluta, mas aparece como um

representa seu progresso até o pleno papel de me­

elemento, ainda que fundamental, na estrutura

diador da salvação (Hb 7.26-28). Ao ser aperfei­

da história da salvação.

çoado, 0 Filho atinge sua posição escatológica e

Em Hebreus, a esperança não tem o olhar

aguarda a sujeição de todas as coisas debaixo de

flxo numa eternidade desencarnada, mas numa

seus pés (Hb 1.13; 10.13).

transformação em que a criação, subvertida pelo

Acima de tudo, a perfeição dos crentes signi­

pecado e pela morte, passa a ser habitação eterna

fica acesso a Deus e participação na Jerusalém

para Deus e seu povo. 0 autor diz que a tenda

celestial (Hb 7.19; 12.22-24). A perfeição também

na qual Cristo entrou como sumo sacerdote não

assume um sentido cognitivo em Hebreus 5.11—

pertence a esta criação (Hb 9.11), debcando implí­

6.3, em que a maturidade envolve a capacida­

cito que Cristo entrou em uma nova criação. As

de de entender a “palavra da

realidades celestiais são, portanto, realidades es­

essa perfeição da mente e do coração sem dúvida

j u s t iç a ” .

Contudo,

catológicas. De modo semelhante, numa surpre­

também está presa à e s c a t o l o g ia , pois mostra que,

endente ilustração, ele equaciona a carne física

entre outras coisas, “provaram” o dom celestíal e

de Jesus com o véu diante do Lugar Santíssimo,

os poderes da era vindoura (Hb 6.4-8).

deixando claro que o caminho “não em decompo­

Como acontece com o tema da santificação

sição” iprosphatos] e “vivo” que leva à presença

em Hebreus, a “perfeição” dos crentes, que Cristo

divina não é outro senão o outrora crucificado e

realizou com seu sacrifício, implica, em primeiro

agora ressurreto Jesus (Hb 9.11; cf. Hb 6.19,20).

lugar, a remissão dos pecados (Hb 7.11,19; 9.9;

O mundo vindouro é físico, como demonstra a

11.40;

esperança de uma “superior” ressurreição den­

observação feita acima de que a categoria funda­

tre os mortos (Hb 11.35). Deus “ainda uma vez”

mental do autor para interpretar a morte de Cristo

abalará a estrutura da presente criação, céus e

acha-se no perdão que ela opera. A “perfeição”

V.

esp. Hb 10.14-18). Isso corresponde à

terra (Hb 12.26). As coisas criadas estarão sujei­

dos crentes implica a insuperável purificação es­

tas não a uma “ mudança” (como trazem algu­

catológica realizada na cruz (Hb 10.14). Assim, a

mas versões), mas a uma “transposição” radical

diferença entre a perfeição do Filho e a perfeição

329

C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

dos crentes pode ser entendida. Ele foi aperfei--

aliança. A inscrição da lei de Deus no coração,

çoado mediante sofrimento; eles são aperfeiçoa­

lá em Jeremias, é definida como o ato de “co­

dos pelo sofrimento dele. Dessa maneira, eles

nhecer a Deus” , e esse conhecimento se baseia

não são poupados do difícil caminho para a gló­

no perdão dos pecados (Jr 31.34; Hb 8.12). Na

ria (Hb 2.10; 12.1-13), mas por meio de Jesus já

segunda vez que menciona o texto de Jeremias

participam do destino que é deles. Ele é o aperfei­

(Hb 10.15-18), o autor ressalta a finalidade do

çoador da fé, visto que o fato de ter atingido sua

sacrifício de Cristo, que, ao proporcionar o per­

posição escatológica assegura que eles também

dão dos pecados, põe de lado as provisões da Lei.

atingirão (Hb 12.2).

Nessa citação, o autor inclui a promessa divina

2.3.3

Transformação humana. A redenção eter­ de implantar suas leis no coração de seu povo, o

na efetuada em Cristo se reflete na experiência

que os lembra de que a Lei é incapaz de fazê-lo

do crente. Em contraposição aos sacrifícios ofe­

e impUcitamente apresenta a renovação interior

recidos sob a Lei, a morte de Cristo purifica a

como resultado do perdão dos pecados.

consciência, não apenas a “carne”, removendo

Também é importante observar que, para He­

0 pecado e a culpa (Hb 9.9,14; 10.2,22). É ne­ cessário 0 reconhecimento subjetivo da realidade

breus, a igreja, “a comunhão dos santos” , tem

objetiva e externa. No entanto, o sentimento de

perdão significa acesso ao trono da graça, partici­

perdão não acontece automaticamente. O acesso

pação na cidade celestíal e peregrinação comuns

a Deus alcançado pela morte de Cristo deve ser

(Hb 3.12-14; 10.24,25; 12.22,23).

origem no perdão que cada pessoa recebeu, pois

obtido e mantido pela fé. Aliás, o caminho da pro­

2.3.4 Libertação. Assim como o papel de Cris­

va trilhado pelos crentes exige que se ponham ã

to como sumo sacerdote extrapola para o de pa­

disposição da ajuda divina. A incredulidade, não

ladino, 0 autor apresenta a obra de Cristo na cruz

a fé, é passiva e morosa. A exortação básica da

como o livramento das mãos do Diabo, que tínha

fé é 0 apelo a ter confiança no perdão que a cruz

poder sobre a morte (Hb 2.14,15). Embora não explique a fonte do poder do Diabo, sem dúvi­

conquistou (Hb 3.6; 4.16; 10.35). Em um padrão semelhante ao das cartas de

da pressupõe um antecedente bíblico, em que o

Paulo, em Hebreus o perdão dos pecados não é

Diabo incita os seres humanos a pecar (Gn 3.1;

uma dádiva isolada, mas resulta em serviço a

ICr 21.1) e os acusa diante de Deus (Zc 3.1-5).

Deus. Verbos no modo indicativo que falam de

O contexto imediato sugere que o poder do Diabo

perdão constituem a base do imperativo. Isso é vi­

também tem origem nas acusações que ele faz,

sível na forma em que o autor vê o sofrimento. Os

pois a ajuda que Cristo estende a seus irmãos

crentes suportam a adversidade não para se tor­

consiste em fazer propiciação por seus pecados

narem “filhos” , mas porque já são “ filhos”. Se não

(Hb 2.17,18; cf. Ap 12.9,10). De igual modo, é

recebem a “ disciplina”, não são “ filhos”. Como

bem provável que o autor pressuponha uma h-

pai amoroso, Deus opera a justiça com eles, o que

gação íntima entre a consciência culpada e o

produzirá fruto pacífico (Hb 12.4-11). De modo

medo da morte, que por toda a vida sujeitou

semelhante, os crentes são peregrinos, porque já

os seres humanos à escravidão (Hb 2.14,15). 0

têm seu verdadeiro lar na cidade celestial (Hb 3.6;

“ medo da morte” em Hebreus tem em vista o juí­

12.18-24). Seu progresso está garantído exclusiva­

zo divino que se segue a ela (Hb 9.27; 10.27,31;

mente por causa de Cristo, o qual, na condição de

cf. Hb 12.21). O sacrifício de Cristo purifica a

Grande Sumo Sacerdote, propicia a ajuda graciosa

consciência de “obras mortas”, ou seja, “obras

de que necessitam (Hb 2.16-18; 4.16; 7.25).

que trazem o

j u íz o

de morte” , para que os cren­

Em Hebreus, portanto, a transformação do co­

tes sirvam ao Deus vivo (Hb 9.14). Assim como

ração humano baseia-se no perdão dos pecados.

o perdão, como realidade objetiva apropriada

Isso é especialmente visível nas repetidas referên­

subjetivamente, traz a liberdade para servir, em

cias à promessa da “nova aliança” presentes no li­

ambos os aspectos, objetivo e subjetívo, a culpa

vro de Jeremias (Jr 31.31-34). Em Hebreus 8.7-12,

torna a pessoa um escravo.

0 autor cita a passagem para demonstrar a in­

2.3.5 Ratificação da aliança. J. J. Hughes

suficiência da Lei, a “primeira” e “antiquada”

(p. 27-66) defende de forma convincente o

330

C risto , morte de

iii:

A tos , H ebreus , C artas G erais, A pocaupse

argumento de que, em Hebreus 9.16,17, diathêkê

IPe 2.21; 3.18, textos em que leituras variantes

mantém o sentido bíblico usual de “aliança”

atestam a tendência de os escribas “corrigirem”

(em vez da costumeira tradução “testamento”)

0 fraseado).

e que o correto contexto para a metáfora é o ri­ tual de sacrifício da aliança refletido no

Ar

Pedro desenvolve de três maneiras o tema da

(e.g.,

excelência da inocência e da humildade de Cristo.

Gn 15.9-21). Os versículos seriam então tradu­

Em linguagem que sugere uma confissão comum,

zidos assim: “ Porque, onde há uma aliança, é

ele lembra seus leitores do favor imerecido que

necessário que a morte daquele que a ratifica

receberam por meio do sofrimento de Cristo por

seja atestada [ou representada], pois uma alian­

eles. O Cristo sem pecado operou a redenção ao

ça é confirmada com animais mortos, visto não

suportar mansamente a injustiça. Essa redenção,

ser válida enquanto o ratificador ainda vive

por isso, é digna da maior admiração. 0 segun­

[i.e., não passou pela morte representativa]”.

do tema proeminente está ligado a essa ideia: em

A morte de Cristo proporciona o sacrifício rati­

seu sofrimento e morte. Cristo libertou os crentes

ficador que é pré-requisito para o estabeleci­

de seu passado vazio para agirem como ele, des­

mento da aliança nova e eterna (Hb 9.15-22),

sa forma agradando a Deus. Finalmente, Pedro

bem como para a redenção das transgressões co­

aponta para as “glórias” escatológicas que se se­

metidas sob a “primeira aliança” , a Lei.

guem à cruz. Embora rejeitado pelos desobedien­

Mas por que o autor caracteriza dessa forma a

tes, Cristo é precioso para Deus, que o ressuscitou

morte de Cristo? A partição ritual dos cadáveres

dos mortos e o exaltou. Os crentes aguardam com

de animais significava o destino que aguardava a

fé e esperança a revelação da glória de Cristo, na

parte ratificadora, caso a pessoa violasse os ter­

qual serão libertos e justificados. A carta serve,

mos da aliança. Portanto, a menção ao sangue de

portanto, para encorajar os cristãos gentios que

Cristo como ratificação sem dúvida antecipa as

estavam sob pressão e ameaça de perseguição a

advertências do juízo aterrorizante que sobrevi­

perseverar na fé e na excelência de conduta.

rá sobre os que conscientemente rejeitam a nova

Os três temas caracterizam cada uma das

aliança, destacada pelo autor em Hebreus 10 (cf.

três confissões da cruz de Cristo que aparecem

Jr 34.18). Ao fazê-lo, ele emprega a fórmula de

na carta (IPe 1.18-21; 2.21-25; 3.18). A cruz é

ratificação da aliança que usou em Hebreus 9.20:

ao mesmo tempo fonte de perdão, base para a

“ Quanto maior castigo merecerá quem insultou o

conduta e fundamento da esperança escatológica.

Filho de Deus e tratou como profano o sangue da

Além disso, nota-se ao longo da carta certa pro­

aliança pelo qual foi santificado” (Hb 10.26-30).

gressão. Em IPedro 1.18-21, a ênfase recai sobre

Existe, portanto, uma referência implícita ã ira

0 contraste entre a vaidade da conduta passada

divina em Hebreus 9.16,17, que corresponde ao

dos leitores e o valor extraordinário da morte re­

método usual do autor ao apresentar um tema:

dentora de Cristo. Em IPedro 2.21-25, embora se

ele introduz uma ideia antes de desenvolvê-la (cf.

mantenham esses elementos, a atenção está vol­

a descrição de Jesus como sumo sacerdote em

tada para o padrão de vida que Cristo, com sua

Hb 2.17,18, que é, então, seguida da exposição

mansidão, estabeleceu para os crentes. Na ter­

que se inicia em Hb 5).

ceira passagem (IPe 3.18 e seu contexto), Pedro destaca a ressurreição justificadora de Cristo e a

3. IPedro

salvação escatológica dos que creem nele.

Pela perspectiva de sua suprema beleza moral e

Essas passagens talvez representem hinos ou

de seu inestimável valor, a morte de Cristo ou,

confissões que o autor utilizou (v.

na linguagem da carta, seu “ sofrimento”, serve

qualquer modo, em cada caso se percebe o voca­

de tema recorrente de IPedro. Em outros luga­

bulário característico do autor, refletindo seus in­

res, a morte de Cristo é, com frequência, descrita

teresses particulares e (como alegamos) contendo

adoração)

. De

como seu sofrimento (esp. nos Evangelhos, Atos

material produzido por seu raciocínio na carta.

e Hebreus; v. In, Ef, 7.2; In, Tr, prescr.; In, Fi, 9.2;

Assim, embora as passagens reflitam tradições

2CÍ, 1.2), mas IPedro o faz de modo exclusivo,

cristãs antigas, não se prestam à reconstrução de

até mesmo alterando fórmulas tradicionais (v.

estratos subjacentes de pensamento. Da forma

331

C risto , morte de ii i : A tos , H ebreus , C artas G érais , A pocalipse

que se encontram na carta, são confessionais na

gentios a segurança de que agora se tornaram

natureza e na forma e podem muito bem ter sido

povo de Deus e de que isso se deu por causa da

elaboradas com vistas à catequese.

morte de Cristo. Também estão implícitas noções

É necessário mencionar rapidamente o debate

de purificação e perdão (cf. Bn, 5.1), visto que a

em torno da descida de Cristo aos mortos, se ela

aspersão de sangue também relembra o Dia da

ocorreu após a morte ou após a ressurreição. Tal­

Expiação (Lv 16; v. tb. a cerimônia da novilha

vez alguma forma da interpretação agostiniana

vermelha, Nm 19).

da passagem, embora não desfrute hoje de gran­ de prestígio, seja a mais satisfatória

(F

e in b e r g

e

Na primeira confissão cristológica ( 1Pe 1.18-21) a referência ao sangue de Cristo como o de um

por ser a que explica melhor

“cordeiro sem defeito e sem mancha” (IPe 1.19)

a referência a Noé e à evangelização dos mor­

faz lembrar o sistema sacrificial (e.g., Lv 9.3), e

tos em IPedro 4.6. Essa interpretação encontra

em seu aspecto pessoal e moral apresenta asso­

grande apoio na menção ao Espírito de Cristo nos

ciação com 0 Servo Sofredor de Isaías 53. Enten­

profetas (IPe 1.11), algo singular entre os autores

der a morte de Cristo como adunação substitutiva

do

Nessa leitura. Cristo não desceu ao inferno

está logo abaixo da superfície da imagem bíbUca

ou ao mundo inferior, mas, pelo Espírito, esteve

que a passagem evoca. 0 foco da confissão acha-

presente na pregação de Noé. Os “espíritos em

se no contraste entre a conduta inútil do mun­

prisão” são as pessoas que foram desobedientes

do pagão e o “precioso sangue [...], o sangue de

na ocasião (IPe 3.20; cf. Hb 12.23).

Cristo”.

G

rudem;

n t

.

3.1

cf.

D

alto n] ,

O sofrimento de Cristo como adunação.

A soteriologia é profunda. Como observa L.

Em contraposição a Hebreus, o tema do perdão

Goppelt (p. 117), a “herança ancestral da condu­

não é desenvolvido em IPedro. Assim mesmo, é

ta vazia” (IPe 1.18) descreve sociologicamente

sem dúvida imi elemento essencial da confissão

o que a tipologia Adão-Cristo (Rm 5.12-21) afir­

acerca de Cristo que Pedro e seus leitores parti­

ma teologicamente. Aqui existe algo além de um

lham e sobre a qual ele desenvolve seu raciocí­

exemplo negativo que possa ser seguido ou rejei­

nio. A importância da cruz como meio de perdão

tado. A humanidade está presa a um padrão de

é visível na saudação inicial, que descreve o ob­

vida vazio e repreensível. No entanto, a obra re­

jetivo salvífico derradeiro de Deus para seu povo

dentora de Deus em Cristo suplantou a condição

como “a obediência e a aspersão do sangue de

humana decaída. Antes da fundação do mundo,

Jesus Cristo”.

Cristo e sua obra salvadora foram determinados

O primeiro elemento do objetivo divino, a

{proginõskein], e esse sacrifício inestimável foi

“obediência” , descreve de forma eloquente a fé

feito por aqueles cujos feitos eram inúteis. Entre­

(v. IPe 1.22), aqui representada como ato básico

tanto, uma vez que o juízo imparcial de Deus está

de obediência (IPe 1.7-9; ao contrário de

a r l in g -

diante dos cristãos, estes devem se portar com

com a ideia subjacente de que a fé deve se

temor reverente, sabendo o preço incalculável da

refletir em conduta santa (IPe 1.14). Essa ma­

redenção e a eficácia que esse custo implica. Aqui

neira de falar talvez seja por influência paulina,

0 imperativo resulta do indicativo, tão paradoxal

pois o termo “ obediência” é pouco frequente fora

quanto em Paulo. A força sustentadora da exorta­

de suas cartas. E o emprego de “ obediência” no

ção é a fé, não a mera gratidão (IPe 1.21), assim

ton) ,

G

sentido de “fé” é inconfundivelmente pauUno.

como a fé, que acertadamente tem grande estima

No início da carta, surge um padrão que é proe­

por Cristo e o ama, é introduzida na carta como a

minente nas cartas de Paulo e comum ao

mais importante virtude dos cristãos (IPe 1.5-9).

nt

em

geral. O perdão concedido pela cruz não é uma

O tema da morte de Cristo como adunação

dádiva isolada: está ligado à nova obediência. A

substitutiva reaparece explicitamente na segun­

carta concentra-se na nova obediência, mas sua

da confissão, mais longa (IPe 2.21-25). “Cristo

base é o perdão operado pela morte de Cristo.

[...] sofreu por vós” é o que Pedro diz aos leitores

A segunda expressão, que tem nuanças da

(IPe 2.21), ideia expandida na confissão seguinte.

cerimônia pactuai descrita em Êxodo 24 (cf.

Essa confissão é elaborada em torno de Isaías 53 e

Hb 9.13; 10.22; 12.24), transmite aos leitores

representa o uso mais extenso da passagem no

332

nt

.

C risto , morte de iii ; A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

Tematicamente, é semelhante à citação de Isaías 53.7,8 em Atos 8.32,33, mas vai além justamente

3.2

0 sofrimento de Cristo como padrão para

o procedimento cristão. Já observamos que em

na sua referência à natureza substitutiva da morte

IPedro a morte de Cristo é interpretada como

de Cristo e dos benefícios salvíficos dessa morte;

adunação pelo pecado em conexão com a nova

‘‘ [Cristo] levou nossos pecados em seu corpo so­

obediência dos crentes e também como o funda­

bre o madeiro” (IPe 2.24; Is 53.12). A expressão

mento dessa obediência. Também observamos

“ sobre o madeiro” reflete a terminologia bíblica

que 0 interesse da carta é basicamente exortativo,

empregada pelos cristãos primitivos para desig­

como se vê nas frequentes referências ao “pro­

nar a vergonha associada à cruz, refletindo em

cedimento” (o substantivo e o verbo aparecem

particular a maldição de Deuteronômio 21.23 (v.

sete vezes).

At 5.30; 10.39; G13.13; cf. Js 8.29, l x x ; Et 7.9, l x x ) .

Na primeira confissão, essa ideia aparece de

A ideia subjacente a IPedro 1.2 e 1.19 torna-

forma direta, mas não elaborada. A morte de Cris­

se explícita agora. Cristo, o Servo sem pecado de

to proporcionou redenção (IPe 1.18) e liberdade

Isaías 53, carregou na cruz os pecados dos que

da escravidão, que, pelo contexto, recorda não

creem. Mais que na confissão anterior, a atenção

apenas práticas vigentes à época para conquistar

concentra-se no novo padrão de procedimento

a manumissão, mas também especificamente o

que a cruz de Cristo assegurou a seu povo. Entre­

êxodo do Egito. Estão presentes associações não

tanto, como antes, o caráter substitutivo e único

só com 0 sistema sacrificial (e o Servo Sofredor

da morte de Cristo propicia a base para a exor­

de Is 53), mas também com o cordeiro pascal

tação, de modo que o sofrimento de Cristo não

(Êx 12). Escravidão é escravidão ao procedimento

é apenas um exemplo. A ideia de perdoar que

pecaminoso, do qual o “sangue” de Cristo garan­

aparece no modo indicativo em IPedro 2.21,24

te libertação.

é estendida ã vida transformada e reunida com

Como já assinalamos, com o avançar de ên­

verbos no modo imperativo nas declarações que

fases, a segunda confissão (IPe 2.21-25) faz do

funcionam como síntese. Ele carregou nossos

padrão do sofrimento de Cristo seu tema básico.

pecados, “para que, mortos para o pecado, pu­

Talvez com um olhar retrospectivo para a heran­

déssemos viver para a justiça” (IPe 2.24). Numa

ça ancestral corrompida (IPe 1.18), Pedro mostra

notável semelhança com Paulo, Pedro entende

que Cristo deixou um modelo, o qual os cren­

que a morte de Cristo inclui a morte dos crentes

tes devem seguir, acompanhando suas pegadas

para o pecado, que dá origem a uma nova vida.

(IPe 2.21). A descrição seguinte, da mansidão

Nas palavras de N. Dahl, isso não é imitação, mas

de Cristo diante do sofrimento, deixa claro que o

conformação. Confirma-se aqui a afirmação de

discipulado consiste em conformidade com o ca­

Goppelt (p. 206-7) de que a interpretação da mor­

ráter de Cristo. Pedro não pressupõe que todos os

te de Cristo da perspectiva de uma mera imitatio

cristãos sofrerão crucificação ou que todos serão

não surgiu senão no século ii.

perseguidos (IPe 1.6; 3.14; 4.14-16). Ele espera

A terceira e sucinta descrição da morte de

que, se possível, evite-se a perseguição, e não os

Cristo como adunação vicária aparece na breve

estimula a procurar maus-tratos ou o martírio,

confissão encontrada em IPedro 3.18. A expres­

0 contrário do que Inácio fez, por exemplo. No

são “ Cristo morreu uma única vez pelos pecados

entanto, pressupõe que não se pode fugir a todo

\peri hamartiõn] ” reflete, mais uma vez, a lingua­

sofrimento e que os chamados a suportá-lo de­

gem sacrificial (e.g., Lv 16.3,5,9,

A referên­

vem agir da mesma forma que Cristo. A longa

cia, em seguida, ã morte do “justo pelos injustos”

referência ao Servo Sofredor de Isaías 53 está fun­

(cf. Is 53.11) complementa a ideia de substitui­

damentada aqui e é expandida com a recusa de

lxx) .

ção. Como nas confissões anteriores, Pedro inter­

Cristo em retahar verbalmente; “Ao ser insultado,

preta a cruz sob a ótica sacrificial, como um ato

não retribuía o insulto, quando sofria, não ame­

adunatório que traz graça e perdão. 0 gritante

açava”. Pelo contrário, confiava a vida a Deus, o

contraste moral entre Cristo e os que ele resgatou

justo juiz (IPe 2.23).

reforça o tema contínuo do mérito do sofrimento

Nessa

de Cristo.

virtude

extraordinária.

Cristo

deu

exemplo para os crentes (cf. IPe 3.9,10; 4.19). No

333

C risto , morte de iii ; A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

entanto, como observamos, Pedro não exige mera

Cristo” (IJo 2.22; 5.1,5) e que “Jesus Cristo veio

imitação; a salvação é entendida como conforma­

em carne” (IJo 4.2). Essa negação implícita da

ção ao caráter de Cristo; “Pelas suas feridas fos­

necessidade da cruz aparece lado a lado com a

tes sarados” (IPe 2.24). Cristo permanece ativo,

afirmação do grupo rebelde de que se dizia sem

guardando e guiando seu povo, “porque vivíeis

culpa e sem pecado (IJo 1.8-10). Respondendo

como ovelhas desgarradas, mas agora retornastes

a isso, 0 autor insiste não apenas na confissão

ao Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). Por

de que Jesus é o Cristo, mas também no papel

meio da cruz. Cristo garantiu que seu povo vies­

fundamental que a morte de Cristo desempenha

se a ser completo, e essa completude consiste na

na obtenção da salvação. Em particular, a refe­

conformidade a seu justo caráter (v. IPe 2.20).

rência inicial e final ã cruz em IJoão tratam desse

3.3

O sofrimento de Cristo e a glória escato­ erro, especificando que o “ sangue” de Jesus Cris­

lógica De uma forma que lembra Lucas-Atos (v.,

to é essencial à confissão cristã (IJo 1.7; 5.6,8).

e.g., Lc 24.26,46), Pedro descreve o interesse dos

Percebe-se aqui certa ênfase na realidade física da

profetas sobre “os sofrimentos que sobreviriam a

morte de Cristo e a seu efeito salvador, apresen-

Cristo e a glória que viria depois desses sofrimen­

tando-o como sacrifício adunatório.

tos” (IPe 1.11). A rejeição a Cristo por parte dos

0 fato de a primeira das referências ã mor­

seres humanos foi suplantada pelo prazer de Deus

te adunatória de Cristo estar no início da carta

em Cristo e em seus méritos (IPe 2.4,19; 3.4,12).

(IJo 1.7—2.2) assinala a importância desse tópico

Embora morto na carne, foi vivificado pelo Espírito

para o discurso todo. A linguagem litúrgica surge

(IPe 3.18) e exaltado ã direita de Deus (IPe 3.22).

imediatamente, o que transmite associações com a

Os cristãos que partilham de seu sofrimento de­

morte violenta de Cristo; “0 sangue de Jesus, seu

vem, portanto, se regozijar, pois essa dificuldade

Filho, nos purifica de todo pecado” (cf. Lv 8.15;

prenuncia bênção escatológica para eles por oca­

16.30). O autor tem em vista a restauração do ser

sião da revelação da glória de Cristo (IPe 4.13;

humano, impulsionada pelo perdão dos pecados,

1.7). Assim como a excelência moral de Cristo re­

como sugere ao elaborar a ideia em IJoão 1.9 e ao

cebeu a recompensa divina, os que partilham do

desenvolver o entendimento de que a obra de Cris­

sofrimento dele terão parte em sua glória.

to nos liberta do pecado (IJo 2.1,2; 3.1-10).

4. IJoão

conclui que ela é hilasmos pelo pecado, em tor­

A morte de Cristo em seu significado sacrificial e

no do que tem havido considerável debate (como

adunatório é também fundamental para a mensa­

também no caso do vocábulo afim hilaskesthai,

A interpretação sacrificial da morte de Cristo

gem dessa carta. O autor escreve a uma comuni­

Hb 2.17;

dade de fé confusa e exausta que foi prejudicada

transmite apenas a ideia de expiação pelo peca­

por alguma forma de docetismo. As afirmações

do, ou também a de propiciação da ira divina?

do grupo desobediente e a condição da comu­

Embora a ira apareça nos antecedentes, nessa

nidade remanescente devem ser testadas com

carta a morte não é um efeito impessoal, mas

base no testemunho apostólico da encarnação e

0 resultado do juízo divino (IJo 2.28; 4.17,18),

da morte adunatória de Cristo. A cruz constitui

consequência da desobediência e da increduli­

a revelação escatológica do amor de Deus, que

dade (IJo 2.17; 3.14). Cristo é nosso Advogado

V.

2.2.2 acima). Será que a expressão

deve determinar a confissão e a conduta dos

(paraklêtos) junto ao Pai (IJo 2.1), e a defesa bro­

que lhe pertencem. A fé e a obediência estão

ta implicitamente do fato de ele ser o hilasmos

inerentemente ligadas entre si não por simples

pelo pecado (IJo 2.2). Por isso, é melhor enten­

ética de obrigação ao padrão de comportamen­

der que 0 termo inclui o sentido de propiciação

to de Jesus, e sim, mais fundamentalmente, no

com a ideia de purificação, que está obviamente

ato divino de “ gerar” os crentes e na dádiva do

presente (IJo 1.7,9).

Espírito (IJo 2.29; 3.24). O mundo e as obras 4.1

De novo, assim como ocorre com todos os de­ mais escritos do

do Diabo foram vencidos na cruz (IJo 3.8; 5.4).

nt

,

Deus é tanto o sujeito quanto

A morte de Cristo como sacrifício propi­ 0 objeto da morte adunatória de Cristo. Ele é fiel e

ciatório. Os adversários negam que “Jesus é o

334

justo para perdoar nossos pecados e nos purificar,

C risto , morte de íii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

ao mesmo tempo que Cristo é nosso Advogado

alguém distinto de seus destinatários. Ele viu a

diante dele (IJo 1.9; 2.1). Ele enviou seu Filho

“ vida eterna” (IJo 1.2,3), mas eles, não. Apenas

como propiciação [hilasmos] por nossos pecados

ouviram falar dela (IJo 1.5). Mesmo a visão do

(IJo 4.10).

autor é apenas proléptica. Ele não viu a Deus

A referência final à morte de Cristo torna a

nem a Cristo “como ele é”, em sua glória es­

empregar o termo “ sangue”, relembrando a inter­

catológica (IJo 3.2; 4.12). Entretanto, viu e dá

pretação inicial de sua morte como sacrifício adu­

testemunho de que o Pai enviou o Filho como

natório e, desse modo, transmitindo conotações

Salvador do mundo (IJo 4.14). E, ao enviar seu

salvíficas que reforçam implicitamente a afirma­

tinico Filho para que “ o mundo” vivesse. Deus

ção do autor de que Jesus Cristo veio “não só pela

manifestou seu amor (IJo 4.9). Em IJoão, por­

água, mas pela água e pelo sangue” (IJo 5.6),

tanto, a revelação é de caráter objetivo, não uma

que aqui e em IJoão 5.8 muito provavelmente se

questão de iluminação do interior. “Ver” ocorre

refere ao batismo de Jesus e ã sua morte na cruz

apenas à medida que o testemunho é ouvido,

(v.

Jesus foi confirmado como o Cris­

crido e obedecido (IJo 2.7-11,24; 4.6; 5.5-12).

to não apenas no batismo, mas também em sua

Em última instância, a recepção dessa revelação

S m alley).

crucificação. Sua morte, longe de desquaUficá-lo

não depende de capacidade humana: é obra di­

como Cristo, é essencial para o testemunho que

vina, um ser gerado por Deus (IJo 5.1), ungido

Deus dá a respeito dele.

por ele (IJo 2.20,27) e que recebeu o Espírito

A morte de Cristo é um sacrifício adunatório

(IJo 4.13).

não apenas para os que creem, mas também para

A cruz é a revelação do amor de Deus e do

“o mundo”. “ Mundo” não é uma palavra de sen­

amor em si. E revela esse amor pela morte em

tido neutro, mas transmite a ideia da hostilida­

nosso lugar, por nossos pecados. Conhecemos o

de que a humanidade caída tem contra Deus e

amor por meio da entrega que Cristo fez de sua

seus propósitos (e.g., IJo 2.15-17; 3.1,13; 4.4). 0

vida por nós na cruz (IJo 3.16; cf. Mc 10.45;

alcance da adunação contrasta com o aparente

Is 53.10). Deus manifesta seu amor ao enviar seu

exclusivismo do grupo que havia deixado a igre­

único [monogenês] Filho como sacrifício propicia­

ja. No entanto, IJoão é decididamente irredutível

tório [hilasmos] por nossos pecados (IJo 4.9,10).

em insistir na fé em Jesus e na crença de que

A natureza radical dessa afirmação procede, de

o mundo inteiro está sob o poder do Maligno

um lado, da ideia que o autor tem de que “o

(IJo 5.19). Somam-se a essa crença claras afir­

mundo” está cheio de ódio (IJo 3.11,12) e, de ou­

mações sobre o papel derradeiro de Deus na sal­

tro, do fato de que Cristo deu sua vida por esse

vação (e.g., IJo 3.9; 4.4). O autor não demonstra

mundo, que o odeia (IJo 2.2). 0 amor como reah­

nenhum constrangimento com essa justaposição.

dade entre os que creem não surge de nosso amor

0 Deus revelado na oferta de perdão na cruz é,

por Deus, mas do amor dele por nós manifesto na

ainda assim, o Deus que livre e soberanamente

morte adunatória de Cristo por nossos pecados

oferece o novo nascimento.

(IJo 4.10). Fora da cruz, um amor dessa natureza

4.2

A morte de Cristo como revelação esca­ permaneceria desconhecido. Por meio da cruz,

tológica. Em IJoão, a cruz é predominantemente

ele raiou no mundo como uma reahdade escato­

interpretada como revelação, como fica evidente

lógica (IJo 2.8-11).

na ênfase do parágrafo inicial (IJo 1.1-4) e nos

0 amor de Deus revelado na cruz impõe aos

temas correntes: verdade, conhecimento e reve­

crentes uma obrigação moral. “ Se Deus nos amou

lação. Essa perspectiva não diminui sua condi­

assim, nós também devemos amar uns aos ou­

ção de acontecimento adunatório. Na condição

tros” (IJo 4.11). No entanto, a ética de IJoão

de sacrifício pelos pecados, a morte de Jesus na

nasce, em última instância, das realidades esca­

cruz é 0 acontecimento revelador decisivo, a ma­

tológicas introduzidas pela cruz. A conduta re­

nifestação escatológica de Deus, de seu amor e

vela se alguém conhece a Deus, se a pessoa está

da vida eterna.

“nele”. Deus está ativo na revelação de seu amor,

A dimensão histórica está ligada a essa in­ terpretação da cruz como salvação. 0 autor é

de modo que a perfeição do amor se encontra na recriação do ser humano (IJo 2.5; 4.17,18).

335

C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse

O caráter escatológico da cruz é aparente em

disso, como vimos nos demais escritos do

nt

,

é

outras referências (IJo 3.14; 5.4) e proporciona

na condição de sacrifício adunatório que a morte

a estrutura essencial para as declarações aparen­

de Cristo alcança o triunfo divino. Não apenas

temente conflitantes sobre a relação dos crentes

a morte e a vida, a derrota aparente e a vitória

com o pecado. Como já vimos, na declaração ini­

impressionante estão justapostas na carta, mas

cial da carta, a contínua confissão dos pecados é

também a divindade e a humanidade de Cristo.

0 sinal da verdadeira espiritualidade (IJo 1.9,10). Contudo, 0 autor afirma que não é possível que

simples reversão do destino. Cristo morreu como

o crente peque (IJo 3.6,9) e baseia a declaração

Deus e como homem.

Por isso, 0 paradoxo é mais profundo que uma

em parte na cruz: "Ele se manifestou para tirar os

5.1 A morte de Cristo como a morte de Deus.

pecados; e não há pecado nele” (IJo 3.5). A ideia

Embora a divindade de Cristo e sua morte não

seguinte, de “permanecer nele” (IJo 3.6), sugere

apareçam lado a lado em nenhuma outra passa­

que a expressão “não há pecado nele” se refere

gem de Apocalipse, o emprego dessa justaposição

ao estado escatológico trazido por Cristo.

na visão inicial e na mensagem à igreja de Esmirna

“Tirar” pecados muito provavelmente signifi­

(Ap 2.8) esclarece de modo significativo o drama

ca tanto o perdão quanto a recriação restauradora

que se desemola, particularmente a adoração do

da vida (v. esp. IJo 3.5). Com o perdão conquis­

Cordeiro (Ap 5.8-14). 0 fato de o Cordeiro ser dig­

tado na cruz, chegou o estado escatológico em

no de receber adoração é resultado não apenas de

que 0 poder do pecado foi abolido pelo perdão.

sua morte redentora, mas também, sutil e impli­

Isso corresponde a IJoão 3.8, em que se diz que

citamente, de seu ser. Cristo é “o primeiro e o lil-

0 propósito da encarnação é “ destruir as obras

timo” (1.17; 2.8; 22.13), título de autossuficiência

do Diabo”. Agora se diz que a semente divina

e singularidade divinas (cf. Is 43.10; 44.6; 48.12).

permanece com os que creem (IJo 3.9) assim

Ele é “o que vive”, expressão empregada para

como ele permanece com eles (IJo 3.6). Da pers­

descrever o que está sentado no trono (Ap 4.9,10;

pectiva escatológica, a dos efeitos da cruz, foi

cf. Ap 10.6; Eo 18.1). Apesar disso, ele morreu e

concedida a “inabilidade para pecar”. Essa situa­

tornou a viver (Ap 1.18; 2.8) e agora vive para

ção, porém, é proléptica. Os crentes vivem entre

sempre e tem autoridade sobre a morte (Ap 1.18),

as épocas. Por isso, devem continuar a confessar

com o que encoraja a igreja sofredora (Ap 2.9-11).

seus pecados. Mas também devem viver ã luz

A relação paradoxal concentra a atenção em sua

da consumação e purificar-se, assim como Cristo

morte, explicável apenas como ato redentor.

é puro (IJo 3.3). Está implícito na referência ã

5.2 A morte de Cristo como redenção e triun­

semente divina que as realidades escatológicas

fo. Em Apocalipse, na maioria das vezes a morte

penetraram o presente e marcam indelevelmente

de Cristo é apresentada em seu significado salví­

a conduta daquele que crê.

fico e na linguagem sacrificial. Como em outros

Como realidade escatológica, a morte de Cristo

lugares, a morte de Cristo é seu “ sangue” que re­

representa um triunfo sobre o Diabo e a destrui­

dime do pecado (Ap 1.5; 7.14) e adquire um povo

ção de suas obras (IJo 3.8), um triunfo parti­

para Deus (Ap 5.9; cf. Ap 14.3,4). Os termos de

lhado pelos que creem (IJo 2.12,14; 4.5). Além

aquisição, emprestados do ambiente da escrava­

do mais, a vitória consiste na confissão de que

tura, expressam que Deus reivindica os redimidos

Jesus é o Filho de Deus, inclusive o fato de

para si. A cruz os liberta para que desempenhem

que “veio pela água e pelo sangue”, de modo que

o papel de governantes e de sacerdotes, para os

o perdão operado mediante a cruz está por trás

quais Deus os nomeou (Ap 1.6; 5.10). A imagem

do triunfo, conexão também sugerida pelo para­

de Cristo como o “Cordeiro que foi morto” asso­ cia ainda mais os termos de redenção e aquisição

lelo entre IJoão 3.5 e IJoão 3.8.

com a Páscoa e o Êxodo (Êx 12— 13; cf. ICo 5.7) 5. Apocalipse

e com 0 Servo Sofredor de Isaías (Is 53.7; cf.

Paradoxalmente, no Apocalipse de João, a cruz

At 8.32; IPe 1.19; Jo 1.29).

de Cristo é o caminho para seu senhorio e para

A frequente representação de Cristo como

0 reinado daqueles que lhe pertencem. Além

o Cordeiro ressalta a centralidade de sua morte

336

C ris to , m o rte de

iii:

A to s , Hebreus, C a rta s G era is, Apocaupse

salvadora em Apocalipse (Ap 5.6; passim). Em : of John. Garden City: Doubleday, 1982.

(a b .

uma justaposição irônica, o Cordeiro é apresen­

Carrou , J. T. & Green, J. B. The death of Jesus in

tado antes como o Leão conquistador da tribo de

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Judá (Ap 5.5). Deus alcançou a vitória não me­

Conzelmann, H. The theology of Luke. N ew York:

diante a força, mas mediante a fraqueza, na mor­

Harper & Row, 1961. ■ Cullmann, O. The christo­

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logy o f the New Testament Ed. rev. Philadelphia:

o Diabo só têm feito os propósitos divinos serem

Westminster, 1959. ■ Dalton, W. J. Christ’s procla­

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Esses propósitos consistem na operação do

2. ed. Rome: Pontifical Biblical Institute, 1989.

perdão dos pecados, ideia inerente à linguagem

[AnBib, 23.) ■ Davids, P. H. The First Epistle of

sacrificial de ApocaUpse e que aparece de modo

Peter. Grand Rapids: Eerdmans, 1990.

notável no anúncio proléptico de triunfo em Apo­

Denney, J.

&

[ n ic n t .]



Tasker, R. V. G., orgs. The death of

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o “acusador de nossos irmãos” foi expulso dos

orthodox corruption o f Scripture: the effects of ear­

céus (Ap 12.10; cf. Jó 1.9-11). 0 Diabo, que se

ly Christological controversies on the text of the

opõe ao propósito salvador de Deus, trazendo

New Testament. Oxford: Oxford University Press,

acusações contra o povo de Deus por causa dos

1993. ■ Feinberg, J. S. 1 Peter 3:18-20, ancient

pecados deles, foi derrotado por meio do “ sangue

mythology and the intermediate state,

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O Cordeiro é digno de supremo louvor por

Luke. Word & World, p. 11-6, 1992. • Gebe, H. Es­

causa de sua morte sacrificial (Ap 5.9-12). A exce­

says on biblical theology. Minneapolis: Augsburg,

lência moral de seu ato estabelece distinção entre

1981. •

0 que ele fez e a inútação barata que, num feri­

Hahn. Grand Rapids: Eerdmans, 1993. ■ G r a y s t o n ,

mento mortal, a besta faz desse ato (Ap 13.3,12).

K. Dying, we live: a new enquiry into the death of

5.3

G o p p e lt ,

L. A commentary on I Peter. Ed. F.

A morte de Cristo como destino dos cren­ Christ in the New Testament. N ew York: Oxford J. B. The death

tes. Uma gritante divisão entre crença e descrença

University Press, 1990. •

surge em Apocalipse. Ou se é seguidor da besta

of Jesus. Tübingen: Mohr Siebeck, 1988.

(Ap 13.3,4) ou do Cordeiro (Ap 14.4), sujeito à

33.) ■ ______ . The death of Jesus, God’s servant.

G reen ,

[w u n t,

hostilidade que ele enfrentou (Ap 12.17). A rela­

In:

ção das igrejas com o Senhor ressurreto é a que

Lukan Jesus. Athenum Monographien/Theologie.

S y lv a ,

D. D., org. Reimaging the death of the

ele teve com o Pai durante seu ministério terreno

Frankfurt: Hain, 1990, p. 1-28.

(Ap 2.26-28; 3.21,22). São martirizados por causa

J.

do testemunho que dão (Ap 6.9-11; 12.10), assim

cross: atonement in New Testament & contempo­

como ele foi martirizado pelo testemunho que deu

rary contexts. Downers Grove: InterVarsity, 2000.

B.

[ bbb,

73.)

• G reen ,

& B a k e r , M. D. Recovering the scandal of the

W. Christ preaching through Noah: 1

(Ap 1.5). E, de modo semelhante, participam do

■ G ru d em ,

triunfo do Cordeiro (Ap 7.17; 15.3-5; 19.1-20.15).

Peter 3:19-20 in the light of dominant themes in

Ver também c e ia r e iç ã o ;

S ervo

de

do

Senhor;

Jewish literature,

j u s t if ic a ç ã o ; r e s s u r ­

ch en ,

Javé.

tj,

v.

7, p. 3-31, 1986. •

H aen­

E. The Acts of the Apostles: a commentary.

Philadelphia: Westminster, 1971. ■ H

ill,

D. Greek

G. Christus Victor: a histori­

words and Hebrew meanings: studies in the se­

cal study of the three main types of the idea of

mantics of soteriological terms. London: Cambrid­

atonement. New York: Macmillan, 1969. •

ge University Press, 1967.

B ib u o g r a f ia . A

ulén,

B a il e y ,

[ sn tsm s,

5.) ■ H o o k e r , M.

D. P. Concepts of Stellvertretung in the interpre­

D. Not ashamed of the gospel: New Testament in­

tation of Isaiah 53. In:

terpretations of the death of Christ. Grand Rapids:

F arm er,

W. R., org. Jesus

and the Suffering Servant: Isaiah 53 and Chris­

Eerdmans, 1995. ■

tian origins. Harrisburg: Trinity Press Internatio­

and Galatians 3:15ff.: a study in covenant prac­

nal, 1988. p. 223-51. ■ B r o w n , R. E. The Epistles

tice and procedure. NovT, v. 21, p. 27-96, 1979. ■

337

H

ughes,

J. J. Hebrews 9:15ff.

C ristologia i : Pa ulo

B. Sühne als Heilsgeschehen: Studien zur

ela não abrange o quadro inteiro da cristologia

Sühnetheologie der Priesterschrift und zur Wur­

paulina. Na tentativa de aprofundar uma perspec­

zel KPR im alten Orient und im Alten Testament.

tiva obtida por meio de um relato das facetas in­

J a n o w s k i,

55.) •

dividuais da cristologia de Paulo, este verbete se

R. J. Luke 23;47 and the Lukan view of

concentrará na origem da cristologia paulina, em

Neukirchen; Neukirchener, 1982. K a r r is ,

{w

m ant,

D., org. Reimaging the

sua estrutura narrativa e no duplo foco da divin­

death o f the Lukan Jesus. Athenum Monogra­

dade e humanidade de Cristo. Também anahsará

Jesus’ death. In:

S y lv a , D .

a importância da cristologia de Paulo para a igreja

phien/Theologie. Frankfurt: Hain, 1990. p. 68-78. [bbb,

73.) ■ K o d e l l ,

J.

Luke’s theology of the death

primitiva e a contribuição inconfundível da cris­

org. Sin, salvaäon and the

tologia de Paulo em comparação e em contraste

Spirit. Collegeville; Liturgical Press, 1979. p. 221-

com outras cristologias canônicas. (Quanto à cris­

30. ■ M

tologia dos Evangelhos, o leitor deve consultar os

of Jesus. In: D u r k e n ,

D .,

I. H. The Epistles of John. Grand

ar sh all,

Rapids; Eerdmans, 1978.

{ n i c n t . ) ■ _________

verbetes sobre cada Evangelho.)

. Luke:

historian and theologian. Exeter; Paternoster,

1. As origens da cristologia de Paulo

1970. ■ M o e s s n e r , D. P. “The Christ must suffer” ,

2. A estrutura narrativa da cristologia de Paulo

the church must suffer; Rethinking the theology of the cross in Luke-Acts.

sb lsp,

v.

3. A divindade e a humanidade de Jesus

29, p. 165-95,

Cristo na cristologia de Paulo

1990. ■ M o r r i s , L. L. The apostolic preaching of the

4. 0 impacto e a influência da cristologia de

cross. Grand Rapids: Eerdmans, 1965. ■ ______ . The atonement: its meaning and significance. Downers Grove; InterVarsity, 1983. ■ N

eyrey,

Paulo

J. H.

5. Aspectos exclusivos e comuns da cristolo­ gia de Paulo

The Passion according to Luke. New York; Paulist, 1985. ■ Peterson, D. Hebrews and perfection: an examination of the concept of perfection in the

1. As origens da cristologia de Paulo

“Epistle to the Hebrews”. Cambridge; Cambridge

Existem vários possíveis pontos de partida para

University, 1982.

analisar as fontes/origens da cristologia de Paulo.

[sntsm s,

47.) ■ S m a l l e y ,

3 John. Waco; Word, 1984.

(w s c .)

S. S.

1, 2,

1.1

■ S t o t t , J. R. W.

Judaísmo. Uma abordagem é tentar extra­

The cross of Christ. Downers Grove: toterVarsity,

polar, partindo dos documentos do

1986. ■ T a y l o r ,

tes extracanônicas, as crenças do Paulo fariseu

V.

The atonement in the New Testa­

nt

e de fon­

ment tearhing. London; Epworth, 1958, ■ T u c k e t t ,

(v.

C.

[S.l.: s.n., s.d.].

Quanto a cristologia de Paulo foi devedora a suas

M .

Atonement in the

n t.

abd

.

P

au lo ,

o

Ju d e u )

acerca do Messias vindouro.

1. p. 518-22. ■ T y s o n , J. B. The death of Jesus in

crenças messiânicas pré-cristãs? Essa empreitada,

Luke-Acts. Columbia; University of South Carolina

contudo, envolve um imenso volume de conjectu­

Press, 1986. ■ V i e l h a u e r , P. On the "Paulinism” of

ras não apenas sobre a fé messiânica do farisaís-

Acts. In:

L. E. &. M a r t y n , J. L., orgs. Studies

mo anterior a 70 d.C., mas também sobre o uso

in Luke-Acts. Nashville; Abingdon, 1966. p. 33-

peculiar que Paulo faz de sua herança. (Quanto

50. ■ W

à complexidade dos dados acerca dos judaísmos

V.

K eck,

a lla c e ,

R. S. The atoning death of Christ.

Westchester; Crossway, 1981. ■ W

ilc o x , M .

“Upon

the tree” — Deut 21:22-23 in the New Testament. jbl,

V.

dos dias de Paulo, v.

N

eusner

et al.) Infelizmente,

além de umas poucas referências aqui e ah, Paulo quase nada informa de suas crenças pré-cristãs

96, p. 85-99, 1977. M .

A.

sobre o Messias. O máximo que se pode pressu­

S e if r id

por, a julgar por textos como Romanos 9.5, é que C r i s t o l o g ia

i:

ele deve ter acreditado num Messias davídico que

P aulo

Não raro a cristologia pauhna tem sido estuda­

viria como homem. Embora a dívida de Paulo

da sob a designação dos bem conhecidos títulos

para com o messianismo judaico e, em particular,

que Paulo empregava — Cristo, Senhor, Filho de

o messianismo farisaico tenha sido certamente

Deus, Salvador — e outras conhecidas analogias,

maior que isso, os dados para descobrir o grau ou

como Adão e Sabedoria. No entanto, por mais im­

a natureza dessa dívida não estão disponíveis (v.,

portante que seja essa nomenclatura cristológica.

porém,

338

H

engel,

1991).

C ristologia i : Paulo

1.2 Helenismo. Outro método para descobrir as

declarações de Paulo acerca de seu chamado/

origens do pensamento cristológico de Paulo tem

conversão (v.

sido a abordagem religionsgeschichtliche ("história

base nesses dados, é possível chegar a conclusões

das religiões”). Talvez o exemplo máximo e mais

sobre a forma como essa experiência, junto com

influente dessa abordagem seja a obra clássica

0 contato de Paulo com antigas confissões cristãs,

Kyrios Christos, de Bousset (1913). Nela, a cristolo­

pode ter moldado sua cristologia.

P au lo ,

co nve r são e c h a m a d o de)

. Com

gia de Paulo e da igreja primitiva é comparada às

A passagem de Gálatas 1.11-23 oferece a infor­

ideias do mundo greco-romano, particularmente

mação mais clara e provavelmente a mais antiga

àquelas encontradas nas várias formas de pen­

da parte de Paulo a respeito de sua conversão e

samento religioso pagão. Por exemplo, supõe-se

das consequências imediatas desse acontecimen­

que Paiüo tenha se apropriado do título kyrios

to. Nessa passagem, Paulo é inflexível ao afirmar

(“Senhor”), tomando-o emprestado do paganis­

que não recebeu seu evangelho por meio de seres

mo, refletindo desse modo a influência helenista

humanos, que ele não é de origem humana nem

no pensamento cristão primitivo. Entretanto, uma

resultado de alguma instrução que tenha recebi­

premissa subjacente a essa abordagem pressupõe

do de homens. Pelo contrário, Paulo afirma que

uma distinção radical entre o helenismo e o ju­

recebeu seu evangelho mediante uma revelação

daísmo palestino, teoria que foi seriamente desa­

direta da parte de Deus. Deve se destacar que

bonada pela obra de M. Hengel e outros

Paulo está basicamente defendendo a fonte e o

(H

engel,

1974). Pesqtúsas têm mostrado, por exemplo, que

conteúdo de seu evangelho, não sua conversão

documentos como Eclesiástico e o corpus macabeu

a Cristo, e isso é importante para exphcar a di­

atestam a influência do helenismo sobre o pensa­

ferença observada entre esse relato e a narrativa

mento judaico da Palestina a respeito de Deus e de

de Atos, particularmente os capítulos 9 e 22. Va­

outras questões religiosas bem antes da era cristã.

mos supor, para entender o raciocínio, que Atos

Entretanto, afora essas considerações mais

forneça alguns dados confiáveis sobre a questão

gerais, há indícios de que o título kyrios passou

do chamado/conversão de Paulo. Nas cartas de

a ser usado num capítulo antigo no surgimento

Paulo e no terceiro relato de Atos sobre sua con­

da igreja e não foi produto da helenização pos­

versão/chamado (At 26), fica claro que Paulo não

terior do cristianismo. O grito aramaico Marana

entendia que sua comissão, missão e mensagem

tha: “Vem, Senhor!” (ICo 16.22), que sem dúvida

procedessem de fonte humana. Não há nenhu­

remonta aos cristãos palestinos de fala aramaica

ma passagem que mencione uma instrução cris­

ou aos cristãos judeus biUngues de Antioquia,

tã entregue a Saulo antes de sua experiência na

mostra que, antes da redação das cartas remanes­

estrada de Damasco, e, como Atos 26 deixa cla­

centes de Paulo, Jesus era invocado e reconhe­

ro, Ananias não foi a fonte última da comissão

cido como o Senhor divino que regressaria para

e missão de Paulo. Os três elementos são iden­

seu povo. Se os primeiros cristãos acreditassem

tificados em seu encontro com o Senhor exalta­

que Jesus não passava de um simples e falecido

do. Essa ideia é igualmente clara em Atos 9.15 e,

mestre judeu da Palestina, esse tipo de expressão

em grau menor, mas assim mesmo significativo,

jamais teria surgido (cf.

em Atos 22.14.

M

oule

e

L ongenecker)

.E

sua preservação em aramaico, com transhteração

1.3.1

“O evangelho de Cristo". Para Paulo, a

em grego, confirma o lugar reverente que ocupou

verdadeira questão em Gálatas não é provar que

na devoção que os primeiros cristãos tinham por

ele é um cristão autêntico, nem mostrar que rece­

Cristo (v.

beu uma incumbência missionária, nem mesmo

adoração).

1.3 Conversão/chamado de Paulo e a tradi­

identificar a fonte do

evang elh o

paulino: a questão

ção da igreja primitiva. Por motivos como os

é 0 conteúdo de seu evangelho. Em Gálatas 1.7,

que acabamos de apresentar, as pesquisas de

Paulo identifica seu evangelho como “o evange­

hoje sobre a origem da cristologia paulina têm

lho de Cristo” , um evangelho que seus adversá­

descoberto uma abordagem mais promissora no

rios na Galácia procuravam distorcer. A expressão

exame de confissões cristológicas primitivas in­

“evangelho de Cristo” pode ser entendida como

seridas nas cartas de Paulo e na exploração das

“0 evangelho que vem da parte de Cristo” ou “o

339

C ristologia i : Paulo

evangelho do quai Cristo é o conteúdo”. A dife­

verdadeiras. Com base no que diz em 1Corín­

rença é significativa, e uma pista de seu significa­

tios 9.1 — “ Não vi Jesus, nosso Senhor?” (cf.

do para Paulo encontra-se no contexto imediato,

ICo 15.8) — , sabemos que Paulo chegou a essa

quando Paulo diz que Deus “ se agradou em reve­

conclusão, no momento de sua conversão/cha­

lar seu Filho em mim” {01 1.15,16). Paulo apela

mado ou mais tarde. Na mente de Paulo, cer­

a uma revelação cujo conteúdo foi o “ Filho de

tas coisas eram necessariamente consequência

Deus”. Provavelmente esse é também o significa­

dessa conclusão. Se depois de sua morte Jesus

do de “evangelho de Cristo” em Gálatas 1.7. Nes­

havia sido exaltado nos céus, então com certe­

se caso, é relevante para esse argumento que, nos

za isso significava que as afirmações feitas por

relatos de Atos 9 e 22, Ananias não ensine a Saulo

Jesus, ou pelo menos as afirmações a respeito

a respeito de Jesus Cristo. Pelo contrário, em Atos

dele, haviam sido confirmadas. Por isso, em Ro­

9 ele lhe diz que se levante, receba a vista e seja

manos 1.4, Paulo diz que Jesus foi justificado

batizado, ao passo que em Atos 22 Ananias expõe

como Filho de Deus (ou designado para sê-lo),

0 significado da comissão de Paulo. De uma for­

em poder, por meio de sua ressurreição dentre

ma ou de outra, ã luz da palavra do Senhor que

os mortos (v.

veio a Ananias em Atos 9.15,16, provavelmente

rejeitou a afirmação de que era o Messias, Paulo

devemos entender que Ananias está entregando

pode ter chegado ã conclusão de que, se Jesus

uma palavra profética a Paulo, não dando instru­

estava vivo nos céus, então devia ser o ungido

ção ou conselho humanos.

de Deus. Por que outro motivo Deus justificaria

r e s s u r r e iç ã o

).

Visto que Jesus não

Além do mais, não importando o que Paulo

alguém que havia morrido por crucificação, uma

pretendia dizer com “ o evangelho de Cristo”,

morte que, ã luz de Deuteronômio 21.22,23, sig­

ele tinha consciência de que após sua conver­

nificava que o crucificado estava sob maldição?

são recebera de outros cristãos (talvez até de

Gálatas 3.13 deixa claro que Paulo veio a crer

Pedro, quando visitou Jerusalém pela primeira

que Cristo se havia tornado maldição para os

vez; G1 1.18) tradições a respeito de Jesus e seus

que creem a fim de resgatá-los da maldição da

ensinamentos. E mal conseguimos acreditar que,

Lei (cf. ICo 12.3). Em suma, a experiência de

quando Paulo tornou a subir a Jerusalém “ depois

Paulo com o Jesus ressurreto e exaltado provo­

de catorze anos” , Pedro, Tiago e João ficaram ou­

cou uma reviravolta em sua avaliação de Jesus e

vindo silenciosamente enquanto ele lhes expunha

de sua crucificação.

o evangelho que havia proclamado entre os gen­

Outrora, Paulo havia analisado Jesus de uma

tios (G1 2.1-10). É quase certo que, embora Paulo

perspectiva puramente humana (2Co 5.16) — um

possa dizer que “aqueles que pareciam ser impor­

fracasso, talvez um tolo e certamente jamais o

tantes [...] nada me acrescentaram” , a conversa

Messias dos judeus. Mas, depois da experiência

deles com Paulo foi mais que um simples endosso

na estrada de Damasco, mudou de atitude. Agora

ã comissão de Paulo. A mensagem de Paulo em

via Jesus como o Filho de Deus. Isso não significa

Gálatas 2 é que seu “evangelho de Cristo” — as

que Paulo não tivesse uso para as tradições apos­

ideias inconfundíveis e essenciais que recebeu di­

tólicas a respeito de Cristo ou para as palavras

retamente de Cristo durante a experiência na es­

reais de Jesus.

trada de Damasco ou em consequência de refletir

1.3.3

O Crísto do corpo. A segunda dedução

sobre essa experiência — permaneceu intocado.

de seu encontro na estrada de Damasco foi que

Que elementos teria aprendido em primeira mão

Jesus se identificava muito de perto com os cris­

naquele encontro na estrada de Damasco?

tãos que Paulo vinha perseguindo. Como confir­

1.3.2

O Crísto ressurreto e exaltado. Antes de ma Atos, o Senhor ressuscitado indagou a Saulo:

tudo, 0 apóstolo aprendeu que Jesus ainda esta­

“ Saulo, Saulo, por que me persegues? [...] Eu sou

va vivo — embora de uma forma que transcen­

Jesus, a quem persegues” (At 9.4,5; cf. At 22.7,8;

dia simples carne e sangue. Paulo era fariseu e

26.14,15). Isso deve ter indicado a ele que os

acreditava na ressurreição; assim, provavelmen­

cristãos eram o povo de Deus. Se o Filho especial

te chegou logo ã conclusão de que as afirmações

de Deus estava se identificando tão de perto com

dos cristãos sobre a ressurreição de Jesus eram

aqueles a quem Saulo estava perseguindo, então

340

C ristologia i : Paulo

ele precisava reavaliar seu conceito de povo de

que tornava possível um estilo de vida agradável

Deus. Longe de fazer a vontade de Deus ao perse­

a Deus. Além disso, a Lei, embora esplêndida,

guir cristãos, ele descobriu que estava se opondo

detinha um esplendor apenas parcial e evanes-

ao Cristo de Deus e, assim, lutando contra Deus. É

cente, que foi eclipsado por Cristo, a revelação

possível que a teologia paulina posterior do corpo

mais completa e definitiva da vontade e do ca­

de Cristo (v.

ráter bons e perfeitos de Deus (cf. 2Co 3.4-18).

c o r po de

C r is t o )

deva algo

à

sua expe­

riência na estrada de Damasco, onde aprendeu

Não é de surpreender que Paulo tenha se

que as aflições dos cristãos também eram as afli­

concentrado em pregar a Cristo crucificado e

ções de Cristo (cf.

ressuscitado, pois em sua mente foram os acon­

1.3.4

R o b in s o n ,

p. 58;

K

im

,

p. 252-6).

O Cristo salvador. Paulo pode ter apren­ tecimentos decisivos que haviam mudado a si­

dido também que havia sido salvo ou convertido

tuação humana diante de Deus. Alguém que

na estrada para Damasco independentemente de

anteriormente houvesse estado sob a Lei e sua

suas ações e méritos. De fato, Cristo requisitou

condenação podia agora, em Cristo, achar-se sob

Paulo para si, a despeito das ações deste. Isso só

a graça e a justificação trazida por ela. Se a sal­

podia levar à conclusão de que a salvação em seu

vação era pela graça, por meio da fé no Senhor

poder perdoador e transformador era uma dádiva

Jesus que foi crucificado e ressuscitado, nada

da graça (v.

1977, p. 190).

impedia quem quer que fosse — incluindo-se os

Por sua vez, a experiência da graça signifi­

gentios — de ser salvo independentemente da Lei

cou que Paulo teve de assumir uma nova postu­

mosaica. Para Paulo, a eliminação da Lei como

ra diante da Lei. Antes, a Lei havia sido o ponto

forma de alcançar uma posição correta diante de

central de sua vida rehgiosa perante Deus; agora.

Deus, como meio de ser salvo ou de operar sua

D

unn

,

Cristo e a experiência de Cristo eram os fatores in­

salvação, havia derrubado a barreira entre ju­

tegradores de sua vida. A totalidade da vida tinha

deus e gentios (cf. Ef 2.14,15). Se a fé no Senhor

de ser vista pelos olhos de Cristo, não pelas lentes

ressurreto era o caminho da salvação, então ela

da Lei. Para Paulo, Cristo era o objetivo final da

podia ser oferecida a todos, sem necessidade de

Lei, à medida que a Lei podia ser entendida como

compromisso religioso prévio com as exigências

meio de salvação. A salvação pelas obras ou mes­

judaicas de circuncisão, leis alimentares e obser­

mo a que se obtém, em resposta ã obra e à graça

vância de toda a Torá.

iniciais de Deus, mediante obediência à Lei mo­ saica (nomismo aliancístico; v.

Para Paulo, de acordo com Gálatas 1.16, o pro­

não era mais

pósito de sua conversão foi seu chamado para ser

possível — se é que alguma vez o havia sido. A

missionário aos gentios. Esse chamado comple­

L

e i)

vida perante Deus não podia mais ser uma questão

mentou sua experiência da graça de Deus. Se a

de “faze isso e viverás”. Tomou-se uma questão de

posição correta de alguém diante de Deus depen­

justiça recebida pela graça, por intermédio da fé,

dia inteiramente da graça, não havia motivo pelo

a qual possibilitava que, por gratidão, se obede­

qual a graça não pudesse ser oferecida a todos,

cesse à lei de Cristo (uma questão diferente da

sem as precondições da Lei. Desse modo, é

Lei de Moisés).

bem possível que Paulo tenha deduzido o âma­

Entretanto, nada disso significou que Paulo

go de seu evangelho a partir de sua experiência

não enxergasse nenhum valor na Lei mosaica.

de conversão. Quando Paulo falou da revelação

Aliás, para ele a Lei era santa, justa e boa, e parte

[apocalypsis] de Cristo (G1 1.12,16) ou de Cristo

de sua instmção era vista como guia moral valio­

como a glória de Deus (2Co 4,6), talvez estivesse

so para o viver cristão, particularmente os trechos

refletindo sobre a experiência registrada em Atos

narrativos que podiam ser usados de modo tipo-

de uma luz cegante que acompanhou a revela­

lógico (cf. ICo 10). 0 problema da Lei era que,

ção do Senhor ressuscitado. Na mente de Paulo,

embora pudesse instmir o povo sobre o que era

a revelação de Jesus em glória na estrada de Da­

mau ou bom, era incapaz de fazer evitar o mal ou

masco provavelmente sinalizou a chegada da era

levar a fazer o bem. Ela era incapaz de propor­

escatológica (v.

cionar a vida e o poder que estava dispomvel em

estavam passando e desapareceriam, e coisas no­

Cristo por meio do Espírito (v.

vas passavam a existir

E s p í r it o S a n t o ) ,

o

341

e s c a t o l o g ia ) ,

(K

im

em que coisas velhas ,

p. 71-4; cf.

B urton,

C ristologia i : Paulo

p. 42-3). A chegada da nova era apresentou para

concílios posteriores da igreja. Cristo era uma

Paulo uma nova ideia cristocêntrica acerca da Lei

maneira em que Deus se havia manifestado ao

e da ética em geral. Mas isso era apenas parte

mundo. Cristo podia ser objeto de confissão e

da empreitada mais ampla de rever a história de

adoração para Paulo e para outros antigos cris­

Israel à luz da história de Cristo.

tãos judeus justamente por ser visto como divino. Ao defender a adoração a Cristo, Paulo não estava

2. A estrutura narrativa da cristologia de

instigando uma violação ao monoteísmo judaico

Paulo

(v.

O universo do pensamento de Paulo girava em

W. Hurtado demonstrou que o monoteísmo judai­

D e u s ),

pois acreditava que Cristo era divino. L.

torno do Filho de Deus, Jesus Cristo. A cristologia

co antigo podia abarcar a ideia da agência divina,

de Paulo aclarava seu modo de pensar em sua

que por vezes significava enxergar um persona­

totahdade, às vezes lançando luz sobre alguns

gem humano do passado distante, como Enoque

aspectos de seu pensamento que, como era de

ou um dos patriarcas, como agente divino (cf.

esperar, não haviam sido afetados pela cristolo­

H u rta d o ,

gia. Por exemplo, quem imaginaria que Paulo,

como agente de Deus ou como a Sabedoria em

p.

1 7 - 9 2 ).

Nesse contexto, ver o Messias

em estilo midráshico, dissesse a seus leitores co­

pessoa não era um distanciamento radical da or­

ríntios que a rocha que forneceu água para os

todoxia judaica, como às vezes se imagina (v. tb.

israelitas durante o período de peregrinação no

B a u c k h a m , 1 9 9 9 ).

Essa afirmação

As cartas de Paulo não apresentam uma dou­

baseia-se em ideias sapienciais sobre o papel da

trina desenvolvida da Trindade, nem uma longa

Sabedoria personificada em Israel (cf. Sb

explicação das relações dentro da Divindade,

deserto era Cristo (ICo

1 0 .4 )?

1 1.2-4,

"Eles atravessaram desertos inabitáveis [...].

mas, ao atribuir divindade ao Pai, ao Filho e ao

Tiveram sede e vos invocaram [a Sabedoria]: foi-

Espírito, Paulo providenciou os dados elementa­

cn b b :

lhes dada água de um rochedo altíssimo”). A

res para o trinitarismo cristão posterior. A cris­

ideia que Paulo tinha de Cristo era tão vasta que

tologia foi uma forma de teologia para Paulo,

ele podia imaginá-lo envolvido na forma de Deus

embora de modo algum a única. Quando Paulo

tratar com seu povo muito antes de ter nascido e

declarou que Cristo entregaria o reino ao Pai,

iniciado seu ministério terreno. Aparentemente,

“para que Deus seja tudo em todos” (ICo

esse é o motivo pelo qual via Cristo como a Sa­

não estava dissolvendo cristologia em teologia

bedoria vinda em carne (cf. ICo

(cf.

1 .2 4 ),

e, portan­

B eck er,

p.

1 5 .2 8 ),

2 0 0 , 3 4 4 ).

to, 0 que quer que se tivesse sido dito acerca da

De igual modo, Paulo não foi cristomonista —

Sabedoria no pensamento judaico antigo, inclusi­

a perspectiva que considera a cristologia a única

ve sua existência nos céus antes da Criação (cf.

ou quase a única forma de teologia. Conquanto

Pv

tenha passado a enxergar o mundo e até mesmo

(cf.

8;

Eo

24;

Sb

7 ),

agora era atribuído a Cristo

W it h e r in g t o n , 1 9 9 4 ,

2.1

caps.

7

e

Deus com uma visão cristocêntrica, Paulo man­

8 ).

Cristologia e teologia. Devem se evitar tinha um espaço significativo para o Pai e o Es­

dois perigosos extremos no estudo da cristologia

pírito. Para Paulo, foi somente o Pai que enviou

paulina. 0 primeiro é subestimar a importância

o Filho, somente o Filho que morreu na cruz e

e 0 peso da cristologia paulina para o universo

somente o Espírito aquele por meio de quem os

de pensamento de Paulo. A cristologia de Paulo

crentes foram batizados no corpo único de Cris­

deve ser vista como subdivisão de sua teologia.

to. Paulo fazia distinção entre os três não só em

Para ele, “Jesus é o Senhor” não é apenas uma

razão de suas funções, mas também por causa da

descrição funcional da obra de Cristo desde sua

natureza deles — à medida que podem ser com­

ressurreição. Muitos — mas não a totalidade —

parados com a natureza humana de Cristo (i.e., o

dos nomes, títulos, papéis e funções de Deus fo­

Pai e 0 Espírito não têm natureza humana). Des­

ram atribuídos a Cristo justamente porque Paulo

crever a teologia de Paulo como cristomonismo

acreditava estar lidando com Deus em Cristo e

é negar que o apóstolo fizesse diferença entre os

Deus como Cristo, embora em nenhum dos dois

papéis, funções e caracten'sticas inconfundíveis

aspectos chegasse a defini-los com a precisão dos

do Pai, do Filho e do Espírito.

342

C ristologia i : Paulo

Com demasiada frequência, os debates sobre

e Senhor triunfante. Assim, a narrativa paulina

a cristologia de Paulo, embora reconheçam que

de Cristo transcende o padrão mais costumeiro de

seja uma subdivisão de sua teologia, têm aborda­

Endzeit = Urzeit (fim dos tempos = tempos pri­

do o assunto gradativamente, analisando títulos

mevos). A exaltação de Cristo não é a simples

cristológicos isolados uns dos outros. 0 resulta­

recapitulação de sua preexistência. Uns poucos

do mais comum tem sido uma apresentação de

exemplos ilustram algumas dessas ideias.

ideias arrancadas do tecido do pensamento de

Primeiro: o hino cristológico de Filipenses 2.6-

Paulo com quase nenhuma exphcação para o

11 revela que a carreira de Cristo determina como

núcleo coerente da cristologia paulina como era

ele deve ser confessado. Jesus recebeu o nome

expressa nas contingências dos casos que ele tra­

régio "Senhor” , justamente porque Deus o exal­

tava. J. C. Beker acertadamente aponta tanto para

tou supremamente por consequência de sua obra

a coerência do pensamento de Paulo ao longo do

concluída na terra, a qual incluiu a morte numa

tempo quanto para a contingência desse pensa­

cruz. O dio kai de Filipenses 2.9 é essencial e

mento enquanto trata de situações e preocupa­

deve ser traduzido por "e portanto” ou “e esse é

ções específicas. O estudo dos títulos cristológicos

0 motivo por que”. Desde sua morte e justamen­

pode ser útil, mas também pode ser reducionis-

te por causa de sua vida e morte terrenas como

ta, tratando os elementos do pensamento pauli­

servo, Jesus tem ocupado um lugar de honra e de

no como se fossem permutações na história das

poder divinos; por isso, agora está atuando como

ideias teológicas. Essa abordagem desconsidera o

Senhor. É por esse motivo que na era presente

fato de que o pensamento teológico de Paulo está

é possível confessá-lo como “ Senhor” , o nome

entretecido com seu pensamento ético e prático,

divino e régio.

bem como com suas preocupações sociais. Isolar

Segundo: o título “Cristo” tornou-se, entre os

a cristologia ã custa de negligenciar o restante de

primeiros cristãos, outro nome de Jesus. Mas Jesus

seu modo de pensar resulta quase sempre num

era um ser humano, exatamente como os antigos

quadro distorcido. A totalidade da cristologia de

judeus esperavam que o Messias fosse. “Cristo” ,

Paulo é muito maior que a soma de suas partes.

nas várias ocasiões em que aparece como título

2.2

Narrativa quádrupla. Uma abordagem em Paulo, refere-se basicamente ao papel de Jesus

mais satisfatória da cristologia de Paulo reconhe­

durante sua vida terrena, cujo ápice foi a cruz. Por

ce seu formato narrativo (cf.

quer di­

isso, Paulo pôde decidir nada saber entre os corín­

zer que a cristologia paulina implica um relato

tios, senão o “ Cristo crucificado” (ICo 1.23). Por

em que é possível identificar quatro aspectos: a

vezes, a palavra também pode ser empregada em

H

ays) .

Isso

narrativa de Cristo, a narrativa de Israel, a narra­

referência aos papéis de Cristo após sua morte e

tiva do mundo e a narrativa de Deus.

ressurreição, ou mesmo em sua preexistência (cf.

2.2.1

A narrativa de Cristo. A estrutura nar­ ICo 10.4). Por isso, é crucial entender os títulos

rativa segue o curso daquele que esteve na pró­

cristológicos dentro da estrutura da narrativa de

pria forma de Deus (Fp 2.6), mas pôs de lado

Cristo apresentada por Paulo.

suas prerrogativas e posição divinas para assu­

2.2.2

A narrativa de Israel. Uma narratíva

mir a condição de escravo e sofrer a morte de

maior, a de Israel, também permeou a cristolo­

um escravo. Por esse motivo. Deus o exaltou. Boa

gia de Paulo. Jesus nasceu de mulher e sob a Lei

parte dessa narrativa, Paulo pode ter extraído da

(Cl 4.4). Para Paulo, isso significou o envio do

reflexão sobre os hinos cristológicos já existentes

Filho de Deus para ser o Jesus humano. Além

e que faziam parte da adoração cristã primitiva

disso, esse Filho foi enviado para redimir os que

(cf. Fp 2.6-11; Cl 1.15-20; Hb 1.2-4; v. tb. Jo 1.1-

estavam sob a Lei, ou seja, Israel, fato que pres­

14). Esses hinos atribuíam a Cristo características

supõe que o povo estava perdido. Mais importan­

que 0 judaísmo antigo havia atribuído à Sabe­

te ainda, a narrativa de Israel influenciou o modo

doria personificada (cf.

1994, cap.

em que Paulo via o nome e os papéis de Cristo.

7). Paulo, no entanto, prossegue com a narrati­

Ele é 0 Filho régio e mesmo preexistente de Deus,

va, relatando o papel continuado de Cristo nos

enviado para resgatar o povo de Deus. Pois foi

céus e seu retorno futuro à terra como juiz divino

a Israel que se fez a promessa de um Messias,

W

it h e r in g t o n ,

343

C ristologia i : Paulo

e de Israel o Messias devia vir (Rm 9.4,5). Para

pois, não importando o que se possa concluir da

Paulo, referir-se a Jesus como Filho era outra

autoria de Colossenses ou das circunstâncias tra­

maneira de apresentá-lo como personagem régio

tadas nessa carta, os elementos dessa cristologia

ou messiânico judaico que veio trazer liberdade

já estavam evidentes na cristologia de Paulo, con­

a seu povo. Por esse motivo, Paulo anunciou o

forme expresso em ICoríntios 15.24-26. Além do

evangelho como mensagem primeiro para o ju­

mais, essa é uma narrativa escatológica, pois, ao

deu (Rm 1.16).

relatar a ação final de Deus para com sua criação, ela é escatológica tanto na estrutura quanto no

2.2.3 A narrativa do mundo. As narrativas de

conteúdo (v.

Cristo e de Israel fazem parte de uma narrativa

e s c a t o l o g ia ) .

ainda maior: a narrativa do mundo. Para Paulo, o mundo está decaído (cf. Rm 1) em sobrevida;

3. A divindade e a humanidade de Jesus

a forma presente deste mundo está desaparecen­

Cristo na cristologia de Paulo

do (ICo 7.31; cf. G1 1.4). De um lado, esse fato

3.1 A divindade de Cristo. Já vimos que

relativiza os relacionamentos e outras realida­

Paulo, ao se apropriar dos hinos cristológicos,

des sociais que podem ter parecido de suprema

subscreveu ao conceito cristológico de que Cristo

importância no passado. De outro, a realidade

existia antes de assumir carne humana. Ele se re­

do colapso gradual do mundo torna ainda mais

feriu a Jesus como a Sabedoria de Deus, o agente

indispensáveis as decisões sobre as questões

divino na Criação (ICo 1.24,30; 8.6; Cl 1.15-17; v. p. 195), e como aquele que acompanhou

fundamentais da vida. 0 mundo está inclina­

B ruce,

do à autodestruição, no entanto anseia por li­

Israel como a “rocha” no deserto (ICo 10.4). Ten­

berdade; não apenas o mundo humano, mas a

do em vista o papel que Cristo desempenha em

totalidade do mundo físico (Rm 8.20-22). Além

ICoríntios 10.4, Paulo não está fundamentando a

disso, Paulo menciona os poderes sobrenaturais

história de Cristo na história arquetípica de Israel,

malévolos, que incluem Satanás e demônios e

e sim na história da Sabedoria divina, que ajudou

fazem parte da era presente (cf. ICo 10.20,21;

Israel no deserto. 3.1.1 “Cristo, a sabedoria de Deus”. Além

2Co 2.11; 4.4). É nesse cenário sombrio e no meio deste mundo

disso, parece provável que as ideias sapienciais

que se desenrola o drama de Israel com seu Mes­

encontradas em ICoríntios 1.24,30 e 8.6 desabro­

sias e da comunidade cristã (cf.

charam plenamente no conceito paulino do Cristo

W

r ig h t ,

cap. 2).

cósmico — ele é não apenas Senhor da terra e

2.2.4 A narrativa de Deus. Transcendendo a narrativa do mundo, temos a narrativa do Filho

do Universo, mas também está envolvido em sua

como parte da vida contínua de Deus. Trata-se de

criação. A flor desabrochada desse pensamen­

uma narrativa sobre a relação entre o Pai, o Filho

to sapiencial cristológico se expressa no hino de

e 0 Espírito, e ela também influencia a cristolo­

Colossenses 1.15-20, no qual se diz que Cristo é

gia de Paulo. A narrativa de Deus está entretecida

“a imagem do Deus invisível”, o “primogênito”,

com a narrativa do mundo. 0 hino cristológico de

o meio e o objetivo da criação. Aqui as qualida­

Colossenses 1.15-20 (cf. 2Co 4.4) mostra que o

des que o judaísmo podia atribuir à Sabedoria são

Filho desempenhou um papel na criação de todas

transferidas para Cristo, conforme ilustrado em

as coisas, mesmo da humanidade. Assim, o papel

textos como Sabedoria de Salomão 7.25.26: “Ela

de Cristo como redentor faz parte da iniciativa

é o sopro do poder de Deus, uma emanação pura

divina de reconcihar todas as coisas com Deus. E

da glória do Todo-Poderoso. Por isso, nada de im­

a encarnação faz parte da narrativa de Deus.

puro pode introduzir-se nela; ela é reflexo da luz

Além do mais. a subjugação e a reconciliação dos

eterna, espelho sem mancha do poder de Deus

poderes e principados também faz parte da nar­

e imagem da sua bondade”

rativa mais ampla de Deus, embora essa missão

lo tenha adotado e adaptado esse entendimento

( cnbb) .

Embora Pau­

cósmica também esteja entretecida com a nar­

da Sabedoria tendo em vista objetivos pessoais,

rativa de Cristo como redentor da humanidade

as implicações dessa ideia são importantes — os

(ICo 15.24). No pensamento de Paulo, o lugar

apóstolos atribuíram qualidades divinas a Jesus

dessa cristologia cósmica está bem consolidado.

Cristo.

344

C ristologia i : Paulo

Será que Paulo considerava Jesus um ser divi­

recomeça com a frase que expressa desejo: ‘Seja

no? Dois textos difíceis requerem exame: Roma­

0 Deus supremo sobre todos bendito para sem­

nos 9.5 e Filipenses 2.6,7.

pre’. Dessa forma, evita atribuir a Jesus Cristo a

3.1.2

Cristo, o “Deus bendito” (Rm 9.5). Esse qualidade de Deus, mas introduz uma relação

versículo aparece no início da análise paulina so­

assindética entre as frases, ou seja, as duas exis­

bre as vantagens da naçâo de Israel, mas apre­

tem de forma independente, sem conectivos, e

senta um problema exegético de pontuação. F. C.

não há motivo de ordem gramatical para que um

Burkit disse, com certo exagero, que a pontuação

particípio que concorde com ‘Messias’ seja disso­

de Romanos 9.5 tem sido provavelmente mais de­

ciado dessa palavra e passe a expressar volição

batida que a de qualquer outra frase da literatura.

por parte do falante, tendo uma pessoa diferente

Visto que nos manuscritos gregos mais antigos

como sujeito. Na verdade, não soa natural dis­

não existe quase nenhuma ou mesmo nenhuma

sociar particípio de seu antecedente”. É melhor

pontuação, o leitor ou exegeta tem de identificá-

acompanhar a n v i e ler “ Cristo, que é Deus acima

la. No caso de Romanos 9.5, o resultado é que

de todos, bendito para sempre!”.

o texto tem sido interpretado de várias manei­ ras (v.

M e tz g e r ).

Metzger também observa que em outras pas­

A discussão gira em torno de

Romanos 9.5b; se deve ser lido conforme a

sagens as doxologias paulinas são sempre Ugadas

ara

a algum antecedente: não são assindéticas (i.e.,

( “ Cristo, [...] 0 qual é sobre todos. Deus bendito

sem conectivos). Além do mais, é um padrão

eternamente”), ou segundo a

( “Cristo, que é

quase universal as doxologias no hebraico e na

Deus acima de todos, bendito para sempre”), ou

LXX trazerem “bendito seja Deus” , não “ Deus

como na anotação marginal da n v i (“ Cristo, que é

bendito” , como temos aqui, caso algumas das tra­

sobre tudo. Seja Deus louvado para sempre!”), ou

duções sejam seguidas. De modo que o provável

como na n e b ( “Cristo. Seja o Deus supremo sobre

é que “Deus bendito” (ou “Deus louvado”) não

todos bendito para sempre”). No último caso. Ro­

expressa o desejo de que Deus seja bendito para

manos 9.5b torna-se um período gramatical dis­

sempre. Trata-se da afirmação de que o Messias,

tinto de Romanos 9.5a, ou ao menos uma oração

que é Deus, é por natureza bendito para sempre

nvi

gramatical distinta. A maioria das traduções em

(mas cf.

português apoia que “o qual é sobre todos. Deus

antigas também favorecem a tradução da

bendito eternamente” está qualificando a Cristo.

da n v i . Caso alguém indague por que em nenhum

Parece que tanto o contexto quanto a gramática

outro lugar Paulo chama Cristo explicitamente de

favorecem a leitura da

ara

ou

da n v i .

Dunn,

1988, p. 528-9, 535-6). As versões ara

ou

“Deus” , Metzger tem uma boa resposta: “O moti­

A passagem de Romanos 9.5a traz a expres­

vo de existirem tão poucas afirmações nas epísto­

são ho Christos to kata sarka. Como observa B.

las de Paulo que tratam da natureza essencial de

Metzger, no caso de Romanos 1.3,4 e de outras

Cristo [...] tem, sem dúvida alguma, relação com

passagens, é normal esperar um contraste quan­

um aspecto frequentemente observado por outros

do deparamos com a expressão kata sarka (“se­

autores, a saber, que o apóstolo, tendo em vista o

gundo a carne”). Por isso, em Romanos 1.3,4, o

objetivo de instruir na fé cristã, geralmente prefe­

contraste é entre kata sarka (“ segundo a carne”)

re falar dos relacionamentos funcionais de Cristo,

e kata pneuma ( “ segundo o Espírito”) . Em Roma­

não dos ontológicos”

(M e tz g e r ,

p. 111-2).

nos 9.5a, kata sarka não soa natural caso o autor

Concluímos que em Romanos 9.5 Paulo cha­

não insista em dizer que Cristo é segundo alguma

ma Cristo de Deus e dessa maneira demonstra

outra coisa além da carne.

até que ponto a experiência que o apóstolo teve com 0 Senhor ressuscitado o levou a adjetivar ou

Além disso, a expressão “ o qual é” (ho õn] normalmente é interpretada como introdução

transformar seu monoteísmo judaico (cf.

de uma oração adjetiva explicativa, e 2Corín-

p. 237). Isso significa que Paulo tinha uma cristo­

W

r ig h t ,

tios 11.31 ( “que é eternamente bendito”, ho õn

logia elevada antes mesmo de empregar o hino a

eulogêtos eis tous aiõnas) é um bom paralelo de

Cristo em Filipenses 2 (supondo-se que Filipenses

Romanos 9.5. Para N. Turner (p. 15), “o texto da

seja posterior a Romanos e que Paulo não conhe­

NEB simplesmente termina a frase em ‘Cristo’ e

cesse o hino antes de escrever Romanos).

345

C ristologia i : Paulo

3.1.3

Deus, |iop Fiorenza,

R. E'. Rôles of women in the fourth gos­ 36, p. 688-99, 1975. ■ ______ . _______.

tramos muito mais informações que alguns dos

E. S. In memory o f her: a feminist theological

Doze, sejam incluídas como discípulas e emis­

reconstruction o f Christian origins. N ew York:

sárias durante o ministério de Jesus (para não

Crossroad, 1983. • Giles, K. Jesus and women.

mencionar Isabel e Ana, em Lc 1—2). Têm se

Interchange, v. 19, p. 131-6, 1976. ■ G ill, A. W o­

observado também que os Doze eram todos ju­

men ministers in the Gospel of Mark. AusBR,

deus, mas a igreja primitiva, à medida que se de­

V.

senvolveu em outros ambientes sociais, passou a

J. A. Mary Magdalene and the women in Jesus’

35, p. 14-21, 1987. ■ Grassi, C. M. & Grassi,

aceitar gemios na Uderança. Desse modo, não se

life. Kansas City: Sheed & Ward, 1986. ■ Hur­

deve insistir demasiadamente na exata composi­

ley, J. B. Man and woman in biblical perspec­

ção dos Doze.

tive. Grand Rapids; Zondervan, 1981. ■ Ilan, T.

Mais significativo é o fato de que os Doze

Jewish women in Greco-Roman Palestine. Peabo­

não constituíram nem forneceram o modelo ou

dy: Hendrickson, 1996. • Klassen, W. The role

a base para a liderança ou a autoridade na igreja

of Jesus in the transformation of feminine cons­

primitiva, exceto nos dias iniciais da igreja em Je­

ciousness.

rusalém. Em vez disso, mais significativo para o

J. Jesus and women: Luke’s Gospel. TToday,

JCSR, V.

7, p. 182-210, 1980. • Kopas,

caráter da Uderança na igreja primitiva era o cha­

V.

mado de Jesus ao discipulado, a definição de dis­

enads, martyrs, matrons, monastics: a source­

cipulado da perspectiva do serviço e o fato de que

book on w om en’ s religions in the Greco-Roman

homens e mulheres estavam entre os seguidores

world. Philadelphia: Fortress, 1988. •

dG Jesus como discípulos e emissários.

R. G. Her testimony is true: wom en as witnesses

Às vezes, observa-se que Jesus nâo desig­

43, p. 192-202, 1986. ■ Kraemer, R. S. Ma­

a c c o r d in g

M a c c in i,

to John. Sheffield: Academic, 1996.

nou mulheres para nenhuma função. Mas Je­

[js N T s u p ,

sus também não designou nenhum homem

male and female: the fate of a dominical saying

para alguma função (com exceção de Fedro,

in Paul aHd gnosticism. Philadelphia: Fortress,

125.) ■

M a c D o n a ld , D .

R. There is no

e isso não determinou a estrutura da igreja, a

1987.

não SGr a liderança inicial da igreja em Jerusa­

ancient Israelite women in context. N ew York:

(h d r .

20.) •

C. Discovering Eve:

M eyers,

lém). As estruturas de Uderança e autoridade

Oxford University Press, 1988. ■

nas igrejas dos primórdios, especialmente nas

W om en in Jesus’ ministry,

de Paulo, acerca das quais existem mais evi­

91, 1989. ■

dências disponíveis, eram às vezes mutáveis

woman.

e sem organização muito detalhada. Em tais

_____ . Women in Judaism: the status of women

contextos, algumas mulheres exerciam, sim,

in formative Judaism. Metuchen: Scarecrow,

S w id le r ,

O sb o rn e,

v/t j , v .

G. R.

51, p. 259-

L. Biblical affirmations of

Philadelphia:

Westminster,

1979.



liderança e autoridade (sabe-se o nome de

1976. •

doze mulheres que estavam entre os colabo­

o f the church: women and ministry from New

radores de Paulo no ministério; v. Rm 16.1-16;

Testament times to the present. Grand Rapids:

Fp 4.2,3; ICo 1.11; Cl 4.15; At 16.14,15,40).

Zondervan, 1987. ■ W

Ver também J e s u s , djg;

D

iv o r c e ;

M

Song; P

ucker,

R. A. &

L

ie f e l d ,

it h e r in g t o n

W .

iii,

Daughters

B. Women

in the ministry o f Jesus: a study of Jesus’ attitu­

n a s c i m e n t o d e ; r e s s u r r e iç ã o .

ary’s

T

des to women and their roles as reflected in his

r o s t it u t e .

955

M u lh er e s i i : P a u l o

earthly life. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

(sntsm s,

51.)

incisivas, dirigidas a homens e mulheres conside­ rados em bases iguais. Os contratos matrimoniais

D. M

SCHOLER

judaicos estipulavam certos deveres exigidos de maridos e mulheres, mas Paulo se concentra

M

u lheres ii:

P aulo

Nenhum outro autor do

em um único dever, que é pertinente aqui: as re­ tem sido mais criti­

lações sexuais. A questão aqui é que não se trata

cado por sua suposta postura negativa diante

de um simples dever dos maridos, como se vê em

nt

das mulheres que o apóstolo Paulo. Apesar da

alguns textos judaicos, mas de uma obrigação re­

ideia paulina de que “não há homem nem mu­

cíproca (ICo 7.3,4). Tanto os contratos judaicos

lher [...] em Cristo Jesus” (GI 3.28), ele tem sido

quanto Paulo revelam uma sensibilidade espe­

visto como um mero produto de sua época em

cial pelos sentimentos da esposa, em forte con­

outros textos, em que aparece subordinar ou de­

traste com 0 destaque que a cultura grega dava

negrir as mulheres (e.g., ICo 14.34,35). Só é pos­

à gratificação sexual do homem

sível identificar se Paulo simplesmente reflete as

p. 67-82).

( K eener,

1991,

ideias de sua cultura acerca das mulheres ou se

Outra comphcação para esse estilo de vida

diverge (positiva ou negativamente) de tais ideias

é que alguns cristãos agora queriam se divor­

mediante o exame, à luz da cultura de Paulo, de

ciar por falta de satisfação sexual ou, mais pro­

algumas de suas passagens mais debatidas.

vavelmente, para buscar uma vida celibatária

1. Paulo e os papéis do homem e da mulher em geral

(ou, na ideia de filósofos cínicos, um estilo de vida livre do ônus do casamento, mas não de

2. Paulo e o véu para as mulheres

relações sexuais; cf. ICo 6.12-20). Em sua res­

3. Paulo e a submissão da mulher

posta, Paulo cita Jesus: o divórcio não é permis-

4. Paulo e 0 ministério feminino

sível (ICo 7.10,11; cf. Mc 10.11,12). Entretanto, depois de recorrer à proibição do divórcio, es­

1. Paulo e os papéis do homem e da

tabelecida por Jesus, Paulo passa a ser mais

mulher em geral

específico, sem que em momento algum acredite

As cartas de Paulo são esporádicas, ou seja, foram

estar questionando a autoridade daquela proibi­

escritas para atender a determinadas circunstân­

ção. Havia uma ampla compreensão de que as

cias, e, desse modo, os temas nelas tratados cons­

declarações gerais de princípio precisavam ser

tituem respostas a questões levantadas a respeito

exphcitadas em certas situações, especialmente

desses temas. As cartas mais antigas de Paulo

quando se tinha em vista que o estilo judaico de

(principalmente as reconhecidamente atribuídas

ensino de Jesus às vezes incluía hipérboles, isto

ao apóstolo) não tratam com muita frequência da

é, exageros retóricos (v.

questão específica de homens, mulheres ou casa­

certo que o crente não tem permissão para tomar

mento, mas o tema é tratado, especialmente em

a iniciativa de romper com seu casamento, mas,

ICorintios 7.

K eener,

1991, p. 13-28). É

se for obrigado a isso (aqui o exemplo oferecido

Em ICorintios, Paulo se dirige a cristãos que,

por Paulo abrange o abandono e o divórcio contra

à semelhança de uns poucos grupos de sua cul­

a vontade do crente; pela lei romana, qualquer

tura, tinham agora em alta consideração o estilo

um dos cônjuges podia agir unilateralmente e se

de vida celibatário. Essa convicção, no entanto,

divorciar), “nem o irmão nem a irmã estão sujei­

havia criado certas comphcações. Uma delas é

tos à servidão” (ICo 7.15), pois não existe garan­

que alguns dos que admirava^aía yjda celibatária

tia de que o incrédulo vá se converter (ICo 7.16).

já eram casados, e o fato de buscarem o celibato

Quando Paulo diz que os cônjuges “ [não]

dentro do casamento criava para seus cônjuges e

estão sujeitos à servidão” , ele repete a exata

possivelmente para si mesmos o perigo de serem

linguagem de contratos judaicos de divórcio, sig­

tentados sexualmente (IC o 7.2,5; cf. ICo 7.9).

nificando que 0 divórcio era váUdo e que ambos

É possível que Paulo esteja aludindo a algum

estavam “hvres” para tornar a casar (v.

ponto de vista dos coríntios em ICorintios 7.1,

1991, p. 50-66). Ler essa expressão de outra ma­

mas em ICorintios 7.2-5 as palavras de Paulo são

neira que não a liberdade para se casar de novo

956

K eener,

M u l h er e s íí ; P a u l o

é ignorar como os leitores judeus do século i te­

no casamento e na igreja, os temas que provocam

riam entendido as palavras de Paulo (para não

mais debate no que tange ao papel das mulheres

mencionar o fato de desconsiderar o sinônimo

em Paulo.

em ICo 7.27,39). Ao longo de sua análise inicial 2. Paulo e o véu para as mulheres

sobre o divórcio, Paulo tem o cuidado de manter o equilíbrio de uma linguagem inclusiva, envol­

Alguns comentaristas procuram negar a autoria

vendo igualmente maridos e esposas na respon­

paulina de praticamente todas as passagens das

sabilidade e na liberdade espirituais.

cartas que ípresentam controvérsia em relação às

Paulo, depois de insistir com seus leitores

mulheres, mas as provas textuais a favor dessa

que é melhor permanecer na condição em que se

tendência são tão fracas que bem poucos estudio­

encontram (i.e., ele prefere ficar solteiro e, com

sos a apoiam. Em vez disso, a maioria dos auto­

mais veemência, defende que se evite o divórcio;

res tem se ocupado com mais diligência da tarefa

cf. ICo 7.14-24), explica que as virgens provavel­

de entender o texto. 0 texto claramente se refere

mente estarão em melhor condição se continua­

ao costume que tinham as mulheres de cobrir a

rem solteiras (ICo 7.25-38), embora reconheça

cabeça, pelo menos na hora da adoração, e para

que essa decisão só funciona para quem está pre­

isso algumas usavam um xale (cobrindo apenas o

parado (ICo 7.36; cf. ICo 7.9). Nesse contexto,

cabelo), mas em alguns lugares utilizava-se tam­

ele retorna, momentaneamente, à questão do di­

bém um véu que cobria todo o rosto. Contudo,

vórcio. Digressões eram comuns na Antiguidade

há um número tão grande de contextos em que

e em Paulo em particular, e no contexto imediato

se usavam coberturas para a cabeça que é preciso

o rumo do pensamento não deixa dúvida de que

indagar de qual desses contextos Paulo está tra­

ICorintios 7.27,28 se refere ao divórcio: “Estás

tando. Por exemplo, as pessoas cobriam a cabeça

casado? Não procures te divorciar. Estás divorcia­

em sinal de luto ou de vergonha, mas, uma vez

do [a mesma palavra grega da frase precedente]?

que era uma prática comum a homens e mulhe­

Não queiras casar-te outra vez. Mas, se voltares a

res, é improvável que Paulo estivesse pensando

te casar, com isso não pecas: e o mesmo se aplica

somente nelas.

a quem não estava casada” (tradução do autor).

Tradicionalmente, as mulheres gregas, em

Aqui 0 linguajar de Paulo é menos inclusivo, mas

grande parte, ficavam reclusas em seus lares, e

0 objetivo de sua mensagem diz respeito a am­

não há muitos dados que indiquem que nesse pe­

bos os sexos: quando chega a ICorintios 7.32-

ríodo elas cobriam a cabeça, pelo menos não as

34, ele valoriza a devoção espiritual de homens e

mulheres de posses. Contudo, a leste da Grécia, o

de mulheres.

costume predominava, mesmo na Palestina e no

Talvez ICorintios 7.36-38 seja pertinente em

sul da Ásia romana (e.g.. Tarso: v.

M

acM ullen).

nossa análise, caso se refira a casamentos arran­

Além disso, as mulheres romanas, à semelhança

jados pelos pais, 0 que é provável. Contudo, os

dos homens romanos, cobriam a cabeça quando

estudiosos estão divididos em proporções prati­

adoravam, em contraste com homens e mulhe­

camente iguais quanto ã pessoa a quem o texto

res gregos. A igreja coríntia, situada perto de

se dirige: se ao pai da virgem ou ao noivo. No

um porto importante e nascida em uma sinago­

primeiro caso, Paulo está simplesmente se diri­

ga (At 18.4,7,8), provavelmente abrigava alguns

gindo ao pai da eventual noiva na situação cul­

imigrantes orientais, para quem cobrir a cabeça

tural então predominante; os pais arranjavam

era uma prática importante. Dados provenientes

0 casamento dos filhos, geralmente ouvindo a

do Egito indicam que, fora da Palestina, muitas

opinião destes. No segundo caso, não dispomos

mulheres judias cobriam a cabeça, mesmo que

de nenhum paralelo cultural para a situação aqui

em muitos outros aspectos fossem helenizadas Jo e As). Mas sem dúvida havia mais coisas

tratada. Entretanto, em qualquer uma das duas

(F

leituras Paulo parece sugerir sensibiUdade para

envolvidas do que um choque de símbolos cultu­

com os desejos da moça (ICo 7.36).

rais. A cobertura da cabeça era uma questão cul­

il o ;

tural, mas simbolizava certos valores, bem mais

Agora temos de nos vohar para questões mais

profundos que o símbolo em si.

específicas: a cobertura de cabeça e a autoridade

957

M u l h er e s i i : P a u l o

No antigo mundo mediterrâneo, o cabelo

descobrindo-a numa cultura em que isso é de­

da mulher era objeto básico de desejo masculi­

sonroso, estará também desonrando o marido

no

Me, 2.8, 9; Sipre, Nm 11.2.3); desse

(ICo 11.2-6). Ao estabelecer uma analogia entre

modo, para as sociedades que adotavam a cober­

cabeças descobertas e rapadas (técnica retórica

tura para a cabeça, as mulheres casadas sem a co­

denominada reductio ad absurdum; Paulo diz:

( A p u l e io ,

bertura eram infiéis aos maridos, ou seja, estavam

“Se desejas estar descoberta, por que não vai até

à procura de outro homem (cf. m. Ketub., 7.6; mas

0 fim com isso?”), o apóstolo reforça esse sen­

era normal que as virgens e as prostitutas não co­

timento de vergonha. Quando o cabelo da mu­

brissem a cabeça, pois estavam à procura de ho­

lher era cortado bem curto ou rapado, era uma

mens) . Dessa maneira, as mulheres que cobriam

grande desonra e simbolizava a perda de sua

a cabeça viam as mulheres de cabeça descoberta

feminilidade.

como uma ameaça. No entanto, sem dúvida as

Embora Paulo esteja argumentando com base

mulheres de cabeça descoberta viam o costume

em um jogo de palavras, intérpretes da atualidade

de cobri-la como uma restrição à liberdade e en­

têm se apegado a uma única palavra — “cabQça”

tendiam que a maneira de apresentar o cabelo

(gr., kephalê) — e debatido o que Paulo quis dizer

era questão pessoal. É significatívo que entre as

quando chamou o marido de “cabeça”. Alguns es­

mulheres de cabeça descoberta provavelmente

tudiosos afirmam que o termo significa “autorida­

estavam as mulheres cultas, de posição social

de” ou “chefe”. A palavra hebraica para “cabeça”

mais elevada, cujos lares hospedavam a maioria

[rõ ’sh] pode significar isso, e às vezes kephalê tem

das igrejas domiciliares. Algumas estátuas repro­

esse sentido na

duzem mulheres de posses usando penteados da

questionam esse sentido, observando que os tra­

moda e com a cabeça descoberta: as mulheres

dutores geralmente se esforçam ao máximo para

mais pobres provavelmente consideravam esses

evitar traduzir o vocábulo hebraico rõsh pelo

lxx

(G ru d e m

e

F it z m y e r ).

Outros

penteados sedutores. Tendo em conta o confli­

termo grego kephalê, pois kephalê geralmente não

to de classes na igreja de Corinto, que fica evi­

tem 0 sentido de “autoridade” ou “chefe”. O se­

dente em outras passagens em ICorintios (e.g.,

gundo grupo de estudiosos defende o sentido de

ICo 11.21,22;

V . T h e is s e n ) ,

não seria difícil esse

comportamento gerar controvérsia (v. 1992, p. 22-31; cf.

“ fonte” , que de fato é o significado em alguns tex­ tos

K een er,

(M ic k e ls e n ,

in:

M ic k e ls e n ,

p. 97-111;

S cro g g s,

p. 284). Contudo, os estudiosos a favor do senti­

T h o m pso n ).

Tanto o livro de Atos quanto as cartas de Pau­

do de “autoridade” replicam que na

lx x

“fonte”,

lo apresentam o apóstolo como um hábil debate-

como tradução de kephalê, é um sentído ainda

dor, familiarizado com a lógica e a retórica de sua

mais raro que o de “autoridade”. Os dois grupos

cultura. Na retórica antiga, os argumentos que

estão plenamente convictos do que afirmam, mas

alguém apresentava a favor de uma opinião não

talvez nâo consigam provar o que negam. O ter­

precisavam ser as mesmas razões que ele tinha

mo às vezes significa “ fonte” e às vezes tem o

para manter seu ponto de vista. 0 propósito de

sentido de “autoridade”, pelo menos no “grego

Paulo ao aconselhar as mulheres a cobrir a ca­

judaico” influenciado pelo compasso da ixx.

beça pode ter sido preservar a unidade da igreja,

A pergunta é: qual sentido se deve atribuir

mas apresentou os argumentos que funcionariam

ao termo em ICorintios 11.3? Tendo em vista a

melhor para persuadir seus leitores. Ele apresenta

alusão a Adão como fonte de Eva em ICorintios

quatro argumentos principais em defesa daquela

11.8, é bem provável que Paulo esteja falando do

ideia: valores famihares, a orderruda criação, o

homem (Adão) como a “ fonte” de sua esposa, as­

exemplo da natureza e a modéstia, conforme de­

sim como Cristo havia criado Adão e, mais tarde,

terminada pelos costumes.

em sua encarnação procedeu do Pai (caso em que

Primeiro, com base em valores familiares e

ICo 11.3 se encontra em sequência cronológica;

em um jogo de palavras (prática comum na apre­

v.

sentação de argumentos na Antiguidade entre ju­

Efésios 5.23, a esposa deve se submeter ao mari­

deus e gregos): o marido é o cabeça da mulher,

do, seu “cabeça” , ou seja, alguém com autorida­

de modo que, se ela desonra a própria cabeça.

de sobre ela, embora simukaneamente se espere

958

B il e z ik ia n ,

p. 138). Em contrapartida, segundo

M u l h er e s h : P a u l o

que 0 marido defina a condição de ser cabeça por

que estavam presentes na adoração, conforme

meio do serviço sacrificial a favor da esposa. No

testemunho de alguns textos de Qumran, os quais

entanto, nem mesmo Efésios 5 oferece uma ideia

poderiam ficar ofendidos com o abandono da

transcultural da autoridade do marido. Nessa

modéstia, o que culturalmente tinha o sentido de

passagem, a autoridade dele reflete a condição da

desconsideração pela honra da própria família;

mulher numa sociedade em que ela já era subor­

anjos que governavam as nações, os quais os cris­

dinada ao marido e atenua essa condição em uma

tãos um dia julgariam — nesse caso, Paulo estaria

direção mais progressista (v. 3 abaixo).

exortando as"mulheres a reconhecer a autoridade

3)

Segundo: com base na ordem da criação

que têm sobre a própria cabeça, mas também a

(ICo 11.7-12), Paulo apresenta outro argumento.

usar essa autoridade de maneira responsável (cf.

Em essência, ele diz; “Adão foi criado antes de

ICo

Eva, por isso as mulheres devem usar cobertura

mostra que Paulo reconhece a autoridade que a

para a cabeça”. Esse argumento não soa muito

mulher tem sobre a cabeça e argumenta com ela

bem para a lógica moderna, mas sem dúvida

para que a cubra por motivo de modéstia, mas o

transmitiu admiravelmente a mensagem para os

argumento do apóstolo não vai além.

6 .3 ) .

De qualquer forma, a construção grega

coríntios. Conquanto Paulo soubesse, com base

Terceiro: Paulo argumenta com base na na­

em Gênesis 1.26,27, que juntos o homem e a mu­

tureza, isto é, a na ordem natural das coisas

lher representam a imagem de Deus (cf. Rm 8.29;

(ICo

2Co 3.18), ele destaca que a mulher, que saiu

vam argumentos baseados na natureza, e outros

do homem, também reflete a glória do homem

autores adotavam a mesma prática. É possível

1 1 .1 3 -1 5 ).

Em geral, os estoicos apresenta­

(ICo 11.7) e, por isso, pode fazer com que os

que Paulo esteja argumentando com base no

homens se desviem da adoração. Isso pode estar

costume vigente entre gregos e romanos (outros

relacionado ao perigo da típica lascívia masculina

povos dos dias de Paulo e os gregos em perío­

naquela cultura. Mas, logo depois que apresen­

do anterior usavam cabelo comprido), embora a

tou seu argumento baseado na ordem da criação,

“natureza” geralmente signifique algo mais forte

Paulo o retoma: é verdade que a mulher procede

que isso. Ele pode também estar argumentando

do homem, mas também é verdade que o homem

que 0 cabelo das mulheres naturalmente cresce

procede da mulher: ambos dependem um do ou­

mais que o dos homens.

tro no Senhor (ICo 11.11,12). Para sustentar seu

Quarto: Paulo emprega um argumento clássi­

ponto de vista, Paulo precisa apenas mencionar

co da antiga retórica judaica e também da retó­

que a mulher procede do homem, mas expõe seu

rica greco-romana: “É exatamente assim que as

argumento de modo que ninguém possa forçar o

coisas são feitas” (ICo

sentido para além do que ele pretende, mencio­

Um grupo de filósofos, os céticos, só aceitava ar­

nando 0 assunto apenas como um argumento ad

gumentos baseados nos costumes, enquanto a

hoc para defender o costume de cobrir a cabeça,

maioria dos outros pensadores o aprovava como

não para tudo o que se possa derivar dele.

11 .1 6 ,

tradução do autor).

argumento auxiliar. Raciocinando para incluir

Paulo conclui o segundo argumento com uma

todos os seus leitores (influenciados pelo pensa­

frase tão curta que tem gerado considerável va­

mento dos judeus, dos estoicos e talvez dos céti­

riedade de interpretações: “Porianto, é apropriado

cos), Paulo conclui com um argumento que diz

para a mulher exercer autoridade sobre sua cabe­

respeito ao verdadeiro propósito de ter escrito sua

ça [nao “ter um sinal de autoridade em” sua cabe­

carta: evitar contendas (cf.

ça, como em algumas traduções; v.

para mais documentação a essa seção).

H o o ker],

por

K eener, 1 9 9 2 ,

p.

31-4 7,

causa dos anjos” (ICo 11.10, tradução do autor).

Alguns pontos estão claros aqui. Um deles é

Os anjos podem ser; 1) anjos lascivos, como na

que Paulo trata das questões com que sua con­

maioria das interpretações judaicas de Gênesis 6.2

gregação está lutando, incluindo-se aquela sobre

(v. tb. 2Pe 2.4; Jd 6; provavelmente IPe 3.19-22),

os sexos, e temas que tinham origem na cultura.

mas presumivelmente Paulo teria falado mais

Ele também sustenta a importância da famíha

desses anjos aqui e em outras passagens se acre­

cristã e da unidade da igreja. Além disso, embora

ditasse que representavam uma ameaça; 2) anjos

apresente argumentos favoráveis à modéstia no

959

M u lh er e s i i : P a u l o

vestuário para manter a igreja unida, ele procura

tornar “ intelectualmente homem” ! De forma se­

persuadir as muiiieres que ouvirem a leitura de

melhante, Plutarco, um dos escritores mais escla­

sua carta na igreja a manter esses argumentos em

recidos sobre o assunto, sugere que as mulheres

mente, mas sem questionar o direito que elas têm

podem aprender filosofia com seu marido, mas

de se vestir como quiserem (ICo 11.10), algo bem

fundamenta a sugestão na ideia de que elas irão

diferente de argumentos mais fortes encontrados

atrás de tolices caso sejam deixadas à vontade

em outras passagens na carta (fCo 4.18—S.S;

(P

11.29-34). Entretanto, para nossa análise, talvez

naturalmente afetaram a maneira em que eram

lutarco,

Cn pr, 48; Mo, 14SDE). Tais atitudes

0 mais importante seja o que ele omite: em ne­

tratadas no lar, onde os homens detinham o po­

nhum lugar do texto Paulo impõe subordinação à

der. 0 direito romano outorgava ao chefe da casa.

mulher, nem mesmo toca no assunto.

conhecido como pater famílias, autoridade total sobre esposa, filhos e escravos. Por toda a anti­

3. Paulo e a submissão da mulher

guidade greco-romana, via-se a submissão mansa

Embora várias passagens paulinas tratem da su­

da esposa como uma de suas maiores virtudes

bordinação da mulher no lar (Ef 5.22-33; Cl 3.18:

(e.g., Eo 26.14-16: 30.19: v. contratos gregas de

ITm S.14; Tt 2.4,5), examinaremos detalhada­

casamento).

mente apenas a mais longa dessas passagens,

Talvez devido à proliferação do infanticídio fe­

visto que todas estão inseridas no mesmo am­

minino (esse detalhe é objeto de debate), parece

biente cultural, e as duas referências nas Cartas

ter havido uma diminuição de mulheres na socie­

Pastorais podem refletir a situação social descrita

dade grega, e o casamento de homens na casa dos

em nosso comentário de ITimóteo 2.9-15, mais

trinta anos com meninas no início e na metade

adiante. 0 fato de a situação social influenciar

da adolescência era prática padrão. Até chegar à

as determinações é algo que fica claro diante de

casa dos trinta anos, os homens tinham relações

uma comparação por amostragem entre, diga­

sexuais com escravas, prostitutas ou uns com os

mos, ITimóteo e Provérbios 31.10-31.

outros. Na Atenas clássica, quando um homem se

3.1

A situação social. Antes de examinar o casava, era comum ele achar sua esposa (mal en­

que Paulo quis dizer em Efésios 5.22-33, deve­

trando na puberdade) menos interessante intelec­

mos observar que até mesmo a interpretação

tualmente que as prostitutas. Embora a situação

mais restritiva dessa passagem deve considerar

nos dias de Paulo não fosse assim tão desalenta-

Paulo alguém que não é mais conservador do que

dora em todo o império, pois algumas inscrições

qualquer outro homem de sua cultura. Embora

tumulares dão testemunho de amor genuíno entre

as mulheres estivessem experimentando algum

maridos e esposas, a própria estrutura da socie­

progresso nessa época (qualquer coisa teria sido

dade antiga impedia que o marido visse a esposa

uma melhoria em comparação com a Atenas clás­

como alguém potencialmente igual a ele.

sica!) e em algumas regiões (e.g., a Asia romana

Por sinal, a partir da época de Aristóteles, era

urbana e a Macedônia) tivessem mais liberdade

usual que os filósofos morais aconselhassem os

que em outras, em nenhum lugar elas desfruta­

leitores sobre a maneira correta de governar a

vam da liberdade social hoje reconhecida como

esposa e os outros membros da casa. Essas ins­

direito delas.

truções vieram a ser conhecidas como códigos

Na Antiguidade, as atitudes de homens in­

domésticos (ou Haustafein, que é a forma ale­

fluentes para com as mulheres em geral soam

mã do título e a mais comum na literatura aca­

cruéis aos ouvidos de hoje.,¥ar^ alguns antigos

dêmica). Aristóteles e muitos moralistas depois

mestres judeus, as mulheres eram inerentemente

dele estabeleceram as três principais categorias

más (cf. Eo 42.12-14; m. 'Abot, 2.7). Josefo afirma

de subordinados ao chefe da casa: esposas, fi­

que, para o bem delas próprias, a Lei determina

lhos e escravos

(A

r is t ó t e l e s ,

Po, 1.2.1, 1253b).

Co Áp, 2.24,

Embora admitisse que o caráter da respectiva

§ 200-1). Filo se queixa de que as mulheres são

subordinação podia ser variado (e.g., os filhos

quase desprovidas de sensatez

homens exigiam menos subordinação à medida

que estejam subordinadas

(J o s e f o ,

(F

il o ,

Ompb, 117)

e exaha uma exceção, a imperadora Lívia, por se

960

que cresciam; cf.

A

r is t ó t e l e s ,

Po, 1.5.12, 1250b),

M u l h er e s n : P a u l o

ele alegava que tal subordinação era uma ques­

estava em Roma e tinha bastante consciência

tão de natureza, não apenas da cultura [acerca

das atitudes dos romanos em relação aos cultos

das mulheres, v.

Po, 1.2.12, 1245b).

orientais, como os adoradores de ísis e de Dioní­

Os temas morais atraíam os romanos, que tinham

sio e como o judaísmo em suas formas cristã e

uma cultura que destacava o dever e a ordem e

não cristã (que hoje chamamos “cristianismo” e

A r is t ó t e l e s ,

que nutriam suspeitas com respeito a quaisquer

“judaísmo” , respectivamente). Paulo também

ameaças em potencial à ordem da sociedade

está consciente de que o ostracismo social que

(e.g., o culto socialmente perturbador de Dioní­

os judeus e 6s cristãos muitas vezes enfrentavam podia ficar bem pior caso o resuhado do próprio

sio, no século II a.C.). e ii, muitos aristocratas roma­

julgamento estabelecesse um precedente negati­

nos (e.g., Petrônio e Juvenal) encontraram mo­

vo para cristãos de outras regiões (Fp 1.7, dirigida

tivos para denegrir os grupos religiosos vindos

a uma congregação que incluía alguns cidadãos

do Oriente, especialmente quando esses grupos

romanos, como ele próprio). Assim como os re­

convertiam mulheres romanas e subvertiam os

presentantes de outros grupos religiosos existen­

valores romanos tradicionais. No século i, alguns

tes no império, que sofriam com a desconfiança

escândalos de grande repercussão envolvendo

dos romanos, Paulo tinha bons motivos estraté­

Nos séculos

I

mulheres, ocorridos em Roma e provocados por

gicos para manter os valores familiares romanos

judeus e seguidores de ísis, resultaram em repre­

tradicionais.

An, 2.85; Jo­

À primeira vista, pode parecer que Paulo faz

An, 18.3.4, § 64-80). Para provar que não

apenas isso, e, diante da situação social, não é de

estavam subvertendo os valores familiares tradi­

surpreender que o apóstolo apresente códigos do­

cionais dos romanos, os grupos suspeitos cria­

mésticos em suas três categorias básicas: relações

vam conjuntos próprios de códigos domésticos,

entre marido e mulher, entre filhos e pais e entre

sálias por parte do governo sefo ,

( T á c it o ,

seguindo os modelos propostos pelos filósofos

escravos e senhores. iVIas ao contrário de nossas

morais: instruções sobre como cada chefe devia

expectativas e de maneira significativa, Paulo

governar a esposa, os filhos e os escravos

( J o sefo,

faz uma adaptação a essa lista. É verdade, sim,

para uma exten­

que mulher, filhos e escravos devem se submeter

sa exposição sobre os códigos familiares de Aris­

e, dessa maneira, calar as objeções culturais ao

tóteles por meio de Josefo).

evangelho (aqui submissão é “ no temor de Cris­

Co Áp, 2.25-31, § 201-7; v.

3.2

B alch

Efésios 5.22-33. Alguns estudiosos afir­ to” , i.e., “ por causa do Senhor” , Ef 5.21; 6.5-8).

mam que 0 Paulo original (conforme refletido

Mas para Paulo uma ética verdadeiramente cristã

em Rm 16.3-15; Fp 4.2,3) preservou o espírito de

compatível com o ensino e o exemplo de Jesus

igualitarismo de Jesus, mas que a segunda e a

acerca do serviço vai além disso: o chefe da casa

terceira gerações de discípulos do apóstolo (re­

também deve se submeter. Que Paulo exija isso

fletidas nas cartas aos colossenses e aos efésios

do pater famílias é algo que está implícito de vá­

e nas Cartas Pastorais, respectivamente) foram

rias maneiras, e a distinção entre essa ideia e a

cada vez mais impondo submissão às mulheres,

ordem antiga e mais usual de que o chefe da casa

enquadrando-as assim nos padrões de sua cul­

estivesse no controle deve ter sido clara para os

tura. Embora esse ponto de vista tenha alguns

leitores de sua época.

elementos a seu favor, ele repousa sobre duas

Em primeiro lugar, Paulo apresenta sua estru­

hipóteses que precisam de comprovação: a pri­

tura dividida em três partes, uma forma bem in­

meira é que os escritos canônicos paulinos poste­

comum. Como ápice de suas exortações, em que

riores não são autênticos; a segunda consiste em

descreve uma vida cheia do Espírito (Ef 5.18-21),

uma leitura singular dessas cartas posteriores. 0

Paulo conclama todos os crentes a se submeter

texto de Efésios não dá apoio à ideia de que seu

uns aos outros (Ef 5.21). É verdade que o contex­

autor se tornou mais machista que o Paulo das

to a seguir dehneia diferentes formas de submis­

cartas anteriores.

são, todas em conformidade com os diferentes

Pressupondo-se que Efésios seja da autoria

papéis sociais, mas a própria ideia de submissão

de Paulo, ela foi escrita por um prisioneiro que

mútua forçava o sentido usual do termo: às vezes.

961

M u lh er e s i i : P a u lo

o chefe da casa é aconselhado a se mostrar mais

os códigos domésticos exigiam bem mais da es­

sensível em relação à esposa, aos filhos e aos es­

posa que simples respeito. Todavia, mesmo nessa

cravos, porém jamais lhe é dito que se submeta a

situação social, a ideia de Paulo acerca da subor­

eles. É evidente, quando lemos sua exortação em

dinação das mulheres por certo não era muito

Efésios 6.9, que Paulo entendia que essa submis­

mais fraca.

são mútua devia abranger também o relaciona­

Em quarto lugar, a subordinação da mulher ao

mento entre escravo e senhor. Depois de explicar

marido encontra um paralelo direto com a subor­

como e por que os escravos devem se submeter

dinação do escravo a seu senhor — em ambos os

(Ef 6.5-8), ele conclama os senhores a agir com os

casos, aquele que se submete “a Cristo” , o qual

escravos “de igual modo”

ideia que, levada

é igualmente comparado ao senhor do escravo e

ao pé da letra, vai além de qualquer outro texto

ao marido. Hoje em dia, a maioria dos intérpretes

antigo que tenha sobrevivido até os dias de hoje.

reconhece que Efésios 5.5-9 não trata da institui­

Em segundo lugar, os deveres alistados são

ção social da escravatura: apenas aconselha os

recíprocos. Enquanto a maioria dos códigos do­

escravos nessa situação. A semelhança de alguns

mésticos simplesmente se dirigia ao chefe da

filósofos estoicos, Paulo podia recomendar aos es­

casa, instruindo-os sobre como governar os ou­

cravos que buscassem a própria liberdade quan­

tros membros da famflia, Paulo primeiramente se

do isso fosse possível (ICo 7.21,22). E, da mesma

( /u m ) ,

dirige às esposas, aos filhos e aos escravos. Longe

forma que uns raros filósofos, que Aristóteles cri­

de instruir o pater famílias sobre como governar

ticou por sugerirem que a escravidão era contrária

sua esposa, filhos e escravos, ele evita qualquer

à natureza e, portanto, errada, Paulo claramente

exortação ao governo da casa e simplesmente

considerava como não natural a subordinação

o aconselha a amar a esposa (sem dúvida uma

de um ser humano a outro (Ef 6.9). Enquanto

prática comum, mas raramente prescrita), a ser

0 AT ordenava a obediência dos filhos à instru­

contido na disciplina dos filhos e a considerar os

ção moralmente sadia dos pais (Dt 21.18-21),

escravos pessoas iguais perante Deus. Dificilmen­

em nenhum lugar o

te essas prescrições seriam encontradas em um

as esposas e os escravos sejam submissos, embora

at

ordena explicitamente que

código doméstico comum, embora alguns dos fi­

eles regularmente apareçam em papéis culturais

lósofos antigos também exortassem moderação e

de subordinação, que às vezes Deus transgrediu.

tratamento justo dos subordinados. A esposa, os

Paulo aconselha, sim, as esposas e os escravos de

filhos e os escravos devem mostrar-se voluntaria­

sua cuhura a se submeter em algum sentido, mas

mente submissos.

com isso não está aprovando as instituições do

Em terceiro lugar, Paulo não relaciona os de­

casamento patriarcal ou da escravidão, as quais

veres que estão vinculados à submissão. O lei­

fazem parte da autoridade do pater famílías e dos

tor da época poderia, então, ser tentado a ler a

códigos domésticos com os quais tinha de hdar.

submissão da esposa com o sentido de tudo o

Tem se observado que as instruções de Paulo a

que isso imphcava naquela cultura, o que envol­

esposas e escravos se limitavam a esposas e escra­

ve, como já ressahamos, consideravelmente mais

vos culturalmente subordinados ao homem que

subordinação que qualquer intérprete cristão da

era o chefe da casa (e.g.,

atualidade aplicaria às mulheres de hoje. (Aplicar

p. 43). A objeção de que Paulo poderia ter rejei­

0 texto dessa maneira significaria terem as mu­

tado a instituição da escravatura, mas que sem

lheres raras oportunidades de estudar em uma fa­

dúvida teria apoiado a instituição do casamento

M a r t in ,

p. 206-31;

G il e s ,

culdade, privUégios de votos cancdados, e assim

( K n ig h t ,

por diante). Entretanto, Paulo define, sim, uma

principal. 0 que Paulo tem em vista aqui não é

vez, o que vem a ser a submissão da esposa em

a instituição do casamento em si, mas a instítui-

um lugar estratégico: no resumo da conclusão de

ção do casamento patriarcal. Era o que aparecia

seu conselho aos casais. Espera-se que a esposa

nos códigos domésticos. Em outra passagem, o

p. 21-5), simplesmente foge à questão

“respeite” (Ef 5.33) o marido. Embora se possa

apóstolo conclama os crentes a se submeter, em

empregar o termo geralmente traduzido por “ sub­

circunstâncias normais, a todos os que estão em

missão” com 0 sentido mais fraco de “respeito” .

posição de autoridade (Rm 13.1-7), como Pedro

962

M u l h er e s i i : P a u l o

também o faz (IPe 2.13-17], mas isso não significa

Em breve carta de recomendação, na conclu­

que ele considere certas estruturas de autoridade

são de Romanos, Paulo elogia a portadora de sua

(e.g., monarquia) necessárias a todas as culturas.

carta, em cuja capacidade para explicar a carta

Pelo fato de as instruções de Paulo contemplarem

os romanos podem confiar (Rm 16.1,2). Febe é

as instituições exatamente como existiam na épo­

“serva” da igreja em Cencreia, a cidade portuária

ca, os intérpretes do apóstolo que não insistem na

de Corinto, e o termo talvez se refira a um “diá­

reinstituição da escravatura ou da monarquia tam­

cono” [diakonos], aparentemente alguém com

bém não devem insistir no casamento patriarcal,

responsabihdade administrativa na igreja primi­

que impõe submissão à esposa. Aliás, levando-se

tiva. Entretanto, nas cartas de Paulo, o vocábulo

em conta que, para a submissão da esposa, Paulo

geralmente se refere a um ministro da palavra

oferece a débil definição de “respeito” (Ef 5.33; v.

de Deus, como o próprio apóstolo. Ele também

acima), parece que o apóstolo defendia a submis­

a chama “ protetora” de muitos, termo que na

são feminina apenas até certo ponto, mesmo na

Antiguidade normalmente designava benfeitores,

situação social em que ele vivia.

alguns dos quais eram mulheres. Na condição de benfeitora, além de ser a dona da casa em que

4. Paulo e o ministério feminino 4.1

a igreja se reunia, ela ocupava uma posição de

Passagem em que Paulo aprova o minis­ honra (v. tb.

tério das mulheres. Embora algumas mulheres

K ee n er ,

1992. p. 237-40).

Nas saudações que faz em seguida (Rm 16.3-

gregas e romanas tenham se tomado filósofas,

15), Paulo cita cerca de duas vezes mais homens

geralmente se reservava aos homens uma edu­

que mulheres, porém elogia duas vezes mais as

cação mais refinada em retórica e filosofia. Em

mulheres que os homens. Isso pode indicar sua

uma sociedade em que

maioria das pessoas era

sensibilidade diante da oposição que, em alguns

semianalfabeta, especialmente a população cam­

lugares, elas sem dúvida enfrentavam no exercício

pesina, que talvez representasse 90 % da popula­

de seu ministério. Dentre as ministras mais impor­

ção do império, a função do ensino naturalmente

tantes que ele menciona está Prisca (diminutivo

recairia

e

de Priscila), cujo nome possivelmente aparece à

fontes judaicas

frente do nome de seu marido, Áquila, por causa

sugerem que esses papéis eram, com raras exce­

da posição social mais elevada que ela desfrutava

a

s o b r e a q u e le s q u e e r a m

falar bem. Quase todas ções. hmitados

a

capazes

as n o s s a s

de ler

homens.

(Rm 16.3.4). Lucas também a apresenta como co­

Algumas inscrições encontradas em sinagogas

lega de ministério de seu marido, tendo-o ajudado

antigas revelam que as mulheres desempenhavam

a instruir outro ministro, Apoio (At 18.26).

um papel de proeminência em algumas sinagogas (v.

B ro o ten ) ,

Paulo também relaciona dois colegas após­

mas as mesmas inscrições mostram

tolos (a maneira mais natural de interpretar

que essa era a exceção, não a regra. Nossas fon­

“os quais se destacam entre os apóstolos” , uma

tes revelam que a maioria dos homens judeus,

vez que em oenhum outro lugar Paulo recorre a

como Filo, Josefo e muitos rabinos posteriores,

menções favoráveis da parie dos “apóstolos”),

refletiam o preconceito de boa parte da cultura

Andrônico e Júnias. Júnias sem dúvida é nome

mais ampla dos gregos e romanos. Na maioria

de mulher, mas alguns estudiosos que tendem a

dos casos, Josefo [An, 4.8.15, § 219) e os rabinos

duvidar que Paulo pudesse ter se referido a uma

desconfiavam da fidedignidade do testemunho de

apóstola têm proposto que o nome é uma forma

mulheres, e, com as possíveis exceções de Beru­

contraída do nome masculino latino Juniano.

ria, esposa do rabi Meir, e as seguidoras de Jesus

Mas essa contração não ocorre em inscrições en­

(Mc 15.40-41; Lc 8.1-3; 10.38-42), parece que elas

contradas em Roma e, de qualquer forma, o nome

nunca atingiram a condição de mestras ou de dis­

Juniano é bem raro em comparação com a forma

cípulas (v.

. Enquanto os papéis das mu­

feminina do nome. A proposta apoia-se apenas

lheres variavam de uma região para outra, certas

na suposição de que uma mulher não podia ser

passagens paulinas deixam claro que ele estava

apóstola, não em algum dado inerente ao texto.

S w id l e r )

entre os autores mais avançados — não entre os

Em outra carta, Paulo refere-se ao minis­

mais machistas — de sua época.

tério de duas mulheres em Filipos, as quais, à

963

M u l h er e s i i ; P a u l o

por sexo, como era praxe nas sinagogas, para

semelhança de muitos homens de ministério do sexo masculino, ali participavam do trabalho do

evitar que a comunicação entre os sexos pertur­

apóstolo pela causa do evangelho (Fp 4.2,3).

basse o culto, mas essa ideia é refutada pela ar­

A Macedônia era uma das regiões nas quais as

quitetura das sinagogas do período

mulheres exerceram os papéis rehgiosos mais

dos lares como aqueles em que a igreja coríntia

proeminentes

(B

r o o te n)

e

e para as colegas de

se reunia. Outros ainda, examinando o contexto,

ministério de Paulo isso pode ter tornado mais

acreditam que Paulo esteja se referindo a mulhe­

fácil 0 acesso a uma posição de proeminência (v.

res que faziam mau uso dos dons do Espírito ou

(A

braham sen),

então de um problema relativo ao julgamento das

tb. At 16.14,15). Paulo, que na ordem de importância situa os

profecias. Ainda que, com base no contexto, seja

profetas em segundo lugar, logo após os apóstolos

possível defender ambos os pontos de vista, na

(ICo 12.28), pressupõe a existência de profetisas

Antiguidade os escritores em geral e Paulo em

e exige apenas que elas, à semelhança das ou­

particular tinham o hábho de fazer digressões, e

tras mulheres da congregação, cubram a cabeça

pode ser que ICorintios 14.34,35 represente ape­

(ICo 11.S). Nisso ele segue a tradição do

(épo­

nas uma digressão sobre uma questão específica

ca em que as mulheres cumpriam a função pro­

de ordem eclesiástica, sem nenhuma relação com

fética, porém não com a mesma regularidade que

outros assuntos também de ordem eclesiástica

05 homens; ainda assim podiam atingir posições

que aparecem no contexto.

at

de proeminência e autoridade; e.g., Êx 15.20;

O mais provável é que Paulo esteja restringindo

Jz 4.4; 2Rs 22.13,14) e de outros elementos do

o único tipo de intervenção no culto diretamen­ te tratado nesses versículos; as perguntas

cristianismo primitivo (At 2.17,18; 21.9).

(G

il e s ,

Apenas esses textos são suficientes para situar

p. 56). No mundo antigo, era comum os ouvintes

Paulo entre os autores mais avançados de sua

interromperem os mestres com perguntas, mas, se

cuhura, mas é preciso examinar outras passagens

as perguntas refletissem ignorância sobre o assun­

antes que se possa decidir quão avançado ele era.

to, a interrupção era tida por grosseria (v.

E são essas passagens as que têm suscitado maior

co,

controvérsia.

eram, de modo geral, consideravelmente menos

4.2

P lutar­

Acerca de preleções). Uma vez que as muhieres

Passagens em que Paulo parece restringir instruídas que os homens, Paulo propõe uma so­

o ministério das mulheres. Embora as duas pas­

lução de curto prazo e uma de longo prazo para

sagens a seguir sejam objeto de um desnorteante

o problema. A solução de curto prazo é que as

número de interpretações, nenhuma delas é uni­

mulheres parem de fazer perguntas que venham

versalmente aceita como paulina. Tem se ques­

a perturbar a reunião; a solução de longo prazo é

tionado não apenas a autoria de ITimóteo, mas

que elas sejam instruídas, recebendo ensino par­

também a de ICorintios 14.34,35. Com base em

ticular por parte dos maridos. A maioria dos ma­

prova textual (reconhecidamente frágil), alguns

ridos da época duvidava do potencial intelectual

proeminentes críticos textuais negam que a última

das esposas, mas Paulo estava entre os autores de

passagem seja paulina, crendo que, era vez disso,

sua época mais avançados sobre o assunto. A so­

outra pessoa a tenha inserido

lução pauhna de longo prazo afirma a capacidade

(F

ee,

p. 699-705).

Embora isso seja possível, pode se exphcar a pas­

de aprendizado das mulheres e as deixa em pé de

sagem como uma digressão de Paulo sobre deter­

igualdade com os homens (v. uma exposição mais

minado aspecto da ordem na igreja pertinente ao

completa em K e e n e r , 1992, p. 80-5).

povo de Corinto.



Contudo, em qualquer interpretação que se

^

Em vez de questionar a autoria da passagem,

aceite, dois pontos estão muito claros. Primeiro:

alguns intérpretes entendem que aqui Paulo está

é perceptível que Paulo não determina o silêncio

chando uma postura dos coríntios (ICo 14.34,35),

absoluto das mulheres, visto que anteriormen­

a qual ele então refuta (ICo 14.36), mas 1Corín­

te, na mesma carta, ele espera que elas orem e

tios 14.36 não soa naturalmente como a refutação

profetizem publicamente, tanto quanto os ho­

de ICorintios 14.34,35. Para outros estudiosos, as

mens (ICo 11.4,5). Desse modo, ele deve estar

pessoas, nos cultos da igreja, estavam divididas

ordenando que se faça silêncio em relação a

964

M u lh er e s i i : P a u l o

determinada forma de falar. Segundo: no contex­

homicida” ou “proclamar-se criadora”. Uma vez

to, não existe nada que apoie a ideia de que Paulo

que para alguns gnósticos do século ii Eva tinha

esteja se referindo ao ensino das Escrituras pelas

dado origem ao homem, é possível que ITimóteo

mulheres. A única passagem em toda a Bíblia que

estivesse refutando um mito gnóstico

pode ser citada a favor desse ponto de vista é

K

ITimóteo 2.11-14.

tável erudição e até mesmo propõem que parte

roeger

(K

roeger

&

defendem esse ponto de vista com no­

Em ITimóteo 2.8-15, Paulo (acerca da autoria,

dessa passagem cita uma fonte gnóstica a fim de

aparentemente trata do com­

refutá-la). Essa hipótese funcionaria bem se IT i­

V. C a r t a s P a s t o r a is )

portamento apropriado e decente que homens e

móteo tivesse sido escrita no século ii por outra

mulheres devem ter quando oram. Paulo começa

pessoa que usou o nome de Paulo (algo em que

falando acerca dos homens das igrejas de Éfeso,

muitos estudiosos acreditam, mas os Kroegers

os quais estão aparentemente envolvidos em al­

não). No entanto, se a carta foi escrita por Paulo

gum conflito não condizente com a condição de

ou por seus amanuenses, o termo provavelmente

adoradores de Deus (ITm 2.8). Então, em uma

tem o sentido de “ter autoridade” ou (mais prova­

passagem

v e lm e n te )

m a is

longa, ele passa

b le m a s e m q u e a s m u lh e r e s

a

dessas

tratar de pro­

"apoderar-se de autoridade”.

con g reg a ções

E n t r e t a n t o , o c o n t e x t o s o c ia l d a c a r t a t a l v e z

estão envolvidas. Como já dissemos, no Oriente,

ofereça uma base mais frutífera que as amplas

as mulheres de condição econômica mais baixa

possibilidades léxicas para solucionar a questão

costumavam cobrir a cabeça, mas nas congrega­

do significado do texto. Paulo e seus leitores,

ções urbanas de Éfeso por certo havia mulheres

quando ham o texto, pressupunham essa situa­

de posição social mais elevada que ostentavam

ção, e, desse modo, a situação que deu origem à

sua condição pela forma sofisticada de pentear o

resposta de Paulo faz então parte do significado

cabelo. Para as mulheres mais pobres da congre­

que ele quis transmitir. Algumas pistas no texto in­

gação, o guarda-roupa das mais ricas representava

dicam a seguinte shuação: falsos mestres homens

ostentação e sedução em potencial, de modo que

(ITm 1.20; 2Tm 2.17) vinham introduzindo uma

Paulo 0 condena, ao tomar emprestado a hngua­

heresia perigosa na igreja de Éfeso (ITm 1.4-7;

gem comum dos moralistas de sua época (ITm

6.3-5), 0 que em geral começavam a fazer depois

2.9,10;

de convencer as mulheres da igreja, pois era di­

ScHOLER,

p. 3-6;

K

eener,

1992, p. 103-7).

Depois de pedir às mulheres da congregação

fícil fiscalizá-las, uma vez que ficavam mais res­

que se apresentassem da maneira devida, ele as

tritas à esfera doméstica (2Tm 3.6,7). Pelo fato

proíbe de “ensinar de forma que assumam autori­

de as mulheres ainda não estarem bem treinadas

dade" (lendo os verbos “ensinai", didasko, e "as­

nas Escrituras (v. acima), eram muitíssimo susce­

sumir autoridade”, authenteõ, em conjunto, como

tíveis aos ensinos dos falsos mestres e acabavam

fazem muitos estudiosos, embora possam ser li­

se tornando a rede por meio da qual eles tumul­

dos como proibições distintas). Tem se debatido

tuavam os lares (ITm 5.13; cf. ITm 3.11). Tendo

o sentido exato desse raro termo grego que aqui

em vista que a sociedade romana tinha a percep­

significa “assumir autoridade”. Alguns estudiosos

ção de que os cristãos constituíam um cuho sub­

sugerem que o termo significa simplesmente “ter

versivo, não se podia permitir (cf. ITm 3.2,7,10;

autoridade” e que, desse modo, a passagem ex­

5.7,10,14; 6.1; Tt 1.6; 2.1-5,8,10; cf. P a d c e t t , p. 52;

clui as mulheres de exercer qualquer autoridade

K

na igreja. Outros têm demonstrado que na épo­

so que minasse as estratégias de Paulo para o tes­

ca 0 verbo era bastante usado com sentido mais

temunho público da igreja (v. acima comentário

forte e pode significar “apoderar-se de autorida­

sobre Ef 5—6).

eener,

1991, p. 85-7;

V

erner)

nenhum ensino fal­

de”. Nessa leitura, Paulo está apenas proibindo as

Seja porque as mulheres não tinham instru­

mulheres de usar qualquer forma de dominação

ção e dessa maneira eram suscetíveis a erro, seja

para obter autoridade, atitude que teria igual­

porque o fato de se apoderarem de autoridade

mente reprovado nos homens. Há também quem

teria prejudicado o testemunho da igreja em uma

recorra a exemplos do campo semântico e pro­

situação social tensa, seja (o que é mais prová­

ponha sentidos como “dominadora de maneira

vel) porque ambas as coisas ocorriam, a situação

965

M u lh er e s i i : P a u l o

específica tratada por Paulo dá margem a sua res­

situação das mulheres de Éfeso, a quem ele está

posta. Mais uma vez, Paulo oferece uma solução

se dirigindo, as quais são facilmente enganadas

de curto prazo e uma de longo prazo. A solução

pelo fato de não serem instruídas. Em outra pas­

de curto prazo é que elas não devem assumir

sagem, Paulo usa o exemplo de Eva para se referir

funções de direção como mestras na igreja. A so­

a qualquer um que seja enganado, não apenas as

lução de longo prazo é que lhes seja permitido

mulheres (2Co 11.3). Finalmente, é possível que

aprender. Mais uma vez, Paulo declara que elas

ITimóteo 2.15 tenha como objetivo tornar mais

são capazes de aprender, e propõe que instruí-las

explícitos os versículos precedentes, embora haja

é uma solução de longo prazo para o problema

considerável debate sobre seu significado (a vin­

existente. 0 fato de que elas devem “aprender

da da salvação, que se deu apenas porque Maria

em silêncio, com toda a submissão” pode estar,

deu à luz, talvez como a nova Eva; a submissão

de novo, refletindo o testemunho delas dentro

das mulheres aos papéis tradicionais, como dar à

da sociedade (era o que normalmente se espe­

luz; 0 simples fato de uma mulher dar à luz com

rava das mulheres), mas deve se assinalar que

segurança, desafiando a maldição do Éden).

era dessa maneira que todos os novatos deviam

Outras passagens pauhnas que claramente

aprender, o que também caracteriza o compor­

demonstram que ele aprova o ministério femini­

tamento desejado de toda a igreja (ITm 2.2).

no da Palavra de Deus (acima) indicam que IT i­

0 fato de Paulo dirigir essas admoestações às

móteo 2.9-15 (caso seja, conforme pressupomos

mulheres, em vez de falar aos homens, é algo

aqui, uma passagem genuinamente paulina) não

determinado pela situação social tanto quanto

pode proibir o ministério das mulheres em todas

a admoestação aos homens para que deixem

as situações, mas se limita à situação de Éfeso e

de lado a discórdia (ITm 2.8). É óbvio que ele

talvez de outras congregações que enfrentavam

também não desejava que as mulheres conten­

crises semelhantes nesse período da história da

dessem, mas se dirigia apenas aos que estavam

igreja. Os textos paulinos que tratam dos papéis

envolvidos no problema.

das mulheres na igreja e no lar recomendam a Paulo um lugar entre os mais avançados escrito­

Essa solução pode parecer bastante previsível,

res da Antiguidade.

a ponto de tornar o debate supérfluo, não fosse

0 argumento que Paulo apresenta a seguir, pelo

DPC

a u t o r id a d e ;

colaboradores,

P

au lo

e

seus;

qual parece fundamentar nos papéis de Adão e

c a b e ç a ; c asas

Eva (ITm 2.13,14) suas admoestações às mulhe­

v O r c io , a d u l t é r io e in c e s t o ; s e x u a l id a d e , ê t ic a s e x u a l .

e c ó d ig o s

d o m é s t ic o s ; c a s a m e n t o

e d i-

res. O que se deve indagar é se Paulo apresenta A brahamsen , V. A . The rock reliefs and

esses exemplos como algo fundamental para seu

B ib u o g r a fia .

raciocínio ou se consthuem apenas um argu­

the cult of Diana at Philippi- 1986. T e se . (D o u to ­

mento ad hoc para apoiar esse raciocínio. Aqui

r a d o em t e o lo g ia .) — H a r v a r d D iv in ity S c h o o l,

(ITm 2.13) seu argumento baseado na ordem da

1986. ■ B alch , D . L. Let wives be submissive: th e

criação não é mais simples e direto do que na

d o m e s t ic c o d e in 1 P eter. C h ic o : S c h o la r s , 1981.

26.) ■ B ilezikian , G . Beyond sex roles: w h a t

ocasião em que ele o empregou para sustentar a

[s b lm s ,

ideia de que as mulheres deviam cobrir a cabeça

th e B ib le s a y s a b o u t a w o m a n ’ s p la c e in c h u r c h

(ICo 11.7-9). Seu argumento baseado no fato de

a n d fa m ily . G r a n d R a p id s : B a k e r, 1986. • B rooten ,

Eva ter sido enganada torna ainda mais provável

B. J. Women leaders in the ancient synagogue: in s-

que seja um argumento ad hoc. Se ele afirma que

c r ip tio n a l e v id e n c e a n d b a c k g r o u n d is s u e s . C h ic o :

o engano de Eva impede que fodâs as mulheres

S c h o la r s , 1982. ■ F ee , G . D . The First Epistle to

ensinem, então está querendo dizer que todas as

the Corinthians. G r a n d R a p id s : E e r d m a n s , 1987.

mulheres, à semelhança de Eva, são mais facil­

( m cn t .) ■ F itzmyer , J . A . A n o th e r lo o k a t

mente enganadas que os homens. Se o engano

in 1 C o r in th ia n s 11.3.

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k e p h a le

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não se aplica a todas as mulheres, também não

■ G ardner , J. Women in Roman law and society.

se aplicaria a todas as mulheres a proibição de

B lo o m in g to n : I n d ia n a U n iv e rs ity P r e s s, 1986. ■ K . Created woman: a fr e sh s t u d y o f th e b i­

ensinar. É bem mais provável que, em vez dis­

G ile s ,

so, Paulo esteja usando Eva para ilustrar a difícil

b lic a l t e a c h in g . C a n b e r r a : A c o rn , 1985. • G rudem ,

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ses, whores, wives, and slaves: women in classical antiquity. New York: Schocken, 1975. • R a w s o n , B.

1. As mulheres como líderes em Atos

The Roman family. In:

Em todo 0 livro de Atos. há uma cuidadosa in­

R aw son,

B., org. The family

in ancient Rome: new perspectives. Ithaca: Cornell

clusão de homens e também de mulheres, tanto

967

M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e

na condição de crentes (At 5.14; 8.12; 17.4,12)

indecente e destrutiva, obscenidade, nudez,

quanto em circunstâncias de perseguição (At 8.3;

promiscuidade e gritos rituais eram compo­

9.2,3; 22.4). Nada menos que onze mulheres

nentes importantes dos cultos de que elas par­

são mencionadas pelo nome, e cinco se acham

ticipavam. Alguns desses elementos estão bem

envolvidas em ministérios relacionados à igreja.

ilustrados no famoso afresco que retrata uma

Depois da ascensão de Cristo, Maria, a mãe de

iniciação dionisíaca na vila dos Mistérios, em

Jesus, e as mulheres com quem estava associa­

Pompeia. Naquela região, em certas rehgiões

da participam da decisão de escolher aquele que

de êxtase (v. ICo 12.2), as mulheres despeda­

substituiria Judas entre os Doze (At 1.14). Exi­

çavam crias de animais e consumiam a carne

gia-se como qualificações para ser apóstolo que

ainda crua, quente e estremecendo. Seria extre­

o candidato tivesse convivido com Jesus durante

mamente difícil incorporar essas pessoas a uma

todo o seu ministério e testemunhado sua ressur­

comunidade de adoração sem afrontar seria­

reição (At 2.21,22). Embora não se tenha escolhi­

mente as sensibilidades dos demais.

do uma mulher para a função, o registro de Lucas

No final da primeira viagem missionária de

deixa claro que algumas das seguidoras de Jesus

Paulo, ele e Barnabé foram convocados a Jeru­

cumpriam as exigências (ICo 8.1-3; 23.49,55,56;

salém para decidir como os gentios poderiam

24.1-10). Em outra situação, uma mulher, Dor-

ser integrados nas comunidades de fé compos­

cas, é chamada "discípula” porque seu ministério

tas em grande parte por judeus e proséhtos. Cer­

de alcance social e espiritual a tornava pessoa de

tas práticas foram proscritas, especialmente a

imenso valor para a igreja nascente. E, quando

idolatria, a imoralidade e o ato de comer sangue

de sua morte prematura, ela foi restaurada à co­

(At 15.20,29). Levando consigo essas decisões,

munidade que tão desesperadamente carecia de

Paulo retornou a todas as igrejas que havia vi­

seus serviços (At 9.36-41).

sitado na primeira viagem e explicou a decisão do Concího de Jerusalém (At 15.36). Depois

2. O ministério de Paulo entre as mulheres

disso, melhorou muito seu relacionamento com

em Atos

as mulheres de boas maneiras, como aquelas

Lucas assinala a reação das mulheres em relação

que haviam protestado tão veementemente con­

ao apóstolo Paulo. Quando ele chegou a Antio­

tra seus esforços missionários em Antioquia

quia da Pisídia. recebeu as boas-vindas na sina­

da Pisídia. Seu primeiro contato em Filipos foi

goga e foi incentivado a voltar no sábado seguinte

principalmente com mulheres, e Lídia, a primei­

(At 13). A congregação, constituída de judeus,

ra pessoa a se converter, tornou-se a líder de

proséhtos e tementes a Deus, ficou ofendida com

uma igreja domicihar (At 16.12-15,40). Embora

0 comportamento dos gentios que participaram

Paulo tivesse recebido a visão de um homem

do culto no sábado seguinte. Os que estavam

macedônio, que o chamava para aquela região,

acostumados a adorar na forma ordeira dos ju­

os primeiros alvos de seu ministério ali foram

deus ficaram irados com o ochlos dos pagãos. (O

as mulheres.

termo grego pode ser usado para designar uma

Algumas mulheres gregas de grande proemi­

multidão e também o comportamento desordei­

nência receberam alegremente a mensagem de

ro de que ela é capaz; v. At 19.26; 24.12.) As

Paulo em Tessalônica (At 17.4) e em Bereia, onde

mulheres de boas maneiras [euschemonaí] que

a reação delas é assinalada antes da atitude dos

participavam da vida calma da sinagoga ficaram

homens (At 17.12). Em Atenas, o centro intelec­

particularmente indignadas, talvíz com a con­

tual do mundo antigo, uma mulher de nome Dâ-

duta das mulheres pagãs, e insistiram que Paulo

maris se converteu. Provavelmente, ela era uma das cortesãs {hetairaí) e bastante culta, pois essas

fosse expulso da cidade (At 13.50). Um conhecido tema hterário e artístico (e.g., Ju v e n a l ,

Sá, 6;

P

lu tar c o ,

M u vi, 13; Mo;

D

io d o -

mulheres são associadas a várias escolas de fi­ losofia. A presença de Dâmaris no círculo aca­

Bb hi, 4.3.2) era a rejeição aos pa­

dêmico do Areópago indica que ela estava bem

drões de adoração ofensivos e descontrolados

preparada para acompanhar o raciocínio de Paulo

das mulheres não judias. Embriaguez, conduta

e chegar a uma conclusão própria (At 17.34).

R o S íc u L o ,

968

M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

3. Priscila: um caso que ajuda a resolver

lhe proporcionaram um nível mais elevado de

outros casos semelhantes

instrução.

Em Atos 18, temos o primeiro encomro com Pris­

Aparentemente, Priscila tinha uma mente ex­

cila, uma importante mulher associada ao após­

cepcional e uma educação excelente a ponto de

tolo Paulo e eia própria uma corajosa defensora

ter influenciado Apoio, alguém com tanto conhe­

do evangelho. Casada com um judeu originário

cimento. A partir de então. Apoio “com grande

do Ponto, na Ásia Menor, aparentemente ela era

poder refutav^ pubhcamente os judeus, demons­

natural de Roma, de onde o casal havia sido ex­

trando pelas Escrituras que Jesus era o Cristo”

pulso por causa da perseguição promovida pelo

(At 18.28). Por esse motivo. Crisóstomo chamou

imperador Cláudio. O nome do marido, Áquila,

Priscila de “ mestra dos mestres” , uma evidência

que podia também ser o nome de um cidadão

de que ela realizou a mesma obra evangelísti­

de Roma, era mais corriqueiro como nome de

ca de seu marido

escravo e talvez indique que ele fosse um liber­

cimento do grande zelo que ela manifestou

to empreendedor. Príscila era um nome comum

62.658A; 51.187).

(pg,

60.281D) e um reconhe­ (pg ,

entre as mulheres da aristocracia romana, talvez

Quando Apoio manifestou o desejo de prosse­

denotando que ela não fosse judia de nascimento

guir com seu esforço evangelístico na Grécia, os

e desfrutasse de uma posição social mais elevada.

crentes de Éfeso, entre os quais mais se destaca­

Marido e mulher receberam o apóstolo Paulo

vam Priscila e Áquila, deram-lhe cartas de reco­

em casa, em seu negócio (o de fazer tendas) e

mendação. A recepção que ele teve com certeza é

na comunhão e ministério cristãos. É bem possí­

sinal da confiança que a comunidade cristã tinha

vel que também tenham estendido hosphalidade

em Priscila e Áquila. Aparentemente, eles eram

a Timóteo e a Silas (At 18.5). A mobihdade de

bem conhecidos e respeitados em todo o mundo

Priscila e de Áquila em viagens missionárias pode

pauhno como “cooperadores” que haviam arris­

revelar que tinham uma rede de estabelecimen­

cado a vida por amor ao apóstolo (Rm 16.3,4). A.

tos da família que abrangia as cidades de Roma

von Harnack foi um dos primeiros a propor

(At 18.2; Rm 16.3-5), Corinto (At 18.2), Éfeso

que Priscila e Áquila podem ter sido os autores da Hebreus, proposta que recebeu o apoio

(At 18.18,19) e talvez outros lugares. Negócios

C arta

com fihais em locais distantes são bem documen­

de J. H. Moulton, F. M. Schiele, A. S. Peake, J.

tados no mundo antigo.

R, Harris e outros. No raciocínio de Harnack, se

aos

No final da primeira visita de Paulo a Corinto,

Priscila era vista como a autora principal, pode

Priscila e Áquila acompanharam o apóstolo em

ter havido uma tendência de suprimir esse fato.

sua viagem a Éfeso. Aqui o texto traz o nome de

Como prova do preconceito dos escribas contra

Priscila antGS do de Áquila (At 18.18, tb. At 18.26;

as mulheres, ele cita o Códice de Beza, em que

Rm 16.3; 2Tm 4.19), aparentemente indicando

ocorre a supressão da conversão de Dâmaris

que o ministério e a influência dela eram maiores

(At 17.34) e a mudança de “mulheres gregas de

que os do marido. Depois da partida de Paulo,

alta posição e vários homens” (At 17.12) para

Priscila e Áquila encontraram Apoio na sinagoga.

“gregos e pessoas de alta posição, muhos homens

Apoio era um brilhante pensador judeu cujo co­

e mulheres”. O Códice de Beza também inverte

nhecimento do evangelho era limitado, a despeito

a ordem de Atos 17.4, mencionando primeiro os

de seu grande domínio das Escrituras. Mais uma

homens e depois as mulheres. Num ambiente as­

vez, 0 nome de Priscila aparece em primeiro lu­

sim, a atribuição da autoria a uma mulher pode­

gar quando o casal o chama de lado, talvez em

ria muito bem desaparecer de vista.

sua casa, onde ele se hospeda por algum tempo,

Embora a carta apresente sinais inconfundí­

a fim de lhe dar a instrução que lhe faltava. O

veis de proximidade com Paulo, seu autor não é

verbo “expuseram” [exenthento] deixa imphcito

o apóstolo: trata-se na verdade de um documento

um exame cuidadoso das Escrituras (v. o uso do

do NT que não possui nenhuma indicação de au­

mesmo verbo em At 11.4 e 28.23). Embora a com­

toria. 0 autor pertencia ao círculo mais chegado

preensão básica de Apoio fosse satisfatória, Pris­

de Paulo e desfrutava um relacionamento de co-

cila, mulher de extrema capacidade, e seu marido

leguismo e cooperação com Timóteo (Hb 13.23).

969

M u lh er e s m: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

Ele ou ela não conheceu Jesus pessoalmente, mas

do Pentecostes, conforme profeüzado pelo profe­

teve contato com seus ensinos por meio de outros

ta Joel. A promessa de que “vossas filhas profeti­

que conviveram com ele (Hb 2.3). 0 tom apostó­

zarão” (J1 2.28-32) cumpriu-se no ministério das

lico revela o nível de influência e de autoridade

filhas profetisas do evangehsta Fihpe, conforme

exercido pelo autor da carta (Hb 13.17-23).

registrado no relato da visita do apóstolo Paulo

A equipe de redação ou o autor individu­

àquela casa (At 21.8,9). Uma tradição posterior

al tinha familiaridade com as perseguições que

afirma que Filipe viajou com as filhas até Hierá­

haviam ocorrido em Roma e, como se pode de­

polis, onde se envolveu na obra da evangelização

monstrar, sofrera influência do pensamento de

que por fim o levou ao martírio. As filhas deram

FUo de Alexandria, filósofo judeu que visitou

prosseguimento ao ministério do pai, e duas delas

Roma em 40 d.C. Priscila e Áquila podem ter sido

foram sepuhadas em Hierápolis. De acordo com

os associados de Paulo que mais provavelmente

Papias, elas reuniram tradições sobre a vida de Cristo. Papias também afirma que essas mulheres

se familiarizaram com Filo. Os autores haviam sido líderes na comuni­

lhe deram ciência acerca de dois acontecimentos do Evangelho

dade para a qual escreveram a carta e tinham

(E

u s é b io ,

Hi ec, 3.31,37,39).

conhecimento da falta de maturidade espiritual

Além das profetisas de Corinto (v. W ire), ou­

dos membros daquela comunidade (Hb 5.11,12).

tra profetisa estava sediada na Ásia Menor, uma

Imersos nas Escrituras judaicas, eles escrevem

cidadã de Tiatira, e seus ensinos são considera­

acerca do ritual do tabernáculo, mas sem dar ne­

dos falsos (Ap 2,14). É significativo que ela não

nhum sinal de terem conhecimento dos procedi­

seja condenada por ser mulher, mas pelo mal que

mentos no templo. Um judeu que tivesse visitado

causou. A semelhança dos nicolaítas de Pérgamo

Jerusalém inevitavelmente teria incluído alusões

(Ap 2.14,15), ela instruía seus seguidores a comer

às práticas do templo. Dentre os que faziam parte

carne sacrificada a ídolos e a praticar a fornicação

do círculo social de Paulo, Priscila e Áquila fogem

ritual (Ap 2.20). Suas doutrinas foram denomina­

a esse padrão, porque não há registro de que te­

das “coisas profundas de Satanás” (Ap 2.24), que

nham estado em Jerusalém.

talvez representem uma forma primitiva da seita

Harnack observa que o autor ou autores pas­

gnóstica dos ofitas. Ela foi ameaçada de castigo

sam facilmente da primeira pessoa do singular

por sua faha de decência (Ap 2.22,23) e por in­

para a primeha do plural, o que talvez mostre um

duzir o povo de Deus a erro. Talvez já no início

trabalho em equipe, não a obra de um único in­

do século II as mulheres montanistas da região da

divíduo. 0 uso da forma masculina singular pode

Frigia, na Ásia Menor, tivessem adotado a tradi­

indicar informação dada por um homem, ao passo

ção de profetizar. Em apoio a seu ministério, elas

que a óbvia empatia pelas mulheres pode apontar

reivindicavam o precedente de Débora, Hulda e

para os interesses de Priscila (Hb U .11,31,35). Em

Ana, das filhas de Fihpe e de uma profetisa des­

contraste com a referência de Gênesis ao riso in­

conhecida de nome Âmia.

crédulo de Sara diante da promessa de ter um fi­ lho na velhice (Gn 18.11-15), o relato de Hebreus

5. As mulheres nas tradições evangelísticas

destaca sua fé por haver enfrentado os desafios

Entre as tradições não bíblicas preservadas a

da concepção, gestação e parto (Hb 11.11). 0 livro

respeito dos apóstolos, pouquíssimas são mais

de Êxodo registra as atividades da mãe de Moisés,

bem atestadas que o poder que Paulo concedeu

escondendo o nascimento do filho e preservando

a mulheres no ministério. Antes de seu chamado

sua vida (Êx 2.2-9), mas aqui é des6cada a ativi­

para estar com a igreja em Antioquia, parece que

dade de marido e esposa (Hb 11.31). Não é possí­

ele se envolveu em um trabalho bastante amplo

vel comprovar a teoria de Harnack, mas deve ser

de evangehzação na Ásia Menor (At 11.25,26; 15.41). Alguns relatos posteriores de mulheres re­

considerada com respeho.

conhecidas no ministério são condizentes com a 4. As mulheres no ministério profético

designação que Paulo faz de sete mulheres como

As mulheres recebem o derramamento do

E s p ír it o

suas cooperadoras (Rm 16.3,6,12,15; Fp 4.2,3).

(At 2.37,38) em sua plenitude por ocasião

Escrevendo em 112 d.C. na Ásia Menor, Plínio, o

S an to

970

M u lh e r e s

iii:

A t o s , H e b re u s, C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e

Jovem, relata ao imperador Trajano que imerro-

libertação da prisão (At 12.5-17) Pedro se diri­

gou duas líderes da comunidade cristã que eram

giu até a casa da mãe de João Marcos. A pessoa

escravas denominadas ministrae (“diaconisas”

que estava de guarda junto à porta, uma escra­

ou “ministras” ; P l í n i o , Ep, 96,97).

va de confiança de nome Rode, reconheceu a voz

A história mais interessante, no entanto, é a

de Pedro e correu até os outros a fim de obter au­

do comissionamento por Paulo de sua jovem con­

torização para deixar o apóstolo entrar. Embora

vertida Tecla como apóstola para Selêucia, perto

inicialmenteí os participantes da reunião tenham

da cidade de Tarso, onde ele nasceu. A história

questionado a credibihdade da história da moça,

de Tecla é contada em Atos de Paulo e Tecla, texto

ela permaneceu firme em sua convicção. Por in­

em geral datado de meados do século ii

sistência dela, a porta foi aberta, e Pedro foi re­

(M

acD o-

Entretanto, W. M. Ramsay insiste em afir­

cebido, confirmando-se o que dissera a escrava.

mar que a obra “remonta, em última instância, a

A função de guardar a porta em uma época de

nald ).

um documento oriundo do século i”

p.

perseguição intensa revela a importância de Rode

375-6), embora adornado com acréscimos poste­

para aquela comunidade cristã e a confiança que

riores. No entendimento desse autor, pelo menos

se depositava na jovem. Por meio dessa igreja em

al5uns dos aspectos requerem um conhecimento

casa, cujas líderes eram Maria e Rode, Pedro en­

(R

am say,

íntimo do ambiente do século i e lançam “luz so­

viou sua mensagem aos crentes de toda a Jerusa­

bre a natureza do cristianismo popular na Ásia

lém (At 12.17).

Menor durante aquele período”

(R

am say,

p. 403).

0 lar de Lídia, a primeira pessoa a se conver­

0 local de seu ministério (Aya Theckla), um

ter na Europa, tornou-se o centro da nascente co­

dos mais bem atestados locais da antiguidade

munidade cristã em Filipos, e foi ali que Paulo e

cristã

Silas se recuperaram após serem soltos da prisão.

(F

e s t u g iè r e ,

p. 21-2), foi continuamente

ocupado como local de peregrinação e comuni­

B. Witherington comenta: “Em dois momentos de

dade monástica até a invasão turca, no século

Atos, quando Lucas sem dúvida nos conta sobre

Parte da abside ainda se encontra acima do

uma reunião da igreja na casa de uma pessoa

XV.

grande santuário erigido sobre a caverna original

em particular, tal reunião ocorre no lar de uma

onde ela estabeleceu seu ministério. A pequena

mulher”

capela subterrânea contígua à caverna revela tra­

lemos sobre igrejas nos lares de Cloé. de Ninfa

(W

it h e r in g t o n ,

1990, p. 213). Também

ços de uma obra de alvenaria com data do sécu­

e de Priscila e Áquila (Cl 4.15; ICo 1.11; 16.19;

lo 1 ( H e r z f e l d

a vinculação Gistemática

Rm 16.3-S). Dessa maneira, com sua hospitali­

de um nome feminino idêntico ao local indica o

dade e com o cuidado que dispensavam à vida

envolvimento de uma líder forte no início da cris­

congregacíonal que se desenvolvia em seus lares,

&

E u y e r ).

tianização de Selêucia.

mulheres com espaço suficiente em casa propor­ cionavam essa recepção tão necessária.

6. As mulheres como líderes das igrejas

No caso de Lídia, sua sala de trabalho, bem

nas casas

como seu lar, podem ter servido aos propóshos

Pela leitura dos textos bíblicos, tomamos conhe­

do evangelho. A semelhança de Priscila, ela es­

cimento de mais nomes de mulheres líderes que

tava envolvida na indústria têxtíl e dirigia um

de líderes homens nas igrejas estabelecidas nos

negócio: a fabricação da cobiçada púrpura. 0

lares. Mulheres que demonstravam generosidade

texto diz que toda a sua casa foi batizada (v.

e hospitahdade recebiam em casa os missionários

t is m o ) ,

em trânsito e aqueles que procuravam um local

As salas de trabalho das mulheres e os lares ofe­

de adoração e comunhão cristãs. A mãe de João

reciam oportunidades excelentes para a propaga­

Marcos, uma viúva, abriu as portas da casa para

ção do evangelho nos primeiros séculos da igreja

uma reunião de oração, apesar da atmosfera re­

(D e n B o e r ) .

pleta de perigo que se respirava em Jerusalém,

ba­

até mesmo os que trabalhavam para ela.

As cartas joaninas (v. JoAo,

C artas

de)

revelam

visto que se aguardava a execução de Pedro no

a importância da hospitahdade que os cristãos

dia seguinte. Reunir-se ali deve ter sido um há­

mais influentes ofereciam a missionários e evan­

bho bem comum, porque após sua miraculosa

gelistas em trânsito, os quais às vezes traziam

971

M u l h er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip se

mensagens escritas e faladas (3Jo 5-10; v. tb. Di,

(At 16.16-24). Várias escravas recebiam funções

11 e 12; Rm 12.13; IPe 4.9; Hb 13.2). Em uma

de particular responsabihdade na igreja nascente:

comunidade, os líderes de uma igreja em casa po­

Rode guardava a porta de uma igreja em casa,

diam controlar a pureza da mensagem do evan­

e duas escravas da Bitínia eram líderes de uma

gelho, hospedando apenas os emissários mais

comunidade cristã, sendo chamadas “ministras”

recomendáveis (3Jo 8). Dar as boas-vindas a um

ou "diaconisas”. De acordo com o que exigia a lei

falso mestre punha em perigo a vida espiritual de

romana no caso de escravos, o testemunho delas

toda a comunidade de fé (2Jo 10,11).

foi obtido sob tortura e confirma a natureza ino­ fensiva da adoração cristã

Desse modo, as igrejas nos lares se tornaram

Demonstrava-se

a base para a propagação do evangelho em suas

(P

l ín io

,

sensibUidade

Ep, 96). em particu­

respectivas comunidades, e os anfitriões eram

lar pelas viúvas e por mulheres que padeciam

os “cooperadores” (3Jo 8). D. W. Riddle acredha

privações. Cientes de que as viúvas dos judeus

que não apenas esses líderes ajudaram a propa­

helenistas estavam recebendo menos ajuda que

gar 0 reino, mas também essas casas constituíam

as de origem palestina, os hderes da igreja pri­

pontos de coleta de tradições orais e escritas que

mitiva instituíram

mais tarde seriam preservadas nos escritos do

.

rantir uma distribuição equitativa (At 6.1-6; cf.

Por esse motivo, o papel das líderes das igrejas

Mc 12.40; Lc 18.2-5). É dito que o ministério de

nos lares é bem mais importante do que pode pa-

Dorcas abrangia as viúvas, que eram acolhidas e

TQcer à primeira vista.

recebiam cuidados em um ambiente receptivo e

n t

Embora a maioria dos estudiosos da Bíbha en­ tenda que a “senhora eleita” a quem é destinada a

u m a

ordem diaconal para ga­

piedoso (At 9.36-41; sobre a ideia de que Dorcas era líder de uma ordem de viúvas, v.

V it e a u ).

Segunda Carta de João represente uma igreja, não

Tiago, irmão de Jesus, ordenou que os cren­

uma pessoa, uns poucos teólogos são da opinião

tes cuidassem das viúvas (Tg 1.27), enquanto

de que a carta foi mesmo escrha a uma mulher,

a Primeira Carta a Timóteo prescreve normas

como A. T. Robinson, A. Clarke, A. Plummer, C.

de conduta para essas mulheres enlutadas, mas

C. Ryrie, A. Ross e D. W. Burdick. Se for o caso,

também lhes confere legitimidade e poderes

ela deve ter sido a líder de uma igreja em casa em

para participar de um ministério organizado de

alguma locahdade próxima de Éfeso, e era seu de­

evangelização e intercessão (ITm 5.3-16). Inácio

ver defender seus filhos contra a heresia. 0 nome

pede a Policarpo que dispense cuidado especial

pelo qual é chamada, Kyria Eklektê, é usualmente

às viúvas e assuma a guarda delas (In, Po, 4). As

traduzido por “ senhora eleita” , embora Kyria fos­

viúvas da igreja eram sustentadas pelas dádivas

se um nome de uso confirmado na Ásia Menor,

dos outros membros em compensação por seus

ssendo na verdade uma tradução grega do ara­

serviços espirituais e sociais. Policarpo reconhece

maico Marta

de 2Joio também

a presença delas na congregação de Fihpos (Po,

contém saudações por parte de uma “irmã eleita”

Fp, 6.1) e as instrui quanto à melhor atitude que

( H a r r is ) .

O

te x to

e seus filhos (2Jo 13), quer isso signifique uma

devem ter no cumprimento de seus deveres. Elas

igreja irmã, quer outra líder de uma igreja em

devem ser discretas, não falar da vida alheia e

casa. A. Spencer observa que não se pode refe­

evitar ofensas, fofocas, cobiça e afirmações fal­

rir a toda uma congregação como uma senhora e

sas. Também devem se entregar à oração cons­

seus filhos

tante por todos, porque "são um altar de Deus”

(S p e n c e r ,

p. 110-1). Em IJoão e 3João,

as crianças representam o rebanho, ao passo que

(Po, Fp, 4). Parece que Inácio de Antioquia está se diri­

os líderes são indicados separadanfente.

gindo a mulheres que desempenham uma fun­ 7. Viúvas e mulheres despojadas de seus

ção definida quando escreve a “virgens que são

direitos

chamadas viúvas” (In, Es, 13.1). Witherington

Ao longo de toda a obra de Lucas-Atos, demons­

acredita que “viúva” se tornou um termo téc­

tra-se especial empatia pelas mulheres despojadas

nico que designava "todas as mulheres não ca­

de seus direitos, de modo que Paulo, arriscando a

sadas dedicadas ao cehbato e ao trabalho do

própria segurança, cura uma escrava perturbada

Senhor, incluindo-se as que nunca se casaram”

972

M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

( W it h e r in g t o n ,

1988, p, 201; v. tb.

S t ã h l in , v .

9,

apostólico que recebeu, Essa tendência é precur­

p. 451). Grapte devia dar às viúvas instrução es­

sora do ascetismo que mais tarde se disseminaria

pecial a respeito da mensagem de Hermas (He,

pela igreja primitiva,

“Vi” , 2.8.3), enquanto este assumia a responsabi­

0 pastor, de Hermas, revela uma prática co­

lidade pelo cuidado das viúvas e dos órfãos (He,

nhecida como sineisacatismo, segunda a qual o

“ Or” , 8.10). Mais tarde, especialmente no Orien­

homem vivia com uma mulher, mas “como ir­

te, as viúvas se tornariam parte do clero ordena­

mão, não como marido” [He, “Si”, 9.11.3; cf. He,

do, vinculadas a igrejas locais e dedicadas a um

“Vi” , 1.7.2). Embora pudessem ocupar a mesma

ministério de oração e de boas obras.

cama com o homem, as mulheres (denominadas sübintToductae ou agapêtaí) eram ostensivamen­

8. Mulheres casadas e solteiras

te virgens, comprometidas com o ministério do

A condição social das muUieres é de considerável

evangelho. É possível que o apóstolo Paulo esteja

interesse para os autores da literatura cristã pri­

se referindo a essa prática quando fala da virgem

mitiva. As mulheres casadas aparecem em Atos

que é hvre para servir a Cristo, em vez de servir o

como pessoas maduras, das quais se exigia que

marido, e do homem que "conserva sua virgem”

assumissem a responsabilidade por suas ações.

(ICo 7.34-37. 0 original não traz “ filha”). Uma

Safira, com o marido, é considerada responsá­

vantagem de tal “casamento espiritual” era que

vel pelo engodo que tentara impingir à igreja

ele proporcionava segurança material, proteção

(At 5.1-10). Priscila participa em pé de igualda­

masculina e liberdade de responsabihdade mari­

de da hderança e do exercício do ministério que

tal à mulher soheira desejosa de estar envolvida

partilha com o marido. Até mesmo as rainhas

no serviço cristão

(M c N a m a r a ).

herodianas ouvem com interesse a mensagem de

De acordo com uma tradição que chegou ao

Paulo (At 24.24; 25.13,23; 26.20). Embora vistas

conhecimento de Clemente de Alexandria, as

nas fontes históricas seculares como concubinas

esposas dos primeiros apóstolos acompanha-

e como esposas que eram quase sempre objetos

vam-nos nas viagens a fim de se obterem me­

de manipulação de governantes ávidos de poder,

lhores resultados na divulgação do evangelho

elas aparecem em Atos como pessoas de poder e

( C l e m e n t e d e A l e x a n d r ia ,

integridade, capazes de tomar as próprias deci­

PL 17, c496). Talvez se encontre uma indicação

sões morais e espirituais.

desse ministério partilhado na declaração de IPe­

Como Jesus havia advertido (Mt 10.35,36;

St, 3.6; cf.

A m b r o s ia s t r o ,

dro S.13: “Aquela que é coeleita convosco, que

Lc 14.26), abraçar a nova fé nem sempre ajudava

está na Babilônia, vos cumprimenta, como tam­

na harmonia dos relacionamentos familiares, em­

bém meu filho Marcos”. Ainda que alguns estu­

bora às vezes fortalecesse os mesmo3 vínculos.

diosos acreditem que se trata da personificação

Domitila, sobrinha do Imperador Domiciano (que

de uma congregação inteira, isso não parece se

reinou entre 61 e 96 d.C.), foi exilada; seu mari­

harmonizar com a menção direta a Marcos, que

do, que aparentemente também era cristão, foi

estava cuidando de Pedro em Roma. Foi Mar­

executado

cos que, no Evangelho que leva seu nome, de­

C â s s io ,

2)

(S u e t ô n w ,

Domiciano, 10.15.17;

Hi, 67.14). Justino Mártir

(J u s t in o ,

D iã o

Ap ii,

vidamente registrou o fato de Pedro ser casado

história de uma mulher cujo marido

(Mc 1.29-31). Uma vez que Babilônia era um co-

dissoluto a denunciou como cristã e conseguiu o

dinome amplamente usado para designar Roma,

castigo da pessoa que a instruía.

J. A. Bengel, E. T. Mayerhoff, K. R. Jackmann,

c o n ta a

A virgindade das mulheres dedicadas ao mi­

H. Alford,

A .

T. Robinson e outros propõem que

nistério exige respeito especial. As quatro pro­

essa talvez seja uma referência à esposa de Pedro,

fetisas filhas de Fihpe eram virgens, ao passo

pois é sabido que ela acompanhou o marido em

que Ana, a única profetisa presente a proclamar

suas viagens missionárias (ICo 9.5). Clemente

0 nascimento do Messias, com exceção de sete

de Alexandria até mesmo preservou um relato do

anos viveu a vida inteira como celibatária. Te­

encorajamento que ela recebeu de Pedro pouco

cla, convertida e seguidora do apóstolo Paulo,

antes de ser martirizada

fez do cehbato uma condição para o chamado

St, 7.11.53). C. Bigg observa que seria natural

973

( C l e m e n t e d e A l e x a n d r ia ,

M u l h er e s n i; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse

uma mulher que havia participado do ministério

Manchester University Press, 1930.

do marido enviar uma saudação própria às igrejas

MacDonald, D. R. The legend and the apostle: the

a que ela também havia servido na obra do evan­

battle for Paul in story and in canon. Philadel­

gelho. Para Bigg, o fato de o apóstolo incluir uma

phia: Westminster, 1983. ■ McKenna, M. L. Wo­

[m

am a

,

2.)



mensagem da esposa revela “um aspecto nobre e

men o f the church: role and renewal. New York:

inconfundível do caráter de Pedro e [...] um tipo

P. J. Kennedy and Sons, 1967. ■ McNamara,

de athude que depõe fortemente a favor da genui­

A. A new song: celibate women in the first three

nidade da epístola”

Christian centuries. New York: Harrington Park

À

(B igg ,

semelhança de

p.

77].

Sara,

que

J.

Press, 1985. ■ Ramsay, W. M. The church in the Ro­

abandonou

uma vida estável por uma existência nômade

man Empire before A.D. 170. London: Hodder &

(IPe 3.6), a esposa de Pedro perseverou como

Stoughton, 1893. ■ Riddle, D. W. Early Christian

companheira constante e ajudou a fundar uma

hospitality: a factor in the Gospel transmission.

nova comunidade de nova e viva fé. Homens e

JBL,

mulheres por todo o Império Romano depararam

the curse: women called to ministry. Nashville:

com 0 mesmo desafio quando abraçaram Jesus

Thomas Nelson, 1985. ■ Stahlin, G. xiIp«’

Cristo como Salvador e Senhor de sua vida e se

V.

to rn a ra m , dlntd

:

de fato, “filhos de Sara”. H o u s e h o ld

C odes;

v. 57, p. 141-54, 1938. ■ S p e n c e r , A. B. Beyond

9, p. 40-65.



et des veuves — Actes 6:1-10, 8:4-40, 21:8.

H o u s e h o ld ,

22, p. S32-6,1926. •

F a m ilv ;

tdnt,

Viteau, J. L’institution des diacres V o n H arn ack ,

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M a r y ; M in is tr y ; W o m a n a n d M a n .

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B ib lio g r a h a .

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B igg ,

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W

it h e r in g t o n i i i ,

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Ruinenstatten des Ruhen Kiliklens. Manchester:

974

Ver J o ã o ,

E vangelho

de.

NASCIMENTO DE J eSUS. V s r JESUS, NASCIMENTO DE.

NASCIMENTO, NARRATIVAS DO.

Vei

J eSUS, NASCIMENTO DE;

NOMISMO ALIANCÍSTICO.

Vei

NOMISMO FACTUAL.

NOMISMO FACTUAL. V C I JUSTIFICAÇÃO; L eI II.

MILAGRES, RELATOS DE MILAGRES I. NOVA ALIANÇA. V e r ALIANÇA, NOVA ALIANÇA. NASCIMENTO VIRGINAL. V C I J e SUS, NASCIMENTO DE.

NOVA CRIAÇÃO. V e r criação, nova CRIAÇÃO. NATIVIDADE DE J eSUS. V e i J e SUS, NASCIMENTO DE.

NOVA PERSPECTIVA SOBRE P a u l o . NATIVIDADE, NARRATIVAS DA. V e r JeSUS, NASCIMENTO DEj

R o m an o s , C arta

aos .

MILAGRES, RELATOS DE MILAGRES I. NOVO I s r a e l.

Ver I s r a e l .

Ver

JUSTIFICAÇÃO; L ei

ii ;

OBRAS DA LEI.

O n ésim o .

Ver

Ver

justificação ;

F ilem om , C arta

OPONENTES DE P a ULO.

Vei

L ei .

a.

ADVERSÁRIOS I.

OPULÊNCIA.

ORAÇÃO.

Ver

Ver

ORÁCULOS.

riquezas e pobrezas .

adoração /culto .

Ver

religiões greco -r o m a n as .

P

a i,

P

a ix

D

eus c o m o .

Ver Deus i.

ponto de partida é a obra de A. Jühcher, estudioso do NT cuja obra sobre as parábolas, em dois volu­

Ao ,

n a r r a t iv a s

JULGAMENTO

da

.

Ver

C r is t o ,

m o rte de i ;

Jesu s,

mes (1888, 1889), domina o estudo das parábolas até hoje, embora nâo tenha sido traduzida nem

de .

mesmo para o inglês. P a ix ã o , p r e d iç õ e s a c e r c a d a .

Ver

1.1

ressurreição i.

Antes de Jülicher. Durante a maior parte

da história da igreja, em vez de interpretadas, as P

parábolas de Jesus têm sido alegorizadas. Ou seja,

arábolas

A palavra “parábola” designa uma breve narrativa

são inseridos nas parábolas elementos da teologia

com dois níveis de sentido. Os termos grego e hebrai­

da igreja alheios ao sentido original pretendido por

co têm significado bem mais amplo. As parábolas

Jesus. O exemplo mais conhecido é a interpretação

de Jesus são obras de arte e ao mesmo tempo ar­

que Agostinho faz da parábola do bom samaritano

mas que ele utilizou em debates com os adversários,

(Lc 10.30-37), em que praticamente todo detalhe

além de constituírem o método de ensino que ele

recebeu significado teológico. 0 homem é Adão:

empregou mais vezes para explicar o

e

Jerusalém é a cidade celestial: Jericó é a Lua, que

mostrar o caráter de Deus e as expectativas que ele

representa nossa mortalidade: os salteadores são

tem com respeito à humanidade. Apesar da tradição

0 Diabo e seus anjos, os quais arrancam do ser

que alega que as parábolas de Jesus têm uma única

humano a imortalidade e o espancam quando o

mensagem, muitas parábolas transmitem duas ou

induzem ao pecado: o sacerdote e o levita são

três verdades, e pode haver várias correspondências

0 sacerdócio e o ministério do a t ; o bom samarita­ no é Cristo; 0 ato de curar as feridas é o refreamen-

r e in o d e

D

eus

entre a parábola e a reahdade que ela representa. 1. História da interpretação

to do pecado: o óleo e o vinho são o consolo da

2. Definição de p a ra h o lê e termos afins

esperança e a disposição para o trabalho; o animal

3. Características das parábolas

é a encarnação; a estalagem é a igreja; o dia se­

4. As parábolas antes de Jesus

guinte é 0 tempo depois da ressurreição de Cristo;

3. Distribuição das parábolas nos Evangelhos

0 estalajadeiro é o apóstolo Paulo; os dois denários

6. A autenticidade das parábolas

são os dois mandamentos do amor ou a promessa

7. O propósito das parábolas

desta vida e da vindoura

8. Diretrizes para a interpretação

De modo semelhante, Gregório, o Grande, alego-

9. 0 ensino das parábolas

rizou a parábola da figueira estéril (Lc 13.6-9),

(A

c o s t in h o ,

Qa Ev, 2.19).

de forma que as três vezes em que o proprietário 1. História da interpretação

procura fruto nela representam, respectivamente, a

A história da interpretação é praticamente um pré-

vinda de Deus antes da outorga da Lei, sua vinda

requisho para estudar as parábolas de Jesus, e o

na ocasião em que a Lei foi escrita e sua vinda em

Parábo las

as parábolas de Jesus em seu contexto histórico

graça e misericórdia na pessoa de Cristo. O dono da figueira representa os que dirigem a igreja, e o

e escatológico (v.

ato de escavar e colocar estrume simboliza a re­

ehminar os elementos alegóricos das parábolas.

preensão a pessoas infrutíferas e à lembrança dos

Dodd entendia a mensagem de Jesus como esca­

pecados

Homilia 31). Outros,

tologia realizada: o reino já chegou. As parábolas

como João Crisóstomo, da escola de Antioquia,

que falam de colheita não se referem a um des­

e João Calvino, não alegorizavam as parábolas,

fecho que ainda está por vir, mas ao período do

mas, até o final do século xix, a alegorização era o

ministério terreno de Jesus.

(G

r e g ó r io , o

G

rande,

meio predominante de interpretação.

escatologia) .

Ambos queriam

Jeremias procurou oferecer evidências históri­

1.2 Jülicher. Outros antes de Jülicher ha­

cas G culturais para entender as parábolas e, sob a

viam criticado a alegorização, mas a obra des­

influência da crítica da forma, identificar sua for­

se estudioso foi como o beijo da morte nesse

ma original mediante a ehminação dos aspectos

procedimento interpretativo. As parábolas são

alegóricos e dos acréscimos feitos pela igreja pri­

0 desenvolvimento dos símiles, ao passo que as

mitiva. Como é normal nesses casos, isso condu­

alegorias são o desenvolvimento das metáforas.

ziu a uma reconstrução supostamente original da

À semelhança das metáforas, as alegorias não re­

forma das parábolas. Quase invariavelmente, o

presentam a realidade e têm de ser decodificadas.

contexto dos Evangelhos, as introduções, as con­

O propósito de Jesus não era obscurecer; por isso,

clusões e quaisquer comentários interpretativos

não podemos ver suas parábolas como alegorias.

foram considerados secundários. Essas formas

1.3 Depois de Jülicher. Todos os estudos poste­

abreviadas e desalegorizadas guardam proximi­

riores sobre as parábolas tiveram de levar em con­

dade com as parábolas existentes no Evangelho

sideração as ideias de Jühcher. No im'cio, houve

de Tomé, uma coleção de frases de Jesus com data

alguns ataques contra os argumentos de Jühcher,

provável no século ii. A relação do Evangelho de

particularmente por parte de P. Flebig (começando

Tomé com os Evangelhos canônicos, a data desse

em 1904). Flebig alegava que Jülicher baseava sua

Evangelho e sua natureza são objeto de debate. O

compreensão das parábolas na retórica grega, não

fato de que Jeremias e outros propuseram versões

no mundo hebraico, onde são comuns as parábo­

mais curtas das parábolas antes que o Evangelho

las alegóricas. Outros reconheceram que Jühcher

de Tomé se tornasse conhecido convenceu alguns

havia se livrado da alegoria, que é um estilo h-

estudiosos de que essa obra preserva a forma ori­

terário, enquanto o problema era a alegorização

ginal de algumas das parábolas.

— 0 procedimento interpretativo de inserir nas

Embora reconhecesse a presença do reino no

parábolas uma teologia não pretendida por Jesus.

ministério de Jesus, Jeremias considerava sua

Hoje em dia, pouquíssimos Intérpretes aceitariam

mensagem uma escatologia em processo de reah-

as definições de Jühcher sobre a parábola ou sua

zação. Em suas parábolas, Jesus deixava o povo

ideia de que as parábolas apresentam máximas re­

diante de uma decisão crítica e o convidava a cor­

ligiosas de cunho geral. As críticas a seu conceito

responder à misericórdia de Deus. A influência de

de alegoria são devastadoras, mesmo assim ainda

Jeremias tem sido tão forte que, segundo N. Perrin,

se admhe que a parábola contém uma única men­

no futuro as parábolas só serão interpretadas com

sagem e se resiste à ideia de que alguma parte das

base na anáhse de Jeremias

parábolas de Jesus seja de sentido alegórico. Além

1.3.2

(P

e r r in ,

p. 101).

Abordagens existencialista, estmturalís-

disso, a interpretação das parábolas tem passado

ta e literária. Várias formas atuais de abordar as

por várias etapas.

parábolas têm se originado em correntes filosó­

1.3.1

^

C. H. Dodd e J. Jeremias. No estudo ficas. Algumas delas também resultam da insa­

das parábolas, a era de Dodd e Jeremias vai de

tisfação com o fato de Dodd e Jeremias terem se

1935 até cerca de 1970, embora a obra de Jere­

concentrado na abordagem histórica. Apesar da

mias sobre as parábolas ainda exerça influência.

busca por algo além do meramente histórico, es­

A obra de Jeremias foi um desenvolvimento do

sas abordagens ainda seguem Jeremias quando

trabalho de Dodd, e ambos foram influenciados

se desfazem dos acréscimos alegóricos e interpre­

por Jühcher. Dodd e Jeremias tentavam entender

tativos. A nova hermenêutica de E. Fuchs e E.

978

Pa r a b o l a s

Jüngel ressalta o poder que as parábolas de Jesus

0 significado do texto era determinado pela inte­

têm de expressar a realidade para a qual apon­

ração deste com o lehor. Essa abordagem é subje­

tam. As parábolas são entendidas como “acon­

tiva demais e produz uma variedade de sentidos,

tecimentos linguísticos” [Sprachereignisse]. Nas

todos considerados corretos. Essa compreensão

parábolas, Jesus expressa a compreensão que

polivalente de textos convida o intérprete a ser

tem de sua existência de uma forma compreen­

um “jogador treinado” e a ler os textos com tantas

sível a todos os ouvintes. As parábolas são uma

associações quantas forem desejadas. Por exem­

convocação a essa existência.

plo, a parábola .do fllho pródigo pode ser hda à

De forma semelhante, G. V. Jones, A. N. Wil­

luz da psicanálise freudiana: o filho pródigo, o

der e D. Via destacam a natureza artística e exis­

irmão mais velho e o pai refletem o id, o ego e o

tencial das parábolas. Para Via especialmente, as

superego. Com esse método, é possível ler a pa­

parábolas não estão presas ao propósito do au­

rábola de forma igualmente legítima. Entretanto,

tor. São obras estéticas que tratam do presente,

as leituras subjetivas das parábolas não são inter­

porque em seus padrões há uma compreensão da

pretações; são maneiras de recontar a história em

existência que requer uma decisão.

um novo contexto. Para entender a mensagem de

Vale assinalar a obra de K. BaUey sobre as

Jesus, será preciso fazer justiça ao contexto histó­

parábolas, dada a meticulosa atenção que ele

rico em que as parábolas foram contadas. 1.4

dispensa à estrutura retórica das parábolas, bem

Interpretações baseadas em comparações

como a sua Interpretação à luz do modo de pen­

com as parábolas judaicas. Nos estudos recentes

sar da Palestina, o qual ele veio a conhecer en­

sobre as parábolas, constatou-se a tendência de

quanto atuava como missionário no Ubano.

obter percepções pelo estudo das antigas pará­

Na década de 1970, as abordagens estruturahs-

bolas rabínicas. Comparar as parábolas judaicas

tas dominaram os estudos das parábolas. Os estru-

com as de Jesus não é algo novo. Fiebig fez isso

turalistas não estavam interessados no significado

ao combater a abordagem de Jülicher, e, mais ou

histórico nem na hitenção do autor. Em vez disso,

menos na mesma época, A. Feldman reuniu as

procuravam comparar as estruturas de superfície e

parábolas judaicas que facilitavam ainda mais

as camadas mais profundas de várias passagens,

essa comparação. Até agora, já foram coletadas

ou seja, buscavam comparar os deslocamentos, as

cerca de 2 mü parábolas rabínicas. Em anos re­

causas, as funções, as oposições e as resoluções

centes, foram publicadas várias obras

existentes nesses textos. Às vezes, uma análise

da teoria das parábolas à luz das parábolas rabí­

que

tratam

estmturalista pode ser lítil, como aquela em que

nicas e repensam teorias e interpretações ante­

J. D. Crossan identifica as categorias de advento,

riores. Dentre essas obras, a mais importante é

reversão e ação como básicas para entender as pa­

a pesquisa de D. Flusser, estudioso judeu do

rábolas. 0 reino de Deus é tanto um advento quan­

cuja obra principal ainda não foi traduzida para o

to um presente de Deus. E também a inversão do

inglês. As obras de Flusser e de outros estudiosos

mundo de alguém e a capacitação para a ação. No

que se concentram no estudo do judaísmo ques­

entanto, em sua maioria, os estudos estruturalis-

tionam não apenas as conclusões de Jülicher,

n t

tas têm sido dominados por jargões técnicos, sem

mas também as de Jeremias, as das abordagens

acrescentar muita luz ao assunto.

centradas no leitor e de boa parte dos estudiosos

A década de 1980 testemunhou mudanças

do NT. Flusser admite que as parábolas sofreram,

perceptíveis no estudo das parábolas, em gran­

por parte dos Evangelistas, um extenso trabalho

de parte por influência da crítica hterária. Em­

editorial, mas é otimista quanto à confiabUidade

bora desde a década de 1950 tenha havido certo

do material dos Evangelhos. Ele alega que em ge­

interesse nas ênfases editoriais dos autores dos

ral 0 contexto das parábolas está correto, sendo a

Evangelhos, os interesses hterários têm desperta­

introdução e a conclusão indispensáveis e geral­

do muito mais atenção à técnica e aos propósitos

mente tendo origem em Jesus. No seu entender,

dos Evangehstas na composição dessas obras. A

o Evangelho de Tomé depende dos Evangelhos Si­

crítica hterária também tendia a destacar uma

nóticos e não tem valor para a pesquisa sobre as

abordagem de leitura centrada no lehor, na qual

palavras de Jesus.

979

Parábo las

O tratamento que C. Blomberg dispensa às

banquete (Lc 14.15-24) provavelmente se encaixa

parábolas demonstra o distanciamento em rela­

nessa definição. Nesse sistema de classificação, a

ção às obras de Jülicher e de Jeremias. Blomberg

alegoria consiste em uma série de metáforas rela­

entende que, à semelhança das parábolas dos

cionadas — a parábola do semeador talvez seja

rabinos, as de Jesus são alegorias e geralmente

um exemplo de alegoria.

apresentam duas ou três mensagens, dependen­

Embora essa classificação quádrupla seja po­

do do número de personagens principais que a

pular, muitos estudiosos não a consideram Ideal.

parábola possua.

Alguns fazem objeção à categoria “história-modelo” , mas, se não desconsiderarmos o fato de

2. Definição de parabolê e termos afins

que essas histórias podem estar apresentando

O termo grego parabolê tem um sentido muho

mais que apenas um modelo, essa classificação

mais amplo nos Evangelhos que nossa palavra

pode ser de grande vaha. Está claro que em al­

“parábola”. A palavra grega pode designar um

guns aspectos elas são diferentes de outras pa­

provérbio (Lc 4.23), um enigma (Mc 3.23), uma

rábolas. Mais complicada é a suposta distinção

comparação (Mt 13.33), um contraste (Lc 18.1-8),

entre parábola e alegoria, um dos assuntos mais

histórias simples (Lc 13.6-9) e também comple­

debatidos nos estudos do

xas (Mt 22.1-14). Essa gama de sentidos deriva

M. Boucher, a alegoria não é uma forma literá­

da palavra hebraica mãshal, que a lx x geralmen­

ria, e sim um recurso de expressão de significado

nt.

Para alguns, como

te traduz por parabolê (28 das 39 ocorrências).

— por esse motivo, todas as parábolas são ale­

Além disso, é possível usar mãshal com o sentido

góricas na totahdade ou em alguns de seus ele­

de "zombaria” , “oráculo profético” ou “adágio”.

mentos. São poucas as parábolas que possuem

Mãshal é qualquer frase ambígua que tenha o pro­

apenas uma correspondência entre a história e a

pósito de estimular o pensamento.

realidade que refletem, embora não se deva con­

Além de distinguir a ampla gama de sentidos

siderar a interpretação das parábolas um proces­

das palavras parabolê e mãshal, é preciso escla­

so de decifração de mensagens. É melhor definir

recer 0 conceito de parábola. Em geral, distin­

parábola como uma história com dois níveis de

guem-se quatro formas de parábolas: analogia,

significado. Os níveis da história constituem um

história-modelo, parábola e alegoria. A analo­

espelho mediante o qual se percebe e se entende

gia é 0 desenvolvimento do símile (comparação

a realidade. Na realidade, as parábolas são jardins

explícita que emprega a palavra “como” ou a ex­

imaginários com sapos de verdade lá dentro.

pressão “ semelhante a” , “à semelhança de”). É uma comparação que envolve um acontecimento

3. Características das parábolas

típico ou recorrente da vida real e quase sem­

As parábolas tendem a ser breves e simétricas e

pre gxpressa no tempo presente. A parábola do

em geral empregam estruturas em equIlilDrio que

fermento (Mt 13.33) é uma analogia. A história-

envolvem dois ou três atos. Normalmente, omi­

modelo apresenta um personagem de caráter

tem descrições desnecessárias, e é comum as mo­

positivo ou negativo (ou ambos), cujo exemplo

tivações ficarem sem exphcação, e as perguntas

deve ser imitado ou cujas características e ações

implícitas, sem resposta. Costumam ser baseadas

devem ser evitadas. Implícita ou explichamente,

na vida cotidiana, mas não são necessariamen­

a história-modelo diz: “Vai e faze [ou não faças]

te realistas. Por causa do uso da hipérbole e de

desse modo” (cf. Lc 10.37). Em geral, apenas

elementos improváveis, com frequência são pseu-

quatro parábolas nos Evangelhos, tpdas no Evan­

dorreahstas e apresentam elementos chocantes.

gelho de Lucas, são identificadas como história-

Por exemplo, é improvável que alguém na Pales­

modelo: 0 bom samaritano; o rico insensato; o

tina do século I contraísse uma dívida de 10 mil

rico e Lázaro; o fariseu e o pubhcano. A parábola

talentos (algumas dezenas de milhões de dóla­

é o desenvolvimento da metáfora (comparação

res), como no caso da parábola do credor incom-

implícita) que se refere a um acontecimento fic­

passivo (Mt 18.23-35). Além disso, as parábolas

tício ou a fatos do passado, exprimindo uma ver­

despertam o pensamento. Vinte e duas parábolas

dade moral ou espiritual. A parábola do grande

iniciam com perguntas do tipo: "Qual de vós...?” ;

980

Pa rá bo la s

“Que vos parece...?”. É normal que a parábola

0 AT apresenta sete parábolas que constituem

leve o ouvinte a julgar os acontecimentos nela re­

precedentes para as parábolas de Jesus: a pará­

latados e então exija também um julgamento em

bola que Natã contou a Davi acerca do homem

questões religiosas. Com frequência, as parábolas

pobre e sua ovelha (2Sm 12.1-10); a história que

exigem uma mudança no pensamento da pessoa.

a mulher de Tecoa contou sobre seus dois filhos

O samaritano desprezado é o próximo; o publi­

(2Sm 14.5-20); a parábola encenada, em que o

cano, não o fariseu, é quem é justo. A questão

profeta condena Acabe (IRs 20.35-40); a canção

crucial é apresentada no final da parábola, e, de

da vinha (fs 5.1-7); as aves e a videira {Ez 17.2-10);

modo correspondente, “a regra da tensão final”

a leoa e seus filhotes {Ez 19.2-9); a videira

exige que a interpretação se concentre no encerra­

{Ez 19.10-14). Só Ezequiel 17.2-10 é exphcita­

mento da parábola. Embora a parábola dos agri­

mente denominado mãshal. Além disso. Juizes

cultores maus tenha imphcações cristológicas, a

9.7-15 e 2Reis 14.9 contêm fábulas. Das parábolas

maioria das parábolas é teocêntrica, pois se con­

do

centra em Deus, em seu reino e nas expectativas

bre e sua ovelha constitui um paralelo verdadeiro

com respeito aos seres humanos. Por consequ­

com as parábolas de Jesus.

ência, as parábolas quase sempre são convhes a uma mudança de comportamento e ao discipula­ do. 0 grau em que o referente teológico é claro para o ouvinte varia de parábola para parábola.

AT,

só a história de Natã sobre o homem po­

5. Distribuição das parábolas nos Evangelhos Cerca de um terço dos ensinamentos de Jesus está nas parábolas. A palavra grega paraholê apa­

4. As parábolas antes de Jesus

rece cinquenta vezes no

Jesus não foi a primeira pessoa a ensinar por pa­

Hebreus 9.9 e 11.19, todas as ocorrências estão

rábolas e por meio de histórias. Existem prece­

nos Evangelhos Sinóticos. As parábolas apare­

dentes gregos e semíticos, mas não há nenhum

cem em todos os níveis dos Sinóticos. Caso se

indício de que alguém antes de Jesus tenha usa­

aceite a Hipótese das Quatro Fontes da origem

nt,

e, com exceção de

do as parábolas de forma tão sistemática, cria­

dos Evangelhos, as parábolas constituem 16% de

tiva e eficaz. Existem tantas parábolas rabínicas

Marcos, cerca de 29% de

semelhantes às contadas por Jesus que alguns

cerca de 52% de l

estudiosos afirmam que Jesus as extraiu de um

contém parábolas em forma de história, mas al­

repositório de histórias populares ou pelo menos

gumas passagens se encaixam no sentido amplo

q,

cerca de 43% de

[ v . P roblema S inótico ) .

m

e

João não

extraiu desse reposhório os temas e as estruturas

de mãshal, como a do bom pastor (Jo 10) e a da

que utilizou. Como sempre ocorre com os dados

videira verdadeira (Jo 15). (João emprega quatro

rabínicos, o problema é que esses escritos são

vezes a palavra paroímía. Essa palavra, em al­

posteriores à época do

guns aspectos, é semelhante a parabolê.)

nt

.

Pelo fato de existirem

tão poucos indícios de ensino por parábolas an­

Não se pode apresentar um número exato de

tes de Jesus, alguns estudiosos entendem que o

parábolas, visto que entre os estudiosos não exis­

uso de parábolas por Jesus foi algo novo. Até o

te concordância sobre quais passagens devem ser

momento, não foram identificadas parábolas nos

classificadas como parábola. Existem trinta ex­

textos de Qumran, e não há nenhuma nos livros

plicitamente rotuladas como parabolê, mas isso

apócrifos ou nos pseudepigráficos {excluindo-se

inclui provérbios (Lc 4.23). enigmas (Mc 3.23),

as denominadas Similitudes de Enoque, que apa­

frases breves (Mc 7.15) e perguntas (Lc 6.39).

rentemente são de origem posterior). Praticamen­

Existem pelo menos quarenta parábolas em sen­

te nenhuma das parábolas rabínicas procede de

tido mais restrito, mas elas podem chegar a 65,

um período tão remoto quanto a primeira metade

caso se incluam certas frases de Jesus como aque­

do século 1. Além do problema de data, as parábo­

la a respeito da pessoa que tem uma viga no olho

las rabínicas, todas escritas em hebraico, não em

e tenta tirar o cisco do olho de outra (Mt 7.3-5).

aramaico, são usadas basicamente como meio de

Nos Sinóticos, as parábolas são organizadas

interpretar as Escrituras, ao passo que Jesus não

tematicamente. Marcos registra apenas quatro pa­

empregou as parábolas dessa maneira.

rábolas em forma de história: em Marcos 4, temos

981

Pará bo la s

o semeador, a semente de mostarda e a semente

Ao mesmo tempo, alguns estudiosos mais

que cresce em segredo; em Marcos 12, temos os

críticos têm se dedicado ao debate da autentici­

agricultores maus. Com exceção da semente que

dade de determinadas parábolas, em parte e no

cresce em segredo, Mateus e Lucas registram as

todo. O chamado Jesus Seminar [Seminário Je­

parábolas de Marcos, e ambos registram as pará­

sus] chegou até mesmo a elaborar uma edição

bolas do fermento e da ovelha perdida. Mateus

das parábolas de Jesus em que as palavras ou fra­

e Lucas registram parábolas a respeito de pes­

ses das parábolas aparecem nas cores vermelha,

soas que rejeitam o convite para um banquete

rosa, cinza ou preta, refletindo respectivamente

(Mt 22.1-4; Lc 14.16-24) e de servos que recebem,

as opiniões de que Jesus; 1) disse mesmo aque­

em confiança, dinheiro para investir (Mt 25.14-

las palavras; 2) disse algo parecido com aquelas

30; Lc 19.11-27). Entretanto, em nenhum desses

palavras; 3) não disse aquelas palavras, mas ex­

dois paralelos existe semelhança fraseológica, e

pressou ideias semelhantes: 4) não disse aquelas

não há certeza se Mateus e Lucas estão relatando

palavras, sendo as ideias de período posterior.

as mesmas parábolas ou apenas parábolas seme­

Apenas três parábolas representadas na tradição

lhantes. Sem dúvida, Jesus contou algumas pará­

canônica foram impressas totalmente em preto

bolas mais de uma vez, com variantes baseadas

(aquele que constrói uma torre e o rei que vai à

na mesma estrutura básica. Mateus organizou a

guerra, ambas em Lc 14.28-32, e a rede de pes­

maioria de suas parábolas em Mateus 12, 13, 18

car), e outras quatro foram impressas totalmente

e 20—25. Ele registra pelo menos doze parábolas

na cor cinza (nesses casos, porém, é comum a

inéditas. Lucas reúne a maioria de suas parábolas

preferência à versão da parábola como está regis­

em Lucas 10— 19, que faz parie da denominada

trada no Evangelho de Tomé]. Ainda que esse trabalho reforce a confiança

"narrativa de viagem”. Lucas registra pelo menos

que se tem na tradição das parábolas, as pres­

quinze parábolas inéditas. Catorze parábolas aparecem no Evangelho

suposições e os procedimentos adotados pelo

de Tomé, três das quais não são registradas nos

Seminário Jesus e por muitos outros estudiosos

Evangelhos canônicos. O Apócrifo de Tiago tam­

são inaceitáveis. 0 Seminário Jesus, à semelhan­

bém traz três parábolas não registradas nos Evan­

ça de muhos outros estudiosos de um período anterior, sucumbiu à tendência de encontrar um

gelhos canônicos.

Jesus palatável às expectativas modernas. Con­ 6. A autenticidade das parábolas

cedeu extrema deferência ao Evangelho de Tomé,

Mesmo os estudiosos convencidos de que as pa­

obra que. segundo parece, teve origem em uma

rábolas dos Evangelhos contêm acréscimos feitos

segunda etapa da tradição oral. Além do mais,

pela igreja primitiva ainda entendem que as pa­

à luz de pesquisas recentes sobre as parábolas

rábolas oferecem algo do ensino mais autêntico

judaicas, a rejeição das introduções e conclusões

e confiável de Jesus. São fortes os dados a favor

das parábolas e de qualquer ideia alegórica é

dessa certeza:

algo que não se justifica. Sem dúvida, a tradição oral deu forma às parábolas, e os Evangelistas as

1) As parábolas refletem a clareza e a escato­

editaram de acordo com suas tendências estilísti­

logia da pregação de Jesus e seu conflito com as

cas e propósitos teológicos. Podemos e devemos

autoridades judaicas.

identificar muitas dessas mudanças. Entretanto, qualquer tentativa de identificar as ipsissima ver­

2) Elas refletem a vida cotidiana na Palestina. 3) Não há praticamente nènhym indício de

ba (i.e., as exatas palavras) de Jesus é, na me­

que antes de Jesus houvesse um uso frequente

lhor das hipóteses, ingênua. E em lugar algum

de parábolas.

aquela voz é ouvida com tanta clareza como nas

4) Tendo em vista o fato de que no

nt

não

parábolas.

há parábolas fora dos Evangelhos e que elas ra­ ramente existem em outra hteratura cristã pri­

7. O propósito das parábolas

mitiva, a igreja primitiva não revela nenhuma

Costuma-se dizer que as parábolas de Jesus não

propensão à criação de parábolas.

são apenas ilustrações dos sermões de Jesus, mas

982

Pa rá bo la s

são elas próprias a pregação. Está claro que as

Alguns intérpretes entendem que essa estru­

parábolas têm a função de atrair a atenção e ins­

tura é quiasmástica, sendo o centro do quias­

truir, mas não é correto considerá-las a pregação

mo a interpretação da parábola do semeador.

em si. As parábolas exigem interpretação; apon­

(Quiasmo é um padrão poético do tipo a-b-b’-a’.)

tam para algo mais. Não são meras histórias para

Observe-se que em Marcos 4.35-41 Jesus e seus

deleite dos ouvintes. Elas apresentam uma reali­

discípulos estão de volta ao barco. Essa seção re­

dade que reflete outra: o reino de Deus. Por meio

toma a apresentação cronológica que Marcos 4.9

delas, pode se chegar à compreensão do reino.

parece ter ábandonado. Por esse motivo. Marcos

Jesus contou parábolas com o intento de confron­

4.10-34 constitui uma organização temática do

tar as pessoas com a natureza do reino de Deus

autor. Observe-se também que Marcos 3.31-34,

e convidá-las a participar do reino e a viver em

que se ocupa da famíha de Jesus do lado de fora,

conformidade com ele.

a procurá-lo, emoldura a parábola do semeador,

Marcos 4.10-12 parece, porém, dizer exata­ mente o contrário. Na superfície, esses versícu­

assim como a parábola do semeador e sua inter­ pretação emolduram Mc 4.10-12.

los afirmam que Jesus revela o segredo do reino

Nesse capítulo, o tema dominante é ouvir —

apenas a seus discípulos. “A vós é confiado o

o verbo é mencionado treze vezes. A passagem

mistério do reino de Deus, mas tudo se diz por

de Isaías 6.9,10, citada em uma versão semelhan­

meio de parábolas aos de fora, para que, vendo,

te ao Targum sobre Isaías, era um texto clássico

vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não

acerca da dureza do coração humano, pelo fato de

entendam, para que não se convertam e não se­

se recusarem a ouvir a palavra profética de Deus.

jam perdoados” (Mc 4.11,12). A parte final dessa

A dureza de coração é tema importante para Mar­

declaração é uma chação de Isaías 6.9,10.

cos e algo até mesmo possível de ser constatado

Para entender Marcos, é preciso atentar para a

entre os discípulos de Jesus (cf. Mc 8.16-21, que

técnica, a estrutura e as ênfases teológicas que ele

emprega palavras semelhantes a Is 6.9,10, porém

apresenta. Marcos utihza a técnica de emoldura­

extraídas de Jr 5.21 ou Ez 12.2).

mento para propiciar uma compreensão de cada

Vários estudiosos têm procurado atenuar

seção de seu Evangelho. Por exemplo, a purifica­

o impacto de Marcos 4.12, alegando que hina

ção do templo é emoldurada pelo ato de amaldi­

(“para que”) expressa algo menos que propósito.

çoar a figueira (Mc 11.12-14) e pela lição extraída

T. W. Manson aventa a hipótese de que hina é um

da figueira ressecada (Mc 11.20-25). Além disso,

0rro de tradução do aramaico de,

0 material de Marcos 4.1-34 foi cuidadosamgnte

o sentido de “quem”. Dessa maneira, ele prefere

organizado:

traduzir “ tudo se ensina por meio de parábolas,

que

pode ter

para os que estão de fora e de fato veem, mas Marcos 4.1,2 — Introdução narrativa, infor­

não sabem”

(M

anson,

p. 76-8). Joachim Jeremias

mando que Jesus ensinou essas parábolas en­

entende que hina é a forma abreviada de hina

quanto estava em um barco.

pkrothe (“para que se cumprisse”). Outros suge­

Marcos 4.3-9 — A parábola do semeador.

rem que se interprete hina como “porque”, como

Marcos 4.10-12 — Jesus fica a sós com os dis­

em Apocalipse 14.13, especialmente porque o pa­

cípulos, os quais ele contrasta com os que estão

ralelo em Mateus 13.13 traz hoti (“ porque”). A

de fora.

sugestão de Jeremias é útil, mas essas explicações

Marcos 10.13-20 — Interpretação da parábola

são desnecessárias, pois apenas ressaltam a difi­

do semeador.

culdade de aceitar a possibihdade de que Jesus

Marcos 10.21-25 — Ensinos apresentados em

contava parábolas para impedir a compreensão.

forma de parábola acerca do ouvir.

Os estudiosos, em vez de atribuir as parábolas a

Marcos 4.26-32 — Duas parábolas: a da se­

Jesus, muitas vezes preferem acreditar em uma

mente que cresce em segredo e a do grão de

suposta teoria de Marcos acerca das parábolas.

mostarda.

No entanto, não existe em Marcos uma teoria

Marcos 4.33,34 — Conclusão que apresenta

de que as parábolas impeçam a compreensão

um resumo do objetivo dessa seção.

(cf. Mc 12.12).

983

Parábo las

Tabela 1. As parábolas de Jesus

Parábolas marcanas

Marcos

Os convidados do noivo 0 tecido novo 0 vinho novo O homem forte que é amarrado O semeador A candeia e a medida A semente que cresce em segredo O grão de mostarda Os agricuhores maus A figueira que se renova A sentinela

2.19,20 2^21 2.22 3.22-27 4.1-9,13-20 4.21-25 4.26-29 4.30-32 12.1-12 13.28-32 13.34-36

Parábolas partilhadas por Mateus e Lucas

Lucas

Mateus 9.15 9.16 ’ "9.17 12.29,30 '113.1-9,18-23

5.33-39 5.36 : 537-39 ' ' 11.21-23 ' 8.4-8,11-15 8.16-18

13.31,32 21.33-46 24.32-36

; 13.18,19 : 20.9-19 21.29-33 12.35-38

(q)

Os construtores: o sábio e o tolo 0 pai e 0 pedido dos filhos Os dois caminhos/as duas portas 0 fermento A ovelha perdida A festa de casainento O ladrão de noite Os dois servos Os talentos Parábolas encontradas apenas em Mateus

7.24-27 7.9-11 7.13,14 13.31,32 1%12-14 ‘ 22.1-14 24.42-44 24.45-51 25.14-30

As árvores boas e ruins A rede de pesca 0 joio e o trigo 0 tesouro A pérola de grande valor 0 servo impiedoso Os trabalhadores na vinha Os dois filhos As virgens sábias e tolas Os bodes e as ovelhas Parábolas encontradas apenas em Lucas Os dois devedores 0 bom samaritano 0 amigo à meia-noite 0 rico insensato A figueira estéril 0 construtor de uma torre 0 rei que saiu à guerra A ovelha perdida A moeda perdida 0 filho pródigo 0 mordomo infiel 0 rico e Lázaro 0 servo humilde 0 juiz incompassivo 0 fariseu e o publicano Parábolas encontradas apenas em João

7.16-20 13.47 .SO 13.24-30,36-43 13.44 13.45,46 18.23-35 20.1-16 21.28-32 25J-13 25.31-46

6.47-49 11.11-13 13.23-27 13.20,21 1 5 . 1-7

^

14^15-24 12.39,40 12.42-46 19.11-27

7.41-50 10.2S-37

n.5-8

'^

Ï2.13-21 13.6;9 14.28-30 14.31-33

rs;i-7

15.8-10 15.11-32 16.1-8 16.19-31 ' 17.7-10 18.1-8 18.9-14

O bom pastor — 10.1-18 (cf. Mt 18.12-14; Lc 15. 1-7) A videira verdadeira — 15.1-8

984

'

Parabo las

O objetivo de Marcos 4.10-12 fica claro se pres­

estrutura específica, como paralelismo ou quias­

tarmos atenção ao contexto. 0 reino é o reino da

mo. Por exemplo, existem paralelos significativos

Palavra, e a questão é como o ser humano ouve e

entre o filho mais novo e o mais velho na parábola

reage à Palavra. A parábola do semeador é sobre

lucana do filho pródigo (Lc 15.11-32). Mudanças

0 ouvir. Em Marcos 4.10-12, o Evangelista mostra

significativas de fraseologia entre os vários rela­

o que normalmente acontecia no ministério de

tos precisam ser entendidas à luz dos propósitos

Jesus. (Observe-se em Mc 4.10,11 o uso dos tem­

editoriais dos Evangelistas. Não se deve presumir

pos imperfeitos no grego, o que indicava algo que

que um Evangelho em particular sempre apresen­

acontecia costumeiramente.) Jesus ensinava as

te a versão mais antiga de determinada parábola.

multidões, mas seu ensino requeria uma resposta.

Também não se deve eliminar a introdução e a

Quando alguém correspondia de forma positiva,

conclusão de nenhuma parábola.

dava-se mais um ensino. O padrão de ensino pú­

2) Na parábola, observe aspectos culturais ou

blico seguido de ensino particular a um círculo de

históricos que proporcionam compreensão mais

discípulos também aparece em outra passagem de

aprofundada. A maioria das parábolas contém

Marcos (7.17; 10.10). As fortes palavras de Isaías

esses aspectos, os quais exigem investigação. Por

6.9,10 não querem dar a ideia de que Deus não de­

exemplo, o impacto da parábola do fariseu e do

sejava perdoar ao povo. Trata-se de uma declara­

publicano (Lc 18.9-14) é acentuado quando se

ção sem rodeios que exprime o inevitável. 0 povo

tem consciência de que os dois homens prova­

ouvia, mas não entendia de verdade.

velmente foram ao templo para orar na hora do

A dureza de coração e a falta de receptividade

sacrifício expiatório da manhã ou da tarde. Na

constatadas por Isaías encontraram reflexo no mi­

prática, o publicano orou; “Que o resultado do

nistério de Jesus. A questão é se o coração da pes­

sacrifício para mim seja a misericórdia”.

soa se endurecerá ou se ela ouvirá e obedecerá.

3) Ouça as parábolas no contexto do ministé­

Receber a mensagem, ainda que com alegria, não

rio de Jesus. Os leitores de hoje mostram-se em

é suficiente (Mc 4.16). 0 que se exige é um ouvir

geral tão familiarizados com as parábolas que

que resulte em um viver frutífero. Esse é sem dú­

não se dão conta do choque que os ouvintes de

vida 0 objetivo de Marcos, pelo que se depreende

Jesus devem ter sentido. Tendemos a ter ideias

deste resumo; “E dirigia-lhes a palavra com mui­

negativas sobre os fariseus e não ficamos surpre­

tas outras parábolas como essas, conforme con­

sos em ouvir Jesus dizer que o publicano, não o

seguiam compreender” (Mc 4.33). A declaração

fariseu, é que foi declarado justo. Os ouvintes de

de Marcos 4.22 também é uma pista importante

Jesus sem dúvida pressupunham

para entender o objetivo do Evangelista: “Nada

era um homem jesto, e

o

que

o fariseu

publicano, um trapacei­

está encoberto que não seja para ser manifesto”.

ro. Não nos surpreende o fato de um samaritano

Parece ser essa a maneira de Marcos entender

ajudar uma vítima (Lc 10.30-37), mas os ouvintes

as parábolas. As parábolas ocultam para revelar.

de Jesus, como o escriba a quem ele se dirigia,

Embora alguns reagissem com dureza de coração

provavelmente jamais teriam proferido as pala­

ou negando-se a ouvir, Jesus ensinava por meio

vras “ samaritano” e “próximo” na mesma frase.

de parábolas para induzi-los a que ouvissem e

As parábolas costumam induzir os ouvintes a

prestassem obediência.

mudanças na forma de pensar.

8. Diretrizes para a interpretação

0 contexto de muitas parábolas não foi preserva­

4) Procure ajuda no contexto, mas saiba que A interpretação das parábolas não é um procedi­

do. A parábola dos agricultores maus (Mt 21.33-

mento científico, mas é possível estabelecer dire­

44 e par.) deve ser vista à luz da indagação sobre

trizes que favoreçam a compreensão e evitem o

a autoridade com que Jesus realiza suas ações

mau uso delas.

(Mt 21.23-27). Em contraste, Mateus 13 proporcio­

1)

Analise a sequência, a estrutura e a fra­ na uma coletânea temática de oito parábolas sobre

seologia da parábola, inclnindo-se os paralelos

o reino, das quais não se preservou o contexto.

presentes nos outros Evangelhos. Acompanhe o

5) Observe como a parábola e sua forma edi­

desenvolvimento da parábola e observe qualquer

torial se enquadram no plano e nos propósitos

985

P arábo las

Evangehstas. Uma maneira eficaz de descobrir a

do Evangelho em que ela aparece. Para realçar a mensagem de Jesus, os Evangelistas organi­

função de uma parábola é indagar qual pergun­

zaram tematicamente a maioria das parábolas.

ta ela procura responder. Às vezes, a pergunta é

Com essa organização, eles revelam as próprias

explícita, como na parábola do bom samaritano

tendências teológicas. Por exemplo, as parábolas

(Lc 10.25-37), que trata da pergunta “Quem é o

de Lucas aparecem basicamente em sua narrati­

meu próximo?” Em outras ocasiões, a pergunta

va de viagem (Lc 9.51— 19.48), que tem estrutura

está implícita, como nas parábolas do rei que vai

quiasmática. Lucas está interessado na oração, na

à guerra e do homem que constrói uma torre, que

riqueza e nos enjeitados. Não surpreende, pois,

tratam da pergunta “É fácil ser discípulo?”.

que tenha organizado as parábolas sobre oração

7) Apure o significado teológico da história. O

em Lucas 11.5-13 e 18.1-14, sobre a riqueza em

que a parábola ensina acerca de Deus e de seu

Lucas 12.13-21 e 1Ó.1-31, sobre convites para um

reino deve refletir em outras paries do ensino de

banquete (particularmente convites para enjeita­

Jesus. Não existe nenhuma proposta de que deva­

dos) como reflexo do reino em Lucas 14.7-24 e

mos reduzir a parábola a proposições teológicas;

sobre a alegria de recuperar algo que estava per­

no entanto, as parábolas expressam, sim, uma

dido em Lucas 15.1-32. Além das parábolas do

teologia. Mais uma vez, não se deve dar demasia­

reino de Mateus 13, em Mateus 18.10-14,21-35, o

da atenção aos detalhes das parábolas. Por exem­

Evangelista apresenta duas parábolas no contex­

plo, embora Mateus 18.34 ressalte a seriedade do

to de seu “discurso eclesiástico”. Mateus também

juízo divino, isso não quer dizer que Deus tenha

reúne, em Mateus 21.28— 22.14, três parábolas

verdugos ou atormentadores!

sobre a rejeição de Israel ao convite divino e,

8) Preste especial atenção ao final da parábo­

em Mateus 24.32— 25.46, sete outras, de cunho

la. A regra da tensão final reconhece que a par­

escatológico. Mateus e Lucas também diferem

te mais importante da parábola é a conclusão,

no posicionamento de algumas parábolas. Por

ponto em que se exige uma decisão ou em que

exemplo, Lucas apresenta a parábola da ovelha

o ouvinte é induzido a mudar sua maneira de

perdida (Lc 15.1-7) em um contexto que trata do

pensar. 0 final da parábola dos agricultores maus

arrependimento dos pecadores, enquanto Mateus

(Mt 21.33-44) é uma citação de Salmos 118.22,23.

a situa em um contexto que trata do discípulo

Por meio de um jogo de palavras, as autoridades

que erra. É certo que Jesus contou algumas das

rehgiosas são levadas a perceber que, na condição

parábolas mais de uma vez, mas essas variações

de “construtores” da nação judaica, rejeitaram o

podem ser resultado de intervenção editorial.

F il h o

6)

de

D

eus.

Independentemente do que mais

Identifique a função que tem a história possa ser verdade na parábola da ovelha perdida,

como um todo para o ensino de Jesus e para os

0 fato é que a atenção se concentra na alegria de

Evangelistas. Pode haver mais de uma verdade na

recuperar a que estava perdida.

parábola e várias correspondências com a reali­ dade que ela reflete. No entanto, isso não é uma

9. O ensino das parábolas

licença para alegorizar. Algumas parábolas che­

As parábolas concentram-se basicamente na vin­

gam a ter dois clímaces. Observe a parábola do

da do reino e no consequente discipulado que

filho pródigo (ou mais corretamente identificada

se exige. Quando Jesus proclamou o reino, quis

pelo título “a parábola do pai e dos dois filhos”),

dizer que Deus estava exercendo seu poder e do­

em Lucas 15.11-32, e a parábola do banquete de

mínio para perdoar o mal e estabelecer a justiça,

casamento, em Mateus 22.1-14, etftbora a última

cumprindo assim as promessas do

possa ser a junção de duas parábolas. Qualquer

e no ministério de Jesus, esses atos estavam sen­

at.

Na pessoa

correspondência entre a parábola e a realidade

do realizados, e o reino agora estava à disposi­

que ela reflete provavelmente estará limitada

ção do povo. 0 reino é acompanhado de graça

aos elementos principais da história. Não se de­

sem limite, mas também de exigências sem limi­

vem alegorizar os detalhes nem forçar as pará­

te — por isso, é impossível falar do reino sem

bolas além de seu propósito. 0 objetivo é ouvir

falar de discipulado. Embora algumas parábolas

a intenção de Jesus conforme transmitida pelos

antecipem aspectos do futuro reino de Deus, boa

986

Pa rá bo la s

parte da atenção se concentra no reino como algo (Mc 4.26-29), ressaltando que o reino é obra de presente e dispomvel aos ouvintes de Jesus. Ao Deus, não resultado da ação humana. mesmo tempo, o reino é presente e ainda aguar­ Outras parábolas também destacam o aspecto da consumação. Com a atenção voltada para o presente do reino. As parábolas do grande ban­ presente, vem o convite para ingressar no reino e quete (Lc 14.15-24) e das bodas (Mt 22.1-14) afir­ viver de acordo com seus padrões. A oração e o mam que tudo está pronto e que os convidados uso das riquezas são duas áreas da vida do reino já podem vjr (Lj; 14.17; Mt 22.4). Também se em­ tratadas nas parábolas. prega 0 tema db banquete para expressar outras 9.1 O reino como algo presente. Uma parábo­ ideias. Essas parábolas e muitas outras apontam la curta em Mateus 12.29 é uma das mais fortes para a recusa do povo judeu em atender à mensa­ declarações acerca da presença do reino, e essa gem de Jesus. Parábolas como a da figueira estéril parábola também tem implicações cristológicas. (Lc 13.6-9) põem o ser humano diante de uma Em resposta à acusação de que Jesus expulsava decisão crítica que deve conduzi-lo ao arrependi­ demônios pelo poder de Belzebu (Mt 12.24), ele mento. Além disso, as parábolas sobre banquetes aponta para a atividade do Espírito (v. EspÍRrro e outras, como a do filho pródigo (Lc 15.11-32), S a n t o ) em seu ministério como prova de que o proclamam, na prática, que Deus está promoven­ reino está presente (Mt 12.28). A parábola de Ma­ do uma celebração e pergunta aos ouvintes por teus 12.29 sustenta que ninguém pode entrar e que eles não estão participando. saquear a casa de um homem forte, a menos que O reino se revela como uma maravilhosa ma­ antes amarre o homem. Fica claro que para Jesus nifestação da graça de Deus. Os Evangelhos não seu ministério consiste em prender Satanás e sa­ registram que Jesus ensinou sobre a graça, mas quear sua casa. nenhuma palavra sintetiza tão bem o impacto Embora todas as parábolas sejam, em certo do reino. O convite aos enjeitados nas parábo­ sentido, parábolas do reino, as de Mateus 13 es­ las sobre banquetes sem dúvida é uma expres­ tão agrupadas com o objetivo de propiciar uma são da graça. As parábolas dos dois devedores compreensão do reino. A parábola do semeador (Lc 7.41-43), da ovelha perdida, da moeda per­ revela que o reino envolve a apresentação de uma dida e do fllho pródigo (Lc 15), do servo impie­ mensagem e a necessidade de uma resposta que doso (Mt 18.23-35) e dos trabalhadores na vinha conduz a uma vida frutífera. Nessa seção, parece (Mt 20.1-16) apontam todas elas para o desejo que várias parábolas têm o propósito de respon­ divino de favorecer o ser humano, buscando-o, der a perguntas feitas pelos ouvintes de Jesus a perdoando-lhe e aceitando-o. A parábola dos tra­ respeito de afirmações que ele fazia sobre o reino balhadores na vinha também constitui uma críti­ como realidade presente. Parece que a parábola ca contra aqueles que acham que a graça divina do joio e do trigo tem o objetivo de responder deve ser concedida com base no mérito. à pergunta “Como o reino pode ter vindo, se o 9.2 O reino como algo futuro. O ensino de mal ainda está presente?”. 0 reino está presente Jesus sobre o aspecto futuro do reino é visto mais e cresce mesmo no meio do mal, e o juízo acon­ claramente nas parábolas que falam de juízo tecerá no futuro. Por esse motivo, o reino convi­ ou do senhor que volta para fazer o acerto de da ao envolvimento e à paciência. As parábolas contas. As parábolas sobre crescimento também gêmeas da semente de mostarda e do fermento apontam para uma separação entre os que foram tratam da mesma pergunta: “Como o reino pode obedientes, fiéis, preparados ou misericordiosos estar presente, se os resultados parecem tão in­ e os que não foram. O primeiro grupo entra no significantes?”. O começo pode ser pequeno, mas reino, recebe elogios e experimenta alegria. 0 0 resultado será grande e significativo. As pará­ outro grupo sofre castigo ou destruição. Explícita bolas gêmeas do tesouro e da pérola de grande ou implicitamente, a base do juízo é saber se a valor ressaltam que o reino é de valor supremo pessoa demonstrou misericórdia. Nem todas as e deve ser escolhido acima de tudo o mais. Em parábolas de juízo dizem respeito ao futuro. Al­ sua seção sobre as parábolas do reino. Marcos in­ gumas falam de um juízo mais imediato, como clui a parábola da semente que germina e cresce a parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31) ou a 987

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parábola que expressa a crise com que se defron­ de Jesus, Lucas dedica especial atenção ao uso tava 0 povo judeu (Lc 13.6-9). Mesmo assim, o correto das riquezas. Várias parábolas exclusivas desse Evangelho analisam o tema. 0 rico insen­ juízo futuro é um tema importante nas parábolas sato (Lc 12.16-21) só pensava em usar seus bens de Jesus. As parábolas sobre o futuro não têm o propó­ para o próprio deleite. Deixou de considerar a fon­ sito de satisfazer alguma curiosidade. Seu obje­ te de suas riquezas ou o fato de que a vida consis­ tivo é mudar a vida no presente. Ao dar atenção te em muito mais que acumular bens materiais. ao juízo e ao retorno do Senhor, elas se propõem O texto de Lucas 12.20 sugere que a vida é um incentivar a fidelidade, a sabedoria e a vigilân­ empréstimo feito por Deus e que temos de pres­ cia. Esses temas são encontrados na parábola dos tar contas a ele. As parábolas e frases de Lucas dois servos (Mt 24.45-51; Lc 12.41-48), na pará­ 16 proporcionam alguns dos ensinos mais diretos bola das dez virgens (Mt 25.1-13) e na parábola acerca das riquezas. A parábola do mordomo in­ dos talentos (Mt 25.14-30 par Lc 19.11-27?). Es­ fiel é objeto de debate por não se saber com segu­ ses temas também são evidenciados em parábo­ rança qual foi 0 desconto que ele concedeu: um las sobre o presente (v. esp. Lc 16.1-13). Tanto abatimento da própria comissão, uma redução na as parábolas que se referem ao presente quanto taxa usurária ilegal que iria para seu senhor ou as que apresentam uma escatologia futura têm simplesmente o resultado de um ato impulsivo como objetivo levar o ser humano a adotar uma em que ele contava com a misericórdia de seu vida correta no presente. senhor 0 objetivo da parábola assim mesmo é 9.3 Discipulado. 0 discipulado é o principal claro. A mensagem de Jesus em Lucas 16.8,9 é propósito do ensino de Jesus; por isso, as parábo­ que neste mundo as pessoas entendem melhor a las muitas vezes se concentram nesse tema. Em sagacidade no uso dos recursos que os discípu­ muitos casos, o discipulado é o assunto pressu­ los, a economia do reino. Os discípulos de Jesus posto. Em outras passagens, o interesse no dis­ devem fazer amigos mediante o uso correto do cipulado é explícito. Nas parábolas gêmeas do “mamom injusto”, dinheiro que tende a levar à construtor de uma torre e do rei que vai à guer­ injustiça. Mediante o uso correto do dinheiro em ra (Lc 14.28-32), as pessoas são aconselhadas a atos de misericórdia, eles fazem amizades com benefícios eternos (cf. Lc 12.33). A parábola do considerar o custo, pois ser discípulo não é fácil. rico e Lázaro apresenta a mesma mensagem de A parábola do servo e seu senhor (Lc 17.7-10) apresenta a obediência como algo que se espe­ forma pungente. O propósito não é tanto ofere­ ra, algo que as pessoas devem fazer, não algo cer uma descrição de juízo quanto ressaltar as consequências eternas de negUgenciar os atos de excepcional. (Cp. com a parábola de Lc 12.37, que conta a história de um senhor que serve seus misericórdia. Ser discípulo do reino é reorganizar servos porque eles foram fiéis!) A parábola dos as prioridades com respeito às finanças. dois construtores descreve o sábio como aquele 9.3.2 Oração. Outra preocupação editorial que ouve os ensinos de Jesus e os pratica. Em que Lucas transmite por meio das parábolas é outras passagens, o sábio é aquele que entende a oração. Duas delas, a do amigo à meia-noite as realidades escatológicas e vive à altura de tais (Lc 11.5-8) e a do juiz incompassivo (Lc 18.1-8), realidades. De modo semelhante, a parábola dos são contrastes entre a resposta humana a alguns dois filhos (Mt 21.28-32) destaca a importância pedidos e a maneira de Deus responder à oração. da obediência, em contraste com o objetivo de A parábola do amigo à meia-noite não é sobre per­ fazer a vontade do Pai. Quando a^obediência é sistência. Em Lucas 11.8, a palavra anaideia, às mencionada, a atenção se concentra na neces­ vezes traduzida por “importunação” ou “persis­ tência”, significa “sem pudor” e quase certamente sidade de praticar atos de misericórdia (v. esp. Mt 18.33; 25.32-46; Lc 10.25-37). Não se pode se refere à audácia do homem que bate à porta. A experimentar a graça do reino sem que ela seja mensagem da parábola é que, se um ser humano responde a alguém que bate à porta dessa ma­ também estendida aos outros. 9.3.1 O uso correto das riquezas. Embora o uso neira, quanto mais Deus responderá às orações do dinheiro seja um assunto recorrente no ensino de seu povo (cf. Lc 11.13). De forma semelhante. 988

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o juiz incompassivo age a favor da viúva para que ela não fique a importuná-lo. Mas a parábola mostra que Deus não é como o juiz incompassivo. Pelo contrário, ele decidirá rapidamente a causa de seu povo. Lucas dá a seus leitores a confiança de que Deus ouve as orações e responde. A última parábola sobre oração, a do fariseu e do publicano, realça a humildade e o arrependimento com que devemos nos aproximar de Deus. Ver também r e i n o d e D e u s . djg :

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parên ese.

'^er E s p ír it o

Ver T i a g o ,

S a n t o i;

JoAo, E v a n g e l h o

de.

C a r ta de.

F o r m C r it ic is m ; H a r d n e s s o f H e a r t ; L i t e r a r y

C r it ic is m .

p a r u s ia .

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Ver a p o c a lip t is m o ;

e s c a to lo g ia .

B ib lio g r a f ia . B a ile y ,

Ver Ú l t i m a C e ia . PASTORES. Ver Jesus, nascimento de. PA scoa.

P a u i o c o m o m is s io n A r io .

Ver

P a u lo

em A t o s

e nas

ca rta s .

P a u l o , co n versão e c h a m a d o de Uma das narrativas mais conhecidas do n t é o episódio da conversão de Paulo e seu chamado para ser apóstolo aos gentios. Os estudiosos dis­ cordam sobre a melhor maneira de entender a experiência de Paulo: como conversão ou como chamado a uma missão como apóstolo entre os gentios. Referências à experiência de conversão/ chamado de Paulo são encontradas em Gálatas 1, Filipenses 3, Atos 9, Atos 22 e Atos 26. 1. H i s t ó r i a d a i n t e r p r e t a ç ã o d a c o n v e r s ã o / chamado de Paulo 2. Relatos da conversão/chamado de Paulo 3. Algumas questões de fundamental impor­ tância 1. História da interpretação da conversão/ chamado de Paulo

Algumas décadas atrás, muitos estudiosos da Bí­ blia teriam concordado com a afirmação de que a notável experiência de Paulo na estrada de Da­ masco foi um caso paradigmático de conversão cristã. Hoje, muitos desses estudiosos descreve­ riam a mesma experiência como um chamado fei­ to singularmente a Paulo para ser apóstolo entre os gentios. Essa mudança na maneira de entender determinou as prioridades de muitos estudos re­ centes sobre a conversão/chamado de Paulo. A visão tradicional, que entende como con­ versão a experiência que Paulo teve na estrada

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de Damasco, tem uma longa história no pensa­ mento ocidental, remontando a Agostinho e à maneira de ele entender a própria conversão. 0 estudo psicológico realizado por William James sobre a conversão foi profundamente influencia­ do por essa tradição. James define a conversão como o processo no qual, por consequência de se chegar a um controle mais firme das realidades espirituais, a pessoa que lutava com o sentimen­ to de culpa e de inferioridade se torna alguém com o sentimento e a consciência de estar certo e de ser uma pessoa completa. Com base nessa perspectiva tradicional, a experiência que Paulo teve na estrada de Damasco é vista como um exemplo excelente de conversão. Um judeu fari­ seu, consciente de sua incapacidade de cumprir a Lei, experimenta uma profunda mudança inte­ rior quando recebe a revelação de que pode ser Justificado pela fé em Jesus Cristo. 0 perseguidor judeu torna-se o convertido cristão que prega a mensagem de justificação pela fé em Jesus Cris­ to. Até bem recentemente, essa maneira de ver a conversão de Paulo dominava os estudos bíblicos (v. N o c k e S t e w a r t ) . Contudo, nas liltimas décadas, essa ideia em torno da conversão de Paulo passou a ser vis­ ta com sérias suspeitas. 0 estudioso biTjlico em grande parte responsável por questionar a ideia tradicional sobre a conversão de Paulo é K. Sten­ dahl, em seu livro Paal among Jews and Gentiles [Paulo entre judeus e gentios] [1975). Stendahl afirma que a maneira ocidental de entender Paulo se deve mais às leituras introspectivas de Agosti­ nho e de Lutero que aos registros do . A expe­ riência de Paulo na estrada de Damasco não foi a experiência íntima de conversão que a teologia ocidental pressupõe, tampouco uma conversão em que trocou as obras do judaísmo pela justiça. Na realidade, de acordo com as definições tradi­ cionais de conversão, a experiência de Paulo na estrada de Damasco não foi absolutamente uma conversão. Paulo não trocou'tie^religião, nem se sentiu afligido pela culpa ou pelo desespero. De acordo com Stendahl, é melhor entender a experiência de Paulo como um chamado para ser apóstolo entre os gentios. Por causa desse cha­ mado, ele começa a indagar sobre o que acontece com a Lei agora que o Messias (v. C r i s t o ) já veio e sobre o que a vinda do Messias significa para as n t

relações entre judeus e gentíos. É por responder a essas questões, não por se debater com o signifi­ cado da Lei para sua vida, que Paulo chega a uma nova concepção da Lei. A experiência de Paulo na estrada de Damasco faz parte de seu chamado apostólico singular, sem ter o propósito de ser um exemplo de conversão cristã. 0 fato de Stendahl compreender a experiên­ cia de Paulo na estrada de Damasco como um chamado e o questionamento que ele faz acer­ ca de maneiras tradicionais de entender essa conversão resultaram em um novo conjunto de perguntas para os que estudam a conversão/cha­ mado de Paulo: “Como definir c o n v e r s ã o e c o m o as definições modernas são aplicadas em Paulo? Paulo continuou judeu ou mudou de religião? E melhor entender sua experiência como chamado ou como conversão? A experiência de Paulo tem 0 propósito de ser um exemplo para os cristãos? Como a conversão/chamado de Paulo influenciou sua teologia?”. Mais importante ainda foi que o questionamento de Stendahl forçou os estudiosos da Bíblia a retornar aos textos do n t que tratam da conversão/chamado de Paulo para assim res­ ponderem a essas perguntas. 2. Relatos da conversão/chamado de Paulo

Relatos sobre a conversão/chamado de Paulo são encontrados em dois lugares diferentes do n t : nas cartas de Paulo e no livro de Atos. As pas­ sagens de Gálatas 1.11-17 e de Filipenses 3.3-17 são dois textos em que Paulo escreve a respeito de sua experiência de conversão/chamado. Além disso, ITimóteo 1.12-17 e Romanos 7 são às vezes considerados relatos autobiográficos dessa experiência. Atos contém três diferentes relatos da experiência de Paulo na estrada de Damasco (At 9.1-20; 22.1-21; 26.2-23). Uma das questões envolvidas no estudo da conversão/chamado de Paulo é como interpretar as informações do n t . A pesquisa histórica dá maior valor às cartas, em que o próprio Paulo conta sua experiência, em detrimento de Atos, que é uma interpretação posterior de uma perspectiva em particular. As­ sim, metodologicamente, parece melhor começar com os relatos contidos nas cartas de Paulo e só depois analisar o material de Atos. Também é im­ portante indagar como os relatos nas cartas e em Atos se relacionam uns com os outros.

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2.1 Gálatas 1.11-17. As referências autobio­ gráficas em Gálatas 1.11-17 fazem parte da defesa que Paulo apresenta de seu evangelho. Muitos estudiosos entendem que os adversários de Paulo eram judaizantes, aqueles que acreditavam que os cristãos gentios deviam guardar a Lei e ser cir­ cuncidados. Em Gálatas, Paulo discute com esses judaizantes e afirma que, em Cristo, os gentios não precisam guardar a Lei nem ser circuncida­ dos. Paulo apresenta sua experiência como parte de seu argumento para com isso destacar a natu­ reza reveladora do evangelho sem a Lei que ele prega entre os gentios. A origem divina do evangelho que Paulo pre­ ga (G1 1.11,12] também se vê na fonte do cha­ mado de Paulo [G11.15-17). A análise que Paulo faz da revelação que recebeu (G11.15) é expressa na linguagem dos chamados proféticos do a t (cf. Jr 1.5). Essa linguagem destaca o papel de Paulo como alguém chamado a proclamar a palavra de Deus e aponta para a origem divina da mensagem proclamada. 0 objeto dessa revelação é Jesus Cristo: essa é a mensagem de Deus que Paulo é chamado a proclamar entre os gentios (G1 1.16). Embora Paulo não relate praticamente nada dos acontecimentos que cercaram essa revelação, ele conta, s i m , que depois dessa experiência ele não r e c e b e u i n f l u ê n c i a d e n e n h u m m e i o h u m a n o (Gi 1.16,17). Paulo utiliza a experiência de s u a c o n v e r s ã o / c h a m a d o para mostrar que seu e v a n ­ gelho a o s gentios tem raízes na revelação e no chamado divinos. É nesse contexto que é preciso entender a menção paulina à sua convivência anterior com o JUDAÍSMO (GI 1.14,15). Não existe explicação hu­ mana para sua experiência, e nada o preparou para a revelação que recebeu. O judeu que era tão zeloso das tradições de seus ancestrais e que perseguia os que acreditavam em Cristo agora de­ fendia um evangelho sem a Lei. proclamando-o entre os gentios. O contraste entre a vida anterior de Paulo como judeu e sua nova vida como após­ tolo aos gentios é visto como prova da origem divina do evangelho que ele pregava na condição de apóstolo aos gentios. 2.2 Filipenses 3.3-17. A razão de Paulo ter feito declarações autobiográficas em Filipenses 3.3-17 não é tão clara quanto a de Gálatas 1.1-17. Mas é provável que ele esteja outra vez apresentando

argumentos contra as tendências judaizantes da igreja. É o que se deduz pela referência aos que mutilam a carne (Fp 3.2) e pelo fato de Paulo afir­ mar que somos a verdadeira circuncisão (Fp 3.3). Embora as tendências judaizantes não pareçam ser um problema de maior importância em Filipos, Paulo apresenta sua vida como exemplo do que vem a ser a verdadeira circuncisão. Paulo entende que sua experiência é uma expressão paradigmá­ tica do grande contraste entre a vida sob a Lei e a graça transformadora da nova vida em Cristo. Paulo está desejoso de se comparar aos que acreditam ter motivo para confiar na carne, pois ele tem motivos ainda melhores para tal confian­ ça (Fp 3.4-6). Três dos motivos para Paulo ter confiança na carne baseiam-se em fatores heredi­ tários: nasceu judeu; foi circuncidado de acordo com a Lei; foi criado como um judeu que falava hebraico e era culturalmente puro (v. P a u l o , o J u d e u ). As convicções pessoais de Paulo na con­ dição de judeu também lhe dão motivo para se vangloriar: sua atitude em relação à Lei foi a da rigorosa seita dos fariseus, ele foi um perseguidor zeloso da igreja e foi inculpável na observância da Lei. Os antecedentes de Paulo situam-no na posição de alguém que tem total competência para julgar qualquer questão que envolva a Lei. Entretanto, o fato de ele ter conhecido a Cristo Jesus provocou uma reviravolta em sua vida. 0 juízo que ele fazia de todas aquelas vantagens, tudo que ele considerava lucro, é agora tido como perda (Fp 3.7,8). 0 resultado da experiência de conversão/chamado, ocasião em que Paulo veio a conhecer a Cristo, é uma completa transforma­ ção. Ser achado em Cristo significa que Paulo não é mais encontrado na Lei (Fp 3.9). Agora toda a vida de Paulo é moldada pelo partilhar da morte e ressurreição de Cristo (Fp 3.10,11), e o proces­ so de ser transformado em Cristo é contínuo na vida de Paulo, enquanto ele se mantém fiel ao chamado de Deus em Cristo Jesus (Fp 3.12-14). Pelo fato de a experiência paulina de conver­ são/chamado ter resultado na transformação to­ tal de sua vida, Paulo entende que a relação com seus leitores é de um tipo que deve ser imitado (Fp 3.15-17). A ideia de si mesmo como exemplo da vida em Cristo é o propósito escondido no re­ lato que Paulo apresenta de sua experiência em Filipenses 3.3-17.

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2.3 Outros relatos paulinos? Existem ainda a maioria dos estudiosos da história agora rejeita duas outras passagens nas cartas paulinas que são essa possibilidade. Em vez disso, entendem que consideradas relatos autobiográficos da conversão nessa passagem Paulo examina a Lei em sentido geral, mas de uma perspectiva cristã. 0 empre­ de Paulo: ITimóteo 1.12-16 e Romanos 7.7-25. A passagem de ITimóteo 1.12-16 é sem dú­ go da primeira pessoa do singular representa seu vida um relato da conversão de Paulo, porém profundo envolvimento pessoal na questão da muitos estudiosos não acreditam que Paulo tenha Lei. A. F. Segai tem uma interpretação diferente e escrito ITimóteo e, desse modo, questionam seu convincente de Romanos 7.7-25: Paulo está des­ crevendo a experiência judaico-cristã após a con­ valor como declaração autobiográfica (v. C a r t a s versão e emprega a primeira pessoa do singular P a s t o r a i s ) . Nessa passagem, o contraste entre a porque fala como cristão judeu a cristãos judeus. vida anterior de Paulo e sua vida em Cristo (v. Nenhum cristão sairá vitorioso na luta contra a “ em C r i s t o ” ) recebe mais uma vez grande desta­ que. No entanto, dois aspectos desse contraste Lei enquanto sua observância for uma opção le­ diferem do que lemos em Filipenses 3 e em Gála­ vada a sério na comunidade cristã. Um evange­ tas 1. 0 primeiro é que não há menção ao judaís­ lho sem a Lei é a única solução. Dessa maneira. mo. 0 segundo é que Paulo se identifica como o Romanos 7.7-25 descreve a luta pessoal experi­ maior dos pecadores, juízo que não apresenta em mentada por qualquer judeu cristão que procura nenhuma das duas outras passagens. Entretanto, também guardar a Lei. Por causa da multiplicidade de interpretações como ocorre em Filipenses 3, a transformação na vida de Paulo é apresentada como exemplo para de Romanos 7.7-25 e da falta de informação bio­ os crentes. Seja ou não paulino, esse texto repre­ gráfica direta no texto, parece melhor não con­ senta essa tradição e é válido como informação siderar essa passagem um relato da conversão/ sobre a maneira em que a experiência de conver­ chamado de Paulo. 2.4 Em Atos. Não há nas cartas de Paulo pra­ são/chamado de Paulo era entendida nas igrejas ticamente nenhuma informação sobre o aconte­ gentílicas que ele fundou. cimento em si da conversão/chamado. Em vez A natureza autobiográfica de Romanos 7.7-25 não é apenas questionada: é o centro de uma disso, refletem a mudança radical de Paulo em relação a seus valores e compromissos. Essa mu­ importante controvérsia nos estudos paulinos. A questão principal é como entender o emprego dança ocorreu depois que ele recebeu uma reve­ lação de Cristo. Mas as três referências em Atos da primeira pessoa do singular nessa passagem. concentram-se nos acontecimentos que cercam a (Para um resumo histórico das várias maneiras conversão/chamado. 0 fato de o relato da con­ em que o uso do “eu” tem sido interpretado, v. versão/chamado ser repetido três vezes sugere C , p. 342-7.) Será que Paulo está falando de sua experiência pessoal, seja como judeu, seja que esse acontecimento é de g r a n d e importân­ como cristão? Ou estaria falando de forma genéri­ cia na narrativa de Lucas. 0 primeiro relato, em ca sobre a experiência judaica, cristã ou humana Atos 9.1-20, faz parte da narrativa histórica. Os em geral? Ou ainda estaria empregando a primei­ outros relatos (At 22.1-21; 26.2-23) integram os ra pessoa do singular apenas para falar da Lei em discursos de Paulo perante os judeus e o rei Agri­ pa, respectivamente. Em relação a essas narrati­ sentido mais geral? A ideia tradicional sobre a conversão/chama­ vas, existe agora nos estudos do n t a tendência de do de Paulo é que essa passagem constitui um isolá-las do restante de Atos e então compará-las relato autobiográfico sobre sua e£periência pré- com os relatos de Paulo. Entretanto, é aconselhá­ vel anahsar as passagens de Atos em seu con­ cristã como judeu. Entende-se Romanos 7.7-25 como um indicativo dos sentimentos de culpa e texto. Lucas as utiliza para mostrar o progresso inferioridade que Paulo nutria como judeu por da igreja depois que esta deixou de ser uma co­ munidade judaica e se tornou uma comunidade ser incapaz de guardar perfeitamente a Lei. Mas essa leitura de Romanos 7.7-25 contradiz as de­ gentílica, e para justificar a missão de Paulo entre clarações de Paulo em Gálatas 1 e em Filipenses 3 os gentíos. Em razão da clara intenção apologé­ a respeito de sua vida como judeu, de modo que tica de Lucas, alguns estudiosos questionam a r a n f ie l d

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confiabilidade histórica das narrativas de Atos. É certo que Lucas detém conhecimento de primeira mão acerca do episódio da conversão/chamado de Paulo, mas tem a vantagem da perspectiva his­ tórica e consegue enxergar a importância desse fato como nem Paulo podia enxergá-lo. Os acontecimentos de Atos 9.1-19 assinalam uma virada importante na narrativa de Atos. Aqui o registro é de natureza histórica e descreve um acontecimento que Lucas considera de impor­ tância crucial para a missão cristã. 0 relato da eletrizante conversão/chamado é inserido logo antes da história de Cornélio e denota o inicio da missão aos gentios. Na introdução de Atos 9, Paulo é apresentado como perseguidor da igreja, um inimigo dos discípulos do Senhor. Todavia, enquanto se dirige a Damasco, em perseguição dos discípulos, a viagem é interrompida; Jesus aparece a ele em uma visão. A luz cegante, o du­ plo vocativo (“Saulo, Saulo”), a queda de Paulo ao chão e as perguntas que ele faz a Jesus sem dúvida caracterizam esse acontecimento como uma teofania, semelhante às que ocorriam nos chamados proféticos. Paulo sai dessa experiência uma pessoa diferente, mas ainda sem ter rece­ bido seu chamado, que se concretiza por meio de um discípulo de Damasco, uma das pessoas que Paulo antes perseguira. 0 fato de o chamado acontecer em uma visão à parte dá maior desta­ que ao tema, embora ainda faça parte do mesmo acontecimento. A nova definição de Saulo, feita por Ananias, diz que Paulo é um “instrumento escolhido”, designado para uma importantíssima missão. O nome que ele perseguiu será o mes­ mo que ele apresentará aos gentios, aos reis e ao povo de Israel, e sofrerá por causa desse mesmo nome. Seu chamado está além do chamado que diga respeito a qualquer cronte, pois é nada me­ nos que um comissionamento apostólico. Embo­ ra Atos 9.1-19 apresente Paulo como alguém que Gxperim entou uma reviravolta im pressionante na própria vida, a passagem destaca mais seu cha­ mado para ser apóstolo entre os gentios que a mudança em sua vida. Os textos de Atos 22.1-21 e 26.2-23 contam a mesma história, porém com outra ênfase, e pare­ cem servir a um propósito diferente na narrativa. Os dois discursos chamam a atenção para a re­ lação de Paulo com o judaísmo e talvez reflitam

uma controvérsia entre judeus e cristãos a res­ peito da autenticidade da missão gentílica. Esse destaque ao relacionamento de Paulo com o juda­ ísmo é ressaltado especialmente em Atos 22.1-21, quando Paulo é apresentado como judeu piedo­ so e leal. Por sinal, o destaque que Paulo recebe como judei^piedoso pode explicar a maioria das diferenças entre'Atos 9 e Atos 22. Isso fica parti­ cularmente claro no relato que Paulo apresenta de seu comissionamento. Aqui Ananias também é apresentado como judeu devoto, e o chamado é expresso de uma forma aceitável às susceptibihdades judaicas. 0 chamado para a missão aos gentios nâo é comunicado por Ananias, mas por Jesus. Isso ocorre em outra visão, numa hora em que Paulo está orando no templo. Esse texto não deixa dúvidas de que a missão aos gentios é que é 0 problema na relação entre judeus e cristãos. Quando Paulo declara que o chamado para pregar aos genüos aconteceu no templo, os judeus que o ouvem começam a gritar, enfurecidos. A ênfase em Atos 26.2-23 difere apenas ligei­ ramente. Aqui Paulo destaca sua obediência ao chamado. É nessa passagem que aparece a frase “É inútil resistires ao aguilhão”. Embora muitos intérpretes entendam essa expressão como refe­ rência à luta interior de Paulo antes da conversão, 0 mais provável é que diga respeito à sua futura tarefa e ao custo de obedecer ao chamado que está prestes a receber. A expressão mostra que esse chamado restringirá a vida de Paulo e a con­ formará totalmente ao propósito de tornar Cristo conhecido entre os gentios. Lucas conta com uma única tradição acerca da conversão/chamado de Paulo, a qual ele em­ prega de diferentes maneiras para alcançar seus propósitos em Atos. Paulo é a força motriz por trás da missão gentílica do cristianismo, e Lucas utiliza a experiência de conversão/chamado de Paulo para justificar essa missão e o cristianismo gentílico que ela gerou.

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2.5

A œnversâo/chamado de Paulo no n t .

contrário do que possa parecer, comparar o relato de Atos acerca da conversão/chamado de Paulo com os relatos do próprio Paulo não é tarefa tão simples. Ao escrever a várias igrejas, Paulo faz diversos comentários sobre sua vida, enquanto Lucas conta uma história impulsionado por um propósito narrativo bem abrangente. Embora a

Ao

P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o de

pesquisa iiistórica dispense maior valor às cartas, 0 material do livro de Atos é essencial para enten­

der os acontecimentos que cercam a experiência de conversão/chamado de Paulo. Quais as seme­ lhanças e diferenças mais importantes entre o material de Atos e os relatos de Paulo? Deve se ressaltar que todos os cinco relatos da conversão/chamado de Paulo ocorrem em con­ textos em que o relacionamento entre judaísmo e cristianismo é questão de controvérsia. Em Atos, está em jogo a autenticidade da missão aos gen­ tios; em Gálatas 1 e provavelmente também em Filipenses 3, o pomo da discórdia é a validade do evangelho sem a Lei pregado por Paulo. Nesses contexto8, destaca-se a natureza reveladora da conversão/chamado de Paulo. A vida anterior de Paulo como judeu zeloso e perseguidor da igreja e sua transformação em se­ guidor de Cristo fazem parte importante de todas as cinco passagens. O tema do contraste entre a vida anterior e a vida atual de Paulo é de especial proeminência nas passagens autobiográficas de Gálatas 1 e de Filipenses 3. A forte sensação de contraste é um dos argumentos a favor da ideia de que ITimóteo 1 e Romanos 7 também são autobiográficos. As três passagens de Atos e a de Gálatas 1 mencionam um chamado para proclamar Cristo aos gentios como parte da experiência de revela­ ção. IVlas é notável que Fihpenses 3 nem mesmo insinue um chamado apostólico especial. Em vez disso, Paulo fala de uma “soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” ( ) de contornos gené­ ricos. Por que uma perspectiva tão proeminente nos outros relatos está ausente em Fihpenses 3? Pelo fato de a missão gentíhca de Paulo e seu evangelho aos gentios não estarem sob ameaça no momento, talvez ele não precise destacar a origem divina de seu evangelho. Outra exphca­ ção possível é que, se Paulo está conferindo des­ taque a seu papel como exemplo a ser imitado, ele não precisa mencionar aqãèla^jarte de sua experiência que lhe é tão peduhar. Caso o texto de ITimóteo seja genuinamente paulino, surge outra possibilidade. Como a missão aos gentios já se havia consohdado e Paulo agora precisava justificar cada vez menos o seu evangelho, ele via a transformação de sua vida como a parte mais importante de sua experiência e entendia que ser a r a

um exemplo da graça transformadora de Cristo era parte de seu papel apostólico. As diferenças entre os relatos de Lucas e de Paulo acerca da conversão/chamado têm origem nos propósitos de cada um deles, que são diferen­ tes. Lucas deseja mostrar o progresso da igreja, que deixou de ser uma comunidade judaica para ser uma comunidade gentílica. Paulo está inte­ ressado no relacionamento que. na condição de apóstolo, ele tem com as comunidades gentíhcas que fundou. Em última instância, porém, Paulo e Lucas entendem a conversão/chamado de Paulo de maneira semelhante. Ambos estão interessa­ dos no relacionamento entre judeus e gentios e veem o chamado de Paulo para ser apóstolo entre os gentios como fator imporiante nesse relacio­ namento. Ambos consideram essa conversão/ chamado um acontecimento revelador e transfor­ mador na vida de Paulo e na vida da igreja, e tan­ to Paulo quanto Lucas estão convencidos de que, para a igreja, a experiência de Paulo é modelo da graça transformadora de Deus. Essas semelhan­ ças tornam possível a busca do entendimento do NT acerca da experiência de conversão/chamado de Paulo. 3. Algumas questões de fundamental importância

As questões que os estudiosos da Bíblia dirigem ao N T quase sempre desafiam p r e s s u p o s i ç õ e s tradicionais acerca do texto, principalmente no que tange à s perguntas que os estudiosos fazem sobre a experiência de conversão/chamado de Paulo. Não apenas Stendahl questiona as formas ocidentais e tradicionais de entender a experiên­ cia de Paulo, mas outros estudiosos também têm questionado a interpretação de Stendahl. Esses questionamentos resultam em várias questões fundamentais que precisam ser tratadas em qual­ quer estudo sobre a experiência de conversão/ chamado de Paulo. As respostas a essas várias questões estão todas relacionadas à questão prin­ cipal: é melhor entender a experiência de Paulo como conversão ou como chamado? 3.1 Definição de “conversão”. Para que o termo “conversão” nos ajude a entender Paulo, será preciso defini-lo. Conforme assinalado por Stendahl, as definições ocidentais de conversão têm sido fortemente influenciadas pelas ideias

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de Agostinho e de Lutero sobre a conversão de sociológica de conversão, isso seria possível e Paulo. Esses conceitos dominaram o início das responderia a uma das objeções levantadas por pesquisas na área da psicologia, as quais tendiam Stendahl ao fato de se chamar a experiência de a se concentrar em conversões de impacto e en­ Paulo de “conversão”. Stendahl afirma que Pau­ tendiam que a conversão era uma solução para lo, na realidade, nâo trocou de rehgião. Ele tinha o pecado e a culpa insuportáveis. Contudo, cien­ um novo chamado, mas ainda servia ao mesmo tistas sociais e também estudiosos da Bíblia têm Deus. Comojudeu, tinha a incumbência de levar questionado essa definição e procurado oferecer a mensagem dé"Í)eus aos gentíos. Sua experiên­ modelos mais úteis para quem procura entender cia não conduziu a uma nova religião, mas a uma a conversão tanto da perspectiva teológica quan­ nova compreensão da Lei em sua relação com os to do ponto de vista sociocientífico. gentios. Depois que Paulo foi transformado por Estudos mais recentes sobre a conversão têm meio daquela experiência, o cristianismo ainda adotado, em sua maioria, uma abordagem so­ não estava definido como religião diferente do ciológica. Assim, eles têm definido a conversão judaísmo, de modo que talvez seja melhor di­ como o ato em que uma pessoa se transfere de zer que Paulo trocou de comunidade dentro do uma comunidade para outra. Esses estudos tam­ judaísmo. bém ressaltam que a principal característica do Essa leitura de Paulo, contudo, não leva em convertido é a predisposição para reinterpretar conta a natureza radical da reinterpretação que seu passado pela perspectiva de sua nova comu­ ele faz do judaísmo. Sua afirmação de que os nidade. A conversão representa a escolha cons­ gentios nio precisam ser circuncidados para ciente de socializar com um novo grupo e aceitar entrar na comunidade cristã era mais que uma a estrutura da realidade desse grupo (v. B erger & reinterpretação casual da Lei. Além disso, ele L u c k m a n n , p. 144-50). São notáveis as analogias afirmava ter recebido essa nova compreensão da entre essa definição sociológica de conversão e a Lei em um acontecimento revelador que mudara experiência de Paulo. Paulo deixou uma comuni­ sua vida. Essas afirmações lhe causaram proble­ dade farisaica e ingressou em uma comunidade mas até dentro da comunidade cristã. Comparar que acolhia os gentios. Essa nova comunidade o Paulo com os cristãos fariseus de Atos 15 e de ajudou a entender sua experiência com a revela­ Gálatas 2, os quais queriam obrigar os cristãos gentios a se circuncidar, mostra quão radical foi ção e a reinterpretar seu passado. A reinterpreta sua reinterpretação do judaísmo. Paulo deixou a ção de seu passado como fariseu é evidente nos comunidade farisaica, e foi por ela rejeitado. Em relatos autobiográficos de Gálatas 1 e de Filipen ses 3, e as afirmações de Paulo acerca de seu pas­ Filipenses 3.7,8 Paulo afirma que considera “es­ sado são grandemente influenciadas pelos seus terco” ( a b c ) o s motivos que, como judeu, tinha compromissos no presente. para estar confiante. E essa sua afirmação revela Por mais úteis que sejam essas modernas de­ uma ruptura total com seu passado judaico. Em­ finições sociológicas, precisamos ter cuidado ao bora as passagens de Atos acerca da experiência aplicá-las à experiência de Paulo. A respeito de de Paulo o apresentem como judeu devoto, elas Paulo, não possuímos evidências históricas su­ também mostram que a vida e os valores de Pau­ ficientes para uma adequada análise psicológica lo foram radicalmente alterados por sua experiên­ ou sociológica. Precisamos ter o cuidado de não cia na estrada de Damasco e que ele não fazia reduzir a experiência singular de Paulo a uma concessões em sua convicção de que os gentíos fórmula, e também não podemos permitir que não precisavam ser circuncidados. Se o ingres­ os estudos modernos definam a experiência do so de Paulo na comunidade cristã envolveu um apóstolo. No entanto, podemos empregar catego­ redirecionamento assim tão radical em sua vida rias modernas para obter esclarecimentos sobre e em seus valores religiosos, afirmar que Paulo continuou sendo judeu depois do chamado é algo determinados aspectos de sua experiência. 3.2 Teria Paulo trocado de religião? Será que que parece induzir a erro. É possível que Paulo Paulo continuou judeu mesmo depois de ter mu­ de fato se visse como judeu ao longo de toda a dado de comunidade? De acordo com a definição sua vida. Contudo, ele também insistiu em uma 995

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a uma compreensão distorcida da experiência reinterpretação tão radical da Torá que, por fim, de Paulo. De acordo com essa ideia de conver­ criou um novo padrão religioso. 3.3 Conversão ou chamado? Sob muitos as­ são, Paulo era um judeu que se debatia com a pectos, definir a experiência de Paulo na estrada culpa por nâo conseguir guardar a Lei. Paulo de Damasco como chamado ou como conversão declara: “Quanto à justiça que há na lei, eu era é uma questão artificial. Parece que a pergun­ irrepreensível” (Fp 3.6). Tal entendimento tam­ ta impõe categorias modernas a um aconteci­ bém vê a conversão de Paulo como a experiência mento religioso antigo e complexo. Mas fazer a de ser justificado pela fé, nâo de conhecer a Cris­ pergunta também nos permite perceber que a to e ser chamado a proclamá-lo entre os gentios. experiência de Paulo é demasiadamente rica para Embora não seja uma distorção séria dos textos estar enquadrada em quaisquer de nossas cate­ do NT, ainda é uma tentativa de enquadrar Paulo gorias. Ela é ao mesmo tempo chamado e con­ nas categorias protestantes tradicionais, em vez versão, de modo que, quando indagamos o que de procurar entender as complexidades da expe­ vem a ser a experiência de Paulo, não estamos riência de Paulo. As definições sociológicas de apenas perguntando qual seria o melhor termo conversão parecem mais condizentes com o que para defini-la; também queremos saber se algum lemos no n t a respeito da experiência de Paulo. termo isolado pode explicar com precisão esse 5e 0 resultado da conversão é a mudança de uma comunidade para outra e uma reinterpretação da acontecimerno. 0 chamado de Paulo para ser apóstolo entre vida anterior, sem dúvida a experiência de Paulo foi uma conversão. Embora as definições socio­ os gentios é fundamental em Atos e em Gálatas 1. Contudo, ele parece muito mais importante no li­ lógicas de conversão não distorçam a experiên­ vro de Atos, uma vez que procura justificar a mis­ cia de Paulo, elas também nâo a definem com são de Paulo entre os gentios. Em Gálatas 1, Paulo precisão. A experiência de Paulo contém uma o menciona na defesa de seu evangelho, mas não poderosa dimensão de revelação, e Paulo afirma há menção a um chamado apostólico em Filipen­ que sua experiência e o evangelho que recebeu ses 3. Com isso vemos que Paulo parecia enten­ são de origem divina. O acontecimento que o le­ der sua experiência com a revelação basicamente vou a mudar de comunidade foi um chamado como um chamado, embora seu chamado para para ser apóstolo entre os gentios, e o fato que ser apóstolo entre os gentios fosse parte daquela o levou a reavaliar sua vida foi uma revelação experiência. Os que entendem a experiência de direta de Cristo. As definições sociocientíficas de Paulo como chamado provavelmente estão sendo conversão são insuficientes para explicar esses mais influenciados por Lucas e pelos propósitos elementos de revelação na experiência de con­ do autor de Atos do que pela interpretação que versão de Paulo. Paulo dá a sua experiência. Parece que não há nenhum termo isolado que 0 tema central das passagens autobiográficas consiga desvendar a complexidade da experiên­ de Gálatas 1 e Filipenses 3 é o contraste entre a cia de Paulo na estrada de Damasco. Dada a vida anterior de Paulo no judaísmo e sua vida existência de fortes contrastes em cada relato da atual em Cristo. Em Filipenses 3, Paulo afirma experiência de Paulo, ela certamente se classifica que esse contraste se deve à natureza transfor­ como um tipo de experiência de conversão, mas madora da experiência de conhecer a Cristo. Esse também é importante incluir o aspecto da revela­ mesmo contraste também se encontra nas três ção e reconhecê-la como experiência de chama­ passagens de Atos. Essa evidêfitíaíde ter havido do. Em outras palavras, o chamado de Paulo para uma mudança profunda na vida de Paulo signi­ ser apóstolo entre os gentios faz parte de uma ficaria então que a melhor maneira de encarar a experiência de conversão profunda e transforma­ experiência na estrada de Damasco seria enten­ dora. Tanto a conversão quanto o chamado são dê-la como uma conversão? A resposta a essa aspectos de uma revelação divina acerca de Cris­ pergunta depende de como se define “conversão”. to recebida por Paulo. As mudanças na vida de O entendimento ocidental tradicional de con­ Paulo e sua missão aos gentios são o resultado da versão, quando imposto aos textos do n t , conduz profunda experiência de conhecer a Cristo. 996

P a u l o , c o n v e r s ã o e c h ã m a d o de

3.4

A experiência de Paulo como exemplo repensa

Até que ponto a experiência de Paulo na estrada de Damasco teve o objetivo de ser um modelo para os cristãos? Em Filipen­ ses 3.17, Paulo insiste com seus leitores: “Sede meus imitadores e prestai atenção nos que an­ dam conforme o exemplo que tendes em nós”. Que aspectos da experiência de Paulo ele deseja que seus leitores imitem? Ao responder a essa pergunta, é importante manter distinção entre os aspectos do chamado e da conversão de Paulo. É interessante que, entre as passagens que tratam da experiência de Paulo na estrada de Da­ masco, a única em que ele convida os leitores a seguir seu exemplo é aquela em que ele não faz menção de seu chamado apostólico. Não há nenhum indício de que Paulo tenha alguma vez insinuado que alguém deveria imltá-lo em re­ lação a seu papel de apóstolo entre os gentios. AUás, Gálatas 1—2 parece indicar de forma bem incisiva que Paulo entendia que seu chamado era especial e que ele defendia com muito zelo sua missão e sua perspectiva pecuUares. As passa­ gens de Atos também o apresentam como o após­ tolo aos gentios e lhe dão o crédito de ter sido o responsável pela missão gQntflica da igreja primi­ tiva. É por isso que estudiosos como Stendahl, que entendem a experiência de Paulo como cha­ mado, são céticos quanto às tentatívas de tornar a experiência de Paulo normativa para a igreja. Então, 0 que Paulo quer dizer quando Insiste “Sede meus imitadores”? Em Filipenses 3, Paulo está refletindo sobre sua experiência com Cristo. Paulo trata da questão de conhecer a Cristo de tal maneira que essa experiência só pode ser algo obtido no processo de transformação. Todos os cristãos devem fazer parte da comunidade dosque estão sendo transformados por Cristo pa­ ra que verdadeiramente conheçam a Cristo. Em Filipenses 3.14, Paulo diz que essa transformação continua ocorrendo à medida que ele persegue 0 “chamado celestial de Deus em Cristo Jesus”. Aqui Paulo não está falando de seu chamado apostólico, e sim de seu chamado para a transfor­ mação, 0 qual é dirigido a todos os crentes. Ser transformado envolve esquecer o que ficou para trás e se esforçar para seguir adiante (Fp 3.13). Desse modo, a dinâmica dessa transformação é bem parecida com a da conversão, em que alguém

para os cristãos.

totalmente o passado à luz dos compro­ missos presentes. Com a comunidade filipense, Paulo partilha o "chamado celestial de Deus em Cristo Jesus” e a experiência de ser transformado por essa vocação. Todos os cristãos devem fazer parte da comunidade dos que estão sendo trans­ formados por.Cristo para que verdadeiramente •17 conheçam a Cristí). Ao convidar os fihpenses a imitá-lo, Paulo está querendo que todos se unam a ele, respondendo positivamente àquele chama­ do, e assim permitam que Cristo lhes transforme a vida. Conhecer a Cristo resultou em transfor­ mação total da vida e dos valores de Paulo, e é a experiência de ser transformado por Cristo que Paulo deseja que seus leitores imitem. 3.5 Â experiência de Paulo e sua teologia. A maioria dos estudiosos ou desconsidera a questão da experiência de Paulo por a acharem inaplicá­ vel, ou entendem que ela é a chave para entender a teologia de Paulo. Mas os que acreditam que a conversão/chamado de Paulo afetou sua teolo­ gia não estão de acordo sobre como exatamente se deu essa influência. Boa parte dessa falta de concordância entre os estudiosos deve-se às dife­ rentes maneiras de entenderem a experiência de Paulo. Os que a consideram um chamado enten­ dem que ela exerceu na teologia de Paulo uma influência bem diferente do que imaginam os que a veem como conversão. A ideia tradicional sobre a conversão de Pau­ lo, segundo a qual ele teve a experiência de ser justificado pela fé, também entende que o centro de sua teologia é a doutrina da jusTincAÇAo pela fé. Paulo chegou a sua concepção da Lei em razão da luta que, como judeu, ele travava com a Lei e da posterior experiência de ter sido liberto por Cristo dessa luta. Ele rejeita as obras de justiça do judaísmo a favor do caminho cristão da justi­ ficação pela fé. Embora a maioria dos estudiosos da Bíblia não mais defina de maneira tradicional a conversão de Paulo, a ideia do relacionamento entre a experiência de Paulo e sua teologia ainda é apresentada em variantes atenuadas (v. T h e is s e n , p. 177-265). Os que veem a experiência de Paulo como chamado têm uma ideia bem diferente do rela­ cionamento dessa experiência com a teologia paulina. Para esses estudiosos, o centro da teo­ logia de Paulo repousa em seu chamado como

997

Pa u lo , co nversão

e c h a m a d o

de

apóstolo entre os gentios (essa é, em parte, a experiência de conversão, e toda a sua teologia é ideia de S a n d e r s ) . Para Paulo, esse chamado sus­ diretamente oriunda dessa experiência. citou indagações a respeito da Lei: se agora os Segai apresenta um forte argumento a favor gentios estão incluídos no povo de Deus, será que da íntima hgação entre a experiência paulina de têm de guardar a Lei? 0 que acontece com a Lei, conversão — entendida, com base em perspecti­ agora que o Messias já veio? 0 que isso significa vas sociológicas, como mudança de comunidades para as relações entre judeus e gentios e para o — e sua teologia. 0 entendimento que Paulo tem lugar dos gentios na igreja? Paulo chegou a seu da Lei resulta de sua experiência de conversão entendimento da Lei ao responder a essas per­ e de sua experiência posterior na igreja gentíli­ guntas, não como resultado da experiência que, ca. O princípio legal de Paulo em Romanos 7.4 antes ou depois de seu chamado, teve com a Lei (segundo o qual os que morreram com Cristo es­ (v. S t e n d a h l ; M u n c k ; D u n n ) . tão morios para a Lei) é uma metáfora de sua Em anos recentea, os estudi030s que enten­ conversão. Sua experiência de mudança radical dem a experiência de Paulo como uma conversão conduziu a uma avaliação nova e radical da Lei. aasociam sua conversão e sua teologia de ma­ Boa parte de sua teologia do evangelho sem a neiras bem diferentes do modelo tradicional da Lei formou-se nos embates com cristãos judeus justificação pela fé. Para eles. toda a teologia de acerca do papel da Lei nas comunidades cristãs Paulo, não apenas sua doutrina da justíficação gentíhcas. 0 entendimento paulino da transfor­ pela fé. tem origem em sua experiência na estra­ mação, que é o resultado de sua experiência de da de Damasco. c o n v e r s ã o , d e s e m p e n h a um papel v i t a l na m a n e i ­ S. Kim concorda com a afirmação de Paulo r a e m q u e e l e e n t e n d e a c o m u n i d a d e cristã. Todos segundo a qual ele recebeu seu evangelho “por os cristãos devem fazer parte de uma comunidade uma revelação de Jesus Cristo” (01 1.12) e en­ redimida, transformada e em desenvolvimento, e tende que a experiência de conversão de Paulo todos os membros dessa comunidade são igual­ na estrada de Damasco foi a fonte de seu chama­ mente membros de Cristo. Em líltíma instância, do apostólico e de sua compreensão teológica do é possível identificar na experiência de conversão evangelho. A cristologia de Paulo é resultado de Paulo a origem de toda a sua teologia: “Tendo do reconhecimento de que a glória de Deus se principiado com a própria experiência, Paulo de­ revela na face de Cristo (2Co 4.6). Essa revelação senvolve sua teoria não apenas para incluir sua conduz à proclamação paulina da salvação como salvação e a salvação dos genüos, mas também realidade presente que se consumará no flm (v. toda a história da humanidade, desde Adão até a e s c a t o l o g ia ) , quando a glória de Cristo se tornar consumação” (S e g a l . p. 183). Uma vez que a vida visível (v. N e w m a n ) . Esse Cristo é a personifica­ de Paulo e também boa parte de seus escritos per­ ção do plano divino de salvação que inclui judeus sonificaram a solução para as questões com que e gentíos. Cristo é o fim da Lei. É por isso que a igreja se defrontou em seu início, o cristianismo Paulo abriu mão de sua justiça baseada na Lei recebeu a influência da personalidade de Paulo para receber a justiça de Deus, que se baseia na fé e passou a ser visto como comunidade de con­ em Cristo. A experiência da graça reconciliadora vertidos. A conversão de Paulo influenciou não de Deus permitiu que Paulo desenvolvesse uma apenas sua teologia: ela definiu o cristianismo. doutrina partícular da morte adunatória de Cristo Ver também P a u l o , o J u d e u ; L e i ; P a u l o e m A t o s como o ato em que Deus reconcilia o mundo con­ E NAS c a r t a s . sigo mesmo por meio de Crisfo. Vfer esse Cristo D PC : CHAMAR, CHAMAMENTO; MISTICISMO; PROFETA, glorificado como imagem de Deus, que restaurou P a u l o c o m o ; v is õ e s , e x p e r iê n c ia e x t á t ic a . a imagem e a glória divinas perdidas por Adão, teve como resultado direto o fato de Paulo pas­ B iB U O G R A n A . B e r g e r , P, & L u c k m a n n , T. The social sar a imaginar os crentes como seres humanos construction of reality: a treatíse on the sociolo­ que estão se conformando à imagem de Cristo gy of knowledge. Garden City: Doubleday, 1966. e se tornando uma nova criação. Ou seja, Paulo • B e t z , H. D. Galatians: a commentary on Paul’s de fato recebeu seu evangelho como parte de sua letter to the churches in Galaüa. Philadelphia: 998

Pa u lo

Fortress, 1979.

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unck,

J.

Paul and the salvation of mankind.

J. E . P

P

aulo em

A

ow ers

tos e n as c ar tas

As cartas de Paulo contêm informações básicas sobre o apóstolo, ao passo que o livro de Atos apresenta o que mais se aproxima de um relato metódico de sua vida e ministério. Essas duas fontes independentes nos permitem elaborar um retrato complexo da multifacetada personalidade que conhecemos como apóstolo Paulo — sua car­ reira, sua missão e sua mensagem.

A to s e n as cartas

1. Fontes 2. A carreira de Paulo 3. 0 programa de ação e a mensagem missio­ nária de Paulo 4. A influência de Paulo

[Herm.]

ty according to Paul.

Atlanta: John Knox, 1977. ■ N e w m a n , C. Paul’s glory-christology: traditíon and rhetoric. Leiden: E. J. Brill, 1992. (NovTSup, 69.) ■ N o c k , A. D. Conver­ sion: the old and new in religion from Alexander the Great to Augustine of Hippo. Oxford: Oxford University Press, 1933. ■ S a n d e r s , E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress, 1977. • S e g a l , A. F. Paul the Convert: the apostolate and apostasy of Saul the Pharisee. New Haven: Yale University Press, 1990. ■ S t e n d a h l , K. Paul among Jews and Gentiles. Philadelphia: Fortress, 1976. ■ S t e w a r t , J. S . A man in Christ: the vital elements of St. Paul’s religion. New York: Harper & Brothers, 1935. ■ T h e is s e n , G. Psychological aspects of Pauline theobgy. Philadelphia: Fortress, 1987.

em

1. Fontes

Existem duas fontes principais para conhecermos Paulo: seus escritos e o livro de Atos. Ao que pare­ ce, essas duas fontes são totalmente independen­ tes entre si. Os escritos de Paulo apresentam-no como escritor de cartas — ahás, na literatura mundial, ele é um dos grandes escritores de cartas —, ao passo que Atos nada menciona sobre essa característica de Paulo. A opinião majoritária é que Atos em momento algum se utilizou das car­ tas paulinas, embora as cartas reconhecidamente de sua autoria já existissem (apesar de ainda não estarem reunidas) quando o livro foi escrito. Um conjunto secundário de materiais que ser­ vem de fonte para esse estudo são as evidências hoje disponíveis sobre a vida social, política e re­ ligiosa das regiões do Mediterrâneo por onde Pau­ lo andou e trabalhou, desde a Judeia até Roma. 1.1 As cartas de Paulo. As cartas de Paulo trazem evidências fundamentais para que conhe­ çamos o homem propriamente dito. A maioria delas foi escrita a igrejas que ele havia fundado e tratava de questões surgidas durante a ausência do apóstolo. Em geral, melhor que elas, apenas a presença dele e suas palavras proferidas de viva voz. Em Gálatas 4.20, por exemplo, ele expressa o desejo de poder estar com seus leitores para que pudessem perceber no tom de sua voz a in­ tensidade das emoções que sentia, algo que não podia ser captado pela carta. No entanto, em de­ terminada ocasião, ele deliberadamente deixa de visitar a igreja de Corinto, embora pudesse tê-lo feito, porque era mais fácil se expressar com du­ reza por escrito que de viva voz. Evidentemente, era difícil para ele ser duro na presença de amigos e convertidos, e assim queria poupar tanto a eles quanto a si próprio do constrangimento de uma confrontação face a face (2Co 1.23—2.4). A notável exceção à regra segundo a qual Pau­ lo enviava suas cartas às igrejas fundadas por ele é a Carta aos R o m a n o s . (A Carta aos Colossenses não é, na verdade, uma exceção; foi enviada a uma igreja que ficava no campo missionário de

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Paulo, igreja fundada por seu ajudante Epafras.) A Carta aos Romanos foi enviada à comunidade cristã de Roma quando Paulo estava na iminência de fazer sua primeira visita à cidade. Desejava não apenas preparar os cristãos romanos para sua visita, mas também obter o apoio e o envolvi­ mento deles na empreitada apostólica que ainda queria realizar, a qual consistia na evangelização da Espanha e na execução e continuação de sua obra no mundo gentílico em geral. Suas princi­ pais cartas, escritas em seu apogeu apostólico — Gálatas, Coríntios e Romanos — são às vezes chamadas suas “quatro grandes cartas”. Elas são nossa principal fonte de informação sobre o con­ teúdo e o propósito da mensagem do apóstolo. As cartas do “cativeiro” ou da “prisão” (Filipenses, Efésios, Colossenses, Filemom) têm esse nome porque, a o que tudo indica, ele estava submeti­ do a algum tipo de prisão quando as escreveu. Tradicionalmente, tem se atribuído a estas cartas a data de seus dois anos de prisão domiciliar em Roma, principalmente a Carta aos Filipenses, em­ bora alguns estudiosos agora atribuam a redação de F iu p e n s e s e das outras cartas do cativeiro à épo­ ca de seu aprisionamento em Cesareia (At 24.27) ou da prisão ocorrida anteriormente, em Éfeso, a qual não é explicitamente registrada. Uma das cartas da prisão, o bilhete enviado a Filemom, amigo de Paulo originário de Colossos, na qual o apóstolo intercede a favor de Onési­ mo, escravo de Filemom e agora convertido de Paulo, faz parte do mesmo contexto de Colossen­ ses (v. Cl 4.9, com as referências a Arquipo em Fm 2 e em Cl 4.17). Já a Carta aos E f é s io s não está associada a uma igreja específica; a expres­ são “em Éfeso” (Ef 1.1), da qual se extrai o título tradicional, provavelmente nâo faz parte do tex­ to original. Essa carta tem as características de um testamento dirigido ao campo missionário de Paulo, especialmente o da Ásia proconsular, texto em que Paulo apresenta seu ministério aos gen­ tios como meio de cumprir o propgsito eterno de Deus, a saber, unir o Universo em Cristo. As C a r t a s P a s t o r a is (1 e 2Timóteo e Tito), de data incerta, contêm várias observações de cará­ ter pessoal, especialmente 2Timóteo; ITimóteo e Tito, porém, fazem lembrar bastante os primeiros manuais de ordem eclesiástica, ao passo que 2Timóteo tem a natureza de um testamento pessoal.

As cartas de Paulo eram ditadas a amanuen­ ses (o nome de um deles, Tércio, é mencionado em Rm 16.22). Paulo costumava autenticar suas cartas com o acréscimo, bem no final, de uma ou duas frases escritas de próprio punho (cf. GI 6.11). Vez por outra, esse acréscimo autográfico incluía seu nome (cf. ICo 16.21; Cl 4.18; 2Ts 3.17; v. tb. Fm 19). Na saudação inicial, Paulo em geral associava a seu nome um ou mais amigos que porventura estivessem com ele no momento em que a carta era escrita. Só de vez em quando o conteúdo da carta s u g e r e q u e um deles e r a responsável com Paulo pela redação, como é o caso de Silvano, em 1 e 2Tessalonicenses, e Timóteo, em Colossenses. Em 1 e 2Tessalonicenses, as passagens em que encontramos o pronome de primeira pessoa do singular, “eu” (e.g., “eu, Paulo”, em ITs 2.18), são evidentemente de autoria do apóstolo. A maioria das cartas de Paulo são “documen­ tos esporádicos”, ou seja, foram escritas para atender a alguma necessidade pontual quando Paulo estava distante e não podia resolver pes­ soalmente a situação. Até onde sabemos, apenas uma vez ele preferiu tratar por carta uma situação crítica, em vez de tomar providências no próprio local (2Co 1.23—2.4). Até mesmo Romanos é uma carta pontual, pois foi motivada por um de­ sejo de Paulo, qual fosse visitar Roma depois de entregar em Jerusalém o dinheiro coletado paia ajudar essa igreja, que passava por necessidade (Rm 15.23-32), embora tenha aproveitado a opor­ tunidade para apresentar aos cristãos de Roma um resumo do evangelho como ele o entendia e pregava. 1.2 Atos. No livro de Atos, segunda parte da história escrita por Lucas acerca das origens cristãs (e uma continuação do terceiro Evange­ lho), Paulo é apresentado ainda na etapa inicial. Seu chamado para ser testemunha de Cristo no mundo inteiro é contado, pela primeira vez, em Atos 9.1-20. e. de Atos 15.40 até o final do livro, ele domina a narrativa, terminando com sua che­ gada a Roma e os dois anos que ali permanece sob custódia. Após a conclusão de Atos, temos apenas evidências esparsas e incertas sobre o res­ tante de sua vida. Caso o autor de Atos tenha sido, como é bem provável, uma pessoa conhe­ cida e um companheiro esporádico do apóstolo.

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então Atos deve ser reconhecido como fonte bási­ viver como judeu entre os judeus para conquis­ ca de informação sobre Paulo. tar 0$ judeus e como gentio entre os gentios para Na realidade, uma coletânea de cartas esporá­ conquistar os gentios. dicas escritas por algum personagem histórico em A partir do momento em que assume um pa­ momentos decisivas de sua carreira terá valor e pel de destaque na narrativa de Atos, Paulo se imediaticidade próprios, pois apresenta a opinião torna o herói de Lucas. Na verdade, é um ser desse personagem a respeito de pessoas e aconte­ humano cotno os outros (At 14.15), mas no re­ cimentos e (no caso de um homem que revelava trato pintado pòr Lucas ele domina a cena. Está o coração no que escrevia, como Paulo fazia) nos sempre seguro de si e sempre triunfa. 0 Paulo permite discernir sua mente e suas motivações. das cartas mistura-se com seus irmãos em Cristo Essa coletânea, contudo, não pode ocupar o lu­ quando diz que eles são “mais que vencedores” gar de um relato organizado dos acontecimentos por meio de Cristo (Rm 8.37), mas não existe pra­ em que tal personagem desempenhou um papel ticamente nenhum triunfalismo nos depoimen­ relevante, escrito do ponto de vista mais objetivo tos que ele faz de sua atividade apostólica. Em de um escritor que se baseou tanto em material Cristo, ele é conduzido “em triunfo” (2Co 2.14) colhido de fontes confiáveis quanto em seu en­ — na procissão triunfal de Cristo — e pode agra­ volvimento pessoal, situado no contexto da his­ decer a Deus porque, pela 5raça divina, trabalhou tória da época. mais arduamente que qualquer um dos outros 1.3 Comparação entre as cartas e Atos. Em­ designados para a mesma tarefa evangelística bora nossas duas principais fontes de informações (ICo 15.10). Entretanto, mesmo quando conside­ sobre Paulo sejam aparentemente independentes ra com satisfação o fato de ter pregado o evange­ uma da outra, há notáveis paralelos entre ambas lho “desde Jerusalém e arredores, até o llírico” no que diz respeito à pessoa do apóstolo. (Rm 15.19), Paulo não reivindica nenhum crédito Nas duas fontes, Paulo se sustenta com o pró­ para si, e sim para Cristo, que trabalha por meio prio trabalho para não ser um fardo financeiro dele. Paulo se considera um vaso de barro barato a seus amigos e convertidos. Sua estratégia, re­ e dispensável, mas a esse vaso foi confiado o te­ gistrada em Atos, de visitar primeiro a sinagoga souro supremo do evangelho, “para mostrar que ao chegar a uma cidade, está em consonância este poder que a tudo excede provém de Deus” com sua convicção, expressa em Romanos 1.16, (2Co 4.7, Nvi), não de Paulo ou de qualquer um de que o evangelho deve ser primeiro pregado de seus colegas pregadores. ao judeu. Além disso, o apóstolo aos gentios, Se Paulo foi um herói para Lucas, não o foi que é como ele se via, descobriu que os simpa­ aos p r ó p r i o s olhos. Em suas cartas, ele padece de tizantes gentios que frequentavam os cultos na e m o ç õ e s em conflito, “lutas por fora, temores p o r sinagoga representavam o núcleo mais promissor dentro” (2Co 7.5, a r a ) . Ele confessa que não tem para uma comunidade cristã. É óbvio que ele nâo a autoconfiança nem a autoafirmação de alguns considerava o fato de visitar a sinagoga e fazer de seus opositores — por exemplo, dos intrusos contato com judeus uma quebra de seu acordo que tentaram subtrair-lhe a autoridade na igreja com os líderes da igreja de Jerusalém, segundo o de Corinto. Esses intrusos exploravam os conver­ qual estes deveriam se concentrar na evangeliza­ tidos de Paulo, enquanto ele próprio hesitava em ção dos judeus, enquanto Paulo e Barnabé prega­ reivindicar seus direitos de pai espiritual, e alguns vam aos gentios (GI 2.7-9). Mesmo assim, não era deles 0 menosprezavam por causa de sua “fra­ sua característica ficar calado a respeito de Jesus queza” (2Co 10.1—12.13). Às vezes, ele afirmava quando estava na companhia dos judeus. Ele se sua autoridade com confiança, embora o leitor de sentia em dívida para com os de sua raça, assim suas cartas talvez suspeite (como alguns de seus como para com todos os outros (v. I s r a e l ) . convertidos) que ele achava mais fácil fazê-lo por Em Atos, Paulo demonstra grande capacidade carta, a distância, do que falando cara a cara. 0 de adaptação. Está igualmente à vontade entre Paulo mostrado em Atos é alguém que pode pron­ gentios e entre judeus praticantes da religião. tamente afirmar sua autoridade, uma pessoa de Esse é o Paulo que, em ICorintios 9.12-23, afirma poder carismático. Contudo, ele era uma pessoa 1001

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de personalidade multifacetada, e suas cartas expõem várias características não mostradas em Atos. 0 lado mais revelador exposto nas cartas é provavelmente aquele que diz: “De muito boa vontade me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que o poder de Cristo repouse sobre mim. Por isso, eu me contento nas fraquezas, nas ofensas, nas dificuldades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco, en­ tão é que sou forte” (2Co 12.9,10).

pai ou seu avô pode ter recebido a honraria por serviços prestados a algum procônsul militar, como Pompeu ou Antônio. Nesse caso, o pai de Paulo deve tê-lo registrado como cidadão roma­ no em Tarso. A cidadania romana compreendia vários privilégios, dos quais Paulo pôde tirar pro­ veito durante sua carreira; por exemplo, o direito a um julgamento justo, a imunidade a castigos degradantes como açoitamento e, especialmente, o direito de apelar e ter seu caso transferido de um tribunal inferior para a corte do imperador, 2. A carreira de Paulo em Roma (At 16.37; 22.25; 25.11). 2.1 Família e cidadania. Paulo nasceu em 2.2 Formação em Jerusalém. Embora tenha uma família de judeus praticantes que residia em nascido em um centro cultural grego, nâo foi em Tarso, na Cilícia, aparentemente na primeira dé­ nenhuma das escolas de Tarso que Paulo foi edu­ cada do século I d.C. De acordo com Jerônimo [ V i cado. Foi provavelmente em etapa posterior que i l , 5), sua família era originária de Giscala, cidade ganhou o volume de conhecimento literário e de da Galileia (v. P a u l o , o J u d e u ) . A família pertencia pensamento estoico atestado em seus escritos e à tribo de Benjamim, e Paulo recebeu o nome de discursos. Como ele próprio relata, foi educado Saulo, que também era o nome do mais ilustre nos moldes da tradição de seus ancestrais, sen­ membro de sua tribo em todos os tempos — Saul, do superior, no estudo e na prática do judaísmo o primeiro rei de Israel. O nome Paulo, pelo qual (GI 1.14), a muitos dos de sua época. Em seu é mais conhecido, fazia parte do nome triplo que pronunciamento de Atos 22.3, é ainda mais es­ ele tinha na condição de cidadão romano: é o pecífico e afirma que, embora nascido em Tarso, cognome romano Paulus. foi criado em Jerusalém e foi “instruído de acor­ Não se sabe quantas gerações viveram em do com o rigor da lei de nossos pais, aos pés de Tarso, mas o negócio da família — fabricação de Gamaliel”. tendas {ou talvez, em sentido mais genérico, fa­ De acordo com uma tradição posterior, Ga­ bricação de produtos de couro) — evidentemente maliel, destacado mestre judeu de sua época, foi prosperou. Paulo nasceu cidadão de Tarso — des­ chefe da escola rabínica que Hillel fundara por crita em suas palavras como “cidade de impor­ volta de 10 a.C., se é que ele próprio não era tância na Cilícia” (At 21.39) —, e isso implicava membro da família de Hillel. No entanto, as tradi­ certo nível de riqueza. Para se qualificar como ções mais antigas que refletem alguma lembrança cidadão de Tarso era preciso ter bens no valor de direta de Gamaliel e de seus ensinos não o asso­ quinhentas dracmas (Diâo C r is ó s t o m o , Or, 34.23). ciam à escola de Hillel. Em vez disso, fazem men­ Além da exigência de bens, a prática do judaísmo ção de membros da escola de Gamaliel, como se deve ter sido outro obstáculo para quem procu­ ele mesmo tivesse fundado uma escola. E, mes­ rava conquistar a cidadania. Caso os cidadãos de mo que Gamahel tenha sido seguidor de Hillel, Tarso estivessem organizados em tribos, como isso não quer dizer que Paulo também o fosse. Os era o caso de muitas cidades helênicas, ser mem­ escritos de Paulo não fornecem evidências sufi­ bro de uma dessas tribos envolvia práticas que os cientes para demonstrar com segurança que antes judeus consideravam ofensivas,^ P96sível que os de se tornar cristão ele tivesse sido hillelita ou cidadãos judeus de Tarso fizeãsem parte de uma simpatizante da escola rival de Shammai. Alguém tribo própria, embora nâo haja evidências disso. poderá concluir que o fato de ele ter afirmado No entanto, muito mais importante que o fato que quem se submete à circuncisão “fica obriga­ de a família ter a cidadania de Tarso foi obter a do a cumprir toda a lei” (GI 5.3) reflete a doutrina cidadania romana — honra poucas vezes conce­ mais estrita dos shammaítas, mas uma afirmação dida aos habitantes das províncias. Paulo herdou feita em um contexto polêmico não permite uma essa cidadania por motivos de nascimento: seu conclusão segura. Seu zelo como perseguidor da 1002

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igreja estabelece um contraste gritante com a po­ lítica de contemporização defendida por Gama­ liel em Atos 5.34-39, mas talvez a explicação seja simplesmente que Paulo viu com mais clareza do que Gamaliel as sérias implicações do movimento cristão para a vida e a saúde do judaísmo. 2.3 Perseguidor da igreja. De acordo com as cartas e Atos, Paulo antes de ser apóstolo e se tornar cristão, foi um ativo perseguidor da igre­ ja. Em sua tentativa de destruí-la, atacou a igreja nascente com a máxima violência (GI 1.13). Esse foi o aspecto negativo de seu zelo pela Lei e pelas tradições de Israel que talvez encontrou um extra­ vasamento positivo no proselitismo dos gentios. Acredita-se que sua indagação “Se continuo pre­ gando a circuncisão, por que ainda sou persegui­ do?” (GI 5.11) aponte nessa direção. Quando ele afirma “Persegui a igreja de Deus” (ICo 15.9), é natural pensar na igreja de Jeru­ salém. Nos dois ou três anos que se seguiram à ressurreição de Cristo, a “igreja de Deus” di­ ficilmente teria sido encontrada como realidade reconhecível em outro lugar além de Jerusalém. 0 registro de Atos deixa isso bem claro ao dizer que Paulo “assolava a igreja; entrando pelas ca­ sas, arrastava homens e mulheres e os colocava na prisão” (At 8.3). Quando a perseguição levou à dispersão dos crentes, ele passou a perseguir os refugiados até mesmo além das fronteiras da província da Judeia. Lendo nas entrelinhas, pode se inferir que os “helenistas”, não os “hebreus” (cf. At 6.1, a r a ], eram o principal alvo de seu ata­ que. Os apóstolos permaneceram incólumes em Jerusalém (At 8.2). 2.4 Chamado ao apostolado. Foi quando Paulo estava a caminho de Damasco, tendo em mãos a autorização concedida pelo sumo sacerdote para prender alguns que se haviam refugiado ali, que ele se viu diante do Cristo ressuscitado e exalta­ do e teve de se desviar de seu caminho. Então foi chamado para ser embaixador de Cristo no mundo gentíKco (v. P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ) . Esse encontro com Cristo determinou todo o rumo do pensamento e da ação posteriores de Paulo. Até aquele momento, parecia óbvio para Pau­ lo que alguém que houvesse padecido o tipo de morte sobre a qual a Lei pronunciava a ira divina (Dt 21.23) não podia ser o IVIessias, o eleito de Deus, como os seguidores de Cristo afirmavam.

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A afirmação deles, portanto, constituía blasfêmia. Mas agora ele percebia que a asserção deles era verdadeira. Ele tinha visto e ouvido Jesus, aquele que havia morrido na cruz, mas que agora estava vivo e glorificado. E fora sua devoção à Lei que o tornara um perseguidor tão zeloso, ou seja, ele percebeu que sua fidelidade à Lei o havia levado à mais pecaiqànqsa de todas as práticas: ele esti­ vera a lutar contra' Deus, contra seu F i l h o e contra seu povo. A Lei nada fizera para o advertir desse comportamento pecaminoso. A Lei se havia re­ velado ineficaz. Mas Cristo, cuja graça eliminou inteiramente a culpa de Paulo e o capacitou como seu enviado especial, tomou o lugar de centra­ lidade que a Lei antes ocupava na vida de Pau­ lo. Daí por diante, para Paulo “o viver é Cristo” (Fp 1.21). Foi então que Paulo se deu conta de que ele era aceitável a Deus por meio da obra redentora de Cristo, não por causa das obras de justiça que praticava. A própria morte de Cristo, que incorria em maldição divina, se revelou, para 0 povo de Cristo, o livramento da maldição da Lei obsoleta (GI 3.10-14). 2.5 Apóstolo aos gentios. Paulo rapidamen­ te respondeu a seu chamado de evangeUzar os gentios, viajando para o território dos árabes nabateus, ali perto, e, ao que parece, seu trabalho despertou o antagonismo das autoridades locais (GI 1.17; 2Co 11.32,33). Dali, ele regressou a Da­ masco e depois subiu a Jerusalém para visitar Pe­ dro. Também se encontrou com Tiago, o irmão do Senhor, ficando evidente que os demais apóstolos estavam fora de Jerusalém. Sem dúvida, foi nessa visita que Paulo ficou sabendo que Jesus havia aparecido em corpo ressurreto a Pedro e a Tiago, como ele registra em ICorintios 15.5,7, e eles, por sua vez, souberam que o próprio Paulo também se encontrara com o Cristo ressurreto. Depois de duas semanas, ele retornou a Tar­ so, onde havia nascido, e passou vários anos na província unida da Síria e Cilícia, propagando ativamente a fé que outrora ele havia tentado eliminar (Cl 1.21-24). Enquanto estava envolvi­ do nessa obra, Barnabé convidou-o a se unir a ele em um novo movimento para a propagação do evangelho, iniciado recentemente em Antio­ quia do Orontes, onde grande número de gen­ tios estava aceitando de bom grado o evangelho (At 11.19-26).

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Paulo afirmava ser “apóstolo de Jesus Cristo” — e, sempre que necessário, insistia no título. Mas em que sentido ele foi apóstolo? O n t empre­ ga 0 termo de várias maneiras. Lucas geralmente o restringe aos Doze (com Matias substituindo Ju­ das Iscariotes). Se um requisito para o apostola­ do era ter estado na companhia de Jesus durante seu ministério ptíblico, então Paulo não satisfazia esse requisito. Em determinada seção de sua nar­ rativa (At 14.4,14) Lucas emprega o plural “após­ tolos” para se referir a Barnabé e a Paulo juntos. É possível que nesse ponto Lucas tenha extraído essa palavra da fonte que usa como base. É bem possível que Barnabé tenha reconhecido Paulo como apóstolo. Com a expressão “os que já eram apóstolos antes de mim” (01 1.17), ele provavel­ mente quer dizer os Doze; no entanto, ele quase certamente vê Tiago, o irmão do Senhor, como apóstolo (01 1.19), junto com "todos os apósto­ los” que viram o Senhor ressurreto em sequência desde Tiago (ICo 15.7) e que parecem ser dife­ renciados dos Doze, os quais são mencionados junto com Pedro em ICorintios 15.5. Quando se refere a Andrônico e a Jiínias, cuja fé em Cris­ to era anterior à dele, e os trata como pessoas que “se destacam entre os apóstolos” (Rm 16.7), provavelmente Paulo quer dizer que eles mesmos eram apóstolos. (Os apostolai de 2Co 8.23, ou “mensageiros”, os quais eram enviados das igre­ jas, estão em uma categoria diferente.) Se ser apóstolo significava ter visto o Senhor ressuscitado e ter sido chamado e comissionado por ele para ser sua testemunha e mensageiro, então Paulo foi proeminentemente um apósto­ lo de Jesus Cristo, confirmado nessa condição mediante os “sinais” apostólicos presentes em seu ministério (ICo 9.1,2; 2Co 12.12). Paulo foi chamado e comissionado para ser apóstolo entre os gentios (Rm 11.13; Cl 1.16), e parece que seu apostolado gentílico foi reconhecido pelo líder da igreja de Jerusalém (Cl 2.7,8). Mas não houve ne­ nhuma testemunha quando o Seiihqr o comissio­ nou. Qualquer um que se recusasse a reconhecer esse apostolado poderia recorrer para isso à ine­ xistência de testemunho independente. Paulo não podia apresentar nada que fosse parecido com uma credencial. Suas credenciais eram os convertidos que havia conquistado e as igrejas que havia fundado — sem dtívida, eram

credenciais mais que apropriadas. Ele havia tra­ balhado mais arduamente e pregado em uma área mais ampla que qualquer um daqueles que tinham visto o Cristo ressuscitado antes dele; ele havia fundado mais igrejas e observado a colheita do Espírito na vida dos que haviam conhecido a Cristo por meio de seu ministério. É quase inacre­ ditável que algumas pessoas tenham invadido o campo missionário de Paulo, tentando persuadir seus convertidos de que sua posição de apósto­ lo era questionável, e que tenham até mesmo conseguido convencer alguns deles. Em tais si­ tuações, o argumento de Paulo era prático: seus convertidos eram as líltimas pessoas a ter moti­ vos para questionar seu apostolado, pois deviam sua nova existência em Cristo a seu ministério apostólico — eram o selo e a garantia desse apos­ tolado (ICo 9.2). Mas o que importava não era o título, e sim a obra que realizou. À luz de suas realizações, Paulo pôde concluir seus argumentos perante o tribunal da história — para não falar do tribunal superior que ele tinha sempre em vista, porque procurava cumprir sua missão de tal ma­ neira que 0 dia de Cristo revelasse “que não foi em vão que corri ou trabalhei” (Fp 2.16). 2.6 Conferência em Jerusalém. A igreja de Antioquia, basicamente gentílica, tinha sido fundada havia pouco tempo. Seus membros de­ monstraram valor ao enviar certa quantia para a igreja-mãe, em Jerusalém, a fim de ampará-la em um período de escassez de alimento na Judeia, nomeando Barnabé e Paulo para levar a doação (At 11.27-30). É possível que essa missão tenha criado a oportunidade para a conferência que Paulo menciona em Gálatas 2.1-10. Barnabé e Paulo foram recebidos pelos líderes da igreja em Jerusalém, Tiago (o irmão do Senhor), Pedro e João, os três chamados “colunas da igreja”. Concordou-se que Barnabé e Paulo deveriam conti­ nuar concentrados na missão gentílica, enquanto os líderes de Jerusalém se dedicariam ao teste­ munho do evangelho entre os judeus. Não está implícito que estivessem envolvidas duas versões do evangelho: Paulo apresentou aos líderes em Jerusalém seu evangelho sem a Lei, e é eviden­ te que eles consideraram aceitável a mensagem pregada por Paulo. Na verdade, a diferença es­ tava nos dois campos missionários e na apre­ sentação da mensagem. 0 pacto ocultava várias 004

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ambiguidades, que podiam gerar alguma tensão, caso não se mantivesse a confiança de ambos os lados. A pedido dos líderes de Jerusalém, Barna­ bé e Paulo se comprometeram em lembrar-se dos pobres da igreja-mãe — compromisso que Paulo levou bastante a sério. 2.7 Com Barnabé em Chipre e na Anatólia.

Ao voltar a Antioquia, Barnabé e Paulo foram li­ berados pela igreja para embarcar em uma viagem missionária, que os levou a Chipre e depois à Ana­ tólia Central e às regiões das cidades da Pisídia da Cilícia, Frigia e Licaônia, situadas na província romana da Galácia. As igrejas que eles plantaram nas cidades de Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe, no transcorrer dessa missão, estão pro­ vavelmente entre as “igrejas da Galácia” às quais Paulo escreveu a Carta aos Gálatas. A historicidade dessa campanha tem sido ob­ jeto de debate. Alguns a interpretam como uma “viagem-modelo”, estabelecendo a forma em que Lucas imaginou que se deveria realizar uma campanha missionária, incluindo-se como o evan­ gelho devia ser apresentado tanto em uma sina­ goga, como aconteceu no discurso de Paulo em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41), quanto a um público pagão, como na ocasião em que Barnabé e Paulo confrontam os idólatras habitantes de Lis­ tra com a revelação do Deus verdadeiro nas obras de criação e na providência divina (At 14.15-17). Mas os detalhes da viagem, examinados à luz da geografia histórica, dão a forte impressão de vera­ cidade. Além do mais, há uma semelhança mar­ cante entre a objeção que se fez em Listra contra a idolatria e o lembrete de Paulo aos tessaloni­ censes; “Vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro” (ITs 1.9). 2.8 As condições para a aceitação dos gen­

Quando voltaram a Antioquia do Orontes, Barnabé e Paulo logo se viram envolvi­ dos em uma controvérsia. 0 pacto recentemente estabelecido em Jerusalém, ao que tudo indica, fora entendido de modo diferente pelas duas par­ tes. Aparentemente, Paulo começou a sentir que o espírito do pacto não estava sendo observado pe­ los líderes de Jerusalém. Em Antioquia, houve um choque entre ele e Pedro, quando este passava aU algum tempo com a igreja. No início, Pedro comia sem reservas com os cristãos gentios, mas alguns mensageiros chegados de Jerusalém da parte de tíos na igreja.

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Tiago 0 persuadiram a mudar seu comportamento e a se retirar da comunhão à mesa com os gentios. Aos olhos de Paulo, as implicações da conduta de Pedro ameaçavam os alicerces do evangelho da graça. No entanto, outros cristãos judeus de An­ tioquia, até mesmo Barnabé, ficaram do lado de Pedro, e Antioquia não pôde mais servir de base para a atividadí migsionária de Paulo. Não se podia permitir que uma discordância dessa magnitude, a qual afetava a unidade da igreja e até mesmo a própria natureza do evange­ lho, ficasse sem solução, e não há dúvida de que o próprio Pedro nâo ficou contente com a situa­ ção embaraçosa em que se envolveu. Para tratar do assunto, convocou-se uma reunião dos após­ tolos e anciãos da igreja-mãe. Essa assembleia é comumente denominada Concílio de Jerusalém, e alguns observadores da igreja de Antioquia foram convocados a participar. Aos membros da igreja de Jerusalém que entendiam que os convertidos gentios deviam ser circuncidados e se submeter à Lei mosaica concedeu-se a oportunidade de ex­ pressar seu ponto de vista, mas os apóstolos e an­ ciãos resolveram que não se deviam impor essas condições, ou seja, devia-se exigir dos cristãos gentios apenas a abstinência de comer sangue e carne de animais sacrificados aos deuses pagãos e também a abstinência da fornicação, exigência que talvez incluísse as uniões conjugais proibidas pelas regras judaicas (At 15.23-29). Se os cristãos gentios concordassem com essas condições, seria eliminado o impedimento de terem comunhão à mesa, e a maioria deles concordou prontamente. Sem dúvida, Pedro deve ter ficado satisfeito com a solução que se deu ao dilema. Entretanto, mais tarde, quando os convertidos de Paulo em Corinto 0 consultaram sobre a questão da carne sacrificada aos ídolos, sua resposta foi que co­ mer esse tipo de carne não causava mal algum, a menos que violasse a consciência ou escanda­ lizasse um irmão em Cristo. Quanto à proibição da fornicação, Paulo concordou que a fornicação violava a ordem da criação e frustrava o propósi­ to de Deus, o qual, ao criar a raça humana, fez homem e mulher. 2.9 Na Macedônia e na Acaia. Um dos men­ sageiros escolhidos para transmitir as resoluções do Concího de Jerusalém às igrejas gentílicas da Síria e da Cilícia foi Silas, ou Silvano, que Paulo

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considerava um bom companhieiro. Paulo convi­ dou-o a ir com ele em uma expedição missionária ao Ocidente. Viajando por terra pela Ásia Menor, primeiramente visitaram as igrejas que Paulo e Barnabé haviam fundado poucos anos antes. Em Listra, Paulo encontrou Timóteo, jovem que se con­ vertera por seu ministério, e também o convidou a acompanhá-lo. Timóteo tornou-se um ajudante dedicado de Paulo até o fim da vida do apóstolo. A viagem deles para o Ocidente os teria levado a Éfe­ so, o que talvez fosse o objetivo principal de Paulo, mas eles foram desviados dessa rota por circuns­ tâncias que reconheceram como pequenos sinais da direção do Espírito Santo (v. E s p ír it o S a n t o i i ) e rumaram para noroeste até chegar ao mar Egeu, em Trôade de Alexandria. AU embarcaram em um navio para Neápolis, na Macedônia. Na Macedônia, pregaram o evangelho e plan­ taram igrejas em três cidades: Filipos, Tessalôni­ ca e Bereia, mas, depois de uma curta estada em cada uma dessas locahdades, foram forçados a partir, visto que o povo foi induzido a fazer mani­ festações violentas contra eles — em Filipos, por uma alegada interferência nos direitos dos cida­ dãos à propriedade; nas outras cidades, por causa da atívidade de alguns adversários dentro da co­ munidade judaica. Filipos e Tessalônica ficavam na grande via Inaciana que hgava o mar Egeu ao mar Adriático, e é possível que Paulo tenha pla­ nejado ir até sua extremidade ocidental para atra­ vessar 0 Adriático e chegar à Itália. Essa teria sido uma das muitas ocasiões em que ele planejou vi­ sitar Roma (como relata aos cristãos de Roma em Rm L13). Se essa hipótese for verdadeira, o fato de não ter conseguido prosseguir naquela direção foi providencial, pois, se tivesse continuado, teria se encontrado com judeus (entre os quais cris­ tãos judeus) que estavam viajando para o Oriente por causa do édito de Cláudio, que expulsou os judeus em 49 d.C. (v. At 18.2). O que aconteceu foi que Paulo teve de sair da via Inaciana e logo se viu forçado a deixar a Macedôpia vez. Para a segurança dele, seus amigos de Bereia o tiraram da cidade, e, depois de uma breve estada em Ate­ nas, tomou o rumo de Corinto. A breve missão de Paulo na Macedônia, no entanto, revelou-se surpreendentemente bem-su­ cedida: as igrejas dessa região deram-lhe muitos motivos de encorajamento e gratidão a Deus. Ao

mesmo tempo, a empreitada na Macedônia deve ter parecido um fracasso, apesar dos claros sinais da direção divina que levaram Paulo e seus com­ panheiros a se lançar a essa tarefa. Ele partiu da Macedônia profundamente deprimido e chegou a Corinto, como confessou, “em fraqueza, em te­ mor e em grande tremor” (ICo 2.3). Se a Mace­ dônia se mostrara pouco receptiva, Corinto por certo 0 seria menos ainda: a reputação de seus habitantes fazia pensar que não havia solo recep­ tivo à semente do evangelho. Mesmo assim, Pau­ lo passou dezoito meses em Corinto, pregando o evangelho e edificando a igreja sem ser seriamen­ te molestado (v. C o r í n t i o s , C a r t a s a o s ) . Ali Paulo encontrou o casal Priscila e Áqui­ la. Eles haviam saído de Roma quando Cláudio expulsou os judeus que moravam na cidade. Os dois se tornaram amigos prestimosos e devotados pelo resto da vida do apóstolo (cf. Rm 16.3-5). Durante o ministério de Paulo em Corinto, hou­ ve uma séria tentativa de dar fim ã atividade de Paulo. Um líder judeu acusou Paulo perante Gálio (que chegara à cidade havia pouco tempo na con­ dição de procônsul da província da Acaia) de pro­ pagar uma forma de religião não autorizada pela lei romana. Uma resolução de uma autoridade im­ perial tão proeminente teria peso muito maior que uma decisão tomada por um magistrado da cida­ de. Se Gálio aceitasse a acusação, o progresso do evangelho seria prejudicado não apenas na Acaia, mas em outras regiões do Império Romano. Entre­ tanto, depois de ouvir a acusação, Gálio concluiu que se tratava de uma disputa sobre interpretações da Lei judaica e não quis se envolver no assunto. A resposta negativa de Gálio favoreceu Paulo: ele continuou seu trabalho sem nenhum empecilho. A menção a Gálio em Atos 18.12 é um pon­ to de referência para estabelecer a cronologia da carreira de Paulo. Em Delfos, há uma inscrição que registra uma ordem oficial de Cláudio emiti­ da nos sete primeiros meses de 52 d.C. e se refere a Gálio como procônsul recentemente nomeado para a Acaia. A implicação é que ele se tornou procônsul no início do verão de 51. Com base em outras fontes, ficamos sabendo que, por proble­ mas de saúde, ele nâo permaneceu muito tempo no cargo. Pode se dizer com segurança que os dezoito meses em que Paulo esteve em Corinto corresponde à data do outono do ano 50 até a 006

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primavera do ano 52, considerando essas esta­ testemunhar a parusia (v. e s c a t o l o g ia ) . Antes dis­ ções quando elas ocorrem no Hemisfério Norte. so, ao se referir à parusia e à ressurreição que a Na época em que o trabalho em Corinto estava acompanha, ele tendia a se incluir entre os que concluído, Paulo deixou para trás uma comunida­ ainda estariam vivos na ocasião. A partir de en­ de cristã grande e capaz, embora nos anos seguin­ tão, ele passou a se incluir entre os que serão tes em alguns momentos Paulo tenha lamentado o ressuscitados dentre os mortos. Pelos dados dis­ deficiente alicerce moral daquela igreja. poníveis, foi^ssa^a primeira vez que ele exami­ 2.10 Em Éfeso e na Ásia proconsular. A se­ nou com seriedade sua condição imediatamente guinte sede de operações de Paulo foi a cidade após a morte: sua conclusão, conforme exposta de Éfeso, na província da Ásia, onde se estabele­ em 2Coríntios 5.1-10, é que ele não permanece­ ceu pela maior parte de três anos. Esses três anos ria um único momento em estado de nudez, mas constituíram uma das fases mais frutíferas de seu seria revestido com a vestimenta que lhe está re­ ministério apostólico. A evangelização da provín­ servada nos céus. Com a palavra “despidos”, ele cia foi alcançada mediante a atividade de Paulo e quer dizer a falta de todos os meios de comuni­ vários de seus colegas. Um deles, Epafras, traba­ cação com o ambiente, e para o apóstolo o am­ lhou como evangelista no vale do Lico, onde seu biente do cristão logo após a morte se resume na esforço resultou na fundação de igrejas em Hie­ expressão “habitar com o Senhor” (2Co 5.8, a r a ] . rápolis, Laodiceia e Colossos (Cl 1.7,8; 4.12,13). Alguns estudiosos de Paulo, notadamente C. 0 trabalho não se realizou sem riscos. Al­ H. Dodd, entendem o conteúdo dessas cartas guns acontecimentos são registrados por Lucas, como uma “segunda conversão” de Paulo por e o próprio Paulo faz menção de alguns deles. volta dessa época. Não era apenas uma questão Podem estar aí incluídas uma ou duas das várias de mudança de perspectiva escatológica: Dodd detenções que ele menciona em 2Coríntios 11.23. chama a atenção para uma mudança de atitude Contudo, é duvidoso que se possa atribuir a data nas cartas posteriores. Paulo é menos contunden­ de qualquer de suas cartas da prisão ao período te em suas polêmicas, menos insistente em sua de uma detenção em Éfeso. Lucas narra vivida- posição, mais calmo em relação aos irmãos em mente as manifestações violentas deflagradas no Cristo que tentaram tornar mais difícil sua tarefa grande teatro de Éfeso contra Paulo e sua prega­ apostólica. Tem se apontado para o contraste en­ ção (At 19.19-41). A advidade de Paulo foi vista tre a denúncia aberta contra os intrusos nas igre­ como uma ameaça econômica aos comerciantes, jas da Galácia (GI 1.6-9; 5.10,12) e a referência que dependiam financeiramente do culto a Árte­ bondosa aos adversários cristãos (possivelmente mis, a grande deusa da cidade, cujo templo era em Roma) que se achavam no direito de agra­ uma das sete maravilhas do mundo antigo. Con­ var a situação de Paulo, tirando vantagem de sua tudo, o maior perigo pessoal que ele enfrentou prisão para pregar o evangelho com mais vigor naqueles anos, já perto do fim de seu ministério (Fp 1,15-18). É certo que não se pode desprezar em Éfeso, é mencionado pelo próprio Paulo em a diferença entre as duas situações, mas é indis­ 2Coríntios 1.8-10. Ele fala de uma situação tão cutível a mudança de atitude. Não se pode afir­ ameaçadora que a morte lhe pareceu inevitável, mar com certeza se a mudança foi gradual ou foi e, quando, apesar de parecer impossível, o livra­ precipitada por alguma crise, como aquela men­ mento finalmente chegou, ele o saudou como cionada em 2Coríntios 1.8, mas uma passagem sinal do poder divino de ressuscitar os mortos. como Filipenses 3.7-16 nos ajuda a “ver de forma Acredita-se que essa ocasião de perigo estava h- extremamente clara o que a experiência fez com gada à crise resultante do assassinato de M. Júesse homem, que por natureza era orgulhoso, aunio Silano, no final do ano 54 d.C. A situação, ao toconfiante e impaciente” ( D o d d , p. 81). que parece, foi tão desfavorável para Paulo que Outra experiência que influenciou profunda­ apelar para César, recurso normalmente aberto a mente a atitude de Paulo diante da vida é a que um cidadão romano, teria sido contraproducente. ele situa vários anos antes desse acontecimento, Quase certamente foi essa a experiência embora só a registre no final de seu ministério que o levou a pensar que não sobreviveria para em Éfeso (2Co 12.2-10). Uma experiência mística 1007

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deixou-0 com uma deficiência física, a que ele de­ visível daquela “oferta dos gentios” que ele havia nomina “espinho na carne”. Qualquer que tenha planejado apresentar a Deus em Jerusalém como sido a natureza dessa deficiência, evidentemente coroa de seu “dever sacerdotal” (Rm 15.16, n v i ] , ela ameaçava incapacitá-lo de continuar sua ati­ Ele esperava completar sua ação de graças pelo vidade apostóhca; por isso, ele orou três vezes passado e sua dedicação no futuro mediante um para que ela fosse retirada. Em vez de sua oração ato de adoração no templo, onde muitos anos ser respondida, Paulo recebeu a garantia de que a antes o Senhor lhe aparecera e o enviara “para graça de Cristo o capacitaria a conviver com ela. longe, aos gentíos” (At 22.21). Aliás, ele aprendeu a se regozijar nela porque ela 2.12 Detenção em Jerusalém; julgamento em 0 ajudava a depender mais plenamente do poder Cesareia; viagem a Roma. Depois de seu longo de Cristo que operava na fraqueza do apóstolo. e frutífero ministério na província da Ásia, Pau­ 2.11 A coleta para Jerusalém. Perto do final lo tornou a visitar as igrejas da Macedônia e da de seu ministério em Éfeso, Paulo estava bem Acaia. Ele e alguns de seus companheiros, espe­ ocupado em levantar uma coleta entre as igrejas cialmente Tito, ajudaram essas igrejas a concluir que havia fundado a leste e a oeste do mar Egeu a coleta do dinheiro para a oferta a ser enviada a com o propósito de socorrer a igreja de Jerusalém, Jerusalém. Foi provavelmente nessa época que assolada por uma pobreza crônica. Quando ele e ele também viajou para o oeste, pela via Inacia­ Barnabé se encontraram com Tiago, Pedro e João na, e então se dirigiu para o norte, na direção do em Jerusalém, as três “colunas” lhe rogaram que llírico (Rm 15.19). se lembrasse dos pobres na igreja-mãe (GI 2.10). Depois de passar o inverno de 56/57 em Co­ Paulo considerou o caso uma obrigação solene, rinto, seguiu por via marítima para a Judeia com tanto naquela ocasião quanto durante todo o seu representantes das igrejas gentílicas nomeados ministério depois disso. Quanto a essa coleta es­ para levar a Jerusalém as contribuições de suas pecial, a força propulsora por trás dela era o forte igrejas. Paulo esperava que a presença daqueles desejo de unir mais intimamente as igrejas gentíli­ homens fosse mais um testemunho para a igre­ cas com a igreja de Jerusalém. Elas provavelmente ja de Jerusalém acerca da bênção divina sobre a imaginavam que poderiam manter ótímas relações missão gentílica. Mas a visita final de Paulo a Je­ com Jerusalém, mas muitos membros da igreja de rusalém se revelou catastrófica. Na área do tem­ Jerusalém viam com certo receio tanto a prega­ plo, ele foi atacado por alguns de seus antígos ção de um evangelho sem a Lei, anunciado por inimigos da Ásia proconsular que o acusaram de Paulo, quanto as igrejas gentílicas fundadas com sacrilégio (profanar a área sagrada ao trazer gen­ base nessa pregação. Paulo sentia que, se fosse tios para o templo). Ele foi posto sob custódia possível forjar um vínculo de gratidão, confiança pelo comandante da guarnição romana existente e amor entre Jerusalém e as igrejas de seu campo na fortaleza Antônia e enviado a Cesareia para missionário, seu ministério tínha valido a pena. ser julgado pelo procurador Félix. Depois de seus Um presente generoso persuadiria a igreja-mãe de detentores procrastinarem o processo por dois que 0 compromisso dos gentios com o evangelho anos, ele resolveu exercer seu privilégio de cida­ era genuíno e prátíco, de modo que insistia com dão romano e apelou, a fim de que seu caso fosse seus convertídos, por carta e, sempre que possível, transferido para a corte de Roma e julgado pelo mediante visitas pessoais, para que contribuíssem imperador. Atendendo ao pedido de Paulo, eles o de maneira generosa para aquela boa causa. Ele enviaram para lá. Depois de dois anos sob prisão também incentivou o espírito de cóm^etíção. Por domiciliar em Roma, ele foi intimado a se apre­ exemplo, em sua Carta aos Coríntios, ele se mostra sentar perante o supremo tribunal, quando final­ entusiasmado com a generosidade sacrificial das mente seu caso foi julgado. Não é possível saber igrejas da Macedônia e elogia a pronta reação dos com certeza o veredicto do tribunal, porque o re­ coríntios à oferta dos macedônios. gistro de Atos termina pouco antes do julgamen­ Além do mais, aos olhos de Paulo, a entrega to. A carta de Paulo aos filipenses, aparentemente da coleta em Jerusalém seria o ápice do serviço escrita quando o julgamento estava para iniciar, apostólico que havia realizado até então, sinal mostra que ele estava preparado tanto para um 1008

Pau lo em A tos e n a s cartas

resultado favorável quanto para uma sentença desfavorável — absolvição (seguida de liberdade para realizar mais de seu ministério) ou condena­ ção (seguida de execução) —, embora ele achasse mais provável que seria absolvido. A absolvição, que teria concretizado sua espe­ rança de pregar o evangelho na Espanha, é algo pressuposto ou implícito nos textos de vários escritores de Clemente de Roma em diante (Cle­ mente não menciona a palavra “Espanha”, mas é difícil imaginar que outra região estaria insinuan­ do com a expressão “o limite do Ocidente”, que Paulo teria alcançado antes de ser “elevado para o santo lugar” [ICl, 5.7]). Mas não está claro que algum desses escritores tivesse evidências con­ cretas para tal crença, a não ser uma inferência baseada em Romanos 15.23-29, em que Paulo, após a entrega da oferta em Jerusalém, faia de seu plano de iniciar a evangehzação da Espanha e de, a caminho, visitar Roma. Existe uma tradição (aceita por Eusébio e Jerô­ nimo) de que, depois de ser absolvido no julgamen­ to em Roma, Paulo foi preso outra vez e submetido a uma detenção e a um julgamento mais rigorosos naquela cidade. Acerca desses acontecimentos há referência em 2Timóteo 1.16-18 e 4.16-18, Dessa vez, não houve absolvição: Paulo foi condenado e

decapitado à espada no terceiro marco miliário da via Ostiense, num local chamado Aquae Salviae, e sepultado no local sobre o qual existe a Basílica de São Paulo Extramuros — provavelmente o lo­ cal onde de fato tudo isso aconteceu. Esse tíltimo processo contra Paulo pode muito bem ter ocorrido durante a p^rsegjiição que Nero promoveu contra os cristãos, por Volta de 65 d.C. 3. O programa de ação e a mensagem missionária de Paulo

A política missionária de Paulo foi conquistar para Cristo, durante a vida, o máximo possível do mundo gentíhco, e, quando começou a ficar evidente que essa tarefa não seria concluída du­ rante sua vida, ele tentou — com sucesso, ao que parece — levar a comunidade cristã de Roma a partilhar de sua visão. 3.1 A missão do apóstolo. A execução des­ se plano de ação não exigia a apresentação do evangelho a cada indivíduo nas regiões em que ele evangelizava, e sim a plantação de igrejas lo­ cais que servissem de células de autopropagação naquelas regiões (v, i g r e j a i i ) . Seu piano envolvia evangelização pioneira, ou seja, pregar o evange­ lho “não onde Cristo já havia sido proclamado” (Rm 15,20,21), lançando ele próprio os alicerces.

Tabela cronológica

c. 33 35 35-45 46

Chamado ao apostolado; missão na Arábia (Gi 1.15-17) Breve visita a Jerusalém (GI 1.18-20) Cilícia, Síria, Antioquia Conferência com as “colunas” em Jerusalém (GI 2.1-10); socorro para a fome enviado de Antioquia (At 11.27-30) 47-48 Paulo e Barnabé em Chipre e na Anatólia (At 13.4—14.28) 48/49 Concilio de Jerusalém; decreto apostólico (At 15.6-29) 49-51/52 Paulo e Siias/Silvano na Macedônia e na Acaia; plantadas as igrejas de Fihpos, Tessa­ lônica, Bereia e Corinto (At 16.9— 18,18) 51/52 Visita ligeira de Paulo a Jerusalém, a Antioquia e à Anatólia 52-55 : Paulo em Éfeso (At 19.1-20.1) 55-57 Paulo na Macedônia, no llírico e em Corinto (Rm 15.19; 16.23) 57 ; Última visita a Jerusalém; prisão e perda de liberdade (At 21.17—23.35) 57-59 Detenção em Cesareia (At 23.35—26.32) 59-60 Viagem à Itália (At 27.1-28.15) 60-62 Prisão domiciliar em Roma (At 28.16-31) ? 62 Julgamento de Paulo perante César 64 Grande incêndio de Roma 1009

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Exigiu-se de Paulo uma combinação de plane­ podem ter preservado alguma semelhança com jamento estratégico e abertura à direção divina. as sinagogas, embora, tendo por fundamento um Ele se lançou a esse empreendimento “no poder evangelho sem a Lei, estivessem separadas delas. do Espírito Santo” (Rm 15.19) e experimentou a Até certo ponto, as igrejas lembravam outras as­ direção do Espírito em ocasiões especiais, como sociações privadas com propósitos religiosos ou quando seus passos foram desviados da estrada beneficentes, as quais comprovadamente existi­ que ia para o oeste, na direção de Éfeso, e di­ ram em várias regiões do mundo helênico. Contu­ rigidos para Trôade e depois para a Macedônia do, Paulo dedicava um cuidado pastoral contínuo (At 16.6-10). Paulo pode ter discernido que o Es­ a elas, pois seu alvo era que cada igreja fosse uma pírito também prevaleceu nos repetidos obstácu­ extensão de seu ministério apostólico. Assim que los, os quais, até a época de escrever ã igreja de estabelecia uma igreja, depois de ministrar os Roma, foram colocados diante de seu plano de ensinamentos básicos, sua esperança era seguir visitar aquela cidade (Rm 1.13; 15.22). Também para outro lugar, confiante de que aquela igreja houve ocasiões em que ele discerniu a interferên­ assumiria o mesmo testemunho do evangelho e cia sobrenatural oriunda de uma fonte diferente: espalharia a mensagem. Por isso, apenas umas “Satanás nos impediu” foi sua explicação para poucas semanas depois de partir de Tessalôni­ os fatores que o impediram de voltar a Tessa­ ca ele pôde elogiar a jovem igreja que ele havia lônica depois de ser obrigado a deixar a cidade deixado para trás, porque, conforme ele disse, “A (ITs 2.18). partir de vós, não somente a palavra do Senhor Quando escreveu aos cristãos romanos, Paulo foi ouvida na Macedônia e na Acaia, mas também considerava concluída sua obra a leste e a oeste a vossa fé em Deus foi divulgada em todos os do Egeu, “não tendo mais o que me detenha nes­ lugares” (ITs 1.8). sas regiões” (Rm 15.23). Seu trabalho durante o Uma igreja assim não era incentivada a pensar tempo em que pregou “o evangelho de Cristo” em si mesma como um “jardim fechado”, mais plenamente “desde Jerusalém e arredores, até o preocupada em evitar invasões pelo deserto ao llírico”, é impressionante, independentemente de redor. Em vez disso, sua responsabilidade era quais tenham sido as circunstâncias. Como diz R. avançar mais e mais deserto adentro. Allen, em 47 d.C. não havia uma tinica igreja nas O mundo romano tinha de ser evangelizado o províncias da Galácia, Ásia, Macedônia e Acaia. mais breve possível. O tempo era limitado. Pau­ Agora, dez anos depois, as quatro províncias es­ lo sabia que ele próprio era o agente especial do tavam evangelizadas de modo tão completo que Senhor nessa empreitada. Sua missão não era a Paulo pôde declarar que seu trabalho naquela tinica entre os gentios, mas ele trabalhou “mui­ parte do mundo estava concluído e que estava to mais que todos eles” (ICo 15.10). Ele talvez planejando repetir um programa semelhante no não vivesse para concluir a tarefa, mas faria o Mediterrâneo Ocidental. máximo possível enquanto pudesse, plantando Desse modo, a obra de Paulo foi extensa, em uma “colônia do céu” (Fp 3.20, tradução do au­ vez de intensa. Ele se concentrou nas cidades tor; “pátria [...] no céu”) após outra, de modo mais importantes localizadas ao longo das estra­ que Cristo fosse apresentado, proclamado e glori­ das principais, às vezes auxiliado por companhei­ ficado em cada setor da região apostólica que lhe ros naquelas cidades ou em cidades vizinhas. Por fora designada. As igrejas deviam brilhar “como exemplo, durante seu ministério em Éfeso, seus luminares no mundo” (Fp 2.15). Assim, um micompanheiros trabalharam nas áreas periféricas mero cada vez maior de pessoas veria “a luz do da província da Ásia (como é õ caso de Epafras, evangelho da glória de Cristo” (2Co 4.4). no vale do Lico), enquanto ele mesmo atuava em 3.3 A autoridade apostólica e as igrejas. Não Éfeso, a fim de que “todos os que habitavam na parece que as igrejas pauhnas tenham estado li­ Ásia [proconsular], tanto judeus como gregos, gadas entre si por meio de alguma organização [ouvissem] a palavra do Senhor” (At 19.10). formal ou visível. Paulo foi o apóstolo que as fun­ 3.2 A missão das igrejas. As igrejas locais dou, e era por meio de sua autoridade apostóhca fundadas por Paulo em todas essas províncias que a autoridade de Cristo, o Senhor de todas as 1010

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igrejas, era transmitida às igrejas paulinas e por elas aceita. 0 línico exemplo de algo que se possa chamar “organização” entre as igrejas de Paulo é seu trabalho de coordenar a coleta para socor­ rer os pobres da igreja de Jerusalém {ICo 16.14 etc.). É possível que o cuidado e a sabedoria prática vistas tão claramente na organização des­ sa coleta de socorro tenham sido empregados na organização da vida e da administração de igrejas individuais e de grupos de igrejas. Mas é evidente que Paulo não estava muito preocupado com esse tipo de organização. Na verdade, seu interesse era que em cada uma de suas igrejas houvesse membros capazes de assumir a lide­ rança espiritual aos demais. Ele preferia que essa capacidade se desenvolvesse e se tornasse visí­ vel no transcorrer do tempo (semanas ou meses, não anos). E, caso achasse que uma igreja estava demorando a reconhecer as qualidades de lide­ rança desta ou daquela pessoa, ele aconselhava a igreja a relevar esses líderes. Por exemplo, ele convida a igreja de Corinto a atentar para a casa de Estéfanas, cujos membros “têm se dedicado ao serviço dos santos”, e a se sujeitar “aos que são como eles e a todo que coopera e trabalha na obra” (ICo 16.15,16). Os cristãos de Corinto, ao que parece, eram impacientes com tudo que dizia respeito à auto­ ridade. No entanto, uns dez ou doze anos após a fundação da igreja de Filipos, constituiu-se ah uma administração organizada de “bispos e diáconos” (Fp 1.1). Contudo, mesmo quando escreveu à igreja de Filipos, Paulo recomendou Epafrodito, homem que merecia honra especial por se sacrificar em sua devoção à obra de Cristo (Fp 2.29,30). É natural que as igrejas paulinas apresentas­ sem certos aspectos em comum, mas não se fez nenhuma tentativa de impor conformidade por meio de regras. Paulo criticou uma de suas igrejas por ter perdido a sintonia com as demais. Entre­ tanto, se ela insistisse nessa postura, tudo que ele podia dizer era: “Se alguém quer ser conten­ cioso, saiba que nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus” (ICo 11.16, a r a ) . Ou seja, se alguém se dispõe a estar em desacordo, que reco­ nheça que o faz por escolha própria. Em casos extremos, um membro pode ser excluído da comunidade, como o homem que

estava vivendo uma relação incestuosa em Corin­ to, subvertendo a ética do evangelho e trazendo descrédito ao nome cristão em uma cidade pagã e permissiva — embora até mesmo essa medida drástica tivesse o propósito de alcançar a salva­ ção do infrator no final (ICo 5.5). Mas não havia meio de excluir urna igreja — não que Paulo ti­ vesse contemplaüo tal ação derrotista, que seria 0 mesmo que repudiar um grupo de seus filhos espirituais, “selo” de seu “apostolado no Senhor” (ICo 4.14-16; 9.2). Em todas essas coisas — disciplina, adminis­ tração e outras —, a presença e o poder orienta­ dor do Espírito Santo eram tão reais para Paulo que ele os deixa implícitos até mesmo onde não os menciona. Se acontecesse de Paulo não confiar que seus convertidos — quer como corpo, quer como indivíduos — progrediriam pelos caminhos que ele havia proposto diante deles, o “modo de vida [de Paulo] em Cristo Jesus” (ICo 4.17), ain­ da assim confiaria no Espírito Santo para que este operasse naqueles convertidos. Desse modo é que as comunidades paulinas foram preparadas para executar o ministério de Paulo no mundo. As restrições alimentares e a observância de dias sagrados não as impediram de ter refeições em comum ou de participar de outras formas de comunhão social com seus vi­ zinhos pagãos (ICo 10.27-30). Apenas a idolatria patente ou a imoralidade sexual foram proibidas. Não por segregação, mas mediante participação, eles podiam brilhar com maior eficácia entre seus vizinhos “como luminares no mundo, retendo a palavra da vida” (Fp 2.15,16). 3.4 Batismo e ceia do Senhor. O b a t is m o e a c e i a d o S e n h o r foram duas instituições dos pri­ mórdios da igreja que Paulo “recebeu” daqueles que estavam em Cristo antes dele e manteve nas igrejas que fundou. 0 batismo era iniciatório. Com base na de­ claração de Jesus aos apóstolos — “João bati­ zou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias” (At 1.5; 11.16) — , podia se inferir que o batismo com o Espírito Santo ocuparia o lugar do batismo em água, mas na verdade ocorreu o contrário. 0 ba­ tismo em água adquiriu significado novo em sua associação com a dádiva do Espírito. Paulo re­ lembra seus convertidos de Corinto de que “todos

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fomos batizados [...] para ser um só corpo [...] e a todos nós foi dado beber [epotisthêmen] de um só Espírito” (ICo 12.13). 0 batismo não é nenliuma experiência individual: “Todos nós, que fo­ mos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte [...] para que [...] assim andemos nós também em novidade de vida” (Rm 6.3,4), “porque todos vós que em Cristo fostes batizados vos revestistes de Cristo [...] [e] porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Cl 3.27,28). No sentido cristão, ser batizado envolve tornar-se membro do Cristo corporificado — por meio do Espírito, que partilha a vida do Cristo exaltado com todos os que estão unidos com ele pela fé. Talvez Paulo não nos tivesse permitido co­ nhecer como ele entendia a ceia do Senhor, se seus convertidos, especialmente os de Corinto, não tivessem se comportado de uma forma que negasse a importância desse rito — uma refei­ ção em que celebravam de tempos em tempos a comunhão que tinham com Cristo e uns com os outros. Mas os membros da igreja que osten­ sivamente participavam da “mesa do Senhor” e também se sentiam livres para cear em um tem­ plo pagão, sob a proteção da divindade ali adora­ da, na prática negavam sua profissão de fé cristã (ICo 10.14-22). De igual modo, os que ostensi­ vamente celebravam a comunhão com os irmãos em Cristo por meio da refeição memorial comum, mas agiam sem bondade e sem consideração para com alguns deles, principalmente os mais pobres e destituídos, era réu de profanação do corpo e do sangue do Senhor e, ao comer e beber, atraíam juízo, não bênção, sobre si (ICo 11.17-32). Nem 0 batismo nem a ceia do Senhor são meios sobrenaturais de evitar o juízo divino, algo que neutralize a lei da semeadura e da colhei­ ta. Eles simbolizam e selam a graça perdoadora de Deus com suas implicações éticas para a vida do crente. Quem acha que está firme deve, portanto, manter-se alerta, a fim de que não caia (ICo 10.11). ' ■ 4. A influência de Paulo 4.1 Nos primeiros séculos. Após sua morte, Pau­ lo foi venerado como santo, apóstolo e mártir pela igreja em quase todos os lugares. É certo que algumas tradições judaizantes execraram sua memória, como aquelas identificadas como 101

literatura pseudoclementina, dos séculos iii e iv. No entanto, elas não afetaram a corrente predo­ minante do pensamento cristão. A igreja de Roma reivindicou-o para si de modo especial, porque foi em Roma que ele pas­ sou seus liltimos dias, e ah ocorreu o martírio que consumou sua carreira apostólica. Perto do final do século ii, os cristãos romanos apontavam com certo orgulho para o monumento fúnebre de Paulo, situado junto à via Ostiense, como se isso acentuasse a autoridade da igreja naquela cidade. Aliás, Paulo recebeu a honra de ser reconhecido com Pedro como o fundador da igreja de Roma — dignidade que o próprio Paulo teria criticado. E quase todas as igrejas com as quais o registro do NT 0 associa tiraram o máximo proveito des­ sa associação (só em Éfeso é que seu nome ten­ deu a ser ofuscado pelo de “João, o discípulo do Senhor”). No entanto, enquanto a memória de Paulo era reverenciada, sua mensagem era pouco com­ preendida. Saber-se gratuitamente justificado pela graça de Deus e regozijar-se na liberdade do Espírito foram experiências desfrutadas por um niimero bem pequeno de cristãos nas gerações pós-paulinas. Inácio de Antioquia não as des­ frutou, pois acreditava que sua aceitação final perante Deus só estaria garantida se seus ossos fossem esmigalhados pelos dentes de animais sel­ vagens. Hermas, em sua maneira mais prosaica, também não as desfrutou, porque era assombra­ do pelo temor de que por algum erro viesse a per­ der irrecuperavelmente o perdão divino. O evangelho sem a Lei pregado por Paulo não é aceito por muitos religiosos, que preferem di­ rigir a própria vida e a dos outros por meio de normas e regras. Assim, ele foi domesticado: o apóstolo que falou tão “perigosamente” (como alguns pensavam) sobre estar hvre da Lei foi transformado em um moralista, para não dizer um legalista. Até o final do século ii, a única pes­ soa que entendia o que Paulo queria dizer com estar livre da Lei, segundo temos conhecimento, foi Marcião — e, nas palavras de Harnack, “até em sua compreensão ele entendeu Paulo erronea­ mente” [History of dogma / [A história do dogma i], London, 1894, p. 89). A heresia de Marcião consistiu em grande parte no fato de forçar a antítese paulina entre Lei e graça até o que ele

Paulo em A tos e nas cartas

julgava ser a conclusão lógica: rejeitar o a t e o Deus revelado no a t por serem irrelevantes para o evangelho de Cristo, aquele que revelou o Pai, até então desconhecido. Por causa de sua heresia, ele não pôde transmitir ao mundo cristão o que ele entendia da mensagem de Paulo, porque o ensino de Marcião foi rejeitado em sua totalidade. Marcião recusava-se a dar à ética do evange­ lho o ahcerce das sanções da Lei. Quando alguns moralistas cristãos, como Tertuhano, escreveram duas gerações após a morte de Marcião e indaga­ ram retoricamente se, com a ausência de tais san­ ções, os cristãos não se entregariam totalmente ao pecado, a resposta de Marcião ainda era “De modo nenhum!” [absit], a qual Tertuliano ridicu­ larizou (Mr, 1.27). Está claro que Marcião estava repetindo a pergunta indignada de Paulo: “Ha­ vemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?” e também a resposta pauhna: “De modo nenhum” (Rm 6.15). Talvez Tertuliano soubesse disso muito bem, mas não resistiu à tentação de marcar um ponto no deba­ te, Mesmo assim, seu raciocínio atraiu a réplica: “E será que teu único motivo para te absteres do pecado é que temes a ira vindoura?” Foi por meio da experiência e do pensamento de Agostinho que se tornou a dar valor ao evan­ gelho pauhno da graça. Quando Agostinho, no jar­ dim da casa de seu amigo em Milão, ouviu uma criança cantar “Tolle, lege!” (“Apanha e lê!”), não foi por acidente que seus olhos repentinamente de­ pararam com as palavras de Paulo (Rm 13.13,14), que encheram sua alma com uma clara luz, desfa­ zendo as trevas da dúvida (386 d.C.). Outros já ha­ viam publicado obras a respeito da graça de Deus, mas nenhum o havia feito de forma tão completa e sistemática, nem com tanta profundidade. Assim como Paulo, Agostinho via-se como alvo imere­ cido da graça divina. Isso é demonstrado de for­ ma suprema em suas Confissões (397-401), não em seus tratados mais formais sobre a graça, nos quais às vezes a lógica de seus argumentos e as exigências da sistematização ameaçam impor limi­ tes à inerentemente ilimitada liberdade e soberania da graça de Deus. No entanto, mesmo nas Confissões se percebe um elemento não paulino. Nessa obra, Agostinho nos presenteia talvez com o primeiro grande en­ saio da literatura mundial sobre a introspecção in i

espiritual. Com certeza, ele percebeu que Paulo falava com entusiasmo da própria condição, mas por esse motivo surgiu a tendência injustificada de supor que antes da conversão Paulo era afe­ tado pelo mesmo tipo de consciência dividida experimentada por Agostinho. Na verdade, Paulo em momento algum demonstra viver um confli­ to interior. Mesmo quando estava perseguindo a igreja, ele mantinha uma boa consciência, porque estava convicto de que fazia a vontade de Deus. Aliás, depois da conversão, quando percebeu a pecaminosidade do caminho que vinha percor­ rendo, ele exaltou a graça divina, que o havia perdoado e chamado a ser apóstolo (v. S t e n d a h l , p. 78-96). Assim, a doutrina da graça transmitida por Agostinho na Idade Média era pauUna apenas em parte, mas não totalmente pura, 4.2 Os séculos posteriores. No aspecto teoló­ gico, a Reforma do século xvi na Europa assinalou um renascimento sem precedentes da mensagem paulina ou pelo menos uma de suas importantes proposições. Martinho Lutero revela sua frustra­ ção ao tentar entender, na Carta aos Romanos, o argumento em que aparece a expressão “a justiça de Deus” (Rm 1.17). Ele a interpretava como “a justiça mediante a qual Deus é justo e age com justíça castigando os injustos”. Ao estudar mais atentamente as Escrituras, porém, ele “entendeu a verdade de que a justiça de Deus é aquela me­ diante a qual, por meio de sua graça e absoluta misericórdia, ele nos justifica pela fé”. Então ele declarou: “Senti que renasci e entrei no paraíso por portas abertas” [Luther's works [Obras de Lutero], edição americana, Philadelphia, 1960, p. 336-7). Como observa K. Stendahl, Martinho Lutero, à semelhança de Agostinho, encontrou na mensagem de Paulo alívio para um conflito inte­ rior. 0 conflito de Lutero era espiritual, enquanto 0 de Agostinho era moral, e em nenhum aspecto eles chegaram a reproduzir a experiência de Pau­ lo, mas a graça justiflcadora de Deus fala à mais ampla variedade de condições humanas. Pode ser que a maneira de Lutero entender a justificação pela fé não tenha deixado de levar em conta outros aspectos da participação que o crente tem em Cristo, mesmo os aspectos éticos. A descoberta de Lutero teve um relevante papel no Grande Avivamento ocorrido no sécu­ lo xvm, principalmente nos Estados Unidos e na

Pa u lo em A tos e nas cartas

Inglaterra, embora outras forças também estives­ sem atuando, de sorte que se proclamou uma versão mais abrangente do evangelho de Paulo, insistindo na “santidade segundo as Escrituras” e ao mesmo tempo aceitando a justificação pela fé. A mais importante dessas influências poste­ riores foi um livreto publicado em 1677 na Escó­ cia, The Ufe of God in the soul of man {A vida de Deus na alma do homem], da autoria de Henry Scougal. Trata-se de uma descoberta e uma ex­ posição do entendimento paulino da vida cristã como “união da alma com Deus, participação real na natureza divina, a própria imagem de Deus sendo o ahcerce da alma, ou, na expressão do apóstolo, ‘Cristo formado em nós’ (cf. Cl 4.19)”. Foi a leitura de The Ufe of God in the soul of man que levou George Whitefield à conversão em 1733, e foi outro expositor das ideias de Paulo que conduziu os irmãos Charles e John Wesley a experiências semelhantes em 1738. Charles foi cativado pela primeira leitura do comentário de Lutero sobre Gálatas, e as palavras de Gála­ tas 2.20 atingiram-no poderosamente: "... que me amou e se entregou por mim" (GI 2.20). Poucos dias depois, ocorreu a experiência de John Wes­ ley na rua Aldergate, quando ele sentiu o cora­ ção “estranhamente aquecido” enquanto ouvia a leitura do prefácio do comentário de Lutero da Carta aos Romanos. Ele escreveu em seu diário: “Senti que confiei mesmo em Cristo, somente em Cristo, para salvação, e tive a certeza de que ele havia levado meus pecados, realmente meus, e me salvado da lei do pecado e da morte”. Esse era o evangelho de Paulo a manifestar na vida pessoal seu poder vital e duradouro, com con­ sequências profundas para a vida social. Foi tal­ vez a combinação de dois elementos essenciais do paulinismo — apropriação inicial da graça justiflcadora de Deus e obra gradativa do Espíri­ to, a reproduzir a semelhança de Cristo na vida do crente — que proporcionou ao reavivamento evangélico um equiliTjrio tão desejável. A concen­ tração em um elemento sem a presença do outro produz uma religião distorcida. Pode se adentrar ainda o século xx e lembrar que Karl Barth, quando começou a ensinar Ro­ manos, sentiu-se como alguém que, apanhando no escuro uma corda para se apoiar, descobre que puxou a corda de um sino, provocando um 101

barulho capaz de acordar os mortos. Quando surgiu a primeira edição de sua Rõmerbrief [Car­ ta aos Romanos], em 1918, um teólogo católico afirmou que o hvro caiu “como uma bomba no playground dos teólogos” (K. A d a m ) . 0 poder explosivo dessa “bomba” era a voz do próprio Paulo, e em todos os movimentos im­ pulsionados pelo Espírito que analisamos, e em outros movimentos também, é a voz do Paulo autêntico, o Paulo das principais cartas, que tem soado, tornando poderosa sua mensagem perene de libertação. Morto, Paulo continua a falar. Ver também a d v e r s á r io s i ; P a u l o , o J u d e u . D PC : AM BIENTE SOCIAL DAS IGREJAS M ISSIONÁRIAS; CRO­

NOLOGIA DE P a u l o ; m is s ã o ; p a s t o r , P a u l o c o m o ; P a u ­ lo

E se u s in t é r p r e t e s ; P a u lo

n a t r a d iç ã o

d a ig r e ja

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P a u l o , f a m íl ia e f o r m a ç ã o d e .

Ver P a u l o

em

A tos e

NAS CARTAS.

P a u l o , in f l u ê n c ia d e .

P a u l o , in im ig o s d e .

P

aulo

,

o

Ver P a u l o

em

Ver a d v e r s á r io s

A to s e n a s c a r t a s .

i.

Judeu

Nos últimos anos, ocorreu uma mudança signi­ ficativa nos estudos paulinos. Durante a primei­ ra metade do século xx, a dominante escola da história das religiões enfatizou uma abordagem helenista de Paulo: entendia-se que Paulo era um judeu helenizado da Diáspora. R. Bultmann e seus seguidores, por exemplo, entendiam que o judaísmo sincretista da Diáspora e a filosofia po­ pular da época foram os antecedentes do pensa­ mento de Paulo. Hoje, porém, os estudiosos do n t encontram cada vez mais provas da judaicidade da vida e do pensamento de Paulo. Essa mudan­ ça faz parte de um movimento geral nos estudos cristãos para redescobrir as raízes judaicas do cristianismo. Ao mesmo tempo, os estudiosos ju­ deus demonstram interesse crescente em reivin­ dicar a judaicidade de Jesus e de Paulo. Por esse motivo, este verbete destaca a dimensão judaica da vida e do pensamento paulinos. Boa parte da atenção que hoje em dia se de­ dica à judaicidade de Paulo está concentrada em seu mundo social. Procura se ir além dos pen­ samentos e palavras de Paulo e assim alcançar questões em torno de seu estilo de vida e com­ portamento. Por exemplo, Paulo alimentava a esperança apocalíptica do cristianismo primitivo.

mas o que isso significava para o cotidiano de um grupo que vivia à parte da vida social pre­ dominante do Império Romano? Uma vez que o estudo social de Paulo é hoje um campo próprio, não é possível apresentar aqui com precisão esse aspecto dos estudos pauhnos. Entretanto, um estudo recente feito por J. Neyrey demonstra que a antropologia cultural lança alguma luz sobre as cartas pauhnas e sobre Paulo, o Judeu. De acordo com Neyrey, o início da criação de Paulo ou sua sociahzação como judeu zeloso da seita dos fariseus condicionou sua maneira de ver o mundo e a realidade. Por essa razão, Paulo nutria profundo interesse por categorias como ordem, hierarquia e hmites em questões de pureza. 0 interesse de Paulo nessas categorias foi transferido para sua perspectiva pós-conversão (v. P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ) . Dessa maneira, após a conversão, Paulo não era uma pessoa inteiramente nova: seu passado ju­ daico continuava a influenciá-lo. Essa continui­ dade será ilustrada mais adiante, na análise que se segue. 1. Declarações autobiográficas de Paulo 2. A educação formal de Paulo no judaísmo 3. A cosmovisão apocalíptica de Paulo 4. Paulo e a compreensão de si mesmo como judeu 5. 0 misticismo de Paulo 6. Paulo e a Torá 1. Declarações autobiográficas de Paulo

lugar certo para começar um estudo sobre Pau­ lo como judeu são suas declarações autobiográfi­ cas. Nesse aspecto, a passagem mais pertinente é Filipenses 3.4-6, texto polêmico em que Paulo destaca explicitamente suas credenciais como ju­ deu: “Eu poderia até mesmo confiar na carne. Se alguém pensa que pode confiar na carne, muito mais eu; circuncidado no oitavo dia, da descen­ dência de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fui fariseu; quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que há na lei, eu era irrepreensível”. Nessa passagem, Paulo deixa claro que pouquíssimos judeus ou cristãos judeus podiam igualar suas credenciais judaicas e seu zelo pela religião. Ainda perseguidos por uma falsa dicotomia entre o judaísmo da Palestina e o da Diáspora, O

1015

Pa u lo , o J udeu

muitos estudiosos de Paulo se recusam a aceitar essas declarações autobiográficas. Os estudos de uma geração anterior concluíram que na Palesti­ na havia um judaísmo puro, centrado na Torá; já na Diáspora, havia um judaísmo helênico e sin­ cretista. E, uma vez que Tarso estava situada na Diáspora, Paulo foi classificado na categoria de judeu helênico sincretista. Em contraste com essa ideia antiga, recentes descobertas arqueológicas e hterárias demons­ tram a rica variedade existente no judaísmo da Palestina, diversificada no que diz respeito à ade­ são à Lei e às línguas faladas além do aramai­ co. Boa parte dessa diversificação está presente no judaísmo da Diáspora, embora o grego fosse 0 idioma predominante. Enquanto o grego era a língua dos judeus de Alexandria e do Egito, a situação linguística era diferente na Síria. Mais tarde, a Síria produziu literatura em aramaico. Geograficamente, Tarso fica bem perto da Síria. Além disso, Jerônimo registra que os pais de Pau­ lo eram oriundos de Giscala, na Galileia. Se Je­ rônimo estiver certo, é bem provável que Paulo falasse hebraico ou aramaico em casa. Entretanto, em Filipenses 3.4-6, há outras informações acerca do judaísmo de Paulo, além do fato de ele reivindicar identidade judaica. Por exemplo, ele afirma ser benjamita. Não está claro o que Paulo queria dizer exatamente com essa afirmação. No entanto, é possível que o que se­ gue esteja expressando certa jactância de Paulo. Jerusalém e o templo estavam localizados nas terras da tribo de Benjamim. Na separação entre o Reino do Norte e Judá, Benjamim e Judá per­ maneceram leais aos reis davídicos. Após o Exílio babilónico. Benjamim e Judá passaram a ser o centro da nova comunidade. Em seguida, Paulo declara ser um “hebreu de hebreus”. Mais uma vez, temos uma expressão ambígua (cf. 2Co 1L22). É possível que esteja querendo dizer que seu sangue era puro no senti­ do de não ter nenhum ancestrargentílico. 0 mais provável, porém, é que ele procura mostrar o con­ traste com os judeus helenistas ou de fala grega. Desse modo, ele está dizendo que aprendeu a falar hebraico em casa. De acordo com R. N. Lon­ genecker, essa interpretação é a mais provável, se lermos Fihpenses à luz de 2Coríntios 11.22, em que Paulo equipara suas qualificações com as de \

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outros judeus ou cristãos judeus: “São hebreus? Eu também sou. São israehtas? Eu também sou. São descendentes de Abraão? Eu também sou” ( L o n g e n e c k e r , p. 22). Como motivo adicional para a jactância de Fi­ lipenses, Paulo afirma ser fariseu. Aqui o termo é definido com precisão. A frase “Quanto à lei, fiii fariseu” refere-se à lei oral. Os saduceus entendiam que apenas a Lei escrita era de obediência obrigató­ ria, ao passo que os fariseus acreditavam que Deus havia revelado a lei oral, bem como a lei escrita. Em Gálatas 1.14, Paulo diz que era “extremamente zelo­ so das tradições de meus antepassados”. A palavra grega para “tradições” é um termo técnico {parado­ sis] que designa a lei oral. A mesma palavra ocorre em Marcos 7.5, passagem em que o Evangelista fala da “tradição dos anciãos”. De acordo com E. Rivkin, dessa forma Paulo se via como membro da classe de estudiosos que ensinava a lei dupla. Ao declarar que os fariseus se assentavam na ca­ deira de Moisés (Mt 23.2), Jesus reconheceu que eles eram mestres competentes da Lei. Por isso, os fariseus acreditavam que eram o verdadeiro Israel e que sabiam qual era a vontade de Deus para o mundo. Outra crença fundamental dos fariseus era a ressurreição dos mortos. Se um membro da comu­ nidade pactuai (judeu) ou um gentio convertido obedecesse à lei oral e escrita, ele tínha a garantía de que seria ressuscitado para a vida eterna. Resumindo: Paulo está dizendo que era al­ guém que falava hebraico e interpretava e ensina­ va a lei oral e a lei escrita. Cabe ainda uma observação, agora no que diz respeito a esta declaração de Paulo: “Quanto à jus­ tiça que há na lei, eu era irrepreensível” (Fp 3.6). Não se deve projetar na psique de Paulo a consci­ ência incomodada pelo sentimento de culpa que se vê no Ocidente, particularmente em Martinho Lutero e sua época (v. S t e n d a h l ) . As inquietações de uma época não são as preocupações de outra. As declarações autobiográficas de Paulo serão mais bem compreendidas se tomadas ao pé da le­ tra — à semelhança dos fariseus nos Evangelhos, ele via a si mesmo como alguém zeloso e justo. 2. A educação formal de Paulo no judaísmo

De acordo com Atos 22.3, Paulo recebeu edu­ cação formal no judaísmo da época “aos pés de 6

Pa ulo , o J udeu

Gamaliel”. 0 famoso Gamaliel foi neto ou filho do renomado Hillel, criador dos métodos exegéticos [middút] mediante os quais se deviam estu­ dar as Escrituras (cf. /. Sank, 7.11; 'Abot R. Nat. [A],§ 37). Alguns estudiosos hoje questionam a afirmação de que Paulo foi instruído por Gama­ liel. Não é possível aqui recapitular o debate so­ bre esse tema, mas uma breve consideração sobre a educação judaica nos dias de Paulo ilumina o contexto dos primeiros dias de Paulo (v. H e n g e l , V . 1, p. 78-83). No início do período helenista, encontramos a apresentação que o renomado Ben- Siraque faz de sua escola, a qual tinha o propósito de ensinar sabedoria aos moços da classe alta (Eo 51.23-28). Algum tempo depois, ainda no período helenista, surgiu um movimento para instruir na Lei toda a população judaica [b. B. Bat., 21a). Esse movi­ mento tentava evitar que o judaísmo fosse absor­ vido pela cultura e língua gregas. Mesmo mais tarde, o esforço por instruir todo o povo tornouse um objetivo preponderante do farisaísmo. Na época de Paulo, havia uma rede de escolas ele­ mentares que ensinavam as Escrituras hebraicas, basicamente o Pentateuco, para meninos de 6 ou 7 anos de idade que começavam a frequentar a escola (y. Ketub., 32c, 4). As escolas mais avança­ das ensinavam os moços a interpretar o texto da BíbUa e a exphcar contradições ali encontradas. Os métodos exegéticos estabelecidos por Hillel foram usados na interpretação do texto da BiTíUa, bem como na aplicação das leis do Pentateuco às necessidades da sociedade judaica da época. Obtém-se alguma compreensão sobre a educa­ ção formal de Paulo quando se consideram suas habilidades exegéticas em uma passagem como Romanos 9.5-29, em que ele emprega as Escritu­ ras hebraicas, técnicas midráshicas e as tradições exegéticas de sua época. Nessa passagem, Paulo discute um problema enfrentado pelos cristãos primitivos: por que a maioria dos judeus rejei­ tou seu Cristo? Ele introduz o tema em Roma­ nos 9.6: “Não é o caso de a palavra de Deus ter falhado”. Em seguida, volta-se para o Pentateuco em busca de passagens que tratam do assunto. 0 texto inicial a que Paulo recorre é Gênesis 21.12: "Em Isaque será chamada a tua descendência” (Rm 9.7, a r a ) . Um segundo texto suplementar é tirado de Gênesis 18.10: “Por este tempo virei, e

Sara terá um filho” (Rm 9.9). No argumento que vem a seguir, Paulo cita outros textos subordina­ dos do AT. As citações subordinadas estão ligadas aos textos inicial e secundário mediante o uso de três palavras-chave: "descendentes” [sperma), “chamado” [kaleõ] e “filho” [huios; v. a d o ç ã o , f i ­ l ia ç ã o ) . E . E . Ellis esboçou da seguinte maneira o padrão de uso das Escrituras nessa passagem de Paulo ( E l l is , p. 155): Romanos 9.6,7

Tema e texto inicial: Gênesis 21.12

Romanos 9.9

Texto secundário e suplemen­ tar: Gênesis 18.10 Romanos 9.10-28 Explanação contendo citações adicionais (Rm 9.13,15,17,2528) e ligada aos textos iniciais mediante o uso das palavraschave kaleõ (“chamar”) e huios (“filho”) (Rm 9.12,24-27) Romanos 9.29 Texto final que, com o uso da palavra-chave sperma (“des­ cendentes” ou “filhos”), faz alusão ao texto inicial

Paulo utiUza várias técnicas midráshicas para compor essa seção. 0 uso de um texto secundá­ rio paralelo para suplementar e elucidar o texto primário é, com frequência, encontrado nos mi­ drashim clássicos posteriores. Também é comum o emprego de um termo-chave no texto inicial e na conclusão, criando dentro da análise uma cor­ respondência entre início e fim [inclusio). Tam­ bém é conhecido o uso de palavras-chave para incluir outras passagens das Escrituras. Na com­ posição de Paulo, a palavra-chave nem sempre é encontrada no texto citado, mas sempre aparece no contexto da citação, senão no próprio texto ci­ tado. De modo semelhante, os rabinos de épocas posteriores nem sempre citavam a palavra-chave. Outros elementos midráshicos encontrados aqui são: fórmulas de introdução ou de citação das Escrituras; interrupções na linha de raciocí­ nio pela necessidade de tratar de uma inferência incorreta ou de um adversário imaginário (tam­ bém encontradas na diatribe); uso de palavras extraídas do texto inicial da exposição. Talvez, nessa unidade, o elemento mais signi­ ficativo nessa espécie de midrash seja o uso que 1 017

Pa u l o , o J u d e u

Paulo faz de tradições exegéticas da época que foram preservadas para nós em obras rabínicas posteriores. Um exemplo fora de Romanos 9.6-29 é ICorintios 10.4, em que Paulo escreve: “Todos beberam da mesma bebida espiritual, porque be­ biam da rocha espiritual que os acompanhava”. A narrativa bíblica não contém nenhuma indicação de que a rocha se movia. Como Paulo sabia disso? De acordo com H, Conzelmann (p. 166-7), Paulo estava utihzando uma tradição hagádica judaica que aparece em obra posterior (t. Sukk., 3.11; cf. b. Ta‘an., 9a; An bí, 11.14; F i l o , Lgal, 2.86). Em Romanos 9.6-29, o texto inicial (Gn 21.12) foi mais tarde empregado de duas maneiras nas obras rabínicas. Primeira: o Talmude babilónico cita Gênesis 21.12 em vários lugares. A passagem a seguir, de Sanhedrin 59b, é típica: Desde o início, a circuncisão foi ordenada apenas a Abraão [...]. Se é assim, não devia ser obrigatória para os filhos de Ismael (filho de Abraão)? Pois em Isaque será chamada a tua semente. Então os filhos de Esaii não estariam obrigados a praticá-la? Em Isaque, mas nâo em todo Isaque (edição de Soncino}. Tanto Paulo quanto o Talmude babilónico, escrito mais tarde, utilizam o mesmo texto para mostrar quem pertencia a Israel, e ambos associam Esaú a esse texto. Entretanto, ao contrário de Paulo, o Tal­ mude associa a expressão “em Isaque” ã descen­ dência meramente física de ancestrais judaicos. Contudo, é ainda mais notável a maneira em que Paulo e, mais tarde, o Rabbah de Gêne­ sis fazem a exegese desse texto. Aqui, além da descendência física, existe outro fator associado à expressão “em Isaque”. (A fim de entender a passagem abaixo, o leitor precisa saber que no hebraico do século i as letras também tinham valor numérico: visto que bêt é a segunda letra do alfabeto, também era o sínibolo do número dois.) No Midrash Rabbah Gênesis 53.12, lemos 0 seguinte: E D eus

d is s e a

A b r a ã o : n ã o t e p a r e ç a is s o m a l

AOS TEUS OLHOS [ . . . )

PORQUE EM ISAQUE A SEMENTE

12); 0 T. Judan b. Shi\ lum disse: Não “Isaque”, mas e m I s a q u e está escrito aqui. 0 v. ‘Azariah disse que no nome SERÁ CHAMADA PARA T I ( x x i ,

de Bar utah o bêt ( e m ) denota dois, isto é, [tua semente será chamada] naquele que reconhece a existência de dois mundos; ele herdará dois mundos [Deus diz]; “dei um sinal [mediante o qual se podem conhecer os verdadeiros des­ cendentes de Abraão]”, a saber, aquele que expressamente reconhece [os juízos de Deus]: dessa forma, quem quer que acredite nos dois mundos será chamado “tua semente”, enquan­ to aquele que rejeita a crença nos dois mundos não será chamado “tua semente” (edição de Soncino, p. 471) Nesse midrash, os verdadeiros descendentes de Abraão vivem em dois mundos. Essa é exatamen­ te a ideia de Paulo em Romanos. Sozinha, a des­ cendência física não é suficiente; os que detêm certa crença ou tipo de fé são filhos de Abraão. Ao comentar acerca de Romanos 9.6-29, Paulo es­ creve 0 seguinte em Romanos 9.30-32: Que diremos? Que os gentios, que não bus­ cavam justiça, alcançaram justiça, mas justíça que vem da fé. Mas Israel, buscando a lei da justiça, não alcançou essa lei. Por quê? Porque não a buscaram pela fé, mas com base nas obras; e tropeçaram na pedra de tropeço. A concepção paulina de fé está intímamente rela­ cionada ao que observamos no Midrash Rabbah. Na condição de fariseu, Paulo havia crido nos dois mundos, isto é, não apenas no mundo pre­ sente, mas também na ressurreição — o mundo por vir. Depois que se encontrou com o Cristo res­ suscitado na estrada de Damasco, Paulo interpre­ tou o Cristo como as “primícias” da ressurreição geral que se seguiria. Desse momento em diante, sua crença em uma ressurreição gera! se concre­ tizou em uma pessoa específica, por intermédio de quem ele havia experimentado tanto reconci­ liação com Deus quanto tudo que o termo “fé” significava para ele. Contudo, antes de tirar quaisquer conclusões, é preciso acrescentar outro detalhe ao quadro. Rabbah de Gênesis não é o único escrito rabíni­ co posterior em que a crença em dois mundos é associada a Gênesis 21.12. Boa parte da mesma interpretação também se encontra no Talmude de Jerusalém [Ned., 2.10). Aqui também o bêt

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significa “dois” e aponta para um judeu que crê em dois mundos. Essas duas fontes palestinas mais recentes aventam a possibilidade de que na Palestina havia uma tradição exegética que associava Gê­ nesis 21.12 à crença em dois mundos. Como já vimos, o Talmude babilónico desconhece essa tradição e entende que Gênesis 21.12 significa apenas descendência física. Ainda assim, permanece a pergunta: como Paulo e essa tradição exegética (se é que era isso) encontrada em fontes publicadas centenas de anos depois do apóstolo poderiam ter interpreta­ do o mesmo versículo de forma tão semelhante? G. Vermes apresenta uma solução (V e r m e s , cap. 6). Antes de tudo, ele rejeita várias possibilida­ des: que o NT depende do Talmude e do Rabbah de Gênesis (que não existiam na época do n t ) ; que a tradição exegética posterior se baseou em Paulo; que as semelhanças são mera coincidência (existe demasiada sobreposição). Em vez disso, ele deixa em aberto a possibilidade de que o n t e a tradição exegética rabínica posterior tiveram uma fonte comum, a saber, o ensino judaico tra­ dicional. As tradições exegéticas existiram por centenas de anos, e Vermes é de opinião que Paulo conhecia a tradição exegética associada a Gênesis 21.12. Essa tradição existia nas escolas da Palestina e mais tarde ressurgiu no Talmude de Jerusalém e no Rabbah de Gênesis. E, é claro, isso resulta na possibilidade de que uma tradição exegética palestina tenha sido uma das fontes da doutrina paulina da justificação por meio da fé. Além disso, aparentemente, outra tradição exegética estava associada ao segundo texto de Paulo: “Por este tempo virei, e Sara terá um fi­ lho”. No Rabbah de Gênesis e em outras passa­ gens (v. S t e g n e r , p. 47), Gênesis 18.10 e a figura de Sara estavam associados ao tema da imutabili­ dade da obra de Deus. 0 uso de técnicas midráshicas e tradições exe­ géticas de sua época que Paulo faz das Escritu­ ras em sua análise de Romanos 9.6-29 produziu uma composição bastante refinada. Portanto, não pode ter sido produto de uma mente não instruí­ da. Se Paulo não foi ensinado por Gamaliel, então 0 foi por outro mestre judeu. De qualquer forma, parece claro que Paulo recebeu uma educação formal no judaísmo. 101

3. A cosm ovisão apocalíptica de Paulo

Será que a cosmovisão apocalíptica de Paulo (v. a p o c a u p t is m o ) ocupava o centro de seu pensamen­ to e de sua teologia? Ao responder a essa per­ gunta, alguns estudiosos começam definindo o termo, depois procuram passagens paulinas que correspondam àquela definição e, desse modo, concluem se o apocaliptismo era ou não o foco da atenção no pensamento do apóstolo. Entre­ tanto, uma vez que as definições variam de um estudioso para outro, é melhor começar com a centralidade da crença paulina na ressurreição de Jesus e a partir daí desenvolver o assunto. W. Pannenberg sem dúvida está correto em ressaltar que no judaísmo do século i a r e s s u r r e i ­ ç ã o só podia ser expressa na linguagem da tradi­ ção apocalíptica ( P a n n e n b e r g , p. 96). De fato, a crença na ressurreição fazia parte da esperança e da cosmovisão apocalíptica. Por exemplo, os dis­ cípulos tinham de ter um entendimento da res­ surreição antes de concluir que o túmulo vazio e as aparições de Jesus indicavam que ele havia ressuscitado. As centenas de ossários (recipien­ tes em que se guardavam os ossos dos mortos) que os arqueólogos descobriram em Jerusalém podem ser a prova material da esperança de uma ressurreição futura alimentada pelos judeus do século I. É óbvio que a ressurreição era um dos elemen­ tos principais da mensagem de Paulo. 0 texto de ICorintios 15 é mais que suficiente para ilustrar essa ideia, e Paulo repetidas vezes menciona a ressurreição: a morte salvadora de Cristo e sua ressurreição parecem ter sido o foco da pregação do apóstolo. Além do mais, a ressurreição de Jesus são as primícias que antecipam e autenticam a ressurrei­ ção de todos os que pertencem a ele (ICo 15.23). Essa ressurreição envolverá uma transformação como a que o corpo de Jesus experimentou no túmulo. Paulo apresenta uma demonstração dis­ so em Filipenses 3.20,21: “Aguardamos um Sal­ vador, 0 Senhor Jesus Cristo, que transformará o corpo da nossa humilhação, para ser semelhante ao corpo da sua glória, pelo seu poder eficaz de sujeitar a si todas as coisas”. Em estilo apocalíp­ tico, Paulo fala de ressurreição e transformação corpóreas até onde se pode imaginar um corpo espiritual na qualidade de corpo. 9

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Além disso, a ressurreição de Jesus como as primícias do fim acentuou a expectativa da res­ surreição geral no fim desta era e a consequente transformação de toda a criação (v. esca to lo gia ] . Assim, Paulo acreditava que o fim desta era es­ tava bem próximo. De acordo com ITessaloni­ censes 4.13-18, ele esperava estar vivo (ITs 4.15) quando Jesus voltasse. Então se dariam dois acontecimentos inter-relacionados. Primeiro, “Os que morreram em Cristo ressuscitarão”. Segundo, os vivos serão transformados (ideia também exis­ tente em ICo 15.51). A ressurreição dos mortos e a transformação dos vivos seriam acompanhadas da transformação da natureza e de toda a cria­ ção; “A própria criação [será] libertada do cati­ veiro da degeneração, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). Isso é sem dtívida apocaUptismo. Paulo partilhava da crença apocalíptica nas duas eras: a era presente e má será transformada por um ato de Deus na era vindoura, o reino de Deus (v. REINO d e D e u s ) . Dessa maneira, Paulo diz que “toda a criação geme e agoniza até agora” (Rm 8.22) e “aguarda ansiosamente a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8.19). Talvez o principal ingrediente do apocaliptismo tenha sido a categoria da revelação. A maioria dos escritos apocalípticos revela o futuro. Paulo também revela o futuro. Ao descrever o propósito divino para o futu­ ro, Paulo, como outros apocaliptistas, emprega a palavra “mistério” [mysterion, e.g., Rm 11.25). 0 uso que Paulo faz do termo tem antecedentes ju­ daicos e apocalípticos. Falando de modo geral, os apocahpses judaicos apresentavam os propósitos de Deus para a história, bem como a proximidade do fim desta era. 0 termo “mistério” designava um propósito ou segredo divino que os seres hu­ manos não podiam conhecer mediante a razão: tinha de ser revelado por Deus. De acordo com o mistério que Paulo está re­ velando, Deus formou outro povo em Cristo, e a descrença do povo judeu levou o evangelho a ser pregado aos gentios. Entretanto, no final dos tempos Deus atrairá “todo o Israel” para a fé, presumivelmente o povo judeu que não crê em Cristo (v. I s r a e l ) . Muitos intérpretes concluem que Paulo está contando um segredo ou uma revelação que

recebeu de Deus. Outros não estão seguros dis­ so. A despeito de como Paulo recebeu o misté­ rio, esse termo era de uso comum na linguagem apocalíptica. Mesmo assim, no emprego de imagens e hn­ guagem apocalípticas tradicionais, existe uma diferença entre Paulo e os demais apocaliptistas. Está ausente em Paulo a clara separação entre esta era e a vindoura. A ressurreição de Jesus, mais especificamente sua crucificação e ressurrei­ ção, introduziu um novo fator na equação. Existe uma sobreposição entre as duas eras: a nova era está prolepticamente presente na obra da reconci­ liação realizada por Cristo. Realmente, a transfor­ mação dos crentes ocorre em segredo no interior: “Todos nós, [...] refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem” (2Co 3.18). 4. Paulo e a compreensão de si mesmo como judeu

A anáhse do termo “mistério” e o contexto imediato da palavra em Romanos 9—11 intro­ duzem outra dimensão da judaicidade de Paulo, a saber, a contínua compreensão de si mesmo como judeu. A seção de Romanos 9— 11, mais que qualquer outra passagem, permite perscrutar a maneira em que Paulo se entendia como judeu. Ao iniciar sua anáhse, em Romanos 9.2,3, ele revela o que sente por seu povo, seus "parentes segundo a carne”. Ele sofre com a increduhdade dos judeus como só um judeu seria capaz de so­ frer. Perturbado com o fato de os judeus em geral terem rejeitado o “Cristo”, Paulo rejeita a possibih­ dade “de a palavra de Deus ter falhado” (Rm 9.6). Em Romanos 11.1, Paulo também não aceita a ideia de que Deus “rejeitou o seu povo". A solu­ ção é simples: a increduhdade dos judeus levou o evangelho a ser pregado aos gentios, que por sua vez creram. Embora Paulo fosse o “apóstolo dos gentios” (Rm 11.13), ele não consegue se esque­ cer de seu povo. Na verdade, o fato de os gentios se voltarem para Cristo faz com que os judeus fi­ quem enciumados: “Uma vez que sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se de algum modo posso provocar ciiimes nos da minha raça e salvar alguns deles” (Rm 11.13,14). 0 próprio vigor com que Paulo desempenhou seu apostolado gentílico indica para alguns intérpretes

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que Paulo acreditava estar se envolvendo no pro­ pósito escatológico divino de salvar todo o Israel. Paulo não apenas sentia “grande tristeza” pelos de sua etnia, mas também se dedicou à salvação deles, sendo a conversão dos judeus uma conse­ quência de sua missão gentílica. Nesse ponto, a tendência dos estudos recen­ tes tem sido tomar caminhos opostos. Alguns estudiosos sustentam que Paulo está defendendo um povo de Deus dividido por duas alianças: os gentios se aproximam de Deus por meio da fé, ao passo que os judeus se aproximam dele por meio da Torá ( G a s t o n ; G a g e r ; S t e n d a h l ) . Sem dúvida, a maioria dos estudiosos do n t está certa em defen­ der que a abordagem a qualquer uma das duas ahanças levará o navio a pique quando se chocar com a rocha de Romanos 10 (v. L e i ) . Se os judeus precisam vir a crer em Cristo para ser salvos, como Deus reahzará isso? Paulo sabe que a eleição dos judeus ainda está de pé (Rm 11.28,29) e conhece o plano secreto (“mis­ tério”) de Deus (observem-se os elementos de autocompreensão implícitos aqui). Depois que “o número completo de não judeus [vier] para Deus” (n t l h ) , então “todo o Israel será salvo” (Rm 11.25,26). Será que o ciúme por causa do “número completo” de gentios levará os judeus à fé? Será que a segunda vinda de Jesus despertará essa fé? Paulo revela o propósito geral de Deus para Israel, mas não os detalhes. Paulo ainda se vê como um judeu que crê em Cristo e tem acesso ao plano oculto de Deus. Até mesmo a ideia de os gentios serem reuni­ dos no fim dos tempos fazia parte da herança ju­ daica de Paulo. Em alguns cenários apocalípticos, os gentios seriam convertidos no final dos tempos e fariam uma peregrinação a Jerusalém. Parece que a expectativa de os gentios serem reunidos está por trás de Romanos 11.25. Entretanto, no mistério que Paulo está partilhando. Deus formou com cristãos judeus e convertidos gentios um novo povo de Deus em Cristo. Como já vimos, a increduhdade do povo judeu levou o evangelho a ser pregado aos gentios. 5. O m isticism o de Paulo

Os estudos contemporâneos estão apenas come­ çando a explorar o misticismo de Paulo. 0 misti­ cismo de Paulo é misticismo judaico, deriva do

judaísmo da Palestina e precisa ser definido com cuidado. O misticismo de Paulo é tão bem definido pelo que não é quanto por aquilo que é. Fracassou a tentativa de uma geração anterior de inserir Paulo nas religiões de mistério do mundo helênico (v. r e l i g i õ e s g r e c o - r o m a n a s ) com base no uso paulino do termo grego mystèrion. Além disso, o debate mais antigo sobre o misticismo de Paulo acerca de Cristo, relacionado com o fato de ele usar repetidamente a expressão “ em C r i s t o ” , não é a questão na qual os estudiosos de hoje estão in­ teressados. Em vez disso, a melhor maneira de definir o misticismo de Paulo é mediante 1) a ex­ periência contada por ele em 2Coríntios 12.1-4 e mediante 2) seu conhecimento do plano escato­ lógico de Deus (já explicado na análise do termo “mistério”). Em 2Coríntios 12.1, Paulo se gloria de “visões e revelações do Senhor”. Ele passa a relatar a ocasião em que foi “arrebatado ao ter­ ceiro céu” (2Co 12.2) e depois “arrebatado ao paraíso” (2Co 12.3), onde “ouviu palavras inex­ primíveis, as quais não é permitido ao homem mencionar” (2Co 12.4). Quais são os antecedentes desse tipo de expe­ riência? Está surgindo entre os estudiosos o con­ senso de que o misticismo merkabah (relacionado com a visão que Ezequiel teve do carro-trono — merkãbá — de Deus) representa os antecedentes da experiência de Paulo (v., e.g., B o w ík e r e S e g a l ) . G . Scholem, na Enciclopédia judaica, associa o misticismo merkabah antigo a certos círculos de fariseus, particularmente Johanan ben Zakkai, que se distinguiu por voha de 70 d.C., e com Aki­ ba, que viveu mais tarde. Hoje em dia, os estudiosos estão situando o misticismo merkabah em data anterior àquela proposta por Scholem. Entre os m a n u s c r ito s d o m a r M o r t o , foram encontrados fragmentos de uma Liturgia angélica (4Q400-407 = 4QShirShabb). Esses fragmentos descrevem o carro-trono divi­ no, tema central do misticismo judaico primitivo. Esse achado mostra que Paulo podia estar fami­ liarizado com 0 misticismo merkabah, especial­ mente pelo fato de ter sido contemporâneo de Johanan ben Zakkai. O misticismo judaico primitivo estava con­ centrado na Palestina e se expressa na literatura apocalíptica, como a tradição de Enoque — por

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exemplo, em lEnoque (70 e 71), 2Enoque (22) 3EnoCertos círculos farisaicos se concentravam no primeiro capítulo de Ezequiel, que conta a histó­ ria do carro-trono (merkãbá) de Deus. Scholem acrescenta que, no início, a literatura fala de uma “subida à merkabah” (S c h o le m , 1961, p. 46). Essa forma inicial de misticismo judaico se harmoniza com as declarações autobiográficas de Paulo. Em Filipenses 3.5,6, Paulo conta que foi um fariseu zeloso e irrepreensível “quanto à justiça que há na lei”. Em 2Coríntios 11.22, pas­ sagem que imediatamente precede a descrição de suas visões, Paulo destaca que descende de Abraão: “São descendentes de Abraão? Eu tam­ bém sou”. Em seu im'cio, o misticismo judaico era praticado em certos círculos farisaicos. Entretan­ to, nem todo fariseu tinha permissão para estudar Ezequiel 1, por causa dos perigos envolvidos (cf. m. ag., 2.1), pois, se o exegeta tivesse de novo a visão do carro-trono e não estivesse em estado de pureza ritual, poderia morrer: “Não poderás ver a minha face, porque homem nenhum pode ver a minha face e viver” (Êx 33.20). Por esse moti­ vo, Johanan ben Zakkai ensinava a contemplação mística apenas a “seus alunos prediletos”. J. W. Bowker destaca a importância das credenciais judaicas do exegeta, como o fato de descender diretamente de Abraão. As credenciais de Paulo atendem a essas exigências. Entretanto, ainda mais importantes que as credenciais de Paulo para estabelecer uma liga­ ção entre o apóstolo e o misticismo merkabah é o que ele escreve em 2Coríntios 12.1-4. Destacamse três expressões: ser “arrebatado” [harpazõ), o “terceiro céu” (tritos ouranos) e “paraíso” [paradeisos). J. D. Tabor demonstra que essas palavras pertenciam ao vocabulário do misticismo judai­ co e, como ilustração, cita Vida de Adão e Eva (25.3), obra do século i:

que.

E eu vi um carro como o vento, e suas ro­ das eram de fogo. Fui arrebatado ao Paraíso de justiça e vi 0 Senhor assentado, e sua aparên­ cia era de um insuportável fogo abrasador. E muitos milhares de anjos estavam ã direita e ã esquerda do carro (orp, v. 2, p. 266-8). Nesse excerto, o místico não está falando do futu­ ro, mas da habitação de Deus no Paraíso, talvez

no sétimo céu. Outras visões associam o Paraíso ao terceiro céu. Por fim, 0 livro de Atos registra que Paulo teve experiências de visões. Embora nem todas as vi­ sões sejam as mesmas, a repetição de vocabulário mais as credenciais de Paulo mostram que sua visão de 2Coríntios 12.1-4 era do tipo associado ao misticismo merkabah. Ademais, a cosmovisão apocalíptica de Paulo e seu conceito de mistério (revelação do plano futuro de Deus) são outras indicações de sua tendência ao misticismo. Existe uma interação fascinante entre as fa­ cetas de Paulo, o Judeu, que examinamos até aqui. As declarações autobiográficas revelam seu farisaísmo, seu zelo e sua justiça sob a Lei. Seus escritos revelam habilidades exegéticas e uma apropriação das tradições exegéticas mediante as quais ele interpretava as passagens da l x x . Tudo isso é prova de que ele recebeu instrução formal no judaísmo de sua época. É claro que o ensi­ no formal foi uma condição prévia para sua ins­ trução no misticismo merkabah. Além do mais, seu misticismo e sua cosmovisão apocalíptica se harmonizam com perfeição. Uma vez que a revelação do plano de Deus para o futuro é um ingrediente essencial do apocaliptismo, a revela­ ção mística e o apocaliptismo são mutuamente dependentes. Duas notáveis observações surgem do resumo que acabamos de apresentar. A primeira inda­ ga até que ponto Paulo se encaixa no judaísmo palestino do século i antes de 70 d.C., conforme o conhecemos de outras fontes. Por exemplo, a mesma combinação de zelo pela Lei, cosmovi­ são apocalíptica e misticismo caracterizaram os sectários de Qumran. Embora não fosse essênio, Paulo se destaca como um fariseu da época ca­ racterizado por uma grande devoção religiosa. A segunda observação diz respeito à maneira em que as várias peças se encaixam tão bem num todo harmonioso. Até agora, Paulo foi apresenta­ do como alguém sem grande importância, que se sentia pouco ã vontade vivendo em dois mundos — o helenista e o judaico. Até agora, Paulo foi apresentado como um homem marcado por ob­ jetivos conflitantes e sérias contradições íntimas. Esse não é o quadro que surge do estudo acima, A esta altura, estamos prontos para examinar o elemento que despedaçou a unidade de sua

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síntese pré-conversão — sua relação com a Torá. Contudo, nada define Paulo, o Judeu, de modo tão convincente quanto seu contínuo interesse na Torá. De um lado, ele não pode rejeitá-la total­ mente; de outro, não pode aceitá-la como antes.

simplesmente o meio de manter aquela condi­ ção dentro do pacto. Então o que Paulo estava condenando ao mencionar as “obras da lei”? Ao responder a essa pergunta, J. D. G. Dunn. que aceita a ideia de Sanders sobre o judaísmo do século i, leva 6. Paulo e a Torá o argumento mais adiante. Dunn destaca que São muitas as obras sobre a relação entre Paulo e a expressão “obras da lei” ocorre três vezes em a Torá, ou seja, a Lei. Aqui, nosso propósito não é Gálatas 2.16. Mais importante ainda, nessa passa­ recapitular essas obras (v., e.g., D u n n e S a n d e r s ) , gem, a questão é a comunhão à mesa entre cris­ mas esboçar os temas importantes no debate tãos judeus e cristãos gentios, e nesse contexto atual (v. L e i ) . Aliás, em consequência do debate Paulo estava se opondo aos cristãos judeus que contemporâneo, uma nova perspectiva de Paulo insistiam em manter as leis alimentares. Para o está começando a receber atenção. apóstolo, 0 âmago da questão é a inclusão dos Para os estudiosos, o dilema é criado pelas gentios na comunidade messiânica em pé de declarações aparentemente contraditórias que igualdade com os cristãos judeus. Os cristãos ju­ Paulo faz acerca da Lei. Por um lado, parece deus desejavam que os gentios se tornassem ju­ que Paulo tinha uma ideia positiva da Lei: “A lei deus para então participar da comunhão à mesa é santa, e o mandamento, santo, justo e bom” com os cristãos que observavam as leis judaicas. (Rm 7.12); “Por acaso anulamos a lei pela fé? Desse modo, a questão não era tanto a justiça de­ De modo nenhum; pelo contrário, confirmamos corrente de méritos, e sim a exclusividade racial. a lei” (Rm 3.31). Por outro lado, Paulo escreve De acordo com Dunn, Paulo achava que o proble­ negativamente a respeito da Lei e parece atacáma eram as observâncias da Lei, que separavam la: “Ninguém será justificado pelas obras da lei” judeus e gentios. (GI 2.16); “Cristo é o fim [no sentido de término] Para Dunn, o assunto tratado por Paulo não da lei para a justificação de todo aquele que crê” dizia respeito à salvação: era uma questão so­ (Rm 10.4). Estaria Paulo se contradizendo? ciológica. As “obras da lei” eram a circuncisão, De acordo com o pensamento tradicional, as leis sobre pureza e alimentação e a guarda do Paulo rompeu radicalmente com a ideia positiva sábado. No mundo antigo, os escritores pagãos do ATsobre a Lei. Ele rejeitou a Lei e viu em Cristo consideravam essas práticas exclusivamente ju­ o término ou o fim da Lei. R. Bultmann e outros daicas. As “obras da lei” demarcavam “os limites exegetas luteranos da Alemanha expressam me­ do povo da aUança” (D u n n , p. 193). Paulo dizia lhor esse pensamento. Os judeus obedeciam à Lei não à Lei no momento em que ela estabelecia a fim de acumular méritos para si e, desse modo, limites para o povo da aUança. Dessa maneira, alcançar a salvação. Aliás, o fariseu era pior que ele estava ao mesmo tempo dizendo sim e não a maioria dos pecadores por ser quem melhor para a Lei. De acordo com Dunn, Paulo dizia não exemplificava o esforço humano de afirmar sua à Lei quando ela reforçava a nacionalidade e o independência de Deus e de sua graça. exclusivismo judaicos, mas dizia sim quando ela E. P. Sanders, com base no nomismo pactu­ expressava a vontade de Deus. ai, objetou à interpretação tradicional da Lei. Como Paulo, o Judeu, podia fazer isso? Como Depois de examinar exaustivamente a literatura podia dizer não a algumas determinações da Lei e judaica da época, Sanders questionou a compre­ sim para outras? Parece que a resposta está na ensão de Bultmann sobre o judaísmo do século cosmovisão apocalíptica de Paulo. Uma mudan­ i: Bultmann havia projetado no século i o con­ ça havia ocorrido da antiga era para a nova era flito de Lutero com o catolicismo. A aUança, a em Cristo. A Lei, ou seja, a Torá, foi substituí­ Lei e a condição especial de povo eleito de Deus da por Cristo. A declaração de Paulo em Roma­ (daí 0 termo “nomismo pactuai”) eram dons da nos 10.4 é decisiva: “Cristo é o fim da lei para a graça de Deus para Israel. Os judeus não preci­ justificação de todo aquele que crê”. Paulo não savam conquistar o que já possuíam: a Lei era estava falando do “fim” como término da Lei, mas 1023

Pa u l o , o J u d e u

como objetivo ou cumprimento. Embora a Lei ainda definisse a vontade de Deus, ela não mais atuava para a salvação. A nova era havia chegado, e a Lei havia sido substituída pelo novo presente de Deus: Cristo. Por isso, Paulo escreveu em ICo­ rintios 15.20-22: Na verdade. Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele o primeiro entre os que fa­ leceram. Porque, assim como a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Pois, assim como em Adão todos morrem, do mesmo modo em Cris­ to todos serão vivificados. A nova perspectiva, primeiramente proposta por Sanders e depois promovida por Dunn, não res­ ponde a todas as perguntas sobre Paulo e a Torá, mas apresenta algumas respostas. Ela tende a resolver a denominada “atitude contraditória” de Paulo diante da Lei, como já vimos. Essa nova perspectiva também dá margem a certa continui­ dade entre a atitude geralmente positiva do at diante da Lei e a atitude de Paulo. Paulo opôs-se aos aspectos mais nacionalistas e exclusivistas da Lei porque o novo ato de Deus em Cristo havia estendido a aliança aos gentios: a graça substituí­ ra os rituais e a raça. A recente pesquisa de P. Tomson confirma de modo notável a observação, feita por Dunn, de que Paulo sustentava a Lei quando ela expressa­ va a vontade de Deus. Em ICoríndos 5.1-5, por exemplo, Paulo escreve sobre um homem que está a “manter relações sexuais com a mulher de seu pai”. A questão são as relações sexuais proibidas de acordo com Levítico 18.1-18. Paulo insiste que a igreja expulse esse homem. Tomson descobre uma conformidade ponto por ponto en­ tre a análise feita por Paulo e a tradição judaica posterior que esclarece a questão das relações sexuais proibidas. Esse é apenas um exemplo da continuidade entre os ensinos éticos de Paulo e a tradição legal judaica. Por último, essa nova perspectiva nos permi­ te ver Paulo mais claramente como um judeu do século 1. Os estudiosos judeus há muito tempo vêm alegando que Paulo entendeu erroneamente o judaísmo e que seu entendimento da Lei divergia da maioria dos judeus do século i. Na realidade, li

de acordo com Dunn, a versão luterana do pensa­ mento de Paulo tem sido o problema. Paulo foi um autêntico judeu do século i, e não houve ruptura significativa entre ele e seu passado judaico. Ele era um filho de Abraão que não concordava que se limitasse a ahança ã nação judaica: Abraão deveria ser uma bênção para todas as famílias da terra. Dentre várias perguntas que ainda estão sem resposta, está aquela sobre o ensino que Paulo ministrou ao cristianismo judaico. Estaria Paulo pedindo aos cristãos judeus que, em sua prática, abandonassem os demarcadores da Lei? Estaria ele ensinando que deixassem de circuncidar os filhos e de observar as leis alimentares em casa? Ou estaria falando da comunhão entre cristãos judeus e cristãos gentios em lugares como Antio­ quia e outras congregações mistas? Pode se fazer a pergunta de modo mais direto: teria o próprio Paulo abandonado aqueles demarcadores (“obras da lei”)? Ou será que ele continuava a observálos, desde que não interferissem no seu apostola­ do aos gentios? Parece ainda não haver uma res­ posta clara a essa pergunta. Só umas poucas vozes cristãs judaicas sobre­ viveram para nos contar como o cristianismo ju­ daico reagiu às ideias de Paulo a respeito da Lei. Se essas vozes sobreviventes são representativas dos vários grupos que constituíam o cristianismo judaico, não sabemos. Entretanto, embora ressal­ tassem a judaicidade de Jesus, elas tinham Paulo na conta de vilão ( F l u s s e r , cap. 13). Alguns cris­ tãos judeus viam em Pedro seu verdadeiro líder, enquanto outros preferiam Tiago, o líder da igreja em Jerusalém. Será que essas vozes judaico-cristãs represen­ tam o veredicto final acerca de Paulo, o Judeu? Esperamos que não. Com a redescoberta, pelos estudiosos, do judaísmo dos dias de Paulo, tal­ vez algumas vozes judaicas contemporâneas do apóstolo venham a oferecer uma avaliação mais positiva de Paulo, o Judeu. Ver também a p o c a lip t is m o ; I s r a e l ; ju d a ís m o e o Novo T e s t a m e n t o ; L e i ; P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ; P a u l o em A t o s e n a s c a r t a s ; t r a d i ç õ e s e e s c r i t o s

RABÍNICOS.

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obras

da

restauração

P e ca d o i : Pau lo

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P

au lo

,

o ponentes d e.

P a u l o , v ia g e n s d e .

P

ecado i:

Ver

a d v e r s á r io s

Ver P a u l o

i.

em A t o s e n a s c a r t a s .

P aulo

existem mais de 30 palavras que transmi­ tem algum conceito de pecado, e Paulo emprega pelo menos 24 delas. Palavras com o sentido psi­ cológico de “culpa” são bem pouco usadas por ele, mas podemos afirmar que muito do que ele diz sobre pecado inclui a ideia de que o peca­ dor é alguém que tem culpa. Afinal, cometer um pecado é ser culpado desse pecado. Embora não se possa dizer que Paulo tinha uma preocupação mórbida com o pecado, pode se apontar para o fato de que ele reconhece que o mal que o ser humano pratica é uma barreira à comunhão com D e u s e, a menos que se encontre uma maneira de lidar com o problema do pecado, no futuro todos terão, na condição de pecadores, de prestar con­ tas por suas decisões morais (Rm 2.16; ICo 4.5; 2Co 5.10). A isso também devemos acrescentar que a atitude que prevalece em Paulo não é de tristeza, nem de pessimismo sem fim. Pelo con­ trário, ele continuamente se regozija no fato de que em C r i s t o o pecado foi derrotado, de modo que 0 crente não tem nada que temer nem nes­ te mundo, nem no vindouro. (Quanto à ideia de que o pensamento de Paulo se move “para trás”, da solução da salvação em Cristo para a condi­ ção desfavorável dos seres humanos, v. S a n d e r s , 1977, p. 442-7, 474-511; cf. W r i g h t , p. 258-62.) Em sua Carta aos Romanos, Paulo discorre ex­ tensamente sobre o problema do pecado. Nessa carta, ele usa 48 vezes o substantivo “pecado” [hamartia), 9 vezes o substantivo “transgressão” ou “ofensa” [paraptõma), 7 vezes o verbo “pecar” [hamartãno], 4 vezes o substantivo “pecador” [hamartõlos], 15 vezes o adjetivo “mau” [kakos] e 7 vezes o substantivo “injustiça” [adikia]. Além disso, Paulo emprega várias outras palavras de sentidos semelhantes que não ocorrem isolada­ mente com tanta frequência, mas, quando reu­ nidas, formam um ntimero significativo no texto de Romanos. Não se encontra em nenhuma outra parte do n t semelhante concentração de pala­ vras a respeito do mal. Em Romanos, o relevante problema do pecado é examinado bem de per­ to, e Paulo faz algumas declarações à luz de seu N o n t,

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P e ca d o i : Paulo

anúncio programático das boas-novas de Deus (Rm 1.16,17], Paulo não define pecado, mas está claro que ele não entende o pecado primordialmente como uma ofensa contra outro ser humano; para o apóstolo, 0 pecado constitui, antes de tudo, uma ofensa contra Deus (cf. Rm 8.7; ICo 8.12). A con­ sequência de romper um relacionamento correto com Deus é prejudicar os relacionamentos corre­ tos com os seres humanos, mas a ofensa contra Deus é a questão principal. 1. A Queda 2. A universalidade do pecado 3. 0 pecado e a Lei 4. Os efeitos do pecado 5. A morte de Jesus 6. A oposição cristã ao mal 7. Vencendo o pecado 8. O juízo sobre o pecado

fizestes? Pois, embora fostes tu quem pecou, a Queda não foi apenas tua, mas também de nós, que somos teus descendentes”. Paulo, no entan­ to, nunca usa o recurso literário de se dirigir dire­ tamente a Adão. 2. A universalidade do pecado

Na parte inicial de Romanos, o apóstolo apresen­ ta um forte argumento para mostrar que judeus e gentios estão “debaixo do pecado”. Ele cita as Escrituras: “Não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Toda a raça humana está envolvida no pecado, mas Paulo reconhece que por vezes o ser humano age com bondade e faz o bem (Rm 2.710,14). Mas isso não é problema. O pecado é que é. E não é um problema de pequena monta, pois atinge toda a raça humana e tem consequências calamitosas para cada pecador (v. H o o k e r ) . 3. O pecado e a Lei

1. A Queda

Paulo não se prende muito à origem do mal. Por exemplo, ele não emprega termos já estabeleci­ dos que tratam da Queda, como se ele pudesse explicar a origem do mal. A única passagem em que descreve o palco da queda da humanidade é 2Coríntios 11.3 (cf. ITm 2.13-15), que, em con­ cordância com o pensamento judaico, relaciona a queda de Adão à influência de Eva (cf. Eo 25.24; Ad e Ev, 3). Entretanto, ele apresenta uma ques­ tão importante em torno de Adão (Rm 5), deixan­ do claro que aceita a verdade de que o pecado não fazia parte da criação original. O texto de Romanos 8.19-23 talvez mostre que o cosmo foi afetado pela queda do homem ou mesmo de Sa­ tanás. Paulo entende que Adão trouxe o pecado ao mundo e que desde a Queda toda a raça hu­ mana tem cometido pecado, “porque todos peca­ ram” (Rm 3.23). Todos cometem pecado, mas de alguma forma todos são também enredados no pecado de Adão, pois “pela transgressão de um muitos morreram” (Rm 5.15). Para Paulo, o peca­ do não faz parte da natureza humana conforme Deus a criou. Deus não é responsável por uma criação defeituosa. É isso que torna tão grave o pecado de Adão, pois significou inserir o pecado em uma criação que originariamente não tinha defeito algum. Paulo poderia ter se expressado nas palavras de 4Esdras 7.118: “Oh, Adão! O que

Como judeu praticante, Paulo havia aceitado a L e i como presente de Deus, sinal do favor di­ vino. Mas, como cristão, veio a perceber que a Lei ensinava algumas coisas desagradáveis sobre o pecado. A Lei torna o mundo inteiro culpado perante Deus: “Todos os que são das obras da lei [i.e., que dependem da Lei] estão debabco de maldição” (GI 3.10). Por meio da Lei, vem o co­ nhecimento do pecado (Rm 3.19,20). Aliás, Paulo não teria conhecido o pecado, não fosse pela Lei (Rm 7.7), Para ele, a função da Lei não é evitar 0 pecado, e ele até mesmo afirma que ela multi­ plicou o pecado (Rm 5.20). Sua função era deixar claro o que é o pecado, e sua definição nítida de certo e errado não deixou dúvidas de que muitas coisas eram pecaminosas, as quais a humanidade de todas as épocas estava disposta a ignorar. A Lei era incapaz de lhes trazer s a lv a ç ã o , mas po­ dia conduzir os seres humanos a Cristo para que pudessem ser justificados pela fé (GI 3.24; cL W r i g h t , p. 193-216, para quem o papel da Lei foi concentrar o pecado em Israel, de modo que o Messias, o representante de Israel, pudesse tratar do pecado de uma vez para sempre). 4. Os efeitos do pecado

Paulo enxerga uma ligação entre o pecado e a morte. Aliás, ele diz que a morte veio por meio do pecado e, indo além, afirma que, se todos

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P e c a d o i : Pa u l o

pecaram, a morte veio para todos (Rm 5.12). Ele reconhece que, embora os pecados de alguns não sejam como a transgressão de Adão, mesmo as­ sim a morte reinou sobre toda a raça (Rm 5.14; cf. Rm 5.21), porque toda a humanidade parece ter sido representada em Adão (Rm 5.12; sobre esse versículo, v. comentários; W i l l i a m s ) . Em ou­ tra passagem, ele simplesmente diz: “0 salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Outrora, ele vivia sem a Lei, “mas, quando veio o manda­ mento, 0 pecado reviveu, e eu morri” (Rm 7.9,10; cf. Gn 4.7). Em Romanos 7.11,13, Paulo repete o pensamento de que o pecado, conceitualizado como um poder (talvez com a ideia de que o pe­ cado seja como um demônio ou um monstro), o matou. Aliás, o tema do pecado como um poder externo, poderoso e ativo é recorrente em Roma­ nos 5—7 (cf. Rm 5.12,21; 6.6,11,12,14,16-18,20; V. S a n d e r s , a b d ; B e k e r , p. 213-34; R õ h s e r ) . Em Efé­ sios, Paulo lembra a seus leitores que o pecado joga com a morte, privando as pessoas da vida que é vida de verdade (Ef 4.18). Paulo expressa de outra forma a seriedade do pecado ao insistir que os pecadores são escravos do pecado (v. M a r t i n ) . Eles podem até acreditar que ao praticar a maldade continuam livres, que estão fazendo o que escolhem fazer, mas Paulo não concorda e lembra aos romanos que, na con­ dição pré-cristã, eles foram “escravos do pecado” (Rm 6.17,20), Ele diz que ele próprio é “limita­ do pela carne, vendido como escravo do pecado” (Rm 7.14) e “escravo da lei do pecado” (Rm 7.23). Repetindo Ovídio, ele comenta que deseja fazer o bem, mas ainda faz o mal (Rm 7.19). Com a mente, ele pode servir à lei de Deus, “mas com a carne [serve] à lei do pecado” (Rm 7.25). Mesmo quando deseja fazer o bem, o mal está com ele. Na verdade, o pecado “habita” nele (Rm 7.20,21). 0 pecado cria um abismo entre os pecadores e Deus, como Paulo deixa claro, em Romanos 1.2125, ao afirmar que eles estão “separados da vida de Deus” (Ef 4.18). Ele diz também que os co­ lossenses antes eram “estrangeiros e inimigos no entendimento por causa das vossas obras más” (Cl 1.21). De qualquer forma, está claro que, quando os seres criados pecam contra o Criador, uma barreira é erguida entre Deus e eles próprios. Os pecadores também rompem relaciona­ mentos uns com os outros, como mostra, por

exemplo, a lista de pecados de Romanos 1: cobi­ ça, inveja, homicídio, contenda, dolo, insolência, quebra de pacto ou de compromissos, e assim por diante. Os seres humanos podem estar unidos no pecado, mas isso não faz com que estejam unidos entre si. Paulo demonstra uma compreensão única do assunto ao observar que o pecado faz com que as pessoas fiquem aUenadas da criação, aprofun­ dando 0 assunto em Romanos 8.19-23. Com base nesse ensino, os cristãos fazem bem em cuidar do meio ambiente, não apenas por causa dos apelos dos modernos ambientalistas seculares, mas por­ que este é 0 mundo de Deus e porque os cristãos vivem na expectativa do momento em que toda a criação será “hbertada do cativeiro da degenera­ ção” (Rm 8.21). Pelo que se vê nos escritos de Paulo, fica cla­ ro que ele considera o pecado, não importando a maneira em que se apresente, um assunto sério e algo inseparável da raça humana. Para ele, essa condição permanecerá até o fim, pois, referindose ao final dos tempos, ele fala da vinda de um ser maligno a quem chama “o homem da iniqui­ dade” (2Ts 2.3 [ a r a ] ; tradicionalmente, esse ser é chamado “o homem do pecado”). Com muita perspicácia, Paulo entende que o pecado opera em toda a raça humana como algo que durará até o fim da história. Para Paulo, o pecado é universal, mas ele tam­ bém está convencido de que o pecado impregnou o ser humano por inteiro. Há quem considere que o pecado se encontra apenas nas funções corpó­ reas, enquanto o “coração” (“mente”, “espírito”) permanece puro, porém de modo algum essa ideia tem origem no apóstolo. É verdade que ele diz que quem comete pecado sexual “peca con­ tra o seu corpo” (ICo 6.18). Ele também declara que a c a r n e se opõe ao Espírito e então apresenta uma lista terrível das “obras da carne” (GI 5.1721). Mas essa hsta inclui coisas como inimizade e inveja, o que mostra que ele está falando de pe­ cados do espírito humano, bem como de pecados da carne. Os escritos de Paulo como um todo de­ monstram que, para ele, o pecado envolvia a pes­ soa inteira, não apenas uma parte. Apresentando um exemplo aleatório, “o amor ao dinheiro” não é uma atividade da carne, mas envolve “todos os males” (ITm 6.10).

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P e ca d o í : Paulo

5. A morte de Jesus

Paulo tem muito que dizer sobre a morte de Je­ sus — na verdade, bem mais que qualquer outro autor do n t , e ele diz que a morte do Salvador foi causada, de alguma maneira, pelo pecado. As­ sim, ele afirma que Cristo “morreu pelos nossos pecados” (ICo 15.3). No entendimento do após­ tolo, essa declaração credal é de grande impor­ tância, como revela a expressão “antes de tudo” [a r a ] e a frase “se entregou a si mesmo pelos nos­ sos pecados” (G1 1.4). Ele diz aos romanos que Jesus “foi entregue à morte por causa das nossas transgressões” (Rm 4.25) e também que, “quanto a ter morrido, morreu para o pecado de uma vez por todas” (Rm 6.10). Não existe a menor dúvida de que, para Paulo, a morte de Jesus estava liga­ da aos pecados da humanidade, pois acredita que eles levaram Jesus à morte e que sua morte teve o propósito de resolver a questão do pecado. Ele diz ainda que a morte de Jesus foi pe­ los pecadores: “Cristo morreu pelos ímpios” (Rm 5.6). Em uma passagem notável, Paulo de­ clara que “Deus prova o seu amor para conos­ co ao ter Cristo morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8). “Seu amor” é um elemento importante. Seria fácil dizer que a cruz demonstra o amor de Cristo, mas o que Paulo está dizendo é que, embora isso seja verdade, também é certo que o amor do Pai foi demons­ trado na morte do Filho. E essa morte ocorreu “quando ainda éramos pecadores”. Não é que tenhamos sido purificados de alguma maneira, para depois o amor divino se manifestar. 0 amor de Deus atuou de maneira sacrificial para tratar 0 problema do pecado humano. Em duas outras notáveis declarações, Paulo afirma: “Um morreu por todos” (2Co 5.14); “Cristo [...] morreu por nós” (ITs 5.9,10). A primeira delas expressa a verdade de que a morte de Jesus é de aphcação universal; a segunda, de que ela é eficaz para os crentes. Paulo leva o último pensamento um pouco adiante, até a tocante referência ao “ F i l h o DE D e u s , que me amou e se entregou por mim” (Cl 2.20). A influência de Isaías 53, bem como dos primeiros credos, é patente nesses textos que relembram a Paixão de Cristo (v. P o p k e s ). Em uma passagem importante para o tema, Paulo diz; “Aquele que não conheceu pecado, ele [o Pai] o fez pecado por nós; para que, nele.

fôssemos feitos j u s t iç a de Deus” (2Co 5.21, a r a ) . Esse texto muitas vezes é citado erroneamente, como um verbo na voz passiva (“foi feito peca­ do”), dando a impressão de um processo impes­ soal. Paulo, porém, está se referindo a uma ação do Pai, bem como ã ação salvadora do Filho. O Pai está envolvido na solução do problema do pe­ cado da mesma forma que o Filho. Isso deve ficar bem claro. Paulo não considera que o Pai seja um expectador indiferente no processo que trata da questão do pecado. Ele estava ali, e o ato salva­ dor aconteceu de acordo com a vontade divina. “Fez pecado” não é uma expressão fácil de enten­ der, mas com certeza mostra uma identificação com o pecado e com os pecadores. A morte de Cristo (como a oferta de Is 53.6) foi o sacrifício que removeu o pecado. Paulo escreve aos colossenses, dizendo que em Cristo temos a “remissão dos pecados” (Cl 1.14, a r a ) . A expressão é um aposto de “re­ denção” e mais uma vez claramente nos dirige para a cruz. Para o apóstolo, significa muito o fato de que Cristo tratou de todo o mal que os seres humanos têm feito e trouxe o perdão dos pecados aos crentes. 6. A oposição cristã ao mal

Paulo reconhece o caráter disseminado do peca­ do, mas não concorda com sua inevitabilidade. Ele insiste em que os crentes não cedam ao mal, mas que, pelo contrário, façam o que é bom. Ele ora para que os coríntios não cometam nenhu­ ma maldade (2Co 13.7) e conclama os colos­ senses a destruir o mal que existe dentro deles (Cl 3.5). Também implora aos romanos que não retaliem quando o mal for praticado contra eles, mas que, em vez disso, vençam o mal com o bem (Rm 12.17,21), e faz aos tessalonicenses uma exortação semelhante (ITs 5.15). É importante ter em mente que o amor, que obviamente deve caracterizar todos os cristãos, não guarda ressen­ timento do mal sofrido (ICo 13.5). Paulo não se limita a denunciar os males na esfera rehgiosa. Ele diz a Timóteo que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (ITm 6.10). Ele pede aos romanos que pratiquem o bem, de modo a merecer a aprovação dos governantes (Rm 13.3), e lembra-os de que o amor não faz nenhum mal contra o próximo (Rm 13.10).

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P e c a d o h : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a l ipse

7. Vencendo o pecado

D Pc:

Que o pecado está presente em tudo e que Cris­ to morreu para tratar dos efeitos do pecado são duas ideias que Paulo apresenta com certa ênfa­ se. Algumas de suas declarações também deixam claro que ele não imagina os cristãos como um povo que continua a pecar (Rm 6.1,15; G1 5.13), embora saibam que seu pecado já está perdoa­ do. Ele tem consciência de que o pecado está tão firmemente arraigado à natureza humana que a opinião do apóstolo é que nesta vida é presun­ ção alguém afirmar que está hvre de qualquer pecado. Mas ele também é claro ao dizer que ‘‘o pecado não terá domínio sobre vós” (Rm 6.14), acrescentando que “não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça”. Não é a submissão a um conjunto de regras (como os judeus faziam, ao afirmar que guardavam a Lei, como se isso fosse um marco de sua identidade ou de sua eleição) que caracteriza o cristão, e sim a presença da gra­ ça de Deus. É pela graça que o crente é salvo, e pela graça é que se vive toda a vida cristã. Ahás, Paulo chega a ponto de dizer que os cristãos, ago­ ra hbertos da dominação do pecado, foram “fei­ tos escravos da justiça” (Rm 6.18). 8. O juízo sobre o pecado

O pecado leva inevitavelmente ao juízo final. Existe alguma antecipação, ou seja, um juízo presente, pois cometer pecado significa fazer-se pecador. A terrível consequência de ser peca­ dor é expressa nas três ocorrências de “Deus os entregou” em Romanos 1.24,26,28, com a hor­ renda hsta de consequências que o pecado traz no tempo presente. Ademais, Paulo deixa claro que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Paulo também destaca que colhemos aquilo que semeamos e que semear a carne significa colher corrupção (G1 6.7,8). Isso significa que o pecado traz julzo no tempo presente. No entanto, Paulo também insiste que final­ mente se tratará do pecado por ocasião do juízo no tribunal de Crísto, verdade que ele expressa vigorosamente, por exemplo, em Romanos 2.112,16. Esse juízo faz parte da verdade cristã e aponta para o tratamento final que o mal receberá (ICo 4.4-6). Ver também A d â o e C w s t o ; c a r n e ; C r i s t o , m o r t e d e ; j u l z o ; j u s t i ç a / r e t i d ã o ; j u s t i f i c a ç ã o ; L e i.

C ó le r a ,

im p ie d a d e e

d e s t r u iç ã o ;

poder

c o n s c iê n c ia ;

r e s t r in g e n t e ;

h om em d a

m a ld iç ã o ,

m a ld ito ,

a n A tem a ; id o la t r ia ; n a tu r e z a n o v a e n a tu r e z a v e lh a ; p e r d ã o ; p u r e z a e im p u r e z a ; s a n t id a d e , s a n t i f i c a ç ã o ; s a ­ t a n á s , d ia b o ; v íc io s e v i r t u d e s ; v i d a e m o r t e .

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P

ec ad o ii:

G

e r a is ,

A

A

tos,

H

ebreus,

o r r is

C artas

p o c a l ip s e

Com o emprego de várias palavras gregas, pecado e impiedade são conceitos presentes nos escritos I I 029

P e c a d o i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a l ipse

posteriores do n t . A s principais palavras emprega­ das para designar pecado e impiedade são kakos e ponêros, duas palavras genéricas que designam o mal ou o comportamento mau; adikia, palavra de sentido genérico que denota o mal ou o peca­ do; hamartia, termo mais específico para denotar pecado e que em geral envolve a violação à L e i; asebeia, palavra que designa impiedade; parabasis, vocábulo que tem o sentido de desobediência pecaminosa; os cognatos dessas palavras. Embo­ ra em alguns contextos seja possível distínguir os sentidos dessas palavras, também existe uma boa dose de sobreposição; por isso, é melhor fa­ zer distinção entre os vários sentidos de pecado e de impiedade do que aplicar elementos léxicos individuais. O pecado e a impiedade são condenados como comportamento impróprio e até mesmo de violação à Lei no relacionamento entre os seres humanos e com D e u s . É comum o pecado e a im­ piedade serem contrastados com virtudes como a bondade e o amor. Esse duahsmo está de acordo com a moral exortativa e a natureza parenética de boa parte desses escritos. Os resuhados do peca­ do e da impiedade são a ruptura das relações en­ tre o ser humano e Deus e o consequente castigo, incluindo-se o juízo e a condenação finais. 1. O pecado e o comportamento humano 2. 0 pecado e Cristo 3. O pecado e o amor de Deus 4. O pecado e o juízo final 1. O pecado e o comportamento humano

Uma das distinções fundamentais existentes nesse conjunto de escritos é a oposição entre bem e mal, geralmente da perspectiva do comporta­ mento. Nessa oposição, o bem deve ser preferido, sendo reflexo de maturidade, obediência e busca por fazer o que é certo, ao passo que o mal deve ser evitado, sendo reflexo de imaturidade, deso­ bediência e fazer o que é errado (e.g., Hb 5.14; Tg 2.9; IPe 2.14; 3.8-12). Em muitos contextos, o mal está diretamente hgado ao pecado e à im­ piedade, visto que o comportamento decorrente do mal se opõe à bondade e à justiça de Deus (Hb 1.9; 13.12; 8.12; Tg 1.13; 4.17; IPe 2.1,16; 3.12; 3Jo 11). Nesses escritos, o ser humano quase sempre é classificado com base em seu comportamento

pecaminoso ou mau. Há orientação para que não sejamos o tipo de pessoa que é flagrado prati­ cando ações ímpias ou más (e.g., At 3.26; 8.23; Hb 12.1; Tg 2.4; 4.16; 2Pe 2.13,15; Jd 11; Ap 2.2), que tem má consciência por causa da impureza (Hb 10.22) ou mesmo que recebe em sua casa alguém que pratica o mal (2Jo 11). De acordo com Tiago, alguns pecados são tidos não como desobediência direta à vontade de Deus, mas como resultado de desejo, aceito pela pessoa, de dar origem ao pecado, o que então leva à morte (Tg 1.15; 5.20). É bem possível que o exemplo clássico desse processo seja o mal que Caim fez a seu irmão Abel (IJo 3.12). Pelo fato de Caim pertencerão Maligno (v. tb. IJo 2.13,14; 5.18,19), ele praticou um ato de maldade, assassinando o irmão, cujas ações eram justas. Em Hebreus, bem como em Tiago, há uma clara revelação do pecado como desobediência à lei de Deus. A Carta aos Hebreus ecoa a hngua­ gem do templo do a t e do cuho (e.g., purificação, Hb 1.3; propiciação, Hb 2.17; a Lei como sombra do que estava por vir, Hb 10.2-4,8). Hebreus es­ tabelece analogias com o sacerdócio e sua fun­ ção de apresentar ofertas pelo pecado (Hb 5.1,3; 10.11; 13.11), em que o papel do sacerdote é ago­ ra assumido por C r i s t o (Hb 2.17). 0 autor vai além e não apenas afirma a função sacerdotal de Cristo, mas também o apresenta como o próprio sacrifício, um sacrifício único (Hb 7.27; 9.28; cf. Ap 1.5) que desfaz a necessidade de qualquer ou­ tro sacrifício para ehminar o pecado (Hb 9.26). O resultado é o perdão dos pecados — que nunca mais serão trazidos à lembrança (Hb 8.12; 10.18). O texto de Hebreus 9.15 constitui uma boa sínte­ se da anáhse do pecado no hvro quando declara que Cristo é o mediador de uma nova ahança que traz como recompensa uma herança eterna, uma vez que Cristo morreu para hbertar a humanida­ de dos pecados comefidos sob a aliança anterior. 2. O pecado e Cristo

Em várias passagens desse corpo de escritos, há comentários sobre a ausência de pecado em Je­ sus Cristo, o qual está em oposição ao comporta­ mento humano pecaminoso. Essas passagens têm suscitado indagações teológicas sobre a possibi­ lidade de Cristo pecar — por exemplo, se ele foi perpetuamente sem pecado, se alguma vez teve

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P e c a d o i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e

a capacidade de pecar ou se alcançou a condição de ausência de pecado e foi exaltado no estado de impecabilidade. Em Hebreus 4.15, o autor declara que a hu­ manidade não tem um sumo sacerdote incapaz de ter compaixão de suas fraquezas, e sim um que foi tentado em todos os aspectos, como acon­ tece com todos os seres humanos. Apesar disso, ele era alguém sem pecado, e é a expressão “sem pecado” a responsável por criar as maiores difi­ culdades. Parece que no contexto de Hebreus o pecado gira em torno da reação de Jesus à tenta­ ção, não um tipo de natureza inerentemente sem pecado ou seu parentesco com a humanidade decaída. Parece que a afirmação é que Cristo resistiu à tentação em cada etapa da vida, de modo que, quando é oferecido sem mácula pe­ rante Deus {Hb 9.14), esse fato reflete não uma inculpabilidade definitiva ou conquistada, mas a perfeição daquele que sempre resistiu à tentação. Existe o mesmo sentido em IPedro 2.22, quando o autor cita Isaías 53.9, declarando que Cristo não cometeu pecado e também que não se achou engano nele. Isso permite que o autor afirme em IPedro 3.18, versículo inicial da seção cristológica mais importante da carta, que Cristo padeceu a morte de uma pessoa justa, morrendo pelos injustos no que concerne aos pecados deles (v. C r i s t o , m o r t e d e ) . 3. O pecado e o amor de Deus

Uma pressuposição dessa parte do n t é que a ir­ reverência e a impiedade são formas de pecami­ nosidade e devem ser eliminadas (Jd 4,15,18; 2Pe 2.5,6; 3.7). No passado. Deus teve sua ira des­ pertada pelo pecado, pelos anjos desobedientes (2Pe 2.4) e pelos israehtas (Hb 3.17). Ele também pode se irar com o comportamento do cristão no presente. Essa dinâmica é bem ilustrada em IJoão, carta que procura explicar a ordem ética obriga­ tória para os que viram e conheceram a Cristo. A carta contém exemplos do que significa amar a Deus do ponto de vista de um comportamento amoroso para com os outros (v. tb. IPe 4.8). Em IJoão, várias passagens deixam implícito que a ausência de pecado é algo atingível, ao pas­ so que outras reconhecem a pecaminosidade hu­ mana como um fato. R. E. Brown relaciona sete possíveis soluções para os problemas suscitados

por essas passagens, embora nenhuma seja to­ talmente convincente. Por exemplo, uma distin­ ção padrão entre os tempos presente e aoristo do verbo grego: embora o ser humano continue a cometer pecados esporádicos do passado (tempo aoristo), ele não persiste no pecado (tempo pre­ sente), mas isso entra em choque com a maneira que os tempos verbais são usados no hvro. Por exemplo, IJoão 3.4,6,8 emprega o tempo presen­ te para descrever atos pecaminosos concretos, e o tempo perfeito é utihzado em IJoão 1.10 em uma declaração oposta acerca do pecado. Uma solução mais plausível, que não depende dos tempos verbais do grego, é que a carta está buscando um equilíbrio entre o ideal de não pe­ car, para ser coerente com a confissão em Cristo, e a realidade da persistente pecaminosidade hu­ mana. 0 ideal ético é equilibrado pela realidade moral, embora sem desconsiderar a provisão do perdão. No argumento da carta, declara-se a reali­ dade antes de se declarar o ideal. Em IJoão 1.8-10, o autor declara que, se dissermos que não temos pecado, estamos nos enganando. Se dissermos que não pecamos, fazemos Deus mentiroso, e sua palavra não está em nós. 0 ideal é estabelecido em passagens como IJoão 3.6, em que o autor diz que quem permanece em Cristo não peca, e aque­ le que de fato peca não o tem visto, e IJoão 5.18, em que ele declara que quem é gerado de Deus não peca. Aqui o pecado é visto como uma viola­ ção à lei divina (IJo 3.4). Embora os que perma­ necem em Cristo conheçam as exigências de um comportamento amoroso por meio da obediência, inevitavelmente falharão. Apesar disso, nem tudo está perdido. A solução para esse dilema acha-se em Cristo. Em IJoão 2.1, depois de declarar que está escrevendo para que seus leitores não pe­ quem, 0 autor acrescenta que, se pecarem, eles têm um advogado junto ao Pai: Jesus Cristo, o jus­ to. É Cristo quem purifica e perdoa todo pecado (IJo 1.7,9; 2.12; 3.5), uma vez que é o sacrifício propiciatório pelos pecados (IJo 2.2; 4.10). 4. O pecado e o juízo final

Em poucas passagens nesses livros do n t , encon­ tramos declarações acerca do ju íz o h n a l para peca­ dores e ímpios. À luz de Deus e de sua exigência de um comportamento justo, esses textos impres­ sionam 0 leitor com a seriedade do pecado e da

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P eca d o r es : Evan gelho s

impiedade. Normalmente, essas passagens empre­ gam imagens apocalípticas ao pintar um quadro do juízo final. Por exemplo, Hebreus 2.2,3 faz uma pergunta retórica: se a mensagem dos anjos é que cada violação à lei de Deus e cada ato de desobe­ diência recebe castigo, como o cristão pode ter a esperança de escapar, se desconsidera o chamado da SALVAÇÃO? De modo semelhante, Hebreus 10.26 diz que quem continua pecando deve esperar o juí­ zo de Deus. A passagem de Apocalipse 18.4ss faz um contraste entre os que participam do pecado da Babilônia e os que nâo o fazem. Os que participam terão apenas aborrecimento, incluindo-se a paga por seus pecados pela morte final e destruição no fogo, executadas por um Deus que é juiz. Embora a linguagem apocalíptica seja relati­ vamente frequente em A p o c a l i p s e , uma das pas­ sagens com maior concentração de tais imagens é 2Pedro 2.9-16. Depois de lembrar que Deus não poupou algumas pessoas nos tempos do a t , o autor afirma que Deus sabe como resgatará os piedosos de suas tribulações e como reterá os injustos para o dia do castigo. Ele então identi­ fica os injustos por meio de um extenso catálogo de defehos, que inclui a blasfêmia e outros pe­ cados tão perniciosos que nem mesmo os anjos ousariam cometer. Mas essas pessoas receberão a retribuição por seus pecados. O autor afirma isso, na expectativa do dia do Senhor, em que os ímpios serão destruídos (2Pe 3.7). Ver também c a r n e . dlntd

: C o n s c ie n c e ; F o r g i v e n e s s ; J u d g m e n t ; O b e ­

d ie n c e ; R e d e m p t io n ; V i r t u e s a n d V ic e s .

R. E. The epistles of John. New York: Doubleday, 1982. ( a b . ) ■ C h e s t e r , A. & M a r t i n , R. P . The theology of the letters of James, Peter and Jude. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. ( n t t . ) ■ E d w a r d s , R. B . The Johannine epistles. Sheffield: Academic, 1996. ( n t c . ) ■ G ü n t h e r , W. Sin. n i d n t t , v . 3, p. 573-85. ■ L ie u , J. The theology of the Johannine epistles. Cam­ bridge: Cambridge University Press, 1991. ( n t t . ) B iB L io G R A n A . B r o w n ,

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The theology of the Letter to the He­

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brews.

PECADO o r i g i n a l .

Ver p e c a d o .

P

E vangelh os

ecadores:

Nos Evangelhos, o termo “pecador” é empregado de duas maneiras: para definir o indivíduo que se opõe a Deus e à vontade divina e para identificar, por parte dos adversários de Jesus, os que não pertencem ao grupo deles e que recebem de Jesus a oferta do evangelho de s a lv a ç ã o . A natureza e a idenfidade desses pecadores têm sido assunto de investigação entre os estudiosos. 1. Terminologia e significado 2. Uso do termo nos Evangelhos 3. Jesus e os pecadores 4. Conclusão 1, Terminologia e significado

“Pecador” é a palavra usada com maior frequên­ cia para traduzir o termo grego hamartõlos, adje­ tivo relacionado com o verbo hamartanõ, “pecar”, e com os substantivos que designam pecado hamartêma e hamartia. Na l x x , o termo grego hamar­ tõlos ocorre cerca de 94 vezes, correspondendo a cinco raízes no t m : h f (15 vezes: e.g., Nm 32.14), hnp (uma vez: Pv 11.9), hrsh (uma vez: S l 128.3), r ' (uma vez: Pv 12.13) e rsh‘ (74 vezes: e.g., 2Cr 19.2). Nos targumim aramaicos, há evidências de que um termo mais amplo, hwb’, com o sen­ tido de “devedor” ou “pecador”, é o equivalente natural de hamartõlos na l x x . No Targum sobre Isa­ ías, os “devedores” ou “pecadores” são castigados pelo Messias [Tgls, 11.4) e destruídos pelo S enhor (Tg Is, 14.4,5), mas também são capazes de se arrepender (Tg Is, 28.24,25). Na l x x , hamartõlos corresponde, com maior frequência, ao hebraico rãshã‘, 0 substantivo “ímpio”. Especialmente em S a lm o s , utiliza-se rãshã‘ em paralelo com quase toda palavra que expresse a ideia de pecado, mal e iniqüidade, e o vocábulo também funciona como adjetivo para designar as ações e a conduta de certo tipo de pessoa (cf. S l 10.4,7; 36.1; 49.6,13; 50.16,17). Em geral, rãshã‘, o “ímpio”, aparece em paralehsmo antitético com tsaddsq, o “justo” (cf. S l 1.6). Esse é o sentido comum do termo tam­ bém nos primeiros escritos do judaísmo, como no Eclesiástico (v. tb. lEn [G a ], 22.10-14). A palavra “pecador” também ocorre no que podemos chamar “contextos faccionários”, para denotar os que estão fora da linha divisória do

1032

P e ca d o res: E van gelho s

grupo que emprega o termo. Nesses casos, por definição, impiedade é a conduta fora do grupo considerada inaceitável para os que pertencem a ele. Desse modo, seria possível usar a pala­ vra “pecador” mais ou menos como sinônimo de “gentio” (Sl 9.17; Tb 13.8; Jb, 23.23,24). No entanto, com o desenvolvimento do judaísmo, foi possível também estabelecer linhas divisórias entre o povo de I s r a e l, situação em que o termo “pecador” era usado para designar algo que os membros de determinada facção reprovavam. Desse modo, os “pecadores” podiam ser judeus apóstatas (IMc 1.34; 2.44,48), judeus que calcu­ lavam erradamente os meses, as festas e os anos (lEn, 82.4-7), judeus que não aceitavam a inter­ pretação sectária da comunidade de Qumran (c d 4.8; IQS 5.7-11; IQH 7.12; v. MANUscRrros d o m a r M o r t o ) , adversários judeus dos “devotos” [Sl Sa, 1.8; 2.3; 7.2; 8.12,13; 17.5-8; 23) ou judeus que interpretavam de maneira diferente as exigências de pureza ritual [A çM s, 7.3,9,10). 2. Uso do termo nos Evangelhos

ocorre 47 vezes no n t , 33 vezes nos Evangelhos, nenhuma em Atos, 14 nas Cartas e nunca em Apocahpse. Nos Evangelhos, as ocor­ rências estão agrupadas em treze perícopes, apa­ recendo a palavra em dez delas como substantivo e em três como adjetivo. Na maioria das vezes, o termo aparece em um emaranhado de tradições que os Evangelistas adotaram. Dos treze relatos dos Evangelhos em que o termo ocorre, um deles aparece em todos os Sinóticos, em uma denomi­ nada tradição tríplice (a disputa acerca da c o m u ­ n h ã o À m esa : Mt 9.10,11,13 par. Mc 2.15,16 [2x]; Lc 5.30,32), outro aparece em Marcos e Mateus (a prisão no Getsêmani: Mt 26.45 par. Mc 14.41) e outro ainda aparece em Mateus e Lucas, consi­ derado um material de q ( o contraste entre João Batista e Jesus: Mt 11.19 par. Lc 7.34). Mateus faz referência aos pecadores apenas em três ocasiões: a tradição tríplice (Mt 9.10,11,13 par. Mc 2.15,16 [2x]; Lc 5.30,32), a passagem compar­ tilhada com Marcos (Mt 26.45 par. Mc 14.41) e a passagem compartilhada com Lucas/o (Mt 11.19 par. Lc 7.34). De modo semelhante. Marcos referese aos pecadores em apenas três ocasiões: a tra­ dição tríplice [Mc 2.15,16 [2x] par. Mt 9.10,11,13; Lc 5.30,32), a passagem compartilhada com Hamartõlos

Mateus (Mc 14.41 par. Mt 26.45) e um episódio da tradição tríplice em que só Marcos emprega a forma adjetíva do termo (“nesta geração [...] pe­ cadora”: Mc 8.38 par. Mt 16.26,27; Lc 9.26). João não tem em comum com os Sinóticos nenhuma referência a pecadores e menciona o termo em apenas uma perícope (o cego curado falando com os fariseus: Jo 9.16,24,25,31). Lucas é quem registra mais vezes o termo “pe­ cadores”, fazendo referência a ele em dez ocasi­ ões; a tradição tríphce (Lc 5.30,32 par. Mc 2.15,16 [2x] ; Mt 9.10,11,13), a passagem compartilhada com Mateus/o (Lc 7.34 par. Mt 11.19) e oito epi­ sódios encontrados apenas em Lucas. Desses oito relatos, um episódio é material da tradição tríplice, em que somente Lucas incluiu o termo (o testemunho do anjo, Lc 24.7), e dois episódios têm material semelhante a Mateus (não material de q), mas só Lucas emprega o termo (amor pelos inimigos, Lc 6.32,33,34 [2x]; parábolas sobre coi­ sas perdidas, Lc 15.7,10). Em cinco dos oito epi­ sódios, o termo ocorre em material exclusivo do Evangelho de Lucas (confissão de Pedro, Lc 5.8; 0 fariseu Simão e a mulher chamada “pecadora”, Lc 7.37,39; mártires galileus, Lc 13.2; a parábola do fariseu e do publicano, Lc 18.13; o chamado de Zaqueu, Lc 19.7). 3. Jesus e os pecadores

Um dos aspectos mais destacados da mensa­ gem e do ministério de Jesus é a promessa de SALVAÇÃOaos pecadores. Além do extenso material que inclui essa mensagem, ela é encontrada em diversas formas literárias — que vão de frases e p a r á b o la s a relatos sobre a atividade de Jesus e acusações contra ele. Alguns textos dizem que ele se associou com pecadores (Mc 2.15,16 e par.) e procurou os pecadores justamente por estarem perdidos (e.g., Lc 15.7,10). Jesus afirma categoricamente que um aspecto de seu minis­ tério “não [era] chamar justos, mas pecadores” (Mc 2.17 e par.). Não é difícil entender que o uso genérico de “pecador” nos Evangelhos designa a pessoa que comete os atos pecaminosos defini­ dos na L e i, como talvez seja o caso da mulher pecadora, em Lucas 7.36-50. Mas, nos relatos dos Evangelhos, o termo “pecador” também denota um pequeno segmento do povo. Uma expressão bem conhecida, em que as duas palavras estão np:?

Peca d o res: Evan gelho s

combinadas, “publicanos e pecadores”, parece especificar um segmento identificável do povo que associa os “pecadores” aos “publicanos” (Mt 9.10,11,13 par. Mt 11.19; Lc 15.7). Em várias ocasiões, os fariseus são apresentados em con­ traste com os “pecadores”, aparentemente um segmento identificável do povo que os fariseus criticavam de modo especial (cf. Mt 9.10,11,13 par. Lc 7.37,39; 15.1,2; 18.13; Jo 9.16,24,25). In­ vestigações recentes levadas a efeito por alguns estudiosos têm procurado identificar o segmento do povo denominado “pecadores”. 3.1 Os que não observavam os rituais sec­

J. Jeremias é o representante de uma interpretação amplamente aceita que identifica os pecadores como pessoas comuns, os ‘ammê hã'ãrets, que os fariseus desaprovavam. Essa in­ terpretação sugere que, nos Evangelhos, o grupo conhecido como “pecadores” era visto de duas perspectivas. Da perspectiva dos adversários de Jesus, o termo “pecador” foi cunhado para ex­ primir o desprezo por aqueles que seguiam a Je­ sus. Os adversários de Jesus eram quase todos fariseus, que Jeremias considera equivalentes aos haberim, uma irmandade que insistia na pu­ reza ritual para a comunhão á mesa. Para eles, os seguidores de Jesus eram pessoas mal-afamadas, os ‘ammê hãarets, gente sem instrução, cuja ignorância religiosa e comportamento moral bloqueavam o acesso à salvação. Outro nome de­ preciativo em referência aos seguidores de Jesus era “pequeninos” (e.g., Mc 9.42; Mt 11.25). Desse modo, os “pecadores” são aqueles que ofenderam o exclusivismo das leis de pureza dos fariseus (especialmente a comunhão á mesa) e/ ou sua rigorosa observância da Lei. Embora os seguidores de Jesus, da perspectiva de seus ad­ versários, sejam chamados “pecadores”, da pers­ pectiva de Jesus eles são chamados “pobres” ou “cansados e sobrecarregados” (e.g., Mt 11.5,28) — pessoas despojadas de seus direitos na vida religiosa, social e política de Israel. tários.

3.2 Os perversos, que viviam à margem da

E. P. Sanders é um representante do questio­ namento da ideia de Jeremias. Sanders alega que 0 equivalente veterotestamentário de hamartõloi é rèsha‘m (ou o equivalente aramaico), um termo praticamente técnico. Ele sugere que uma tradu­ ção melhor é “o ímpio” e que a palavra se refere

Lei.

aos que pecaram deliberada e abominavelmente e não se arrependeram. Quando a palavra é posta ao lado do termo “publicanos”, os dois nomes adqui­ rem 0 sentido de “traidores”: os publicanos eram aqueles que colaboravam com Roma, e os pecado­ res eram os ímpios, que haviam traído o Deus que redimira Israel e outorgara a Lei a seu povo. Sanders alega também que os fariseus não eram um grupo preocupado unicamente com a comunhão à mesa, melindrado com o fato de Jesus oferecer salvação aos excluídos da comu­ nhão. Na verdade, eles constituíam um partido dedicado à exphcação oral da Torá. Os pecado­ res não eram apenas pessoas comuns { ‘ammê hã arets): eram ímpios que haviam sido convida­ dos a integrar o grupo de Jesus sem a exigência do arrependimento normal exigido pela Lei. Jesus permitiu que eles se tornassem seus seguidores e permanecessem “ímpios”. Isso estabeleceu um conflito entre Jesus e todos os líderes de Israel, para os quais a Lei ocupava o centro da vida re­ hgiosa e social. A força do argumento de Sanders é que ele substitui uma representação distorcida e simphsta do judaísmo. No pensamento de Jeremias, os fariseus são incorrigivelmente formahstas, a pon­ to de a indignação com o fato de Jesus oferecer a salvação a pessoas comuns ter despertado neles 0 desejo de matá-lo (v. J e s u s , j u l g a m e n t o d e ) . Mas a alternativa de Sanders, de que Jesus ofereceu salvação aos pecadores sem exigir que mudassem de comportamento, não corresponde ao perfil de Jesus apresentado nos Evangelhos. 3.3

Os que se opunham à vontade de Deus.

Várias passagens dos Evangelhos revelam um sig­ nificado lato do termo “pecador” ao se referirem à pessoa que se opõe ã vontade de Deus. Uma pers­ pectiva importante está em Marcos 14.41 (par. Mt 26.45), em que Jesus, anunciando sua prisão iminente, diz: “O Filho do homem está sendo en­ tregue nas mãos dos pecadores”. Essas palavras se destinam, em última instância, aos principais sacerdotes, escribas e anciãos, que haviam plane­ jado sua prisão (Mc 14.43 par. Mt 26.47). 0 que torna os lideres de Israel pecadores é sua opo­ sição à vontade de Deus, conforme operada no ministério de Jesus. 0 relato de Lucas sobre os anjos junto ao túmulo ecoa essas palavras com o uso de hamartõlos como adjetivo (Lc 24.7).

1 034

Peca d o res: Evan gelho s

Em Marcos 8.38, as palavras de Jesus diri­ gidas a uma "geração adúltera e pecadora” não visam a nenhum segmento específico do povo, mas à totalidade do povo de Israel, que o havia rejeitado. Em Lucas 5.8, a reação de Simão Pedro diante da pesca milagrosa operada por Jesus foi confessar que era um homem pecador. Sua con­ fissão ocorre na presença daquele a quem cha­ ma “Senhor”, indicando, pelo menos, que Pedro reconhece a própria humildade na presença dos atos de Deus em Jesus. Lucas conta a história dos peregrinos galileus que tinham vindo a Jerusalém para apresentar sacrifícios no templo e foram mortos por Pilatos. Jesus, empregando o termo “pecador”, contraria a crença judaica comum de que as catástrofes da vida eram resultado de pecados cometidos no passado. Esse é um sentido geral do termo “pe­ cador”, visto que a expectativa é que, em última instância, teria sido um juízo executado por Deus e, por esse motivo, o castigo de um pecado con­ tra Deus. A confirmação está no versículo 4, em que o termo paralelo é opheiletai, empregado no sentido de um devedor ou pecador contra Deus. Essas passagens dos Sinóticos demonstram a existência de um uso do termo em contextos não sectários e apontam para um sentido lato, que designa a pessoa que se opõe à vontade de Deus. Esse conceito de “pecador” é corroborado no quarto Evangelho. No relato da controvérsia com os fariseus, o homem que havia sido curado de cegueira diz: “Sabemos que Deus não atende pecadores; mas, se alguém for temente a Deus e fizer a sua vontade, este ele atende” (Jo 9.31]. Aqui, a implicação é que o pecador é alguém que não teme a Deus e despreza a vontade di­ vina. Embora no contexto precedente os fari­ seus tenham destacado a observância do sábado (Jo 9.16,24,25], o homem curado deixa implícito um significado mais amplo do termo, não apon­ tando apenas para a pessoa que não observa as normas da Lei. 4. Conclusão

O uso do termo “pecador” na l x x e nos primór­ dios da hteratura judaica ajuda-nos a entender os diferentes sentidos que ele assume nos Evangelãos. Em seu uso comum, o termo designava o "ímpio”, quase sempre em paralelismo antitético

com 0 “justo”. Mas o termo também era empre­ gado no contexto das facções, tanto para desig­ nar os gentios fora dos hmites de Israel quanto pessoas no contexto de grupos rivais dentro do judaísmo. Esses dois significados estão em con­ formidade com 0 emprego do termo “pecador” nos Evangelhos. Existe um número significativo de passagens em que a palavra “pecador” tem sentido lato e designa “aquele que se opõe à von­ tade de Deus”, além de várias outras passagens que envolvem questões sectárias. J. Jeremias concentra-se basicamente no gru­ po de passagens que apresentam o conflito entre os fariseus e os pecadores. Apesar das objeções de Sanders, a força do argumento de Jeremias é que ele não desconsidera o sentido do termo nas disputas internas no judaísmo. J. D. G. Dunn acredita que os fariseus eram uma seita com ideias bem definidas sobre o caráter da vida e da conduta exigidas para manter a j u s t iç a pactuai do povo de Deus. Nesse caso, é muito provável que considerassem pecadores os que discordavam de­ les e vivessem em aberta desconsideração para com essa justíça — como era o caso dos grupos por trás das tradições apocalípticas de Enoque, dos Salmos de Salomão e dos manuscritos do mar Morto. Os fariseus acreditavam firmemente na autoridade das tradições orais, e, para eles, os que se opunham a suas práticas estavam também se opondo a Deus. Sanders tende a se apoiar nas passagens que põem os publicanos junto com os pecadores. Ele critíca Jeremias por não atentar para a força do termo e torná-lo um mero equivalente de “não fa­ riseus”. Nas questões sobre a pureza, os fariseus não eram tão rígidos quanto os essênios, pois não consideravam os não fariseus necessariamente pe­ cadores — talvez só os que faziam pouco caso das preocupações farisaicas. Assim, é provável que, quanto mais os membros da comunidade judaica se distanciavam dos padrões farisaicos, mais os fariseus se inclinavam a rotulá-los de “pecadores”. Embora Sanders vá longe demais ao insistir que o termo sempre designa ostensivos infratores da Lei, os fariseus, quando empregavam a palavra “pecadores”, queriam dizer aquele que se opunha ã vontade de Deus, conforme refletida na maneira de entenderem a halakõ — as leis rabínicas que regiam a vida. Por trás das objeções e acusações

P e d r o , P r im e ir a C a r t a de

feitas a Jesus, havia o fato de que ele estava des­ considerando e abolindo barreiras que certos gru­ pos haviam erigido d e n t r o de Israel. Desse modo, do ponto de vista dos adversários de Jesus, peca­ dor era alguém que não se conformava às expecta­ tivas da seita. Do ponto de vista de Jesus, pecador era aquele que se opunha à vontade de Deus, mas que se tornava seu d is c íp u l o a partir do momen­ to que aceitava a oferta de perdão e pela fé se comprometia a seguir Jesus. A oferta de salvação feita por Jesus aos pecadores sem a necessidade de observar as normas de alguma facção representava uma ameaça para o próprio fundamento e para o estilo de vida dos judeus sectários, mas esse ofere­ cimento estava no âmago do evangelho que Jesus vinha anunciando. Ver também c o m u n h ã o à m e s a ; d is c íp u l o s ; I s r a e l ; d j g : C l e a n a n d U n c l e a n ; D is c ip le s h ip ; P h a r is e e s .

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S a n d ers,

M. J.

PEDOBATISMO.

P

edro.

edro,

P

r im e ir a

Carta

de

Os Evangelhos sistematicamente apresentam Pe­ dro como líder e porta-voz entre os discípulos de Jesus, papel que continua a desempenhar nos primórdios do movimento cristão, como se lê na primeira metade do hvro de Atos. Por isso, não é de surpreender que duas cartas do n t levem seu nome. A primeira delas, tradicionalmente deno­ minada “primeira” porque a outra, mais curta, explicitamente afirma ser a segunda (2Pe 3.1), é uma obra notavelmente concisa e persuasiva da fé e da prática cristãs. 1. Autor e leitores 2. Integridade e estrutura literária 3. Antecedentes históricos e sociais 4. Contribuições teológicas ao cânon 1. Autor e leitores

SALVAÇÃO.

B

P

W

il k in s

Ver BATISMO INFANTIL. Ver BATISMO III.

Ver d is c íp u l o s ;

P

edro,

P

r im e ir a

C arta

de.

1

A Primeira Carta de Pedro segue bem de perto o formato literário das cartas de Paulo, identifican­ do 0 autor e os leitores nos dois primeiros versí­ culos da carta e apresentando em seguida uma saudação com a fórmula “graça e paz”. Com exce­ ção de Gálatas e Efésios, difere das cartas de Pau­ lo por não ser dirigida a uma congregação local específica, mas a um grupo de congregações espa­ lhadas por uma área geográfica extensa — nesse aspecto, compare-se a Apocalipse (v. A p o c a u p s e , L iv r o d e ) , especialmente Apocahpse 1.4-6,10,11. 1.1 Autoria que a carta faz supor. Assim como Paulo em cinco de suas cartas se apresenta como “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo”, o autor dessa carta se identifica como “Pedro, apóstolo de Je­ sus Cristo” (IPe 1.1). Quem quer que seja o ver­ dadeiro autor, ele se apresenta como o apóstolo Pedro. No contexto do cânon do n t , parece que Pedro está exercendo a autoridade legal que Jesus lhe conferiu (de acordo com Mt 16.19) de ligar e desligar ou, então, está executando a ordem de Jesus (de acordo com Jo 21.15-17) de alimentar ou apascentar o rebanho cristão. No restante da carta, não se dá praticamente nenhum valor a essa declaração de autoridade apostóhca. Apenas três vezes o autor escreve na primeira pessoa do singular. Na primeira delas (IPe 2.11), ele diz “exorto-vos” (parakalõn]-, na segunda, “suplico aos presbíteros que há entre vós”, referindo-se a si mesmo não como apóstolo, mas como um “presbítero [...], testemunha dos 036

P e d r o , P r im e ir a C a r t a de

sofrimentos de Cristo e participante da glória que será revelada” (IPe 5.1). À primeira vista, trata-se de uma afirmação mais modesta, mas o propósito óbvio é estabelecer um relacionamento amistoso e uma base comum com os leitores, justamen­ te o que faria uma pessoa de grande autoridade. Podemos comparar Pedro com o profeta João, que se apresenta a seus leitores como “vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus” (Ap 1.9; v. r e in o d e D e u s ) , o u mesmo com o anjo que, dirigindo-se a João, diz ser “conservo teu e de teus irmãos” (Ap 19.10; 22.9). Essa maneira de falar pressupõe que o autor ocupa um lugar de certa importância e também entende que detém alguma autoridade, a qual é perceptível em toda a carta. A terceira vez que Pedro se expressa na pri­ meira pessoa do singular é na conclusão da carta. Ele diz: “Por intermédio de Silvano, que conside­ ro nosso fiel irmão, escrevo de forma abreviada, exortando [parakalõn] e testemunhando que esta é a verdadeira graça de Deus” (IPe 5.12). Então ele envia saudações daquela “que é coeleita con­ vosco, que está na Babilônia [...] como também meu filho Marcos” (IPe 5.13). Por isso, Pedro é situado geograficamente na “Babilônia”, talvez uma metáfora para Roma (como também ocor­ re em Apocalipse), e dois dos companheiros de Paulo - Silvano (ITs 1.1; 2Ts 1.1; 2Co 1.19) e Marcos (Fm 24; Cl 4.10; 2Tm 4.11) — são asso­ ciados a ele. Pelo fato de adotar o formato das cartas pau­ hnas e de se referir aos companheiros de Paulo, alguns intérpretes inferem que o autor de IPedro deseja apresentar Pedro como amigo ou colabora­ dor de Paulo (compare-se a referência ao “nosso amado irmão Paulo”, em 2Pe 3.15). A tendência de concluir que o autor que o texto faz supor é paulinista é em si mesma de pouca relevância, embora não seja nem mesmo possível comprovar a teoria. Mas, quando os intérpretes são levados a avahar a carta com base nos escritos de Paulo, a teoria deixa de ser justa com IPedro, pois o resul­ tado é que a carta não tem os grandes temas pau­ hnos da justificação pela fé e da vida no Espírito (v. E s p í r it o S a n t o ) o u então se apresenta um tanto em descompasso com qualquer vertente oriunda do paulinismo. Em vez disso, deve se ler IPedro como uma carta que não depende das cartas de

Paulo e dá um testemunho autônomo e importan­ te da fé e da vida cristãs. Não só nas passagens em que faz referência a si mesmo, mas por toda a carta, o autor demonstra modéstia ao se identificar como “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo”. Jesus chamou Simão Pedro de “pedra” (ou “rocha”, Mt 16.18), mas em IPedro a “pedra viva” é o próprio Jesus Cristo (IPe 2.4). Je­ sus também disse a Pedro: “Tu és para mim pedra de tropeço” (Mt 16.23, a r a ) . Em IPedro, porém, é Jesus Cristo a “pedra de tropeço e rocha que causa a queda” (IPe 2.8), não para o povo de Deus, mas para os incrédulos. A ironia é inegável. Jesus no­ meou Pedro pastor de seu rebanho (Jo 21.15-17), e, mais uma vez, o autor de IPedro atribui esse papel a Jesus, o “Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). “Pastoreai o rebanho de Deus que está entre vós” (IPe 5.2), diz ele aos anciãos, mas não atribui nenhuma importância especial a seu papel de pastor. Em vez disso, ele e os anciãos, juntos, aguardam que Cristo, “o Supremo Pastor” (IPe 5.4), a quem todas as ovelhas e pastores têm de prestar contas, seja revelado. Não se deve entender a afirmação de que o autor foi “testemunha dos sofrimentos de Cris­ to e participante da glória que será revelada” (IPe 5.1) como uma forma de ressahar que Pedro foi testemunha ocular da vida ou da m o r t e de Je­ sus na cruz (e.g., como em 2Pe 1.16-18). Estrita­ mente falando, Pedro não foi testemunha ocular dos sofrimentos de Jesus, porque, como outros discípulos, ele o abandonou no Getsêmani e não estava presente na hora da crucificação. Além do mais, o autor está enfatizando o que tem em co­ mum com os anciãos a quem se dirige na carta, não algo que ele tenha presenciado e os anciãos não testemunharam. O que Pedro está dizendo é que, á semelhança deles e dos profetas do passa­ do (IPe 1.11), ele dá testemunho do evangelho do sofrimento e da confirmação de Jesus enquanto aguarda a glória futura que há de se revelar. 1.2 Pedro como o verdadeiro autor. A tradi­ ção da igreja primitiva, ao mencionar a carta, é unânime em identificar Pedro como seu autor. Papias de Hierápolis, que em meados do século II escreveu na região que era mais ou menos a mesma para qual a carta foi enviada, aceita as afirmações, existentes na própria carta, de que ela procede de Pedro, foi escrita na “Babilônia”

1037

P e d r o , P r im e ir a C a r t a de

(que Papias interpretava como Roma) e transmi­ te saudações da parte de Marcos, a quem Pedro chama “meu filho” (IPe 5.13; v. E u s é b io , Hi ec, 2.15.2). Da mesma forma, perto do final do sé­ culo II, Ireneu, que morou na Ásia Menor e mais tarde na Gáha, cita IPedro como obra de Pedro ( I r e n e u , He, 4.9.2; 4.16.5; 5.7.2). 0 mesmo vale para Tertuliano, na romana África do Norte (Sc, 12), e Clemente de Alexandria, no Egho (e.g.. C l e m e n t e , Pd, 1.6; St, 3.12). Orígenes, também de Alexandria, aceita IPedro sem titubear, mas acei­ ta 2Pedro com reservas; “Pedro, contra quem o Hades não prevalecerá, deixou uma epístola reco­ nhecida e, talvez, uma segunda epístola, porque há diívidas a esse respeito” ( E u s é b io , Hi ec, 5.25.8; de acordo com Eusébio, essa citação foi tirada de um comentário de Orígenes aos romanos, obra que se perdeu). Os estudiosos da atualidade, ao contrário da igreja primitiva, não aceitam universalmente a afirmação, existente na própria carta, de que foi Pedro quem a escreveu. Pedro é o autor indica­ do, mas seria o autor de fato? Os que consideram IPedro uma obra pseudonímica (i.e., de alguém que em época posterior adotou o nome de Pe­ dro como recurso hterário) alegam que o estilo é demasiadamente refinado para Simão Pedro, o pescador galileu. Em Atos 4.13, logo depois de Pedro ter citado Salmos 118.22 (o mesmo texto que ele cita em IPe 2.7), ele e seu colega João são descritos como “homens simples e sem eru­ dição”. No entanto, IPedro contém alguns dos melhores textos gregos do n t . Outros, apontando para tradições sobre o martírio de Pedro (c. 64 d.C., durante a perseguição promovida por Nero), não acreditam ser possível que IPedro tenha sido escrita antes dessa data. 0 úhimo argumento é frágil, porque ninguém sabe quando ou como Pedro morreu. 0 teste­ munho de 2Pedro é que ele teve bastante tem­ po para planejar sua partida, e isso é compatível com a ideia de que o apóstolo teve morte natu­ ral (2Pe 1.12-15). Esse testemunho é importan­ te mesmo que Pedro não tenha escrito 2Pedro, pois reflete a crença cristã primitiva acerca de sua morte. O mesmo vale para a referência à sua mor­ te no Evangelho de João (Jo 21.18,19), que é mais um enigma sobre a juventude e a velhice que uma predição de martírio. Só algumas tradições

posteriores apresentam Pedro como mártir, como Orígenes, Tertuhano, Eusébio e, acima de tudo. Atos de Pedro e dos doze apóstolos 30—41. Mas IClemente 5.4, escrita em Roma perto do final do século II, é bem obscura a respeito. Quanto ao estilo da carta, vários estudiosos (S e l w y n ; K

elly;

D

a v id s ;

Marshall) atribuem a com­

posição da carta a Silvano ( “ por intermédio de Silvano” , IP e

5.12),

mas a expressão é mais pro­

vavelmente uma recomendação de Silvano como portador da carta — como no caso das cartas de

11.2), aos esmir12.1), aos romanos (In, Rm, 10.1) e a Policarpo (In, Po, 8.1), e na carta de Pohcarpo aos filipenses (Po, Fp, 14.1). Embora essa hipóte­

Inácio aos filadelfenos (In, Fi, neus (In, Es,

se tenha se tornado popular entre alguns estudio­ sos como defesa da autoria petrina, o resultado é que Silvano, não Pedro, se torna o verdadeiro autor da carta, assim como Marcos, não Pedro, foi identificado como autor do Evangelho de Mar­ cos (v. Marcos, Evangelho

de,

1.2). Pelo menos um

defensor dessa hipótese aceita a possibilidade de que Pedro “ talvez nem mesmo tenha visto” a car­ ta, “ tendo passado [a Silvano] apenas instruções extremamente curtas”

(D

a v id s ,

p. 7).

A ideia de que Pedro ajudou na composição da carta não sustenta nem derruba a hipótese da autoria de Silvano. Se IPedro é, como parece ser, uma encíclica em nome da igreja de Roma (“Ba­ bilônia”) destinada a um amplo círculo de igre­ jas situadas nos hmites do Império Romano, em cinco províncias da Ásia Menor (“Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia”, IPe 1.2), então prova­ velmente o autor deve ter contado com a ajuda de escribas quanto ao vocabulário e ao estilo, e esses auxihares teriam permanecido anônimos. O ônus da prova ainda recai sobre os que rejeitam a ideia de que a carta procede do apóstolo Pedro. 1.3 Os leitores que a carta faz supor. A Pri­ meira Carta de Pedro revela não ter nenhum ou praticamente nenhum conhecimento das circuns­ tâncias de seus leitores, pois estão espalhados por uma área geográfica imensa e distante, e tudo o que podemos saber acerca desses leitores é pela maneira que o autor os visualiza. À semelhança dos leitores das cartas de Paulo, os leitores tácitos de IPedro são gentios que vieram a crer em Jesus. Eles não são mais escravos dos “desejos que (ti­ nham] em tempos passados na [sua] ignorância”

1038

P e d r o , P r im e ir a C a r t a de

(IPe 1.14), mas foram “resgatados da [sua] ma­ neira fútíl de viver, recebida por tradição dos [seus] pais” (IPe 1.18). Eles antes estavam entre­ gues a “libertinagem, prazeres, embriaguez, or­ gias, bebedeiras e idolatrias repulsivas” (IPe 4.3), mas por intermédio de Jesus Cristo chegaram à fé e à esperança no único Deus verdadeiro, o Deus de Israel (IPe 1.21). Eles agora têm a salva­ ção, mas não têm um passado nem uma noção de identidade. A carta lhes confere um passado judaico e uma identidade pratícamente judaica, quando afirma que certos títulos e privilégios outrora concedidos a Israel agora pertencem a eles também. Eles são “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (IPe 2.9a; cf. Êx 19.6; Is 43.20,21). Assim como no Israel antigo, esses privilé­ gios trazem consigo responsabihdades análogas. À semelhança dos judeus, esses cristãos gentios são uma diáspora, um povo escolhido que está disperso e vive como estrangeiro em um mundo hostil (IPe 1.1). É responsabilidade deles serem “santos em todo [o seu] procedimento” [anastrophe, IPe 1.15). Devem, por isso, anunciar “as grandezas daquele que [os] chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (IPe 2.9b). A socie­ dade em que vivem é hostil, mas as autoridades romanas são justas (IPe 2.13-17). A responsa­ bilidade dos cristãos é demonstrar respeito por todos, amar os irmãos, temer a Deus e respeitar o imperador (IPe 2.17). Isso não evitará que se­ jam acusados de fazer o mal (IPe 2.12; 3.15,16; 4.15,16), mas a esperança é que, quando forem acusados, seus acusadores “fiquem envergonha­ dos” (IPe 3.16) ou então, “ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação” {IPe 2.12). A situação vivida pelos leitores não é específi­ ca nem restrita a uma área geográfica, mas resul­ ta da generalização, pelo autor, da situação dos cristãos na sociedade romana na época em que a carta foi escrita. Na mente do autor, seus leitores representam todos os cristãos de todos os lugares. Por esse motivo, é apropriada a classificação de IPedro como uma das Cartas Católicas ou Gerais. 2. Integridade e estrutura literária

Nos últimos anos, têm sido gran­ demente rejeitadas as tentativas de questionar

2.1 Integridade.

a integridade hterária de IPedro. Ao contrário do que era comum uma geração anterior (e.g., C r o ss ) , hoje em dia são raros os argumentos a fa­ vor da ideia de que parte da carta (IPe 1.3—4.11) foi em sua origem um sermão batismal para novos convertidos ou mesmo uma hturgia batismal com­ pleta (v. a d o r a ç ã o ) . E a proposta de C . F. D. Moule de haver uma interrupção entre IPedro 4.11 e IPedro 4.12 também não tem recebido muito apoio em tempos recentes. 0 raciocínio de Moule é que a perseguição, uma possibihdade bem remota em IPedro 1.3—4.11, se torna um assunto premente em IPedro 4.12—5.11. Ou o autor recebeu repen­ tinamente a notícia de uma onda de perseguição, ou dehberadamente planejou duas cartas, uma para as congregações que enfrentavam pressões sociais, mas não perseguição ostensiva (IPe 1.1— 4.11; 5.12-14), e outra, mais curta e urgente, para as congregações que já estavam sofrendo com o “fogo” (IPe 1.1—2.10; 4.12—5.14). Contudo, tais ideias não passam de especulação e carecem do apoio de manuscritos antigos. 2.2 Estrutura literária. Percebe-se uma rup­ tura estrutural entre IPedro 4.11 e IPedro 4.12, embora isso não comprometa a integridade da carta. A ruptura é assinalada pela forma direta de se dirigir aos leitores — “Amados” — em 1Pe­ dro 4.12. Esse mesmo recurso assinala uma rup­ tura semelhante em IPedro 2.11. Os dois apelos dividem a carta em três partes principais seguidas de um pós-escrito; IPedro 1.1—2.10; 2.11—4.11; 4.12—5.11. A primeira parte gira em torno da identidade tácha dos leitores como povo de Deus, a qual se ba­ seia em seu renascimento espiritual (IPe 1.3,22,23; 2.2,3) e na conseqüente esperança de salvação (IPe 1.5,9,10; 2.3). Em IPedro 1.1,2, o autor anun­ cia programaticamente a identidade que eles têm e a confirma em IPedro 2.9,10, como que emoldu­ rando toda a seção. Dentro dessa estrutura, ele con­ ta o que Deus fez e fará (IPe 1.3-12,18-21; 2.4-8), lembrando-os da responsabilidade que têm de viver com esperança, na condição de povo santo (IPe 1.13-16), com reverente temor diante do Deus que os salvou a um preço infinito (IPe 1.17-19), com amor uns pelos outros e com um desejo por Deus (IPe 1.22; 2.1-3). A segunda seção é um apelo aos leitores (IPe 2.11), concentrando-se na responsabihdade

1039

P e d r o , P r im e ir a C a r t a de

que eles têm de demonstrar reverência para com Deus, amor uns pelos outros e honra e respei­ to para com todos, a começar pelo imperador [IPe 2.13-17). Pedro exorta os cristãos a tratar de forma pacífica e respeitosa os que denunciam os cristãos por professar a fé e os acusam de praticar 0 mal (IPe 2.12; 3.16). Ele tem em mente o con­ flito social no ambiente das casas romanas, entre escravos cristãos que são propriedade de senho­ res não cristãos (IPe 2.18-25) e de esposas cristãs casadas com maridos incrédulos (IPe 3.1-6). O código de deveres domésticos que ele apresenta (cp. Cl 3.18—4.1; Ef 5.21—6.9) está mais direcio­ nado para o relacionamento entre cristãos e incré­ dulos, e na mesma casa, que entre cristãos, e está no âmago das exigências éticas da carta. Os cris­ tãos são aconselhados a fazer o bem, mesmo à custa de difamação e ameaças (IPe 3.8,9), seguin­ do 0 exemplo de Cristo (IPe 2.22,23), na certeza de que Deus os confirmará (IPe 3.16,17; 4.5,6), assim como confirmou Cristo na ressurreição e no retorno vitorioso para o céu (IPe 3.18-22). Pedro destaca, então, a responsabilidade dos cris­ tãos para com Deus e de uns para com os outros, incentivando-os ao amor mútuo, ao ministério e à hospitahdade no ambiente da comunidade dos fiéis, e conclui com uma doxologia (IPe 4.7-11). A terceira seção reitera os temas da segunda, dando especial atenção às congregações dirigidas por membros mais idosos, os anciãos. A forma em que Pedro se dirige às igrejas (“Amados”) deixa prever o que ele vai dizer em IPedro 5.1: “Suplico aos presbíteros que há entre vós...” (cf. IPe 2.11, “Amados, exorto-vos...”). O objetivo de Pedro é aprofundar-se nas admoestações inicia­ das em IPedro 4.7-11, expondo com mais deta­ lhes as responsabihdades mútuas dos membros mais jovens e mais idosos (i.e., presbíteros) das congregações, pelo menos nas congregações em que havia tal distinção. Mas ele faz uma digres­ são (IPe 4.12-19), a fim de ressaltar mais uma vez e com maior insistência, à luz de sua convic­ ção de que “já está próximo o fim de todas as coi­ sas” (IPe 4.7), os temas da seção anterior. Pedro vê um “fogo” (IPe 4.12) irrompendo e o juízo di­ vino começando “pela casa de Deus” (IPe 4.17). Acompanhando Ezequiel, ele interpreta que o sentído disso é que o juízo começa pelos anciãos (cf. Ez 9.6). Por isso. em relação à crise que se

aproxima (IPe 5.6-9), ele começa com os anciãos e suas responsabihdades (IPe 5.1-4) e então pas­ sa para os mais jovens e, desse modo, a todos os membros das congregações (IPe 5.5). De novo, ele conclui com uma doxologia (IPe 5.10,11). Retoricamente, a melhor classificação para IPedro é a de um discurso de persuasão. Em seu pós-escrito (IPe 5.12-14), Pedro parece fazer da carta uma combinação de apelo e testemunho (parakalõon kai epimartyrõn, IPe 5.12), mas não se devem separar os dois termos. Aqui o testemu­ nho de Pedro não é tanto o anúncio salvífico por trás de seu apelo (e.g., em IPe 1.3-12) quanto a conclusão do apelo em si, o que é mais provável. Essas palavras são a solene certeza da parte de Pedro de que a carta que acabou de escrever é “a verdadeira graça de Deus” (IPe 5.12). A carta é a demonstração do princípio de que os cristãos de­ vem usar os dons espirituais para servir uns aos outros: “Servi uns aos outros conforme o dom que cada um recebeu, como bons administrado­ res da multiforme graça de Deus” (IPe 4.10). 3. Antecedentes históricos e sociais

Há duzentos anos, os estudiosos da Bíblia procu­ ram identificar a exata situação histórica em que ou para a qual cada livro da Bíblia foi escrito. Nas últimas duas décadas, tem se dado igual ou maior atenção à situação social ou à sociedade dos escritos bíblicos. No nível mais simples, a diferença entre as duas empreitadas é que a investigação histórica examina o que é exclusivo, datável e histórica e geograficamente determinado quanto ao ambien­ te vivencial [Sitz im Leben] dessas obras antígas, ao passo que a teoria sociocientífica procura fato­ res que não são únicos, mas que apresentem pa­ ralelos bem próximos com outras épocas, lugares e culturas — às vezes, bem diferentes. No passa­ do, 0 estudo sociocientífico era reahzado como parte do campo mais amplo da história, mas a tendência recente tem sido separar os dois, espe­ cialmente quando a investigação histórica por si mesma se revela inconclusiva. No caso de IPe­ dro, as duas disciplinas estão relacionadas, mas não são totalmente permutáveis. 3.1 Antecedentes históricos. Tornou-se lugarcomum definir o ambiente vivencial de IPedro como de sofrimento ou perseguição. Em razão

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disso, a tendência tem sido situar a carta em um período de alguma perseguição conhecida no Império Romano, seja a de Nero (c. 64 d.C.), pressupondo-se que Pedro seja o verdadeiro au­ tor da carta ( S e l w y n ) , seja a de Trajano (início do séc. ii), na pressuposição de que a carta é pseu­ donímica ( B e a r e ) . Uma terceira opção, a de que foi escrita na época de Domiciano (entre 81 e 96 d.C.), é menos comum, possivelmente porque são fracos os indícios de ter havido perseguição nesse periodo. Mas será que a carta pressupõe uma situação de perseguição ostensiva? A atitu­ de de Pedro para com o Império Romano parece semelhante à de Paulo: “Sujeitai-vos a toda auto­ ridade humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como por ele enviados para punir os praticantes do mal e honrar os que fazem o bem” (IPe 2.13,14). Além disso, ele é mais claro e mais explícho que Paulo, que foi vago a respeito das “autoridades superio­ res” (Rm 13.1, a r a ] o u “autoridades do governo”. É dificil imaginar Paulo ou Pedro escrevendo tais palavras em uma época de perseguição sistemá­ tica aos cristãos. Contudo, Pedro menciona, sim, “várias prova­ ções”, ou testes de fé, relacionando-as ao fato de o cristão ser “provado pelo fogo” (IPe 1.6,7) ou com a “provação que como fogo vos sobrevêm” (IPe 4.12). Pelo menos parte da retórica petrina contempla a perseguição e o martírio. Para os cristãos. Cristo é o exemplo supremo, exatamen­ te por ser um mártir confirmado, aquele que foi “morto na carne, mas vivificado pelo Espirito” (IPe 3.18; cf. 2.21-24; 4.1,2). Sem dúvida, Pedro estava ciente de que ele próprio e seus leitores corriam perigo, mas não da parte do imperador nem dos governadores das províncias, que haviam sido constituídos por Deus “para punir os praticantes do mal e hon­ rar os que fazem o bem” (IPe 2.14). A ameaça que ele percebia era da parte de concidadãos em Roma (e, como Pedro pressupunha, nas provín­ cias) que não partilhavam a fé tácita dos leitores e por isso rejeitavam a adoração peculiar e o estilo de vida dos cristãos. Por isso, Pedro deseja que, “fazendo o bem, caleis a ignorância dos insen­ satos” (IPe 2.15). A perseguição que ele tem em mente é do tipo que não é executada com espada nem com fogo, mas com palavras — zombaria.

difamaçao e às vezes acusações formais de cri­ mes contra a sociedade (v. IPe 2.12; 3.13-17; 4.14-16). É dificil situar tal perseguição na história, cro­ nológica ou geograficamente. Ela pode ter ocor­ rido em qualquer momento e local do mundo medherrâneo do final do século i e início do n. 0 fato incômodo é que não sabemos praticamen­ te nada dos antecedentes históricos de IPedro. É possível que, quando Pedro diz que “chegou a hora de começar o julgamento pela casa de Deus” (IPe 4.17), ele tenha em mente a destruição de Jerusalém e do templo, em 70 d.C., pelos roma­ nos (“Babilônia”, IPe 5.13) e entenda que esse acontecimento signifique perigo para todos os que adoram ao Deus de Israel, cristãos e judeus. Mas não existe nenhuma prova disso. Sem pontos de referência mais claros, não é possível recorrer à história para iluminar o texto de IPedro. 3.2 Antecedentes sociais. A partir da década de 1970, os estudos sobre IPedro (e.g., C o p p e l t , E l l i o t t ; B a l c h ) têm se concentrado mais nos an­ tecedentes sociais que históricos. Qualquer que seja o exato ambiente histórico, a carta menciona uma situação em que os leitores são vistos como estrangeiros no Império Romano. Pedro escreve em uma comunidade cristã localizada na “Babi­ lônia” (IPe 5.13), que na tradição judaica é um local de exílio e alienação, escrevendo a cristãos que se encontram em situação semelhante, na Dispersão (ou Diáspora, IPe 1.1), espalhados como estrangeiros pelas províncias do Império Romano. Tanto para o autor quanto para os lei­ tores, diferenças marcantes distinguem os valores que eles adotaram dos valores das sociedades em que estão inseridos. As obras de J. H. EUiott e D. Balch revelaram em IPedro uma tensão entre a “aculturação” (i.e., quando possível, uma conformação aos valores prevalecentes na sociedade) e a “preservação de hmites” (i.e., a salvaguarda das características cristãs em uma sociedade hostíl). No dizer de um estudioso, a carta tem ao mesmo tempo dois obje­ tivos: “1) a coesão social dos grupos cristãos e 2) a adaptação social dos grupos cristãos a seu am­ biente cultural. Sem a primeira, a identidade cristã teria se perdido. Sem a segunda, os cristãos não teriam sido aceitos, o que também é necessário à sobrevivência e à evangehzação” ( T a l b e r t , p. 148).

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Os cristãos tinham, sim, alguns valores em co­ mum com a cuhura do mundo mediterrâneo, em especial as realidades sociais de contraste entre honra e vergonha. Pratícamente todos os estudos recentes do mundo social do n t tratam de alguma forma da questão da honra e da vergonha, e em nenhum outro livro do n t o contraste é mais acen­ tuado que em IPedro. Tanto para os destinatários da carta quanto para os inimigos deles na socie­ dade romana, a honra era uma virtude desejável, talvez o objetivo supremo da vida, ao passo que a vergonha era algo que se devia evitar a qual­ quer custo. A diferença radical entre os cristãos e seus contemporâneos residia no que se julgava ser honra e no que era considerado vergonha. Para os romanos, a honra envolvia o louvor e a estima dos concidadãos, geralmente com algum tipo de reconhecimento público por coisas boas que haviam feito em casa ou a favor da comu­ nidade. Atos individuais de honra traziam honra para a família, o Estado, o imperador e os deuses. A vergonha era resultado de comportamento antíssocial e tendia a minar ou desacredhar aquelas instituições e, consequentemente, aos olhos da comunidade, trazer ignomínia aos culpados de tal comportamento. De acordo com IPedro, honra e vergonha não são determinados pela opinião púbhca, pelo imperador ou pelos deuses romanos, mas unica­ mente pelo Deus de Israel, que é o Pai daqueles que creem em Jesus e o Juiz universal a quem todos terão de prestar contas (IPe 1.17; 4.5). Não são seus atos de serviço público, mas a lealdade a Deus e a perseverança fiel diante das “várias pro­ vações” que os cristãos trocarão por “louvor, gló­ ria e honra” por ocasião da futura “revelação de Jesus Cristo” (IPe 1.6,7). Jesus foi morto como o divino “cordeiro sem defeito e sem mancha”, mas Deus “o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória” (IPe 1.19,21). Fazendo uso da hnguagem bíblica (Is 28.16), Pedro compara Jesus a “uma pedra angular, eleita e preciosa”, existente em Sião, e anuncia que “quem nela crer não será, de modo algum, envergonhado” (IPe 2.6, ara ). A honra de jamais ser envergonhado pertence aos cristãos (IPe 2.7), ao passo que, para os incré­ dulos, Cristo se torna “pedra de tropeço e rocha que causa a queda” (IPe 2.8) — destino para o qual “foram destinados” (IPe 2.8). O dualismo de

tais textos é absoluto: os cristãos estão destinados para a honra, e os não cristãos, para a vergonha eterna. No entanto, há também uma sobreposição en­ tre os valores de Pedro e os da sociedade, pois às vezes ele se mostra propenso a mensurar honra e vergonha com base nas responsabihdades de alguém para com a famíha, a comunidade e o Es­ tado, bem como para com Deus e os irmãos na fé: “Honrai a todos. Amai os irmãos. Temei a Deus. Honrai o rei” (IPe 2.17). Pedro aconselha seus leitores a responder às calúnias de seus detratores com palavras bondo­ sas e uma boa conduta, "para que naquilo de que falam, mal de vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glori­ fiquem a Deus no dia da visitação” (IPe 2.12). Seu propósito não é minar o mundo social em que seus leitores vivem, mas conquistá-lo — ou pelo menos convencer as pessoas a que abando­ nem os valores do mundo e passem a honrar ao Deus cristão, recebendo, por sua vez, a honra que só Deus pode conceder. Pedro sabe que isso nem sempre acontecerá, e às vezes ele escreve como que suspehando de que talvez nunca acon­ teça. Todavia, qualquer que seja o resultado, os cristãos devem estar “sempre preparados para responder a todo o que vos pedir a razão da es­ perança que há em vós [...] [fazendo] isso com mansidão e temor, tendo boa consciência, para que os que caluniam o vosso bom procedimento em Cristo fiquem envergonhados naquilo [en hõ] de que falam mal de vós” (IPe 3.15,16). Para Pedro, as situações que ele vislumbra, ou seja, ocasiões em que os cristãos são acusados de ter praticado maldade ou de algum comportamen­ to antissocial, são o teste decisivo de honra ou de vergonha, respectivamente, quer para os próprios cristãos, quer para seus acusadores. “Nenhum de vós sofra como homicida, ladrão, praticante do mal, ou como quem se intromete em negócios alheios” (IPe 4.15,16), conclui Pedro, acrescen­ tando; “Mas, se padece como cristão, não se en­ vergonhe; antes, glorifique a Deus nesta parte” (neste versículo, deve se dar preferência à a r c ) . De acordo com Pedro, ser acusado de cometer atos criminosos, como às vezes ocorria com os cristãos, ou ser tachado de “intrometido” (aquele que se nomeou guardião da moral púbhca), como

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acontecia muitas vezes e ainda acontece, não é motivo de vergonlia. Só há vergonha quando tais acusações são procedentes. Em IPedro, a honra não é a recompensa de sofrer, como se isso fosse uma virtude em si, mas de sofrer por fazer o bem. Pedro não está encora­ jando a paranóia nem o masoquismo. O que ele está dizendo é: “Assegurem-se de que, quando vocês forem denunciados ou acusados, não seja por terem de fato agido com maldade ou por al­ gum comportamento antissocial, mas apenas por causa da fé cristã”. O ideal romano de honra e boa cidadania é eclipsado e relativizado, mas não negado. Os cristãos são uma contracuhura na so­ ciedade romana e têm os mesmos deveres que outros habitantes de Roma e das províncias para com a família e o Estado, desde que esses deveres não impliquem adoração aos deuses romanos. Na época em que escreveu a carta, o autor es­ tava confiante da conduta de seus leitores. Embo­ ra o martírio não seja descartado (IPe 4.6; 5.8,9), também não é um tema importante da carta. A Babilônia ainda é um lugar de exílio, não o trono de Satanás nem o do Anticristo, como no hvro de Apocahpse. A reahdade da vida no que podemos chamar “sociedade pluralista” torna ainda mais gritante o duahsmo de IPedro. Para os cristãos ocidentais do século xxi, esse breve tratado, es­ crito no ambiente de uma cuhura ainda não cris­ tã, se torna um relevante livro-texto sobre a vida cristã em uma cultura que não é mais cristã. 4. Contribuições teológicas ao cánon

O lugar de IPedro no cânon do n t é discreto, le­ vando-se em conta a proeminência de Pedro como a “pedra” sobre a qual a igreja seria construída (Mt 16.18,19) e como o pastor cuja responsabihda­ de era alimentar as ovelhas de Cristo (Jo 21.15-17). A razão disso pode ser a brevidade da carta ou o fato de que o n t contém apenas duas cartas que levam o nome de Pedro, ao passo que Paulo tem doze. Outro motivo pode ser que há muito tempo IPedro é associada a 2Pedro, cuja autenticidade tem sido posta em xeque desde o início, ou ainda que a atitude excessivamente modesta do autor ao se identíficar apenas como “Pedro” (v. 1.1 acima) tenha tido uma influência permanente na forma em que a carta foi lida. Qualquer que seja a razão, nos primeiros séculos, quando os cristãos

falavam do “apóstolo”, especialmente quando o assunto era cânon, quase sempre estavam se re­ ferindo a Paulo, não a Pedro. No entanto, Pedro oferece um equilíbrio maior que Paulo entre o ensino e o exemplo de Jesus, de um lado, e sua morte e ressurreição, de outro. Mais que em qualquer outra carta do NT, IPedro completa o testemunho dos quatro Evangelhos, especialmente Marcos, e até mesmo apresenta mais detalhadamente esse testemunho. Ele o faz de três maneiras. Primeira: dá ao lei­ tor um sentido para viver em um mundo em que Jesus não está presente ou ainda não é visível. Segunda: destaca o discipulado cristão como uma caminhada, seguindo as pegadas de Cristo até a cruz e daí até o céu. Terceira: a vitória sobre os “espíritos impuros”, iniciada no ministério de Je­ sus, prossegue, em IPedro, com a ressurreição e ascensão, dando aos discípulos a certeza de que serão confirmados contra seus opressores quando ele voltar e se tornar visível outra vez. 4.1 O Cristo escondido. A “viva esperança” dos cristãos (IPe 1.3) não é a “vinda” [parou­ sia] de Jesus, e sim sua “revelação” ou apoca­ lipse [apokalypsis-, v. IPe 1.7,13). Quando ele for revelado, a “salvação” (IPe 1.5,9) e a “glória” (IPe 4.13) também serão reveladas. Uma vez, Je­ sus apareceu no mundo ou se tornou visível, e tornará a fazê-lo [phanerõthentes, IPe 1.20; 5.4). Esses temas são apocalípticos por tratarem de um apocahpse (“revelação”) decisivo. A Primei­ ra Carta de Pedro, contudo, não é apocalíptica, como o hvro de Apocahpse. Jamais se intitula um “apocalipse”, como faz aquele hvro (Ap 1.1), nem afirma que Pedro, ã semelhança de Paulo (Cl 1.12), recebeu uma revelação direta da par­ te de Jesus Cristo (cp. 2Pe 1.16-18). A revelação ou apocahpse decisivo é futuro. A única outra revelação mencionada é uma espécie de não re­ velação aos antigos profetas, ou seja, suas pro­ fecias acerca de Cristo não eram endereçadas a eles mesmos nem à sua época, mas olhavam para um futuro distante, o qual, para Pedro e seus leitores, é o tempo presente (IPe 1.10-12). A Primeira Carta de Pedro não é tanto uma car­ ta apocalíptica: devemos classificá-la como uma carta pré-apocalíptica. Os cristãos não podem ver Jesus agora (IPe 1.8), mas estão no limiar de um grande apocahpse, em que o verão em toda a sua

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glória e abraçarão jubilosamente a salvação que A situação dos leitores é semelhante à de Pe­ dro e dos primeiros discípulos de Jesus. Em IPe­ ele lhes reservou. 4.2 O discipulado como jornada. Diante dis­ dro, a jornada de Jesus vai além da cruz e além so, alguém poderá concluir que a revelação de da Gahleia: ela termina no céu. Como deixa claro Jesus Cristo e da plena salvação é algo que os o capítulo seguinte, Jesus não apenas foi “morto cristãos simplesmente aguardam. A referência na carne” e “vivificado pelo Espírito” (IPe 3.18), de Pedro a “uma herança que não perece, não se mas também subiu “ao céu [...] e a ele sujeitacontamina nem se ahera, reservada nos céus para ram-se os anjos, as autoridades e os poderes” vós” (IPe 1.4) está aberta a uma interpretação as­ (IPe 3.22). Consequentemente a jornada dos sim. Mas não é o caso. A salvação não é algo que discípulos cristãos também tem como destino o chega a nós, e sim algo que está no “fim” de uma céu, à semelhança da peregrinação mencionada vida ativa de fidelidade (IPe 1.9) e na direção da na Carta aos Hebreus (e.g., Hb 11.10,16; 12.22; qual crescemos (IPe 2.2). Jesus é visto não como 13.14) ou da jornada do Cristão, no hvro de John alguém que vem a nós, mas como aquele na di­ Bunyan, O peregrino. 0 alvo dos seguidores fi­ reção de quem estamos indo (IPe 2.4), primeiro éis de Jesus é nada menos que a “maravilhosa na conversão e em seguida em um processo que luz” de Deus (IPe 2.9), ou “sua eterna glória” dura a vida toda, pelo qual somos “edificados (IPe 5.10). como casa espiritual para [serj sacerdócio santo” 4.3 Vitória sobre os espíritos maus. De ou­ (IPe 2.5). A metáfora favorita de Paulo para esse tra perspectiva, IPedro desenvolve o testemunho processo é a de uma jornada, ou seja, seguir os de Marcos a respeito de Jesus, indo além do mi­ nistério de Jesus na terra e chegando à época e “passos” de Jesus (IPe 2.21). Essa é a metáfora dos autores dos Evangelhos, às circunstâncias de seus leitores. 0 Evangelho de Marcos dedica atenção especial aos aconteci­ principalmente de Marcos (v. Mc 1.16-20; 8.34) e presumivelmente de Jesus. Na maioria das ve­ mentos em que Jesus expulsa “espíritos impuros” zes, Paulo prefere a noção não metafórica de fé de pessoas possessas por demônios (v. Mc 1.23(ou crença). Embora seja possível alegar de modo 28,32-34; 3.11,12; 5.1-20; 7.24-30; 9.14-29). Em­ plausível que Paulo entendia a fé como o equiva­ bora várias dessas histórias sejam repetidas em lente a seguir o exemplo que Jesus deixou de fide­ Mateus e Lucas, o exorcismo não tem lugar entre lidade, coube a IPedro unir a noção pauhna de fé os dons e ministérios que Paulo menciona em suas cartas e exerce um papel de menor impor­ e a ordem de Jesus, encontrada nos Evangelhos, de segui-lo na condição de discípulos. Qualquer tância nas narrativas da missão cristã em seus que seja o sentido de “fé” para Paulo, em IPedro primórdios (v. At 16.16-18; 19.11-16). ela inclui a fidelidade (v. IPe 1.5,7,9), e fidelida­ Só IPedro, além da ressurreição e da ascensão de significa seguir a Cristo em uma jornada até a de Jesus, desenvolve o tema da vitória sobre os cruz — e para além dela (IPe 2.21-25). espíritos malignos (IPe 3.18-22). A caminho do Em Marcos, já existe uma indicação de que céu, Jesus “pregou” aos espíritos, aqui classifi­ a jornada vai além da cruz, pois, se fosse ape­ cados como espíritos “rebeldes” e vistos como nas até a cruz, a jornada seria um fracasso, pois resuhado de uma união não natural entre mulhe­ os discípulos abandonaram Jesus quando ele res e anjos maus (Gn 6.1-6; v. lEn, 15.8-10; v. foi preso (Mc 14.50). Entretanto, ao prever que tb. D alto n ; M ichaels, 1988). Com isso, ele obteve eles o abandonariam (Mc 14.27), Jesus acrescen­ para seus seguidores a vitória sobre esses espíri­ tos. A imphcação estabelecida em IPedro não é tou: “Todavia, depois da minha ressurreição irei de que quem passou pela água (como Noé) — a adiante de vós [i.e., como pastor, vos conduzirei] para a Gahleia” (Mc 14.28). É irônico que tenha água salvadora do batismo (IPe 3.20) — agora sido Pedro o único a protestar: “Ainda que todos tem 0 poder de realizar exorcismos, mas que ele desertem, eu nunca desertarei” (Mc 14.29), e não tem nada a temer dos opressores humanos da sociedade romana, os quais (como os espíritos) parece que só Pedro alude ao episódio: “Vivíeis “desobedecem” a Deus (v. IPe 2.8; 3.1; 4.17). A como ovelhas desgarradas, mas agora retornastes mensagem triunfante de Pedro é que Jesus Cristo ao Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). 1i044

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reina nos céus sobre “os anjos, as autoridades e Peter. 2. ed. London: Macmillan, 1947. ■ Senior , os poderes” (IPe 3.22). D. 1 and 2 Peter Wilmington: Michael Glazier, 4.4 Conclusão. Esses e outros aspectos de IPe­ 1980. ( n t Message, 20.) ■ Estudos; B alch , D . Let dro não apenas justificam sua inclusão no cânon wives be submissive: the domestic code in 1 Peter. do NT, mas também mostram que sua importância Chico: Scholars, 1981. [sblm s, 26.) • C hester, A. & dentro do cânon tem sido subestimada. Apesar de M a rtin , R. P. The theology of the letters of James, sua associação com 2Pedro, em decorrência da Peter and Jude. Cambridge; Cambridge Universi­ atribuição a um único autor para ambas as cartas, ty Press, 1994. • Cross, F. L. 1 Peter: a paschal tudo o que ela tem em comum com 2Pedro é uma liturgy. London: Mowbray, 1954. • D a lto n , W. J. forte ênfase no juízo vindouro de Deus. Sua fun­ Christ’s proclamation to the spirits: a study of 1 ção mais importante no n t é servir de ponte entre Peter 3:18— 4:6. 2. ed. Rome: Pontifical Biblical os Evangelhos e as cartas de Paulo. Insthute, 1989. ■ E l l i o t t , J. H. 1 Peter: estrange­ Ao que parece, IPedro aponta para essa fun­ ment and community. Chicago: Franciscan He­ ção com sucintas referências a Silvano, que foi rald, 1979. ■ ____ . A home for the homeless: a companheiro de Paulo, e a “meu filho Marcos” sociological exegesis of 1 Peter, its situation and (IPe 5.12,13). Durante séculos. Marcos foi um strategy. Philadelphia: Fortress, 1981. ■ M a r t in , T. Evangelho posto em segundo plano, e, se Marcos W. Metaphor and composition in 1 Peter. Atlan­ registra as memórias de Pedro, de acordo com ta: Scholars, 1992. ( sblds, 131.) • M ichaels, J. R. a tradição de Papias (E u s é b io , Hi ec, 3.39.15), é Word biblical themes: 1 Peter. Dahas: Word, 1989. justo pensar que IPedro seja um texto que, por ■ M o u le , C. F. D. The nature and purpose of 1 assim dizer, faz parceria com Marcos; por isso, Peter, nts, v . 3, p. 1-11, 1956-1957. ■ S ch u tter, W. não é de admirar que essa breve carta também L. Hermeneutic and composition in 1 Peter T ü ­ tenha sido negligenciada. A abundância de es­ bingen: Mohr Siebeck, 1989. (w u n t.) • T a lb e r t, C. tudos recentes talvez mostre que esse “enteado H., org. Perspectives on First Peter Macon: Mercer exegético” ( E l l i o t t ) do cânon esteja a caminho da University Press, 1986. [nabprss.) ■ V a n U n n ik , W. reabilitação que merece. C. The teaching of good works in 1 Peter, nts, v . Ver também P e d r o , S e g u n d a C a r t a d e . I, p. 92-110, 1954-1955. ■ W inter , B. W . Seek the d l n t d : H o u s e h o l d C o d e s ; O l d T e s t a m e n t in Ge­ welfare of the city: Christians as benefactors and n e r a l E p is t le s . citizens. Grand Rapids: Eerdmans, 1994. J. R. M ichaels B i b l i o g r a f i a . Comentários: A chtemeier, P. J. 1 Pe­ ter. Minneapohs: Fortress, 1996. [Herm.) ■ Bea­

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re,

A Segunda Carta de Pedro apresenta-se como testamento ou discurso de despedida do apóstolo Pedro, escrito na forma de carta pouco antes de sua morte (2Pe 1.14). Seu objetivo é lembrar os leitores sobre o ensino de Pedro e defender esse ensino contra objeções feitas por falsos profetas que estavam semeando dúvidas quanto à expec­ tativa cristã da parusia e defendendo uma liber­ tinagem ética. 1. Estrutura e gênero hterários 2. Atribuição a Pedro e data 3. Oponentes e resposta 4. Caráter teológico

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B.

The epistles

of James, Peter and Jude. Garden City: Double­ day, 1964.

(a b .)

• Selwyn, E. G. The First Epistle of

edro,

Segunda Car ta

de

1. Estrutura e gênero literários

É possível esboçar a estrutura de 2Pedro da se­ guinte maneira.

10 4 5

P e d r o , S e g u n d a C a r t a de

(A = apologética; C = carta; E = exortação/de­ núncia; T = testamento) (C*) Indicação dos destinatários e saudações (2Pe 2.1,2) (T‘) Tema: Resumo da mensagem de Pedro (2Pe 1.3-11) (T^) Ocasião: Testamento de Pedro (2Pe 1.12-16) (A‘) Primeira seção apologética (2Pe 1.16-21) Duas respostas à objeção 1: que os apósto­ los basearam em mitos feitos pelo homem sua pregação da parusia (2Pe 1.16-19) Resposta à objeção 2: que as profecias do AT foram produto de mentes humanas (2Pe 1.20,21) (T^) A predição de falsos mestres feita por Pedro (2Pe2.1-3a) (A^) Segunda seção apologética (2Pe 2.3b-10a) Resposta à objeção 3: que o juízo divino nunca acontece (2Pe 2.3b-10a) (E‘) Denúncia contra os falsos mestres (2Pe2.10b-22) (T“) A predição de zombaria feita por Pedro (2Pe 3.1-4) (incluindo-se a objeção 4: 2Pe 3.4) (A^) Terceira seção apologética (2Pe 3.5-10) Duas respostas ã objeção 4: que a expectati­ va da parusia se revela infundada em razão de sua demora (2Pe 3.5-10) (E^) Exortação a um viver santo (2Pe 3.11-16) (C^) Conclusão (2Pe 3.17,18) A Segunda Carta de Pedro é mesmo uma car­ ta, visto que tem a introdução formal desse gêne­ ro (2Pe 1.1,2); a conclusão (2Pe 3.17,18), embora não seja de natureza especificamente epistolar, pode servir de conclusão para a carta (v. c a r t a s , FORMAS DE CARTAs). Ademais, parece que 2Pedro é dirigida às mesmas igrejas a que IPedro foi diri­ gida (2Pe 3.1), ou pelo menos a algumas delas. Além de ser uma carta, 2Pedro pertence ao gê­ nero hterário de testamento, bem conhecido na hteratura judaica do período (e.g.. Te Ms; lEn, 91—104; 2Ap Br, 57—86; 4Ed 14.28-36). Nesses testamentos, um personagem do a t , como Moi­ sés ou Esdras, faz um discurso final a seu povo, normalmente incluindo exortações éticas e reve­ lações proféticas acerca do futuro. Em 2Pedro, há quatro passagens (T^-T“ no esboço acima [2Pe 1.3-11; 1.12-16; 2.1-3a; 3.1-4]) que de modo

particular se assemelham à hteratura testamentária judaica e identificam a obra de Pedro como testamento. Em 2Pedro 1.12-15, passagem repleta de hnguagem testamentária convencional, Pedro declara que o motivo de escrever é o fato de ele ter consciência de que a morte se aproxima e deseja fazer com que seu ensino seja lembrado depois que ele morrer. Um resumo do ensino é apresentado em 2Pedro 1.3-11, uma homilia em miniatura que segue um padrão usado em discur­ sos de despedida. A passagem desempenha um papel fundamental no hvro: o de resumo defini­ tivo da instrução ética e rehgiosa de Pedro. Tam­ bém há duas passagens proféticas (2Pe 2.1-3a; 3.1-4) em que Pedro antevê que depois de sua morte sua mensagem será questionada por falsos mestres. 0 restante de 2Pedro está estruturado em tor­ no de quatro passagens que pertencem ao gêne­ ro de testamento. Inclui três seções apologéticas (A'-A^ [2Pe 1.16-21; 2.3b-10a; 3.5-10]) que têm o objetivo de responder às objeções dos falsos mes­ tres ao ensino de Pedro. Existem quatro dessas objeções, mas apenas na última o texto afirma exphcitamente ser uma objeção (2Pe 3.4). Nos outros três casos, a objeção está implícita no fato de o autor rejeitar tais ideias (2Pe 1.16a,20; 2.3b). Essas seções apologéticas conferem a 2Pedro sua natureza polêmica de não ser apenas uma decla­ ração testamentária da mensagem de Pedro, mas também uma defesa dessa mensagem contra as objeções que lhe foram fehas. Duas passagens (E‘ e E^ [2Pe 2.10b-22; 3.11-16]) fazem contraste en­ tre 0 comportamento libertino dos falsos mestres, denunciado em 2Pedro 2.10b-22, e o viver santo esperado dos leitores, se forem fiéis ao ensino de Pedro (2Pe 3.11-16). 2. Atribuição a Pedro e data

O problema com a autoria de 2Pedro deve-se em parte à forma e ã estrutura da carta. Na htera­ tura judaica desse periodo, os testamentos eram pseudepigráficos e atribuídos a personagens veterotestamentários mortos havia muito tempo. Provavelmente, entendia-se que eram exercícios de imaginação histórica que punham na boca dos personagens o que se esperaria que dissessem em discursos de despedida. Isso leva ã pressuposi­ ção de que 2Pedro, de modo semelhante, é uma

1046

P edro , S e q u n d a C arta de

obra escrita por outra pessoa em nome de Pedro

convincentes para negar a autoria de Pedro são as

após a morte do apóstolo, embora seja possível

ideias e a linguagem religiosa helenísticas e as in­

que o próprio Pedro tenha empregado o gênero

formações que permitem atribuir ã obra uma data

testamento e assim produzido um testamento

posterior à morte de Pedro, ocorrida em meados

autêntico.

da década de 60, no século i (v. abaixo). Embo­

Deve-se, contudo, assinalar a natureza predití-

ra não mais se considere difícil acreditar que um

va do gênero testamentário usada em 2Pedro. Na

judeu da Palestina utilizasse ideias e hnguagem

carta, não há nada que reflita a situação em que,

rehgiosa helenísticas, mesmo assim o uso dessa

segundo a própria carta, Pedro está escrevendo.

terminologia é um aspecto notável em 2Pedro e

A obra é dirigida a uma situação após a morte de

mais facilmente atribuível a um cristão da diás­

Pedro. As duas predições de Pedro acerca de fal­

pora judaica ou de origem gentílica. Entretanto,

sos mestres (2Pe 2.1-3a; 3.1-4) constituem o mo­

visto que Pedro pode ter empregado um colabo­

tivo do debate apologético com os falsos mestres

rador para escrever a carta, esse argumento não

sobre a validade da mensagem de Pedro.

é decisivo. A data da carta provavelmente é mais

Além do mais, enquanto as passagens testa-

importante para a questão da autenticidade.

mentárias falam dos falsos mestres no tempo fu­

Muitos consideram 2Pedro o último dos hvros

turo, predizendo seu surgimento após a morte de

do

Pedro (2Pe 2.1-3a; 3.1-4; cf. 3.17), as seções apo­

11, talvez até mesmo por voha de 150 d.C. Mas

logéticas e a denúncia dos falsos mestres fazem

não há motivo para postular uma data tão tardia.

referência a eles no tempo presente (2Pe 2.3b-22;

0 indício mais claro de uma data pós-apostóhca

3.5-10,16b). É praticamente impossível ler 2Pe-

é 2Pedro 3.4. Esse texto revela que, no contexto

NT,

escrito em data bem avançada do século

dro sem pressupor que os falsos mestres eram

do problema surgido pela demora da parusia (v.

contemporâneos do autor, com os quais ele já

e s c a t o lo g ia ),

estava debatendo. Portanto, nas referências aos

chamada “ os pais” , havia morrido. Por isso, é

falsos mestres a melhor maneira de entender a

provável que a carta tenha sido escrita logo após,

alternância entre as seções preditivas e as que

talvez entre 80 e 90 d.C. Essa foi a época em que

são expressas no tempo presente (o que fica mais

se aguardou a parusia, enquanto a geração dos

óbvio em 2Pe 3.1-10,16b, 17) é vê-las como um

apóstolos ainda estava viva, tendo se deflagra­

recurso estilístico, mediante o qual o autor indica

do o problema quando essa expectativa não se

que essas profecias apostólicas já estão se cum­

realizou. Não há informação de que os cristãos

prindo. Ou seja, a autoria petrina é uma ficção

tenham continuado a se ressentir do problema no

que o autor verdadeiro não se sente obrigado a

século

sustentar ao longo de toda a obra. Nesse caso,

essa possibihdade.

II,

a primeira geração de cristãos, aqui

embora João 21 talvez deixe entrever

deve ser uma ficção transparente, convenção

A relação literária entre 2Pedro e Judas é outra

literária que o autor esperava que seus leitores

consideração que pode ser relevante para apurar a

reconhecessem como tal. (A ideia de que o autor

data de 2Pedro. Existem semelhanças tão marcan­

inadvertidamente passa a falar no tempo presen­

tes (esp. entre Jd 4-13,16-18 e 2Pe 2.1-18; 3.1-3)

te, esquecendo-se de que devia estar se referindo

que parece inegável algum tipo de relação literá­

aos falsos mestres da perspectiva de Pedro no

ria. Alguns estudiosos acreditam que Judas de­

passado, não é plausível, pois 2Pedro é uma obra

pende de 2Pedro ou que ambas dependem de uma

composta com cuidado, e nas referências aos fal­

fonte comum, mas a conclusão da maioria é que

sos mestres a alternância entre os tempos verbais

2Pedro empregou Judas como fonte. Entretanto,

futuro e presente segue um padrão estrutural.)

uma data tardia para 2Pedro só será confirmada se

Essas considerações sobre o gênero hterário

a data da redação de Judas não for antiga.

talvez sejam, entre os estudiosos, os elementos

Se 2Pedro não foi escrita por Pedro, mas de­

que mais contribuíram para o consenso de que

pois que ele morreu, por que o autor verdadeiro

2Pedro é uma obra pseudepigráfica. Só umas

publicou a obra como um testamento do após­

poucas análises recentes da obra discordam des­

tolo? Talvez seu objetívo tenha sido, no período

sa conclusão. Os argumentos adicionais mais

que se seguiu à morte dos apóstolos (2Pe 3.4),

1047

P edro , S e g u n d a C arta de

defender a mensagem apostólica contra os mes­

o conceito da parusia (2Pe 1.16a) e negavam

tres que procuravam desacreditar o ensino dos

a inspiração das profecias escatológicas do

apóstolos em aspectos importantes. Embora es­

(2Pe 1.20,21a). Ou talvez recorressem ao ensino

at

ses mestres alegassem que estavam corrigindo o

paulino sobre a liberdade a fim de sustentar as

ensino dos apóstolos, o autor de 2Pedro o consi­

ideias libertinas que propagavam, ou ainda talvez

dera normativo para a igreja pós-apostólica. Ao

considerassem que a expectativa de Paulo com

escrever em nome de Pedro, ele nâo reivindica

relação à parusia iminente desacreditava o pró­

nenhuma autoridade pessoal, exceto a de fiel me­

prio ensino do apóstolo. Em qualquer desses dois

diador da mensagem apostóhca, a qual ele de­

sentidos, pode se afirmar que os adversários es­

fende contra ataques. Por isso, a carta em forma

tão distorcendo o que Paulo escreveu (2Pe 3.16b).

de testamento apostólico está intimamente asso­

Em 2Pedro, não há fundamento para supor

ciada a seu propósho apologético, a confirmação

que esses ensinos tivessem base gnóstica. Não

da autoridade normativa do ensino apostóhco. 0

existe, por exemplo, nenhuma indicação do dua­

fato de o autor ter decidido escrever o testamento

hsmo que caracteriza e define o pensamento

de Pedro provavelmente estaria justificado se ele

gnóstico. É mais plausível entender as ideias dos

fosse um líder na igreja de Roma, que na geração

adversários como reflexo de atitudes populares

anterior tivera Pedro como um de seus líderes

pagãs e como o emprego de argumentos próprios

mais prestigiados.

de pagãos céticos, como as alegações dos epicu-

3. Oponentes e resposta

tes provavelmente tinham o objetivo de eliminar

reus — sobre escatologia e revelação. Os oponen­ Em geral, os falsos mestres a que a carta se opõe

do cristianismo elementos que lhes pareciam cau­

têm sido identificados como gnósticos, mas essa

sar constrangimento naquele contexto cultural

identificação, conforme reconhecem estudos re­

pagão: a escatologia cósmica, estranha à maior

centes, não é definitiva (v.

parte do pensamento helênico e especialmente

a d v e r s á r io s )

. Com base

na refutação apresentada pelo autor de 2Pedro, os

constrangedora após o aparente fracasso da es­

únicos aspectos claros do ensino de tais mestres

perança da parusia, e o rigor ético, que contrasta­

são 0 ceticismo escatológico e o libertinismo mo­

va com as atitudes mais permissivas do contexto

ral. A parusia fora aguardada durante toda a vida

cultural dos adversários.

dos apóstolos, mas a primeira geração de cristãos

Em resposta a esse desafio, o autor de 2Pedro

havia morrido, e, do ponto de vista dos adversá­

elabora uma defesa da expectativa apostólica de

rios, isso provava que a esperança cristã escatoló­

juízo e de salvação por ocasião da parusia e da

gica inicial era equivocada (2Pe 3.4,9a). Mas não

motivação daí resultante para que se vivesse uma

haveria nenhum juízo escatológico (2Pe 2.3b),

vida justa. O resumo definitivo sobre o ensino

nenhuma intervenção divina para ehminar o mal

de Pedro (2Pe 1.3-11) ressalta a necessidade de

e estabelecer um mundo de justiça. Essa atitude

esforço moral para que se assegure a salvação es­

parece estar baseada em uma negação racionalis­

catológica. Essa declaração positiva é então sus­

ta da intervenção divina na história (2Pe 3.4b),

tentada por argumentos apologéticos no restante

bem como no não cumprimento da profecia da

da carta.

parusia. Mas também era influenciada pelo liber­

0 autor defende que a pregação da parusia

tinismo ético dos oponentes. Eles alegavam estar

pelos apóstolos se baseava solidamente no fato

libertando as pessoas do medo do juízo divino

de terem testemunhado a transfiguração de Je­

e, consequentemente, da moral cristã convencio­

sus, quando Deus o designou juiz e governante

nal (2Pe 2.19a). Evidentemente, eles se sentiam

escatológico (2Pe 1.16-18), e também nas profe­

à vontade para se entregar à imoralidade sexual

cias divinamente inspiradas do

e eram indulgentes com a sensuahdade em geral

Os exemplos do

(2Pe2.2,10a,13,14,18).

acontece, sim, e prefiguram o juízo escatológico

at

at

(2Pe 1.19-21).

provam que o juízo divino

Esse ensino envolvia uma crítica do ensino

(2Pe 2.3b-10a). Assim como Deus decretou a des­

tradicional herdado dos apóstolos. Os adversários

truição do mundo antigo pelo Dilúvio, de igual

afirmavam que os apóstolos haviam inventado

modo decretou a destruição do mundo presente

II048

P edro , S e c u n d a C arta de

pelo fogo de seu juízo escatológico (2Pe 3.5-7,10).

e aspirações da cuhura pagã da época. Está en­

O problema da demora da parusia é tratado com

volvido na tarefa de traduzir o evangelho de

argumentos tradicionais extraídos da tradição ju­

modo inteligível a um novo ambiente cultural.

daica: que a demora é longa apenas pelos padrões

Mas essa é uma tarefa delicada, e todo cuidado

humanos, não pela perspectiva da eternidade de

é necessário, para que não se perca o autêntico

Deus, e deve ser vista como um ato gracioso divi­

conteúdo cristão do evangelho. No entender do

no, que retém o juízo a fim de que os pecadores se

autor de 2Pedro, isso é o que estava acontecendo

Tais argumen­

na versão do cristianismo apresentada por seus

tos permitem que o autor, numa época em que a

adversários. Na tentativa de adaptar o cristianis­

arrependam (2Pe 3.8,9; v.

p e c a d o ).

esperança da parusia se havia tornado problemá­

mo à cultura helenística, os adversários estavam

tica, não a deixe desvanecer por adiá-la indefini­

fazendo concessões em aspectos essenciais da

damente, mas reafirme com vigor a esperança e a

mensagem apostólica, defendendo nada mais

relevância cristãs tradicionais. Por toda a carta, o

que um ceticismo pagão para com a escatologia e

autor mostra-se interessado em que a esperança

acolhendo a permissividade moral.

para a confirmação e o estabelecimento da justiça

Por isso, a fim de defender o evangelho con­

de Deus no futuro (2Pe 2.9; 3.7,13) motive os cris­

tra a helenização excessiva, o autor recorre a

tãos a buscar essa justiça (2Pe 3.11,14).

determinadas fontes, como a Carta de Judas, e a ideias próximas do enfoque escatológico dos

4. Caráter teológico

primórdios do cristianismo judaico. No seu en­

0 caráter teológico que caracteriza 2Pedro é visto

tender, para que o cristíanismo helenizado não se

em sua notável combinação de hnguagem rehgio­

torne um cristianismo paganizado, a escatologia

sa helenística com ideias e imagens escatológi­

cósmica — a esperança do triunfo da justiça de

cas judaicas. Por exemplo, o autor, por um lado,

Deus na totalidade de sua criação — precisa ser

apresenta um resumo do ensino petrino em uma

reafirmada, com a moüvação ética que tal reafir­

passagem que, em sua terminologia rehgiosa e

mação proporciona. Desse modo, 2Pedro mantém

ética, talvez seja a mais tipicamente helenística

um equilíbrio entre a helenização da mensagem

de todo 0 NT (2Pe 1.3-11), como se percebe pelos

do evangelho e, em nome da escatologia cósmi­

termos éticos emprestados da filosofia moral he­

ca, um protesto contra uma helenização extrema,

lenística (2Pe 1.5-7) e pela promessa de escapar

que dissolveria o conteúdo cristão real da men­

à corrupção e compartilhar da natureza divina. A

sagem do evangelho. É uma testemunha vahosa

terminologia helenística é cuidadosamente situa­

da difícil transição pela qual a igreja passou, ou

da em um contexto que lhe confere um significa­

seja, de um contexto judaico (ainda que heleniza­

do cristão (e.g., o primeiro e o último elementos

do) para um ambiente helenístico predominante­

— “fé” e “amor” — das virtudes mencionadas

mente não judaico e da era apostóhca para a fase

em 2Pe 1.5-7 dão a essa lista um caráter cristão).

pós-apostólica.

Mesmo assim, parece uma tentativa notável e de­

Pode se afirmar que esse modo de entender

liberada de estabelecer contato com o ambiente

0 caráter teológico de 2Pedro faz mais justiça

rehgioso helenístico. Por outro lado, 2Pedro re­

ao conteúdo do hvro que a tendência, vista em

produz com exatidão e maestria os concehos e

estudos mais antigos, de classificar 2Pedro na

imagens da escatologia cósmica judaica, especial­

categoria de catolicismo primitivo, classificação

mente em 2Pedro 3.3-13, os quais talvez estejam

que em geral reflete a intenção de denegrir o li­

diretamente baseados em um apocalipse judaico.

vro, apresentando-o como inferior aos textos teo­

É possível exphcar essa combinação de dois

lógicos que serviam de padrão no cristianismo

estilos teológicos como a intenção do autor, que

anterior (que geralmente significa pauhno). Essa

é interpretar e defender a mensagem apostóhca

classificação de 2Pedro exige que se lhe atribu­

em um período pós-apostólico e em um ambiente

am aspectos do chamado “catolicismo primitivo”

cultural pagão. Quando ele declara positivamen­

não encontrados no texto, como a instítuciona-

te a mensagem cristã (2Pe 1.3-11), ele o faz de

lização eclesiológica e a cristalização da fé em

tal maneira que estabelece contato com os ideais

fórmulas rígidas. Também deixa de exphcar ou

1049

Pr oblem a S inótico

d e r e c o n h e c e r a c o m b in a ç ã o d e h b e ra d a e c ria tiv a

p ovo da t e r r a .

Ver p ec a d ores.

q u e 2 P e d ro fa z d a e s c a to lo g ia ju d a ic a c o m a te r ­ m in o lo g ia r e h g io s a h e le n ís tic a .

Ver também

a d v e r s á r io s ;

PRIMÍCL4S. e s c a to lo g ia ;

C a r t a d e ; P e d r o , P r im e ir a C a r t a de. dlntd:

Ver ESCATOLOGIA

p r in c ip a d o s e p o t e s t a d e s .

PRIORIDADE DE M a r c o s .

Comentários;



W a c o : W o rd , 1 9 8 3 . (w bc.]

H o r r e ll, D.

V a lley F orge: Trin i­

ty Press In tern a tion a l, 1 9 9 8 . (bc.) ■ K e lly ,

The epistles of Peter and Jude. R o w , 1 9 6 9 . (bntc.) • M ayor,

M a c m illa n , 1 9 0 7 . ■ M o o , D.

J.

■ Estudos: research,

A. &

P

roblem a

Ao ler os quatro Evangelhos, fica óbvio que três deles são semelhantes e um é diferente. Um rá­ pido exame de qualquer sinopse dos Evangelhos

The Epistle o f St.

mostrará que Mateus, Marcos e Lucas têm em co­

J.

B.

London:

J. 2 Peter, Jude.

G rand

J.

mum inúmeras e notáveis semelhanças. Proble­ ma Sinótico é 0 nome dado à tarefa de exphcar por que os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lu­

G a rd en C ity: D o u b le d a y, 1 9 9 3 . (ab.)

cas são tão parecidos. Por que se parecem tanto

Bauckham, R.

J.

P eter: an a cco u n t o f

2

a n r w , ii. 2 5 . 5 ,

p. 3 7 1 3 - 5 2 , 1 9 8 8 . • Ches­

M a rtin , R. P.

The theology o f the letters

no conteúdo, na fraseologia e na ordem dos acon­ tecimentos neles registrados? 1. A semelhança dos Evangelhos Sinótícos

C a m b rid g e: C a m b rid g e

U n iv e rs ity Press, 1 9 9 4 . ■ F ornberg, T.

church in a pluralistic society.

2. A existência de um vínculo literário

An early

3. Várias explicações literárias

L u n d : G leeru p , 1 9 7 7 . 4.

■ H arvey,

A. E.

Peter. In : Dawes, P. R.

te to Geza Vermes:

T h e testa m en t o f S im eo n

& W h i t e , R. T.,

orgs.

[jsaisup,

1 0 0 .)

6. Problemas com a Hipótese das Duas

essays o n J ew ish an d C hristian

E.

• K asem an n ,

Fontes 7.

A n a p o lo g ia fo r

1 6 9 -9 5 .

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p.

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(s b ld s ,

1 0 4 .)

2

Peter. Atianta: Scholars,

■ W o lte r s ,

A. “Partners of the

deity” : a covenantal reading of 25,

p.

1. A semelhança dos Evangelhos Sinóticos 1.1

[ w u n t .) • W a t s o n ,

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2

Peter

1 :4 . c t j , v .

A importância da solução do Problema Sinótico

primitive Christian eschatology. In :______ . Essays on New Testament themes. London:

A Hipótese de Griesbach

5. A Hipótese das Duas Fontes

A tribu­

literatu re a n d history. S h e ffield : j s o t , 1 9 9 0 , p. 3 3 9 54.

S in ó t ic o

H.

o f James, Peter and Jude.

[ConNT.)

Semelhança na fraseologia. É fácil per­

ceber a semelhança na fraseologia quando se comparam vários textos paralelos encontrados nos Sinóticos. A melhor maneira de fazê-lo é por meio de uma sinopse. Estas são algumas passa­ gens úteis para comparação:

2 8 -4 4 , 1990.

R. j . B a u c k h a m

p e r g a m in h o s d o m a r M o r t o .

Ver

m a n u s c r it o s d o m a r

Ver

m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o .

P l a t A o , p l a t o n is m o .

p ob reza.

Mateus

1 9 .1 3 - 1 5

Marcos

1 0 .1 3 - 1 6

Lucas

M o rto .

P ésh er.

S in ó tic o .

N e w York: H a rp er &

R apid s: Z o n d e r v a n , 1 9 9 7 . [ nivac .) ■ N eyrey,

Peter, Jude.

Ver P r o b l e m a

N . D.

Jude and the Second Epistle of St. Peter

te r ,

C a r ta aos.

J. Jude,

Bauckham, R .

The epistles o f Peter and Jude.

2

Ver E f é s io s ,

E a r l y C a t h o lic is m ; P a r o u s ia ; P s e u d e p ig ra p h y .

B ib u o g r a fia .

2 Peter.

II.

Ju das,

Ver

Ver r iq u e z a s

PÔNCIO P i l a t o s .

e p ob reza.

Ver J esu s,

Mateus

2 2 .2 3 -3 3

Marcos

1 2 .1 8 -2 7

Lucas

filo s o fia ,

1050

2 0 .2 7 -4 0

Mateus

2 4 .4 -8

Marcos

1 3 .5 - 8

Lucas

ju lg a m e n to d e.

1 8 .1 5 -1 7

2 1 .8 -1 1

Pr oblem a S inótico

1.2 Semelhança na ordem. É possível encon­

negar que os Evangelhos Sinóticos oferecem um

trar outra área de semelhanças quando se com­

relato preciso do que Jesus fez e disse, é preciso

para a sequência dos vários relatos {perícopes].

lembrar que às vezes encontramos uma sequên­

Observem-se:

cia diferente de acontecimentos, bem como uma fraseologia diferente. Nesses casos, teríamos de

Mateus 16.13—20.34

pressupor que tais palavras e acontecimentos

Marcos 8.27-10.52

não são históricos? Um episódio no ministério de

Lucas 9.18-51; 18.15-43

Jesus podia ser relatado de diferentes maneiras e associado a vários acontecimentos. Além do

Mateus 12.46-13.58

mais, uma declaração de Jesus na língua mater­

Marcos 3.31—6.6a

na, que era o aramaico, podia ser traduzida em

Lucas 8.19-56

grego de diferentes maneiras.

1.3 Semelhança no material parentético.

satisfatório as semelhanças que encontramos nos

Também existe material parentético comum.

Evangelhos Sinóticos. É preciso procurar outra

Observem-se, por exemplo: “quem lê, entenda” ,

exphcação. Já em 1796, J. G. von Herder procu­

em Mateus 24.15/Marcos 13.14; “ disse então

rou exphcar o Problema Sinótico ao defender uma

ao paralítico” , em Mateus 9.6/Marcos 2.10/Lu-

tradição oral comum usada por Mateus, Marcos e

cas 5.24; “pois Jesus lhe dissera” , em Marcos 5.8/

Lucas. Em 1818, J. K. L. Gieseler apresentou a

Lucas 8.29.

mesma exphcação, porém de maneira mais ela­

As duas exphcações não elucidam de modo

1.4 Semelhança nas citações bíblicas. Às ve­

borada. Segundo ele, os discípulos criaram essa

zes, encontramos a forma exata de uma citação

tradição oral, que logo adquiriu forma fixa. Al­

do

gum tempo depois de ser traduzida para o grego,

AT.

Não seria de surpreender se essa forma

fosse idêntica ao

at

hebraico ou à tradução grega

do AT conhecida como Septuaginta

essa tradição comum foi usada pelos autores dos

Entre­

Sinóticos. Por esse motivo, Mateus, Marcos e Lu­

tanto, quando encontramos uma citação idênti­

cas se parecem, pois todos seguem a mesma e

ca do

exata tradição oral.

AT,

mas que diverge tanto do

[l x x ] .

at

hebraico

grego, a semelhança exige alguma

É quase certo que houve um período durante

exphcação {cf. Mc 1.2 par. Mt 3.3 e Lc 3.4; Mc 7.7

o qual as tradições circularam oralmente. Se hou­

par. Mt 15.9).

ve um período em que essas tradições eram todas

quanto do

at

orais, a duração desse período, o nível de influên­ 2. A existência de um vínculo literário

cias que elas exerceram sobre Mateus, Marcos e

Já se procurou exphcar de várias maneiras as

Lucas e outras questões ainda não foram e talvez

semelhanças mencionadas acima. Uma delas é

nunca sejam solucionadas. Mas será que essa ex­

justificar a semelhança como resultado da inspi­

phcação consegue exphcar de maneira satisfatória

ração dos Evangelhos. Essa semelhança existiria

0 grau de semelhança percebido nos Evangelhos

pelo fato de o

ter orientado Mateus,

Sinóticos? Parece não ser esse o caso. Às vezes,

Marcos e Lucas. Mas essa exphcação não resolve

tem-se a impressão de que o grau de semelhança

o problema, pois os que a sugerem geralmente

exige algo mais que uma simples tradição oral.

acreditam que o Evangelho de João também foi

Mais importante ainda, a tradição oral não exph­

inspirado. Apesar disso, João não se parece com

ca os comentários edhoriais semelhantes encon­

os Sinóticos. Se os quatro Evangelhos foram es­

trados nesses Evangelhos. Por que encontramos

critos sob a supervisão do Espírito Santo, não há

na exata posição uma palavra do autor a seu pú­

como exphcar por que alguns Evangelhos se pa­

blico: “quem lê, entenda” (Mt 24.15/Mc 13.14)?

recem e outro não.

Ainda mais difícil de exphcar é o fato de que os

E sp íR rro S a n t o

Outra tentativa de exphcar essa semelhança

Evangelhos Sinóticos concordam extensamente

envolve o argumento histórico. Mateus, Marcos

na sequência do material. Desse modo, embora

e Lucas se parecem porque são registros históri­

não se queira minimizar a influência da tradição

cos precisos daquilo que Jesus fez e disse. Sem

oral sobre os autores dos Evangelhos, parece que

1051

P r oblem a S inótico

as semelhanças com que nos defrontamos apon­

4. A Hipótese de Griesbach

tam para a existência de algum vínculo hterário.

Essa hipótese, que aventa a possibihdade de ter sido Mateus o primeiro Evangelho a ser escrito e

3. Várias explicações literárias

segundo a qual Lucas teria feito uso de Mateus, e

Se existe um vínculo literário entre os Evangelhos

Marcos de Mateus e Lucas, foi inicialmente pro­

Sinóticos, então o tema a ser investigado na se­

posta por H. Owen, em 1764. A hipótese rece­

quência é a natureza desse vínculo. Uma exphca-

beu esse nome por ter sido defendida por J. J.

ção, aventada por F. Schleiermacher (1817), é que

Griesbach. Por meio das obras de W. R. Farmer,

os discípulos haviam tomado notas (memórias)

J. B. Orchard e H.-H. Stoldt, ela ressurgiu recen­

das palavras e atos de Jesus. Por fim, essas notas

temente e recebeu considerável impulso. A popu­

foram reunidas e organizadas por assunto. Com

laridade e a rejeição iniciais foram associadas ao

base nessas memórias assim reunidas, surgiram

surgimento e à derrocada da hipótese de Tübin-

os Evangelhos Sinóticos. É a chamada “hipóte­

gen (i.e., Mateus como tese; Lucas como antítese;

se fragmentária” , mas ela nunca recebeu muito

Marcos como síntese). 0 ponto forte da Hipótese

apoio, pois, à semelhança da hipótese oral, não

de Griesbach é que ela parece exphcar vários as­

consegue exphcar as extensas concordâncias na

pectos do Problema Sinótico.

sequência dos acontecimentos.

4.1 Os pontos fortes da Hipótese de Griesbach

4.1.1 Concorda com a tradição da igreja.

Outra teoria é a do chamado Evangelho Primi­

A

tivo (ou Original). De acordo com G. E. Lessing

tradição da igreja antiga é unânime em afirmar

(1776) e J. G. Eichhorn (1796), houve um antigo

que Mateus foi o primeiro Evangelho a ser escrito

evangelho, escrito em aramaico, que foi traduzi­

( I r e n e u ; E u s é b io ; A g o s t i n h o ) .

do para o grego e passou por várias revisões. As

dria declarou que os Evangelhos com genealogias

Clemente de Alexan­

semelhanças que encontramos nos Evangelhos

foram escritos primeiro. Além disso, Agostinho

Sinóticos devem-se ao uso comum de uma tradu­

diz que Marcos é o resumo de Mateus. Embora a

ção grega do Evangelho Primitivo. A exphcação

prioridade de Marcos fosse desconhecida na igre­

para as diferenças é o fato de terem sido cotejadas

ja primitiva, a de Mateus era pressuposta. É claro

diferentes recensões em grego. O principal pro­

que a Hipótese de Griesbach se adapta melhor a

blema com esse argumento é que, ã medida que

essa tradição primitiva sobre os Evangelhos Sinó­

se procurava reconstruir o que se pareceria com

ticos do que a Hipótese das Duas Fontes. Também

esse Evangelho Primitivo, ele ficava mais e mais

se harmoniza melhor com a ordem dos Evange­

parecido com um Marcos Primitivo. Este, por sua

lhos no cânon do

vez, passou a se parecer mais e mais com o Evan­

n t.

4.1.2 Explica todas as concordâncias entre os Evangelhos. Ao comparar os vários pontos em

gelho canônico de Marcos. Uma exphcação mais provável é a existência

que a tríplice tradição concorda entre si (passa­

de algum tipo de interdependência entre os pró­

gens paralelas em Mateus, Marcos e Lucas), des­

prios Sinóticos. As três exphcações mais comuns

cobrimos que Mateus e Marcos têm pontos em

em torno da interdependência são:

comum que diveigem de Lucas; que Marcos e

Mateus escreveu primeiro. Marcos fez uso de

Lucas têm pontos em comum que divergem de Mateus; que até mesmo Mateus e Lucas têm pon­

Mateus e Lucas fez uso de Marcos (Agostinho). Mateus escreveu primeiro, Lucas fez uso de

tos em comum que divergem de Marcos. A Hi­

Mateus e Marcos fez uso de Mateus e Lucas (J. J

pótese de Griesbach consegue exphcar esse fato

G r ie s b a c h ,

1783 e 1789; W. R.

F a rm er,

com bastante facilidade: os pontos que Mateus e

1964).

Marcos escreveu primeiro e Mateus e Lucas

Marcos têm em comum, mas divergem de Lucas,

fizeram uso de Marcos. Mateus e Lucas também

são aqueles em que Lucas se desvia de sua fon­

fizeram uso de outra fonte comum conhecida como

te mateusina, porém Marcos não; os pontos que

Q (H .

J H o lt z m a n n , 1863; B.

H . S tre e te r,

1924).

Marcos e Lucas têm em comum, mas divergem de

Das três teorias, as mais prováveis são as duas

Mateus, são aqueles em que Lucas se desvia de

últimas: a Hipótese de Griesbach e a Hipótese das

sua fonte mateusina, e Marcos segue Lucas, não

Duas Fontes.

Mateus; os pontos que Mateus e Lucas têm em

1052

P roblem a S in ótico

comum, mas divergem de Marcos, são aqueles

serão analisados em profundidade (v. 5.1 e 5.2.1

em que Lucas segue Mateus, e Marcos se desvia

abaixo). Há vários outros pontos frágeis na Hipó­

de ambas as fontes. Com referência a essa última

tese de Griesbach. 4.2.1 A Hipótese de Griesbach também conflita

questão, a Hipótese de Griesbach é convincente, ao passo que a Hipótese das Duas Fontes é frá­

com a tradição da igreja.

gil. A primeira consegue exphcar facilmente os

ig re ja seja u n â n im e e m a fir m a r q u e M a teu s fo i

pontos que Mateus e Lucas têm em comum, mas

e s crito an tes d e M a r c o s e L u ca s, e la t a m b é m d iz

divergem de Marcos, ao passo que a segunda tem

q u e M a te u s fo i e s c rito e m a ra m a ic o (o u h e b r a i­

dificuldade para justificar como Mateus e Lucas,

c o ). C o n tu d o , está c la ro q u e o E v a n g e lh o d e M a ­

trabalhando de forma independente, podem estar

teu s q u e te m o s h o je n ã o é u m a s im p le s tra d u çã o

de acordo entre si e divergir da fonte marcana, se

d o a ra m a ic o (o u h e b r a ic o ) pa ra o g r e g o . D es se

0

E m b o ra a tra d iç ã o da

eles não se conheciam, isto é, se um não fez uso

m odo,

do trabalho do outro.

e n c a ix a n o M a te u s g r e g o d o P r o b le m a S in ó tic o .

4.1.3

Explica as redundâncias de Marcos. Em P o rta n to ,

M a teu s d a tra d iç ã o e c le s iá s tic a n ã o se

se a tra d iç ã o a essa a ltu ra está in c o rre ta

Marcos, encontramos pelo menos 213 casos de

ou está fa la n d o d e u m p r e d e c e s s o r (o u fo n te ) d e

redundância, como Marcos 1.32 (“ Quando anoi­

n o s s o M a te u s g r e g o , a tra d iç ã o e c le s iá s tic a será

teceu, depois que o sol se pôs”); Marcos 1.42

d e p o u c o v a lo r p a ra s o lu c io n a r o P r o b le m a S in ó ­

( “Imediatamente a lepra desapareceu, e ele ficou

tic o (v . M ateus, E van gelho d e ) .

purificado”); Marcos 4.21 ( “Será que a candeia

Outros aspectos da tradição eclesiástica tam­

deve ser colocada debaixo da vasilha ou de-

bém criam problema para a Hipótese de Gries­

babco da cama?”). A Hipótese de Griesbach dá

bach. Entre eles, podemos citar a declaração de

a entender que a melhor exphcação para essas

Papias, segundo a qual Marcos teve como fonte

redundâncias é que Marcos agiu da mesma for­

principal as “memórias” de Pedro e escreveu seu

ma que os primeiros escribas e copistas do

nt

Evangelho sem recorrer a Mateus, e a teoria de

em relação a suas fontes. Quando encontravam

que Lucas foi escrito por último, manifesta em

duas variantes em suas fontes, eles tendiam a

Orígenes, nos prólogos antimarcionitas e em

harmonizá-las, incluindo a ambas. As redundân­

Agostinho.

cias de Marcos, portanto, mostram que ele fundia

4.2.2 Algumas concordâncias dos Evangelhos

suas duas fontes quando deparava com variantes.

são mais bem explicadas pela prioridade de Mar­

Desse modo, Mateus 8.16 (“Ao cair da tarde”) e

cos. Embora a Hipótese de Griesbach consiga

Lucas 4.40 (“Ao pôr do sol”) se tornam “Quando

explicar todas as concordâncias dos Evangelhos,

anoiteceu, depois que o sol se pôs” (Mc 1.32);

em vários casos não é convincente a exphcação

Mateus 5.14 (“ [Não] acendem [...] debaixo de

do motivo de dois Evangelhos terem pontos em

um cesto”) e Lucas 8.16 (“ Ninguém [...] a põe

comum ao mesmo tempo que divergem de ou­

debaixo da cama”) se tornam “ Será que a candeia

tro, especialmente com respeito aos pontos que

deve ser colocada debaixo da vasilha ou debaixo

Mateus e Marcos têm em comum, mas divergem

da cama?” (Mc 4.21).

de Lucas, e aos pontos que Marcos e Lucas têm

Seria possível ainda mencionar outros da­

em comum, mas divergem de Mateus. De modo

dos que apoiam a Hipótese de Griesbach, de forma

geral, a Hipótese de Griesbach consegue exphcar

que não haja necessidade de postular uma fonte

com facilidade os pontos de concordância, mas,

hipotética adicional como a fonte q.

quando tenta exphcar por que Marcos e Lucas

4.2

Problemas com a Hipótese de Griesbach. estão de acordo, mas divergem de Mateus, e Mar­

Vários problemas encontrados na Hipótese de

cos e Mateus estão de acordo, mas divergem de

Griesbach têm levado muitos estudiosos a con­

Lucas, ela se mostra bem pouco convincente (v.

siderar a Hipótese das Duas Fontes uma opção

5.1.6 abaixo). Geralmente, as tentativas baseadas

mais viável para exphcar o Problema Sinótico.

na Hipótese de Griesbach para exphcar o uso lu­

Dentre esses problemas, dois deles, os argumen­

cano de Mateus e o uso marcano de Mateus e/

tos a favor da prioridade de Marcos e a dificul­

ou Lucas são menos convincentes que as explica­

dade para afirmar que Lucas fez uso de Marcos,

ções apresentadas pela Hipótese das Duas Fontes

1053

KROBLEMA bINOTICO

sobre como Mateus e Lucas fizeram uso de Mar­

a favor da Hipótese de Griesbach. Talvez sejam

cos. A maior parte das investigações no campo

mais bem exphcadas pela Hipótese das Duas Fon­

da crítica da redação dos Evangelhos Sinóticos

tes (v. 5.1.2 abaixo).

tem se baseado na ideia de que Mateus e Lucas fizeram uso de Marcos. Os trabalhos em torno da

5. A Hipótese das Duas Fontes

crítica da redação com base na prioridade mateu­

A exphcação que veio a dominar os estudos em

sina são poucos e bem menos convincentes.

torno dos Sinóticos nos últimos 150 anos é a

4.2.3

As redundâncias de Marcos podem ser Hipótese das Duas Fontes. Essa teoria sustenta

explicadas pela Hipótese das Duas Fontes. À pri­

que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser es­

meira vista, parece convincente o argumento de

crito, tendo sido usado de forma independente

que as 213 redundâncias marcanas se devem ao

por Mateus e Lucas. Também defende que, além

fato de Marcos ter compilado Mateus e Lucas,

de Marcos, os Evangelhos de Mateus e de Lucas

porém um exame mais apurado deixa claro que,

empregaram outra fonte comum, denominada

desses 213 exemplos, apenas 17 são casos em

Veja a seguir os pontos a favor da prioridade de

que Mateus apresenta um elemento da redun­

Marcos e da existência de q.

dância, e Lucas, o outro. (Em 39 casos, Mateus

q.

5.1 A prioridade de Marcos

e Lucas apresentam os dois paralelos que apare­

5.1.1 Marcos é o Evangelho mais curto. Dos

cem em Marcos; em 37 casos, eles não apresen­

três Evangelhos Sinóticos, Marcos é o mais cur­

tam nenhum; em 60 casos, Mateus apresenta um

to; contém 661 versículos; Mateus contém 1.068;

ou ambos os paralelos que aparecem em Marcos,

Lucas, 1.149. Quando se faz a comparação do

e Lucas não apresenta nenhum; em 26 casos,

conteúdo deles, 97,2% de Marcos tem paralelo

Lucas apresenta um ou ambos os paralelos que

com Mateus e 88,4% tem paralelo com Lucas.

aparecem em Marcos, e Mateus não apresenta

É mais fácil entender que Mateus e Lucas se

nenhum; em 11 casos, Lucas apresenta ambos

utilizaram de Marcos e decidiram acrescentar

os paralelos que aparecem em Marcos, e Mateus

outros materiais do que pensar em Marcos se

apresenta um; em 17 casos, Mateus apresenta

utihzando de Mateus ou de Lucas, ou de ambos,

ambos os paralelos que aparecem em Marcos e

e omitindo tanto material. Qual a razão de Mar­

Lucas apresenta um; em 6 casos, Mateus e Lucas

cos ter omitido as narrativas do nascimento, o

apresentam ambos os paralelos que aparecem

S erm ão d o M o n te ,

em Marcos.) Desse modo, estamos falando no

aparições após a ressurreição e outros materiais?

fundo de apenas 17 possíveis exemplos de jun­

É mais fácil entender que Mateus e Lucas acres­

ção, não de 213.

centaram esses materiais à fonte marcana do

A Hipótese de Griesbach fica ainda mais com­

a Oração do Senhor, as várias

que acolher a hipótese de que Marcos resolveu

prometida quando concebe que o Evangelho de

omitir tão grande quantidade de material. A hi­

Marcos é caracterizado pela combinação, ao mes­

pótese de que Marcos pode ter desejado escrever

mo tempo que o considera um resumo dos Evan­

um relato mais resumido tropeça no fato de que

gelhos de Mateus e Lucas. As supostas posições

os relatos comuns nos Evangelhos Sinóticos são,

são essencialmente contraditórias. A harmonia

em geral, mais longos em Marcos. Se Marcos de­

dos Evangelhos feita por Taciano e intitulada Dia-

sejava escrever um relato abreviado de Mateus

tessarão (c. ISO d.C.) é um exemplo muho antigo

e/ou Lucas, por que tornou mais longas essas

de combinação de textos. Mas, quando se com­

histórias? São tendências contrárias. Quando se

param os trechos do Diatessarão derivados dos

procura resumir uma obra, isso geralmente é fei­

Evangelhos Sinóticos, eles são consideravelmente

to não apenas mediante a ehminação de certos

mais longos que qualquer um dos próprios Sinó­

materiais, mas também resumindo as seções que

ticos. Marcos, de um lado, é consideravelmente

se decidem manter.

mais breve que Mateus e Lucas. Por isso, esse

5.1.2 Marcos tem o grego nmis pobre. Há um

exemplo antigo de junção resultou em uma obra

consenso de que o grego de Marcos é mais pobre

muito dessemelhante. As redundâncias marcanas

que o de Mateus e o de Lucas. É mais fácil enten­

não são, portanto, um argumento convincente

der que Mateus e Lucas empregaram Marcos e

1054

Pr oblem a S inûtico

melhoraram o grego do que aceitar a ideia de que

1) Mateus

2) Marcos

Marcos copiou e empobreceu o grego de Mateus e/ou Lucas. Além disso, há várias expressões ex­

Marcos

Lucas

Mateus

^

3) Lucas

/X

Lucas

Mateus

Marcos

clusivamente marcanas. 1) Marcos contém diversos coloquiahsmos (em Mc 10.20, "tudo isso tenho guardado” , aoris­ to médio; em 2.4, “leho”

[a r a ]

a) Mateus

i

b) Mateus

i

c) Marcos

i

d) Marcos e) Lucas

f) Lucas

i i i

Ma cos

Lucas

Mateus

Lucas

Mateus

Marcos

Lucas

Marcos

Lucas

Mateus

Marcos

Mateus

como krabatton) e

problemas gramaticais (em Mc 4.41, “obedece” , i.e., verbo no singular; em 16.6, “vê” , i.e., verbo

5.1.4 Falta de concordância verbal entre Ma­

no singular; em 5.9,10, “ele rogou”, em vez do

teus e Lucas contra Marcos. Observando-se as vá­

plural “nós”). 2) Marcos traz expressões aramaicas (Mc 3.17;

rias concordâncias nos Evangelhos Sinóticos, fica

5.41; 7.11,34; 14.36; 15.22,34) que não se encon­

claro que, embora Mateus e Marcos tenham mui­

tram nem em Mateus, nem em Lucas. É muito

tos pontos em comum, mas divergentes de Lucas,

mais fácil entender que Mateus e Lucas omitiram

e também Marcos e Lucas tenham muitos pontos

essas expressões aramaicas e apresentaram seus

em comum, mas divergentes de Mateus, existem

equivalentes gregos do que pressupor que Marcos

poucos casos de concordância entre Mateus e Lu­

tenha escolhido resumir Mateus e/ou Lucas, mas

cas contra Marcos. Pressupondo-se o tipo mais

tenha acrescentado expressões aramaicas que

simples de interdependência, em que o autor de

seus leitores gregos não entendiam.

um Evangelho utihzou-se do trabalho de outro

3) Marcos apresenta muitas redundâncias. Em

Evangehsta, temos as seguintes possibilidades:

diversas passagens (existem nada menos de 213

As demais combinações de interdependência

exemplos). Marcos traz expressões redundan­

imphcam que Mateus “conhecia” (no sentido

tes, como “ Quando anoiteceu, depois que o sol

de “usar”) Lucas ou que Lucas “conhecia” Ma­

se pôs” (Mc 1.32; v. tb. Mc 1.42; 2.25,26; 4.21;

teus. Como veremos, isso é de todo improvável

15.24). É mais fácil entender que Mateus e/ou

(v. 5.2.1 abaixo).

Lucas tentaram ehminar essas redundâncias do

Levando-se em conta o fato de que os rela­

que tentar explicar o motivo de Marcos, ao resu­

tos da tradição tríplice raramente mostram con­

mir Mateus e/ou Lucas, tê-las acrescentado.

cordância na fraseologia entre Mateus e Lucas

5.1.3

Marcos contém passagens difíceis. Às contra Marcos, as teorias 1) e 3) não conseguem

vezes, encontramos em Marcos uma frase que

explicar o fenômeno. Além do mais 1), c) e e)

representa uma dificuldade teológica, mas não

não exphcam os pontos em comum entre Marcos

encontramos o mesmo problema em Mateus

e Lucas, e 3), b) e d) não explicam os pontos em

ou em Lucas. Em Marcos, por exemplo, encon­

comum entre Mateus e Marcos. Só as explicações

tramos aparentes hmitações no poder de Jesus

2), a) e 0 conseguem exphcar a abundância de

(cf. Mc 1.32-34; 3.9,10; 6.5,6 e par.). Em outras

pontos em comum entre Mateus e Marcos e entre

ocasiões,

teológi­

Marcos e Lucas, bem como a ausência de pontos

cas em Marcos, mas não em Mateus ou Lucas

em comum entre Mateus e Lucas. Contudo, os

(cf. Mc 10.17,18; 3.4,5; 2.25,26). Em Marcos

argumentos apresentados anteriormente contra­

10.17,18, Jesus diz: “ Por que me chamas bom?

dizem a) e f).

encontramos

dificuldades

Ninguém é bom, senão um, que é Deus”. É fá­

5.1.5 Falta de concordância na sequência entre

cil ver por que Mateus preferiu mudar o texto,

Mateus e Lucas contra Marcos. Semelhantemente

deixando-o assim: “Por que me perguntas sobre

ao argumento precedente, mas focando-se agora

o que é bom? Somente um é bom”. É mais fácil

na sequência do material, temos a observação de

entender (ou exphcar) que Mateus e /ou Lucas

que, quando Mateus diverge da sequência dos re­

fizeram mudanças nas passagens mais difíceis

latos encontrados em Marcos, Lucas nunca está

de Marcos do que justificar o fato de Marcos ter

de acordo com Mateus. Da mesma forma, quan­

tornado mais dificeis certas passagens claras de

do Lucas diverge da sequência que encontramos

Mateus e/ou Lucas.

em Marcos, Mateus nunca está sintonizado com

1055

P roblema S in ótico

Lucas nessa divergência. Há quem considere que

a ideia de que Mateus e Lucas se utihzaram de

essa observação, feita por K. Lachmann (1835),

Marcos, o que não acontece com qualquer outra

seja a prova definitiva da prioridade de Marcos.

teoria de interdependência.

No entanto, ela não constitui prova da prioridade

5.1.7

O argumento com base nas intervenções

marcana, pois é possível explicar essa concordân­

editoriais por parie dos Evangelistas. Nos dias de

cia na sequência dos materiais valendo-se da Hi­

hoje, os argumentos mais importantes a favor da

pótese de Griesbach, segundo a qual Mateus foi

prioridade de Marcos provavelmente envolvem

escrito primeiro, Lucas utilizou-se de Mateus e

os estudos da crítica da redação. É inegável que a

Marcos usou Mateus e Lucas. Lachmann, contu­

maioria das investigações dos Evangelhos Sinóti­

do, acrescenta a essa observação o argumento de

cos nesse campo avança com base na prioridade

que é compreensível o fato de Mateus divergir

de Marcos. Por exemplo, é mais fácil entender por

de Marcos e de Lucas também divergir de Mar­

que Mateus acrescenta o detalhe de que Jesus é

cos, mas não é tão aceitável que Marcos tenha

o “Filho de Davi” ao relato marcano do que jus­

divergido de Mateus e de Lucas. À luz dessa ob­

tificar o motivo de Lucas e Marcos terem omitido

servação, não há motivo para considerar a ideia

essa informação (cf. Mt 12.23; 15.22; 22.9,15). De

de Lachmann uma falácia.

modo semelhante, é mais fácil entender o fato de

5.1.6

Certas concordâncias literárias são mais Mateus ter acrescentado à sua fonte marcana a

bem explicadas pela prioridade de Marcos. Nos

famosa expressão “Tudo isso aconteceu para que

Evangelhos Sinóticos, existem certos elementos

se cumprisse...” (Mt 1.22; 2.15,17; 4.14; 8.17;

comuns de natureza hterária que são mais bem

12.17; 13.14,35; 21.4; 27.9) do que explicar o mo­

explicados com base na ideia de que Mateus e

tivo de Marcos e Lucas terem preferido omitir as

Lucas se utihzaram de Marcos. Por exemplo, em

ocorrências da expressão. Cinco das seis úhimas

Mateus 9.1,2/Marcos 2.1-5/Lucas 5.17-20, Ma­

referências revelam isso claramente, pois os para­

teus, como de hábito (cf. Mt 8.5-13; 9.18-26),

lelos em Marcos e Lucas não trazem a citação do

abrevia o relato marcano e omite a razão de Je­

AT.

sus ter concluído que o paralítico e seus amigos

se utilizaram de Mateus e decidiram omitir essas

tinham fé. Em Mateus 27.15-22/Marcos 15.6-13/

referências do que aceitar o fato de que Mateus as

Lucas 23.18-21, Lucas abrevia o relato e omite,

acrescentou à sua fonte marcana.

É mais difícil pressupor que Marcos e Lucas

Também

no episódio de Barrabás, a explicação de que

descobrimos em

que,

quando

en­

aspectos

es­

contramos

Páscoa. Em Mateus 3.13-16/Marcos 1.9,10/Lu-

tilísticos

cas 3.21,22, Mateus altera a fraseologia de Mar­

exclusivamente no material que Mateus tem em

cos e, ao mudar o segmento “ foi batizado” para

comum com Marcos. O famoso uso marcano de

“ depois de batizado” , deixando apenas o particí-

“logo”/“imediatamente” ocorre 41 vezes em seu

pio, acrescenta a palavra “logo” ao verbo “saiu”.

Evangelho. Em Mateus, ocorre 18 vezes. Dessas

de

Mateus

certos

era costume soltar um prisioneiro na época da

Marcos,

eles

aparecem

quase

0 resultado, embora compreensível, é que Jesus

18 vezes, 14 ocorrem no material que Mateus tem

sai imediatamente da água, em vez de imediata­

em comum com Marcos. As outras 4 ocorrem em

mente ver os céus abertos. Em Mateus 19.16,17/

seu material

Marcos 10.17,18/Lucas 18.18,19, Mateus procu­

e

ra ehminar a dificuldade encontrada em Marcos:

em Mateus, 10.901 encontram paralelo em Mar­

“ Por que me chamas bom? Ninguém é bom, se­

cos. Um total de 7.392 não tem paralelo. Isso

não um, que é Deus”. Em vez das duas frases,

significa que existe um “imediatamente”/“logo”

ele registra: “Por que me perguntas sobre o que é

para cada 778 palavras no material que Mateus

bom?”. Entretanto, a frase seguinte revela que sua

tem em comum com Marcos, mas apenas um

fonte continha algo a respeito de Deus ser bom —

“ imediatamente”/“logo” para cada 1.848 palavras

não a ideia de bondade no sentido abstrato, pois

no material não marcano

ele acrescenta: “ Somente um é bom”.

mais frequente de “imediatamente”/“ logo” no

Q.

m

(o material especial de Mateus)

Contudo, das 18.293 palavras que existem

(m

e o). A ocorrência

Essas e outras concordâncias de natureza li­

material que Mateus compartilha com Marcos é

terária são mais compreensíveis se aceitarmos

mais facilmente explicada pela utihzação que ele

1056

Pr oblem a S inótico

faz de Marcos, em que a palavra é encontrada em

Mateus e Lucas, mas não encontrado em Mar­

abundância, do que por qualquer outra teoria.

cos, o chamado “material

q”.

Alguns exemplos

Outro aspecto estilístico de Marcos é o uso

são: Mateus 6.24/Lucas 16.13, Mateus 7.7-11/

de um segmento editorial com a conjunção “por­

Lucas 11.9-13, Mateus 11.25-27/Lucas 10.21,22 e

que” [gar] para explicar algo a seus leitores {v.

Mateus 23.37-39/Lucas 13.34,35. Como se deve

Mc 1.16,22; 5.28; 6.17,18 etc.). Em Marcos, en­

exphcar esse material comum? Analisaremos

contramos 34 desses segmentos; em, Mateus, en­

abaixo a proposta de que Mateus e Lucas o obti­

contramos 10, mas todos aparecem no material

veram de várias tradições orais, porém a exphca­

compartilhado com Marcos. Não há uma única

ção mais simples é que ou Mateus usou Lucas, ou

ocorrência no restante do material. Caso Mateus se

Lucas usou Mateus para conseguir esse material.

tenha utihzado de Marcos, a presença desses seg­

Existem, no entanto, várias razões que tornam

mentos editoriais é compreensível. Mas por que

improvável a utihzação de Mateus por Lucas. (A

estariam apenas em determinadas seções do mate­

teoria de que Mateus empregou Lucas tem pou­

rial mateusino, a saber, o material que ele partilha

cos adeptos, e a maioria dos argumentos apre­

com Marcos, se Mateus não empregou Marcos?

sentados a seguir também demonstra que Mateus

5.1.8 A teologia de Marcos é menos desenvol­

não se utilizou de Lucas.) 5.2.1

vida. Quando se faz uma comparação do material comum entre Mateus, Marcos e Lucas, fica evi­

Mateus e Lucas não se conheciam. Isso

fica evidente com base em vários indícios.

dente que os materiais de Mateus e de Lucas são

1) Lucas não traz os acréscimos mateusinos à

teologicamente mais desenvolvidos. Marcos, por

tradição tríplice. Quando encontramos um relato

exemplo, emprega seis vezes o termo “Senhor”

na tradição tríplice e Mateus apresenta algo que

[kyrios] em referência a Jesus, enquanto em Ma­

não se encontra em Marcos, jamais encontramos

teus encontramos a palavra não apenas nesses

em Lucas o acréscimo mateusino (cf. Mt 8.17;

mesmos seis casos, mas em outros 24. Quinze

12.5-7; 13.14,15 etc.). Se Lucas fez uso de Ma­

desses casos se acham em material em que Mar­

teus, por que nunca encontramos nenhum desses

cos não traz o termo. 0 mesmo se pode dizer de

acréscimos em Lucas? A explicação mais plausível

Lucas, que emprega o título com frequência ainda

é que Lucas não se utilizou de Mateus. (0 mesmo

maior. É mais fácil entender que Mateus e Lucas

se pode dizer dos acréscimos lucanos à tradição

acrescentaram esse título à sua fonte marcana do

tríplice: eles nunca aparecem em Mateus.)

que tentar descobrir por que Marcos teria optado

2) O material

q

aparece em um contexto di­

por eliminá-lo, caso estivesse usando Mateus e/ou

ferente em Lucas. Em Mateus, o material

Lucas. O mesmo se pode dizer do título “Cristo”.

organizado em cinco blocos de ensino cercados

q

está

5.1.9 Conclusão. 0 motivo pelo qual a maioria

por seis blocos de narrativa. Consequentemente,

dos estudiosos defende a prioridade de Marcos

temos: narrativa (Mt 1—4); ensino (Mt 5— 7); nar­

não se fundamenta em algum argumento isolado

rativa (Mt 8—9; ensino (Mt 10); narrativa (Mt 11—

dentre os relacionados acima. Pelo contrário, a

12); ensino (Mt 13); narrativa (Mt 14— 17); ensino

prioridade de Marcos baseia-se no conjunto de to­

(Mt 18); narrativa (Mt 19—22); ensino (Mt 23—

dos os argumentos. O peso de um argumento em

25); narrativa (Mt 26—28). Também é necessário

particular pode não ser convincente, mas, juntos,

assinalar que cada uma das seções de ensino ter­

eles são bem convincentes, e a melhor hipótese

mina de forma semelhante; por exemplo: “Ao con­

para exphcar o Problema Sinótíco é que Mateus

cluir Jesus esse discurso...” (Mt 7.28; 11.1; 13.53;

e Lucas fizeram uso de Marcos na composição de

19.1; 26.1). Lucas, contudo, juntou o material

seus Evangelhos. Por ser uma hipótese, não há

em duas seções: Lucas 6.20—8.3 e 9.51— 18.14.

prova definitiva para a Teoria dos Dois Documen­

Caso Lucas tenha se utilizado de Mateus, é difícil

tos, e o Problema Sinótico precisa permanecer

entender o motivo de ele ter abandonado a estru­

aberto, à espera de uma hipótese mais plausível.

tura do material q encontrada em Mateus, preferin­

5.2

q

A existência de q . Uma vez aceita a priori­ do uma organização própria do material.

dade de Marcos, deparamos com outro problema

3) Às vezes, o material q é menos desenvolvido

que envolve o material comum encontrado em

em Lucas. Se Lucas tivesse feito uso de Mateus,

1 057

Pr oblem a S inótico

seria de esperar que a forma do material em Lu­

fraseologia de alguns paralelos provenientes dessa

cas fosse em geral teologicamente mais desenvol­

fonte. Às vezes, a precisão na fraseologia é gritante

vida que o material correspondente em Mateus,

(cf. Mt 6.24 par. Lc 16.13, em que 27 de 28 palavras

mas não é o que acontece. Às vezes, o material

são exatamente as mesmas; Mt 7.7,8 par. Lc 11.9,10,

0 em Lucas é menos desenvolvido. (Cf. Lc 6.20,

em que todas as 24 palavras são exatamente as

“pobres” : v. 21, “agora tendes fome” ; v. 31, ne­

mesmas). Seria a melhor exphcação para essa exa­

nhuma referência à “Lei e os Profetas” ; 11.2, ao

tidão uma fonte escrita comum? No entanto, certas

“Pai” ; 14.26, ao verbo “aborrece” )

partes do material q não são muito exatas.

4) Inexistência de pontos em comum na

Outro argumento frequentemente apresentado

sequência e na fraseologia de Mateus e Lucas

a favor de uma fonte escrita q envolve a concor­

quando divergem de Marcos. Se Lucas fez uso de

dância sequencial. Às vezes, pode se observar que

Mateus, é difícil entender por que a sequência

Mateus e Lucas apresentam sequências semelhan­

lucana jamais acompanha Mateus quando este

tes no uso do material

diverge de Marcos e por que existem tão poucos

darem na sequência não imphca necessariamente

q.

Mas o fato de concor­

elementos verbais comuns entre Mateus e Lucas

uma fonte escrita. Alguns procuram identificar

quando divergem de Marcos.

uma sequência comum entre o material o encon­ em Lucas. Por defi­

trado em Lucas e em cada uma das cinco seções

é aquele encontrado em Ma­

Q de Mateus, ou seja, a ordem de o em Lucas é

teus, mas não em Marcos e em Lucas. Se Lucas

comparável com Mateus 5—7, depois com Mateus

5) Ausência de material nição, 0 material

m

m

fez uso de Mateus, é difícil exphcar por que não

10, com Mateus 13 e assim por diante. Alguns es­

incluiu nada desse material. 0 argumento basea­

tudiosos estão convencidos do argumento baseado

do no silêncio sempre é questionável, mas, co­

na sequência, mas a maioria discorda.

nhecendo-se alguns dos interesses teológicos de

Um terceiro argumento favorável a q como

Lucas, é difícil entender por que ele, caso tenha se

fonte escrita é a presença de duplicatas (relatos

utihzado de Mateus, não empregou esse material,

repetidos do mesmo episódio) em Mateus e em

como é o caso da visita dos sábios (Mt 2.1-12).

Lucas. Isso supostamente demonstra que foram

A menção da presença de gentios por ocasião do

empregadas duas fontes escritas — Marcos e

nascimento de Jesus se encaixaria muito bem em

Contudo, na melhor das hipóteses, caso as tais

seu propósito geral. De modo semelhante, é inex­

duphcatas existam, elas demonstram o uso de

q.

plicável a exclusão de histórias como a fuga para o

uma segunda fonte comum, mas pode ter sido

Egito e a volta para Nazaré (Mt 2.13-23), o depoi­

uma fonte oral ou fontes escritas fragmentárias.

mento dos guardas junto ao sepulcro (Mt 27.62-

Outra teoria para q como fonte escrita é o esforço

66), o relatório que apresentaram (Mt 28.11-15)

para demonstrar que existe um vocabulário e um

e 0 material exclusivamente mateusino sobre a

estilo comuns no material g, revelando que eles

ressurreição (Mt 28.9,10,16-20).

procedem de uma fonte escrita comum. Essa teo­

Com base nos argumentos acima, parece

ria, porém, não é convincente,

razoável concluir que Lucas não conhecia Ma­ A Hipótese das Duas (ou QuatroJ Fontes

teus (e Mateus não conhecia Lucas). Consequen­ Marcos

temente, tem se postulado outra fonte comum. É objeto de debate a origem do uso de

q

Q

como

símbolo desse material comum encontrado ape­ nas em Mateus e em Lucas, mas o mais provável é que seja a letra inicial da palavra alemã Quelle, que significa “fonte”. 5.2.2

Seria

q

uma fonte escrita? Se pressupu­

sermos que, além de usar Marcos, Mateus e Lucas empregaram uma fonte comum, seria essa fonte 5.2.3 Resumo. A hipótese

escrita ou oral? Os principais argumentos a favor de uma fonte o escrita apontam para a precisão na

q

nao deixa de ter

seus problemas, mas apresenta menos dificuldades

1058

P roblem a S inótico

que as hipóteses alternativas. Quanto à sua forma,

conformassem uns aos outros. Assim, visto que

é difícil saber ao certo se o material

chegou até

Mateus era o Evangelho Sinótico mais conheci­

Mateus e Lucas na forma de uma única fonte es­

do e o mais usado, pode ser que bem no início

q

crita, de várias fontes escritas ou de uma tradição

algum escriba, ao copiar o Evangelho de Lucas,

oral. Parece bastante certo que Mateus e Lucas

tenha mudado o texto lucano para se conformar à

não se conheceram. Esse fato, somado ao argu­

leitura de Mateus. Em tais casos, o resultado seria

mento da prioridade marcana, favorece algum típo

uma concordância entre Mateus e Lucas.

de hipótese de dois documentos em que Mateus e

6.3

H-adição oral sobreposta. Também é pos­

Lucas fizeram uso de Marcos e provavelmente de

sível que Mateus e Lucas às vezes utilizassem

um documento

uma forma de tradição oral que lhes fosse mais

q

escrito. Uma versão relacionada

a essa é a Hipótese das Quatro Fontes, que pressu­

familiar do que a fraseologia de sua fonte marca­

põe que o material exclusivo de Mateus

na e, por esse motivo, decidissem, de forma inde­

Lucas

( l)

(m )

e de

provém de duas outras fontes escritas.

pendente um do outro, elaborar o texto de acordo com a tradição oral. Aqui também o resuhado se­

6. Problemas com a Hipótese das Duas

ria uma concordância entre Mateus e Lucas.

Fontes

Dentre vários outros motivos para uma con­

A principal ahernativa para a Hipótese das

cordância entre Mateus e Lucas temos: modifi­

Duas (ou Quatro) Fontes é a Hipótese de Griesba­

cações coincidentes da gramática de Marcos,

ch (v. 4 acima), que oferece uma boa exphcação

omissões coincidentes do material marcano,

para o problema com que se defronta a Hipóte­

emprego comum de um Marcos diferente e mo­

se das Duas Fontes: a existência de pontos em

dificações coincidentes de passagens difíceis de

comum entre Mateus e Lucas quando há diver­

Marcos.

gência de Marcos. Além das várias omissões em comum criadas pelo fato de abreviarem Marcos e

7. A importância da solução do Problema

dos pontos de concordância que surgiram quan­

Sinótico

do melhoraram a gramática desse Evangelho,

De diversas maneiras, a solução do Problema Si­

Mateus e Lucas têm vários e importantes pontos

nótico se revela importante.

em comum, embora divergentes de Marcos (cf.

7.1

Crítica histórica. A busca da solução para

Mc 17,8; 2.12; 3.24,26-29; 5.27; 6.33; 8.35; 9.2-

esse problema encontrou grande impulso no de­

4,18,19; 10.29; 14.65,72 par. em Mateus e Lucas).

sejo de identificar a fonte mais antiga e, pelo que

Embora a Hipótese de Griesbach explique es­

se pressupunha, na melhor fonte histórica para

ses pontos em comum melhor do que a Hipótese

investigar a vida de Jesus. Esperava-se que, ao

das Duas Fontes, não devemos esquecer que a

descobrir a fonte básica dos Evangelhos Sinó­

recíproca é verdadeira no que diz respeito a todos

ticos, os estudiosos teriam em mãos uma fonte

os argumentos a favor da prioridade marcana e

histórica livre da teologia da igreja primitiva.

contra a ideia de Mateus e Lucas se conhecerem.

Essa fonte seria, portanto, a base para a busca

Esses argumentos são bem mais numerosos e têm

do Jesus histórico. Acredhava-se que Marcos

peso bem maior. Quanto a Mateus e Lucas terem

proporcionava essa fonte. Hoje, percebemos que

pontos em comum quando divergem de Marcos,

Marcos, como os demais Evangelhos, não é uma

várias explicações são possíveis.

biografia objetiva da vida de Jesus no sentido mo­

6.1 Tt-adições sobrepostas. Em cerios lugares, deve ter havido sobreposição do material

q

e de

derno da palavra (v.

e v a n g e lh o [ g ê n e r o ] ) .

Que bio­

grafia omitiria os trinta primeiros anos da vida de

Marcos. É possível que Mateus e Lucas tenham em

alguém? E qual dos Evangelistas é "objetivo” ? Por

certos momentos dado preferência ao texto de o

isso, fica evidente que a procura de uma biografia

em detrimento do de Marcos e, desse modo, te­

totalmente objetiva da vida de Jesus estava desde

nham levado Mateus e Lucas a concordar entre si.

o início fadada ao fracasso.

6.2 Corrupção textual. Sabemos que os an­

Entretanto, a busca de uma solução para o

tigos escribas tinham a tendência de fazer com

Problema Sinótíco tem oferecido ferramentas

que os relatos paralelos nos Evangelhos se

úteis para a investigação histórica. 0 critério de

1059

Pr oblem a S in ótico

confirmação múltipla baseia-se na premissa de

The synoptic problem: a criticai analysis. New

que várias testemunhas são melhores que uma.

York: Macmillan, 1964. ■

Desse modo, se um ensino de Jesus tem o tes­

pensing with Q. In: Studies in the gospels. Oxford:

temunho de Marcos,

e João, então temos

q , m, l

M. On dis­

F a rrer, A .

Blackweh, 1955, p. 55-88. •

J.

F itz m y e r ,

A.

The

cinco fontes dando testemunho da historicidade

priority of Mark and the “ Q” source in Luke. In:

desse ensino (v.

Jesus and man's hope. Pittsburgh: Pittsburgh

r ic a

d o s ).

E v a n g e lh o s , c o n fia b ilid a d e

h is t ó ­

Outra ferramenta útil é o critério de

padrões divergentes de redação. Por causa da

Theological Seminary, 1970, p. 131-70. • CRE,

G ooda-

M. The case against Q. Harrisburg; Trinity

aplicação da Hipótese das Duas Fontes, os estu­

Press International, 2002. • ______ . The synoptic

diosos dos Evangelhos Sinóticos estão hoje mais

problem.

familiarizados com o estilo hterário e as ênfases

C.

teológicas dos Evangehstas. É óbvio que, se um

Kloppenborg,

dos Evangelistas incluiu em seu Evangelho algo

in ancient w is d o m collections. Ph ilad elph ia; For­

que parece conflitar com seus propóshos, ele está

tress,

dando testemunho de que aquela tradição era

The synoptic problem:

bem antiga e bem conhecida.

M ac on : M erce r U niversity Press,

7.2 Investigação das intervenções editoriais

F.

Sheffield: Academ ic,

Horae synopticae.

1987.

J.

2001.

The formation o f Q:

S.

■ Longstaff, T. R.

W.

1988.

J. •

trajectories

1716-1988. • Neirynck,

The minor agreements o f Matthew and Lnke

against Mark with a cumulative list

Lucas empregaram Marcos

ve n University Press,

temos melhores

1909.

& Thomas, P. A .

a b ib lio gra p h y

nos Evangelhos. Ao observar como Mateus e e q,

• Hawkins,

O xford: C laren don,

1974.

Leu ven : L e u ­

• Reicke, B.

The roots

P h ilad elph ia:

Fortress,

condições de entender a ênfase teológica de cada

of the synoptic gospels.

um. Desse modo, fica mais fácil entender o signi­

1986.

ficado de suas obras. Basta comparar os seguintes

R apids; Baker,

exemplos com seus respectivos paralelos para ver

gospels.

como eles ajudam a revelar a ênfase teológica do

History and criticism of the Markan hypothesis.

escritor de cada Evangelho: Lucas 5.17; 6.27,28;

M ac on : M erce r U niversity Press,

11.13; Mateus 8.15; 13.35; 15.22.

M . T h e priority o f M ark. In; M oule, C. F

7.3 Percepções hermenêuticas. Vale a pena

The synoptic problem.

• Stein, R. H.

1987.

■ Streeter, B. H.

L on d on : M acm illan ,

1951.

birth of the New Testament. 3.

&. Row,

285-316.

G ran d

The four

• Stoujt, H .-H .

1980.

• Styler, G.

D. The

ed. N e w York: H a r­

observar como cada Evangehsta interpreta sua

per

fonte, pois os Evangehstas estavam mais próxi­

m ent from order a n d the synoptic p roblem , r z , v.

p.

mos do tempo, da situação, do idioma e do pen­

36,

samento de seus contemporâneos que nós. Por

Griesbach hypothesis: an analysis and appraisal.

causa disso, às vezes a interpretação de um texto

Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

p.

338-54, 1980.

• Tuckett, C. M . T h e a rgu ­



______ . The revival of the

difícil é facihtada apenas por observar como eles

R.

H.

S te in

interpretaram esse texto. Por exemplo, com base em Mateus 10.37,38, fica evidente que a ordem de Lucas para “aborrecer” os pais (Lc 14.26,

PROFECIA.

Ver

E s p ír it o S a n t o .

a ra ]

significa que seus discípulos devem amar Jesus

p r o t o g n o s t ic is m o .

mais que a outras pessoas. Também se pode

t a AOS.

Ver a d v e r s á r i o s ;

C o lo s s e n s e s , C a r ­

descobrir que é possível aphcar certos ensinos Ver

de Jesus observando-se como os Evangehstas

P s e u d e p íg r a fo s .

os aplicam à situação em que viviam. Um bom

n u s c r it o s DO m a r M o r t o .

A p ó c r i f o s e P s e u d e p íg r a f o s ; m a ­

exemplo disso é a parábola da ovelha perdida (Lc 15.3-7 par. Mt 18.10-14). Ver também

B iB u o G R A n A .

p sE U D E PiG R Á n cos DO

B e llin z o n i

Novo

Jr., A. J. et al. The tivo-

p u r ific a ç ã o d o te m p lo .

Ver t e m p l o ,

source hypothesis: a criticai appraisal. Macon: Mercer University Press, 1985. •

T e s ta m e n to .

Ver

E fé s io s ,

C a r t a a o s ; C a r ta s P a s to r a is .

e v a n g e lh o (g ê n e r o ) .

F a rm er,

W. R.

PURO E IMPURO.

1060

Ver

Lei i.

p u r if ic a ç ã o d o .

RECONCILIAÇÃO.

Ver

1. Terminologia

C r i s t o , m o r t e d e ii.

Os Evangelhos empregam três termos para expres­ re d e n çã o .

Ver

sar a ideia do reino de Deus: hê basileia tou theou

C r is t o , m o r te de.

(“ o reino de Deus”), hê basileia tõn ouranõn ( “o REFEIÇÕES co M U N rrÁ R iA S .

Ver c o m u n h ã o

reino do[s] céu[s]”) e a forma absoluta hê basileia

à m esa.

( “o reino”). A equivalência das duas primeiras ex­ r e f e iç õ e s r e lig io s a s .

Ver

pressões está indicada no seu conteúdo, contexto

c e ia d o S e n h o r i.

e permutabilidade nos Evangelhos. (A distinção R e i D a v íd ic o .

Ver

entre reino de Deus como soberania divina e reino

C r i s t o ; F i l h o d e D a v i.

do céu como uma reahdade futura pertencente a R e i, D e u s c o m o .

Ver

uma esfera fora deste mundo, em que o reino de

D eu s.

Deus é concebido como a condição para entrar no r e in o d e C r is t o .

Ver

reino do céu

r e in o d e D e u s ii.

[ P a m m e n t],

não tem base exegética.)

A expressão grega para “o reino do(s) céu(s)” é R e in o

de

D

eus i :

E vangelh os

uma tradução hteral da expressão judaica tardia

o termo “reino de Deus” ou “reino do céu” significa

mal‘kút shãmayim (e.g., 2Ap Br, 73; 3Ap Br, 11.2

0 governo soberano, dinâmico e escatológico (v.

e s-

Aç Ms, 10; Sl Sa, 17.4; IQSb 3.5; m. Ber., 2.2,5

de Deus. O reino de Deus está no âmago

y, Ber, 4a7b), em que, por reverência, “céus’

do ensino de Jesus. Na forma em que foi proclamado

substitui a palavra “Deus” , assim como ’“dõnay

c a t o lo g w )

por Jesus, o reino de Deus estava vinculado à pro­

(“senhor” , “ mestre") havia substituído Yahweh

messa do

( “Senhor”) e, no devido tempo, mãkôm ( “lugar”)

AT,

bem como ao pensamento apocalíptico

judaico, mas diferia deles em aspectos importantes.

substituiu

Por exemplo: denotava um governo eterno de Deus,

Também se faz referência ao reino de Deus me­

em vez de um reino terrestre; seu âmbito era univer­

diante a forma absoluta “reino” , quando a refe­

sal, em vez de limitado à nação judaica; era iminente

rência é óbvia.

( “céus”)

(D a lm a n ,

p. 91-101),

e estava potencialmente presente em Jesus, em vez

0 significado básico do hebraico mal’küt (com

de ser uma vaga esperança futura, estando inextrica­

seus sinônimos), do aramaico malkú e do grego

velmente ligado à sua pessoa e missão.

basileia é abstrato e dinâmico, ou seja, indica so­

1. Terminologia

berania ou governo régio. Esse é quase sempre o

2. Antecedentes veterotestamentários

caso no

3. 3. Judaísmo

aphcado a Deus. 0 sentido de domínio — um reino

4. 4. Jesus e o reino de Deus

territorial — é secundário e surge da necessidade

5. 5. Os Evangelhos

de um local identificado que seja o âmbito do exer­

6. 6. 0 reino de Deus e a igreja de hoje

cício da soberania.

at

e na hteratura judaica quando o termo é

R eino de D eus i ; Evangelhos

2. Antecedentes veterotestamentários

futuro (v.

Os Evangelhos, ao apresentar os ministérios de

Davi, trazendo justiça e prosperidade (v.

JoÂo B a t i s t a e de Jesus, declaram que ambos pro­

D a v i).

C r is to )

que governaria sobre o reino de F ilh o de

Dessa maneira, o reino davídico foi de certa

clamam a proximidade do reino de Deus. Essa

forma fundido com o governo de Javé. Os grandes

declaração não é seguida de explicação alguma, e

profetas éticos denunciaram a infídehdade de Israel

a conclusão deve ser que o conceito de reino de

contra o Criador e Rei (Senhor) do Universo, que

Deus era bem conhecido.

tinha prazer em se identificar com Israel. A crise

No entanto, a expressão “reino de Deus” está

tornou-se especialmente grave quando os últimos

e ocorre ape­

vestígios do reino de Davi foram levados embora

nas uma vez nos Apócrifos, em Sabedoria 10.10.

pelo cativeiro babUônico. Então, em alguns círcu­

No entanto, embora o termo esteja ausente, a

los, a promessa de um reino eterno feita a Davi

ideia está presente por todo o

começou a ser radicalmente reinterpretada.

ausente dos livros canônicos do

at

a t.

Em vários tex­

tos, Javé é apresentado como rei [Dt 9.26 ISm 12.12; Sl 24.10 [23.10,

lx x ];

Nenhum outro escrito do

[lx x ];

29.10 [28.10,

at

traz mais infor­

mações sobre a soberania de Deus que Daniel.

6.5; 33.22; Sf 3.15; Zc 14.16,17). Em ou­

Nesse hvro, o reino de Deus é o tema central. En­

tras passagens, ele possui um trono régio (Sl 9.4

tretanto, o conceho de reino de Deus apresentado

[9.5,

lx x ];

Is

6.1;

por Daniel é transformado sob o impacto da nova

66.1; Ez 1.26; Eo 1.8), ao passo que ocasional­

situação. A soberania divina é contrastada com

mente se declara seu reinado contínuo ou fu­

os reinos humanos, e deles se diz que estão sob o

turo (Sl 10.16 [9.37, lx x ]; 146.10 [145.10, lx x ];

controle do Deus do céu, que concede soberania

Is 24.23; Sb 3.8). Ahás, Salmos 22.28 (22.29,

a cada reino de acordo com sua vontade. Daniel 2

lx x ];

45.6 [44.7, l x x ] ; 47.8 [46.9,

lx x ];

Is

tm ;

21.29, lx x ] diz que “ o reino” [hammHâkâ; basi­

apresenta o reino de Deus como uma intervenção

leia, lx x ] pertence ao Senhor.

divina direta. Seu agente, na forma de uma pedra

Contudo, a ideia não está confinada aos textos

cortada sem o auxílio de mãos humanas, esmiga­

que evidenciam atributos régios: ela está por trás

lha os vários reinos humanos, aqui simbolizados

de todo o relacionamento entre Javé e Israel. A

por metais e barro, e ela (i.e., o reino — “rei”

exigência de deixar Israel partir, feita ao faraó, é a

e “ reino” são permutáveis em Daniel) cresce até

do rei legítimo contra o usurpador. A ahança com

encher toda a terra. Em Daniel 7, muda o sim­

Israel é a que afirma a suserania de Deus sobre

bolismo: agora os animais selvagens representam

seu povo. Na conquista de Canaã, Javé, na condi­

a natureza ímpia dos reinos humanos. O agente

ção de rei, presenteia seu povo com um território

que atua a favor do reino de Deus é um persona­

de que ele, na condição de Criador e Rei da terra,

gem descrito como “alguém parecido com filho

pode dispor como bem lhe agradar. O governo

de homem” (v.

de Deus sobre Israel é especialmente exemplifi­

passa a ter o governo régio sobre os poderes es­

cado no período dos juizes, que atuaram como

pirituais que atuam por trás dos potentados terre­

representantes de Deus. Uma crise surgiu quando

nos, e os santos ligados ao personagem recebem

F ilh o d o h om em )

. Esse personagem

Israel exigiu um rei (ISm 8.4,5), atitude que foi

0 governo régio sobre os monarcas debaixo de

interpretada como rejeição do governo de Javé

todo 0 céu (i.e., os potentados terrenos).

(ISm 8.6-8). Entretanto, com a ascensão de Davi

Desse modo, Daniel não apenas apresenta o

ao trono a situação de certa forma se normalizou,

reino de Deus despido de sua natureza davídi­

e 0 entendimento foi que o rei governava como

ca, terreno e política, mas também descreve seu

representante de Javé e estava sob a suserania

agente como um ser celeste e transcendental. A

divina. Ou seja, via-se a monarquia como a ma­

nova situação criou não apenas um novo conceho de reino de Deus, mas também uma transforma­

nifestação concreta do governo de Javé. Isso explica o papel oficial dos profetas que

ção de seu agente (v.

C a r a g o u n is ,

1986, p. 61-80).

atuavam na corte (e.g., Natã, Gade, Ehas). A pro­

Essas ideias foram de importância decisiva na for­

messa de estabelecer o trono de Davi para sempre,

mação do pensamento e da escatologia messiâ­

apesar da rejeição a Salomão (IRs 11.11-14), fez

nicos, não apenas no judaísmo mas também no

com que a atenção se concentrasse num Messias

ensino de Jesus.

1062

Reino de D eus i : Evangelhos

3. Judaísmo

divino com alegria absoluta maior que a do reino

No início do judaísmo, o conceito de reino de

messiânico. Esse conceito é fortemente contrasta­

Deus foi moldado por três fatores. Na base, estava

do com a ideia apocalíptica segundo a qual o rei­

a ideia veterotestamentária da epifania escatoló­

no de Deus é estabelecido por intervenção divina

gica de Javé, em que este chegava para castigar

direta e é transcendental e eterno, sob o governo

os perversos (i.e., os inimigos de Israel) e recom­

de um Messias semelhantemente transcendental

pensar os justos (i.e., Israel). Essa ideia estava

e preexistente denominado Filho do homem —

acompanhada de outra, a de que o governo de

Daniel; 2Esdras; Similitudes, de lEnoque (37— 71).

Deus se daria por meio de seu rei messiânico es­

Nesse caso, o Messias participa do juízo, que

colhido, de descendência davídica. Seria um pe­

dessa maneira precede o reino messiânico. Esse

ríodo de alegria total e inimaginável para o povo

reino é o reino definitivo de Deus, que deve durar

judeu. 0 segundo fator era que Daniel passou a

para sempre.

entender o reino e seu agente como realidades

No entanto, como é natural, até mesmo a ex­

transcendentes e celestiais e o consequente livra­

pectativa posterior emprega, em sua maior parte,

mento do povo de Deus como algo presentemente

categorias messiânicas da expectativa anterior, e

dinâmico. 0 terceiro fator era o fato de os gentios

isso torna mais difícil isolar os traços de uma e de

terem governado a Palestina durante séculos, o

outra. 0 que se segue é uma tentativa de ilustrar

que intensificava o anseio por hbertação, iden­

em poucas palavras algumas das principais ver­

tidade nacional e felicidade (v.

tentes do pensamento judaico acerca do reino de

ju d a ís m o e

o Novo

Deus, sem tentar estabelecer uma hnha demarca-

T e s ta m e n to ) .

Embora o termo “reino de Deus” seja raro no

tória estrita entre as formas inicial e posterior da

judaísmo, a ideia é quase onipresente, quer ex­

expectativa ou entre os diferentes pontos de vista

phcitamente, como o reino do Messias, quer

da fase inicial do judaísmo.

imphcitamente em referências à era messiânica.

Especialmente em obras que refletem a influ­

Os dois enfoques sobre a expectativa messiânica

ência de Daniel, o irrompimento do reino de Deus

herdados pelo judaísmo sãos refletidos nas des­

é precedido por um período de tribulação e tur­

crições ambivalentes do reino do Messias. Além

bulência no céu e na terra (Or si, 3.796-808; 2Ap

de desafiar uma apresentação estrhamente sis­

Br, 70.2-8; 4Ed 6.24; 9.1-12; 13.29-31; IQM 12.9;

temática do ensino do reino, essa ambivalência

19.1,2; cf. Mt 24.7-12 e par.). Na hteratura rabíni­

também dá a entender que temas oriundos de

ca, esse momento veio a ser chamado “as dores

ambas as linhas de pensamento estão misturados

de parto do Messias” [b. Sanh., 98b; Str-B, v. 1,

em diversos níveis. 0 resuhado é uma variedade

p. 950). Às vezes a aparição do Messias é prece­

de messianismos e concehos de reino que nem

dida pela vinda de Ehas (Ml 3.1-4; Eo 48.10,11; cf.

sempre se distinguem claramente uns dos outros.

Mt 17.10 e par.; m. 'Ed., 8.7;

No entanto, em geral podemos fazer distinção en­

8) ou do profeta semelhante a Moisés (Dt 18.15;

tre as duas principais tendências de concepção

IQS 9.11; 4QTestim 5-8; Jo 1.21).

J u s t in o M á r t i r ,

Dl Tr,

do reino. A primeira é o conceho de um reino

0 Messias é concebido de diversas maneiras. É

davídico temporário, que tem Jerusalém como

tradicional a ideia de um Messias plenamente hu­

centro e os judeus como os principais beneficiá­

mano, davídico (S/Sa, 17.5,23; Or sí, 3.49) que der­

rios — embora às vezes abrangendo o mundo

rota os ímpios (Orsi, 3.652-656; SlSa, 17.23-32),

inteiro. Essa concepção é mais antiga, polftica e

ao passo que em obras pertencentes à tradição de

preocupada com este mundo. A segunda é um

Daniel o Messias é um ser preexistente e sobre­

conceito posterior e apocalíptico de um reino que

natural com poderes para julgar os reis e os po­

está situado além da esfera da existência física e

derosos — em suma, todos os inimigos de Deus

é transcendental e eterno, sendo concebido em

— e de confirmar os justos [lEn, 46.1-6; 48.2-6;

termos universalistas.

62.5-7; 4Ed 12.32). Outra diferença é que, de

Quando o reino de Deus é considerado tempo­

acordo com lEnoque 90.16-38, o Messias apare­

rário, segue-se geralmente um juízo, postula-se

cerá depois do juízo, ao passo que na maioria das

um novo mundo e procura-se no céu um reinado

outras obras (Or si, 3.652-656; Sl Sa, 17.14-41;

1053

R eino de D eus i : Evangelhos

lEn, 46.4-6; 62.3-12; 69.27-29; 4Ed 13.32-38; cf.

9.6,7). 0 reino aguardado significará glória para

Mt 25.31-46) ele derrota ou julga seus inimigos.

Israel e castigo para os gentios (Te Ms, 10.7-10).

Fazendo eco à ideia de Salmos 2.1-3, várias

O ZApocalipse de Baruque descreve o reino

obras pressupõem um ataque final dos ímpios

messiânico especialmente em três visões (consi­

contra o Messias (Or si, 3.663-668; lEn, 90.16;

deradas anteriores a 70 d.C.). Na primeira visão

IQM 15-19; 4Ed 13.33,34) a fim de frustrar o esta­

(2Ap Br, 27—30), a revelação do Messias instaura

belecimento do reino messiânico. Às vezes esses

uma época de prosperidade para “aqueles que fo­

poderes são aniquilados por Deus (Te Ms, 10.2-7;

rem encontrados nesta terra” e “tiverem chegado

lEn, 90.18,19) ou, mais frequentemente, pelo

à consumação dos tempos”. Na segunda visão

Messias (4Ed 12.32,33; 13.27,28,37-39; 2Ap Br,

(2Ap Br, 36—40), o Messias aniquilará o inimi­

39.7—40.2), que ocasionalmente é apresentado

go, 0 quarto império (refletindo Dn 7), e reinará

como guerreiro (Tgls, 10.27; Gn 49.11) e às vezes

“até que o mundo de corrupção tenha acabado

em categorias judiciais (lEn, 46.4-6; 45.3; 52.4-9;

[...] e os tempos [...] tenham se cumprido”. Na

5S.4; 61.8-10; cf. Mt 25.31-46).

terceira visão (2Ap Br, 53— 74), a prosperidade e

0 estabelecimento do reino do Messias en­

a alegria absoluta chegam após a aniquilação dos

volve o ajuntamento dos israelitas dispersos

inimigos de Israel pelo Messias. 0 reino está asso­

(Br 4.36,37, l x x ; 5.5-9;

Pm pn, 28; 4Ed 13.39-

ciado à esperança alimentada por Israel durante

47) e a restauração de Jerusalém (Sl Sa, 17.25,33;

muito tempo, embora a condição do Messias seja

lEn, 53.6; 90.28,29; 4Ed 7.26). O entendimento

sobrenatural.

F ilo ,

é que 0 reino messiânico implica o reinado der­

As duas obras que revelam a influência mais

radeiro de Deus sobre seu povo (Or si, 3.704-

clara do FUho do homem de Daniel, as Similitudes,

706,756-759; Sl Sa, 17.1-4; IQM 19.1; Sh’môneh

de lEnoque, e 4Esdras, acompanham sua fonte,

'Esrêh, 11 bf’rãkâ], desse modo confirmando o

associando os concehos de reino e FUho do ho­

conceito veterotestamentário de Deus como rei

mem. Em vários pontos das Similitudes (ou Pará­

sobre Israel. O centro do reino é a Palestina, sen­

bolas), 0 Filho do homem é alguém que exerce as

do Jerusalém “a joia do mundo” (Or si, 3.423),

funções de juiz e governante universal (lEn, 46.4-

embora Jubileus (obra de meados do séc. ii a.C.)

6; 62.3-12; 63.4; 69.27-29), e o hvro termina com

provavelmente apresente o primeiro caso de um

uma descrição da era messiânica (lEn, 71.15-17;

reino messiânico temporário de mil anos de dura­

cf. lEn, 62.12-16; v.

C a r a g o u n is ,

1986, p. 84-119).

ção. Esse conceito surge gradualmente como re­

O hvro de 4Esdras combina o Messias terre­

sultado do desenvolvimento moral e espiritual do

no com 0 transcendental (4Ed 12.32), que morre

ser humano, e, durante esse período, os poderes

depois de reinar quatrocentos anos (4Ed 7.28,29;

do mal serão contidos (Jb, 1.29; 23.26-30).

outras versões trazem 1.030 anos). A ascendência

Semelhantemente, o terceiro hvro dos Orácu­

davídica do Messias é, talvez, a maneira de o livro

los sibilinos (762-771, séc. ii a.C.) exorta o povo

destacar a continuidade do pensamento messiâni­

ao viver justo como condição para Deus “erguer

co, embora o conteúdo seja de um Messias trans­

seu reino por todas as eras sobre os homens”.

cendental, como se vê, por exemplo, em 4Esdras

Oráculos sibilinos 5.414 (c. 100 d.C.) descreve o

12.32-34 e 13.26 (v.

C a r a g o u n is ,

1986, p. 119-31).

Messias como “um Homem Bendito” vindo das

Nos manuscritos de Qumran, o termo mafküt

“planícies do céu” , o que talvez reflita a influên­

ocorre mais de uma dezena de vezes, mas ape­

cia de Daniel. Sob seu reinado, haverá paz (Or si,

nas uma vez para designar o reino de Deus

3.702), fartura e prosperidade (Or si, 3.744), de

(IQM 12.7). Na maioria das outras ocorrências,

que até mesmo o mundo animal participará (Or

designa o reino de Israel. Mas a ideia do reino

si, 3.788-795).

de Deus está latente na crença dos sectários de

De acordo com o Testamento de Moisés 10.1

que constituíam o verdadeiro povo de Deus e que

(séc. I d.C.), o reino de Deus “aparecerá por toda

deviam lutar na batalha escatológica contra os

a sua criação". Entretanto, o reino parece ser ter­

inimigos de Deus (v.

reno, dá a impressão de não ter um Messias e

to; sobre o judaísmo em geral, v.

é introduzido pelo arrependimento (Te Ms, 1.18;

p. 492-554).

1

064

m a n u s c r it o s

do

m ar

S ch ü rer,

M o r­

v. 2,

Reino de D eus i : Evangelhos

4. Jesus e o reino de Deus

individualista, espiritual é não escatológica, que

No ensino de Jesus, o debate gira em torno de

situava 0 reino de Deus na experiência do coração

duas questões: 1) a natureza e 2) a iminência do

da pessoa. Essa interpretação estava associada à

reino de Deus. Essas duas questões estão relacio­

escola liberal. Para os liberais, a essência do cris­

nadas entre si e nos últimos cem anos têm ocupa­

tianismo se encontrava em certos princípios ge­

do o centro do debate entre os estudiosos.

rais ensinados por Jesus, como a paternidade de

4.1 A visão dinâmica de Jesus. 0 pensamen­

Deus e a irmandade de todos os humanos (e.g.,

to de Jesus acerca do reino de Deus dava conti­

A.

nuidade à promessa do

gunda foi 0 movimento do evangelho social, na

at

e apresentava certas

voN H a rn a ck ,

1886; W.

H errm an n ,

1901). A se­

características vistas também no judaísmo apo­

Alemanha (C.

calíptico, especialmente em Daniel, mas ia além

e especialmente nos Estados Unidos, com sua ên­

deles em alguns aspectos importantes: 1} o rei­

fase na presente ordem social baseada no amor e

no de Deus era basicamente dinâmico, não uma

na solidariedade (S.

entidade geográfica; 2) ele estava vinculado ao

1900; particularmente W.

B lu m h a r d t ,

c. 1900; L.

M a th e w s ,

R agaz,

1897; F. G.

Rauschenbusch,

1911)

Peabody,

1912).

destino do Filho do homem; 3) a entrada no reino

Contudo, a interpretação mais importante

não se baseava na aliança nem estava restrita aos

para o ininterrupto debate entre os estudiosos foi

judeus; 4) enquanto no apocaliptismo era uma

a do genro de Ritschl, J. Weiss, em Die Predigt

vaga esperança futura, em Jesus é algo certo e

Jesu vom Reiche Gottes [A proclamação de Jesus

iminente, exigindo resposta imediata.

acerca do reino de Deus] (1892), obra que marcou

À semelhança dos apocaliptistas, Jesus sus­

época. Weiss reagiu fortemente à interpretação de

tentava que o reino de Deus não era uma reali­

Ritschl, destacando a natureza futura, escatológi­

zação humana, mas um ato de Deus. Por outro

ca e apocalíptica do reino de Deus, que enfrenta

lado, ao contrário deles, Jesus não imaginava o

a oposição do reino de Satanás. O reino de Deus

reino de Deus se manifestando após um período

irromperia sem aviso, seria exclusivamente obra

de catástrofes, mas surgindo de maneira mansa,

de Deus e eliminaria a ordem presente. A obra de

tranquila e discreta. Para Jesus, o elemento ca­

Weiss provocou uma tempestade e, com ela, um

tastrófico consistia no abalo que seu chamado

interesse sem precedentes pelo tema. Nas mãos

provocava nas relações entre seus seguidores e

de A. Schweitzer, o enfoque iniciado por Weiss

os famihares, entre amigos e até no ser humano

tornou-se conhecido como Konsequente Escha­

consigo mesmo. Os seguidores de Jesus deveriam

tologie ( “escatologia consistente” , “ futurista” ou

estar prontos para “ odiar” a vida se quisessem ser

“completa e profunda”). No devido tempo, a es­

dignos dele e do reino de Deus.

catologia reahzada de C. H. Dodd surgiria como

4.2 O reino como presente ou futuro — o

0 polo oposto a esse enfoque. Nesse ínterim, G.

debate atual. No debate atual, a questão do rei­

Dalman (1898), recorrendo à filologia, demons­

no de Deus no ensino de Jesus gira em torno de

trou 0 caráter dinâmico do reino de Deus no ju­

três indagações. Qual a sua essência? Como ele

daísmo e no

está relacionado com a pessoa e a obra de Jesus?

básica de quase todos os debates subsequentes.

Quando virá o reino?

NT,

que veio a ser a pressuposição

De acordo com Dalman, o conceito de reino de

Nos últimos cem anos, desde a obra de A.

Deus não apresenta nenhum aspecto territorial

Ritschl e J. Weiss, o reino de Deus tem ocupado o

ou geográfico, mas expressa dinamicamente o

centro dos debates, e as três perguntas acima têm

governo régio de Deus, que é basicamente esca­

recebido diversas respostas. Ritschl, influenciado

tológico. A interpretação teológica, no entanto,

pela filosofia idealista de Kant, concebeu o reino

foi dada por A. Schweitzer.

de Deus em termos éticos, imaginando-o como

Em Das Messianitãts- und Leidensgeheimnis

a organização da humanidade redimida, cujas

(ti:

ações são inspiradas pelo amor

of Jesus’ messiahship and passion. [O mistério

The mystery o f the kingdom o f God: the secret

O interesse gerado pela obra de Ritschl deu

do reino de Deus: o segredo da messianidade e

origem a várias e importantes interpretações do

da Paixão de Jesus]] (1901), especialmente em

reino de Deus. A primeira foi a interpretação

A busca do Jesus histórico (original alemão de

1

Reino de D eus i : Evangelhos

1906), obras que se tornaram ponto de referência

a fraseologia da

lx x

na tradução do aramaico de

nos estudos sobre o reino de Deus, Scliweitzer

Daniel, as expressões idiomáticas gregas da épo­

interpreta não apenas o ensino de Jesus, como

ca de Jesus e as parábolas do reino constituíam

Weiss havia feito, mas também todo o ministério

em conjunto um apoio à sua tese de que o reino

de Jesus em termos consistentemente escatológi­

de Deus já era uma reahdade presente durante

cos. Jesus é interpretado como um personagem

0 ministério de Jesus. 0 acontecimento decisivo

apocalíptico que esperava que o fim acontecesse

havia ocorrido na vinda de Jesus. As curas opera­

durante a missão dos Doze (Mc 6.7-13 e par.),

das por ele, em particular as expulsões de demô­

motivo pelo qual não esperava tornar a ver os dis­

nios, eram demonstrações de que, na pessoa e na

cípulos. Entretanto, ele estava enganado a respei­

obra de Jesus, a soberania divina havia desferido

to disso. O fim não veio — nem o reino de Deus.

0 golpe decisivo no reino de Satanás e era, indu­

Tendo arriscado tudo nessa expectativa e desco­

bitavelmente, uma reahdade presente. Em certo

brindo que estava errado em sua predição sobre

sentido, Dodd identificou o reino de Deus com a

0 fim, Jesus decidiu se lançar impetuosamente ã

pessoa de Jesus, permitindo que o reino de Deus

morte, na tentativa final e heróica de forçar Deus

fosse entendido como uma reahdade atemporal.

a estabelecer seu reino. 0 impacto de Schweitzer,

“ 0 absoluto, o ‘totalmente outro’, penetrou no

em particular na Alemanha, pode ser aferido pelo

tempo e no espaço”

fato de que essa escatologia futurista se tornou o

vel aconteceu: a história se tornou o veículo do

enfoque alemão característico.

eterno; o absoluto vestiu-se de carne e sangue”

Como reação ã unilaterahdade do ponto de

(D o d d ,

(D o d d ,

p. 81). “O inconcebí­

p. 147). Na interpretação de Dodd acerca

vista alemão, vários estudiosos britânicos, como

do reino de Deus, “a escatologia futurista desapa­

A. T Cadoux (1930) e T W. Manson (1931), e

rece, e tudo que resta é ‘o eschaton [o fim]’ como

mesmo alguns alemães, como E. von Dobschütz e

0 Eterno”

H.-D. Wendland, destacaram no ensino de Jesus o

Dodd ignorou as afirmações dos Evangelhos que

elemento presente do reino de Deus. À semelhan­

apresentavam o reino de Deus como futuro.

(L u n d s tr õ m ,

p. 121). Para chegar a isso,

ça de Schwehzer, R. Bultmann entende que Jesus

A influência de Dodd tem sido imensa, for­

esperava que o reino de Deus começasse com

çando importantes modificações na interpretação

sua morte e, por isso, subiu a Jerusalém a fim de

futurista. Nos últimos 45 anos, ela tem suscitado

purificar o templo, como preparativo. Buhmann

várias opiniões intermediárias, que concebem o

concebe o reino de Deus como uma entidade fu­

reino de Deus ao mesmo tempo como presente e

tura, escatológica, supra-histórica e sobrenatural,

futuro, com o lado alemão tendendo mais para o

que põe o ser humano diante de uma decisão.

aspecto futuro, e o britânico, mais para o aspecto

Contudo, diferentemente de Schweitzer, na inter­

presente. Por exemplo; W. G. Kümmel, Verheis-

pretação desmitologizante de Buhmann o reino

snng und Erfüllung (1945)

de Deus está sempre vindo e, desse modo, deixa

fillment [Promessa e cumprimento], 1961); G. R.

de ser um acontecimento futuro, que se aguarda

Beasley-Murray (1954, p. 312-6; 1986, p. 75-80);

e pode ser aguardado. Uma vez que a decisão é

E. Jüngel, Schnackenburg, N. Perrin, D. C. Alhson

contínua, o reino de Deus não é um acontecimen­

(p. 99-114). Numa tendência semelhante, J. Je­

to no tempo. Assim, o reino de Deus, esvaziado

remias, por sugestão de E. Haenchen, apresenta

de seu conteúdo, transcende o tempo sem nunca

o reino de Deus como sich realisierende Escha­

entrar nele. Em suma, Buhmann entende o rei­

tologie (“uma escatologia em processo de rea­

no de Deus basicamente de forma existencialista,

lização”), termo preferido por Dodd, mas que

como a hora da decisão do indivíduo.

aparentemente nunca permitiu que modificasse

(t i:

Promise and ful­

Entretanto, o estudioso que deu forma defi­

sua interpretação básica. R. H. Fuher (p. 25-7)

nitiva a essa reação foi Dodd. Em The parables

interpreta ephthasen como “é chegado”, mas

o f the kingdom [As parábolas do reino] (1935),

apoiado no recurso profético de falar proleptica-

Dodd interpreta, por exemplo,, o éngiken de

mente de um acontecimento, como se já tivesse

Marcos 1.15 e seus pai‘alelos à luz do ephthasen

ocorrido. Para Fuller, ao agir antecipadamente, os

de Mateus 12.28 (par. Lc 11.20). Ele afirma que 1

poderes do reino de Deus já estavam se fazendo

066

Reino de D eus i : E vangelhos

sentir nos feitos de Jesus, e essa interpretação

ativo em Jesus. Os milagres de Jesus eram “ o rei­

foi denominada “escatologia proléptica”. G. Flo-

no de Deus em ação”. Mas seria exagero afirmar

rovsky e A. M. Hunter (p. 94) defendem uma

que a presença do reino de Deus indica algo con­

escatologia inaugurada, ao passo que, com base

cluído: o reino presente funciona como precursor

numa tradução de ephthasen por “é chegado”, G.

do reino vindouro e consumado de Deus.

E. Ladd acredita num cumprimento do reino de

Beasley-Murray pensa que, como tradução de

Deus na história (i.e., no ministério de Jesus) e

ephthasen (Mt 12.28 e par.), “é chegado” tem um

numa consumação plena, por ocasião do fim da

significado “inambíguo e claro” e critica os de­

história, e chama sua concepção de “escatologia

fensores da escatologia futurista por procurarem

do realismo bíblico”.

“ maneiras de emudecer o testemunho [do ter­

Kümmel é tido como o estudioso que chegou

m o]”

(B e a s le y - M u r r a y ,

1986, p. 75-6). Os milagres

mais próximo de uma “síntese autêntica das esca-

de Jesus, especialmente as expulsões de demô­

tologias realizada e futurista no ensino de nosso

nios, dão um testemunho eloquente da presença

Senhor”

do reino. Contudo, a chegada do reino de Deus,

(B e a s le y - M u r r a y ,

1954, p. 103). Dessa ma­

neira, ao mesmo tempo que acertadamente reco­

mencionada em Mateus 12.28 e na passagem pa­

nhece o caráter futuro das declarações de Jesus

ralela, não é sua consumação, que Beasley-Murray

e admhe um intervalo entre a Pabcão e a parusia

— à semelhança de Schnackenburg, Kümmel,

(Mc 2.18-20; 8.38 par. Lc 12.8,9), ele entende que

Ladd e outros — considera futura.

— seguindo a hnha de pensamento de Dodd — o

Uma opinião semelhante é a de D. C. Alhson.

ephthasen de Mateus 12.28 tem o sentido de “é

Ele acompanha a interpretação usual de ephtha­

chegado” e deixava implícito que o fim já esta­

sen e, assim, segue o consenso atual de que o

va em operação em Jesus. Na pessoa e nas ações

reino de Deus é ao mesmo tempo presente e fu­

de Jesus, o futuro já estava reahzado, pois aquele

turo. A relação entre presente e futuro é expli­

que introduziria e realizaria a salvação no final já

cada recorrendo-se ao pensamento judaico, que

estava presente. Dessa forma, o futuro do reino

“podia vislumbrar os acontecimentos finais — o

de Deus e sua vinda estavam intimamente ligados

julgamento do mal e a chegada do reino de Deus

ao presente, que tinha Jesus como seu centro. O

— como algo que se estendia por certo tempo

reino de Deus estava presente na pessoa, ensino e

e como um processo ou série de acontecimentos

obras de Jesus. Pela fé nele as pessoas recebiam o

que podiam envolver o presente. Quando Jesus

reino de Deus e a garantia da aparição desse mes­

anunciou que o reino de Deus chegou e está che­

mo reino. Essa garantia deixava implícito que o

gando, isso significava que o último ato tivera

reino de Deus devia se cumprir nele. Desse modo,

início, mas ainda não atingira o clímax: as últi­

a promessa e o cumprimento estão indissoluvel­

mas coisas são chegadas e chegarão”

mente associados um ao outro. Ladd (p. 123-4)

p. 105-6). E, também, “para Jesus o reino de

(A lu s o n ,

critica Kümmel por não exphcar o que é exata­

Deus, 0 estabelecimento escatológico do governo

mente o reino de Deus. De acordo com E. Grãsser

régio de Deus, logo estava para chegar em sua

(p. 7), o que Kümmel entende como presente não

plenitude”

é o reino de Deus, mas sua iminência.

(A llis o n ,

p. 114).

Portanto, pode se concluir que os que enfati­

R. Morgenthaler, R. Schnackenburg e Beasley-

zam a presença do reino de Deus nas obras de

Murray (1986) interpretam ephthasen com o sen­

poder realizadas por Jesus também dão margem a

tido de “é chegado” , embora para Morgenthaler o

uma completação ou consumação futura do reino

termo apenas deixe implícito que o reino de Deus

de Deus. Os que defendem a futuridade do rei­

está por perto, mas não de fato presente. Para

no de Deus dão margem a algum tipo de influên­

Schnackenburg, significa que o reino de Deus

cia que a proximidade iminente do reino de Deus

está “associado com a pessoa [de Jesus] e sua

teria exercido no ministério de Jesus. Ambas as

obra”

opiniões tentam exphcar elementos importantes

(S c h n a c k e n b u rg ,

p. 109). Embora veja o rei­

no de Deus como algo inteiramente escatológico

das informações encontradas nos Evangelhos.

e sobrenatural, no caráter salvífico do reino Sch­

De natureza bem diferente é a obra mais re­

nackenburg também o concebe como presente e

cente de N. Perrin, que abandonou sua antiga

1067

R eino de D eus i : E vangelhos

convicção (1963). Estimulado por críticos lite­

de Jesus e que consistia em Jesus expulsar demô­

rários como P. Wheelwright (1962), P. Ricoeur

nios (ou pelo menos ele se ocupava disso) será

(1969), A. N. Wilder (1964), R. W. Funk (1966),

uma resposta satisfatória às indagações sobre a

D. 0. Via (1967) e F. D. Crossan (1973), Perrin

essência, a chegada e a relação do reino de Deus

apresentou a teoria de que “reino de Deus” não

com a pessoa e a obra de Jesus. Caso o reino de

é uma ideia nem um conceito, mas um símbolo

Deus já tivesse chegado na época em que Jesus

mítico

fez a declaração de Mateus 12.28 (par. Lc 11.20),

(P e r r in ,

1976, p. 33). Ele adotou a distin­

ção, feita por Wheelwright, entre estenossímbolo

como entender o restante da existência terrena de

(ou monossímbolo), que possui um significado

Jesus? E que dizer do dever do Filho do homem

fixo (uma correspondência um a um entre símbo­

de “dar a vida em resgate de muhos”? Qual a im­

lo e referente como em hnguagem apocalíptica),

portância de sua morte? E como Jesus relacionou

e símbolo tensivo (ou plurissigno), que é aberto

sua morte com o reino de Deus? Falar de uma

e multissugestivo, possuindo um conjunto ines­

consumação flnal ou plena em algum momento

gotável de sentidos. A proclamação do reino de

do futuro não responde satisfatoriamente a essas

Deus feita por Jesus envolvia o símbolo tenso, o

perguntas. E enfatizar a vinda do reino como an­

qual, no entanto, seus seguidores transformaram

terior à época do ephthasen nos leva a indagar se

num estenossímbolo apocalíptico, fazendo com

a morte de Jesus não é supérflua para essa vinda.

que 0 reino de Deus perdesse sua rica variedade

Qualquer solução viável precisa levar em conta a

de referências e, em vez disso, se referisse a um

hnguagem empregada e a relação entre o reino de

acontecimento privado da experiência universal.

Deus e o FUho do homem (v. 4.5 abaixo). 4.3.1

Perrin acredita que a totalidade do ensino de Jesus

Ephthasen (Mateus 12.28/Lc 11.20). É

tinha 0 objetivo de “mediar uma experiência de

fato indubitável que os Sinóticos apresentam Jesus

Deus como rei, de tal ordem que conduzirá o

como alguém que anunciou o reino de Deus como

1976, p. 54). Embora

algo iminentemente próximo [éngiken), e João

os aspectos simbólicos e metafóricos do reino de

Batísta também o fez (Mt 3.2). O problema criado

mundo a um fim”

(P e r r in ,

Deus e de suas parábolas devam ser explorados

pelo termo ephthasen resuha de uma interpreta­

com proveho, dificilmente se pode afirmar que a

ção dúbia. Ephthasen faz pleno sentido caso seja

análise e as afirmações de Perrin façam justiça

entendido como uma expressão idiomática grega

aos dados bíblicos ou que tenham conduzido a

bem atestada, mas pouco conhecida e em geral

uma compreensão mais aprofundada ou mais vá­

mal compreendida. Às vezes, emprega-se o tempo

lida do reino de Deus. Não são poucas as vezes

aoristo para ressaltar a certeza e o imediatismo de

em que a opinião de Perrin envolve contradições

uma ação que pertence propriamente ao futuro,

internas, e suas categorias são inaplicáveis aos

descrevendo-a como se já tívesse ocorrido

textos dos Evangelhos (v. tb. a crítica de

g o u n is ,

M u rra y,

4.3

1986, p. 338-44;

A llis o n ,

B e a s le y -

(C a r a ­

1989, p. 12-23). Em comparação com as

declarações envolvendo o termo éngiken, ephtha­

p. 107-12).

A iminência do reino. Com base no ex­ sen deixa imphcito um progresso, mas não exa­

posto acima, deve ter ficado claro que a interpre­

tamente a presença do reino de Deus, o qual, no

tação do termo ephthasen, de Mateus 12.28 (par.

texto de Mateus 12.28/Lucas 11.20, ainda é futuro.

Lc 11.20), termo geralmente aceito como pronun­

Na prátíca, o que Jesus está dizendo é; “Se é pelo

ciado numa frase autêntica de Jesus, tem desem­

Espírito/dedo de Deus (em vez de por Belzebu,

penhado um papel crucial nos debates sobre o

conforme afirmais) que expulso os demônios (i.e., preparando para a vinda do reino de Deus

reino de Deus. Isso ocorre porque nos Sinóticos é a única de­

ao derrotar as forças do mal), então o reino de

claração acerca do reino que aparentemente des­

Deus está na iminência de irromper sobre vós (e

creve o reino como já tendo chegado. Dodd estava

vos suplantar em vossa condição de obstinação

tão seguro desse significado que lhe permitiu de­

e faha de arrependimento)” (v.

E s p ír it o S a n t o ) .

terminar sua interpretação das declarações envol­

Ephthasen debca implícho que a vinda do rei­

vendo 0 termo éngiken. DificUmente a afirmação

no de Deus é tão iminente que podemos consi-

de que o reino de Deus haviã chegado na pessoa

derá-lo praticamente entre nós. Isso significa que

1

068

R eino de D eus i : Evangelhos

a força dessa declaração não é meramente infor­

paratêréseõs (“com sinais [apocalípticos?] que se

mativa, pois então se teria perdido a força de eph ’

pode observar” ; a

hyma (“sobre vós”), mas de advertência, quase

cia”) e os acréscimos “ Ei-lo aqui!” e “Lá está!”

ara

traz “com visível aparên­

de ameaça. A força ameaçadora de eph ’ hymas

Desse modo, a interpretação que não leva em

mostra claramente que o reino de Deus ainda não

conta a intenção do autor, deixando de contrastar

chegou. A relação entre os

de Jesus e o

entos hymõn com meta paratêréseõs, deixa de fa­

reino de Deus é que eles dão testemunho da guer­

zer justiça ao propósito de Lucas. Aqui Jesus está

ra que 0 Filho do homem (i.e., o agente do reino)

tentando desencorajar especulações apocalípticas

travou contra os poderes do mal, para estabelecê-

e cálculos baseados em sinais observáveis (v.

lo. Mas o reino de Deus não consiste naqueles

C A L iP T isM o).

mUagres. Os mUagres de Jesus são apenas os ele­

é a forma de Lucas expressar a natureza e a di­

m ila g r e s

apo-

Por isso, parece que “dentro de vós”

mentos prehminares, não o reino de Deus (con­

nâmica interiores do reino de Deus, em vez de se

tradizendo Dodd). O reino de Deus é o governo

referir a qualquer presença concreta nos fariseus

dinâmico de Deus sobre seu povo. A declaração

ou no meio deles.

aponta para a cruz. 4.3.2

Parece que nos Sinóticos não existe uma úni­

Entos hymõn estin [Lc 17.21). Outra de­ ca frase acerca do reino de Deus que exija cla­

claração frequentemente apresentada como prova

ramente que se interprete no tempo presente.

da presença do reino de Deus é Lucas 17.2L Nes­

0 reino de Deus é apresentado como atemporal

sa passagem, Jesus responde, com as seguintes

(notavelmente nas parábolas), ou como objeto de

palavras, à pergunta dos fariseus acerca da época

proclamação, ou ainda em suas exigências (Mar­

da vinda do reino de Deus: “ Não vem o reino

cos [9/lOx]; Lucas [17/19x]; Mateus [25/31x])

de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo

ou como algo futuro do ponto de vista da elo­

aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está

cução (Marcos [5/6x]; Lucas [19/21x]; Mateus

dentro de vós [entos hymõn estin]"

[19/25x1).

(a r a )

. 0 signifi­

4.4

cado básico de entos é “dentro de” , sendo o opos­

O reino no ensino de Jesus. Desde o início,

to de ektos, “fora de”. Esse significado aparece em

os Sinóticos apresentam Jesus como alguém en­

todo o corpus hterário grego, inclusive os papiros

carregado de apresentar uma única mensagem,

e o grego moderno. Já se tentou interpretar entos

convincente e irresistível, a mensagem de que o

hymõn como “no meio de vós” , “entre vós”, “em

reino de Deus é iminente. A impressão que se tem

vossa esfera” ou “ dentro de vossa compreensão” ,

é de que o fim se aproxima, de que o reino de

implicando que hymõn seja interpretado como re­

Deus prometido há muito tempo está na iminên­

ferência aos fariseus ou aos futuros seguidores de

cia de aparecer e que chegou a hora da decisão.

Jesus, caso em que é atribuído a estin (“está”) um

0 reino de Deus aparece de duas maneiras; cons­

significado futuro (i.e., “o reino de Deus estará

titui 0 âmago do ensino de Jesus e é confirmado

repentinamente entre vós” etc.).

pelos feitos poderosos que ele realizou (v., e.g.,

Um exame dos textos gregos antigos a que se

Mt 4.23; 9.35). Um terceiro componente é que

tem recorrido em busca de apoio para esses signi­

0 reino de Deus está inextricavelmente hgado à

ficados (e.g.,

pessoa de Jesus na condição de Filho do homem

H e r ó d o to ; X e n o fo n te ;

Sím.; papiros)

mostra que regularmente o sentido é “ dentro de”

(v. 4.5 abaixo).

e que o senüdo de “entre” é baseado nuns pou­ cos (e às vezes obscuros) casos

4.4.1

As condições e as exigências do reino. A

Sím.). 0

primeira condição é; “Arrependei-vos e crede no

papiro Oxy 654,16 (que é um paralelo do Evange­

evangelho” (Mc 1.15; Mt 4.17). Uma fé como de

lho de Tomé] contém uma declaração semelhante

criança é o pressuposto para ingressar no reino de

à de Lucas, cujo significado claro e direto é: “ 0

Deus (Mt 18.3; Mc 10.14 e par.). 0 evangelho são

(Á q u ila ;

reino [de Deus] está dentro de vós”. Deve se con­

as boas-novas sobre a soberania de Deus. 0 ato

siderar decisivo o uso de Lucas. 0 senüdo “entre”

escatológico e salvífico de Deus exige um coração

ocorre um bom número de vezes em Lucas-Atos,

não dividido (Mc 12.29,30 e par.). Por isso, o que

mas a expressão sempre é en [tõ] mesõ hymõn,

abre a porta para o reino de Deus não é professar

nunca é entos. 0 entos hymõn é o oposto de meta

0 evangelho da boca para fora, nem mesmo usar

1 069

R eino

de

Deus

i

:

E va n g e lh o s

0 nome de Jesus para realizar milagres, mas fazer

aplicar rigidamente o princípio de Jühcher, pois

a vontade divina (Mt 7.21-23). Nada pode estar

existem casos em que a parábola pode transmitir

no caminho do reino, pois aquele que põe a mão

mais de uma ideia.)

no arado e olha para trás não é apto para o reino

As parábolas do reino têm sido consideradas

de Deus (Lc 9.62). 0 reino pode exigir o sacrifício

0 elemento mais autêntico do ensino de Jesus e

de renunciar ao casamento, à família (Mt 19.12)

aparecem em coletâneas concentradas em Marcos

ou aos bens (Mc 10.21-27 e par.). Em compensa­

4 e Mateus 13. Essas parábolas Uustram aspectos

ção, ele oferece a promessa de recompensar cem

diferentes do reino de Deus: a reação do povo

vezes mais (Mc 10.29-31 e par.). A exigência se

ã mensagem do reino (o semeador, Mc 4.3-9;

torna ainda mais radical quando o candidato a

Mt 13.3-9); a natureza discreta do reino de Deus,

discípulo recebe a oportunidade de escolher entre

em contraste com a expectativa apocalíptica de

deixar que a mão que traz a tentação seja cortada

cataclismo (a semente que cresce em sUêncio,

fora e o olho que traz a tentação seja arrancado

Mc 4.26-29); o crescimento formidável do reino a

ou então mantê-los e ser lançado na geena (Mc

partir de um começo insignificante (a semente de

9.47 e par.; “inferno” , a r a ) . Deve se preferir o rei­

mostarda, Mc 4.30-32; Mt 13.31,32; o fermento,

no a tudo 0 mais. Hido isso ilustra a seriedade

Mt 13.33); o fato de que os envolvidos no reino

com que se deve agir com relação ao reino de

de Deus estão misturados com os outros e que

Deus, não os atributos superiores ou morais que

no final ocorrerá a separação (o joio e o trigo,

qualificam o ser humano para a entrada no rei­

Mt 13.24-30, com sua provável interpretação ale­

no. Ou seja, deve se procurar entrar pela porta

górica, Mt 13.36-43; e, com toda a probabihdade,

estreita (Mt 7.13,14), agir com determinação e se

a rede de arrasto, Mt 13.47-50); o valor inestimá­

apoderar do reino (Mt 11.12).

vel do reino de Deus, pelo qual devemos estar

4.4.2 A ética do ráno. A

é tic a

do reino de Deus

é a ética que Deus espera dos que estão determi­

dispostos a abrir mão de tudo (o tesouro e a pé­ rola, Mt 13.44-46).

nados a fazer sua vontade. As exigências éticas

O uso de parábolas por Jesus suscita a ques­

estão espalhadas por todo o ensino de Jesus, mas

tão de seu propósito. No relato de Mateus, os

aparecem de maneira mais concentrada no

S er­

discípulos indagam acerca do motivo de sua apli­

5— 7; v. tb. Lc 6.17-49). Vemos

cação (Mt 13.10), e a resposta de Jesus tem dado

m ã o DO M o n t e ( M t

aqui uma continuação do ensino ético do

em­

margem a muhas interpretações: “ Porque a vós é

bora as exigências de Jesus ultrapassem o ensino

dado conhecer os mistérios do reino do céu, mas

do

não a eles” (Mt 13.11). A exphcação parece ser

AT,

a t,

pois alcançam o que está por trás da letra,

chegando ao espírito e à intenção desse mesmo

que, tendo rejeitado a mensagem de Jesus quan­

ensino. No fim, Jesus atua motivado por puro

do esta lhes foi exposta, os “de fora” (Mc 4.11)

amor e devoção a Deus e por puro amor ao próxi­

deliberadamente mantiveram os olhos fechados

mo. Dessa maneira, por exemplo, os mandamen­

e o coração endurecido, de modo que agora a

tos “Não matarás” , “ Não aduherarás” , “ Não dirás

mensagem é apresentada na forma de parábolas,

falso testemunho” são apenas aspectos parciais e

que em parte revelam e em parte ocuham a ver­

particulares do maior de todos os mandamentos,

dade. Mas, embora a interpretação — e com ela

a saber, amor absoluto a Deus e ao próximo. 0

o significado exato — lhes seja negado, o povo

amor é o cumprimento de todos os mandamentos

ainda consegue captar satisfatoriamente a ideia

(cf.

geral das parábolas (cf. Mc 12.12 e par.: “... per­

M t

22.40). Ao que parece, a conclusão lógica

ceberam que havia proferido essa parábola contra

é que o amor torna supérfluos os mandamentos. 4.4.3 As parábolas do reino. Jesus proclamou

0 reino de Deus também por meio de

p a r á b o la s .

Após séculos de interpretação alegórica, em que

eles”). Por isso, não é exagero dizer que às vezes as parábolas possuem um tom polêmico, além de serem usadas para ilustrar o reino de Deus.

cada detalhe recebia um significado, A. Jühcher

4.5

O reino de Deus e o Filho do homem. Não

demonstrou que as parábolas possuíam uma

se deve fazer separação entre o reino de Deus e

ideia essencial e que os demais detalhes eram os

o Filho do homem, o qual, no ensino de Jesus,

ornamentos necessários ã história. (Não se deve

assim como em Daniel, é o agente desse reino. 0

1070

R eino de D eus i : Evangelhos

destino do Fillio do homem, portanto, está dire­

interpretar que, de alguma' maneira, a expressão

tamente hgado à vinda do reino de Deus. A ati­

deixe implícita alguma incerteza quanto à vinda

vidade do Filho do homem, especialmente o fato

do reino. “ Em potencial” significa simplesmen­

de ele expulsar demônios, faz parte da proclama­

te que no ministério de Jesus o reino de Deus

ção do reino de Deus. Essas atividades devem ser

não está presente em sentido absoluto ou inde­

consideradas menos como indicação da ocorrên­

pendente, mas apenas na medida em que é re­

cia real do evento decisivo do reino, e mais como

presentado por Jesus. A chegada e a presença do

a guerra prehminar do Filho do homem contra

reino de Deus pelos próprios méritos são descri­

os poderes malignos no seu empenho para tornar

tas como um acontecimento futuro. Dessa manei­

possível a entrada do reino de Deus na história

ra, se formos associar a escatologia ao reino de

humana. Não se deve interpretar essa guerra —

Deus durante o ministério terreno de Jesus, então

os ataques do Filho do homem contra o reino do

é mais correto falar de escatologia em potencial.

mal — como simples atividade exorcista helenís­

Ou seja, uma escatologia que ainda não começou

tica ou judaica. Em vez disso, ela deve ser asso­

a se revelar em acontecimentos finais e catastrófi­

ciada à missão do Filho do homem, que é “ servir

cos, mas em princípio eles estão presentes em Je­

e [...] dar a vida em resgate de muhos” {Mc 10.45

sus, porque ele, na condição de Filho do homem,

e par.). De outra forma, o vínculo entre o reino de

é o agente do reino de Deus. Entretanto, o minis­

Deus e a cruz não seria perceptível.

tério de Jesus e seu ensino apontam para o acon­

Por esse motivo, o que propomos é que a

tecimento terrível e imediato da cruz, em que o

perspectiva da proximidade de uma morte vio­

Filho do homem cumpre a missão que Deus lhe

lenta (v.

confiou com respeito à chegada do reino de Deus.

C r is t o , m o r te d e ), à

qual Jesus atribuía

um significado propiciatório, o levou a mudar o

4.7

A consumação. Mesmo esse acontecimen­

éngiken para ephthasen e, desse modo, caracteri­

to decisivo (o conjunto cruz/ressurreição) não es­

zar a vinda do reino de Deus como algo que, de

gota a totalidade do conteúdo ou da expectativa

um modo sem precedentes, era certo e iminente.

da promessa. Parece ser o acontecimento funda­

Visto dessa perspectiva, o reino de Deus, embora

mental que torna possível a chegada do reino de

estivesse mais próximo que nos casos de éngiken,

Deus no tempo, mas em princípio também torna

ainda não havia chegado, como parece{m) tes­

possível sua plena manifestação e consumação,

tificar, nos Evangelhos Sinóticos, a{s) última(s)

que está no fim da história (v.

vez (es) em que o reino de Deus ocorre antes da

Nesse aspecto, o conceito de reino de Deus está

paixão de Cristo.

em paralelo com o conceito joanino de vida eter­

4.6

Ladd,

p. 307-28).

Escatologia em potencial. À guisa de con­ na e o conceito pauhno de salvação. Assim como

clusão, pode se dizer que, durante o ministério

se diz que aqueles que depositam sua fé na obra

de Jesus, o reino de Deus é sempre considerado

expiatória de Cristo têm a vida eterna, estão em

um acontecimento futuro. É um acontecimento

Cristo ou estão salvos — apesar do fato de a vida

aguardado, desejado e pelo qual se deve orar.

eterna ou a salvação serem conceitos essencial­

Mas nunca é dito exphcitamente que ele chegou,

mente escatológicos — , assim também se pode

nem mesmo por ocasião da

O que

dizer com precisão, a respeito dos que creem, que

Ú ltim a

C e ia .

está presente é o agente do reino de Deus. Mas,

eles entraram no reino de Deus — apesar do fato

pelo fato de o agente do reino de Deus estar pre­

de que o reino de Deus, assim como a vida eterna

sente e ativo por meio de seu ensino e de obras de

e a salvação, só pode ser plenamente experimen­

poder, também se pode dizer que o reino de Deus

tado no final dos tempos.

está presente em potencial. Entretanto, ainda está no futuro o acontecimento decisivo para sua vin­

5. Os Evangelhos

da, isto é, para que seus poderes sejam liberados

Os Evangelhos Sinóticos contêm 76 menções ao

a fim de produzir bênçãos salvíficas.

reino — ou 103, se incluirmos os textos paralelos:

A expressão “em potencial” não torna mais

1) Marcos, Mateus e Lucas (Mc 4.11 par.

explícito o termo “ reino de Deus”, apenas as pa­

Mt 13.11 e Lc 8.10; Mc 4.30 par. Mt 13.31 e

lavras “presente em Jesus”. Por isso, não se deve

Lc 8.10; Mc 4.30 par. Mt 13.31 e Lc 13.18;

1071

Reino de D eus i : Evangelhos

Mc 9.1 par. Mt 16.28 e Lc 9.27; Mc 10.14

Além disso, Mateus possui uma referência

par. Mt 19.14 e Lc 18.16; Mc 10.15 par.

adicional ao “reino de Deus” (Mt 7.21) e uma “ao

Mt 18.3 eL c 18.17; Mc 10.23 par. Mt 19.23

“reino” (Mt 6.13) em parte da tradição textual.

e Lc 18.24; Mc 10.25 par. Mt 19.24 e

As informações contidas nos Evangelhos quanto

Lc 18.25; Mc 14.25 par. Mt 26.29 e

à distribuição das várias expressões aparecem na

Lc 22.18);

tabela 1.

2) Marcos e Mateus (Mc 1.15 par. Mt 4.17); Tabela t

3) Marcos e Lucas (Mc 15.43 par. Lc 23.51); 4) Mateus eLucas (Mt 5.3 par. Lc 6.20; Mt 6.10 par. Lc 11.2; Mt 6.33 par. Lc 12.31; Mt 8.11

Mt

Mc

Lc

Jo

5

14

32

2

: 32







Reino

13



'

7

:

3

Total

50

14

,

39

,

5

Reino de Deus

par. Lc 13.29; Mt 10.7 par. Lc 9.2; Mt 11.11 par. Lc 7.28; Mt 11.12 par. Lc 16.16; Mt

Reino do céu

12.28 par. Lc 11.20; Mt 13.33 par. Lc 13.20); 5) Marcos (4.26; 9.47; 10.24; 12.34); 6) Mateus (3.2; 4.23; 5.10,19 [2x],20; 7.21; 8.12; 9.35; 13.19,24,38,41,43,44,45,47,52;

As declarações joaninas não possuem parale­

16.19; 18.1,4,23; 19.12; 20.1,21; 21.31,43;

los nos Sinóticos. As três expressões, “reino de

22.2; 23.13; 24.14; 25.1,34);

Deus” (RD), “ reino do céu” (RC) e “reino” (R),

7) Lucas (1.33; 4.43; 8.1; 9.11,60,62; 10.11;

estão distribuídas de acordo com a tabela 2.

12.32; 13.28; 14.15; 17.20,21; 18.29; 19.11; 21.31; 22.16,29,30; 23.42).

Tabela 2

Evangelho

Total 50

Mt

Exclusivo

Mt-Mc-Lc

32; 20 RC 2 RD 10 R

8; 5 RC 1 RD 2R

Mt-Mc 1 RC

Mc-Lc

Mt-Lc —



9: 6RC 2RD 1R







Mc

; 14

4 RD

8 RD

1 RD



1 RD

Lc

! 39

21; 17 RD 4R

8RD —





9: 7RD 2R

1 RD —

5.1

Marcos.

M a rco s

introduz o ministério pú­ mais apocalíptica. O posicionamento dos verbos

blico de Jesus com a declaração, em forma de

“arrependei-vos” e “crede” pode favorecer a se­

sumário, de que Jesus proclamou o evangelho

gunda ahernativa; mas, mesmo no caso da espe­

de Deus, dizendo: “ Completou-se o tempo, e o

rança nacional, esperava-se que Israel guardasse

reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e cre­

impecavelmente a Lei pelo menos por um dia (v.

de no evangelho” (Mc 1.15). A localização desse

b. Ta‘an., 64a).

texto na estrutura de Marcos indica que a pro­

Em Marcos 4, o ensino de Jesus por meio de

clamação do reino de Deus estava no âmago da

parábolas diz respeito ao mistério do reino de

pregação de Jesus. A declaração anuncia o cum­

Deus, 0 qual é revelado ao grupo mais íntimo dos

primento do tempo para a chegada do reino de

discípulos, ao passo que para os de fora o reino de

Deus. O reino ainda é futuro, mas já se aproxi­

Deus é apresentado por meio de parábolas obscu­

mou e exige alguns preparativos para que possa

ras e ininteligíveis (Mc 4.11). A apresentação do

ser recebido, a saber, arrependimento e acehação

reino de Deus como uma semente que, lança­

do evangelho pela fé. Não há nesse versículo

da à terra, brota e cresce em silêncio (Mc 4.26)

nenhuma pista de que o “reino” seja uma espe­

deixa imphcito o aspecto de que o reino não foi

rança nacional ou represente uma expectativa

concebido nos moldes nacionalistas, implicando

1072

Reíno de D eus i : Evangelhos

revolta e guerra ostensivas por libertação, nem na

acompanhada de curas. A mesma ênfase ocorre na

forma de cataclismos apocalípticos. A ênfase na

missão dos Doze (Mt 10.5-8).

ideia semelhante expressa em Marcos 4.30 é a do

O reino de Deus aparece na primeira e na úhi­

contraste entre o início insignificante e o cresci­

ma bem-aventuranças (Mt 5.3,10), emoldurando

mento imenso do reino de Deus.

a coletânea de frases (recurso literário conheci­

Numa declaração isolada, em Marcos 9.1, a

do como inclusio ou emolduramento). A ideia é

manifestação do reino de Deus parece iminente,

que elas sejam entendidas tomando-se por base

dentro de uma ou duas gerações. Em Marcos 9.47,

a primeira e a última bem-aventuranças como

no contexto da resistência às tentações, ressalta-

referência para sua interpretação. (Observe-se

se a importância de entrar no reino de Deus a

que autõn estin [“deles é”] ocorre apenas nes­

qualquer custo — mesmo que signifique perder o

sas duas bem-aventuranças. A bem-aventurança

próprio olho — e compara-se o ingresso no reino

de Mateus 5.11 está numa forma diferente [se­

de Deus à entrada na “vida” (Mc 9.43,44].

gunda pessoa]). A humildade e o sofrimento do

De acordo com Marcos 10.14, deve se permitir que as crianças tenham acesso a Jesus, porque

justo são pressupostos necessários para possuir

0 reino.

o reino de Deus pertence a pessoas assim. Ahás,

As três afirmações de Mateus 5.19,20 ensinam

o reino de Deus exige fé como a de uma criança

que até mesmo os menores mandamentos afetam

(Mc 10.15). Nas declarações de Marcos 10.23-25,

o relacionamento com o reino de Deus e que a

0 amor aos bens é um estorvo à entrada no reino

religiosidade dos escribas e fariseus (i.e., dos ju­

de Deus, a qual exige o sacrifício de tudo e impli­

deus) é insuficiente para entrar nele. A centrali-

ca “ser salvo” (Mc 10.26).

dade do reino de Deus também se vê na oração

Ao escriba que reconheceu que o cerne da re­

do pai-nosso, em que a vinda futura do reino

ligião hebraica estava na devoção absoluta a Deus

constitui 0 primeiro pedido (Mt 6.10). Algumas

Jesus afirmou que ele não estava longe do reino

testemunhas textuais concluem a oração do pai-

de Deus (Mc 12.34). Na Última Ceia (Mc 14.25),

nosso com a menção ao reino. Caso essa leitura

o reino de Deus é escatológico. Empregando a hn­

incerta seja original, a implicação é que, como

guagem do imaginário judaico tradicional, Jesus

no caso das Bem-Aventuranças, aqui também a

diz que se banqueteará com os seus. Finalmente,

oração ocorre no contexto do reino de Deus.

em Marcos 15.43, lemos que José de Arimateia

O radicahsmo associado ao reino de Deus é

é alguém que aguarda o reino de Deus, presu­

ressaltado em Mateus 6.33. Essa passagem mos­

mivelmente no sentido da esperança tradicional

tra que os interesses do reino devem estar acima

de Israel.

de todos os outros interesses. 0 Sermão do Monte

5.2

Mateus. Conforme ficou implícito, o qua­ é encerrado com a advertência de que o ingresso

dro do ensino de Jesus sobre o reino de Deus pin­

no reino de Deus não será obtido por meras pala­

tado por

é mais rico em detalhes e em

vras, mas pelo cumprimento da vontade de Deus

matizes que o de Marcos. Além de 9 declarações

na vida diária (Mt 7.21). No que diz respeho ao

M a te u s

em comum com Marcos e de outras 9 da fonte

q,

32 são exclusivas.

ingresso no reino, haverá uma distinção entre os judeus; a fé, em vez da ascendência, é a condi­

Já no início de seu Evangelho, Mateus apresen­

ção estabelecida; a porta estará aberta a muitos

ta a pregação de João Batísta como uma mensagem

gentios, ao passo que muhos dos “cidadãos do

de arrependimento, tendo em vista a proximidade

reino” (i.e., descendentes físicos dos patriarcas)

do reino do céu (Mt 3.2). A fraseologia — que Ma­

serão excluídos (Mt 8.11,12; 21.43; 22.22).

teus provavelmente estilizou a fim de chamar a

Numa discussão a respeito de João Batísta,

atenção para a continuidade — é posta nos lábios

Jesus declara que João foi o maior dentre todos

de Jesus à guisa de sumário de sua proclamação

os que já nasceram, mas mesmo assim é menor

após a prisão de João Batísta (Mt 4.17). A síntese

que o menor no reino do céu (Mt 11.11), sendo o

da natureza da pregação de Jesus é repetida em

reino aqui apresentado como a reahdade escato­

Mateus 4.23 e depois em Mateus 9.35, ao lado

lógica final. 0 papel crucial de João na história

da informação de que a pregação de Jesus era

da salvação é realçado mediante a afirmação de

1 073

Reino de D eus i : E vangelhos

que o tempo de João assinala um novo período

antes que o evangelho do reino tenha sido pro­

na concretização do reino. A partir da época de

clamado por todo o mundo. A parábola das dez

João, o reino de Deus passou a ser proclamado e

virgens (Mt 25.1-13) tem o objetivo de ensinar a

tomado por pessoas que ansiavam entrar nele. A

perseverança e a vigilância. A continuação apro­

vinda de João deu o sinal de que o reino de Deus

priada dessa parábola está no grande julgamen­

se aproximava e que o povo podia se preparar por

to, quando o FUho do homem convidar os fiéis a

meio do arrependimento e do batismo (Mt 11.12).

tomar posse de sua herança, o reino, preparado

Com base em Mateus 21.31, entendemos que

para eles desde a época da fundação do mundo

os mais ávidos por entrar no reino de Deus são

(Mt 25.34). Os justos irão desfrutar o regozijo ab­

justamente os considerados mais distantes dele.

soluto do reino, enquanto os injustos irão para o

Expressa-se a iminência do reino de Deus em ter­

tormento eterno. Esse quadro apresenta aspectos

mos fortes e sem precedentes em Mateus 12.28,

bem conhecidos do pensamento apocalíptico.

em que se diz que os milagres de Jesus, operados

A úhima ocorrência de reino em Mateus está

pelo Espírito de Deus, são interpretados como um

ligada à Última Ceia, quando Jesus, apontando

sinal do reino.

para o banquete escatológico no reino do Pai,

0 capítulo sobre as parábolas do reino con­

promete se abster de vinho até aquele dia. 5.3

tém nada menos que doze menções ao reino de

Lucas. O reino de Deus em Lucas é apre­

Deus (v. 4.4.3 acima). A ideia central de Mateus

sentado de maneira mais substancial que em Mar­

16.19, quando Pedro recebe as chaves do reíno,

cos, porém com menos matizes que em Mateus,

provavelmente faz parte de uma polêmica con­

com nada menos de 21 declarações exclusivas.

tra os despenseiros judeus da graça de Deus, os

A primeira menção ao reino ocorre em Lucas

quais, de acordo com Mateus 23.13, além de não

1.33 e aparece nos lábios do anjo, quando este

conseguirem ingressar no reino de Deus, ainda

entrega a Maria a mensagem do nascimento do

fechavam a porta para os que desejavam entrar.

Messias, que há de se assentar no trono de seu

Essa declaração é geralmente entendida como o

pai Davi, reinando para sempre como o Messias

equivalente cristão à ideia judaica — referente à

definitivo (v.

J esu s, n a s c im e n t o d e ) .

A primeira referência clara ao reino associa­

autoridade no ensino — de amarrar e soltar. Mateus atribui ao Filho do homem (Mt 16.28;

da ao ministério de Jesus ocorre em Lucas 4.43,

20.21) um reino que se imagina ser futuro. A per­

quando se diz que a missão de Jesus consiste na

gunta dos discípulos sobre quem é o maior no rei­

proclamação do reino de Deus. Isso confere ã

no do céu (Mt 18.1) leva Jesus a declarar que uma

afirmação o caráter de declaração sumário e dei­

condição para entrar e ser o maior no reino é ter fé

xa implícito que o ministério anterior de Jesus

e humildade como as de uma criança (Mt 18.3,4).

também se ocupou do reino. O mesmo ocorre em

0 reino pertence a pessoas assim (Mt 19.14).

Lucas 8.1.

O reino de Deus ilustra o perdão divino e exige

No Sermão da Planície, Lucas registra uma

um espírito de perdão por parte dos que desejam

afirmação semelhante ã primeira bem-aven-

entrar nele (Mt 18.23). Pode exigir que a pessoa

turança de Mateus, porém dirigida aos pobres,

se abstenha de casar (Mt 19.12) ou que a pessoa

em vez de aos humildes (Lc 6.20). Isso está em

o ame acima de todos os bens (Mt 19.23,24).

conformidade com o sermão de Jesus em Nazaré

As recompensas do reino são outorgadas de

(Lc 4.18) e os interesses sociológicos de Lucas.

acordo com diferentes princípios. As reahzações

Lucas também registra a declaração de que o

pessoais são de pouquíssima importância. No

menor no reino de Deus é maior que João (Lc

esquema divino de avahação, os últimos podem

7.28). Ao interpretar a parábola do semeador,

se tornar os primeiros, e os primeiros, os últimos

Lucas ainda afirma que os discípulos recebem o conhecimento dos mistérios do reino de Deus,

(Mt 20.1). No Sermão Profético (ou Sermão do monte das Oliveiras), o reino de Deus é apresentado em

enquanto os demais devem se satisfazer com pa­ rábolas não explicadas (Lc 8.10).

termos futuros e apocalípticos. Quem perseverar

Lucas apresenta uma missão dos Doze e

fielmente até o fim será salvo. Mas o fim não virá

uma missão dos Setenta e Dois. Os Doze deviam

1074

Reino de D eus i : Evangelhos

proclamar o reino de Deus (Lc 9.2), ao passo que

pela gentalha — os gentios. Lucas não registra

os Setenta e Dois deviam proclamar que o reino

o incidente do homem que não usava as roupas

de Deus estava próximo (Lc 10.9,11). As curas

apropriadas para o casamento.

iriam acompanhar a pregação de ambos os gru­

Lucas também considera que o ministério de

pos. E Jesus instruiu sobre o reino de Deus as

João deu início a uma nova era, que se distin­

multidões que o seguiam (Lc 9.11).

guiu da época da Lei e dos Profetas. É o tempo da

Lucas vincula a morte do Filho do homem à

proclamação do reino de Deus, em que todo ser

vinda do reino de Deus e entende que esta se dará

humano tem a oportunidade de forçar a entrada

ainda durante a existência de alguns que estavam

nele (Lc 16.16). Isso mostra que Lucas não com­

presentes no momento em que Jesus fez essa de­

partilha da ideia apocalíptica do reino de Deus

claração (Lc 9.27). Isso indica que se pensa no

como algo introduzido repentinamente, após a

reino não apenas como uma reahdade futura,

ocorrência de cataclismos escatológicos. O assun­

mas também que sua vinda é bem iminente. A

to é introduzido pelos fariseus. A resposta é que

urgência do reino torna imperativo que os que o

0 reino não vem de forma aberta à observação

desejam não permitam que coisa alguma se inter­

física (Lc 17.20). Ninguém será capaz de apontar

ponha entre eles e o reino — nem mesmo a morte

para ele, dizendo que está aqui ou ali. O reino de

de parentes (Lc 9.60). Em vez disso, devem se

Deus está “ dentro de vós” (Lc 17.21,

dedicar inteiramente a ele, nunca olhando para

acima). A ideia de reino defendida aqui é de que

trás (Lc 9.62).

Deus está operando discretamente naqueles que

Assim como em Mateus, a vinda do reino se destaca na oração que Jesus ensinou a seus dis­

a ra ;

v. 4.3.2

aceitaram as exigências divinas e fielmente toma­ ram sobre si o jugo da vontade divina.

cípulos (Lc 11.2). Na controvérsia sobre Belzebu,

0 reino de Deus deve ser aceito numa atitude

as obras do poder de Jesus realizadas pelo “dedo”

de confiança infantil (Lc 18.16,17), ao passo que

(Mateus: “Espírito”) de Deus são uma forte indi­

os que deposham sua confiança nas riquezas não

cação da iminência do reino (Lc 11.20).

conseguirão entrar no reino (Lc 18.24,25). Con­

0 interesse no reino de Deus deve afetar todas

tudo, existe a promessa de uma rica recompensa

as atitudes diante da vida. Deve se pôr de lado

para quem abandona tudo pelo reino de Deus,

a preocupação exagerada com as questões do

não apenas na vida vindoura, mas até mesmo

mundo e dar prioridade aos interesses do reino.

neste mundo (Lc 18.29,30).

Então Deus providenciará o suprimento de todas

No seu registro da parábola dos talentos, Lu­

as necessidades legítimas (Lc 12.31). Confiança,

cas mostra que Jesus estava corrigindo a noção

em vez de temor, é o que deve caracterizar os

popular de que o reino de Deus estava na iminên­

seguidores de Jesus, visto que Deus se agradou

cia de irromper de forma apocalíptica (Lc 19.11).

em dar-lhes o reino (Lc 13.18,20). À semelhança

A ideia central é que os ouvintes de Jesus deviam

de Mateus, Lucas deixa claro que ninguém entra­

administrar fielmente o que lhes fora confiado e

rá no reino de Deus apenas por ter conhecido a

aguardar tranquilos sua total concretização, em

Jesus pessoalmente ou por ter ascendência físi­

vez de especular sobre o tempo em que o reino

ca judaica, e sim por aceitar a condição imposta

chegará em sua plenitude. Lucas desencoraja tal

pelo reino — entrar pela porta estreita. Embora

especulação (At 1.6-8). Mesmo na predição sobre

exclua muitos descendentes de Abraão, Isaque

a destruição de Jerusalém, são apresentados ape­

e Jacó, esse estatuto permitirá que muitos gen­

nas sinais genéricos da chegada do reino de Deus

tios se banqueteiem com os patriarcas no reino

com poder (Lc 21.31). É evidente que Lucas pensa

(Lc 13.28,29). Após alguém comentar que são

no reino de Deus como algo que de certa forma

bem-aventurados os que participam do banque­

se aproximou, de modo que do tempo de João

te no reino de Deus (Lc 14.15), Jesus contou a

em diante já é possível se preparar para o reino

parábola da grande ceia, cuja ideia central, ten­

e estar ativamente envolvido nele, ao passo que,

do como alvo a rejeição a Jesus e sua mensa­

em sua plena capacidade, o reino de Deus é algo

gem por parte dos judeus, é que os convidados

futuro, cuja manifestação é prometida para de­

originais não eram dignos e foram substituídos

pois do cumprimento de certas previsões. Desse

1075

R eino de D eus i ; Evangelhos

modo, 0 elemento apocalíptico não está total­

reino de Deus ou nele entrar. Com base nisso,

mente ausente em Lucas.

fica evidente que a ideia não tem nenhuma rela­

0 fato de que é possível apresentar o reino

ção com a esperança nacional judaica. 0 reino de

de Deus como um acontecimento futuro é confir­

Deus é a soberania divina, ã qual o ser humano

mado na Última Ceia, quando Jesus promete se

se submete ao aceitar a mensagem de Jesus pela

abster de comida e bebida até que possa fazê-lo

fé e experimentar um renascimento espiritual. Ao ser interrogado por Pilatos, Jesus, respon­

no reino de Deus (Lc 22.16,20). Ocasionalmente, o texto de Lucas diz que o

dendo à pergunta “Tu és o rei dos judeus?”, expli­

Pai entregou o reino a Jesus (Lc 22.29,30). Mais

ca: “ 0 meu reino não é deste mundo” (Jo 18.36,

uma vez, o contexto é escatológico.

passagem em que a expressão “meu reino” apa­

Finalmente, o ladrão na cruz pede que Jesus

rece três vezes). Não se poderia fazer afirmação

se lembre dele quando entrar no reino (Lc 23.42),

mais clara para mostrar que o reino imaginado

e José de Arimateia era alguém que aguardava o

por Jesus tinha pouquíssima relação com a ex­

reino de Deus (Lc 23.51), embora não seja fácil

pectativa nacional de Israel. Essa acusação, feita

definir se ele tinha a expectativa de um reino ter­

pelos judeus e também causada pelo título colo­

reno ou transcendental.

cado na cruz, indica que no Evangelho de João

5.4

João. O conceho de reino de Deus não a rejeição a Jesus e sua condenação foram moti­

desempenha um papel significativo no Evange­

vadas em grande parte pela decepção dos judeus

lho de JoÃo. Seu lugar é ocupado pelo conceito

diante da recusa de Jesus em aceitar o papel do

tipicamente joanino de “vida eterna” (17 vezes)

Messias nacional e político (v. tb. Jo 6.15,26).

ou simplesmente “vida” (19 vezes). A equivalên­ cia entre vida eterna e reino de Deus é demons­

6. O reino de Deus e a igreja de hoje

trada na permuta ocasional dos dois termos nos

Teria o conceito de reino de Deus alguma relevân­

Sinóticos (Mc 9.43-47 e par.; Mc 10.17-30 e par.;

cia para a proclamação feita pela igreja nos dias

Mt 25.31-46), e as raízes do conceito joanino

de hoje? Aqui somos confrontados com o dilema

se encontram na tradição rabínica (v.

que levou Bultmann a lançar seu controverso pro­

D a lm a n ,

p. 116-7, 156-8). O fato de João evitar o termo

grama de desmitologização.

“reino de Deus” pode ser resuhado do desejo de

Em sua proclamação do reino de Deus, Je­

evitar associação com as esperanças apocalípti­

sus estava solidamente firmado no

cas então existentes. Também pode ser conse­

mo tempo, tocava num assunto que fazia bater

a t.

Ao mes­

quência de estar escrevendo a não judeus, para

mais rápido o coração de cada judeu. No entanto,

quem um conceito tipicamente judaico poderia

Jesus tomou esse conceho e o transformou, fa­

criar problemas de comunicação, especialmente

zendo com que deixasse de ser uma esperança

porque o termo era de uso bem raro na igreja,

nacionalista cristalizada e passasse a ser uma or­

pois a ênfase recaía sobre a pessoa e a obra de

dem espiritual e universal, em que a humanidade

Cristo (cristologia e soteriologia), bem como so­

encontrasse o cumprimento dos desejos úhimos

bre a igreja (eclesiologia).

que acalenta: retidão, justiça, paz, fehcidade, h-

0 conceito de “reino de Deus” aparece duas

berdade do pecado e da culpa e um relaciona­

vezes na história de Nicodemos, e a expressão

mento restaurado com Deus — uma nova ordem

“ meu reino” ocorre três vezes na resposta de Jesus

em que Deus é o rei. Como em qualquer época, o

a Pilatos. No diálogo com Nicodemos, não há ne­

problema humano básico de hoje é o pecado e o

nhuma indicação de que o reino de Deus seja o

fato de 0 ser humano estar ahenado de Deus, por

destaque principal do ensino de Jesus ou mesmo

isso a mensagem do reino de Deus é de grande

um tema da conversa. No entanto, com a confis­

relevância.

são de Natanael, “Rabi, [...] tu és o rei de Israel”

0 reino de Deus não precisa ser desmholo-

(Jo 1.49), o lehor não está totalmente desprepa­

gizado. Mas vale ressaltar que a igreja terrena,

rado para a ideia.

dirigindo-se basicamente a convertidos gentios, evhou um termo carregado de conotações ju­

Em João 3.3,5, Jesus diz a Nicodemos que a

daicas nacionais ou apocalípticas que pudessem

regeneração espiritual é a condição para ver o

076

1i

Reino de D eus ii : Paulo

gerar confusão, buscando, em vez disso, equiva­

the historical Jesus. New York: Doubleday, 1994.

lentes dinâmicos, como “ vida eterna” ou “ sal­

V.

vação” , por serem mais apropriados, embora o

cording to the first gospel,

termo “reino de Deus” nâo tenha desaparecido

1981. ■

totalmente do vocabulário da igreja.

teaching o f Jesus.

igreja

A

continuou a proclamar o legado de seu Mestre,

2. ■ P a m m e n t , M. The kingdom of heaven ac­ 27, p. 211-32,

n ts, v.

N. The kingdom o f God in the

P e r r in ,

Philadelphia: Westminster,

1963. • ______ . Jesus and the language o f the

porém de maneiras dinâmicas. Cada era tem de

kingdom. Philadelphia: Fortress, 1976. •

encontrar formas próprias e adequadas de expres­

Bos, H. The coming of the kingdom. Philadelphia:

sar a mensagem sempre relevante de Jesus acerca

Presbyterian and Reformed, 1962. •

do reino de Deus.

L. et al. BaaiAeúç

forma pode mudar, mas a

A

essência permanece. Ver também

H

e a l in g ;

Serm on

emon,

D

J u b il e e ;

on the

M

e v il ,

L

tdnt.

[S .l.:

1. p. 564-93. ■ S c h n a c k e n b u r g ,

a p o c a lip t is m o ; e s c a t o l o g i a ; E s p ír it o

S a n t o ; é t i c a ; i g r e j a ; p a r á b o la . d jg : D

k tA .

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o spe l

[G

R e v o l u t io n a r y

ood

M

N

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ovem ents;

S c h m id t,

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C a r a g o u n is , C . C .

B. Mohr, 1986.

R

e in o d e

D

eus ii:

P

aulo

38.) ■

A totalidade da teologia de Paulo é condicionada

______ . Kingdom of God, Son of man and Jesus’

por uma perspectiva segundo a qual as promessas

C.

T]/nB,

(w unt,

v. 40 , p. 3-23, 1989; v.

escatológicas de Deus tiveram seu cumprimento

The words of

iniciado com a ressurreição de Jesus. Um aspecto

E d in b u rg h : T & T C lark , 1902. • D odd , C.

importante dessa cosmovisão escatológica é o en­

se lf-u n d e rsta n d in g .

4 0 .2 , p. 223-38, 1989. • D a l m a n , G.

Jesus. H.

The parables o f the kingdom.

Ed. rev. L o n d o n :

sino sobre o reino de Deus, que se sobrepõe em

The mission and

certo grau ao ensino sobre o reino de Cristo nos

N a p e r v iU e : A lle n s o n , 1954.

materiais paulinos. Essa sobreposição também

Das Problem der Parusie-

proporciona um terreno fértil para demonstrar

C o llin s , 1961. • F u lle r , R . H .

achievement o f Jesus.

( s b t , 12 .) • C rasser, E.

verzögemng in den synoptischen Evangelien und

que a cristologia e a escatologia se entrelaçam no

in der Apostelgeschichte.

pensamento de Paulo.

1957. ( b z n w , 2 2 .)

■ H iers,

B erlin : A . T ö p e lm a n , R. H .

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Jeremias, J.

The historical Je­



H u n ter, A . M .

( h u t .)



The

The parables o f Jesus.

Paulus

5. Transferência para o reino de Cristo

4. e d . T ü b in g e n : J. C. B. M o h r, 1972.

Kümmel, W . G.

Promise and fulfillment.

The presence o f the future.

E erd m a n s, 1974.

■ L undström ,

God in the teaching o f Jesus. B o y d , 1963.

miracles.

de Cristo? 4. A entrega do reino a Deus Pai

N ew

2.

ed . N a p e r v U le : A lle n s o n , 1961. ( s b t , 2 3 .) • Ladd, G. E.

3. 0 reino de Deus é o mesmo que o reino

Ed. rev. L o n d o n : scm,

Y ork : C h a rles S c rib n e r’ s, 1963. • Jüngel, E.

und Jesus.

1. Evidência estatística 2. 0 reino é presente ou futuro?

G a in es viU e: U n iv e r ­

■ M eier,

I n : ______

J. P.

G.

1. Evidência estatística Embora a ideia do reino de Deus ou do reino

G ran d R a p id s:

de Cristo seja fundamental para a totalidade do

The kingdom of

pensamento de Paulo, é um tanto surpreendente

Lon d on : O h ver and

constatar a relativa raridade de referências explíci­

Mentor, message, and

tas ao reino nas cartas paulinas. 0 termo basileia

. A marginal Jew:

re th in k in g

(“ reinado” ; “reino”) ocorre apenas quinze vezes

1077

Reino de D eus i i : Paulo

(Rm 14.17; ICo 4.20; 6.9,10; 15.24,50; G1 5.21;

futuro, pelo qual Deus confirmará os que sofre­

Ef 5.5; Cl 1.12,13; 4.11; ITs 2.12; 2Ts 1.5;

ram por causa de sua fé.

2Tm 4.1,18), ao passo que o verbo basileuõ (“rei­

Mais uma vez em sintonia com a dimensão

nar”) ocorre nove vezes (Rm 5.14,17 [2x],21 [2x];

futura do reino de Deus, Paulo em vários mo­

6.12; ICo 4.8 [2x]; 15.25). 0 verbo symbasileuõ

mentos se refere ao reino como algo que os fiéis

(“reinar com”) ocorre em ITimóteo 2.12. A ex­

herdarão, se tiverem um caráter condizente

pressão “ reino de Deus” ou seu equivalente

(ICo 6.9,10; 15.50; G1 5.21). A ideia de uma he­

aparece apenas oito vezes nas cartas paulinas

rança futura também se vê em Colossenses 3.24

(Rm 14.17; ICo 4.20; 6.9; 15.50; G1 5.21; Cl 4.11;

(cf. Cl 1.12). Uma declaração semelhante sobre a

ITs 2.12 [“seu reino”]; 2Ts 1.5). Pode se enten­

herança ocorre em Efésios 5.5, com uma hgeira

der também legitimamente a referência à “pátria

aheração: aqui o reino pertence a Deus e a Cristo.

[...] no céu” (to politenma en oumnois], em Fili­

Em suma, o reino de Deus é algo que alcança

penses 3.20, como uma expressão paralela. Outro

ambas as dimensões do tempo, sendo presente e

fato que chama a atenção é que, no corpus pau­

futuro (como afirma M a r t i n , p. 109-25). Não é pos­

lino, 0 reino de Cristo é mencionado explicita­

sível limitar a termos temporais o ensino de Paulo

mente apenas em Colossenses 1.13 e Efésios 5.5

sobre o reino de Deus/de Cristo. É verdade que ele

— algo notável, se levarmos em conta o firme

tende a considerar a revelação derradeira do reino

compromisso de Paulo com a messianidade de

como um acontecimento futuro, mas um grande

Jesus Cristo e a frequente associação do

e da

número de informações apoiam a afirmação de

hteratura pseudepigráfica entre o reino e o Mes­

que esse reino escatológico também está atuan­

at

p. 29-91).

do agora na vida da comunidade cristã. Ahás, G.

Várias questões fundamentais vêm à mente

Johnson, em seu comentário sobre ICorintios 4.20,

sias de Deus (v. detalhes em

K r e itz e r ,

quando se considera o que as cartas de Paulo

sugere que, "em úhima anáhse, a denominada

ensinam acerca do reino.

dimensão ‘escatológica’ do reino foi relegada a um

2. O reino é presente ou futuro?

realidade presente tem sido traduzida pelo grande

papel de pouca importância, e, em vez disso, sua Há muito tempo os estudiosos do

nt

anahsam a

conceito de vida espiritual”

(J o h n s o n ,

p. 151). Des­

natureza temporal do reino de Deus conforme

se modo, o reino de Deus/de Cristo pode até mes­

encontrada nas palavras de Jesus. Eles chegaram

mo ser denominado “vida no Espírho” ou “vida

a um consenso, a saber, que a mensagem bási­

dentro do Corpo de Cristo” , temas muito mais

ca de Jesus era a de um reino inaugurado, que

proeminentes nas cartas pauhnas.

teve início em sua vida e ministério, mas estava aguardando consumação no futuro. Muitas ques­

3. O reino de Deus é o mesmo que o reino

tões sobre a natureza temporal do reino, confor­

de Cristo?

me encontrado nos materiais dos Evangelhos,

Alguns estudiosos têm proposto que Paulo sus­

também aparecem nas cartas pauhnas, apesar da

tenta uma distinção entre o reino de Deus e o

escassez dç referências ao reino como tal. Às ve­

reino de Cristo, geralmente apontando ICorintios

zes, Paulo se expressa como se o reino de Deus

15.20-28 como texto-chave e postulando que a

fosse uma realidade presente capaz de ser experi­

passagem sugere um reino messiânico temporário

mentada pelos crentes em Cristo. Dois textos são

sobre a terra, que, na plenitude dos tempos, cede­

notavelmente eloquentes a respeho disso: Roma­

rá lugar ao reino de Deus. Tal proposta encontra paralelo numa distinção semelhante entre os dois

nos 14.17 e ICorintios 4.20. Em outras ocasiões, Paulo apresenta o reino

reinos vista em apocalipses judaicos e cristãos

de Deus como uma esperança futura, algo que

do período do

ainda tem de ser aguardado pelos crentes em

nas [lEn, 93.1-10; 91.12-17); 4Esdras 7.26-30;

n t,

a saber: Apocahpse das Sema­

Cristo. Um bom exemplo disso é ITessalonicen­

12.31-34; 2Baruque 29.3— 30.1; 40.1-4; Apocahp­

ses 2.12, versículo que se encontra entre duas de­

se 20.4-6 (v. análise em

K r e itz e r ).

clarações acerca da parusia (ITs 1.10; 2.19). Em

A interpretação literal de textos como esses

2Tessalonicenses 1.5, o reino de Deus é um ato

produziu ao longo da história da igreja um ramo

1078

Reino de D eus ii : Paulo

da escatologia: o quiliasmo ou pré-milenismo. Al­

realista é acehar a ideia de que a flexibilidade

guns intérpretes, como A. Schweitzer, recorrem

de expressão é inerente à hteratura escatológica,

a Paulo por julgá-lo um defensor dessa doutrina,

inclusive nas cartas de Paulo. A harmonização de

assinalando a necessidade do corolário da doutri­

detalhes escatológicos, mesmo com a intenção

na das duas ressurreições — uma para os santos

de resgatar Paulo do que na percepção de muitos

que participam do reino messiânico temporário

é uma inconsistência danosa, não é a solução.

e, antes da era vindoura, uma ressurreição ge­

Talvez consigamos até nos livrar de todas as ten­

ral, para juízo. Na prática, isso significa que o

sões e falhas dentro da teologia pauhna, mas nes­

reino de Cristo começa com a parusia e conclui

se processo iremos nos distanciar do pensamento

com a chegada do reino de Deus (a era vindou­

do apóstolo.

ra] e que o reino do Messias é o intervalo entre

Como, então, o reino de Deus cede lugar ao

as duas ressurreições associadas a esses dois

reino de Cristo como uma expressão da esperança

acontecimentos.

escatológica? Se a base da escatologia de Paulo

Entretanto, não se percebe nas cartas de Paulo

for a proclamação veterotestamentária do reino

uma nítida distinção entre o reino de Deus e o

de Deus, como ele passa a ser designado rei­

reino de Cristo, tampouco encontramos em seus

no de Cristo? É quase certo que essa transição se

escritos a doutrina das duas ressurreições, em­

dá como resuhado de uma associação íntima en­

bora, no registro de Lucas, Paulo mencione uma

tre Jesus de Nazaré e o reino de Deus que Paulo

ressurreição “tanto dos justos como dos injustos”

veio proclamar. Vemos exemplos desse tipo de

(At 24.15). Por isso, a maioria dos estudiosos

mudança de ênfase cristológica justamente na

questiona que Paulo possa ser legitimamente

redação dos Evangelhos, e é provável que nesse

considerado um quUiasta quanto ao seu ponto de

aspecto os materiais pauhnos façam o mesmo,

vista escatológico, se é que ele pode ser chama­

como B. Klappert comenta: “ Desse modo, en-

do assim. Eles observam que a ideia pauhna da

tende-se que a expressão ‘basileia de Cristo’ e a

consumação do reino está simplesmente associa­

equiparação de ‘reino de Deus’ com Jesus Cristo

da à vinda futura de Jesus Cristo, sem nenhuma

são o resuhado da mudança de uma cristologia

dicotomia forçada implícita entre os dois reinos.

implícita para uma explícita”

(K la p p e r t,

p. 387).

Ou seja, negam que ICorintios 15.20-28 afirme a existência de um reino messiânico temporário,

4. A entrega do reino a Deus Pai

e assim a passagem é harmonizada com outros

No corpus pauhno, ICorintios 15.20-28 é uma

textos (como ICo 15.51-56 e ITs 4.13-18) que

das passagens mais difíceis de interpretar, repleta

discorrem mais detalhadamente sobre a parusia

de imagens e hnguajar apocalípticos (a interpre­

de Cristo (G. Vos é um defensor clássico dessa

tação da escatologia apocalíptica pauhna, por E.

abordagem).

K ãsem an n ,

Em geral, para os que seguem essa interpreta­

apoia-se fortemente nesses versículos).

Nessa passagem, existe uma curiosa referência

ção, o governo de Cristo sobre o “ reino” , que de

ao “reino” : “Então virá o flm, quando ele entre­

acordo com ICorintios 15.24 será entregue por

gar 0 reino a Deus, o Pai, quando houver destruí­

ele ao Pai, começou por ocasião da cruz. Essa

do todo domínio, toda autoridade e todo poder”

interpretação tem a vantagem de apresentar um

(ICo 15.24). Um dos aspectos mais frustrantes

Paulo coerente e uniforme em sua esquemati­

dessa perícope, bastante condensada, é a ambigui­

zação do futuro, evitando apresentá-lo como

dade do sujeito dos verbos. Por exemplo, quem é

alguém incorrigivelmente confuso ou inconsis­

o sujeito de hypetaxen (“ sujeitou”) em ICorintios

tente em seu ensino. Entretanto, a passagem de

15.27: Deus ou Cristo? Se pressupormos que Deus

ICorintios 15.20-28 é um tanto obscura, e é fácil

é o sujeito, então algumas dificuldades de entendi­

perceber que ela admite também a interpretação

mento surgirão no restante da passagem. Nunca se

quüiasta. A questão é se precisamos que Paulo

tem suficiente certeza sobre quem está sujeitando

seja totalmente consistente ao demonstrar como

o que e a quem. Não resta dúvida de que a confu­

0 reino de Deus se relaciona com o reino de Cris­

são de referentes entre Deus e Cristo se deve em

to e com a parusia. Uma abordagem bem mais

parte ao emprego cristologicamente motivado de

1 079

Reino de D eus iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse

Raised immortal: the relation between resur­

Salmos 110.1 e 8.6b em ICorintios 15.25 e 15.27,

M . J.

respectivamente (v. análise de D e

p. 114-20).

rection and immortality in New Testament teach­

Um item relacionado e de importância exegé­

ing. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. ■ J o h n s o n , G.

B oer,

tica significatíva é a ligação entre “o reino” e a

“ Kingdom of God” sayings in Paul’s epistles. In:

“ ordem criada” (tapanta, “todas as coisas”) nes­

R ic h a r d s o n ,

sa passagem. M. J. Harris associa a ressurreição

Paul: studies in honor of Francis Wright Beare. On­

dos mortos e a vinda do reino à restauração da

tario: Wilfred Laurier University, 1984. p. 143-56.

ordem criada (v.

c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ).

Ele diz que

P. &

H u rd ,

J. C., orgs. From Jesus to

E. Primitive Christian apocalyptic. In:

■ K asem ann,

o reino “incorpora o universo racional e o irracio­

New Testament questions o f today. Philadelphia:

nal”

Fortress, 1969. p. 108-37, esp. p. 133-7. ■ K l a p p e r t ,

(H a r r is ,

p. 18). Fica claro que existe uma di­

mensão cosmológica importante nessa passagem,

B. King, kingdom,

além da dimensão mais tradicional, que no passa­

372-90. ■ K r e i t z e r , L.

do foi o foco da atenção dos estudiosos.

eschatology. Sheffield: Academic, 1987. p.131-64.

5. Transferência para o reino de Cristo

congregation. Grand Rapids: Eerdmans, 1984. ■

Em Colossenses 1.13,14, encontramos uma refe­

S c h w e itz e r ,

rência incomum ao reino de Cristo: “ Ele [Deus]

London: A & C Black, 1931. ■ Vos, G. The Pau­

nos tirou do domínio das trevas e nos transportou

line eschatology. Princeton: Princeton University

para o reino do seu Filho amado, em quem temos

Press, 1930. p. 226-60.

O sN T s u p ,

19.) ■

n id n t t . J.

M a r tin ,

[S.l.: s.n., s.d.]. v. 2. p.

Jesus and God in Paul’s R. P. The Spirit and the

A. The mysticism o f Paul the Apostle.

L.

a redenção, isto é, o perdão dos pecados”. É notá­

J. K r e it z e r

vel nessa passagem que a transferência é um ato já reahzado, algo concretizado na vida do crente.

R

Esse afastamento da definição mais característica

C artas G

do reino de Deus/de Cristo como realidade futura

A maior parte dos escritos aqui analisados mostra

e in o d e

D

eus iii:

e r a is ,

A

A

tos,

H

ebreus,

p o c a l ip s e

ainda aguardada tem levado alguns intérpretes a

que 0 reino de Deus continuou a ser um tema vi­

questionar a autoria pauhna da carta (v. a análise

tal na pregação da igreja. Esses escritos mantêm

nos comentários de E.

várias características do conceito de Jesus acerca

Lohse,

E.

S c h w e iz e r

e P. T.

do reino de Deus, embora às vezes as expressem

O ’ B r i e n ; v . C o lo s s e n s e s , C a r t a a o s ) .

Concluindo: embora a expressão “ reino de

de uma nova maneira, fazendo adaptação às no­

Deus/de Cristo” não seja disseminada nas cartas

vas situações que experimentavam, tanto na his­

pauhnas, a ideia é um componente fundamental

tória da salvação quanto na obra missionária.

da perspectiva escatológica de Paulo e está por

1. Atos

trás da totahdade de seu ensino. A mesma tensão

2. Hebreus

entre as dimensões presente e futura de uma teo­

3. Cartas Gerais

logia do reino, percebida no ensino de Jesus nos

4. Apocahpse

Evangelhos Sinóticos, também é encontrada nos materiais pauhnos. Talvez ainda mais significati­

1. Atos

vo nas cartas pauhnas seja o fato de que a ideia

1.10 reino de Deus como o tema central de Atos.

do reino de Deus ofereça um importante veículo

Na introdução ao hvro de Atos, o segundo volu­

para a cristologia pauhna em desenvolvimento,

me de sua obra em dois volumes, Lucas apresenta

em que “reino de Cristo” começa a competir com

um sumário do ensino que o Jesus ressuscitado

“reino de Deus” , tornando-se o ponto principal

ministrara aos seus apóstolos durante os quaren­

do interesse teológico.

ta dias antes da ascensão, dizendo que essa dou­ c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ;

trina dizia respeito “ao reino de Deus” (At 1.3).

c r i s t o l o g i a ; e s c a t o l o g i a ; J esu s e P a u l o ; r e s s u r r e iç ã o .

Lucas conclui sua obra mencionando que Paulo,

Ver também a p o c a lip t is m o ;

D PC :

na caphal do Império Romano, pregou “ o reino

e x a l t a ç ã o e e n t r o n iz a ç ã o .

de Deus” e “coisas concernentes ao Senhor Jesus M. C. The defeat o f death.

Cristo” (At 28.31; v. tb. At 28.23). Com esse in­

Sheffield: Academic, 1988. (jswreup, 22.) ■ H a r r i s ,

clusio, que hga o início da mensagem do hvro à

B iB L io G R A n A . D e B o e r ,

Ii

080

R eino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

sua conclusão, Lucas parece estar indicando que

com paciência os sofrimentos para “entrar no rei­

o tema central do segundo volume é o reino de

no de Deus” (At 14.22).

Deus, continuando o tema do primeiro volume, o

1.3

O Senhor Jesus Cristo, o atual Regente

Evangelho de Lucas. Isso se confirma nos sumá­

e Salvador. No entanto, Lucas está mais interes­

rios das mensagens sobre o reino de Deus prega­

sado no reino de Deus no presente. O governo

das por Fihpe e Paulo na seção principal de Atos

de Deus ocorre no presente por intermédio do

(At 8.12; 19.8; 20.25; v. tb. At 14.22; 17.7).

Cristo exahado e do Espírito Santo. Em sua exis­

Contudo, a combinação, em Lucas, do “reino

tência terrena, Jesus foi o agente por meio de

de Deus” com o “nome de Jesus Cristo” (At 8.12),

quem Deus operou milagres, maravilhas e sinais

como sendo o evangelho de Filipe, e do “reino de

ou mostrou seu reinado de salvação (At 2.22,23).

Deus” com o “ Senhor Jesus Cristo” (At 28.23,31),

Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o

como sendo o evangelho de Paulo, sugere uma

exaltou à sua destra como seu vice-rei, cumprin­

mudança: no Evangelho de Lucas, o evangelho de

do assim a promessa de Salmos 110.1 (At 2.32-35;

Jesus dizia respeito apenas ao “reino de Deus” ,

5.31). Desse modo, “esse mesmo Jesus [...] Deus

mas em Atos o evangelho dos apóstolos coloca

0 fez Senhor e Cristo” (At 2.35). Em Atos, o título

lado a lado o Senhor Jesus Cristo com o reino

“ Senhor” (kyrios) é aphcado a Jesus e também a

de Deus. Nesses sumários da pregação apostóhca

Deus, com a imphcação de que agora Jesus, em

encontrados em Atos, o objeto do verbo euange-

nome de Deus, exerce o senhorio divino. Esse

lizomai não é somente o reino de Deus (At 8.12),

é o motivo pelo qual a pregação apostóhca do

mas também o Senhor Jesus Cristo (At 5.42; 8.35;

reino de Deus regularmente envolve a pregação

10.36; 11.20; 17.18; cf. At 15.35). De modo se­

da realeza ou do senhorio messiânicos de Jesus

melhante, empregando o verbo

ou pelo qual ocasionalmente aquela pregação é

kêryssõ

para re­

sumir a pregação apostólica, Lucas especifica que Jesus, o

C r is to

ou

o

F ilh o

de

D eu s

subsdtuída por esta.

(At 8.5;

No

é Javé, na condição de kyrios, quem

a t,

9.20; 19.13; v. tb. At 17.3,7), bem como o rei­

perdoa os pecados de seu povo e o salva, mas

no de Deus (At 20.25; 28.31), são o objeto do

agora é Jesus, o kyrios, quem exerce essa prer­

verbo. Esses fenômenos, especialmente aqueles

rogativa divina. No

encontrados nos vários sumários do evangelho

de Javé, o Senhor, era salvo (e.g., J1 2.32, cit. em

de Fihpe (At 8.5,12,35), sugerem que a prega­

At 2.21), mas agora esse Senhor é ninguém me­

ção do reino de Deus era, na prática, a pregação

nos que Jesus Cristo. Por isso, é mediante o nome

a t,

quem invocava o nome

de Jesus Cristo. Como é sabido, o evangelho de

de “Jesus Cristo, Senhor de todos” (At 10.36,

Jesus acerca do reino de Deus nos Evangelhos

n v i),

Sinóticos é, em geral, substituído pelo evangelho

que se obtém o perdão dos pecados, a salvação

apostóhco de Cristo nos livros restantes do

(At 10.43;

n t,

e

o

“juiz dos vivos e dos mortos” (At 10.42),

V.

tb. At 3.15; 4.12,30; 15.18; 22.16).

0 Jesus pregador naqueles se torna o Cristo pre­

0 exercício da regência ou senhorio divinos

gado nestes. Em Atos, Lucas também reflete essa

pelo Senhor Jesus Cristo exaltado manifesta-se no

mudança geral e, à sua maneira, mostra como e

ato de ele dirigir a missão da igreja. Na condição

por que isso se deu.

de

1.2

F ilh o

do

hom em

ou de Senhor que está à des­

O reino futuro de Deus. A expectativa é tra de Deus, ele recebe o espírito de seu mártir

que a vinda final do reino de Deus seja um acon­

Estêvão (At 7.56,59). Ele barra e detém Saulo/

tecimento futuro, mas não devemos estar ansio­

Paulo perto de Damasco e o chama para ser seu

sos para “ saber os tempos ou as épocas que o

apóstolo aos gentios (At 9.1-19; 22.3-16; 26.9-18),

Pai reservou por sua autoridade” (At 1.5,7). Serão

garante a Paulo que lhe dará sua proteção (At 18.9),

“tempos de refrigério” ou o “tempo da restaura­

redireciona a sua missão (At 22.17-21) e o conduz

ção de todas as coisas” , e ocorrerá por ocasião

a Roma (At 23.11). O Senhor Jesus Cristo abre

da segunda vinda de Cristo (v.

0 coração de Lídia para que ela compreenda e

p a r u s ia ),

quando

todo o Israel se arrepender (At 3.19-21). Desse

se aproprie do evangelho de Paulo (At 15.14,15),

modo, o reino de Deus representa a consumação

torna bem-sucedida a missão cristã em Antioquia

da salvação, e devemos manter a fé e suportar

e leva um grande número de pessoas a se voltar

1081

Reino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

para ele próprio mediante a fé (At 11.21). Em seu

Paulo conclui que “Deus [o] havia chamado

exercício de senhorio divino, Jesus Cristo empre­

para [...] anunciar o evangelho” aos macedônios

ga a agência e o poder do Espírito Santo e o mi­

(At 16.10). Dessa maneira. Atos 16.6-10 deixa im-

nistério de seus apóstolos.

plícha uma estrutura trinhária de senhorio divi­

1.4

Pela agência e poder do Espírito. A exal­ no, 0 qual é exercido no que diz respeho ã missão

tação divina de Jesus à destra de Deus envolveu

da igreja.

não apenas a autoridade do senhorio divino,

Durante sua existência terrena, Jesus deu

concedida por Deus, mas também a concessão

forma concreta ao governo salvífico de Deus me­

do Espírito Santo e a condição de despenseiro

diante seu ministério de exorcismo e curas, o qual

do Espírito divino: "Exahado ã direita de Deus

ele operou por meio do poder do Espírito Santo

e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito

(Lc 11.20 par. Mt 12.28; At 2.22; 10.38). Agora,

Santo, derramou o que agora vedes e ouvis [i.e.,

na condição de Senhor exaltado, ele derramou o

0 Espírito]” (At 2.33). Desse modo, se Deus Pai,

Espírito Santo para sua igreja (At 2.33). Os que

por meio da exaltação de Jesus, o tornou seu re­

creem em Jesus e são batizados em seu nome

presentante, para em seu nome exercer a regência

recebem o Espírito (At 2.38; 9.17,18; 10.43,44;

ou o senhorio divinos, no Pentecostes o Senhor

11.16,17; 19.5,6; v.

Jesus Cristo derramou o Espírito Santo para que

bênçãos do poder escatológico de Deus na esfera

este fosse seu agente e, em seu nome, exercesse

do senhorio de Jesus Cristo.

b a tis m o )

e, assim, desfrutam as

sua regência ou senhorio. Enquanto o Senhor Je­

Ademais, o ato em que o Senhor Jesus exaha­

sus Cristo permanece nos céus ã destra de Deus

do concedeu o Espírito Santo aos seus apóstolos

até sua segunda vinda, para a “restauração de to­

teve 0 propósho de capachá-los (At 1.8) a pregar

das as coisas” ou a consumação do reino de Deus

o evangelho de modo eficaz e a realizar muhos

(At 3.19-21), o Espírito Santo exerce o senhorio

exorcismos e milagres de cura como demonstra­

de Jesus no lugar deste. Dessa maneira, existe

ções da salvação escatológica. Com frequência,

uma estrutura trinitária na atual manifestação do

os textos dizem que esses “ feitos extraordinários

reino de Deus: Deus Pai reina por intermédio de

e sinais” foram realizados pelos apóstolos “em

seu Filho Jesus Cristo, que por sua vez reina por

nome de Jesus Cristo” (At 3.6,16; 4.30; 8.6-12;

intermédio do Espírito Santo. Por esse motivo, a

16.16-18; cf. At 19.13-20) ou são atribuídos dire­

direção da igreja e os poderosos atos redentores

tamente a Deus (At 15.12; 19.11,12) ou ao Senhor

atribuídos ao Senhor Jesus Cristo também são

(Jesus?) (At 14.3). Entretanto, não apenas com

atribuídos ao Espírito.

base em Atos 1.8 e 2.33, mas também em Atos

Assim, a orientação que o Senhor Jesus Cristo

4.29-31, 6.8 e 8.5-19, a imphcação clara é que

dá ã igreja é mediante a agência e o poder do

os apóstolos realizaram os milagres de cura por

Espírito. Antes de sua ascensão, Jesus deu instru­

meio do poder do Espírito Santo concedido pelo

ções aos seus apóstolos por intermédio do Espíri­

Senhor Jesus Cristo. Desse modo, o Espírito San­

to Santo (At 1.2). Mas depois de sua ascensão os

to é o agente que dá forma concreta ao reinado

apóstolos receberam o Espírito Santo, concedido

salvífico do Senhor Jesus Cristo, o qual na reali­

pelo Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo os ca­

dade é 0 reinado salvífico de Deus. Temos de res­

pacitou e os orientou na missão (At 1.5,8; 2.33).

ponder afirmativamente à pergunta retórica feita

Embora haja referências ao Senhor Jesus Cristo

por J. D. G. Dunn: “ Se a presença do reino em Je­

assumindo a capacitação e direção da missão dos

sus foi determinada pela vinda do Espírito sobre

apóstolos, há referências paralelas ao Espírito

Jesus no Jordão, não podemos então, ahás, não

exercendo as mesmas atividades (At 8.29; 10.19;

devemos dizer que o reino se tornou presente nos

11.12,28; 13.2,4; 15.28; 16.6,7; 19.21; 20.22,23;

discípulos pela vinda do Espírito no Pentecostes,

21.4,11). Os dois tipos de declaração se referem

ocorrida da mesma maneira?” 1.5

ã mesma reahdade, como sugere Atos 16.6,7: o Espírito Santo que orientou Paulo a deixar a

(D u n n ,

p. 40).

O Senhor Jesus e seus apóstolos. Junto

com 0 Espírito Santo, a igreja, especialmente os

Ásia rumo ã Macedônia é identificado como “o

doze apóstolos, também é o agente que faz com

Espírito de Jesus”. Com base nessa experiência,

que 0 reino de Deus ou de Cristo se concretize no

1 082

Reino de Deus i ii : A to s , Hebreus, C a rta s G e ra is, Apocaupse

tempo presente; ou, mais precisamente, a igreja

ao Senhor e "todos os gentios, sobre os quais se

conduzida e capacitada pelo Espírito Santo cum­

invoca o [...] nome [de Cristo]” formam o povo

pre esse papel. Em seu discurso de despedida, o

escatológico de Deus, o reino restaurado de Davi

Jesus terreno prometeu, por meio de uma aliança

ou Israel, sobre o qual Jesus, o Messias davídico,

{d ia tith e m a í],

dar a posse do reino aos Doze, assim

reina (At 15.17). Os doze apóstolos são designa­

como o Pai lhe havia concedido o reino por meio

dos seus representantes para que governem e jul­

de uma ahança

de modo que pudessem

guem em seu nome (Lc 22.30). Entretanto, não se

participar do reino de Cristo e se tornar regentes e

deve conceber esse reino restaurado de Davi ou

juizes sobre Israel (Lc 22.29,30). Por meio de sua

de Israel como um sistema judaico de natureza

morte, que foi o sacrifício para o estabelecimento

política e nacionalista, que era a ideia corrente

da nova ahança (Lc 22.20), Jesus cumpriu essa

em alguns segmentos judaicos da época (At 1.6).

promessa e criou outro povo de Deus, cujo núcleo

Pelo contrário, deve se pensar nele em termos de

era constituído pelos Doze, correspondendo tipo­

uma comunidade de judeus e gentios que invo­

[d ie t h e t ó ),

logicamente a Israel com as doze tribos. Assim,

cam o nome do Senhor (i.e., se submetem ao go­

por meio de uma aliança, ele insthuiu um novo

verno régio de Jesus, o Messias, o qual representa

povo de Deus, sob o governo de Deus. Então, o

o governo régio de Javé [At 2.21]).

Cristo ressuscitado ensinou-lhes acerca do reino

1.7

Conclusão. Em Atos, Lucas registra a his­

de Deus (At 1.3), capachou-os com o Espírito

tória da salvação com base nos seguintes aspec­

Santo e os comissionou a dar testemunho do rei­

tos: Deus exalta Jesus à sua destra para que o

no de Deus ou de Cristo (At 1.8; 2.1-36).

Filho exerça o senhorio e a monarquia divinos; o

Os doze apóstolos, representados por Pedro

Senhor Jesus Cristo exerce o governo divino por

e outros, como Estêvão, Fihpe, Paulo e Barna-

intermédio do Espírito Santo e de sua igreja; os

bé, saem pela Judeia, por Samaria e pelo mundo

crentes judeus e gentios são conduzidos ao reino

gentílico, chegando até mesmo a Roma, procla­

de Deus/de Cristo para salvação. Lucas concen-

mando o reino de Deus ou o senhorio de Cristo

tra-se na manifestação presente do reino, porém

e demonstrando a salvação do reino ("feitos ex­

o encara como um processo rumo à consumação,

traordinários e sinais” de exorcismo e cura) por

“a restauração de todas as coisas” , por ocasião da

meio do poder do Espírito Santo. Depois de ba­

parusia de Cristo.

tizados em nome do Senhor Jesus Cristo, os que com arrependimento e pela fé aceham o evan­

2. Hebreus

gelho são incorporados ã área de influência do

2.1 O reino de Deus. Em Hebreus, existe ape­

senhorio de Jesus Cristo (i.e., ao reino de Deus)

nas uma referência explícita ao reino de Deus:

e recebem as bênçãos do reino, o perdão dos pe­

"... recebendo um reino inabalável, sejamos gra­

cados e 0 poder escatológico do Espírito Santo

tos e, dessa forma, adoremos a Deus de forma

(At 2.38; 19.5,6; 22.16). Dessa maneira, por meio

que lhe seja agradável, com reverência e temor”

da missão da igreja, o reino de Deus ou de Cristo

(Hb 12.28). Nessa passagem, o “reino” parece

é expandido.

não se referir ao governo régio de Deus, e nada

1.6

O Messias, o reino de Davi oa Israel e indica que o versículo tenha em vista nossa sub­

os Doze. 0 título Kyrios é usado com o título

missão ao reino ou a participação nele.

"Cristo” (= Messias) para designar Jesus como

Em toda a carta, não existe pratícamen­

0 regente no reino de Deus. Deus exaltou o Je­

te nenhum ensino acerca do governo régio de

sus crucificado à sua destra e o fez Senhor e

Deus. Em vez disso, parece que a palavra “rei­

Cristo (At 2.33,38). Essa exahação do Messias

no” é usada como sinônimo de “cidade [de

significa a ascensão de Jesus ao trono de Davi,

Deus]” (Hb 11.10,16; 12.22), “cidade [...] que

cumprindo a promessa de Deus a Davi (At 2.30;

virá” (Hb 13.14), “ monte Sião” ou “Jerusalém

13.23,32-39; cf. 2Sm 7.12-14). Essa exahação re­

celestial” (Hb 12.22) e “pátria” (Hb 11.14). A jul­

presenta a restauração do "tabernáculo caído de

gar por esses termos, “reino” parece denotar o

Davi” (At 15.16,

e "o restante dos homens”

lugar de onde Deus governa e onde os crentes

(i.e., o remanescente dos judeus) que buscarem

deverão alcançar o descanso bendito {katapausis,

a r a ),

1083

R eino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

Hb 3.11,18; 4.1,3,5,10,11; sabbatismos, Hb 4.9). a

[ou Rei de Paz]” e “Rei de Justiça” (Hb 7.1-3),

consumação de sua salvação.

em cuja ordem Cristo é apresentado como al­

Na verdade, há referências ao trono celestial

guém que foi nomeado sumo sacerdote (Hb 5.6;

de Deus (Hb 4.16; 8.1; 12.2). Na expressão “tro­

7.13-28). Esses fatores indicam que em Hebreus

no da Majestade [megalõsynês] no céu” (Hb 8.1)

existe um entendimento de que Jesus Cristo é o

pode haver uma conotação de poder ou soberania

rei messiânico e que, em nome de Deus, exerce

divinos, e, pelo contraste entre a cruz que Jesus

o governo régio divino. Aqui pode estar envol­

teve de suportar e o trono divino que por fim al­

vido algo mais que um simples reflexo do que­

cançou (Hb 12.2), podemos discernir uma cono­

rigma comum da igreja primitiva. A declaração

tação semelhante do trono divino. Entretanto, em

de Hebreus 2.3,4 parece refletir o ministério de

nenhum dos dois casos a conotação é forte. Em

pregação (acerca do reino) e cura de Jesus (e.g.,

Hebreus 8.1 e também em 4.16, o significado re­

Mt 12.28 par. Lc 11.20). Além disso, é possível

hgioso do trono divino é muho mais proeminente

que a consumação da salvação apresentada em

que o significado político.

Hebreus como um sábado de descanso (Hb 4.9)

2.2

Jesus Cristo exaltado à destra do trono reflha o ministério de cura de Jesus exercido no

de Deus. Um fenômeno semelhante ocorre com

sábado como uma concretização proléptica da

relação a Jesus Cristo. Faz parte do tema centra!

perfeição sabática ou da criação restaurada no

de Hebreus a exaltação de Jesus Cristo, que se

reino de Deus.

assenta à destra de Deus ou de seu trono, cum­

Entretanto, não se pode afirmar que a carta

prindo a profecia de Salmos 110.1 (Hb 1.3,13; 8.1;

apresenta uma exposição do tema da regência

10.12; 12.2). Além do fato de que em vários hvros

messiânica de Jesus. Assim como quase nada

do NT Salmos 110.1 cumpre o importante papel

se diz acerca do reinado do Senhor Jesus Cristo

de confirmar o senhorio e o governo régio que o

exahado sobre seu povo ou sobre o mundo, mui­

Cristo exahado veio exercer em nome de Deus,

to pouco se diz a respeho do reinado de Deus.

vários fatores em Hebreus apontam para uma

Desde sua exahação à destra de Deus, Cristo

conotação política do tema. 1) Ele é acompanha­

aguarda que seus inimigos se tornem estrado

do de referências ao fato de Deus ter designado

para seus pés (Hb 10.13; cf. Sl 110.1). Além de

Jesus, na condição de Filho, seu “herdeiro de to­

declarar sua exaltação ao governo régio univer­

das as coisas” , em cumprimento de Salmos 2.7,8

sal, isso é tudo que se diz sobre a atividade po­

(Hb 1.2,5; 5.5; 7.28) e 2Samuel 7.14 (Hb 1.5),

lftica atual do Cristo exaltado. Em vez disso, a

duas passagens que no judaísmo e na igreja pri­

exahação de Cristo à destra de Deus é explicada

mitiva eram interpretadas como profecias acerca

quase exclusivamente em relação ao seu minis­

do rei messiânico. 2) Salmos 45.6,7 e 8.4-6 são

tério de sumo sacerdote (cf.

aplicados respectivamente em Hebreus 1.8,9 e

assim como o trono de Deus no santuário celes­

2.6-8 para destacar a exaltação de Jesus ao go­

tial é quase exclusivamente interpretado em seu

D a v ie s ,

p. 388-9),

verno régio ou senhorio universais. Observe-se

significado rehgioso. Tendo entrado, por meio

especialmente o hnguajar da primeira passagem:

do próprio sangue, de uma vez para sempre

O teu trono, ó Deus, subsiste pelos séculos

eterna para nós (Hb 9.12) e mediando a nova

dos séculos, e o cetro do teu reino é cetro de

ahança (Hb 8.6-13; 9.15-22), Cristo agora exerce

equidade.

a função de sumo sacerdote no santuário celes­

no Santo dos Santos, conquistando a redenção

Amaste a justiça e odiaste o pecado; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de

tial, intercedendo por nós (Hb 2.17,18; 4.14-16; 7.25; 8.1,2; 9.24; 10.19-22).

alegria, mais do que a teus companheiros.

2.3

Baseado na tradição sobre Jesus? A ex­

posição de Hebreus sobre o trono de Deus no 3)

Em contraste com Moisés, que foi fiel como santuário celestial e sobre a exahação de Cristo à

servo, Hebreus 3.5,6 afirma que “ Cristo, como Fi­

destra do santuário, principalmente com relação

lho, é fiel sobre a casa-de Deus”. 4) 0 nome Mel-

ao seu significado rehgioso (embora retenha o

quisedeque é interpretado Como “Rei de Salém

significado político em segundo plano), baseia-se

1084

Reino de D eus iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

na concepção comum do templo, tanto como o

os crentes estão peregrinando rumo a essa reah­

santuário onde Deus é adorado quanto como o

dade e devem avançar pela fé e com perseverança,

palácio de onde Deus governa {cf.

seguindo a Jesus Cristo, “o Autor e Consumador

H engel

&

Jesus também combinou os conceitos

da nossa fé” (Hb 12.2). Contudo, ao se apossar

de reino de Deus e de templo: às vezes, explica

da propiciação de Cristo e da nova ahança, num

o primeiro com base no segundo (cf.

e

sentido real eles já chegaram “ao monte Sião, à

conclui sua pregação acerca do reino com um ato

cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial” para

S c h w e m e r ).

A a le n ),

sinalizador da iminente destruição divina do tem­

comemorar o sábado numa reunião festiva de an­

plo de Jerusalém e da promessa de que ele edifi­

jos e santos (Hb 12.22,23). Além da tensão entre

cará um novo templo (Mc 11.15 e par.; Mc 14.58

0 “já” e 0 “ainda não” , característica da escatolo­

epar.).

gia do NT como um todo, podemos observar que

Mesmo que cheiropoiêtos (“construído por

a metáfora não está distante do retrato favorito

mãos humanas”) ou acheiropoiêtos (“não feito

de Jesus, em que ele fala de um banquete para

por mãos humanas”) de Marcos 14.58 não seja

celebrar o reino de Deus, nem do ato em que ele

autêntico, a presença do conceito em Atos 7.48,

torna concreta a salvação do reino de Deus por

Hebreus 9.11,24 e Marcos 14.58 indica tratar-se

meio de seu ministério de cura no sábado.

de uma tradição da igreja primitiva para expres­ sar um contraste entre o templo de Jerusalém e a

3. Cartas Gerais

nova adoração que Jesus Cristo tornou possível.

No restante das Cartas Gerais, a expressão “o

Desse modo, parece que a cena em que Cristo

reino [de Deus]” aparece apenas em Tiago 2.5 e

entra no “tabernáculo maior e mais perfeito, não

2Pedro 1.11, e conceitos relacionados aparecem

erguido por mãos humanas” (Hb 9.11) — que é a

em IPedro 2.4-10.

reahdade celeste da qual o templo de Jerusalém

Em 2Pedro 1.11, os leitores são exortados a

ou seu predecessor (o tabernáculo no deserto)

cultivar virtudes cristãs, para que lhes seja “con­

“feito por mãos humanas” era apenas uma có­

cedida a entrada no reino eterno do nosso Senhor

pia e uma sombra (Hb 8.2,5; 9.24) — reflete essa

e Salvador Jesus Cristo”. É possível que em IPedro 2 a ideia da igreja como “casa espiritual” , como

tradição. Uma vez que Hebreus revela certa famUiarida-

templo edificado sobre a pedra angular ou pedra

de com a tradição de Jesus (e.g., Hb 2.3,4; 5.7,8;

de alicerce (IPe 2.4-8) e como “geração eleha, sa­

13.12), é possível que,

parte dessa tradição, o

cerdócio real, nação santa, povo de propriedade

autor estivesse familiarizado com a atitude nega­

exclusiva de Deus” (IPe 2.9; Êx 19.6), reflita o que

tiva de Jesus em relação ao templo de Jerusalém

Jesus tinha em vista com sua pregação acerca do

e com a afirmação, feita por ele como parte de

reino e com sua declaração a respeho do templo:

sua pregação do reino, de que iria construir um

formar um povo de Deus novo e escatológico, ou

novo templo. Desse modo, a grande habUidade

seja, construir um novo “templo”.

à

do autor pode estar em sua exposição sistemá­

Lembrando os lehores de que Deus escolheu

tica do elemento rehgioso, presente, no mínimo

os pobres “a fim de fazê-los ricos na fé e herdei­

em segundo plano, na pregação de Jesus acerca

ros do reino que prometeu aos que o amam” (Tg

do reino (cf.

2.5), Tiago aconselha-os a guardar a “lei real”

G a s to n ,

p. 65-243)

à

luz de Salmos

110.1,4. Nesse caso, o evangelho do autor de He­

[nomos basilikos]: “Amarás o teu próximo como

breus também se baseia, em úhima instância, no

a ti mesmo” (Tg 2.8). Ele também os adverte

evangelho de Jesus a respeho do reino de Deus.

com um quadro em que apresenta um contras­

2.4

Já, mas ainda não. Os crentes devem re­ te com os ricos, que exploram os outros e difamam

ceber “um reino inabalável” (Hb 12.28), ou seja,

0 nome de Deus (Tg 2.6,7). Aqui o vocabulário de

a “Jerusalém celestial”, a “cidade de Deus”. No

Jesus encontra eco nas expressões “os pobres” (Lc

“reino” , “cidade” (e.g., Hb 11.10) ou santuário

4.18; Mt 5.3 par. Lc 6.20) e “herdar o reino” (e.g.,

(Hb 6.19,20) de Deus haverá um sábado de des­

Mt 5.5; 25.34).

canso (Hb 4.9) e a festa de que o povo de Deus irá

0 ensino de Jesus também é claramente refle­

participar com miríades de anjos. No momento.

tido: como lei do reino, ele deu o mandamento

1085

R eino de D eus iii ; A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

duplo do amor: “Amarás o Senhor teu Deus de

governam a esfera celeste também adoram a

todo 0 coração, de toda a alma e de todo o enten­

Deus, reconhecendo a vontade e o poder sobe­

dimento” (Mt 22.34-40) e o tornou tangível (e.g.,

ranos do Criador (Ap 4,11). Assim, João enxerga

no Sermão do Monte ou da Planície [Mt 5— 7 par.

que no céu o nome de Deus é engrandecido, ele

Lc 6.20-49]). Os ricos violam essa lei do reino,

reina e sua vontade é obedecida (cf. Mt 6.9,10).

ou “a lei real” : em vez de amar a Deus, difamam

4.2 O reino de Satanás. Na terra, porém.

o nome dele, amam o ídolo Mamom (cf. Mt 6.24

Satanás (o dragão ou serpente), o mais antigo

par. Lc 16.13) e assim inevitavelmente exploram

adversário de Deus e a fonte sobrenatural de to­

o próximo. Como conseqüência, serão excluídos

dos os males, está reinando, e usa de todas as

do reino de Deus. Em contraste, “os pobres” são

falsidades para induzir as nações a adorá-lo, em

ricos na fé: dependem de Deus e o amam e, as­

vez de adorarem ao Deus verdadeiro (Ap 12).

sim, amam também o próximo, demonstrando

Para João, o reinado de Satanás assume forma

ser 0 povo do reino de Deus, que irá “herdar o

concreta no tirânico Império Romano: o poder

reino” quando este for consumado. O contraste

imperial romano incorporado no imperador é a

entre os pobres e os ricos ecoa fortemente na ver­

besta ou o monstro do mar que governa o mun­

são lucana das Bem-Aventuranças (Lc 6.20-26).

do em nome do dragão (Ap 13; 17). O dragão, a

Está implícho que os pobres herdarão o reino,

besta e a segunda besta ou monstro da terra, que

quando o Senhor vier para julgar, e, por isso, de­

persuade as nações a adorar a besta, são uma

vem aguardar pacientemente, “porque a vinda do

paródia do Deus trino. Pai, Filho e Espírito Santo.

Senhor está próxima” (Tg 5.5-7).

A trindade satânica obriga as nações a se subme­ ter ao culto imperial, enganando-as com o vinho da meretriz de Babilônia (i.e., a ideologia da pax

4. Apocalipse “ 0 reino de Deus” é o tema de Apocahpse, e, des­

romana, Ap 17) e deixando-as maravilhadas com

se modo, estudar o tema implica fazer um apa­

o poder aparentemente invencível do Império

nhado de todo o conteúdo do hvro (v.

Romano (Ap 13).

4.1

A p o c a lip s e ) .

Desse modo, o imperador romano se passa

O reino de Deus no céu. Na condição

de “o Alfa e o Ômega, o primeiro e o úhimo” .

por deus na terra, e o nome do Deus verdadeiro

Deus é 0 Criador e o alvo de todas as coisas e,

não é engrandecido: seu reinado é usurpado, e

na condição de pantokratõr (“Todo-poderoso” ou

sua vontade não é obedecida.

“ soberano sobre todas as coisas”), é o Senhor so­

4.3 0 reino de Deus na terra: o acontecimen­

berano de todo 0 Universo. Deus é aquele “que

to em tomo de Cristo (passado). Deus — aquele

está assentado no trono”, no céu, e dali conduz o

“que é” e “que era” — “há de vir” à terra a fim de

curso da história. De forma impressionante, o vi­

estabelecer seu legítimo governo régio, destruin­

dente João presencia essa cena numa visão, que

do as forças satânicas. Essa é a mensagem princi­

ele conta em Apocahpse 4.

pal de Apocahpse. João está seguro disso porque

Na visão do apóstolo. Deus está assentado

teve uma visão da reahdade celestial do triunfo

no trono celeste e recebe a adoração dos “quatro

de Deus, que, por intermédio de Jesus Cristo, se

seres viventes” e dos “vinte e quatro anciãos”.

revelará na terra (Ap 5). Num sentido real. Deus

Na sala do trono celeste, o protótipo do Santo

já veio e triunfou em Jesus Cristo. Na condição

dos Santos no templo terrestre, os quatro seres

daquele que ostenta os nomes divinos (“ o primei­

viventes — com aparência de leão, touro, ser hu­

ro e o úhimo” , “o Alfa e o Ômega” e “ o princí­

mano e águia, respectivamente — , na condição

pio e o fim”) e que compartilha do trono divino.

de representantes de todas as criaturas, adoram

Cristo é o agente de Deus que estabelece na terra

a Deus, que está no trono. No hino que entoam, exaha-se a santidade do Deus eterno e soberano.

0 governo régio de Deus. É ele quem transforma 0 “ reino do mundo” no “ [reino] de nosso Senhor

Deus, 0 Criador e o Regente de todo o Universo,

e de seu Cristo” (Ap 11.15). Cristo é igualado a

é devidamente engrandecido (Ap 4.8). Os “vinte

Deus, de modo que a vinda futura de Deus para

e quatro anciãos”, os-seres angélicos que cons­

a salvação e o juízo não é outra senão a vinda de

tituem 0 conselho celeste

Cristo (Ap 22.12,20).

em nome de Deus,

1086

Reino de D eus iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

Esse Cristo já veio, derrotou as forças satâni­

são o reino de Deus que já passou a existir. Dessa

cas e agora está entronizado nos céus (Ap 3.21).

maneira, Jesus Cristo já instituiu o reino de Deus.

Para descrever o conflito entre Cristo e as forças

Assim, Jesus cumpriu a expectativa vetero­

satânicas e a redenção da humanidade, João em­

testamentária ou judaica do Messias davídico.

prega duas metáforas: a guerra messiânica e o

Entretanto, mais uma vez em conformidade

Êxodo. Jesus é o Messias, “o Leão da tribo de

com Jesus e os Evangelhos, João reinterpreta a

Judá, a raiz de Davi” (Ap 5.5; 22.16), e venceu

messianidade. A vitória messiânica de Jesus foi

as nações rebeldes (cf. Sl 2.8,9) com uma espada

uma vhória sobre as forças malignas de Satanás

afiada de dois gumes, que sai de sua boca (cf.

(Ap 12.7-9), não sobre as nações gentílicas. Em

Is 49.2; Ap 1.16; 2.12,16; 19.11,15,21). Jesus é o

vez de conquistas mUhares, o meio de alcançar

Cordeiro pascal (Ap 5.6,9-11), que, pelo seu san­

essa vhória foi seu testemunho da verdade ou do

gue, resgatou um povo dentre todas as nações

Deus verdadeiro e sua morte sacrificial. E o povo

e 0 fez “reino e sacerdotes” para servir a Deus

que se juntou ao reino de Deus para participar do

(Ap 5.9,10; cf. Êx 19.5,6).

governo divino não foi a nação judaica, mas um

Jesus Cristo derrotou as forças satânicas me­

novo povo que manteria “o testemunho de Jesus”

diante um testemunho fiel de Deus e depois me­

ou se apegaria fielmente ao reino de Deus que

diante sua morte (v.

Jesus proclamou (Ap 12.17; 17.6; 19.10).

C r is to , m o r te d e )

. Jesus Cristo

foi “a testemunha fiel e verdadeira” de Deus até

No relato da visão de Deus entronizado nos

mesmo em sua morte (Ap 3.14; cf. Ap 1.5; 12.17;

céus e de Jesus Cristo como o Cordeiro morto

19.10). Isso deve ser referência à proclamação de

para estabelecer seu reino na terra (Ap 4— 5),

Jesus, durante sua vida terrena, acerca do reino

João apresenta a imagem de um Deus que go­

de Deus. Mas a vitória decisiva aconteceu com

verna com amor altruísta e com justiça sobre as

sua morte. É o que mostra a visão de Apocalipse

forças satânicas, as quais governam pela imposi­

5

em Apocahpse 5.5, declara-se que

ção de sua vontade e com opressão. Deus reina

Jesus, na condição de Messias davídico, triunfou,

com amor, por isso seu governo régio significa

mas nos versículos subsequentes o Messias triun­

salvação para a humanidade, e o evangelho é a

(B a u c k h a m ):

fante aparece como um Cordeiro sacrificado, que

mensagem de sua vinda para estabelecer esse go­

está no centro do trono divino e recebe a adora­

verno. Assim, a mensagem de João é a mesma do

ção dos “quatro seres viventes” e dos “vinte e

evangelho de Jesus, dos Evangehstas e de Paulo.

quatro anciãos”. Em seguida, a visão mostra uma miríade de anjos e, finalmente, todas as criaturas

4.4

O reino de Deus na igreja e por meio dela

(presente). A igreja ou o povo de Deus resgata­

do Universo a adorá-lo e louvá-lo pelo triunfo que

do do reino de Satanás por meio da morte sa­

conquistou mediante sua morte sacrificial. Em

crificial de Cristo é o reino de Deus presente na

Apocahpse 12.5-12, a vitória decisiva de Cristo

terra (Ap 1.6; 5.10). Os cristãos tornam real na

sobre Satanás por meio de sua morte é represen­

terra o triunfo de Cristo sobre as forças satâni­

tada em dois quadros vívidos: Cristo é entroni­

cas. Paralelamente ã obra de Cristo, esse papel

zado no céu enquanto Satanás é expulso de lá e

da igreja está vinculado à guerra messiânica. 0

lançado na terra.

dragão, que foi derrotado com a morte de Cristo

Isso está em perfeita conformidade com o en­

e expulso do céu, agora, por meio da besta do

sino de Jesus ou dos Evangelhos: por meio de sua

mar e da besta da terra, age com tirania sobre o

pregação do reino de Deus e sua morte sacrificial,

mundo. Com a autoridade de Satanás e por or­

Jesus triunfou sobre as forças satânicas. Também

dem deste, os imperadores e governantes locais

em plena conformidade com o próprio ensino de

do Império Romano travam guerra contra a igreja

Jesus ou com os testemunhos dos Evangelhos, o

(Ap 12.13— 13.18). A igreja é o exército do Mes­

resuhado da vitória de Jesus sobre as forças satâ­

sias, um contingente de 144 mil, tirados das doze

nicas é a criação do povo de Deus, um povo que

tribos de Israel (Ap 7.4-8; i.e., 12 x 12 x 1.000

ele resgatou do reino de Satanás e constituiu “rei­



no e sacerdotes” para servir a Deus (Ap 5.10). É

citado, o Cordeiro vitorioso, está presente com

o povo sobre quem Deus reina como Rei; ou, eles

sua igreja (Ap 1.13; 2.1) e comanda seu exército

1i087

todos números simbólicos). 0 Cristo ressus­

Reino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

{Ap 14.1,4; 17.14) na batalha contra a trindade

em que a Babilônia, o regime satânico, cairá (Ap

satânica, capacitando a igreja com o Espírito San­

16.16— 18.24), os governantes do mundo que fo­

to, que é o poder de Cristo operando no mundo

rem seus aliados serão destruídos (Ap 19.17-21)

(Ap 3.1; 5.6).

e os perversos serão condenados (Ap 14.17-20;

Ainda com relação à obra de Cristo, a guerra

17.12-14; 19.15). A trindade satânica, formada

santa da igreja contra as forças satânicas é expres­

pelo dragão, a besta e o falso profeta, também

sa não como uma conquista militar, mas como o

será destruída (Ap 19.19—20.10), mas os santos

testemunho do governo régio de Deus/de Cristo e

serão recolhidos ao reino de Cristo (Ap 14.15,16).

da morte sacrificial de Jesus (Ap 11.1-13; 12.11).

João mostra em duas etapas a destruição do

Os cristãos formam um exércho, que é o exército

dragão. Satanás, e. de maneira correspondente,

do Cordeiro sacrificado (Ap 14.1-5). Nessa con­

a consumação da salvação também em duas eta­

dição, participam, por meio de seu martírio, da

pas. 0 dragão será capturado e trancado no abis­

vitória do Cordeiro sobre as forças satânicas — o

mo por mil anos, e, durante esse periodo, apenas

martírio é a participação deles na morte sacrificial

os mártires serão ressuschados para participar do

do Cordeiro (Ap 7.14). A guerra santa em que

reinado de Cristo. Então Satanás será solto para

estão lutando consiste em dar continuidade ao

reunir Gogue e Magogue (mencionados em Eze­

"testemunho de Jesus” acerca do governo régio

quiel) para a batalha final contra o povo de Deus,

do Deus verdadeiro (Ap 12.17; 19.10) e em resis­

mas acabará lançado no lago de fogo, onde ficará

tir à idolatria do falso deus, a besta.

para sempre. A morte e o Hades serão destruídos

A perseguição promovida pela besta (o poder

com ele. Isso culminará com a ressurreição ge­

imperial romano) é feroz, e o engano da mere­

ral e 0 juízo final, que abrange todos os mortos

triz da Babilônia (a ideologia da pax romana] é

(Ap 20.1-10). 0 quadro do reino milenial de Cris­

sedutor. No entanto, a igreja foi capacitada pelo

to apresenta a ideia teológica de que, ao contrário

"espírito da profecia” (Ap 11.3-6; 19.10), e o tes­

do paraíso do Urzeit (i.e., “tempo primordial”), o

temunho que ela dá, entre todas as nações, a res­

Universo, restaurado sob o governo régio de Deus

peito do governo régio do Deus verdadeiro e do

no Endzeit (i.e., “tempo final”), já não estará

Cordeiro que foi morto produz a conversão das

mais vulnerável a Satanás

(B a u c k h a m ).

nações da idolatria para a adoração do Deus ver­

Em seguida, João discorre sobre a consu­

dadeiro (Ap 11.13; 15.2-4). Assim, por meio do

mação do reino de Deus em hnguagem de uma

testemunho da igreja o governo régio de Deus se

nova criação — “um novo céu e uma nova terra”

torna real sobre as nações no presente.

e “a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia

4.5

A consumação do reino na parusia de do céu, da parte de Deus” (Ap 21.1—22.5). A

Cristo (futuro). Entretanto, restam os que não

nova criação é mais que a simples restauração

dão ouvidos aos juízos divinos de advertência (as

da criação original. Nela, “o mar já não exis­

duas séries de juízos: Ap 6.1-17; 8.1,3-5; 8.2,6-11;

te” (Ap 21.1), ao passo que na primeira criação

11.14-19) nem aceitam o testemunho da igreja.

o “mar”, a força primeva do mal (cf. Ap 13.1),

Continuam sob o governo da trindade satânica

permanecia como uma ameaça em potencial ao

enquanto esta existir, blasfemando contra Deus

cosmo (Gn 1.2; 7.11).

e coagindo e iludindo as nações a participar da

Repleta da presença de Deus, a nova criação

adoração da trindade satânica. Os santos continu­

será a cidade de Deus, a nova Jerusalém e tam­

am a sofrer debaixo da tirania deles, e até mesmo

bém o templo no qual Deus e o Cordeiro serão

a alma de quem já foi martirizado tem de aguar­

entronizados. Ah Deus habhará com seu povo, e

dar a consumação de sua salvação e o julgamento

aqueles que “vencerem” mediante a fé em Cristo serão seu povo e habitarão com Deus. Não haverá

dos perversos (Ap 6.9-11). A consumação da salvação e o juízo irão ocor­

mais morte, apenas plenhude de vida, pois “ o rio

rer na parusia. Cristo virá como "o Senhor dos

da água da vida” fluirá do trono de Deus e do

senhores e o Rei dos reis” (Ap 17.14; 19.16) e

Cordeiro, e os frutos da “árvore da vida” estarão

encerrará vitorioso a guerra santa contra as forças

disponíveis. Já não haverá trevas, pois a glória

satânicas. Haveráo juízo final (Ap 15.1,5— 16.21),

de Deus e do Cordeiro iluminará toda a cidade.

1088

Religiões greco - r o m a n as

Já não haverá engano satânico nem impureza

e das atitudes rehgiosas tradicionais na época do

(Ap 21.27), mas a Palavra e a verdade divinas

NT.

prevalecerão (Ap 19.11,13). Na condição de filhos

certas expressões de natureza religiosa alcança­

de Deus, seu povo herdará todas essas bênçãos e

ram nova proeminência ou novas manifestações

participará do governo divino, e as nações virão

na época do surgimento do cristianismo: o culto

com seus tesouros para adorar a Deus e andar

ao imperador, os mistérios, os oráculos, as curas,

na sua luz, cumprindo as profecias dos profetas

a magia, os demônios, a astrologia e o destino.

No contexto dos antigos cuhos e suas práticas,

do AT e de Jesus. O reino de Deus se consumará

1. As antigas religiões grega e romana

dessa maneira, e se cumprirá o objetivo de Deus

2. Características da rehgião do período heleno-romano

para com sua criação e sua ahança. 4.6

Conclusão. À luz da morte, ressurreição

3. O culto cívico 4. O cuho imperial

e exahação de Cristo, Apocahpse apresenta uma interpretação fiel do evangelho de Jesus acerca

5. Os mistérios

do reino de Deus e uma contextuahzação criativa

6. Outros aspectos

desse evangelho para a lihima metade do século

7. Observações finais

I,

quando o Império Romano apareceu como a en­ 1. As antígas religiões grega e romana

carnação do reino satânico. Ver também dlntd

tio n ,

A diferença entre a rehgião tradicional grega e a

D eu s; e s c a to lo g ia ; S e n h o r.

: A s c e n s io n ; C r e a t i o n , C o s m o l o g y ; E x a l t a ­

E n th ro n e m e n t;

G lo r y ;

H eaven,

N ew

H eaven ;

de Roma caracteriza-se pelo fato de que a rehgião grega teve origem nos mitos dos épicos de Home­ ro e a rehgião romana foi atribuída às instituições

L a n d in E a r l y C h r i s t i a n i t y ; M i l l e n i u m ; P a r o u s ia .

do legislador Numa. Os gregos relacionavamS. “ Reign” and “house” in the

se com suas divindades como se relacionariam

v. 8, p. 215-40, 1961/1962. ■ B a u c k ­

com seres humanos cuja vida se estendesse para

R. J. The climax o f prophecy: studies on the

além dos hmites da normalidade, ao passo que a

Book of Revelation. Edinburgh: T & T Clark,

rehgião romana tínha um molde claramente le­

1992. ■ B e a s l e y - M u r r a y ,

gal. As divindades gregas eram antropomórficas:

B ib u o g r a fia . A a le n ,

Gospels. ham ,

NTS,

R. The Book of Revela­

G.

F.

demonstravam paixões humanas, apresentavam

F. The Acts o f the Apostles. Grand Rapids: Eerd­

características próprias dos seres humanos, ti­

mans, 1990. ■ D a v id s , P. H. Commentary on James.

nham interesse nos negócios humanos e interfe­

Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

■ D a v ie s ,

riam nesses negócios. Contudo, eram diferentes

J. H. The heavenly work of Christ in Hebrews.

dos seres humanos por não terem idade e nunca

tion. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. ■

[n ig t c .)

B ru ce,

G. Spirh

morrerem, por não serem limitadas pelo espaço e

and kingdom. ExpT, v. 82, p. 36-40, 1970/1971.

por estarem acima da moralidade comum. Os sa­

■ Elungworth, p. Commentary on Hebrews. Grand

crifícios não exigiam um sacerdócio profissional

Rapids: Eerdmans, 1993.

L. N o

e eram dominados por um espírito de barganha

stone on another Leiden: E. J. Brih, 1970. ■ Hen­

que dizia: “Ofereço dádivas aos deuses e peço

SE, V.

4, p. 384-9, 1968. ■

g e l, M .

& Schwemer,

Dunn,

[n ig tc .)

A. M „

J.

D.

■ G a s to n ,

orgs. Konigsherrschaft

Gottes and himmlischer Kult. Tübingen: J. C.

que façam algo para mim” (v.

P la t ã o ,

E u , 14C-E).

B.

As divindades romanas eram poderes menos per­

Mohr, 1991. • Lane, W, L. Hebrews. Dahas: Word,

sonalizados [numina): possuíam funções especí­

1991. 2 V.

ficas e hmitadas. As relações dos seres humanos

(w b c .)

■ Marshall, I. H. Luke: historian

com o divino eram de natureza mais contratual,

and theologian. Exeter: Paternoster, 1970. S. K

im

de modo que era preciso obedecer exatamente ao ritual das cerimônias, e havia especialistas pro­

R e l ig iõ e s

fissionais [pontifices e augures) que cuidavam

greco-r o m a n as

As tradições rehgiosas da Grécia e de Roma sofre­

da observância dos muitos deveres rehgiosos a

ram mudanças significativas nos períodos impe­

favor do povo. O cuho doméstico, tanto na Gré­

riais helenístico e romano. Apesar disso, seria um

cia quanto em Roma, prosseguiu com grande

erro minimizar a influência da rehgião tradicional

regularidade. As refeições começavam com um

1089

R eligiões greco - r o m a n as

sacrifício de alimento e terminavam com uma

séculos da era cristã. 0 declínio da autonomia

libação.

local nos períodos helenístico e imperial aparen­ temente conduziu a um despertamento da lealda­

2. Características da religião do período

de e do orgulho no culto cívico. À medida que a

heleno-romano

importância política das cidades gregas foi dimi­

A distinção que hoje se faz entre rehgião e Estado

nuindo, sua glória passou a ser associada aos seus

não funcionava naquela época. Uma vez que as

templos e deuses. As classes governantes encon­

práticas idólatras permeavam todos os aspectos

traram uma forma de dar expressão ao seu patrio­

da vida (a pohtica, o exércho, o teatro, o atletis­

tismo, ao determinar que se escrevessem histórias

mo, os negócios), os judeus e os cristãos estavam

locais; que se estudassem costumes e mitos anti­

em séria desvantagem social e econômica.

gos; que se construíssem novos templos; que se

Incentivava-se o sincretismo mediante a ex­

instituíssem festas; que se erigissem monumentos

portação de deuses gregos para terras estrangei­

com inscrições comemorativas e de celebração.

ras e a importação de deuses estrangeiros para

Os cuhos cívicos eram estimulados pela educação

0 mundo greco-romano, resultando na identifica­

primária e secundária, e Homero era o livro-texto

ção de uma divindade com outra e no emprésti­

principal. Dessa maneira, o currículo educacional

mo de ideias.

transmitia os mitos tradicionais e, com eles, os va­

0 polheismo era tolerante, ou seja, não era ex­

lores tradicionais da cultura grega.

clusivista. 0 exclusivismo do judaísmo e do cris­

As autoridades seculares determinavam a

tianismo era ofensivo à mentahdade pagã. Havia

escolha dos profissionais envolvidos no cuho,

uma inclinação para o monoteísmo, mas mesmo

as exigências de pureza ritual, a distribuição de

quando se reconhecia a existência de um deus

itens trazidos para sacrifício, a ordem das pessoas

supremo, mantinham-se os velhos deuses como

nas procissões e outros detalhes externos da htur­

poderes subordinados.

gia, e essas regras eram muitas vezes inscritas em

0 individuahsmo acentuado da era helenística

monumentos de pedra. A exigência fundamental

deu mais ênfase aos relacionamentos escolhidos,

de um santuário religioso era um altar para os sa­

em detrimento dos que eram herdados, mas os

crifícios. Cereais ou pão, vegetais, azeite de oliva

primeiros continuavam a expressar o lado corpo­

e vinho eram sacrifícios mais comuns que a car­

rativo ou social da rehgião.

ne, mas esta constituía o sacrifício principal nas

A piedade (lat., pietas; gr., eusebeia) consis­

festas periódicas (anuais, quase todas) patrocina­

tia basicamente em ritos externos, não tanto em

das pelo Estado, a época em que os mais pobres

athudes interiores. A pessoa piedosa era alguém

tinham carne em sua alimentação. Os sacrifícios

que cumpria seus deveres à risca.

romanos eram acompanhados pela queima de in­

0 fundamento da moralidade não era basica­

censo e pelo toque de um instrumento de sopro

mente o cuho rehgioso. A tradição hterária conti­

{tibia). O sacerdote usava um véu sobre a cabeça,

nha exemplos do que era feito e do que não era,

e 0 altar ficava fora do templo, que era a casa

e os filósofos assumiam o papel de professores

da divindade, não o local de reunião dos adora­

de moralidade popular. Alguns cuhos passa­

dores. A presença da divindade era simbohzada

ram a incluir normas morais entre as regras de

pela estátua cultuai, que concentrava as atenções

pureza ritual.

no templo. Além da procissão e dos sacrifícios,

Antes do século ii, as necessidades psicológi­

as festas periódicas muitas vezes incluíam jogos

cas já incluíam a sensação de desamparo quanto

e disputas. A principal ocasião para sacrifício

ao destino, incerteza sobre a vida após a morte,

particular era a oferta votiva, a dádiva trazida à

curiosidade sobre o sobrenatural e a sensação de

divindade como cumprimento de um voto, um

instabilidade nos assuntos humanos.

ato elementar de piedade pessoal e vida religiosa.

3. O culto cívico

pectos importantes dos cuhos cívicos. No episó­

No hvro de Atos, duas narrativas ilustram as­ Ao contrário do que §e costuma dizer, os cuhos

dio de Listra (At 14.11-13), que pode ter como

cívicos permaneceram dinâçiicos nos primeiros

base a história registrada por Ovídio

1090

(Ovídio,

Religiões greco - r o m an as

Me, 8.620-724), é possível assinalar os seguintes

de divindades. Alexandre, o Grande, e seus su­

itens: a natureza antropomórfica dos deuses, os

cessores receberam honras divinas, e aos impe­

quais aparecem em forma humana; a atribui­

radores romanos foram atribuídas essas honras

ção de nomes gregos a divindades locais (Zeus,

no Oriente grego e, por fim, também no Ocidente

o deus supremo, e Hermes, o mensageiro dos

romano. Era tão grande o poder exercido pelos

deuses; na

“Júpiter” e “Mercúrio” respecti­

governantes e tamanha a gratidão pela paz e pela

vamente; Júpiter e Mercúrio eram o equivalente

prosperidade trazidas pelo imperador que só as

a ra ,

romano dos deuses gregos Zeus e Hermes); o sa­

honras prestadas aos deuses pareciam uma ex­

cerdote designado para servir uma divindade; a

pressão adequada de tributo. A ehte social, que

identificação do culto como Zeus-fora-da-cidade

se beneficiava ao máximo do governo romano,

(nota de rodapé da

que é onde o santuário

era especialmente ativa na promoção do cuho ao

estava localizado; a intenção de sacrificar touros

governante, e geralmente o ímpeto vinha das pro­

(o sacrifício mais caro e, desse modo, uma indi­

víncias, mas certos governantes, como Calígula e

cação da importância que davam ao incidente)

Domiciano, insistiam em receber honras divinas.

n rs v ),

As formas externas de cuho imperial incluíam

adornados com grinaldas, enfeite comum num

a dedicação de altares e templos, o erguimento

animal oferecido em sacrifício. Num dos episódios de Éfeso (At 19.23-41),

de estátuas que davam à pessoa aparência de

destacam-se outros aspectos relacionados com

divindade, inscrições comemorativas, sacrifícios

os cultos cívicos: mais uma vez, a atribuição de

em honra do governante, instituição de novas

um nome grego a uma divindade local (a Ártemis

festas ou mudança de nomes de festas antigas

— “Diana”, na

— dos efésios não é a deu­

e atribuição de títulos divinos. Embora histórias

sa grega clássica da caça, e sim uma deusa-mãe

de milagres estivessem mais relacionadas com o

adorada na Ásia Menor, e, embora o aspecto da

nascimento do governante, parece não ter havido

fertihdade não seja atestado na Ártemis dos efé­

nenhuma expectativa de que ele agisse como um

sios, a analogia com outras deusas-mães sugere

ser sobrenatural. Orações e ofertas votivas aos

fecundidade na natureza, mas não imorahdade

governantes eram raras ou mesmo inexistentes.

ara

sexual) ; ahança entre a divindade local mais im­

0 cuho imperial era tanto um reconhecimento do

portante e as autoridades locais (At 19.35,38,39)

que parecia um poder quase sobrenatural quan­

e provinciais (At 19.31,38); atividade econômica

to um ato de gratidão por benefícios recebidos

(At 19.24-27); fabricação de imagens da divinda­

ou em antecipação por esses mesmos benefícios.

de para venda como lembrança ou como oferta

Era uma expressão do nível social do governante,

votiva (At 19.24); aclamações (At 19.34); desig­

da lealdade a ele e da unidade dos súditos. Por

nação de Éfeso como “guardiã” [nékoros] de Árte­

isso, sua importância era mais política e social

mis (At 19.35); origem divina atribuída ã imagem

que religiosa. A história de Herodes Agripa i (At 12.20-23)

ou símbolo da divindade (At 19.35).

ilustra a bajulação exagerada com que era trata­ 4. O culto imperial

do na corte um rei de quem se esperavam bene-

No império, o principal cuho cívico local quase

ficios (cf. 0 relato mais completo em

sempre estava ligado ao culto imperial. Dar hon­

19.8.2, § 343-52). Os asiarcas mencionados em

ra divina aos governantes era o clímax do cuho

Atos 19.31 eram membros do conselho provin­

J o s e fo ,

An,

cívico no mundo greco-romano, especialmente

cial da Ásia, os quais, sem estar necessariamen­

depois que a cidade (Roma) se tornou o centro

te envolvidos, supervisionavam o cuho imperial

do mundo, e a famíha imperial personificava a

como parte de seus deveres. O hvro de A p o c a l i p s e ,

cidade. Precedentes para o cuho ao governante

dentre todos os escritos do

estão ligados a ideias existentes no Oriente Mé­

maior antagonismo para com Roma e sua perso­

dio, em que os reis eram vistos como divinos, em

nificação do culto imperial. Destaca-se o aspecto

função de seu cargo, e também no cuho grego

rehgioso da besta, que será derrotada pelo Senhor

n t, é

o que revela o

aos heróis — seres humanos notáveis que, em

(Ap 13.1,4-8,11-15; 19.20). Os astros, associa­

razão de seus feitos, eram alçados à condição

dos não apenas aos deuses do paganismo, mas

1091

R eligiões greco - r o m a n as

visíveis nas moedas de Domiciano com a família

divindade que controlava as forças celestes. Ha­

imperial, estão subordinados a Cristo, que tem

via sete níveis de iniciação, desde o grau de “cor­

nas mãos as “sete estrelas” (Ap 1.20) e é o ver­

vo ” até o de “pai”. 0 fato de o mitraísmo iniciar

dadeiro conquistador do mundo (Ap 3.21). Des­

apenas homens e dar ênfase à lealdade talvez

de 0 início. Apocalipse se contrapõe à ideologia

exphque sua popularidade entre os soldados e as

imperial, ao afirmar que Cristo é “ o Príncipe dos

autoridades do governo.

reis da terra” (Ap 1.5), que fez de seu povo um “reino” (Ap 1.6,9; v.

Os mistérios prosperaram por volta do início

Em todo o li­

da era cristã, especialmente no século ii, porque

vro, há uma ênfase no governo régio de Deus (Ap

transmitiam a confiança de pertencer a uma po­

11.15,17; 12.10; 15.3; 19.6), em Cristo como “ o

sição mais elevada, a sensação de um relaciona­

r e i n o d e D e u s ).

Senhor dos senhores e o Rei dos reis” (Ap 17.14)

mento mais íntimo com a divindade e a esperança

e no governo exercido pelos santos (Ap 5.10;

de um estado de felicidade na vida futura. Em

20.4,6; 22.5).

comum com o cristianismo, os mistérios se ocu­ pavam com a salvação, mas para eles a salvação

5. Os mistérios

era livrar-se da sina e dos pavores da vida após

Os mistérios, cuhos secretos de que os não ini­

a morte, não do pecado. Nos mistérios, quando

ciados não podiam participar, eram um aspecto

ocorriam, “a morte e a ressurreição” das divin­

da rehgião grega clássica. Um dos mais antigos

dades estavam ligadas ao ciclo da natureza e não

e mais influentes eram os mistérios de Elêusis,

era uma ressurreição de verdade. A terminologia

celebrados em honra de Demétrio. Esse culto era

de mistério empregada pelo

um mistério local, no sentido de que a pessoa

o plano divino, anteriormente oculto, mas ago­

tinha de ir a Elêusis, lugar próximo de Atenas,

ra revelado. A iniciação cristã não era nenhum

para receber a iniciação.

também menciona

mistério. Nos mistérios, as abluções faziam parte

um lugar em que havia celebração de mistérios

do ritual prehminar de purificação do iniciado,

0

nt

nt

tem relação com

locais (At 16.11): a Samotrácia, onde se adoravam

não a iniciação propriamente, como é o caso do

a “Mãe dos deuses” e os cabiros (que no período

batismo cristão. Os mistérios eram bem caros e

romano foram confundidos com Dióscoro, Castor

eram para os poucos considerados merecedores,

e Pólux, divindades protetoras dos marinheiros,

ao passo que o cristianismo convidava a todos

At 28.11). Os mistérios de Dionísio também eram

(como o crítico pagão Celso observou, de acordo

conhecidos no período clássico e não se confina­

com

O r íg e n e s ,

Co Ce, 3.59).

vam a uma única localidade. Vários cuhos orientais, quando seus devotos

6. Outros aspectos

se tornavam parte do mundo grego, copiavam as

6.1

práticas gregas de iniciação nos mistérios. O culto

Delfos havia sido o mais importante local para

às divindades egípcias ísis e Osíris (no mundo

a comunicação divina no período clássico, mas

Oráculos e cura. 0 santuário de Apoio em

grego, esta foi substituída por Serápis) era bem

estava em declínio no início da era cristã, fato

difundido. Duas fontes do século ii atestam a

para o qual Plutarco procurou explicações (Sobre

popularidade dessas divindades: a interpretação

a obsolescência dos oráculos. Mo, 409E-438E).

filosófica do mito cultuai por Plutarco [Id e Os,

Sua influência foi parcialmente herdada pelos

12—21; Mo, 355D-359) e o relato circunstancial

santuários-filhos, em Claros e Dídima, na Ásia

da iniciação (sem revelar seus segredos) apresen­

Menor, e em Dafne, perto de Antioquia da Síria.

tado por Apuleio (Me, 11), que também descreve

Pouco antes do início da era cristã, os oráculos já

outros aspectos da rehgião.

não eram determinantes nas atividades políticas

Vários vestígios arqueológicos atestam a di­

e rehgiosas, mas continuaram a ser consultados

fusão dos mistérios de Mitra, especialmente nos

pelas cidades, em assuntos formais sagrados, e

séculos II e III d.C. Embora adorando o deus persa

pelas pessoas, em questões da vida pessoal. Del­

Mitra, parece que o mitraísmo romano não teve

fos também era conhecida pelo nome de Pito,

origem na religião persa. Mitra eía associado a

palavra derivada de Píton, a serpente que repre­

fenômenos astrológicos e_ era adorado como

sentava a deusa-terra, que foi morta por Apoio,

II092

R eligiões greco - r o m a n as

e a sacerdotisa de Apoio, por meio de quem os

preservada em papiros que muitas vezes parecem

oráculos eram comunicados, chamava-se Pítia.

conter os livros de instruções dos magos pratican­

Por esse motivo, “espírito de Píton” era expressão

tes tv. At 19.19).

empregada para designar o poder de pronunciar

0 termo “ magia” tem origem no nome de uma

mensagens oracuiares, como a adivinhação pela

tribo sacerdotal persa, e era empregado pelos gre­

jovem escrava em Atos 15.16.

gos para se referir a ritos e fórmulas estranhos,

Os sonhos eram considerados outra forma

passando depois a ser um termo semitécnico para

importante de comunicação divina, crença parti­

designar a atividade daqueles que eram conside­

lhada por pagãos e judeus e um meio comum de

rados magos. O uso da palavra em Atos 8.9-11

direção providencial no livro de Atos (At 10.10-15;

ilustra a associação da magia com o suposto con­

16.9,10; 23.11; 27.23,24).

trole de poderes sobrenaturais. 0 título de mago

Muitos dos santuários de cura eram na ver­

é dado a Barjesus (ou Elimas), também chamado

dade locais sagrados para oráculos. No mundo

de “falso profeta” em Atos 13.6,8. Um grande nú­

greco-romano, a mais importante divindade na

mero de pessoas do mundo greco-romano acre­

operação de curas era o herói Asclépio, filho de

ditava que os judeus possuíam poderes mágicos.

Apoio. Além de seu importante santuário em Epi-

Essa associação é evidente também no relato de

dauro, ele possuía locais de cura em Cós, Corinto,

Atos 19.11-20, que, como era de esperar, ocorreu

Atenas e Roma. Rivahzando com Epidauro, havia

em Éfeso, cidade conhecida como centro de ativi­

o santuário de Asclépio em Pérgamo (Ap 2.12-17;

dade mágica (v.

A r n o ld )

. 0 relato ilustra tanto o

que Aélio Aristides, orador do século ii,

emprego de fórmulas de restrição quanto a crença

exaltou em seu hvro Contos sagrados. 0 satirista

comum de que saber o nome de um poder sobre­

Luciano de Samósata, também do século ii, conta

natural conferia à pessoa controle sobre aquele

a história de Alexandre, o Falso Profeta, que criou

poder (At 19.13), mas também exemplifica o sig­

na Ásia Menor seu santuário de curas e oráculos

nificado diferente que “o nome do Senhor Jesus”

e iludiu muita gente, numa narrativa que revela a

tinha para os cristãos (At 19.15).

V. H e m e r ) ,

6.3

mentalidade religiosa da época e também a crítica

Demônios e superstições. À época do

racionalista do autor. Os santuários de Asclépio

período helenístico, a palavra daimõn passara a

costumavam agir em cooperação com a profis­

ser usada para designar seres divinos intermediá­

são médica a fim de realizar curas, mas também

rios, que podiam ser bons ou maus. Xenócrates,

se contavam histórias dos mais extraordinários

discípulo de Platão, havia classificado os vários

milagres. A expectativa de que o poder divino

tipos de demônios. No final do século i d.C., outro

operasse milagres de cura é evidente em várias

platonista, Plutarco, produziu considerável volu­

passagens de Atos (At 3.1-10; 8.4-7; 9.32-41; 14.8-

me de informação sobre demonologia. A tendên­

11; 28.8,9), mas esses relatos são mais comedidos

cia dos filósofos de culpar os seres intermediários

que as histórias que faziam propaganda de Asclé­

pelas coisas ruins e pelos aspectos menos acei­

pio e estão relacionados à obra salvadora de Jesus

táveis da rehgião pagã preparou terreno para

conforme transmitida por seus mensageiros.

os judeus e os cristãos, que se apropriaram de

6.2

Magia. A rehgião e a magia eram consi­ daimonion como designativo de seres espirituais

deradas distintas, mas não é fácil distingui-las

malignos (Tg 2.19; 3.15; Ap 9.20; 16.14; 18.2).

no mundo antigo. A despeito das leis contra a

0 termo deisidaimonia (“temor dos demô­

prática da magia, ela era bem disseminada. Num

nios”) tornou-se a palavra grega comum para

construto moderno um tanto artificial, quando a

indicar “ superstição” (v.

palavra “ magia” é aphcada à rehgião antiga, ela

perstição, Mo, 164E-171F). A palavra podia ter

designa os esforços de compelir forças sobrena­

sentido neutro, como ocorre com daimoniõn

P lu ta r c o ,

Sobre a su­

turais por meio de certos objetos materiais e fór­

( “deuses”) em Atos 17.18. Mas determinar se

mulas verbais. Tábuas de maldição procuravam

em Atos 17.22 Paulo está usando o vocábulo em

infligir castigo aos inimigos, e usavam-se amu­

sentido neutro ou em sentido negativo depende

letos para barrar ataques em potencial de forças

de sabermos se ele está fazendo uma observação

malignas. Uma extensa literatura de magia está

factual sobre a rehgiosidade dos atenienses ou se

1093

R e LISIÖES 5RECO-ROMANA5

está se identificando com a crítica dos filósofos à

Ver ta m b ém g n o s t ic is m o .

religião popular grega.

d n t b : C iv ic C u lts ; F e s tiv a ls a n d H o ly D a ys: G r e -

6.4

Astrologia e destino. A astronomia e a c o - R o m a n ;

I d o l a t r y , J e w is h C o n c e p t io n o f ; M a g i c a l

astrologia não eram distintas no mundo antigo.

P a p y r i;

A crença de que os movimentos absolutamente

p h e ts a n d P r o p h e c y ; R e lig io n , P e r s o n a l; R u le r C u lt ;

regulares dos corpos celestes controlam os acon­

T e m p le s , G r e c o - R o m a n .

M y s te r ie s ;

P o ly t h e is m ,

G re c o -R o m a n ;

P ro­

tecimentos terrenos em seus mínimos detalhes foi Ephesians:

desenvolvida pelos gregos no Egito durante a épo­

B ib lio g r a fia .

ca helenística e começou a ganhar popularidade

m agic. C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity Press,

A r n o ld , C. E.

no início do Império Romano. 0 imperador Tibé-

1989.

rio ficou tão absorto com a astrologia

early Christianity. 2.

( S u e t ô n io ,

[s n t s m s ,

1993.

63.)

• Ferguson, E.

p o w e r an d

Backgrounds of

ed. G ra n d R ap id s: E e rd m a ­

137-298.

The religions

Tibério, 69] que negligenciou a prática da religião,

ns,

mas poucos chegaram a esse ponto. 0 aspecto re­

o f the Roman Empire.

hgioso da astrologia teve origem na identificação

m a n life. Ithaca: C orn e h U n iv ersity Press,

dos planetas com as divindades tradicionais da

• Festugière, a .

p.

j.;

■ Ferguson, J .

A s p e c ts o f G ree k a n d R o­

Fabre, P.

1970.

Le monde gréco-

Grécia e de Roma, mas os planetas em si não re­

romain au temps de notre-Seigneur:

cebiam devoção rehgiosa. A astronomia instruída

spiritual. B ib h o th è q u e C a th o liq u e des Sciences

ofereceu uma nova cosmovisão, que fazia distin­

R eligieu ses

ção, de um lado, entre o mundo sublunar e os sete

Fish-wick,

7.2.

Paris: B lo n d & Gay,

le m ilieu

1935.

v.

2.



d. The imperial cult in the Latin West.

planetas, caracterizado por mudança e corrupção

L eid e n : E.

e, de outro lado, o mundo supralunar das estrelas

J. &

J.

1987-1992. 2

Brih,

v. ■ G ill,

D.

W.

W in te r, B. W . Acts a n d R om a n religion . In:

D.

&

The Book of

fixas, caracterizado por imutabilidade e perfeição.

G ill,

A astrologia tornou-se um dos principais susten­

Acts in its Greco-Roman setting.

táculos do conceito de um destino absoluto. Em­

E e rd m a n s,

bora alguns tenham acolhido abertamente essa

F. C ., org.

ideia, as religiões mais populares eram as que ofe­

o f R eligion . N e w York: L ib e ra l A rts Press,

reciam ao ser humano a oportunidade de se ver

■ ______ . Hellenistic religions:

livre do destino — os mistérios de ísis e de Mitra,

tism . T h e L ib ra ry o f R eligion . N e w York: L ib e ral

bem como o cristianismo.

A rts Press,

W . J.

Gempf, C ., orgs.

1994.

p.

79-103.

G ra n d R ap id s:

2.)

(b a f c s ,

Ancient Roman religion.

1953.

■ G ra n t,

T h e L ib ra ry

1957.

the a g e o f sy n cre­

• Hemer, C. J .

The letters to

the seven churches o f Asia in their local setting. 1986. [jsNTsup, 11.)

7. Observações finais

S h effield: j s o t ,

A serpente estava associada a muitas das divin­

Medicine, miracle and magic in New Testament

dades greco-romanas. Era uma dentre as várias

times.

C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity Press,

formas que Zeus assumia, em particular no cul­

1986.

■ M a c M u l l e n , R.

to doméstico. Uma serpente estava representada

Empire.

no escudo de Atena, a deusa padroeira de Ate­

1981.

nas, e uma serpente estava associada a Apoio,

a so u rc eb o o k . San Fran cisco: H arper,

em Delfos. A serpente enrolada num bastão era

N ils s o n ,

o símbolo de Asclépio, e, por causa da confusão

Zeit.

com as serpentes gêmeas do bastão de arauto em­

ligion.

punhado por Hermes, esse símbolo foi adotado

M ü n c h e n : C. H. Beck,

pela profissão médica. 0 espírito protetor das ca­

Conversion:

N ew

M . P.

Paganism in the Roman

H aven:

■ M eyer,

M .

• Kee, H. C.

Yale

U n iv ersity

Press,

The ancient mysteries:

W.

1987.



Die hellenistische und römische

I n : ________ .

Geschichte der griechischen Re­

H andbuch

d er

A lte rtu m sw is se n s c h a ft.

1950.

v.

2.

■ N o c k , A.

D.

the o ld a n d the n e w in re ligion from

sas gregas, o Agathos Daimon, era representado

A le x a n d e r the G reat to A u g u s tin e o f H ip p o . O x ­

na forma de serpente, e a serpente simbolizava

ford: C lare n d o n ,

o caráter — ou princípio de vida — da família

ligion and the Ancient World.

nos ahares das casas romanas. Considerando-se

O x fo rd : C lare n d o n ,

as associações biTjlicas entre a serpente e Satanás

Ritual and power:

(Ap 20.2), não é de espantar que para judeus e

A s ia M in or. C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity

cristãos a rehgião pagã era inspirada pelo Diabo.

Press,

1

094

1984.

1933.

• ________ .

1972. 2

Essays on re­

Ed.

Z.

Stew art.

v. ■ P r i c e , S. R. F.

the R om a n im p e ria l cult in

■ Smith, J .

Z. Drudgery divine:

on

Ressurreição i : Evangelhos

the comparison of early Christianities and the

A vida e a morte também eram basicamente rela­

rehgions of Late Antiquity. Chicago; University

cionadas a esta vida.

of Chicago Press, 1990. ■

U la n s e y ,

D. The ori­

Isso não significa que os israelitas acreditas­

gins o f the Mithraic mysteries. Oxford; Oxford

sem na aniquilação após a morte. 0

University Press, 1989. ■

A. J. M.

que, num sentido, a morte é a cessação da vida

Baptism and resurrection: studies in Pauhne

— por ocasião da morte, a pessoa retorna ao “pó”

W ed d erb u rn ,

at

sustenta

theology against its Greco- Roman background.

(Gn 3.19; Sl 90.3). Em outro sentido, não é o fim

Tübingen: J. C. B. Mohr, 1987.

absoluto da vida, pois a existência continua — E.

F ergu so n

por ocasião da morte, a pessoa desce ao Sheol (.sh‘ oí), termo que às vezes é sinônimo de “mor­

r e m a n e s c e n te d e I s r a e l.

Ver I s r a e l .

te” (Gn 42.38, nvi, nota de rodapé; Sl 89.48), “ se­ pultura” (Gn 37.35; Is 14.11) ou “além” (Ez 32.21,

re s g a te .

Ver s a lv a ç ã o .

ara;

talvez Sl 86.13). Em alguns casos, o texto diz

que os mortos habitam o Sheol como repãím, ou R e s s u r r e iç ã o i: E v a n g e l h o s

“sombras” (Pv 9.18,

Jesus pressupôs e ensinou uma doutrina escatoló­

Jó 88.10; Pv 9.18; Is 26.14 — no original dessas

gica da ressurreição dos mortos, ocasião em que

passagens, aparece a palavra repãím, “sombras”,

nvi,

nota de rodapé; Jó 26.5;

os ímpios seriam entregues para juízo e os piedo­

mas várias versões traduzem por “ morte” ou “es­

sos receberiam a vida eterna. Além disso, Jesus

pírito dos mortos”) — possivelmente uma exis­

realizou milagres de ressurreição e, como predis­

tência algo fantasmagórica e indistinta ou então

se, ele próprio foi ressuscitado dentre os mortos.

um sinônimo de “ mortos” (paralelos ugaríticos

Os Evangelhos consideram escatologicamente

favorecem a primeira opção). As referências aos

relevantes as duas categorias de acontecimentos.

repãím e ao Sheol sugerem uma ideia florescente

Todavia, enquanto as pessoas que Jesus ressus­

da vida após a morte.

citou dentre os mortos, tecnicamente falando, tornariam a enfrentar a morte, a ressurreição de

Contudo, embora o

at

não dê testemunho ex­

plícito de uma crença inicial na existência depois

Jesus dentre os mortos foi um acontecimento

da morte, ele não a nega. Além do mais, dois

de consequências cósmicas. Cada um dos auto­

personagens foram “tomados” para estar com

res dos Evangelhos apresenta esse acontecimento

Deus e não experimentaram a morte — Enoque

de maneira distinta, cada um desenvolvendo te­

(Gn 5.24) e Elias (2Rs 2.9-11). Conquanto não

mas próprios, mas juntos afirmando a reahdade

haja nessas narrativas uma reflexão teológica

do túmulo vazio e do Cristo ressuscitado e tam­

sobre as imphcações desses acontecimentos (le­

bém a importância escatológica desse aconteci­

mos: “Enoque [...] não foi mais visto, porque

mento único na missão de Jesus.

Deus 0 havia tomado”), o judaísmo posterior (cf.

1. Antecedentes pré-cristãos

Hb 11.5) interpretou essa passagem como uma

2. A ressurreição e o pós-vida nas declarações

“pressuposição” da vida eterna. O incidente em

de Jesus

ISamuel 28.1-25, em que Saul tenta consultar

3. Milagres de ressuscitação de mortos

Samuel por meio da médium de En-Dor, oferece

4. A ressurreição de Jesus nos quatro Evan­

indícios adicionais da crença popular de que a

gelhos

morte não era o fim da existência. Vários textos do

at

afirmam a ressurreição

1. Antecedentes pré-cristãos

no sentido de uma preservação coletiva, não de

1.1 A ressurreição no at. Os dados fornecidos

uma vida individual após a morte. Por exemplo,

pelas Escrituras hebraicas indicam que Israel

Oseias 6.2 diz: “Depois de dois dias, ele nos re-

não refletiu muito sobre a questão da vida após

vivificará; no terceiro dia nos levantará, e vivere­

a morte, senão mais tarde, no período do

Em

mos diante dele”. Semelhantemente, Oseias 13.14

vez disso, destacavam o envolvimento de Javé

promete: “Eu os redimirei do poder da sepultu­

nesta vida. Entendia-se que a bênção do justo e

ra; eu os resgatarei da morte” (nw). Em ambos

0 castigo dos perversos ocorriam na era presente.

os casos, o ato de Israel ser redimido do exílio é

a t.

1 095

KESSURREIÇÃO i: tVANGELHOS

simbolizado no livramento da morte (exílio) para

os “moradores da terra” , mas não mencionam ne­

a vida (restauração nacional). Da mesma forma,

nhuma ressurreição para juízo. Oferecendo me­

a famosa visão dos ossos secos que passam a vi­

nos certeza sobre o assunto, temos Isaías 53.10.

ver, registrada por Ezequiel, representa a restau­

Essa passagem diz que, depois de receber “uma

ração de Israel como nação (Ez 37.1-14). Outras

sepultura com os ímpios” (Is 53.9), o Servo de

passagens têm sido empregadas como prova de

Javé (v.

uma esperança de ressurreição, porém elas pa­

prolongará os seus dias”. A maioria concorda em

recem se referir a livramentos de situações que

que os termos “prolongará os seus dias” se refere

trazem risco de morte (Dt 32.39; ISm 2.6).

ã vida eterna, mas não há certeza se esse cântico

A pergunta básica é feita em Jó 14.14: “Quan­ do o homem morre, por acaso voltará a viver?”.

S ervo

de Javé)

“verá a sua posteridade,

se referem a um indivíduo ou a um personagem coletivo, ou seja, ã nação ou ao remanescente.

Uma resposta cautelosa aparece na réplica de Jó a

A fé na ressurreição, que é atestada nos pro­

Bildade: “Eu sei que o meu Redentor \gô e/] vive

fetas, tem seu clímax em Daniel 12.1-3,13. Aqui

e que por fim se levantará sobre a terra. Depois,

aparece a primeira declaração exphcita acerca de

destruído o meu corpo, então fora da carne verei

uma ressurreição dos justos e dos injustos: “Mui­

Deus” (Jó 19.25,26). É provável que o “redentor”

tos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão,

seja Deus e que o momento do livramento seja

uns para a vida eterna, e outros para vergonha e

após a morte, dessa forma constituindo um reco­

desprezo eterno” (Dn 12.2). Não há certeza se a

nhecimento de crença na vida após a morte.

palavra “ muitos” se restringe a Israel ou ao rema­

0 hvro de Salmos contém muitas declarações

nescente justo (“ muitos entre os que dormem”)

semelhantes. A crença na ressurreição é eviden­

ou faz referência a uma ressurreição geral ( “mui­

te em Salmos 49.15 e implicitamente em Salmos

tos, a saber, aqueles que dormem”). 0 versícu­

16.10 e 73.24, embora sem qualquer especulação

lo 13 acrescenta a promessa de que “descansarás,

quanto ã forma que a vida após a morte assumi­

e receberás a tua herança no final dos dias”.

rá. G. E. Ladd afirma:

Concluindo, o

at

destaca a presença de Deus

nas questões cotidianas desta vida e, desse modo, A esperança baseia-se na confiança no po­

tende a não dar atenção ã questão da vida após a

der de Deus sobre a morte, não numa ideia

morte. Apesar disso, o

de algo imortal no homem. Os salmistas não

calado a respeito desse assunto, e várias passa­

at

não se mantém de todo

fazem reflexão sobre qual parte do homem so­

gens demonstram que, num período posterior da

brevive ã morte — sua alma ou seu espírito

história de Israel, a crença na ressurreição tor-

— nem existe reflexão alguma acerca da natu­

nou-se mais explícita. Duas ideias sobressaem; 1)

reza da vida após a morte. Existe apenas a con­

uma associação próxima entre o aspecto coletivo

fiança de que nem mesmo a morte é capaz de

e o individual da ressurreição (i.e., restauração

destruir a reahdade da comunhão com o Deus

nacional e ressurreição individual); 2) um víncu­

vivo

lo entre a ética e a escatologia (i.e., a ressurreição

(L a d d ,

p. 47)

associada com recompensa e castigo). Os profetas dão testemunho adicional da crença numa ressurreição. Na seção denomina­

1.2

Desenvolvimentos intertestamentários.

Conquanto a hteratura judaica intertestamentária

da Apocahpse de Isaías (Is 24.1—27.13), existem

ofereça testemunho da existência de um núme­

duas declarações, Isaías 25.8 e 25.19. A primeira

ro bem maior de especulações sobre a vida após

diz que Javé “aniquilará a morte para sempre” e

a morte, não se percebe nenhuma uniformidade

é empregada por Paulo para referir-se ã ressur­

nas ideias expressas. G. E. Ladd explica que, em

reição (ICo 15.54). Isso conduz ã afirmação de

parte, isso se explica pela ênfase do judaísmo na

Isaías 26.19: “Os teus mortos viverão, os seus

Torá e na ortopraxia (prática correta), não na or­

corpos ressuscitarão; despertai e exultai, vós que

todoxia (doutrina correta)

habitais no pó”. Entretanto, essa ressurreição se

(L a d d ,

p. 52).

De fato, à semelhança dos saduceus dos dias

restringe ao povo de Deus. Os dois versículos se­

de Jesus (v.

guintes (Is 26.20,21) falam da ira de Deus sobre

2.1—3.8), alguns judeus não acreditavam na

1i096

J o s e fo ,

An, 18.1.4, § 16; At 4.1,2;

R e s s u r r e iç ã o

i;

Evan g elho s

ressurreição. Em seu primeiro livro, Jesus ben-

de Israel. Daí surgiu uma variedade de pontos de

Siraque escreveu que, por ocasião da morte, a

vista, refletidos nas crenças dos vários partidos

pessoa habita no Sheol, um lugar de sono sem

ou seitas que compunham o judaísmo da época

fim [Eo 30.17; 46.19) e de silêncio (Eo 17.27,28),

de Jesus. Os saduceus rejeitavam qualquer ideia

e a imortalidade se restringe à nação e ao bom

de vida depois da morte (At 23.8; 26.8;

nome da pessoa (Eo 37.26; 39.9; 44.8-15).

An, 18.14; b. Sanh., 90b). Os fariseus ensinavam

J o s e fo ,

Outros textos revelam a influência do helenis­

que na era vindoura haveria uma ressurreição e

mo, referindo-se à vida pós-morte como a imorta­

recompensa eterna para Israel, excluindo-se ape­

lidade, sem vinculá-la a uma ressurreição física.

nas os apóstatas (At 23.6-8; b. Sanh., 90b; b. Ke-

Ao descrever os mesmos sete mártires mencio­

tub., 111b). Pelo que se pode apurar dos rolos de

nados em 2Macabeus, 4Macabeus aparentemente

Qumran, não é clara a ideia dos essênios sobre o

se refere a uma imortahdade da alma enquanto

assunto (v.

2Macabeus fala de uma ressurreição física (cp.

ma que eles sustentavam a imortalidade da alma

m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o ) .

Josefo afir­

An, 18.1.5, § 18), porém muitos estudio­

4Mc 10.15 com 2Mc 7.14; v. tb. 4Mc 9.22; 16.13;

(J o s e fo ,

18.23). De modo semelhante. Sabedoria de Salo­

sos alegam que a ideia de fiéis habitando com os

mão diz que os justos encontrarão paz (Sb 3.1-4)

anjos (IQS 2.25; IQH 3.19-23; 11.10-14) deve ser

e uma existência incorruptível (Sb 2.23,24; cf.

entendida como a experiência dos sectários nesta

5.5; 6.19; v.

vida, em vez de uma esperança escatológica.

F ilo ,

Op mu, 135; Gi, 14). No últi­

mo hvro de Enoque [lEn, 91— 104; observe-se que os cinco livros contêm ideias diferentes so­

2. A ressurreição e o pós-vida nas

bre o assunto), à primeira vista o texto parece

declarações de Jesus

sugerir uma ressurreição física (e.g., lEn, 92.3-5;

Jesus seguiu a tradição que ia de Daniel até os fa­

104.2,4), mas em lEnoque 103.4 ficamos sabendo

riseus, ensinando que haveria uma dupla ressur­

que os “espíritos” (humanos) é que “viverão e se

reição: os justos para a recompensa e os ímpios

regozijarão” e “não perecerão”.

para o juízo. Embora um estudo aprofundado de

Dentre os textos que mencionam a ressurrei­

crítica da tradição esteja além do escopo deste

ção, alguns a restringem a Israel ou aos “ santos”

verbete, é proveitoso examinar, da perspectiva da

[lE n, 22.13; 46.6; 51.1,2; Sl Sa, 3.11-16; 13.9-11;

crítica das fontes, o ensino de Jesus acerca do

14.4-10; 15.12-15), ao passo que vários textos a

assunto (v. 2.1

partir do século i dão testemunho de uma crença na

P r o b le m a S in ó t ic o ) .

Declarações da tradição tríplice. 0 deba­

ressurreição dos justos e dos ímpios (4Ed 4.41-43;

te mais claro sobre o ensino de Jesus acerca da

7.32-38; cf. Te Be, 10.6-9; 2Ap Br, 49.2— 51.12;

ressurreição é encontrado na tradição tríplice que

85.13). Embora não se possa ignorar a possibi-

relata a controvérsia entre Jesus e os saduceus

hdade de influência ou de interpolação cristã, a

(Mc 12.18-27 par. Mt 22.23-33 e Lc 20.27-38).

ressurreição dos justos e dos ímpios é, em essên­

Mesmo os que defendem que a forma final é um

cia, uma ideia basicamente judaica, refletindo a

desenvolvimento catequético posterior aceitam

escatologia de Daniel 12.2,3. Finalmente, é pos­

como autêntica a primeira afirmação ( “como os

sível encontrar um conceito extremamente litera-

anjos”). Lucas, em particular, ressalta o contras­

hsta da ressurreição corpórea em 2Macabeus, que

te entre “os filhos deste mundo” e “ os que são

fala não somente de ressuscitar o corpo, mas até

julgados dignos de alcançar o mundo vindouro

mesmo da restauração de membros ou outras par­

e a ressurreição dentre os mortos” (Lc 20.34,35),

tes do corpo que estiverem faltando (2Mc 7.10,11;

referência inconfundível a ideias escatológicas

14.46). De forma semelhante, os Oráculos sibili-

acerca de uma vida depois da morte. Contudo,

nos declaram que o corpo ressuscitado terá a exa­

a principal questão é o significado da expressão “como os anjos nos céus”. Alguns, com base

ta forma do corpo terreno (Or si, 4.176-182). Fica claro que o judaísmo intertestamentário

nessa expressão, concluem que Jesus acreditava

revelou um interesse muito maior no assunto da

numa ressurreição espiritual, não numa ressur­

vida após a morte do que a Bíblia hebraica, sempre

reição física, ou que, à semelhança de algumas

girando em torno do tema da confirmação divina

correntes do judaísmo, ele tinha a ideia de que

1097

nos céus nâo existiria lembrança da existência

Jn 2.1), ou pode ser simplesmente uma referência,

anterior. Entretanto, isso vai além do sentido que

por parte de Jesus, a um breve periodo de tempo.

a passagem tem em mente, uma vez que a ex­

Além dessas predições diretas, em numerosas

pressão está estabelecendo um contraste entre o

passagens paralelas Jesus pressupõe sua ressur­

casamento na terra e o casamento no céu, em vez

reição futura, como Marcos 9.9 (a ordem de não

de estabelecer a condição do corpo ressuscitado.

contar a ninguém acerca da transfiguração "...

Declarações acerca da recompensa e do juízo

até que o Filho do homem ressuscitasse dentre

também aparecem na tradição tríplice. Em geral,

os mortos”); 12.10,11 (“A pedra que os construto­

entende-se que a indagação do jovem rico em

res rejeitaram, tornou-se a pedra angular”); 13.26

“Que

( “ Então 0 Filho do homem será visto vindo nas

farei para herdar a vida eterna?” — é um desejo

nuvens, com grande poder e glória”); 14.25 (“...

Marcos 10.17 (par Mt 19.16 e Lc 18.18) -

de “entrar no reino” em sua presença concretizada

até o dia em que o [i.e., o cáhce escatológico] be­

(v.

Embora isso sem dúvida seja

ber, novo, no reino de Deus”); 14.28 (“... depois

parte do significado, não esgota a ideia básica. A

da minha ressurreição irei adiante de vós para a

declaração flnal de Jesus em Marcos 10.30 (par.

Galileia”); 14.62 ( “... vereis o Filho do homem

REINO DE D e u s ).

Mt 19.29 e Lc 18.30) — "... e no mundo vindouro,

assentado à direita do Poderoso, vindo com as

a vida eterna” — forma um emolduramento (m-

nuvens do céu” [v.

F i l h o d o h o m e m ]).

clusió] com a pergunta do jovem e claramente se

Uma das profecias mais notáveis de Jesus não

refere ã vida após a morte. Em Marcos 10.17,30 e

aparece em Lucas, mas está indiretamente registra­

passagens paralelas, a expressão “a vida eterna”

da em Marcos 14.58 e 15.29, com um paralelo em

tem conotação presente e futura. No entanto, a

Mateus 26.61 e 27.40 e diretamente em João 2.19:

ressurreição para o juízo aparece na advertência

“Destruí este santuário, e eu o levantarei em três

sobre a geena registrada em Marcos 9.43,45,47

dias”. João 2.21,22 exphca que os discípulos não

(par. Mt 18.8,9; omitida em Lucas). Empregando

entenderam essa profecia direta acerca da ressur­

sucessivas metáforas de mãos, pés e olhos, Jesus

reição física, senão depois da ressurreição (ironi­

convoca os discípulos a uma resistência disciplina­

camente, de acordo com Mt 27.63, os principais

da contra a tentação, para que a pessoa não seja

sacerdotes e os fariseus interpretaram a palavra

lançada “para o inferno, para o fogo que nunca se

profética corretamente antes dos discípulos). Em

apaga” (Mc 9.43; cf. Mt 18.8, “fogo eterno” ; tanto

suma, de acordo com os Evangelhos Jesus espera­

Mc 9.43 quanto seu paralelo em Mateus acentuam

va ser confirmado pela ressurreição.

a segunda pessoa do singular, “tu”). 2.2

2.3

A tradição da fonte

q.

A tradição

q

con­

As predições da Paixão de Cristo. A tra­ tém ensino semelhante. 0 “ sinal do profeta

dição mais bem conhecida é a predição tríplice

Jonas” (Mt 12.39-42 par. Lc 11.29-32) é problemá­

da Paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.33,34 e par.). No

tico porque só Mateus emprega uma referência

entendimento de muitos intérpretes, essas pas­

enigmática à ressurreição como explicação para o

sagens são vaticinium ex eventu (profecias es­

sinal (“ três dias e três noites no coração da terra” ,

critas depois do acontecimento), mas a ausência

Mt 12.40). Mas, assim como Mateus acrescentou

do tipo de elaboração teológica encontrada nos

ao seu texto a declaração da fonte o, é igualmente

credos (e.g., “por nossos pecados” , “segundo as

provável que Lucas tenha omitido a declaração de

Escrituras” e a exaltação do tema) torna mais pro­

Q

vável que sejam reminiscências históricas. Nos

seus leitores teriam com “três dias e três noites”. Também existem várias passagens de

três relatos, é constante a predição de Jesus de que “ depois de três dias” de sua morte ele seria

a respeito da ressurreição, pela dificuldade que q

a res­

peito de recompensa e castigo finais, como aquelas

confirmado com sua ressurreição. 0 tema dos três

encontradas no Sermão do Monte, em Mateus. No

dias (cf. ICo 15.4) pode estar reflefindo Oseias

final da exortação à vigilância (Mt 24.40-44 par. Lc

6.2 (“no terceiro dia nos levantará, e viveremos

17.34-37), encontramos três breves parábolas em

diante dele”), uma alusão mais genérica ao tema

seqüência (homens no campo, mulheres traba­

veterotestamentário do terceiro dia como um

lhando no moinho, dois na cama) que demonstram

dia de livramento (cf. Gn 22.4; 42.17,18; Is 2.16;

que “um será levado, e o outro, deixado”. Essas

II 098

R e s s u r r e iç ã o

i:

Ev an g e lh o s

palavras constituem uma dura advertência acerca

que quem convida os pobres (v.

da separação repentina e inesperada por ocasião

za)

da parusia (cf. Mt 24.44; cf. Lc 12.40) entre os que

ressurreição dos justos” (Lc 14.14). Ainda que

recebem salvação e os que serão condenados no

nâo haja nenhum agradecimento nesta vida. Deus

r iq u e z a s e p o b r e ­

e os aleijados receberá sua recompensa "na

juízo final. Esse contraste fica ainda mais eviden­

confirmará as boas ações quando chegar o fim. A

te na parábola dos dois servos (Mt 24.45-51 par.

chave é uma vida de atitude de serviço, que busca

Lc 12.41-46), em que o servo fiel conquista uma

0 lugar de menos prestígio, em vez de um assen­

participação na autoridade futura de Jesus, ao pas­

to mais importante (Lc 14.8-11), que se preocupa

so que 0 servo mau será “cortado” rodapé; “castigar”,

ara )

[n v i,

nota de

e posto entre os infiéis.

com os que não têm nada ou têm muito pouco, nâo com os que já são ricos (Lc 14.12-14).

Finalmente, Mateus 10.28 e Lucas 12.5 acrescen­

Esse tema é levado adiante na parábola do

tam outra declaração sobre o geena, a saber, que

rico e Lázaro (Lc 16.19-31). 0 rico, que indubi­

0 discípulo não deve temer aquele que é capaz de

tavelmente teve um funeral grandioso, é descri­

matar o corpo, mas “aquele que pode destruir no

to em frases sucintas: “morreu e foi sepultado”,

inferno tanto a alma como o corpo”. Essas passa­

indo para o Hades

gens mostram que Jesus aceitava o que Daniel 12.2

pobre, que aparentemente nem chega a ser se­

diz acerca da ressurreição dos bons e dos maus,

pultado, é bem diferente: ele "foi levado pelos

uns para a aprovação e outros para o juízo.

anjos para junto de Abraão”. Nessa parábola, há

2.4

As tradições das fontes

peculiar a Mateus

e

l.

. A vida após a morte do

0 material duas ênfases simultâneas: a inversão de papéis

acrescenta al­

na ressurreição final e a exigência de uma fé ra­

guns dados. Na tradição m, o juízo será universal:

dical na mensagem do reino. Advertências seme­

tanto os bons quanto os maus, “no dia do juízo,

lhantes sobre o juízo final são dirigidas aos ricos

[...] terão de prestar contas de toda palavra inútil

e a todos os discípulos em Lucas 3.7-14; 6.24-26;

(m )

e a Lucas

m

[n v i]

(l)

que proferirem” (Mt 12.35-37). Embora o destaque

12.16-21,32-34,42-48; 16.8,9. Não se pode for­

esteja em “palavra inútil” ou maligna, o que se

çar demais as imphcações dessa parábola para a

tem em mente é o ser “absolvido” ou “condena­

doutrina do pós-morte. O quadro de um “Hades”

do” por tudo que se tiver dito (Mt 12.37). Duas

dividido em compartimentos nâo mostra de fato

outras palavras tratam da separação radical que

“como ele é” ; trata-se de um aspecto da parábola

ocorrerá entre o crente e o descrente por oca­

provavelmente oriundo de alguma concepção ju­

sião do juízo final. A parábola do joio, em Ma­

daica popular acerca do Sheol.

teus 13.24-30,36-43, ensina que só “no fim do mundo” (Mt 13.40) haverá separação entre os

2.5

A tradição joanina. A tradição joanina

contém poucas referências à ressurreição nos

perversos e os bons, aqueles destinados à “for­

ensinos de Jesus e da igreja primitiva. Embora

nalha de fogo”, e estes, ã glória (Mt 13.42,43). A

o quarto Evangelho apresente uma escatologia

parábola dos bodes e das ovelhas (também deno­

reahzada, num consenso crescente os estudiosos

minada “o juízo das nações”) apresenta um tema

têm detectado uma escatologia futura dentro des­

semelhante, mas acrescenta que o juízo também

sa matriz joanina característica (v.

será determinado pela maneira em que as nações

lh o d e ).

tiverem tratado o povo de Deus (“pequeninos”,

a hora em que todos os que estão nos sepulcros

João, E vange­

Em João 5.28,29 Jesus declara que “virá

Mt 25.40,45). A recompensa dos misericordiosos

ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem fei­

será a “herança, o reino que vos está preparado

to 0 bem, para a ressurreição da vida, e os que

desde a fundação do mundo” (Mt 25.34); o cas­

tiverem feito o mal, para a ressurreição da con­

tigo para os que não demonstrarem misericór­

denação”. 0 contexto apresenta Jesus como o

dia será “o fogo eterno, preparado para o Diabo

Juiz escatológico no presente (Jo 5.19-24) e no

e seus anjos” (Mt 25.41).

futuro (Jo 5.25-30). E em João 6.40,44,54 — num

Várias passagens

mostram o tema lucano da

contexto que destaca a soberania conjunta do Pai

inversão dos papéis por ocasião da ressurreição fi­

e do Filho no processo de salvação (cf. “jamais

nal. Na conclusão das instruções sobre a conduta

morrerá”, Jo 11.25,26) — Jesus afirma por três

l

apropriada nos banquetes (Lc 14.7-14), Jesus diz 1

vezes que ressuscitará os fiéis “no úhimo dia”. 099

R e s s u r r e iç ã o

i

: Evangelho s

0 outro lado se vê em João 12.48, em que o

Com base na declaração de Jesus: “A menina

incrédulo é advertido de que a própria palavra de

não está morta, mas dormindo” , muitos intérpre­

Jesus “o julgará no ultimo dia”. Finalmente, em

tes entendem que esse é um milagre de cura. En­

João 14.2,3 Jesus garante que está preparando

tretanto, a inclusão de detalhes como o choro e

um “ lugar” para seus discípulos e promete vol­

lamento de luto dos parentes e pranteadores pro­

tar para levá-los, a fim de que possam estar com

fissionais apontam para a realidade da morte da

ele. Alguns interpretam essa passagem como uma

menina. De acordo com o comentário de Jesus, o

ao retorno do

Paráclito/EspíRiTO S a n t o

milagre é um indicador teológico da realidade de

como representante de Jesus, mas o consenso

um “ despertamento” dentre os mortos. Nos Sinó­

referência

algum tem­

ticos, essa história faz parte de um complexo de

po, Bultmann e outros alegaram que um escriba

milagres (a tempestade acalmada, o endemoni­

posterior acrescentou essas passagens futuristas,

nhado geraseno) que demonstram a autoridade

mas que passagens realizadas como João 12.31 e

messiânica de Jesus sobre todos os poderes terre­

16.11 (a afirmação de que “o príncipe deste mun­

nos e celestiais. Até mesmo o poder derradeiro da

do já está condenado”) são originais. Contudo,

morte é vencido por ele.

é que Jesus se refere

à

parusia.



não há motívo para que as duas não possam estar

3.2 O filho da viúva. Um segundo relato

lado a lado, com uma inter-relação entre a salva­

é a tradição lucana, segundo a qual Jesus traz

ção presente e a promessa futura.

de volta à vida o filho de uma viúva de Naim

0 ensino de Jesus enquadra-se na tradição

(Lc 7.11-17). Fazendo lembrar a ocasião em que

contínua que vai de Daniel até os fariseus, dan­

Ehas trouxe de voUa à vida o filho de uma viúva

do testemunho da ressurreição física do povo de

(IRs 17.8-24), a passagem de Lucas também faz

Deus para a recompensa e da ressurreição dos

parte de uma seção que trata do ininistério pro­

ímpios para o juízo final.

fético de Jesus (observem-se a cura do filho do

3. Milagres de ressuscitação de mortos

Batista em seguida). 0 relato do milagre conclui

Jesus declarou sua crença na ressurreição não

com expressões de surpresa e deslumbramento,

apenas mediante suas palavras, mas também por

indicadas na exclamação do povo: “Um grande

intermédio de seus feitos. Em certo sentido, não

profeta se levantou entre nós” e especialmente

foram ressurreições verdadeiras, e sim milagres

na declaração de que “Deus visitou o seu povo”

centurião pouco antes e o diálogo acerca de João

de ressuscitação, pois as pessoas ainda enfren­

(Lc 7.16). A última exclamação faz eco ao Cân­

tariam a morte mais tarde. Entretanto, os Evan­

tico de Zacarias (Lc 1.68,78) e ao tema lucano

gelhos tratam-nas como sinais da ressurreição

do livramento salvífico. O poder de Jesus sobre

vindoura de Jesus, prova do controle de Deus {e

a vida e a morte é apresentado de forma vívida. 3.3 Lázaro. A ressuscitação de Lázaro (Jo 11.1-

de Jesus) sobre o poder da morte. 3.1

A filha de Jairo. O milagre de ressuscitação 44) é o último e mais espantoso milagre-sinal do

com testemunho mais amplo é o da filha de Jairo.

denominado Livro dos Sinais do Evangelho de

Encontrado na tradição tríphce (Mc 5.21-24,35-43

João (Jo 1.19— 12.50). Também funciona como

par. Mt 9.18,19,23-26 e Lc 8.40-42,49-56), em to­

uma transição para o Livro da Glória (Jo 13.1—

dos os três relatos esse milagre é entremeado com

20.31), em que a trama dos líderes judeus está

a cura da mulher com hemorragia. 0 ato de passar

claramente vinculada a esse acontecimento (cf.

da cura para a ressuscitação mostra Jesus como

Jo 11.53; 12.17-19).

Senhor tanto sobre as doenças crônicas quanto

Dentre os denominados milagres de ressur­

sobre a morte. 0 interesse úhimo é cristológico,

reição, a ressuscitação de Lázaro é a mais cla­

procurando demonstrar o senhorio de Jesus. 0

ramente ligada à questão da vida após a morte.

fato de Jairo — o dirigente ou presidente de uma

Isso se torna evidente no diálogo entre Jesus

sinagoga e homem de grande prestígio social e

e Marta (Jo 11.20-26) e na sua conexão com o

religioso — se prostrar diante de Jesus era surpre­

tema joanino da vida eterna como ressurreição

endente para um leitor do século i e indicava que

(cf. 5.19-30). Em João 11.21,25,43,44, Jesus de­

Jesus era um profeta designado por Deus.

monstra a presença da ressurreição tanto agora

1 100

R e s s u r r e iç ã o

(os espiritualmente mortos ouvem sua voz e vi­

i:

Evan g elho s

4. A ressurreição de Jesus nos quatro

vem, Jo 11.25) quanto no futuro (os que estão

Evangelhos

no túmulo saem, Jo 11.43,44). Isso toma forma

4.1 A ressurreição em Marcos. Com o crescente

concreta em Lázaro — Jesus o ressuscita como

consenso entre os estudiosos dos Evangelhos de

uma clara amostra da ressurreição final — e é

que 0 Evangelho de Marcos termina em Marcos

destacado na justaposição da confissão de Mar­

16.8, com as palavras ephobounta gar (“porque

ta (“Sei que ele ressuscitará na ressurreição, no

temiam” ,

último dia” , Jo 11.24) e na ousada afirmação de

ser considerado uma obra-prima da hteratura (v.

Jesus ( “Eu sou a ressurreição e a vida”, Jo 11.25).

M a r c o s , E v a n g e lh o d e ).

Aliás, João 11.25 é o clímax de João 5.21: “Assim

ver Marcos 16.1-8 como uma conclusão brilhante

a r c ],

o

texto de Marcos 16.1-8 veio a Além do mais, é possível

como 0 Pai ressuscita os mortos e concede-lhes

do Evangelho como um todo, conduzindo a um

vida, assim também o Filho concede vida a quem

chmax os dois temas principais de Marcos; a epi­

ele quer”. Jesus é posto em pé de igualdade com o

fania oculta de Jesus como Messias e Filho de

Pai, por ser aquele que concede “a ressurreição e

Deus; o discipulado, particularmente o problema

a vida”, unindo assim os temas joaninos da esca­

do fracasso nessa tarefa.

tologia reahzada (ressuscitar, i.e., trazer à vida os

A primeira unidade (Mc 16.1-4) combina tra­

espiritualmente mortos) e da escatologia futura

dição com redação marcana. É possível encontrar

(a ressurreição do último dia).

tradição pré-marcana nos nomes das mulheres

3.4

Os santos. Finalmente, a enigmática res­ e na ida ao túmulo ao alvorecer. Entrementes, a

suscitação dos santos em Mateus 27.51-53 oferece

narrativa toda está concatenada com o estilo de

uma ponte teológica que vai da cruz ao túmulo

Marcos e apresenta alguns de seus temas bási­

vazio. No que pode ser uma alusão ã visão do vale

cos, particularmente o equívoco das mulheres.

de ossos secos (Ez 37.1-14, esp. 13,14, “ quando

As observações cronológicas proporcionam uma

eu vos abrir as sepulturas e vos fizer sair, [...] vi­

transição importante da Paixão de Jesus para a

vereis”), o conciso relato oferece um sumário dos

ressurreição. A ação passa dos acontecimentos

resultados da morte (o juízo e a derrota dos po­

terríveis da “véspera do sábado” (Mc 15.42) para

deres da morte; v.

Jesu s, m o r te d e )

e ressurreição

(a ressuscitação dos santos mortos e sua aparição

a decisão de, “passado o sábado” , levar especia­ rias e então para a ida ao túmulo.

na cidade santa) de Jesus. Desse modo a Paixão

Os nomes também dão continuidade ao relato.

e a ressurreição de Jesus estão inextricavelmente

Na narrativa da Paixão em Marcos (Mc 15.40,47;

ligadas, constituindo um acontecimento único na

16.1) são citados três nomes: Maria Madalena,

história da salvação, e o resuUado, na ressurrei­

Maria e Salomé aparecem em Marcos 15.40 e 16.1,

ção e na união dos verdadeiros “santos” de Deus,

e as duas Marias em Marcos 15.47. Lucas acrescen­

tanto do passado quanto do futuro, está assegu­

ta Joana (Lc 24.10), ao passo que Mateus menciona

rado por esse feito sobrenatural.

apenas as duas Marias (Mt 28.1; embora Mt 27.56

A questão da historicidade desses milagres está além do escopo deste verbete (v. 1990, para argumentos a favor; v. gumentos contra; v.

P e r k in s

par. Mc 15.40 acrescentem “mãe dos filhos de Zebe-

H a r r is ,

deu”) . É provável que a tradição e a redação estejam

para ar­

aqui outra vez combinadas. A chave para descobrir

E v a n g e l h o s , c o n f i a b i l i d a d e h is ­

o propósito de Marcos encontra-se no uso do termo

Pode se afirmar, no entanto, embora

theorein em cada hsta com os nomes, dessa forma

de forma não definitiva, que Jesus ressuscitou os

tornando as mulheres testemunhas oficiais da cru­

mortos como resultado de sua função profética e

cificação (Mc 15.40), do sepultamento (Mc 15.47) e

messiânica e que isso foi prenúncio da ressurrei­

do túmulo vazio (Mc 15.47).

t ó r ic a d o s ).

ção dele próprio (v.

m ila g r e s , r e l a t o s d e m i l a g r e s ) .

A aquisição de especiarias para ungir o cor­

Os milagres de ressuscitação dos mortos per­

po de Jesus tem paralelo tanto na compra feita

meiam todas as tradições por trás dos Evangelhos

por José de Arimateia, em Marcos 15.46, quanto

(Marcos,

na unção (que apontava para a morte de Jesus),

m, l ,

João, possivelmente o), e é possível

defender sua historicidade com base no critério

em Marcos 14.3-9. Nesse contexto isso é irôni­

da atestação múltipla.

co, pois as conotações messiânicas das unções

1 101

R e s s u r r e iç ã o

i;

b v A N G E iH O S

anteriores, as quais significavam que a morte de

refere a uma expectativa da parusia, não a uma

Jesus era o ato em que ele assumiria a função

aparição do Cristo ressuscitado, mas tal afirma­

de Messias régio, tornam a última unção desne­

ção é improvável, tendo em vista a ausência de

cessária. Jesus não apenas se tornou o Messias,

um tema de glória e o fato de que em Marcos

mas já ressuscitou, de modo que não haverá mais

tanto a Gahleia quanto a promessa “ o vereis” estão ligadas ã ressurreição, não ã pa­

unção. Ironia e equívocos continuam existindo

(p p s e s th e )

não apenas no desejo das mulheres de ungir o

rusia. “Gahleia” aparece treze vezes em Marcos,

corpo de Jesus, mas também por não saberem o

geralmente no contexto da missão de Jesus e do

que fazer diante da necessidade de obter ajuda

sucesso dessa missão (cf. Mc 1.14,28,39; 3.7;

para remover “a pedra da entrada do sepulcro”

15.41). Existe, portanto, uma promessa implícita

(Mc 16.3], a qual era “muito grande” (Mc 16.4].

de que o fracasso dos discípulos será superado

Um intervalo narrativo ocorre na voz passiva “A

e que a responsabilidade será passada adiante,

pedra [...] já havia sido removida” (Mc 16.4),

dando-se assim início ã missão da igreja. Isso é

prenunciando a intervenção sobrenatural do anjo

ainda exemplificado na tradição pré-marcana (cf.

(Mc 16.5; Mt 28.2 indica que o anjo foi o agente).

Lc 24.34; ICo 15.5] de dizer “a seus discípulos, e

Em resumo. Marcos 16.1-4 gira em torno do mal­

a Pedro” , o que pode muito bem indicar o retorno

entendido das mulheres (que desempenham um

dos discípulos a essa condição.

papel no tema marcano do discipulado) e leva o

Isso torna o final de Marcos ainda mais sur­

leitor a prosseguir até a intervenção divina, a úni­

preendente. 0 leitor esperaria que o medo tives­

ca capaz de solucionar o dilema.

se acabado em Marcos 15.6, mas aqui o medo

A mensagem angehcal (Mc 16.5-7] também

toma conta das mulheres e as leva a desobedecer

reflete tanto a tradição (a angelofania, a exor­

ã ordem do anjo. Contudo, não se destaca o ato

tação a não ter medo, a repreensão implícita, a

de desobediência, mas o impacto entorpecedor

proclamação básica da ressurreição e do túmulo

da surpresa avassaladora. Em todos os sentidos.

vazio) quanto a redação (o fato de flcarem “com

Marcos 16.8 conclui o tema marcano do fracasso

medo” , a designação “ Nazareno” para Jesus, a

no discipulado, pois as mulheres formam paralelo

ordem de ir para a Gahleia). O “segredo messiâni­

com muitas cenas de surpresa, sUêncio e equívo­

co” , parcialmente desvendado na exclamação do

co por parte dos discípulos (e.g., Mc 6.52; 8.14-

centurião romano, em Marcos 15.39 (“É verdade,

21; 9.6,32; 10.32). Se Marcos 16.8 fosse avaliado

este homem era o Filho de Deus!”], agora está

isoladamente, a conclusão seria incrivelmente

totalmente revelado. A surpresa das mulheres e a

negativa: ficaríamos apenas com a advertência

ordem do anjo para não temerem pertencem ao

de que os discípulos de hoje não repitam o fra­

gênero literário da epifania, e a mensagem é uma

casso dos discípulos e das mulheres. No entanto,

fórmula querigmática que remove qualquer dúvi­

a mensagem real de Marcos reside na interação

da sobre quem seja o “ Nazareno” , confirmando

entre Marcos 16.7 e Marcos 16.8. As aparições na

a importância das três predições da Paixão rela­

narrativa da ressurreição não estão relacionadas

cionadas com o “Filho do homem”. Há de novo

entre si porque a ênfase de Marcos recai sobre

uma tensão introduzida no contraste entre o ob­

a presença do Ressuscitado na Gahleia. Surpresa

jetivo piedoso, porém marcado pela ignorância,

e fracasso são experiências bem reais para cada

das mulheres ( “Procurais [alguém que] não está

discípulo, mas Jesus está a postos para remover o

aqui”) e a importância estupenda da reahdade da

medo e assegurar o sucesso na missão.

ressurreição, conforme anunciada.

4.2

A ressurreição em Mateus. Mateus segue

A promessa de Marcos 16.7 — de que os dis­

0 esboço básico de Marcos, mas acrescenta uma

cípulos verão Jesus na Gahleia — é a chave para

boa quantidade de material próprio, basicamente

a narrativa de Marcos e está intímamente asso­

a narrativa dos guardas do sepulcro (Mt 27.62-66;

ciada ã promessa de Marcos 14.28 (cf. Mc 9.9) de

28.4,11-15] e o relato da aparição de Jesus na

que o equívoco e o fracasso dos discípulos seriam

Gahleia (Mt 28.16-20). Ao fazê-lo, deu feitio a

revertidos numa experiência na Galileia. Alguns

um episódio com o emprego de dois conjuntos

(e.g., W.

de cenas em contraste, demonstrando assim a

M arxsen )

entendem que a promessa se

1 102

R e s s u r r e iç ã o

intervenção de D eu s contra todas as tentativas

i: E v a n g e l h o s

ungir o corpo de Jesus, ressaltando, em vez dis­

de obstruir seu p lan o de salvação. Esse p lan o

so, 0 tema do testemunho (cf. Mt 27.56,61). No

segue u m a estrutura p arecida com a da n arra­

contexto mateusino, o gesto simples de reverên­

tiva da in fân cia e ta m bém d a Paixão, as quais,

cia por parte das mulheres é posto em contraste

p ara M ateus, apologeticam ente giram em torno

com a intriga dos sacerdotes.

d o p od e r divin o q u e vence todos o s obstáculos.

É notável a intervenção sobrenatural de Deus

E m M ateus, a n arrativa da ressurreição tam bém

nas duas cenas de Mateus 28.2-4 e 28.5-10.

d estaca os tem as gêm eos de autoridade e m issão/

Mateus tem predileção por essas cenas escato­

com issionam en to, e m pregan d o o tem a do reco­

lógicas (v. as cenas do terremoto [seismos], em

n hecim ento e d a com preen são. Tudo isso é u m

Mt 8.24 e 27.51, e as dos anjos, em Mt 1.20,24

su m ário d os tem as principais q u e caracterizam o

e 2.13,19) a fim de destacar o irrompimento da

Evangelho

Mateus. E n qu an to M arco s se con cen ­

era messiânica mediante atos diretos de Deus. O

tra n o fracasso d os discípulos, em cad a episódio

terremoto estabelece a continuidade com a cru­

(e.g., M t

8.21).

de

24.27-32;

cf. M c

6.52;

Mt

16.12;

v. tb.

cificação (Mt 27.51). A exemplo de Atos 16.26

M ateu s m ostra q u e a p resença de Jesus

e Apocalipse 6.12, 8.5 e 16.18, não é tanto um

perm ite q u e os discíp ulos su perem seu fracasso

símbolo de juízo, porém mais um sinal positivo

Mc

e v e n h am a com p reen d er a situação. A cena da

do livramento divino. 0 ato em que o anjo rola a

ressurreição faz esse desen volvim en to culm inar

pedra e se assenta sobre ela tem nuances apoca­

n o tem a do d iscipulado.

lípticas (cf. Mt 28.3, que faz paralelo com Dn 7.9;

O primeiro conjunto de cenas em contraste

10.6; lEn, 71.1; Ap 1.14,15; 10.1), descrevendo o

(Mt 27.62—28.10) cria uma oposição entre a tra­

alvorecer de uma nova era. O túmulo se abriu,

ma em que os sacerdotes designam guardas para

permitindo que todos testemunhassem o triunfo

o túmulo e o lacram e o ato soberano de Deus de

de Deus.

ressuscitar Jesus dentre os mortos. Sem dúvida,

Mateus claramente se distancia da descrição

existem fortes nuances editoriais na narrativa

simples de Marcos. No entanto, é possível ver sua

dos guardas em Mateus 27.62-66 e também nos

moderação, fazendo-se uma comparação entre

episódios relacionados de Mateus 28.4,11-15.

Mateus 28.2-4 e a narrativa trabalhada do Evan­

Contudo, isso não significa ausência de tradição

gelho de Pedro 9.35-45, em que dois anjos ajudam

por trás do relato. A existência de tal tradição é

o Senhor ressuscitado a sair do túmulo, “e a ca­

sugerida pelo vocabulário não mateusino, como

beça de ambos chegava aos céus, mas a daquele

epaurion, paraskeuê, planos e asphalizõ. Além

que foi conduzido pelas mãos deles transcende

do mais, ao contrário do que possa parecer ã

os céus”. Mateus dehberadamente evita descrever

primeira vista, os problemas históricos como a

a ressurreição em si. A reação dos guardas, que

probabihdade de os sacerdotes irem a Pilatos no

ficam apavorados, “como mortos” de medo, é o

dia de sábado não são tão difíceis de resolver.

“ testemunho” negativo (o de adversários do pla­

Pesquisas sobre as exceções para o dia de sá­

no de Deus) às nuances teofânicas da cena. Esse

bado na época de Jesus mostram que poderia

não é o temor causado pela reverência (como o

haver permissão para algo desse tipo, desde que

das mulheres, Mt 28.8), mas o pavor que só os

a pessoa não percorresse mais que a distância

inimigos de Deus sentem.

de um dia de sábado nem entrasse no palácio

A mensagem do anjo (Mt 28.5-7) está mais

(cf. Jo 18.28). É provável que Mateus tenha de­

próxima de Marcos. Há, contudo, diferenças sig­

senvolvido a tradição acerca do pedido de que

nificatívas na redação. Mateus substitui o “não

se pusessem guardas no túmulo, feito pelos sa­

tenhais medo” de Marcos por “não temais” , pro­

cerdotes, a fim de rebater as acusações de que

vavelmente para acentuar o contraste com o pa­

0 corpo havia sido roubado e para destacar o

vor dos guardas. Ele também liga o anúncio da

poder soberano de Deus na ressurreição, ape­

ressurreição de Jesus diretamente às predições da

sar de todas as maquinações dos judeus. Mateus

Paixão, acrescentando; "... como havia falado”.

também evitou a ênfase de Marcos no fato de

Marcos emprega esses termos depois de mencio­

as mulheres terem um objetivo equivocado ao

nar que Jesus iria adiante deles para a Gahleia,

1 103

R e s s u r r e iç ã o

i:

Evan gelho s

mas a essa altura, na narrativa de Mateus, o anjo

não existe outra ordem assim); “mas alguns du­

conclui, dizendo: “ Eu vos avisei”. Com essa afir­

vidaram” (importante tradição sobre a ressurrei­

mação, ele destaca a autoridade do mensageiro

ção, mas aparentemente fora de lugar aqui); “no

comissionado por Deus. Desse modo, o encontro

céu e na terra” (expressão não encontrada em

na Galileia torna-se mais diretamente o resultado

nenhum outro lugar em Mateus). Entretanto, o

da proclamação do anjo que a promessa de Je­

hnguajar e os temas são tão mateusinos que é

sus (como em Marcos). O surpreendente final de

impossível fazer separação entre edição e tradi­

Marcos é radicalmente mudado por Mateus, que

ção (nem iríamos querer limitar a fidedignidade

em Mateus 28.8-10 diz que as mulheres, “com te­

histórica a uma delas).

mor e grande alegria” , saíram dali e “correram

Mateus concatenou cuidadosamente o todo,

para contar tudo aos discípulos”. A aparição de

a fim de oferecer um sumário de muitos dos te­

Jesus às mulheres é atestada independentemente

mas importantes de seu Evangelho. Alguns pon­

em João 20.11-18 e tem origem na tradição. Mas

tos interessantes aparecem na introdução, como

é possível observar que elementos mateusinos

o encontro numa montanha, algo importante

são destacados: “alegria” (cf. Mt 2.10; 13.20,44;

em Mateus como local de revelação (cf. Mt 4.8;

25.21,23), “adoração” (Mt 2.2,11; 4.9,10; 8.1;

5.1; 8.1; 14.23; 15.29; 17.1; 21.1), e a existência

9.18; 14.33; 15.25) e “meus irmãos” , que, numa

de dúvida na adoração dos discípulos. O últi­

única palavra, indica que os discípulos, que ha­

mo elemento provavelmente dá prosseguimen­

viam caído, foram perdoados e estavam sendo re­

to ao tema mateusino “ homens de pequena fé”.

conduzidos à sua condição de discípulos (cf. um

No

destaque semelhante em Jo 15.11-17; 20.17). A

em Mateus 14.31, em que Jesus repreende seu

repetição da ordem para ir para a Gahleia é a pre­

discípulo: “ Homem de pequena fé, por que du­

paração da cena apoteótica de Mateus 28.16-20.

vidaste?” Mas os discípulos respondem: “Verda­

0 segundo conjunto de contrastes é o existente

NT,

a palavra distazõ ocorre somente aqui e

deiramente tu és 0 Filho de Deus” (Mt 14.33). É

entre o plano maligno de disseminar mentiras (Mt

provável que a dúvida signifique incerteza, em

28.11-15) e a Grande Comissão da verdade divi­

vez de incredulidade, e que esta seja parte da

na (Mt 28.16-20). A ironia do embuste planejado

mensagem do primeiro Evangelho: hesitar espi­

pelos sacerdotes é óbvia: agora eles são forçados

ritualmente em meio à adoração é a luta cons­

a proclamar exatamente o que haviam tentado

tante de cada discípulo. Só é possível achar a

evitar em Mateus 27.62-66 (i.e., a possibilidade

resposta quando se aphca a promessa inerente

de que o corpo de Jesus fosse roubado). Fica ex­

em Mateus 28.18-20.

plícita a apologética de Mateus contra essa polê­

O termo-chave da Grande Comissão é “tudo”

mica judaica (observe-se o “até ao dia de hoje” ,

— “toda autoridade”, “todas as nações” , “todas

Mt 28.15).

as coisas” , “todos os dias”. Em muitos aspectos,

A apropriadamente denominada Grande Co­

essa breve homiha pode ser intitulada “A totalida­

missão de Mateus 28.16-20 pertence ao gênero de

de de Javé”, transmitida à missão dos discípulos

narrativas de comissionamento, vistas com fre­

por meio da presença do Ressuscitado no meio

quência no AT e na literatura judaica. Esse gênero

deles. A “autoridade [...] concedida no céu e na

consiste em duas partes: uma introdução narrati­

terra” a Jesus é um reflexo de Daniel 7.14, e, por

va (Mt 28.16-18a) e uma frase tríphce, composta

esse motivo, o Ressuscitado é descrito como o Fi­

de uma declaração de autoridade (Mt 28.18b),

lho do homem exaltado, que agora tem autoridade

um comissionamento (Mt 28.19,20a) e uma rea­

universal sobre todo o reino de Deus. No Evan­

firmação da presença contínua do Ressuscitado

gelho de Mateus, a autoridade de Jesus agora se

(Mt 28.20b). É bem provável que o episódio se ba­

estende a todo o reino, tanto o celestial quanto o

seie numa tradição, visto que faz paralelo com co­

terreno. A missão de discipular “todas as nações”

missionamentos semelhantes, em Lucas 24.47-49

(ideia possivelmente também associada a Dn 7.14)

e João 20.21-23, e contém elementos que apon­

ecoa a participação da igreja na missão de que

tam para uma fonte na tradição: foram “para o

Deus incumbiu Jesus, a qual se hmitava a Israel

monte que Jesus lhes designara” (em Mateus,

(Mt 10.5,6; 15.24), mas agora se estende a toda

1 104

R e s s u r r e iç ã o

i:

Evan g elho s

a humanidade. É bastante debatido se ethns (“ na­

por uma mudança, com as aparições se concen­

ções”, “povos”] se refere apenas à missão gentílica

trando em Jerusalém, não na Galileia. Para Lucas,

(por causa da costumeira restrição do termo aos

isso proporciona ao relato um ponto geográfico

gentios] ou se o acréscimo de pas (“todas”] impU-

central, em que Jerusalém se torna tanto uma

ca a inclusão de Israel entre essas nações. Vários

conclusão (para a vida e o ministério de Jesus)

estudos recentes sobre o escopo da missão univer­

quanto um princípio (para a missão contínua da

sal em Mateus entendem que a última interpre­

igreja). A narrativa de Lucas é uma preparação

tação é a mais provável. Além disso, em Mateus

para o livro de Atos, de modo que a ressurrei­

24.9,13 e 25.32 (as outras três passagens em que a

ção oferece uma transição do ministério de Jesus

expressão “todas as nações” ocorre] a expressão se

para o da igreja primitiva. Conforme muitos têm

refere a “todos os povos” , inclusive o povo judeu.

ressaltado, uma perspectiva de história da salva­

Há dois aspectos concomitantes do processo

ção percorre todo o texto. Além disso, há uma

de discipulado; batismo e instrução. 0 manda­

forte ênfase credal, seguida de comentários que

mento do Jesus ressurreto torna-se o fundamento

elucidam a importância dos acontecimentos da

do batismo cristão, visto aqui como uma entrada

perspectiva do cumprimento profético (Lc 24.5-

“no” (aqui Mateus, que normalmente faz distin­

7,25-27,44-47). Por fim, há uma acirrada polêmica

ção entre as preposições eis e en, emprega eis) se­

em torno da dúvida e da realidade da ressurrei­

nhorio e na comunhão da divindade trina. Existe

ção. É evidente o destaque ao testemunho, que

um tom mateusino na fórmula trinitária, resumin­

inclui provas da ressurreição, mas isso enfrenta

do os relacionamentos Pai-Fílho (Mt 3.17; 11.27)

constante perplexidade e incredulidade. Lucas

e Filho-Espírito (Mt 3.11,16; 12.32). 0 segundo

apresenta esses temas de forma linear, com to­

aspecto, o ensino, também é a conclusão de um

dos os acontecimentos ocorrendo em quatro eta­

tema principal. 0 Evangelho de Mateus está or­

pas no mesmo dia: o túmulo vazio (Lc 24.1-12),

ganizado em torno de cinco grandes unidades de

a estrada de Emaús (Lc 24.13-35], a aparição aos

discursos (5— 7; 10; 13; 18; 23—25], e o discipu­

discípulos durante uma refeição e o comissiona­

lado em si é definido como uma resposta ética às

mento deles (Lc 24.36-49) e a ascensão aos céus

exigências de Jesus. Como em Mateus 5.17-20 e

(Lc 24.50-52).

24.35, 0 ensino de Jesus é apresentado como as

A narrativa do túmulo vazio (Lc 24.1-12]

palavras normativas de Javé e como o cumpri­

acompanha em geral a sequência de Marcos,

mento da Torá (v.

Torá do Messias chegou,

porém introduz algumas interessantes mudan­

e nessa nova era o discípulo obedecerá a “todas

ças na redação. É objeto de debate se Lucas em­

Lei). A

as coisas” que Jesus ordenou.

prega Marcos e acrescenta material

A resposta obediente do discípulo ao ensino de

l

(a entrada

das mulheres no túmulo, os dois anjos, a apari­

Jesus tem como paralelo a promessa da presença

ção a Pedro, em Lc 24.12,34] ou se faz uso de

contínua de Jesus, a qual se desenvolve a partir de

uma fonte não marcana, inserindo alguns deta­

promessas anteriores de Jesus como o Emanuel,

lhes marcanos. Seja como for, a redação lucana é

ou “Deus conosco” (Mt 1.23], e como aquele que

evidente. Ele apresenta uma longa exposição dos

está presente sempre que houver “dois ou três reu­

preparativos feitos pelas mulheres e do descanso

nidos” (Mt 18.20, am). Aqui vemos a solução para

no sábado (Lc 23.54-56), com quatro observações

a “pequena fé” de Mateus 28.17, a saber, que a po­

cronológicas (Lc 23.54a,54b,56; 24.1) que unem

derosa presença do Ressuscitado os sustentaria na

0 fato do sepultamento e do túmulo num todo

fraqueza. Além do mais, essa presença será cons­

histórico-salvífico. A ênfase não é tanto no equí­

tante “até o final dos tempos”. Muitos têm dado a

voco das mulheres (como em Marcos), porém

essa passagem o nome de “parusia proléptica” por

mais na obra de Deus por trás dos acontecimen­

causa das nuances apocalípticas (uma vez mais,

tos. A ação conduz à declaração direta, em Lucas

com base em Dn 7.14) em que a vinda futura ou

24.3, de que as mulheres “ não acharam o corpo”

final de Jesus é mediada pela igreja.

no túmulo. 0 papel das mulheres como testemu­

4.3

A ressurreição em Lucas. Em Lucas e em nhas é desenvolvido: elas “viram” não apenas o

João, a abordagem básica da ressurreição passa

túmulo, mas “como o corpo havia sido colocado

1 105

R essurreição i : Evangelhos

ali” (Lc 23.55), e depois foram testemunhas do

o intuito de dar maior destaque à função das

túmulo vazio. A importância disso se vê na obser­

mulheres como testemunhas da reahdade da res­

vação de Lucas segundo a qual esse era “o corpo

surreição. Contudo, o resultado é inesperado; os

do Senhor Jesus” (embora seja uma “ não inter­

“apóstolos” (em seu Evangelho, Lucas emprega

polação ocidental” , ausente na famíha de manus­

seis vezes esse título, em contraste com uma

critos ocidentais, que normalmente faz aherações

ocorrência em Mateus e duas em Marcos, para

arriscadas, a maioria dos estudiosos concorda em

realçar a continuidade entre os discípulos e o gru­

que a expressão “ do Senhor Jesus” faz parte do

po apostóhco de Atos) não apenas expressaram

texto original). Isso introduz a característica teo­

dúvida, como também “não lhes deram crédito” ,

logia lucana da glória logo no início da narrativa

considerando o testemunho das mulheres “um

da ressurreição.

delírio”.

Em Lucas 24.3, a perplexidade das mulheres

Essa incredulidade é um tema destacado na

se transforma em respeito temeroso (Lc 24.4),

narrativa de Lucas sobre o túmulo vazio, prepa­

pois agora existem dois anjos com vestes resplan­

rando para a superação da dúvida mediante a

decentes (tradição pré-lucana, cf. Jo 20.12). A

presença direta do Ressuscitado no episódio se­

mensagem em si (Lc 24.5-7) desvia-se da forma

guinte. Para realçar ainda mais esse tema, Lucas

marcana. O temor delas não é mitigado, mas o

incorpora (outra “ não interpolação ocidental” ,

que ocorre constitui, sim, um desafio e uma pro­

que hoje a maioria dos estudiosos aceita como

clamação da reahdade decisiva da ressurreição.

autêntica) outro episódio proveniente da tradição

Nesse pronunciamento, “ Galileia” não é o lugar

(o hnguajar revela similaridade com Jo 20.3-10)

em que Jesus se encontrará com eles, mas o local

sobre a ida de Pedro ao túmulo (Lc 24.10). 0

em que ele havia anunciado sua Paixão e ressur­

fato de Pedro sair “admirado” do túmulo silen­

reição. Em Lucas, a Gahleia é o lugar do testemu­

cia parcialmente a incredulidade dos discípulos

nho autorizado — as próprias mulheres são da

e ao mesmo tempo conclusivamente, pois Pedro

Gahleia (Lc 8.1-3) — e em Atos 1.11 e 13.31 os

fornece a continuidade entre a confusão das mu­

discípulos galileus dão testemunho das aparições

lheres em Lucas 24.4 e a surpresa dos viajantes

em Jerusalém. Em outras palavras, o centro da

em Lucas 24.44. A fé plenamente desabrochada

atenção desloca-se do futuro para o passado, e a

surge apenas depois da intervenção soberana do

repetição da predição da Paixão em Lucas 24.7,

próprio Ressuscitado (Lc 24.16,31).

que tem suas raízes em Lucas 9.22,44 e 18.31-33,

Essa luta de fé prossegue na viagem pela estra­

enfatiza a ideia de cumprimento de promessa. Em

da de Emaús, segundo o relato de Lucas 24.13-35.

Lucas 24.8, as mulheres “ se lembraram das suas

É difícil detectar a interação entre tradição e

palavras” , ênfase lucana que aponta para uma fé

edição, visto que esse relato aparece apenas em

que está despertando (em oposição a

no

Lucas. No entanto, embora haja uma boa dose

plano salvífico de Deus (especialmente em sua

de edição lucana, pouquíssimos estudiosos iden­

hgação com a “necessidade” [dei, “importa que”]

tificariam essa passagem como uma composição

D illo n )

divina de Lc 24.7; cf. Lc 1.54,72; At 11.16). A

livre. É provável que uma forma pré-lucana desse

compreensão que passam a ter as induz a rela­

relato tenha constituído a base para uma porção

tar “ todas essas coisas” (não apenas a mensagem

do apêndice acrescentado mais tarde em Marcos

do anjo, mas o fato de que elas próprias foram

(Mc 6.12,13), e que os nomes “Emaús” e “Cleo-

testemunhas do túmulo vazio). Ao contrário de

pas” tivessem sido improváveis numa história

Mateus e Marcos, isso não acontece em resposta

criada livremente. A maioria dos estudiosos crí­

a um comissionamento angehcal (algo omitido

ticos aceita um núcleo histórico por trás do todo.

em Lucas), mas é o resuhado direto da fé que

Visto nesse contexto mais amplo, surgem

rapidamente nelas brotava (o que se vê no padrão

vários temas. Como acontece com frequência

“e [...] e [kai... kai]”, encontrado em Lc 24.8,9).

em Lucas, a geografia domina a estrutura. Nes­

Lucas reserva a hsta de nomes para esse ponto

se caso, a viagem “ [saindo] de” Jerusalém se

da narrativa (chegando a acrescentar “outras

caracteriza pela derrota; a volta “a” Jerusalém,

que também estavam com elas” , Lc 24.10), com

pelo testemunho e pela vitória. A guinada que

1 106

R essurreição i ; Evangelhos

ocorre com a instrução de Jesus se dá enquanto

uma reminiscência da Últíma Ceia (cf. Lc 22.19).

estão “no caminlro”. A realidade da ressurreição

Entretanto, o tema pode ser mais genérico, sim­

é o objetivo do relato, sendo Lucas 24.28-32 o clí­

ples alusões às cenas lucanas de refeição ou de

max não apenas desse episódio, mas também da

com unhão

narrativa do túmulo vazio. Essa realidade recebe

Jesus (Lc 5.29; 7.36; 11.37; 12.37; 13.29; 14.1,8,9;

destaque especial na prova baseada nas profecias

22.14;

(Lc 24.25-27), quando Jesus mostra que é mais

co mil], que também tem paralelos nessa passa­

que um profeta poderoso (a crença dos viajan­

gem). No geral, é possível que ambos os aspectos

V.

a

m es a ,

que aparecem nas instruções de

esp. Lc 9.10-17 [a alimentação dos cin­

tes, Lc 24.19), sendo na verdade o cumprimen­

se encontrem aqui, principalmente quando se

to da visão profética de um Messias sofredor e

percebe que a eucaristia era uma cena de refeição

glorificado.

nos Evangelhos. Contudo, não podemos ser dog­

0 movimento em direção à compreensão é

máticos a respeito disso, e pode ser que o texto

realizado empregando-se um tema de não reco­

queira ressahar a comunhão à mesa, não a eu­

nhecimento/reconhecimento. Na primeira me­

caristia. A ênfase final recai sobre o testemunho

tade do relato, os viajantes estavam “como que

e encerra esse tema, indo da increduhdade em

impedidos de [...] reconhecer” (ar a ) a Jesus, de­

Lucas 24.11 para a resposta de fé em Lucas 24.34.

talhe que faz lembrar a necessidade que os discí­

É interessante que o testemunho dos dois discí­

pulos tiveram de revelação divina para entender

pulos não produz fé; pelo contrário, confirma a

as predições acerca da Paixão (Lc 9.45; 18.34).

fé que resultou do relato da aparição a Simão. Ou

Sem dúvida, o propósito de Lucas é levar o lei­

seja, a realidade da ressurreição é confirmada por

tor a abrir os olhos por meio da proclamação da

meio de um testemunho duplo; o de Pedro e o

Palavra (Lc 24.25-27,32) e do partir do pão (Lc

dos dois discípulos.

24.30,31,35). A palavra falada controla a narrativa

No Evangelho de Lucas, a aparição de Jesus

de Lucas 24.17-27 e inclui um sumário dos acon­

ocorre em Jerusalém, não na Gahleia. Os estu­

tecimentos do túmulo, aprofundando a confissão

diosos têm debatido exaustivamente sobre o sig­

de que Jesus “foi profeta, poderoso em obras e

nificado do contraste entre a tradição da aparição

palavras” (Lc 24.19; cf. Lc 24.20-24) e o tema do

na Galileia e a da aparição em Jerusalém, espe­

cumprimento das Escrituras (Lc 24.25-27).

cialmente pelo fato de não aparecerem juntas em

Muitos veem aqui um paralelo com o relato

nenhum relato dos quatro Evangelhos (Jo 21 é

do eunuco etíope de Atos 8.26-39, em que cada

um apêndice, acrescentado mais tarde — v. abai­

relato segue um padrão: um estranho exphca a

xo) . Muitos acreditam que a tradição da Galileia

Palavra ao viajante e conduz a conversa. Entre­

é anterior, visto que é encontrada na tradição

tanto, a instrução em Lucas 24 é, na realidade,

mais antiga (Mc 14.28; 16.7). Entretanto, não é

“pré-evangelização”, pois, embora se diga que o

uma conclusão necessária, pois até mesmo em

coração deles “ardia” enquanto Jesus expunha as

Mateus, em que a aparição na Gahleia está no

Escrituras (Lc 24.32), o partir do pão é o ponto

centro dos acontecimentos, existe uma aparição

decisivo do episódio de Emaús. É nesse momento

— às mulheres — que diz respeito a “Jerusalém”

que Deus age soberanamente, abrindo os olhos

(Mt 28.8-10). Os interesses editoriais dos Evange­

dos viajantes (observe-se o passivo divino, i.e.,

lhos podem ter sido motivo suficiente para que

a voz passiva que tem Deus como agente: “ os

concentrassem a atenção numa tradição apenas.

olhos deles foram abertos”, Lc 24.31, fazendo

C. F. D. Moule (1957, 1958) apresenta a tese bem

contraponto a “os olhos deles estavam como que

plausível de que, na condição de peregrinos para

fechados, de modo que não o reconheceram”,

a festa, os discípulos teriam permanecido em Je­

Lc 24.16).

rusalém para a Festa dos Pães sem Fermento (daí

É objeto de debate se aí está implícita uma

as aparições de Mt 28.9,10; Lc 24.13-49; Jo 20.11-

celebração eucarístíca. Alguns entendem “partir

29), retornado à Gahleia no período entre as

o pão” como expressão técnica designativa da

festas (Mt 28.16-20; Jo 21) e finalmente volta­

eucaristia (At 2.42; 20.7; ICo 11.20), e a ordem

do a Jerusalém para o Pentecostes (a ascensão,

dos acontecimentos em Lucas 24.30 pode ser

Lc 24.50-53; At 1.6-11).

1 107

R essurreição i : Evangelhos

A aparição registrada em Lucas 24,36-43

Salmos é usado com frequência em Atos (cf.

gira em torno da realidade física da ressurrei­

At 2.25,26,34,35; 4.11,25,26; 13.33-35) para sus­

ção. Do ponto de vista estrutural, encontra-se

tentar a ênfase credal na humilhação-confirma-

intimamente ligada a Lucas 24.13-35, pois Je­

ção. 0 comissionamento aprofunda a pregação

sus aparece enquanto os Onze estão discutindo

missionária com temas soteriológicos. Ahás, con­

o relato dos dois viajantes. Aqui uma tradição

forme assinalado por Marshall, os termos “arre­

pré-lucana está outra vez por trás da história.

pendimento” (cf. Lc 5.32; 13.3,4; 15.7,8; 16.30;

Isso flca evidente na aparição propriamente dita

17.3,4), “perdão dos pecados” (cf. Lc 1.77; 3.3;

(testemunhada por três outras fontes diferentes

5.20,21; At 2.38; 5.31; 10.43) e “pregar” (Lc 3.3;

— ICo 15.5; Mc 16.14,15; Jo 20.19,20); nas in-

4.18,19,43,44; 8.39; 9.2; 12.3) resumem na práti­

junções do Ressuscitado; “Paz seja convosco!”

ca a doutrina lucana da salvação. Essa missão é

(cf. Jo 20.19,21,26); no “ Coloca aqui o teu dedo

para ser feita “em seu nome” (expressão lucana

e vê as minhas mãos” (cf. Jo 20.27); no tema da

que denota poder e autoridade no desempenho

dúvida; na prova apologética.

da missão), “a todas as nações” (a missão uni­

A saudação de “paz” (Lc 24.36) possui nu­

versal), “começando de Jerusalém” (a origem da

ances teológicas, estabelecendo paralelo com a

missão, apontando para At 1— 5). Cada expressão

“paz” dos Setenta e Dois na missão que realiza­

visa ao desencadeamento da missão da igreja em

ram (Lc 10.5,6) e possivelmente incluindo o mes­

Atos (observe-se que a concatenação de “Jerusa­

mo tipo de promessa messiânica, como se vê na

lém” , “testemunhas” e “ poder” ocorre de novo

saudação “Paz seja convosco!”, de João 20. Em

em At 1.8, que é o sumário do hvro de Atos).

seguida, o texto passa a destacar a dúvida dos

Em Lucas, a ascensão fornece uma transição

discípulos, 0 que se vê nos sucessivos verbos de

estrutural do Evangelho de Lucas para o hvro

Lucas 24.37,38; assustar-se, atemorizar-se, acre­

de Atos. De fato, é possível apresentar uma boa

ditar ver um espírito, perturbar-se, duvidar. Esse

justificativa para o fato de que a ascensão tem

é um desdobramento surpreendente depois da fé

sido 0 objetivo do texto desde Lucas 9.31, quan­

que demonstraram em Lucas 24.31-35, mas se

do Jesus, Moisés e Elias falaram da “ partida” de

trata de uma preparação para a inesperada prova

Jesus [êxodos], “ que estava para acontecer em

que Jesus apresenta de sua ressurreição em Lu­

Jerusalém”, algo mais que natural para a ascen­

cas 24.39-43. 0 movimento do ver para o tocar e

são (cf. Lc 9.51). Em Lucas 24.50-53 a ascensão

depois para o comer uma refeição real com eles

assume um caráter doxológico, quando Jesus

ressalta, e muito, a continuidade entre o Cristo

profere uma bênção sacerdotal. Em Atos 1.6-11,

crucificado e o ressuscitado (mostrando suas

a ascensão tem imphcações eclesiásticas, pois

mãos e pés com as cicatrizes dos pregos), bem

o Senhor ressuscitado capacita os discípulos e

como a corporeidade da ressurreição ( “Um espíri­

inicia a missão da igreja. Em Lucas, a ascensão

to não tem carne nem ossos, como percebeis que

indica um fim; em Atos 1, marca um começo.

eu tenho” , Lc 24.39; comer peixe, Lc 24.43). Na

Assim termina o tema da glória de Jesus em Lu­

interpretação de alguns, isso revela que Lucas es­

cas 24. O Senhor ressuscitado agora é exaltado e,

tava interessado em refutar a heresia docética em

como Elias, é elevado ao céu. Uma transição adi­

sua igreja, mas o que o Evangehsta quer é des­

cional para o hvro de Atos se vê nos discípulos,

tacar a natureza do Cristo ressuscitado (“Sou eu

que adoram e “com grande alegria” retornam a

mesmo” , Lc 24.39), não refutar um ensino falso.

Jerusalém, permanecendo “continuamente” no

Acena do comissionamento, em Lucas 24.44-49,

templo (Lc 24.52,53). Cada um desses temas —

funde a tradição litúrgica de Lucas 24.44 (esta­

adoração, júbilo e templo — é importante tanto

belecendo paralelo com os sermões de Atos), a

no Evangelho de Lucas quanto em Atos. Os dis­

tradição de comissionamento de Lucas 24.47

cípulos e a igreja dão prosseguimento ao minis­

(como Mt 28.19; Jo 20.21) e a tradição acerca do

tério de Jesus nessas áreas. 4.4

Espírito de Lucas 24,49 (como Jo 20.22). 0 tema

A ressurreição em João. Nos Evangelhos

do cumprimento recapitula Lucas 24.6,7,25-27,

Sinóticos, a ressurreição caracteriza o ápice da

mas acrescenta Salmos ã Lei e aos Profetas.

vida de Jesus: é ao mesmo tempo confirmação

1108

R essurreição i : Evangelhos

e exaltação, e em certo semido os relatos dos

e também a aparição a Maria — tem raízes na tra­

Evangelhos prenunciam a ressurreição. João, no

dição. Em João 20.1-10, ocorre uma mudança su­

entanto, vai na direção oposta. Todo o seu Evan­

til, abandonando-se o emprego que Mateus, com

gelho é narrado do ponto de vista pós-ressurrei-

objetivos polêmicos, faz da crença de que o corpo

ção. A ressurreição não é o momento em que

de Jesus havia sido roubado. Nesse caso, não se

Jesus assume sua doxa, isto é, sua glória, porque

trata de uma apologética, mas de parte do tema

toda a sua vida e seu ministério consistem em

do equívoco entre os seguidores de Jesus: é Ma­

doxa. Os discípulos não são descritos como pes­

ria, não os principais sacerdotes (Mt 27.62-66),

soas de “coração endurecido” [cf. Mc 6.52; 8.17).

quem teme esse roubo e prepara o cenário para a

Em vez disso, eles “creram” porque perceberam a

corrida ao túmulo. Esse tema é acentuado com o

glória revelada em Jesus (Jo 2.11). João substitui

comentário de João de que isso aconteceu “estan­

as predições da Paixão encontradas nos Sinóticos

do ainda escuro” (Jo 20.1). As trevas pertencem

por três ditos de que o “Filho do homem [será]

ao duahsmo joanino luz-trevas (cf. Jo 3.2; 11.10;

levantado” (Jo 3.14; 8.28; 12.31,32), o que apon­

13.30) e aqui simbolizam uma fase de equívocos

ta para a Paixão como exaltação. Descrevem-se a

(cf. Jo 20.9).

vida e a morte de Jesus como acontecimentos da

Entretanto, o equívoco restringe-se basicamen­

ressurreição. A ressurreição em si torna-se, por­

te a João 20.1,2. Em sua corrida ao túmulo (Jo

tanto, 0 momento final desse drama de glória e,

20.2-10), João dá um passo além de Lucas e atri­

como tal, 0 ápice dos temas ressaltados no quarto

bui ao túmulo vazio uma função apologética. Ele

Evangelho: cristologia e soteriologia, em João 20;

o faz de várias maneiras. A alegada rivalidade en­

missão e discipulado, em João 21.

tre Pedro e o discípulo amado faz com que ambos

4.4.1

João 20. Cada um dos quatro episódios sejam testemunhas (cf. Dt 19.15) das consequên­

do capítulo 20 apresenta uma crise de fé em que

cias do túmulo vazio. Os estudiosos têm debatido

08 participantes lutam com a reahdade da ressur­

o significado dessa rivalidade: ambos correm ao

reição. Em cada um dos episódios, o nível de fé

túmulo, mas o discípulo amado chega primeiro; o

cai para um nível mais baixo, do discípulo amado

discípulo amado demora a entrar, mas Pedro vai

com sua fé natural (Jo 20.8,9) para a tristeza de

diretamente para dentro do túmulo. Ao entrar, o

Maria (Jo 20.11), depois para o temor dos discípu­

discípulo amado simplesmente “ viu e creu”, en­

los [Jo 20.19) e finalmente para a declaração do

quanto fica subentendido que Pedro não creu.

cético Tomé (Jo 20.25). Entretanto, Jesus vem em

Alguns entendem que os dois discípulos são

socorro de cada crise, e os resultados vão se in­

apenas símbolos do conflito interno da comunida­

tensificando até culminar com o clamor de Tomé:

de joanina, mas isso é duvidoso, em face da repre­

“Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28), que é o

sentação consistentemente positiva de Pedro em

clímax da cristologia de João. À semelhança de

todo o Evangelho de João. Nas cenas em que há

Lucas, os quatro episódios ocorrem no mesmo

uma justaposição dos dois [Jo 13.23-25; 18.15,16;

dia: dois pela manhã (Jo 20.1-18) e dois ã noiti-

20.3-10; 21.7,8), de fato há certa rivahdade, mas

nha (Jo 20.19-29).

não para desvantagem de Pedro. Pedro tipifica o

Na verdade, há três cenas em João 20.1-18,

dilema de todos os discípulos que precisam en­

pois a corrida ao túmulo (Jo 20.3-10) separa a

carar 0 significado da pessoa de Jesus. Ele tem

descoberta do túmulo vazio por Maria [Jo 20.1,2)

muitas perguntas (Jo 13.23,24), não entende as

da aparição de Jesus a ela (Jo 20.11-18). Alguns

situações (Jo 20.6,7) e falta-lhe visão (Jo 21.7,8).

indicios apontam para uma tradição por trás da

Contudo, cristãos de todas as eras se identificam

passagem. 0 “ nós” na declaração de Maria em

com ele. O discípulo amado é o discípulo arquetí-

João 20.2 é vestígio de uma tradição semelhan­

pico, aquele cujo testemunho (cf. Jo 19.35; 21.24)

te ã dos Sinóticos, na qual várias mulheres estão

e fé (Jo 20.8,9) autênticos proporcionam um mo­

presentes. Também existem ligações com Lucas

delo de discipulado bem-sucedido.

24.12,34 e com a tradição de Pedro. A maioria

A descrição detalhada dos panos do túmulo

dos estudiosos acredita que cada parte — as duas

(Jo 20.6,7) demonstra, acima de tudo, que o cor­

idas ao túmulo, pelas mulheres e pelos discípulos,

po não foi roubado. Nenhum ladrão teria perdido

1 109

R essurreição i : Evangelhos

tempo enrolando com tanto cuidado os panos do

um sentido mais profundo: Jesus talvez esteja

túmulo. Além do mais, a presença do enfaixa-

lhe pedindo que não se “apegue” aos relaciona­

mento de linho é prova de que Jesus havia de

mentos antigos (observe-se que ela acabou de

fato ressuscitado dentre os mortos (cf. Jo 11.44,

chamá-lo “ Raboni” [i.e., “meu mestre”]). Essa

quando Lázaro “ saiu” ainda envoho nas faixas

aparente contradição entre “ainda não voltei”

de linho). Finalmente, o discípulo amado crê,

e “estou voltando” (i.e., “estou no processo de

mesmo sem a ajuda do testemunho da “ Escritu­

voltar”) explica a tensão. Jesus não deve mais se

ra” (Jo 20.9). A resposta de fé é um dos temas

relacionar com eles como o Mestre deles, pois no

básicos de João e está consistentemente ligada

transcurso de suas aparições ele está concluindo

ao ver e ao saber (observem-se os verbos “ver”,

sua obra e está na iminência de cumprir a pro­

em Jo 20.6; 8.14,18; “ saber” , em Jo 20.2,9,13,14;

messa do discurso de despedida: voltar para o

21.4,12,15-17). A tensão entre ver e saber é típica

Pai, a fim de que o Paráclito possa vir (Jo 13.1,3;

das narrativas da ressurreição, tanto no capítulo

14.4,25,26,28; 15.26; 16.5,7,17,28; 17.13). Todos

20 quanto no capítulo 21. 0 compromisso com

os relacionamentos anteriores foram transforma­

Cristo é aprofundado quando a visão conduz a fé

dos, e, desse modo, os discípulos são agora “ir­

ao saber. Aqui está o primeiro passo: visão que

mãos” (cf. Mt 28.10; cf. Jo 15.15); nessa única

conduz à fé.

palavra asseguram-se o perdão dos discípulos e a

A cena impressionante em que Maria, pro­

volta deles à posição que ocupavam.

fundamente perturbada, chega ao entendimento

Entretanto, a proclamação de Maria (Jo 20.18),

(Jo 20.11-18) leva-nos, de um modo mais pro­

como nos demais Evangelhos, aparentemente não

fundo, a esse encontro com o significado da res­

obtém nenhum resultado. Na cena seguinte, os

surreição. Aqui os anjos não desempenham um

discípulos ainda estão se escondendo, “por medo

papel revelador, como nos Sinóticos. Eles depa­

dos judeus” (Jo 20.19). Existe um razoável núme­

ram com a tristeza de Maria (observe-se a centra-

ro de semelhanças com Lucas 24: as expressões e

lidade do choro em Jo 20.11,13,15) e preparam-na

frases “primeiro dia da semana”, “colocou-se no

para a presença do Ressuscitado. A repetição da

meio” , “paz seja convosco” e “mostrou-lhes as

pergunta e da resposta nas duas cenas, a saber,

mãos e o lado”, o comissionamento para a mis­

com os anjos e com Jesus (Jo 20.13,15), produz

são, a dádiva do Espírito e a ênfase no perdão

uma tensão narrativa. Para o lehor, bastaria um

de pecados. Isso está repleto de destaques edito­

ou outro acontecimento (a presença dos anjos ou

riais joaninos e constitui um relato pecuhar e bem

do próprio Senhor ressuscitado). Mas a dor dela

equilibrado. Jesus, a exemplo do que fez com Ma­

é intensa demais. Isso serve de preparação para o

ria, trata diretamente do medo e da ausência de

momento em que a cegueira é maravilhosamen­

fé dos discípulos. Maria precisou ouvir a voz do

te removida dos olhos dela (Jo 20.16). O “bom

“bom pastor” , mas eles necessitam de algo mais

pastor” (Jo 10.1-18) chama-a pelo nome (cf. “ele

— precisam reconhecer que ele é de fato o mes­

chama pelo nome as suas próprias ovelhas”,

mo Jesus, ressuscitado dentre os mortos. Jesus

Jo 10.3 U ra]), e ela o reconhece (cf. “elas [as

não apenas atende a essa necessidade, mas lhes

ovelhas] o seguem [o bom pastor], pois conhe­

promete paz messiânica. A saudação: “Paz seja

cem a sua voz” , Jo 10.4). Os resultados diferem

convosco!” (Jo 20.19,21,26), repetida três vezes,

notavelmente de João 20.10, em que os discípulos

controla a segunda unidade do capítulo e cumpre

simplesmente voham para casa num final anti-

a promessa de João 14.1,27 e 16.23. É mais que

apoteótico de sua ida ao túmulo. Aqui Jesus en­

a saudação básica shalom: é o clímax do signi­

carrega Maria de ser o primeiro arauto da boa

ficado da ressurreição e tem o sentido de trazer a paz de Deus ao crente. Quando os discípulos

notícia da ressurreição. Entretanto, as palavras de Jesus são de di­

veem as mãos e o lado de Jesus (apontando, como

fícil compreensão. Ele diz; “ Não me segures” ,

em Lucas, para a realidade da ressurreição física),

que pode refletir uma situação semelhante à de

eles experimentam não só a paz, mas também ale­

Mateus 28.9, quando as mulheres “abraçaram”

gria, ao ver o cumprimento da promessa de Jesus

os pés de Jesus. Mas João pode ter em mente

(Jo 16.20-22).

11 10

Ressurreição i : Evangelhos

0 comissionamento de João 20.21-23 apre­

entendimento dos discípulos (Jo 11.16) e a confu­

senta uma teologia especialmente rica. Depois do

são na mente deles (Jo 14.5). Aqui Tomé também

repetido “paz seja convosco” , em certo sentido

sintetiza as dúvidas dos Onze.

Jesus entrega aos discípulos o diploma de “en­

Como nos outros episódios do capítulo 20, Je­

viados” (cumprindo Jo 17.18). Um dos conceitos

sus concorda em atender ao pedido, e a resposta

proeminentes da cristologia joanina é o de Jesus

de Tomé revela grande surpresa, culminando na

como “enviado” do Pai. Com base na instituição

cristologia elevada do Evangelho de João com a

judaica do shãlsah, que era um mensageiro ou

confissão: “ [Hi és] Senhor meu e Deus meu!”

enviado autorizado a desempenhar funções em

Isso vai além da reahdade da ressurreição e pas­

nome de outro (v.

Jesus, na condição

sa a ser uma interpretação de sua importância.

de enviado, é apresentado como o representante

A ressurreição demonstra a sohdez do destaque

vivo que revela o Pai ao mundo. No discurso de

joanino em seu Evangelho, a saber, que Jesus é

despedida, o Espírito/ParácUto é “enviado” pelo

um com o Pai e, portanto, divino (cf. Jo 1.1,14;

a pó st o lo ) ,

Pai (Jo 14.16,26) e pelo Filho (Jo 15.26; 16.7).

3.18; 8.58; 10.30,34-38; 12.45; 14.9; 17.11). A de­

Entretanto, essa sequência de revelação não está

claração final de Jesus, em João 20.29, é ao mes­

completa, pois agora, em certo sentido, a Divin­

mo tempo uma admoestação (contra a exigência

dade toda está envolvida no “envio” dos discí­

de provas empíricas) e um reconhecimento (de

pulos. 0 papel do Espírito se vê no “Pentecostes

que agora Tomé havia chegado a crer). Apesar

joanino” de João 20.22.

disso, assim como em João 10.16 e 17.20, a aten­

Cumprindo João 7.39, 15.26 e 16.7, Jesus “ so­

ção concentra-se na bem-aventurança dos futuros

prou” 0 Espírito nos discípulos, capacitando-os a

crentes, que irão crer sem ter o benefício de tais

dar testemunho ao mundo afetado pelo pecado

sinais. São eles os verdadeiros “bem-aventura-

(Jo 14.16,17; 15.26,27; 16.7-11). Em comparação

dos” (por Deus).

com Atos 2, esse é um enchimento especial dos

Em João 20.30,31, o tema da centralidade

discípulos, enquanto o fato do Pentecostes, que

da fé oferece uma conclusão não apenas para a

transcorre mais tarde, é uma capacitação públi­

narrativa da ressurreição, mas para o Evangelho

ca que dá im'cio à missão da igreja (v.

B en o ît ) .

como um todo. Muitos têm debatido (em parte

A missão é primordial também em João 20.23,

com base na evidência textual de um verbo que

uma declaração que, à semelhança de sua cor­

está ou no aoristo ou no presente) se aqui “crer”

respondente em Mateus 16.19, tem gerado muito

tem sentido basicamente evangehstico (desse

debate. 0 poder de deshgar/reter e ligar/perdoar

modo, o objetivo do evangelho seria dirigido

pecados é uma autoridade legal e classifica os

mais para os incrédulos) ou didático (caso em

discípulos como embaixadores dotados de ple­

que estaria dirigido para os crentes). Mas como

nos poderes na nova era, determinando juízo ou

um todo claramente o propósito do quarto Evan­

salvação, dependendo da aceitação ou rejeição á

gelho é tanto fortalecer os fiéis quanto chamar os

sua mensagem (cf. a autoridade de Jesus como

incrédulos à fé.

juiz, Jo 5.22,27; 8.15,16; 9.39). Em Mateus, essa

4.4.2

João 21. A maioria dos estudiosos afirma

declaração trata da disciplina na igreja, ao passo

que esse capítulo é um apêndice, escrito algum

que aqui gira em torno da tarefa evangelística.

tempo após o término do quarto Evangelho, tal­

O último episódio (Jo 20.24-29) gira em torno

vez em razão de uma crise na igreja, à medida

do ceticismo de Tomé e apresenta esse ceticis­

que as testemunhas oculares iam morrendo (cf.

mo em termos ainda mais fortes que em Lucas

Jo 21.18-23).

24.10,11. A declaração de Tomé de que não cre­

pelo Evangelista ou por outra pessoa. A última

O

debate é se o capítulo foi escrito

ria, a menos que visse e tocasse as feridas nas

possibilidade é sugerida por João 21.24,25, que

mãos e no lado de Jesus é um prolongamento

parece ser o imprimatur de um oficial da igreja,

de João 20.20, quando Jesus mostra suas feridas

em que este confirma a validade do testemunho

aos discípulos, a fim de remover os temores que

do discípulo amado. No entanto, o hnguajar, o

experimentavam. No quarto Evangelho, Tomé é

estilo e as ênfases se assemelham ao restante

um realista teimoso, que exemplifica a falta de

do Evangelho (v.

11 11

O sbo rn e ) ,

e é possível dizer,

R essurreição i : Evãngelhos

embora de modo não definitivo, que o autor do

cristã. Esse tema é pressuposto na pesca maravi­

capítulo 20 é 0 mesmo do capítulo 21. De forma

lhosa — 153 peixes grandes (Jo 21.6,11). Muitas

semelhante a João 20, o capítulo 21 divide-se em

soluções engenhosas foram propostas para a in­

quatro episódios (Jo 21.1-14,15-17,18-19,20-23),

terpretação do significado dos 153 peixes, porém

sendo seguidos de uma conclusão (Jo 21.24,25).

hoje a maioria entende que seja uma referência

Muitos estudiosos identificam duas tradições distintas (uma aparição e o relato de uma refei­

mais genérica aos resultados universalmente significatívos da missão. 0 aspecto final é a cena da refeição, que mui­

ção) na história da pesca milagrosa (Jo 21.1-14). Outros (e.g.,

alegam uma tradição una.

tos entendem como uma celebração eucarística.

De um modo ou de outro, de novo o autor combi­

Embora haja semelhanças com a alimentação dos

B ultm ann)

na tradição e redação para compor um todo teo­

cinco mil (cf. Jo 21.13; 6.11), no texto não existe

lógico. A ideia básica é o poder do Ressuscitado,

uma clara indicação de que essa ceia tenha cono­

posto à disposição da igreja. Embora não haja ne­

tações eucarísticas (embora os peixes fossem em­

nhuma menção explícita ã missão, o simbolismo

pregados em cultos eucarísticos no século ii, não

e também a ideia básica do capítulo têm levado

há prova de que fossem empregados no século i).

a maioria dos estudiosos a aplicar o texto à igre­

0 que se pode dizer é que o destaque recai sobre

ja em missão, tanto em termos de evangehzação

um novo nível de comunhão (baseado num tema

(Jo 21.1-8) quanto de comunhão (Jo 21.9-13). Ge­

de comunhão à mesa semelhante ao de Lucas)

ralmente, associa-se a aparição de Jesus às mar­

entre Jesus e seus seguidores. Isso se vê na estra­

gens do mar da Galileia ao milagre semelhante,

nha declaração de que “ nenhum dos discípulos

ocorrido por ocasião do chamado dos discípulos,

ousava perguntar-lhe: Quem és tu? Pois sabiam

em Lucas 5.1-11, o qual, segundo se acredita, é

que era o Senhor” (Jo 21.12). Num nível mais

um relato fora de lugar do mesmo milagre. No

superficial, pairava no ar ainda a antiga dúvida

entanto, conforme assinalado por Marshall, as

(nenhum dos discípulos “ousava perguntar”),

diferenças pesam mais que as semelhanças, e é

mas num nível mais profundo, surgia uma nova

preferível ver os relatos como episódios distintos.

certeza (eles “ sabiam”).

Mas os temas são semelhantes: Jesus pede obe­

A recondução (ou reabilitação) de Pedro

diência radical e proporciona uma pesca impres­

(Jo 21.15-17) é, com certeza, um dos relatos mais

sionante para demonstrar o novo chamado para

conhecidos da ressurreição. Muitos pastores já

“pescar” pessoas.

pregaram sobre esse texto, fazendo distinção en­

0 primeiro elemento do relato (lembrando a

tre os dois níveis de amor [philos e agapê), porém

viagem a Emaús, de Lc 24) gira em torno de uma

se trata de um juízo errôneo. Na reahdade, a pas­

cena de reconhecimento. Os discípulos, depois de

sagem emprega quatro conjuntos de sinônimos

pescar a noite toda sem apanhar peixe algum, en­

(dois termos para “amar” e “ saber” , três termos

contram um homem a quem não reconhecem. É

para “alimentar” e “ ovelhas”). Além disso, pode

interessante (ao contrário do chamado dos discípu­

se demonstrar que no quarto Evangelho tanto phi­

los, em Lc 5, e do episódio da estrada para Emaús,

los quanto agapê são empregados para designar o

em Lc 24) que aqui os discípulos obedecem a Je­

amor entre Pai e Filho, o amor entre Pai/Filho e

sus mesmo sem tê-lo reconhecido (Jo 21.6). Só

discípulos e 0 amor que caracteriza a comunida­

depois da pesca surpreendente é que o discípulo

de. Ou seja, nos quatro casos os termos devem

amado percebe que se trata do Senhor ressuscita­

ser entendidos como sinônimos, cujo propósito

do. Assim como em João 20.8, o discípulo amado

é mostrar a riqueza teológica dos termos e a am­

representa o perfeito discípulo, cujo amor lhe pro­

plitude do amor entre Jesus e seus seguidores. A

porciona uma percepção maior da verdade espiri­

mensagem básica desse episódio está relacionada

tual. A ordem dos acontecimentos indica para o

com a responsabihdade pastoral: o amor por Je­

leitor a importância do Senhor ressuscitado para o

sus só será completo quando o líder apascentar o

sucesso de todas as empreitadas cristãs.

rebanho de Jesus. Pode estar aí também a reabi­

0 aspecto seguinte é o sucesso que, pelo po­

litação de Pedro, porque a pergunta “Tu me amas

der do Senhor ressuscitado, é garantido à missão

mais do que estes?” talvez esteja lembrando a

11 12

R essurreição i : Evangelhos

Pedro de que este prometeu, caso necessário, dar

duro (“ Que te importa?”). Ou seja, Pedro não

a própria vida por Jesus (Jo 13.37), e a tríplice re­

devia se preocupar com o chamado nem com o

petição estabelece paralelo com a tríplice negação

destino de outra pessoa. Sua responsabilidade

por parte de Pedro. As duas últimas seções dizem respeito ao

era com a própria senda de obediência. Contudo, visto de outra perspectiva, o privilégio de Pedro

martírio de Pedro (Jo 21.18,19) e ao destino do

é maior — “seguir” seu Senhor até o martírio.

discípulo amado (Jo 21.20-23). As duas seções

Muitos estudiosos interpretam que João 20.23 (à

estão ligadas pela ordem do discipulado “ Segue-

luz de Jo 20.24) indica que os versículos de 20 a

me” (Jo 21.19,22), e isso talvez seja de fato a

23 foram escritos à luz do fato de que o discípulo

ideia básica de João 21.18-23: se a vida de alguém

amado havia morrido e a profecia de que ele vive­

é interrompida ainda cedo ou se ele tem uma vida

ria até a parusia não estava cumprida. Entretanto,

longa para ministrar ao Senhor, “que te importa?

isso vai além do que a passagem pretende dizer,

Segue-me tu!” (Jo 21.22).

a qual ressalta: “Se eu quiser que ele fique até

A maioria dos estudiosos aceita a hipótese

que eu venha...” (Jo 21.22,23). A mensagem seria

de Bultmann, segundo a qual a profecia do mar­

igualmente significativa, caso o discípulo amado

tírio de Pedro é uma adaptação de um suposto

estivesse se aproximando da morte e a igreja esti­

provérbio acerca da velhice: como os idosos, no

vesse preocupada com a profecia. De uma manei­

fim de sua vida Pedro seria amarrado e levado

ra ou de outra, a ideia mais ampla continua sendo

aonde não desejava ir Essa profecia predizia o

a mesma: a chave para entender a ressurreição

“tipo de morte com que Pedro glorificaria a Deus”

para o discipulado é o desejo de seguir a Jesus,

(Jo 21.19). Tem havido muito debate sobre a ex­

não importando qual venha a ser o desfino que

pressão “estenderás as mãos” : se é ou não uma

Deus determine para a pessoa.

referência ã crucificação (a tradição diz que Pe­ dro foi crucificado de cabeça para baixo). Os que

Ver ta m b ém C risto , gres ,

questionam essa teoria alegam que a sequência (primeiro estender as mãos, então ser cingido e

morte d e ; esc at o lo gia ; m il a ­

RELATOS DE MILAGRES.

djg :

B u r ia l o f Jesus; Heaven a n d H e l l ; L ife ; P r e ­

dictions o f Jesus’s P assion an d R e su rrec tio n .

finalmente ser conduzido) não se harmoniza com a crucificação. Entretanto, se entendermos que se

B ib l io g r a f ia . Alsup, J. E.

trata de uma descrição do ato de levar a trave

pearance stories o f the gospel tradition:

da cruz até o local de crucificação, a objeção de­

of-tradition analysis. Stuttgart: C alw er,

saparece. Desse modo, cumpre-se não apenas a

Benoit, P.

promessa de Pedro — seguir Jesus até a morte

Christ

(Jo 13.36-38; cf. Jo 12.23,24,31-33; v. tb. Jo 17.1,

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The post-resurrection ap­ a history-

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o f the w o m e n ’s visit to the tom b o f Jesus. Rom e:

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Desse modo, a ordem “Segue-me” possui dois

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W . L. T h e em pty

de que Pedro deveria se encarregar (Jo 21.15-17)

orgs.

quanto ã sua morte como um ato de discipulado,

tradition in the four G ospels. Sheffield: jsot,

em que ele segue até mesmo o martírio de Jesus

■ D illo n , R. J.

por meio de crucificação. A indagação de Pedro acerca do destino do

Gospel perspectives 2:

the word:

studies o f history an d

1981.

From eye-witnesses to ministers of

tradition a n d com position in Luke

Rom e: B iblical Institute,

1978. ■ Evans,

C. F

24.

Resur­

discípulo amado (Jo 21.20,21) era natural naque­

rection and the New Testament.

las circunstâncias. A observação de que o discí­

1970.

pulo amado “ o acompanhava” (Jo 21.20) liga as

history.

duas seções e dá apoio ã tese de que a ideia prin­

R. H.

The formation o f the resurrection narratives.

cipal é o discipulado. A resposta de Jesus ã inda­

New

York:

gação de Pedro é de um tom surpreendentemente

P. 15

[ sb t,

12.) ■

F u l le r , D. P.

G ran d R apids: Eerdm ans,

M ac m illan ,

L o n d o n : scm,

Easter faith and

1971. ■

1965. ■ F u ller, Gardner-Smith,

The narratives of the resurrection.

L on d on :

Ressurreição i i : Pa ulo

Methuen,

1926.

■ H a b e r m a s , G. R. Resurrection of

Jesus: an apologetic. Grand Rapids: Baker,

1980.

M. J. Raised immortal: resurrection and

• H ar r is ,

immortality in the New Testament. Grand Rapids:

o f death and the nether world in the Old Testa­ ment. Rome: Pontifical Biblical Institute, 1969. • W enham ,

J. Easter enigma: are the resurrection

accounts in conflict? Grand Rapids: Zondervan,

Eerdmans, 1985. ■ ______ . From grave to glory:

1984. •

re s u rre c tio n in th e N e w T e sta m e n t. G ran d R a p id s:

Knox, 1978. •

Z o n d e r v a n , 1990.



H ooke, S. H .

The resurrection

of Christ as history and experience. to n , 1957.



W ilc k en s ,

U. Resurrection. Atlanta: John

W r ig h t ,

N. T. The resurrection of

the Son o f God. Minneapolis; Fortress, 2003. G. R.

L o n d o n : D ar-

O sborne

The Matthean redac­

Hubbard, B. J.

tion o f a primitive apostolic commissioning:

an

R

e s s u r r e iç ã o i i :

P aulo

e x e g e s is o f M a tth e w 28:16-20. M is s o u la : S c h o l­

A ressurreição de Jesus Cristo é fundamental para

Die Osterbotschaft der vier

a fé cristã. É mencionada explicitamente em de­

ars, 1974. ■ K r em er , j .

Evangelien. 1968.



Stuttgart:

L add, G. E.

K a th o lis c h e s

B ib e lw e rk ,

zessete livros do

nt

e implicitamente em quase

I believe in the resurrection

todos os dez restantes. Praticamente todas as car­

G ran d R a p id s: E erd m a n s, 1975. • Lake,

tas do corpus paulino fazem referência à ressur­

K. The historical evidence for the resurrection of

reição — as exceções são ITessalonicenses, Tito

Jesus.

■ L a p id e , P.

e Filemom). Aliás, para Romanos 10.9 a confis­

a J e w is h p e rs p e c tiv e .

são da ressurreição é o equivalente ã aceitação

M in n e a p o lis : A u g s b u rg , 1983. • L e o n - D u fou r, X.

do senhorio de Jesus Cristo e uma condição ne­

Resurrection and the message of Easter

London:

cessária ã salvação, e ICorintios 15.14 demonstra

Two disciples at

quão próxima, na mente de Paulo, ela está liga­

T h e b a c k g ro u n d a n d m e s s a g e o f Jn 20.

da ao seu ministério querigmático. Em Romanos

■ M a r s h a l l , I.

4.25, em que se diz que Jesus ressuscitou “para a

o f Jesus.

N ew

Y ork: P u tn a m ’ s, 1907.

The resurrection o f Jesus:

C h a p m a n , 1974. • M ahon ey, R.

the tomb.

1-10. F ran k fu rt: P e te r L a n g , 1974.

v. 24,

nossa justificação” [dia tên dikaiõsin hêmõn], Pau­

From death to

lo ahcerça de forma decisiva na ressurreição de

■ M arxsen,

Cristo a doutrina da justificação , ao passo que em

TynB,

H . T h e re s u rre c tio n o f Jesus in Lu k e. p. 55-98, 1974. ■ M a rtin -A c h a rd , R.

life. W.

E d in b u rg h : O h v e r

&

B o y d , 1960.

The resurrection o f Jesus o f Nazareth.

d e lp h ia : F ortress, 1970.



P h ila ­

Fihpenses 3.11 ele equaciona o conhecer a Cris­

org.

to com “o poder da sua ressurreição”. Não é de

M o u l e , C. F. D .,

The significance of the message of the resurrec­

surpreender que o capítulo mais longo das cartas

tion for faith in Jesus Christ.

pauhnas (ICo 15) seja inteiramente dedicado a

London:

scm ,

1968.



________ . T h e p o s t-re s u rre c tio n a p p e a ra n c e s in the

1957/1958. ■

N ickelsburg ,

uma análise da ressurreição.

4, p. 58-61,

A ressurreição de Jesus Cristo é o tema cen­

G. W. E. Resurrection,

tral da escatologia de Paulo, pois inaugura a era

hght of festival pilgrimages,

nts, v .

immoriality, and eternal life in intertestamental

vindoura e proporciona o fundamento para a es­

Judaism. Cambridge: Harvard University Press,

perança futura.

1972.

G. The Easter Jesus.

cativas de J. I. H. McDonald, é “ o ponto de apoio

■ ______ . What are they

arquimediano que alavancou o mundo da reh­

[h ts,

26.) •

O ’CoLLiNS,

L o n d o n : D a rto n , 1973.

saying about the resurrection? New York: Pauhst, 1978.

■ ______ . Jesus risen.

1987. ■

O s bo r n e ,

O

evento Cristo, nas palavras evo­

gião judaica para uma nova ordem”

( M cD o n a l d ,

Paulist,

p. 28). A ressurreição de Cristo e a ressurreição

G. R. The resurrection narra­

dos fiéis no último dia estão relacionadas, e a es­

N e w Y ork:

tives: a redactional study. Grand Rapids: Baker,

perança desta baseia-se na certeza daquela.

Resurrection: New Testament

De início, são necessárias duas observações a

witness and contemporary reflection. New York:

respeito da ressurreição de Cristo conforme apre­

Doubleday, 1984. •

sentada nas cartas pauhnas. Primeira: Paulo ja­

1984. •

P er kins , P.

S m it h ,

R. H. Easter gospeb.

Minneapohs: Augsburg, 1983. •

K., org.

mais tenta provar a historicidade da ressurreição

Immortality and resurrection. New York: Macmil­

às congregações a que ele dirige suas cartas (con­

lan, 1965. ■ S utcliffe , E. The Old Testament and

trariando as ideias de B u l t m a n n sobre ICo 15.3-8).

St en d ah l,

the future life. London: Barnes, Oates & Wash-

0 apóstolo simplesmente afirma a ressurrei­

born, 1964. •

ção como um fato (em que presumivelmente as

T rom p,

N. J. Primitive conceptions

11 14

Ressurreição n: Pa ulo

igrejas acreditavam) e procura identificar as im­

desdobramento relativamente tardio nos escri­

plicações disso para a vida e a fé dessas congre­

tos do judaísmo. No

gações. Paulo não está preocupado com questões

sobre a ressurreição dentre os mortos aparecem

filosóficas. Não quer saber como a fé subjetiva

em Daniel 12.2 e (possivelmente) Isaías 26.19,

at,

as primeiras declarações

e a história objetiva se relacionam. Esse é um

embora haja antecedentes de ressurreições nos

assunto predominantemente pós-iluminista im­

milagres de ressuscitação fehos por intermédio

pulsionado por preocupações positivistas, que

de Ehas e Eliseu (1 e 2Rs) e em cenas de um

não faz parte da perspectiva de Paulo. Tentativas

reavivamento nacional na hteratura profética do

modernas de defender a verificação histórica da

at

ressurreição de Jesus Cristo com base nos mate­

ossos secos, em Ez 37.1-14). Uma ressurreição

riais paulinos estão apontadas na direção errada,

corpórea dentre os mortos também é anunciada

(notavelmente. Os 6.1,2 e a visão do vale dos

embora sejam em geral motivadas pelos melhores

em vários textos judaicos apócrifos e pseudepi­

interesses apologéticos (G. E.

gráficos, inclusive IMacabeus, 4Esdras, lEnoque

L add

oferece uma

análise acessível dessa questão).

e ZApocalipse de Bamque. Na tradição clássica

Segundo: em parte alguma Paulo descreve

do platonismo, também há importantes textos de

a ressurreição em si nem procura apresentá-la

apoio, que tratam pelo menos da vida após morte

como fato histórico a ser posto lado a lado com

dessa tradição, geralmente como a imagem de um

outros acontecimentos da história. A ressurreição

despertar espiritual ou da transmigração da alma p. 37-69). 0 assunto tem sido bem

é, sim, histórica, contudo é também mais que his­

(v.

tórica, ou, para empregar o termo de McDonald,

pesquisado e não precisa ser reapresentado aqui

é “ meta-histórica”

( M cD o n a l d ,

p. 138). Os relatos

P e r k in s ,

(para estudos detalhados de textos judaicos mais

que Paulo apresenta sobre as aparições do Cristo

antigos que tratam do assunto, v.

ressuscitado são vistos mais como ilustração do

e

N ickelsburg

G reenspoon) .

acontecimento e como garantia circunstancial de

Embora as cartas de Paulo sejam os escritos

sua historicidade. Desse modo, ele inicia sua mais

cristãos mais antígos a mencionar a ressurreição

longa análise do tema da ressurreição mediante a

de Cristo, tudo indica que a ideia fazia parte da

citação de uma fórmula tradicional que sintetiza

própria crença e expectatíva de Jesus. Os quatro

o querigma (ICo 15.3,4) e então passa a aUstar

Evangelhos registram referências a ela em pra-

as testemunhas dessas aparições ocorridas após a

tícamente todos os estratos (alguns talvez ne­

ressurreição do Senhor Jesus (ICo 15.6-8). 0 apelo

guem que ela seja mencionada em

ã tradição pré-pauhna realça a centralidade da pro­

no que diz respeito à centralidade da ressurreição

clamação da ressurreição desde o período mais an­

como uma ideia teológica, que Paulo tenha toma­

q) .

É possível,

tigo do movimento cristão (para uma análise dessa

do o conceito do próprio Jesus (v.

passagem, v.

mas não há dúvida de que ela estava presente na

K lo ppenbor g

e

M u r p h y - O ’C o n n o r ) .

Deve se ter em mente essas duas considera­ ções em todas as questões apologéticas que tra­

W it h er in g to n ) ,

ala farisaica do judaísmo, da qual o apóstolo era membro.

tam da ressurreição como base da fé cristã. 1. As origens de uma doutrina da ressurreição

2. Paulo e a crença farisaica na

2. Paulo e a crença farisaica na ressurreição

ressurreição

3. Terminologia da ressurreição

A condição de Paulo como membro do partido

4. Figuras da ressurreição

judaico dos fariseus é afirmada tanto em suas

5. Crucificação e ressurreição com Cristo

cartas (Fp 3.5) quanto por Lucas (At 23.6; 26.5).

6. A ressurreição: algumas questões de inter­

Em Atos, a discordância entre os saduceus e os

pretação

fariseus acerca da doutrina da ressurreição do corpo é um tema proeminente (At 4.2; 23.6-8;

1. As origens de uma doutrina da

24.21; cf. At 26.6; 28.20). É razoável pressupor

ressurreição

que Paulo aceitava a ideia tiadicional farisaica da

A maioria dos estudiosos concorda em que

ressurreição do corpo e interpretava seu encontro

a doutrina da ressurreição do corpo é um

com o Senhor Jesus Cristo à luz dessa crença.

11 15

R essurreição ii : Paulo

Como declara R. J. Sider, “como um bom fariseu

de Isaías 60.1. Ao que parece, Paulo não tem a

do século

intenção de manter nenhuma diferença substan­

I,

Paulo não podia imaginar a ressur­

reição dentre os mortos em termos puramente

cial entre os dois verbos, embora o uso de

imateriais”

possa ser mais tradicional e relacionado a uma

(S id er ,

aprofundada, v.

p. 438; para uma análise mais

D avies ,

e g e ir õ

fonte palestina subjacente (de fato, o verbo apa­

p. 285-320).

rece com frequência em passagens que, na inter­ 3. Terminologia da ressurreição

pretação de muitos, contêm declarações credais,

Nas cartas paulinas, existem várias palavras e

como é 0 caso de ICo 15.4). Em Romanos 6.10 e 14.9 emprega-se o verbo

expressões que são empregadas para descrever a

(“viver”) para indicar a ressurreição de Jesus.

ideia de ressurreição ou de conceitos relaciona­

zaõ

dos, 0 verbo anistêmi ( “ressuscitar”) é empregado

É usado semelhantemente em 2Coríntios 13.4 e

um total de cinco vezes para se referir à ressurrei­

exphcitamente contrastado com o verbo

ção tanto de Cristo (ITs 4.14; cf. Rm 15.12) quan­

( “crucificar”); o versículo também aphca o verbo

to do crente (ITs 4.16; Ef 5.14). O verbo egeirõ

zaõ

("levantar”) aparece 38 vezes para designar a

de Cristo. As formas verbais compostas s y z ê s o m e n

s ta u ro õ

aos cristãos que participarão da ressurreição

ressurreição (Rm 4.24,25; 6.4,9; 7.4; 8.11 [2x],34;

( “viveremos com [ele]”), em Romanos 6.8 e 2Ti-

10,9; 13,11; ICo 6,14; 15.4,12,13,14,15 [2x],16

móteo 2.11, e s y n d o x a s t h õ m e n (“para que também

[2x1,17,20,29,32,35,42,43 [2x],52; 2Co 1.9; 4.14

com [ele] sejamos glorificados”), em Romanos

[2x1; 5.15; G11.1; Ef 1.20; 5.14; Cl 2.12; ITs 1,10;

8.17, são empregadas com a mesma finalidade. 0

2Tm 2.8), e o verbo composto exegeirõ (“le­

verbo

vantar”) aparece uma vez para se referir à res­

tido baseado numa ideia de ressurreição e ocor­

surreição dos crentes (ICo 6.14). Além disso, o

re seis vezes (Rm 4.17; 8,11; ICo 15,22,36,45;

substantivo anastasis (“ressurreição”) ocorre oito

2Co 3,6), em geral no contexto da ressurreição

vezes (Rm 1.4; 6.5; ICo 15.12,13,21,42; Fp 3.10;

derradeira dos santos e da manifestação da glória

2Tm 2.18), e o substantivo exanastasis (“ressur­

de Deus, De modo semelhante, o verbo

reição”) é empregado uma vez (Fp 3.11). Esses

( “erguer junto”), em Colossenses 2,12 e 3,1 e

termos são empregados para se referir tanto à

Efésios 2,6, e

ressurreição do próprio Jesus Cristo quanto à res­

[com]”), em Colossenses 2,13 e Efésios 2.5, pros­

z õ o p o ie õ

(“dar vida a”) também tem o sen­

s y n e z õ o p o iê s e n

s y n e g e ir õ

(“vivificou junto

surreição dos crentes, da qual a ressurreição do

seguem com o tema, expressando a união da igre­

Senhor

ja na morte de Cristo. O verbo a n a g õ ( “trazer para

ê

garantia (N.

D ahl

elaborou um diagra­ .

cima”) ocorre uma vez, em Romanos 10.7, para

Alguns entendem que existe uma diferença de

se referir à ressurreição de Jesus Cristo dentre os

ma, em que detalha o emprego dos termos no

nt)

sentido entre os dois grupos de palavras [egeirõ e

mortos

anistêmi) e, com base nisso, procuram identificar

to subir dentre os mortos”).

[C h r is t o n e k n e k r õ n a n a g a g e in ,

O emprego de

um desenvolvimento no uso dos termos nos ma­

a n a b a in õ

“fazer Cris­

(“subir, ascender”),

teriais pauhnos. L. Coenen, por exemplo, acredita

em Efésios 4.8,10, e de

que um exame cuidadoso “ mostrará que egeirõ,

para cima”), em ITimóteo 3.16, podem também

especialmente na passagem em questão, é usado

refletir um tema subjacente de ressurreição, de­

predominantemente para indicar o que aconteceu

monstrando quão intimamente estão associados

a n e lê m p h th ê

(“foi levado

no domingo de Páscoa, i.e., o despertamento do

0 vocabulário concernente à ascensão e o voca­

Crucificado à vida, enquanto anistêmi e anastasis

bulário concernente à ressurreição. Isso se torna

se referem mais ao ato de chamar pessoas de vol­

mais evidente nos materiais pré-paulinos, como

ta à vida durante o ministério terreno de Jesus e

aqueles que se veem em Romanos 1.4 e 8.34,

à ressurreição escatológica e universal”

(C oenen,

p. 276). Entretanto, tem-se a impressão de que

Fihpenses 2.9 e ITessalonicenses 1.10 (W.

B aird

analisa esse tópico com certa profundidade).

uma distinção absoluta parece bem arbitrária e difícil de defender — parece que em ICorintios

4. Figuras da ressurreição

15.12,13 e 15.42 os dois verbos são permutáveis,

É importante ressaltar a expressão “ressurreição

e Efésios 5.14 inclui ambos os verbos na citação

dentre os mortos"

1 116

[a n a s t a s e õ s

n e k rõ n ,

Rm 1.4;

Ressurreição h : Paulo

cf. Fp 3.11, que traz ek nekrõn, lit. “para fora dos

para descrever aquilo que aguarda a comunidade

mortos”), pois há o risco de se perder algo do

de fé por ocasião da parusia de Cristo. O versículo

dinamismo da expressão, caso entendamos que a

52 descreve essa transformação futura como ins­

palavra “mortos” significa um estado ou o local

tantânea (en atomõ en riphê ophthalmou, “num

de habitação dos que partiram, quase como um

momento, num abrir e fechar de olhos”). Aqui a

substantivo abstrato. A expressão grega possui

ideia de transformação é, em sua ênfase, diferen­

uma imagem muito mais dinâmica, evocando o

te daquela que existe em passagens de cartas an­

quadro de “ficar de pé no meio dos cadáveres”

teriores, como ITessalonicenses 4.13-18, em que

e destacando a natureza somática do corpo da

uma metáfora espacial (“arrebatados com”) do­

ressurreição. Mas é essencial observar que Paulo

mina a ação associada à parusia. J. Gillman des­

não anuncia uma “ressurreição da carne” , como

creve a mudança indicada nessa diferença como

alguns escritores cristãos fizeram rtiais tarde, en­

a transição do implícito para o explícito e sugere

tre eles inclusive o autor de 2Clemente e Justi-

que a imagem do “arrebatamento” de ITessaloni­

no Mártir. Quando se trata de seu ensino sobre a

censes é plenamente compatível com o tema da

ressurreição. Paulo mantém uma distinção entre

transformação de ICorintios 15.

sarx

( “ c a r n e ”)

e sõma ( “corpo”).

É importante observar que em ICorintios

É importante mostrar que Paulo faz uso de

15.51-54a Paulo está tratando da questão da

várias ideias, no esforço de comunicar o signifi­

transformação dos que estiverem vivos por

cado dessa ressurreição, a qual ele descreve como

ocasião da parusia. Aqui o apóstolo ensina a

um “mistério”

em ICorintios 15.1. A

transformação universal de todos os que estão

ampla variedade de imagens é por si reveladora,

em Cristo, vivos e mortos, mas sustenta que isso

[m y s te r io n ]

demonstrando as limitações da hnguagem quan­

significa que nem todos serão ressuscitados. Só

do se tenta descrever o indescritível. A descrição

os que tiverem morrido precisam de ressurreição;

pauhna da ressurreição é totalmente aberta, ou

para os que estiverem vivos por ocasião da pa­

seja, há uma flexibilidade na expressão, o que é

rusia a transformação é suficiente para obter a

ao mesmo tempo estimulante e frustrante para

imortahdade na era vindoura. Na interpretação

os intérpretes. É possível analisar as imagens de

de alguns comentaristas do

acordo com oito categorias.

J. Jeremias (que acompanha o raciocínio de A.

4.1

nt,

particularmente

A ressurreição como transformação. Em S c hlatter ) , as expressões contrastantes de ICo­

vários pontos, Paulo emprega o conceito de trans­

rintios 15.50b-c deixam implícita uma distinção

formação quando descreve a ressurreição que o

semelhante entre os crentes vivos por ocasião da

cristão aguarda no futuro. Em Fihpenses 3.10,

parusia e os que já tiverem morrido (v. detalhes

uma forma participial do verbo symmorphizõ (“as­

adicionais em 4.3 abaixo). De qualquer forma, a

sumir a mesma forma”) ocorre justamente nesse

transformação futura está claramente em vista

contexto: "... para conhecer Cristo, e o poder da

em ICorintios 15.

sua ressurreição, e a participação nos seus sofri­

Em contraste com isso, encontramos em 2Co-

mentos, identificando-me [symmorphizomenos]

ríntios 3.18 uma descrição da transformação

com ele na sua morte”. Na conclusão do capítulo,

escatológica como algo que está ocorrendo no

a imagem é desenvolvida e diretamente associada

tempo presente. Aqui a voz passiva do presente

à revelação do Senhor Jesus Cristo como Salvador

do verbo metamorphoumetha ( “estamos sendo

que virá dos céus (Fp 3.20). Em Filipenses 3.21,

transformados”) é usada no meio de uma lon­

0 conceito de transformação aparece duas vezes:

ga passagem em que Paulo contrasta a glória de

Jesus Cristo “transformará [metaschêmatisei] o

Moisés com a glória de Cristo (2Co 3.12—4.6).

corpo da nossa humilhação, para ser semelhan­

Um uso semelhante do verbo ocorre em Romanos

te [symmorphon] ao corpo da sua glória”. Uma

12.2, que mais uma vez destaca o processo atual

das expressões mais claras da ressurreição como

de transformação.

transformação ocorre em ICorintios 15.51,52,

A sugestão de que é possível imaginar dualis-

passagem em que o apóstolo emprega duas vezes

ticamente a transformação (presente e futura) de­

0 verbo allagêsometha ( “seremos transformados”)

monstra a tensão inerente à escatologia pauhna

11 17

R essurreição ii ; Paulo

como um todo. Apesar disso, E. E. Ellis insiste em

a revelação de aphtharsia como resuhado da

que Paulo, na realidade, não nos apresenta um

destruição da morte por meio da ressurreição

dualismo verdadeiro, visto que a transformação

de Cristo. Aphtharsia está associada à vida eter­

moral é um processo presente, ao passo que a

na em Romanos 2.7, e ICorintios 9.25 emprega

transformação mortal aguarda a dádiva do corpo

aphthartos figuradamente para se referir ao corpo

da ressurreição por ocasião da parusia. 0 que une

da ressurreição no contexto de uma ilustração ba­

os dois aspectos da transformação é uma existên­

seada no atletismo. Entre as exceções estão Efé­

cia coletiva, o fato de que o crente está “em Cris­

sios 6.24, em que se usa o termo aphtharsia para

to”. A ideia de ressurreição como expressão da

descrever o amor cristão pelo Senhor (“amor in­

transformação espiritual presente do crente em

corruptível",

Cristo também pode ser vista em Romanos 6.1-11,

passagens em que aphthartos ê um atributo de

2Coríntios 4.10-12, 5.15 e 13.4, Gálatas 5.24,25

Deus.

n v i) .

Romanos 1.23 e ITimóteo 1.17,

J. Jeremias tem uma interpretação interes­

e 6.14,15, Colossenses 2.12 e Efésios 2.5,6 (con­ p. 101-5). Mais uma

sante, embora bastante questionada, de 1Corín­

vez se afirma a íntima ligação entre a unidade

tios 15.50, sugerindo que se faça uma distinção

dos crentes com Cristo em sua ressurreição e a

entre a metamorfose do crente vivo (ICo 15.50b)

conduta ética dos crentes.

e a do que morreu (ICo 15.50c) e que se estabe­

forme defendido por

4.2

H ar r is ,

A ressurreição como incorrupção. No leça um contraste entre os temas paulinos de cor-

meio de seu longo estudo sobre o assunto, em

rupção/incorrupção e mortahdade/imortalidade.

ICorintios 15, Paulo emprega vários termos e

Na prática. Jeremias está dizendo que a frase

imagens contrastantes para descrever como a

“Carne e sangue não podem herdar o reino de

vida de ressurreição é diferente da existência na

Deus” refere-se àqueles que estiverem vivos por

era presente. Aí se incluem os pares em contraste:

ocasião da parusia. Ele entende que “nem o que é

perecível/imperecível (ICo 15.42); desonra/gló­

perecível pode herdar o imperecível” diz respeito

ria (ICo 15.43); fraqueza/poder (ICo 15.43); cor­

aos que morreram antes da parusia e, no presen­

po natural/corpo espiritual (ICo 15.44); homem

te momento, são corpos em decomposição. Ele

feito do pó da terra/homem do céu (ICo 15.47-

prossegue, sugerindo que em ICorintios 15.50-53

49). Em ICorintios 15.50, Paulo reafirma o pri­

existe uma distinção semelhante entre os vivos e

meiro desses pares contrastantes — perecível e

os mortos. No entanto, a distinção proposta por

imperecível — quando diz que “carne e sangue

Jeremias nos aprece um tanto forçada (ou pelo

não podem herdar o reino de Deus; nem o que é

menos limitada), e, discordando de Jeremias, a

perecível pode herdar o imperecível”. As palavras

maioria dos estudiosos não mantém rigidamente

gregas relevantes [phthora e aphtharsia] propor­

essa distinção (H.

cionam uma imagem bem forte, e uma tradução

dos que discordam de Jeremias).

melhor

seria,

respectivamente,

dade” e “incorruptibilidade” (cf.

C onzelm ann

é um bom exemplo

“corruptibili­

Uma parte essencial do raciocínio de Jere­

0 termo

mias é o emprego de outro termo em ICorintios

ara).

todas elas

15.53,54: “ imortahdade” [athanasia). Esse termo

no corpus paulino (Rm 2.7; ICo 15.42,50,53,54;

geralmente é usado, como em ITimóteo 6.16,

Ef 6.24; 2Tm 1.10), ao passo que quatro dos sete

para descrever um atributo do próprio Deus

usos do cognato aphthartos ( “imperecível”) no

r is ,

aphtharsia aparece sete vezes no

n t,

(H ar­

p. 273-5, oferece uma análise terminológica

NT também são encontrados nas cartas de Pau­

minuciosa de aphtharsia e athanasia, traduzindo

lo (Rm 1.23; ICo 9.25; 15.52; ITm 1.17). Em

ambas as palavras por “imortahdade”). Alguns

todos esses textos, há uma íntima ligação entre

entendem que em 2Coríntios 5.2-4 o tema do re­

aphtharsia/aphthartos e a ressurreição de Jesus

vestimento também deixa implícita essa distinção

Cristo, uma clara demonstração da importância

entre o crente que já morreu e o crente que esti­

escatológica do termo.

ver vivo por ocasião da parusia. 4.3

Além das ocorrências na longa análise da

A ressurreição como imortalidade. Pau­

ressurreição em ICorintios 15, a afirmativa en­

lo, em ICorintios 15.53b,54, emprega outro ter­

contrada em 2Timóteo 1.10 dirige a atenção para

mo interessante para descrever a ressurreição.

1 118

R essurreição ii : Pa ulo

Aqui ele a descreve como a natureza mortal [to

Estritamente falando, Paulo não apresenta

thnetori) que assume imortalidade [athanasia). A

descrições detalhadas da ascensão física de Cris­

ressurreição é o meio pelo qual os cristãos adqui­

to como se ela correspondesse à exaltação. No

rem imortalidade, e a morte, na imagem poética

NT,

extraída de Isaías 25.8, é “engolida pela vitória”.

e em termos indiretos (como em ITm 3.16). Já as

só encontramos relatos assim em Lucas/Atos

Nem sempre é fácil estabelecer a distinção entre

cartas de Paulo tendem a expressar a condição

athanasia e aphtharsia, mas é certa a associação

de Jesus Cristo após a ressurreição nos termos de

de ambas com a ressurreição do corpo. Harris ad­

sua exaltação e glorificação. Mas Paulo deixa

voga de forma persuasiva a ideia de que, embora

implícito, sim, que por ocasião da parusia os

a imortalidade [athanasia ou aphtharsia] e a res­

crentes experimentarão uma ascensão física aos

surreição estejam intimamente ligadas, a primeira

céus (ITs 4.16,17).

é consistentemente apresentada como um bem

4.5 A ressurreição como glorificação. A reve­

futuro concedido por ocasião da parusia àqueles

lação derradeira da glória de Deus é um aspecto

que pertencem a Cristo. De todo modo, tanto a

bem atestado na escatologia judaica. Em várias

imortalidade quanto a ressurreição fazem parte do

passagens, Paulo também utiliza o linguajar de

pensamento de Paulo e são ideias relacionadas,

glorificação para descrever as implicações que

porém distintas (conforme assinalado por H a r r is ) .

a ressurreição tem para o crente em Cristo. Em

Ambas estão fundamentadas na crença paulina de

ITessalonicenses 2.12, ele faz uma associação

que a esperança escatológica do crente é somática

entre o reino de Deus e a glória, ao passo que

em sua natureza e futura em sua temporalidade.

em 2Tessalonicenses 2.14 o apóstolo estabelece

4.4

A ressurreição como exaltação. Em vá­ a hgação entre o chamado cristão e o alcançar a

rias passagens das cartas de Paulo, é estabelecida

glória de Jesus Cristo. Em Romanos 5.2, a espe­

uma ligação próxima entre a ressurreição de Je­

rança de partilhar da glória futura de Deus é mo­

sus dentre os mortos e sua exaltação à destra de

tivo de regozijo para Paulo, e em 2Coríntios 4.17

Deus. Muitos consideram que algumas das pas­

ele emprega a expressão poética “eterno peso

sagens que sobrepõem as duas imagens refletem

de glória”

tradições pré-paulinas, a saber. Romanos 1.3,4 e

ver 0 que aguarda os crentes fiéis. Em Romanos

Filipenses 2.9-11. No caso do hino em Fihpenses,

8.11-17 e 2Coríntios 4.10-18 são mencionados os

[a iõ n io n h a r o s d o x ê s ; a ra )

0 fato de que existe um movimento da morte de

“corpos mortais”

Cristo (Fp 2.8) para sua exaltação (Fp 2.9-11) é

mortal”

[t a th n ê ta

[th n ê tê s a r x ; a r a ] ,

para descre­

ta s õ m a td ] e a “carne que serão glorificados

um tanto incomum e tem levado muitos a acre­

como resultado da união entre Cristo e sua igre­

ditar que a proclamação cristã original sobre a

ja. Em Romanos 8.30, Paulo emprega até mesmo

ressurreição foi na reahdade uma mensagem teo­

uma série de verbos no tempo aoristo, inclusive

lógica de sua confirmação perante Deus, não uma

edoxasen (“glorificou”), para proclamar a certeza

mensagem histórica sobre sua ressurreição cor­

da salvação baseada na união entre Cristo e os

pórea dentre os mortos. Entretanto, tal distinção

crentes. Essa descrição da glorificação associada

é improcedente (como destaca

. Em várias

com a ressurreição como algo que ocorreu no

outras passagens paulinas, a exaltação é apresen­

passado prenuncia os termos de cartas posterio­

tada como algo posterior à ressurreição (Rm 8.34;

res (Cl 1.27; 3.1,4).

H

a r r is )

Ef 1.20; 2.6; Cl 3.1). Embora seja verdade que não

4.6 A ressurreição como vida eterna. Em

se deve entender “ressurreição” e “exaltação”

Gálatas 6.8, Paulo usa uma ilustração de semear/

como sinônimos, existe uma ligação teológica en­

colher para explicar que o Espírito concede vida

tre ambos os termos. A exaltação não é tanto uma

eterna ao crente. Essa imagem sem dúvida tem

interpretação teológica da ressurreição quanto a

sentido escatológico, e provavelmente a melhor

consequência inevitável dela, o resultado lógico a

interpretação é que representa a futura vida res-

que a ressurreição conduz. Harris declara: “A res­

surreta. A expressão “vida eterna”

surreição [de Jesus] foi o pré-requisito e o meio

também ocorre em passagens que dizem respeito

de sua exaltação, e a exaltação foi o resultado de

aos resultados da fé em Jesus Cristo (Rm 5.21;

sua ressurreição”

6.22,23; ITm 1.16; 6.12; Tt 1.2; 3.7) e ao justo

(H

a r r is ,

p. 85-6).

11 1 9

[ z õ ê a iõ n io s )

R essurreição h: Paulo

juízo final (Rm 2.7). Embora algumas das figu­

[apolytrõsis] no corpus pauhno (Rm 3.24; ICo

ras da ressurreição empregadas por Paulo con­

1.30; Ef 1.7,14; 4.30; Cl 1.14) devem ser vistos

centrem a atenção na dimensão presente da vida

no contexto da ressurreição de Jesus Cristo e das

em Cristo, a concessão da vida eterna em toda a

implicações dessa ressurreição, tanto para a hu­

sua plenitude é (como no caso da imortalidade)

manidade quanto para o cosmo.

algo futuro. 4.7 A ressurreição e a conformação à ima­

5. Crucificação e ressurreição com Cristo

gem de Cristo. A expressão “imagem de Cristo” é

Paulo está tão seguro da unidade que existe entre

um recurso mediante o qual Paulo expressa uma

Cristo e sua igreja que considera os crentes (no

verdade cristológica, particularmente no âmbito

contexto da imagem do batismo) participantes

da analogia Adão-Cristo (v.

Afir­

da morte e ressurreição de Cristo (Rm 6.3,4,8;

ma-se em várias passagens (Rm 8.29; 2Co 3.18;

G1 3.27; Cl 2.12). Encontramos uma declaração

A

dão

e

C

r is t o ) .

Cl 3.10) que o crente também se encontra no

semelhante em Colossenses 3.1, em que o verbo

processo de ser conformado à imagem de Deus

synegeirõ ( “erguer com”) é empregado numa pró-

(em Cristo). Em cada caso, ocorre uma sobrepo­

tase concreta (oração condicional que pressupõe

sição de imagens envolvidas; a conformidade à

a veracidade da afirmação). Essa união com Cris­

imagem de Cristo é o alvo escatológico do cris­

to em sua morte e ressurreição também significa

tão, e, desse modo, é possível entender que essa

que é possível entender a existência cristã (a vida

conformidade esteja sobreposta à ressurreição.

de ressurreição) como andar “em novidade de

Uma evidência adicional disso é o fato de que em

vida” (Rm 6.4; cf. Rm 8.13; 2Co 5.15; G1 5.24).

ICorintios 15.49 a esperança de ressurreição do

De forma semelhante, em Fihpenses 3.10 Pau­

cristão é equivalente a ter “a imagem do homem

lo associa o “conhecer Cristo, e o poder da sua

celestial”. A dimensão celestial do pensamento

ressurreição” com a participação em seus sofri­

escatológico de Paulo é um elemento importan­

mentos, ressaltando a importância da ressurrei­

te em seu entendimento da redenção cósmica

ção de Cristo para um estilo de vida ético capaz

(como sugerido por

de suportar tribulações. Paulo acrescenta que o

L

in c o l n ) .

4.8 A ressurreição e a redenção do corpo. 0

objetivo de tal conduta é alcançar a ressurreição

ensino de Paulo sobre a ressurreição do corpo

(Fp 3.11). Em 2Coríntios 4.10, Paulo emprega ou­

surge da antropologia judaica, segundo a qual a

tra imagem. Agora o crente é alguém que carrega

“alma” (hebr., nepesh; gr., psychê) é o princípio

no corpo a morte de Jesus de modo a manifestar

estimulador da vida humana. No pensamento

a ressurreição.

predominante do judaísmo, os seres humanos não têm alma: eles são alma. Essa sustentação

6. Ressurreição: algumas questões de

antropológica tem imphcações tremendas para a

interpretação

doutrina da ressurreição, pois se recusa a abrir

Historicamente falando, várias questões teologi­

mão do componente somático do ser humano. A

camente importantes têm surgido com respeito ã

ressurreição envolve a redenção do corpo físico,

ressurreição. Essas questões envolvem, em par­

embora, como já foi dito, a natureza somática da

ticular, a exegese de passagens-chave paulinas

existência ressurreta crie oportunidade para algu­

ou a interpretação de temas específicos. Indícios

mas das ideias mais criativas de Paulo, expres­

bastante antigos da importância de Paulo nesses

sas em ICorintios 15.35-49. Tendo em vista esses

assuntos interpretativos podem ser vistos no fato

antecedentes, é compreensível que, em Romanos

de que, com bastante frequência, os escritores

8.23, Paulo entenda os resultados da ressurreição

gnósticos basearam seus ensinos em materiais

como “a redenção do nosso corpo” [tên apolytrõ-

contidos nas cartas de Paulo. É certo dizer que

sin tou sõmatos hêmõn). Uma ideia semelhante é

o complexo ensino pauhno sobre o corpo da res­

expressa em Filipenses 3.20,21, mas dessa vez o

surreição tornou-se um dos pilares para as cren­

corpo da ressurreição da comunidade de fé está

ças dos cristãos gnósticos dos séculos ii e iii. Um

intimamente hgado ao do Cristo ressuscitado.

texto gnóstico clássico que trata desses assuntos,

Outros casos envolvendo a ideia de redenção

usando um vocabulário tipicamente pauhno, é a

1 120

Ressurreição ü : Paulo

Epístola a Regino, obra anônima também conhe­ cida como Tratado sobre a ressurreição

(v . P

ag els) .

Jesus (ICo 15.4; cf. Rm 6.4), em parte alguma faz menção ao túmulo vazio em conexão com a res­

Três assuntos requerem anáhse:

surreição de Cristo. Entretanto, C. E. B. Cranfield

6.1 A ressurreição e o messiado de Jesus.

acha que isso está “quase certamente implícito”

Algumas passagens importantes do corpus pau­

(C

hno associam o messiado de Jesus com sua res­

Cristo estar entre o “morreu” e o “ressuscitou” em

r a n f ie l d ,

p. 168) pelo fato de o sepultamento de

surreição dentre os mortos CRm 1.3,4; ICo 15.4;

ICorintios 15.3,4. Talvez seja apenas algo circuns­

2Tm 2.8; v.

Sugerir que, para Paulo, a res­

tancial que Paulo nunca mencione o túmulo vazio,

surreição é o ato que inaugura o messiado de Jesus

embora R. H. Stein entenda que a omissão aqui é

talvez seja ir longe demais, contudo se pode dizer

resuhado dos interesses apologéticos do apóstolo:

C r is t o ) .

que seu messiado é confirmado e proclamado por

“Quando o assunto eram as aparições, o apóstolo

meio dela. Aliás, é possível ver que a ressurreição

podia debater em igualdade de condições. Ele tam­

demonstra não apenas seu messiado, mas seu

bém havia visto o Senhor. Não podia, porém, dizer

senhorio cósmico Ccomo defende

0 mesmo sobre o túmulo vazio”

v.

B easley- M

urray;

(S t e in ,

p. 12).

De todo modo, o túmulo vazio jamais é apre­

Senhor).

Apesar disso, é possível acreditar na ressur­

sentado no NT como prova da ressurreição de Je­

reição de Jesus dentre os mortos sem afirmar

sus dentre os mortos. Isso tem levado alguns a

que esse ato divino confirmou seu messiado.

fazer separação entre a ressurreição de Jesus e as

Isso talvez seja uma surpresa para muitos cris­

provas do túmulo vazio com o objetivo de negar a

tãos, visto que às vezes ambos são vistos como

historicidade da própria ressurreição. Dessa ma­

equivalentes. Um bom exemplo desse ponto de

neira, a ressurreição pode ser “espirituahzada”, e

vista é 0 estudioso judeu P. Lapide, que aceita a

sua base histórica é seriamente solapada, senão

historicidade da ressurreição corpórea de Jesus,

eliminada. Em anos recentes, na Grã-Bretanha,

mas nem por isso se identifica como cristão (que

essa linha de raciocínio está mais associada com

é, por definição, alguém que afirma que Jesus é

o ex-bispo de Durham, David Jenkins (v. detalhes

o Messias). Para Lapide, a ressurreição de Jesus

em

faz parte da obra preparatória de Deus, debcan-

a garantia da ressurreição não é o túmulo vazio,

H

a r r is ,

1985). De acordo com esse raciocínio,

do o mundo pronto para a revelação futura do

mas a presença do Senhor ressurreto na vida da

Messias. O ponto de vista de Lapide é um bom

comunidade de fé (v.

motivo para evitar a pressuposição superficial de

Os materiais pauhnos, em especial ICorintios 15,

que a ressurreição de Jesus é também sua auto-

estão no centro de boa parte dos debates atuais. É

proclamação como Messias. Ao mesmo tempo, o

improvável que Paulo tivesse aceitado a verdade

raciocínio de Lapide abre uma interessante janela

da ressurreição de Jesus dentre os mortos sem

para as peculiaridades da interpretação moderna

aceitar que um corolário disso fosse o túmulo

do

Numa era em que muitos estudiosos cris­

vazio. Embora o faça de forma sucinta, Barrett

tãos competentes encontram motivo para negar

destaca como se deve apresentar precisa e equi-

NT.

H

a r r is ,

p. 37-44;

W

alker).

a historicidade da ressurreição corpórea de Jesus

hbradamente a fé na historicidade do túmulo va­

e, ao mesmo tempo, mantêm a fé cristã, encon­

zio: “A fé [...] seria destruída com a descoberta

tramos aqui um estudioso judeu que declara com

do corpo morto de Jesus, mas não pode ser criada

toda a firmeza a ressurreição corpórea de Cristo

simplesmente com a descoberta de um túmulo

e, ao mesmo tempo, procura afirmar que não tem

vazio”

nenhuma fé baseada nela. É uma lição notável

(B

arrett,

1968, p. 349).

Um número crescente de estudiosos afirma a

sobre o conteúdo messiânico da fé na ressurrei­

historicidade do túmulo vazio e o conhecimen­

ção conforme Paulo a proclama.

to de Paulo a respeito do assunto (v., e.g.,

6.2 A ressurreição e o tema do túmulo va­

C r a ig ,

1985). Não se deve interpretar o fato de o túmulo

zio. Em suas narrativas da ressurreição, os quatro

vazio não ser apresentado por Paulo como prova

Evangelhos mencionam o túmulo vazio (Mt 28.6;

de que sua historicidade não seja confiável, mas

Mc 16.6; Lc 24.2; Jo 20.4-7). No entanto, Paulo,

apenas como prova de sua pouca importância

embora chegue a mencionar o sepultamento de

como assunto da proclamação cristã.

11 21

R essurreição ii : Paulo

A ressurreição geral. Em lugar algum Kerygma and myth i & ii. London:

6.3

H.

spc k,

1972. p.

Paulo menciona uma ressurreição geral para toda

1-44. ■ C a v a l l i n ,

C. C. Life after death: Paul’s

a humanidade, embora haja indícios espalhados

argument for the resurrection of the dead in 1 Cor

por suas cartas de que todos (crentes e não cren­

15. Lund: Gleerup, 1974. [ConB, 7:1) ■

tes, os vivos e os mortos) um dia serão julgados

L. Resurrection,

m d ntt

.

C

oenen,

[S.l.: s.n., s.d.]. v. 3. p.

(Rm 2.6-11; 2Co 4.5; 5.10; 2Ts 1.6-10; 2Tm 4.1). É

259-309. ■ C r a i g , W. L. The bodily resurrection of

em ICorintios 15.22 que Paulo chega mais perto

Jesus. In:

de sugerir uma ressurreição geral (ou universal):

pel perspectives 1: studies of history and tradition

“Em Cristo todos serão vivificados” (en tõ Christõ

in the four gospels. Sheffield:

pantes zõopoiêthêsontai]. Essa declaração, porém,



France,

R. T. &

W

orgs. Gos­

, D .,

enham

1980. p. 47-74.

jso t,

. The historicity of the empty tomb of

aparece no meio da analogia pauhna entre Adão

Jesus.

e Cristo e deve ser interpretada em função disso

B. The resurrection of Jesus Christ. ExpT, v. 101,

NTS,

v. 31, p. 39-67, 1985. ■ C r a n f i e l d ,

C.

E.

(i.e., “todos em Cristo” é que serão vivificados

p. 167-72, 1990. ■

ou ressuscitados]. Alguns, com base nas palavras

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atribuídas ao apóstolo em Atos 24.15, enxergam

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C u llm a n n ,

uma crença paulina na ressurreição geral, porém

body. London:

muitos entendem que isso é metodologicamente

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scm ,

1962. ■ D a v ie s , W.

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D.

suspeito. No entanto, não se pode rejeitar sem

1980. ■ D u n n , J.

maiores considerações a ideia de uma ressurrei­

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ção universal. D. C. Allison defende que a totali­

S .,

dade do cristianismo primitivo, inclusive Paulo,

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associava a ressurreição de Cristo dentre os mor­

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D.

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geral

V.1-10 in Pauline eschatology.

luson

opõe-se a interpretações que dão

S m a lle y ,

Moule. Cambridge:

D.

tos a uma ressurreição geral e entendia que a (A

B. &

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E.

nts,

ii

Corinthians

v.

6, p. 211-24,

demasiada ênfase ã escatologia realizada na cren­

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im o r t a l i d a d e ;

m orrer

e

r e s s u s c it a r

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v.

5,

Apocalipse 1.18 e 2.8 e a “primeira ressurreição” em Apocalipse 20.4,5. Zõopoieõ (“ vivificar”) de­ nota a ressurreição de Jesus em IPedro 3.18. Fi­ nalmente, anagõ indica a ação divina de “trazer [Jesus] de volta” dentre os mortos, em Hebreus 13.20.

H. p.

Resurrection, em pty

2. Hebreus: ressurreição e exaltação Para o autor de Hebreus, a “ressurreição dos mor­

to m b a n d Easter faith.

ExpT,

172-5,

tos” faz parte da instrução cristã básica (Hb 6.2).

1990.

Jesus, Paul and the end

A ligação de ressurreição com “juízo eterno” su­

» W

ttherington ,

of the world. Downers W

right ,

B.

v.

101,

ra ressurreição” em Apocalipse 20.5,6. 0 verbo zaõ (“viver”) descreve a ressurreição de Jesus em

p.

G rove: InterVarsity,

1992.



N. T. The resurrection o f the Son o f God.

M in n e ap o lis: Fortress,

2003.

gere que ele vislumbra uma futura ressurreição universal, dos justos para a vida eterna e dos ím­ pios para a condenação (cf. Dn 12.2; Jo 5.28,29;

L. J.

K

r e it z e r

At 24.15). Mais tarde, ele vê a restauração ã vida física {egeirein, Hb 11.19; anastasis, Hb 11.35)

R

e s s u r r e iç ã o i i i :

G

e r a is ,

A

H

ebreus,

C artas

como uma ilustração da ressurreição, no futuro, dos fiéis para a vida eterna.

pocaupse

A ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é

A ressurreição de Jesus é exphcitamente

mencionada explicitamente em três dos escritos

mencionada apenas uma vez, na oração de He­

do

analisados aqui. É difícil imaginar que os

breus 13.20,21. Em outras passagens, a atenção

documentos restantes pudessem ter sido escritos

está voltada para a sua exaltação à destra de

sem a convicção de que Jesus havia ressuscita­

Deus. 0 destaque pecuhar do autor à exaltação

do e estava ao alcance dos crentes em Cristo. No

de Jesus, em vez de à ressurreição, é uma con­

século

a ressurreição de Jesus e dos crentes

sequência natural de ele se concentrar na obra

continuou sendo um tema importante na litera­

de Cristo como sumo sacerdote, prefigurado no

tura cristã. Interpretações divergentes a respeito

ritual do Dia da Expiação. Assim como o sumo

NT

II,

caracterizaram a linha divisória que foi surgindo

sacerdote do

na igreja entre as vertentes ortodoxa e gnóstica.

o sangue da vítima do sacrifício, o Jesus cruci­

1. Terminologia da ressurreição

at

entrava no Santo dos Santos com

ficado apareceu à direita de Deus no santuário

2. Hebreus: ressurreição e exaltação

celestial (Hb 9.11,12). Nesse arranjo, que destaca

3. IPedro: esperança de vindicação

a exaltação de Jesus até os céus, não existe um

4. Apocahpse: "Fui morto, mas agora estou aqui, vivo para todo o sempre”

lugar em separado para a sua ressurreição. Ela é pressuposta (cf. a ligação desses dois temas em

5. Outros escritos neotestamentários

Rm 8.34; Ef 1.20; Cl 3.1; IPe 3.22). A exaltação

6. Conclusões

de Cristo à destra de Deus pressupõe sua ressur­ reição dentre os mortos: ela foi o caminho para

1. Terminologia da ressurreição No

Teologicamente, a ressurreição-exaltação de

o sentido básico de “erguer” ou “levantar” e

Jesus está Ugada a outros temas-chave de He­

nem sempre se referem

ressurreição dentre os

breus. Ela demonstrou que Deus aceitou seu

mortos (v., e.g., Hb 7.11,15; Tg 5.15). Nesses

sacrifício propiciatório (Hb 10.12; 13.20,21). Ela

,

os

verbos referentes

a exaltação.

ressurreição têm

nt

à

à

1 123

Ressurreição iii : H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

confirmou a filiação divina de Jesus (Hb 1.3-5,13; V. F e -ho

de

D eus) ,

seu sumo sacerdócio (Hb 5.5-10;

Rm 1.3,4; ITm 3.16; v. tb. a análise em p. 124-34;

D unn,

ic h a e l s ,

D

alto n,

p. 204-5).

Em IPedro 3.21,22, o pensamento do leitor é

8.1) e sua condição de último Adão (Hb 1.13— 2.9, combinando Sl 110.1 com Sl 8.4-6; v.

M

conduzido da ressurreição de Jesus para a sua exal­ tação ã direita de Deus (cf. IPe 1.21; Ef 1.20-22).

p. 108-13). 0 perfil único de Jesus em Hebreus como

Dessa maneira, qualquer que seja o significado

“precursor” {prodromos, Hb 6.20) deixa entrever

da pregação de Jesus aos espíritos em prisão, no

a ligação entre a ressurreição passada de Jesus e a

meio dessa passagem, o centro da atenção está

ressurreição futura dos crentes. Nesse ínterim, ele

vohado para o fato de Jesus ser vindicado por

“vive sempre para interceder por eles” (Hb 7.25).

Deus e ser Senhor sobre todas as coisas.

Saber que por meio da cruz ele chegou à direita

Para os leitores de Pedro, o fato de Deus vin­

de Deus inspira-os a permanecer fiéis, confiantes

dicar Jesus lhes dá a sólida esperança de que ele também os vindicará. Por meio da ressurreição de

de que participarão do destino de Jesus. A questão do momento da ressurreição futura

Jesus, Deus concedeu aos crentes um novo nas­

surge com a referência “aos espíritos dos justos

cimento, uma herança segura que se revelará no

aperfeiçoados” (Hb 12.23). A interpretação mais

tempo do fim (IPe 1.3,4), transmitido por meio

comum é que se trata de uma menção aos crentes

do batismo (IPe 3.21). Visto que em Cristo Deus

que já morreram (cf. lEn, 22.9) e aguardam, num

os chamou à glória eterna, eles podem permane­

estado intermediário, um corpo ressurreto, por

cer firmes no sofrimento (IPe 5.10).

ocasião da segunda vinda de Cristo. Entretanto,

0 autor mantém a tensão tipicamente paulina

parece que Hebreus 12.22-24 está apresentando

entre a salvação já experimentada e a salvação

o encontro derradeiro com Deus na Jerusalém ce­

ainda por ser recebida em sua plenitude (e.g.,

lestial, em vez de em um estado prehminar ou

IPe 1.3-9). 0 vínculo entre batismo e ressurrei­

intermediário. Por esse motivo, os “espíritos” são

ção, em IPedro 3.21, ecoa as palavras de Roma­

provavelmente os justos em seu estado final, em

nos 6.1-14. Mas, pelo fato de se dirigir a cristãos

seu “corpo espiritual” (ICo 15.44). Se for esse o

no contexto de perseguição, Pedro emprega em

caso, 0 texto não trata da questão da existência

sua carta o tema da ressurreição com mais desta­

de um estado intermediário e desencarnado entre

que no futuro do que Paulo em Romanos. Embora

a morte e a parusia (v.

a ressurreição de Jesus signifique que os crentes

P

eterso n,

p. 163-7).

entram agora na nova vida, ela inspira a esperan­ 3. IPedro: esperança de vindicação

ça maior de que no futuro Deus os leve à glória

A ressurreição de Jesus é o alicerce da esperança

por meio do sofrimento.

para o autor de IPedro e seus leitores, cujas igre­ jas enfrentavam perseguição (IPe 1.3,21; 3.15).

4. Apocalipse: “Fui morto, mas agora estou

0 texto-chave é IPedro 3.18-22, que um grande

aqui, vivo para todo o sempre”

número de estudiosos acredita ser baseado em

A

tradições litúrgicas bem antigas, especialmente

dicação modelam a mensagem de João também

IPedro 3.19-21 (v.

em

M

ic h a e l s ,

p. 197-9).

ameaça de perseguição e a promessa de vin­ A

po cau pse.

A

morte de crentes por causa do

Cristo foi “morto na carne, mas vivificado

testemunho (martyrid) que dão de Cristo é algo

pelo Espírito” (IPe 3.18). De acordo com algumas

que já vem ocorrendo e irá ocorrer para outros

interpretações, o contraste entre a carne e o espí­

(A p

2.10,13; 6.9-11; 12.11; 17.6; 20.4).

rito imphca um duahsmo na natureza humana de

Na introdução do livro, há uma visão do Cris­

Cristo ou um contraste entre as naturezas divina

to ressuscitado, “ o primeiro e o último [...] [e]

e humana. Entretanto, esses termos não denotam

0 que vive” (Ap 1.18; cf. Ap 2.8). Uma vez que

duas partes de Cristo, e sim duas esferas de exis­

“ o primeiro e o último” é um título de Deus em

tência. Sua vida terrena terminou com a morte,

Isaías 44.6 e 48.12 (cf. Ap 1.8; 21.6), a ressurrei­

mas foi sucedida pela vida ressurreta que Paulo

ção aponta para a participação de Cristo no ser

denomina “corpo espiritual” (IC o 15.42-44; v. o

divino eterno e em seu domínio sobre a criação

contraste semelhante entre carne e espírito em

(B

1 124

auckh am

,

1993, Theology, p. 54-8).

Ressurreição iii : H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

Referências mais específicas à ressurreição in­

intermediário, mas falar do adiamento escato­

dicam a centralidade desse tema no pensamento

lógico, durante o qual a igreja deverá continuar

de João. Jesus é apresentado como “o primogê­

a dar seu testemunho

nito dos mortos e o Príncipe dos reis da terra”

p. 55-6).

(B

auckham

,

1993, Climax,

(Ap 1.5). Essa expressão combina a ideia de que

A promessa de Apocahpse 6.9-11 tem seu

Cristo desbravou para outros o caminho da sal­

cumprimento no milênio (Ap 20.4-6). As almas

vação (cf. Cl 1.18; “primícias” em ICo 15.20,

dos mártires “reviveram [ezêsan] e reinaram com

AR/i) com 0 hnguajar de Salmos 89.27, em que se

Cristo durante mil anos”. João comenta que os

descreve o Rei Davídico como “meu primogênito,

que participam dessa “primeira ressurreição”

0 mais elevado entre os reis da terra” (aim). Em

[anastasis] estão protegidos da “segunda morte”

virtude de sua ressurreição, Jesus já está estabe­

(morte espiritual e eterna, cf. Ap 20.14). Em con­

lecendo 0 governo de Deus sobre os poderes ter­

traste, “ os outros mortos não reviveram, até que

renos (cf. Ap 5.3-5).

se completassem os mil anos” (a favor da ideia

O Senhor ressurreto começou a cumprir a es­

de que em Ap 6.9-11 e 20.4-6 João trata exclusi­

perança de estabelecer o governo de Deus sobre a

vamente dos mártires cristãos, v.

terra, de forma que no final Deus, por intermédio

p. 293-4; a favor da ideia de que os textos dei­

de Jesus, tornará novas todas as coisas (Ap 21.5).

xam implícito um grupo mais amplo de crentes,

No novo céu e na nova terra. Deus viverá com seu

V. H

a r r is ,

p. 178-9, 228;

M

ealy,

B

easley-M u r r ay,

110-5).

povo ressuscitado (Ap 21,3,4). Em lugar algum

Após os mil anos, há uma cena de um jul­

João fala de corpos ressurretos, mas o cenário

gamento universal, que reunirá todos os mortos

de Apocahpse 21—22 dificilmente se encaixaria

perante o trono de Deus (Ap 20.11-15). Essa deve

na noção de que o povo de Deus é constituído

ser a “ segunda ressurreição” , que está implícita

permanentemente de espíritos desencarnados (v.

na referência à “primeira ressurreição” (Ap 20.5).

1, p. 81-3, 176, 184-8, 210, 213-4; v. 2,

Mas pode ser significativo o fato de João se abs­

p. 127-8 — 0 argumento de que em Apocalipse as

ter de chamar “ressurreição” a condição em que

C h arles,

v

.

túnicas brancas representam corpos ressurretos).

se encontram diante de Deus para ser julgados.

Ele não especula sobre a separação entre corpo

Talvez, como Paulo, ele tenha preferido reservar

e espírito ou alma nem sobre seu reajuntamen-

0 termo para a ressurreição daqueles que viverão

to: apenas menciona a morte e a ressurreição de

a vida eterna com Cristo.

pessoas

(B

auckham

,

1993, Clímax, p. 62-70). A

esperança de João, à semelhança da esperança

5. Outros escritos neotestamentários

judaica, da qual a joanina brotou, não é apenas

Nas cartas mais breves, o termo “ressurreição”

a esperança da ressurreição de seres humanos,

dificilmente ocorre, embora haja promessas oca­

mas também a ressurreição do povo de Deus em

sionais de “vida eterna” (Jd 21), “novos céus e

comunhão mútua num mundo renovado.

nova terra” (2Pe 3.13), “entrada no reino eterno”

Duas passagens relacionadas exigem aten­

(2Pe 1.11) e apresentação “ diante da sua glória”

ção especial. De acordo com Apocalipse 6.9-11,

(Jd 24). Em Tiago, Jesus Cristo é o “Senhor da

é dito dos que foram mortos por causa de seu

glória” (Tg 2.1), que promete “a coroa da vida”

testemunho fiel que serão vindicados de seus

aos que permanecem fiéis durante as provações

perseguidores quando se completar o número de

(T g l.l2 ).

mártires. Como se vê em alguns textos apocalíp­

Embora IJoão (v.

Jo ã o , C ar tas

de)

mantenha

ticos judaicos, essa passagem se refere aos san­

0 destaque do quarto Evangelho à vida eterna

tos falecidos que aguardam a ressurreição como

como um bem que o cristão possui no presente

“almas” {psychai; cf. lEn, 22.3; 2Ap Br, 21.23).

(IJo 3.15; 5.11,12), também existe uma importan­

O texto fornece alguma base para o conceito de

te perspectiva futura; “ Sabemos que, quando ele

um estado intermediário, embora o fato de as “al­

se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o

mas” vestirem túnicas mostre que não são entí-

veremos como ele é” (IJo 3.2). A interpretação

dades puramente espirituais. O objetivo de João

dessa passagem é difícil. Por exemplo, quem é

talvez não seja ensinar a doutrina de um estado

“ele” : Deus ou Cristo? Seremos “ semelhantes a

1 125

Retórica

J. Raised immortal: the relation be­

ele” no caráter ou na aparência? Embora a maio­

• H a r r is , M .

ria dos comentaristas interprete que João está se

tween resurrection and immortality in New Testa­

referindo à transformação do caráter por ocasião

ment teaching. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. •

da parusia, é provável que esteja dizendo que

H ay,

os cristãos terão um corpo ressurreto como o de

early Christianity. Nashville: Abingdon, 1973. •

Cristo (cf. Fp 3.21; Cl 3.4).

M e a ly ,

D.

M.

Glory at the right hand: Psalm 110 in

J. W. After the thousand years: resurrec­

tion and judgment in Revelation 20. Sheffield: 6. Conclusões

Academic, 1992. •

A maior parte da literatura aqui examinada expri­

Word, 1988.

me, como Paulo, o significado principal, para a

Testament witness and contemporary reflection.

fé cristã, da ressurreição de Jesus e da expectati­

New York: Doubleday, 1984. •

va de ressurreição por parte dos crentes. Mas, ao

brews and perfection. Cambridge: Cambridge

M ic h a e ls ,

contrário do que encontramos em 1 e 2Coríntios,

University Press, 1982.

não existe uma reflexão mais profunda sobre a

J.

natureza da ressurreição.

Apostles’ Creed),

M .

J.

( w b c . ) ■ P e r k in s , P .

1 Peter Waco:

R.

Resurrection: New P e te rs o n ,

{s n t s m s ,

47.) •

D. He­

R o b in s o n ,

Jesus: from Easter to Valentinus (or to the jbl,

v.

101, p. 5-37, 1982. S. H.

À semelhança de Paulo, esses autores veem

T

r a v is

a ressurreição de Jesus como o protótipo da res­ surreição dos crentes. Eles se concentram na

r e s s u r r e iç ã o d e m o r to s , m ila g r e d a .

ressurreição como a vindicação divina dos que

ç ã o I.

Ver

r e s s u r r e i­

sofrem por amor a Cristo. Eles não estabelecem uma distinção entre a ressurreição de Cristo e sua

r e s s u r r e iç ã o g e r a l .

Ver r e s s u r r e iç ã o

RESSuscrrAD os COM C

r is t o , s e r .

ii.

exaltação, apenas oferecem um material limita­ do sobre o momento da ressurreição dos crentes

Ver r e s s u r r e iç ã o

ii.

ou sobre a natureza de um estado intermediário. Embora se afirme imphcitamente a ideia de que

restauração de

Israel.

Ver

Isr a e l.

todos os mortos serão ressuscitados para encarar 0 juízo final, nenhum autor menciona exphcita­

R e t ó r ic a

mente uma ressurreição para juízo. É evidente

Ao longo da história dos estudos bíblicos, espe­

que, como Paulo, eles preferem reservar o termo

cialmente no período dos pais da

ig r e j a

“ressurreição” para o ato divino que ressuscitou

na crítica bíblica alemã do século

x v iii

Jesus e ressuscitará os crentes para a vida eterna

do XX e, mais recentemente, no final do século xx, o estudo da retórica tem sido visto como um im­

em sua presença. Ver também dlntd

primitiva,

até o início

portante recurso para a interpretação do

c r is t o l o g i a ; e s c a t o l o g ia .

: A s c e n s io n ; C r e a t io n ; C o s m o lo g y ; E x a lt a ­

nt

.

Com

“retórica” geralmente se quer dizer a antiga teoria retórica, que surgiu como um campo específico

tio n , E n th ro n e m e n t; G lo r y ; H e a v e n , N e w H ea ven .

de estudo durante o Império Grego e o Império R. J. The climax o f pro­

Romano denominada muitas vezes “retórica clás­

phecy: studies on the Book o f Revelation. Edin­

sica”. Os gregos em particular desenvolveram a

B

ib l io g r a f ia .

B auckham ,

burgh: T & T Clark, 1993. ■ ______ . The theology

technê logon (“arte das palavras/do discurso”),

o f the Book o f Revelation. Cambridge: Cambridge

que era a exploração da comunicação humana

University Press, 1993.

• B e a s le y - M u r r a y ,

por meio da linguagem. Esse interesse na comu­

R. The Book o f Revelation. London; Marshall,

nicação é evidente na hteratura grega mais anti­

G.

(n t t .)

A

ga, como na Ilíada de Homero e na dramaturgia

critical and exegetical commentary on the Revela­

grega. Vários construtos sociais surgidos nas cida-

tion o f St. John. Edinburgh: T & T Clark, 1920. 2

des-estado da Grécia também contribuíram para

Morgan & Scott, 1974.

(n c b c .)

• C h a r le s ,

R.

H.

W. J. Christ’s proclamation to

a importância da comunicação oral, sendo os tri­

the spirits: a study of 1 Peter 3:18—4:6. Rome:

bunais, as assembleias políticas e as cerimônias

Pontifical Biblical Institute, 1965. •

D.

públicas os contextos principais para o discurso

1980.

oral. Foi no século i v a.C. que esse discurso veio a

V.

G.

(/cc.) •

D a lto n ,

Dunn,

Christology in the making. London:

scm ,

J.

1 126

R etórica

ser rotulado de rhêtoriké (“retórica”), especifica­

de adornar a fala)

mente definido comopeithõ ( “persuasão”; P l a t ã o ,

minimizou o estilo elaborado de Górgias e desen­

Go, 4S3a2).

volveu o estilo que emprega o recurso gramatical

Este verbete examinará a retórica clássica a fim de avaliar sua importância para os estudos

( I sóc rates , C o s o ,

13.16,17). Ele

de não expressar o sujeito e/ou o verbo até o final da frase, criando suspense no ouvinte.

do NT como contexto histórico de comunicação.

A abordagem sofista da retórica, a saber, que

1. História e desenvolvimento da retórica clássica

a sabedoria eloquente persuade, continuou a ser uma escola proeminente ao longo da história da

2. A prática da retórica no século i d.C.

retórica. Na realidade, houve um período conhe­

3. A retórica judaica

cido como “ segunda sofística”, que teve início

4. Aspectos que distinguem a retórica cristã

por volta do século ii d.C. Num ambiente de re­

5. Relevância para a interpretação do

pressão ã liberdade de expressão por causa da

nt

hoje

política imperial, a retórica tomou o rumo dos ex­ 1. História e desenvolvimento da retórica

cessos de oratória, em que se destacavam o estilo

clássica

e a apresentação, em vez do conteúdo.

1.1 Os sofistas e a retórica grega prim itiva

1.2 Platão (427-347 a.C.). Sócrates deu início

(séc. V a.C). Na Atenas do século v, alguns mes­

a um distanciamento do estilo sofista, rumando

tres que vieram a ser conhecidos como sofistas

para uma retórica mais filosófica (e moral). Seu

apresentaram-se como instrutores de sabedoria e

discípulo Platão aperfeiçoou o método socrático:

eloquência com o intuito de ajudar os atenien­

usar perguntas e respostas num diálogo ou

ses de sexo masculino a prosperar na vida cívica.

dialética para avançar na direção da verdade de

Eles valorizavam a expressão do pensamento ou

uma ideia. Ele escreveu duas obras que deram

de ideias mediante técnicas de apresentação de

destaque ã retórica: Górgias e Fedro. A primeira

provas ou recursos de raciocínio, em que revela­

concentra-se no orador e, por inferência, apresen­

vam os dois lados de cada questão. Seu estilo de

ta uma perspectiva razoavelmente negativa da

ensino incluía principalmente a imitação da boa

retórica, sugerindo que é basicamente arte sem

hteratura ou de bons discursos e a memorização

conhecimento, uma forma de adulação que pro­

de certos recursos formulares retóricos. Aristóte­

duz prazer nos ouvintes e brinca com a ignorância

les criticava o estilo dos sofistas por não ter o ele­

deles (v. esp. Go, 462—466). Em Fedro, há uma

mento artístico e não ser sistemático

(A

r is t ó t e l e s ,

So e/,183a-184b).

análise mais extensa e aprofundada da retórica como tal (v. esp. Ph, 260—264). Platão reconhece

Alguns personagens-chave são Protágoras,

o potencial da retórica para “conduzir a alma” ,

Antífonte, Górgias e Isócrates, sendo os dois úl­

caso se aphquem os princípios corretos: conheci­

timos os mais influentes. Para Górgias (485-380

mento, lógica, estrutura (unidade das partes).

a.C.), a eloquência e a virtude eram quahdades

1.3 Aristóteles (394^322 O.C.). É nos escritos

que andavam lado a lado. 0 estilo de Górgias

de Aristóteles, em particular na Retórica, que a

empregava recursos de paralehsmo e antítese

retórica como objeto de estudo recebe um trata­

que se expressavam em estruturas elaboradas ou

mento sistemático. O mais importante é que, em

em figuras de hnguagem caracterizadas por seus

vez de opor a retórica ã dialética, como faz Platão

padrões sonoros inteligentes e poéticos. Fazer as

em Górgias, ele sugere que a retórica é um contra­

ideias soarem bem era algo persuasivo. Entre os

ponto ã dialética. Com isso, a retórica passa a ser

discursos modelares de Górgias que chegaram

um campo da filosofia. Retórica não é uma obra

até nós estão O elogio de Helena e A apologia de

fácil de entender, pois está sem acabamento,

Palamedes. A principal contribuição de Isócrates

com um estilo elíptico, o que possivelmente

(436-338 a.C.) foi estabelecer a retórica como mé­

indica ter sido originariamente um conjunto de

todo educativo (v. Antídosis). Ele também lançou

notas para preleções. As contradições internas

o alicerce de três dos principais elementos da re­

também sugerem isso e talvez deixem implícita

tórica; invenção (o pensamento), disposição (ma­

a influência do trabalho editorial no texto que

neiras de unir os pensamentos) e estilo (maneiras

chegou até nós. Apesar disso, continua sendo

1 127

Retórica

um tratado importantíssimo e basilar. O Livro 1

sabendo que Hermágoras desenvolveu uma teo­

é essencialmente uma introdução. Primeiramen­

ria de stasis, que procurava determinar o assunto

te, Aristóteles demonstra que a retórica é uma

em questão numa fala ou num discurso. Isso está

arte (de novo se opondo a Górgias) com empre­

no âmago da invenção retórica. Hermágoras cria

gos simultâneos. Em seguida, ele apresenta uma

condições para uma transição fundamental da re­

definição prática de retórica; “a capacidade de,

tórica grega para a romana. É durante o período

em cada caso, identificar os meios dispomveis de

romano (sécs. i-iv d.C.) que a teoria da retórica

persuasão”

se torna padronizada por meio da influência de

(A

r is t ó t e l e s ,

Re, L2.1355b25,26). Ele

organiza as provas em artísticas [éthos, páthos e

manuais e de retóricos influentes. 1.4.2

Iogas) e não artísticas (provas diretas). Ele divide

Rhetorica ad Herennium. No período

as provas lógicas em dois tipos: exemplos (em­

romano, uma das obras mais importantes sobre

pregados em raciocínios indutivos) e entimemas

teoria retórica é Rhetorica ad Herennium (final

(silogismos dedutivos). Em seguida, propõe uma

do séc. I a.C.), escrita em latim. Dentre os textos

teoria de três categorias de assuntos. Finalmente,

que chegaram até nós, é o mais antigo dos que

identifica os três gêneros, ou espécies, de retóri­

apresentam os cinco elementos da prática retó­

ca: deliberativo (um julgamento sobre o futuro,

rica: invenção (identificação do assunto, tese ou

geralmente a respeito de uma ação), judicial

posição a ser adotados; os argumentos a ser usa­

(um julgamento sobre o passado) e epidíctico

dos), disposição (organização dos componentes

(demonstração no tempo presente daquilo que é

num todo eficaz), estilo (configuração e aprimo­

honorável). É seu conceito de gêneros retóricos

ramento dos componentes mediante a escolha de

que influencia quase toda a teoria futura sobre a

palavras, figuras de hnguagem e vários recursos),

retórica. 0 Livro 2 examina em profundidade as

memória (memorização da fala para causar im­

pressuposições materiais, primeiro naquilo em

pacto e sugerir naturahdade) e apresentação (uso

que elas se relacionam com os três tipos de discur­

da voz e de gestos).

sos, depois naquilo em que determinam o éthos

Um dos aspectos importantes da disposição

e o páthos, seguindo-se finalmente uma análise

era a teoria acerca da forma padrão para a re­

mais genérica. 0 Livro 3 examina detalhadamente

tórica. Fundamentada principalmente no gênero

formas de argumentação, em particular os enti­

judicial, a forma padrão consistia em seis partes

memas. 0 Livro 4 estuda a linguagem (ou estílo)

(Q

da apresentação de provas. O Livro 5 analisa a

partitio, probatio, refutatio, peroratio. Às vezes, o

disposição das provas. Embora exista muita coisa

partitio é visto como parte do narratio, e o refuta­

u in t il ia n o

,

In or,

3 .9 .1 - 6 ):

exordium, narratio,

importante, boa parte da terminologia, das defini­

tio, como parte do probatio. 0 exordium é como

ções e das categorias não é encontrada na teoria

uma introdução, que procura oferecer informa­

retórica posterior, possivelmente pelo fato de que

ções básicas, fazer com que os ouvintes tenham

0 livro não circulou até a bibhoteca pessoal de

uma atitude favorável e dar a conhecer o éthos

Aristóteles ter sido redescoberta, no século i a.C.

do falante. O narratio é uma declaração do caso

1.4

Desenvolvimento da retórica técnica no em questão, esclarecendo o assunto específico ou

período romano (sécs. i a.C.-u d.C.). 1.4.1

stasis que será tratado. 0 pariitio, ou propositio,

Rhetorica ad Alexandrum. Embora haja estabelece a proposição. 0 probatio, ou confirma-

menções a manuais de retórica ao longo da fase

tio, organiza os argumentos a fim de confirmar,

que teve início já no século v a.C. e se estendeu

por meio de estratégias e tópicos convencionais,

até o final dos períodos clássico e helenístico,

a ideia que está sendo defendida. Por antecipação

0 único manual dessa fase que chegou até nós

ou por meio de uma resposta, o refutatio ataca a

é Rhetorica ad Alexandrum (final do séc. iv ou

prova do argumento do adversário. A conclusão,

início do séc. iii a.C.). Também é importante

ou peroratio, recapitula os principais argumentos

mencionar Hermágoras de Temnos, que aparen­

e faz um apelo para que sejam aceitos. A crítíca

temente escreveu sobre teoria retórica no final do

retórica inclui, então, a tentativa de anahsar uma

século II a.C., mas cuja obra se perdeu. Com base

fala ou texto mediante a identificação de suas vá­

no que informam Cícero e Quintihano, ficamos

rias partes

1 128

(M

ack,

p.

4 1 - 8 ).

Retórica

1.4.3 Cícero (106-44 a.C ). Cícero, que faz parte dessa mesma tradição, combina retórica

nome de gente, mas sinônimo de eloquência” (Q

u in t il ia n o

,

In or, 10.1.112).

sofistica e filosófica com refinamento técnico. Ele escreveu sete obras influentes sobre a retórica,

2. A prática da retórica no século i d.C.

das quais as principais são De inventione e De

2.1 A retórica e a sociedade helenística. É difícil

omtore. Cícero não apenas influenciou a teoria da

avahar quão disseminados eram o conhecimento

retórica, mas também defendeu e personificou os

e a prática da retórica no mundo greco-romano.

deveres de um orador público.

Nas classes mais altas da sociedade helenística,

1.4.4 Demétrio. Outra obra importante dessa

entre os cidadãos hvres e os ricos, a retórica de­

época é De elocutione (“ Sobre o estilo”), atribuída

sempenhava um papel fundamental. Mas esse

a Demétrio, mas pseudonímica e de data incer­

segmento da sociedade abrangia, no máximo,

ta, porém mais provavelmente do século i a.C.

10% da população, provavelmente menos. E a li­

É basicamente um estudo sobre os quatro tipos

teratura desse período que trata do assunto e che­

de estilo: elevado, simples, elegante e enérgico.

gou até nós procede, em geral, de centros urbanos

Algo notável — e de interesse para os estudos do

importantes do ponto de vista político e cultural,

NT — é que a seção sobre o estilo simples inclui

como Atenas, Roma, Alexandria ou Antioquia.

uma análise sobre a redação de cartas. Ele define

Conforme os três gêneros de retórica deixam im­

carta como metade de um diálogo, mas que se

plícito, as principais áreas da vida social em que

distingue de uma conversa por ser de natureza

se usava a oratória retórica eram os tribunais, as

mais planejada

assembleias civis e as comemorações púbhcas

(D

e m é t r io ,

De el, 224).

1.4.5 Marcos Fábio Quintiliano (c. 40-90

importantes de natureza civil e rehgiosa. Para os

d.C.). Atribui-se a Quintiliano o mais longo texto

que faziam parte dessa esfera da vida social, a

em latim sobre retórica, Institutio oratoria, ou A

impressão que se tinha era que a retórica estava

educação oratória. Ele foi professor de retórica

por toda parte

e em Roma ocupava a cátedra de retórica com

Sá, 15.110-112). A vida nas províncias e nas regi­

o patrocínio oficial do governo. Depois de se

ões rurais do império provavelmente não viam o

aposentar, publicou suas preleções na forma de

destaque dado à retórica da mesma maneira que

( D i ã o C r is ó s t o m o ,

Di, 27.6;

J u v e n a l,

tratado, o qual se estendeu por doze livros. Sua

os habitantes dos centros principais, mas há um

obra é importante porque representa o apogeu

volume razoável de dados arqueológicos de cida­

da retórica técnica em sua tradição padrão, até

des helenísticas que mostram a existência de an­

mesmo canônica, não revelando quase nenhuma

fiteatros, ginásios e mercados, onde os discursos

inovação original, senão percepções bem fun­

elaborados eram importantes.

damentadas e úteis acerca da teoria retórica em

Deve se indagar, contudo, quantos dentre os

geral. Sua obra também oferece uma perspectiva

90% conheciam e entendiam a teoria e a prática

histórica útil, pois em muitos pontos é apoiada

retóricas. Embora a capacidade de 1er e escrever

por informações históricas em torno do assunto.

tenha sido mais disseminada no passado do que

É interessante que ele revela a influência dire­

se acreditava, essa capacidade era muitas vezes

ta que sofre tanto de Cícero quanto da retórica

hmitada a uma função, como escrever cartas ou

grega clássica. Nos Livros 1 e 2, ele situa o es­

fazer registros contábeis. Sem dúvida, a comuni­

tudo da retórica num contexto educacional com­

cação eficaz era importante para todos, e a imi­

pleto, que vai desde o nascimento até a escola

tação de habihdades comunicativas e de formas

primária, e esboça o treinamento e a educação

de discurso, como aquelas que possivelmente se

necessários para um bom retórico. Dos Livros 3

ouviam nos mercados, deve ter ocorrido mesmo

ao 11, ele percorre os cinco elementos básicos da

sem conhecimento e treinamento técnicos.

teoria e prática retóricas. No Livro 12, descreve

2.2

A retórica como parte do cnrrícnlo es­

o orador perfeito. Ele próprio oferece uma defi­

colar. Um fator importante que contribuiu para

nição bem sofista da retórica: “ o conhecimento

a importância que a retórica desempenhava nas

de como falar bem”

In or, 2.15.34).

classes sociais mais elevadas era o lugar que

Para ele, Cícero é o orador ideal: “ Cícero não é

ocupava como disciphna básica do programa

(Q

u in t il ia n o

,

1 129

Retórica

educacional. É difícil determinar a partir de que

pesquisa futura. 0 discurso judaico possuía gêne­

idade as crianças eram introduzidas nos aspec­

ros hterários e formas de argumentação próprios.

tos da teoria retórica formal. Parece que entre os

A área em que pode ter havido algum intercâm­

doze e os catorze anos de idade a educação he­

bio e influência cultural e também influência por

lenística introduziu vários exercícios de composi­

intermédio da retórica é a da prática midráshica

ção conhecidos como “ primeiros exercícios” ou

da halaká (v.

“exercícios preliminares” , mais tarde conhecidos

lakd consistia na aplicação de uma declaração en­

como progymnasmata. Em sua essência, o aluno

contrada na Bíblia ou na tradição oral [midrash]

tradições e escritos rabínicos )

. A ha-

começava copiando e mais tarde imitando vários

a algum aspecto da vida diária. O processo en­

tipos de literatura, a fim de aprender várias téc­

volvia 0 discurso oral, quando os rabinos e os

nicas de redação e vários conceitos literários ou

alunos se envolviam em preleções, contestações

retóricos, como fábula, conto, relato jocoso, pro­

e debates.

vérbio, refutação/confirmação, e assim por dian­

3.2 Análise retórica do discurso oral judaico.

te. Na medida em que adquiria o domínio de cada

Examinando a prática por meio da terminologia

etapa, aumentavam o tamanho e a complexidade

retórica, como “argumento” , “prova” , “estilo” ,

dos exercícios (v.

T

eón

[séc.

i

d.C.];

H

erm ógenes

“apresentação” e “memorização” , percebem-se

v

várias coisas. Em geral, a argumentação incluía

d.C.]). Esses exercícios eram a base para outros,

a citação de autoridades respeitadas, escritos

mais avançados, de declamação, para praticar a

aprovados e apresentação de fatos extraídos da

criação e apresentação de discursos completos

vida. 0 treinamento na apresentação de provas

sobre tópicos designados, que podiam ser polí­

era basicamente a citação de uma sucessão de

ticos (suasoriaé] ou judiciais [controversiae]. Em

fontes aceitas. O melhor estilo era a apresentação

sua maior parte, esses exercícios integravam a

clara e lógica das fontes citadas, além da capaci­

etapa seguinte da educação, entre os dezesseis e

dade de arrazoar e extrair conclusões com base

os dezoito anos de idade.

declamação também

nessas fontes. Há um uso limitado de figuras de

se tornou uma forma de entretenimento para o

hnguagem e tropos, mas geralmente se condena

povo no Império Romano.

o emprego de tais recursos retóricos. A apresen­

DE T

arso

[séc.

ii

d.C.];

A

f t ô n io d e

A

A

n t io q u ia

[séc.

É claro que o domínio da comunicação oral era

tação ocorria em voz aha e clara, com pronúncia

muito importante para o programa educacional,

precisa. Embora quase sempre o orador fizesse

mas esse programa, especialmente depois dos

algum planejamento do assunto a ser abordado,

doze anos de idade, era basicamente para os ricos

parece que tal discurso era geralmente improvisa­

ou para a elite. Quando certos escritores latinos

do, e a interrupção por perguntas e argumentos

do século I d.C. analisam a popularidade da retó­

impunha mudanças de rumo não planejadas. Por

rica (como

Ep, 3.18.7), estão se referindo

causa das interrupções imprevisíveis, a memória

aos interesses dos ricos — pessoas que tinham

não desempenhava um papel importante, exceto

tempo para lazer e dinheiro para poderem peram­

no caso de material bíbhco e mishnaico memori­

bular pelas praças ou estar presentes nos tribu­

zado. Reconstruir a prática desse tipo de discurso

nais ou assembleias para ouvir os discursos. De

é uma tarefa difícil, porque as fontes, geralmente

forma que, embora a retórica fosse disseminada

ligadas aos textos talmúdicos, são de data poste­

P

l ín io

,

na sociedade greco-romana, é improvável que a

rior ao período do

teoria e as habihdades retóricas formais estives­

correto incluir essa forma de discurso nas cate­

sem difundidas entre a população em geral.

gorias da retórica clássica, mas isso elucidaria o

3. A retórica judaica

comparação com a retórica greco-romana.

nt.

Também é duvidoso se é

que é pecuhar na argumentação oral judaica, em 3.1 Argumentação judaica. Não existe nenhum indício concreto de que a teoria ou a prática da

4. Aspectos que distinguem a retórica

retórica clássica greco-romana tenha influenciado

cristã

o discurso hterário ou oral judaico, embora

4.1 O apelo à autoridade. Os gêneros de discur­

continue

so no

sendo

uma

área

importante

para

130

nt

— evangelho, várias formas de cartas,

Retórica

apocalipse — não são formas reconhecidas de

quanto ao uso de lagos, éthos e páthos e, mais

;:scurso retórico, de acordo com os antigos ma­

particularmente, como apelo a tópicos especiais

rejais greco-romanos. Entretanto, está claro que textos do

NT

foram escritos para persuadir. A

(E

r ik s s o n ,

p. 273-6). T. Olbricht refere-se à natu­

reza distintiva da retórica cristã como retórica

-uestão é o meio empregado para persuasão e o

“eclesiástica”

raráter pecuhar que o distingue, se é que existe.

pressão, dificilmente Olbricht estaria desconside­

Em geral, o único aspecto distinto da retórica cris-

rando a retórica aristotélica; antes, está afirmando

íã, apontado por muitos comentaristas, é que ela

que a teoria retórica greco-romana é insuficiente

recorre a uma autoridade. Essa autoridade tem

para entender plenamente a natureza da retóri­

sido definida de diferentes maneiras:

Jesus,

ca cristã. Mas Olbricht, como Mack, Eriksson e

Escrituras hebraicas, tradição cris­

mesmo Kennedy, observa que a retórica cristã se

E s p í r it o S a n t o ,

D

eus,

(O

l b r ic h t ,

p. 226-7). Com essa ex­

tã. Em termos de retórica, uma pergunta-chave

distingue das demais pelo fato de operar no âm­

adicional é se existe uma estratégia retórica di­

bito de uma cosmovisão particular: “ Deus (por

ferente nos diferentes gêneros dos escritos do

meio do Filho e do Espírito) alcança objetivos di­

(K

ennedy,

1984; M

nt

vinos entre os seres humanos”

ack).

(O

l b r ic h t ,

p. 226).

4.2 Retórica cristã radical. O classicista G. A.

Olbricht contenta-se em utilizar a teoria retórica

Kennedy propõe uma definição de retórica cris­

aristotéhca para analisar a retórica cristã, mas re­

tã, em contraste com a retórica clássica: “Dessa

conhece que ela talvez não seja suficiente para

forma, a pregação cristã não é persuasão, mas

identificar toda a gama de estratégias persuasivas

proclamação, e baseia-se na autoridade e na

existente nos escritos do

graça, não em provas”

1980, p. 127).

dos esses estudiosos concordam é que existe uma

Num hvro posterior, Kennedy refina essa distin­

forma distintiva de argumentação, mas a questão

(K e n n e d y ,

nt

.

0 aspecto em que to­

ção genérica que faz entre retórica cristã e re­

é o grau de correspondência com a convenção re­

tórica clássica, apresentando a ideia de que nos

tórica greco-romana. A questão acerca da nature­

textos das Escrituras existe uma retórica cristã,

za distintiva da retórica cristã nos escritos do

que emprega persuasão da retórica clássica, e

um tema que continua aberto.

existe uma retórica cristã radical

(K e n n e d y ,

nt

é

1984,

p. 6-8). Ainda empregando a ideia de retórica

5. Relevância para a interpretação do

cristã como proclamação, Kennedy observa que

hoje

mt

algumas partes da Bíblia “apresentam um moti­

5.1 Diferentes abordagens retórico-críticas ao

vo pelo qual se deve receber a proclamação e,

NT. 0 estudo do

desse modo, faz um apelo, pelo menos em parte,

dos diferentes textos do

à razão humana”

retórica” . Avahar a retórica do

(K e n n e d y ,

1984, p. 7). A retóri­

nt

que procura analisar a retórica nt

é denominado “ crítica nt

depende da

ca cristã radical é diferente por não apelar para

perspectiva que se adote quanto à influência que

um argumento racional: “Quando uma doutrina

a prática retórica greco-romana exerce sobre os

é apenas proclamada e não se expressa em en­

escritos do

timemas, chamo essa técnica de ‘retórica cristã

0 debate fundamental é se os próprios autores

radical’ ”

planejaram utihzar a retórica greco-romana, ou se

(K e n n e d y ,

1984, p. 7).

nt

e quanto à natureza da retórica.

4.3 Argumentação distintiva. Usando uma

eles se espelharam, ainda que de forma não tão

abordagem diferente, B. Mack e A. Eriksson ob­

manifesta, no contexto da comunicação do perío­

servam que a retórica cristã apela oficialmente

do helenístico, que até certo grau é retórica no

ao querigma cristão ou às tradições cristãs como

sentido clássico, ou se o emprego das categorias

convicção fundamental

da retórica greco-romana não se prestam à anáh­

(M a c k ,

p. 96-8;

E r ik s s o n ,

p. 273-6). 0 ponto de divergência entre Mack e

se dos escritos do

Eriksson é que, para Mack, esse apelo ocorre fora

a questão da natureza retórica do

das convenções culturais da retórica greco-roma­

categorias retóricas clássicas para anahsar a

na, ou seja, fora das normas da razão

nt

.

Outra maneira de abordar nt

é empregar

p.

forma persuasiva e argumentativa dos textos, seja

96-7). Para Eriksson, esse apelo ocorre de acor­

porque era a intenção dos autores, seja porque

do com essas convenções culturais, pelo menos

era a prática universal de comunicação na época.

(M a c k ,

1131

Riquezas e pobreza i : Evangelhos

seja porque tais categorias oferecem um meio uni­

an introduction to a rhetoric of power. Sheffield:

versal ou heurístico de anáhse de qualquer argu­

Academic,

mentação em qualquer época

R. D .

p. 135-51).

(S t a m p s ,

1999. [jS N T s a p , 174.)

■ A n d erson

Uma perspectiva retórico-crítica interessante, que

Leuven: Peeters,

1998. [ c b e t , 18.) ■ E r ik s s o n ,

vem ganhando adeptos, é a crítica sociorretórica,

Special topics in

1

que busca interpretar e avahar a retórica do

S. E. &

nt

S ta m p s,

Corinthians

8— 10.

tation o f Scripture: essays from the

tural e como texto numa cultura de convenção e

Conference. Sheffield: Academic,

(R

Há quem

o b b in s ) .

In;

A.

P o rte r,

L., orgs. The rhetorical interpre­

D.

como meio de criar um novo construto sociocul­ ideologia sociais e literárias

Jr.,

Andent rhetorical theory and Paul. Ed. rev.

{jsNTSup, 180.) ■ K e n n e d y , G.

Malibu

1996

1999.

p.

272-301.

A. Classical rhetoric

adote uma perspectiva retórica moderna para ana­

and its Christian and Secular tradition from an­

hsar a argumentação, abandonando as categorias

cient to modem times. Chapel Hill: University of North Carohna Press,

retóricas clássicas. 5.2

A retórica e o gênero dos escritos do

Parte do debate em torno da retórica do

nt

centra-se no gênero dos escritos do

(P o r t e r ,

nt

con­

p. 507-632). Conforme assinalado acima, parece

n t.

new his­

1980. ■ ________. A

tory of classical rhetoric. Princeton; Prince—ton U n iv e rs ity Press, 1994. ■ ________ .

New Testament

interpretation through rhetorical criticism.

C h a p el

H ill; U n iv e rs ity o f N o r th C aroh n a Press, 1984. (ss.)

que a redação de cartas estava excluída da teo­

■ LnriN , D .

ria e prática retóricas greco-romanas. Os Evange­

C o rin th ian s 1— 4 an d G rec o -R o m a n rh etoric. C a m ­

lhos, seja como gênero único, seja como gênero

b rid g e : C a m b rid g e U n iv e rs ity Press, 1994. [sntsms,

greco-romano adaptado como o [g ê n e r o ]),

também ficam

à

(v.

b io s

e v a n g e lh o

parte da teoria retó­

rica clássica, em razão do uso fundamental de

St. Paul’s theology o f proclamation:

7 9 .) ■ M ack, B. L . M in n e a p o h s :

1

Rhetoric and the New Testament.

A u g sb u rg Fortress,

1990.

( g b s .)



A synoptic history of classical

Murphy, J. J., org .

discurso narrativo. De modo semelhante, o livro

rhetoric.

de Apocalipse, como texto apocalíptico ou carta

A n A ris to te h a n rh eto rica l a n alysis o f 1 T h e s s a lo ­

profética reveladora (v.

n ians. In; B alch, D .; Ferguson, E .; Meeks, W ., orgs.

não é uma

a p o c a lip tis m o ),

D a vis: H erm a go ra s, 1983. • O lb ric h t, T. S.

forma comum de discurso retórico greco-romano.

Greeks, Romans and Christians:

A se confirmarem essas objeções acerca do gêne­

o f A . J. M a lh e rb e. M in n e a p o h s : Fortress, 1990. p.

ro, é questionável o uso das convenções retóricas

216-37. ■ Perelm an, C. & O lbrech ts-T yteca, L.

clássicas na anáhse dos textos do

new rhetoric:

n t

.

Não existe uma maneira de solucionar o deba­

essays in h o n o r

D a m e : U n iv e rs ity o f N o tre D a m e Press, 1969. •

Handbook of classical rhetoric in

te sobre até que ponto a teoria e prática retóricas

P o rte r , S. E., org .

greco-romanas influenciaram os escritos do

the Hellenistic period 330 b .c.-a .d . 400.

No momento, a crítica retórica do

nt

.

nt

é reahzada a

The

a treatise o n a rg u m en ta tion . N o tre

J. B rill, 1997. ■ Robbins, V. K.

partir de várias perspectivas. A retórica faz parte

Christian discourse:

L e id e n ; E.

The tapestry of early

rh etoric, s o c ie ty an d id e o lo g y .

do contexto hterário e de comunicação do mundo

L o n d o n / N e w York: R o u tled ge , 1996. ■ Stamps, D.

helenístico, que exerceu alguma influência, em

L . R h e to ric a l c ritic is m o f th e N e w Testam en t: a n ­

maior ou menor grau, sobre a redação do

cie n t a n d m o d e m ev a lu a tio n s o f a rg u m en tation .

Ver também

c a rtas; evang elh o

n t

.

In: P o r t e r , S. E.

( gênero) .

d n t b : A r i s t o t l e , A r is t o t e lia n is m ; B io g r a p h y ,

A n­

Testament study.

&

Tom bs,

D.

Approaches to New

S h e ffield : A c a d e m ic ,

c i e n t ; C i c e r o ; D i a t r i b e ; E d u c a t io n ; J e w is h a n d G r e -

129-69. [jsNTSup, 120.) ■ Vickers, B.

co -R o m a n ;

E p is t o la r y

rhetoric.

T es ta m e n t;

L e tte rs ,

T h eory;

G en res

G re c o -R o m a n ;

th e

N ew

L it e r a c y

of

and

d jg :

O x fo rd ; C la re n d on , 1988. ■ W a t s o n , D . R

& Hauser, A . J.

Rhetorical criticism of the Bible:

a

c o m p r e h e n s iv e b ib lio g r a p h y w ith n otes o n h is to ry

B o o k C u l t u r e ; S c h o la r s h ip , G r e e k a n d R o m a n .

a n d m eth o d . L e id e n : E. J. B rill, 1994. [bis, 4 .)

R h e t o r i c a l C r it ic is m .

D P c: r e t ó r ic a ; c r ít ic a r e t ó r ic a ,

1995. p.

In defence of

dlntd

D.

: R h e to r ic ,

L.

S ta m p s

R h e t o r i c a l C r it ic is m .

R iq u e z a s

e po breza i :

E vangelh o s

J. D. H. Academic cons­

No mundo palestino do século i, havia duas clas­

traints in rhetorical criticism of the New Testament:

ses sociais principais: a classe rica, relativamente

B ib u o g r a f u .

A

m ador,

1132

Riquezas e pobreza i : Evangelhos

pequena, e a classe pobre, grande, que trabalhava

transformou em riqueza. As estimativas dizem

na lavoura ou cuja atividade exigia habihdades

que Herodes e mais tarde sua família podem ter

especiais e que em alguns contextos era denomi­

possuído mais da metade das terras sob seu do­

nada “povo da terra”. O judaísmo aceitava essa

mínio. Presentear terras a servidores fiéis não era

disparidade social, incentivando os ricos a dar

incomum.

esmolas aos mais pobres dentre os pobres. Jesus,

O terceiro grupo de ricos era o remanescen­

entretanto, viu a riqueza como um obstáculo à

te da aristocracia judaica mais antiga (embora

entrada no r e in o

e pronunciou bênção so­

boa parte de suas terras tenha sido confiscada

bre os pobres que buscavam a Deus. Ele ensinou

por Herodes e seus filhos) e indivíduos que en­

de

D

eus

aos seus seguidores uma ética da doação radical

riqueceram com o comércio, a cobrança de im­

que tem como base a confiança em Deus e a vin­

postos ou alguma atividade desse tipo. Para ser

da do reino (i.e., uma perspectiva escatológica]

considerado rico, era preciso ser dono de terras,

e que é vivida no contexto da nova comunidade

de modo que os ricos adquiriam propriedades

de discípulos. Os textos indicam que, com base

rurais, mas não as cultivavam. Em vez disso,

nessa perspectiva escatológica, deve se entender

arrendavam-nas aos lavradores e passavam boa

Jesus como um sábio, não como um legislador ou

parte do tempo em atividades civis e religiosas

como um mestre de ideais inalcançáveis.

na cidade (principalmente Jerusalém). Esse sis­

1. Os ricos e os pobres no judaísmo do século i

tema resuhou em abusos contra os lavradores e

2. Os ricos e os pobres no ensino de Jesus

os trabalhadores temporários. Os ricos viam esses

3. A escatologia e a ética de Jesus

maus-tratos como perfeitamente legais, porém os pobres consideravam esse tratamento muito in­

1. Os ricos e os pobres no judaísmo do

justo (cf. Tg 5.1-6).

século I

Um último grupo de ricos eram os prósperos

Nos Evangelhos, o material sobre os ricos e os

comerciantes, que não faziam parte da aristo­

pobres é apresentado no contexto do mundo so­

cracia proprietária de terras, embora, como esta,

cial dos dias de Jesus e da reação do judaísmo

controlassem boa parte da vida econômica do

diante desse mundo. Não é sem motivo que Jesus

país. 0 povo da terra ressentia-se tanto dos pro­

tenha dedicado mais atenção a esse tópico do que

prietários de terras quanto dos ricos que não as

a quase qualquer outro.

possuíam. Não foi por acaso que, durante a revol­

1.1 O mundo social do judaísmo do século

ta judaica de 66 a 70 d.C., quando o povo comum

i. No mundo palestino do século i, havia basica­

assumiu o poder em Jerusalém, uma de suas pri­

mente dois grupos principais de pessoas: os ricos

meiras providências foi queimar os registros de

e os pobres. Entre os ricos, destacavam-se os clãs

dívidas e matar um bom número de aristocratas.

dos sumos sacerdotes. Consistindo em quatro fa­

Portanto, do ponto de vista religioso e social

mílias estendidas, é preciso fazer distinção entre

é possível dividir os quatro grupos de pessoas

esses clãs e os sacerdotes de nível inferior (e.g., o

abastadas em dois outros grupos: 1) líderes ju­

Zacarias da narrativa do nascimento em Lucas),

deus praticantes e 2) os ricos associados com

que em geral eram pobres e se sentiam oprimidos

os herodianos e os romanos, cujo poder lhes

pelo sumo sacerdócio. Eram os principais sacer­

granjeava certa aceitação. Estes eram enjeitados

dotes que lucravam com os sacrifícios oferecidos

morais (i.e., “judeus que se fizeram gentios”),

no templo (os sacerdotes de nível inferior oficia­

embora ninguém ousasse menosprezá-los osten­

vam durante apenas duas semanas por ano, ao

sivamente. Às vezes, os dois grupos empregavam

passo que os clãs dos sumos sacerdotes estavam

seu poder para oprimir as classes mais baixas.

sempre presentes) e ainda controlavam o co­

0 grupo menos religioso agia mediante o abuso

mércio considerável associado àqueles sacrifícios

irrestrito de poder. 0 grupo praticante justifica­

e a outras atividades religiosas (e.g., a atividade

va sua opressão mediante interpretação da Lei,

mencionada em Mc I L 15-19).

0 qual, aos olhos de Jesus, era visto como mais

Outro grupo abastado era a família herodiana e seu séquito, cujo poder político facilmente se

censurável, pois parecia colocar Deus do lado da injustiça.

1 133

R íquezas e pobreza i : Evangelhos

Embora houvesse uma pequena classe média

destes se aproximavam mais dos valores do pe­

constituída de alguns artesãos hábeis, de lavra­

queno proprietário de terras, não dos membros

dores que possuíam terras de porte médio e de

da ehte urbana.

comerciantes (e socialmente, embora não econo­

Havia outras classes de menor importância na

micamente, os sacerdotes de mVel mais baixo), o

sociedade judaica, como os escravos, embora

segundo principal grupo social eram os pobres,

na Palestina se desse preferência aos trabalhado­

os camponeses, o “povo da terra” ( ‘am hã- arets,

res temporários, visto que era necessário cuidar

embora o termo hebraico também fosse usado em

dos escravos nos anos ruins e também libertar os

sentido mais amplo, como se verá mais adiante).

escravos judeus no ano sabático. Além do mais,

Esse grupo incluía vários subgrupos.

os escravos gentios podiam se converter ao juda­

Os que desfrutavam melhor situação eram

ísmo e passar a desfrutar os direitos dos escravos

os pequenos proprietários de terra que levavam

judeus. Os escravos tendiam a ser empregados do­

uma vida precária, dependente da colheita. Um

mésticos na cidade. Também alguns judeus eram

ou dois anos ruins poderiam significar a perda

forçados a deixar a sociedade honrada e se tornar

das terras para o vizinho rico que lhes havia em­

enjeitados (“judeus que se faziam gentios”) ou

prestado sementes depois da perda da primeira

então optavam por isso, como era o caso dos co­

colheita. Também podia significar que a família

bradores de impostos, pastores contratados tem­

passaria fome. Em seguida, entre os que estavam

porariamente, toneleiros e prostitutas. Todos, com

em melhor situação, vinham os lavradores arren­

exceção dos cobradores de impostos, estavam

datários, embora fossem obrigados a pagar ao

entre os pobres, mas os cobradores de impostos,

dono das terras antes de atender às necessidades

apesar da boa situação financeira, não eram con­

da família. Em piores condições estavam os que

siderados membros das classes mais altas.

não possuíam terra nem habilidade de artesão,

Portanto, no judaísmo os pobres eram, antes

os trabalhadores temporários e os pedintes. Es­

de tudo, aqueles que não possuíam nenhuma ter­

ses eram os verdadeiramente pobres. O fato de

ra (definição baseada nas categorias veterotesta-

quase não terem recursos para viver não lhes

mentárias de pobreza, principalmente os levitas,

permitia uma vida digna. Misturados nos vários

os estrangeiros, as viúvas e os órfãos). Mas como

mveis dos mais pobres achavam-se os pescadores

alguns dos que não possuíam terras eram ricos,

e carpinteiros, cujo nível social dependia de certa

no período do

prosperidade, embora não possuíssem terras. Ze-

adicional de pobre, agora em termos financeiros

nt

também havia uma definição

bedeu, por exemplo, parece ter sido alguém rela­

(refletida em m. Pe’a, 8.7,8, registrada até 250

tivamente próspero, pois em seus barcos, além da

d.C.). Todavia, qualquer que fosse a definição,

família, havia pescadores contratados. Por outro

mesmo nos melhores tempos o pobre vivia em

lado, quando Jesus nasceu, sua família ofereceu

situação crítica, pois viver numa economia agrí­

0 sacrifício dos pobres (Lc 2.24). Contudo, é pos­

cola sem possuir terra produtiva suficiente para

sível que ao se estabelecer outra vez na Galileia

proporcionar segurança era estar economicamen­

tivessem um padrão de vida melhor (mesmo que

te à margem da sociedade. Contudo, o século i

ainda modesto), como o trabalho do artesão ha­

não esteve entre os melhores tempos. Mesmo que em anos normais conseguissem obter o suficiente

bilidoso às vezes permitia. Havia diferenças entre as pessoas da classe

para sobreviver, o século i foi marcado por anos

denominada “povo da terra” , pelo fato de que

de fome, especialmente na década de 40

algumas (talvez 8% da população) moravam nas

An, 20.2.5 registra um caso). Essa ameaça jamais

(J o s e f o ,

cidades e, desse modo. estavam mais próximos

esteve distante de qualquer um que pertencesse

da vida e dos valores da elite urbana, ao passo

à classe mais pobre. E havia ainda os impostos

que as demais (i.e., 90% da população) eram

romanos (ou herodianos) e, em cima disso, a Lei

aldeões e viviam longe da cultura dos centros

determinava o dízimo (que podia ir de 17 a 23%

urbanos. Por exemplo, o marceneiro da cidade

da renda bruta da pessoa). Não é de admirar que

provavelmente via o colega de profissão que vivia

os religiosos considerassem o “povo da terra” ne­

numa aldeia como alguém “rude”, pois os valores

gligente na observância da Lei.

1 134

R iq uezas e pobreza i : Evangelhos

Essa negligência não era universal, pois pa­

a tendência de se associar a riqueza à bênção di­

rece que muitos rabinos de épocas posteriores e

vina (a equação

até mesmo os grandes mestres fariseus da época

embora essa atitude ainda existisse no século i de

de Jesus foram pobres, pelo menos durante o pe­

nossa era, ela foi modificada em dois aspectos.

p ie d a d e

=

p r o s p e r id a d e ) .

Contudo,

ríodo em que estudavam, mas, em alguns casos,

De um lado, descobriu-se empiricamente que a

durante toda a vida (os mestres não cobravam

riqueza tendia a gerar cobiça e abuso de poder.

para ensinar). Entretanto, a maioria dos fariseus

E, numa sociedade que acreditava que a riqueza

morava na cidade, ao passo que os lavradores das

disponível era limitada, o acúmulo de bens que

aldeias não tinham o zelo e a disciplina dos rabi­

não viesse de Deus era suspeito de ser produto de

nos nem estavam próximos da cultura superior. A

abuso (cf.

prática e o conhecimento que tinham da Lei eram

experiência dos justos sob o domínio selêucida

mínimas. Eles seguiam a tradição da aldeia. Por

e mais tarde sob os asmoneus e os da família de

um lado, muitas vezes tinham de escolher entre a

Herodes, parecia que até mesmo a maior parte

piedade proclamada pelos moradores da cidade e

da riqueza era obtida mediante a injustiça e que

M a l in a ,

1981, p. 75-8). Aliás, à luz da

a fome. Por outro lado, mesmo que tivessem o de­

a justiça tendia a tornar as pessoas pobres. Al­

sejo de seguir rigorosamente a Lei, o fato de mal

guns autores intertestamentários questionaram se

conseguirem sobreviver não lhes deixava pratica­

havia algum rico que era justo (Eo 31.3-10). De

mente nenhum tempo para o estudo e a medita­

outro lado, os mesmos autores deixam claro que

ção, nem mesmo para ter certeza se sua comida

um rico podia ser justo e honrado, especialmente

era kosher ou se o dízimo havia sido meticulo­

se a riqueza fosse produto de herança, e que a

samente pago (conforme os padrões farisaicos).

maneira de demonstrar essa justíça era mediante

Dessa maneira, praticamente todos os lavrado­

a beneficência. Desse modo, na tradição judaica

res pobres eram considerados parte das “massas”

Abraão e Jó receberam destaque como ricos que

ou do “povo da terra” { ‘am hã-arets], que para

eram justos por serem generosos (v. Jb e Te Jó],

os fariseus era uma classificação mais religiosa que socioeconômica. No

0 problema real do judaísmo do século i era

a expressão indica

a pobreza, especialmente a pobreza do justo.

ou aqueles que não eram aristocratas (o material

Alguns dos estudiosos que ressaltam a perspec­

mais antigo do

não judeus que viviam

tiva antropológica entendem que a pobreza era

na terra tradicional judaica (Esdras-Neemias).

um problema gerado pela perda da posição que

Na literatura rabínica (desse modo começando

a pessoa obtivera por herança, fosse essa posição

no período do

a expressão muitas vezes se

de riqueza ou de pobreza econômica. O resultado

refere àqueles que, em contraste com os fariseus

disso foram as categorias veterotestamentárias de

(e rabinos posteriores), não observam a Lei. Os

pobreza, conforme indicadas acima (cf.

lavradores foram incluídos nessa categoria, pois,

1981, p. 84). Entretanto, ainda que essa fosse a

como já foi dito, os fariseus eram predominante­

realidade do período do

mente moradores das cidades. Como resultado, o

completamente na época do

termo pejorativo podia incluir não apenas os po­

rabínicas mencionam a indigência econômica

at)

nt),

ou

os

at,

a t,

M auna,

ela não se encaixa n t.

Várias passagens

bres economicamente, mas também aqueles que

enfrentada pelos lavradores mais pobres (e.g.,

possuíam um pouco mais de recursos (inclusive

Rab., Lv 34.6 sobre Lv 25.25; b. B. Bat, 116a; b.

a minúscula classe média) e até mesmo os ricos,

Sanh., 151b). Conforme se escreveu mais tarde,

a menos que se esforçassem por seguir o concei­

“no mundo não existe nada mais penoso que a

to farisaico de pureza. De modo geral, porém, a

pobreza — o mais terrível de todos os sofrimen­

expressão designava as massas que observavam

tos. Nossos mestres disseram: todos os sofrimen­

parcialmente a Lei, a população campesina.

tos estão de um lado, e a pobreza está do outro”

1.2

A resposta do judaísmo à desigualdade {Rab., Êx 31.12 sobre Êx 22.24). Além do mais,

social. De modo geral, o judaísmo não tinha ne­

a tradição de Jesus (e.g., Lc 6) contrasta o pobre

nhum problema com a riqueza. Os bens não eram

com o rico, não com o ganancioso ou o ímpio

considerados maus. Aliás, por causa das histórias

(como é 0 caso do a t ) , mostrando que as questões

de Abraão, Salomão e Jó, registradas no

econômicas eram mais importantes na época.

at,

havia

1135

R iquezas e pobreza i : Evangelhos

Tiago também vê a situação da mesma perspec­

5.9). Não se sabe exatamente quanto dessa ati­

tiva. A necessidade econômica era um problema,

tude existia na época de Jesus, mas com certeza

mesmo que não se ignorasse a condição social

se dava grande valor ã generosidade: “ 0 mundo

obtida por herança.

está ahcerçado sobre três coisas: a Lei, a adoração

A primeira reação do judaísmo diante dos

[i.e., 0 serviço a Deus, inclusive a obediência] e

pobres foi incentivar os ricos a repartir volun­

as expressões de amor caridoso [i.e., dar esmolas

tariamente a riqueza, pois, à exceção do apoio

e outros gestos de generosidade]” [m. ’Abot, 1.2).

que a pessoa podia receber da família estendida,

De fato, a generosidade eqüivale a sacrifício e faz

a generosidade (ou filantropia) era a única for­

expiação pelos pecados (Eo 35.1,2; cf. 3.3,4).

ma de ajuda social disponível. Os governantes

Ao mesmo tempo, nos círculos rabínicos, pelo

da época só intervinham, quando chegavam a

menos, dar esmolas não era considerado um

fazê-lo, nas situações em que havia ameaça de

meio de mudar a posição social da pessoa, mas

fome para as massas (nesse caso, a motivação

de tirá-la do infortúnio em que caiu e restaurá-

era preservar a arrecadação de impostos e evitar

la à posição social que ocupava anteriormente.

distúrbios sociais). A filantropia incluía: 1) gestos

A existência de posições sociais diferentes não

pessoais de generosidade (e.g., dar a um pedinte,

era vista como um problema. Dessa maneira, um

perdoar uma dívida, garantir que uma pessoa na

lavrador que precisasse de esmola não receberia

penúria tivesse um sepultamento decente), que

a mesma ajuda que um aristocrata empobrecido.

no caso dos ricos podia incluir ajuda significativa

Por exemplo, conta-se a história (possivelmente

a áreas extensas (a rainha Helena de Adiabene, e.

apócrifa) de Hillel, contemporâneo de Jesus, que,

g., enviou para Jerusalém uma significativa ajuda

ao descobrir que o membro empobrecido de uma

em ahmentos, nos anos 40 do séc. i); 2) gestos

família nobre estava viajando, cuidou para que

coletivos de generosidade (i.e., organizados por

ele tivesse um cavalo. Mas não havia nenhum

intermédio do conselho de anciãos de uma aldeia

servo para correr à frente do homem, de maneira

ou por uma sinagoga); 3) generosidade religio­

que o próprio rabino assumiu esse papel, para

sa (e.g., os recursos de beneficência coletados e

que 0 homem pudesse viajar da maneira apro­

distribuídos por meio do templo). Mais tarde, o

priada ao seu nível social [b. Ketub., 67b). Isso

judaísmo desenvolveu um sistema muito bem or­

sem dúvida é generosidade, porém uma genero­

ganizado de coleta e distribuição de recursos. No

sidade que levava em conta o nível social. As­

século

sim, embora a esmola não tivesse a função de

I,

porém, no que diz respeito à filantropia,

elevar a pessoa acima de seu nível social, ela po­

a força motriz era a iniciativa pessoal. Por esse motivo, dar esmolas era visto no

dia restaurar alguém da nobreza à condição que

judaísmo como uma obra de justiça muito im­

desfrutara anteriormente (e.g., um dote generoso

portante aos olhos de Deus. Aliás, no judaísmo

e apropriado podia ser providenciado para que

rabínico só a meditação na Torá era mais impor­

uma mulher se casasse e mantivesse o nível so­

tante que a generosidade como obra de justiça.

cial a que estava acostumada).

Gestos de generosidade eram vistos como maio­

No entanto, havia também, como já foi dito,

res que a obediência a todos os mandamentos (b.

um nível social abaixo do qual a vida era terrível.

B. Bat., 9a,b), e, sempre que Satanás tentava acu­

Assim, as pessoas que caem abaixo de certo nível

sar os que assim agiam, esses gestos generosos

(definido em m. Pe ’a, 8, que traz alguns debates

os defendiam diante de Deus [Rab., Êx 31.1). Ou

do século i) são sempre objeto de generosidade,

seja, a filantropia era tão importante que o termo

estejam ou não no nível social que herdaram. Ou

“justiça” se tornou sinônimo de dar esmola. Por

seja, assim que as pessoas eram separadas de sua

causa disso, “ os pobres fazem mais pelos ricos

herança, as distinções sociais começavam a de­

que os ricos pelos pobres”, pois os pobres dão

saparecer, e as econômicas começavam a tomar

aos justos a oportunidade de obter mérito jun­

seu lugar.

to a Deus (b. Shabb., 15b). Do lado negativo, o

A caridade era tratada em vários pontos da

mal vem sobre Israel por deixar de obedecer ao

Lei, não apenas nos incentivos ã esmola. Os ju­

mandamento do

deus praticantes não apenas davam aos pobres

at

de dar aos pobres [m. ’Abot,

1 136

R iq uezas e pobreza i : Evangelhos

um dízimo a cada três anos e esmolas ao longo

que Mateus e também uma forma mais incisiva

do ano, como também permitiam que os pobres

do material que ambos incluem. Por exemplo,

respigassem em seus campos e deixavam de cul­

Lucas inclui os “ais” em suas bem-aventuranças

tivar os campos um ano a cada sete anos, dando

(Lc 6.20-26), que acentuam o ensino ao declarar

aos pobres permissão para colher o que crescesse

o oposto. Por isso, pode se dizer com justiça que

espontaneamente. O repetido tema veterotesta­

Lucas tem um interesse especial no assunto (mo­

mentário do cuidado dos pobres não se perdeu

tivo pelo qual a maioria dos estudos sobre o en­

no judaísmo posterior, apesar das regulamenta­

sino econômico de Jesus se concentra em Lucas),

ções posteriores.

embora, de modo geral, a mesma atitude geral

Ao mesmo tempo, havia o reconhecimento de

seja compartilhada por Mateus e talvez também

que, a despeito da generosidade abundante, os

por Marcos. Os três Evangelistas oferecem um

ricos e os poderosos tendiam a oprimir os jus­

quadro consistente da atitude de Jesus diante das

tos. Ou seja, a justiça era inclinada a tornar as

riquezas e da pobreza. Além do mais, o ponto

pessoas pobres. Isso levou a duas reações finais.

de vista que partilham se harmoniza com a ideia

Primeira: a comunidade dos justos era, com toda

no mundo mediterrâneo antigo de que os bens

probabihdade, a comunidade dos pobres — os m a ­

são limitados e que o ajuntamento de riqueza de

e o texto farisaico Salmos

alguns imphca a perda dos meios básicos de sub­

n u s c r it o s

DO MAR M o r t o

de Salomão tornam explícita essa identificação.

sistência de outros. Jesus, porém, não aceitava

É essa comunidade que deve exercer generosida­

as riquezas obtidas por herança da mesma forma

de. Segunda: a riqueza chegará aos justos, mas

que seus contemporâneos aceitavam.

não nesta era. Deus reparará todos os erros na

2.1

O perigo das riquezas. Embora para Jesus

era vindoura, quando os pobres justos desta era

os bens não fossem intrinsecamente maus (ele

ceifarão a recompensa de seus gestos generosos.

não era dualista), ele não considerava as riquezas

Essa equação escatológica

p r o s p e r id a d e

algo seguro, mas um recurso perigoso. Em mui­

também é importante ao se considerar o ensino

tas de suas declarações, as riquezas são personi­

de Jesus.

ficadas como Mamom (no aramaico dos dias de

p ie d a d e

=

Jesus, significava apenas "bens” e podia ser algo 2. Os ricos e os pobres no ensino de Jesus

maligno ou neutro, dependendo do contexto) e

Jesus encaixa-se na situação social da Palesti­

tinham exatamente o mesmo papel que os ído­

na do século I como a conhecemos. Ele próprio

los aos olhos dos antigos profetas de Israel, pois

pertencia ao "povo da terra”, sendo filho de um

agem sedutoramente, levando a pessoa a aban­

carpinteiro que não possuía nem terra obtida por

donar seu compromisso com Deus. Por exemplo,

herança nem que ele próprio houvesse adqui­

na parábola do semeador (Mc 4.18,19) é "a se­

rido CMt 8.20; Lc 9.58). Ele não era um mestre

dução da riqueza e o desejo por outras coisas”

reconhecido oficialmente, mas um líder carismá­

que asfixiam a Palavra, tornando-a infrutífera,

tico com um grupo de seguidores (o que exphca

como se arrancada por Satanás ou extinta pela

a recepção negativa que teve em Nazaré, onde

perseguição. Aqui a riqueza é personificada e age

sua origem social era bem conhecida, Mc 6.3).

produzindo efeitos semelhantes à pessoa do mal

Ele aceitava os rejeitados pela sociedade e muitas

(i.e.. Satanás), embora de maneira mais lenta e

vezes era visto com os pobres. Isso proporciona o

menos notável. As riquezas levam a pessoa a se

contexto imediato de seu ensino.

afastar de Deus.

Esse ensino está registrado nos Evangelhos

0 que ocorre aí não é mera questão de dar o

Sinóticos (mas o quarto Evangelho apresen­

lugar devido aos bens e a Deus. Tanto Deus quan­

ta relativamente pouca coisa sobre o assunto).

to os bens (i.e., Mamom) reivindicam ser servidos

Embora Marcos contenha algumas narrativas e

pelas pessoas. A reivindicação de Mamom é evi­

declarações importantes sobre o tema, a imensa

dente. Devem se preservar as riquezas e ganhar o

maioria dos ensinos encontra-se no material q: há

pão de cada dia, mas Jesus rejeita categoricamente

blocos de

o serviço a Mamom; é impossível servir ao dinhei­

q

em Mateus 6 e em Lucas 6, 12 e 16.

Dos dois Evangelhos, Lucas possui mais material

ro e a Deus ao mesmo tempo (Mt 6.24).

1 137

Riquezas e posreza i : Evangelhos

Essa impossibilidade é ressaltada pelo tópico

implícitas nas duas parábolas citadas as ahernati-

que Jesus apresema a seguir, pois, longe de ser

vas para o comportamento dos ricos. 0 primeiro

um sinal do favor divino, as riquezas tornam im­

homem poderia ter cuidado de Lázaro, pois pos­

possível a entrada no reino. Isso constitui uma

suía os recursos (a parábola ressalta que ele tinha

negação absoluta (pelo menos na maneira em

fartura) e teve oportunidade (Lázaro ficava à sua

que o mundo encara o assunto) da equação

porta e era conhecido do rico, cf. Lc 16.20,24).

dade

=

p r o s p e r id a d e .

p ie ­

Essa ideia é apresentada de

Quanto ao rico insensato, Lucas define o que Je­

várias maneiras. O relato marcano do jovem rico

sus quis dizer com ser “rico diante de Deus” doze

termina em todos os Sinóticos com o comentário:

versículos adiante, quando conclui a seção: “Ven­

“ É mais fácil um camelo passar pelo fundo de

dei vossos bens e dai esmolas” (i.e., “ Dai aos ne­

uma agulha do que um rico entrar no reino de

cessitados”; Lc 12.33). Essa interpretação do que

Deus” (Mc 10.25). Isso significa que a salvação

se deve fazer com o que sobra é um tema recor­

dos ricos é sem dúvida uma impossibilidade. Será

rente no ensino de Jesus (e no restante do

que pessoas assim não podem ser salvas? “ Para

alguém tem mais que o suficiente, a melhor coisa

nt)

. Se

Deus tudo é possível”, é a resposta de Jesus à

a fazer é repartir com os que têm menos que o

pergunta que os discípulos, chocados, lhe fize­

suficiente e, dessa maneira, investir no céu.

ram. Depois de apresentar sua versão da história,

Outro exemplo desse ensino encontra-se em

Lucas conta a história de Zaqueu (Lc 19.1-10),

Lucas 16.9, em que Jesus afirma: “ Eu vos digo

que mostra o impossível acontecendo. Mas isso

ainda; Fazei amigos por meio das riquezas da

não deixa Zaqueu rico (i.e., o fato de possuir bens

injustiça, para que, quando estas vos faltarem,

não é algo neutro), pois nesse processo ele abre

eles vos recebam nos tabernáculos eternos”. Pelo

mão de suas riquezas. Só quando ele anuncia seu

contexto, isso provavelmente significa que deve­

propósito é que Jesus responde: “Hoje a salvação

mos cuidar dos pobres com as riquezas que pos­

chegou a esta casa”.

suímos ( “fazei amigos”), de modo que quando a

Também em sua parábola sobre o rico e Lázaro,

pessoa morrer ( “quando estas vos faharem”, i.e.,

Jesus destaca a impossibilidade de servir a Deus

quando as riquezas forem deixadas para trás, por

e ao dinheiro (Lc 16.19-31). Abraão diz ao rico

ocasião da morte) aqueles pobres recebam nos

no Hades: “ Filho, lembra-te de que em tua vida

céus (“tabernáculos eternos”) os que os ajuda­

recebeste bens [...]; agora [és] atormentado”. Isso

ram materialmente.

está em harmonia com o “ai” de Lucas 6.24: “Ai

Esse ensino, é claro, está em conformidade

de vós que sois ricos, porque já recebestes a vossa

com 0 judaísmo da época. Os mais ricos demons­

consolação”. Na parábola, o “ai” é apresentado de

travam sua justiça ao cuidar dos pobres, assim

forma literal e vivida, mostrando que apegar-se

como Jó e Abraão haviam feito antes deles (ou,

ao conforto hoje é arriscar a condenação amanhã.

para os cristãos, talvez José de Arimateia ou Bar-

Finalmente, a parábola do rico insensato

nabé). Na cultura mediterrânea da época, isso

(Lc 12.16-21) destaca mais uma vez que não é

tanto demonstrava a virtude da classe quanto

possível servir igualmente a Deus e a Mamom.

mostrava que sua riqueza não havia sido adqui­

O rico da história, que tem a felicidade de obter

rida com injustiça. Jesus diferia do judaísmo de

uma colheita extraordinária, age com prudência,

seus dias não pelo grande valor que atribuía ã

guardando para o futuro o que não gastou no

generosidade, mas pelo grau de generosidade que

presente e regozijando-se com o fato de que seu

exigia e o fundamento em que estavam apoiadas

futuro está livre de preocupações financeiras. Aos

suas exigências. 2.3

olhos de Jesus essa prudência, típica do mundo,

Deus tem interesse especial pelo pobre.

caracteriza-o como insensato. A simples posse

Jesus não era um asceta. Não existe nenhuma

dessa fortuna inesperada o condena. Ele armaze­

glorificação na pobreza em si nem prazer maso­

nou para si, em vez de dar aos pobres (e, desse

quista na privação. Aliás, Jesus consistentemen­

modo, se tornar “rico diante de Deus”).

te descreveu a consumação do reino como um

2.2

O único uso sadio das riquezas se dá tempo de abundância, e ele era conhecido como

no contexto do cuidado com os pobres. Estão

alguém que gostava de festas (e.g., Mt 11.19, para

1 138

Riquezas e pobreza i : Evangelhos

não mencionar o bem conliecido tema do ban­ quete, em Lucas; v.

A

Contudo, o termo “pobre” sempre leva con­

de modo

sigo um sentido de experiência de opressão e

que ele com certeza não era contra a boa comida

desamparo ou, nas palavras de B. Malina, de in­

com unhão

m esa),

e a boa bebida, embora fosse um hóspede que

capacidade de manter a condição herdada. Uma

podia debcar o anfitrião pouco à vontade.

pessoa que não tivesse necessidades e se sentisse

Ao mesmo tempo, Jesus declarou que Deus

segura não seria chamada “pobre”. Os discípulos

tem um interesse especial pelos pobres, ensino

haviam deixado sua segurança relativa para se

que se baseia no cuidado de Deus pelos pobres

identificar com a insegurança de Jesus. As seitas

no

que rotulavam Israel como “os pobres” sofriam

at.

Por exemplo, tanto em Mateus quanto

em Lucas ele descreve sua missão nos termos

opressão por parte das classes governantes. Mes­

de Isaías 61.1,2, mencionando especificamente

mo em Salmos, o termo só foi usado quando o

que as boas notícias são anunciadas aos pobres

salmista se sentiu desamparado: ele podia ter

(Mt 11.5; Lc 4.18-21). Sem dúvida, esses pobres

dinheiro, mas sua riqueza era inútil diante da

são o “povo da terra” , a quem ele envia seus

necessidade pela qual estava passando. Em seu

discípulos (Mt 10.6,7). É a esses pobres que ele

desamparo, ele clamou a Deus para que o Senhor

declara: “Bem-aventurados sois vós, os pobres,

cuidasse dele com o mesmo interesse que a Lei e

porque o reino de Deus é vosso” (Lc 6.20). Embo­

os Profetas diziam que Deus tinha pelos pobres.

ra Mateus 5.3 apresente uma versão diferente des­

Assim, 0 denominado uso metafórico de “pobres”

sa declaração — “ Bem-aventurados os pobres em

não é totalmente metafórico, pois sempre contém

espírito, pois deles é o reino do céu” — , o sentido

um elemento de sofrimento e insegurança reais,

é semelhante, pois se percebe que em Lucas Jesus

mesmo que o sofrimento não seja necessariamen­

se dirige aos pobres que o estão seguindo, e em

te econômico, e sim uma ameaça física.

Mateus, fala aos que demonstram o espirito dos pobres (segundo o

No caso das duas bem-aventuranças, os gru­

seja, os que buscam

pos que sofrem empobrecimento são abençoa­

a Deus e dependem dele (cf. IQM 14.7, em que

dos. Embora alguém pudesse ser materialmente

a expressão ocorre em seu equivalente hebraico).

pobre sem receber essa bênção, por não seguir

at ) ,

ou

No entanto, alguns estudiosos questionam se

a Cristo ou por não agir de maneira correta, em

esses são os materialmente pobres ou os metafo­

nenhuma das duas passagens — ou em qualquer

ricamente pobres. Não é a expressão “ sou pobre e

outra — existe a ideia de que é possível apegar-

necessitado” empregada em Salmos por pessoas

se às riquezas ou a outros recursos e ainda as­

em boa situação econômica? Não teria o termo

sim reivindicar essas bênçãos, sob a alegação de

“pobre” se tornado, na época de Jesus, mero si­

que seu espírito é “pobre”. É significativo que as

nônimo de Israel como povo oprimido e desam­

bênçãos jamais sejam pronunciadas sobre os ri­

parado? Sem dúvida, há um sentido espiritual no

cos nessas passagens ou em qualquer outra. Em

que diz respeito a esses “pobres”. Também está

Lucas, essa distinção é ressaltada três versículos

claro que nas obras intertestamentárias, como

depois, por meio de uma maldição contra os ricos

os Salmos de Salomão e os manuscritos do mar

(porque “já receberam sua consolação”

Morto, o termo “pobre” havia passado a desig­

porque retiveram suas riquezas, não por causa de

[n v i] ,

i.e.,

nar, respectivamente, as comunidades farisaica

qualquer outra injustiça). Mais uma vez, são “os

e do mar Morto como o remanescente piedoso

pobres, os aleijados, os cegos e os mancos” que

de Israel. Finalmente, fica claro que alguns dos

Deus está convidando para seu banquete messiâ­

que pertenciam ao grupo de discípulos de Jesus

nico, ao passo que os ricos (que têm condições de

não eram pobres ao ponto da indigência, embora

comprar terras e bois) são excluídos (Lc 14.21).

não fossem exatamente pessoas abastadas (e.g.,

Quem possui recursos não têm necessidade

Pedro e André possuíam uma casa; Tiago e João

das “boas-novas” que Jesus prega aos pobres. Je­

provinham de uma famíha razoavelmente prós­

sus não apenas cita Isaías 61.1,2, com seu tema

pera; Mateus/Levi, embora não fosse necessaria­

das boas-novas aos pobres, da soltura dos presos,

mente um rico cobrador de impostos, pôde se dar

da visão para os cegos e da hbertação dos oprimi­

ao luxo de oferecer um banquete a Jesus).

dos, mas pratica tudo isso em seu ministério. Ele

1139

Riquezas e pobreza i : Evangelhos

dá visão aos cegos e liberta os que estão presos e

tesouros nos céus quando vendem seus bens e

oprimidos (essa libertação em Lucas tem o senti­

dão aos pobres, ao passo que Mateus se satisfaz

do de expulsar demônios, embora a liberdade da

em empregar a expressão, que era bem conhecida

sua nova comunidade de discípulos sem dúvida

de seu público judeu). O motivo apresentado para

fosse mais um tipo de livramento). E embora haja

uma atitude tão radical é que o coração persegue

ricos que ingressem no reino, os únicos mencio­

naturalmente o tesouro, de modo que um tesouro

nados nos Evangelhos são aqueles que, como Za­

no céu significa um coração voltado para o céu,

queu, praticam a generosidade (e desse modo se

ao passo que um tesouro na terra significa, da

identificam com o sofrimento). São rejeitados os

mesma forma, um coração apegado a este mun­

que se recusam a se humilhar dessa forma.

do. Jesus com certeza punha em prática o próprio

Estaria Jesus, então, proclamando um perío­

conselho, pois João 13.29 indica que os discípu­

do de jubileu (Lv 25.8-55), quando prega “o ano

los imaginavam que Judas, ao deixar o grupo, ia

aceitável do Senhor”? Significaria um tempo de

cumprir a ordem de Jesus, ou seja, dar esmolas.

redistribuição de riqueza? Embora essa possibi­

Evidentemente, ajudar os necessitados era algo

lidade seja atraente e Lucas certamente veja os

costumeiro para Jesus, pois o texto diz que essa

ideais dos anos sabáticos e do Jubileu se concre­

foi a pressuposição natural dos discípulos.

tizando na igreja primitiva (At 4.34; cf. Dt 15.4),

No entanto, a generosidade nâo é simples

isso é improvável. Tal interpretação depende de

questão de ter certeza de que o coração está vol­

uma fundamentação linguística demasiadamente

tado para o que é certo ou está se livrando de

restrita e concentra os interesses de Jesus exces­

bens perigosos. Ela conquista uma recompensa.

siva e exclusivamente em questões econômicas

Assim como o homem rico é condenado por não

e sociais. Há uma concretização do ideal do Ju­

ser generoso com Lázaro, e o rico insensato, por

bileu, porém em termos muito mais amplos que

não armazenar tesouros no céu, no contexto de

aqueles vislumbrados na hteratura do

e sem

um banquete se faz a promessa aos que convidam

0 discurso de Jesus nâo visa às classes sociais,

na ressurreição dos justos” (Lc 14.14). É possível

pois incluiria todos os israelitas materialmente

que aqui Jesus esteja aplicando Provérbios 19.17;

at

suas normas.

os pobres para suas festas; “A tua retribuição será

pobres e excluiria todos os israehtas material­

“Quem se compadece do pobre empresta ao

mente ricos. Se fosse assim, ele precisaria deflnir

Senhor,

quão pobre a pessoa tinha de ser para se qualifi­

2.5

e este lhe retribuirá o seu benefício”. A confiança radical em Deus é a base

car à inclusão. Ao mesmo tempo, o sentido não

para a capacidade de abrir mão das riquezas. O

é puramente espiritual, falando apenas de uma

chamado de Jesus é radical no contraponto que

condição no íntimo, sem nenhuma referência às

faz entre “ não investir na terra” e “ investir no

circunstâncias externas. Pelo contrário, refere-se

céu” , mas isso se baseia numa promessa igual­

aos que, de uma forma ou de outra, estão de fato

mente radical: “ Buscai primeiro o seu reino e a

sofrendo com a opressão e se sentem desampara­

sua justiça, e todas essas coisas [materiais] vos

dos ou àqueles que se comovem com esse grupo,

serão acrescentadas” (Mt 6.33). De modo seme­

abrindo mão dos próprios recursos e repartindo

lhante, a promessa: “ Não temas, ó pequeno re­

generosamente os bens que possuem.

banho, porque é do agrado do vosso Pai dar-vos

2.4

O cuidado com o pobre garante recom­ o reino” precede a ordem: “Vendei vossos bens”

pensa eterna. Se Deus possui um interesse espe­

(Lc 12.32,33). Os que se convencerem de que o

cial pelos pobres (o que ele deixa claro, mesmo

Pai celestial irá de fato cuidar deles serão capazes

no

quando anuncia que é o protetor especial

de abrir mão de tudo. Já a falta de confiança no

dos pobres de Israel — as viúvas, os órfãos e os

Pai (inclusive a dúvida na excelência de sua von­

estrangeiros), é de esperar que seus seguidores

tade) levará a pessoa a providenciar o necessário

também revelem igual interesse. Jesus defende

para seu bem-estar, ou seja, a servir a Mamom.

AT,

essa conclusão quando ressalta que é o tesouro

Jesus dá a entender que até mesmo no nível

nos céus que é permanente (Mt 6.20; Lc 12.32-34;

da criação as pessoas devem perceber que podem

Lucas deixa claro que as pessoas armazenam

confiar em Deus, pois, se Deus cuida das aves

1140

Riquezas e pobreza i : Evangelhos

sem que elas tenham de providenciar o necessá­

possui e dar aos pobres, mas a fazer isso e en­

rio para o próprio bem-estar e veste lindamente

tão seguir a Jesus. Portanto, em certo sentido o

os lírios, com certeza ele está mais interessado

chamado de Jesus à generosidade radical é uma

nos seres humanos (Lc 12.22-31]. Além disso,

decisão individual, mas o contexto é o de um cha­

a ansiedade humana e o esforço para garantir

mado à vida comunitária alinhada com a função

o próprio bem-estar são, de todo modo, inúteis

das comunidades de participação voluntária na

(Mt 6.27). 0 que vale é a certeza de que “vos­

sociedade dele.

so Pai celestial sabe que precisais de tudo isso”

Boa parte do ensino de Jesus só pode ser en­

(Mt 6.32; Lc 12.30). A renúncia resulta do bem-es-

tendida nesse contexto. Por exemplo, a parábola

tar, não da exigência. Mas o bem-estar tem suas

dos bodes e das ovelhas (Mt 25.31-46) está intei­

raízes no conhecimento do Pai, não no que está

ramente relacionada com a comunidade. As pes­

presente fisicamente.

soas com certeza serão julgadas de acordo com

É nesse nivel que o quarto Evangelho apoia o

seus atos de generosidade (o judaismo teria visto

ensino dos Evangelhos Sinóticos sobre ricos e po­

todos os atos mencionados acima como diferen­

bres. Embora o tema da riqueza e da pobreza esteja

tes maneiras de dar esmolas), mas o foco da aten­

ausente (exceto por duas passagens de Jo 12— 13),

ção está nos atos de generosidade que praticarem

isso não acontece com o tema da confiança radical

a favor de “um destes meus irmãos, ainda que

em Deus. Por exemplo, o Jesus de João afirma que,

dos mais pequeninos” , não dos pobres em geral.

depois da ressurreição, “o Pai vos concederá tudo

Embora esteja claro que as ações generosas de

quanto lhe pedirdes em meu nome”. Esse pedir e

Jesus e de seus seguidores (esp. as curas e ou­

receber acontece “para que a vossa alegria seja

tros milagres) se estendiam para além do próprio

plena” (Jo 16.23,24). Essa dependência jubilosa

grupo, a maioria das ações concretas menciona­

do Pai, ressaltada inúmeras vezes nos capítulos

das acima estão relacionadas com os seguidores

anteriores e posteriores, e a insistência em que o

de Jesus. Isso vale até mesmo para o proverbial

Pai os ama constituem o alicerce da generosidade

“copo de água fresca”.

despreocupada dos Sinótícos. 2.6

De modo semelhante, as promessas de Je­

O contexto pnmordial da renúncia está sus são dirigidas aos seus seguidores. O “vós,

presente na nova comunidade. Toda a vida e

os pobres” de Lucas 6 é dito quando Jesus está

todo o ensino de Jesus transcorreram no con­

“olhando para os discípulos”. Ele anuncia as

texto do mundo social do judaísmo do século i.

bem-aventuranças do Sermão do Monte depois

Ou seja, ele estava inserido nessa matriz social,

que “ seus discípulos se aproximaram”. Não existe

nessa comunidade. Em face do individualismo

nenhuma bênção prometida aos pobres que não

moderno do mundo ocidental, boa parte do que

sejam discípulos, embora haja algum tipo de bên­

Jesus ensinou sobre riqueza e pobreza parece não

ção para qualquer um, rico ou pobre, que, mesmo

fazer sentido. Todavia, levando-se em conta que

não sendo discípulo de Jesus, preste socorro a um

seus seguidores pressupunham que Jesus estava

discípulo (Mc 9.41; Mt 10.40-42).

certo ao ensinar que o reino de Deus havia che­

Finalmente, as bênçãos pronunciadas por Je­

gado, esse ensino fazia bastante sentido. Assim

sus são recebidas no contexto da comunidade es­

como os fariseus, a comunidade do mar Morto e

catológica (i.e., o grupo de discípulos). Quando

até mesmo os zelotes convidavam pessoas a fazer

Pedro observa que, ao contrário do homem rico,

parte de uma comunidade de apoio que aponta­

“Nós deixamos tudo e te seguimos” , Jesus respon­

va para uma nova ordem prestes a ser inaugu­

de, dizendo que ele e os outros discipulos recebe­

rada, assim Jesus convidava os que aceitavam

rão “cem vezes mais, agora no presente, [...] e no

sua mensagem a participar de um novo mundo

mundo vindouro, a vida eterna” (Mc 10.28-30).

social. Eles deviam se tornar seus seguidores, fa­

Receber “cem vezes mais” (com as perseguições)

zer parte da comunidade renovada. Os discípulos

não se refere ã recompensa pessoal de alguém,

deixaram seus bens, mas o fizeram para seguir

mas ao partilhar da riqueza da comunidade. Em

a Jesus, para fazer parte de seu grupo. O jovem

termos antropológicos, essas pessoas recebem

rico não é simplesmente chamado a vender o que

uma nova rede de relacionamentos diádicos.

1 141

KIQUEZAS E POBREZA i: tVANGELHOS

Isso significa que, ao constituir uma nova famí­

Jesus admitia que seu ensino era um ideal ina­

lia estendida, cada um dos discípulos recebe uma

tingível para eles. Além disso, pode se indagar se

família maior que a que foi debcada para trás. Sig­

a igreja primitiva teve esse entendimento (reco­

nifica que, se a comunidade de discípulos divide

nhecendo-se que os Evangelhos foram os livros

entre si o que possui, cada membro tem acesso

daquela igreja e que ela foi responsável por dar

a muito mais recursos que aqueles de que abriu

forma à tradição).

mão. É concebível que também se possa dizer

Terceira: outra interpretação é ver Jesus como

isso sobre a recompensa celestial. Com certeza,

alguém que oferece uma diretriz hteral a um gru­

pelo menos na esfera da recompensa da era pre­

po de seguidores em particular. Para os anaba-

sente, sem esse destaque dado à comunidade o

tistas comunais, tratava-se de uma regra literal

ensino de Jesus facilmente degenera numa ética

obrigatória para todos os cristãos que desejassem

de satisfação pessoal.

andar no caminho do discipulado pleno. Para as ordens monásticas, essa “perfeição evangélica”

3. A escatologia e a ética de Jesus

só era compulsória para o religioso que desejasse

É sabido que o ensino de Jesus se deu num

abandonar o mundo e viver a plenitude da vida

contexto da expectativa pelo reino. Jesus veio

cristã. De uma maneira ou de outra, a implicação

anunciar que o tempo havia chegado e que o rei­

é que quem não se despe das riquezas e não aju­

no de Deus estava às portas. Cada uma das pro­

da os pobres deve ser caracterizado, na melhor

messas sobre o cuidado do Pai e as bênçãos das

das hipóteses, como discípulo de segunda classe.

Bem-Aventuranças contém a ordem de buscar o

Quarta: podemos entender o ensino de Jesus

reino ou a promessa do reino. De maneira deci­

como uma ética que se deve viver à luz da esca­

siva, Deus irrompeu na história: é hora de uma

tologia. As pressuposições dessa leitura são: 1) o

mudança radical.

reino é na realidade a onda do futuro, no sentido

Levando-se em conta esse contexto, é possível

de que, embora não seja visto (exceto nos vários

ler a ética de Jesus de quatro maneiras. Primeira:

sinais de sua vinda), é real, e os aspectos obser­

acompanhando a ideia de A. Schweitzer e ou­

váveis presentes desta era irão passar; 2) o Pai de

tros, podemos vê-la como uma ética temporária

fato ama os seus e cuida deles; 3) o Espírito San­

estabelecida diante do fato de que o reino logo

to (prometido nos Evangelhos) deixa o discípulo

surgirá. Essa perspectiva entende que o ensino

hvre para responder positivamente às exigências

de Jesus sobre ricos e pobres está condicionado à

de Jesus. À luz desses fatores, faz sentido a aph­

expectativa de Jesus com relação ao fim dos tem­

cação do ensino de Jesus sobre ricos e pobres à

pos, a qual não se cumpriu. Desse modo, a ética

vida na comunidade cristã.

foi irrelevante para gerações posteriores da igre­

Relacionado com todas as perspectivas acima

ja. Entretanto, parece não ter sido essa a postura

está 0 fato de que é improvável que Jesus este­

assumida pelos primeiros intérpretes de Jesus,

ja instituindo uma nova Lei. Aliás, só o tercei­

pois sem dúvida os Evangelhos foram escritos

ro ponto de vista talvez sugira algo assim. Nos

quando já haviam transcorrido uns bons anos do

Evangelhos, descobre-se que Pedro ainda possuía

movimento cristão, e algumas obras, como Tiago,

uma casa (Mc 1.29) e que mulheres providas de

demonstram a aphcação relativamente hteral do

recursos financeiros sustentavam o ministério

ensino de Jesus.

de Jesus, o que parece demonstrar que elas não

Segunda: podemos interpretar o ensino de

se desfizeram de seus bens (Lc 8.3). É evidente

Jesus como um ideal ético, cujo objetivo era ou

que eles entendiam que Jesus falava por meio de

forçar o povo da época a enfrentar a própria in­

hipérboles, como era próprio dos sábios judeus

capacidade e reconhecer a necessidade da graça

(como em Provérbios), ou de um contador de his­

(esse é em parte o pensamento de R.

tórias, em contraste com o literalismo absoluto de

G u e l ic h ) o u

vigorar a partir do momento em que o reino se

um legislador.

consumasse. A validade desse ponto de vista de­

De fato, esses e outros exemplos mostram

pende de se verificar se os discípulos praticaram

duas coisas. Primeira: embora os discípulos te­

hteralmente o ensino de Jesus ou se o próprio

nham deixado tudo para seguir a Jesus, eles não

1142

Riq uezas e pobreza i : Evangelhos

renunciaram necessariamente a todos os seus

de ricos e pobres. Contudo, elas mostraram que

bens, embora a decisão que tomaram envolvesse

a escatologia (e, em Paulo e outros, a dádiva do

considerável perda e riscos econômicos e exigisse

E s p ír ito S a n t o

plena confiança em Jesus. Segunda: o ato de re­

escatológico) estava relacionada com a ética no

partirem seus bens de forma jubilosa e generosa

início da tradição cristã. Assim, estaremos em

como sinal de entrada do futuro

significava exatamente isso. Não era uma norma

melhores condições de interpretar essa tradição

a que eram obrigados a obedecer. Por exemplo, a

para os dias de hoje.

narrativa da unção em Betânia (Mc 14.1-9 — epi­

Ver ta m b ém é t i c a ; j u s t i ç a / r e t i d ã o .

sódio narrado em todos os Evangelhos, ã exceção

d jg : T a x e s .

de Lucas, que, na melhor das hipóteses, o apre­ senta de maneira bastante diferente) mostra um

B i b l i o g r a f i a . B am m el,

tipo bem diferente de generosidade. A unção de

s .n .,

Jesus “para o sepuhamento” foi com certeza um

Neither poverty nor riches: a biblical theology of

ato radical (talvez de caridade, caso ela, de alguma

possessions. Downers Grove: InterVarsity,

forma, soubesse do sepultamento, o que é impro­

[nsbt.] •

s.d.]. v.

p.

6.

C assidy,

E. rrrwxóç 8 8 5 -9 1 5 .



vável), mas foi feito para Jesus, não a favor dos po­

ty. &

de João, Judas se sente especialmente afrontado).

kingdom. Grand Rapids: Eerdmans,

Com certeza, não existe a sugestão de que teria

vids,

Orbis

M a ry k n o U :

P.

H.

C. L. 1999.

R. A. Jesus, politics, and socie­

bres (o que ofendeu os discípulos, e, no Evangelho

J. I.

M c D o n a ld ,

[S.L:

k tA . t d n t. B lo m b e r g ,

H.

B ooks,



1978.

C h ilt o n ,

B.

Jesus and the ethics o f the ■

1987.

Da­

New Testament foundations for hving

sido melhor a mulher guardar o unguento, para o

more simply. In:

caso de alguma eventuahdade. Para os Evangehs­

ply. Downers Grove: InterVarsity,

tas, a questão é se o ato extravagante tinha direção

■ Donahue, J.

certa. Jesus dá a entender que ele tinha precedên­

rich an d p o o r in Luke-Acts. In: Knight, D . A . & Pa­

cia sobre os pobres; o momento escatológico tinha

ris, P. J., orgs.

prioridade sobre as demais exigências. Dificilmen­

n or o f W a h e r H arrelson. Atlanta: Scholars, 1 9 8 9 .

te seria esse o pronunciamento de um legislador,

p. 1 2 9 - 4 4 . • Eichler , J. et al. Possessions, treasu­

em qualquer sentido convencional.

re, M a m m o n , w ealth , nidntt . [S.L: s.n., s.d .]. v. 3 .

O teste a ser aphcado a esses pontos de vista,

R.

S id e r,

R. J., org. Living more sim­ 1980,

p.

4 0 -5 8 .

TVvo decades o f research on the

Justice and the holy:

essays in h o ­

p. 8 2 9 - 4 7 , 8 5 2 - 3 . • Esser, H .-H . & Brown,

portanto, está dividido em três partes. Primeira:

NIDNTT. [S.l.: s.n., s.d .]. v.

devemos anahsar os Evangelhos e indagar como

T.

3.

C.

Poor.

p. 8 2 0 - 9 . • France,

R.

G o d a n d M a m m o n . E v Q , v. 5 1 , p. 3 - 2 1 , 1 9 7 9 . ■

os contemporâneos de Jesus interpretaram sua

Guelich,

mensagem, tarefa parcialmente realizada aci­

W o rd , 1 9 8 2 . ■ Hengel, M .

R.

A.

The Sermon on the M ount

ma. Segunda: devemos anahsar os Evangelhos

the early church.

(e, com eles, talvez Atos, por constituírem uma

J.

Being poor:

W aco:

Poverty and riches in

L on d on : scm, 1 9 7 4 . • Hopps, L.

a b ib h c a l study. W ilm in gto n : M i­

única perspectiva com Lucas) e, reconhecendo

chael G lazier, 1 9 8 7 . (gns, 2 0 . ) ■ Jeremias, J.

que esses documentos serviram de base para

salem in the times o f Jesus.

as comunidades cristãs, indagar se existe algu­

Johnson, L.

ma coisa neles ou na literatura epistolar do

sy m bo l o f faith. Ph ilad elph ia: Fortress, 1 9 8 1 . •

nt

Jeru­

L on d on : scm, 1 9 6 9 . ■

T. Sharing possessions:

m andate an d

que possa nos dirigir a uma compreensão desse

Kraybill, D . B.

ensino como algo que não seja o mandamento

tdale: H erald, 1 9 7 8 . ■ Kvalbein, H. Jesus a n d the

The upside-down kingdom.

do Fundador a ser posto em prática. Terceira:

poor.

devemos analisar as interpretações mais antigas

B. J.

da tradição cristã — como Paulo, em 2Coríntios

Atlanta: John K n ox, 1 9 8 6 . ■

8—9 e ITimóteo 6, e a Carta de Tiago — e ver

tament world:

se concordam com a perspectiva de Jesus ou se

gy. Atlanta: John K n ox, 1 9 8 1 . ■ ________ . W ealth

Themelios,

Scot-

v. 1 2 , p. 8 0 - 7 , 1 9 8 7 . ■ M alin a,

Christian origins and cultural anthropology. ______ . The New Tes­

insights from cu h u ral a n th ro p o lo­

de alguma forma atenuam a contundência de seu

and poverty in the New Testament and its world.

ensino (v.

Int,

wquezas e pobreza ii

e iii).

Nenhuma dessas considerações irá ehminar o aspecto escatológico do ensino de Jesus acerca

V. 4 1 ,

p.

3 5 4 -6 7 , 1 9 8 7 .

■ P i l g r i m , W. E. Good

news for the poor. Minneapohs: Augsburg, ■ P o B E E , J.

1143

1981.

S. Who are the poor? The Beatitudes

R iquezas e pobreza ii : Paulo

as a call to community. Geneva: wcc, 1987. 32.] •

S eccom be,

( rbs,

d. p. Possessions and the poor in

Luke-Acts. Linz: Fuclis, 1982. [sntsu.] •

e “satisfeito em todas as circunstâncias” (Fp 4.1013] tenha feito com que ele não percebesse o que

S c h m id t ,

a questão significava para outros. No entanto, ele

T. E. Hostility to wealth in the synoptic gospels.

pode ter se mostrado tão sensivel ao assunto que

Sheffield:

15.] ■ S c h o t r o f f , L.

deu apenas instruções verbais aos crentes. De

W. Jesus and the hope of the poor.

todo modo, o fato de Paulo ser um itinerante que

jso t,

& St e g e m a n n ,

1987.

(js N T S u p ,

Maryknoll: Orbis, 1980. ■ S c h ü r e r , E. The history

presumivelmente possuía um mínimo de bens

o f the Jewish people in the age o f Jesus Christ.

para viver e ao mesmo tempo não exigia com­

(175 b .c .-A .D . 135). Rev. e ed. G. Vermes, F. Millar

pensações financeiras do povo, sugere que eram

e M. Goodman. Edinburgh: T & T Clark, 1979.

despretensiosas as suas expectativas em relação

■ V

e rh ey,

a. The great reversal: ethics and the

aos crentes com quem convivia.

New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1984.

1.1 A espiritualização das riquezas. Entre os

J. H. The politics o f Jesus. Grand Rapids:

escritores que viveram mais ou menos à época

■ Y

oder,

Eerdmans, 1972.

de Paulo, apenas Filo de Alexandria se aproxima P. H.

D

a v id s

da espiritualização paulina do tema da rique­ za. A natureza de Deus na dádiva da salvação

R iq u e z a s

e po b r e za ii:

P aulo

é considerada uma “riqueza” , especialmente em

Nem 0 uso correto das riquezas nem o sofrimento

Romanos (Rm 2.4; 9.23; 10.12; 11.33) e Efésios

dos que passam por privação são grandes preocu­

(Ef 1.7,18; 2.4,7; 3.8,16; cf. Fp 4.19; Cl 1.27). Des­

pações para Paulo, que geralmente espiritualiza o

se modo. Deus enriquece os santos (Rm 11.12;

tema das riquezas. E, quando ele demonstra al­

ICo 1.5; 2Co 6.10; 9.11; Cl 2.2; 3.16; Tt 3.6).

guma preocupação com questões econômicas, na

Em 2Coríntios 8.9, Paulo diz que Cristo dei­

maior parte seu ensino reflete a piedade judaica

xou a riqueza e se tornou pobre a fim de tornar

padrão.

os outros espiritualmente “ricos”

(ar a).

Em geral,

1. Riquezas

entende-se o “empobrecimento” de Cristo nessa

2. Pobreza

passagem como uma referência ao fato de ele ter, na encarnação, trocado o estado celestial pelo ter­

1. Riquezas

reno, mas é possível que isso revele uma renún­

Nas cartas paulinas, é notável a falta de atenção

cia hteral de Jesus às riquezas — ou pelo menos

dada aos ricos e ao uso correto das riquezas. O

realce o baixo nível econômico que experimentou

assunto é comum na literatura de sabedoria ju­

durante seu ministério na terra. Paulo emprega

daica do período intertestamentário e entre os

uma hnha semelhante de raciocínio em 2Corín-

moralistas greco-romanos da época, e, é claro, os

tios 6.10, alegando que sua pobreza (econômica]

Evangelhos Sinóticos e Tiago revelam considerá­

levou riqueza (espiritual] aos coríntios.

vel preocupação com os perigos da riqueza (v.

A inconsistência entre a condição de Paulo

e iii]. As informações conti­

como cidadão romano (provável indicação de

das em Atos (e.g., At 16.14; 17.12; 18.7,8] e uma

que pertencia a uma família próspera] e sua vida

r iq u e z a s

e

pobreza

I

anáhse dos nomes mencionados nas cartas de

de evangehsta itinerante talvez ofereça uma pista

Paulo (e.g., Rm 16.1-23] dão a entender que na

para sua postura de viver desligado das riquezas:

igreja primitiva havia muitos convertidos em boa

é em Cristo (v.

situação financeira. Entretanto, Paulo mal toca

valores mundanos são transformados assim a ter­



em

C

r is t o ”

)

que assim como os

no assunto das riquezas. A única vez em que

minologia mundana tem de ser redefinida. O jogo

faz uma análise mais delongada é em ITimóteo

de palavras em torno da ideia da “riqueza” , em

6.6-10,17-19.

ITimóteo 6.17-19, talvez represente o pensamen­

É certo que o uso da riqueza está um tanto

to de Paulo já amadurecido sobre o assunto.

fora do âmbito das questões interpessoais e

1.2 Nível econômico do público-alvo de Pau­

intercomunitárias características da ética pauhna.

lo. A leitura de ICorintios 1.26 indica que não ha­

É possível que o fato de Paulo estar hvre das

via muitos coríntios em posição de autoridade ou

preocupações deste mundo (ICo 7.28-35; 8.1-13]

de nobreza, mas estudos recentes demonstram

1144

R iquezas e pobreza i i : Paulo

que é errado interpretar essa realidade como um

a prática da autarkeia deixava implícitas não ape­

indicador de nível econômico baixo nas igrejas

nas a hbertação e a separação espiritual, mas tam­

paulinas. 0 “ nem muitos” permite exceções im­

bém a redução voluntária a um nível econômico

portantes (cf. At 18.7,8; Rm 16.23), e as pessoas

mínimo. O ensino de Paulo — e certamente seu

podiam ser ricas sem ter prestígio ou nível so­

exemplo — leva em consideração esse grau ex­

cial elevado. Aliás, Paulo critica os membros da

tremo de liberalidade por parte dos ricos. Ahás,

igreja inclinados a ambições sociais (ICo 11.19)

ICorintios 13.3 faz alusão aos que se desfazem de

e ao preconceito social (ICo 11.17-22), e seu ex­

tudo (desde que com amor). Mas o fato de Paulo

tenso apelo à ajuda financeira pressupõe que as

não tornar explícita essa exigência indica que suas

pessoas a quem se dirigia tinham condições de

expectativas de liberahdade se Umitam ã coleta de

ajudar os pobres de Jerusalém (2Co 8 e 9; v. esp.

dinheiro e ao fornecimento de meios de subsistên­

2Co 8.13-15). 0 consenso que está surgindo é que

cia para os crentes necessitados (Ef 4.28).

nas igrejas pauhnas havia uma boa representa­ ção dos vários segmentos da sociedade urbana:

2. Pobreza

bem poucas pessoas em ambos os extremos da

Paulo tem ainda menos a dizer a respeito dos

escala socioeconômica e uma preponderância de

pobres do que em relação aos ricos. Como já

artífices e comerciantes com níveis variados de

foi dito, isso talvez se deva ao fato de Paulo dar

renda. É possível que alguns dos que possuíam

pouca atenção à própria condição material. Tal­

dinheiro, mas não tínham outro meio de alcançar

vez também se deva, em parte, ao fato de que a

melhor posição social, tenham se aproximado do

pobreza não era relevante nas igrejas paulinas.

cristíanismo como forma de melhorar sua posi­

Nas cidades, entre os artífices, comerciantes e até

ção social na comunidade.

mesmo escravos que constituíam as comunida­

1.3

Uso responsável das riquezas. A ética des primhivas, é possível que bem poucos fossem

econômica pessoal do corpus paulino reflete a

pobres, para os padrões do século i, ou seja, sem

piedade judaica do período. Isso inclui advertên­

outro meio de sobrevivência que não fosse a aju­

cias contra a cobiça (ICo 5.11; ITm 3.8; Tt 1.7),

da de outros. 2.1

incentivos ao trabalho como forma de evitar

Responsabilidade para com o pobre. Na

a pobreza (Rm 13.8; ITs 4.11,12; cf. 2Ts 3.6-

medida em que são encontrados, os pobres se

12), prioridade ao sustento da famíha (01 6.10;

tornam destínatários ideais da liberahdade cristã

ITm 5.8; cf. At 11.27-30) e auxílio aos outros

(Ef 4.28; cf. At 11.27-30), e o próprio Paulo afir­

com liberalidade (Rm 12.8,13; ICo 16.2; 2Co 8.2;

ma que lembrar-se dos pobres faz parte de seu

Ef 4.28). Para Paulo, a liberalidade concentra-se

comissionamento (Cl 2.10; cf. instruções acerca

na coleta para os santos, que parece t€r substi­

de viúvas, ITm 5.13-16). As instruções acerca

tuído 0 imposto do templo, sendo a expressão

do trabalho em ITessalonicenses 4.11,12 e 2Tes-

paulina de solidariedade para com a igreja em

salonicenses 3.6-12 deixam implícita uma ideia

Jerusalém (Rm 15.25-29; ICo 16.1-4; 2Co 8—9;

negativa da pobreza como resultado da preguiça.

talvez Cl 2.10). De um modo mais específico,

Em outras passagens e com base nas instruções

Paulo ordena aos ricos que sejam generosos, o

de Paulo aos cristãos para que sejam bondosos

que resultará em bênçãos espirituais nesta vida

e amorosos, podemos inferir certa dose de com­

(2Co 9.10-15; Fp 4.14-20; ITm 6.19).

paixão pelos crentes em Cristo, mas a pobreza

Somados a esses aspectos judaicos, há alguns

propriamente dita não é uma preocupação do

elementos gregos no ensino de Paulo (v. esp.

apóstolo. Paulo chama a atenção para sua pobre­

2Co 8—9). A advertência contra o “amor ao di­

za não para pedir ajuda financeira, à qual renun­

nheiro” (ITm 3.3; 6.6-10; 2Tm 3.2) era comum na

cia (ICo 9.15; 2Co 11.10), mas para destacar as

hteratura grega da época. Em Fihpenses 4.11-13,

riquezas espirituais que seu ministério confere às

Paulo defende a “autossuficiência” em todas as

pessoas (2Co 6.10; cf. ICo 4.9-13). Ele chama a

Fp 4.11; cf. ITm 6.7,8),

atenção para a pobreza dos macedônios apenas

termo comum entre os estoicos e os cínicos. Entre

para ressahar o exemplo de generosidade desses

os cínicos, e mais tarde no monasticismo cristão,

crentes (2Co 8.2).

circunstâncias

[a u t a r k ê s ,

11 4 5

Riquezas e pobreza iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

2.2

“Os pobres dentre os santos de Jerusa­ Christianity: essays on Corinth. Philadelphia: For­

lém". Romanos 15.26 menciona as ofertas da

tress, 1982.

Macedônia e da Acaia para os “ pobres dentre os

T. E.

S c h m id t

santos de Jerusalém”. Uma vez que se trata de uma referência à coleta feita por Paulo, que não

R

iq u e z a s e p o b r e z a iii :

é em nenhum outro lugar descrita como ajuda de

H

ebreus,

p o c a l ip s e

C artas G

A

tos,

e r a is ,

socorro, é possível que aqui seja melhor interpre­

A

tar a expressão como exphcativa: “ os pobres que

Como se percebe em Atos, Hebreus, nas Cartas

são os santos de Jerusalém”. Isso é consistente

Gerais e em Apocalipse, a abundância ou a falta

com o emprego do título “pobre” como autode-

de bens materiais não foi uma preocupação dos

signação dos judeus, especialmente os sectários

cristãos do século i. A maioria das declarações

de Qumran (v. IQpHab 12.3,6,10; IQM 11.9,13;

parenéticas está mais em conformidade com o

4Q171 37.2-10; cf. Sl 69.32; 72.4), na literatu­

pensamento piedoso judaico que com as declara­

ra da época. Nesse sentido, o termo “pobres”

ções radicais dos Evangelhos. Entre os desdobra­

não é basicamente uma designação econômica,

mentos cristãos mais inconfundíveis está a ênfase

mas sinaliza o anseio pelas riquezas espirituais

na hospitalidade e nas orações feitas pelos pobres

da salvação. Isso está em conformidade com a

a favor dos crentes ricos.

espiritualização do conceito de riquezas em Pau­

1. Atos

lo e pode indicar uma conotação não econômica

2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocahpse

quando Paulo se lembra dos pobres (01 2.10). Contudo, se os crentes de Jerusalém — ou parte

1. Atos

deles — estavam em dificuldades financeiras, o

Duas passagens-chave que sintetizam o assunto

título talvez indique essa privação. Alguns podem

(At 2.43-45; 4.32-37) concentram a atenção na

ter sofrido a perda de seus bens como resultado

unidade dos crentes na primeira igreja, em Je­

das ações dos adversários judeus (Hb 10.32-34),

rusalém. Com respeito aos bens materiais, essas

da fome (At 11.27-30) ou da diminuição voluntá­

passagens apresentam dois aspectos distintivos:

ria de suas posses (At 4.32-37).

os bens pertenciam a todos (At 2.44; 4.32) e

Ver também

eram vendidos para evitar que alguém passasse

é t ic a .

DPC: AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS; CO­ LETA PARA

necessidade (At 2.45; 4.35). Essas características parecem representar um distanciamento da re­

os s a n t o s ; SOFRIMENTO.

núncia radical que nos Evangelhos é exigida dos B ib u o g ra fia . B ammel,

s.n ., s.d.].

V.

E.

tttuxóç ktA. tdnt. [S.l.:

discípulos (e.g., Lc 5.11; 14.33; 18.22), mas essa

6. p. 885-916. ■G eorgi, D. Remem­

pode ser uma maneira de atender àquela exigên­

bering the poor. N ashville: Abin gdon , 1992. •

cia (cL Lc 8.3; 12.33; 16.9; 19.8). O ato de doar

B lomberg, C. L. Neither poverty nor riches: a bi­

bens materiais pode pressupor, no hvro de Atos,

b lical th eo logy o f possessions. D ow ners Grove:

o que é ressaltado nos Evangelhos (i.e., a neces­

InterVarsity, 1999.

■H auck, F. & K asch, W.

sidade de os discípulos expressarem dependência

[S.L: s.n., s.d.]. v. 6. p. 318-

total de Deus), mas se concentra na necessidade

32. • H engel, M. Property and riches in the early

dos membros da comunidade. Isso é consistente

church. Philadelphia: Fortress, 1974. • H olmberg,

com os elogios feitos a pessoas que fazem carída-

B. Paul and Power. Lund:

G leerup, 1978. •

de (At 9.36; 10.2,4; cf. At 6.1-6) e com a condena­

K eck, L. E. T he poor am on g the saints in the N ew

ção daqueles que davam mais valor ao dinheiro

56, p. 100-29, 1965. • K idd, R.

que às necessidades do próximo (At 5.1-11; 8.14-

M. Wealth and beneficence in the pastoral epis­

24). Condiz também com o ideal helenístico da

tles. M issoula: Scholars, 1990.

122.) • M e­

amizade ou da harmonia de ideias entre pesso­

W. The first urban Christians. N ew Haven:

as, 0 que muitas vezes é expresso pela referência

ttAoOtoç ktA. t d n t .

Testam ent,

eks,

znw , v.

[n s b t .)

cwk

[s b ld s ,

Yale U niversity Press, 1983. • N ickle, K. F. The

à posse comum de bens, mas aqui a prática é

collection: a study of Paul’s strategy. London:

impulsionada pelo Espírito (v.

scm,

1966. ■ T h e is s e n , G. The social setting o f Pauline

não pela amizade.

1 146

E s p í r it o

Sa n to ),

Riquezas e pobreza hi: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

Alguns estudiosos entendem que a posse co­

não deixa que a humildade permaneça no nível de

mum dos bens não é mencionada nos primeiros

atitude. Os “praticantes da palavra” (Tg 1.22) de­

escritos cristãos depois de Atos 4 porque esse sis­

vem cuidar dos necessitados (Tg 1.27) e renunciar

tema fracassou como experimento social, ou por­

aos prazeres do mundo (Tg 4.3-10).

que foi uma medida temporária para ajudar os

Em Apocalipse, Jesus determina à igreja de

peregrinos que foram embora quando ficou óbvio

Laodiceia que pare de se gloriar (pois diz: “ Es­

que o eschaton iria demorar. Uma conclusão mais

tou rico”) e aconselha que ela compre “de mim

provável para o silêncio após essa descrição entu­

ouro refinado no fogo” (Ap 3.17,18), uma possí­

siasmada da vida comunitária da igreja primitiva,

vel alusão a determinadas passagens dos Evange­

porém, pode ser que os crentes não continuaram

lhos (Mt 13.44,45; Lc 16.9), em que “comprar” é

naquele nível inicial de obediência.

uma metáfora da renúncia aos bens. Em outras passagens de Apocahpse, as riquezas terrenas

2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse

são associadas aos poderes do mal, e Apocahpse

As Cartas Pastorais e Hebreus refletem o que po­

18 apresenta um longo “ai” contra a Babilônia,

demos chamar de “valores da classe média”. Elas

que “a si mesma se gloriflcou e viveu em luxúria”

partilham o desejo de que os cristãos estejam

(Ap 18.7,

satisfeitos com sua situação econômica pessoal

dimento comercial seja até certo ponto uma me­

ara].

Embora a descrição de empreen­

(ITm 6.6-10; Hb 13.5b) e condenam o amor ao

táfora da rebelião espiritual, a recomendação aos

dinheiro (ITm 6.10; 2Tm 3.2; Hb 13.5a; Tt 1.7),

crentes é clara: “ Saí dela, povo meu, para que não

sem condenar os que possuem muitos bens. Para

sejais participantes dos seus pecados” (Ap 18.4).

os ricos, a recomendação é; “ Pratiquem o bem e

Apocahpse encerra oferecendo um contraste

se enriqueçam com boas obras, sejam solidários

com isso, descrevendo um reino celestial feito

e generosos” (ITm 6.17,18). Ordena-se a todos os

de ouro, cristais e joias (Ap 21.1—22.6). Tíata-se

crentes que pratiquem a hospitalidade (ITm 5.10;

também de uma metáfora, que utihza terminolo­

Hb 13.2,16).

gia profética para representar uma comunidade

As cartas de Pedro e de João não contêm prati­

perfeitamente ordenada por Deus. Mas, ao re­

camente nenhum material pertinente ao assunto.

tratar de forma quase irônica riquezas materiais

Pedro adverte contra as motivações mercenárias

inimagináveis como recompensa para os que re­

no ministério (IPe 5.2; 2Pe 2.14,15), e João reco­

nunciaram às riquezas na terra, esse vocabulário

menda generosidade para com os crentes neces­

faz parte de uma tradição que remonta pelo me­

sitados (IJo 3.17); ambos ordenam hospitalidade

nos até Jó e continua em Mateus 5.3-5, 2Corín-

(lPe4.9;3Jo 5-8).

tios 8.13-15 e Apocalipse 2.9: “ Conheço as suas

T

ia g o

e

A

p o c a l ip s e

revelam mais uma atitude

aflições e a sua pobreza; mas você é rico”

crítica para com os rícos e louvor aos pobres, que é

Ver também

característica dos Evangelhos, mas isso não signi­ fica que os destinatáríos pertençam ao nível social

é t ic a ; T ia g o , C a r t a

[ n v i] .

de.

d ln t d : H o s p h a lity ; S o c ia l S e t t in g o f E a r ly N o n -

PAULINE CHRlSTIANrrY.

mais baixo. Parece que a crítica enérgica contra os ricos em Tiago 5.1-6 é dirigida a opressores não

B i b l i o g r a f i a . B lo m b e r g , C .

cristãos, mas outras passagens (Tg 1.10,11; 2.1-7;

riches: a biblical theology of possessions. Downers

L. Neither poverty nor

4.13-15) deixam impUcita a presença de crentes

Grove: InterVarsity, 1999.

bastante ricos. Além disso, em relação aos desti­

W. The rich Christian in the church o f the Early

natários da carta, tanto os ricos quanto os pobres

Empire:

de fora são chamados de “ele”/“eles” (Tg 2.1-7).

Lewiston: Edwin Mellen, 1980, ■ G a r r i s o n , R. Re­

Tiago 1.9-11 recomenda aos crentes pobres que se

demptive almsgiving in early Christianity. Shef­

contradictions

(n s b t.)

and

■ C o u n t r y m a n , L.

accommodations.

gloriem no fato de que logo passarão a ter “alta

field:

posição” e aos crentes ricos que se gloriem na

a history of early Christian ideas on the origin,

js o t,

1993. ■ G o n z a l e z , J. Faith and wealth:

“ sua humilhação”. O ato de se gloriar reside na

significance and use of money. San Francisco:

transitoriedade de sua riqueza em comparação

Harper & Row, 1990. ■

com a perenidade da vinda do reino, mas Tiago

riches in the early church. Philadelphia: Fortress,

1 147

H e n g e l,

M. Property and

Ro m a

1974. ■ J o h n s o n , L. T. Sharing possessions: man­

do Império Romano, em especial as dinastias

date and symbol of faith. Philadelphia: Fortress,

de Júho César e de Flaviano, tem importância

1981. ■ M

direta. 0 conhecimento desse periodo deve-se

aynard

- R e id ,

P. U. Poverty and wealth in

especialmente às obras Anais e Histórias, de Tá­

James. Maryknoll: Orbis, 1987. T. E.

S c h m id t

cito, Vida dos Césares, de Suetônio, Histórias, de Dião Cássio, e Guerras judaicas e Antiguidades

ROLOS DO M A R M o r t o .

Ver m a n u s c r it o s

do m ar

M

o rto .

judaicas, de Josefo, além de inscrições, papiros e informações obtidas em moedas e outros ma­

Roma

teriais que chegaram até nós (v.

Roma foi a principal cidade da Itália e a capital

M

il n s ;

A

v i- Y o n a h

B a l s d o n ; Jo nes &

) .

do Império Romano. Per causa de seu prestígio

Augusto (27 a.C.-14 d.C.) tornou-se, com

e importância, seu nome é usado para designar

toda a justiça, famoso por estabelecer e manter

tanto a cidade quanto a civilização romana.

a paz (a pax romana, embora houvesse um cus­

1. Antecedentes históricos e culturais da ci­

to para preservá-la; v.

W

engst) ,

por administrar

com eficiência, inclusive instituindo reformas

dade e do império 2. A cidade de Roma no século i d.C.

legais e financeiras, por defender os valores e a

3. Os romanos na Palestina

moralidade romanas tradicionais e por patrocinar as artes. De estilo de vida modesto, preferia ser

1. Antecedentes históricos e culturais da

conhecido como princeps (“primeiro cidadão”)

cidade e do império

a imperator (“imperador”). O principado de seu

1.1 A república romana. Roma começou como

enteado Tibério (14-37 d.C.) revelou-se mais tirâ­

um pequeno assentamento na margem oriental

nico e terminou num reinado de terror. Os males

do rio Tibre. De acordo com a tradição, Roma foi

do poder autocrático tornaram-se ainda mais evi­

fundada em 753 a.C. por Rômulo e governada por

dentes no governo de Gaio (Calígula, 37-41 d.C.),

reis, e se tornou uma república em 509 a.C., sen­

que pode ser considerado até mesmo insano. Ele

do governada por um senado subordinado a dois

ofendeu os judeus ao ordenar que sua estátua

cônsules. Ela se expandiu com rapidez, conquis­

fosse colocada no templo de Jerusalém (o legado

tando os países vizinhos e estabelecendo o domí­

sírio Petrônio evitou o confronto mediante uma

nio de seu idioma, o latim. Do século iii ao século

tátíca de protelação). Depois do assassinato de

a.C., Roma tornou-se uma potência naval, der­

Gaio, o reinado de Cláudio (41-54 d.C.) propor­

rotando sua rival Cartago em duas das Guerras

cionou estabilidade com o desenvolvimento da

Púnicas. Os romanos também adquiriram a su­

administração pública, com o fortalecimento do

premacia no Oriente com a derrota de Antíoco iii

império e com a generosa concessão da cidada­

da Síria e a conquista da Macedônia e da Grécia

nia romana a muita gente. Ele prosseguiu com

(em 145 a.C., Corinto foi pilhada). A essa altura,

a politíca de Augusto, permitindo que os judeus

possuía um exército profissional conhecido por

tivessem liberdade de adoração e foi amigo de

sua disciphna e elevada eficiência.

Herodes Agripa i, a quem estabeleceu como rei

II

Depois de diversas lutas de classe, rivalidades

(v. 2.2 abaixo). No final de seu reinado, expulsou

políticas e guerras civis, a repúbhca acabou numa

os judeus de Roma, acontecimento que Suetônio

disputa pelo poder, inicialmente entre Pompeu,

[Cláudio, 25.4) afirma ter sido precipitado pelas

Crasso e Júho César (assassinado em 44 a.C.), e

agitações causadas por Chrestus (“por instigação

entre Marco Antônio e Otaviano, que surgiu vito­

de Chrestus” [impulsore Chresto], talvez uma for­

rioso em Áccio (31 a.C.). Em 27 a.C., Otaviano,

ma distorcida do nome Cristo, embora não haja

tomando para si o sobrenome Augusto, que signi­

certeza disso; v.

fica “venerável” (cf. Lc 2.1), “restaurou a repúbli­

cêntrico e extravagante de Nero (54-58 d.C.) foi

ca”. Esse foi 0 início de um império que duraria

marcado por um grande incêndio em Roma, pro­

muitos séculos.

vavelmente acidental, mas atribuído aos cristãos.

1.2

St e r n ,

p. 113-7). 0 reinado ex­

O começo do Império Romano. Para es­ Isso levou às primeiras perseguições que Roma

tudar os antecedentes do

nt

,

só a primeira fase

desencadeou contra os cristãos.

1 148

Ro m a

Por ocasião da morte de Nero, diferentes fac­

desde que fossem compatíveis com as políticas

ções militares lutaram pela sucessão (68-69 d.C., o

do Estado. A religião romana e a política de Roma

Ano dos Quatro Imperadores) até que Vespasiano,

para a religião afetavam a maneira em que o povo

um plebeu e comandante do exército no Orien­

romano recebia as religiões estrangeiras, inclusi­

te, surgiu vitorioso e reinou de 69 a 79 d.C. Esse

ve 0 judaísmo e o cristianismo, uma vez que a

período assistiu à revolta judaica de 66 a 70 com

religião romana estava intimamente atrelada ao

a brutal pilhagem de Jerusalém pelo filho de Ves­

governo de Roma. Um bom exemplo desse víncu­

pasiano, Tito, que comemorou o acontecimento

lo é o cuho ao imperador, que parece originário

com seu arco em Roma. Depois disso, a Judeia

do Oriente, onde havia muito tempo os monarcas

tornou-se província imperial romana. Tito reinou

helênicos eram reconhecidos como salvadores di­

apenas dois anos (79-81 d.C.) e foi sucedido por

vinos. O cuho ao imperador passou a ser funda­

seu irmão Domiciano (81-96 d.C.), administrador

mental e tornou-se um teste de lealdade

eficiente que executou um programa de constru­

Ep, 10.96,97), embora em Roma fosse inicialmen­

ções públicas. Mas seu governo, como o de Tibério,

te restrito ao imperador falecido (cf. a adoração

terminou num reinado de terror. Ele reivindicou

aos ancestrais já existente) ou ao seu “gênio”

para si o título de “ senhor e deus”

(P

l ín io ,

( S u e t ô n io ,

(espírito da guarda). Nas províncias, e mais tar­

Domiciano, 13) e foi o responsável por uma vio­

de também em Roma, o imperador costumava

lenta perseguição aos cristãos. Em contraste com

partilhar seu cuho com a deusa Roma, que era

isso, os reinados de Nerva (96-98 d.C.) e Tl-ajano

personificação do poder e do espírito de Roma. [R.

(98-117 d.C.) trouxeram paz e estabihdade.

B. E d w ards]

Pode se entender por que os romanos são fa­ mosos por sua capacidade militar e administra­

No entanto, o vínculo entre a rehgião e a po­

tiva, suas leis e suas habilidades nos campos da

lítica se fazia sentir de outras maneiras. Os sacer­

arquitetura, engenharia e construção de estradas.

dotes da rehgião estatal serviam de conselheiros

Profundamente devedores à Grécia nos campos

do Senado. Eram consultados para discernir

da hteratura, filosofia e belas-artes, eram tam­

a vontade divina por intermédio de sinais e da

bém dotados de destreza na expressão de ideias,

purificação de áreas importantes [augures), de­

com pensamento lúcido e linguagem precisa e

terminar o calendário e estabelecer leis rehgiosas

elegante (v.

Tradicional­

[pontifices), fazer guerra de maneira rehgiosa-

mente, os romanos valorizavam a vida em família

mente correta [fetiales) e guardar e interpretar os

e as virtudes da gravitas (“ dignidade”) e pietas

Livros Sibilinos [duoviri [mais tarde decemvirí]

H

ow atson

e

B a n d in e l l i) .

( “devoção” ou “ sentímento de obrigação”). Mas,

sacris faciundis). Especialmente no século m a.C.,

como todos os povos, tinham seu lado sombrio, e

os sacerdotes, devido à sua função de interpretar

há muitos casos registrados de corrupção, imora­

livros estrangeiros, conclamaram Roma a aceitar

lidade sexual, brutalidade e assassinato. Deve se

em seu meio certas religiões estrangeiras. No fi­

ter o cuidado de não idealizá-los nem desprezá-

nal do período da repúbhca, os haruspices (lit.,

los como povo ou no que diz respeito às suas

“prognosticadores”)

reahzações.

associação sacerdotal. Seus membros receberam instrução para discernir a vontade divina median­

1.3 A religião e a política romanas 1.3.1

Religião e política.

foram organizados como

Originariamente, te o exame das vísceras de animais sacrificados.

a religião romana era animista, envolvendo os

Em todas as partes da Roma do século i ha­

espíritos dos bosques, das fontes de água e das

via lembranças dos deuses. No monte conhecido

montanhas. Os romanos também adoravam deu­

como Capitólio, um grande templo foi dedica­

ses antropomórficos, como Júpiter, Juno, Marte

do a Júpiter, Juno e Minerva, no primeiro ano

e Minerva, identificando-os com seus equiva­

da repúbhca. Ele foi incendiado em 83 a.C, mas

lentes gregos. Estiveram sucessivamente sob a

um novo templo foi construído em 69 a.C. Em

influência dos etruscos, dos gregos e de vários

26 e 9 a.C. Augusto restaurou e ornamentou esse

povos orientais e de cultos estrangeiros que im­

templo. Dessa maneira, o templo dominava a ci­

portaram, inclusive os de Cibele, ísis e Mitra,

dade quando os primeiros cristãos chegaram a

1 149

Ro m a

Roma. Na orla sul do centro político — o Fórum

Deus (Rm 2.14-16), a Torá (Rm 3.21; 10.4) e a lei

— estavam localizados os templos de Saturno,

política (Rm 3.1-7). A atenção que Paulo dedica a

dos Castores e de Vesta e os espaços para ofícios

questões legais (Rm 2.12-17; 4.13-16; 7, passim)

religiosos dos pontifices e de outro membro de

e a certeza de que seus leitores “conhecem a lei”

sua associação religiosa, o rex sacromm ( “rei das

(Rm 7.1) talvez reflitam não apenas a preocupa­

coisas sagradas” , posto religioso que representa­

ção judaica com a Torá ou a aha porcentagem de

va os antigos reis de Roma). Na esfera doméstica,

advogados seculares da sociedade romana, mas

os lares (altares para os membros da família já

0 reconhecimento por parte do apóstolo de que

falecidos) e os di penates (deuses da despensa

os romanos viam a rehgião como um assunto de

da família) eram, para a mente religiosa romana,

ordem legal. A ênfase de Roma ao cerimonial le­

lembretes constantes da ligação entre este mundo

gal na rehgião pressupunha que os deuses eram

e o outro.

racionais, ideia não partilhada pela maioria dos

A participação no ritual religioso era um es­

cuhos estrangeiros introduzidos em Roma. O voto

tilo de vida para os romanos. A possibilidade

rehgioso de 217 a.C. (Lívio, Hi, 22.10) demonstra

de escolher uma rehgião e unir-se a um grupo

que um sacerdote romano podia tratar os deu­

definido apenas por sua identidade rehgiosa era

ses como parceiros racionais, com quem faziam

algo desconhecido. Também eram desconhecidos

bons negócios, assim como uma pessoa conversa

grupos organizados exclusivamente com objeti­

racionalmente com outra. A Carta aos Romanos

vos rehgiosos, com exceção das associações para

ressalta a ideia de a pessoa ser racional na reh­

a formação de sacerdotes para a rehgião estatal,

gião. 0 Deus racional entrega os que o ignoram

as sinagogas judaicas e, mais tarde, as igrejas.

“a uma mentalidade condenável” (Rm 1.28). Agir

Embora houvesse collegia com o nome de certas

contra a própria mente significa agir contra Deus

divindades, os membros de tais associações pos­

(Rm 7.20-24), e apresentar o próprio corpo a

suíam uma ocupação ou uma origem étnica co­

Deus é a rehgião racional, acompanhada de uma

muns. É plausível que as igrejas em Roma, mais

mente renovada (Rm 12.1-12). 1.3.3

que as sinagogas, tenham mostrado que sua fé

Políticas e atitudes romanas para com

era o princípio organizador, visto que as igrejas

as religiões estrangeiras. Como uma das rehgiões

provavelmente eram constituídas de pessoas de

que mais tarde tentou se introduzir em Roma, o

uma variedade maior, tanto por origem étnica

cristianismo herdou estereótipos e políticas go­

quanto por classes sociais.

vernamentais desenvolvidos a partir de contatos

1.3.2

Orientação legal. Em público e em parti­ entre o governo romano e rehgiões estrangeiras,

cular, a rehgião romana era essencialmente o de­

como 0 judaísmo. Qualquer estudo acerca das

sempenho de um ritual. Por esse motivo, dava-se

relações entre igreja e Estado deve não apenas

grande destaque

Na

começar com a rehgião estatal de Roma, mas

hi, 13.10). Os grupos sacerdotais estavam intima­

também considerar a forma em que Roma rece­

mente ligados ao governo legislativo. Esse fato e

beu as rehgiões estrangeiras que chegaram antes

as minuciosas regras da rehgião romana apontam

do cristianismo, visto que estas não podiam ser

para a natureza essencialmente legal da religião.

introduzidas em Roma sem aprovação oficial do

Em vez de postular um relacionamento pessoal

Senado, e os romanos encaravam a rehgião como

com os deuses, a rehgião romana ensinava que

uma área de interesse do Estado. A partir do final

quem seguisse os rituais de maneira correta obte­

da repúbhca, Roma passou a encarar com muita

ria um contrato que alcançava a “paz dos deuses”

suspeita todas as religiões estrangeiras. Ao mes­

ipax deorum; cf. Rm 5.1,2, em que Paulo declara

mo tempo, se mostrava disposta a acolher uma

que, pela fé, os crentes têm “paz com Deus”).

rehgião estrangeira, quando percebia que seu cul­

à

observância ritual

(P

l ín io ,

Uma vez que os romanos consideravam a reh­

to oferecia solução para alguma necessidade não

gião um assunto essencialmente legal, é possível

resolvida em Roma. Por exemplo, o culto de As­

interpretar em termos legais a apresentação que

clépio (conhecido em Roma como Aesculapius)

Paulo faz de seu evangelho na Carta aos Roma­

foi levado de Epidauro para Roma. Além disso,

nos (v.

os sacerdotes romanos que guardavam os Livros

R

om anos,

C arta

aos) :

a lei moral geral de

1 150

Ro m a

Sibilinos pediram, em 293 a.C., a introdução des­

nas regiões fronteiriças, como a Síria, onde as

sa religião para controlar uma peste. Seu templo

legiões ficavam estacionadas). Esses dois tipos

na ilha de Tibre foi dedicado em 1.° de janeiro

de governador eram de nível senatorial. Havia

de 291 a.C. Ah também se adorava a divindade

uma terceira classe de governadores, conhecidos

secundária Higieia, à qual os romanos mais tarde

como prefeitos ou procuradores, de nível infe­

ligaram o nome de Salus, sua deusa italiana.

rior ao de cavaleiros, incumbidos de províncias

A introdução oficial de uma nova rehgião não

menores (e.g., Judeia). Os últimos eram, com

significava que a rehgião do Estado fora aban­

frequência, especialistas em administração fi­

donada. Na rehgião romana, não havia nenhum

nanceira. Todos os governadores tinham auto­

mecanismo para abolir práticas tradicionais. Ao

ridade judicial e militar. O número de tropas

contrário, novos cultos foram levados a Roma,

disponíveis podia ser bem pequeno (e.g., uma

e se fizeram novas interpretações à medida que

coorte, consdtuída de trezentos a seiscentos

a história progredia. O exclusivismo rehgioso,

homens), mas em províncias fronteiriças esse

como o do judaísmo e do cristianismo, era, por­

número podia chegar a três ou quatro legiões

tanto, algo desconhecido da mente rehgiosa ro­

(uma legião consistia em cerca de 3 mil a 6 mil

mana. Embora inicialmente mais tolerante, Roma

soldados de infantaria e 100 a 200 soldados de

passou a ser mais cautelosa com as novas rehgi­

cavalaria). Os governadores não podiam ser pro­

ões depois de certos fatos ocorridos em 186 a.C.,

cessados por improbidade administrativa, senão

que levaram o governo a suspeitar das rehgiões

após 0 término de seu mandato.

estrangeiras. Nesse ano, o Senado romano proi­

0 governo provincial romano tem sido vis­

biu a prática das orgia ou bacchanalia dionisía­

to mais como “ de supervisão que de execução”

cas. 0 culto a Dionísio havia entrado em Roma

(S h e r w in -W h ite , isb e ,

proveniente da região de Campânia, na Itália.

fica que pouqm'ssimas autoridades romanas es­

Como resposta às medidas do Senado

1.196;

tavam envolvidas na atividade de governo: os

ILS 18), o povo de Roma reagiu com violência, e

detalhes da administração ficavam nas mãos das

[ cil

v. 3, p. 1027), o que signi­

uma onda de crimes se espalhou pela cidade (Lí­

autoridades municipais ou, no caso da Judeia, de

vio, Hi, 39.8-18). Esse incidente ajudou a modelar

conselhos de anciãos reunidos em toparquias. O

o estereótipo romano de que as religiões estran­

governo recebia os impostos mediante um siste­

geiras inevhavelmente provocavam desordens.

ma próprio de coleta. Em geral, respeitavam-se

Por isso, quando o cristianismo entrou em Roma,

as leis locais e os costumes rehgiosos, desde que

também foi encarado com suspeita.

não criassem dificuldades à administração. Os [M.

R ea s o n e r ]

cidadãos romanos estavam subordinados à lei ro­ mana. A cidadania podia ser concedida tanto a

1.4 na. adas

A

administração

provincial

roma­ comunidades inteiras quanto a indivíduos (e.g.,

As primeiras províncias romanas, situ­ no

Ocidente,

foram

conquistadas

homens com longo período de serviço nas uni­

no

dades auxiliares do exército) e era transmitida de

século Hl a.C. Depois da expansão de Roma

pai para filho. Nas províncias orientais, os mem­

em direção ao Oriente, foram acrescentadas a

bros das classes mais abastadas adquiriam a cida­

Ásia (i.e., 0 lado ocidental da Turquia), a Cilí

dania mediante o uso de influência.

cia e a Bitínia, seguidas pela Síria e pelo Egi

[R. B.

E dw ards]

to. Augusto anexou várias outras províncias e Cláudio acrescentou a Britãnia (43 d.C.)

2. A cidade de Roma no século i d.C.

Sob a administração do império, havia dois ti

2.1 População. Com uma população de 1 mi­

pos de províncias: públicas (ou consulares)

lhão de pessoas, aproximadamente, no século i a

governadas por procônsules, que estavam su

cidade de Roma atraía pessoas de todos os can­

bordinados à autoridade do Senado, e em ge

tos do império e mesmo além. Durante o reinado

ral eram as mais ricas e organizadas; imperiais

de Augusto, uma força policial urbana (cohortes

governadas por legados, nomeados pelo impera

urbanaé) e unidades de prevenção de incêndio

dor (na maioria das vezes, províncias situadas

[vigiles] foram introduzidas com a finahdade de

1151

manter a ordem na cidade em constante cresci­

reunir com objetivos religiosos nas sinagogas, e a

mento. À semelhança das grandes cidades de

observância do sábado pelos judeus não foi usada

hoje, durante o período imperial Roma era o lugar

contra eles. É verdade que os judeus foram expul­

para se visitar. A afirmação de Paulo de que mui­

sos de Roma em 139 a.C.

tas vezes havia planejado visitar os cristãos roma­

di, 1.3,2), em 19 d.C.

nos, antes de escrever a carta para eles (Rm 1.13),

T ác ito ,

era o que provavelmente qualquer morador das

C âss io , Hi,

províncias diria antes de fazer os preparativos fi­

25.4; At 18.1,2; alguns estudiosos acreditam que

nais para uma viagem à capital do império.

essa expulsão ocorreu em 41 d.C.). Os dois pri­

An, 2.85.5;

( V alério M á x im o ,

(J osefo ,

S u e t ô n io ,

57.18.5) e em 49 d.C.

Fc ac

An, 18.3.5, § 81-4; Tibério, 36; DiAo (S u e t ô n io ,

Cláudio,

Já a partir do século iii a.C., Roma havia se tor­

meiros casos foram provavelmente uma reação

nado um local que atraía pessoas de várias etnias.

romana à atividade prosehtista dos judeus, mas

A imigração de itahanos e gregos das províncias,

a terceira talvez tenha sido consequência da agi­

que vinha ocorrendo desde a repúbhca, foi, no iní­

tação dentro da comunidade judaica por causa do

cio do principado, ultrapassada em número pelos

cristianismo (v. 1.2 acima), Mas essas expulsões

imigrantes que chegavam da Síria, da Ásia Menor

não foram medidas permanentes, e pelo menos

(atual Ibrquia). do Egito, da África, da Espanha e,

nos dois últimos casos não se aplicaram a judeus

mais tarde, da Gáha e da Alemanha. A declaração

que eram cidadãos romanos.

de Juvenal de que “há muito tempo o rio Orontes

0 judaísmo de Roma estava intimamente li­

transbordou no Tibre” (Juvenal, Sá, 3.62) mostra

gado ao de Jerusalém, Por volta de 140 a.C., os

como ele via o elevado número de pessoas de

sumos sacerdotes de Jerusalém enviaram emis­

origem semítica vivendo na Roma do século i. O

sários a Roma a fim de neutralizar o poder dos

registro mais antigo de presença judaica em Roma

selêucidas. Mais tarde, no século i a.C,, os sacer­

é de 139 a.C., e sabe-se que o número de judeus

dotes que estavam no poder apoiaram Júho César

residentes em Roma aumentou quando, em 62

(nâo Pompeu, que havia entrado no templo em

a.C., Pompeu levou um grande número de cativos

63 a.C.), e Herodes, o Grande, foi aliado políti­

judeus para usá-los como escravos. Parece que já

co de Augusto. No século i d.C., os príncipes da

na ocasião em que Cícero defendeu Flaco, em 59

famíha de Herodes, como Agripa ii, que mais tar­

a.C., os judeus constituíam um grupo de peso po­

de teriam o direito de nomear sumos sacerdotes

Fl, 66). Na guerra civil

em Jerusalém, eram educados com o patrocínio

que teve início em 49 a.C., os judeus de Roma e de

imperial em Roma. Então, longe de ser um pri­

todo 0 mundo mediterrâneo apoiaram Júho César

mo mal comportado do judaísmo de Jerusalém,

contra Pompeu, o que exphca por que os judeus

o judaísmo de Roma era, na verdade, um filho

prantearam a morte de César, em 44 a.C. (Suetô­

dedicado. Foi pelas portas das sinagogas de Roma

lítico importante

n io ,

(C ícero ,

Júlio, 84.5). Calcula-se que havia pelo menos

que o cristianismo entrou na cidade. 2.3

40 mil judeus em Roma no século i d.C. Fontes li­

Cristãos em Roma. Embora o cristianismo

terárias do flnal da repúbhca e começo do império

tenha surgido inicialmente como uma seita do

mostram, contudo, que os estrangeiros residentes

judaísmo, ã época em que Paulo fez sua primei­

em Roma [peregnni) não eram plenamente acei­

ra visita à igreja de Roma o rompimento com o

tos e sofriam discriminação racial. Há registros de

judaísmo já havia começado e deve ter sido to­

que os africanos eram menosprezados (Lívio, Hi,

tal por volta de 64 d.C., quando Nero fez com

30.12.18; Salústio, Ja, 91.7), os judeus foram viti­

que a perseguição se concentrasse nos cristãos,

mas da mesma discriminação

Fl, 66—69;

culpando-os pelo incêndio na cidade. A igreja de

Sá, 1.9.71,72) e até mesmo os gregos

Roma constituía uma parcela do cristianismo que

H or âc io ,

foram insultados

( C ícero ,

(C ícero ,

Ep, 16.4.2; Tc, 2.65;

Deor, 1.105; 2.13). 2.2

Paulo não podia ignorar. 0 potencial estratégico que representava provinha de sua íntima hgação

Judaísmo em Roma. Os estudiosos não sa­ com Jerusalém, de sua locahzação na capital do

bem dizer se o judaísmo recebeu o reconhecimen­

mundo e de suas ligações com o restante do im­

to de religião legalizada [religio lícita], mas parece

pério por meio dos grupos representados nas con­

que os judeus tiveram permissão tácita para se

gregações em Roma.

1 152

Ro m a

2.3.1 Origens. A ligação que havia entre os

uma visita a essa igreja proporcionaram a Paulo

judeus de Roma e os de Jerusalém e o elemento

a oportunidade de se defender diante de pessoas

judaico do cristianismo romano primitivo condu­

que tinham ligações íntimas com os grupos que

zem à provável conclusão de que o cristianismo

mais criticavam o ministério de Paulo e resistiam

foi levado a Roma por cristãos judeus provenien­

ao seu trabalho: o judaísmo e o cristianismo de

tes da Palestina. Isso está confirmado na observa­

Jerusalém. Desse modo, Paulo defende diante

ção de que judeus vindos de Roma estavam entre

dos romanos sua teologia (Rm 6.1,2) e sua es­

03 ouvintes de Pedro em Jerusalém por ocasião

tratégia missionária (Rm 15.14-24). Ele exphca a

do Pentecostes (At 2.10). Os cristãos judeus mui­

visita que pretende fazer a Jerusalém como um

to provavelmente entraram em diálogo com seus

esforço espiritual que vale a pena (Rm 15.25-32).

compatriotas, e isso resuhou em conflitos violen­

Embora o cristianismo romano fosse constituído

tos e algumas conversões. Um desses conflitos

basicamente de gentios, como a carta revela, é

aconteceu possivelmente em 49 d.C., quando

provável que houvesse a presença de pessoas de

Cláudio expulsou os judeus de Roma. Em geral,

etnia judaica nas igrejas romanas.

interpreta-se que a breve descrição que Suetônio

2.3.3 Presença servil. Visto que muitos judeus

faz desse acontecimento indica que os judeus

tinham ido para Roma na condição de escravos, é

estavam discutindo entre si a respeito de Cristo.

provável que alguns judeus das igrejas em Roma

Como consequência, Priscila e Áquila, dois cris­

pertencessem às classes servis (quer escravos,

tãos judeus, deixaram a Itáha quando Cláudio de­

quer hbertos). No primeiro século do principa­

terminou que os judeus fossem expulsos de Roma

do, os escravos de Roma eram quase todos de

(At 18.2).

origem estrangeira. Embora em Roma existissem

O componente judaico no início do cristianis­

alguns estrangeiros nascidos hvres, a possibili­

mo romano é sinal de que as igrejas nos lares se

dade de que muitos fossem estrangeiros servis

desenvolveram em associação com as sinagogas,

se harmoniza com a certeza de Suetônio de que

o que indica que o cristianismo em Roma não

Nero aplicou corretamente a lei romana quando

surgiu numa única igreja, mas numa pluralidade

determinou a crucificação dos cristãos

de igrejas domésticas. A saudação de Paulo na

Nero, 16.2; 19.3), visto que a lei romana proibia a

(S u e t ô n io ,

Carta aos Romanos não é dirigida a uma igreja

crucificação de seus cidadãos. A prova adicional

(cf. ICo 1.2; 2Co 1.1), mas “a todos os que es­

da natureza servil da igreja de Roma são as refe­

tais em Roma, amados de Deus, chamados para

rências aos que pertenciam a certas famílias ( “os

serdes santos” (Rm 1.7). Mesmo assim, Paulo

da casa de...” , Rm 16.10,11,

emprega o singular “igreja” quando se refere aos

padrão para designar classes servis.

a r a ],

um eufemismo

cristãos que se reuniam em Roma, ao mesmo

2.3.4 Ascetismo. G. La Piana sugere a existên­

tempo que reconhece que eles o faziam em vá­

cia de um elemento ascético na igreja romana do

rios lugares.

século

I.

Isso parece estar em plena consonância

2.3.2 Presença judaica. Por causa de sua pro­

com algumas informações extrabíbhcas e com

vável origem nas sinagogas de Roma, o cristia­

os indícios existentes na Carta aos Romanos.

nismo judaico manteve íntima ligação com suas

Ensinava-se o vegetarianismo na escola de Quin­

raízes judaicas em Jerusalém. A carta de Paulo ã

to Séxtio, no início do século i, O filósofo Sótion

igreja de Roma é prova disso (Rm 1.16; 3.1-30;

convenceu Sêneca a adotar o vegetarianismo por

9— 11). Meio século depois. Tácito escreve a res­

algum tempo

peito do cristianismo e o associa á Judeia

fo influente durante o reinado de Nero, Musônio

(T á c ito ,

(S ê n e c a ,

Ep, 108.22). Outro filóso­

An, 15.44.2). O cristianismo romano deve ter in­

Rufo, também pregava o vegetarianismo

cluído um elemento inconfundivelmente judaico.

org., Peri Trophes, p. 95). 0 vegetarianismo se re­

Teologicamente, a presença judaica na igreja com

flete em 1Clemente 20.4, ao passo que o ascetismo

maior representação de povos do mundo obrigou

é mencionado em IClemente 17.1. Indícios bíbh­

( H en s e ,

Paulo a esboçar seu evangelho de uma forma que

cos da existência de ascetismo no cristianismo

exphcasse o relacionamento entre Deus e toda a

romano encontram-se em Hebreus 13.9 e Roma­

humanidade (Rm 2.1-16; 15.7-13). Uma carta e

nos 14.1-3,21. Na úhima referência, as diferentes

1 153

Ro m a

atitudes diante das práticas ascéticas distinguem

contatos com outros cristãos em Roma. Embora

fortes e fracos na igreja romana. 0 dualismo men­

T. W. Manson afirme que Romanos 16 foi escrito

te/corpo, comum no ascetismo, é visto em Roma­

à igreja em Éfeso, mais tarde as obras de H. Gam­

nos 1.24, 6.19; 7.23,24 e 12.1,2. Mais tarde, as

ble, P. Lampe e W.-H. Ollrog demonstraram a in­

tendências ascéticas do cristianismo romano se

tegridade desse capítulo com o restante da carta.

desenvolveram por meio de um de seus líderes,

Assim, com base em Romanos 16, deduz-se que

Taciano (prosperando em Roma entre 160 e 172

Paulo conhecia várias pessoas em Roma. A carta

d.C.). 0 movimento ascético na igreja de Roma à

foi escrita a fim de fortalecer um relacionamento

época de Paulo pode muito bem tê-lo levado a de­

existente. Quando Paulo chegou a Roma, por vol­

linear uma ética de responsabilidade: os cristãos

ta de 60 d.C. (At 28.14-16), a fim de ser julgado

de consciência forte deviam respeitar os mais fra­

perante o representante de César, que era o pre­

cos e os ascéticos (Rm 14.14-17; 15.1-3).

feito pretoriano, algumas coisas já haviam acon­

2.3.5

Influência. Fica claro que já na época tecido: Nero havia assassinado a própria mãe, seu

em que Paulo escreveu a Carta aos Romanos a

conselheiro. Burro, havia morrido e Sêneca esta­

influência d? igreja de Roma estava crescendo

va aposentado. Provavelmente estavam se espa­

entre as igrejas do mundo mediterrâneo. 0 desejo

lhando os boatos de que o governo imperial não

pouco característico de Paulo de visitar a igreja

parecia tão estável quanto no período inicial do

em Roma, que ele não havia fundado (Rm 1.9-13;

reinado de Nero. De acordo com a tradição, Paulo

cf. 15.20), e sua necessidade do apoio e do sus­

foi libertado depois de seu primeiro julgamento.

tento desses cristãos (Rm 15.22-24) mostram a

Se o testemunho de Paulo “chegou aos limites do

influência dessa igreja no mundo mediterrâneo.

Ocidente” [ICl, 5.7), é possível que o apóstolo

A influência da igreja romana também se vê em

tenha então chegado à Espanha, como pretendia

IClemente, carta escrita na remota data de 96

(Rm 15.4). Portanto, é muitíssimo provável que

d.C., na qual se diz que a igreja romana espera

Paulo tenha sido detido e mantido preso outra

que suas instruções oficiais sejam seguidas pela

vez em Roma, onde foi executado, em algum mo­

igreja-irmã de Corinto {_ICl, 7.1-3; 62.1-3; 65.1).

mento entre 64 e 67 d.C. Ao citar “as colunas da

Embora a igreja em Roma não tenha sido fun­

igreja” , IClemente menciona Pedro em primeiro

dada por um apóstolo, Paulo está associado com

lugar e depois Paulo como exemplos de perse­

0 início de sua história. Na condição de apóstolo

verança em meio ao sofrimento. Hoje em dia, é

aos gentios, ele a considerava incluída no escopo

possível ver uma escultura de ambos os apóstolos

de seu ministério (Rm 1.11-15). 0 entendimento

batizando seus carcereiros no cárcere Mamertino

acerca do relacionamento de Paulo com o cristia­

(a prisão do governo de Roma), um testemunho

nismo romano antes de sua visita, em 60 d.C.,

acerca da tradição de que em Roma ambos sofre­

afeta a noção que se tem da história do início

ram por causa de sua fé. São desconhecidos os

da igreja e, por conseguinte, a interpretação da

detalhes do segundo julgamento de Paulo (se é

Carta aos Romanos. Embora Romanos seja a mais

que houve) e de seu martírio. A tradição diz que

sistemática das cartas de Paulo, não se pode ne­

ele foi decapitado na via Ostiense aproximada­

gar sua natureza ocasional. A influência exercida

mente na mesma época e lugar em que Pedro foi

pelo cristianismo romano provavelmente signifi­

executado

(E u s é bio ,

Hi ec, 2.25.7,8). [M.

cava que os cristãos de todo o império sabiam

R ea s o n e r ]

algo acerca da igreja romana. A afirmação de Paulo de que “a vossa fé é anunciada em todo

3. Os romanos na Palestina

o mundo” (Rm 1.8) é provavelmente mais que

3.1

uma lisonja de quem escreve uma carta. Antes

no romano na Palestina é complexa. Entre 66 e

mesmo de 50 d.C., Paulo se havia encontrado

63 a.C., Pompeu comandou sua famosa campa­

com cristãos procedentes de Roma, depois que

nha no Oriente, durante a qual foi chamado à

Áquila e Priscila vieram daquela cidade para Co­

Palestina pelos dois filhos de Salomé Alexandra,

Até Herodes, o Grande. A história do gover­

rinto (At 18.1,2, cf. Rm 16.3-5). Não há dúvida

por causa de uma disputa que ambos travavam

de que nos círculos paulinos os cristãos tinham

pela sucessão ao trono. Ele capturou Jerusalém

1 154

Ro m a

e entrou no templo, mas ordenou sua purifica­

foi arruinado pelo derramamento de sangue, in­

ção e pôs Hircano de volta como sumo sacerdote.

clusive o massacre de alguns galileus (ao qual

Depois disso, a Síria tornou-se província impe­

possivelmente existe uma alusão em Lc 13.1) e

rial, quando Decápolis e Samaria, agora libertas

a matança de muitos samaritanos num incidente

do governo judaico, passaram para o controle da

hediondo, que resuhou em protestos diante do

Síria. Os judeus mantiveram a Judeia, a Galileia,

legado Vitého, na Síria, e na convocação de Pila­

a Idumeia e a Pereia como reinos-satélites, depen­

tos de volta a Roma. De acordo com Eusébio, ele

dentes de Roma. Júlio César nomeou Antípater

acabou se suicidando.

procurador da Judeia. Seu filho Herodes, que ha­

Em 41 d.C., Herodes Agripa i, que havia go­

via sido governador da Galileia, ganhou de Roma

vernado o norte da Palestina e a Galileia, foi feito

o título de rei dos judeus, que ele teve de tornar

rei dos judeus (cf. At 12), mas em 44 d.C. a Pales­

reahdade por força das armas. Herodes reinou de

tina voltou a ser administrada por governadores

37 a 4 a.C. Ele amphou seus territórios e restau­

romanos. Entre 66 e 70, houve a trágica guerra

rou com suntuosidade o templo de Jerusalém,

judaica, com o cerco e a queda de Jerusalém, em

acrescentando-lhe aspectos arquitetônicos greco-

70 d.C. Os patriotas judeus resistiram em Massa­

romanos. Herodes era, ao mesmo tempo, amante

da até 73 d.C. e cometeram suicídio para não se

do helenismo e admirador da cultura romana. Ele

submeter a Roma. Entre 132 e 135, a revoUa de

incentivou a educação e os valores sociais hele­

Bar Kokhba selou finalmente o destino da Judeia,

nísticos e construiu teatros, anfiteatros e outras

e Jerusalém tornou-se colônia romana (Aelia Ca­

obras para o bem-estar do povo, como os aque­

pitolina) habitada por não judeus.

dutos. Sob seu governo, a Judeia foi economica­

Na Palestina, a atitude dos judeus, líderes e

mente próspera. Mas ele também foi violento e

povo, diante dos romanos variava imensamente.

cruel. 0 massacre dos inocentes em Belém (Mt 2;

Os governantes herodianos e seu grupo eram na­

embora sem confirmação

turalmente pró-Roma. Os sumos sacerdotes em

de fontes externas, é consistente com o caráter

geral também favoreciam a cooperação, assim

de Herodes.

como os saduceus. Pelo menos alguns essênios

V. J esu s , n a s c im e n t o d e ) ,

3.2

Depois de Herodes, o Grande. Com a mor­ se retiraram para o deserto, ao passo que os ze­

te de Herodes, seu reino foi dividido em três, e

lotes se envolveram na rebelião armada. Para os

Herodes Antipas tornou-se tetrarca da Galileia

fariseus, sua lealdade suprema estava na adesão

e da Pereia (4 a.C.-39 d.C.), Filipe, tetrarca de

absoluta à Lei e às tradições mosaicas, de forma

liaconites e Itureia (4 a.C-34 d.C.), e Arquelau,

que se recusavam a fazer juramento de lealdade

etnarca da Judeia, Idumeia e Samaria (4 a.C.-6

a Herodes

d.C.; cf. Mt 2.22; Lc 3.1). 0 governo de Arquelau

ativamente ao domínio romano, porém outros fo­

terminou em levante, e ele foi deportado. Então

ram mais submissos. Os judeus comuns devem

a Judeia passou para o controle de governadores

ter lutado apenas para sobreviver numa socieda­

romanos.

de em que havia grande desigualdade entre ricos

Pôncio Pilatos foi governador da Judeia entre

(J osefo ,

An, 17.42). Alguns resistiram

e pobres e muita oportunidade para opressão.

26/27 e 36 d.C. Tácito {An, 15.44) refere-se a ele

Ver também

H ebreus , C arta a o s ; ju d aísm o e

como procurador e menciona que “ Christus” foi

Novo

morto por ele quando Tibério era imperador. En­

GIÕES GRECO-ROMANAS; RoMANOS, C a RTA AOS.

tretanto, uma inscrição encontrada em Cesareia,

o

T e s t am e n to ; P a u l o em A tos e n a s car tas ; r e u -

dntb:

R om an A d m in istration ; Rom an E a st; Rom an

capital romana da Judeia, mostra que o melhor

Em perors; Rom an Empire; R om an G o v e rn o rs o f P a le s ­

título para ele era “prefeito”. Ele era do nível da

tine; R om an L a w a n d L e g a l System; Rom an M ilit a r y ;

cavalaria, presumivelmente um antigo tribuno

Rom an P o li t i c a l System; Rom an S o c ia l C lasses.

militar, tendo sob seu comando cinco coortes de Dictiona­

infantaria e um regimento de cavalaria. Ele tinha

B ib u o g r a f ia . A d k in s , L . & A d k in s , R . A .

autoridade absoluta em sua província, mas era

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Ela foi escrita por Paulo (Rm 1.1). Mais importan­

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te é o que a carta nos conta a respeito de Paulo

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— em particular como ele entendia seu comissio­

V.

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P a u l o , con ver são e c h a m a d o de )

para

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pregar o evangelho (Rm 1.1,5,12-17; 15.15-24).

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É fato que Paulo, o Judeu, ou preferivelmente

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Paulo, o Israelita (Rm 11.1), acreditava que havia

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sido comissionado para ser apóstolo aos gentios

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inconfundível e seu lugar de importância.

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B.

E dwards

e M.

1.2 Data. Quanto à data, o fato mais impor­ tante é que Paulo escreveu a carta numa época

R ea son e r

em que pensava ter concluído uma fase impor­ tante de seu trabalho — a evangehzação do qua­

R o m a , c id a d e d e .

Ver

drante nordeste do Mediterrâneo (Rm 15.19,23).

Ro m a.

A informação de que estava na iminência de R o m a , c r is t ia n is m o e m .

Ver

partir para uma visita a Jerusalém (Rm 15.25) se

Ro m a.

harmoniza com o quadro mais abrangente, apre­ R om anos, C arta

sentado em Atos, de uma última visita a Jeru­

aos

Romanos é, ao mesmo tempo, a menos contro­

salém no que se revelou o final de seu trabalho

versa das principais cartas do

e a mais impor­

na Ásia Menor e na Grécia (At 20). Isso aponta

tante. É menos controversa nas questões de quem

sem dúvida para uma data em meados da década

nt

escreveu, o que escreveu, quando escreveu e para

de 50 (55-57 d.C.), embora uma minoria de estu­

quem escreveu, questões de difícil definição na

diosos defenda uma data mais recuada — 51/52

É importan­

d.C., o que é implausível. 0 fato de Paulo, em

tíssima por ser, dentre as que chegaram até nós,

maioria dos demais escritos do

Romanos, ter sentido a necessidade de apresentar

a primeira exposição teológica bem desenvolvi­

uma fundamentação teológica para o pagamento

nt.

da por um teólogo cristão. Trata-se de uma obra

de impostos talvez reflita uma situação de agi­

que desde o início tem exercido uma influência

tação em Roma sobre essa questão no início do

incalculável na formação da teologia cristã — po­

reinado de Nero, ou seja, por volta do mesmo

dendo se afirmar com segurança que é a mais

período (56-58 d.C.;

importante obra de teologia cristã de todos os

a questão da data exata é de pouca importância,

tempos. Essa característica dupla de Romanos é

além da clara implicação de que a carta assinala

importante, pois significa que a análise da carta

um clímax na obra missionária de Paulo.

T âc ito ,

An, 13). No entanto,

pode deixar logo para trás as questões prelimina­

1.3 Local de origem. A correlação entre Ro­

res e se concentrar no conteúdo teológico real,

manos 15.25 e Atos 20 também deixa implícito

sem se distrair em demasia com desconhecidos e

0 local de origem, visto que Atos 20.3 mencio­

irritantes dados introdutórios.

na o tempo de três meses, passados na Grécia por

1. Autor, data e local de origem

ocasião da viagem final a Jerusalém. Isso suge­

2. Destinatários

re Corinto, a principal base de Paulo na Grécia,

3. Propósitos

e se harmoniza com a informação de Romanos

1 157

KOMANOS, LARTA AOS

15: Febe provinha de Cencreia, um dos portos de

por que é possível e plausível que Pedro seja con­

Corinto (Rm 16.1,2), e Gaio e Erasto (Rm 16.23)

siderado 0 fundador da igreja em Roma e, mais

provavelmente moravam em Corinto (ICo 1.14;

importante, por que a carta de Paulo é tão domi­

NewDocs,

nada pelo tema “ primeiro do judeu e também do

V.

4, p. 150-1). O mais importante é

que um período de très meses passados num úni­

grego” (Rm 1.16; 2.9,10; 3.9,29; 9.24; 10.12).

co lugar daria a Paulo tempo para refletir, criar e

2.2 "... e também do grego”. Está implícito

ditar aquela que, dentre suas cartas, é a que foi

na carta, especialmente em Romanos 11.13-32

elaborada com o maior cuidado.

e 15.7-12 (v. tb. Rm 1.6,13; 15.15,16), que nos

2. Destinatários

to, atraídos para a igreja de Roma. Isso significa

Quase não se questiona a quem a carta foi dirigi­

ser levado a participar de uma herança essencial­

da. Em Romanos 1.7, alguns manuscritos omitem

mente judaica, o que resultaria inevitavelmente

a referência a Roma, mas a melhor expUcação

nas questões sobre as identidades judaica e cristã.

para essa omissão é que a carta, originariamente

Isso já é suficiente para expUcar alguns dos ele­

dirigida a um público mais específico, teve mais

mentos e temas característicos da carta: por exem­

anos iniciais os gentios foram, em algum momen­

tarde um uso mais geral. A questão mais impor­

plo, “quem/o que é um judeu?” (Rm 2.25-29);

tante é: quem eram os cristãos de Roma e por

quem são “os eleitos de Deus”? (Rm 1.7; 8.33;

que Paulo, que nunca tinha visitado Roma, achou

9.6-13; 11.5-7,28-32); a afirmação culminante de

necessário escrever para eles?

Romanos 9— 11 e 15.8-12. Não há como dizer

2.1

“Primeiro do judeu...”. Não sabemos com certeza se as agitações ocorridas na comu­

como o cristianismo começou em Roma nem

nidade judaica em 49 d.C. tiveram lugar entre os

quais foram os apóstolos que fundaram a igreja

judeus que acreditavam e os que negavam que

naquela cidade. Sabemos, no entanto, que no sé­

Jesus era o Messias ( “Chrestus”) ou entre os ju­

culo I havia uma grande comunidade judaica em

deus que acolhiam bem os gentios e aqueles (in­

Roma, calculada entre 40 mil e 50 mil pessoas.

clusive cristãos judeus) que não os acolhiam.

Também sabemos que houve uma missão cristã

Além disso, caso seja grande o número de

ativa entre os da “circuncisão” (G1 2.9). Mesmo

judeus cristãos entre os que foram expulsos em

a missão aos gentios deve ter descoberto que o

49 d.C. (v. At 18.2), podemos ainda inferir que

terreno mais fértil eram os prosélitos gentios e

as igrejas romanas perderam boa parte de seus

as pessoas tementes a Deus que se associavam

líderes e membros. Era previsível que a liderança

às muitas sinagogas da Diáspora, como indicam

dos gentios tivesse se tornado a regra. Depois que

também Atos e a contínua identificação de Paulo

0 decreto de Cláudio começou a perder força e

com essa instituição judaica, implícita em 2Corín-

os judeus cristãos começaram a voltar a Roma,

tios 11.24. Além do mais, temos a informação inte­

é bem possível que tenham surgido algumas ten­

ressante de que muitos judeus foram expulsos de

sões entre os antigos e os novos crentes. É exa­

Roma, provavelmente em 49 d.C., por causa das

tamente essa a circunstância que parece refletida

agitações “provocadas por Chrestus”

em Romanos 14.1 e 15.1,7.

(S uetônio ,

Cláudio, 25.4), sendo “Chrestus” quase univer­

2.3 0 contexto social. Há outros dois fatores im­

salmente entendido como uma referência a Cris­

portantes que completam, na medida do possível,

to. E a quantidade de nomes de escravos entre

o contexto da carta. 0 primeiro é que a comunida­

aqueles a quem Paulo envia saudações em Ro­

de judaica era influente em Roma, porém bastante

manos 16 (pelo menos 14 de 24) sugere que não

menosprezada, para não dizer odiada, pelas vozes

poucos eram descendentes de judeus cativos tra­

mais influentes da intelectualidade romana. Isso

zidos para Roma, especialmente após Pompeu ter

se devia em parte ao fato de ser uma comunidade

subjugado a Palestina, em 62 a.C., que vieram a

grande e em parte ao tratamento preferencial que

crer em Jesus como o Messias.

havia recebido de Júlio César e de Augusto e —

A implicação óbvia, portanto, é que o cris­

provavelmente o mais importante — ao número de

tianismo fincou pé em Roma no ambiente das

gentios que eram atraídos para o judaísmo. Não há

muitas sinagogas de Roma. Isso talvez explique

dúvida de que esses fatores também provocaram

11 58

Ro m a n o s , C arta aos

tensões entre judeus e gentios, que são óbvias na

Alguns intérpretes inferem que Paulo esta­

carta e ajudam a explicar determinadas passagens,

va tentando evangelizar Roma (Rm 1.13-15).

como Romanos 1.16 e 12.14— 13.7.

Isso não significa que ele nâo reconhecesse que

Também sabemos que a comunidade judai­

já havia cristãos em Roma (cf. Rm 1.8; 15.14).

ca não tinha uma autoridade central em Roma,

No entanto, com base em Romanos 15.20, tem

como tinha em Alexandria. Isso indica uma or­

se alegado que aos olhos de Paulo as igrejas ro­

ganização mais fragmentada e, provavelmente,

manas não tinham sido fundadas com instrução

grande diversidade entre as diferentes sinagogas.

de um apóstolo e que ele procurou suprir essa

Existe a implicação análoga de que faltava ho­

deficiência. Mas isso também é improvável, visto

mogeneidade organizacional à comunidade cristã

que Paulo considerava fundar igrejas uma obra

(o que está implícito no fato incomum de Paulo

apostólica (ICo 9.1,2), e o pequeno constran­

nâo falar de uma “igreja” , no singular, existente

gimento evidente em Romanos 1.11,12 é exata­

em Roma). Assim como sabemos os nomes de

mente o que esperaríamos de Paulo ao escrever a

umas dez sinagogas em Roma, também sabemos

igrejas em cuja fundação ele não tivera nenhum

de várias igrejas em casas (cinco podem estar im­

envolvimento. A tese mais plausível é que Paulo escreveu a

plícitas em Rm 16.5,10,11,14,15). Tudo isso mostra que é possível que grupos

Roma com o objetivo de que as igrejas ali fos­

cristãos fossem constituídos de um espectro (às

sem uma base de apoio para sua planejada mis­

vezes de composição mais judaica, às vezes mais

são à Espanha. É o que ele diz explicitamente

gentílica, na maioria das vezes misturado) que

(Rm 15.24,28), e não há motivo para duvidar dis­

se sobrepunha substancialmente ao espectro das

so. A igreja em Filipos havia desempenhado esse

sinagogas. Paulo conhecia suficientemente bem

papel. No caso de Romanos, a carta seria uma

as pessoas e as circunstâncias (Rm 14.1— 15.7;

tentativa de apresentar o evangelho que até então

16.3-15) e podia elaborar seu ensino e sua exor­

havia pregado com tanto êxito e que pretendia

tação com base nisso. Entre outras coisas, ele

pregar na Espanha (Rm 1.16,17). No final da pri­

tinha consciência de que sua carta seria lida

meira fase (ou fase anterior) de sua grande estra­

não perante um grupo imenso de cristãos (sal­

tégia missionária (Rm 15.19,23), ele aproveita a

vo algumas exceções, uma reunião dessas seria

oportunidade para expor em minúcias a teologia

demasiadamente perigosa numa capital imperial,

do evangelho em que basearia seu pedido de aju­

que desconfiava de reuniões nâo autorizadas), e

da aos cristãos de Roma.

sim de forma repetida, perante várias igrejas nas

3.2

Propósito apologético. A implicação de

casas, onde diferentes facetas de sua exposição

passagens como Romanos 1.16, 3.8 e 9.1,2, para

causariam diferente impacto entre as diferentes

não mencionar o fato de que Paulo recorre repe­

congregações. Isso talvez explique a combinação

tidamente ao estílo de diatribe, é que o apóstolo

de ensino mais geral e exortação específica, que é

achava que ele próprio e sua maneira de enten­

um dos aspectos da carta.

der 0 evangelho estavam sendo atacados e que havia necessidade de uma explicação. Por esse

3. Propósitos

motivo, tem se chegado à conclusão óbvia de que

Dentre as questões introdutórias relacionadas com

a carta funciona como uma apologia que Paulo

Romanos, em anos recentes o debate mais acalo­

faz de seu evangelho e, dessa maneira, também

rado tem girado em torno do(s) propósito (s) de

uma defesa de si mesmo, pois o trabalho de toda

Paulo ao escrever a carta. Em particular, três pro­

a sua vida sempre esteve ligado ao evangelho que

pósitos têm sido minuciosamente escrutinados.

ele pregava.

3.1

Propósito missionário. Esse intento surge

A apologia é dirigida a Roma. Mediante a

especialmente em Romanos 15.18-24,28: Paulo,

longa introdução de Romanos 1.2-6, incluindo

na condição de “apóstolo dos gentios”, ansioso

0 que parece ser uma fórmula credal comum

por arrebanhar “a plenitude dos gentios” (i.e., “ o

(Rm 1.3,4), Paulo apresenta seu cartão de visita e

número máximo de gentios” , Rm 11.13-15,25,26),

revela suas sinceras intenções. Será que ele espe­

escreve à capital do império gentílico.

rava que os cristãos de Roma o apoiassem na fase

1159

R o m a n o s , C arta aos

seguinte de sua missão (à Espanha]? Ou será que

o propósito exclusivo, mas nem por isso secundá­

ele já pressentia que os grupos cristãos de Roma,

rio, de incentivar seus destinatários a exercitar no

a capital do império, estavam destinados a se tor­

dia a dia o que o evangelho e as promessas de­

nar, no devido tempo, cada vez mais influentes na

vem significar na prática. Acima de tudo, dá a de­

obra cristã em outras regiões do império? Também

vida importância ao que é, em Romanos 15.7-13,

é plausível a ideia de que Paulo apresentou uma

obviamente uma expressão culminante e uma

exposição completa de seu evangelho como uma

conclusão apropriada do tema principal da car­

espécie de ensaio flnal para sua autodefesa em

ta. Em contraste, tentar 1er Romanos 12.1— 15.13

Jerusalém e, desse modo, esperava obter o apoio

como uma exortação generalizada e generalizan-

das congregações de Roma em qualquer confronto

te, baseada em parte nas experiências de Paulo

que porventura tivesse em Jerusalém. A probabi­

com a igreja em Corinto, dificilmente explicará o

lidade de um confronto com cristãos, não apenas

caráter pecuUar da exortação encontrada na car­

com os judeus “ descrentes” , era algo que estava

ta, a paixão com que Paulo escreve ou o clímax

em sua mente, como Romanos 15.31 deixa claro.

de Romanos 15.7-13.

Romanos 15.30 não diz se ele imaginava que as

Além disso, supondo-se que Romanos 16 faz

congregações em Roma pudessem de fato enviar

parte da carta original, é evidente que Paulo man­

apoio material ou se ele estava pedindo as orações

tinha contato bem próximo com vários membros

delas (aos olhos de Paulo, um apoio real).

das igrejas de Roma e, por esse motivo, devia

3.3

Propósito pastoral. Em anos recentes. ter um conhecimento razoável das peculiarida­

Romanos 14.1— 15.6 tem adquirido uma impor­

des dessas igrejas e das circunstâncias que atra­

tância fundamental nas tentativas de esclarecer o

vessavam. Com base em Romanos 16, também

propósito de Romanos: Paulo estava escrevendo

podemos ver que Paulo estava escrevendo para

para curar divisões em potencial ou reais entre

apresentar e recomendar Febe (Rm 16.1,2), mas

as igrejas em Roma. Com isso, as exortações de

esse seria um propósito secundário e sozinho di­

Romanos 14.1 e 15.7 fazem bastante sentido,

ficilmente seria o motivo de toda a carta.

especialmente levando-se em conta o contexto

3.4

Os propósitos de Romanos. Para cada

já esboçado (em particular, 2.2 acima). Essas

um dos motivos apresentados acima é possí­

tentativas têm sido enfraquecidas pelas identifi­

vel encontrar um apoio claro na própria carta.

cações demasiadamente apressadas, em que os

Esse fato aponta para a conclusão óbvia: Paulo

“fracos” e os “fortes” são simplesmente judeus e

não tinha em mente apenas um propósito, mas

gentios, e pela hipótese da existência de grupos

vários, quando a escreveu. De certa maneira, a

inconfundíveis, mas também com diferenças gri­

natureza da carta exige tal conclusão, pois ne­

tantes entre judeus e cristãos. A probabihdade é,

nhum dos motivos propostos consegue exphcar

em vez disso, que havia sinagogas judaicas que

isoladamente o documento em todo o seu esco­

eram frequentadas por gentios tementes a Deus,

po. Pelo contrário, é presumível que a carta tenha

por judeus cristãos e por gentios cristãos. Tam­

essa natureza porque, pelo fato de Paulo ter vá­

bém é provável que houvesse um amplo espectro

rios propósitos em mente, ele preferiu expor do

de grupos cristãos, alguns com um número maior

modo mais completo sua maneira de entender

de gentios (em que estes predominavam, embo­

as boas-novas de Cristo, inclusive as implicações

ra não fossem menos atraídos pela sinagoga) e

práticas dessa sua maneira de entender. Por es­

outros com mais judeus (em que estes predomi­

tar em um dos pontos de transição mais impor­

navam, embora não fossem conservadores das

tantes de todo o seu ministério, ele entendia que

tradições e costumes judaicos).

era necessária e desejável uma declaração bem

Isso pode explicar a natureza da carta como

elaborada, que explicasse qual era o evangelho

um todo, e a de Romanos 14.1— 15.6 em relação

que ele pregava, por que como judeu ele o pre­

ao restante da carta. Ou seja, Paulo se lança a

gava e como esse evangelho iria se concretizar

demonstrar que, em sua natureza, o evangelho e

no cotidiano daquela comunidade. A completu-

também as promessas a Israel destinam-se igual­

de dessa declaração, exigida pela multiplicidade

mente a judeus e gentios. Procede assim não com

de objetivos que procurava alcançar, é que põe

11 60

Ro m a n o s , C arta aos

a carta acima do imediatismo das circunstâncias

indicaria com clareza para um público de boa

que motivaram sua escrita e lhe dá, se não uma

cultura a ênfase da carta.

virtude atemporal, pelo menos uma importância que extrapola o momento de sua redação.

4.1.2 Estrutura epistolar e corpo da carta. Ou­ tra ideia que surge como resultado do estudo da forma literária é a importância da relação entre

4. Forma literária e coerência

a estrutura epistolar e o corpo da carta. Não se

4.1 A forma literária. Em anos recentes, um se­

trata apenas de reconhecer que a estrutura é im­

gundo tema de debate tem sido a natureza lite­

portante para a interpretação do todo (Romanos

rária da carta. Boa parte desse debate não tem

não é um mero tratado dogmático que se inicia

chegado a conclusão alguma e tem sido, de certa

em Rm 1.17). Como já foi dito, a inserção de Ro­

maneira, uma discussão sem sentido sobre até

manos 1.2-6 na estrutura normal da saudação dá

que ponto são apropriadas as categorias tiradas

a esses versículos a força de um prólogo de toda

de outras formas literárias e retóricas — “epiditi-

a carta. De igual modo, o fato de que Romanos

ca” (demonstrativa), “ deliberativa” (persuasiva)

I.16,17 funciona como clímax da introdução e

e “judicial”, para citar apenas três. Contudo, visto

como declaração temática do que vem em se­

que essas formas quase sempre estão misturadas

guida indica que Paulo tinha a preocupação de

com outras e que diferentes categorias podem e

integrar a estrutura no corpo da carta. Chega-se à

têm sido aplicadas à Carta aos Romanos, não é

mesma conclusão quanto à repetição dos planos

clara a razão desse exercício. O fato é que, quais­

de viagem de Paulo (Rm 1.8-15; 15.14-33) e das

quer que tenham sido as convenções conhecidas

afirmativas sobre o fato de ele ter sido alcançado

e utihzadas por Paulo, a forma que ele elaborou

pela graça de Deus, feitas antes e também depois

é peculiar e única em sua natureza e conteúdo.

do corpo da carta (Rm 1.2-6; 15.14,15). Dessa

Dito isso, a investigação sobre a forma literária e

maneira, ele mostra que a exposição que está en­

os paralelos retóricos tem contribuído com várias

tre essas passagens é uma expressão daquela gra­

ideias importantes para o entendimento que exis­

ça (cf. Rm 1.12) e a base teológica do pedido de

te hoje acerca de Romanos.

apoio com que conclui a reapresentação de seus

4.1.1

Introdução e conclusão. Um desses es­ planos de viagem (Rm 15.30-33).

clarecimentos é sobre a natureza epistolar do

4.1.3 Diatribe. O terceiro ponto importante

documento, como se pode ver pelo seu início e

que surge no estudo de Romanos como forma

conclusão. Os paralelos literários mostram que

retórica é o reconhecimento renovado do estilo

Paulo tinha consciência clara das convenções

diatríbico e dialogai empregado por Paulo — as­

existentes e estava interessado em empregar

pecto que se vê em momentos cruciais de sua ar­

um meio que, pelo menos no início, fosse fami-

gumentação (Rm 2.1-5,17-29; 3.27-4.2; 9.19-21;

Uar aos destinatários, por mais que ele tivesse

II.17-24). Uma das características da diatribe é

adaptado o documento para atingir seus objeti­

criticar a arrogância e corrigir a vaidade. S. K.

vos. Por isso, ele escreveu como o mestre sábio

Stowers ressalta que a função típica da diatri­

que por meio de formas conhecidas conduz os

be, mais do que um recurso de polêmica contra

destinatários à mensagem real da carta. Para o

um adversário, era o questionamento crítico, no

comentarista de nossos dias, é igualmente im­

contexto de uma escola filosófica, de um colega

portante 0 fato de que os paralelos literários com

estudante com o objetivo de conduzi-lo à verda­

a introdução e a conclusão de Romanos mos­

de. Desse modo, ter consciência das convenções

tram não apenas quanto Paulo se conformava

retóricas da época prevenirá o leitor de hoje do

às convenções, mas também em que e como

perigo de ler passagens como Romanos 2 como se

ele se afastava delas. Quanto mais padroniza­

fossem expressão de uma polêmica absoluta con­

das fossem as convenções, mais pronunciados

tra um adversário ou indicação de uma ruptura

seriam para os destinatários os acréscimos e as

total entre duas entidades monolíticas —

modificações feitos pelo apóstolo. Em particu­

e cristianismo. O que as passagens diatríbicas in­

lar, o desenvolvimento considerável e esmerado

dicam é que Paulo está envolvido num diálogo

(Rm 1.2-6) da saudação costumeira (Rm 1.1,7)

crítico com seus compatriotas judeus e irmãos em

1161

judaísmo

Ro m a n o s , C arta aos

Cristo. Esse diálogo diz respeito à importância da

depois de Rm 14.23 e de Rm 15.33) mostra que é

nova "seita filosófica” no âmbito do judaísmo

possível que tenham circulado cópias mais breves

(cristianismo) no que concerne à sua relação com

da carta. 0 consenso é que a carta foi abreviada

0 judaísmo, de onde se originou, e com os outros

(para Rm 1.1— 14.23) por influência marcionita,

judaísmos da época.

sendo Romanos 16.25-27 acrescentado para ser­

4.2

Coerência literária. A probabilidade de vir de conclusão. Numa fase inicial, os copistas

que Paulo tenha usado ou adaptado material ou

também teriam visto pouco motivo para trans­

temas que havia usado anteriormente em seu

crever todos os nomes de Romanos 16 e prova­

ensino (cf., e.g., At 19.8-10) tem levado muitos

velmente fizeram circular uma versão mais geral,

a sugerir que é possível identificar parte desse

que terminava em Romanos 15.33, à qual Roma­

material como blocos coerentes: por exemplo.

nos 16.25-27 foi acrescentado. É igualmente com­

Romanos 5— 8 como uma homília bem definida

preensível que a conclusão bem oportuna para as

ou Romanos 9— 11 como um material previamen­

versões mais curtas (Rm 16.25-27) tenha, da mes­

te elaborado e incorporado aqui de maneira um

ma forma, sido acrescentada à versão completa

tanto forçada. Tais hipóteses jamais poderão ser

em cópias posteriores.

comprovadas ou rejeitadas, visto que não existe nenhuma linha clara de distinção entre a reutili­

5. Questões em pauta

zação de padrões orais nunca apresentados por

5.1 A nova perspectiva sobre Paulo. Tradicio­

escrito e a reutihzação de material escrito. Tudo

nalmente tem se tratado Romanos como uma

que precisamos dizer é que as várias seções da

obra de teologia sistemática ou, nas palavras de

argumentação de Romanos formam um todo coe­

Melâncton, “um compêndio de doutrina cristã” ,

rente, estão próximas o suficiente e possuem um

uma declaração mais ou menos atemporal do

grau de integração tão elevado que tais hipóte­

que 0 evangelho significa. Mas o reconhecimen­

ses nada acrescentam à compreensão da carta.

to recente de que a carta diz respeito a ênfases e

Contudo, o mesmo grau de coerência, proximi­

circunstâncias específicas da missão de Paulo (v.

dade e integração é decididamente desfavorável

3 acima) tem como corolário que, em maior ou

a dissecções mais complexas do texto ou a teorias

menor grau, as questões tratadas na carta também

mais elaboradas de um trabalho substancial de

devem estar condicionadas pelas mesmas ênfases

edição textual, as quais criam mais problemas do

e circunstâncias. O que está em pauta em Roma­

que soluções ou então nos deixam com um Paulo

nos não é 0 evangelho de forma geral ou abstrata,

simplista e sem vida.

mas 0 evangelho em particular, conforme perso­

A principal questão levantada pela crítica tex­

nificado na vida e no trabalho de Paulo — um

tual é se Romanos 16 pertence ao texto original

evangelho judeu para os gentios e as pressões e

ditado por Paulo. Uma opinião minoritária, porém

tensões que se originaram dessa convicção básica.

influente, insiste em que Romanos 16 foi uma

Essa maneira de ver a carta tem sido reforçada

carta independente, escrita para Éfeso. Isso é im­

pela nova perspectiva sobre Paulo e sobre o con­

provável. Em particular, uma carta terminando em

texto judaico em que ele surgiu. A exegese protes­

Romanos 15.33 sem uma bênção de “graça” a fa­

tante tradicional tem visto o judaísmo como um

vor dos destínatários (Rm 16.20) seria bem o opos­

obstáculo ao cristianismo, algo que o cristianis­

to de Paulo. Romanos 16.1-23 apresenta todas as

mo eliminou ou cuja falência demonstrou, como

características de uma conclusão epistolar, e não é

a religião que Paulo abandonou quando se tornou

implausível que Paulo conhecesse tantas pessoas

cristão. Lidas dessa perspectiva, as antíteses vis­

em Roma, como a saudação indica. A comunida­

tas em Romanos — particularmente entre pecado

de judaica era numerosa, e os deslocamentos de

e graça, morte e vida. Lei e fé, embora, de forma

Prisca e Áquila indicam que havia uma quantidade

surpreendente, não tanto entre carne e Espírito (v.

razoável de viagens de Roma e para Roma, o que

E spírito Sa n t o )

seria de esperar da capital do império.

mo e cristianismo. O judaísmo tornou-se o tipo

— pareciam antíteses entre judaís­

Entretanto, a presença de Romanos 16.25-27

clássico de religião que deu errado, de religião

em diferentes lugares na tradição textual (também

entendida em termos de realizações humanas,

1 162

Ro m a n o s , C arta aos

e m v e z d e e x p re s s ã o d e g ra tid ã o p e la in ic ia tiv a

o Israel” (Rm 11.26). A questão não é tanto a

d a g ra ç a d iv in a e re s p o s ta a essa graça.

universalidade da necessidade humana e da su­

Agora, contudo, os protestos antes mais es­

ficiência do evangelho, mas se o evangelho, de

parsos contra clichês como judeu e judaísmo

origem e natureza judaicas, vai além da nação

chegaram a um clímax — especialmente no lado

judaica, incluindo as demais nações (“todos” =

cristão do mundo acadêmico de fala inglesa — na

tanto judeus quanto gentios, Rm 1.18— 5.21), e

obra de E. P. Sanders. É ele quem demonstra com

como isso acontece. Há também outra questão; se

mais eficácia do que qualquer outro no mundo

o evangelho, que agora atrai um grande número

de fala inglesa que, em sua essência, o judaísmo

de gentios, continua sendo judaico e ainda é um

era no início uma religião da graça; 1) no início.

evangelho para os judeus (“todos” = tanto gen­

Deus escolheu livremente Israel e resgatou-o da

tios quanto judeus, Rm 9— 11).

escravidão; 2) seu sistema tinha como foco o ar­

É claro que essa é uma expressão particular

rependimento, a propiciação e o perdão; 3) sua

da afirmação teológica mais ampla sobre a uni­

ênfase estava na guarda da Lei como a resposta

versalidade do pecado humano e do que o evan­

apropriada de gratidão e fidelidade por parte do

gelho oferece para satisfazer essa necessidade, e é

povo eleito. Com base nessa nova perspectiva,

correto validar em Romanos essa afirmação mais

em Romanos as questões em pauta passam a ter

abrangente. Contudo, é importante reconhecer

uma nuança diferente. Nesse sentido, Sanders

que a afirmação mais ampla deriva da expressão

assinala uma nova era no estudo de Paulo, e os

particular, ou seja, é importante reconhecer sua

comentários sobre Romanos podem ser classifica­

especificidade histórica, até mesmo que o evan­

dos em antes e depois de Sanders — pelo menos

gelho cristão continua sendo de natureza judai­

na medida em que é possível avaliar uma obra

ca, e estar atento para a possibilidade de que os

sobre a teologia de Romanos com base no trata­

aspectos individuais dessa expressão particular

mento sério a essa nova perspectiva, mesmo que

sejam determinados por aquele contexto e, desse

discordando dela. 5.2

modo, menos passíveis de generaUzações.

A nova perspectiva sobre Romanos.

5.3

Em

A

fidelidade de Deus.

Nessa ênfa­

fa c e d a n o v a p e r s p e c tiv a s o b r e P a u lo , as q u e s tõ e s

se abrangente (judeus e gentios) encaixam-se

d is cu tid a s e m R o m a n o s r e c e b e m n o v a e e s c la ­

vários outros temas da carta. Um deles é a ques­

r e c e d o ra lu z. O s v á r io s tem a s sã o a p res en ta d o s

tão da teodiceia ("o evangelho de Deus”), indi­

c u id a d o s a m e n te

de

cado imediatamente na centralidade da “justiça

R o m a n o s 1.2-7: 1) o e v a n g e lh o d e D eu s, 2 ) q u e

de Deus” (v. esp. Rm 1.17; 3.5,21-26; 4.1-25;

c u m p re as p r o fe c ia s da s E scrituras S agradas, 3)

9.30— 10.13). 0 tema é puramente judaico, sen­

c o n c e n tra n d o -s e e m Jesus, F ilho

do a abordagem de Paulo a continuação direta

na

c o n h e c id a

in tr o d u ç ã o

de

D avi e F ilho

de

D eus, 4 ) cu ja re s s u rre iç ã o a ssin a la u m a n o v a era

de seu uso em Salmos e em Isaías 40—66. A

e s c a to ló g ic a (v .

questão é dupla. 1) Como o ato redentor com

escatologia )

e 5 ) c u jo s e n h o r io (v.

Senhor ) v a lid a o tra b a lh o m is s io n á rio da ig re ja ,

que Deus se comprometeu a favor de

e s p e c ia lm e n te o d e P a u lo a to d o s o s g e n tio s , 6)

clui os que não pertencem a Israel? A resposta

I srael

in­

en tre o s q u a is d e v e m se r c o n ta d o s o s cre n te s d e

é apresentada em parte com base na palavra

R o m a e m pa rticu la r, p o r fa z e r e m p a rte d o p o v o

temática correlacionada “fé” , que sempre foi o

e le ito e a m a d o p o r D eu s. P o r e s s e m o t iv o , a ê n ­

meio humano pelo qual Deus exerceu sua justi­

fa s e (já a ssin a la d a e m 2.1 e 2.2 a c im a ) n a a b ra n ­

ça salvadora (mais uma vez, v. esp. Rm 4.1-25;

g ê n c ia d o e v a n g e lh o a ju d eu s e g e n tio s a p a re c e na

9.30— 10.17;

d e c la r a ç ã o te m á tic a in ic ia l (R m 1.16) e n o c lím a x

a nova e culminante fase do propósito de Deus

d e R o m a n o s 15.7-12. T a m b é m p o r e s s e m o t iv o o

(o mesmo propósito) marcada pelo ministério de

q u e se d e s ta c a re p e tid a m e n te é o e v a n g e lh o p a ra

Cristo (v. esp. Rm 3.22-26; 9.30— 10.13).

V.

tb. Rm 14.22,23), e em parte com

to d o s — " t o d o a q u e le q u e c r ê ” (R m 1.16; 3.22;

2) O que o evangelho judaico estendido aos

4.11; 10.4,11-13), “ to d a in ju s tiç a ” (R m 1 .1 8 ,2 9 ),

gentios diz acerca da fidelidade de Deus para

“ t o d o s d e b a ix o d o p e c a d o ” (R m 3.9,1 2 ,1 9 ,2 0 ,2 3 ;

com as promessas feitas a Israel? Esse assunto é

5 .1 0 ), “ to d a a d e s c e n d ê n c ia ” (R m 4.1 1 ,1 6 ), “ to d o

um pouco obscurecido pelo fato de que o tema

1163

R o .v a i m s , C arta aos

judaico da fidelidade divina é traduzido de duas

foi simplesmente acentuar a incoerência do pen­

maneiras no grego: fidelidade de Deus (Rm 3.3;

samento de Paulo.

mas talvez tb. Rm 1.17; 3.25) e verdade de Deus

Entretanto, na nova perspectiva sobre Paulo

(v. esp. Rm 1.25; 3.7; 15.8). Romanos 3.1-8 de­

e Romanos (v. 5.1 e 5.2 acima), é possível uma

senvolve claramente a questão, mas Paulo con­

solução mais coerente, pois nas passagens em

segue tratá-la detalhadamente só em Romanos

que a questão básica são as tensões provocadas

9— 11. Nessa passagem, o tema surge quando

por um evangelho judaico oferecido aos gentios,

se pergunta se Deus falhou em cumprir sua pa­

é provável que o problema da Lei esteja ligado a

lavra (Rm 9.6). Mais uma vez, ressalta-se a im­

essa questão. Assim, o mais natural é ver a Lei

portância que Romanos 15.7-13 (aqui Rm 15.8)

como um importante obstáculo, que impede os

tem como resumo dos objetivos de Paulo e, desse

gentios de aceitar o evangelho. E é o que encon­

modo, como indicação de que esses são os obje­

tramos em Romanos. É a reivindicação judaica de possuir a Lei e, dessa maneira, de possuir uma

tivos da carta. cristo-

condição privilegiada perante Deus (Rm 2.12-19)

LOGiA não parece fazer parte da questão. Ela é

que concentra o problema da eleição de Israel

De forma um tanto surpreendente, a

fundamental para o evangelho (Rm 1.3,4), mas a

(Rm 3.1). É a jactância dos judeus por sua condi­

expressão articulada dessa cristologia em Roma­

ção privilegiada, marcada pela obediência à Lei,

nos 3.21-26 é muito breve e talvez empregue ma­

que Paulo procura contrabalançar e combater

terial previamente elaborado. Parece também não

com a atenção que dedica à fé (Rm 3.27—4.25).

ser de natureza controversa (daí a razão da brevi­

É a Lei, não como algo maligno, mas como um

dade). Parece que a cristologia é a base comum.

elemento fraco e usado como instrumento pelo

A importância universal de Cristo é a pressuposi­

pecado, que ele tenta defender (Rm 7.7— 8.4).

ção de Romanos 5—8, não o tema. E, embora Ro­

No entendimento de Paulo, Cristo não deu fim à

manos 9.32,33 apresente Cristo como a pedra de

“ lei de justiça” (Rm 9.30— 10.4), mas à lei tipifi­

tropeço, é notável que um messianismo peculiar­

cada nas obras judaicas, na qual se concentrava o

mente cristão (em contraste com o messianismo

zelo judaico. Ele não deu fim à “lei do Espírito da

judaico) esteja ausente no esclarecimento final do

vida” , mas à “lei do pecado e da morte” (Rm 8.2-

problema da incredulidade de Israel (Rm 11.26;

4). Por isso, à nova luz de Cristo, entende-se

Mais uma vez, o clímax de Romanos

que a Lei exige não as “obras” que diferenciam

V. C risto) .

15.8 é característico da carta: “Afirmo, pois, que

os judeus dos gentios — especialmente, embora

Cristo se tornou servo da circuncisão, por causa

com certa exclusividade, as leis sobre a circun­

da fidelidade de Deus”.

cisão e ingestão de alimentos (Rm 2.25-29; 4.9-

S.4

O sabtema da Lei. À luz da nova pers­ 12; 9.10-13; 14.1-12) — , mas o amor ao próximo

pectiva, um novo tema que se encaixa é o papel da

(Rm 13.8-10; 14.13-15.6).

em Romanos. A tendência do pensamento

Em resumo, nâo é a Lei como expressão da rea­

tradicional era ver que a Lei ficava no lado nega­

lização humana que Paulo questiona, mas como

L ei

tivo das antíteses apresentadas por Paulo — um

expressão do privilégio judaico. A solução para o

poder hostil, como o pecado e a morte (o que é

problema da Lei em Romanos acha-se não numa

compreensível, em vista de Rm 5.20; 7.5), que

demonização da Lei, nem em apontar o dedo

caracterizava o judaísmo como legalista, uma

para as “contradições” de Paulo, nem na distin­

religião de realizações, que dava margem ao or­

ção entre lei cerimonial e lei moral, embora seja

gulho humano (cf. Rm 3.27,28; 9.11,32; 11.6). O

possível encontrar nessas abordagens uma solu­

fato de que Paulo parece estar igualmente inte­

ção para o ensino de Paulo. A preocupação de

ressado em elaborar uma apologética da Lei (Rm

Paulo era mais com a nacionalização da Lei que

3.31; 7.7-25; 8.3,4; 13.8,10) não se harmonizava

com sua ritualização. Pelo fato de a Lei ser tão

com esse entendimento, mas na ideia tradicio­

fortemente identificada com Israel e por ser essa

nal não era fácil encontrar uma solução. A nova

identificação tão concentrada em rituais judai­

perspectiva abalou o lado negativo da equação,

cos, especialmente as leis sobre circuncisão e ali­

mas para alguns

mentos, Paulo achou necessário distinguir entre

(S anders

e

R ãisâ n e n )

o

resultado

1 164

Ro m a n o s , C arta aos

as exigências da Lei e a prática de tais obras. É

convêm” , Rm 1.28). O evangelho começa desta­

evidente que, diante das tensões provocadas pela

cando a gravidade dessas coisas (Rm 1.32).

proclamação de um evangelho judaico aos gen­

Outros dois elementos ajudam a expUcar a

tios, só por uma argumentação assim ele pôde

progressão rumo ao clímax. O primeiro é que a

defender os dois aspectos do evangelho — sua

história de Adão, em Gênesis 2—3, ressoa forte­

natureza judaica e sua abertura a todas as nações.

mente em Romanos 1.19-23. O defeito básico na

6. Argumento da carta

humana deixou de viver de acordo com sua con­

natureza da sociedade humana é que a criatura Agora estamos em condições de entender a ideia

dição de ser criado, renunciou à dependência de

básica e a progressão do pensamento de Paulo em

Deus e tentou usurpar o papel do Criador. A con­

Romanos. Uma vez que o corpo principal da car­

sequência foi 0 oposto — não uma elevação aci­

ta é apresentado de modo tão sistemático, uma

ma da condição de ser criado, mas uma queda da

rápida análise da carta proporciona uma sinopse

humanidade para a animaUdade, caracterizada

bastante proveitosa da teologia de Paulo no auge

por idolatria, práticas sexuais anormais e a sor­

de sua carreira missionária.

didez já mencionada. 0 segundo é a repetição in­

6.1 Introdução (Rm 1.1-17). Já assinalamos

cisiva da polêmica tipicamente judaica contra os

que a saudação elaborada (Rm 1.1-7) permite que

gentios ou, melhor dizendo, em torno da rehgião

Paulo introduza o tema da carta ainda na etapa

gentílica (Rm 1.24-27). Isso aponta justamente

das apresentações amistosas (v. 5.2 acima). Tam­

para a idolatria e a sexualidade aviltada (cf. Sb

bém observamos que as explicações pessoais que

11— 15). Assim, de imediato, Paulo acentua que

vêm em seguida, somadas aos elementos típicos

a tensão entre judeus e gentios está no âmago do

de ação de graças e oração (Rm 1.8-15), dão à

assunto que ele pretende tratar.

carta inteira um firme alicerce no contexto histó­

6.2.2

Judeus também (Rm 2.1-29). Para a

rico de sua composição e conduzem ã declaração

maioria dos comentaristas. Romanos 2 têm cau­

temática fundamental sobre o que vem a seguir

sado mais dificuldades do que qualquer outro

(Rm 1.15,17). Aqui estão claramente enuncia­

capítulo, principalmente porque parece vislum­

dos os termos principais da carta — o evangelho

brar que a justificação final depende dos feitos

como poder de Deus para a salvação de todos os

humanos, não da fé, e porque sua argumentação

que creem, primeiro dos judeus e depois dos gre­

parece depender de uma acusação indiscrimina­

gos, a justiça de Deus revelada de fé em fé — com

da contra os judeus em geral. A chave é levar

o texto veterotestamentário de apoio (Hc 2.4).

em conta que o capítulo está emoldurado por

6.2 A condição humana — gentios e judeus

um ataque tipicamente judaico contra o estílo de

(Rm 1.18—3.20). Num estilo que nos séculos se­

vida gentílico (Rm 1.18-32) e pela declaração de

guintes foi seguido em inumeráveis reafirmações

que 0 privilégio judaico foi solapado (Rm 3.1).

do evangelho cristão ou em textos teológicos,

Por isso, o que se tem em mente em Romanos 2

Paulo acha necessário definir a condição humana

é a percepção do privilégio e das características

para a qual o evangelho oferece uma resposta.

judaicos que reverberaram tão claramente em

6.2.1

A animalidade humana (Rm 1.18-32). Romanos 1.

Paulo inicia caracterizando o que classicamente se denomina “ depravação humana” (v.

Isso se confirma na primeira ocorrência da

pecadores ;

forma diatríbica (Rm 2.1-5). Desse modo, Pau­

— uma expressão muito pesada e abs­

lo não conversa com um espectador imaginário,

trata, principalmente quando levamos em conta

mas com o judeu tradicional, que aplaudiria a

que Paulo conclui sua acusação com uma lista

acusação tipicamente judaica de Romanos 1. A

que inclui a sordidez demonstrada no dia a dia

ressonância desse raciocínio judaico, conforme

e a mesquinhez do orgulho humano e dos rela­

encontrada em Salmos de Salomão 15.8 e Sabedo­

cionamentos rompidos (Rm 1.29-31). Esses as­

ria 15.1-6 (Rm 2.3,4) e vista no texto, e também

pectos negativos assinalam o desmoronamento

a citação explícita do princípio teológico judai­

da sociedade humana, aspectos deploráveis para

co, em Romanos 2.6, confirmam que Paulo tem

todas as pessoas de boa vontade ( “coisas que não

em mente uma racionahzação judaica que podia

pecado )

1 IfiR

Ro m a n o s , C arta aos

levar a uma autojustificaçâo ou a uma desculpa

aparece em seguida (Rm 3.10-18) consiste princi­

para o que condenava nos outros (Rm 2.1-11).

palmente em passagens que pressupõem que os

O quadro se torna mais claro em Romanos

condenados são “eles”, não “ nós”. A mensagem

2.12-16, na medida em que Paulo procura solapar

de Paulo é que tal pressuposição é uma expressão

a certeza dos que pensam que, por terem a Lei,

do poder do pecado que a própria pressuposição

estarão no juízo final em melhor situação que

condenava. A confiança na condição privilegia­

os demais. Pelo contrário, o ensino judaico diz

da, a jactância na Lei (especialmente na circun­

justamente que cumprir a Lei é mais importante

cisão), que faz com que o judeu seja visto como

que apenas ouvi-la. O orgulho e a insolência do

alguém distinto do gentio, é uma expressão da

“judeu”, resultantes da posse da Lei, se tornam

condição carnal (nesse caso, a identidade étni­

explícitos em Romanos 2.17-24. 0 objetivo da

ca) e leva a humanidade a se distanciar de Deus

acusação direta contra o interlocutor judeu típi­

(Rm 3.19,20).

co não é condenar imediata e impensadamente

6.3

A resposta do evangelho (Rm 3.21—

todos os judeus, e sim demonstrar que, quando

5.21). Mais uma vez, oferecendo um padrão para

o judeu típico em sua insolência quebra a Lei,

inumeráveis sermões e textos teológicos, Paulo,

ele está arruinando a base de sua condição privi­

depois de apresentar a acusação contra a humani­

legiada. A ideia recebe a máxima atenção no tó­

dade inteira, passa à resposta do evangelho.

pico da circuncisão, característica tão própria do

6.3.1 Pela fé em Cristo (Rm 3.21-26). Numa

“judeu” que os judeus como um todo podem ser

seção notavelmente curta (em comparação com

simplesmente chamados “a circuncisão”. 0 fra­

a longa acusação), Paulo aponta a morte de Cris­

casso em fazer distinção entre um sinal externo

to como a resposta. A lógica do raciocínio (i.e.,

de identidade étnica e a obra oculta do Espírito

por que a fé em Cristo deve ser a resposta) não

no coração, que resultaria em dar menos impor­

é explicada com detalhes e parece estar basea­

tância àquele e mais a esta, significa que o judeu

da numa formulação cristã reconhecida. Desse

tradicional nâo se encontra em melhor condição

modo, a resposta deve ter sido uma convicção

diante de Deus (aUás, talvez esteja numa situação

cristã já firmada, na qual Paulo não precisou se

pior) que os gentios (Rm 2.25-29).

aprofundar.

6.2.3 Corolários não elaborados (Rm 3.1-8). 0

Significativo, no entanto, é outra vez o desta­

ataque incontido contra a autoconfiança judaica

que ã continuidade total com o que havia ocor­

na posição privilegiada de Israel diante de Deus

rido anteriormente (Rm 3.21; a morte de Cristo

suscita problemas que Paulo não pode ignorar —

como sacrifício, Rm 3.25). Portanto, o que está

particularmente com respeito à eleição de Israel

pressuposto aqui é a teologia judaica do sacrifício

e, dessa maneira, também com relação à fideli­

e da necessidade de um animal sem defeito como

dade de Deus para com o povo que ele escolheu.

oferta pelo pecado, com a impUcação provável de

Deve se assinalar que Paulo não deseja examinar

que a morte do animal servia para remover ou co­

o fato da eleição, mas também que sua sucinta

brir 0 pecado ou mesmo, numa situação em que

defesa da fidelidade de Deus aponta para além

0 animal funcionaria como representante, tirar a

do papel de Deus como parceiro pactuai: para

vida do ofertante contaminado pelo pecado. Por

seu papel de Criador e Juiz. Desse modo, ele dei­

um motivo não apresentado no texto, é possível

xa entrever que a solução para as tensões entre

ver a morte de Cristo não apenas como um sacri­

“judeu e gentio” será situar a condição pactuai de

fício desse tipo, mas também como um sacrifício

Israel perante seu Deus no quadro mais amplo da

culminante e eficaz para toda a humanidade, pas­

condição do mundo perante o Criador. Mas aqui

sada e presente, gentílica e judaica. Assim, por

é possível apenas entrever tal linha de raciocínio.

implicação, foi um sacrifício que acabou com a

6.2.4 Conclusão: todos debaixo do pecado

necessidade de outros sacrifícios, tornando-se o

(Rm 3.9-20). O sumário situa toda a humanida­

meio pelo qual o relacionamento humano com

de sob a mesma acusação, mas o alvo ainda é a

Deus pode ser restaurado (v.

insolência judaica de que “o judeu” nâo pode ser acusado. Assim, a sequência de textos do

at

que

justificação )

.

6.3.2 Para judeus e gentios (Rm 3.27-31). O objetivo de Paulo é indicado pela maneira em

11 66

Ro m a n o s , C arta aos

que ele retoma imediatamente (Rm 3.27} o tema

com 0 emprego da palavra num contrato entre

da jactância do “judeu” , motivo da acusação em

seres humanos — afirmação um tanto fortuita,

Romanos 2.17,23. Como já ficou implícito, é a

porém confirmada pelo uso do verbo em Sal­

jactância dos privilégios e prerrogativas judaicos

mos 32.1,3. A exposição de “creu” é mais tortuo­

que Paulo condena, a qual na prática presume

sa, mas está apoiada em três ideias; o fato de que

“que Deus é somente dos judeus” (Rm 3.29). O

Abraão creu antes da circuncisão e, assim mes­

duplo reconhecimento de que Deus é um só (cre­

mo, esse crer foi totalmente eficaz (Rm 4.9-12; o

do judaico) e de que ele aceita o ser humano com

mesmo se pode dizer de quando foi provado); o

base na fé aniquila qualquer insolência como

fato de que foi uma fé na promessa (Rm 4.13-17);

essa. Essa universalidade, que alcança o gentio e

o fato de que era impossível a promessa se cum­

0 judeu, é 0 que agora se mostra eficaz, pela mor­

prir por meio de algum recurso engenhoso inven­

te de Jesus Cristo (Rm 3.21-26). Contudo, uma

tado por Abraão (ou por fidelidade; Rm 4.17-21).

vez que é também um universaUsmo judaico, ela

Esse “creu” só podia ser confiança em Deus,

não contradiz os termos do oferecimento inicial

confiança apenas no poder de Deus, e nada mais

da graça a Israel. Ou seja, o evangelho de Jesus

— fé, não fidelidade. A fé requerida no evange­

Cristo está em oposição à Lei, que se caracteriza

lho é, portanto, a fé no poder vivificante de Deus

pelas obras de prerrogativa judaica, mas se con­

(Rm 4.23-25).

forma à lei que constitui um chamado ã obediên­ cia de fé (Rm 3.31). 6.3.3

6.3.4

Conclusão: o que isso significa para

o crente (Rm 6.1-11) e para a humanidade

O caso de Abraão ajuda a resolver outros (Rm 5.12-21). Depois de apresentar a ideia de que

casos semelhantes (Rm 4.1-25). Para sustentar sua

o evangelho da aceitação divina é dirigido a to­

principal afirmação, Paulo passa a tratar da obje­

dos por meio da fé, Paulo encerra a seção central

ção que é o precedente criado pelo “pai Abraão”.

de sua argumentação, explicando detalhadamen­

0 precedente é crucial, pois no judaísmo

A braão

te as conseqüências. Para o crente, significa paz

é muito respeitado como modelo de piedade. Já

com Deus, uma experiência de graça que moldará

se dizia que ele observava a Lei quando ela ain­

o caráter por meio do sofrimento e uma base se­

da estava por ser escrita (e.g., Gn 26.5;

gura de esperança para o futuro (Rm 5.1-11). A

cd

3.2).

Ele era considerado um paradigma de fideUdade à

iniciativa de Deus, a natureza avassaladoramente

aliança, porque se saiu extremamente fortalecido

graciosa dessa iniciativa e a experiência de seu

quando foi provado na questão do oferecimento

amor, já manifestado na morte de Cristo e na

de Isaque em sacrifício (e.g., Jt 8.26; Eo 44.19-21).

dádiva do Espírito, são a rocha firme em que o

Era à luz dessa fidelidade que se entendia Gêne­

crente, com total confiança, pode estar firmado

sis 15.6. Abraão foi considerado justo com base

para encarar o presente e o futuro. É a mesma

nessa fidelidade (IM c 2.52; cf. Tg 2.22,23).

confiança que Abraão demonstrou em sua fé

A resposta de Paulo é explicar Gênesis 15.6 de

paradigmática.

outra maneira; “Abraão creu em Deus, e isso lhe

Desse modo, a morte de Cristo assinala um início

foi atribuído como justiça”. Essa é uma das expo­

totalmente novo, não apenas para algumas pesso­

sições mais longas de um texto do

at

feitas por

as, mas para toda a humanidade (Rm 5.12-21).

um judeu do século i, à exceção de Filo. Por isso,

A

podemos considerá-la um exemplo clássico de

senrolar com Adão, como está implícito em Ro­

resposta para a tragédia que começou a se de­

midrash dos primórdios do judaísmo. Paulo co­

manos 1.19-23 (v. 6.2.1 acima) e Romanos 3.23,

meça anunciando o texto da Escritura (Rm 4.3),

é encontrada em outra história (v.

e então analisa as palavras-chave — “atribuído”

A desobediência de Adão era a maneira antiga de

A d ã o e C r is to ).

(Rm 4.4-8; “imputado” , a r a ] e “creu (Rm 4.9-21).

expUcar como a dura realidade do pecado e da

Por fim, ele reafirma tanto o texto assim explica­

morte entrou no mundo e passou a ter domínio

do (Rm 4.22) quanto seu corolário (Rm 4.23-25).

sobre ele. Mas agora a obediência de Cristo abriu

Paulo observa que o termo “atribuído” deve

um caminho e ofereceu outro modelo de existên­

ter um significado diferente quando descreve um

cia humana. 0 pecado e a morte nâo precisam

relacionamento divino-humano, em comparação

mais ter a palavra final nos assuntos humanos.

1 157

Ro m a n o s , C arta aos

Os dois homens — Adão e Cristo — sinteti­

resposta grosseira: se o pecado resulta em graça,

zam em si mesmos as duas possibilidades car­

então, quanto mais pecado, melhor. A resposta

deais para a humanidade. Isso também quer dizer

de Paulo é apontar para o fato de que a morte de

que eles sintetizam a argumentação apresentada

Jesus foi o ponto decisivo de rompimento com

de Romanos 1.18 em diante — da condenação da

o pecado e a morte. 0 pecado e a morte podiam

vida “em Adão”, sob o domínio do pecado e da

chegar só até aí, “pois, quanto a ter morrido,

morte, para o oferecimento da vida “em Cristo” ,

morreu para o pecado de uma vez por todas”

sob 0 reinado da graça. Assim, a seção introdutó­

(Rm 6.10). Por esse motivo, para os que se iden­

ria da carta (Rm 1.18— 5.21) é ampla e muito bem

tificam com Cristo em sua morte (por meio do

feita — um sumário abrangente da história hu­

batismo) ,

mana, de Adão a Cristo. Mas a passagem também

cado ou cooperar com ele. O centro motivador de

destaca os fatores negativos causados por Adão,

sua vida está agora voltado para Cristo e é deter­

a saber, o pecado e a morte. Além disso, a Lei

minado pelo próprio Cristo, sobre quem o pecado

funciona como um complicador (Rm 5.20,21), e o

não tem controle algum. Entretanto, o pecado continua sendo uma reali­

efeito que o evangelho exerce sobre esses fatores

dade, pois o crente ainda não tem plena participa­

exige um esclarecimento adicional. 6.4

não pode haver motivo para tolerar o pe­

O problema do pecado, da morte e da ção na ressurreição de Cristo: experimenta ainda

Lei (Rm 6.1— 8.39). Em essência, Paulo apresen­

a ação da corrupção na carne e a morte. Desse

ta duas alternativas principais para a existência

modo, o pecado ainda mantém uma cabeça de

humana e mostra que, na prática, cada crente

ponte na vida do crente, e ele deve resistir até o

pode passar de uma para outra, no que concer­

fim às suas artimanhas e seduções. Mas na tenta­

ne à motivação básica e à formação de caráter.

ção do “ainda não” o “já” da vitória de Cristo é a

Imediatamente surge a pergunta: é possível que

base e a fonte de força para resistir, superar e fazer

a passagem de uma para outra seja total? A res­

com que o compromisso assumido no im'cio seja

posta de Paulo resume-se à fórmula “já/ainda

vivido no compromisso renovado de cada dia.

nâo” (v.

e sc a to lo g ia ).

Algo decisivo já aconteceu

(Rm 5.1-11), mas, enquanto a vida durar na tran-

6.4.2

O problema da Lei (Rm 7.1-25). Por trás

da primeira crítica feita ao evangelho de Paulo,

sitoriedade e fraqueza desta existência corpórea,

conforme esboçada em Romanos, havia a suspei­

ainda não estará concluído aquele ato decisivo

ta, por parte dos judeus, de que o evangelho de

de Deus. Isso quer dizer que o pecado e a morte

Paulo significava abandonar a Lei. Não era exata­

continuam a exercer uma influência da qual os

mente a Lei que servia de fortaleza contra o peca­

crentes não conseguem fugir e à qual, em certa

do? Mas o ataque de Paulo à insolência judaica no

medida (a medida de sua condição adâmica),

destaque que ela dava às obras da Lei podia ser

ainda estão sujeitos. Apesar disso, eles devem

facilmente entendido por seus patrícios (e pelos

continuar a resistir, na força do Espírito.

comentaristas de hoje!) como um ataque à pró-

Essa é a linha básica de raciocínio que Paulo

pría Lei. É desse problema que Paulo trata agora.

desenvolve nos três capítulos seguintes — pri­

Mais uma vez, ele começa declarando, de

meiro em relação ao pecado, depois à Lei e por

modo direto, sua opinião. A Lei judaica está tão

fim à CARNE e à morte. Em cada caso, ele começa

identificada com o período anterior a Cristo que a

declarando a nova reaUdade que se tornou eficaz

possibilidade de uma existência criada por Crísto

mediante a ação divina em Cristo, para em segui­

corresponde a ser liberto da Lei. Nos termos da

da indicar como se deve viver a nova realidade

acusação anterior (Rm 2—3), a Lei tornou-se a

nas condições do “ainda não” da carne ainda pe­

oportunidade para a insolência judaica e, desse

caminosa — 0 que indica que a graça de Deus é

modo, 0 instrumento do próprio pecado que ela

a inspiração e a capacitação para o compromisso

deveria frustrar. Assim, a passagem do velho para

e a obediência.

0 novo, de Adão para Cristo, do pecado e da morte

6.4.1

O problema do pecado (Rm 6.1-23). A para a graça também se tornou uma passagem do

afirmação de que a graça oferece uma explicação

código legal que define Israel para a nova vida

mais que suficiente para o pecado dá origem à

do Espírito.

1 168

Ro m a n o s , C arta aos

Contudo, esse tratamento dispensado à Lei

6.5

E Israel? (Rm 9.1— 11.36). Na última se­

sem dúvida equivale a identificar a Lei com o pe­

ção (exceto Rm 7), em grande parte se perdeu de

cado. A resposta de Paulo é que não se deve cul­

vista a questão do judeu e do gentio, que domi­

par a Lei: ela e a “carne” [sarx, i.e., a fragilidade

nou as primeiras duas grandes seções da carta

e a finitude humanas] têm sido manipuladas pelo

(Rm 1.18—5.21), pois Paulo concentra sua aten­

pecado. A realidade da tensão “já/ainda não” en­

ção na operação do evangelho em termos globais

tre 0 que começou com Cristo e em Cristo e a sal­

(Adão-Cristo) e pessoais. Mas a terminologia em­

vação que ainda há de se completar é algo que se

pregada é a mesma das promessas pactuais de Is­

reflete numa dupla ruptura — no indivíduo que

rael (v.

anseia fazer a vontade de Deus, mas continua

Deus aos eleitos suscita a questão da fideUdade

na “carne” , e na Lei, que expressa a vontade de

de Deus a Israel, seu antigo parceiro de aUança.

I srael ) .

E a certeza final da fideUdade de

Deus, mas ainda assim é o instrumento do peca­

Conforme indicado no problema da Lei, ao se divi­

do e da morte.

dir a história em antes e depois de Cristo criou-se

6.4.3

O problema da came e da morte (Rm 8.1- 0 perigo de lançar Israel como um todo na fase

39). A terceira reafirmação da operação do evan­

adâmica. Que dizer, então, das promessas de Deus

gelho a favor do indivíduo começa mais uma

a Israel? Como afirmar a fideUdade de Deus aos

vez com uma forte ênfase sobre a ação divina

crentes ao mesmo tempo que sua fideUdade a Is­

na salvação. Deus alcançou em Cristo o que era

rael está sendo minimizada? Essa é a questão que

impossível à Lei, por causa do poder do pecado

Paulo trata agora, numa das passagens mais deba­

e da morte e da fraqueza da carne humana. Des­

tidas de todos os seus escritos.

se modo, aquele que recebeu o Espírito de Cristo

6.5.1 Introdução (Rm 9.1-5). Paulo começa

possui uma base de operação diferente da carne.

reafirmando seu interesse pessoal por seu povo e

É sobre essa base que ele deve viver e agir. Deve

lembrando os leitores dos privilégios pactuais de

viver a reaUdade da fiUação que já experimenta

Israel, dos quais agora são participantes.

por meio do Espírito e partilha com o Filho de Deus (Rm 8.1-17].

6.5.2 O chamado de Deus (Rm 9.6-29). O apóstolo passa, então, a declarar sua tese bási­

Isso não significa que a carne foi deixada para

ca: a promessa de Deus a Israel não malogrou.

trás ou que a morte é evitada. Pelo contrário, a

O fracasso tem sido — por impUcação, por parte

reaUdade da condição humana significa fraqueza

de Israel — deixar de reconhecer a natureza da

incessante e principalmente sofrimento, situa­

eleição e de seu chamado. Ou seja, o que fazia

ção que irá perdurar até a conclusão do proces­

com que Israel fosse Israel. A eleição fora um ato

so redentor no corpo da ressurreição. A tensão

inteiramente gracioso da parte de Deus, sem levar

presente gera desconforto, mas é partilhada pela

em conta a ascendência física ou as obras que

totalidade da criação, que de igual modo se en­

passaram a ser vistas como sinal visível da iden­

contra presa na sobreposição das eras entre o que

tidade pactuai.

foi e o que será, entre Adão e Cristo. Essa tensão

O lado negativo dessa eleição é que existe um

se torna suportável pelo fato de o Espírito já estar

“não Israel” — aqueles cuja função é ressaltar a

presente e ativo nessa fraqueza e por meio dela, e

natureza graciosa da eleição de Israel. Esse con­

isso é a base dessa esperança (Rm 8.18-30],

ceito desagradável e quase predestinacionista de

A seção termina com um grito de certeza

história é a tentativa paulina de expUcar o que,

entusiasmada, em que são postas de lado todas

para ele, é a simples realidade de um povo esco­

as ambiguidades e ressalvas. Não importa quão

lhido num mundo hostil. Ou seja, ele está dizen­

grande seja o poder incessante do pecado e da

do que 0 quadro geral tem nuanças mais escuras.

morte, a fraqueza incessante da carne e a hostili­

Entretanto, conforme vai ficando cada vez mais

dade incessante desta era — o triunfo de Deus é

evidente, o propósito principal da análise feita

certo. O propósito de Deus em Cristo já alcançou

por Paulo não é impor uma doutrina da predes­

a vitória. Nem a morte nem qualquer outro poder

tinação, mas solapar a doutrina da predestinação

são capazes de separar o crente do amor de Deus

do próprio Israel. O que Paulo procura questio­

em Cristo (Rm 8.31-39).

nar é a certeza judaica de que, por definição, os

1 169

Ro m a n o s , C arta aos

gentios são o “ não Israel”. Ao citar as Escrituras

das bênçãos da aliança de Israel. É por isso que

de Israel, afirmando que elas também estão se

ele se dedica tanto à sua missão aos gentios. Se o

cumprindo na missão que ele realiza, Paulo ago­

fracasso de Israel trouxe bênçãos para os gentios,

ra pode argumentar que, não importando quem

muito maiores elas serão para o mundo inteiro

seja 0 “ não Israel” , o povo escolhido inclui ju­

quando Israel, como um todo, aceitar a própria

deus e gentios.

herança em Cristo (Rm 11.11-16)!

6.5.3 0 fracasso de Israel (Rm 9.30— 10.21).

Por sua vez, isso indica que se requer uma

0 fracasso de Israel foi que a nação entendeu

advertência equivalente para os gentios. A inten­

seu chamado e seus privilégios de uma forma

sidade com que as bênçãos de Israel passaram

demasiadamente restrita — a Lei entendida em

para os gentios também não lhes dá motivo para

termos de obras, não de fé; a justiça entendida

se orgulharem ou agirem com insolência, como

como exclusividade deles, com a consequente ex­

fizeram os judeus, detentores da eleição original.

clusão dos gentios. A vinda de Cristo acabou com

Deus não se desfez de Israel para começar da es­

esse mal-entendido. Ele é a profetizada “pedra de

taca zero. Os gentios foram incorporados a Israel

tropeço” , em que todos devem crer. Não se pode

e só continuarão sendo parte de Israel caso se

restringir a fé, que é a única resposta possível à

ativerem à graça e à fé como elementos essenciais

natureza graciosa do chamado divino, aos limites

desse relacionamento (Rm 11.17-24).

de uma lei exclusivamente judaica. De um modo

A realidade da fidelidade divina é que o cha­

mais pleno, ela agora se expressa numa pregação

mado original de Israel permanece constante em

que tem alcance universal, o chamado à fé em

termos de graça e fé. O mistério da fidelidade

Jesus como Senhor. Essa é a mensagem que agora

divina é que a expressão pré-cristã da eleição

está sendo proclamada, especialmente pelo pró­

— judaica-e-não-gentílica — e a resposta atual

prio Paulo, e aceita pelos gentios. Israel, ao deixar

ao evangelho — gentílica-e-não-judaica — são

de reconhecer que essa missão universal expressa

ambas fases no propósito divino mais amplo. 0

a mesma natureza graciosa do chamado que re­

propósito de Deus é que todo o Israel seja salvo.

cebeu, está se recusando a receber o evangelho e,

A desobediência desconcertante vista nessa fase

desse modo, cumprindo suas Escrituras.

do propósito de Deus é apenas a preparação para

6.5.4 O

mistério da fidelidade de Deus

perceber o propósito último de demonstrar mi­

(Rm 11.1-32). 0 fato é que no período de sobre­

sericórdia a todos e, em certo sentido, o meio de

posição do “já” com o “ainda não” Israel está di­

levar a essa percepção.

vidido, como acontece com o crente ou com a Lei (Rm 7.7-25). Alguns israelitas reconheceram a

6.5.5

Um hino de adorajção, como encerra­

mento (Rm 11.33-36). De modo bem apropriado,

natureza graciosa da eleição de Israel e responde­

Paulo conclui sua exposição de esperança e ideal

ram à graça, como os crentes gentios. A maioria,

teológicos elevados com um hino de louvor ao

porém, não entendeu que estar junto de Deus é

único Deus criador, ou seja, criador de judeus e

uma questão de graça, do início ao fim. Assim,

gentios. 6.6

é irônico que o Israel incrédulo se encontre no

A

operação

prática

do

evangelho

papel de “não Israel” , o papel negativo desempe­

(Rm 12.1— 15.13). Assim, após redefinir o Israel

nhado por Esaú e pelo faraó (Rm 9.13,17).

de Deus, torna-se necessário explicar como esse

Desse modo, começa a ser esclarecido o mis­

Israel deve viver. 0 Israel definido simplesmente

tério do propósito divino de misericórdia e juízo.

como povo judaico sabia de imediato a resposta;

Assim como foi necessário que o faraó desempe­

a Lei fornecia as diretrizes para a vida vivida con­

nhasse um papel negativo para que a bondade

forme a aliança. Mas a crítica anterior de Paulo e a

graciosa da redenção divina de Israel se tornasse

redefinição do papel da Lei (Rm 2.1—3.31; 7.1-25)

evidente, foi preciso que a maior parte de Israel

devem ter deixado seus ouvintes imaginando

recusasse o evangelho a fim de que a natureza

onde poderiam encontrar as diretrizes para o vi­

graciosa deste fosse manifesta aos gentios. A es­

ver cristão.

perança de Paulo é que Israel seja provocado para sentir ciúmes ao ver tantos gentios participando

6.6.1

A base da vida responsável (Rm 12.1,2).

Por esse motivo, Paulo começa conclamando a

1 170

Ro m a n o s , C arta aos

um compromisso na vida diária, que é o equiva­

pessoal (Rm 7.24; 8.23), fosse para a salvação de

lente cristão da disciplina e da ordem anterior­

Israel (Rm 11.13-15). A mesma perspectiva de­

mente estipuladas pelo culto em Jerusalém. Essa

veria proporcionar tanto o estímulo para viver a

abertura e esse compromisso para com o Espírito

nova realidade quanto a motivação para estar em

de Deus tornam possível o conhecimento imedia­

Cristo, em vez de permanecer na carne, que é

to da vontade divina que as Escrituras já apresen­

autoindulgente e se corrompe.

tavam como ideal.

6.6.7

O problema das leis alimentares e dos

6.6.2 A comunidade de fé (Rm 12.3-8). Na

dias santos (Rm 14.1— 15.6). 0 tema geral, que

nova ordem, o equivalente social do Israel co­

nos capítulos anteriores foi exposto na teoria e na

letivo (judaísmo) é o

A vida no

prática, passa a receber atenção especial numa

âmbito do Israel étnico envolvia as funções ca­

questão que estava fadada a criar tensões numa

racterísticas de qualquer entidade nacional. O

comunidade mista de judeus e gentios. Onde quer

corpo de Cristo possui funções equivalentes,

que houvesse judeus identificados com a herança

c o rp o de C r is to .

conforme determinadas e viabilizadas pelo Es­

dos macabeus e com o judaísmo das décadas pos­

pírito. Nenhum membro deve pensar que não

teriores ao movimento macabeu, a observância

possui função ou que existem somente poucas

das leis alimentares estava destinada a ser uma

funções estabelecidas, às quais todos devem

questão de integridade pessoal e nacional (v., e.g., IMc 2.62,63). O mesmo se aplicava aos prosélitos,

aspirar. 6.6.3 0 amor como norma dos relacionamentos

que temiam a Deus, os quais se haviam encontra­

sociais (Rm 12.9-21). Quanto às relações dos cris­

do religiosamente ao adotar o judaísmo da sina­

tãos uns com os outros e com o mundo em geral,

goga. Para esses cristãos, seria difícil livrar-se das

a norma é determinada pelo amor. Paulo ilustra

leis alimentares judaicas. Outros judeus, como era

0 que isso significa na prática e, passando para

0 caso de Paulo, agora estavam convictos de que

as relações em geral, apoia-se na sabedoria que o

essas prescrições da Lei restringiam demais a gra­

judaísmo da Diáspora acumulou sobre como viver

ça de Deus e as haviam abandonado em maior ou

em sociedades desconhecidas e hostis. Aqui a re­

menor grau. Muitos dos gentios que se converte­

gra deve ser a política de boa vizinhança.

ram com essa pregação não viam nenhum motivo

6.6.4 Vivendo como bons cidadãos (Rm 13.1-7).

para acatar essas leis. Nas comunidades mistas,

Pelo fato de viverem na capital do império, os

em que a comunhão à mesa era uma expressão

cristãos de Roma deviam se esforçar por cumprir

fundamental de comunidade, as tensões criadas

as leis quanto fosse possível — inclusive pagando

por tais diferenças eram consideráveis. É possível

os impostos exigidos pelos romanos.

que Paulo tenha tomado conhecimento de tais

6.6.5 Amando o próximo (Rm 13.8-10). A

tensões por intermédio de seus contatos pessoais

exortação inteira resume-se ao mandamento do

em Roma, particularmente nas igrejas daquela

amor. Não é por acaso que esse mandamento

cidade, agora marcadamente gentílicas e para as

também era reconhecido pelo restante do ju­

quais os judeus cristãos estavam retornando de­

daísmo como uma síntese da Lei; tampouco é

pois de um tempo afastados por causa do decre­

acidental que os Evangelhos relatem que Jesus

to de Cláudio. Deve se assinalar que o assunto

também deu proeminência a essa ordem (Mc

era grave, pois ligada a ele estava toda a questão

12.31 etc.). Ou seja, Paulo indica o desejo de

da identidade do novo movimento: era uma seita

mostrar que a Lei ainda oferece diretrizes para

dentro do judaísmo ou o quê? Daí a atenção que

viver e quer mostrar também como ela o faz;

Paulo dedica ao assunto. Na prática, Paulo dirige-se aos dois principais

ela precia ser examinada à luz do ensino e do

grupos, cada um por sua vez. O apóstolo dá um

ministério de Cristo. 6.6.6 A iminência do fim como incentivo

conselho simples aos “fracos”, isto é, àqueles,

(Rm 13.11-14). Sempre por trás do pensamento

principalmente judeus cristãos, que eram mais

de Paulo havia a confiança de que o período de

escrupulosos e guardavam a Lei, considerados

sobreposição do “já” com o “ainda não” não se

“ fracos” pelos demais, para quem estar livres de

estenderia por muito tempo, fosse para a salvação

tais escrúpulos era sinal de força. O conselho de

1 171

Ro m a n o s , C arta aos

Paulo foi este; “ Não façam com que a consciência de vocês seja o padrão para os outros. Reconhe­

Ver também A b r a ã o ;

A d ã o e C risto ; Is r a e l; ju sti­

ficação; Lei; P a u lo em A t o s e n as ca rta s.

çam que, em tais assuntos, é possível ouvir Deus

DPC: CENTRO da TEOLOGIA PAUUNA; OLIVEIRA; OBRAS DA

falando de diferentes maneiras a diferentes pes­

l e i;

soas. Vocês não podem condenar aqueles a quem

R o m a e o c r is t ian is m o r o m a n o .

P a u l o e seus intérpretes ; restauração de I sr a e l ;

Cristo aceitou” (v. Rm 14.3-12). Aos que se denominavam “fortes” , de cujas

BiBLiOGRAnA.

Comentários: B a r r e t t ,

C. K.

2. ed. London: Black, 1991.

mantivessem firmes nas convicções a que haviam

Romans. Collegeville: Michael Glazier, Liturgical

chegado pela fé, mas que também estivessem

Press, 1996. [SacP.] ■ C r a n fie ld ,

dispostos a limitar sua liberdade na vida prática

Edinburgh: T & T Clark, 1975-1979. 2 v. (/cc.) ■

caso houvesse perigo concreto de que seu com­

Dunn,

portamento mais livre provocasse aflição real em

[ wbc, 38.) ■ Fitzm yer , J. A. Romans. New York:

(b n tü .)

E.

C.



Romans.

ideias Paulo partilhava, o conselho foi que se

B.

B y rn e , B.

Romans.

J. d. G. Romans. Dallas: Word, 1988. 2 v.

outros membros e lhes causasse algum dano à fé

Doubleday, 1993.

(Rm 14.13-23). 0 modelo de tal comportamento

Grand Rapids: Eerdmans, 1980. ■ Moo, D. J. The

é Cristo (Rm 15.1-6) — uma confirmação de que

Epistle to the Romans. Grand Rapids: Eerdmans,

0 ensino e o exemplo de Jesus forneceram a her­

1996.

menêutica básica para essa antiquíssima reinter-

Rapids: Baker, 1998. [ becnt.] ■ W r i g h t , N. T. The

pretação cristã da Lei. 6.6.8



(m c n t.)

(a b .)



S ch rein er,

Letter to the Romans. In:

Resumo (Rm 15.7-13). Com destreza,

pley,

j. Paul;

W r ig h t ,

Kãsem ann,

E. Romans.

T. R. Romans. Grand W a ll,

Robert

W ; Sam-

N. T. The New Interpreter’s

Paulo integra o pedido de aceitação e tolerância

Bible: Acts, Introduction to epistolary literature,

mútuas ao tema mais amplo da carta inteira. Cris­

Romans, ICorinthians.

to era judeu, para confirmar a fidelidade de Deus

p. 393-770 [ nibc,

aos judeus e para abrir aos gentios a porta da gra­

Philadelphia: Trinity, 1989. [ tpintc.] ■ Estudos:

v.

[S . l . ]:

10).

Abingdon, 2002.

■ Z ie s le r ,

J. Romans.

ça e da fé, cumprindo o propósito geral de Deus,

C am p b ell, W . S.

conforme indicado nas Escrituras.

context: Jew and gentile in the Letter to the Ro­

6.7 Conclusão (Rm 15.14— 16.27). Paulo en­ cerra sua carta recapitulando os temas da introdu­

Paul’s gospel in an intercultural

mans. Frankfurt: Peter Lang, 1991.

■ D o n frie d , K.

P., org. The Romans debate. Revised and expan­

ção. Descreve mais detalhadamente sua missão,

ded edition. Peabody: Hendrickson, 1991. • D u n n ,

ressaltando que ela dá continuidade ao ministério

J. D. G. The partings of the ways: between Chris­

de culto do templo em Jerusalém e relatando o

tianity and Judaism and their significance for the

final bem-sucedido de sua fase oriental. Ele men­

character of Christianity. Philadelphia: Trinity,

ciona mais uma vez seus planos para o futuro,

1991. ■ ______ . The theology of Paul the Apostle.

apresentando mais claramente os motivos que

Grand Rapids: Eerdmans, 1998. ■ E l li o t t ,

tem para visitar seus leitores em Roma e as razões

rhetoric o f Romans. Argumentative constraint

de sua demora. Ele conclui expressando sua preo­

and strategy and Paul’s dialogue with Judaism. Sheffield:

Jerusalém para entregar a coleta e pedindo as ora­

D.

ções dos crentes de Roma (Rm 15.14-33).

of Paul’s Letter to the Romans. Tübingen: Mohr

A seção final traz uma palavra de recomen­

[jsN T S u p ,

45.)

The

cupação com o possível resultado de sua visita a

js o t,

1990.

N.

• G a r lin g t o n ,

B. Faith, obedience and perseverance: aspects

Siebeck, 1994.

[w u n t ,

79.) •

H a a c k e r,

K. The theo­

dação a favor de Febe, diaconisa e benfeitora da

logy of Paul’s Letter to the Romans. Cambridge:

igreja em Cencreia, e uma extensa hsta de sauda­

Cambridge University Press, 2003.

ções a pessoas que ele conhece pessoalmente ou

R.

de nome e que fazem parte das igrejas de Roma.

tile in Romans. Atlanta: John Knox, 1988. ■ L o n ­

Ele menciona vários líderes proeminentes. Uma

genecker,

advertência final e estereotipada contra os peri­

comparison of 4 Ezra and Romans 1— 11. Shef­

(n t t . )

■ K a y lo r,

D. Paul’s covenant community: Jew and gen­ B. W. Eschatology and the covenant: a

gos da dissensão e umas poucas saudações da

field:

parte de outras pessoas concluem a mais impor­

mystery o f Romans: the Jewish context of Paul’s

tante das cartas de Paulo (Rm 16.1-23).

Letter. Minneapolis: Fortress, 1996. ■

1 172

js o t,

1991.

[jS N T S u p ,

57.) ■ N a n o s , M. D. The R ãisânen,

Ro m a n o s , C arta aos

H. Paul, God and Israel: Romans 9— 11 in recent

the Romans. Chico: Scholars, 1981.

research. In:

W atson ,

N e u sn e r,

J. et al., orgs. The social

world o f formative Christianity and Judaism. Philadelphia: Fortress, 1988. p. 178-206. • ders,

San­

E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadel­

[s b l d s ,

57.] ■

F. B. Paul, Judaism and the gentiles: a so­

ciological approach. Cambridge: Cambridge Uni­ versity Press, 1986.

[s n tsm s ,

56.] •

W e d d e rb u r n ,

A.

J. M. The reasons for Romans. Edinburgh: T &

phia: Fortress, 1977. ■ ______ . Paul, the Law, and

T Clark, 1988. ■ W r i g h t , N. T. The climax o f the

the Jewish people. Philadelphia: Fortress, 1983. •

covenant: Christ and the Law in Pauline theology.

SoDERLUND,

S. K. &

W rig h t,

N. T., orgs. Romans

Edinburgh: T & T Clark, 1991.

and the people of God. Grand Rapids: Eerdmans,

J. D. G.

1999. ■ S te n d a h l, K. Final account: Paul’s Letter to the Romans. Minneapolis: Fortress, 1995. ■ S to w e rs, S.

ROMANOS n a P a le s t in a .

K. The diatribe and Paul’s Letter to

1 1 73

Ver

Roma.

Dunn

SABEDORIA.

Ver

1) “livrar de perigo e restaurar a uma situação an­

c ris t o lo g ia ; T ia g o , C a r t a de.

terior de segurança e bem-estar” ; 2) “fazer alguém S a b e d o ria d e b e n -S ira q u e.

Ver

A p ó c rifo s e Pseudepí­

voltar a estar bem depois de ter ficado doente” ; 3) “fazer alguém experimentar a salvação divina

g ra fo s . S a b e d o r ia d e S a lo m ã o .

Ver A p ó c rifo s

e P seudepígrafos.

— ‘salvar’ ”. 0 verbo é encontrado com frequência nos Evan­

sa c e rd o te s.

Ver judaísmo

gelhos (Mt 15x; Mc 14x -h Mc 16.15; Lc 17x; Jo 6x;

e o N o v o Testam ento,

as frases em Mt 18.11 e Lc 9.56 não se encontram sa c rifíc io .

Ver

nos manuscritos mais antigos; Mc 16.16 faz parte

C risto , m orte de.

de um acréscimo posterior a esse Evangelho). 0 sadu ceu s.

Ver judaísmo

e o

Novo

verbo tem vários sentidos.

Testam ento.

1.1.1 S a lm o s de S a lo m ã o .

Ver

A p ó c rifo s e P seudepígrafos.

Os Sinóticos. 1) 0 verbo significa “livrar

de perigo”. Nessa acepção, é empregado em Ma­ teus 8.25 e 14.30 para denotar a ação de livrar

SALVAÇÃO i: E v a n g e l h o s

do perigo de afogamento. Em Mateus 27.40 (par.

o termo “salvação” (e seus cognatos) tem sido

Mc 15.30), 27.42b (par. Mc 15.31b e Lc 23.35b) e

amplamente empregado na teologia cristã para ex­

27.49 e em Lucas 23.37,39, usa-se o verbo para

pressar a provisão divina para a situação humana

passar a ideia de Jesus livrar-se de morrer na cruz

necessitada e pecaminosa. Essas palavras têm um

(presumivelmente por meios milagrosos ou com a

papel teológico menos proeminente nos Evange­

ajuda de Elias). Talvez a referência ao fato de Jesus

lhos; mesmo assim, são importantes para expressar

“salvar” os outros expresse esse mesmo senüdo ge­

os resultados do ministério de Jesus. Este verbete

ral (Mt 27.42a par. Mc 15.31 e Lc 23.35a).

restringe-se em grande parte ao emprego dessas

Na voz passiva, o verbo pode ter o significado

palavras e não se aprofunda no conceito mais am­

de "vir” ou de “ ser conduzido com segurança du­

plo de salvação.

rante” um período de perigo para a vida (Mt 10.22; 24.13 par. Mc 13.13; cf. Mt 24.22 par. Mc 13.20).

L Panorama do uso linguístico

Um emprego mais metafórico aparece em Lu­

2. Antecedentes do uso nos Evangelhos 3. Salvação em cada Evangelho

cas 19.10, em que Jesus é como o pastor que pro­

4. 0 entendimento da salvação nos Evange­

cura e salva do perigo de morte a ovelha perdida. 2)

lhos

Com frequência, o verbo tem o significa­

do de “curar” (a saber, de enfermidades). Com 1. Panorama do uso linguístico

esse significado, é usado em Mateus 9.21 (par.

1.1 O verbo sõzõ. De acordo com Louw e Nida, o

Mc 5.28), 9.22a (par. Mc 5.34 e Lc 8.48), 9.22b,

verbo “ salvar”

Marcos 5.23, 6.56 (par. Mt 14.36, gr., diasõzõ).

(s õ z õ )

tem três significados no

n t:

SALVAÇÃO i: Evangelhos

10.52 (par. Lc 18.42), Lucas 7.50, 8.36,50 e 17.19

isso como seu propósito. Em João 5.34, registra-

(v. tb. Lc 7.3, gr., diasõzõ). Em alguns desses ca­

-se que seus ouvintes foram curados.

sos, ele se refere ao livramento em relação ao

1.2 O verbo rhyomai. Com o significado de

poder de espíritos malignos, que se faz por meio

“livrar” ou “ resgatar”, rhyomai é usado com bem

de exorcismo, ou à ressuscitação dos mortos (v.

menos frequência, geralmente fazendo referên­

a passagem de Marcos 3.4 (par.

cia ao livramento de um perigo extremo, como a

Lc 6.9) faz contraste entre “salvar alguém” (aqui

morte ou o ato de cair nas mãos do inimigo. Em

r e s s u r r e iç ã o ),

o gr. psychê pode ter o sentido de “pessoa”) e

Mateus 27.43, o verbo aparece quando os líderes

matar. Usa-se a expressão no contexto de curar,

judeus citam ironicamente Salmos 22.8 na pala­

no sentido genérico de fazer o que for necessário

vra que dirigem a Jesus na cruz. Em Lucas 1.74,

para promover a vida e a saúde, e a ideia é pro­

o livramento das mãos dos inimigos faz parte

vavelmente de vida física.

da salvação aguardada por Zacarias. Em Mateus

3) No relato da conversa entre Jesus, o jo­ vem rico e os

discípulos,

parecem ser sinônimas

6.13, os discípulos são incentivados a orar para que sejam livrados do Maligno (ou do mal).

as expressões “herdar a vida eterna” , “entrar no reino de Deus” (v.

rein o de D e u s)

e “ ser salvo”

1.3 O substantivo sõtér. Em Lucas 1.47, Ma­ ria emprega sõtsr, que significa “salvador” , para

(Mc 10.17,23-26; cf. Mt 1.16,23-25; Lc 18.18,24-

se referir a Deus, e, por ocasião de seu

26). Encontra-se em Lucas 13.23 (“são poucos os

to,

que se salvam”) e 8.12 ( “para que não aconteça

quando este se dirige aos pastores (Lc 2.11). Em

nascimen­

Jesus é assim designado pelo anjo do

S en h or,

que, crendo, sejam salvos”) o que pode ser consi­

João 4.42, 0 povo samaritano que se mostrara re­

derado o uso técnico da salvação espiritual. Jesus

ceptivo a Jesus declara que ele é “o Salvador do

tem esse nome porque, de acordo com o anjo do

mundo” (Jo 4.42).

Senhor, “ele salvará seu povo dos seus pecados” (Mt 1.21).

1.4 O substantivo sõtêria. Sõtêria, substantivo com o significado de “salvação”, pode se referir

Em uma declaração enigmática, Jesus faz

ao processo ou ao resultado de salvar. É encontra­

menção de pessoas que querem salvar a pró­

do em Lucas 1.69, passagem em que Zacarias de­

pria vida e acabam por perdê-la (Mt 16.25 par.

clara que Deus suscitou “um chifre de salvação”

Mc 8.35a e Lc 9.24a), em contraste com os que

[ nvi, nota de rodapé) e então define mais precisa­

perdem a vida e (desse modo) a salvam (Mc 8.35b

mente essa dádiva de Deus, dizendo que ele está

par. Lc 9.24b).

“salvando-nos dos nossos inimigos”

4) Em algumas passagens, o termo é ambí­

(n v i).

Mais

adiante, no mesmo hino, a tarefa de seu filho

guo, e não fica claro se está se referindo exclusi­

João (v.

vamente à saúde e ao bem-estar físico e mental

seu povo conhecimento da salvação pelo perdão

ou também à salvação espiritual (e.g., Lc 7.50,

dos seus pecados”. Jesus comenta que sua visita

João B a tista )

é assim definida: “... dar ao

“A tua fé te salvou”; observe-se que em outras

a Zaqueu trouxe “ salvação” a sua casa (Lc 19.9).

passagens essa expressão designa a cura física:

E Jesus diz à mulher de Samaria que “a salvação

Mc 5.34 par. Lc 8.48; Mc 10.52 par. Lc 18.42; cf.

vem dos judeus” (Jo 4.22).

Lc 8.50; 17.19). 1.1.2

1.5 O substantivo sõtêríon. Outra palavra com

João. 0 uso em João é semelhante ao o sentido de “ salvação” é sõtêríon, encontrada em

dos Sinóticos.

Lucas 2.30, quando Simeão diz que seus olhos

1) Em João 12.27, Jesus ora para que, se

viram a salvação de Deus, e em Lucas 3.6, quan­

possível, seja liberado de passar pela cruz. Em

do 0 próprio Evangelista cita Isaías 40.5: “Todos

João 10.9, ele compara as pessoas a ovelhas que

verão a salvação de Deus”. De acordo com Louw

entram no aprisco e vivem em segurança.

e Nida, esse vocábulo significa preferivelmente

2) Em João 11.12, acredita-se que Lázaro este­ ja dormindo (i.e., em coma) e, portanto, em con­

“ o meio pelo qual o povo experimenta a salvação divina”.

dições de ser curado.

1.6 A salvação em sentido espiritual. Esse

3) 0 texto de João 3.17 diz que Jesus veio para

apanhado demonstra que o sentido espiritual

salvar o mundo, e em João 12.17 ele se refere a

está claramente presente em Mateus (1.21) e em

1175

SALVAÇÃO i: E v a n g e l h o s

Marcos (10.26), sendo, porém, mais proeminente

de ajudar a humanidade inteira ou alguma co­

em Lucas, o único dos autores dos Sinóticos a

munidade. 0 deus Asclépio era importante, pois

desenvolver o uso dos substantivos junto com o

em diversos santuários era aquele que curava os

verbo. Um fato interessante que surge daí é que

enfermos. 0 termo também designava os chefes

0 significado “literal” da palavra pode ser a ideia

de Estado, e, quando se desenvolvia um culto re­

genérica de “resgatar” ou “curar” , e ambos os sig­

ligioso aos governantes, “salvador” era um dos

nificados podem estar por trás do uso “espiritual”

títulos honoríficos utilizados.

da terminologia. Louw e Nida (p. 1241, nota 4) comentam que, de forma geral, os tradutores da

3. Salvação em cada Evangelho

Bíblia têm usado palavras que refletem o primeiro

3.1 Mateus.

sentido, mas tem havido certa mudança no em­

3.1.1 Salvos do pecado. Já no início, o Evan­

prego de palavras que refletem o último significa­

gelho de Mateus anuncia que “Jesus” deve ser

do ou na utilização de palavras que dão mais a

chamado por esse nome porque salvará seu povo

ideia de “restaurar” ou “recriar”. Dessa maneira,

dos

a ênfase não tem mais recaído sobre a ação di­

signação de Israel, que é considerado uma nação

vina, nem sobre o fato de que o que Deus cria

pecadora. O livramento do pecado está associa­

tem a qualidade de ser novo. Destaca-se agora a

do à resposta do povo a João Batista (Mt 3.6) e

PECADOS.

Nesse contexto, o “povo” é uma de­

às declarações soberanas de Jesus na condição

restauração do que se perdeu ou se desfigurou.

de Filho do homem (Mt 9,2,5,6), Na

Ú ltim a Ceia,

2. Antecedentes do uso nos Evangelhos

Jesus declara que seu sangue será derramado

Os Evangelhos foram escritos em uma época em

para perdão dos pecados (Mt 26.28). Ele também

que a ig re ja tinha já um vocabulário especial para

afirma que veio realizar uma missão entre os

se referir á experiência cristã, Podemos vislum­

pecadores (Mt 9.10-13; cf, 11.19). O significado

brar um processo em duas etapas: o vocabulário

de “ salvar” não é explicado em detalhes, mas

dos cristãos deve ter sido influenciado por Jesus,

as três referências ao perdão mostram de modo

e a escolha das palavras nos Evangelhos pode

suficientemente claro o que se tem em mente. É

ter sido influenciada pelo vocabulário da igreja.

natural que se pense em livrar o ser humano dos

A maneira com que Jesus e seus seguidores se

efeitos de seus pecados, mas ao mesmo tempo

expressavam também deve ter sido influenciada

tem-se em mente capacitá-lo a não pecar. Na iro­

pela herança do

e do judaísmo e, até certo pon­

nia empregada pelos líderes judeus por ocasião

to, pela necessidade de falar usando termos que

da crucificação, “ salvou os outros” (Mt 27.42a),

at

usa-se 0 verbo em sentido genérico, e não se

seriam compreendidos pelo povo em geral. A ampla pesquisa de E. M. B. Green, de fácil

deve limitá-lo ao sentido de salvar alguém da

leitura, analisa os antecedentes do uso do con­

morte (Mt 27.42b). Entretanto, é improvável que

ceito pelo

quem fez tal declaração tenha atribuído signifi­

NT.

No

at,

há uma quantidade consi­

derável de material em que as palavras hebraicas

cado espiritual a suas palavras.

correspondentes são usadas quase sempre com o

3.1.2 Salvação como algo físico e espiritual As

sentido de livramento em épocas de conflito, es­

referências ao livramento da morte iminente no

pecialmente na guerra. Mas a ideia de livramento

mar e à cura de doenças físicas nâo precisam ne­

é muito mais ampla e se refere a estar livre de

cessariamente implicar algo além disso. Entretan­

perigo de todos os tipos da vida e até mesmo, em

to, vários fatores apontam para um entendimento

sentido mais geral, ao estado de bem-estar que

diferente.

Deus deseja para seu povo. É natural que os is­

Primeiro: é bem possível que os fatos envol­

raelitas olhassem para Deus como seu supremo e

vendo a “ salvação” física narrados nos Evange­

derradeiro Libertador de todos os tipos de dificul­

lhos fossem aplicados na igreja com significado

dades e afUções. Ele é o Salvador por excelência

histórico. Desse modo, a interpretação da história dos discípulos no barco durante uma tempesta­

(cf. Sl 27.1). O termo “ salvador” era conhecido no mundo

de é que ela simboliza a igreja sofrendo tribula­

greco-romano como epíteto dos deuses na função

ção no mundo. Nesse caso, são os seguidores de

1 176

S A L V A Ç Ã O i: E v a n g e l h o s

Jesus que clamam ao Senhor para que ele os “sal­

firme e leal a Jesus apesar da perseguição e que

ve” das dificuldades da vida, e a resposta à ora­

permanecer firme e leal conduz à “salvação final”.

ção deles pode estar na ehminação ou diminuição

No entanto, em Mateus 24.22 (par. Mc 13.20), o

de suas tribulações ou em serem conduzidos em

sentido pode ser que, se a perseguição demorasse

segurança em meio às tribulações ou levados à

demais, ninguém sobreviveria, de modo que não

salvação final apesar até mesmo da própria mor­

sobraria ninguém vivo para dar as boas-vindas ao

te. A disposição das palavras no episódio da cura

Fiiüo DO HOMEM quando ele chegasse. 0 termo não

do paralítico e do perdão dos pecados pode, da

pode ter o sentido de que ninguém conseguiria

mesma forma, ter levado a ver a cura como sím­

permanecer firme e leal a ponto de sofrer martírio.

bolo do perdão e salvação espirituais.

Temos aqui, portanto, dois usos diferentes da pa­

Segundo: a fórmula traduzida em outras pas­

lavra, mas com sentido bem próximo um do outro.

sagens dos Evangelhos por “a tua fé te salvou”

3.1.4 Salvação definitiva. De modo semelhan­

é empregada uma vez em Lucas (7.50) para de­

te, Mateus 19.25 e suas passagens paralelas de­

signar uma pecadora que havia experimentado

vem se referir à “salvação final”. Trata-se de uma

perdão. Aqui, a fórmula é naturalmente traduzi­

condição futura de salvo, em contraste com o ato

da por “a tua fé te salvou” , que é, em essência, o

de se perder, que, no imaginário dos Evangelhos,

mesmo de Efésios 2.8 (cf. At 15.11, caso se acom­

significa participar, do banquete celestial, sem ser

panhe a tradução proposta por F. F. Bruce, “cre­

dele excluído; receber as boas-vindas do Filho do

mos para [de modo a] ser salvos” ; 15.31; Rm 10.9;

homem e entrar no reino celestial, sem ser rejei­

Tg 2.14; no final longo de Marcos [16.16], vê-se a

tado e destinado ao fogo eterno (v. jufzo). Isso

mesma terminologia da igreja). Tendo em vista a

nos leva a questionar se a condição de “ salvo”

ambiguidade da fórmula extraída de um contexto

se refere exclusivamente a um estado no mundo

de cura, é bem provável que no im'cio os cristãos

vindouro ou se também pode se referir aos que já

foram levados a ver a cura como símbolo da sal­

estão certos de que entrarão no reino. 3.1.5 Salvando e perdendo a própria vida. Em

vação e a estabelecer o paralelo entre a cura pela

Mateus 15.25 e passagens paralelas, há um im­

fé e a salvação pela fé. Terceiro: no mundo antigo, não se fazia clara

portante grupo de frases sobre o tema de salvar

distinção entre o físico e o espiritual. Aliás, com

e perder a própria vida. Aqui, a dificuldade é em

frequência o mesmo acontece hoje em dia. Quan­

parte provocada pela ambiguidade do sentido da

do o cristão ora a Deus para que ele “abençoe”

palavra “vida” (gr., psychê), que pode se referir à

alguém, é difícil dizer se está pensando no bom

“alma” como algo distinto do corpo (e, dessa ma­

êxito dessa pessoa em algum assunto ou aspecto

neira, ter 0 significado de pessoa), ou à “vida” ,

da vida cotidiana, em uma sensação de favor di­

ou ainda à “ vida verdadeira” de alguém. Jesus

vino ou no pleno sucesso na realização de algum

parece estar dizendo que quem tenta “ salvar”

aspecto do ministério e do serviço cristãos. Por

(i.e., preservar) a própria vida, no sentido de evi­

isso, é difícil fazer distinção entre a cura física e

tar o martírio ou de se apegar às coisas que neste

a cura da “pessoa interior” (cf. Lc 17.19, em que

mundo lhe dão prazer e satisfação, “perderá” a

não fica claro se a declaração se refere exclusiva­

vida no final, seja por descobrir não ser possível

mente à cura da lepra).

livrar-se da morte, seja por descobrir que apegar-

Por isso, é provável que os relatos de cura nos

se às coisas terrenas resultará em perda no juí­

Evangelhos fossem entendidos como narrativas

zo final e, por conseguinte, no mundo vindouro.

de um processo que envolvia a pessoa toda, nâo

Já os que, por amor a Jesus (Marcos acrescenta:

apenas a cura física ou mental.

“por causa [...] do evangelho”), estão preparados

3.1.3

Salvação apesar da perseguição. O texto para dizer “ não” ’ ao próprio eu, mesmo que isso

de Mateus 10.22 e suas passagens paralelas talvez

signifique a morte, descobrem que “ salvarão”

sejam uma alusão à segurança física experimen­

sua vida, no sentido de que alcançarão o reino

tada em meio à perseguição. Entretanto, no ver­

de Deus e desfrutarão das bênçãos que realmente

sículo 2, a referência a uma possível morte leva

valem a pena possuir (cf. o paralelo vocabular

a considerar que o versículo fala de permanecer

um pouco diferente em Mt 10.39 e em Lc 17.33).

1 177

SALVAÇÃO i: Evangelhos

3.2 Marcos. No Evangelho de Marcos, o qua­

ataques (Lc 1.71). Acima de tudo, Zacarias fala

dro é mais simples que em Mateus. A única re­

de uma experiência (gr., gnõsis, “conhecimen­

ferência importame sem paralelo em Mateus é

to”) de salvação, intimamente associada ao per­

Marcos 3.4, passagem em que Jesus comema a

dão de pecados (Lc 1.77). 0 que Mateus 1.21

questão legal de fazer o bem e “salvar a vida”

afirma da maneira mais breve possível, Lucas

no dia de sábado, em que “salvar a vida” tem o

expressa num quadro maior. Depois disso, não é

sentido lato de curar um enfermo. A expressão

de surpreender que, após o nascimento de Jesus,

contrasta com “matar”, sendo uma crítica direta

a linguagem exaltada empregada para descrevê-lo

contra o que Jesus deixa implícito serem as inten­

se refere não somente a seus vínculos davídicos,

ções ocultas de seus críticos, que o atacam por

a seu messiado e a sua posição como Senhor, mas

curar no sábado. No entanto, em Marcos não en­

também ao fato de ele ser o Salvador (Lc 2.11).

contramos 0 texto programático de Mateus 1.21,

E todo o drama está resumido no comentário de

e só em Marcos 10.26 há uma ocorrência explici­

Simeão: ele afirma que viu a salvação que o Se­

tamente teológica do termo.

nhor preparou e que é para todos os povos (“todo

3.3 Lucas. Em Lucas, o caso é diferente. Ele apresenta o mesmo padrão dos outros dois Evan­

0 povo” [singular] não é suficientemente literal), entre os quais os gentios (Lc 2.30-32).

gelhos, isto é, o uso das palavras em sentido lato,

3.3.2

A salvação como missão do Filho de

mas existe uma ênfase especial na salvação que

Deus. As notas dessa abertura musical devem

não se vê naqueles Evangelhos.

permanecer em nossos ouvidos à medida que

3.3.1

Introdução à história da salvação. Essa continuamos a ouvir o Evangelho de Lucas, e

ênfase fica evidente acima de tudo nas narrativas

outros usos da terminologia em torno da “ salva­

do nascimento (v.

que têm

ção” devem harmonizar com o que já ouvimos.

a função de introdução, sendo apresentados os

Lucas repete bastante do que já encontramos em

temas principais do drama que se segue, porém

Mateus e em Marcos. Podemos assinalar que, ao

com música própria. Aqui uma das notas mais

registrar o material paralelo ao de Marcos, em

características é a salvação, com seis referências

Lucas 8.12, ele acrescenta o motivo de o Diabo

importantes.

arrancar de alguns ouvintes a Palavra: “para que

J e s u s , n a s c im e n t o d e ) ,

A primeira nova soa em Lucas 1.47, em que

não aconteça que, crendo, sejam salvos”. Aqui,

Maria, na condição de futura mãe do Messias,

há um eco da linguagem da igreja primitiva, e Lu­

põe-se ao lado do povo de Deus e se regozija em

cas claramente está se referindo ã experiência de

Deus, seu Salvador. A evolução do cãntíco deixa

salvação espiritual que vem por meio de ouvir a

claro que ele é o Salvador dela e também de seu

Palavra de Deus. O mesmo se vê em Lucas 13.23,

povo. A ação de Deus é descrita como potente

quando perguntam a Jesus se são poucos “os que

e eficaz, contra os poderosos e os orgulhosos e

se salvam”. Deve se interpretar essa pergunta à

a favor dos pobres e humildes. Esses grupos de

luz de Mateus 7.13,14, em que se lê que mui­

palavras e expressões apontam respectivamente

tos percorrem a estrada que leva à destruição e

para os que se opõem a Deus e os que confiam

poucos encontram o caminho que conduz à vida,

que ele suprirá suas necessidades. Além disso,

havendo correspondência de termos, como em

entende-se que a ação de Deus faz parte de uma

Marcos 10. Isso é confirmado pelo contexto, que

longa história de misericordiosa preocupação

se refere ao futuro banquete no reino de Deus.

com 0 povo escolhido.

A teologia lucana da salvação é resumida em

No segundo cântico, o de Zacarias, a natureza

Lucas 19.10, em que a missão do Filho do homem

da salvação é apresentada mais claramente. Mais

é buscar e salvar os perdidos. 0 texto reflete a

uma vez, soa a nota que indica uma interven­

terminologia do pastoreio e se refere, de várias

ção potente e eficaz — “um chifre de salvação”

maneiras possíveis, ao resgate de ovelhas, Uvran-

(Lc 1.69,

— associada à vinda do Messias (v.

do-as da morte. 0 emprego metafórico dessa ter­

Mais uma vez, menciona-se a ação divina

minologia para se referir ao cuidado de Deus com

contra os poderosos e os perversos, o que torna

seu povo era algo bem estabelecido e ressoa aqui.

possível ao povo de Deus servi-lo sem medo de

Pode se dizer que uma consequência de Jesus

C r is to ).

n v i)

1 178

SALVAÇÃO i: Evangelhos

ter procurado Zaqueu foi que a salvação chegou

ainda assim significativo, com outros grupos de

imediatamente à casa daquele homem (Lc 19.9).

palavras que recebem atenção bem maior.

Trata-se, portanto, de uma experiência ocorrida naquele momento, envolvendo a c o m u n h ã o

à m esa

Aqui fica claro que os Evangehstas estão refle­ tindo a realidade histórica de várias situações, ou

entre Jesus e Zaqueu e o início de um novo es­

seja, não era um grupo de palavras muito usado

tilo de vida para Zaqueu, que abandona os hábi­

por Jesus, especialmente em seu sentido teológi­

tos pecaminosos do passado. Jesus destaca que,

co pleno. Mesmo assim, é provável que os Evan­

embora Zaqueu seja um pecador, assim mesmo

gehstas tenham descrito corretamente a situação

é uma das ovelhas perdidas da casa de Israel e,

ao reconhecer que, em última instância, a missão

portanto, um alvo legítimo de sua missão.

de Jesus dizia respeito à salvação. Ele anunciou o

3.4

João. No Evangelho de João, a salvação reino de Deus com as bênçãos concomitantes. A

está associada ã missão do

F ilh o d e D eu s

e

é

posta

terminologia em torno da salvação esmiuça o sig­

em contraste direto com a possibilidade de con­

nificado disso no que diz respeito aos benefícios

denação e morte. Dessa maneira, ser salvo é o

para a humanidade.

oposto de ser julgado e destruído. É o mesmo que

Alguns termos emergem dos Evangelhos:

ganhar a vida eterna (Jo 3.16,17; cf. Jo 12.47). A

1) A salvação está intimamente associada a

salvação não se restringe ao povo judeu. Estende-

Jesus e a sua missão. É um termo abrangente que

se a todo 0 mundo, e isso inclui os samaritanos,

designa os benefícios da ação soberana de Deus

que a ortodoxia judaica considerava excluídos do

por meio do Messias.

favor divino, mas foram eles que confessam que

2) É vista como uma experiência futura, cor­

Jesus é “ o Salvador do mundo” (Jo 4.42), a des­

respondente ao ingresso no reino de Deus e à

peito de ser verdade que a salvação chegou ao

obtenção da vida eterna, mas também é uma ex­

mundo por meio “ dos judeus”. O corolário disso

periência presente, que resulta do encontro pes­

é que o testemunho acerca de Jesus é o que leva

soal com Jesus.

as pessoas a experimentar a salvação (Jo 5.34).

3) Por intermédio de Jesus, Deus concede a

O quarto Evangelho também emprega a metáfora

salvação a seu povo,

do pastoreio para expressar o papel de Jesus, mas

embora seja o povo de Deus, Israel não está

Is r a e l.

A implicação é que,

aqui Jesus é a porta por meio da qual as ovelhas

desfrutando da plenitude de vida que Deus lhe

adentram a segurança do aprisco e, assim, estão

deseja. Isso se deve tanto aos efeitos do mal no

Uvres dos perigos lá fora. (Não se deve forçar a

mundo em geral (e.g., a ação do Inimigo) quanto

metáfora; as ovelhas podem sair e entrar com li­

à ação das enfermidades e da morte.

berdade e segurança, i.e., os que “pertencem” ao

4) Apesar de sua pecaminosidade, o ser huma­

rebanho têm a certeza da proteção do Pastor onde

no não está impedido de obter a salvação que Deus

quer que estejam.)

deseja para seu povo. Pelo contrário, esse fato confirma essa necessidade. A princípio, a salvação

4. O entendimento da salvação nos

também não se limita aos judeus. Há indicações

Evangelhos

de que ela se estende a todos os povos, embora no

Já se disse o suficiente para demonstrar que o

ministério de Jesus só ocorram contatos esporádi­

grupo de palavras relacionadas ã “salvação” não

cos com samaritanos e outros não judeus.

alcança nos Evangelhos a proeminência da ex­

5) A associação entre cura e fé e o emprego

pressão “reino de Deus” , por exemplo. Isso fica

mais amplo da fórmula “a tua fé te salvou” reve­

evidente sobretudo em Marcos. Mateus associa a

lam que a recepção da salvação estava associada

vinda de Jesus a seu papel de Salvador, mas não

à fé, a qual é entendida em sentido lato, consis­

desenvolve a terminologia de forma significativa.

tindo no reconhecimento de Jesus como agente

Nas narrativas do nascimento, Lucas destaca o

soberano e poderoso de Deus e também num

tema e não chega a perdê-lo totalmente de vista,

compromisso com ele.

mas não se pode dizer que a terminologia receba

6) Afastar-se do mal faz parte do processo de

destaque. Em João, os termos referentes à “sal­

salvação. Aliás, Zaqueu não só abandonou as

vação” ocupam um papel menos destacado, mas

práticas desonestas de sua vida pregressa, mas se

1 179

S alvação ii : Paulo

comprometeu em adotar um novo estilo de vida

ao livramento do pecado e ao livramento derradei­

que envolvia o hábito de ajudar os pobres.

ro, quando, no fim dos tempos, os salvos entrarem

Ao apresentar Jesus como Salvador, os no estado de felicidade absoluta com Gristo.

7)

Nos escritos paulinos, destaca-se o livramento

Evangelistas estão lhe atribuindo um papel que o judaísmo reservava para Javé (v.

D e u s ).

Embora

seja possível aplicar o termo a líderes terrenos (os

do

pecado

e de suas consequências, embora para

Paulo seja muito mais natural falar de salvação do

juizes), ele era usado predominantemente para

que dizer que as pessoas são salvas. Ele utiUza o

designar Javé, e o eco, nos Evangelhos, das pas­

verbo sõzõ (“salvar”)

sagens do

outro escritor do

AT

que tratam da atividade salvadora

de Javé mostra que seu papel foi agora atribuído

29

vezes (mais que qualquer

o substantivo sõtêr (“ salva­

n t);

dor”), 12 vezes (exatamente metade das ocorrên­

a Jesus. Antes disso, o termo “ salvador” em re­

cias da palavra no

ferência ao Messias não era usado pelo judaís­

vezes; sõtêríon (“salvação”) e sõtêríos (“que traz

mo. Ao mesmo tempo, fica implícito que Jesus

salvação”), uma vez cada um. E usa rhyomai

n t);

sõtêria (“salvação”),

18

se opõe a outros humanos (como o imperador

(“resgatar”)

romano) considerados salvadores.

que Paulo está interessado no conceito de salva­

Ver também

c r is to lo g ia ;

Lu cas,

E v a n g e lh o

de;

11

vezes. Tais estatísticas mostram

ção; aliás, mais que qualquer outro escritor do

n t.

O conceito de salvação tem ampla gama de

r e in o d e D eu s.

sentidos, e existem diferentes ênfases em diferen­ B ib lio g rafia . Foerster, W . & Fohrer, G. ctüÇoj ktA. TDNT. [S.l.: S.n., s.d .] v. 7, p. 965-1024. ■ George,

Etudes sur l’oeuvre de Luc.

A.

Paris: G a b a ld a , 1978.

tes partes do

n t.

Nos Evangelhos, por exemplo,

são frequentes as histórias em que Jesus opera m i­ la g r e s

e os faz acompanhar de frases como “a tua

L’e m ploi ch e z Luc du voc a bu laire

fé te salvou”. Nesses contextos, a salvação tem

de salut, nts, v. 23, p. 308-20, 1977.) ■ Green, E.

forte componente físico (embora seja prudente

p. 307-20. ( =

London: H odder

não excluir o componente espiritual mesmo em

A.

tais passagens). Mas esse não é um emprego

Greek-English lexicon o f the New Testament based

paulino (com exceção de umas poucas passagens

on semantic domains.

possíveis, e.g., ITm

M . B.

&

The meaning o f salvation.

Stoughton, 1965. ■ Louw,

J.

P. & Nida, E.

N e w York: U n ited B ible S o­

Luke:

2.15;

v.

3

abaixo). Para Pau­

historian an d

lo, a “ salvação” refere-se ao que Cristo fez em seu

theologian. 3. ed. G ran d Rapids: Z o n d e rv a n , 1989.

grande ato redentor pelos pecadores. De alguma

cieties, 1988. ■ M a rs h a ll, I. H.

■ Schneider, J. & Brown,

C. R edem ption etc. m dntt.

maneira, todas as passagens paulinas dizem res­

[S.L: s.n., s.d .] v. 3, p. 205-321. ■ V an Unnik, W.

peito a esse ato. Esse termo é fundamental para o

G. L’u sage de

sozein

“s a u v e r” et de ses dérivés

entendimento que Paulo tem da salvação, pois a

J.,

salvação é justamente o propósito da encarnação

d an s les E van giles synoptiques. In: Goppens, org.

La formation des Evangiles.

de B rouw er, 1957. p. 178-94 ( =

Sparsa Collecta.

Bruges: D esclée

do Filho de Deus: “Cristo Jesus veio ao mundo

W . G. van Unnik.

para salvar os pecadores” (ITm

I. H.

1.15).

“Salva­

ção” é uma palavra abrangente que traz a lume a

Leiden: Brill, 1973. p. 16-34). M a r s h a ll

verdade de que

D eu s

em

C r is to

resgatou os seres

humanos da condição desesperadora a que seus Salvação

ii:

P

pecados os haviam submetido.

aulo

“Salvação” é um termo genérico que denota livra­

1.

“ Deus, nosso Salvador”

mento de vários tipos. É possível utilizá-lo para

2.

Agentes humanos na salvação

designar a cura de uma doença, o cuidado na via­

3.

Quem será salvo?

gem ou a proteção em tempos de perigo. Pode ser

4.

Salvação no passado

aplicado a pessoas e coisas. No

a t,

5. Salvação agora

quando Israel

6. Uma salvação futura

era ameaçado por nações hostis, o termo desig­ nava a proteção por parte de Deus. Nos Evange­ lhos, é muitas vezes empregado em referência às

1. “Deus, nosso Salvador”

curas realizadas por Jesus (“a tua fé te salvou [i.e.,

Nas Cartas Pastorais, existem várias referências

curou] "). Mas o termo também é usado em relação

a “ Deus, nosso Salvador” (ITm

1 180

1.1; 2.3;

Tt

1.3;

S a lva ç ão ii ; Paulo

2.10; 3.4), ou a “nosso Salvador Cristo Jesus”

salvar os que creem “por meio do absurdo da pre­

(2Tm 1.10; Tt 1.4; 2.13; 3.5). Não se deve diferen­

gação” (ICo 1.21). Mais adiante, na mesma car­

ciar demais esses dois grupos de passagens, pois

ta, Paulo dá a conhecer o evangelho pelo qual os

o ensino neotestamentário de que Deus agiu em

coríntios eram salvos (ICo 15.1,2). Em ambos os

Cristo é resumido nas próprias palavras de Pau­

casos, a pregação claramente significa anunciar

lo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo

o que Cristo realizou ao morrer pelos pecadores.

mesmo o mundo” (2Co 5.19). De um lado, fica

Eles são salvos por causa do que ele fez. Paulo

bastante claro que a salvação teve origem no Pai;

pôde identificar “a palavra da verdade” com “ o

de outro, que foi o Filho quem fez o necessário

evangelho da vossa salvação” (Ef 1.13), que é a

para a salvação se tornar uma realidade.

base da confiabiUdade da proclamação do evan­

Paulo escreve que Deus não destinou os tes­

gelho, que fala da verdade divina e da ação de

salonicenses para a ira, e sim para a salvação,

Deus. A referência ao “será salvo, [mas] como

“por nosso Senhor Jesus Cristo” (ITs 5.9). É Jesus

alguém que passa pelo fogo” (ICo 3.15), tem em

quem “nos livra da ira vindoura” (ITs 1.10) ou,

vista o crente que alcançou tão pouco na vida

expressando de modo um pouco diferente, é “por”

cristã que no dia do jufzo final sua obra será des­

Cristo que os crentes serão salvos da ira (Rm 5.9).

truída pelo fogo. No entanto, se estiver sobre o

Paulo desenvolve essa ideia, dizendo que os pe­

alicerce que Cristo lançou, esse crente será salvo.

cadores eram inimigos de Deus, mas agora foram

É Cristo quem salva, não o esforço humano. Em

reconciliados por meio da morte do Filho e, uma

última instância, o mais importante é o alicerce

vez reconciliados, serão “salvos pela [ou em] sua

seguro, não a obra incerta.

vida” (Rm 5.10). É improvável que o apóstolo

Em nenhum lugar, Paulo fala de uma salvação

queira dizer que a morte de Jesus opera uma for­

operada por esforço humano. Ele, aliás, quer in­

ma de salvação, e a ressurreição, outra. Ele está

formar que ele mesmo e seus colaboradores são

se referindo a um único e grandioso ato de reden­

“atribulados” por causa da salvação dos coríntios

ção que envolve a morte e a r e s s u r r e iç ã o de Jesus,

(2Co 1.5; cf. Cl 1.24), mas isso significa apenas que

uma salvação que livra os salvos da ira e lhes dá

os evangelistas enfrentam dificuldades para levar a

uma vida sem fim. Caso a preposição “em” seja

mensagem de salvação ao povo. Com certeza, não

significativa, Paulo está dizendo que nossa ple­

significa que essas tribulações mereciam como

na salvação significa sermos salvos “na” vida de

prêmio a salvação de seus ouvintes. Essa passa­

Cristo. Visto que ele muitas vezes alude ao estar

gem também mostra o apóstolo como alguém que

“em” Cristo, pode muito bem ser esse o significa­

foi encorajado, mas não foi o encorajamento re­

do aqui. Isso fica explícito quando ele diz que se

cebido por Paulo que lhes trouxe a salvação. Ela

pode obter “a salvação que há em Cristo Jesus”

sempre vem da parte de Deus, Outra passagem

(2Tm 2.10). Ele também pode estar se referindo

mostra que as dificuldades dos primeiros crentes

à importância das Escrituras, que podem fazer o

eram um sinal de sua salvação (Fp 1.28).

ser humano “sábio para a salvação” (2Tm 3.15).

Paulo emprega o tema da salvação para mos­

Que a salvação tem sua origem em Deus é algo

trar aspectos da grande verdade de que os crentes,

que se vê quando Paulo fala do “chamado” divi­

quando ainda pecadores, não conseguiam escapar

no: Deus “ nos chamou com uma santa vocação”

das consequências de seus atos maus, mas Deus

(2Tm 1.9). Para Paulo, a ideia do chamado é im­

agiu para livrá-los. “Pela graça sois salvos” é o que

portante, e aqui ela expressa a verdade de que a

ele escreve à igreja de Éfeso (Ef 2.8), expressão

salvação vem em consequência de uma iniciativa

que vem após a declaração “... estando nós ainda

da parte de Deus ou pode estar associada à graça

mortos em nossos pecados, deu-nos vida junta­

para exprimir o fato de que a salvação é para todos

mente com Cristo” (Ef 2.5). A implicação é que

(Tt 2.11). Isso significa que a salvação está dispo­

pecados produzem a morte, mas Cristo concede

nível a todos, não que cada pessoa seja salva.

vida aos que estão mortos no pecado. Assim, des­

Paulo emprega várias expressões que passam

cobrimos que “não por méritos de atos de justíça

o pensamento de que a salvação vem “por meio

que houvéssemos praticado, mas segundo a sua

da” mensagem cristã. Assim, Deus agradou-se de

misericórdia, ele nos salvou” (Tt 3.5).

1 181

S a l v a ç ã o i i : Pa u l o

Na salvação, a iniciativa é de Deus: “Ele vos

Timóteo é incentivado a permanecer na “dou­

escolheu [...] para a salvação” (2Ts 2.13). Na

trina”. Assim, salvará “tanto a ti mesmo como os

verdade, quase toda a passagem, que trata da

que te ouvem” (ITm 4.16). A referência ao “en­

salvação, poderia ser citada, pois, em seu modo

sino” mostra que o escritor não está indicando

característico, Paulo (à semelhança de outros es­

uma atividade meritória, mas o ensino de que

critores do

Cristo é 0 Salvador, e aqueles que ouvirem isso

n t)

apresenta a seus leitores informa­

ção sobre uma salvação que, em certo sentido,

estarão com Timóteo na salvação. Mais uma vez,

já foi concedida por Cristo e, em outro, se con­

temos a ideia do esforço humano levando à sal­

sumará na era vindoura. Em nenhum dos dois

vação de outras pessoas. Mas é Deus em Cristo

sentidos, existe a mínima indicação de que o es­

quem salva.

forço humano é de alguma ajuda. É relevante que Paulo ore pela salvação de

Is r a e l

(Rm 10.1), pois,

3. Quem será salvo?

se o assunto é a salvação, então fica claro que

O fato de que a salvação é um livramento divi­

esta é uma dádiva de Deus. A salvação é operada

no não significa que todos serão salvos. Paulo,

por Deus em Cristo. Os cristãos são os “ salvos”

citando as palavras de Isaías, diz: “Ainda que o

(ICo 1.18; 2Co 2.15), não “aqueles que salvam”,

número dos filhos de Israel seja como a areia do

nem os que são salvos por esforço próprio. Esse

mar, o remanescente é que será salvo” (Rm 9.27).

também é o caso quando a fé está associada à sal­

0 artigo definido é importante. Paulo não diz

vação (Rm 10.9; ICo 1.21; Ef 2.8), pois fé significa

“um” remanescente, mas “o ” remanescente. Ele

confiar em Cristo ou em Deus, não dependendo

está se referindo ao remanescente bíblico, de que

dos próprios esforços.

Deus fez menção por meio de seus profetas. Esse remanescente é o verdadeiro povo de Deus, e a

2. Agentes humanos na salvação

salvação vem até esse povo, não às multidões da

Em algumas passagens, menciona-se uma agência

nação, que são negligentes com relação às coisas

humana que está operando a salvação, embora

de Deus.

isso, naturalmente, não signifique que os seres

Deve se ressaltar que, embora Paulo aguarde

humanos possam salvar uns aos outros. Quan­

que Deus traga a salvação a

do Paulo, por exemplo, fala de sua intenção de

que ele esteja desobrigado de ajudar sua nação.

salvar alguns israelitas (Rm 11.14), ele não quer

Aliás, de qualquer forma, ele considera que, em

dizer que seus esforços efetuarão a salvação, ape­

certo sentido, seu ministério aos gentios é um

nas que sua esperança é que a mensagem por ele

meio de fazer aos judeus uma recomendação do

Is r a e l,

não significa

proclamada leve alguns de seus compatriotas a

evangelho. Ele diz que sua situação é de “apósto­

se voltar para Deus e, desse modo, a obter a sal­

lo dos gentios” e confia que o trabalho que rea­

vação que só Deus pode dar. Deve se entender a

liza nessa condição vai “provocar ciúmes nos da

mesma coisa quando se diz que a mulher salvará

minha raça e salvar alguns deles” (Rm 11.13,14).

o marido, e vice-versa (ICo 7.16). Paulo não está

No sentido de “ membro da mesma nação” a ex­

afirmando que uma pessoa pode operar a salvação

pressão “minha carne”

dos membros da faimlia, e sim que a esposa crente

destaca seu senso de consanguinidade em relação

(a j m )

é incomum, mas

ou 0 marido cristão pode viver de tal maneira que

a Israel. Ele espera que o êxito de seu trabalho

conduza o cônjuge a Deus e à salvação. Na visão

entre os gentios afete os judeus, de maneira que

de Paulo, o princípio é de aphcação universal en­

também “alguns deles” sejam salvos.

tre os cristãos. Ele conclui uma passagem sobre

Para Paulo, uma das principais acusações con­

a ingestão de comida oferecida a ídolos, dizendo

tra os judeus é que eles impediam os pregadores

aos destinatários que, seja lá o que comam ou be­

cristãos “de pregar aos gentios para que sejam

bam — na realidade, qualquer coisa que façam —,

salvos” (ITs 2.16). Em outro contexto, ele afir­

devem fazer tudo para a glória de Deus. Ele afirma

ma que se torna “ tudo para com todos, para de

que ele próprio procura agradar a todos naquilo

todos os meios vir a salvar alguns” (ICo 9.22).

que faz: não procura vantagem pessoal, mas a de

Fica claro que, para o apóstolo, levar a salvação

muitos, “para que sejam salvos” (ICo 10.31-33).

às pessoas em todos os lugares era de suprema

1 182

Sa lva ç ão ii : Pa ulo

importância, e, embora seu ministério fosse dire­

“proíbem o casamento” (ITm 4.3), e é bem pro­

cionado aos gentios, isso não significava que ele

vável que ele esteja combatendo um ensino falso

tivesse deixado de se importar com Israel. Nunca

e afirmando que as mulheres serão salvas (desde

se deve esquecer a aflição que ele demonstra por

que. naturalmente, permaneçam “na fé, no amor

seu povo em Romanos 9— 11.

e na santificação” , ITm 2.15) no curso normal da

A declaração de que Deus “deseja que todos

vida, dando à luz filhos no casamento.

os homens sejam salvos” (ITm 2.4) provavel­ mente está associada a isso. É a negação do ex­

4. Salvação no passado

clusivismo, seja dos judeus, seja dos gnósticos.

Em certo sentido, pode se dizer que a salvação

que surgiram mais tarde e limitavam a salvação

já ocorreu. Paulo afirma que “ fomos salvos na

aos que eram especialmente iluminados. Deve se

esperança” (Rm 8.24), e o tempo pretérito aqui

entender “todos” da mesma forma que na frase

aponta para o início da vida cristã. “Pela graça

seguinte, na qual se diz que Cristo “ se entregou

sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de

em resgate por todos” (ITm 2.6). Sem dúvida,

vós, é dom de Deus; não vem das obras, para

não devemos entender que Deus deseja a salva­

que ninguém se orgulhe. Pois fomos feitos por

ção de toda a raça humana e está decepciona­

ele, criados em Cristo Jesus” (Ef 2.8-10). Essa de­

do. Outra passagem semelhante é aquela em que

claração é típica dos escritos de Paulo. A salvação

Deus é chamado “ Salvador de todos os homens,

é algo operado por Deus (ou por Cristo), e não há

especialmente dos que creem” (ITm 4.10). Aqui

esforço humano capaz de produzir esse resulta­

talvez devamos entender “Salvador” como “Pre­

do. Paulo utiliza várias expressões para destacar a

servador” (pois em algum sentido Deus “ salva”

verdade de que a salvação só é alcançada por um

todos nós), mas o destaque aos crentes mostra

ato divino: jamais é resultado da iniciativa ou da

que a salvação que importa alcança apenas os

realização humanas. Também percebemos a mes­

que têm fé. Devemos nos lembrar de que os fi­

ma realidade na referência a Cristo como “cabeça

lipenses receberam esta exortação: “Realizai a

da igreja” e “Salvador do corpo” (Ef 5.23).

vossa salvação com temor e tremor” (Fp 2.12).

Quando Paulo diz que “fomos salvos na espe­

0 plural pode ser uma indicação de que a igreja

rança” , mas que “a esperança que se vê não é es­

toda é exortada a trabalhar arduamente pelo seu

perança” (Rm 8.24), ele está olhando tanto para a

bem-estar espiritual. Caso se aplique a exortação

frente quanto para trás. Essa passagem intrigante

ao crente como indivíduo, o significado deve ser

reconhece um sentido em que a salvação está no

muito semelhante. Paulo jamais vê a salvação

passado — “ fomos salvos”. Paulo olha para trás,

como resultado de esforço humano, e seria des­

para a morte de Cristo a favor dos pecadores e

propositado encontrar esse sentido aqui (v. Haw-

para a fé que os pecadores arrependidos expres­

THORNE,

p. 98-100).

saram quando vieram a Cristo. Mas também fala

Em uma passagem bastante difícil, Paulo diz

de esperança, e isso aponta para o futuro, quan­

que “a mulher é que foi enganada” (uma refe­

do os crentes experimentarão plenamente tudo o

rência a Eva), “todavia, ela será salva dando ã

que a salvação significa.

luz filhos, desde que permaneça [...] na fé”

Vê-se que a salvação é passada quando o

(ITm 2.14,15). 0 plural, no grego, mostra que

apóstolo diz que. “estando nós ainda mortos em

Paulo está falando das mulheres cristãs em geral,

nossos pecados, [Deus] deu-nos vida juntamente

não limitando suas observações a Eva, mas não é

com Cristo (pela graça sois salvos)” (Ef 2.5). Mais

fácil ver como o ato de dar à luz resulta em salva­

adiante, ele repete a ideia essencial “É pela graça

ção ( “Seria uma forma bem estranha de salvação

que fostes salvos, mediante a fé” (Ef 2.8,

pelas obras” , diz W ard, p. 53). Alguns intérpretes

na qual o pretérito perfeito aponta para uma sal­

entendem que se deve destacar “ o” dar à luz (i.e.,

vação já realizada. O tempo aoristo de um acon­

0 dar à luz a criança) e ver uma referência a Cris­

tecimento no passado é percebido quando lemos

c n b b ),

cristãs

que Deus nos salvou “não por méritos de atos de

têm a garantia de que tudo dará certo no parto.

justiça que houvéssemos praticado, mas segundo

Mais adiante, Paulo faz menção de pessoas que

a sua misericórdia” (Tt 3.5), e que Cristo “nos

to. Para outros, significa que as

m u lh e r e s

1 183

iALVAÇAO ii: t^AULO

tirou do domínio das trevas” (Cl 1.13). Paulo não

Embora haja, é claro, uma dimensão escatológi­

deixa seus leitores com nenhuma dúvida acerca

ca na salvação pela qual ele ora, nessa passagem

da realidade de que a salvação é um fato concre­

a ênfase recai no tempo presente: ele quer que

tizado. Ela aconteceu no passado.

Israel seja salvo agora! A salvação como algo pre­ sente pode ser vista em outra referência a Israel,

5. Salvação agora

a saber, que é por causa da transgressão de Israel

Contudo, em outro sentido, Paulo destaca que a

que a salvação chegou aos gentios (Rm 11.11).

salvação é algo presente. 0 evangelho “é o po­ der de Deus para a salvação” , e a j u s t i ç a de Deus

6. Uma salvação futura

está sendo revelada no evangelho (Rm 1.16,17).

Paulo está seguro de que a salvação é uma reali­

0 teor dos escritos do apóstolo e sua maneira de

dade presente e também uma experiência trans­

viver mostram que ele está se referindo a algo

formadora. Mas está igualmente seguro de que o

que acontece no presente. Mais uma vez, ele cita

máximo que agora sabemos a respeito da salva­

Isaías 49.8, que menciona a ajuda de Deus em um

ção não esgota o assunto. Ele aguarda uma sal­

dia de salvação, e acrescenta; “Agora é o tempo

vação futura quando diz que “todo o Israel será

aceitável, agora é o dia da salvação” (2Co 6.2). 0

salvo” (Rm 11.26) e também quando dá a estra­

duplo “agora” transmite um sentido de urgência.

nha ordem de que certo pecador seja entregue “a

Não se deve adiar a salvação para algum momen­

Satanás para destruição da carne, para que o espí­

to conveniente no futuro. A salvação é agora. 0

rito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (ICo 5.5;

evangelho deve ser aceito agora.

V. e s c a t o l o g i a )

. Muita coisa nessa passagem é mis­

A salvação presente é o que Paulo quer mos­

tério para nós, mas a salvação “ no dia do Senhor”

trar quando diz que o evangelho é “para nós, que

vislumbra com certeza a salvação final. Isso tam­

somos salvos, poder de Deus” (ICo 1.18,

e

bém está bem claro na referência que o apóstolo

quando se refere aos “ que estão sendo salvos”

faz de nossa cidadania no céu, “de onde também

(2Co 2.15). “ Com a boca se faz confissão para a

aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo”

a ra ]

salvação” (Rm 10.10) é outra indicação de uma

(Fp 3.20). A ideia de que a salvação está mais

salvação presente, não apenas aguardada no fu­

próxima do que quando cremos (Rm 13.11) tam­

turo. Provavelmente o significado é o mesmo na

bém aponta para um acontecimento futuro. Pode

expressão “tristeza segundo a vontade de Deus”,

se entender que as declarações de que “todo o

a qual “produz o arrependimento que conduz

Israel será salvo” e de que “o Libertador virá de

à salvação” (2Co 7.10). É da salvação que Pau­

Sião” (Rm 11.26) dizem respeito ou ao presente,

lo está falando quando, retoricamente, indaga

ou ao futuro. Qualquer que seja a maneira em

“Desgraçado homem que soul Quem me livrará

que as interpretemos, não pode haver dúvida

do corpo desta morte?” E ele mesmo responde;

de que Cristo é o Libertador e detém plena auto­

“ Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso

ridade celestial.

S e n h o r !”

(Rm 7.24,25). Paulo está fazendo referência ao

Paulo não entende que essa salvação futura se

nosso corpo mortal e às tentações constantes do

estenda a todos, e existem passagens em que, por

pecado, para as quais o corpo humano cria con­

exemplo, ele põe os que são salvos em oposição

dições. E ele exulta no livramento realizado por

aos “ que estão perecendo” (ICo 1.18; 2Co 2.15;

Cristo. Na batalha da vida, pode se dizer que a

2Ts 2.10). A “ira” (Rm 5.9) de que Paulo é salvo

salvação é o “capacete” (Ef 6.17), que pode ser “a

sinahza a catástrofe final. 0 dia do juízo exami­

esperança da salvação” (ITs 5.8). De uma forma

nará e provará os fatos. A obra de alguns sobre­

ou de outra, agora a salvação é um componente

viverá ao fogo, ao passo que a de outros será

indispensável da armadura do cristão.

totalmente queimada. A respeito desses, Paulo

A atitude do apóstolo com respeito à salvação

afirma: “ Será salvo, como alguém que passa pelo

de Israel também revela um anseio para que algo

fogo” (ICo 3.15). Aqui Paulo está se referindo

aconteça. Ele fala da atitude amorosa e bondosa

aos crentes e mostrando a diferença entre os que

que tem para com sua nação e acrescenta que

construíram bem e os que construíram mal. Mas

está orando pela salvação de seu povo (Rm 10.1).

todos os que construíram sobre o alicerce que

1 184

Sa lva ç ão hi: A to s , H ebreus, C aptas G erais , A pocalipse

Cristo lançou serão salvos. É evidente que aí se

isso, porém é mais que isso. Envolve inteireza,

está falando da salvação futura.

bem-estar total, saúde, bondade, daí a afirmação

Ao falar do “homem do pecado”, que surgirá

de Paulo de que Cristo “nos tirou do domínio das

no final dos tempos, Paulo diz que o Senhor Jesus

trevas” , com a observação “... e nos transportou

destruirá esse ímpio e que esse ser maligno agirá

para o reino do seu Filho amado” (Cl 1.13).

“com todo 0 engano da injustiça para os que pe­ recem, pois rejeitaram amar a verdade para serem

Ver também

c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ; C r is t o , m o r te

d e; e s c a t o lo g ia ; I s r a e l; ju s tific a ç ã o .

salvos” (2Ts 2.10]. Sem dúvida, é uma maneira

D P c: c ó l e r a , d e s t r u i ç ã o ; e s p e r a n ç a ; g e n t i o s ; g r a ­

incomum de se expressar, mas nos lembra que “o

ç a ; p a z, r e c o n c i l i a ç ã o ; r e s t a u r a ç ã o d e I s r a e l ; S a lv a ­

amor à verdade” é importante. Até os últimos dias,

d o r; tr iu n fo ;

UNIVERSAUSMO.

as pessoas perecerão por não amarem a verdade. Paulo aguarda o dia em que “o Senhor me le­

B i b l i o g r a f i a . F o e r s t e r , W . & F o h r e r , G . ctüÇü) k t A .

vará [lit., “salvará”] para o seu reino celestial”

TDNT. [ S . l . : S .n .,

(2Tm 4.18]. Essa também é a implicação da ideia

M .

s.d.] v. 7, p. 965-1024.

• G reen ,

E.

B. The meaning o f salvation. London: Hodder

de que os justificados serão “por ele salvos da

& Stoughton, 1965. •

ira” (Rm 5.9]. Existe uma dimensão futura na sal­

salvation. London:

vação, e que é importante, pois Paulo afirma que

Philippians. Waco: Word, 1983.

H a u g h to n ,

R. The drama of

1976. ■ H a w t h o r n e ,

s p ck ,

(w b c ,

G.

43.) •

F.

H ill,

no fim os pecadores enfrentarão a ira de Deus.

D. Greek words and Hebrew meanings: studies in

Mas existe o livramento final para os que hoje

the semantics of soteriological terms. Cambridge:

depositam sua confiança em Deus. Paulo cita o

Cambridge University Press, 1967.

profeta Joel quando fala da certeza de que “todo

L ie fe ld ,

W.

L. Salvation,

5.) ■

[sntsm s,

[S.l.: s.n., s.d.] v.

isbe.

aquele que invocar o nome do Senhor será sal­

4, p. 287-95. ■

vo” (Rm 10.13]. “Invocar” não significa clamar

experience o f forgiveness. London: Nisbet, 1927.

de forma superficial, como alguém que simples­



mente deseja evitar as consequências pessoais do

1956. ■ S c o t t , C. A. A. Christianity according to

pecado. Aqui “invocar” tem o sentido de um cla­

St. Paul. Cambridge: Cambridge University Press,

N e w b ig in ,

M a c k in to s h , H .

R. The Christian

L. Sin and salvation. London:

mor genuíno ao Senhor, que é fruto da convicção

1927. ■ W

de que Deus pode salvar e assim o fará, e aquele

thy & Titus. Waco: Word, 1973.

a rd ,

scm ,

R. A. Commentary on 1 & 2 Timo­

que invoca está desesperadamente necessitado.

L.

M o r r is

Com base nesses fatos, vemos que “salvação” é termo abrangente e inclui uma multiplicidade

Salvação

de aspectos — às vezes mais de um aspecto con-

C artas G

iii:

A

e r a is ,

tos,

A

H

ebreus,

p o c a l ip s e

comitantemente, como na declaração do apóstolo

0 substantivo “salvação”

de que Cristo nos livrou e nos livrará “de tão hor­

mente associado ao verbo “ salvar”

rível perigo de morte”. Ele acrescenta que Cristo

forma indireta, ao substantivo “ salvador”

é aquele “ que esperamos, e ele ainda nos livra­

Tanto na l x x quanto no grego secular, as duas pri­

rá” (2Co 1.10). Para Paulo, era importante que

meiras palavras estão associadas à noção de livra­

os pecadores ficassem livres da condenação da

mento físico (e.g., dos perigos, das enfermidades,

qual eram merecedores por causa do pecado. 0

da morte). “Salvador” , contudo, tem origem no

apóstolo também destaca a ju stificação, o proces­

vocabulário do culto aos governantes nos reinos

[s õ t ê r i a ]

está direta­ [s õ z õ ]

e, de

[s õ tê r ].

so de absolvição em que os crentes se encontram

greco-romanos da era do

no banco dos réus da justiça de Deus, mas tam­

crição de Priene encontrada na Ásia Menor, “Pro­

bém menciona o poder do

na vida

vidência [...] nos enviou [...] um salvador [...]

do crente hoje. A salvação permite um triunfo

que acabou com a guerra [...] César [Augusto]”

E s p ír it o S a n t o

n t.

De acordo com a ins­

contínuo sobre as forças do mal, e Paulo aguar­

(S p ic q , v .

da 0 final desta era, na certeza de que a salva­

de palavras é apropriado para transmitir a noção

ção produzirá efeitos por toda a eternidade. Não

metafórica de salvação escatológica. 0 título s õ tê r

devemos pensar na salvação apenas como algo

é aplicado tanto a

negativo, como “livramento de...” Ela também é

ele enviou ao mundo para salvar a humanidade.

1 185

3, p. 353). Em todo o

D eu s

n t,

esse grupo

Pai quanto ao

F ilh o

que

bALVAÇAO i i i : ATOS, HEBREUS, CARTAS IjERA IS, APOCALIPSE

Em resumo, com base nos ministérios dos

1. Atos dos Apóstolos

apóstolos Pedro e Paulo em Atos, ficamos saben­

2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse

do que a salvação cumpre a profecia do

at.

Ela se

1. Atos dos Apóstolos

tornou uma realidade presente, porém exclusiva,

Pode ser vista em várias passagens a ideia básica

mediante a morte pelos pecados e a ressurreição

de livramento físico da enfermidade e da morte

dentre os mortos de Jesus de Nazaré, o descen­

(At 4.9; 14.9; 7.25).

dente de Davi, sendo recebida quando se aceita a

No entanto, a ideia mais presente é metafóri­

mensagem apostóhca.

ca e aplicada à salvação escatológica. Isso ocor­ re no início da narrativa, no dia de Pentecostes,

2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse

quando, em face da vinda do Espírito Santo, Pedro

2.1 Hebreus. Na Carta aos Hebreus, encontramos

cita Joel 2.32

“Todo aquele que invocar o

algumas referências à salvação física, isto é, em

será salvo”. A chegada do Espírito

relação à morte (Hb 5.7) e ao Dilúvio (Hb 11.7).

é prova de que o Senhor, sem experimentar a de­

De acordo com Hebreus, a salvação escatológica

composição da morte, ressuscitou e ascendeu aos

pertence ao futuro (Hb 1.14), por ocasião da apa­

nome do

(lx x ):

Senhor

céus, e prova também de que a porta da salvação,

rição do

como anunciada pelos profetas, agora está aber­

consiste na expectativa ativa da salvação, uma es­

ta. Por isso, a exortação de Pedro a seus ouvintes

perança que, de modo incessante, a despeito das

F ilh o d e D eu s

(Hb 9.28). Em Hebreus, a fé

foi: “Salvai-vos”; e todos os dias “ o Senhor lhes

dificuldades, avança para a salvação (Hb 11.1-40,

acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos”

passim). Essa fé é exercida em obediência às boas-

(At 2.40,47). Pedro deixa claro que só em Jesus

novas, à salvação auspiciosa (Hb 2.3; 4.1-6). Essa

Cristo de Nazaré, crucificado e ressuscitado, é que

salvação é encontrada na presença do Deus que é

se pode encontrar salvação (At 4.12). Ele é o Sal­

santo, presença essa à qual o Filho encarnado de

vador a quem Deus exaltou à sua direita (At 5.31).

Deus já chegou em virtude de sua fé e obediência.

Contra os que afirmavam que a circuncisão era

Dessa maneira, ele é o “precursor” (gr., archêgos\

pré-requisito para a salvação, Pedro declara que

“Autor”) de seu povo, o exemplo de perseverança

tanto gentios quanto judeus serão salvos “pela gra­

e obediência que deve ser seguido no caminho da

ça do Senhor Jesus” (At 15.1,11). A palavra apos­

salvação de Deus (Hb 12.2). Apesar disso, o aces­

tólica é 0 anúncio, mas também, como entendido

so a essa salvação não é por esforço próprio, mas

pelos ouvintes, o meio de salvação (At 11.14).

por meio daquele que é “sacerdote para sempre,

Na segunda parte de Atos, Paulo, falando

segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 7.17).

como judeu aos ouvintes de uma sinagoga, decla­

Ele é a “fonte” (Hb 5.9) da salvação eterna para

ra que “ foi a nós que a palavra desta salvação foi

todos os que lhe obedecem, tendo oferecido de

enviada”. São as boas notícias sobre um descen­

uma vez para sempre um único sacrifício pelos

dente do rei Davi, Jesus, a quem Deus enviou a

pecados (Hb 10.12).

Is ra e l

2.2

como “Salvador” , e a quem Deus ressus­

Tiago. Na Carta de Tiago, apenas o verbo

citou antes que ele experimentasse a decompo­

“ salvar” é utilizado. É a alma que é salva, e salva

sição do túmulo (At 13.26,23,30-41). Mas essa

da morte e da destruição (Tg 1.21; 4.12; 5.20). As­

mensagem, rejeitada por aqueles judeus, também

sim, a salvação é escatológica. De acordo com Tia­

era para os gentios. Aliás, Deus havia designado

go, é o Legislador e Juiz (i.e.. Deus) quem pode ao

Paulo para ser “luz dos gentios” (At 13.47). Pode

mesmo tempo “salvar e destruir” (Tg 4.12). Mes­

se ver a ênfase que Paulo dá à salvação no epi­

mo assim, o Senhor, isto é, o Senhor Jesus Cristo,

sódio da jovem adivinha de Filipos, que ficava

que há de vir (Tg 5.7), ressuscitará aquele que faz

repetindo a mensagem: “ Estes homens [...] vos

a oração da fé, um duplo sentido intencional que

anunciam o caminho da salvação” (At 16.17).

aponta tanto para a cura física quanto para a

Isso é confirmado pela pergunta do carcereiro

s u r r e iç ã o

res­

final (Tg 5.15). Então, de acordo com Tia­

“ Senhores, que preciso fazer para ser salvo?”, a

go, como alguém é salvo? Mediante uma fé viva,

que Paulo respondeu: “ Crê no Senhor Jesus, e tu

autenticada por obras — uma fé vazia ou hipócrita

e tua casa sereis salvos” (At 16.30,31).

não salvará (Tg 2.14).

1 186

Salvo ç âo

2.3



; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e

IPedw, 2Pedro e Judas. A terminologia como era costume na época. Jesus Cristo é o

em torno da salvação é importante em IPedro.

verdadeiro Salvador, e essa possibilidade é re­

Essa salvação é uma realidade presente em Jesus

forçada pelo fato de Pedro relacionar “ Salvador”

Cristo, que foi predestinado antes da fundação do

entre outros títulos imperais: “Deus” e “ Senhor”

mundo, mas só se manifestou no fim dos tempos

(2Pe 1.1,11; 2.20; 3.2,18). Em contraste com os

(IPe 1.20), que “levou nossos pecados em seu cor­

governantes vaidosos e maus, Jesus é Deus, Se­

po sobre o madeiro” e foi ressuscitado dentre os

nhor e Salvador, por meio de quem nos livramos

mortos como “uma viva esperança [de salvação]”

“da corrupção que há no mundo” e nos tornamos

(IPe 2.24; 1.3). Por meio da pregação das boas-

“participantes da natureza divina” (2Pe 1.4). Isso

novas do evangelho, entra-se agora nessa salva­

é salvação, que nos é concedida mediante “ suas

ção, que está “preparada para se revelar no último

preciosas e mais sublimes promessas” (2Pe 1.4).

tempo” (IPe 1.5). O

que é uma resposta

Diferindo de 2Pedro, Judas aphca o títu­

ao evangelho, “salva”, embora não pela água, mas

lo “Salvador” ao “único Deus, nosso Salvador”

b a t is m o ,

pela reaUdade interior de uma consciência purifi­

(Jd 25). Assim, deve se atribuir a “salvação que

cada em um relacionamento com o Deus santo, o

nos é comum” a Deus, que salvou um povo, ti-

que ocorre por meio da ressurreição de Jesus den­

rando-o do Egito. A alternativa para essa salvação

tre 03 mortos (IPe 3.21). Naquilo em que ainda

é o castigo do “fogo eterno” no “juízo do grande

não foi revelado, essa salvação é o alvo ou o final

dia” (Jd 5-7). Por isso. Judas adverte: “ Salvai-os,

da fé (IPe 1.9), uma salvação para a qual os “be­

arrebatando-os do fogo” (Jd 23).

bês recém-nascidos” são alimentados com “o puro leite espiritual” do evangelho (IPe 2.2).

2.4 JoAo,

Escritos joaninos. As cartas de João (v.

CARTAS

de)

contêm apenas um exemplo desse

Existe uma alternativa para essa salvação es­

grupo de palavras: “O Pai enviou seu Filho como

catológica. É o juízo dos vivos e dos mortos execu­

Salvador do mundo” (IJo 4.14; cf. Jo 4.42). Em

tado por Deus, que é santo (IPe 4.5; 1.15), contra

uma passagem paralela, fica claro o significado

os “ desejos [...] [da] ignorância” (IPe 1.14; 4.2).

do vocábulo em João: “Deus [...] enviou seu Filho

Citando Provérbios 11.31 ( lxx ) , Pedro indaga: “ Se

como propiciação [hilasmos] pelos nossos peca­

para o justo é difícil ser salvo, onde comparecerá

dos” (IJo 4.10; cf. IJo 2.2). 0 Filho de Deus, Jesus

0 ímpio pecador?” (IPe 4.18).

Cristo, o Justo, é o Salvador, porque por meio de

Só uma vez em 2Pedro o tema aparece:

sua morte ele aplacou a ira de Deus contra os pe­

“ Considerai como salvação a paciência de nos­

cados, ou seja, cobriu os pecados (cf. Rm 3.25). 0

so Senhor” (2Pe 3.15). Aqui Pedro faz alusão ã

acesso a essa salvação se dá por meio da procla­

salvação acerca da qual seu “amado irmão Paulo”

mação apostólica da mensagem da encarnação e

escreveu (em Rm 2.4?), “a exemplo do que faz em

morte do Filho de Deus (IJo 1.2,3; 2.1,2).

todas as suas cartas”. Pedro reconhece a impor­

Em Apocalipse, a salvação pertence a Deus,

tância da salvação nos escritos do apóstolo Paulo.

“ que está assentado no trono” da história e cujos

Em um contexto que trata da vinda repentina e

juízos são “verdadeiros e justos” (Ap 7.10; 19.2).

não anunciada do dia do Senhor e do julgamento

No mesmo trono com Deus, está o Cordeiro

que ocorrerá nesse dia, Pedro ensina que o fato

(Ap 7.10; 19.1), uma indicação da soberania di­

de Deus adiar a salvação é manifestação da paci­

vina do Cordeiro (cf. Ap 4.11; 5.1-5,7,13). Em­

ência divina, dando espaço e oportunidade para

bora 0 interesse de Apocalipse seja o desenrolar

que as pessoas encontrem salvação.

e a revelação que conduz a história ã conclusão

A Segunda Carta de Pedro, à semelhança das

apocalíptica preparada por Deus (Ap 16—22), a

Cartas Pastorais, caracteriza-se por várias referên­

história e sua consumação são apresentadas ã

cias ao “ Salvador”. Contudo, diferentemente das

luz da salvação, que é uma realidade presente. 0

Pastorais, em que tanto Deus quanto o Senhor

presente e o futuro, que são terríveis por sua mal­

Jesus Cristo são chamados “Salvador” ou “nos­

dade, revelam-se por causa da salvação divina

so Salvador” , 2Pedro restringe essas expressões a

já concluída na morte e na ressurreição do Cor­

Jesus Cristo, talvez com o propósito de refutar a

deiro (Ap 5.7-13). “Agora chegaram a salvação

aplicação do mesmo título ao imperador romano,

[...] do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo”

1 187

(Ap 12.10). Assim, embora pareça o contrário, o

e, depois, os Evangehstas empregaram esse ter­

“reino do mundo passou a ser de nosso Senlror

mo ou seu equivalente aramaico para dizer algo

e de seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos

essencial ou mesmo excepcional sobre a persona­

séculos” (Ap 11.15; cf. Ap 1.6; 2.8). Os que se­

gem central da fé cristã, e verificarmos também

guem o “Cordeiro” , tanto no testemunho fiel que

como vieram a fazê-lo.

ele deu quanto em pureza de vida (Ap 14.3-5),

1. No grego

já possuem essa salvação, já começaram a rei­

2. Antecedentes judaicos

nar com Cristo, como reino e sacerdotes de Deus

3. A origem do uso do kyrios cristão

(Ap 1.6; 20.4,6), e não estarão sujeitos à “ segun­

4. Jesus como Kyrios

da morte” (Ap 2.11; 21.7).

5. Kyrios nos Evangelhos 6. Conclusão

Nas Cartas Gerais e em Apocahpse, a salvação é quase sempre escatológica em sua concretiza­ ção, uma realidade presente em Jesus Cristo, que

1. No grego

cumpre as expectativas do

Na época do

e se torna disponí­

at

n t

.

o termo kyrios foi empregado em

vel mediante a Palavra de Deus. A Carta de Tiago

contextos rehgiosos e seculares. Por um lado. re­

não trata da salvação no que diz respeito a sua

ligiões nacionais e de mistério, especialmente no

realidade presente ou às expectativas do Ver também de

b a t is m o

at

Oriente (i.e.. Egito. Síria. Ásia Menor, mas tam­

.

; c r is t o l o g ia ; C r is t o , m o r t e

bém Grécia e outros lugares), utilizavam o termo kyrios ou seu equivalente feminino, kyria, para

; e s c a t o l o g ia ; j u s t iç a / r e t id ã o .

se referir a deuses ou deusas, como ísis. Serápis BiBLiOGRAnA.

F o e rs te r, W .

&

F oh rer,

G.

aüÇu ktA.

ou Osíris.

[S.L: s.n., s.d.] v. 7, p. 965-1003. ■ G r e e n , E.

Por exemplo, temos provas do uso do termo

B. The meaning o f salvation. London: Hodder

em um grande número de papiros e inscrições so­

& Stoughton. 1965. ■ K e l l y , J. N. D. Early Chris­

bre Serápis. É o que se vê, por exemplo, na carta

tian doctrines. London: Black, 1980. ■ M

c G ra th ,

de Apião. soldado da marinha romana, escrita a

A. Christian theology: an introduction. Oxford:

seu pai no século ii d.C.: “Agradeço ao Senhor Se­

Blackwell, 1994. •

rápis

TD NT. M .

I. H. Lnke: historian

M a r s h a ll,

te rso n ,

D.

G.

pois. quando enfrentei perigo no

mar. ele me salvou imediatamente”. Ou também

Hebrews and perfection. Cambridge:

em uma carta que certo Nilo escreveu a sua mãe

Cambridge University Press, 1982. R a d l , W . a ã Ç fú . E D N T. ■ S c h e lk le ,

[t õ k y r iõ ] .

Pe­

and theologian. Exeter: Paternoster, 1970. ■

K.

H.

(s n ts m s ,

47.) ■

[S.L: s.n., s.d.] v. 3, p. 319-21.

a u T T ip ia .

e d n t

.

no século II d.C.: “Todos os dias, faço intercessões a seu favor ao Senhor Serápis

[t õ k y r iõ ]”.

Nesses

[S.L: s.n., s.d.]

contextos, o termo kyrios tem a conotação de di­

C. Theological lexicon of

vindade que pode responder às orações e mere­

the New Testament. Peabody: Hendrickson, 1994.

ce gratidão pela ajuda divina. Essa evolução no

V. 3. p. 344-57. •

sentido da palavra parece ir além do emprego de

V. 3, p. 327-9. ■

S p ic q ,

T h ro c k m o rto n ,

CTUTripia in Luke-Acts.

se,

B. H. IíôÇeiv

kyrios no período grego clássico, em que o termo

v. 6. p. 515-26. 1973. P. W . B a r n e tt

Ver

Salvad o r. S A N T A C E IA . s a n t id a d e

salvação

Ver c E iA

de

s e g r e d o m e s s iâ n ic o

.

parece ter sido título divino (cf.

DO S e n h o r ; a d o r a ç ã o / c u l t o .

Ver

D eus.

Ver

se referia ao grande poder de um deus sobre uma pessoa ou grupo de pessoas, mas ainda não nos

.

P latão ,

D eus i .

P in d a r ,

It ,

5.53;

Le, 12.13).

Tendo em vista nosso propósito aqui, é igual­

M arco s, E van g elh o d e .

mente importante o fato de que já na época de Senhor

i:

Nero 0 imperador romano era chamado kyrios

E vangelh o s

0 termo kyrios ( “Senhor”), que para a igreja pri­

no sentido de divindade. Contudo, embora fosse

mitiva se tornou a confissão cristã central sobre

divinizado, sabia-se também que ele era um ser

Jesus (cL Rm 10.9; ICo 12.3; Fp 2.11), era de sig­

humano. Por exemplo, em um óstraco com data

nificado bastante amplo na Antiguidade. É neces­

de 4 de agosto de 63 d.C., lemos: “ No nono ano

sário explorar alguns desses significados antes de

de Nero, o Senhor [tou kyrion]". Entretanto, já

verificarmos se Jesus, os primeiríssimos cristãos

antes dessa época, na região oriental do império

1 188

Senhor

Evan g elho s

e no Egito, o imperador era chamado kyrios em

0 em p reg o de

sentido não simplesmente humano. Por exemplo,

kyrie — já

o papiro 1143 de Oxirrinco, com data de 1 d.C.,

d is c íp u lo s m a is ín t i m o s d e

fala de sacrifícios e libações “ao Deus e Senhor

n i f i c a d o m a is p r o f u n d o q u e a m e r a f o r m a r e s p e i ­

Imperador [Augusto]”. Mesmo em 12 a.C., temos

t o s a d e t r a t a m e n t o (v . V erm es, p .

[b g u ,

1197, 1, 15).

o e q u i v a l e n t e a r a m a ic o d e

e s t iv e s s e , p e l o m e n o s n o c ír c u lo d o s

Jesus,

a s s u m in d o s i g ­

109-15).

Talvez haja uma distinção entre o termo kyrios

uma inscrição dedicada a Augusto, em que este é chamado theos kai kyrios, “Deus e Senhor”

mãri —

i:

e seu quase sinônimo despotês. Este dava a ideia de arbitrariedade, enquanto aquele tinha a conotação

Como defende Deissmann (p. 349-51) já há

de autoridade legítima (cf.

B ie t e n h a r d ,

p. 510).

bastante tempo, é bem provável que a igreja pri­

Com base nesses exemplos, podemos obser­

mitiva tenha deliberadamente atribuído a Jesus

var imediatamente o alcance de uso do termo

títulos usados em referência ao imperador. Nas

kyrios na hteratura grega. Pode ter perfeitamen­

comunidades pauhnas, o significado do termo,

te um sentido não rehgioso e assim designar o

a saber, ser divino absoluto a quem uma pessoa

senhor ou proprietário de escravos ou de algum

pertence e deve lealdade e submissão absolutas,

tipo de bens, como as pessoas da casa ou um ne­

torna-se ainda mais evidente à luz da maneira em

gócio. No vocativo, o termo também podia ser

que Paulo fala de si mesmo. Para se referir a sua

usado como forma respeitosa de se dirigir a al­

relação com Jesus, o Senhor, Paulo diz que ele e

guém, em particular um superior que não era o

outros são douloi, “escravos” (Rm 1.1; 13.4). É

dono ou o patrão, tornando-se tão convencional

possível fazer distinção entre esse termo e mis-

que raramente significava algo mais que a for­

thios ou diakonos, empregados para designar ser­

ma de tratamento “Prezado senhor...” das cartas

vos contratados e com certos direitos e privilégios.

de hoje. No entanto, no início do século i a.C.,

O doulos que servia a um kyrios não era livre, mas

pelo menos na região oriental do império, o ter­

propriedade de seu senhor. Em várias religiões

mo kyrios, no sentído de divindade, era aphcado

orientais, essa era a terminologia normal para

não apenas a deuses mitológicos, como Serápis

expressar a relação do adepto com a divindade.

ou Osíris, mas também a um ser humano em

Não resta dúvida de que, de forma bastante signi­

particular: o imperador romano. Nesse contexto,

ficativa, essa conotação teve origem no emprego

é compreensível que Paulo tenha dito que havia

mais comum na instituição da escravidão. No gre­

muitos denominados “ deuses” e “ senhores” , em­

go clássico e no grego coiné, o termo kyrios tinha

bora para os cristãos houvesse apenas um único

sentido geral e não religioso de “senhor” ou “pro­

Senhor: Jesus Cristo (ICo 8.5,6). Por causa do

prietário” de algum bem, até mesmo de pessoas.

uso de kyrios nesses sentidos mais religiosos, W.

Em geral, o vocativo kyrie era simplesmente

Bousset entende que o título “Senhor” só foi aph-

uma forma educada de se dirigir a alguém, como

cado a Jesus depois que o cristíanismo chegou a

também ocorre em nosso idioma. Nesse sentido,

um ambiente preponderantemente grego ou he­

0 termo se destaca não apenas na literatura grega

lenístico, mesmo assim sob a influência do uso

secular, mas também ocorre em várias passagens

pagão. Pela anáhse do uso judaico de kyrios e de

do

seus cognatos aramaicos, é possível demonstrar

N T.

Por exemplo, em Atos 9.5 (par.), Paulo utí-

liza o termo kyrie para se dirigir ao Jesus celeste.

que essa conclusão é incorreta.

Uma vez que ele não sabe quem está falando, é improvável que nesse caso o termo tenha outro

2. Antecedentes judaicos

sentído além do vocatívo. Em Marcos 7.28, en­

Na LXX, 0 termo kyrios ocorre mais de 9 mil vezes,

contramos outra ocorrência de kyrie que com toda

e em 6.156 delas é utihzado em lugar do nome

probabilidade revela uma forma respeitosa de tra­

próprio de Deus: Yahweh ou Javé. Não chega a

tamento, não um reconhecimento de divindade. A

ser uma tradução do nome Javé, e sim um cir­

passagem de Lucas 6.46 parece transmitir a ideia

cunlóquio com o objetivo de evitar pronunciar o

de que é incoerente dirigir-se a Jesus de forma

tetragrama sagrado. Todavia, não há certeza de

respeitosa como um grande mestre sem também

que em todos os casos os compiladores originais

fazer o que ele ordena. Mas não é impossível que

da LXX traduziram o tetragrama por kyrios. Alguns

1 189

it N H U K I. C V A N btLH U b

manuscritos trazem o liebraico yhwh em algumas

temos mãrêh como tradução da palavra hebraica

passagens do texto grego, e pelo menos um ma­

shadday (“todo-poderoso”). Também existem al­

nuscrito da LXX utiliza iao em vez de kyrios para

guns fragmentos da literatura de Enoque prove­

representar o tetragrama. As cópias da lx x que

niente da caverna 4, em que mãrêh ou mãran são

trazem kyrios em lugar de yhwh são do século

usados para designar Deus (cf. lEn, 89.31-36), e

IV d.C. em diante e parecem cópias modificadas

a versão grega traz ho kyrios. Outras evidências

por cristãos. Entretanto, J. A. Fitzmyer demons­

importantes procedem do templo descoberto em

tra que no início os judeus usavam, sim, o grego

Gaza, chamado Marneum, em que se adorava um

kyrios, bem como adôn ou mãrêh, para se referir

deus de nome Mãr

(J o h n s o n ,

p. 151).

a Javé; por isso, não é impossível que os judeus

L. W. Hurtado (1988) reuniu material que de­

cristãos primitivos tenham transferido o título de

monstra a natureza complexa do início do pen­

Javé para Jesus

1979, p. 115-42; 1981,

samento judaico a respeito de assuntos como os

p. 218-35). Mas não podemos dizer com segu­

agentes divinos. Segundo ele demonstra, existem

rança que isso aconteceu por influência da lx x. É

fartas evidências de que no início do judaísmo o

possível encontrar exemplos de kyrios para desig­

conceito judaico do caráter único de Deus podia

( F it z m y e r ,

nar Javé não só em Josefo e em Filo, mas também

coexistir com a ideia de que Deus podia conferir

na remota época da redação de Sabedoria de Sa­

um lugar e um papel únicos a uma personagem

lomão (27x; cf. Sb 1.1,7,9; 2.13). Especialmente

ou agente celestial. Isso incluía a ideia de que os

significativa é a observação, feita por Josefo, de

patriarcas exahados (e.g., Enoque e Moisés) e os

que os antigos judeus se recusavam a chamar o

principais anjos (e.g., Miguel) podiam, com au­

imperador de kyrios justamente porque consi­

toridade e poder divinos, falar e agir em nome

deravam kyrios um nome reservado para Deus

de Deus. Essa informação é importante, porque

(J o se f o ,

Guju, 7.10.1, § 418-9).

emprego de kyrios na

revela um contexto mais amplo da agência divi­ e em outros tex­

na no início do judaísmo no qual até mesmo os

tos do início do judaísmo para traduzir a palavra

primeiros cristãos judeus podiam entender Jesus.

0

u íx

hebraica ’ãdôn é uma tradução literal, não um circunlóquio. Na lx x , ’ãdôn é traduzido por kyrios

3. A origem do uso do kyrios cristão

cerca de 190 vezes e se refere a homens que, em

Evidências aramaicas de particular importân­

algum sentido, eram senhores ou comandantes.

cia para nosso estudo podem ser encontradas

Aliás, há indícios de que nos manuscritos bíbli­

em ICorintios 16.22 e no que é provavelmente

cos hebraicos de Qumran ’ãdônay era usado como

a mais antiga das obras cristãs extracanônicas: a

substituto de yhwh. É igualmente interessante o

Didaquê (cf. Di, 10.6). Nessa obra, os mais anti­

emprego de 'ãdônay em orações invocatórias em

gos cristãos de fala aramaica chamam Jesus de

Qumran (cf. IQM 12.8,18; IQ 34).

Senhor, empregando a expressão maran atha ou,

É possível ver o uso do aramaico mãrêh em

mais provavelmente, marana tha (cf. Ap 22.20,

referência a Deus como Senhor já em Daniel

provavelmente uma tradução grega dessa ex­

2.47 e 5.23, embora nesses textos o termo ainda

pressão, e o texto deixa claro que é Jesus quem

não seja utihzado como título em sentido abso­

se tinha em mente, fato também evidente em

luto. Gênesis apócrifo (IQapGen) contém algo

ICo 16.22,23). Existem três maneiras possíveis

diferente. Esse documento de Qumran data pro­

de traduzir marana tha: 1) “venha. Senhor”; 2)

vavelmente por volta da virada da era cristã, e

“ nosso Senhor veio”; 3) até mesmo um pretérito

nele Deus é chamado mãri ("meu Senhor”) — o

profético — “ o Senhor virá”. Qualquer que seja

único caso conhecido no aramaico. Entretanto, é

a tradução que se escolha (e a primeira parece a

bem comum encontrar o emprego mais munda­

mais provável, principalmente tendo-se em vista

no de mãri por parte de uma esposa ou de um

Ap 22.20), alguém que morreu está sendo chama­

empregado em referência ao marido ou ao che­

do de Senhor. Uma vez que a primeira tradução é

fe da casa. Mãr é a palavra aramaica que tem o

a mais provável, vale repetir a observação perspi­

sentido de “senhor” , mas quase sempre aparece

caz de C. F. D. Moule (p. 41): “Além do mais, ain­

com algum sufixo. No Targum de Jó (llQtgJob),

da que 'nosso Senhor’ não seja de modo algum

1 190

S enhor

i

: Ev a n g e l h o s

0 mesmo que ‘o Senhor’ e ainda que o aramaico

uma ordem real de Jesus, é presumível que seja

mãrêh tivesse sido usado na maioria das vezes em

uma tradução do aramaico mãrêh. Existem vá­

referência a seres humanos, não a Deus (no que

rias formas de entender esse texto. Mesmo que

vimos motivo para questionar), ninguém pede a

de fato tenha sido parte de uma frase de Jesus,

vinda de um simples rabino depois de sua morte.

aqui mãrêh pode se referir ao proprietário ou ao

Caso tenha o sentido de ‘vem, nosso Mestre!’ , a

senhor, o que não deixaria nada implícito sobre

expressão toda — Mamnatha — estaria fadada

a condição divina de Jesus. Alguns comentaris­

a exprimir nuanças transcendentais, mesmo que

tas argumentam que Jesus era o proprietário do

em si 0 termo mãran não exprima isso”.

animal (o que o texto não insinua) ou que o pro­

Não está totalmente claro se marana tha era

prietário do animal estava com Jesus e já lhe ha­

empregado para invocar a presença de Cristo na

via emprestado o animal. A líltima interpretação

adoração ou se era uma oração que expressava

também não encontra no texto indícios que lhe

0 desejo de que Cristo retornasse dos céus. En­

deem credibilidade. É mais provável que o sen­

tretanto, com base nos fortes indícios de que,

tido aqui seja semelhante ao de Marcos 14.14,

durante a época de Paulo e provavelmente antes

em que se relata o seguinte acerca de Jesus: “ 0

(i.e., os mais antigos cristãos judeus), os cris­

Mestre manda perguntar: Onde está o meu apo­

tãos judeus de fala aramaica chamavam Jesus

sento?”. Nesse caso, “ Senhor” talvez não seja

de "Senhor” ou pelo menos de "nosso Senhor” ,

mais que uma forma respeitosa de se referir a um

devemos rejeitar o raciocínio de Bousset de que

mestre, como quando se diz que alguém é mestre

o título cristológico kyrios teve origem na missão

em determinada área ou assunto. Aliás, o texto

helenística da igreja primitiva.

dá a entender alguém que reconhecidamente de­

É notável que Paulo, na década de 50 do sé­ culo

tém autoridade para dar ordens ou exigir certas

tenha escrito a cristãos de fala grega que

coisas das pessoas, sejam ou não discípulos. Não

provavelmente não conheciam o aramaico e nâo

está claro se esse emprego de mãrêh tem maiores

se deu o trabalho de traduzir marana tha. Com

implicações.

I,

certeza, isso quer dizer que ele pressupunha

Em várias passagens do quarto Evangelho, é

que eles entendiam o significado da expressão.

possível encontrar apoio para essa ideia. Aqui en­

Assim, é possível que em determinada época a

contramos justapostos os dois termos: “Mestre” e

expressão fosse uma invocação usada pelos cris­

“Senhor” (Jo 13.1-16). Deve se ressaltar também

tãos. Portanto, o apóstolo não via nenhuma ne­

que no antiquíssimo relato da ressurreição, em

cessidade de explicá-la ou traduzi-la. As origens

João 20, encontramos Maria Madalena chamando

do uso cristão do termo “ Senhor” para designar

seu falecido mestre de “meu Senhor” (Jo 20.13),

a Jesus devem remontar pelo menos aos cristãos

e, quando ela reconhece a voz de Jesus falando a

judeus mais antigos, de fala aramaica. Seria pos­

ela, ouvimos a exclamação “Raboni!” (Jo 20.16),

sível estabelecer uma origem ainda mais remota?

a qual o texto explica ter o significado de “Mes­ tre”. Essa passagem parece mostrar também que,

4. Jesus como Kyrios

durante seu ministério, Jesus foi chamado não

Ao que parece, vários textos remontam ao con­

apenas de rabbi ou rabbâni, mas provavelmente

texto histórico da vida de Jesus. Por isso, é na­

recebeu o tratamento respeitoso de mãrêh, dan­

tural indagarmos se Jesus foi chamado “Senhor”

do a entender que Jesus era um grande mestre e

durante seu ministério, e em que sentido. Já tra­

exercia autoridade sobre seus discípulos. É nes­

tamos de textos em que o vocativo kyrie foi utili­

se sentido que os discípulos viam Jesus como

zado e não tornaremos a eles aqui, pois em quase

Mestre. Outra evidência que talvez apoie essa

nada nos ajudam. De maior importância pode ser

linha de raciocínio é a ideia de escravo e senhor

um texto como Marcos 11.3, no qual Jesus orde­

(Jo 15.15,20) ao mencionar o relacionamento en­

na aos discípulos que lhe busquem um jumento,

tre Jesus e seus discípulos.

para que possa seguir montado até Jerusalém, e

Para nossa análise, uma passagem de funda­

digam a quem os questione: “ 0 Senhor precisa

mental importância é Marcos 12.35-37, que cita

dele”. O grego traz ho kyrios, e, caso remonte a

Salmos 110.1: “ O Senhor disse ao meu Senhor:

1191

ÍENHÜR I: CVANbtLHUb

a descoberto a futilidade de esperanças mes­

Assenta-te à minha direita”. Na sequência, Jesus indaga: “Se o próprio Davi o chama Senhor, como

siânicas que se limitam ao plano terreno e

ele pode ser seu filho?”. Não se deve rejeitar sem

humano [...]. 0 caráter alusivo da declaração

mais nem menos esse texto, sob a alegação de que

favorece a ideia de que [o segredo] é do pró­

ele reflete a teologia posterior da igreja primitiva,

prio Jesus, em parte escondendo e em parte

especialmente por existir um grande número de

revelando o “ segredo messiânico” , o que insi­

indícios de que Jesus contemplava a si mesmo sob

nua, mas não declara, a reivindicação de que

a ótica messiânica e, pelo menos indiretamente,

Jesus é de dignidade e origem sobrenaturais e

W it h e r i n g t o n ,

que sua condição de Filho nâo é uma simples

1990). Parece que Marcos 12.35-37 reflete justa­

questão de ascendência humana. É difícil ima­

mente a forma alusiva ou indireta que Jesus pa­

ginar que se pudessem exprimir dessa maneira

rece ter usado em público para indicar como ele

as crenças doutrinárias de uma comunidade.

via a si mesmo. Seu método era fazer alusões à

0 objetivo de uma declaração doutrinária é

fazia reivindicações messiânicas (v.

própria importância, para assim induzir seu púbU­

que ela seja entendida, ao passo que o pro­

co a refletir com cuidado e em profundidade acer­

pósito do que ele diz é desafiar à reflexão e

ca desse assunto fundamental. Aqui a forma de

à decisão. Essa é a maneira típica de Jesus se

ensino é característica dos mestres do judaísmo

expressar, como se percebe na mensagem que

em seus primórdios. Tomando um texto intrigan­

envia a João Batista (Lc 7.22s). Mas é possível

te como ponto de partida, ele faziam perguntas a

demonstrar que esse nâo é o estilo nem o mé­

respeito do texto, questionando ideias erradas e

todo do cristianismo primitivo.

comuns acerca de vários assuntos — nesse caso, a natureza do Messias como

Isso significa que a proclamação de Jesus

F il h o d e D a v l

A favor da autenticidade dessa tradição, tam­

como Senhor remonta a algo que Jesus revelou

bém pesa o fato de que ela parece indicar que

sobre si mesmo, ainda que indiretamente, duran­

Jesus questiona a ideia de o Messias ser obrigato­

te seu ministério, porém nâo determina em que

riamente de origem davídica, o que a igreja primi­

momento os seguidores de Jesus compreenderam

tiva dedicou certo esforço para demonstrar (e.g.,

e começaram a, de fato, ver Jesus dessa maneira.

Mt 1.1-20; Lc 1.27; 3.23-38). Da forma que o tex­

Já assinalamos que, na melhor das hipóteses, são

to se encontra, Jesus infere que o Messias é o

praticamente inexistentes os indícios de que, du­

Senhor de Davi e nessa condição está acima de

rante 0 ministério de Jesus, seus discípulos o viam

Davi e é anterior a ele. Esse é o motivo de Jesus

como mãrê/i em sentido transcendental (Lc 6.46

perguntar por que os escribas chamam o Messias

talvez indique isso). 0 que, então, levou à confis­

“ filho de Davi”. Como Hurtado demonstra (1988,

são de Jesus como Senhor? Aqui podemos anali­

p. 41-50), nâo era incomum, no início do judaís­

sar algumas pistas, provenientes de várias fontes.

mo, que 0 conceito da preexistência fosse atribuí­ do a agentes divinos.

Para começar, existe a questão do material confessional primitivo que Paulo emprega em Ro­

Então nâo é inconcebível que Jesus aqui faça

manos 1.3,4. Esse texto dá a entender que, por

alusão a si mesmo, não só como o Messias, mas

consequência da ressurreição, Jesus assumiu no­

também como o Senhor preexistente, e que seus

vas funções, autoridade e poder. AUás, também

ouvintes assim entendessem. Merece ser citada

como resultado da ressurreição, ele recebeu o

a forma em que V. Taylor (p. 492-3) apresenta

novo título de “Filho de Deus com poder” (/ijm). Outra informação é encontrada no que talvez seja

essa ideia:

um hino cristológico, citado por Paulo em FiUpenSem dúvida, está implícito um segredo de

ses 2.5-11. Aqui ficamos sabendo que, pelo fato

Jesus a respeito de si mesmo. A forma da per­

de Jesus abrir mão da posição e das prerrogativas

gunta é determinada pela avaliação que ele

de “ ser igual a Deus” para assumir a forma não

faz do messiado incorporado nele próprio. Seu

apenas de ser humano, mas de escravo, e pelo

propósito, contudo, não é revelar esse segre­

fato de ser obediente ao plano de Deus a ponto

do, que é só dele e continua sendo, mas pôr

de morrer, ele foi exaltado e recebeu o nome que

1 192

S enho r i: Evan g elho s

está acima de todos os nomes. Jesus passa de dou­

Senhor!” A antiga lista de testemunhas encon­

los a kyrios. No contexto do liino, o nome que está

trada em ICorintios 15.5-8 revela a tendência, na

acima de todos os demais não é o nome Jesus,

igreja primitiva, de caminhar na direção oposta e

que ele já possuía, mas o nome régio que passou

afirmar a proeminência dos Doze e dos apóstolos

a ter quando assumiu as funções de divindade,

como testemunhas da ressurreição.

governando todas as coisas. Esse nome é kyrios.

Em João 20.28, encontramos outros indícios

0 texto de Atos 2.36, que talvez reflita algo da pre­

de que a experiência do Senhor ressurreto con­

gação apostólica primitiva, diz: “Toda a casa de

duziu ã plena confissão da importância de Jesus.

Israel fique absolutamente certa de que esse mes­

Nessa passagem, em um Evangelho repleto de

mo Jesus, a quem crucificastes. Deus o fez Senhor

confissões, lemos esta confissão culminante: ho

e Cristo”. Pelo fato de Lucas, em seu Evangelho,

kyrios mou kai ho theos mau ( “Senhor meu e

chamar Jesus de kyrios com toda a naturalidade,

Deus meu!”). É possível que esse material esteja

é muitíssimo improvável que o Evangelista tivesse

incluído aqui pelo fato de o Evangelista, escreven­

criado esse texto, que dá a entender — se é que

do perto do fim do século i, ter conhecimento do

não afirma — que o senhorio foi atribuído a Jesus

costume do imperador Domiciano (81-96) de em

após sua morte. Esse texto parece mostrar que es­

sua correspondência oficial se intitular dominus

ses títulos resultam do que Deus fez a Jesus após

et deus noster ( “nosso Senhor e Deus”). Talvez

a crucificação, a saber, como Atos 2.32 declara:

João estivesse se opondo a esse título. Entretanto,

“Foi a este Jesus que Deus ressuscitou; e todos

mesmo que seja esse o motivo, parece óbvio que

somos testemunhas disso”.

o apóstolo deseja dizer a seus destinatários que a

Outra pista é encontrada em João 20.18, que

verdadeira confissão de Jesus aconteceu pela pri­

parece dar como a mais antiga proclamação de fé

meira vez em razão de alguém ter visto o Senhor

após 0 domingo da ressurreição a seguinte decla­

ressuscitado — no caso, Maria Madalena e Tomé.

ração: “ Vi o Senhor [ressuscitado]!”. Em suma,

Para concluir, acrescentamos este comentário:

as informações dão a entender que a confissão “Jesus é Senhor” surgiu das experiências mais

Em vez de tentar explicar que tal evolução

antigas dos discípulos que viram o Cristo ressus­

se deve ã veneração de Jesus, explicação que

citado. Paulo deixa entrever que essa confissão

recorre a ideias vagas de empréstimos feitos

não poderia ter surgido senão depois de o Senhor

do mercado de heróis e semideuses do mun­

ter ressuscitado e o Espírito (v.

ter

do greco-romano, os estudiosos devem prestar

descido sobre os seguidores de Jesus, pois ele

mais atenção a esse tipo de experiência religio­

afirma: “Ninguém pode dizer: Jesus é Senhor! a

sa dos primeiros cristãos. É mais provável que

E s p íw t o S a n t o )

0 primeiro e principal motivo de esse agente

não ser pelo Espírito Santo” (ICo 12.3). Embora pareça que as origens liltimas da con­

preeminente e específico (Jesus) ter se tornado

fissão de que Jesus é o Senhor remontem a algo

objeto da devoção religiosa desse grupo judai­

a que Jesus fez alusão durante seu ministério, a

co (os cristãos mais antigos) é que eles tiveram

introdução formal do uso dessa confissão pelos

visões e outras experiências que revelaram o

discípulos foi a experiência com o Senhor a par­

Cristo ressuscitado e exahado e o apresentaram

tir da ressurreição e o fato de terem recebido o

com uma glória divina tão inaudita e superla­

Espírito Santo. O máximo que podemos dizer é

tiva que se sentiram obrigados a reagir dessa

que a primeira pessoa a confessar Jesus dessa

forma devocional

(H u rtad o ,

p. 121)

maneira parece ter sido aquela que pela primeira vez afirmou ter visto o Jesus ressurreto: Maria

Convicções e confissões cristológicas foram

Madalena. Levando em conta a ideia de que, no

inicialmente criadas em face da experiência do

século

havia objeções contra o testemunho de

Senhor ressuscitado e de seu Espírito. Isso nos

uma mulher, especialmente na Palestina (v. Wi-

leva a indagar como o termo kyrios veio a ser

1984), não é aceitável que a igreja

empregado pelos Evangelistas, que provavelmen­

primitiva tivesse inventado a informação de que

te compuseram seus Evangelhos na última terça

Maria Madalena foi a primeira a declarar “Vi o

parte do século i d.C.

I,

t h e r in g t o n

,

1 193

iENHOR i: tVANGELHOS

5. Kyrios nos Evangelhos

0 emprego da forma dupUcada — kyrie, kyrie —

Os Evangelhos Sinóticos, especialmente Lucas,

parece refletir um uso corrente na Palestina (cf.

contêm praticamente toda a gama de significados

Mt 7.21,22; 25.11; Lc 6.46).

do termo kyrios que analisamos aqui. Existem

Pode se usar kyrios para se referir ao senhor

717 passagens em que o termo kyrios ocorre no

ou ao dono de bens ou de uma propriedade, bem

e 210 podem ser encontradas em Lucas-Atos

como ao dono de uma vinha (Mc 12.9 e par.).

(outras 275 são encontradas em Paulo). A possí­

Já ressaltamos que Marcos 11.3 e suas passagens

vel explicação para o fato de a maioria das ocor­

paralelas provavelmente refletem o mesmo senti­

rências de kyrios se achar nos escritos de Lucas

do. Pode se usar o termo também para designar o

e de Paulo é que ambos estavam se dirigindo a

senhor de um administrador hvre (Lc 16.3; “mor­

NT,

públicos gentílicos ou pelo menos escrevendo

domo” , a r c )

para regiões onde predominava a influência da

se sempre com um possessivo, como “seu” ou

o u

um proprietário de escravos (qua­

língua e da cultura gregas. Em contraste com Lu­

“ meu”; cf. Mt 18.25; 24.45; Lc 12.37,42; 14.23).

cas, kyrios ocorre apenas 18 vezes em Marcos e

Mas não encontramos nos Evangelhos o termo

80 vezes em Mateus, ao passo que existem 52

kyrios em referência ao imperador ou a quaisquer

casos no quarto Evangelho.

divindades pagãs.

S .l

Kyrios nos Sinôtiœs. Agora

é

possível

Existem, no entanto, alguns exemplos nos

oferecer uma amostra das várias ocorrências em

quais kyrios parece se referir à capacidade e ao

que kyrios não se refere a Jesus. Em Marcos e no

direito de exercer autoridade e poder. Nesses ca­

material

sos, a palavra não é usada como título, nem tem

q

.

Deus nunca

é

chamado kyrios, com

exceção de Marcos 5.19 e 13.20. Nem Mateus

implicações transcendentais. Por exemplo, em

nem Lucas seguem Marcos nesses dois exem­

Marcos 2.28, quando Jesus diz que o Filho do

plos. No paralelo lucano de Marcos 5.19, encon­

homem é Senhor do sábado, ele quer dizer que

tramos ho theos (“Deus” , Lc 8.39) em vez de ho

exerce autoridade sobre as regras que regem o sá­

kyrios, que aparece em Marcos, e Mateus não in­

bado. De natureza semelhante, é o caso de Lucas

clui material paralelo. No paralelo mateusino de

10.2, em que kyrios não tem a função de título,

Marcos 13.20, o Evangelista emprega a forma in­

mas simplesmente afirma que é Deus quem con­

direta “Se aqueles dias não fossem abreviados...”

trola a ceifa: ele é o “ Senhor da colheita”.

(Mt 24.22), não a forma direta de Marcos “ Se o

5.2

Kyrios em Lucas. Quanto ao uso absolu­

Senhor não abreviasse aqueles dias...” Essa di­

to do substantivo kyrios, Mateus e Marcos não

ferença não pode ser explicada com o argumen­

empregam o termo em sentido transcendente nas

to de que Mateus e Lucas não chamam Deus de

estruturas narrativas das declarações de Jesus

kyrios, pois principalmente nas narrativas do nas­

(Mc 11.3 provavelmente não é exceção). Mas em

cimento ambos o fazem de modo bem claro (cp.

Lucas podemos ver esse emprego. Por exemplo,

Mt 1.20,22,24; 2.13,15,19 com Lc 1.6,9,1,15,17,

em Lucas 7.13 lemos; “ 0 Senhor [ho kyrios] se

25,28,38,45,58,66; 2.9,15,22,23,26,39). Em Ma­

encheu de compaixão por ela”. Em Lucas 10.1,

teus e em duas passagens exclusivas do terceiro

o Evangelista escreve: “O Senhor [ho kyrios] de­

Evangelho, também encontramos kyrios aphcado

signou outros setenta e dois”. Lucas, na condição

a Deus no material da ressurreição. Como forma

de gentio que escreve a um público exclusiva­

respeitosa e convencional de tratamento, a pa­

mente gentflico, não demonstra nenhuma hesi­

lavra kyrios sempre é utiUzada nos Evangelhos

tação em usar ho kyrios em referência a Jesus e,

toda vez que um escravo se dirige a seu senhor.

dessa forma, deixar implícito o sentido rehgioso

Também é possível encontrá-la nos lábios dos ju­

transcendente do termo. Isso não quer dizer que

deus quando eles se dirigem a Pilatos (Mt 27.63);

Lucas esteja sendo anacrônico, pois geralmente

quando os trabalhadores falam ao dono da vinha

ele tem o cuidado de não pôr o termo nos lá­

(Lc 13.8); na conversa entre um filho e seu pai

bios de Jesus ou de seus interlocutores com um

(Mt 21.30); no diálogo entre Maria e o “jardinei­

sentido estranho à época do ministério de Jesus.

ro” (Jo 20.15); nos lábios da mulher siro-fenícia

Algumas prováveis exceções podem ser vistas em

que faz uma súplica a Jesus (Mc 7.28; Mt 15.27).

Lucas 1.43, quando Isabel declara que Maria é

1 194

S enho r i: Evan g elho s

“a mãe do meu Senhor” ; Lucas 2.11, em que Je­

essa aplicação só se torna evidente com base no

sus é apresentado como “ Senhor” aos pastores;

restante da narrativa, não na citação em si. No

Lucas 1.38, em que Maria é chamada “serva do

episódio da tentação, pode parecer à primeira vis­

Senhor” , embora o termo aqui pareça se referir a

ta que Mateus 4.7 (“Não tentarás o Senhor teu

Javé (v.

Deus” , Dt 6.16) deixa implícito que kyrios se refe­

J e s u s , n a s c im e n t o d e ) .

Inúmeras outras referências no Evangelho de

re a Jesus. Contudo, embora seja Jesus quem está

Lucas dão conta de que o Evangehsta fez uso regu­

sendo tentado, dois fatores depõem contra essa

lar de kyrios na estrutura narrativa de seu relato do

leitura: 1) em Mateus 4.10, Jesus cita Deuteronô­

ministério de Jesus (cf. Lc 7.19; 10.1,39,41; 11.39;

mio 6.13, texto que deixa bem claro que se trata

12.42; 16.8; 17.5,6; 18.6; 19.8a; 22.61; 24.3,34).

de Javé; 2) Jesus cita as Escrituras em oposição

Quando fala de Jesus, Lucas não reluta em usar o

ao Diabo, e, tanto na primeira citação quanto na

título cristão “Senhor”. A implicação pode ser que

segunda, a referência a Deus não diz respeito a

Lucas esteja indicando que em seu ser — mesmo

Jesus, que está falando.

ainda não totalmente em ação ou não plenamente reconhecido — Jesus já era o kyrios.

A passagem de Mateus 7.21,22 é um exemplo mais promissor, embora o vocativo seja usado.

Parece que Lucas não introduz o título em seu

Nesse texto, tem-se a impressão de que quem

material marcano (Lc 22.61 talvez seja exceção).

clama “Senhor, Senhor!” são discípulos que pro­

Isso nos leva a indagar se Lucas encontrou esse

fetizaram e fizeram mUagres em nome de Jesus.

uso frequente do título kyrios no material que lhe

Mas 0 texto deixa claro que chamar Jesus de

serviu de fonte. Entretanto, ao que parece, nas

“Senhor” ou mesmo realizar grandes obras em

passagens em que encontramos kyrios em mate­

seu nome não terá valor algum, caso também não

rial tirado de q ou

l,

o termo é um acréscimo feito

pelo próprio Lucas (cf. Lc 7.19; 12.42; 17.5,6). De

se dê atenção às palavras de Jesus e não se faça a vontade do Pai.

forma que, de modo geral, a maioria dos casos em

À medida que o primeiro Evangelho caminha

que 0 terceiro Evangelho utiliza kyrios como título

rumo ao clímax, há um destaque notável ao se­

é resultado da atividade editorial de Lucas (cf.

de

nhorio de Jesus. Por exemplo, em Mateus 22.44

LA PorrERiE). Existe, portanto, algum fundamento

fica evidente que Jesus é Senhor, e em Ma­

para a teoria de H. Conzelmann, segundo a qual,

teus 24.42 Jesus se refere a si próprio como “o

para Lucas, Jesus é acima de tudo o kyrios a quem

vosso Senhor” (observe-se o paralelo com o “Fi­

Deus concedeu domínio e que governa a comuni­

lho do homem”, em Mt 24.39). O segundo exem­

dade cristã por meio do Espírito (p. 176-9).

plo não é um caso de uso no sentido absoluto,

5.3

Kyrios em Mateus. No primeiro Evange­ mas interpretado com outros textos já citados e

lho, estranhos, inimigos e Judas Iscariotes sempre

com 0 fato de que Jesus está falando desse Senhor

saúdam Jesus, chamando-o didaskale ou rabbi,

no contexto do yôm Yahweh ( “dia do

mas jamais kyrie, ao passo que os discípulos e os

Sem dúvida devemos entender que nesse caso ho

S e n h o r ” ).

que se aproximam de Jesus em busca de cura ja­

kyrios tem um sentido que excede o simples sig­

mais utihzam aqueles dois termos, mas sempre se

nificado de “amo”.

dirigem a ele com o vocativo kyrie. Desse modo,

Kingsbury (1975) apresenta algumas con­

embora J. D. Kingsbury (1975) talvez tenha ido

clusões interessantes sobre o uso de kyrios em

longe demais com sua interpretação sobre o uso

Mateus, em particular a observação de que em

do vocativo kyrie em Mateus, existe algum funda­

Mateus a palavra é mais utilizada como termo re­

mento para incluir alguns desses casos em uma

lacional — o senhor em oposição ao escravo, o

análise da cristologia mateusina.

proprietário em oposição ao trabalhador ou mes­

0 primeiro EvangeUsta não tem receio de em­

mo o pai em oposição ao filho (Mt 21.28-30). En­

pregar kyrios em referência a Jesus. Por exem­

tretanto, nenhum desses exemplos se encontra em

plo, em Mateus 3.3 (acompanhando Mc 1.3),

passagens cristologicamente significatívas. Contu­

ele cita Isaías 40.3 (“ Preparai o caminho do Se­

do, é revelador que, nas passagens cristológicas

nhor”) e impUcitamente aplica a Jesus um título

que examinamos, o caráter relacional do termo

que originariamente se referia a Javé. Contudo,

esteja indicado 1) pelo uso do vocatívo “Senhor,

1 195

S enhor i : E vangelhos

Senhor” (Mt 7.21,22), 2) pelo uso de “vosso Se­

pés dos discípulos e no qual Pedro utiliza o termo

nhor” (Mt 24.42) e 3) pelo uso de “meu Senhor”

“ Senhor”) tenham algumas implicações cristoló­

na citação de Salmos 110.1 (Mt 22.44). Kingsbury

gicas. Mas não devemos desconsiderar a possibi­

demonstra, contudo, que kyrios não é o título

lidade de que nessa passagem kyrie seja utilizado

principal de Jesus em Mateus. 0 peso cristológico

como termo respeitoso, em que alguém se dirige

geralmente

a seu mestre. O mesmo se pode dizer das pala­

é

explicado

ou

explicitado

por

outro título, e, desse modo, deve-se no máximo

vras de Pedro em João 13.36,37 e de Tomé em

considerar kyrios um título cristológico auxihar no

João 14.5. Podem ter alguma importância os se­

primeiro Evangelho. Também pudemos assinalar

guintes fatos: 1) no quarto Evangelho, Jesus não

o caráter um tanto alusivo ou indireto em algumas

se refere a si mesmo como kyrios-, 2) o Evangelis­

passagens cristológicas (cf. Mt 3.3; 22.44).

ta não chama Jesus de kyrios em seus comentá­

5.4

Kyrios em João. Em comparação com Lu­ rios editoriais nem ao longo da narrativa; 3) até

cas, João utiliza escassamente a palavra kyrios,

João 20, sempre que a palavra kyrios surge nos

mas o faz de maneira mais evidente que em Ma­

lábios de um discípulo, o termo é um vocativo, e

teus. Em João, os títulos “Filho” ,

nenhum desses casos é claramente cristológico.

“ F il h o

de

D

eus”

e “Messias/CRisTo” ocorrem com mais frequência

Nas palavras de Maria Madalena, em João 20.13

que “Senhor”. Isso pode surpreender, quando se

( “meu Senhor”), kyrios não se encontra na forma

leva em conta que provavelmente esse foi o úl­

absoluta, e esse é o primeiro caso em que, sem

timo Evangelho, escrito bem depois de a confis­

estar no vocativo, o termo é usado por um per­

são “Jesus é Senhor” ter sido disseminada pela

sonagem dentro da narrativa, mas mesmo aqui é

igreja. Embora o vocativo usado pelo paralítico

possível que ele não tenha sentido cristológico.

em João 5.7 [kyrie] não deva ser considerado de

Isso significa que João 20.18, 20.28, 21.7 e

valor cristológico, a referência de João a Jesus

possivelmente os múltiplos exemplos de vocativo

como “ o Senhor” tem esse significado (caso não

em João 21.15-21 são, nesse Evangelho, os úni­

acompanhemos os poucos manuscritos ociden­

cos casos em que um personagem da narrativa

tais

chama Jesus de kyrios no sentido transcendental.

[d ,

086, arm et al.] que ah omitem a expres­

são relacionada).

Isso é um forte indício de que o quarto Evange­

É possível que o propósito da pergunta de

lista, ao usar esse título, tenta conscientemente

Pedro a Jesus — “ Senhor [kyrie], para quem ire­

evitar um anacronismo e deseja indicar que o co­

mos?” (Jo 6.68) — seja mais que uma forma res­

nhecimento e a confissão do senhorio de Jesus só

peitosa de tratamento, especialmente quando se

ocorreram em decorrência dos encontros entre os

leva em conta a confissão de Pedro em João 6.69.

discípulos e o Senhor ressuscitado.

Na resposta da mulher flagrada em adultério (Jo 8.11), é possível (mas não tão provável) que

6. Conclusão

haja um sentido cristológico, embora originaria­

Agora é possível acompanhar a evolução um tan­

mente a perícope não fizesse parte desse Evan­

to clara do uso do termo kyrios em referência a

gelho. Um caso mais claro é o do cego que foi

Jesus de Nazaré. Iniciando com pistas indiretas

curado: ele emprega kyrie (Jo 9.36) como forma

durante o período do ministério de Jesus, passan­

respeitosa de tratamento. 0 comentário editorial

do em seguida por relatos das experiências com o

em João 11.2 apresenta um claro emprego cris­

Senhor ressuscitado e depois, no início do cristia­

tão de ho kyrios. Por ocasião da entrada triunfal

nismo na Palestina, pelo uso de marana tha em

(Jo 12.13, dt. SI 118.26), é provável que o povo

contextos judaico-cristãos e pelos casos de uso

esteja bendizendo a Deus, não a Jesus, com o

cristológico do termo na estrutura narrativa de

termo kyrios. O texto de João 12.38, que cita

Lucas e João, chegamos por fim ao uso variado

Isaías 53.1, provavelmente também deve ser vis­

do termo em Atos. Nesse livro, usa-se o termo em

to dessa maneira.

combinação com outros nomes e títulos, como

À luz do uso que Pedro faz do termo em

forma de se dirigir ao Cristo exaltado e no des­

João 6.68,69, é possível que as frases do apóstolo

locamento de referências de Javé para Jesus em

em João 13.6,9 (o episódio em que Jesus lava os

citações do

1 196

at.

Senho r

h

: Paulo

É interessante não encontrarmos nem em Ma­

Kyrios and Maranatha and their Aramaic back­

teus, nem em Marcos o uso da forma absoluta ou

ground. In: To advance the gospel. New York:

transcendente de kyrios, além de haver o esforço,

Crossroad, 1981. p. 218-35. ■ ______ . The Semitic

por parte de Lucas e do quarto Evangelista, de

background of the New Testament Kyrios-title.

contornar os anacronismos, evitando o sentido

In: A wandering Aramean. Missoula: Scholars,

cristão pleno do termo nos lábios das pessoas du­

1979. p. 115-42. •

rante o ministério de Jesus. Também é significati­

[S.l.: s.n., s.d.] v. 3, p. 1039-95. •

vo que Lucas-Atos e João deixem implícito que a

Tetragram and the New Testament,

confissão de Jesus como Senhor surgiu em resul­

63-83, 1977.

tado das experiências da ressurreição. Em alguns

devotion to Jesus in earhest Christianity. Grand

F o e rs te r,

■ H u rta d o ,

L.

W. KÚpioç

W.

k tA . t d n t .

H ow ard , jb l , v.

G. The 95, p.

Lord Jesus Christ:

casos, porém, isso não impediu que, em suas

Rapids: Eerdmans, 2003. • ______ . One God, One

narrativas, os Evangelistas chamassem de “Se­

Lord: early Christian devotion and ancient Jewish

nhor” 0 Jesus do ministério, pois foi “esse mes­

monotheism. Philadelphia: Fortress, 1988. • J o h n ­

mo Jesus”, que Deus havia ressuscitado dentre os

son ,

mortos, que assumiu decididamente as tarefas de

■ K

S. E. Lord.

in g s b u r y ,

iDB.

[S.l.: s.n., s.d.] v. 3, p. 150-1.

J. D. Matthew: structure, christology,

Senhor quando se uniu a Deus no céu. Ou seja, o

kingdom. 2. ed. Minneapolis: Fortress, 1989. •

elo entre o uso de kyrios nos Evangelhos e o uso

______ . The title “Kyrios” in Matthew’s gospel.

no período anterior e posterior à morte e ressur­

JBL, V.

reição reflete a crença no elo entre a pessoalidade

origin o f christology. Cambridge: Cambridge Uni­

do Jesus histórico e do Senhor ressuscitado.

94, p. 246-55, 1975. ■ M o u l e , C. F. D. The

versity Press, 1977. ■ T a y l o r ,

Era certo que no entendimento da época o

V.

The Gospel accor­

ding to St. Mark. New York: St. Martin’s, 1955. ■

termo kyrios, no sentido religioso, deixava im­

V erm es,

plícita a divindade de Jesus, especialmente nas

Row, 1973. ■

G. Jesus the Jew. New York: Harper and

regiões orientais do Império Romano e em con­

of Jesus. Minneapohs: Fortress, 1990. ■ ______ .

W it h e r in g t o n

iii,

B. The christology

textos gentílicos. Os dados apontam para o fato

Women in the ministry of Jesus. Cambridge: Cam­

de que essa notável mudança no conceito judaico

bridge University Press, 1984. B.

de monoteísmo ocorreu na comunidade primitiva

W

i t h e r i n g t o n iii

judaico-cristã da Palestina em resultado de algu­ mas evidências debcadas por Jesus, especialmen­

S enhor

te em decorrência das experiências com o Senhor

Nos escritos paulinos, como no restante do

ii:

P

ressurreto partilhadas por algumas testemunhas

palavra “senhor” geralmente traduz o termo gre­

oculares da vida do Jesus histórico. Os dados que

go kyrios. 0 termo tem a conotação de superiori­

pudemos estudar mostram que a cristologia ele­

dade daquele a quem se atribui o título. Quando

aulo nt

,

a

vada da igreja cristã primitiva não foi um novo

kyrios é usado no vocativo para se dirigir a uma

desdobramento ocorrido no final do século i.

pessoa [kyrie), pode ser um simples gesto de res­

Ver também de

D

eus;

F il h o

C r is t o ; D

do h o m e m

eus;

F il h o

de

D

a v i;

F il h o

peito, algo próximo da forma de tratamento “ se­ nhor” com que nos dirigimos a alguém. (Nesse

.

sentido, é comum nos Evangelhos que as pessoas H. Lord,

B ib lio g r a fia .

B ie te n h a r d ,

s.n., s.d.]

2, p. 510-20. ■

V.

[S.L:

se dirijam a Jesus chamando-o kyrie.) 0 termo

W. Kyrios

também pode designar alguém como o “amo”

m dn tt.

B o u s s e t,

C o n z e l­

ou o “mestre” de empregados e seguidores, e era

The theology of St. Luke. New York: Har­

aplicado a governantes no sentido de que esta­

Christos. Nashville: Abingdon, 1970. ■ m ann, H .

per and Row, 1960. •

A. Light from

vam acima de seus súditos. Com essa conotação,

the Ancient East. Reimpr. Grand Rapids: Baker,

o termo kyrios forma par linguístico com doulos

1978. ■ De

la

P

o t t e r ie ,

D e is s m a n n ,

I. Le titre KYRIOS appli­

qué à Jésus dans l’Évangile de Luc. In: A. &

H

alleux,

(“escravo” , “servo”). Kyrios também designava

esc am ps,

divindades, especialmente entre os semitas e os

a. de, orgs. Melanges bibliques en

povos do Oriente durante o período greco-romano

D

hommage au R. P. Rigaux. Gembloux: Duculot,

(v.

1970. p. 117-46. •

romanos a partir do final do século i, à medida

F it z m y e r ,

J. A. New Testament

1 197

adoração ),

e veio a ser aphcado a imperadores

S enhor ii : I^aulo

que a devoção ao imperador era promovida com

de “ muitos deuses [theoi] e muitos senhores

mais vigor. O grego despotês, também traduzido

[kyrioi]" no mundo religioso de sua época.

por “senhor” , “mestre” ou “amo” , é encontrado

Nos sentidos religiosos mais amplos empre­

e no corpus paulino,

gados na época de Paulo, dois em particular às

principalmente em códigos domésticos, e aparece

vezes são apontados como de importância direta

apenas em escritos cuja autoria é questionada,

na designação pauhna de Cristo como kyrios: o

apenas dez vezes no

nt

,

passagens em que o termo se refere a um “se­

uso do termo em referência a divindades de vá­

nhor” dentro de uma relação social (ITm 6.1,2;

rias religiões de mistério e sua aplicação no culto

Tt2.9; 2Tm2.21).

ao imperador romano. Entretanto, essas ideias

Paulo emprega kyrios com mais frequência

são alvo de várias críticas, o que torna imprová­

para se referir a Cristo, sendo poucas as vezes

vel que o emprego de kyrios por Paulo em refe­

que usa o termo para designar Deus e para se

rência a Cristo tenha origem nesses círculos.

referir a seres humanos em papéis socialmente

Tanto as religiões de mistério quanto o cul­

dominantes, como senhores de escravos. Unido

to ao imperador alcançaram nível máximo de

ao título “ Cristo” , que ocorre com maior frequên­

popularidade a partír do século ii, depois que o

cia, e ao título “Filho de Deus”, que aparece me­

emprego cristão de kyrios estava firmemente es­

nos vezes, kyrios (“ Senhor”) é um dos principais

tabelecido. Mais importante ainda é que uma an­

títulos cristológicos usados por Paulo.

tipatia generalizada e profundamente arraigada,

0 uso secular de kyrios por parte de Paulo em

além do desprezo pela religiosidade pagã, carac­

referência a senhores humanos, e o uso rehgio­

terizava judeus como Paulo e outros que cons­

so, para designar Deus, refletem as aphcações do

tituíram os círculos iniciais de grupos cristãos e

termo entre judeus e gentios do mundo greco-

exerceram funções de liderança nos primeiros e

romano. É 0 uso de kyrios em referência a Cristo

cruciais decênios do cristianismo. Assim, é difícil

que distingue Paulo como cristão e tem atraído o

entender como o emprego pagão de kyrios pode­

interesse dos estudiosos. As questões fundamen­

ria ter influenciado a aplicação do termo a Cristo

tais são os antecedentes históricos, com as influ­

por parte dos primeiros cristãos.

ências desses antecedentes na aplicação de kyrios

Consequentemente, a tendência dos estudos

a Cristo, a origem desse uso do termo no cris­

mais recentes tem sido concluir que o uso pa­

tianismo primitivo e seu emprego e significado

gão de kyrios e de termos semelhantes em outros

como título cristológico em Paulo (v.

idiomas não é a causa nem a fonte da aplicação

c r is t o l o g i a ) .

1. Antecedentes

cristã inicial de kyrios como título de Cristo. Em

2. Origens do uso cristão

vez disso, o uso rehgioso pagão do termo apenas

3. Uso paulino

ilustra o contexto linguístico mais amplo no qual

4. Resumo

devemos enxergar o uso cristão de kyrios. Isso mostra que o termo era amplamente aceito como

1. Antecedentes

título apropriado a seres reverenciados e que os

1.1 Gerais. Assim como em muitos outros idio­

pagãos percebiam essa conotação de reverência

mas, no hebraico, no aramaico e no grego anti­

quando os cristãos o utilizavam em referência a

gos, os termos que denotam a ideia de “ senhor”

Cristo. Contudo, para entender por que Paulo e

ou “amo” eram empregados para designar seres

outros cristãos primitivos chamaram Cristo de

humanos que ocupavam posições sociais mais

kyrios e o que queriam dizer com isso, temos

elevadas, além de divindades (para uma análise

de olhar em outra direção.

mais aprofundada dos antecedentes linguísticos,

1.2

Judaicos. Para a maioria dos estudiosos,

emprego de kyrios como

agora está claro que os antecedentes religiosos

título para divindades parece ser o mais apropria­

judaicos do cristianismo primitivo constituem

do para entender a aplicação do termo a Cristo

as fontes e os precedentes linguísticos mais

por parte de Paulo. Em ICorintios 8.5, Paulo faz

importantes para o uso de kyrios como título

alusão ao uso pagão de kyrios como designa­

cristológico (v. esp.

ção de seres divinos, ao mencionar a existência

ses antecedentes são os mais relevantes: o uso

V. F oerster & Q u e l l ) . 0

11 9 8

F it z m y e r ) .

Dois aspectos des­

S enhor ii : Paulo

religioso de equivalentes em hebraico e aramaico

feitas em parágrafos anteriores. É quase certo que

que foram traduzidos por kyrios e o uso do pró­

na leitura real dessas cópias do

prio vocábulo kyrios como termo religioso empre­

pronunciava nem Javé nem a palavra indicada

gado por judeus de fala grega.

pelo grego pipi, mas que em vez disso era usa­

Na época da origem do cristianismo, parece

at

grego não se

do um substituto, muito provavelmente kyrios,

que religiosos judeus já haviam desenvolvido o

prática demonstrada no

costume, amplamente observado, de evitar a pro­

gregos do século i que refletem os antecedentes

núncia do nome hebraico de Deus, Javé, sendo

religiosos judaicos.

e em outros escritos

nt

utilizados vários substitutos. Informações ex­

Em suma, além do sentido honorífico geral

traídas de textos judaicos antigos dão conta de

de kyrios e da aplicação religiosa pagã do termo

que nomes substitutos para Javé eram comuns,

a certos personagens divinos, os judeus de fala

até mesmo em referências por escrito. Em he­

grega do século i introduziram kyrios em seu vo­

braico, muitas vezes Deus era chamado “ o Se­

cabulário religioso como forma de se referirem

nhor” , empregando-se a palavra ’ãdônay. Em

reverentemente a Deus. Essa introdução tinha

aramaico, como demonstram alguns documentos

como paralelo o uso de’ãdônay e de mãrêh em

encontrados em Qumran, o termo equivalente,

referência a Deus entre os judeus que falavam

mãryã' (substantivo mãrêh mais o artigo definido,

línguas semíticas e foi por esse uso facilitada. E,

que em aramaico é sufixado), era empregado de

levando-se em conta os antecedentes religiosos

modo semelhante. Ou seja, nos círculos judaicos

judaicos e os escrúpulos teológicos de Paulo e da

do século

os equivalentes semíticos de kyrios

maioria dos cristãos das décadas de formação do

eram utilizados para designar o Deus da Bíblia e,

cristianismo, deve se ver o uso rehgioso judaico

I,

na forma absoluta ( “o Senhor”), como substitu­

de kyrios e seus equivalentes semíticos como o

tos do nome sagrado de Deus (Javé).

fator lingüístico mais importante ao examinar o

Na época, desenvolveu-se também entre os ju­

uso de kyrios no

nt

.

Os usos de kyrios pelo ju­

deus de fala grega a prática de usar equivalentes

daísmo como equivalente de 'ãdônay, ou mesmo

gregos de 'ãdônay em referência a Deus, em vez

como equivalente grego de Javé, aumentam signi­

de seu nome hebraico sagrado. Josefo, escreven­

ficativamente a gama de possibilidades conotati-

do perto do final do século i, parece ter preferido

vas que se devem analisar, especialmente quando

despotês em lugar do nome de Deus, mas é possí­

se interpreta a aplicação do termo a Cristo.

vel que tenha desejado evitar o uso de kyrios pelo fato de 0 vocábulo ter se tornado um dos títulos

2. Origens do uso cristão

do imperador romano, pois trabalhava com o apa­

Os escritos cristãos mais antigos que chegaram

drinhamento do monarca. Filo, algumas décadas

até nós são as cartas de Paulo, e elas fornecem

antes de Josefo, utilizou kyrios como substituto

indícios sobre a origem de uma prática anterior

grego de Javé. De forma semelhante e como regra,

ao apóstolo de se referir a Cristo como Senhor (cf.

os autores do

K

nt

empregam kyrios quando citam

ram er,

cuja abordagem desse assunto, contudo,

em que o nome de Deus aparece

repetidas vezes contradiz as informações). Já a

em hebraico, oferecendo prova adicional de que

partir dessas cartas mais antigas, Paulo aphca

passagens do

at

eram usados substitutos gregos para o nome de

kyrios a Jesus sem apresentar exphcação ou jus­

Deus, sendo kyrios uma opção popular (preferi­

tificativa, o que mostra que seus leitores estavam

da?), que tinha no grego a mesma função do he­

familiarizados com o termo e sua conotação. Isso

braico ’ãdônay e do aramaico mãryã’.

também se vê no aspecto formular ou linguisti-

As ocorrências de Javé em caracteres hebrai­

camente padronizado de aplicar kyrios a Cristo

cos iyhwh) ou a curiosa combinação de carac­

em expressões como “ o Senhor Jesus Cristo”

teres gregos pipi, que parece ter o propósito de

(e.g., ITs 1.1) e “nosso Senhor Jesus Cristo” (e.g.,

sinalizar os caracteres hebraicos de Javé e de se

ITs 1.3), especialmente comuns nas introduções

assemelhar a eles, aparecendo em certas cópias

e conclusões de cartas (v.

judaicas antigas do

tas) ,

at

grego, não podem ser utili­

zadas como argumento contrário às observações

cartas,

fo rm as

de

car­

que parecem empregar saudações e invo­

cações de bênção que eram convencionais na

1 199

S enhor n: Pa ulo

vida litúrgica das igrejas de Paulo. A referência

estendeu a seus convertidos gentílicos. É interes­

frequente a Jesus como “ o Senhor” (e.g., ITs 1.6;

sante que Paulo tenha passado a seus convertidos

4.15) demonstra que o termo se tornara de uso

os termos litúrgicos aramaicos empregados para

tão costumeiro para designar Cristo que não era

se dirigir tanto a Deus quanto a Cristo, mostrando

necessária nenhuma identificação adicional. A

a “ forma binária” inicial da devoção cristã nas

partir das etapas mais antígas do ministério de

igrejas de fala aramaica e grega.

Paulo, sua cartas pressupõem uma familiaridade com o termo como título cristológico.

As ideias de que marana tha era uma tradu­ ção para o aramaico de uma invocação cristã que

Além disso, em princípio, é improvável que

teve origem entre cristãos de fala grega ou de que

Paulo tenha dado início a esse emprego do ter­

0 “ Senhor” a quem a invocação era dirigida não

mo, especialmente entre seus convertidos. Di­

era Cristo, mas Deus, propostas por W. Bousset,

versas evidências confirmam isso. Embora Paulo

são consideradas hoje em dia maneiras nada

insistisse em seu chamado especial da parte de

convincentes de evitar o óbvio peso histórico da

Deus para evangelizar os gentios e até usasse a

expressão, a saber, que se pode identificar nos

expressão “meu evangelho” (Rm 2.16), ele tam­

grupos judaico-cristãos mais antigos a origem da

bém insistia em que sua proclamação incorpora­

forma reverente de tratar Cristo como “Senhor”.

va uma ideia acerca de Cristo que era partilhada

Além disso, os textos aramaicos encontrados em

por cristãos judeus de Jerusalém (e.g., G1 1—2;

Qumran, em que se usam formas de mãrêh para

ICo 15.1-11). 0 resumo da fé que ele apresenta

se referir a Deus, refutam a teoria de que não é

em Romanos 10.9,10, que se concentra na ressur­

possível que o emprego de mãrêh em referência a

reição de Jesus e em sua condição de kyríos, é

Cristo entre os cristãos de fala grega tenha tído a

apresentado como uma declaração fundamental

conotação de reverência reservada a um ser divi­

e inconteste da fé cristã partilhada pelos cristãos

no, mas apenas uma conotação honorífica mais

em geral. Parece que, nas referências de Paulo a

genérica. Parece que mãrêh foi utílizado de forma

Tiago e a outros “irmão(s) do Senhor”, ele está

semelhante ao hebraico 'ãdônay e o grego kyrios,

empregando designações formais dos parentes

até mesmo como título para Deus.

de Jesus, as quais tiveram origem em grupos

Quando se combina esse fato semântico com

judaico-cristãos da Palestína (v., e.g., G1 1.19;

a observação de que a expressão marana tha

ICo 9.5), que se referiam ao Jesus ressuscitado

mostra que a oração/invocação coletiva é dirigi­

como “ o Cristo”.

da a Cristo pelo termo mãrêh, fica difícil evitar a

Contudo, a confirmação mais direta de uma

conclusão de que mãrêh demonstra, pelo Cristo

origem antiga e não paulina da referência a Jesus

ressuscitado, uma reverência semelhante ou igual

como “Senhor” encontra-se na transhteração

à que se demonstrava por Deus. Isso significa que

grega

Cristo começou a ser reverenciado como Senhor

da fórmula de invocação

mamnatha

(ICo 16.22), que provavelmente deve ser vocah-

nos círculos judaico-cristãos mais antigos em

zada como marãnã’ ta e significa “nosso Senhor,

termos e ações que correspondem ao que Paulo

vem!” Essa expressão tem origem nos cristãos

mais tarde ligeiramente pressupõe e reflete em to­

judeus de fala aramaica. Aqui Paulo a utíliza sem

das as suas cartas.

exphcação ou mesmo sem tradução, o que indica

Ou seja, o título “Senhor”, conferido a Cristo

que os coríntios já a conheciam, por meio do pró­

com a mesma conotação atribuída a Deus, parece

prio apóstolo, provavelmente como um sagrado

ter tído origem ainda muito cedo nos círculos mais

elo verbal entre os cristãos gentílicos de Paulo e

antigos do movimento cristão e não parece ter sido

seus antecessores e correligionários na Palestina,

0 resultado de um processo gradual de assimila­

os quais se dirigiam ao Jesus ressuscitado como

ção de modelos pagãos de devoção a várias divin­

“nosso Senhor” [marãnã’, de mãrêh). A preserva­

dades. Também não se pode atribuir a designação

ção por Paulo da forma aramaica de invocação

kyrios a Cristo, expressando a ideia de ser divino,

a Deus como abba [ ’abbã’, Rm 8.15; G1 4.6) é

ao ingresso de um grande número de gentios com

provavelmente um paralelo linguístico e um elo

antecedentes pagãos no movimento cristão (con­

litúrgico com os cristãos judeus, o qual Paulo

trariando

1200

C asey).

Linguística e historicamente, a

S enhor i i : Paulo

referência a Cristo como Senhor com uma cono­

Em várias citações de passagens do

at

que

tação exaltada parece ter surgido entre os cristãos

mencionam Javé, Paulo aphca o termo a Cris­

judeus da Palestina. Como aconteceu com Paulo,

to: Romanos 10.13 (J1 2.32); ICorintios 1.31

de alguma forma eles conseguiram conciliar a re­

(Jr 9.23,24); ICorintios 10.26 (SI 24.1); 2Corín-

verência por Cristo com o monoteísmo exclusivis­

tios 10.17 (Jr 9.23,24). Existem duas passagens

ta que herdaram do judaísmo, produzindo assim

cujo contexto não nos permite saber se Paulo está

nessa tradição uma pecuhar adaptação “binária”

aplicando a citação a Deus ou a Cristo (cf.

(v . H u r ta do , 1988; v. D eus ).

que entende serem referências a Cristo): Roma­

C apes,

nos 14.11 (Is 45.23); ICorintios 2.16 (Is 40.13). 3. Uso paulino

Além disso, várias passagens pauhnas podem

3.1 Citações do a t . A primeira observação a fazer

muito bem incorporar alusões ao texto do

sobre o emprego paulino de kyríos diz respeito

mencionam Javé, em que o kyrios a que Paulo

aos personagens a quem ele aplica o termo. Ape­

se refere é Cristo. Por exemplo: ICorintios 10.21

at

que

nas para evitar ficarmos presos em outra questão,

(Ml 1.7,12); ICorintios 10.22 (Dt 32.21); 2Co-

se excluirmos os escritos paulinos considerados

ríntios 3.16 (Êx 34.34); ITessalonicenses 3.13

pseudepigráficos, restam pouco mais de duzen-

(Zc 14.5); ITessalonicenses 4.6 (SI 94.2); 2Tessa-

tas ocorrências de kyrios para anahsar, e as ob­

lonicenses 1.7,8 (Is 66.15); 2Tessalonicenses 1.9

servações a seguir não seriam alteradas, caso se

(Is 2.10,19,21); 2Tessalonicenses 1.12 (Is 66.5).

incluíssem as cartas deixadas de lado. Na surpre­

Mas com certeza a passagem mais notável nes­

endente maioria dessas ocorrências {em torno de

se aspecto é Filipenses 2.10,11, vista como uma

180), Paulo emprega kyrios como título de Cristo,

apropriação da terminologia monoteísta de Isaías

e é a esse uso do termo que dedicaremos a maior

45.23-25 acerca de Javé, cujo propósito é apre­

parte de nossa anáhse. Contudo, deve se ressaltar

sentar a aclamação escatológica de Cristo como

que Paulo também se refere a Deus como kyrios,

kyrios, “para glória de Deus Pai”.

embora em diversas passagens seja difícil ter cer­ teza se a referência é a Deus ou a Cristo.

Se pusermos de lado as passagens ambíguas mencionadas acima, ainda resta um volume con­

As passagens em que Paulo está seguramente

siderável de indícios de que Paulo aphcou a Cris­

se referindo a Deus como kyrios são todas citações

to a terminologia do a t , até mesmo passagens que

do

em que Deus é mencionado, e kyrios é a pa­

originariamente se referiam a Javé. Pelo menos

lavra grega que Paulo usa para traduzir ou subs­

nesses casos, parece que o título kyrios conferi­

tituir o vocábulo hebraico Javé, prática também

do por Paulo a Cristo baseava-se na ideia de que

seguida na

Deus é sem dúvida o referente

este, de alguma forma, estava direta e singular­

nas seguintes passagens pauhnas em que kyrios é

mente associado a Javé e de que o termo tinha

a tradução de Javé no texto hebraico do a t : Roma­

essa conotação. Em Filipenses 2.9-11, lemos que

nos 4.8 (Sl 32.1,2); Romanos 9.28,29 (Is 28.22;

Deus outorgou a Cristo “o nome que está acima

1.9); Romanos 10.16 (Is 53.1); Romanos 11.34

de qualquer outro nome”. Quer a passagem seja

at

lx x .

(Is 40.13); Romanos 15.11 (Sl 117.1); ICorín-

da autoria de Paulo, quer tenha ele se apropriado

tios 3.20 (Sl 94.11); 2Coríntios 6.17,18 (Is 52.11;

dela, de uma forma ou de outra ele a conside­

2Sm 7.14). Além disso, existem várias passagens

rava uma declaração cristológica. Essa expressão

em que Paulo cita o a t e o modifica, fazendo uma

provavelmente reflete a antiga reverência judaica

referência explícita a Deus como kyrios quando

pelo nome de Deus (Javé), o qual representava,

ela inexiste no hebraico e na

Romanos 11.3

para os antigos judeus, a condição e o ser únicos

(IRs 19.10); Romanos 12.19 (Dt 32.35); ICorín-

de Deus. Assim, a passagem refere-se a uma con­

tios 14.21 (Is 28.11). Nessas passagens, Paulo imi­

dição e a uma quahdade conferidas a Cristo só

ta o hnguajar das Escrituras gregas e mostra quão

comparáveis ã condição e aos atributos de Deus.

familiarizado está com kyrios como substituto/

Parece ser essa a razão pela qual Paulo se baseia

lx x :

tradução grega de Javé para se referir ao Deus do

em Isaías 45.23-25, passagem que originariamen­

entre judeus e cristãos de fala grega. Isso torna

te apresentava um reconhecimento universal de

at

as passagens seguintes ainda mais interessantes.

Javé, predizendo o reconhecimento universal

1201

bENHOR ii: Paulo

de Jesus como kyrios. Nessa passagem, kyríos é

deuses. Embora não seja muito coerente, Capes

necessariamente o equivalente grego na aclama­

tende a crer que a aphcação pauhna a Jesus de

ção de Cristo como aquele que leva o nome vete­

textos do a t referentes a Javé significa que o após­

rotestamentário de Deus.

tolo “acreditava que Jesus era um com Deus”

Outro caso em que Paulo se apropria de uma passagem do

at

para fazer uma afirmação cristo­

lógica importante é o texto bastante estudado de

(C

apes,

p. 165) e que, para Paulo, Jesus estava

“identificado com Deus”

(C

p. 169). Ttata-se,

apes,

porém, de simplificações exageradas.

2Coríntios 3.15-18. A afirmação de Paulo de que,

L. J. Kreitzer dedicou-se à anáhse da íntima

“quando um deles se converte ao Senhor, o véu

associação entre Cristo e Deus na escatologia de

é retirado” (2Co 3.16) é uma adaptação de Êxo­

Paulo e detectou uma “mudança referencial” do

do 34.34 — em que kyríos é Javé — em referência

termo kyrios em Paulo (e.g.,

a Cristo. Essa aplicação de kyrios a Cristo não é

em que Cristo é o referente que age no papel de

um mero jogo de palavras, mas a indicação de

Deus. Embora não tenha sido essa a intenção de

que Paulo vê Cristo como kyrios da perspectiva

Kreitzer, é possível entender erroneamente que a

divina. Os versículos que se seguem confirmam

expressão “mudança referencial” deixe implícito

isso, ao demonstrarem que kyrios está associado

que Paulo exalta a pessoa de Cristo à custa de

ao Espírito divino (v.

Deus, conduzindo ao cristomonismo. Em outro

E s p í r it o S a n t o )

e é mencio­

K

r e it z e r ,

p. 113),

nado como a fonte da “glória” transformadora

ponto de sua obra, Kreitzer menciona uma “ so­

(gr., doxa = hebr., kãbôd), um dos atributos mais

breposição conceituai entre Deus e Cristo” em

importantes de Javé no

Paulo

at,

aqui ostentado por

(K

r e it z e r ,

p. 116), e essa talvez seja a ma­

Cristo (v. ICo 2.8, que apresenta Cristo como “ o

neira mais apropriada de apresentar a questão.

Senhor da glória”; v. tb.

sobre a impor­

Linguisticamente, pode se dizer que Cristo foi

Outro indício de que a referência de Paulo a

liar ao campo referencial de Paulo quando o após­

Jesus como kyrios pode ter a conotação de uma

tolo passou a utilizar kyrios como título divino.

associação direta entre Jesus e Javé encontra-se

E, conforme já demonstrado nos casos em que

N

ew m an

,

tância cristológica de doxa].

incorporado de forma bem proeminente e pecu­

nas várias passagens em que Paulo emprega o

Paulo aphca a Cristo passagens do

conceito veterotestamentário de “dia do Senhor

catológicas que originariamente diziam respeito

[Javé]” para se referir à vitória escatológica de

a Javé, pela utihzação kyrios, o termo pode ter

Cristo (v.

a conotação de honra e posição dehberadamente

K

r e it z e r ; v

.

e s c a t o l o g ia ) .

Em ITessaloni­

censes 5.2, 2Tessalonicenses 2.2 e ICorintios 5.5, embora o contexto deixe claro que é Cristo o

e ações es­

comparáveis às de Deus.

Paulo simplesmente se apropria da expressão do at,

at

3.2

Uso nos credos. Outro conjunto particu­

larmente importante de indícios sobre a aphca­

kyrios, cujo “dia” está se aproximando. Em ou­

ção paulina do título kyrios a Cristo são as várias

tras passagens, Paulo modifica a expressão para

passagens que os estudiosos identificam como

identificar Cristo como o kyrios de forma explí­

“credais” , ou seja, passagens que provavelmente

cita (ICo 1.8; 2Co 1.14; cf. 2Tm 1.18; 4.8). D.

refletem antigas expressões da fé cristã em Cristo.

B. Capes estudou a aphcação pauhna de kyrios

No entanto, o termo “credal” talvez seja um pouco

a Cristo, destacando especialmente as passagens

enganoso, pois as expressões em questão jamais

do

aphcadas a Cristo e nas quais kyrios origi­

tiveram o propósito de ser confissões completas

nariamente se refere a Javé. Infelizmente, a obra

das crenças dos primórdios do cristianismo, nem

at

de Capes está prejudicada em pontos essenciais

foram resultado de deliberações doutrinárias.

por sua tendência de abordar os textos paulinos

Pelo contrário, a origem dessas expressões de fé

com base nas controvérsias cristológicas de sécu­

provavelmente foram aclamações no contexto da coletiva nos círculos cristãos. As mais

los posteriores, pela distorção ocasional da obra

adoração

de outros autores (v. esp.

antigas expressões da fé cristã que chegaram até

sua análise de

H

urtado )

C apes,

p. 168-74, em

e pelas afirmação ques­

nós aclamam Cristo como kyrios.

tionável de que os judeus do período pré-cristão

Talvez a mais antiga referência à aclamação

estavam dispostos a aceitar a adoração de outros

de Cristo no contexto da adoração cristã seja

202

S enhor ii : Paulo

ICorintios 12.3. Aqui, no meio de uma longa

recebeu o nome divino e, ao mesmo tempo, re­

análise sobre o comportamento apropriado na

dunda “para glória de Deus Pai”. Como observa

adoração cristã (ICo 11— 14), Paulo menciona

Kreitzer (p. 161), essa expressão é a prova de que

a aclamação kyríos lêsous, atribuindo-a a uma

Paulo procurava manter a “ integridade” de sua

obra do Espírito Santo na vida dos crentes em

fé monoteísta e conciliá-la com a surpreendente

Cristo. Já mencionamos Romanos 10.9,10, que é

condição de Jesus refletida na aclamação de que

outra referência a essa antiga aclamação litúrgica

ele é o kyríos. Essa preocupação também se re­

e provavelmente deve ser traduzido por “Jesus

flete em outras passagens paulinas, com alguma

é Senhor”. Em Romanos 10.9,10, essa aclamação

“palavra ou expressão esclarecedora”

está associada à crença na ressurreição de Cristo,

p. 158) acrescentada a passagens que se referem

o acontecimento que parece ter dado início à con­

a Cristo (e.g., ICo 3.23; 11.1; 15.20-28).

(K

r e it z e r ,

vicção de que Cristo havia recebido uma glória

Em ICorintios 8.5,6, a última passagem credal

celestial única ao ser aclamado como kyríos. Essa

a ser examinada aqui, vemos outro exemplo de

passagem mostra que os primeiros grupos cris­

como Paulo conciliava a posição exaltada de Cris­

tãos consideravam a ressurreição de Jesus a base

to com a herança do monoteísmo. Contrastando

histórica e a prova de sua exahação.

com o ambiente politeísta greco-romano (v.

Faz-se necessário aqui analisar Filipenses 2.911, passagem também já citada. Com base nas

g iõ e s g r e c o - r o m a n a s ) ,

r e l i­

Paulo faz uma confissão di­

vidida em duas partes: “um só Deus [heis theos],

duas passagens que acabamos de analisar, Fi-

0 Pai” , e “um só Senhor [heis kyríos], Jesus Cris­

hpenses 2.9-11 parece também fazer alusão à

to” (essa expressão é outro exemplo da referência

aclamação cristã primitiva de Jesus como kyríos,

mais longa e grandiloqüente a Cristo, menciona­

projetando nela uma participação universal fu­

da em nossa anáhse de Fp 2.11). Parece influen­

tura, a qual os grupos cristãos agora aguardam

ciada por Deuteronômio 6.4: “Ouve, ó Israel: 0

ansiosamente e prefiguram em suas reuniões de

Senhor,

adoração.

heis estin

Devem se ressaltar dois outros aspectos dessa

nosso Deus, é o único [lx x ];

hebr., Yahweh

Senhor” ’e h ã d ) .

{kyríos

Ou seja,

Cristo é incluído em uma proclamação revisada

passagem. Primeiro: a fórmula hgeiramente mais

do caráter único de Deus. Na época de Paulo, os

longa Kyríos lêsous Chrístos (Fp 2.11) é encontra­

judeus provavelmente empregavam Deuteronô­

da com ligeira variação nas cartas de Paulo, espe­

mio 6.4 como parte do Shemá, que era a confis­

cialmente nas introduções e nas conclusões (que,

são de fé dos judeus acerca do caráter único de

conforme se imagina, refletem fórmulas htúrgi-

Deus. Portanto, é possível que, também ao fazer

cas empregadas nas igrejas pauhnas), como em

alusão a essa prática confessional judaica, Paulo

Filipenses 1.2. Essa formulação mais completa

tivesse 0 propósito de expressar a versão pecu­

mostra que existiam formas variadas de aclama­

liarmente cristã do monoteísmo, na qual Cristo é

ção (nessa passagem, trata-se provavelmente de

o “único Kyríos”, título grego usado para se referir

uma tentativa de conferir maior grandiloqüência

a Javé entre os judeus de fala grega e no

e impacto cristológicos) e ao mesmo tempo de­

Isso constitui uma aclamação de Cristo no nível

monstra que a aclamação principal continua sen­

mais elevado.

at

grego.

do o anúncio de que Jesus é “ Senhor”. E, como

Ao mesmo tempo, devemos observar que a

já foi dito, aqui o título parece mostrar que Jesus

declaração paulina de fé cristã, apresentada por

recebeu o nome (e assim a posição, a homa e os

Paulo em duas partes (i.e., uma declaração “bi­

atributos) de Deus.

nária”) em ICorintios 8.6, impõe à aclamação

Segundo: a tentativa de uma expressão cristo­

“ um só Senhor, Jesus Cristo” um compromisso

lógica mais completa na fórmula de aclamação de

contínuo com a fé monoteísta. Essa é a mensa­

Filipenses 2.11 é seguida de uma expressão que

gem envolvida no uso cuidadoso de preposições

transmite mais precisão teológica que a simples

na declaração de que “todas as coisas”, até mes­

aclamação de Jesus como kyríos. De forma singu­

mo a redenção dos cristãos (que é provavelmente

lar, Filipenses 2.11 aclama Jesus como “Senhor” ,

o sentido de “ nós”, pronome oculto na palavra

o que constitui um reconhecimento de que ele

“existimos”), procederam “ da parte de” (ek) “um

1203

Senhor ii : Paulo



Deus, 0 Pai” , e “por meio do” [dia, subenten­

grega e aramaica grupos que confessavam e invo­ cavam a Cristo como Senhor em suas reuniões e

dido em “pelo qual”) “Senhor, Jesus Cristo”. Apesar disso, embora Paulo tenha ajustado

na vida cotidiana. 3.3

seu conceito de Cristo à fé monoteísta, ele se

Fórmulas de intitulação. Além dos em­

sentiu forçado a considerar Cristo sob uma luz

pregos já mencionados, nas sete cartas incontes­

surpreendememente exahada, que o levou a re­

tés existem cerca de 170 outras ocorrências de

desenhar o monoteísmo. Ahás, tendo em vista o

kyrios referentes a Cristo, das cerca de 200 ocor­

compromisso monoteísta de Paulo, é difícil imagi­

rências no total, que aparecem em várias formas,

nar uma posição mais exaltada de Cristo sem que

em geral recorrentes e fixas. Pela perspectiva

isso implique substituir Deus por Cristo, algo que

sociolinguística, podemos vê-las como “rotini-

Paulo dificilmente poderia imaginar.

zações” no vocabulário religioso de Paulo e dos

D.

R. Lacey define ICorintios 8.6 como uma cristãos primitivos, as quais demonstram que eles

passagem que representa “um marco significa­

estavam bem familiarizados com o uso de kyrios

tivo no desenvolvimento da cristologia do Novo

como título cristológico.

p. 203), e essa afirmação

Em 65 desses casos aproximadamente (de­

está correta. Já não se pode dizer com a mesma

cisões quanto a variantes textuais em várias

segurança que Lacey esteja certo ao afirmar que

passagens resultarão em números ligeiramen­

a ideia religiosa expressa em ICorintios 8.6 é uma

te diferentes), emprega-se kyrios com outros

elaboração cristológica peculiarmente paulina,

termos cristãos nas seguintes expressões: “Je­

“ sua reinterpretação radical do credo de Israel”

sus Cristo, nosso Senhor” (e.g., Rm 1.4; 5.21);

pelo qual ele “pôde conduzir a igreja pela estrada

“nosso Senhor Jesus Cristo” (e.g., Rm 5.1,11;

que leva a uma fé verdadeiramente trinitária” (De

16.20; Cl 6.18); “Cristo Jesus, nosso Senhor”

Testamento” (De

L

acey,

L acey,

(e.g., Rm 6.23; ICo 15.31); “o Senhor Jesus Cris­

p. 202).

A bem da verdade, na história pessoal de

to” (e.g., 2Co 13.13); “o Senhor Jesus” (e.g.,

Paulo, há 0 registro de uma “reinterpretação

Rm 14.14; ICo 11.23). Essas expressões se en­

radical do credo de Israel” em resultado de sua

contram especialmente (mas nunca de modo ex­

experiência cristofânica, na qual Deus escolheu

clusivo) nas introduções e conclusões das cartas

“ revelar seu Filho” ao apóstolo (Cl 1.16), e não

de Paulo, em saudações e despedidas, nas quais,

devemos minimizar as “revelações” e contribui­

como já se observou, acredita-se que Paulo faz

ções de Paulo ao considerar as implicações disso.

uso das fórmulas de saudação e de invocação de

A fraseologia de ICorintios 8.6, com suas alusões

bênção utilizadas nas assembleias de adoração

a Deuteronômio 6.4 e à rechação do Shemá pe­

dos cristãos primitivos. Talvez aqui estejamos

los judeus, pode muito bem ser uma amostra da

vislumbrando uma fraseologia dehberadamente

criatividade de Paulo ao se expressar e também

grandiloquente, proveniente da hturgia do perío­

de sua habihdade retórica. Contudo, é possível

do cristão mais remoto. Sintaticamente, nessas expressões

que muitos outros cristãos (até mesmo cristãos judeus, cuja fé não era resultado do ministério do

“Jesus”

(acompanhado ou não de “ Cristo”) identifica o

apóstolo) tenham chegado ao “ marco significati­

“Senhor” , e “Senhor” define quem é Jesus para

vo” a que De Lacey se refere, à reverência por Je­

os cristãos, além da relação destes com ele. Ou

sus como kyrios, com a conotação de sua posição

seja, nessas expressões, parece básico o significa­

divina, mas dentro dos limites da tradição bíblica

do original do termo kyrios com a denotação de

sobre a singularidade e a supremacia de Deus.

alguém superior, ou “mestre” , ou “amo”. Jesus é

Os indícios considerados acima sobre as acla­

o “mestre” ou “amo” dos cristãos, os quais, por

mações coletivas de Jesus como kyrios dão a en­

sua vez, são seus seguidores, seus súditos, e sem

tender que o conceito elevado que Paulo tinha

dúvida lhe prestarão obediência.

de Cristo representava a ideia dos cristãos com

Como designação de Jesus, kyrios aparece

quem o apóstolo se relacionava e das igrejas cuja

com maior frequência em Paulo (cerca de cem

devoção ele conhecia. E, como já foi demonstra­

vezes nas cartas que estamos examinando) sem

do, devemos considerar os cristãos judeus de fala

estar acompanhado de outro título, mas apenas

1204

S enhor ii : Paulo

na forma absoluta, “ o Senhor” [ho kyrios, e.g.,

em determinados tipos de declarações e contex­

Rm 14.5,8; 16.2,8,11-13; ICo 3.5; 4.4,5). É como

tos. Ele assinala que as referências a Jesus como

se “o Senhor” fosse uma forma abreviada de se

kyrios são especialmente frequentes nas passa­

referir a Jesus, e Paulo não sente nenhuma neces­

gens exortativas de Paulo. Kreitzer e Capes con­

sidade de identificar os termos para deixar claro

firmam que as referências a Jesus como kyrios

quem é designado como “ o Senhor”. Como já se

tendem a ocorrer em certos tipos de contextos,

observou, parece que o equivalente à designação

especialmente nas passagens exortativas e esca­

de Jesus apenas como ho kyrios, ou seja, "o Se­

tológicas de Paulo. Entretanto, é necessário iden­

nhor” , entre grupos cristãos de fala aramaica foi

tificar pelo menos três tipos de declarações em

0 termo mãryã ’, que Paulo tomou emprestado dos

que se faz referência a Jesus como kyrios, cada

que o precederam na fé. 0 fato é que em parte

uma refletindo uma maneira importante em que

alguma Paulo considera necessário justificar ou

Paulo e os irmãos na fé se relacionam com Cristo

explicar essa maneira de se referir a Cristo, dando

como Senhor. 0 uso paulino não é inflexível, mas

a entender que se tratava de uma prática já bem

podemos identificar a tendência de se referir mais

estabelecida entre os cristãos de sua época.

vezes a Jesus como kyrios nesses contextos.

A exemplo do que ocorre nas construções

3.4.1

Contextos parenéticos. Sem dúvida, é o

mais completas, devemos ver a conotação básica

caso quando Jesus é chamado kyrios nas passa­

de “ Senhor” ou “Mestre” na forma absoluta ho

gens em que Paulo trata de questões do comporta­

kyrios, utihzada em referência a Jesus. Ou seja,

mento cristão. Podemos tomar Romanos 14.1-12

Jesus é aquele que os cristãos devem conside­

como exemplo. Nessa passagem, Paulo aconse­

rar um ser supremo, a quem devem obediência

lha os crentes que divergem em questões de ali­

e a quem veem como alguém que Deus desig­

mento e do calendário religioso a não julgarem

nou para ser o agente único da redenção e do

duramente uns aos outros. Quer comam, quer

juízo. Por meio de sua morte e ressurreição, agora

se abstenham de comer, quer considerem um

Jesus recebeu autoridade para exercer senhorio

dia especial, quer considerem iguais todos os

(Rm 14.9, kyrieuõ), que agora os cristãos, por li­

dias (Rm 14.5-8), Paulo incentiva-os a crer que

vre vontade, reconhecem ao chamá-lo “ Senhor”.

a motivação que têm em comum é fazer “para o

Contudo, é bom lembrar que Paulo e outros

Senhor”. Ele então define a existência cristã em

cristãos empregaram o termo kyrios algumas vezes

geral como viver e morrer “para o Senhor” , a

em referência a Jesus com uma conotação mais

quem pertencera (Rm 14.9).

específica, porém de significado bem abrangente.

Para

citar

outra

passagem,

em

1Corín­

Como já se observou, em algumas passagens pau­

tios 6.13— 7.40 (em que Paulo trata de várias

linas o termo kyrios é aplicado a Cristo para asso­

questões ligadas às relações sexuais), a principal

ciá-lo diretamente com Deus, até mesmo deixando

maneira de o apóstolo se referir a Jesus é como

implícito que ele partilha do nome divino. É possí­

“o Senhor”. Proibindo relações com prostitutas,

vel que nem todas as vezes que se referiu a Jesus

Paulo proclama que o corpo do cristão é “para o

por meio de expressões como “o [nosso] Senhor

Senhor” (ICo 6.13). É do “ Senhor” a ordem, que

Jesus Cristo” ou mesmo com o termo “Senhor” o

ele pode ou não citar (ICo 7.10-12,15), quando

apóstolo estivesse pensando no sentido mais pro­

responde às perguntas que lhe foram enviadas de

fundo e exaltado de kyrios. Mas é prudente inferir

Corinto acerca de pessoas casadas e não casadas

que um vestígio da conotação mais exaltada estava

(quanto a referências sobre os mandamentos do

presente nessas ocasiões. Ou seja, embora a ênfase

“ Senhor” , v. ICo 9.14; 14.37.) Ahás, aqui e em

do termo variasse de uma ocasião para outra, é

outras passagens Jesus, “ o Senhor”, define a esfe­

provável que as várias conotações ou ênfases de

ra da existência cristã. Os cristãos são chamados

kyrios afetassem umas às outras no uso do termo

“pelo Senhor” (ICo 7.22); os solteiros têm menos

por parte de Paulo e de outros cristãos.

distrações, por isso conseguem se dedicar mais

3.4

Contextos. Em seu estudo sobre os títu­ “ao Senhor” (ICo 7.32-35); a viúva pode tornar

los cristológicos de Paulo, W. Kramer destaca o

a casar-se somente “ no Senhor” (ICo 7.39, i.e.,

fato de que títulos distintos tendem a ser usados

dentro da comunidade cristã).

1205

iENHOR II: KAULO

Em Romanos 16.2-20, Paulo emprega repeti­

referência à esperança na volta iminente de Cris­

das vezes a expressão “no Senhor” ao se referir

to. Como demonstra ICorintios 15.23, com sua

a pessoas no contexto da comunidade cristã e do

referência à “vinda” escatológica de “ Cristo” ,

serviço a Cristo (Rm 16.2,8,11-13). Comparem-

existe certa variação nos termos que Paulo uti­

se essas recomendações com sua crítica a certos

liza em referências escatológicas, bem como em

perturbadores que “não servem a Cristo, nosso

outros tipos de declarações. Mas em geral sua

Senhor” (Rm 16.18). A expressão “a obra do Se­

tendência era usar o título “Senhor” em passa­

nhor” talvez seja para ele uma forma de se referir

gens que têm em vista a manifestação e a vitória

ao envolvimento cristão na promoção do evange­

escatológicas de Jesus (v.

e s c a t o l o g ia ) .

lho (ICo 15.58; 16.10). E Paulo diz que suas an­

Às passagens citadas aqui, devemos acrescen­

danças, motivadas por seu ministério, dependiam

tar as referências anteriormente mencionadas,

da vontade do “ Senhor” (ICo 4.19; 16.7).

em que Paulo se apropria do conceito/expressão

Em ITessalonicenses 1.6, Paulo cumprimenta

veterotestamentário “dia do Senhor” para des­

os tessalonicenses por terem se tornado “nossos

crever a aparição escatológica de Jesus, às vezes

imitadores e do Senhor”, ao obedecer ao evange­

modificando a expressão do

lho, apesar das aflições. Em ITessalonicenses 4.1-

de fórmulas como “Senhor Jesus Cristo”. Ahás,

12, passagem em que Paulo exorta os crentes a

é provável que a expressão veterotestamentária

at

mediante o uso

observar as instruções éticas que haviam recebi­

“dia do Senhor” e a esperança que ela veio a re­

do, ele usa o título “ o Senhor Jesus” (ITs 4.1,2),

presentar na tradição judaica antiga tenham in­

ou simplesmente “ Senhor” (ITs 4.6).

fluenciado a tendência paulina de usar “Senhor”

Em suma, podemos dizer que esses exemplos

quando menciona a volta de Jesus. E, levando em

mostram que Paulo tendia a se referir a Jesus

conta a familiaridade de Paulo com o

como “ Senhor” em contextos em que ele instruía

é provável que devamos ver as referências do

suas igrejas na obediência cristã e, de maneira

apóstolo ao “dia do Senhor [Jesus]” como indica­

mais geral, ao se referir à vida e relacionamentos

ção de que, para ele, Jesus estava associado com

cristãos e ao serviço envolvido na propagação da

Deus e agiria no papel escatológico de Deus.

at,

também

mensagem do evangelho. Na condição de kyrios

Assim, nessas declarações escatológicas, a

de seus seguidores, Jesus reivindica a obediên­

menção a Jesus como kyrios tinha a conotação de

cia deles e define a esfera na qual devem dedicar

algo que ia além do sentído básico de “mestre”,

seus esforços.

“amo” ou “ senhor”. Nessas declarações, o “ Se­

3.4.2

Contextos escatológicos. É possível iden­ nhor” Jesus está revestido de atributos e funções

tificar como escatológico um segundo tipo de

de Javé. Sua aparição escatológica implica julgar

contexto e de declaração em que Paulo tende a

todas as coisas e trazer vitória divina sobre todo

chamar Jesus de kyrios. Examinemos, por exem­

o mal. Como demonstrado por Kreitzer, alguns

plo, as várias referências ao retorno escatológico

escritos judaicos pré-cristãos mostram que já se

de Jesus em ITessalonicenses, em que se usa o ter­

havia desenvolvido a noção de um personagem

mo kyrios, quer isoladamente (quatro vezes), quer

messiânico agindo em nome de Deus com o intui­

com identificadores (“o Senhor”, ITs 4.15-17; “dia

to de operar a redenção escatológica. Nisso existe

do Senhor” , ITs 5.2; “nosso Senhor Jesus Cristo” ,

precedente para que Paulo mencione o fato de Je­

ITs 5.23; “nosso Senhor Jesus”, ITs 2.19; 3.13).

sus desempenhar o papel que originariamente era

Ainda outro exemplo desse emprego é 1Co­

de Deus. Contudo, é significativo que nos escritos

ríntios 1.7,8, que descreve os coríntios como

de Paulo e em outras passagens do

pessoas que aguardavam a “revelação” e o “Dia”

apenas atue em lugar de Deus nas projeções da

nt

Jesus não

de “ nosso Senhor Jesus Cristo”. E em ICorín-

esperança escatológica, mas também seja men­

tios 4.1-5 Paulo menciona a vinda escatológica

cionado como o “ Senhor” cujo “dia” de triunfo

do “ Senhor” , o qual fará o julgamento definiti­

escatológico é aguardado com expectativa. Essa

vo de Paulo e de outros ministros do evangelho

associação entre Jesus e Deus — na ação esca­

(ICo 4.4,5). Deve se interpretar a curta frase “ 0

tológica e no título — encontra paralelos no

Senhor está perto” (Fp 4.5) como uma provável

onde, no entanto, parece comparativamente mais

1206

nt

,

Senhor íi : Paulo

pronunciada e sistemática do que nas referências

de Jesus como kyríos nas assembleias cristãs pri­

judaicas pré-cristãs a agentes importantes da vi­

mitivas, a respeito da qual já vimos indícios. Essa

tória escatológica de Deus.

expressão e as referências ao “poder” do Senhor

3.4.3

Contextos litúrgicos. No que diz respeito e ao seu “dia” escatológico mostram que o termo

ao emprego paulino do termo kyrios para desig­

kyríos é aqui aplicado a Jesus com uma conotação

nar Jesus, 0 terceiro tipo de passagem e contexto

de atributos e funções transcendentes e semelhan­

que devemos destacar tem ligação com a vida

tes aos que são associados a Deus.

de adoração dos mais antigos grupos cristãos. Já

Assim, tanto o emprego de kyríos para designar

mencionamos a identificação de passagens pau­

Jesus quanto a conotação transcendente do título

linas que são indícios de fórmulas e práticas an­

parecem típicos das passagens paulinas em que se

tigas de aclamação que, nas reuniões cristãs de

faz referência direta às reuniões crístãs de adoração

adoração, eram usadas como confissões litúrgicas

ou nas quais as expressões presentes no contexto

(provavelmente coletivas) de Jesus como kyrios.

nos permitem inferir tais reuniões. Como último

Também assinalamos que em geral se acredita

exemplo, podemos examinar ICorintios 11.17-

que as introduções e conclusões das cartas de

23. A refeição sagrada da reunião cristã é “a ceia

Paulo, com suas grandiloqüentes referências a

do Senhor” [kyriakon deipnon, ICo 11.20; cf. a

“o [ou nosso] kyrios Jesus Cristo” (ou “Cristo Je­

“mesa do Senhor”, ICo 10.21; v.

sus, nosso kyrios"), em declarações de saudação

De modo sistemático, a passagem menciona Jesus

c e ia d o

Senhor).

e despedida, igualmente ecoam o vocabulário da

como kyríos (ICo 11.23,26,27,32). Provavelmente,

adoração cristã primitiva. Aqui, a ideia que se

o contexto da adoração e a alusão à aparição es­

deve reiterar é que todos esses usos de kyrios têm

catológica (“até que ele venha”) é que exphcam a

origem, ao mesmo tempo, no ambiente das reu­

expressão “a morte do Senhor” (ICo 11.26), um

niões cristãs de adoração e comprovam que esse

contraste marcante com a tendência de Paulo de

ambiente foi um dos mais antigos e importantes

usar “ Cristo” quando se refere à morte de Jesus (v.

contextos e fontes de aplicação de kyrios a Cristo.

C r is t o ,

Em mais uma ilustração, podemos examinar

m o r t e de) .

Temos então três tipos principais de contex­

ICorintios 5.1-5, que trata do homem culpado de

tos pauhnos em que o apóstolo costuma empre­

pomeia ( “imorahdade sexual”) “com a mulher de

gar kyríos para designar Jesus, refletindo três

seu pai”. Paulo exige que, no ambiente da igreja

situações da igreja primitiva em que Jesus era

reunida, haja ação disciplinadora, e estamos par­

contemplado com esse título. Nas declarações e

ticularmente interessados em observar a maneira

passagens exortativas de Paulo, o kyríos Jesus é

em que ele descreve a reunião cristã. Provavel­

0 “mestre” cujo ensino e exemplo exercem auto­

mente, devemos pontuar ICorintios 5.3-5 com

ridade sobre a conduta cristã. Nas referências às

um ponto final em ICorintios 5.3, interpretando a

expectativas escatológicas, parece que a designa­

expressão “em nome do Senhor Jesus” (ICo 5.4)

ção de Jesus como kyríos reflete a convicção de

como referência ã assembleia cristã. Assim, deve

que Jesus foi designado kyríos no papel escatoló­

se ler ICorintios 5.4,5 da seguinte forma: “ Quan­

gico de Deus. Por último, nas referências paulinas

do estiverdes reunidos em nome do Senhor Jesus,

às reuniões de adoração do cristianismo primiti­

eu também presente em espírito, com o poder de

vo e em seu vocabulário de influência litúrgica,

nosso Senhor Jesus deveis entregar esse homem a

kyríos designa Jesus como aquele ser transcen­

Satanás para a destruição de sua carne, para que

dente e exaltado que recebeu o “ nome” divino e

seu espírito seja salvo no dia do Senhor”.

foi incorporado à vida devocional e litúrgica do

Embora a ocasião dessa assembleia em particu­

cristianismo primitivo.

lar possa ter sido incomum, os termos que Paulo

Não se devem separar inteiramente esses três

utiliza para descrever a reunião cristã são prova­

contextos. Em cada um desses tipos de passa­

velmente usuais, e devemos ressaltar aqui a ideia

gens, podemos distinguir ênfases variáveis do

de que Jesus é repetidamente chamado kyrios. Os

termo kyríos em sua aplicação a Cristo, mas as

coríntios reúnem-se “em nome do Senhor Jesus”,

conotações provavelmente também estavam as­

uma provável alusão a uma invocação e aclamação

sociadas umas às outras no pensamento rehgioso

1207

J tlM M U K II. T A U L U

de Paulo e dos cristãos primitivos em geral. Em alguns casos, a associação é explícita, como em

Ver também S a n t o ; F il h o

Filipenses 2.9-11, em que a aclamação futura uni­ versal, Kyrios lêsous Christos, ecoa na aclamação

D Pc: nos;

de

C

D

r is t o ;

c r is t o l o g i a ;

D

eus;

E s p í r it o

eus.

e x a l t a ç ã o e e n t r o n i z a ç ã o ; im p e r a d o r e s r o m a ­

Salvad o r.

cristã de Jesus no ambiente de adoração e por sua vez antevê a aclamação futura universal. Ou

Bibliografia. B o u s s e t ,

podemos citar, mais uma vez, ICorintios 11.26,

Abingdon, 1913. ■ ______ . ______ . Nashvüle:

W. Kyrios Christos. Nashvüle;

em que a celebração litúrgica que realizamos

A bin gd on , 1970. • Burton, E. D. A criticai and

hoje da morte do kyrios Jesus na refeição sagra­

exegetical commentary on the Epistle to the Gala­

da está ligada a sua aparição escatológica. Nas

tians. Edinburgh: T & T C lark, 1921. p. 392-417.

referências pauhnas ã adoração cristã primitiva,

(;cc.) ■ Capes, D. B. Old Testament Yahweh texts

Jesus é o kyrios cuja autoridade sobre a igreja é,

in Paul’s christology. T übingen: J. C. B. Mohr,

no momento presente, real e inseparável de seu

1992. { wunt, 2147.) • Casey, P. M. From Jewish

domínio futuro sobre todas as coisas, e se tornará

prophet to gentile God. Louisville: W estm inster

manifesto no “ dia do Senhor”.

John Knox, 1991. ■ Cerfaux, L. Kyrios dans les citation s p au lin ien n es de I’A n cie n Testam ent.

4. Resumo

In: Akam, N. R ecueil L u cien C erfaux: études

Em qualquer análise da ideia paulina a respei­

d ’ exégèse et d ’histoire religieu se de M onseig-

to de Cristo, o termo kyrios deve ocupar o lugar

neu r C erfau x. G em bloux: D uculot, 1954. v. 1.

central. Em Paulo, ele tem várias funções e é enri­

• Cullmann, O. The christology o f the New Tes­

quecido por conotações diversas. O termo expres­

tament.

Ph iladelphia:

sa a relação entre os cristãos e Jesus como seus

______ .

_______.

1957.

W estm inster,

Philadelphia:



Westminster,

súditos e seguidores de seu Mestre, como se vê

1963. •

na expressão “nosso Senhor Jesus Cristo”. Em Fi­

language. In:

lipenses 3.8, Paulo fala desse relacionamento em

Minneapohs: Fortress, 1991. p. 113-36. •

termos bem pessoais, quando menciona “ Cristo

cey,

Jesus, meu Senhor”. Por Jesus ser o kyrios, seu

R

exemplo e suas ordens são, nas cartas de Paulo,

christology presented to Donald Guthrie. Dow­

D

N. A. Sources of Christological

,

Ju e l, D . H .,

org. Jesus the Christ. D

e

L

a

­

“ One Lord” in Pauline christology. In:

D . R.

owdon,

ahl

H. H., org. Christ the Lord: studies in

autoridades inquestionáveis sobre o comporta­

ners Grove: InterVarsity, 1982. p. 191-203.

mento cristão. Paulo reflete a aclamação de Jesus

ter,

W. &

Q

G.

uell,

F oers­

ktA. tdnt. [SL: s.n.,

K Ú p io ç

como kyrios no ambiente da adoração, que ele

s.d.]

entende ser o padrão e a prefiguração do reconhe­

tic background of the New Testament Kyrios-ti-

cimento universal de Jesus como Senhor, quan­

tle. In :______ . A wandering Aramean: collected

do este vier na glória escatológica. No entanto, a

Aramaic essays. Missoula: Scholars, 1979. p.

V.

3, p. 1039-98. •

F it z m y e r , J.

A. The Semi­

glória divina de Jesus, o Senhor, já foi revelada a

115-42. {sBLMs, 25.) ■ H u r t a d o ,

Paulo. Por conseguinte, Paulo vê Jesus de modo

Christ: devotion to Jesus in earhest Christianity.

L.

W. Lord Jesus

inacreditavelmente exaltado, o que lhe permite

Grand Rapids: Eerdmans, 2003. • ______ . New

aplicar a Jesus passagens do

Testament christology: a critique of Bousset’s

at

que dizem res­

peito a Javé e fazer a representação do kyrios Je­

influence, ts,

sus como o agente de toda a criação e redenção

One God, One Lord: early Christian devotion

(ICo 8.6). Resumindo, em pelo menos alguns ca­

and ancient Jewish monotheism. Philadelphia:

v

.

40, p. 306-17, 1979. • ______ .

sos, a aphcação pauhna de kyrios a Jesus denota

Fortress, 1988. ■

a convicção de que Jesus passou a participar dos

o f God. London:

scm

,

atributos e da honra do “nome” de Deus (com

______ . London:

scm

,

tudo o que isso representava no

L. J. Jesus and God in Paul’s eschatology. Sheffield:

at

e na antiga

K

ram er,

W. Christ, Lord, Son

1963.

(sbt,

50.) ■ ______ .

1966. { s b t , 50.)

■ K

r e it z e r ,

tradição judaica). Ele se tornou portador da gló­

js o t,

ria de Deus em tal plenitude e singularidade que,

glory christology: tradition and rhetoric. Leiden;

na honra e na reverência devidas a Jesus, só era

E.

possível compará-lo e associá-lo a Deus, “o Pai”.

1208

1987. {jsNTSup, 19.) ■

N ew m an, C. C.

Paul’s

J. Brin, 1992. {NovTSap, 69.) L. W.

H

u rtado

S enhor iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse

S enhor

iii:

G

A

e r a is ,

A

tos,

H

ebreus,

C artas

Atos e passando depois para os hvros de Hebreus, Tiago e Judas, as cartas petrinas (v.

p o c a l ip s e

Qualquer análise do

n t,

em particular das cartas

ra

C a rta

de; P e d ro ,

de Paulo, mostrará a importância do termo kyrios

joaninas (v.

para a igreja primitiva (v.

c a lip s e , L i v r o d e ) .

Sen h or

I). A fé da igreja

S egu n da C a rta

João, c a rta s d e )

primitiva envolvia confessar que Jesus é o kyrios

1. Atos dos Apóstolos

ressuscitado e exaltado (ICo 9.1; 12.3; Rm 10.9;

2. Hebreus

P e d r o , P r im e i­ d e ),

Fp 2.9-11). Essa confissão baseava-se em grande

3. Tiago e Judas

parte no que aconteceu com Jesus depois de sua

4. 1 e 2Pedro

morte (v.

5. As cartas joaninas e Apocahpse

C r is t o , m o r te d e ),

como se vê pelo fato

de o termo kyrios, quando encontrado em textos

as cartas

e Apocalipse (v.

Apo­

6. Resumo

de diálogos nos Evangelhos como forma de tra­ tamento a Jesus, quase sempre ter o sentido de

1. Atos dos Apóstolos

“mestre” ou de “prezado senhor”, não de “ser di­

0 termo kyrios aparece 104 vezes em Atos, e

vino” (mas

em pelo menos 18 dessas ocorrências se refere

V.

Mc 12.25-37;

W ith e r in g to n ,

1990).

À semelhança de seu equivalente aramaico

a Deus, em 47 a Jesus, em 4 a mestres, proprie­

mãrêh, normalmente kyrios transmitia a ideia de

tários ou governantes, e as referências restantes

um ser humano superior a outro ser humano ou a

dizem respeito a Jesus ou a Deus, embora nesses

um grupo de pessoas, ou ainda que estava acima

casos não esteja claro de quem se está falando

deles. O termo kyrios diz algo acerca da posição

(cf.

da pessoa na relação que ela tem com coisas ou

uso do termo, até quando aparece com o artigo,

com outras pessoas. Isso fica demonstrado no

para se referir a um governante secular (At 25.26,

fato de que, muitas vezes, em contextos sociais,

que é uma referência a Nero) ou ao proprietá­

kyrios forma par com o termo doulos (“escravo” ,

rio ou dono de um escravo (At 16.16,19), mas

“ servo”). Aquele é senhor deste. Não é de surpre­

seu interesse não está aí. Em alguns textos, não

ender que os primeiros cristãos tenham se apro­

há dúvida de que kyrios se refere a Jesus, por­

priado dessa terminologia para se referir ao Jesus

que o termo aparece ao lado do nome “Jesus”

K ee,

p. 19). Lucas está familiarizado com o

ressuscitado. No mundo greco-romano, utilizava-

(At 1.21; 4.33; 8.16; 15.11; 16.31; 19.5,13,17;

se o termo em referência a seres exaltados, entre

20.24,35; 21.13) ou da forma combinada “Jesus

os quais deuses e semideuses (cf. ICo 8.5), e para

Cristo” (At 11.17; 15.26; 28.31). Em outros casos,

os cristãos primitivos seu relacionamento com o

0 contexto deixa evidente se está falando de Jesus

Jesus ressuscitado era semelhante ao de um doa-

(e.g., At 9.5,10,11). Em alguns casos, em citações

los com um kyrios (cf. de Rm 1.1 a 2Pe 1.1). Ten­

do AT que trazem kyrios combinado com theos,

do visto esses antecedentes, estamos preparados

é evidente que a passagem está se referindo a

para examinar o uso do termo kyrios fora dos

Deus, não a Jesus (At 2.39; 3.22). Seria possí­

Evangelhos e dos escritos paulinos.

vel solucionar parte da confusão se tívéssemos

Fora dos Evangelhos e dos textos paulinos,

certeza de que Lucas não recorre ao conceito do

0 termo kyrios é usado de várias maneiras. Em

Filho de Deus preexistente, mas textos como Atos

alguns casos, parece ter conotação funcional sim­

2.25 talvez mostrem que esse conceito não lhe

ples, denotando um papel que Jesus ou Deus de­

era estranho. A notável citação de Salmos 110.1

sempenham, mas em outros contextos parecem

em Atos 2.34, a qual faz referência a Deus e a

mostrar algo sobre quem Jesus é, a saber, alguém

Jesus como kyrios, mostra que Lucas estava pre­

que pode estar ao lado do Criador no contraste

parado para usar o termo com grande flexibilida­

Criador/criatura. Esse tipo de distinção, porém,

de. Seria errado, porém, concluir com base nesse

apresenta algumas limitações. Uma recapitulação

texto que Lucas via Jesus apenas como o Senhor

das passagens relacionadas mostra que os cris­

dos crentes, pois em Atos 10.36 Jesus é chama­

tãos primitivos usavam kyrios ora com o sentido

do “Senhor de todos” [pantõn kyrios). Não foi só

de Cristo, ora com o sentído de Deus. Analisa­

o uso do termo kyrios para designar Jesus que

remos as evidências, começando com o hvro de

provocou 0 rompimento entre o cristianismo e

1209

3ENHÜR i ii : m i o s , ntBREUS, UARIAS U tRA IS, APOCALIPSE

O

antigo

ju d a ís m o .

Os cristãos também quiseram

se apropriar do termo e dos textos do

de evitar anacronismos, mas também demons­

em que

tra que ele não deseja quebrar a lógica interna

kyrios tinha o sentido mais exaltado de Senhor di­

da narratíva, ruptura que levaria os personagens

vino (referindo-se a Javé) e aplicar a Jesus esses

a dizer mais do que deveriam em determinado

textos e os conceitos associados (cf.

at

1991).

momento. A teoria de que Lucas é adocianista

Em gerai, quando uma expressão ou conceito do

baseia-se em textos como Atos 2.36: “Esse mes­

como “ dia do Senhor” (At 2.20), “anjo do Se­

mo Jesus, a quem crucificastes. Deus o fez kyrios

AT,

Dunn,

nhor” (At 5.19; 12.11,23), “o temor do Senhor”

e Cristo”. O problema é que aqui, como em outras

(At 9.31) ou “a mão do Senhor” (At 13.11), apare­

passagens de Atos, Lucas emprega a terminologia

ce no texto, é provável que nesses textos “Senhor”

cristológica de forma que se ajuste à narrativa.

tenha o sentido de “Deus”. A expressão “a palavra

Do ponto de vista de Lucas, em nenhum sentído

do Senhor”, especialmente quando interpretada

pleno Jesus assumiu os papéis de Senhor e Mes­

como genitivo objetivo (em português, adjunto

sias sobre todos, senão depois da ressurreição e

adnominal: a palavra acerca do Senhor), parece

da ascensão. Não é que Jesus se tornou alguém

se referir a Jesus (At 8.25; 13.44,49; 15.35,36;

diferente, mas que entrou em uma nova etapa de

19.20), assim como a expressão “ o caminho do

sua carreira ou assumiu novos papéis depois da

Senhor” (At 18.25). Além disso, é provável que a

ascensão (cf.

expressão “o nome do Senhor” (At 18.25) se refi­

exaltado Jesus poderia assumir as tarefas de Se­

ra a Jesus, especialmente quando se têm em vista

nhor sobre todos e de Messias universal.

textos mais claros, como Atos 19.5,13,17.

Dunn,

1980). Só na condição de ser

Lucas interessa-se pela história de Jesus desde

Uma das chaves para entender o uso de kyrios

seu nascimento até o momento em que, dos céus,

por Lucas no livro de Atos é reconhecer a estru­

assume o papel de Senhor e passa a exercê-lo,

tura narrativa (que inclui um componente his­

embora um texto como Atos 2,25 talvez seja um

tórico), na qual ele considera todas as questões

sinal de que Lucas conhecia o conceito do Senhor

cristológicas (sobre teologia em estruturas narra­

preexistente (cf. At 2.25;

tivas,

Narrrative, 1994). Devem se

acerca de Jesus e a evolução dessa narratíva que

comparar as referências a kyrios em Atos com o

influem no modo em que a terminologia é em­

material do Evangelho de Lucas para apurar as di­

pregada, não a preocupação em solucionar o de­

ferenças, mas 0 que Lucas diz a respeito de Jesus

bate ocorrido mais tarde sobre as ideias opostas

V. W i t h e r i n g t o n ,

C r a d d o c k ).

É a narrativa

depende do momento da carreira de Jesus que

de cristologia funcional e cristologia ontológica.

Lucas está analisando. Deve se indagar se Lucas

Além do mais, distínções sutis entre ser e fazer

está se referindo a Jesus durante seu ministério

teriam parecido impróprias para Lucas. 0 Senhor

histórico ou ao que ele acredita ser válido afirmar

Jesus é capaz de fazer o que faz por ser quem ele

sobre Jesus após a ressurreição e a ascensão.

é. Na mente de Lucas, os papéis que ele assume

Por exemplo,

é amplamente reconhecido

são apropriados ao Jesus exaltado. “Senhor” não

que, em seu Evangelho, Lucas emprega o termo

é visto como simples título honorífico de Jesus,

kyrios na estrutura narrativa e nos comentários

mas como descrição de sua condição e atividade

editoriais de maneira diferente dos demais Si­

após a ressurreição.

nóticos, enquanto, ao mesmo tempo, nenhum

0 termo kyrios é o título cristológico mais usa­

personagem na narrativa do Evangelho chama

do em toda a obra de Lucas-Atos, sendo emprega­

Jesus de kyriosi, a menos que esteja sob inspi­

do quase duas vezes mais que o termo “ Cristo”.

ração (Lc 1.43,76), tenha a parficipação de um

Das 717 ocorrências de kyrios no

anjo (Lc 2.11) ou envolva Jesus referindo-se indi­

ria encontra-se ou em Lucas-Atos (210 vezes) ou

retamente a si próprio (Lc 19.31,34; cf.

nas cartas pauhnas (275 vezes)

F it z m y e r ,

n t,

a vasta maio­

(B ie t e n h a r d , v .

2,

1981). Entretanto, assim que a narratíva chega

p. 513). Esse destaque está em conformidade com

ã ressurreição, vários seres humanos passam a

a ênfase de Lucas ã soberania de Deus sobre a

usar kyrios em referência a Jesus (cf. Lc 24.34;

história e na história ã medida que ela expres­

At 10.36-38;

Em parte, isso pode ser ex­

sa o plano divino da salvação e à medida que

plicado como um exemplo do desejo de Lucas

esse plano começa a se concretizar por meio de

M o u le ).

1210

S enhor iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse

Jesus (cf. Squires). Jesus é aquele que expressa

apostólicos de Atos 15, encontramos apenas um

e, em certo semido, executa o plano da salvação

texto em que kyrios parece claramente se referir

por meio de seus atos no tempo e no espaço e

a Deus, não a Jesus: no discurso apologético de

que, por meio de seus atos como Senhor exalta­

Paulo perante o Areópago (At 17.24). Ou seja, é

do, envia o Espírito Santo para agir na terra em

notável a ausência de referências a Deus como

seu nome e em seu lugar. É evidente que, para

kyrios em quase metade de Atos (a saber, a parte

Lucas, a conotação básica do termo kyrios é a de

que inicia em At 16). Nessa metade de Atos, Lu­

alguém que exerce domínio sobre o mundo e, em

cas pode ter se baseado no próprio conhecimento

particular, sobre a vida das pessoas e os aconte­

e em relatos de viagens.

cimentos em que estão envolvidas. É importante

Em algumas passagens, é possível argumen­

não subestimar o significado da transferência do

tar sobre quem é o referente: Deus ou Jesus. Por

termo kyrios de Javé para Cristo em vários pon­

exemplo, em Atos 2.47 “ o Senhor” é provavel­

tos de Atos. J. A. Fitzmyer declara: “ Quando, em

mente Deus (cf. At 2.34), mas em um texto como

seus escritos, Lucas usa kurios para designar tan­

Atos 21.14 kyrios pode se referir a Jesus ou a

to Javé quanto Jesus, ele emprega o título com o

Deus (cf. At 21.13). Em Atos 12.11,17 (cf. At 12.5)

significado que já estava sendo usado na comu­

parece que “ Senhor” se refere a Deus, o que fica

nidade cristã primitiva, a qual em algum sentido

mais claro em Atos 12.23. Mas em Atos 7.60,13.2

acreditava que Jesus estava no mesmo plano de

e 16.14,15 parece que as orações são dirigidas a

Javé” (Fitzmyer, 1981, p. 203). Da mesma forma

Jesus, que é ele quem é adorado e em quem se

que nas cartas paulinas. Atos mostra que a con­

crê (cf.

fissão básica da igreja primitíva é que Jesus é o

perturba Lucas, porque, em seu modo de ver, a

Senhor ressuscitado (cf. At 10.46; 11.16; 16.31;

terminologia é de igual modo apropriada para de­

Kee,

p. 20). Esse tipo de ambiguidade não

20.21). É no Jesus ressuscitado e exaltado que as

signar Deus ou Jesus, especialmente porque ele

pessoas são convidadas a crer, e a ele são tam­

via Jesus como objeto legítimo de adoração e al­

bém convidadas a se unir (At 5.14; 9.35; 11.17). O

guém a quem podemos fazem petições.

Senhor ressuscitado confrontou Saulo na estrada de Damasco (At 9.10-17; 18.9), e a ele os crentes

2. Hebreus

devem se manter fiéis (At 20.19). Foi com o Se­

Das dezesseis referências a kyrios em Hebreus,

nhor Jesus que os primeiros discípulos andaram

apenas três dizem respeito a Jesus (Hb 2.3; 7.14;

(At 1.21), cujo ensino Paulo pôde citar (At 20.35),

13.20). As restantes apontam para Deus. Com

e é o Senhor quem comissiona as pessoas para o

uma única exceção (Hb 8.2), as treze referências

ministério (At 20.24). Nesses textos, parece que

a Deus encontram-se em citações ou paráfrases de

o nome Jesus é posto ao lado de kyrios para não

textos do AT que são importantes para a argumen­

deixar dúvidas sobre a identidade desse Senhor.

tação do autor: Salmos 102.25 (cit. em Hb 1.10);

A continuação dessa identidade nos períodos

Salmos 110.4 (cit. em Hb 7.21); Jeremias 31.31-34

anterior e posterior ã ressurreição torna possível

(cit. em Hb 8.8-11); Jeremias 31.33 (cit. em

para Lucas referir-se à atividade e ao ensino de

Hb 10.16); Provérbios 3.11,12 (cit. em Hb 12.5,6);

Jesus na terra pelo emprego do termo kyrios, em­

Salmos 118.6 (cit. em Hb 13.6). É surpreendente

bora ele saiba que Jesus não assumiu plena ou

o fato de o autor não enxergar em nenhum dos

verdadeiramente os papéis de Senhor exaltado

textos do

senão depois da ressurreição.

visto que o prólogo (Hb 1.1-4) fala do papel de­

Em outros textos em que kyrios designa o

at

uma alusão a Jesus como Senhor,

sempenhado pelo Filho preexistente nos atos da

Senhor Deus, não Jesus (At 2.39; 3.20,22; 4.26;

Criação (cf.

7.31; 10.4,33), essas referências são encontradas

ser explicado em parte pelo fato de o autor não se

ou nos primeiros capítulos de Atos, ou nos lábios

permitir uma interpretação midráshica para atua­

de judeus ou prosélitos do judaísmo. À medida

lizar 0

AT,

que se avança em Atos e que mais cristãos falam

(cf. G.

H u g h e s ).

por si mesmos, o termo “ Senhor” quase sempre

vontade para usar o termo “ Senhor” para o Je­

designa Jesus. Depois do concího e do decreto

sus terreno que anunciou salvação aos primeiros

1211

W it h e r in g t o n ,

Sage, 1994). Isso pode

enquanto o emprega tipologicamente O autor de Hebreus se sente à

iENHOR i i i : a t o s , HEBREUS, 1_ARTAS LiERAIS, APOCAUPSE

seguidores (Hb 2.3), e ainda mais revelador é o

Devem os enfermos ser ungidos no nome do Se­

fato de que, ao mencionar a linhagem de Jesus,

nhor Jesus, para que ele os cure, ou seria essa

ele usa a expressão “ nosso Senhor”. Não há nada

também uma referência ao Senhor Deus, que res­

aqui que insinue uma teologia adocianista, mas

ponde às orações e às várias formas de petição,

está claro que não existe nenhum destaque para

como se vê em Tiago 1.5-7 e 5.4? A última op­

os papéis cósmicos de Cristo como Senhor do

ção parece a mais provável. Em Tiago, portanto,

Universo. 0 autor concentra-se no fato de que Je­

o termo “Senhor” refere-se normalmente àquele

sus é “nosso Senhor”, e em Hebreus, onde quer

que é e que sempre tem sido o Soberano do Uni­

que “ Senhor” se refira a Jesus, o assunto são

verso e objeto de oração. As referências a Jesus

seus papéis e experiências históricos (e.g., nas­

como Senhor em Tiago 1.1, 2.1 e provavelmente

cimento, proclamação, morte e ressurreição). É

5.7,8 referem-se a papéis que ele assumiu ou as­

possivel que um dos motivos de o autor se sentir

sumirá após a ressurreição, pelo que é apropriado

ã vontade para empregar o termo kyrios para de­

0 qualificativo encontrado em Tiago 2.1 (“nos­

signar Jesus durante seu ministério terreno seja

so Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória”). Essa

que ele o vê como ser humano perfeito, sem pe­

maneira de apresentar o assunto talvez considere

cado, e, desse modo, superior a todos os mortais

Jesus em sua condição de ressuscitado em glória,

(cf.

ou como alguém exahado à direita de Deus, ou

H o e k e m a ).

ambos. Parece que o escritor desse documento re­ 3. Tiago e Judas

flete o pensamento dos cristãos do período mais

0 uso de kyrios em Tiago é mais fácil de ana­

primitivo a respeito de Jesus, mantendo até o an­

lisar que em alguns hvros do

tigo fervor e a esperança de sua volta iminente.

n t.

Usa-se kyrios

em treze casos, e, com exceção de quatro, em to­

No que diz respeito à ênfase, o que vimos aci­

dos eles parece certo que a referência é a Deus,

ma contrasta de forma marcante com o uso de

não a Jesus. Caso não se percebam os ecos do

kyrios em outro documento cristão judaico anti­

Sermão do Monte em vários trechos de Tiago, as

go; Judas. Nessa carta, com a provável exceção da

referências ao Senhor Jesus Cristo em Tiago 1.1

referência ao Senhor Deus (Jd 9), cinco outras re­

e 2.1 são quase os únicos indicios de que esse

ferências a kyrios parecem aplicar-se a Jesus. Tex­

documento homilético é cristão (v.

tualmente, é incerto se em Judas 5 a leitura deve

W it h e r in g t o n ,

Sage, 1994). No contexto de um documento cris­

ser “ Senhor” ou “Jesus”. “Jesus” ou talvez “Jo­

tão, Tiago 5.7,8 provavelmente faz referência à

sué” é a leitura mais bem atestada (cf.

segunda vinda de Cristo. Quanto aos outros ca­

p. 726). Em Judas 4, Jesus é chamado “nosso úni­

sos de kyrios, nenhum deles reflete significados,

co Soberano [despotên] e Senhor”, Sua segunda

M e tzg e r,

percepções ou nuanças teológicos de natureza

vinda com os santos (anjos?) é mencionada em

especificamente cristã ou que não possam ser

Judas 14, e três vezes ele é chamado “ nosso Se­

encontrados de modo geral na antiga literatura

nhor Jesus Cristo” (Jd 17,21,25). É ele aquele que

sapiencial judaica. Assim, é o Senhor Deus a

não apenas está vohando, mas também trará aos

quem os crentes oram (Tg 1.5-7; 5.4 — o “Senhor

crentes a dádiva da vida eterna (Jd 21). 0 texto de

Sebaote” ou “ Senhor dos exércitos” — e a quem

Judas 25 dá a entender que é por meio dele que

adoram (Tg 3.9). Tendo em vista que a expressão

o ser humano se relaciona com Deus e lhe apre­

“o Senhor e Pai” (Tg 3.9) traz um único artigo de­

senta seus pedidos. Por fim, os apóstolos ou en­

finido, ela é, com certeza, uma referência a uma

viados do Senhor são mencionados em Judas 17,

única pessoa. É ao Senhor Deus que as pessoas se

a única referência em que o termo “Senhor” pode

submetem ou diante de quem se humilham (cf.

ser atribuído a Jesus durante seu ministério terre­

Tg 4.7,10), cuja vontade determina a duração da

no (cf.

B a u c k h a m ).

vida humana (Tg 4.15). Os profetas falaram em nome do Senhor Deus (Tg 5.10), e foi o Senhor que finalmente se com­

4. 1 e 2Pedro Das oito referências a kyrios em IPedro, apenas

padeceu de Jó (Tg 5.11). As referências finais

uma exemplifica o emprego não rehgioso do

ao termo “Senhor” (Tg 5.14,15) são ambíguas.

termo, designando um senhor humano (como

121 2

Senhor hi: A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse

Sara chamava Abraão, IPe 3.6), e a maioria dos

em 2Pedro 3.8-10,15 kyrios se refira a Deus (cf.

exemplos restantes envolve alusão a um texto ou

2Pe 3.12; sobre yôm Yahweh, v.

a uma citação do

1992).

a t.

Por exemplo, há várias alu­

W it h e r in g t o n ,

sões ao salmo 34. Em IPedro 2.3, há uma citação

Nessa carta, as demais referências dizem

de Salmos 34.8; em IPedro 3.12, há uma citação

respeito a Cristo, pois kyrios sempre forma

de Salmos 34.15,16. E ambos são exemplos de

par com “Jesus” (2Pe 1.2), com “Jesus Cristo”

kyrios. Embora na última chação pareça claro que

(2Pe 1.8,11,14,16; 3.18) ou com sõtêr (2Pe 3.2).

o texto está falando do Senhor Deus, em IPedro

0 autor de 2Pedro gosta de unir os termos kyrios

2.3 a referência pode ser a Cristo, cuja bondade

e “ salvador” (2Pe 1.11; 2.20; 3.2,18). Em nenhu­

os leitores descobriram e agora experimentam.

ma das cartas petrinas se dá maior atenção às

Um texto mais claro é IPedro 3.15, apelo para

dimensões cósmicas do senhorio de Cristo (mas

que se reconheça Cristo como o santo Senhor,

cf. IPe 3.21,22). Em vez disso, como demonstra

que talvez inclua uma alusão a Isaias 8.13. Nesse

o qualificativo “ nosso” , a atenção está dirigida

caso, a passagem oferece mais um exemplo de

para o governo e o domínio de Cristo sobre a

texto do AT usado homileticamente para afirmar

comunidade cristã e a vida de cada crente, es­

uma verdade a respeito de Jesus (cf.

pecialmente em 2Pedro (mas cf. IPe 1.3). Não

D a v ie s ).

Em IPedro 1.25, tendo em vista a expres­

é refletida em 2Pedro a ambiguidade que per­

são paralela “palavra de Deus” em IPedro 1.23,

cebemos quando alguns dos outros documentos

kyrios parece ser uma referência a Deus. Mais

do NT empregam o termo kyrios. Em cada caso,

uma vez, um texto do

nesse caso Isaías 40.6-

fica claro quando a referência é ou não a Cristo.

8, está sendo citado. Na ação de graças introdu­

Ao contrário de IPedro, o autor de 2Pedro não

tória (IPe 1.3), encontramos uma distinção clara

mostra a sutileza no uso do

entre Deus Pai e “ nosso Senhor Jesus Cristo”. O

senhorio divino.

a t,

at

para falar sobre o

texto diz que aquele que é louvado é ao mesmo tempo Deus e o Pai de Jesus. 0 que é menos

5. As cartas joaninas e Apocalipse

evidente em IPedro é se as menções ao kyrios

Tendo em vista o uso de kyrios no quarto Evange­

têm alguma ligação com o sentido implícito do

lho e em Apocahpse e considerando a cristologia

relato sobre as várias etapas da carreira de Jesus,

exaltada que se vê em IJoão, chega a ser sur­

embora em IPedro 1.20 (preexistência) e IPedro

presa que nas cartas joaninas não haja nenhuma

3.18-22 (sofrimento e expiação) seja possível en­

referência a Deus ou a Cristo como kyrios, nem

contrar pistas que apontam nessa direção. Mas,

mesmo o uso não religioso do termo. Por isso,

quando Cristo é o tema, a atenção concentra-se

devemos voltar a atenção para Apocahpse. Em

no que ele é agora e no que se deve confessar que

Apocalipse, há 21 ocorrências de kyrios. Nesse

ele é. Quando Deus é o tema, geralmente kyrios

livro, que é um pasticho de alusões e imagens do

é introduzido, porque o autor está citando o

a t.

AT com poucas citações diretas, o uso de kyrios,

Mesmo assim, o escritor aparentemente não se

particularmente na primeira metade do hvro,

acanha em usar o

at

para descrever as qualidades

assemelha-se ao que encontramos no

at

(cf.

B la ­

Além de Apocahpse 7.14 (em que o vocativo

exaltadas de Cristo como Senhor celestial — ele é

c k ).

santo e bom e como tal devemos reconhecê-lo e

kyrie não passa de uma forma respeitosa de tra­

ter experiências com ele

. Das catorze re­

tamento que tem um sentido parecido com “se­

ferências a kyrios em 2Pedro, nenhuma traz uma

nhor” , quando alguém se dirige a outrem), parece

(K r a fft)

citação clara de um texto do a t , mas 2Pedro 2.9,11

que antes de Apocahpse 11.8 todas as referências

faz parte de uma enumeração dos relatos dos juí­

dizem respeito a Deus, não a Jesus. João gosta

zos divinos por dilúvio e fogo (Gn 6—8; 18— 19),

de usar a expressão “o Senhor Deus” (kyrios ho

e nesse contexto não é de surpreender que kyrios

theos; Ap 1.8; 4.8; 11.17; 15.3; 16.7; 18.8; 19.6;

se refira ao Senhor Deus. Também parece que,

21.22; 22.5,6). Em um texto como Apocahpse

quando o autor reflete acerca do dia do Senhor,

21.22, em que o termo é utihzado para fazer dis­

ele imagina esse dia no contexto do yôm Yahweh

tinção entre Deus e o Cordeiro, torna-se claro que

( “dia do

a expressão não se refere a Jesus, com uma única

S en h or” ),

do

a t.

Assim, é provável que

1213

exceção. Essa expressão surge particularmente

6. Resumo

nos contextos em que oração ou louvor são apre­

Em todos esses documentos, vimos a repetição de

sentados a Deus, e às vezes vem combinada com

certos padrões e uma considerável variedade no

o termo pantokratõr (“todo-poderoso” ; Ap 15.3;

uso do termo kyrios. Chama a atenção o fato de

19.6; 21.22) para denotar a magnitude da sobe­

que só alguns dos textos canônicos (e.g., Atos) pa­

rania de Deus.

recem refletir uma tentativa de usar o termo kyrios

A primeira referência clara a Jesus como kyrios ocorre em Apocalipse 11.8, e essa explicitação se

para expressar o sentido impUcito da narrativa que fala da carreira terrena e celestial de Jesus.

faz de duas maneiras: mediante a referência à

Também chama a atenção o fato de que, quan­

crucificação e pelo emprego do pronome “ seu”

to mais um documento é influenciado pelo

ao lado de “ Senhor”. Em um texto como Apoca­

por ideias judaicas, maior a probabUidade de o

hpse 14.13, não fica claro se morrer no Senhor

termo kyrios — caso apareça sozinho — se referir

significa morrer por Jesus, mas à luz de Apoca­

ao Senhor Deus, não ao Senhor Jesus. Contudo,

at

e

lipse 14.12 essa interpretação é provável. Jesus é

essa é apenas uma tendência, não um padrão

duas vezes aclamado “Rei dos reis e Senhor dos

universal. Essa ausência de padrões claros e uni­

senhores” (Ap 17.14; 19.16), em um contexto em

versais mostra que é bom não exagerar a ideia

que Cristo se destaca, em seu papel escatológico,

de que as comunidades judaico-cristãs desenvol­

por subjugar os adversários, no final da história.

viam teologias próprias, sem interação com os

Ele é não apenas soberano sobre a igreja, mas, a

cristãos gentíhcos e suas comunidades. Em vez

favor dos fiéis, também exercerá soberania sobre

disso, deve se pensar em fecundação cruzada:

as nações do mundo. A expressão cristã primitiva

todos os cristãos judeus primitivos receberam al­

mais usual “Senhor Jesus” ocorre duas vezes no

guma influência helenística, embora um escritor,

final do hvro, passagens em que se invocam a

na maior parte do tempo, reflita naturalmente sua

segunda vinda e uma bênção em nome de Cristo

origem e influências.

(Ap 22.20,21). Uma das questões mais debatidas

Todo esse material leva a considerar que ma­

nesse livro é se, no início, os títulos “Senhor” e “o

neiras judaicas de pensar em Jesus e em Deus

Alfa e o Ômega” são atribuídos a Deus ou a Jesus

continuaram existindo, mesmo quando já havia

(Ap 1.8), principalmente porque a terminologia

transcorrido boa parte do século ii, e que a cris­

reaparece em Apocahpse 21.6 e 22.13, e é quase

tologia exaltada que se vê em Inácio de Antioquia

certo que no último exemplo a referência é ao Se­

teve precedente em documentos cristãos mais an­

nhor Jesus, que retorna (v.

Entretan­

tigos, que vieram a ser considerados canôtúcos,

to, nas demais passagens, a expressão “o Senhor

especialmente os pauhnos e os joaninos. Quando

Deus” , especialmente quando combinada com

se estuda esse material cuidadosamente, as velhas

c r is to lo g ia ).

“todo-poderoso”, não se refere a Jesus. A maioria

e esmeradas dicotomias entre cristologias judaicas

dos estudiosos acredita que esse também é o caso

antigas e cristologias posteriores, mais exaltadas

em Apocalipse 1.8. Entretanto, Apocahpse 1.7

e mais helenísticas, revelam-se muito simplistas,

talvez indique a conclusão oposta (cf.

especialmente tendo em vista a imensa importân­

R o w la n d ) .

O motivo de mencionar essa ambiguidade é que

cia das formas sapienciais de pensar a respeito de

João, especialmente em um contexto doxológico,

Jesus, observadas a partir do início do cristianismo

está desejoso de imputar a Jesus aquilo que ele

primitivo (cf.

atribui ao Senhor Deus, porque para João ambos

W it h e r in g t o n ,

Ver também

Sage, 1994).

C r is to ; c r is t o lo g ia ; F ilh o d e D eu s.

estão no mesmo nível, o que não acontece com os anjos (cf. Ap 19.10). Jesus, à semelhança do

B ibliografia. B a u c k h a m , R .

Espírito de Deus, faz parte da visão de João sobre

Word, 1983.

aquilo que é a Divindade, sem ao mesmo tempo

[S.l.: s.n., s.d.] v. 2, p. 510-20. ■

negar a unidade de Deus. Em tais circunstâncias,

Christological use of the Old Testament in the

é compreensível que nesse livro algumas das re­

New Testament,

ferências a kyrios se refiram ao Senhor Jesus ou

»

ao Senhor Deus.

the New Testament. Nashville: Abingdon, 1968.

i:214

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Servo

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7, 1974. ■ H u g h e s , G. Hebrews and hermeneutics:

Convencionalmente, quatro passagens de Isaías

the Epistle to the Hebrews as a New Testament

40—55 são chamadas “ Cânticos do Servo”, por

example of biblical interpretation. Cambridge:

se entender que, juntas, apresentam uma visão

Cambridge University Press, 1979.

36.) ■

peculiar de um “Servo de Javé” ou “ Servo Sofre­

sw jt,

dor” em particular, a quem se confia uma mis­

28, p. 19-27, 1985. ■ H u r t a d o , L. W. Lord Jesus

são especial a favor de seu povo. 0 Servo foi um

H u ghes, V.

[ sntsm s,

P. E. The christology of Hebrews,

Christ devotion to Jesus in earhest Christianity.

dos personagens empregados por escritores do

Grand Rapids: Eerdmans, 2003. ■ ______ . One

para iluminar a missão de Jesus.

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nt

1. 0 Servo de Javé no Livro de Isaías 2. Jesus como servo nos Evangelhos

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1. O Servo de Javé no Livro de Isaías

of Acts. Philadelphia: Trinity Press International,

Em 1892, B. Duhm isolou Isaías 42.1-4, 49.1-6,

1990. ■ K r a f f t , H. Christologie und Eschatologie

50.4-9 e 52.13—53.12, identificando essas pas­

im 1. Petrusbrief. EvT, v. 10, p. 120-6, 1950/1951.

sagens como “ Cânticos do Servo”. Outros têm

R. N. The christology of early

procurado ampliar os limites desses cânticos ou



L o n gen eck er,

121

O tKVU U t JA V t. C V A N btLH U b

mesmo acrescentar uma parte de Isaías 61 como

Ao que parece, a identificação messiânica está

um quinto cântico. Muitos dos estudiosos mais

tão firmemente estabelecida que não permite ao

antigos pressupunham que essas passagens tive­

targumista a opção fácil de uma identificação al­

ram origem independente de seu contexto atual

ternativa com Israel ou com algum personagem

no livro de Isaías, porém pesquisas mais recentes

histórico.

concordam que os cânticos pertencem integral­ mente ao texto de Isaías 40— 55 e não devem ser

2. Jesus como servo nos Evangelhos

interpretados independentemente desse contexto.

A devoção cristã sempre encontrou em Isaías 53

A ideia de

como Servo de Deus não se res­

uma representação ímpar do sofrimento vicário e

tringe a essas passagens, mas nelas, especialmen­

redentor de Jesus, o que oferece, no que diz res­

te em Isaías 53, há um conceito novo e notável de

peito à doutrina cristã clássica da expiação, uma

um Servo cujo papel de sofrimento vicário resulta

apresentação mais clara que qualquer passagem

em cura e libertação para o povo.

isolada do

Is r a e l

n t.

Israel é aqui descrito explicitamente como

Vários estudiosos, contudo, questionam se a

“ servo” de Deus (Is 49.3), bem como em boa par­

pessoa do Servo de Javé de fato desempenhou,

te do contexto próximo (Is 41.8,9; 43.10; 44.1,2

no período do

etc.). Mas em algumas partes dos cânticos, no-

senvolvimento da maneira cristã de entender a

tadamente em Isaías 53.4-6,10-12, o Servo é re­

missão de Jesus. Foi esse o questionamento de

n t,

algum papel importante no de­

presentado como indivíduo, em contrsposição a

C. K. Barrett, de C. F. D. Moule e, de maneira

Israel, e como alguém que sofre por Israel.

mais aprofundada, de M. D. Hooker. Hooker de­

Essa ambiguidade quanto à identidade do Ser­

monstra que algumas das supostas referências

vo e a questão sobre ser ele entendido como um

às passagens sobre o Servo são no mínimo ques­

personagem coletivo ou como um indivíduo (ou

tionáveis, e destaca, acertadamente, que mesmo

mesmo se em Isaías os vários textos chegam a

nas passagens em que a referência é inegável,

indicar uma única “figura do Servo”) têm gerado

não ocorre um destaque tão unilateral ao papel

um debate intenso entre os intérpretes, tanto do

da redenção vicária exercido pelo Servo — o que

passado quanto de hoje.

seria de esperar do pensamento cristão. Mas a

Nenhuma declaração sobre a interpretação ju­

interpretação de que a pessoa do Servo não foi

daica por volta do século i d.C. pode ser definiti­

um fator importante na

va, pois são poucos os dados documentais acerca

não convence a maioria dos estudiosos. Além dis­

do pensamento judaico desse período, e mesmo

so, Hooker não apresenta para consideração ne­

esses dados não são necessariamente caracterís­

nhuma fonte igualmente plausível para a teoria

ticos das crenças comuns. Embora os escritores

de que a convicção de Jesus era que sua missão

judaicos pudessem aphcar essas expressões a vá­

consistia em sofrer e morrer porque isso estava

rios personagens históricos ou a Israel coletiva­

“escrito” (v.

mente, também há indícios de que na época do n t

c r is to lo g ia

mais remota

C r is to , m o rte d e ).

O uso direto do título “Servo” {pais [de

alguns entendiam que tais expressões se referiam

para designar Jesus não ocorre no

nt

D e u s ])

fora dos ca­

a um indivíduo que no futuro atuaria como agen­

pítulos iniciais de Atos (At 3.13,26; 4.27,30), mas

te de Deus a favor da restauração de seu povo,

as passagens isaianas do Servo são citadas várias

ou seja, um personagem messiânico.

(J . J e r e m ia s

vezes, e sua terminologia e ideias estão por trás

5, p. 682-700] apresenta dados suficien­

de algumas das declarações mais fundamentais

[t d n t , v.

tes a favor dessa tese, embora esse levantamento

sobre a missão de Jesus.

tenha sido tendencioso.)

2.1

Isso fica especialmente claro no Targum sobre

A tradição sinótica em geral. Cada um

dos Evangelhos Sinóticos identifica Jesus, na oca­

Isaías 53, que identifica o Servo com “o Messias”,

sião de seu

embora seu autor seja hostil ã ideia de sofrimen­

parte de Deus, mais tarde repetida na transfigu­

to messiânico, de modo que cada referência ao

ração: “Tu és o meu Filho amado; em ti me agra­

sofrimento é cuidadosamente reinterpretada ou

do” (Mc 1.11; 9.7). Embora o termo “servo” não

transferida para o povo ou para outra pessoa.

seja empregado, quase todos os comentaristas

1216

b a tis m o ,

por uma declaração direta da

S ervo de Ja v e : Evangelhos

concordam que essas palavras são um eco de­

tão clara do sofrimento messiânico quanto Isaí­

liberado da introdução ao primeiro Cântico do

as 53, e já vimos que alguns pronunciamentos

Servo (Is 42.1). Assim, a missão de Jesus é logo

essenciais de Jesus acerca de sua missão ecoam

de imcio caracterizada (e com a maior autoridade

essa passagem, Com base nisso, muitos acreditam que a ideia

possível] como a do Servo, Alusões mais diretas a Isaías 53 ocorrem em

da pessoa do Servo, conforme vista em Isaías,

duas declarações essenciais sobre a importância

foi um fator destacado na maneira em que Jesus

redentora da morte de Jesus, que se aproximava,

entendia a própria missão e também o elemen­

Para os discípulos, Marcos 10,43 define grande­

to fundamental para que seus seguidores en­

za em termos da aceitação do papel de servo, e

tendessem que sua morte era cumprimento das

Marcos 10,45 reforça essa exigência com o pró­

Escrituras, Já foram citados os principais textos

prio exemplo de Jesus: “0 próprio Filho do ho­

marcanos sobre essa crença, porém cada um dos

mem não veio para ser servido, mas para servir

Evangelistas desenvolve, à própria maneira, o

e para dar a vida em resgate de muitos” . Aqui

tema de Jesus como o Servo de Javé,

não é apenas o tema do "serviço” que remete às

2.2

Mateus. Duas das onze citações formu­

passagens de Isaías, porém mais especificamente

lares encontradas em Mateus são extraídas dos

a ideia da morte vicária e do resgate e a expressão

Cânticos do Servo. Em Mateus 8,17, o ministério

“de muitos”, que ecoa Isaías 53,11,12, E, por

de cura realizado por Jesus é visto como o cum­

ocasião da

primento de Isaías 53,4: “ Ele tomou sobre si as

Ú ltim a

Ceia, as palavras de Jesus acer­

ca do cálice empregam terminologia semelhante,

nossas enfermidades e carregou as nossas doen­

quando ele diz que seu sangue será derramado

ças”, Em Mateus 12,15-21, o fato de Jesus não

“em favor de muitos” (Mc 14,24; para uma aná­

querer chamar a atenção do povo é entendido

hse detalhada dos vínculos verbais e conceituais

à luz do primeiro Cântico do Servo (Is 42,1-4),

entre essas passagens e os Cânticos do Servo, v,

citado na íntegra, Não há, portanto, nenhuma

France, p, 116-23],

dúvida de que para Mateus era importante que

Alguns estudiosos defendem, embora com

Jesus cumprisse o papel do Servo isaiano de Javé,

muito menos probabihdade, a existência de vá­

Mas é notável que nenhuma das duas passagens

rias outras alusões verbais. Contudo, mais im­

mencione o inconfundível papel de sofrimento re­

portante que qualquer eco verbal é o conceito

dentor, seja nas palavras que são citadas, seja no

bastante repetido da missão do

d o h o m em ,

aspecto do ministério de Jesus a que se aplicam,

que com sua rejeição, sofrimento e morte cumpre

O ministério terreno de cura e libertação reahza-

F ilh o

a vontade de Deus, pois tudo isso está “escrito”

do por Jesus e seu estilo não beligerante consti­

a respeito dele (Mc 8,31; 9,12,31; 10,32-34; 14,21

tuem, como sua morte vicária, o cumprimento da

etc,), Embora alguns percebam em Daniel 7 an­

missão do Servo,

tecedentes satisfatórios para esse conceito (na

Tem-se visto em Mateus 3,15 outra possível

opressão dos samos, que precede sua confirma­

alusão a Isaías 53, Na passagem de Mateus, a de­

ção e está simbolizada na pessoa de “alguém

signação divina de Jesus com os termos extraídos

parecido com filho de homem”), o judaísmo en­

de Isaías 42,1 é precedida pela justificativa de que

tendia que o personagem de Daniel 7,13,14 era,

seu batismo é para “cumprir toda a justiça”, É

de fato e coerentemente, uma pessoa majestosa e

possível entender que esse pronunciamento que

vitoriosa, Que esse “filho de homem” tivesse de

tem a má fama de ser pouco claro se refira não

sofrer e ser morto era um paradoxo e chamava

apenas ao papel de representante desempenha­

a atenção, e não se pode apresentar uma fonte

do pelo Servo, levando Jesus a se identificar com

mais provável dessa teologia inovadora que o so­

os pecadores arrependidos, mas também seja

frimento do Servo de Isaías, A ideia de um Mes­

uma alusão bastante enigmática a Isaías 53,11,

sias sofredor pode ter tido origem em alguns dos

o “justo [,,.] justificará a muitos”, A mesma ideia

salmos que falam do justo que sofre ou no pastor

de identificação talvez esteja também por trás

traspassado e rejeitado de Zacarias 11— 13, mas

da menção, por Mateus, de que José de Arima-

nenhuma passagem do

teia era “rico” (Mt 27,57], trazendo Isaías 53.9 à

at

oferece uma predição

1217

bERVO DE j a v e : tVANGELHOS

memória: “ Deram-lhe uma sepultura com os ím­

pregação? A quem se manifestou o braço do

pios, e ficou com o rico na sua morte”.

n h or?”

Se­

(Is 53.1). Uma vez que a incredulidade

2.3 Lucas. Nos cânticos de Lucas 1, a designa­

mencionada em Isaías é característica da natureza

ção “servo” de Deus não é aphcada a Jesus, mas

paradoxal da aparição e da experiência do Servo

a Israel (Lc 1.54) e a Davi (Lc 1.69). E, embora

e uma vez que o ministério de Jesus esteve igual­

Mateus apresente paralelos praticamente iguais a

mente sujeito a incompreensão e rejeição, é esta­

Marcos 10.45 e 14.24, os equivalentes lucanos não

belecido aqui um paralelo entre Jesus e o Servo,

partilham as mesmas e claras alusões a Isaías 53

que, à luz de outras referências cristãs ao Servo,

(embora o tema do “ serviço” ainda esteja em des­

parece totalmente adequado. Deve se admitír, no

taque em Lc 22.26,27). Isso talvez mostre que Lu­

entanto, que nesse ponto do quarto Evangelho a

cas está menos interessado que Marcos e Mateus

atenção não se concentra na missão redentora do

no Servo isaiano como modelo para o ministério

Servo ou de Jesus, e sim no simples fato da incre-

de Jesus. Mas não devemos nos esquecer de que

duhdade judaica.

é 0 mesmo Lucas quem registra precisamente o

Outra possível alusão a Isaías 53 pode ser

título “Servo” de Deus usado para designar Jesus

encontrada quando João Batísta apresenta Jesus

(At 3.13,26; observe-se, porém, que Davi também

como “ o Cordeiro de Deus que tira o pecado do

é descrito como pais, “servo”, de Deus em At 4.25;

mundo” (Jo 1.29,36). Em Isaías 53.7, o Servo é

cf. os paralelos verbais entre At 3/Is 52.13—52.12

comparado a um cordeiro levado ao matadouro,

At 3.13/Is 52.13; At 3.13/Is 53.6,12; At 3.14/

e a ideia do capítulo inteiro é a eliminação dos

[lx x ]:

Is 53.11). E também é Lucas quem apresenta a

pecados de sobre o povo por meio do sofrimen­

única citação formal de Isaías 53 nos Evangelhos

to e morte do Servo. A expressão “o cordeiro de

Sinóticos. A frase “... foi contado com os transgres­

Deus” pode estar relacionada a vários cordeiros

sores” (extraída de Is 53.12) é introduzida pela

do AT e, mais tarde, do pensamento judaico, po­

fórmula “Pois vos digo que se deve cumprir em

rém na maioria dos casos (e.g., o cordeiro pascal,

mim o que está escrito” e seguida da afirmação

0 cordeiro do sacrifício diário ou o cordeiro mes­

adicional “Pois o que me diz respeito [i.e., o que

siânico da hteratura apocalíptica, surgido mais

está escrito] já está para se cumprir” (Lc 22.37).

tarde) ela nâo oferece sustentação direta à ideia

Assim, não há dúvida de que para Lucas a missão

da eliminação de pecado, de modo que faz senti­

do Servo, em Isaías 53, é um plano para a missão

do interpretar que a pessoa do Servo contribui de

de Jesus: o Servo é Jesus.

maneira significativa para essa imagem.

No Evangelho de Lucas, a passagem do

at

que

define de forma mais proeminente o ministério de

2.5

Conclusão. As informações acima mos­

tram que, embora a pessoa do Servo de Javé não

Jesus é Isaías 61.1,2, texto do sermão que Jesus

fosse necessariamente a mais proeminente no

prega em Nazaré (Lc 4.16-27). Jesus declara que

pensamento cristológico dos Evangelistas, eles

essas Escrituras estão agora se cumprindo em seu

a aceitavam como modelo satisfatório e esclare­

ministério (Lc 4.21). É claro que Isaías 61 não é, de

cedor da missão de Jesus, que impUcava sofrer

acordo com a anáhse de Duhm, um dos Cânticos do

e morrer vicariamente pelos pecados do povo e

Servo. Mas, com Isaías 42.1-4 essa passagem parti­

também (pelo menos no caso de Mateus) o mi­

lha vários temas importantes sobre o ministério do

nistério mais amplo de curar e libertar. Foi o fato

Ungido de Deus para a obra de libertação de seu

de o próprio Jesus estar consciente de que viera

povo, e muitos comentaristas entendem que as pas­

ao mundo para cumprir o papel do Servo que deu

sagens estão, no fundo, relacionadas pelo conteú­

base escriturística a esse conceito novo e revolu­

do, mesmo que não seja em sentído literário formal.

cionário do papel do Messias, caracterizado por

Não é improvável que Lucas, ao registrar o sermão

rejeição, sofrimento e morte, em lugar de vitória

de Jesus sobre Isaías 61, estívesse pensando na mis­

e glória terrenas. E foi esse modelo que, no fim,

são de Jesus como a missão do Servo de Javé.

permitiu aos discípulos entender a morte de Jesus

2.4 João. João também traz uma citação for­ mal de Isaías 53. Em João 12.38, o texto explica

não como uma derrota, mas como um grande fei­ to, a base da

a incredulidade dos judeus: “Quem creu na nossa

1218

s a lv a ç ã o

Ver também

do povo de Deus.

C r i s t o ; C r i s t o , m o r t e d e.

BiBuoGRAnA. Barrett, C. K. The background of

A sinagoga continua a desempenhar um papel

Mark 10:45. In: H iggins, A. J. B., org. New Tes­

importante na igreja primitiva e é mencionada

Manchester: Manchester Uni­

com frequência no livro de Atos, sendo a palavra

versity Press, 1959. p. 1-18. • Cullmann, 0. The

tament essays.

usada cerca de dezenove vezes. Embora se diga

christology of the New Testamentd. Ed. rev. Phi­

que Paulo visitava as sinagogas e ali pregava, ele

ladelphia: Westminster, 1963. p. 51-82. ■ Fran­

jamais utiliza a palavra em suas cartas. Ahás, a

R. T. Jesus and the Old Testament. London:

palavra “ sinagoga” raramente ocorre no restante

ce,

Tyndale, 1971. p. 110-35. ■ Gerhardsson, B. Sa­

dos escritos do

crificial service and atonement in the Gospel of

em Tiago, em uma referência à assembleia cristã

n t,

aparecendo apenas uma vez

Matthew. In: Banks, R., org. Reconciliation and

(Tg 2.2), e duas vezes em Apocalipse, quando faz

hope. Grand Rapids: Eerdmans, 1974. p. 25-35 •

referência a uma “sinagoga de Satanás” , uma as­

Green, J. B. The death of Jesus, God’s Servant.

sembleia, talvez judaica (os “ que se dizem judeus

In: Sylva, D. D., org. Reimaging the death o f the

e não são, mas mentem”), que se opõe à comuni­

Lukan Jesus. Frankfurt am Main: Anton Hain,

dade cristã (Ap 2.9; 3.9).

1990. p. 1-28, 170-3. [bbb, 73.) • H ooker, M. D.

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R. T.

k t ^.

de, passou a se referir ao prédio em que as congre­ F ra n ce

gações judaicas se reuniam. Especialmente depois da destruição do templo, em 70 d.C., as sinagogas

S e r v o d e Is a ía s , o .

Ver

tornaram-se centros de atividade rehgiosa e comu­

S e rv o d e Javé.

nitária, sempre que houvesse um minyan — ou S e rv o S o fr e d o r .

Ver

quórum — de dez homens judeus. O Talmude afir­

S e r v o d e Javé.

mava que havia 480 sinagogas em Jerusalém antes Ver a p ó s t o l o ;

S e te n ta , os.

de 70 d.C. 0 Peregrino de Bordeaux (séc. iv d.C.)

d is c íp u lo s .

relatou que restavam apenas sete em sua época. S h a m m a i.

Ver t r a d i ç õ e s

Em inscrições, papiros. Filo e Josefo, a pala­

e e s c r i t o s r a b ín ic o s .

vra grega proseuche (lit., “oração”) também foi Shemá. Ver

utílizada como sinônimo de sinagoga. É objeto

a d o r a ç ã o / c u lto ; c r is t o lo g ia .

de debate se a ocorrência dessa palavra em Atos SINAGOGA

16.13

A sinagoga era a reunião judaica regular para ora­

de oração em Fihpos. Outra palavra grega, utiliza­

ção e adoração. Jesus ensinou e realizou milagres

da em um papiro para designar um local judaico

no ambiente das sinagogas da Galileia (Mt 4.23;

de oração é o termo eucheion. Josefo (An, 16.6.2,

Lc 4.15), especialmente em Nazaré (Mt 13.54;

§ 164) cita o termo sabbateion com o sentído de

se refere a uma sinagoga ou a uma reunião

Me 6.2; Lc 4.16) e em Cafarnaum (Me 1.21;

“sinagoga”. Na tradição hebraica posterior, a si­

Lc 7.5; Jo 6.59). Nessa cidade, a sinagoga foi pro­

nagoga era designada de diversas maneiras: bêt

vavelmente construída pelo centurião (Lc 7.5),

tépillâ ( “casa de oração”); bêt midrash (“casa de

cuja serva Jesus curou.

estudo”); bêtkénêsset ( “casa da assembleia”).

1219

Embora alguns poucos estudiosos (e.g., J. W e i n -

de sinagoga. Se não encontrar a filha de um

tenham destacado as raízes pré-exílicas da

chefe de sinagoga, que se case com a filha de

sinagoga, a maioria prefere atribuir seu surgimen­

um tesoureiro de beneficência. Se não encon­

to ao período pós-exílico. Muitos situariam essa

trar a filha de um tesoureiro de beneficência,

evolução na comunidade exílica da Mesopotâmia.

que se case com a filha de um professor de

green )

Os mais antigos dados de inscrições de que se

ensino elementar, mas que não se case com a

tem conhecimento são referências a proseuchê em

filha de alguém do ‘am hãarets (“povo da ter­

inscrições e papiros do período ptolomaico, no

ra”), pois é detestável e sobre suas filhas se

Egito (E.

S c h ü r e r ],

e o mais antigo remonta ao rei­

diz “ Maldito aquele que se deitar com algum

nado de Ptolomeu iii Evérgeta [246-221 a.C.). Esse

animal” (Dt 27.21).

texto se refere à fundação de uma proseuchê em Esquedia, a cerca de 30 quilômetros de Alexan­

A palavra archisynagõgos aparece em trinta

dria. Outro texto do período desse reinado refere-

inscrições gregas e latinas. Em três inscrições

se a uma proseuchê em Arsínoe-Crocodilópohs, na

(encontradas em Esmirna e Mindos, na lUrquia

região do Faium. A existência de uma sinagoga

ocidental, e em Gortina, em Creta), o termo re-

nessa cidade também é confirmada em um papiro

fere-se a mulheres. B. Brooten sustenta que es­

que registra um levantamento de terras e imóveis

ses e outros títulos (presbytem, “anciã”; hiereia,

(papiro de Tebtúnis 86). Uma inscrição de Ptolo­

“ sacerdotisa”) não eram apenas honoríficos, mas

meu VII (145-17 a.C.) menciona a dedicação do

designavam mulheres que eram líderes. Em uma

“pilono”, porta monumental de uma sinagoga (G r iffith s ,

p. 10).

inscrição que se refere a uma criancinha como archisynagõgos, o termo sem dúvida é honorífico.

Alguns estudiosos questionam a interpretação

Um grupo de anciãos dirigia as atividades da

de que esses proseuchai do Egito sejam referên­

sinagoga. O archisynagõgos provavelmente era al­

cias a sinagogas e sustentam que, como institui­

guém escolhido desse grupo. 0 encarregado da

ção, as sinagogas se desenvolveram na Palestina

beneficência recebia as ofertas e distribuía esmo­

no século II a.C., com o surgimento dos fariseus

las. 0 hazzãn (“ajudante”) era o responsável pela

(J.

guarda dos rolos das Escrituras. Jesus devolveu o

G u t m a n n ).

rolo de Isaías a um desses ajudantes (gr., hypêre2. Ofícios

tê, Lc 4.20). E, com o toque do shôpãr, um chifre

Jairo, cuja filha foi curada por Jesus (Mc 5.22,

de carneiro, o hazzãn anunciava o início e o fim

35,36,38; Lc 8.49), era o chefe da sinagoga (gr.,

do sábado. Mais tarde, o hazzãn passou a ser re­

archisynagõgos]. 0 texto de Lucas 8.41 dá conta

munerado e a se alojar na sinagoga, servindo de

de que Jairo era archõn tês synagõgês, “chefe da

zelador,

sinagoga” , e Mateus 9.23 refere-se a ele simples­ mente como archõn. Com base em Lucas 13.10-17

3. Cultos e outras atividades

e Atos 18.1-17, podemos inferir que o ocupante

Sabemos que mais tarde os cultos nas sinagogas

desse cargo era responsável por fazer com que a

adotaram elementos como a recitação do Shemá

congregação se mantivesse fiel à Torá. 0 relativo apreço que se tinha na sociedade

(“ Ouve, ó ouve” , Dt 6.4-9; 11.13-21; Nm 15.37-41), a oração feita com o rosto voltado para Jerusa­

judaica pelo “chefe da sinagoga” é revelado em

lém, 0 “amém” respondido pela congregação, a

uma passagem do Talmude [b. Pesah, 49b):

leitura de passagens dos rolos da Torá (At 15.21) e dos Profetas, a tradução das Escrituras com pa­

Nossos rabinos ensinaram: que um homem sempre venda tudo que possui e se case com a

ráfrases em aramaico, o sermão e a invocação de bênção (cf. Ne 8).

filha de um sábio. Se não encontrar a filha de

Tornou-se prática comum recitar, em pé e

um sábio, que se case com a filha de um dos

como oração, o Shemoneh Esreh (Dezoito bên­

grandes homens de sua geração. Se não encon­

çãos). Perto do fim do século i d.C., acrescen-

trar a filha de um dos grandes homens de sua

tou-se outra bênção, que na verdade era uma

geração, que se case com a filha de um chefe

maldição contra os miním ou hereges — a saber,

220

os cristãos. Qualquer pessoa de sexo masculino

a hospedaria, os aposentos e a aparelhagem de

podia ser chamada para orar ou ler trechos da

água para atender às necessidades de viajantes

Torá ou dos Profetas [haptãrüf]. Em certa ocasião,

vindos do estrangeiro, e cujo pai, com os anciãos

na sinagoga de Nazaré, Jesus leu uma passagem

e Simônides, fundou a sinagoga”.

do rolo do profeta Isaías (61.1,2). Qualquer pes­

Y. Yadin identificou como uma sinagoga do

soa capaz podia ser chamada para pregar o ser­

século I um prédio de 12 por 15 metros localiza­

mão (cf. At 13.15,42; 14.1; 17.2).

do na fortaleza herodiana de Massada. Ele tinha

Jesus refere-se ao costume dos mestres da lei

bancos e duas fileiras de colunas. A entrada do

e dos fariseus, que se assentavam na cadeira de

prédio estava voltada para Jerusalém. No local,

Moisés (Mt 23.2). Esse assento de honra foi en­

Yadin encontrou um óstraco com a inscrição “ dí­

contrado em Corazim. Bancos de pedra ao longo

zimo sacerdotal”. Ele sustenta que originariamen­

das paredes eram reservados para as pessoas im­

te Herodes havia construído o prédio para servir

portantes. A congregação em geral provavelmen­

de sinagoga a seus partidários judeus. Mais tarde,

te se sentava em esteiras ou tapetes.

o prédio foi reutilizado pelos zelotes, até a queda

Embora na Idade Média as sinagogas tivessem

de Massada diante dos romanos, em 73 d,C. Nes­

galerias separadas para as mulheres, não há si­

se prédio, as covas serviram de genízâ, ou seja,

nais dessa prática nas sinagogas antigas. No

local de armazenagem dos rolos das Escrituras

n t,

a presença de mulheres na congregação é confir­

(Deuteronômio e Ezequiel) que já não eram mais

mada pelo fato de que Jesus curou uma mulher

usados. Perto delas ficavam as miqwã’ôt, tanques

aleijada enquanto ensinava em uma sinagoga

com escadas, para purificação ritual.

(Lc 13.10-17).

Os zelotes transformaram em sinagoga um tri-

Por ser o prédio mais importante da comu­

clinium (sala de jantar) existente no Herodium. 0

nidade, a sinagoga não era usada apenas para

prédio media 10,5 por 15 metros, e tinha bancos

os cultos dos sábados, segundas-feiras, quintas-

ao longo das paredes. Uma miqwâ fica perto da

-feiras e dias de festa, mas também para diversas

entrada. Esse prédio se parece com o de Massada.

atividades da comunidade. Ah, o hazzãn ensinava

S. Guttman acredita que um prédio existente em

as crianças. Os valores eram guardados em uma

Gamla, nas colinas de Golã, escavado por ele em

tesouraria comunitária existente na sinagoga.

1976, também seja uma sinagoga do século i d.C.

Os transgressores podiam ser julgados na si­

Entretanto, a suposta sinagoga que V. Corbo

nagoga, na presença dos anciãos, e castigados

e S. Loffreda escavaram em 1975 revelou ser par­

pelo hazzãn com quarenta açoites menos um

te de uma casa de campo. Não há ruínas visí­

(Mc 13.9; 2Co 11.24). Os apóstatas podiam ser

veis em um prédio do século i d.C., escavado em

excomungados (Jo 9.22; 12.42; 16.2).

Corazim, que alguns estudiosos identificaram como uma sinagoga. A sinagoga de basalto visí­

4. Ruínas

vel em Corazim pertence a um período bem pos­

Calcula-se que existam ruínas de mais de cem

terior. (Na Diáspora, um prédio da ilha de Delos,

sinagogas na Palestina e de cerca de vinte na

no mar Egeu, foi identificado como uma sinagoga

Diáspora. Existem relativamente poucos vestígios

do período pré-cristão.)

arqueológicos das sinagogas que existiram na

As ruínas da mais esplêndida sinagoga da

Palestina nos séculos i ou ii d,C. Uma inscrição

Palestina são uma estrutura em calcário branco

de Teodoto de Jerusalém, geralmente datada de

encontrada em Cafarnaum. Pela análise das moe­

antes de 70 d.C., menciona a construção de uma

das, os escavadores franciscanos atribuíram a

hospedagem para peregrinos, e é possível que

esse prédio uma data do século iv ou v d.C., mas

esteja relacionada ã sinagoga dos Libertos (i.e.,

os estudiosos israelenses ainda preferem atribuir-

antigos escravos, At 6.9). Diz o seguinte: “Teo­

lhe uma data do século ii ou iii. Em 1981, V. Cor­

doto, filho de Veteno, sacerdote e archisynagõgos,

bo encontrou debaixo dessa sinagoga paredes de

filho de archisynagõgos e neto de archisynagõgos,

basalto escuro que ele identificou como vestígios

que construiu a sinagoga para atender ao propó­

de uma sinagoga mais antiga. Dentro da nave, foi

sito de recitar a Lei e estudar os mandamentos, e

escavada uma vala que revelou uma parede de

1221

basalto de 24 metros de comprimento. As paredes

flcavam penduradas nas paredes das sinagogas.

têm aproximadamente 1,2 metro de espessura. 0

A maioria das inscrições nas sinagogas mencio­

piso é feito de seixos rolados de basalto negro.

nava o nome das pessoas que contribuíram para

A cerâmica associada ao piso revela uma data

sua construção. A sinagoga do século m d.C. em

do século I d.C. Corbo identificou essa estrutura

Dura-Europos, junto ao rio Eufrates, tem nas pa­

como a sinagoga construída pelo centurião aten­

redes pinturas que retratam narrativas bíblicas.

dido por Jesus (Lc 7.1-5; v.

Pelo fato de haver pouquíssimas ruínas de

S t r a n g e & S h a n k s ).

Não há ruínas do século n que possam ser

sinagogas do século i d.C. na Palestina, alguns

identificadas com segurança como de uma si­

estudiosos afirmam que Lucas-Atos é uma obra

nagoga, com exceção das ruínas de Nabratein,

anacrônica quando se refere aos prédios das si­

embora alguns arqueólogos catóUcos afirmem

nagogas. Mas isso não leva em conta a natureza

que escavaram e descobriram uma sinagoga de

fragmentária das evidências arqueológicas e des­

"cristãos judeus” (séc. iii/iv) no local da Igreja

considera o testemunho não apenas do

da Anunciação, em Nazaré. Também afirmam que

também de Josefo [Vida, 277, 280), que men­

fragmentos arquitetônicos do mosteiro franciscano

ciona uma proseuchê, que era um grande prédio

de Nazaré procedem de uma sinagoga (séc. ii/in).

em Tiberíades (v. tb.

J o s e fo ,

n t,

mas

Guju, 2.14.4, § 285;

A maior parte das ruínas de sinagogas é do

An, 14.10.23, § 258; 19.6.3, § 300). O relato de

final dos períodos romano e bizantino (300-600

Filo sobre ataques de turbas antissemitas contra

d.C.), entre elas quinze estruturas na Galileia e

as proseuchas de Alexandria, em 38 d.C. (Le Ga,

um número semelhante nas colinas de Golã. As

132), sem dúvida é uma referência aos prédios

sinagogas são de três tipos; 1) casa ampla, com

das sinagogas.

0 bema, ou plataforma, junto à parede mais

Ver também a d o r a ç A o / c u l t o ;

ju d a ís m o ; t e m p lo .

comprida no lado sul, como em Khirbet Shema; 2) tipo basíhca, como em Cafarnaum e Corazim;

B ib lio g r a fia . B ro o te n ,

3) a basílica com abside, como em Beth Alpha.

cient synagogue. Chico: Scholars, 1982. •

B. Women leaders in the an­ C h ia t ,

M. J. S. Handbook o f synagogue architecture. Chi­ 5. Interior

co: Scholars, 1982. ■

As sinagogas construídas mais tarde eram deco­

in pre-70 Palestine,

L. L. Synagogues

G rab b e,

jts , v .

39, p. 401-10, 1988. ■

radas com bastante esmero, com o emprego de

G r iffith s ,

símbolos como o candeeiro (ménôrã), ramos de

gue.

palmeira e cidreiras. Elas tinham um bema, para

Ancient synagogues: the state of research. Chico:

JTS,

J.

G.

Egypt and the rise of the synago­

v. 38, p. 1-15, 1987. ■ G u t m a n n , J., org.

a leitura das Escrituras, e um vão, em que ficava

Scholars, 1981. ■ ______ , org. The syrmgogue:

exposta a arca, ou baú [arôn), para guarda dos

studies in origins, archaeology and architecture.

rolos bíblicos. Em 1980, E. e C. Meyers descobri­

New York:

ram parte de um vão de arca em Nabratein. Esse

und Synagoge. In:

frontão triangular estava decorado com imagens

gem ann,

em relevo de leões ameaçadores e uma concha

fiir Karl Georg Kuhn. Gottingen: Vandenhoeck &

k ta v ,

1975. •

H e n g e l,

J e r e m ia s ,

G.;

Ruprecht, 1971. p. 157-84. ■

lamparina que era acesa perpetuamente.

R eeg,

Muitas das sinagogas bizantinas eram suntuo-

W.;

S te -

H., orgs. Tradition und Glaube: Festgabe

de vieira com um buraco para o pavio de uma

samente decoradas com mosaicos: quatro delas,

M. Proseuche

Kuhn, H .

H u tte n m e is te r ,

F. &

G. Die antiken Synagogen in Israel. Wies­

baden:

L.

Reichert, 1977. 2 v. ■

L e v in e ,

L. The

ancient synagogue: the first thousand years. New

apresentando mosaicos com os signos do zodía­

Haven: Yale University Press, 2000. ■ ______ , org.

co, foram encontradas em Hamat Tiberíades,

Ancient synagogues revealed. Jerusalem: Israel

Beth Alpha, Na'aran e Husifa. 0 mosaico em Ha­

Exploration Society, 1981. ■ ______ . The syna­

mat Tiberíades traz um painel central com Hélios

gogue in late antiquity. Philadelphia: American

(o Sol) em seu carro e, nos cantos, pessoas repre­

Schools of Oriental Research, 1987. ■ L e v in s k a y a ,

sentando as quatro estações.

I. A Jewish or gentile prayer house? The meaning

Também temos três exemplares das listas

of

PROSEUCH.

das 24 maldições sacerdotais {mishmãrôf), que

E.

M .

222

TynB, v. 41, p. 154-9, 1990. ■ M e y e r s ,

Synagogues of Galilee. Archaeology, v. 35.3,

SINAGOGA

p. 51-8, 1985.

■ S ch ü rer,

E. cSi V e r m e s , G. et al. The

history o f the Jewish people in the age of Jesus.

SINAIS.

Ver

J o ã o , E va n g e l h o d e ; m il a g r e s , relatos de

m il a g r e s .

Ed. rev. Edinburgh: T & T Clark, 1979. p. 423-54. •

Shanks,

H. Judaism in stone: the archaeology

of ancient synagogues. New York: Harper & Row, 1979.



S tra n g e ,

J. F. cSi

S h an ks,

■ W e in g r e e n ,

■ Y a d in ,

o Novo

b a r,

Ver J o ã o ,

S iNÓ Ticos E J o ã o .

E v a n g e lh o de.

J. The origin

of the synagogue. Hermathena, v. 98, p. 68-84, 1964.

j u l g a m e n t o d e ; ju d a ís m o e

T e s ta m e n to .

H. Synagogue

where Jesus preached found at Capernaum, v. 9.6, p. 24-31, 1983.

SiNÉDRio. Ver J esu s,

S ir a q u e .

Ver

A p ó c r i f o s e P s e u d e p íg r a fo s .

Y. Masada. New York: Random

House, 1966.

SUMOS s a c e r d o t e s .

E.

Ver ju d a ís m o

e o N o v o T e s ta m e n to ,

Yam auchi s u p e r s tiç ã o .

1223

Ver

r e lig iõ e s g re c o -ro m a n a s .

T a lm u d e b a b iló n ic o .

Ver t r a d i ç õ e s

e e s c r i t o s r a b ín ic o s .

1. O episódio do templo nos quatro Evangelhos

T a l m u d e d e J e r u s a lé m .

Ver t r a d i ç õ e s

e e s c r it o s r a b ín ic o s .

Supondo-se que Marcos seja o mais antigo dos Evangelhos e que Mateus e Lucas tenham feito

T a lm u d e .

Ver t r a d i ç õ e s

e ESCRrros r a b ín ic o s .

uso de Marcos, examinaremos o episódio primei­ ramente em Marcos para então compará-lo com as

T a rgu m .

Ver

m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o ; t r a d i ç õ e s e

e s c r i t o s r a b ín ic o s .

versões dos outros dois Evangehstas (v. S iN ó T ic o ).

P r o b le m a

Embora a versão de João sobre o aconte­

cimento tenha afinidades inegáveis com os relatos t e m p lo .

Ver

a d o r a ç ã o / c u l t o ; ju d a ís m o e o N o v o T e s t a ­

dos Sinóticos e possa ter surgido de uma tradição comum, é muito provável que não tenha sido ba­

m e n t o ; t e m p l o , p u r if ic a ç ã o d o .

seada em Marcos. t e m p lo , a t o d o .

Ver t e m p l o ,

p u r if ic a ç ã o d o .

1.1

Marcos: destruição simbólica do templo.

0 esboço a seguir situará o episódio no templo em te m p lo , d e s tr u iç ã o d o .

Ver

ju d a ís m o e o N o v o T e s t a ­

seu contexto marcano: 1) Entrada (Mc 11.11).

m e n t o ; t e m p l o , p u r if ic a ç ã o d o .

2) Moldura A (figueira) (Mc 11.12-14). t e m p lo , i g r e j a c o m o .

Ver i g r e j a

ii.

3) Episódio do templo (Mc 11.15-17). 4) Resultado (Mc 11.18,19).

TEMPLO, PURIFICAÇÃO DO

5) Moldura B (figueira) (Mc 11.20-26).

O episódio no templo é registrado nos quatro Evan­

Marcos emoldura o episódio do templo com a

gelhos (Mt 21.10-17; Mc 11.11,15-17; Lc 19.45,46;

maldição da figueira, de modo que os dois aconte­

Jo 2.13-17), embora cada escritor tenha interpreta­

cimentos são comentário um do outro. Visto à luz

do 0 acontecimento à sua maneira. Justamente por

do episódio da figueira, o acontecimento no templo

ser atestado nos quatro Evangelhos, muitos acre­

é mais uma destruição simbóhca que uma purifi­

ditam que 0 acontecimento remonte a um fato do

cação. Por ter sido infrutífero como a figueira, o

ministério de Jesus, a despeito de haver bastante

templo será ressecado até as raízes.

debate sobre seu significado. Este verbete examina­

Exclusivo de Marcos é o fato de que um dia

rá primeiramente o episódio conforme a interpreta­

inteiro faz separação entre a entrada e o episódio

ção de cada EvangeUsta, antes de apresentar para

do templo. Jesus primeiro entra em Jerusalém, de­

consideração o sentido que o acontecimento pode

pois chega ao templo, “tendo observado [períblep-

ter tido no contexto do ministério de Jesus.

samenos] tudo”, antes de retornar a Betãnia para

1. 0 episódio do templo nos quatro Evangelhos

ali passar a noite. O verbo é peculiarmente marca­

2. O episódio do templo no ministério de Jesus

no: ocorre em Marcos seis das sete vezes em que

TEMPLO, PURIFICAÇAO DO

e, quando utilizado em referência a

para trocar moeda estrangeira pelo dinheiro tírio,

Jesus, tem a conotação de lançar um olhar crítico

aparece no

exigido pelo templo, e os vendedores forneciam

ou perspicaz (Mc 3.5,34; 5.32; 10.23). A primeira

animais sem defeito e ritualmente aceitáveis para

visita prepara o leitor para o retorno de Jesus.

os sacrifícios. É difícil interpretar o ataque de Je­

nt

Ao criar duas visitas ao templo. Marcos cria um

sus contra eles como um ato de purificação do

espaço para a primeira parte do episódio da fi­

templo sob a alegação de desenvolverem um co­

gueira, o qual, de outra forma, teria interferido no

mércio abusivo. Em parte alguma Jesus demons­

relato da entrada triunfal (Mc 11.1-10).

tra lealdade e zelo para com o templo, virtudes

Quando, no dia seguinte, Jesus entrou no tem­

que lhe são atribuídas por aqueles que leem a

plo, 0 que ele fez foi “expulsar” [ekballein] os

passagem dessa forma. Por fim, essa leitura não

compradores e os comerciantes. Em seguida, “re-

se harmoniza com o emolduramento marcano.

virou” (katestrepsen] as mesas dos cambistas e as

Qual leitura respeita, então, o emolduramento

cadeiras dos vendedores de pombas (Mc 11.15).

e 0 relato da ação de Jesus? 0 episódio faz bas­

Parece que as ações de Jesus eram dirigidas con­

tante sentido como ação profética simbólica, em

tra todos os envolvidos no comércio dos sacri­

que Jesus dramatiza a rejeição às autoridades do

fícios e contra seus clientes, entre os quais estão,

templo e ao sistema econômico que sustentava e

sem dúvida alguma, os peregrinos que visitavam

fortalecia o controle sobre as funções do templo.

Jerusalém para cumprir seu dever determinado

“Expulsar” e “ revirar” representam rejeição, não

pela Torá. Jesus escolheu justamente os cambis­

purificação. Caso skeuos (v. 16) se refira a utensí­

tas, que trocavam o dinheiro trazido pelos pere­

lios sagrados (Jesus não permitiria que ninguém

grinos por moedas tírias, conforme exigido pelas

carregasse um utensílio sagrado pelo pátio), suas

autoridades do templo para pagamento do im­

ações se complementam. Como de costume, ele

posto sagrado, e os vendedores de pombas, que

não permitiria nenhum comércio, fosse nos sub­

forneciam os sacrifícios para os pobres.

sistemas que sustentavam o templo, fosse nas

Muitos interpretam esse gesto como uma pu­

atividades religiosas em si.

rificação do templo, embora a natureza dessa

0 pronunciamento de Jesus, em uma alusão

purificação seja objeto de debate. Estaria Jesus

baseada em Isaías 56.7 e Jeremias 7.11, reforça

preservando a natureza espiritual do templo ao

essa leitura. Declara que a vontade Deus é fazer

condenar as transações comerciais? Ou estava

que o templo seja para todos os povos uma fonte

opondo-se ao abuso dos comerciantes, que tira­

de acesso a Javé, além de denunciar a distorção

vam vantagem dos peregrinos, cobrando preços

desse propósito por parte dos que transformaram

abusivos? Ou estava então protestando contra o

o templo em “antro de assaltantes” [spêlaion lês-

envolvimento do sacerdócio no comércio pratica­

ton). A citação de Isaías 56.7 provavelmente refle­

do no pátio externo?

te 0 interesse que Marcos tem pelos gentios, ao

Segundo uma interpretação que leva em conta

passo que a alusão ao sermão de Jeremias sobre

essa estrutura. Marcos 11.16 mostra Jesus proi­

o templo constitui um oráculo profético de con­

bindo o povo de tomar atalhos no pátio externo

denação e destruição. 0 motivo para a destruição

ou impedindo as pessoas de trazer objetos não

do templo torna-se claro.

consagrados para aquela parte do templo. Qual­

Quando o episódio é entendido como ato pro­

quer que seja o caso, Jesus estaria revelando o

fético que sinaliza a rejeição e a destruição do

desejo de restaurar a santidade do templo por

templo, é compreensível a reação dos principais

acreditar que aquele local era santo.

sacerdotes e dos escribas. Eles procuram uma

São inúmeros os problemas com essa leitura de

maneira de destruir Jesus.

Marcos 11.15,16. Os comerciantes e os cambistas

1.2

Mateus: purificação do templo. 0 esboço

prestavam um serviço essencial aos peregrinos e

a seguir mostra como Mateus situa o episódio em

demais adoradores. Aliás, sem essa infraestrutura

sua narrativa.

de serviços, talvez fosse impossível a realização

1) Entrada (Mt 21.10,11).

dos sacrifícios contínuos no templo. Além disso,

2) Episódio (Mt 21.12,13).

os cambistas cobravam uma comissão modesta

3) Resultados.

1225

TEMPLO, PURIFICAÇAO DO

a) Mateus 21,14-17.

que Jesus diz e faz. Os cegos, os coxos e as crian­

b) Mateus 21.18-22.

ças no monte do templo constituem um parale­

c) Mateus 21.23-37.

lo com as multidões à entrada da cidade, assim

Mateus retira a maldição da figueira, e assim

como a Jerusalém intrigada constitui um paralelo

ela deixa de ser a moldura do episódio no templo.

com as autoridades do templo. Mateus apresenta

Isso lhe permite trabalhar mais esmeradamente

uma grande inversão: os de dentro são ignorantes

na entrada. Quando Jesus entrou em Jerusalém,

ou obstinados, ao passo que os de fora reagem

"toda a cidade se agitou” [eseisthê, Mt 21.10). A

de forma positiva ao Messias de Deus (v. Cristo),

terminologia é sísmica e, dessa maneira, situa a

enquanto ele restaura o templo.

entrada no imaginário de uma teofania. Ao con­

Os dois outros acontecimentos ocorrem logo

trário de Marcos, essa não é uma demonstração

depois do episódio e vêm na sua esteira. O episó­

que se limita aos seguidores de Jesus. A cidade

dio da figueira (Mt 21.18-22) confirma a inversão

toda repara, embora seus cidadãos fiquem intri­

entre os de dentro e os de fora, especialmente

gados e indaguem: “Quem é este?”. Mas o que

0 juízo contra os que estão no templo, enquan­

Jerusalém não sabe, a multidão conhece: “Este é

to a disputa sobre a questão da autoridade tem

o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”. A oposi­

agora de ser lida à luz do episódio inteiro. O epi­

ção implícita da multidão a Jerusalém mostra que

sódio do questionamento da autoridade de Jesus

essa é uma declaração positiva, não uma cristo-

(Mt 21.23-27) traz de volta a questão das curas,

logia deficiente. “ 0 profeta Jesus” talvez identifi­

bem como a agitação no pátio externo do templo.

que Jesus como o cumprimento da promessa feita em Deuteronômio 18.15.

1.3

Lucas: preparação do templo. Como nos

casos anteriores, aqui também será proveitoso es­

Mateus acompanha Marcos ao descrever as ações iniciais de Jesus no templo. Jesus “expul­

tudar o episódio do templo no contexto narrativo de Lucas.

sou” os vendedores e compradores e “revirou” as

1) Texto estruturador: choro pela cidade

mesas dos cambistas e dos vendedores de pom­

(Lc 19.41-44).

bas. Entretanto, ele omite Marcos 11.16, talvez

2) Episódio (Lc 19.45,45).

porque o sentido seja incerto. De modo seme­

3) Resultados.

lhante, 0 pronunciamento de Jesus é condensado.

a) Lucas 19.47,48.

A expressão “para todas as nações” é omitida na

b) Lucas 20.1-8.

citação, acentuando a acusação contra as autori­

c) Lucas 20.9-19.

dades do templo, cuja liderança o havia afastado do propósito divino (v. Gundry, p. 412-3).

0 mais surpreendente é que Lucas omite o episódio quase inteiro, pois Jesus “começou a ex­

A justificativa para o episódio está ilustrada

pulsar os que ali vendiam”. Estão ausentes as re­

no material especialmente mateusino que vem na

ferências a compradores, cambistas e vendedores

seqüência (Mt 21.14-16). Depois de denunciar a

de pombas. Além disso, Jesus se dirige a eles de

deturpação da finalidade do templo, Jesus restau­

uma forma que parece estar se opondo ã ativida­

ra seu propósito mediante a cura dos rejeitados

de comercial que desenvolviam, presumivelmen­

pela sociedade. Cumprindo as Escrituras (SI 8.2),

te por comprometer o propósito divino de que o

as crianças que estavam no templo exaltam seus

templo seja uma casa de oração.

poderes miraculosos, mas esses mesmos poderes

0 resultado imediato foi que “todos os dias

provocam uma reação negativa por parte dos lí­

ensinava no [pátio do] templo” ao povo [laos,

deres do templo.

não ochlos, “ multidão”) interessado, o qual aten­

Interpretadas em conjunto, as curas e a con­

tava para cada palavra de Jesus. Lucas mostra

trovérsia gerada por elas refletem um padrão tipi­

que Jesus, ao expulsar os vendedores, prepara­

camente mateusino: Jesus age, seus adversários

va a restauração do pátio do templo como lugar

protestam e Jesus cita as Escrituras. Elas também

de ensino. Os temas gêmeos desse ensino são

expressam o cumprimento do propósito do tem­

expressos nas duas perícopes seguintes: a ques­

plo, frustrado justamente por seus principais sa­

tão sobre a autoridade (Lc 20.1-8) e a parábola

cerdotes e escribas, que se opõem ferozmente ao

dos agricultores maus e as declarações que a

1226

TEMPIO, PURIFICAÇÃO DO

acompanham (Lc 20.9-19). A primeira perícope

bem como a resposta de Jesus (Jo 2.18,19). A

identifica a autoridade de Jesus para ensinar no

profecia de Zacarias refere-se ao dia escatológico

templo, enquanto a segunda especifica a acusa­

do Senhor (v.

ção contra as autoridades da época.

tornará o centro de adoração para todos os povos,

O episódio inteiro tem como introdução o

a p o c a l ip t is m o ) ,

em que o templo se

e “ naquele dia não haverá mais comerciantes

lamento profético de Jesus acerca de Jerusalém

no templo do

(Lc 19.41-44), concluído com a revelação do mo­

Assim, um zelo purificador (cf.

tivo da turbulência e devastação que aguarda a

transformação da casa de Deus em sua forma es-

S en h or

dos Exércitos” (Zc 14.21). Sl

69.9) pela

cidade e o templo, “pois não reconheceste o tem­

catológica parece permear as ações de Jesus. Nes­

po [kaiwn] em que foste visitada”. É marcante o

se contexto, João 2.19 é a promessa da realização

contraste entre a visitação mortal dos exércitos

desse ato, transmitindo a ideia de que, mesmo

que cercam a cidade (Lc 19.43,44) e a visitação

que 0 templo fosse destruído, em apenas três dias

graciosa por Jesus. O fato de não compreenderem

ele edificaria outro melhor em seu lugar. João, porém, impõe sua interpretação da de­

esta leva ao resultado fatal daquela. Para que, então, Jesus prepara o templo? À luz

claração de Jesus, fazendo com que se refira à

de sua posterior destruição, profeticamente vis­

sua ressurreição (Jo 2.21,22). E, pela maneira em

lumbrada no lamento, estaria Jesus preparando

que o narrador interpreta as palavras de Jesus, a

0 templo para ser destruído? Não. Entendido no

purificação do templo se torna o tema da substi­

contexto de Lucas-Atos, o episódio preparava o

tuição. Para a comunidade de João, o corpo de

templo para seu papel de ponto de partida de um

Jesus é 0 templo que substituiu o templo de épo­

novo movimento, o qual, saindo de Jerusalém,

cas anteriores.

teria o padrão do testemunho encontrado em Lu­ cas 24.47 e em Atos 1.8. Jerusalém e o templo

2. O episódio do templo no ministério de

não seriam mais o alvo da peregrinação, e sim o

Jesus

ponto de partida de uma nova missão.

Levando em conta a diversidade entre os escri­

João: purificação e substituição do tem­ tores dos Evangelhos, não é de surpreender que

1.4

plo. Em João, o episódio ocorre no início do mi­

os estudiosos tenham discordado acerca do sig­

nistério de Jesus, durante sua primeira viagem a

nificado e dos detalhes do episódio no ministério

Jerusalém.

de Jesus. 0 consenso situa o acontecimento no

1) Entrada (Jo 2.13).

final do ministério de Jesus, não no início, favo­

2) Episódio (Jo 2.14-17).

recendo os Sinóticos, em detrimento de João. A

3) Questionamento (Jo 2.18-22).

partir desse ponto, porém, os estudiosos deixam

0 episódio inteiro é independente. 0 tex­

de concordar entre si.

to de João 2.12 separa-o do milagre de Caná, e

Embora variadas, as interpretações do episó­

João 2.23-25 separa-o dos acontecimentos poste­

dio enquadram-se em quatro categorias básicas: 1) é um acontecimento religioso com o objetivo

riores em Jerusalém. Há diferenças significativas entre as versões

de eliminar as impurezas do templo, quer comer­

joanina e as sinóticas. As ações de Jesus são mais

ciais, quer sacerdotais; 2) é um acontecimento

radicais em João. Ele confecciona um chicote

messiânico com o objetívo de incluir os gentios

para expulsar tanto os vendedores de ovelhas e

no âmbito das atividades do templo; 3) é um

de bois quanto os cambistas, cujas moedas ele

acontecimento profético com o objetivo de anun­

joga no pátio do templo. Mas trata os vendedo­

ciar a destruição do templo e sua restauração es-

res de pombas com mais leniência, simplesmente

catológica; 4) é um acontecimento político com o

ordenando-lhes que vão embora com seus bens.

objetivo de dificultar as atividades comerciais e

O

pronunciamento em si estabelece um con­ sacerdotais do templo, porque se haviam torna­

traste entre a “casa de meu Pai” e “ um mercado” ,

do formas de opressão e exploração. Entretanto,

e a alusão escriturística é a Zacarias 14.21, que

qualquer que seja a abordagem ou combinação

sem dtívida ajuda a interpretar os questionamen­

de abordagens que os intérpretes adotem, é pre­

tos e 0 pedido de um sinal resultantes dessa ação,

ciso solucionar alguns problemas básicos sobre

1

227

I ESSALONiCENSES, LARTAS AOS

0 âmbito, 0 propósito e o conteiído do aconteci­

religioso. Entendido dessa forma, a declaração

mento. A mellior maneira de fazê-lo á examinar

se harmoniza com a ação, e ambas delineiam o

as duas partes que compõem o episódio, a saber:

julgamento profético do templo, o qual incitou as

as ações de Jesus e seu pronunciamento.

autoridades contra Jesus e o levou ã crucificação.

2.1

As ações de Jesus no

templo. Para alguns

estudiosos, o episódio relata a purificação do

B

templo, feita por Jesus, além da afirmação de que

and the den of thieves. In:

seu propósito espiritual é ser uma casa de oração.

E .,

ib l i o g r a f ia .

B arrett, C.

K. The house of prayer &

E l l is , E . E .

G

rabber,

orgs. Jesus und Paulus: Festschrift fiir Werner

Para outros, trata-se de um ataque direto ao tem­

Georg Kiimmel. Göttingen: Vandenhoeck & Rupre­

plo e uma tentativa de controlá-lo politicamente.

cht, 1975. p. 13-20. ■ B u c h a n a n , G. W. Mark 11:15-

Entre esses dois extremos, estudiosos como R. A.

19: brigands in the temple,

Horsley e E. P. Sanders interpretam o fato como

1959. •

uma ação profético-simbólica de âmbito limitado

Park: Pennsylvania State University Press, 1992.

que condena o templo.



Sanders conclui que Jesus profetizou ou amea­

D

C h ilto n ,

errett,

j.

B.

huca,

v.

30, p. 169-77,

Temple of Jesus. University

M. The zeal of the house and

D.

the cleansing of the temple. DRev, v. 95, p. 79-94,

çou a destruição do templo como prelúdio da res­

1977. ■ E p p b te in , V. The historicity of the gospel

tauração escatológica da casa de Deus. De acordo

account of the cleansing of the temple,

com Horsley, a ação foi um ataque contra o opres­

p. 42-58, 1964. ■ E v a n s ,

C.

55,

zn w , v.

A. Jesus’ action in the

sivo sistema político e econômico que se instalou

temple: cleansing or portent of destruction?

no templo. Mais que uma ação simbólica, envol­

V.

veu violência contra os exploradores do povo. Am­

a commentary on his literary and theological art.

51, p. 237-70, 1989. ■ G u n d r y , R.

bos concordam que a demonstração foi limitada

Grand Rapids: Eerdmans, 1982. •

0 bastante para não atrair a atenção da polícia do

Temple cleansing and temple bank,

H.

H a m ilto n ,

N. Q. 83, p.

jb l, v .

templo, nem das tropas romanas estacionadas na

365-72, 1964. ■

fortaleza Antônia, mas foi importante o suficiente

temple: preparation for the kingdom of God.

para suscitar uma ação conjunta contra Jesus.

v. 90, p. 82-90, 1971. •

H ie r s , R .

H.

cbq,

Matthew:

Purification of the

H o r b le y , R .

jb l,

A. Jesus ami

2.2 O pronunciamento de Jesus no templo.

the spiral o f violence: popular Jewish resistance in

Há muito debate em torno dessa declaração, e a

Roman Palestine. San Francisco: Harper & Row,

maioria dos estudiosos a considera marcana ou

1987. ■ R o t h ,

pré-marcana, mas sem ser possível identificá-la

Zechariah. NovT, v. 4, p. 174-81, 1960. •

com Jesus. Por exemplo, G. W. Buchanan defende

E.

C.

The cleansing of the temple and Sanders,

P. Jesus and Judaism. Philadelphia: Fortress,

um contexto marcano, ao identificar o lêstai com os

1985. ■ W

“assaltantes” que tomaram o templo durante a re­

Minneapolis: Fortress, 1996. p. 413-28.

r ig h t ,

N. T. Jesus and the victory o f God.

volta contra Roma. Outros entendem que a declara­

W . R. H

e r z o g ii

ção de João 2.19 talvez reflita as palavras de Jesus com mais precisão que a do Evangelho de Marcos. Contudo, se as leituras profétíco-polítícas da

te n ta ç ã o de

Evangelho

J esu s.

Ver L u c a s ,

E vangelho

de;

M

ateus,

de.

passagem estão corretas, elas mostram, no que tange à declaração registrada em Marcos, que o

T essalo n icen ses , C a r t a s

episódio pode ser situado no contexto do ministé­

Paulo e Silas, acompanhados de seu ajudante, Ti­

rio de Jesus. Se for assim, então Jesus está decla­

móteo, deram os primeiros passos para estabele­

rando que os verdadeiros salteadores sociais não

cer uma comunidade cristã em Tessalônica como

aos

são os bandidos que agem a partir de cavernas

parte da primeira missão cristã na província da

no deserto da Judeia, mas as eminentes autorida­

Macedônia. Tessalônica era uma das principais

des da casa de Deus, construída sobre a caverna

cidades do Império Romano. Os posteriores con­

sagrada do monte do templo. A exploração e a

tatos dos missionários com a igreja dessa cidade

opressão que se faziam por meio de impostos e tri­

resultaram em duas cartas (v.

butos representam o verdadeiro banditismo social

cartab) ,

da época, embora mascarado de piedade e dever

documentos cristãos que tenhamos hoje. Apesar

1228

cartab,

fo rm as

de

que são provavelmente os mais antigos

T essalonicenses , C artas aos

de sua brevidade e, em comparação com as ou­

Uma oração a favor dos tessalonicenses,

tras cartas do corpus paulino, e da relativa au­

pedindo que o contato se mantenha, que eles

sência de temas teológicos significativamente

manifestem

desenvolvidos, as Cartas aos Tessalonicenses tor-

(ITs 3.11-13), conclui a primeira seção principal

amor

e

que

sejam

inculpáveis

naram-se objeto de muita análise pelos estudio­

da carta (ITs 1—3). Nessa seção, Paulo identifi­

sos, especialmente nas áreas de crítica retórica,

ca 0 elo entre os cristãos gentios de Tessalônica

análise sociológica e início do desenvolvimento

(v. ITs 1.9) e outros que pertencem ao povo de

da teologia paulina.

Deus, incluindo-se os profetas do

at

(ITs 2.15)

1. Conteúdo das cartas

e, especialmente, os missionários que levaram

2. A cidade de Tessalônica

o evangelho a Tessalônica. Com essa ênfase no

3. A missão paulina

lugar que ocupavam entre o povo de Deus e nos

4. A composição das cartas

vínculos que mantinham com a missão apostóU-

5. Questões literárias e históricas

ca, Paulo oferece aos cristãos de Tessalônica uma

6. Teologia de Paulo na fase inicial

maneira de pensar sobre si mesmos que lhes per­ mitirá permanecer firmes e seguros no meio da

1. Conteúdo das cartas

adversidade que estão enfrentando. Esse conceito

A abertura das duas cartas aos tessalonicenses

lança os alicerces para a segunda seção principal

(ITs 1.1; 2Ts 1.1,2) identifica seus autores como

da carta, em que Paulo repetidas vezes se refere

Paulo, Silas (que nas cartas é chamado Silvano)

às tradições e instruções que os tessalonicenses

e Timóteo. Mas, com base em cartas posteriores

receberam dos missionários (ITs 4.1,2,9,11).

de Paulo (v. tb. ITs 3.6), podemos supor que, no

A segunda seção (ITs 4— 5) começa com uma

mínimo, Paulo desempenhou o papel principal

exortação à vida santa (ITs 4.1-12), que tem como

em sua composição. 1.1

foco a imoralidade sexual. Em seguida, Paulo ITessalonicenses. Em ITessalonicenses, discorre sobre a volta de Cristo (ITs 4.13—5.11;

Paulo agradece a Deus pelos cristãos de Tessalôni­

v.

ca, lembrando-os de que eles haviam “recebido a

para uma exortação a uma vida de sobriedade, à

e s c a t o l o g ia ) ,

a qual proporciona o fundamento

palavra” pregada por Paulo e seus colaboradores

fé, ao amor, à esperança e ao encorajamento mú­

“em meio a muita tribulação” (ITs 1.6) e assim

tuo (ITs 5.4-8,11). Mas parece que sua motivação

se tornaram exemplo para outros que haveriam

principal ao escrever essa seção escatológica foi

de ouvir o evangelho (ITs 1.7-10). Ele os lembra

a preocupação que alguns cristãos de Tessalôni­

também das circunstâncias difíceis e da sinceri­

ca tinham com o destino dos membros da igre­

dade e seriedade que caracterizaram a primeira

ja que haviam morrido antes da volta de Cristo

missão apostólica (v.

apó sto lo )

entre os tessaloni-

censes (ITs 2.1-12). Aparentemente, ele faz men­

(ITs 4.13-18; v.

r e s s u r r e iç ã o ) .

A carta termina com

admoestações e bênçãos gerais (ITs 5.12-28).

ção disso para apresentar a si mesmo e a seus

1.2

2Tessalonicenses. A ação de graças de

auxiliares perante seus leitores como exemplos

Paulo em 2Tessalonicenses 1.3-12, à semelhança

de inculpabilidade. Paulo passa então a agradecer

da que vemos em ITessalonicenses, menciona a

a Deus pela receptividade dos tessalonicenses ao

firmeza característica que os cristãos de Tessalô­

evangelho. Ele os põe em um dos lados da linha

nica revelavam no sofrimento e o exemplo que

divisória que separa o povo sofredor de Deus e os

eram para outros. Uma vez mais, Paulo vê o sofri­

perseguidores que rejeitam a Palavra de Deus, es­

mento e as reahzações dos tessalonicenses numa

tes exemplificados pelos “judeus” (ITs 2.13-16).

estrutura escatológica.

Em seguida, declara que o amor que tem por eles

A Segunda Carta aos Tessalonicenses também

e a preocupação de que permaneçam firmes fize­

revela que as questões referentes à escatologia

ram com que ele e seus colabodores retomassem

eram essenciais na preocupação de Paulo com a

contato com os tessalonicenses. Agora que Timó­

comunidade cristã de Tessalônica (2Ts 2.1-12).

teo havia retornado de Tessalônica, a notícia de

0 problema talvez fosse que alguns acredita­

que os crentes ali estavam firmes trouxe muita

vam que “ o dia do Senhor” já havia acontecido

alegria (ITs 2.17—3.10).

(2Ts 2.2). Paulo responde, argumentando que

1 229

I C JJM L U IN IU C IN J C O , \_ M IM M J M U J

algumas coisas terão de acontecer antes daquele

a palavra grega

“ dia” (2Ts 2.3-12). Como acontece em ITessaloni-

que não é encontrada em outro lugar senão no

censes, depois de responder às preocupações ini­

relato de Atos sobre a missão de Paulo à cidade

p o lita rc h ê s

( “autoridade civil”),

ciais dos crentes, Paulo passa a dar graças por eles

(At 17.6). Inscrições que mostram que os judeus

(2Ts 2.13-17). Um problema tratado nas admo­

haviam se instalado na cidade datam do final do

estações gerais de 2Tessalonicenses (2Ts 3.1-15)

período romano. Uma inscrição de uma sinago­

é o fato de alguns membros da igreja se recusa­

ga samaritana data de período anterior, talvez do

rem a trabalhar (2Ts 3.10-12). A prática dos mis­

século III a.C.

sionários apostólicos é apresentada então como exemplo de trabalho e autossuficiência econômi­

3. A missão paulina

ca (2Ts 3.7-9). A carta termina com bênçãos e uma saudação pessoal de Paulo (2Ts 3.16-18).

3.1

O relato em Atos. 0 contexto judaico da

primeira missão cristã em Tessalônica é proemi­ nente em Atos (At 17.1-10). A missão de Paulo e

2. A cidade de Tessalônica

Silas, que se deu principal ou totalmente em uma

Tessalônica era uma cidade populosa que expe­

sinagoga judaica, consistiu em provar aos judeus,

rimentou bastante prosperidade durante a maior

com base nas Escrituras hebraicas, que Jesus era

parte dos períodos helenístico e romano. Foi fun­

o Messias (v.

dada por volta de 315 a.C. por Cassandro, ex-ge­

tidos, havia alguns judeus, boa parte dos adora­

C

r is t o ) .

Entre os primeiros conver­

neral de Alexandre, o Grande, no lugar da antiga

dores gentios do Deus de Israel e várias mulheres

Terma ou nas proximidades, à entrada do golfo

de destaque que provavelmente também faziam

de Terma, hoje denominado golfo de Salônica.

parte do grupo de adoradores gentios do Deus de

Importante porto militar e comercial, tornou-se

Israel. A oposição à missão teve início por inicia­

a principal cidade da Macedônia. Foi designada

tiva de judeus (At 17.13), embora tenha se es­

capital de um dos quatro distritos administrativos

palhado rapidamente entre os gentios, primeiro

em que Roma dividiu a Macedônia em 168 a.C.

entre uma turba descontrolada e depois entre as

No ano 146 a.C., tornou-se a capital da província

autoridades da cidade. Além da dificuldade que

da Macedônia, que então estava unificada. No

criou para a nova comunidade cristã, a oposição

mesmo ano, construiu-se a via Inaciana, que liga­

fez com que a partida de Paulo e Silas (e Timóteo,

va a Ásia Menor ao mar Adriático (e a Roma, do

embora não seja mencionado em Atos) fosse a

outro lado do Adriático). Foi por essa estrada que

atitude mais prudente. Desse modo, perante as

Paulo e seus colaboradores viajaram de Fihpos

autoridades os judeus que se opuseram à missão

a Tessalônica (At 17.1). Como recompensa pelo

paulina conseguiram culpar os cristãos por uma

apoio que deu a Antônio e Otaviano, em 42 a.C.,

agitação que os próprios judeus haviam criado.

Tessalônica tornou-se uma cidade livre. Até os sé­

Entretanto, em um primeiro exame as cartas

culos III e IV d.C., continuou sendo a cidade mais

de Paulo aos cristãos tessalonicenses não pare­

importante e populosa da Macedônia. Com o

cem sustentar o relato de Atos sobre o início da

nome de Salônica, hoje é a segunda maior cidade

igreja em Tessalônica. Apesar de Paulo ter expli­

da Grécia e ainda um importante porto marítímo.

cado pessoalmente as Escrituras (cf. At 17.2,3),

Nos sítios arqueológicos na cidade, foram en­ contrados parte da muralha romana da cidade,

nenhuma das cartas cita o

at:

existem apenas

ecos esporádicos e vagos das Escrituras hebrai­

um fórum romano do século i, uma ágora hele-

cas, dos quais o mais significativo é Daniel 11.36,

nística de época anterior, um hipódromo, três

em 2Tessalonicenses 2.4. Não é o que seria de

vãos do arco triunfal de Galério e várias igrejas

esperar de um escritor versado nas Escrituras,

bizantinas. A porta de Vardar, que ficava no aces­

do escritor de Gálatas e Romanos, especialmente

so para a via Inaciana, no lado oeste da cidade,

quando ele se dirige a um grupo de pessoas que

e o arco de Galério, no lado leste da cidade, fo­

até recentemente frequentara a sinagoga. Além

ram demolidos no século xix. Uma inscrição en­

do mais, o autor lembra os leitores de que eles,

contrada na porta, com data aproximada do final

“deixando os ídolos”, agora aguardavam o Filho

do século I a.C. ao início do século ii d.C., traz

de Deus (v.

1230

F il h o

de

D

eus) ,

que viria dos céus

T essalonicenses , C artas aos

Em nenhuma das duas cartas

de modo enérgico (ITs 2.14-16) e destacam ou

existe a mínima indicação de que, antes de se

talvez até mesmo exagerem a origem pagã dos

encontrar com Paulo e Silas, algum dos leitores

destinatários (ITs 1.9) — possivelmente em razão

(ITs 1.9,10,

tivesse contato positivo e significativo com o ju­

das circunstâncias em que a igreja dos tessaloni­

daísmo, muito menos a indicação de que alguns

censes teve início ou porque a reação de Paulo

deles fossem judeus. (0 contraste pelo menos não

contra o judaísmo era resultado de seu chamado

é tão certo no que diz respeito aos adversários de

à fé e ao apostolado cristãos (sobre a última pos­

Paulo e Silas: em Atos, a oposição é constituída

sibilidade,

no final por judeus e gentios; em ITessalonicen­

ção não leve ITessalonicenses em conta).

V. G

ager,

embora em sua argumenta­

ses, os adversários são os “concidadãos” dos

Qualquer tentativa de dizer algo mais acerca

cristãos [ITs 2.14], e essa designação pode muito

dos cristãos de Tessalônica com base nas duas car­

bem incluir alguns judeus.) Por isso, muitos acre­

tas tem de considerar o fato de que Paulo aparen­

ditam que 0 relato de Atos acerca da missão em

temente pregou uma mensagem de forie conteúdo

Tessalônica é inexato ou pelo menos faz parte da

escatológico e que alguns membros da comunida­

descrição, pelo autor de Atos, da estratégia mis­

de aparentemente levaram essa mensagem ao ex­

sionária de Paulo e das relações entre cristãos e

tremo (ITs 4.13— 5.11; 2Ts 2.1-12;

judeus (cf, At 13.44-50; 14.19; 18.12-17 etc.).

Talvez essa agitação escatológica tenha sido forte

3.2

S im p s o n ,

1998).

O quadro sugerido pelas cartas. 0 relato o bastante para gerar acusações de subversão polí­

pode, aliás, estar descrevendo apenas um lado

tica (At 17.6,7). Estudos sociológicos sobre grupos

de uma missão que, de modo mais significativo,

que dão demasiada ênfase à escatologia ou ao mi-

havia alcançado gentios não influenciados pelo

lenismo ressaltam que uma nova experiência de

judaísmo. Ao se referir nas duas cartas a seu la­

relativa privação surgida de mudanças nas estru­

bor físico (ITs 2.9; 2Ts 3.7-9), Paulo dá uma pista

turas da sociedade e de padrões de relacionamento

desse outro lado da missão; seu local de traba­

costumam estar por trás desse tipo de interesse es­

lho pode ter sido aquele em que muitos gentios

catológico, justamente o tipo de fé que a pregação

que moravam na cidade e não eram judaizados

paulina do evangelho oferecia. Teria havido em

ouviram o evangelho. Isso está em conformidade

Tessalônica uma situação social que tornara atra­

com os métodos utilizados por outros pregadores

ente o evangelho de Paulo?

p. 38-41;

Mesmo que os cristãos tessalonicenses não

1987, p. 17-20). O fato de Paulo ter

se sentissem à vontade com a situação social

trabalhado como artesão em Tessalônica (como

vigente, seria um erro supor que todos estavam

aconteceu em Corinto, At 18.2,3) dá a entender

na base da pirâmide social. Aliás, W. A. Meeks

e filósofos populares da época M a lh e r b e ,

(H o ck,

uma estada mais longa na cidade que o perío­

(p. 173-4) acredita que alguns dos convertidos de

do de três semanas ou pouco mais, que se pode

Paulo eram pessoas relativamente abastadas que

inferir de Atos 17.2. Mais de uma vez, os cris­

experimentavam uma “incongruência em relação

tãos de Filipos enviaram ajuda financeira a Paulo

a sua posição social” ou uma “dissonância em

enquanto ele esteve em Tessalônica (Fp 4.15,16).

relação a essa posição social” , porque sua posi­

Isso aponta para a mesma conclusão.

ção não correspondia a sua riqueza. Essa incon­

Mas pode ser que a situação fosse mais com­

gruência estaria por trás de sua atração pela fé

plexa, não apenas pelo que Atos nos permite

escatológica pregada por Paulo. Duas evidências

ver, mas também pelo que podemos inferir das

revelam que a igreja de Tessalônica era constituí­

próprias cartas. Talvez Paulo tenha procurado

da de pobres e ricos: a decisão de alguns de parar

minimizar a influência judaica sobre alguns dos

de trabalhar (2Ts 3.11) e as referências em Atos

cristãos tessalonicenses. Da maneira que se en­

a “mulheres de posição” e a Jasom, que possuía

contra, a estrutura da crença refletida nas cartas é

uma casa (At 17.4,5). R. Jewett (p. 113-32) apresenta para consi­

uma forma apocalíptico-messiãnica de judaísmo embora as cartas

deração alguns fatores sociais de Tessalônica

jamais se refiram às Escrituras judaicas, Elas tam­

que podem ter desempenhado um papel funda­

bém incluem uma polêmica antijudaica expressa

mental na reação positiva dos tessalonicenses à

(v.

a p o c a l ip t is m o ;

e s c a t o l o g ia )

,

1231

I C iJ J M L U I ^ H -C I N iC i,

MU:>

mensagem de Paulo. Jewett cita o fato de a cidade

boa notícia sobre a estabilidade da comunidade

de Tessalônica ter absorvido, no século i d.C., o

cristã naquele lugar (ITs 3.6). Paulo ainda espe­

culto a Cabiros (v.

rava voltar a Tessalônica (ITs 3.10,11). Nesse ín­

D

o n f r ie d ,

1 9 8 5 ),

que era um

culto local a um redentor escatológico, popular

terim, ele e seus colegas enviaram as duas cartas

entre as classes mais baixas, apresentando algu­

para encorajar e exortar a igreja inexperiente a

mas semelhanças superficiais com o evangelho

que procurasse resolver parte da confusão sobre a

cristão. Para alguns dos que haviam sido adeptos

expectativa escatológica que eles haviam procla­

do culto a Cabiros e haviam assim perdido o que

mado e que tratasse do problema da ociosidade

a fé que recentemente abraçaram lhes proporcio­

por parte de alguns membros.

nava, 0 evangelho pode ter sido um substituto à

Em geral, entende-se que as cartas aos tessa­

altura. Jewett também aponta para as mudanças

lonicenses surgiram de uma situação de conflito

na sociedade tessalonicense com a transferência

ideológico, determinada pela influência de outras

de poder para os romanos e a chegada de pessoas

cartas mais polêmicas de Paulo (posição adota­

com poder político e comercial. Essa mudança te­

da, de diferentes maneiras, e.g., por

ria contribuído para uma situação social em que

p. 123-218;

0 evangelho escatológico de Paulo teria sido visto

gem é quase sempre parte de um quadro monolí­

de maneira favorável.

tico e incorreto sobre os adversários de Paulo ou

Qualquer que seja a maneira de entendermos

Je w e t t ,

S c h m it h a l s ,

p. 149-57). Mas essa aborda­

sobre as religiões existentes na época (v.

g n o s t ic is -

sua origem, a igreja em Tessalônica parece ter

M o ).

se mantido estável e em relacionamento amisto­

depende de ligações tênues estabelecidas entre as

so com Paulo e seus colaboradores. 0 texto de

exortações paulinas e outras declarações e fenô­

Atos 20.4 menciona dois homens de Tessalônica

menos do mundo antigo ou entre as diferentes

entre os representantes das igrejas gentílicas que

cartas de Paulo (e.g., ITessalonicenses e 2Corín-

acompanharam Paulo em sua última viagem a

tios). Depende também de que se identifiquem

Jerusalém. Em 2Timóteo 4.10, menciona-se certo

algumas partes das cartas aos tessalonicenses

Demas, que abandonou Paulo e foi para Tessalô­

como polêmicas (v. 5.1 abaixo). Estaremos em

nica. Essa breve observação não é suficiente para

terreno mais firme, falando de modo geral, se

presumir que a igreja daquela cidade deixou de

pensarmos que os problemas na igreja tessaloni­

apoiar o apóstolo.

cense surgiram das possibilidades do cristianismo

Além do mais, a identificação dessa situação

paulino, não de alguma distorção ideológica sur­ 4. A composição das cartas

gida fora da comunidade.

Aparentemente, as cartas aos cristãos de Tessa­

Nessa estrutura, parece que uma escatologia

lônica foram escritas não muito depois de Pau­

plenamente realizada era defendida pelo menos

lo, Silas e Timóteo terem partido dessa cidade e

por alguns membros da igreja de Tessalônica. Ao

chegado a Atenas (ITs 2.17; 3.1; At 17.10-15). As

que parece, a confusão escatológica tratada por

tentativas feitas por Paulo de voltar a Tessalônica

Paulo girava em torno do tempo que restava até a

foram frustradas {ITs 2.18), talvez pela garantia

esperada volta de Jesus. Alguns membros da co­

exigida pelas autoridades da cidade dos cristãos

munidade já haviam morrido, e os que continua­

de Tessalônica de que ele não retornaria (At 17.9).

vam vivos não estavam certos de que os mortos se

iVIas ele conseguiu enviar Timóteo de volta à ci­

beneficiariam com a volta de Cristo (ITs 4.13-18). Nessa situação, alguns membros da comunida­

dade (ITs 3.2). Sem dúvida, Timóteo foi portador de uma

de talvez tivessem encontrado consolo na cren­

mensagem escrita, porém não a temos, a menos

ça de que o aguardado retorno escatológico já

que seja 2Tessalonicenses (que seria, então, a

havia ocorrido em algum sentido (2Ts 2.1-3; v.

mais antiga das duas cartas; essa é a opinião de

r e s s u r r e iç ã o ) .

v., abaixo, sobre a sequên­

Paulo não dá a razão por trás da recusa de

cia das cartas). De qualquer maneira, ITessaloni­

alguns em trabalhar (ITs 4.10-12; 5.14; 2Ts 3.6-

W

anam aker,

p.

3 7 -4 5 ;

censes e talvez 2Tessalonicenses foram escritas

12), nem diz se ao menos havia alguma razão por

depois que Timóteo voltou de Tessalônica com a

trás disso. Ele nem mesmo diz ou deixa implícito

1 2 32

T essalonicenses , C artas aos

que esse padrão de comportamento surgiu após

5. Questões literárias e históricas

a conversão ao cristianismo. Portanto, a ideia co­

5.1 Crítica da forma e critica retórica. A

mum de que essa ociosidade era motivada por

maioria das cartas de Paulo traz, após a saudação,

novas crenças escatológicas, constituindo-se ou­

uma “ação de graças epistolar” (e.g., Rm 1.8-15;

tra manifestação da confusão escatológica abor­

ICo 1.4-9; Fp 1.3-11), e nisso elas se assemelham

dada nas cartas (e.g.,

a outras cartas helenísticas (v.

M

arsh all,

p.

117, 2 1 8 ),

não

passa de conjectura.

cartas).

cartas, fo rm as

de

As duas cartas aos tessalonicenses são

Outra teoria apresentada é que o problema

anômalas pelo fato de cada uma possuir o que

causado por pregadores cristãos que reivindica­

pode ser descrito como duas seções de ação de

vam sustento por parte de seus ouvintes estava

graças (ITs 1.2-10; 2.13-16; 2Ts 1.3,4; 2.13,14),

se revelando nessa recusa em trabalhar

r il l in g ,

e em ITessalonicenses encontramos ainda outra

1972, p. 96-8). Mas esse problema, no qual Paulo

expressão de ação de graças (ITs 3.9,10). A pre­

não queria se envolver, em Corinto ou em Tessa­

sença de duas ações de graças em 2Tessalonicen-

lônica (ITs 2.9; 2Ts 3.7-9; ICo 9), e de que trata a

ses é interpretada como prova de que essa carta

Didaquê [Di, 12), estava associado com os prega­

é uma imitação não paulina de ITessalonicenses

dores itinerantes. As cartas aos tessalonicenses,

(v., abaixo, sobre a questão da autoria).

(T

porém, tratam de um problema de ociosidade en­ tre os membros da igreja.

Contudo, em ITessalonicenses, essa anoma­ lia é resolvida mediante o ajuste das categorias

É comum pensar que ITessalonicenses 2.1-12

normais da crítica da forma (e.g., interpenetração

seja uma resposta a acusações de que Paulo e seus

entre corpo da carta e ação de graças), mediante

colegas eram hipócritas não motivados por leal­

identificação de ITessalonicenses como uma fu­

dade a Deus nem por amor aos tessalonicenses,

são de duas cartas

mas por amor ao dinheiro (e.g.,

de ITessalonicenses 2.13-16 como uma interpola­

B ruce,

p. 27-8),

(S

c h m it h a l s )

ou

a identificação

ou de que Paulo havia descuidado dos dons ca­

ção pós-pauUna (e.g.,

rismáticos (cf. ITs 1.5; 2Co 10.10; 11.6;

S c h m tt-

da interpolação concentra-se no contraste entre o

p. 139-40, no que é seguido por

P

earso n

e

S c h m id t ) .

A ideia

Je w e t t ,

que Paulo diz acerca dos “judeus” em ITessaloni­

p. 102-3). Mas já se demonstrou que essa passa­

censes 2.14-16 e a alta consideração demonstrada

gem é apenas um exemplo de um padrão retóri­

pelos judeus não cristãos em Romanos 9— 11, in-

co antigo e comum, em que o orador ou escritor

cluindo-se sua declaração sobre a futura salvação

apresenta um exemplo a ser imitado, descrevendo

dos judeus (Rm 11.26). A ideia da interpolação

o próprio comportamento em termos antitéticos

também se concentra em outros argumentos ba­

( “não aquilo, mas isto” ;

seados no conteúdo e na estrutura da segunda

HALS,

L yons,

p. 184;

M

alh erbe,

1970, 1983).

ação de graças.

Outra afirmação é que alguns aspectos do

Costuma-se

aceitar

sem

questionamento

material exortativo de ITessalonicenses tratam

que a polêmica incisiva vista em ITessalonicen­

de problemas específicos da comunidade cris­

ses 2.13-16 surge de uma situação de animosi­

tã em Tessalônica (e.g.,

dade, mas essa pressuposição é minada pelos

Je w e t t ,

p. 100-2, sobre

ITs 5.19-22; p. 103-4, sobre 5.12,13;

p. 87,

dados que mostram a polêmica incisiva como

sobre ITs 4.3-8). Está claro que Paulo tem em

generalizada no mundo antigo, e mesmo dentro

B ruce,

mente o problema da ociosidade em 2Tessaloni-

do judaísmo e da igreja (v.

censes e, por extensão, em ITessalonicenses. Mas

parece que Romanos 9— 11 se baseia numa ava-

Jo h n so n ).

Além disso,

em outras exortações, a saber, as que tratam de

Uação negativa da situação vigente entre judeus

adultério e outras formas de imorahdade sexual

não cristãos (em particular, Rm 11.7-10). E, se a

(ITs 4.3-8) e de respeito pelos Uderes da igreja

crítica da forma assumir a função de ferramenta

(ITs 5.12,13, talvez com 2Ts 3.14,15), Paulo em­

de descrição, não de definição, será difícil utihzá-

prega exortações padronizadas e expressas em

la para elaborar qualquer argumento a favor de

padrões retóricos normais, sem nenhuma indica­

uma interpolação (ou, no que diz respeito a ITes­

ção de que algum problema em particular esteja

salonicenses, de um produto de fusão). O mes­

sendo tratado.

mo se pode dizer dos argumentos de que outras

1 233

passagens das cartas aos tessalonicenses sofre­

As passagens de 2Tessalonicenses 2.2 e 3.17 são

ram interpolação [e.g., ITs 5.1-11).

consideradas tentatívas de encobrir os vestígios

A crítica da forma permite isolar o aspecto

de falsificação e de denunciar ITessalonicenses, e

linico 0, portanto, o interesse especial dos três

o apelo direto ã autoridade apostólica em 2Tessa-

primeiros capítulos de ITessalonicenses, que é,

lonicenses 2.15 é visto como característica de um

em termos genéricos, o desejo de Paulo de retor­

contexto pós-paulino.

nar à ação de graças quando pensa no início de seu trabalho entre os tessalonicenses (v.

No entanto, a diferença na escatologia entre

S im p s o n ,

as duas cartas tem sido exagerada. Que a parusia

1990). A renovação da ação de graças em 2Tes-

seria inesperada (ITs 5) e que sinais a precede­

salonicenses 2.13, qualquer que seja o modo em

riam (2Ts 2) eram, na verdade, crenças que a igre­

que é descrita pela crítíca da forma, permite que

ja mais primitiva sustentava (e.g., Mc 13). Como

0 escritor faça contraste entre “os que vos atri­

falsa alegação de autenticidade, 2Tessalonicenses

bulam” (2Ts 1.6) e “ os que perecem” (2Ts 2.10),

está longe de ser convincente, visto que nenhuma

de um lado, e os destinatários, de outro, emoldu­

outra carta paulina apresenta tema semelhante. O

rando as palavras acerca daqueles com ação de

apelo ã autoridade apostólica, em 2Tessalonicen-

graças por estes.

ses 2.15, não é mais incisivo que o encontrado

De modo geral, a crítica retórica das carias

em ITessalonicenses: apenas é mais explícito.

consiste em identificar os antígos componentes

Os influentes argumentos de W. TriUing contra

retóricos (e.g., exordium, paititio, nanatio) das

a autoria de 2Tessalonicenses têm feito com que a

cartas e assim considerar que as seções e as car­

atenção se desvie da escatologia e das referências

tas têm 0 propósito de ser entidades completas

a uma carta anterior e se concentre em outras

com as funções generalizadas associadas aos

questões: 1) várias diferenças de estilo e teologia

termos retóricos. Desse modo, interpretam-se as

entre 2Tessalonicenses e ITessalonicenses com as

cartas como um conjunto oratório com estrutura

outras cartas paulinas incontestés; 2) diferença

epistolar. Essa atenção cada vez maior à estrutura

de atitude entre as duas cartas; 3) ausência de

retórica das cartas não tem levado a uma concor­

referências pessoais em 2Tessalonicenses.

dância total (v.

p. 63-87, 221, 225;

­

A afirmação de que 2Tessalonicenses foi es­

p. 48-52), mas tem permitido abordagens

crita por Paulo e seus colaboradores ainda não

mais flexíveis e novas maneiras de entender as

enfrenta nenhum argumento que pelos menos

funções das diferentes partes das cartas e as rela­

se aproxime de tornar a autoria pós-paulina uma

ções existentes entre essas partes (mesmo no caso

conclusão convincente. Cada um dos argumentos

de ITs 2.13-16), principalmente em comparação

apresentados por Trilling, em particular o das di­

com as análises temáticas e da crítica da forma.

ferenças estilísticas, é praticamente de nenhum

A anáhse retórica também reanimou a questão do

valor para alguns estudiosos que as examinaram

gênero e do tópico principal das cartas de Paulo.

detalhadamente. A diferença de atitude nas car­

Cada vez mais, são consideradas retóricas as dis-

tas, necessariamente relacionada com a ausência

cordâncias no que diz respeito, por exemplo, ao

de referências pessoais em 2Tessalonicenses, tal­

propósito de ITessalonicenses 2.1-12.

vez aponte não para destinatários diferentes, mas

m aker,

5.2

Je w e t t ,

W

ana

A autoria de ZTessalonicenses. Muitos para um volume diferente de informações sobre

estudiosos das cartas aos tessalonicenses estão

a mesma situação, o que, na hipótese de ambas

convencidos de que, embora Paulo e seus co­

as cartas serem paulinas, suscita a questão da or­

laboradores

dem cronológica.

tenham

escrito

ITessalonicenses

S.

aos cristãos de Tessalônica, um paulinista pós-

3 A ordem das cartas. A ordem canônica

pauhno escreveu 2Tessalonicenses, utihzando

de 1 e 2Tessalonicenses corresponde à ideia mais

como modelo uma carta autêntica. Em geral, os

aceita sobre a sequência cronológica das cartas,

argumentos a favor dessa ideia giram em torno

mas tal ideia não tem valor como argumento,

da compreensão de que 2Tessalonicenses é uma

pois se baseia apenas no volume das cartas. 0

correção consciente de um apocaliptismo exa­

que importa são as diferenças na maneira em que

gerado, em parte inspirado pela carta autêntica.

as mesmas preocupações são tratadas nas duas

1234

T essalonicenses , C artas aos

cartas e as pistas que contêm sobre a movimen­

trabalhar), a linguagem provavelmente é a mes­

tação das pessoas e das próprias cartas. Seria

ma da época da proclamação básica do evangelho

mais plausível dizer que a maneira de tratar as

e, sem dúvida, não passa de um desenvolvimento

questões da escatologia e da ociosidade se desen­

dos temas daquela proclamação.

volve de ITessalonicenses para ITessalonicenses?

Em particular, ITessalonicenses 1.9,10 permi­

Ou será o inverso? Como entender as referências

te ver algo do padrão geral da pregação inicial de

que parecem aludir a uma experiência passada

Paulo a púbhcos gentílicos, concentrada no único

em ITessalonicenses 1.6, 2.14 e 3.3, mas a algo

Deus e em Jesus, aquele que vem, o Mediador da

presente em ITessalonicenses 1.4-7? Sem dúvida,

redenção operada por Deus a favor da humani­

Timóteo levou alguma comunicação escrita con­

dade (cf. At 17.23-31; ICo 8.6). 0 único Deus era

sigo na viagem mencionada em ITessalonicenses

essencial a qualquer forma de judaísmo, e a men­

3.2-8, mas seria essa comunicação o que chama­

sagem do fim apocalíptico do tempo presente era

mos Segunda Carta aos Tessalonicenses? Ou seria

aceita por boa parte dos judeus, embora, é claro,

ITessalonicenses a carta mencionada em ITessa­

0 lugar de Jesus (v.

lonicenses 2.2? Será que uma situação que estava

Paulo fosse além do conteúdo judaico.

J esu s

e

P au lo )

na pregação de

se agravando fez com que a atitude amistosa e de

A Primeira Carta aos Tessalonicenses também

gratidão a Deus encontrada em ITessalonicenses

mostra que a pregação pauUna do monoteísmo

se transformasse no tom mais oficial de 2Tessa-

judaico (v.

lonicenses, ou teria um melhor entendimento da

drão contra a idolatria pagã (cf., e.g., Jt 10.1-10;

D

eus)

incluía a polêmica judaica pa­

situação (por meio do relatório de Timóteo; cf.

Sb 13— 15). Paulo identificava esse único Deus

ITs 3.6) levado a uma atitude mais agradecida?

como o “Pai” de Jesus e dos cristãos (e.g.,

É possível elaborar argumentos fortes a favor da prioridade de ITessalonicenses

ITs 1.2,3,9,10). Como pregador, Paulo também

p. 24-30)

falava da morte (ITs 1.6; 2.15; 5.10), da ressur­

anam aker,

reição (ITs 1.10; 4.14) e da aguardada volta es­

p. 37-45). Saber qual das duas veio primeiro é

catológica de Jesus (ITs 1.10; 2.19; 3.13; 5.23

(J e w e t t ,

tanto quanto de 2Tessalonicenses

(W

uma indagação para a qual não temos uma res­

— referências além das seções escatológicas espe­

posta precisa. Por esse motivo, não temos ele­

cíficas nas duas cartas; v.

mentos para construir com segurança uma teoria

motivação apresentada para aceitar a mensagem

sobre o contexto da carta. Como normalmente

de Paulo (“... recebestes [...] como a palavra de

acontece, o que temos à disposição é o conteúdo

Deus” , ITs 2.13) era que a fé em Jesus, o qual

e s c a t o l o g ia ) .

A principal

das cartas, mas não o volume de informações que

“nos livra da ira vindoura”, é o caminho de fuga

gostaríamos de ter sobre sua origem.

do juízo divino que virá (ITs 1.10; 5.9; 2Ts 2.13).

6. Teologia de Paulo na fase inicial

cristologia desenvolvida, Jesus, “ o Senhor” , é pos­

Boa parte do valor de 1 e 2Tessalonicenses como

to ao lado de Deus Pai como a fonte da existência

Embora as cartas não tornem explícita uma

documentos de teologia pauhna baseia-se no fato

da igreja tessalonicense (ITs 1.1; 2Ts 1.1), como o

de estarem aparentemente bem ligadas à prega­

guia da missão apostólica (ITs 3.11) e como aquele

ção missionária de Paulo. As duas cartas são di­

que dá consolo e esperança ao cristão (2Ts 2.16).

rigidas a uma igreja fundada havia pouco tempo.

Ele também é visto como exemplo para o povo

Boa parte das cartas fala da obra de proclamação

sofredor de Deus, com os profetas, os apósto­

a que a igreja de Tessalônica deve sua origem, e

los e os cristãos tessalonicenses (ITs 1.6; 2.15).

quase nada do conteúdo é ocasionado por preo­

Mas seu sofrimento e sua morte possuem signi­

cupações com situações especiais, pelo menos em

ficado maior: é o que dá origem à vida eterna do

comparação com outras cartas de Paulo. Em gran­

crente em união “com ele” (ITs 5.10,17).

de parte, procuram apenas encorajar os membros

Essa perspectiva de vida com Cristo (2Ts 2.1,2)

da nova comunidade cristã na nova condição em

distingue os cristãos como um povo que tem es­

que se encontram. Mesmo quando não tratam de

perança (ITs 4.13,18). Essa vida começará com a

preocupações com situações especiais (nas se­

iniciativa divina de Jesus descer dos céus e com

ções escatológicas e nas palavras sobre o dever de 1

0 chamado do arcanjo (ITs 4.16; cf. ICo 15.52); 235

os crentes que tiverem morrido serão ressuscita­

2Ts 3.4,14,15), mas essa responsabilidade tam­

dos, e os que estiverem vivos serão levados até

bém era dos membros da igreja (ITs 5.11). O pa­

as nuvens, para que uns e outros partilhem da

pel central que o sofrimento dos proclamadores

vida com ele (ITs 4.14-17; 5.10). A vinda de Jesus

do evangelho, e do próprio Paulo, ocupa na teo­

e “nossa reunião com ele” (2Ts 2.1) serão pre­

logia do apóstolo parece ter sido bastante influen­

cedidas por uma forte manifestação do mal, que

ciado por sua ligação com a igreja de Tessalônica

tentará tomar o lugar de Deus e receber adoração,

(v. esp. ITs 2; cf. 2Co 10— 13; Fp 3; G1 4.12-19;

apoiando suas reivindicações com milagres e, as­

5.11). A imitação é o vínculo entre os que estão

sim, convencendo os incrédulos (2Ts 2.3,9,10).

chegando à fé e seus líderes que sofrem e os que

Esse mal sempre está agindo, embora sua eficácia

os antecederam na fé (ITs 1.7; 2.14; cf. 2Ts 1.4), e

esteja agora limitada (2Ts 2.6,7). Quando se ma­

0 sofrimento é a experiência inevitável dos prega­

nifestar plenamente, ele o fará apenas como parte

dores e da comunidade cristã (ITs 3.3,4).

do plano divino de juízo (2Ts 2.11,12) e apenas

Ver também

e s c a t o l o g ia .

para ser destruído por Cristo, quando este vier em socorro dos crentes (2Ts 2.8).

B ib u o g r a f i a .

Para os incrédulos, a vinda de Cristo não será esperada, e não se pode precisar sua data

Comentários:

B e s t,

E. A commenta­

ry on the First and Second Epistles to the Thessalonians. Peabody: Hendrickson, 1972.

(ITs 5.1-3). Para os crentes, é não somente razão



(b o t c .)

________ Peabody; Hendrickson, 1988.

da esperança, mas também a motivação funda­

(b n tc .)

mental para uma vida correta e para a edificação

Word, 1982.

da comunidade (ITs 5.4-11). Nada nas exortações

to the Thessalonians. New York: Doubleday,



B ru ce,

F. F. 1 and 2 Thessalonians. Waco:

(w b c .)

morais de Paulo é peculiarmente judaico ou cris­

2000.

tão: tudo podia ser encontrado entre os prega­

nians. Grand Rapids: Eerdmans, 1983.

dores gentílicos não cristãos e entre os filósofos

M o r r is ,

morais da época (v.

Thessalonians. Grand Rapids: Eerdmans, 1959.

M alherbe,

1987). Mas, para



■ M a l h e r b e , A. J. The Letters

(a b .)

M a r s h a ll,

I. H. 1 and 2 Thessalo­ (w c b c .)



L. The First and Second Epistles to the

Paulo, o fundamento da exortação ética é diferen­

(m c n t .)

te: é o chamado de Deus “ para o seu reino e gló­

salonians. Collegeville; Liturgical Press, 1995. ■



ria” (ITs 2.12; cf. 2Ts 1.11), é a vontade de Deus

W a n a m a k er,

(ITs 4.3), é o conhecimento de Deus por meio da

Rapids: Eerdmans, 1990.

proclamação cristã (ITs 4.5) e é a expectativa do

s le r ,

juízo de Deus (do “Senhor”, talvez uma referên­

Fortress, 1991. v. 1. ■

cia a Jesus; ITs 4.6). É um chamado à santidade

the First Letter to the Thessalonians. Louvain; Pe-

R ic h a r d ,

E. J. First and Second Thes­

C. A. 1 and 2 Thessalonians. Grand ( n ig t c . )

■ Estudos:

B as-

j. M., org. Pauline theology. Minneapolis; C o lu n s ,

R.

F. Studies on

(ITs 4.3,4; cf. 5.23) e a um relacionamento com

eters/Louvain University,

Deus, que é desfrutado por aqueles que partilham

K. P. The cults of Thessalonica and the Thessalo-

de seu Espírito (ITs 4.8; 5.19; 2Ts 2.13).

nian correspondence,

A fé no evangelho dera origem a uma comu­



D o n fr ie d ,

K. P. &

nts,

(b e tl,

v.

66.) ■

D o n fr ie d ,

31, p. 336-56, 1985.

B e u t le r , J.

The Thessalonians

nidade que devia se concentrar no amor mú­

debate: methodological discord or methodologi­

tuo (ITs 3.12; 4.9; 2Ts 1.3) e na admoestação

cal synthesis? Grand Rapids; Eerdmans, 2000. • G. Some notes on Paul’s conversion,

(ITs 5.11; 2Ts 3.15). A disseminação do evange­

G a g e r , J.

lho em novas áreas era uma preocupação impor­

p. 697-704, 1981. ■ H o c k , R. F. The social context

tante da igreja, mais ainda de seus missionários

o f Paul’s ministry: tentmaking and apostleship.

nts,

(ITs 1.8,9; 2Ts 3.1). As cartas praticamente não

Philadelphia; Fortress, 1980. ■ H u g h e s , F.

permitem vislumbrar as estruturas eclesiásticas

Christian rhetoric and 2 Thessalonians. Sheffield:

surgidas nesse momento inicial, mas Paulo deixa

js o t,

claro que o entendimento era que os missioná­

lonian correspondence: Pauline rhetoric and mil-

rios e os líderes locais tinham autoridade sobre

lenarian piety. Philadelphia: Fortress, 1986. (íf.)

a vida dos crentes. Uma função importante de

■ J ohnson,

líderes locais e apostólicos era servir de exem­

slander and the conventions of ancient polemic.

plo ético e fazer exortações (ITs 2.11,12; 5.12,13;

JBL, V.

1236

W.

Early

1989. OsNTSup, 30.) ■ J e w e t t , R. The Thessa-

L.

T. The New Testament’s anti-Jewish

108, p. 419-41, 1989. ■

Lyons, G .

Pauline

T ia g o , C arta de

autobiography: toward a new understanding. Atlanta; Scholars, p. 177-221. lh erbe,

NovT,

73.) ■

exige mais que meras confissões ortodoxas de fé.

M a­

Nesse sentido, Tiago oferece um controle comple­

A. J. Exhortation in First Thessalonians.

mentar e um contrapeso para as tendências das

[s b ld s ,

25, p. 238-56, 1983. ■ _____ _ “ Gentle

carias paulinas, ajudando a elaborar um testemu­

as a nurse”; the stoic background to 1 Thess. ii.

nho bíblico que recomenda uma firme confiança

NovT,

na obra redentora do Senhor Jesus (Paulo) e uma

V.

V.

12,

203-17, 1970. ■ _____ _ Paul and

p.

the Thessalonians: the philosophical tradition of

sabedoria prática que segue o modelo da vida de

pastoral care. Philadelphia: Fortress, 1987. •

Jesus (Tiago).

M e­

W. A. The first urban Christians: the social

1. 0(s) autor (es) de Tiago

world of the apostle Paul. New Haven: Yale Uni­

2. O púbhco-alvo de Tiago

eks,

versity Press, 1983. ■ P e a r s o n , B. A. 1 Thessalo­

3. A literatura de Tiago

nians 2:13-16: A deutero-Pauhne interpolation.

4. Abordagem canônica em relação a Tiago

HTR,

V.

64, p. 79-94, 1971. ■

S c h m id t ,

D. 1 Thess

5. 0 evangelho na visão de Tiago

2:13-16: linguistic evidence for an interpolation. JBL,

V.

6. 0 argumento de Tiago

102, p. 269-79, 1983. ■ S c h m i t h a l s , W. Paul

and the gnostics. Nashville: Abingdon, 1972. p. 123-218. ■

S im p s o n ,

1. 0 (s ) autor (es) de Tiago

J. W. Problems posed by

1 Thessalonians 2:15-16 and a solution,

1.1

Candidatos a autores. Para qualquer in­

.

térprete interessado numa ampla gama de ques­

12, p. 42-72,1990. ■_____ _ Shaped by the stories:

tões históricas, é importante a identidade tanto

narrative in 1 Thessalonians.

do autor de um livro quanto de seus primeiros

1998. ■ T

r il l in g

,

a tj,

v

.

h bt, v

53, p. 15-25,

W. Untersuchungen zum zweiten

Thessahnicherbrief Leipzig: St. Benno, 1972. J. W.

leitores. Por exemplo, é difícil situar uma com­ posição em seu contexto original, saber algo do

S im p s o n

Jr.

que a ocasionou e quando e como ela influenciou seus primeiros leitores sem que se tenha uma boa

T

e st a m e n t o d e

T

e st a m e n t o

Jó. Ver

ideia de quem a escreveu e por que o fez.

A p ó c r if o s e P s e u d e p íg r a fo s .

0 versículo inicial reivindica diretamente a de

M

o is é s .

Ver

A p ó c r ifo s

e

P s e u d e p í-

autoria de “Tiago, servo de Deus e do Senhor Je­ sus Cristo” (Tg 1.1). Apesar disso, a identidade

g r a fo s .

do autor continua sendo objeto de debate entre T e st a m e n t o s

d o s d o z e p a t r ia r c a s .

Ver

A p ó c r ifo s

e

os estudiosos da atualidade. Duas questões críti­ cas estão em jogo. Quem é esse Tiago menciona­

P s e u d e p íg r a fo s .

do no im'cio da carta? Seria ele necessariamente T

ia g o ,

Carta

o autor da carta? Não há dados históricos que

de

A Carta de Tiago está entre os livros do

que

possam resolver essas questões: não dispomos de

têm recebido menos atenção. A maioria dos cren­

nenhum outro texto da autoria de Tiago com o

tes e de suas tradições de fé (especialmente os

qual possamos comparar seu estilo literário e o

protestantes) ainda concorda com o veredicto

assunto de que ele trata, nem existe ninguém da

negativo de Lutero sobre sua utilidade para a for­

época desse autor que confirme sua identidade.

nt

mação cristã, assinalando a falta de referência a

Mesmo que se concorde que a epígrafe do

Cristo e sua aparente discordância de Paulo como

livro identifica seu autor verdadeiro, existem

bons motivos para que a releguemos a uma posi­

vários líderes cristãos de nome Tiago dentre os

ção secundária no âmbito da igreja. Os estudiosos

quais podemos escolher o autor, incluindo-se seis

de nossa época têm até mesmo considerado que

mencionados no n t . A essa hsta, por mera conjec­

a tendência mais prática do livro é inerentemente

tura, alguns acrescentam até mesmo um “Tiago

inferior quando comparada à profundidade teo­

desconhecido”

lógica da correspondência pauhna. Ao mesmo

nas Escrituras, existem dois apóstolos, o que os

tempo, outros apelaram para as soluções sábias

torna candidatos atraentes, por causa da íntima

que a carta apresenta para situações cotidianas,

hgação histórica entre canonicidade e apostoli-

demonstrando que a religião plenamente biTjlica

cidade, ideia que durante algum tempo recebeu

1 237

(M offatt).

Entre os Tiagos citados

T ia g o , C arta de

acolhida no Ocidente, onde alguns achavam que

lendário, cuja piedade vibrante e estilo de vida

0 livro fora escrito pelo apóstolo Tiago, filho de

ascético corrigiram uma igreja que se havia tor­

Alfeu (cf. Mc 3.18; At 1.13). Contudo, fora das

nado demasiadamente secular e de classe média

Escrituras não há registro de seu ministério apos-

para o gosto de seus membros judeus e gnósticos

tóhco. De qualquer maneira, não parece que se

mais conservadores

deva exigir do autor uma credencial apostólica:

É quase certo que a igreja pensava nesse Tiago

a abertura do hvro não apela para uma função

como 0 que aparece na abertura da carta que leva

( W a l l & L e m c io ,

p. 250-71).

apostólica como forma de conferir autoridade

seu nome, ao canonizar os livros do

ao texto, e sim ao relacionamento mais modes­

temunho que ele deu de Cristo e a permanente

n t.

Só o tes­

to que, na condição de “ servo” , o autor mantém

autoridade que desfrutou bem no início do cris­

com Deus e com o Senhor Jesus. Orígenes e Jerô-

tianismo, algo que o torna único entre os pos­

nimo eram de opinião que nenhum apóstolo po­

síveis candidatos, justificam a posição canônica

deria ter escrito Tiago, uma vez que discorda tão

atribuída a essa composição controversa. Dian­

claramente do pensamento paulino, ideia que,

te disso,

séculos depois, Lutero acompanhou.

a Carta de Tiago reivindica ter sido escrita [pelo

W. G.

Kümmel conclui; “ Sem dúvida,

A maioria dos estudiosos presume que o úni­

irmão de Jesus] e, mesmo que não seja autênti­

co candidato viável continua sendo Tiago, o Jus­

ca, apela para o nome desse Tiago famoso e para

to, irmão de Jesus, veredicto que encontra apoio

o peso de sua pessoa como fonte de autoridade

limitado na tradição antiga (v.

para seu conteúdo”

2 .2 3 .4 ).

E u s éb io ,

Hi ec,

1.2

Embora não fosse um dos Doze, o retrato

(K üm m el,

p. 412).

Estilo autoral e assunto. Será que “esse

que a BíbUa apresenta de Tiago é o de um líder

Tiago famoso” escreveu o livro que leva seu

importante no cristianismo judaico mais antigo.

nome? A maioria dos estudiosos da atualidade

1 5 .7 ),

acredita que não e favorece uma data pós-apos-

aparentemente para um ministério importante

tólica, embora já existam alusões significativas a

(v. Ev hb,

Tiago em 1Clemente e Hermas, no final do sécu­

Jesus o escolheu após a ressurreição {ICo 7 ).

Por isso, não surpreende que Atos

apresente Tiago como sucessor de Pedro em Je­

lo

rusalém (At

pois a liderança

que o grego coiné mais apurado e a capacidade

pastoral que exerceu sobre a igreja em Jerusalém

artístico-literária que se veem na composição,

1 2 .1 7 ; W a l l , 1 9 9 1 ),

I ( D a v id s ,

p.

8 - 9 ).

Esses estudiosos pressupõem

se tornou cada vez mais estratégica, primeira­

além do conhecimento substancial que o autor

mente no Concilio de Jerusalém (At

e

tem da filosofia helenística da época, estão além

1 5 .1 3 -2 1 )

mais tarde durante seu relacionamento com Pau­

da capacidade e da origem desse judeu prove­

lo (At 2 1 .1 7 - 2 6 ). Paulo cita Tiago como a primeira

niente da classe trabalhadora da Galileia

das três “colunas” da igreja judaica (Cl

L aw s ) .

2 .9 ),

cuja

contínua observância da circuncisão e das leis de

( R eicke

e

Tiago pode até mesmo ter se valido do que

na época era uma prática comum, a saber, usado

pureza ritual minou o evangelho da missão pau­

um amanuense ou secretário de confiança e de

lina entre os gentios de Antioquia (Cl

boa formação, que conhecia bem o grego e que

2 .1 1 - 1 5 ).

Na verdade, a igreja judaica preservou as ri­

teria transcrito as exortações pastorais de Tiago

cas memórias de Tiago, o Justo, até quando o

em estilo mais fluente e Uterário para um públi­

século II já ia bem avançado, porque o via como

co mais amplo de fala grega

discípulo-modelo

tempo que mantinha seu jeito semítico original.

( M a r t in ,

p. xli-bd). Eusébio cita

( M it t o n ) ,

ao mesmo

até mesmo Hegésipo, crente judeu do século ii

Essa solução é desnecessária. Basta recorrer

e originário de Jerusalém, que descreve com al­

às evidências que, em número cada vez maior,

guns detalhes a superioridade moral e religiosa

demonstram uma inter-relação bastante ativa en­

de Tiago

Hi ec, 2.23.4). Aliás, um con­

tre as culturas helenística e palestina durante o

junto significativo de escritos cristãos apócrifos

final do período do segundo templo. Os judeus

(em grande parte gnósticos), compostos pseude-

religiosos, especialmente na Galileia, podem mui­

pigraficamente em nome de Tiago nos século ii

to bem ter sido anti-helenísticos antes e durante a

e

queda de Jerusalém, em 70 d.C. (v.

III ( i

(E u séb io ,

e 2Ap Tg; A f Tg; Pt [= Livro] Tg; v. Eu

hb; Ep Pe Fi), exalta um Tiago exemplar, senão

ju d a ísm o ) .

En­

tretanto, judeus e gregos se misturavam, mesmo

1238

T ía g o , C arta de

se sentindo um pouco desconfortáveis. Dessa

imagens e ideias a respeito de Jesus. Desse modo,

maneira, 0 livro de Atos descreve uma congre­

uma cristologia mais completa ou desenvolvida

gação em Jerusalém que incluía judeus de fala

aparecerá em uma composição mais tardia. Com

grega e um pastor (Tiago) que citava a tradução

esse raciocínio, é mais fácil explicar as escassas

grega [ lxx ] das Escrituras quando os instruía

referências a Jesus em Tiago (Tg

(At 15.17,18; cf. Tg 4.6). Ou seja, Tiago cresceu

não contêm nem mesmo uma eventual alusão à

em uma cultura judaica helenizada em que se fa­

sua morte expiatória (v.

lava o grego, que ele talvez tenha aprendido sufi­

a carta tenha sido escrita em meados do século i.

C r is to ,

1.1; 2 .1 ),

m o rte

d e ),

que caso

Por fim, a consideração mais importante so­

cientemente bem para escrever esse Uvro. Outros entendem que o escritor da carta não

bre o assunto é se o autor está reagindo a ele­

pode ter sido o irmão de Jesus, cujo perfil nas

mentos controversos do ensino de Paulo, entre

Escrituras é o de quem valoriza as minúcias da

os quais a relação entre fé e obras e entre lei e

Lei judaica, que se chocam com a ideia básica da

liberdade. Uma vez que essas combinações não

carta

(K üm m el).

Essa objeção também é de pouco

se acham nem em fontes judaicas, nem nas tradi­

valor. Um número cada vez maior de estudiosos

ções cristãs mais antigas do

acredita que esse molde teológico e as intenções

pressupõem que o autor esteja reagindo a ideias

pastorais judaico-cristãs, que se percebem na car­

encontradas nos escritos de Paulo, quando esses

ta, espelham os mesmos compromissos do Tia­

passaram a ter uma circulação mais ampla, perto

go bíbUco. Por exemplo, sua preocupação com

do final do século i (e.g.,

pureza religiosa (At 21) e com o procedimento

que Tiago foi executado em

n t,

alguns estudiosos

D ib e liu s

62

e

L a w s ).

Visto

d.C. pelo sumo

público de conformidade com a Torá (G1 2) se

sacerdote Anano ii, esses estudiosos pressupõem

destaca no texto (Tg 1.22-27; 2.8-26). Seu com­

ainda que Tiago, o Justo, não poderia ter escrito

promisso com os pobres, que Paulo menciona em

a Carta de Tiago.

Gálatas 2.10, também reflete um tema importante

Entretanto, muitos relutam em aceitar que

do livro (Tg 1.9-11; 2.1-7; 5.1-6). Até mesmo o

0 autor foi motivado pelos escritos de Paulo.

Tiago conciUador de Atos 15 parece condizente

Alguns acham impossível que um leitor cristão

com a atitude por trás do livro. De igual modo, as

dos escritos de Paulo pudesse criticá-lo de ma­

tradições que Lucas emprega para narrar o pro­

neira tão aberta, especialmente no final do século

nunciamento de Tiago no Concílio de Jerusalém

1 o u in íc io d o s é c u lo ii, q u a n d o seus es crito s já

(At 15.13-21) e a carta posteriormente enviada

e s ta v a m s e n d o r e c o n h e c id o s c o m o “ E s critu ra s”

a Antioquia [At 15.23-29) revelam uma notável

[2 P e 3 .1 5 ,1 6 ). O u tros a in d a c o n s id e r a m q u e a

semelhança com o conteúdo e o vocabulário da

q u e s tã o d e d e p e n d ê n c ia literá ria está e m a b e rto

p. 18-20). Além disso,

(M ayor ; D avids ; M ar tin ) . M e s m o q u e T ia g o e Pa u ­

com base em Atos e no mundo social do judaís­

Carta de Tiago

lo q u e ira m d iz e r a m e s m a c o is a c o m “ fé e o b ra s ”

mo messiânico do século i, pode se dizer que os

ou c o m “ le i e U b e rd a d e ” —

muitos temas e imagens de natureza apocalíptica

s e n d o q u e s tio n a d o p e lo s e s tu d io s o s — , P a u lo p o ­

encontrados no texto de Tiago dão ensejo a uma

d e ria m u ito b e m esta r re s p o n d e n d o a o q u e rig m a

sociologia de sofrimento, semelhante à da comu­

d o cris tia n is m o d e J eru sa lém , e s p e c ia lm e n te e m

nidade de Jerusalém, pastoreada por Tiago. Vale

R o m a n o s e G álatas, liv r o s e m q u e se en c o n tra m

também ressaltar as várias alusões a materiais

n u m e ro s o s p a ra le lo s. E m a p o io a iss o , p o d e se

(A d am so n,

a lg o q u e co n tin u a

targúmicos e midráshicos encontrados em Tiago

cita r a c o n h e c id a a fir m a ç ã o d e G. B o rn k a m m d e

que ocorrem após seu pronunciamento em Atos,

q u e P a u lo e s c r e v e u R o m a n o s c o m o “ su a ú ltim a

quando ele, valendo-se de um midrash sobre o

v o n ta d e e t e s ta m e n to ” , a fim d e r e le m b r a r as c o n ­

livro bíblico de Amós, resolve um conflito interno

tro vérs ia s g era d a s p o r seu tra b a lh o m is s io n á rio ,

crucial (At 15.17-21).

p a rtic u la rm e n te en tre os cren tes e m J eru sa lém ,

A concordância entre esse Tiago e o assunto

e r e s p o n d e r a ela s (B o r n k am m , p. 17-31). E m b o ra

da carta também é confirmada por indícíos me­

as id e ia s e o a rg u m e n to d e T ia g o n ã o p re c is e m

nos evidentes. Muitos acreditam que é possível

se r a n te rio re s

calcular as datas de composição com base nas

corpus 239

à

m is s ã o g e n tílic a d e P a u lo e ao

p a u lin o . é p o s s ív e l q u e sua p o s iç ã o n o

T ia g o , C arta de

cristianismo mais antigo seja mais real e certa do

teológicos, sociológicos e literários, então refleti­

que em geral se supõe. Em suma, não há motivo

dos na forma flnal e no assunto da carta.

convincente para defender uma posição contrária

Por exemplo, a reorganização que o editor

à tradicional, pois é possível pressupor uma data

faz de tradições mais antígas para combinar com

pré-paulina para a carta e aceitar Tiago, o Justo,

lemas pauhnos (Tg 2.12-16) e fazer alusões es­

como seu autor (v., porém, 4 abaixo).

tratégicas ao ministério de Jesus entre os pobres,

1.3

Estágios da composição. Talvez a contí­ além da inteligente combinação de citações da

nua indefinição do problema sugira outra solu­

Torá (ou alusões a ela) e dos Profetas com o bom

ção, que leve em conta e integre um campo mais

senso (Tg 1.19-27; 4.6-10; 4.13—5.6), teve o pro­

amplo de informações. Nesse sentido, J. Cantinat,

pósito de criar um contexto mais rico, no qual

que em tempos mais recentes foi cautelosamente

seu público pudesse interpretar melhor o teste­

seguido por P. H. Davids, apresenta para consi­

munho oficial de Tiago acerca do evangelho. Ao

deração a ideia de que a composição da forma

contrário de qualquer sermão pregado por Tiago,

bíblica de Tiago se desenvolveu em dois estágios

uma composição escrita alcança novos públicos e

diversos (v.

p. 12-3). De acordo com essa

o faz de uma nova maneira, que apresenta com

hipótese, Tiago, o Justo, é responsável pela maior

mais eficácia uma solução inspirada para a crise

D a v id s ,

parte do material básico do Uvro, apresentado

espiritual que atravessam. Embora o editor tenha

inicialmente como homiUas e preservado por

seguido as convicções fundamentais de Tiago, o

cristãos judeus da Diáspora (Tg 1.1; cf. At 8.4;

Justo, seu plano literário acentua certas convic­

11.19). Isso talvez explique o conteúdo teológico

ções teológicas que eram relevantes para as novas

“primitivo” da carta.

contingências de sua igreja no final do século i,

Essas memórias preciosas de Tiago foram,

a qual se encontrava em um contexto geográfico,

então, editadas e escritas por outra pessoa, pro­

hnguístíco e cultural bem diferente daquele dos

vavelmente — embora não necessariamente —

velhos dias em Jerusalém. Por isso, o intérprete

após a morte de Tiago, por causa das pressões da

que optar pela hipótese da composição em dois

missão educacional de uma igreja em expansão.

estágios deve considerar o editor o verdadeiro

0 editor que escreveu Tiago pode tê-lo feito sem

autor da carta, e o final do século i, a verdadeira

interesses religiosos pessoais, mas apenas com o

data de sua composição.

objetivo de compilar e preservar para futuros lei­ tores as mais perenes “frases de Tiago”. Se for de

2. O público-alvo de Tiago As cartas do

fato necessária, essa conjectura talvez explique a verbalização do cristianismo de Tiago na forma

nt

são escritos situacionais, na

maioria das vezes redigidos para defender ou nutrir a fé hesitante de um público-alvo imaturo.

literária e intelectual da cultura helenística. No entanto, raramente os editores são assim

Embora o conselho do autor só raramente assu­

tão objetivos. Até mesmo os que não costumam

ma a forma narrativa, cada carta, ainda que de

sobrepor perspectivas teológicas ao compor uma

forma implícita, conta uma história dos esforços

obra precisam escolher algum material dentre as

empreendidos por seu público-alvo para confir­

tradições disponíveis — o que é um ato de juízo

mar sua fé. No caso de Tiago, o enredo da histó­

interpretativo. Além disso, o ato de reprocessar

ria envolve o sofrimento de crentes judeus cuja

tradições antigas é normalmente ocasionado pe­

devoção ao Senhor e uns aos outros é provada

las necessidades dos novos leitores. A estrutura

por conflitos de vários tipos, tanto espirituais

literária e a coerência teológica cuidadosas da

quanto sociais. 2.1

carta parecem refletir exatamente esse tipo de de­

Identidade do público-alvo. A identidade

cisão editorial. É improvável que Tiago seja uma

dos primeiros leitores de Tiago é indefinida, e as

simples compilação de frases, como alguns têm

opiniões permanecem divididas. Diante da escas­

sugerido (v. 3 abaixo), ou a cópia de um discurso

sa informação sobre a identidade dos leitores, a

antigo. Aliás, caso se aceite a ideia da composição

maioria dos exegetas se satisfaz em situá-los em

em dois estágios, talvez seja necessário pressu­

um de dois lugares; na Diáspora pós-paulina ou

por que 0 editor tinha em mente certos objetivos

na Síria-Palestina antes da guerra (66-70 d.C.).

1 240

T ia g o , C arta de

Contudo, todos concordam que o lugar certo para

sentido, eram estrangeiros em sua pátria e fora

começar essa análise é o versículo inicial da car­

dela. Mesmo na Palestina, o solo pátrio costuma­

ta, que saúda o público-alvo, identificado como

va estar nas mãos dos ricos proprietários de terras

as “ doze tribos da Dispersão”. Qualquer que seja

(Tg 5.1), os quais controlavam a vida econômica

a maneira em que for entendida, essa expressão

(Tg 5.4,6) e religiosa (Tg 2.2-7) dos empregados

enigmática pode ser empregada para interpretar

pobres, às vezes de maneira desonesta e cruel

as referências posteriores que a própria carta faz

(v. 2.2 abaixo).

aos leitores, resultando em um quadro mais de­ talhado e nítido.

De modo semelhante, nas Escrituras, a Diás­ pora ressalta exatamente esse tipo de experiência

Caso se interprete ao pé da letra a expressão

(cf. IPe 1.1; Is 49.6), em que a dor de um povo

inicial, os leitores são provavelmente crentes ju­

é resultado de estar ele separado da terra abun­

deus (“doze tribos”) que residem em algum terri­

dante da bênção divina, seja essa terra Israel ou

tório romano fora da Palestina (“da Dispersão”),

os céus. No sentido rehgioso, o sofrimento revela

talvez Roma, Alexandria ou mesmo a Síria, perto

a condição de “peregrino e estrangeiro” da pes­

do final do agitado reinado de Domiciano

soa, porém, mais significativamente, a ausência

( R e ic k e ) .

Mas, se a expressão for entendida metaforicamen­

da salvação prometida, ainda futura. Aliás, esse

te, o âmbito de possíveis sentidos e contextos é

entendimento teológico de lugar acrescenta ou­

significativamente ampliado. Com base nisso,

tra camada de significado à expressão “as doze

alguns criaram contextos complexos de conflito

tribos” , cuja herança futura das bênçãos do reino

social e espiritual, confirmados pelas cenas de

atenua as provações do exílio presente.

hostilidade encontradas ao longo da carta.

A ambivalência que vem à mente, entre o atu­

Na verdade, uma leitura metafórica de “as

al sofrimento do público-alvo na Diáspora e sua

doze tribos” concorda com o emprego da expres­

restauração futura na condição de doze tribos,

são por outros autores bíblicos. Os profetas bíbli­

ressalta a crise espiritual que levou à composi­

cos, por exemplo, usam a expressão (ou, então,

ção e à leitura da carta. 0 raciocínio é muito bem

“tribos de Israel”) para se referir a um Israel futu­

apresentado: embora pertençam ao Israel redimi­

ro e restaurado (Ez 47.13,22; Is 49.6; Zc 9.1). No

do e restaurado, os crentes ainda enfrentam as

argumento de Paulo, o “ Israel de Deus” (G1 6.15)

adversidades e a aflição da Diáspora, que provam

é um povo espiritual, não étnico (cf. Rm 9— 11;

sua devoção a Deus (Tg 1.2,3). 0 possível fra­

G1 3—6), que pertence a Cristo (Rm 9.1-18),

casso espiritual traz consigo esta consequência:

sendo o legítimo herdeiro da promessa bíblica

a perda da bênção prometida (Tg 1.12-15). A

de salvação (G1 3.21—4.7; cf. Tg 2.5). De modo

aprovação no teste espiritual, possibiUtado pela

semelhante, o público-alvo de Tiago é constituí­

sabedoria divina, assegura a salvação futura da

do de pessoas, cuja identidade básica parece re­

comunidade (Tg 1.16-21). Por isso, a considera­

ligiosa e escatológica, não étnica e nacional. Ou

ção jubilosa que a comunidade dá ao sofrimento

seja, constituem um povo espiritual que tem a

presente (Tg 1.2) tem em mente a perspectiva de

vida orientada pela Palavra de Deus e o destino

uma restauração futura, quando tudo se tornará

concretizado na bênção prometida por Deus.

completo e perfeito e nada faltará (Tg 1.4).

Os escritos judaicos também atestam o uso

2.2

O mundo social e espiritual do público-al-

metafórico da Diáspora para designar os crentes

vo. As referências aos primeiros leitores da carta,

que viviam na Palestina, sem ser alcançados pe­

por mais tênues ou mesmo obscuras, fornecem

los sistemas de apoio social e religioso

(O ve r m an

vários indícios sobre a natureza do conflito, o que

. Nesse caso, uma referência aos

talvez nos ajude a contar a história não registrada

e

M a y n a r d - R e id )

judeus da Diáspora não precisa situá-los em um

desses leitores. Eles são crentes (Tg 1.2), mem­

lugar geográfico, e sim em um mundo social.

bros de uma sinagoga judaico-cristã (Tg 2.1,2),

Além disso, eles foram muitas vezes expulsos

que desejam ser “ricos em fé”, na condição de

de sua terra natal por motivos políticos (e.g.,

herdeiros do reino prometido (Tg 2.5), e, ao mes­

criminosos) e econômicos (e.g., trabalhadores

mo tempo, procuram os prazeres terrenos de que

desempregados, devedores de impostos). Nesse

sentem falta (Tg 4.1-5). Parte do sofrimento que

1241

T ia g o , C arta de

experimentam se deve à sua pobreza. São uma

de Deus (Tg 1.5-8) ou mesmo a ideia enganosa

congregação “de condição humilde” (Tg==1.9-ll;

e nociva de que Deus é culpado das coisas ruins

cf. Tg 4.6-10), constituída de membros da classe

que acontecem na vida (Tg 1.13-16). A ansieda­

trabalhadora pobre (Tg 5.1-6) e de outros gru­

de pela segurança pessoal talvez levasse alguém

pos sociais que abrangem os mais desprezados

a supor que as confissões superficiais da fé or­

(Tg 1.27; cf. At 6.1-6), os mais oprimidos (Tg 2.1-7;

todoxa fossem suficientes para a aprovação de Deus (Tg 1.22-27; 2.14-20), funcionando como

cf. G1 2.9,10) e os mais pobres (Tg 2.14-17). Seus inimigos são os latifundiários ricos

substitutas de uma vida moralmente rigorosa que

(Tg 5.1) e a classe média envolvida no comércio

expressa misericórdia pelos pobres e impotentes

(Tg 4.13), sendo ambos os grupos membros de

explorados pelos ricos e poderosos (Tg 2.1-13,21-

uma congregação judaica ligada à sinagoga local

26). Um desejo íntimo e ardente por prazeres de

(Tg 2.2-4; cf. Tg 1.9). No entanto, o que mani­

que sentem falta (Tg 4.1,2) entrega a pessoa a

festam — a exploração dos pobres, a ganância e

um desejo corrosivo de coisas à custa do relacio­

a maldade, que ofendem os alicerces morais da

namento com Deus (Tg 4.6-12) e com o próximo

tradição bíblica (Tg 2.8-10) — reforça a crítica do

(Tg 4.3-5). O fracasso espiritual é resultado de

autor contra eles. São tolos porque olham para

engano teológico, quando uma ideia errada sobre

o “espelho" (= lei bíblica) e então se desviam

a Palavra de Deus dá margem a decisões ruins e,

dele (Tg 1.22-24), sem que, à vista da luz eterna

no final, impede a participação na nova ordem

da vontade de Deus (Tg 4.14-17) e da vinda imi­

(Tg 1.17-21; 2.12,13; 3.14-16; 4.11,12). 2.3

nente do juízo divino (Tg 5.4-9), reflitam sobre a própria fragilidade (ou riquezas, Tg 5.1-3). Aliás,

Tensões sociais e espirituais. Retratar

com precisão um cenário no mundo romano do

eles se tornaram “estrangeiros” (Tg 2.6,7) para o

século

reino de Deus (Tg 2.5), não mais pertencendo às

extremamente difícil. Por isso, alguns preferem

I,

seja helenístico, seja palestino, é tarefa

“ doze tribos” , nem podendo mais aguardar com

acompanhar Dibelius na ideia de que essa forma

regozijo a completa restauração. Demonstrando

de literatura (parênese) resiste a qualquer teoria

que são de fora, oprimem os membros necessita­

sobre as circunstâncias que possam ter ocasiona­

dos da congregação (Tg 2.2), usando até mesmo

do a composição e a primeira versão desse tex­

de influência política para explorar os pobres da

to. Pode se pensar talvez em uma cultura moral

classe trabalhadora (Tg 5.1-6) e exigir veredictos

que essa literatura está ajudando a modelar com

favoráveis no tribunal civil (Tg 2.6,7) e no da si­

seu conselho, delimitando as fronteiras sociorre-

nagoga (Tg 2.3,4;

ligiosas da comunidade em um ambiente hostil

W ard).

Essas pressões externas criaram tensões na congregação, ameaçando sua unidade e tam­

(P erdue; Elu o t).

Talvez até as imagens apocalíp­

ticas encontradas em toda a carta desempenhem

bém a sobrevivência escatológica. O conflito

o mesmo papel social; imagens que prefiguram

entre os crentes apresenta-se de muitas formas.

uma nova ordem cultural que promete uma pátria

Alguns menosprezam os pobres da congrega­

alternativa, mais acolhedora, para um povo pobre

ção para honrar os ricos e poderosos de fora

e impotente

(W a ll,

1990).

(Tg 1.22—2.26). As ofensas entre mestres rivais

Mesmo assim, alguns continuam a investigar

enfraquecem o ministério de ensino e a formação

Tiago em busca de um Sitz im Leben (“contexto

espiritual do povo (Tg 3.1-18). A fonte das hosti­

de vida”) histórico em particular. A opinião tra­

lidades entre os crentes (Tg 4.1,2) e, por fim, con­

dicional situa 0 autor e seu público-alvo na Pa­

tra Deus (Tg 4.7-10) é a frustração por não terem

lestina pré-guerra. As informações extraídas da carta encaixam-se bem nesse contexto

os bens materiais que desejam ardentemente.

( D a v id s ,

Talvez mais perturbador que esse conflito

p. 28-34). Naturalmente, ninguém que aceite a

entre ricos e pobres, que, por sua vez, ameaça

Diáspora literal concordaria com esse contexto.

a solidariedade da congregação, seja o conflito

Além disso, embora as imagens e metáforas ba­

espiritual ou psicológico, que ameaça o relacio­

seadas na natureza fiquem mais nítidas contra o

namento do crente com Deus. As mesmas tribula­

cenário da Palestina

ções também geram dúvida sobre a generosidade

outros, não se convence com esses dados e reage.

1242

( H a d id ia n ) ,

S. S. Laws, entre

T ia g o , C arta de

apontando para o uso de imagens semelhantes na

saduceu. 0 argumento de Martin aceita o registro

literatura grega, assim como outros apontam para

histórico de Josefo, segundo o qual Tiago foi exe­

as Escrituras como fonte dessas imagens.

cutado por Anano ii, sacerdote saduceu, no ano

Entretanto, se o contexto da Diáspora for visto

62, no auge das tensões com a igreja de Jerusa­

como metáfora da desestruturação espiritual ou

lém. Tiago pode ser lido como outro tipo de regis­

social, as referências à luta de classes entre ricos

tro sobre o episódio. Sua argumentação também

e pobres oferecem indícios mais convincentes a

faz sentido no que diz respeito não apenas ao con­

favor de uma origem palestina

flito econômico mencionado na carta (Tg 5.1-6;

( M a y n a r d - R e id ) .

Na Palestina, como em todo o mundo romano, as

2.6,7), pois a aristocracia proprietária de terras

áreas rurais e a riqueza estavam concentradas nas

era composta essencialmente por saduceus, mas

mãos de uns poucos fazendeiros ricos (Tg 5.1).

também ao religioso, à disposição teológica do

Comerciantes de classe média (Tg 4.13) só po­

livro, porque os saduceus também observavam

diam sonhar com uma vida luxuosa se conquis­

a Torá (Tg 1.22-25; 2.8-13) e estavam profunda­

tassem um lugar entre a aristocracia proprietária

mente temerosos de qualquer movimento apoca-

de terras. Com esse objetivo, os comerciantes tra­

líptico-messiânico — ao qual os leitores de Tiago

balhavam com os grandes proprietários de terra

pertenciam (Tg 2.1; M

a fim de controlar o comércio agrário, o que só

to, ao contrário dos zelotes, cujo

tornava os trabalhadores mais dependentes do

0 mais temido pelos saduceus, Tiago conduz seus

proprietário das terras e a situação do fazendeiro

leitores em uma direção mais espiritual e menos

pequeno e independente mais difícil de suportar.

violenta, de modo que as lutas dos pobres contra

Contudo, não havia quase nenhum movimen­ to ascendente entre essas classes sociais, porque

a r t in

,

p. Ixiv-lxv). Entretan­ a p o c a u p t is m o

era

os ricos são internalizadas como guerra espiritual contra o materialismo (Tg 4.1-5).

Roma mantinha uma sociedade estratificada como forma de controlar as massas. Por temer

3. A literatura de Tiago

uma greve de trabalhadores, Roma não encora­

3.1

Tiago como exortação. A maioria dos es­

java a exploração dos pobres pela aliança entre

tudiosos aceita com reservas a importante con­

comerciantes e fazendeiros, mas a situação era

clusão crítico-formal a que Dibelius chegou, a

tolerada para que se pudesse manter a frágil pros­

saber, que Tiago é uma parênese, antigo gênero

peridade da região. Principalmente nas épocas de

de hteratura moral caracterizado por uma compi­

fome (v. Tg 5.17,18; At 11.27,28), a pressão sobre

lação de várias máximas morais e pequenas com­

a mão de obra no campo e os que trabalhavam na

posições temáticas, mais ou menos ligadas entre

ceifa se intensificava, e o bem-estar econômico

si por temas comuns e palavras-chave, mas sem

dessas pessoas se tornava mais precário à medida

rima, motivo teológico ou situação social especí­

que os proprietários de terras tentavam aumen­

fica. 0 clima dominante da parênese é imperatí-

tar ao máximo os lucros (Tg 4.4-6). O resultado

vo: a exortação básica é a que se viva uma vida

é que alguns não tinham nem mesmo o míni­

virtuosa. Os leitores são lembrados várias vezes

mo para sua subsistência (v. Tg 2.15,16). Desse

da verdade moral que todos devem aceitar (e.g.,

modo, a maioria da população palestina estava

Tg 1.19; 3.1-8; 4.3,4) e dos exemplos de heroísmo

confinada a guetos de trabalhadores, com um pa­

(e.g., Jesus, Abraão, Raabe, Jó, EUas) que todos

drão de vida que mal lhes permitia sobreviver e

devem imitar.

sem esperança de uma vida melhor. Esse deter­

Mesmo que se aceite que Tiago manifesta as

minismo histórico dava origem ou ao ódio social

convenções da literatura parenética e tem forte

e à rebelião campesina em potencial, ou a um

apelo, a forma final emoldura um testemunho

sentimento rehgioso profundamente arraigado a

sobre Deus cuidadosamente organizado que obri­

uma “piedade da pobreza” e a uma esperança

ga os crentes a uma resposta fiel e cristã diante

apocalíptica.

das afirmações desse testemunho. Desde a obra

Além disso, Martin defende que a Carta de

de Dibelius, vários intérpretes têm demonstrado

Tiago foi escrita a uma comunidade de pessoas

que a composição se desenvolve ao longo de uma

pobres e seus líderes, que sofriam sob o domínio

estratégia retórica (e.g.,

i:243

Jo h n so n

e

W atson)

que

T ia g o , C arta de

defende uma mensagem teológica especifica. L.

demonstrada durante a provação pessoal, quando

T. Johnson argumenta que Tiago deve ser analisa­

as ações dos sábios resultam em bênção pessoal

do como apresentação oral e defende a existência

e divina (v.

de uma coerência temática e literária estrutura­

contraste entre as confissões de confiança e a fé

da por duas cosmovisões rivais: “amizade com o

incorporada podem ser menos uma resposta ao

mundo” e “amizade com Deus”

ensino paulino e mais um reflexo do contraste en­

(J o h n s o n ,

1995,

Jo h n s o n ,

1995, p. 27-9). 0 conhecido

tre discurso eloquente e ação moral encontrado

p. 13-5). 3.2 Tiago como epístola. Também é possível

em certos moralistas helenísticos como Epicteto.

estudar Tiago como literatura epistolar. Embora

As características de uma vida virtuosa, con­

omita muitos aspectos da forma epistolar paulina

centradas na lista encontrada em Tiago 3.7 e

helenística, a estrutura de Tiago ainda apre­

complementadas pela ênfase a uma vida de pa­

o u

:

ciência, perfeição, constância e autocontrole, são

existe uma abertura (Tg 1.1), seguida de uma

temas comuns entre as filosofias morais da épo­

proposição (Tg 1.2-21) que esclarece o fator mo­

ca, especialmente o estoicismo e o cinismo.

senta um vago paralelo com outras cartas do

n t

tivador da carta e introduz o conselho do autor.

Este verbete procura entender essa mesma

Apresenta, então, várias exortações e juramentos

avaliação moral e seus vários temas à luz dos es­

que promovem a piedade cristã (Tg 5.5-7,9-18),

critos sapienciais judaicos. 0 tema teológico de

antes de declarar o verdadeiro propósito da carta

Tiago é profundamente bíbUco, e os padrões lite­

(Tg 5.19,20). Entre as proposições iniciais e as

rários greco-romanos e os temas encontrados nes­

exortações de conclusão, fica o corpo da carta

sa composição estão incluídos na visão biTjlica do

(Tg 1.22—5.6), constituído de três composições

autor. De acordo com Tiago, a moral é intensifi­

razoavelmente longas sobre a sabedoria que há

cada pela fé que o crente tem em Deus. Não é,

em ser “pronto a ouvir” (Tg 1.22—2.26), “tar­

portanto, uma ética da virtude, cujo fracasso é

dio para falar” (Tg 3.1-18) e “tardio para se irar”

o defeito de caráter e a autodestruição. Em vez

(Tg 4.1—5.6), 0 que transmite de modo mais

disso, é uma ética teológica, pois a falta de sabe­

completo sua mensagem pastoral a leitores reple­

doria ameaça as relações do crente com Deus e

tos de problemas.

põe em perigo a perspectiva de bênção no reino

É evidente que a forma Uterária do corpo prin­

futuro de Deus na terra. Por isso, Tiago se enqua­

cipal de Tiago difere, em convenção e conteúdo,

dra muito mais facilmente como Escritura que

das cartas pauhnas, quando comparada com elas.

como antologia de filosofia moral helenística. É

Entretanto, sua função é exatamente a mesma:

claro que as duas fontes, a helenística e a bíblica,

proporcionar aos leitores uma interpretação per­

não divergem na forma nem no conteúdo e estão

suasiva da crise espiritual que atravessam e ofe­

integradas a escritos judaicos intertestamentá-

recer-lhes uma solução prática que promova sua

rios, como Eclesiástico e Sabedoria de Salomão,

salvação futura (v. 4 abaixo).

os quais, sem dúvida, fazem parte da tradição

3.3 Tiago como escrito sapiencial. A questão

sapiencial herdada por esse autor. Há também

das fontes continua sendo espinhosa: de onde

vários paralelos com os escritos de Filo. Tiago

vem esse entendimento que o livro tem acerca da

é uma sabedoria tradicional, e suas percepções

sabedoria? No meu ponto de vista, a sabedoria

são mais judaicas que greco-romanas. Em várias

é a ideia que dá direção a esse Uvro e por meio

passagens, os assuntos fundamentais, implícitos

da qual tudo o mais é entendido. Tiago refere-se

nessa composição, não são greco-romanos, mas

à sabedoria como a divina “palavra da verdade” ,

bíblicos — perspectiva que Johnson recentemen­

graciosamente concedida a um povo fiel para que

te defendeu em seu comentário sobre Tiago.

este entenda suas tribulações e possa se orien­

Por esse motivo, o intérprete procura nas Es­

tar em meio às tribulações, a fim de garantir seu

crituras, não nos escritos dos moraUstas e dos

p. bcxxii-

filósofos greco-romanos, a relação entre Tiago

bcxxiv). Tem se afirmado, de modo convincente,

e os assuiítos ali tratados: Tiago apresenta uma

que Tiago partilha do mundo moral greco-roma-

leitura atuaUzada da sabedoria bíblica (Tg 1.19;

no

V.

destino na nova criação (cf.

(L aw s)

M a r t in ,

: a virtude da comunidade dos sábios é

1 244

6 abaixo). A estratégia interpretativa geral de

T ia g o , C arta de

Tiago é sapiencial no sentido de que as tradições

Tiago e essas outras vozes bíblicas. Às vezes,

não sapienciais e extrabíblicas passam pelo fil­

0 que falta em uma citação bíblica acrescenta

tro da sabedoria judaica. Então, nesse sentido, a

a Tiago um aspecto que lhe dá significado. Por

provação que Tiago menciona é espiritual, não

exemplo, a elaborada referência a Raabe, em Tia­

pessoal, e esse “caminho da sabedoria” promete

go 2.25, pressupõe, por aquilo que omite, que o

uma bênção escatológica (Tg 1.12) para os que

leitor conhece bem a história desse personagem,

vivem e agem ã luz do triunfo vindouro do Se­

conforme relatada em Josué 2. Dessa forma, Tia­

nhor (Tg2.5; 5.7-9).

go não precisa nem mesmo mencionar a fé de Ra­

3.4

Tiago como midrash. Tiago é um escri­ abe, pois o relato bíblico acerca de Raabe afirma

to midráshico. Embora vários exegetas tenham

que as obras de sua hospitalidade são a marca

detectado fragmentos de midrashim judaicos da

da autenticidade da verdadeira religião. Desse

época empregados por Tiago (e.g.,

John­

modo, vim a 1er Tiago como o produto literário de

pouquíssimos ousam afirmar como M. Ger-

um autor cuja consciência sobre o cânon faz com

tner que o livro todo de Tiago é um midrash do

que sua BíbUa passe a ser o símbolo principal de

salmo 12. Mais comedida é a ideia de Johnson,

sua vida reUgiosa e então rotineiramente recorra

que encontra em Tiago exemplos de um midrash

a ela, às vezes de maneira sutil, para justificar a

halákico de Levítico 19 que dão coesão à visão

autoridade moral do conselho que está dando a

moral do livro e a justificam

seus leitores.

s o n ),

W a rd

(J o h n s o n ,

e

1982).

A teoria literária contemporânea emprega o

Percebe-se a natureza dinâmica de uma leitu­

midrash como metáfora para designar a intera­

ra intertextual de Tiago mesmo quando o exegeta

ção reflexiva de um texto literário com outro mais

estreita seu quadro de referências para a intratex-

antigo. Ou seja, um texto literário é midráshico

tualidade do livro em si. Seguindo a pista indi­

quando interpreta um texto mais antigo como

cada por G. Lindbeck, descobre-se o significado

parte da própria redação e argumentação, tendo

pleno de Tiago quando uma passagem é analisa­

em vista alcançar um novo público-alvo e a si­

da no contexto literário e teológico da composi­

tuação desse público. Nesse sentído, o indicador

ção, quando esta se torna o meio privilegiado da

principal do midrash bíbUco não é uma forma

própria interpretação. Nesse sentido, aborda-se

de literatura (e.g., halákica) produzida de acor­

Tiago como um texto autônomo que fornece a

do com certas normas rabínicas de comentário

própria “gramática” , que leva seu “mundo consti­

das Escrituras: o indicador principal é uma inter-

tuído por textos” a fazer sentido

textualidade, quando o leitor de um texto bíbUco

Dessa perspectiva intratextual, é possível discer­

reconhece a citação, alusão ou eco de outro texto

nir, com base na repetição dos mais importantes

bíbUco mais antigo que completa e ressalta o sig­

lemas e palavras-chave em diferentes pontos do

( L in d b e c k ,

p. 136).

nificado do texto mais recente. Na minha leitura

argumento, um significado mais profundo desses

da intertextualidade do midrash, os textos bíbU-

lemas e palavras (v., e.g., o uso que o autor faz

cos ecoam outros textos bíblicos como pistas lite­

da palavra “perfeito” [Tg 1.4,17,25; 2.22; 3.2; cf.

rárias que apontam para aquelas histórias, temas,

2.8; 5.11]). Pela repetição, essas palavras adqui­

pessoas ou lugares a fim de elaborar um contexto

rem sentidos novos e ampliados, ao passo que,

bíbUco mais completo, no qual o intérprete com­

ao mesmo tempo, os usos anteriores alertam o

petente considera o significado teológico da pas­

intérprete para possíveis significados que podem

sagem um objeto de análise.

muito bem estar obscurecidos no novo contex­

Assim, tendo em mente essa compreensão do

to Uterário e lingüístico. Esse aspecto Uterário de

que seja o midrash, no que diz respeito a palavras

Tiago é especialmente importante, porque pro­

e ideias semelhantes encontradas em diferentes

porciona uma coerência Uterária que, de outra

partes das Escrituras, em Tiago ocorrem citações,

forma, parece não existir para alguns intérpretes.

alusões e ecos — palavras e ideias que acrescen­

Os dois aspectos da habilidade artístico-Ute-

tam um sentido rico e implícito à mensagem do

rária de Tiago mencionados acima também são

livro. Trata-se de uma mensagem emoldurada

importantes no discurso de persuasão da cultura

por um diálogo espontâneo e enriquecedor entre

literária greco-romana, o que também contribuiu

1245

T ia g o , C arta de

para dar forma ao corpo principal da composição

fonte pré-sinótica, argumentando que as frases

Está claro que a repetição de palavras

semelhantes em Tiago sugerem uma fonte ain­

(W atson).

e ideias-chave em uma composição era um dos

da mais primitiva e, além disso, possuem forma

aspectos da retórica antiga, escrita ou falada.

e função literárias diferentes do que ocorre em

Por exemplo, por meio da repetição de palavras-

Q e nos Evangelhos Sinóticos. Seja como for, B.

chave ao longo de uma composição ou discurso,

Witherington está certo ao argumentar que Tia­

alguém como o autor de Tiago podia, tendo em

go apresenta uma concepção teológica mais con­

mente seus destinatários, organizar seções dife­

vencional e menos profética que a encontrada

rentes de uma composição e estabelecer relações

nos lábios do Jesus dos Evangelhos Sinóticos

entre elas. Nesse aspecto, é essencial a natureza

( W it h e r in g t o n ,

p. 236-47).

espontânea da repetição, de modo que os usos posteriores de uma palavra ou expressão natural­

4. Abordagem canônica em relação a Tiago

mente ampliavam e esclareciam como o ouvinte

Toda abordagem canônica da interpretação bíbli­

ou leitor devia entender um tema que era impor­

ca considera a leitura das Escrituras em sua tota­

tante para a composição como um todo.

lidade como 0 testemunho oficial ou canônico da

O emprego de exemplos proféticos em Tiago

igreja a respeito de Deus e, desse modo, formador

também segue a prática retórica da Antiguidade.

e normativo do entendimento que a própria igreja

No caso de Tiago, referências a personagens bí­

tem acerca de Deus

blicos conhecidos (Abraão, Raabe, Jó, Ehas) não

reconhece esse papel teológico mais claramente

apenas proporcionavam oficialmente exemplos

quando reflete sobre as Escrituras em seus con­

em apoio à mensagem — essas pessoas foram

textos bíblicos e eclesiásticos, não em seu am­

aprovadas em suas tribulações e dificuldades

biente histórico ou literário “original”. Embora as

espirituais — , mas também exemplos para a co­

reconstruções históricas e literárias do Tiago “ori­

(W a ll,

1995). 0 intérprete

munidade escatológica: estas receberam de Deus

ginal” tenham tido certo valor na identificação do

as bênçãos prometidas. 0 emprego desses exem­

sentido pleno do texto bíblico, é errôneo pressu­

plos em Tiago é mais que retórico, pois cada um

por que a investigação histórico-crítica determina

chama a atenção para uma história bíblica que

seu sentido normativo. A propriedade principal

fornece uma mensagem básica que está implíci­

do texto bíblico não é histórica nem literária, mas

ta e, por sua vez, aprofunda o tema que Tiago

teológica. Para o exegeta, situar essa composição

apresenta.

no contexto do século i e apurar seu sentido ali é

3 .5

F o n te s lit e r á r ia s . O p o s s ív e l c o n h e c im e n ­

identificar erradamente o verdadeiro referente do

to e u so d e tra d iç õ e s d o n t p o r p a r te d o autor,

testemunho bíblico, que é Deus. Caso o interesse

e s p e c ific a m e n te as e n c o n tra d a s n o s E v a n g e lh o s

que orienta a tarefa do intérprete diante das Es­

S in ó tic o s e nas ca rta s p a u lin a s e p e trin a s, c o n ­

crituras sejam os papéis que elas desempenham

tin u a s e n d o o b je to d e d e b a te . E m b o ra h a ja im ­

com autoridade dentro da igreja, então todas as

p o rta n te s p a ra le lo s lin g u ís tic o s e te m á tic o s en tre

várias tarefas, a exegese e a interpretação bus­

T ia g o e as p rin c ip a is cartas d e P a u lo e

1P e d r o



m a is n u m e ro s o s e g a ra n tid o s d o q u e a m a io ria

carão entender um texto bíblico como fonte de reflexão e compreensão teológicas.

d o s e s tu d io s o s a d m ite — , a q u e s tã o d a d e p e n d ê n ­

Em seu contexto vivencial bíblico, o livro de

c ia lite rá ria p e r m a n e c e in d e fin id a (v . 1 a c im a ).

Tiago proporciona um testemunho peculiar e

O m e s m o se p o d e d iz e r d a p o s s ív e l a p ro p ria ç ã o

complementar acerca de Deus, de modo que não

p o r T ia g o d e u m a fra se d e Jesus e n c o n tra d a e m

é uma expressão única da Palavra de Deus, nem

e d e p o is e m L u ca s (D avids), m as

uma voz dissonante a ser excluída das outras que,

e s p e c ia lm e n te e m M a te u s (Shepherd). A liá s , os

juntas, concordam sobre a Palavra. Nesse senti­

p a ra le lo s en tre T ia g o e o S e rm ã o d o M o n te , e m

do, a fé cristã é distorcida quando não se leva a

su a v e r s ã o m a te u s in a (q u e te m p a ra le lo s e m L u ­

sério 0 testemunho peculiar de Tiago. Entende-

Q (M a rtin ,

1991)

ca s e o ) sã o n o ta v e lm e n te p r ó x im o s (e .g ., M ayor,

se melhor o significado especial do testemunho

E n tre­

desse livro acerca de Deus quando se examina

ta n to , D . D . D e p p e p o s ic io n a -s e c o n tra q u a lq u e r

sua relação com o testemunho de outros hvros

p . Ix x x ii- b íx x iv ; Shepherd; c f. M artin ,

1993).

1 246

T ia g o , C arta de

e coleções bíblicos, justamente porque cada um

cristã e o tema teológico da obra em uma tradi­

entende Deus de maneira diferente, ainda que

ção particular — a de Tiago de Jerusalém, irmão

complementar, e pela “crítica mútua” , compõe

de Jesus. Por sua vez, o nome Tiago, encontrado

uma fé mais objetiva e característica.

no título bíblico e na abertura epistolar, atribui

Além dessa perspectiva geral sobre o estudo

esse escrito à tradição revelacional fundada por

das Escrituras, o intérprete recebe uma orienta­

Tiago, ou seja, uma forma conservadora do cris­

ção importante por meio do título que introduz o

tianismo judaico.

livro na coleção canônica de que faz parte; pela

4.2

Posicionamento no cânon. A posição das

disposição dos escritos no cânon como um todo;

cartas no corpo do

por meio da forma literária final de uma composi­

revela o papel que esse livro continua a desem­

ção, que, nesse gênero, melhor expressa a Palavra

penhar como parte das Escrituras. Tiago faz parte

de Deus; por meio do uso que o autor faz das

de uma segunda coleção de cartas do

Escrituras, pista inconfundível de que o público-

ra por um longo tempo a relação existente entre

nt

e de Tiago no meio delas

nt.

Embo­

alvo canônico deve ler seu livro como Escritura;

os quatro Evangelhos venha sendo assunto de

por meio da história da interpretação do livro, ou

investigação entre os estudiosos, pouquíssimos

seja, um livro se “torna canônico” quando intér­

consideram importante a relação entre as duas

pretes fiéis o usam repetidas vezes para confortar

coleções de cartas do

os aflitos e afligir os confortáveis.

entre as cartas não paulinas e as paulinas na for­

4.1

nt.

Qual a possível relação

Título. Os títulos são propriedades do pro­ mação de nossa compreensão teológica (que é a

cesso canônico e, como tais, indicadores de uma

função das Escrituras)? Como essa consideração

tradição teológica. Eles desempenham um papel

pode ajudar o intérprete a discernir o papel espe­

prático, exercendo autoridade na formação da fé

cial que Tiago desempenha na Bíblia?

e no testemunho dos leitores das Escrituras. Mes­

No protestantismo, principalmente, a atenção

mo não havendo certeza de que Tiago deva ser

básica tem se concentrado na coleção paulina

Udo como carta literária, a igreja antiga reconhe­

com o objetivo de investigar não apenas o sen­

ceu sua inspiração divina justamente quando a

tido de cada carta, mas também a relação entre

utilizou como carta. Desse modo, o título lakõbou

elas. A seqüência das cartas explica em parte o

epistolê (“ Carta de Tiago”] é acrescentado a essa

profundo interesse que existe no testemunho de

não carta (ou pelo menos uma carta literária dife­

Paulo a respeito do evangelho, visto que as cartas

rente das escritas pela escola paulina) para fazê-

paulinas são posicionadas em primeiro lugar. No

la se enquadrar em uma coleção mais ampla de

entanto, essa prioridade tem levado a um redu-

escritos epistolares que têm em comum o papel

cionismo no estudo da segunda coleção de cartas,

de nutrir a fé dos crentes. Ou seja, as cartas fun­

uma coleção não paulina. Um exemplo é a ideia

cionavam como veículos pastorais de instrução

comum de que Tiago apresenta ou uma fé pauli­

e exortação e foram escritas para os crentes cuja

na, embora em uma fraseologia diferente, ou uma

adoração a Deus estava ameaçada por sofrimen­

fé antipaulina. De uma forma ou de outra, a natu­

tos pessoais ou por confusão teológica. Por essa

reza mais complementar da relação intracanôni-

perspectiva, o púbUco-alvo canônico lê a carta

ca entre Tiago e Paulo fica seriamente distorcida,

escrita por Tiago como Escritura cristã.

bem como, em sua totaUdade, o testemunho que

Na abertura de uma carta bíblica, a impor­

eles dão do evangelho de Deus.

tância das afirmações sobre a autoria não é ex­

Desse modo, pode se considerar que um papel

clusivamente histórica. Na verdade, os nomes

crítico desempenhado pela segunda coleção de

encontrados em títulos e saudações às vezes

cartas (i.e., de cartas não paulinas) é aprimorar

situam as composições em determinadas tradi­

nosso entendimento acerca da primeira coleção

ções teológicas, cada uma dando um testemunho

(i.e., as cartas paulinas), oferecendo dispositivos

oficial da atividade salvadora de Deus em Cristo

de controle e de equilíbrio que impedem a distor­

Jesus. Em nosso caso, o título situa a composição

ção do evangelho em sua totalidade

de Tiago em um gênero específico de literatura

p. 208-71). À luz da história da interpretação de

para realçar seu papel prático na formação da fé

(W all,

1992,

Tiago, o intérprete é desafiado a ouvir na carta 247

I lAGO, LARTA DE

uma voz diferente daquela ouvida quando lê Pau­

promete uma nova ordem do cosmo (Tg 1.18),

lo. Entretanto, não se trata da voz de um ventrí­

que será recriado perfeita e completamente, uma

loquo nem de um adversário, mas de um colega,

ordem em que nada falta (Tg 1.4). Como prepa­

cuja nova perspectiva acrescenta um equilíbrio

rativo para o triunfo vindouro de Criador, Deus

necessário ao que Paulo escreveu e já foi lido e

concede apenas boas dádivas à comunidade de

aceito (v. 5 abako).

fé (Tg 1.13-17), especialmente o dom da sabe­

4.3

O público-alvo canônico. Embora os lei­ doria (Tg 1.5,6; 3.17), que é capaz de "salvar a

tores mudem constantemente, as cartas bíblicas

vossa vida” (Tg 1.21; 3.18). Deus também atende

permitem a adaptação contínua de sua mensa­

aos que lhe pedem sabedoria (Tg 1.5; 4.3) e cura

gem prática a cada geração de crentes. Não há

(Tg 5.13-18). Deus é fiel à promessa de salvação

garantia de que quem lê Tiago hoje partilhe de

(Tg 2.5; 4.6-10) e, na era futura, reverterá a con­

algum dos mundos em que viveram os primeiros

dição dos pobres e impotentes que forem fiéis

leitores da carta. Também não devemos esperar a

(Tg 1.9-11; 2.1-5). Pelo fato de Deus ser Salvador e

recuperação de todo o sentido das palavras que

Juiz de toda a criação (Tg 2.12,16; 4.11-17; 5.1-9),

Tiago escreveu originariamente. Justamente pelo

ele é adorado (Tg 3.9,10; 4.7-10), e a lei de Deus

fato de Tiago ser Escritura canônica, os leitores

é obedecida (Tg 1.22-27).

5.2

não devem entender que seu sentido pertence a

Uma história da salvação de Deus. Em

um passado distante. 0 tema central de provação

tempos recentes, os estudiosos da Bíblia passa­

espiritual parece pertinente, e é comum os leito­

ram a ressaltar o aspecto narrativo do conteúdo

res fazerem parte do grupo de ricos e poderosos

teológico das Escrituras — na expressão sucinta

que menosprezam os marginalizados, ou então

de J. A. Sanders: “Deus também tem uma histó­

do grupo dos marginalizados que precisam do

ria”. É dupla a importância prática dessa Unha de

apoio divino contra os poderosos e o recebem.

investigação. Em primeiro lugar, ela oferece aos

Às vezes, Tiago desnuda a insensatez dos crentes

teólogos bíblicos um arcabouço no qual podem

que substituem a devoção concreta a Deus por

desenvolver um tratamento abrangente e coerente

uma confissão superficial ou fazem uso de pa­

do conteúdo teológico das Escrituras. Em segundo

lavras maldosas para obter vantagem sobre um

lugar, essas histórias têm a função de estimular

rival — ambos temas importantes em Tiago. Suas

uma identificação mais pessoal e imediata entre a

palavras sábias podem soar proféticas, como uma

narrativa bíblica e o púbUco-alvo original.

crítica contundente contra os que só pensam nos

Nesse aspecto, um trabalho que produziu re­

próprios negócios. Elas também convidam ao ar­

sultados foi o de R. Hays. Ele defende a ideia de

rependimento ou podem assumir um tom pasto­

que a teologia pauUna engloba o estilo narrativo.

ral diante dos que mais necessitam da promessa

Para Hays, o âmago das convicções teológicas de

do evangelho. A mensagem é esta: o livro de Tia­

Paulo abrange uma sequência de seis aconteci­

go encontrou lugar nas Escrituras não apenas por

mentos, começando com a promessa divina de

oferecer limites à maneira em que entendemos

bênção a Abraão e terminando com a segunda

Deus, mas também por iluminar nossa caminha­

vinda do Senhor. Entre esses dois acontecimen­

da na presença de Deus, especialmente quando

tos, acham-se os episódios que constituem o evento crístico, cujo clímax é a morte e ressur­

considerado como parte de um todo inspirado.

reição de Jesus e o resultado disso na comuni­

5. O evangelho na visão de Tiago

5.1

dade de fé. Embora as ênfases paulinas sejam

Um retrato de Deus. A velha conclusão exclusivas do

nt,

a teologia narrativa de outros

da crítica de que Tiago não é um escrito teológico

escritores sagrados, entre os quais Tiago, segue

tem enfraquecido em anos recentes. Na pior das

um roteiro parecido. À semelhança de Hays, E. E.

hipóteses, a maioria dos estudiosos hoje reconhe­

Lemcio isolou os elementos básicos de um “que­

ce a importância das imagens e dos temas teológi­

rigma unificador” em cada unidade canônica

cos na mensagem desse Uvro. Por exemplo, Tiago

(i.e.. Evangelhos, Atos, Cartas, Apocalipse) do

nt.

pinta em cores nítidas o retrato de Deus. Deus é

0 evangelho quádruplo providencia a es­

Criador, governando todas as coisas (Tg 1.17), e

trutura e o fundamento das Escrituras em uma

1248

T ia g o , C arta de

subestmtura narrativa. Ou seja. a liistória de

não duvide de sua eficácia (Tg 1.6-8). Além disso,

Jesus torna-se a pressuposição fundamental do

a Palavra fincou raízes (Tg 1.21) e, dessa maneira,

intérprete para entender o conselho prático e

traçou a linha que delimita a comunidade eleita

as afirmações teológicas contidas em cada livro

dos pobres (Tg 1.27). A condição de membro des­

posterior do

Também dessa perspectiva Tiago

sa comunidade e, com ela, a perspectiva de uma

partilha com outros escritores bíblicos uma histó­

bênção futura são mantidas pelos que observam

ria comum da salvação divina por meio de Jesus

a Palavra (Tg 1.22-25; cf. 4.13-17), que a ensinam

nt.

Cristo, o que proporciona a estrutura e o tema de

sem inveja (Tg 3.1-18) e resistem às paixões que

uma teologia bíblica completa e integral.

minam a atuação da comunidade.

O acontecimento inaugural da história é 1) o

5) A crise vigente que leva à prova espiritual

ato em que Deus elege um povo para salvá-lo.

é provocada em cada luta pelo fato de o cren­

Tiago entende a eleição divina da perspectiva

te permanecer fiel em um mundo que se opõe a

social: Deus escolhe os pobres como herdeiros

Deus (Tg 1.2,3; 3.13-16). Na situação presente,

do reino prometido (Tg 2.5). Essa herança foi

quando o sofrimento da comunidade parece mos­

inicialmente prometida aos filhos de Abraão,

trar que, da parte de Deus, não há boas inten­

mas não está condicionada à identidade nacio­

ções para com a criação, Tiago argumenta que a

nal ou étnica deles, e sim ã devoção que dedi­

sabedoria proverbial concede a força necessária

cam a Deus, a serem “ricos em fé” (cf. Tg 1.12;

para passar pela prova espiritual, de modo que

2.5), o que se concretiza em atos de misericórdia

mesmo agora “ os primeiros frutos” de uma nova

(Tg 2.8-26).

criação já se manifestam na vida da comunidade

2) Deus envia ao mundo um agente da

salva ­

(Tg 1.18; 3.17,18). Nesse sentido, o testemunho

para libertar a humanidade dos efeitos de seu

da comunidade sábia antecipa a era vindoura: a

pecado. De acordo com Tiago, Deus “dá” a “pa­

religião verdadeira e aprovada é um povo ético,

ção

lavra da verdade” aos pobres piedosos para que

cujo testemunho acerca de Deus é medido pela

possam superar as provas espirituais (Tg 1.2,3)

pureza de sua vida coletiva e pessoal (Tg 1.27;

e restaurá-los como parte da ordem vindoura

2.14-16). Assim, no final, as obras piibhcas de

(Tg 1.4,17,18). 0 assunto da Palavra divina é a

sabedoria — a qual exige que a comunidade trate

sabedoria proverbial (Tg 1.5), a qual requer que

com bondade seus pobres (Tg 1.22—2.26), que

o conjunto dos crentes (i.e., a comunidade da

as palavras proferidas sejam puras (Tg 3.1-18) e

fé) seja “pronto a ouvir, [...] tardio para falar e

que quem deseja pertencer à classe média renun­

tardio para se irar” (Tg 1.19; v. 6 abaixo). Essa

cie ao gosto pelos bens materiais (Tg 4.1— 5.6)

palavra de sabedoria pode salvar a comunidade

— é que constituem a identidade essencial de um

(Tg 1.21; 3.17,18), livrando-a de toda a insensa­

povo escatológico.

tez (Tg 1.16) e a imundícia (Tg 1.21), as quais

6) A esperança da comunidade concentra-se

produzem a morte (Tg 1.14,15; 3.14-16; 5.19,20).

na consumação da história, a vinda iminente do

3) A Palavra de Deus é revelada na “fé de nos­ so Senhor Jesus Cristo” (Tg 2.1,

Senhor, que virá dos céus (Tg 5.7-9). Essa vin­

Diferente­

da introduz na história a bondade derradeira e

mente de Paulo, que compreende a fé de Jesus

a dádiva que aperfeiçoa, as quais procedem lá

arc) .

da perspectiva de sua morte e ressurreição mes­

de cima. Nesse culminante “a qualquer momen­

siânicas, Tiago a entende como exemplo de uma

to” , a comunidade escatológica será confirmada:

sabedoria vivenciada (a “palavra da verdade”).

Deus julgará os insensatos e abençoará os sábios

Em particular, a devoção de Jesus a Deus é con­

(Tg 2.13; 4.11,12; 5.4-9; cf. Mt 7.24-27). No final,

firmada pela maneira justa em que ele tratou o

Tiago e Paulo concordam a respeito desse acon­

pobre, o que Deus requer de acordo com a lei

tecimento derradeiro. Ambos concordam que o

“real” (Tg 2.8; cf. 1.27).

juízo e a bênção divinos são, em última anáhse,

4) A sabedoria divina, que já se tornou conhe­

atividades criadoras que dão origem à nova or­

cida nas Escrituras e foi exemplificada por Jesus,

dem das coisas (Tg 1.4; 1.18; 3.18; 5.7,8). Os dois

ilumina “o caminho” que leva às bênçãos divinas

concordam que a parusia é iminente, de modo

a qualquer crente que a peça a Deus (Tg 1.5) e

que as convicções do monoteísmo cristológico e

1,249

T ia g o , C arta de

as exigências do testemunho púbUco são apresen­

pressupõe que Deus é responsável pelas tribula­

tadas com mais vigor e se concretizam com mais

ções da humanidade e também deseja sua morte.

prontidão. O tempo para o arrependimento é cur­

No entanto, o resultado desse engano é a rejeição

to, porque o tempo do juízo divino está próximo

aos méritos do conselho divino (cf. 1.21). Essa

(Tg 5.7-9,19,20).

dúvida tem por consequência o fracasso espiritu­ al quando se enfrentam as tribulações do tempo presente, e o resultado escatológico desse fracas­

6. O argumento de Tiago 6.1

Introdução temática (Tg 1.1-21). Tiago so no presente é a perda da “coroa da vida” , que é

foi escrita para uma comunidade cuja fé em Deus

a bênção para quem permanecer firme (Tg 1.12).

está sendo ameaçada por tribulações constantes (Tg 1.2-4). Essas “provações” da fé são causadas

6.2

A sabedoria de ser “pronto a ouvir"

(Tg 1.22—2.26). Na primeira seção do corpo

por uma variedade de circunstâncias, externas e

principal da carta, a sabedoria do estar “pronto a

históricas. 0 mais importante é que cada teste

ouvir” faz eco à Torá: “ouvir” é praticar as obras

gera uma crise teológica, quando o crente é en­

da Torá (Tg 1.22-25). Ou seja, a sabedoria de

ganado ou confundido com mais faciUdade sobre

estar “pronto a ouvir” significa obedecer às leis

quem Deus é e como ele age (Tg 1.5-8). Em uma

levíticas sobre compaixão para com o próximo

crise profunda, que leva à reflexão teológica, em

(Tg 1.26,27). Essa porção da Torá é apresentada

grande parte interna e espiritual (Tg 1.13-15),

como atitude sábia a tomar diante de uma situa­

requer-se uma decisão que, em última instância,

ção em que são desconsideradas as necessidades

é a medida da verdadeira devoção do crente a

materiais dos membros mais pobres e marginali­

Deus. Ou seja, é o que determina se ele está ou

zados da comunidade da fé. Essa situação é pro­

não em condições de participar do reino vindou­

vocada pelo tratamento preferencial dispensado

ro de Deus (Tg 1.12). Permanecer fiel a Deus no

aos ricos e poderosos de fora nos julgamentos

presente é o caminho para receber, no futuro, as

realizados na sinagoga (Tg 2.2-4) e nos tribunais (Tg 2.6,7). Nessa situação, a Torá exige que se

bênçãos que Deus prometeu. A decisão da comunidade a favor de Deus ou contra ele está arraigada a uma percepção da li­

libertem os pobres e os fracos de seus opressores (Tg 2.8-13).

berdade moral. Que forma essa liberdade assu­

Embora possa ter em vista a sobrevivência no

mirá? De um lado, o crente sábio ama a Deus

curto prazo, a decisão de favorecer os ricos de

e acredita que ele é um Pai leal e coerente, que

fora, em prejuízo dos pobres de dentro, imphca a

concede generosamente à comunidade da fé a

reprovação no “ teste de fé” da comunidade, por­

“palavra da verdade” , que orienta a peregrinação

que Deus escolheu os pobres piedosos do mundo

do crente na terra, em meio ao deserto de tribu­

para receberem suas bênçãos (Tg 2.5). Além dis­

lações, rumo à terra prometida da vida eterna

so, esse favoritismo implica possíveis concessões

(Tg 1.16-18). 0 resultado antecipado de receber

aos males da ordem deste mundo. A natureza

essa palavra, que diz respeito à sabedoria prover­

de um erro teológico é de tal ordem que põe em

bial (Tg 1.19,20), é a capacidade cada vez maior

risco a salvação futura da comunidade, pois a

de permanecer fiel a Deus durante as provações

salvação requer obras reais de compabcão para

desta era, até que o Senhor se manifeste triun­

com os pobres (a diáspora social). Deus con­

fante sobre o pecado e a morte. 0 crente sábio

firmou Jesus como “Senhor da glória” (Tg 2.1)

e fiel ingressará na era vindoura, quando tudo o

porque, de acordo com a “lei real” (Tg 2.8), ele

que lhe falta agora será suprido e tudo se tornará

amou 0 próximo pobre e desvalido. Seu exemplo

perfeito por obra do Criador, que dará completi-

de compaixão divina, que se seguiu à lição deixa­

tude à existência material (Tg 1.9-11) e espiritual

da por seu ancestral Abraão (Tg 2.21-24) e tam­

(Tg 1.21) da humanidade.

bém pela prostituta Raabe (Tg 2.25) — mapeia o

De outro lado, o crente insensato pensa que Deus é desleal e não cumprirá a promessa de

caminho da salvação para todos, o qual conduz à vida eterna.

uma nova vida, sendo o responsável pelas tribu­

A comunidade sábia está pronta para ouvir e

lações da comunidade (Tg 1.13-16). O insensato

agir com base no que a Torá ordena, sabendo que

1250

T ia g o , C arta de

ela expressa a vontade de Deus, de acordo com a

colheita da bênção de paz para o mestre “perfei­

qual todas as pessoas serão abençoadas ou então

to” (Tg 3.1,2), que a pratica (Tg 3.18).

julgadas por ocasião da vinda triunfante do reino

6.4 A sabedoria de ser “tardw para se irar"

de Deus (Tg 2.12,13). Se o fundamento da Torá é

(Tg 4.1— 5.6). 0 texto de Tiago 4.1— 5.6 inter­

0 mandamento de amar o próximo, especialmen­

preta o significado da exortação proverbial para

te os que são como “os órfãos e as viúvas nas

o crente ser “tardio para se irar”. De acordo com

suas dificuldades” , então é insensatez favorecer

Tiago, a fonte da ira da comunidade (Tg 4.1) é

os ricos em detrimento dos pobres, quando o re­

o desejo íntimo e intenso de prazeres materiais

sultado é a retribuição eterna. De acordo com a

que 0 crente não desfruta (Tg 4.2,3). A tribula­

Torá, a fé em Deus se concretiza em obras de

ção que põe em risco a participação da comuni­

compaixão: a verdadeira religião é uma religião

dade no triunfo vindouro de Deus tem raízes na

ética, não uma ortodoxia confessional (Tg 2.14-

incapacidade de estar satisfeito com a condição

26). É insensatez professar devoção a Deus sem

humilde, cobiçando, então, os bens materiais

0 acompanhamento das obras de compaixão

dos outros (Tg 4.4,5). Esse desejo intenso pelas

(Tg 2.20). Tal reUgião é sem valor, seja para

coisas materiais põe em teste a dependência que

anunciar a era vindoura, seja para ingressar nela

a comunidade tem de Deus, o qual resiste ao ar­

(Tg 2.17,26).

rogante e exalta os de condição humilde (Tg 4.6;

6.3

A sabedoria de ser “tardio para falar” cf. 2.5). A comunidade sábia humilha-se perante

(Tg 3.1-18).0 texto de Tiago sobre a sabedoria

Deus (Tg 4.7-10), que sozinho determina o crité­

proverbial de ser “tardio para falar” é especial­

rio para o juízo e a salvação (Tg 4.11,12).

mente apropriado para o “ deserto” (Tg 3.11,12),

0 insensato, contudo, continua a se deleitar

quando a caminhada espiritual é mais insegura

no desejo intenso e egoísta de lucro material, sem

(Tg 3.3-6) e a orientação de um mestre que é

levar em consideração a vontade de Deus para a

“ sábio e tem conhecimento” (Tg 3.18) é decisi­

existência humana (Tg 4.13-17). Na verdade, os

va, mas também quando se torna mais fácil dizer

que preferem Mamom a Deus também escolhe­

palavras duras. O risco de falar é ainda maior em

rão Mamom em detrimento do próximo e trata­

razão da dificuldade inerente de controlar o que

rão os pobres com descaso (Tg 5.4) e hostilidade

se diz (Tg 3.7,8).

(Tg 5.6). É irônico que a penúria de trabalhadores

Cada crise social também carrega consigo uma

maltratados prenuncie a penúria dos ricos no últi­

crise teológica, a saber, uma crise de fé no Cria­

mo dia, quando perderão a riqueza (Tg 5.1,2) e a

dor (Tg 3.9,10). A difamação, que amaldiçoa o

vida (Tg 5.4) nas mãos de um Deus irado.

próximo, o qual deve ser objeto de amor (Tg 2.8),

6.5 Exortações finais (Tg 5.7-20). Tiago en­

ofende as boas intenções do Criador, que fez o ser

cerra da mesma maneira que inicia: com duas

humano à imagem de Deus. A lógica mais pene­

afirmações completas. Ao trazer à lembrança

trante da teologia da criação é que Deus estabele­

lemas e expressões importantes das afirmações

ceu padrões na ordem criada (Tg 3.11,12). Nesse

introdutórias, repetindo sua proposição básica, o

sentido, as palavras profanas não produzem re­

autor emoldura seu comentário sobre a sabedo­

sultados espirituais (Tg 3.17,18).

ria. Mais que uma retrospectiva sobre o caminho

Ou seja, o resultado de palavras que substi­

da sabedoria segundo Tiago, a conclusão tam­

tuem a sabedoria "espiritual” (Tg 3.17) pela sabe­

bém apresenta a principal motivação para seguir

doria “terrena” (Tg 3.15) é a "confusão” (Tg 3.16),

0 conselho sapiencial: a vinda do Senhor está

que é o oposto do propósito do Criador para a

próxima (Tg 5.7-9).

criação restaurada (cf. Gn 1.2). 0 discurso demo-

As exortações para que se suporte a provação

maco destrói relacionamentos humanos e impede

da fé, ideia implícita por toda a carta, denota cer­

a formação espiritual que capacita a comunidade

ta urgência por causa das incisivas afirmações de

para a caminhada em meio às tribulações, rumo

que a parusia é iminente. À semelhança de Jó

à promessa futura de uma nova ordem. A mensa­

(Tg 5.10-12) e ao contrário de seus amigos quei­

gem “pura” e “cheia de misericórdia” (Tg 3.17),

xosos (Tg 5.9), a comunidade é incentivada a

que se conforma à sabedoria celestial, resulta na

exercitar a paciência (Tg 5.7,8), e à semelhança

1251

I lAGO, LARTA DE

de Elias (Tg 5.17,18), incentivada a orar pela cura

The message of James,

s jt , v.

(Tg 5.13-16), a fim de garantir a participação na

45,1965. ■ D eppe,

The sayings o f Jesus in the

vinda triunfante do reino de Deus.

Epistle of James. Chelsea: Bookcrafters, 1989. ■

Os versículos finais (Tg 5.19,20) constituem

E llio t ,

J.

H.

D. D.

18, p. 182-93, 338-

The Epistle of James in rhetorical and

uma convocação aos leitores para uma missão

social scientific perspective: holiness-wholeness

especial entre os crentes insensatos, que têm sido

and patterns of replication,

enganados pela falsidade e se afastado da “pala­

1993. ■ G e r t n e r , M. Midrashic terms and techni­

vra da verdade”, a qual determina o caminho da

ques in the New Testament: the Epistle of James,

sabedoria. A cura espiritual dessas pessoas resul­

a midrash on a psalm. [S.l: s.n.], 1964. p. 463.

(se

tará, no fim dos tempos, em salvação, em lugar

3 [ = Texte und Untersuchungen, 88].) ■ G o w a n ,

D.

de condenação. Ser igreja é ser sábio na hora da

E. Wisdom and endurance in James,

23, p. 71-81,

b tb , v.

h b t, v .

15, p.

provação, sabendo que a presente provação da fé

145-53, 1993. ■

determina o ingresso na era vindoura.

in the Epistles of James. ExpT, v. 63, p. 227-8, 1952. ■ H a r t in , p. j. “Come now, you rich, weep

Ver também s a b e d o r ia .

and wail...” (James 5:1-6). B ib lio g r a f ia .

Comentários:

A d a m so n ,

J. B. The

Epistle o f James. Grand Rapids: Eerdmans, 1954. ( n ic n t .) ■ C a n t in a t ,

J. Les építres de s. Jacques et

de s. Jude. Paris: Gabalda, 1973. H.

(sb .) ■ D a vid s,

P.

Commentary on James. Grand Rapids: Eerd­

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jb l, v .

e os targumim — foram escritos ao longo de vá­ rios séculos após o período do

nt

,

mas contêm

W a ll, R. W. Colossians & Philemon. Downers Gro­

tradições mais antigas, algumas com data do sé­

ve: InterVarsity, 1993.

culo

( iv p n t c .) ■

apocalyptic paraenesis.

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_______James as

32, p. 11-22, 1990.

I.

Para os que estudam o

nt

,

o valor desses

documentos é que, avaliados criticamente, ofere­

■ _______Reading the New Testament in canoni­

cem uma percepção da matriz judaica em que o

cal context. In:

cristianismo nasceu.

G reen,

J. B., org. Hearing the New

Testament: strategies for interpretation. Grand Ra­

1. As raízes do movimento rabínico

pids: Eerdmans, 1995. p. 370-93. ■ _______Suc­

2. A transição para o judaísmo rabínico

cessors to “the Twelve” according to Acts 12:1-17. CBQ, V.

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[ b e t l.]

■ W a ll, R.

1. As raízes do movimento rabínico

W. & L em c io , E. E. The New Testament as canon: a

Em sua fase mais antiga, o movimento rabínico

reader in canonical criticism. Sheffield:

pode ser identificado com o farisaísmo. Josefo

jsot ,

1992.

[jSNTsup, 76.) ■ W ard, R. B. Partiality in the as­

define os fariseus como religiosos que criticavam

sembly: James 2:2-4.

0 sacerdócio asmoneu. O discurso dos fariseus

h tr, v.

62, p. 87-97, 1969. ■

_______The works of Abraham: James 2:14-26.

(J o s e f o ,

An, 13.10.5,6,

§ 288-98), e eles podiam recorrer à ação violen­

2 in hght of Greco-Roman schemes of argumen­

ta, como aconteceu quando exigiram a execução

tation.

61, p. 283-90, 1968. ■ W

foi inicialmente político

D. F. James

HTR, V.

NTS, V.

atso n ,

39, p. 94-121, 1993. ■ _______The

dos conselheiros que recomendaram a Alexandre

rhetoric of James 3:1-12 and a classical pattern

Janeu que matasse alguns simpatizantes desse

of argumentation. NovT, v. 35, p. 487-94, 1993. ■

grupo

W it h e r in g t o n ,

B. Jesus the Sage. Minneapohs: For­

tress, 1994.

(J o s e f o ,

Guju, 1.5.2,3, § 110-4). Contudo, o

interesse maior dos fariseus era alcançar e man­ ter a pureza. Em essência, procuravam alcançar

R. W. W all

a pureza, fazendo com que as ofertas, as pessoas e os sacerdotes estivessem em condições adequa­

T im ó t e o , P r im e ir a C a r ta

a.

Ver

das para o culto no templo. Por isso, eram de vital

C a r ta s P a s to r a is .

importância as questões referentes aos membros T im ó t e o , S e g u n d a C a r t a

a.

Ver

do sacerdócio, aos tipos de animais e bens que

C a r ta s P a s to r a is ,

podiam ser oferecidos e à proximidade que po­ t ip o l o g ia .

Ver A d ã o

diam ter de todas as fontes de impureza.

e C r is to .

1.1 T ito ,

C arta

a.

Ver

Hillel. No início da era cristã, os fariseus ti­

nham na pessoa de Hillel um eminente mestre em

C a r ta s P a s t o r a is .

Jerusalém. Hillel, com justiça, é conhecido pela Torá. Ver

famosa frase, proferida uns vinte anos antes de Je­

P a u l o , o Ju d e u ; L e i.

sus: “Aquilo que odiais não façais a algum de vós; T o se ft A.

Ver t r a d iç õ e s

a Torá se resume a isso, ao passo que o restante

e e s c r it o s ra b ín ico s.

é comentário” [b. Shabb., 31a). A frase é notável, t r a d iç ã o .

Ver

mas também pode induzir a erro. No contexto,

C a r ta s P a s to r a is ,

Hillel está falando com um prosélito impaciente t r a d iç ã o l .

Ver

que deseja aprender a Torá ao mesmo tempo que

P r o b le m a S in ó tic o .

procura viver de modo independente; sua impa­ t r a d iç ã o m.

Ver

ciência acabara de lhe render a reprimenda por

P r o b le m a S in ó tic o .

parte de Shammai, rabino com quem Hillel é in­ T

tencionalmente contrastado na Mishná. É claro

r a d iç õ e s e e s c r it o s r a b ín ic o s

Os documentos do judaísmo rabínico — basica­

que Hillel não tinha nenhum interesse declarado

mente a Mishná, a Toseftá, o Talmude, o midrash

de reduzir a Torá com base em algum princípio, e

1253

disse ao prosélito: “Vai e estuda a ToráV’. Ou seja,

Soáa, 14.9; í. ag., 2.9; t. Sanh., 7.1; y. ag.,2.2;y.

Hillel estava dizendo ao gentio que a revelação

Sanh., 1.4). A noção de uma unidade original que

dada a Moisés é a expressão da melhor ética, e,

teria sido perturbada por divisões nessa época é

' por esse motivo, ele devia dominar a Torá por completo, não apenas em parte.

provavelmente um mito, mas sem dúvida os fa­ riseus desenvolveram sua tradição oral mediante

De qualquer forma, para os fariseus, Hillel havia adquirido proeminência por decidir uma

uma compreensão estruturada do passado e tam­ bém por meio de técnicas mnemônicas.

questão muito diferente das demais: se o sacri­

1.2

Os fariseus. É provável que o termo “ fari­

fício da Páscoa devia ser oferecido no sábado.

seu” tenha sido criado por pessoas de fora do mo­

Hillel apresentou primeiramente um argumento

vimento e talvez tenha o sentido de “separatista”

baseado nas Escrituras para aceitar a prática: vis­

ou “purista”. Ao que parece, os participantes do

to que outras formas de serviço sacerdotal eram

movimento se referiam a seus antecessores mais

permitidas, o mesmo ocorria com o sacrifício

antigos (depois de Esdras) como “ os sábios” ou

do cordeiro. Seus ouvintes não se deixaram im­

“ os instruídos”, e aos mais recentes e aos de sua

pressionar até que ele simplesmente afirmou ter

época como “mestres” (cf. rab em m. Abot, 1.6;

aprendido esse ponto de vista na Babilônia, com

sophistês em

Semaias e Abtalião, eminentes antecessores do

tosa de se dirigir a um mestre era: “ meu grande”

J osefo ) .

A maneira normal e respei­

movimento. A autoridade de ambos foi suficiente

ou então rabbi ( “meu mestre”). Nos Evangelhos,

para se impor aos líderes da opinião farisaica na

0 povo chama Jesus de “Rabi”, título mais usado

época, os “ filhos de Batira” (cf. t. Pesah., 4.13,14;

que qualquer outro. Além do mais, em Jesus foi

y. Pesah., 6.1; y. Shabb., 19.1; b. Pesah., 66a).

característico o interesse pela pureza, e uma dis­

Essa história pode parecer um tanto misterio­ sa, mas também é a mais evocativa da cultura

puta sobre o sacrifício apropriado no templo lhe custou a vida.

farisaica. De modo sistemático, Hillel envolveu-se

Os Evangelhos, como os temos hoje, per­

em questões e embates litúrgicos em Jerusalém.

mitem deduzir de modo simples e claro que

Também se afirma que sua opinião convenceu

os seguidores de Jesus o chamavam de “ Rabi”

outro mestre, Baba ben Buta, a fornecer, para os

(Mt

sacrifícios, grande número de animais apropria­

Jo 1.38,49; 3.2; 4.31; 6.25; 9.2; 11.8). Permitem

26.25,49;

Mc

9.5;

10.51;

11.21;

14.45;

dos do ponto de vista litúrgico, com a estipulação

também inferir, de modo igualmente simples e

de que o ofertante (ao contrário do que ensinava

claro, que o mais natural é associá-lo aos fari­

a escola de Shammai) impusesse as mãos sobre a

seus de sua época. Mas ao longo do século xx os

vítima logo antes do sacrifício (cf. t. ag.,. 2.11; y.

estudiosos manifestaram reservas sobre esse en­

ag, 2.3;y. Besa, 2.4; b. Besa, 20a,b; v. 4.3 abaixo).

tendimento, tendo em mente o perigo de identifi­

Além do mais, como já foi dito, a base da au­

car Jesus com o movimento rabínico pós-70 d.C.,

toridade de Hillel não era tanto o conhecimento

que era mais sistematizado que o dos fariseus do

das Escrituras quanto o domínio do que ele havia

período anterior a 70 d.C., eqüivalendo ao po­

aprendido com os mestres que o precederam. Hil­

der estabelecido dentro do judaísmo. Durante a

lel personifica o princípio farisaico de que a con­

época de Hillel e Shammai, até o ano 70 d.C., o

tinuidade de sua tradição era normativa para a

ensino farisaico cuidava da conduta no culto do

pureza. 0 entendimento era que essa continuida­

templo, mas sua influência era limitada. Apesar

de, ou “corrente”, havia se desenvolvido a partir

disso, parece que eles se saíam razoavelmente

de Moisés e chegado aos Profetas. Depois disso,

bem nas cidades e aldeias. Mesmo na Galileia,

0 desenvolvimento continuou com Esdras e “os

instavam a população local a manter o tipo de pu­

homens da grande congregação” e, por fim, com

reza que permitia a devida participação no culto.

os mestres, que em geral formavam “duplas” e

É possível que João de Giscala, companheiro de

aos quais se recorriam (m. ‘Abot, 1.1-18). A úl­

Josefo na resistência armada contra Roma e tam­

tima “dupla” foi Hillel e Shammai, a partir dos

bém seu arquirrival, estivesse representando os

quais os fariseus reconheceram que a divisão au­

interesses dos fariseus quando conseguiu que os

mentou em Israel [b. Soda, 47b; b. Sanh., 88b t.

judeus da Síria adquirissem óleo exclusivamente

i : 254

T radições e escritos rabínicos

dos produtores da Galileia

(J o s e fo ,

Guju, 2.21.2,

farisaico-rabínico passou a ser aphcado não ape­

§ 591-3). De qualquer modo, parece claro que al­

nas às questões de pureza e sacrifício, mas tam­

guns fariseus apoiaram a revolta de 66-80 d.C.,

bém à adoração em geral, à ética e à vida diária.

ao passo que outros não o fizeram. Contudo,

Atribui-se a Yohanan a ideia de que o mundo,

enquanto alguns sacerdotes e essênios morre­

até então sustentado pelo templo, pela Lei e pelos

ram nas disputas internas durante a revolta e na

atos de amor fiel, agora dependeria apenas dos

guerra contra os romanos, quando a aristocracia

dois últimos (A bot R. Nat., 4). Além disso, com

dos escribas e dos anciãos em Jerusalém ficou

base na tradição que representava, ele determi­

desacreditada e foi dizimada, os fariseus sobrevi­

nou como os dias de festas deveriam ser guar­

veram à guerra melhor que qualquer outro grupo

dados na reunião para leitura, oração e debate,

e eram bem aceitos em todos os lugares. Fazia

chamada “congregação” ou “ sinagoga” [kenêset,

muito tempo, haviam se adaptado à situação de

palavra também aphcada a prédios construídos

serem vistos como um grupo um tanto à margem

com 0 propósito de abrigar tais reuniões; cf. m.

da sociedade e sobreviveram com seu pessoal e

Sukk., 3.12; m. Rosh Hash., 4.1,3,4). O desenvol­

suas tradições relativamente intactos.

vimento desse tipo de adoração para substituir as

A própria literatura rabínica personifica a so­

atividades do templo teve certo paralelo com o

brevivência do movimento em um relato acerca

período anterior a 70 d.C. A Mishná [m. Ta‘an.,

do rabi Yohanan ben Zakkai. Segundo a história,

4.2) concebe um sistema em que sacerdotes, levi­

ele conseguiu ser levado para fora de Jerusalém

tas e leigos se reuniam em cada sinagoga enquan­

fingindo-se de morto, para em seguida aclamar

to seus representantes estavam em Jerusalém.

Vespasiano rei. Ao subir ao trono, Vespasiano sa­

A semente de tal piedade talvez esteja no

tisfez o desejo de Yohanan, que era se estabelecer

sistema sacerdotal de escalas de serviço, o qual

na cidade de Yavné, onde estava o grupo do rabi

permitia a existência de um grupo significativo

Gamaliel, e de obter cuidado médico para o rabi

de sacerdotes divididos em 24 escalas. Durante a

Zadoque (cf. b. Git., 56a). Pelo fato de Josefo afir­

semana coberta por uma escala, uns poucos sa­

mar ter adulado Vespasiano

Guju, 3.8.9,

cerdotes eram escolhidos para oficiar em Jerusa­

§ 399-408) e interpretado sua vinda como o cum­

lém. Nesse ínterim, os demais talvez reunissem a

primento de uma profecia messiânica

(J o sefo ,

população das cidades e aldeias em que normal­

Guju, 6.5.4, § 310-5), deve se ter algum cuidado

mente viviam para a leitura dos textos bíbhcos

(J osefo ,

antes de aceitar a história. Mas ela não deixa de

(ICr 24.1-19;

revelar o éthos rabínico.

nessas reuniões os fiéis de Israel foi um desdo­

J o sefo ,

An, 7.14.7, § 365-7). Incluir

bramento natural sob a liderança dos rabinos, 2. A transição para o judaísmo rabínico

e fazia tempo que as reuniões gerais de oração e

Com a fundação das academias, como a de Yav­

instrução eram um aspecto comum do judaísmo

né, depois de 70 d.C., pode se falar da transição

da Diáspora. Por isso, era natural que a adoração

do farisaísmo para o judaísmo rabínico. Os ra­

nas sinagogas se desenvolvesse como uma espé­

binos que contribuíram diretamente para a lite­

cie de substituto da adoração no templo.

2.2

ratura rabínica e para o judaísmo formado por

A consolidação do poder. Entretanto, a

essa literatura pertenciam a um movimento que,

transição do farisaísmo para o judaísmo rabínico

embora surgido do puritanismo popular dos fa­

não ocorreu logo após o ano 70 d.C., nem foi sim­

riseus, sofreu várias mudanças. No início, isso

ples questão de o mesmo movimento com o mes­

aconteceu por motivos alheios à vontade deles.

mo pessoal prosseguir em novo ambiente. É claro

2.1

A aplicação mais ampla da tradição. que 0 ambiente era novo e favorecia, como nunca

0 tipo de liderança que alguém como Yohanan

antes, a autoridade dos rabinos, Mas os fariseus

ben Zakkai podia oferecer passou então a ser

desse período foram flexíveis o bastante para aco­

algo atraente, tendo em vista a ausência de al­

lher em suas fileiras, após a destruição do templo,

ternativas por parte dos sacerdotes, essênios e

um afluxo de sacerdotes e escribas. Está claro que

escribas. Por esse motivo, o alvo da aphcação

o interesse sacerdotal do movimento farisaico fa­

da tradição tornou-se mais amplo. O programa

zia parte de sua história, e é notável a presença

1255

T radições e escritos rabínicos

de referências a sacerdotes em histórias e ensinos

resultado seria impuro, pois aqueles materiais ja­

a partir de Yoahanan (cf. rabi Yosi, o Sacerdote;

mais poderiam ser reutilizados. O acerto de Ehé-

m. ‘A bot, 2.8) até um período bem avançado no

zer foi demonstrado por uma árvore, arrancada

Além do mais, só foi possível garantir a

a seu pedido, por um riacho que, por ordem do

consolidação do poder dos rabinos depois do ano

próprio Eliézer, correu no sentido contrário, por

século

II.

70 d.C., resultado da influência que exerciam em

um prédio que ele demohu de modo semelhante

todos os lugares, do controle sobre as decisões ju­

e por uma voz vinda dos céus. Apesar desses si­

diciais em cada um desses lugares, bem como do

nais, a maioria manteve sua interpretação, sob a

controle sobre a adoração e os estudos. A tendên­

alegação de que o ensino deles era de aceitação

cia dos escribas de se alinharem com os fariseus

obrigatória

e também o fato de os sacerdotes e simpatizantes

que foram surgindo os rudimentos de uma insti­

aderirem ao movimento garantiram o surgimento

tuição, a autoridade pessoal de Ehézer diminuiu.

e 0 sucesso dos rabinos.

Os rabinos do século ii ressaltavam que a pureza

(b. B. Mes., 59a,b). Assim, ã medida

0 triunfo da autoridade rabínica assegurou a

se alcançava de modo racional e consensual, e na

influência ininterrupta dos sacerdotes nas ques­

época do Talmude o entendimento era que essa

tões de pureza, na ministração de bênçãos e nos

pureza era maior que a alcançada apenas pela

recibos de pagamento de resgate e de dízimos.

autoridade carismática.

Ao mesmo tempo, também é notável a influência dos escribas na produção de materiais escritos

2.4

O fracasso do messianismo popular. Mes­

mo assim, a preocupação histórica com o templo

e na convocação de tribunais formais. Mesmo

como 0 centro real da pureza resultou em uma

assim, na prática, a consolidação do poder dos

tentativa final e quase catastrófica — encoraja­

antigos grupos e facções só ocorreu na época do

da por alguns rabinos — de liberar e restaurar

rabi Judá (final do séc. ii), quando surgiu um pa-

esse lugar santo. O rabino mais proeminente no

triarcado reconhecido e o apoiado pelos romanos.

apoio ã empreitada foi Akiba, que era discípulo

2.3

A prioridade do consenso entre os es­ de Eliézer e pessoa renomada por seu profundo

tudiosos. Na esteira dos acontecimentos de 70

conhecimento da tradição. Akiba apoiou a rei­

d.C. e no confisco, pelos romanos, do imposto

vindicação feita por Simeão bar Kosibah, que se

antes pago ao templo, nem Jerusalém nem seus

proclamou novo príncipe de Israel, atuando com

arredores eram lugares apropriados para conti­

outro príncipe, de nome Eleazar. Os seguidores

nuar como centro do movimento. No século ii,

de Simeão chamavam-no Bar Kokhba (“ filho de

havia centros na próspera Galileia, como Usha e

uma estrela), projetando nele as expectativas re­

Bete-Searim, que ofuscavam até mesmo Yavné.

gistradas em Números 24.17, ao passo que seus

Mais tarde, metrópoles como Séforis e Tiberíades

críticos vieram a chamá-lo Bar Koziba (“ filho de

tornaram-se importantes centros de liderança.

uma mentira”). 0 sucesso inicial que obteve e

No início, não havia nada parecido com uma h-

sua astúcia mihtar são confirmados pelas cartas

derança central ou mesmo uma política comum,

que ele enviou a seus comandantes durante a

mas foi o fato de os fariseus, sacerdotes e escribas

revolta e o regime que liderou, que duraram de

buscarem a pureza da nação judaica que deu ori­

132 a 135 d.C. Dessa vez, a resposta do Império

gem ao judaísmo rabínico. A saúde do movimen­

Romano foi ainda mais definitiva que a de 70 d.C.

to exigiu uma mudança da autoridade pessoal

0 imperador Adriano determinou que as ruínas

bastante elevada dos fariseus para alguma noção

do templo fossem espalhadas e que novos altares fossem construídos na cidade. A própria Jerusa­

de consenso entre os estudiosos. Tal mudança se vê refletida em uma histó­

lém passou a ser chamada Aelia Capitolina, os

ria talmúdica acerca de um grande mestre, rabi

judeus foram proibidos de entrar na cidade e a

Eliézer ben Hircano. Diz a história que Eliézer

Judeia passou a formar a Síria-Palestina.

se opunha ã maioria de seus colegas, afirmando

Os rabinos sobreviveram, distanciando-se dos

que, se um forno de cerâmica ficasse impuro, ele

anseios personificados em Akiba, porém man­

podia ser remontado, desde que as peças fossem

tendo boa parte de seus ensinos. “Akiba, erva

separadas por areia. A maioria ensinava que o

crescerá de tua maxila antes que venha o Filho

1256

T radições e escritos rabínicos

de Davi” (y. Ta‘an., 4.7; cf. Rab., Lm 2.2.4). Ou

um agrupamento de fazendas que uma nação”. O

seja, o Messias deve pertencer a Davi (v.

F il h o de

paradoxo, porém, é que a mudança do rabi Judá

não pode ser alguém da escolha do povo,

de Bete-Searim para Séforis sinalizou o surgimen­

nem se pode forçar sua vinda. Mas a grande con­

to da autoridade rabínica no ambiente das cida­

tribuição dos rabinos diante da derrota da nação

des, em íntima associação com o poder romano.

e na redefinição que deram ao judaísmo consistiu

Quando se lê a Mishná, é preciso levar em conta

não tanto na formulação de um ensino especí­

a existência de anacronismos em vários níveis.

D a vi ) ,

fico sobre o messianismo (que de algum modo

Ao longo da história do judaísmo e dentre os

retorna de tempos em tempos em alguma forma

acontecimentos que foram importantes para a

de judaísmo), quanto no fato de expressarem de

formação do movimento, a centrahzação radical

modo textual uma forma de pensamento, discipli­

reahzada sob a liderança do rabi Judá se asseme­

na e vida — a Mishná.

lha à reforma de Esdras. Mas, enquanto o progra­ ma de Esdras estava localizado em uma cidade

3. O surgimento dos escritos rabínicos 3.1

(Jerusalém), o programa do rabi Judá tinha tam­

A Mishná. Rabinos como Akiba haviam bém sua base em uma cidade (Bete-Searim ou

ensinado normas próprias que vieram a ser co­

Séforis), mas estava localizado em sua mente. A

nhecidas como halakoth [halãkôt, pl. de halãkâ,

Mishná que daí surgiu foi um padrão de reflexão

“o caminho”), e obrigavam seus discípulos a

que permitia a qualquer rabino, em qualquer lu­

decorá-las. 0 discípulo [talmíd) podia internalizar

gar, se juntar à reflexão e à disciplina que tinham

o que havia aprendido (i.e., internalizar a mish-

o objetivo de manter ou alcançar a pureza de Is­

nâ, “ou repetição” , de seu mestre; pl. mishnâyôf)

rael. Nesse sentido, a santidade podia se tornar o

e promulgar tanto o que havia aprendido quan­

propósito dos estudiosos, não importando o lugar

to suas halakoth. Mas, depois do insucesso de

em que vivessem. É claro que o surgimento da

Bar Kokhba, os rabinos, sob a Uderança do rabi

Mishná suscitou a questão de sua posição, com­

Judá ha-Nasi (ou “o Príncipe” , título que denota

parada com as Escrituras, e a revolta liderada por

um contraste absoluto com as aspirações de Bar

Bar Kokhba destacou como nunca a importância

Kokhba), passaram a reunir as mishnayoth geral­

das obras que prometiam uma rápida reconstru­

mente bastante valorizadas.

ção do templo depois de 70 d.C. (cf. 2Esdras e o

Certos aspectos dessa empreitada são ao mes­

Targum sobre Isaías).

mo tempo notáveis e de importância paradigmá­

0 cânon sacerdotal, descrito por Josefo (mas

tica para o judaísmo rabínico. 0 mais importante

computado de forma excêntrica; v.

é que a Mishná representa tradições mais antigas

L8, § 39), já havia reivindicado o reconhecimen­

postas em uma relação dialética. O raciocínio

to de 24 livros. Os rabinos, invocando o apoio

existe em um presente eterno entre opiniões an­

desse conjunto de hvros, puderam assim contro­

tes separadas pelo tempo e/ou espaço. A prin­

lar

cipal contribuição da Mishná é justamente o

lesse algum livro fora daquele cânon não parti­

os

Jo se fo ,

Co Áp,

anseios messiânicos, ao insistir que quem

convite a uma reflexão dialética sobre a pureza,

ciparia de modo algum do mundo vindouro (m.

sem hmitações históricas ou cronológicas. Entre­

Sanh., 10.1). Apesar disso, a questão do messia­

tanto, é preciso dizer que a síntese, quase sempre

nismo era mais acidental que sistêmica. Precisava

irregular, é apresentada em um sistema definido

ser tratada (e o foi, sem dijvida) pelos rabinos,

de tratados que tipicamente tratam do tema in­

mas a questão fundamental era a relação entre as

dicado no título e estão organizados em certas

Escrituras e a Mishná. Passaram-se vários séculos

categorias {sedãrím). Cada categoria pressupõe

até se chegar a uma solução.

a atividade agrícola que os rabinos considera­

3.2

O midrash. Pode se dizer que o midrash

vam normal para Israel. Como rabinos — eles

é um tipo de pensamento e de literatura que pro­

deixavam implícito — , “ falamos da pureza que

cura explicar as Escrituras por meio do ensino

podemos alcançar para um templo que sempre

rabínico. Como se costuma afirmar, é verdade

deveria ter existido, mas o fazemos sabendo que

que 0 substantivo deriva do verbo dãrash, que

0 Israel de que tratamos e que nos apoia é mais

significa “ indagar” , “ investigar” , mas esse fato é

1 257

I RADIÇÔES E ESCRITOS RABÍNICOS

irrelevante. Do ponto de vista formal, qualquer

como analisamos acima. O segundo era ainda

midrash cita as passagens das Escrituras de modo

mais fundamental, pois envolvia o tratamento

semelhante ao dos Pesherim de Qumran (v.

ma­

ao debate gerado pela Mishná. Se a questão das

mas em geral a exegese

Escrituras girava em torno da autoridade dos ra­

não é a ideia da apreciação. Em vez disso, a ci­

binos em relação ao passado, como representado

tação se torna uma oportunidade para invocar o

no cânon, a outra questão girava em torno da

n u sc rito s

DO MAR M o r to ) ,

ensino rabínico que pode estar associado ao texto

autoridade que tinham sobre seus sucessores. A

bíbUco em análise. A autonomia relativa desse

Mishná abordava uma dialética da pureza eter­

ensino em relação a qualquer texto fica óbvia no

na, mas como essa dialética, uma vez registrada

que chamamos midrashim (pl. de midrash] "ta-

por escrito, deveria se relacionar com o debate

naíticos” ou “halákicos”. 0 adjetivo “tanaítico”

rabínico no tempo presente? Os dois dilemas são

refere-se aos tanaim ("os repetidores” , rabinos do

tratados de forma não definitiva na Toseftá (ou

período mishnaico, embora o título esteja mais

Tosepta). 0 termo significa “acréscimo” , no sen­

associado ã tradição e derive do verbo aramaico

tido de que em séculos posteriores o corpus foi

tenã’, "repetir”), ao passo que "halákico” se refe­

visto como um adendo à Mishná.

re ao conteúdo do ensino desses rabinos. Esses

Na verdade, a Toseftá, até certo ponto, é uma

documentos incluem dois midrashim sobre Êxo­

Mishná nova que incorpora a obra de rabinos pos­

do, cada um denominado Mekilta (que significa

teriores e conduz as ideias desses rabinos a um

"medida”), um deles atribuído ao rabi Ismael, e

debate com os pensamentos dos tanaim. Apesar

o outro, ao rabi Simeão ben Yohai (embora esteja

disso, a Toseftá é no fundo conservadora, pois de­

claro que seja de um período posterior), tendo

pende dos materiais e da estrutura da Mishná e

ambos vivido no século ii. Levítico recebe trata­

não promulga a ideia radical (esboçada em ‘Abot,

mento parecido em Sifra (ou Sipra, palavra que

tratado acrescentado à Mishná por volta do ano

tem 0 sentido de “livro”), e Números e Deutero­

250) de que, com a Torá que consta nas Escrituras

nômio, em Sifre (ou Sipre, que significa “ livros”).

Moisés recebeu uma Torá oral que foi transmi­

A influência do rabi Ismael fica visível no fato

tida por intermédio dos profetas e dos sábios e

de se atribuírem a ele (como antes ocorria com

por fim chegou aos rabinos. A Toseftá tem um

Hillel) regras [middôt] de interpretação. As regras

caráter muito mais abrangente na suplementação

de modo nenhum controlam o que os rabinos po­

da Mishná, porém aponta para a necessidade da

diam ensinar, mas representam a gramática (que

ousadia que lhe falta: dar destaque aos rabinos

estava se desenvolvendo) da associação do en­

não apenas mediante a inclusão de seus ensinos,

sino deles com as Escrituras. Do ponto de vista

mas também permitindo o diálogo direto com os

da forma, as middôt estabeleceram os padrões de

rabinos ilustres que os precederam no estudo das

semelhança, analogia e classificação lógica a ser

Escrituras e que continuavam a ser lembrados.

apresentados como apoio a determinado ensino

3.4

O Talmude. A relativa abrangência da

ou afirmação. Pode se observar sua aplicação no

Toseftá não garantiu seu sucesso. A Mishná não

debate realizado entre os rabinos, mas dizem res­

foi substituída pela Toseftá nem por nenhuma

peito mais apropriadamente ao tipo de inferência

outra obra posterior na tradição rabínica. Além

envolvida na interpretação do que ao programa

disso, até mesmo os rabinos reconheciam as prer­

mediante o qual se processava essa associação. A

rogativas das Escrituras, no sentido de que se pri-

impressão clara passada por Mekilta (em ambas

vUegiava a citação de um texto para demonstrar

as tradições), Sifra e Sifre é que o texto bíbhco era

ou ilustrar uma ideia. 0 problema de como tratar

uma oportunidade para a exposição de ideias e

no presente a verdade eterna da tradição (e vice-

métodos de pensar fundamentalmente rabínicos.

versa) foi solucionado mediante uma inovação.

3.3

Os rabinos como expositores das Escrituras

A Toseftá. Apesar do sucesso do experi­

mento do rabi Judá, o século iii presenciou uma

[amoraim, palavra derivada de ’amõrã’, “ intér­

crise no entendimento do que poderia ser feito

prete” , em contraste com os tanaim, “repetido­

com a Mishná. Essa crise é visível em dois di­

res”) passaram a tratar a Mishná como Escritura.

lemas. 0 primeiro dizia respeito às Escrituras,

Ou seja, produziram um comentário sobre a

i:258

T radições e escritos rabínicos

Mishná que passou a ser conhecido como Tal­

que lhe é peculiar, pelo menos até o período mo­

mude [talmüd, substantivo que tem o sentido de

derno. Essa natureza era e é transmitida em sua

“aprendizado”). 0 comentário (como no caso do

obra magna, provavelmente concluída no século

midrash) é mais uma questão de usar um texto

vi: o Talmude babilónico ou Babli. Ele oferece um

como oportunidade para associar um ensino do

tratamento mais completo e mais engenhoso da

que uma exposição ou exegese, porém os amo-

Mishná do que o Yerushalmi, empregando recur­

raim obtiveram sucesso naquilo que a Toseftá

sos narrativos ricos e bem elaborados que per­

não teve: preservou-se a Mishná, e ao mesmo

mitiam trazer ao mundo contemporâneo o éthos

tempo foi mantida sua atividade criadora e lógi­

rabínico. Até certo ponto, cada rabino é um Moi­

ca. O avanço ideológico que permitiu esse feito

sés, pois, conta-se, quando o próprio Moisés visi­

foi a doutrina de que a Torá era conhecida não

tou a academia de Akiba e comentou com Deus

apenas na forma escrita, mas também oral.

que o debate era muito complexo, a falta de mé­

3.4.1 O Talmude de Jerusalém (c. 400 d.C.).

ritos do Legislador ficou óbvia (b. Menah., 29b).

O Talmude de Jerusalém, ou Yerushalmi, foi a

Mas os rabinos também apresentam mensagens

última grande produção do judaísmo rabínico

antigas de forma respeitosa e contemporânea, o

na Palestina (conforme o movimento veio a ser

que acontece, por exemplo, quando o rabi José

chamado no período romano). Do ponto de vista

de Pumbedita, o mestre cego, reconhece que

sociológico, era difícil manter a discipUna de pu­

sem o Targum ele não entenderia as Escrituras

reza que os rabinos praticavam e queriam que os

(b. Sanh., 94b). O conhecimento e a perícia deles

outros praticassem em um território recentemen­

são, na prática, infinitos: é possível consultar um

te conquistado pelos romanos. O fato de Adriano

rabino acerca da visão da carruagem de Deus,

ter proibido a circuncisão pode ou não ter sido

sobre como fazer amor ou sobre a maneira de

um grande obstáculo (dependendo do momento

curar prisão de ventre. Embora o Talmude (e, do

e do local na história do império), mas o avanço

ponto de vista prático, o Babli é o Talmude) seja

das instituições e da cultura romanas, mesmo de

enorme, seu escopo é uma declaração sucinta de

forma localizada, foi, a partir do século ii, uma

seu propósito: transformar a totalidade da vida

realidade nunca antes presenciada.

ã luz da Torá conforme esta é interpretada pelos

Perto do fim do período dos amoraim da Pa­

rabinos. 3.5

lestina, parece que o próprio patriarcado, que

Os targumim e o Midrash Rabbah. 0 ím­

confirmara o sucesso dos rabinos na redação da

peto e a capacidade dos rabinos da Babilônia per­

Mishná, estava mais ahnhado com a aristocracia

mitiram que concluíssem a recensão padrão dos

local. A urbanização crescente não era compa­

targumim e a publicação de um midrash na forma

tível com a perpetuação do poder rabínico na

mais completa já produzida. 0 Midrash Rabbah

Palestina. Além disso, no século m, a Babilônia

apresenta não apenas os livros bíblicos utilizados

assistiu ã chegada dos sassânidas ao poder e ã

em ocasiões festivas e comemorativas (Ester, Rute,

forma de zoroastrismo que praticavam, tendo

Cantares, Eclesiastes, Lamentações), mas também

uma política de relativa tolerância para com a

0 Pentateuco. A segurança que os rabinos da Babi­

prática do judaísmo. A vida econômica dos ju­

lônia tinham no próprio éthos era tão forte que o

deus na Babilônia, na maioria estabelecidos em

comentário sobre as Escrituras podia incluir narra­

cidades e aldeias autônomas sustentadas pela

tivas explícitas sobre os rabinos, bem como expo­

agricultura, era mais adequada ao éthos rabínico

sição e discussão formal. 0 término da elaboração

do que o crescente sincretismo que se viu no Im­

do Midrash Rabbah provavelmente ocorreu duran­

pério Romano a partir do século ii. Os sassânidas

te o século VIU, e essa obra representa a confiança

incentivavam ou toleravam (em níveis variados

de que, em essência, a Torá, quer nas Escrituras,

ao longo do tempo) a formação das academias

quer no Talmude, é uma só. O entrelaçamento das

em locais como Sura, Pumbedita e Nehardea, que

Escrituras com o ensino rabínico também está re­ presentado nos midrashim homiléticos de um pe­

constituíam o dínamo do debate rabínico. 3.4.2 O Talmude babilónico (c. séc. vi). Os ra­ binos da Babilônia deram ao judaísmo a natureza

ríodo posterior: a Pesiqta Rabbati, a Pesiqta de Rab Kahana e Tanhuma.

1259

O r d e n s e t r a t a d o s d a M is h n á , d a T o s e f t á e d o T a lm u d e

Zem'im

Sementes, em relação às contribuições

Neziqin

Danos

Berakot

Bênçãos

Baia Qamma

Primeiro portão

Pe’a

Respigos

Baba MetsVa

Portão do meio

Demai

Produto da terra sem dízimo certo

Baba Batra

Último portão

KiVayim

Tipos diversos

ShebVit

Sétimo ano

Temmot

Ofertas alçadas

Ma'asemt

Dízimos

Ma'oser Sheni

Segundo dízimo

Sanhédrin

Sinédrio

Makkot

Açoites

Shebu'ot

Juramentos

‘Eduyyot

Testemunhos

Halla

Oferta de massa

'Aboda Zara

Idolatria

■Orla

Fruto das árvores novas/Enxerto

'Abot

Pais

Bikkwim

Primeiros fmtos/Primícias

Horayot

Instruções/Decisões

Mo'ed

Festas fixas

Qodashim

Coisas sagradas

Shabbat

Sábado

Zebahim

Ofertas de animais/ Sacrifícios

'Erubin

Limites do sábado

Menahot

Ofertas de alimentos

Pesahim

Festa de Páscoa

Huüin

Animais mortos para comer/ Coisas comuns

Sheqalim

Siclos pagáveis

Bekorot

Primogênitos

Yoma (= Kippanm)

Dia da Expiação

'Arakin

Dedicações vicária

Sukka

Festa dos Tabernáculos

Temura

Substituição

Betsa ( = Yom tob)

Festas

Keritot

Extirpações

Eosh Hashshana

Ano-novo

Me'ila

Sacrilégio

Ta'anit

Dias de jejum

Tamid

0 holocausto diário

Megilla

Rolo de Ester

Middot

Medidas

Mo'ed Qatan

Pequena festa

Qinnim

Ofertas de aves / Ninhos

Hagiga

Oferta festiva

Nashim

Mulheres

Toharot

Purezas

Yebamot

Casamento de levirato

Kelim

Utensílios

Ketubot

Certidões de casamento

Oholot

Tendas

Nedarim

Votos

Nega'im

Sinais de lepra /Pragas

Nazir

0 voto do nazireado

Para

A novilha vermelha

Sota

Mulher suspeita de adultério

Toharot

Purezas

Gifíin

Certidões de divórcio

Miqwaot

Tanques de imersão

Qiddushin

Noivados

Niddnh

A menstruada / Separação

Makshirin ( = Maskqin)

Os que dão a herança de antemão

Zabim

Os que sofrem fluxo/ Emissões seminais

Tebul Yom

Imersão do dia

Yadayim

Mãos

'Uqtsin

Hastes

1260

T radições e escritos rabínicos

O Sefer Yesirá. 0 período rabínico termi­ debate como Torá — fez com que palavras ou

3.6

nou com o surgimento do islã e a reação poste­

frases fossem atribuídas anacronicamente a seus

rior dos geonim, que sucederam aos rabinos e

antecessores. Ao usar o material rabínico, deve

mantiveram e ampliaram o judaísmo rabínico,

se ter cautela quando se atribuem certas ideias a

imprimindo-lhes uma tendência peculiarmente

determinado rabino, especialmente no caso dos

acadêmica e às vezes racionalista. A obra dos geo­

períodos que vão até o tanaítico, inclusive. 4.1

nim foi adquirindo natureza cada vez mais literá­

Anacronismos. Um exemplo é a referência

ria e pressupunha o cânon rabínico como fato a

já feita (v. 1.1 acima) ao ensino de Hillel acerca

reconhecer, não como realidade a alcançar. Além

do amor. Hillel era venerado como o precursor

do mais, tornou-se manifesta uma tendência em

do patriarcado e — ao longo do tempo — che­

direção à filosofia e ao esoterismo.

gou-se a dizer que foi descendente de Davi (Rab.,

0 Sefer Yesirá ( “livro da formação”) é um bom

Gn 98), o que reforçava a reivindicação à autori­

exemplo de obra de transição entre os amoraim

dade por parte de qualquer patriarca que viesse

e os geonim, e provavelmente foi composto no

depois dele e a ele estivesse relacionado. À época

século

Seu ponto de partida é uma tradição

dos amoraim, um rabino era visto como alguém

mística que remonta pelo menos a Yohanan ben

que apresentava em sua halaká o equivalente

Zakkai, segundo a qual é possível ver a carrua­

funcional da Torá. E é justamente isso que Hillel

VII.

gem (merkabah) de Ezequiel 1 e conhecer a

faz na história que contamos. Com um único gol­

estrutura da criação. No entanto, enquanto os

pe, ele derrota o pedido simplório do prosélito e o

rabinos afirmavam que tais experimentações só

exclusivismo ofensivo de Shammai. Hillel torna-

eram válidas em apresentações particulares (mes­

se 0 que qualquer amoraim desejava ser: um he­

mo assim, sob controle rígido, cf. b. Shabb., 80b;

rói na defesa da Torá, porque entendia a força da

b. ag., llb,13a,14b), o Sefer Yesirá dá início a uma

Torá. Pelo fato de esse relato acerca de HiUel ser

tradição de esoterismo literário e racional que é

condizente com o éthos dos amoraim e aparecer

mais típica da cabala da Idade Média do que do

apenas nessa etapa do Babli (b. Shabb., 31a), não

judaísmo dos rabinos. A dialética dos rabinos ba­

se deve atribuir necessariamente ao próprio Hillel

seava-se na argumentação oral que produziu sua

0 destaque que se dá à aprendizagem da totali­

literatura e à qual sua literatura tinha o propósito

dade da Torá.

de servir. Estritamente falando, quando a lógica

4.Z Analogias. No entanto, a presença de

do discurso literário passa a prevalecer, a estrutu­

uma forma do que é geralmente conhecido como

ra do judaísmo já não é rabínica.

Regra de Ouro mostra que é imprudente negar

4. O uso dos escritos rabínicos para

buído no Babli. A versão que temos do relato tal­

entender Jesus e os Evangelhos

vez reflita o éthos dos amoraim, mas é possível

A literatura rabínica desenvolveu-se de uma for­

que uma declaração feita por Hillel esteja por trás

que Hillel tenha dito algo como o que lhe é atri­

ma que a torna diferente dos Evangelhos. Em

da história que lhe é atribuída. Na condição de

termos sociais e religiosos, não é possível fazer

ordem para que a pessoa não faça o que consi­

comparação direta entre os escritos do judaísmo

dera repulsivo, parece que a máxima teve ampla

rabínico e os do cristianismo primitivo. Por esse

circulação no período antigo (cf.

motivo, a existência de um suposto paralelo entre

lecta 15.23; Tb 4.15; Ar, 207;

C o n f ú c io ,

E u sébio ,

Ana-

Pr ev, 8.7

um texto rabínico e uma passagem dos Evange­

[quanto à citação feita de Filo]; Te Na, 1.6 [hebr.];

lhos não deve, por si só, ser interpretada como

2En, 61.1,2; Se Sx, 89 [e 210b]). Também influen­

prova de que o judaísmo é que deu origem ao

ciou a forma da Regra de Ouro, como se vê em

tema da passagem em questão. (Às vezes, o ter­

Didaquê 1.2 (cf. At 15.20,29 em

mo "paralelo” é titil apenas quando se tem em

que não queres que te façam não faças a outrem.

d;

Rm 13.10): o

mente que o adjetivo descreve Unhas que na

Tendo em vista que a forma proverbial da Re­

realidade nunca se encontram.) Ademais, o pró­

gra de Ouro (i.e., negativa) é a que predomina na

prio programa dos rabinos — a saber, retomar o

antiguidade cristã, não há necessidade de alegar

debate perene sobre a pureza e promulgar esse

que a versão de HiUel influenciou a declaração

1261

de Jesus. Além do mais, a forma negativa é bas­

Em termos gerais, a hagadá [haggaddâ, “nar­

tante comum na tradição cristã, como em muitas

ração, instrução”) acerca de Hillel, Baba ben Buta

outras. Não há, portanto, necessidade ou moti­

e as ovelhas é mais característica do programa

vo de apresentar algo específico (como no caso

farisaico-rabínico do que a breve menção da Re­

da frase de Hillel) para exphcar uma afirmação

gra de Ouro. Além disso, o fato de a história estar

convencional.

mais bem atestada nos dois Talmudes e também

Aliás, um aspecto que pode ser peculiar e sig­

aparecer na Toseftá mostram que talvez reflita

nificativo na máxima atribuída a Jesus em Ma­

uma disputa que de fato tenha ocorrido. Por fim,

teus 7.12 e em Lucas 6.31 é que, do ponto de

embora os contestantes de Hillel sejam estereotí­

vista formal, ela aparece no imperativo afirmati­

picos, é notável que em Beía, 20a (cf. t. ag., 2.11)

vo. Embora o conteúdo do ensino seja proverbial

Hillel faz de conta que o animal é uma fêmea

e esteja longe de ser exclusivo de Jesus, não há

para um sacrifício pacífico [zíblfê shelãmim), com

dúvida de que existe um elemento incomum na

0 intuito de que os discípulos de Shammai acei­

aphcação do princípio apresentado na máxima.

tem 0 animal. Ou seja, a versão da história no Ba­

O desejo firme de fazer aos outros o bem que

bli pressupõe que são os seguidores de Shammai

alguém deseja para si é, obviamente, uma ver­

que de fato controlam o que os adoradores fazem

são mais enérgica do imperativo de não fazer aos

no templo. A hagadá é bem diferente do tipo de

outros 0 mal que não gostaria de sofrer. A impor­

história em que Hillel é apresentado como o pa­

tância do que é atribuído a Hillel no Babli não é

triarca prototípico do judaísmo rabínico.

que fica demonstrada a existência de um paralelo

Em certo sentido, a tradição acerca de Hillel

do século I com o ensino de Jesus, mas que fica

contempla um movimento oposto ao de Jesus no

demonstrado, por meio do comraste, que no ju­

templo (Mt 21.12,13; Mc 11.15-17; Lc 19.45,46;

daísmo rabínico — e provavelmente nos círculos

Jo 2.13-17;

farisaicos do judaísmo antigo — era comum a for­

são trazidos para o templo, em vez de seus co­

ma proverbial e negativa da máxima.

merciantes serem expulsos. Mas o propósito da

V. TEMPLO, p u r if ic a ç ã o d o ) ;

os animais

Mesmo assim, só é possível chegar a essa

ação do partidário de Hillel é compehr a uma

ideia intuída e pouco relevante quando se lê o Ba­

compreensão do que seja a adoração correta, e

bli dentro do quadro de referência de documen­

os Evangelhos também atribuem essa motivação

tos mais antigos. Não há nenhuma possibilidade,

a Jesus. Na prática, a halaká de Hillel insiste na

com base apenas nos Evangelhos e no Babli, de

participação do ofertante, porque este é o dono

se fazer entre Jesus e Hillel uma comparação di­

do animal oferecido, fato comprovado pela im­

reta que seja aceitável do ponto de vista crítico.

posição de mãos (cf. b. Pesah., 66b). De acordo

4.3

Ambiente. Como já mencionamos (v. 1.1 com a história, a casa de Shammai sanciona o

acima), conta-se que Hillel ensinou que as ofertas

sacrifício sem exigir que o ofertante participe ine­

deviam ser levadas ao templo, onde os donos im­

quivocamente desse ato. Embora nada parecido

poriam as mãos sobre elas e as entregariam aos

com a violência de Jesus seja atribuído a Baba

sacerdotes para o sacrifício (cf. t.

ag., 2.11; y.

ben Buta, o que ele oferece é uma analogia sobre

ag., 2.3;y. Beía, 2.4; b. Beía, 20a,b). Seus eternos

a insistência na adoração correta no templo por

e estereotípicos contestantes, os da casa de Sham­

parte de um fariseu.

mai, resistiram, insistindo que os animais deviam

A própria Mishná reflete a preocupação de

ser entregues diretamente ao sacerdote, sem a

controlar os acertos comerciais associados ao

imposição de mãos. Contudo, alguém da casa de

templo, e essa preocupação também é um tanto

Shammai (a quem o Babli e a Toseftá se referem

quanto análoga à ação de Jesus no pátio externo.

pelo nome de Baba ben Buta) ficou tão impressio­

Conta-se a seguinte história sobre um dos suces­

nado com a justeza da posição de Hillel que fez

sores de Hillel [m. Ker., 1.7);

com que se levassem cerca de 3 mil animais (nú­ mero indicado apenas no Yerushalmi] ao templo

Certa vez, em Jerusalém, dois pombos cus­

para distribuir entre os que desejassem impor as

tavam um denário de ouro. 0 rabban Simeão

mãos sobre os animais antes do sacrifício.

ben Gamahel disse; “Juro por este lugar que 1262

T radições e escritos rab Inicos

não descansarei esta noite antes que eles cus­

acreditarmos na história), e os preços ficaram

tem apenas um denário [de prata]

ainda mais baixos do que Simeão tinha preten­

Ele foi para

o pátio e ensinou: “ Se uma mulher sofresse

dido. Pode se presumir que não tenha havido

cinco abortos sobre os quais não houvesse dú­

nenhum motivo para ele continuar a promulgar

vida, ela precisaria trazer apenas uma oferta, e

seu ensino no pátio do templo, e tanto ele quanto

poderia então comer dos sacrifícios; e dela não

os comerciantes ficaram satisfeitos com o acordo.

se exigem os demais sacrifícios”. No mesmo

Em comparação com as datas da Toseftá, do

dia, dois pombos passaram a custar um quarto

Yerushalmi e do Babli, a data da Mishná faz com

de denário cada um.

que seu material — quando pode, de alguma ma­ neira, ser comparado com os Evangelhos — seja

Embora seja necessário mais esforço para en­

de interesse imediato para os que estudam a vida

tender essa história que a de Hillel, vale a pena

e os ensinos de Jesus. Apesar de toda a sua com­

anahsá-la. A pressuposição de toda a história é

plexidade, a hagadá do tratado mishnaico Keritot

que uma mulher podia oferecer um par de pom­

é de vital importância para entender o tipo de

bos tanto como oferta queimada quanto como sa­

intervenção que os fariseus do século i podiam

crifício pelo pecado a fim de ser purificada após o

fazer no funcionamento do templo. (Talvez a his­

parto. Desses sacrifícios, o de purificação após

tória a respeito de Simeão seja mais complicada,

0 parto era apresentado normalmente, ao passo

justamente por estar mais próxima das preocupa­

que no outro, se a mulher fosse pobre, os pombos

ções dos fariseus que a hagadá posterior a res­

podiam substituir um cordeiro de um ano de ida­

peito de Hillel e Baba ben Buta.) Hillel, Simeão e

de (Lv 12.6-8). A história também pressupõe que,

Jesus são apresentados como pessoas interessa­

do ponto de vista da pureza cerimonial, abortos

das nos animais oferecidos no templo a ponto de

e situações incomuns semelhantes deveriam ser

intervir (ou agir por meio de um representante,

tratados como partos. Essa associação é caracte­

como no caso de Hillel) no pátio externo, a fim

risticamente farisaica, como também a questão de

de influenciar o andamento normal da adoração.

quando era possível considerar a mulher em con­

Até esse ponto, podemos dizer que as tradições

dições de comer das ofertas. Os fariseus definiam

e os escritos rabínicos oferecem um contexto no

pureza como a condição de poder participar do sa­

qual é possível interpretar uma ação bem docu­

crifício e das refeições, que, de acordo com o ensi­

mentada de Jesus.

no deles, eram extensões da santidade do templo.

4.4

Resumo. A utihdade dos documentos do

Por isso, a ira de Simeão, que o leva a jurar

judaísmo rabínico na interpretação de Jesus e

pelo templo {cf. Mt 23.12-22), é até certo pon­

dos Evangelhos depende de três considerações

to motivada por considerações econômicas. Sua

críticas, analisadas nos exemplos apresentados

reação, à semelhança da de Jesus, é ensinar no

acima. Primeira: deve se levar em conta a data

pátio do templo, para onde as ofertas eram leva­

relativamente tardia da hteratura, embora os elos

das. Mas a ação de Simeão no pátio é bem me­

entre o judaísmo rabínico e o farisaísmo do sécu­

nos direta que a de Hillel ou a de Jesus. Em vez

lo I mostrem que são possíveis algumas analogias

de trazer mais aves ou de hbertar as que foram

entre os Evangelhos e os escritos rabínicos. Se­

trazidas a um preço abusivo, ele promulga uma

gunda: um reconhecimento das transformações

halaká, cujo propósito é diminuir o comércio de

sociais e religiosas envolvidas no surgimento

pombos, não importando o preço desses animais.

do judaísmo rabínico deve deixar o leitor alerta

Se uma mulher pode aguardar vários [até

quanto à possibilidade de anacronismos ou quan­

cinco) abortos ou fluxos de sangue e então ofer­

to à apresentação de mestres mais antigos como

tar um único par de pombos e ser considerada

porta-vozes de teologias posteriores. Terceira: de­

pura para comer do animal ofertado, é óbvio que

vemos entender que o alvo inicial da investigação

cairia a renda auferida do comércio de pombos.

é recuperar o ambiente do judaísmo primitivo.

Na prática, Simeão opõe-se aos preços inflacio­

Ou seja, não devemos tanto procurar aconteci­

nários com monetarismo sacrificial. A hção po­

mentos e frases que tenham paralelo nos Evan­

lítica foi logo entendida (naquele mesmo dia, se

gelhos, quanto recapturar a matriz da fé cristã,

1 263

conforme indiretamente refletida tanto nos Evan­ gelhos quanto nos escritos rabínicos. Ver também A pócrifos

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1264

Ver

ADORAÇÃo /CULTO; CRISTO­

Ú

l t im a

C e ia : E v a n g e lh o s

Na história da igreja, diferentes termos já foram

técnicos usados em referência ã transmissão da tra­ dição oral; cf. Lc 1.2; ICo 15.3.) Não há absoluta

associados à Última Ceia. Alguns desses ter­

certeza se essa tradição foi “recebida” da igreja de

mos, como “partir do pão” (At 2.42,46; 20.7,11),

Antioquia (At 11.26), em meados da década de 40,

“eucaristia” (Mt 26.27; Mc 14.23; Lc 22.17,19;

ou da igreja de Damasco (At 9.19; G1 1.17), em

ICo 11.24), “ mesa do Senhor” (ICo 10.21), “comu­

meados da década de 30. Os relatos dos Evange­

nhão” (ICo 10.16) e “ceia do Senhor” (ICo 11.20),

lhos datam mais provavelmente de 65 a 90 a.C.

Outros estão ausentes, como

Os quatro relatos sobre a Última Ceia enqua-

“ missa” (do final latino do rito romano: Ite, missa

dram-se em dois grupos distintos, representando

encontram-se no

nt.

est — “Vai, que estás despedido”) e “Última Ceia”. No

NT,

há várias referências e alusões à Últi­

duas versões específicas da tradição. São eles: Ma­ teus 26.26-29/Marcos 14.22-25 e Lucas 22.15-20/

ma Ceia (ICo 10.1-22; 11.20-22; Lc 24.30; At 27.35;

ICorintios 11.23-26. As duas versões podem ser ca­

Mc 6.41; 8.6; Jo 6.25-59; 19.34; At 2.42,46;

racterizadas da seguinte maneira:

20.7,11), porém as mais importantes estão nestes

0 relato de Lucas é o mais diferente dos qua­

quatro relatos: Mateus 26.26-29; Marcos 14.22-25;

tro. É o único que menciona o cálice antes do pão

Lucas 22.15-20; ICorintios 11.23-26, sendo este

(Lc 22.17) e traz a informação a respeito do reino

último

futuro (v.

D

relato mais antigo.

1. A tradição da igreja primitiva e os relatos dos Evangelhos 2. Antecedentes históricos

REINO DE D eus )

no início da ceia (Lc 22.16),

não no fim, como nos demais relatos. Há também um problema textual no relato lucano, uma vez que alguns manuscritos importantes, sobretudo o

3. A Última Ceia no contexto da Páscoa

Códice de Beza e vários antigos manuscritos lati­

4. As quatro declarações da Última Ceia

nos, omitem Lucas 22.19b,20: “dado em favor de

5. A celebração da ceia

vós; fazei isto em memória de mim. Da mesma forma, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo;

1. A tradição da igreja p rim itiva e os relatos

Este cálice é a nova aUança em meu sangue, der­

dos Evangelhos

ramado em favor de vós”. São dois os argumentos

Na Primeira Carta aos Coríntios, que Paulo escre­

mais importantes a favor dessa versão mais curta

veu por volta de meados da década de 50, no sécu­

da passagem. 1) A natureza insólita da variante.

lo

ele faz menção de uma tradição que recebeu

É, sem dúvida alguma, a variante de mais difícil

do Senhor. Com isso, quer dizer que, em última

leitura, já que seria improvável que um escriba de­

anáhse, a tradição da Última Ceia tem origem em

sejasse omitir justamente o final mais tradicional.

I,

Jesus. No entanto, tendo em vista o uso que ele faz

2) É uma variante mais curta, o que, segundo os

dos verbos “ recebi” e “entreguei”, fica claro que

princípios crítico-textuais, geralmente seria a ver­

está se referindo a uma tradição que lhe foi ensina­

são preferida. Isso se aplica até mesmo no caso de

da pela igreja. (“Recebi” e “entreguei” eram termos

uma não interpolação ocidental (i.e., uma versão

1IVI/-V \ _ L I« . UVMtVVJCLnUJ

não encontrada na famflia ocidental de manuscri­

cretizou (Mt 26.21-25,36,56; Mc 14.18-21,32-42;

tos), e variantes mais breves, como essa, são con­

Lc 22.21-23,39-53).

trárias à tendência da tradição copista ocidental.

2 . 1 0 problema de Marcos 14.12. Nesse versí­

Não obstante, as evidências contídas nos manus­

culo, encontramos uma dificuldade em relação à

critos a favor da inclusão de Lucas 22.19b,20 são

data da Última Ceia. Marcos declara: “ No primei­

tão convincentes que não podem simplesmente

ro dia da Festa dos Pães sem Fermento, quando

ser desprezadas, e pareceria que em algum ponto

sacrificavam o cordeiro pascal, seus discípulos

da tradição um escriba tenha se confundido com

lhe disseram; Onde queres que façamos os pre­

a seqüência cálice-pão-cálice de Lucas e tenha as­

parativos para comeres a refeição da Páscoa?” A

sim omitido a segunda menção do cálice.

Páscoa, que ocorria no primeiro dia da Festa dos Pães sem Fermento, era comemorada no dia 15 de

M a te u s/M a rc o s

____

nisã. O sacrifício do cordeiro pascal, entretanto,

L u c a s/ lC o rín tio s

ocorria no dia 14, quando se dava a busca ritual “abençoando-o” [o pão]

___ “tendo dado graças” [pão]

“Tomai”

___ [Ausência de “Tomai”]

“isto é 0 meu corpo”

___ “Isto é o meu corpo + dado [...] vós”

por fermento. O mais provável é que Marcos não esteja fazendo uso de terminologia técnica aqui. Na compreensão mais popular, essa distinção téc­ nica se perdeu, porque o começo da Festa dos Pães sem Fermento se dava no dia anterior, no qual ocorriam as preparações, como a matança do cordeiro pascal e a busca por fermento na

[Ausência de “fazei ___ “fazei isto em memória isto em memória de de mim” mim”]

casa. Marcos, na apresentação que faz no rela­ to, está agindo como algumas pessoas de nossos dias, quando dizem que comemoram o Natal na

“isto”

“Este cálice”

“rendeu graças” antes do cálice

[Ausência de “tendo dado graças” antes do cálice]

véspera, dia em que geralmente acontece a troca de presentes. De modo semelhante. Marcos 14.12

Referência a todos

0 cálice é bebido

é mais bem compreendido como uma referência inexata, que reflete uma visão popular do acon­ tecimento (cf.

J o s e fo ,

Gu jn, 5.3.1, sobre uma

referência semelhante ao dia 14 de nisã como o

Ausência de uma referência a todos

começo da Festa dos Pães sem Fermento).

2.2 A Última Ceia estava associada à refei­ ção da Páscoa? Fica claro nos quatro Evangelhos

___ [0 cálice é bebido]

que a crucificação de Jesus ocorreu numa sexta"meu sangue, o sangue da aliança”

“nova aliança em meu sangue”

“derramado em favor de muitos”

Lucas traz “derramado em favor de vós” [ausente de ICorintios]

feira (Mt 27.62; Mc 15.42; Lc 23.54; Jo 19.31,42). Isso, naturalmente, significa sexta-feira antes das seis horas da tarde, pois, na maneira de o judeu contar o tempo, esse horário marca o fim da sextafeira e o começo do sábado. A questão principal a respeito da data da Última Ceia exerce impacto

2. Antecedentes históricos

sobre o fato de ela estar ou não associada a uma

Várias questões históricas são suscitadas em

refeição pascal. Isso parece inquestionável, levan-

qualquer tentativa de compreender corretamen­

do-se em conta Mateus 26.17-19, Marcos 14.12-

te a Última Ceia. Os quatro relatos mostram que

16 e Lucas 22.7-15. Mas João 13.1,29, 18.28 e

a ceia foi celebrada “na noite em que foi traí­

19.31 dão a impressão de que o julgamento e a

do” (ICo 11.23). Isso é especificamente men­

crucificação ocorreram antes da Páscoa. Assim,

cionado na versão paulina da Última Ceia, mas

tomando João como ponto de partida, parece que

cada Evangelho também mostra que, na noite

a Última Ceia deve ter ocorrido ou no dia 14 de

da Última Ceia, Jesus anunciou sua traição e

nisã, ou antes. Inúmeras teorias tentam explicar

dirigiu-se ao Getsêmani, onde a traição se con­

0 fato. Alguma delas são:

1266

Ú ltim a C e ia : Evangelhos

1) Os Evangelhos Sinóticos estão corretos. A

que Mateus 26.26, Marcos 14.22 e Lucas 22.15-17

IJltimo Ceia era uma refeição pascal. 0 termo

situem a Última Ceia no período associado a uma

“Páscoa” em João 18.28 não se refere ao cordeiro

refeição pascal, ela não foi uma refeição pascal

pascal, mas às festas e aos sacrifícios posteriores

para eles. Isso fica especialmente claro em Lucas,

associados à Festa dos Pães sem Fermento.

visto que nenhuma de suas referências ao partir do

2) João está correto. Jesus não participou da re­

pão em Atos é associada à Páscoa judaica. Além

feição pascal costumeira com seus discípulos, mas

disso, Paulo parece separar o “cálice” em relação à

se adiantou a ela e a comeu antes, porque sabia

ceia em si (ICo 11.25). Assim, ainda que a Última

que seria morto por ocasião da Páscoa. João 18.28,

Ceia estivesse associada à refeição pascal e ainda

entretanto, refere-se à Páscoa propriamente dita.

que a

c e ia do

S enhor

estivesse associada na igreja

3) Tanto os Evangelhos Sinóticos quanto João

primitiva a uma refeição (a “festa de amor”), ja­

estão corretos, porque a Páscoa foi celebrada na­

mais foi entendida como idêntica a essas refeições. 2.3

quele ano em dois dias separados.

A Última Ceia associada com uma re­

Diversas objeções foram levantadas contra a

feição de Páscoa. Vários argumentos persuasivos

opinião de que a Última Ceia estava associada

favorecem a perspectiva segundo a qual a Última

a uma refeição pascal. Em primeiro lugar, não se

Ceia estava associada a uma refeição pascal. Al­

faz menção ao cordeiro pascal. Em segundo lu­

guns deles são:

gar, a palavra usada para “pão” no relato é artos,

1) A refeição da Páscoa tinha de ser consumi­

o termo comum para “ pão com fermento” , não

da dentro da cidade murada de Jerusalém, e a Úl­

sendo possível que fosse empregada para desig­

tima Ceia aconteceu dentro dos muros da cidade.

nar o pão asmo. Em terceiro lugar, não são men­

2) A noite da Páscoa tinha de ser passada den­

cionados os quatro cálices usados na celebração

tro da Grande Jerusalém, que incluía Jerusalém

judaica tradicional da Páscoa.

e os montes circunvizinhos em que ela estava

Essas objeções não são de grande monta, en­

situada. Naquela noite, diferentemente de outras

tretanto, pois os relatos da Última Ceia são resu­

noites, Jesus e os discípulos passaram todo o

mos do que de fato aconteceu, e seria de esperar

tempo no Getsêmani, dentro da Grande Jerusa­

que se concentrassem nos aspectos mais perti­

lém. não em Betânia.

nentes à celebração. Além disso, uma vez que

3) Jesus e os discípulos reclinaram-se enquan­

a igreja primitiva continuava a celebrar a Última

to comiam (Mc 14.18), Era costumeiro sentar-se

Ceia separadamente em relação à festa judaica

nas refeições comuns e reclinar-se na Páscoa.

anual da Páscoa, aqueles aspectos da Páscoa com

4) As pessoas em Israel geralmente faziam duas

pouca ou nenhuma importância para a Última

refeições diárias. A primeira era um desjejum, por

Ceia logo caíram em desuso. Quanto à afirmação

volta das dez ou onze horas, e a segunda era a

de que artos não poderia ser usado para designar

refeição principal, no final da tarde. A Última Ceia

0 pão asmo da Páscoa, essa informação simples­

aconteceu à noite (ICo 11.23; Mc 14.17), segundo

mente não confere. O termo geral para “pão” , seja

0 que a Lei exigia no caso da Páscoa (Êx 12.8).

0 grego artos, seja o hebraico lehem, foi sempre

5) A Última Ceia foi encerrada com um hino

na Mishná e nos targumim

(Mt 26.30; Mc 14.26), e era hábito no fim da Pás­

em referência ao pão consagrado, que se tratava

coa entoar a última parte dos salmos de Hallel

de um pão asmo. Outras objeções alegam que o

(Sl 115— 118).

usado no

a t,

na

lxx,

julgamento de Jesus (v.

Jesus, ju lg a m e n to d e )

6) A interpretação dos elementos fazia parte,

po­

costumeiramente, do ritual da Páscoa (Êx 12.26,27).

der ter ocorrido no dia da Páscoa. Ainda carece de esclarecimento a questão so­

7) Era também comum na Páscoa dar algum

bre 0 fato de a Última Ceia ter sido uma refeição

dinheiro aos pobres, prática que explicaria o fato

pascal. A Última Ceia não foi uma refeição pascal.

de Judas ter deixado a reunião (Jo 13.29).

Não era celebrada anualmente, e encerra apenas

Nenhum desses argumentos é decisivo iso­

dois elementos — o pão e o vinho. Não estão pre­

ladamente, mas em seu peso total são bastante

sentes 0 cordeiro pascal propriamente dito, nem

persuasivos em demonstrar que a Última Ceia

os outros elementos da refeição da Páscoa. Ainda

estava de fato associada a uma refeição pascal.

1267

Os argumentos ainda recebem mais apoio do fato

6)

Por último, havia quatro cálices de vinho,

de Paulo chamar Jesus de “ Cristo, nosso cordei­

numa mistura com três porções de água para

ro da Páscoa” (ICo 5.7), e de se referir ao “cálice

uma de vinho, que lembrava as promessas de

da bênção” (ICo 10.16), nome dado ao terceiro

Êxodo 6.6,7. O terceiro cálice da bênção era

cálice da refeição pascal. A hipótese segundo a

provavelmente o que Jesus usou na Última Ceia

qual a Última Ceia era um qiddúsh ou outra re­

(Lc 22.20; ICo 10.16; 11.25). 0 quarto cálice era

feição religiosa realizada na véspera do sábado e

seguido de uma bênção e de um cântico.

incluía uma bênção sobre o pão e o cálice é impro­ vável, dadas as inúmeras associações da Última

3.2

Os paralelos da Páscoa. Durante a refei­

ção da Páscoa, alguém, geralmente o filho mais

Ceia com a celebração da Páscoa. Na realidade, os

novo, era designado para fazer a pergunta; “Por

materiais tradicionais que nos informam sobre o

que esta noite é diferente das outras noites?”

qiddúsh são pós-cristãos, e o qiddúsh jamais era ce­

Nesse momento, o anfitrião recontaria a histó­

lebrado 24 horas antes do sábado, mas bem cedo,

ria da libertação de Israel em relação ao Egito e

na véspera do sábado. Existe até mesmo dúvida

o significado dos vários elementos da refeição.

se o qiddúsh era uma refeição ou apenas uma bên­

Como anfitrião da Última Ceia, Jesus teria sido

ção pronunciada numa refeição. No que se refe­

o responsável por essa preleção. Mais tarde, os

re à datação joanina da Páscoa, deve se ressaltar

paralelos entre a Páscoa e a Última Ceia que Jesus

que isso se encaixa muito bem com suas ênfases

estava estabelecendo ficariam bastante evidentes.

teológicas, visto que João procura estabelecer um vínculo estreito entre a morte de Jesus e a Páscoa

A Páscoa

A Última Ceia

(cf. Jo 1.29,35; 19.36; Êx 12.46; Nm 9.12). 3. A Última Ceia no contexto da Páscoa

Deus lembra-se

Uma nova aliança é

de sua aliança

decretada

Se de fato a Última Ceia ocorreu em uma refeição pascal, como se tem defendido, qualquer inter­

Escravidão no

[Escravidão ao

pretação correta deve buscar compreendê-la à luz

Egito

pecado?]

repleto de simbolismos e com inúmeras alusões à

Libertação do

Perdão de pecados

história da redenção.

Egito

(Mt 26.28)

Sangue do cor­

Sangue de Cristo

desse contexto. A Páscoa era um ritual intricado,

3.1 Os elementos da Páscoa. A refeição consistía principalmente em seis elementos. 1) O mais significativo era o cordeiro pascal,

deiro pascal

(nossa Páscoa,

que tinha de ser assado sobre brasas. Todo o cor­

ICo 5.7; 0 Cordeiro

deiro tinha de ser comido na mesma noite. Nada

de Deus, Jo 1.29,35)

podia ser guardado para depois. 0 cordeiro, na­ turalmente, lembrava os participantes da primei­

Interpretação

Interpretação dos

ra Páscoa, na qual o anjo da morte foi impedido

dos elementos

elementos

Chamado a

Chamado a uma

uma celebração

contínua celebração

de descer sobre os primogênitos de Israel pelo fato de estarem protegidos pelo sangue do cordeiro. 2) 0 pão asmo lembrava a rapidez com que Deus os libertara. Sua salvação fora tão rápida

contínua

que 0 povo de Israel não teve tempo de assar pão. 3) A bacia de água salgada lembrava as lágrimas vertidas no cativeiro e a travessia do mar Vermelho. 4) As ervas amargas recordavam a amargura da escravidão.

4. As quatro declarações da Última Ceia Embora alguns estudiosos sustentem que a fór­ mula paulina seja a mais original, em geral a

5) Um purê de frutas chamado charosheth

maioria deles conclui que a forma mais antiga é

lembrava a argila que eles usavam para fazer tijo­

a encontrada na versão marcana. Entre as razões

los durante o cativeiro no Egito.

mais importantes estão; 1) o fato de que o relato

1268

Ú lT!m a C e!a : Evangelhos

marcano contém mais aramaísmos que o relato

por objetivo dar a Israel a possibilidade de se

paulino (e.g., “ tomou o pão e, abençoando-o,

lembrar “ do dia da tua saída da terra do Egito”

partiu-o”); 2) o fato de que é mais fácil entender a

(Dt 16.3). A morte vicária de Jesus e a nova alian­

versão paulino-lucana como originada da fórmu­

ça inaugurada por ele deviam ser lembradas da

la marcana do que mesmo o contrário. Pareceria

mesma maneira. 0 que exatamente subjaz a essa lembrança

que a fórmula original continha quatro elemen­

é discutível. J. Jeremias era de opinião de que

tos, “ palavras” ou declarações. 4.1 “Isto é o meu corpo". O acréscimo de

a lembrança significava a petição por parte dos

“ [que é] dado em favor de [por] vós” em Lucas

discípulos de que Deus se lembrasse de Jesus e

e ICorintios pode ser um comentário interpreta­

viesse salvá-lo. A Última Ceia, portanto, não se

tivo para ajudar a explicar o significado do pão

concentra no fato de a humanidade ser media­

para o crente. No entanto, ainda que não sejam

da por Jesus diante de Deus, e sim na interces­

as próprias palavras proferidas por Jesus, esse

são dos seguidores de Jesus diante de Deus em

comentário sem dúvida é subentendido e torna

nome de Jesus. Outra perspectiva compreende

claro 0 que estava implícito nas palavras de Je­

essa lembrança como um memorial em que o

sus. É difícil crer que os discípulos não interpreta­

crente se lembra da morte de Jesus e nela reflete.

ram 0 “é” metaforicamente. Se lhes perguntassem

Um terceiro modo de entender esse elemento da

“ Onde está o corpo de Jesus?” , eles apontariam

ceia é interpretá-lo com o significado de “em pro­

para Jesus, não para o pão. 0 uso freqüente que

clamação de mim”. Com a Última Ceia, a igreja

ele fazia da linguagem metafórica teria fornecido

proclama a morte de Jesus. Essa teoria encontra

o contexto para interpretar o “é” de maneira não

apoio em ICorintios 11.26. A tendência nesse

literal. A interpretação metafórica do “é ” apoia-se

caso é considerar que o propósito da Última Ceia

no fato de eles ainda serem chamados “pão” e

é de natureza evangelística. A Última Ceia, entre­

“cálice” (ICo n .25-28), referência que seria es­

tanto, destina-se, acima de qualquer outra coisa,

tranha, se os elementos tivessem sido submetidos

à igreja. Talvez a melhor interpretação dessa or­

a uma transubstanciação.

dem seria compreendê-la como a determinação

Na primeira declaração, Jesus mostra que veio

de que continuamente se recapitule ou se reconte

para dar seu corpo — ele mesmo em pessoa — a fa­

a Paixão e a vinda de Jesus Cristo, exatamente

vor deles (cf. Fp 1.20; Rm 12.1; ICo 9.27). Mais tar­

como a refeição da Páscoa representava os acon­

de, a igreja compreenderia mais plenamente o que

tecimentos do Êxodo (Êx 12.1-20). 4.3

isso significava e perceberia que o pão representa a encarnação: quando o “Verbo [que] se fez carne”

“Isto é o meu sangue, o sangue da alian­

ça derramado em favor de muitos". No terceiro

carregou nossos pecados em seu corpo (IPe 2.24) a

cálice da refeição da Páscoa, após a bênção tra­

fim de conquistar a redenção do mundo.

dicional “ Bendito sejas tu. Senhor nosso Deus,

4.2 "... fazei isto em memória de mim”. A

Rei do mundo, que criaste o fruto da vide” , ou

autenticidade dessas palavras tem sido negada,

em lugar dela, Jesus disse: “Isto é o meu sangue,

acima de tudo pelo fato de não constarem em

0 sangue da aliança derramado em favor de mui­

Marcos e em Mateus. No entanto, se Jesus via

tos”. As imagens relembram Êxodo 24.8, em que

sua morte como o selo de uma nova aliança, no

Moisés sela a aliança divina derramando metade

contexto da repetição contínua da Páscoa, teria

do “ sangue da aliança” sobre o altar e aspergindo

sido perfeitamente natural para ele afirmar que

a outra metade sobre o povo. Entende-se no Tar­

essa nova e mais significativa libertação do povo

gum do psendo-Jônatas e no Targum de Ônquelos

de Deus por seu sangue deve ser da mesma forma

que 0 sangue da aliança de Êxodo 24.8 foi dado

continuamente lembrada. Além do mais, pode se

para “expiar” os pecados do povo, sendo, por­

entender que a prática da igreja primitiva de ce­

tanto, de natureza reconciUatória. De modo se­

lebrar a ceia do Senhor regularmente, não apenas

melhante, o acréscimo feito em Mateus — “para

anualmente, como no caso da Páscoa, deva estar

perdão dos pecados” (Mt 26.28) — deixa explíci­

relacionada ao fato de Jesus ter dito algo como:

to o que já está implícito na expressão “ sangue da

“Fazei isso em minha lembrança”. A Páscoa tinha

aliança” (cf. Hb 9.20-22; 10.26-29).

1 269

0 texto de Jeremias 31.31-34, com sua refe­

o que imaginassem ser sangue de verdade. O fato

rência a uma “nova” aliança, embora não men­

de não haver a menor hesitação ou reserva men­

cionado diretamente, é também aludido nessa

cionada em nenhum dos relatos quanto a beber

frase. À semelhança da comunidade de Qumran,

o cálice demonstra que eles interpretaram as pa­

que falava de uma “nova aliança” (CD 5.19; 8.21;

lavras de Jesus metaforicamente. 0 cálice — ou

19.33,34; 20.1,2; IQpHab 2.1-4; lQ28b 3.25,26;

seja, o conteúdo do cálice — simboliza a morte

5.21,22; 1Q34 frag. 3 2.5,6), Jesus enxergava que

de Jesus, seu sangue derramado, vertido como

sua missão havia inaugurado uma nova aliança,

sacrifício que sela uma ahança.

que seria selada por sua morte sacrificial. Ainda

4.4

até [...] no reino de Deus". Assim

que Jesus não tenha usado expressamente o adje­

como a celebração da Páscoa implicava uma ex­

tivo “nova” , ele está implícito. Nisso lembramos

pectativa e um anseio pelo dia final, em que Isra­

Jeremias 31.34, que fala do perdão dos pecados

el participaria do banquete messiânico (Is 25.6-9;

como consequência de uma nova aliança. A cen-

53.12; cf. Is 55.1,2), os quatro relatos da Úldma

tralidade do perdão nessa nova aliança é também

Ceia contêm uma declaração a respeito do futuro.

apoiada pelo acréscimo da expressão “derrama­

Embora a redação de Lucas contenha variantes

do em favor de muitos” , encontrada nos relatos

e seja diferente das demais pelo fato de situar

de Marcos e de Mateus. (A expressão “em favor

a expressão antes do pão, os Sinóticos dão um

de vós” de Lucas, em Lc 22.20, é provavelmente

testemunho unificado das palavras de Jesus: “Di-

uma mudança litúrgica introduzida para equiU-

go-vos que desde agora não mais beberei deste

brar o “em favor de vós” de Lc 22.19.) Isso faz

fruto da videira até aquele dia em que beberei o

lembrar a autoentrega expiatória e sacrificial do

vinho novo convosco, no reino de meu Pai”. A

Servo Sofredor de Isaías 53.12, que carrega o pe­

declaração paulina acerca do futuro não proce­

cado de muitos (v. Servo

Javé). Não seria legí­

de dos lábios de Jesus, mas é um comentário do

timo interpretar "muitos” como algo que denote

próprio apóstolo, no qual ele afirma que, quando

uma expiação limitada, pois a expressão aqui se

a igreja celebra a ceia do senhor, ela proclama

de

refere a “ transgressores”; ou seja, diz respeito a

“a morte do Senhor, até que ele venha”. Nos Si­

todos, como claramente mostra o paralelismo si-

nóticos, essa declaração aponta triunfantemente

nonímico de Isaías 53.12b,c.

para o banquete messiânico futuro, no qual Jesus

Essa declaração mostra que Jesus, ao referir-

comerá uma vez mais com os discípulos.

se a seu “ sangue derramado” , entendia que sua

Em outras passagens, vê-se que Jesus em

morte era sacrificial (Lv 17.11-14), sendo também

várias ocasiões se referiu à participação jubilo­

0 selo de uma nova aliança. É difícil interpretar

sa no reino consumado como uma participação

essa declaração fora do contexto de Marcos 10.45,

no banquete messiânico (Mt 8.11 par. Lc 13.29;

ICorintios 15.3, 2Coríntios 5.21 e outras passa­

Mt 5.6 par. Lc 6.21; Lc 12.35-38; Mc 7.24-30; v.

gens em que Jesus dá sua vida — derrama sangue

c o m u n h Ao

— numa morte vicária pela humanidade pecami­

em que 5 mil e 4 mil são alimentados fossem

nosa. Essa declaração, acrescida à primeira, vem

compreendidos pelos Evangelistas como par­

mostrar a natureza voluntária da autoentrega de

ticipações prolépticas da Última Ceia e do ban­

à

m esa) .

Talvez também os episódios

Jesus, mas acrescenta a informação de que essa

quete escatológico (Mt 14.19 par. Mc 6.41 e Lc

autoentrega implica uma morte sacrificial que es­

9.16 [Jo 6.11]; Mt 15.36 par. Mc 8.6). Lucas na

tabelece uma nova aliança. Parece também claro

realidade intensifica a alusão a isso, separando

que a frase “isto é o meu sangue” não teria sido

a referência aos peixes (Lc 9.16). De acordo com

interpretada literalmente por nenhum dos dis­

a tradição judaica na Mekilta de Êxodo 12.42, a

cípulos, tendo em vista a proibição veterotesta-

futura redenção de Israel viria na noite da Páscoa.

mentária de ingerir sangue (cf. Lv 3.17; 7.26,27;

Por conseguinte, a celebração da Páscoa revisita-

17.14 etc.), porque, basta lembrar a dificuldade

va o mais importante acontecimento redentivo do

que Pedro encontrou em Atos 10.6-16 diante da

AT

carne não kosher, e dificilmente se concluirá que

da era messiânica. De modo semelhante, Jesus,

os discípulos não teriam nenhum pavor de beber

na Última Ceia, chama a atenção dos discípulos

r 270

e antevia a expectativa jubilante da chegada

Ú ltim a C e ia : Evangelhos

para o acontecimento redentivo mais importante

rejeita uma visão sacramental não refinada da

do NT, que logo será passado, e para a chegada do

ceia do Senhor. Como acontece com a circunci­

reino em glória, quando ele voltar (ICo 11.26) e

são, a ceia do Senhor e o batismo têm valor quan­

participar do banquete messiânico com seus se­

do acompanhados por fé e obediência (Rm 2.25).

guidores (Mt 26.29; Mc 14.25; Lc 22.16).

Há também uma advertência específica a respeito

Sem dúvida, Jesus não vê sua Paixão como uma tragédia ou um equívoco, mas o ato culmi­

do perigo de participar da ceia do Senhor “de ma­ neira indigna” (ICo 11.27-32).

nante de seu ministério, no qual ele derrama seu sangue como sacrifício definitivo, feito de uma

S. A celebração da ceia

vez por todas, assugurando assim a redenção "em

Em Atos, encontramos diversas referências ao

favor de muitos” e garantindo uma consumação

“ partir do pão” (At 2.42,46; 20.7,11; Lc 24.30).

gloriosa no futuro. Paulo, em sua declaração de

Embora seja discutível se isso diz respeito a uma

caráter futuro, refere-se mais especificamente ao

celebração oriunda da Última Ceia, está claro que

acontecimento que produzirá essa consumação

era assim que o Evangelista a entendia. Isso fica

— a parusia. Assim, a Última Ceia, embora não

evidente pelo uso que Lucas faz da expressão

seja a concretização do banquete messiânico, é

“ partiu-o [o pão]” (Lc 22.19). É ainda apoiado

uma experiência proléptica, uma espécie de ante­

pelo fato de que em Atos 20.7 encontramos o par­

gozo, ou primícias, desse banquete,

tir do pão acontecendo no contexto da adoração

4.5

Acréscimos posteriores à Última Ceia. da igreja no primeiro dia da semana. Assim, para

Nos quatro relatos da Última Ceia, encontramos

Lucas, as referências ao “partir do pão” são com­

vários comentários litúrgicos e interpretativos. 0

preendidas como o cumprimento da ordem de Je­

que não é de surpreender. Embora seja impossí­

sus “ Fazei isto em memória de mim” , encontrada

vel chegarmos a uma certeza total, as expressões

em seu Evangelho. Interpretá-las como refeições

seguintes podem ser acréscimos litúrgicos: “To­

comuns, ou mesmo como festas de amor, contra­

mai” (Mt 26.26; Mc 14.22); “comei” (Mt 26.26);

diz a prática normal de Lucas de mostrar como a

“ Bebei dele todos” (Mt 26.27); “e todos beberam”

igreja em Atos punha em prática os ensinamen­

(Mc 14.23); “Do mesmo modo, depois de comer,

tos de Jesus. Talvez o partir do pão normalmen­

tomou o cálice, dizendo” (ICo 11.25); “cálice”

te ocorresse no contexto de uma festa de amor,

(ICo 11.25; Lc 22.20); "Porque todas as vezes

mas a semelhança da redação com a Última Ceia

que comerdes deste pão e beberdes do cálice pro­

(“partiu-o [o pão]”) mostra que o mais impor­

clamais a morte do Senhor, até que ele venha”

tante para Lucas é a celebração da ceia. A única

(ICo 11.26). Alguns comentários interpretativos

dificuldade com essa compreensão é Atos 27.35,

que podem ter sido acrescentados ao relato são:

mas não é séria o bastante para superar aqueles

“em favor de vós” (Lc 22.19; ICo 11.24); “dado”

fatos já citados.

(Lc 22.19); “fazei isto em memória de mim”

Na igreja primitiva, a celebração da ceia foi

(Lc 22.19; ICo 11.24; v. 4.2 acima); "nova [alian­

quase imediatamente separada da Páscoa, pois

ça]” (Lc 22.20; ICo 11.25); “para perdão dos

o “ partir do pão” era praticado com bastante

pecados” (Mt 26.28). Em todos esses casos, a in­

frequência, não apenas uma vez por ano. Há

tenção de Jesus não é modificada, mas os acrésci­

indícios de que fosse celebrada semanalmente

mos ou tornam explícito o que talvez só estivesse

(At 20.7,11; ICo 16.2) ou mesmo diariamente

implícito, ou tornam o formato do sacramento

(At 2.46,47). Não há no

mais útil liturgicamente.

prescrição específica sobre a regularidade com

Vários outros comentários interpretativos são encontrados no

nt

a respeito da Última Ceia. Em

nt,

entretanto, nenhuma

que deva ser celebrada. Na primeira fase da igre­ ja, a ceia estava vinculada a uma “ festa de amor”

ICorintios 10.3,4, Paulo faz uma advertência con­

(Jd 12; At 2.42,46; ICo 11.20-22,33,34). Pode ser

tra o perigo de supor que a mera participação na

que Atos 2.42 deva ser interpretado assim: “Eles

ceia do Senhor e no

cristão (ICo 10.1,2)

perseveravam no ensino dos apóstolos e na co­

garanta ao participante uma posição favorável

munhão [na festa de amor], no partir do pão [na

com Deus (v, tb. Lc 13.26). Paulo claramente

ceia] e nas orações”. De modo semelhante. Atos

b a tis m o

1271

U ltima C e ia : Evangelhos

2.46 pode ser lido assim: “... e partindo o pão [a ceia] em casa, comiam [a festa de amor] com ale­

b ib l io g r a f ia .

gria e simplicidade de coração”. Essa prática bro­

N ashville: A bingdon, 1967. ■ Barth, M. Redis­

tara do fato de que a Última Ceia estava associada

covering the Lord’s Supper. Atlanta: John Knox,

Barclay,

The Lord’s Supper.

W.

a uma refeição (Lc 22.20; ICo 1L25). Entretanto,

1988. • Bornkamm, G. Lord’s Supper and church in

logo passou a ocorrer separadamente, provavel­

Paul. In: Early Christian experience. London: scm,

mente em virtude de problemas como os que

1969. p. 123-60. • Green, J. B. The death o f Jesus.

Paulo menciona em ICorintios 11.20-22,33,34 —

Tübingen: J.

em que o apóstolo se refere a ela como a ceia do

Eucharistic words o f Jesus. London: scm, 1966.

C.

B. Mohr, 1988. ■ Jeremias, J. The

Senhor [kyriakos deipnom, ICo 11.20). Em mea­

■ L eon-D ufour, X. Sharing the Eucharistic bread.

dos do século

N ew York: Paulist, 1987. ■ K lappert, B. Lord’s

II,

essa separação já era completa.

A ceia do Senhor contém um foco bidimensio­ nal. Ela relata a Paixão do

Supper. NiDNTT. [S.L: s.n., s.d.] v. 2. p. 520-38. •

e sua

L ietzmann, H. Mass and the Lord’s Supper Leiden:

morte sacrificial com que selou uma nova alian­

E. J. Brill, 1979. • M arshall, I. H. Last Supper and

ça para a humanidade. Não é possível celebrar a

Lord’s Supper Grand Rapids: Eerdmans, 1980. ■

F il h o do h o m e m

ceia do Senhor sem olhar para trás, para a cruz e

M arxsen, W. The Lord’s Supper as a Christological

para o sofrimento de Cristo, nossa Páscoa. Con­

problem. Philadelphia: Fortress, 1970. ■O gg , G.

sequentemente, há nessa celebração a presença

T h e chron ology of the Last Supper. In: N ineham ,

de certa dose de tristeza e de pesar. Mas há uma

D. E. et al., orgs. Historicity and chronology in the

dimensão que olha adiante e não permite que a

New Testament. London:

ceia do Senhor se torne mera relembrança mór­

Reumann, J. The Supper of the Lord. Philadelphia:

bida da Paixão de Cristo. Os crentes proclamam

Fortress, 1985. ■

“a morte do Senhor, até que ele venha”. Como

according to the New Testament. Philadelphia:

spck,

S c h w e iz e r ,

1965. p. 75-96. ■

E. The Lord’s Supper

a dimensão final da ceia vislumbra e aguarda

Fortress, 1967. •

com expectativa o banquete messiânico, a ceia

eschatology. N ew York: Oxford U niversity Press,

do Senhor não é simplesmente praticada: ela é

1981.

W a in w r ig h t ,

comemorada pela fé. Nessa celebração, a igreja

R. H.

crê, espera e canta Marana tha — “Vem, Senhor! ” (ICo 16.22; Ap 22.20) — e aguarda a consuma­

Ú l t im o A dAo .

Ver A d ã o

e

C r is t o .

ção, quando a fé ganhará forma concreta à mesa do Senhor. Ver também

UNIÃO c o m C r i s t o . c eia do

G. Eucharist and

Se n h o r; co m u n h ão à m e sa.

1272

Ver

b a t is m o i i .

S t e in

VERDADEIRO ISRAEL. V e r ISRAEL.

VÉU ( a u t o r id a d e ) .

Ver m u lh er es n.

VIDA APÓS A m o r t e .

VIDA ETERNA.

Ver

Ver JoÃo,

re ssu rre iç ã o .

Evangelh o d e.

G lo ssá r io As definições abaixo foram extraídas em grande par­

anônimo. (Do gr. a, “sem” , + onoma, “ nome” )

te do Pocket dictionary of biblical studies, de autoria I de Arthur G. Patzia e Anthony J. Petrotta (InterVar­

Literalmente, “ sem nome”. É empregado nos

sity, 2002; edição em português; Dicionário de estu­

autoria de um documento,

dos bíblicos. Ed. de bolso. IVadução Pedro Wazen de

estudos do

nt

para, de modo geral, se referir à

antinomiano. (Do gr. anti, “contra” ,

nomos,

Freitas. São Paulo; Vida, 2003. 165 p.),

“lei” ) Nos estudos do

a.E.c. Abreviatura de “antes da Era Comum”. For­

berava de todas as obrigações morais. Alguns

ma alternativa de “a.C.” e caracteristicamente

desses cristãos chegaram à conclusão de que

nt,

cristão primitivo para

quem a salvação pela fé em Jesus Cristo o li­

usada em contextos judaicos e judaico-cristãos. abominação assoladora. Expressão tirada da pro­

podiam pecar impunemente, antíteses. Nos estudos do

n t , os

seis contrapontos

fecia de Daniel (Dn 11.31;12.11), na qual o pro­

entre o ensino de Moisés e o de Jesus apre­

feta afirma que o templo será o lugar em que

sentados em Mateus 5.21-48. Nessa passagem,

algo abominável e revoltante acontecerá, adocianismo. Nos estudos do

nt,

cada antítese é introduzida pela fórmula “Ou­

ideia de que o

homem Jesus foi “adotado” por Deus como Filho, em vez de o Filho preexistir com o Pai. aforismo. (Do gr. aphorismos.) Definição ou de­ claração curta, dito lacônico ou expressão su­

vistes 0 que foi dito aos antigos...” e seguida da resposta antitética “ Eu, porém, vos digo”, antítipo. Cumprimento ou contrapartida de um tipo. Ver TIPOLOGIA. apocalipse. (Do gr. apokalypsis.) Literalmente,

cinta de uma verdade; máxima.ágrafo. (Do gr.

“desvelamento” ou “revelação” (Ap 1.1). Gê­

agraphon; pl., agrapha.) Declaração não escri­

nero literário em que se revelam “segredos”

ta, atribuída a Jesus, mas não encontrada nos alegoria. Gênero Uterário em que uma história é contada com base naquilo que ela significa e não em seu sentido hteral.

social ou um sistema de crenças que produz literatura apocalíptica. Ver a p o c a l ip s e . apocalíptico. Adjetivo empregado com mais de

amanuense. Escriba ou secretário contratado para escrever (em geral cartas, nos estudos do

sobre o mundo celeste ou o fim dos tempos, apocaliptismo. Em geral designa um movimento

Evangelhos canônicos,

um sentido; refere-se ao gênero literário apo­

nt)

calipse ou à perspectiva religiosa subjacente

algo previamente ditado ou esboçado (do lat.

ao gênero (e.g., escatologia apocalíptica). Ver

manu, “mão”). amoraim. Designação do mestre rabínico tanto na

APOCALIPSE.

apócrifo. Adjetivo às vezes usado em referência

Palestina quanto na Babilônia durante os sé­

aos Apócrifos, mas com frequência empregado

culos III a VI d.C. (o termo hebraico significa

também para designar texto ou dito de autoria

“ orador” ou “ intérprete”).

ou veracidade duvidosa.

G lossário

Apócrifos, os. (Do gr. apokryptõ, “esconder, ocul­

autógrafo. (Do gr. autograpkos, “escrito pela pró­

tar”.) Nome dado a uma coleção variável de

pria mão”.) Manuscrito ou original da obra

livros que, segundo se acreditava, continham

de um autor.

verdades “escondidas”. Com hgeiras varia­

Biblioteca de Nag Hammadi. Coletânea de docu­

ções, estão incluídos nos cânones das igre­

mentos, na maioria gnósticos (em forma de

jas Católica Romana e Ortodoxa. Ver

“livro” ou códice) com data a partir do século

livr o s

IV d.C. e descoberta por volta de 1945/1946,

DEUTEROCANÔNICOS.

apotegma. (Do gr. apophthegm, “ dizer aberta­

perto de Nag Hammadi, cidade do alto Egito,

mente 0 que pensa”.) Aquilo que é dito aber­

cânon. (Do gr. kanon, “vara de medir, padrão”.}

tamente. Palavra empregada para designar

Coletânea ou lista reconhecida de escritos re­

ditos proverbiais e sapienciais de Jesus que

ligiosos; nesse caso, de livros bíblicos.

foram transmitidos oralmente antes de ser

Cartas Gerais. Cartas não paulinas do Novo Tes­

registrados por escrito e incorporados aos

tamento que, segundo se acredita, foram es­

Evangelhos.

critas a toda a igreja (também denominadas Cartas Católicas): Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e

Aqedah. { ‘‘qêdâ significa “amarração” [de Isa-

3João e Judas.

que].) Termo rabínico que designa o relato e as interpretações do “sacrifício” de Isaque

Cartas Pastorais. Termo coletivo que compre­

por Abraão narrado em Gênesis 22. Nessa

ende 1 e 2Timóteo e Tito, cartas que foram

passagem, relata-se que Isaque foi amarrado

escritas para “pastores” e não igrejas e, em

e colocado sobre um altar,

termos gerais, tratam de questões pastorais,

aramaísmo. Influências da língua aramaica na

catálogo dos defeitos e das virtudes. Relação de

linguagem, na forma e no conteúdo de textos

defeitos e virtudes feita por um autor do

gregos (ou de outros idiomas),

(e.g., em G1 5.19-21), adotando um recurso

aretologia. Designa milagres, grandes feitos, po­

de instrução ética encontrado na filosofia

deres sobrenaturais, atos poderosos e virtu­ des de um deus ou de um “homem divino”

nt

estoica. catolicismo primitivo. Termo técnico que desig­ na uma etapa posterior da igreja primitiva

(do gr. aretê). Arísteas, Carta de. Documento que supostamen­

e se baseia na hipótese de que, a partir de

te relata as circunstâncias em torno da tradu­

uma comunidade carismática existente na era

ção do AT para o grego, a Septuaginta.

apostólica e à qual o Espírito Santo deu uma

asmoneus. Dinastia Asmoneia. Asmoneu é um

estrutura flexível, a igreja se desenvolveu em

adjetivo que se origina do sobrenome da fa­

uma comunidade bem formal ou “institucio­ nalizada” na era pós-apostólica.

mília sacerdotal e real macabeia que gover­ nou Israel entre os anos 60 do século ii a.C.

chreia. (PL, chreiai.) Termo técrúco utilizado na

até a captura de Jerusalém pelos romanos,

retórica grega antiga para designar expres­

em 63 a.C. Ver m a c a b e u s .

sões lacônicas ou breves dizeres (epigramas),

R evolta M a c a b e ia .

atestação múltipla, critério da. Critério de auten­

além de ações que são contadas sobre alguém

ticidade em que declarações ou ações de Jesus

importante ou em sua honra e são úteis para a vida diária,

são consideradas autênticas caso declarações idênticas ou semelhantes sejam atestadas em

cínicos. Seguidores do movimento filosófico

fontes múltiplas além dos Evangelhos (e.g.,

fundado por Diógenes de Sinope (c. 400-325

no caso da Hipótese dos Quatro Documentos:

a.C.). O cinismo foi mais um modo de vida

Marcos, o,

m

, l) .

Ver a u t e n t ic id a d e ,

estudiosos do

nt

do que um sistema de princípios filosóficos,

critér io s d a .

autenticidade, critérios da. Os vários testes que

código da família. “Regra” ou “conjunto de re­

empregam para apurar a au­

gras” encontradas no

nt

e também em vários

tenticidade histórica das declarações de Jesus

textos da literatura grega que tratam das re­

nos Evangelhos. Ver

c o e r ê n c ia ,

da;

lações domésticas: marido e mulher, pais

d e s s e m e lh a n ç a ,

da;

m ú l t ip l a ,

e filhos, escravos e mestres (Ef 5.21—6.9;

c r it é r io

c r it é r io

a te sta ç ã o

Cl 3.18—4.1; IPe 2.18—3.7).

c r it é r io d a .

12 7 5

U 'lL lU M d M U

LtrU IU yiLU

U U

código doméstico. Ver

IM U V U

leb Ld lfieilLU

que de fato aconteceu”. O método histórico-

c ó d ig o d a f a m íl ia .

coerência, critério da. Critério de autenticida­

-crítico se refere aos princípios e ferramentas

de em que um dito de Jesus é considerado

da crítica histórica empregados na reconstru­

autêntico caso seja coerente ou condiga na

ção do contexto histórico e do senüdo origi­

forma e no conteúdo com outro material que,

nal de um texto,

mediante outros critérios, como desseme­

crítica literária. Abordagem do texto bíblico que

lhança ou atestação múltipla, seja conside­

reconhece sua natureza literária e procura

rado autêntico. Ver a u t e n t ic id a d e ,

interpretá-lo de acordo com os métodos da

c ritér io s d a .

credo. (Do lat. credo, “creio”.) Declaração formal ou confessional de fé, geralmente baseada na

análise literária, crítica retórica. Abordagem do texto bíblico que

vida cultual/reUgiosa de comunidades de fé.

se concentra na maneira em que a língua é

crítica. Anáhse fundamentada e racional sobre

usada, especialmente em conformidade com

a origem, natureza, história e significado de

a teoria/prática retórica da Antiguidade, com

obras escritas, como os hvros do

nt.

O termo

o

propósito de persuadir o público-alvo.

em si não implica a ideia de encontrar defei­

crítica sociocientífica. Aplicação de teorias so­

tos. Existem várias formas de crítica. Ver c r ít i ­

ciológicas, antropológicas, políticas e so-

DA f o r m a ; c r it ic a l it e r A r i a ; c r ít ic a d a r e d a ç ã o ;

cioculturais a textos bíblicos, com o fim de

ca

compreender as comunidades em que eles sur­

c r ít ic a t e x t u a l ; c r ít ic a d a t r a d iç ã o .

crítica da forma. (lYaduzido do alemão Formges-

giram (nesse caso, o cristianismo primitivo),

chichte ou Cattungsgeschichte.) Abordagem

crítica textual. Disciplina acadêmica de estabe­

interpretativa que procura descobrir a tradi­

lecer determinado texto (nesse caso, o texto

ção oral incrustada nos textos escritos que

do

temos hoje à disposição e assim classificá-los

do material original. Os críticos textuais do n t

nt)

o

mais próximo possível ou provável

em certas categorias ou “formas” e, dessa

chegam a suas conclusões mediante o estudo

maneira, descobrir a história de seu desen­

de manuscritos antigos, versões e traduções,

volvimento dentro da igreja primitiva,

culto. (Do lat. cnltus, “reverência” ) Termo em­

crítica da redação. Abordagem interpretativa (nos estudos do

nt,

pregado para designar a adoração pública em

basicamente relativa aos

geral, em particular as festas, rituais, sacrifí­

Evangelhos) que procura mostrar como au­

cios e outras práticas no serviço a Deus ou

tores/editores selecionaram as fontes, deram-

aos deuses.

-Ihes forma e as estruturaram na composição

Cunrã. Ver

de suas obras e na comunicação de suas

dessemelhança, critério da. Critério de auten­

perspectivas. [0 termo crítica da redação já

ticidade em que declarações de Jesus são

está consagrado em língua portuguesa e é

consideradas autênticas caso sejam “ desse­

empregado na falta de termo mais preciso,

melhantes” — isto é, diferentes de declara­

como seria, por exemplo, “crítica da edição”.]

ções ou crenças comuns à igreja primitiva ou

crítica da tradição. (Tíaduzido do alemão Tradi-

Q um ran.

ao judaísmo do segundo templo. Ver

tionsgeschichte ou Überlieferungsgeschichte.)

c id a d e ,

a u t e n t i­

CRrrÉRIO DA.

Abordagem textual que procura explicar as

deuterocanônicos, livros. Literalmente, “do se­

maneiras em que as várias tradições dentro

gundo cânon” ou “ do cânon secundário”. São

de um texto se desenvolveram durante o

os livros ou trechos de livros não incluídos

período de sua transmissão oral.

no cânon hebraico, mas encontrados no

crítica das fontes. Abordagem de textos (nos estudos do

nt,

at

grego e comumente denominados Apócrifos

especialmente relativa aos

(v.

A p ó c rifo s , o s )

. Em maior ou menor exten­

Evangelhos) que procura descobrir as fontes

são, esses hvros se encontram nos cânones

literárias de um documento,

escriturísticos das igrejas Católica Romana e

crítica histórica. Abordagem do texto bíblico que

Ortodoxa.

busca identificar as origens históricas de um

deuteropaulinas. Mais apropriadamente deve­

texto assim como (quando é o caso) “aquilo

ria ser "deutero”( “segundo’’)-Paulo. O termo

1 276

G lossário

é empregado em referências a epístolas atri­

escatologia. Termo de origem grega com o senti­

buídas explicitamente a Paulo, mas cuja

do de estudo ou crenças sobre o fim dos tem­

autoria é questionada em virtude de certos

pos (do gr. eschatos, "últimas [coisas]”),

fatores linguísticos, teológicos e históricos

escatologia consistente. Ideia, associada a Albert

(e.g., ITessalonicenses, Colossenses, Efésios,

Schweitzer, de que no pensamento escatoló­

1 e 2Timóteo e Tito).

gico de Jesus era iminente o fim desta era e

Diáspora. Substantivo coletivo que designa os

de que suas declarações têm de ser sistemati­

judeus residentes fora da terra de Israel em

camente interpretadas levando isso em conta ou de maneira condizente com isso.

lugares como Babilônia, Egito e Asia Menor. Originalmente, foram forçados a viver nesses

escatologia realizada (ou concretizada). Ideia

lugares por alguma nação que os conquis­

de que no ensino de Jesus o reino de Deus

tou, como aconteceu no Exílio Babilónico de

não é futuro, mas concretizado na pessoa e missão de Jesus,

585 a.C. diatribe. Forma de retórica caracterizada por

essênios. Uma das seitas dos judeus que (jun­

breves discursos éticos, perguntas e diálo­

to com os fariseus e saduceus, entre outras

gos retóricos e falas argumentativas, na qual

seitas) existiu na Palestina durante o período

0 autor ou orador debate com uma pessoa (interlocutor) imaginária com o objetivo de

d o NT.

Eusébio (c. 260-340). Bispo de Cesareia, comu­ mente denominado o “pai da história da igre­

instruir o público, discurso de despedida. Nos escritos bíblicos e

ja” , em razão de sua obra História eclesiástica.

extrabíblicos, fala (com frequência com a in­

Evangelhos Sinóticos. Os evangelhos de Mateus,

clusão de instruções e advertências) em que

Marcos e Lucas, os quais “enxergam da mes­ ma maneira” a vida de Jesus,

alguém à beira da morte se dirige a membros

exegese. (Do gr. exêgeomai, “extrair, levar para

da família, amigos ou discípulos, docetismo. Heresia cristã primitiva que surgiu no

fora”.) Interpretação de uma passagem com

século I e negava a humanidade plena de Je­

base nela mesma. Às vezes é contrastada com

sus e, em consequência disso, a realidade de

a imposição das próprias ideias do intérpre­

seus sofrimentos e morte.

te a uma passagem, o que recebe o nome de

E.c. Abreviatura de "Era Comum”. Forma alterna­ tiva de “ d.C.” e caracteristicamente usada em

“eisegese”. fariseus. Uma das principais seitas do judaís­ mo na época do

contextos judaicos e judaico-cristãos.

nt

.

Notabilizava-se por crer

ebionitas, ebionismo. Seita judaico-cristã cujo

que a Torá oral fora revelada no Sinai além

nome deriva de uma palavra hebraica que

da Torá escrita e por buscar a restauração de

significa “os pobres”, tendo sido mencionada

Israel, além de aplicar leis sacerdotais de pu­

pela primeira vez nos escritos de Ireneu, pai da

reza ritual à vida diária.

igreja do século ii. O perfil exato desse grupo é

Filo de Alexandria (c. 20 a.C-50 d.C.). Judeu

objeto de debate, mas destaca-se o fato de que

helenista que foi filósofo, político, exegeta e

se caracteriza por se prender à Lei, ao estilo de

contemporâneo de Jesus e Paulo e cujas inú­

vida judaico e a uma cristologia adocianista.

meras obras lançam luz sobre a maneira de

elemento litúrgico. Fragmento de hino, credo, oração, bênção, doxologia ou palavra de

pensar do judaísmo helenista. fonte Q. (A designação q deriva do alemão Quelle,

aprovação que era empregado na adoração

"fonte”.) Documento hipotético que consis­

cristã primitiva e agora pode ser detectado

te em uma coletânea das declarações de Je­

dentro dos escritos do

sus comuns a Mateus e a Lucas, mas não a

nt

.

emolduramento. Termo técnico que designa o recurso de envolver ou confinar um texto re-

Marcos. gênero. Tipo, espécie ou forma de literatura

petíndo ao final de uma passagem a expres­

(da palavra francesa que significa “estilo”).

são ou ideia inicial. Também conhecido como

Evangelho, carta e apocalipse são gêneros

inclusio.

neotestamentários.

1277

Ulcionário teológico ao

no vo

lestamento

harmonia (dos Evangelhos). Livro que organiza

são fontes importantes para entender o mun­

0 material paralelo dos Evangelhos Sinóticos

do histórico e religioso da Palestina durante o

(Mateus, Marcos, Lucas) e às vezes do Evan­

domínio romano,

gelho de João em colunas verticais, de modo

judaísmo helenista. Segmento do judaísmo que

que estudantes e estudiosos podem observar

sofreu influência mais profunda dos valores e

com facilidade as semelhanças e diferenças entre eles.

cuhura do helenismo. judaizantes. Grupo de cristãos judeus para quem

Hauptbriefe. (Do alemão Haupt, “cabeça” ou

todos os cristãos gentios deviam “viver como

“principal”, + Briefe, “cartas” ) Termo que

judeus” (G1 2.14), acolhendo os costumes

designa quatro cartas fundamentais de Paulo: Romanos, 1 e 2Corintlos e Gálatas.

judaicos. leitura por/técnica de espelhamento. Técnica

helenismo. Influências culturais de origem grega

de ler um texto buscando imagens reversas

(e.g., ideias, costumes, governo, arquitetu­

dos adversários do autor. Exemplo dessa

ra, língua, hteratura, arte) que Alexandre, o

ideia é que aquilo a que Paulo se opõe em

Grande (morto em 323 a.C.), e seus suces­

Corinto é o que seus adversários defendem,

sores disseminaram no mundo mediterrâneo,

e,

das teorias de interpretação,

a partir disso, é possível então pôr a desco­

berto 0 perfil de seus adversários,

hermenêutica. Teoria da interpretação ou estudo

lucano. Que diz respeito a Lucas ou a seus escritos,

herodianos. Partido judaico que favorecia a di­

macabeus. Revolta Macabeia. Os líderes (entre

nastia de,Herodes.

os quais o mais proeminente foi Judas Maca-

hipótese agostiniana. A opinião de Agostinho de

beu, “o martelo”) e a revolta judaica que em

que a atual ordem canônica dos Evangelhos

167-164 a.C. conduziram contra os suseranos

(Mateus, Marcos, Lucas e João) é a ordem cro­

selêucidas.

nológica em que eles foram de fato escritos.

manumissão. Ato de tornar alguém livre da escra­

Hipótese das Duas Fontes. Teoria que procura

vidão ou da servidão; alforria.marcano. Que

explicar a composição dos Evangelhos Sinó­

diz respeito a Marcos ou a seu Evangelho,

ticos apresentando a hipótese de que Mateus

mateusino. Que diz respeito a Mateus ou a seu

e Lucas empregaram materiais de duas fontes distintas: Marcos e o.

Evangelho. midrash. (Forma do verbo hebraico d‘^rash, “bus­

Hipótese das Quatro Fontes. Também conheci­

car, investigar” ) Forma específica de exposi­

da como Hipótese dos Quatro Documentos,

ção bíblica judaica ou gênero caracterizado

é a teoria de que os Evangelhos Sinóticos se

por essa forma.

baseiam em quatro fontes diversas: Marcos,

Mishná. Corpus de material judaico acerca da lei que adquiriu forma escrita por volta de 200

Q, L 0 M.

Hipótese de Griesbach. Teoria apresentada por

d.C. e se baseia na tradição rabínica de deba­

Johann Jakob Griesbach (1745-1812), segun­

te e interpretação de leis bíblicas,

do a qual Mateus, e não Marcos, foi o Evan­

mistério, religiões de. Nome dado a uma série

gelho mais antigo a ser escrito, tendo Marcos

de cultos religiosos de origem antiga. Designa

e Lucas utilizado Mateus para compor seus

também a tendência e as práticas sincretistas

Evangelhos.

(com iniciações secretas) que prevaleceram

Jesus histórico, o. Vida e ensinos de Jesus con­

no mundo mediterrâneo entre os séculos vni

forme estabelecidos por métodos histórico-criticos. Essa contínua empreitada moderna

a.C. e IV d.C. nomismo aliancístico. Termo cunhado por E.

é, com frequência, denominada a busca do

P. Sanders para designar sua maneira de en­

Jesus histórico,

tender a estrutura essencial do judaísmo do

joanino. Que diz respeito a João ou a seus escritos.

segundo templo: “ que o lugar de alguém

Josefo. Historiador judeu do século i (c. 37/38-

no plano de Deus é determinado com base

110 d.C.), cujas principais obras. Antiguida­

na aliança e que a aliança requer como res­

des dos judeus, Guerras dos judeus e Vida,

posta correta do homem a obediência aos

1278

G lossário

mandamentos, ao mesmo tempo que fornece

período intertestamentário. O período apro­

0 meio de expiar a transgressão” [Paul and

ximado da história judaica entre o Antigo e

Palestinian Judaism, p. 75). Isso contrasta

o Novo Testamento ou entre o período pós-

com a ideia mais tradicional (protestante) de

-exílico, que terminou por volta de 400 a.C., e

que os judeus consideravam ser a Lei o meio

o século I d.C. Atualmente, muitos estudiosos se referem a esse mesmo período geral pelo

de fazer por "merecer” a justiça, pais apostólicos. Conjunto de escritores ou es­

termo “judaísmo do segundo templo”.

critos cristãos do final do século i e início

Pésher. Palavra hebraica que significa “inter­

do II que não chegaram a ser reconhecidos

pretação”. Designa um estilo peculiar de

como canônicos, mas foram tidos em grande

comentário encontrado especialmente nos

estima pela igreja primitiva (e.g., IClemente,

manuscritos do mar Morto, em que um ver­

2Clemente, Epístola a Diogneto, Epístola de

sículo das Escrituras é interpretado com base

Inácio, Didaquê, O pastor, de Hermas).

na própria época e situação do intérprete

panteão. Conjunto de deuses de determinado povo.

(e.g., a comunidade de Qumran), os quais em

Papias. Pai da igreja primitiva (c. 70-160 d.C.)

geral são vistos como os últimos dias.

e bispo de Hierápolis, na Frigia, cuja obra

petrino. Que diz respeito a Pedro ou a seus

(que inclui comentários sobre a autoria dos Evangelhos)

está preservada

apenas

em

escritos. Plínio Jovem (c. 61/62-113 d.C.). Escritor roma­

fragmentos.

no e administrador da província romana da

paradosis. Palavra grega que significa “aquilo

Bitínia durante o governo do imperador Tra-

que foi passado adiante”. Desse modo, é ter­

jano (98-117 d.C.). pré-paulino. Material (e.g., credos, hinos) ou

mo técnico que designa a tradição, parênese. Termo técnico usado na crítica da

ideias de origens diversas e incorporados por

forma em referência à exortação ou admo­

Paulo em seu pensamento e cartas. 0 que

estação (do gr. parainesis, “exortação” ou

se quer mostrar é que o material ou ideias

“conselho”),

existiam antes de Paulo vir a usá-las e não

parusia. (Do grego parousia, “vinda, chegada” )

que eram anteriores à vida ou à conversão

Tipicamente se refere à segunda vinda e à presença (pareimi) de Cristo no fim do mun­

de Paulo. Problema Sinótico. O “ problema” de como expli­

do (ICo 16.22; Ap 22.7,12,20).

car as semelhanças e diferenças que existem

parusia apostólica. Ideia de que, embora Paulo não estivesse presente em pessoa em uma

entre os três Evangelhos Sinóticos. prosélito. Alguém que se converte a outra reh-

das igrejas, assim mesmo sua autoridade

gião e se torna membro dessa comunidade,

apostóhca estava presente e devia ser reco­

protognosticismo. Forma primitiva ou incipiente

nhecida em sua carta à igreja ou em alguém

de gnosticismo que pode ter existido durante

0 período do

especificamente enviado, como Timóteo, paulino. Que diz respeito a Paulo ou a seus

n t.

Pseudepígrafos. Coletânea de antigos textos

escritos.

judaicos e helenistas que foram escritos du­

perícope. (Do gr. perikoptõ.) Breve unidade literá­

rante o período do segundo templo, mas não

ria que mantém a integridade mesmo quando

fazem parte do

destacada de uma passagem mais extensa,

fos, e com frequência são atribuídos a gran­

período do segundo templo. Período da história

des personagens do passado (v., de James

at

canônico, nem dos Apócri­

e da literatura judaica que vai da conclusão

Charlesworth, org., The Old Testament pseu-

do segundo templo, em 516 a.C. (ou do de­

depigrapha [2 v.]).

creto de Ciro em 538 a.C. para reconstruir o

pseudônimo. Declaração “falsa” de autoria de

templo), até a queda de Jerusalém e a des­

uma obra literária. Nos escritos judaicos do

truição do templo de Herodes pelos romanos,

segundo templo, havia uma convenção literá­

em 70 d.C. É muitas vezes empregado como

ria de atribuir obras da época a grandes per­

sinônimo de período intertestamentário.

sonagens do passado distante. 1

279

quiasmo. (Derivado da letra grega x, chi.) Recur­

existente na igreja primitiva que permitiu

so retórico em que linhas paralelas de um tex­

que parábolas, declarações e relatos de Jesus

to correspondem a um padrão x, como, por

adquirissem a forma em que os autores dos

exemplo, em

Evangelhos os herdaram.

a -b - c - b -a

(neste caso, o centro

do quiasmo é c, e uma linha de um dos lados

Talmude. Compêndio definitivo da lei rabínica e

corresponderá a outra linha do outro lado, ou

constituído da Mishná e de seu comentário, a

seja,

Guemará, e que aparece em duas edições di­

A

corresponderá a a e assim por diante).

Qumran. Local situado junto à margem noroeste

ferentes; o Talmude da Babilônia e o Talmude

do mar Morto, cujas ruínas estão associadas aos manuscritos do mar Morto, descobertos

de Jerusalém (ou da Palestina]. Targum. Tradução aramaica interpretativa da Bí­

em 1947, nas proximidades do local, retórica. Nos estudos do

nt

,

blia hebraica (da palavra hebraica que signifi­

antigas teorias gre­

gas e romanas acerca do discurso eficaz, oral

ca “interpretação”, tiaguino. Que diz respeito a Tiago ou a seus

ou escrito. Podem ter sido utilizadas por au­ tores do

escritos. tipologia. (Do gr. typos, “padrão” ) Estudo do pa­

NT.

saduceus. Seita importante do judaísmo durante o

período do

nt

,

drão de correspondência entre pessoas, obje­

constituída principalmente

tos, acontecimentos ou instituições dentro de

da classe sacerdotal rica. Distinguia-se pela

um texto, geralmente entre o

negação da ressurreição dos mortos,

Rm 5, em que Adão é o tipo de Cristo, o qual

samaritanos. Naturais da Samaria, a província

at

e o

nt

(e.g.,

é o seu antítipo).

ao norte da Judeia, e desdenhados pelos “pri­

Torá. A primeira parte do cânon hebraico das

mos” judeus. Suas crenças e práticas reUgio-

Escrituras, correspondente ao Pentateuco ou

sas se baseavam nos cinco livros de Moisés

cinco livros de Moisés. Uma boa tradução

(Pentateuco samaritano).

para a palavra torá [tôrâ] é “instrução”, em­

Septuaginta. A mais antiga tradução grega da Bí­ bUa hebraica, comumente abreviada

lxx

bora tenha sido traduzida para o grego por

(em

nomos e, desse modo, tenha chegado ao por­

razão da lenda de seus setenta tradutores), mas que inclui livros que não fazem parte do cânon hebraico (v.

tuguês como “lei”, tradição. Material oral ou escrito transmitido de uma pessoa ou grupo a outra pessoa ou gru­

A p ó c r ifo s o s ).

sincretismo. Mescla de princípios e práticas bási­

po, embora em geral dentro de determinada

cos e variados, e com frequência contraditó­ rios, com o objetivo de formar um só sistema.

comunidade, tradição dúpUce. Declarações de Jesus comuns a

Também designa a simples adaptação e as­ similação de ideias e práticas estranhas no

Mateus e a Lucas. Ver t r a d i ç ã o tradição

sistema de crenças de alguém.

l

.

tr íp u c e .

Material exclusivo do Evangelho de

Lucas e possivelmente extraído de fonte

Sinédrio. (Do gr. synedrion.) Conselho ou assem­ bleia administrativa de líderes judaicos. Um

independente, tradição

tratado da Mishná é dedicado à organização e

m

.

Material exclusivo do Evangelho de

Mateus e possivelmente extraído de fonte

ao funcionamento desse conselho.

independente,

Sitz im Leben. Termo alemão cuja tradução li­

tradição tríplice. Material comum aos três Evan­

teral é “contexto de vida” ou “situação de

gelhos Sinóticos; Mateus, Marcos e Lucas,

vida”. É empregado principalmente na críti­

zelotes. Movimento judaico revolucionário do

ca da forma para designar o contexto social

1280

século I d.C.

r

I n d ic e

de verbetes ÉTICA i: E v a n g e lh o s , 508 ; é t i c a ii: P a u lo , 523 ; ÉncA iii:

A b ra ã o : N o v o T estam en to, 1

A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 531

A d ã o e C ris to : P a u lo , 17

e v a n g e lh o (g ê n e r o ) , 535

ADOÇÃO, filia ç ã o : P a u lo , 25

E v a n g e lh o s , c o n fia b iu d a d e h is t ó r ic a d o s , 543

a d o ra çã o / c u lto i: E van gelh os, 2 9 ; a d o ra çã o / c u lto ii: P a u lo , 33; a d o ra çã o / c u lto iii: A t o s , Hebreus, C a rta s G erais, A poca lipse, 43 a dversários i; P a u lo , 6 0 ; a dversários

F ile m o m , C a r t a a , 552 ii:

C a rta s G erais,

F i l h o d e D a v i: E v a n g e lh o s , 556

C a rta s P a sto ra is, A pocalipse, 70

F i l h o d e D eu s i: E v a n g e lh o s , 560 ; F i l h o d e D eu s ii:

a lia n ç a , nova a lia n ç a : P a u lo , A t o s , Hebreus, 80

P a u lo , 567; F i l h o d e D e u s iii: A t o s , H e b re u s ,

A poca lipse, L iv r o de, 88

C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 575

apocauptism o: N o v o Testam ento, 101

F ilh o d o H om em : E v a n g e lh o s , 578

A p ó c rifo s e Pseu d epígra fos, 114

F ilip e n s e s , C a r t a a o s , 585

a p ó s to lo : N o v o T estam en to, 122

f i l o s o f i a , 593

A t o s dos A p ó s to lo s , 139

B

G á la t a s , C a r t a a o s , 598

BATISMO i: E v a n g e lh o s , 159; batism o ii: P a u lo , 163;

g n o s tic is m o , 611

b atism o iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 170

H H e b re u s , C a r t a a o s , 617

c a r n e : P a u lo , 184

I

c a r ta s , fo r m a s d e c a r ta s i: P a u lo , 188; c a r ta s , fo r m a s de

ig r e j a i: E v a n g e lh o s , 6 3 5 ; ig r e ia ii: P a u lo , 6 3 9 ; ig r e ja

c a r t a s ii: H e b re u s , C a r ta s G e r a is , A p o c a u p s e , 192

iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 649

C a r t a s P a s t o r a is , 196

I s r a e l i: E v a n g e lh o s , 656 ; I s r a e l ii: P a u lo , 665

CEIA DO S e n h o r i: P a u lo , 206 ; c e ia d o S e n h o r ii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 213 C o lo s s e n s e s , C a r t a a o s , 2 22

Jesus e P a u lo , 572

co m u n h ã o à m esa: E v a n g e lh o s , 229

CoRlNTios, C a r t a s a o s , 2 34

Jesus, ju lg a m e n t o d e , 6 8 6 Jesus, n a s c im e n to d e , 702

c o r p o d e C r i s t o : P a u lo , 253

J o ã o B a t is t a , 720

C r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o : P a u lo , 2 60

J o ã o , C a r t a s d e, 730

C r is t o i: E v a n g e lh o s , 2 6 2 ; C r is t o ii: P a u lo , 2 76 ; C r is t o

J o ã o , E v a n g e lh o d e , 743

iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 283

JUDAÍSMO E

C r is t o , m o r t e d e i: E v a n g e lh o s , 288 ; C r is t o , m o r t e d e

o

N o v o T e s ta m e n to , 761

Ju das, C a r t a d e , 776

ii: P a u lo , 309; C r is t o , m o r t e d e iii: A t o s , H e b re u s ,

Juízo

C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 319

i: E v a n g e lh o s , 785 ;

Juízo

ii: P a u lo , 788 ;

Juízo

iii:

A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 790

c r i s t o l o g i a i: P a u lo , 3 3 8 ; c r i s t o l o g i a ii: A t o s , H e b re u s ,

ju s t iç a / r e t id ã o i: E v a n g e lh o s , 794 ; ju s t iç a / r e t id ã o ii:

C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e . 357

P a u lo , 800 ; ju s t iç a / r e t id ã o iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 811

D

ju s t ific a ç ã o : P a u lo , 816

D e u s i: E v a n g e lh o s , 369 ; D eu s ii: P a u lo , 376 ; D eu s iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 395 DisctpuLos: E v a n g e lh o s , 414

L e i i: E v a n g e lh o s , 824 ; L e i ii: P a u lo , 838 ; L e i iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 854 L u c a s , E v a n g e lh o d e , 859

E fé s io s , C a r t a a o s , 4 22 “ em C r i s t o ” : P a u lo , 4 34

M

e s c a t o lo g ia i: E v a n g e lh o s , 4 3 9 ; e s c a t o lo g ia ii: P a u lo ,

m a n u s c rito s d o m a r M o r t o , 880

4 4 3 ; e s c a t o lo g ia iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is ,

M a r c o s , E v a n g e lh o d e , 893

A p o c a u p s e , 4 62

M a te u s , E v a n g e lh o d e , 909

E s p ír ito S a n t o i: E v a n g e lh o s , 4 7 5 ; E s p ír ito S a n t o ii: P a u lo , 4 8 8 ; E s p ír ito S a n t o iii: A t o s , H e b re u s ,

m ila g r e s , r e l a t o s d e m ila g r e s i: E v a n g e lh o s , 927;

C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 498

m ila g r e s , r e l a t o s d e m ila g r e s ii: A t o s , 940

1281

MULHERES I! E v ANGELHOS,

956;

947;

MULHERES Ii: P a ULO,

r iq u e z a s e p o b r e z a i :

MULHERES iii: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a i s ,

A p o c a l ip s e ,

po b r e za ii:

967

A t o s , H ebreus, R om a,

1132; r i q u e z a s e 1144; r i q u e z a s e p o b r e z a i i i : C a r t a s G e r a i s , A p o c a l i p s e , 1146 E van g elh o s,

P au lo ,

1148

R o m ano s, C arta ao s, PARÁBOLAS,

989

P au lo , conversão e ch am ad o de, P au lo em A tos e n a s c ar tas,

1015 P a u l o , 1025;

999

salvação i :

P a u l o , o Ju d e u , PECADO i:

pecado

ii:

A t o s, H ebreus,

A p o c a l ip s e ,

1029

de

1197;

E van g elh o s,

D eus i: E va n g e lh o s ,

P au lo ,

1077;

1174;

salvação ii:

P au lo ,

1180;

r e in o d e

1062;

1185

Senh o r i : E vangelh os,

1032 P e d r o , P r i m e i r a C a r t a d e , 1036 P e d r o , S e g u n d a C a r t a d e , 1045 P r o b l e m a S i n ó t i c o , 1050

r e in o

E van g elh o s,

SALVAÇÃO iii: A t o s , H e b r e u s , E s p í s t o l a s G e r a i s ,

C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e , pecado res:

1157

977

1188;

A p o c a l ip s e ,

1209

S e r v o d e Ja v é : E v a n g e l h o s , s in a g o g a ,

r e in o d e

S en h o r ii: P a u l o ,

S e n h o r i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is ,

1215

1219

Templo, PuRincAÇÃO oo, 1225 T e s s a l o n i c e n s e s , C a r t a s a o s , 1228 T i a g o , C a r t a d e , 1237 t r a d i ç õ e s e e s c r it o s r a b í n i c o s , 1253

D e u s ii

D eus iii: A to s , H e b r e u s,

1080 1089 r e s s u r r e i ç ã o i : E v a n g e l h o s , 1095; r e s s u r r e i ç ã o i i : P a u l o , 1114; r e s s u r r e i ç ã o i i i : H e b r e u s , C a r t a s G e r a i s , A p o c a l i p s e , 1123 r e t ó r i c a , 1126 C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e ,

r e l ig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ,

U Ú l t im a C e ia : E v a n g e l h o s ,

1282

1266

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N. T. Wright,

Bispo de Durham

Uma obra bem-vinda ■

C ordon D . Fee,

c muito necessana.

Regent College

A editora c ,scus organizadores .são dignos dos nossos cumprimentos.

Bruce M. Metzger,

Princeton lheologicat Seminary

D A N I E I . t i . R E I D c u m e x p c ric iu c o rgan l/.ad o r d c o h ras d c c o n su lia c livros a ca d ê m ic o s. Foi la m h êm e d ito r d o s d ic io n á rio s so b re t) N I' q iic d eram o rig e m a este v o lu m e e já ven d eram m a is d e 100 m il ex em p lare s n os E U A .

Edições Loyola

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