Dicionário Teológico do Novo Testamento - compêndio dos mais avançados estudos bíblicos da atualidade - Daniel G. Reid.
April 20, 2017 | Author: Evelyn Henrique | Category: N/A
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C o m p ê n d i o dos mais avançados e s t u d o s b í b l i c o s da a t u a l i d a d e
DICIONÁRIO TEOLÓGICO
DO NOVO TESTAMENTO
D ados Internacionais de Catalogação na Publicação (C I P ) (Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dicionário teológico do Novo Testamento / editor Daniel G. Reid; tradução Márcio L. Redondo, Fabiano Medeiros, — Sáo Paulo: Vida Nova, 2012. Título original: The IV P dictionary o f the New Testament
ISBN 978-85-275-0518-5 1. Bíblia, N .T - Dicionários I. Reid, Daniel G.
12-12233
CDD-225.3 índice paxa catálogo sistemático:
1. Bíblia : Novo Testamento : Dicionário
225.3
DICIONÁRIO TEOLÓGICO
DO NOVO TESTAMENTO C o m p ê n d i o dos mais avançados es tudos bíblicos da at ua lid ad e DANIEL G. REID, EDITOR TRADUÇÃO M Á R C I O RED ON DO F A B IA N O MEDEIROS (LETRAS "A", "U" E "V")
VIDA IMOVA
Edições Loyola
©2004, de InterVarsity Christian Fellowship/EUA Título do original: The r/p dictionary o f the New Testament Traduzido da edição publicada pela I n t e r V a r s i t y P re s s ,
Downers Grove, Illinois, EUA/Leicester, Inglaterra. 1.^ edição: 2012 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por So c ie d a d e R e l ig io s a E d iç õ e s V
id a
N
ova,
Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970. Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.
ISBN 978-85-275-0518-5 Impresso no Brasil / Printed in Brazil
S u p e r v is ã o
e d it o r ia l
Marisa K. A. de Siqueira Lopes C
o o r d e n a ç ã o e d i t o í &a l
Fabiano Medeiros Valdemar Kroker Pa d r o n i z a ç ã o
Josemar de Souza
Pint@
R e v is ã o
Judson Canto C
o o r d e n a ç ã o d e p r o B u ç Ão
Sérgio Siqueira Moura R e v is ã o
d e provas
Josemar de Souza Pinto D
ia g r a m a ç Ão
Luciana Di lorio C apa
Wesley Mendonça
S u m á r io Prefácio...........................................................................................................................................................VI Prefácio à edição em português................................................................................................................... IX Como usar o Dicionário teológico do Novo Testamento................................................................................. X Abreviaturas..................................................................................................................................................XII Transliteraçâo do hebraico e do g r e g o ......................................................................................................XXV Colaboradores...........................................................................................................................................XXVI Verbetes............................................................................................................................................................ 1
Glossário..................................................................................................................................................... 1274 índice de verbetes...................................................................................................................................... 1281
P r e f á c io O Dicionário teológico do N ovo Testamento
[dtnt)
reúne os verbetes mais importantes de uma série de di
cionários publicada pela editora evangélica americana InterVarsity Press. A série é composta dos seguintes volumes: Dictionary o f Jesus and the Gospels [Dicionário de Jesas e os Evangelhos], Dicionário de Paulo e suas cartas (publicado por Vida Nova em coedição com as editoras Paulus e Loyola], Dictionary o f the later New Testament and its developments [Dicionário do período final do Novo Testamento e seus desdo bramentos] e Dictionary o f New Testament background [Dicionário das origens do Novo Testamento]. A referida série vem provando seu valor desde 1992, quando veio a público o primeiro volume. Na categoria de obras de referência na área bíblica ou teológica, cada volume da série conquistou o Gold Medallion Book Award, o prêmio de melhor livro conferido anualmente nos Estados Unidos pela Associação de Editores Cristãos Evangélicos. Enquanto este prefácio é redigido, alguns volumes da série encontram-se já traduzidos ou em processo de tradução para vários idiomas, entre os quais: francês, russo, espanhol, português, chinês e coreano. A série, a seu modo, ainda que sem muito estardalhaço, está exercendo um impacto positivo em todo o mundo. Os verbetes que compõem o
dtnt
foram selecionados tendo em mente o estudante e a sala de aula.
Acreditamos, no entanto, que outras pessoas que não possam colecionar a série completa ~ entre essas pessoas aqueles diretamente envolvidos no ministério ~
encontrarão nesta obra um valioso acréscimo
à sua biblioteca. Na maioria dos casos, os verbetes aparecem da mesma forma que nos dicionários de origem. Cumpre ressaltar que este volume não é uma condensação — ou uma espécie de resumo — dos outros quatro dicionários da série. Proceder dessa forma seria cometer uma violência para com a maioria dos verbetes, além de frustrar o objetivo original da série, que era oferecer verbetes de dimensões enciclo pédicas, capazes de tratar de seus temas com mais profundidade que um simples dicionário bíblico. No processo de edição de cada volume da série, adotou-se o seguinte método: se um dicionário bíblico co mum de um só volume fosse capaz de versar sobre determinado tema a contento e em um único verbete, talvez não houvesse necessidade de incluir esse mesmo tema nos volumes da série. Decidimos então nos restringir aos temas mais importantes, oferecendo, porém, sempre “algo mais” : mais profundidade, mais detalhes, mais informações acadêmicas e especializadas, mais bibliografia etc. Na maioria dos casos, os verbetes foram escritos não por generalistas, mas por estudiosos especializados no(s) tema(s) tratado(s). Em alguns casos, foi possível ter acesso a importantes manuscritos inéditos sobre certos temas, e vários verbetes da série passaram a ser considerados epitomes (no sentido grego antigo de “compêndios") abahzados de pesquisas da área. Vale a pena chamar a atenção, no entanto, para algumas pequenas alterações de caráter editorial. As referências a obras em outros idiomas que não o inglês foram eliminadas das listas bibliográficas sempre que essas obras não estivessem intrinsecamente ligadas ao texto do verbete. Já outras obras recentes e de grande relevância, especialmente comentários, foram muitas vezes acrescidas às listas bibliográficas, sobretudo no caso dos verbetes que tratam de documentos específicos do Novo Testamento. Em sua forma original, os verbetes temáticos extraídos do Dictionary o f the later New Testament and its developments também tratam dos pais apostólicos. No entanto, essa perspectiva pós-apostólica não foi incluída neste volume, a menos que fosse indispensável ao desenvolvimento de determinado assunto. Com o passar dos anos, ao longo do processo de produção dos volumes da série que originaram este Dicionário, o organizador teve contato com muitas pessoas que usaram os primeiros volumes como ferra mentas de ensino nas salas de aula de seminários e faculdades teológicas. Também teve a oportunidade
Prefácio
de verificar como os estudantes reconheciam o notável valor da série. Mas há muitos casos em que está fora de cogitação a hipótese de um professor adotar três ou quatro volumes, mesmo para programas que dedicam mais de um semestre (ou ano letivo) à disciplina de “ Introdução ao Novo Testamento”. Além disso, em contextos universitários, o uso da série completa tem se mostrado quase impraticável do ponto de vista financeiro (ainda que alguns professores tenham corajosamente tentado adotá-la). No decurso dos anos, portanto, recebemos solicitações para produzir uma edição de um só volume que fosse capaz de reunir os verbetes mais importantes da série. E concordamos que se trata de uma excelente ideia, capaz não somente de servir aos alunos, mas também divulgar a série e seus objetivos. Este volume é assim nossa tentativa de atender a essa necessidade. Não obstante, a tarefa de decidir quais verbetes seriam os mais importantes não foi tão fácil quanto parecia a princípio. Começamos tentando imaginar como seria um curso típico de Introdução ao Novo Testamento. Obviamente incluiríamos os verbetes que tratam dos documentos do N ovo Testamento em si. Depois, incluiríamos os temas teológicos de maior relevância: c e ia d o S e n h o r , m o r t e d e C r is t o , r e s s u r r e iç ã o , e s c a t o lo g ia
c r i s t o l o g i a . D e u s , E s p ír it o S a n t o , b a tism o ,
etc. Mas onde deveríamos parar, uma vez que já
nos aproximávamos com tanta rapidez dos limites de espaço idealizados para o projeto? Não poderíamos omitir os verbetes sobre os gêneros literários do Novo Testamento, nem sobre áreas importantes relacio nadas às origens do Novo Testamento. Uma longa “ lista de verbetes desejados” foi dolorosamente sendo reduzida com a ajuda de pessoas que haviam usado os outros volumes em sala de aula. Mas, em última análise, as decisões caberiam ao editor, que deveria chegar a um meio-termo entre as exigências do as sunto e as limitações de espaço impostas pelo projeto.
E,
mesmo na undécima hora editorial, deu-se o
ju ízo final, e inúmeros verbetes foram eliminados com choro e ranger de dentes — tanto por parte do juiz quanto por toda a sua equipe! Há algum consolo em saber que organizadores diferentes teriam chegado a soluções diferentes para esse mesmo problema, ou seja, seria impossível chegar a um consenso sobre o que incluir e o que cortar. Muitos verbetes excelentes, dentre os quais alguns dos meus favoritos, tiveram de ser excluídos. Um recurso foi criado, porém, que poderá ajudar a compensar essa tensão editorial, além de todo o re morso. No final dos verbetes, além das remissões iniciadas por “ Ver também” , as quais remetem a outros verbetes dentro do mesmo volume, inserimos remissões a verbetes afins extraídos dos quatro volumes da série (nem todos publicados em português). Elas em geral remetem apenas ao volume de origem de determinado verbete (i.e., se o verbete foi extraído do Dictionary o f Jesus and the Gospels dirá respeito a outros verbetes do próprio
d jg
[d jg ] ,
a remissão
que sejam relacionados ao assunto). Esse recurso tem por
objetivo servir tanto a estudantes ávidos por se aprofundar mais no assunto quanto a professores mais exigentes. Também dá aos leitores uma noção do valor do uso da série completa de quatro volumes. Verbetes sobre um mesmo tema, extraídos dos quatro volumes da série (e.g..
R e in o d e D e u s
nos Evan
gelhos, em Paulo e no período final do N ovo Testamento) em geral são apresentados separadamente, seguindo a ordem do cânon bíblico. 0 vocábulo principal do verbete vem seguido dos algarismos romanos (i, II e iii) e de um subtítulo que designa o grupo de escritos bíblicos ah tratados: “ Evangelhos” , “ Paulo” ou “ outros livros do Novo Testamento”. Em alguns poucos casos, esses verbetes foram condensados em um só, mas não achamos que esse método seria sempre útil ou aconselhável. Isso porque, para início de conversa, os vários colaboradores e as várias perspectivas às vezes mantêm entre si certa tensão — ha vendo até mesmo crítica de uma perspectiva em relação a outra em alguns casos. Considerando o fato de que essas múltiplas perspectivas são uma característica que enriquece tanto a série quanto este volume, pareceu-nos que a tentativa do editor de fundi-las em um só verbete seria uma verdadeira afronta. Para os que são novos no campo dos estudos do Novo Testamento, um “ Glossário” foi incluído no final da obra, com definições que foram na maior parte extraídas do Pocket dictionary o f biblical studies.^ Esse
•Publicado no Brasil sob o título Dicionário de estudos bíblicos: mais de 300 termos definidos de forma clara e concisa: edição de bolso, de Arthur G. Patzia e Anthony J. Petrotta (trad. Pedro Wazen de Freitas, São Paulo: Vida, 2003,168 p.).
VII
Dicionário teológico do Novo Testamento
pequeno “ dicionário dentro do D icionário” ajudará os alunos que pela primeira vez se aventuram pelo universo e vocabulário pouco conhecidos dos estudos do Novo Testamento. Reler este material e trabalhar mais uma vez com ele serviu para lembrar da grande contribuição e do imenso sacrifício feito por inúmeros estudiosos em prol de todos os volumes da série que vieram a dar origem a este volume. E também trouxe à lembrança o labor paciente dos oito coeditores que conduziram
0 trabalho em cada volume até sua pubhcação. Esses estudiosos contribuíram com muito mais tempo e trabalho, com sua pesquisa e escritos, do que muitos autores mais populares jamais poderiam supor ou sonhariam conseguir. Por terem já uma imensa carga de responsabilidades nas áreas de ensino e adminis tração, para muitos deles escrever e editar são atividades reservadas para o pouquíssimo tempo que sobra de seus dias, semanas e carreiras, e a recompensa monetária desse labor geralmente não é de fazer inveja a ninguém. Ainda assim, como um guia que conduz turistas morro acima até uma vista extraordinária que só pode ser apreciada do pico da montanha, esses que são chamados ao ensino e à pesquisa com certeza se sentem ricamente recompensados por descortinar aos olhos do grande público o mundo fascinante em que eles têm o privilégio profissional de viver: o universo do Novo Testamento com seu texto, seu mundo e sua mensagem. E, embora essa imensa sala de aula nem sempre permita aos professores usufruírem da queles momentos gratificantes em que os olhos dos alunos se iluminam, repletos de curiosidade ou com preensão, ao menos chega ao conhecimento deles a informação de que tudo isso acontece dia após dia, invariavelmente. E assim, com a esperança de que essa troca silenciosa entre autores e leitores se estenda e se amphe ainda mais e orando para que isso de fato aconteça, enviamos esta obra, por eles produzida, de volta ao mundo e com nova roupagem. Daniel G. Reid, Editor, InterVarsity Press
V lli
P r e f á c io
à e d iç ã o e m
PORTUGUÊS Nas últimas décadas, os estudos neotestamentários, principal foco desta obra, passaram por diversas mu danças e atualizações em decorrência de trabalhos desenvolvidos por vários pesquisadores da área. Não foram poucos os livros lançados na tentativa de ajudar o leitor a acompanhar essa evolução. No entanto, toda essa riqueza encontrava-se dispersa em muitas obras, dificultando o esforço do leitor para se manter atualizado. Da necessidade de reunir em um só local o que havia de mais atual sobre o assunto, nasceu esta obra. Ela é um compêndio que reúne os mais avançados estudos bíblicos da atualidade. Há muito o público de língua portuguesa aguardava um trabalho como este. Uma obra desse porte, no entanto, não era um desafio que estivesse à altura de um único autor. Daí a reunião de mais de noventa colaboradores com o intuito de alcançar o propósito que esta obra se propôs. Não haveria como dar conta de tão grande desafio de outro modo. E digno de nota, contudo, o fato de que uma conseqüência direta dessa diversidade de autores é, logi camente, a diversidade de pontos de vista. 0 leitor encontrará na unidade desse compêndio uma diversi dade de posições e até mesmo alguns pontos polêmicos. Um deles, por exemplo, diz respeito à autoria do Evangelho de João; outro induz a um questionamento ao menos de parte do livro de Daniel; há também um trecho que faz uso da teoria documentária que hoje é rejeitada em muitos círculos acadêmicos. Elencamos apenas alguns deles, a fim de que o leitor, quando deparar com um desses pontos, esteja ciente de que Edições Vida Nova não concorda com tais posicionamentos, nem os abona, e tem histori camente adotado uma posição ortodoxa. No entanto, por se tratar de uma obra traduzida, foi necessário mantê-los na íntegra. Assim, com relação ao posicionamento teológico, é importante destacar que esta obra como um todo pode ser classificada dentro da postura conservadora de Edições Vida Nova. Portanto, ela é predominan temente e seguramente comprometida com a inspiração das Escrituras, com a inerrância bíblica e com todos os demais pontos cardeais da melhor e mais confiável teologia conservadora, comprometida com a sã doutrina. A ínfima porcentagem de pontos polêmicos dos quais discordamos não compromete o valor da obra. Esses pontos de divergência não tiram, de forma alguma, o mérito da obra em si, nem levantam questio namento algum acerca da decisão de publicá-la. Sem dúvida, o leitor é maduro o suficiente para dialogar com pessoas que defendam pontos dos quais discorda. Isso não coloca em risco nossa fé nem deturpa nossa teologia; apenas nos torna mais humildes na tarefa de fazer teologia e faz lembrar que um dia todas as divergências serão solucionadas, pois “Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido” (IC o 13.12). Os Editores
C omo
u s a r e s t e d ic io n á r io
A breviatu ras Nas páginas xii-xxv, o consulente terá acesso a listas completas de abreviaturas tanto de caráter geral quanto relativas a obras clássicas ou de cunho bíblico e acadêmico. Au toria dos verbetes Os autores são indicados ao final de cada verbete pela(s) inicial(is) do(s) primeiro(s) nome(s) seguida(s) do sobrenome. Os verbetes compostos com base em uma combinação de verbetes anteriores têm o nome dos autores entre colchetes no final do material que especificamente lhes diga respeito. Uma lista completa de co laboradores pode ser encontrada nas páginas xxvi-xxix por ordem alfabética de sobrenome. Nessa lista, após a identificação de cada autor ou autora, segue(m)-se o(s) verbete(s) específico(s) em que ele(a) contribuiu. Listas bibliográficas Uma lista bibliográfica foi acrescentada ao final de cada verbete. Essas listas incluem as obras citadas nos verbetes, além de outras obras importantes e relacionadas ao tema em questão. 0 registro na bibliografia se faz pelos sobrenomes dos autores dispostos em ordem alfabética; quando um autor tem mais de uma obra citada, os títulos é que são ordenados alfabeticamente. Nos verbetes que se concentram nos livros do Novo Testamento, a bibliografia é dividida em duas categorias: “ Comentários” e “ Estudos”. Rem issões O DTNT está repleto de remissões a verbetes dos quatro dicionários da série, com o objetivo de ajudar os leitores a desfrutar ao máximo do material que aparece ao longo de todo este volume e nos outros quatro volumes de onde os verbetes foram extraídos. Serão encontrados cinco tipos de remissões: L As remissões breves, situadas por ordem alfabética ao longo do Dicionário, remetem o leitor e con sulente a verbetes em que aquele tema específico é tratado:
v id a a p ó s a m o r t e .
V.
RESSURREIÇÃO.
2. Os vocábulos que aparecem em
v e r s a le t e
no corpo do verbete indicam que outro verbete que tem
por título o(s) mesmo(s) vocábulo(s) (ou uma redação aproximada) aparece no Dicionário. Por exemplo: “ F ilh o d e D eu s”
remete o leitor aos verbetes com esse título:
F ilh o d e D eu s.
Em geral, esses termos aparece
rão em versalete apenas na primeira ocorrência da palavra dentro do verbete. 3. Remissões entre parênteses, no corpo de um verbete, remetem o leitor a um verbete com aquela designação. Por exemplo: (v.
c r is to lo g ia ).
4. As remissões acrescidas ao final dos verbetes têm por objetivo remeter o leitor a outros verbetes relacionados de modo significativo ao assunto: Ver também
a u a n ç a , n o v a a l i a n ç a ; C r i a ç ã o , n o v a c r i a ç ã o ; E s p ír it o S a n t o .
5. No final dos verbetes, antes da bibliografia, encontram-se remissivas a verbetes que se encon tram nos dicionários de origem: Dictionary o f Jesus and the Gospels, Dicionário de Paulo e suas cartas.
C o m o usar este d ic io n á rio
Dictionary o fth e later New Testament and its developments e Dictionary ofN ew Testament background. Em alguns casos, são feitas remissões a mais de um dicionário. índice de verbetes 0 “ índice de verbetes” no final do
dtnt
permite ao leitor fazer uma rápida análise da extensão dos temas
tratados e selecionar os que melhor atendem a seus interesses ou necessidades. Quem deseja localizar os verbetes escritos por determinados autores verá que eles se encontram mencionados junto ao nome do autor na lista de colaboradores. Transliteraçâo O grego e o hebraico foram transliterados de acordo com o sistema apresentado na página xxv.
A
b r e v ia t u r a s
A breviatu ras gerais a
a.C. amp. AT B
c. c cap., caps. of. col. cp. D
d.C. ed., eds. ed. rev. 2. ed., 3. ed. e.g. espec. frag. grhebr. i.e. km lat. LXX
marg. mmM MS, mss
n.s. NT
Códice alexandrino antes de Cristo (edição) ampliada Antigo Testamento Códice Vaticano circa: cerca de, por volta de (datas aproximadas) Códice efraimita (ou de Efraim, o Siro] capítulo, capítulos conferir coluna comparar com Códice de Beza depois de Cristo edição; editado por; editor. editores edição revista segunda edição, terceira edição exempli gratia: por exemplo especialmente fragmento (de documento) grego hebraico id est: isto é quilômetro latim Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento) margem manuscritos do mar Morto manuscrito, manuscritos nova série Novo Testamento
org., orgs. Ppar. j j
passim pi. prescr. Q
reimpr. rev. s.a. s.d. sec., s to . Sim. Sir tb. Tg TI TM
v. x kt A
§
organização; organizado por; organizador, organizadores página (s) passagem paralela em outro(s) Evangelho (s) em diversos lugares; aqui e ali plural prescrito coleção de declarações que serve de base aos Evangelhos Sinóticos reimpressão revisado por série antiga sem data século, séculos Tradução grega do Antigo Testamento feita por Símaco Siríaca também Targum tradução inglesa Texto massorético (texto-padrão do Antigo Testamento hebraico) ver; versículo (s); volume (s) vezes (2x = duas vezes etc.) Códice sinaítico etc. (grego) número (s) de seção ou parágrafo (que, em geral, faz referência ao sistema numérico criado pela Loeb Classical Library [Biblioteca de Clássicos de James Loeb] para a obra de Josefo)
Traduções em inglês JB KJV (O U AV) NEB NIV
Jerusalem Bible King James version New English Bible New international version
NRSV REB RSV RV
New revised standard version Revised English Bible New revised standard version Revised version (1881-1885)
Traduções (o u versões) da B íblia em português A21 ACF
Versão Almeida século 21 (Vida Nova) Versão Almeida; edição corrigida e revisada, fiel ao texto original ( sbtb )
ARC
Versão Almeida, revista e atualizada ( sbb ) Versão Almeida, revista e corrigida
BJ
Bíblia de Jerusalém (Paulus)
ARA
( sbb )
Abreviaturas
Bíblia na linguagem de hoje ( sbb ) Nova tradução na linguagem de hoje ( sbb )
BLH NTLH
Bíblia do Peregrino (Paulus) TVadução da c n b b Nova versão internacional ( sbi)
BP CNBB
NVI
Livros da Bíblia
Antigo Testamento Gn Êx Lv Nm Dt Js Jz Rt 1 e2Sm 1 e2Rs 1 e2Cr Ed Ne
Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Josué Juizes Rute 1 e 2Samuel 1 e 2Reis 1 e 2Crônicas Esdras Neemias
Et Jó Pv SI Ec Ct Is Jr Lm Ez Dn Os
Ester Jó Provérbios Salmos Eclesiastes Cântico dos Cânticos Isaías Jeremias Lamentações de Jeremias Ezequiel Daniel Oseias
!
J1 Am
Joel
Ob
Obadias
Jn
Jonas
Mq
Miqueias
Amós
Na
Naum
Hb
Habacuque
Sf
Sofonias
Ag
Ageu
Zc
Zacarias
Ml
Malaquias
Novo Testamento Mt Mc Lc Jo At Rm 1 e2Co
Mateus Marcos Lucas João Atos dos Apóstolos Romanos 1 e 2Coríntios
1 i !
Ef Fp Cl 1 e2Ts 1 e2Tm Tt
Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 e 2Tessalonicenses 1 e 2Timóteo Tito
Fm Hb Tg 1 e2Pe 1, 2e3Jo Jd Ap
Filemom Hebreus Tiago 1 e 2Pedro 1, 2 e 3João Judas Apocalipse
Os Apócrifos e a Septuaginta Ac Et Br BI 1 e2Ed Eo Ep Jr Jt
Acréscimos a Ester Baruque Bel e 0 dragão 1 e 2Esdras Eclesiástico (ou Sirácida) Epístola de Jeremias Judite
j
1,2, 3 e4 M c Or Az Or Mn 1, 2, 3 e4Rn Sb Sn Tb
1, 2, 3 e 4Macabeus Oração de Azarias Oração de Manassés 1, 2, 3 e 4Reinos Sabedoria de Salomão Susana Tobias
Jé e As M r Is Or si Ps-Fo SlSa
José e Asenate Martírio de Isaías Oráculos sibilinos Pseudo-Focílides Salmos de Salomão
Os Pseudepígrafos do Antigo Testamento AdeEv Ai An bí Ap Ab 2Ap Br 3Ap Br Ap El Ap Ms Ap Sd Ap Sf Ar Asc Is Ass Ms 1, 2 e 3En Jb
Vida de Adão e Eva Aicar Antiguidades bíblicas (de pseudo-Filo) Apocalipse de Abraão Apocalipse siríaco de Baruque Apocalipse grego de Baruque Apocalipse de Elias Apocalipse de Moisés Apocalipse de Sidraque Apocalipse de Sofonias Epístola de Arísteas Ascensão de Isaías Assunção de Moisés (ou Tesíameuto de Moisés) Enoque (etíope, eslavônico e hebraico) Jubileus
Testamentos dos doze patriarcas Te Rb Testamento de Rúben Te Si Testamento de Simeão Te Le Testamento de Levi Te Ju Testamento de Judá Te Ic Testamento de Issacar Te Zb Testamento de Zebulom TeDã Testamento de Dã Te Na Testamento de Naftali Te Ga Testamento de Gade Te As Testamento de Aser Te Jé Testamento de José Te Be Testamento de Benjamim
X ili
D icionário teológico do Novo Testamento
Te Ab Telq TeJó
Testamento de Abraão Testamento de Isaque Testamento de Jó
Te Ms Vdpf
Testamento de Moisés Vida dos profetas (seguida do nome dos profetas)
In, Ef In, Es In, R In, Mg In, Po In, Rm In, ir Ma Po Po, Fp
Inácio, Caria aos efésios Inácio, Carta aos esmimeus Inácio, Carta aos filadelfenos Inácio, Carta aos magnésios Inácio, Carta a Policarpo Inácio, Caria aos romanos Inácio, Carta aos tralianos Martírio de Policarpo Policarpo, Carta aos filipenses
Os pais apostólicos Bn ICI 2Cl Dg Di He, “Or” He, “Si” He, “Vi”
Epístola de Barnabé 1Clemente 2Clemente Epístola a Diogneto Didaquê 0 pastor, de Hermas, “Mandamentos” 0 pastor, de Hermas, “Parábolas” 0 pastor, de Hermas, “Visões”
Literatura cristã prim itiva A
A fraates
Dm
Demonstrações
At Al At Pa e Te At Pi At To
A gostinho
Ci De Cf Cs
DeTr Do ch Ep Ha Hm Qu Ev
De civitate Dei [A cidade de Deus] Confessiones [Confissões] De consensu Evangelistamm [Sobre o consenso entre os evangelistas] De Trinitate De d o c tr in a C h ris tia n a [Sobre a doutrina cristã] Epistulae [Cartas] De haeresibus [Sobre as heresias] Homilia Quaestiones Evangeliorum [Questões sobre os Evangelhos]
to s
Atos de Apolônio Atos de Paulo e Tecla Atos de Pilotos Atos de Tomé
C ipr iano
Do Or Ep Lp
De Dominica Oratione [Sobre a Oração Dominical] Epistulae [Epístolas] De lapsis [Sobre os que caem]
CiRiLO DE J erusalém
Ca mi Ep ap
Catequeses mistagógicas Epistola apostohrum [Epístola dos apóstolos]
C lemente de A lexandr ia A mbrósio
A fTg Ab ExLc
Ps Vr A
Ecpf
Apócrifo de Tiago De Abrahamo [Sobre Abraão] Expositio Evangelii secundum Lucam [Exposição do Evangelho segundo Lucas] In Psalmos [Sobre Salmos] De virginibus [Sobre as virgens]
Ex Fr Ad
FrJd Pd Pr
p o c a l ip s e s
Ap Pa Ap Pe
Apocalipse de Paulo Apocalipse de Pedro
Qi di
A ristides
Al
Apologia St Te
A tanäsio
Ar Ca fe Fg
Adversus arianos [Contra os arianos] Cartas festivas Apologia pro fuga sua [Apologia de sua fuga]
Eclogae propheticae [Seleções com base nas Escrituras proféticas] Excerpta ex Theodoto [Epitomes dos escritos de Teódoto] Fragmente in Adumbrationes [fragmentos dos Comentários sobre algumas das Epístolas Gerais] Fragmento da Epístola de Judas Paedagogus [O instrutor] Protreptikos [Exortação aos pagãos] Quis dives salvetur [Quem é o rico para que seja salvo?] Stromateis [Miscelâneas] Carta a Teodoro
C risóstomo
Hm Gn HmMt
Homilias sobre Gênesis Homilias sobre Mateus
E pifânio
He Pa
A tenägoras
Lg Su
Legatio pro christianis [Embaixada (ou Apologia] a favor dos cristãos] Supplicatio pro christianis [Petição em favor dos cristãos]
Haereses [Heresias] Panarion
E usébio
De ev
XIV
Demonstratio evangelica [Demonstração do evangelho]
Abreviaturas
Ec th
De ecdesiastica theologia [Sobre a teologia da Igreja] Historia ecdesiastica [História da Igreja] Comentário sobre os Salmos Praeparatio evangelica [Preparação para o evangelho]
Hi ec In Ps Pr ev
E
O rígenes
Cm Jo Cm Mt Co Ce Depr Ex ma Fr Pa HmEz
vang elh os
EvBa Ev eb Eveg EvFi Ev hb EvMr Ev na EvNi EvPe Ev To Ev In To
Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho Evangelho (= Evangelho de pseuda-Tomê]
Fr mu
HmLc Po be Pa Pe Fe Pe ar PtTg Se Ps
P seudo - C lementino
Hm Re
Fragmento mwatoriano
H ilár io de P oitiers
Tr Hipe
Comentário de João Comentário de Mateus Contra Celsum [Contra Celso] De principiis [Sobre os princípios] Exhoriatio ad martyrium [Exoriação ao mariírio] Fragmentos de Papias Homiliae in Ezechiel [Homilias em Ezequiel] Homiliae in Lucam [Homilias em Lucas] Papiro berolinense Paixão de Perpétua e Felicidade Peri archon [Sobre os princípios] Protoevangelho de Tiago Selecta in Psalmos [Seleções em Salmos]
Homilias Reconhecimentos
R ufino
De Trinitate [Sobre a Trindade]
Hi ec
Hino da pérola
Historia ecdesiastica [História da Igreja]
T acl \n o H ip ó u t o
De ha Dm Cr
Ph Re Trap
Orgr
De haeresibus [Sobre as heresias] Demonstratio de Christo et Antichristo [Tratado sobre Cristo e 0 Anticristo] Philosophoumena Refutação de todas as heresias ou Philosophumena Tradição apostólica
T eófilo DE A n t io q u ia
Au
Ad ux Ap Avju Ad na De an De ba De ca
Adversus haereses [Contra as heresias]
J erónimo
CmGl CmMq CmMt Ep Pre Ev PróMt Vi il
Comentário de Gálatas Comentário de Miqueias Comentário de Mateus Epistulae [Epístolas] Prefácio aos quatro Evangelhos Prólogo a Mateus De viris illustribus [Sobre homens ilustres]
De cl fe De CO De id De je
De or Depd De pr
J u stin o M ártir
Ap I, II Co gr D lTr Re
Apologia I, II Cohoriatio ad graecos [Discurso aos gregos] Diálogo com o judeu Trifon Sobre a Ressurreição
De re De sp
LACTÂNaO
Dv in MaJu
OdSa
Ad Autolycum [A Autôlico]
T er t u u a n o
I reneu
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Oratio ad graecos [Discurso aos gregos]
Mr
Divinae institutiones [Instituições divinas] O mariírio de Justino e companheiros
Px Pp Px Sc
Odes de Salomão XV
Ad uxorem [À esposa] Apologeticus [Apologético] Adversus judaeos [Contra os judeus] Ad nationes [Aos pagãos] De anima [Sobre a alma] De baptismo [Sobre o batismo] De came Christi [Sobre a carne de Cristo] De cultu feminarum [Sobre a moda feminina] De corona [Sobre a coroa] De idololatria [Sobre a idolatria] De jejunio adversus psychicos [Sobre o jejum, contra os materialistas] De oratione [Sobre a oração] De pudicitia [Sobre a pudicícia] De praescriptione haereticorum [Sobre a prescrição dos hereges] De resurrectione camis [Sobre a ressurreição da carne] De spectaculis [Sobre os espetáculos] Adversus Marcionem [Contra Marcião] Paixão de Perpétua e Felicidade Adversus Praxeas [Contra Prdxeas] Scorpiace [Antídoto para o ferrão do escorpião]
Dicionário teológico do Novo Testamento
Escritores e fontes clássicas e helenistas D emóstenes
A m ónio
Advo di
Co Lá
De adfinium vocabulomm differentia [Sobre as diferenças das expressões sinônimas]
Contra Conon Contra Lácrito
DiÃo CAssio
Hi
A nácarse
Ep
Epístola a Tereu
A ntipátride
An pa
DiÃo C risóstomo De Ho
Anthologia palatina [Antologia palatina]
Di Or De re
A pia n o
Gr mi Grcv H im
Guerras mitridáticas Guerras civis História romana
D iodoro S ículo
Metamorfoses
D iógenes L aércio
Phaenomena [Fenômenos]
D lH a
Ebhi
História de Roma De Homero et Socrate [Sobre Homero e Sócrates] Discursos Orationes [Orações] De regno [Sobre o governo]
Bibliotheca histórica [Biblioteca histórica]
A puleio
Me
Vi
A rato
Ph
Ac
Po Pb Re
Dc Ds En
Thesmopkorizousai [As tesmoforiantes] Achamenses [Os acamenses]
De caelo [Sobre o céu] Ethica nicomachea [Ética a Nicômaco] Política [Política] Problemata [Os problemas] Retórica
De na an
Pe S tcTh Su E stobeu
Eg Noctes atticae [Noites áticas]
Ge Epigrammata [Epigramas]
Hp Quéreas e Calírroe
De le D eof De or De re Ph Ra pe Tc Co he
Hyppolytus [Hipólito]
F ilo
Ab Ae md
C ícero
CoJu De am Dedv
Geografia
E urípides
C ár iton
Qs e Ca
Ecloge [Éclogas]
E strabão
C a l Im aco
Ep
Persae [Os persas] Septem contra Thebas [Sete contra Tebas] Supplices [As suplicantes]
Oneirocriticon [Oneirocrítica]
A ülo G éuo
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De natura animabim [Sobre a natureza dos animais]
ÉSQUILO
A rtemidoro
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Discursos Dissertationes [Dissertações] Enchiridion [Manual]
Eu a n o
A ristóteles
Ca Et ni
Dionísio de Halicarnasso
E pícteto
A ristófanes
Th
Vitae [Vidas]
Código de Justiniano De amicitia De divinatione [Sobre a adivinhação] De legibus [Sobre as leis] De officiis [Sobre os deveres] De oratore [Sobre a oratória] De republica [Sobre a república] Orationes philippicae [Orações filípicas] Rdbirio perduellionis [A traição de Rabírio] Tusculanae disputationes [Debates em Tüsculo] Corpus hermeticum [Coletânea hermética]
Ar Colg
Ch Dl Ds im D tpt in
XVI
De Abrahamo [Sobre Abraão] De aeteraitate mundi [Sobre a eternidade do mundo] De agricultura [Sobre a agricultura] De confusione Unguamm [Sobre a confusão das línguas] De congressu emditionis gratia [Sobre a união com os estudos preliminares] De cherubim [Sobre os querubins] De Decalogo [Sobre o Decdlogó] Quod Deus sit immutabilis [Que Deus é imutável] Quod deterius potiori insidiari soleat [Que os piores tendem a atacar os melhores]
Abreviatur; Eb n Fu Gi }f LeGa Lgal M i Ab Mu no Om pb Op mu Pd PI Pmpn Po Ca QuEx Qu Gn Re Di he Sa So Spie Vi Vi CO Vi Ms
De ebrietate [Sobre a embriaguez] In Flaccum [Em Flaco] De fuga et inventione [Sobre a fuga e a invenção] De gigantibus [Sobre os gigantes] De Josepho [Sobre Josefo] Legatio ad Gaium [Sobre a embaixada, para Gaio] Legum allegoriae [Interpretações alegóricas] De migratione Abrahami [Sobre a migração de Abraão] De mutatione nominum [Sobre a mudança de nomes] Lib. quod omnis probus liber sit [Que todo homem bom é livre] De opificio mundi [Sobre a criação do mundo] De providentia [Sobre a providência] De plantatione [Sobre a plantação] De praemiis et poenis [Sobre recompensas e punições] De posteritate Caini [Sobre a posteridade de Caim] Quaestiones in Exodum [Questões em Êxodo] Quaestiones in Genesin [Questões em Gênesis] Quis Remm Divinarum heres sit [Quem é o herdeiro das coisas divinas?] De sacrificiis Abelis et Caini [Sobre os sacrifícios de Abel e de Caim] De somnis [Sobre os sonhos] De specialibus legibus [Sobre as leis especiais] De virtibus [Sobre as virtudes] De vita contemplativa [Sabre a vida contemplativa] De vita Mosis [Sobre a vida de Moisés]
In Co
The inscriptions of Cos [As inscrições de Cós], org. W.
R.
Paton e E. L. H icks (1891) I sócrates
De Pg Pt
Demonicus [Carta a Demônico] Panegyricus [Panegírico] Panathenaicus [Panatenaico]
J osefo
An Co Áp Guju Vida
Antiguidcules judaicas Contra Ápion Guerras judaicas Vida de Flávio Josefo (ou Autobiografia)
J ustiniano
Co iu
Corpus iuris civilis
J uvenal
Sá
Satirae [Sátiros]
L lvio , T ito
Ep Hi L uciano
Epitomae [Epitomes] História de Roma de
Samósata
Al Hr Ph Pr Tx
Alexandre, o Fcdso Profeta Hermotimus [Hermotimo] Philopseudes [Filopseudo] De morte Peregrini [A passagem de Peregrino] Toxaris [Sobre a amizade]
M arco A uréuo
Me
Meditações
M arcial
Ep
Epigramas
M u Ru
M u sô n io Rufo
N icolau de D amasco
Vi Cs
Vita Caesaris [Vida de Cêsax]
F ilóstrato
ViAp PrÓT
Vita Apollonii [Vida de Apolônio]
O rósio
Pg
Fragmentos órficos
G alen o
De pi An gr
O vídio
De placitis Hippocratis et Platonis [Sobre as opiniões de Hipócrates e Platão] Antologia grega
Me
Dc
Descrição da Grécia
P etrônio
Opera et dies [Os trabalhos e os dias]
Sa PGM
H omero
II Od
Metamorfoses
P aüsAnio
ÜESfODO
Op
Adversus paganos [Contra os pagãos]
Ilíada Odisseia
P índaro
Sátiras
P latão
It
Satyricon [Satiricon] Papyri-Graecae magicae [Papiros gregos sobre mxigia]
Isthmia [ístmicas]
H or Acio
Sd
Al Ag Cr
J âm blic o
De my
De mysteriis [Sobre os mistérios]
XVII
Alcibíades [Alcibíades] Apologia [Apologia] Cratylus [Crdtilo]
Dicionário teológico do Novo Testamento
Go Le Ph Pt Re So Sy Ti
Gorgias [Goí^ios] Leges [Leis] Phaedms [Fedro] Protagoras [Protdgoras] Res publica [A república] Sophista [Sofista] Symposion [0 banquete] Timaeus [Timeu]
PZnCa
Zenon papyri [Papiros de Zenão], org. C. C. Edgar, Cairo: Catalogue générale des antiquités égyptiennes du Musée du Caire, 1925-1931, V . 1-4).
Q u in t iu a n o
P línio J ovem
Ep
commentarius [Comentário a Timeu de Platão]
In or
Epístolas
Institutio oratoria [A instrução oratória]
P línio V elho
Nahi Pn
Nataralis historia [História natural] Panegyricus [Panegírico]
S êneca
Be Br vi Decl Ep Lu Ep mo
P lutarco
Ad Al An Ca Cn pr Co Cv De or Fa lu Fo rm Ge So Id e Os Li ed Mo Mu vi Non posse
Po Pr ge re Ro Se nu vi Vi
De adulatore et amico [Como distinguir o bajulador do amigo] De Alexandro [Sobre Alexandre] De Antonio [Sobre Antonio] De Caesar [Sobre César] Coniugalia praecepta [Conselho para a noiva e o noivo] Adversus Colotem [Contra Colotes] Quaestiones convivales [Conversa à mesa] De defectu oraculorum [Sobre a obsolescência dos oráculos] De fade in orbe lunae [Em face da órbita lunar] De fortuna romanorum [Sobre a fortuna dos romanos] De genio Socratis [0 gênio de Sócrates] De Iside et Osiride [Sobre Îsis e Osiris] De liberis educandis [Sobre a educação dos filhos] Moralia [Preceitos morais] Muliemm virtutes [Virtudes das mulheres] Non posse suaviter vivi secundum Epicumm [A vida agradável proposta por Epicuro não é possível] De Pompeio [Sobre Pompeio] Praecepta gerendae reipublicae [Conselho sobre a vida pública] Quaestiones romanae [Questões romanos] De sera numinis vindicta [Sobre a demora da vingança divina] Vitae [Vidos]
De beneficius [Sobre os benefícios] De brevitate vitae [Sobre a brevidade da vida] De dementia [Sobre a clemência] Epístolas a Lucílio Epistulae morales [Epístolas morais]
SÓFOCLES
El Oe 7ÿ
Electra Oedipus Tyrannus [Édipo Tirano]
SU ETÔ N IO
Cláudio Domiciano Galba Júlio Nero Tibério Tito Vespasiano
Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares Os doze Césares
T ácito
An
Hi
Annales ab excessu Divi Augusti [Anais, depois da morie do divino Augusto] Historiae [Histórias]
T eão
Pg
Progymnasmata [Exerdcios preliminares]
T ucídides
Hi
História da Guerra do Peloponeso
V alério M á x im o
Fc ac di
Factorum ac dictomm memorabilium libri [Livros de feitos e ditos memoráveis]
V egécio R enato
Ep re ml
Epitoma rei militaris [Resumo de assuntos militares]
POLÍBIO
Hi
Histórias
X enofonte
H igr Me
P roclo
In Ti
In Platonis Timaeum
XVIII
Historia graeca [História grega] Memorabilia Socratis [Ditos e feitos memoráveis de Sócrates]
Abreviaturas
Manuscritos do mar Morto e textos afins Documento [Regra] de Damasco (encontrado num depósito [genizá] de uma sinagoga do Cairo) Qumran
CD
Q IQ. 3Q. 4Q etc. IQapGen IQH IQIsa^* IQM IQMyst IQpHab IQPs' IQS IQSa IQSb 3QCopper Scroll 4Q139 4Q169 4Q171 4Q174 4Q176 4Q181 4Q186 4Q246 4Q400-407 4Q504 4Q513-14 4QDibHam= 4QEnGiants 4QEn*-s 4QEnastr=-8 4QFlor 4QMess ar 4QMMT 4QpNah 4QPhyl 4QpPs37 4QPrNab 4QPsDanA‘' 4QPssJosh 4QShirShabb 4QTestim 4QtgJob 4QtgLev 5Q15 11QH llQMelch llQpaleoLev llQPs* llQTemple (ou 11QT) llQtgJob
Números das cavernas de Qumran onde foram encontrados os manuscritos; essa sigla vem acompanhada da abreviação ou do número do documento a que se refere Gênesis apócrifo (1Q20) Hinos de ação de graças (ou Hodayot) Primeira e segunda cópias de Isaías Manuscrito da Guerra (ou Milhamah) Mistérios (1Q27) Comentário [Pésher] de Habacuque Cópia do fragmento de Salmos (IQIO) Regra (ou Preceito) da comunidade, Manual de disciplina (ou Serek ha-Yahad) Regra messiânica, apêndice A de IQS Regra das bênçãos, apêndice B de IQS Pergaminho de cobre da caverna 3 de Qumran (3Q15) Ordenanças ou comentários sobre as leis bíblicas Comentário {Pésher) de Naum Comentário {Pésher) de Salmos (V . 4QFlor) Consolações (ou Tanhumim) Eras da Criação (v. 4QMess ar) (v. 4QPsDanA'‘) (v. 4QShirShabb) Palavras dos luminares Ordenanças ou comentários sobre as leis bíblicas Palavras dos luminares‘ (4Q504) fragmentos de lEnoque, do Livro dos gigantes (4Q203) fragmentos de lEnoque (4Q201-212) fragmentos de lEnoque, do Livro astronômico (4Q208-211) Florilegium ou Midrashim escatológicos (4Q174) Texto “messiânico” aramaico (4Q534) Miqtsat Ma'ase ha-Torah (4Q394-399) Comentário pésher de Naum (4Q169) Filactérios (4Q128-148) Comentário [Pésher) de Salmos 37 de Qumran Oração de Nabonido (4Q242) Escritos do pseudo-Daniel (4Q246) Salmos de Josué (4Q379) Cânticos do sacrifício do Sábado ou Liturgia angélica (4Q400-407) Testimonia (4Q175) Targum de Jó (4Q157) Targum de Levítico (4Q156) Nova Jerusalém Hinos (11Q15-16) Melquisedeque (11Q13) Levítico em escrita paleo-hebraica (llQ l) Pergaminho dos Salmos (11Q5) Pergaminho do Templo (11Q19) Targum de Jó (IIQIO)
Material targúmico Tg Et /,// Tgfrag Tg iem TgIs TgKet
Primeiro ou Segundo Targum sobre Ester Targum fragmentário Targum iemenita Targum sobre Isaías Targum sobre os Escritos
TgNeb Tg Neof
XiX
Targum sobre os Profetas Targum neofiti i (com esse nome por ter permanecido de 1602 a 1886 no Collegium Ecclesiasticum Neophytum [ou Pia Domus Neophytum])
Dicionário teológico do Novo Testamento
Tg Jõ Tg Ôn Tg ps-J
Targum de Jônatas Targum de Ônquelos sobre a Torá Targum de pseudo-Jônatas sobre o Pentateuco
Tg sa
Targum samaritano
Tg Yer i
Targum hierosolimitano i
Tg Yer ii
Targum hierosolimitano ii
Ordem e tratados da Mishná [Repetição/Explicação], da Toseftá [Suplemento] e do Talmude [Instrução] Os tratados da Mishná (mais antiga compilação da Lei oral, redigida em aramaico sob a supervisão de Judá HaNasi), da Toseftá (segunda compilação da lei oral no período de redação da Mishná), do Talmude babilónico e do Talmude de Jerusalém que tenham o mesmo nome são diferenciados respectivamente pelas letras m .,t.,b.e y. ‘Abod. Zar ’Abot Arak. B. Bat. Bek. Ber. Betsa Bik. B. Mets. B. Qam. Dem. •Ed. ‘Erub. Git. Hag. IJal. Hör. IJul. Kelim Ker. Ketub. Kil. Ma'ai Ma'ai. Sheni Mak Maksh. Meg. Me'il. Menah. Mid. Miqw. Mo'ed Mo ‘ed Qat Nashim
Aboda Zara [Idolatria] Abot [País] ‘Arakin [Votos de avaliação] Baba Batra [Último portão] Bekorot [Primogênitos] Berakot [Bênçãos] Betsa [= Yomjob) [Dias festivos] Bikkurim [Primeiros frutos/ Primícias] Baba MetsVa [Portão do meio] Baba Qamma [Primeiro portão] Demai [Produto sem dízimo certo] 'Eduyyot [Testemunhos] ‘Erubin [Fusão dos limites do sábado] Gittin [Certidões de divórcio] IJagiga [Oferta festiva] Halla [Oferta de massa] Horayot [Instruções] IJullin [Animais mortos para comer] Kelim [Vasos] Keritot [Extirpação] Ketubot [Certidões de casamento] KiVayim [Tipos diversos] Ma ‘aserot [Dízimos] Ma 'aser Sheni [Segundo dízimo] Makkot [Açoites] Makshirin ( = Mashqin) [Os que legam de antemão] Megilla [Rolo de Ester] Me‘ila [Sacrilégio] Menahot [Ofertas de manjares] Middot [Medidas] Miqwa’ot [Tanques de imersão] Mo'ed [Festas fixas] Mo ‘ed Qafan [Dias de meia-festa] Nashim [Mulheres]
Nazir Ned. Neg Nez. Nid. Ohol. ‘Or Para Pe’a Pesah. Qidd. Qinnim Qod. Rash Hash. Shabb. Sanh. Sheb. Shebu. Sheqal. Sota Sukk Ta'an. Tamid Tem. Ter Tohar T Yom ■Uq. Yad. Yebam. Yoma Zabim Zebah. Zer
Nazir [0 voto do nazireado] Nedarim [Votos] Nega‘im [Sinais de lepra] Neziqin [Danos] Niddah [A menstruada] Oholot [Tendas] 'Orla [Fruto das árvores novas] Para [A novilha vermelha] Pe’a [Respigos] Pesahím [Festa de Páscoa] Qiddushin [Noivados] Qinnim [Ofertas de aves] Qodashin [Coisas sagradas] Rosh Hashshana [Ano-novo] Shabbat [Sábado] Sanhedrin [Sinédrio] ShebVit [Sétimo ano] Shebu‘ot [Juramentos] Sheqalim [Sidos pagáveis] Soja [A adúltera suspeita] Sukka [Festa dos Tabemáculos] Ta‘anit [Jejum] Tamid [0 holocausto diário] Temura [Oferta substituída] Terumot [Ofertas alçadas] Toharot [Limpeza] Tebul Yom [Aquele que se emergiu naquele dia] 'Uqtsin [Hastes] Yadayim [Mãos] Yebamot [Cunhadas] Yoma (= Kippurim) [Dia da Expiação] Zabim [Os que sofrem fluxo] Zebahim [Ofertas de animais] Zera'im [Sementes, em relação às contribuições]
Outras obras rabínicas Abot R. Nat. Ag. Ber Bab. Bar Der. Er Rab. Der. Er Zuõ.
Abot [Pais] do rabino Natã 'Aggadat Bereshit [Midrash de Gênesis] Gemará babilónica Baraita [Material externo ou excluído] Derek Erets Rabba (Um dos tratados) menores do Talmude) Derek Erets Zuta (Um dos tratados) menores do Talmude)
Gem. Kalla Mek. Midr Pal. Pesiq. R. Pesiq. Rab Kah. Pirqe R. El. X
Gemará [Completude] Kalla [Ti-atado extracanônico sobre 0 Talmude] Mekilta [Comentário] Midrash [Estudo textual] (citado ao lado de abreviações de livros da Bíblia) Gemará palestina Pesiqta [Homilia] Rabbati Pesiqta [Homiiía] de Rab Kahana Pirqe de Rabi Eliezer
Abreviatura! Pirqe Ab. Rab.
Sipra Sipre
Pirqe Aboth [Dizeres dos pais] Rabbah [Comentário] (seguido de abreviações de livros da Bíblia: Rab. Gn = Rabbah de Gênesis) Sipra [Midrash de Levítico] Sipre [Midrash de Números e Deuteronômio]
Sop. S. ‘OlamRab. Talm. Tsem. Yal.
Soperim [Escribas] Seder ‘Olam Rabbah [A grande ordem do mundo] Talmude Tsemahot Yalqut [Antologia] (seguido do nome do autor)
Manuscritos da Biblioteca de Nag Hammadi AtPe 12 Ap Alógenes AfTg AfJo ApAd lA p T g 2Ap Tg Ap Pa ApPe Asclepio Di sv Dc8,9 En of Ep Pe Fi Eugnostos Exal Eveg EvFi Ev To Ev vd Grpo Hi ar Hypsiph. In CO Marsanes
Atos de Pedro e dos doze apóstolos Alógenes Apócrifo de Tiago Apócrifo de João Apocalipse de Adão Primeiro apocalipse de Tiago Segundo apocalipse de Tiago Apocalipse de Paulo Apocalipse de Pedro Asclépio 21—29 Diálogo do salvador Discurso sobre o oitavo e o nono Ensinamento oficial Epístola de Pedro a Filipe Eugnostos, 0 Abençoado Exegese da alma Evangelho dos egípcios Evangelho de Filipe Evangelho de Tomé 0 evangelho da verdade 0 conceito de nosso grande poder Hipóstase dos arcontes Hypsiphrone Interpretação do conhecimento Marsanes
Ml Norea Un Ba A BaB BaC Eu A EuB Or mu Pf Sem OrPa Orgr Se Sx So Js Cr Es Se En Si Te vd To Co TY Tdrs TdSe Tdtr Pr tr Ex va Zo
Melquisedeque 0 pensamento de Norea Sobre a unçno Sobre o batismo A Sobre o batismo B Sobre o batismo C Sobre a eucaristia A Sobre a eucaristia B Sobre a origem do mundo Paráfrase de Sem Oração do apóstolo Paulo Oração de ação de graças Sentenças de Sexto A sophia de Jesus Cristo As três esteias de Sete Os ensinamentos de Silvano Testemunho da verdade Livro de Tomé, o Combatedor Thjvão, mente perfeita Tratado sobre a ressurreição Segundo tratado do grande Sete Tratado tripariite Protenoia trimórfica Exposição valentiniana Zostrianos
Obras de consulta avulsas ou em coleções e periódicos AARAS
AB ABD
ABQ ABR ACNT
AGJU
AGSU
A JT ALGHJ
AnBíb ANRW
A N TC
ArBib
American Academy of Religion academy series Anchor Bible Anchor Bible dictionary, org. D. N. Freedman American Baptist Quarterly Australian Biblical Review The Augsburg commentary on the New Testament Arbeiten zur Geschichte des antiken Judentums und des Urchristentums Arbeiten zur Geschichte des Spätjudentums und des Urchristentums American Journal of Theology Arbeiten zur Literatur und Geschichte des hellenistischen Judentums Analecta biblica Aufstieg und Niedergang der römischen Welt Abingdon New Testament commentary The Aramaic Bible
AThANT ÄTR
AusBR AUSS
BAFCS
BACD
BAR BBB BBR Ba BDB
BDF
XXI
Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments Anglican Theological Review Australian Biblical Review Andreas University Seminary Studies The Book of Acts in its first century setting W. Bauer, W. F Arndt, F W. Gingrich, F. W. Danker, A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature Biblical Archaeology Review Bonner biblische Beiträge Bulletin for Biblical Research Brown classics in Judaica Francis Brown, S. R. Driver e Charles Briggs, Hebrew and English lexicon of the Old Testament F. Blass, A. Debrunner, R. W. Funk, A Greek grammar of the New Testament and other early Christian Literature
Dicionário teológico do Novo Testamento BECNT
BETL
BGU
Bib BIS BJS
BibRes BJRL
BNTC
Bsac BT BTB BTS BZNW
CAH CBET
CBQ CBQMS
Baker exegetical commentary on the New Testament Bibliotheca ephemeridwn theologicarum lovaniensium Ägyptische Urkunden aus den Museen zu Berlin Griech. Urkunden (15 v., 1895-1983) Biblica Biblical interpretation series Broun Judaic studies Biblical Research Bulletin of the John Rylands University Library of Manchester Black’s New Testament commentary Bibliotheca Sacra The Bible Translator Biblical Theology Bulletin Biblisch-Theologische Studien Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Cambridge ancient history Contributions to biblical exegesis and theology Catholic Biblical Quarterly Catholic Biblical Quarterly monograph series Cambridge Commentaries on writings of the Jewish and Christian world 200 B.C. to A. D.
200 CGB CGNH
CGTC
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Col ConB ConBNT ConNT CovQ aUNT CTJ
CTM
cm cv DHL
Códice gnóstico de Berlim Códices gnósticos de Nag Hammadi Cambridge Greek Testament commentary Corpus Inscriptionum Latinarum Colloquium: The Australian and New Zealand Theobgical Society Coniectanea biblica Coniectanea biblica neotestamentica Coniectanea neotestamentica Covenant Quarterly Compendia rerum iudaicarum ad novum testamentum Calvin Theological Journal Concordia Theological Monthly Criswell Theological Review Communio viatorum Dissertationes humanaram litterarum Dictionary of Jesus and the Gospels, org. J. B. Green, S. McKnight e I. Howard Marshall Dictionary of the later New Testament and its developments, org. R. P. Martin e P. H. Davids Dictionary of New Testament background, org. C. A. Evans e S. E. Porter Dicionário de Paulo e suas carias, org. R. P. Martin, G. F. Hawthorne e D. G. Reid
DRev USB EEC EG EDNT
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XXII
Downside Review Daily study Bible The expositor’s Bible commentary Epworth commentaries Exegetical dictionary of the New Testament, org. H. Balz e G. Schneider The Expositor’s Greek Testament Ecumenical Studies in Worship Erfurter Theologische Studien Evangelical Quarterly Evangelische Theologie An International Journal for the Theological Interpretation of Scripture Expository Times Facet books Facet books, biblical series Foundations and facets Fontes iuris romani antejustiniani The foundation of Judaism Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments Guides to biblical scholarship Grove liturgical studies Good news studies Grace Theological Journal Horizons in biblical theology Harvard dissertations in Religion Hermeneia Handbuch zum Neuen Testament Harper's New Testament commentaries History of religions Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testament Harvard Theological Review Harvard theological studies Hebrew Union College Annual Hermeneutische Untersuchungen zur Theologie Historische Zeitschrift Irish Biblical Studies International critical commentary Interpreter’s dictionary ofthe Bible Interpreter’s dictionary ofthe Bible, supplementary volume Israel Exploration Journal Inscriptiones latinae selectae (Berlim, 1892) Interpretation Interpretation commentaries Issues in religion and theology International standard Bible encyclopedia (ed. rev.) InterVarsity Press New Testament commentary Journal of the American Academy of Religion Journal of Biblical Literature Journal of Bible and Religion Journal of Comparative Sociology and Religion Journal of Ecclesiastical History
Abreviaturas
JES JETS jjs jp T s u p
JQR JR ms js j
JSNT JSNTSUP jscrr
jsoTsup jspsup
rrc
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jTs (n.s.) JTSA KP LEO Louw-Nida LSJ
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NHS NIBC
NovT NovTSup NSBT
NTAbh NTC NTCOm
N IC NTS N TT OB T
OCD OGIS
PBSR
PC PEO
LUA
L
LW
Luther's works, org. J. Pehkan e H. T. Lehmann Monumenta Asiae Minoris antiqua J. H. Mouhon e G. Milligan, The vocabulary of the Greek Testament, illustrated from the papyri and other non-literary sources (1930) Moffatt New Testament commentary A manual of Palestinian Aramaic texts Moravian Theological Seminary: Bulletin Le Museon Nestle-Aland Novum Testamentum graece, 26. ed. NatioTwl association of baptist professors of religion special studies The New American commentary New century Bible commentary New Clarendon Bible Neotestamentica New documents illustrating early Christianity, org. G. H. R. Horsley Nag Hammadi codices
MAMA
MM
MNTC
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NCIB Neot NewDocs
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U n iv e r s it e t s A
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XXIII
PG
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RevExp RevQ RCC
RGRW
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RQ RR RSB
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T r a n slit e r a ç â o E DO H
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0 0
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1= ô
r = G
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1 = ü
y = g
P = r
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A = D
S = S
ô = d
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E = E
T = T
£ = e
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Z = Z
Y = Y
Ç = z
o = y
H = E
= ph
0 = Th
X = Ch
9 = th
X = ch
1= I
»F = Ps
i = i
= ps
= ts
K = K
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P= q
K = k
(J = õ
A =L
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X =1
p = rh
u; =
M = M
‘ = h
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D = t
’ = y
Vogais breves = a
D = k
■ 7= 1
D= m
. ^
^ = i
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, = 0
D = s
. = u
V = ‘ D =
p
"I = r
Semivogais
(se sonora)
sh
li = m
n = t
t
= nx
N =N
yy = ng
V =n
au = au
H =X
£u =
eu
^ =X
ou =
ou
ui = ui
XXV
Dicionário teológico do Novo Testamento RTF
SacP SAJ SANT
SB SBBC
SBL SBLASP
SBW S
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SBLSBS
SBLSP
SBT
Schürer
scs SE
SEA SEG
SIC SHR SHT
SJ SJLA
SJT sn o p SNTW
SNTSMS
SNTSU
SPB SR
Reformed Theological Review Sacra pagina Studies in Ancient Judaism Studien zum Alten und Neuen Testament Sources bibliques Studies in the Bible and early Christianity Studies in biblical literature Society of Biblical Literature abstracts and seminar papers Society of Biblical Literature dissertation series Society of Biblical Literature monograph series Society of Biblical Literature sources for biblical study Society of Biblical Literature seminar papers Studies in biblical theology E.Schiirer, The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175 a.C.-135 d.C.), rev. e ed. G. Vermes et al. (3 v.; Edimburgo: 1973-1987) Septuagint and cognate studies Studia evangelica Svensk exegetisk ãrsbok Supplementum epigraphicum graecum (Leiden. 1923-) Suomen eksegeettisen seuran julkaisuja South Florida studies in the history of Judaism Sylloge Inscriptionum Graecarum Studies in the history of religions Studies in historical theology Studia judaica Studies in Judaism in Late Antiquity Scottish Journal of Theology Scottish Journal of Theology Occasional Papers Studies in the New Testament and its world Society for New Testament studies monograph series Studien zum Neuen Testament und seiner Umwelt Studia post-biblica Studies in Religion
ST STDJ
Str-B StudLit SWJT TBC TD TDGR
TD NT
TEH
TheolRev Tl
Tj (n.s.) TLZ TNTC
TOP TPINTC
TS
TSFBul TToday TU
TynB TZ USQR VC
VoxEv VT VTSU p WA WBC WEC W MANT
WTJ WUNT
z s :n t
ZThK
XXIV
Studia theologica Studies on the texts of the deseri of Judah Strack e Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament Studia liturgica Southwestern Journal of Theology Torch Bible commentaries Theology digest Translated documents of Greece and Rome, org. R. K. Sherk Theological dictionary ofthe New Testament, org. G. Kittel e G. Friedrich Theologische Existenz heute (nova série) Theological Review (Beirute) Theological inquiries Trinity Journal (nova série) Theologische Literaturzeitung Tyndale New Testament commentary Theology occasional papers Trinity Press International New Testament commentaries Theological Studies TSF Bulletin Theology Today Texte und Untersuchungen Tyndale Bulletin Theologische Zeitschrift Union Seminary Quarterly Review Vigiliae christianae Vox evangelica Vetus Testamentum Vetus Testamentum supplements Weimar Ausgabe Word biblical commentary Wycliffe exegetical commentary Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament Westminster Theological Journal Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Zeitschrift für Religions und Geistesgeschichte Zacchaeus Studies: New Testament Zeitschrift für Theologie und Kirche
C o la bo r a d o r es A l l i s o n J r .,
Dale C., ph.D . Professor da cátedra Er-
Barry L., ph.D. Professor, Atlanta Chris
B la c k b u rn ,
rett M. Grable de Exegese do Novo Testamento
tian College, East Point, Geórgia,
e Cristianismo Primitivo, Pittsburgh Theologi
r e la t o s d e m ila g re s I.
cal Seminary, Pittsburgh, Pensilvânia,
eua: es
Clinton
E .,
ph.D. Professor de Lingua e
Literatura do Novo Testamento, Talbot School of Theology, La Mirada, Califórnia,
eua; E fé s io s ,
A une, David E., ph.D. Professor de Origens do Novo Testamento e do Cristianismo, Universi ty of Notre Dame, Notre Dame, Indiana,
eua;
John M. G„ ph.D. Professor de Origens do
Novo Testamento e do Cristianismo, University of Glasgow, Glasgow, Escócia;
Jesus e P a u lo .
Paul W., ph.D. Bispo jubilado da Igre
ja Anglicana do Norte de Sydney, Diocese de Sydney, Sydney, South New Wales, Austrália: Scott, ph.D. Diretor do
u c la
Center for
the Study of Religion [Centro de Estudos da Re ligião da
u c la ]
e professor adjunto de Origens
Cristãs e História da Religião no Departamento de História, University of California, Los Ange les, Califórnia, B au ckh am ,
Seminary, Dallas, Texas, eua;
mes A. Maxwell de Teologia Bibhca, Seminário silvânia,
cátedra Rylands de Crítica e Exegese Biblica, University of Manchester, Manchester, Reino Unido; B u rge,
C a lv e r t - K o y z is ,
caster, Ontário, Canadá; C a m p b e ll,
David R., ph.D. Professor de Estudos Bíbli
cia; C h ilt o n ,
eua; F ilh o d e D a v i; F ilh o d e D eu s i.
Gregory K., ph.D. Professor da cátedra Ken
neth T. Wessner de Estudos Bíblicos, professor de Novo Testamento, Wheaton College Gradua eua; e s c a t o lo g ia hi.
George R. [in memorian). Profes
sor de Novo Testamento, Southern Baptist The ological Seminary, Louisville, Kentucky, batism o ii; A p o c a lip s e , L iv r o de.
A b ra ã o .
William S., ph.D. Livre-docente de Estu
University of Birmingham, Birmingham, Reino
cos, Asbury Theological Seminary, Wilmore,
B e a s le y - M u r r a y ,
Nancy, ph.D. Professora de Religião
e Teologia, Redeemer University College, An-
a lia n ç a . N o v a A u a n ç a ; I s r a e l ii.
Chrys
C.
th.D. Professor de Exegese do
Novo Testamento, Lund University, Lund, Sué
P e d r o , S egu n d a C a r t a de.
te School, Wheaton, Illinois,
eua;
J o ã o , C a r ta s de.
Unido;
B e a le ,
P a u lo em A t o s e n as c a rta s .
Gary M., ph.D. Professor de Novo Testamen
C a r a g o u n is ,
S t.
eua; ju s t iç a / r e t id ã o ii.
F. F., D. D. [in memorian). Professor da
B ru c e ,
Mary’s College, Uni
Kentucky,
Lu ca s, E v a n g e lh o de.
Manfred T , ph.D. Professor da cátedra Ja
B ra u c h ,
dos Religiosos e Teológicos, Westhill College,
eua: com u n h ã o À mesa.
Richard J., ph.D. Professor de Estudos
do Novo Testamento,
B a u e r,
c o n h a b ilid a d e
Darrell L., ph.D. Professor Pesquisador de-Es-
versity of St. Andrews, St. Andrews, Reino Unido:
E v a n g e lh o s ,
to, Wheaton College, Wheaton, Illinois,
a d v e r s á rio s i; a p ó s t o lo ; s a lva çã o hi. B a r tc h y , s .
B o ck ,
eua:
DOS.
Teológico Batista do Leste, Wynnewood, Pen
a p o ca lip tism o .
B a rn e tt,
ver, Colorado, h is t ó r ic a
tudos do Novo Testamento, Dallas Theological
C a r t a aos.
B a r c la y ,
Craig L., ph.D. Professor com distinção
B lo m b e rg ,
de Novo Testamento, Denver Seminary, Den
c a t o lo g ia I. A r n o ld ,
eua; m ila g re s ,
eua;
R e in o d e D eu s i.
Bruce D., ph.D. Professor da cátedra Ber
nard Iddings Bell de Religião, Bard College, Annandale, Nova York,
eua; ju daísm o e o
Novo
T e s ta m e n to ; t r a d iç õ e s e e s c r ito s ra b ín ico s. C o r le y ,
Bruce, th.D. Professor de Novo Testamen
to, Southwestern Baptist Theological Seminary, Fort Worth, Texas, D a vid s,
eua; Jesus, ju lg a m e n t o de.
Peter H., ph.D. Consultor acadêmico. Igreja
Vineyard, Stafford, Texas,
eua; m ila g re s , r e la t o s
DE m ila g re s II; RIQUEZAS E POBREZA I.
Colaboradores
David A., ph.D. Professor de Novo Testa-
D e S ilv a ,
mento e Grego, Ashland Theological Seminary, Ashland, Ohio,
eua: A p ó c r ifo s e P s e u d e p íg ra fo s .
G ile s ,
Kevin N., th.D. Ministro, Igreja St. Michaels.
North Carlton, Austrália: G reen ,
I g r e j a hi.
Joel B., ph.D. Deao de Assuntos Acadêmicos
John M., ph.D. Professor real (nomeado e
e da Escola de Teologia, Professor de Interpre
aprovado pela Coroa do Reino Unido) de Gre
tação do Novo Testamento, Asbury Theological
D illo n ,
go, Trinity College, Dublin, Irlanda:
Seminary, Wilmore, Kentucky,
fi l o s o f i a .
David, ph.D. Diretor e professor de Estu
D ock ery,
dos Cristãos, Union University, Jackson, Ten nessee,
D.
D. Diretor, Centro de Estudo do
Cristianismo e da Sociedade Contemporânea, University of Stirling, Stirling, Reino Unido:
F i
James D. G., D. D. Professor da cátedra Li-
ghtfoot de Teologia, University of Durham, Durham, Reino Unido:
rária de Novo Testamento, Departamento de Teologia e Estudos Religiosos, University of Aberdeen, Aberdeen, Reino Unido:
versity of Western Ontario e Conrad Grebel College, University of Waterloo; pastor. Igreja Batista de Frank Street, Wiarton, Ontário, Ca nadá: E lu s ,
eua: M a r c o s , E va n
G u t h r ie ,
Donald, ph.D. (in memorian). Palestrante
D eu s ii.
Scott J., th.D. Cátedra Gerald F. Hawthor
ne de Grego Neotestamentário, Wheaton College, Wheaton, Illinois,
eua: C o rín tio s , C a rta s aos.
G. Walter, th.D. Diretor do Instituto de
H an sen ,
Testamento, Fuller Theological Seminary, Pasa dena, Califórnia, H a w th o r n e ,
eua: G á la ta s , C a r t a aos.
Gerald P., ph.D. Professor emérito de
Grego e Exegese do Novo Testamento, Whea ton College, Wheaton, Illinois,
I s r a e l i.
E. Earl, ph.D. Professor pesquisador de Teo
logia, Southwestern Baptist Theological Semi nary, Fort Worth, Texas,
London Bible College, Northwood, Inglaterra:
Pesquisa Global e professor assistente de Novo
R om a.
Mark A., ph.D. Professor adjunto. Uni
E lu o tt,
nary, Pasadena, Califórnia, g e l h o de.
H a fem an n ,
R o m a n o s, C a r t a aos.
Ruth B., ph.D. Palestrante sênior hono
E d w a rd s ,
Robert A., th.D. [in memorian). Professor
G u eu ch ,
de Estudos do Novo Testamento e vice-diretor,
l h o d e D eu s hi. Dunn,
dos
de Novo Testamento, Fuller Theological Semi
eua: batism o i.
John W.,
D ra n e,
eua: A t o s
A p ó s t o lo s ; C r is t o , m o rte d e i; C r is t o , m o r te d e h.
eua: E s p írito S a n
t o ih; F iu pen ses, C a r t a aos.
William R., ph.D. Delo do Corpo Do
H e r z o g h,
cente e professor de Interpretação do Novo
eua: C a r ta s P a s t o r a is .
Richard J., ph.D. Professor assistente de
Testamento, Colgate Rochester Divinity Scho
Novo Testamento, Fuller Theological Seminary
ol/ Bexley Hall/Crozer Theological Seminary,
E r ic k s o n ,
Northwest, Seattle, Washington, E van s,
Nova York,
eua: c a r n e .
Craig A., ph.D. Professor com distinção da
H u rst,
Estudos da Religião, University of California,
cátedra Payzant de Novo Testamento, Acadia
Davis, California,
Divinity College, Wolfville, Nova Escócia, Ca nadá:
H u rta d o ,
a p o ca lip tism o .
eua: te m p lo , p u rific a ç ã o d o .
Lincoln D., ph.D. Professor assistente de
eua: é t ic a i.
Larry W., ph.D. Professor de Lingua, Li
Stephen G., ph.D. Professor de Pregação e
teratura e Teologia do Novo Testamento, The
Adoração. Knox College, Toronto School of Theo
University of Edinburgh, Edimburgo, Reino
F a r ris ,
logy, Toronto, Ontário, Canadá: F e rg u s o n ,
Unido:
a d o ra ç ã o / c u lto i.
Everett, ph.D. Professor emérito, Abilene
Christian University, Abilene, Texas,
eua: r e l i
K een er,
K im ,
S e r v o d e Jave.
Ronald Y. K., ph.D. Jubilado, Acadêmico e
palestrante residente, China Graduate School of Theology, Hong Kong: G e d d e rt,
Wynnewood, Pensilvânia,
Richard T , ph.D. Jubilado, Diretor, Wycli
ffe Hall, Oxford, Reino Unido: Fung,
Craig S., ph.D. Professor de Novo Testa
mento, Eastern Baptist Theological Seminary,
g iõ e s g r e c o -ro m a n a s . France,
c r i s t o l o g i a ii; D eu s i; e v a n g e lh o ( g ê n e r o );
S e n h o r ii; F ilh o d e D eu s ii.
Timothy J., ph.D. Professor assistente de
n.
Fuller Theological Seminary, Pasadena, Califór nia, K r e itz e r ,
c o r p o d e C r is t o .
eua: m u lh eres
Seyoon, ph.D. Professor de Novo Testamento, eua: r e in o d e D eu s ih.
Larry J., ph.D. Professor de Novo Tes
tamento, Regent’s Park College, University of
Novo Testamento, Mennonite Brethren Biblical
Oxford, Oxford, Reino Unido:
Seminary, Fresno, Califórnia,
c a t o l o g i a ii; r e in o d e D eu s ii; r e s s u rr e iç ã o h.
eua: a p o ca u p tis m o .
XXVII
A d ã o e C r is t o ; es
Dicionário teológico do Novo Testamento
K
Catherine C., ph.D. Professora assisten
roeger,
O
Metodistas Unidas de Rancocas e Masonville,
Clássicos e Ministeriais, Gordon-Conwell The ological Seminary, South Hamilton, Massachu setts, K
le, Vitória, Austrália: ane,
William
L .,
mento, Trinity Evangelical Divinity School, De P
a ig e ,
th.D. Professor de Estudos Bíbli
ghton, Nova York, P
eua;
E s p í r it o S a n t o
ii.
Arthur G., ph.D. Professor de Novo Testa
a t z ia ,
Califórnia, Menlo Park, Califórnia,
H
ebreus,
C
arta aos.
John R., ph.D. Professor de Novo Testa
e v is o n ,
arshall,
eua;
C r ia ç ã o ,
i;
P
a r t in
,
F il h o
ton, Ontário, Canadá: P
ow ers,
P
.
R
D
eus
ii;
Mark, ph.D. Professor assistente de Estu
dos BibUcos, Bethel College, St. Paul, Minneso eua:
S c h m id t ,
cu lto ii; a d o r a ç ã o /c u lto iil cG rath ,
a u lo , conversão e c h a m a d o d e .
ta,
ad o raç ão /
pecad o h.
Janet Everts, ph.D. Professora assistente de
easoner,
com distinção. Fuller Theological Seminary, eua:
F il e
Religião, Hope College, Holland, Michigan, e u a :
Senhor
Ralph P., ph.D. Acadêmico em Residência
Pasadena, Califórnia,
eua;
.
Testamento, McMaster Divinity School, Hamil
ig r e j a i ; c e ia d o
do hom em
a
Stanley E., ph.D. Diretor, Professor de Novo
orter ,
n o v a c r ia ç ã o .
1. Howard, D. D. Professor emérito de
salvação ;
, C arta
mom
norário de Pesquisa, University of Aberdeen,
R
om a.
Thomas E., ph.D. Santa Bárbara, Califórnia,
e u a : r iq u e z a s e p o b r e z a i i ; r iq u e z a s e p o b r e z a
Alister E., ph.D. Diretor, Wycliffe Hall,
m.
David M., th.D. Professor de Novo Testa
Sch o ler ,
Professor de Teologia Histórica, Oxford Univer
mento e vice-reitor do Centro de Estudos Teoló
sity, Oxford, Reino Unido:
gicos Associados, Fuller Theological Seminary,
c K n ig h t ,
j u s t if ic a ç ã o .
Scot, ph.D. Professor da cátedra Karl A.
Pasadena, Califórnia,
Olsson de Estudos da Religião, North Park Uni versity, Chicago, Illinois,
eua:
M
ateus,
S c h r e in e r ,
Seminary, Louisville, Kentucky,
M ichaels, J. Ramsey, th.D. Professor emérito. Sou
Sco tt,
thwest Missouri State University, Springfield, Missouri,
eu a: P e d r o ,
e u a : m ulh eres i.
Thomas R., ph.D, Professor de Novo
Testamento, The Southern Baptist Theological
E vangelho
d e ; j u s t iç a / r e t id ã o i .
P rimeira
eua:
L
e i h i.
James M., th.D. Professor de Estudos da
Religião, Trinity Western University, Langley, CoMmbia Britânica, Canadá:
C a r t a de.
Moo, Douglas J., ph.D. Professor da cátedra Blan
S e if r id ,
a d o ç ã o , f il ia ç ã o .
Mark A., ph.D. Professor assistente de
chard de Novo Testamento, Wheaton College
Novo Testamento, The Southern Baptist Theo
Graduate School, Wheaton, Illinois,
logical Seminary, Louisville, Kentucky,
M
o r r is ,
M
ott,
eua:
L
ei i .
Leon, ph.D. Jubilado, Melbourne, Victoria,
Austrália:
C r is t o ,
salv a ç ão ii; p e c a d o i .
S im p s o n ,
Stephen C., ph.D. Pastor, Igreja Metodista
chusetts, ew m an
,
eua:
a l ia n ç a ;
D
ÉTICA II.
Snodgrass,
eu a: a l ia n ç a ,
eua:
j u íz o h i .
C artas
eua:
T
e s s a l o n i-
aos.
Klyne R., ph.D. Professor da cátedra
Paul W. Brandel de Estudos Neotestamentários, North Park Theological Seminary, Chicago, Illi
nova
nois,
e u s h i ; j u s t iç a / r e t id ã o h i .
O’Brien, Peter T , ph.D. Pesquisador sênior, Moore
C r is t o ;
John W. Jr., ph.D. Editor, William B. Eerd-
censes,
Carey C., ph.D. Diretor, Editora da Univer
sidade Baylor, Waco, Texas,
m o r t e d e h i; e m
mans. Grand Rapids, Michigan,
Unida de Cochesett, West Bridgewater, Massa N
ph.D. Professor assistente de
mento, Fuller Theological Seminary, Norte da
eua;
Aberdeen, Reino Unido:
M
e u a : r e s s u r r e iç ã o i .
shington,
Exegese do Novo Testamento e professor ho
M
P .,
Walls, Seattle Pacific University, Seattle, Wa
shington,
M
Terence
Novo Testamento, Houghton College, Hou
mento, Seattle Pacific University, Seattle, Wa M
erfield, lUinois,
apó sto lo .
cos da cátedra em honra do falecido Paul T.
L
e u a : j u s t iç a / r e t id ã o i i .
Grant R, ph.D. Professor de Novo Testa
sborne,
e u a : m u lh e res iii,
Pós-gradução, Bible College of Victoria, LilydaL
Nova Jérsei, O
Colin C., ph.D. Coordenador de Pesquisa na
ruse,
Karen L., ph.D. (Cand.) Pastora, Igrejas
n e s t i,
te temporária ou de tempo parcial de Estudos
Stam ps,
eu a: parabo las.
Dennis L., ph.D. Diretor, West Midlands
Theological Seminary, Newtown, New South
Ministerial Training Course, The Queens Foun
Wales, Austrália:
dation for Ecumenical Theological Education,
ig r e ja
ii;
C o lo s s e n s e s ,
C a rta
Birmingham, Reino Unido:
a o s ; c a r t a s , fo r m a s d e c a r t a s i.
XXVIII
r e t ó r ic a .
Colaboradores
University, Durham, Carolina do Norte,
w. Richard, ph.D. [in memorian] Profes
Stegner,
sor de Novo Testamento, Garrett-Evangelical Theological Seminary, Evanston, Illinois, P
au lo ,
S t e in ,
eua:
atson,
eua; T ia g o , C a r t a de.
Duane P., ph.D. Professor de Novo Tes
CARTAS, FORMAS DE CARTAS II.
eua:
Ú
l t im a
C e ia ;
P
ro blem a
W ebb,
eua:
Robert L., ph.D. Professor assistente tempo
Jerry L., ph.D. Professor de Estudos Bíbli
rário ou de tempo parcial de Novo Testamento,
cos, Lexington Theological Seminary, Lexing
McMaster Divinity College, Hamilton, Ontário, Canadá:
a d v e r s á r io s i i .
Frank S., ph.D. Professor presbiteriano
W
il k in s ,
Judas, C a r t a de.
Michael
J .,
ph.D. Professor de Lingua e Li
de Teologia, Beeson Divinity School, Birmin
teratura do Novo Testamento, Deão acadêmico,
gham, Alabama,
Talbot School of Theology, La Mirada, Califór
h om pso n,
eua;
L
ei ii.
ological Seminary, Pasadena, Califórnia, JoAo, r a v is ,
E vangelho
e u a : d is c íp u l o s ; p e c a d o r e s .
Michael O., ph.D. Professor de Bíblia e His
lege, Saint Paul, Minnesota, MAR M W
e u a : m a n u s c r it o s d o
o rto .
i t h e r in g t o n h i,
Ben, ph.D. Professor de Novo Tes
tamento, Asbury Theological Seminary, Wil
i i ; r e s s u r r e iç ã o h i .
Max M. B., ph.D. Professor de Estudos
Neotestamentários, London Bible College, Nor thwood, Reino Unido:
is e ,
tória, Consultor acadêmico. Northwestern Col
eua:
Stephen H., ph.D. Vice-diretor, St. John's
do: jufzo i; jufzo
e rh e y,
W
de.
College, Nottingham, Nottingham, Reino Uni
urner,
nia,
Marianne Meye, ph.D. Professora de
Interpretação do Novo Testamento, Fuller The
W
ton, W
isville, Kentucky,
h ie l m a n ,
V
Robert W., th.D. Professor de Escrituras Cris
tamento, Malone College, Canton, Ohio,
ton, Kentucky, USA:
T
e u a: ba
h.
Southern Baptist Theological Seminary, Lou
S iNÓTICO.
T
Senhor
tãs, Seattle Pacific University, Seattle, Washing
Robert H., ph.D. Professor da cátedra Mil
SuM NEY,
T
W a ll,
o Ju d e u .
dred e Ernest Hogan de Novo Testamento, The
T
t i s m o h i ; c e ia d o
E s p í r it o S a n t o
more, Kentucky, i; C
r is t o
ii;
C
S e n h o r i; S e n h o r
i.
Allen D., ph.D. Professor da cátedra Evert
Y a m au ch i,
eua:
r is t o
Je su s,
n a s c im e n t o d e ;
i h ; c r is t o l o g i a
i;
h i.
Edwin M., ph.D. Professor de História,
J. e Hattie E. Blekkink de Religião, Hope Col
Miami University, Oxford, Ohio,
lege, Holland, Michigan,
Mo; sin a g o g a .
a in w r ic h t ,
e u a : é t ic a m i .
Geoffrey, th.D.,
dd.
Professor da
cátedra Cushman de Teologia Cristã, Duke
XXIX
C r is t o
Jo ã o B a t is t a ;
eua: g n o s tic is -
A
ba
.
Ver a d o ç ã o ,
trava batalhas contra alguns reis (Gn 14.1-16)
f il ia ç ã o .
encontra-se com Melquisedeque (Gn 14.17-20) A
braão:
N
ovo
T
estam ento
Personagem-chave na literatura judaica primitiva,
Deus firma aliança com ele (Gn 15.7-21; 17.2,4) une-se com Agar e nasce Ismael (Gn 16.1-15); Deus
Abraão é mencionado nos quatro Evangelhos e
ordena que Abraão e seus descendentes sejam cir
desempenha um papel fundamental nas cartas de
cuncidados (Gn 17.9-14); o nascimento de Isaque é
Paulo aos Gálatas e aos Romanos. Autores posterio
prometido (Gn 17.15-21); nasce Isaque (Gn 21.1-7);
res do NT continuam a valer-se de Abraão, de modo
Abraão dispõe-se a entregar Isaque em oferta
significativo em Atos e Hebreus e em grau menor
(Gn 22.1-19); Sara morre e é sepultada (Gn 23.1-20). Quatro temas primordiais são encontrados no
em Tiago e 1Pedro. 1. 0
AT
e a literatura judaica
relato de Gênesis: a promessa divina de que Abraão
2. Os Evangelhos Sinóticos
teria muitos descendentes (Gn 12.2; 13.16; 15.5
3. 0 Evangelho de João
17.2,4; 22.17); a dádiva de uma terra (Gn 12.7
4. Atos dos Apóstolos
13.14,15; 15.7); a obediência de Abraão (Gn 12.1-4
5. As cartas de Paulo
17.1; 22.16-18); a bênção posterior de todas as na
6. Hebreus
ções por meio de Abraão (Gn 12.3; 22.18). No
7. Tiago e IPedro
AT,
Abraão exerce três funções principais.
Em primeiro lugar, ele é o pai do povo judeu 1. O AT e a literatura judaica
(Gn 25.19; 26.15,24; 28.13; 32.9; 48.15,16; Êx 3.6;
O papel desempenhado pelos patriarcas foi sendo
Dt 1.8; 6.10; 9.5; 30.20; Js 24.3; ICr 1.27,28,34;
cada vez mais importante para o povo judeu depois
16.13; SI 105.6; Is 41.8; Jr 33.26; Mq 7.20). Em
de retornar do Exílio na Babilônia. Abraão foi um
segundo lugar, é a fonte originária das bênçãos
desses personagens importantes, cuja elevada re
que recaem sobre o povo judeu (Gn 26.24; 28.4
putação repercute tanto no
nt
quanto na literatura
judaica extrabíblica. 1.1
35.12; 50.24; Êx 2.24; 6.3-8; 32.13; 33.1; Nm 32.11 Dt 1.8; 6.10; 9.5,27; 29.13; 30.20; 34.4; 2Rs 13.23
Abraão no xr. Relatos posteriores de Abraão ICr 16.15,16; 2Cr 20.7; SI 105.7-11,42; Is 51.2
baseiam-se nas histórias encontradas em Gênesis a
Mq 7.20). Em terceiro lugar, seu nome é usado para
respeito do patriarca. A vida de Abraão é retratada no
identificar o Deus do povo judeu como “ o Deus de
primeiro livro da Bíblia hebraica, desde sua inclusão
Abraão” (Gn 28.13; 31.42,53; 32.9; Êx 3.6,15,16;
na genealogia do pai, Terá (Gn 11.27), até sua morte
4.5; IRs 18.36; ICr 29.18; 2Cr 30.6; SI 47.9).
e sepultamento (Gn 25.7-10). Os principais aconteci
Abraão exerce ainda três outras funções dignas
mentos da vida de Abraão são: separa-se do pai e sai
de nota. Sua obediência a Deus e às leis divinas
do lugar de nascimento (Gn 12.1); permanece algum
(Gn 26.4,5; v, tb. Ne 9.7,8) serviu de base para as
tempo no Egito e em Gerar (Gn 12.10-20; 20.1-18);
bênçãos de que seus descendentes foram alvo. Às
A b r a ã o : N o v o T estamento
vezes, recorre-se à compaixão de Deus para com o
Abraão está vivo (4Mc 7.19; 16.25; Te Le, 18.14;
povo judeu, tendo por base a aliança que ele fir
Te Ju, 25.1; Te Be, 10.6) e elogia os que morrem
mou com Abraão (Dt 9.27; 2Rs 13.23; Mq 7.18-20).
para cumprir a Lei (4Mc 13.13-18). Abraão fir
Por último. Deus tirou Abraão do meio da idola
mou a aliança ao ser circuncidado (Eo 44.20).
tria (Js 24.2,3).
Além de tudo isso, ele se destaca pelo que é ca
1.2 Abraão na literatura judaica primitíva.
paz de conquistar por meio da intercessão [Te
Os autores da literatura judaica de 200 a.C. a 200
Ab, 18.10,11A) e por sua ascensão aos céus, onde
d.C. fizeram uso de muitos temas encontrados
recebe revelação
nos relatos do
W— U ;A p A b , 15.4-30).
at,
relacionando-os às circunstân
(P s e u d o - F ilo ,
An bí, 18.5; Te Ab,
cias específicas desses mesmos autores. Josefo e Filo retratam Abraão como alguém que assimila a
2. Os Evangelhos Sinóticos
cultura pagã, sobretudo a helem'stica (e.g.,
J o sefo ,
Abraão é mencionado em todos os Evangelhos
Ab, 88). Em outros tex
Sinóticos (Mt 1.1,2,17; 3.9; 8.11; 22.32; Mc 12.26;
tos, Abraão é alguém que se isola da influência
Lc 1.55,73; 3.8,34; 13.16,28; 16.22-30; 19.9; 20.37).
An, 1.8.2, § 166-8;
F ilo ,
An bí, 6.4). Os
2.1 Tradiqões sobre Abraão comuns aos três
autores desses textos têm motivações apologéticas
Sinóticos. Abraão é mencionado apenas uma vez
gentílica {Jb, 22.16;
P s e u d o -F ilo ,
e didáticas. Os judeus são instruídos a viver em
em Marcos (Mc 12.26), e aí no contexto da pergun
suas circunstâncias da mesma maneira que a li
ta feita pelos saduceus a respeito do estado conju
teratura retrata Abraão vivendo em seu tempo e
gal, na ressurreição, da mulher que se havia casado com sete irmãos consecutivamente (Mc 12.18-27;
circunstâncias. Quatro temas principais são encontrados nes
V.
tb. Mt 22.23-33; Lc 20.27-40). Os saduceus, que
ses textos. Primeiro: o realce sobre Abraão como
não criam na ressurreição (Mc 12.18; Mt 22.23;
monoteísta ferrenho, muitas vezes retratado como
Lc 20.27), apresentam a ideia como um absurdo
0 primeiro do tipo, é predominante em textos da
dentro dos relacionamentos humanos da época.
Palestina e da Diáspora de 200 a.C. a 200 d.C. 11.16,17; 12.1-5,16-21; 20.6-9;
(J b ,
An bí, 6.4; J o s e fo , An, 1.7.1, § 154-7;
Em Marcos e Mateus, Jesus dá aos saduceus
P s e u d o - F ilo ,
uma resposta em duas direções, uma vez que eles
Ab, 68-
nem conhecem “as Escrituras nem o poder de
71,88; Ap Ab, 1—8). Segundo: Deus estabelece
Deus” (Mc 12.24; Mt 22.29). Pelo poder de Deus,
uma aliança com Abraão por meio da qual seus
os que ressuscitaram dos mortos são como anjos
descendentes são abençoados [Jb, 15.9,10;
P se u
e não se casam. Assim, o casamento torna-se ob
An bí, 7.4; IQapGen 21.8-14), sendo eles
soleto. Em segundo lugar, Jesus usa a identifica
d o - F ilo ,
F ilo ,
An
ção que Deus faz de si mesmo a Moisés na sarça
bí, 30.7; SI Sa, 9.8-11; Te Le, 15.4; Aç Ms, 3.8,9).
ardente (Êx 3.6) como prova de que Deus é Deus
No entanto, às vezes é preciso obedecer às estipu
de vivos, não de mortos. Deus é fiel às promessas
lações da aliança para permanecer inserido nela
que fez aos patriarcas, segundo as quais seria o
{Jb, 15.26,27). No final de tudo, outras nações
Deus deles (no caso de Abraão, v. Gn 17.7) e, na
seriam abençoadas também (Eo 44.21). Terceiro:
seqüência, também do povo de sua ahança. O re
também alvo de sua compaixão
( P s e u d o - F ilo ,
o caráter de Abraão é exaltado. Ele é íntegro [Te
lato de Lucas divide os modos de vida em presen
Ab, I.IA ), hospitaleiro (Te Ab, 1.1-3A;
Ab,
te e futuro (Lc 20.34,35), acrescentando “para ele
An, 1.11.2, § 196) e de boa mo
todos vivem” (Lc 20.38). 0 autor de 4Macabeus,
107-110; ral
JosEFo,
Ab, 68). Ele é
de forma semelhante, retrata os patriarcas como
fiel (Eo 44.20; IM c 2.52; Jb, 17.17,18). Ele ama a
os que “ não morrem para Deus, mas vivem em
Deus
[ou ‘para’] Deus” (4Mc 7.19; 16.25).
(J o s e fo ,
(J b ,
An, 1.7.1, § 154;
F ilo ,
F ilo ,
17.18) e é até mesmo chamado “amigo
de Deus” (CD 3.2-4). Josefo afirma que Abraão e sua descendência são recompensados por causa da virtude e da piedade do patriarca [An, 1.13.4, § 234). Quarto: Abraão vivia de acordo com a Lei
2.2 Ti-adições sobre Abraão comuns a Mateus e a Lucas 2.2.1
As genealogias. Embora Mateus e Lucas
incluam Abraão nas genealogias que registram
mosaica (Jb, 15.1,2; 16.20; Eo 44.20) ou de acor
(Mt 1.1,2,17; Lc 3.34), ele se reveste de maior
do com a lei natural/filosófica
importância em Mateus. 0 EvangeUsta introduz o
(F ilo ,
Ab, 3—6).
I 2
A b r a ã o : N o v o T estamento
2.2.3 Abraão no banquete escatológíco (M t 8.10,
Evangelho com a designação “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi [v. lho de Abraão” (Mt
1 .1 ).
F ilh o de D a v i],
fi
11: Lc 13.28,29). Mateus e Lucas falam do ban quete escatológíco (v.
A transição para a genea
com u n hão à m esa ),
no qual
logia é simples, uma vez que começa com Abraão,
presidirão Abraão, Isaque e Jacó (Lucas acrescen
“pai de Isaque” (Mt
ta “todos os profetas” em Lc 13.28). É comum na
1.2;
v. tb. ICr
1.34 ).
Abraão
é mencionado uma terceira vez em Mateus
tradição judaica encontrarmos Abraão, Isaque e
1.17,
em que o Evangelista esboça momentos decisivos
Jacó associados com os justos (v.
da história israelita, com catorze gerações desde
V. W a r d ,
ju s tiç a / re tid ã o ;
p. 176; cf. 4Mc 13.17; Te Le, 18.14; Te
Abraão até Davi, catorze gerações de Davi ao Exí
Ju., 25.1; Te Be, 10.6. V. tb. At 3.13 e 7.32, em
lio e catorze gerações do Exílio a Cristo.
que ocorrem os três). O relato de Mateus apare ce na conclusão da história do centurião gentio
É importante que Jesus seja filho de Abraão por três razões principais: 1) significa que Jesus
(Mt 8.1-13;
é judeu e, portanto, descendente biológico de
correspondência nem entre judeus (Mt 8.10). Em
Abraão; 2) embora o título “filho de Abraão” não
Lucas, a cena do banquete escatológíco é inserida
V.
Lc 7.1-10), cuja fé não encontra
para que
na parábola da porta estreita (Lc 13.22-30). Am
0 Messias transmitisse a seu povo as bênçãos inicia
bos os contextos, no entanto, retratam a inclusão
das com Abraão, precisava ser ele mesmo descen
dos gentios no banquete escatológíco do reino
seja messiânico
(D a v ie s & A l u s o n ,
p.
158),
dente de Abraão; 3) Abraão deu origem à história
de Deus (Mt 8.11; Lc 13.29; v. SI 107.3; Is 49.12),
israelita, ao passo que Jesus surge como aquele que
bem como a exclusão de certos judeus (Mt 8.12;
conduz essa mesma história ao ápice (Mt
Lc 13.27,28). Nesses relatos, Abraão é primordial
1.17).
Embora a genealogia de Lucas apenas mencio
mente uma figura escatológica, embora o Evange
ne Abraão (Lc 3.34), ainda assim é significativo
lista, tanto em Mateus quanto em Lucas, procure
que Jesus seja um “ filho de Abraão” , uma vez
estabelecer uma “relação e uma continuidade en
que, como tal, ele é judeu e canal de bênçãos
tre a história de Abraão e os acontecimentos sobre
para o povo de Deus. Em Lucas, a genealogia de
os quais está escrevendo”
Jesus, que aí remonta a Adão e a Deus, pode ser
de Abraão ser retratado como figura celestial cer
uma forma de manifestar o tema da expansão da
tamente não é algo novo, tampouco sua reputação
salvação até os gentios, uma vez que contempla
de estender hospitalidade até mesmo aos gentios
seu relacionamento com toda a espécie humana
(v. 1.2 acima; Te Ab Rec A, 1.1,2).
na qualidade de Filho de Deus (v. F itzm ye r ,
v.
2.2.2
1,
p.
F ilho
de
(D a h l ,
p. 140). 0 fato
2.3 Referências a Abraão feitas especifica
D eus;
mente por Lucas
19 0).
2.3.1
Filhos de Abraão a partir de pedras
Os hinos. Lucas é o único a incluir hinos
(M t 3.9; Lc 3.8). Ambos os Evangelistas mencio
em sua narrativa da primeira infância de Jesus.
nam Abraão no cenário mais amplo do ministério
Lucas pode ter usado material de fontes exter
de João Batista no rio Jordão (Mt
3.1-9;
nas na composição desses hinos. No entanto, “a
João adverte os que o procuram
aceitação dessas fontes não significa dizer que
V.
Jo
8.33 ,39 ).
3.1-17;
Lc
para ser batizados (fariseus e saduceus em Mt “multidões” em Lc
Lucas não as tenha editado, seguindo estilo pró
3.7;
prio”
de que não podem mais
3.7)
(F it z m y e r , v .
1, p. 309). Dois desses hinos
fiar-se em seu privilégio étnico, na qualidade de
fazem referência a Abraão (Lc 1.46-55,67-79). 0
descendentes de Abraão, como garantia de que
Magnificat é o hino de Maria, em que ela exulta
serão protegidos da ira divina. Deus pode suscitar
no antegozo do nascimento de Jesus (v. tb. ISm
“filhos” (Mt 3.9; Lc 3 .8) a Abraão a partir de pedras
2.1-10). 0 tema do hino é que Deus socorre seu
(v. Is
povo no presente da mesma forma que no pas
51.1,2; P s e u d o -F ilo ,
18.10-14).
An bí,
23.4,5;
Gn
17.17;
A árvore genealógica de Abraão (Is
V. W a l l a c e - H a d r i l l )
sado. Por toda a história, ele destruiu os pode
11.1;
rosos e ricos (v.
está até mesmo em perigo de
riq u e z a s e p o b r e z a );
socorreu os
pobres e os oprimidos (Êx 2.24). Deus continua
destruição. Não é o fato de descender de Abraão que os salvará da ira de Deus, mas um procedimen
a agir a favor dos pobres e oprimidos no tempo
to que seja “condizente com uma reforma interior
presente (Lc 1.47,48). Esse auxílio baseia-se na
de vida”
fidelidade de Deus para com os descendentes (lit.,
(F itz m y e r, v . 1,
p.
468;
v. tb. Jo 8.39 ). 3
I
Abraão; Novo Testamento
“semente”; v. tb. At 3.25; 7.1-5) de Abraão por cau
são agora incluídos, enquanto os tidos por escolhi
sa das promessas feitas a ele por Deus (v. 1 acima;
dos são excluídos.
Mq 7.20). Abraão não tinha terra nem descendência
A cura da mulher encurvada é sinal de salva
antes de ser abençoado por Deus (Gn 17.7,8; 18.18;
ção ocorrida em cumprimento do ministério de
22.17,18). A experiência de Maria “não é um acon
Jesus, 0 “Senhor do sábado” (Lc 6.5). É digno de
tecimento isolado; antes, parte da lembrança miseri
nota que ela seja curada no sábado, dia que cele
cordiosa da parte de Deus, que deseja cumprir suas
bra a libertação dos israelitas do cativeiro (Dt 5.15;
promessas de salvação”
V.
(Z
o r r il l a ,
p. 233). Sucessi
Lc 13.16), e é nesse dia que o cativeiro da mulher
vas gerações também experimentarão a compaixão
é retirado. Ao repreender a enfermidade, Jesus está
de Deus (Lc 1.48).
também repreendendo Satanás (Lc 13.16; v. tb.
O Benedictus é uma profecia dada por Zaca
G
reen,
p. 653). Ela pode estar entre os incluídos no
rias a respeito de seu filho, João. João preparará o
banquete escatológíco presidido por Abraão e seus
caminho diante do Senhor (Lc 1.76), que por sua
descendentes (Lc 13.28-30; v. 2.2.3 acima).
vez trará salvação a seu povo (Lc 1.68,69). Essa
2.3.3 O seio de Abraão. 0 Abraão celestial
salvação, cujo propósito é capacitar pessoas a ser
(v. 1.2 acima) é incluído nessa pericope, que con
vir a Deus sem temer os inimigos (Lc 1.71,73), é
dena 0 rico e exalta o pobre Lázaro. (V. análises
baseada na misericórdia prometida aos antepas
de contos populares semelhantes em FrrzM VER, v. 2,
sados judeus para a qual serve de fundamento a
p. 1126.) Após morrer, Lázaro é carregado por an
aliança (ou juramento, Gn 22.16,17; 26.3) jura
jos “para junto [tradicionalmente, ‘para o seio’] de
da a Abraão (Lc 1.72,73; SI 105.7-11). N. A. Dahl
Abraão”. “Junto de Abraão [seio de Abraão]” não é
(p. 146-7) enxerga a redenção messiânica descrita
sinônimo de Paraíso, embora essa passagem reflita
de um modo “que relembra a libertação do do
a tradição segundo a qual se acredita que Abraão
mínio do Egito, sendo vista como o cumprimen
esteja no céu (v. 1.2 acima). 0 pobre desfruta uma
to do juramento de Deus a Abraão” (SI 106.10;
comunhão íntima com Abraão
Gn 15.13,14; At 7.2-8,17).
talvez relembrando a intimidade entre Abraão e
2.3.2
(M
arshall,
p. 636),
Uma filha de Abraão. A mulher “encur Jacó, retratada em Jubileus 23.1-3 (v. tb. Lc 13.29).
vada” que é curada no sábado (Lc 13.10-17) é cha
O rico morreu e reside no hades [inferno; também
mada “filha de Abraão” (Lc 13.16). Esse é o único
traduzido por morte, profundezas ou sepulcro], se
uso da expressão “filha de Abraão” na Bíbha grega.
parado de Abraão por um grande abismo (Lc 16.26;
Em Lucas, somente os judeus são chamados filhos
cf. lEn, 22). O rico clama a Abraão, chamando-
de Abraão
p. 151). Na pericope em ques
-o “ pai” (Lc 16.24,27,30) e exigindo o auxílio de
tão, o sábado e a sinagoga “afastam essa mulher
Lázaro. Abraão responde-lhe, chamando-o “filho”
(D
ahl,
necessitada da ajuda divina”
p. 649). Jesus
(Lc 16.25). A condição de filho de Abraão desfru
reconhece que, como filha de Abraão, ela é alguém
tada pelo rico não lhe proporciona nenhum alívio.
para quem a salvação estava prometida (Lc 1.46-55;
0 pai Abraão recusa-se a ajudá-lo (Lc 16.25,26;
(G
reen,
2.3.1 acima). A fidelidade de Deus aos descen
sobre Abraão como juiz, v. Te Ab, 10.6-16A).
dentes de Abraão continua por causa das promes
Abraão nem mesmo enviará Lázaro à família do
sas que ele fez ao patriarca. Isso se vê sobretudo no
rico para adverti-los, porque eles já têm a Lei de
V.
caso dos excluídos e dos párias. A filha de Abraão,
Moisés (Lc 16.31). Lucas está frisando que a sal
que é excluída pela estrutura religiosa, é curada
vação implica uma “reação de fé”
(v. 2.3.2 acima). Zaqueu, o filho pária de Abraão,
p. 1129), que o rico não tinha. Foi assim condena
recebe também a salvação que lhe é estendida. 0
do, embora fosse judeu. Abraão também se encai
interesse especial de Lucas pelos oprimidos é per
xa nessa pericope porque, ao contrário do rico, foi
ceptível quando o rico, embora também filho de
muitas vezes retratado como alguém que seguia a
(F
it z m y e r , v
Abraão, não recebe permissão para unir-se a Láza
Lei (v. 1.2 acima), que não lhe era um fardo
ro, que está “no seio” de Abraão (v. 2.3.3 abaixo),
Ab, 5; Dt 30.11-14).
.
2,
( F il o ,
por causa de sua falta de compaixão para com
2.3.4 Zaqueu como filho de Abraão. Zaqueu
Lázaro enquanto ambos estavam ainda em vida.
é um rico chefe de cobradores de impostos para
Assim, aqueles tidos por excluídos dos escolhidos
o governo romano (Lc 19.2) e, como tal, um
A b r a ã o : N o v o T estamento
pecador (Lc 6.24), sobretudo aos olhos dos ju
do Apocalipse de Abraão 31.1, que menciona o “es
deus
p. 321-3). De
colhido” de Deus. Abraão tinha um conhecimento
pois de interagir com Jesus, Zaqueu se arrepende
especial acerca de Deus (v. 1.2 acima, sobretudo
18.9-14; 19.7; v. tb.
(L c
L oew e,
6.1-7; cf. a história do jovem rico e
assim nas obras de Filo; v. Jo 8.32), o que, da pers
importante, Lc 18.18-25). A salvação é estendida
pectiva do pensamento judaico contemporâneo,
por Jesus, que “veio buscar e salvar o que se ha
queria dizer que ele escapou à idolatria [Ap Ab,
via perdido” (Lc 19.10; Ez 34.16), a Zaqueu, o “fi
6—8; Jb, 12) e à consequente escravidão ao pecado
(Lc 19.8;
V. L v
lho de Abraão” que antes estava perdido. Zaqueu
(Jb, 20.6-10). Essa descrição de Abraão harmoniza-
é também um filho verdadeiro de Abraão e, assim
se com 0 tema da liberdade (Jo 8.32) e da escravi
como outros párias judeus, recebeu no ministério
dão (Jo 8.34,35) em João 8.
de Jesus o cumprimento das promessas feitas a Abraão (Gn 17.7; v. 2.3.2 acima;
D a h l,
p. 149-54).
4. Atos dos Apóstolos Em Atos, Abraão não desempenha um papel
3. O Evangelho de João
exemplar para os cristãos imitarem, como ocor
0 nome de Abraão, embora não ocorra em ne
re nas cartas pauUnas, mas continua sendo o pai
nhuma outra parte nos escritos joaninos, é en
dos judeus. Usando Abraão exclusivamente nos
contrado dez vezes em João 8.31-59. Por todo
sermões, Lucas comprova que há relação e conti
o relato, Jesus ressalta que, embora os judeus
nuidade entre Abraão e os acontecimentos sobre
que 0 estão interrogando sejam descenden
os quais está escrevendo
(D a h l,
p. 140).
tes de Abraão em sentido físico (Jo 8.37), eles
4.1 Atos 3. Pedro emprega a figura de Abraão
contradizem essa descendência por suas ações
durante seu discurso no pórtico de Salomão
p. 357). Em primeiro lugar, não são como
para identificar o Deus de Abraão, de Isaque e
Abraão porque se esforçam por matar a Jesus,
de Jacó (At 3.13,25; cf. At 7.32; Êx 3.6) como o
ura mensageiro de Deus (Jo 8.40,42; Gn 18.1-15;
Deus de quem Jesus era “servo” e por cujo nome
talvez Jo 8.35 se refira a EUézer e a Isaque, o
Pedro tinha acabado de curar o pedinte aleijado
escravo doméstico e o filho; v. Gn 15.2; 17.19).
(At 3.6,16). O uso já aqui tão cedo do título “servo”
(B r o w n ,
Em segundo lugar, enquanto Abraão é conhecido
(cf. At 3.26) em referência a Jesus, incomum que
por seu caráter exemplar (v. 1.2 acima), os adver
era o uso desse termo, pode ser um sinal de que
sários de Jesus são declarados filhos do Diabo,
se está aludindo aqui ao Servo Sofredor de Isaías
cujos desejos eles realizam (Jo 8.44). Em terceiro
(Is 52.13— 53.12). Ao usar esse cognome, Pedro
lugar, os adversários de Jesus são diferentes de
claramente acusa os judeus de terem matado a Je
Abraão porque não reconhecem que Jesus é Deus
sus, o servo escolhido de seu Deus (At 3.15). Não obstante, em Atos 3.25 Pedro lança mão
(Jo 8.58,59; sobre Abraão como o primeiro mono 1.2 acima). Outras referências a Abraão
da bênção sobre Abraão, mediante a qual, por sua
no capítulo dizem respeito à morte de Abraão
descendência, todas as famílias da terra seriam
teísta,
V.
(Gn 25.8, em que não se faz menção a nenhum
abençoadas (Gn 22.18; cf. Gn 12.3; 18.18; G1 3.8).
testamento; v. Te Ab, que apresenta uma explica
A
ção para essa lacuna) e ao júbilo de Abraão por
pretado como “gentios”. Já Pedro usa o ambíguo
contemplar o dia de Jesus (Jo 8.56).
Lxx
traz “nações” [ethnê), que poderia ser inter
“famílias” {patriá), que provavelmente se refere
Exatamente como Abraão viu o dia de Jesus
em primeiro lugar aos judeus (cf. At 3.26) e por
permanece sem explicação. R. E. Brown refere-se a
imphcação aos gentios. Assim, Pedro declara a
Jubileus 16.17-19: “Abraão foi informado de que era
seus ouvintes que eles são descendentes dos profe
por meio de Isaque que descenderia o povo santo
tas e relembra a aliança que prefigurou o Messias,
de Deus, e que tanto Abraão como Sara exultaram
Jesus (At 3.22,23), o qual foi o cumprimento dessa
com a notícia”
(B r o w n ,
p. 360; v. Gn 17.17; 21.6).
Talvez o Evangelista esteja se referindo ao relato de
mesma ahança com Abraão por meio de quem os judeus e outras famílias podem ser abençoados.
Gênesis, sabendo que Jesus viria desse povo santo.
4.2 Atos 7. 0 discurso de Estêvão oferece a
Outra explicação poderia ser que Abraão tivesse
estrutura para várias alusões a Abraão (At 7.2-
recebido uma revelação acerca do futuro, como a
8,16,17,32), nas quais ele aparece como receptor
5 I
Abraão: Novo Testamento
das promessas por meio das quais seus descen
confirmava a promessa de Deus de lhe conceder descendentes (Gn 21.1-4), dentre os quais os ou
dentes mais tarde se beneficiariam. A afinidade de Lucas com o judaísmo helenista
vintes de Estêvão.
é percebida mais nitidamente em Atos 7.2-8 (Dahl,
Estêvão volta a mencionar Abraão ao dizer
p. 142). Em Atos 7.2, Estêvão situa o chamado de
que Jacó, José e seus parentes foram sepultados
Deus a Abraão em Ur, não em Harã (Gn 12.1). A
na caverna que Abraão comprara nas proximi
tradição de Lucas poderia ter sido extraída de tex
dades de Siquém (At 7.16). Em Gênesis, Abraão
tos do AT (Gn 15.7; Ne 9.7) nos quais há o indício
comprou a caverna de Macpela, que ficava perto
de um chamado em Ur. Filo supõe que houve
de Hebrom (Gn 23), não de Siquém. Existe um
um chamado divino a Abraão em ambos os luga
relato que dá conta de que Jacó foi sepultado na
res (Filo, Ab, 62,85), enquanto Josefo considera
caverna que Abraão comprou próximo a Hebrom
as duas migrações um único êxodo (Josefo, An,
(Gn 49.29-32; 50.13), ao passo que José foi enter
1.7.1, § 154). Lucas ainda observa (At 7.4) que
rado em Siquém (Js 24.32), numa terra que Jacó
Abraão deixou a terra dos “caldeus” , termo usado
havia comprado (Gn 33.18-20). Estêvão pode ter
muitas vezes em referência a astrólogos e intér
fundido os dois relatos de aquisições de terra
pretes de sonhos (Jb, 11.8; Filo, Ab, 69,71) nas
em Canaã, assim como fundiu acontecimentos
tradições vinculadas a Abraão antes de seu cha
anteriores (v. At 7.2,7), e desse modo atribuiu a
mado (Jb, 12.16; Filo, Ab, 70;
Abraão a compra da sepultura em Siquém.
J o s e fo ,
An, 1.7.1,
§ 156; A pA b, 7.9; cf. Js 24.2).
4.3
Numa tradução livre de Gênesis 17.7, Estêvão
Atos 13. No discurso proferido na sina
goga de Antioquia da Pisídia, em sua primeira
mantém-se fiel ao relato de Gênesis, segundo o
viagem missionária, Paulo refere-se a seus ouvin
qual Abraão não possuía terra alguma, apenas
tes judeus como “ filhos da linhagem de Abraão” ,
a promessa de uma terra (At 7.5; cf. Gn 12.7;
a quem a mensagem de salvação fora enviada
13.15; 48.4) para si e sua descendência. Abraão
(At 13.26). Paulo convoca-os a serem diferentes
seguiu a Deus, embora não tivesse tomado posse
dos habitantes de Jerusalém, que rejeitaram o
de nenhuma porção de terra (cf. Dt 2.5), nem
Messias, Jesus, cumprindo a mensagem dos pro
tivesse ainda seus descendentes, os quais só her
fetas (e.g.. Is 52.13—53.12) quando o condena
dariam a terra ao fim de tudo. Enquanto alguns
ram à morte (At 13.27-29). Seu Messias viera por
autores ressaltam o fato de Abraão tomar posse
meio do povo de Davi, os escolhidos em Abraão
da terra (IQapGen 21.15-19), Estêvão realça a
(At 13.22-25). Mais tarde, os judeus tragicamente
confiança que Abraão depositou em Deus (cf.
rejeitariam a mensagem de salvação (At 13.45).
Rm 4.16-22). Ao incluir referências à profecia feita a Abraão sobre o cativeiro de seus descendentes no Egito
S. As cartas de Paulo 5.1 Gálatas
(Gn 15.13,14; cf. Êx 2.22), com duração de qua
5.1.1 A situação na Galácia. A carta deixa evi
trocentos anos (At 7.6; cf. Êx 12.40; G1 3.17), Lu
dente que cristãos gentios faziam parte da comuni
cas ressalta a fidelidade de Deus para com seu
dade da Galácia (G14.8), e que se infiltraram entre
povo em meio à crise. Numa expansão de Êxo
eles algumas pessoas que contradiziam o evan
do 3.12 (At 7.7), Lucas abandona o termo “mon
gelho de Paulo e confundiram os recém-converti-
te” (oros), usado em referência ao Sinai na
lx x ,
dos (G1 1.7-9; 5.8-10). Os contraditores de Paulo
substituindo-o pelo termo “lugar” (topos) — uma
persuadiam os convertidos gentios a obedecer às
referência a Jerusalém ou ao próprio templo (cf.
estipulações da Lei mosaica (G1 3.1,2; 4.8-10), so
At 6.13,14). A fidelidade de Deus ã promessa que
bretudo a circuncisão (G1 5.2,3; 6.12,13). Em vista
fez a Abraão é demonstrada no fato de que Estê
de alguns fatos que ficam bastante evidentes na
vão e os judeus habitantes de Jerusalém de seu
carta, é bem provável que os oponentes de Paulo
tempo podiam adorar a Deus nesse “ lugar”. Estêvão faz referência também à “aliança da
fossem cristãos judeus (G1 4.30; Paulo afirma que eles estavam pregando “outro evangelho” , 1.6-9).
circuncisão” (diathêkê peritomês, At 7.8) firma
Muitos especialistas no assunto já observaram
da com Abraão (Gn 17.10,12), aliança essa que
que Abraão devia desempenhar um papel central
A b r a à o : N o v o T estamento
nos argumentos dos adversários de Paulo. Por
criador [Jb, 11.16,17; 12.16-21), mas também ob
exemplo, segundo J. C. Beker, os adversários de
serva estipulações da Lei mosaica como a festa
Paulo pensavam que não bastava aos gentios vol
dos tabernáculos [Jb, 16.20; cf. 22.1,2). Nas obras
tar-se para Cristo. Para estarem seguros de que a
de Filo, Abraão é retratado como alguém que se
bênção de Deus repousava sobre eles e de que
gue a lei natural
eram filhos verdadeiros de Abraão, tinham de
da natureza e a Lei de Moisés são a mesma coi
participar plenamente da Torá
sa. Somente uma lei que foi revelada por Deus, o
(B e k e r ,
p. 42-4).
5.1.2 O texto de Gálatas 5.1.2.1
(F ilo ,
Ab, 275-6). Para Filo, a lei
criador da natureza, pode estar de fato de acordo
Gálatas 3.1-14. O tom zangado de Pau com a lei natural. Ao cumprir a lei natural, Abraão
lo torna-se evidente já no início de sua Carta aos
torna-se para seus descendentes um exemplo de
Gálatas, uma vez que não se acha ali a seção de
obediência à Lei
(F ilo ,
Ab, 6).
ação de graças normalmente presente em suas
Filo é o único a nos informar que Gênesis 15.6
cartas. Ele os chama “insensatos” (G1 3.1,3) por
era interpretado como significando que Abraão
terem sido seduzidos (G1 3.1) a obedecer às exi
creu no único Deus criador, não em outros deu
gências da Lei (G1 3.2,3,5). Suas perguntas con
ses ou filosofias. Gênesis 15.6 declara: “Abrão
tundentes em Gálatas 3.1-5 servem para definir e
creu no
alistar seus temas no debate que se segue.
justiça”. Filo descreve Abraão com as seguintes
S e n h o r;
eo
S enh or
atribuiu-lhe isso como
Nesse interrogatório cheio de farpas, Paulo es
palavras: “Fala-se dele como o primeiro a crer em
tabelece uma antítese entre “obras da lei” [ergõn
Deus, uma vez que foi o primeiro a apreender
nomou) e a “fé naquilo que ouvistes” [qkoês
de forma firme e inabalável a verdade segundo
pisteõs). Será que Deus operou milagres entre eles
a qual existe uma só Causa acima de tudo e de
pelo fato de eles cumprirem as “ obras da lei” , ou
todos, a qual sustém o mundo e tudo o que nele
foi pela fé naquilo que ouviram (G1 3.5)? A prin
há”
cipal preocupação de Paulo aqui é alertar seus
mencionado na
leitores para o contraste entre a “fé naquilo que
guém que creu em Deus. Na maioria das vezes,
ouvistes” e as “obras da lei” e levá-los a conside
os que falavam sobre a fé que Abraão possuía
rar 0 erro grosseiro em que haviam caído.
referiam-se a ela como uma fé no único Deus
0 argumento com base escriturística apresen
(F ilo ,
(J o s e fo ,
Vi, 216). Abraão é o primeiro a ser lx x
e na Bíblia hebraica como al
An, 1.7.1, § 155-6; Ap Ab, 7.10;
P se u d o -
tado por Paulo, que vem a ser sua resposta às
F ilo ,
perguntas retóricas que ele mesmo fizera anterior
idolatria. A lei, quer mosaica, quer natural, era
mente
p. 130), gira em torno de Abraão:
um corolário necessário de sua fé em Deus. Como
“Assim foi com Abraão, que creu em Deus, e isso
se acreditava que Abraão havia incorporado essas
lhe foi atribuído como justiça” (G1 3.6). Byrne sa-
características, ele era tido como representante
henta que o uso de kathõs (“assim [foi]”) implica
ideal do povo judeu.
(B e tz ,
que 0 que se segue corresponde ao que acabou de ser descrito
(B y r n e ,
p. 148). Abraão passa a ser
An bí, 6.4; 23.5], num contraponto com a
Em Gálatas 3.7, Paulo ordena aos crentes gálatas que reconheçam, com base na prova que
aquele que creu em Deus e, pela ação de Deus,
ele apresenta em Gálatas 3.6 (cf. Gn 15.6;
foi considerado justo. Isso corresponde ao Espírito
p. 141), que “os da fé é que são filhos de Abraão”.
B e tz ,
concedido por Deus, em virtude da fé dos crentes
O menos familiarizado dentre eles com as tra
gálatas. A recepção do Espírito por parte dos cren
dições de Abraão como o primeiro monoteísta
tes gálatas corresponde à recepção da justiça por
e anti-idólatra perceberia que o povo judeu ha
parte de Abraão
via interpretado Abraão desde o começo como o
(B a r c la y ,
p. 80; v.
E sp írito S a n t o ).
Ao fazer uso do exemplo de Abraão para dis
homem de fé. Essa declaração de Paulo faria en
correr sobre o contraste fé versus obras, Paulo na
tão pleno sentido. Para eles, os descendentes de
realidade inaugura uma nova maneira de se referir
Abraão — os judeus — seriam as pessoas que têm
a Abraão. Antes, o judaísmo visualizava a fé e as
fé em Deus.
obras de Abraão num só conjunto. Por exemplo,
Paulo mais uma vez faz uso das Escrituras
em Jubileus, Abraão não apenas é o primeiro a
para fundamentar a sua afirmação de que os fi
se separar de sua família e a adorar o único Deus
lhos de Abraão são os que têm fé em Deus. Em 7 I
Abraão: Novo Testamento
Gálatas 3.8,9, ele declara: “A Escritura, prevendo
Abraão encontradas nos textos judaicos mencio
que Deus iria justificar os gentios pela fé, anun
nados acima: a fé e a Lei. Até aqui Paulo argu
ciou com antecedência a boa notícia a Abraão, di
mentou energicamente contra a Lei. Os gentios
zendo: Em ti serão abençoadas todas as nações”.
receberam a bênção de Abraão, o Espírito, unica
Paulo personifica a Escritura ao afirmar que ela
mente em conformidade com sua fé. Se os opo
viu de antemão que Deus justificaria os gentios
nentes recorrem a Abraão em seus argumentos
pela fé e antecipadamente declarou o evangelho
para convencer os gentios de que estes devem ser
a Abraão, para que todos os gentios fossem aben
obedientes à Lei mosaica, especialmente no que
çoados nele (G1 3.8; Gn 12.3). Paulo entende a
diz respeito à circuncisão, pareceria natural dedu
promessa de que Abraão seria uma bênção para
zir que eles estivessem cientes da tradição sobre
as nações (gentios) como a pregação do evange
a obediência de Abraão à Lei e assim fazendo uso
lho feita antecipadamente a Abraão. Como a men
dessa tradição (v. tb. S.1.2.2
sagem do evangelho era que a justificação ocorre
H ansen,
p. 172).
Gálatas 3.15-18. Paulo inicia essa
pela fé, e assim os gentios estavam incluídos na
seção citando um exemplo cotidiano, a saber,
justificação, o anúncio de que Deus abençoaria os
o testamento de alguém, o qual não é anulado nem sofre acréscimos depois de ratificado. Pau
gentios por meio de Abraão antevia o evangelho.
lo emprega esse exemplo para falar de Abraão,
Nesse ínterim, Paulo puxa o outro fio de seu argumento, as “ obras da lei” (G1 3.10). Fazendo
mostrando que as promessas feitas primeiramen
uso de Deuteronômio 27.26, de Habacuque 2.4 e
te a Abraão e a sua descendência (G1 3.16) não
de Levítico 18.S, Paulo argumenta que a obediên
foram feitas a muitos, mas a somente um, que na
cia à L e i não traz a justiça. Ele cita Deuteronômio
realidade se refere a Cristo (Gn 12.7; 22.17,18).
21.23 para mostrar que a era da fé agora chegava
Paulo faz um jogo com a palavra “descendente
por meio do fato de Cristo se fazer maldição e
[semente]” , que, em hebraico e em grego (hebr.,
oferecer redenção da maldição da Lei (G1 3.13;
zera‘; gr., sperma), está no singular coletivo
provável que aqui Paulo este
(Ems, p. 73). Esse descendente. Cristo, represen
ja utilizando exatamente as mesmas passagens a
ta não apenas o cumprimento das promessas fei
que recorriam seus oponentes em sua mensagem
tas a Abraão (G1 3.8,14), mas também o cabeça
a favor da Lei
da raça espiritual e, consequentemente, a solida
B y rn e ,
p. 156).
É
(L o n g e n e c k e r ,
p. 116-21,124).
Em Gálatas 3.14, Paulo inclui duas orações
riedade (no sentido de mútua representatividade)
adverbiais finais (ou seja, de finalidade). Cristo
dos crentes. Os gentíos, antes considerados não
se fez maldição e providenciou redenção da mal
pertencentes aos descendentes de Abraão, agora
dição da Lei a fim de que em Cristo Jesus a bên
são incluídos no âmbito de sua descendência, em
ção de Abraão pudesse alcançar os gentios (cf.
virtude de sua fé em Cristo.
G1 3.8). A segunda dessas orações adverbiais fi
A seguir, Paulo argumenta de uma perspec
nais é paralela à primeira: “...a fim de que recebês
tiva cronológica. A Lei veio 430 anos depois da
semos a promessa do Espírito pela fé” (G1 3.14).
aliança que Deus firmou com Abraão (G1 3.17).
0 Espírito passa a ser a bênção de Abraão, que
Aliás, a Lei foi “acrescentada” (Gl 3.19). A pro
veio sobre os gentios
messa de Deus a Abraão é fundacional e imutável
(B e tz ,
p. 143). Essa bênção
é pela fé (G1 3.1-5) em Cristo (G1 3.14). Anterior
(Gl 3.16,18). Os que são filhos de Abraão “em
mente, a promessa feita a Abraão dizia respeito a
Cristo” beneficiam-se da promessa e da herança
terra e descendentes. Mas agora a promessa diz
que ele recebeu antes do advento da Lei.
respeito ao Espírito, que é o antegozo da heran ça do mundo por vir
Se os adversários de Paulo na Galácia estão
p. 156-7). E se os
fazendo uso da tradição popular segundo a qual
gentios da Galácia têm o Espírito, que é a bênção
Abraão obedeceu à Lei (v. acima), então eles de
prometida a Abraão em Cristo, eles têm o sinal de
viam ter incluído em seu argumento o fato de
que são membros dos descendentes de Abraão.
que Abraão fora obediente à Lei antes de Moisés
(B y r n e ,
Digno de nota na carta até aqui é que Paulo
a haver promulgado. Se era esse o exemplo de
alude a dois aspectos do judaísmo também re
Abraão que os oponentes estavam apresentando
lacionados às tradições mais importantes sobre
/aos crentes da Galácia, Paulo precisa argumentar
8
A b r a ã o ; N o v o T estamento
energicamente que a Lei mosaica surgiu depois
contrapõe a unidade de Deus, que fez a promes
de a promessa ter sido feita a Abraão. Se a Lei
sa a Abraão, à pluralidade de intermediários por
mosaica chegou séculos depois da promessa a
meio de quem a Lei foi outorgada, claramente
Abraão, então Abraão não poderia ter sido obe
demonstra mais uma vez a superioridade sobre a
diente a essa lei. Essa nova cronologia (anu
Lei da promessa feita a Abraão (v.
lando o princípio da lei eterna encontrado, por
D
eus)
.
Observou-se acima que, entre as tradições po
exemplo, em Jubileus] estabelece a prioridade do
pulares sobre Abraão encontradas na literatura
evangelho de Paulo, o da justificação pela fé, em
judaica, estava a opinião de que Abraão foi o pri
detrimento da insistência dos oponentes na obe
meiro monoteísta e que obedeceu à Lei antes de
diência à Lei.
ela ser outorgada. Se os oponentes de Paulo tam
S.
1.2.3 Gálatas 3.19-22. Nessa seção, Paulo bém defendiam essas mesmas tradições, o fato de
versa sobre as razões por que a Lei era necessária
eles recorrerem ao exemplo de Abraão provavel
(Gl 3.19). Fora acrescentada por causa das trans
mente teria alguma relação com seu monoteísmo
gressões até que o descendente (Cristo) viesse
e obediência à Lei. Em Gálatas 3.20, usando as
àqueles aos quais as promessas tinham sido feitas
alegações dos oponentes e as tradições populares
(Gl 3.19; cf. Gl 3.16). De acordo com Paulo, Deus
que vinculavam Abraão ao monoteísmo e à Lei,
concedeu a Abraão essa herança diretamente por
Paulo demonstra que a Lei é de segunda catego
meio da promessa, “pois se a herança provém da
ria quando comparada às promessas de Deus a
lei, já não provém mais da promessa. Mas foi pela
Abraão. Consequentemente, se as promessas são
promessa que Deus a concedeu gratuitamente a
superiores à Lei, e se é por meio das promessas
Abraão” (Gl 3.18). Paulo declara que a Lei, no
feitas a Abraão que os unidos em Cristo (o único
entanto, “ foi ordenada por meio de anjos, pela
descendente, Gl 3.16) recebem a herança, a Lei
mão de um mediador” (Gl 3.19). A crença de que
torna-se supérflua. Não apenas o fato de alguém
os anjos haviam outorgado a Lei fazia parte de
ser descendente de Abraão deixa de significar
uma tradição judaica comum
que essa pessoa precisa seguir a Lei judaica, mas
[ lxx,
Dt 33.2; Jb,
At 7.38,53; Hb 2.2). Pau
também a obediência à Lei, que se baseia numa
lo desvia-se da tradição quando argumenta que
pluralidade, é agora uma contradição da unicidade
a outorga da Lei por anjos é tomada como argu
de Deus.
2.2; lEn, 60.1; v. tb.
n t,
S.
mento contra a Lei, o que se torna evidente no
1.2.4 Gálatas 3.23-29. Nessa seção, Paulo
usa o exemplo do
versículo seguinte. Em Gálatas 3.20, Paulo faz uma declaração
p a id a g õ g o s [ nrsv ,
“discipUna-
dor”) para expUcar a função da Lei. 0 uso do era prática corrente nos dias de Paulo.
que há muito tem deixado perplexos os intér
p a id a g õ g o s
pretes de Gálatas: “O mediador não representa
Implicava deixar um filho ou filhos sob o cuidado
apenas um, mas Deus é um só”. A pluralidade
e a supervisão de um escravo de confiança até
associada ao “mediador” tem sido entendida de
que a criança alcançasse o fim da adolescência.
p. 141-2). Os intér
0 que exatamente Paulo tinha em mente quando
pretes têm buscado encontrar o referente exato de
relacionou o p a id a g õ g o s à Lei tem sido objeto de
Paulo em sua alusão à pluralidade dos anjos que
muito debate. Em vez de enxergar o
serviram de mediadores participantes da outorga
da perspectiva da severidade, como acontecia an
da Lei (cf.
teriormente
várias maneiras
W
(L
r ig h t
ongenecker,
quanto ao ponto de vista de que
(B e t z ,
p a id a g õ g o s
p. 177-8), mais recentemente
Moisés é o mediador). Mas isso é perder o argu
os estudiosos têm se concentrado nos aspectos
mento de Paulo como um todo. O elemento mais
positivos do
importante, que precisa ser colhido da declaração
de guardião do paidagõgos: ele protegia a criança
de Paulo, é que, de algum modo, a Lei outorgada
sob seus cuidados de influências imorais externas e
p a id a g õ g o s .
Por exemplo, o aspecto
Em Gálatas 3.24, Paulo associa
por meio de anjos e pela instrumentalidade de
(Y o u n g
um mediador impUca mais de um intermediário,
a Lei ao p a id a g õ g o s , que funcionava como “nosso
em contraposição a Deus, que fez a promessa a
guia para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela
Abraão e que é um só. Tratando-se do monoteís
fé fôssemos justificados”. Uma vez chegada a fé,
mo judaico da época, esse tipo de declaração, que
o p a id a g õ g o s deixava de ser necessário (Gl 3.25).
I 9 I
G o r d o n ).
A b r a ã o : N o v o T estamento
A literatura judaica atesta que uma das funções
Em Gálatas 4.8, Paulo dirige-se exclusivamen
primordiais da Lei era servir para separar e pro
te aos gentios. Na era passada, não conheciam a
teger Israel de seus vizinhos gentios [Jb, 20.6-10;
Deus nem eram reconhecidos por Deus. Eram es
21.21-24; 22.16-19;
Aa, 1.10.5, § 192). A
cravizados por coisas “que por natureza não são
Lei também servia para identificar os judeus [Qn
deuses”. 0 segmento de frase “ não eram deuses”
J o s e fo ,
Gn, 3.49; cf. Jb, 15.26). No contexto da Carta aos
era comum nos escritos da l x x em que se refere a
Gálatas, Paulo fala principalmente dos aspectos
ídolos (2Cr 13.9,10; Is 37.18,19; Jr 2.11-28). Paulo
da Lei que eram em especial conhecidos como
acusa-os de retornarem à antiga idolatria (Gl 4.9).
identificadores do povo judeu (a circuncisão, as
No ambiente das condições da Galácia, es
leis ahmentares e a observância do sábado e dos
ses crentes gentílicos estão sendo persuadidos
dias festivos). Uma das maneiras em que a Lei
a obedecer a diferentes aspectos da Lei judaica
funcionava como paidagõgos era guardar o povo
(Gl 5.2,3; 6.12,13; 4.10). Paulo compara a obe
judeu das influências externas da idolatria e da
diência que eles prestam à Lei com a idolatria
imoralidade. Paulo afirma que, agora que a fé
que praticavam anteriormente (Gl 4.8,9) e com
chegara, a Lei não se fazia mais necessária. A Lei
os tempos de sua escravização aos “princípios
como recurso protetor numa comunidade como
elementares do mundo”. A obediência à Lei e
a da Galácia, onde convivem cristãos gentios e
a idolatria são formas de escravização a esses
cristãos judeus, é obsoleta, porque todos eles têm
“princípios elementares do mundo”. A obediência
fé e pertencem à mesma comunidade “em Cristo”
à Lei tornou-se equivalente à idolatria.
(Gl 3.26). A separação por meio da Lei é agora
Observou-se acima que nas tradições judaicas
desnecessária. Além disso, o símbolo identifica
sobre Abraão ele era retratado como alguém que
dor da circuncisão não é mais necessário. Todos
acreditava no único Deus criador, não em ou
os crentes da Galácia eram agora somente um
tros deuses ou filosofias. Na maioria das vezes,
em Cristo Jesus (Gl 3.28). Por serem somente
os judeus que falavam da fé que Abraão possuía
um em virtude de sua fé em Cristo, os crentes da
a concebiam como a fé no único Deus em con
Galácia são descendentes de Abraão e herdeiros
traposição à idolatria [Jb, 11.16,17; 12.2-8,16-24;
da promessa feita a ele (Gl 3.29; cf. Gl 3.8).
P s e u d o - F ilo ,
5.1.2.5
An bí, 6.4; 23.5;
F ilo ,
Ab, 68-71; Ap
Gálatas 4.1-11. Em Gálatas 4.1,2, Paulo Ab, 1—8). Para Paulo, tanto os judeus quanto os
usa a figura do herdeiro, que, enquanto é criança,
gentios que creem são agora filhos legítimos de
está sujeito a “tutores e administradores” até o mo
Abraão (Gl 3.29; 4.6,7). Como tais, não devem
mento determinado pelo pai. Paulo provavelmente
mais estar escravizados aos princípios elementa
está se referindo a práticas da lei romana em que
res do mundo, que antes assumiam a forma de
os pais nomeavam guardiães sobre seus filhos me
paganismo gentílico e Lei judaica. Ao equiparar
nores de idade, quer num testamento, quer diante
a observância da Lei ã idolatria, Paulo faz da Lei
de um tribunal
p. 63). 0 pai poderia
a proibição máxima para um verdadeiro filho
também estipular a idade a partir da qual a criança
de Abraão. A exemplo de Abraão, que rejeitou
não estaria mais sob a custódia desses guardiães.
a idolatria, esses filhos de Abraão devem fugir
Paulo assevera a natureza temporária da Lei, e fica
da idolatria. Em Gálatas 4.1-10, então, agora que
evidente que o herdeiro não tem o controle dos
esses filhos de Abraão têm uma nova identidade
(B e l l e v i l l e ,
próprios negócios. Nesse sentido, o herdeiro não é
“em Cristo”, a idolatria a ser evitada é a obediên
em nada melhor que o escravo.
cia à Lei.
Eram os menores, provavelmente os judeus (cf. Gl 3.23,25; 4.1,2;
5.1.2.6
Gálatas 4.21—5.1. O discurso final de
p. 165), que
Paulo sobre os descendentes abraâmicos acha-
se viam escravizados aos “princípios elementares
se em sua alegoria em torno de Sara e Agar
L o n gen eck er,
do mundo” [stoicheia tou kosmon). No entanto,
(Gl 4.21—5.1). A exegese aparentemente arbitrá
agora que veio a “plenitude dos tempos” (Gl 4.4;
ria que Paulo faz dessa alegoria pode indicar não
cf. Gl 4.2), gentios e judeus são igualmente her
ser esse o texto que ele teria escolhido (Gn 16.15;
deiros, e o Espírito é a prova de que eles não são
21.2-12), mas era o que estava sendo empregado,
mais escravos (Gl 4.6,7).
por conveniência, pelos seus oponentes
I 10 I
( L in c o ln ,
A b r a ã o : N o v o T estamento
p. 91). Paulo constrói a alegoria
evangelho é o “poder de Deus para a salvação
em torno dos filhos biológicos de Abraão: Isaque
de todo aquele que crê” , tanto judeus quanto
e Ismael. Agar é interpretada como representante
gregos (Rm 1.16), e que por meio da fé nesse
da aliança da escravidão, a Lei (Gl 4.24,25). Sara
evangelho a justiça de Deus é revelada (Rm 1.17;
p.
12;
B a r c la y ,
é interpretada como representante da ahança da
ZiESLER,
liberdade (Gl 4.24,26). Qualquer um (mesmo em
mostra que tanto os gentios idólatras e imorais
p. 186-7). Em Romanos 1.1— 3.20, Paulo
Jerusalém, Gl 4.25) que esteja acorrentado à Lei
(Rm 1.18-32; cf. Jb, 22.11-23; lEn, 91.7-10; embo
(Gl 4.24) está escravizado e não receberá herança
ra os judeus, sem dúvida, possam ser idólatras,
com os filhos verdadeiros. Os filhos da promessa,
V. H
que descendem de Isaque (Gl 4.28), são membros
gloriam de seu relacionamento com Deus e com
da Jerusalém celestial (Gl 4.26) e são mais nume
a Lei (Rm 2.1-29, esp. Rm 2.17) são condenados
rosos que os escravizados (Gl 4.27).
diante de Deus (Rm 3.9-20).
ays,
p. 93-4) quanto os judeus que se van
Paulo conclui a alegoria em Gálatas 4.28—5.1.
Em Romanos 3.21-26, Paulo mostra como
Ele identifica os gálatas como semelhantes a Isa
Deus continua sendo justo, mas agora à parte
que, filhos da promessa (Gl 4.28). Atualmente, a
da Lei (Rm 3.21; cf. Rm 1.17). A participação no
perseguição que estão experimentando é como a
domínio da justiça de Deus
que Isaque sofreu nas mãos de Ismael (Gn 21.9;
deve agora ser encontrada por judeus e gentios
Gl 4.29;
V.
tb.
B e tz ,
p. 249-50). Paulo utiliza-se de
Gênesis 21.10 como instrução para o presente: os
(Z i e s l e r ,
p. 186-7)
(Rm 3.22) por meio da fé em Jesus Cristo: não há nenhuma distinção. S.2.2.2
gálatas que estão sendo perseguidos por não se
Romanos 3.27—4.25. Romanos 3.27—
rem obedientes à Lei devem expulsar aqueles que
4.25 funciona como um esclarecimento do assun
os perseguem (Gl 4.30;
to que Paulo acabou de tratar, servindo também
L in c o ln ,
p. 22-9). Os gála
tas são filhos da livre: Cristo os libertou da Lei.
de introdução ao exemplo de fé fornecido por
Eles têm ordem de não mais se submeterem à Lei,
Abraão. Paulo usa o princípio do monoteísmo
0 “jugo de escravidão” (Gl 5.1; v. tb. Gl 4.3,9).
judeu contra a alegação comum de exclusivismo
5.2 Romanos. A maior parte do debate sobre
judaico. Visto que Deus é um só, ele é Deus de
Abraão acha-se em Romanos 4, em que Paulo usa
judeus e de gentios (Rm 3.29). E, porque Deus
0 patriarca para mostrar de que maneira os gen
é um, ele justifica judeus e gentios com base no
tios, bem como os judeus, podem agora ser justos
mesmo critério: a fé (Rm 3.30). Os judeus e os
diante de Deus em virtude de sua fé em Jesus Cris
gentios, portanto, têm igual acesso à salvação.
to. Em Romanos 9— 11, Paulo de novo se refere a
“Esse é praticamente um argumento contra a lei
Abraão para mostrar como as promessas de Deus
como algo necessário, de uma maneira ou de ou
ao seu povo escolhido não falharam (Rm 9.6).
tra, para a salvação”
5.2.1 A situação em Roma. O propósito de Paulo ao escrever Romanos tem sido objeto de
(S a n d e r s ,
1977, p. 489). Pau
lo apresenta o exemplo de Abraão para mostrar que sua interpretação sustenta a Lei (Rm 3.31).
É provável que as igrejas em
Paulo primeiramente identifica Abraão em
casas (Rm 16.5,10,11,14,15) a que Paulo escreve
sentido estritamente judeu, como “nosso pai
debate
(D o n f r i e d ) .
estivessem, até certo ponto, influenciadas pela
[ou antepassado] humano” (Rm 4.1), e pergun
comunidade judaica
C a lv e r t,
ta o que foi que Abraão “alcançou” (o verbo é
1993) e enfrentassem dificuldades no que tange
heuriskõ). Várias tradições a respeito de Abraão
(D u n n ,
p. xlvi-xlvii;
ao relacionamento que os cristãos gentios agora
dizem que ele encontrou o único Deus (v. acima;
desfrutavam com Deus (Rm 4.2,11,12), sobretu
esp.
do à luz das práticas relacionadas à Lei judaica
em que é retratado num ato em que ele discerne a
(Rm 14.2,5,6,21;
existência de Deus a partir da Criação). É de con
W ed d erb u rn ,
p. 33-4).
5.2.2 O texto à luz das tradições abraâmicos 5.2.2.1
F ilo ,
Ab, 68-71 e
J o s e to ,
An, 1.7.1, § 154-7,
senso que Paulo, em Romanos 1.18-32, tem uma
Romanos 1.1—3.26. Depois dessa se dívida para com o pensamento judaico helenista
ção, que traz um texto de ação de graças e apre
subjacente a Sabedoria 12— 15, se não para com
senta planos de viagem (Rm 1.8-15), Paulo faz
o próprio texto
a declaração de sua tese, proclamando que o
Sabedoria 13.6-9 fala de pessoas procurando 11 I
(D u n n ,
p. 56-7;
C a lv e r t,
1993).
A b r a ã o : N o v o T estamento
encontrar [heuriskõ) a Deus. Outros textos que
Em Romanos 4.9-12, Paulo mostra em que sen
se referem a pessoas “encontrando” a Deus por
tido Abraão é o pai dos judeus (circuncisos) e dos
meio de uma descoberta intelectual estão tam
gentios (incircuncisos). A figura de Abraão estava
bém presentes na l x x
hgada à circuncisão no mundo judaico, porque
(I s
SS.6; 65.1), nas obras de (At 17.26,27;
Abraão foi o primeiro a participar da ahança da cir
Rm 10.20). Em Romanos 4.17, Paulo também se
cuncisão (Gn 17.9-14; Eo 44.20). Referindo-se aos
Filo [Sp le, 1.36; Lg al, 3.47) e no
nt
refere a Abraão crendo em Deus, o Criador. Essa
“bem-aventurados”, cujos pecados são perdoa
fé no único Deus como criador estava no alicerce
dos (Rm 4.7,8; cf. S1 32.1,2), Paulo pergunta se
do monoteísmo judaico. 0 Deus dos judeus só se
essa bênção é “somente para os da circuncisão,
ria 0 Deus verdadeiro se fosse também o criador
ou também para os da incircuncisão” (Rm 4.9).
(cf. O t si, frag., 1.7). No contexto da idolatria, em
Para responder à pergunta, Paulo começa para
Romanos 1, em razão do uso da expressão “um
fraseando Gênesis 15.6; foi a fé de Abraão que
único Deus”, para provar que judeus e gentios
redundou no perdão de Deus, porque Abraão, em
são justificados pela fé (Rm 3.29,30), e de sua
consequência de sua fé, recebeu a própria fé como
introdução ao exemplo de Abraão, talvez se possa
uma atribuição de justiça. Com outras perguntas
supor que o desejo de Paulo seja que seus leitores
retóricas em Romanos 4.10-12, Paulo prova que
pressuponham que ele falará de Abraão, o qual
Abraão recebeu essa atribuição de justiça quando
“alcançou” (“encontrou”) o único Deus criador.
ainda era incircunciso (Rm 4.10; cf. Gn 15.6;
Mas Paulo tem outro assunto em mente, que ele
Gn 17). Para Paulo, a circuncisão era um selo da
revelará na conversa que se segue.
justiça que Abraão tinha por fé quando ainda era
Alguém que conhecesse bem as tradições a
incircunciso (Rm 4.11). Assim, Abraão é o pai
respeito de Abraão talvez conhecesse também a
de todos os que creem e não são circuncidados
tradição sobre sua obediência à Lei antes de ter
e a quem se atribui a fé como justiça (gentios;
sido outorgada a Moisés, Paulo prevê essa inter
Rm 4.11), e daqueles que não somente são cir
pretação na declaração que faz em Romanos 4.2:
cuncidados, mas também seguem o exemplo
“Se foi justificado pelas obras, Abraão tem do que
de fé de Abraão quando ainda era incircunciso
se gloriar, mas não diante de Deus”. Paulo já utiU-
(judeus; Rm 4.12). Enquanto no passado a cir
zou esse “gloriar-se” para mostrar que os judeus
cuncisão marcava os descendentes de Abraão
se vangloriavam da condição de privilegiados que
(Gn 17.9-14), Paulo mostra que, em virtude de
consideravam ter (Rm 2.17,23; 3.27). Abraão,
sua fé comum em Cristo, gentios e judeus têm
tido por obediente à Lei antes de ela ter sido ou
Abraão como pai.
torgada e representante do judeu ideal, podia de
A questão que interessa a Paulo em Roma
fato gloriar-se, mas não diante de Deus (Rm 4.2).
nos 4.13-17 é a promessa a Abraão e a sua des
Paulo prova por que Abraão não pode gloriar-
cendência. Ele afirma que a promessa não veio
se em suas obras diante de Deus ao citar Gêne
por meio da Lei, mas por meio da “justiça da fé”
atri
(Rm 4.13). O que Abraão estava para herdar aqui,
buiu-lhe isso como justiça”. Abraão passa a ser
como em outras obras da hteratura judaica, não
um tipo paradigmático da maneira em que Deus
era somente a terra da promessa, mas o mundo
sis 15.6; “Abrão creu no
S e n h o r;
torna os seres humanos justos
e o
S enh or
(S a n d e r s ,
1983,
p. 33). Ao esclarecer o que quer dizer com “atri
(Rm 4.14; Eo 44.21; Jb, 17.3; 22.14; 32.19; So, 1.175;
Dunn,
F ilo ,
p. 213). A indispensabilidade da
buiu” , Paulo faz uso da analogia do trabalhador,
Lei para o povo judeu constituía parte importan
que recebe seu salário não como um presente,
tíssima de sua identidade. Paulo está refutando
mas como algo que lhe é devido (Rm 4.4), em
a ideia de que, para ser herdeiro da promessa
contraposição ao que crê naquele que justifica o
de Abraão, é preciso ser judeu da perspectiva
ímpio (Rm 4.S). Tudo isso é dito para que Paulo
da obediência à Lei mosaica. Paulo afirma ainda
possa responder à sua primeira pergunta sobre
que, se “os que vivem pela lei” [hoi ek nomou)
0 que Abraão alcançou. Por sua fé, Abraão al
são os herdeiros, então "esvazia-se a fé, e anula-
cançou graça (Rm 4.4; cf. Gn 18.3; 30.27; 32.5;
se a promessa” (Rm 4.14). De acordo com Dunn,
33.8,10,15; 34.11; 39.4; 47.25,29; 50.4).
deve se entender a expressão “ os que vivem pela
12 I
A b r a ã o : N o v o T estamento
lei” em referência aos que viam na continuidade
atribuída “como justiça” (Rm 4.22; cf. Gn 15.6),
de sua existência como judeus algo que depen
não por causa de Abraão somente, mas por causa
desse da Lei. a qual determinava tudo o que
de Paulo e de seus leitores também (Rm 4.23,24).
fosse característico ou bem definido em tudo o
A fé será tida como justiça para os que creem na
que eram e faziam como povo de Deus
(D u n n ,
quele que ressuscitou a Jesus dos mortos, o qual
p. 213-4). Se os que se identificam como povo
foi entregue à morte pelas transgressões deles e
de Deus por causa da obediência à Lei são her
ressuscitado para a justificação deles (Rm 4.25).
deiros, então a fé é esvaziada por não ser a base
A fé monoteísta de Abraão, que era tão funda
da herança. Além disso, a Lei traz a ira e revela a
mental para a tradição judaica, foi transformada
transgressão (Rm4.15).
por Paulo. A fé dos crentes que seguem no en
A maioria dos judeus teria entendido a função
calço da fé de Abraão está agora depositada no
da Lei de uma perspectiva positiva como algo que
único Deus criador, que ressuscitou Jesus Cristo
os identificava e os separava das outras nações. Em
dos mortos para que eles também pudessem ser
vez disso, Paulo aqui salienta funções negativas
feitos justos. S.2.2.3
da Lei. Ele apresenta ainda outra razão pela qual a
Romanos 9— 11. Em Romanos 9— 11,
promessa deve ser de acordo com a fé: a promessa
Paulo prossegue de modo geral para mostrar em
deve ser de acordo com a graça, de modo que possa
que sentido a promessa de Deus a Israel não fra
ser garantida a todos os descendentes de Abraão.
cassou (Rm 9.6). O patriarca fundacional que
Ela não é exclusiva dos cristãos que se identificam
Paulo utihza em seu debate é Abraão (Rm 9.3-9;
como povo de Deus em razão de sua obediência à
11.1). O primeiro argumento de Paulo é que a
Lei (Rm 4.16), mas pertence também aos cristãos
promessa de Deus não fracassou porque “ nem
que compartilham da fé de Abraão, que é o “pai de
por serem descendência de Abraão são todos
muitas nações” (Rm 4.17; 12.3). Abraão não é pai
seus filhos” (Rm 9.7). Para provar seu argumen
apenas da nação eleita de Israel.
to, ele cita Gênesis 21.12: “... porque a tua des
A fé de Abraão é descrita por meio de duas
cendência será reconhecida por meio de Isaque”.
expressões muito conhecidas, extraídas da lite
Em seguida, Paulo esclarece, em Romanos 9.8,
ratura judaica (Rm 4.17). A fé de Abraão esta
que os filhos segundo a carne (todos os judeus
va incluída na capacidade criativa de Deus de
étnicos) não são filhos de Deus, mas os filhos da
fazer nascer o que existia a partir do que não
promessa são tidos por descendentes de Abraão
existia (2Ap Br, 21.4; 48.8;
(v.
F ilo ,
Re Di he, 36;
Is r a e l).
Sp Le, 4187; 2Mc 7.28). E Abraão tinha fé “ no
Citando Gênesis 21.12, Paulo mostra que os
Deus que dá vida aos mortos” (Rm 4.17). Essa
cristãos judeus de Roma já sabem que a descen
descrição de Deus era também popular no ju
dência étnica a partir de Abraão não é o mesmo
daísmo, como se comprova por seu emprego
que ser seu descendente verdadeiro. Foi por meio
em referência à conversão dos gentios [Jo e As,
de Isaque que os descendentes verdadeiros de
27.10). No entanto, em Romanos 4.18-22, Paulo
Abraão foram assim chamados (cf. Rm 9.10,13).
explica a fé de Abraão no Deus que deu vida aos
Nem Ismael nem os filhos de Quetura (Gn 25.1-4)
mortos fazendo referência à narrativa de Gêne
foram tidos por verdadeiros descendentes de
sis. A fé de Abraão na promessa de Deus de que
Abraão. De acordo com a prova de Paulo, a razão
ele se tornaria o pai de muitas nações (Rm 4.18;
disso é que Isaque foi o descendente da promes
Gn 15.5) não se enfraqueceu nem mesmo quan
sa de Deus. Para dar ainda maior sustentação a
do ele considerou o próprio corpo, que já “não
seu argumento, Paulo inclui a promessa do anjo a
tinha vitalidade” (impotente; Rm 4.19), ou quan
Abraão: “Por este tempo virei, e Sara terá um fi
do considerou que a madre de Sara “ não tinha
lho” (Rm 9.9; Gn 18.10). Nem Agar nem Quetura
vida”. Paulo está descrevendo a fé que Abraão
foram a mulher por meio de quem a promessa foi
tinha em Deus (Rm 4.21) e a promessa divina de
realizada. Somente Sara, cujos anos de fertiUdade
um descendente (Rm 4.20), a despeito da inca
tinham passado havia muito (Rm 4.19), era a mu
pacidade física por parte do casal: dele e de Sara.
lher por meio de quem Deus cumpriu a promessa de dar um descendente a Abraão.
Por isso foi escrito que a fé de Abraão lhe foi
13
I
A b r a ã o : N o v o T estamento
0 último emprego que Paulo faz do exemplo
6.1 Hebreus 2.14-16. No contexto da demons
de Abraão em Romanos ocorre em Romanos 11.1,
tração de que o Filho de Deus é solidário (no sen
em que ele se denomina “israelita, da descendên
tido de representatividade) com a família humana
cia de Abraão”. Em vista do debate anterior so
pelo fato de se haver tornado um deles (Hb 2.14),
bre a definição de um verdadeiro descendente de
o autor de Hebreus primeiramente emprega a fi
Abraão (Rm 4.13-18; 9.7,8], é razoável supor que
gura de Abraão para identificar aqueles a quem
aqui Paulo não esteja simplesmente se referindo à
Jesus Cristo veio libertar (Hb 2.15,16). Os agora
sua herança étnica judaica. Paulo insiste em que
chamados descendentes de Abraão são os que
a promessa de Deus não fracassou (Rm 9.6), ao
pertencem ao remanescente fiel (cf. Is 41.8-10),
mostrar que o tropeço de Israel trouxe salvação
homens e mulheres oprimidos de quem Jesus
aos gentios (Rm 11.11-13), que foram enxertados
toma posse para libertar do cativeiro de Satanás
no povo de Deus por causa de sua fé (Rm 11.20).
e trazê-los para debaixo da autoridade do Filho
Segundo o argumento de Paulo, ocorreu um “en
exaltado.
durecimento” numa parte de Israel, e na incre
6.2 Hebreus 6.13-20. Nessa passagem, ressal-
dulidade de então (Rm 11.29) os judeus étnicos
ta-se a promessa que Deus fez de dar descenden
foram cortados (Rm 11.20). Os judeus, no entan
tes a Abraão (Hb 6.13-15; Gn 12.2,3; 15.5; 17.5).
to, podem ser outra vez enxertados na oliveira
O autor repete uma expressão extraída da narrati
(Rm 11.24). Isso leva Paulo a afirmar que, no que
va que descreve o sacrifício de Isaque concernen
diz respeito ao evangelho, os judeus étnicos são
te a um juramento que Deus fez “por si mesmo”
inimigos, mas, com respeito ã sua eleição, são
(Hb 6.13; Gn 22.16), porque não havia ninguém
amados “por causa dos patriarcas” (Rm 11.28).
maior por quem Deus pudesse jurar (Hb 6.16,17)
Nesse caso, Paulo dá provas de conhecer a tra
para garantir a promessa. O autor relembra os
dição sobre o fato de os descendentes étnicos
leitores da tradição popular acerca do sacrifício
de Abraão receberem consideração especial [An
de Isaque, quando ele é amarrado sobre o al
bí, 30.7; 35.3). A promessa original de Deus não
tar, reforçando assim o retrato de Abraão como
fracassou (Rm 9.6). Os judeus étnicos também
protótipo da paciência fiel (Hb 6.15), o qual, em
estarão mais uma vez entre os descendentes
obediência, estava disposto a sacrificar seu único
verdadeiros de Abraão, não em virtude de uma
filho, recebendo dessa maneira as promessas de
identidade resultante da obediência à Lei, mas por
Deus. A exposição oferece aos destinatários da
causa da sua fé. Essa fé seguirá o exemplo da fé de
carta um exemplo a ser seguido, na expectativa
Abraão (Rm 4.17-25), uma fé que foi se aprofun
de que receberão o que Deus lhes prometeu por
dando, desde seu começo no monoteísmo judai
que seu sumo sacerdote, Jesus Cristo, já obteve
co, para incorporar a fé em Jesus Cristo (v.
as promessas e é o precursor deles (Hb 6.19,20).
5.3
D
eus) .
6.3 Hebreus 7.1-10. Dentro do objetivo mais
ZCoríntios. Em 2Coríntios 11.22, Paulo,
em resposta ã jactância de seus oponentes em Co
amplo de provar que o ofício sacerdotal de Jesus é
rinto, afirma ser também descendente de Abraão.
maior que o sacerdócio levítico, o autor interpreta
A maioria dos estudiosos concorda com o fato de
o episódio do encontro de Abraão e Melquisede-
que, por se designar descendente de Abraão, Pau
que (Gn 14.17-20; cf. SI 110.4) com o propósito de
lo tem em mente mais que uma simples origem
mostrar que Melquisedeque é maior que Abraão
étnica. Por exemplo, R. P. Martin sugere que Pau
e que os sacerdotes levíticos (Hb 7.7). Sua pro
lo usa o termo com referência a si mesmo “como
va reside na cena em que Abraão, o patriarca
um distintivo de honra para estabelecer sua au-
exaltado (Hb 7.4), entrega a Melquisedeque
toidentificação cristã, em detrimento de seus ri
um décimo dos espólios de guerra (Gn 14.20).
vais”
Como os sacerdotes levíticos recebiam dízimos
(M
a r t in ,
p. 375).
(cf. Nm 18.21,24,26-28; Ne 10.38,39; 20.9.8, § 181; 20.9.2, § 206-7;
6. Hebreus
Josefo,
Josefo,
An,
Vida, 15,
Na Carta aos Hebreus, Abraão é o protótipo da
§ 80) e uma vez que Abraão representava os levitas
perseverança fiel, que deve ser imitada pelos lei
como antepassado de Israel, esse fato significava
tores crentes.
que Levi estava dando o dízimo a Melquisedeque
I 14 I
A b r a ã o : N ovo T estamento
(Hb 7.5,6,8-10), que é assim maior que o progeni-
era o cumprimento da promessa (Hb 11.17-19).
tor de Israel. Não está claro em Gênesis quem deu
Esse acontecimento, que serviu de teste para
dízimos a quem, mas o autor de Hebreus reflete
Abraão (Eo 44.20; IMc 2.52; v. 3.2 acima), do
a tradição segundo a qual Abraão foi o que deu
minou 0 imaginário exegético judeu do judaísmo
0 dízimo (cf. IQapGen 22.17;
pós-bíbUco [Jb, 17.15— 18.19;
J o s e fo ,
An, 1.10.2,
F ilo ,
Ab, 167-297;
J o s e fo ,
An, 1.13.1-4,
§ 181). 0 autor ainda oferece um contraste entre
4Mc 7.11-14; 13.12; 16.18-20;
Abraão, que recebeu as promessas (Hb 7.6), e os
§ 222-36;
levitas, que receberam seu ofício de acordo com
40.2,3). A ação de Abraão foi celebrada como
P s e u d o - F ilo ,
An bí, 18.5; 23.8; 32.1-4;
a Lei (Hb 7.5). Para o autor, a promessa denota
modelo de fidelidade e obediência a Deus na tra
algo efetivo e garantido (v. Hb 6.13), ao passo
dição literária em torno dos modelos judaicos de
que a Lei implicava o que era inefetivo. Assim,
fé (Eo 44.20; Jt 8.25,26; IMc 2.52; 4Mc 16.20; cf.
o contraste entre Melquisedeque e os sacerdotes
Tg 2.21-24; ICl, 10.7). Os detalhes incluídos na
levíticos realça o sacerdócio de Melquisedeque,
apresentação de Hebreus sugerem que o autor foi
porque os sacerdotes levíticos coletavam o dízi
influenciado por essa tradição.
mo de acordo com a Lei, ao passo que Melqui
0 tempo e o aspecto sacrificial do verbo ofe
sedeque recebeu dízimos daquele a quem Deus
receu [prospherõ, Hb 11.17) sugere que em algum
havia feito promessas (Hb 7.6) e daquele a quem
sentido o sacrifício era um acontecimento reaU-
ele é superior (Hb 7.7), abençoando-o.
zado por causa da intenção de Abraão
6.4
Hebreus 11.8-12,17-19. Nesse capítulo, o 177;
P s e u d o - F ilo ,
An bí, 32.4;
S w e tn a m ,
(F ilo ,
Ab,
p. 122). O
autor emprega Abraão mais que qualquer outro
segundo emprego do verbo (Hb 11.17, a segunda
personagem como exemplo de fé. Abraão primei
parte do versículo) mostra que Abraão não fez o
ramente é exemplo de fé pela obediência ao cha
sacrifício, mas foi interrompido por intervenção
mado de Deus (Hb 11.8; Gn 12.1,2; cf. Gn 15.7;
de Deus. A tradição judaica faz referência a san
Ne 9.7; At 7.2-8;
gue que foi derramado durante o sacrifício. Por
F ilo ,
Ab, 60,62,85,88).
A fase de Abraão como estrangeiro mostra seu
isso. Deus escolheu Abraão e sua família
estado de peregrinação, sem direitos nacionais e
F ilo ,
civis, “habitando em tendas” (Hb 11.9; Gn 12.8;
gue tinha algum tipo de valor expiatório.
(P se u d o -
An bí, 18.5,6), talvez implicando que o san
13.3; 18.1), ou seja, como nômade. Sua obediên
A referência do autor a Gênesis 21.12 (Hb 11.18)
cia não garantiu um assentamento imediato na
e a referência seguinte a Deus ressuscitando “ [al
terra prometida, mas uma vida de permanência
guém] dos mortos” (Hb 11.19; cf. PirqeR. E l, 31)
temporária para si e para seus descendentes, onde
estão associadas ao mesmo tempo a Hebreus 11.12,
quer que estivessem (Hb 11.9), enquanto ele olha
em que Abraão é apresentado como “ sem vigor
va para o alvo supremo. De acordo com o autor
físico” no que diz respeito à sua capacidade de
de Hebreus, esse alvo não era Canaã, mas a cida
procriação. A implicação é que Abraão tinha fé
de firmemente estabelecida de Deus (Hb 11.10; cf.
em que Deus seria capaz de ressuscitar alguém
Hb 11.1; SI 48.8; 87.1-3; Is 14.32). A tradição apo
dos mortos — a saber, Isaque — por meio da pro
calíptica judaica afirma que Abraão viu a cidade
criação e ao salvá-lo do sacrifício. Os leitores cris
celestial [2Ap Br, 4.2-5; cf. 4Ed 3.13,14).
tãos também veriam o sacrifício de Isaque como
Abraão também exemplifica a fé por ter con
um prenúncio do dia em que Deus ressuscitaria a
fiado que Deus lhe daria um filho, embora ele e a
Jesus dentre os mortos. Disso eles poderiam obter
esposa nunca tivessem gerado filhos e não fossem
fé no Deus que é fiel às suas promessas
mais fisicamente capazes de fazê-lo (Hb 11.11,12;
p. 122-3,128). 6.5
cf. Rm 4.19-21; Gn 15.1-6; 17.15-22; 18.9-15). A
(S w e tn a m ,
Hebreus 13.1,2. O autor recomenda a seus
confiabilidade de Deus é realçada no contraste en
leitores que tenham a atitude de acolher os cris
tre o Abraão singular e a multidão de seus descen
tãos que sejam estrangeiros ou de fora. A hospi
dentes (Hb 11.12; cf. Hb 11.11), em conformidade
talidade era uma marca não somente das pessoas
com a promessa (Gn 15.5; 22.17; cf. Hb 6.13-15).
cultas, mas também dos cristãos, que se reuniam
Por último, Abraão exemplifica a fé na sua dis posição de sacrificar seu único filho, Isaque, que
nos lares de outras pessoas. A hospitalidade era necessária, especialmente no caso dos pregadores 15 I
A b r a ã o : N o v o T estamento
7.2
itinerantes. Na comunidade cristã, a relação con-
IPedro 3.4,5. No contexto de um código
vidado-anfitrião adquiria uma qualidade quase
doméstico, o foco recai sobre Sara, cujo exem
sacramental, uma vez que tinham por certo que
plo precisa ser seguido pelos leitores. Surpreende
Deus desempenharia um papel significativo no
que o autor não evoque a situação do relato do
intercâmbio entre convidados e anfitriões
AT,
(L
ane
,
em que Sara se ri diante da promessa de um
p. 512). Faz-se aqui uma alusão a Abraão, conhe
filho, dizendo que seu “senhor” é velho demais
cido por sua hospitalidade (ICl, 31; TeAb, 1.1-3A;
(Gn 18.12).
F il o ,
Ab, 107-10;
J osefo,
Talvez muitas das
An, 1.11.2, § 196), com
respeito a seu encontro com três visitantes em
m ulh eres
que leram a car
ta tivessem marido descrente. Por meio do seu
sua tenda, em Manre, quando ele e a esposa re
procedimento é que elas devem trazer o marido
ceberam a promessa do nascimento de seu filho,
para o evangelho (IPe 3.1,2). O princípio é que o
Isaque (Hb 13.1,2; Gn 18.1-21; ICl, 10.7).
cônjuge é influenciado pelo comportamento mo derado e digno de respeito. Na cultura da época, isso queria dizer que as esposas deveriam acatar
7. Tiago e IPedro
Tiago 2.21-24. Abraão, conhecido por a autoridade do marido.
7.1
Ver também
sua fé exemplar (v. 3.4 acima), também era re verenciado por sua obediência a Deus, quando se
Novo T e s t a m e n t o ;
dispôs a sacrificar Isaque (v. 3.2 acima), história popular nos círculos judaicos (v. 3.4 acima). Tia
G á la ta s ,
C a s ta
aos ; ju d a ís m o e
o
R o m a n o s , C a r t a aos.
DPc: A n t i g o T e s t a m e n t o em P a u l o ; c ir c u n c is ã o ; f é ; g e n t i o s ; j u d a iz a n t e s ; o b r a s d a l e i .
go 2.21-24 agrega essas duas tradições; Abraão H. w. Hebrews. Philadel
torna-se o exemplo daquele que completa a sua
B
fé com as obras.
phia: Fortress, 1989. (Herm.] ■ B a i r d , W. Abraham
Como Tiago 2.21 dá a entender que Abraão foi justificado
[d ik a io õ ]
pelas obras e isso soa como
ib l io g r a r a .
A
t t r id g e ,
in the New Testament: tradition and the new identity. Int, v. 42, p. 367-79, 1988. •
B arclay,
J.
contradição das declarações de Paulo sobre a jus
Obeying the truth: a study of Paul’s ethics in Ga
tificação (cf. Gl 2.15,16; Rm 3.22) exclusivamente
latians. Edinburgh; T & T Clark, 1988. ■ B e k e r , J.
pela fé, algumas observações se fazem necessá
C. Paul the Apostle: the triumph of God in life and
rias. Para começar, o sentido em que d ika ioõ é usa
thought. Philadelphia: Fortress, 1980. •
do em Tiago relaciona-se à comprovada fidelidade
le ,
B e lle v il
L. L. “Under Law” : structural analysis and the
de Abraão, talvez em referência ao tema das pro
Pauline concept of Law in Galatians 3:21—4:11.
vações (Tg 1.2,12). Assim, Deus declara Abraão
JSNT, V.
“justo” ou “fiel”. O sentido em que Paulo usa
a commentary on Paul’s Letter to the churches
d ik a ioõ
refere-se ao ato escatológíco em que Deus
declara que os pecadores estão agora num rela
26, p. 53-78, 1986.
• B e tz,
H. D. Galatians:
in Galatia. Philadelphia: Fortress, 1979. •
B row n ,
R. E. The Gospel according to John (i-xii). Garden
cionamento correto com ele. Assim, Paulo pode
City: Doubleday, 1985.
dizer que Abraão foi feito justo por fé (Gl 3.6-9;
o f God, seed o f Abraham: a study of the idea of
Rm 4.22). Além do mais, o sentido de “obras” nas
the sonship of God of all Christians in Paul against
duas cartas é diferente. Em Tiago, refere-se a atos
the Jewish background. Rome: Biblical Institu
de obediência e de compaixão que devem brotar
te, 1979. ■
da fé em Cristo (Tg 2.14-17) e que completam a fé.
Paul’s comparison of obedience to the Law to ido
C a lv e r t,
(a b ,
29a.) ■ B y r n e ,
B.
Son
N. L. Abraham and idolatry;
As obras (como em “ obras da lei”) contra as quais
latry in Galatians 4:1-10. In: E v a n s , C. A . & S a n d e r s ,
Paulo constrói sua polêmica em torno da ideia de
J. A. Paul and the Scriptures of Israel. Sheffield:
Abraão tornar-se justo pela fé somente são aqueles
js o t ,
marcadores (e.g., a circuncisão) que anteriormen
theism and the people o f God: the significance of
te identificavam o povo de Deus e ainda são usa
Abraham for early Jewish and Christian identity.
dos por alguns para identificar o povo de Deus em
T & T International, no prelo. • ______ . Traditions
1993. [jsNTSup, 83.) • ______ . Paul, 'mono
Cristo. Paulo usa Abraão como exemplo de justiça
of Abraham in middle Jewish literature: implica
pela fé porque está contestando aqueles que de
tions for the interpretation of Paul’s Epistles to the
sejavam minar o fundamento do seu evangelho.
Galatians and to the Romans. 1993. Dissertação.
16 I
A d ã o e C risto : Paulo
(Ph.D.) - University of Sheffield,
■
1993.
Minneapolis: Fortress, 1991, p. 157-74. ■
D a h l,
N. A. The story of Abraham in Luke-Acts. In: L. E. & M a r t y n ,
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L., orgs. Studies in Luke-
metaphor. NovT, v. 29.2, p. 150-76, 1987. ■ Z ie s
Acts: essays presented in honor of Paul Schubert.
le r ,
Nashville: Abingdon,
1966.
1989. ■
W.
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D.
& A lu s o n
J r ., D .
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P., org. The Romans debate.
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c a rta s .
Ver
c a r ta s , fo rm a s de
The Gospel according to Luke. Garden City: Dou bleday, 1981, 1985. (ab, 28 a , 28 b .) ■ Green, J. B. Je
A
sus and a daughter of Abraham (Luke 13:10-17):
Embora não sejam numerosas as referências à
test case for a Lucan perspective on Jesus' mira
figura veterotestamentária de Adão nas cartas de
cles.
Paulo, ele a emprega sempre de modo significati
p. 643-54, 1989. ■ Gordon, T. D. A
V. 51,
CBQ,
dão
e C r is t o : P a u l o
v . 35,
vo, uma vez que Adão serve de veículo para passar
p. 150-4, 1989. ■ Hansen, G. W. Abraham in Ga
as subhmes verdades teológicas sobre casamento,
latians: epistolary and rhetorical contexts. Shef
pecado, morte, natureza humana e esperança es
field: JSOT, 1989. ■ Hays, R. B. Echoes o f Scripture
catológica. Mais importante ainda é que “Adão”
in the Letters o f Paul. N ew Haven: Yale University
vem a ser uma das partes teologicamente corres
Press, 1989. • Lane, W. L. Hebrews. Dallas: Word,
pondentes entre si no ensino cristológico de Paulo,
1991. 2 V. (wbc.) ■ Lincoln, A. T. Abraham goes to
em que Adão e Cristo se apresentam como as duas
Rome: Paul’s treatment of Abraham in Romans 4.
metades de uma analogia claramente formulada
note on paidagogos in Galatians 3:24-25.
In: Wilkins,
M.
n ts ,
ministry in the early church. Sheffield: jscrr, [jsmsup,
em Romanos 5 e em ICoríntios 15.
J. & Paige, T. Worship, theology and
Essa analogia apresenta Adão e
1992.
C r is t o
como
cabeças de duas ordens contrastantes de existên
8 7 .) ■ Loewe, W. P. Towards an interpre
p. 321-31,1974. ■
cia, podendo ser tomada como uma das maneiras
Longenecker, R. N. Galatians. Dallas: Word, 1990.
mais reveladoras em que o pensamento teológi
I. H. Commentary on Luke.
co do apóstolo se manifesta: Adão representa a
tation of Luke 19:1-10.
(w b c , 4 1 .)
•
M a r s h a ll,
cbq,
v . 36,
Grand Rapids: Eerdmans, 1978.
R. P. 2 Corinthians. Waco: Word, 1986. ■ S a n d ers,
M a r t in ,
humanidade caída, e Cristo, a humanidade re
(w b c , 4 0 .)
dimida. Assim, nesses dois capítulos, vemos o
•
[n ig t c .)
entrecruzamento de vários interesses teológicos
E. P. Paul and Palestinian Judaism. Phi
ladelphia: Fortress, 1977. ■ ______ . Paul, the Law,
fundamentais, a saber, antropologia,
and the Jewish people. Philadelphia: Fortress,
soteriologia e eclesiologia. Justamente pelo fato
1983. •
c r is t o lo g ia ,
J. Jesus and Isaac: a study of
de tantos temas pauhnos de fundamental im
the Epistle to the Hebrews in light of the Aqedah.
portância convergirem na analogia Adão-Cristo,
Rome: Biblical Institute Press, 1981. ■
podemos afirmar que ela está muito próxima do
S w e tn a m ,
W a lla c e -
D. s. a suggested exegesis of Matthew
âmago do pensamento de Paulo. É precisamente
3:9,10 ( = Luke 3:8,9). ExpT, v. 62, p. 349, 1950-
por causa de sua importância fundamental que
1951. •
a analogia Adão-Cristo continuou a ser, ao longo
- H a d r ill,
W ard ,
R. B. Abraham traditions in early
Christianity. In:
N ic k e ls b u r g
Jr., G.
W.
E. Studies
dos anos, uma importante área de concentração da hermenêutica neotestamentária.
on the Testament o f Abraham. Missoula: Scholars, 1976, p. 173-84.
(scs,
1. Adão: o termo em sentido genérico
6.) ■ W e d d e r b u r n , A. J. M.
2. Adão: a figura histórica
The reasons for Romans. Minneapolis: Fortress, 1991. ■ W r i g h t ,
N.
3. Adão: a figura tipológica
T. The Seed and the Mediator:
Galatians 3:15-20. In: ______ . The climax o f the
4. Adão e a imagem de Deus
covenant: Christ and the law in Paulim theology.
5. Adão e o corpo de Cristo
17
I
A d ão e C risto : Paulo
1. Adão: o termo em sentido genérico
apoios textuais talvez representem precisamen
0 nome Adão ocorre somente sete vezes no cor-
te uma influência em sentido inverso (ou seja, é
pus paulino (Rm 5.14 [2x]; ICo 15.22,45 [2x];
mais provável que o tema bíblico tenha sido to
ITm 2.13,14), embora certos estudiosos conside
mado por empréstimo pelos escritores gnósticos
rem que alguns dos debates mais generalizados
posteriores; v.
g n o s t ic is m o )
.
acerca do “homem” [anthrõpos] também têm
Todos esses subsídios documentais, de algu
certo lastro adâmico no pensamento de Paulo.
ma forma relacionados com o tema, ajudam-nos
Isso se deve ao fato de que o termo hebraico
a compreender o interesse que a tradição em
adãm pode referir-se não apenas ao indivíduo
torno de Adão, o primeiro ser humano criado,
“Adão” , mas também à “humanidade” de forma
suscitou entre os escritores antigos, e como estes
genérica. É perfeitamente cabível conceber o uso
chegaram a fundamentar-se nela e assim refleti-la
que Paulo faz de Adão como expediente intima
em seus escritos. Quando se reconhece esse fato,
mente relacionado às várias outras imagens e ex
0 debate paulino em torno do tema é visto como
pressões de cunho antropológico que ele mesmo
plenamente compatível com outros documentos
utiliza para discorrer sobre a experiência cristã, a
de sua época, embora o emprego especificamen
nova vida que há em Jesus Cristo. Entre essas ima
te cristológico que o caracteriza torne distinto o
gens, podemos hstar: velho homem/novo homem
tratamento de Paulo. Paulo parece ser o primeiro
(Rm 6.6; Cl 3.9,10; Ef 2.15; 4.22-24); homem exte
a apresentar Jesus Cristo como “o último [ou se
rior/homem interior (2Co 4.16; Rm 7.22; Ef 3.15);
gundo] Adão [homem]” (ICo 15.45,47), designa
homem natural/homem espiritual (1 Co 2.14-16).
ção que inequivocamente chama a atenção para o
Relacionadas a esse sentido antropológico mais
caráter escatológíco do pensamento do apóstolo.
amplo de Adão estão aquelas passagens em que Paulo usa o pronome “eu” (explícita ou implici
2. Adão: a figura histórica
tamente), dando a entender que tem em mente a
Sem dúvida, Adão era tido por muitos no sécu
raça humana, ou a humanidade fora dos limites
lo
da nova experiência que para o crente é possível
Isso explica por que Judas 14 (citando lEn 1.9)
em Cristo (v.
I
como a primeira pessoa da história humana.
Um bom exemplo dis
se refere a Enoque como “ o sétimo a partir de
so está em Romanos 7.7-25, em que o apóstolo
Adão” (nv/). Lucas oferece uma avaliação seme
parece usar o pronome “eu” em sentido coletivo,
lhante quando inclui Adão na genealogia de Jesus
“
em
C r is t o ” ) .
0 que acaba por caracterizar certa sobreposição
(Lc 3.38). A historicidade de Adão como primeira
com o tema adâmico de contornos genéricos.
pessoa criada parece ter sido tomada por certo
É praticamente tido como certo que a narrati
pelo apóstolo Paulo, embora tal historicidade não
va de Gênesis 2—3 serve de lastro para o uso de
seja o foco principal dos dois principais textos
“Adão” nas cartas pauhnas, uma vez que fornece
pauhnos que versam sobre o tema Adão-Cristo.
os subsídios para esse emprego. 0 mesmo fascí
2.1
Adão (e Eva) como exemplo(s) ético(s).
nio pela figura de Adão também pode ser visto
Não obstante, a historicidade de Adão (e de Eva)
em vários documentos judeus e cristãos do sécu
parece mesmo estar por trás dos ensinamentos
lo
presentes nas cartas pauhnas sobre o relaciona
I,
dentre os quais 4Esdras, ZApocalipse deBam-
que e o Apocalipse de Moisés, como ressalta J. R.
mento homem-mulher e, por extensão, sobre o
Levison. Vastamente documentadas também, nos
relacionamento entre Cristo e sua igreja. Seme
escritos de Qumran e em obras de Filo de Alexan
lhantemente, as figuras de Adão e Eva são usadas
dria, contemporâneo de Paulo, estão as especu
umas poucas vezes nas cartas paulinas para su-
lações em torno de Adão. Pelo fato de que Adão
bhnhar a questão da autoridade dentro da ordem
figura com regularidade nos escritos gnósticos,
da Criação, estabelecida por Deus. Nesses dois
como os textos de Nag Hammadi, alguns estudio
casos, o(s) papel (éis) de Adão (e de Eva) como
sos vêm tentando enxergar um elo entre o tema
exemplo (s) ético (s) é (são) de suma importân
adâmico e as ideias gnósticas de “um segundo
cia, embora a historicidade do primeiro homem
homem”. Em geral, tal hipótese não tem sido re
(e mulher) pareça ser pressuposta como parte do
conhecida como válida, ainda mais quando os
argumento ético. O uso que se faz de Adão (e de
I 1
A d ão e C rísto : Paulo
Eva) como modelo (s) ético (s) abre caminho para
modelos comportamentais a evitar (como no caso
o emprego mais tipológico de Adão na analogia
do engano de Eva e suas consequências). Como
Adão-Cristo de Romanos 5 e de ICoríntios 15.
em outros momentos, a historicidade do relato de
2.1.1 Adão (e Eva): casamento e papéis se xuais. Paulo alude à história de Adão e Eva em
Gênesis parece ser tomada por certa aqui nessa análise ética do relato.
ICoríntios 6.16 valendo-se de uma citação de Gênesis 2.24. Embora não sejam aqui emprega
3. Adão: a figura tipológica
dos os nomes do primeiro casal de cônjuges, fica
Quando passamos a examinar as passagens rela
claro que servem de modelos éticos primordiais
cionadas de Romanos 5 e ICoríntios 15, encon
de como se deve dar na vida da igreja o relaciona
tramos um uso muito mais complexo e amplo
mento sexual adequado entre homem e mulher.
de “Adão” feito por Paulo. Aqui o foco muda de
Paulo aqui realça a importância e a santidade da
Adão como mera figura histórica para Adão como
união sexual de um homem com uma mulher
personagem tipológico ou figurado em relação a
como meio de exortar os crentes corintios a um
Jesus Cristo (em Romanos 5.14, o termo typos,
estilo de vida mais digno e para imprimir neles o
“figura” [“tipo” na nw], é usado em referência a
fato de que pertencem ao corpo de Cristo (v.
co rpo
Adão). Comentando sobre a importância de Adão
. A história de Adão e Eva também serve
no pensamento do apóstolo, C. K. Barrett obser
de fundamento para o conselho oferecido em Efé-
va que “Paulo enxerga a história convergindo
sios 5.22,33 a respeito da união no relacionamen
em pontos nodais e cristalizando-se em figuras
to marital. Aqui, mais uma vez, Efésios constrói
extraordinárias — homens notáveis por si sós
DE C r is t o )
sobre as imagens veterotestamentárias de Adão
como indivíduos, mas ainda mais notáveis como
e de Eva e sobre o entendimento da união deles
figuras representativas”
com aquele “mistério” que existe entre Cristo e a
vemos que, em Romanos 5 e em ICoríntios 15,
igreja (v. esp. em Efésios 5.32).
Paulo justapõe Adão a Cristo, usando várias ca
(B
arrett,
p. 5). Assim,
2.1.2 Adão (e Eva): o pecado e a ordem (ou se
racterísticas fundamentais do ambiente veterotes-
qüência) da Criação. O texto de ITimóteo 2.13,14
tamentário para transmitir verdades cristológicas
também demonstra clara dependência da narra
sobre Jesus Cristo, que encerra a humanidade em
tiva da história de Adão e Eva em Gênesis 2—3.
si mesmo. Poderíamos até mesmo à guisa de sín
Numa seção dedicada ao ensino ético (ITm 2.9-15),
tese dizer que Paulo entendia a redenção cristã
0 argumento volta-se para o relato sobre Adão e
como uma transição do estar “em Adão” para o
Eva em Gênesis como fundamentação escriturís
estar “ern Cristo” , uma transferência de cunho
tica para a compreensão da estrutura de autori
salvífico de uma esfera da vida, de um âmbito
dade — a ordem da Criação — que existe entre
da existência, para outro. Dado o fato de que a
homens e mulheres. A ênfase recai sobre a prio
teologia de Paulo brota de uma mentalidade es
ridade da criação de Adão (ITm 2.13) e a priori
catológica (v.
dade do engano de Eva (ITm 2.14) no jardim
que a nova criação suplantou a antiga (v.
do Éden. Recorre-se então a Adão e Eva como
NOVA
exemplos normativos de como homens e mulhe
Cristo como um reflexo do ensino paulino acer
res devem se relacionar e do que pode acontecer
ca do que R. Scroggs denominou “humanidade
se a estrutura correta de autoridade for abraçada
escatológica”. 3.1
por pessoas de épocas posteriores. Em suma, a questão é que ITimóteo apresenta Adão e Eva de
c r ia ç ã o ) ,
e s c a t o l o g ia ) ,
com ênfase no fato de c r ia ç ã o ,
é apropriado enxergar o tema Adão-
Adão e a humanidade escatológica. 0
texto de ICoríntios 15 consiste num debate in
maneira específica, como meio de regular a con
dependente sobre a
duta na vida da igreja, especialmente nas práticas
propósito primordial não é tanto corroborar a ver
r e s s u r r e iç ã o
dos mortos, cujo
de adoração. Eles são apresentados tanto como
dade da ressurreição de Jesus (uma vez que já é
exemplos éticos do passado a serem seguidos
tida como fato) quanto explicar sua importância
(como no caso da devida submissão de Eva a
para a vida dos fiéis. Assim, o capítulo trata da
Adão com base na dependência em relação a ele
realidade da ressurreição de Cristo e suas implica
estabelecida na ordem da Criação) quanto como
ções na vida dos cristãos. Nesse debate, a analogia 19 I
Adão-Cristo é usada claramente em dois momentos:
22b: do mesmo modo em Cristo todos serão
em ICoríntios 15.20-22 e em ICoríntios 15.44-49.
vivificados.
A ressurreição de Cristo é o acontecimento que
Os dois versículos devem ser interpretados
inaugura e estabelece o fato de ele ser “o primei
conjuntamente, uma vez que o segundo esclarece
ro” (“as primícias” , na n v i ) entre os que morreram
o significado do primeiro. A perspectiva essen
(ICo 15.20,23). É em relação a essa ideia que a
cialmente escatológica da analogia é demons
analogia Adão-Cristo é introduzida pela primeira
trada pelo uso do verbo no futuro passivo em
vez. M. Thrall entende que o debate cristológico
ICoríntios 15.22b.
que se desetu'ola em Corinto brota tanto da apre
Surge aí certo debate em torno da salvação uni
sentação anteriormente feita por Paulo a respeito
versal que ICoríntios 15.22 parece dar a entender.
do tema adâmico quanto do equívoco em torno
Que peso deve ser dado aos dois usos de “todos”
do tema por parte da igreja coríntia. Tal ideia está
em ICoríntios 15.22? Estaria Paulo ensinando a
longe de ser comprovada e pressupõe um vacilo
salvação, em última análise, de toda a humani
no pensamento de Paulo que é muito mais inten
dade em Cristo, assim como afirma a morte uni
cional do que tal teoria faria crer.
versal de toda a humanidade em Adão? A maioria
3.1.1
Cristo como o último M ã o : as primícias. dos comentaristas concorda em que tal ideia é
0 primeiro uso da analogia Adão-Cristo é introdu
incompatível com o restante do ensino de Paulo.
zido por uma afirmação (ICo 15.20) construída
Por toda a carta, Paulo faz menção àqueles que
sobre a declaração de ICoríntios 15.3-5 acerca
perecem (ICo 1.18; 3.17; 5.13; 6.9; 9.27). À luz
da ressurreição de Cristo. Na segunda metade de
disso, parece que somos obrigados a enxergar de
ICoríntios 15.20, o significado da ressurreição de
outro ângulo as duas orações com o sujeito “to
Cristo é ampliado — Cristo é também o “primeiro
dos” de IConntios 15.22 (ou ao menos a segunda
entre os que faleceram” (nw: “as primícias den
delas), considerando “em Adão” e “em Cristo” não
tre aqueles que dormiram”). Desse modo, mais
adjuntos adverbiais que complementam os verbos
um argumento é introduzido como elemento no
“morrem” e “serão vivificados”, mas quaUficado-
debate sobre a ressurreição de Cristo, a saber, a
res (ou orações adjetivas restritivas) do próprio
unidade do Senhor ressurreto com aqueles que
sujeito — “todos”. Assim, podemos entender o sig
nele creem. Os corpos ressurretos dos remidos (é
nificado do versículo da seguinte forma: “Todos os
importante ressaltar que o foco do debate recai
que estão em Adão morrem, ao passo que todos os
justamente sobre essa questão “ somática”) hão
que estão em Cristo serão vivificados”.
de corresponder ao de Cristo e dele decorrer, as
3.1.2
sim como a colheita corresponde aos primeiros
Cristo como o Último M ã o : o espírito que
dá vida. Temos em ICoríntios 15.45-49 uma cita
frutos e deles decorre.
ção do comentário midráshico sobre Gênesis 2.7.
É com 0 propósito de realçar a relação entre
A seção está alicerçada sobre a declaração que
Cristo e seus crentes, para assim explicá-la
Paulo faz em ICoríntios 15.44b: “Se há corpo
melhor, que a analogia Adão-Cristo é usada por
natural [“físico” na
Paulo. A tipologia Adão-Cristo passa a ser um
piritual”. Essa declaração de ICoríntios 15.44 é
argumento a favor da garantia de ressurreição
um resumo do parágrafo anterior, o qual começa
n r s v ],
há também corpo es
para a comunidade de crentes e, nas palavras
em ICoríntios 15.35 e contém um debate sobre a
de J. Lambrecht, estabelece para nós um rela
natureza do corpo ressurreto. Paulo fala aqui de
cionamento “temporal, bem como causai” entre
um sõma psychikon (“corpo natural”) e um sõma
o Senhor e aqueles que creem nele. Em 1Corin
pneumatikon (“corpo espiritual”), eficazmente
tios 15.21,22, Paulo delineia um paralelismo du
driblando seus oponentes corintios
plo, mostrando esse relacionamento;
A exata identificação desses oponentes vem sen
21a; Porque, assim como a morte veio por um
(D u n n ,
1973).
do ao longo dos anos objeto de amplo debate
homem,
acadêmico. B. Pearson, no entanto, identifica o
21b; também por um homem veio a ressurrei
uso que eles faziam da terminologia pneumati-
ção dos mortos.
kos-psychikos como um dos seus pontos de atrito
22a: Pois, assim como em Adão todos morrem. I
com Paulo. É na tentativa de explicar a relação
20
I
A d ão e C risto : Paulo
existente entre esses dois sõmata ( “corpos”, tanto
É significativo que as duas referências estru
pneumatikos quanto psychikos) que Paulo se vol
turadas relativas à analogia Adão-Cristo de 1Co
ta mais uma vez para a analogia Adão-Cristo de
rintios 15 (ICo 15.21 e ICo 15.45) são seguidas
ICoríntios 15.45-49.
por passagens que falam de Jesus Cristo em lin
Paulo cita Gênesis 2.7 a partir da l x x , acrescen
guagem grandiloquente e às vezes são entendidas
tando as palavras “primeiro” e “Adão” ao texto do
como uma expressão do entendimento paulino da
AT a fim de estabelecer o contraste tipológico com
doutrina de preexistência. Assim, em ICoríntios
Cristo que se segue em ICoríntios 15.45b: “O úl
15.25-28, há o uso cristológico de Salmos 8.6 e de
timo Adão [tornou-se] espíríto que dá vida”. Ao
Salmos 110.1, ao passo que em ICoríntios 15.47-49
estabelecer o contraste dessa maneira, Paulo está
há referências repetidas ao “ homem [...] do céu/
tratando da questão dos “corpos” da existência
celestial”. A pergunta que então precisa ser for
natural e da espiritual, como se pode perceber
mulada é: Existe alguma relação entre o fato de
no uso dos artigos definidos neutros (no original
Paulo chamar Jesus Cristo de “último Adão” e a
grego) de ICoríntios 15.46 (sendo o antecedente
linguagem grandiloquente vinculada à expressão
“corpo”), em vez de artigos masculinos (no origi
“homem do céu” atribuída a ele em ICoríntios
nal grego; o masculino se referiria a “homem”).
15.25-28 e em ICoríntios 15.47-49? Se existe tal
0 argumento é que Adão, por ter “corpo físico”
associação, podemos encontrar aí um elo entre a
também se tornou “ ser vivente” ; Cristo,
teologia adâmica de Paulo e sua crença na pree
por tornar-se “corpo espiritual” , também se tor
xistência de Cristo, ou mesmo um traço ou vestí
nou espírito “ que dá vida”. Paulo não está aqui
gio da figura do “Filho do homem”. Muitos (como
( n r s i' ) ,
apenas fazendo uma afirmação antropológica so
Dunn)
bre Cristo como o “último Adão”. O que ele quer
e assim significa forçar as evidências; devemos
sentem que isso não passa de especulação
dizer vai além disso: está também fazendo uma
prosseguir com cautela. De todo modo, não de
declaração cristológica sobre o Senhor ressurre
vemos permitir que a questão fascinante de uma
to que se manifestou na igreja como o Espírito
sobreposição entre as ideias da preexistência e da
regenerador. A passagem de Gênesis prestava-se
linguagem grandiloquente vinculada à expressão
a esse propósito, embora, como observa N. T.
“ homem do céu” nos desvie do caráter essencial
Wright, a relação desse ponto cristológico com o
mente escatológíco da analogia Cristo-Adão como
debate principal sobre o “corpo espiritual” não
encontrada nessa carta. 3.2
esteja evidente à primeira vista.
Adão e a origem do pecado. Em grande
Em certo sentido, portanto, o uso que Paulo
parte por causa da narrativa de Gênesis 3, a figu
faz da analogia Adão-Cristo não é de todo unifor
ra de Adão tem sido um dos pontos centrais nos
me. Ao chamar Cristo o “espírito que dá vida”,
debates sobre a pecaminosidade humana, tanto
Paulo está fazendo uma declaração sobre a obra
no judaísmo quanto no cristianismo (v.
de Cristo na igreja que não tem nenhum corres
Romanos 5.12-21 contém o tratamento mais am
pecad o ).
pondente no lado adâmico da analogia. 0 fator
plo desse tema nas cartas paulinas. Esse texto
que motiva Paulo a fazer uso da analogia é seu
vem exercendo enorme influência na teologia
desejo de mostrar que existe um relacionamento
cristã ao longo dos séculos, à medida que vários
entre Adão e o restante da humanidade. Mas a
intérpretes têm buscado aferir as profundidades
maravilha do que Deus havia feito pela raça hu
do ensino do apóstolo sobre a origem do pecado.
mana por meio de Cristo é tão superior que a ana
Sem dúvida, Paulo associa a entrada do pecado e
logia Adão-Cristo se desmantela. Foi empregada
da morte no mundo à transgressão de Adão. Em
pelo apóstolo apenas à medida que se mostrou
bora em Romanos 5 ele esteja (como se presume)
útil para demonstrar a solidariedade (no senti
pensando historicamente na Queda, fica patente,
do de mútua representatividade) dos dois Adões
de imediato, que ele tem em mente muito mais
com seus respectivos representados, mas, quan
que uma avaliação histórica de Adão e de seu ato
do não conseguiu mais transmitir nem carregar a
de rebeldia. Na realidade, o uso que Paulo faz de
mensagem do poder de Cristo que transforma a
Adão em Romanos 5.12-21 tem um realce proto-
vida do crente, foi abandonada.
lógico (que aponta para o começo). Adão serve
I 21
I
A d ão e C risto : Paulo
de meio para explicar a entrada do pecado e da
para Romanos 5.12d e observa que, na história
morte no mundo e (por extensão) para descrever
da igreja, é possível encontrar apoio para cada
a condição da raça humana depois dessa primeira
uma delas. G. Bonner lamenta que Agostinho não
transgressão. 0 foco é deslocado de Adão e Cristo
tenha se concentrado “mais na concepção rica e
como pessoas coletivas, em ICoríntios, para seus
profunda da antítese entre os dois Adões, em vez
respectivos atos, em Romanos 5.
de perder tempo com a teoria horripilante da par
Isso não significa afirmar que toda a pers pectiva de Romanos 5 é simplesmente uma
ticipação da humanidade ainda por nascer no pri meiro pecado do primeiro Adão”
retrospectiva (um olhar para trás), pois ao mesmo
(B o n n e r ,
p. 247).
É importante ressaltar que, embora Paulo de
tempo é verdade que tudo que aconteceu em
fato aponte Adão como o instrumento pelo qual o
Adão é transcendido pelo que acontece em Jesus
pecado ingressou no mundo, ele não nos informa
Cristo, 0 Último Adão. Como Paulo afirma em Ro
0 meio pelo qual esse pecado é transmitido de
manos 5.14, Adão é “um tipo daquele que haveria
uma geração a outra. A mecânica permanece sem
de vir” (nw). 0 ato de desobediência de Adão é
explicação, além da declaração simples de que
contraposto ao ato de obediência de Cristo, que
“toda a humanidade pecou” (tradução mais correta
carrega consigo uma promessa de vida futura na
de Romanos 5.12). A responsabilidade de Adão
nova criação. Na realidade, em Romanos 5.15-21,
pelo ingresso do pecado no mundo é corroborada
numa seção muito bem estruturada de sua argu
por Paulo ao lado de uma confirmação também
mentação. Paulo faz 0 que está ao seu alcance
da responsabilidade do indivíduo pela presença
para deixar claro que Jesus Cristo reverteu, em
do pecado em sua vida. No entender de Paulo,
todos os sentídos, os efeitos negativos da trans
atuam os dois elementos (culpa e responsabilidade
gressão de Adão: a transgressão é resolvida pela
pessoal, bem como culpa e pecado universal em
obediência; a condenação, pela justificação; a
Adão). Esse paradoxo fica claro pelo modo em que
morte, pela vida. A argumentação a minori ad
o pensamento de Paulo transita livremente da de
maius (“ do menor para o maior”) é empregada
claração profundamente pessoal de Romanos 5.12
do começo ao fim. e assim se ressalta a tremen
(“porque todos os homens pecaram”
da verdade concernente à suplantação do pecado
a declaração mais determinista de Romanos 5.19
[nrsv] )
para
e de seus efeitos por meio da graça de Deus em
(“pela desobediência de um só homem muitos fo
Cristo. No entanto, a dimensão protológica da
ram feitos pecadores”). 0 ensino de Paulo é ecoa
analogia Adão-Cristo de fato é ressaltada aqui de
do em lApocalipse de Baraque 54.15,19: “Pois,
uma maneira que não é em ICoríntios 15.
embora Adão tenha pecado primeiro e tenha trazi
0 fato de Romanos 5.12 ser uma frase ina
do morte sobre todos os que ainda nem existiam,
cabada no grego motivou diversas tentativas de
cada um dos que nasceram dele preparou para
interpretar a direção que o argumento de Paulo
si mesmo o tormento vindouro. [...] Adão não é,
estava tomando. Como F. W. Danker observa,
portanto, a causa, a não ser para si mesmo, mas
parte do dilema é a dificuldade de concluir qual
cada um de nós se tornou seu próprio Adão” (ed.
seja 0 antecedente do pronome relativo dativo hõ
C h arlesw o rth ) .
(“pecado” , “ morte” , “Adão” ou nenhum deles, antes, com a preposição epi {eph’], consistindo
4. Adão e a imagem de Deus
numa expressão idiomática com o sentido de “ra
A teologia adâmica também desempenhou um
zão pela qual” , “porque” , “porquanto” , “ pois”).
papel importante em várias outras passagens-
Além do mais, a tradução que Agostinho fez de
chave das cartas paulinas. notadamente estas,
Romanos 5.12 — "em quem [Adão] todos peca
como 0 material hínico de Filipenses 2.6-11 e de
ram” (em lat., in quo omnes peccavemnt] — tem
Colossenses 1.15-20, e também da declaração
desde então, para nossa vantagem ou desvanta
de 2Coríntios 4.4, que se referem a Jesus Cris
gem, dado 0 tom para a interpretação teológica
to como “a imagem de Deus”. Aqui, o histórico
que a igreja tem feito dessa declaração a respeito
veterotestamentário de Adão dá conta de alguém
de Adão. C. E. B. Cranfield alista seis possibilida
criado “à imagem de Deus” [morphé é usado
des interpretativas dignas de consideração apenas
em Fp 2.6, e eikõn, em Cl 1.15 e em 2Co 4.4).
22 I
A d ão e C risto : Pa ulo
A designação da “glória de Deus [ou do homem]”
Cristo como a expressão verdadeira daquilo que
também figura no debate nesse ponto. Essa con
a imagem de Deus significa (pensamento de
fluência de imagens e designações recentemente
Bultmann)?
levou alguns estudiosos a ver a preponderância
Essas duas abordagens interpretativas de
da linguagem da “ imagem de Deus” encontrada
pendem, em parte, de como se entende que se
em todas as cartas paulinas como mais uma ma
devam encaixar as duas metades de Romanos 5
nifestação da teologia adâmica. J. D. G. Dunn
(Rm 5.1-11 e Rm 5.12-21). Assim, Barth, de for
(1980), por exemplo, argumenta fortemente a fa
ma convincente, situa Romanos 5.12-21, com sua
vor de uma leitura adâmica do hino filipense. M.
descrição da raça humana adâmica, dentro dos
D. Hooker enxerga um tema adâmico subjacente
limites de Romanos 5.1-11, em que se declara a
a Romanos 1.18-32, em que o apóstolo se refere
real condição da raça humana em Cristo. Já Bult
à terrível situação da humanidade da perspectiva
mann ahcerça Romanos 5.12-21 no estilo de vida
da queda de Adão. A. J. M. Wedderburn oferece
motivado pelo exemplo de fé de Cristo e ressalta
alguns esclarecimentos à teoria de Hooker. Além
que Romanos 5.1-11 se ocupa com a existência
disso, existem boas razões para considerar que
paradoxal dos crentes em estado de esperança.
a queda de Adão está por trás da declaração de
Ou seja. Romanos 5.12-21 é interpretado como
Paulo em Romanos 3.23.
expressão mais plena dessa vida do crente, e é
4.1
Imagem de Deus: natureza e existência apenas nesse aspecto que o componente cristoló gico, por assim dizer, é introduzido no esquema.
em Romanos 5. Intimamente relacionada a esse
4.2
assunto está a consideração de como o ser criado
Imagem de Deus: estágios da história
“à imagem de Deus” opera como uma descrição
da salvação. Outra maneira de representar essa
da natureza e da existência humanas. Eis uma
divergência fundamental na interpretação do
questão que por muito tempo ocupa a atenção de
sentido de humanidade (se é a humanidade adâ
comentaristas cristãos, muitos dos quais, como
mica ou a nova humanidade em Cristo) criada “à
João Calvino (na observação de R. Prins), têm
imagem de Deus” é por meio de uma ilustração
procurado se deter nas cartas de Paulo na tenta
de etapas sucessivas transpostas na história da
tiva de tratar da questão. É interessante observar
salvação. A estrutura escatológica subjacente a
que Romanos 5 como um todo, particularmente
todo o pensamento de Paulo enxerga que a an
a analogia Adão-Cristo de Romanos 5.12-21, se
tiga era, à luz do advento de Cristo, deu lugar
torna decisiva nesse aspecto.
a uma nova era, como demonstram textos como
As interpretações de Romanos 5 oferecidas
2Corintios 5.17.
por K. Barth e R. Bultmann são comparações
J. A. Ziesler apresenta esse quadro como um
úteis nesse caso, pois são interpretações que se
possível esquema de três etapas, em que “estado
concentram respectivamente nas metades cristo
original-Queda-estado restaurado” constítui uma
lógica e antropológica da analogia. Assim, Barth
forma de mapear esse desdobramento. Tal esque
concentra-se no elemento cristológico da analo
ma de três etapas tenderia ao tipo de interpretação
gia e enxerga a passagem essencialmente como
oferecida por Bultmann. No entanto, Ziesler argu
expressão da natureza da humanidade. Bultmann
menta que a visão que Paulo tinha do homem é
concentra-se no elemento antropológico da ana
tão esmagadoramente dirigida à perspectiva esca
logia e enxerga a passagem essencialmente como
tológica do Últímo Adão que esse esquema de três
expressão da existência da humanidade. Em resu
etapas se torna irrelevante em qualquer debate a
mo, a pergunta fundamental é como compreen
respeito de Paulo. Ele observa que em nenhum
demos o fato de a raça humana (Adão) ser criada
lugar Paulo identifica Adão como alguém “à ima
“à imagem de Deus”. É em Adão ou em Cristo
gem de Deus”. Assim, com base nisso, sugere que
que de fato contemplamos a “imagem de Deus”?
um esquema de duas etapas está mais próximo do
Começamos com Cristo e daí passamos para in
ensino essencial de Paulo. Isso esboçaria as etapas
terpretar a raça humana como a imagem de Cris
da história da salvação num desdobramento mais
to (pensamento de Barth)? Ou começamos com
simples (Queda-estado restaurado) e tenderia
a raça humana e daí passamos para interpretar
para a interpretação proposta por Barth.
23
I
/~KU/-\U C
( M U LU
Haveria boas razões para sustentar essa rup
e Filipenses 3.4-11, e enxerga nelas um tema adâ
tura tão radical entre Adão e Cristo como imagem
mico subjacente. S. Kim sustenta que essa pers
de Deus? As ideias de Ziesler precisam ser mo
pectiva congrega dois fundamentos distintos para
dificadas ligeiramente por meio de uma análise
o pensamento cristológico de Paulo; uma crlsto-
mais rigorosa de ICoríntios 11.3-9, em que Paulo
logia sapiencial e uma cristologia imagética, e
emprega o relato da Criação, de Gênesis, como
ambas convergem na pessoa de Jesus Cristo, o
base para um comportamento ético adequado
Segundo Adão no pensamento de Paulo.
entre homens e mulheres no que diz respeito a cobrir a cabeça durante o culto. 0 versículo fun
5. Adão e o corpo de Cristo
damental é ICoríntios 11.7; “O homem não deve
Uma vez que Paulo vê a raça humana incorpo
ter a cabeça coberta por véu, uma vez que ele é
rada tanto em Adão quanto em Cristo, não redi
a imagem e o reflexo de Deus; mas a mulher é o
mida e redimida, respectivamente, ele demonstra
reflexo do homem” (nrsv). A questão aqui é que
(ou contribui para) uma sobreposição conceituai
Paulo demonstra alguma flexibilidade no seu uso
entre uma teologia adâmica e a ideia do corpo
de “imagem de Deus”, disposto que está a aplicar
de Cristo (v.
o conceito de forma mais ampla se isso contribuir
po de Cristo é constituído de crentes congrega
para seus propósitos, ainda que seja verdade que
dos para formar uma humanidade unida, a do
co rpo
de
C r is t o ) .
Ou seja, esse cor
a passagem, como ressalta Ziesler, de fato ocorre
Último Adão. Embora não haja uma referência
num contexto não soteriológico. Todavia, não de
clara a Adão nos textos-chave em debate aqui,
vemos ignorar o traço adâmico desse versículo —
está claro que a humanidade adâmica e caída é
Paulo quer dizer que o homem, ou seja, cada ser
espiritualmente reconstituída (Ef 1.10) em Cris
humano, carrega de alguma maneira a imagem
to de tal modo que a linguagem adâmica e as
e a glória (ou “ reflexo” , como na
de Deus,
imagens do corpo de Cristo se fundem. Vemos
Não se quer com isso negar que, de acordo
paulinas, dentre as quais Colossenses 3.12-17 e
nrsv)
como o primeiro Adão.
esse realce específico em várias partes das cartas
com Paulo, há um forte sentido em que a glória
Efésios 2.13-18.
da raça humana como a imagem de Deus encon
Nos dias de hoje, W. D. Davies encabeça uma
tra realização em Cristo. Em Filipenses 3.20,21,
investigação do tema ao ressaltar os antecedentes
encontramos isso claramente representado no
judaicos e rabínicos desse entendimento acerca de
fato de o crente ser transformado do “corpo da
Adão com sua pertinência a um estudo do ensino
[...] humilhação” para o “corpo da sua [de Cristo]
de Paulo sobre um Cristo coletivo. No âmago da
glória”, e em Romanos 8.29 faz-se referência aos
questão está o reconhecimento de que o debate a
crentes como pessoas “conformes à imagem de
respeito de Adão não é primordialmente um deba
seu [de Deus] Filho”.
te sobre a raça humana em si mesma, sendo mais,
4.3
Imagem de Deus: cristofania. Seria possí porém, um debate em torno da nação de Israel vis
vel identificar a origem do entendimento de Paulo
ta de uma perspectiva escatológica, como afirma
a respeito de Jesus Cristo como o Último Adão,
N. T. Wright. Não se deve subestimar a tremenda
bem como sua conexão com o tema da “imagem
contribuição que um senso do coletivo, visto que
de Deus”? Parece haver uma estreita relação entre
quer como humanidade adâmica quer como corpo
a imagem-cristofania e as referências ao Senhor
de Cristo, faz à análise das cartas paulinas. Tal rein-
Jesus Cristo ressurreto que se fundamentam na
terpretação das promessas do
tradição veterotestamentária da teofania e são
do ponto de vista da nova criação em Cristo parece
corretamente designadas “cristofania”. Significa
subentendida em Gálatas 6.15,16 e certamente
at
à
nação de Israel
dizer que as passagens em que Paulo faz refe
adquire caráter inequívoco em alguns dos escritos
rência ou alusão à sua experiência de conversão
de líderes cristãos posteriores, como Justino Mártir,
e à sua visão de Cristo podem ser tomadas como
para quem a igreja cristã é “o verdadeiro Israel
suplementos de uma cristologia adâmica. Isso
espiritual”
traz para o debate passagens como ICoríntios
constitui “Israel” é uma questão difícil de definir
9.1; 15.8-10; 2Coríntios 3.4—4.6; Gálatas 1.13-17
nas cartas de Paulo como um todo, e não se pode
I 24
(J u s t in o ,
Dl TY, 11.5). No entanto, quem
ADOÇÃO, f il ia ç ã o : P a u l o
sustentar facilmente a substituição da nação pela
Adam in Paul’s Letter to the Romans. In:
igreja em cada um dos casos, sobretudo à luz de
ne
versículos difíceis como Romanos 11.26.
Paul and other New Testament authors. Sheffield;
Ver também c r i s t o l o g i a ;
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B u lt m a n n ,
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: P
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G. R, orgs. Current issues in New Testament inter
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according to Romans 5. In:
K la s s e n ,
W. &
(Rm 9.4) ou em referência aos crentes (GI 4.5;
pretation: essays in honor of O. A. Piper. London: The Epis
Rm 8.15,23; Ef 1.5) como filhos de Deus. Há, no
tle to the Romans. Edinburgh: T & T Clark, 1975.
entanto, certa divergência quanto à melhor forma
2
de traduzir o termo: se por “adoção” ou, de ma
scm ,
1962, p. 143-65. ■ C r a n f i e l d ,
V.
■
NTS,
V.
D a n k er,
C.
E.
B.
F. W. Romans 5:12: sin under law. D.
neira mais genérica, por “ filiação”. É preciso re
Paul and rabbinic Judaism. 4. ed. Philadelphia:
solver esse problema antes mesmo que se possam
Fortress, 1980. ■
debater os antecedentes específicos do termo.
14, p. 424-39, 1967-1968. ■
Dunn,
J.
D.
D a v ie s ,
W.
G. Christology in the
making. Philadelphia: Westminster, 1980, p. xviii-
1. O significado de huiothesia em Paulo
xix, 98-128. ■ _______. 1 Corinthians 15.45— Last
2. Os antecedentes da “adoção [divina] de filhos” em Paulo
Adam, life-giving Spirit. In; Lindars, B. & Smalley,
3. A fiUação dos crentes em Paulo
S., orgs. Christ and Spirit in the New Testament: studies in honor of C. F. D. Moule. Cambridge: Cambridge University Press, 1973, p. 127-41. ■
1. O significado de huiothesia em Paulo
Hooker, M. D. From Adam to Christ: essays on Paul.
Às vezes, tem se negado que Paulo tivesse feito
Cambridge: Cambridge University Press, 1990. ■
uso de huiothesia no sentido de “adoção” , o que
Kim, s. The origin o f Paul’s Gospel. Grand Rapids:
favoreceria então que o termo fosse traduzido por
Eerdmans, 1982. ■ Kreitzer, L. J. Christ as Second
“ filiação” (e.g.,
Adam in Paul, cv, v. 32, p. 55-101, 1989. ■ Lambre
lexical, no entanto, dificilmente apoia tal assertiva
B y r n e ).
A esmagadora evidência
cht, J. Paul’s Christological use of Scripture in 1
(v.
Corinthians 15.20-28.
v. 28, p. 502-27, 1982. ■
tes extrabíblicas de sua época, huiothesia sempre
Levison, J. R. Portraits o f Adam in early Judaism.
denota ou o processo ou o estado de ser adota
Sheffield: Academic, 1988. {jspsup, 1.) ■ Pearson,
do como filho (s). Isso é confirmado não somente
B. The pneumatikos-psychikos terminobgy in 1 Co
pelo uso unívoco e disseminado do termo em fon
rinthians. Missoula: Scholars, 1973. ■ Prins, R. The
tes literárias e não literárias, mas também por an
image of God in Adam and the restoration of man
tigos lexicógrafos gregos que datam do período do
in Jesus Christ,
n t.
s jt , v
.
n ts,
25, p. 32-44,1972. ■ Scroggs,
ScoTT,
1992). Em Paulo, assim como em fon
o uso que Paulo faz de huiothesia obviamente
R. The Last Adam. Oxford: Basil Blackwell, 1966.
se apropria desse uso normal do termo, visto que
■ Thrall, M. Christ crucified or Second Adam? A
a construção de Gálatas 4.5 encontra correspon
Christological debate between Paul and the Corin
dentes muito próximos na literatura helenística
thians. In: Lindars, B. & Smalley, S., orgs. Christ
(cf.
and Spirit in the New Testament: studies in honor
qualquer tentativa de traduzir o termo de modo
of C. F. D. Moule. Cambridge: Cambridge Univer
mais genérico por “ filiação” iniciaria o estudo dos
sity Press, 1973, p. 143-56. ■ W e d d e r b u r n , A. J. M.
antecedentes do termo pela via errada. 25
I
N ic o la u d e D a m a sco ,
Vi Cs, 130.55). Por isso,
ADOÇAO, FiUAÇAO; KAULO
2. Os antecedentes da divina “adoção de
4.180]). As religiões de mistério foram às vezes
filhos” em Paulo
apontadas como possível origem (cf.
Entre os autores para quem huiothesia denota
não há nenhuma evidência de adoção divina nos
“adoção” , há divergência de opinião quanto aos
mistérios (v.
antecedentes do termo. Isso se deve em parte ao
2.2.2
B e tz ),
mas
r e lig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ).
A adoção como metáfora judicial. Muito
fato de que Paulo parece ser o primeiro a usar o
estudiosos têm sugerido que o conceito de adoção
termo num contexto teológico (e mais especifi
de Paulo é uma metáfora jurídica que o apóstolo
camente ainda num contexto de adoção divina)
construiu ad hoc (propositadamente para o caso
e, mesmo assim, jamais explica o que quer dizer
em questão) a partir de seus subsídios greco-ro-
com o termo. O apóstolo evidentemente pressu
manos. Entre esses especialistas, alguns a consi
põe que seus leitores sabem o que ele quer dizer
deraram uma metáfora extraída da lei helenística,
com adoção de filhos de Deus.
porque ah a adoção é uma instituição vinculada
2 .1 Adoção como abstração teológica. Alguns
sobretudo à herança, e Gálatas 4.5 trata da ado
estudiosos tratam o conceito de adoção em Paulo
ção que torna os crentes herdeiros (cf.
simplesmente como uma abstração que é vincu
Mais frequentemente, no entanto, os proponentes
W e n g e r ).
lada a outro conceito paulino. Dessa maneira, a
desse tipo de abordagem (e.g.,
questão em torno dos antecedentes é tirada de
tendem o conceito de adoção em Paulo levando
L y a ll
e
B ru ce)
en
cena completamente. Por exemplo, H. Hübner
em consideração a intricada cerimônia romana
entende adoção como sinônimo de “ liberdade”
em que o menor a ser adotado era emancipado
[eleutheria], no sentido de ser livre em relação
da autoridade do pai natural e posto sob a nova
à Lei. R. Bultmann e outros que seguem em seu
autoridade do pai adotivo, muitas vezes para fins
encalço tratam “adoção” como termo da esfera
de manobra social ou política, ou as duas coi
forense-escatológica, correspondente a “ justiça”
sas. Gálatas 4.5 de fato traça um paralelo entre
[dikaiosyné]. S. Kim considera o conceito de hnio-
redenção e adoção, mas a teoria segundo a qual
thesia de Paulo uma dedução secundária baseada
o testemunho do Espírito (v.
na cristofania da estrada de Damasco, na qual
Romanos 8.16 reflete o testemunho na cerimônia
Paulo enxerga no Senhor ressurreto a imagem de
romana merece pouca consideração. Provas cir
Deus ou do
E s p ír it o S a n t o )
de
cunstanciais como a cidadania romana de Paulo
F ilh o de D eu s.
2.2 A adoção em relação aos antecedentes
e 0 predomínio das adoções romanas nos dias de
greco-romanos. Quando o conceito de adoção
Paulo também não dão conta de consolidar a me
divina em Paulo é analisado, como é comum
táfora jurídica como explicação absoluta.
acontecer, levando-se em conta um fundo greco-
2.3
A adoção em relação aos antecedente
romano, ele é normalmente comparado ou com
veterotestamentários/judaicos,
um caso específico de adoção divina na mitologia
thesia ocorre no
nt
O termo huio
somente em Paulo e jamais
greco-romana, ou com a prática efetiva de adoção
na LXX ou em outras fontes judaicas. Apesar de
no direito greco-romano.
reiteradas afirmações em contrário, no entanto, o
2.2.1A adoção divina na mitologia greco-roma-
conceito de adoção — mesmo a adoção divina —
na. A adoção divina desempenha um papel muito
era conhecido no
pequeno nas fontes greco-romanas. Afora Paulo,
temente de se alguma vez tenha sido praticado
at
e no judaísmo, independen
huiothesia nunca é usado em relação a essas ado
(v. Scorr, 1992, e
ções no período em apreço. Os poucos exemplos
sível que as raízes do conceito de Paulo sejam
inequívocos de adoção divina que podem ser adu
encontradas aqui.
zidos de fontes greco-romanas que empregam ou
2.3.1
M a lu l).
Portanto, não é impos
Gálatas 4.5. O contexto da ocorrência
tros termos para adoção não fornecem um fundo
mais antiga do termo, em Gálatas 4.5, oferece,
para o conceito de Paulo (cf. a adoção de Héracles
por sinal, uma pista decisiva para entender huio
por Hera
thesia, levando-se em conta antecedentes vete-
[ D i o d o r o S íc u lo ,
4.39.2], a de Alexandre,
o Grande, por Amon-Zeus
A l, 50.6], a
rotestamentários/judaicos. Isso porque, quando
[P lu t a r c o , M o ,
31 8C] e a
Gálatas 4.1,2 é corretamente compreendido não
da deusa líbia “Atena” por Amon-Zeus
[H e r ó d o t o ,
como ilustração da lei greco-romana, mas como
de Sólon por Fortuna
[P lu ta r c o ,
I 26
ADOÇÃO, f il ia ç ã o : P a u l o
fica claro que
7.14, além do mais, Gálatas 4.4-6 vincula a ado
Gálatas 4.5 está situado num contexto emoldura
ção divina com a recepção do Espírito (da nova
do por uma tipologia extraída do Êxodo (GI 4.1-7).
ahança) no coração. Assim, embora o contexto
Assim como Israel, na qualidade de herdeiro da
de huiothesia de Gálatas 4.5 não dê motivo para
promessa abraâmica (v.
foi redimido
supor antecedentes greco-romanos para o termo,
como filho de Deus da escravidão do Egito no
toda a linha de argumentação de Gálatas 3— 4,
tempo determinado pelo Pai (GI 4.1,2; Os 11.1;
com seus correspondentes paulinos, conduz ine
uma alusão ao
at
( v . S c o t t , 1 9 9 2 ),
A
braão ) ,
Gn 15.13), os crentes foram redimidos para a
quivocamente a origens veterotestamentárias/
adoção como filhos de Deus da escravidão aos
judaicas do termo (cf. Rm 9.4), especificamente à
“ princípios elementares do mundo” na plenitude
tradição de 2Samuel 7.14 (cf. 2Co 6.18). Ou seja,
dos tempos e dessa forma se tornaram herdeiros
crentes que são assim batizados (v.
da promessa abraâmica (GI 4.3-7).
Filho messiânico de Deus e tomam para si o pró
0
b atis m o )
no
fato de que “a” huiothesia deve ser consi prio clamor que ele faz ao Pai — “Aba” (GI 4.6;
derada aqui em relação a antecedentes veterotes-
Rm 8.15; cf. Mc 14.36) — participam com ele da
tamentários/judaicos específicos fica ainda mais
promessa davídica de adoção divina e da promes
comprovado por Romanos 9.4, em que o termo
sa abraâmica de soberania universal (cf. GI 4.1).
precedido de artigo no original grego ocorre numa
2.3.2
Romanos 8.15,23. Essa interpretação
lista de privilégios históricos de Israel (cf. Êx 4.22;
huiothesia em Gálatas 4.5 aplica-se igualmente
Os 11.1) e, mais especificamente, pelo contexto
ao uso do termo na passagem proximamente
mais amplo de Gálatas 3— 4, que deixa claro que
correspondente de Romanos 8. Pois aqui tam
os crentes são filhos e herdeiros ao participarem
bém a participação por adoção no Filho messiâ
pelo batismo (GI 3.27) do Filho de Deus que foi
nico de Deus que é enviado (Rm 8.3; cf. GI 4.4)
enviado para redimi-los (GI 4.4,5; cf. GI 3.13,14).
está inseparavelmente associada ao recebimento
Isso porque, rigorosamente falando. Cristo é o
do Espírito que habita em quem crê, de modo
descendente de Abraão (GI 3.16) e o Filho mes
que agora o Espírito pode ser chamado “ Espí
siânico de Deus prometido em 2Samuel 7.12,14.
rito de adoção” (Rm 8.15), o Espírito por quem
Vista em seu contexto, portanto, “a adoção” de
também as justas exigências da Lei são cum
Gálatas 4.5 deve se referir à expectativa escatoló
pridas (Rm 8.4). À semelhança de Gálatas 4.5,
gica judaica fundamentada em 2Samuel 7.14.
além disso, o contexto de Romanos 8, em que o
Pode se demonstrar que 2Samuel 7.14 ("Eu
termo huiothesia está inserido, contém elemen
serei seu [de Davi] pai, e ele será meu filho”) con
tos da tipologia do Êxodo, e a filiação adotiva
tém uma fórmula de adoção (cf. Êx 2.10; Et 2.7;
por parte de Deus implica herança com Cristo
Gn 48.5), que o judaísmo posterior aplicou não
na promessa abraâmica (Rm 8.17). Diferente
somente ao Messias davídico, mas, sob a influên
mente de Gálatas 4.5, no entanto. Romanos 8
cia da teologia da
(cf. Os 2.1, citado
desenvolve a ideia de que a participação no Fi
em Romanos 9.26), também ao povo escatológíco
lho messiânico de Deus por adoção se estende
de Deus. De acordo com a estrutura presente em
não somente ao presente (Rm 8.15), mas, por
Deuteronômio de pecado-exílio-restauração, essa
meio do Espírito, também ao futuro (Rm 8.23).
tradição em torno de 2Samuel 7.14 tem por certo
Pois, assim como Jesus uma vez recebeu o Es
que, no advento do Messias, Deus redimiria seu
pírito em seu batismo e foi declarado o Filho
povo do exílio num segundo êxodo; ele o restau
de Deus (cf. Mc
raria a um relacionamento aliancístico; ele o ado
crentes hoje recebem o Espírito de adoção em
taria, com o Messias, como filhos (cf. Jb, 1.24; Te
seu batismo. Espírito pelo qual, também, os
Ju, 24.3; 4QFlor 1.11). Na verdade, 2Coríntios 6.18
crentes compartilham da exclamação que o Fi
cita a fórmula de adoção de 2Samuel 7.14 (h-
lho dirige ao Pai: “A b a !” (Rm 8.15). Da mesma
no v a a l ia n ç a
1.11
par.), assim também os
Is 43.6), e isso no contexto da mesma tipologia
forma, assim como Jesus, na qualidade de des
do Êxodo, da mesma teologia da nova aliança e
cendente de Davi, foi investido de poder como
da mesma forma generalizada, como na tradição
Filho messiânico de Deus pelo Espírito Santo na
judaica. Assim como na tradição de 2Samuel
ressurreição proléptica dos mortos (Rm 1.3,4; 27 I
ADOÇÃO, FtuAÇÃo: P a u l o
cf. 2Sm 7.12,14), assim também os crentes, que
especificar gênero no original grego, “ filhos”
têm 0 Espírito como meio de ressurreição (Rm 8.11),
[tekna; cf. Rm 8.16,17,21) de Deus. 0 texto de
avidamente esperam a sua revelação (Rm 8.19), a
2Coríntios 6.18, sob a influência de Isaías 43.6,
sua ressurreição/adoção predestinada na ima
claramente amplia o conceito de adoção e inclui
gem glorificada do Filho ressurreto (Rm 8.23,29;
"filhas”. Assim, homens e mulheres são incluídos
cf. Ef 1.5), quando então o Filho será o prim o
no conceito paulino de “ filiação" divina. Em Fi
gênito dentre muitos irmãos e irmãs (Rm 8.29;
lipenses 2.14,15, Paulo instrui seus leitores a fa
cf. SI 89.27). Nesse dia, os filhos de Deus to
zer “ todas as coisas sem queixas nem discórdias,
marão parte na promessa abraâmica de sobera
para que vos torneis filhos de Deus irrepreensí
nia universal como co-herdeiros com Cristo, o
veis, sinceros e íntegros no meio de uma gera
Messias (Rm 8.17; cf. Rm 4.13; 8.32; GI 4.1).
ção corrupta e perversa”. A referência aqui aos
Assim, os aspectos presente e futuro de haiothe-
“ filhos” de Deus “ irrepreensíveis” (amõmd) faz
sia em Romanos 8 refletem etapas sucessivas de
alusão a Deuteronômio 32.5, em que, por have
participação no Filho pelo Espírito e, como tais,
rem pecado, os israelitas são caracterizados como
constituem maneiras em que os crentes compar
“corrompidos” (mõmêtd) e como “ não [...] filhos”
tilham com o Filho da promessa davídica.
no contexto do cântico de Moisés, que prediz a
2.3.3
Conclusão: o lugar da adoção na teologia tríade pecado-exílio-restauração. Dessa maneira,
paalina. Em suma, há antecedentes veterotesta-
Paulo contrasta a situação que conduziu à pu
mentários/judaicos coesos e específicos para a
nição dos israelitas como filhos de Deus com a
“adoção de filhos” [huiothesia) das cartas pau
maneira em que os crentes, como filhos de Deus,
linas: a palavra ocorre quatro vezes no sentido
agora devem se comportar (cf. 2Co 6.14— 7.1;
de adoção prenunciado pela tradição em torno de
Rm 8.4,12-14).
2Samuel 7.14 (cf. 2Co 6.18), e isso ou no aspecto
Ver também Espírito Santo ; Filho
de
D eus.
presente (GI 4.5; Rm 8.15) ou futuro (Rm 8.23; Ef 1.5), dependendo do momento cristológico e
B ib lio g r a fia .
relativo à história da salvação ressaltado em cada
on Paul’s Letter to the churches in Galatia. Phila
B etz , H. D. Galatians: a commentary
contexto. A palavra ocorre uma vez no sentido
delphia: Fortress, 1979. [H erm .]. ■ Bruce, F. F. The
de um tipo relacionado ao Êxodo que está na
Epistle to the Galatians: a commentary on the Greek
base dessa huiothesia da salvação messiânica nas
text. Grand Rapids:
outras quatro ocorrências (Rm 9.4; cf. GI 4.1,2).
■ B ultmann , R. Theology o f the New Testament.
Eerdmans,
1982.
(mgtt.)
Todo o conceito deve ser visto à luz da teologia
New York: Scribner’s, 1951, 1955. 2 v. ■ Byrne ,
da restauração de Paulo (cf. Sanders, que, mesmo
B. "Sons o f God’’ — “Seed o f Abraham”: a study
sem discorrer sobre toda a estrutura presente em
of the idea of the sonship of God of all Christians
Deuteronômio, inconscientemente apresenta uma
against the Jewish background. Rome: Biblical
alternativa judaica importante para o “ nomismo
Institute, 1979. [AnBib, 83.) ■ H engel, M. The Son
pactuai” aceito larga e inquestionavelmente [cf.
o f God: the origin of christology and the history
Scorr, 19931).
of Jewish-Hellenistic religion. Philadelphia: For
3. A filiação dos crentes em Paulo
Edinburgh: T & T Clark, 1984. ■ K im , S. The origin
A interpretação precedente de huiothesia que tem
o f Paul’s Gospel. Grand Rapids: Eerdmans, 1981.
tress, 1976. ■ H übner, H. Law in Paul’s thought.
como antecedente a tradição relativa a 2Samuel
■ L yall, F. Slaves, citizens, sons: legal metaphors
7.14 constitui o ponto de partida lógico e neces
in the epistles. Grand Rapids: Zondervan, 1984. ■
sário para interpretar as referências mais gerais
M alul, M. Foundlings and their adoption in the
de Paulo à filiação dos crentes, pois a adoção
Bible and in Mesopotamian documents: a study
como filhos de Deus oferece o meio de ingresso
of several legal metaphors in Ezek 16:1-7.
na fiUação divina. Por isso, as passagens pauli
V. 46, p. 97-126, 1990. ■ Sanders, E. P. Jesus and
nas que atribuem adoção aos crentes também os
Judaism. Philadelphia: Fortress, 1985. ■ Scott, J.
chamam “ filho (s )” (masculino no original; cf.
M. Adoption as sons o f God: an exegetical inves
GI 3.26;
tigation into the background of Y IO 0E S IA in the
4.6,7;
Rm
8.14,19;
9.26)
ou,
sem I 28
js o t ,
A d o r a ç à o / cu lt o i : E v a n g e l h o s
corpus paulinum. Tübingen: Mohr Siebeck, 1992
(v.
[wunt, 2.48.) ■ _______. “ For as many as are of
que as práticas religiosas de seu povo fossem acei
works of the law are under a curse” (Gal 3:10).
táveis para Jesus, com exceção dos casos em que
In:
J. A., orgs. Paul and
os Evangelhos registram algum ataque contra elas.
the Scriptures o f Israel. Sheffield: Sheffield Acade
Havia três grandes centros de adoração ju
E van s,
C. A. &
San ders,
mic, 1993, p. 187-221. [jSNTSup, 83.) ■ W Adoption.
RAC, V.
en g er,
L.
1, p. 100.
ju d a ísm o e o
Novo
T e s ta m e n to ). É
daica no período: o lar, a
razoável supor
s in a g o g a
e o templo.
Do primeiro, os Evangelhos falam muito pouco. J. M.
S c o tt
Sabemos ser costume de Jesus, como de todos os judeus piedosos, abençoar [bendizer] a Deus
A
d o r a çã o /culto
i:
E vangelh os
Poucas vezes os Evangelhos falam sobre adora
antes de compartilhar o pão. [Deus, não pão, de via ser usado como objeto do verbo “abençoar
ção de forma geral ou sobre o culto de maneira
[bendizer]” em tais casos.) Os Evangelhos Sinóti
específica. Os vários termos gregos que poderiam
cos também descrevem a
ser considerados seus correspondentes [latreia,
refeição pascal, fazendo supor que Jesus também
Ú l t i m a C e ia
como uma
leitourgia, proskynésis etc.) e os vários termos
compartilhava das práticas do lar judeu nesse as
técnicos associados à adoração não ocorrem fre
pecto. Era também seu costume orar, geralmente
quentemente nesses escritos neotestamentários.
em particular. Também recomendava a seus discí
Além disso, muitas referências à adoração ou ao
pulos a prática da oração em particular (Mt 6.6).
culto ocorrem quase de passagem. São às vezes
É especialmente digno de nota que em suas ora
fornecidos o momento e o lugar de um milagre
ções os quatro Evangelhos informam que Jesus
de cura: o sábado numa sinagoga, por exemplo.
se dirigia a Deus como “ Pai” (provavelmente com
Embora as referências à adoração sejam muitas
0 aramaico Aba [ ’abba]]. Às vezes aparece o vo-
vezes casuais, a adoração em si não é de modo
cativo simples “ Pai” ; às vezes liga-se a ele um
algum de importância secundária. Está tão pre
termo qualificador designando a transcendência
sente nos Evangelhos quanto o ar que Jesus e
de Deus. Pouco se pode afirmar além disso.
os discípulos respiravam. Justamente por ser tão
Está claro também que Jesus participava da
onipresente, é mais pressuposta que mencionada.
vida coletiva de adoração de Israel nas sinago
Pode se falar de adoração nos Evangelhos de
gas da Galileia. A palavra de Jesus a respeito da
duas maneiras: práticas de adoração de Jesus e
oração em particular (Mt 6.6) não deve ser inter
dos discípulos e o que se pode inferir das práticas
pretada como crítica à adoração coletiva: o foco
de adoração das igrejas cristãs primitivas em que
está na hipocrisia e na ostentação. É na sinagoga
os Evangelhos foram redigidos. Os Evangelhos
que Jesus habitualmente ensina e prega. Ao que
não dão informações tão claras sobre essas úl
tudo indica, ele é um convidado bem-vindo nas
timas questões quanto Atos dos Apóstolos ou as
assembleias de sua província natal. É somente em
várias cartas, mas podem mesmo assim dar uma
Lucas 4.16-30, quando o autor relata a rejeição
contribuição significativa ao nosso conhecimen
em Nazaré, que se encontra alguma referência,
to da adoração cristã na era do
Este verbete
mesmo que de passagem, ao culto na sinagoga.
tratará dessas duas áreas e também da teoria se
Ah Jesus é convidado a ler a lição, ao que parece
gundo a qual os Evangelhos foram formados de
um procedimento perfeitamente normal, que não
acordo com o lecionário das leituras do
é, em si, nenhuma surpresa. Apenas a interpreta
n t.
at
em uso
nesse período. 1. A adoração de Jesus e dos discípulos
ção que se segue à leitura de Isaías 61 é que soa como uma afronta.
2. A adoração da igreja primitiva 3. Os Evangelhos e os lecionários judaicos
Nos tempos de Jesus, os cultos da sinagoga aconteciam três ou talvez quatro vezes no sába do. 0 padrão normal do culto da sinagoga parecia
1. A adoração de Jesus e dos discípulos
incluir a recitação do Shemáy uma combinação
Jesus e seus discípulos eram, naturalmente, ju
de Deuteronômio 6.4-9 e 11.13-21 com Núme
deus. Como tais, tanto Jesus quanto os discípu
ros 15.37-41; 0 Tefild, também conhecido como
los participavam da vida religiosa do povo judeu
0 Amidahy ou o Shemoneh Esreh, oração coletiva, 29 I
A d o r a ç â ü / c ulto i : E v a n g e l h o s
longa e elaborada; e a leitura e interpretação das
excessos e à corrupção do sistema. Os cambistas,
Escrituras, talvez com base num lecionário. Não
os vendedores de animais e os animais são indis
há nenhum comentário sobre essas questões em
pensáveis ao funcionamento do sistema. Expulsá-
nenhum dos Evangelhos. A adoração da igreja
los, portanto, pode simbolizar uma rejeição não
primitiva tendia a seguir as práticas de adora
somente da corrupção associada à venda de ani
ção da sinagoga. Embora essa afinidade resulte
mais para os sacrifícios, mas também do próprio
principalmente de outros fatores que não a or
sistema sacrificial. O templo funciona corretamen
dem nem o exemplo de Jesus, é difi'cil imaginar
te não como lugar de sacrifício, mas como "casa
a igreja primitiva desenvolvendo uma forma de
de oração” (Mc 11.17 e par.). O templo é um lugar
adoração que lembrasse tanto a sinagoga se Jesus
acessível e adequado à adoração, mas, visto que
tivesse condenado tal adoração. Nesse caso, o ar
o sistema sacrificial não é mais válido na nova era
gumento do silêncio parece convincente.
inaugurada pela vida, morte (v.
C r is t o , m o r t e d e )
e
RESSURREIÇÃO de Jesus Cristo, deixa de ser um lugar
Com respeito ao templo, o quadro é mais complexo. O templo é tido em alta conta nos
essencial para a adoração ao Deus de Israel.
Evangelhos Sinóticos, especialmente por Lucas,
Talvez esse último argumento seja mais bem
que situa boa parte de suas narrativas da primei
simbolizado pelo rasgar do véu do templo no m o
ra infância (v.
e boa parte
mento em que Jesus morre na cruz (M t 27.31;
dos primeiros trechos de Atos dentro de suas
Mc 15.38; Lc 23.45). O velho sistema, com seu
Jes u s , n a s c im e n t o d e)
dependências. É acertadamente uma casa de
meio de acesso a Deus limitado e cuidadosa
oração (M c 11.17 e par.), e, visto que a oração
mente regulado, está morto. Os Evangelhos e na
era de fato parte regular da liturgia do templo,
realidade o
esta podia acertadamente ser considerada como
mundo inteiramente nova e diferente com res
algo que se devia valorizar. É digno de nota que
peito ao relacionamento entre Deus e a huma
Atos apresente cristãos primitivos como Pedro e
nidade. A distinção entre o sagrado e o profano
João (At 3.1-3) indo ao templo para orar. Pau
é radicalmente alterada, não pela diminuição do
lo, por insistência de Tiago, chega até mesmo
domínio do sagrado, como na secularização de
nt
como um todo têm uma visão de
a se envolver indiretamente com o culto sacri
nossos dias, mas na sacraHzação daquilo que an
ficial (At 21.17-26). Jesus está disposto a pagar
teriormente era considerado profano (cf. At 10 e
0 imposto que mantém o templo, embora a dis
a Carta aos Hebreus). Todas as práticas religiosas
posição resulte principalmente do desejo de evi
humanas perdem importância porque em Jesus
tar um desagrado desnecessário (M t 17.24-27).
Cristo a nova era invade o mundo. As velhas prá
Também em João, boa parte da ação do Evan
ticas, portanto, já não são necessárias; velhas for
gelho acontece dentro do templo. Ele é o centro
mas de falar sobre a adoração a Deus já não são
espiritual do judaísmo, e a "salvação vem dos
suficientes (v.
r e in o d e
D eu s ) .
judeus” (Jo 4.22). Mas não é realmente neces
A maneira em que se avalia a exatidão desses
sário para a correta adoração. João afirma v i
vários relatos a respeito das atitudes de adoração
gorosamente que, na nova era inaugurada por
e das práticas de Jesus depende muito da atitude
Jesus, a adoração correta é "no Espírito e em
geral que se tem com respeito à confiabilidade
verdade” (Jo 4.23). Além do mais, será, afinal de
histórica dos Evangelhos (v.
contas, destruído, e não ficará pedra sobre pedra
b il id a d e
h is t ó r ic a
dos) .
E vangelh os, c o n h a -
Há uma coerência signifi
(Lc 21.6). A implicação clara é que o templo não
cativa entre os relatos das atitudes e práücas de
é mais essencial.
Jesus, de um lado, e os das atitudes e práticas da
A principal dificuldade aqui reside, ao que
igreja primitiva, de outro. Esse mesmo fato torna
parece, na razão de ser do templo: o sistema sa
ria esses relatos suspeitos aos olhos de um críptico
crificial. O exame de uma perícope-chave, a da
adepto do critério da dessemelhança (princípio
purificação do templo, pode ser útil nesse caso
segundo o qual se devem aceitar como históricos
(Mt 21.1-11; Mc 11.15-19; Lc 19.45-48; Jo 2.13-22;
primordialmente os ditos ou relatos que sejam
Esse ato carregado de
dessemelhantes ou distintos dos antecedentes
simbolismo pode ser mais que uma reação aos
judaicos dos tempos de Jesus e dos ensinos ou
V, TEMPLO, PURIFICAÇÃO D o ).
I
30
A d o r a ç ã o / culto i : E v a n g e l h o s
práticas da igreja posterior). A aplicação do cri
que os cristãos vindos do judaísmo, ao menos,
tério parece imprópria nesse caso, entretanto.
continuaram a oferecer louvor de maneira muito
Embora, por um lado, se possa duvidar da histo
semelhante à de como sempre haviam feito.
ricidade de perícopes específicas, por outro pare
É possível recordar a esta altura a maneira tão
ce não haver nenhuma razão para se duvidar da
favorável em que os Evangehstas se referem às
exatidão do quadro geral das práticas e atitudes
sinagogas, sem quase nada da ambivalência que
de Jesus com respeito à adoração apresentado pe
se percebe com respeito ao templo. A palavra si
los Evangelhos.
nagoga é às vezes usada na verdade em referência às assembleias de cristãos (cf. Tiago 2.2 e várias
2. A adoração da igreja prim itiva
fontes extracanônicas). Tudo isso tende a apoiar
Os Evangelhos também informam a respeito da
— embora não possa provar — a afirmação de
adoração da igreja primitiva ou, para sermos
que a adoração cristã primitiva era, em vários as
mais precisos, das primeiras igrejas conhecidas
pectos, uma continuação da adoração judaica.
pelos Evangelistas. É importante não falar com
Os hinos de Lucas não são exemplos isolados
excessiva precisão a respeito da adoração da igre
de louvor nos Evangelhos. A aclamação angélica
é marcada por grande
de Lucas 2.14 e as várias formas de aclamação hu
ja primitiva. A era do
nt
diversidade em muitas áreas da vida cristã, dentre
mana na entrada de Jesus em Jerusalém (Mt 21.9
as quais a adoração. Além do mais, não se pode
e par.) são outros exemplos da explosão de louvor
com segurança total aplicar ao século i as práticas
que parece ter acompanhado os primeiros anos
e atitudes do século iii, período sobre o qual nos
do cristianismo. Essas manifestações efusivas de
so conhecimento das práticas da adoração é bem
louvor, talvez mais bem definidas como “ brados
mais aprofundado. Generalizações sobre a adora
de vitória” , são parecidas com certos fragmentos
ção nesse período seriam arbitrárias e perigosas.
de louvor de Apocalipse. Talvez todos esses ma
Está também razoavelmente claro que a ado
teriais sejam indícios do tipo de louvor produzido
ração cristã primitiva tem uma grande dívida para
nos primeiros anos do cristianismo.
com a adoração judaica, especialmente a da si
0 prólogo do quarto Evangelho (Jo 1.1-18)
nagoga. N o entanto, mais recentemente, os es
provavelmente contém mais um hino primitivo.
tudiosos têm demonstrado mais receio de fazer
Os estudiosos divergem quanto à extensão exa
afirmações a respeito das formas e práticas litúr-
ta do hino original entalhado nesses versículos
gicas judaicas da era do
nt,
como era comum na
(ao menos as referências a João Batista são inter
geração anterior.
polações do Evangelista), mas de maneira geral
Com certa dose de cautela, no entanto, algu
concordam em que aí tenhamos de fato um hino.
mas observações podem ser feitas com respeito
Nesse caso, o louvor se sobrepõe à confissão de
à adoração cristã primitiva. Algumas passagens
fé. Comunidades definem-se por meio do louvor
dos Evangelhos podem ter origem na adoração
que expressam, bem como pelas doutrinas que
da igreja primitiva. Os Evangelhos, por exemplo,
professam. Esse hino impressionante pode ter
talvez nos forneçam vários exemplos de louvor
funcionado dessa maneira para a comunidade do
cristão primitivo. Nas narrativas do Evangelho
discípulo amado (v.
Jo ã o , E v an g elh o de) .
de Lucas sobre a primeira infância de Jesus,
Com respeito à oração, parece também haver
encontramos três salmos magníficos de louvor:
uma vinculação entre o material dos Evange
os cânticos de Maria (Lc 1.46'55), de Zacarias
lhos e a prática da igreja primitiva. O pai-nosso
(Lc 1.68-79) e de Simeão (Lc 2.29-32), identifica
certamente era usado pelos cristãos primitivos.
dos por muitos estudiosos como hinos da igreja
A Didaquê, manual de instrução primitivo dos
judaico-cristã primitiva inseridos por Lucas para
cristãos, apresenta uma versão da oração quase
enriquecer a sua narrativa. Esses hinos são tão
idêntica à de Mateus e recomenda que ela seja
judaicos em seu vocabulário e forma que é difícil
repetida três vezes ao dia. Parece que temos aí a
provar de forma razoável e sem sombra de dúvi
continuação da prática de judeus piedosos, qiiie
da que sejam de fato cristãos. 0 caráter judaico
recitavam o Tefilá três vezes ao dia. Sabemos, da
desses salmos leva a crer, como seria de esperar, 1
mesma forma, que os cristãcs p iir::í:” cs ^1
A dor aç âo / culto i : Ev angelhos
0 exemplo de Jesus, dirigindo-se a Deus como
com 0 desinformado Ló. Em alguns casos, alega-
Aba, Pai (Rm 8.15; Gl 4.6).
se, os Evangelistas criaram pericopes dos Evange (Mt 26.26-30;
lhos de acordo com as regras um tanto elásticas
Mc 14.22-26; Lc 22.14-23; cf. ICo 11.23-25) re
Os relatos da
do midrash, método judaico de interpretação das
Ú l t im a
C e ia
fletem em sua variedade não apenas os aconte
Escrituras, para fornecer correspondências na vida
cimentos da noite anterior à crucificação, mas
de Cristo às leituras prescritas do dia.
também as práticas eucarísticas das igrejas dos
A hipótese é ousada e de grande abrangência.
Evangelistas. Por exemplo. Marcos e Mateus têm
Em alguns casos, a maior parte do
orações diferentes para o pão e para o cálice, ao
trechos do
passo que em Lucas e em Paulo as duas orações
princípio. A hipótese não encontrou aprovação ir
foram nitidamente reunidas numa só oração de
restrita, contudo. São incertos a forma exata dos
ação de graças, padrão que se manteve nas litur
lecionários judaicos desse período e o grau em que
at
nt
e grandes
são explicados de acordo com esse
gias de séculos posteriores. Também parece que a
eram estruturados. As reconstruções empregadas
própria frase interpretativa “isto é o meu corpo”
são, portanto, altamente especulativas. Quando o
não fazia parte das orações, como em muitas li
leitor atento se põe a examinar passagens especí
turgias posteriores, mas estava associada ao com
ficas dos Evangelhos, textos do
partilhar dos elementos. As palavras são dirigidas
postas leituras dos lecionários em geral parecem
at
que não as su
aos discípulos, não a Deus (observem-se as for
mais claramente hgados às passagens em questão.
mas verbais na segunda pessoa do plural). Além
Alguns proponentes desconsideram as evidências
do mais, em cada caso, as palavras traduzidas
acumuladas ao longo de décadas de estudos es-
por oração (seja eucharisteõ, “dar graças” , seja
peciahzados e esmerados, realizados em torno
eulogeõ, “abençoar”; ambas parecem sinônimas
de fontes subjacentes aos nossos Evangelhos, e
nesse contexto) estão no particípio aoristo. Essa
assim conferem um grau de criatividade aos Evan
forma, que em geral indica a ação do particípio,
gelistas que poucos acham provável. Em resumo,
precede a ação dos verbos principais da frase.
a hipótese é mais imaginosa qüe persuasiva. Ver também
3. Os Evangelhos e os lecionários judaicos Vários estudiosos apresentaram, de diferentes for
d jg :
s in a g o g a .
M a ry’s
S on g;
S im eon ’ s
Song;
te m p le ;
Z e c h a r ia h ’ s S o n g .
mas, a impressionante teoria de que os Evange lhos foram formados e algumas de suas pericopes
B ib lio g r a fia :
compostas com o propósito de atender às necessi
weekly worship of the primitive church in relation
dades da adoração cristã. A teoria começa com a
to its Jewish antecedents. EvQ, v. 56, p. 65-80,
B e c k w ith ,
R.
T. The
daily
and
observação, aceita sem questionamento, de que as
139-58, 1984. ■ B ra d sh a w , P. F. The search for the
igrejas cristãs parecem ter continuado a prática da
origins of Christian hmrgy; some methodological
sinagoga de ler e interpretar a Torá e os Profetas.
reflections. StudLit, v. 17, p. 26-34, 1987. ■ Dunn,
Afirma-se, então, que as igrejas também observa
J. D. G. Jesus and the Spirit. Philadelphia: West
vam o calendário sagrado judaico e seguiam um
minster, 1979. ■ ______ . Unity and diversity in the
lecionário judaico fixo. Os Evangelistas, afirma-se,
New Testament. Philadelphia: Westminster, 1977,
dispuseram as várias pericopes dos Evangelhos
p. 124-49. ■ G o u ld e r , M. D. The Evangelists’ calen
não de acordo com a vida do Jesus histórico ou dos
dar. London:
programas teológicos deles, mas de acordo com os
o f the early church. Philadelphia: Fortress, 1973.
spc k ,
1978. ■
H ahn,
F. The worship
textos da Lei e dos Profetas do hipotético lecioná
■ M a rsh a ll,
rio. Assim, para dar apenas um exemplo, a história
Grand Rapids: Eerdmans, 1981. ■
da estrada de Emaús, de Lucas 24, em que o Cristo
Worship in the early church. Ed. rev. Grand Rapids:
ressurreto se senta à mesa com dois discípulos de-
Eerdmans, 1974. ■
sinformados, corresponde à leitura hipotética, no
Philadelphia: Jewish Publication Society of Ame
I.
H.
Last Supper and Lord’s Supper.
M il l g r a m ,
M a r t in ,
R. P.
A. Jewish worship.
quarto sábado do mês de nisã, de Gênesis 18—22,
rica, 1971. ■ M o r ris , L. The New Testament and the
capítulos que incluem relatos sobre o Senhor, na
Jewish lectionaries. London: Tyndale, 1964.
forma de três homens, comendo com Abraão e
I 32
S.
C.
F ar r is
A dor aç ão / culto ii : Pa ulo
A
d o r a ç ã o / c u lto ii:
P aulo
lugar dos deuses e das deusas, correspondendo a
Embora na literatura bíblica não haja definição for
uma percepção natural do divino (no sentido de
mal do significado ou das impUcações da adoração
nnmen, influência divina ou sensação misterio
a Deus, pode se afirmar com segurança que, nos
sa experimentada pelos adoradores). No antigo
períodos dos dois Testamentos, a adoração nasce
mundo grego, as divindades de Homero e Hesío-
da compreensão de Deus como criador e reden
do eram aceitas como seres superiores, ligados
tor. (As referências bíblicas a seguir são extraídas
às virtudes, e que exigiam obediência. Formavam
principalmente do corpus paulino.) Deus é acla
uma sociedade situada no monte Olimpo e eram
mado Senhor soberano, que trouxe o mundo à
presididos por Zeus, pai e rei dos deuses. 0 tri
existência (Rm 4.17) e é o autor de tudo que existe
buto de Paulo em ICoríntios 8.5 refere-se às di
(Rm 11.36; ICo 8.6). Ele agiu por meio de seu Fi
vindades “no céu”, presumivelmente do panteão
lho (Cl 1.15-20;
a fim de criar e
homérico, e “na terra” , relacionadas às manifes
resgatar, tomando as providências salvíficas para
tações do divino como espíritos de fertihdade ou
restaurar o Universo quando este caiu de seu esta
talvez na pessoa de reis e governantes deificados.
V. F il h o
de
D
eus)
do original e salvar a humanidade emaranhada no
No centro da reügião grega tradicional estava a
pecado (Rm 5.1-21; 8.18-23). Ouvem-se notas de
ideia de que os deuses eram guardiães da ordem
louvor que anunciam o alvorecer de uma nova era
moral e deviam ser reverenciados em cultos por
de ações reconciliadoras e renovadoras da parte de
meio de ofertas e também por meio de orações que
Deus (2Co 5.17-21), e a igreja de Jesus Cristo é
assegurassem uma “ sorte” favorável neste mundo
vista como o alvo da redenção (Ef 1.1-14), sendo
e no submundo do hades. 0 “destino”, em gran
o lugar em que a atividade salvífica de Deus é re
de parte imprevisível, que aguardava a pessoa que
citada e demonstrada (Ef 3.9,10). A cena é tanto
partisse desta vida, contribuía para uma incerte
terrena quanto situada nas regiões celestiais, pro
za e um temor que tornavam a adoração feita nos
piciada pela obra do Cristo reinante, que é ao mes
santuários e nos templos uma experiência cheia
mo tempo 0 unificador do céu e da terra e o meio
de sobressaltos. A ligação do culto com o ciclo da
pelo qual os louvores da terra se unem à adoração
natureza e com o desejo de boas colheitas tornou
celestial e angéUca.
a prática religiosa uma característica importante
Dessa forma, o entendimento da adoração nas
da vida cotidiana. Contudo, só fazia aumentar a
igrejas paulinas acha-se nas afirmações funda
incerteza da vida, caso as colheitas falhassem e os
mentais de Paulo com respeito à supremacia que
rebanhos fossem acometidos de peste. Muito da
tem a graça divina em satisfazer a necessidade
religião tradicional possuía um elemento profilá
humana e cósmica e ao papel essencial desig
tico, ou seja, tentava assegurar a prosperidade ao
nado a Jesus Cristo, que foi crucificado e agora
repehr a doença e o perigo.
encontra-se ressurreto. Senhor que ascendeu aos
0 advento de Roma como potência militar de
céus, glorificado, como cabeça da igreja e rei de
proporções mundiais deu ensejo a que as divin
toda a criação (Fp 2.6-11; cf. ITm 3.16). Essas
dades homéricas fossem associadas às aspirações
duas afirmações correspondentes acham-se no
da nação e, mais tarde, aos imperadores reinan
cerne da prática paulina da adoração, vista em
tes. O talento romano para o governo e para a
seus louvores, orações e confissões de fé e igual
ação política ajudou a criar um senso de dever
mente contemplada no tipo de atividade celebra-
para com o Estado e uma obrigação por parte dos
tória da qual ele esperava que suas congregações
cidadãos. Assim, a reUgião assumiu seu papel em
participassem.
consonância com sua verdadeira etimologia, qual
1. O cenário nos dias de Paulo 2. O ensino paulino
seja, 0 latim religare, com o sentido exatamente de “ religar” , a saber, a humanidade aos deuses. As observâncias rehgiosas, no ambiente domésti
1. O cenário nos dias de Paulo 1.1
co e em cerimônias oficiais, serviam a esse inte
Religião e culto greco-romanos. O mi resse mais amplo. Havia uma obrigação coletiva
nistério de Paulo estava inserido numa cuhura e numa civilização que havia muito reconheciam o
e uma contratual, e a vida comum e tradicional foi ligada aos vários deuses e suas consortes de 33 I
M U U K A t^ A U /L U L ÍU li. TAU LU
maneira não exclusivista, mas sincretista. As
comum; foram banidos para as regiões exteriores
ideias de incerteza eram reforçadas reconhe
do espaço sideral. À medida que os astrólogos e
cendo-se que tychê (“sorte”, “acaso”) residia no
ocultistas do mundo oriental passaram a explorar
cerne das coisas, e os deuses muitas vezes eram
fatidicamente essas novidades astrológicas e teo
tratados, de maneira supersticiosa, como capazes
lógicas, a religião foi entrando em nova fase, a de
de interferir no destino. Os deuses da família (os
um grande pessimismo e desespero. Uma vez que
lares e penates) eram considerados guardiães da
a existência de deuses e deusas pessoais era ou
lareira e da casa contra as más influências ou
negada (mas com pouca evidência de ateísmo, no
contra o “ destino” incerto. Uma figura extraordi
sentido filosófico de hoje), ou “desmitologizada”
nariamente reveladora do Homem Supersticioso é
(reduzindo ou mesmo dispensando com justifi
traçada por Teofrasto em seu Caracteres (v. texto
cativas sua identidade pessoal, como em Platão),
e comentário em M a r t in .
não parecia restar nenhuma alternativa, a não ser
1978.
v.
2.
p.
3 6 -8 ).
Há comprovação de que em ocasiões festivas
a triste conclusão de que todas as coisas aconte
e nos santuários eram utilizados hinos, orações,
cem por acaso. O movimento seguinte foi colocar
ofertas votivas e sacrifícios, recorrendo-se a vá
a deusa Tyc/ié ( “sorte”) no trono desocupado por
rias divindades como fontes de vida e bem-estar
Zeus
e como doadoras de cura (notadamente no culto
do acaso, que o Acaso é nosso deus”). Então acon
a Asclépio) e de prosperidade. Buscava-se a dire
teceu que tudo no cosmo — na terra, no ambiente
ção divina em centros como Delfos. onde o orá
subterrestre e na esfera celeste — foi posto sob o
(P
l ín io ,
Na hi, 2.5.22: “Ficamos tão à mercê
culo. pelas mãos das sacerdotisas de Apoio, dava
controle dos deuses estelares, que controlavam e
orientações ao inquiridor. Há registros de tributos
decidiam a sorte da raça humana. O resultado foi
de louvor, chamados “aretologias” . destinados
que homens e mulheres passaram a se sentir im
a deidades como Apoio e Zeus (o notável Hino
potentes e desamparados, e a religião foi marcada
de Cleanto
pelo “colapso da intrepidez” (usando a expressão
1978,
V.
é
um excelente exemplo; cit.
M
a r t in ,
2, p. 42).
de
M
urray).
Com as conquistas de Alexandre, as quais aba
No entanto, o escape foi prometido e busca
laram 0 mundo no século iv a.C., o mundo antigo
do de acordo com certos métodos, cada um com
experimentou mudanças de caráter irreversível.
seu sistema bem definido de valores e práticas de
A vida nunca mais seria a mesma, notadamente
adoração. Em primeiro lugar, oferecia-se, nas reU-
na questão da influência religiosa e da adoração.
giões de mistério, comunhão com um deus mais
Dois fatores entraram em cena: 1) Confusões
forte que a “necessidade”. Essas religiões pratica
políticas seguiram-se à influência global de Ale
vam um intricado ritual de iniciação como parte
xandre e seu declínio repentino. As guerras e as
de um culto batismal que incluía uma refeição de
perturbações do equilíbrio de poder trouxeram
caráter ritualístico. Em segundo lugar, a adora
apreensão à vida das pessoas comuns por todo o
ção a Serápis, a ísis e ao deus da cura Asclépio
mundo mediterrâneo e no Levante Sírio. Esse fato
incluía a promessa de que os adoradores seriam
contribuiu para o sentimento de inutilidade que
capazes de chegar a um destino vitorioso, ten
recaiu sobre o espírito da sociedade helenística
do assim uma esperança. Em terceiro lugar, por
como um todo nas décadas anteriores à missão
meio de uma vida de renúncia e de ascetismo,
de Paulo. 2) Contudo, havia uma dimensão mais
bem como pela prática da magia, um anseio por
grave da condição humana no mundo de Paulo
salvação e por harmonia com o mundo eterno era
que influenciou diretamente a forma em que a
expresso e celebrado em louvores, rituais, sacra
adoração passou a ser concebida.
mentos e experiências. A ênfase recaía no conhe
Uma nova concepção acerca do cosmo fora
cimento de uma tradição secreta que ofereceria o
introduzida pelos cientistas gregos, com repercus
passaporte para a união com o divino e serviria
sões imediatas na teologia tradicional de Homero,
de ponte sobre o abismo que separava o mundo
que situava as divindades no monte Olimpo. Num
superior do mundo inferior. O que Paulo afirma
só golpe, esses deuses tornaram-se supérfluos no
em Atos 17.22 com respeito aos filósofos atenien
que diz respeito a tentar situá-los na esfera da vida
ses se aplica na verdade a um público muito mais
I 34
A doração / culto ii : Paulo
amplo que sua plateia, representada por homens
muita preparação para o sábado, responsabilida
e mulheres de todo o mundo greco-romano: “Vejo
de que recaía sobre a mãe e dona de casa judia,
que sois excepcionalmente religiosos”.
principalmente a de acender a lâmpada do sá
1.2 Práticas judaicas 1.2.1
bado, simbolizando com isso também seu papel
Templo e casa. No período em que a como alguém que deveria dar exemplo de vida
Palestina sofria a influência de Alexandre, a mu
consagrada.
dança mais observável na adoração judaica foi a
Na Páscoa, o tema recebia destaque especial,
crescente helenização da cultura de herança ju
quando de forma solene se procurava e tirava
daica. A influência grega, sobretudo na educação
de casa todo fermento que se pudesse encon
e nas formas de pensar, pode ser vista na vida
trar, como prelúdio da observância pascal, que
da
Embora houvesse muitos desafios à
só permitia pães asmos na casa e na cozinha (v.
teocracia de Israel, surgindo sobretudo do conflito
a aplicação de Paulo em ICo 5.1-13). A Páscoa
macabeu, em meados do século ii a.C., tão logo se
comemorava a libertação de Israel em relação ao
dissipou a ameaça política, as mudanças culturais
Egito, com uma recapitulação dramatizada da
resultantes na vida judaica serviram apenas para
redenção em todas as épocas, apontando para
fomentar a crença num só Deus e na santidade de
a esperança futura de Israel: a vinda do Mes
SINAGOGA.
sua casa. o templo de Jerusalém. Daí em diante,
sias que os libertaria (m. Pesalf., 10). Essas duas
a crença em “um só Deus, uma só terra” ficaria
ideias, de comemoração e de expectativa, seriam
arraigada em todos os tipos de louvores litúrgicos.
depois retomadas no relato pauUno sobre a
0 santuário de Jerusalém continuou sendo o centro da adoração nacional, uma vez que (como
Do S e n h o r ,
c e ia
também inserida num cenário pascal
(ICo 11,17-34).
se afirmava) o mundo repousa sobre o fundamen
O Dia da Expiação, observado anualmente, era
to tríplice da Torá, do culto realizado no templo e
na reaUdade um jejum cujos detalhes são desen
da prática de esmolas (m. ’A bot 1.2), A Lei era a
volvidos no tratado mishnaico Yoma [Dia da Expia
base do judaísmo pós-exílico, sendo inquestioná
ção], baseado em Levítico 16. Paulo pouco utiliza
vel seu lugar de dominância na liturgia. Ela pro
essa linguagem, exceto em Romanos 3.24-26, que
porcionava a revelação divina de toda a verdade
pode ser a forma editada de um credo judaico-cris-
necessária, e o estudo dela e a obediência a ela
tão (mais detalhes em M
a r t in ,
1989, p. 81-9).
eram a porta de entrada para a salvação e o viver
Em Colossenses 2.16,23, Paulo demonstra sa
santo. O templo era o ponto de convergência da
ber de que formas as práticas cultuais, em parte
adoração congregacional e proporcionava o local
judaicas, em parte pagãs, podem deturpar o que
físico para as reuniões, sendo o lugar onde podia
é para ele a essência da fé. O emprego que ele faz
ser feita a celebração das festas anuais. Estas es
de ideias e expressões idiomáticas que giram em
tavam prescritas na Lei e eram obrigatórias para
torno do cuho no templo é invariavelmente espi
todos os judeus que viviam quer em Israel quer
ritualizado com alguns resuhados importantes: o
na Dispersão. As três grandes festas de peregrina
templo passa a ser o novo templo da habitação
ção (Páscoa, Pentecostes e cabanas ou tabernácu
de Deus na igreja (Ef 2.21), na quahdade de c o r p o (ICo 3.16,17; 6.19,20) e de templo do
los) só podiam ser observadas na Terra Santa. O
DE C
resuhado era que judeus leais vinham a Jerusa
Espírito (v.
lém para participar dessas cerimônias religiosas
máticas ligadas ao sacrifício são agora associadas
(v. At 2.5-11; e, quanto a Paulo, At 20.16).
à adoração do Espírito (Rm 12.1,2), às manifes
Embutida na maneira de viver do judeu estava
r is t o
E s p í r it o S a n t o ) .
E as expressões idio
tações tangíveis de contribuição financeira para a
a observância do sábado. O sétimo dia da Criação
missão apostólica (Fp 4.18-20) e à coleta levanta
era tido em alta estima, como presente gracioso
da em prol dos pobres de Jerusalém (2Co 8—9;
de Deus a seu povo e como ocasião de alegria.
no que diz respeito à profusão de termos cultuais
Era muitas vezes tomado como uma figura da era
agora elevados a uma nova dimensão, v. os co
por vir, além de imprimir nos judeus uma identi
mentários alistados na bibliografia). 1.2.2
dade de povo separado do restante da sociedade mundial. A adoração dentro dos lares envolvia
Sinagoga. Os dois locais da adoração ju
daica até agora examinados são o templo e o lar 35 I
AOORAÇAO/CULTO li: MULO
Quanto ao lar, devemos lembrar que só no século
por Israel, exigindo em resposta o compromisso
IV surgiram as construções da igreja cristã. Até en
de amor do povo para com seu Deus. Em orações
tão, os cristãos reuniam-se nas casas para adorar,
como essas. Deus é “abençoado [bendito]” , ou
prática que remonta às cenas em Atos 2.42,46,47;
seja, seu nome é honrado e exaltado, havendo em
16.15,34,40; 20.7-12, sendo também uma carac
seguida alguma exphcação sobre seus atributos
terística comprovada das igrejas paulinas, que
e caráter. Daí: “Bendito és tu, ó Senhor, que em
se reuniam em casas (v. Cl 4.15,16; Fm 2; cf.
amor escolheste teu povo Israel". Nas cartas de
Rm 16.5; v.
Paulo, o exórdio, ou abertura, muitas vezes anun
ig r e j a ) .
0 terceiro ambiente da adoração judaica era
cia a ação de Deus como incentivo ao louvor e
a sinagoga. Sendo ela própria o cenário que con
apresenta as razões que temos para invocar suas
gregava boa parte do que caracterizava a vida
bênçãos (2Co 1.3-7; Ef 1.3-10), além de comuni
comunitária e os negócios judaicos no século i
car 0 tema epistolar a ser desenvolvido no corpo
d.C., servindo de escola, tribunal e fórum da ci
da carta. Parte do objetivo desse traço retórico é
dade, a sinagoga originou-se (é o que se supõe)
garantir um bom relacionamento com os leitores,
no desenvolvimento histórico do judaísmo, como
convidando-os a unir-se a ele num ensaio de lou
ponto de encontro para a adoração aos sábados
vor. Outra parte é lembrar que as cartas de Paulo
e mesmo em outros dias agendados na semana,
tinham por objetivo ser lidas em púbhco, na as
normalmente nos dias úteis. 0 formato da ado
sembleia, em voz alta, quando as congregações se
ração ficou conhecido em grande parte com base
reunissem de forma plenária nas casas para o cul
em fontes posteriores, depois que sábios judeus
to litúrgico (v. ICo 5.3-5; Cl 4.16; ITs 5.27; Fm 2).
regularam e desenvolveram minuciosamente o
Na adoração da sinagoga, imediatamente após
papel inconfundível da sinagoga na manutenção
essas orações vem o credo judeu, o Shemá, que
do modo de vida nacional. Ainda que nenhum do
é ao mesmo tempo uma confissão de fé e uma
cumento da época forneça detalhes precisos, algu
bênção jubilante. 0 título do Shemá é extraído da
mas fontes valiosas de informação são fornecidas
palavra de abertura de Deuteronômio 6.4; “ Ouve
em Lucas 4.15-21 e Atos 13.13-43. Três elementos
[sh‘ma'], 6 Israel: o
principais caracterizavam essencialmente a adora
S e n h o r ”.
ção na sinagoga: louvor, oração e instrução. Como
reahdade exclusiva de Deus, o que sempre tem
Senhor
nosso Deus é o único
O termo “único” realça a unicidade e a
normalmente se acredita que o entendimento de
sido uma afirmação judaica fundamental. Rece
Paulo a respeito da adoração cristã, sobretudo em
be, então, destaque especial na liturgia — como,
Corinto (ICo 12— 14), incorporasse esses compo
de fato, é retomado e aprofundado na teologia
nentes, cumpre passarmos a observar os princi
(Rm 3.30; ICo 8.6; 12.5; Gl 3.20; cf. ITm 2.5) e
pais destaques do culto na sinagoga.
na doxologia (Rm 11.36; Fp 2.9-11) paulinas. (So
Louvor. 0 louvor coletivo ou congregacional
bre 0 fato de Paulo interagir com o monoteísmo
é a nota que abre o culto. 0 princípio talmúdico
judaico como arcabouço para a sua cristologia,
posterior é assim enunciado: “Sempre devemos
V. H
urtado;
v.
D
e us ) .
primeiro proferir louvores, e depois orar”. O lou
A segunda divisão das orações da sinagoga
vor é ilustrado na hturgia utihzada na sinagoga
começa com o lembrete de que as promessas de
para a oração matinal chamada 'Alenu: “É nosso
Deus são garantidas e confiáveis. Esse lembrete
dever louvar ao Senhor de todas as coisas". A
é expresso na oração intitulada “Verdadeiro e fir
adoração é assim dirigida ao Deus da ahança com
me” (cf. 2Co 1.18-22, no que se refere ao uso que
Israel, na quahdade de Criador de todas as coisas
Paulo faz dessa convicção como um estratagema
e 0 Único digno de receber a honra de seu povo.
apologético; e, em Rm 3.4, 2Co 11.31 e Gl 1.20,
Orações. Essas orações classificam-se em duas
ele recorre ao mesmo atributo de Deus, em forma
categorias. 0 primeiro grupo contém dois interes
doxológica). Nesse momento, o líder da sinagoga
ses especiais. A Yôsêr (que quer dizer “aquele que
convoca um membro da assembleia para dirigir
forma”) abrange o tema de Deus como Criador, ao
a “ Oração propriamente dita”, ou seja, as Dezoi
passo que a 'Affbâ (termo que significa “amor”)
to Bênçãos, Shemoneh Esreh, as quais exaltam o
é relacionada com a realidade do amor de Deus
caráter abençoador de Deus, à medida que são
I 36 I
A doração / culto i i : Paulo
relembrados seus benefícios e misericórdias a
descrição feita por Paulo de um culto incipien
Israel. As Dezoito Bênçãos cobrem um vasto le
te (em Corinto) inclui o uso de cântico religioso
que de temas. São em parte uma manifestação de
como um “hino” {psalmos) trazido à assembleia
louvor, em parte súplica pelos necessitados (exi
(ICo 14.26; cf. Ef 5.19,20; Cl 3.16,17). Se a eti
lados, juizes, conselheiros e o povo eleito). No
mologia rigorosa for o fator determinante, psal
corpus paulino, pode se encontrar um correspon
mos sugere composições semelhantes ao Saltério
dente em ITimóteo 2.1-4, bem como no interesse
hebraico, que na
de Paulo pelo governo sadio e por uma ord'em so
psalmoi (cf. Lc 24.44). Entretanto, num ambiente
cial estável (Rm 13.1-7; Cl 3.18-4.6; 2Ts 3.6-13).
helenista como Corinto, não há nenhuma certeza
Instrução. Uma vez proferidas as orações, o
de que psalmos seria interpretado de acordo com
culto assume o formato que conferiu à sinago
sua origem na l x x . Além disso, o “ hino” de ICo-
ga seu sistema inconfundível de valores. Na rea
ríntios 14.26 parece claramente uma composição
Udade, os próprios judeus chamam a sinagoga
nova, produzida e oferecida por um membro da
“casa de instrução” (bêt hamidrãsh), pois nada
igreja com o dom da música. Esses tributos evi
está mais em harmonia com a adoração judaica
dentemente deveriam ser cantados (como em
lx x
aparecem com a epígrafe
que o destaque conferido à leitura e exposição
ICo 14.15), embora os preceitos de Colossenses
das Escrituras. A instrução é dada por dois ins
3.16 e Efésios 5.19 realcem que a melodia deve
trumentos. Em primeiro lugar, a Lei e os Profetas
encontrar eco "no coração” e ser uma expressão
são hdos por membros da congregação que so
verdadeira de devoção interior, não apenas um
bem até a tribuna para dividir a tarefa. Ao longo
ato irrefletido de louvor. Os termos musicais de
da história, como a língua hebraica não era mais
ICoríntios 13 não parecem condizer com o co
entendida por todos os presentes, um tradutor
nhecimento que temos do louvor da igreja primi
vertia as lições das Escrituras para o vernácu
tiva (v.
S m it h ) .
Uma última palavra precisa ser acrescentada
lo, normalmente para o aramaico. Em segundo lugar, a leitura era seguida por uma homilia ba
à questão dos dias santos judaicos. Obviamen
seada nas passagens lidas (quanto aos deveres
te, o sábado tinha lugar de destaque, observado
transferidos ao pastor paulino, v., e.g., Lc 4.20,21;
num ciclo semanal como sinal da obra criadora
At 13.15,16; ITm 4.13,16). Qualquer pessoa da
de Deus e como acontecimento na história da
assembleia considerada apta era convidada a
redenção (Dt 5.12-15). A suplantação do sétimo
transmitir esse sermão, como nos casos de Naza
dia judeu pelo “primeiro dia” da semana cristã é
ré e Antioquia da Pisídia. O culto era encerrado
uma questão espinhosa, uma vez que a transi
com uma bênção e com um “amém” congrega
ção parece ter ocorrido apenas lentamente. Resta,
cional (corroborado em ICo 14.16; 2Co 1.20)
no entanto, pouca dúvida de que o foco mudou
cujo objetivo era confirmar a fidedignidade de
de um tema rememorativo (Êx 20.8) para um
tudo que o cuho transmitiu ao fiel, o qual profere
dia de celebração como consequência direta da
uma palavra de concordância e de aplicação em
valorização e da gratidão pelo que Jesus realizou
harmonia com o precedente veterotestamentário
"no primeiro dia” . Ele ressuscitou para uma
(e.g., Ne 5.13).
nova vida e compartilhou uma refeição com seus
Ainda não se tem certeza se os salmos eram cantados nas sinagogas palestinas
(B
radshaw
,
seguidores como Senhor vivo (cf. o relato dos Evangelhos sobre as aparições pós-ressurreição,
p. 22-4). Não há confirmação clara. Foi proposto
e o Evangelho dos hebreus, com seu registro de
p. 78-9) que, ao contrário das sinago
uma palavra dominical dada a Tiago: "Meu ir
gas helenistas do mundo da Diáspora, nas quais
mão, come teu pão, pois o Filho do homem res
Filo, da seita dos terapeutas, relata e confirma o
suscitou dentre os que dormem”). No que tange
uso do canto {Vi co, 80), bem como em Qumran
aos registros paulinos, há uma consciência de
(IQS 10:9; IQH 11:3,4), o canto não era permitido
que o “primeiro dia da semana” é a ocasião em
pelos fariseus. Talvez considerassem a prática he
que os corintios se reúnem (ICo 16.1,2), o que
rética, já que era observada por grupos que eles
inclui levar dinheiro para a assembleia. A propos
julgavam divisionistas. Em contrapartida, a única
ta de J. Héring de que o primeiro dia da semana
(H
eng el,
37 I
era dia de pagamento em Corinto não é suficiente para exigir atenção séria
um padrão fixo de adoração (v. a tentativa arroja
p. 183). Paulo
da de Cuming de construir uma ordem neotesta
mais provavelmente está revestindo um dia se
mentária de culto), não há nada definitivamente
cular com matizes teológicos em tributo a esse
normativo. O único indício possível está em ITes-
(H
é r in g ,
dia como sendo “ dia do Senhor” , assim como
salonicenses 5.16-24, que pode ser organizado
ele pode apropriar-se do lugar da “festa ágape-
em versos, com cada verso pretendendo ser um
ceia do Senhor” e designá-la “mesa do Senhor”
título de uma parte do culto. (A disposição, pri
(ICo 10.21;
meiramente proposta por
V. R
ord o rf,
p. 274-5).
De acordo com Atos 20.7-12, os crentes de
donada por
M
a r t in ,
J.
Trôade reuniam-se “no primeiro dia da semana”
aprovada em parte por
para compartilhar uma refeição e ouvir Paulo fa
a cautela recomendada por
lar. Evidentemente, tratava-se de uma ocasião à
M.
R
o b in s o n ,
é aban
1975, p. 135-8, e desde então H
il l ,
B
p, 119-20, Mas veja radshaw
,
p, 30-55,)
Em ITessalonicenses 5,16-22, frases curtas
noite, já que; 1} o pobre Êutico foi tomado pelo
são cuidadosamente construídas, 0 verbo ocor
sono, sentado numa janela, e 2) a retomada do
re no final, e há uma predominância de palavras
discurso de Paulo fez com que Paulo e sua platéia
iniciando com a letra grega p, produzindo assim
se estendessem até a aurora, antes de partirem.
certo ritmo, A sequência é digna de nota, Primei
Desenvolvimentos posteriores da igreja pós-pau-
ramente se faz soar a nota de adoração alegre
lina conferem uma convicção mais arrazoada
(“Alegrai-vos sempre”). Oração e ação de graças
para o dia santo como o começo de uma nova era
ocorrem juntas — vínculo com origem na sina
(Bíi, 15.9; Di, 14,1; Ap 1.10) e situaram o culto
goga, Os cristãos são aconselhados a entregar o
na madrugada (a correspondência entre Trajano
controle total nas mãos do Espírito, especialmen
e Plínio [Ep, 10.96] localiza a reunião “antes do
te ao permitir que se ouçam palavras proféticas
raiar do dia”), provavelmente para anunciar o sol
(cf, Di, 10,7), mas são advertidos da necessidade
nascente sob perspectivas cristológicas (cf. o hino
de testar os espíritos. Acima de tudo, nada fora
cristão primitivo “Salve, luz que nos alegra”).
dos padrões aceitáveis deve entrar na assembleia,
Mas a cena retratada em Atos 20.7-12 de fato
sugerindo um controle sobre práticas de adoração
desempenhou um papel mais determinante na
desenfreadas, A parte final dessa suposta “ ordem
evolução do culto cristão, a saber, estabeleceu o
na igreja” contém uma oração abrangente para
padrão da forma dúplice de liturgia — a pregação
todo o grupo (ITs 5,23) e uma declaração de con
e o partir do pão, a missa catedmmenorum, aberta
fiança em Deus (ITs 5,24),
a todos, seguida pela missa fidelium, restrita aos crentes, que lá por meados do século ii
Há quem acredite haver uma correspondência
(J u s t in o ,
com ICoríntios 14, com a associação entre louvar
Ap, 166) se tornou procedimento padrão. 0 padrão
e “cantar hinos”, bem como entre oração e ação
duplo, a incluir uma liturgia da Palavra e uma litur
de graças (ICo 14,13-18), É necessário controlar
gia do Cenáculo, como são às vezes denominadas,
a profecia e os discursos inspirados pelo Espíri
tem sua origem genética em Atos 20 e em Paulo em
to, especialmente por mulheres que profetizam
ICoríntios 11— 14; a origem de uma pode estar di
(ICo 14,34-36), E em ambos os relatos predonú-
retamente associada à sinagoga, e a outra talvez te
na a necessidade da boa ordem (ICo 14,40),
nha surgido da tradição eucarística (ICo 11.23-26) que Paulo herdou e transmitiu aos corintios.
Do ponto de vista do procedimento, é mais fácil resumir o ensino de Paulo com tópicos mais simples, a saber; 1) evidência do uso de compo
2. O ensino paulino
nentes litúrgicos em suas igrejas; 2) medidas cor
Não há nenhuma declaração sistematizada sobre
retivas que Paulo adotou para hdar com o que ele
o que Paulo entendia ser uma prática adequada
considerava abusos e distorções; 3) inferências
de culto, tampouco há algo que se assemelhe a
sobre sua teologia da adoração com base nas in
um conjunto de preceitos em livros posteriores de
formações assim evidenciadas. Não são questões
culto. O ensino de Paulo está espalhado por toda
independentes umas das outras, e serão tratadas
a sua correspondência, e, embora alguns autores
de passagem, bem como de forma mais detalha
sejam da opinião de que ele incorporou partes de
da, em algumas seções.
I 38
A doração / culto n: Paulo
2.1 Evidências de formas de adoração e dis
R o b in s o n )
. Seguramente, deve refletir um uso cor
curso. Numa etapa posterior, necessitaremos es
rente em Corinto; caso contrário, por que Paulo
clarecer as maneiras em que Paulo se apropriou
confundiria seus leitores com um termo sem ex
de peças e alusões litúrgicas preestabelecidas
plicação? Seu grau de importância, no entanto, é
para incorporá-las no fluxo epistolar de seus es
o que conta. As evidências em torno dessa antiga
critos (v, 2.1.1 e 2,1.2 abaixo). Ficará claro, as
pista oferecem uma torrente de esclarecimentos
sim esperamos, que ele agiu dessa forma para
sobre o modo em que os cristãos judeus adora
se aproximar de seus leitores, que nem sempre
vam seu Senhor Aqui está a mais antiga oração
estavam bem-dispostos com ele, com seu aposto
cristã registrada, atribuindo ao Senhor da igreja
lado e com sua teologia. Se ele puder demonstrar
a mais elevada honra e dando indicação de um
familiaridade com um credo comum a todos ou
culto centrado nele. Também mostra que aque
um hino bem-aceito, imediatamente passará a se
les que anteriormente invocavam o nome de seu
identificar com eles, ainda que ele ache neces
Deus, o Deus da ahança, na liturgia da sinago
sário editar a tradição que está utilizando para
ga agora vinham aplicar o mesmo título divino a
sublinhar determinado aspecto ou harmonizá-lo
Jesus, 0 Messias.
com a convicção dele, Ainda outra razão possível
“Invocar o nome do Senhor” era também
para ele citar exemplares litúrgicos está no empre
uma maneira de se referir à iniciação dos crentes
go pretendido de suas cartas, Elas eram seu alter
(Rm 10.12-17), sendo também uma autodesigna-
ego, compensando sua ausência forçada, e ainda
ção da igreja (ICo 1.2) como um grupo de ho
assim transmitindo a proximidade de sua pessoa
mens e mulheres que oravam ao Senhor (Jesus;
àqueles de quem a distância ou as circunstâncias
cL 2Co 12.1-10; At 7.55-60; 9.14; 22.16). Orações
o mantinham separado (v, ICo 5,1-12; Cl 2,5),
a Jesus e em nome de Jesus eram facilmente as
Lançar mão de um repositório comum de hinos,
sociadas entre si, de uma maneira que pode nos
orações, lembretes batismais ou catequeses, repi
parecer paradoxal, mas evidentemente se permi
ta-se, tornaria sua presença nitidamente conhe
tia que a tensão permanecesse nos círculos pau
cida de seus leitores, que muitas vezes, ao que
linos, ao passo que um monoteísmo rigoroso e
tudo indica, concluíam que ele os havia esqueci
uma adoração dirigida ao Senhor ressurreto esta
do (2Co; Fp) ou abandonado (ITs),
vam lado a lado, com pouca tentativa de correla
2.1.1 Formas tradicionais. Um dos indícios
cioná-los (cf. Fp 2.9-11).
mais evidentes de que Paulo tomava empresta
Também se permitiu que surgissem lado a
do dos tesouros litúrgicos encontra-se em ICo-
lado formas triádicas, oração-louvor-confissão
ríntios 16.22, O vocábulo de sonoridade estranha
(e.g., 2Co 1.20,21; ICo 12.4-11; Ef 4.4-6), à medi
maranatha seria tão enigmático para o coríntio
da que as pessoas da Divindade (como mais tarde
falante do grego quanto para o leitor de nosso
foram formuladas) eram associadas a vários mi
tempo. A expressão aparece no texto sem comen
nistérios e ofícios. Em Efésios 1.3-14, há (numa
tários, tradução ou aplicação. Até seu significa
leitura variante do texto) um formato trinitário,
do é fonte de debate: “o Senhor está vindo” ou
uma vez que se diz que o Pai escolheu os crentes,
“nosso Senhor, vem !” são possíveis, havendo
0 Filho de seu amor os redimiu e o Espírito auten
um debate linguístico recente (v,
que
ticou a salvação na experiência humana ao aph-
faz a balança pender para a segunda formulação
car o selo experiencial (Ef 4,30; cf, 2Co 1,20-22;
(como em Ap 22.20), 0 uso de uma invocação
5,5 no batismo?).
F it z m y e r )
aramaica de oração só pode ser satisfatoriamente
Formas específicas de oração e de louvor ocor
explicado com base na suposição de que perten
rem principalmente nas seções de abertura das car
cia a um vocabulário htúrgico de um ambiente
tas de Paulo e foram estudadas em profundidade (v, e
O consenso é que Paulo usou
palestino ou biUngue primitivo. Ficou arraigado
Sch u ber t
na hturgia da Didaquê (10.6) como parte de um
esse artifício para declarar o contexto epistolar do
culto em preparação para a mesa do Senhor (que
que estava para se seguir e para incentivar a boa
O ’ B r ie n ) ,
bem pode ser sua função no final da Carta de
vontade mútua ao estabelecer relações amigáveis
ICoríntios [ICo 16.22-24]: v.
com seus leitores (gr, philopronêsis). As evidências
B ornkam m
e J. A. T.
I 39 I
linguísticas em constmções, como o encadeamento
preexistência com Deus e seu papel na Criação e
de particípios, o uso de pronomes relativos e as ex
na subjugação escatológica de todos os poderes
pressões copiosamente elogiosas (e.g., Ef 1.6, “para
hostis, especialmente os “espíritos elementares”
o louvor da glória da sua graça”) parecem demons
[stoicheia tou kosmou, Cl 2.8,20) — serviu para
trar que Paulo tem uma dívida com o vocabulário
garantir à igreja que nenhum poder hostil irá se
litúrgico (e.g., 2Co 1.3; Cl 1.9-14; Ef 1.3-14; 1.15-23;
interpor entre Deus e o mundo (Rm 8.38,39).
sobre as formas gregas de abençoar [bendizer] a
O problema tratado nesses tributos confessio-
Deus,
nais/hínicos ao senhorio de Cristo (Rm 10.9,10;
V. B r a d s h a w ,
2.1.2
p. 44-5).
Hinos e credos. É bem conhecido o hábito Fp 2.11) é aquele apresentado pelo dualismo
que Paulo tem de inserir credos ou hinos na
gnóstico, que tornava partes do Universo hostis
sequência epistolar de seus escritos, e há certos
e alienadas (v.
critérios que denunciam a presença de material
em Cristo, agora estabelecido e celebrado em can
citado. Embora recentemente tenha havido cer
ção e credo, era a resposta cristã. A contribuição
ta resistência à ideia de que Paulo fazia uso de
singular de Paulo foi: 1) ancorar a redenção e a
material poético, hínico ou confessional já exis
reconciliação no feito de amor da cruz, não num
tente (v.
não parece possível abalar as con
decreto cósmico (Fp 2.8; Cl 1.20; cf. Cl 2.15); 2)
clusões principais estabelecidas por E. Stauffer
afastar a igreja — que cantava esses hinos e pro
L
ash) ,
g n o s t ic is m o ) .
0 domínio de Deus
(p. 338-9} e O. Cullmann em seus debates semi
feria essas confissões — de um triunfalismo falso
nais, agora suplementados por monografias como
que negasse a realidade ainda presente do mal,
a de Deichgrâber. Vocabulário raro e formal; uso
à medida que se concentrava mais no futuro do
de recursos retóricos como particípios, pronomes
que no presente (v.
relativos e figuras de Unguagem; o fato de que o
Paulo insere a condição escatológica de um fator
e s c a t o l o g ia ) .
No lugar disso,
material hipoteticamente inserido pode ser des
“ainda-não” (ICo 15.20-28) e sustenta que hinos
prendido do contexto — esses sinais, vistos con
de triunfo oferecidos em adoração devem ser
juntamente, apontam para o fato de que Paulo
temperados pela avaliação realista da luta conti
fez uso de formas tradicionais como apoio a seu
nuada na expectativa de um reino futuro, agora
apelo exortatório (e.g., Fp 2.6-11, no contexto de
iniciado, mas ainda não plena e definitivamente
Fp 2.1-4,12,13), bem como utilizou “a história de
alcançado. O elemento de tensão permanece na
Cristo” como paradigma da ação ética (2Co 8.9,
soteriologia de Paulo, e alguns dos sinais de ad
outra vez no contexto de contribuição e serviço
vertência presentes no modo em que ele lida com
generosos).
os problemas da adoração visam a esse destaque
Os principais exemplos são Filipenses 2.6-11,
falso, que se evidencia em exagero mesmo quan
Colossenses 1.15-20 e ITimóteo 3.16 (recente
do o culto é irrefreado e exuberante demais, como
mente agrupados e estudados por Fowl). Além
em Corinto (IC o 4.8; 12— 14).
da função parenética dessas citações, dispensa-
Um exemplar da hinódia paulina (Ef 5.14)
se atenção às percepções que essas composições
é um lembrete de que nem todas as formas de
hínicas nos permitem ter do culto cristão nas igre
adoração eram estritamente teocêntricas e diri
jas paulinas.
gidas ao louvor de Deus. Aqui as palavras “Por
Pode se afirmar que o tema predominante é a
isso se diz...” parecem ter sido acrescentadas ex
obra cosmológico-redentora de Cristo, o Senhor
pressamente como preâmbulo para a citação de
da igreja que veio de Deus na qualidade de Deus.
uma passagem conhecida (que de outra forma
Ele, por sua morte e exaltação, conquistou uma
não seria reconhecida; não no
reconciliação cósmica, unindo assim os reinos
um ritmo trocaico oscilante e um recurso retóri
at).
0 estilo, com
díspares do céu e da terra (satisfazendo assim
co pelo qual os finais dos primeiros dois versos
uma necessidade evidente na religião greco-ro-
combinam por assonância, prova que se trata de
mana, como já foi observado) e tornou seu triun
um hino cuidadosamente composto. Mas é diri
fo reconhecido no submundo dos demônios e dos
gido a crentes, presumivelmente recém-converti-
poderes cósmicos (submetendo todas as partes
dos e talvez recém-batizados, para chamá-los à
do Universo a seu controle). O realce duplo — sua
ação e prometer-lhes a iluminação de Cristo. As
40
A d oração / culto ii : Paulo
expressões idiomáticas associadas a despertar/
quando confundida com um decreto gnosticizado
dormir, ressurreição/morte e a luz/trevas deixam
sem considerações morais. Daí a advertência de
prever o cenário de um rito iniciatório para o qual
Paulo em ICoríntios 10.
esses versos servem de canto de acompanhamen
2.1.4
to. Seriam palavras que indelevelmente fixariam
A ceia do Senhor. Paulo tomou e enrique
ceu várias tradições relacionadas a uma refeição
0 significado do batismo na mente dos novos
de ceia (v.
crentes.
cia à intenção do Senhor “na noite em que foi
2.1.3
Batismo. A valorização do
b a t is m o
c e ia d o
Senhor) ,
realizadas em obediên
era traído” e entregue ã morte (ICo 11.23). Num está
evidentemente uma característica importante na
gio anterior (i.e., pré-paulino) de desenvolvimen
instrução catequética oferecida a recém-conver-
to, a estrutura da ceia parece ter consistido nos
tidos e adeptos nas igrejas de alicerce pauUno.
seguintes elementos: uma refeição comum basea
Às vezes (como em Corinto), havia a urgência de
da num costume judaico de desfrutar comunhão
desfazer crenças distorcidas a respeito da prática
à mesa, que incorporava, acreditamos, as orações
do batismo (ICo 1.13-17; 10.1-17; 15.29). Com
judaicas pelo alimento e pela bebida (com um
maior destaque ainda, Paulo toma por certo a
toque cristão visto em Di, 9— 10); e, quando se
realidade do que o batismo impUca, e constrói
tomavam o pão e o cáUce, seguindo o modelo
a partir daí (Rm 6.1-14; Cl 2.12). Para Paulo, o
deixado no Cenáculo [a “grande sala mobiliada” ,
batismo, que é a resposta confiante, obediente
A 2 i],
e individual à palavra do evangelho (Rm 1.16;
memória de mim”. O rito simples apontava para
10.9,10), era considerado o meio de entrada na
além de si mesmo, para uma esperança futura na
a presença do Senhor era relembrada “em
comunidade do novo Israel, semelhantemente ao
chegada do r e in o
papel desempenhado pela circuncisão num am
temente em resposta direta a problemas sociais
biente de fé (Rm 2.27-29; ICo 7.19; Cl 2.11,12).
em Corinto, foi enriquecer e aplicar essas ideias
Então, ICoríntios 12.13 e Gálatas 3.27 precisam
básicas com uma consequência prática, a saber, a
naturalmente ser assim compreendidos. A filia
distinção entre a festa ou refeição de amor (uma
ção à comunidade eleita era marcada pelo rito de
refeição compartilhada) e um culto eucarístico
passagem que incluía o uso de água como puri
mais solene. A razão dessa distinção reside nos
ficação e iniciação. Paulo pode, portanto, funda
abusos predominantes em Corinto, onde comida
mentar um apelo ético na realidade de que seus
e bebida em demasia levaram à tolerância de ex
leitores foram batizados (Rm 6.15; 13.14; Cl 3.10;
cessos e onde os crentes pobres que chegavam
cf. Ef 4.24). O fato de serem identificados com
atrasados não compartilhavam da refeição social
de
D
eus.
O que Paulo fez, eviden
Cristo em sua morte e na nova vida, de novo
(ICo 11.17-22). As divisões dentro da comunida
representado no batismo, deve ser concretizado
de haviam levado a koinõnia a um colapso, bem
no chamado para o morrer diário (2Co 4.11,12).
como à recusa da aceitação mútua de maneira
Paulo acredita haver no batismo uma ação sacra
cristã (IC o 11.18,19, cf. ICo 1.10,11; 3.3,4,21).
mental genuína, em que Deus está em operação
Paulo encontra a resposta a essa doença ao desta
(Cl 2.12). Deus aplica aos crentes a eficácia sal
car mais uma vez a expressão “somente um pão” ,
vífica da morte e da ressurreição de Cristo, nas
que simboliza “um só corpo” (ICo 10.16,17), e
quais eles morreram e foram ressuscitados, e os
mostra como a dimensão horizontal da “comu
põe numa esfera de vida divina (Gl 2.19-21), na
nhão do sangue [...] [e] do corpo” do Senhor faz
qual o pecado é derrotado (Rm 6.7,9-11). Daí em
dobrar o sino da morte do espírito partidário e da
diante, o cristão é convocado a desenvolver as im
busca egoísta dos próprios interesses.
plicações do significado do batismo (Rm 6.12-14),
0 tema da “memória” está presente no re
da mesma forma que os israelitas circuncisos
lato paulino (ICo 11.24,25). Ele chega a in
precisavam confirmar sua circuncisão por meio
terpretar isso na frase “proclamais a morte do
de uma vida de obediência no contexto da alian
Senhor”. Igualmente, a esperança futura é realça
ça. Ressalta-se assim a importância da confissão
da e mostrada na referência “até que ele venha”
no batismo (Rm 10.9,10; Ef 5.25-27). Mas a ação
(ICo 11.26). Os dois acréscimos pauhnos devem
sacramental pode ser apresentada erroneamente
ser entendidos no contexto pascal (cf. ICo 5.1-8).
I
41
M U U K A Ç A U /L U L IÜ IK TA U LÜ
Eles realçam, para Paulo; 1) o destaque soterloló-
do teste de todos os dons espirituais (charismata),
gico da morte de Cristo pelos pecados (ICo 15.3-5;
que eram exercidos no culto da assembleia (cf.
Rm 5.1-10; 2Co 5.18-21; Gl 3.13) para obter uma
D
redenção maior que a libertação do Êxodo; 2) a
rio era constituído dos seguintes elementos;
unn,
p. 293-7;
M
a r t in ,
1982, p. 194-200). O crité
lembrança escatológica de que o fim ainda não
1) 0 nexo bem estabelecido entre a tradição
chegou (ICo 15.20-28), mas virá por ocasião da
de Jesus e o Cristo da experiência (ICo 12.1-3)
parusia do Senhor (ICo 16.22; v.
e s c a t o l o g ia ) .
situava a cruz no centro (ICo 5.5,7; 11.26) e mos
Será uma vinda definitiva e um prenúncio da rea
trava que a igreja vive entre os dois adventos,
Udade última, quando então ele se assentará com
num estado de expectativa não realizada, a qual
seu povo à mesa.
só será plenamente cumprida na parusia e no rei
2.2 As medidas corretivas de Paulo. O ensi
no final. Nesse ínterim, os crentes têm o Espírito
no pauUno sobre a adoração inclui o aspecto raro
Santo que habita neles e os inspira à adoração
de que certas crenças e práticas em suas igrejas
(ICo 3.16,17; 6.19; 12.3), sendo ele as primícias
o forçaram a alguns protestos com o objetivo de
da redenção futura prometida, mas ainda não rea
reformar e corrigir. Suas contramedidas enqua
lizada. Nenhuma visão do batismo que promova
dram-se em duas categorias.
a noção de uma ressurreição já alcançada é cor
Em primeiro lugar, certos credos e hinos foram
reta para Paulo, uma vez que negaria o caráter
tomados por Paulo e por ele editados no processo
futuro da esperança da ressurreição (Fp 3.10-15).
antes de ele considerar sua inclusão apropriada ã
2) A primazia do amor (gr.,
agapé,
dentre as
instrução epistolar. Acréscimos como o de Filipen
116 ocorrências do
ses 2.8. “e morte de cruz”, e o de Colossenses 1.18,
que todos os exercícios espirituais situam-se sob
“ que é a igreja” , para expUcitar o sentido de “ele
o poder de uma energia que é o dom de Deus em
n t,
75 estão em Paulo) significa
[...] é a cabeça do corpo”, mostram a tônica dessas
Cristo (Rm 5.1-10; 2Co 5.14), o qual deve regular
revisões, a saber, impor a centralidade da cruz e
e dirigir todos os movimentos e demonstrações de
contrapor-se a qualquer ênfase gnosticizante. No
adoração por canais condizentes com o caráter e o
credo de Romanos 3.24-26, ele evidentemente
projeto divino para a vida de seu povo (Ef 5.1,2).
editou uma fórmula expiatória judaico-cristã para destacar a universaUdade da fé.
3) A meta da adoração no plano horizontal é a edificação (gr.,
Depois, em Corinto, Paulo enfrenta uma situa ção transitória, em que o cuUo se tornara desor
o ik o d o m ê ),
que, para Pau
lo, é mais que um sentimento de bem-estar ou uma experiência extática. Antes,
o ik o d o m ê
(em
ganizado e maculado por características que ele
ICo 14.3,12,17,26; cf. ICo 12.7) é um esforço re
reprovava. Sua preocupação era: 1) deter qual
soluto para promover a vontade de Deus na vida
quer exuberância indevida causada por um con
humana, tanto na do nosso próximo quanto na
ceito falso de “Espírito” (ICo 12.1-3; v.
E s p ír it o
nossa (ICo 8.9; 10.33; Rm 15.2 no contexto litúr-
e uma escatologia realizada que negava
gico de Rm 15.5,6; Fp 2.3,4, no contexto estabele
um fim futuro com base na suposição equivocada
cido pelo hino de Fp 2.6-11). No culto, os crentes
Sa n t o )
de que o reino já havia chegado em sua plenitu
devem buscar ativamente o bem de toda a igreja
de (ICo 4.8; 15.20-28); 2) implementar controles
e assim glorificar a Deus (ICo 10.31), e desfrutar
para manter a boa ordem, refrear a glossolalia
de sua presença, ao mesmo tempo lembrando-
irrestrita e sem interpretação, promover a profe
se de que Deus realmente está no meio deles com
cia a um ofício elevado e silenciar as expressões
santo juízo e com graça renovadora (ICo 14.25;
descuidadas e estranhas de mulheres (profetisas)
cf. ICo 5.3-5; 11.29-32; 16.22).
na assembleia (v. mais detalhes nos comentários e em
M
a r t in ,
1984, caps. 5— 7).
Ver também b a t is m o ;
c h a do
Senhor.
DPc: b ê n ç ã o , in v o c a ç ã o , d o x o l o g i a , a ç ã o d e g r a
2.3 As características inconfundíveis de Paulo. 0 modo em que Paulo lida com os problemas de
ç a s ; e le m e n t o s l i t ú r g i c o s ; h in o s , f r a g m e n t o s d e h in o s , c â n t i c o s , c â n t i c o s e s p ir it u a is ; o r a ç ã o .
Corinto serve principalmente para acentuar os ele mentos positivos do culto cristão. Ele fez isso so
B ib u o g r a f ia .
bretudo por meio da introdução do critério trípUce
rience. London:
I 42
B ornkam m , scm,
G. Early Christian expe
1969. •
B radshaw ,
P. F. The
ad o r a ç ã o / culto
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C artas G
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Tudo que se pode dizer sobre culto e adoração
and Paul: studies in the earliest history of Christiani
a partir do que é compreensível nas evidências
ty. Philadelphia: Fortress, 1983. p. 78-96. ■ H ér in g ,
presentes nos escritos pauhnos (v.
J. Commentary on First Corinthians. London: Ep-
t o ii)
worth, 1962. ■
Ou seja, com base nas tradições de fé e prática
H il l,
D. New Testament prophecy.
e r a is ,
A
po caupse
ad o r aç ão /cu l
vale também para os escritos não pauhnos.
L. W. One
herdadas do judaísmo, o entendimento que os cris
God, one Lord. Philadelphia: Fortress, 1988. • L a s h ,
tãos tinham de Deus e o louvor que lhe rendiam
Atianta: John Knox, 1979. ■
H u rtad o ,
C. J. A. Fashionable sport: hymn-hunting in 1 Peter.
expressavam-se no fato de o reconhecerem como
7 [Texte und Untersuchungen, 126], p. 293-7,
criador e redentor. Deus também é aclamado
SE, V .
R. P. Carmen Christi: Phiüppians
como Senhor soberano, cujo decreto trouxe o
2:5-11 in recent interpretation and in the setting of
mundo à existência (Hb 11.3; Ap 4.11) pela me
early Christian worship. Cambridge/Grand Rapids:
diação do
Cambridge University Press/Eerdmans, 1967/1983.
cuja vontade a criação é sustentada (Ap 4.11; cf.
{smsMS, 4.) [ = A hymn of Christ: PhUippians 2:5-11
Cl 1.15-18). O mesmo Deus agiu salvificamente na
1982. ■
M a r t in ,
C
r is t o
cósmico (Hb 1.2; Jo 1.3) e por
in recent interpretation and in the setting of early
vinda de Cristo para resgatar e restaurar a criação
Christian worship. Downers Grove: InterVarsity,
perdida. Apocalipse 5.9-14 expressa esse júbilo
1997.] ■______ . New Testament foundations. Grand
em forma lírica, enquanto o cenário cósmico da
Rapids: Eerdmans, 1978, v. 2. ■ ______ . Patterns of
nova era que Cristo inaugurou é visto na “Canção
worship in New Testament churches,
jsn t,
v.
37,
da estrela”, de Inácio (In, Ef, 19.1-3; sobre esse
p. 59-85,1989. ■ ______ . Reconciliation: a study of
texto como um hino de Cristo, v.
Paul’s theology. Grand Rapids: Zondervan, 1989.
mais observações em
M
a r t in
,
L
ohm eyer,
p. 64;
1997, p. 10-13). Em
■ ______ . The Spirit and the congregation: studies
fórmula de credo concisa e precisa, IPedro 1.20
in 1 Corinthians 12— 15. Grand Rapids: Eerdmans,
oferece, no contexto do sacrifício (IPe 1.18,19) e
■______ . Worship in the early church. Grand
da vitória (IPe 3.21,22) de Cristo, uma sinaliza
Rapids: Eerdmans, 1975. • ______ . The worship
ção da encarnação ocorrida nos limites da his
o f God. Grand Rapids: Eerdmans,
■ M oule ,
tória da redenção. Assim, o louvor é dirigido ao
C. F. D. Worship in the New Testament. London:
Deus de Israel, conhecido como Pai de Jesus Cris
1984.
Lutterworth, 1961. ■
1982.
G. Five stages of
to (IPe 1.3) e Pai daqueles cuja confiança está
Greek religion. Oxford: Oxford University Press,
nele (IPe 1,17; Hb 2.10-13; IJo 1.3; 2.1,13; 3.1),
1925. ■
os quais fazem parte da nova criação que celebra
O ’ B r ie n ,
M u rray,
P. T. Introductory thanksgivings
I 43
A D O RAÇÁO /CULTO 111’. A t OS, H e BREUS, C a RTAS G e RAIS, A p OCAUPSE
sua graça (Tg 1.18) em hinos, palavras e atos de
pensar que o Apocalipse inteiro é praticamente
adoração (Ap 1.12-18; 19.10; 22.8,9; quanto aos
uma transcrição de um rito de iniciação pascal,
textos que proíbem a adoração sempre que seres
composto como um comentário simultâneo sobre
angelomórficos foram considerados rivais do úni
o que acontecia liturgicamente. O mesmo se pode
co Deus, v.
afirmar acerca da reconstrução igualmente imagi
Stuckenbru ch) .
Este verbete examina
rá as evidências desses e de outros textos do
nt,
bem como de escritos pós-apostólicos, em busca de padrões cristãos primitivos de adoração, con siderados geograficamente, desde a era do
nt
até
meados do século ii.
nativa que F. L. Cross faz do cenário que está por trás de IPedro como uma liturgia batismal. Embora tais propostas, algo bizarras, não con vençam por não resistirem ao olhar perscrutador da crítica, isso não nos permite lançar dúvida
1. Incentivos e precauções
sobre as tentativas mais arrazoadas de descobrir
2. Método e abordagens
fragmentos de formas hínicas e confessionais,
3. O legado paulino
imagens e lembretes batismais, orações eucarís
4. Evidências da Síria-Palestina
ticas e instruções catequéticas em diversos luga
5. 0 eixo Roma-Ásia Menor
res do corpus do
6. Padrões joaninos e sua influência
de enxergar dados litúrgicos em toda parte, não
7.
Algumas conclusões
n t
.
Ainda que atentos ao perigo
somos impedidos de investigar a forma literária, estilística e contextuai das passagens sob análise com o fito de situá-las num Sitz im Leben conve
1. Incentivos e precauções Assim como os estudiosos, que ao aplicar o mé
niente da vida e da prática de adoração das igre
todo da crítica da forma às cartas paulinas iden
jas, se for para esclarecer suas origens e dar uma
tificaram várias passagens como litúrgicas, assim
dimensão extra à sua mensagem.
pelas mesmas técnicas algumas partes de IPedro,
Duas outras considerações servem-nos de ad
Hebreus, Tiago e Apocalipse foram tratadas como
vertência na hora de deduzir como era a adoração
passagens que incluem formas e fragmentos de
nas congregações abordadas em nossos textos. A
adoração. Na realidade, foram propostas teorias
tentação de harmonizar é a primeira armadilha.
que tentavam apresentar livros inteiros do
nt
No caso dos materiais paulinos, a tarefa de cons
como se brotassem de um contexto litúrgico e
truir um quadro da vida de adoração de suas co
incorporassem diretrizes rudimentares de culto.
munidades não foi impedida por uma diversidade
Essa tendência causou descrédito a toda a abor
impossível. As igrejas de alicerce pauhno, embo
dagem, com acusações de “ panliturgismo” , ou
ra diferentes em suas origens, perspectivas cultu
seja, a confiança equivocada de que se podem
rais e problemas enfrentados, estavam ao menos
“ detectar reverberações de liturgia no Novo Testa
agrupadas por uma sujeição comum a Paulo e a
mento mesmo onde nenhuma nota htúrgica tenha
seus colegas, enquadrando-se como um só corpo
soado originariamente” Dunn,
1990,
p.
3 6 ).
cf.
num período administrável. Os livros bíblicos em
Um exemplo que merece ser
análise neste verbete não têm esse fio unificador.
(M
oule ,
1961,
p.
7;
ressaltado ilustrará o perigo. Raciocinando com
Eles representam um amplo espectro de culturas,
base na celebração da Páscoa que pode estar por
interesses, composições e desafios diversos, sem
trás da ordem de Hipólito na TYadição apostólica
falar da natureza multiforme dos gêneros (Atos,
(c.
cartas, literatura apocalíptica) que estamos pro
215
d.C., em Roma),
M.
H. Shepherd
(1 9 6 0 )
propôs que a estrutura paralela percebida por ele
curando abranger. Dadas essas incongruências,
em Apocalipse continha o arcabouço de uma li
organizar os estilos e as práticas de adoração,
turgia batismal plenamente desenvolvida, consti
com seus significados, percorrendo um território
tuída de interrogações, jejuns preparatórios que
tão amplo em um quadro inteligível é um em
conduziam à iniciação em si, lições da Lei, dos
preendimento quase impossível. E procurar har
Profetas e dos Evangelhos, além da salmódia e de
monizar as diferentes características e resultados
uma eucaristia batismal. À parte da discussão so
com 0 objetivo de oferecer um padrão comum é
bre se todos esses elementos de adoração são ou
correr o risco de uma harmonização incorreta,
não encontrados em Hipólito, suscita ceticismo
que distorcerá as evidências e transmitirá uma
I 44
ado ração / culto
lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
impressão equivocada. Se a intenção é fazer um
É igualmente verdade que as configurações da
resumo, essa advertência precisará ser levada em
vida e da adoração cristãs, associadas a aspectos
conta, e um ponto de interrogação terá de ser im
mais importantes de fé e prática, mudaram de
posto a qualquer tentativa por demais minuciosa
acordo com os lugares que deram origem à lite
de encontrar uma unidade litúrgica fundamental
ratura nascida nessas regiões. Uma vez que em
na parte final do período apostólico (v.
ann,
vários casos é problemático o vínculo existente
A outra armadilha é a mencionada no -manual
de nos contentar com as conjecturas mais emba-
de P. F. Bradshaw, The search for the origins of
sadas à nossa disposição e às vezes até mesmo
Christian worship [A busca das origens da adora
com simples especulações, ainda assim é inegá
p. 7-36;
B radshaw ,
C ullm
entre a locahdade e o escrito em si, e temos então
1992, p. 37).
ção cristã], que já no título confessa reconhecer
vel a existência de uma pluriformidade de ensi
a natureza experimental de qualquer reconstru
nos e de modos de vida tidos como aceitáveis.
ção da adoração primitiva, bem como o perigo de
Essa mesma pluriformidade é representada não
lhe impor, com base nas liturgias posteriores, as
só nos documentos posteriores do
evidências que, com muita facilidade, afirmamos
bém em seus desdobramentos, nos chamados
encontrar nos primeiros documentos do
nt
,
mas tam
Esse
pais apostólicos, e é uma realidade comprova
método foi a característica predominante da ce
da. Ela fornece uma estrutura conveniente para
lebrada monografia de H. Lietzmann, Mass and
a evolução de estilos e práticas de adoração. A
Lord’s Supper
íntima relação entre fé e adoração, casualmente,
[A
nt
.
missa e a ceia do Senhor]
(T I,
1953, 1978), que buscou fazer um trabalho no
é agora um dado óbvio no princípio lex orandi,
sentido inverso, a partir dos hvros de culto e ma
lex credendi (a maneira em que uma pessoa ora
nuais posteriores seguindo em direção aos dados
manifesta as suas crenças). Os dados ilustrarão
mais fragmentários e debatidos. Como técnica,
amplamente essa hgação à medida que apresen
isso pode até ser defensável, mas dá aos leitores
tarmos as evidências que estão sendo analisadas
a falsa impressão de que a adoração cristã se de
de acordo com os ramos ou as linhagens geográ
senvolveu de modo hnear e que nos permite por
ficas hipotéticas. A funcionalidade dessa abordagem, espera
isso rastrear as linhas de desenvolvimento com
mos, ficará clara, e seu benefício há de ser per
segurança irrestrita.
cebido, uma vez que ela impede o tratamento 2. Método e abordagens
simphsta dado aos livros do
Não obstante, o mérito da abordagem de Lietzmann
ou em seqüência canônica. Uma abordagem al
nt
isoladamente e/
foi que ela conferiu o respeito necessário às
ternativa poderia ter sido seguir a orientação de
origens dos padrões de adoração nas diferentes
H.
áreas geográficas de onde os livros de culto pro
ou Unhas de desenvolvimento que eles propõem,
Koester e de J. iVI. Robinson, com as trajetórias
cediam, usando uma técnica que W. Bauer tam
ao passarmos cada aspecto das práticas de ado
bém empregou no mesmo período em que veio ã
ração analisadas e observarmos, por exemplo,
luz a obra de Lietzmann
em 1934; Messe
como o batismo era entendido a partir de seus
und Herrenmahl, de Lietzmann, em 1926). Em
começos cronológicos na(s) igreja(s) pós-Pente-
bora a abordagem de Bauer e de Lietzmann esteja
costes até as congregações do século ii de Inácio,
(B
auer,
e
de Justino e dos conventículos marcionitas. Esse
a crítica diminui quando se per
método bem poderia servir aos interesses dos
cebe que uma apreciação semelhante da expan
leitores, não fosse a possível impressão equivo
são geográfica está por trás das obras de
cada que deixaria de que as observâncias litúrgi-
sujeita a críticas em vários aspectos (v. T.
A.
R
o b in s o n ) ,
T
urner
B.
H.
Streeter. Não há como negar que o cristianismo
cas primitivas se desenvolveram num sistema de
primitivo se expandiu através de áreas-chave do
evolução contínua. A verdade, antes, é que em
mundo antigo, desde o Levante Sírio, passando
geral as condições locais que surgiam em regiões
por grandes centros e até áreas remotas e pou
diversas e distintas forneciam pontos de pressão
co desenvolvidas das províncias greco-romanas,
que determinavam o crescimento ou a formação
incluindo-se Roma.
anômala da adoração tanto quanto do surgimento 45 I
de “heresia e ortodoxia”. Foi assim até aparecer o
especial, a necessidade de consolidação da ig r e j a ,
chamado “cristianismo normativo” (para usar a
agora denominada “coluna e ahcerce da verda
nomenclatura de Hultgren), que passou a ser do
de” (ITm 3.15), fica evidente diante de novas
minante e foi considerado como tal à luz das de
doutrinas, e seu testemunho precisa ser salva
clarações embrionárias dos credos incorporadas
guardado contra falsos mestres que negam a res
às tradições e à regula fidei a partir de meados ou
surreição futura. Assim, nas confissões batismais
fins do século ii. Em cada caso, os itens aprecia
(2Tm 2.11-13; Tt 3.4-7), às vezes prefaciadas pela
dos como normativos tomaram forma no cenário
fórmula “Esta palavra é fiel” , e em hinos cristo-
cultural do lugar geográfico, bem como sob as h-
lógicos (e.g., ITm 3.16, introduzido por “Sem dú
mitações dos problemas locais e de suas soluções.
vida”), 0 evangelho pauUno é reafirmado como merecedor de toda aceitação (ITm 1.15). Isso
3. O legado paulino
é acompanhado pelos ensinos cardinais de um
As contribuições ao tema provenientes da cor
único Deus e mediador (ITm 2.5-7), conhecidos
respondência de Paulo com suas congregações já
como a forte convicção de Paulo. A linguagem
foram observadas em outra parte deste dicionário
de oração judaico-cristã está espalhada por essas
(v.
cartas (e.g., ITm 1.17), em parte para demonstrar
a d o r a ç ã o / c u lto
ii) .
Em resumo, essas caracte
rísticas singulares estavam relacionadas à neces
os fortes laços da igreja com suas raízes, e em
sidade de regular o uso dos dons espirituais numa
parte para reafirmar a crença judaica na bondade
situação como a de Corinto, que se tornara caótica
da criação de Deus, que é santificado pela oração
e desenfreada. A resposta de Paulo assume a for
com base em Salmos 24.1 (ITm 4.4,5).
ma de uma reiteração prática da tensão entre os
Os ensinos batismais de Colossenses-Efésios
elementos “já” e “ainda não” da salvação cristã.
deram origem a debates, principalmente sobre a
Os crentes estão agora no domínio de Deus, onde
questão de se eles divergem ou não da distinção
o senhorio de Cristo é reconhecido na adoração
cuidadosa de Paulo, como vimos, entre o que é
(ICo 12.3). IVIas a plenitude da redenção deles
real agora (estamos sendo salvos) e a esperan
está situada no futuro, na parusia, quando o reino
ça futura (seremos salvos — na esperança da
definitivo de Deus será estabelecido (ICo 15.28).
parusia, Rm 5.9,10; 6.1-14). Colossenses ressal
A exclamação de adoração “Deus está entre vós”
ta a posse presente da
(ICo 14.25) precisa ser ouvida nesse contexto, de
reconciliação (Cl 1.21,22) por meio do hino.de
salvação
(Cl 1.12-14) e da
modo a unir a realidade da salvação presente com
Colossenses 1.15-20, inserido para celebrar a
sua necessária futuridade, no tempo do fim, que
integralidade da restauração do Universo à har
introduzirá a r e s s u r r e iç ã o dos mortos (ICo 15.42).
monia com a vontade do Criador e a pacificação
No ínterim da vida da igreja, “entre os tempos” ,
dos poderes do mal (Cl 2.15). Os crentes passam
as ênfases de Paulo giram em torno de um exer
a desfrutar dos benefícios do triunfo cósmico de
cício de amor e gratidão pelos atos de Deus em
Cristo no batismo (Cl 2.12,13), sem nenhuma
Cristo e o chamado altruísta para edificar o corpo
cláusula escatológica explícita sobre o que ainda
de crentes (ICo 14.3,12,17,26; ICo 12.7).
aguarda conclusão na parusia. Mas a esperança
Essas mesmas ênfases, intrepidamente ob
escatológica, embora sUenciada, vem soar em
servadas em sua correspondência aos corintios
Colossenses 3.3, de modo que se pode afirmar
(v.
C o r in t io s , C a r t a s
aos) ,
aparecem em escritos
com justiça que Colossenses reflete a verdadeira
posteriores de Paulo, sejam estes considerados
tradição paulina nesse aspecto.
suas últimas reflexões numa prisão romana perto
Menos segurança é gerada, no entanto, no
do fim de seus dias, ou sejam eles tidos como o
caso de Efésios. Aqui o cenário batismal implícito
legado do apóstolo a seus seguidores, os quais
de Efésios 1.13,14, em que “ selados com o Espí
por sua vez publicaram cartas às igrejas que se
rito” se tornou a forma abreviada de se referir ao
diziam fundadas por Paulo, em Colossos, em
batismo de uma pessoa
Éfeso e nas cercanias (v.
aos;
de fato para a posse futura da salvação, parece
. Como seria de esperar, há no
antes situar a esperança da igreja no presente
vas ênfases quando novas situações surgem. Em
(Ef 2.1-10; 5.14) e refletir o desvanecimento de
E f é s io s , C a r t a
aos)
C olo ssenses, C a r t a
46
(L
am pe),
embora aponte
a do ra çã o / culto
lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
uma parusia iminente. A igreja já está elevada nos
voz que lhe permita falar ao presente dele. Os su
lugares celestiais (Ef 2.6), onde o Cristo reinante
cessivos quadros da igreja em adoração traçados
já começou seu reinado (Ef 1.22,23, um fragmen
por Lucas são organizados para realçar uma men
to de credo, acredita-se). Esse nobre poema em
sagem; o cuho em sua igreja precisa recuperar
prosa celebra o senhorio de Cristo em termos su
os destaques e as características que marcaram a
blimados e hieráticos, extraídos das expressões
primeira geração, com o poder do Espírito Santo
de adoração das igrejas asiáticas. Tal echpse do
em evidência (At 4.31; 13.1-3), dando margem a
desenlace apocalíptico, associado ao retorno de
grande liberdade e alegria (At 2.46,47) e fidelida
Cristo dos céus, pode ser explicado pela finali
de às normas apostólicas (At 2.42).
dade singular de Efésios, caso seu propósito seja
A iniciação na vida da comunidade se dá por
mais doxológico que edificador ou polêmico. As
meio do batismo — baseado em lavagens ritu
nuanças da hnguagem litúrgica deram origem à
ais praticadas nas diferentes vertentes do juda
ideia da igreja como triunfante e transcendente
ísmo, tanto as tradicionais quanto as sectárias
em sua glória celestial agora, e de fato já tomando
(Qumran, terapeutas) — em nome de Jesus
seu lugar na confissão no credo (Ef 4.4,5), como
(At 2.38). Essa foi uma prática que se espalhou
se a igreja professasse fé em si mesma — um pre
com a disseminação da mensagem para a recep
cursor da frase no Credo apostólico (“ Creio [...]
ção de discípulos em Samaria (At 8.12), em Cesa-
na igreja una, santa, católica e apostólica...”) — e
reia (At 10.47,48) e em Damasco (At 9.18 e par.),
tivesse seu lugar na história da salvação segura
bem como nas regiões mais remotas e não espe
mente fundamentado sobre uma verdadeira base
cificadas, como a faixa de Gaza (At 8.36; At 8.37,
apostólica (Ef 2.20; 3.5).
marg., no texto ocidental, oferece um relato mais detalhado do interrogatório e da resposta batis mais). A iniciação “em nome” de Jesus (Cristo)
4. Evidências da Síria-Palestina 4.1
Jerusalém. Não é fácil distinguir nos da tinha por objetivo evidente confessar que ele era
dos e nas características apresentados em Atos
o cabeça messiânico da nova comunidade, além
entre o que são relatos históricos objetivos da
de declarar o lugar que cada pessoa ocupava nes
vida e da prática eclesiásticas na cidade e na Ter
se grupo messiânico como sinal da nova era ins
ra Santa, estendendo-se até mesmo ã província
taurada por Jesus. Além disso, existe bem pouca
da Síria, de Damasco até Antioquia (At 8.1; 9.19;
teologização sobre o batismo, embora Atos 19.1-7
11.19-29; 13.1-3), e o que são tentativas conscien
aponte os problemas associados a grupos que co
tes de Lucas de idealizar as cenas em prol das
nheciam apenas o batismo de João. Se Atos 10
próprias concepções teológicas. Talvez a verdade
(batismo e recepção do Espírito na casa de Corné-
se encontre numa posição intermediária. Partindo
lio) tem por objetivo sinalizar o Pentecostes dos
do pressuposto de que o propósito do escrito
gentios (cf.
de Lucas era a edificação (como quer
aench en,
1975, p. 154-6), então o batismo dos discípulos
p. 33), seria natural supor
de João acompanhado de imposição de mãos e
p. 103-10;
M
ar sh all,
H
L am pe,
cap. 5;
D
unn
,
1970, p. 80-2;
que o autor relembra os primeiros dias da igreja
dos dons de línguas e de profecia pode muito
não de maneira nostálgica, mas com o propósito
bem ser para os leitores de Lucas uma indicação
de chamar a atenção para algumas hções aphcá-
de como os “ discípulos” se tornam crentes plenos
veis à igreja dos dias dele. Ele conta a história
em Jesus como Senhor.
com base no relato confiável de testemunhas ocu
De modo mais imediato e evidente, o regis
lares, às quais confere o devido crédito (Lc 1.1-4;
tro de Atos apresenta quadros representativos da
At 1.1), a respeito de como eram as coisas nos
vida de adoração/vida comunitária em Jerusalém
primórdios, quando o Espírito desceu pela pri
(sobretudo em At 2.41-47; 4.32-35) na qualidade
meira vez sobre a nova
de Deus. Ele faz
de cenas ideais, com o propósito de desafiar e
soar o lema do ad fontes-, de voha à nascente,
repreender a perda posterior da “ simphcidade
aos primeiros momentos da igreja, mas age as
apostólica”. As características marcantes da pri
c r ia ç ã o
sim na intenção de trazer à memória o passado,
meiríssima comunidade imediatamente após a
à medida que o reconta, para emprestar-lhe uma
experiência do Pentecostes, na qual irradiava a 47 I
A U U K A Î^A U /L U L IU 111. M l U b , n t B K t U S , L.A R T A S O E R A Î S , A P O C A L I P S E
alegria do Espírito (At 2.26 baseado em SI 16.8-11;
jaz] ressuscite” , assim invocando a Jesus como
cf. At 2.46), incluem acima de tudo o tema do
Senhor da ressurreição (segundo
louvor exultante, seja o local para essa manifes
NTS, V.
B.
G u s t a fs s o n ,
3, p. 65-9 [1956-1957]; no entanto, essa
tação 0 próprio templo (At 3.1-10), ou as resi
interpretação dos rabiscos ainda é contestada; v.
dências de propriedade particular (At 1.3; 2.46;
J. P.
9.11,36-43; 10.1-8,24; 12.12). Faziam-se orações
palavra composta, devendo quase certamente ser
pedindo orientação (At 1.23-25) e coragem diante
desmembrada em mãrana ta
das ameaças e perigos (At 4.23-31), embora a re
significado “ Nosso Senhor vem”, denotando as
ferência a “orações” (At 2.42) faça supor que se
sim uma oração de invocação ao Senhor (i.e., Je
mantinham ligados à liturgia judaica do templo
sus) para que se fizesse presente ou na eucaristia
(D
ugm ore).
K a n e , peq ,
(C u llm a n n ), o u
p. 103-8, 1971). Maranata é uma com o
(F it z m y e r ),
no tempo do fim. As evidências
O “ensino dos apóstolos” tem sido considera
em torno dessa questão estão bem equiUbradas;
do normalmente um sinal de instrução catequé
Didaquê 10.6 faz parte de uma liturgia de refei
tica primitiva, ao passo que a “comunhão” deve
ção, ao passo que Apocalipse 22.20 ( “Amém.
ser uma referência generalizada à vida comum
Vem, Senhor Jesus!”) parece ser uma variante de
ou, mais especificamente, às contribuições mate
maranata e tem contornos escatológicos. O cená
riais esperadas, mas não exigidas, de cada mem
rio talvez não seja exclusivamente um ou outro;
bro (At 4.32; 5.1-11; J. Jeremias chegou a crer que
o que conta é a existência de um culto, ainda que
At 2.42 se referia às ofertas como koinõnia, mas
rudimentar, no qual o Cristo ressurreto é invoca
acabou mudando de ideia; v.
C u llm
ann
,
p. 120).
O “partir do pão” é uma expressão judaica rela
do em oração, prefigurando assim invocações e hinos posteriores e mais desenvolvidos.
cionada às refeições, presumivelmente um acon
Se estamos certos em fazer constar no rol de
tecimento social em comunidade, no qual uma
representantes do cristianismo judaico primitivo
refeição era compartilhada e consumida em sinal
as cartas de Tiago e Judas, o quadro pode en
de amor mútuo (daí o nome agapê-, v. Jd 12, em
tão ser ampliado. A Carta de Judas é famosa por
que mestres intrusos “corrompem” essas reu
seu desfecho litúrgico grandiloquente (Jd 24,25).
niões comunitárias; 2Pe 2.13, se a leitura for
Essa característica nos permite um vislumbre
agapais, não apatais; v.
1983; In, Es,
da maneira em que a oração cristã correspon
8.2; Atos de Paulo e Tecla 5 e 25, que comprova
deu à necessidade humana numa das primeiras
Bauckham ,
essa prática ainda em décadas posteriores). Se
cartas do
Didaquê 9— 10 apresenta o texto das orações fei
(B
tas nas ceias de amor (v. 4.2 abaixo), pode se ter
nesses dois versículos correspondem exatamente
auckham
nt
).
,
oriunda do cristianismo palestino
As expressões idiomáticas da oração
aí a explicação de como essas refeições especiais
à necessidade percebida pela comunidade, uma
eram compreendidas, e a maneira em que o ága-
vez que estava exposta aos perigos dos intrusos
pe funcionou como uma espécie de prelúdio da
antinomianos (Jd 4) e à ameaça de apostasia
posterior eucaristia solene do sacrifício do Senhor
em relação a uma fé comum (Jd 3,22;
(Di, 14.1) fica evidente, talvez exphcando a asso
C
ciação que se faz em ICoríntios 11.17-22 com um
representada pela família sagrada (Jd 1) e pelas
hester,
M
a r t in
&
p. 80-1). Os elos com a herança davídica
rito preparatório de compartilhamento, preparan
tradições catequéticas dos apóstolos (Jd 17) mos
do o caminho para a refeição pauhna solene de
tram afinidade com a situação refletida na Dida
ICoríntios 11.23-26.
quê. A função de ensino exercida pelos profetas e
Cumpre fazer uma menção especial à oração
líderes era o baluarte contra algumas influências
de invocação maranata (encontrada sem tradu
de pessoas que se vangloriavam de experiências
ção, em sua forma aramaica, em ICo 16.22; Di,
extáticas e da confiança na inspiração espiritual
10.6). Pode se afirmar que aqui temos o mais
imediata (Jd 8;
antigo exemplar de oração que possa ter sobre
M
a r t in
& C hester,
p. 83-4).
É bem provável que a Carta de Tiago in
vivido, com uma única exceção possível: uma
corpore tradições judaicas anteriores
inscrição num ossário encontrado em Jerusa
que remontam a comunidades palestinas. Tais
lém com a frase “Jesus, [que aquele que aqui
tradições e ensinos podem ter sido levados a
I 48
(D
a v id s ) ,
ad o r a ç â o / culto hi:
A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
Antioquia da Síria, onde um editor os transfor
(Tg 5.12-20). Ainda assim, os três documentos
mou na carta que hoje temos em mãos, com
com certeza compartilham elementos comuns
seu excelente grego e seus floreios Uterários.
(cf.
As práticas Utúrgicas talvez reflitam esse cená
das logia (declarações do Senhor; Q; v.
rio duplo e incluam forte realce na oração feita
podem ser justificadamente situados nas congre
com fé (Tg 1.6), especialmente no caso de se
gações da mesma região geográfica, a saber, ao
desejar a cura de alguém quando os presbíteros
redor de Antioquia, às margens do Orontes.
Sh eph erd ,
1956), e os três, associados
à
fonte
M a r t in ) ,
estivessem orando (Tg 5.13-16), uma vez que
Para nossos propósitos, podemos ressaltar
estão presentes a confissão e o perdão, e o óleo
alguns elementos da vida de adoração dessas
é aphcado (sobre a possível importância do uso
comunidades.
do óleo aqui, v.
1993, p. 124-6). A igre
1) Confere-se muita importância ao papel do
ja tem um honroso papel de ensino (Tg 3.1-12),
mestre, que deve ser honrado (Mt 13.52; Di, 4.1-4;
M
a r t in ,
com possíveis indícios de falas extáticas como
13.2; 15.2; Tg 3), com a devida advertência de
causadoras de problemas
que ninguém aspire ao ofício de modo precipita
(M
a r t in ,
1988, p. 103,
123-4). 0 “bom nome” (Tg 2.7) é aquele invo
do (Mt 23.1-12; Tg3.1).
cado no batismo. E apresentou-se como pos-
2) O batismo é ministrado no nome trino e
sibiUdade que Tiago 2.2,3 se refira de modo
uno, num desenvolvimento diferenciado em rela
velado à presença de um porteiro de igreja/sina
ção à iniciação em nome do (Senhor) Jesus pre
goga, conhecido na igreja posterior como ostiário (C
a b a n is s ,
4.2
1954, p. 29).
sente em Atos (v. Mt 28.18-20; Di, 7.1-3; Tg 2.7 pode estar fazendo uma alusão ao batismo quan
Antioquia da Síria. É mais vasto o do usa a expressão “bom nome” , atribuído aos
material associado à parte norte da Síria-Pales-
crentes messiânicos).
tina. Se pudermos fundamentar em descobertas
3) Orações formuladas com linguagem e ex
recentes nossas suposições acerca dos documen
pressões idiomáticas tomadas diretamente da
tos pertinentes dessa região, então os livros do
adoração na sinagoga judaica (Mt 6.7-13, que in
nt
incluirão a versão editada de Tiago e do Evange
corpora a oração “pai-nosso”; v. C h a r l e s w o r t h ) são
lho de Mateus, aos quais podemos acrescentar a
apresentadas na Didaquê (8.2,3) na forma em que
Didaquê e as cartas de Inácio. Quando se alistam
aparecem em Mateus, com instruções para que
esses escritos cristãos, é interessante observar
se ore dessa maneira três vezes ao dia. Em Tia
que os primeiros três se unem por pelo menos
go 1.13-16, o uso da oração é tratado como uma
uma característica compartilhada: dependem ou
questão pastoral. Todos os documentos realçam
fazem citações dos oráculos/ensinos do Senhor,
a função da oração coletiva baseada no papel de
que a pesquisa atual tem identificado como “a
Deus como Pai celestial (Mt 5.16; 6.9; 16.17; Di,
fonte comum” dos Evangelhos Sinóticos, a saber,
9.1; 10.1; Tg 1.17,27; 5.13-18), com um destaque
Q. Antioquia foi identificada desde o tempo de
especial conferido à necessidade de perdão e de
Streeter como o lugar mais provável em que essa
confissão mútuos, o que conduz a reconciUação
compilação das declarações do Senhor foi coligi
e absolvição (Mt 5.21-26; 6.12,14,15; 18.21,22,35;
da e utilizada. Os três documentos principais não
Di, 1.4; 2.7; 4.3,4; 14.1-3; Tg2.8; 4.11; 5.16,19,20).
pertencem à mesma categoria literária. Mateus
O jejum é um símbolo de adoração verdadeira,
compartilha do gênero “evangelho” (Mt 1.1).
junto com as esmolas (Mt 6.1-4,16-18; Di, 1.5,6;
A Didaquê faz as vezes tanto de regulamento
4.5-8; 7.4; 8.1-3; 13.3-7; Tg 1.27; 2.15,16 sobre a
eclesiástico quanto de “manual de disciplina”,
contribuição aos necessitados).
e comuns
4) A confissão de fé no único Deus (marca do
conhecidas como as Duas Vias (ou Dois Cami
cristianismo judaico extraída do Shemá do judaís
nhos; Di, 1—6; Bn, 18—20). Tiago normalmente
mo, Dt 6.4) está presente em todos esses docu
é classificado como uma miscelânea parenética
mentos (Mt 19.17; 22.37; 23.9; Di, 6.3 contra a
incorporando tradições primitivas
(D
ib e l iu s ,
p. 3), mas recebeu acabamento editorial
idolatria; Tg 2.19).
para se adaptar ao gênero retórico de “epístola” ,
5) Chama-se atenção especial à observância
com abertura (Tg 1.1) e desfecho típicos de carta
do culto eucarístico baseado nas palavras da
49 I
ADORAÇÃO/CUITO iii: A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
Última Ceia registradas em Mateus 26.26-29 (v.
tradição judaica, nas quais o Jesus de Mateus te
CEIA DO Senhor). Em geral, essas declarações do
ria inserido matizes de seu sacrifício expiatório.
minicais conferem com a redação de Marcos, com
Didaquê 14 ecoa esse aspecto, embora de manei
a importante exceção de que a palavra “cálice” é
ra empalidecida, em sua alusão a sacrifício/ofer
ampliada, vinculando o “sangue da aliança” , re
ta, extraída de Malaquias 1.11,14.
presentado pelo cálice, com o perdão dos pecados
6)
Na forma dialógica das orações de Dida
( “derramado em favor de muitos para perdão dos
quê 10.6, está a pequena estrofe acompanhada de
pecados”). Tem se aventado, por motivos teoló
resposta:
gicos, uma vez que a remissão de pecados era evidentemente uma questão premente na comu
Que venha a graça, e que este mundo passe.
nidade mateusina, que o Evangelista transferiu a
Hosana ao Deus de Davi.
promessa de perdão, presente na versão apresen
Se há alguém santo, que venha!
tada por Marcos sobre o papel de João Batista
Se não há, que haja arrependimento!
(Mc 1.4; cf., no entanto, Mt 3.4-6), para a ver
Marana tha [nosso Senhor, vem!]!
são que ele mesmo, Mateus, apresenta da Última
Amém.
Ceia. Teria agido assim para relacionar o perdão mais de perto com a morte iminente do Senhor
A estrutura faz supor um chamado ao auto-
(v. Cristo, morte de). Os temas sacrificais pre
exame (já a mesa está “vetada” em Di, 9.5, dt.
sentes no relato que Mateus faz da Última Ceia,
Mt 7.6) antes da refeição congregacional, ã se
no Cenáculo, conferem com Didaquê 14.1-3,
melhança dos preceitos que Paulo dá a entender
que seria mais bem interpretado como uma re
em ICoríntios 11.27-34 e 16.22,23 (v.
ferência à eucaristia dominical da igreja, numa
1969; J. A. T.
contradistinção ao ensino expresso nas orações
diálogo é a imediação do juízo/convite e das bo
de Didaquê 9— 10, passagem mais conveniente
as-vindas, que brotam da presença do Senhor no
mente explicada como uma referência à refeição
meio de seu povo. Ele vem encontrá-los e saúda
ágape. Elas não contêm nenhuma alusão ã morte
os penitentes, oferecendo no mesmo instante sua
do Senhor (a menos que “pão partido” , klasma,
graça, num prelúdio de sua vinda no último dia
R o b in s o n ) .
Bornkamm ,
0 que se percebe nesse
faça essa associação, porém é mais provável que
[Di, 16.7,8, observando Mt 24.30), nota escatoló
tenha sido extraído do contexto não eucarístico
gica que soa em Mateus 26.29 e é freqüente em
de Jo 6) e são modelados segundo as orações ju
Tiago 5.7-11. Mas é a consciência do Senhor vivo
daicas feitas à mesa [birkath hammazon; quanto
no meio dos seus que mostra como os cristãos
a esses exemplos de graças após as refeições, v.
sírios captaram a essência da adoração primitiva
p. 9-10), apesar de a celebração
como um encontro com o Cristo ressurreto que
ser intitulada eucharistia na Didaquê (9.5). Um
vem se encontrar com os que estão reunidos em
Jaspe r &
C
u m in g ,
dado convincente acha-se também na Didaquê
seu nome (Mt 18.20; 28.20; uma variante encon
(“Mas depois que se encherem [de comida]...” ,
tra-se em Ev To, 30, cf. 77), uma vez que a ex
10.1), o que sugere que as refeições em vista em
clamação que fazem a ele é: “Hosana” ; ou seja:
Didaquê 9— 10 têm o propósito de satisfazer a
“Salva agora” ! “Bendito o que vem em nome do
fome natural, não servir de lembrete sacramental.
Senhor! Hosana nas alturas!” (Mt 21.9).
A questão, no entanto, ainda não está resol vida (v.
p. 18-25; em
Inácio de Antioquia, em sua declaração au
1992,
torizada, vale-se de maneira exata da percepção
p. 132-7, encontramos uma sinopse das opi
que acabamos de mencionar: “Onde quer que Je
S raw ley,
B radshaw ,
niões). As conclusões mais seguras são que tan
sus Cristo esteja, ali está a igreja universal” (In,
to 0 Evangelho canônico quanto a Didaquê são
Es, 8.2), como que para realçar o caráter irrestri
dados experimentais para as raízes profundas da
to do Senhor ressurreto, que vem unir-se a seu
liturgia na teologia aUancística judaica e que os
povo enquanto este canta seus hinos por meio
padrões da comunhão à mesa e das celebrações
de Cristo ao Pai (In, Ef, 4.2) e reconhece que ele
solenes têm associação íntima com o culto da
está habitando neles (In, Ef, 15.3) como mem
sinagoga e com as graças proferidas à mesa na
bros do Filho de Deus (In, Ef, 4.2). A descrição
I 50 I
ad o r a ç ã o / culto iii :
anterior (In, Ef, 4) oferece o belo quadro de uma
A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
planetárias também se uniriam em coro (In, Ef,
assembleia cristã em que, “por vossa concórdia e
19.2), desde que vinculemos o texto com a Carta
harmonioso amor, Jesus Cristo é cantado”, com
aos romanos (de Inácio), 2.2: “Vocês formam um
a sua sugestão de que Cristo não é somente o
coro de amor ao cantar ao Pai em Cristo Jesus”.
mediador, mas também o objeto do louvor hínico (assim em K r o l l , p. 19;
Um tributo a Cristo semelhante a esse, com
1924, p. 204). Con
contornos confessionais, é oferecido como parte
siderando que Inácio está mencionando aspectos
da polêmica antidocetista de Inácio (e.g., em In,
Bauer,
da liturgia — sobretudo o uníssono, a harmonia,
Tr, 9.1,2; cf. In, Es, 1.1— 3.3), que também pode
o tom correto na música [eine Tonart, segundo
ser formulada em forma de versos (por
N
orden,
p. 127) — para ressahar a necessidade
p. 266). Esse texto cristológico repassa os prin
de unanimidade na igreja e da união de todos
cipais acontecimentos da vida de Cristo: nasci
na retaguarda em apoio e submissão aos líderes
mento, carreira terrena, condenação “ sob Pôncio
D
õ lg er,
eclesiásticos (In, Ef, 5.3), ainda assim fornece al
Pilatos” (alusão ao Credo apostólico), morte na
guma confirmação da centralidade de Cristo nos
cruz (atestada por todas as potestades, celestiais
quadros de adoração que apresenta.
e demoníacas, Fp 2.10 em Paulo, exatamente com
Os exemplares da hinódia inaciana são vistos em Efésios 7.2
as mesmas palavras) e ressurreição. Todos esses
p. 20, destaca os matizes
acontecimentos são hgados pelo advérbio “ver
semíticos, o estilo grandiloqüente, as frases an-
dadeiramente” e, por conseguinte, assentam o
titéticas e suas inter-relações para propor frag
alicerce para a vida “verdadeira” na ressurreição
mentos de material hínico-credal; cf.
da igreja.
(K
r o ll,
N
orden,
p. 256-7). Assim lemos;
O apelo de Inácio às formas credais e hínicas obviamente revela uma tônica polemística. Ain
[Há] Um médico,
da assim, esse apelo ilumina o modo em que ele
que é tanto carne quanto espírito,
concebia a adoração congregacional nos centros
nascido, mas não nascido.
aos quais escreveu. Seu grande temor era que as
Deus em homem, vida verdadeira na morte,
igrejas se tornassem fragmentadas e se dissipas
tanto de Maria quanto de Deus,
sem por cismas. Por isso, seu chamado é para que
primeiro, sujeito ao sofrimento,
se agrupem em volta do bispo e de seus oficiais
depois, impassível,
(In, Fp, 3.1-3), o que o leva a promover o papel
Jesus Cristo, nosso Senhor (In, Ef, 7.2.)
crucial da eucaristia a foco central da igreja, sen
Esse padrão antitético ocorre também na ho
Es, 8.1,2; In, Po, 6.1,2). Além do mais, a euca
do o episkopos o ministrante indispensável (In, milia de Melito e é ampliado na Carta aos efé
ristia para Inácio agora assume uma importância
sios, de Inácio, no capítulo
que expõe sobre
praticamente mágica, o que se vê com mais clare
(na mesma carta), em que
za em sua Carta aos efésios, 20.3, que a denomi
o “ silêncio” de
15.2
19,
três mistérios foram realizados: a virgindade de
na “o remédio que leva à imortalidade, o antídoto
Maria, o fato de ela ter dado à luz e a morte do
para que não venhamos a morrer, mas possamos
Senhor. Ele foi revelado às “eras”
(B u ltm a n n , v . 1,
viver para sempre em Jesus Cristo”. Além disso, é
e, na aparição de sua estrela natahna, que
possível que as limitações dos falsos ensinamen
iluminou os céus com brilho indescritível e atraiu
tos, que por sua vez conduziram à rebelião contra
p.
177)
a veneração das constelações, dentre as quais o
“o bispo e o presbitério” , tenham levado Inácio a
Sol e a Lua, nasceu a nova era. “Quando Deus
esse ensino sobre a eucaristia, redigido de modo
apareceu em forma humana para trazer a novida
tão intenso, uma vez que a frase é introduzida
de da vida eterna” , todo o cosmo foi afetado: os
com um novo chamado à unidade com base no
antigos poderes astrais (demoníacos) foram der
“partir um pão” (cf. ICo 10.17, em Paulo).
rotados e a própria morte foi vencida.
Quando Inácio escreve sobre práticas de ado
Essa celebração da vitória e do remado de
ração, principalmente batismo, confissão, fórmu
Cristo evidentemente tinha por objetivo ser en
las credais e eucaristia, é difícil saber se ele está
toada como veneração, quando as potências
se referindo a tradições comuns em Antioquia,
I 51
A U U K A íj A U / C U L íU H l. r t l U i ,
R t B K t U i , U A K I A S O t K A I S , M P U L A L Ih ^ Sb
onde era bispo, ou nos vários centros pelos quais
3)
0 cenário de Atos 20 sugere uma programa
passou ou aos quais enviou delegações. Podemos
ção em duas partes: discurso público (por Pau
supor algumas práticas cultuais comuns, uma
lo) e refeição (At 20.11), com mais discurso na
vez que essas alusões são para ele a base de seu
sequência. Essa inter-relação entre sermão e sa
apelo, tudo inserido numa estrutura trinitária (In,
cramento serviu de base para o desenvolvimento
Mg, 13.1), tipificando o ministério clerical tríplice
posterior da hturgia da Palavra seguida da htur
(bispo, presbítero, diácono).
gia do Cenáculo [a “grande sala mobiliada”, a 2 i ] , Uma das ilustrações mais claras desse ritmo em
5. O eixo Roma-Ásia Menor
dois tempos é, por sinal, fornecida em Justino,
É interessante que os parâmetros desta seção
que assim nos informa: “ São lidas as memórias
sejam definidos por duas cenas que oferecem,
dos apóstolos ou os escritos dos profetas. [...]
primeiro, uma representação da adoração primi
Quando o leitor termina a leitura, aquele que pre
tiva na Ásia Menor (At 20.7-12) e, quase um
side o discurso insta [conosco] e [nos] convida
século mais tarde, uma descrição mais detalhada
a imitar essas coisas nobres. [...] E, como disse
de como a adoração era entendida em Roma por
mos antes
volta de 150 d.C.
Ap I, 167). Embora es
do pão e de um cáhce de água e vinho, a respeito
ses dois relatos estejam separados pelo tempo e
dos quais oferecem-se orações de agradecimento,
(J u s t i n o ,
[J u s t i n o ,
Ap I,
65,
refere-se
à
entrega
por antecedentes distintos, são significativos os
sendo tido por consagrados e depois comparti
elementos que partilham.
lhados e distribuídos aos ausentes], quando fi
1) 0 tempo é o “primeiro dia da semana” ,
nalizamos a oração, o pão é trazido, com vinho
mais tarde vindo a ser conhecido como “o dia
e água”, seguido de orações e da oferta. Justino
chamado domingo”
(J u s t i n o ,
Dl Tr, 41.4; 138.1).
Bamabé (15.3-9) apresenta o raciocínio teológico
resume: “Todos realizamos essa reunião santa no domingo”.
por trás dessa mudança do sábado para o dia se
A absoluta simphcidade desses detalhes cap
guinte, “o oitavo dia”, quando Jesus ressuscitou
ta algo dos ingredientes básicos da adoração no
e se manifestou, ascendendo aos céus, assim rei
período por volta de 50-150 d.C., com as devidas
vindicando para si o dia da celebração (Ap 1.10;
variações que são características de cada parte do
Di, 14.1; Ev Pe, 12.50) como o Senhor ressurreto
eixo Roma-Ásia Menor.
que saudou seu povo numa refeição eucarísti
Para o que se desenvolveu na Ásia, precisa
ca dominical, de acordo com as evidências dos
mos nos voltar para os escritos joaninos. Mas
Evangelhos (Jo 20.19; Lc 24.30,41-43; cf. At 1.3,4;
0 testemunho presente nas cartas cognatas de
R
ord o rf,
1992;
M
Colossenses-Efésios, no corpus paulino, deve
cK ay) .
2) A natureza da comunidade reunida é en
constar de qualquer estudo sobre a adoração e
tendida como uma “reunião” {synêgmenõn em
como era praticada nas igrejas fundadas por Pau
Atos 20.7, forma verbal [“reunimo-nos”] da qual
lo. Colossenses 3.16,17 (par. Ef S.19,20) fornece
se origina o termo “sinagoga”; cf. Tg 2.2; Hb 10.25
evidência de assembleias congregacionais que se
quanto a esse verbo/substantívo), quando pes
reuniam para se admoestar mutuamente com ins
soas se encontram, com ênfase mais no ato de se
trução (“em toda a sabedoria”; cf. ICo 12.8 quan
associarem que num edifício ou espaço consagra
to a “palavra de sabedoria” como um carisma
do. Nessa época, os cristãos se encontravam em
espiritual), com hinos entoados (evidentemente
congregações reunidas em casas. As estruturas es
composições cristológicas), com salmos (talvez
peciais devem ser datadas no século iii ou iv, sendo
extraídos do Saltério hebreu ou dos cânticos ju-
o exemplo mais antigo e mais bem documentado
daico-cristãos) e com “cânticos espirituais” (cf.
0 de Dura-Europos, na Síria, por volta de 256 d.C.
Od Sa, 14.7). Todos esses tributos tinham por ob
. Mas o formato e a natureza da adoração
jetivo manifestar gratidão a Deus, e assim faziam
(H
o p k in s )
na sinagoga (v.
com uma abordagem mais
parte do gênero hodayah/eucharistia, que, assim
foram transportados para a
sustenta Bradshaw (1982, p. 30-7; 1992, p. 44)
sinaxe (termo técnico para tal reunião, como a pa
com certa plausibilidade, eram mais característi
lavra dava a entender) cristã.
cos do cristianismo primitivo que o tipo berakah/
cautelosa em
M
M
o r r is ,
cK ay)
I 52
ADORAÇÃO/CULÍO lii: A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
eulogia. Manifestações de louvor ocorrem em Co
credais (e.g., Ef 4.4-6) e amostras de discursos
lossenses 1.3,12-14, com uma versão mais longa,
em forma de oração, constituem sinais de que
mais refinada e mais bem elaborada em Efésios
essas cartas estavam imersas numa atmosfera li
1.3-14, texto que apresenta o plano fundamental
túrgica. Tinham por objetivo ser hdas em voz alta
da história da salvação segundo uma estrutura
na assembleia reunida (Cl 4.16) e transmitidas a
trinitária
1992, p. 13-5). Na reahdade,
igrejas vizinhas, evidentemente em reuniões de
tem se acreditado que os primeiros três capítu
adoração, quando seu apelo pastoral e didático
los de Efésios se basearam numa transcrição de
teria maior eficácia para gerar uma atmosfera de
louvor conhecida nas congregações da Ásia e
louvor e de exultação (esp. Efésios, como em ge
celebravam os temas característicos do êxito do
ral nas bênçãos de abertura de Paulo; v.
evangelho paulino em rechaçar os desafios que
e para incentivar os ouvintes a que participassem
o afrontaram (cf. ITm 1.15), celebrando também
das reivindicações de verdade que faziam e, as
0 papel crucial do apóstolo como seu principal
sim, as aceitassem.
(M
a r t in ,
propagador.
O ’ B r ie n )
Inácio, também refletindo o cenário da vida
Os exemplares hínicos são identificados sem
nas igrejas da Ásia, seguiu essa tradição de es
nenhuma dificuldade nessas cartas. Colossenses
crever cartas. Como observamos, muitas de suas
1.15-20 evidentemente passou por uma revisão
alusões ã música, ao credo e à adesão aos ensinos
autoral, e é bem possível (se não provável) que
são citadas para repelir o que ele considerava erro
incorpore uma versão pré-cristã em louvor à re
e pareciam ter em mente o quadro de igrejas em
denção gnóstica
adoração. Na reahdade, como entende H. Schlier
(K
asem ann,
1964: v. a crítica nos
comentários). Na forma em que a passagem se
(p. 48-9), a Carta aos efésios 4, de Inácio, mostra
encontra, ela proclama a reconciliação universal
que ele estava familiarizado com a representação
que se fundamenta na obra redentora de Cristo
que Paulo faz da igreja reunida para adoração no
(Cl 1.20) e inclui sua autoridade como cabeça
texto canônico de Efésios 5.15-21.
do corpo eclesiástico (Cl 1.18). Esses dois temas
Não é demais pensar que o regimento da
são importantes no uso polêmico que se faz de
vida eclesiástica nas Cartas Pastorais, igualmen
les, como se vê em Efésios 2.11-22 (incorporan
te de procedência asiástica, pode ter conduzido
do, possivelmente, uma versão pré-paulina) e
à opinião defendida por Inácio de um governo
no ensino sobre o verdadeiro cabeça, quando se
estritamente hierárquico de bispos, presbíteros e
destrincha o papel de Cristo como noivo celes
diáconos (v. ITm 3.1-3; Tt 1.7-9), apresentados
tial (Ef 5.32). Além do mais, Efésios 5.14 contém
como fiéis na manutenção da disciphna e no im
uma das evidências mais claras da hinódia batis
pedimento de qualquer desvio das normas apos-
mal nas igrejas da Ásia, com seu ritmo vivo e tro
tólico-pauhnas, para isso inculcando um ensino
caico e com seus temas de parênese (exortação)
sadio e promovendo a adoração de maneira ade
e aplicação ecoados no toque de despertar para
quada (ITm 4.11-16). As falsas crenças devem ser
que se prossiga na luz de Cristo, a qual primeira
desmascaradas e denunciadas, devendo Timóteo
mente brilhou sobre o candidato ao batismo, que
recorrer às confissões de fé e às fórmulas credais da igreja (ITm 3.16, cuja frase introdutória é
é purificado nas águas (Ef 5.26). gêmeas,
um sinal do tributo cristológico que se segue,
temos contato com a vida vibrante de adoração
de características hínico-poéticas e composto de
que pulsava em todas aquelas comunidades ao
seis versos; 2Tm 2.11-13). A adoração funciona
Claramente,
nessas
duas
cartas
mesmo tempo que o(s) autor (es) enfrentava (m)
nas
ameaças ao apostolado de Paulo e ã autorida
m^arca estabilizante, delimitadora de fronteiras
de na Ásia. 0 uso de expressões idiomáticas de
(v.
M
congregações acD o nald
),
dos
pastores
como
uma
cujo efeito é cerrar fileiras numa
cunho litúrgico (como “para o louvor da glória da
comunidade introspectiva. Esse corpo de htera
sua graça”, Ef 1.6,12,14), recordações batismais
tura dá expressão a uma característica da igreja,
(em Cl 1.12-14; 2.11-14; Ef 5.26) e linguagem eu
compartilhada por Inácio e por Efésios (a carta
carística [eucharisteõ, “agradecer” , é um conceito
canônica): a de assumir um papel na história da
frequente em Efésios), associadas a expressões
salvação centrado nela mesma como um artigo de
I 53 I
ad o r a ç ã o / culto iii :
A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
sua fé (Ef 4.4, e muitas outras vezes em Inácio;
a favor da qual ela é mediada, renovadamente se
cf. ITm 4.15). Estamos aqui no limiar da histó
apropria dela. Hebreus 13.17 menciona os líderes
ria eclesiástica, onde a própria igreja faz parte do
que servem a comunidade; 1Clemente 41—44 re
plano salvífico de Deus (Ef 3.10) e não enxerga
flete um debate em torno das autoridades legíti
nenhuma incongruência — aliás, se regozija —
mas na igreja (em Roma?), que deveriam suceder
no fato de que professa crer em si mesma. “ Creio
aos apóstolos na apresentação dos “sacrifícios e
[...] na igreja una, santa, catóhca e apostóhca” é
serviços” da igreja [ICl, 40.2), a saber, um debate
uma frase pronta para ser inserida no credo.
em torno da credibihdade de outras pessoas apro
Se quisermos entender como os atos litúrgicos da igreja foram sendo integrados no entendimen
vadas, que na condição de supervisores “ ofere ciam os sacrifícios” (ICÍ, 44.4).
to que ela possuía da sua mensagem e missão, a tônica transmitida na Carta aos
H
ebreus
é um
0 público-alvo de Hebreus precisa ter essa concepção de si mesmo como povo escatológi-
bom estímulo. Seguindo o consenso, esse docu
co, compartilhando do triunfo do anfitrião celes
mento formulado com características de sermão
tial (Hb 12.22-24; a escatologia reahzada desses
(Hb 13.22) reflete o cristianismo romano das dé
versículos põe essa parte de Hebreus em contato
cadas pós-70 d.C. do primeiro século cristão. O
com a ênfase do “já consumado” de Efésios), um
propósito do autor é declarado sem deixar mar
povo que deve igualmente enfrentar as severas
gem para dúvidas: mostrar o caráter definitivo e
realidades da sua vida na terra como peregrinos
superior da nova economia instaurada por Cristo,
e estrangeiros (Hb 11.13-16; v.
que é ministrante (Hb 2.10-13; 8.2) e sacrifício
m ann
(Hb 9— 10) no novo santuário. Repetidamente,
e para os leitores, é permanecer comprometido
,
Jo h n s s o n
e
K ãse-
1984). A maneira de vencer, para esse autor
seus argumentos e apelos são pontuados com ex
com os votos batismais primitivos (e.g., Hb 4.14;
pressões idiomáticas de cunho litúrgico, muitas
V. B o r n k a m m ,
vezes extraídas dos protótipos levíticos, mas sem
intactas (Hb 10.19-25) as linhas de comunicação
pre cobertas com matizes cristãos e por estes cor
com Deus, estabelecidas na adoração coletiva.
rigidas (e.g., Hb 13.10-16). A linguagem da oferta
A tentação de se afastar das reuniões públicas é
e do sacrifício é trabalhada para destacar a gran
evidentemente grande em tempos de provação
1963) e manter abertas (Hb 4.16) e
diosidade imensurável da nova aliança, baseada
(Hb 10.32-39), de modo que o autor faz da fi-
no sacrifício melhor de Jesus (já que foi reahzado
dehdade nas reuniões da assembleia um foco de
de uma vez por todas) e na melhor eficácia (as
resistência e de renovação, conferindo assim à
segurando um perdão pleno e definitivo). Mas o
adoração seu valor pragmático e sua dimensão
ministério sacerdotal de Jesus continua num san
socializante.
tuário celeste (e.g., Hb 7.25; 9.24; 13.10, às vezes interpretado em sentido eucarístico, v.
Em outro documento também associado a
u n n il l ,
Roma, evidencia-se uma maneira paralela de
p. 240-2), e se faz o chamado subentendido
perceber a adoração como algo capaz de forne
para que a igreja compartilhe dessa adoração a
cer marcadores de identidade para o novo Israel,
D
Deus por meio daquele que é o adorador perfeito
como também capaz de gerar confiança. Em 1Pe
(Hb 2.11,12; 13.12-16).
dro (v.
Temos aqui um aspecto da adoração rece bendo um destaque singular no
P
edro,
P r im e ir a C a r t a
de) ,
os
destinatários
estão perdendo a fé, mas por motivos diferen
mas com re
tes. Em Hebreus, em que a esperança desempe
percussões que seriam ampliadas e sentidas nas
nha um papel fundamental (Hb 6.9-20; 11.1), os
décadas (e.g., ICl, 36.1; 40.1-5) e séculos pos
conflitos eram domésticos, internos, e havia um
teriores. A adoração é tanto “por intermédio de
questionamento teológico sobre a parusia imi
Cristo” (Hb 13.15) quanto “em Cristo” , tornando
nente (Hb 10.37-39). O chamado à esperança em
nt
,
a igreja uma com o autossacrifício dele (Hb 7.25).
IPedro (IPe 1.3,13,21; 3.5) é formulado sobre um
Assim, os sacrifícios de louvor da igreja se unem
cenário diferente. Aqui, a hostilidade provém de
à única oferta que é não apenas completa (de
fora (IPe 2.12; 4.1-6) e é dirigida contra as igre
uma vez por todas, eph’ hapax], mas sempre re
jas do Ponto e da Bitínia (IPe 1.1); não parece
novada, uma vez que a comunidade de crentes,
haver nenhum questionamento sobre a salvação
I 54 I
a d o r a ç ã o / culto hi:
A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
definitiva deles no momento da aguardada apa
p. 95, 110-7). Para nossos propósitos, basta inda
rição do Senhor (IPe 1.5,13; 4.7). 0 problema
gar como os versos citados poderiam funcionar
fiindamental enfrentado em IPedro é a perda da
como um hino. A solução desse problema seria
identidade social e a sensação de estarem desar
possivelmente observar que a seção inclui uma
raigados, sensação comum a pessoas que abando
dramatização da odisseia de Cristo, marcada es
naram seu ambiente pagão e se uniram
truturalmente por duas ocorrências do verbo “ir”
à
igreja,
aceitando seus costumes e sua forma de vida. Os
(representadas acima em itálico). Ele foi visitar o
sofrimentos físicos deles estão causando proble
reino demoníaco; ele foi após seu triunfo tomar
mas do campo da teodiceia, enquanto buscam en
seu lugar no trono do Universo, estando todos os
tender as contrariedades e incertezas da vida no
poderes cósmicos sujeitos a ele. O tema da ida
momento em que sua fé recém-descoberta é posta
[foi e tendo entrado] é a chave que desvenda o
à prova (IPe 1.6; 2.19; 4.12).
problema principal, que é saber em que grau essa
A resposta do autor nesse documento exorta
peça de supra-história eclesiástica influiria na
tório (IPe 5.12) é transmitir uma identidade social
vida dos leitores de Pedro, que também são lem
aos leitores, a de “povo de Deus”, estendendo-se
brados de seu batismo (por sua vez tipificado na
até Abraão e Sara no passado (IPe 3.5,6), e avan
arca pela qual a famíha de Noé foi salva do meio
çando ao ideal de “família da fé” , que logo há de
de uma geração que os pensadores judeus con
ser cumprido (IPe 2.4-10; 4.17-19). O autor garan
sideravam a pior imaginável e causa da influên
te que os planos de Deus não fracassam quando as
cia demoníaca no mundo). No batismo cristão
igrejas passam a perceber como a vitória de Cristo
— pensamento possivelmente inserido por Pedro
sobre todos os inimigos é algo a ser compartilha
no credo-hino pré-formulado — , existe uma apro
do por seus seguidores, que seguem seus passos
priação da identificação de Cristo com os poderes
(IPe 2.21; 3.18-22; v.
das trevas e sua posterior vitória sobre eles.
M a r tin
&
C h e s te r,
p. 100,
n. 26). As ênfases litúrgicas desempenham seu
Aqui o batismo recebe um tratamento que sem
papel ao fazer valer exatamente esses pontos,
dúvida o vincula a Paulo (em Rm 6; cf. Cl 2.12;
sobretudo na passagem de estrutura poética
3.1), acrescentando-lhe, todavia, uma dimensão
(IPe 2.1-10; v. comentários, esp.
que ce
de efeitos consideravelmente pictóricos, até mes
lebra a igreja como o novo Israel de Deus, em que
mo mitológicos. Proclama que os crentes compar
pessoas antes estranhas e separadas encontram
tilham das realizações de Cristo em seu horror
seu novo lar como adoradores e como família, e
e em sua glória. Ele se fez um com o homem
S e lw y n )
no hino cristológico de IPedro 3.18-22, cuja forma
na escravização humana ao mal e depois em
original pode ter sido algo mais ou menos assim:
seu triunfo sobre ele (v.
M a r tin ,
1994, p. 114-7,
em referência a Ap 1.18). Assim, Pedro associa Que sofreu uma única vez pelos pecados,
sua teologia cinético-dramática com outros hinos,
para levar-nos a Deus;
principalmente Filipenses 2.6-11, bem como com
morto na carne,
o cenário em Evangelho de Pedro 10.41,42 e Atos
mas vivificado no espírito,
de Pilatos 5.1—8.2, na seção “A descida de Cris
no qual ele foi e pregou aos espíritos era prisão,
to ao inferno”, e naturalmente com a declaração
[mas] tendo entrado no céu, sentou-se à di
do Credo apostólico (em Roma, c. ISO d.C., como
reita de Deus,
credo batismal;
anjos, e autoridades, e poderes sob seu controle.
sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia res
K e lly ):
"... crucificado, morto e
surgiu dos mortos; que subiu ao céu...” O tema São muitas as complexidades do debate em
do Christus Victor (Cristo vencedor) alcança seu
torno dessa passagem obscura (v. comentários
ápice no reconhecimento e na proclamação de
de
no que diz respei
que no batismo estão derrotados todos os agen
to aos tratamentos mais fundamentais — todos
tes demoníacos que oprimiriam a igreja e fariam
reagindo
de 1947;
dela sua presa, pois Cristo conhecia o poder que
quanto a pesquisas e referências bibliográficas,
eles tinham para ferir e sabia que esse poder seria
V.
R e ic k e ,
M
a r t in
à
,
D
alton,
B o is m a r d
obra seminal de 1978, p. 335-44;
Bultm ann,
M
a r t in
&
C hester,
neutralizado. 0 resultado lógico e litúrgico desse 55 I
ado ra çâ o / culto
lii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
teologúmeno será o uso das fórmulas de exorcis
1) A adoração é “ pelo Espírito” (IJo 3.24),
mo e de renúncia usadas como prelúdio do ba
como em realidade, e em grande medida inde
tismo em si. Essas fórmulas são encontradas na
pende de formas, situações e cerimoniais exter
Tradição apostólica de Hipólito
(J a s p e r & C u m i n g ) .
nos (Jo 4.20-24). A água dos ritos de purificação judaica é maravilhosamente transformada no vi
6. Padrões joaninos e sua influência
nho da nova era, onde a glória de Jesus brilha
Se é correto aceitar como hipótese a presença
como o logos universal (Jo 2.1-11).
no eixo Roma-Ásia de estilos de adoração que se
2) 0 amor por Deus e pelos membros de sua
voltavam para os depositórios de ensino de Paulo
famíha é a prova real da espiritualidade autêntica
e de Pedro como base para sua formação, com as
(IJo 3.1-18; 4.7-21) em oposição a uma rigidez
práticas universalmente aceitas do batismo como
credal e a uma confiança cega nos sacramen
rito iniciatório e da ceia do Senhor como celebração
tos. O alegado antissacramentalismo do quarto
da vitória da ressurreição de Cristo, inseridas numa
Evangelho
estrutura que tendia a respeitar a autoridade dos
tuno, mesmo que superenfatizado, contra a vi
líderes, então nos escritos joaninos a ênfase recai
são oposta de O. Cullmann, que vê o batismo,
em outros elementos (v.
a unção e a eucaristia em toda parte, em quase
Jo ã o ,
c a rtas de) .
(B
u ltm ann,
1971) é um protesto opor
As fortes influências encontradas nas Pas
cada página. Não há uma instituição explícita da
torais, na Didaquê, em Inácio e em 1Clemente,
ceia do Senhor em João 13, passagem que, no
ocupadas com orações fixas (a permissão de Di,
entanto, contém uma refeição no Cenáculo. Mas
10.7, “permite que os profetas deem graças como
0 EvangeUsta incorpora um discurso ocorrido na
desejarem” , precisa ser lida à luz de Di, 15.1,2,
sinagoga de Cafarnaum (Jo 5) como que para re
em que os profetas itinerantes estão de saída e de
alçar que a eucaristia tem um significado interior,
vem ser sucedidos por “bispos e diáconos” , como
individuaUzado, que não é nada menos que um
em In, Es, 8; ICl, 44), com ministérios regulares,
alimentar-se de Cristo, o pão da vida, assim como
com uma adoração ordeira (JC/, 20) e um sistema
um capítulo anterior de João (Jo 4) retrata Jesus
sacramental incipiente (In, Ef, 20), não parecem
como 0 doador da água viva a uma mulher de
enfrentar desafio algum. Mas existe outra corrente
Samaria. A mesma nota se faz ecoar em Apoca-
que espelha uma reação nas igrejas asiáticas nas
Upse 3.20: “Se alguém ouvir a minha voz e abrir
quais a influência joanina é forte. Esse corpo de
a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele...”
escritos (Evangelho de João, cartas joaninas e até
3) Não pode ser fortuito que esse corpo de
certo ponto o Apocalipse) dirige-se a uma situa
literatura simplesmente não use o termo “igreja”
ção em que as ênfases, em parte cristológicas, em
(ekklêsia). (Apocalipse é a exceção, e é notável
parte eclesiológicas, competem entre si na “comu
por sua inclusão de tributos litúrgico-hínicos que
nidade do discípulo amado”
ligam a velha adoração judaica [Ap 4.8,11; 7.12;
(B
rown).
Podemos
até mesmo pressupor uma ameaça à adoração,
15.3,4] à nova era da redenção [Ap 5.9-14] e da vi
como temiam os discípulos de João. Tanto o Evan
tória [Ap 12.10-12] do Messias.) No entanto, para
gelho de João quanto as cartas joaninas levantam
João, os crentes de fato formam uma sociedade
uma advertência contra a tendência à superinsti-
segundo as figuras de um rebanho (Jo 10.1-15;
tucionalização. João percebe o perigo de sufocar
cf. Jo 11.52) e de uma vinha (Jo 15.1-11), mas
o Espírito ao ressaltar em demasia a ortodoxia
inevitavelmente nessas figuras o que importa é
credal, confiando pesadamente em formas estru
o relacionamento pessoal que o crente mantém
turais e limitando a espontaneidade que vimos ser
com 0 Senhor. Assim como a ovelha ouve a voz
evidente nas descrições de Lucas. É discutível se
do pastor quando ele chama cada uma pelo
0 protesto de João pode ser dirigido a uma situa
nome (Jo 10.3-5; cf. Hb 13.20; IPe 5.2-4 refere-
ção exatamente como a contemplada nas Cartas
se ao pastor supremo com muitos subpastores a
Pastorais, IClemente e posteriormente em Inácio.
cuidar do rebanho, e Pedro assumirá esse papel
De todo modo, para João, a forma de avançar
em Jo 21), assim também não há possibilidade de
é realçar a participação individual do crente na
vida se os ramos separados não forem ligados ao
espiritualidade verdadeira, como a chamou.
tronco da videira (Jo 15.4,5). A concepção que
I 56
ADORAÇÃo/cutro iii: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
João tem da igreja rege seu conceito de adoração. A igreja
é
composta de crentes individuais
(M
ou
acabaram por refrear o improviso e a espontanei dade na adoração vistos em Corinto. Paulo emi
1962} unidos um a um ao Senlior pelos laços
tira 0 aviso: “Tudo [na assembleia em adoração]
muito pessoais do batismo e do novo nascimen
deve ser feito com decência e ordem” (ICo 14.40,
le ,
to (Jo 3.1-6}. A adoração que oferecem brota da
frase evidentemente usada por ICl, 40: panta ta
experiência de um individualismo enriquecido:
xei poiein opheilomen]; e a força e a autoridade
"A direta e completa união do crente coni Jesus
crescentes conferidas a líderes devidamente de
Cristo põe seu selo na organização da igreja joa
signados (nas Pastorais e em Ef 4.11-16; v. co
nina”
mentários;
(S cH W E izE R ,
p. 124). Isso vale também para
a sua liturgia, notável pela ausência de formas
M
a r t in ,
1992) tínham a tendência de
direcionar o holofote para os controles hierárqui
fixas e pelo fato de João ignorar muito do que ou
cos necessários ã promoção da unidade (In, Es, 8,
tros cristãos em outras partes podem ter tomado
por exemplo) e ã manutenção do ofício episco
por certo.
pal [ICl, 44). Ao longo do caminho, começando pelo quadro do igualitarismo congregacional até
7. Algumas conclusões
chegar ao reconhecimento de um ministério esta
O levantamento acima de materiais e padrões de
belecido (ponto de transição visto em Di, 9— 15),
adoração, extraídos de escritos de várias épocas e
podemos observar o apelo ao ensino apostólico
de um amplo espectro geográfico e cultural, não
(At 2.42; Jd 17; Di, parte; Hb 13.7; cf. Hb 2.3;
pode aspirar à abrangência completa. As son
cartas joaninas; ICl, 42) para rechaçar ideias sem
dagens que fizemos são típicas, na melhor das
fundamento que começavam a despontar.
hipóteses, assim esperamos, das regiões mencio
7.2
Foco trinitário emergente. A natureza
nadas. Mas 0 quadro ainda está incompleto, e as
esporádica de boa parte da hnguagem litúrgica,
situações propostas ainda são conjecturas. É, por
resuhante das contingências dos problemas e de
tanto, difícil traçar uma trajetória ou apresentar
safios congregacionais, não nos deve cegar para
como hipótese um padrão em desenvolvimento
algumas constantes bem documentadas. Entre
com qualquer grau convincente de coerência.
essas podemos incluir:
Dificilmente convence a tentativa arrojada pro
1) A valorização de Deus como o objeto sa
posta por G. J. Cuming [StudLit, v. 10, p. 88-105
grado da adoração e do louvor cristãos. 0 lega
[1974]}, abrangendo desde saudação (graça e
do das tradições judaico-veterotestamentárias
paz), passando por intercessões e leituras da Es
não é desprezado, mas estendido e enriquecido
critura até chegar a doxologia, ósculo da paz e
pela fé trinitária emergente — por exemplo, o
1992, p. 190, n. 6). Boa par
“ Santo, santo, santo” de Isaías 6.3 é ouvido em
te do material brota das pressões de ordem social
despedida (v.
Apocalipse 4.8, embora a história do Sanctus
sobre os autores e sobre as congregações destina
na liturgia eucarística seja ainda uma questão
M
a r t in
,
tárias. O máximo que podemos esperar é traçar
complexa (cf. ICl, 34.6;
certas interseções pelo caminho. E, à medida que
Todos os documentos de nosso período realçam
S p in k s ,
esp. p. 46-54).
as observamos, podemos propor que certas ten
a transcendência e a dignidade de Deus, sem as
dências ficam evidentes.
quais a adoração (como classicamente entendi
7.1
Sistematização crescente da ordem. Na da) fracassa.
hteratura pauhna/deuteropaulina posterior, há
2) Em contrapartida. Deus é louvado como in
uma tendência crescente ã sistematização, com
timamente próximo em Cristo, seu Filho, cuja ver
base em vários fatores: a supressão do fervor ca
dadeira encarnação, morte em lugar de pecadores
rismático parece ser uma ocorrência concomitan
e ressurreição vitoriosa sobre todas as forças do mal
te inevitável com a ênfase crescente nos papéis
são acontecimentos-chave na história da salvação
da instrução/ensino (eles mesmos em resposta
(cf. as formas hínico-credais de IPe; Hb 1.1-4;
a noções equivocadas que desafiavam o legado
IJo 4.1-6; 5.20; Ap 5.1-14; In, Ef, 19). Esse
da doutrina de Paulo, e.g., nas Pastorais e em
fato prepara o terreno para a doutrina do ofício
Colossenses-Efésios). 0 crescimento das preocu
sacerdotal do Cristo exaltado como intercessor e
pações da igreja com respeito a ordem e fixidez
participante dos ofícios da igreja (Hb 7.25; ICl,
I 57
ADORAÇAo/cuLTO III: A t os , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
40; 59—62.3; ICl, 61.3 é um exemplar interessan
Ep, 10.96.7 para esse texto, c. 112 d . C . ; v.
te dos discursos em forma de oração, com nove
1989, p. 11-8).
dísticos correspondentes [em ICÍ, 59.3], consis
Ver também
tindo em predicações divinas e frases hínicas [J.
dlntd
M . Robinson] o fe r e c id a s p o r m e io d e “ Jesus C ris to ,
0 sum o
:
C a b a n is s ,
b a tis m o ; c e ia d o S e n h o r ; D e u s .
C e n te rs
of
C h r is tia n ity ;
H ym ns,
Songs;
L i t u r g i c a l E le m e n t s ; L o r d ’ s d a y ; P r a y e r ; T e m p le .
s a c e rd o te e g u a r d iã o d e n ossa s a lm as,
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ante luceni]],
[stato die
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gerais, a identidade dos oponentes de 2Corintios foi classificada de três formas.
1962. M
a r t in
1.1
Judaizantes. Essa opinião é classicamen
te representada por F. C. Baur e repetida com A
P aulo
aprimoramentos por Barrett, M. E. Thrall e R. P.
Com muita frequência, pressupõe-se a existência
d v e r s á r io s i :
Martin. Ela defende a ideia de que os recém-
de adversários nas cartas de Paulo, que não são
chegados a Corinto eram judeus palestinos com
tratados teóricos, mas réplicas arrazoadas a situa
a tendência de querer amoldar os corintios gen
ções reais nas igrejas. As respostas epistolares de
tílicos à estrutura do judaísmo. Muito pode ser
Paulo muitas vezes refutam uma oposição, seja
afirmado a favor dessa hipótese.
a ele diretamente, seja a seus ensinos. Às vezes,
No entanto, com base em ICoríntios 1.12,
essa oposição é genérica e simplesmente indica
Baur também sustenta que os oponentes eram
uma resistência local às doutrinas de Paulo, casos
emissários de Pedro que haviam chegado a Corin
que consideramos fora do alcance deste verbete.
to alegando serem “de Cristo” (2Co 10.7). Além
Outras vezes, no entanto, Paulo refere-se a adver
do mais, Baur faz distinção entre os falsos após
sários de fora que se infiltraram nas igrejas por
tolos (pseudapostoloi, 2Co 11.13-15) e os supe-
ele estabelecidas com o objetivo de minar suas
rapóstolos (hyperlian apostolai, 2Co 11.5; 12.11),
doutrinas e influência. No material que se segue,
dos quais saíram os falsos apóstolos, a saber, os
limitaremos nosso debate aos de fora, que se in
apóstolos de Jerusalém (v.
troduziram nas assembleias pauUnas.
apó sto lo ).
Contra isso, deve se observar, em primeiro lu
Os estudiosos têm dedicado amplos esforços
gar, que nem Pedro nem Tiago são mencionados
para identificar esses oponentes. Tamanha é a
no contexto de 2Coríntíos, e Paulo não hesita em
importância de se conhecer a identidade dos
referir-se a eles pelo nome em outras ocasiões — às
oponentes em 2Coríntios que C. K. Barrett a
vezes de maneira negativa (Gl 1.18,19; 2.9,11-14;
considera “uma das questões mais decisivas
ICo 1.12; 9.5).
para a compreensão do Novo Testamento e das
Além disso, a diferenciação entre hyperlian
origens do cristianismo” , ideia com a qual estamos
apostolai e pseudapostoloi parece arbitrária. R.
plenamente de acordo.
Bultmann sustenta que a transição de pseuda-
A Segunda Carta aos Corintios, em que a opo
pastalai (2Co 11.1-4) para hyperlian apostolai
sição a Paulo recebe tratamento mais evidencia
(2Co 11.5) é tão brusca que nem chega a fazer
do, foi submetida a uma profunda investigação e
sentido. A distinção talvez seja uma exigência
demonstrou ser o ponto de partida mais adequa
da tese de Baur, que não iria tão longe a ponto
do para nosso estudo.
de sugerir que Paulo chamou Pedro e Tiago de
1. Pesquisa de opinião
“ falsos apóstolos [...] disfarçando-se de após
2. Os adversários de Paulo em Corinto: “ ser
tolos de Cristo. [...] seus [de Satanás] servos”
vos da justiça”
(2Co 11.13,15). Hyperlian apostolai, expressão de
3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém
som menos estranho, é mais uma espécie de tri
4. Os adversários nas igrejas da Galácia
buto aos líderes de Jerusalém.
I 60
A dversários i : Paulo
Além do mais, a única referência explícita a
1.3
Homens divinos. Mais recentemente, D.
pseudapostoloi está intercalada entre as duas
Georgi desenvolveu a hipótese segundo a qual
referências a hyperlian apostolai numa parte da
os oponentes de Paulo alegavam ser — com base
carta (2Co 10— 12} em que Paulo utiliza a ideia
em seus dons e sinais — “homens divinos” , su
de hyper (“superior”) ironicamente. Paulo em
cedendo numa mesma linha a Jesus e a Moisés,
prega palavras antepostas como o prefixo hyper
os quais eram figuras carismáticas e operavam
para atacar os pseudapostoloi por seu imperialis
milagres. Tratava-se então de missionários judeus
mo missionário ( “estendendo os nossos limites”,
helenistas e itinerantes cujos métodos e crenças
hyperektenein, 2Co 10.14} em terras além de sua
brotaram no ambiente helenístico. Suas reivindi
jurisdição [ta hyperekeina, 2Co 10.16}, por se
cações presunçosas e as pesadas exigências que
vangloriarem de uma abundância de revelações
impunham aos corintios faziam parte de sua le
{têhyperbolè íõn apokalyseõn, 2Co 12.7} e pela eu
gitimidade como theoi andres, em que insistiam,
foria delas resultante (hyperairesthai, 2Co 12.7}.
em detrimento das fraquezas evidentes de Paulo.
Para desmascarar a jactância deles, Paulo van
Uma variação dessa teoria pode ser encontra
gloria-se ironicamente de ser “mais [...] muito
da em G. Friedrich, para quem os modelos aos
mais” (hyper) servo de
no que tange aos
quais os recém-chegados se referiam não eram
sofrimentos alistados (2Co 11.23-33). A íntima
extraídos do mundo helenístico, mas do cristia
associação de hyper com os pseudapostoloi torna
nismo primitivo. De acordo com Friedrich, Estê
bastante provável que os hyperlian apostoloi e os
vão e Filipe, os líderes helenísticos operadores de
pseudapostoloi sejam as mesmas pessoas.
milagres de Atos 6, reuniram defensores que ago
1.2
C r is t o
Gnósticos. Oposta à tese de Baur, está a ra vinham até Corinto com poderes semelhantes
opinião de que os antagonistas eram “pneumáticos
para apresentar Jesus como um segundo Moisés
gnósticos”, que subestimavam o Jesus terreno a fa
triunfante, em contraposição à figura sofredora
vor de um
pregada por Paulo.
Senh o r
celestial e forçavam as doutrinas
da graça ensinadas por Paulo a extremos antinomia
Mas a teoria de Georgi é frágil, pois os theioi
nos. Segundo essa teoria, uma vez que os oponen
andres não são o tipo claramente definido que ele
tes pregavam “outro Espírito” (2Co 11.4), deviam ser
pressupõe, e as referências a eles de modo geral
antinomianos, já que a
L ei
e o Espírito (v.
E s p ír t id
surgem de textos posteriores ao
nt
( v . B lac kbu rn) .
S.wro) são mutuamente excludentes. Considera-se
Quando argumenta que eles alegam ser “prepara
2Coríntios 6.14—7.1 a reação de Paulo ao antino-
dos” e “capazes” (hikanos, hikanotês, 2Co 2.16;
mismo deles. Eles desprezam a gnõsis (2Co 11.6) in
cf. 2Co 3.5), isso não exige que se entenda que
ferior de Paulo e a fraqueza que ele mesmo confessa
eles se apresentavam como “homens divinos” :
ter (2Co 10.10). Apresentam-se como detentores de
bastaria interpretar a alegação como mera supe
wna gnõsis apoiada por “sinais” miraculosos e visio
rioridade em relação a Paulo.
nários. Essa hipótese considera a oposição a Paulo
A hipótese de Friedrich, embora útil nas pro
em 2Corintios uma extensão das tendências gnósti
postas que apresenta, não leva em conta os mui
cas evidentes em ICoríntios.
tos pontos em que a teologia de Estêvão pode ter
Um dos primeiros defensores dessa teoria foi W. Lütgert (v.
G
u n th er) ,
que situava as origens
se adiantado às doutrinas de Paulo e na realidade servido de fonte para elas, não sendo aversa a elas.
desses adversários no judaísmo liberal da Diáspo
Embora o conhecimento crescente do mundo
ra. Lütgert, por sua vez, influenciou as exposições
do NT sem dúvida alguma estimule novas teo
mais recentes de Bultmann e de W. Schmithals.
rias acerca da identidade e das intenções desses
Mas essa ideia perde vigor pelo caráter forte
adversários, visto que só encontramos os adver
mente hebraico/israelita dos que se opõem a
sários de Paulo quando ele os refuta incidental-
Paulo (2Co 11.22) e pela mensagem deles, que
mente é improvável que se chegue a um consenso
parece concentrada em Moisés e, portanto, na Lei
acadêmico. A evidência presente nas cartas de
C2Co 3.4-16). Além do mais, estamos longe da cer
Paulo é tão pouco sistematizada e tão polêmica que
teza de que o g n o s t ic is m o estivesse tão definido nos
não nos permitirá chegar a conclusões históricas
tempos de Paulo quanto exige essa hipótese.
plenamente confiáveis, em última análise.
I 61
A dversários í : Paulo
2. Os adversários de Paulo em Corinto:
entendemos que esses homens eram na realida
“servos da justiça”
de judaizantes e que seu conceito de “justiça de
2.1
Evidência a partir de ICoríntios. A cha Deus” por meio da “letra” residia no âmago da
ve da identidade dos oponentes de Paulo em
mensagem que proclamavam, sendo esse o maior
Corinto acha-se nesta sua declaração: “Esses ho
diferencial em relação ao apóstolo aos gentios.
mens são falsos apóstolos, obreiros desonestos,
Infelizmente, podemos apenas especular so
disfarçando-se de apóstolos de Cristo [...]. Por
bre o exato conteúdo de sua mensagem. Mais
tanto, não surpreende que também os seus [de
uma vez, no entanto, a palavra
Satanás] servos se disfarcem de servos da justiça”
em nosso auxiUo. Ela não ocorre nenhuma vez
(2Co 11.13-15).
nas cartas aos tessalonicenses e apenas uma vez
“
j u s t iç a ”
pode vir
Da perspectiva de como se apresentaram,
em ICoríntios. A única ocorrência de “justiça”
os adversários vieram como “apóstolos de Cris
até esse momento, numa carta escrita a uma igre
to” , “ obreiros” e “ servos” , ou seja, exatamente
ja grega, leva a crer que as questões associadas à
como Paulo (2Co 11.12), com um vocabulário de
justiça não haviam sido aventadas na Macedônia
ministério idêntico ao dele. A desonestidade e
nem na Acaia até a composição de 2Coríntios em
os disfarces estavam no fato de arrogarem para
cerca de 56 d.C.
si a condição de “servos da justiça”
[d ia k o n o i
2.2
Evidência a partir de Romanos. Como
geralmente se aceita. Romanos foi escrita em Co
d ik a io s y n ê s ).
Anteriormente, Paulo havia contraposto dois
rinto por volta de 56 ou 57 d.C., não muito de
— o de Moisés e o de Cris
pois da composição de 2Coríntios, que se deu na
to (2Co 3.4-18). Aquele, uma “letra” que “mata” ;
Macedônia. AU a palavra “justiça” aparece 49 ve
este — “uma
zes, com inúmeras ocorrências das palavras afins
ministérios
[d ia k o n ia íj
nova a lia n ç a ” —
, “o Espírito [que] dá
vida” (2Co 3.6). Aquele é um “ministério n ia ]
[d ia k o -
que traz a condenação”; este, “um ministério
(d ik a io õ ]
e “justo”
(d ik a io s ;
v. j u s t i f i c a
Uma vez que a família de palavras ligadas a
2Co 3.9).
“justiça” está presente no cerne do argumento de
Como “este ministério” , que Paulo afirma ter
Romanos (v. o texto-chave, Rm 1.17), é possível
[d ia k o n ia ]
que traz a justiça”
“justificar” ç ã o ).
(d ik a io s y n ê s ,
(2Co 4.1), pode mediar “vida” e “justiça”? É pela
que ali Paulo esteja tratando das mesmas ques
morte de Cristo, declara Paulo, que “ Deus fez um
tões e dos mesmos (tipos de) oponentes de 2Co-
sacrifício pelo pecado [...] para que nele fôssemos
ríntios. Embora Paulo não faça nenhuma menção
feitos justiça
ã circuncisão em 2Coríntios, é bem provável que
[d i k a i o s y n ê ]
Esse é “o ministério
de Deus” (2Co 5.21). da reconciliação” ,
a circuncisão fizesse parte do debate em Corinto,
a “mensagem da reconciliação” que Deus confiou
pois é proeminente tanto em Romanos quanto em
a Paulo (2Co 5.18,19; cf. 2Co 6.3).
Gálatas.
[d ia k o n ia ]
Paulo é, portanto, um diakonos na “diakonia
A Carta aos Romanos tem grande probabiUda-
que traz a justiça” por meio da cruz de Cristo,
de de ser a resposta mais bem calculada de Paulo
enquanto os oponentes são diakonoi da diakonia
à questão da justiça, tão dolorosamente aventa
da justiça de Moisés por meio da “letra”, que não
da em Corinto e tratada em 2Coríntios de forma
traz “justiça”, mas “condenação” (2Co 3.9). O
tão apaixonada, mas tão desigual. Sem dúvida,
“engano” dos adversários reside em sua “ men
ecos da polêmica ainda podem ser ouvidos em
sagem” aos corintios de que
imputa justí-
Romanos, relacionados aos mesmos oponentes
ça pela “letra” , não por meio da cruz. Por terem
de 2Coríntios. Há os que caluniam Paulo como
proposto aos corintios uma alternativa à morte
se ele houvesse afirmado: “ Façamos o mal para
de Cristo como meio para “a justiça de Deus”,
que venha o bem” (Rm 3.8; cf. Rm 6.1; Gl 2.17).
Paulo declara esses homens “ servos” de Satanás
Seus comentários defensivos acerca dos judeus
D
eus
(2Co 11.15).
(Rm 3.1,9; 4.1; 9.3-5; 11.1) condizem com acu
A expressão “servos da justiça” , portanto, é
sações que talvez tenham brotado de um apos
fundamental na identificação dos oponentes de
tolado judaizante cuja mensagem se baseava na
Paulo em Corinto. Por exercerem um ministé
justiça por meio da observância das obras da lei
rio “da letra” , ou seja, de “Moisés” (2Co 3.6,7),
(cf. Rm 3.21—4.3,16; 10.3,4). Talvez a frase “os
I 62
A dversários i : Paulo
que causam divisões e colocam obstáculos ao en
propensos a impor “Moisés” (a Lei) aos corintios
sino que aprendestes” (Rm 16.17) represente a
(2Co 11.22; 3.4-16). Corinto era uma metrópo
advertência geral de Paulo aos cristãos romanos
le greco-romana. Como explicar que “hebreus”
sobre a mensagem judaizante resultante dos re
tivessem distinção suficiente para ser aceitos
centes problemas encontrados em Corinto.
diante de tal público, demonstrando ainda pro
2.3
Recém-chegados a Corinto. É inegável, ficiência nas artes retóricas da “vanglória” e da
com base em ICoríntios, que os adversários de
“comparação”? Ao que parece, esses “hebreus”
Paulo em Corinto eram um grupo (“tantos ou
estavam se comportando como gregos.
tros” , 2Co 2.17) de pessoas [hoi kapêleuntes,
As duas principais teorias sobre os oponentes
“caixeiros viajantes” ou “ mascates” , 2Co 2.17)
— as de que devem ter sido judaizantes ou gnós
que haviam chegado à cidade (2Co 11.4,5) vin
ticos — são perfeitamente compreensíveis, dada
dos de fora (as “cartas de recomendação” deles,
a inegável contradição implícita nas evidências a
2Co 3.1), de lugares em que eles e sua mensagem
seu favor presentes em 2Coríntios.
tinham sido recebidos, acolhidos e suportados (2Co 11.4,20).
Novas informações disponíveis, no entanto, refazem todo o nosso conceito da vida como ela
Decorre de 2Coríntios que esses recém-che
era na Judeia do século i. Com base em inscrições
gados legitimavam sua diakonia em Corinto
funerárias, M. Hengel sustenta que pode ter havi
gloriando-se [kauchasthai, 2Co 10— 12, passim)
do até 16 mil judeus de fala grega em Jerusalém,
de suas realizações, “comparando” [synkrinein,
numa população calculada em 100 mil
2Co 10.12) os pontos fortes deles com as fra
10) pessoas. Ele defende que muitos deles devem
quezas de Paulo. Em sua viagem missionária a
ter tido acesso a um nível elevado de instrução
Corinto. eles percorreram uma distância maior, e
clássica. É concebível, portanto, que os “hebreus”
(H
eng el,
p.
Paulo, uma distância bem menor (2Co 10.13,14).
que chegaram a Corinto falassem um bom grego e
Eles trazem “cartas de recomendação” (de Jeru
tivessem habilidades em r e t ó r i c a . Saulo/Paulo não
salém?); Paulo não tem nenhuma (2Co 3.1-3).
era nem um pouco desprovido de habilidades nes
Eles são figuras "preparadas” , triunfantes; Pau
sa área, sem falar em seu colaborador Silas/Silva-
lo é incapaz, uma figura que causa dó enquan
no, o profeta judeu-cristão de Jerusalém, a quem
to manqueja de uma parte a outra em derrota
é atribuída a Primeira Carta de Pedro, escrita em
(2Co 2.14—3.5; 4.1,16). Inferindo de observa
linguagem elegante (At 15.32; 2Co 1.19; IPe 5.12).
ções feitas por Paulo a respeito de si mesmo, al
Que dizer então do êxtase paranormal, das vi
guns estudiosos afirmam que essas experiências
sões, revelações e milagres de que os oponentes
estavam sendo arrogadas por seus adversários.
de Paulo dependiam, ao menos em parte, para
Eram homens dotados de poder divino (sem juí
serem aceitos em Corinto? 0 estudo da história
zo, 2Co 5.13), “arrebatado[s] [...] fora do corpo
da Judeia no período de 44 a 66 d.C. revela um
[...] ao paraíso”, onde receberam “visões” e ou
cenário de desintegração política, ativismo re
viram “revelações” de “palavras inexprimíveis”
volucionário e fervor apocalíptico expressos em
(2Co 12.1-5), ao passo que Paulo era banal, um
inspiração profética e sinais milagrosos (v., e.g.,
ministro sem poder, comum e fraco (2Co 10.3-6;
Jo sefo,
12.1-10; cf. 2Co 5.12,13). Talvez tivessem “as
a Judeia na época representasse o tipo de ambien
características de um apóstolo” (2Co 12.12),
te religioso de onde poderiam ter surgido os pseu-
Guju, 2.13.4, § 258-9).
É
bem possível que
ao passo que Paulo, segundo queriam eles,
dapostoloi. É desnecessário, portanto, exigir uma
não as possuía. Eram poderosos em palavras
procedência gnóstica desses recém-chegados.
(2Co 11.5,6) e em sabedoria, enquanto Paulo era sem “instrução em oratória” e em geral “louco”
3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém
(2Co 11.1— 12.13). Em todas as coisas, ele era
Se os recém-chegados a Corinto, como 2Corín-
“inferior” (cf. 2Co 11.5), porém eles eram supe
tios parece indicar, eram judaizantes, seriam
riores, “muito mais” {hyper, 2Co 11.23).
então emissários dos apóstolos de Jerusalém,
Aqui reside a dificuldade em identificar es ses adversários como
“hebreus” judaizantes
como pretende Baur? 0 relacionamento de Paulo com a igreja de Jerusalém e seus apóstolos é
63 I
A dversários i : Pa ulo
apresentado com clareza em Gálatas, especial
A terceira ocasião, também em Jerusalém,
mente nos capítulos 1 e 2. Ao contrário da tese
ocorreu “depois de catorze anos” (Gl 2.1-10), ou
de Baur, depreende-se desses capítulos que, em
seja, catorze anos após o seu importante “chama
bora houvesse tensões entre Paulo e os apóstolos
do” , um divisor de águas, no caminho de Damas
de Jerusalém, eles constituíam um grupo ainda
co. Preocupado em saber se o evangelho que ele
distinto dos adversários dele de Jerusalém e de
pregava “entre os gentios” seria aceito por Tiago, Cefas e João — um evangelho que não exigia a
Antioquia. Paulo esboça seu relacionamento com os
circuncisão deles — , Paulo trouxe consigo o incir
apóstolos de Jerusalém referindo-se a quatro
cunciso Tito — um caso que poderia obter status
ocasiões críticas do próprio ministério. Escreve
de precedente. Embora a autoridade apostóli
autobiograficamente, mas com o propósito de es
ca de Paulo fosse independente de Jerusalém, era
tabelecer junto aos gálatas a natureza delicada do
importante que seus gentios convertidos e incir
relacionamento com “ os que já eram apóstolos
cuncisos fossem aceitos, com os judeus crentes,
antes” dele em Jerusalém (Gl 1.17).
como herdeiros espirituais de
A
braão .
Em primeiro lugar, ele se refere a seu “cha
Apesar das tentativas de alguns “falsos ir
mado” a caminho de Damasco (Gl 1.15-17; v.
mãos” (gr., pseadadelphoi, Gl 2.4) de fazer com
Foi Deus, não os
que Tito fosse circuncidado, os “apóstolos-colu-
apóstolos de Jerusalém, quem “chamou” Paulo e
nas” — Tiago, Cefas e João — não fizeram esse
“ se agradou em revelar seu Filho” a ele para que
tipo de exigência do companheiro gentio de Paulo
P
a u lo , conversão
e cham ado
de).
ele “o pregasse entre os gentios” (Gl 1.16). Nem
(Gl 2.6). Antes, os três apóstolos de Jerusalém
mesmo depois de seu chamado Paulo “consultou
formalmente reconheceram que a Paulo fora con
[lit., ‘procurou corroboração de’] carne e sangue”
fiado, por Deus, “o evangelho da incircuncisão”,
ou seja, os apóstolos de Jerusalém. Ele par
em relação ao qual eles deram a mão direita a
tiu para a Arábia e depois foi para Damasco. 0
Paulo e a Barnabé numa “comunhão” do evan
conhecimento que Paulo tinha do Cristo ressur
gelho. Assim, Paulo e Barnabé podiam ir “aos
reto foi mediado diretamente a Paulo por Deus.
gentios”, enquanto o triunvirato de Jerusalém se
(ara),
A segunda ocasião foi em Jerusalém (Gl 1.18-
dedicava “à circuncisão” (Gl 2.7-9).
21). Somente “Depois de três anos” de seu “cha
Em outras palavras, os apóstolos de Jerusa
mado” , Paulo subiu a Jerusalém para “conhe
lém reconheciam dois apostolados: um a judeus,
cer Cefas”, com quem permaneceu quinze dias
liderado por Pedro, e outro aos gentios, enca
(Gl 1.18). A palavra “conhecer”
beçado pelos delegados de Antioquia, Paulo e
[a r a :
“avistar-
me com”] (gr., historêsai] usada por Paulo, cujo
Barnabé. Apesar da decisão de aprovar dois apos
significado é muito debatido, pode ser interpre
tolados racialmente distintos, houve um acordo
tada como “encontrar” ou talvez “indagar de”,
amplo quanto aos fundamentos do evangelho,
sugerindo certa dívida para com Cefas quanto
com base na morte e ressurreição de Cristo (v.
a informações a respeito do Cristo histórico em
ICo 15.3-5,11).
oposição ao Cristo celeste (v.
. Paulo
A quarta ocasião foi em Antioquia da Síria,
ressalta sua autonomia apostólica ao comentar de
igreja de constituição mista, formada por judeus
passagem: “Não vi nenhum dos outros apóstolos,
e gentios (Gl 2.11-14). Cefas chegou (de Jerusa
a não ser Tiago, irmão do Senhor” , sugerindo não
lém) a Antioquia, onde compartilhou da comu
mais que uma visita de cortesia. Suas palavras,
nhão à mesa com membros gentios (incluindo a
cuidadosamente escolhidas, são realçadas pela
CEIA DO S e n h o r ? ) ,
garantia solene que faz: “Sobre tudo isso que vos
estava preparado, após a conversão de Cornélio
J esu s
e
P au lo )
para a qual ele presumivelmente
escrevo, declaro diante de Deus que não estou
(Gl 2.14; cf. At 10.28). Embora judeu, Pedro agora
mentindo” (Gl 1.20; mas cf. At 9.26-30). Ainda
vivia “como os gentios” (Gl 2.14), isto é, havia
não sendo “conhecido pessoalmente pelas igre
comido com eles, o que significa comer o que eles
jas de Cristo na Judeia” (ou seja, em Jerusalém e
comiam.
ao redor dela), ele viajou para a Síria e a Cilícia (Gl 1.21,22; cf. At 9.30).
Mas uma divisão séria de contornos raciais e religiosos tomou corpo na igreja de Antioquia
I 64
A dversários i : Paulo
com a chegada dramática de "alguns da parte de
respeito dos “ falsos irmãos que haviam se intro
Tiago” (em Jerusalém, At 15.23,24; cf. At 15.1), a
metido e secretamente vieram espiar a liberdade
quem Paulo chama "os que eram da circuncisão”.
que temos em Cristo Jesus, para nos escravizar”
Cefas “ foi se retirando e se separando deles” (para
(Gl 2.4). Talvez estejam associados ou, mais pro
não comer com os membros gentios da igreja).
vavelmente, identificados com os “alguns da par
O restante dos membros judeus, dentre os quais
te de Tiago” que vieram a Antioquia e exerceram
o próprio Barnabé, agiu com “hipocrisia”. Paulo
tão notável efeito nas práticas alimentares de Ce
enfrentou Cefas “abertamente, pois merecia ser
fas, Barnabé e dos crentes judeus (Gl 2.12,13).
repreendido” (Gl 2.11-13) por se retirar para uma
A mesma distinção acha-se em
A
to s dos
A
pós
mesa de comunhão exclusivamente de judeus.
to lo s.
Era hipócrita da parte de Pedro viver “como os
teros” da igreja de Jerusalém (At 15.2,6,22,23),
gentios” e agora, com essa atitude, obrigar “os
e Pedro (At 15.7) e Tiago (At 15.13) são citados,
gentios a viver como judeus” (Gl 2.14).
De um lado, há os “apóstolos” e “presbí
ao passo que do outro lado estão “alguns do gru
0 que estava em jogo em Antioquia era “a ver
po religioso dos fariseus, que haviam crido” , os
dade do evangelho” (Gl 2.14), em razão da exi
quais disseram que era “necessário circuncidá-los
gência de que os cristãos judeus se separassem
[os gentios] e mandar que obedecessem à lei de
dos crentes gentios para comer, fato que teve o
Moisés” (At 15.5; cf. At 15.1). Quer identifique
efeito de exigir dos gentios a adoção de costumes
mos, quer não a reunião dos representantes de
alimentares judaicos. Paulo usou a forte expres
Antioquia e dos “apóstolos-colunas” (Gl 2) com o
são “a verdade do evangelho” no incidente ante
chamado Concilio de Jerusalém (At 15), é prová
rior, em Jerusalém, quando se opôs à necessidade
vel que os “ falsos irmãos” de Gálatas 2.4 devam
de circuncisão do gentio Tito (Gl 2.5). Ou seja,
ser equiparados aos “do grupo religioso dos fari
“a verdade do evangelho” é preservada quando
seus” de Atos 15.5.
a circuncisão e as leis alimentares judaicas são
Atos 15.5, portanto, contém um indício pre
consideradas alheias ao evangelho e não compul
cioso, não encontrado em nenhum outro lugar,
sórias para os gentios.
que contribui grandemente para resolver o mis
Essa longa passagem autobiográfica (Gl 1.15—
tério da identificação dos adversários de Paulo
2.14), que cobre uma década e meia da vida de
em Jerusalém. Os “falsos irmãos” de Jerusalém,
Paulo, é inestimável para identificar o grau de di
que chegaram “da parte de Tiago [de Jerusalém
ferença entre Paulo e vários membros da igreja
a Antioquia], [...] os que eram da circuncisão”
de Jerusalém. Podemos distinguir entre “os que
(Gl 2.4,12) eram “ do grupo religioso dos fariseus,
já eram apóstolos antes” em Jerusalém — com
que haviam crido”.
os quais certas tensões são perceptiveis — e ou
Qual seria, então, o relacionamento entre os
tros com os quais há oposição total. Assim, Paulo
“apóstolos-colunas” da igreja de Jerusalém —
insiste em que seu “chamado” para ser apóstolo
Tiago, Cefas e João — e esses homens?
aos gentios foi mediado pelo próprio Deus e de pois de alguns anos formalmente reconhecido pe
4. Os adversários nas igrejas da Galácia
los “apóstolos-colunas” de Jerusalém. Ele cedeu
Há divergências entre os estudiosos quanto à data
a Cefas numa situação, mas se opôs ferozmente
da Carta aos Gálatas. Alguns a datam no fim da
em outra. A respeito de Tiago, há certa ambiva
década de 40 do século i, situando a disputa em
lência. Em sua primeira visita a Jerusalém, ele
Antioquia (Gl 2.11-14) às vésperas do Concilio de
apenas “viu” Tiago. Ele reconhece, pela ordem
Jerusalém. Outros acreditam que a carta foi escri
de nomes, a primazia de Tiago na segunda reu
ta na mesma época que 2Coríntios e Romanos, ou
nião em Jerusalém, porém ao mesmo tempo dá
seja, em meados da década de 50. Sem dúvida, o
a entender uma crítica a esse apóstolo, já que o
vocabulário em torno da “justiça” é proeminen
problema em Antioquia foi causado por “alguns
te na carta, sugerindo que estavam em jogo as
da parte de Tiago”.
mesmas questões de 2Coríntios e Romanos. Mas
Não obstante, Cefas e Tiago não são adversá rios. Nenhuma observação qualificativa é feita a
isso não nos obriga a defender a ideia de que Gálatas foi escrita em meados da década de 50. 65 I
Paulo pode ter usado o vocabulário associado ao
e em Gálatas, usadas para refutar a justiça que se
termo “justiça” sempre que veio à tona a questão
origina das obras da Lei judaica, torna mais níti
judaizante.
do o perfil judaizante dos oponentes em Corinto.
Diferentemente do que ocorrera em Antio
Gálatas ajuda-nos a ver que, embora houvesse
quia e em Corinto, não há nenhuma menção
tensões importantes entre Paulo e os apóstolos
a alguém de fora chegando ã igreja da Galácia
de Jerusalém, é importante diferenciar estes das
(2Co 11.4; Gl 2.12). As igrejas estavam sendo in
pessoas que ele denomina “ falsos irmãos [...] os
comodadas por um grupo de judeus liderados por
que eram da circuncisão”, os quais já consegui
um indivíduo não identificado (Gl 5.10,12; 3.1;
mos identificar mais de perto como pertencentes
1.7,9), para quem a circuncisão era um pré-re
ao “ grupo religioso dos fariseus”.
quisito para se tornar membro do
de Deus
Os “ falsos irmãos” , que são também os “fal
(Gl 3.6-14; 6.16). Esses “agitadores” e seu líder
sos apóstolos” , constituem também o grupo dos
estavam pressionando os crentes judeus a obri
“superapóstolos” [hyperkian apostoloi, 2Co 11.5;
Israel
gar os membros gentios à circuncisão (Gl 6.12).
12.11). Depreende-se de 2Coríntios que a alega
Eles alegavam que Paulo devia sua autoridade ao
ção de superioridade deles se baseia, em parte,
apostolado de Jerusalém (Gl 1.15—2.9) e que ele
no fato de se jactarem de terem viajado gran
pregava “a circuncisão” (Gl 5.11).
des distâncias, possivelmente mais que Paulo
Seriam esses agitadores e seu hder naturais
(2Co 10.13-18). Paulo rejeita essa alegação com
da região da Galácia, ou teriam na verdade vindo
base no acordo missionário firmado em Jerusa
de outro lugar? A carta do Concího de Jerusalém
lém no final da década de 40 entre os “apóstolos-
aos “irmãos dentre os gentios em Antioquia, Sí
colunas” e Paulo e Barnabé (Gl 2.7-9). Com sua
ria e Cilícia” reconhece que “alguns [...] vos têm
vinda a Corinto, os “superapóstolos” cruzaram a
perturbado” (At 15.23). Se tais agitadores tives
linha de demarcação e entraram na esfera do la
sem vindo de Jerusalém para a Cilícia, não teria
bor missionário de Paulo estabelecida no acordo:
surpreendido se tivessem seguido viagem para
0 ministério aos gentios. Eles estenderam “os nos
o sul da Galácia. Como o foco de Gálatas recai
sos Umites além do que convém”, gloriando-se
sobre a circuncisão relacionada ã liberdade cris
“além da medida no trabalho dos outros”.
tã (v., e.g., Gl 5.1,2), tema que também recebe
Evidencia-se em 2Corintios um perfil fascinan
destaque na seção autobiográfica, na qual “falsos
te desses homens, de sua missão e do modo de le
irmãos” em Jerusalém espiam “a liberdade [...]
gitimá-la. Movidos, com toda a probabilidade,
para nos escravizar” , exigindo a circuncisão de
por um intenso zelo religioso resultante da rápida
Tito (Gl 2.3-5), é razoável pensar que os recém-
deterioração dos relacionamentos entre romanos
chegados eram na realidade os “falsos irmãos”
e judeus na Judeia sob o famigerado regime de
de Jerusalém, os “do grupo reUgioso dos fariseus,
Félix, os “superapóstolos”, ao que tudo indica,
que haviam crido” (At 15.5).
muniram-se de um arsenal de capacidades paranormais calculadas para impressionar os gentios
5. Os adversários de Paulo: um perfil
de Corinto e assim suplantar Paulo como após
Com base no estudo de 2Coríntios, Romanos e
tolo. A sua resolução de anular Paulo talvez dei
Gálatas, fica manifesto um padrão que nos per
xasse prever também a percepção que tinham do
mite definir com mais acerto os adversários de
êxito dele em estabelecer as assembleias messi
Paulo em Corinto, conforme refletido em 2Co-
ânicas entre os gregos. Mas, no que concernia a
ríntios. A substituição da “letra”, associada a
esses apóstolos, tais assembleias, embora conec
Moisés, por “uma nova aliança” (v.
a l ia n ç a , no va
tadas ao Messias Jesus, eram cismas de Israel,
“uma diakonia da justiça”, somada ao
porque não davam lugar real a Moisés e ã Lei
a l ia n ç a ) ,
fato de Paulo rejeitar os oponentes em Corinto
(At 15.1,5).
como “ servos da justiça”, sugere que os recém-
Em sua contramissão, os adversários de Pau
chegados tinham a missão de submeter os co-
lo demonstraram um zelo comparável ao dele
ríntios gentios ã letra mosaica. A proliferação de
próprio. Opuseram-se a ele em Jerusalém e dah
“justiça” e de palavras relacionadas em Romanos
viajaram para Antioquia, Siria-Cilícia e Galácia,
I 66
A dversários i : Paulo
visitando as igrejas pelo trajeto, e agora cliegaram
Pedro (e João?) e possivelmente pelos outros
à cidade de Corinto, na Acaia. Temos aí um fenô
apóstolos. O último vislumbre da igreja de Jeru
meno histórico notável. Eles afirmavam, diz ele,
salém em Atos, por ocasião da visita final de Pau
ser “servos de Cristo” (2Co 11.23), mas, do ponto
lo, é de um enclave inteiramente judeu.
de vista dele, estavam tão equivocados quanto
Apesar da forma favorável em que Atos des
ao ministério da “justiça” que ele os chama "ser
creve a reunião, é suficientemente claro que os
vos” , mas de Satanás (2Co 11.14). A missão e as
presbíteros de Jerusalém expressaram profundo
atividades deles constituíam uma séria ameaça à
descontentamento com Paulo. Não há menção
sobrevivência das igrejas pauUnas e o levaram a
a nenhum discurso de gratidão pela coleta feita
escrever cartas que estão entre os seus escritos
nas igrejas gentílicas, embora Lucas soubesse da
mais veementes. É justo afirmar que a falta de
existência da coleta (At 24.17). Em vez disso, os
percepção acerca da identidade e do programa
presbíteros dão agudo destaque às dimensões e
zeloso desses homens por parte de leitores atuais
ao caráter judaico da comunidade de Jerusalém,
obstrui significativamente a nossa compreensão
cujas convicções, amplamente defendidas, eram
do argumento de Paulo nessas cartas, que expres
de que Paulo havia traído a causa do judaísmo
sam sua reação às doutrinas deles.
da Diáspora. É entendimento deles que Paulo ensinou os judeus a abandonar Moisés e a não
6. Os judaizantes, Tiago e Paulo
circuncidar os filhos (At 21.21), não exigindo dos
Fica evidente, com base no argumento acima,
gentios a implementação das decisões do Concí-
que não podemos estabelecer uma relação estrei
Uo de Jerusalém sobre as questões rituais e mo
ta demais entre o nome de Pedro e os oponentes
rais (At 21.25).
de Paulo. O incidente de Antioquia (Gl 2.11-14)
Essas acusações são instrutivas, uma vez
mostra que Pedro era suscetível à influência de
que claramente refletem a visão dos presbíteros
les, mas não a fonte dessa influência. Mas que
de Jerusalém. Mas as opiniões estão vinculadas
dizer de Tiago, o irmão do Senhor, um “apósto
e assemelham-se de perto ao comprometimento
lo antes” de Paulo, que no fim da década de 40
com Moisés por parte dos homens da Judeia que
surgiu como coluna da igreja de Jerusalém? Seria
uma década e meia antes haviam saído de Jerusa
Tiago a fonte da oposição que fluiu de Jerusalém
lém para insistir com os gentios de Antioquia em
para as igrejas dos gentios?
que aceitassem a circuncisão como pré-requisito
Tiago foi membro da igreja de Jerusalém desde
para a salvação e que, como já argumentamos,
o começo até morrer, em 62 d.C., um período
pertenciam ao "grupo religioso dos fariseus, que
de aproximadamente trinta anos. No início, o lí
haviam crido” (At 15.1,5).
der era Pedro, apoiado por João Zebedeu. Mas no
Não se sugere que tenham sido necessaria
fim da década de 40 Tiago, não Pedro, era o líder
mente os mesmos homens, mas que havia já na
(Gl 2.9; At 15.13-22). Na época, havia apóstolos
década de 40 uma corrente teológica defendida
e presbíteros em Jerusalém (At 15.2,4,6,22,23).
na comunidade messiânica de Jerusalém que, in
No entanto, quando Paulo visitou Jerusalém pela
fluenciada pelo farisaísmo, promovia uma versão
última vez, por volta de 57 d.C., nenhuma refe
nacionalista e, portanto, mosaica da fé. Por isso,
rência é feita aos “apóstolos” : permaneciam na
eles observavam a missão de Paulo aos gentios
cidade apenas os presbíteros, sendo Tiago o líder
com profundo desconforto. 0 crescente nacio-
inegável.
naUsmo religioso durante a crise na Judeia, nas
Nesse período de trinta anos, a igreja de Jeru
décadas de 40 e 50, somado à influência cada vez
salém tornou-se mais conservadora do judaísmo,
menor de Uderes mais liberais, comO Estêvão,
sem dúvida refletindo o surgimento do naciona-
Filipe, João e Pedro, e ao surgimento de Tiago
ism o religioso judeu em face do agravamento
como líder incontestável — ninguém menos que
das relações entre romanos e judeus na Judeia
0 irmão do Senhor — , criou o ambiente propício
yosEFO, Ga ju, 2.12.1— 13.7, § 223-71, passim).
ao surgimento de uma missão de resistência à
Piimelro emigraram os helenistas, na década de
influência de Paulo na Diáspora. Mas essas pes
30. No fim da década de 40, foram seguidos por
soas nunca são mencionadas por nome, seja por 67
I
Paulo, seja em Atos. Permanecem “alguns” [tines,
Tiago fosse a fonte da oposição que fluiu de Jeru
At 15.1,5; Gl 2.12), que, por causa de seu assalto
salém para as igrejas pauUnas. Na reaUdade, um
às doutrinas de Cristo, Paulo retratará como “fal
dos mofivos de Paulo para a coleta pode ter sido
sos irmãos” , “ falsos apóstolos” e mesmo “seus
manter um companheirismo no evangelho entre
[de Satanás] servos”.
seu apostolado aos gentios e aquele outro apos
Tiago deve ter sido um figura significativa em Jerusalém no fim da década de 50, uma vez que
tolado, dirigido a judeus e sediado em Jerusalém, onde Tiago era o líder inconteste.
ele liderava uma comunidade religiosa tão gran
Uma impressão comparável de Tiago pode
de (At 21.18-20). Em seu relato sobre a morte
ser discernida no relato de Lucas sobre o Concí
de Tiago em 62 d.C., Josefo corrobora essa im
lio de Jerusalém. Tiago não exige a circuncisão
pressão. 0 sumo sacerdote Anano ii aproveitou a
dos gentios e nega que os que foram de Jerusa
oportunidade apresentada pela morte inesperada
lém “ perturbar” os gentios de Antioquia, da Síria
do procurador Festo para mandar apedrejar Tia
e da Cilícia o tenham feito sob sua autoridade
go. Claramente, Tiago devia ser importante para
(At 15.19,23,24). Na visita final e tensa de Pau
representar uma ameaça ao sumo sacerdote. Mas
lo a Jerusalém, as queixas contra o apóstolo aos
sua morte provocou um protesto por aqueles ha
gentios vêm da boca de presbíteros, não de Tiago
bitantes de Jerusalém que eram “considerados os
(At 21.18-25).
de mente menos preconceituosa, sendo rigorosos em sua observância da Lei”
(J o s e f o , A
r
,
20.9.1,
§ 201), 0 que só pode significar cidadãos simpá
7. Oposição em Colossos: o gnosticismo judaico
ticos aos fariseus.
Levando-se em consideração as teorias impor
Assim, Tiago parece ter desfrutado de grande
tantes, segundo as quais os oponentes de Paulo
respeito na comunidade mais ampla de Jerusa
eram ou judaizantes, ou gnósticos, uma boa so
lém. De seu ponto de vista, como líder de uma
lução seria identificar os adversários de Paulo,
comunidade messiânica em Jerusalém, a missão
particularmente os de Corinto, onde tanto se diz a
de Paulo aos gentios na Diáspora deve ter levan
respeito deles, como judeus gnósticos. A existência
tado dificuldades agudas para os relacionamen
de tais pessoas se torna provável pela refutação
tos entre a comunidade messiânica judaica e a
por parte de Paulo do que é geralmente conside
comunidade judaica mais ampla numa época de
rada uma espécie de
nacionalismo religioso que se desenvolvia tão
colossense (v.
rapidamente.
velmente, havia uma corrente do cristianismo em
g n o s t ic is m o
C o lo ssenses, C a r t a
judaico na igreja aos)
. Inquestiona
Da perspectiva de Paulo, pode ter havido cer
Colossos caracterizada por circuncisão, ascetismo,
ta tensão em relação ao irmão do Senhor, uma
observância do calendário judaico, misticismo e
vez que seus oponentes parecem ter vindo da
adoração de anjos (Cl 2.8-23).
comunidade de Tiago. É fato que Paulo se recu
Esses elementos em grande parte estão ausen
sa a permitir que seu apostolado seja vinculado
tes na rejeição de Paulo ao ensino de seus opo
a Tiago (Gl 1.19; cf. Gl 1.17), e até certo pon
nentes em Corinto. A apresentação que Paulo faz
to ele desaprova a autoridade dos apóstolos de
da pessoa e obra de Cristo aos corintios — da
Jerusalém (Gl 2.6-9), além do que, na reaUdade,
perspectiva do cumprimento da promessa divina
exprime uma queixa zangada sobre "alguns da
e da justiça da Lei (2Co 1.19,20; 3.4-9; 5.18-21)
parte de Tiago” que criaram divisão em Antio
— tem uma ênfase muito diferente do Cristo
quia (Gl 2.12). Não obstante, Paulo reconhece o
cósmico da Carta aos Colossenses (Cl 1.15-20;
apostolado de Tiago e na realidade a sua prima
2.9,10,19; 3.1-S).
zia como apóstolo de Jerusalém (Gl 1.19; 2.9).
Não há nenhuma sugestão em Colossenses
Não há nenhum boa razão para acreditar que as
sobre a origem do gnosticismo judaico, se au
"cartas de recomendação” trazidas pelos recém-
tóctone ou importado. Sabe-se, no entanto, que
chegados a Corinto (2Co 2.17—3.1) levassem o
o judaísmo prosperou mesmo nas regiões remo
nome de Tiago. Dificilmente Paulo teria perseve
tas da AnatóUa, como no vale do Lico. A expli
rado com a coleta para a igreja de Jerusalém se
cação mais provável é que uma versão local do
I 68 I
A dversários i : Pa ulo
gnosticismo judaico encontrara espaço na vida da
Não há indício algum de que essas pessoas
igreja de Colossos. Em todo caso, Paulo não ti
tivessem vindo de Jerusalém para Roma a fim
nha visitado a região. Os judaizantes mais típicos
de atormentar Paulo. Talvez o movimento judai
parecem ter sido atraídos a igrejas estabelecidas
zante, assim como a missão de Paulo, tivesse por
pelo apóstolo.
ora desenvolvido força própria, sem nenhuma conexão direta com a cidade-mãe, Jerusalém.
8. Oposição em Filipos: os judaizantes
Isso pode dar sustentação ao argumento de que o
De acordo com muitos estudiosos, Paulo escreveu
programa judaizante não estava diretamente as
sua Carta aos Filipenses em Roma, no começo
sociado a Tiago, que talvez já estivesse morto na
da década de 60. Uma vez mais, fica evidente
época em que Paulo escreveu aos fihpenses.
a oposição a Paulo por parte de crentes judeus. Mas a natureza da oposição a Paulo em Filipos é
9. Oposição nas Cartas Pastorais
discutível (v.
O encarcera
Limitamos nosso debate aos oponentes vindos de
mento de Paulo incentivou os “irmãos” de Roma
fora que se infiltraram nas igrejas estabelecidas
a “falar sem medo a palavra de Deus” (Fp 1.14).
por Paulo. Em nossa opinião, os falsos mestres
F il ip e n s e s , C a r t a
aos) .
Alguns deles, no entanto, o faziam “por inveja
e outros oponentes mencionados nas
e discórdia [...], não com sinceridade, pensando
t o r a is
que assim podem aumentar o sofrimento das mi
E. E. Ellis: “ Diferentemente das cartas anteriores,
nhas prisões” (Fp 1.15,17). Muito provavelmente,
entre os oponentes parece haver um número con
esses são os “da falsa circuncisão” (Fp 3.2), os
siderável de ex-colaboradores, cuja apostasia ti
que se propunham circuncidar os crentes gentios,
nha gerado uma situação especialmente amarga”
cujo “ deus [...] é o estômago” (Fp 3.19), pois ob
(E
servam os regulamentos ahmentares judaicos.
l l is ,
artas
P
as
p. 214).
Ver também
Como ocorre com outras cartas — Gálatas e
C
eram naturais das igrejas. Nisso, seguimos
a p ó s t o l o ; g n o s t ic is m o ;
L
e i.
D P c : ju d a iz a n t e s .
Romanos —, em que a imposição da circuncisão Paul’s theological adver
aos gentios está sendo promovida, notamos o uso
B m u o G R A n A . A g n e w , F. A .
que 0 apóstolo faz de “justiça [...] que procede da
sary in the doctrine of justification by faith: a con
fé em Cristo” (v. Fp 3.6,9).
tribution to Jewish Christian dialogue, ms, v. 25, p.
Desde o tempo da chegada dos crentes à capi
538-54, 1988. •
B a rn e tt,
P. Opposition in Corinth.
v. 22, p. 3-17, 1984. ■
tal mundial, havia problemas na comunidade ju
JSNT,
daica como um todo. Ela foi forçada a se retirar de
opponents in 2 Corinthians,
Roma em 49 d.C. “por causa de Cresto IChrestus]”
1971. •
(S u E T ô N io ,
Cláudio, 25.4; cf. At 18.1), provável gra
B la c k b u r n ,
B a rre tt, nts,
v.
C. K. Paul’s
17, p. 233-54,
B. Miracle working Theioi an
dres in hellenism (and hellenistic Judaism). In: C., orgs. Gospel perspec
fia equivocada de Cristo [Christus]. É possível que
W enham , D . &
a conversão de judeus a Jesus, o Cristo, tivesse
tives 6: the miracles of Jesus. Sheffield:
criado tumulto na comunidade judaica, a ponto
p. 185-218. •
de Cláudio expulsar todos os judeus. A ascensão
tween Paul and Jerusalem according to Galatians
B lo m b e r g ,
Dunn,
J.
D.
js o t ,
1986.
G. The relationship be
de Nero ao trono em 54 d.C. significava que os
1
judeus podiam retornar à cidade, mas sem dúvida
and the Law: studies in Mark and Galatians. Louis
temerosos de que mais perturbações significas
ville: Westminster; John Knox, 1990. p. 108-26]. ■
sem mais represálias por parte das autoridades.
E llis , E . E .
Sendo Paulo conhecido como “agitador” por onde
org. Christianity, Judaism and other Greco-Roman
quer que passasse, é possível que os seus opo
cults. Leiden: E. J. Brill, 1975. p. 264-98. ■ F o r b e s ,
nentes cristãos judeus em Roma tenham mesmo
C. Paul’s opponents in Corinth. Buried History, v.
and 2.
nts,
v.
28, p. 461-78, 1982 [ = Jesus, Paul
Paul and his opponents. In:
N eu sn er,
J.,
se utihzado do expediente de pregar a Cristo —
19, p. 19-23, 1983. ■ G e o r g i , D. The opponents of
na versão deles, naturalmente — para precipitar
Paul in Second Corinthians. Philadelphia: Fortress,
uma inquietação no meio da comunidade judaica
1986. ■ G u n t h e r , J. J. St. Paul’s opponents and their
e assim prejudicar a audiência da defesa de Paulo,
background. Leiden: E. J. Brill, 1973. [NovTSup,
que estava prestes a acontecer.
35.) • 69 I
H e n g e l,
M. The “Hellenization” o f Judaea in
ADVERSARIOS li: LARTAS (aERAIS, LARTAS PASTORAIS, APOCALIPSE
the first century after Christ. Philadelphia: TMnity,
porém, reconhecem a diversidade entre os rejei
1989. • K ee, D. Who were the “super-apostles” of
tados pela ortodoxia que se desenvolveu nesse
2 Corinthians 10— 13?
23, p. 65-76, 1980.
período e assim com menos frequência simples
C. G. The offender and the offense in 2
mente pressupõem um tipo específico de adver
•
K ruse,
rq,
v.
Corinthians 2:5 and 7:12. EvQ, v. 60, p. 129-39,
sário nesses escritos.
1988. ■ ______ . The relationship between the op
1. Definição dos adversários
position to Paul reflected in 2Corinthians 1— 7 and
2. Apocalipse
10— 13. EvQ,
V.
61, p. 195-202, 1989. ■
M
a r t in ,
R. P. The opponents of Paul in 2Corinthians: an old issue revisited. In:
H
aw th o rn e ,
G. F. &
B etz,
O., orgs. Tt-adition and interpretation in the New
3. Cartas joaninas 4. Judas 5. 2Pedro 6. Cartas Pastorais
Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1987. p. 27989. •
M c C le lla n d ,
S. E. “Super-apostles, servants
of Christ, servants of Satan” : a response,
jsn t,
v.
1. Definição dos adversários Os adversários, entendidos como aqueles que
14, p. 82-7, 1982. • M urphy-O’Connor, J. Pneuma-
se identificam como cristãos (o que Paulo dá a
tikoi and judaizers in 2 Cor 2:14—4:6.
34,
entender em seu discurso de despedida em At
p. 42-58, 1986. • Oostendorp, D. W. Another Jesus:
20.29,30), mas são rejeitados e enfrentados por
a b r, v.
a gospel of Jewish Christian superiority in 2 Corin
um autor em particular, não são causa de ne
thians. Kampen: Kok, 1967. • Sanders, E. P. Paul
nhum dos escritos posteriores do
on the Law, his opponents, and the Jewish people
Carta
in Philippians 3 and 2 Corinthians 11. In: Richard
incomodados pela perseguição e se dispõe a
P. & Granskou, D., orgs. Anti-Judaism in early
animá-los e ajudá-los a interpretar e a suportar
son ,
de
n t.
A P rimeira
P edro, por exemplo, dirige-se a cristãos
Christianity 1. Waterloo: Wilfred Laurier Univer
a perseguição, mas não tem em mente nenhum
sity, 1986. p. 75-90. •
J. Identififing Paul’s
adversário cristão. Outros escritos mencionam
SuM NEY,
opponents. Sheffield: jsor, 1990. (jsNTSup, 40.) •
tendências inaceitáveis, embora sem ter como
______ . The role of historical reconstructions of
objetivo primordial derrotar os que defendem es
early Christianity in identifying Paul’s opponents.
sas correntes. Por exemplo, o propósito central da
PRS, V.
16, p. 45-53, 1989. •
T h r a ll, M .
E. Super
apostles, servants of Christ, and servants of Satan. JSNT, V.
6, p. 42-57, 1980.
Carta
de
T iago é transmitir instruções éticas, em
bora faça alusões a algum uso do ensino paulino que a carta rejeita (2.18-26). Essa corrente é refu
P. W.
B arnett
tada apenas de passagem, mas o ataque aos que a defendem não é o propósito central de Tiago.
A
d v e r s á r io s i i :
C artas G
C a r t a s P a s t o r a is , A
e r a is ,
É também
Vários escritos posteriores do
necessário
distinguir entre
a
correção de tendências ou visões perigosas ou
p o c a l ip s e
combatem o
inaceitáveis e o combate de adversários. Nem
que seus autores entendem como convicções e
todos os que defendiam teorias passíveis de
práticas inaceitáveis. Ao fazê-lo, estabeleceram
correção pelos nossos autores eram vistos como
nt
os Umites da diversidade do cristianismo primi
adversários. A
tivo. Os intérpretes normalmente identificavam
atração por práticas cultuais associadas ao tem
os adversários da maioria desses escritos como
plo de Jerusalém ou à sua substituição. Quem
gnósticos de alguma espécie. Essa identificação
tivesse tais inclinações não era, no entanto, trata
baseava-se numa reconstrução do fim do século i
do como herege ou como adversário, mas como
e começo do ii, a qual considerava o gnosticis
cristão necessitado de instrução.
mo a mais importante heresia enfrentada pelos
C arta
aos
H
ebreus
opõe-se a certa
Quando a meta primordial é derrotar os ad
cristãos. Por isso, simplesmente se supôs que,
versários, os escritos posteriores do
como esses escritos se originaram nesse período,
ral assumem um tom polêmico, o que significa
seus adversários talvez fossem gnósticos e pudes
que muitas de suas acusações e denúncias não
sem ser identificados como tais, a despeito das
podem ser atribuídas a seus adversários de ma
pouquíssimas evidências. Estudos mais recentes,
neira direta. Em escritos cristãos primitivos e em
I 70
nt
em ge
A dversários i i : C artas G erais , C artas Pasto rais , A pocaupse
escritos não cristãos anteriores, as polêmicas fre
comer aUmento sacrificado a ídolos, bem como
quentemente envolviam acusações rotineiras de
de fornicação. Talvez a acusação de fornicação
imoralidade aplicadas a qualquer oposição que
seja figurada, significando infidelidade reUgiosa.
se encontrasse. Muitas vezes, procedia-se dessa
Esse é seu significado normal em Apocalipse.
maneira na certeza de que o desvio do que era
Além do mais, a fornicação era associada à idola
aceitável inevitavelmente conduzia a esse com
tria desde muito tempo (v. Nm 25.1,2, que ime
portamento. Assim, precisamos ser cautelosos
diatamente se segue à história de Balaão; v. tb.
quando tais acusações aparecem.
0 decreto apostólico de At 15.23-29). Como essa acusação tem contornos metafóricos e polêmicos,
2. Apocalipse
esses balaamitas não são libertinos. A única ou
é um caso especial. Seu propósito pri
tra acusação levantada contra eles é que comem
mordial é encorajar os que estão sob perseguição,
carne consagrada a ídolos. Tal conduta era vista
mas a seção de abertura (Ap 1—3] trata como
como acomodação inaceitável à cultura da época.
A
po cau pse
adversários alguns membros das comunidades
João condena os de Tiatira por tolerarem Je-
endereçadas. Acredita-se que as sete cartas às
zabel, acusada de ensinar e praticar fornicação e
igrejas tratam de um único tipo de adversário.
comer carne sacrificada. Essa Jezabel, que ale
Mas alguns intérpretes resistem a esse pressu
gava ser profetisa, deve ter sido um membro in
posto e as examinam separadamente antes de
fluente dessa igreja. A acusação de fornicação é
estabelecer relações. Os adversários rejeitados
mais uma vez metafórica. Então a única prática
em Apocalipse 1— 3 são identificados como li
pela qual Jezabel é condenada é a de comer carne
bertinos gnósticos ou libertinos com tendências
sacrificada a ídolos, a mesma acusação feita con
gnósticas. Alguns intérpretes encontram aí uma
tra os nicolaítas/balaamitas. No entanto, o viden
disputa entre cristãos judeus moderados e con
te [João] acrescenta que os que seguem Jezabel
servadores, na qual João assume a postura mais
chamam seus ensinos “coisas profundas de Sa
conservadora. Muitos intérpretes identificam es
tanás”. É duvidoso que os seguidores de Jezabel
ses adversários como cristãos dispostos a se ajus
atribuíssem seus ensinos a Satanás, mas devem
tar à cultura por meio da participação de reuniões
alegar algum tipo de introspecção que se concilie
de agremiações comerciais, que eram realizadas
com seu hábito de comer carne de ídolos e com
em templos e incluíam uma refeição em que se
sua conduta cristã. Em resumo, todos os adversários mencio
consumia comida sacrificada. Somente as cartas a Éfeso, a Pérgamo e a Tia-
nados são acusados apenas de comer carne de
tira lidam com adversários na igreja. Os nicolaí-
ídolos e, assim, de serem infiéis. Desse modo,
tas são mencionados nas mensagens a Éfeso e a
a oposição de João a eles baseia-se no fato de
Pérgamo. João elogia os efésios por odiarem os
se conformarem à cultura circundante e contra
nicolaítas e rejeitarem alguns que alegam ser
quaisquer razões que apresentem por se permi
apóstolos. Se esses apóstolos eram nicolaítas,
tirem isso. Não há nenhuma evidência que nos
como parece provável, essa corrente de ensino foi
permita associar qualquer tendência desses ad
levada para Éfeso por professores que arrogavam
versários, quer tomados individualmente, quer
para si alguma autoridade. Mas parece que não
em grupo, com qualquer outro grupo conhecido.
obtiveram êxito ali. Não há nenhum indício do conteúdo do ensino deles. João repreende a igreja
3. Cartas joaninas
de Pérgamo por ter em sua congregação nicolaí
Os adversários de 1 e 2João (v.
tas e aqueles que apoiam os ensinos de Balaão.
normalmente são tratados conjuntamente, e
Embora inicialmente pareça tratar-se de grupos
3João é geralmente incluída também na mesma
distintos, 0 nome Balaão provavelmente é usa
situação abrangente. Os adversários de 1 e 2João
do metaforicamente para designar os nicolaítas,
são reconhecidos como ex-membros da comuni
Jo ão, C
artas
de)
porque os dois nomes têm significados semelhan
dade joanina que se separaram daquele grupo.
tes. Aqui também nenhum ensino dos nicolaítas
A quase totalidade dos intérpretes entende que
é identificado. Os balaamitas são acusados de
o debate gira em torno da interpretação correta 71 I
A dversários i i : L artas ü e r a is , C artas Pasto rais , A pocalipse
das tradições agora encontradas em João. Por
parte na interpretação que faziam do primeiro
toda a primeira metade do século xx, a maio
capítulo do Evangelho de João.
ria dos intérpretes identificou esses separatistas
Mas essa parte da cristologia dos adversários
como gnósticos libertinos e docetas. No entan
pode não estar em questão aqui. O debate talvez
to, muitos dos intérpretes atuais negam que es
se ocupe especificamente de quando ou se o Fi
ses adversários fossem gnósticos, libertinos ou
lho se separou de Jesus. A maioria dos intérpretes
plenamente docetas. Vários deles (e.g.,
Brown)
enxerga a referência ao sangue em IJoão 5.5,6
sustentam que esses oponentes negam apenas a
como uma alusão à crucificação. A estrutura an-
importância salvífica da vida terrena de Jesus,
titética desses versículos sugere que essa menção
não a realidade de sua existência material. Al
ao sangue se opõe a algum ensino advogado pe
guns intérpretes também encontram em IJoão
los separatistas. Se for o caso, eles parecem negar
uma oposição à
adocianista e defen
que o Filho (ou o Cristo) tenha sido crucificado,
dem que os separatistas veem a vida de Jesus
aceitando que só Jesus enfrentou a crucificação.
como uma fase da obra do “Verbo divino”. Se
Essa partida prematura do Filho — na visão de
c r is t o l o g i a
melhantemente, Painter identifica-os como pneu
IJoão — era inaceitável, porque no mínimo nega
máticos que veem Jesus como mero exemplo de
va implicitamente a importância daquela morte
vida da pessoa espiritual.
para o perdão dos pecados, função que IJoão afir
3.1
IJoão. A Primeira Carta de João oferece ma como fundamental (IJo 1.7; 2.1,2,12; 4.9,10).
clara evidência de que seus adversários se se
Esse entendimento de IJoão 5.5,6 também é pos
pararam da comunidade destinatária da carta e
sível caso os separatistas sejam docetas.
são agora vistos como inimigos; são até mesmo identificados como anticristos (IJo
Assim, o máximo que podemos afirmar com
2.18,19).
relativa certeza é que esses separatistas advoga
Duas questões predominam em IJoão: guardar
vam uma cristologia que não afirma uma identi
os mandamentos, particularmente o mandamen
ficação suficiente de Jesus com o Filho de Deus.
to do amor, e a cristologia.
Essa insuficiência pode implicar alguma forma de
Estrutura-se de tal modo em IJoão o debate
docetismo ou então uma cristologia adocianista
cristológico que negar que Jesus é o Cristo equi
que não identifica Jesus de forma completamente
vale a negar “ o Filho” (IJo 2.22,23) e também a
suficiente com o Filho e entende que o Filho dei
negar a “Jesus” e não confessar que “Jesus Cris
xa Jesus antes da crucificação. Nenhuma dessas
to veio em corpo” (IJo 4.2,3). Essas declarações,
teorias requer uma teologia gnóstica, mas apenas
cuidadosamente redigidas, mostram que os ad
um esquema que leve em conta um redentor que
versários separavam o Jesus terreno do Filho de
desce e depois sobe, esquema defendido pela co
uma maneira inaceitável a IJoão, talvez negan
munidade joanina.
do que o Cristo celestial pudesse ser plenamen
Além da acusação mais ampla de que eles não
te identificado com o Jesus humano. 0 prólogo
guardam os mandamentos, a única acusação re
da carta (IJo 1.1-4) apoia a ideia de que esses
corrente contra a ética dos adversários é que lhes
adversários tinham tendência docética, como
falta amor pelos companheiros cristãos. Essa acu
acontece em IJoão 4.3, texto em que a questão
sação provavelmente tem origem no fato de que
é tratada como a negação de Jesus. Se eram do
se separaram da comunidade joanina. Sua falta
cetas, não eram necessariamente gnósticos, pois
de amor é demonstrada pela ausência deles na
basta aceitar a desvalorização helenista comum
assembleia da comunidade remanescente. Assim,
da matéria para achar o docetismo atraente. No
a acusação revela pouco sobre a conduta ética
entanto, a questão talvez não fosse a respeito de
dos separatistas e certamente não indica que se
Jesus ter corpo físico ou não, mas se ele deve
jam libertinos.
ria ser plenamente identificado com o
de
Parece, com base em IJoão 1.8,10, que os se
por quanto tempo seria tal identificação.
paratistas alegam ser livres de pecado. Com base
Os oponentes talvez esposassem uma cristologia
no uso, no original, do tempo verbal perfeito em
D
eus o u
F il h o
adocianista, segundo a qual o Filho desceu sobre
IJoão 1.8 (traduzido por “não temos pecado”),
Jesus em seu batismo. Isso poderia basear-se em
alguns intérpretes discernem um perfeccionismo.
I 72
A d v e r s á r io s h : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a l ip se
baseado em crenças gnósticas, que ou defende
3.2 ZJoão. Os adversários de 2João são des
que a existência material é tão sem importância
critos de modo essencialmente idêntico aos de
que o pecado não os afeta, ou que a natureza
IJoão. Também em 2João esses adversários são
espiritual deles os tornou “ intrinsecamente sem
tidos como separatistas (2Jo 7) que não permane
pecado”
ceram no “ensino de Cristo” (2Jo 9). O Presbítero
(B o g a r t ,
p. 33). No entanto, essas de
clarações são provavelmente a interpretação de
adverte seus leitores de que tomem cuidado com o
IJoão das ideias dos adversários, não citações
Anticristo, que não confessa que “Jesus Cristo veio
das afirmações deles. Ainda assim, deviam ad
em corpo” (2Jo 7,8). Essa abreviação do ensino
vogar um tipo de perfeccionismo que o autor de
dos adversários dá mais peso ã ideia de que se
IJoão rejeita, mesmo quando abraça um perfec
jam docetistas, mas, à luz do uso dessa expressão
cionismo de outro tipo em IJoão 3.4-9.
em IJoão, ela continua por demais ambígua, es
0 perfeccionismo rejeitado pode estar correla
tando essa interpretação longe de ser conclusiva.
cionado com a negação que os separatistas faziam
Essa carta pode representar uma etapa posterior
da função expiatória da crucificação: se alegas
a IJoão nessa disputa, porque agora há “muitos”
sem jamais ter pecado, então a expiação seria
enganadores (2Jo 7). Infelizmente, embora seja
supérflua (v.
Mas essa interpre
possível verificar que IJoão e 2João tratam dos
tação da morte de Jesus pode estar baseada numa
mesmos adversários, 2João não esclarece de modo
compreensão diferente do meio da salvação, não
satisfatório quem são esses oponentes.
C r is t o , m o r te de ) .
sendo necessariamente uma antropologia de
3.3 3João. A Terceira Carta de João identifica
contornos gnósticos. Talvez o que sustentassem
0 adversário por nome: Diótrefes. 0 Presbítero
como elemento vital fosse que o Filho trouxera a
escreve informando que Diótrefes gosta de man
vida eterna de Deus, ato que em nada se relacio
ter uma posição de liderança, não reconhecendo
na com a morte de Jesus (cf.
1979). Como
a autoridade do Presbítero, fazendo acusações
IJoão rejeita as afirmações deles com relação à
falsas contra o Presbítero e negando-se a receber
impecabilidade em IJoão 1.8,10, com o refor
pregadores itinerantes associados à comunidade
ço de comentários sobre a função expiatória da
do Presbítero. Alguns intérpretes encontram aqui
B row n,
morte de Jesus em IJoão 1.7,9 e 2.1,2, esses dois
uma desintegração ainda maior da comunidade
pontos ou são citados nos ensinos dos adversá
joanina nas mãos dos adversários de IJoão e
rios, ou são inseparáveis da perspectiva de IJoão.
2João. Segundo essa interpretação, os adversá
Embora esses adversários pareçam defender um
rios agora podem alegar que possuem um adep
avançado estado espiritual, que inclui a impeca
to com autoridade institucional no seio daquela
bilidade, há evidências insuficientes para amarrar
comunidade. Outros identificam Diótrefes como
essa alegação a qualquer sistema de pensamento
um dos primeiros bispos monárquicos, situando
(e.g., gnosticismo ou uma
reahzada).
a disputa entre ele e o Presbítero no âmbito das
Talvez IJoão lhes negue essa condição por causa
questões sobre a estrutura eclesial. Como susten
da cristologia deles e por estarem separados da
ta E. Kasemann, Diótrefes detinha legitimamente
comunidade dele — afinal, ele espera ausência de
0 ofício que logo viria a ser o episcopado monár
pecado de quem é “nascido de Deus” (IJo 3.9).
quico. Ocupando essa posição, Diótrefes, afirma
e s c at o lo g ia
Nosso entendimento a respeito desses separa
Kãsemann, excomungou o Presbítero por ser este
tistas deve permanecer vago. Podemos confirmar
um entusiasta do encontro imediato e presencial
que eles se recusam a identificar plenamente o
com Cristo, acima da tradição.
Filho de Deus com Jesus, como IJoão exige, e
O propósito de 3João é duplo: trata-se de um
que negam a importância expiatória da morte de
elogio a Gaio, sendo também uma carta de reco
Jesus. Além do mais, alegam um estado espiritual
mendação para Demétrio, em trânsito pela região
que provavelmente inclui a afirmação de que es
em que Gaio e Diótrefes são líderes eclesiásticos.
tão além de qualquer pecado. Não há nenhuma
Gaio e Diótrefes provavelmente eram membros
boa evidência de que sejam libertinos ou gnósti
de diferentes igrejas nas casas na mesma região,
cos nem de que pertençam a qualquer outro gru
ambos em função de liderança. 0 assunto princi
po conhecido.
pal de 3João é a recusa de Diótrefes em oferecer 73 I
A d v e r s á r io s ii : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lip se
hospitalidade aos pregadores itinerantes enviados
e acusações, quase sempre exageradas. Conse
pelo Presbítero. O Presbítero interpreta essa ação
quentemente, identificam seus adversários como
como uma afronta à sua honra — um valor pri
hbertinos. F. Wisse demonstra que tais acusações
mordial na cultura greco-romana. Era, portanto,
eram típicas de polêmicas tanto em escritos cris
uma questão pessoal, que afetava sua posição na
tãos anti-heréticos quanto no ambiente helenísti
comunidade cristã como um todo naquela região.
co mais amplo.
Embora a atitude de Diótrefes pudesse ser
Os adversários de Judas eram mestres viajan
motivada por controvérsias doutrinárias, não há
tes, talvez carismáticos (Jd 4,8), que participa
explicitação de nenhuma controvérsia dessa na
vam dos cultos de adoração das igrejas (Jd 12). A
tureza. Se as falsas acusações levantadas contra
presença e o ensino deles estavam causando di
o Presbítero envolviam alguma questão doutriná
visões: alguns aceitavam seus ensinos, e outros,
ria, o texto não apresenta nenhum indicio de que
não (Jd 18,19). Isso é tudo o que sabemos com
seja esse o caso. Não há evidência que apoie a
clareza. Mesmo que Judas constantemente acuse
teoria de Kasemann, segundo a qual o Presbítero
esses adversários de imoralidade, o nível da po
foi excomungado como herege. 0 Presbítero tra
lêmica põe em dúvida se devemos vê-los como
ta 0 problema daquela maneira (e.g., parece es
libertinos. Essas acusações provavelmente indi
tar na defensiva de acordo com Kãsemann) por
cam que Judas e esses mestres de fato discordam
causa da posição de Diótrefes na igreja, não por
sobre algum aspecto do comportamento cristão.
ter sido excomungado. Talvez a disputa girasse em
Mas é difícil imaginar que o público um tanto am
torno da questão da estrutura eclesial, mas aqui
plo de Judas (basicamente todos os cristãos, Jd 1)
também não há evidência que apoie essa teoria;
necessitasse de instruções especiais para rejeitar
poderia igualmente dizer respeito ao exercício, por
a espécie de mestres sexualmente devassos que
Diótrefes, de um ofício reconhecido. Assim, embo
muitos intérpretes entendem que sejam os recha
ra possamos identificar esse adversário por nome,
çados pela carta. As acusações de contaminação
não podemos identificar nem supor a presença de
“ [d]o corpo” (Jd 8) ou mesmo de libertinagem
quaisquer questões doutrinárias, eclesiásticas ou
(Jd 4) não fazem necessariamente crer que esses
éticas além da ausência de hospitalidade para com
adversários não tivessem código moral algum. No
os itinerantes como a raiz dessa luta por controle
máximo, as acusações mostram que eles permi
por parte de um segmento da comunidade joanina.
tiam alguma(s) coisa(s) que o autor reprovava.
4. Judas
imersa nas tradições judaicas, é provável que o
Uma vez que a Carta de Judas está totalmente Os adversários de Judas e de 2Pedro são muitas
autor e o público fossem judeus cristãos. É bem
vezes identificados conjuntamente, e tomados
possível que Judas represente uma perspectiva
como sendo os mesmos, já que 2Pedro faz tantos
de maior observância da Lei que a defendida
empréstimos de Judas. Contudo, tal associação é
pelos mestres itinerantes. Se a “autoridade” de
um equívoco metodológico. Embora 2Pedro utili
Judas 8 são os anjos envolvidos na outorga da
ze boa parte da polêmica de Judas, ele pode estar
Lei (como querem muitos intérpretes), a “difa
aplicando o mesmo material estereotipado a um
mação” dos adversários é que eles não guardam
grupo diferente. Assim, como acontece com todos
parte da Lei. Eles não precisam estar desprovidos
os escritos do
os adversários devem ser identi
de moral para insultar a Lei e seus mediadores:
ficados unicamente com base no texto em apreço.
basta desconsiderar um aspecto dela. Além do
A maioria dos intérpretes identifica algum
mais, se os arqui-inimigos tradicionais do povo
n t,
tipo de gnósticos ou protognósticos como alvo do
de Deus citados em Judas 11,12 têm por objetivo
ataque de Judas. Mas tal identificação só pode
retratar os adversários de Judas de modo especí
rá ser apoiada se impusermos a Judas mais do
fico, a inclusão de Coré pode ser significativa. Na
que suas declarações razoavelmente permitem.
tradição judaica, ele é conhecido não apenas pela
A maioria dos intérpretes também deixa de levar
rebeldia, mas também por não guardar a Lei cor
em consideração a natureza polêmica de Judas
retamente — embora sem nenhum indício de an-
e assim aceita pelo valor de face suas denúncias
tinomismo. Ficamos quase sem pistas sobre qual
I 74
A d v e r s á r io s n: C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a u p s e
aspecto da Lei os mestres deixam de cumprir. 0
eles negam a parusia (2Pe 3.3,4). E baseiam essa
fato de Judas os caracterizar como problemáticos
rejeição em dois fatores: a passagem da primeira
nas refeições de comunhão (Jd 12) pode indicar
geração de cristãos, para quem a parusia ocorreria
a não observância das leis alimentares ou algu
enquanto vivessem (2Pe 3.8-10), e a ausência da
ma outra regra de purificação que compUcasse a
ação de Deus contra o mal no mundo (2Pe 3.4-6).
associação à mesa, mas estamos longe de estar
Referências à realidade da parusia no começo e
certos disso.
no fim da seção polêmica (2Pe 1.16—3.13) mos
Portanto, os adversários de Judas são mestres
tram que essa é a questão principal. Em 2Pedro
itinerantes cuja ofensa principal envolve o enten
1.16, o autor afirma que a parusia não é um mito
dimento que eles têm das responsabilidades dos
e interpreta a negação da parusia como uma re
cristãos com respeito à Lei. Podem citar experiên
jeição ao testemunho apostólico. Pode ser que os
cias visionárias como evidência de sua autorida
adversários rejeitassem categoricamente o ensino
de. Adotando uma posição de maior observância
apostólico, mas parece improvável. Embora 2Pe-
da Lei, Judas os rejeita, considerando-os falsos
dro interprete a visão desses oponentes dessa ma
mestres dos últimos dias e caracterizando-os
neira, é difícil imaginar como eles conseguiram
como ímpios, sem lei e arrogantes. Eles sem dú
granjear influência (2Pe 2.2) numa comunidade
vida tinham uma imagem diferente de si mesmos.
que reverenciava os apóstolos (como mostra a atribuição da carta a Pedro), se eles rejeitavam
5. 2Pedro
0 testemunho apostólico. Em vez disso, eles pro
Muitos intérpretes também identificam os adver
vavelmente afirmavam que os apóstolos tinham
sários de 2Pedro como gnósticos ou protognósti
sido mal interpretados, e 2Pedro 1.16-19 pretende
cos, em grande medida porque negam a parusia.
mostrar que essa afirmação é insustentável.
Mas temos aí evidências insuficientes para esta
Parece que esses adversários não esperam ne
belecer uma associação com o gnosticismo, pois
nhum juízo posterior, mas essa pode ser apenas
nenhuma ideia central do gnosticismo é combati
a interpretação de 2Pedro do que significa negar a
da em 2Pedro. Rejeitando uma associação gnósti
parusia. Alguns intérpretes combinam a rejeição
ca, J. H. Neyrey identifica esses adversários como
ao juízo por parte dos adversários com as acu
mestres que se valiam de ideias epicuristas imis
sações de 2Pedro sobre a Ucenciosidade deles
cuídas na cultura mais ampla. Especificamente,
para defender a ideia de que eram libertinos. No
a negação que faziam da parusia era a manifes
entanto, a polêmica aguda dessa seção proíbe-
tação de dúvidas populares acerca da realidade
nos de interpretar as acusações literalmente. Es
do juízo divino. R. J. Bauckham (1983) entende
sas denúncias tinham por objetivo prejudicar a
ser o ceticismo escatológíco a doutrina central de
condição dos adversários, não descrevê-los com
les, mas não vincula o ensino deles a convicções
precisão. O autor de 2Pedro não tem nenhuma
epicuristas. Com base na negação que fazem do
dúvida de que as crenças dos adversários condu
juízo, Bauckham sustenta que eles advogam o
zem ã corrupção moral, mas essas denúncias po
antinomismo.
lêmicas não são evidência suficiente de que eles,
Assim como Judas, 2Pedro é um documento polêmico. Mas também nesse caso a polêmica di
por exemplo, “têm prazer na luxúria à luz do dia” (2Pe 2.13) — acusação polêmica de rotina.
reta e mordaz deve ser lida com cuidado, levando-
Afirma também 2Pedro que esses adversários
se em consideração as acusações comuns feitas
difamam “seres gloriosos superiores” (2Pe 2.10),
com o propósito de desacreditar, não exatamente
expressão extraída de Judas (lá traduzida por
descrever, os adversários, pois 2Pedro 1.16—3.13
“autoridade”), mas que recebe novo significado
como um todo tem por objetivo refutar, acusar
aqui. Sugere 2Pedro 2.11 que esses “ seres glorio
e denunciar os adversários, não descrevê-los de
sos superiores” são seres espirituais sujeitos ao
modo objetivo.
juízo de Deus. A acusação de calúnia pode ser a
0
que há de mais inequívoco a respeito desses interpretação que 2Pedro faz da rejeição à parusia
adversários, que antes faziam parte das comuni dades a que 2Pedro se destina (2Pe 2.1,15), é que
por parte dos adversários e também ao juízo que lhe segue. Se esses “ seres gloriosos superiores” 75 I
A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lipse
estão associados ao juízo, como entende Neyrey,
que a negação que fazem da parusia seja um sinal
talvez sejam seres que acusam os humanos dian
de tal rejeição. A negação da parusia por parte
te de Deus no juízo. Assim, a difamação dos ad
deles pode incluir a rejeição a um juízo divino fi
versários consiste na descrença, por parte deles,
nal — pelo menos 2Pedro apresenta os dois como
de que tal juízo e acusação ocorram.
necessariamente relacionados. A negação de um
Esses mestres tambám “prometem [...] liber
juízo final não precisa impUcar a remoção de to
dade” aos que aceitam suas ideias. Embora 2Pe-
das as limitações morais (analise os saduceus),
dro não apresente nenhum indício claro do que
mas 0 autor está certo de que conduzirá à hcen-
esteja em jogo nessa liberdade, muitos a veem
ciosidade. As crenças deles sobre a parusia e o
como uma liberdade em relação às restrições
juízo parecem lhe permitir arrogar a si a liberdade
morais, talvez por estar justaposta à acusação de
do temor de certos seres espirituais, talvez acusa
que os adversários são “escravos da corrupção”.
dores no juízo. Claramente, a questão primordial
IVIas também aqui essas acusações polêmicas são
para o autor de 2Pedro é a rejeição à parusia por
principalmente formas de denúncia. Se os “seres
parte desses adversários, o que ele considera uma
gloriosos superiores” de 2Pedro 2.10 são acusa
rejeição às Escrituras, à autoridade apostólica e à
dores no juízo, a hberdade de 2Pedro 2.19 pode
moralidade. Assim, todas as questões e acusações
ser liberdade do medo diante de tais seres, Isso
originam-se desse tema central,
se encaixa bem com a negação da parusia por 6. Cartas Pastorais
parte dos adversários, mas não podemos ter cer teza de nenhuma interpretação a respeito dessa
Embora a autoria e a data das Pastorais ainda
liberdade. Em 2Pedro, esses adversários também
sejam objeto de debate (v.
são acusados de desprezar toda autoridade ou
opinião da maioria dos estudiosos é que elas são
todo senhorio. Temos aí uma inferência polêmica
pseudepigráficas e datam da era pós-paulina. No
que 0 autor extrai da negação que eles fazem em
entanto, os que defendem a autoria paulina das
relação à parusia.
Pastorais normalmente datam essas cartas em
C a r t a s P a s t o r a is ) ,
a
Esses adversários são ainda acusados de “ dis
meados da década de 60, no desfecho da vida e
torcer” as Escrituras (2Pe 3.15,16; cf. 1.20,21). A
do ministério de Paulo, considerando-as o reflexo
Segunda Carta de Pedro menciona Paulo como
de um momento de transformação. Sejam elas
uma autoridade que concorda em que a demo
paulinas, sejam pós-paulinas, a identidade dos
ra da parusia seja um sinal da paciência de Deus
adversários retratados nas Pastorais tem sido há
(2Pe 3.15), mas depois acrescenta que alguns fa
muito tempo uma questão presente nas recons
zem mau uso dos escritos de Paulo e de outras
truções do cristianismo primitivo e no estudo dos
passagens das Escrituras. Não existe aqui ne
textos sob análise neste volume.
nhuma base para identificar esses mestres como
A maioria dos estudiosos aceitava como hipó
hiperpaulinistas nem para afirmar que eles o rei
tese que as três Cartas Pastorais tratam de um
vindicam como autoridade máxima. Ele pode ser
único tipo de adversário. Essa única frente é em
simplesmente um apóstolo a que eles recorrem.
geral identificada como um tipo de gnosticismo
Por importante que Paulo seja, a referência a ele
judaico ou protognosticismo. Alguns intérpretes,
mostra que os adversários não rejeitam o teste
no entanto, identificam esses adversários como
munho apostólico. A “distorção” que fazem dos
cristãos judaizantes, caracterizados por um regi
profetas mostra que interpretações particulares
me ascético e por uma escatologia realizada, ou
das Escrituras contribuem significativamente para
como cristãos judeus que adotavam uma exegese
a defesa que eles apresentam dos ensinos deles.
rabínica, realçando a guarda da Torá e das práti
A Segunda Carta de Pedro, portanto, opõe-se
cas ascéticas. Outros os identificam como judeus
a mestres que antes esposavam as mesmas con
helenistas legalistas.
vicções sobre a parusia que o autor defende, mas
como principal problema o fato de que esses mes
agora negavam sua realidade, usando as Escritu
tres são vistos como uma ameaça por aqueles que
Outros ainda entendem
ras para dar sustentação à sua teoria. Não rejeitam
estão em posição de autoridade. Barrett comenta
a autoridade apostóhca, mas 2Pedro interpreta
que as Pastorais parecem mencionar cada heresia
I
76
A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a lipse
que vem à mente do autor, não se dirigindo, por
celibato ou a emancipação das mulheres. Ainda
tanto, a nenhum adversário específico. Fiore en
assim, é possível que eles tivessem alguma ten
tende que esses adversários são em grande parte
dência ascética. Mesmo que fosse o caso, suas
indefinidos e apresentados do mesmo modo em
regras alimentares teriam como origem provável
que os escritos parenéticos da época em gerai
as leis alimentares do judaísmo, uma vez que ou
costumavam classificar os mestres rejeitados.
tras passagens fazem referência a questões sobre
6.1
ITimóteo. Um número crescente de estu a Lei. Uma delas é ITimóteo 1.8-11, que distingue
diosos identifica separadamente os adversários
entre empregos adequados e inadequados da Lei.
dessas cartas. Entre os tipos de oponentes que
Talvez ITimóteo 2.5-7 inclua uma defesa passa
os intérpretes têm proposto para ITimóteo, en
geira da missão de Paulo aos gentios, dando a
contramos protognósticos, libertinos, elitistas do
entender que a observância da Lei é uma questão
próprio meio, alguns defensores de uma escato
a ser considerada.
logia plenamente realizada, cristãos judeus que
A Primeira Carta a Timóteo também acusa
guardam as leis ahmentares do judaísmo e um
os adversários de propagar mitos, genealogias e
círculo de cristãos judeus que tentam guardar a
fábulas contadas por velhas (ITm 1.3,4; 4.7,8).
Torá e incluíam o autor de Apocalipse como um
Alguns intérpretes modernos têm utilizado essas
dos seus. Os intérpretes identificam os oponentes
caracterizações para identificar esses adversários
de 2Timóteo como gnósticos, protognósticos e
como gnósticos. Mas essas acusações eram comu-
paulinistas entusiastas com uma escatologia rea
mente empregadas como artifício polêmico, com o
lizada. Para Tito, os estudiosos têm encontrado
objetivo de menosprezar os adversários, não im
protognósticos, judaizantes e talvez marcionitas,
portando quais fossem seus ensinamentos. Parece
missionários judeus rivais e os mesmos dois tipos
ser essa aqui também a função dessas acusações.
de cristãos judeus observantes da Lei propostos
Ainda que essas declarações tenham em mente en
para ITimóteo.
sinamentos específicos, não há informações claras
Como as outras Pastorais, ITimóteo oferece
sobre o conteúdo desses ensinamentos. Nem mes
poucas informações específicas sobre seus adver
mo a referência ao ensino deles como gnõsis (“co
sários. O interesse principal não é delimitar algum
nhecimento”) em ITimóteo 6.20 é suficiente para
ensino falso e a ele se opor, mas estimular de
atribuir tendências gnósticas a esses adversários,
terminado tipo de comportamento, colocando-o
pois muitos grupos usavam essa Unguagem para
assim em contraponto com outro tipo. Em harmo
designar seus ensinamentos nesse período.
nia com esse propósito, sua polêmica é um tanto
As evidências, portanto, são insuficientes pa
estilizada, fazendo uso de acusações e denúncias
ra associar os ensinamentos desses adversários
gerais. Ainda assim, algumas coisas são discerní-
com as ideias gnósticas ou protognósticas. Com
veis a respeito desses adversários. A primeira de
certeza, esses oponentes defendem um maior
las é a afirmação do autor, em ITimóteo 1.6,7, de
cumprimento da Lei do que permite o autor de
que eles querem ser "mestres da lei”. Isso nos faz
ITimóteo. 0 fato de insistirem em proibições re
supor que eles exigem mais observância da Torá
lacionadas aos alimentos e ao casamento pode
do que ITimóteo exige e pode ser corroborado
ser um sinal de que tinham algumas tendências
por ITimóteo 4.3, em que encontramos a infor
ascéticas. Os comentários de ITimóteo sobre es
mação de que eles exigem abstinência de certos
ses adversários não nos oferecem nenhuma outra
alimentos não especificados. A proibição ahmen-
informação sobre eles. 6.2
tar normalmente é tomada como sinal de que
2Timóteo. Os adversários de 2Timóteo são
esses adversários eram de tendência ascética, es
identificados por nome e por um ensino proble
pecialmente por estar aliada a uma supressão do
mático em 2Timóteo 2.17,18; são eles Himeneu
casamento. Mas a proibição do casamento tam
e Fileto, os quais afirmam que a ressurreição já
bém poderia estar associada ã suposição de que a
aconteceu. Talvez 2Timóteo 2.17,18 seja uma re
parusia fosse iminente (v. os comentários de Pau
formulação polêmica do ensino deles, procuran
lo em ICo 7) ou a vários outros argumentos lógi
do mostrar esse ensino como o mais inaceitável
cos, dentre os quais uma relação entre profecia e
possível para os leitores. Mas o texto revela ainda 77 I
A d v e r s á r io s i i : C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A p o c a l ipse
que eles defendem uma escatologia segundo a qual os cristãos participam agora (ou ao menos
6.3
Tito.
Tito identifica seus adversários
como “os da circuncisão”, grupo que ativamente
podem participar) das bênçãos que o autor acre
propagava uma mensagem que incluía “fábulas
dita estarem reservadas para a parusia. O ensino
judaicas, [...] mandamentos de homens que se
deles sem dúvida exclui uma ressurreição cor
desviam da verdade” (Tt 1.10-14). Essa mesma
pórea futura, mas talvez não negue todo tipo de
passagem também indica que são naturais de Cre-
vida futura com Deus. Embora alguns intérpretes
ta. A menção a “fábulas” aqui, da mesma forma,
usem essa escatologia mais plenamente realizada
é fundamento insuficiente sobre o qual apoiar a
para identificar esses adversários como gnósticos,
ideia de que sejam gnósticos. Esses adversários
não temos aí provas suficientes de tal tendência.
são cristãos judeus que começaram a exigir ob
Não somente há outros fundamentos que deno
servância de partes da Lei além do que esse autor
tam uma escatologia mais plenamente realizada,
permite. A confirmação de que as ordens dos ad
como também nenhum outro ensino gnóstico é
versários dizem respeito à Lei está em Tito 3.9-11,
refutado nessa carta.
em que Tito é exortado a não se envolver em dis
Esses oponentes são também identificados
cussões sobre a Lei e a excluir da comunidade
como os falsos mestres escatológicos já preditos
qualquer pessoa que imponha tais debates. Mais
(2Tm 3.1-9). A licenciosidade atribuída a eles
confirmações da origem e talvez uma especifica
nessa função de ensino mais uma faz vez par
ção das ordenanças desses adversários estão em
te da polêmica comum contra um adversário e
Tito 1.15. Imediatamente após a apresentação
por isso não deve ser tomada pelo seu valor de
condenatória das ordenanças instituídas pelos
face sem evidência que a corrobore. A função
adversários, em Tito 1.14, o autor se volta para
dessa caracterização tem dois aspectos em 2Ti-
a questão do que é “puro” e “impuro” para os
móteo: torna os oponentes odiosos aos leitores,
cristãos. Assim, os adversários provavelmente in
e serve de fundo de realce contra o qual se pode
sistiam em algumas regras de purificação da Torá.
apresentar e recomendar a maneira adequada de
Além de defender essas ideias, a acusação de que
vida (e.g., 2Tm 3.10-15). As referências restantes
eles ensinam “motivados pela ganância” (Tt 1.11)
aos adversários em 2Timóteo apenas os acusam
demonstra serem mestres ativos, que aceitam sa
de participar de disputas inúteis e prejudiciais
lário de seus seguidores.
(2Tm 2.14-17,23-26), acusação que se aplica qua se a qualquer adversário.
Embora esses adversários de fato pareçam dedicados a espalhar sua mensagem, não há
Talvez 2Timóteo 1.15 deixe entrever que es
indícios de que façam parte de algum grupo de
ses mestres, que defendiam uma escatologia mais
missionários itinerantes. Embora possam até per
plenamente realizada, eram bem-sucedidos, por
tencer a tal grupo, este deveria ser composto por
que afirma que todos na Ásia haviam abando
pessoas naturais de Creta. Isso estabelece como
nado Paulo. Alguns intérpretes usam isso como
improvável uma conexão direta entre esses adver
evidência de que 2Timóteo representa uma etapa
sários e os de ITimóteo, ainda que os dois grupos
posterior na batalha com os mesmos adversários
apresentem tendências semelhantes.
encontrados em ITimóteo. No entanto, 2Timóteo
Quando as Pastorais são examinadas separa
2.24-26 não somente incentiva Timóteo a corrigir
damente, as evidências mostram que essas cartas
esses adversários de forma amável, mas também
não tratam todas dos mesmos adversários. Perce
acena com a possibilidade de que eles podem
be-se que ITimóteo e Tito de fato tratam de ad
se arrepender. Isso dificilmente soa como uma
versários com tendências semelhantes, mas não
etapa posterior da controvérsia que provocou as
temos nenhuma evidência de que façam parte do
acusações de ITimóteo. Mais importante ainda,
movimento maior de cristãos judeus observantes
nada em 2Timóteo vincula seus adversários aos
da Lei. 0 debate sobre a Lei, particularmente en
de ITimóteo, além da rejeição ampla e de rotina
tre cristãos judeus, continuou até o século iv e
ao ensino deles como algo que nem vale a pena
mesmo depois. Qualquer judeu que se unisse à
contestar. Assim, os adversários de 1 e 2Timóteo
comunhão cristã teria de enfrentar as questões
não parecem relacionados.
sobre a observância da Lei por parte dele (e dos
I 78
A d v e r s á r io s ü: C a r t a s G e r a is , C a r t a s P a s t o r a is , A po c a u p s e
cristãos gentios) e poderia acabar adotando uma
1984. (aaras, 46.) ■ Johnson, L. T. 2 Timothy and
postura mais voltada para a observância da Lei
the polemic against false teachers: a reexamina
6-7, p. 1-26, 1978-1979. ■ Karris, R.
do que ITimóteo e Tito consideravam aceitável.
tion.
Assim, os adversários das duas cartas não tinham
J. The background and significance of the pole
de necessariamente fazer parte de um movimento
mic of the Pastoral Epistles,
grande ou organizado. Diferentemente dos adver
64, 1973. ■ Kasemann, E. Ketzer und Zeuge: Zum
sários de ITimóteo e Tito, os de 2Timóteo não
johanneischen Verfasserproblem, zthk, v. 48, p.
parecem interessados na observância da Torá.
292-311, 1951. ■ Klun, A. F. J. & Reinink, G. J. Pa
Antes, a acusação principal contra eles é que
tristic evidence for Jewish-Christian sects. Leiden:
defendem uma escatologia falha e prejudicial,
E. J. Brill, 1973. [NovTSup, 36.) ■ Knight iii, G.
mais plenamente reahzada do que a que ITim ó
The Pastoral Epistles: a commentary on the Greek
teo pode aceitar. Nossa descoberta de que essas
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JRS, V.
jb l,
92, p. 549-
v.
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cartas tratam de tipos de adversários significati
Lieu, J. The Second and Third Epistles o f John:
vamente distintos exige mais estudo a respeito
history and background. Ed. J. Riches. Edinbur
delas, que nos permita tratá-las isoladamente,
gh: T & T Clark, 1986. ■ Malherbe, A. J. Social
em vez de apenas considerá-las parte das Cartas
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o n th e re s titu tio n o f C h ristia n ity . C h ic o : S ch ola rs,
79 I
Sum ney
U,
ÁGAPE.
Ver CEIA
I IC D K tU i
presumido de forma geral nem sempre precisa ser
DO S e n h o r i i .
claramente manifesto. Isso se aplicaria à teologia A l e g o r ia .
Ver
da aliança no caso de alguém como Paulo, que
G á latas, C arta a o s .
fora criado numa tradição farisaica (v. A
l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a :
A
tos,
H
Paulo,
Ju d e u ) .
P aulo, o
Além disso, deve ter havido boas razões
para ele não ter usado o termo com mais frequên
ebreus
Aliança implica relacionamento, promessa e ex-
cia, como a possibilidade de que seus oponentes
pectaiva. Na tradição bíblica, a aliança remete
0 usassem e interpretassem de forma diferente.
ao relacionamento singular que Javé estabeleceu
Em vista disso e cientes de quanto os temas
com 0 mundo por meio de Israel, além de se re
“antiga e nova aliança” são fundamentais à in
ferir à promessa sagrada e imutável de Javé de
terpretação do
permanecer fiel a esse relacionamento especial,
examinando as ocorrências do termo “ahança” em
NT,
prosseguiremos com cautela,
referindo-se também a uma expectativa legítima
cada uma das cartas de Paulo, sempre que possível
por parte de Javé de que seu povo correspondes
permitindo que o texto se imponha por si só, sem
se como convinha (i.e., vivendo como o povo da
impor a ele o conteúdo de outras partes do
aliança). Assim, a aliança desempenha um papel
1.1
nt.
Gálatas. A teologia da aliança é fun
central, se não dominante, na compreensão da
damentalmente uma maneira de designar o
identidade, da história e do lugar de Israel nos
relacionamento de Deus com seu povo. Esse re
propósitos de Deus.
lacionamento não existe no vácuo, mas encontra
0 cristianismo primitivo também compreen
um lugar no tempo e no espaço. Assim, surge a
dia seu relacionamento com Deus da perspecti
questão em torno do entendimento da revelação
va ahancística. Na morte sacrificial de Jesus (v.
e da atividade divina na história, mais especifica
bem como por meio dela. Deus
mente em relação à história de Israel. A Carta aos
demonstrou de uma vez por todas sua fideUdade
Gálatas, embora dedique grande parte do debate
C r is t o , m o r te de ) ,
ahancística. Quando os cristãos comemoravam
à história de Abraão, não confere grande impor
ritualmente a morte de Jesus como o começo
tância ã história de Israel como tal, pelo menos
de uma “nova aliança” (ICo 11.25; cf. Mt 26.28;
não como o faz Romanos.
Mc 14.24; Lc 22.20), isso fazia suscitar muitas
Em Gálatas 3.15-17, Paulo, valendo-se de um
questões acerca da relação histórica e teológica
exemplo humano de ratificação da aliança, bus
entre judaísmo e cristianismo.
ca defender a prioridade e a inviolabihdade da
1. Paulo
ahança abraâmica. Assim como os testamentos
2. Atos e Hebreus
humanos não podem conter acréscimos nem ser modificados, a não ser pelo testador, a aliança de
I. Paulo
Deus com Abraão (v.
Nas cartas aceitas de modo geral como paulinas,
são incorporados em Cristo, o “ descendente” de
há oito ocorrências de “aliança” (diathêkê)-. Roma
Abraão, não é anulada nem acrescida pela alian
nos 9.4; 11.27; ICoríndos 11.25; 2Coríntios 3.6,14;
ça sinaítica posterior, que lhe é suplementar.
A braão) ,
na qual os cristãos
Gálatas 3.15,17 (nas duas ocorrências aqui tra
Gálatas 4.21-31 é uma passagem midráshi-
duzida por “testamento”); 4:24 (cf. tb. Ef 2.12).
ca, na qual Paulo talvez esteja enfrentando os
Dignas de destaque entre essas passagens estão
argumentos e as citações escriturísticas de seus
Gálatas 4.24 (“ duas ahanças”), 2Coríntios 3.6
oponentes. Por isso, parte do conteúdo pode
(único uso de “nova aliança” por Paulo — kainê
não ser caracteristicamente paulino, embora ele
diathêkê — afora a passagem eucarística de ICo
sem dúvida compartilhasse elementos de fé com
II.25) e 2Coríntios 3.14, em que encontramos a
outros judeus e cristãos judeus. Paulo aqui se
única referência à antiga aliança: palaia diathêkê.
refere a duas alianças (dyo diathêkê), contudo
As referências acima podem revelar que a
não deixa dúvidas de que se trata de uma “ale
ahança não era um tema predominante na teolo
goria”. Além do mais, a impressão que se tem
gia de Paulo, mas há pouca concordância nessa
não é a de uma aliança sendo suplantada por
questão. Pode se argumentar que aquilo que é
outra, mas de duas opções paralelas de aliança
I 80 I
A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s
que talvez alegoricamente se referissem a duas
Em 2Coríntios 3.6, numa seção da carta que
missões simultâneas aos gentios: 1) uma que ti
deu margem a inúmeras interpretações divergen
nha por elemento principal a observância da Lei,
tes, encontra-se a única outra referência em Paulo
sendo comandada pelos adversários de Paulo,
a “ nova aliança”. Em 2Coríntios 3.14, encontra
em oposição à 2) outra representada pela mis
mos a única referência em Paulo a “antiga alian
são do próprio Paulo aos gentios. É bem possível
ça” {palaia diathêkê). A ocorrência sem paralelos
que a intenção de Paulo ao mencionar a ahança
nos escritos paulinos dos adjetivos “antiga” e
de Sara não era fazer referência ao cristianismo
“ nova” em relação à aliança na correspondência
(em contraposição à aliança de Hagar, i.e., o ju
coríntia provavelmente remete a algum fator em
daísmo), mas à missão gentílica desprovida da
Corinto que conferiu importância especial a essas
Lei. Todo o debate pode ser visto como dois pro
designações. Por exemplo, D. Georgi entende que
cessos de gerar “ filhos de Deus” (v.
f i
foram os oponentes de Paulo que introduziram o
adoção
,
Na missão pauhna, bem como por meio
termo “ nova aliança”. A teologia cristã tendeu, no
dela, os gálatas receberam o Espírito “ pela fé
passado, a enxergar em 2Coríntios 3 um contraste
naquilo que ouvistes” ; nenhuma contramissão
entre a nova e a antiga dispensações. Por mais
que advogasse a circuncisão ou a observância da
que esse contraste seja abahzado, não está claro
Lei para os gentios tinha condições de melhorar
que fosse o foco imediato do pensamento de Pau
a posição dos que estavam em Cristo pela fé.
lo quando a carta foi enviada aos corintios. Há
Eles são exortados a permanecer na liberdade de
concordância entre alguns comentaristas de que
Cristo (Gl 5.1). Uma missão aos gentios que se
Paulo por três vezes emprega um argumento a
orientasse pela observância da Lei é agora trata
fortiori ( “quanto mais ainda”) para contrastar os
da como anacronismo.
diferentes graus de glória que acompanham cada
l ia ç ã o ) .
Esse entendimento do texto exonera-nos de
um dos dois ministérios. Êxodo 34 está claramen
qualquer interpretação que o considere uma refe
te em debate aqui, e também pode ser verdade
rência de Paulo a duas ahanças sequenciais — a
que as interpretações midráshicas da passagem
primeira, do judaísmo, seguida pela segunda, do
estejam por trás dos comentários de Paulo. O
cristianismo. 0 problema dessa passagem, natu
fato de Moisés ser inserido no debate tem levado
ralmente, é seu conteúdo midráshico e o uso que
alguns intérpretes a enxergar aqui um contras
Paulo faz de uma alegoria. Não obstante, o que
te simples e inequívoco entre a antiga e a nova
de mais importante Paulo deseja realçar é que,
dispensações.
no ato de gerar filhos, o tipo ou a qualidade dos
O contexto, no entanto, mostra Paulo entriste
filhos depende da linhagem dos pais. Isso corres
cido pelo fato de os corintios estarem impressio
ponde ao sentido geral de aliança, que necessa
nados com cartas de recomendação enviadas por
riamente traz no âmago algum tipo de vinculação
missionários rivais. Paulo não deseja recomendar
imediata — ainda que não seja uma vinculação
a si mesmo nem necessita, como no caso de al
terrena, mas apenas teológica — dos que foram
guns, de tais cartas. A “carta” de Paulo são os
gerados pela Palavra de Deus.
corintios, e o autor dessa carta é Cristo; a carta do
1.2
1 e 2Coríntios. Temos em ICoríndos 11.25 apóstolo é escrita pelo Espírito do Deus vivo, não
a seguinte versão das palavras de Jesus na Última
com tinta sobre papiro (v.
E s p ír it o S a n t o ) .
Paulo tem em mente Ezequiel 11.19, não Jere
Ceia: “Este cáhce é a nova aliança [kainë diathêkê] no meu sangue”. Lucas também inclui o adjeti
mias 38.31
vo “nova”, mas há uma forte tradição acadêmica
a temática do coração é extraída da passagem de
que considera ainda mais antiga a forma marca-
Ezequiel, que inclui o tema do Espírito, totalmen
na dos termos da instituição da ceia
te ausente no texto de Jeremias. Ele também cha
(J e r e m i a s )
.0
(lxx).
s. J. Hafemann insiste em que
que importa para nosso estudo é saber se com o
ma atenção para o fato de que, quando tomamos
acréscimo de “nova” pretendia-se fazer menção
como ponto de partida as passagens que Paulo
a algo realmente diferente. Talvez seja somente
realmente tinha em mente, não precisamos esta
a explicitação de algo já implícito na morte de
belecer uma contraposição rigorosa entre tinta e
Cristo (v.
espírito, ou entre pedra e coração, nem mesmo
CEIA
do
Senhor) .
81 I
M L I A N l jA , N U V A A L IA N Ç A .
rAULU, MTOS, HEBREUS
desenvolver esses contrastes numa antítese abso
apoiadas pela maioria dos manuscritos, parece
luta entre a dispensaçâo da L ei e a nova díspen-
que aqui Paulo tem primordialmente em vista a
sação do evangelho. Ezequiel não pensava que
aliança abraâmica. 0 foco está no chamado e na
a esperança da obra futura de Deus no coração
eleição de Abraão, que em Romanos 4 é retratado
alterasse a validade da Lei. A comparação que
como um paradigma do crente.
se pretende aqui é que Paulo entendia seu minis
Em Romanos 11.27, Paulo faz um amálgama
tério a seus convertidos como o correspondente
de duas citações, Isaías 59.12 e Isaías 27.9, a fim
escatológíco da outorga da Lei. Paulo enxerga a si
de apresentar uma promessa de redenção futura
mesmo no ministério do evangelho como o canal
para Israel, a despeito de sua recusa ao evange
do Espírito, exatamente como Moisés fora o canal
lho na época; “Esta é a minha aliança com eles,
da Lei, o legislador.
quando eu tirar os seus pecados”. O argumento
A relação entre a atividade de Deus em Moi
da oliveira, bem como de forma geral o tema de
sés, o canal da Lei, e sua nova atividade em Pau
Romanos, é que, apesar do antagonismo da época
lo, 0 canal do Espírito, é mais bem expressa no
em relação ao evangelho, a eleição de Israel ain
argumento do tipo qal wahomer (“quanto mais
da se mantém. “Deus não rejeitou o seu povo [...]
ainda”). 0 movimento se dá a partir de algo
Israel” (Rm 11.1,2,7). A aliança está assegurada,
glorioso para algo ainda mais glorioso. De todo
e a eleição de Israel não é posta em dúvida, pois
modo, quando Paulo afirma, em 2Coríntios 3.13,
“os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis”
que Moisés pôs um véu sobre o rosto para que
(Rm 11.29).
os israeUtas não fixassem os olhos no to telos tou
Embora não possamos insistir na afirmação de
katargoumenou ( “restante [da glória] que se dis
que a teologia de Paulo era aliancística no senti
sipava”), ele não pode de maneira alguma estar
do em que ele explicitamente usou a terminologia
se referindo ã aliança como passageira, já que
da aliança, pode ser que houvesse em Roma uma
diathêkê é um substantivo feminino, e o esplendor
compreensão equivocada da aliança com Israel,
passageiro é assinalado por um particípio neutro.
resultante do êxito da missão de Paulo aos gentios
A questão imediata de ZCoríntios 3—4 são
(v.
C am pbell).
Em vista disso, Paulo concentrou
dois conceitos de ministério cristão. Paulo não
seu pensamento em Romanos no tema da aliança.
está se dirigindo aos israelitas no Sinai, mas aos
Enquanto em Gálatas Cristo é “o descendente”,
cristãos corintios e aos adversários dele. Foi a
em Romanos o povo da fé é a “descendência”, e
mente destes que se tornou insensível, e é sobre
há uma continuidade “de fé em fé” , abrindo-se a
0 coração destes que repousa um véu. Concluí
ahança para incluir também os gentios.
mos, portanto, que, apesar da ocorrência sem
1.4
Conclusão. R. D. Kaylor sustenta que o
paralelo de “antiga aUança” nessa passagem, não
papel da aliança opera em dois níveis na teolo
temos autorização para lhe impor a leitura de um
gia de Paulo: no nível das ideias e no nível das
contraste absoluto entre duas formas antitéticas
convicções. Paulo talvez nem sempre tivesse essa
de salvação, típicas de algumas teologias cristãs
distinção em mente, Kaylor afirma, mas, ainda as
posteriores.
sim, a aliança na qualidade de convicção funcio
1.3
Romanos. Pode estar implícito um rela nava como presença persistente e como realidade
cionamento aliancístico quando Paulo se refere
dominante na vida, obra e pensamento de Paulo.
aos romanos como agapêtoi theou (“amados [de
Se Romanos tivesse sido escrita antes de
Deus] ”) e klêtoi hagioi (“chamados [para serdes]
Gálatas, seria possível afirmar que o pensamen
santos”). Há somente duas referências explícitas
to aliancístico ou heilsgeschichtlich (relacionado
a aliança na carta: Romanos 9.4 e Romanos 11.27.
ã história da salvação) é um vestígio do pensa
Em Romanos 9.4,5, Paulo menciona a ahança
mento judaico passado de Paulo, que será pos
como um dos privilégios a que Israel tem direito,
to de lado a certa altura. Mas a questão é bem
junto com a fihação (v.
a glória,
mais complexa. Concentra-se no problema do
a promulgação da Lei, o culto, as promessas e
significado de “descendência de Abraão”. No
a d o ç ã o , f il i a ç ã o ) ,
os patriarcas. Quer sigamos a leitura no singular
caso de Sara — em que descontinuidade e rup
de “aliança” em P'“', quer as “alianças” plurais
tura da ahança pareciam inevitáveis — , Deus
I 82
A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H eb r eu s
interveio milagrosamente para gerar um herdeiro
Por várias razões, ao que tudo indica, Paulo
(cf. Is 54.1). Isso podia ser interpretado como um
não fazia uso freqüente de uma terminologia cla
sinal de que Deus manteria uma continuidade
ramente aliancística. No entanto, ela ocorre em
terrena (cf. Rm 4.19), mas podia ser também o
pontos importantes de alguns de seus escritos.
oposto — a atividade divina da nova criação. De
A frequência de “chamado” , “eleição” e termos
vemos ressaltar, no entanto, que no caso de Sara
relacionados em ICoríntios, por exemplo, pode
se trata de criatividade divina em relação ao povo
ser um indício de que era significativo no pensa
da promessa. Só mais tarde na história é que essa
mento de Paulo. Mas, seja qual for a conclusão
criatividade se estendeu além de Israel e alcançou
a que chegarmos com base no que se afirmou
os gentios, mesmo assim por meio de Jesus Cris
acima, está bem claro que, quando Paulo fez uso
to, “ da descendência de Davi”.
dos termos “antiga aliança” e “ nova aliança”, não
0 conceito aliancístico denota continuidade no
incluiu muitas das ideias associadas de um cris
propósito divino na história. Depende primordial
tianismo posterior e mais desenvolvido. Como
mente da fidelidade de Deus (e.g., Rm 3.21-26).
lembra W. D. Davies, Jeremias não aguardava
Mas como é possível expUcar suficientemente
com expectativa uma nova lei, mas “ minha lei” ,
uma continuidade terrena no encadeamento fé-
e 0 adjetivo hãdãsh, de Jeremias 31.31, pode ser
Abraão-Isaque-Jesus? Em Romanos 9.7, Paulo
aplicado à lua nova, que é simplesmente a velha
afirma que não são os descendentes físicos so
lua a uma nova luz. [W. S.
mente que são filhos de Abraão, mas os descen
C am pbe ll]
dentes físicos que também compartilham a fé de seu pai Abraão. Só em Romanos 9.22-24, Paulo
2. Atos e Hebreus 2.1
menciona a inclusão dos gentios. Os gentios não
Observações lexicais. A palavra “aliança”
são incluídos isoladamente, mas nos fiéis e com
[diathêkê] aparece poucas vezes nos escritos pos
os fiéis de Israel (cf. Ef 2.11-22).
teriores do NT — duas vezes em Atos (At 3.25
E.
Kãsemann corretamente insiste em afirmar 7.8), dezessete vezes em Hebreus (Hb 7.22
que o relacionamento correto e a retidão só po
8.6,9[2x],10; 9.4[2x],15[2x],16,17,20; 10.16,29
dem ser nossos à medida que Deus no-los con
12.24; 13.20) e uma vez em Apocalipse (Ap 11.19
cede novamente cada dia (i.e., em fé). Mas isso
v.
quer dizer que a revelação de Deus chega ao ser
ça” [kainê diathêkê] aparece com ainda menos
A p o c a l ip s e , L iv r o de ) . A
expressão “ nova alian
humano apenas de modo pontual, como “ um raio
frequência — três vezes em Hebreus (Hb 8.8[cit.
inesperado”? Ou a revelação tende a ocorrer no
Jr 38.31,
contexto de uma família de crentes ou de uma
meros praticamente se mantêm quando se acres
comunidade mais ampla de fé? 0 problema com a
centam as construções que comportam a mesma
lxx;
Jr 31.31,
tm ];
9.15; 12.24). Os nú
última visão é que a história não é simplesmente
carga semântica — “aliança melhor” [kreitton
o registro de conquistas divinas, mas também da
diathêkê, Hb 7.22; 8.6), “aliança eterna” [diathêkê
pecaminosidade humana. Foi o desespero de Je
aiõniou, Hb 13.20) e a referência ã “primeira
remias diante dessa pecaminosidade que o levou
aliança” [prõtê [diathêkê]], Hb 9.15; cf. Hb 9.1: hê
a apresentar uma “ nova aliança”.
prõtê [diakaiomata]], que faz supor uma segunda
Os cristãos têm a tendência de considerar a
ou nova aliança.
“nova aliança” de Jeremias a base clara para o
Essa relativa ausência de emprego do termo
conceito cristão plenamente desenvolvido de
pode parecer surpreendente, sobretudo porque
uma nova dispensaçâo. Essa interpretação então
a Bíbha cristã é dividida em dois “testamentos”
é imposta de forma geral aos escritos de Paulo via
(lat-, testamentum: “aliança”) e porque aliança é
Carta aos Hebreus. Não está, no entanto, de ne
a “ metáfora-chave” para representar o judaísmo p. 4). No entanto, a ausência de uma Un
nhuma maneira claro que a “ nova aliança” fosse
(S eg al,
um termo amplamente utilizado no cristianismo
guagem aliancística perceptível e de vasto empre
mais primitivo. É sem dúvida razoavelmente cor
go nos escritos cristãos primitivos talvez se deva a
reto afirmar que a “nova aliança” era um conceito
vários fatores. 1) A identidade e os feitos de Jesus
raro até os tempos da morte de Paulo.
como mediador ofuscaram o que ele mediou, a
I 83 I
H L I A I M l,« , N U V A A LIA IM l,A . T A U L U , M I U S ,
n tB R tU i
nova aliança. O contraste resultante não era entre
que as bênçãos de Javé seriam uma consequência
uma antiga aliança judaica e uma nova aliança
da obediência, que o juízo dele seria derramado
cristã, mas entre a primeira aliança e Jesus. Para
sobre a desobediência deles e que o perdão das
0 cristianismo primitivo, a cristologia passou a ser
transgressões poderia ser obtido por meio do ar
um modo de falar sobre a nova aliança. 2) A iden
rependimento e do sacrifício. Como demonstra E.
tificação de Jesus com a nova aliança talvez ope
P. Sanders, esse “padrão de religião” (a que de
rasse num nível tão profundo de convicção cristã
nomina “nomismo aliancístico”) era um recurso
compartilhada que raramente necessitava de uma
unificador de vários grupos judaicos a partir de
explanação mais abrangente nos escritos cristãos,
Deuteronômio.
0 que de fato não aconteceu. 3) Os cristãos, ao
A ahança é também um fio comum que per
mesmo tempo que tentavam mostrar a deficiência
corre todo o
teológica de seus contemporâneos judeus, procu
cada ao desenvolvimento e exphcação da aliança
ravam fundamentar sua identidade nas Escrituras
firmada por meio de Moisés. Os livros históricos
judaicas. 0 impulso por demonstrar um vínculo
mostram as dificuldades persistentes de Israel,
AT.
Boa parte do Pentateuco é dedi
histórico e teológico com predecessores judeus
apresentando-as como resultado da desobediên
pode muito bem ter moderado a apropriação cris
cia à ahança. Também para os profetas, os des
tã de uma nova linguagem aliancística. Diante
lizes aliancísticos de Israel são a principal razão
desses fatores, afinal, por que o cristianismo ain
para o castigo do ExíUo. Os profetas também se
da assim usou uma linguagem aliancística?
referem ao futuro em termos aliancísticos. Deus
2.2
Antecedentes veterotestamentáiios. O vo restabelecerá a aliança mosaica, retratada como
cábulo hebraico bérít é com muita frequência tra
aliança ora de amor (Os 2.16-20), ora de paz
duzido por “aliança”, embora possua um espectro
(Ez 34.25; 37.26), ora “eterna” (Is 61.8; Jr 32.40;
semântico muito mais amplo (v.
50.5). 0 profeta Jeremias até mesmo fala de uma
B arr) .
De especial
relevância é o uso de bérít em referência ao relacio
“nova aliança” que implica perdão, reconcihação
namento especial de Javé com seu povo.
e recriação sem precedentes (Jr 31.31-33). Os pro
Quatro alianças em especial assumem impor tância destacada para a tradição judaica e do
fetas também universalizam a aliança particular
at:
dada a Israel: a futura aliança inclui o mundo in
a aliança incondicional de Deus com o mundo
teiro (Is 42.6; 49.6-8). Essa concepção aliancísti
por meio de Noé (Gn 6.18; 9.8-16); a promessa
ca de contornos escatológicos e universais — que
de terra e de posteridade a Abraão (Gn 12.1-3;
reflete de forma autêntica as ahanças que Deus
15.18,19; 17.1-4), reiterada aos ancestrais Isaque,
estabeleceu com Davi, Israel, Abraão e Noé —
Jacó e José (Gn 26.1-5; 28.13-15; 48-50, pas
proporciona a estrutura conceituai para a com
sim); a aliança régia e posteriormente messiâni
preensão da hnguagem da nova aliança no
ca com Davi (2Sm 7.1-17; SI 89; Is 9.2-7; SI Sa,
2.3
nt.
A aliança em Atos. Em várias ocasiões.
18— 19); e a aliança condicional firmada entre
Atos recorre à história da ahança de Israel para
Deus e Israel no Sinai (Êx 19—24; 34; Dt 5—28).
identificar os seguidores do Jesus ressurreto
Apesar da multiplicidade de alianças e de qual
como herdeiros genuínos da aliança. Atos logra
quer tensão que possa ter existido entre elas, a
fazê-lo mesmo sem uma vasta referência à pa
aliança mosaica é aquela por meio da qual todas
lavra diathêkê (que aparece apenas duas vezes:
as outras devem ser entendidas
At 3.25; 7.8), usando em vez disso a palavra
( C h il d s ,
p. 419).
No âmago da aliança mosaica está a escolha
“promessa” para mostrar como o cristianismo se
de Israel por Javé para ser seu povo e a promessa
identificava como o povo da ahança com Deus
feita por Javé, de que ele seria o Deus de Israel.
(At 1.4; 2.33,39; 7.17; 13.23,32; 23.21; 26.6).
De sua parte, Israel devia corresponder obedecen do à
L e i.
A eleição e a Lei assim davam forma ã
Os sermões de Pedro em Atos 2—3 ilustram essa identificação. Pedro proclama que a ressur
prática religiosa judaica. Os judeus acreditavam
reição de Jesus cumpre o “juramento” que Deus
que haviam sido eleitos pela graça, que deviam
prometera a Davi (de que um dos descendentes
corresponder às manifestações históricas da mi
de Davi herdaria o trono, At 2.30; cf. SI 132.11) e
sericórdia de Javé por meio da obediência à Lei,
a promessa feita a Moisés (de que Deus levantaria
a 84 I
A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s
um profeta como ele, At 3.22; cf. Dt 18.15,16).
dele. Vê-se isso com mais clareza no relato da con
Além disso, o arrependimento, o batismo, o per
versão de Cornélio (At 10.1— 11.18) e do Concílio
dão e a recepção do Espírito Santo confirmam a
Apostólico (At 15.1-29). Foi necessária uma visão
“promessa” de Deus (At 2.39) e tornam os cren
celestial e uma ordem repetida três vezes para
tes “filhos dos profetas e da aliança” (At 3.22-26).
convencer também a Pedro de que não significa
0 sermão de Estêvão ressalta como a aliança
va nenhum rompimento aliancístico “ misturar-se
de Deus com Abraão (At 7.2-8) resume a histó
com não judeus ou aproximar-se deles” (At 10.28).
ria de Israel e assim também a do cristianismo.
A vinda impressionante do Espírito (At 10.44-48),
A aliança de Deus com Abraão é vista como um
não diferente daquela ocorrida no Pentecostes,
começo em que realizações parciais estão inter
confirmou para ele e a igreja de Jerusalém que a
ligadas a novos começos; histórias com novas
promessa de perdão e salvação de Deus por meio
promessas estão embutidas em outras narrativas
de Jesus era para todos (At 11.17,18). O Concí
mais antigas e fundacionais
Por exemplo,
lio Apostólico (At 15) não somente sancionou de
a predição feita por Moisés de um novo profe
modo oficial a inclusão dos gentios, mas também
ta encontra-se na história de Abraão (At 7.37).
esclareceu o papel da circuncisão e da Lei de Moi
Jesus, como profeta semelhante a Moisés, é as
sés na salvação. Pedro sustenta que Deus não faz
sim situado sem rodeios na aliança abraâmica. A
nenhuma distinção: todos são salvos “pela graça
força retórica dessa sutura de narrativas alcança
do Senhor Jesus” (At 15.11). Tiago relaciona a in
o ápice no apelo final. Estêvão ridiculariza os ju
clusão dos gentios com a ahança citando uma se
deus que 0 ouvem por serem “teimosos” e “ in
quência de textos proféticos (Am 9.11,12; Jr 12.15;
circuncisos de coração” , um povo que “sempre
Is 45.21). Os cristãos não só são o verdadeiro povo
[resiste] ao Espírito Santo” (At 7.51). Faz isso
da aliança, mas também agora se entende que a
precisamente porque eles não conseguiram ver a
aliança inclui os gentios.
(D
ah l).
associação que há entre Jesus e a própria história
Em Atos, as promessas aliancísticas dadas a
aliancística deles (At 7.52,53). 0 fato de ele recor
Israel jamais são retiradas. Israel não é rejeitado
rer de forma sistemática a Abraão dentro de seu
(At 15.46; apesar de 28.25-28). É melhor falar de
sermão situa assim os que seguem a Jesus como
uma separação dentro de Israel, com a igreja (des
o verdadeiro Israel.
crita em Atos como “crentes”, “ irmãos” , “santos”
O sermão de Paulo em Antioquia da Pisídia
ou “ discípulos” ; mas v.
ig r e j a
quanto a uma lei
vincula explicitamente a mensagem a respeito de
tura diferente da eclesiologia de Lucas) dando
Jesus à história da aliança de Israel. A história da
continuidade à linhagem ininterrupta desde
aliança de Israel inclui eleição, Êxodo, peregrina
Abraão. Não há nenhum “ novo” Israel. A igreja é
ção no deserto, conquista, a promessa da terra, os
o verdadeiro Israel, o verdadeiro povo aliancístico
juizes, os profetas e o ofício de rei (At 13.17-21).
de Deus. Atos não realça a inadequabilidade da
Essa aliança agora inclui outra, pois, da descen
aliança mosaica (mas cf. At 13.39; 15.10), mas
dência de Davi, “conforme a promessa. Deus
apenas a desobediência do povo. Na reaUdade,
trouxe a Israel o Salvador, Jesus” (At 13.23; 26.6).
Atos destaca o caráter profético da aUança: seus
Na reahdade, o evangelho de Paulo é que todas as
elos narrativo e promissório com a mensagem e
promessas aliancísticas de Deus se cumprem em
com 0 movimento em torno de Jesus. Atos retra
Jesus (At 13.33). O sermão de Paulo assim ecoa
ta a comunidade e a mensagem invariavelmente
os temas já ouvidos no discurso de Pedro e no
como o destino pretendido de Israel. 2.4
de Estêvão, a saber, o cristianismo é o verdadeiro herdeiro das promessas da aliança judaica.
A nova aliança em Hebreus. Nenhum do
cumento do NT reflete tão extensamente a nova
Se a história da aliança de Israel fosse capaz
aUança quanto Hebreus. Embora o livro esteja re
de mostrar que os seguidores judeus de Jesus
pleto de figuras e de terminologia, é a seção cen
eram os herdeiros genuínos, então um recurso à
tral (Hb 4.14— 10.18 que ressalta a relação entre a
aliança também mostraria que os gentios, povo
nova aUança e a antiga.
tradicionalmente compreendido como excluído
A seção central de Hebreus pode ser dividi
da aliança, são (e sempre foram?) também parte
da em duas partes: a primeira metade sustenta 85 I
que Jesus foi designado sumo sacerdote supe
de transformação moral que o purificará comple
rior, eterno segundo a ordem de Melquisedeque
tamente (Hb 9.14; 10.14).
(Hb 5.1— 7.28), ao passo que a segunda metade
S. G. Wilson percebe nesses e em outros con
(Hb 8.1— 10.18) examina o caráter do ministério
trastes de Hebreus um esforço inegável, ainda que
sacerdotal de Jesus (Hb 8.1-6), a natureza da nova
difícil de aceitar, por “ denegrir” a antiga aliança
aliança, da qual ele é o mediador (Hb 8.7-13)
e assim o judaísmo — inferência não necessaria
e a oferta da nova aliança que está incluída em
mente exigida pelas evidências. Wilson chama
seu ministério (Hb 9.1— 10.18. 0 autor começa
atenção para a conotação pejorativa de expres
e termina essa segunda seção citando a profecia
sões como “ fraqueza e inutilidade”, “ sombra” e
de Jeremias 31 sobre a nova aliança (Hb 8.8-12;
“anulado” (v.
10.16,17). Assim, diante do cenário do sistema
deva negar a natureza comparativa de boa parte
sacrificial e sacerdotal do
W il s o n ,
p. 117-21). Embora não se
e no horizonte de
de Hebreus, sobretudo de Hebreus 8.1— 10.18,
esperança gerado pela profecia bíblica, Hebreus
tampouco o papel positivo da primeira aUança
at
apresenta uma argumentação expositiva bem
deve ser desconsiderado. Afinal, a nova aUança,
fundamentada, identificando Jesus como o sumo
que Jesus estabeleceu, “auxilia [...] a descendên
sacerdote superior, celeste e sem pecado, media
cia de Abraão” (Hb 2.16).
dor de uma aliança nova e melhor.
A valorização que Hebreus faz da nova alian
Inúmeros contrastes podem ser detectados
ça em detrimento da antiga não era uma polê
na segunda metade dessa seção central. A anti
mica antijudaica propositada, como Wilson quer
ga aliança era terrena; a nova aUança é celestial
nos fazer crer, mas uma consequência natural da
(Hb 8.1; 9.1). O ministério da antiga aUança era
natureza escatológica da nova aUança. A antiga
figura e sombra (Hb 8.5; 9.23; 10.1); a nova aUan
aUança, atada a este “tempo presente” (Hb 9.9),
ça é verdadeira (Hb 9.24; 8.2) e real (Hb 10.1). A
era vista como algo que “ se torna antiquado e en
antiga aUança contava com sacerdotes humanos
velhece” e “está perto de desaparecer” (Hb 8.13);
destinados a morrer; a nova aUança tem um sumo
a nova aUança a supera porque está fundada em
sacerdote que vive eternamente (Hb 9.28). A ad
“melhores promessas” (Hb 8.6), as da vida da
ministração de um sacerdote sob a antiga aUan
ressurreição. 0 contraste resultante não é entre
ça ocorria segundo os ditames da Lei (Hb 8.4); a
algo mau (antiga aUança/judaísmo) e algo bom
nova aliança é administrada direta e divinamente
(nova aliança/cristianismo), mas entre algo bom
(Hb 8.1,2). Um sacerdote sob a antiga aUança
(antiga aUança) e algo melhor (nova aUança).
tinha de oferecer sacrifícios pelos próprios pe
Essa é uma maneira muito judaica de raciocinar
cados (Hb 9.7); a impecabiUdade de Jesus signi
conhecida como qal wahomer, o argumento que
fica que ele não ofereceu sacrifício por si mesmo
vai do menor para o maior: se a antiga aliança era
(Hb 9.7). Sob a antiga aUança, múltiplos sacerdo
boa, então quão melhor há de ser a nova? 0 argu
tes tinham de entrar repetidas vezes no santuário
mento de Hebreus sobre o relacionamento entre
para oferecer inúmeros sacrifícios (Hb 9.6,7,25;
a antiga e a nova alianças nesse ponto é assim
10.11); sob a nova aliança, um único sumo sa
muito semelhante ao argumento de Paulo (2Co 3)
cerdote, Jesus, entra no santuário celestial uma
sobre as duas alianças.
vez (por meio de sua morte e ressurreição) e ofe
0 autor de Hebreus usa figuras espaciais e
rece um único sacrifício de uma vez por todas
temporais para demonstrar a natureza compa
(Hb 9.12,26; 10.10,12). A antiga aliança continha
rável, mas provisória da aUança do Sinai. As
0 sangue do sacrifício de animais (Hb 9.18-22);
refinadas analogias entre os elementos terrenos
sob a nova aliança, Jesus oferece o próprio san
e celestiais da antiga e da nova alianças servem
gue (Hb 9.12,26). A eficácia das ofertas da anti
para mostrar semelhança, enquanto as citações
ga aUança era limitada (Hb 10.1,2); a eficácia do
estratégicas de Jeremias 31 demonstram que des
sacrifício da nova aliança foi definitiva — não há
pontou um novo dia na história da salvação.
mais ofertas pelos pecados. Sob a antiga aUança,
2.5
Resumo. Atos e Hebreus concordam em
0 adorador não podia ser aperfeiçoado (Hb 9.9);
que Deus demonstrou fidelidade aUancística na
sob a nova aUança, entra em vigor um processo
morte de seu FUho. No entanto, cada um assume
I 86
A l ia n ç a , n o v a a l ia n ç a : P a u l o , A t o s , H ebr eu s
uma posição diferente quanto à relação da nova
B a s s le r ,
aliança com a antiga. Atos invariavelmente apre
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87 I
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julg am ento d e .
/ - r r u v - M L ir :) !:, l í v r u
A n tic ris to .
uc
Ver A p o c a l ip s e ,
L
O exemplo mais notável de apocalipse no
iv r o d e . at
A n t ít e s e s .
Ver
é 0 livro de Daniel, que passou a servir de
modelo para escritos apocalípticos posteriores.
L ei i .
Mas outras obras proféticas também contêm A
p o c a l ip s e ,
L iv r o
traços relacionados ao pensamento e ao modo
de
Apocalipse é tido por hermético pela maioria dos
de
leitores da atualidade. Isso se deve em grande
exemplo, é por vezes denominado “ pai do gênero
expressão
apocalípticos.
Ezequiel,
por
parte ao desconhecimento reinante em relação
apocalíptico” . Muitos trechos de Isaías 40—55
aos Uvros proféticos do
bem como à quase to
prefiguram o estílo e o conteúdo apocalípticos,
tal ignorância em relação aos escritos apocalípti
ao lado de Isaías 25—27 e Zacarias 9— 14. Todas
cos judaicos e ao ambiente histórico do livro que
essas passagens do
determina seu conteúdo. Neste verbete, tentare
presentações da intervenção de Deus com o pro
mos elucidar esses aspectos para assim permitir
pósito de salvar seu povo.
at,
que se capte com maior facilidade a mensagem
at,
e outras ainda, contêm re
Apocalipse inicia-se com as palavras “ Re velação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu...”
do último livro da Bíblia. 1. Gênero
Não podemos ter absoluta certeza de que João
2. Data
pretendia classificar sua obra como gênero apo
3. Situação histórica
calíptico. Estaria ele dando a entender que essa
4. Conteúdo e estrutura
revelação, dada por Deus a Jesus (Ap 1.1,2), con
5. Autoria
sistia na declaração definitiva daquilo que outros
6. Expectativa do Anticristo
escritos do gênero buscavam oferecer? A natu
7. Propósito de Apocalipse
reza do que se segue pode ser vista como uma
8. Importância de Apocalipse para hoje
forma de confirmar essa teoria. Se admitirmos
9. ApocaUpse nos mais antigos escritos pós-
que 0 livro de fato se apresenta dessa forma, essa
neotestamentários
autoapresentação seria da maior importância na interpretação da linguagem e do simbolismo
1. Gênero
do livro. Boa parte dos ensinamentos de Jesus
1.1 Literatura apocalíptica. Apocalipse é a úni
é transmitida por meio de
ca obra desse gênero no
mas havia muitas
Apocalipse emprega figuras parabólicas para de
outras semelhantes no mundo antigo, escritas
linear sua representação do passado, do presente
especialmente por judeus, mas posteriormente
e do futuro da história. A compreensão do uso
também por cristãos. Tais obras também leva
de tais parábolas em literaturas afins é de valor
vam 0 nome de Apocalipse, termo grego oriundo
inestimável para a interpretação das parábolas
do verbo apokalyptõ, que quer dizer “descobrir”,
do apocaUpse de João. A linguagem pictórica
“revelar” ou “expor” o que está oculto. Em ge
dos apocalipses judaicos está arraigada no
ral, essas obras tinham por intuito manter viva
os autores do
nt
,
at
parábo las;
o
livro de
at
,
e
por sua vez usavam figuras co
a chama da fé em momentos de dificuldades e
muns às nações do Oriente Médio. Sem dúvida, o
conservar a esperança em relação à chegada do
profeta João estava familiarizado com todo esse
dia do Senhor e do reino de Deus (v. D
e us) .
de
cenário, pois a quase totalidade dos estudiosos
Por conseguinte, o movimento apocalíp
reconhece que sua obra reflete uma mente embe
r e in o
tico não raro é visto como filho da profecia. Os
bida do
apocalipses judaicos, no entanto, não se ocupam
Escrituras hebraicas. Conhecer esses anteceden
exclusivamente da esperança escatológica do
tes é condição sine qna non para o entendimento
povo judeu, pois muitas vezes contêm também
correto de seu livro.
descrições dos céus, da terra e de seus habitan tes, incluindo as forças angelicais e demoníacas.
1.2
at,
sendo sua linguagem dominada pelas
Profecia. A segunda declaração de Apoca
lipse é: “Bem-aventurados os que leem [a outros]
Ainda assim, é a escatologia dos escritos apoca
e também os que ouvem as palavras desta profe
lípticos 0 que mais se tem em mente quando se
cia e guardam as coisas que nela estão escritas”.
fala de literatura apocalíptica.
Fica evidente que João sabe ter sido encarregado
I 88
A p o c a l ip s e , L iv r o de
pelo Senhor de escrever essa profecia e que foi
Não resta dúvida de que as sete cartas tinham
incluído no rol dos profetas de Deus. Como tal,
por objetivo beneficiar todas as sete igrejas ende
ele compreende que se acha em linha de sucessão
reçadas. De modo significativo, todas as cidades
com os profetas da nova aliança. Mais de uma
em que as sete igrejas estavam localizadas eram
vez isso é mencionado em seu livro. 0 epílogo
centros de administração pública e de distribui
relata o momento em que João se prostra aos pés
ção postal em sua região. Era possível, portanto,
do anjo que lhe mostrara as visões com o objetivo
que cópias de toda a profecia fossem despachadas
de adorar esse anjo, mas isso lhe foi proibido:
a igrejas situadas em outras cidades da província.
“ Não faças isso, porque eu sou conservo teu e de
As cartas do
teus irmãos, os profetas, e dos que guardam as
claro de serem lidas diante de congregações reu
nt
foram escritas com o propósito
palavras deste livro. Adora a Deus” {Ap 22.8,9).
nidas, e o mesmo se aplica a Apocalipse como
Em Apocalipse 19.10, o anjo diz a João: “Sou con
um todo, como deixa claro a bem-aventurança de
servo teu e de teus irmãos, que têm o testemunho
Apocalipse 1.3 e o epílogo: Apocalipse 22.6-21. Se
de Jesus [...], pois o testemunho de Jesus é o es
Apocalipse era então uma carta às igrejas da Ásia
pírito da profecia”. Isso parece dar a entender que
romana, fica patente que era dirigida às circuns
0 Espírito Santo, que inspira a profecia, também
tâncias dessas igrejas.
capacita os profetas a dar testemunho da revela
Nesse aspecto. Apocalipse faz um contraponto
ção que Jesus trouxe e traz. Isso condiz com a
com 0 parágrafo de abertura de lEnoque, segundo
apresentação que se faz do conteúdo do/a Apo
o qual aquilo que o profeta via era não “para esta
calipse/Revelação na primeira frase, na qual se
geração, mas para uma geração distante, ainda
afirma que é “a palavra de Deus e o testemunho
por nascer”. As circunstâncias e as necessidades
de Jesus Cristo” (Ap 1.2). À luz dessas declara
das igrejas às quais João escreve estavam vivas
ções, relativas na realidade ao conteúdo do livro
em sua mente, tanto quanto estavam vivas para
como um todo, precisamos reconhecer que o/a
Paulo e outros líderes cristãos as circunstâncias
ApocaUpse/Revelação é obra do Espírito, o qual,
e as necessidades daquelas igrejas às quais es
do Pentecostes em diante, capacitou os cristãos a
tes também escreveram. Reconhecer esse fato
dar testemunho profético da “palavra de Deus e
traz importantes consequências para a interpre
[do] testemunho de Jesus”. Esse testemunho in
tação da obra como um todo. 0 profeta recebeu
clui a palavra de Deus a respeito de sua vontade
a ordem de escrever às igrejas da Ásia romana
para a humanidade no presente e no futuro.
em vista de acontecimentos que estavam se de
É evidente, portanto, que a obra de João
senrolando na época dessas igrejas, mas ele tinha
não deve ser vista nem como apocalipse exclu
também por objetivo preparar essas igrejas para
sivamente, nem como profecia apenas, como se
o futuro. Assim como o restante das cartas do
esses termos fossem mutuamente excludentes. É
NT exige que se conheçam as circunstâncias das
preciso reconhecer que ela detém características
igrejas às quais eram endereçadas para que seu
dos dois gêneros, ou seja, deve ser definida como
conteúdo seja compreendido, o mesmo se dá com
profecia apocalíptica ou apocalipse profético, ou
Apocahpse. A desconsideração desse fato tem le
receber as duas designações conjuntamente.
vado inúmeros leitores a tirar conclusões equivo
1.3
Carta. Depois do primeiro parágrafo, João cadas do livro quando relacionam as personagens
saúda seus leitores seguindo a forma convencio
e os acontecimentos nele contidos com pessoas e
nal em que se escreviam as
(Ap 1.4,5). De
acontecimentos da época em que vivem. Esse erro
igual modo, encerra a profecia com uma bênção,
de interpretação é corrigido sempre que fazemos
como é costume nas cartas do n t (Ap 22.21). Além
algum esforço para enxergar as circunstâncias
disso, João recebe ordem de escrever o que estava
tratadas no livro e entender a mensagem do h-
para ver e enviar a obra a sete igrejas na província
vro para os que viviam essas circunstâncias, bem
romana da Ásia (Ap 1.11). Todas essas igrejas con
como para todas as gerações posteriores.
c a rta s
1.4
tam com uma breve carta endereçada a elas. A car ia sempre traz a exortação: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (e.g., Ap 2.11).
Liturgia. Não são poucos os livros do
que refletem elementos litúrgicos, especialmente orações, hinos e confissões de fé (v.
89 I
a d o ra çã o /
nt
> ^ r u i - M L i r > c ;, i
culto ) .
Exemplos que vêm
à
mente são Efésios 1
Jerusalém, ocorrida no ano 70 d.C. Se ApocaUp-
e a oração de Efésios 3.14-21; o hino cristológico
se 11.1,2 for interpretado literalmente, a passagem
de Filipenses 2.6-11 e o de Colossenses 1.15-20;
pode indicar que Jerusalém sofreu prolongado
0 breve fragmento de hino de Efésios 5.14 (tido
ataque e que o altar e o pátio externo do templo
por alguns estudiosos como uma composição fei
ou foram sitiados, ou não puderam ser protegidos
ta especialmente para a celebração do batismo) e
das tropas romanas, ao passo que o santuário em
as várias “declarações de fideUdade” das Cartas
si foi conservado por Deus.
Pastorais. Apocalipse contém mais canções como
Nos capítulos finais do livro, Roma é chamada
essas espalhadas por suas páginas que qualquer
“ Babilônia” (v. Ap 14.8; 16.19; 17.5; 18.2,10,21).
outro escrito do
A substância e o contexto des
A razão mais provável para Roma ser chamada
ses cânticos levaram M. H. Shepherd a propor que
de Babilônia é que, assim como Nabucodonosor,
a liturgia pascal primitiva das igrejas foi na ver
rei da Babilônia, destruiu Jerusalém em 586 a.C.,
dade 0 modelo de Apocalipse. Essa interpretação
também Roma o fez nessa época. 0 canto fúne
nt.
não encontra eco na maioria dos estudiosos, mas a
bre sobre Babilônia, em Apocalipse 18, enxerga a
presença de formas litúrgicas em tantas seções do
tirana Roma da época como mais uma Babilônia.
livro tem a sua importância; sua combinação com
Os apocalipses 4Esdras e ZApocalipse de Baraque
outras formas Utúrgicas precisa ser reconhecida.
foram escritos no fim do século i da era cristã e
1.5
Literatura dramática. Na tradição grega, também deram o nome Babilônia a Roma, pela
adoração e arte dramática estão intimamente re
mesma razão.
lacionadas. A presença de muitos hinos em Apo
Em Apocalipse 13.3 (cf. Ap 13.14), lê-se que
calipse impulsionou alguns intérpretes a enxergar
uma das cabeças da “besta”, o Anticristo, so
na obra uma representação teatral dos tempos do
freu uma ferida mortal, mas reviveu e recebeu
fim. J. G. Bowman observa que o livro se compõe
de Satanás autorização para reger o império (cf.
de sete atos e sete cenas. Os hinos têm função
Ap 17.8). Parece tratar-se aí de uma referência à
semelhante à dos coros da dramaturgia grega: ilu
crença da época segundo a qual a “cabeça” ferida
minam as divisões do livro. E. Schüssler Fiorenza
era Nero, que não tinha sido morto, nem por ele
reconhece isso quando afirma: “Eles [os hinos de
mesmo, nem por outrem, mas escapara e retor
Apocalipse] atuam da mesma maneira que os co
naria para governar o império. Apocalipse 17 tem
ros do teatro grego, preparando e comentando os
uma forma desenvolvida dessa teoria e represen
movimentos dramáticos da trama”. Contudo, ela
ta a crença de que a besta Nero ressurgira dentre
também afirma que Apocalipse não é uma peça
os mortos e viria do Oriente com um exército con
de teatro
p. 166), e com isso
federado para destruir a grande Babilônia. Essa
concorda a maioria dos estudiosos, ao mesmo
expectativa exigiria uma data posterior à morte
tempo que não hesitam em reconhecer que nesse
de Nero.
(S chü ssler F io r e n z a ,
livro se trata de uma obra de contornos notavel
A opinião da maioria quanto ã data de Apo
mente teatrais.
calipse é a de Ireneu, que escreveu o seguinte
2. Data
po depois, mas quase em nossos dias, próximo
a respeito do livro: “Isso se viu não muito tem Os estudiosos têm sustentado e continuam sus
ao fim do reinado de Domiciano”
tentando duas possibilidades principais quanto ao
5.30.3). Eusébio citou essa opinião com aprova
tempo de composição de Apocalipse, a saber, ou
ção
no turbulento período imediatamente posterior à
a respeito da data de Apocalipse encaixa-se com
(E usébio ,
( I reneu,
He,
Hi ec, 3.18-20; 5.8.6). Essa avaliação
morte de Nero (68-69 d.C.), ou mais para o fim do
outras evidências acerca da natureza e do conte
reinado de Domiciano, por volta de 95 d.C.
údo do livro, acima de toda tentativa de represen
A primeira teoria é sustentada com base na
tar 0 Anticristo como outro Nero.
possibilidade de que João tenha sobrevivido ã
A expUcação em Apocalipse 17.9-11 quanto ao
medonha perseguição dos cristãos encetada por
significado das sete cabeças da besta vem sen
Nero e também no fato de não haver no livro
do detalhadamente examinada com o objetivo
nenhuma referência inequívoca ã destruição de
de apurar a data de Apocalipse, mas ainda sem
I 90
A p o c a l ip s e , L iv r o de
êxito. Dois significados são sugeridos no texto;
Domiciano, em cujo reinado, acredita-se, foi
um que identifica as sete cabeças com as sete co
escrito Apocalipse, tinha a reputação de ser um
linas de Roma, e o outro, segundo o qual elas re
monstro, o que levou ao extremo o culto ao impe
presentam sete imperadores. As duas explicações
rador. Conta-se que ele erigiu um número imen
são secundárias, uma vez que são uma forma de
so de estátuas dele próprio, exigiu ser tratado
aplicar a uma situação da época o antigo mito ou
de “nosso Senhor e Deus” (.dominus et deus] e
saga do monstro das profundezas, de sete cabe
encetou uma perseguição cruel contra as igrejas.
ças, que se opunha aos poderes do céu. A lista
Thompson examinou com cuidado a veracida
de imperadores até Domiciano é Júho César, Au
de dessas afirmações e chegou à conclusão de
gusto, Tibério, Gaio, Cláudio, Nero, Galba, Oto,
que são infundadas. O retrato de Domiciano foi
Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano — doze ao
traçado alguns anos após sua morte por um cír
todo. Desses, João informa que cinco caíram, um
culo de escritores reunidos em torno de Plínio,
ainda existe (o sexto), um está por vir (por
o Jovem, que incluía Tácito, Dião Crisóstomo e
um breve período apenas), o oitavo é um dos sete
Suetônio. Após o assassinato de Domiciano, Ner-
e será o Anticristo. A começar por Júho César,
va tornou-se imperador, mas seu reinado durou
João estaria escrevendo no reinado de Nero, mas
apenas dois anos (96-98 d.C.). Foi sucedido por
ainda permanecem as dificuldades apontadas. A
Tl-ajano, que reconheceu a necessidade de escri
solução mais simples seria supor que os “cinco”
tores e oradores que pudessem promover suas
que “caíram” representam a maioria, o sexto é o
ideias. Encontrou-os em Plínio e seus amigos, e
imperador reinante, Domiciano; o sétimo reinará
todos eles procuravam seguir a política de exaltar
por pouco tempo, e depois virá o Anticristo.
Trajano contrapondo-o a Domiciano. Plínio, por exemplo, escreveu acerca do prazer de ter sido
3. Situação histórica
nomeado cônsul em setembro, mês de tríplice jú
3.1 O culto ao imperador na Ásia romana. É
bilo, “o qual contemplou o afastamento do pior
preciso ter em mente que as igrejas às quais
dos imperadores [Domiciano], a ascensão do me
Apocahpse
lhor [Nerva] e o nascimento de um ainda melhor
foi
escrito
estavam situadas
na
província da Ásia romana e que o culto (i.e.,
que o melhor” (i.e., Trajano; v.
P
l ín io
,
Pn, 92.4).
adoração) ao imperador havia sido adotado
Sobre esse procedimento, Thompson comen
com entusiasmo na região, talvez mais que em
ta: “Os propagandistas de uma nova era precisam
qualquer outra parte do Império Romano. L. L.
afiar ambos os fios de sua espada de dois gumes;
Thompson salienta que o culto ao imperador teve
tanto o presente ideal quanto o passado perverso
seu apogeu no reinado de Augusto: “ Os discursos
precisam ser exagerados”
laudatórios feitos ao imperador eram expressos
trariando a afirmação de que Domiciano exigia ser
em Unguagem grandiloquente, à semelhança
tratado de "nosso Senhor e Deus”, Estácio relata
( T h o m pso n ,
p. 115). Con
( T ho m pso n,
que, quando Domiciano foi aclamado Dominus
p. 159). Todas as cidades das sete igrejas tinham
em uma de suas saturnais, ele proibiu os que as
dos discursos oferecidos aos deuses”
em seu meio a adoração ao imperador. Em mui
sim procederam de tratá-lo dessa maneira
tas cidades, realizavam-se festas anuais, espe
Silvae [Florestas], 1.6, p. 81-4). Não há nenhuma
(E stácio ,
cialmente no aniversário do imperador, e esses
referência a Domiciano como dominus et deus em
festivais eram financiados por pessoas de todas
qualquer inscrição, moeda ou medalhão da era do-
as camadas sociais. Thompson, no entanto, insis
miciana. Sem dúvida, houve quem se referisse a
te em que não devemos exagerar a importância
Domiciano como dominus et deus, mas Thompson
da adoração ao imperador para os cristãos pri
insiste em que se leve em conta o oportunismo
mitivos. Para ele, a questão principal girava em
popular entre os que procuravam obter benefícios
torno do relacionamento dos cristãos com os
do imperador
( T ho m pso n,
p. 105-6).
adeptos das seitas religiosas tradicionais, não da
Se Thompson elaborou uma boa Unha de ar
relação deles com o culto ao imperador, pois tam
gumentação para limpar a fama de Domiciano
bém eram oferecidos sacrifícios naquelas seitas
como monstro obcecado por sua divindade her
(v.
dada, com outros ele subestima a ameaça que o
RELIGIÕES g r ec o - r o m a n a s ) .
91 I
culto ao imperador representava às igrejas e em
oferecer sacrifícios a ele próprio como represen
vez disso atribui ao profeta João uma obsessão
tante de Zeus; a tentativa de Caligula de pôr uma
com o elemento apocalíptico judaico. Embora
estátua sua no templo de Jerusalém, e o pânico
reconheça que os escritos apocalípticos muitas
que esse plano causou entre os judeus de Jerusa
vezes foram motivados pelas crises precipitadas
lém; a crueldade pavorosa de Nero em sua perse
pela perseguição, Thompson nega que nos dias
guição aos cristãos de Roma durante o tempo de
de João existisse tal ação por parte das autori
vida de João.
dades governantes na Ásia romana. Ele cita o
João conhecia o ensinamento do livro de Da
conceito de “crise imaginada” proposto por J. J.
niel e sua atitude diante de governantes que afir
ColUns, ou seja, o apocalíptico enxerga na situa
mavam ser não somente divinos, mas também
ção em que ele vive uma crise que é inexistente,
estar acima dos deuses. Não que na interpreta
mas “imaginada” por meio de uma interpretação
ção dele o imperador reinante se via dessa for
das circunstâncias elaborada pela perspectiva das
ma, mas é evidente que ele conseguia enxergar
crenças apocalípticas (J. J.
p. 2-8). Longe
na busca entusiasmada do culto ao imperador a
de ser uma análise objetiva da sociedade da épo
preparação para o surgimento de um Anticristo
ca, Thompson afirma, “a vida romana do século i
que não apenas declararia guerra à igreja, mas,
C o l l in s ,
aconteceu [...] num dos períodos mais integrados,
de modo surpreendente, destruiria o império (v.
pacíficos e significativos da história para a maio
Ap 17.12-17).
ria dos que viviam no império. Essa confusão de
3.2
Perseguição. Opiniões anteriores de que
uma localidade social específica com a socieda
Domiciano já havia começado uma persegui
de como um todo não é incomum no estudo do
ção atroz contra a igreja não são comprovadas
cristianismo primitivo”
em Apocahpse. Referências como Apocalipse 2.10
( T ho m pso n,
p. 237, n. 10).
No entanto, é difícil compreender uma de
e Apocalipse 2.13 dão sinais de uma hostilidade
claração como essa quando se tem em mente 1)
presente contra os cristãos, mas falam de uma in
que a sociedade romana dependia de sessenta
tensificação futura dessa oposição. Não obstante,
milhões de escravos, cuja vida de escravidão, em
o fato de que João fora transferido para Patmos de
grande parte, devia-se à subjugação de seu país
monstra que as autoridades governantes da Ásia
pelos exércitos de Roma, 2) que havia muitos
romana estavam tomando medidas contra a igreja
escravos compulsoriamente transformados em
cristã. João tinha sido desterrado em Patmos por
gladiadores para o divertimento das multidões
ser um ministro poderoso da Palavra de Deus e
nos anfiteatros, e 3) que havia muitas escravas
uma testemunha de Jesus, sendo visto pelas auto
também compulsoriamente transformadas em
ridades, portanto, como um perigoso líder da seita
prostitutas. O profeta João refere-se a isso em seu
cristã. Dessa forma, a percepção dele acerca da
cântico de lamento pela queda da Babilônia e en
natureza do cuho ao imperador era condicionada
cerra a lista de atividades comerciais da cidade
por sua experiência, não por discriminação.
com os itens “bois, ovelhas, cavalos e carros, es cravos e até almas humanas” (Ap 18.13). Ele não era um homem de mente tacanha, limitado a uma
4. Conteúdo e estrutura 4.1
Introdução (A p 1). O capítulo de abertura
congregação isolada numa área restrita. Exercia
é também uma introdução ao Uvro, com um pró
um ministério influente sobre um grupo de igre
logo (Ap 1.1-8) e uma visão do Cristo ressurreto
jas numa área que talvez fosse a mais cristiani
recebida pelo profeta João (Ap 1.9-20). O prólogo
zada do Império Romano no fim do século i d.C.
dá a conhecer a origem e a natureza do livro, in
Tinha condições de saber o que acontece quan
voca sobre seus leitores e ouvintes as primeiras
do imperadores tomam medidas contra aqueles
sete bem-aventuranças da obra, transmite uma
súditos cuja consciência lhes proíbe reconhecer
saudação da parte do Deus trino e uno, dirige
a divindade desse governante. Por exemplo: a
uma doxologia a Cristo e faz duas declarações
ação de Antíoco Epifânio de compelir os judeus
proféticas a respeito do tema do Uvro. A visão
a abandonar sua religião e adotar a religião do
que se segue contém uma ordem a João para que
restante do território por ele dominado, incluindo
escreva o que está vendo a sete igrejas da Ásia
I 92
A p o c a l ip s e , L iv r o de
romana. A forma em que o Senhor ressurreto é
Deus: “Até quando?” Mas o sexto selo conduz os
retratado faz eco à maneira em que Daniel 7.9
juízos a seu ponto culminante, ao mencionar um
apresenta o Ancião de Dias
grande terremoto, o Sol escurecendo como tecido
[a r a :
“ancião bem
idoso”] e também em que o anjo poderoso é re
de crina negra, a Lua tornando-se vermelha como
tratado em Daniel 10.5,6.
sangue, as estrelas caindo sobre a terra, o céu de
4.2 Cartas às sete igrejas (Ap 2—3). Os capí
saparecendo como um pergaminho que se enrola e
tulos 2 e 3 de Apocalipse trazem uma série de sete
cada ilha e montanha sendo retirada de seu lugar.
cartas endereçadas às igrejas citadas em Apoca
Os reis e os poderosos gritam às rochas das monta
lipse 1.11. São cartas bastante breves, lembrando
nhas para que caiam sobre eles e os escondam da
os oito breves oráculos de Amós 1—2. As cartas
face de Deus e da ira do Cordeiro, pois “chegou o
apresentam estrutura idêntica: uma declaração
grande dia da ira deles! Quem poderá subsistir?”.
introdutória do Cristo ressurreto, extraída da vi
A passagem é constituída de referências proféti
são de abertura e em geral pertinente ao conteú
cas veterotestamentárias ao dia do Senhor (e.g.,
do da carta; elogio das qualidades da igreja e/ou
Is 13.10,13; 34.4; Sf 1.14,15), cujo sentido não é
crítica às suas falhas; uma promessa ao vencedor
a destruição do Universo, mas uma representação
relacionada às bênçãos que serão concedidas no
pictórica do pavor geral que será sentido quando o
reino de Cristo; e uma exortação para que se dê
Deus do céu se manifestar para julgar o mundo (cf.
ouvidos ao que o Espírito está dizendo às igrejas.
a cena do juízo final, Ap 20.11).
4.3 Visão da sala do trono celeste (Ap 4— 5j.
Em Apocalipse 6.12-17, chega-se ao fim da
Assim como a visão de Cristo em Apocalipse 1
rebelião da raça humana na história. Com a aber
conduz às sete cartas, a visão do céu de Apoca
tura do sétimo selo, em Apocalipse 8.1-5, são
hpse 4— 5 conduz ao corpo da obra. Ela abre a
respondidas as orações dos mártires que estão
sucessão de acontecimentos que conduzem ao
debaixo do trono de Deus e dos santos na terra, e
desvendamento do reino final de Deus (Ap 6— 19)
se desenrolam os acontecimentos concomitantes
e ao mesmo tempo determina o simbolismo da pri
à vinda de Cristo em seu reino (com Ap 8.5; cf.
meira série de juízos messiânicos (Ap 6.1—8.5).
Ap 11.19; 16.17,18).
4.4 Selos, trombetas e taças (Ap 6— 16). A
Os juízos das sete trombetas são descritos de
esta altura, precisamos decidir como interpretar
forma semelhante à maneira em que se apresen
a relação entre as três séries de juízos que do
tam os juízos da abertura dos sete selos. Os juízos
minam a maior parte de Apocalipse (Ap 6.1—
das primeiras quatro trombetas são adaptações
19.10), retratadas por três símbolos: a abertura
dos juízos sobre o Egito, no Êxodo. São seguidos
dos sete selos de um documento que está nas
do anúncio de três ais que recairão sobre a terra,
mãos de Deus (Ap 6.1—8.5), o ressoar das sete
mas o terceiro ai é suspenso por um tempo, e, no
trombetas (Ap 8.6— 11.19) e o derramamento das
lugar dele, em Apocalipse 11.15-18, entoa-se um
sete taças da ira (Ap 15— 16). A interpretação que
cântico de triunfo que celebra a consumação do
se tem feito dessas três séries de juízos é que elas
reino de Deus:
se seguem uma à outra em sequência cronológica (v., e.g.. C ourt,
C h a r le s ,
p. 74-5;
l:xxi-ii;
R ow land,
Farrer,
1964, p. 9-23;
O reino do mundo passou a ser de nosso Se
p. 416).
nhor e de seu Cristo, e ele reniará pelos sécu
Há, no entanto, uma característica fundamental
los dos séculos. Os vinte e quatro anciãos que
das três séries de juízos que toma quase inaceitá
estavam assentados em seus tronos diante
vel essa interpretação: cada uma delas encerra-se
de Deus prostraram-se sobre o rosto e adoraram
com uma descrição do dia do Senhor, que leva a
a Deus, dizendo: Graças te damos. Senhor Deus
uma revelação do reino fineil de Deus. A primei
todo-poderoso, que és e que eras, porque assu
ra série de juízos guarda estreita correspondência
miste teu grande poder e começaste a reinar.
com aspectos do discurso escatológíco de Marcos 13, embora pareça empregar a figura dos quatro ca
Observe que, se os anciãos de Apocalipse 4.8
valeiros, uma adaptação de Zacarias 1 e 6. O quinto
cantavam: “... aquele que era, que é e que há de
selo revela o grito dos mártires debaixo do trono de
vir” , agora cantam “... que és e que eras” , pois
I 93
I
Deus já veio, e instaurou-se seu reinado de sal vação definitiva no reino concretizado de Deus.
no reino final de Deus. Da mesma forma, entre a sexta e a sétima trombetas, ocorre um interlúdio
O mesmo alvo foi sem dúvida conquistado no
mais extenso, no qual João é confirmado em seu
final do derramamento das sete taças de ira. Uma
ministérío profético (Ap 10), e um oráculo revela a
voz do templo e do trono proclama “Está feito”
vocação da igreja para executíir o testemunho pro
(Ap 16.17; cf. Ap 21.6, em que o brado signifi
fético poderoso esperado de Elias e de Moisés nos
ca que se chegou à realização final do propósito
últimos dias (Ap 11.1-13). Apocalipse 12— 14 for
de Deus na Criação). Parece que, com o fim de
nece a mais longa interrupção nas visões de juízo.
cada série de juízos messiânicos, chegou também
Esses capítulos situam a oposição entre o culto ao
0 fim da história que precede o triunfo do reino
imperador e a igreja no contexto do antigo conflito
de Deus. 0 que se infere dessa correspondência,
entre os poderes das trevas e o Deus do céu.
ou paralelismo, entre as séries de juízos é que o
4.6
A cidade do Anticristo e a cidade de
período de juízos divinos não é estendido numa
Deus (Ap 17.1—22.5). Seria natural imaginar
interminável série de castigos; trata-se, antes, de
que, depois de concluída a apresentação dos juí
um período comparativamente curto de intensos
zos messiânicos, João retrataria imediatamente
juízos executados pelo Senhor da história.
a vinda de Cristo e de seu reino. Em vez disso,
É importante observar, no entanto, que João
porém, ele revela a ruína do império do Anti
relacionou as três séries por meio de um expediente
cristo, que se torna vítima das próprias forças
que vem sendo denominado “sobreposição ou
de destruição (Ap 17 e 18), revelando também
entrelaçamento”
(B a u c k h a m ,
cadeamento” (A. Y. da “intercalação”
CoLUNS,
1994, p. 8-9), ou “en
o louvor do povo de Deus e das hostes celestes
1976, p. 16-8), ou ain
acima dele (Ap 19.1-10). Só então João está livre
p. 172-3).
para descrever a vinda de Jesus, na qual derrotará
No intervalo entre o süêncio nos céus e a oferta
os inimigos de Deus por sua palavra onipoten
de orações a Deus pela chegada do reino, são
te (Ap 19.11—21.3); 0 reino de Cristo no mundo
(S chüssler F io r e n z a ,
apresentados os sete anjos que devem fazer soar
(Ap 20.4-6); a última tentativa frustrada de Sata
as trombetas (Ap 8.1-5). Depois do soar da séti
nás de derrotar esse reino (Ap 20.7-10); o juízo
ma trombeta, menciona-se a abertura do templo
final sobre a raça humana (Ap 20.11-15); o novo
de Deus no céu, e assim é vista a arca da alian
céu e a nova terra (Ap 21.1-8); a cidade de Deus,
ça (Ap 11.19). De modo semelhante. Apocalipse
a nova Jerusalém (Ap 21.9—22.5).
15.5,6 fala da abertura do santuário no céu, o ta
É importante
observar
que,
estrítamente
bernáculo da aliança, do qual procedem os anjos
falando, a história da salvação, o novo Êxodo,
com as sete últimas pragas, transpondo assim a
encerra-se em Apocalipse 21.8, com sua represen
imensa lacuna entre Apocalipse 12 e Apocalip
tação da nova criação. A descrição da cidade de
se 14
1994, p. 8-9). Por esse método
Deus, a noiva do Cordeiro, é feita com a clara
de repetição e desenvolvimento, João desenvolve
intenção de contrapô-la ã cidade do Anticristo,
a narrativa num crescendo, até chegar ao ponto
descrita em Apocalipse 17. Apocalipse chega a
(B a u c k h a m ,
culminante do advento de Cristo, que infunde te
seu ápice com a história da prostituta e da noiva.
mor e reverência.
Trata-se na verdade de um conto de duas cidades!
4.5
Interlúdios: vislumbres da igreja e seus
4.7Epílogo (Ap 22.6-21) . Os parágrafos finais
conflitos (Ap 7: 10.1— 11.13; 12— 14). Entre as
de Apocalipse resumem e fixam na consciência
três apresentações dos juízos messiânicos são
dos leitores e ouvintes as lições práticas do livro.
inseridos episódios que lançam luz sobre o que
Realçam acima de qualquer outra coisa a confia
acontece ã igreja durante o período da tribulação,
bilidade do livro como revelação verdadeiramen
bem como sobre a natureza de sua tarefa.
te divina, frisando também a proximidade do
Em Apocalipse 7, entre a abertura do sexto e do
cumprimento de sua mensagem.
sétimo selos, ocorrem duas visões: a primeira rela ta o selamento do povo de Deus, para proteção, no
5. Autoria
tempo do juízo (cf. Ez 9.1-11); a segunda oferece
0 autor dá-se a conhecer no primeiro parágrafo de
uma apresentação proléptica da alegria desse povo
Apocalipse como “seu [de Deus] servo [escravo]
I 94
A p o c a l ip s e , L iv r o de
João”. 0 uso do termo “escravo” choca o leitor
crítica de Apocalipse, as questões eram na reali
dos nossos dias, como aconteceu com os traduto
dade muito mais complicadas do que ele mesmo
res da Versão do rei Tiago [Autorizada;
pois,
foi capaz de perceber. Não resta dúvida de que
embora o termo ocorra muitas vezes nas línguas
estava correto em seu último argumento: João de
originais dos dois Testamentos, ocorre apenas uma
fato transgride várias vezes as regras da gramá
kjv ) ,
vez no
AT
nt
tica grega, mas nem sempre por falta de conhe
da
(Ap 18.13). Paulo inicia assim a Carta aos
cimento; já se afirmou que, para cada solecismo
KJV
da kjv (Jr 2.14) e apenas uma vez no
Romanos: “Paulo, servo [escravo] de Jesus Cris
em Apocalipse, há um exemplo de uso correto
to, chamado para ser apóstolo”. João escreveu da
de Unguagem (observe-se, e.g., a recusa por par
mesma forma, mas, ainda que muitas vezes faça
te de João de decUnar o nome divino depois de
referências a si próprio em seu hvro, nunca fala
uma preposição em Ap 1.4, imediatamente segui
de si mesmo como apóstolo (contraste-se ICo 1.1;
do do uso correto em relação aos sete espíritos
2 C o l.l;G ll.l;E fl.l;C ll.l).
que estão diante do trono de Deus). Hoje se reco
A partir do final do século ii passou-se a tomar por certo que o quarto Evangelho (v.
nhece de modo geral que por trás de Apocahpse
Jo ã o , E v a n g e
está a mente de um autor semítico, alguém cuja
e o U-
língua pátria era o hebraico ou o aramaico, mas
vro de Apocahpse tinham sido todos escritos por
não há certeza de como isso se relaciona com o
João, 0 filho de Zebedeu. Não obstante, desde o
estilo e a Unguagem do Uvro.
l h o de ) ,
as cartas de João (v.
J o ã o , C a r ta s de )
começo se reconheceu também que há dificulda
R. H. Charles era da opinião que João pensava
des com essa hipótese, notadamente com respeito
em hebraico e escrevia em grego
às diferenças entre Apocahpse e o Evangelho. As
H. H. Rowley defendia a ideia de que a língua pá
questões foram claramente expostas por Dionísio,
tria de João era o aramaico; assim ele pensava em
bispo de Alexandria, no século in. Ele ficara inco
aramaico enquanto escrevia em grego (convicção
( C h a r le s ,
1:cxlUi).
modado com a disseminação do ensino milenista
que ele comunicou numa carta a este autor). C. C.
em sua diocese e desejava coibi-lo. Assim, procu
Torrey insistia em que João escreveu seu Uvro em
rou primeiramente assegurar que Apocalipse não
aramaico e outra pessoa o traduziu para o grego
fosse interpretado literalmente e depois demons
de forma muito literal, movido por um senso de
trar que o Uvro não podia ter sido escrito pelo
reverência em relação ao mestre
apóstolo João. Quanto a esse último posiciona
Caso fôssemos adotar a opinião de Torrey, ficaria
mento, apresentou três razões.
ainda mais complicado o debate em torno das di
( T o r rey,
p. 158).
Primeira: o autor não se apresentou como o
ferenças linguísticas entre a linguagem e o estilo
discípulo amado, nem como irmão de Tiago, nem
do Evangelho e os de Apocalipse. Ironicamente,
como uma testemunha ocular e ouvinte do Senhor,
no entanto, C. F. Burney escreveu um Uvro inti
como fez João, o Evangelista; muitos cristãos aten
tulado The Aramaic origin o f the fourth Gospel [A
diam pelo nome de João, e havia dois líderes cris
origem aramaica do quarto Evangelho] (Oxford:
tãos com esse nome na Ásia romana, além de dois
Oxford University Press, 1922), para demonstrar
túmulos em Éfeso tidos como o túmulo de João.
que o Evangelho de João foi escrito em aramaico
Segunda: há muitos pontos de contato entre
e mais tarde traduzido para o grego. É preciso per
ideias do Evangelho de João e das Cartas de João,
ceber que os estudiosos recentes são geralmente
mas Apocalipse é totalmente diferente, destas e
cautelosos em aceitar que livros inteiros do
daquele: “Ele mal tem, por assim dizer, uma úni
nham sido escritos em aramaico e depois traduzi
ca sílaba em comum com aqueles escritos”. Terceira: o estilo do Evangelho e das cartas é
nt
te
dos para o grego. Nesse caso, o argumento chegou a um beco sem saída.
diferente do de Apocalipse; aqueles são escritos
A declaração de Dionísio de que Apocalipse
em grego de alto nível, mas este é muitas vezes
não tem uma sílaba em comum com o Evangelho
cheio de erros gramaticais e usa formas estrutu
e com as Cartas de João é exagerada. Parte do
rais e estilísticas impuras ou incorretas.
problema em apurar a relação existente entre o
Embora Dionísio tenha sido aclamado pela
Evangelho e Apocalipse reside precisamente nas
grande perspicácia que demonstrou na avaliação
diferenças e nas semelhanças entre os dois. As 95 I
,1 w v - M U ir jc , L i v r í u U t
duas obras sâo as únicas, por exemplo, a em
a considerar o apóstolo João o autor de Apocalip
pregar o termo logos (a “Palavra”) em referência
se, dissociando assim o problema da autoria des
a Cristo; ambas enxergam no Cordeiro de Deus
se livro do outro problema, o da autoria do quarto
uma fusão dos conceitos do Cordeiro guerreiro
Evangelho, mas sempre desejou se manter aberto
de Apocalipse com o Cordeiro pascal (v.
nessa questão
B easley-
(S w e te,
p. cbcxx-clxxxv).
1978, p. 124-6; 1986, p. 24-5, 354-5).
M. Kiddle, quarenta anos mais tarde, adotou
Além do mais, os termos “testemunho” , “vida” ,
uma atitude semelhante e declarou: “A autoria de
M urray,
“morte” , “sede” , “fome” e “vencer” em senti
Apocalipse talvez demonstre ser aquele mistério
do espiritual ou moral ocorrem tantas vezes no
do livro que jamais será revelado neste mundo”
Evangelho e em Apocalipse que levam a crer que
( K id d l e ,
exista uma relação concreta no campo da soterio
depois de Kiddle, escreveu: “ Nada mais sabemos
logia entre as duas obras.
sobre o autor de Apocahpse senão que era um
Ainda assim, os dois livros quase de forma
p. xxxvi). W. G. Kümmel, uma geração
profeta cristão judeu que atendia pelo nome de
singular são a expressão da mente e da personali
João”
dade de dois autores. Suas obras foram compostas
Em nenhum outro livro da Bíblia a identidade do
com cuidado extremo e de forma particularmente
autor é tão pouco importante, pois não é, como
complexa. Cresce cada vez mais o consenso de
queriam edições antigas da Bíblia, “a Revelação
(K üm m el,
p. 331). Necessitamos saber mais?
que 0 quarto Evangelho contém material que não
[o sentido de ‘apocalipse’] de João, o Divino” ,
somente recebeu uma reflexão cuidadosa, mas
mas a “Revelação de Jesus Cristo [...] a seu ser
também foi muito pregado ao longo dos anos.
vo João”. A questão da autoria não se resolve
Esse mesmo material demonstra um conheci
pelo nome da pessoa que recebeu a revelação
mento de primeira mão acerca do pensamento
e a anotou, mas pela natureza da obra, que na
rabínico e da teologia filosófica grega. Apocalipse
providência de Deus encerra e coroa o cânon das
origina-se de uma mente imbuída do
Escrituras.
at,
mas tam
bém reflete um conhecimento de primeira mão dos escritos rabínicos, de modo que João acha
6. Expectativa do Anticristo
natural expressar-se nesse estilo de composição.
Já observamos a relação que há entre o culto ao
Como explicar então a relação entre as duas
imperador e a expectativa da aparição de um An
obras? Seus autores deviam se conhecer muito
ticristo que governará não somente o império,
bem. Ultimamente, tem se postulado sobre uma
mas também o mundo. Essa expectativa domina
possível escola de João que explicaria a origem
Apocalipse 12— 14 e Apocalipse 16— 17, passa
dos escritos joaninos, hipótese bastante plau
gens em que o estilo apocalíptico chega ao ápice
sível. Há, no entanto, mais um elemento nessa
em Apocalipse. A figura de uma mulher vestida
questão; nunca ocorreu a Dionísio que o filho de
com 0 Sol, tendo a Lua embaixo dos pés e doze
Zebedeu pode ter sido o profeta João, não o autor
estrelas sobre a cabeça, e a de um dragão nos
do Evangelho.
céus que lança para a terra um terço das estrelas
H.
B. Swete, em sua pesquisa sobre a autoria claramente refletem fontes antigas, conhecidas
de Apocalipse, mostrou-se impressionado com a
não apenas dos escritores do
afinidade entre o caráter do apóstolo João confor
as nações do Oriente Médio, sendo utilizadas
at,
mas de todas
me ele aparece nos Evangelhos Sinóticos e o que
de várias maneiras. Comum a todas elas era um
se esperaria do profeta João. Ele e seus irmãos fo
monstro do mar que combateu os deuses do céu
ram chamados por Jesus de “ Boanerges”, isto é,
e procurou derrotá-los. Essas figuras ficam claras
“ filhos do trovão” (Mc 3.17); João proibiu alguém
em passagens como Isaías 27.1: “ O
que não era membro do grupo apostólico de ex
gará com sua espada destruidora, grande e forte,
pulsar demônios em nome de Jesus; queria fazer
o Leviatã, a serpente fugitiva; o Leviatã, a serpen
S enh or
casti
descer fogo dos céus sobre os samaritanos que
te veloz, e matará o dragão do mar”. A visão dos
recusaram hospitalidade a Jesus e aos discípulos
impérios mundiais em Daniel 7, simbolizados por
(Lc 9.52-55); foi testemunha da transfiguração de
bestas que emergem do mar, culminando num
Jesus e de sua ressurreição. Por isso, Swete tendia
aterrorizante adversário de Deus e do homem.
I 96 I
A p o c a l ip s e , L iv r o de
era a aplicação dessa mesma figura a um tirano
eles não tinham nenhuma razão para amar Nero
da época que não só oprimia o povo de Deus,
(a guerra romano-judaica começou em seu reina
mas também buscava dominar o mundo.
do), e teria se tornado de conhecimento comum
Esse simbolismo foi aplicado muitas vezes no
entre as igrejas, assim como Aba e Maranata se
como uma espécie de cartum ou charge de go
tornaram conhecidos entre todas elas. A confir
vernantes opressores, os quais estavam fadados
mação disso encontra-se numa leitura alternativa
a ser destruídos pelo Deus de Israel, o Senhor do
de Apocalipse 13.18 em alguns manuscritos; ou
céu e da terra. A mesma charge foi aplicada pelo
seja, 616, que é o número hebraico da forma lati
AT
profeta João ao esperado imperador anticristo.
na de Nero. Em contrapartida, era de conhecimen
Deve se ressaltar, no entanto, que João não con
to geral no começo entre os cristãos que o nome
siderava o imperador reinante o Anticristo. Para
Jesus em grego totaliza 888, que representa um
ele, o culto ao imperador preparava o caminho
avanço em relação à perfeição (777), assim como
para o verdadeiro Anticristo, que o exploraria
0 Anticristo demonstra consequentemente um de
em sua totalidade, de maneira semelhante à refe
créscimo em relação a ele. Isso mostra que o Anti
rência que Paulo faz em ITessalonicenses 2.7 ao
cristo de Satanás fica tão longe de ser o libertador
“mistério da impiedade” como algo já em opera
da humanidade quanto o Cristo de Deus excede
ção no mundo. Mais precisamente, João apUcou
todas as esperanças humanas de um redentor.
o símbolo do dragão a Satanás (Ap 12), ao Anti
Quanto ao Nero histórico, Suetônio informa
cristo (Ap 13) e à cidade e ao império sobre os
que, quando Nero soube que o senado romano
quais ele governava (Ap 17).
o havia declarado inimigo público e as tropas
Contudo, João vai mais adiante, uma vez que
estavam a caminho para capturá-lo, ele cometeu
alia o conceito do Anticristo à expectativa comum
suicídio cortando a garganta e foi sepultado no
em sua época em relação ao retorno de Nero a
túmulo da família
Roma. Isso se vê primeiramente quando ele apre
de Nero não ter sido sepultado à vista do púbhco
senta 0 Anticristo acometido de uma ferida mor
gerou a dúvida de que ele tivesse de fato morrido.
tal, recobrando a vida depois disso (Ap 13.3),
Isso se espalhou por toda parte e contribuiu para
e depois fica perceptível em Apocalipse 13.18:
a hipótese de que ele havia fugido para o Qriente.
“ Quem tiver entendimento, calcule o número da
Nos anos seguintes, nada menos que três homens
besta, pois é número de homem. Seu número é
se apresentaram como Nero, um no ano seguinte
seiscentos e sessenta e seis”. A possibiUdade de
à sua morte (69 d.C.), o segundo em 80 d.C. e o
representar um nome por um número reside no
terceiro em 88-89 d.C.; esse último quase conven
fato de que o hebraico e o grego não tinham si
ceu o rei de Pártia de que era mesmo Nero e por
nais distintos para os números: usavam em vez
pouco não ocasionou uma invasão do Império
disso as letras do alfabeto, de modo que “a” =
Romano. Se nos primeiros anos muitas vezes se
1, “b” = 2, “c ” = 3, e assim por diante. Des
supunha que Nero estivesse ainda vivo, na gera
se modo, qualquer nome podia ser calculado
ção seguinte pensava-se que ele havia ressurgido
somando-se os valores de suas letras. A. Deiss-
dos mortos para se vingar de Roma. É o que se lê
mann, por exemplo, cita uma inscrição numa
nos Uvros iii, iv e v dos Oráculos sibilinos.
parede de Pompeia com a seguinte frase: “Amo aquela cujo nome é 545”
( D e is s m a n n ,
p. 275).
(S u e t ô n io ,
Nero, 49-50). 0 fato
João aproveitou-se dessa expectativa, disse minada por toda parte. Em Apocalipse 13.3, ele
Ao longo dos séculos, foram sugeridos mui
descreve uma das sete cabeças da besta “como
tos nomes que somam 666 como a resposta ao
se estivesse ferida de morte” , maneira peculiar de
quebra-cabeça proposto por João, mas em anos
declarar isso, “mas sua ferida mortal foi curada”.
recentes há um consenso em grau cada vez maior
Faz lembrar Apocahpse 5.6, em que o Cordeiro
de que o nome que João tinha em mente era Nero
“parecia estar morto”. 0 cristo de Satanás é cla
César em hebraico. Se alguém perguntar como as
ramente uma paródia do Cristo de Deus, nesse
congregações de fala grega teriam sabido isso, a
e em todos os outros aspectos (v. Rissi, 1966,
resposta é que quase certamente a questão surgiu
p. 66). A adaptação da expectativa em torno de
entre judeus falantes do hebraico e do aramaico;
Nero ao Anticristo vindouro reaparece outra vez 97 I
MPOCAUPSE, LIVRO DE
em Apocalipse 17.7-18, mas com uma ênfase di
deificação do poder
ferente, uma vez que a besta representa o império
Mostra a história, e disto não está isento o último
e o Anticristo. De um lado, a besta sobre a qual
século, que tal deificação é capaz de reaparecer
a mulher está montada “era e já não é; todavia
com resultados pavorosos. A humanidade des
está para subir do abismo e irá para a perdição”
considera isso para seu próprio prejuízo.
(B auc kham ,
1994, p. 451-2).
(Ap 17.8); de outro, “a besta, que era e já não é, também é o oitavo rei [cabeça], está entre os sete
7. Propósito de Apocalipse
e irá para a perdição”.
E. F. Scott define Apocalipse como “um toque
À luz de Apocalipse 13, o oitavo rei sem
de trombeta para despertar a fé” (Scorr, p. 174).
dúvida é Nero, em quem estavam incorporados
Para os cristãos da época de João, especialmente
a natureza e o destino do império do Anticristo.
na Ásia romana, a exaltação de Roma e a popu
Ambos têm a semelhança do dragão (Satanás),
laridade do culto ao imperador tornavam a vida
ambos se opõem ao Senhor e seu povo, ambos
cristã difícil e o futuro desalentador, por causa da
pertencem ao “abismo” e ambos estão fadados
pressão para que se unissem à maioria na cele
a sofrer o destino daqueles que fazem guerra
bração da divindade de César e da prontidão dos
contra o Cordeiro (Ap 15.14). Mas uma diferença
informantes em relatar às autoridades a recusa
importante fica evidente nas representações do
dos cristãos em fazê-lo. No entanto, ceder a essa
Anticristo em Apocalipse 13 e em Apocahpse 17.
pressão implicava negar a fé cristã em sua tota-
No capítulo 13, 0 império recebe um empurrão
hdade, o que era impensável. João, portanto, es
do Anticristo, de modo que todos no mundo,
creveu seguindo a ordem do Senhor ressurreto de
exceto aqueles cujos nomes foram escritos no
fortalecer a fé e a coragem dos crentes, de muni-
“livro da vida” do Cordeiro, recebem a marca da
-los para a batalha contra as forças do Anticristo
besta e o adoram (Ap 13.8,16-18). No capítulo
no mundo e de ajudá-los a dar testemunho do
17, cumprem-se os temores de muitos, e o cristo
único e verdadeiro Senhor e Salvador.
de Satanás convence os reis do Oriente a unir-
Todo 0 livro de Apocalipse está arraigado em
se a ele para atacar a “grande Babilônia” , e a
sua descrição do Deus onipotente como Senhor
cidade é destruída e incendiada (Ap 17.15-17).
da história e em sua atividade redentora em Cris
Esse é 0 resultado do culto ao imperador. A besta
to. Tão certo quanto o fato de Jesus ter vencido
e seus aliados permanecem na mão do Deus que
a primeira e mais importante etapa da redenção
eles desafiam, e por impulso do Diabo cumprem
da humanidade, ele reaUzará a tarefa que lhe foi
as palavras de Deus (Ap 17.16,17; sobre isso, v.
designada de garantir a vitória do reino de Deus
Bauckham ,
1994, p. 329-417).
e, assim, a emancipação total da humanidade
Um ponto deve ser esclarecido a respeito do
em relação aos poderes do mal. Os seguidores
uso que João faz do chamado “mito de Nero”.
do Cordeiro não podem presumir que escaparão
Não resta dúvida de que João entendia que Nero
de uma participação em seus sofrimentos, daí o
retornaria literalmente dos mortos para cumprir o
chamado às igrejas já no começo das cartas: “ Sê
papel de Anticristo. Ele fez uso da expectativa da
fiel até a morte, e eu te darei a coroa da vida”
época para retratar as obras do Anticristo como
(Ap 2.10). E isso significará participar da vida
trabalho de outrv Nero, e isso por uma boa razão:
eterna na companhia de Deus e dos remidos na
Nero foi o primeiro imperador romano a perse
cidade eterna de Deus.
guir a igreja cristã, e o fez com tamanha cruelda de que serviu de modelo para a besta de Satanás
8. Importância de Apocalipse para hoje
em sua guerra contra o Cordeiro (Ap 11.7-10;
Apocalipse tem sido uma inspiração para a igreja
13.7; 17.12-14). Ao apresentar o Anticristo como
ao longo dos séculos, sobretudo quando ela teve
outro Nero, João deixa claro que o culto ao impe
de enfrentar a oposição feroz das autoridades go
rador é uma projeção do que ocorrerá quando as
vernamentais. De quando em quando, no entan
sementes de seu início estiverem prontas para a
to, tem sido criticado como um livro subcristão. R.
colheita. Não podia ser diferente. 0 culto ao im
Bultmann, para citar apenas um exemplo, declara
perador, como R. J. Bauckham observa, era uma
que o Uvro apresenta “um judaísmo fracamente
I 98
A p o c a u p s e , L iv r o de
cristianizado”
(B u ltm a n n ,
1955, v. 2, p, 175). A
tinha de ser contida. A hostilidade ao cuho ao
critica de Bultmann reflete sua rejeição a tudo
imperador é inevitável em qualquer geração, e
que apresente contornos apocalípticos, embora
há boas razões para o uso das charges extraídas
esteja ciente de que o
apresenta a expiação
das religiões do antigo Oriente Médio. No que
como algo que abarcava tanto o amor quanto o
diz respeito à violência na aplicação dessas char
julgamento de Deus. Vemos isso especialmente
ges, é essencial recordar a tradição da hipérbole
em João 12.31,32, mas também em João 3.16-21;
utilizada pelos profetas do
sobre a última passagem, Bultmann faz o impres
mais marcantes são as formas de expressão de
sionante comentário: “ Não haveria simplesmen
Sofonias. Em Sofonias 1.2-6, os juízos de Deus
te nenhum juízo não fosse o acontecimento do
são apresentados implicando a destruição de to
amor de Deus”
das as criaturas vivas no dia do Senhor. 0 mes
A.
nt
(B u ltm a n n ,
1971, p. 154).
at.
Um dos exemplos
Y. Collins cita D. H. Lawrence, para quem mo estilo é repetido em Sofonias 3.8: “ Esta terra
0 livro ventila a raiva, o ódio e a inveja do mais
toda será consumida pelo fogo do meu zelo”. A
fraco contra o forte, contra a civilização e mes
isso imediatamente se segue Sofonias 3.9: “ En
mo contra a natureza (cit. A. Y.
tão darei lábios puros aos povos, para que todos
C o luns,
1984, p.
169). A avaliação que Lawrence faz de Apocahpse
invoquem o nome do
é típica de sua perspectiva sobre a vida, mas é
mesmo espírito”.
Senhor
e o sirvam com o
perturbador que exegetas cristãos adotem essa vi
Tamanha contradição não pode ser interpre
são. Collins considera que João procurava superar
tada hteralmente, mas o juízo e a salvação dos
a tensão entre a realidade e a fé, entre o que é e o
judeus e dos gentios é a intenção das passagens,
que deve ser. A fé abrange o fato de que Deus é o
como deixa claro o restante do livro. O mesmo
regente de tudo e todos, que Jesus é Rei de reis e
se confirma em Apocalipse, como mostram Apo
Senhor de tudo e todos e que no reino messiânico
cahpse 11.10 e 15.3,4; a sobrevivência dos habi
todos os cristãos reinarão com ele. A realidade é
tantes da terra no milênio. Apocalipse 20.4-6; os
0 poder de Roma e a impotência dos cristãos, o
reis da terra trazendo presentes à nova Jerusalém
medo que tinham de ser denunciados às autori
(Ap 21.24-27). O quadro da cidade de Deus em
dades romanas, a recordação que guardavam da
Apocahpse 21.9— 22.5 vai muito além de amai
perseguição de Nero, da destruição de Jerusalém
nar uma suposta raiva ou inveja dos cristãos; sua
e do exílio de João. Isso despertou sentimentos
motivação última é revelar a realização do obje
agressivos de inveja em relação aos abastados, de
tivo de Deus para sua criação numa humanidade
frustração em relação ao cuho ao imperador e de
redimida em comunhão com ele. Ao declarar essa
desejo de vingança contra os atos violentos do im
revelação, o profeta João foi sem dúvida dirigido
pério. Mas essas imagens violentas foram trans
pelo Espírito (Ap 19.10). A igreja de hoje faz bem
feridas para Deus e para Cristo em Apocahpse.
em atender ao apelo que aparece em cada uma
Assim, Jesus fará guerra com a espada de sua boca
das cartas às sete igrejas: “Quem tem ouvidos,
contra os seguidores de Balaão, contra os nicola
ouça o que o Espírito diz às igrejas”.
ítas e contra Jezabel (“companheiros cristãos” !), bem como contra os generais, os ricos, os fortes
9. Apocalipse nos mais antigos escritos
(Ap 6.15-17) e os exércitos que seguem o Anticris
pós-neotestamentários
to (Ap 19.21;
Vários pais apostólicos demonstram que Apoca
V.
A. Y
Colu ns,
1984, p. 156-7).
Muito mais é escrito nessa linha de pensamen
lipse influenciou seus escritos, embora nem todos
to, 0 que exige muito mais espaço de resposta do
deixem isso claro. Didaquê, IClemente, as cartas
que nos é possível aqui. Algumas considerações,
de Inácio e a Carta aos filipenses, de Policarpo,
no entanto, precisam ser feitas. Se a questão é
mostram pouco ou nenhum reflexo de Apocalipse
realismo, eis uma coisa que não falta a João. Os
e estão mais preocupadas com a vida da igreja, sua
seguidores de Balaão, os nicolaítas e Jezabel não
ordem e
são cristãos de mente aberta, mas aqueles in
(Di, 16) contém um “posfácio apocalíptico”, mas
a d o r a ç ã o / c u lto .
A conclusão da Didaquê
fluenciados pelo antinomismo dos gnósticos que
claramente ecoa o discurso escatológíco dos Evan
despontavam naqueles dias, e a influência deles
gelhos (Mc 13 e corresps.), e, não de Apocalipse. 99 I
A p o c a u p s e , U v r o de
A Epístola de Bamabé adota a interpretação da
Ver também
criação em seis dias como uma figura da semana
d ln td
a p o c a lip tis m o ; e s c a t o lo g ia .
A n tic h r is t;
:
B a b y lo n ;
B e a s ts ,
D ra g on ,
cósmica da história: esta dura seis mil anos e é
S ea , C o n f l i c t M o t i f ; B o w ls ; H ea v e n , N e w H ea ven ;
seguida pelo descanso sabático do reino de Deus
Jeru salem , Z io n , H o l y C it y ; Lam b; L i t u r g i c a l E l e
(Bn, 15). Talvez seja essa uma das tradições que
m en ts; M a r t y r d o m ; M ille n n iu m ; O l d T e s ta m e n t in
contribuíram para a figura do milênio, utilizada
R e v e la tio n ;
por João. É também encontrada em ZEnoque 33,
p h ets, F a ls e P r o p h e ts ; S c r o l l s , S e a ls , T ru m p ets; V i
um livro talvez do mesmo período que Apocalipse.
sion , E c s ta tic E x p erien c e; W r a t h , D e s t r u c tio n .
P a ro u s ia ;
P e r s e c u tio n ;
Proph ecy,
P ro
As “Visões” , de O pastor, de Hermas, seguem Comentários:
D. E. Revelation.
também a tradição apocalíptica. Dizem respeito
BiB u oG RA nA .
à vida da igreja e estão, portanto, próximas de
Dallas: Word, 1997-2000.
Apocalipse. 0 mesmo se pode dizer das “ Similitu
Book of Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.
A u ne,
■ B e a le , C. K. The
( w b c .)
■ B e a s le y -M u r ra y , G. R. The Book of Reve
des” , também de O pastor, especialmente no des
(m c tc .)
taque conferido aos anjos, representados como
lation. Ed. rev. Grand Rapids: Eerdmans, 1978. ■
I. T. The Apocalypse of John.
responsáveis pela criação, e um anjo bom e um
(n cb c.)
mau são designados para os humanos (He, “Si” ,
New York: Macmillan, 1919. ■ B o rin g , M. E. Revela
B e c k w ith ,
tion. Louisville: John Knox, 1989. (/nfC.) ■ C a ir d ,
6,2.1;He, “Vi” , 3.4.1). Papias, mais que qualquer outro, era entu
G.
B.
The Revelation of St. John the Divine. New
siasta do milênio. Sua famosa declaração, que
York: Harper & Row, 1966.
relatava a extraordinária fertilidade da terra nesse
A critical and exegetical commentary on the Revela
período, é atribuída ao “Senhor” , conforme dado
tion of St. John. Edinburgh: T & T Clark, 1920. 2 v. ■ F a rrer,
■ C h a r le s , R. H.
( h ntc.)
The Revelation of St. John the
a saber por parte de “presbíteros que viram João”.
(jc c .)
As vinhas terão “dez mil videiras, e cada videi
Divine. Oxford: Clarendon, 1964. ■ F o rd , J. M. Reve
A. M.
ra dez mil ramos, e cada ramo dez mil rebentos,
lation. New York: Doubleday, 1975.
e em cada rebento haverá dez mil cachos, e em
r in g to n ,
cada cacho dez mil uvas, e cada uva quando es
Press, 1993. (SacP, 16.) •
premida renderá vinte e cinco medidas de vinho”.
Grand Rapids: Zondervan, 2000. (wmc.) ■ K id d le ,
Tal crescimento se aphcará a campos de trigo, a
M. The Revelation of St. John. New York: Harper,
(a b .)
■
H a r
W. J. Revelation. Collegeville: Liturgical K e e n e r , C . S.
Revelation.
árvores de frutas, a sementes e ervas, e os ani
1940. (mntc.) ■ L a d d , G. E. A commentary on the
mais que deles comerem serão dóceis uns para
Revelation o f John. Grand Rapids: Eerdmans, 1972.
com os outros e para com o homem (relatado por
■ L iu e , H .
Ireneu, He, 5.33.3-4). Um relato afim, embora
Muhlenberg, 1957. ■
menos extravagante, acha-se em lEnoque 10.19.
Downers Grove: InterVarsity, 1997.
Segundo cria L. Gry, o conceito de Papias acer
ris,
The last book of the Bible. Philadelphia: M ic h a e ls ,
J. R. Revelation. (jv p n tc .)
■M o r
L. The Revelation of St. John. 2. ed. Leicester:
ca do milênio foi obtido dos seguidores de Arís-
InterVarsity, 1987.
tion e do presbítero João. É evidente que as ideias
of Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1977. •
de Papias eram comuns na igreja de seu tempo e
O sb o rn e,
levaram ao esforço de Dionísio por enfraquecer a
2002.
influência de Apocahpse. Ainda assim, a interpre
tion. London:
(t n t c . )
• M o u n c e , R. H. The Book
G. R. Revelation. Grand Rapids: Baker,
( b e c n t .)
■
S co tt,
scm,
E. F. The Book o f Revela
1939. ■ S w e e t, J. P. M. Revela
tação milenista de Apocahpse 20 era firmemente
tion. Philadelphia: Westminster, 1979. ■ S w e te , H.
defendida por Justino Mártir, Ireneu, Hipólito e
B. Commentary on the Book of Revelation. 3. ed.
Vitorino. Orígenes, no entanto, era “o veemen
London: Macmillan, 1909. Estudos:
te adversário do milenismo”
The Apocalypse of John and the problem of genre.
( B e c k w it h ,
p. 323).
A une,
D. E.
Ticônio, em seu comentário, seguiu no encalço
Semeia, v. 36, p. 65-96, 1986. ■
de Orígenes, e Agostinho sepuhou o quiliasmo
The climax of prophecy. Edinburgh: T & T Clark,
B au c kh am ,
R. J.
por sua doutrina do milênio como a era da igreja.
1994. ■ ______ . The theology of the Book o f Reve
Nem é preciso dizer que a doutrina do reino terre
lation. Cambridge: Cambridge University Press,
no de Cristo foi ressuscitada em séculos posterio
1993.
res e defendida por muitos intérpretes.
Word, 1986.
I 100 I
( n t t .) ■ B easle y - M u r r a y , ( w b c .) ■ B o w m a n ,
G. R. John. Waco:
J. G. The Revelation
A p o c a l íp t ís m o : N o v o T e s t a m e n t o
of John: its dramatic structure and message. Int, v.
Revelação [apokalyspsis] de Jesus Cristo, que
9, p. 436-53, 1955. •
D eus
R. Gospel o f John.
Bu ltm an n ,
lhe deu para mostrar a seus servos as coisas
Oxford: Blaclcwell, 1971. ■ ______ . Theology of the
que em breve devem acontecer” (Ap 1.1). Depois
New Testament. New York: Scribners,
de Apocalipse 1.1, o termo apocalipse vem sendo
■ C o lu n s ,
chael Glazier,
1979. ■ ______
the Book of Revelation. (hdr,
1951, 1955.
A. Y. The Apocalypse. Wilmington: Mi
9 .) ■
. The combat myth in
em
M is sou la : Scholars, 1976.
______ . Crisis and catharsis:
•
C ollins , J. J.
■
and history in the Book of Revelation. K n o x , 1979.
East.
A. M.
2.
■ D eissmann , A . Light from the Ancient
A rebinh of images.
As origens do apocaliptismo
3. Características do apocaliptismo
A tla n ta: Joh n
R eim pr. G ran d R a pid s: Baker, 1978.
Luecke, especiahsta alemão
1. Definição de “apocaliptismo”
Myth
C ourt , J. M .
F.
(1791-1854), como termo genérico para
melhantes ao Apocalipse de João.
The apocalyptic imagination.
N e w York: C rossro ad , 1984.
NT
designar documentos de conteúdo e estrutura se
th e p o w
e r o f th e A p o c a ly p s e . P h ila d elp h ia : W estm in ster, 1984.
usado desde o começo do século xix, quando foi popularizado por
4. Jesus e o apocahptismo
■ F arrer ,
5. Paulo e o apocahptismo 6. Os escritos neotestamentários posteriores
W e stm in ster: D acre,
e 0 apocahptismo
1949. ■ G ry , L. H e n o c h X ,19 et les b e lle s p ro m e s s es d e Papias. rb , v. 53, p. 197-206, 1946. ■ H emer , C. J.
The Letters to the seven churches of Asia in
their local setting W . G.
S h e ffield :
jsot,
Introduction to the New Testament.
v ille : A b in g d o n , 1975. ■ M ichaels , J. R.
ing the Book o f Revelation. 1992. ■ M oyise,
o f Revelation.
s
.
1. Definição de “apocaliptismo” O termo “apocahptismo” é uma designação con
1986. ■ K ümmel ,
temporânea largamente usada em referência a
N ash
Interpret
uma cosmovisão que caracteriza segmentos do judaísmo primitivo de cerca de
G ran d Rapid s: Baker,
The Old Testament in the Book
a.C. a
200
Rissi,
intervenção iminente de Deus na história hu
an e x e g e tic a l stu d y o f
mana, de uma maneira decisiva, para salvar seu
R e v e la tio n 19.11— 22.15. 2. ed . L o n d o n : scm, 1972.
povo e punir os inimigos, destruindo a presente
• ______ . Time and history. Richmond: John
ordem cósmica decaída e restaurando ou recrian
M.
S h e ffield : A c a d e m ic , 1995.
The future o f the World:
'(s b t .)
Knox,
•
1966.
R o w la n d ,
New York: Crossroad,
■
200
d.C. Essa visão era centrada na expectativa da
C. C. The open heaven.
O conhecimento de segredos cósmicos (uma das
E. The Book o f Revelation: justice and judgment.
contribuições da tradição sapiencial para o apo
Philadelphia: Fortress,
The
caliptismo) e dos planos escatológicos iminentes
paschal liturgy and the Apocalypse. Richmond:
de Deus foi revelado a apocaliptistas por meio de
John Knox,
■ Th om pson , L. L. The Book of
sonhos e visões, e os apocalipses que eles escre
Seuelation: Apocalypse and empire. Oxford: Ox-
veram eram acima de tudo narrativas das visões
1960.
f3rd University Press,
1985.
■
do o cosmo em sua perfeição original, prístina.
S c h ü ss ler F io re n z a ,
1982.
• S hep herd, M.
H.
D ocu-
que haviam recebido e que lhes foram exphcadas
'^^ents o f the primitive church. New York/London:
por um anjo, que as interpretava. Acredita-se que
Harper,
todos os apocahpses judaicos existentes sejam
1990. • T o r r e y ,
C. C.
1941.
G. R.
pseudonímicos, ou seja, escritos como se fossem
B e a s l e y - M u rray
da autoria de antigas figuras judaicas de destaque A
p o c a l ip t is m o :
N
ovo
T
como Adão, Enoque, Moisés, Daniel, Esdras e Ba-
estam ento
O iermo "apocaliptismo” tem origem no termo
ruque. Apenas os apocalipses cristãos mais anti
giego apokalypsis, que significa "revelação” , "des-
gos, o Apocalipse de João e O pastor, de Hermas,
ciTiinamento”. 0 autor do Apocalipse do
foram escritos sob o nome de seus verdadeiros
n t , ou
Apocalipse de João, foi o primeiro autor judeu ou
autores. A razão mais provável do fenômeno da
cristão a empregar o termo apokalypsis para de
pseudonímia apocalíptica é que se tratava de uma
signar 0 conteúdo de seu hvro. O hvro é no fundo
estratégia para aduzir credenciais e assim garan
2 narrativa de uma série de visões revelatórias
tir a aceitação desses escritos revelatórios num
ÇTie põem a descoberto os acontecimentos que
momento da história israehta em que a reputação
rarcam o fim iminente da era presente: "[Esta é a]
dos profetas havia chegado ao ponto mais babco.
101 I
a p o c a l ip t is m o :
N o v o I e st a m e n t o
“Apocaliptismo”, portanto, é um termo usado em
fenômeno do apocaliptismo. Seguindo a trilha
referência ao tipo específico de expectativa esca
de F. Luecke a partir de meados do século xix,
tológica característico dos primeiros apocalipses
muitos estudiosos consideraram o apocahptismo
judeus e cristãos. Entre as composições religio
favoravelmente, como um desenvolvimento da
sas judaicas geralmente consideradas apocalipses
profecia do
estão Daniel 7— 12 (o único apocalipse do
lusão do período pós-exílico, que incluiu sujeição
at),
at,
talvez em consequência da desi
os cinco documentos que compõem lEnoque
a nações estrangeiras e tensão no seio da comu
(1—36, o Livro dos Vigilantes; 37— 71, as Simi-
nidade judaica. Outros estudiosos que discerni
litudes de Enoque; 72—82, o Livro de Luminares
ram uma forte ruptura entre a profecia do
Celestes; 83—90, o Apocalipse Animal; 92— 104,
0 apocahptismo posterior aventaram a hipótese
at
e
a Epístola de Enoque], ZEnoque, 4Esdras, ZApoca-
de que boa parte das características fundamentais
lipse de Baruque, íApocalipse de Baruque e Apo
do apocaliptismo se originou no antigo Irã, tendo
calipse de Abraão. Entre os primeiros apocalipses
penetrado o pensamento judaico durante o perío
cristãos, constam o Apocalipse de João (o único
do helenístico (c. 400-200 a.C.), ou surgiu, de ma
apocalipse do
neira mais geral, das tendências sincretistas do
nt)
e O pastor, de Hermas.
Quatro aspectos do apocaliptismo precisam ser distinguidos.
período helenístico, quando se vê uma fusão das ideias rehgiosas do Ocidente com as do Oriente.
A escatologia apocalíptica é um tipo de
esc ato
2.1 O cenário do apocaliptismo. 0 fato de os
encontrada nos apocalipses ou semelhante
apocahpses serem pseudonímicos em sua maio
à escatologia dos apocalipses, caracterizada pela
ria dificultou a reconstrução das circunstâncias
tendência de enxergar a realidade da perspectiva
sociais em que foram escritos e às quais corres
da soberania divina (e.g., as escatologias da co
ponderam. Nâo obstante, há um amplo consenso
munidade de Qumran, de Jesus e de Paulo).
de que os apocalipses judaicos foram escritos ou
l o g ia
0 apocaliptismo ou milenismo é uma forma
revisados em períodos de crise social ou políti
de comportamento coletivo baseado nessas cren
ca, embora essas crises pudessem estar inseridas
ças (e.g., o movimento dirigido por João Batista
numa ampla escala que ia do real ao imaginado.
e as revoltas de Teudas, relatadas em Atos 5.36,
Concentrando sua atenção no período de 400 a
de Josefo, em An, 20.5.1, § 97-8, e do egípcio
200 a.C., O. Ploeger discerniu uma divisão na co
não identificado de Atos 21.38; J o s e f o , An, 20.8.6,
munidade judaica pós-exílica em dois segmentos
§ 169-72;Guju, 2.13.5, §261-3).
bem definidos, o partido teocrático (os sacerdotes
0 apocalipse é o tipo de escrito em que es
aristocratas reinantes), que interpretava a esca
sas crenças ocorrem em sua forma mais básica
tologia profética da perspectiva do Estado judeu,
e completa, um escrito centrado na revelação do
e o partido escatológíco (precursores dos apo
saber cósmico e do fim dos tempos.
caliptistas), que aguardava o cumprimento das
As figuras apocalípticas são os vários temas
predições escatológicas dos profetas. Mais recen
que constituem a escatologia apocalíptica, usados
temente, P. D. Hanson sustentou que o apocaUp-
de várias formas nos primeiros escritos judeus e
tismo é um desenvolvimento natural da profecia
cristãos.
israehta com origem na luta interna entre profe
0 foco deste artigo recairá sobre a escatolo gia apocalíptica judaica e sobre as formas em que Jesus e os autores do
tas visionários e sacerdotes hierocráticos (zadoqueus) ocorrida entre o século vi e o iv a.C.
adaptaram alguns dos
2.2 Escatologia e apocaliptismo. De forma
temas e estruturas básicos da escatologia apoca
geral, tem se feito uma distinção entre escatologia
líptica em seu pensamento teológico.
e apocaliptismo. “ Escatologia” foi um termo que
2. As origens do apocaliptismo
classificar aquele aspecto da teologia sistemática
nt
começou a ser usado no século xix como forma de Foram apresentadas várias propostas a respei
que lidava com os temas relacionados ao futu
to das origens do apocaliptismo, propostas que
ro do indivíduo (morte,
muitas vezes refletiam a atitude positiva ou ne
eterna, céu e inferno) e à escatologia coletiva ou
gativa que os estudiosos tinham em relação ao
nacional, ou seja, o futuro da igreja ou do povo
102
r e s s u r r e iç ã o ,
j u íz o ,
vida
A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o
judeu (e.g., a vinda do Messias, a grande tribula
0 autor acredita que o apocaliptismo surgiu dos
ção, a ressurreição, o juízo, a segunda vinda de
escritos sapienciais do
Cristo, o reino messiânico temporário, a recriação
aos escritos sapienciais e apocalípticos, e que
do Universo). É muito comum a distinção entre
fazem supor uma relação entre os dois tipos de
escatologia profética e escatologia apocalíptica, o
literatura, estão os seguintes elementos; 1) tanto
que é muito útil para realçar o que se manteve,
os sábios e experientes quanto os apocaliptistas
bem como o que mudou na expectativa escato
são chamados “sábios” , e ambos preservam seus
lógica judaico-israelita. Seguindo esse modelo, a
ensinos na forma escrita, muitas vezes realçando
escatologia profética era uma perspectiva otimis
seu “conhecimento” especial e a antiguidade des
ta que antevia Deus restaurando no fim de todas
se conhecimento; 2) ambos mostram tendências
as coisas as circunstâncias prístinas e originaria
individualistas e universalistas; 3) ambos se preo
mente idílicas, e faria isso atuando por meio de
cupam com os mistérios da natureza pela pers
processos históricos. O profeta israelita proclama
pectiva celestial; 4) ambos refletem uma visão
va ao rei e ao povo os planos de Deus para
determinista da história.
Isra
at.
Entre os temas comuns
da perspectiva de acontecimentos e processos
A teoria de que a mãe do apocaliptismo ju
históricos e políticos de fato. A profecia enxerga
daico era a sabedoria de Israel, não a profecia
o futuro brotando a partir do presente, ao passo
israelita, encontrou parco apoio acadêmico na
que a escatologia apocalíptica vê o futuro inter
forma em que foi proposta por Von Rad. Ainda
rompendo 0 presente; aquela é essencialmente
assim, inegavelmente, existem elos entre os es
el
otimista, ao passo que esta é pessimista.
critos sapienciais e apocalípticos (Sb 7.27; Eo
2.3 Profecia e apocaliptismo. A questão do
24.33), ambos fenômenos da tradição dos escri-
relacionamento entre profecia e apocaliptismo é
bas. A tradição sapiencial em Israel sem dúvida
apenas um aspecto do problema em relação ao
foi uma das muitas influências sobre o desenvol
grau de continuidade ou ruptura que se imagi
vimento do apocaliptismo judaico. Ainda assim,
na existir entre o apocaliptismo judaico e as
é importante distinguir entre dois tipos de escri
anteriores tradições israelitas de cunho político
tos sapienciais: sabedoria proverbial e sabedoria
e religioso. É importante reconhecer que a pro
mântica. A última está relacionada ao papel do
fecia e 0 apocaliptismo apresentam tanto ele
“ sábio” de interpretar sonhos como refletido nas
mentos de continuidade quanto de ruptura. Os
tradições bíblicas em torno de José e Daniel, am
agudos contrastes normalmente imaginados entre
bos capazes de expUcar o significado de sonhos
a profecia e o apocaliptismo são de algum modo
revelatórios ambíguos por meio de uma sabedo
atenuados quando reconhecemos que a profecia
ria de origem divina (Gn 40.8; 41.25,39; Dn 2.19-
sofreu várias mudanças e que há semelhanças
23,30,45; 5.11,12). A figura do angelus interpres
impressionantes entre a profecia tardia e o
(“anjo intérprete”) ocorre com frequência nos
eiemento apocalíptico inicial
Entre os
apocalipses judaicos, nos quais ele desempenha
livros proféticos posteriores que mostram as ten
o papel análogo de revelador sobrenatural capaz
dências que surgiriam depois de modo mais ple
de desvendar o significado mais profundo dos so
(H anson).
namente desenvolvido nos escritos apocalípticos
nhos e das visões experimentados pelo apocalip-
judaicos, estão as visões de Zacarias 1—5 (com a
tista (Dn 7— 12; Zc 1—6; 4Esdras).
presença de um intérprete angélico), Isaías 24— 27 e 56— 66, Joel e Zacarias 9— 14.
2.5
Farisaísmo e apocaliptismo. A monu
mental obra em três volumes sobre o judaísmo
2.4 Escritos sapienciais e apocaliptismo.
de G. F. Moore baseou-se na suposição de que o
Maitos estudiosos sustentam que havia uma rup
judaísmo “ normativo” dos primeiríssimos sécu
tura fundamental entre a profecia e o apocalip-
los da era cristã, “a era dos tanains”, não incluía
ásmo. G. von Rad, por exemplo, rejeita a teoria
o apocaliptismo judaico. Semelhantemente, A.
de que as raízes do apocaliptismo deviam estar
Schweitzer distinguiu precisamente o ensino dos
na profecia israelita. Para ele, o apocaliptismo
apocaliptistas (e, portanto, de Jesus) do ensino
ccasistia em dualismo de contornos definidos,
dos rabinos. Não obstante, o realce dispensado
ranscendência radical, esoterismo e
pelos fariseus ã ressurreição, à era vindoura e ao
g n o s t ic is m o .
I 103 I
A p o c a l ip t is m o : N o v o T e st a m e n t o
Messias torna difícil distinguir com precisão os
Não estão listadas aqui todas as característi
interesses religiosos e políticos dos apocaliptistas
cas, mas é o bastante para nos concentrarmos em
em relação aos dos fariseus, ainda que estes pa
alguns aspectos inconfundíveis da cosmovisão
reçam ter se desencantado com muitos aspectos
apocalíptica.
do apocaliptismo logo após a primeira revolta de
3.2 Sequências apocalípticas possíveis. Como
sastrosa contra Roma (66-73 d.C.}. W. D. Davies
as narrativas que circunstanciam os acontecimen
sustenta que há vários elos entre o apocaliptismo
tos em torno do encerramento da era presente e
e 0 farisaísmo: 1) ambos compartilham uma reli
da inauguração da era futura são no fundo um
giosidade e uma atitude semelhante em relação à
tipo de folclore, há muitas exposições divergen
Torá; 2) ambos partilham visões semelhantes em
tes dos acontecimentos futuros esperados, com
relação a temas escatológicos, como as dores de
pouca congruência entre elas. Dessa maneira, na
parto da era messiânica, o recongraçamento dos
apresentação de uma síntese da grande varieda
exilados, os dias do Messias, a nova Jerusalém,
de de sequências apocalípticas possíveis encon
o juízo e a geena; 3} ambos mostram tendências
tradas nos escritos apocalípticos, a ênfase deve
populistas e escolásticas.
recair sobre as características mais tipicamente encontradas nessas exposições. O apocaliptis
3. Características do apocaliptismo
mo, ou escatologia apocalíptica, está centrado na
3.1 Principais aspectos do apocaliptismo. Há
crença de que a presente ordem mundial, que é
várias características da escatologia apocalíptica
ímpia e opressiva, encontra-se temporariamente
sobre as quais existe algum consenso entre os
sob o controle de Satanás e de seus cúmplices hu
estudiosos:
manos. A presente ordem mundial ímpia será em breve destruída por Deus e substituída por uma
•
dualismo temporal das duas eras;
nova e perfeita ordem, correspondente ao Éden.
• ruptura radical entre esta era e a era vin
Na presente era, o povo de Deus consiste numa
doura, aliada a um pessimismo em relação
minoria oprimida que espera fervorosamente a
à ordem presente e acrescida de esperança
intervenção de Deus ou de seu agente especial
em relação a outro mundo e a uma ordem
mente escolhido, o Messias. A transição entre a
futura das coisas;
era antiga e a nova, o fim da velha era e o começo
divisão da história em segmentos (quatro,
da nova era ocorrerão por meio de uma série final
sete, doze), refletindo um plano predeter
de batalhas travadas pelo povo de Deus contra
•
•
minado para a história;
os aliados humanos de Satanás. 0 resultado, no
expectativa da chegada iminente do rei
entanto, jamais é posto em xeque, visto que os
no de Deus como ato divino, decretando
inimigos de Deus estão predestinados à derrota
a condenação das circunstâncias terrenas
e à destruição. A inauguração da nova era come
presentes;
çará com a chegada de Deus ou de seu agente
• perspectiva cósmica em que a situação pri
autorizado para julgar os ímpios e recompensar
mordial do indivíduo nâo se situa mais
os justos e será concluída pela recriação ou pela
dentro de uma entidade coletiva, como Is
transformação do Universo.
•
• •
rael ou o povo de Deus, e a crise iminente
3.3 Dualismo limitado. Uma das característi
não é localizada, mas apresenta dimensões
cas fundamentais do apocaliptismo é a convicção
cósmicas;
de que o cosmo está sempre sujeito a uma de
a intervenção cataclísmica de Deus resul
duas forças sobrenaturais. Deus e Satanás, que
tará em salvação para os justos, concebi
representam as qualidades morais do bem e do
da como a restauração das circunstâncias
mal (dualismo cosmológico). No entanto, a con
edênicas;
vicção judaica de que Deus é absolutamente so
introdução de anjos e demônios para explicar
berano implica que é o originador do mal e que o
acontecimentos históricos e escatológicos;
dualismo resultante do bem e do mal não é nem
introdução de um novo mediador com fun
eterno nem absoluto (como o dualismo da antiga
ções régias.
religião iraniana), mas limitado. Esse dualismo
I 104 I
A p o c a l ip t is m o ; N o v o T e s t a m e n t o
cosmológico essencialmente limitado foi enten
20.1-5;
dido em várias formas, embora relacionadas en
res humanos podem viver de acordo com um ou
V.
Jo 14.17; 15.26; 16.13; IJo 4.6), e os se
tre si, de pensamento dualista no apocaliptismo
com outro. 0 Príncipe das Luzes controla a vida
judaico primitivo: 1) o dualismo temporal ou es-
dos filhos da justiça, ao passo que o Anjo das
catológico estabelece marcante distinção entre a
Trevas tem domínio sobre os filhos da falsidade
era presente e a era por vir; 2) o dualismo ético
(IQS 3.17—4.1; 4.2-11; IQM 13.9-12). No entan
baseia-se numa distinção moral entre o bem e o
to, mesmo os pecados dos filhos da justiça são,
mal e enxerga a humanidade dividida em dois
em líltima análise, causados pelo espírito do erro,
grupos, os justos e os perversos, de maneira que
pois ambos os espíritos lutam para ganhar a su
corresponde aos poderes sobrenaturais do bem e
premacia no coração do indivíduo (IQS 4.23-26;
do mal; 3) o dualismo psicológico ou microcósmi-
Te As, 1.3-5). Entretanto, o domínio do espírito
co é a interiorização do esquema das duas eras
do erro é temporariamente Umitado, pois Deus o
que enxerga as forças do bem e do mal lutando
destruirá no fim de todas as coisas (IQS 4.18,19).
por supremacia dentro de cada indivíduo.
A doutrina segundo a qual o espírito da verdade
3.3.1 Dualismo escatológico ou temporal. A
e 0 espírito do erro lutam para garantir a supre
crença em duas eras sucessivas, ou mundos su
macia no coração de cada pessoa é semelhante à
cessivos, desenvolveu-se apenas de modo gra
doutrina rabínica dos impulsos bons e maus. 3.4
dual no judaísmo. A ocorrência mais antiga da
Expectativa messiânica. O messianismo
expressão rabínica “o mundo por vir" é encon
não era um aspecto fixo dos vários esquemas
trada em lEnoque 71.15 (c. 200 a.C.). A doutrina
escatológicos que formavam o apocaliptismo
das duas eras já estava plenamente desenvolvida
judaico. Durante o período do segundo templo,
por volta de 90 d.C., pois, de acordo com 4Es-
havia pelo menos dois tipos principais de mes-
dras 7.50, “ 0 Altíssimo criou não uma, mas duas
sianismos judaicos: o restaurativo e o utopista.
Eras” (v. 4Ed 8.1). O dia do Juízo é considerado o
0 messianismo restaurativo aguardava com ex
ponto de transição entre as duas eras (4Ed 7.113),
pectativa a restauração da monarquia davídica e
pois “ será o fim desta era e o começo da era imor
era centrado numa expectativa de aprimoramento
tal que está por vir”.
e aperfeiçoamento do mundo presente por meio
3.3.2 Dualismo ético. Daniel 12.10 faz uma
do desenvolvimento natural (SI Sa, 17), seguindo
distinção entre os “ímpios” e os “ sábios” ; Jubi
o modelo de um período histórico idealizado; a
leus faz a distinção entre os israelitas, que são “a
lembrança do passado é projetada no futuro. 0
nação justa” [Jb, 24.29), “uma geração justa” (Jb,
messianismo utopista antevia com expectativa
25.3), e os gentios, que são pecadores (Jb, 23.24;
uma era futura que superaria tudo que se conhe
24.28); o Manuscrito da Guerra, de Qumran, faz
ceu anteriormente. 0 messianismo judaico tinha
uma distinção semelhante entre o povo de Deus e
a tendência de se concentrar não na restauração
os kittim (IQM 1.6; 18.2,3); o Testamento de Aser
de uma dinastia, mas exclusivamente num rei
contrasta pessoas “ boas e de uma só cara” (Te As,
messiânico enviado por Deus para restaurar a sorte de Israel. No entanto, como símbolo teocrá
4.1) com “pessoas de duas caras” (Te As, 3.1). 3.3.3 Dualismo microcósmico ou psicológico.
tico, 0 Messias é dispensável, uma vez que nem
Nesse tipo de dualismo, os poderes cósmicos so
sempre há um Messias presente na expectativa
brenaturais e antitéticos, concebidos nas catego
escatológica judaica como um todo. Nenhuma
rias morais do bem e do mal, correspondem de
figura assim, por exemplo, tem um papel a de
forma análoga à luta entre o bem e o mal expe
sempenhar nas sequências escatológicas apresen
rimentada por indivíduos. Em algumas linhas do
tadas em Joel, Isaías 24— 27, Daniel, Eclesiástico,
pensamento apocalíptico judaico, notadamente
Jubileus, Testamento de Moisés, Tobias, 1 e 2Ma-
da comunidade de Qumran e dos círculos que
cabeus. Sabedoria de Salomão, lEnoque 1— 36
produziram os Testamentos dos doze patriarcas,
(o Livro dos Vigilantes), 90— 104 (a Epístola de
dia-se que Deus havia criado dois espíritos, o
Enoque) e ZEnoque.
espírito da verdade e o espírito do erro (i.e., o es
3 .S 0 reino messiânico temporário. Há pouca
pírito do mal chamado Belial, IQS 1.18-24; Te Ju,
congruência no material apocalíptico judaico a
I 105 I
A p o c a l ip t is m o ; N o v o T e s t a m e n t o
respeito da chegada do reino de Deus. Esse reino
(4Ed 7.32), e o Altíssimo tomará seu lugar no
era concebido por alguns como a chegada de um
trono do juízo e executará o juízo sobre todas
reino eterno, mas por outros como um reino mes
as nações (4Ed 7.36-43). De acordo com 4Es-
siânico temporário que seria sucedido por um
dras 12.31-34, no entanto, o Messias davídico
reino eterno (v. ICo 15.24). A concepção de
sentar-se-á no trono do juízo e, depois de repro
um reino messiânico temporário, que funcionaria
var os ímpios e maus, os destruirá (4Ed 12.32).
como uma transição entre a presente era ímpia
Esse juízo exercido pelo Messias ocorre antes do
e a era por vir, entre a ihonarquia e a teocracia,
juízo final, que será executado por Deus após a
resolvia o problema de como encarar a transição
chegada do fim (4Ed 12.34). Em nenhuma parte
do Messias para o reino eterno de Deus (onde
de 4Esdras, porém, o Messias tem um papel a de
tal concepção estava presente). De forma geral,
sempenhar no reino teocrático eterno inaugurado
no pensamento apocalíptico judaico o reino de
com a ressurreição.
Deus recebe uma importância mais central que
3.5.3
O 2Apocalipse de Baruque. Depois de
a figura de um Messias. Um interregno messiâ
doze períodos de tribulação [2Ap Br, 27.1-5), o
nico, portanto, funciona como uma expectativa
reino messiânico é retratado como um período de
do estado teocrático perfeito e eterno que existirá
abundância fenomenal, inaugurado pela aparição
quando o estado originário das coisas for resta
do Messias (2Ap Br, 29.3) e concluído com seu
belecido eternamente. Acreditava-se que esse
retorno à glória (2Ap Br, 30.1). Os eleitos que vi
reino provisório seria transitório, uma vez que
veram durante o reino messiânico se unirão aos
seu retrato mostra a conciliação de algumas ca
justos ressurretos, mas as almas dos ímpios teme
racterísticas desta era com as da era por vir. No
rão o juízo [2Ap Br, 30.1-5). O autor não declara
apocaliptismo cristão, a expectativa de um reino
abertamente, mas pressupõe o fato de que os que
messiânico temporário é claramente refletida em
viveram durante o reino messiânico experimenta
Apocalipse 20.4-6 e, segundo alguns estudiosos,
rão uma transformação num modo ressurreto de
também refletida em ICoríntios 15.20-28. A ex
existência como os justos ressurretos. Em 2Apo-
pectativa de um reino messiânico temporário no
calipse de Baruque 39—40, a queda preconizada
futuro é encontrada em somente três apocalipses
do quarto reino (Roma) será seguida pela reve
judaicos primitivos, o Apocalipse das Semanas,
lação do Messias [2Ap Br, 39.7), que destruirá
ou lEnoque 91.12-17 e 93.1-10 (escrito entre 175
os exércitos do último regente iníquo, que será
e 167 a.C.), 4Esdras 7.26-44; 12.31-34 (escrito c.
trazido amarrado até Sião, onde será julgado e
90 d.C.) e 2Apocalipse de Baruque 29.3—30.1;
executado pelo Messias [2Ap Br, 40.1,2). O rei
40.1-4; 72.2-74.3 (escrito c. 110 d.C.). Embora
no do Messias durará “eternamente” , ou seja, até
haja quem afirme que a concepção de um rei
ser extinto o mundo de corrupção, o que significa
no messiânico temporário se encontra em ZEno
que esse reino é temporário, sem contudo se es
que 32.2—33.1 e Jubileus 1.27-29 e 23.26-31, não
pecificar sua duração. Por fim, em 2Apocalipse
há provas convincentes.
de Baruque 72.2— 74.3, o guerreiro Messias con
3.5.1 Apocalipse das Semanas. Em lEnoque
vocará todas as nações numa só reunião, pou
91.12-17 e 93.1-10, um apocalipse anterior inseri
pando uns e executando outros [2Ap Br, 72.2-6).
do na Epístola de Enoque [lEn, 91— 104), a histó
Depois desse período de juízo, haverá uma era
ria é dividida em dez semanas (i.e., dez eras). Um
em que será restaurado na terra o estado edênico
reino não messiânico temporário surge na oitava
das coisas {2Ap Br, 73.1-7). Como em 4Esdras, o
semana, e um reino eterno chega na décima se
Messias não tem nenhum papel a desempenhar
mana (lEn, 91.12-17).
no reino eterno que é inaugurado depois que ele
3.5.2 4Esdras. De acordo com4Esdras 7.26-30,
sobe aos céus.
0 Messias aparecerá nos últimos dias e viverá com os justos por quatrocentos anos. Então, o Mes
3.6
O antagonista escatológico. Na literatura
apocalíptica judaica, há duas tradições a respeito
sias morrerá, com os demais habitantes da ter
de uma figura escatológica perversa que funcio
ra, e o mundo retornará aos sete dias de silêncio
na como um agente de Satanás, ou Belial, para
primevo. Depois disso, ocorrerá a ressurreição
desencaminhar o povo de Deus, opor-se a ele
I 106 I
A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o
e peisegui-lo; ambas as tradições representam
nos escritos apocalípticos como o ato escatológi
tistoricizações do antigo mito de combate. Uma
co final e definitivo. No fundo, a expectativa de
tradição destaca um regente tirânico e ímpio que
uma nova criação ou de uma criação renovada é
suagLrá na última geração para se tornar o prin
uma aplicação específica do esquema das duas
cipal adversário de Deus ou do Messias. Acredi-
eras, em que a primeira criação é identificada
tava-se que esse agente satânico conduziria as
com a presente era ímpia (ou mundo) e a nova
j3iças do mal na batalha definitiva entre as forças
criação é identificada com a era (ou mundo) por
do mal e o povo de Deus (IQM 18.1; IQS 4.18,19;
vir. Conquanto haja muitas referências à nova
TeDn, 5.10,11; Te Ms, 8).
criação nos escritos apocalípticos, não está sem
A historicização do mito de combate já é enrantrada no
pre claro se a presente ordem da criação é redu
onde os monstros do caos, Raa-
zida ao caos antes do ato da recriação (lEn, 72.1;
be e Leviatã, às vezes são usados para simbolizar
91.16; Or si, 5.212; Jb, 1.29; 4.26; An bí, 3.10;
apressores estrangeiros como o Egito (SI 74.14;
Ap El, 5.38; 2Pe 3.13; Ap 21.1,5; v. 2Co 5.17;
at,
S7.4; Is 30.7; Ez 29.3; 32.2-4). Várias tradições do
Gl 6.15), ou se o que se tem em mente é a re
fiT serviram de base para a concepção apocalíp-
novação ou transformação do mundo existente
ttca posterior acerca do adversário escatológico,
(lEn, 45.4,5; 2Ap Br, 32.6; 44.12; 49.3; 57.2; An
zicltiindo-se a figura de Gogue, o governante de
bí, 32.17; 4Ed 7.30,31,75; v. Rm 8.21). Em muitas
Mdgogue no oráculo de Gogue e Magogue de Eze-
dessas passagens, o padrão da criação nova ou
ç jie l 38—39 (v. Ap 20.8; 3En, 45.5), as referências
transformada baseia-se nas condições edênicas
a um vago “inimigo do norte”, encontrado em vá-
que se acreditava existirem na terra antes da que
das profecias do
da de Adão e Eva.
at
(Ez 38.6,15; 39.2; Jr 1.13-15;
3.18; 4.6; 6.1,22), e o fato de Antíoco iv Epifânio,
[D. E.
A une]
o “chifre pequeno” de Datúel 7 e 8, ser retratado como o opressor do povo de Deus. A carreira do
4. Jesus e o apocaliptismo
rei greco-sírio Antíoco iv Epifânio (175-164 a.C.),
Durante o século xix, estudiosos da área bíblica
cajas ações contra o povo judeu são descritas em
tentaram defender Jesus das acusações de ser ele
IMacabeus 1.20-61 e 2Macabeus 5.11—6.11, é
um sonhador apocalíptico que equivocadamente
apresentada como uma figura apocalíptica mitolo-
predissera um fim precoce e cataclísmico para a
^zada em Daniel 11.36-39, afirmando ser Deus ou
ordem mundial existente. Alguns o defendiam
ser semelhante a Deus (Dn 11.36,37; Orsi, 5.33,34;
afirmando que ele não se referia a acontecimen
As Is, 4.6; 2En [Rec. J] 29.4).
tos futuros de forma literal para o mundo, mas
Mais tarde, as características do adversário es
apenas ao aspecto espiritual. As predições apoca
catológico foram ampliadas e refinadas por tradi-
lípticas, era o que se afirmava, foram todas cum
çães em torno dos imperadores romanos Caligula
pridas espiritualmente.
e Xero, os quais tinham pretensões divinas que
Outros, em defesa dele, acusavam de erro a
seus contemporâneos romanos consideravam es
igreja primitiva e os autores dos Evangelhos. Uma
farrapadas e ultrajavam os judeus. A outra tradi
dessas teorias entendia que capítulos como Mar
ção ocupa-se do falso profeta que executa sinais
cos 13 não advinham de nada que Jesus tívesse
e maravilhas para legitimar seu ensino falso (cf.
de fato proferido. Antes, um apocalipse judaico
Dt 13.2-6). Por vezes. Satanás e o antagonista
primitivo fora usado pelos autores dos Evange
escatológico são identificados como a mesma
lhos e erroneamente atribuído a Jesus. A teoria
ressoa, como nos Oráculos sibilinos 3.63-74 e em
desse “pequeno apocalipse” , primeiramente pro
Ascensão de Isaías 7.1-7, nos quais Nero (= o
posta por T. Colani, passou a ser defendida desde
ardagonista escatológico) é considerado a encar
então por vários estudiosos.
nação de Belial (= Satanás).
Muitos estudiosos do século xix retratavam
3.7 A recriação ou. transformação do cosmo.
Jesus como um professor afável que ensinava a
E n Isaías 65.17 e Isaías 66.22, temos a predição
proximidade de Deus. Infelizmente, lamentavam,
da criação de novo céu e nova terra. O tema da
Jesus foi representado nos Evangelhos como um
recriação ou renovação da criação é retomado
pregador fanátíco do juízo vindouro.
I 107 I
A p o c a l ip t is m o : N o v o T e st a m e n t o
Na virada do século xix para o xx, J. Weiss e A. Schweitzer dissiparam esse consenso ao fa
interpretadas dessa perspectiva, ou se referiam à criação da igreja primitiva.
zer uma reconstrução de um Jesus histórico que
Tanto a escatologia consistente quanto a rea
era completamente apocalíptico em suas ideias,
lizada parecem problemáticas. Muitos estudiosos
aliás mais ainda que aqueles que conservavam
conservadores como G. E. Ladd, E. E. Ellis e I. H.
as tradições a respeito dele. Segundo essa nova
Marshall adotaram a posição conciliatória primei
avaliação, Jesus acreditava que a aguardada in
ramente defendida por W. G. Kümmel. O reino,
tervenção divina, a qual inauguraria a nova era,
paradoxalmente, é “presente” e está “ainda por
ocorreria em algum ponto de seu ministério. Suas
vir”. A missão de Jesus era inaugurar o reino, mas
expectativas foram frustradas mais de uma vez, e
ele ensinava que a consumação se daria no futu
por fim ele se entregou para morrer, imaginando
ro, após a segunda vinda.
que ao fazê-lo seguramente impeliria Deus a agir.
Os autores dos Evangelhos fielmente con
Coube à igreja primitiva o desafio de conferir a
servam essa posição paradoxal. Usam imagens
Jesus uma imagem mais respeitável, encobrindo
apocalípticas para relatar e interpretar aconteci
seus erros e apresentando seus ensinos de modo
mentos da vida terrena de Jesus (e.g., Mt 27.51-53;
que atendesse às necessidades de uma comuni
28.2-4) e também imagens apocalípticas para se
dade para a qual o fim (e o
não
referir a acontecimentos futuros (o ato divino fi
havia chegado como fora predito, mas que, ainda
nal e definitivo de juízo e salvação na vinda do
assim, acreditava que logo chegaria.
Filho do homem; cf. Mt 25.31-46; Mc 13.24-27).
re in o de
D eus ]
Essa perspectiva, em suas várias formas, ge
A abordagem já/ainda não pode ser passível
ralmente conhecida como “escatologia consisten
da acusação de ser uma solução muito cômoda
te” , exerceu forte influência no século xx. Alguns,
(uma hipótese, alguns diriam, que não se pode
como R. Bultmann, não se preocuparam em de
provar falsa, sendo, portanto, indefensável), mas
fender a perspectiva apocalíptica de Jesus, ou
se alguma interpretação paradoxal como essa não
nem mesmo tentaram reconstruir um retrato do
puder ser adotada não será possível compreender
Jesus histórico. O famoso programa de desmito-
satisfatoriamente nem a posição de Jesus nem a
logização do
de qualquer dos autores dos Evangelhos.
nt
proposto por Bultmann não ten
tava despojar Jesus de seus adornos mitológicos
[T. J.
G ed d e rt ]
(como fizeram muitos intérpretes do século xix), mas reinterpretar esses elementos míticos da
5. Paulo e o apocaliptismo
perspectiva de seu significado existencial. Com
S.l
As fontes e os problemas. A crítica es
preendida a partir dessa perspectiva, a mitologia
pecializada considera que as sete cartas paulinas
inerente ao ensino apocalíptico de Jesus era um
geralmente reconhecidas oferecem uma base fir
meio de apresentar a homens e mulheres a neces
me para analisar a teologia de Paulo. Entre essas
sidade de estarem abertos para o futuro de Deus
cartas estão Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas,
— um futuro bem próximo para cada indivíduo.
Filipenses, ITessalonicenses e Filemom. As car
Outros estudiosos, como R. H. Hiers, não veem
tas sobre cuja confiabilidade ainda paira alguma
nenhuma dificuldade em pensar em Jesus como
dúvida (2Tessalonicenses; Colossenses) ou cuja
alguém com expectativas equivocadas que fez
autoria paulina é geralmente rejeitada (Efésios;
predições incorretas.
1 e 2Timóteo; Tito) são usadas apenas para
Entretanto, nem todos os intérpretes do sé
suplementar os dados encontrados no corpus
culo XX estavam convencidos de que Jesus era
básico das sete cartas. 0 livro de Atos é outra
um pregador apocalíptico que predisse um fim
fonte importante para conhecermos a vida de
iminente para o mundo. C. H. Dodd e outros
Paulo, mas também deve ser usada apenas como
insistiam numa escatologia realizada, susten
suplemento para o âmago das cartas genuínas.
tando que Jesus cumpriu as esperanças proféti
Um dos problemas mais importantes no es
cas do AT e pregou um reino que foi inaugurado
tudo da vida e do pensamento de Paulo é apurar
em seu ministério. As passagens que levavam a
até que ponto é apropriado rotular o pensamento
crer num cumprimento futuro ou precisavam ser
paulino de “apocalíptico”. Há um consenso bem
I 108 I
A p o c a l ip t is m o : N o v o T e s t a m e n t o
disseminado segundo o qual Paulo foi influen
importantes estão: 1) história da salvação, ou
ciado pelo pensamento apocalíptico, mas ainda
seja. Deus, que é o agente principal da história,
iemos um problema crítico: saber até que pon
teve desde o início um alvo em última análise sal
to ele modificou o apocaliptismo à luz de sua
vífico para a humanidade, a princípio centrado
J. Baumgarten sustenta que Paulo
em Israel e por fim em todo aquele que cresse
desmitologiza as tradições apocalípticas quando
em Cristo — uma estrutura evidenciada de forma
sistematicamente as aplica à vida presente da
especial em Romanos 9— 11; 2) escatologia apo
comunidade.
calíptica. No entanto, a história da salvação e a
fé
em
C r is t o .
Outro problema reside na questão da origem do
escatologia apocalíptica não devem ser conside
pensamento apocalíptico de Paulo. Baumgarten
radas antitéticas, visto que esta é simplesmente
acredita que as tradições apocalípticas chegaram
uma versão mais específica e detalhada daquela.
a Paulo por meio dos helenistas de Antioquia.
Além do mais, é uma questão de contínuo debate
5.2
O centro ou a estrutura do pensamento se essas hipóteses constituem o horizonte ou o
paulino. A complexidade do pensamento teoló
cerne do pensamento de Paulo.
gico de Paulo aumenta diante do fato de que as
S.
3 Paulo como visionário e místico. Os
provas primárias de seu pensamento encontram-
autores dos apocalipses, embora muitas vezes
se em cartas esporádicas, escritas numa varie
ocultassem a verdadeira identidade por meio de
dade de contextos específicos com o objetivo
pseudônimos, recebiam revelações divinas por
de tratar de problemas e questões específicos;
meio de visões e por essa razão estruturavam os
são comunicações pastorais ligadas à histó
apocalipses que escreviam numa narrativa das
ria. Além disso, 0 corpus básico de sete cartas
visões que haviam recebido de fato ou diziam ter
dificilmente pode ser considerado uma amostra
recebido. Existia um estreito relacionamento en
representativa do pensamento paulino. Apesar
tre o misticismo merkabah judaico (baseado em
das dificuldades, muitas têm sido as tentativas
Ezequiel 1) e o apocahptismo
de compreender a coerência do pensamento de
bora as visões fora do corpo fossem mais comuns
Paulo e, com base nisso, identificar o âmago
naquele, e as ascensões em corpo ao céu, mais
de seu pensamento. Alguns estudiosos não estão
comuns neste. A despeito de não haver nenhu
(G ru enw ald) ,
em
certos de que o pensamento de Paulo partia de
ma prova de que Paulo escreveu um apocalipse,
uim “âmago” assim, ou se a evidência das sete
ele afirma ter recebido visões revelatórias ou ex
cartas esporádicas é suficiente para tal tarefa.
periências extáticas (Gl 1.11-17; ICo 9.1; 15.8;
Entre as mais importantes identificações possíveis
V.
da mensagem central do pensamento de Paulo
18; 27.23,24). Em Gálatas 1.12, ele se refere à
estão: 1) o evangelho; 2) a c r is t o l o g ia ; 3) a morte
sua experiência na estrada para Damasco como
e ressurreição de Jesus; 4) o tema
(ca-
um apokalypsis (“revelação”) de Jesus Cristo e
legorias participativas); 5) a eclesiologia; 6) a jus-
em 2Coríntios 12.1 fala de “visões e revelações
“ em C r is t o ”
At 9.1-9; 16.9; 18.9,10; 22.6-11,17-21; 26.12-
ãficação pela fé (a visão tradicional luterana); 7)
[apokalypseis] do
a antropologia
É evidente, no
aludem a experiências pessoais. É possível que
entanto, que muitos desses temas estão intima-
Paulo seja o homem a respeito de quem ele fala,
rnente relacionados a outros, de modo que a esco-
o qual experimentou uma viagem ao terceiro céu,
]ia do âmago do pensamento paulino passa a ser
onde ouviu palavras inexprimíveis (2Co 12.1-10).
(B a u r
e
Bu ltm an n) .
ama questão de nuança. Está claro, por exemplo, aue a polêmica doutrina paulina da
5.4
Senhor” ,
que presumivelmente
Sequências apocalípticas possíveis. Há
j u s tific a ç ã o
desdobramentos apocalípticos relativamente ex
pela fé é um aspecto de sua cristologia e que os
tensos nas cartas paulinas, três dos quais se con
:emas da antropologia e da eclesiologia são duas
centram na parusia de Jesus (ITs 4.13-18; 2Ts
maneiras de considerar o cristão, que ao mesmo
1.5-12; ICo 15.51-57), e o chamado “apocalip
:empo é membro do povo de Deus.
se paulino” , centrado na vinda do antagonista
Outros estudiosos entendem que o mais
escatológico (2Ts 2.1-12). Há também várias
importante é identificar a estrutura do pensa-
sequências apocalípticas mais breves, cuja na
ziento de Paulo. Entre as duas propostas mais
tureza parece seguir certas fórmulas, sendo.
I 109 I
A poc aliptism o : N o v o T estamento
portanto, de origem pré-paulina ou extrapaulina
da salvação, traz em si a ideia apocalíptica das
(ITs 1.9,10; 3.13; 5.23).
duas eras sucessivas. Isso fica evidente em Ro
S.S
Dualismo limitado. A concepção paulina manos 5.12-21, trecho em que Paulo esquemati
acerca da soberania de Deus (Rm 9— 11) torna
za a história da perspectiva dos dois reinos, o de
evidente que ele compartilha das convicções dua
Adão e o de Cristo, ambos fazendo parte da expe
listas fundamentais do apocaliptismo judaico do
riência presente. Portanto, Paulo faz a distinção
fim do período do segundo templo.
“já”/“ainda não” destacada pelo uso do indicativo
5.5.1
Dualismo
escatológico ou temporal. e do imperativo em passagens como Gálatas 5.25:
Seguindo a linha do pensamento duaUsta tem
“ Se vivemos [indicativo] pelo Espírito, andemos
poral do apocaliptismo judaico, Paulo também
[imperativo] também sob a direção do Espírito”.
contrastava a presente era ímpia com a próxi
Ainda que a carne tenha sido crucificada com
ma era de
(Gl 1.4; Rm 8.18; ICo 1.26;
Cristo (Gl 2.20; 3.24; 6.14; Rm 6.2,6,7,22; 8.13),
Ef 5.16) e acreditava estar vivendo no fim das
os desejos da carne ainda representam áreas de
eras (ICo 10.11). Ainda assim, Paulo atenuou
tentação para os cristãos (Gl 5.16-18; Rm 6.12-14;
consideravelmente a distinção aguda comum no
8.5-8). A obediência diária do cristão proporciona
pensamento apocalíptico entre essas duas eras.
a confirmação continuada e indispensável do ato
Ele entendia a morte e a ressurreição de Jesus
original de crer em Cristo até que se concretizem
V.
salvação
no passado como acontecimentos escatológicos
a redenção futura da criação e a liberdade dos
cósmicos que separavam “este mundo” (Rm 12.2;
filhos de Deus (Rm 8.19,20).
ICo 1.20; 2.6), ou “este mundo mau” (Gl 1.4),
5.5.2
Dualismo espacial. A antiga cosmologia
da “era por vir”. A era presente é dominada por
israelita considerava o cosmo em três níveis: o
governantes, potestades demoníacas fadadas à
céu, a terra e o Sheol. Essa mesma concepção do
destruição (ICo 2.6,7).
Universo foi transmitida ao judaísmo primitivo,
A crença de Paulo na ressurreição de Jesus, o
embora o realce sobre a transcendência de Deus
Messias, convencia-o de que os acontecimentos
que caracterizou o judaísmo do fim do período do
escatológicos tinham começado a se desenrolar
segundo templo pressupunha uma distinção mais
dentro da história e que a ressurreição de Jesus
acentuada entre o mundo celestial e o mundo ter
fazia parte da expectativa judaica tradicional pela
reno. Esse duahsmo espacial (o céu como lugar da
ressurreição dos justos (ICo 15.20-23). Para Pau
morada de Deus e de seus anjos; a terra como o
lo, 0 presente é um período temporário entre a
lugar de habitação da humanidade) coincidia com
morte (e também a ressurreição) de Cristo e seu
o duahsmo temporal ou escatológico no sentido
retorno em glória, no qual aqueles que creem
de que o reino de Deus, ou a era por vir, era uma
no evangelho compartilham os benefícios sal-
realidade celeste que por fim tomaria o lugar da
víficos da era vindoura (Gl 1.4; 2Co 5.17). Esse
realidade terrena deste mundo mau ou da presen
período temporário é caracterizado pelo dom
te era ímpia. Para Paulo, “as [coisas] visíveis são
escatológico do Espírito de Deus, que é experi
temporais, ao passo que as que não se veem são
mentado como presente dentro da comunidade
eternas” (2Co 4.18; v. Fp 3.20; 2Co 5.1-5). Há,
cristã em geral, bem como no interior de cada um
portanto, três domínios cósmicos: o céu, a terra
dos crentes membros da comunidade cristã (Rm
e a região abaixo da terra (Fp 2.10), embora a
8.9-11; ICo 6.19; 12.4-11; ITs 4.8). Embora Paulo
tônica normalmente recaia sobre os dois domínios
não empregue abertamente a expressão “era por
cósmicos principais: céu e terra (ICo 8.5; 15.47-50;
vir” , em 2Coríntios 5.17 e Gálatas 6.15 mencio
V.
na a “ nova criação” , expressão com associações
habitação de Deus e seus anjos (Rm 1.18; 10.6;
Cl 1.16,20; Ef 1.10; 3.15). O céu é o lugar da
apocalípticas (Is 65.17; 66.22; Ap 21.1). Embora
Gl 1.8;
a consumação final ainda se encontre no futuro,
assentado, à mão de Deus, tradição baseada na
para os cristãos a nova era estava presente, por
interpretação cristã pré-pauhna de Salmos 110.1
que 0 Messias tinha vindo.
V.
Ef 6.9) e o lugar onde agora Cristo está
(Rm 8.34; Cl 3.1). 0 céu é o lugar do qual Jesus
A estrutura básica do pensamento de Pau lo, construído em torno do conceito da história
I 110
retornará no futuro próximo como salvador e juiz (ITs 1.10; 4.16; Fp 3.20; v. 2Ts 1.7).
A poc aliptism o : N o v o T estamento
5.5.3 Dualismo ético. Para Paulo, os dois po-
história era considerada paradigmática na com
isrss cósmicos antitéticos eram Deus e Satanás,
preensão da natureza humana. Para todos os efei
j z e representam, respectivamente, as qualidades
tos, o cristão está situado no centro da história,
nrrais do bem e do mal. Deus é a fonte do amor
no sentido de que é no cristão que os poderes
a a 5.5; 8.39; 2Co 13.14). Foi Deus quem expres-
opostos que dominam o cosmo travam uma ba
523 amor para com a humanidade ao enviar seu
talha. Assim como a variante cristã — própria de
J:lio para padecer a morte expiatória no lugar
Paulo — do pensamento apocalíptico é caracteri
ieles (Rm 5.8). A influência do Espfrho de Deus,
zada por um duahsmo histórico ou escatológíco
seja, da presença ativa de Deus no mundo, é
que consiste na justaposição da nova era à antiga,
r=2etida em virtudes éticas, como amor, paciên
a posição paulina sobre a natureza humana refle
cia, bondade e domínio próprio (Gl 5.22,23). Há
tia uma estrutura duahsta semelhantemente ho
semelhança fundamental entre as listas de
móloga. Isso fica evidenciado em 2Coríntios 5.17:
IQS 4.2-6,9-11, em que as virtudes fomentadas
“Se alguém está em Cristo, é nova criação; as coi
7slo espírito da verdade sâo contrastadas com
sas velhas já passaram, e surgiram coisas novas”.
vícios promovidos pelo espírito do erro, e as
Aqui Paulo emprega a expectativa apocalíptica
l3las de Gálatas 5.16-24, passagem na qual os
fundamental em torno da criação renovada (i.e.,
vírios são as obras da carne, ao passo que as vir-
a inauguração da era por vir) após a destruição
:j;ies são fruto do Espírito. Muitas vezes. Satanás
da presente era perversa como paradigma para
i apresentado como o adversário sobrenatural
a transformação experimentada pelo cristão, que
i e Deus e dos cristãos, além de ser considerado
partiu da descrença para a fé. Assim, a expecta
; fonte do mal no mundo (Rm 16.20; ICo 7.5;
tiva apocalíptica de uma iminente transformação
ICo 2.11; 11.14; 12.7; ITs 2.18).
cósmica da presente era perversa para uma era
: d.
5.5.4 Dualismo microcósmico ou psicológi-
futura de salvação passou a ser um paradigma da
Partindo do pressuposto de que a estrutura
transformação de cada crente.
ra teologia de Paulo é em parte produto de sua
Como essa transformação apocalíptica exerce
£Íaptação do apocaliptismo judaico como ar-
influência apenas sobre os que estão “em Cristo”,
i3bouço para a compreensão do significado da
o mundo externo e seus habitantes permanecem
~3rte e ressurreição de Jesus, o Messias, esse
sob o domínio da antiga era. A nova era encontra-
~esmo arcabouço apocalíptico exerceu um efeito
-se dessa forma ocuha na antiga. A “nova criação”
rrofundo na forma em que ele entendia os efeitos
refere-se à renovação ou recriação do céu e da
la salvação em cada cristão. A estrutura básica
terra após a destruição do velho cosmo (Is 65.17;
apocaliptismo judaico consistia num duahsmo
66.22; lEn, 91.16; 72.1; 2Ap Br, 32.6; 44.12; 49.3;
:s3iporal ou escatológíco que compreendia duas
57.2; An bí, 3.10; 2Pe 3.11-13; Ap 21.1). 0 en
iras, a era presente (um período de opressão por
tendimento existencialista que Bultmann adotou
rarte dos ímpios), a qual será sucedida por uma
em relação aos termos antropológicos de Paulo
rssi-aventurada era futura. Conquanto o apoca-
(i.e., o ser humano como agente livre e respon
.giismo judaico tívesse uma orientação em gran-
sável pelas próprias decisões) e a compreensão
medida futura, o fato de Paulo reconhecer que
de contornos apocalípticos ou cosmológicos que
r=SHS era o Messias, sendo assim uma figura do
E. Kâsemmann sustentava para a antropologia de
rassado, mas também do presente e do futuro,
Paulo (i.e., 0 ser humano é vítima das forças cós
-rvou-o a introduzir algumas alterações significa-
micas sobrenaturais) não são categorias mutua
::vas. A mais significativa é a atenuação da distin-
mente excludentes. Paulo também compreende a
z l j entre esta era e a era por vir com o realce que
luta no interior de cada cristão como o conflito
;;rJeriu à presença oculta da era por vir dentro
entre o Espírito e a
carne,
como em Gálatas 5.16:
era presente.
“Andai pelo Espírito e nunca satisfareis os desejos
Paulo demonstra uma tendência de conceitua-
da carne”.
-.331 a natureza e a existência humanas numa
5.6
Jesus, o Messias. Um dos mais importan
re^ão microcósmica de escatologia apocalíptica
tes obstáculos que impedem a crença dos judeus
rnstianizada. Ou seja, a estrutura apocalíptica da
em Jesus como o Messias da expectativa judaica
11 1 I
A p oc aliptism o : N o v o T estamento
era o fato da crucificação (ICo 1.18-25; Gl 5.11;
2Tm 4.1). Paulo refere-se à parusia não apenas
Hb 12.2). Um dos problemas ainda por solu
como “revelação [apokalypsis] de nosso Senhor
cionar na investigação do cristianismo primitivo
Jesus Cristo” (ICo 1.7), mas também (numa
V.
é a razão por que os cristãos primitivos reconhe
analogia com a expressão do
ceram a condição messiânica de Jesus, a despeito
nhor”) como 0 “dia de nosso Senhor Jesus Cris
do fato de ele não cumprir nenhuma das funções
to” (ICo 1.8; Fp 1.6; 3.12-21; Rm 14.7-12,17,18;
básicas que os judeus esperavam ver na figura do
2Co 5.10; ITs 4.13-18; ICo 15.20-28,50-58).
at
“
o
dia do Se
Messias davídico, entre as quais seu papel como
5.8 A ressurreição. Para Paulo, a ressurreição
sumo sacerdote escatológico, como rei paradig
de Jesus não era um acontecimento milagroso
mático todo-poderoso e de disposições benevo
isolado, mas a primeira etapa da ressurreição ge
lentes, como juiz e destruidor dos ímpios e como
ral dos justos mortos (ICo 15.20-23). Na quali
libertador do povo de Deus [SI Sa, 17; 4Ed 12;
dade de acontecimento escatológico, Paulo está
2ApBr, 40).
certo de que a ressurreição dos justos ocorrerá
Nas sete cartas indiscutivelmente paulinas, o
quando Cristo retornar (Fp 3.20; ITs 4.13-18;
termo Chrístos, que significa “Ungido” , “ Cristo”
ICo 15.51-53). Os que ressurgirem dos mortos
ou “Messias” , ocorre 265 vezes, geralmente como
serão transformados num novo modo de existên
nome próprio para Jesus (e.g., “Jesus Cristo”),
cia (ICo 15.51-53; Fp 3.20,21). Uma expectativa
em muitos casos com algum traço de titulação
semelhante ocorre nos escritos apocalípticos ju
(evidente no nome “ Cristo Jesus”) e vez por ou
daicos (Dn 12.3; lEn, 39.4,5; 62.15; 2En, 65.10;
tra como um nome para um Messias específico,
2Ap Br, 49.3). Mas a ressurreição de Jesus, que
Jesus (Rm 9.5). Contudo, jamais aparece como
garante a ressurreição dos crentes, não é sim
termo genérico em referência a um libertador es
plesmente um acontecimento passado com con
catológico dentro do judaísmo. Nas sete cartas
sequências futuras. Tampouco a morte de Jesus
que formam o cerne da obra reconhecidamente
se resume a um fato histórico. Para os cristãos,
pauhna, Chrístos jamais é usado como predicado
0 BATISMO representa uma verdadeira identificação
(e.g., “Jesus é o Cristo”), Chrístos nunca é pre
com Cristo em sua morte e ressurreição, sinah-
cedido de artigo definido, após o nome “Jesus”
zando a morte da velha vida e a ressurreição para
(e.g,. “Jesus, 0 Cristo”) e Chrístos jamais é acom
a nova (Rm 6.1-14; 8.10,11; v. Cl 3.1-3; Ef 2.1-10).
panhado por um substantivo no genitivo (e.g., “ o
5.9 O antagonista escatológico. A doutrina
Cristo de Deus”). É seguro concluir que Paulo não
cristã a respeito da encarnação de Cristo prati
tinha nenhuma dúvida da condição messiânica
camente tornou inevitável que um homólogo
de Jesus, tampouco era um assunto que o preo
satânico de Cristo íosse incorporado na expec
cupava. Paulo pressupõe, embora não procure
tativa apocalíptica do cristianismo primitivo.
demonstrar, que Jesus é o Messias.
No apocalipse sinótico, temos a predição de que
5.7
A parusia e o juízo final. Os últimos pro no fim surgirão falsos messias e falsos profetas
fetas do AT muitas vezes se referiam ao dia do
(Mc 13.21,22; Mt 24.23,24). Essa figura é chama
Senhor como a ocasião em que Deus julgaria o
da Anticristo nos escritos joaninos (IJo 2.18,22;
mundo (Am 5.18-20; Sf 1.14-16; J1 2.2). Nos es
4.3; 2Jo 7). Em Apocalipse, as duas principais
critos apocalípticos judaicos, a inauguração do
tradições em torno do Anticristo — o governan
eschaton ocorre com a vinda de Deus ou de um
te ímpio e tirânico e o profeta falso e sedutor —
agente autorizado por Deus, o Messias, para tra
aparecem separadamente. 0 governante ímpio é
zer salvação e juízo. Embora Paulo fale sobre “ o
chamado a Besta que Subiu do Mar (Ap 13.1-10;
dia do Senhor” (ITs 5.2) e sobre o papel de Deus
16.13; 19.20), ao passo que o falso profeta é cha
como juiz escatológico (Rm 3.6), o centro de sua
mado a Besta que Surgiu da Terra ou Falso Profeta
esperança escatológica deslocou-se de Deus para
(Ap 13.11-18; 16.13; 19.20). Nas cartas paulinas,
Cristo, de modo que ele pode falar sobre o dia
existe apenas uma exposição extensa a respeito
iminente do Senhor (ITs 5.2), mas afirmar que
da vinda do antagonista escatológico (2Ts 2.1-12),
naquele dia Deus julgará os segredos dos seres
embora, estranhamente, não haja mais nenhuma
humanos por meio de Cristo Jesus (Rm 2.16; v.
alusão a essa figura em nenhuma outra parte das
I 1 12 I
A poc aliptism o ; N o v o T estamento
cartas de Paulo. Ali, Paulo funde num só persona
reconheça apenas uma ressurreição, seja no co
gem as duas tradições mais importantes a respei
meço, seja no fim do reino messiânico. Essa alte
to do antagonista escatológico, a do governante
ração foi motivada pela crença de Paulo na morte
ímpio e tirânico e a do profeta falso e sedutor.
e na ressurreição de Jesus, o Messias.
Essa pessoa é chamada “homem do pecado” e
ressurreição permite aos crentes que morreram,
A
primeira
“ filho da perdição” (2Ts 2.3; v. Dn 11.36,37; Orsi,
assim como aos cristãos vivos que participam do
5.33,34; As Is, 4.6; 2En [Rec. J] 29.4), que inves
reino messiânico, desfrutar um modo ressurreto
tirá a si mesmo de autoridade no templo de Deus,
de existência.
se autoproclamará Deus (2Ts 2.4) e realizará mi
A
reconstrução feita por Schweitzer da escato
lagres que legitimem suas alegações (2Ts 2.9; v.
logia paulina está sujeita a várias críticas. 1) Não
Mc 13.22; Mt 24.24; Ap 13.13,14). Esse oponente
há nenhuma prova em ITessalonicenses 4.13-18
escatológico ainda não apareceu porque alguém
nem em ICoríntios 15.20-28 de que Paulo conta
ou algo ainda o detém (2Ts 2.7), embora não haja
va com a chegada de um reino messiânico inter
nenhum consenso quanto a quem seja essa força
mediário
detentora ou restritiva: Satanás, o Império Roma-
que Paulo tinha por certa uma ressurreição geral
ao, o imperador romano ou alguma força sobre
dos mortos justos e ímpios.
( W ilcke ) .
2) Não há nenhuma prova de
natural. Esse adversário escatológico será morto
Várias razões levam a crer como hipótese
pelo Senhor Jesus quando ele retornar para julgar
mais provável que ICoríntios 15.20-28 na verda
iodas as coisas (2Ts 2.8).
de deixa prever que a parusia será imediatamen
5.10
O problema de um reino messiânico te seguida da ressurreição e do juízo, os quais,
temporário. É discutível a relação que há entre
em conjunto, introduzirão a consumação final da
ICoríntios 15.20-28 e a posição do judaísmo pri
história
mitivo e do cristianismo primitivo acerca de um
o reino de Deus é um reino que jamais acabará
( D a v ie s ,
1970, p. 295-7). 1) Para Paulo,
reino messiânico intermediário e temporário, em
(ITs 2.12; Gl 5.21; ICo 6.9,10; 15.50; v. 2Ts 1.4,5;
bora a opinião geral seja que não existe prova im
Cl 4.11). 2) 0 único texto que menciona o “ reino
parcial e convincente de que Paulo, assim como
de Cristo” (Cl 1.12,13) entende que se trata de
o autor de Apocahpse (Ap 20.1-6), contasse com
um fato presente. 3) Paulo vincula a parusia com
a chegada de um interregno messiânico.
o juízo que advirá sobre o mundo (ICo 1.7,8;
Schweitzer resume da seguinte forma as cren
2Co 1.14; Fp 1.6,10; 2.16). É provável que Paulo
ças apocalípticas de Paulo: 1) retorno repentino
tenha no fundo historicizado a concepção apoca
e inesperado de Jesus (ITs 5.1-4); 2) ressurrei
líptica de um reino messiânico temporário como
ção de crentes mortos e transformação de cren
um período provisório entre os acontecimentos
tes vivos, todos os quais irão encontrar-se nos
da crucificação e da ressurreição de Jesus e o fato
ares com o Jesus que voltará (ITs 4.16,17); 3)
anunciado de sua parusia.
juízo messiânico presicUdo ou por Cristo (2Co
[D. E.
A une]
5.10) ou por Deus (Rm 14.10); 4) inauguração do reino messiânico (não mencionado por Paulo,
6. Os escritos neotestamentários
mas dado a entender em ICo 15.25 e Gl 4.26); 5)
posteriores e o apocaliptismo
transformação de toda a natureza da mortalidade
Nos escritos neotestamentários posteriores, a ex
para a imortalidade durante o reino messiânico
pectativa da parusia é enriquecida por previsões
CRm 8.19-22) e a luta contra as poderes angéli
de um céu e de uma terra renovados, incluindo-
cos (Rm 16.20) até que a morte seja vencida
se uma Jerusalém renovada. Em 2Pedro 3.10-14,
3Co 15.23-28); 6) encerramento do reino mes
menciona-se uma transformação cósmica, na
siânico (Paulo não menciona sua duração); 7)
qual “ o dia do Senhor virá como ladrão, no qual
ressurreição geral por ocasião do encerramento
os céus passarão com grande estrondo, e os ele
do reino messiânico (ICo 6.3); 8) juízo de toda
mentos, queimando, se dissolverão, e a terra e as
a humanidade e dos anjos derrotados. De acordo
obras que nela há serão descobertas” (2Pe 3.10).
com Schweitzer, Paulo introduz duas ressurrei
Hebreus 12.18-24 e 13,14 refere-se à nova Jeru
ções, embora a escatologia judaica que o precede
salém, tema vislumbrado em vários manuscritos
I 113 I
A pócrifos e Pseudepígrafos
de Qumran (e.g., 1Q32, 2Q24, 4Q554-555, 5Q15,
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11Q l8) e fundamentalmente inspirado pelas vi
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sões de Ezequiel. Esse tema é tratado no
nt
em
detalhes em Apocalipse 21—22. De acordo com
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aquele que recebe a visão: “Então vi um novo
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céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a
Paul and rabbinic Judaism. 3. ed. London:
primeira terra já se foram, e o mar já não existe.
1970. ■
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G ru enw ald,
Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia
mysticism. Leiden:
do céu, da parte de Deus, enfeitada como uma
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H anson,
P.
noiva preparada para seu noivo. E ouvi uma forte
1975. ■ H iers, R.
voz, que vinha do trono e dizia: 0 tabernáculo
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de Deus está entre os homens, pois habitará com
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On the subject
eles. Eles serão o seu povo, e Deus mesmo es
Testament questions of today. Philadelphia: For
tará com eles. Ele lhes enxugará dos olhos toda
tress, 1969. p. 108-37. ■ K o c h ,
lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto,
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nem lamento, nem dor, porque as primeiras coi
■ K r e itzer ,
sas já passaram” (Ap 21.1-4). A descrição dessa
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P s e u d e p íg r a f o s
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O termo “Apócrifos” é aphcado por cristãos pro
zur apokalyptischen lïadition in der pauhnischen
testantes aos livros incluídos no
Theologie. EvT, v. 30, p. 593-609, 1970. ■ B eker , J.
Católica Romana, Copta e Ortodoxa Oriental, não
at
pelas igrejas
C. Paul the Apostle. Philadelphia; Fortress, 1980.
sendo, porém, encontrados no cânon judeu ou
■
. Paul’s apocalyptic gospel: the coming
protestante. O termo “Pseudepígrafos” refere-se
triumph of God. Philadelphia: Fortress, 1982. ■
a um corpo muito maior de textos, a maioria dos
H. D. On the problem of the rehgio-histori-
quais compartilha o expediente literário de ter
B e tz ,
cal understanding of apocalypticism, 134-56, 1969. •
B ra n ick ,
6, p.
sido escrita sob o pseudônimo de um persona
V. P. Apocalyptic Paul?
gem importante ou antigo da herança de Israel
jt c ,
v.
J., org..
(autores católicos romanos e ortodoxos normal
Apocalypse: the morphology of a genre. Missoula:
mente se referem a esse corpo de escritos como
CBQ, V.
47, p. 664-75, 1985. •
C o lu n s , J.
I 1 14 I
A pócrifos e P seudepígrafos
“apócrifos”). Essas compilações conservam vozes
Qumran mostram que tais obras foram conserva
importantes que testemunham o pensamento, a
das não somente em círculos cristãos — Sirácida,
piedade e os diálogos no judaísmo do período
Tobias e a Epístola de Jeremias foram todos acha
do segundo templo, o que nos revela os antece
dos entre os manuscritos do mar Morto, além de
dentes da teologia, cosmologia, ética, história e
inúmeros pseudepigráficos [lEnoque, Jubileus e
cultura dos autores do
outras obras pseudepigráficas desconhecidas até
nt
e formadores da igreja
primitiva, muitos dos quais conheciam, estima
então;
vam e faziam uso das tradições preservadas nes ses textos.
St o n e ) .
A falta de consenso sobre quais hvros perten cem aos Apócrifos dá testemunho da presente
1. Definição de termos
variedade no cânon do at entre as igrejas cristãs.
2. Conteúdo e ideias principais
Todos esses hvros são considerados canônicos por
3. Importância
algumas comunidades cristãs. J. H. Charlesworth mostra a necessidade de uma delineação unifor
1. Definição de termos 1.1
me e exclusiva dos Apócrifos, seguindo as hstas
Apócrifos. A palavra "apócrifos” (gr., da maioria dos manuscritos da
lx x
,
em lugar da
"coisas ocultas”) era a princípio um título hon
Vulgata. Ele excluiria 3 e 4Macabeus, a Oração
roso para livros que contivessem uma sabedo
de Manassés e 2Esdras (2Ed 3— 14 = 4Esdras)
ria esotérica especial que fosse “tão sagrada ou
dos Apócrifos e os incluiria entre os Pseudepígra
profunda que nâo podia ser exposta a ninguém
fos. As mais recentes Bíbhas de estudo (Meeks,
que não o iniciado”
Metzger e Murphy) optam por uma compilação
( C h a r le s ) .
Alguns estudiosos
situam a origem do termo em 4Esdras 14.44-47
mais abrangente dos Apócrifos (todos os de
( = 2Ed 14.44-47), que menciona os "livros ocul
zoito). Nos manuscritos da
tos” com sabedoria divina para os “ sábios dentre
4Macabeus têm a seu favor uma forte presença,
0 povo” , distintos da compilação canônica que
evocando grande respeito na Igreja Ortodoxa
contém sabedoria tanto para o indigno quanto
Grega. C. A. Evans observa acertadamente que
para o sábio
No encalço das
a linha entre os Apócrifos e os Pseudepígrafos
controvérsias da igreja primitiva e, além disso,
não está claramente traçada, sendo ainda mais
(R ow ley
e
F rftsch ) .
lx x
,
3Macabeus e
no período posterior à Reforma, o termo adquiriu
obscurecida quando examinamos a relação entre
conotações negativas, referindo-se a livros que
Judas, lEnoque e Assunção de Moisés (Evans, p.
foram retidos por causa de seu valor "secundá
22; Russell, 1993). Talvez nunca cheguemos ao
rio ou questionável”
consenso a que Charlesworth nos convoca.
( C h a r le s )
e eram potencial
mente “falsos, espúrios ou heréticos”
( C h a r le s
e
0
Os livros contidos nos Apócrifos tiveram uma história estigmatizada no processo de aceitação
R o w le y) .
termo é agora empregado em círculos pro por parte da igreja, e nem todos os dezoito (ou
testantes para designar de treze a dezoito textos
treze) se saíram igualmente bem nessa história (v.
incluídos como parte do
p R rrscH
at,
dentre os quais há
para um debate mais aprofundado). Paulo
obras históricas (1 e 2Macabeus, lEsdras), contos
sem dúvida conhecia e fazia uso de Sabedoria de
(Tobias, Judite, 3Macabeus, Acréscimos a Ester,
Solomão, e ecos do Sirácida aparecem nos dizeres
outros contos sobre Daniel), literatura sapiencial
de Jesus. Os pais apostóhcos (Policarpo, Clemente,
(Sabedoria de Salomão, Sirácida ou Eclesiástico),
Pseudo-Barnabé) ou citam Sabedoria de Solomão,
escritos proféticos pseudepigráficos (Baruque,
Tobias e Sirácida, ou lhes fazem alusão como es
Epístola de Jeremias), textos litúrgicos (Oração de
critos autorizados, e há também inúmeras alusões
Manassés, salmo 151, Oração de Azarias e o Cân
a outros apócrifos. Algumas figuras de destaque na
tico dos Três Jovens), um apocalipse (2Esdras) e
igreja, como Jerônimo e Orígenes, reconheciam a
um encômio filosófico (4Macabeus). Essas obras,
diferença entre a compilação das Escrituras do
à exceção de Oração de Manassés e 4Esdras,
usadas pela igreja e o cânon hebreu, e Jerônimo
at
acham-se em inúmeros manuscritos da txx, sen
especialmente propõe uma distinção prática entre
do claramente valorizadas pela igreja primitiva
os textos "canônicos” e os "eclesiásticos”, que são
e hdas como Escritura. Descobertas recentes em
úteis e edificantes, mas não da mesma estirpe.
I 1 15 I
Outros personagens, como Clemente de Alexan
greco-romanos do período poderia, no entanto,
dria e Agostinho, abraçam a compilação mais am
ajudar o estudante a avahar as implicações da
pla como sendo de uniforme inspiração e valor.
pseudepigrafia canônica
( E van s) .
Somente a Reforma Protestante forçou uma
Esse termo, assim como “apócrifos”, adquiriu
decisão. Martinho Lutero decisivamente separou
conotações negativas. 0 levantamento feito por
os livros ou as partes dos hvros (e.g.. Acréscimos
Charlesworth em vários verbetes de dicionário
a Ester e Daniel) que não estivessem inclusos no
mostra que em hnguagem comum o termo de
cânon hebreu de seu a t como “hvros que não po
nota “ obras espúrias” que “não são consideradas
dem ser contados entre os livros canônicos, mas
canônicas nem inspiradas”. Esses dicionários, co
0 res
menta Charlesworth acertadamente, perpetuam
tante dos reformadores protestantes seguiu sua
uma equiparação enganadora entre pseudepigra
prática. Os hvros apócrifos continuaram a ser im
fia e ilegitimidade. Além do mais, ele também
são úteis e bons para leitura” (cit.
R ow ley) .
pressos e recomendados como material edifican
está certo em propor que se faça um esclareci
te, mas não podiam ser usados como base para
mento em relação à questão da canonicidade e
doutrina ou ética à parte dos livros canônicos. A
da inspiração. Vários desses hvros são citados
Igreja Catóhca Romana respondeu no Concilio de
como textos autênticos e autorizados. Devemos
Trento (1546) ao declarar esses livros (excluindo
guardar-nos, então, de atribuir juízos modernos
1 e 2Esdras, Oração de Manassés e 3 e 4Maca-
de valor a uma prática literária antiga. 0 termo é usado pelos estudiosos em referên
beus) plenamente canônicos. A opinião de muitos protestantes a respeito
cia ao “restante dos ‘hvros de fora’ ”
( R o w ley) o u
dos Apócrifos decaiu consideravelmente em rela
a “escritos semelhantes aos Apócrifos, mas não
ção à avaliação de Lutero. A ênfase no sola scrip-
incluídos neles”
tnm (“ somente a Escritura”) e na “suficiência
culo XX testemunhou a publicação de duas im
das Escrituras”, estimulada por séculos de tensão
portantes compilações de livros pseudepigráficos
(S t o n e ,
1984). A virada do sé
entre a Igrejas Catóhca Romana e as igrejas pro
( K autzsc h
testantes, fez com que os Apócrifos passassem a
“reducionistas” , contendo apenas uma dezena
e
C h a r le s ) ,
embora fossem compilações
ser mais suspeitados que respeitados, e a falta de
ou mais de textos
familiaridade com os textos por parte da maio
sua equipe buscaram um delineamento mais am
ria dos protestantes acabou por intensificar essa
plo desse corpo de escritos, incluindo 63 textos
( C h a r le s w o r t h ) .
Charlesworth e
aversão. Não obstante, a compilação de textos in
que correspondiam à designação geral proposta
cluídos nos Apócrifos merece atenção cuidadosa,
para o corpo. Esses textos 1) eram quase exclu
não apenas com base em seu testemunho às cor
sivamente judeus ou cristãos; 2) foram muitas
rentes e desenvolvimentos no judaísmo durante
vezes atribuídos a personagens ideais no passa
0 período intertestamentário, mas também com
do de Israel; 3) habitualmente alegavam conter a
base na influência que esses textos exerceram na
palavra ou a mensagem de Deus; 4) fundamen
igreja durante seus séculos formativos.
tavam-se em narrativas ou ideias do
at;
5) foram
l.ZPseudepígrafos. 0 termo “pseudepígrafos”
escritos entre 200 a.C. e 200 d.C. (ou, se escritos
(gr., “coisas a que se atribuiu título ou autor fal
posteriormente, pareciam conservar de modo
so”) realça em primeiro lugar uma característica
substancial tradições anteriores). Charlesworth
literária de muitos escritos dos períodos helenísti
afirma que esses critérios têm por objetivo definir
co e greco-romano, ou seja, escrever sob o nome
uma compilação, não propor normas rígidas para
suposto de um grande personagem do passado
legitimar os hvros pseudepigráficos.
distante. 0 termo em si não distingue dos escritos
Há corpos importantes de textos que não estão
canônicos o corpo de textos a que se refere, uma
agrupados entre os Pseudepígrafos. Filo e Josefo
vez que inúmeros estudiosos sustentam haver
deixaram uma vastidão de materiais, mas como
obras pseudepigráficas no próprio cânon (e.g.,
a atestação autoral não é pseudepigráfica, suas
Daniel, Cântico dos Cânticos, Deutero-Isaías,
obras ficam de fora dessa categoria. Os manus
vários salmos). 0 estudo do fenômeno mais am
critos do mar Morto contêm muitos textos pseu
plo da pseudepigrafia entre os escritos judeus e
depigráficos, mas como o “canal de transmissão”
I 116 I
A pócrifos e P seudfpígrafos
muito bem definido, eles são tratados
acrescenta, acertadamente, que alguns pseudepi
como um corpus à parte. Por último, há os tar-
gráficos são anôrúmos, não pseudônimos (e.g., 3 e
gnns (v.
4Macabeus), e que, mesmo quando a designação
(S t o n e ) é
e outras
TRADIÇÕES E ESCRITOS RABíNicos)
reformulações dos textos bíblicos que contêm
é correta, ela “realça indevidamente uma caracte
muita coisa em comum com livros como Jubileus,
rística de menor importância”.
mas não estão incluídos nos Pseudepígrafos.
Problemas com ambos os termos levaram
O fenômeno da pseudepigrafia é complexo. R.
muitos estudiosos a tratar dos escritos judeus não
H. Charles buscou a origem da prática no sur
fazendo uso dessas categorías em geral cheias de
gimento de uma ortodoxia judaica monolítica
juízos de valor ou anacrônicas, mas por gênero,
baseada num cânon fechado de Lei e Profetas,
origem geográfica ou período
que não permitiria a outros autores arrogar para o
b u rg ;
próprio nome o status de inspiração. A imagem de
Apócrifos e os Pseudepígrafos figuram lado a lado
um judaísmo normativo anterior ao ano 70 d.C.
sob as categorias de escritos sapienciais, escritos
tem sido amplamente refutada. Talvez mais útil
históricos, peças litúrgicas e afins. Fritsch e D.
seja a sugestão de
Cohen de que os judeus do
RusseU defendem o uso do termo “apócrifo” para
período do segundo templo viveram uma era pós-
cobrir todos os textos protestantes não canônicos,
S.
S chürer; K ra f t
&
( N e w s o m e ; N ic ke ls
N ic k e ls b u r g ; S t o n e ) .
Os
S.
clássica: essa consciência levou alguns autores
seguindo o costume da sinagoga moderna (“h-
a conectar sua obra com algum personagem do
vros de fora”), embora essa sugestão acabe tam
período clássico (pré-exílico ou exílico). No caso
bém por denunciar certo preconceito canônico.
dos apocahpses, o fenômeno pode ser ainda mais
Apesar dessas dificuldades, existe algum valor
complexo, pois alguns autores se identificam, em
em manter os termos
alguma experiência extática, com o personagem
os Apócrifos uma compilação dá testemunho à se
do passado, conferindo nova voz ao antigo digni
leção feita pela igreja primitiva de certos escritos
tário. A escolha do pseudônimo pode indicar uma
judaicos que, embora não pertencessem ao cânon
tentativa consciente de vincular a própria obra
hebreu, eram ainda assim tidos por inspirados e
(C h a r le s w o r th ).
Considerar
à “tradição de ensino recebida” e relacionada a
de valor especial, exercendo uma influência im
esse nome
Evans ecoa essa teoria com
portante na igreja desde seus primórdios. Desde
aprovação, estendendo-a até o período posterior
que se reconheça que essas categorias poderiam
à era apostóhca, durante a qual a autoridade era
permanecer algo fluidas (testemunhado pelo uso
(S t o n e ) .
mediada apenas pelos personagens clássicos da
que Judas faz de lEnoque e Assunção de Moisés e
primeira geração da igreja, e a pseudepigrafia ou
pela inclusão de 3 e 4Macabeus em muitos códi
tra vez se tomou um fenômeno comum.
ces da l x x ] , os termos continuam sendo importan
Os estudiosos chamam a atenção para as hmitações de ambos os termos. Em primeiro lugar, “apó
tes como forma de priorizar o vasto repositório de escritos judaicos que chegaram até nós.
crifos” e “pseudepigráficos” não são termos iguais. Um deriva de debates canônicos e do uso; o ouüro,
2. Conteúdo e ideias principais
de uma característica literáría singular. “Apócrífo”
Embora haja significativa sobreposição entre as
é um termo especialmente problemático para o es
duas compilações, este verbete as tratará separa
tudo históríco desses documentos, uma vez que
damente para melhor clareza e definição.
as decisões sobre o cânon são muito posteríores
2.1
Apócrifos. Os dois hvros históricos 1 e
ao período em que os textos foram produzidos e
2Macabeus
frequentemente ocorrem apenas séculos depois
sobre uma série de acontecimentos que deram
oferecem
informações
essenciais
que um documento esteve em uso e exerceu im
forma à consciência judaica durante o final do
portante influência (cf.
periodo do segundo templo. O programa forçado
C h a r le s w o r t h ; N ickelsburg ) .
Ao usar o termo “Pseudepígrafos” em referência a
de helenização imposto pelos sumos sacerdotes
um corpo de textos de fora do cânon protestante
Jasão e Menelau (175-154 a.C.), a ascensão da
e dos Apócrifos, obscurecemos a natureza pseude
família asmoneia como salvadores de Israel e a
pigráfica de muitos textos contidos nesses corpos
união do sumo sacerdócio com a realeza sob essa
de literatura
mesma dinastia teve desdobramentos de longa
( N ickelsburg ; R ussell) .
C.
T. Frítsch
I 1 17 I
duração para o período. O sistema de valores do
a coragem e a resistência dos mártires da crise
movimento zelote posterior, a noção de um mes
de helenização (que recebem o elogio do autor).
sias militar e a aversão por diminuir os limites
Especificamente aqueles mandamentos que sepa
entre judeus e gentios (e.g., a resistência judaica
ram os judeus dos membros de outras raças — as
à missão de Paulo), tudo isso tem raízes fortes
leis que frequentemente ensejam o desprezo aos
nesse período. Foi também nesse período que se
não judeus — mostram-se particularmente capa
formaram as principais seitas dentro do judaísmo
zes de conduzir ã virtude e à honra.
— em geral numa reação contra (e.g., os essênios
Os Apócrifos contêm ainda inúmeros contos
de Qumran, os fariseus) ou a favor (saduceus)
edificantes, assim abrindo janelas úteis que nos
da administração asmoneia do templo. Segundo
permitem visuahzar a religiosidade do período.
IVIacabeus também fornece um dos primeiros tes
Ester recebeu acréscimos para incluir referências
temunhos importantes da crença na ressurreição
diretas a Deus e expressões de consagração (ora
dos justos e de uma crescente angelologia.
ção, pureza dietética). Tobias, uma narrativa do
Sabedoria de ben-Siraque (Eclesiástico ou Sirá
tempo da Diáspora e talvez o livro mais antigo
cida), escrito em Jerusalém por volta de 180 a.C.,
dentre os Apócrifos, conta uma história a respeito
apoia o compromisso com a Torá como o único
da providência de Deus, da atividade de anjos e
caminho para a honra e como o caminho da verda
demônios, da eficácia da oração e do exorcismo.
deira sabedoria. Contém instruções sobre uma in
A história promove o ato de dar esmolas e outras
finidade de temas, mas seus ensinos sobre oração,
ações de caridade na comunidade judaica, bem
perdão, esmolas e uso correto das riquezas dei
como 0 valor da endogamia e dos parentescos.
xaram uma marca indelével nas instruções éticas
Judite, talvez uma obra palestina do período ma
posteriores do judaísmo e na igreja primitiva. Sa
cabeu, é 0 relato de uma heroína que usa seu en
bedoria de Salomão, produto do judaísmo egípcio
canto para enredar e eliminar um opressor gentio.
da virada da era, também promove o modo de vida
A história confirma a importância da oração, a pu
judaico, realçando a importância eterna do vere
reza ahmentar, a virtude da castidade e o cuidado
dicto de Deus na vida de alguém, as recompensas
de Deus pelo seu povo em tempos de adversidade.
e a natureza da sabedoria e as ações de Deus a
Podemos classificar 3Macabeus também como
favor do povo de Deus, Israel. O autor leva ao mais
uma lenda edificante que registra uma saga para
alto nível a personificação da Sabedoria, e isso
o judaísmo da Diáspora correspondente à histó
exerceu muita influência sobre a reflexão da igreja
ria de 21Vlacabeus. Afirma o cuidado especial de
primitiva acerca da divindade e da preexistência
Deus e sua proximidade dos judeus que vivem na
de Jesus. Sabedoria de Salomão ajuda os judeus
Diáspora e estão separados da terra prometida;
a permanecer dedicados ã Torá também por meio
ela confirma as tensões entre judeus fiéis, judeus
da demonstração da insensatez da reUgião gentí-
apóstatas e a cultura gentíhca dominante. Pode
hca, e muito disso é reproduzido nos ataques de
se incluir lEsdras nesse grupo, embora seja mais
Paulo à depravação dos gentios e à idolatria. Aqui
uma reescrita de livros bíblicos (2Cr 35.1—36.23;
talvez pudéssemos também mencionar a Epístola
Esdras; Ne 7.38—8.12). O único trecho original
de Jeremias, que reforça a convicção judaica de
desse livro é um conto palaciano sobre a sabe
que os ídolos não sâo nada e que os gentios estão
doria de Zorobabel (lEd 3.1— 5.6). Dois contos
separados da verdadeira religião.
sobre o herói Daniel (escritos separadamente)
Embora não seja propriamente um livro de
aparecem na versão grega expandida desse livro.
sabedoria, 4Macabeus também promove a ade
O primeiro, a História de Susana, como lEsdras
são ao judíúsmo, assegurando aos leitores judeus,
3.1— 5.6, celebra a sabedoria de um líder judeu.
por meio de uma demonstração filosófica, que a
O segundo, Bel e o dragão, demonstra a insensa
obediência rigorosa à Torá instrui a pessoa em
tez da idolatria quando Daniel abala a credibih
todas as virtudes cardinais tão apreciadas e va
dade de uma imagem de Bel e de uma serpente
lorizadas pela cuhura greco-romana. De fato, os
viva, ambos tidos como deuses.
judeus instruídos pela Torá suplantam todos os outros no exercício da virtude, como demonstram I
Vários textos litúrgicos estão incluídos nos Apócrifos. 0
118 I
salmo 151 relembra que Deus
A pócrifos e Pseudepígrafos
escolheu a Davi e relembra o triunfo de Davi so
da Torá serão punidos. Durante esse período tu
bre 0 gigante filisteu — seguramente uma ima
multuado, essa visão foi muitas vezes alterada,
gem poderosa do lugar de Israel entre os reinos
esperando-se a recompensa ou o castigo na vida
gentílicos gigantescos que dominaram a nação
futura (seja por meio da ressurreição, como em
por todo esse período, exceto no tempo da Di
2Macabeus, seja pela imortalidade da alma, como
nastia Asmoneia. Os poetas judeus ficavam
em Sabedoria), porém jamais foi abandonada.
atentos em busca de pontos na história bíblica
Boa parte dessa hteratura ocupa-se do cuidado de
que exigissem uma oração ou um salmo, mas
Deus pelo seu povo, o que significa viver como
não os registravam. Dois acréscimos a Daniel e
povo fiel e obediente e como reagir de maneira
a Oração de Manassés proporcionam o que falta
correta às pressões que ameaçam essa lealdade.
às narrativas: uma oração de arrependimento e
2.2
Pseudepígrafos. Entre os Pseudepígrafos
um pedido de ajuda na fornalha ardente (Oração
encontram-se amostras de uma ampla variedade
[ou Cântico] de Azarias), um salmo de libertação
de gêneros: apocahpses, testamentos, expansões
(Cântico dos Três Jovens) e outra oração de peni
de narrativas bíblicas, escritos sapienciais, escri
tência (Oração de Manassés), a qual afirma que
tos filosóficos, textos htúrgicos, obras históricas,
nenhum pecador está além da misericórdia e do
poesia e drama — todos estão aí representados.
poder de Deus para perdoar. Apesar de Baruque
Muitos dos Pseudepígrafos enquadram-se no
ser em essência um livro profético pseudepigráfi-
gênero apocalíptico. Desses, o mais importante e
co, também contém muito material litúrgico. Os
acessível talvez sejam lEnoque e lApocalipse de
capítulos de abertura (Br 1.1—3.8) apresentam
Baruque. Os estratos mais antigos de lEnoque,
orações de penitência que afirmam a justiça de
obra que se constitui de partes separadas, mas
Deus por trazer sobre Israel e Judá as maldições
inter-relacionadas, talvez datem do século iii a.C.
de Deuteronômio, mas também abrem a porta
Essa obra apresenta uma viagem aos lugares pre
para a esperança de retorno à medida que Deus é
parados para o castigo dos maus e para a recom
novamente lembrado na terra do exílio. Segue-se
pensa dos justos, uma angelologia avançada, com
um salmo de sabedoria, identificando a sabedo
base na história dos “ Vigilantes” (cf. Gn 6.1-4),
ria total e exclusivamente com a Torá de Moisés,
e um esquema histórico que situa os destinatá
de forma semelhante a Sirácida (Br 3.9—4.4). As
rios da carta perto do tempo em que Deus invade
seções finais assumem um tom mais profético, in
a malha da história para executar seu juízo. As
troduzindo oráculos que prometem a reunião dos
Similitudes [lEnoque 37— 71), compostas talvez
iudeus da Diáspora, o juízo sobre as cidades que
durante o século i d.C., dá testemunho dos de senvolvimentos da figura do Filho do homem
oprimiram os judeus e a exaltação de Sião. Por último, a compilação inclui um apocalip
e assim fornece material relacionado para o es
se, 2Esdras (também chamado 4Esdras). 0 autor
tudo desse título nos Evangelhos. A obra como
escreve em resposta à destruição de Jerusalém em
um todo debcou sua marca em Judas (que cita
70 d.C. e mais diretamente em resposta à lentidão
lEnoque 1.9) e especialmente em Apocalipse.
de Deus em punir Roma, o instrumento da destrui
Como 4Esdras, ZApocalipse de Baruque é uma
ção. Em sua negação de esperança para aquela era,
resposta apocalíptica à destruição de Jerusalém.
sua esperança de recompensa para a era vindoura,
Também aconselha um renovado compromisso
suas visões da águia de muitas cabeças e o homem
com a Torá como o caminho para Deus vindi-
do mar, o texto abre uma janela importante para o
car a nação castigada, assegurando aos leitores
apocaliptismo judaico com paralelos elucidativos
a proximidade da libertação executada por Deus
para o material apocalíptico do
e a certeza do castigo de Roma. Outros apoca
nt.
Em todo esse corpus, percebe-se a proeminên-
hpses dignos de nota são ZEnoque, os Oráculos
da da teologia da aliança de Deuteronômio — a
sibilinos, 0 Apócrifo de Ezequiel, o Apocalipse de
convicção, arraigada nas bênçãos e nas maldições
Abraão e o Tratado de Sem.
de Deuteronômio 28—32 de que a nação e os in
Intimamente relacionados aos apocalipses
divíduos que seguirem a Torá serão recompensa
estão os textos que se enquadram no gênero de
dos, e a nação ou os indivíduos que se afastarem
testamento. São em geral discursos feitos no leito
I 1 19
I
de morte por grandes vultos do passado de Is
foi totalmente cristianizado, apresentando Isaías
rael e apresentam uma revisão narrativa da vida
como uma testemunha explícita de Jesus e da his
do personagem (em geral como modelo de uma
tória da igreja primitiva (Ma Is, 3.13-31).
vida virtuosa), exortações éticas e predições mui
Nessa categoria também poderíamos consi
tas vezes escatológicas, encerrando com a morte
derar a Carta de Arísteas, escrita em grego perto
e 0 sepultamento do herói. Os mais importantes
do final do século ii a.C. Essa obra não se baseia
desse gênero são os Testamentos dos doze patriar
diretamente numa narrativa ou personagem bíbli
cas, que conservam exemplos importantes de de
co, mas é mais um conto edificante em defesa da
senvolvimentos na angelologia, na demonologia,
LXX, a tradução grega das Escrituras hebraicas, e
nas funções sacerdotais e régias do Messias e na
do caráter racional da vida vivida de acordo com
ética. 0 Testamento de Jó destaca ainda mais a
a Torá. Fala da sabedoria dos estudiosos judeus
insensatez da idolatria, mas também apresenta
que traduziram a Torá para o grego e da compa
materiais importantes para o desenvolvimento da
tibilidade entre a obediência à Torá e as melho
figura de Satanás. O Testamento de Moisés, em
res tradições da filosofia ética grega e sustenta
essência uma expansão de Deuteronômio 31—34,
a confiabilidade da
atesta a consideração que Moisés desfrutava
notáveis de narrativas bíblicas, estão José e Ase-
lxx.
Entre outras ampliações
como profeta, mediador e intercessor perpétuo,
nate. Vida de Adão e Eva e Liber Antiquitatum
oferecendo assim informações preliminares úteis
Biblicarum [Antiguidades bíblicas], obra também
para reflexões do
conhecida como Pseudo-Filo.
nt
a respeito de Moisés. A posi
ção de resistência não violenta advogada por esse
Entre os Pseudepígrafos, estão também os tex
livro contrapõe-se nitidamente às ideologias mais
tos litúrgicos. A compilação dos dezoito Salmos
militaristas do período, e a ideia de um dia de
de Salomão reflete a corrupção da casa asmoneia
arrependimento que preceda a vinda do reino de
em suas últimas décadas, a intervenção de Pom-
Deus corresponde ao chamado de Jesus ao arre
peu, o Grande (que sitiou Jerusalém a pedido de
pendimento como uma preparação para a chega
alguém que arrogava a si o direito ao trono asmo-
da de Deus (cf. Mc 1.14,15).
neu e adentrou o Santo dos Santos do templo), e a
Dentre as ampliações de narrativas bíblicas,
morte de Pompeu no Egito. Entende-se que todos
as mais importantes são Jubileus e Martírio de
esses acontecimentos demonstram o princípio de
Isaías. Datando do fim do século ii a.C., Jubileus
Deuteronômio, segundo o qual o desvio da Lei
reescreve as histórias de Gênesis e de Êxodo, sen
por parte do povo atrai o castigo, mas também
do de grande valor para o testemunho que presta
que 0 instrumento gentflico de punição não ficará
dos desenvolvimentos da teologia da Torá. A lei
impune. Os salmos falam da provisão generosa
revelada a Moisés é apresentada como uma lei
de Deus para toda a criação, promovem o modo
eterna, escrita em tábuas celestiais e obedecida
de vida do justo, criticam a hipocrisia e o orgu
até por arcanjos. As narrativas patriarcais sâo re
lho, afirmam o valor da correção de Deus e retra
contadas para realçar a obediência deles à Torá,
tam 0 advento da era messiânica sob a liderança
particularmente as observâncias rituais e litúrgi
de um filho de Davi, o Senhor Messias. De espe
cas. 0 livro também reforça os limites entre ju
cial interesse são também as Orações Sinagogais
deus e gentios (especialmente idumeus) e situa
Helenísticas, que mostram a fusão de piedade ju
a origem do mal na atividade de Satanás e seus
daica e cristã na igreja primitiva e que, despidas
anjos, em vez de na fraqueza de Adão. 0 autor
de seus acréscimos cristãos, oferecem uma visão
aguarda com expectativa o dia de uma renovação
singular da piedade da sinagoga. Entre esses tex
iminente de obediência à Torá que resultará num
tos poéticos, há também vários outros salmos de
retorno à longevidade primitiva. 0 Martírio de
Davi e as Odes de Salomão, coletânea cristã com
Isaías relata a apostasia de Manassés, bem como
fortes afinidades com o quarto Evangelho.
a prisão e execução de Isaías (foi serrado ao meio;
Vários textos sapienciais, em geral mostrando
cf. Hb 11.37) por instigação de um falso profeta,
até que ponto os judeus podiam adaptar e usar a
Belquira, um demônio que trabalhava para des
filosofia, as máximas e a ética gregas, são também
garrar Jerusalém. Em sua forma atual, o Martírio
incluídos na coletânea, bem como obras hterárias
I 120 I
A pócrifos e Pseudepígrafos
(poesia 0 drama) que muitas vezes constituem
B ib u o g r a h a .
uma imitação consciente das formas gregas. Por
pha and Pseudepigrapha of the Old Testament
último, a compilação inclui fragmentos de histo
in English. Oxford: Clarendon Press, 1913. 2 v.
C h a r le s ,
R. H., ed.. The Apocry
riadores que investigam a história primitiva dos
■ C h a r le s w o r t h ,
Judeus de uma maneira que faz lembrar as Anti
modem research, with a supplement. Chico:
guidades de Josefo.
Scholars, 1981. (scs, 7.) ■ ______ . The Renais sance
3. Importância
of
J. H. The Pseudepigrapha and
Pseudepigrapha
studies;
the
SBL
Pseudepigrapha project, jsi, v. 2, p. 107-14, 1971.
O período entre os Testamentos não é uma era
■ C h a r le s w o r t h ,
silenciosa. Os textos contidos nos Apócrifos e
Pseudepigrapha. Garden City: Doubleday, 1985. 2
nos Pseudepígrafos apresentam ao leitor de hoje
V.
muitas vozes importantes e influentes dos pe
Philadelphia; Westminster, 1987. ■ D eS ilva , D. A.
ríodos helenístico e romano. Sem esses textos,
Introducing the Apocrypha: message, context, and
nossa visão do judaísmo, no qual a igreja nas
significance. Grand Rapids: Baker, 2002. ■ E v a n s ,
ceu, seria seriamente deficiente. Essas vozes de
C.
monstram a diversidade no judaísmo durante o
interpretation. Peabody: Hendrickson, 1992. ■
■ Cohen,
S.
J. H., org. The Old Testament
From the Maccabees to the Mishnah.
A. Noncanonical writings and New Testament
período do segundo templo, visão que suplantou
F rttsch ,
as concepções do começo do século xx sobre um
p 161-6. ■ ______ . Pseudepigrapha.
judaísmo “normativo” (legalista) antes de 70 a.C.
s.d.].
(C h a r le s w o r t h v s . C h a r le s )
. Tratou-se de um perío
do dinâmico de “fermento” no judaísmo
V.
C. T. Apocrypha, idb., [S.l.: s.n., s.d.], v. 1, 3, p. 960-4.
■ H elyer ,
L.
R.
idb.,
[S.L: s.n.,
Exploring Jewish
literature o f the second temple period: a guide for
(R u s s e ll,
New Testament students. Downers Grove: Inter
1993), de uma luta corpo a corpo com a identi
Varsity, 2002. ■ K a u t z s c h , E., ed. Die Apokryphen
dade judaica e de lealdade aliancística em meio
und Pseudepigraphen des Alten Testaments.
a grandes pressões sociais e convulsões políticas.
desheim: Georg Olms, 1962 [1900], 2 v. ■ K r a f t ,
0 estudo desses textos leva a uma compreen
A. &
R.
N ic ke lsb ur g ,
H il
G. W. E., orgs. Early Judaism
são mais profunda do judaísmo e de uma varíe-
and its modem interpreters. Philadelphia: For
dade de tradições judaicas que dão formato à
tress; Atlanta: Scholars, 1986. ■ M
proclamação de Jesus e da igreja primitiva — e
The HarperCollins study Bible. New York: Harper-
W. A., org.,
esse não é o judaísmo das Escrituras hebraicas
Collins, 1993. ■ M
somente. As vozes intertestamentárias destacam
the Apocrypha. Oxford; Oxford University Press,
partes da tradição do
at
que se mantiveram es
pecialmente importantes, mas também ajudam
1957. ■ M
etzg e r ,
etzg e r ,
B.
M.
B.
eeks ,
&
M.
An introduction to
M urphy, R .
E. The new
Oxford annotated Bible with the Apocrypha. New
a confirmar novos desenvolvimentos, ênfases
York: Oxford University Press, 1991. ■
e linhas de interpretação que não nasceram na
J. D. Greeks, Romans, Jews. Philadelphia; Tt'in-
igreja primitiva, mas eram por ela pressupostos.
ity, 1992. ■ N ic ke lsb ur g , G. W. E. Jewish literature
A cosmologia, a angelologia, a
between the Bible and the Mishnah. Philadelphia:
escatologia ,
a
cris -
N ew som e,
TOLOGiA e a ética da igreja primitiva devem muito
Fortress, 1981. ■
aos desenvolvimentos desse período efervescente.
Apocalyptic. London: Athlone, 1944. ■ R u ssell , D.
Alguns desses textos lançam luz sobre a ideologia
S. Between the Testaments. London:
daqueles que se opuseram ao movimento de Jesus
■
R ow ley, H . H .
. Pseudepigrapha. In;
The relevance of scm,
M e t zg e r ,
B.
1960. M. &
ou à missão de Paulo. Muitos outros eram os
C oogan,
parceiros de debate de vultos fundacionais na igre
the Bible. Oxford: Oxford University Press, 1993.
M. D., orgs. The Oxford companion to
ja, e nossa plena valorízação da obra destes depen
p. 629-31. ■ S c h ü r e r , E. The history o f the Jewish
de de quão familiarízados estamos com aqueles.
people in the age of Jesus Christ (175 b.c.-a.d. 135).
Ver também ju d aísm o
e
o Novo
T e s t am e n to ; t r a -
Ed. rev. G. Vermes, F. Millar e M. Goodman. Edin burgh: T & T Clark, 1986. v. 3. p. 1. 3 v. ■ S t o n e ,
31ÇÕES E ESCRITOS RABÍNICOS. Jewish I jt e r a t u r e : H isto ria n s a n d P o e ts;
M. E. I. The Dead Sea Scrolls and the Pseudepigra
Pseudonimity a n d Pseudepigraphy; Rabbinic L it e r a tu
pha. Dead Sea Discoveries, v. 3, p. 270-95,1996. ■
r e ; R e w ritt e n B ib le in Pseudepigrapha a n d Q u m ran .
______ . Pseudepigrapha. iDBSup, p. 710-2. ■ St o n e ,
dntb:
I 121 I
A póstolo : N o v o T estamento
M. E., org. Jewish writings o f the second temple pe
1.1.1 Apostolos. No grego clássico, apostolos
riod. Assen: Van Gorcum; Philadelphia: Fortress,
era usado de modo impessoal, por exemplo, em
1984.
relação ao envio de uma frota ou de um exército
CRiNT, V .
2, p. 2. D.
A.
DE S il v a
e depois em relação à própria frota ou ao próprio exército. Há umas poucas ocorrências isoladas do
A
pó sto lo:
N
ovo
T
uso de apostolos de forma pessoal. No entanto, é
estam ento
0 termo “apóstolo” (apostolos) é usado nos Evan
digno de nota o fato de que nesses casos é secun
gelhos para designar os doze discípulos chama
dária a ideia de um agente autorizado: a qualidade
dos e enviados por Jesus a pregar o evangelho do
de ser enviado é o aspecto mais fundamental.
REiNo e dar mostras de sua presença pela realiza
Apostolos
ção de sinais e maravilhas. O termo não é aplica
(3Rs 14.6 par. IRs 14.6 t p ) , o que é surpreenden
do a Jesus nos Evangelhos. Não obstante, há boas
te, uma vez que o
razões para crer que ele via a si mesmo como
a mensageiros enviados por Deus. Nos papiros,
apóstolo de Deus, enviado ao mundo para pro
o termo é empregado de forma impessoal (e.g.,
clamar e inaugurar o reino de Deus. Há também
para designar uma fatura que se faz acompanhar
é
encontrado uma única vez na
at
lx x
contém muitas referências
boas razões para crer que a origem do apostolado
de uma remessa de trigo). Josefo usa apostolos
cristão deve remontar a Jesus, especialmente ao
duas vezes, e um desses casos refere-se a emis
momento em que ele envia os Doze numa mis
sários judeus que vêm a Roma requerer de César
são à Galileia, e boas razões há para crer que a
a Uberdade de viverem de acordo com as leis de
ideia do apostolado revela certa afinidade com
les. O sentido aqui se aproxima do uso de apos
a instituição judaica do shãliah (“enviado”). Por
tolos nos Evangelhos, mas sem dúvida ainda não
sua vez, isso nos permite compreender melhor
lhe corresponde plenamente. 0 uso de apostolos
a natureza do apostolado cristão, o qual vemos
presente nos Evangelhos, e também como termo
desenvolvido em Atos, que dá prosseguimento à
técnico mais importante, encontrado por todo o
história dos
d is c íp u l o s
de Jesus.
NT,
O ofício de apóstolo, que Paulo utilizou para de modo enfático se referir a si mesmo, é de im
designando alguém enviado (por Cristo) para
transmitir uma mensagem da parte de Deus, é raro nos escritos antigos.
portância singular no estudo de sua vida e mi
1.1.2 Apostellõ e pempõ. No grego secular, os
nistério. Tem havido um grande debate sobre os
verbos apostellõ e pempõ são usados em referência
critérios para o apostolado e sobre a natureza da
ao envio de pessoas e coisas. Há, no entanto, uma
autoridade que Paulo afirmava possuir sobre as
diferença inegável no uso dos dois termos. Pempõ
igrejas dos gentios, que era questionada ou rejei
é usado quando se quer indicar não mais que um
tada por outros.
simples envio, ao passo que apostellõ se refere ao
1. “Apóstolo” nos Evangelhos
envio de pessoas com uma comissão e, em alguns
2. “Apóstolo” nas cartas de Paulo
casos, denota envio e autorização divinos.
3. “Apóstolo” em Atos, Hebreus, nas Cartas Gerais e em Apocahpse
Na
LXX,
o verbo apostellõ
é
usado mais de 709
vezes, quase sempre como tradução equivalente do verbo hebraico shãlah ( “enviar”). Shãlah trans
1. “Apóstolo” nos Evangelhos 1.1
mite de modo geral a ideia de ser enviado com
Terminologia. Além da palavra apostolos, uma comissão, seja por outro agente humano,
dois outros termos são significativos para nossa
seja por Deus. Pempõ ocorre com muito menos
compreensão do apostolado nos Evangelhos. Pri
frequência, e apenas cinco vezes como tradução
meiramente, 0 verbo cognato apostellõ (“enviar”),
de shãlah. Josefo usa os dois termos, às vezes
usado nos quatro Evangelhos. Em segundo lugar,
como sinônimos (quando tem em mente um sim
o verbo pempõ (“enviar”), usado sinonimamente
ples envio), mas escolhe apostellõ quando quer
no Evangelho de João. Já muitas vezes se docu
passar a ideia de envio com uma comissão.
mentou 0 emprego desses termos em fontes extrabíblicas (v., e.g.,
R
e n g sto rf) ,
e só precisam ser
tratados aqui de maneira esboçada.
No NT (exceto no Evangelho de João), pode se afirmar que pempõ é empregado sempre que se quer passar a ideia de um simples envio, e
I 1 22 I
A p ó s to lo : Novo T esta m e n to
j^ostellõ, quando está em jogo algum tipo de co-
adjetiva em alguns manuscritos de Marcos pode
isissão. No Evangelho de João, todavia, os dois
ter acontecido em decorrência da glosa de algum
iermos são usados intercambiavelmente.
copista.
1.2 A origem da ideia do apostolado. São raros os casos do termo apostolos fora do
nt
,
o
Se deixarmos de lado Marcos 3.14 e Lucas 6.13, então o que nos resta nos Evangelhos são
que estabelece um acentuado contraste com a
vários textos em que os Evangelistas se referem
írequência de seu uso no
aos Doze como apóstolos (Mt 10.2; Mc 6.30;
nt
.
exemplo, apenas uma vez na acorre 79 vezes no
nt
.
É encontrado, por ao passo que
Lc 9.10; 17.5; 22.14; 24.10); uma declaração de
Como explicar esse fenô
Jesus em Lucas 11.49 (“Diz a Sabedoria de Deus:
lx x ,
meno? De onde surgiu o uso cristão de apostolosl
eu lhes mandarei profetas e apóstolos; e eles ma
1.2.1 A visão tradicional. Marcos 3.14 e Lu
tarão uns e perseguirão outros”), que sem dúvida
cas 6.13 afirmam que Jesus escolheu doze
d is c í -
inclui uma referência a apóstolos, mas é omitida
ri5Los, “aos quais também chamou de apóstolos”,
na afirmação correspondente de Jesus em Ma
remontando assim a Jesus o ato de dar aos Doze
teus 23.34; uma única declaração de Jesus no
o nome de apóstolos. Pode parecer a muitos que
Evangelho de João (“Em verdade, em verdade
isso resolva a questão. Os que remontam a ideia
vos digo: O escravo não é maior que seu senhor,
do apostolado cristão a Jesus reconhecem que
nem o mensageiro [apostoíos] é maior que aquele
e!e não deve ter utilizado o termo grego aposto
que o enviou” [Jo 13.16]), uma declaração que
las. Mais provavelmente, teria empregado ou o
sem dúvida não está relacionada em primeiro lu
ajuivalente aramaico (_sh‘ltha’], ou o hebraico
gar ao apostolado cristão.
[shãliah). Os que defendem essa teoria afirmam
Em segundo lugar, embora a instituição do
que apostolos, em nossos Evangelhos, deve ser
shãliah (“enviado”) seja bem documentada nos
eatendido em relação à instituição judaica do
escritos rabínicos, não é possível datar essa do
shãliah (“enviado”), conceito que Jesus conhecia
cumentação de período anterior ao século ii d.C.
aem e que aplicou à concepção que tinha do rela
Não há nenhum uso conhecido da forma nomi
cionamento com seus discípulos.
nal shãliah antes dessa data. É muito difícil sus
A instituição do shãliah é bem documentada
tentar a ideia de que o uso da palavra apostolos
em escritos rabínicos (cf., e.g., m. Ber., 5.5), nos
nos Evangelhos demonstra que ou a origem do
quais ele se refere a alguém que recebeu autoriza
apostolado cristão pode ser remontada a Jesus,
ção para exercer certas funções em nome de outra
ou que Jesus a compreendia à luz da instituição
pessoa. 0 adágio: “ 0 enviado de um homem a
judaica do shãliah. Isso levou alguns estudiosos a
ele corresponde” ocorre muitas vezes nos escri-
buscar outras maneiras de explicar a origem do
:os rabínicos e ressalta o caráter representativo do
apostolado cristão.
shãliah, indicando que ele carrega a plena auto ridade de seu outorgante. Aventa-se, assim, a hi
1.2.3
Teorias alternativas. Um fator que pare
ce apontar na direção de uma possível explicação
pótese de que Jesus entendia seu relacionamento
alternativa para a origem do apostolado é a dis
C3m seus discípulos à luz dessa instituição, e o
tribuição bastante desigual da palavra apostolos
zso de apostolos nos Evangelhos origina-se do
no
-jso que ele faz dessa ideia.
68 acham-se em Lucas-Atos e no corpus paulino
nt
como um todo. Das 79 ocorrências no
nt
,
1.2.2 Dificuldades da visão tradicional. A vi
— documentos relacionados de modo especial à
são tradicional não é tão forte quanto parece à
missão cristã da igreja primitiva. Isso levou vá
primeira vista, por duas razões. Primeiramente,
rios estudiosos (e.g.,
cs melhores manuscritos omitem as palavras “aos
ideia do apostolado cristão não surgiu no tem
qjais também chamou de apóstolos” em Marcos
po da missão de Jesus, mas no começo do perío
3.14. Isso faz de Lucas 6.13 um testemunho soli-
do da missão pós-Páscoa da igreja.
S c h m it h a l s )
a afirmar que a
:ário do fato de que foi Jesus quem deu aos Doze
Essa teoria deve ser levada a sério. As car
' nome de apóstolos. O texto de Lucas pode ba-
tas paulinas mais importantes estão entre os
sear-se numa variante de Marcos reconhecida por
documentos mais antigos do
poucos, e a inclusão dessa oração subordinada
mente foram escritas antes de qualquer um dos
I 1 23 I
nt
e quase certa
apo sto lo:
Novo l estamento
Evangelhos. Portanto, o surgimento da ideia cristã
Voltando-nos para os Evangelhos, descobri
de apóstolo, ao menos da perspectiva literária,
mos que, embora seja esparso o uso do subs
deve remontar a esses escritos. É, portanto, teori
tantivo apostolos, é considerável a ocorrência do
camente possível que a ideia do apostolado cristão
verbo
se tenha originado na fase inicial da missão cris
também do uso de p e m
tã e só depois encontrado expressão literária nas
lhos usa
mais importantes cartas pauhnas, sendo somente
casos que poderíamos considerar usos técnicos,
mais tarde usada pelos Evangelistas quando estes
nos quais está presente a ideia de ser enviado com
escreveram os relatos em que Jesus aparece voca
uma comissão. Em cada um dos Evangelhos, os
cionando e comissionando seus discípulos.
termos técnicos ocorrem em trechos narrativos
Outra opinião é que o conceito se originou num
a p o s te llõ
(e, no caso do Evangelho de João,
a p o s te llõ
p õ ).
Cada um dos Evange
muitas vezes, incluindo-se os
do Evangelista e em declarações de Jesus que o
gnosticismo judaico ou judaico-cristão da Síria.
Evangelista inclui em sua narrativa. Esses termos
Como Antioquia (na Síria] é considerada o ponto
técnicos, como aqueles encontrados nas cartas
de partida da missão da igreja, sustenta-se que
paulinas, correspondem ao uso da terminologia
0 conceito pode facilmente ter sido tomado por
de envio do a t presente em s h ã l a h / a p o s t e l l õ , deno
empréstimo e assim incorporado ao pensamento
tando 0 envio de uma pessoa com uma comissão
da primeira missão cristã enviada daquela locali
(v. 1.2 acima). Assim, parece claro que o conceito
dade. No entanto, a última hipótese de forma ge
cristão do apostolado tem elos inegáveis com a
ral não tem recebido a aceitação dos estudiosos,
ideia do
até porque os documentos a que se recorre para
por sua vez corresponde ao papel do s h ã l i a h judeu
demonstrar a existência de um gnosticismo pré-
conforme é documentado nos escritos rabínicos.
at
de enviar com uma comissão, e isso
cristão não datam do período pré-cristão. Muitos
No entanto, a pergunta permanece: podemos
estudiosos, portanto, são mais favoráveis à ideia
remontar a Jesus o ato de forjar essa vinculação,
de que o conceito do apostolado teria surgido na
sendo ele, portanto, quem forneceu à igreja o en
experiência missionária da igreja.
tendimento que ela tem do apostolado? Teorica
1.2.4
Retomo a uma visão tradicional modifi mente, esse elo pode ter sido forjado no período
cada. Em tempos mais recentes, um número cada
da primeira missão cristã, e, uma vez forjado o
vez maior de estudiosos tem aceitado a ideia de
vínculo, a ideia resultante do apostolado pode
que 0 apostolado cristão remonta aos tempos
ter sido usada de forma anacrônica pelos Evan-
de Jesus. No entanto, os que assim procedem
geUstas em seus relatos, nos Evangelhos, acerca
relutam em vincular o conceito de forma muito
do ministério de Jesus. Haveria como tomar uma
estreita à instituição do s h ã l i a h (“enviado”) docu
decisão responsável a favor de uma dessas teorias
mentado nos escritos rabínicos, como fizeram os
alternativas?
primeiros defensores dessa teoria. Em vez disso, a atenção agora se volta para a terminologia de envio em torno de AT
e no
s h ã la h / a p o s te llõ
que ocorre no
1.2.5
Jesus e o apostolado cristão. A tese se
gundo a qual a ideia do apostolado cristão re monta a Jesus ganharia irrefutabilidade caso se pudesse demonstrar que há declarações autên
N T.
A abordagem mais recente começa, como de
ticas de Jesus nos Evangelhos (esp. nos Sinóti
veria ser, com as mais antigas referências literá
cos) nas quais se pode encontrar o uso técnico
rias ao apostolado cristão, ou seja, as das cartas
de
de Paulo. Nessas cartas, Paulo muitas vezes se
declarações como essas cuja autenticidade pode
a p o s te llõ
mencionado acima. Aliás, há várias
refere a si mesmo como apóstolo (apostolos) de
ser argumentada bem fortemente com base em
Jesus Cristo e faz menção ao fato de que Cristo
sóUdos argumentos. Entre elas, estão as afirma
o enviou
ções de Jesus a respeito de ter sido enviado pelo
(a p o s t e llõ )
com a comissão para procla
mar o evangelho aos gentios. Assim, apostolos/ a p o s t e llõ ,
nas cartas de Paulo, carrega o mesmo
significado básico da terminologia t e llõ
Pai e as declarações sobre ter ele próprio enviado os Doze e os Setenta.
s h ã la h / a p o s -
Entre os exemplos de declarações relaciona
do A T , que diz respeito a uma pessoa enviada
das a Jesus, temos Mateus 15.24, em que ele diz
com uma comissão.
à mulher cananeia: “ Eu fui enviado somente às
I 124 I
A póstolo ; N o v o T estamento
ovelhas perdidas da casa de Israel”; e Lucas 4.18,
estreha afinidade com o entendimento que se tí
em que Jesus cita Isaías 61.1; “0 Espírito do
nha da função do shãliah conforme encontrada
Senhor está sobre mim, porque me ungiu para
nos escrhos rabínicos.
anunciar boas-novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos...”.
Agora podemos tirar nossa atenção dos ar gumentos de que a ideia do apostolado cristão
Um exemplo das declarações relacionadas ao
se originou em Jesus a fim de procurar entender
fato de os discípulos de Jesus terem sido enviados
o que, de acordo com os Evangelhos, implicava
por ele é Lucas 22.35, em que Jesus lhes pede:
esse apostolado. Começamos com um debate so
“Quando vos enviei sem sacola, sem bolsa de via
bre a autopercepção apostóhca de Jesus.
gem ou sem sandáhas, acaso vos fahou alguma
2.3
Jesus, apóstolo de Deus. O termo apos
coisa?”. Ainda há uma série de declarações nas
tolos é aphcado apenas uma vez a Jesus no
quais Jesus comenta que aqueles que recebem a
(Hb 3.1), e em parte alguma dos Evangelhos.
seus discípulos a ele recebem, e aqueles que o
No entanto, há várias declarações de Jesus nos
nt
recebem também recebem aquele que o enviou
Evangelhos Sinóticos em que ele deixa entrever
(Mt 10.40/Lc 10.16; Mc 9.37/Lc 9.48/Mt 18.5).
uma consciência de ter sido enviado por Deus
Pode se argumentar fortemente, com base em
(Mt 15.24; Lc 4.18; Mt 10.40; Mc 9.37; Lc 9.48;
sóhdos argumentos, que todas essas declarações
10.16). O Evangelho de João atribui a Jesus 39
repousam numa tradição autêntica acerca de Je
declarações mostrando que ele foi enviado por
sus. Por exemplo, o fato de Mateus preservar a
Deus, incluindo-se as declarações que usam tan
passagem que encontramos em Mateus 15.24 com
to apostellõ quanto pempõ (e.g., Jo 5.30,36,38;
sua nota exclusivista (“somente às ovelhas per
6.29,57; 7.16,29; 8.16,42; 10.36).
didas da casa de Israel”), apesar da complicação
1.3.1
A fonte da autopercepção apostólica de
que isso possa ter causado numa igreja envolvida
Jesus. Parece-nos, com base nos Evangelhos, que
com a missão aos gentios na era pré-pauhna (cf.
o aspecto primordial da autopercepção de Jesus
At 10.1-48; 11.20-24), denota sua natureza asso
era seu relacionamento filial com o Pai (e.g., a
ciada a Jesus como o Senhor. A confiabihdade da
resposta do menino Jesus a seus pais em Lc 2.49:
tradição subjacente a Lucas 4.18, com sua chação
“ Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu
de Isaías 61.1, é ressaltada pelo fato de que se faz
Pai?”), e o fato de que tinha sido enviado pelo Pai
uma alusão a Isaías 61.1 em outras declarações de
para executar sua missão (Lc 4.43: “É necessá
Jesus (Lc 6.20/Mt 5.3-6 e Mt 11.2-6/Lc 7.18-23)
rio que eu anuncie o evangelho do reino de Deus
que levam o selo de autenticidade. No caso de Lu
também às outras cidades; pois foi para isso que
cas 22.35, pode se argumentar que toda a períco
fui enviado”). A percepção de ter sido enviado
pe em que a passagem se encontra (Lc 22.35-38),
por Deus é fortemente realçada pelo quarto Evan
com seu conselho para lançar mão da espada, não
gehsta. O aspecto secundário da autopercepção
é o tipo de declaração que a igreja desejaria pôr
apostóhca de Jesus é o fato de ter recebido a ca
aos lábios de Jesus, enquanto tentava ao mesmo
pacitação do Espírito (v.
tempo preservar a lembrança dele livre de qual
cutar a comissão que o Pai lhe havia designado.
E s p ír it o S a n t o )
para exe
quer associação com os zelotes. (Para um debate
Cada um dos Evangelhos relata como Jesus rece
mais completo a favor da autenticidade da tradi
beu 0 Espírito no momento de seu batismo. Em
ção subjacente a essas declarações e outras men
várias ocasiões, Jesus recorre a essa capacitação
cionadas acima, v.
K
ruse,
p. 13-29.)
como prova de que ele é o enviado de Deus para
Uma vez que há fortes argumentos a favor
declarar o momento em que o
at
seria cumpri
da autenticidade dessas declarações, há também
do. Por exemplo, em Lucas 4.16-21, Jesus cha a
um forte motivo para se afirmar que a ideia do
profecia de Isaías 61.1,2, afirmando que essa pro
apostolado cristão teve origem em Jesus e que
fecia agora estava cumprida. Em Mateus 12.28,
e!e 0 compreendia de maneira semelhante àque
ele responde aos que afirmam que ele expulsa
la refletida no
no uso da terminologia shãlah/
demônios pelo poder de Belzebu: “Se é pelo Es
apostellõ. Isso significa, por sua vez, que a com
pírito de Deus que expulso os demônios, então o
preensão que Jesus tinha do apostolado mantém
reino de Deus chegou a vós”.
at,
I 1 25 I
A póstolo : N o v o T estamento
Parece, então, que a autopercepção apostólica
que sofriam com doenças e opressão demoníaca.
de Jesus estava arraigada em seu senso de rela
Mas, acima de tudo, ele se aproximou para per
cionamento filial singular com o Pai e na convic
doar os pecados de todos os que atendessem ao
ção de ter sido encarregado por ele de inaugurar
chamado ao arrependimento e para estabelecer
o tempo de cumprimento. A atividade do Espírito
um relacionamento restaurado com eles.
em seu ministério foi algo para o qual ele chamou
Contudo, havia também um lado escuro e
a atenção do povo, a fim de que reconhecesse
misterioso no que Deus estava fazendo quando
que ele fora enviado por Deus, em vez de ser a
se aproximou na pessoa e na missão de Jesus. 0
prova por meio da qual ele mesmo foi convencido
reino tinha não apenas de ser proclamado e inau
de seu chamado.
gurado. Um caminho precisava ser aberto por
1.3.2 O alcance do apostolado de Jesus. Um
meio do qual o ser humano pudesse participar do
aspecto do apostolado de Jesus um tanto impres
que Deus estava fazendo. A parte crucial da mis
sionante é seu alcance hmitado. De acordo com
são de Jesus era a entrega de sua vida em resgate
Mateus 15.24 (“ Eu fui enviado somente às ove
por muhos (Mc 10.45), o derramamento de seu
lhas perdidas da casa de Israel”), Jesus entendia
sangue para a remissão de pecados (Mt 26.28;
sua missão como limitada ao povo judeu, e isso
Mc 14.23,24; Lc 22.20). Para alcançar esse fim,
é refletido no fato de que os Evangelhos Sinóti
acima de tudo, Jesus foi enviado como apóstolo
cos jamais o retratam com o propósito deliberado
de Deus.
de evangelizar não judeus. Ele foi enviado para
1.4 O apostolado dos discípulos de Jesus.
anunciar a chegada do reino de Deus entre as cida
Cada um dos Evangelhos Sinóficos relata que Je
des judaicas da Gahleia e da Judeia (Mc 1.35-39/
sus chamou os Doze e os enviou numa missão
Lc 4.42,43). Mesmo o notável ministério exercido
gahleia. Algumas dúvidas surgiram sobre a histo
em Samaria e relatado em João 4 não é apresenta
ricidade dessa missão, mas há fortes razões para
do como algo que estivesse nos planos de Jesus,
rejehar essas objeções. Não menos importante é
como o ministério que ele exerceu nas cidades
a referência a essa missão na declaração de Jesus
judaicas.
em Lucas 22.35; “Quando vos enviei sem sacola,
1.3.3 Um apostolado profético e cumpridor de
sem bolsa de viagem ou sem sandáhas, acaso vos
profecias. A missão de Jesus era profética, uma
fahou alguma coisa?”. Deixando de lado, então,
vez que, como outros grandes profetas anteriores
a questão da historicidade, podemos explorar as
a ele, ele proclamava a chegada do reino de Deus
tradições sobre missão presentes nos Evangelhos
(Mc 1.14,15/Mt 4.17). No entanto, ultrapassou
para descobrir o que elas revelam acerca da natu
tudo que os profetas fizeram, uma vez que ele
reza do apostolado dos Doze.
foi enviado não apenas para proclamar o reino,
1.4.1
A missão dos Doze. Em Marcos 3.13,14
mas também para inaugurá-lo. Assim, segundo
lemos: “Jesus subiu a um monte e chamou os
Lucas, Jesus entendia que a grande profecia de
que ele mesmo quis; e estes foram até ele. Então
Isaías 61.1,2 estava se cumprindo em sua mis
designou doze para que estivessem com ele, e os
são (Lc 4.16-21; cf. Lc 6.20/Mt 5.3-6; Mt 11.2-6/
enviasse a pregar”. Marcos realça que a missão e 0 apostolado dos Doze têm origem no chama
Lc 7.18-23). 1.3.4 O apostolado de Jesus e o reino. 0 que
do de Jesus. 0 propósito para o qual eles foram
significava na prátíca Jesus inaugurar o reino? A
chamados é claramente demonstrado: “para que
declaração de Jesus “O reino de Deus está próxi
estivessem com ele, e os enviasse a pregar”. Há
mo” na verdade significa que o próprio
duas partes no chamado, e a segunda estava inti
D
eus
está
próximo. E o que Deus fez quando se aproximou
mamente relacionada à primeira.
na pessoa e na missão de Jesus? Começou sua
A primeira parte (estar com ele) implicava
obra de introduzir uma nova era. Chamou uma
percorrer toda a região, de cima a baixo, com ele,
nação ao arrependimento, sentou-se à mesa com
compartilhando ahmento e acomodação com ele,
cobradores de impostos, pecadores, fariseus e ou
experimentando a mesma acehação e rejeição
tros; retirou o fardo pesado da tradição rehgiosa
que ele encontrava e observando o ministério que
dos ombros dos habitantes da terra e hbertou os
ele estava realizando, às vezes participando desse
I 126 I
A póstolo : N o v o T estamento
ministério. A segunda parte (ser enviado para
Ambas as leituras encontram-se nos manuscritos,
pregar) dependia da primeira (estar com ele),
e as testemunhas parecem igualmente divididas.
pois, como veremos, o ministério de pregação
Outras considerações, como o simbohsmo dos Se
deles era essencialmente uma extensão do dele.
tenta (e Dois), impedem um consenso acadêmico
Marcos 6.7-13, Mateus 10.1-42 e Lucas 9.1-6 apre
quanto à leitura original.
sentam a incumbência de Jesus aos Doze.
Segundo: o material encontrado na incumbên
Há vários aspectos significativos de compa
cia marcana (Mc 6.7-13) e mateusina (Mt 10.1-42)
ração entre a missão deles e a missão de Jesus.
feita aos Doze aparece uma parte na incumbên
Primeiro: Jesus, que afirmou não ter sido envia
cia lucana aos Doze (Lc 9.1-6) e outra parte na
do senão às ovelhas perdidas da casa de Israel
incumbência lucana aos Setenta (Lc 10.1-16).
(Mt 15.24), insistiu em afirmar que as mesmas
Supondo, como ainda quer a maioria dos estu
limhações se aphcavam à missão dos Doze: “ Não
diosos, que Marcos tenha sido escrito primeiro
ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de sa-
e que Mateus e Lucas tenham utihzado alguma
marhanos, ide antes às ovelhas perdidas da casa
forma de Marcos, bem como alguma fonte de de
de Israel” (Mt 10.5,6). Segundo: a tônica da mis
clarações
são deles devia ser a mesma. Deviam proclamar
parece que Mateus usou seu material marcano
( q)
na composição de seus Evangelhos,
que 0 reino do céu estava próximo, e a presença
mais as declarações de missão de
desse reino seria demonstrada por obras prodi
sua incumbência aos Doze, enquanto Lucas usou
q
ao compor
giosas (Mt 10.7,8). Terceiro, e talvez o mais im
as mesmas fontes para compor as duas incum
portante: Jesus declarou que a recepção que seus
bências — a dos Doze e a dos Setenta.
discípulos recebessem do povo seria considerada
Terceiro: quando Lucas retrata Jesus referin
a recepção que as pessoas desejavam dar a ele e
do-se à missão dos Doze (Lc 22.35), faz-se re
ao Pai, que o tinha enviado (Mt 10.40).
ferência a um material incluído na incumbência
Tudo isso tem grande importância para o en
aos Setenta. Pode se inferir daí que Lucas não
tendimento da missão dos Doze e da natureza
estava tentando reproduzir literalmente incum
do apostolado. As hmitações aphcadas à missão
bências diferentes, a pessoas diferentes, mas rela
deles, sua tônica essencial e a importância da res
tando 0 tipo de instrução que Jesus teria dado a
posta do povo a tudo isso cortespondem de perto
dois grupos diferentes.
às caracteristicas essenciais da missão de Jesus
Levando-se tudo isso em consideração, resta
e constituem um forte indício de que a missão
perguntar se a missão dos Setenta tem algum
deles era na realidade uma extensão da dele. Isso
fundamento histórico ou se deve ser considerada
sugere, por sua vez, que a terminologia de en
uma criação hterária do Evangehsta. Aventou-
vio com apostellõ, que, como já vimos, é usada
se a hipótese, por exemplo, de que Lucas tenha
por Jesus nos Evangelhos Sinóticos (e em João),
inventado a história como forma de prefigurar a
reflete um entendimento do relacionamento exis
missão mais ampla da igreja aos gentios. Desse
tente entre ele e seus discípulos do ponto de vista
modo, insiste-se, assim como a missão dos Doze
da instituição do shãliah. Seus discípulos foram
fala de uma missão às tribos de Israel, a missão
encarregados de atuar como seus representantes,
dos Setenta fala da missão às nações do mundo.
sob sua autoridade, proclamando sua mensagem
(Gênesis 10 contém uma hsta de nações com o
e exercitando seu poder. No caso dos discípulos
total de 70 nomes no
de Jesus, portanto, as palavras do adágio rabínico
tese é que Lucas inventou a missão dos Setenta
“ O enviado de um homem a ele corresponde” ca
para hdar com a tensão entre a tradição da igreja
bem perfehamente.
a respeito da missão dos Doze e seu reconheci
1.4.2
tm
e 72 na l x x . ) Outra hipó
A missão dos Setenta. Cada um dos mento da missão de um grupo muito mais amplo
Evangelhos Sinóticos relata uma missão gahleia
de testemunhas.
dos Doze, mas Lucas também relata uma mis
No entanto, há outras maneiras de exphcar
são dos Setenta. Há problemas em torno desta.
os fenômenos. Primeira; é teoricamente possível
Primeiro: há a dúvida se o texto de Lucas 10.1
que Lucas considerasse a existência do material
[e Lc 10.17) traz “ setenta” ou “ setenta e dois”.
sobre a missão nas duas fontes de que dispunha
I 1 27 I
A póstolo : N o v o T estamento
como prova de que tivesse havido
dos Evangelhos (mas em Marcos apenas no final
duas missões diferentes, e assim usou essas fon
(Marcos e
longo) e em Atos. Em Mateus e em Lucas, Jesus
q)
tes para compor duas incumbências de missão.
(re) comissiona os Doze (menos Judas Iscariotes),
Segunda, e mais provável: Lucas era depositário
dessa vez para fazer discípulos de todas as na
de uma tradição fidedigna sobre as duas missões
ções (Mt 28.18-20) e proclamar arrependimento
históricas, e ao compor seu Evangelho usou o
e remissão de pecados em seu nome a todas as
material sobre a missão de suas duas fontes para
nações (Lc 24.44-49). Isso reflete a convicção
fornecer um relato do tipo de instrução que Jesus
dos Evangelistas de que o Jesus que chamou e
teria dado ao enviar os dois grupos.
comissionou os Doze para a missão gaUleia Umi-
1.4.3
A missão pós-Páscoa dos discípulos de tada recomissionou os mesmos homens (menos
Jesus. Enquanto os relatos de missão dos Evan
Judas) para serem apóstolos da missão mundial.
gelhos Sinóticos (não há nenhum em João) se re
Também mostra o entendimento da igreja primi
lacionam a uma atividade no período pré-Páscoa,
tiva de que as restrições aplicadas à missão de
parece haver alusões nas incumbências a uma
Jesus, também aplicadas por ele à missão galileia
missão posterior e mais ampla dos discípulos no
dos Doze, agora estavam propositadamente sus
período pós-Páscoa. Por exemplo, a afirmação
pensas, e se impunha uma missão a samaritanos
“Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos...”
e a gentios, bem como a judeus.
(Mt 10.16/Lc 10.3) de certa maneira não se en quadra bem na experiência de missão galileia dos
l.S
Nuanças na compreensão dos quatro
Evangelistas a respeito do apostolado. Cada um
discípulos (e.g., Lc 10.17-20). Parecem ter sido
dos quatro evangelistas retrata o apostolado de
dias tranquilos. Isso tem levado alguns a supor
uma maneira diferente. Algumas coisas são co
que essa afirmação e outras declarações que pre
muns a todos os Evangelistas ou à maioria deles,
nunciam grandes dificuldades e perseguição para
mas outras recebem um realce característico ex
o grupo de missionários é uma tradição que ema
clusivamente em um ou em outro.
nou do período pós-Páscoa, quando a igreja pas
1.5.1 Elementos comuns. Comum a todos os
sava por perseguição. No entanto, tal conclusão
Evangelistas é a convicção sólida de que a condi
não é inevitável. Jesus por certo estaria ciente da
ção de membro no apostolado é uma questão de
tensão cada vez maior criada por sua missão e
escolha por parte de Cristo: não há voluntários.
teria sido capaz de prever a oposição cada vez
Cada um dos Evangelhos Sinóticos deixa isso cla
mais forte que enfrentaria e que culminaria em
ro, mostrando que Jesus tomou a iniciativa quan
sua morte, em Jerusalém. Não seria necessário
do chamou determinadas pessoas para segui-lo
grande percepção ou pré-conhecimento profético
(Mt 4.18-22; 9.9; Mc 1.16-20; 2.14; Lc 5.1-11,
da parte de Jesus para ver que seus seguidores
27,28). E, no que se refere à nomeação dos Doze,
experimentariam perseguição
semelhante em
outra vez Jesus chamou aqueles que ele desejou
Tudo isso faz crer que o material agora uni
bora o Evangelho de João nâo contenha um regis
ficado nas incumbências de missão pode incluir
tro da nomeação dos Doze, refere-se a eles dessa
tempo posterior.
chamar (Mt 10.1-4; Mc 3.13-19; Lc 6.12-16). Em
não apenas as afirmações diretamente relaciona
forma várias vezes (Jo 6.67,70,71; 20.24) e tam
das à missão galileia pré-Páscoa, mas também
bém ressalta que a condição dejnembro no apos
aquelas afirmações de Jesus que prenunciam a
tolado dependia da escolha de Cristo (Jo 6.70;
missão pós-Páscoa de seus seguidores. Mais tar
13.18; 15.16,19).
de, eles enfrentariam a mesma hostilidade com
Todos os Evangelhos Sinóticos indicam que o
que ele deparou no fim de seu ministério. Isso,
compromisso dos Doze era (pelo menos no iní
por sua vez, oferece apoio à teoria de que o papel
cio) para uma missão galileia, em que eles exe
apostólico dos Doze no período pós-Páscoa foi no
cutariam em nome de Jesus o mesmo tipo de
mínimo previsto pelo Jesus histórico.
atividade em que ele estava envolvido (Mt 10.5-8;
A missão pós-Páscoa é pressuposta nas de
Mc 6.7-13; Lc 9.1-6).
clarações da comissão pós-ressurreição encon
1.5.2 Elementos diferentes. Embora todos os
tradas de uma forma ou de outra em cada um
Evangelhos e Atos contenham uma comissão
I 128 I
A póstolo : N o v o T estamento
pós-ressurreição feita por Cristo, elas revelam aspec
até os confins da terra” (At 1.8). 0 que está em
tos e/ou entendimentos diferentes do apostolado.
jogo nesse testemunho é explichado no relato da
1.5.2.1 Mateus. Em Mateus, Jesus diz aos
nomeação de Matias para suceder a Judas Isca
Onze: “Toda autoridade me foi concedida no
riotes: “É necessário que dentre os homens que
céu e na terra. Portanto, ide, fazei discípulos de
conviveram conosco todo o tempo em que o Se
todas as nações, batízando-os em nome do Pai,
nhor Jesus andou entre nós, começando desde o
do Filho e do Espírho Santo, ensinando-lhes a
batismo de João até o dia em que dentre nós ele
obedecer a todas as coisas que vos ordenei; e
foi elevado ao céu, um deles se torne conosco
eu estou convosco todos os dias, até o final dos
testemunha da sua ressurreição” (At 1.21,22).
tempos” (Mt 28.18-20). As quatro ocorrências da
Por último, há na comissão de Lucas uma ên
palavra “todo” são o indício que temos de que
fase na capachação pelo Espírito que os apóstolos
Mateus realça a natureza da tarefa apostóhca: ela
tinham de receber para executar sua tarefa (isso é
repousa sobre a autoridade do Cristo ressurreto
também desenvolvido com mais detaUies em Atos). 1.5.2.4
(“Toda autoridade me foi concedida [...]. Portan
João. No Evangelho de João, Jesus apa
to, ide...”); seu alcance deve abranger “todas as
rece a seus discípulos depois de sua ressurreição
nações” ; seu conteúdo ensina “todas as coisas
e lhes diz: "Paz seja convosco! Assim como o Pai
que vos ordenei” ; sua promessa é; “... e eu estou
me enviou, também eu vos envio” (Jo 20.21). A
convosco todos os dias, até o final dos tempos”.
redação da comissão aqui dá a entender que a
1.5.2.2 Marcos. Em Marcos, a comissão é
tarefa apostóhca envolvia uma extensão do mi
encontrada somente no final longo, e há muita
nistério de Jesus. Nos versículos que se seguem
dúvida quanto a considerá-lo parte autêntica do
(Jo 20.22,23) Jesus sopra sobre os discípulos e
Evangelho (v. Marcos, Evangelho
A declara
diz: “Recebei o Espírho Santo. Se perdoardes os
de) .
0 seguinte: “ Ide por todo o mundo, e pre
pecados de alguém, eles lhe serão perdoados; se
gai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for
os retiverdes, eles lhe serão retidos”. Isso torna
batizado será salvo, mas quem nâo crer será con
possível a afirmação de que a missão deles era
denado” (Mc 16.15,16). 0 realce aqui recai sobre
uma extensão da dele (por causa do Espírho Santo
a natureza universal da comissão apostóhca e as
a eles outorgado), além de explicar parte de seu
sérias imphcações da resposta humana ã mensa
significado (o perdão e a retenção dos pecados —
gem apostóhca.
presumivelmente por pregar o evangelho e infor
ção diz
1.5.2.3 Lucas. No Evangelho de Lucas, a co missão é redigida da seguinte maneha: “ Está
mar as pessoas das consequências de recebê-lo ou rejehá-lo, exatamente como Jesus havia feho). [C. G.
escrito que o Cristo sofreria, e ao terceiro dia res-
K
ruse]
suscharia dentre os mortos; e que em seu nome se pregaria o arrependimento para perdão dos
2. “Apóstolo” nas cartas de Paulo
pecados a todas as nações, começando por Jeru
Uma das questões mais hnportantes relacionadas
salém. Vós sois testemunhas destas coisas. Envio
ao apostolado de Paulo é o caráter e a autorida
sobre vós a promessa de meu Pai. Mas ficai na
de desse apostolado. A ideia tradicional de que o
cidade, até que do alto sejais revestidos de poder”
chamado de Cristo (v.
(Lc 24.46-49). Mais uma vez, é realçado o alcance
de)
P
a u lo , co nversão e c h a m a d o
na estrada para Damasco conferiu a Paulo a
imiversal da comissão apostóhca ("a todas as na
autoridade do Senhor sobre as igrejas gentíhcas,
ções”). Além do mais, Lucas ressaha que o papel
que se transfere para o estado canônico de suas
do apostolado é dar testemunho da morte e da
cartas para as igrejas de hoje, vem sendo desafiada
ressurreição de Jesus Cristo, convocar ao arre
por definições mais amplas de apostolado. Ahás, essas redefinições tornam a autoridade apostóli
pendimento e oferecer perdão em seu nome. A visão da tarefa apostólica como testemu
ca de Paulo nas igrejas relativa e condicional. R.
nho é desenvolvida com mais detalhes ainda
Schnackenburg, por exemplo, sustenta que Paulo
em Atos, hvro em que os apóstolos recebem a
não encontrou nenhuma definição uniforme de
ordem de ser “testemunhas [de Cristo], tanto em
apóstolo quando se tornou cristão nem forne
Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e
ceu um critério sistemático para o apostolado,
I
12 9 I
A póstolo : N o v o T estamento
considerando apóstolos apenas os “pregadores e missionários de Cristo”
A exphcação mais lógica dessa diferenciação
p. 302). J.
entre os Doze e os apóstolos é que “ os Doze” era
A. Kirk afirma que, “para Paulo, o apostolado não
um termo aphcado aos doze discípulos de Jesus
(S c h nackenb urg ,
é algo que se possa comprovar apresentando-se
desde o tempo da missão gahleia e que “apósto
alguma credencial exclusiva, mas pelos frutos da
los” eram esses e outros, que na primeira Páscoa
queles que o exercem”
estavam entre os comissionados pelo Senhor res
(K
p. 261), e “o mesmo
ir k ,
ministério apostólico, em circunstâncias históricas diversas, existe até hoje”
(K
ir k ,
surreto (v. 1.2.5 acima).
p. 264).
Podemos afirmar, portanto, que o apóstolo —
2.1 Evidência nas cartas de Paulo. Como as cartas de Paulo são os escritos mais antigos do
tão comum nas cartas de Paulo — é de data ante
nt
rior a essas cartas e remonta à primeira Páscoa na
e uma vez que ele emprega apostolos mais que
Palestina — na reahdade, ainda antes. O mesmo
qualquer outro autor do
n t
,
todas as investiga
ções históricas da origem, significado e importân
se pode afirmar a respeho do entendimento a res peho dos Doze.
cia da palavra devem começar com suas cartas.
2.2
Apóstolos nas cartas de Paulo. Falando
No entanto, para que não se pense que o con
de maneira geral, Paulo emprega o termo “após
ceito de apóstolo se originou em Paulo, deve se
tolo” de duas maneiras: no sentido não técnico e
ressaltar que ele escreve sobre “ os que já eram
no sentido formal.
apóstolos antes de mim” (gr., tous pro emou
2.2.1
"Apóstolo": termo não técnico. Há duas
apostolous). Esses apóstolos estavam alocados
referências nos escritos de Paulo a “apóstolo” no
em Jerusalém (Gl 1.17). A tradição credal que ele
sentido não técnico. Na primeira delas, Paulo es
repete aos coríntios e que ele “recebeu” muitos
creve da Macedônia a fim de preparar os coríntios
anos antes menciona que o Senhor ressurreto
para a chegada de dois homens, sobre os quais ele
apareceu [na Palestina] “a todos os apóstolos”
escreve uma breve recomendação (2Co 8.16-24).
antes de aparecer a Paulo (ICo 15.7,8), levando
A finalidade da visita era apressar a conclusão
a supor que havia “apóstolos” na época ou próxi
da coleta entre os coríntios para os santos em
mo da ressurreição de Jesus.
Jerusalém. Paulo escreveu: “ [Com Tho] estamos
Essa tradição credal (ICo 15.5-9) é útil tam
enviando Isynepempsamen] o irmão cujo louvor
bém em outro sentido, a saber, que distingue en
por seu trabalho no evangelho tem se espalhado
tre os Doze e "todos os apóstolos” :
por todas as igrejas”, a quem Paulo chama “ou tro irmão nosso, o qual já se mostrou dedicado
[Cristo] apareceu
muitas vezes e em muitas coisas”. Paulo decla
a Cefas,
ra que esses dois “irmãos [...] são mensageiros
e depois aos Doze [...].
[apostoloi] das igrejas [macedônias] ” à igreja de
Depois apareceu
Corinto (2Co 8.23), enviados numa missão prá
a Tiago,
tica e financeira. Esse uso de apostolos parece
e a todos os apóstolos.
assemelhar-se ao shãliah de escritos rabínicos
E, depois de todos, apareceu
posteriores, que podia ser enviado em missão de
também a mim, [...]
Jerusalém às sinagogas da Diáspora.
0 menor dos apóstolos...
No segundo caso, Paulo escreveu da prisão (talvez em Roma) à igreja em Filipos, para ex
Há uma simetria aqui no que tange às apa
phcar que por motivo de enfermidade Epafrodito
rições do Senhor ressurreto na Palestina. Cefas
estava retornando para eles. Epafrodito era aque
é mencionado junto com os Doze, e Tiago, com
le “a quem enviastes [apostolos] para me socorrer
todos os apóstolos. Como há uma referência em
nas minhas [de Paulo] necessidades” (Fp 2.25).
outro lugar a Cefas como apóstolo (Gl 1.18,19;
Esse papel do apóstolo era prático, não direta
2.8; cf. IPe 1.1; 2Pe 1.1), concluímos que os Doze
mente religioso. Mais uma vez, a semelhança en
eram chamados “apóstolos” , mas que havia após
tre o conceito de shãliah e o papel de Epafrodho,
tolos além dos Doze, e que entre eles estavam
apóstolo da igreja de Filipos, parece estreita de
Tiago e Paulo, como este afirma (ICo 15.9).
mais para se caracterizar uma coincidência.
I 130 I
A póstolo : N o v o T estamento
Essas duas referências apoiam a ideia de que
contexto da primeira Páscoa na Palestina, como
os "mensageiros [apostoloi] das igrejas” já esta
os outros apóstolos antes dele, mas viu o Senhor
vam bem estabelecidos nas igrejas paulinas lá por
celeste e glorificado um ano ou dois depois disso.
meados do século i, na década de 50. A explica
A expressão rara e muito debatida “como a um
ção mais provável para a origem desses apóstolos
nascido fora do tempo certo” [tõ ektrõmati, ICo
é que Paulo tenha tomado a ideia por empréstimo
15.8), qualquer que seja seu significado, reflete
da prática judaica e aphcado a suas igrejas.
a defesa que Paulo faz da autenticidade de seu
2.2.2
“Apóstolo”: termo formal. Com isso, que apostolado, a despeito da aparição do Senhor a
remos dizer “apóstolos de Cristo” (como, e.g.,
ele ocorrida de forma isolada e em época poste
ITs 2.6). Esses apóstolos não são enviados por
rior. Do ponto de vista de Paulo, a natureza sin
pessoas comuns numa missão corriqueira. Quem
gular da aparição do Cristo ressurreto serve para
envia é Cristo, o Messias de Deus. O número es
marcar o fim dessas aparições e, portanto, o pon
magador de referências de Paulo a apóstolos per
to final da nomeação apostóhca.
tence a essa categoria, a qual, no entanto, pode
Deve ter havido numerosos apóstolos, uma
ser dividida ainda em outros apóstolos e o pró
vez que o credo se refere a “todos os apóstolos”
prio Paulo.
(ICo 15.7), e Paulo faz referência aos "demais
2.2.2.1
Outros apóstolos. Há “apóstolos antes” apóstolos” (ICo 9.5). Não sabemos o número exa
de Paulo (Gl 1.17), alocados em Jerusalém. Com
to, exceto que havia outros além dos Doze, que era
base na reflexão de Paulo sobre seu chamado
o grupo principal. Os Doze talvez servissem de fun
apostóhco a caminho de Damasco, o qual pode
dação shnbólica da nova comunidade do Cristo res
mos datar em meados da década de 30, fica claro
surreto. Os apóstolos extrafram seu caráter do nome
que já havia apóstolos na igreja primitiva — aliás,
deles: foram enviados por Cristo para ir a outros. Na
desde o tempo da primeira Páscoa ("Cristo [...]
reunião missionária de Jerusalém havia dois "apos
apareceu [...] a todos os apóstolos”, ICo 15.7). Houve apóstolos depois de Paulo? Existe um
tolados” (apostolai), 0 que envolveu dois envios; um aos chcuncisos, outro aos gentios (Gl 2.7-9). Sabemos os nomes de alguns, mas não de
ponto na história após o qual, de acordo com
todos os apóstolos. Tiago é associado a “todos
Paulo, não houve mais apóstolos? Essas importantes perguntas são tratadas em
os apóstolos” (ICo 15.7; cf. Gl 1.19), fazendo
ICoríntios 15.5-11. As palavras de Paulo: “ [Cris
supor que, embora não fosse contado entre os
to] apareceu a Cefas, e depois aos Doze. Depois
Doze, Tiago era o mais honrado entre os após
apareceu a mais de quinhentos irmãos [...]. De
tolos. É possível que o relacionamento de Tiago
pois apareceu a Tiago, e a todos os apóstolos. E,
como “irmão do Senhor” lhe tívesse conferido
depois de todos, apareceu também a mim...” pa
esse lugar especial (cf. Gl 1.19). Os "irmãos do
recem demarcar uma sucessão de aparições após
Senhor” que não são chados por nome, mas en
a ressurreição, iniciando-se com Cefas e finah-
tre os quais Tiago estaria incluído, são provavel
zando com Paulo. Paulo não diz: "Então ele apa
mente também tidos como apóstolos (v. contexto
receu a mim” , mas: “ E, depois de todos, apareceu
de ICo 9.5). Claramente, João deve ser contado
também a mim...” , fazendo supor ter sido essa a
entre os apóstolos (Gl 2.7-9). O elo entre Barnabé
última aparição. Paulo pode prosseguir a ponto
e Paulo também leva a crer que Barnabé deve
de afirmar: “Sou o menor dos apóstolos [...] pela
ser considerado apóstolo (ICo 9.6; cf. At 14.4).
graça de Deus, sou o que sou [apóstolo]” , porque
Os únicos outros citados como apóstolos nos es
os apóstolos são limhados em número. Ele pode
critos de Paulo são seus parentes “Andrônico e
dizer que é o “menor dos apóstolos”, uma vez
Júnias, [...] os quais se destacam entre os após
que é, na realidade, o apóstolo "depois de todos” ,
tolos” (Rm 16.7). Se aos Doze acrescentarmos
a quem o Senhor “apareceu”. A primeira e mais
Tiago, Barnabé, Andrônico, Júnias e Paulo (úl
fundamental prova de apostohcidade é a alega
timo e menor), sabemos os nomes de dezessete
ção: "Vi Jesus, nosso Senhor” (IC o 9.1).
apóstolos, mas o número era maior.
A natureza da aparição de Cristo a Paulo
Paulo tem os apóstolos em alta estima. Como
era atípica. Ele não viu o Senhor ressurreto no
fundadores de igrejas, os apóstolos são pessoas
I 131 I
A póstolo : N o v o
I estamento
preeminentes no cristianismo primitivo. Paulo
Por volta do ano 55 d.C., Paulo reconheceu
declara: “ Na igreja. Deus designou alguns primei
que seu apostolado estava sendo questionado;
ramente apóstolos” (ICo 12.28; cf. Ef 2.20; 4.11).
“Se para os outros não sou apóstolo...” (ICo 9.2).
Além do mais, eles tinham um ministério proféti
Esses “outros” talvez sejam os judaizantes, cujas
co revelatório, iluminando o significado de Cristo
opiniões ele provavelmente reflete em Gálatas,
e do evangelho. Paulo afirma que ele e os outros
quando escreve que ele não é “apóstolo” apenas
apóstolos desfrutavam a revelação de Deus pelo
“aos santos e fiéis”, mas “de Cristo Jesus pela
Espírito (v.
vontade de Deus” (Cl 1.1). Ou seja (como eles
E s p ír it o S a n t o )
para entender os mis
térios do evangelho (Ef 3.1-9; cf. ICo 2.6-16). Os
diziam), Paulo não passava de um
apóstolos davam a conhecer essa revelação de
incumbência imposta pela igreja de Jerusalém,
Deus oralmente e em seus escritos (Rm 16.25,26;
um mero delegado.
ICo 2.13; Ef 3.3,4). 2.2.2.2
s h ã lia h
numa
As outras críticas feitas por eles podem ser
Paulo, o apóstolo. Paulo refere-se a si detectadas nos comentários de Paulo em ICo-
mesmo muitas vezes como “apóstolo”. Muitas ve
ríntios 15.8,9, texto em que ele afirma seu apos
zes se apresenta a seus leitores como “apóstolo
tolado, embora não estivesse presente quando o
de Jesus Cristo” ou por designações semelhan
Senhor ressurreto apareceu aos apóstolos antes
tes (ICo 1.1; 2Co 1.1; Ef 1.1; Cl 1.1; ITm 1.1;
dele. A aparição de Cristo a Paulo (diziam eles)
2Tm 1.1; Tt 1.1). É “por meio de [Jesus Cristo]”
era recuada no tempo, de uma espécie diferen
que Paulo recebeu o “apostolado” [apostole,
te e exclusiva dele. Nesse caso, não se deu uma
Rm 1.5; cf. Gl 1.1), porque Jesus “chamou” Paulo
aparição quando da ressurreição propriamente
para ser apóstolo e o “ separou” para o evange
dita. Por isso, ele não deveria ser contado entre
lho de Deus (Rm 1.1; ICo 1.1), a fim de gerar a
os apóstolos.
obediência da fé entre os gentios (Rm 1.5; 11.13).
Paulo, ainda assim, insistia em afirmar que
Tudo isso se deve ao fato de o Cristo ressurreto
era apóstolo, não obstante seu nascimento “ fora
aparecer a Paulo “depois de todos” enquanto o
do tempo certo” e o fato de que tinha visto o Se
perseguidor viajava para Damasco.
nhor de maneira diferente dos outros. Se era o
De acordo com S. Kim, Paulo várias vezes faz
“menor dos apóstolos”, isso se devia ao fato de
alusão a seu encontro na estrada de Damasco
ter sido perseguidor, o que ele tentou compensar,
com Cristo. Além de passagens mais prontamente
trabalhando “ muito mais que todos eles”. Se eles
reconhecidas
pregavam a Cristo crucificado e ressurreto, ele
como
ICoríntios
9.1;
15.8-10;
Gálatas 1.13-17; Filipenses 3.4-11, há outras
também o fazia (ICo 15.3-5,11).
(e.g., Rm 10.2-4; ICo 9.16,17; 2Co 3.4—4.6; 5.16;
2.3.1 ICoríntios: o apostolado de Paulo éposto
Ef 3.1-13; Cl 1.23-29). Kim sustenta que, em grau
em dúvida. Tons defensivos semelhantes podem
considerável, a cristofania de Damasco tingiu e
ser ouvidos anteriormente na carta, refletindo um
formou 0 vocabulário e o pensamento de Paulo.
questionamento de seu apostolado naquela igreja
2.3
O apostolado de Paulo é questionado. Não local: “ Não sou eu apóstolo? Não vi Jesus, nosso
há nenhum indício nas cartas de Paulo aos tessalo
Senhor?” (IC o 9.1).
nicenses de que na época em que as escreveu seu
Aqui 0 questionamento não se relaciona com
apostolado estivesse sendo questionado nas igre
a base histórica da afirmação de Paulo de ser um
jas gregas (c. 50-52 d.C.). Paulo toma a liberdade
apóstolo, mas com seu estílo ministerial, que al
de agrupar Silvano e Timóteo consigo em pé de
guns achavam inaceitável no ambiente greco-ro
igualdade e incluí-los como “apóstolos de Cristo”
mano de Corinto, a saber, que ele não aceitasse
(ITs 2.6; cf. ITs 1.1). Mas, a partir desse período,
remuneração. Com base em sua “defesa para com
indubitavelmente devido à intensificação da críti
os que me acusam” (ICo 9.3), a qual se segue
ca, Paulo passou a declarar categoricamente sua
(ICo 9.4-18), parece, de acordo com alguns co-
condição de apóstolo (Gl 1.1; ICo 1.1; 2Co 1.1;
ríntios, que a recusa dele em aceitar patrocínio
Rm 1.1) e teve o cuidado de se distanciar como
era o reconhecimento tácito de que ele não era
apóstolo em relação a vários outros colaboradores
apóstolo em nenhum sentido real. Um apóstolo
(ICo 1.1; 2Co 1.1; Cl 1.1; cf. Fp 1.1).
genuíno aceitaria pagamento integral.
I 1 32 I
A póstolo : N o v o T estamento
Não obstante, tratava-se de uma quebca fac cionai, não representativa. Paulo sentiu-se capaz
haviam minado suas bases, pelo menos aos olhos dos coríntios.
de dizer: “Pelo menos o sou [apóstolo] para vós [coríntios]” (ICo 9.2). 2.3.2
Paulo defende seu apostolado em 2Coríntios da seguinte maneira. Em primeiro lugar, o cha
2Coríntios: o apostolado de Paulo enfren mado na estrada de Damasco pelo Senhor res
ta oposição. Num período de não mais de um ou
surreto está implícho por toda a carta. Ele era
dois anos, no entanto, o questionamento do apos
um apóstolo “pela vontade de Deus” (2Co 1.1)
tolado de Paulo por parte de alguns coríntios se
que usava a “autoridade [exousia] que o Senhor
transformara em oposição generalizada. Explica-
nos concedeu para a edificação” das igrejas gen
se esse desenvolvimento trágico pela chegada
tíhcas (2Co 10.8; 13.10; cf. 11.17; 12.19). Ele
recente de alguns “ ministros” ou “apóstolos”
exerceu esse ministério (“de uma nova ahança” ,
autodeclarados (2Co 11.13,23) que haviam lan
3.6) pela misericórdia de Deus (i.e., em conse
çado uma missão contrária a Paulo e sua versão
quência do chamado de Damasco, 2Co 4.1; cf.
do cristianismo (2Co 2.17—3.1; 11.4,12; v.
adver
ICo 15.9; Gl 1.15; ITm 1.16). Ele falava “ na pre
0 vocabulário do ministério deles brota
sença de Deus” [ek theou katenanti theou, 2Co
de 2Coríntios e inclui termos como “palavra de
2.17; cf. 2Co 12.10), e sua “capacidade” para ser
s á r io s ) .
Deus”, “evangelho” , “Jesus” , “Espírito” e “justi
um “ministro de uma nova aliança” (v.
ça” (2Co 2.17; 4.1; 11.4,15).
NOVA
Esse era agora um ataque amplo ao apostola
auança
)
a l ia n ç a ,
vem de Deus [hikanotês [...] ek tou
theou, 2Co 3.5,6).
do de Paulo, da parte de alguns recém-chegados,
Se o chamado de Damasco era a base do apos
que procuraram desalojar Paulo de seu lugar em
tolado de Paulo, a legitimidade desse apostolado
Corinto. Eles eram superiores, e Paulo, inferior
é demonstrada pela quahdade de seu ministério,
(2Co 11.5,23), aos quais Paulo ridiculariza, cha
especialmente quando visto em contraste com
mando-os “ superapóstolos” (2Co 11.5; 12.11). Se
os novos ministros de Corinto. Ele se recusa a
ele veio a eles, eles vieram de mais longe ainda
“distorcer a palavra de Deus” (2Co 4.2), agindo
(2Co 10.12-14 — Jerusalém comparada a Antio
de modo diferente daqueles que são “mercená
quia?). Se ele é apóstolo, onde estão seus “sinais,
rios da palavra de Deus” (2Co 2.17). Enquanto
fehos extraordinários e milagres” (2Co 12.12)? Se
promovem uma visão da "justiça de Deus” — ba
ele alegou ter “visto” o “Senhor” (IC o 9.1; 15.8),
seada na circuncisão ou em outras obras da lei?
eles se vangloriam de uma abundância de “visões
(2Co 11.15) — , Paulo é fiel ã mensagem confiada
e revelações do Senhor” (2Co 12.1,7), cuja evidên
a ele por Deus, de que a j u s t iç a / r e t id ã o de Deus só
cia é a fala extáüca (2Co 5.12,13; cf. 2Co 12.2-4).
é encontrada em Cristo, que se tornou pecado por
As credenciais deles como “hebreus [...] israeli
nós (2Co 5.19-21; cf. 2Co 3.9). Apesar das alega
tas [...] descendentes de Abraão” são impecáveis,
ções deles em benefício próprio e do ataque con
tornando-os superiores em cada aspecto.
tra ele, eles são "falsos apóstolos [...] [servos de]
De sua parte, Paulo é denegrido, tido como
Satanás” (2Co 11.13-15). Por meio do ministério
incapaz, impotente e mundano, um “tolo” a ser
de Paulo, no entanto, há uma igreja em Corinto,
“tolerado” (2Co 2.17; 3.5; 10.1-6). Paulo é um
uma "carta [viva] de Cristo” como prova da legiti
“astucioso” (2Co 4.2,3; 12.16), uma flgura de
midade de Paulo (2Co 3.2,3; 10.7) como apóstolo
dar dó enquanto manqueja de dertota em derrota
que eficientemente “convence” as pessoas a se
(2Co 2.14-16; 4.1,7,8,16; 6.3-10; 11.23— 12.10).
tornarem cristãs (2Co 5.11-13). Cristo de fato fala
Qual é a prova de que “Cristo fala por [...] in
poderosamente por meio de Paulo (2Co 13.4) e
termédio” desse homem (2Co 13.3; 10.7; cf.
por meio de Paulo subjuga pessoas resistentes à
ICo 2.13; 14.36)?
obediência ao evangelho (2Co 10.4-6).
Como Paulo respondeu a esse ataque devas
Em segundo lugar, Paulo aceitou a observação
tador ao seu apostolado? É importante ressahar
sobre sua fraqueza, e até a expandiu, chegando a
que ele não reiterou as aparições do Senhor a ele
se gloriar de seus sofrimentos em três passagens
(cf. ICo 9.1; 15.8; Gl 1.15,16). As “ visões e reve
importantes (2Co 4.7,8; 6.3-10; cf. 11.23-12.10;
lações do Senhor” (2Co 12.1) de seus adversários
cf. ICo 4.9-13; 15.30,32). Paulo proclamava aquele
I 133 I
A póstolo : N o v o T estamento
que se tornara pecado, proclamando também o
cuidadosas ao afirmar que Cristo ‘‘depois de
fato de que havia experimentado em sua vida, em
todos, apareceu também a mim” (ICo 15.8) de
alguma medida, os sofrimentos do Jesus que ele
monstram que, embora houvesse apóstolos antes
pregava. Implícha nessas hstas de tribulações está
dele, não houve apóstolos após ele. De acordc
a ahrmação de que os sofrimentos de Cristo são re
com Paulo, ele é “o menor” apóstolo e o últimc
produzidos num apóstolo que é flel a ele (2Co 1.5).
apóstolo, o apóstolo “depois de todos”.
Sem ser declarado, mas talvez subentendido, está
0 questionamento ou a rejeição cabal à au
o fato de que o triunfalismo poderoso dos “supe
toridade de Paulo como “apóstolo de Cristo” de
rapóstolos” nasce de seu evangelho sem cruz e
modo algum se limitou aos dias de Paulo. Alguns
serve apenas para desquahficá-los (2Co 2.14; 5.16;
estudiosos da atuahdade tentam alargar tanto a
11.4). A “falsidade” desses apóstolos repousa em
definição de “apóstolo” (e.g., como “ missionário”
seu “outro” Jesus, seu evangelho “diferente”.
ou "plantador de igrejas”) que a autoridade in
2.4
Resumo. 0 emprego da palavra apostolos confundível de Paulo fica pulverizada. Paulo re
é praticamente restrho aos autores do
Como
sistia a duras penas às tentativas de o degradarem
Paulo faz mais uso da palavra que outros escri
dessa forma. Se o apostolado de Paulo não signifi
nt
.
tores do NT e seus escritos foram os primeiros a
cava e não significa mais que isso, então ele tinha
ser produzidos, fica claro que um estudo histó
e continua a ter pouca autoridade real nas igrejas.
rico dessa palavra deve começar com as cartas de Paulo.
Não deve restar nenhuma dúvida de que Paulo afirmava ser apóstolo com base no fato de ter vis
Fica evidente nos escritos de Paulo, no entan
to o Senhor ressurreto e ter sido encarregado por
to, que havia “apóstolos antes de [Paulo]” , já por
ele de h aos gentios (ICo 9.1; 15.8; Gl 1.11-17).
ocasião das aparições pós-ressurreição de Jesus
Com certeza, ele chamou atenção para sua efi
em Jerusalém e em outras partes da Palestina.
ciência no estabelecimento de igrejas, para o fato
A ocorrência do vocabulário em torno do termo
dos próprios sofrimentos como uma confinuação
“apóstolo” no Evangelho de Marcos torna possí
da história dos sofrimentos de Cristo e para a pró
vel considerarmos a ideia de apóstolo presente na
pria integridade, mas todos esses fatos serviram
história do evangelho.
apenas para legitimar um ministério que tinha
Jesus, seguido por Paulo e por outros líderes da igreja primitiva, parece ter sido influenciado
sua base na reahdade de que Cristo o enfrentou na estrada de Damasco.
a usar a palavra “apóstolo” pelo conceito judai
[R W.
Barnett]
co do shãliah, que no judaísmo posterior servia para denotar alguém que representava pessoas e
3. “Apóstola” em Atos, Hebreus, nas Cartas
instituições diante de outros. Embora esteja claro
Gerais e em Apocalipse
que o uso não técnico de “apóstolo” por Paulo se
3.1 Atos dos Apóstolos
assemelhe ao shãliah secular de escritos judaicos
3.1.1 Os doze apóstolos. 0 uso fundamental
posteriores, o uso técnico ou “formal” da palavra
da palavra “apóstolo” em Atos designa os Doze.
assume caráter especial nas circunstâncias asso
A esse respeito. Atos segue o Evangelho de Lu
ciadas ao advento do cristianismo primitivo.
cas, no qual “apóstolo” quase sempre se refere
Gálatas, Romanos e as duas cartas à igreja de
aos doze discípulos que Jesus chamou (Lc 6.13;
Corinto refletem o crescimento da oposição dian
cf. Lc 9.1,10; 22.14,30), mas, após a deserção de
te do fato de Paulo reconhecer a si mesmo como
Judas, é usado em relação aos Onze (Lc 24.9,10).
apóstolo de Cristo. Embora parte dessa oposição
Foi aos Onze que Cristo deu instruções após
fosse local, por causa de uma crítica pessoal a
sua ressurreição (At 1.2). Foi ao número total
Paulo, de longe a maior rejeição ao seu apostola
deles que outra pessoa foi acrescentada após a
do surgiu dos judaizantes, que na melhor das hi
ascensão de Cristo para substituir Judas e assim
póteses buscavam classiflcá-lo como um humilde
reconstituir os Doze (At 1.15-22). Somente os
shãliah da igreja de Jerusalém.
que haviam acompanhado os Onze durante todo
0 próprio Paulo buscou estabelecer a limi
0 tempo em que o Senhor Jesus estivera entre
tação do número de apóstolos. Suas palavras
eles (de seu batismo à sua ascensão) tinham o
I 134 I
A póstolo : N o v o T estamento
direito de concorrer à escolha (At 1.21,22). A
objetivos, eles desaparecem de cena em Atos. E
escolha flnal coube ao Senhor, a quem foi feita
digno de nota que nenhuma tentativa foi feita
uma oração; depois lançaram sortes, resultando
para reconstituir o grupo dos Doze pela escolha
na escolha de Matias (At 1.24-26). É a esse grupo
de outro substituto quando o apóstolo Tiago foi
reconstituído de Doze que a maioria das referên
morto por Herodes (At 12.1,2). Quando os Doze
cias a apóstolos se aplica (At 1.26; 2.37,42,43;
como grupo saem de cena, o foco da atenção em
4.33,34,36,37; 5.2,12,18,29,40; 6.6; 8.1,14,18;
Atos muda para os papéis desempenhados por
9.27; 11.1). A importância de completar outra
Pedro, Tiago (o irmão do Senhor, que não era um
vez o número dos Doze pode ser mais bem com
dos Doze) e principalmente Paulo.
preendida à luz da promessa de Jesus de que os
3.1.2 O apostolado de Pedro. As atividades
Doze se sentariam em tronos para julgar as doze
de Pedro dominam os primeiros doze caphu-
tribos de Israel (Lc 22.30). K. H. Rengstorf afirma
los de Atos, assim como as atividades de Paulo
que “ o restabelecimento do apostolado dos Doze
dominam os últimos dezesseis. Pedro assume o
prova que o Senhor ressurreto, assim como o Je
papel principal na igreja de Jerusalém nos pri
sus histórico, não renunciou à sua afirmação de
meiros anos. Ele toma a iniciativa de procurar um
incorporar as doze tribos de Israel em seu Reino”
substituto para Judas Iscariotes (At 1.15-26). Pe
(R
eng sto rf,
1962, p. 192).
dro é o porta-voz principal. Ele fala em nome dos
0 ministério dos Doze consistia essencialmen
Doze no dia de Pentecostes (At 2.14-40), dirige-
te em pregar a ressurreição de Cristo e dela dar
se ã multidão depois da cura do paralítico que
testemunho (At 1.22; 4.33), ensinar (At 2.42) e
pedia esmolas (At 3.11-26), responde em nome
orar (At 6.2-4). A pregação deles era muitas vezes
dele mesmo e de João quando chamados a se ex
acompanhada de sinais e maravilhas (At 2.43;
phcar pelos líderes judeus (At 4.5-22) e respon
5.12). Eles sentiam a responsabilidade especial
de em nome dos Doze quando são interrogados
de continuar pregando em Jerusalém, por isso lá
pelo Sinédrio (At 5.27-32). Ele assume a questão
permaneceram, mesmo depois de muhos crentes
do engano de Ananias e Safira (At 5.1-10) e do
terem fugido da cidade por causa da perseguição
mal-intencionado Simão, o Mago (At 8.18-24).
(At 8.1). Também se sentiram responsáveis pelos
Pedro está presente em quase todos os episódios
novos grupos de crentes que surgiam à medida
de cura dos primeiros doze capítulos (At 3.1-10;
que a mensagem de Cristo ia sendo levada para
5.15; 9.32-43). Toma parte na expansão da igreja
fora das fronteiras nacionais pelos que iam sendo
em Samaria (At 8.14-25) e na conversão de Cor-
dispersos (At 8.4-17; 11.19-26). Foi pela imposi
nélio, 0 gentio temente a Deus (At 10.1-48). Pe
ção de mãos dos apóstolos que os crentes sama
dro também defende a inclusão de gentios sem
ritanos receberam o
(At 8.14-17).
circuncisão entre o povo de Deus, com respeito a
Em Atos 15, os apóstolos e presbíteros formavam
Corného (At 11.1-18), e aos convertidos por meio
o grupo com o qual Paulo e Barnabé, enviados
da obra missionária de Paulo (At 15.7-11).
E s p í r it o S a n t o
pela igreja de Antioquia, discutiram a necessida
Destaca-se em tudo isso o fato de que o apos
de ou não de os crentes gentios se submeterem à
tolado de Pedro não era restrito aos judeus, assim
chcuncisão.
como o de Paulo também não era voltado exclusi
Os Doze proporcionam um elo importante
vamente para os gentios. Embora a área principal
entre o ministério de Jesus no Evangelho de Lu
de responsabihdade de Pedro fosse os da circun
cas e 0 ministério da igreja primitiva em Atos.
cisão (cf. Gl 2.7-9), ele também estava envolvido
Quando Atos 1.2 fala dos apóstolos que Jesus
até certo ponto na missão gentíhca. Isso confere
escolheu [exelexato), relembra Lucas 6.13, que
com o que encontramos em IPedro (v. 3.2 abai
relata a ocasião em que Jesus chamou seus dis
xo) e com os indícios encontrados em cartas de
cípulos e escolheu [ek lexamenos) doze deles. Os
Paulo sobre o ministério de Pedro entre os gentios
Doze forneceram o testemunho fundacional da
(cf. ICo 1.12; 3.22; 9.5; Gl 2.11,14).
ressurreição de Cristo (At 2.14; 4.33; 5.29-32) e
3.1.3 O ministério conjunto de Bamabé e Pau
legitimaram a missão aos samaritanos e aos gen
lo. Paulo e Barnabé não estavam incluídos entre
tios (At 8.14; 11.1-18). Uma vez cumpridos esses
os Doze, nem tinham as credenciais para tal.
I 135 I
A póstolo : N o v o T estamento
uma vez que não acompanharam os Onze des
3.1.4 O apostolado de Paulo. Em Atos 13.2,
de o tempo do batismo e da ascensão de Jesus.
o Espírito Santo instrui os profetas e mestres a
O primeiro indício de um ministério especial de
separar Barnabé e Paulo para a obra à qual eles
Barnabé é encontrado em Atos 11.22, em que ele é
tinham sido chamados. O chamado de Paulo é
enviado pelos apóstolos de Jerusalém a Antioquia
anterior a isso e deve remontar ao seu encontro
em resposta à notícia de um grande movimento
com o Cristo ressurreto na estrada de Damasco
do Senhor entre os gregos nessa cidade. Barnabé
(At 9.3-6; 22.6-11; 26.12-18). Foi nessa ocasião,
e Paulo mais tarde foram enviados como emissá
por meio de Ananias, que Paulo pela primeira vez
rios da igreja de Antioquia, incumbidos de levar
recebeu os detalhes de sua comissão (At 9.10-19;
doações para os santos de Jerusalém (At 11.27-30).
22.12-16). Ele deveria tornar conhecido a todos
Em Atos 13.1-3, os profetas e mestres da igre
os povos o que tinha visto e ouvido — aos gen
ja de Antioquia, orientados pelo Espírito Santo,
tios e seus reis e ao povo de Israel — , de modo
separaram Barnabé e Paulo para a obra que ele
que pudessem se arrepender e voltar-se para
lhes havia designado. Os profetas e os mestres os
Deus (At 9.15; 22.14,15,21; 26.16-20). A natureza
hberaram para esse ministério (At 13.3), e, sen
abrangente dessa comissão (envolvendo a prega
do enviados pelo Espírito Santo, Barnabé e Paulo
ção tanto aos gentios quanto ao povo de Israel) é
rumaram para Chipre (At 13.4-12). Em Atos, só
refletida nos relatos da obra missionária de Pau
depois de terem sido separados para o trabalho
lo em Atos. Cidade após cidade, ele pregava pri
missionário é que Barnabé e Paulo são apresenta
meiro na sinagoga judaica e depois aos gentios.
dos como apóstolos (At 14.4,14).
Atos mostra que era prática de Paulo designar
Cumpre ressahar que o agente de envio nes se contexto não é a igreja, como muitas vezes se
presbíteros nas igrejas que ele fundava (At 14.23, cf. 20.17).
supõe, mas o Espírito Santo. Ele instruiu os pro
Às vezes, essa apresentação da obra missio
fetas e mestres a separar {aphorisaté] Barnabé e
nária de Paulo é rejeitada como uma invenção do
Paulo para o trabalho para o qual ele os havia
autor de Atos. É rejeitada por causa das próprias
chamado (At 13.2). Os profetas e mestres impu
declarações de Paulo em Gálatas 2.6-9 (que tinha
seram as mãos sobre Barnabé e Paulo, oraram por
sido comissionado como apóstolo aos gentios, e
eles e então os despediram (apelysan, At 13.3).
Pedro, como apóstolo aos judeus). Embora isso
Enviados [ekpemphthentes] pelo Espírito Santo,
sem dúvida represente a distinção mais ampla en
Barnabé e Paulo então partem para Chipre (13.4).
tre os ministérios apostólicos de Paulo e de Pedro,
Foi 0 Espírito Santo quem chamou Barnabé e Pau
não deve ser interpretado como confirmação de
lo, foi o Espírito Santo quem orientou os profetas
que Pedro não exercesse nenhum ministério entre
e os mestres a separá-los e foi o Espírito Santo
os gentios e Paulo não tivesse nenhum ministério
quem os enviou. 0 papel dos profetas e mestres
entre os judeus. Que Paulo ministrava entre ju
resumiu-se a orar por eles e despachá-los.
deus assim como entre gentios é confirmado pelo
A missão de Barnabé e Paulo inicialmente
próprio relato de suas perseguições pelas mãos
consistia em proclamar a Palavra de Deus entre
de judeus (2Co 11.24,26), que foram causadas
judeus nas sinagogas de Chipre (At 13.4,5). Foi
em parte pela recusa dele em pregar a circunci
ampliada a ponto de incluir gentios quando Bar
são (G15.il).
nabé e Paulo foram convocados pelo procônsul
3.1.5 Os apóstolos e o Espíríto em Atos. Tal
em Pafos, que também queria ouvir a Palavra de
vez a característica mais destacada do apostolado
Deus (At 13.6-12). No entanto, quando sua men
como se vê em Atos seja o envolvimento do Espíri
sagem mais tarde foi rejehada pelos judeus em
to Santo no ministério apostólico. 0 Jesus ressur
Antioquia da Pisídia, eles se voharam intencional
reto prometeu aos apóstolos que eles receberiam
mente para os gentios, crendo que Deus ordenara
poder e seriam suas testemunhas quando o Espí
que assim fizessem (At 13.46,47). Essa decisão
rito Santo descesse sobre eles (At 1.5,8). Tendo
foi confirmada por Deus quando ele os capaci
sido cheios do Espírito no dia de Pentecostes, eles
tou a executar sinais e maravilhas (At 13.8-12;
prosseguiram para dar seu testemunho da res
14.1-3,8-10).
surreição (At 2.4; 4.8; 5.32). Foi pela imposição
I 136 I
A póstolo : N o v o T estamento
de mãos dos apóstolos que os crentes samarl-
de que, pelo ministério dele, os filhos de Deus
tanos receberam o Espírito Santo (At 8.14-17).
possam ser trazidos à glória.
Quando foi chamado e comissionado para ser
3.2.2 IPedro. Em IPedro, o autor apresenta-
apóstolo, Paulo também foi cheio do Espírito San
se como apóstolo de Jesus Cristo e dirige-se a
to (At 9.17). Foi o Espírito Santo quem preparou
seus leitores como exilados da Dispersão no Pon
Pedro para pregar o evangelho a Cornélio, o gen
to, na Galácia, na Capadócia, na Ásia e na Bití-
tio temente a Deus, e foi por meio do ministério
rha (IPe 1.1). À primeira leitura, pareceria estar
de Pedro que a casa de Corného recebeu o Espíri
de acordo com a ideia de que Pedro se limhou
to (At 10.19,44-48; 11.12-17).
a um ministério entre os judeus, nesse caso seu
Barnabé, designado apóstolo com Paulo em
ministério entre os judeus da Diáspora. Vimos já
Atos 14.4,14, é apresentado como um homem
que Atos retrata Pedro trabalhando entre gentios
bom e cheio do Espírito Santo (At 11.24). Foi o
e judeus, e uma leitura atenta de IPedro revela o
Espírito Santo quem disse aos profetas e mestres
mesmo fato. Por sinal, IPedro é escrita aos gen
de Antioquia que separassem Paulo e Barnabé
tios. O período pré-conversão da vida dos leito
para o trabalho missionário para o qual ele os
res é descrito como um tempo em que faziam “a
havia chamado e quem os enviou na que seria a
vontade dos gentios, andando em libertinagem,
primeira viagem missionária de Paulo (At 13.1-4).
prazeres, embriaguez, orgias, bebedeiras e ido
Na segunda viagem missionária de Paulo, o Espí
latrias repulsivas” (IPe 4.3,4). Os leitores eram
rito Santo impediu a ele e a seus companhehos
claramente gentios, e, portanto, o fato de Pedro
de empreender uma obra nas regiões da Ásia e da
se dirigir a eles como "peregrinos da Dispersão”
Bitínia (At 16.6,7): eles deveriam atravessar para
é metafórico. Refere-se a sua condição como es
a Macedônia após a visão de Paulo em Trôade
trangeiros e exhados cristãos num mundo hosth.
(At 16.8-10). 0 Espírito desceu sobre os crentes
3.2.3 2Pedro e Judas. Em 2Pedro, o autor
efésios quando Paulo impôs as mãos sobre eles
apresenta-se se como apóstolo de Jesus Cristo
(At 19.6). Por fim, foi por impulso do Espírito
(2Pe 1.1). Ele exorta seus leitores a lembrarem
Santo que Paulo foi levado a seguh para Jerusa
a ordem do Senhor e Salvador proferida de ante
lém, apesar dos avisos terriveis a respeho do que
mão pelos santos profetas e “vossos” apóstolos
o aguardava ah (At 20.22,23).
(2Pe 3.2) e adverte que os que torcem o ensino
Em Atos, é 0 Espírito Santo quem impele os
das cartas de Paulo, bem como outras passagens
apóstolos em círculos cada vez mais largos de
das Escrituras, o fazem para a própria destruição
ministério e autentica a nússão aos gentios. A
(2Pe 3.15,16). Na Carta de Judas, os leitores são
promessa e a outorga do Espírito Santo por Cristo
exortados a lembrar-se das palavras faladas de
constituem um elo importante entre o ministério
antemão (sobre os últimos dias) pelos apóstolos
do Jesus histórico e o dos apóstolos.
do Senhor Jesus Cristo (Jd 17). Nessas duas car
3.2 Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse 3.2.1
tas, portanto, a função dos apóstolos realçada é
Hebreus. Há em Hebreus uma única re 0 ensino, especialmente a transmissão do ensino
ferência ao apostolado, e isso em relação à co
de Jesus. A menção de "vossos” apóstolos, em
missão dada por Deus a Cristo. Os leitores são
2Pedro 3.2, parece referir-se não aos Doze, mas
instados a pensar em Jesus, o apóstolo e sumo
aos missionários por meio de quem os leitores
sacerdote da confissão deles, que foi flel ao que
primeiramente ouviram o evangelho, dentre os
o designou (Hb 3.1-6). Essa é a base para exor
quais presumivelmente estava o apóstolo Paulo
tar os leitores a serem fiéis como Jesus e a não
(cf. 2Pe 3.15,16).
repetirem a incredulidade da geração do Êxodo
3.2.4 l-3João. Em 3João, o presbftero elogia
(Hb 3.7—4.11). No contexto de Hebreus, o papel
Gaio por oferecer hosphahdade aos pregadores
de Jesus, que reflete a natureza de seu apostola
itinerantes que viajavam “por causa do Nome”
do, inclui proclamar a Palavra de Deus e suportar
e insta com ele a que continue a proceder dessa
o sofrimento e a morte, de modo a poder se tor
forma (3Jo 5-8). Ele critica um certo Diótrefes, ao
nar sumo sacerdote a favor do povo de Deus, e
que tudo indica um personagem importante na
3 sacrifício expiatório pelos pecados deles, a fim
comunidade cristã da cidade em que Gaio vivia.
I 137 I
A póstolo : n o v o l estamento
por ter lhes recusado hospitalidade (3Jo 9,10).
B ib u o g r a h a . A g n e w ,
Em 2João, o presbítero adverte a “senhora elei
apostolos. CBQ,
ta” a respeho de certos enganadores que saíram
The origin of the
pelo mundo — pessoas que negavam que Jesus
research,
Cristo veio em carne. Ele insiste com a “ senhora
C. K.
jbl , v .
F. On the origin of the term
38, p. 49-53, 1976. ■ ______ .
V.
nt
apostle-concept: a review of
105, p. 75-96, 1986. ■
B a rre tt,
The signs o f an apostle. London: Epworth.
eleita” a que não estenda hospitalidade a esses
1970. ■ B r o w n . S. Apostleship in the New Testa
itinerantes, pois isso seria como tomar parte em
ment as an historical and theological problem.
sua maldade (2Jo 7-11). Em IJoão, o autor adver
NTS,
te seus leitores sobre certas pessoas que haviam
ship: evidence from the New Testament and early
se separado de sua comunidade e começaram a
Christian hterature. VoxEv, v. 19, p. 49-82, 1989.
V.
30. p. 474-80. 1984. ■ C l a r k . A.
Apostle
C.
viajar a fim de propagar um ensino falso a res
■ ______ . The role of the apostles. In:
peito da pessoa de Cristo, desviando as pessoas
H. & P e t e r s o n , D.. orgs. Witness to the gospels: the
(IJo 2.18,19,22,23,26).
theology of Acts. Grand Rapids: Eerdmans. 1998.
Embora as Cartas de l-3João não usem a
p. 169-90. •
E h rh a rd t.
M a r s h a ll,
I.
A. The apostolic ministry.
palavra “apóstolo” , com certeza refletem o fato
Edinburgh: Oliver & Boyd, 1958. [sjt, Occasional
de que mais para o fim do século i pregadores
Papers, 7.) ■ ______ . The apostolic succession in
itinerantes, alguns ortodoxos, outros heréticos,
the first two centuries o f the church. London: Lut
transhavam pelas igrejas, pelo menos na área em
terworth, 1953. ■
que essas cartas foram escritas. Esses pregadores
the gospel traditions. London:
não podiam exigir o reconhecimento desfrutado
K.
The origins of
G e r h a rd s s o n , B . scm ,
1977. ■ G ile s ,
Apostles before and after Paul. Churchman, v.
por qualquer um dos Doze nem por Paulo, e as
99, p. 241-56, 1985. • ______ . Patterns o f min
congregações precisavam exercer o discernimen
istry among the first Christians. Melbourne: Col
to antes de lhes estender hospitahdade e assim
hns Dove, 1989. ■ H e r r o n , R. W. The origin of the
apoiar seu trabalho. (Situação semelhante é re
New Testament apostolate.
fletida na Didaquê.] Temos em IJoão o critério
1983. •
Jerem ias, J.
wtj , v .
45. p. 101-31,
Jesus’ promise to the nations.
ético e doutrinário pelo qual os leitores devem
Philadelphia: Fortress. 1982. •
testar as alegações de pregadores itinerantes (v.
o f Paul’s Gospel. Grand Rapids: Eerdmans. 1981.
Jo ão , C artas
• K ir k . J.
3.2.5
de).
S. The origins
A. Apostleship since Rengstorf: towards
Apocalipse. Apocahpse faz referência aos a synthesis,
que se dizem apóstolos, mas não são (Ap 2.2), e
Kim .
nts , v .
21, p. 249-64, 1975. •
K ru s e,
C.
New Testament foundations for ministry. Lon
G.
aos apóstolos verdadeiros, que são instados a sen
don: Marshah, Morgan & Scott, 1983. • ______ .
tir a mesma alegria que os santos e profetas por
New Testament models for ministry: Jesus and
causa da queda da “ Babilônia” (Ap 18.2). Tam
Paul. Nashville: Nelson. 1984. •
bém faz menção aos nomes dos doze apóstolos
The name and office of an apostle. In: ______ .
escritos nas doze fundações do muro da Jerusa
Saint Paul’s Epistle to the Galatians. Reimpr.
lém celestial, um símbolo da igreja (Ap 21.9-14).
Grand Rapids: Zondervan, 1953, p. 92-101. ■ Mos-
L i g h t f o o t , J.
B.
Com base na úhima referência pode se inferir que
bech, H .
o autor de Apocalipse acredhava que o ministério
p. 166-200, 1948. ■
dos doze apóstolos era fundamental para a edifi
and the Twelve, sr. v. 3. p. 96-110, 1950-1951. ■
cação da igreja. A pregação do evangelho por eles
P fitz n e r ,
assentava o ahcerce da igreja.
and Spirh in the Acts of the Apostles. In: [C . G . K
Ver também m ado
d is c íp u l o s ;
P au lo,
ruse]
conversão e c h a
W.
Apostolos in the New Testament,
V.
C.
DPc: a n g ú s t ia s , t r i b u l a ç õ e s , p r o v a ç õ e s ; a u t o r i d a
& B a ch m a n n , M . ,
R e n g s to rf, K . H .
H au beck,
E.
K.
H.
J. BriO, 1980, p. 210-35. ■
Apostolos.
tdnt .
[S.l.: s.n.. s.d.].
1. p. 407-47. ■______ . The election of Matthias:
V.
P a u l o c o m o ; s in a is , p r o d íg io s , m ila g r e s .
Acts 1.15 ff. In:
DER, G o v e r n m e n t ; M is s io n , E a r l y N o n - P a u l i n e .
2,
orgs. Wort in der Zeit: Neu-
testamentliche Studien. Festschrift for
d e ; c o l a b o r a d o r e s , P a u l o e seu s ; m in is t é r io ; p a s t o r ,
dlntd: A p o s t o lic F a th e rs ; A u t h o r it y ; C h u rc h O r-
st , v .
J. Paul, the apostles
“ Pneumatic” apostleship? Apostle
Rengstorf. Leiden:
DE.
M u nck,
K la s s e n ,
W. &
S n y d e r,
G. F.. orgs.
Current issues in New Testament interpretation: essays in honor of Otto A. Piper. London:
I 138 I
scm.
A tos dos A póstolos
W. The office of
têm dúvidas acerca da classificação de Atos como
apostle in the early church. Nashville: Abingdon,
1962. p. 178-92. ■
historiografia em geral acabam por maximizar as
1969. ■
discrepâncias formais entre os prefácios lucanos
S c h m it h a l s ,
R. Apostles before and
Sc h nack enb u r g ,
during Paul’s time. In:
R.
e os da historiografia helenística, e entendem que
P., orgs. Apostolic history and the gospel. Grand
o prefácio ao terceiro Evangelho não tem em vista
Rapids: Eerdmans, 1970. p. 287-303.
a narrativa de Atos e/ou sustentam que, pelo fato
G
W. W. &
asque,
C. G.
K
ruse
M
e P. W.
a r t in ,
de Atos não ser fidedigno como relato histórico,
Barnett
não deve ser tido como exemplo do gênero da A
r is t ó t e l e s , a r is t o t e u s m o .
A
scensAo
Ver nLosoFiA.
historiografia antiga. R. I. Pervo, por exemplo, sustenta que Atos é
.
Ver A
A
tos dos
pó sto lo s;
L
ucas,
um antigo romance histórico escrito com o fim
E vangelho
de entreter e edificar seus leitores. Ao defender
DE.
sua tese, Pervo caricatura alguns dos estudos A
s t r o l o g ia .
Ver r e u g iõ e s
mais radicais de Atos (e.g.,
g r e c o -r o m a n a s .
H
aenchen)
como se
eles demonstrassem que Lucas era um historia A
tos do s
A
dor “ desajeitado e incompetente” , em vez de um
póstolos
Atos dos Apóstolos é o quinto livro no cânon do
escritor “brilhante e criatívo”. 0 problema com
situado entre compilações de Evangelhos e
essa caracterização de Lucas, de acordo com Per
N T,
cartas. Embora não seja o primeiro documento
vo, é que ela injustamente pressupõe que Atos
cristão ou neotestamentário que tenha incorpora
tívesse a pretensão historiográfica. Caso se reco
do um interesse na história narrativa, junto com
nheça Atos como ficção histórica, observa ele, o
o Evangelho de
impasse fica então desfeito, e Atos pode ser lido
L ucas
é o exemplo mais antigo de
pelo que ele é, não pelo que ele deixa de reali
historiografia cristã. 1. O gênero de Atos
zar. Pervo corretamente reconhece o humor e a
2. O texto de Atos
perspicácia de Atos, mas é incapaz de forçar o
3. Os discursos de Atos
hvro como um todo para dentro do molde exigido
4. Unidade narrativa de Lucas-Atos
pelo prazer estético. Mesmo aquelas característí-
5. Teologia e propósho de Atos
cas formais que Atos compartüha com o romance não são próprias dos romances da Antíguidade. Em seu tratado Como se deve escrever a história,
1. O gênero de Atos
do século
Em especial por causa do conteúdo de Atos e
II,
Luciano aconselha os historiadores a
também da natureza dos prefácios a Lucas-Atos
dar a seu púbhco leitor “o que lhes interessará e
ÍLc 1.1-4; At 1.1-3; cf.
os instruirá” (§ 53).
J osefo,
Co Áp, 1.1, § 1-5;
2.1, § 1-2), Atos há muho é tido como o primei
Potencialmente, mais útíl é a identificação de
ro exemplo de historiografia cristã. Após a obra
(Lucas-)Atos como “biografia” , uma vez que os
influente de H.
biógrafos antigos, como os historiadores, lidavam
J.
Cadbury, nos primórdios do sé
o estudo de Atos até bem pouco tempo
com pessoas reais e acontecimentos reais. No
identificou a obra dentro do gênero da historio
entanto, a narrativa de Atos, como fica evidente,
grafia antiga. Questões a respeito da veracidade
não se concentra nos atos de uma única pessoa,
iiistórica da narrativa de Atos, aliadas a constan-
de modo que é difícU impor-lhe a classificação do
íes reavaliações de Atos dentro do contexto da
gênero biográfico. C. H. Talbert tenta superar esse
literatura da antiguidade judaica e greco-romana,
obstáculo, sugerindo que Lucas-Atos é uma “nar
suscharam um debate vigoroso em torno do pro
rativa de acontecimentos seriados” de cunho bio
blema do gênero de Atos. Atos, portanto, situa-
gráfico, análoga à Vida dos filósofos, de Diógenes
se em um dos três gêneros mais importantes
Laércio (meados do
culo
XX,
mundo romano — historiografia, romance e
iii
d.C.). Essas biogra
a um formato tríplice: a vida do fundador, uma
i^iografia. 1.1
séc ulo
fias, ele propõe, conformam-se de certa maneira
Atos: Romance? Biografia? Ti-atado cien descrição da comunidade de seus seguidores e
tífico? Historiografia antiga? Os estudiosos que I
um resumo dos ensinos da comunidade em sua
139
I
M I Ü S D U S A P Ü iT O L O S
forma contemporânea. Assim, o primeiro volume
As afinidades entre Lucas e a tradição cienti'-
de Lucas, o terceiro Evangelho, destaca a vida de
fica não negam, contudo, a identificação de Lu
Jesus (o fundador), enquanto Atos se concentra
cas 1.1-4 e Lucas-Atos com a historiografia. Em
nos feitos e ensinos de seus seguidores (v. Lu
primeiro lugar, o fato de que Lucas-Atos não cor
D. E. Aune critica essa abor
responde em todos os aspectos às características
dagem, questionando a existência de qualquer
formais da historiografia greco-romana não repre
gênero assim e realçando as discrepâncias sig
senta nenhum problema imediato, pois o gênero
ca s,
Evangelho
d e ).
V id a s
era facilmente manipulado. Mais ainda, Lucas foi
de Laércio e Atos (Aune, p. 78-9). Além do mais,
influenciado também pela historiografia judaica
nificativas entre as funções respectivas de
Lucas sinaliza um interesse não tanto por pesso
e veterotestamentária, sobretudo no que se refe
as em particular quanto por “ fatos” (Lc 1.1-4),
re ao uso das sequências históricas que formam
e as duas partes da obra de Lucas são agrupa
uma teologia narrativa. Além disso, os antecesso
das mais basicamente pelo propósito central e
res de Lucas na historiografia israelita e judaica
dominante da redenção de Deus que pela vida
não refletiam sobre seus objetivos e procedimen
de um ou mais indivíduos, como seria de esperar
tos dentro do contexto da composição da obra em
numa biografia. Que Lucas foi influenciado em
si. Além do mais, ao apresentar sua obra como
sua composição do material por características do
diëgësis ( “narração”, Lc 1.1), Lucas identifica seu
gênero biográfico está claro, ainda que Atos não
projeto como um longo relato narrativo de muitos
possa simplesmente ser identificado como um es
acontecimentos, para o que os mais importantes
pécime do gênero biográfico antigo.
protótipos eram as histórias gregas primitivas de
Outra abordagem foi adotada por L. C. A. Alexander, estudiosa que chama atenção para
Heródoto e Tucídides (cf. mata
2; L
u c ia n o
,
H
erm ógenes,
Progymnas-
Como se deve escrever a história,
as diferenças formais entre o prefácio de Lucas
§ 55). Por fim, inúmeros componentes da obra de
(L c l. 1-4) e os dos historiógrafos gregos. 0 prefácio
Lucas — banquetes, narrativas de viagem, cartas,
de Lucas parece breve demais, contendo uma
discursos — apoiam uma comparação positiva da
única frase, em comparação com as aberturas
obra de Lucas com a historiografia greco-romana.
mais desenvolvidas dos historiadores gregos. A
Vários estudos recentes têm fortalecido o
transição do prefácio de Lucas para a narrativa
consenso anterior de que Atos é um exemplo
é surpreendentemente brusca. Diferentemente
do gênero da historiografia antiga. Por exemplo,
do que acontece em geral, Lucas não se ocupa
enxergando Atos no contexto das descrições da
de uma crítica explícita de seus antecessores. O
historiografia helenística, israelita e helenístico-
prefácio de Lucas exibe um estilo tão pessoal,
judaica, Aune conclui que “Lucas era um cris
com' seus pronomes em primeira pessoa e suas
tão helenista eclético que narrou a história dos
dedicatórias, que não parece apropriado incluir
primórdios do cristianismo desde as origens no
no gênero da “historiografia desapaixonada e
judaísmo com Jesus de Nazaré, passando por
atemporal”. E a abertura de Lucas, de maneira ge
sua ascensão como movimento religioso relativa
ral, não oferece nenhuma reflexão moral, comum
mente independente e aberto a todos os grupos
entre os historiadores gregos. Tais problemas
étnicos”
levaram Alexander a uma reavaliação do mapa
Atos como pertencente ao gênero “história ge
literário da redação grega de prefácios, resultan
ral”. G. L. Sterling, no entanto, sustenta que Atos
do que ela encontra as maiores semelhanças a
pertence a um tipo de história cujas narrativas
(A
une,
p. 138-9). Isso qualifica Lucas-
Lucas 1.1-4 e Atos 1.1 na “tradição científica”,
“relatam a história de determinado povo heleni
ou seja, nos escritos técnicos e profissionais de
zando intencionalmente suas tradições autócto
medicina, matemática, engenharia e áreas afins.
nes”
Alexander propõe que a apresentação narrativa
monografia histórica e história política) também
( S t e r l in g ,
p. 374). Outros subgêneros (e.g.,
que Lucas faz de Jesus e do movimento cristão
são propostos. Um trabalho fundamental em
primitivo é científica, no sentido de que se ocupa
historiografia começou a realçar o papel apolo
de transmitir a tradição do ensino acumulado so
gético de toda historiografia (v. 1.2 abaixo), e é
bre esse assunto.
exatamente o que se dá com Atos, escrito para
I 140 I
A tos dos A póstolos
defender o desenrolar do propósito divino, des
(v., e.g.,
de Israel, passando pela vida e pelo ministério de
torno do qual tem girado o debate sobre o histo
Jesus até a igreja primitiva, com sua inclusão
riador Lucas está muito menos relacionado com
de crentes gentios como plenos participantes, e
a natureza de Lucas-Atos que com as concepções
assim para legitimar o movimento cristão de que
problemáticas da atualidade a respeito do empre
Lucas fazia parte.
endimento do historiador ou com a separação
1.2
G
ree n ,1
9 9 6 ).
O principal problema em
Historiografia e historicismo. Mas em absurda e concomitante dos acontecimentos em
que sentido é correto referir-se à narrativa de
relação à interpretação. As opiniões dos últímos
Atos como história? 0 que fazer com a negação
dois séculos, de que a investigação histórica está
de Atos como historiografia, com base em sua
interessada em confirmar a veracidade de certos
alegada fraude em questões históricas? Dois pon
acontecimentos e em objetivamente informar es
tos merecem reflexão. Em primeiro lugar, a tenta
ses fatos, estão sendo eclipsadas por uma concep
tiva de apresentar as matérias dentro da estrutura
ção do projeto historiográfico em que Lucas teria
geral da historiografia não é garantia, de maneira
se sentido mais à vontade. A questão fundamen
nenhuma, de veracidade histórica: escolha de
tal não é: “Como o passado pode ser apreendido
gênero e qualidade de desempenho são questões
com exatidão?” ou: “Que métodos permitirão a
independentes. Consequentemente, ainda que os
recuperação do que de fato aconteceu?” , para
críticos mais radicais estejam corretos em acusar
cada vez mais se reconhecer que a historiografia
Atos de historicidade precária, isso não seria o
é sempre teleológica. Ela impõe importância ao
mesmo que excluir uma identificação genérica de
passado pela escolha de acontecimentos a regis
Atos como historiografia.
trar e ordenar, bem como pelos esforços inerentes
Ao mesmo tempo, é preciso admitir que tais
de postular a esses acontecimentos uma origem
acusações contra Lucas como historiador não
e/ou um fim. A ênfase então se desloca da vah-
são tão firmemente embasadas, como às vezes se
dação para a significação, de modo que a questão
alega. 1) Embora o estudo de Atos como histó
é: “ Como o passado está sendo representado?”
ria continue a sofrer de uma escassez relativa de
O interesse de Lucas na verdade ou na precisão
provas corroborativas, quer literárias, quer físi
(v. Lc
cas, um exame recente dessa evidência, feito por
do passado.
1 .4 )
reside em sua interpretação narrativa
C. J. Hemer, fomentou uma avaliação muito mais
A identificação de Atos como historiogra
positiva da confiabilidade histórica de Atos (v. tb.
fia antiga aumenta as expectativas que pode
2) Os relatos de cura às vezes espeta
mos levar à narrativa. Ao lado das intenções
culares de Atos (e.g., At 5.15,16; 19.11,12) têm
professadas por Lucas (Lc 1.1-4), é de esperar
levado alguns estudiosos a hesitar em aceitar o
que encontremos uma narrativa em que a
todo como um relato historicamente fiel. No en
história recente receba destaque, que questões
tanto, seguindo a epistemologia pós-moderna e à
de causação e de teleologia sejam privilegiadas
luz da crítica crescente do paradigma biomédico
e que a pesquisa resoluta seja posta a serviço de
em busca de encontrar sentido nos relatos não
uma instrução persuasiva e cativante.
H
e ng el) .
ocidentais de cura, esses fenômenos milagrosos — antes entendidos como manifestações de frau
2. O texto de Atos
de, patologia mental, superstição, fantasia e/ou
A crítica textual de Atos apresenta um dilema
de uma cosmovisão pré-científica — não são tão
especial por causa da existência de dois tipos
facilmente descartados e começam a ser reexami
textuais primordiais e díspares, o Alexandrino
nados por sua importância socio-histórica.
(a B
Em segundo lugar. Atos foi muitas vezes — e em alguns rincões continua a ser — avahado
c 81) e 0 Ocidental (esp. o Códice de Beza
ou Cantabrigense
[d ]). 0
livro de Atos, na tradi
ção ocidental, é quase 10% mais longo que na
como historiografia, com base em cânones moder
alexandrina, e a natureza de cada um dos dois
nistas, positivistas, ou seja, com base em critérios
tipos textuais é distinta. A pergunta fundamental
que em si se tornaram problemáticos e são ana
é: “Qual é a procedência do texto ocidental? Será
crônicos em relação a Lucas como historiógrafo
o produto de uma revisão cuidadosa de Atos? Em
I 141 I
A tos dos A póstolos
caso afirmativo, será que se pode atribuir esse es
ocidental é negligenciado, na suposição de que
forço a uma proveniência específica? Ou será que
represente uma revisão intencional e continuada
o texto ocidental dá testemunho de um processo
do livro de Atos; em outros, as leituras do tipo
continuado de emendas? Será o texto ocidental
ocidental sâo consideradas caso a caso. Pelo fato
inteiramente secundário em relação ao alexandri
de essa situação ainda não ter uma solução defi
no? Será que pode de fato remontar à pena do ter
nitiva, podemos esperar que sejam atendidos os
ceiro Evangelista? Ou ele compõe um amálgama
apelos para que se produza uma edição crítica do
de leituras secundárias mais ou menos originais,
texto de Atos.
que devem ser examinadas (de acordo com o mé todo eclético da crítica textual) caso a caso? Na
3. Os discursos de Atos
história da pesquisa sobre o texto de Atos, várias
Entre os elementos narrativos mais marcantes em
propostas relacionadas têm vindo à tona (v. as
Atos, os discursos chamaram especial atenção,
pesquisas em
na narrativa tanto quanto no cenário do último
S tra n g e ,
p. 1-34;
B a rre tt,
p. 2-29).
Já no fim do século xvii, aventou-se que Lucas
século de trabalho acadêmico sobre Atos. iVIui-
era responsável por duas recensões de Atos e que
tos são discursos missionários, proferidos diante
isso expUcaria a existência dos dois tipos impor
de públicos judeus e gentios. Entre eles, estariam
tantes de texto. Essa vertente ganhou novo impul
sermões importantes como o que foi pregado
so desde o surgimento da crítica da redação, no
por Pedro no dia de Pentecostes (At 2.14-40) e
século
em consequência da descoberta de su
por Paulo em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41).
postos lucanismos nas versões ocidentais. É repre
Esses discursos desempenham papéis programá
sentada hoje por iVI.-É. Boismard e A. Lamouille,
ticos dentro de seu contexto narrativo. Essa cate
que postulam duas versões autenticamente luca-
goria de discursos, os sermões missionários, tem
nas de Atos, das quais o Códice de Beza
e o Có
estado no centro do debate acadêmico: “ Com que
são os melhores representantes,
grau de precisão Lucas reproduziu os discursos
embora não imaculados. Na concepção deles, os
missionários cristãos primitivos?”. Outros discur
XX,
dice Vaticano
(b )
(d )
tipos textuais ocidentais originam-se da primeira
sos, no entanto, desempenham papéis importan
edição de Atos, ao passo que o alexandrino reflete
tes dentro da narrativa, incluindo o discurso de
a perspectiva posterior e revisada de Lucas. Pode
defesa de Estêvão diante do conselho de Jerusa
se comparar a obra de W. A. Strange a essa pers
lém (At 7.2-53). o discurso de despedida de Paulo
pectiva; ele acreditava que Atos havia sido publi
aos anciãos de Éfeso (At 20.18-35). os discursos
cado postumamente por editores, que deixaram
forenses de Paulo diante das autoridades roma
duas versões de Atos agora representados pelos
nas (e.g.. At 24.10-21; 26.2-23), os discursos de
dois tipos de manuscrito.
Pedro e Tiago no Concílio de Jerusalém (At 15.7-
A despeito de teorias dessa natureza, a maio
11,13-21) e assim por diante. Dos cerca de mil
ria dos estudiosos continua a defender que as
versículos de Atos, 365 situam-se no contexto de
testemunhas da chamada tradição ocidental não
discursos e diálogos de maior ou menor impor
contêm algo que se aproxime do texto original
tância
de Atos e nega que a tradição ocidental nos dê
ponsável por mais da metade do livro.
acesso a uma revisão, primária ou secundária, da pena do terceiro Evangelista. Concordando com
3.1
(S o a r d s ,
p. 1), sendo o discurso direto res
O debate em tom o das fontes e das tradi
ções. As prioridades para o estudo moderno dos
uma das primeiras obras, como a de M. Dibelius
discursos públicos em Atos foram estabelecidas
(p. 84-92), eles presumem que, embora o texto
pelo trabalho de Dibelius, primeiramente publi
ocidental não se apresente como original, pode
cado em 1949
conter leituras superiores em alguns pontos.
discursos de Atos dentro da matriz da historiogra
Embora reste pouca concordância quanto ã
(t i
1956). Ele procurou situar os
fia antiga, na qual, insistia ele, o discurso era “ o
natureza do texto original de Atos, permanece o
complemento natural dos atos”
fato de que a maioria dos estudos de Atos prosse
Assim, a questão principal não era a transcrição
gue com base na relativa superioridade do tipo de
de um discurso em especial, mas a finalidade do
texto alexandrino. Em alguns casos, o tipo textual
discurso nas mãos do historiógrafo — ou seja.
I 142 I
(D ib e liu s ,
p. 139).
A tos dos A póstolos
dentro do escrito histórico como um todo. 0
intérpretes começaram a negligenciar as questões
discurso poderia transmitir ao leitor uma intros
de tradição e história e a examinar como o cenário
pecção na situação total da narrativa, uma intros
e os elementos de cada discurso são empregados a
pecção interpretativa do momento histórico, no
fim de determinar a importância de cada discurso
caráter de quem discursava e/ou nas ideias gerais
como uma ação na narrativa que se desenrola (v.
que talvez explicassem melhor a situação. Além
N eyrey,
1984; T a n n e h il l , 1991;
S oards ).
Um importante reexame da redação de discur
disso, o discurso poderia dar andamento à ação p. 139-40). Mas a inclusão dos
sos na historiografia antiga feito por C. H. Gempf
discursos nos escritos históricos não constituiria
veio à tona por meio de um canal que vence o
nenhuma reivindicação de historicidade do dis
obstáculo desses paradigmas contraditórios de
curso. No seu exame dos discursos de Atos,
D i-
estudo. Gempf insiste em que a questão princi
beUus estava preocupado com a função deles no
pal no que se refere à historiografia antiga não
livro como um todo.
é: “ É precisa ou imprecisa em sua representação
do relato
( D ib eliu s ,
Com a hegemonia, em geral, da abordagem
desse discurso?” , assim apresentando uma es
estudos posterio
colha falsa entre alternativas ou um continuam
res dos discursos públicos de Atos remetiam a
interessado principalmente na fideUdade a uma
diacrônica ao estudo do
n t , os
Dibelius principalmente pela sua teoria de que
suposta fonte. Em vez disso, os escritores antigos
os discursos eram composições de Lucas (v. esp.
procuraram alcançar um equilíbrio duplo entre o
Embora praticamente ninguém afirme
que era aceitável artística e historicamente. Isso
que os discursos de Atos são representações hte-
porque os discursos são incluídos nas representa
rais do que foi de fato proferido, é com referência
ções narrativas da história não para fornecer uma
a exatamente essas categorias que o debate em
transcrição do que foi falado em dada ocasião,
torno de sua historicidade vem sendo estrutura
mas para documentar o acontecimento do dis
do. Com base em argumentos que agora se mos
curso. Os historiógrafos (como Lucas) estariam
traram capciosos, os estudiosos têm recorrido à
ocupados, portanto, em compor discursos que
coerência de linguagem e estilo entre um discurso
se harmonizassem com a obra como um todo da
público e outro e entre discurso direto e indireto,
perspectiva da linguagem, do estilo e do conteú
e à coerência de conteúdo entre um discurso pú
do (a dimensão literária) e que nâo fossem consi
blico e outro, a fim de negar sua historicidade.
derados anacrônicos nem destoantes do que era
H aench en) .
Entendidos principalmente como um proble ma tradicional-histórico, os discursos de Atos
sabido a respeito da pessoa a quem o discurso era atribuído (a dimensão sócio-histórica). Isso significa que, contrariamente ao consen
foram estudados por sua historicidade. Com pou 1942), esses exames le
so atual no debate sobre a tradição e as fontes
varam a conclusões em grande parte negativas,
nos discursos de Atos, as aspirações literárias
ainda que, em questões de detalhes, a marca da
não interferem no valor histórico, e a presença
cas exceções (e.g.,
B ru ce ,
tradição apostólica possa ser discernida aqui e ali
do estilo e da teologia de Lucas nos discursos de
(e.g., At 13.38,39; 20.28, textos em que se encon
Atos não conduz necessariamente à inferência de
tram as categorias de tipo paulino). A maioria dos
que esses discursos sejam de origem lucana. Com
estudiosos concluiu que os discursos de Atos são
respeito à aceitabilidade histórica, a questão não
lucanos em composição, geralmente com pouca
é estreitamente definida pela perspectiva da exati
ou nenhuma base tradicional, e que servem so
dão. Em vez disso, o autor comporia um discurso
bretudo de instrumento de discurso da parte do
em harmonia com o que podia ser sabido dos da
autor de Atos para seu público.
dos históricos a ele disponíveis. 3.2 O papel dos discursos
Até bem pouco tempo, os estudiosos não
3.2.1
ievavam tão a sério o fato de que por “composição”
Uma cosmovisão anificada. Como mui
Dibelius não queria dizer apenas “invenção de
tas vezes ficou demonstrado, é possível discernir
Lucas”, mas também e fundamentalmente perícia
um padrão nos discursos missionários de Atos:
artística de Lucas. Com o crescimento do interesse
o apelo para que se prestasse atenção, incluin
pelas críticas narrativa e retórica, no entanto, alguns
do uma conexão entre a situação e o discurso; o
I 143 I
A tos dos A póstolos
querigma cristológico apoiado com provas biljli-
situar os acontecimentos históricos numa teia in
cas; a oferta de salvação; muitas vezes a inter
terpretativa, reunindo para isso num fio narrativo
rupção do sermão pelo público ou pelo próprio
o passado, o presente e o futuro da atividade sal
narrador. Tomados como um todo, os discursos
vífica de Deus. Dessa perspectiva, o significado
de Atos proferidos por seguidores de Jesus evi
dos dados históricos não aparece por si só: eles
denciam um querigma que é esmagadoramente
precisam ser interpretados, e a interpretação legí
cristocêntrico, mas que também caracteriza uma
tima é produto da revelação divina. 0 discurso de
mistura de temas recorrentes, incluindo a centrali
Paulo move-se intencional e naturalmente da ati
dade da exaltação de Jesus (i.e., ressurreição e/ou
vidade divina no
ascensão) e seu efeito salvífico; arrependimento
e para a necessidade de uma resposta presente,
e/ou perdão de pecados; oferta universal de salva
oferecendo assim interpretações cristológicas das
ção; o Espírito Santo; a garantia, muitas vezes por
Escrituras e da história.
interpretação bíblica, de que a mensagem dessa salvação é a manifestação da vontade divina.
3.2.4
at
para a obra de João e de Jesus
Atos como obra testemunhal. A quanti
dade de espaço narrativo concedida aos discur
Como seria de esperar, cada um desses temas
sos quando comparado com outros exemplares
é inseparável da teologia de Lucas (v, 5 abai
da historiografia antiga (ou da biografia, ou do
xo), mas isso não faz dos discursos de Atos um
romance) mostra mais um papel narrativo dos
mero depósito compilado do pensamento lucano.
discursos de Atos. Aliado ao fato de que em Atos
Quando há material comparativo à disposição,
os discursos são normalmente proferidos por tes
um exame detido indicará que os discursos de
temunhas, ou a favor ou contra a testemunha,
Atos lutaram por manter em tensão os objetivos
presume-se que por meio dos discursos Lucas
às vezes conflitantes da redação dos discursos
está dando testemunho, relatando “tudo o que
na historiografia e na fidelidade literária e sócio-
Deus havia feito por meio deles” (At 14.27). “Em
histórica. Esses casos de repetição dentro da nar
Lucas-Atos, os discursos são uma característica
rativa de Atos demonstram mais particularmente
essencial da ação em si, que é a propagação da
a preocupação de Lucas em promover por meio
palavra de Deus”
(A u n e ,
p. 125).
desses discursos uma visão diferente (embora não singular em todos os pontos) do propósito de
4. Unidade narrativa de Lucas-Atos
Deus. Essa perspectiva é então propagada pelas
4.1 Lucas-Atos ou Lucas e Atos. Desde que
figuras mais importantes que servem de testemu
H. J. Cadbury propôs o hífen entre Lucas e Atos,
nhas da redenção em Atos.
já no começo do século xx, para indicar o enca
3.2.2 Elocuções performativas.Tamhém conhe
deamento entre os dois escritos, a relação entre
cidas como “atos de fala”. Não seria apropriado
esses dois hvros tem sido mais presumida que
em cada caso catalogar esses discursos como co
examinada. Apesar da separação canônica de am
mentários, ainda que, como pausas intencionais
bos, até pouco tempo a maioria dos estudiosos
na ação, tenham uma função interpretativa. Em
supunha que o terceiro Evangelho e Atos compar
vez disso, os discursos muitas vezes têm papéis
tilhavam 0 mesmo autor, o mesmo gênero e uma
performativos; propulsionam a ação da narrati
perspectiva teológica comum, supondo também
va à medida que fornecem a lógica e o ímpeto
que a narrativa de Atos foi escrita como a conti
para mais desdobramentos na concretização do
nuação calculada da narrativa do Evangelho. Tais
objetivo da narrativa de Lucas-Atos. Os discursos
suposições foram questionadas por M. C. Parsons
de Estêvão e Pedro em Atos 7.2-53 e 10.34-43 (e
e R. 1. Pervo, entre outros. Embora concordem
At 11.5-17), por exemplo, aparecem em momen
em que Lucas e Atos compartilham sua autoria,
tos importantíssimos, propelindo a narrativa para
eles questionam se os dois livros pertencem ao
além de Jerusalém e da Judeia, em direção a Sa
mesmo gênero, se são teologicamente harmôni
maria e até “os confins da terra” (At 1.8).
cos entre si e se juntos compõem uma única nar
3.2.3 “História revelada." O sermão de Paulo
rativa continuada.
em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41) exemplifica
As questões suscitadas por Parsons e Pervo
um interesse comum dos discursos de Atos por
são importantes se considerarmos apenas o fato
I 144 I
A tos dos A póstolos
de que sua observação central está correta: a uni
0 comprimento máximo de um rolo de papiro
dade de Lucas-Atos tem sido mais pressuposta
estendia-se até onze metros, e os dois volumes
que justificada e examinada. Mas seus argumen
de Lucas, os hvros mais extensos do
tos são difíceis de apoiar.
exigido cada um deles um único rolo de papiro.
nt,
teriam
Como os estudiosos não cliegaram a um
Além do mais, em tamanho os dois mais ou
consenso na identificação do gênero de Lucas e
menos se equivalem — o Evangelho de Lucas
Atos, Parsons e Pervo concluem que Lucas e Atos
com aproximadamente 19.400 palavras. Atos com
não compartilham da unidade no m'vel do gênero.
cerca de 18.400 palavras — , de modo que teriam
Esse debate exige que se formulem perguntas
exigido rolos de papiro mais ou menos do mes
importantes: Dada a fluidez dos gêneros na
mo comprimento. Assim, a divisão entre Lucas e
Antiguidade, por que alguém precisa laborar
Atos adaptou-se ao desejo dos autores contempo
no nível alto de precisão de que depende essa
râneos de manter uma simetria entre o tamanho
rejeição da unidade do gênero? Com respeito ao
de seus livros (cf.
terceiro Evangelho, por que devemos supor que
Co Áp, 1.35, § 320). De outras maneiras também,
Lucas trabalhou com hmitações no que diz res
o plano de Lucas e Atos faz supor uma propor
D io d o r o ,
1.29.6; 1.41.10; J o sefo ,
peito ao gênero de evangelho em desenvolvimen
cionalidade intencional. Ambas as narrativas
to? Não estaria Lucas se propondo a fazer algo
iniciam-se em Jerusalém. O Evangelho termina,
para o qual os modelos e as formas anteriores
e Atos começa com narrativas de comissões as
tinham se mostrado insatisfatórios? E os possíveis
sociadas a relatos da ascensão de Jesus. 0 tempo
análogos de volumes seriados que usavam multi
coberto em cada volume é de aproximadamente
plicidade de gênero pelos autores (e.g., l-4Reinos
trinta anos. A narrativa de Lucas sobre os últimos
e l e 2Macabeus) dificilmente são essenciais, em
dias de Jesus em Jerusalém (Lc 19.28—24.53) e
razão do nosso entendimento da composição e da
sobre a prisão, julgamentos e chegada de Paulo a
unidade desses livros.
Roma (At 21.27—28.31) ocupa 25% de cada livro,
Ademais, Parsons e Pervo negam a unidade
respectivamente. E Lucas regularmente desenvol
narrativa ao propor a identificação em poten
veu paralelos entre Jesus no Evangelho de Lucas
cial de dois narradores diferentes (textualmente
e seus discípulos em Atos dos Apóstolos.
construídos), um para Lucas, outro para Atos
Além disso, embora Parsons e Pervo não exami
— isso a despeito do fato de que a apUcação da
nem essa questão em sua obra de 1993, Lucas 1.1-4
oarratologia a até mesmo um desses livros traz
serve de prólogo para toda a obra de Lucas, os dois
à tona múltiplos narradores e níveis de narra
volumes: Lucas-Atos. Isso se deduz do paralelo en
ção
tre o primeiro prefácio e o prefácio de recapitula
(K u rz) .
Tampouco os autores Udam de modo
construtivo com a possível alegação do narrador
ção em Lucas-Atos e de Contra Ápion, de Josefo.
de Lucas 1.1-4 de ter pertencido ao círculo da
Além do mais. Atos 1.1 não apenas se refere a um
queles (“ nós”) entre os quais (alguns deles) esses
“primeiro relato”, mas também designa como tema
acontecimentos “se realizaram” (cf. as passagens
daquele primeiro livro “tudo o que Jesus começou
iniciadas por “ nós” em Atos, 4.5 abaixo). Muitos
a fazer e a ensinar”. Temos aí um resumo inegável
menos ainda aventam a possibilidade de que Lu
do terceiro Evangelho, que dá continuidade ao real
cas e Atos compartilhem de um único propósito
ce caracteristicamente lucano ã relação inseparável
narrativo e de que nisso resida sua unidade nar
entre palavra e ato. Com o termo “começou”, esse
rativa essencial.
resumo faz supor a continuação da missão de Jesus,
De modo mais construtivo, é importante real
uma expectativa que não é frustrada, pois os segui
çar que a divisão Lucas-Atos em dois volumes
dores de Jesus “invocam o seu nome” (e.g., At 2.21;
não significa que um relato tinha terminado e
9.21; 15.17; 18.15; 22.16) — um nome que significa
outro começado ou que o volume 2 se dedica
a presença continuada de Jesus para trazer inte
ria a um assunto diferente. Antes, numa questão
gralidade de vida (e.g., At 3.6,16; 4.7,10,12,17,30;
de conveniência física, os escritores antigos di
8.12; 9.15,34; 10.43; 16.18). O Evangelho de
vidiam suas obras extensas em hvros, cada um
Lucas e Atos dos Apóstolos narram uma úni
dos quais conforme coubesse num rolo de papiro.
ca história continuada (v.
I 145 I
A g o s tin h o ,
Cs, 4.8),
ATOS DOS APÛSTOLOS
portanto, e a expressão os “fatos que se realizaram
ter sido concluídos e disponibilizados ao grande
entre nós” (Le 1.1-4) refere-se tanto à história de
público separadamente, no século ii d.C. o Evan
Jésus quanto à atividade da igreja primitiva.
gelho de Lucas veio a ser situado com os demais
O Evangelho de Lucas prenuncia assim Atos
Evangelhos de modo que se pudesse formar o
dos Apóstolos e também autoriza a narrativa de
grupo de quatro Evangelhos. Não surpreende, en
Atos, que continua a narrativa dos poderosos atos
tão, que 0 primeiro volume de Lucas tenha sido
salvíficos de Deus iniciados com o nascimento de
considerado antes de tudo um Evangelho. Vale
João e Jesus (Lc 1—2), ao mesmo tempo mos
a pena refletir na possibilidade de que nos dias
trando que a importância da história de Jesus
de Lucas não havia essa forma literária, de modo
podia ser elaborada e articulada para tempos em
que estaríamos equivocados em pensar ou que
transformação. Atos, portanto, se constrói sobre
Lucas se pôs a escrever um Evangelho, ou que
o alicerce assentado em Lucas, demonstrando a
seus leitores teriam entendido sua obra dentro
relação continuada da igreja com a realidade de
dessa categoria. Lucas refere-se a seus antecesso
Jesus ao interpretar a importância de Jesus peira
res como “narrativas” , não como “Evangelhos” , e
um novo tempo.
não há nenhuma razão a priori para imaginar que
A unidade narrativa de Lucas-Atos tem im
0 propósito de Lucas era escrever uma história de
portantes implicações para nossa leitura da obra
Jesus à qual ele mais tarde anexou um relato da
de Lucas. Mais significativamente ainda, requer
igreja primitiva. Antes, a narrativa que ele dese
que nossa compreensão do propósito de Lucas
java relatar desenvolveu-se natural e intencional
em escrever e assim nosso entendimento da(s)
mente da história do ministério terreno de Jesus
necessidades (a) que ele tinha de escrever e do
para a narrativa da missão de Jesus continuada
público a que se dirigia expliquem toda a evidên
na igreja primitiva.
cia, tanto do Evangelho quanto de Atos. Seme
Não obstante, de acordo com a lógica da loca
lhantemente, é fundamental entendermos que
lização canônica de Atos, o segundo volume de
episódios do Evangelho prenunciam aspectos da
Lucas encontra-se em relacionamento interpreta-
história narrada apenas (de modo definitivo) em
tivo com as cartas paulinas. Por sinal, as primei
Atos. Notadamente, em Lucas 2.2S-3S, Simeão
ras Ustas de livros do
percebe que na criança, Jesus, chegou uma salva
Atos às vezes antes, às vezes depois do corpus
ção que será experimentada como uma “luz para
paulino. Presumivelmente como uma ponte que
nt
normalmente situavam
revelação aos gentios” (Lc 2.32), mas durante seu
ia da história de Jesus até o ministério de Paulo,
ministério, conforme registrado no Evangelho de
Atos acabou na posição atual, entre os Evange
Lucas, Jesus raramente interage com não judeus.
lhos e as cartas. A consequência de sua locali
É preciso esperar Atos para ver que a missão aos
zação no cânon é que Atos veio a fornecer uma
gentios se iniciou, se legitimou e assumiu uma
estrutura posterior, biográfica e missionária den
forma consistente por ordem de Deus e guiada e
tro da qual se podia enquadrar as cartas paulinas
energizada pelo Espírito Santo. 0 último capítulo
— estrutura presumida na maior parte dos estu
do Evangelho encerra aspectos significativos do
dos bíblicos, embora alguns estudos acadêmicos
enredo da história, mas há uma intenção mais
fundamentais tenham trazido à superfície tensões
dominante na obra, o propósito redentor de Deus
importantes entre os retratos de Paulo e sua mis
para todas as pessoas. Visto diante desse propósi
são disponíveis a nós em Atos e em suas cartas.
to, o Evangelho de Lucas é incompleto em si, pois abre possibilidades no ciclo narrativo que não se
4.3
Lucas-Atos: um só alvo narrativo. A
conclusão sobre a unidade de Lucas-Atos tem
concretizam no Evangelho em si, mas se materia-
como consequência imediata a rejeição a qual
hzam em Atos dos Apóstolos.
quer finalidade proposta para a composição de
4.2
Lucas, Atos e o cânon do
n t.
A unidade Lucas que não explique a evidência de ambos os
de Lucas-Atos — dois volumes, uma história —
volumes. Embora o propósito primordial de Atos
facilmente escapa ao leitor moderno em grande
possa ter como corolário, por exemplo, uma de
parte por causa da disposição canônica dos dois
fesa de Paulo (como já se sustentou), essa formu
livros no
lação não contempla a totalidade de Lucas-Atos.
n t.
Embora o Evangelho e Atos possam
I 146 I
A tos dos A póstolos
Uma conclusão de unidade narrativa em Lucas-
judeu cada vez maior ao movimento cristão, e a
Atos pressupõe que o todo pode ser examinado
igreja parece cada vez mais gentílica em sua cons
como 0 desenrolar de um único ciclo narrativo
tituição. Isso também é propósito de Deus, de
contínuo a mover-se da expectativa para possibi
acordo com o narrador, falando acima de tudo por
lidades narrativas, para probabilidades, para con
seu porta-voz Paulo, (e, por meio de Paulo, as Es
cretizações e para consequências, servindo a um
crituras), ainda que continuassem os esforços para
único fim narrativo principal.
mostrar aos judeus que a interpretação de Moisés
Se enxergamos Lucas-Atos na ampla tela da
e dos profetas mostravam ser Jesus o Messias.
análise narrativa, é possível ver em sua totalidade
4.4
Atos 1.8 e o esboço do Livro de Atos. A
um objetivo narrativo a se desenrolar num ciclo
história relatada em Atos inicia-se em Jerusalém
de narrativa simples. Nele, vemos o desenrolar de
e termina em Roma. Assim, o plano do livro dá
um único objetivo: o propósito de Deus de leveir
forma ao molde centrífugo da missão que ele re
salvação em sua plenitude a todos
lata. Não seria raro um escritor helenista de hvros
(G
r e e n ,1 9 9 4 ,
p. 62-3). Essa finalidade é prenunciada pelas vo
sequenciais fornecer num segundo livro ou num
zes angélicas e proféticas que falam em nome de
livro posterior um prefácio que incluísse um resu
Deus (Lc l.S—2.52). É possibilitada pelo nasci
mo da obra anterior e um esboço da atual. Muitos
mento e pelo desenvolvimento de João e Jesus
leitores de Atos encontram nas palavras de Jesus
em lares que honram a Deus. De acordo com a
em Atos 1.8 — “Recebereis poder quando o Espí
narrativa lucana do nascimento, no entanto, não
rito Santo descer sobre vós; e sereis minhas tes
se trata de uma finalidade que será alcançada fa
temunhas, tanto em Jerusalém como em toda a
cilmente ou sem oposição. Nem todos responde
Judeia e Samaria, e até os confins da terra” — um
rão favoravelmente ao agente salvífico de Deus,
resumo esboçado de Atos. Muitos dos que veem
Jesus, o que resultará em antagorúsmo, divisões e
um esboço do livro em Atos 1.8 ainda identificam
conflitos. A concretização dos objetivos de Deus
“os confins da terra” como Roma. Embora as pa
é possibilitada por meio da missão preparatória
lavras de Jesus possam ser consideradas o esbo
de João e por meio da vida, morte e exaltação de
ço de Atos, ainda que num sentido superficial, é
Jesus, com o comissionamento e capacitação
quase certo que a identificação de Roma como
concomitantes de seus seguidores para levarem a
“os confins da terra” é equivocada.
mensagem a toda a humanidade (Lc 3—At 1). O
Atos 1.8 registra a resposta de Jesus à pergun
próprio Jesus prepara o caminho para essa mis
ta dos discípulos sobre a restauração do reino de
são universal, dissipando sistematicamente as
Israel. Jesus não propõe no lugar de uma missão
barreiras que predeterminam e têm como conse
universal uma esperança nacionalista e provin
quência a divisão entre grupos étnicos, homens e
ciana de restauração do domínio de Israel, mas
mulheres, adultos e crianças, ricos e pobres, jus
situa 0 futuro de Israel dentro do plano de Deus,
tos e pecadores, e assim por diante. Em seu mi
agora mais largamente definido. As referências
nistério, mesmo o conflito é entendido dentro dos
de Jesus a uma missão em Jerusalém, na Judeia
limites do propósito salvífico de Deus, a morte de
(i.e., “a terra dos judeus” — cf. Lc 4.44; At 10.37)
Jesus como uma exigência divina e sua exaltação
e em Samaria representam um progresso signi
como a confirmação de seu ministério e um ato
ficativo nessa direção e estendem o desenvolvi
poderoso de Deus que torna possível estender a
mento da missão de Atos 2—8.
salvação a judeus e gentios, semelhantemente.
Além de Samaria, a missão capacitada pelo
A história posterior em Atos consiste na nar
Espírito deveria continuar até “ os confins da ter
ração da concretização do propósito de Deus, so
ra”. Várias opções foram apresentadas para dar
bretudo em Atos 2— 15, à medida que a missão
sentido à expressão heõs eschatou tès gês. Al
cristã é dirigida por Deus, de modo a se tomarem
guns a consideram uma localização geográfica:
as medidas necessárias para formar a comunida
Etiópia, Espanha, Roma ou mesmo a “terra [de
de do povo de Deus, composta por judeus, sa-
Israel]”. Outros veem nela uma referência mais
maritanos e gentios. Os resultados desse objetivo
simbólica a uma missão universal que inclui os
narrativo (At 16—28) destacam um antagonismo
gentios, ou seja, uma missão ao mundo inteiro.
I 147 I
A tos dos A póstolos
Dificilmente se pode confirmar que em Atos 1.8
povos”, “além de todos os limites”. A dependên
Lucas tivesse em mente uma conotação pura
cia inegável de Lucas em relação ã visão escato
mente geográfica (como muitas vezes se ressal
lógica de Isaías em outras partes apresenta provas
ta), pois o espaço jamais é medido em termos
que nos permitem concluir que a narrativa incen
puramente geográficos, mas é sempre imbuído de
tiva uma identificação de “confins da terra” com
poder simbólico. A geografia — e principalmen
uma missão a todos os povos, judeus e gentios.
te marcadores geográficas como "Judeia” e “Sa
Isso reforça o elo histórico-redentivo entre esse
maria” — não é um “ dado recipiente ingênuo” ,
texto e 0 pré-texto de Isaías (v. tb. Is 8.9; 45.22;
mas uma produção social que reflete e configura
48.20; 62.11; cf. Dt 28.49; SI 135.6,7; Jr 10.12;
a presença no mundo. Observe, por exemplo, a
16.19; lM c3.9).
identificação de Jerusalém como a localização
Somente num sentido bem limitado alguém
do templo e da morada de Deus na perspectiva
poderia interpretar Atos 1.8 como um esboço de
judaica e lucana e as susceptibilidades religiosas
Atos. Muito mais significativa é a maneira em
que teriam sido transgredidas pela justaposição
que a passagem identifica o objetivo de Deus
de “Judeia” (terra dos judeus) a “ Samaria” (terra
dentro da narrativa e, seria possível presumir,
dos samaritanos; cf. Lc 10.30-37; 17.11-19). Nem
para a história, enquanto ela se expande além
é necessário restringir o referente dessa expressão
da narrativa de Atos. À medida que esclare
a uma localização dentro da narrativa de Atos:
ce os propósitos de Deus, também nos oferece
outras possibilidades geradas dentro desse relato
uma medida que torna possível averiguar quais
ficam sem se concretizar em seu encerramento
pessoas dentro da narrativa se orientavam pela
(outros exemplos de prolepse externa incluem a
determinação em servir aos propósitos de Deus.
execução de Paulo e a parusia de Jesus).
Ou seja, os que obedecem ao programa missio
Alem disso, Lucas jamais identifica Roma
nário de Atos 1.8 aparecem depois atuando sob a
como o ponto final da missão. Roma pode servir
orientação e o poder do Espírito e assim seguin
como nada mais que um novo ponto de partida
do 0 plano de Deus. São retratados como teste
para a missão, como Jerusalém e Antioquia an
munhas autênticas.
teriormente. Devemos ainda lembrar que no pró
A importância de Atos 1.8 nâo é diminuída
prio livro de Atos “testemunhas” precedem Paulo
caso não seja considerado o esboço ou nâo este
em Roma, de modo que Atos 27—28 leva Paulo,
ja indicando a estrutura de Atos, pois sua decla
não 0 evangelho, a Roma.
ração dos objetivos de Deus dentro da narrativa
Embora na literatura greco-romana da Anti
deixa sua marca na forma da narrativa. Não é
guidade a expressão “confins da terra” fosse usa
difícil seguir a forma centrífuga da missão, em
da em referência à Espanha, Etiópia, e assim por
bora às vezes a progressão da missão seja me
diante, deve se investigar como essa expressão
nos geográfica e mais teológica, como quando
funciona nesse contexto. Nesse ponto de Atos, o
as testemunhas de Jesus retornam a Jerusalém a
significado de “os confins da terra” é polissêmico
fim de desenvolver melhor as bases teológicas da
— ou seja, quase nada nos é dado por meio de
missão, a qual inclui os que vivem nos “confins
diretrizes interpretativas para identificarmos o re
da terra” (At 11.1-18; 15; 21.1—26.32). Além do
ferente dessa expressão. Por conseguinte, pode se
mais, nossa identificação dos "confins da terra”
1er a narrativa indagando em vários momentos:
como referência a um alcance universal, não a
“Esse é ‘os confins’?”.
caso seja, o domínio
uma meta geográfica da missão, leva a crer que a
de Deus será agora concretizado?”). 0 uso grego
história de Atos não se encerra com o fechamento
em outras passagens dá margem a essa abertura
da narrativa, em Atos 28.31. Antes, o desafio à
(cf.
missão alcança muito além da narrativa, chegan
E s tr a b ã o ,
( “ E,
Ge). IVIas essas várias possibilidades
interpretaüvas
estreitam-se
consideravelmente
do aos leitores posteriores de Lucas.
depois da leitura de Atos 13.47, uma citação de
4.5
O autor e o narrador de Atos. O exame
Isaías 49.6, em que a expressão “confins da terra”
de Atos como narrativa suscita a questão da voz
é outra vez encontrada, mas agora com o sentido
por meio da qual a história é narrada, ou seja,
mais aclarado; “ Em toda parte”, “entre todos os
a identidade do narrador. 0 autor pode escolher
I 148 ■
A tos dos A póstolos
adotar uma voz que não a sua, e, na teoria da
Muito antes dos primórdios da crítica da nar
narrativa, os narradores divergem sobre quanto
rativa, esse último conjunto de observações levou
decidem contar, o grau de sua confiabilidade e
os leitores de Atos a identificar seu autor como
até que ponto estão dispostos a interferir na nar
Lucas, o colega de ministério de Paulo
rativa em si. Os críticos da narrativa concordam
e às vezes companheiro, um médico (Cl 4.11,14;
(F m
24)
em que os narradores dos Evangelhos e de Atos
2Tm 4.11). Eusébio, por exemplo, identifica o au
são informados e estão dispostos a alertar seu pú
tor de Atos como Lucas, um antioqueno, médico
blico leitor acerca de realidades que não aquelas
e companheiro constante de Paulo
encontradas na superfície dos acontecimentos
3.4.1), como o fazem Jerônimo [V i il, 7) e muitos
relatados — as motivações dos personagens den
outros (v.
Ba rrett,
No século
tro da história (e.g., At 24.27; 25.3); que são tão
II,
p. 30-48;
( E u sébio ,
F it z m y e r ,
Hi ec,
p. 1-26).
Ireneu identificou Lucas, o com
confiáveis que suas perspectivas são coerentes
panheiro de Paulo, como o autor de Atos, embora
com aquelas expressas por Deus e pelos agentes
ele também dê um passo além, definindo o rela
de Deus dentro das narrativas; e que são geral
cionamento entre Lucas e Paulo como “ insepará
mente discretos, sem chamar atenção para si, ao
vel”
contar a história. Ao mesmo tempo, o narrador
subjaz a rejeição crítica a Lucas como autor de
de Atos pode às vezes acrescentar um comentá
Atos, uma vez que, alega-se, o autor de Atos de
rio explanatório ao leitor (e.g., At 9.35 [o nome
turpou a mensagem de Paulo e assim não poderia
da Tabita em grego é Dorcas]; At 12.9 [os pensa
ter sido seu companheiro constante. Mas a inse
mentos de Pedro]), e em Atos 16.10-17; 20.5-15;
parabilidade de Lucas e Paulo não é uma inferên
21.1-18; 27.1—28.16 (i.e., nas passagens inicia
cia necessária de Atos. Na realidade, é contradita
das por “nós”) ele finca os pés na história como
por Atos, que reiteradas vezes nos informa que
um personagem. Hoje, quando muitos estudiosos
o narrador fazia parte de um grupo cuja progra
falam de “Lucas” com referência à mão por trás
mação de viagem sobrepunha-se ocasionalmen
de Lucas-Atos, referem-se a Lucas como narrador,
te à de Paulo, mas não se uniu regularmente ao
muitas vezes sem necessariamente nenhuma in
grupo de Paulo, de forma permanente ou mesmo
ferência a respeito da identificação do verdadeiro
durante períodos prolongados.
( I re n e u ,
He, 3.1.1,4). A essa última inferência
Somos ainda relembrados de que o retrato de
autor dessa obra. Lucas-Atos, assim como os Evangelhos de Ma
Paulo apresentado a nós por meio de suas cartas
teus, Marcos e João, são documentos anônimos
é em si tendencioso, moldado por relacionamen
(contudo,
Jo 21.24,25), e as passagens inicia
tos às vezes cheios de tensão com seu público lei
das por “nós” nada fazem no âmbito literário para
tor; que os debates em torno das incongruências
modificar esse estado de coisas. Ou seja, mesmo
entre o Paulo de Atos e o Paulo da correspondên
quando se expressa na primeira pessoa, o narrador
cia paulina às vezes sofreram de hipérbole crítica;
de Atos identifica-se não como um indivíduo, com
que em todo caso o narrador de Atos está mais
um nome, mas como alguém que pertence a um
preocupado em contar a história da concretização
grupo. Está presente, às vezes como participante,
do propósito salvífico de Deus que em desenvol
outras vezes como observador, em alguns aconte
ver personalidades; e que os personagens de Atos
V.
cimentos, mas o foco não é sua identidade indi
são mais importantes pelo que acrescentam à his
vidual. Antes, 0 “nós” de sua narração contribui
tória do que em referências às histórias pessoais.
para a vivacidade do relato e convida seu púbhco
Portanto, as grandes preocupações que levaram
leitor a participar ativamente da narrativa. O fato
à negação da identidade de Lucas como autor de
de que a narração em primeira pessoa acontece
Atos dissipam-se consideravelmente.
somente em trechos selecionados do relato ressal-
Não obstante, vale a pena investigar o que está
:a que o narrador não alega em nenhum momento
em jogo na identificação do verdadeiro autor de
ser companheiro constante de Paulo e seu círculo
Atos. É seguramente intrigante, por exemplo, que
de cooperadores. Também faz supor que a narra
C. K. Barrett possa engajar-se numa leitura crítica
ção na primeira pessoa é mais que um expediente
de Atos sem primeiro decidir a questão da autoria,
literário calculado para dar vida à narrativa.
especialmente quando lembramos que Lucas nâo
I 149 I
A tos dos A póstolos
faz nenhum esforço patente de se afirmar na nar
no entanto, não significa imediatamente negar
rativa com 0 objetivo de atender a interesses da ve
que Lucas tenha tido tais preocupações, pois o
racidade histórica. A resolução final da questão da
Evangelista pode ter sido motivado por múltiplos
autoria não entabularia questões de exatidão his
objetivos que não estivessem associados ã narra
tórica, e, como não sabemos quase nada dos ante
tiva como um todo.
cedentes do Lucas histórico, insistir em que ele é
Nosso entendimento do objetivo de (Lucas-)
o responsável por Atos não acrescenta quase nada
Atos flui de nosso entendimento de seu gênero
ao nosso entendimento e à sua narrativa. Como
e da finalidade narrativa. Já vimos que o gênero
acontece com os Evangelhos canônicos, então, o
de Atos leva a supor um interesse de Lucas na
mesmo se dá com Atos: nossa leitura flui melhor
legitimação e na apologética. Nosso debate sobre
com base no que somos capazes de discernir sobre
o objetivo narrativo de Atos destacou a centrali
seu narrador a partir do interior da narrativa.
dade dos propósitos de Deus em levar a salvação a todos. No mundo em conflito do Mediterrâneo
S. Teologia e propósito de Atos
do século
Inúmeras propostas para os objetivos de Atos
co como um todo, não é difícil perceber como
vêm sendo defendidas por estudiosos recente
esse entendimento dos propósitos de Deus e sua
mente, entre as quais as seguintes:
encarnação no movimento cristão teriam sido
I,
não menos dentro do mundo judai
fonte de controvérsias e incertezas. Podemos en 1. Atos é uma defesa da igreja cristã diante de Roma. 2. 3.
4.
5.
6.
tão presumir que o propósito de Lucas-Atos teria sido fortalecer o movimento cristão em face da
Atos é uma defesa de Roma diante da igreja
oposição, conferindo-lhes segurança em sua in
cristã.
terpretação e experiência do propósito redentor
Atos é uma apologia a favor de Paulo e con
de Deus e chamando-os ã fidelidade e ao teste
tra os judaizantes, que tomaram partido
munho continuados dentro do projeto salvífico
dos judeus não cristãos contra a opinião de
de Deus. Assim, o propósito de Lucas-Atos seria
Paulo de que o cristianismo é o verdadeiro
acima de tudo eclesiológico, centrado no convite
sucessor do judaísmo.
para participar do projeto de Deus.
Atos é uma obra de edificação destinada
Nossa compreensão do objetivo de (Lucas-)
a fornecer um corretivo escatológico para
Atos deve também exphcar seus destaques teológi
uma igreja em crise.
cos primordiais. Estudos recentes têm identificado
Atos foi escrito para tranquiUzar crentes
repetidas vezes a salvação como o tema primor
que lutavam com a confiabilidade do que
dial de Lucas-Atos, tema que vem sendo entendido
rigma, seja no que se refere à sua verdade
como aquele que unifica outros elementos textuais
e aplicabilidade, seja com respeito à sua só
da narrativa. Para poder fazer sentido o tema da
lida fundação na história do povo de Deus.
salvação e para mostrar o grau em que é integra
Atos tinha por objetivo ajudar o movimen
do no propósito geral de fortalecer a igreja (como
to cristão a legitimar-se, em oposição ao
acabamos de demonstrar), devemos desenvolvê-lo
judaísmo.
dentro do que pode ser somente um esboço de te
7. Atos foi escrito para incutir nos cristãos
mas teológicos mais importantes.
uma fidelidade fundamental a Jesus, que
5.1
O propósito de Deus. 0 propósito ou o
exigia um posicionamento social e político
plano de Deus é de fundamental importância para
básico dentro do império.
Atos, e sua presença na narrativa e por trás dela é exibida numa variedade de formas. Esse tema se
À luz de nossos comentários anteriores sobre
faz presente sobretudo por meio de uma miríade
a unidade narrativa de Lucas-Atos, alguns desses
de manifestações dos propósitos de Deus (e.g., bou-
itens podem ser excluídos já de saída, a saber,
lê/boulomai [“conselho determinado” — At 2.23;
aqueles centrados em objetivos particulares a
4.28; 13.36; 20.27], dei [“devia” — At 1.16,21;
Atos e/ou a Paulo (i.e., At 1—3] — uma vez que
3.21; 4.12; 5.29; 9.16; 14.22; 16.30; 17.3; 19.21;
não explicam o todo da narrativa de Lucas. Isso,
20.35; 23.11; 27.24,26], horizõ [“determinar” —
I 150 I
A tos dos A póstolos
At 2.23; 10.42; 17.26,31]); por meio de anjos, vi
a se juntar ao grupo em viagem do oficial da corte
sões e profecias; por uma conjunção divina de
etíope; 4) o fato de ele poder servir como intér
acontecimentos; e pela ação do Espírito.
prete das Escrituras. Depois do batísmo do eunu
Esse realce mais que destacado na vontade divina está presente em Atos para garantir que
co, Fihpe é arrebatado pelo Espírito do Senhor; o encontro divino chega a sua conclusão.
a direção da missão cristã é legítima, mas não
O encontro de Filipe com o eunuco pode ter
para eclipsar a decisão e a participação humanas
iniciado a missão aos gentios, mas essa inova
na missão. Na realidade, a extraordinária quahda
ção não é do conhecimento de ninguém dentro
de da narrativa é notadamente intensificada pelo
da narrativa. Filipe não relata o que aconteceu
conflito gerado no momento em que algumas
a Jerusalém, e o eunuco deve ter voltado para
pessoas escolhem opor-se aos objetivos divinos.
casa. Por isso, o encontro entre Pedro e Corné
Deus não coage as pessoas a servir sua vontade,
lio (At 10.1— 11.18) inicia a missão aos gentios a
mas tampouco os planos de Deus serão em última
seu modo, uma vez que nesse caso os crentes de
análise descarrilados por causa da oposição que
Jerusalém são incluídos no relato. Como aconte
se levante contra ele. A comunicação de seu pro
ceu com Filipe, também aconteceu com Pedro: a
pósito vem como um convite para que as pessoas
novidade ocorre por ordem de Deus, por meio da
se alinhem com esse propósito: alguns podem se
orquestração cuidadosa no palco da história de
recusar a fazê-lo, mas outros (e o convite é para
mensagens visionárias e angelicais que anunciam
todos) abraçarão sua vontade, receberão o dom
os propósitos divinos (At 10.1-16).
da salvação e participarão de suas atividades re dentoras (v. ainda 5.1.1
S q u ir e s ; G r e e n ,
1995, p. 22-49).
Em ambos os casos, mas mais claramente no último, a importância da vontade humana não é
O propósito divino. Embora Deus jamais minimizada. Cornélio e Pedro recebem diretrizes
entre na narrativa de Atos como um personagem
divinas separadas, nenhuma delas completa em si
do enredo, sua presença é visível em toda parte
mesma. De acordo com essa orquestração, ambos
por meio da ação do Espírito Santo (v. 5.1.3 abai
devem obedecer ao que lhes foi revelado, a fim
xo) e de anjos e por meio de visões e profecias.
de compreenderem melhor como Deus está tra
Por meio desses agentes e dessas intermediações.
balhando e o que está realizando nesse encontro.
Deus orquestra os encontros e os acontecimentos
Como que para outra vez realçar que a missão aos
humanos e confirma que a missão aos gentios
gentíos é obra de Deus, quando eles cumprem os
está em harmonia com a sua vontade.
propósitos de Deus, o Espírito Santo invade o en
Dois estudos de caso nessa orquestração di
contro, caindo sobre “todos os que ouviam a pa
vina (Fihpe e o eunuco etíope; Pedro e CornéUo)
lavra” (At 10.44). Essa obra do Espírito autônomo
acompanham a narração dos primórdios da mis
é considerada prova de que a missão aos gentios,
são aos gentios. Não há nenhuma razão sócio-his
com a plena comunhão entre estes e os crentes
tórica ou narratológica para se suspeitar de que o
judeus, era plano de Deus (At 1.17,18).
eunuco etíope não seja um gentio (At 8.26-40). 0
Os anjos se engajam em ações em outros
encontro com Filipe na estrada para Gaza se dá
momentos também (cf. At 5.19;
na intersecção destes fatores; 1) o fato de o etíope
27.23,24), mostrando a direção constante de Deus
12.7-11,23;
ter feito uma peregrinação, a exemplo de muitos
e seu cuidado providencial, como se dá com as
gentios do antigo Mediterrâneo, para adorar em
visões (At 10.10-16; 16.6-10; 18.9-20; 22.17-21).
Jerusalém; 2) o fato de ele estar lendo um texto (Is 53.7,8) que ressalta a humildade do “servo”
5.1.2
As Escrituras de Israel. Por Escrituras de
Israel, queremos dizer a l x x , especialmente Deute
de Isaías e assim declara a sohdariedade do servo
ronômio, os Salmos e Isaías, pois esses são os tex
de Javé com o eunuco em sua condição humilde
tos autorizados que mais aparecem em Atos. Dois
(ainda que ele tenha ido adorar em Jerusalém,
fatores caracterizam o uso das Escrituras por porta-
como eunuco estava excluído da assembleia do
vozes de Deus em Atos. Em primeiro lugar, os
Senhor; cf. Dt 23.1; Is 56.3-5); 3) o fato de Filipe
personagens em Atos estão preocupados em mos
ser conduzido por um anjo do Senhor para viajar
trar que 0 que aconteceu com Jesus e o que acon
na mesma estrada, depois instruído pelo Espírito
tece com 0 movimento daqueles que o chamam
I 1 51
I
A tos dos A póstolos
Senhor está vinculado às Escrituras. Em segundo
Senhor jamais controlam nem possuem o Espírito,
lugar e inseparavelmente relacionada, temos uma
mas tentam acompanhar a obra do Espírito, cuja
condição importante, a saber, não são as Escritu
atividade muitas vezes surpreende.
ras em si que falam autorizadamente, mas são as
Assim como estivera ativo em todo o ministério
Escrituras à medida que apoiam o testemunho do
de Jesus (cL Lc 3.21,22; 4.1,14,15,18,19 etc.], assim
propósito de Deus, uma interpretação acessível
o Espírito capacitaria a missão das testemunhas do
somerne à luz da missão, da morte e da exalta
Senhor em Atos (esp. At 1.8]. 0 Espírito dirige a
ção de Jesus de Nazaré. Assim, ainda que seja
missão (e.g., At 13.1-4; 16.6,7] e capacita as teste
fundamental que as ações da comunidade cristã
munhas em palavra e ação. Em Atos, os sinais e as
estejam ancoradas na Escritura, que suas formu
maravilhas comprovam a presença de Deus no mi
lações cristológicas tomem a forma de diálogo
nistério de suas testemunhas, legitimando o alcance
com a Escritura e que eles entendam a rejeição
universal da salvação à medida que eles autenticam
da mensagem por alguns judeus e a missão aos
a mensagem entre os gentios (At 14.3; 15.12; cf. At
gentios por meio de precedentes bíblicos, as Es
2.19,22,43; 4.30; 5.12; 6.8; 7.36; 8.6,13].
crituras falam com autoridade apenas quando le gitimamente interpretadas.
Um dos propósitos primordiais do retrato que Lucas faz da atividade do Espírito é a legitimação
Isso indica que a importância primordial das
para a destruição de barreiras que separam ju
Escrituras em Atos é eclesiológlca e hermenêuti
deus e gentios. O dom do Espírito é um dos meios
ca, à medida que a comunidade cristã luta com
primordiais em que Lucas articula o conteúdo da
a própria identidade, não menos contra os que
salvação (v. 5.2.2 abaixo], e na economia da sal
também leem as Escrituras, mas rejeitam a fé em
vação apresentada por Lucas aqueles em quem
Cristo. Na visão de Lucas, é pelas Escrituras que
0 Espírito foi derramado são crentes. 0 Espírito
os seguidores de Jesus estão aptos para confir
assim esclarece a condição de crentes, sobretudo
mar sua condição como herdeiros das Escrituras,
dos gentios (At 10.45-47; 11.15-18; 15.8).
0 povo de Deus servindo à missão de Deus. A
O papel de autorização do Espírito vai mais
disputa com o povo judeu e suas instítuições em
longe, contudo. É por meio do Espírito que os
Atos é essencialmente hermenêutica: “ Quem in
profetas profetizam em Atos, e isso comprova que
terpreta as Escrituras fielmente?”. Ou, de modo
suas mensagens estão ancoradas na vontade di
mais cabal: “Qual interpretação tem o imprimatur
vina. O enredo da narrativa, atrás e por meio da
divino? A interpretação de quem recebe a legiti
qual 0 Espírito está ativo, é assim mostrada como
mação divina?” Em Atos, a resposta é simples: Je
uma interpretação fiel da missão cristã primitiva.
sus foi abonado por Deus (At 2.22] e confirmado
Além do mais, como a apresentação que Lucas
em sua ressurreição e ascensão (e.g., At 2.23-36;
faz do Espírito está no fundo vinculada ao en
3.13-25]. Os que vivem de modo semelhante a ele
tendimento do Espírito no judaísmo do segundo
são suas testemunhas, e sua pregação carismá
templo, ele retrata a missão cristã, que prosse
tica inclui interpretação bíbhca autorizada (e.g.,
gue com a orientação e a capacitação do Espí
At 4.8-13]. A validade de sua mensagem é ainda
rito, como o cumprimento de Israel, embora na
confirmada pelos sinais e maravilhas que Deus
concepção de Lucas a atividade do Espírito seja
opera por meio deles (At 14.3).
remodelada por contornos cristológicos: o tes
5.1.3
O Espírito Santo. Se Deus não aparece vi temunho capacitado pelo Espírito concentra-se
sivelmente na narrativa de Atos, seu substituto é
em Cristo, e é por meio do Messias exaltado que
praticamente o
e é por meio da ação
o Espírito é derramado (At 2.33]. Como conse
do Espírito que o propósito de Deus é conhecido, a
quência, pode se entender que a pneumatologia
missão é direcionada e a universalidade do evange
de Lucas proporciona uma apologética a favor de
lho é legitimada. Não que o Espírito Santo seja para
Deus. 0 Espírito substancia a direção que os pro
Lucas a imanência de Deus, como muitas vezes se
pósitos de Deus tomam em Atos: de Israel, pas
E spírfto S a n t o ,
quer fazer supor, mas porque o Espírito destaca a
sando pela vida e pelo ministério de Jesus até a
transcendência de Deus, sua liberdade de propó
igreja primitiva, com a inclusão de crentes gen
sitos. Por todo o livro de Atos, as testemunhas do
tios como plenos participantes.
I 1 52 I
A tos dos A póstolos
5.2
A salvação.
S alva ç ã o
é o tema principal necessidade divina (dei) do sofrimento de Jesus é
de Atos, com sua narrativa centrada na concre
uma advertência bastante de que a salvação não
tização do propósito de Deus para levar salvação
se deu a despeito da crucificação de Jesus. Mais
em toda a sua plenitude a todas as pessoas. Há
ainda, a linguagem especificamente aliancística
um conflito que surge dentro da narrativa em
usada em Atos 20.28 (peripoieomai, “comprou” ;
consequência da divisão entre os que abraçam e
cf. Êx 19.5; Is 43.21) e Atos 20.32; 26.18 (hagiazõ,
servem a esse objetivo, que se unem à comunida
“são santificados”; cf. Dt 33.3) lembra-nos do re
de do povo de Deus que dá testemunho da obra
gistro feito por Lucas da última refeição de Jesus
salvífica de Deus, e os que se recusam a fazê-lo
com seus discípulos, na qual ele ancora a “nova
(cf. Lc 2.34; sobre 5.2, v.
aliança” na própria morte (Lc 22.19,20). Embora
5.2.1
G reen,
1997).
Deus como Salvador, Jesus como Salva pouco mencionado, o efeito salvífico da cruz não
dor. Para Lucas, a salvação vem sempre e acima
está ausente em Lucas, ainda que não seja plena
de tudo de Deus. Deus inicia a salvação e, mesmo
mente tecido na malha da teologia lucana da cruz
na atividade salvífica de Jesus, é sempre o agente
(v.
C r is t o , m o r te de ) .
silencioso, mas ainda assim primordial. Os feitos
A perspectiva mais ampla de Lucas sobre o
poderosos de Jesus são repetidas vezes atribuídos
sofrimento do Messias pode ser esboçada em três
a Deus (At 2.22; 10.38). Deus o designou Senhor
aspectos inter-relacionados.
e Messias; Deus o glorificou, enviou-o, ressusci-
Primeiro: a rejeição de Jesus pelos líderes ju
tou-o e assim por diante. A soteriologia de Lucas
deus em Jerusalém leva à ampliação da missão de
é cristocêntrica, mas acima de tudo é teocêntrica.
modo que possa abraçar todos os povos, judeus
(Dada a força dessa ênfase, não surpreende [con
e gentios. Na realidade, o sofrimento e a rejeição
tra aqueles que encontram em Atos um retrato
forçam a propagação da Palavra (cf. Lc 21.13-19;
“divino-humano” dos apóstolos e de Paulo] que
At 13.44-49; 14.1-18; 18.2-6; 28.17-29). Como Lu
jamais seja afirmado que aqueles que se alinham
cas aprecia a narração, a luta e a oposição não
com 0 objetivo salvífico de Deus em Atos pos
são impedimentos, mas parecem promover o pro
suem o poder de ministrar a salvação. Os sinais
gresso do evangelho: “... em meio a muitas tribu
e maravilhas, que parcialmente constituem sua
lações nos é necessário entrar no reino de Deus”
atividade missionária, são efetuados por Deus,
(At 14.22; cf., e.g., At 6.1,7; 8.1-4).
concedidos pelo Senhor [cf., e.g., At 3.12,16;
Segundo: a paixão de Jesus serve de paradig
4.10,29,30; 5.12,38,39; 8.18-24; 14.3,14,15 etc.].)
ma para todos os que seguem a Jesus (cf. Lc 9.23;
Não obstante, Jesus é o agente de Deus na
At 9.16). Para Lucas, a theologia crucis está ar
salvação, o Salvador (Lc 2.11; At 5.30,31); como
raigada não tanto numa teoria da expiação. Ele
Senhor, Jesus é aquele a quem as pessoas invo
apresenta o caminho da cruz numa descrição nar
cam para serem salvas. Como Jesus alcançou essa
rativa da vida de discípulos fiéis.
condição? Para Lucas, Jesus, por ter sido ressus
Terceiro: ao descrever a crucificação de Jesus,
citado, agora administra a promessa do Pai (cf.
Atos ecoa as palavras de Deuteronômio 21.22,23.
Lc 11.13; 24.49; At 1.4), o dom do Espírito, ou
Jesus foi pendurado “num madeiro” (At 5.30;
seja, a salvação (At 2.29-36). Semelhantemente,
10.39; 13.29). A narrativa, portanto, sinaliza a
em Atos 5.30,31, encontramos uma afirmação sem
desonra da execução de Jesus ao mesmo tempo
rodeios de que a confirmação de Jesus como Sal
que situa a morte de Jesus como exigência dos
vador, como aquele que “concede” perdão e arre
propósitos de Deus. A desonra maior, a maldição
pendimento, está ancorada em sua ressurreição e
da parte de Deus, é um antecedente da exaltação.
ascensão. Como o Entronizado (Messias), como o
Assim, em seu sofrimento e ressurreição, Jesus
3enfeitor de seu povo (Senhor), o Jesus exaltado
incorporou a plenitude da salvação interpretada
£gora reina como Salvador, derramando a todos
como uma inversão de condição. Sua morte foi o
£= bênçãos da salvação, entre as quais o Espírito,
ponto central da luta divino-humana sobre como
o qual foi ungido no início de seu ministério.
a vida deve ser vivida, em humildade ou em au-
Que dizer então sobre a crucificação de Je-
toglorificação. Embora ungido por Deus, embo
5'23? As diversas referências em Atos sobre a
ra justo diante de Deus, embora inocente, ele é
I 153 I
A T O S DOS a p o s t o l o s
morto. Rejeitado pelo povo, ele é ressuscitado por
dos que se opõem aos propósitos de Deus, e em
Deus — e com ele os menores, os perdidos, os
outras partes Lucas emprega uma tipologia do
abandonados são também ressuscitados. Em sua
Êxodo para caracterizar a salvação (At 3.17-26;
morte e em consequência de sua ressurreição por
7.25). A salvação como hvramento de peri
Deus, 0 caminho da salvação é exemplificado e
gos toma forma concreta em outros momentos,
tornado acessível a todos os que o seguirão.
quando a linguagem é usada para se referir a
5.2.2
A mensagem da salvação. Lucas desen uma viagem segura, apesar da ameaça de uma
volve o conteúdo da salvação de cinco maneiras
emboscada (At 23.16-24), ou de tempestades em
relacionadas.
alto-mar (At 27.31,43—28.6), ou fuga da prisão e
Primeira: salvação implica incorporação e par ticipação na comunidade cristocêntrica do povo
ação da turba (cf. At 5.17-21; 12.1-19; 16.19-40; 19.23-41).
de Deus. São pessoas cuja unidade é enfática na
Que dizer da salvação em relação ao domínio
narrativa (e.g., At 1.14,15,24; 14.1; cf. At 2.44,45;
estrangeiro (como previsto no cântico de Zaca
4.32— 5.11;
De of,
rias)? Embora Lucas não informe a derrocada do
Gn
domínio romano, com certeza ele narra a relafi-
1.16.51;
P latão,
A ristó teles ,
Re, S.46.2c;
C íc er o ,
Et ni, 9.8.1168b;
J o sefo ,
ju, 2.8.3, § 122-3), que juntos invocam “ o nome
vização da soberania que Roma procurava mos
do Senhor [Jesus]” e são batízados em seu nome
trar, como sugere R. J. Cassidy. Mais importante
(At 2.21,22,38; 8.16; 9.14,21; 10.48; 19.5; 22.16);
para Lucas, o inimigo real do qual é preciso se
que curam (At 3.6,16; 4.10,30; 19.13) e pregam
libertar não é Roma, mas o poder cósmico do mal
(At 4.12; 5.28,40) em seu nome; que sofrem por
residente e ativo por trás de todas as formas de
seu nome (At 5.41; 9.16; 21.13).
oposição a Deus e ao povo de Deus. Essa forma
0 que pode surpreender é a identificação dos
de salvação — do poder das trevas, de Satanás —
que pertencem a essa comunidade. 0 convite é
recebe destaque em Atos (e.g., At 26.17,18; 5.16;
para todos, para “vós, para vossos filhos e para
13.4-12; 16.16-18; 19.8-20).
todos os que estão longe” (At 2.39; cf. Is 57.19;
Terceira: salvação é perdão de pecados. Em
At 1.8; 2.5,9-11,17,21; 10.1— 11.18 etc.). Ao der
Atos, Lucas continua a tônica do perdão firme
ramar sobre eles a bênção do perdão e o dom
mente arraigado na missão de Jesus de acordo
do Espírito, Deus confirma a autenficidade da
com o terceiro Evangelho (v. At 2.38; 3.19; 5.31;
inclusão dos gentios como membros do povo de
10.43; 13.38; 15.9; 22.16; 26.18). Isso sinaliza um
Deus e confirma que “ não fez distinção alguma
relacionamento novo ou renovado com Deus, mas
entre eles e nós” (At 15.9; cf. 11.15-18). Jesus
também com o povo de Deus: assim como o peca
é Senhor de todos (At 10.43). “Salvos” também
do é o meio pelo qual as pessoas se excluem ou
são aqueles separados do discurso social normal
são excluídas da comunidade do povo de Deus, o
por doença e possessão demoníaca (e.g., At 3.1—
perdão marca o retorno delas ã comunidade.
4.12; 5.12-16; 8.7; 14.8-10). Isso nos lembra que
Quarta: salvação é receber o Espírito Santo.
a soteriologia de Lucas não estabelece nenhuma
Pedro também promete que os que responderem
distinção entre o físico, o espiritual e o social; que
ã mensagem receberão “ o dom do Espírito Santo”
no mundo greco-romano como um todo a “ sal
(At 2.38), realce que reaparecerá repetidamente
vação” seria reconhecida na cura de desordens
(At 9.17; 10.43,44; 11.15-17; 15.8). 0 dom do
físicas; que a restauração física tinha como uma
Espírito confirma pessoas, quer gentios, quer ju
de suas ramificações a reintegração aos relaciona
deus, como membros da comunidade do povo de
mentos sociais.
Deus e assim esclarece a condição daqueles que
Segunda: salvação imphca livramento “ dos
creem, especialmente os gentios.
nossos inimigos” (cf. Lc 1.68-79). A salvação
Quinta e última: a oferta da salvação exige
como resgate divino não parece receber destaque
resposta. A necessidade de resposta é delineada
em Atos, mas há importantes pistas nessa dire
programaticamente na narração do discurso de
ção. Por exemplo, o uso de Joel 2.28-32 em Atos 2
Pentecostes, quando Pedro é interrompido pelos
põe em cena conotações apocalípticas, lembran
que 0 ouvem com a pergunta: “ Que faremos”?
do-nos de que a vinda de Deus significa a queda
(At 2.37; cf. 16.30-34). Qual a resposta adequada
I 154 I
A tos dos A póstolos
à boa notícia da salvação? Lucas trata dessa per
Em primeiro lugar, a centraUdade do templo
gunta com um arsenal de possibilidades — cha
e da SINAGOGA, o uso continuado das Escrituras de
mados para crer (At 2.44; 3.16; 11.17; 13.39; 14.9;
Israel, a primazia da missão para o povo judeu e
15.7; 16.30,31; 18.8), para ser batizados (At 2.41;
outros fenômenos relacionados dentro da narrati
8.12,36; 9.18; 10.47,48; 16.15) e para voltar-se
va de Atos deixam prever até que ponto a história
para Deus ou se arrepender (At 2.38; 3.19; 5.31;
da comunidade cristã preserva vínculos com a
11.18; 17.30; 20.21; 26.20). Há outras respostas
antiga história do povo de Deus.
em potencial, incluindo algumas que empregam
Em segundo lugar, no entanto, a perspectiva
a metáfora da iluminação (e.g., At 26.17,18),
crítica sobre o templo e a sinagoga, por exemplo,
contudo não se destaca nenhum padrão especial
e a natureza contestada do relacionamento entre
de resposta como paradigma. Deus agiu gracio
0 movimento cristão e as estruturas judaicas fa
samente em Cristo para levar salvação a toda a
zem supor até que ponto o ju d a ísm o do qual Lucas
humanidade, que é chamada para receber a boa
se ocupa é um judaísmo interpretado. Ou seja,
notícia, para se mostrar receptiva e assim parti-
“a reUgião de Israel — suas instituições, práticas,
ïïiar dessa salvação não somente como alvo, mas
e assim por diante — deve ser incorporada ple
íambém como quem serve aos objetivos reden
namente quando entendida em face do propósito
tores de Deus.
redentor de Deus. Mas, para ser assim compreen
5.2.3 Escatologia. Estudiosos de Atos há muito
dida, a reUgião de Israel deve coadunar-se com o
perceberam que a esperança escatológica não foi
propósito de Deus conforme articulado pelo pró
desenvolvida na narrativa (v.
. Embo
prio agente interpretativo autorizado por Deus, o
ra 0 futuro da salvação não esteja ausente (e.g.,
Filho de Deus, Jesus de Nazaré, e em Atos pe
At 3.21; 10.42; 17.31), o foco transportou-se do
las testemunhas do Senhor, que servem como
e sc ato lo g ia )
eschaton para o presente. Em Atos 1.6-8, Jesus
agentes interpretativos
reorienta preocupações com a restauração do
rei
perspectiva sobre a questão do judaísmo em Atos
a Israel, uma preocupação escatológica, para
destaca a natureza da luta fundamental entre o
no
(G reen,
1995, p. 75). Essa
a importância do testemunho fiel no presente,
movimento cristão e seus representantes de um
ísso não deve ser tomado como uma tentativa da
lado e 0 judaísmo de outro, e também oferece
parte de Lucas de minimizar a importância da pa
uma explicação lógica para a oposição enfrentada
rusia (como sustenta C o n z e l m a n n ) . Ao aconselhar
por esse movimento.
a incerteza sobre “ os tempos ou as épocas” esta
5.3
Discipulado. Talvez em nenhum outro
belecidos pelo Pai (At 1.7), Jesus realça a impre-
lugar a interdependência entre o Evangelho de
visibilidade da parusia. “Lucas procura reforçar
Lucas e Atos esteja tão evidente como na pers
a fé escatológica viva, o tempo todo convocando
pectiva lucana sobre o discipulado. Especialmen
seus leitores ao serviço vigilante e fiel”
te quando comparado aos outros Evangelhos
(C arroll,
í». 166). Ou seja, Lucas emprega a escatologia
Sinóticos, 0 terceiro Evangelho chama atenção
í»ara motivar o povo à missão.
pelo fato de apresentar uma participação muito
5.2.4 Judaísmo. A questão do relacionamento
pequena dos discípulos no ministério de Jesus.
de Lucas com as instituições judaicas e o povo ju
Isso é facilmente explicado, uma vez que o tercei
deu é uma das mais debatidas no estudo de seus
ro Evangelho pode fornecer instrução e modelos
escritos. Alguns estudiosos sustentam que a teo
para o discipulado ao mesmo tempo que permite
logia de Lucas é irremediavehnente antijudaica,
ao livro de Atos documentar de modo mais pleno
enquanto outros insistem em que o pensamento
0 serviço ativo dos discípulos na obra missionária
de Lucas se origina de uma igreja cristã vivamente
de Jesus. Entre os temas que podem ser desenvol
rjdaica. Muitas outras opiniões enquadram-se en-
vidos, dois são de especial importância: a koino-
nE esses dois polos. Assim, de que maneira o trata-
nia econômica, e o testemunho e compromisso
laento dispensado por Lucas ao povo judeu e aos
de fideUdade.
assuntos judaicos aponta para o propósito geral de
5.3.1
Koinonia econômica. Por todo o terceiro
Lucas? Mesmo sem se empenhar plenamente nes
Evangelho, a mensagem de Jesus encontrou repe
se debate maior, duas observações são possíveis.
tidas expressões para minar a rigidez das relações
I 1 55 I
A tos dos A póstolos
sociais que insistiam em se basear nos cânones
(At 8.1-4) e Paulo (e.g., At 13.45-49). O conflito
bastante difundidos de status, bem como para
em torno desses personagens centrais, cuja fide
afirmar a redefinição de relações econômicas
lidade é ressaltada repetidamente pelo narrador
dentro da comunidade de seus seguidores. Esses
(e.g., At 3.14,15; 5.38,39; 6.8-10; 7.55; 25.25;
dois pontos tratam do mesmo conjunto de ques
26.32; 28.17-22), prognostica a oposição que
tões, uma vez que o intercâmbio econômico é
testemunhas fiéis fora da narrativa, incluindo-se
uma das funções e representações das relações
pessoas do público leitor de Lucas, podem tam
sociais. Os patronos, por exemplo, têm um status
bém encontrar no decurso da missão.
mais elevado que seus clientes, e em seus atos
Ou seja, a oposição no transcurso da missão
de benfeitoria obrigam outros a corresponder
da igreja não deve necessariamente ser interpreta
com lealdade, reconhecimento e veneração. Entre
da como sinal de que estamos equivocados quan
amigos e em grupos familiares, no entanto, dar e
to aos propósitos divinos. A fidelidade exige um
receber não prescinde das estipulações trazidas
compromisso fundamental de fidelidade a Jesus
da ética patronal que perpassava o império. Nes
como Senhor, que exige um posicionamento so
ses casos, dar é uma função não de obrigações e
cial e político básico dentro do império
divida, mas de mutualidade, generosidade, soli
e isso bem pode gerar oposição. Pedro, João, Es
dariedade e necessidade. A koinonia econômica
têvão e Paulo podem assim servir de modelo para
assim cresceria a partir de uma visão de parentes
os cristãos que, no decurso da missão da igreja,
co, sendo também um símbolo dela.
enfrentem lutas semelhantes.
0 que Jesus exigiu em seu Sermão da Planície (Lc 6.27-38, esp. Lc 6.35; v.
S er m ã o d o M o n t e ) —
Ver também L u c a s ,
E v a n g e lh o
de
;
( C a s s id y ) ,
P a u lo em A t o s
E NAS c a rta s .
disposições de parentesco dando origem a práti
d l n t d : C o r n e liu s ; E va n gelism in t h e E a r ly C h u r
cas de generosidade material — é evidenciado na
ch ; G e n t ile s , G e n t ile M is s io n ; H e lle n is t s ; M is s io n ,
vida da igreja primitiva (At 2.44,45; 4.32— 5.11; v.
E a r ly N o n - P a u u n e ;
tb. At 6.1-6; 11.27-30). 0 que Lucas descreve nas
ta m e n t IN A c t s ; P a u l a n d Pau u nism s in A c t s ; P e n
declarações de resumo de Atos 2.44,45 e 4.32-35,
te c o s t;
no entanto, não é comunitarismo, seja como re
W o n d e r s ; S te p h e n ; T o n g u e s .
P h ilip
th e
N a r r a tiv e
E v a n g e u s t;
C ritic is m ; O l d
S am a ria ;
Tes
S ign s a n d
quisito para pertencer ao povo de Deus, seja como ideal. Em vez disso, ele delineia uma disposição
B ib u o g r a f l \.
de parentesco e generosidade, uma orientação
o f the Apostles. Edinburgh: T & T Clark, 1994. 2
voltada para as necessidades dos outros e para a
V. (/cc.) ■ B ru ce ,
generosidade de Deus que caracteriza a comuni
the Greek text with introduction and commen
dade cristã fora das limitações normais do ciclo
tary. 3. ed. Leicester/Grand Rapids: InterVarsity
Comentários: B a r r e t t , C. K. The Acts F. F. The Acts o f the Apostles:
de reciprocidade e de dar por obrigação. Assim,
[Apollos]/Eerdmans, 1990. ■ ______ . The Book of
Barnabé é apresentado como figura exemplar que
the Acts. Ed. rev. Grand Rapids: Eerdmans, 1988.
incorporava o ideal de parentesco que deveria ca
( m c n t .) ■ C o n z e lm a n n , H .
racterizar a comunidade inteira (At 4.32,36,37).
a commentary on the Acts of the Apostles. Phi
Semelhantemente, Ananias e Safira demonstram
ladelphia: Fortress, 1987. (Herm.) ■ H a e n c h e n , E.
The Acts o f the Apostles:
por sua falsidade e pelo que combinaram guardar
The Acts o f the Apostles: a commentary. Oxford/
para si que não haviam renegado o formato de
Philadelphia:
patronato e de busca de status do império como
J o h n so n ,
Blackwell/Westminster,
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L. T. The Acts of the Apostles. Collegevil
um todo, não sendo assim membros da nova co
le: Liturgical Press, 1992. [SacP, 5.) ■ M a r s h a l l , I.
munidade do povo de Deus (At 5.1-11).
H. The Acts of the Apostles: an introduction and
5.3.2
Testemunho e compromisso de fidelida commentary. Leicester/Grand Rapids: InterVarsi-
de. Uma das marcas da narrativa de Lucas é a
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constância com que testemunhas fiéis atraem
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oposição e com que a oposição leva à expansão
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Pedro e João (e.g., At 4.23-31; 5.41,42), Estêvão
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I 156 I
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AuTO BioG RAnA DE P a u l o .
I 158 I
Ver P a u l o ,
o
Ju d e u .
G reek
B anquete.
Ver c o m u n h ã o
(e.g., Mc 1.4], do batismo de Jesus e/ou de seus
A m esa.
discípulos realizado durante seu ministério públi B arnabé.
Ver a p ó s t o l o .
co (e.g., Jo 3.22,26] e do batismo com o/no Es pírito Santo e com/no fogo (e.g., Mt 3.11,14]. No
B arrabás.
Ver J esus ,
último, a palavra assume sentido metafórico, que
j u l g a m e n to d e .
pode ser entendido em termos da imagem escato B aru q u e, Segundo.
Ver
B a t is m o
E vangelh os
A pócrifos e P s e u d e epíg ra fo s .
lógica existente no judaísmo e que apresenta um ribeiro, um dilúvio ou uma inundação de fogo que
i ; os
purificaria os justos e destruiria os ímpios (v. Es
0 batismo está associado a um grupo geral de prá ticas relacionadas com o ato de lavar. Além dos
p ír it o
Santo].
A forma substantiva baptisma não é encontrada
vocábulos costumeiros [baptõ, baptizõ, baptisma,
fora do
baptismos, baptistês), também é preciso ter ciên
aplica não apenas ao ato exterior do batismo, mas
cia de vocábulos associados ao ato de ablução,
também denota o significado e a força interiores do
nt
e aparece apenas no singular. 0 termo se
completa ou parcial (louõ, niptõ). Aqui faremos um
ato. O batismo pode, por isso, ser apropriadamente
levantamento da terminologia usual associada ao
empregado para designar tanto o batismo do Espí
batismo, dos antecedentes e contexto do batismo
rito quanto o batismo de água.
no
nt
e da prática do batismo nos ministérios de
J oão B a t is t a
e de Jesus.
2. Antecedentes e contexto
1. Terminologia
2.1
2. Antecedentes e contexto
Religiões do mundo. O batismo não é uma
ideia distintiva nem unicamente cristã. A prática
3. O batismo de João
do batismo é muito difundida. Os exemplos abran
4. O batismo de Jesus
gem os rituais hindus no rio Ganges, o ritual de purificação do culto babilónico de Enki, as práticas
1. Terminologia Das cinco diferentes palavras encontradas no
egípcias de purificar crianças recém-nascidas e os nt
que se formam a partir da raiz bap-, duas são ver
ritos, também egípcios, de revivificação simbólica realizados com os mortos. Baptizõ e palavras re
bos e três são substantivos. A forma básica é o ver
lacionadas foram empregadas para definir práticas
bo grego baptõ, que ocorre três vezes (Lc 16.24; Jo
rituais da antiga religião cretense, da religião da
13.26; Ap 19.13] com o sentido literal de “ mergu
Trácia, das religiões de mistério dos eleusianos e
lhar” ou “tingir”. De outro lado, a forma intensiva,
de vários grupos e seitas gnósticos.
baptizõ, que aparece 77 vezes, é utilizada sempre
Existem elementos comuns associados a essas
ou quase sempre no sentido ritualístico das ablu-
bem difundidas práticas batismais. Exceto quando
ções judaicas (e.g., Mc 7.4], do batismo de João
empregado metaforicamente, o batismo é sempre
D A I I b M U I. U b C V A N b t L M U b
associado à água. 0 batismo é realizado em con
o momento decisivo de deixar o paganismo para
junto com a remoção da culpa, a purificação e a
trás acontecia na circuncisão (v.
concessão de um novo início. O batismo cristão
tismo ou banho ritual preparava aquele que aca
partilha desses traços e contextos e também pos
bara de se fazer judeu para oferecer um sacrifício
sui contextos históricos e importância teológica
como 0 ato inicial de adoração.
M c K n ig h t )
. 0 ba
específicos que lhe proporcionam um significado
A conversão do paganismo para o judaísmo
distintivo. 0 contexto do batismo de João e do
era vista como deixar a morte e entrar na vida
pelo judaísmo
— a fonte para a doutrina cristã acerca da nova
e pelas práticas da comunidade de Qumran (v.
vida que tem aquele que se converteu a Cristo.
MANUSCRITOS DO M AR M O R T O ) .
Deve se ressaltar, contudo, que no judaísmo o
batismo cristão é oferecido pelo
2.2
at,
Práticas judaicas. Os seguidores de João conceito é associado apenas secundariamente
Batista que participaram do rito batismal, judeus
com 0 batismo de prosélitos e só aparece em tra
ou gentios, certamente não consideraram essa
dições tardias. 0 entendimento cristão distintivo
prática totalmente estranha. A água é o elemento
do batismo como morrer e ressurgir baseia-se no
naturalmente usado na limpeza do corpo, e seu
relacionamento que o convertido tem com Cristo,
uso simbólico se fazia presente em quase todas as
que morreu e ressuscitou dos mortos
religiões, e em nenhuma delas de um modo mais
M u r r a y ; B ec k w íith ,
( B ea s l e y -
p. 144-5).
completo que nas práticas judaicas. Os rituais de purificação do judaísmo ressaltavam a pureza e
3. O batismo de João
a dignidade para servir ao Senhor (Lv 13— 17;
Assim como João foi o predecessor de Jesus, seu
Nm 19). 0 ritual de lavar era semelhante ao ba
batismo precedeu o batismo cristão. Contudo, o
tismo em suas implicações purificadoras (Mc 7.4;
ambiente do batismo de João contínua sendo ob
Hb 9.20). Em Salmos 51.2,7, o salmista suplica
jeto de acalorados debates. 0 contexto cultural e
pela purificação divina. Especialmente significa
religioso da época de Jesus exige que vários fato
tivo é Isaías 4.4: um pedido para que os pecados
res sejam considerados.
sejam removidos com uma ablução com o “espí rito de ardor”
(arc),
O batismo judeu de prosélitos como an
no judaísmo do século i um protótipo do batísmo
João retoma em seu batismo. Além desses exemplos do a t ,
3.1
tecedente do batismo de João. É natural procurar
um vislumbre do tema que equivalente ju
de João. Mas determinar a relação entre as prá-
daico à prática cristã estava em seus rituais com
tícas e o entendimento que os judeus tínham do
o
prosélitos. Não se sabe ao certo quando teve
batismo ou purificação cerimonial e as práticas e
início 0 batismo de prosélitos pelos judeus. Al
0 entendimento de João ou da igreja primitiva é
guns estudiosos acreditam que começou na mes
tarefa complicada.
os
ma época do rito cristão
enquanto
Na sua forma mais desenvolvida, o batismo
( B easle y- M u rray) .
judeu de prosélitos era um rito de iniciação rea
( M c K n ig h t ) ,
outros alegam que foi antes
0 relato sobre o leproso Naamã (2Rs 5), que é
lizado apenas uma vez com o gentio convertido,
possivelmente uma ablução de purificação, é se
como era também o caso do batismo de João e
melhante ao batismo de prosélitos de mais tarde.
do batismo cristão. Em consonância com as pu
Bem mais tarde (até o século iii d.C.), foi aceito
rificações cerimoniais do
que prosélitos do sexo masculino se batizassem
prosélitos servia para purificar o convertido, re
na presença de testemunhas sete dias depois da
movendo impureza moral e cerimonial. 0 batis
at, o
batismo judeu de
circuncisão. Em tradições posteriores, o judaísmo
mo de João para a remissão de pecados reflete
exigia três coisas dos convertidos: circuncisão,
um conceito semelhante. J. Jeremias entende que
batismo ou banho ritual e a apresentação de sa
Testamento de Levi 14.6 apoia um batismo judeu
crifícios. Os rituais da circuncisão e da ablução
de prosélitos antes da era cristã. A passagem, a
eram, muito provavelmente, precedidos de ins
que se atribui a data do final do século ii a.C., diz:
trução catequética. O Talmude refere-se a um pro
“A prostitutas e adúlteras serás unido, e as filhas
sélito batizado como uma criança recém-nascida
dos gentios tomarás por esposas, purificando-as
[b. Yebam., 22a). No entanto, para o judaísmo
com purificações ilegítimas” [katharizontes autos
160
B a t is m o i : o s E v a n g e l h o s
katharismõ parartomõ). Ele defende que a termi
pela comunidade de Qumran (v.
nologia, teologia, instrução catequética e execu
mar
M or to ) .
MANUscRrros do
Numerosos estudos têm sido feitos
ção do rito pelos cristãos têm semelhança com
sobre a relação entre o batismo de João e as puri
a maneira em que os judeus executam o rito (v.
ficações cerimoniais mencionadas no Manual de
J e r e m ia s ,
p. 29-40;
D aub e,
p. 106-8).
disciplina (IQS 3.4-9; 6.14-23; v.
B a d ia ) .
É pos
Não existe, contudo, nenhuma prova clara an
sível sustentar tal relação sem que se tenha de
terior a 70 d.C. de que prosélitos se submetiam
aceitar sugestões como a de que João foi membro
ao batismo como uma exigência de conversão
de uma comunidade essênia estabelecida na área
(v.
ao redor do rio Jordão.
M c K n ig h t ) . I s s o
foi defendido energicamente,
apesar da citação contínua de textos como Orácu los sibilinos (4.165) e Epícteto (Ds, 2.9.19). Além
A comunidade de Qumran funcionava
à
parte
do culto no templo e considerava os sacerdotes
disso, podemos apresentar os seguintes argu
maus e impuros. Assim, os únicos rituais dispom'-
mentos contra a ideia de que o batismo judeu de
veis eram os banhos e as purificações cerimoniais
prosélitos foi o antecedente básico do batismo de
descritas no
João ou do batismo cristão. Não existe nenhuma
integrada ao seu chamado ao arrependimento e
menção a batismo de proséUtos no
at,
em Filo ou
à
at.
A prática do batismo por João,
renovação, seria um bom complemento. A co
em Josefo. Passagens como Testamento de Levi
munidade de Qumran estava fortemente voltada
14.6, na melhor das hipóteses, são ambíguas ou
para o cumprimento escatológico (v.
não levam a nenhuma conclusão. Por isso é du
g ia ) ,
vidoso que, na época de João, o batismo de pro
radora do caminho. A mensagem de João tinha
sélitos tenha existido, pelo menos como um rito
duplo foco; 0 chamado ao arrependimento e a
claramente análogo.
vendo-se,
à
e sc atolo
luz de Isaías 40.3, como prepa
expectativa e preparativo escatológicos (Mt 3.2;
A. Oepke assinala que o batismo judeu era po
Mc 1.4,7,8; Jo 1.23).
lítico e ritualista, ao passo que o de João era ético
Semelhantemente a comunidade de Qumran
e escatológico (semelhante a SI 51.7; Is 1.15,16;
reconhecia que, sem o verdadeiro arrependimento
4.4; Jr 2.22; 4.14; Ez 36.25; Zc 13.1). Do ponto
as abluções são incapazes de purificar a pessoa.
de vista gramatical, existe uma distinção impor
A pregação e o batismo de João também criaram
tante. O
utiliza (basicamente) as formas ativa
essa tensão (Mt 3.7-9). À semelhança dos sectá
e passiva de baptõ e baptizõ, ao passo que textos
rios de Qumran, João não entendia que a água
que se referem ao batismo judeu de prosélitos
purificasse sem haver arrependimento (Mt 3.11;
empregam, na maioria das vezes, formas médias
Lc 3.7). As práticas batismais de João estão
ou reflexivas
mais próximas das purificações cerimoniais de
nt
(O e p k e ,
p. 530-5). Desse modo, o
que era autoadministrado no judaísmo era visto,
Qumran que do batismo judeu de prosélitos. Não
no cristianismo primitivo, mais como um ato de
devemos, contudo, perder de vista a distinção
Deus e de entrega a ele.
principal entre João e Qumran; enquanto o rito
É especialmente significativo que o batismo
da comunidade de Qumran era autoadministra-
de João foi recebido por judeus, não pelos gen
do e praticado diariamente (ou frequentemente)
tios. João exigiu que os fariseus se arrependes
e seria mais bem classificado como “purificações
sem moralmente e se purificassem. É claro que
cerimoniais” , o batismo de João era um rito de
0 batismo judeu de prosélitos servia como rito
iniciação realizado uma única vez.
de iniciação para os gentios, mas os judeus, uma
3.3
A importância do batismo de João. Não
vez que já eram o povo de Deus, não precisavam
temos de necessariamente concluir que João esta
do rito. Se o batismo de João se desenvolveu a
va buscando converter o povo numa comunidade
partir de práticas judaicas com os prosélitos, ele
messiânica. Pelo contrário, ele estava interessado
o transformou significativamente.
em despertar uma consciência messiânica dentro
3.2
As ablações de Qumran como anteceden dos parâmetros de um arrependimento genuíno.
tes do batismo de João. Uma alternativa melhor
Não teve precedentes o chamado de João aos que
de ambiente para o batismo de João pode ser en
haviam nascido judeus para um batismo singu
contrada nas purificações cerimoniais praticadas
lar. Ele insistia em que a linhagem ancestral não
161
B a t is m o i : o s E v a n g e l h o s
era apropriada para garantir o relacionamento da
batizado, aparentemente porque o batismo deixa
pessoa com Deus. 0 novo compromisso era cele
implícito que a pessoa tem pecado do qual deve
brado solenemente no batismo. Não há provas de
se arrepender. João parece reconhecer a própria
que João tenha permitido que os que se tornaram
pecaminosidade, em comparação com Jesus, e observa que os papéis de ambos deviam ser tro
seguidores de Jesus fossem rebatizados. Os autores dos Evangelhos enfatizam os elos
cados — Jesus é quem deveria estar batizando
entre o início que Jesus dá a seu governo messiâni
João. A resposta de Jesus indica que ele entendia
co e a pregação e o batismo de João. Seria errôneo
a lógica do raciocínio de João, mas ainda assim, e
entender o batismo de João como perfeitamente
por um motivo diferente, pede para ser batizado.
análogo ao batismo cristão primitivo, embora os
Teologicamente, o batismo de Jesus o identifica
autores dos Evangelhos não se deem o trabalho de
como 0 servo messiânico que se mostra solidário
estabelecer uma distinção entre o batismo de João
com seu povo. Como seu representante, ele veio
e o batismo cristão primitivo. O batismo cristão
“cumprir toda a justiça” (Mt 3.15). No Evangelho
primitivo era um rito óbvio de iniciação na igreja,
de Mateus, “justiça” refere-se àqueles que são
embora mantivesse a ênfase na pureza e na puri
virtuosos e cumpridores da Lei, obedientes e fiéis
ficação morais (At 2.38). João agia a partir do seu
aos mandamentos de Deus (v.
enfoque, que era o da j u s t iç a pela perspectiva do a t
apresenta Jesus como aquele que cumpre profe
P
r z y b y l s k i)
. Mateus
e, aparentemente, dentro de um arcabouço análo
cias específicas, bem como temas bíblicos mais
go ao de Qumran, onde o batismo era considerado
gerais. Agora ele cumpre as exigências morais da
tanto um meio de realizar a purificação necessária
vontade de Deus. Ao fazê-lo, identifica e sanciona
quanto um sinal de arrependimento. Conquanto
o ministério de João como divinamente determina
haja óbvias ligações entre João e a igreja primitiva,
do e sua mensagem como digna de toda atenção.
devemos propor cautelosamente um relacionamen
Jesus deu início ao seu ministério com a mes
to de dependência. De fato, embora o batismo não
ma exigência de arrependimento, confirmando a
tenha sido parte do ministério de Jesus, no início
obra batismal de João. Contudo, há uma diferen
ele permitiu que seus discípulos continuassem a
ça importante; Jesus batizaria com fogo e com
prática (Jo 3.22), embora mais tarde aparentemen
o Espírito (Mt 3.11; Lc 3.16). A relação entre o
te tenha descontinuado o rito (Jo 4.1-3). 0 minis
batismo de água e o batismo do Espírito veio a
tério de João apontava para o futuro, esperando o
ter importância maior nas cartas e em Atos, mas
reino vindouro (v.
sua relevância no relato dos Evangelhos mostra,
r e in o
de
D
eus) ,
ao passo que o
ministério de Jesus celebra o estabelecimento do
conclusivamente, que Jesus jamais pensou no ba
reino no tempo presente.
tismo como um ato meramente mecânico.
4. O batismo de Jesus
Quando os filhos de Zebedeu pediram a Jesus
4.2 4.1
O batismo com o qual Jesus é batizado.
Jesus é batizado por João. 0 batismo de para se sentar ao lado dele, um à esquerda e o
Jesus pelas mãos de João Batista é explicado com
outro à direita (Mc 10.35-39), um pedido que evi
certos detalhes em Mateus 3.13-17, brevemente
dentemente veio da mãe deles (cf. Mt 20.20,21),
relatado em Marcos 1.9-11, mencionado em Lu
Jesus fez referência ao ato de beber um cálice
cas 3.21,22 e deixado implícito em João 1.29-34.
amargo e ser batizado, cada ato fazendo alusão a
De acordo com todos os quatro relatos, o batismo
algum tipo de aflição física, que, declarou Jesus,
tem ligação direta com a unção de Jesus com o
os filhos de Zebedeu iriam experimentar. Mas ele
Espírito e com a declaração de ele ser o Filho de
próprio ainda não tinha o direito de distribuir
Deus (v.
. É essa unção que inaugu
assentos no reino. 0 significado desse uso me
ra o ministério de Jesus, o qual se caracterizará
tafórico do batismo parece ser o de “destino dolo
pelo poder do Espírito do novo tempo (Mt 12.1;
roso” — nesse caso, a morte ou o martírio. Com
Lc 4.18; 11.20; At 10.38).
base na gramática, embora Marcos 10.38 deixe
F il h o de D eus )
Qual a relevância do batismo de João para
implícito que os irmãos não podem partilhar do
Jesus? Jesus precisou se arrepender? Só Mateus
mesmo destino de Jesus (uma vez que a morte de
nos conta que João tentou impedir Jesus de ser
Jesus é um momento singular do juízo de Deus),
162
B a t is m o i i : P a u l o
Marcos 10.39 dá um passo atrás e admite que eles
thought. Cambridge: Cambridge University Press,
também poderão morrer por causa de sua ligação
1980.
(s n tsm s ,
41.)
com Jesus (cf. Mc 8.34-38). Ao mesmo tempo,
D. S.
D
o ckery
a forma lucana dessa declaração (Lc 12.50) su gere que o “batismo” também inclui a persegui
B a t is m o
ção que conduziu à morte de Jesus e o interpreta
Com base em referências ao batismo encontradas
como uma tribulação escatológica.
nas cartas de Paulo, é patente que ele pressupõe
ii:
P aulo
4.3 A ordem de batizar dada por Jesus. Mateus
que todos os crentes em Cristo são batizados.
28.19 apresenta o batismo como parceiro do ensino
Um único exemplo bastará para demonstrar esse
no processo de fazer discípulos. “Fazei discípulos”
aspecto. A exposição que Paulo faz do batismo
.
em Romanos 6 começa citando uma objeção a
“Batizando-os” e “ensinando-lhes” são os dois pro
seu ensino sobre a justificação pela fé sem par
cedimentos associados com a consecução do man
ticipação das obras da lei: “Que diremos, então?
dado. Dessa maneira, a comissão de Mateus, que
Permaneceremos no pecado, para que a graça se
não é diferente do batismo no quarto Evangelho
destaque?” A essa objeção Paulo responde ape
(Jo 3.22-24), une batismo e discipulado.
lando para o significado do batismo: “ Nós, que
é o mandado do Cristo ressurreto (v.
ressurrhção)
Todavia, o mandamento da ressurreição tem
morremos para o pecado, como ainda viveremos
um significado mais amplo. É um compromisso
nele?”. Ele prossegue: “Todos nós, que fomos ba
com (“em nome do” é, lit., “para dentro do nome
tizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua
do", deixando implícito que se está fazendo uma
morte”. E conclui: “Assim, também, considerai-
aliança) o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e os
vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus,
três estiveram envolvidos no batismo de Jesus
em Cristo Jesus”. É evidente que as expressões
(Mt 3.16,17). Mateus quer que seus leitores sai
“nós, que morremos para o pecado” , “todos nós,
bam que Jesus assumiu seu lugar junto do Pai e
que fomos batizados em Cristo Jesus” e “consi-
do Espírito como objeto da adoração e do com
derai-vos mortos para o pecado” incluem Paulo
promisso dos discípulos. 0 emprego singular que
e todos os seus leitores. De outra maneira, cairia
Mateus faz da fórmula trinitária oferece, no lin
por terra seu argumento contra o suposto efeito
guajar mais formal da comunidade, um sumário
antinomiano da doutrina da justificação pela fé.
do que Jesus ensinou a seus discípulos acerca de
Exemplos semelhantes da pressuposição de que
Deus, instrução que deixara implícito um relacio
todos os cristãos são batizados podem ser vistos em Gálatas 3.26-28; Colossenses 2.12; ICorín-
namento único entre Jesus e o Espírito com o Pai. Ver também
c e ia d o
Senhor;
tios 12.13. A exposição acerca da ética batismal é
a d o r a ç ã o /c u lto .
encontrada em Colossenses 2.20— 3.15.
d jg : G e n t ile s ; R e p a n ta n c e .
Visto que Paulo havia recebido o batismo e B ib lio g r a fia .
B a d ia ,
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tinha motivos para acreditar que os demais cris
The Qumran baptism
tãos eram batizados, fica claro que o rito existia antes de sua
co nversão.
(A conversão de Paulo é
G ran d Ra
costumeiramente datada de quatro anos depois
&.
da morte de Jesus.) Uma vez que o batismo exis
B e a s le y -M u r ra y , G. R.
B e c k w ith , R . T. Baptism , n i d n t t [s.l.: s.n., s.d .]. v.
tia antes da conversão de Paulo, é razoável vê-
1.
lo como coexistente com o início da igreja. Essa
p.
143-61. ■ D aube,
D . G.
1956. ■ D u nn ,
conclusão está em harmonia com os dados neo
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de J o ã o
B a t is t a
(Mc 1.4-8), de Jesus (v. Jo 3.25,26;
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4.1-3], dos apóstolos a partir do dia de Pentecos
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tes (At 2.37-41] e da comissão missionária do Se
1991. ■ O epke,
nhor ressurreto, registrada em Mateus 28.19.
TDNT. [S.l.: S .n ., s.d .]. v. ski, B.
The New Testament and
Lon don : Athlone,
rabbinic Judaism. J.
D.
1,
p.
A.pdTTTu k t A .
529-46. ■
1. A linguagem e os atos do batismo
P rzybyl
2. Q batismo e Cristo
Righteousness in Matthew and his world of
163
D A I I b M U M. T A U L U
3. 0 batismo e o Espírito
shem = “nome”). O termo possui um sentido bem
4. 0 batismo e a igreja
elástico. Tem basicamente o significado de “com
5. O batismo e a ética cristã
relação a”, mas o contexto determina a exata co
6. O batismo e o Reino de Deus
notação. P. Billerbeck apresenta três ilustrações de seu uso em sua análise do batísmo em Ma
1. A linguagem e os atos do batismo
teus 28.19. 1) Quando os pagãos eram comprados
1.1 Batismo “em nome de Jesus”. Nas cartas de
por judeus como escravos, estes eram batizados
Paulo, assim como no livro de Atos, o batismo
“em nome da escravidão”, ou seja, com o objetivo
é tipicamente representado pelo batismo “ no
de serem feitos escravos; quando eram libertados,
nome” de Jesus. Isso reflete significativamente no
eram batizados “em nome da liberdade”, ou seja,
modo em que Paulo lida com as divisões na igreja
para a liberdade. 2) Um sacrifício de animal era
em Corinto. Ele cita o que seus membros estão
feito em nome de cinco coisas: em nome da ofer
dizendo: “Eu sou de Paulo” ; “Eu sou de Apoio” ;
ta (i.e., acerca de sua intenção, fosse holocausto,
“Eu sou de Cefas [= Pedro]” ; “Eu sou de Cristo”
oferta pelo pecado ou oferta pacífica); em nome
(ICo 1.12). Um tanto indignado, Paulo pergunta:
de Deus (por amor a ele e à sua glória); em nome
“ Será que Cristo está dividido? Foi Paulo crucifi
do fogo do altar (para que fosse devidamente ace
cado em vosso favor? Fostes batizados em nome
so); em nome do aroma suave (pelo prazer que
de Paulo?” A última indagação ecoa a linguagem
dava a Deus); em nome do bom prazer de Deus
batismal em nome de Jesus. No contexto, seu em
(em obediência à sua vontade). 3) Um israelita
prego sugere que seu uso normal é fazer da pes
pode circuncidar um samaritano, mas um sama-
soa uma seguidora de Jesus, a ponto de pertencer
ritano não pode circuncidar um israelita, porque
a ele, e de alguma forma estar envolvida com sua
os samaritanos circuncidam “em nome do monte
crucificação e desfrutar um relacionamento espe
Gerizim”, ou seja, com a obrigação de adorar ao Deus dos samaritanos, que é ali adorado
cial com ele. Tem havido muito debate em torno da expres
B illerb e c k ,
(S t r a c k -
p. 1054-5). À luz de tais dados, Biller
são “em nome de” — se ela reflete uma expressão
beck afirma: “ 0 batísmo estabelece as bases para
idiomática grega ou hebraica (e aramaica), pois
uma relação entre o Deus trino e o batízado, a
é vista nos três idiomas. W. Heitmüller demons
qual 0 último tem de afirmar e expressar, reconhe
tra que, enquanto a expressão eis to onoma (“no
cendo o Deus em cujo nome é batizado”.
nome”) não aparecia na literatura grega clássica,
Por isso, é evidente que os usos grego e he
era rotineira em documentos, com o senüdo de “a
braico da expressão “em nome” são notavelmen
crédito de” , analogamente a operações bancárias
te parecidos, especialmente quando aplicados ao
e vendas comerciais. Ele cita, com aprovação, A.
batísmo, e devem ter sido interpretados de modo
Deissmann, que define “no nome de [alguém]”
semelhante em círculos de fala grega e hebraica,
como expressão que denota “ o estabelecimento
a despeito da maior elasticidade de sentido no
da relação de pertencer a [alguém]”. Heitmüller
hebraico.
“ De modo geral, nosso vocábu
Às vezes, vê-se em Paulo uma expressão mais
lo ‘para’ reproduz adequadamente o sentido”
acrescenta:
breve, batismo eis Christon, que pode ser traduzi
p. 105). Ao empregar essa expressão,
da por “para dentíro de Cristo” ou “para Cristo” ,
naturalmente se segue o nome da pessoa a fa
que é possivelmente uma abreviação consciente
vor de quem a posse é entregue. De acordo com
da expressão em sua forma plena “em nome de
( H e it m ü l l e r ,
Heitmüller, então, o batismo em nome de Jesus
Cristo” (v. Rm 6.3,4; Gl 3.27). É significativo que
significa 0 estabelecimento da relação de perten
tanto a preposição grega eis quanto o prefixo he
cer a Jesus.
braico 1‘ podem ter o sentído de “com relação a”
Essa explicação é, contudo, rejeitada por al
e também um sentído final ou dativo de interesse,
guns estudiosos, a favor de uma origem hebraica
“para”
da expressão. Na literatura judaica, inclusive o a t ,
contexto ajudará a determinar a intenção do texto.
(e a g d ,
p. 228; b d b , p. 514-5). Em tais casos, o
com frequência deparamos com um equivalente
Um elemento importante de interpretação
à expressão grega, a saber, l‘shêm (/* = “para”.
surge associado a essa fórmula. Assinalamos a
164
B a t is m o i i : P a u l o
afirmação de A. Deissmann de que “em nome”
cenário de Ef 5.14, texto com frequência interpre
estabelece “a relação de pertencer a [alguém]”.
tado como cântico batismal dirigido aos cristãos
Da mesma forma, Billerbeck afirma que o batis
recém-iniciados; v. comentários). Entretanto, ne
mo em nome do Deus trino “estabelece as bases
nhuma dessas realidades espirituais pode ocorrer
para uma relação entre o Deus trino e o batizado”.
mediante a simples realização dos atos simbólicos
Quem é visto como aquele que toma a iniciativa
apropriados. Elas dependem dos atos divinos rea-
de estabelecer esse relacionamento? Na aplicação
hzados uma única vez em Cristo, de acordo com
do batismo. Deus e os seres humanos estão en
0 evangelho, e da ação divina nos crentes quan
volvidos. 0 batizador invoca o nome de Jesus so
do eles atendem ao chamado de Deus no evan
bre o batizando, e o batizando clama pelo nome
gelho. Por esse motívo, o uso que Paulo faz da
do Senhor enquanto é batizado (quanto ao pri
linguagem batísmal (em ICo 10.1-12) indica uma
meiro,
Tg 2.7; quanto ao último, v. At 22.16).
situação em que os leitores imaginavam que o ato
E provável que, em Romanos 10.9, Paulo tenha
sacramental transmitia poder eficaz e operante,
ambos os aspectos em mente. É universalmente
não importando as escolhas morais. Paulo, no en
reconhecido que “Jesus é Senhor” é a confissão
tanto, insiste em que os “ sacramentos” do
primitiva de fé em Cristo que era feita por oca
duziram ao juízo uma geração idólatra e imoral.
V.
a d o r a ç ã o / culto ) .
con
Tendo essas considerações em mente, passe
sião do batismo. Dela se desenvolveram os de mais credos da igreja (v.
at
mos a examinar as afirmações que Paulo faz em
Mas a
suas cartas acerca da relevância do batismo.
salvação concedida mediante a confissão de fé ocorre em virtude do ato divino, ocorrido uma única vez, da morte e ressurreição de Cristo e de
2. O batismo e Cristo
suas ações na vida daqueles que creem. A priori
0 batismo “em nome de Jesus” distingue-se das
dade da ação divina aplica-se à reconciliação do
abluções de todas as outras religiões, em virtude
mundo em Cristo e à reconciliação de cada crente
de sua relação com Cristo. Os crentes são unidos
que a aceita (2Co 5.18-21). Por esse motívo, no
com Cristo em seus atos redentores de morte e
batismo o Senhor se apropria do batizando, e o
ressurreição e, assim, passam da velha vida para
batizando tem a Jesus como Senhor e se submete
a nova. 2.1
a seu senhorio. 1.2
Revestindo-se de Cristo. A relação entre
Simbolismo e realidade. É importante 0 batismo e a união com Cristo é indicada não
observar que Paulo jamais se refere ao batismo
apenas mediante sua ministração “ no nome de
como um rito meramente exterior, seja como
Jesus”, mas também na declaração batismal bá
“simples símbolo” de confissão de fé em Cristo,
sica de Paulo, Gálatas 3.26,27: “Todos sois filhos
seja como rito que efetua aquilo que simboliza.
de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos
Reconhecidamente, para Paulo e para toda a
os que em Cristo fostes batizados, de Cristo vos
igreja primitiva, é clara a natureza simbólica do
revestistes”. O formato da análise é determinado
batismo. Em sua forma mais óbvia, simboliza a
pelo contexto da discussão sobre quem seriam os
purificação do pecado (cf. At 22.16). E esse sig
filhos de Abraão, pois a promessa divina de que
nificado parece claro numa pericope que é mais
ele herdaria o mundo por vir foi feita ao patriarca
bem compreendida como reflexo de uma antiga
e a seus descendentes (Rm 4.16). Para os judeus,
prática batismal cristã e de sua relevância para
a resposta era clara: eles são os descendentes de
a congregação (Ef 5.25-27: v. comentários, esp.
Abraão, e quem quer que seja incluído com eles
ad loc.). 0 ato de tirar as roupas para o
tem de receber o sinal da aliança (circuncisão)
batismo e vesti-las depois do batismo proporcio
e viver em obediência à Lei de Moisés. De sua
na o símbolo de “desvestir-se” da velha vida e
parte, Paulo sustenta que a “descendência de
“vestir-se” da nova vida em Cristo e, até mesmo,
Abraão” , a quem a promessa se referiu, é Cristo
vestir-se de Cristo (Gl 3.27; Cl 3.9,12). 0 ato de o
e todos os que estão unidos a ele. Daí a pertinên
batizando mergulhar na água e emergir simboliza
cia de Gálatas 3.26: “Todos sois filhos de Deus
vividamente o sepultamento e a ressurreição de
pela fé em Cristo Jesus”. São filhos não apenas
Cristo (Rm 6.3,4; os atos batismais compõem o
de Abraão, mas de Deus. Pois estão “em Cristo”,
L in c o l n ,
165
o Filho único de Deus. Isso ocorre “mediante a fé” (Gl 3.26,
asa),
“porque todos os que em Cris
Antes de tudo, deve se observar que nessa passagem Paulo não está apresentando basica
to fostes batizados, de Cristo vos revestistes”
mente uma explicação teológica da natureza do
(G13.27).
batismo, mas expondo seu significado para a
Já anahsamos o simbolismo dessa passagem.
vida. Está preocupado em refutar a acusação de
0 ato de despir a roupa velha e vestir roupas no
que a doutrina da justificação pela fé incentiva
da transforma
0 pecado. Por isso, ele aconselha a nós, “que
ção de caráter (cf., e.g.. Is 52.1; 61.10; Zc 1.1-5). O
morremos para o pecado”, a não mais vivermos
simboUsmo é peculiarmente apropriado ao batís
pecando. “Mortos para o pecado” é o sentido
vas é uma figura frequente, no
at,
mo cristão dos tempos apostólicos, visto que nor
de nosso batismo. Quando fomos “batizados
malmente ocorria por imersão e, aparentemente,
em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte”
estando a pessoa nua. O batismo judeu de pro
(Rm 6.3; ecoando Gl 3.27). Essa é a conseqüência
sélitos insistia nisso. Quando as mulheres eram
de se tornar um só com o Senhor, que morreu e
batizadas, os rabinos ficavam de costas para elas,
ressuscitou para conquistar o pecado e a morte.
enquanto elas entravam na água até a altura do
Ademais, “fomos sepultados com ele na morte
pescoço. Então eram feitas perguntas, e elas res
pelo batismo”. Observe-se que Paulo não disse:
pondiam. Os cabelos tinham de estar soltos, para
“Fomos sepultados como ele” , mas “ sepultados
garantir que nenhuma parte do corpo ficasse sem
com ele”. Ou seja, fomos colocados com ele em
ser molhada pela água. Esse aspecto reaparece em
seu sepulcro, em Jerusalém! De modo que a mor
Hipólito, Tradição apostólica, c. 215 d.C. Mais tar
te experimentada por Cristo na cruz foi também
de, Cirilo de Jerusalém escreveu um comentário,
a nossa morte. Isso imphca, no que diz respeito à
no qual dizia ser apropriado estar nu para o ba
morte de Cristo pela perspectiva do mundo, uma
tismo, pois Jesus morreu na cruz nessa condição.
forma diferente daquela que seria esperada.
Mais importante que o simbolismo é a realida
Quando lemos em Romanos 5 que Cristo
de exposta por meio dele: o batizando “despiu”
morreu por nós enquanto ainda éramos pecado
a sua velha vida e “vestiu” a Cristo, tornando-
res, pensamos em Cristo como nosso substituto.
se um com ele e, desse modo, qualificando-se
Aqui, entretanto, Paulo diz que Cristo é nosso re
a participar da vida no reino de Deus. As duas
presentante. Se ele morreu na cruz como nosso
declarações de Gálatas 3.26,27 se complemen
representante e se essa morte foi aceita, então foi
tam. Gálatas 3.26 afirma que todos os crentes
aceita como nossa morte, de maneira que, quan
são filhos de Deus “ mediante a fé” [ar a ), e em
do ele morreu, nós morremos (v.
Gálatas 3.27 a entrada na faimlia de Deus está
de) .
associada e baseada na união com Cristo e no
um passo além, unidos com ele em sua morte
fato de ele partilhar com o batizando a própria
pelo pecado, ressurgimos com ele para viver a
C r is t o ,
m orte
Ele foi um representante de verdade! Indo
condição de Filho de Deus. Esse é um exemplo
vida de ressurreição. Por meio da fé expressa no
paulino em que o apóstolo associa fé e batísmo
batísmo, o que foi feito fora de nós [extra nos)
de tal maneira que a compreensão teológica é a
torna-se fé eficaz dentro de nós. Em Cristo, so
única e a mesma tanto da fé que se volta para o
mos filhos reconciliados de Deus.
Senhor em busca de salvação quanto do batísmo mediante o qual a fé é declarada. 2.2
Um elemento adicional, porém, está envolvi do nessa exposição do batismo. As duas últimas
União com Cristo na morte e na res frases ecoam a afirmação de Paulo acerca do
surreição. Como 0 batismo possui o sentido de
evangelho em 2Coríntios 5.14,15: “Concluímos
união com Cristo, Paulo via nesse ato algo que
que, se um morreu por todos, logo, todos mor
se estende à união com Cristo em seus atos re
reram. E ele morreu por todos, para que os que
dentores, pois 0 Cristo que salva é, para sempre,
vivem não vivam mais para si mesmos, mas para
o redentor antes crucificado e agora ressurreto.
aquele que por eles morreu e ressuscitou”. “ Os
Essa é a mensagem da exposição que Paulo faz
que vivem” são aqueles que, tendo aprendido
do batismo em Romanos 6.1-11 (v. uma análise
que Cristo morreu como seu representante, com
da interpretação desse texto em
gratidão confiam nele, professam fé no batismo.
W
edderburn)
.
166
B a t is m o h : P a u l o
partilham da vida de ressurreição de Cristo e vi
em novidade de vida”. Dessa forma, Paulo apre
vem em Cristo, para a glória dele.
senta o motivo pelo qual o cristão nunca pode,
Esse aspecto do batismo, o fim da vida sem
intencionalmente, viver “no pecado, para que a
Deus e o começo da vida com Deus, é declara
graça se destaque”. Na morte de Cristo, os cren
do explicitamente em Colossenses 2.11,12. À
tes morreram para o pecado; na ressurreição de
semelhança da passagem de Gálatas, o texto re
Cristo, eles ressurgiram, a fim de viver para Deus,
futa uma tentativa de persuadir os cristãos a se
que os redimiu em Cristo (cf. 2Co 5.15).
submeterem à circuncisão. No entanto, Colos senses 2.11,12 adota uma abordagem diferente,
3. O batismo e o Espírito
enfatizando que é desnecessário o rito de Israel,
Uma consequência importante do surgimento do
pois em Cristo os crentes sofreram uma circunci
pentecostalismo moderno e do movimento caris
são mais drástica: "Nele [Cristo] também fostes
mático é levantar a questão da relação entre o
circuncidados com a circuncisão que não é feita
rito do batismo e o batismo no Espírito (v.
por mãos humanas, o despojar da carne pecami
to
nosa, isto é, a circuncisão de Cristo”. Evidente
entende que o batismo no Espírito é radicalmente
mente, Paulo retrata a morte de Cristo como uma
distinto do batismo na água, e é naquele que re
circuncisão. 0 ato de cortar fora o prepúcio do
cai a ênfase. 0 ponto de vista é característico dos
órgão sexual masculino é substituído pelo rasgar
dois grupos, embora isso ocorra por motivos dife
de todo o corpo físico de Cristo. Nele, isso acon
rentes (v. análise detalhada em
teceu para nós; aconteceu no batismo, no sentido
é se Paulo fez tal distinção.
Sa n t o )
E s p ír i
. A maioria dos membros desses grupos
D unn)
. A questão
de batismo como nossa conversão a Deus pela
W. H. Griffith Thomas expressa uma dúvida
fé. Fomos “ sepultados com ele no batismo”. Isso
comumente ouvida hoje em dia: “ Como pode algo
não é tanto um avanço em relação ao ensino de
que é físico ter efeito naquilo que é espiritual?”
Paulo registrado em Romanas 6, mas um escla
Com base nessa questão, alguns intérpretes sus
recimento do que ele escreveu ali. Quem ouve o
tentam que passagens como Romanos 6.1-11,
evangelho, dá atenção a ele, crê nele e o confessa
Gálatas 3.26,27, Colossenses 2.11,12, Efésios 5.26
no batismo, termina a velha vida sem Deus e co
e Tito 3.5-7, todas unindo o batismo a “efeitos
meça uma vida no Cristo ressurreto. Colossenses
espirituais”, se referem ao batismo do Espírito,
2.12 deixa claro: “ [Fostes] sepultados com ele no
não ao batismo de água, dessa forma eliminando
batismo, com quem também fostes ressuscitados
a maioria das referências de Paulo ao batismo.
pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou den
Mas tal questionamento da relação entre o físico
tre os mortos”. Qualquer eficácia no batismo se
e 0 espiritual suscita, logicamente, a questão da
deve ao poder de Deus atuante “pela fé”. Paulo
ênfase paulina na encarnação (e.g., Rm 8.3) e na
está claramente falando de batismo-conversão, o
morte física de Cristo, que resulta na “redenção
qual incorpora o evangelho e a resposta do con
do nosso corpo” (Rm 8.23). O corolário desse
vertido a essa mensagem. Alguns estudiosos en
argumento a favor do batismo como unicamente
tendem que Paulo emprega o verbo “ selar” (em
obra do Espírito, sem o batismo na água, é tornar
2Co 1.22) para incluir aquele último elemento,
os cristãos paulinos espiritualmente sublimes de
quando Deus corrobora a resposta humana.
mais e destituídos de qualquer relação com práti
Contudo, um terceiro aspecto é inerente ao ba
cas cristãs primitivas (cf., e.g., At 18.8; IPe 3.21).
tismo conforme exposto por Paulo em Romanos
Gálatas 3.26,27 associa o batismo à união com
6. O batismo que estabelece a identificação dos
Cristo. Agora, Paulo deixa claro que as pessoas
crentes com Cristo em sua morte e ressurreição
podem estar “em Cristo” apenas mediante o Es
e 0 fim da vida longe de Deus em troca da vida
pírito Santo. Isso é declarado em Romanos 8.9-11
em Cristo requer a renúncia da vida imprópria
e pressuposto em 2Coríntios 3.17,18. Uma vez
para o novo tempo. Quando se remove a oração
que para Paulo o batismo em água e o batismo
intercalada inserida em Romanos 6.4, a passagem
no Espírito são idealmente a mesma coisa (as
diz: “ Fomos sepultados com ele na morte pelo ba
sim como a conversão e o batismo fazem parte
tismo, para que [...] assim andemos nós também
de um único processo), está claro que o apóstolo
167
faz uma associação entre o batismo, de um lado,
Em Gálatas 3.26,27, o pensamento de Paulo salta
e, de outro, a unidade com Cristo e tudo que de
imediatamente da ideia de “vestir” a Cristo no
corre disso. Por isso, a única referência nas car
batismo para a ideia do corpo em que perdem
tas de Paulo ao batismo no Espírito (ICo 12.13)
força todas as distinções entre seres humanos. A
com certeza diz respeito ao batismo no sentido
mesma relação é visível no apelo ao comporta
que Paulo utiliza em outras passagens: "Todos fo
mento digno de batismo encontrado em Colossen
mos batizados por um só Espírito para ser um só
ses 3.5-15, em que a figura de linguagem batismal
corpo” , no sentido de que foram desfeitas todas
encontrada em Gálatas 3.27 é extensamente apU-
as barreiras raciais e sociais. Isso é precisamen
cada: “Já vos despistes do velho homem com suas
te declarado em Gálatas 3.26-28 em relação ao
ações, e vos revestistes do novo homem, que se
batismo.
renova para o pleno conhecimento, segundo a
A segunda metade de ICoríntios 12.13 é, em
imagem daquele que o criou [i.e.. Cristo, a ima
geral, traduzida por “e a todos nós foi dado beber
gem perfeita de Deus]; nesse caso, não há mais
de um só Espírito” (v.
quanto a uma re
grego nem judeu, nem circuncisão nem incircun
ferência ao batismo nessa passagem). Com toda a
cisão, bárbaro, cita, escravo ou homem livre, mas,
probabilidade, o texto se refere ao derramamento
sim. Cristo, que é tudo em todos”.
C u m m in g
do Espírito nos últimos dias (Is 32.15; J1 2.28,29)
A pergunta que com certa frequência tem sido
e pode ser parafraseado assim: “Todos nós rece
feita é: “Para qual igreja o batismo dá entrada?
bemos a maré inundante do Espírito” (i.e., todos
Para a local, ou para a universal? Para a visível,
fomos saturados com o Espírito). O fato de essa
ou para a invisível?”. A pergunta é, em sua es
experiência pertencer ao início da vida cristã ofe
sência, um tanto moderna, e teria sido inconce
rece uma pista para uma consideração importan
bível para Paulo. A
te: a conversão não é apenas resultado de decisão
do povo de Deus, cuja “vida está escondida com
humana, mas é possibiUtada pelo Espírito. Ele
Cristo em Deus” (Cl 3.3). O batismo é um ato vi
igreja
é a manifestação visível
não é apenas o fruto do batismo-conversão: é o
sível com significado espiritual. É, portanto, bem
verdadeiro batizador, o agente que faz com que
apropriado como forma de entrada numa comu
0 batismo seja aquilo que deve ser: o ingresso na
nidade visível do povo de Deus e no corpo que
vida em Cristo.
transcende qualquer local ou momento. Apresen
Uma Unha de raciocínio semelhante acha-se
tar uma expressão satisfatória dos elementos ex
em Tito 3.5: “ Não por méritos de atos de justiça
terior e interior, quer do batismo, quer da igreja,
que houvéssemos praticado, mas segundo a sua
é um perpétuo problema pastoral. Esse dilema,
misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar da
contudo, desafia os crentes a se reformar de acor
regeneração e da renovação reahzados pelo Espí
do com a Palavra de Deus, em vez de tolerar o
rito Santo”. A última oração pode ser traduzida
descuido na doutrina e na prática.
assim: “Ele nos salvou [...] mediante o lavar ca racterizado pelo novo início e a renovação que o
S. O batismo e a ética cristã
Espírito Santo opera”. 0 texto prossegue, dizendo
Sem dúvida, é significativo que a mais longa ex
que ele “ derramou [o Espírito] amplamente sobre
posição do batismo nas cartas de Paulo seja fei
nós” , que ecoa Joel 2.28.
ta com um propósito ético. Romanos 6.1-14 está repleto de apelos a uma vida em conformidade
4. O batismo e a igreja
com a redenção de Cristo, vida que se encontra
Desde o início, o batismo nas comunidades do
no cerne do evangelho: “ Nós, que morremos para
NT era entendido como um rito do grupo, bem
0 pecado, como ainda viveremos nele? [...] fo
como do indivíduo. Já vimos que, para Paulo, era
mos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados
axiomático esse entendimento sobe o batismo, e
na sua morte [...] assim andemos nós também
em Corinto apela-se ao batismo como forma de
em novidade de vida. [...] a nossa velha natureza
protesto contra o individualismo levado ao extre
humana foi crucificada com ele, para que o corpo
mo. Ser batizado em Cristo era ser batizado no
sujeito ao pecado fosse destruído, a fim de não
corpo de Cristo (ICo 12.13; v.
servirmos mais ao pecado. [...] Assim, também.
c o r p o de
C risto ) .
168
B a t is m o i i : P a u l o
considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos
nova criação: quando Jesus ressuscitou dos mor
para Deus, em Cristo Jesus”.
tos, a nova criação veio a existir nele, por isso
Esse apelo é desenvolvido de modo mais exten
Paulo pôde dizer: “Se alguém está em Cristo, é
so em Colossenses 2.20—3.14. Aí o fato de que o
nova criação; as coisas velhas já passaram, e sur
crente morreu e ressuscitou em Cristo é não ape
giram coisas novas” (2Co 5.17). A existência cris
nas motivo para uma vida semelhante à de Cristo,
tã não é nada menos que a vida na nova criação.
mas também a base para o crente realizar o padrão
Por ser assim, a vida cristã é uma peregrina
batismal de morrer para o pecado e ressurgir para
ção rumo ao reino consumado, no qual o crente
a justiça: “Eliminai vossas inclinações carnais:
ingressa por meio da ressurreição final. Por isso,
prostítuição, impureza, pabcão, desejo mau e ava
Paulo declara, em Romanos 6.5: “Se fomos uni
reza, que é idolatria; [...] mas, agora, livrai-vos de
dos a ele na semelhança da sua morte, certamente
tudo isto [...] pois já vos despistes do velho ho
também o seremos na semelhança da sua ressur
mem com suas ações, e vos revestistes do novo
reição” — naturalmente, agora e, por fim, no dia
homem [...]. Então [...] revesti-vos [...] de compai
de sua vinda nesse reino. Isso é explicado de ma
xão [...]. E, acima de tudo, revesti-vos do amor”.
neira mais completa em ICoríntios 15 — o âmago
Isso levou G. Bornkamm a afirmar que, nos
dessa passagem acha-se em ICoríntios 15.20-28.
escritos de Paulo, “o batismo é a apropriação da
É interessante que isso significa que o batismo, à
nova vida, e a nova vida é a apropriação do ba
semelhança da c e ia
tismo”
1958, p. 50). Para dar forma
os dois polos da redenção: de um lado, a morte e
prática a esse princípio, a igreja primitiva elabo
a ressurreição de Jesus; de outro, a vinda futura
rou um sistema de ética que se reflete nas seções
de Jesus. Estando entre um e outro, o cristão olha
práticas de várias cartas do
para trás e contempla a salvação realizada; olha
(B
ornkamm
,
nt
,
especialmente as
Senh o r,
do
situa o crente entre
de Paulo. A essa tradição Paulo se refere even
para a frente e vê a salvação a se consumar; no
tualmente e de forma notável em Romanos 6.17:
presente, olha para o Senhor ressurreto em busca
“ Graças a Deus porque, embora tendo sido es
de graça, a fim de persistir até alcançar o alvo e
cravos do pecado, obedecestes de coração à for
viver dignamente de tal amor infinito.
ma de ensino a que fostes entregues”. Com base
Ver também
C r is t o ,
nessa declaração, fica evidente que os crentes a
r it o
quem eram dirigidas essas palavras foram instruí
ç ã o ; a d o r a ç ã o /c u lto .
dos nos elementos do viver cristão que decorrem
Sa n to ; “
D Pc:
em
m o r t e d e ; e s c a t o l o g ia ;
C r is t o ” ;
c e ia
do
Se nh o r;
E s p í
r e s s u r r e i
c ir c u n c is ã o ; c r ia ç ã o e n o v a c r ia ç ã o ; m o r r e r e
do batismo (v. tb. ITs 4.1-7; 2Ts 3.6,11-13).
r e s s u s c it a r c o m
6. O batismo e o reino de Deus
E iB L io G R A n A . B a r t h , M .
O batismo de João Batista foi essencialmente um
Zollikon-Zürich: Evangelischer Verlag, 1951. ■ B e -
rito escatológico, prenunciando a vinda do Mes
a s le y - M u r r a y ,
sias, 0 dia do Senhor e o
London:Macmillan, 1962. ■Bieder, W.ßaTrri^oj
r e in o d e D eu s. 0
batismo
C r is t o ;
v id a e m o r t e .
Die Taufe ein Sakrament?
G. R. Baptism in the New Testament. k tA .
de Jesus pelas mãos de João Batista viu a inaugu
EDNT [s.L: s.n., s.d.], v. 1. p. 192-6. •
ração daquele reino: os céus se abriram, o Espíri
Das Ende des Gesetzes, Paulusstudien, Gesammel
B o rn k a m m ,
G.
to desceu sobre Jesus, a voz de Deus foi dirigida a
te Aufsätze I. München: Kaiser, 1958. • ______ .
ele, declarando que ali estava o Servo messiânico
Early Christian experience. London;
do Senhor (cp. Mc 1.11; cf. SI 2.7; Is 42.1). Seu
B u r n is h ,
serviço ao reino atingiu o clímax com sua morte
1985. ■ C a r l s o n , R. P. The Role of Baptism in Paul’s
scm ,
1969. •
R. The meaning of baptism. London:
spc k ,
e ressurreição. Paulo entendeu o batismo cristão
Thought. Int, v. 47, p. 255-66, 1993 ■ C a r r i n g t o n ,
como a participação naquela inauguração do rei
P. The primitive Christian catechism: a study in the
no de Deus por intermédio de Jesus.
batizan
Epistles. Cambridge: Cambridge University Press,
do partilha da morte e ressurreição do Senhor,
1940. ■ C l a r k , N. An approach to the Theology of
0
as quais deram im'cio a um novo tempo. Desse
the sacraments. London:
modo, o crente vive agora nesse novo tempo.
Early Christian baptism and the creeds. London;
Paulo expressa a mesma verdade em termos de
Burns, Oates & Washburn, 1950. ■
169
scm ,
1956. ■ C r e h a n , J. H. C u llm an n ,
0.
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e
Baptism in the New Testament. 1950.
■ C um ing , G.
12.13.
NTS, V.
27,
283-85, 1981.
p.
Baptism in the Holy Spirit. F lemington , W . F.
baptism.
procedimento contradizia o fato de terem mor
C hicago: Regnery,
J. Epotisthemen 1 •
rido para o pecado quando foram batizados na
C orinthians
D unn,
J.
L on d on ; scm ,
morte de Cristo. Em ICoríntios 12.12,13, o batis
D . G.
1970.
mo deles por um só Espírito em um só
■
The New Testament doctrine of
c o r po
de
significava que os vários dons dos corin
The
tios deveriam servir ao bem comum. Em Gála
Lon d on : Independent,
tas 3.27,28, o batismo em [para dentro de] Cristo
1948.
L on d on : sp ck ,
church and the sacraments.
C r is t o
• F o r s y t h , P. T.
a fresh
é visto como algo que opera uma unidade que
attempt to understand the rite in terms o f Scrip
anula as diferenças entre judeus e gregos, escravos
1953.
■ G ilmore,
A.,
Christian baptism:
org.
e livres, homens e mulheres (v.
ture, history an d theology. Lon d on ; Lutterw or
b a t is m o i i ) .
Mateus
Im Namen Jesu, Eine
registra a ordem dada pelo Senhor ressurreto de
Sprach-und religionsgeschichtliche Untersuchung
fazer “ discípulos de todas as nações, batizando-os
zum Neuen Testament, speziell zur altchristlichen
em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”
1959. ■
th,
Taufe.
W.
H e it m ü lle r ,
(Mt 28.19;
1903.
Göttingen: V an den hoeck & Ruprecht,
V.
b a t is m o i ) .
Existem aqui, então, indi
a
cações fundamentadas nas Cartas e nos Evange
study in the doctrine o f ba ptism an d confirm ation
lhos de que o batismo foi, desde data bem antiga,
in the N e w Testament an d the Fathers. L on d on /
o rito universal de admissão na igreja.
{f rla n t ,
1.2.) ■ L ampe ,
The seal of the Spirit:
G.
N e w York; L o n gm an s G reen,
Ephesians. ra y,
1951.
1990.
D allas; W o rd ,
J. Christian baptism.
T.
Atos dos Apóstolos relata aqui e ali essa práti
42.) ■ M ur
ca em forma narrativa. Em outras passagens dos
• L incoln ,
(w b c ,
Philadelphia;
A.
escritos posteriores do
Com
Presbyterian C h u rch ],
1952.
line theology. O xford; B lack w ell,
a study
1964.
in
■W
que envolve indícios de ritos associados ao ato de
agner ,
banhar-se, confirmados pela primeira vez só nos
the
séculos
p ro b le m o f the Pauline doctrine o f baptism in Ro
1967.
II
e
III.
Os mais antigos escritos pós-escriturísticos
m ans 6:1-11 in the light o f its religious-historical parallels. Edinburgh: O liver & Boyd,
existem algumas claras
motivo de controvérsia entre os estudiosos, visto
P au
Pauline baptism and the pagan mysteries:
G.
,
alusões a ele. A identificação das últimas pode ser
■ S chnackenburg , R.
Baptism in the thought o f St. Paul:
nt
referências ao batismo e várias outras possíveis
m ission on Christian Education [T h e Orthodox
acrescentam alguns detalhes acerca de como o
■ W e stu
batismo era entendido e praticado na época, mas
dies in Pauline th eology against its G raeco-R om an
só com Justino Mártir, em meados do século ii,
d d erb u rn ,
A. J.
M.
Baptism and resurrection:
b ackgroun d, {w v n t , ck,
Tübin gen ; M o h r Siebe
encontramos uma descrição ritual relativamente
soteriology of the myste
completa da prática batismal. E só no final do
1/44.)
1987. ■ ______ . T h e
NovT,
ries an d Pauline baptism al theology. p.
53-72, 1987.
1960.
29,
século II vamos encontrar uma reflexão teológica
The biblical doc
sólida, no tratado De baptismo, de Tertuliano. Os
L on d on : H o d d e r & Stoughton,
primeiros dados patrísticos sobre a iniciação cris
• W
trine o f initiation.
v.
hite,
R. E. O.
Baptism, eu-
tã completam-se com a antiga ordem eclesial que
charist, ministry. Geneva: wcc, 1982. • ______ .
a maioria dos estudiosos do século xx identificou
One Lord, one baptism. London;
1960. ■ Y s e -
com a Tradição apostólica, de Hipólito. TertuUano
j. Greek baptismal terminology: its origins
e Hipólito também fornecem a primeira prova in
baert,
■ W o r l d C ouncil o f C hurches.
scm,
and early development. Nijmegen: Dekker & Van
conteste do batismo de crianças. Confrontado com o material fragmentário e
de Vegt, 1962. G. R.
B easley-M
alusivo do NT acerca do batismo (nos Evangelhos,
urray
nas cartas de Paulo e em outros escritos), o his B a t is m o G
e r a is ,
iii:
A
A
tos,
H
ebreus,
toriador e exegeta tem de tomar decisões acerca
C artas
da relação do texto com entendimentos e práticas
p o c a l ip s e
Para o apóstolo Paulo, foi possível pressupor que
atestados somente em, digamos, Justino, Tertulia
os destinatários de suas cartas haviam recebi
no e Hipólito. Será que os dois últimos esclarecem
do 0 batismo. Em Romanos 6, ele mostra o ab
diretamente o que era crido, dito e feito a respeito
surdo de continuarem no pecado, visto que tal
do batismo na época do
170
n t?
Ou ,
em vez disso.
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lip se
os textos patrísticos representam acréscimos ou
vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o
alterações aos ritos e doutrinas dos apóstolos?
perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do
Ou será possível (numa espécie de meio-termo)
Espírito Santo” (At 2.38). O resultado foi notável:
que 0 século ii tenha sido testemunha de desen
“Os que acolheram a sua palavra foram batiza
volvimentos litúrgicos que desenvolveram o que
dos; e naquele dia juntaram-se a eles quase três
era embrionário no século i, ou deram expressão
mil pessoas” (At 2.41).
concreta a algo que existia no nível da afirma
Para a prática e a compreensão do batismo
ção teológica nos escritos apostólicos? Qualquer
na igreja, alguns pontos precisam ser observados
abordagem séria do batismo segundo o n t precisa
com base nessa narrativa. Em primeiro lugar, os
levar em conta essas questões.
ouvintes de Pedro são convocados a se arrepen
1. A água e o Espírito em Atos dos Apóstolos
der por causa da participação que tiveram na
2. Cartas não paulinas e Apocahpse
morte de Jesus, com a promessa de que seus pe
3. Primórdios do período pós-apostólico
cados serão perdoados. O batismo cristão haverá
4. Fim do século ii
de ser entendido como o selo do arrependimento
5. O batismo de crianças
humano e do perdão divino diante de tudo que Jesus suportou em sua obra redentora na cruz, como 0 Servo Sofredor (cf. Lc 3.22; 24.25-27;
1. A água e o Espírito em Atos dos Apóstolos 1.1
O dia de Pentecostes. De acordo com At 3.12-21; 10.43; 13.38,39).
Atos 1.4,5, o Senhor ressurreto ordenou a seus
Em segundo lugar, o batismo se dá precisa
apóstolos que aguardassem em Jerusalém “a pro
mente em “ nome de Jesus Cristo”. Muita tinta já
messa do Pai” (cf. Lc 24.49; Jo 14.26; 15.26) — o
foi gasta para discutir a expressão (cf. At 8.16;
cumprimento da palavra de Jesus de que “João
10.48; 19.5). Parece suficiente interpretar “em
batizou com água, mas vós sereis batizados
nome de” como indicação de que Jesus é “a re
com o Espírito Santo dentro de poucos dias” (cf.
ferência fundamental do rito”. L. Hartman sugere
At 11.16; v. tb. Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16). Atos
que essa foi a apUcação, feita pela igreja palesti
2, portanto, conta a história do primeiro Pente
na, de uma conhecida expressão semítica
costes cristão. Com um som parecido com o de
em hebraico, ou
um golpe bem forte de vento e a aparição de lín
nha de raciocínio, Lucas deixou que Pedro se ex
guas como de fogo sobre cada receptor, o
pressasse com as formas preposicionais típicas do
Sa n to
E s p ír it o
desceu dos céus e encheu os apóstolos e
le s h ú m ,
estilo bíbUco da l x x de Atos 2.38
seus companheiros, de modo que “começaram a
Atos 10.48
[e n t õ n o m a t i],
[le s h e m ,
em aramaico). Nessa li
(e p i t õ n o m a ti)
e
ao passo que a narrati
falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes
va de Atos 8.16 e 19.5 utiliza eis to onoma como
concedia que falassem” (At 2.4). À multidão que
a forma que o próprio Lucas havia aprendido,
se ajuntava, Pedro interpretou esse acontecimen
sendo que eis é a preposição que Paulo empre
to com base na profecia de Joel: “Acontecerá nos
ga com relação ao batismo (Rm 6.3; ICo 1.13,15;
últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Gl 3.27). Foi proposto que os primórdios do ba
Espírito sobre todas as pessoas [...]. E acontecerá
tísmo cristão caminham de mãos dadas com o
que todo aquele que invocar o nome do Senhor
reconhecimento da ressurreição de Jesus e de sua
será salvo” (At 2.17-21; cf. J1 2.28-32
[lx x
3.1-5)).
condição de Cristo e Senhor
0 apóstolo recita, então, para os “homens ju
(P
o k o r n í) .
Não sa
bemos se, bem no início, o ministro pronunciava
deus” a vida, morte e ressurreição de Jesus, que
ritualmente a expressão “em nome de [o Senhor]
“matastes, crucificando-o pelas mãos de ímpios;
Jesus [Cristo]” nos batismos. Informações dos
e Deus o ressuscitou” (At 2.23,24). Estando agora
séculos
“exaltado à direita de Deus” (At 2.33) como “ Se
ga de invocação do nome divino no batismo era
nhor e Cristo” (At 2.36) e “tendo recebido do Pai
uma pergunta ou perguntas feitas ao candidato:
III
e
IV
sugerem que a “forma” mais anti
a promessa do Espírito Santo”, Jesus “derramou
“Você crê em...?”
o que agora vedes e ouvis” (At 2.33). Tocados
é Senhor” pode ter sido uma confissão de fé da
no coração, os ouvintes perguntam o que fazer,
parte do candidato por ocasião do batismo (cf.
e Pedro responde: “Arrependei-vos, e cada um de
(W
h it a k e r ,
Rm 10.9,13; ICo 12.3).
171
1965). No
nt
,
“Jesus
B a t is m o iii: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e
do reino de Deus e do nome de Jesus” (At 8.12;
Em terceiro lugar, não liá indicação de que os apóstolos tenham sido batizados com água (tal
cf. At 8.4,5). Muitos “ deram crédito”
vez tivessem recebido o batismo de João) quan
creram, e foram batizados, “tanto homens quanto
do receberam o Espírito Santo, mas a mensagem
mulheres” (At 8.12), entre eles Simão, “ que pra
imediata de Pedro conclamava seus ouvintes ao
ticava artes mágicas, causando a admiração do
batismo “em nome de Jesus Cristo” com a pro
povo de Samaria” (At 8.9,12). Essa nova etapa na
messa de que também receberiam “o dom do
missão requereu, aparentemente, supervisão da
Espírito Santo”. Com base nessa passagem, pa
parte de Jerusalém, pois os apóstolos enviaram
rece que a experiência pós-pentecostal esperada
Pedro e João a Samaria (At 8.14). Pedro e João
(a r a ),
isto é,
é o batismo com água resultante na recepção do
“oraram” pelos crentes samaritanos, “para que
Espírito; à semelhança do perdão de pecados,
recebessem o Espírito Santo, pois ele ainda não
continua sendo prerrogativa divina outorgar o
havia descido sobre nenhum deles, mas haviam
Espírito. 0 batismo de água será a ocasião (ou o
sido apenas batizados em nome do Senhor Jesus” (At 8.15,16). “Então lhes impuseram as mâos, e
meio) de Deus outorgar o Espírito.
eles receberam o Espírito Santo” (At 8.17).
Contudo, os episódios narrativos de Atos são comphcados, como teremos oportunidade de ob
Essa passagem suscita várias questões. Como
servar, e a sequência variada de acontecimentos
os samaritanos puderam crer no evangelho e ser
nesses episódios torna difícil chegar a conclusões
batizados em nome de Cristo sem receber o Espí
teológicas entre o batismo de água e a dádiva do
rito Santo? 0 impacto do trabalho de Pedro e João
Espírito. À luz dos vários episódios narrados em
sobre Simão, o Mágico, deixa a impressão de que
Atos, J. D. G. Dunn, por exemplo, aceita que,
havia faltado uma manifestação espetacular do
para Lucas, o batismo de água nâo é mais que
Espírito Santo; “Quando Simão viu que o Espírito
um “veículo de fé” , um meio pelo qual os crentes
Santo era concedido pela imposição das mãos dos
“alcançam a Deus”
p. 90-102). No entan
apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro, dizendo; Dai-
to, numa leitura sacramental de Atos 2.38 a água
me também este poder, para que aquele sobre
(D u n n ,
batismal passa a ser um rito estabelecido por
quem eu impuser as mãos, receba o Espírito San
Deus mediante o qual ele regularmente outorga
to” (At 8.18,19). Em outro nível, a passagem tem
0 Espírito Santo quando alguém se aproxima dele
sido tradicionalmente interpretada como a base
com a atitude correta. Posicionado entre ambas
apostóhca para a “confirmação” ou imposição de
as ideias, G. Barth entende que Atos 2.38 afirma
mâos episcopais na conclusão ritual do batismo
uma ligação “normal” entre o batismo de água e
de água.
a recepção do Espírito, embora os episódios nar rativos de Atos demonstrem que o Espírito é livre
1.3
O eunuco etíope. 0 evangelho avança,
espalhando-se por “todas as nações” (Lc 24.47;
também para vir antes ou depois do batismo de
cf. Mt 28.19; At 1.8), como se vê no relato do
água
batismo do eunuco etíope (At 8.26-39). Com base
(B a r t h ,
p. 60-72).
Os batizandos são, dessa maneira, “acrescen
na passagem de Isaías 53, que trata do Servo
tados” à companhia dos que “perseveravam no
Sofredor, Fihpe anuncia ao cortesão africano o
ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do
evangelho de Jesus e o instrui na fé. A reação do
pão e nas orações” (At 2.41,42). O batismo leva
ouvinte é rápida: “Aqui há água; que me impede
ao ingresso na igreja, que se caracteriza por uma
de ser batizado?” (At 8.36). O texto ocidental de
fé comum, uma adoração comum e uma vida co
Atos 8.37 continua, então, o diálogo entre o evan
mum (v.
O “ falar em outras lín
gelista e 0 eunuco; “ Filipe respondeu; É lícito, se
guas” (cf. At 2.4) não volta a ser mencionado na
crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse:
comunidade apostólica cheia do Espírito, mas a
Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus”. Assim,
ousadia no testemunho, sim (At 4.23-33).
“ desceram ambos ã água [...] e Filipe o batizou”
CEIA DO S e n h o r ) .
1.2. Samaria. 0 episódio batismal seguinte
(At 8.38). 0 eunuco, “alegre, seguiu o seu cami
ocorre em Atos 8.1-25 com a disseminação do
nho” (At 8.39). A alegria é uma característica da
evangelho pela Judeia e Samaria (cf. At 1.8). Fili
comunidade primitiva, associada às suas refei
pe foi a uma cidade de Samaria e “pregava acerca
ções comuns (At 2.46; cf. 16.34; Rm 14.17).
172
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e
1.4
Paulo. 0 batismo seguinte, em Atos 9.18, “santificado” (hêgiasmenois) é também associado
é o de Paulo, o apóstolo aos gentios. Nesse pri
ao batismo em ICoríntios 6.11: “Alguns de vós
meiro relato, Ananias impôs as mãos sobre Sau
éreis assim. Mas fostes lavados, santificados e
lo/Paulo, para que este “recuperasse a vista”
justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e
(At 9.12,17,18) depois da visão ofuscante na
no Espírito do nosso Deus”. Finalmente, em Atos
estrada de Damasco. E Paulo, “ levantando-se,
26.23, Paulo se refere às profecias, agora cum
foi batízado. E, tendo-se alimentado, fortaleceu-
pridas, de “como o Cristo deveria sofrer, e como
se” (At 9.18,19). Não é especificado mediante
ele seria o primeiro que, pela ressurreição dos
qual ação Paulo ficou “cheio do Espírito Santo”
mortos, anunciaria luz a este povo e também aos
(At 9.17), embora tenha imediatamente come
gentíos”. A morte e a ressurreição são temas ba
çado “a pregar Jesus” (At 9.20). Ao relatar os
tismais nos escritos paulinos (esp. Rm 6.1-23), e,
acontecimentos à multidão em Jerusalém, em
conforme veremos, pelo menos a partír do século
Atos 22.16, o apóstolo revela que Ananias, de
II “iluminação” era uma palavra que designava o
pois de curá-lo, disse: “Levanta-te, sê batizado
batísmo (cf. talvez já em Ef 5.14).
e lava os teus pecados, invocando o seu nome”.
1.5 Cornélio. O incidente seguinte (At 10.1—
Os imperativos baptisai e apolousai estão na voz
11.17) é 0 caso de Cornélio, centurião romano
média, em grego (“ Cuida que sejas batizado e
do regimento militar chamado Italiano, homem
que teus pecados sejam lavados”), mas não ne
temente a Deus, assinalando, assim, uma etapa
cessariamente deixa implícito que o batismo foi
importante na disseminação do evangelho entre
autoministrado. Ao contrário do batismo de pro
os gentios (At 10.44; 11.1,18), em direção a Roma.
sélitos judeus (v. BATISMO i), parece que o batismo
Na casa de Cornélio, Pedro conta a história de
cristão sempre foi ministrado por outra pessoa (a
Jesus Cristo e conclui com a promessa de que
história da mártir Tecla é a exceção que compro
“todo o que nele crê receberá o perdão dos pe
va a regra). No entanto, é o próprio Paulo que
cados” (At 10.43), 0 que também pode ser a dá
tem de invocar o nome do Senhor (cf. At 4.12;
diva do “arrependimento para a vida” (At 11.18).
Rm 10.9,13). Entre os pecados de Paulo incluem-
Imediatamente, “o Espírito Santo desceu sobre
se, claramente, ter perseguido a Jesus ao fazê-lo
todos os que ouviam a palavra” (At 10.44). Eles
com seus seguidores (At 9.4,5; 22.7,8).
começaram “a falar em línguas e engrandecer a
O último relato da conversão de Paulo apare
Deus” (At 10.46). A conclusão de Pedro é que “es
ce em seu pronunciamento diante do rei Agripa
tes [...], como nós, receberam o Espírito Santo”
(At 26.2-23). Seu discurso faz alusões ao batismo.
(At 10.47). “Deus lhes concedeu o mesmo dom
A missão que Paulo recebeu como apóstolo foi
que concedera também a nós, ao crermos no Se
“lhes abrir os olhos a flm de que se convertam
nhor Jesus Cristo” (At 11.17). Pedro não pôde se
das trevas para a luz, e do poder de Satanás para
“opor a Deus” (At 11.17), de modo que ninguém
Deus, para que recebam o perdão dos pecados e
podia “recusar a água” (At 10.47). Por esse mo
a herança entre os que são santíflcados pela fé
tívo, Pedro “ordenou que fossem batízados em
em mim [o Senhor Jesus]” (At 25.18). Além dos
nome de Jesus Cristo” (At 10.48). Aparentemente
temas da fé em Cristo e do perdão dos pecados,
os “parentes e amigos mais chegados” de Corné
vistos em conexão com o batismo, a troca das
lio foram batizados com ele (At 10.24).
trevas pela luz e do poder de Satanás pelo poder
A importância básica do episódio está clara
de Deus encontra expressão nos ritos de renúncia
mente na historiografia de Lucas, na extensão da
ao Diabo e de profissão de fé confirmados pela
missão — nas pegadas de Deus, por assim dizer
patrística e, de forma impressionante, nas ceri
— aos gentíos. Conquanto o relato revele indubi
mônias orientais da apotaxis e syntaxis. Nessas
tavelmente a liberdade divina de ação ao outorgar
cerimônias, o candidato olha para o oeste, o lugar
0 Espírito e até mesmo na manifestação do dom
das trevas, a fim de renunciar a Satanás (em al
na glossolalia, é objeto de controvérsia até que
guns ritos, até mesmo cuspir nele!); depois, vira-
ponto se pode afirmar que o modo da conces
se para o leste, na direção do sol nascente, a fim
são do Espírito é parte normal da doutrina mais
de se juntar a Cristo e à santíssima Trindade. Ser
geral da “graça preveniente”. Ressalte-se que
173
Cornélio e sua “casa” já temiam a Deus (At 10.2)
imposição de mãos pelos apóstolos como prova
e de alguma forma conheciam a história de Jesus
da “confirmação episcopal” depois do batismo.
(At 10.36). Foi a pregação de Pedro que despertou
Em tempos mais recentes, o relato tem sido usado
a fé deles em Cristo (como fica implícito em At
pelos pentecostais e outros como confirmação do
10.43 e 11.17). 0 batismo, portanto, selou a fé
“batismo no Espírito”, caracterizado pela glosso-
que já tinham em Cristo e o perdão dos pecados
laha, como uma segunda etapa após o batismo de
(At 10.43,48) — no caso deles, a dádiva do Espí
água na geração de cristãos.
rito Santo, que já haviam recebido.
1.8
Conclusões. Com base em Atos, é difícil
1.6 O carcereiro de Filipos. Quando um ter
concatenar uma compreensão sistemática do ba
remoto noturno abriu as portas da prisão em
tismo ou de um ritual consistente de iniciação
Filipos, onde Paulo e Silas estavam detidos, o
cristã. Existem diferenças nas circunstâncias dos
apavorado carcereiro perguntou: “ Senhores, que
episódios relatados e na sequência de aconteci
preciso fazer para ser salvo?” (At 16.30). Aprovei
mentos dentro de cada relato. De qualquer modo,
tando a ambiguidade do verbo sõzõ (“ salvar”), os
a preocupação principal de Lucas é com o quadro
evangelistas responderam: “ Crê no Senhor Jesus,
maior da propagação inicial do evangelho. Talvez
e tu e tua casa sereis salvos” (At 16.31). Então,
seja mais sábio nos hmitarmos a assinalar um fei
pregaram aos presentes “a palavra de Deus” , e
xe de temas recorrentes que mais tarde aparecerão
com isso 0 narrador quer dizer (como sabemos
em várias configurações na história teológica e
com base em casos semelhantes) “o evange
litúrgica: anúncio do evangelho, arrependimento,
lho de Jesus Cristo”. A pregação foi frutífera, e
fé, o nome do Senhor Jesus Cristo, lavagem com
o carcereiro “ foi batizado, ele e todos os seus”
água, perdão dos pecados, imposição de mãos, o
(At 16.33). Ele “ pôs a mesa para eles e alegrou-se
recebimento do Espírito Santo, glossolaha, vida e
muito com toda a sua casa, por haver crido em
salvação, ingresso na comunidade cristã.
Deus” (At 16.34). A mesa e o regozijo apontam para a refeição comunitária dos cristãos (v. DO S e n h o r ) .
2. Cartas não paulinas e Apocalipse
c e ia
Sem dúvida, mais tarde ocorreu a prá
2.1
tica, testificada por Justino Mártir, de os recém-
Hebreus. Essa carta (v.
H
ebreus,
C arta
aos)
contém duas passagens que requerem conside
batizados participarem imediatamente da santa
ração: Hebreus 5.11—6.6 e 10.19-25. A primeira
comunhão.
passagem lembra os destinatários de que certos
1.7 Éfeso. 0 aspecto mais intrigante de Atos
aspectos de sua admissão inicial no cristianismo
19.1-7 é que desde o início se afirma que aquele
não precisam e talvez não possam ser repetidos:
pequeno grupo de pessoas que Paulo encontrou
aprender “ os princípios elementares da palavra
em Éfeso eram “discípulos” que haviam crido
de Deus”, “ os aspectos elementares do ensino de
(At 19.1,2). Parece que eram discípulos de João
Cristo”, os quais são comparados com o leite, que
Batista, e haviam sido batizados “no batismo de
é seguido de alimento sólido: “o ahcerce do ar
João” (At 19.3). Nunca tinham ouvido “ que há
rependimento de obras mortas e da fé em Deus,
Espírito Santo” (At 19.2,3). Parece que haviam
o ensino sobre batismos [abluções, baptismoi],
captado apenas parte da mensagem de João (tal
imposição de mãos, ressurreição dos mortos e
vez o “batismo de arrependimento”), por isso
juízo eterno”. Até aqui parece que as referên
Paulo teve de acrescentar que João tinha dito “ao
cias são tanto à evangelização que dá origem ao
povo que cresse naquele que vinha depois dele,
arrependimento e à fé quanto à catequese, que
isto é, em Jesus” (At 19.4). Quando ouviram isso,
instrui os discípulos nas crenças cristãs básicas e
imediatamente “foram batizados em nome do Se
na relevância dos ritos do batismo em água e da
nhor Jesus” (At 19.5). Fica claro que não foi uma
imposição de mãos, os quais selarão sua entra
repetição do batismo cristão. Em seguida, “quan
da na comunidade cristã. O uso da forma plural
do Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo
baptismoi talvez seja exphcado pela necessidade
veio sobre eles, e eles começaram a falar em lín
de serem os batizandos ensinados a respeito da
guas e a profetizar” (At 19.6). IVadicionalmente,
diferença entre o batismo cristão e as abluções de
recorre-se a essa sequência de batismo de água e
174
outras religiões existentes na época.
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
Então, 0 texto passa a mencionar, com o tem
que possuem (Hb 10.23; o substantivo homolo-
po aoristo, certos acontecimentos que se deram
gia, “confissão” , tornou-se um termo técnico para
uma única vez para cada participante. Eles foram
a confissão batismal, e o exegeta bizantino Teo-
“iluminados, experimentaram o dom celestial e
filacto ressoa a orientação escatológica do credo
se tornaram participantes do Espírito Santo, e ex
batismal quando escreve: “Quando fizemos as
perimentaram a boa palavra de Deus e os poderes
alianças de fé, confessamos crer na ressurreição
do mundo vindouro”. Esses aspectos podem des
dos mortos e na vida eterna”). O fundamen
crever diferentes facetas do ingresso na esfera da
to originário do batismo é o “ sangue de Jesus”
salvação e/ou as partes correspondentes de um
(Hb 10.19), e sua derradeira perspectiva é o “Dia
complexo processo ritual de iniciação. O termo
[que] se aproxima” (Hb 10.25). O verbo “lavar”
“iluminados” passou a ser sinônimo de batiza
tem sido invocado a favor da aspersão e da afu-
dos. O dom do Espírito Santo foi associado à água
são como modos de batismo.
e à imposição de mãos. 0 ato de provar a bon dade da Palavra de Deus, na expressão tomada
2.2
IPedro. 0 batismo é diretamente men
cionado em IPedro 3.20, passagem que diz: “A
por empréstimo de Salmos 34.8, foi aplicado pela
água, a qual, figurando o batismo, agora também
igreja primitiva na santa comunhão. No contexto
vos salva, não sendo a remoção da imundícia da
de Hebreus, tudo isso faz parte da exortação para
carne, mas a indagação [i.e., súplica] de uma boa
avançar e da advertência de não retroceder, pois,
consciência para com Deus [ou apelo a Deus para
no que diz respeito aos que cheguem ao ponto
ter uma boa consciência], por meio da ressurrei
de “cometer apostasia” , “é impossível que [...]
ção de Jesus Cristo”. 0 poder do batismo deriva
sejam outra vez renovados para o arrependimen
da ressurreição de Cristo, a qual se torna dispo
to”. Mais tarde, a igreja iria, gradualmente, desen
nível para os crentes por causa da vida de justiça
volver um sistema penal para a readmissão de
em Cristo (cf. IPe 3.8-18; 4.1-19). O ato exterior
pecadores que cometiam faltas graves, mas um
do batismo tem um significado interior: a dádiva
segundo batismo sempre foi rejeitado. Isso equi
salvadora de Deus tem ali um encontro com a
valeria a tornar a crucificar a Cristo, disse João
resolução da fé. O vocábulo eperõtêma, traduzido
de Damasco, numa aplicação de Hebreus 6.6, em
tanto por “ suplicar a” quanto por “comprometer-
sua obra Sobre a fé ortodoxa 4.9.
se a”, aparentemente vem do jargão de contratos
Na outra passagem [Hb 10.19-25), que usa
e é possível que se refira ao compromisso ético
como ilustração um ritual levítico (Lv 8 e 16), o
do batizando
autor parece estar lembrando aos que já foram
“assumem o compromisso de viver à altura”)
batizados o significado e o resultado do batismo:
ou ao responsio (“resposta”) às perguntas feitas
é uma garantia, no presente, do acesso a Deus
no batismo
por meio de Cristo e uma conclamação ao en
passagem dá a entender que o batismo cristão
corajamento e ao amor mútuos na comunidade
foi prefigurado na ocasião em que Deus salvou
(J u s t i n o ,
(T
e r t u l ia n o ,
Ap, 1.61: os candidatos
De re, 48; De co, 3). A
cristã. A convocação à ação no presente baseia-
Noé e sua famíha, nos dias do Dilúvio, tema que,
se na realidade duradoura, expressa por parti
paralelamente a outros “tipos” veterotestamen-
cípios perfeitos, de ter “o coração purificado de
tários (como o êxodo através do mar Vermelho;
má consciência e [...] o corpo lavado com água
cf. ICo 10.1,2), ecoará mais tarde em orações e
limpa” (Hb 10.22). Essa frase, que não estabe
comentários batismais.
lece uma antítese entre as coisas interiores e as
A carta inteira de IPedro possui, de acordo
exteriores, mas que, num "paralelismo retórico”
com muita pesquisa recente, um molde batismal
positivo, reúne, isto sim, o interior e o exterior
(v.
em "uma realidade una e indivisível”
easley-
uma moldura epistolar, o grosso do material está
(B
adoração).
Alguns entendem que ali, dentro de
apresenta uma ideia de batismo como
estruturado de acordo com o modelo de um rito
"um sinal exterior e visível de uma graça interior
de iniciação completo, em que a palavra “agora”,
e espiritual” (citando o Catecismo anglicano]. O
frequentemente repetida, constitui um vestígio
rito encena um encontro entre o Deus fiel da pro
do desempenho propriamente dito. 0 protestante
messa e os crentes que confessam a esperança
alemão H. Preisker encontra na carta o “ depósito”
M
urray) ,
175
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e
[Niederschlag] de um culto batismal constituído
alguns homihastas patrísticos bem antigos, como
de hinos, sermões e orações: um salmo de oração
Melito de Sardes e Hipólito de Roma, fazem uma
{Gebetspsalm] como introito (IPe 1.3-12); uma
ligação linguística (fantasiosa) entre esse verbo e
fala instrucional (belehrende Rede] que faz eco a
ta pascha (“páscoa”), e, por meio de Tertuliano
fórmulas confessionais e litúrgicas (IPe 1.13-21);
{De ba, 19), sabemos que a versão cristã daquela
o batismo (entre IPe 1.21 e 1.22), seguido de
festa era a época preferida para a ministração do
uma breve exortação aos batizandos, os quais
batismo, pelo menos a partir do final do século n
têm agora a “vida purificada” e foram “regenera
(por esse motivo, era a época provável do ano
dos” (IPe 1.22-25); um hino festivo em três ver
para a realização da liturgia batismal descrita na
sos oferecido por alguém inspirado pelo Espírito
ordem da igreja antiga, liturgia que boa parte dos
(IPe 2.1-10); uma exortação [Parãnese] feita por
estudos acadêmicos do século xx identificava com
outro pregador (IPe 2.11—3.12), interrompida
a que é, de outra forma, a obra perdida de Hipóli
por um tradicional hino a Cristo [Christaslied]
to, Tradição apostólica].
entoado pela congregação (IPe 2.21-24); um dis curso escatológico [Offenbarungsrede] apresenta
Na
avaliação
da
maioria
dos
exegetas,
Preisker e Cross foram excessivamente ambicio
do por um vidente apocalíptico (IPe 3.13—4.7a);
sos em suas respectivas reconstruções da liturgia
uma oração de encerramento [Schlussgebet] e
batismal em IPedro, mas há ampla concordância
uma doxologia cantada, concluindo o culto ba
em que o linguajar da carta guarda muitas as
tismal propriamente dito (IPe 4.7b-ll); um culto
sociações com 0 batismo. Quer façam referência
de encerramento para a igreja toda [Schlussgot-
a ritos de iniciação já existentes quer não, es
tesdienst der Gesamtgemeinde], consistindo em
ses termos sem dúvida ajudaram a estabelecer
uma revelação escatológica (IPe 4.12-19); uma
0 repertório temático do batismo cristão e, desse
exortação [Mahnrede] aos presbíteros, membros
modo, a prenunciar o que só mais tarde assu
mais novos da igreja e ao grupo todo (IPe 5.1-9);
miu concretude ritual. Dentro desse contexto, em
uma bênção [Segenspmch] pronunciada por um
que repetidas vezes é relembrada a pregação do
presbítero (IPe 5.10) e uma doxologia pela con
evangelho e a resposta de fé, os itens a seguir
gregação toda (IPe 5.11).
merecem atenção em particular por sua associa
0 anglo-católico F. L. Cross enxerga em IPedro
ção com a compreensão e a prática do batismo:
de um modo ainda mais claro a parte do celebran
a atividade regeneradora de Deus manifesta na
te na liturgia do batismo numa vigília pascal. Esta
ressurreição de Cristo (IPe 1.3) e na Palavra pre
é a sequência dos atos do bispo: oração solene de
gada (IPe 1.23), pois os receptores são chama
abertura (IPe 1.3-12); exortação aos candidatos,
dos “bebês recém-nascidos” (IPe 2.2), fazendo
baseada no tema do Êxodo como um “ tipo” do
lembrar que João 3.3-7 fala do nascer da água
batismo (IPe 1.13-21); [batismo seguido de] boas-
e do Espírito e Tito 3.5-7 se refere ao batismo
vindas aos recém-batizados, agora participantes
como 0 “lavar da regeneração e da renovação
da comunidade redimida (IPe 1.22-25); mensa
realizados pelo Espírito Santo” ; o relato esbo
gem sobre os fundamentos da vida sacramental
çado da obra salvadora de Cristo (IPe 3.18,22)
(i.e., batismo, eucaristia, santificação, sacerdó
que ressoa o querigma de Paulo e Atos e pre
cio do povo de Deus; IPe 2.1-10); [consagração
nuncia a confissão de fé em credos batismais; a
eucarística e comunhão, seguidas de] mensagem
passagem das trevas para a “maravilhosa luz” de
sobre os deveres do discipulado cristão, abar
Deus (IPe 2.9), observando-se que “iluminação”
cando as responsabilidades morais dos cristãos
é termo encontrado em Justino Mártir (c. 150)
em seus vários chamados (IPe 2.11—3.12) e a
com o sentido de batismo; a menção ao “leite
vocação do cristão à “vida pascal” (i.e., a vida
espiritual” e à experiência de que “ o Senhor é
de sofrimento místico em Cristo; IPe 3.13—4.6);
bom” , em IPedro 2.2,3, o que talvez explique a
admoestações finais e doxologia (IPe 4.7-11). A
prática de acrescentar uma xícara de leite e mel
carta emprega doze vezes o verbo paschõ com o
à comunhão eucarística de neófitos, mencionada
sentido de “sofrer”. Foi o que levou Cross a si
por Tertuliano {De co, 3) e descrito em Tradição
tuar a suposta liturgia na vigília da Páscoa, pois
apostólica, de Hipólito.
176
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e
2.3 IJoão. Duas passagens dessa carta (v.
reflete uma hturgia pascal já existente, embora re
João , C a r t a s d e )
vêm à nossa consideração. O
conhecendo que alguns elementos do livro canô
treciio de IJoâo
5 .6 -8
afirma que Jesus Cristo
nico podem, até certo ponto, ter servido de “fonte
veio “pela água e pelo sangue” e que “ os que
de inspiração e de ideias para refinamentos pos
dão testemunho sâo três: o Espírito, a água e o
teriores da hturgia cristã”. (Nesse caso, em oposi
sangue”. A referência primordial é talvez ao ba
ção à tese de Shepherd, é possível afirmar que “as
tismo de Cristo (“a água”) e à sua morte (“o san
pessoas enxergam em Apocalipse a hturgia pascal
gue”), porque o Espírito esteve sobre ele durante
de tempos posteriores, em vez da de Apocalipse”.)
todo o seu ministério
A referência
As sete cartas de Apocalipse 1— 3 corresponde
também pode ser ou ao “sangue e [à] água” que
riam ao “escrutínio” ou avahação final dos can
jorraram do lado perfurado do Cristo crucificado
didatos antes do batismo. Apocalipse 4—6 põe
nos quais autores patrísticos como
de vigíha a assembleia que está diante de Deus.
(Jo 1 9 . 3 4 ) ,
Ambrósio [Vr,
(Jo 1 . 3 2 - 3 4 ) .
e Crisóstomo (e.g.. Hm
A “pausa” de Apocalipse 7 abriga “a cerimônia
Jo] viram a origem do batismo e da eucaristia,
iniciatória de lavar e selar”. Apocalipse 8— 19
ou ao Espírito, que ficou ao alcance dos crentes
eqüivale à sinaxe eucarística, com orações, lei
assim que Jesus foi “glorificado” (Jo
turas da Lei, dos Profetas e dos Evangelhos e o
3 .5 .2 2 )
7 .3 7 - 3 9 ).
De um modo ou de outro, haverá então uma re
cântico dos salmos do hallel (cf. Ap 19.1-8). A
ferência secundária aos ritos de iniciação cristã,
“ceia das bodas do Cordeiro” (Ap 19.9,
que oferecem um testemunho indireto de Cristo
refere à eucaristia, “uma participação na adora
associado a eventos básicos — sua vida, morte e
ção dos céus e também uma antecipação dessa
ressurreição.
adoração” , “ o penhor da consumação final da
ar a ]
se
Conjecturou-se (Dix) que essa passagem na
era vindoura” (Ap 20—22). 0 certo é que a visão
carta corresponde a um padrão sírio antigo de
dos mártires (Ap 7) apresenta aspectos que, mais
iniciação cristã com a sequência da dádiva do
cedo ou mais tarde, foram associados com o ba
Espírito (que Dix equipara à “confirmação” , mas
tismo: “lavar” no sangue do Cordeiro, a imersão
que pode ter sido ou “pentecostal” ou exorcis
na morte salvadora de Cristo; “selar” as testas,
ta), do batismo de água (que no entendimento
seja com uma cruz como sinal de pertencer ao
sírio estava principalmente associado à adoção
Senhor crucificado (cf.
do cristão como filho) e da primeira comunhão
com o nome de Deus (cf. Ap 14.1), que era invo
Mr, 3.22) ou
Embora seja teme
cado sobre os iniciandos em vários momentos do
rário encontrar correspondências tão detalhadas
processo batismal; “vestir roupas brancas”, tendo
entre as afirmações teológicas existentes nas Es
se “vestido de Cristo” (cf. Gl 3.27; Cl 3.9,10) ou
crituras e práticas rituais que só mais tarde foram
da “roupa de justíça” (como no rito bizantino);
(W
h it a k e r ,
1970,
p.
T e r t u lia n o ,
1 2 -2 3 ).
confirmadas, não pode haver dúvida de que as
as alusões, em Apocalipse 7.15-17, aos salmos
Escrituras alimentaram a interpretação litúrgica
23 e 42, cuja imagem de pastor, águas e cervo
subsequente, embora nem todos os elementos
aparecem em batistérios antigos. Se, de um lado,
litúrgicos estivessem presentes na época da com
0 martírio, conforme visto pelo vidente bíbUco,
posição das Escrituras. Considerações semelhan
refletiu ou inspirou os ritos de batismo, de outro
tes aplicam-se a outra passagem de IJoâo: duas
lado 0 batismo propiciou uma categoria para des
vezes, em rápida sucessão, a carta declara que
crever o martírio — o “batismo de sangue” (como
os cristãos receberam uma “unção” da parte do
quando Tradição apostólica fala de a salvação do
Santo (IJo
catecúmeno estar garantida mediante o “batismo
2 .2 0 ,2 7 ),
a qual traz verdade e vida.
Será que uma unção com óleo, como na crisma,
no próprio sangue”).
encontrada nas liturgias patrísticas de iniciação (atestadas a partir de Tertuliano), transmitem, já
3. Primórdios do período pós-apostólico
no período apostólico, a ideia de selo conferido pelo Espírito (cf. 2Co
1 . 2 1 ,2 2 ;
Ef
3.1
2.4 Apocalipse. M. H. Shepherd propõe que a estrutura de Apocalipse (v.
A
p o c a l ip s e ,
L
iv r o d e )
A Didaquê. Esse documento, que talvez
seja uma formulação da prática síria por volta do
1 .1 3 ,1 4 ; 4 .3 0 )?
final do século i, apresenta, em seus primeiros seis capítulos, 0 que parece ser material catequético.
177
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
ao expor os "dois caminiios” de "vida” e “mor
e dirigida ao imperador Antonino Pio, Justino
te”. Então, em Didaquê 7 o documento prescre
Mártir apresenta a mais antiga descrição direta
ve: “Batizai em água corrente, em nome do Pai
e intencional do processo de iniciação cristã, o
e do Filho e do Espirito Santo”. Só em Mateus
qual denomina “o modo em que nos dedicamos a
28.19 é especificado que o trípUce nome divino
Deus quando feitos novas pessoas por intermédio
era invocado: talvez tenha sido algo tratado na
de Cristo”. Apologia 1 61 relata:
troca de perguntas e respostas entre o ministro e
0 candidato acerca da fé deste (como em Tradição
Tantos quantos estão convencidos e acredi
apostólica, de HipóUto), pois não dispomos de
tam que essas coisas que ensinamos e descre
nenhuma prova anterior ao século iv de que ocor
vemos são verdadeiras e se propõem viver de
resse um pronunciamento declaratório: “Eu te ba
acordo com elas, esses são ensinados a orar e,
tizo em nome de...”. A tradução literal de “água
enquanto jejuam, a pedir a Deus o perdão de
corrente” é “água viva” [hydõrzõn), que está bi
seus pecados; e nós oramos e jejuamos com
blicamente associada à graça divina (e.g., Jr 2.13;
eles. Então, nós os conduzimos a um local
17.13). Conquanto água corrente seja preferível,
onde existe água, onde renascem do mesmo
não é indispensável: “Se não tiverdes água cor
modo em que nós também já havíamos re
rente, batizai em outra água; e, se não puderdes
nascido. Pois são, então, lavados na água em
em água fria, então batizai em morna”. Alguma
nome do Pai e Senhor Deus de todas as coisas,
forma de imersão é vislumbrada, embora a afu-
e de nosso Salvador Jesus Cristo, e do Espíri
são seja permitida, caso não haja água corrente
to Santo [...]. Sobre aquele que agora escolhe
ou parada: “Se não tiverdes nem uma nem outra,
renascer e se arrepende de seus pecados é pro
derramai água três vezes sobre a cabeça”. Tanto
nunciado o nome do Pai e Senhor de todas as
0 ministro quanto o candidato devem chegar em
coisas [...]. Esse lavar é denominado “ilumina
jejum ao evento, com “tantos quantos puderem”;
ção” , porque os que estão experimentando es
o jejum do candidato deve ser de um ou dois dias.
sas coisas tiveram a mente iluminada. E aquele
Didaquê 9.5 estipula que ninguém, com exceção
que está sendo iluminado é lavado em nome
dos batizados em nome do Senhor, pode comer
de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio
ou beber nas refeições de ação de graças da co
Pilatos e que, em nome do Espírito Santo, por
munidade, de acordo com a ordem do Senhor de
intermédio dos profetas, predisse todas as coi
não dar aos cães o que é santo (v.
sas a respeito de Jesus.
3.2 lo
II,
c e ia d o
Senhor) .
Inácio de Antioquia. No início do sécu
Inácio declarou que “ sem o bispo não é váli
Apologia I 65 prossegue:
do seja batizar, seja realizar uma refeição ágape” (Es, 8.2). Posteriormente a história verá o pastor
Após termos, assim, lavado aquele que está
principal supervisionando a admissão à comuni
convencido e declara sua aceitação, nós o con
dade mantida de várias formas quando o rito de
duzimos àqueles chamados “ irmãos”, onde
água é reahzado por outros ministros. De modo
estão reunidos, e fazemos oração comum a fa
característico, as igrejas ocidentais reservarão
vor de nós mesmos, daquele que foi iluminado
para o bispo a imposição pós-batismal das mãos
e de todas as pessoas em todos os lugares para
e/ou a unção, num gesto com o sentido da dádiva
que, por acolhermos a verdade, sejamos vistos
do Espírito Santo (mais tarde denominado “con
em nossa vida como cidadãos bons e obedien
firmação”); as igrejas orientais permitirão que os
tes e também alcancemos a salvação eterna.
presbíteros batizem e “carismem” , mas sempre
Quando concluímos as orações, nós nos sauda
com 0 emprego do myron (lit., “unguento”) con
mos mutuamente com um beijo.
sagrado pelo bispo. Segue-se um breve relato da eucaristia, da 4. Fim do século ii 4.1
qual os recém-batizados terão participado pela
Justino Mártir. Em sua Apologia i, es primeira vez, “pois ninguém pode participar dela,
crita em Roma por volta de meados do século ii
178
a menos que esteja convicto da verdade de nosso
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
ensino, tenha sido purificado com a lavagem para
nas palavras de sua ordem” (De sp, 4): “Quando
perdão dos pecados e regeneração e viva confor
estamos a ponto de entrar na água, afirmamos
me Cristo pregou”.
então e ali, como um pouco antes fizemos na
Justino afirma ou deixa claramente impUcitos
igreja sob a direção do bispo, que renunciamos
os seguintes aspectos do processo de iniciação
ao Diabo e à sua ostentação e a seus anjos. De
cristã. Aqueles que respondem positivamente
pois disso, somos imersos três vezes, ao mesmo
à mensagem da igreja têm de passar um tempo
tempo que respondemos a perguntas bem mais
não especificado de aprendizagem (o termo téc
demoradas, que nosso Senhor prescreveu no
nico passará a ser “catecumenato”), o que inclui
Evangelho” (De co, 3). Conforme revelado em De
instrução doutrinária e moral, bem como oração
baptismo 13, a referência é à ordem de Mateus
e jejum. Essas pessoas devem expressar seu ar
para batizar no nome trípUce, e Adversus Praxeas
rependimento, fé e compromisso. Seu batismo
26 deixa explícito que “não apenas uma, mas três
ocorre fora da congregação. Perdão dos peca
vezes, somos mergulhados [tinguimur] dentro de
dos e renascimento estão associados ao batismo
cada uma das três pessoas em cada um dos vários
mediante o tríplice nome divino, e esse batismo
nomes”. A fraseologia de TertuUano está de acor
parece desempenhar um papel instrumental na
do com a prática encontrada em Tradição apostó
transmissão desses dons divinos. O batismo tam
lica, de Hipólito, em que o ministrante apresenta
bém é chamado “ lavagem” e “iluminação”. Os re
aos batizandos perguntas na forma de um “credo
cém-batizados são levados à assembleia litúrgica,
interrogatório” tríplice e os “batiza” a cada res
e ah se fazem orações por eles (alguns estudio
posta afirmativa.
sos veem nisso uma espécie de “confirmação”,
Então, “ saímos da água do lavar e somos
a qual, de outra sorte, inexiste.) Então, eles se
ungidos com a unção bendita” , que é associada
unem, pela primeira vez, no beijo de paz e na
à unção com que Moisés ungiu Arão para ser
comunhão eucarística.
sacerdote e à unção de Cristo pelo Pai com o Es
4.2
Tertulixmo. Outra descríção, hgeiramente pírito [De ba, 7). “ Em seguida, vem a imposição
posterior, dos ritos de iniciação e de uma reflexão
das mãos na bênção, convite e boas-vindas ao
teológica mais completa sobre seu significado e
Espírito Santo” , e aqui o “tipo” do
resultado pode ser montada com base nos escri
de Jacó sobre Efraim e Manassés, com “mãos
tos de Tertuliano, autor do norte da África. Seu
cruzadas” (cf. Gn 48.12-14), prefigurando “a
tratado De baptismo pode ser suplementado por
bênção que existiria em Cristo” (De ba, 8). Ten
passagens de vários outros escritos. É assim a
do recebido as boas-vindas à assembleia no seu
preparação imediata para o ritual: “ Os que estão
todo, os neófitos recebem, por ocasião da comu
at
é a bênção
a ponto de entrar por meio do batismo devem
nhão, também uma xícara de leite e mel (De co,
orar, suplicando, jejuando, dobrando os joelhos
3;cf. Mr, 1.14).
e fazendo vigílias de noites inteiras — tudo isso
Quanto ao ministro que batiza: “ 0 direito su
frequentemente — com a confissão de todos os
premo de dar pertence ao sumo sacerdote, que é
pecados, de modo a se tornarem uma cópia do
o bispo; depois dele, pertence aos presbíteros e
batismo de João [i.e., em seu aspecto de arrepen
diáconos, por motivo da dignidade da igreja; pois,
dimento]” [De ba, 20). A água batismal é aben
quando isso está seguro, a paz está segura. Com
çoada numa oração de invocação, tecnicamente
exceção disso, até os leigos possuem o direito”
denominada “epíclese” : “Toda a água, quando
(De ba, 17). Quanto ã época do batismo: “A Pás
Deus é invocado, adquire o significado sagrado
coa [i.e., 0 Domingo de Páscoa] proporciona o dia
de transmitir santidade, pois o Espírito desce ime
da mais elevada solenidade para o batismo, pois
diatamente dos céus e permanece sobre a água,
foi nesse dia que se deu a paixão de nosso Senhor
santificando-a de dentro de si, e, quando ela é,
e nesse dia fomos batizados [...]. Depois disso, o
desse modo, santificada, absorve o poder de san
[o período de cinquenta dias de] Pentecostes é
tificar” (De ba, 4). À beira da água, os candidatos
um tempo muitíssimo auspicioso para organizar
devem manifestar uma renúncia ao Diabo. Uma
batismos, pois foi nele que, várias vezes, a ressur
vez dentro da água, “ fazem profissão da fé cristã
reição de nosso Senhor se fez conhecida entre os 179
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
discípulos e a graça do Espírito Santo foi outor
dependerá de sua disposição para abandonar os
gada pela primeira vez. [...] Por tudo isso, todo
caminhos errados e ocupações proibidas. O ca-
dia é dia do Senhor; qualquer hora, qualquer es
tecumenato normalmente dura três anos, mas o
tação, é apropriada para batismo. Se existe uma
tempo pode ser encurtado, “caso a pessoa seja
diferença quanto à solenidade, não faz nenhuma
sincera e persevere, porque nâo é o tempo que é
diferença para a graça” [De ba, 19). 0 fato de a
julgado, mas a conduta”. O ensino é acompanhado
Páscoa e o Pentecostes serem especialmente apro
de oração. Quando os catecúmenos são “escolhi
priados para o batismo tem correspondência nos
dos” para receber o batísmo (na tradição romana
temas pauhnos do batismo como participação na
serão chamados de electi durante as semanas que
morte e ressurreição de Cristo (Rm 6) e do ba
precedem um batismo que, tipicamente, ocorre na
tismo pelo Espírito uno no corpo uno de Cristo
Páscoa), a vida deles é examinada em busca de
(ICo 12.12,13).
boas obras. Podem, então, “ouvir o evangelho”,
Quanto à importância e ao resultado do ba
isso provavelmente se refere a uma cerimônia que
tismo, a obra poderosa de Deus se realiza me
é mais tarde descrita de um modo mais completo,
diante meios incrivelmente simples: "Uma pessoa
em que os ouvidos dos candidatos se abriram aos
recebe instrução para descer à água, é lavada ao
quatro Evangelhos. A partir desse momento, são
mesmo tempo que bem poucas palavras são ditas
exorcizados diariamente e, finalmente, pelo bispo.
e sai da água pouco ou nada mais limpa do que
Na quinta-feira, eles se banham e na sexta e no
estava” — e assim mesmo “recebeu eternidade”
sábado jejuam. No sábado (geralmente na noite
[De ba, 2). Tertuliano assim descreve a operação
desse dia), o bispo reúne os candidatos para um
sacramental: “ Naquela água, o espírito é lavado
exorcismo definitivo. A noite é passada em vigflia,
corporeamente, enquanto naquela mesma água
com instrução e leitura das Escrituras.
a carne é purificada espiritualmente” (De ba,
Ao cantar do galo, é feita uma oração sobre
4). Ou, distribuindo o resuhado entre os vários
a água, a qual deve ser “ Umpa e corrente”. Os
elementos do rito e trazendo à tona a crença de
candidatos se despem, prontos para o batísmo.
TertuUano de que “a carne [caro) é a dobradiça
Primeiro é a vez das crianças, “e, se podem res
[cardo] da salvação” : “A carne é lavada para que
ponder por si mesmas, que respondam; mas, se
a alma fique imaculada; a carne é ungida para
não podem, que o respondam seus pais ou al
que a alma seja consagrada; a carne é consagra
guém da família”. Então, é o momento dos ho
da [com a cruz] para que a alma também seja
mens e, finalmente, das mulheres, “que soltarão
protegida; a carne é obscurecida pela imposição
o cabelo e porão de lado seus enfeites de ouro”.
de mãos para que a alma também seja iluminada
Um presbítero pede aos candidatos que digam:
pelo Espírito; a carne se ahmenta do corpo e do
“Renuncio a ti. Satanás, e a todo o teu serviço e
sangue de Cristo para que a alma também esteja
a todas as tuas obras” , ungindo-os com o “óleo
repleta de Deus” [De re, 8).
do exorcismo” já preparado pelo bispo. Então
4.3
A tradição apostólica. Caso a ordem ba outro presbítero assume a direção, auxiUado por
tismal da igreja antiga reconstruída pelos estudio
um diácono. Na água, o batizador impõe as mãos
sos do século
esteja corretamente identificada
sobre o batizando e indaga: “ Crês em Deus Pai
com Tradição apostólica, de TertuUano (obra que
todo-poderoso?” Diante da resposta: “Eu creio” ,
de outra forma estaria perdida), então ela dá tes
o candidato é imediatamente “batizado [baptiza-
XX
temunho da prática de iniciação cristã na igreja
tur)” pelo ministro. E, semelhantemente, mais
em Roma por volta da virada do século ii para o
duas outras vezes, depois de perguntas relativas
século
Esse testemunho é de vital importância
ao credo a respeito de “Cristo Jesus, o Filho de
para a leitura de mão dupla dos elementos vistos
Deus” e do “ Espírito Santo na Santa Igreja, e da
no NT e dos escritos patrísticos mais antigos.
ressurreição da carne”. Ao sair da água, o batí-
III.
De acordo com Hipólito, os interessados de
zando é ungido com “o óleo de ações de graças”
vem ser examinados pelos mestres da igreja
já abençoado pelo bispo, ocasião em que o pres
acerca dos motivos para desejarem “ouvir a Pa
bítero diz: “Em nome de Jesus Cristo, eu te unjo
lavra”. Quanto a serem admitidos para instrução
com óleo santo”.
180
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
Os recém-batizados enxugam-se e se vestem.
primeiros séculos, o batismo é ministrado com
Então, entram na assembleia principal. Ali o bis
base numa confissão de fé por parte do receptor.
po impõe as mãos sobre eles, orando: “Ó Senhor
No entanto, a pergunta que surge é se o batis
Deus, que concedeste a estes o perdão dos peca
mo também era dado a alguém — especialmente
dos mediante o banho da regeneração do Espírito
crianças — que estava, de alguma forma, “cober
Santo, envia sobre eles tua graça, para que te sir
to” pela fé de outros ou a alguém “em cujo nome
vam de acordo com tua vontade” (versão latina);
outros podiam falar” , conforme vemos ritualmen
ou: "Ó Senhor Deus, que concedeste a estes o
te codificado pela primeira vez em Tradição apos
perdão dos pecados mediante o banho de rege
tólica, de Hipólito (“ Se [as crianças] não podem
neração, enche-os agora com teu Santo Espírito
[responder por si mesmas], que seus pais o façam
e envia tua graça para estar sobre eles” (versões
ou então alguém da família”). Com frequência
orientais). (A diferença nas versões tem sido con
os historiadores e exegetas têm grande interesse
siderada relevante em debates sobre a “confir
eclesial e eclesiológico aqui, pois a resposta, ain
mação” e 0 momento da dádiva do Espírito.) Em
da que não ofereça uma solução definitiva, afeta
seguida, o bispo derrama óleo consagrado sobre
0 debatido tema da impropriedade, legitimidade
cada cabeça e, repousando ali as mãos, declara;
ou necessidade do batismo de crianças pequenas.
“Eu te unjo com óleo santo em Deus Pai todo-po-
Alguns autores dos séculos iii e iv mencionam
deroso, e em Cristo Jesus, e no Espírito Santo”.
o batismo de crianças pequenas como um costu
(A dupla unção pós-batismal, pelo presbítero e
me apostólico. Dos tempos apostólicos, a única
pelo bispo, é uma peculiaridade do rito romano.)
prova potencialmente concreta que existe é a re
O bispo “sela” a fronte com o sinal da cruz, bei
ferência ao batismo de “casas” ou “ famflias” em
jando o neófito e dizendo: “ 0 Senhor seja conti
Atos (até quatro casos) e em Paulo (uma vez).
go” , recebendo a resposta: “ E com o teu espírito”.
De acordo com Atos 10.2, Cornélio temia a Deus
Então, pela primeira vez, os recém-batizados
“com toda a sua casa [synpanti tõ oikõ autou]”, e
oram com a congregação toda e trocam o beijo
Pedro foi enviado a lhe anunciar “palavras pelas
de paz. A eucaristia vem em seguida, momento
quais serás salvo, tu e toda a tua casa” (At 11.14).
em que os neófitos não apenas recebem o pão
Para a visita de Pedro, Cornélio chamou “ seus
( “o antítipo do corpo de Cristo”, entregue com as
parentes e amigos mais chegados” (At 10.24), e,
palavras “ 0 pão celeste em Cristo Jesus”), mas
depois que “ o Espírito Santo desceu sobre todos
também provam três cálices: de água (“com o
os que ouviam a palavra” anunciada por Pedro
sentido de lavar, a fim de que o homem interior,
(At 10.44), 0 apóstolo ordenou que fossem bati
a alma, também receba as mesmas coisas que o
zados (At 10.48). De acordo com Atos 16.14,15,
corpo”), de leite e mel (“em cumprimento da pro
Lídia, cujo coração o Senhor havia aberto para a
messa feita aos pais”, em que agora Cristo nutre
mensagem de Paulo, foi “batizada com sua casa
os crentes “como criancinhas, fazendo com que
[kai ho oikos autês]
a amargura do coração se torne doce mediante a
e Silas disseram ao carcereiro filipense: “Crê no
Segundo Atos 16.31,32, Paulo
suavidade de sua Palavra”) e de vinho misturado
Senhor Jesus, e tu e tua casa [sy kai ho oikos sou]
(“ o antítipo do sangue que foi derramado por to
sereis salvos.” Então eles “pregaram a palavra de
dos que creem nele”).
Deus a ele e a todos os que eram de sua casa
S. O batismo de crianças pequenas
cereiro foi “batizado, ele e todos os seus [kai hoi
Dos documentos mais antigos vêm à tona certos
autou hapantes]’’ (At 16.33), e “alegrou-se muito
[pasin tois en tê oikia autou] ” ; imediatamente o car
fatos sobre o batismo. Do lado divino, o batismo
com toda a sua casa \panoikei], por haver crido
é uma ocasião (ou mesmo um meio) e certamen
em Deus” (At 16.34). De acordo com Atos 18.8,
te um testemunho da atividade salvadora de Deus
“Crispo, chefe da sinagoga, creu no Senhor com
numa pessoa com base na obra redentora de Cris
toda a sua casa [syn holõ tõ oikõ autou]. Também
to. Mas, do lado humano, em nenhum momento
muitos dos corintios, quando o ouviam, criam e
é dispensada a fé humana. Nos casos mais clara
eram batizados”. Em ICoríntios 1.16, Paulo es
mente demonstrados do período apostólico e dos
creve que batizou “a família de Estéfanas [ton
181
B a t is m o i i i ; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e
Stephana oikon\”, a quem chama “as primícias
em Cipriano; um recém-nascido “ não pecou, ex
da Acaia”
e a respeito de quem diz “têm
ceto pelo fato de que, por ter nascido na carne de
se dedicado ao serviço dos santos” (ICo 16.15).
acordo com Adão, contraiu a mais antiga morte
[ara]
Pela maneira em que as histórias são relatadas
em seu nascimento primevo; contudo, justamen
em alguns desses casos, é possível identificar os
te por causa disso, ele recebe mais facilmente o
batizados como aqueles que ouviram a Palavra e
perdão de pecados, pois não são seus pecados
creram, mas em outros a “casa” que foi “salva”
que são perdoados, mas os de outro” [Ep, 65; acrescenta passagens semelhantes da lavra
pode ter sido mais ampla. Em especial, os que
A la n d
buscam provas apostólicas a favor do batismo de
de Orígenes). Mais tarde, Agostinho de Hipona
crianças pequenas defendem que as “casas” que
iria apelar à prática eclesiástica de batizar crian
foram “ salvas” e “batizadas” deviam ter crianças
cinhas — quando o batismo é “para a remissão
pequenas. Na avaliação dos que se opõem ao ba
de pecados” — como prova litúrgica da doutrina
tismo de crianças, dificilmente se poderia dizer
do pecado original (e.g.. Sermão 174,
que crianças pequenas teriam ouvido a Palavra e
p. 944-5; Epístola 194,
pl,
v.
pl,
v.
38,
33, p. 889-91).
No plano teológico, defensores do batismo
crido e, por isso, não foram batizadas. 0 debate clássico dos últimos tempos sobre os
infantil apresentam vários relatos, isolada ou
primórdios da história do batismo de crianças foi
conjuntamente, da relação entre fé e tal batismo.
0 travado entre J. Jeremias e K. Aland. Enquan
Uma criança pode ter fé (como, no exemplo de
to Jeremias, tendo o
Lucas, 0 João embriônico que saltou no ventre
at
como base, sustenta que
uma “ fórmula oikos’’ quase ritual inclui crianças
de Isabel quando diante do Verbo, que estava no
— e, talvez por isso mesmo, especialmente assim
ventre de Maria); uma criança pode receber fé
— , Aland considera que o sentido da palavra ge
mediante o batismo; representantes podem se
nérica “casa” em qualquer texto depende do con
responsabilizar pela fé da criança; a comunidade
texto e assinala que crianças bem pequenas não
de fé pode “ fornecer” a fé daquele que lhe está
são mencionadas em lugar algum nas passagens
sendo acrescentado; a criança pode ser batiza
relevantes do
Aland também não se deixa im
da com vistas ã sua fé futura. Além do mais, a
pressionar com 0 apelo de Jeremias a provas lite
prática do batismo de crianças pequenas é vista
rárias indiretas do início e de meados do século ii
como coisa autorizada ou mesmo necessária por
(como a confissão de Cristo pelo mártir Policar
sua congruência com uma variedade de temas da
po; “Há 86 anos venho sendo seu escravo”) ou
soteriologia e antropologia bíblicas; a necessida
aos dados de inscrições funerárias, as quais, de
de que a humanidade decaída tem de redenção;
qualquer maneira, pertencem ao século iii. Aland
a unidade da aliança de Deus (em que o batismo
encontra no tratado de Tertuliano De baptismo a
é a circuncisão cristã); a preveniência da graça;
pista para o início do batismo de criancinhas. Ali
a universalidade do oferecimento do evangelho;
Tertuliano se opõe ao que, para Aland, soa como
a justificação imerecida; o poder intercessor de
uma nova prática de levar crianças pequenas para
outros; a solidariedade da família. Os que rejei
serem batizadas. Reconhecendo que o Senhor
tam 0 batismo de criancinhas a favor do batismo
disse “Não os embaraceis de vir a mim” (^;;^),
apenas mediante profissão de fé pelo candidato
Tertuliano chega à seguinte conclusão: “De modo
defendem que a fé inclui uma capacidade de
que deixai que venham, quando estão aprenden
compreensão e é pessoalmente insubstituível.
do, quando estão sendo ensinados naquilo que
Além do mais, a “nova” aliança exige circuncisão
nt
.
devem ser; deixai que se tornem cristãos quando
“do coração” ; a preveniência da graça e a uni
se tornarem capazes de conhecer a Cristo” (De
versalidade do evangelho estão apropriada e su
ba, 18). Para Tertuliano, a infância continua sen
ficientemente incorporadas na pregação do Verbo
do uma idade de inocência (innocens aetas): “Por
a todos; o pecado original não implica culpa pes
que a tenra idade teria de se apressar para a re
soal em cada ser humano desde o nascimento; a
missão de pecados?” De acordo com Aland, o ba
justificação pode ser “por fé somente” , mas não
tismo infantil deve ter surgido com a aceitação da
ocorre “ sem a fé” ; pais, responsáveis e a igreja
ideia de pecado original, finalmente representada
exercem devidamente suas responsabilidades e
182
B a t is m o i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
privilégios para com as crianças mediante oração
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julg am ento d e .
V
er
evang elh o
C abeça,
a u t o r id a d e .
Ver m u l h e r e s
il
(e.g., “Humanidade” ou “Rebeldia humana”) e en volveria 0 estudo dos outros termos que perten
C a if á s .
Ver J e s u s ,
julg am ento d e.
cem ao campo escolhido (e.g., “ mundo” , “corpo” , “ser humano”, “pecado”, “espírito”, “promessa”).
C a r c e r e ir o
de
F il ip o s .
C
Ver
Ver
b a t is m o i i i .
A opção 2 é, então, a melhor aqui; permite aces so a todos os campos a que o termo paulino sarx
a r is m a t a .
E s p í r it o S a n t o
ii.
pertence. Isso, contudo, leva-nos a conjecturar se não existem outros conceitos que Paulo poderia ter
C ar n e: P aulo
pretendido ao empregar sarx em suas cartas, mas
Há muito tempo os intérpretes reconliecem que é
por algum motivo não o fez.
complexa a maneira em que Paulo utiliza a palavra
1. Os campos semânticos retratados
grega sarx, frequentemente traduzida por "carne” ,
2. Impressionantes aspectos contextuais de ca
e a linguística contemporânea tem lançado mais luz sobre a natureza dessa complexidade. Mesmo
ráter formal 3. Comparação entre outros autores judeus e os autores cristãos
assim, os intérpretes de Paulo ainda tendem a falar do "ponto de vista de Paulo a respeito da carne”.
4. Questões teológicas
Mas esse proceder implica definir se com a palavra “carne” queremos dizer 1) as várias noções a que o
1. Os campos semânticos retratados
termo se refere na língua portuguesa, 2] as noções
Paulo emprega sarx em pelo menos seis sentidos
a que Paulo se refere quando usa o termo sarx ou
diferentes.
3) um dos empregos paulinos mais típicos.
1.1
A matéria física. Paulo usa sarx para se
Deve se rejeitar a opção 1, pois implicaria que
referir à matéria física que forma o corpo vivo de
Paulo escreve como um falante de português do
seres humanos e animais. O exemplo mais óbvio
De todo modo, é impossível existir uma
desse sentido é ICoríntios 15.39, em que Paulo
correlação consistente entre as várias aplicações do
menciona várias partes de carne de animais vivos
século
XXI.
termo português “carne” e as do grego sarx, como
(em oposição â carne para comer). Nesse contex
Paulo as usava. A opção 3 é uma escolha melhor,
to, Paulo usa a palavra sõma, “corpo”, fazendo
visto ser reconhecido que, até mesmo no contexto
paralelo com sarx (ICo 15.38,39; cf. Cl 1.22). Em
de um único idioma, uma palavra pode ter inú
outras passagens, na metáfora paulina do “espi
meros sentidos, alguns sem relação alguma entre
nho na carne” (2Co 12.7) e na sinédoque “car
si. Falar da ideia paulina a respeito da carne im
ne e sangue" (ICo 15.50; Gl 1.16; invertida em
plicaria escolher um sentido ou campo semântico
Ef 6.12; “o sangue e a carne” ,
no universo de sentidos a que sarx pertence. Isso,
em Sb 12.5), sarx refere-se â matéria física. Esse
no entanto, suscita a pergunta; qual? Tal escolha
detalhe nem sempre é notado, pois em cada caso
iria requerer um título diferente para este verbete
a expressão indica, respectivamente, “problema”
ara
;
cf. uso literal
C a r n e : Pa u l o
ou “humanidade”. De modo similar, na expressão
passagem mais ambígua é Romanos 8.3b (“ Deus
paulina “tábuas de carne” Uím; lit., “corações de
0 fez [...] enviando o seu próprio Filho em seme
carne” [kardiais sarkinois], 2Co 3.3} sarx faz par
lhança da [sane] pecaminosa”), o que pode ser
te de uma metáfora mais ampla que designa a
Udo como “em semelhança de humanidade pe
vida dos crentes. Romanos 2.28 [en sarkiperitomê,
caminosa”. É possível que a referência de Paulo
“circuncisão na carne”) talvez também faça parte
à nação judaica na sua totalidade como “minha
dessa categoria, aqui empregada como eufemis
carne” (Rm 11.14,
mo, embora possa ser incluída na próxima (v. 1.2
usos relacionados no item 1.4 (v.
abaixo; observe-se a locução adverbial en tõ pha-
1.4
nerõ, “exteriormente”).
arc)
seja resultado de certos Is r a e l).
A esfera moralmente neutra. No grupo
com essa rubrica estão aquelas passagens que
1.2 O corpo humano. Por meio de sinédoque,
tratam de relacionamentos humanos baseados
em ICoríntios 6.16 sarx dá a ideia do corpo intei
em processos humanos de nascimento. De algu
ro ( “Ou não sabeis que quem se une a uma pros
ma forma, todas essas passagens dizem respei
tituta torna-se um corpo [sõma] com ela? Como se
to a Israel, suas tradições e seus descendentes
disse, os dois serão uma só carne [ío/t] ”, numa
(ICo 10.18; Rm 1.3; 4.1; 9.3,5,8). Dentre essas
citação de Gn 2.24; cf. Ef 5.29,30; Cl 2.1; 1.22?;
referências, o contraste entre sarx e pneuma em
2.11; Eo 25.26). Aqui sarx aparece em paralelo
Romanos 1.3 é feito entre a existência natural
com sõma e talvez também com meios, “ membro”
de Cristo — “nasceu da descendência de Davi”
(ICo 6.15) e é posta em contraste com pneuma,
—, de um lado, e, de outro, sua exaltada posição
“espírito” (ICo 6.17). Dessa maneira, sõma atrai
divina (cf. ITm 3.16; Fp 2.9-11). Nesse caso, ao
sarx para sua esfera, para seu campo semântico
contrário de outras passagens, a palavra sarx não
(cp. ICo 15.38,39 em 1.1 acima).
adquire uma ideia negativa (v. 1.6 abaixo).
Nessa
categoria
devemos
incluir
As
2Corín-
ocorrências
encontradas
em
Gálatas
tios 7.1, em que Paulo pode fazer um contraste,
4.23,29 são, porém, mais ambíguas. Paulo faz
respectivamente, entre a carne, que é corruptível
um contraste entre Ismael, o “ filho da escrava”,
e exterior, e o espírito, que é interior (cf. Cl 2.5;
que nasceu “ segundo a carne” [kata sarka,
dianoiai, Ef 2.3).
e Isaque, o filho da “livre” , que nasceu “ median
arc),
Sarx como corpo humano também está sujeita
te uma promessa”. Se Paulo está pensando no
a condições fisiológicas e ritos religiosos. Na pri
primeiro filho de Abraão, a saber, Ismael, como
meira vez em que Paulo pregou na Galácia, isso
alguém que nasceu por causa da incredulidade
aconteceu em razão de alguma enfermidade no
rebelde do pai, sarx transmitiria um sentido mais
corpo [d i’astheneian têssarkos, Gl 4.13,14), e seus
de acordo com o uso descrito no item 1.6 (“A
oponentes naquela localidade queriam circunci
natureza humana rebelde”). O contraste subse
dar os crentes para se vangloriar do estado do
quente em Gálatas 4.29 entre aquele que nasceu
corpo deles [hina en tê hymetera sarki kauchêsõntai,
kata sarka e aquele que nasceu kata pneuma ( =
Gl 6.13, em que essa condição é contrastada com
Espírito Santo?) tende a confirmar isso.
a cruz de Cristo em Gl 6.14). O uso que Paulo
A essa categoria também pertencem referên
faz da palavra em 2Coríntios 7.5, “a nossa carne
cias ao andamento e comportamento normais da
[sarx] não teve repouso algum”
vida humana: Gálatas 2.20, Filipenses 1.22,24
(a r c ),
pode ser
mais bem classificada no item 1.3 (v. 2Co 2.13,14,
e provavelmente ICoríntios 7.28, em que se es
em que o assunto central são as ansiedades que
tabelece um paralelo com kosmos ( “mundo” ,
Paulo tem no íntimo; cf. SI 62.2,
lxx
ICo 7.31). Em Filemom 16, o texto diz que o rela
[63.1]).
cionamento de Onésimo com Filemom tem uma
1.3 A pessoa humana, a espécie humana. Imitando o uso da
lxx
,
carne”,
arc,
dimensão social [en sarki, “na carne”) em con
posa sarx, Gálatas 2.16
e ICoríntios 1.29 (“ ninguém”,
ara
-,
traste com uma dimensão especificamente cristã
“nenhuma
[en kyriõ, “no Senhor”). É possível que a “ nos
lit., “toda carne”, ambas as passa
gens com 0 sentido de “ser humano”) e também
sa carne mortal” [tê thnëtë sarki hêmõn,
Romanos 3.20 referem-se à humanidade inteira
que se manifesta a vida de Cristo (2Co 4.11; cf.
ou talvez a um indivíduo (cf. Mt 24.22). Uma
arc) ,
em
Cl 1.24), se refira ao corpo humano (v. 1.2 acima;
185
l a r n e : kaulo
cf. 0 paralelo com sõma em 2Co 4.10), porém o
pois emprega pneuma para designar o espírito
mais provável é que seja referência à vida terrena
humano. Mesmo assim, sarx nâo se refere ao cor
normal de Paulo. O uso que Paulo faz em Roma
po. Dependendo da data atribuída a Gálatas e às
nos 6.19 (“ falo como ser humano, por causa da
Cartas aos Tessalonicenses, o sentido é, provavel
fraqueza da vossa carne” , astheneian tês sarkos;
mente, um desdobramento posterior para Paulo.
cp. Gl 4.13 em 1.2 acima) vai além da fraqueza
Aqui ele não está elogiando a enfermidade ou a
física (cf.
morte, mas a destruição da rebeldia, resultado
n v i:
“limitações humanas”). Em ICo-
ríntios 9.11 e Romanos 15.27, Paulo afirma que
que é sinônimo da crucificação da carne, o ob
quem proporciona bênçãos “espirituais” tem o
jetivo do Espírito na luta contra ela (Gl 5.24,17).
direito a sustento físico.
No pensamento de Paulo, a alternativa inaceitá
2.5 A esfera moralmente negativa. Com isso
vel para os crentes é que deem oportunidade para
queremos dizer o emprego pauUno de sarx quando
essa rebeldia ceder a seus desejos (Gl 5.13,16,19-
a palavra é aphcada ao “mundo”, os sistemas de
21; 6.8; Rm 13.14). Não existe nada de bom em
valores da humanidade que se opõem ao de Deus.
viver na natureza rebelde, pois, por meio dela,
Em Filipenses 3.3,4, que introduz uma exposição
serve-se à lei do pecado (cf. Rm 7.5, num con
elaborada de um sistema de valores baseado na
traste com a Lei e o código escrito; Rm 7.18, num
cultura judaica, e em Gálatas 6.12, que é um texto
paralelo com o ego de Paulo; Rm 7.25, num con
que pressupõe esse sistema, Paulo descreve a to-
traste com nous, “mente”). Como já menciona
tahdade como en sarki (v.
Outro
do (v. 1.4 acima), em Gálatas 4.23,29 o contraste
sistema de valores, baseado na cultura helénica,
ocorre entre aquele que nasce ou pela impaciência
mas tão daninho quanto o primeiro, é o foco de
rebelde do pai ou pelo processo natural de repro
ICoríntios 1.26. Aqui Paulo pode descrever os “ sá
dução humana, de um lado, e, de outro, aquele
P
au lo , o
Ju d e u ) .
bios” [sophoi] como pessoas kata sarka, que ele
que nasceu pela intervenção do Espírito nesse
põe em paralelo com “mundo” em ICoríntios 1.27
processo. Em Gálatas 4.23, o contraste entre sarx
(cf. 2Co 1.12). Paulo é acusado de tomar decisões
e epangelia (“promessa”) sugere rebeldia da par
e viver a vida com base nesses valores (2Co 1.17;
te de Abraão. Romanos 8.1-14 é o texto clássico
10.2). Ele nega isso: é possível alguém viver no
sobre o assunto, em que a sarx rebelde e a vida
meio de tal sistema sem que nele molde seus mé
que dela se origina fazem contraste com a vida no
todos (2Co 10.3,4). Pessoas, até mesmo Cristo,
Espírito (v. item 4 abaixo).
podem ser avaliadas com base nessa perspectiva
O uso que Paulo faz de sarkinos em 1Corin
falsa (2Co 5.16), e a consequência natural é uma
tios 3.1 soa como uma crítica ad hominem a al
arrogância sem sentido (2Co 11.18).
guns crentes residentes em Corinto que tinham
1.6 A natureza humana rebelde. Em Paulo, o uso mais característico e frequente de sarx é
tendências gnósticas. Nesse caso, é provável que
0 sentido seja “imaturos”, não “rebeldes”.
sua aplicação ã natureza humana pecaminosa (v. pecad o )
. Bem mais da metade desses casos acon
2. Impressionantes aspectos contextuais de
tece em Romanos, na maior parte em Romanos
caráter formal
8. Os demais, com uma exceção (ICo 5.5; cf. tb.
São dignas de nota algumas correlações entre a
ICo 3.3), aparecem em Gálatas. De modo análo
estrutura gramatical formal e a atribuição ou es
go, em mais de dois terços dos inúmeros casos
colha de campo semântico:
de contraste entre sarx e pneuma, sarx refere-se
1)
Quando Paulo emprega kata sarka (“ segun
à natureza humana caída. A maioria dos casos
do a carne”) -i-
acha-se em Gálatas 5 e 6 e Romanos 8. Quanto
campo semântico é o de ideias moralmente ne
aos demais (Gl 3.3; Rm 7.5; ICo 5.5), Gálatas 3.3
gativas (v. 1.5 acima). Quando utiUza kata sarka
verbo
(e.g., 2Co 1.17; 5.16), o
é representativo do grupo todo (v. item 4 abaixo).
+ SUBSTANTIVO (e.g., Rm 4.1; 9.3), o campo se
Um texto peculiar é ICoríntios 5.3,5 (“ 0 autor
mântico é o de neutralidade moral (v. 1.4 acima).
de tal infâmia seja [...] entregue a Satanás para a
Isso foi observado por R. Bultmann (p. 236-7) e
destruição da carne [sare], a fim de que o espíri
é confirmado aqui (cf. kata anthrõpon, “de modo
to [pneuma] seja salvo no Dia do Senhor” , a r a ) ,
usual”, ICo 3.3).
186
C a r n e : Pa u l o
2) As ocorrências de sarx com conotação ne
decididamente paulino, com raízes na literatura
gativa (v. 1.5 acima) não trazem artigo. Isso pro
apocalíptica judaica. É talvez imitado, mas não
vavelmente seja resultado do emprego que Paulo
adotado sem reservas pelos outros autores cris
faz de expressões estereotipadas em que se usam
tãos dos primórdios.
preposições. Todos os contextos formais trazem ou a forma kata sarka (“segundo a carne”) + VERBO
(e.g., 2Co 10.2,3) ou a forma en sarki (“ na
carne”) -i-
verbo
(e.g., Fp 3.3,4; Gl 6.12).
4. Questões teológicas Devido às implicações teológicas desses dados, os campos 1.1-1.4 e 1.5-1.6 constituem dois gru
3) Todos os usos de sarx no sentido amplo de
pos distintos: o primeiro indica um aspecto natu
“humanidade” (v. 1.3 acima), com uma exceção,
ral da criação, e o segundo, uma oposição a Deus
seguem o estilo da l x x : pasa sarx (“toda carne”).
4.1 A carne como aspecto natural da criação.
4) As ocorrências de sarx que designam a re
0 emprego do termo sarx em 1.1-1.4 (i.e., matéria
beldia humana (v. 1.6 acima) aparecem, quase
física, corpo humano, pessoa/raça humana, esfe
invariavelmente, com o artigo. Nessa categoria,
ra moralmente neutra), especialmente no sentido
também se enquadram quase todas as ocorrên
de esfera natural em que se dá a vida terrestre
cias de sarx em que a palavra é entendida seja
(cf. Rm 1.3), deixa implícito que Paulo continua
como sujeito, seja como objeto direto de um ver
va a partilhar a herança judaica de ter a criação
bo (em que este geralmente aparece na forma de
em alta conta. Na ótica paulina, o dualismo onto
substantivo abstrato), a menos que seja quaUfica-
lógico de pensadores helenistas é posto de lado,
do por um pronome possessivo, casos em que se
pois, visto que o corpo de carne e a humanidade
refere ao corpo humano.
são geralmente fracos e suscetíveis de corrup
3. Comparação entre outros autores judeus
rimentar ressurreição. A ideia de Paulo de que
e os autores cristãos
tanto a carne quanto o espírito (humano) podem
Parece que na
termo nunca é empregado
experimentar corrupção (2Co 7.1) significa, pro
com sentido moralmente negativo (v. 1.5 acima)
vavelmente, que ele não acolhia nenhuma ideia
nem como designação de rebeldia humana contra
de dualismo ético entre as naturezas superior e
Deus (v. 1.6 acima). Isso contrasta com Paulo,
inferior que coexistem numa pessoa e são natu
em quem ambos os sentidos aparecem na metade
rais em tal pessoa. Não se deve interpretar que a
das vezes em que ele emprega o termo sarx. 0
atitude aparentemente negativa expressa em 2Co-
paralelo mais próximo ao uso de sarx por Paulo
ríntios 5.1-10 com relação ao corpo da existência
é 4Macabeus 7.18. Embora esse documento seja
terrena deixe implícita uma ideia duaUsta.
ção, mesmo assim podem ser resgatados e expe
lxx
o
da época de Paulo, nessa passagem o sentido está
4.2 A carne em oposição a Deus. R. Jewett
mais de conformidade com o dualismo ético hele-
demonstra que o desenvolvimento dos vários
nizante de Filo que com o emprego paulino.
conflitos de Paulo prepara o cenário e oferece ex
No entanto, “carne” (gr., sarx; hebr., bãsãr)
pUcação para as inconsistências encontradas em
é palavra utihzada nos rolos de Qumran (e.g.,
seu uso do termo em 1.5 e 1.6 (i.e., esfera moral
IQS 11.7[?],9[?],12; IQM 4.3) e na literatura apo
mente negativa e natureza humana rebelde).
calíptica judaica (e.g.. Te Ju, 19.4; Te Zb, 9.7)
Daí podemos fazer as seguintes observações.
como designação da humanidade caída ou de
Gálatas 3.2,3 expõe cuidadosamente o dualismo
uma esfera cósmica maligna. É surpreendente
que caracteriza o uso peculiar de sarx por Paulo.
que, aqui, os pais apostólicos praticamente acom
É um duaUsmo entre carne e espírito no sentido
não altera
de carne como a confiança independente nos fei
muito o quadro: o vocábulo é usado uma vez (?)
tos pessoais, em oposição ao espírito de depen
para indicar uma atitude moral negativa (Jo 8.15)
dência em Deus e de submissão ao seu domínio
panhem a l x x . Mesmo o restante do
nt
e cinco vezes para se referir ã rebeldia (esp. em
(v. esp. Rm 8). Na controvérsia com os nomistas,
2Pe e Jd; cf. IJo 2.16). O emprego de sarx para in
em Gálatas 3.2,3, isso se traduz por um contraste
dicar a humanidade caída e o sistema maligno de
entre “ obras da lei” e “ ouvir com fé” (lit.; “pre gação da fé” , ara), a dependência de sistemas e
valores deste mundo é, portanto, um fenômeno
187
instituições com valores humanos para alcançar
meaning of lápÇin 1 Corinthians 5:5: a fresh appro-
poder e posição, bem como a indulgência liberti-
ach in the light of logical and semantic factois. ot,
nista como meio de conquistar a “vida”
26, p. 204-28, 1973.
(J e w e t t )
são, igualmente, manifestações de independência rebelde, as quais se distanciam da promessa divina
R. C arta
de
A
r ís t e a s .
Ver A
p ó c r if o s e
v
.
J . E r ic k s o n
P s e u d e p íg r a f o s .
de provisão de vida e dignidade pessoal mediante a fé em Cristo. Ironicamente, ao confiar na “car
C a r t a s , fo rm a s
ne”, a pessoa não alcança a vida, mas a morte.
A palavra grega epistole ( “epístola”, “carta”) ori
de
c a r t a s i: P a u l o
Esse é, na verdade, um dualismo apocalíptico
ginariamente se referia a uma comunicação oral
que antecipadamente enxerga o cristão regenera
enviada por mensageiro. No mundo antigo, o ter
do como alguém que, pela fé, já está “no Espí
mo “cartas” era designação ampla para indicar ti
rito” , sob o domínio de Deus, ao mesmo tempo
pos diferentes de documentos e podia incluir uma
que ainda vive uma existência “na carne” , na era
grande variedade de documentos comerciais, go
presente. A solução para a tensão assim criada é
vernamentais e legais, bem como relatórios políti
fazer morrer continuamente a carne e suas obras.
cos e militares e outros tipos de correspondência,
Mas a “ morte da carne” é odiosa e só pode ser su
especialmente de tipo pessoal. Paulo adaptou os
portada pela promessa divina de que já se outor
modelos de carta dos gregos e romanos, tendo em
gou à humanidade vida ressurreta em Cristo (cf.
vista os propósitos cristãos. Suas cartas, que por
Rm 5.12-21). Morrer essa morte e “revestir-se”
gerações têm fascinado muita gente, foram elabo
de Cristo é colocar-se de novo, como outrora no
radas quase sempre num modelo semelhante às
Éden, sob a proteção e provisão divinas, tornar-
cartas helénicas. Mas o apóstolo, que tinha um
se dependente e confiante. Isso também resulta
senso de liberdade quanto às questões literárias,
no amor pelo próximo, que provém da segurança
não estava preso a modelos fixos e, com frequên
que se tem em Cristo (cf. Gl 5.22-26).
cia, combinava costumes helénicos não judaicos
Ver também
com costumes judaico-helênicos.
pecad o ; pecadores.
1. Cartas particulares, pessoais? B ib u o g r a fia .
B ruce, F. F.
PauL
Apostle o f the heart
set free. Grand Rapids: Eerdmans,
R. Theology of the New Testament. R. By light, light:
■ B uit m ann ,
■ G oodenough,
Desde que A. Deissmann estabeleceu distinção
1935.
entre “cartas” , que eram compreendidas como
w ith em
expressões espontâneas, cotidianas e referentes a
Soma in biblical theology:
phasis on Pauline anthropology. Cam bridge: C am
1976.
Testament theology. ■ Jewett ,
situações específicas, e “epístolas”, vistas como
New
documentos formais, artísticos e literários, tem
D ow n ers Grove: InterVarsity,
havido considerável debate acadêmico sobre as
bridge University Press,
1981.
1. Cartas particulares, pessoais?
the mystic gospel of Hellenistic
Judaism. N e w Haven: Yale University Press, • G undry, R. H.
3. O uso de outras tradições literárias
N e w York: Scrib
1951, 1955, V. 1, p. 232- 46. 2 v.
ners, E.
1977.
2. A forma das cartas paulinas
■ G uthrie, D.
R. Paul’s anthwpobgical terms:
cartas de Paulo, se devem ou não ser considera
a
study of their use in conflict settings. Leiden: E. J.
das cartas pessoais e particulares. Sem dúvida,
BriU, 1971.
■ K uhn , K. G. N e w light on temptation,
eram cartas pessoais se comparadas aos ensaios
sin and flesh in the N e w Testament. In: Stendahl, K.,
literários, que adotavam uma forma epistolar,
org.
The scrolls and the New Testament.
Harper,
1957.
p.
T h s e lt o n , a
p.
identificado, universal, e às cartas oficiais, que
1974.
não eram escritas no contexto de um relacio
B aumgartel, F. a o p ^ k t A .
namento pessoal. Gálatas, por exemplo, é uma
G. E.
Grand Rapids: Eerdmans,
■ S chweizer, E.; M eyer,
[S.L;
mas eram escritos destinados a um púbhco não
A theology of
94-113. ■ L add ,
the New Testament.
TDNT.
N e w York:
R.;
s.n., s.d.]. v.
7. p. 98-151. ■ Seebass,
H. &
carta estritamente pessoal, escrita a um grupo es
s.n., s.d.].
pecífico de pessoas que desfrutavam um relacio
The Pauline view of man
namento direto com Paulo. Por abrangente que
. C. Flesh, n i d n t t . v .
671-82. ■ Stacey, W.
D.
1. [S.L;
in relation to its Judaic and Hellenistic background
seja 0 grupo de destinatários, a saber, “as igre
1956. ■
jas da Galácia”, a carta foi enviada a um grupo
London: M acm illan,
T m se u d n , A . C. The
188
C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : P a u l o
re la tiv a m e n te p o u c o im p o r ta n te d o m u n d o g re c o -
“santos” , “amados” ou “a igreja de Deus que está
r o m a n o (H ansen ).
em...” A saudação helénica de praxe, chairein
As cartas de Paulo, porém, eram mais que
(“ saudação”), é substituída por charis kai eirênê
pessoais. Ele escreveu tendo consciência de que
(“graça e paz”). Essa bênção é uma afirmação
era
seja, um representante do Cristo
sobre a graça e a paz de Deus, das quais os recep
ressuscitado (observe-se a ênfase no apostolado
tores já participam, e uma oração para que reco
em Gl 1.1,15,16; 5.2), com o objetivo de instruir,
nheçam e experimentem essas bênçãos de forma
aconselhar e repreender (observem-se ITs 5.27 e
ainda mais completa.
a p ó s to lo , ou
2Ts 3.14,15 quanto ao impacto na igreja de Tessa-
2.2
Agradecimento ou bênção introdutó
lônica). A maioria das cartas de Paulo foi dirigida
ria. Ocasionalmente, as cartas mais pessoais do
a comunidades de crentes em Cristo com o obje
período helénico começavam com um agradeci
tivo de que fossem usadas em público dentro das
mento aos deuses por benefícios pessoais rece
congregações. Eram escritos ocasionais e contex
bidos. Paulo adotou o modelo epistolar helénico,
tuais que tratavam de situações específicas (repa
expressando no início de suas cartas sua gratidão
re-se, porém, Efésios) e substituíam a presença
a Deus, o Pai de Jesus Cristo, por tudo que Deus
pessoal de Paulo. Ele estava preocupado com a
havia operado na vida dos leitores, predominan
condição da vida de seus leitores, mas nunca
temente gentílicos (e.g., ICo 1.4; Fp 1.3; Cl 1.3;
da forma impessoal que caracterizava muitas
ITs 1.2; 2Ts 1.3; Fm 4). Mas o apóstolo não foi
das cartas helénicas. Paulo tratava cada situação
um imitador mecânico dessa convenção epistolar,
como única e importante. Ao mesmo tempo, suas
visto que suas estruturas eram altamente desen
cartas contêm ensinos teológicos significativos e
volvidas e requintadas.
expressam, no que diz respeito à vida, uma com
Dois tipos básicos de estrutura ocorriam nos
preensão cristã que vai além da situação histórica
parágrafos de gratidão de autoria paulina. O
especifica.
primeiro, constituído de até sete elementos bá
2. A forma das cartas paulinas
e terminava com uma oração subordinada hina
Na Antiguidade, as cartas antigas, escritas por
ou equivalente, que expunha o conteúdo da in
escribas profissionais, eram muitas vezes estiliza
tercessão do apóstolo pelos leitores (Fp 1.3-11;
sicos, começava com o verbo de agradecimento
das, com cada parte sendo basicamente determi
Cl 1.3-14; ITs 1.2—3.13; 2Ts 1.2-12; 2.13,14;
nada por convenção, nâo importando a ocasião
Fm 4-7; cf. Ef 1.15-19). 0 segundo apresentava
ou o motivo. 0 modelo geral da carta helénica
uma forma mais simples. Também iniciava com
incluía a abertura, o corpo e a conclusão. A for
um agradecimento a Deus e terminava com uma
ma básica da carta paulina, na qual havia uma
oração subordinada hoti, que assinalava o moti
progressão normal, em vez de alguma estrutura
vo de ter expressado essa gratidão (ICo 1.4-9; cf.
estereotipada ou mecânica, continha os seguintes
Rm 1.8-10).
elementos: 2.1
Embora a estrutura dos períodos pauhnos de
Abertura. As cartas de Paulo, que seguem gratidão fosse helénica, descontando-se os ele
a costumeira abertura das cartas helénicas (“ De
mentos cristãos, 0 conteúdo revelava influência
A para B, saudações”), regularmente expandem
do pensamento veterotestamentário e judaico.
esse padrão básico (e.g., Rm 1.1-7; Gl 1.1-5;
Esses parágrafos, que começam com uma decla
ITs 1.1; Tt 1.1-4), e esses desenvolvimentos
ração de agradecimento a Deus, possuem uma
apontam, frequentemente, para os propósitos
função epistolar, a saber, introduzem e apresen
específicos da carta. A identificação do autor
tam os temas principais da carta, geralmente de
(com frequente menção ao nome de colaborado
terminando o tom e o clima. Muitos têm função
res) e dos destinatários é seguida de descrições
didática, de modo que, seja pelo ensino de algo
expandidas de ambas as partes referentes à sua
novo, seja pela revisão de instrução prévia, o
posição com Deus em Cristo. Paulo geralmente se
apóstolo expõe questões teológicas que conside
identifica com epítetos como “apóstolo” e “ ser
ra importantes (v. esp. Cl 1.9-14). Um propósito
vo” , ao passo que os destinatários são chamados
exortativo também aparece em algumas dessas
189
L a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : Ha u l o
passagens (e.g., Fp 1.9-11). Ademais, as palavras
0 conteúdo parenético ou exortativo era, em
de gratidão e petição aí incluídas dão mostra da
grande parte, constituído de conteúdo tradicional
profunda preocupação pastoral e apostólica de
(incluíam “instruções aos membros da casa” ; cf.
Paulo pelos leitores. Ao mesmo tempo, o apósto
Cl 3.18-4.1; Ef 5.22-6.9), derivado do
lo relata suas reais orações de gratidão e petição
literatura judaica, bem como de tradições morais
por eles.
helénicas (cf. Fp 4.8,9).
at
e da
Empregando uma forma de oração típica do
Outro aspecto típico do corpo das cartas de
AT e dos judeus, que denota louvor (cf. as conclu
Paulo é a “parusia apostólica” (i.e., presença
sões doxológicas dos livros do Saltério: SI 41.13;
planejada), em que o apóstolo revela seus pla
72.19,20 etc.), Paulo inicia duas de suas cartas
nos de viagem, inclusive a intenção de estar com
(2Co 1.3,4; Ef 1.3-14; cf. IPe 1.3-5) com uma
os leitores, e de seus contatos passados e futuros
bênção — ou eulogia [eulogêtos, "bendito”) — in
com eles por intermédio de seus colaboradores
trodutória. Conquanto suas palavras de gratidão
(ICo 4.17-21; 16.5-12; Fp 2.9-30; ITs 2.17-3.11;
ressaltem a obra de Deus na vida de outras pes
Fm 22). Visto que Paulo nâo tinha condições de
soas, suas eulogias louvam a Deus por bênçãos
estar com seus leitores, suas cartas eram um subs
de que ele próprio participa. A fórmula, que tem
tituto direto de sua presença pessoal e “deviam
contexto judaico, aparentemente era mais apro
receber um peso igual
priada quando o próprio Paulo estava envolvido no contexto da bênção. 2.3
à
sua presença”
(D
o ty).
Tópicos epistolares, ou seja, temas ocasionais e recorrentes das cartas antigas, também apare
Corpo. 0 corpo das cartas de Paulo mostra cem nas cartas de Paulo. Incluem os temas da
variedade considerável, pois é aqui, mais que em
composição das cartas (Rm 15.14; ICo 4.14),
qualquer outro lugar, que elas refletem as dife
saúde (2Co 1.8-11; Fp 2.25-30), assuntos domés
rentes situações epistolares. Ao que tudo indica,
ticos (ICo 5.1—6.11; Fp 4.2-4) e reencontro com
0 apóstolo estava mais inclinado a tomar o seu
os destinatários (Rm 15.14-33; ITs 2.17—3.13).
próprio rumo dentro do corpo de suas cartas e
2.4
Encerramento. Paulo fazia uso da típica
menos preso a estruturas epistolares. Tem havido
saudação de encerramento das cartas helénicas a
alguma dificuldade em determinar onde inicia e
fim de estabelecer vínculos entre as congregações
onde termina a seção do corpo das cartas (e.g.,
e seu ministério itinerante (cf. Rm 16.3-16,21-23;
em 1 e 2Tessalonicenses, parece que o corpo foi
2Co 13.12,13; Cl 4.10-17). Mas nâo incluía o cos
totalmente assimilado pelo agradecimento). En
tumeiro voto de saúde ou a palavra grega de des
trementes, algumas possíveis aberturas têm sido
pedida. Em vez disso, uma invocação de bênção
identificadas por meio de frases com o verbo pa-
(ICo 16.23; Gl 6.16,18; Ef 6.23,24; 2Ts 3.16,18)
rakaleõ (“Irmãos, rogo-vos...”, ICo 1.10; ITs 4.1;
ou uma doxologia (Rm 16.25-27; Fp 4.20; cf.
cf. Rm 12.1; 15.30), a fórmula de anúncio (“ não
Hb 13.20,21) cumpriam a mesma função. A súpli
quero que ignoreis”, Rm 1.13; Gl 1.11; Fp 1.12), a
ca final de bênção, que era a conclusão definitiva
expressão de júbilo (Fm 7), a expressão de cons
da carta, expressava quase sempre o forte desejo
ternação (Gl 1.6) ou a declaração de consentimen
de Paulo (e.g., que a graça do Senhor Jesus Cristo
to (Gl 1.8,9), ao passo que o término do corpo
estivesse com todos eles, ICo 16.24) e transmite
era ocasionalmente caracterizado por conclusões
um tom de confiança.
escatológicas (Rm 11.25-36; ITs 3.11-13) ou infor mações sobre suas viagens (v. 2.4 abaixo).
Outras convenções de encerramentos usadas por Paulo incluem referências a uma ou duas fra
0 agrupamento de várias fórmulas epistola
ses escritas de próprio punho (ICo 16.21; Gl 6.11;
res em certos pontos estratégicos assinala pau
Cl 4.18; 2Ts 3.17), aos préstimos de um amanuen
sas significativas ou pontos decisivos nas cartas
se (Tércio, Rm 16.22; cf.
(M
u l l in s ) .
a
transição clara de uma seção mais
R
ic h a r d s )
e um beijo san
to (e.g., Rm 16.16).
didática para uma longa seção parenética é as sinalada ocasionalmente com uma doxologia de
3. O uso de outras tradições literárias
conclusão e uma das fórmulas de transição (e.g.,
As cartas de Paulo apresentam não apenas
Rm 11.36— 12.1; Ef 3.21—4.1; ITs 3.11—4.1).
uma ampla variedade estilística, mas também
190
C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i : P a u l o
empregam diversas tradições literárias, inclusi
p o r três e le m e n to s : n o p r im e ir o , q u e é c o n c ilia tó
ve formas retóricas e métodos de persuasão da
rio , e le e lo g ia os le ito r e s p e lo q u e fiz e r a m n o p a s
época, estruturas quiasmáticas, diatribes, méto
sa d o . 0 s e g m e n to d o m e io c o n s is te e m c o n s e lh o ,
dos exegéticos midráshicos, em que se recorre à
e n q u a n to a s e çã o fin a l tra z u m a p a rê n e s e ( A u n e ) .
autoridade do
bem como material hínico tra
R. N. Longenecker afirma que, em Gálatas
dicional e fórmulas confessionais do cristianismo
como em outras cartas, “Paulo parece ter aprovei
primitivo. Parece que Paulo não se prendeu a ne
tado quase inconscientemente formas retóricas
nhuma convenção estilística — epistolar, homilé-
disponíveis, adaptando-as às estruturas epistola
tica ou oratória. A forma epistolar desenvolvida
res que havia herdado e preenchendo-as com mé
nas cartas de Paulo era mais rica que as breves
todos exegéticos e temáticas recorrentes judaicos
cartas pessoais ou que os ensaios epistolares
que fossem particularmente significativos para se
mais desenvolvidos do helenismo. Observemos
opor ao que os judaizantes estavam dizendo aos
rapidamente o seguinte:
convertidos do apóstolo”
at,
3.1 Formas litúrgicas. O propósito das car
(L
p. cxix).
ongenecker,
V er ta m b é m e v a n g e l h o ( g ê n e r o ) ; r e t ó r i c a .
tas do apóstolo era que fossem lidas em voz alta
D PC: BÊNÇÃO, i n v o c a ç ã o , d o x o l o g i a , a ç ã o d e g r a
às congregações a que se destinavam (ITs 5.27;
ças;
Cl 4.16). É possível que essa situação desejada
d ia t r ib e ;
explique a inclusão de fórmulas litúrgicas em car
p r e t a ç ã o DE P a u l o ; rriN E R ÁR ios, p la n o s d e v ia g e m , v i a
tas cristãs. Estudos recentes sugerem que os se
g e n s , p a ru s ia a p o s t ó l i c a .
CASAS
E c ó d ig o s
e le m e n t o s
DOMÉSTICOS;
litú r g ic o s ;
CRÍTICA
RETÓRICA;
h e r m e n ê u tic a / in te r
guintes elementos pertencem a essa categoria: 1) invocações de “graça” ; 2) bênçãos (Rm 1.25;
B iB L iO G R A n A . A u n e , D .
9.5); 3) doxologias (Rm 11.36; Gl 1.5); 4) hinos
literary environment. Philadelphia: Westminster,
(cf. Cl 3.16); 5) confissão e reconhecimento
1987. ( l e g ) . ■ B a h r ,
(Rm 10.9; ICo 12.3).
PauUne Letters,
3.2 A retórica greco-romana. Paulo explicita
m ann, A .
E.
G.
jb l, v.
J.
The New Testament in its The subscriptions in the
87,
p.
27-41, 1968. ■ D e is s
Light from the Ancient East. 2. ed. Lon
sua tarefa apostólica básica como sendo pregar
don: Hodder & Stoughton. ■
0 evangelho (Gl 1.16). Quando escreve suas car
in primitive Christianity. Philadelphia: Fortress,
tas, ele o faz como um pregador do evangelho.
1973. • F u n k ,
Suas cartas, embora reais, ainda assim, em mui
Word of God. New York: Harper and Row,
tos aspectos, são semelhantes à expressão oral.
p.
D o ty ,
W. G. Letters
R. W. Language, hermeneutic and
250-74. • ________ . T h e
1966.
apostoUc parousia: form
Por esse motivo, qualquer análise epistolar tem
an d s ig n ific a n c e . In: F arm er , R . W .; M oule , C. F.
de ser suplementada por uma averiguação da
D. & N iebuhr , R . R ., orgs.
retórica de sua argumentação. Os métodos per
interpretation:
suasivos dos manuais de retórica clássica eram
C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv e r s ity Press, 1967. p.
Christian history and
stu d ies p r e s e n te d to J oh n K n o x .
bem conhecidos nos dias de Paulo, e não era ne
249-68. ■ H ansen ,
cessário treinamento formal em retórica para usar
e p is to la ry a n d r h e to ric a l c o n te x ts. S h e ffie ld :
G.
tais métodos. Cada tipo de fala podia ser formado
1989. [ j s n t , 2 9 .) ■ L ongenecker , R. N .
W.
Abraham in Galatians: jsot,
Galatians.
por quatro elementos: 1) exordium (introdução);
D a llas: W o r d , 1990. [w b c , 4 1 ). ■ M u llins , T. Y. F or
2) narratio (apresentação dos fatos); 3) probatio
m u la s in N e w T e sta m e n t E p istles, j b l , v . 91, p.
(raciocínio); 4) peromtio (conclusão). 0 objetivo
380-90, 1972. ■ ________ . T o p o s as a N e w Testa
da introdução e da conclusão era influenciar o
m e n t fo rm . JBL, v. 99, p. 541-7, 1980. • O ’B r ien ,
público, conquistando seu interesse e boa vonta
P. T.
de, e concluir com uma recapitulação dos argu
Paul.
Introductory thanksgivings in the Letters of
mentos e com a apresentação de um pedido. 0
■ Richards, E. R.
corpo da fala procurava demonstrar os argumen
PfluZ.T ü b in g e n : J. C. B. M o h r, 1991. ( w u n t , 2 .4 2 .) •
tos. A maior parte das cartas cristãs primitivas
Sanders, J. T. T h e tra n s itio n fr o m o p e n in g e p is to
L e id e n : E. J. B rill, 1977.
[NovTSup,
4 9 .)
The secretary in the Letters of
foi escrita basicamente para servir de orientação.
la ry th a n k s g iv in g to b o d y in th e P a u lin e co rp u s.
Excetuadas as fórmulas epistolares de abertura e
JBL, V.
encerramento, as cartas de Paulo são constituídas
writing in Greco-Roman antiquity.
191
81, p. 348-62, 1962. ■ Stow ers, S. K .
Letter
P h ila d e lp h ia :
C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i i :
Westminster, 1986.
H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lip se
J. L. Introduc
a grande maioria das cartas na Antiguidade. Ma
tory formulae in the body of the Pauline Letter.
nuais epistolares antigos classificam as cartas em
90, p. 91-7, 1971. ■ ______ . Light from
seus muitos tipos: amizade, família, louvor e acu
JBL, V.
(lec.) ■ W
h it e ,
ancient letters. Philadelphia: Fortress, 1986. ■
sação, exortação e conselho, entre outros. Esses
______ . The form and function of the body o f the
são os tipos ideais que podem ser trabalhados e
Greek Letter. Missoula: Scholars, 1972.
misturados com outros tipos.
[ sb ld s,
2.)
Cartas antigas da época do
P T. O ’B rien
nt
foram influen
ciadas por convenções retóricas e podem ser C artas,
fo r m as de car tas ii:
H
ebreus,
C artas G
A
p o c a l ip s e
classificadas de acordo com três tipos de retórica:
e r a is ,
judicial (acusação e defesa), deUberativa (persua são e dissuasão) e declarativa (elogio e acusa
A igreja primitiva dependeu da carta pela neces
ção). Por exemplo, cartas de acusação e apologia
sidade de transmitir a longas distâncias assun
são judiciais; cartas de conselho e exortação são
tos importantes do evangelho e da comunidade
deliberativas; cartas de recomendação e louvor
cristã. Vários fatores peculiares à igreja primitiva
são declarativas.
influenciaram a forma em que essas cartas foram
Quanto mais se comparam as antigas cartas
escritas. Além de muitos outros, podemos citar a
cristãs com cartas hterárias, não com cartas do
compreensão do relacionamento entre cristãos no
cumentais (como aconteceu no passado), mais
que diz respeito aos vínculos de famíha, ã autori
se percebe o seu requinte retórico. As primeiras
dade singular dos apóstolos e de seus sucessores,
cartas cristãs apresentam padrões de argumenta
ao desejo de apresentar de modo convincente o
ção e estruturação e muitos aspectos estilísticos
evangelho e suas consequências práticas para a
de convenção retórica greco-romana emprega
vida e a influência da linguagem litúrgica. No
dos em cartas hterárias. A anáhse retórica tem
cristianismo primitivo, os que escreveram cartas
sido útil para determinar o corpo indefinível da
(e cujas obras se encontram dentro e fora do
carta, o qual estava menos preso a convenções
nt)
adaptaram as formas epistolares e retóricas do
epistolares.
mundo greco-romano para dar origem a requin tadas criações hterárias
Em geral, as cartas cristãs primitivas são uma mistura dos tipos ideais de cartas e classifica
1. Classificação das cartas cristãs primitívas
ções retóricas, mas nem sempre adequadamente
2. A forma das cartas cristãs primitivas
classificados num modelo de carta ou num tipo
3. A forma da Carta aos Hebreus, das Cartas
retórico. Hebreus e as Cartas Gerais são costumei
Gerais e de Apocalipse
ramente classificadas como cartas de exortação e conselho, mas também revelam características de
1. Classificação das cartas cristãs primitivas
outros tipos. Em parte ou no todo, têm sido clas
No início do século xx, A. Deissmann estabeleceu
sificadas de acordo com os três tipos de retórica.
uma distinção questionável entre cartas não Uterá-
Determinar o modelo de carta e classificar o tipo
rias e documentais (tratando de situações específi
retórico são tarefas interdependentes, visto que,
cas e pessoais) e epístolas literárias (escritas para
em vários pontos, as cartas eram influenciadas
a posteridade, públicas, retoricamente requinta
por convenções retóricas.
das), uma distinção que persiste até hoje. Ele clas sificou as cartas do
nt
como documentais, mas a
análise retórica das cartas do
2. A forma das cartas cristãs primitivas
demonstrou que
As cartas cristãs seguiram as convenções das car
elas se enquadram num meio-termo entre as cate
tas gregas com algumas modificações, que podem
nt
gorias de Deissmann, sendo situacionais e ainda
ser atribuídas à experiência cristã. Cartas gregas,
assim possuindo requintes de retórica.
especialmente na abertura e no encerramento, são
As antigas cartas eram de vários tipos, depen
determinadas pela convenção. Começam com a
dendo do contexto em que surgiam e o objetivo
abertura da carta (ou pré-escrito), constituída da
a que serviam. Os relacionamentos de amizade,
seguinte fórmula: remetente [superscriptio] para
de famflia e entre comerciante e freguês geravam
destinatário [adscriptio], saudações [salutatio].
192
C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s i i : H e b r e u s , C a r t a s G é r a is , A po c a lipse
As cartas cristãs elaboram tipicamente o pré-es-
pontes para alguma comunicação adicional. Cos
crito, descrevendo o remetente e o destinatário na
tuma iniciar com a forma imperativa da fórmula
sua relação com Deus (e.g., “apóstolo”, “eleitos
de divulgação, usando o verbo ginõskõ (“ saber” ,
por Deus”). A saudação da carta grega emprega
“conhecer”), e prossegue com declarações de res
um verbo de saudação (chairõ) e um desejo pela
ponsabilidade, instando os destinatários a prestar
saúde {hygianõ) do destinatário, mas nas cartas
atenção ao conteúdo da carta e a responder con
cristãs esses elementos se tornam, respectivamen
forme desejado. Pode notificar os destinatários da
te, “graça” {charis] e “paz” {eirênê], em geral apre
intenção do remetente em visitá-los, cujo motivo é conversar face a face, em vez de usar tinta e
sentados na forma de uma invocação de bênção. Na carta grega, a saudação é quase sempre se
papel. Também pode conter uma recomendação
guida dos seguintes elementos: votos de saúde a
sobre uma terceira parte, que irá entregar a carta.
favor do destinatário [hygianõ], uma expressão de
A conclusão ou pós-escrito da carta mantém
júbilo com o recebimento de carta enviada pelo
contato entre remetente e destinatário e promove
destinatário [chairõ], uma ação de graças pela
a amizade entre eles. Isso é alcançado median
boa saúde e livramento de catástrofe [eucharis
te o uso de saudações [aspazomai], um desejo
teõ, “regozijar-se”), um relato de orações a favor
de saúde e/ou palavras de despedida. Nas cartas
dos destinatários [proskynêma] e/ou uma menção
cristãs, uma doxologia ou uma invocação de bên
de que o remetente se lembra dos destinatários
ção pode substituir as duas últimas.
[mneia]. Nas cartas cristãs, esses elementos apa recem na palavra de ação de graças ou numa
3. A forma da Carta aos Hebreus, das
invocação de bênção, que introduz os tópicos
Cartas Gerais e de Apocalipse
principais da carta.
0 grau em que os livros de Hebreus, das Cartas Gerais e de Apocalipse se conformam com as
O corpo das cartas grega e cristã possui três partes: introdução do corpo, meio do corpo e con
convenções das formas da carta grega e do cris
clusão do corpo. A introdução do corpo estabelece
tianismo primitivo varia de acordo com o propó
as bases comuns entre o remetente e o destinatá
sito e os gêneros associados.
rio, mediante alusão a informação partilhada en
3.1 Hebreus. A Carta aos Hebreus tem sido
tre ambos ou apresentação de informação nova.
identificada como uma homiha ou sermão ju-
Apresenta o motivo ou propósito principal que
daico-helênico e cristão primitivo que recebeu
está levando o remetente a escrever a carta e in
influência da retórica clássica. Mais recentemen
troduz os pontos principais que serão desenvolvi
te, foi classificada como um discurso clássico de
dos na carta. É possível expressar o propósito da
encômio. Hebreus não se enquadra na forma de
carta de três maneiras: 1) uma fórmula integral
carta, nem mesmo possui um pré-escrito formal
de divulgação que apresenta o desejo ou ordem
de carta. Possui, sim, um pós-escrito que incorpo
do remetente de que os destinatários saibam de
ra uma invocação de bênção (Hb 13.20,21), uma
algo ( “Quero que saibais que...”), consistindo em
petição formal que funciona como uma declara
um verbo de divulgação [thelõ, boulomai] e um
ção de responsabihdade [parakaleõ, Hb 13.22),
verbo de conhecimento [ginõskõ]; 2] uma razão
um anúncio dos planos que o remetente tem de
para escrever [graphõ]; 3) uma petição para que
visitar os destinatários (Hb 13.23), saudações
os destinatários façam algo específico, caso em
por parte do remetente e saudações adicionais
que a fórmula é constituída de um verbo de súpli
por parte daqueles que estão com ele [aspazomai,
ca [parakaleõ, erõtaõ], e o motivo para a petição.
Hb 13.24) e uma segunda invocação de bênção
0 meio do corpo tanto desenvolve o(s) as
(Hb 13.25). 0 apelo para que os destinatários
sunto (s) apresentado (s) na introdução do corpo
obedeçam à exortação (Hb 13.22) indica que o
quanto introduz material novo. Em geral, começa
principal motivo de escrever a carta foi obter tal
com uma fórmula de divulgação indicando que
obediência.
o remetente deseja ou ordena que os destinatá
3.2 Tiago. Tiago é hteratura persuasória em
rios saibam algo. A conclusão do corpo acentua e
forma de carta. Seu objetivo é persuadir os desti
reitera a razão principal de escrever e estabelece
natários a viver uma vida virtuosa. Começa com
193
LA R T A S , FORMAS DE CARTAS li: HEBREUS, LA R TA S G ER AIS, A p OCALIPSE
um pré-escrito que inclui remetente, destinatários
é como carta circular enviada a várias congre
e saudação [chairõ, Tg 1.1). O pré-escrito indica
gações. Dentre outros materiais tradicionais, ela
tratar-se de uma carta circular, a ser distribuí
incorpora um código doméstico, descrevendo
da a inúmeras igrejas (as “doze tribos da Dis
o papel dos membros da casa uns para com os
persão”). Tiago não contém introdução, meio ou
outros (IPe 2.18—3.7). Embora alguns estudio
conclusão do corpo que sejam claros, nem traz
sos acreditem que um catecismo ou uma litur
um pós-escrito. Entretanto, Tiago 1.2-27 funcio
gia batismal permeia o corpo da carta, é possível
na como introdução ao apresentar tópicos que
atribuir esses aspectos à tradição que os cristãos
são desenvolvidos em Tiago 2.1—5.12, e Tiago
primitivos partilhavam entre si.
5.13-20 serve como conclusão do corpo, ao re
3.4 ZPedro. Essa carta é a palavra de despedi
capitular alguns tópicos. Também incluídos na
da ou testamento em que um moribundo líder co
forma de carta encontram-se elementos de dia
munitário, judeu ou cristão, comunica sua morte
tribe (diálogo e pergunta e resposta em busca
iminente e exorta a comunidade a se manter fiel
da verdade), parênese (instrução moral) e três
às tradições depois de sua morte. O remetente de
exemplos de elaboração completa de um raciocí
2Pedro cria a combinação incomum de testamen
nio conforme a retórica greco-romana (Tg 2.1-13;
to na forma de carta. Isso permite que o reme
2.14-26; 3.1-12).
tente, na era pós-apostólica, descreva o apóstolo
3.3
IPedro. A Primeira Carta de Pedro confor Pedro como alguém que se comunica ao longo do
ma-se apenas em parte ao antigo formato episto
tempo com os destinatários.
lar. Começa com um pré-escrito (IPe 1.1,2), que
A Segunda Carta de Pedro inicia com o típi
contém uma referência ao remetente (Pedro) e
co pré-escrito que traz remetente, destinatários
aos destinatários (exilados da Diáspora), cada um
e invocação de bênção (2Pe 1.1,2). Após o pré-
com uma descrição teológica (IPe 1.1,2) e uma
escrito vêm elementos tomados por empréstimo
saudação na forma de invocação de bênção. Ao
do gênero testamentário: a recitação das tradições
pré-escrito segue-se uma invocação de bênção,
centrais da comunidade (2Pe 1.3-11) e um anún
que substitui o desejo de saúde ou o agradeci
cio da morte de Pedro (2Pe 1.12-15). Esse anún
mento (IPe 1.3-9). Não é fácil dividir o corpo da
cio funciona como introdução do corpo da carta
carta (IPe 1.3—5.12) em introdução, meio e con
(2Pe 1.12-15). Lembrar os destinatários acerca
clusão do corpo. A introdução do corpo começa
dos ensinos tradicionais funciona como uma fór
com uma petição na forma de uma ordem: “espe
mula integral de divulgação ( “para vos lembrar”)
rai inteiramente na graça que vos é oferecida na
e uma razão para escrever. O meio do corpo de
revelação de Jesus Cristo” (IPe 1.13). Um pedido
2Pedro (2Pe 1.16— 3.13) desenvolve o tema re
no imperativo em geral é o início da introdução
corrente da vinda de falsos mestres, comum num
do corpo. Apresenta o motivo principal para o re
testamento, refutando suas principais doutrinas.
metente escrever e o que será elaborado no corpo
A conclusão do corpo (2Pe 3.14-18) é indicada
da carta. A conclusão do corpo contém a fórmu
pelo vocativo “amados” e uma declaração de res
la da razão para escrever e uma declaração de res
ponsabilidade (2Pe 3.14). Uma doxologia serve
ponsabilidade que faz eco ao pedido com que se
de pós-escrito (2Pe 3.18).
inicia a introdução do corpo: “... nela [a verdadei
3.5 IJoão. A Primeira Carta de João (v. JoAo,
ra graça de Deus] estai firmes” (IPe 5.12). 0 pós-
C artas
escrito (IPe 5.13,14) é constituído das saudações
tura típica, necessárias para classificar um docu
de uma terceira parte e do remetente [aspazomai;
mento como carta. A abertura (IJo 1.1-4) segue os
IPe 5.13,14) e uma invocação de bênção.
moldes do prólogo do quarto Evangelho (Jo 1.1-
de)
não apresenta as convenções da aber
A Primeira Carta de Pedro tem sido identifi
18) e introduz tópicos a serem desenvolvidos no
cada como uma carta de Diáspora, seguindo os
restante da obra. A conclusão de IJoão 5.13-21
moldes das cartas do
quando os judeus de
reitera os tópicos principais, mas não contém as
Jerusalém escreveram para os exilados (cf. IPe
convenções de conclusão de carta. Deve se obser
at,
1.1), mas a carta de Diáspora não é um gêne
var que 0 motivo para escrever (IJo 1.4; 5.13) é a
ro específico. A melhor identificação de IPedro
única convenção característica de carta.
194
C a r t a s , f o r m a s de c a r t a s h : H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
3.6 2João. Em contraste com IJoão, 2João
com a fórmula “procedes com fidelidade” [piston
está conforme as convenções epistolares. Co
poieies, 3Jo 5,6), uma variação do “farás bem”
meça com um pré-escrito (2Jo 1-3), em que há
[kalõspoieseis). O meio do corpo (3Jo 7-12) con
referência ao remetente (o “ presbítero”) e aos
tém declarações de responsabihdade (3Jo 8,11) e
destinatários (a “ senhora eleita”), acompanhada
recomendação de uma terceira parte, o portador
de descrição teológica destes (2Jo 1,2). Uma in
da carta (Demétrio, 3Jo 12). A conclusão do cor
vocação de bênção substitui a saudação (2Jo 3).
po (3Jo 13,14) faz referência ao ato de escrever e
Embora formalmente não seja uma palavra de
informa o destinatário acerca da visita que o re
gratidão, 2João 4 funciona como tal, pois expres
metente fará num futuro próximo, técnicas que
sa regozijo com o bem-estar dos destinatários.
permitem que a conclusão do corpo construa uma
A introdução do corpo (2Jo 4,5) inicia com uma
ponte para haver ainda mais comunicação. O pós-
expressão de alegria [echarên liarí), faz alusão a
-escrito é formado de uma invocação de bênção
coisas em comum entre as duas partes de modo
e de saudações da parte do remetente e de uma
a proporcionar uma base comum para tratar dos
terceira parte [aspazomai, 2Jo 15).
assuntos do corpo da carta (o mandamento) e
3.8 Judas. Foi proposto que Judas é uma ho
apresenta um pedido. O pedido é padrão: 2João 4
milia em forma de carta ou que ela incorpora um
oferece o contexto ( “andando na verdade”), e
midrash em Judas 5-19. No mínimo, é possível
2João 5 apresenta o pedido [erõtaõ, “ peço-te [...]
dizer que elementos desses gêneros foram in
[que] amemos uns aos outros”; i.e., que conti
corporados numa carta retoricamente complexa
nuem a andar na verdade).
que tenta provar que os adversários são os ím
0 meio do corpo (2Jo 6-11) desenvolve as preo
pios de quem os profetas falaram. Judas começa
cupações apresentadas na introdução e traz outras
com um pré-escrito que indica remetente (Judas)
preocupações de igual importância. É indicado
e destinatários (descritos no seu relacionamento
pela presença de declarações de responsabihdade
com Deus) e contém uma invocação de bênção
(2Jo 8,10) e a breve seção de conclusão parenéti
(Jd 2). O corpo da carta (Jd 3-23) está dividido
ca, comum em cartas cristãs (2Jo 11). A conclusão
em introdução (Jd 3,4), meio (Jd 5-16) e conclu
do corpo (2Jo 12) reitera e acentua o que foi dito.
são do corpo (Jd 17-23), cada elemento contendo
Apresenta a razão de a carta ter sido escrita (“Em
o vocativo transicional “amados”. A introdução
bora eu tenha muitas coisas para vos escrever...”),
do corpo (Jd 3,4) começa com uma referência
estabelece uma ponte para posterior comunicação
à “ salvação que nos é comum” , apresentando
e informa os destinatários da visita próxima que
uma base geral para a carta. Indica que o motivo
0 remetente fará para tratar de outros assuntos. A
da carta foi um pedido [parakaleõ, Jd 3) e infor
conclusão da carta apresenta saudações tradicio
ma seus antecedentes (Jd 4). O meio do corpo (Jd 5-16) apresenta outros antecedentes para o
nais de uma terceira parte [aspazomai, 2Jo 13). 3.7 3João. A Terceira Carta de João também
pedido, começando com uma fórmula integral
segue as convenções do gênero carta. 0 pré-es
de divulgação que emprega a ideia de desejar
crito menciona o remetente (o “ancião”) e o des
[boulomai) que os destinatários saibam [oida) de
tinatário (Gaio), mas não traz a saudação típica.
algo. A conclusão do corpo (Jd 17-23) tem início
Embora 3João 2 contenha um voto de saúde con
com a forma imperativa da fórmula de divulgação
vencional [hygiainõ] num relato de oração pelo
(“lembrai-vos”, mnSsthête) e contém muitas de
destinatário, sendo ambos os elementos típicos
clarações de responsabilidade na forma de exor
de um pré-escrito, o vocativo inicial, “amado”, em
tação. O pós-escrito é uma doxologia (Jd 24,25).
3João 2, assinala a transição para a introdução do
3.9 Apocalipse. É possível classificar Apoca
corpo (3Jo 2-6). A introdução contém uma expres
lipse em vários gêneros, inclusive carta, profe
são de regozijo com o bem-estar do destinatário
cia e literatura apocalíptica. Não se vê no Uvro
[echarên lian, 3Jo 3,4) e um pedido que expressa
quase nenhum aspecto da tradição epistolar gre
0 propósito do corpo da carta (3Jo 5,6). A petição
ga. Depois de um rápido prólogo (Ap 1.1-3) há
contém a petição propriamente dita (“ farás bem” ,
uma abertura de carta com menção ao remetente
kalõs poieseis, 3Jo 6) e seu contexto, que se inicia
(João) e aos destinatários (as “sete igrejas que
195
C a r t a s P a s t o r a is
estão na Âsia” , Ap 1.4), uma invocação de bên
Westminster, 1986.
ção {Ap 1.4,5) e uma doxologia (Ap 1.6). Depois
rhetorical strategy of 1 Peter: with special regard
(lec,
5.) ■
T
hurén,
L. The
de um epílogo (Ap 22.6-20), a carta termina com
to ambiguous expressions. Âbo: Âbo Academy
uma invocação de bênção (Ap 22.21). 0 restan
Press, 1990. p. 84-8. •
te do livro é dominado pelas formas dos gêneros
rangement and style: rhetorical criticism of Jude
profecia e literatura apocalíptica.
and 2 Peter. Atianta: Scholars, 1988.
Deve se fazer menção às cartas às sete igrejas,
■
W
atson,
D. F Invention, ar ( sbld s,
104.)
. A rhetorical analysis of 2 John accor
em Apocalipse 2 e 3. Cada uma das sete cartas
ding to Greco-Roman convention,
possui alguma semelhança com as cartas da An
104-30, 1989. • ______ . A rhetorical analysis of
nts,
35, p.
v.
tiguidade, inclusive, no pré-escrito, referência a
3 John: a study in epistolary rhetoric,
destinatários (cada uma das sete igrejas) e reme
p. 479-501, 1989. ■ W h t t e , J. L. Ancient Greek let
tente (Cristo), e uma referência ao que se deve
ters. In:
conhecer {oida), que frequentemente principia
and the New Testament. Atianta: Scholars, 1988.
a introdução do corpo. No entanto, uma análi
p. 85-105.
se cuidadosa feita por D. E. Aune mostra que as
Greek letter. Missoula: Scholars, 1972.
sete cartas devem ser classificadas como éditos
• ______ . Light from ancient letters. Philadelphia:
A une,
cbq,
v.
51,
D. E., org. Greco-Roman literature
[ sb lsb s,
21.) ■ ______ . The body o f the [ sb ld s,
2.)
ou proclamações reais ou imperiais da Antiguida
Fortress, 1986. ■______ . New Testament epistolary
de. 0 método usado é o dos oráculos parenéticos
literature in the framework of ancient epistologra-
salvação-juízo da profecia cristã primitiva.
phy. ANRw , 2.25.2, p. 1730-56,1984. • ______ . Saint
Ver também d ln td
:
e vang elh o
H e r m e n e u t ic s ;
( gênero) ;
Paul and the apostolic Letter tradition,
r e t ó r ic a .
L i t u r g i a l E le m e n t s ; P s e u
D. F.
d e p ig r a p h y ; R h e t o r i c a l C r it ic is m .
B ib lio g r a fia . A u n e ,
cbq,
D. E. The form and function of
v.
45,
p. 433-44, 1983. W
atson
C a r t a s P a s t o r a is
the proclamations to the seven churches (Revela
Denominadas Cartas Pastorais desde o século
tion 2—3).
xviii, 1 e 2Timóteo e Tito, com Filemom, são as
N T S , V.
36, p. 182-204, 1990. ■ B r o w n , R.
Appendix v; General observations on epistolary
cartas pertencentes ao corpus paulino que foram
format. In; ______ . The Epistles of John. Garden
escritas a indivíduos. À semelhança de outros
City: Doubleday, 1982, p. 788-95.
E.
Trata de 2 e
textos do NT escritos sob o nome de Paulo, empre
3João; V. p. 86-92 sobre IJoão. ■ C h a r l e s , J. D. Litera
gam a forma de carta para transmitir não apenas
ry strategy in the Epistle of Jude. Scranton: Universi
informações pessoais, mas basicamente ensinos e
(a b .)
ty of Scranton Press, 1993. p. 20-64. • D e is s m a n n , A.
exortações, entre os quais alguns eram tradições
Bible studies. Edinburgh: T & T Clark, 1901. p. 3-59.
já estabelecidas e em uso nas congregações pau
■
. Light from the Andent East New York:
linas
(E
l l is ,
1999). Em face de defecções e dos
Doran, 1927. p. 146-251. ■ D o t y , W. G. Letters in
danos causados pelos falsos mestres, as cartas
primitive Christianity. Philadelphia: Fortress, 1973.
ressaltam instruções sobre o ministério, a ordem
■ Du R a n d , J. A. Structure and message of 2 John.
na igreja e assuntos relacionados, a fim de prote
Neot, V. 13, p . 101-20,1979. • ______ . The structure
ger as congregações do apóstolo na Ásia Menor e
of 3 John. Neot, v. 13, p. 121-31, 1979. ■ F r a n c i s ,
na Grécia, nos liltimos anos de sua vida.
F
O. The form and function of the opening and clo
1. Canonicidade e autoria
sing paragraphs of James and 1 John, z n w
2. Motivação e data
110-26, 1970. • F u n k , of 2 and 3 John, j b l ,
R.
v.
, v.
61, p.
W. The form and structure
86, p. 424-30, 1967. ■ L ie u , J.
3. Situação histórica 4. Composição: crítica literária
The Second and Third Epistles of John: history and
5. Esboço
background. Ed. J. R ic h e s . Edinburgh: T & T Clark,
6. Temas
1986. p. 37-51.
isNTW .)
■
M a r t in ,
T. W. Metaphor
and composition in 1 Peter Atlanta: Scholars,
1. Canonicidade e autoria
1992. p. 41-79.
Na igreja patrística, a recepção desse grupo de
[sblds,
131.) •
S to w e r s , S.
K. Letter
writing in Greco-Roman antiquity. Philadelphia:
cartas no cânon do
196
nt
dependeu de sua autoria
C artas P a s t o r a is
paulina, pois, no dizer de Serapião, bispo de An
da tendência de alguma “escola de pensamen
tioquia falecido por volta de 211 d.C., “recebemos
to” que transmita apenas os ensinos de determi
Pedro e os demais apóstolos tanto quanto rece
nado apóstolo.
bemos a Cristo, mas rejeitamos os Pseudepígra fos em nome deles”
(E u s éb io ,
1.2 O debate do século xix. J. B. Lightfoot e
Hi ec, 6.12.3). Essa
T. Zahn opuseram-se à escola de Baur com as ob
avaliação era praticamente unânime, claramente
servações de que 1) as circunstâncias históricas
testemunhada no cânon muratoriano e em Ireneu
diferentes e 2) a organização eclesiástica mais
(c. 180 d.C.;
He, 1.16.13; 2.14.7; 3.14.1)
elaborada estariam bem explicadas, caso houves
e provavelmente deve ser inferida com base em
sem transcorrido alguns anos entre as primeiras
textos mais antigos, tanto em citações (cf.
T e ó f il o ,
cartas de Paulo e a época em que escreveu as Pas
Au, 3.14; Po, Fp, 4.1) quanto em alusões (cf. In,
torais, ou seja, depois de ser solto de seu primeiro
Ef, 14.1). Com 2Tessalonicenses e Filemom, as
aprisionamento pelos romanos, soltura bem con
I reneu,
Pastorais só estão ausentes num único manus
firmada em IClemente 5 (c. 95 d.C.;
crito incompleto das cartas de Paulo (P‘'^ c. 200
e na literatura do século ii (cânon muratoriano;
L ig h t f o o t )
d.C.) e foram rejeitadas apenas por alguns mes
12Ap [Vercelli]). Antecedendo a crítica do século
tres heréticos: 1 e 2Timóteo por Taciano e Basüi-
xx, Lightfoot afirmava que 3) os falsos mestres
des (cf.
gnosticizantes já estavam agindo durante o mi
C lem e nte ,
St, 2.11, fim;
J e r ô n im o ,
prefácio), e todas as três por Marcião (cf. l ia n o ,
Cm Tt,
nistério de Paulo (cf.
T e r tu
1993, p. 89-95) e atri
buiu 4) as mudanças de vocabulário, estilo e 5)
Mr, 5.21). No entanto, enfrentaram sérias
as ênfases teológicas à origem das Pastorais nos
objeções na crítica hterária do século xix. 1.1
E l l is ,
A escola de Baur. Em 1835, F. C. Baur, anos finais do ministério do apóstolo. No século
tomando por base questões literárias mais anti
XIX,
estudiosos dos enfoques tra
gas sobre as Cartas Pastorais, chegou à conclusão
dicional e hipotético pressupunham que Paulo
de que elas refletiam um contexto pós-paulino
escrevera as cartas de próprio punho ou então
e, em sua reconstrução hegehana da história do
que as ditara, palavra por palavra. Consequente
cristianismo primitivo, identificou-as como falsi
mente, imaginavam que, se as cartas principais
ficações do século
F. C. Baur and his
servissem de critério, seria possível determinar
school, 1999). Suas ideias foram desenvolvidas
a autenticidade das demais por meio de crité
por H. J. Holtzmann, que assim resumiu as obje
rios de vocabulário, estilo e temas teológicos re
ções à autoria paulina: 1) a situação histórica; 2)
correntes. As diferenças limitavam-se apenas à
II
(v.
Elus,
a condenação dos falsos mestres gnosticizantes;
questão sobre serem essas variações suficientes
3) o grau de organização eclesiástica; 4) voca
para rejeitar a autoria paulina (tradição Baur/
bulário e estilo; 5) as ideias e temas teológicos.
Holtzmann) ou se estavam dentro da capacidade
Baur não estava muito seguro sobre o impacto
literária de um escritor versátil como o apóstolo
de sua crítica sobre a canonicidade das Pastorais,
(tradição Lightfoot/Zahn). O debate, que prosse
mas seus seguidores, na maioria, concluíram que
guiu e se desenvolveu pelo século xx, chegou a
não devia ter impacto algum, afirmando, apesar
certo impasse
das informações contrárias, que na Antiguidade a
a ideia pseudepigráfica foi minada por três novas
pseudonímia era um recurso inofensivo (v.
( P r io r
e
E l l is ,
1979). No entanto,
E l l is ,
descobertas da crítica do século xx: o papel do
Pseudonymity, 2001, p. 17-29). Atribuíram várias
secretário, a função dos coautores e a presença
das Pastorais a discípulos de Paulo e citaram,
de um considerável número de expressões nâo
como precedentes, as escolas de Pitágoras e Pla
paulinas já existentes em quase todas as cartas
tão, as quais escreveram cartas em nomes daque
de Paulo.
les filósofos. No entanto, nâo há indício de que
1.3 Desenvolvimentos no século xx. Na men
tenha existido uma escola de Paulo após a morte
te de muitos estudiosos, o problema das Pastorais
do apóstolo. Os escritores pós-apostólicos mais
continuou sendo seu vocabulário e estilo, sua
antigos, como Clemente de Roma, Papias, Inácio
organização eclesiástica mais desenvolvida e a
e Policarpo, citam ou mencionam vários apósto
dificuldade em situá-las no contexto das missões
los, sem demonstrar que tenham conhecimento
pauhnas em Atos. 197
C artas Pastorais
Vocabulário. No que diz respeito ao voca é provável que tenha permitido que a igreja de
1.3.1
bulário, não foi apenas a divergência de termino
onde escrevia fizesse uma cópia da carta para uso
logia em relação à literatura paulina reconhecida,
próprio e que talvez tenha deixado ou instruído
mas também a ausência de muitos grupos de pa
os destinatários a fazer cópias para si mesmos ou
lavras comuns em Paulo (e.g., apokalyptõ, ener-
para as congregações vizinhas (cf. 2Co 1.1, Acaia;
geõ, kauchaomai, perisseuõ, hypakouõ, phroneõ]
Gl 1.2; Cl 4.16). Desse modo, o apóstolo desen
e o emprego de terminologia diferente para os
cadeou, praticamente desde o início, diferentes
mesmos conceitos nas áreas da escatologia (cp.
e inevitáveis variações textuais no texto de sua
epiphaneia com parousia), organização eclesiás
correspondência. Por isso, “ parece ser impossível que um inter-
tica [presbyteroi com prohistamenoi e poimenes] e soteriologia (cf.
D ibelius ) .
Ao
polador, que em algum momento no transcorrer
mesmo tempo,
muitas expressões paulinas nessas cartas eram
da tradição inseriu arbitrariamente três versícu
óbvias a todos.
los, tenha conseguido pôr sob sua influência toda
Houve três tentativas de solucionar o pro
a tradição textual (que hoje temos diante de nos
blema. Os autores que faziam parte da tradição
sos olhos de uma forma bem diferente da de qual
Baur/Holtzmann atribuíram os traços paulinos a
quer geração que nos precedeu) [...] de sorte que
um esforço consciente do falsificador para imi
não tenha restado uma única testemunha textual
tar Paulo, a fim de granjear alguma autoridade
contrária”
apostóhca para seu engano
me
ca da Carta aos Romanos também se aplica às
diante a reelaboração de certas tradições pauli
Pastorais. Qualquer teoria de que certos versícu
( D o nelson) , o u ,
(A land,
p. 141). Essa constatação acer
nas, apresentar, usando o nome do apóstolo,
los são acréscimos posteriores terá de apresen
0 que imaginava que Paulo podia ter ensinado
tar algum manuscrito que omita os versículos ou
caso tivesse estado ali
Alguns segui
deixará de ter qualquer probabilidade histórica.
dores da tradição Lightfoot/Zahn afirmavam que
As seções que Harnack acreditava serem inter
0 papel do secretário e o uso que Paulo fez de
polações posteriores não estavam ausentes em
( W olter ) .
tradições compostas por outros explicavam as
nenhum manuscrito. Por isso, com toda a proba-
diferenças de estilo, vocabulário e expressões
biUdade faziam parte das Pastorais desde o início. 1.3.2
teológicas das Pastorais (v. item 4 ababco). No
Organização eclesiástica. Tanto a tradi
início do século xx, uns poucos estudiosos acre
ção Baur quanto A. von Harnack supunham que
ditavam que as Pastorais eram cartas paulinas
as qualificações exigidas para o ministério do
autênticas suplementadas por interpolações do
bispo ou supervisor ( =
século
principalmente na questão da ordem na
ITm 3 e 5; Tt 1) refletiam uma estrutura ecle
que eram produtos do início
siástica desenvolvida que era pós-paulina, com
que incorporavam alguns fragmen
base em duas pressuposições: as congregações
igreja
II,
(H arnack) , o u
do século
II
“presbítero, ancião”?;
A hipótese
mais antigas não tinham ministério estruturado,
fragmentária não chegou a convencer a muitos
e a teologia e prática cristãs primitivas avança
porque não conseguia expUcar como e por que
ram gradualmente em bloco. Essas conjecturas
um falsificador teria usado os fragmentos de for
estavam profundamente arraigadas na consciên
ma tão estranha
Na época, a
cia do século XIX e tinham origem nas teorias do
hipótese de interpolação era uma possibiUdade.
igualitarismo, do processo histórico e social e da
Mas, com os avanços da crítica textual e com a
evolução biológica. No entanto, confhtam com a
compreensão das práticas de redação no mundo
estrutura eclesiástica variada das congregações
greco-romano, perdeu credibilidade.
apostólicas e com o reconhecimento, nos dias de
tos paulinos autênticos
(G u t h r ie
( H a r r is o n ) .
e
D ibelius ) .
Como era costume na Antiguidade (cf. De ara, 7.25.1;
R ic h a r d s ,
hoje, de que o desenvolvimento pode ser gradual,
C íc er o ,
p. 6-7), Paulo mantinha
mas também extremamente rápido.
uma cópia de suas cartas para consulta posterior
Desde o início, as congregações de todas as
(cf. ICo 5.9,10; 2Co 7.8; 2Ts 2.15) e também de
missões apostólicas tinham algum tipo de organi
vido ao risco de perda ou dano durante o trans
zação eclesiástica. A igreja em Jerusalém, sob a
porte (cf.
Uderança de apóstolos residentes, especialmente
C íc er o ,
De am, 16.18, fim). Também
198
C artas Pastorais
Pedro (c. 33-42 d.C.; Gl 1.18; At 2.14; 3.12; 5.3
ministério na região do mar Egeu, durante o qual
8.14; 9.32; 12.17) e Tiago (c. 42-62 d.C.; Gl 2.9
seria possível situar ITimóteo e Tito. A tradição
At 12.17; 15.13; 21.18), e presbíteros (At 11.30
é reforçada por duas considerações: 1) relatos do
15.2; 21.18; cf. Tg 5.14), tinha uma organização
século
mais estruturada, provavelmente semelhante à das
170-190 d.C.) sobre a viagem final do apóstolo a
II
e subjacentes em Atos de Paulo (9-11; c.
sinagogas e à da comunidade de Qumran (e.g.,
Roma numa rota diferente da encontrada em Atos
Lc 7.3; CD 13.9,10; IQS 6.14,15,19,20: nfbaqqêr,
27 e 28 e seu subsequente martírio no governo de
pãqíd; cf. Schurer,
Nero
feld ) .
v.
2, p. 427-39; Thiering e Wein-
De acordo com IPedro (IPe 5.1-3; cf. 1.1; c.
( R ord o rf; Z a h n , v .
2, p. 84) e 2) indícios bem
antigos de uma missão que Paulo empreendeu à
64 d.C.) e Atos (At 14.23; 20.17; cf. 20.28; c. 65
Espanha depois de Atos 28.
d.C.), certas igrejas fundadas pelas missões petri-
2.1
A missão de Paulo ã Espanha. A probabi
na e paulina na Ásia Menor e na Grécia também
lidade de uma viagem missionária à Espanha sur
possuíam uma estrutura eclesiástica reconhecida,
ge, em grande parte, 1) da expectativa de tal tarefa
ainda que o termo “ presbíteros” {presbyteroi, i.e.,
em Romanos 15.24, Atos 1.8 e Atos 13.47; 2) dos
“anciãos”) seja, em Atos, uma expressão que Lu
indícios a seu favor em IClemente 5.7 (c. 70 d.C.,
cas utiliza para indicar ministérios que, nas cartas
cf.
de Paulo, recebem designações diferentes. Essas
(provavelmente Ásia Menor, c. 160-180 d.C.) e no
R o b in s o n ) ,
nos Atos de Pedro [Vercelli] 1-3, 40
cartas revelam ministérios de liderança estabele
cânon muratoriano (Roma, c. 170-190 d.C.). Os
cidos na administração e no ensino, embora os
dois últimos textos são testemunhas independen
identifiquem com maior frequência como ativida
tes de uma tradição bem difundida de que Paulo
des (Rm 12.8; ICo 12.28; Gl 6.6; ITs 5.12,13) do
viajou de Roma para a Espanha, e Atos de Pedro
que como funções designadas (cf. Fp 1.1). As Pas
relata que ele voltou a Roma para ser martirizado.
torais dão mais proeminência a ministérios desig
Clemente de Roma tem conhecimento de sete
nados e às quahficações para tais ministérios por
aprisionamentos de Paulo e chama Paulo e Pe
causa da crescente ameaça que falsos mestres re
dro “nossos bons apóstolos”. E, de acordo com
presentavam para as igrejas de Paulo, entre outras
Ireneu {He, 3.3.3; c. 180 d.C.), Clemente foi ensi
coisas (Ellis, 1999, p. 314-8;
1993, p. 113-5).
nado aos pés deles. Ele afirma que Paulo pregou
Eles representam um desenvolvimento compreen
no Ocidente, o que, para um escritor que estava
sível de seu uso mais antigo.
em Roma, significava a Espanha ou a Gáha (cf.
1.4
id e m ,
Conclusão. O papel do secretário
( R ic h a r d s
2Tm 4.10), e que alcançou “os limites extremos
e o uso de tradições já existentes (v.
do Ocidente” {to terma tês dyseõs). A última ex
item 4.3 abaixo) na composição das Pastorais ti
pressão, à semelhança de “até aos confins da ter
raram 0 chão da hipótese pseudepigráfica, com
ra” {heõs eschaton tês gês, At 1.8), designava, na
suas pressuposições errôneas, baseadas em ideias
época, a região da Espanha ao redor de Gades (=
e
R oller)
acerca da natureza da autoria.
Cadiz), para onde o apóstolo provavelmente via
Exigem que o estudante criterioso confira valor
jou depois de ser solto de seu primeiro aprisiona
do século
XIX,
fundamental às alusões feitas a remetentes na in
mento pelos romanos (cf.
trodução das cartas e às evidências históricas ex
p. 53-63: End of the Earth). Essas fontes têm o
ternas, pois tanto aquelas quanto estas sustentam
apoio de tradições posteriores acerca da soltura
E l l is ,
1991;
id e m ,
de Paulo e de seu ministério pós-Atos 28
solidamente a autoria paulina.
2001,
(E u s éb io ,
Hi ec, 2.22.1-8: logos echei, 2). Uma vez que Orí 2. Motivação e data Em geral, mas nem sempre
genes aparentemente desconhecia a viagem de ( R e ic k e
e
Paulo à Espanha (cf.
R o b in s o n ) ,
E u s éb io ,
Hi ec, 3.1.3) e que
os defensores da autoria paulina das Pastorais
essa mesma viagem não produziu na Espanha ne
pressupõem a tradição de que Paulo foi soho
nhuma igreja que declarasse ter origem paulina,
de seu primeiro aprisionamento pelos romanos
essa missão pode ter sido muito breve (c. 63-64
(At 28), corretamente considerado por Harnack
d.C.), levada a efeito logo após sua soltura (cf.
(v.l, p. 240, nota) “um fato histórico incontes
Zahn, v .
tável” , e que depois disso realizou um segundo
igrejas na região do Egeu.
199
2, p. 64-6), de onde retornou para suas
2.2
A situação de ITim óteo e Tito. A situa na Macedônia (ITm 1.3] e também na Acaia, du
ção de ITimóteo e Tito difere da do ministério
rante cerca de um ano, passando o inverno de
anterior de Paulo na região do Egeu (c. 53-58
65-66 (ou 66-67] em Nicópolis, na província do
d.C.; cf.
K elly,
p. 6-10). Agora sua missão ha
via se estendido
Gália (2Tm 4.10;
Épiro (Tt 3.12;
Z ahn v .
2, p. 27-35, 66]. Escre
2,
veu ITimóteo e Tito bem no início desse perío
p. 25-6], e suas congregações ao redor do mar
do, provavelmente em 65. No final da primavera
Egeu tinham se multiplicado e abrangiam Cre
de 66 ou 67, visitou Mileto, onde deixou Trófimo
à
Z ahn, v .
ta, Mileto e Nicópohs (Tt 1.5; 3.12; 2Tm 4.20].
(2Tm 4.20], e Trôade, onde deixou sua capa de
Essas congregações corriam grande risco por
inverno e vários hvros e cadernos de apontamen
causa de um trabalho missionário contrário, de
tos [membrana], que provavelmente incluíam
natureza gnóstico-judaizante (ITm 1.3-7,19,20;
cópias das cartas que havia escrito anteriormente
4.1,2; 6.20; 2Tm 4.3,4; Tt 1.10-16; cf.
1993,
e materiais recebidos da tradição que eram úteis
p. 92-3, 113-15] que incluía líderes das igrejas e
em seu ensino e na composição de novas cartas
E l l is ,
provavelmente antigos companheiros de trabalho
(2Tm 4.13,20; cf.
(2Tm 1.15-18; 2.16,17; 3.6-9; 4.10; Tt 3.9-14].
rece, saiu de Trôade com destino a Roma, com a
Algumas igrejas em casas haviam sido devasta
intenção de voltar antes do inverno.
das e tinham praticamente desaparecido, como
2.3
R ic h a r d s ,
p. 158-60]. Ao que pa
A situação e a data de 2Timóteo. Pau
se percebe nas instruções de Paulo a Tito: "...
lo empreendeu sua última viagem missionária,
te deixei em Creta, para que pusesses em boa
deslocando-se do Egeu para Roma, onde voltou
ordem o que faltava, e que em cada cidade es-
a ser preso, escreveu 2Timóteo e, logo depois, foi
tabelecesses presbíteros [...]. Porque há muitos
decapitado na via Ostiense (2Tm 4.6,7; At Pa e
insubordinados, [...] principalmente os da circun
Te, 11;
cisão [...], pois [...] transtornam casas inteiras”
tenha sido preso em Éfeso
(Tt 1.5,10,11]. Essa ameaça pode ter levado Paulo
ou Tl-ôade
a retornar da Espanha.
O mais provável, de acordo com tradições do sé
E u s éb io ,
( F ee ,
Hi ec, 2.25.5-8]. É possível que (S p ic q , v .
1, p. 141]
p. 244-5] e levado preso a Roma.
Para enfrentar o problema, Paulo adotou
culo II citadas em Atos de Paulo e Tecla (9 e 10],
uma nova estratégia em seus escritos. Ele con
é que tenha voltado a Roma como homem livre
tinuou trabalhando a partir de uma cidade-
(R ordorf,
polo
trar a uma igreja que estava sofrendo as “repeti
(2Tm 4.20]
e visitando várias igrejas,
p. 323; cf.
Zahn, v.
2, p. 67] para minis
como, por exemplo, Macedônia (ITm 1.3], Creta
das tribulações e reveses” [ICl, 1.1] resultantes
(Tt 1.5], Nicópolis (Tt 3.12], Mileto (2Tm 4.20]
da contínua perseguição empreendida por Nero.
e Éfeso (ITm 1.3; 3.14; 4.13; 2Tm 1.15-18; 4.19;
Pode ter viajado pelas vias Ignácia e Ápia (Trôa-
mas v.
2, p. 17-9], Todavia, ao contrário
de-Filipos-Apolônia-Brundísio-Roma), viagem de
do que costumava fazer (ICo 4.17; 2Co 7.6,12,13;
três semanas, ou, também de acordo com tradi
Ef 6.21,22; Cl 4.7,8; cf. Fp 2.25], não pôde enviar
ções do século 11, por uma rota que sai de Trôade,
uma carta a cada uma das muitas congregações
passa por Filipos, vai a Corinto e dali para a Itáha
por mãos de um colega para explicá-la e aplicá-la.
e Roma (cf. 2Tm 4.20;
Z ahn, v .
Em vez disso, enviou as cartas a colaboradores
R ordo rf] .
De acordo com a Crônica de Eusébio (c. 303
de confiança: Tito em Creta e Timóteo em Éfeso.
d.C.; cf.
As cartas eram tanto um instrumento de comu
zado com Pedro no ano 14 de Nero, 67-68. No en
nicação e encorajamento pessoal quanto manuais
tanto, nem 1Clemente 5 nem Ascensão de Isaías
J e r ô n im o ,
Vi il, 1, 5, 12] Paulo foi martiri
que concediam autoridade apostólica ao ensi
(4.2-5; c. 90 d.C.) sugerem que os dois apóstolos
no que ministravam.
morreram juntos, e Dionísio, bispo de Corinto (c.
Quanto ao itinerário do segundo ministério
170 d.C.; cf.
E u sébio ,
Hi ec, 2.25.8], diz apenas
de Paulo no Egeu, não há muito a fazer senão
que foram executados na mesma época. Pedro
conjecturar, pois as cartas de Paulo e outras fon
provavelmente morreu perto do início do massa
tes não oferecem quase nenhuma ajuda. O após
cre promovido por Nero, no inverno ou na prima
tolo provavelmente retornou da Espanha só no
vera de 65, e Paulo, no final de 67 — de qualquer
final de 64 d.C. e trabalhou em Creta (Tt 1.5],
maneira, antes do suicídio de Nero, em 9 de
200
C artas Pastorais
junho de 68 (cf.
Zahn, v .
2, p. 61-7;
V.
ocorrido defecções nas igrejas de Paulo no Egeu,
Edmundson,
p. 147-52; para uma opinião diferente, v.
H arnack,
conforme atestado nas Pastorais. No entanto, nos
1, p. 240-3). Nesse caso, Paulo teria escrito 2Ti-
dez anos de 57 a 67 as congregações paulinas na
móteo no final do verão ou no outono de 67 d.C.
Grécia e na Ásia haviam aumentado bastante em termos numéricos e geográficos, e o número to
3. Situação histórica 3.1
tal de membros pode ser estimado na casa dos
Congregações. As igrejas não tinham pré milhares.
dios próprios nos dias de Paulo e, em geral, se
3.2 Colaboradores. Dos colaboradores de Pau
reuniam nas casas de membros prósperos. Al
lo, vários são mencionados em Atos (Trófimo)
gumas dessas casas podiam acomodar, na sala
e nas cartas anteriores: Apoio, Demas, Erasto,
principal [atrium] ou num jardim com colunata
Lucas, Marcos, Priscila e Áquila, Timóteo, Tito,
{perístylium] mais atrás na casa (cf. Ems, 1989,
Tiquico. Outros aparecem só em Tito (Ártemas,
p. 139-45, 144), uma congregação de cem a du-
Zenas) ou em 2Timóteo (Cláudia, Crescente, Êu-
zentas pessoas (em pé). Nas congregações egeias
bulo, Lino, Onesíforo, Prudente, Carpo?), em que
de Paulo, havia membros prósperos, como as Pas
aparecem como trabalhadores da igreja em Roma
torais deixam claro nos comentários que Paulo
ou como participantes do contínuo esforço mis
faz acerca de escravos e senhores e também sobre
sionário de Paulo.
a atitude correta que os cristãos de posses devem
3.3 Adversários. Os adversários fazem o mes
ter (ITm 6.1-7,17-19; cf. Rm 16.23; Ef 6.5-9).
mo tipo de oposição ao longo de todas as Pas
É provavelmente dessas igrejas nas casas que
torais
Paulo está falando quando se refere à “casa” de
uma única e desenvolvida forma de ensino falso,
determinados indivíduos (ITm 3.15; 2Tm 1.16;
que desde o início infestou as missões de Paulo
4.19; Tt 1.11; ITm 5.13).
e de outros apóstolos. Tiveram origem no grupo
( K e lly ,
p. 10-1; Dibelius, p. 65-7), ou seja,
Plínio [Ep, 10.96.9,10; c. 110 d.C.), governa
“judaizante” dos hebraíoi, de ritual bem estrito,
dor da Bitínia e Ponto, relata que as conversões
ou seja, “os [do partido] da circuncisão” em Jeru
maciças ao cristianismo haviam praticamente
salém (cp. At 11.2 com Tt 1.10), que combinavam
esvaziado os templos pagãos da província “por
a exigência de que os gentios aderissem às regras
um longo período” (c. 100 d.C.?). Em meados da
mosaicas e praticassem um rituahsmo asceta com
década de 60, as Pastorais sugerem que as con
uma ênfase em visões de anjos e, pelo menos na
versões no entorno do Egeu já eram maciças.
Diáspora, com tendências gnosticizantes de pro
Cartas anteriores de Paulo revelam que já na
mover experiências com uma sabedoria e um
década de 50 havia pelo menos duas igrejas em
conhecimento divinos distorcidos e menosprezar
casas de Colossos (Fm 2; Cl 4.15), duas em Éfeso
a matéria e a ressurreição e redenção do corpo
(ICo 16.19; cf. 2Tm 1.16; 4.19) e provavelmente
(cp. ICo 15.12 com 2Tm 2.18; v.
quatro em Corinto (Rm 16.23; ICo 1.11; 16.15,16;
vezes, 0 ascetismo de que se vangloriavam pro
At 18.7,8). Havia quatro ou cinco em Roma (Rm
duzia uma arrogância disposta a uma sutil licen
g n o s t ic is m o ) .
À s
16.5,10,11,14,15; cf. Fp 4.22). Quando uma igreja
ciosidade sexual (cf. Gl 4.9; 5.13-21; Cl 2.18,23
em casas é especificada, pelo menos uma outra
com ITm 4.3; 2Tm 3.6,7; Tt 1.10,15). Enquanto
fica implícita. O número de membros de muitas
Paulo afirmava que na era messiânica as leis éti
dessas igrejas era da ordem das dezenas, mas al
cas do a t eram váhdas, mas as leis rituais estavam
gumas provavelmente eram congregações de 100
ultrapassadas (Cl 2.17; cf. Gl 4.9,10) e não eram
a 150 pessoas, contando-se os servos da casa. 0
mais obrigatórias (Rm 10.4; 13.8-10; Gl 3.24,25),
tamanho e o impacto da igreja em Éfeso refletem
seus adversários alegavam que as leis rituais con
no tumulto provocado pelos ourives (At 19.23-40),
tinuavam obrigatórias e, ao mesmo tempo, inva-
que dificilmente seria tão notório se a ameaça às
hdavam os mandamentos éticos por causa de sua
suas vendas fosse insignificante.
conduta (cf. Ellis, 1993, p. 36-8, 51-2, 61, 80-115,
Em meados da década de 60, a igreja em
116-28, 230-6; v.
Roma sofreu o martírio de “ uma grande multi dão” [ICl, 6.1; cf.
T á c it o ,
An, 15.44), e haviam
L ei) .
Nas Pastorais, os judaizantes de tendên cia gnóstica ficaram conhecidos como “ os da
201
LARTAS Pastorais
circuncisão” (Tt 1.10) e continuaram alegando
A intenção do apóstolo era que suas cartas
que eram “mestres da lei” (ITm 1.7), embora,
fossem usadas por mais pessoas que os destina
diferindo de Gálatas, aparentemente já não enfa
tários imediatos (v. 1.3.1 acima) e deviam ser es
tizassem a obrigatoriedade da circuncisão. Proi
pecificamente “lidas na igreja” (Cl 4.16; ITs 5.27;
biam o casamento, promoviam leis alimentares
cf. ICo 7.1,25; 8.1; 12.1; 16.1,12). À luz de sua
e afirmavam ter a capacidade de transmitir “co
bagagem judaica em que não se podiam ler nem
nhecimento” (gwõiw) cuja fonte, nas palavras de
mesmo targumim, mas apenas as Escrituras ca
um oráculo aplicado a eles, eram espíritos demo
nônicas “na igreja” [b. Meg., 32a; cf.
níacos (ITm 4.1-3; 6.20). Foi uma etapa de contí
CRINT 2.1, p. 238-9), elas foram escritas e recebi
nuo trabalho contramissionário, que aparece em
das como “Palavra de Deus”, ou seja, como au
Inácio (Mg, 8-11; 7^, 9; c. 110 d.C.) como um típo
toridade inspirada e normativa para as igrejas
A lexander,
de “cruzamento de judaísmo com gnosticismo”
(cf. ITs 2.13 com 2Ts 2.15). Eram ensinos de um
que negava não somente a ressur
profeta apostólico que, ao contrário de outros
( L ig h t f o o t )
reição de Cristo, mas também sua encarnação e
ensinos e escritos proféticos nas congregações,
morte físicas, e que mais tarde, no século ii, se
não estavam sujeitos a “testes” ou escrutínios
desdobrou em heresias gnósticas bem elaboradas
de outros profetas (ICo 9.3, anakrinõ; ICo 14.29,
ou nelas se fundiu. Enquanto alguns adversários
diakrinõ; com ICo 14.37,38). Ou seja, eram obras
na missão surgiram do “partido da circuncisão”,
de ensino vestidas de cartas. Filemom trata de
outros haviam sido mestres nas congregações
uma questão pessoal; outras, como ICoríntios,
paulinas e tinham abandonado a teologia de Pau
dão atenção a problemas imediatos da congre
lo, entre eles antigos associados ou colaboradores
gação ou, como Romanos ou Efésios, abordam
(ITm 1.3-5; 2Tm 1.15,16; Tt 1.10,11).
questões teológicas mais gerais e recorrentes;
4. Composição: crítica literária
— são manuais de tradição que têm afinidades
ITimóteo e Tito — e até certo ponto 2Timóteo Questões literárias sobre as Pastorais dizem
de gênero hterário com o Manual de disciplina
respeito ã sua forma epistolar, o papel do se
de Qumran. O apóstolo emprega a forma de carta
cretário e, talvez o mais significativo, o uso de
por vários motivos, especialmente porque com
tradições preexistentes (cf.
ela ele pode combinar informação e relaciona
1999;
E l l is ,
id e m
,
1989,
p. 104-7). 4.1
mentos pessoais com seu objetivo básico de en Forma da carta. Há
fa z ia - s e d is t in ç ã o e n t r e
as
cerca d e c e m anos,
4.2
e n t e n d id a s c o m o p r o d u ç õ e s n ã o lit e r á r ia s e s c r it a s apenas
p a ra
os
e as
d e s t in a t á r io s ,
te , t e m
se
(G. A.
de para se escrever cartas, com exceção das mais
D eissm ann ) . M a i s r e c e n t e m e n
t e n t a d o id e n t i f i c a r
g ê n e r o l it e r á r io
a
d is t in ç õ e s f e it a s p o r D e is s m a n n
curtas, visto que a baixa qualidade da pena, da tinta e do papel tornava lento e laborioso esse tra
“ ca rta ” c o m o u m
(v . c a r t a s , fo rm a s d e c a r t a s ).
Secretário. Por motivos de ordem prática,
na Antiguidade o secretário era uma necessida
e p ís t o la s
l it e r á r ia s m a is f o r m a is , v o l t a d a s p a r a u m c ír c u lo m a is a m p lo
sinar e edificar crentes na verdade do evangelho de Cristo.
“ c a r ta s ” d e P a u lo , a q u i
As
fo r a m , n a m e
balho (cf.
Q u in t ilia n o ,
In
o t,
10.3.31; 10.3.19-22)
e podia exigir mais de uma hora para a produção
l h o r d a s h ip ó t e s e s , e x a g e r a d a m e n t e s im p lis t a s e
de uma página pequena
p r o v a v e lm e n t e e r r ô n e a s , e te n ta tiv a s p o s te r io r e s
geral, o secretário fazia o registro primeiro numa
1999;
prancha com cera ou numa tábua de madeira, em
d e c la s s if ic a ç ã o i n d u z ir a m a e r r o ( c f . E l l i s , m a s V. M a lh e r b e , a n r w ,
2:26.1, p. 192-3, 325-6). A
( R o lle r ,
p. 13-4, 6-9). Em
forma de taquigrafia, usada na escrita grega e la
p r o p ó s it o , n a A n t i g u i d a d e a s c a r t a s p o d i a m a s s u
tina do século
m i r p r a t ic a m e n t e q u a lq u e r f o r m a , c o m o r e s s a lt a
transcrevia no papiro por extenso. Esse tipo de
P. L.
S c h m id t [ kp, v .
C íc e r o
tos
[De am, 2.3),
t ip o s ” , e m b o r a
2,
p.
p. 24-43), e em seguida
ajudante é explicitamente mencionado em Roma
d e a co rd o co m
e r a m s im p le s m e n te “ d e m u i
nos 16.22 e está implícito em passagens nas quais
e le
Paulo, segundo o costume, acrescenta uma nota à
c la s s if ic a s s e a s p r ó p r ia s
c a r t a s c o m o in f o r m a t iv a s d e s c o n t r a íd a s ,
325), e,
I (R ic h a r d s ,
e
e as sérias e
com o
“as
fa m i l i a r e s
e
margem (e.g., Fm 19a; ICo 14.34,35;
E llis ,
1989,
p. 67-8) ou uma conclusão (e.g., ICo 16.21-24;
s o le n e s ”.
202
C artas Pastorais
Gl 6.11-18; Cl 4.18; 2Ts 3.17; cf. ITm 6.20,21;
4.4
Classificação das tradições. Composições
2Tm 4.19-22; Tt 3.15) ao texto que o secretário
preexistentes abrangem uma variedade de tópi
acabou de escrever. No caso das Pastorais, inúme
cos e formas literárias (cf.
ras peculiaridades verbais e estilísticas permitem
encontram-se doxologias (ITm 1.17; 6.15,16),
El u s ,
1999). Entre eles,
inferir o uso de um secretário, e a sugestão plausí
uma lista de imoralidades (ITm 1.9,10), regras
vel feita por estudiosos é que esse secretário tenha
congregacionais acerca da conduta das viúvas
sido Lucas (2Tm 4.11; cf.
(ITm 2.9— 3.1a) e requisitos para ministérios
S tr o b e l ,
p. 210; M o u l e , p.
p. 51, talvez; mas
(ITm 3.1b-13), profecias preditivas (ITm 4.1-5;
p. 10-6). O trabalho do secretário ia de
2Tm 3.1-5), confissões que às vezes são híni
copiar ditados até participar como coautor, e pa
cas (ITm 2.5,6; 3.16; 2Tm 1.9,10; Tt 3.3-7; cf.
434;
S p ic q , v .
V. M e t zg e r ,
1, p. 199;
K n ig h t ,
rece que nas Pastorais ele teve uma participação
ITm 1.15) e outros hinos (ITm 6.11,12,15,16;
maior que em outras cartas paulinas (cf.
R ic h a r d s ,
2Tm 2.11-13; Tt 2.11-14). Alguns desses textos
p. 23-4, 193-4). Contudo, para a forma literária
acham-se na forma midráshica implícita e explí
das Pastorais são mais significativas as numerosas
cita, ou seja, de comentário sobre textos do
tradições preexistentes, em grande parte não pau
(ITm 1.9,10; 2.9—3.1a; 5.17,18; 2Tm 2.19-21; cf.
linas, que são empregadas nessas cartas.
El u s ,
4.3
at
1993, p. 188-97, 147-237: Prophecy as exe
Ti-adições. No que diz respeito às Pasto gesis). Uma passagem combina midrash e uma
rais, faz tempo que as tradições têm sido reconhe
forma hínica (Tt 3.3-7), sendo ambas característi
cidas em algumas passagens, como a confissão
cas da profecia cristã primitiva (cf.
em ITimóteo 3.16 e os cinco ditos “fiel é a pa
The prophetic hymn).
A une,
p. 453-5;
Algumas tradições também podem ser iden
lavra” ipistos ho logos; v. 4.4.1 abaixo). Em ou tras passagens também podem ser identificadas
tificadas e classificadas por três fórmulas
mediante o uso de critérios adequados. Algumas
que as introduzem ou concluem: “ fiel é a pala
(ara),
pericopes já existentes haviam sido compostas
vra” (pistas ho logos'), “ sabendo isto: que” {touto
por Paulo, e algumas por outros que o apóstolo
ginõskein/idein hoti) e “estas coisas” {tauta). Tais
reconhecia que tinham o dom profético de mediar
passagens são relativamente independentes do
a revelação divina.
contexto e identificadas por outros critérios, re lacionados acima.
Os critérios para identificar um trecho citado
4.4.1
ou transmitido pela tradição incluem: 1) uma fór
"Fiel é a palavra”. Essa fórmula intro
duz (ITm 1.15; 4.9,10; 2Tm 2.11-13) ou conclui
mula que em outra passagem introduz ou conclui material citado (e.g., ITm 4.1; cf. At 20.23; 28.25;
(ITm 2.9—3.1a; Tt 3.3-8a) cinco passagens que,
Hb 3.7); 2) a passagem é completa em si mesma;
à exceção de ITimóteo 2.9—3.1a, são declara
3) um número relativamente grande de hapax le-
ções confessionais de temas soteriológicos pau-
gomena, expressões idiomáticas e estilo que di
hnos, cujo vocabulário é geralmente paulino. A
vergem do restante da carta e de outros escritos
fórmula não aparece em cartas mais antigas de
do mesmo autor; 4) uma passagem notavelmente
Paulo (mas v. ICo 10.13) e, aparentemente, teve
parecida em outro escrito do qual não existe a
origem entre profetas apocalípticos judeus ou em
probabilidade de nenhuma dependência literá
Qumran (cf. 1Q27 1.8). No entanto, foi utiliza
ria. Um único critério pode não ser significativo,
da na missão joanina (Ap 22.6) e veio a ser em
visto que vocabulário ou expressão idiomática
pregada por Paulo e seus colaboradores durante
diferentes podem indicar apenas que o assunto
seu primeiro aprisionamento romano, isto é, em
mudou, que o secretário é diferente ou que a car
Cesareia. Por analogia com o emprego de “fiel”
ta foi escrita numa época diferente. Além disso, é
em Sirácida (Eo 46.15; 48.22) para designar as
possível que uma citação não seja uma tradição
profecias de Samuel e Isaías, a fórmula introduz
transmitida (e.g., Tt 1.12), e tradições transmiti
uma palavra que não é um dito qualquer, mas
das podem ser parafraseadas e incorporadas sem
uma palavra profética de Deus aos ouvintes. Por
uma fórmula de citação. De todo modo, a satisfa
isso, 0 ancião que ensina (= bispo) deve manter-
ção de vários critérios em determinada passagem
se “firme na palavra fiel” (Tt 1.9), e o texto diz
fornece diretrizes para avaliar as probabilidades.
que, em seu ministério, Timóteo é sustentado por
203
L a r t a s P a s t o r a is
essas “palavras fiéis” e é aconselhado a transmiti-
1.8— 11 0 correto uso da Lei
las às suas congregações (2Tm 2.11-13,14). Em
1.12-17 0 exemplo de Paulo
razão dos temas e do vocabulário paulinos que
I.18-20 Timóteo contrastado com os falsos
apresentam, na sua maioria os ditos associados
mestres
à expressão “fiel é a palavra” provavelmente são composições de Paulo, mas ITimóteo 2,9—3.1a (e
II. 2.1—4.10 Regras congregacionais
talvez Tt 3.3-8), passagens de autoria de outros,
2.1-8 As orações e sua finahdade
são variantes de uma tradição em comum com a missão petrina (cf. IPe 3.1-5,18-22; ICo 14.34,35). 4.4.2 “Sabendo isto: que”. Essa expressão e ou tras semelhantes nem sempre assumem caráter formular (e.g., ITs 1.4,5), mas às vezes são utili zadas como fórmulas para introduzir a paráfrase de uma citação bíblica (At 2.30; cf. SI 132.11; cf. Po, Fp, 4.1) e outras tradições citadas (Rm 6.6;
2.9—3.1a Uma “palavra fiel” para maridos e esposas 3.1b-13 Qualificações de bispos (superviso res) e ministros 3.14-16 A finahdade e o fundamento cristoló gico das regras 4.1-10 Uma
advertência profética
e
sua
aplicação
Ef 5.5; cf. ICo 6.9,10). Nas Pastorais, são usadas como fórmulas para introduzir a lista de imo
III. 4.11— 6.2 Instruções a Timóteo
ralidades que parafraseia os mandamentos, do
4.11—5.2 Seu exemplo para outros
quinto ao nono (ITm 1.9,10), e transmitir uma profecia (2Tm 3.1-5).
5.3-6.2 Seu trabalho de supervisão da con gregação; viúvas, anciãos, escravos e outros
4.4.3 “Estas coisas”. Essa fórmula acha-se no final do material citado e introduz a aplicação
5.23 Um interlúdio pessoal: pureza não exige ascetismo
do material à situação vigente. Aparece no final de pericopes identificadas acima como textos transmitidos por tradição (ITm 4.6; 2Tm 2.14; cf. Tt 1.15,16; 2.1). Também pode ocorrer no final de uma regulamentação para o ministério (ITm 3.1b-13,14; cf. Tt 1.7-9) que é distinta de seu contexto
(H arn a ck, v .
1, p. 482-3;
K elly,
p.
IV. 6.3-19 Admoestações finais 6.3-10 Acerca de falsos mestres e suas motiva ções financeiras 6.11-16 Acerca das motivações e da conduta do “homem de Deus” 6.17-19 Acerca de crentes abastados
231) e de regras congregacionais e regras para membros da casa (ITm 5.5,6,9,10,17-20; 6.1,2; Tt 2.2-14,15), que provavelmente são também
V. 6.20,21 Admoestação e invocação de bên ção pela mão de Paulo
tradições preexistentes incorporadas nas cartas. 4.4.4 Conclusão. Várias outras passagens são,
5.2 Tito
provavelmente, material tradicional reelaborado; confissões hínicas (ITm 2.5,6; 2Tm 1.9,10), uma doxologia (ITm 1.17), uma comissão
(ITm 6.11-16) e outros ditos (ITm 6.7,8,10a; 2Tm 1.7). Juntos, os materiais preexistentes constituem cerca de 43% de ITimóteo, 16% de 2Timóteo e 46% de Tito
( E l l is ,
I. 1.1-4 Saudação
doxologia
1999).
II. 1.5—2.1 Instruções para Tito 1.5-9 Quahficações dos presbíteros (supervi sores) 1.10—2.1 Acerca dos falsos mestres
S. Esboço
III. 2.2-15 Supervisão congregacional e a
5.1 ITimóteo
base para isso
I. 1.1-20 Introdução 1.1,2 Saudação
IV. 3.1-11 Responsabilidades dos crentes
1.3-20 Responsabilidade de se opor a judai zantes de tendência gnóstica
3.1.2 Como cidadãos 3.3-8 Seu fundamento numa “palavra fiel”
1.3-7 Seus erros
3.9-11 Acerca de falsos mestres
204
C artas Pastorais
V. 3.12-15 Uma palavra de conclusão
na história da salvação (ITm 3.16; Tt 2.11-14), in
3.12,13 Acerca dos colaboradores
clusive a identidade de Cristo como Deus (Tt 2.13),
3.14 Uma admoestação repetida
sua preexistência (ITm 1.15), a Unhagem humana
3.15 Saudações e invocação de bênção pela
davídica (2Tm 2.8), o ministério fiel (ITm 6.13),
mão de Paulo
a obra salvadora (ITm 2.5,6a; 2Tm 1.9,10), a res surreição (2Tm 2.8) e a vinda e o reinado futuros
5.3 ITimóteo
(ITm 6.14; 2Tm 2.11,12; 4.8,18).
I. 1.1-5 Saudação e ação de graças
P a u l o ; o r d e m e g o v e r n o d a i g r e i a ; P a u l o n a t r a d iç ã o
D P c : c â n o n ; c a t o u c is m o
p r i m i t iv o
; c r o n o l o g ia d e
DA i g r e j a p r i m i t iv a .
II. 1.6—2.13 Súplica a Timóteo 1.6—2.7 Por um testemunho flel diante da
Comentários:
B iB L io G R A n A .
oposição 2.8-13 À luz do exemplo de Paulo
D ib e l iu s ,
M. &
Fortress, 1972. (Herm.) ■ F e e ,
G. D.
The Pastoral
Epistles. Peabody: Hendrickson, 1988. ■ III. 2.14—4.5 Advertências contra falsos
C on
H. The Pastoral Epistles. Philadelphia:
zelm an n ,
G u t h r ie ,
D. The Pastoral Epistles. 2. ed. Grand Rapids: Eer
mestres
dmans, 1990.
(t n t c .)
■ H oltzmann, H. J. Die Pas-
2.14-26 Evitar os vãos caminhos deles
toralbriefe. Leipzig: Engelmann, 1880. ■ K elly, J.
3.1-9 Uma profecia acerca dos falsos mestres e
N. D. The Pastoral Epistles. London: Black, 1963.
respectiva aplicação
• K night
3.10-17 O motivo e a maneira de enfrentar fal
iii,
G. W. The Pastoral Epistles. Grand
Rapids: Eerdmans, 1992. (mgtc.) ■ L ea, T. D. &
sos mestres
Griffen Jr., H. P. 1, 2 Timothy, Titus. Nashville:
4.1-5 Exortação a um ministério fiel
Broadman, 1992.
(n a c .)
■ L iefeld, W. L. 1 and 2
Timothy, Titus. Grand Rapids: Zondervan, 1999. IV. 4.6-18 A situação e as perspectivas de
(n i v a c . )
Paulo
■ Lock, W. The Pastoral Epistles. Edin
burgh: T & T Clark, 1958 [1924], (icc.) ■ M arshall,
4.6-8 Sua morte está próxima
I. H. A critical and exegetical commentary on the
4.9-16 A necessidade de Timóteo ir ter com
Pastoral Epistles. Edinburgh: T & T Clark, 1999.
4.17,18 Sua confiança na presença de Deus e
Word, 2000.
ele
(icc) • M ounce, W. D. The Pastoral Epistles. Dallas:
na redenção final
(w b c . )
■ Spicq, C. Les épitres pasto
rales. Paris: Gabalda, 1969. 2 v. ■ T owner, P. H. 1-2 Timothy, Titus. Downers Grove: InterVarsity,
V. 4.19-22 Saudações e invocação de bênção
1994.
pela mão de Paido
(iv p N T C .)
• Estudos: Aland, K. Neutesta-
mentliche Textkritik und Exegese. In: Lohse,
E. &
Aland, K., orgs. Wissensckaft und Kirche, FS. Bie
6. Temas
lefeld: Luther, 1989. p. 132-48. ■ Aune,
Os ensinos das cartas encontram-se, em grande
Odes of Solomon and early Christian prophecy.
parte, nas tradições reelaboradas e transmitidas e
NTS, V .
em suas aplicações. Tratam dos falsos mestres e da
nannten Pastoralbriefe. Tübingen: Gotta, 1835. ■
D.
E. The
28, p. 435-60, 1982.■ Baur, E C. Die soge-
devida resposta a eles (ITm 1.3-20; 4.1-10; 6.3-10;
D o n e ls o n ,
Tt 1.10—2.1; 3.9-11; 2Tm 2.14—4.5) e das estritas
ment in the Pastoral Epistles. Tübingen: Mohr Sie
qualificações para o exercício de ministérios à luz
beck, 1986. •
das ações dos adversários (ITm 3.1b-13; Tt 1.5-9).
in the first century. London: Longmans, 1913. •
De alguma forma também relacionadas com
Ellis, E. E. “ The end of the earth” (Acts 1:8).
essa situação estão outras normas acerca da or
V.
dem na igreja (ITm 2.1—3.1a; 5.3-25; Tt 2.1-14)
pretation. Leiden:
e da conduta dos crentes (ITm 6.1,2; Tt 3.1-8).
making of the New Testament documents. Leiden:
L. R. Pseudepigraphy and ethical argu
E d m u n d so n ,
G. The church in Rome
b b r,
1, p. 123-32,1991. ■ ______ . History and inter E.
J. Brill, 2001. ■ _______. The
Como nas demais cartas paulinas, todos os ensina
E. J. Brill, 1999. ■ _______. The Old Testament in
mentos recebem uma fundamentação cristológica
early Christianity. Tübingen: Mohr Siebeck, 1991.
205
• ______ . The Pastorals and Paul. ExpT, v. 104, p.
memorial da morte sacrificial do Senhor com
4S-7, 1992-1993. • ______ . Paul and his recent in
base numa tradição que descreve a Última Ceia.
terpreters. 5. ed. Grand Rapids; Eerdmans, 1979,
Estudos recentes têm destacado a importância de
p. 49-57. • ______ . Pauline theology: ministry and
fatores sociais na explicação das divisões entre
society. Grand Rapids; Eerdmans, 1989. ■ ______ .
ricos e pobres na igreja. Essas divisões causaram
Prophecy and hermeneutic in early Christiani
os abusos e também a resposta de Paulo, na qual
G u t h r ie ,
ele destaca a refeição como um centro de conver
D. Introduction to the New Testament. Ed. rev.
gência da unidade e do amor cristão mútuo que
ty. 4. ed. Grand Rapids; Baker, 1993. ■
Downers Grove; InterVarsity, 1990. p. 636-46; ■
se despe das distinções de classe e outras mais.
A. Chronologie. In; ______ . Geschichte
São improváveis as teorias de que a refeição do
H arnack,
der altchristlichen Literatur. 1958 [1904]. P.
2.
tom o
v.
Leipzig;
The problem of the Pastoral Epistles.
N.
don; O x ford University Press, J. B.
The
tipo paulino era significativamente diferente das
Hinrichs,
reahzadas em outras áreas da igreja primitiva.
1 p. 480-85. ■ H arrison , 1921. ■
1. Introdução
Lon
2. Refeições religiosas no mundo antigo
L ightfoot ,
The
date o f the Pastoral Epistles;
3. A refeição da igreja em Corinto
close
4. A resposta de Paulo diante da situação de
of the Acts. In :______ . Biblical essays. London:
Corinto
MacmiUan, 1893, p. 399-437. ■ M e t z g e r , W. Die
5. A ceia do Senhor segundo Paulo e a práti
letzte Reise des Apostels Paulus. Stuttgart: Calver, 1976. ■ M
o u le ,
C.
ca em outros lugares
D. The problem of the Pas
E
torals; a reappraisal,
v.
b jr l,
47, p. 430-52, 19641. Introdução
1965. ■ P r i o r , M. Paul the Letter-writer Sheffield: js o t ,
1989.
23.)
{ js N T S u p ,
der Pastoralbriefe.
tlz,
B. Chronologie
Em ICoríntios 10.1-3, Paulo assinala o perigo
101, p. 82-94, 1976. ■
de que cristãos que acreditam estar firmes na fé
■ R e ic k e ,
v.
The secretary in the Letters o f Paul.
caiam em grande tentação, participando de idola
Tübingen; Mohr Siebeck, 1991. ■ R o b in s o n , J. A. T.
tria. O povo de Israel, que havia experimentado
Redating the New Testament. London;
R ic h a r d s , E . R .
1976.
um notável ato da graça divina quando foi liber
O. Das Formular der paulinischen Briefe.
tado da escravidão no Egito, ainda assim caiu na
Stuttgart; Kohlhammer, 1933. • R o r d o r f , W. Noch
idolatria e na imoralidade que a acompanha. Tra
mals; Paulusakten und Pastoralbriefe. In;
E l l is , E .
ta-se de uma advertência aos corintios. Paulo re
O., orgs. Uadition and
força o paralelo que está traçando, fazendo uma
interpretation in the New Testament, FS. Grand
analogia com a forma em que os israehtas "todos
• R oller,
E.;
H a w th o rn e ,
G. E;
B e tz ,
Rapids: Eerdmans, 1987. p. 319-27; •
scm ,
A.
foram batizados [...]. Todos comeram do mesmo
Schreiben des Lukas? Zum sprachhchen Problem
alimento espiritual, e todos beberam da mesma
der Pastoralbriefe.
bebida espiritual”. Assim como a experiência que
1969. •
T h ie r in g ,
nts,
v.
15, p. 191-210, 1968-
B. E. Mebaqqer and Episkopos in
the hght of the Temple scroU. 1981. •
S t r o b e l,
jbl,
v.
100, p. 59-74,
os israelitas tiveram com a nuvem e o mar é vis ta da perspectiva do
b a t is m o
cristão, seu comer e
M. The organizational pattern
beber deve ser visto como algo análogo à refeição
and the penal code of the Qumran sect. Gottingen;
cristã, mencionada mais adiante, no mesmo ca
Vandenhoeck & Ruprecht, 1986. •
M. Die
pítulo (ICo 10.15-17). Aqui, portanto, encontra
Pastoralbriefe als Paulustradition. Gottingen; Van
mos a primeira menção explícita (embora alguns
denhoeck & Ruprecht, 1988. •
estudiosos encontrem uma possível alusão era
W e in f e l d ,
W o lter,
Z ahn, T.
Introduc
tion to the New Testament. Minneapohs; Klock,
ICo 5.6-8) de Paulo à refeição eclesial com sua
1977 [3. ed. 1909; 1. ed. 1899]. v. 2. p. 1-133. 3 v.
comida e bebida espirituais. Da mesma forma,
E. E. E llis
temos aqui uma das poucas passagens em que o batismo e a ceia do Senhor aparecem associados
C e ia
do
Senhor
i:
P aulo
como os dois ritos praticados na igreja. Em ICo-
Abusos na hora da refeição eclesial em Corin
ríntios 12.13, há uma referência exclusivamente
to fizeram com que Paulo lembrasse a igreja
ao batismo, em duas expressões paralelas, mas
do verdadeiro significado dessa refeição como
não ao batismo com o Espírito (v.
206
E s p ír it o S a n t o )
C eia do S enhor i : Pa ulo
0 pôr do sol do dia anterior, tinha caráter espe
nem ao beber o Espírito por ocasião da ceia do Senhor, que é uma ideia sem fundamento algum.
cial, e havia refeições especiais associadas com
Mais adiante, na mesma carta, Paulo se re
a Páscoa e outras festas. No movimento religioso
fere a uma refeição eclesial denominada “ceia
Ugado aos fariseus, grupos pequenos conhecidos
do Senhor” {ICo 11.20; cf. “ mesa do Senhor”,
como hãbzrot se reuniam para celebrar e dar gra
ICo 10.21), sem dúvida celebrada com frequência
ças a Deus. Era também um ato de dedicação.
na igreja de Corinto. Referências em Atos indicam
As refeições diárias dos judeus começavam com
que um evento denominado “partir do pão” era
uma palavra de agradecimento a Deus associada
celebrado na igreja de Jerusalém, em Trôade “ no
com o partir do pão e terminavam com um agra
primeiro dia da semana” {At 20.7) e, por exten
decimento adicional. Os banquetes realizados em
são, nas demais igrejas. Uma vez que em Corinto
ocasiões especiais, inclusive nos dias de descan
a coleta de dinheiro para atender às necessida
so, outras festas e refeições com convidados, in
des da igreja também era feita no primeiro dia da
cluíam vinho, que não era bebido nas refeições
semana (ICo 16.2), é razoável supor que esse
comuns do dia a dia. Davam-se graças por cada
dia tinha um significado especial para a igreja e
cáUce de vinho
que uma reunião da igreja acontecia naquele dia
ção da Páscoa, seguia-se um procedimento mais
da semana.
elaborado. Um elemento importante era a expU
(K lau ck,
1982, p. 66-7). Na refei
Detalhes sobre o que acontecia na celebração,
cação do simbolismo Ugado às várias partes da
quer nas igrejas paulinas, quer nas demais, são
refeição, inclusive o cordeiro, o pão ázimo e as
ínfimos, e um comentário frequente é que, não
ervas amargas. A finalidade desse “anúncio” (cf.
fossem os abusos cometidos em Corinto, talvez
katangellõ, ICo 11.26) era fazer com que a ocasião
jamais tivéssemos conhecimento dela. Entre
se tornasse uma lembrança (Êx 12.14; 13.9; cf.
tanto, o fato de a tradição citada por Paulo rela
anamnêsis, ICo 11.24,25) do que Deus havia feito
cionada com a ocasião conter um mandamento
pelo seu povo.
dado pelo Senhor a seus seguidores para que o
H.
J. Klauck (1982) descreve, quase à exaus
fizessem em memória dele indica com bastante
tão, a situação no mundo helênico. Ele anahsa,
clareza que essa celebração era considerada um
uma por uma, as refeições associadas a oferendas
dever, onde quer que a tradição fosse conhecida.
e sacrifícios religiosos, promovidas por associa
Para Paulo, a origem dessa refeição foi a Úl
ções, celebradas no culto dos mortos, associadas
tima Ceia de Jesus com seus discípulos, ocorri
com as várias reUgiões de mistério no helenismo
da “na noite em que foi traído” , isto é, quando
e no judaísmo e praticadas pelas seitas gnósti
foi entregue às autoridades judaicas (o que foi,
cas (v.
em última instância, um ato de Deus), para ser
comunais
executado em seguida (ICo 11.23). Paulo aphcou
particularmente importantes e tinham caráter
ao incidente a maneira em que entendia a ceia.
reUgioso. Os convertidos ao cristianismo podiam
Entretanto, a natureza e a teologia dessa refeição
estar famiUarizados com refeições desse tipo e
g n o s t ic is m o ) .
Ele ressalta que as refeições
promovidas por associações
eram
nas cartas de Paulo e sua relação com a Última
com algumas das práticas das várias reUgiões de
Ceia e com as refeições cristãs em geral suscitam
mistério (v.
vários problemas.
r e l ig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ) .
Havia uma complicada mistura de práticas religiosas em Corinto. Muitos membros da igreja
2. Refeições religiosas no mundo antigo
estavam familiarizados com refeições associadas
As refeições comunais eram importantes no juda
a templos pagãos, e alguns deles acreditavam que
ísmo e em religiões helénicas. Atendiam a finali
não havia problema em continuar participando
dades sociais, reunindo os adeptos, e, de diversas
delas. Isso não significa que, para eles, o que
maneiras, cumpriam uma função reUgiosa.
acontecia nessas refeições e na ceia do Senhor
Para os judeus em geral, toda refeição era re
era a mesma coisa. Além disso, é importante ob
Ugiosa, desde que se dessem graças a Deus pela
servar que as críticas diretas e severas que Paulo
comida. A principal refeição da noite no início
faz à refeição da igreja em Corinto não parecem
do dia de descanso (sábado), que começava com
ter nenhuma ligação com as crenças ou práticas
207
V -tIA U U J t N M U K i. T A U L U
pagãs que haviam sido nela introduzidas. Talvez
Corinto quando Paulo escreveu. Tem se alegado
os cristãos de Corinto achassem que o simples
que a seqüência pão-refeição-cáhce era seguida
fato de participar da refeição os protegia do juízo
em Corinto
divino, mas a instrução de Paulo não tem a inten
p. 295) entende que, por não haver indicação de
ção de corrigir um entendimento errôneo sobre a
que os membros mais pobres da igreja fossem
( T heissen
e
L am pe) .
Klauck (1982,
refeição, mas é um apelo a que se abstenham da
excluídos do partir do pão, a refeição precedia o
idolatria. De modo que os abusos eram de nature
partilhar do pão e do cálice.
za social e refletiam as práticas do mundo secular
Uma interpretação é que os membros mais
em geral, não das religiões pagãs em particular.
ricos chegavam cedo e comiam e bebiam far
3. A refeição da igreja em Corinto
dos mais pobres, que traziam bem menos comi
tamente antes (cf. gr., prolambanõ) da chegada Uma vez que Paulo era o fundador da igreja e se
da consigo
refere ao que lhes dissera (sem dúvida, durante a
membros mais pobres tinham de se satisfazer
visita a Corinto, quando a igreja foi estabelecida),
com pão e não muito mais que isso, enquanto os
depreende-se que a refeição eclesial fora estabe
ricos tinham carne e inúmeras iguarias. Paralelos
lecida por Paulo, mas na sua ausência assumiu
extraídos do mundo greco-romano indicam que
características que ele não podia aprovar. A igreja
a refeição se dava em pelo menos duas etapas
estava se reunindo regularmente para celebrar a
distintas, situação em que os ricos acentuavam
ceia do Senhor, mas de uma forma que, segundo
as diferenças em relação aos irmãos mais pobres,
Paulo, não podia ser chamada “ceia do Senhor”
que também tinham vindo a convite dos ricos
(ICo 11.20).
para a reunião da igreja. Desse modo, embora os
(T
h e is s e n ) .
Alguns destacam que os
0 problema básico parece ter surgido das
ricos abrissem as casas para a igreja, eles o fa
tensões entre os pobres e os ricos. Uma vez que
ziam de uma forma que enfatizava as divisões so
não existiam prédios de igrejas, as refeições acon
ciais. Talvez seja oportuno mencionar que o fato
teciam nas casas dos membros. Os crentes se
de esses problemas refletirem divisões sociais foi
reuniam em grupos de tamanho máximo deter
reconhecido muito antes de Theissen (v., e.g., G.
minado pelo tamanho das casas que estavam à
G.
disposição. Foi demonstrado de modo convincen
fez foi indicar com mais clareza que os ricos le
te que os grupos se reuniam nas casas dos ricos,
varam práticas do mundo secular para dentro da
pois só estes tinham condições de acomodá-los.
igreja e pecaram contra os irmãos mais pobres.
F in d l a y , e g t ,
v
. 2,
p.
8 7 9 ). 0
que sua pesquisa
Nessas ocasiões, havia fartura de comida e bebi
Houve ainda pesquisas adicionais e com
da — pelo menos para alguns membros. Os ricos
parações com refeições helênicas para as quais
levavam bastante comida, inclusive carne para si,
um anfitrião recebia convidados. A refeição era
enquanto os mais pobres tinham de se contentar
servida em duas etapas: a refeição principal e a
com o pouco que podiam trazer.
“sobremesa” ou “confraternização” , a qual podia
0 que acontecia exatamente nessas refeições
incluir convidados que não haviam participado
é objeto de discussão. A tradição sobre a Última
da etapa anterior
Ceia sugere que o comer do pão e o partilhar do
a reunião “religiosa” em Corinto correspondia à
cálice, a que Jesus atribuiu significado especial,
parte de “ sobremesa e bebidas” e que, para os ri
foram separados um do outro pela refeição (cf. a
cos, era precedida pela “refeição principal” , para
frase “ depois da ceia, tomou o cáhce” , Lc 22.20
a qual cada um trazia a própria comida (por ana
= ICo 11.25). Apesar disso, o fato de a tradição
logia, com um eranos grego). Os membros mais
trazer o pão lado a lado com o cálice e a forma
pobres da igreja não podiam chegar tão cedo (em
em que a interpretação é simetricamente expressa
razão dos deveres profissionais) nem trazer comi
indicam que o ato de “lembrar a morte do Se
da da mesma quahdade.
( L a m pe) .
P. Lampe afirma que
nhor” veio a ser visto como uma única ação e
Uma interpretação alternativa é que os ricos
que essa lembrança ocorria após a refeição pro
estavam comendo sua comida na presença dos
priamente dita. Há, contudo, muito debate para
mais pobres, sem partilhá-la com eles
saber se essa justaposição já havia acontecido em
0 problema é se o gr., prolambanõ, em ICo 11.21,
208
( W in t e r ;
C eia d o S enhor i : Pa ulo
tem 0 sentido de comer antes dos demais ou se,
forma de uma visão ou numa revelação particular
como uma forma intensiva de lambanõ, “ tomar” ,
( M accoby) . É
significa simplesmente “devorar”).
ção eclesial que tinha por trás a autoridade do
mais provável que fosse uma tradi
Apesar das incertezas quanto às exatas cir
Senhor (cf. o emprego de palavras do Senhor, que
cunstâncias, a ideia central é bem clara. Havia
sem dúvida chegaram a Paulo por meio da tradi
excessos da parte dos ricos e sentimento de in
ção eclesial, em ICo 7.10; 9.14).
veja da parte dos pobres, que se sentiam inferio
A tradição descreve o que aconteceu na Úl
res por causa da situação (cf. ICo 12.15). Para
tima Ceia, quando o Senhor apanhou o pão e
Paulo, isso era incompatível com o propósito da
0 cálice e os deu aos discípulos, acrescentando
refeição. Fome e embriaguez eram inadmissíveis
a esses gestos a interpretação de que esses ele
numa refeição eclesial. De igual modo, comemo
mentos representavam seu corpo e a nova alian
rações caracterizadas por desordem e divisões
ça em seu sangue. Ele orientou os discípulos a
sociais tornavam a ocasião sem sentido.
fazer “isto” (i.e., repetir a prática) em memória
4. A resposta de Paulo diante da situação
um memorial de sua morte, por meio do qual ela
de Corinto
seria anunciada. A consequência lógica é que a
O ensino de Paulo em ICoríntios 11 é dirigido
conduta contrária ao espírito de autoentrega visto
contra essas práticas e demonstra que a refeição
na morte de Jesus seria uma negação do anúncio.
dele. A refeição teve, portanto, o propósito de ser
havia perdido seu caráter de refeição do Senhor.
Por isso, 0 que provocou a ira de Paulo foi o des
No que diz respeito a interromper concretamente
prezo e a faha de amor pelos membros mais po
o abuso, Paulo ordena que os membros da igre
bres da igreja.
ja deem boas-vindas uns aos outros quando se
Os membros da igreja deviam fazer uma
reúnem nessas ocasiões. Ou seja, os ricos devem
pausa antes de tomar parte da refeição, para se
dar as boas-vindas aos pobres e tratá-los (como
assegurar de que não estavam cometendo esse
todos os membros da igreja devem tratar uns
pecado, que era contra o corpo e o sangue de
aos outros) com cortesia e atenção. A refeição
Cristo e traria juízo sobre eles. Conduzir-se dessa
deve ser mantida, mas a imphcação talvez seja
maneira era agir “indignamente” e representava
a partilha da comida
não “discernir o corpo” (ICo 11.29,
( W in t e r
entende ser esse o
ará).
É difícil
sentido de ekdechomai em ICo 11.33), de modo
determinar o exato sentido que, aqui, tem a pa
que ninguém se sinta em desvantagem. Além
lavra “ discernir” (gr., diakrinõ). Depende do que
disso, Paulo estabelece que, caso desejem uma
significa “corpo”: se “ o corpo [e o sangue do Se
refeição mais substancial ou mais requintada, os
nhor crucificado]” ou “a igreja”
ricos devem comer em casa, evitando assim le
Ou Paulo está dizendo que os que comem indig
var as divisões sociais para a reunião da igreja.
namente não estão reconhecendo que a comida
(F e e ,
p. 562-4).
Com isso, Paulo não está aconselhando que se
simboliza o corpo (e o sangue) de Jesus ou não
elimine a refeição e a ocasião se torne aquilo que
estão agindo como é próprio dos receptores da
mais tarde veio a ser, isto é, o consumo simbólico
salvação, ou então o apóstolo está dizendo que
de um pequeno pedaço de pão e de um gole de
eles não estão reconhecendo que as pessoas
vinho. Ele promete transmitir pessoalmente ins
reunidas para a refeição estão presentes como o
truções adicionais, porém jamais saberemos que
corpo de Cristo (feitas um só mediante o parti-
instruções foram essas.
Ihamento do único pão, ICo 10.17) e devem ser
Paulo apresenta sua ideia central, que põe o
tratadas com amor cristão.
fimdamento teológico para o conselho prático,
De um modo ou de outro, o que Paulo diz
citando a tradição que havia recebido e num mo
aqui é reforçado pelo seu comentário anterior de
mento anterior passado verbalmente à igreja. A
que os “ muitos” dos que participam do único pão
Unguagem utilizada indica que se tratava de uma
na ceia são “um só corpo” em virtude dessa par
tradição aceita e normativa. Paulo diz que a rece
ticipação (ICo 10.16,17). Ele entende que os que
beu “do Senhor”, o que, no entender de alguns,
participam do sangue e do corpo de Jesus são,
significa que veio a ele diretamente do Senhor na
209
dessa maneira, levados a uma unidade mútua.
C eia do S enhor i ; Paulo
em que não se pode permitir a existência de dis
os israehtas no deserto (ICo 10.3,4;
tinções sociais.
p. 234-9). Os estudiosos catóhcos-romanos ten
Há
diferença de opinião também
W
edderburn,
quanto à comunhão com o corpo e o sangue de
dem, com base na frase “Isto é o meu corpo”, a
Cristo: se significa “uma união (participação)
interpretar que o Senhor está presente no pão e
com 0 Cristo ressurreto”
p. 805), ou uma
no cáhce, ao passo que os intérpretes protestan
participação comum entre os membros, ligando-
tes alegam que, na verdade, o sentido da frase é:
(H
au ck,
-os uns aos outros com base no Senhor, sua morte
“Isto simboliza o meu corpo”. 0 debate gira em
e ressurreição
p. 564), ou ainda uma parti
torno de ICoríntios 10.20,21, em que parece ha
cipação comum nos beneficios que a morte de
ver uma analogia entre ter parte com os demônios
(F ee,
1968, p. 232).
mediante a participação no cáhce e na mesa dos
Qualquer que seja a maneira exata em que enten
próprios demônios e o que acontece por ocasião
damos a expressão, Paulo ressalta que participar
da ceia do Senhor. No entanto, não há nenhuma
dessa refeição e tomar parte de refeições idólatras
indicação de que os dois acontecimentos sejam
são coisas incompatíveis. Sua ênfase no fato de
exatamente paralelos. De qualquer forma, não
que a refeição eclesial une os crentes como um só
é sugerido que os adoradores estejam ingerindo
pode indicar que qualquer membro que partici
demônios ou que os demônios estejam presentes
pa da idolatria está contaminando a comunidade
no alimento. O paralelo sugere que, assim como
Cristo lhes assegurou
(B
arrett,
toda. Mas o pensamento principal é provavel
os que participam de banquetes idólatras são in
mente 0 que também se vê em ICoríntios 6: a im-
duzidos a um relacionamento com demônios, de
possibihdade de se estar ao mesmo tempo unido
igual modo os que participam da ceia do Senhor
a Cristo e ao que é pecaminoso/demoníaco.
são conduzidos a um relacionamento com o Se nhor, que está presente como anfitrião. Admite-se
Em ICoríntios 11, Paulo, com base na tradi ção, discorre sobre a importância teológica da
que a figura de “anfitrião e convidados” vai além
ceia. Ele lembra os leitores de que o corpo de
do que Paulo diz expUcitamente, mas se encai
Cristo, representado pelo pão, foi dado “por vós”.
xa no conceito de banquetes promovidos sob a
Essa expressão faz parte de uma série de afirma
proteção de um deus no paganismo e de festas
ções que ensinam que Cristo morreu por outras
celebradas “ na presença do Senhor” no a t e no ju
pessoas (Rm 5.8; 8.32; ICo 15.3; 2Co 5.15 [3x];
daísmo (cf. Ap 3.20). Não há nenhuma indicação
Gl 2.20; 3.13; Ef 5.2,25; ITm 2.6; Tt 2.14) e que
de que Paulo entendesse o acontecimento como
ocorrem ao longo de todo o
(Mc 10.45 [gr.,
sacrificial: não há compararão com a oferenda
anti]; Jo 10.11,15; 11.52; Hb 2.9; 9.24; IPe 2.21;
de animais no altar, mas ao comer o alimento à
3.18; IJo 3.16). Desse modo, a morte de Jesus
mesa, onde os participantes recebem os símbolos
nt
é vista como a entrega de si mesmo na morte a
que indicam que uma morte sacrificial já ocorreu
favor e em benefício de outras pessoas, a fim de
no Calvário. A ceia, portanto, deve ser entendida
que sejam redimidas do pecado e do juízo que o
como uma refeição pós-sacrificial.
acompanha e sejam justificadas. É possível que
Não existe outra referência explícita à ceia nos
essa autoentrega “ por vós” também tenha o obje
textos de Paulo. Entretanto, se havia o propósito
tivo de servir de exemplo
(W
in t e r ,
p. 79).
de que ICoríntios fosse hdo como um dos mo
O cálice é visto como símbolo da nova aliança
mentos da refeição eclesial, pode se entender que
no sangue de Cristo. Tendo Êxodo 24.8 e Jere
a maldição contra os que não amam ao Senhor
mias 31.31-34 como ilustração, o cálice indica que
(ICo 16.22) reforça o sentido de comunidade en
a morte de Jesus é o sacrifício que estabelece a
tre aqueles que, na refeição, declararam amar ao
nova aliança entre Deus e seu povo, desse modo
Senhor e se separaram dos que anunciavam ou
estabelecendo o novo povo de Deus.
tro evangelho (quanto à maldição, cf. advertência
Como resultado das diferenças teológicas na
semelhante em Rm 16.17,18 e Gl 1.8,9). 0 bei
igreja de hoje, discute-se muito se o ensino de
jo de paz, mencionado no final de várias cartas,
Paulo indica que o Senhor está presente na ceia.
também passou a ter significado como expressão
Ele parece considerar “espirituais” a comida e a
de unidade e amor. Finalmente, a expressão Ma
bebida, como a provisão enviada dos céus para
ranata, que pode ser entendida como afirmação
210
C eia do S enhor i : Pa ulo
ou como oração, deve ser interpretada como ex
As refeições comunais eram celebradas por
pressão do anseio pela vinda final de Jesus como
toda a igreja primitiva, e Lucas identifica sua ori
Senhor, não como oração por sua presença na
gem nos primeiros dias da igreja em Jerusalém.
ceia do Senhor.
Não existe nada de improvável nisso. Os primei ros cristãos, num contexto judaico, parecem ter
5. A ceia do Senhor segundo Paulo e a
agido de modo análogo ao dos fariseus ou mesmo
prática em outros lugares
de qualquer grupo judeu que se reunisse para co
Como 0 material pauhno se relaciona com outros
mer. A refeição é denominada “ o partir do pão”
Os Evangelhos
— sem nenhuma menção a beber vinho. Embora
Sinóticos apresentam testemunho uniforme sobre
ensinamentos sobre a ceia no
essa expressão se refira estritamente ao ato ini
a ocasião em que Jesus se encontrou com seus
cial de uma refeição, ou seja, partilhar o pão e
nt?
discípulos para o que é identificado como uma
render graças, fica claro que se está falando de
refeição pascal. Ele usou essa oportunidade para
uma refeição de verdade. De modo semelhante,
anunciar aos discípulos sua morte iminente e
em Apocalipse as metáforas de refeição mostram
para partilhar com eles o tradicional pão da Pás
que seu significado religioso era reconhecido na
coa e um dos cáhces de vinho, ao mesmo tempo
área geográfica coberta por esse livro — a Ásia.
que declarava que eles simbolizavam seu corpo e
A questão que agora surge é se a prática era
seu sangue. As palavras dos relatos variam entre
uniforme por toda a igreja primitiva. Teria havido
os Evangelhos, porém Mateus e Marcos são bem
duas ou mais formas de refeição na igreja primiti
parecidos, praticamente com as mesmas palavras
va: uma do tipo mais comemorativo, “o partir do
(Marcos: “Tomai; isto é o meu corpo. [...] Isto é
pão”, que não era um memorial da morte do Se
0 meu sangue, o sangue da aliança derramado
nhor nem se baseava na tradição da Última Ceia;
em favor de muitos”), enquanto Lucas traz uma
outra mais associada ao uso do pão e do vinho
formulação mais próxima do que foi preservado
para lembrar a morte do Senhor, o tipo de ocasião
por Paulo (Lucas: “Isto é o meu corpo dado em
defendido por Paulo?
favor de vós; fazei isto em memória de mim. [...]
Uma teoria desse tipo foi especialmente ela
Este cálice é a nova aliança em meu sangue, der
borada por H. Lietzmann. Ele afirmava que a re
ramado em favor de vós”). A natureza um tanto
feição original de Jerusalém foi substituída pela
estilizada dos relatos sugere que a formulação
refeição paulina. Outros estudiosos propuseram
havia se “ fixado” como parte de uma declaração
teorias parecidas.
litúrgica usada em encontros eclesiais e estava in
que é possível ter sido Paulo quem fez a asso
corporada nos Evangelhos (v.
(B arrett,
1985, p. 61, 67-8, acha
ciação entre a refeição semanal de comunhão da
adoração).
A variação de formulação entre Mateus/Mar
igreja, em que se comemorava a ressurreição, e a
cos e Lucas/Paulo tem recebido diferentes expli
Última Ceia.) No entanto, revelou-se impossível
cações. Talvez a maioria dos estudiosos considere
identificar a existência independente da suposta
a formulação de Marcos a mais antiga, e a lu-
ceia de Jerusalém. O máximo que se pode dizer
cana/paulina, um desenvolvimento da marcana,
é que, em Atos, a expressão “partir do pão” pode
porém uma minoria significativa (com a qual este
abranger celebrações da ceia do Senhor e outras
autor se identifica) entende que o movimento se
refeições eclesiais sem vinho, que normalmente
deu no sentido inverso. Há divergência de opi
não era bebido em refeições comuns. A refeição
niões também quando se trata de saber se essa
em Corinto incluía o partir do pão e o uso de vi
tradição remonta à ocasião histórica descrita ou
nho. A única testemunha a favor de uma ceia do
foi desenvolvida a partir de palavras expressas de
Senhor apenas com pão seria Lucas, se isso é o
forma mais simples e menos carregadas de signi
que ele está descrevendo, e os vínculos estreitos
ficado teológico. A ideia de que o relato inteiro
de Lucas com o cristianismo paulino tornam
é uma criação da igreja e de que não temos ne
improvável que ele queira descrever algo que
nhum conhecimento histórico sobre essa última
não seja a prática pauhna. Não há fundamento
refeição de Jesus com seus discípulos não deve
na ideia de que um autor pós-pauhno esteja
ser levada a sério (v.
situando nos dias da igreja primitiva uma ceia
Ú
l t im a
C e ia ) .
211
1-.EIA DO iENHOR i: t'AULO
“só pão” comum em sua época. Assim, não
do Senhor, mencionada em ICo 11.) Daí surgiu
temos nenliuma prova histórica da existência
0 texto de Lucas, que mostra uma combinação
simultânea de dois tipos de refeição.
secundária dos temas apocalíptico e eucarístico
Portanto, precisamos indagar se existe algum
e, então, o texto de Marcos, que suprime quase
indício de uma evolução nas refeições da igreja
totalmente o aspecto apocalíptico. Assim, a ceia
primitiva, se teriam deixado de ser simples reu
do Senhor é uma criação paulina e não deve ser
niões de comunhão para se tornar memoriais da
confundida com o partir do pão de Atos.
morte de Jesus, adquirindo um significado teo
A teoria de Maccoby tem vários pontos falhos.
lógico cada vez mais elaborado e refletido nas
Não há indício claro no
várias formas das chamadas “palavras de insti
sial com a sequência vinho-pão (ICo 10.16,17,
tuição da ceia”. A Última Ceia foi uma reinterpre-
texto a que ele acertadamente não recorre, traz a
tação de uma refeição de Páscoa, e isso pode ter
ordem invertida para permitir que Paulo elabore
sugerido uma celebração anual, em vez de sema
sobre a importância do único pão), e não se deve
nt
de uma refeição ecle
nal. Alguns cristãos comemoravam uma “páscoa
dar preferência ao conteúdo da Didaquê em de
cristã” anual, como se vê em ICoríntios 5.6-8,
trimento de fontes mais antigas. Seria estranho se
mas esse detalhe também mostra que Paulo não
o Atos pós-pauhno atribuísse a Paulo um “partir
tinha dificuldade em manter uma páscoa cristã
do pão” (At 20) que fosse diferente do costume
anual e uma ceia do Senhor semanal (v.
paulino conhecido do autor. Paulo emprega a
J e r e m ia s ,
p. 901-4). Voltamos, portanto, a nos perguntar se
expressão “partir do pão” para se referir ã ceia
0 relato da Últíma Ceia é historicamente plausível
do Senhor (ICo 10.16). E a expressão “ o cálice
e confiável e se ele influenciou a igreja desde os
da bênção” (i.e., “o cálice com que bendizemos
primórdios. Com respeito a Lucas, vale lembrar
a Deus”), empregada por Paulo em ICoríntios
a refeição de Emaús com o Senhor ressuscitado,
10.16, foi usada para se referir ao terceiro cálice
descrita por Lucas de uma forma que sugere ter
na refeição pascal [Str-B, v. 4, p. 1, 72). Em suma,
sido um padrão para o que seguiria, em termos
0 argumento não é convincente.
que fazem lembrar a Última Ceia. É evidente que no pensamento do EvangeUsta não havia nenhum problema quanto ã continuidade entre as duas.
Ver também b a t is m o ; C artas
ao s;
Ú
C e ia ;
l t im a
co rpo de
C r is t o ; C o r i n t i o s ,
a d o r a ç ã o / cu lto .
DPC: a l i m e n t o o f e r e c i d o a o s í d o l o s e l e i s d i e t é t i c a s
A ideia do desenvolvimento foi defendida por
ju d a ic a s ;
e le m e n t o s
lit ú r g ic o s ;
h e r m e n ê u tic a / in te r
H. Maccoby. Ele afirma que nas refeições judai
p r e t a ç ã o DE P a u l o ; r e f e i ç ã o f r a t e r n a ; s a c r i f I c i o , o f e
cas comuns o ato inicial era o “partir do pão” ,
r e n d a ; SOLIDARIEDADE, COMUNFLÃO, PARTILHA; TRADIÇÃO.
distribuído entre os participantes com uma ora ção de agradecimento, em que Deus era bendito
B ib u o g r a f ia .
por sua provisão. Entretanto, nas orações cerimo
the Corinthians. New York: Harper & Row, 1968.
B ar r ett,
C.
K.
The First Epistle to
niais do sábado e em festas, esse ato era prece
[h ntc .]
dido pela participação no vinho, com ações de
in the New Testament. Exeter: Paternoster, 1985.
■ ___________
. Church, ministry and sacraments
graças a Deus. Ele alega, então, que na igreja de
■ F ee,
Jerusalém o “partir do pão” seguia o padrão das
Grand Rapids: Eerdmans, 1987.
refeições judaicas comuns. Mas a última refeição
K01VÓÇ
de Jesus com seus discípulos seguiu o padrão de
J e re m l« ,
uma refeição festiva com a sequência vinho-pão,
904. •
conforme atestado em Lucas e em Didaquê 9 e 10.
Kult: eine religionsgeschichtliche Untersuchung
Originariamente, havia um tema puramente “apo
zum ersten Korintherbrief. Münster: Aschendorff,
G. D. The First Epistle to the Corinthians.
j. naoxa.
K lauck, H .
[n ic n t .] ■ H auck,
F.
[S.l.: s.n., s.d.]. v. 3. p. 789-809. ■
k t A. T D N T .
td n t.
[S.L: s.n., s.d,]. v. S. p. 896-
J. Herrenmahl und hellenistischer
calíptico”, quando Jesus ansiava pela iminente
1982.
inauguração do reino de Deus. Então Paulo teve
v. 4. p. 362-72. •
uma visão pela qual soube que na Última Ceia Je
renmahl im Schnittpunkt hellenistisch-römischer
sus havia distribuído pão e vinho (nessa sequên
Mahlpraxis und pauUnischer Theologia Crucis (1
cia!) e a interpretou como uma referência à sua
Kor 11, 17-34).
morte. (Essa é a tradição recebida [diretamente]
m ann
212
,
■
______ . Lord’s Supper,
znw
L
,
am pe,
v
.
ab d
.
[S.l.: s.n., s.d.].
P. Das korinthische Her
82, p. 183-213, 1991. ■ L ie t z -
H. Mass and Lord’s Supper. Leiden: E. J. Brill,
C eia d o S enhor ii ; A t o s , H ebreus, C artas G erais, A pocalipse
1953-1979. ■ NTS, V .
M
acco by,
H. Paul and the Eucharist.
Tanto os Evangelhos Sinóticos quanto Paulo
I. H. Last Su
relatam que Jesus instituiu, por ocasião da Última
37, p. 247-67, 1991.
■ M
arsh all,
pper and Lord’s Supper Exeter: Paternoster, 1980. ■
Ceia, um rito com pão e vinho como um memo
E. The Lord’s Supper according to the New
rial para ele mesmo (Mt 26.26-29; Mc 14.22-25;
S c h w e iz e r ,
Testament. Philadelphia: Fortress, 1967. ■ T h e is s e n , G.
Lc 22.17-20,29,30; ICo 11.23-26; v. Última Ceia).
The social setdng of Pauline Christianity: essays on
Atos dos Apóstolos menciona as refeições que
Corinth. Philadelphia: Fortress, 1982. •
edderburn,
provavelmente constituem atos memoriais da
A. J. M. Baptism and resurrection: studies in Pauli
igreja primitiva. Alguns outros ecos da refeição
ne theology against its Greco-Roman background.
ritual são encontrados em outras passagens, em
Tübingen: J. C. B. Mohr, 1987. ■ W
escritos posteriores do
W
in t e r ,
B. W . After
I. H.
M
nt
.
As informações mais
importantes para o desenvolvimento no sécu
Paul left Corinth. Grand Rapids: Eerdmans, 2001.
lo II estão na Didaquê, nas cartas de Inácio de
arsh all
Antioquia e nas Apologias de Justino Mártir e C e ia
do
Senhor
C artas G No
NT,
e r a is ,
ii;
A
A
tos,
H
ebreus,
de Tertuliano. 1. 0 partir do pão em Atos
p o c a l ip s e
2. As cartas nâo pauhnas e Apocalipse
a expressão “ceia do Senhor” , kyriakon
deipnon, ocorre só em ICoríntios 11.20 (v. 00 S enhor
i) .
3. O período primitivo pós-apostólico
c e ia
4. Distinção entre agapê e eucaristia
Os cristãos de Corinto se reuniam
5. Conclusão
“como igreja [en ekklêsia]” (ICo 11.18), e essa reunião incluía uma refeição na qual se comia o pão e se bebia o cálice que anunciam “a morte do
1. O partir do pão em Atos
Senhor, até que ele venha” (ICo 11.26). Não está
Ora usando substantivo, ora usando verbo,
claro se esse pão e esse cáhce emolduravam a
no livro de Atos Lucas menciona cinco vezes
refeição completa — pão no início e cáhce no fim
o “partir do pão” : Atos 2.42,46, como parte de
(como seria o caso se a prática em Corinto tivesse
uma descrição da igreja de Jerusalém logo após
assumido a mesma forma do relato que o apósto
0 derramamento do Espírito no dia de Pentecos
lo Paulo faz da Última Ceia de Jesus, ICo 11.23-
tes; Atos 20.7,11, na narrativa da visita de Paulo
25) — ou se o pão e o cáhce eram servidos juntos,
à igreja em Trôade; Atos 27.35, no relato de como
depois de o povo ter comido e bebido na refeição
Paulo encorajou os companheiros de navio a se
principal. É certo que com seu comportamento
ahmentar, quando corriam o risco de naufrágio.
insultante — “ Cada um toma antes a sua pró
A questão das “ mesas” , em Atos 6.1-6, também
pria refeição. Assim, um fica com fome, e o ou
é relevante.
tro se embriaga” (ICo 11.21) — os corintios, no
Na prática judaica, o pão era partido quando
julgamento do apóstolo Paulo e, evidentemente,
Deus era bendito no início de uma refeição. No
também no de Deus (ICo 11.27-34), estão desca
cristianismo primitivo, o partír do pão carregava
racterizando “a ceia do Senhor”. Em geral, os es
a estampa distíntiva que havia adquirido em ra
tudiosos concordam em que uma conduta como
zão de seu uso significativo por Jesus. No Evan
a detectada em Corinto foi o motivo provável de
gelho de Lucas, à luz do qual Atos tem de ser lido
uma separação que, por fim, se consolidou entre
de modo particular, Jesus partiu os pães quando
0 agapê — ou ágape, ou banquete (festa) de amor
alimentou os cinco mil (Lc 9.16); o Salvador par
(nessas circunstâncias, uma designação repleta
tiu 0 pão quando o deu aos discípulos por oca
de ironia) — e o sacramento (falando anacroni-
sião da Última Ceia, dizendo: “ Isto é o meu corpo
camente do período apostólico). Na discussão
dado em favor de vós; fazei isto em memória de
e os escritos do início do período pós-
mim” (Lc 22.19); o Senhor ressurreto partiu o
apostóhco, será necessário considerar o agapê
pão em Emaús (Lc 24.30) e foi reconhecido pelos
e a eucaristia como inseparáveis, mas, à medi
dois companheiros “ no partir do pão” (Lc 24.35).
da que o século ii avança, surge uma distinção
Em torno dessas ocasiões de grande significado,
mais clara entre o banquete ou festa de amor e
agrupam-se, portanto, as inúmeras palavras e fei
a santa ceia.
tos de Jesus que envolvem comida e bebida e que
sobre o
nt
213
L eia do íe n h o r ii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
também dão peso e textura à observância daquilo
bens, de sorte que “o partir do pão” pode então
que, por metonímia, a igreja de Atos denominou
designar ou um agapê, ou a eucaristia, ou ambos.
“ o partir do pão”.
De um modo ou de outro, o contexto indica que
Jesus havia comparado o reino vindouro de
os crentes tinham várias coisas em comum: nâo
Deus a um banquete: “Muitos virão do Oriente e
apenas a instrução apostólica, “o partir do pão”
do Ocidente, do Norte e do Sul, e se sentarão à
e as orações, mas também a frequência ao tem
mesa no reino de Deus” (Lc 13.29). Além do ato
plo (At 2.46) e a distribuição de bens materiais
messiânico de já alirnentar as multidões numa
conforme surgiam as necessidades (At 2.44,45).
prenunciação do reino, Jesus também tinha sido
Assim, o partir do pão é associado a uma fé co
notório por comer e beber com publicanos e
mum, a uma adoração comum a Deus e a uma
pecadores (Lc 7.34; 15.1,2; v.
vida de serviço mútuo. 0 “partir” tem o propósito
c o m u n h Ao
à
m esa).
Nessas ocasiões, ele os convidava ao arrependi
de “partilhar” , como insiste X. Léon-Dufour [le
mento (Lc 5.30-32), pois apenas comer e beber
partage du pain) , e assim expressa a unidade que a
em sua presença não era garantia de salvação
comunidade tem em Cristo. 0 partir do pão acon
(Lc 13.22-30). Na Última Ceia, ele falou de sua
tecia nas casas dos crentes, com uma refeição que
condição de estar entre seus discípulos como a
era feita “com alegria e simplicidade de coração”
de “quem serve” (Lc 22.27), mas pôde também
(At 2.46; cf.
lhes prometer um lugar à sua mesa no reino que
du
T
o it ) .
A alegria que caracterizava essas refeições
seu Pai lhe havia outorgado (Lc 22.28-30). De
levou alguns estudiosos, notadamente H. Lietz
pois da ressurreição, sua aparição em Emaús não
mann, a postular que havia uma ceia do Senhor
foi a única em que participou de uma refeição
original do “tipo Jerusalém” em contraste com a
com seus seguidores. Ele comeu com outros dis
do tipo pauUno, tendo o apóstolo, talvez influen
cípulos em Jerusalém (Lc 24.36-43), e em Atos
ciado por refeições memoriais helênicas, mudado
Lucas apresenta a declaração bem resumida feita
0 tema para a morte do Senhor. Embora ênfases
por Pedro: “Deus o ressuscitou [a Jesus] ao ter
diferentes possam ter caracterizado a refeição
ceiro dia e lhe concedeu que se manifestasse [...]
cristã em momentos e lugares diferentes, é de-
a nós, que comemos e bebemos com ele, depois
saconselhável e desnecessário aumentar, nesse
que ressuscitou dentre os mortos” (At 10.40,41).
assunto, a diferença entre Jerusalém e Paulo.
(At 1.4 deixa implícita a mesma coisa, caso syna-
De acordo com Lucas, a igreja em Jerusalém es
lizomenos seja associado com hals, “sal” , e então
tava bem consciente de que o preço pago pela
entendido como uma referência ao Jesus ressus
redenção de que se regozijava tinha sido a cruci
citado comendo com os apóstolos, como de fato é
ficação do Senhor (At 2.23). Mas é possível que
a tradução encontrada nas versões latina, siríaca
Paulo, ao lembrar que a ceia anunciava a morte
e copta.) Essas sâo, portanto, as associações que
do Senhor até que ele venha, estivesse corrigindo
acompanham as reuniões de ceia perpetuadas
uma suposição irrefreada existente entre os cris
pela igreja primitiva após a exaltação do Senhor.
tãos corintios segundo a qual o reino de Deus já
1.1
Atos 2.41-46. De acordo com Atos 2.41-46, estava presente. A alegria [agalliasis] que carac
os que se arrependeram no dia de Pentecostes e
terizava as refeições da igreja de Jerusalém foi
foram batizados, foram acrescentados ao grupo
experimentada pelo carcereiro de Filipos [êgallia-
dos que “perseveravam no ensino dos apóstolos
sato, At 16.34), que, depois de ser batizado, “pôs
e na comunhão [gr., koinõnia], no partir do pão
a mesa” [parathêken trapezan) para Paulo e Silas.
e nas orações”. É difícil identificar a exata rela ção entre esses quatro elementos, especialmente
1.2
Atos 6.1-6. As “mesas” tinham sido mo
tivo de divergência entre os falantes de grego
em razão da dificuldade de expUcitar o significa
( “helenistas”) e de aramaico ( “hebreus”) na co
do de uma palavra elástica como coinonia. Já se
munidade cristã de Jerusalém (At 6.1-6). A igreja
propôs que os quatro itens constituem um culto,
primitiva herdou a tradição judaica de cuidar de
em sequência litúrgica, de pregação, agapê, eu
pobres e necessitados em refeições festivas, o que
caristia e orações (v.
adoração)
. Outra proposta
se estenderia a todos os irmãos e irmãs necessi
é
que coinonia designe uma coleta de dinheiro ou
214
tados em suas reuniões regulares
(R
e ic k e ,
1948).
C eia do S enhor i i : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
Os helenistas queixavam-se de que suas viúvas
para uma adoração totalmente cristã assim que
não estavam sendo tratadas de modo justo na
0 sábado terminava
distribuição de alimento. Aparentemente, a dis
judaico-cristã teve impacto na igreja de Trôade,
tribuição diária de mantimentos vinha ocorren
então a assembleia de Atos 20.7-12 teria aconteci
do sob a supervisão geral (mas não direta) dos
do de sábado para domingo. Mas o entardecer de
apóstolos (“ Não faz sentido que deixemos a pa
domingo pode ter se imposto na igreja primitiva
lavra de Deus e sirvamos às mesas”). Os apósto
como 0 momento para a reunião semanal mais
los propuseram que sete outros homens fossem
importante em razão da lembrança das refeições
designados para a tarefa. Foram escolhidos sete
do primeiro domingo de Páscoa, de que o Senhor
pessoas de nomes gregos, e os apóstolos oraram e
ressurreto participara com seus discípulos.
(R ie s e n fe ld )
. Se tal influência
impuseram as mãos sobre eles. Tradicionalmente,
De todo modo, lemos que Paulo pregava, “ten
esse acontecimento é visto como a origem do dia-
do prolongado seu discurso até a meia-noite”. Só
conato como ordem ministerial. Agora, os após
então, depois de incidentalmente ter ressuscitado
tolos podiam se dedicar “à oração e ao ministério
0 desafortunado Êutico, foi que o apóstolo par
da palavra”. Alguns têm lamentado o afastamento
tiu o pão e comeu. Esse padrão de pregação e
entre o ministério da pregação e o diaconal. De
refeição — o que faz lembrar os momentos em
um modo ou de outro, é triste que, como aconte
que 0 Senhor ressurreto expôs as Escrituras aos
ceu em Corinto, a partilha de alimentos se tornas
dois discípulos na estrada de Emaús e se revelou
se motivo de divisão entre os cristãos. A questão
a eles no partir do pão (Lc 24.27-35) — talvez já
da comunhão à mesa — dessa vez inegavelmente
revele uma prática regular de “palavra e mesa” na
uma questão de princípio teológico entre cristãos
principal reunião semanal dos cristãos. 1.4
judeus e gentios — surgiu, mais uma vez, em
Atos 27.33-38. Em Atos, o caso mais intri
Atos 10 e 11, no episódio que envolve o após
gante de “partir o pão” ocorre durante o naufrá
tolo Pedro e o centurião Cornélio. O assunto foi
gio de Paulo. Atos 27.33-38 diz:
resolvido com o reconhecimento de que “Deus Enquanto amanhecia, Paulo pedia com in
concedeu também aos gentios o arrependimento
sistência a todos que comessem alguma coisa,
para a vida” (At 11.18). 1.3
dizendo: Hoje já é o décimo quarto dia que
Atos 20.7-12. A ocorrência seguinte do
“partir do pão” na narrativa de Atos se dá durante
esperais e permaneceis em jejum, sem comer
a visita do apóstolo Paulo a Trôade (At 20.7-12).
coisa alguma. Recomendo-vos, portanto, que
Os cristãos reuniram-se “a fim de partir o pão [...]
comais alguma coisa, porque o vosso livramen
no primeiro dia da semana”. A reunião aconteceu
to depende disso; pois nem um cabelo cairá da
(o verbo usado é synagõ) durante o entardecer e
vossa cabeça. Dito isso, tomou o pão, deu gra
a noite.
ças a Deus na presença de todos e, partindo-o,
Não está certo se essa reunião aconteceu no
começou a comer. Então todos se animaram e
entardecer e na noite de sábado para domingo ou
também comeram. Éramos ao todo duzentas e
de domingo para segunda. Se Lucas está usan
setenta e seis pessoas no navio. Depois de se
do o sistema romano de contagem do tempo, em
satisfazerem com a comida, começaram a ali
que o dia começa de manhã, então a reunião co
viar o navio, jogando o trigo ao mar.
meçou no entardecer de domingo. Se, no entanto, está usando o sistema litúrgico judaico, a assem
0 que chama a atenção é que as ações de
bleia deve ter começado no entardecer de sába
Paulo espelham o que Jesus fez na Última Ceia e
do, 0 início do “primeiro dia da semana”. Já se
prenunciam o que a erudição atual denomina “eu
propôs que o domingo cristão teve origem como
caristia na forma de quatro ações” (Dix): o após
um prolongamento do dia de descanso judeu:
tolo tomou um pão (o “ ofertório”), deu graças (a
os cristãos guardavam o sábado ao participar da
“oração eucarística”), partiu o pão (a “ fração”),
adoração judaica, e então, uma vez que o sába
comeu (a “comunhão”). Desse modo, Paulo es
do já não era mais adequado, pois fora cumprido
tava presidindo uma refeição partilhada por to
por Jesus, eles passaram a se reunir em casas
215
dos os que estavam no navio, presumivelmente
C eia do S enhor i i : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
marinheiros e passageiros pagãos, pois não há
entre agapais (“ festas de amor”) e apatais (“pra-
indicação de duas refeições diferentes, uma para
zeres” , “dissipações” ; “mistificações” , a r a ) . I. H.
Paulo, Aristarco e o “redator do diário de viagem”
Marshall sugere que a primeira leitura pode ser
e outra para os pagãos. Por isso, a opinião geral é
resultado de um trocadilho intencional apagado
que não pode ter sido uma eucaristia. Era o caso,
por um escriba. De qualquer maneira, a veemen
isto sim, de Paulo simplesmente observar o costu
te Carta de Judas declara que a reunião cristã
me judaico de agradecer antes da refeição.
fora infiltrada por “homens ímpios, que mudam
Um exegeta recente tentou ser mais fiel à
a graça de nosso Deus em libertinagem e negam
nuança “eucarística” de Atos 27.35. B. Reicke
0 nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”.
entende que Atos 27.33-38 seja um relato ainda
São, nas palavras de Judas, “ manchas em vos
mais estiUzado de um incidente ao qual Paulo já
sas festas de amor, banqueteando-se convosco, e
havia imprimido um rótulo quase eucarístico na
apascentando-se a si mesmos sem temor”
época em que ocorreu. Paulo permitira às pes
2.2
(a c f).
Hebreus. Alguns entendem que na Carta
soas a bordo participar de “uma prefiguração da
aos Hebreus não existe nenhum ou praticamen
eucaristia cristã como um preparativo em poten
te nenhum indício de que, da parte do seu autor
cial para um discipulado posterior” , e o autor de
ou da comunidade de cristãos a que a carta foi
Atos, entendendo o episódio da mesma forma,
dirigida, tenha havido envolvimento na fé e na
empregou o incidente ocorrido na viagem para
prática eucarística. Ahás, foi até mesmo suge
descortinar a perspectiva do trabalho que Paulo
rido que, para o autor de Hebreus, “o sacrifício
faria no contexto mais amplo da missão, quando
de Cristo foi de tal natureza que tornou obsoleta
chegasse a Roma (cf. At 28.28-30). Talvez nem
toda forma de adoração que inserisse um meio
essa interpretação tenha avançado o suficiente.
material de comunhão sacramental entre Deus e
Os que estavam a bordo de um navio que rumava
o adorador”
contra as rochas (At 27.29) foram confrontados
a Carta aos Hebreus está repleta de alusões à
(W
il u a m s o n ) .
Para outros exegetas,
com “as coisas derradeiras” : era uma questão de
eucaristia. 0 certo é que Hebreus apresenta um
vida e morte, física e — para os pagãos — es
linguajar que a tradição cristã posterior associou
piritual. Não se deve excluir a possibilidade de
com a eucaristia.
que o apóstolo, ao sugerir que todos se ahmen-
Dois versículos despertam interesse em parti
tassem, estava lhes dizendo: “Isto será a vossa
cular: “Por intermédio dele [Jesus], ofereçamos
salvação” (At 27.34;
21:
vosso livramento
sempre a Deus um sacrifício de louvor, que é fru
depende disso”), tendo-lhes já anunciado que o
to dos lábios que declaram publicamente o seu
a
“o
destino de cada um estava nas mãos do Deus de
nome. Mas não vos esqueçais de fazer o bem e de
Paulo, o Deus cuja vontade era que não houvesse
repartir com os outros, porque Deus se agrada
nenhuma perda de vida entre eles (At 27.21-26),
de tais sacrifícios” (Hb 13.15,16). O “sacrifício de
ele então celebrou para eles a refeição que é vida
louvor
para todos os que escolhem a vida. Esse episódio
designação da eucaristia. João Crisóstomo, ao dis
sem dúvida proporciona o exemplo mais claro da
correr sobre a história do leproso curado, relatada
quilo que, para J. Wanke, é um tema eucarístico
no Evangelho, comenta que damos graças a Deus
recorrente que caracteriza os relatos de Lucas en
não porque Deus precise de alguma coisa, mas
[e ação de graças] ” tornou-se uma
volvendo refeições: o Senhor está presente para
para nos aproximarmos dele [Hm Mt, 25;
proteger e salvar seu povo.
V.
pg ,
57, p. 331, Migne). Na passagem de Hebreus, o
sacrifício não está hmitado à confissão verbal do 2. As cartas não paulinas e Apocalipse 2.1
nome de Deus: também inclui partilha (coinonia)
Judas 12. Esse versículo talvez represen e boas obras. com o
De modo mais geral, a Carta aos Hebreus tem
sentido de banquete ou festa de amor (o senti
te o único uso, no
sido considerada importante na tradição litúrgica
do normal de
n t,
da palavra
a g a pê
é simplesmente “amor”). Os
cristã por descrever a contínua intercessão que
manuscritos de 2Pedro 2.13, passagem que guar
Cristo faz depois que, do Calvário, entrou no
da estreita relação com Judas 12, estão divididos
Santo dos Santos: o entendimento tradicional é
agapê
216
C eia do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
que a eucaristia represente, em forma de rito, o
d.C. As opiniões estão divididas no que diz res
trabalho de Cristo como sumo sacerdote perante
peito às orações em estilo judaico a serem feitas à
0 Pai. Além do mais, as referências em Hebreus
mesa e apresentadas nos capítulos 9 e 10. O texto
ao "sangue da aliança” fazem lembrar as palavras
diz 0 seguinte:
do cálice ditas na eucaristia e, de um modo par ticular na missa católica romana, as palavras de
Sobre a ação de graças, assim agradecei.
consagração ("Este é o cáhce do meu sangue, o
Primeiro acerca do cáhce: “Damos-te graças,
sangue da nova e eterna ahança”) são um eco de
nosso Pai, pela santa videira de teu servo
Hebreus 13.20.
(gr., pais] Davi, que nos tornaste conhecido
2.3 IPedro 2.3. A expressão de Salmos 34.8,
por meio de teu servo [pais] Jesus; a ti seja
espelhada em IPedro 2.3, sobre "provar que o Se
glória para sempre”. E acerca do pão partido:
nhor é bom” tem sido usada como versículo de
“ Damos-te graças pela vida e pelo conheci
comunhão em hturgias tradicionais da eucaristia.
mento que nos fizeste saber por meio de teu
No contexto petrino, aproxima-se da noção do
servo Jesus; a ti seja glória para sempre. Assim
cristão como “casa espiritual”, “sacerdócio santo,
como este pão partido esteve espalhado pelas
a fim de oferecer sacrifícios espirituais agradáveis
montanhas e, quando recolhido, se tornou um
a Deus, por meio de Jesus Cristo” (IPe 2.5).
só, deixa que tua igreja seja recolhida desde
2.4 Apocalipse. No início de Apocahpse, o
os confins da terra para o teu reino; pois teus
vidente diz que estava “em espírito, no dia do
são a glória e o poder, por meio de Jesus Cris
Senhor” (Ap 1.10, aím). Alguns estudiosos con
to, para sempre”. Mas que ninguém coma nem
temporâneos acreditam que Apocalipse reflete
beba da tua ação de graças, senão aqueles que
a adoração da igreja, em que João se inspirou,
foram batizados no nome do Senhor. Pois a res
seja a reunião dominical da congregação, seja a
peito disso 0 Senhor também disse: “Não deis
liturgia anual de Páscoa, dependendo de como
aos cães o que é santo”.
se entenda o sentído de “ dia do Senhor”. Nos
E,
depois de vos fartardes, dai graças assim:
ritos cristãos tradicionais, os participantes são
“ Damos-te graças, santo Pai, pelo teu santo
convocados pelo sarsam corda (“erguei vos
nome que preservaste em nosso coração e pelo
sos corações”) a se unir na adoração celestial e
conhecimento e fé e imortalidade que nos fi
acrescentar a voz ao coro angelical, cantando o
zeste conhecer por meio de tua criança Jesus;
Sanctus: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus,
a tí seja glória para sempre. Tu, Mestre todo-
0 Todo-Poderoso” (Ap 4.8). Além do louvor a
poderoso, criaste todas as coisas por amor do
Deus, a vida na cidade de Deus inclui o banquete
teu nome e deste comida e bebida aos seres hu
messiânico, a “ceia das bodas do Cordeiro” (ajm).
manos para deleite deles, para que te dessem
Na missa católica-romana, o convite à comunhão
graças; mas a nós concedeste comida e bebida
baseia-se em Apocahpse 19.9: “Eis o Cordeiro de
espiritual e vida eterna por meio de tua criança
Deus [...]. Felizes aqueles que são chamados a
Jesus. Acima de tudo te damos graças porque és
esta ceia”. 0 Jesus de Apocalipse estende o con
poderoso; a ti seja glória para sempre. Que ve
vite: “Estou à porta e bato; se alguém ouvir a mi
nha a graça e que este mundo passe. Hosana ao
nha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e
Deus de Davi.” Se alguém é santo, que venha;
cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20).
se não é, que se arrependa. Maranata. Amém.
3. O período primitivo pós-apostólico 3.1
Embora a palavra introdutória seja a respei
A Didaquê. O material não escriturísti- to da “ação de graças” [eucharistia], é provável
co mais antígo pertinente à ceia do Senhor e ao
que as duas primeiras orações, pelo cálice e pelo
banquete de amor talvez provenha da Didaquê
pão, pertençam a um agapê (a sequência cáhce
ou “Ensino dos doze apóstolos” , provavelmente
antes do pão talvez seja encontrada na refeição
elaborada na virada do século i para o n, embora
comunal conforme praticada na ordem de culto
as datas que os estudiosos proponham para esse
que existiu mais tarde e que os estudiosos moder
texto, redescoberto em 1875, variem de 60 a 200
nos reconstituíram e identificaram com Tradição
217
C eia do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
3.2 A Carta de Plínio. Dos primeiros anos do
apostólica de Hipólito, embora o texto esteja bem confuso em torno dos capítulos 25 e 26; também,
século
talvez, ICo 10.16,17). Toda comida pela qual se
natureza fragmentária, acerca da prática da re
deu graças é santificada (cf. ITm 4.4,5), e, por
feição ritual dos cristãos na Ásia Menor. Plínio,
esse motivo, aplicar a declaração do Senhor em
autoridade no império, envia ao imperador TVaja-
Mateus 7.6 ( “Não deis aos cães o que é santo”)
no relatório de suas investigações sobre o grupo
não implica necessariamente uma eucaristia sa
(P
l ín io
II,
,
surgem dados externos e internos, de
Ep, 10.96).
cramental. A expressão introdutória “depois de Num dia determinado [presumivelmente o do
vos fartardes” deixa implícito que houve uma refeição antes da oração seguinte. Entretanto,
mingo], [os cristãos estavam] acostumados a se
essa oração tem um matiz mais redentor que as
encontrar antes da alvorada e a recitar antifoni
anteriores, próxima dos temas da eucaristia pro
camente um hino a Cristo, como a um deus, e a
priamente dita. No século iv, o compilador das
se comprometer mediante um juramento [sacra-
Constituições apostólicas vii não teve dificuldade
mentum] [...]. Depois da conclusão dessa ceri
em tornar o texto inconfundivelmente sacramen
mônia, era costume deles ir embora e voltar a se
tal. Ele entendeu que todas as orações da Dida
reunir para comer, mas essa era comida normal e inócua, e eles interromperam essa prática após
quê tinham esse sentido.
meu édito pelo qual, de conformidade com tuas
Qualquer que seja a questão dos capítulos 9 e
ordens, proibi sociedades secretas.
10 da Didaquê, os estudiosos concordam em que o capítulo 14 se refere ao que seria denominado
Alguns estudiosos veem no encontro matutino
“eucaristia”. 0 texto diz:
uma referência distorcida á eucaristia, ao passo No dia dominical do Senhor, reuni-vos, parti
que a última reunião teria sido para um agaps. A
0 pão e dai graças, tendo primeiro confessado
suspeita de que os cristãos praticavam o caniba
vossas transgressões, para que vosso sacrifício
lismo reaparecia periodicamente na Antiguidade,
seja puro. Mas que ninguém que tenha um de
algo sem dúvida provocado pela comunhão no
sentendimento com seu companheiro se una a
corpo e no sangue do Senhor.
vós até que tenham se reconcihado, para que
3.3 Inácio de Antioquia. As cartas de Inácio,
vosso sacrifício não seja contaminado. Pois isto
bispo de Antioquia (martirizado c. 110 d.C.), con
é aquilo de que falou o Senhor: “Em todo lugar
têm várias referências a agapê e eucaristia. Uma
e em toda hora oferecei-me um sacrifício puro,
passagem na Carta aos esmimeus sugere que a
pois sou um grande rei, diz o Senhor, e meu
eucaristia era celebrada junto com um agapê:
nome é maravilhoso entre as nações”. Que seja considerada válida como eucaristia 0 momento é o domingo, embora alguns estu
aquela que é celebrada sob a direção do bispo
diosos tenham procurado fazer com que a reda
ou de alguém nomeado por ele. Onde o bispo
ção bastante estranha se refira apenas à Páscoa.
está presente, que aU se reúna a congregação,
A exigência de confissão prévia de pecado talvez
assim como, onde Jesus Cristo está presente,
derive de Levítico 5.5,6, ao passo que a exigên
aU está a igreja catóUca. Sem o bispo, não é
cia de reconciliação na comunidade certamen
legítimo batizar nem celebrar um banquete de
te procede da declaração de Jesus, em Mateus
amor (In, Es, 8.1,2).
5.23,24 (texto mais tarde evocado em associação com a eucaristia, e.g., por
He, 4.18.1, e
De todo modo, aqui a principal preocupação
Ca mi, 5.3). A apUcação de
do autor é com a unidade da congregação, a qual
Malaquias 1.11 sobre as “ofertas puras” foi repe
está fundamentada cristológica, sacramental e
tida em Justino [Dl Tf, 41; cf. 117) e Ireneu (He,
ministerialmente:
C iR iL o DE J e r u s a l é m ,
Ireneu,
4.17.5), e passou a ser lugar-comum a ideia de a eucaristia ser oferecida “ sempre e em todo lugar”
Cuidai de observar uma só eucaristia, pois exis
[semper et ubique).
te uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo, e
218
C eía do S enhor ii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
um só cálice para nos unir com seu corpo, e um
líder. Ele ajuda órfãos e viúvas e aqueles que,
só altar, assim como existe um só bispo com o
por causa de enfermidade ou de qualquer ou
presbitério e os diáconos, meus companheiros
tro motivo, passam por necessidade, e os que
de serviço, a fim de que aquilo que fizerdes,
estão presos e os estrangeiros de viagem entre
façais de acordo com Deus (In, Fi, 4.1).
nós. Em suma, ele cuida de todos os que pas sam por necessidade.
A realidade sacramental corresponde à reali
E todos nos reunimos no domingo, porque é o
dade da encarnação:
primeiro dia, em que Deus transformou as trevas e a matéria e fez o mundo; e Jesus Cristo, nos
[Os docetas] se abstêm da eucaristia e da ora
so Senhor, ressuscitou dentre os mortos naquele
ção porque não confessam que a eucaristia é a
dia, pois o crucificaram no dia antes do sábado;
carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que so
e, no dia depois do sábado, que é o domingo,
freu por nossos pecados e que o Pai, em sua
ele apareceu a seus apóstolos e discípulos e lhes
bondade, ressuscitou (In, Es, 7.1).
ensinou estas coisas que vos temos apresentado para vossa consideração
(J u s t in o ,
Ap i, 67).
Inácio menciona o “partir do único pão” , que é “um remédio de imortalidade e um antídoto
Vale ressaltar vários pontos, alguns dos quais
contra a morte, para que a pessoa viva em Jesus
podem ser suplementados por outras passagens
Cristo para sempre” (In, Ef, 20.2).
de Justino, particularmente sua descrição da eucaristia celebrada depois de batismos {Api, 65):
4. Distinção entre agapê e eucaristia
1) O domingo é o dia escolhido para reunião
4.1 Justino Mártir. Lá pela metade do século ii,
litúrgica de comemoração e celebração da criação
Justino Mártir, ao descrever a igreja em Roma,
e da ressurreição de Cristo, dia que ficou marcado
diz que ela realizava cultos dominicais regulares
pelas aparições do Senhor a seus seguidores.
com palavra e mesa, ou seja, à leitura e exposição
2) 0 serviço incluía a leitura do que veio a ser
das Escrituras seguiam-se orações e a eucaristia
0 N T (“as memórias [apomnêmoneumata] dos após
do corpo e do sangue do Senhor. A descrição na
tolos”) e também do
Apologia I de Justino é como segue:
tas”), e aquele que preside expõe essas Escrituras
at
(“ os escritos dos profe
numa homília. No dia denominado domingo se realiza uma
3) Não há mais detalhes que permitam a iden
reunião num só lugar, da qual participam todos
tificação de quem preside, mas, caso a prática
os que moram na cidade ou no campo, e as me
seja aquela estipulada por Inácio, é o bispo ou
mórias dos apóstolos ou os escritos dos profe
alguém nomeado por ele.
tas são Udos conforme o tempo permite. Então,
4) Pão e vinho são a comida e a bebida, sendo
quando o leitor termina, o líder discursa, nos
0 vinho provavelmente misturado com água (a pa
admoestando e nos exortando a imitar essas
lavra krama, “mistura”, é empregada em Ap i, 65).
boas coisas. Então todos juntamente nos co
5) Aquele que preside faz uma oração espon
locamos de pé e oramos aos céus; e, conforme
tânea de ação de graças (“da melhor maneira
já dissemos, quando terminamos de orar, são
possível”), embora provavelmente de acordo com
trazidos pão e vinho e água, e o líder, de igual
certos parâmetros. Ele “faz aos céus uma oração
maneira e da melhor maneira possível, ora aos
de louvor e glória ao Pai de todos em nome do
céus e dá graças, e o povo se senta, dizendo:
Filho e do Espírito Santo” {Ap i, 65). A anuência
“Amém”. Então se distribuem os elementos pe
do povo (“Amém”) é significativa, pois é mencio
los quais se agradeceu, e todos participam. E,
nada nos dois capítulos.
por meio dos diáconos, são enviados àqueles que não estão presentes.
6) Só os batizados podem participar da euca ristia: “Damos a esta comida o nome de 'ação de
E os abastados que assim o quiserem dão
graças’, e ninguém pode participar dela, a menos
aquilo que desejarem, conforme sua vontade;
que esteja convicto da verdade de nosso ensi
e aquilo que é coletado fica depositado com o
no, tenha sido purificado com a lavagem para o
219
C eia d o S enhor m: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
perdão de pecados e a regeneração e viva confor
A descrição mais ampla existente nesse texto cita
me Cristo instruiu” [Ap i, 66). Mas é importante
nominalmente um banquete de amor:
que os cristãos desfrutem seu privilégio:
e to
dos participam. E, por meio dos diáconos, [o pão
Nossa ceia {coena] se explica pelo próprio
e o vinho] são enviados àqueles que não estão
nome, que é a tradução da palavra grega para
presentes” (presumivelmente têm-se em mente
amor [i.e., agapê]. Qualquer que seja o custo
os enfermos e os aprisionados).
as despesas em nome da piedade são ganho
7) A razão da restrição da comunhão aos cren
pois é a favor dos necessitados que nos benefi
tes batizados e o propósito de sua participação
ciamos com esse banquete [refrigerio isto] [...] Primeiramente, provamos a oração a Deus, an
estão expressos em Apologia i 65:
tes de nos reclinarmos para comer; comemos Pois não recebemos estas coisas como pão
apenas o que sacia a fome e bebemos só o que
comum ou como bebida comum. Porém, assim
é apropriado aos puros. Satisfazemos o apetite
como nosso Senhor Jesus Cristo, que é encar
como pessoas que se lembram de que, mesmo
nado por meio da palavra de Deus, assumiu
à noite, devem adorar a Deus. Conversamos
carne e sangue para nossa salvação, de igual
como pessoas que sabem que estão sendo ou
maneira fomos ensinados que a comida pela
vidas pelo seu Senhor. Depois de trazerem água
qual se deu graças mediante uma palavra de
para lavar as mãos e também as luzes, todos
oração, a qual ele fez, comida mediante a
são chamados à frente para cantar louvores a
qual nossa carne e sangue são alimentados
Deus, quer louvores extraídos das Escrituras
por transformação, são tanto a carne quanto o
Sagradas, quer da própria composição. E essa
sangue daquele Jesus encarnado. Pois, nos re
é uma prova da medida de bebida. 0 banquete
gistros que compuseram e que são denomina
é encerrado da maneira que começou: com ora
dos Evangelhos, os apóstolos nos transmitiram
ção. Vamos embora não como uma turba de ar
aquilo que lhes foi ordenado: que Jesus tomou
ruaceiros, nem como um bando de vadios, nem
pão, deu graças e disse: “Fazei isto em memó
para cair na licenciosidade, mas tendo tanto
ria de mim. Isto é o meu corpo”. E, de modo
interesse em nossa modéstia e pureza como se
semelhante, tomou o cáUce, deu graças e disse:
tivéssemos tido uma lição moral, em vez de par
“Isto é 0 meu sangue” ; e deu apenas a eles.
ticipado de uma ceia
(T
e r t u l ia n o ,
Ap, 39.16-19).
8) 0 cuidado material com os necessitados lem
Aqui não existe nada especificamente eucarís
bra a situação de Atos 2.42-47. Justino não men
tico, mas em outros escritos Tertuliano se refere
ciona nenhum agapê, mas, para alguns autores que
ao que só pode ser a eucaristia sacramental: por
viveram mais tarde, durante certo tempo a igreja
exemplo: “ o sacramento da eucaristia [eucha-
continuou uma prática que considerava apostólica:
ristiae sacramentum]" [De co, 3; Mr, 4.34); “ o
“Quando a assembleia [synoxis] terminava, depois
sacramento do pão e do cálice [panis et calicis
da comunhão dos mistérios, todos iam para um
sacramentum]” [Mr, 5.8); “ o corpo do Senhor
banquete [euõchia] comum, em que os ricos tra
[coípiís dom ini]” [De id, 7; De or, 19). Não há in
ziam seus alimentos e os pobres e miseráveis eram
dicação clara de como essa eucaristia estava litúr
convidados, e todos se banqueteavam juntos. Mas,
gica ou ritualmente associada às assembleias em
depois, essa prática também se corrompeu”
que haviam Escrituras, salmos, orações, coletas
s ó s to m o ,
4.2
(C r i
Hm ICo, 67; PC, v. 61, p. 223-4, Migne).
e agapê. Suas expressões conviviam dominicum
Tertuliano. No final do século ii, Tertulia- [Ad ux, 2.4) e coena Dei [De sp, 13) podem se
no oferece um relato sobre o propósito de os cris
aplicar a um agapê, à eucaristia ou a ambos.
tãos se reunirem (“As Escrituras são lidas, salmos são cantados, sermões são apresentados, orações
5. Conclusão
são feitas” . De an, 9). E a orações. Escrituras e
Na anônima Epístola a Diogneto, talvez de mea
exortações ele acrescenta contribuições modestas
dos do século
e voluntárias para os necessitados (Ap, 39.5,6).
o autor afirma: “Eles preparam uma mesa comum
220
II,
ao descrever a vida dos cristãos,
C eia do S enhor h : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
[trapezan koinên paratithentai], embora não uma
Scribner’s, 1966. •
cama comum [lendo-se koitên\" [Dg, 5.7). A fre
table fellowship and eschatology at Emmaus. Col-
A. A. The ongoing feast:
Ju st,
quência de cenas de mesa nos murais das cata
legeville: Liturgical Press, 1993. ■ K e a t in g , J . F. The
cumbas cristãs oferece testemunho vivido da
agape and the eucharist in the early church. Lon
importância da refeição comum. Nessas cenas,
don: Methuen, 1901. ■
pães e pebces também são um tema recorrente.
und hellenistischer Kult. Münster: Aschendorff,
K
lau ck ,
H.-J. Herrenmahl
É impossível saber se a referência é ao agapê ou
1982. ■ K o d e l l , J. The eucharist in the New Testa
à eucaristia. Na época do
comportamento
ment. Wilmington: Michael Glazier, 1988. ■ K o e n ig ,
dos participantes das refeições vai do idílico ao
J. The feast of the world’s redemption. Harrisburg:
problemático, e deste ao repreensível. Nos sécu
Trinity, 2000. •
los II e III, os apologetas defendiam a comunidade
ristie bread: the witness of the New Testament.
nt
,
o
L
é o n -D u f o u r ,
X. Sharing the eucha
contra acusações de depravação e canibalismo,
Mahwah: Paulist, 1987. •
explicando a natureza beneficente do banquete
Lord’s Supper Leiden: E. J . Brill, 1953,1979. ■ M
de amor e o caráter sacramental do memorial do
sh all,
L
ie t z m a n n ,
H. Mass and ar
I. H. Last Supper and Lord’s Supper Grand
Senhor com o pão e o vinho. Perto do final do
Rapids: Eerdmans, 1981. ■ M
século
encontramos Agostinho e outros bispos
des apôtres et l’eucharistie. I n : ________ . Jésus-Christ
e sínodos africanos proibindo o agapê por causa
et la foi. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé, 1975.
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• ______ . Die Mahlzeit mit Paulus auf den Wellen
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C o leta P
221
para
au lo em
A
os
SANTOS.
Ver
tos e n a s c a r t a s .
C o r in t io s , C a r t a s
aos;
COLOSSENSES, C a RTA AOS
COLOSSENSES, C a RTA AOS
Mesopotâmia
Colossenses, uma das cartas mais breves de Paulo,
acordo com inscrições sepulcrais da região, por
(J o s e f o ,
An, 12.3.4, § 147-53). De
foi escrita à jovem igreja de Colossos, cidade si
volta do século i a.C. os judeus haviam se torna
tuada no vale do Lico, na província da Ásia. Essa
do parte da cultura da província da Ásia. Desse
comunidade cristã não havia sido fundada por
modo, parece que a Colossos dos dias de Paulo
Paulo, mas veio a existir durante seu ministério
era cosmopolita, em que se mesclavam diferentes
em Éfeso (c. 52-55 d.C.) pelos esforços de Epa-
elementos culturais e religiosos.
fras, um dos colegas do apóstolo. Embora não seja um tratado teológico, Colossenses tem muito a dizer sobre a importância do
2. A igreja em Colossos
sobre a
Os crentes de Colossos, que são tratados como
pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, especial
irmãos amados em Cristo (Cl 1.2), não se con
evang elh o ;
mente como Senhor na Criação e como autor da
verteram por intermédio do ministério do próprio
reconciliação (Cl 1.15-20); sobre o povo de Deus;
Paulo. Essa comunidade cristã surgiu durante
sobre a escatologia; sobre ser Uvre do legaUsmo;
um período de vigorosa atividade missionária
sobre a vida cristã.
e evangelística associada ao ministério de Pau
1. Colossos e seus cidadãos
lo em Éfeso (c. 52-55 d.C.), registrado em Atos
2. A igreja em Colossos
19. Mas, durante seu trabalho missionário na
3. Motivo da carta
Ásia Menor, o apóstolo não chegou a Colossos,
4. A ameaça à fé e a heresia colossense
no vale do alto Lico (cf. Cl 2.1). Os “ diálogos”
5. Como Paulo lida com a filosofia colossense
evangelísticos diários que mantinha na escola de
6. Algumas questões cruciais
Tirano, em Éfeso, foram tão eficazes que Lucas pôde afirmar “que todos os que habitavam na
1. Colossos e seus cidadãos
Ásia, tanto judeus como gregos, ouviram a pa
1.1 A cidade. A antiga cidade de Colossos fi
lavra do Senhor” (At 19.10). Embora o trabalho
cava na Frigia, na margem sul do rio Lico (atual
estivesse sob a direção de Paulo, ele teve a ajuda
Turquia), a 160 quilômetros a leste de Éfeso, e
de vários colaboradores, por meio de quem vá
seu vale fértil produzia grande quantidade de fi
rias igrejas foram plantadas na província da Ásia.
gos e azeitonas. Colossos estava situada junto à
Entre essas igrejas, estavam as congregações de
estrada principal que ia de Éfeso e Sardes até o
Colossos, Laodiceia e Hierápolis, as quais, pelo
Eufrates. Nos séculos v e iv a.C., era populosa,
que inferimos, foram fruto dos esforços evange
grande e abastada, sendo sua importância co
lísticos de Epafras (Cl 1.7; 4.12,13). Epafras, que
mercial resultado de sua indústria lanífera. Mais
era natural de Colossos (Cl 4.12) e pode ter se
tarde, a cidade perdeu a importância, de maneira
tornado cristão durante uma visita a Éfeso, foi
que, na época romana, havia se tornado “uma
um “fiel ministro de Cristo” e, na condição de re
cidadezinha”
presentante de Paulo (Cl 1.7), ensinara a verdade
(E
strab ão ,
Ge, 12.8.13, embora o
texto seja discutível) e tenha sido superada por
do evangelho aos colossenses.
Laodiceia e Hierápolis, que também ficavam no
As muitas alusões ao passado não cristão dos
vale do Lico. À época em que Paulo escreveu aos
leitores sugere que em sua maioria eram gentios
cristãos que viviam em Colossos, a importância
convertidos. Outrora haviam estado em total de
comercial e social da cidade já estava decaindo,
sarmonia com Deus, enredados na idolatria e na
embora moedas e inscrições deem testemunho da
escravidão ao pecado, sendo hostis a Deus em
vida cívica da cidade nos séculos ii e iii d.C.
sua mente e ímpios em seus atos (Cl 1.21; cf.
1.2 Seu povo. Laodiceia, Hierápolis e Colos
Cl 1.12,27). Tinham estado espiritualmente mor
sos pertenciam à província proconsular da Ásia.
tos por causa de seus pecados e da “ incircuncisão
A população de Colossos consistia principalmen
da [...] carne” , o que indica que eram pagãos e
te em frígios nativos e colonizadores gregos, mas
ímpios (Cl 2.13).
no início da primeira parte do século ii a.C., An-
Deus, porém, havia operado uma mudança
tíoco III assentou na Lídia e na Frigia duas mil
poderosa na vida deles. Ele os havia reconciUado
famílias judaicas provenientes da Babilônia e da
consigo mesmo num acontecimento bombástico.
222
C olossenses, C arta aos
a saber, a morte física de Cristo na cruz (Cl 1.22).
vez de um sistema definido com ideias nítidas,
Ele os havia livrado da tirania das trevas e os
e sugerem que os recém-convertidos estavam
transferira para um reino que seu Filho amado
sofrendo pressões externas para se conformar
governava (Cl 1.13). Agora possuíam a redenção
às crenças e práticas de seus vizinhos judeus e
e o perdão dos pecados (Cl 1.14; 2.13; 3.13).
pagãos
(H
ooker) .
É
um entendimento que, acer-
Pelo fato de, ao aceitarem o evangelho pelas
tadamente, destaca a avaliação positiva que Pau
mãos de Epafras, terem recebido a Cristo Jesus, o
lo faz da vida e da estabilidade da congregação
Senhor, como sua tradição [paradosis, Cl 2.6), os
(Cl 1.3-8; 2.5) e adverte contra o perigo de cair
cristãos de Colossos foram admoestados a se con
num raciocínio circular, ao reconstruir a situação
duzir como pessoas que haviam sido unidas com
por trás dos escritos de Paulo. No entanto, à luz
Cristo em sua
Sendo Cristo
de Colossenses 2.8-23, pelas referências à “pleni
Jesus a garantia mais que suficiente contra as vãs
tude” , injunções ascéticas específicas (Cl 2.21),
tradições humanas, os cristãos são aconselhados a
regras sobre alimentos e dias santos, expressões
cuidar para que sua maneira de viver e pensar seja
incomuns que parecem ser lemas dos adversários
sempre conforme ao ensino de Cristo (Cl 2.6-8).
de Paulo, e pela forte ênfase no que Cristo já con
m orte
e
r e s s u r r h ç Ao
.
Dessa maneira, pinta-se o quadro de uma con
quistou mediante sua morte e ressurreição, pare
gregação cristã obediente ao ensino apostólico e
ce apropriado supor que uma heresia começava a
a qual o apóstolo pode, de coração, agradecer a
se infiltrar na congregação.
Deus (Cl 1.4-6). Ele sabe do amor que eles têm
4.2 Algumas características inconfundíveis
“no Espírito” (Cl 1.8) e ficou muito satisfeito em
da heresia. 0 falso ensino é classificado como
saber que levavam uma vida cristã disciplinada e
“filosofia” (Cl 2.8) e tem base na “tradição” (pa
que sua fé em Cristo era estável (Cl 2.5).
radosis denota antiguidade, dignidade e caráter revelacional), que, acreditava-se, transmitia co
3. Motivo da carta
nhecimento verdadeiro (Cl 2.18,23). Parece que
Epafras havia feito uma visita a Paulo em Roma
Paulo está citando lemas dos adversários em seu
(v. 6.2 abaixo) e informado o apóstolo acerca do
ataque contra o que ensinavam: “toda a pleni
progresso do evangelho no vale do Lico. Embo
tude” (Cl 2.9); “ humildade ou culto aos anjos”;
ra boa parte do relatório fosse encorajador (cf.
“baseando-se em coisas que tenha visto” (talvez
Cl 1.8; 2.5), havia um detalhe perturbador: o en
“em visões” , Cl 2.18); “ não toques, não proves,
sino atraente, mas falso, que fora recentemente
não manuseies” (Cl 2.21); “devoção voluntária” e
introduzido na congregação e que, se não fosse
"disciplina do corpo” (Cl 2.23,
confrontado, subverteria o evangelho e levaria
manter esses tabus na “filosofia” estava relacio
os colossenses à servidão espiritual. A carta de
nado com a submissão obediente aos “princípios
Paulo é escrita como resposta a essa necessidade
elementares deste mundo” (Cl 2.20,
arc) ,
Além disso,
n v í) .
urgente. Talvez Epafras tenha achado difícil lidar
4.3 Interpretando essas características in
com os argumentos falsos e a humildade fingida
confundíveis. Entre os estudiosos, não se chegou
dos que disseminavam esse ensino e, por isso,
a um consenso quanto à natureza do falso ensi
precisou da sabedoria maior do apóstolo.
no. Parece que a heresia era judaica, a julgar pe las referências a regras alimentares, ao sábado e
4. A ameaça à fé e a heresia colossense
a outras prescrições sobre o calendário judaico. A
4.1 Houve uma heresia colossense? Em parte
circuncisão é mencionada (Cl 2.11), mas não apa
alguma da carta o apóstolo apresenta uma expo
rece como exigência legal. (Para W
sição formal da heresia. Só é possível detectar
era de origem exclusivamente judaica.)
seus principais aspectos reunindo e interpretan
Mas que tipo de
j u d a ís m o ?
A
o
r ig h t ,
a heresia
que parece, não
do os contra-argumentos concretos de Paulo (v.
era do tipo mais escancarado, contra o qual as
Em tempos recentes, alguns
igrejas da Galácia tiveram de ser advertidas, e sim
estudiosos questionaram se esses contra-argu
caracterizado pelo ascetismo e pelo misticismo,
mentos apontam, de fato, para uma heresia colos
segundo o qual os anjos e principados haviam de
sense. Preferem acreditar que são tendências, em
sempenhado um papel proeminente na Criação e
ADVERSÁRIOS i: P a u l o ) .
223
C olossenses , C arta aos
na outorga da Lei. Acreditava-se que estes contro
tentando seduzir os colossenses. Embora apre
lavam a comunicação entre Deus e a humanida
sentassem seu ensino como “ tradição”, Paulo
de, e, por isso, era preciso apaziguá-los mediante
rejeita qualquer possibiUdade de terem origem
a estrita guarda de observâncias legais.
divina. Era fabricação humana (“ segundo a tradi
Já foram propostas importantes teorias quan
ção dos homens”) antagônica à tradição de Cris
to à natureza da filosofia colossense, desde um
to — a tradição que tem origem nos ensinos de
culto pagão de mistério
Cristo e que também se personifica nele (Cl 2.6).
(D
ib e l iu s )
e um sincreüs-
mo de judaísmo gnosticizado com elementos pa
Numa passagem de louvor magnífica, em que
— 0 “culto aos anjos” (Cl 2.18)
exaha a Cristo como Senhor da Criação e da re
foi considerado um elemento pagão do ensino
conciliação (Cl 1.15-20), Paulo declara que Cristo
falso, mas deve ser entendido como “a adoração
é aquele por meio de quem todas as coisas fo
angelical [a Deus] ” — até um judaísmo essênico
ram criadas, inclusive os
do tipo gnóstico
tão proeminentes na heresia colossense. Todas
gãos
(B
ornkamm
daizante
(L
)
(L
ig h t f o o t )
e um sincreüsmo ju-
p r in c ip a d o s
e po testad es,
as coisas foram feitas nele, como o domínio, por
yo n n et).
Entretanto, em tempos recentes muitos es tudiosos passaram a considerar que esse falso
meio dele, como o agente e para ele, como o ob jetivo último de toda a Criação (Cl 1.16).
ensino, que ia além do evangelho elementar de
Os que foram incorporados em Cristo vieram
Epafras, deve ser entendido à luz de formas ascé-
a experimentar plenitude de vida naquele que é
tícas e mísUcas da piedade judaica, como vistas,
senhor sobre todo principado e poder (Cl 2.10).
por exemplo, em Qumran (v.
Não precisam buscar perfeição em nada mais,
m a n u s c r it o s
do
m ar
. Era dirigido a uma elite espiritual que es
senão nele. É nele, aquele em cuja morte, sepul-
tava sendo impelida a uma busca insistente de
tamento e ressurreição foram unidos (Cl 2.11,12),
M
o rto )
sabedoria e conhecimento, de modo a alcançar a
que a totalidade da sabedoria e do conhecimento
verdadeira “plenitude”. “Disciplina” (Cl 2.18,23,
se concentram e se tornam disponíveis a todo o
ARc) era um termo empregado pelos adversários
seu povo, não apenas a uma elite.
para indicar práticas ascéticas eficazes para o
Cristo Jesus é o único mediador entre Deus e a
recebimento de visões de mistérios celestiais e
humanidade. Os colossenses não devem permitir
nas experiências místicas. Os “maduros” conse
que os falsos mestres os enganem, levando-os a
guiam, assim, entrar no céu e se unir ao “culto
pensar que é necessário obedecer às potestades
angelical de Deus” como parte da experiência
angelicais, as quais, pelo que se afirmava, con
presente (Cl 2.18).
trolavam a comunicação entre Deus e a humani dade. Esse caminho estava agora sob o controle
5. Como Paulo lida com a filosofia
de Cristo, o qual, mediante sua morte, se revela
colossense
ra 0 conquistador dos principados e potestades
Embora a apresentação de Paulo vá progredindo
(Cl 2.13-15).
paulatinamente, só em Colossenses 2.4 ( “Digo
São devastadoras as críticas do apóstolo aos de
isso para que ninguém vos engane com palavras
fensores da filosofia colossense, caracterizada por
capciosas”) o apóstolo menciona expressamente
falácias e comportamento aberrante (Cl 2.16-23).
os perigos que rondam a congregação. Ele tem
Por causa de seu legalismo, os falsos mestres dei
consciência dos métodos dos falsos mestres e
xavam de reconhecer as boas dádivas de Deus e
faz uma dura advertência aos colossenses, a fim
0 propósito que ele teve ao concedê-las, a saber,
de que estejam precavidos e não sejam levados
que todas deviam ser apreciadas e consumidas
como presas de guerra (Cl 2.8; sylagõgeo — “ se
mediante seu devido uso (Cl 2.22). As coisas
questrar”, “levar como despojo” — é uma pa
referidas nos tabus eram objetos perecíveis do
lavra rara e contundente, demonstrando a séria
mundo material, destinados a se estragar depois
preocupação de Paulo com relação aos desígnios
de usados. Pertenciam a uma ordem transitória
maUgnos daqueles que buscavam influenciar a
(Cl 2.17) e por isso não passavam de invenções
congregação). “Por meio de filosofias e sutilezas
humanas que não tinham caráter absoluto, mas
vazias” (Cl 2.8), os charlatães espirituais estavam
se posicionavam contra a revelação da vontade
224
C olossenses , C arta aos
de Deus (cf. Cl 2.22). Submeter-se a regras e re
de experiências visionárias e coisas semelhantes.
gulamentos como os de Colossenses 2.21 é retro
Mas Cristo já fez tudo que era necessário para
ceder à escravidão — é pôr-se debaixo das forças
a salvação dos colossenses. Eles morreram com
pessoais já derrotadas por Cristo (Cl 2.20). Por
Cristo, foram ressuscitados com ele e receberam
meio de sua morte, ele os havia libertado dos
nova vida com ele. Agora, portanto, devem bus
principados e potestades. Os colossenses não de
car com zelo as coisas do alto (Cl 3.1,2), aquela
viam menosprezar a transformação de vida que
nova ordem centrada no Cristo exaltado, e assim
experimentaram. Conquanto as proibições (cf.
demonstrar que possuem uma mente verdadei
Cl 2.21) transmitissem uma aura de sabedoria nas
ramente voltada para as coisas celestiais (cf.
esferas da adoração voluntária, da humildade e
Cl 3.5,8,12; 3.8-4.1).
da severa disciplina do corpo, na realidade essas práticas estavam espiritual e moralmente falidas.
6. Algumas questões cruciais
Esses esforços enérgicos eram insuficientes para
6.1 Autoria. Não apenas na saudação inicial
manter a carne sob controle. Em vez disso, as re
(Cl 1.1), mas também no corpo da carta (Cl 1.23)
gras autoimpostas na verdade apenas satisfaziam
e na conclusão (Cl 4.18), fica claro que o apóstolo
a carne (Cl 2.23).
Paulo é o autor. A personalidade de Paulo, confor
Em sua resposta ao ensino falso, Paulo explica
me conhecemos de outras cartas, reluz por toda
a doutrina do Cristo cósmico de um modo mais
a Carta aos Colossenses. Nunca houve questio
completo que em suas cartas anteriores (v.
c r is -
namento acerca da autenticidade de Colossenses
haviam aparecido
no período inicial da igreja, e a carta foi incluída
em Romanos 8.19-22 e ICoríntios 1.24, 2.6-10 e
na lista canônica de Marcião e também no cânon
8.6, mas Colossenses 1.15-20 e 2.13-15 consti
muratoriano. No entanto, a autoria paulina tem
tuem uma exposição mais detalhada. Contra os
sido ocasionalmente posta em dúvida nos últi
falsos mestres que se vangloriavam de suas su
mos 150 anos. Os motivos apresentados têm rela
blimes experiências espirituais, das novas reve
ção com a linguagem e o estilo da carta e com as
lações e de sua participação na plenitude divina,
alegadas diferenças entre Colossenses e a teologia
as críticas do apóstolo são incisivas; eles são ar
das principais cartas paulinas.
t o l o g ia ) .
Alguns vislumbres
já
rogantes e correm o risco de se separar de Cristo (Cl 2.18,19).
6.1.1 Linguagem e estilo. Diversos aspectos formais de Colossenses revelam similaridades
Quando trata do falso ensino colossense, Pau
com as outras cartas de Paulo, inclusive sua
lo destaca a escatologia realizada (v. esp. Cl 2.12;
estrutura (a introdução, Cl 1.1,2; a conclusão,
3.1-4). Dentro da tensão entre o já e o ainda não,
Cl 4.18; a oração de gratidão, Cl 1.3-8), os conec
a ênfase recai sobre o primeiro, que, em razão das
tivos e as locuções (Cl 2.1,6,16; 3.1,5) e a lista
circunstâncias da carta, é o foco da atenção. Os
de mensagens e saudações (cf. Cl 4.8,10,12,15).
colossenses possuem uma esperança preservada
Muitas expressões são de estilo paulino — por
para eles nos céus (Cl 1.5; cf. 3.1-4). Eles se tor
exemplo, o uso desnecessário de “e” depois de
naram aptos a participar da herança dos santos
“porquanto” (Cl 1.9; cf. ITs 2.13; 3.5), expres
na luz (Cl 1.12). Estando já livres da tirania das
sões como “ seus santos” (Cl 1.26; cf. ITs 3.13)
trevas, foram transferidos para o reino do Filho
e “ por causa de” (Cl 2.16; cf. 2Co 3.10; 9.3) e
amado de Deus (Cl 1.13). Eles não apenas morre
também verbos como charizomai, com o sentido
ram com Cristo, mas também foram ressuscitados
de “perdoar” (Cl 2.13; 3.13; cf. 2Co 2.7,10). As se
com ele (Cl 2.12; 3.1; cf. 3.3). Embora o aspecto
melhanças estendem-se à terminologia teológica,
“ainda não” da salvação apareça na carta (esp.
com o emprego de expressões como “em Cristo”
Cl 3.4), 0 “já” precisa ser reafirmado repetidas ve
(Cl 1.2,4,28), “no Senhor” (Cl 3.18,20 etc.), e a
zes, opondo-se aos que estavam interessados na
ideia de unir-se a Cristo no batismo (Cl 2.11,12),
“plenitude” e na esfera celeste, mas tinham fal
de ser liberto do poder das regulamentações
sas concepções a respeito delas, acreditando que
(Cl 2.14,20,21), do contraste entre a velha pessoa
elas podiam ser alcançadas por meio de obser
e a nova (Cl 3.5-17) e da relação entre o indicati
vâncias legalistas, de um conhecimento especial.
vo e o imperativo nas exortações (Cl 3.5-17).
225
C olossenses , C arta aos
Há, no entanto, diferenças linguísticas entre
quando influências gnósticas clássicas haviam
Colossenses e as outras cartas paulinas: 34 pala
começado a se impor. Mas é desnecessário recor
vras aparecem em Colossenses, mas em nenhu
rer a um possível cenário de influências gnósticas
38 palavras não ocorrem
plenamente desenvolvidas do século ii. Se um ce
nas outras cartas pauUnas; 10 palavras de Co
nário judaico do tipo místico ascético for plausí
lossenses aparecem apenas em
ma outra parte do
nt
;
Mas, ao
vel, não há necessidade alguma de procurar além
avahar essas estatísticas, deve se ter em mente
da era apostólica. Assim, a autoria paulina não
que muitas dessas palavras aparecem no parágra
pode ser descartada.
E f é s io s .
As objeções que, com base na teologia, se fa
fo hínico de Colossenses 1.15-20 ou na interação com 0 falso ensino, seja citando os lemas da fi
zem à autoria pauhna são as seguintes: 6.1.2.1 Cristologia. Tem se afirmado que a c r is
losofia colossense, seja como parte do ataque do
de Colossenses se desenvolveu com base
autor. Além disso, hapax legomena e expressões
t o l o g ia
incomuns aparecem em número considerável nas
em Colossenses 1.15-20 e vai além do que Paulo
demais cartas paulinas. A ausência de uma pa
afirma em ICoríntios 8.6 e Romanos 8.31-39, pois
lavra ou conceito pode ser resultado do assunto
ensina que em Cristo toda a plenitude da divin
diferente que está sendo discutido.
dade habita “corporalmente” (Cl 2.9) e que ele é
Em contraste com o vocabulário, entre os
“a cabeça de todo principado e poder” (Cl 2.10).
aspectos característicos de estilo está o material
No entanto, a última declaração expõe detalha
litúrgico com longas orações introduzidas por
damente as implicações de Colossenses 1.15-20,
pronomes relativos, orações adverbiais causais
que é uma passagem fundamental da carta, ao
e orações reduzidas de particípio, expressões si
passo que Colossenses 2.9 aplica as palavras do
nônimas combinadas (“ fortalecidos com todo o
hino à situação colossense, deixando claro que a
vigor” , Cl 1.11; “orar [...] e [...] pedir” , Cl 1.9),
total plenitude da divindade habita em Cristo, ou
uma série de genitivos dependentes (“ palavra da
seja, em forma corpórea mediante sua encarna
verdade do evangelho” , Cl 1.5, a r c ) e construções
ção. A dimensão cósmica do governo de Cristo,
infinitivas conectadas de maneira um tanto solta
em torno do tema do senhorio universal de Cris
(“para que possais viver de maneira digna do Se
to, é apresentada aqui de maneira mais completa
nhor” , Cl 1.10).
e sistemática que nas cartas anteriores de Paulo
Essas peculiaridades estilísticas têm sido in
(ICo 8.6; cf. Cl 1.24; 2.6-10) por causa da relação
terpretadas como prova de que Colossenses foi
estreita com o ensino falso de Colossos, servindo-
escrita por um autor que, embora dependesse
lhe de corretivo. Não há, portanto, necessidade
bastante de Paulo, raciocinava de modo diferente
de procurar num autor que não seja Paulo a fonte
do apóstolo. Mas tal julgamento parece excessi
de tais ideias.
vamente negativo e pressupõe uma percepção
6.1.2.2 Eclesiologia. Afirma-se também que o
quase infalível do que Paulo podia ou não podia
conceito de Cristo como “cabeça do corpo que é a
ter escrito. Além do mais, não explica as grandes
igreja” reflete um desenvolvimento pós-paulino.
semelhanças entre Colossenses e as cartas geral
Em ICoríntios 12.12-27 e Romanos 12.4,5, Paulo
mente aceitas como paulinas. O mais provável
emprega a terminologia do corpo (v.
é que as peculiaridades estilísticas tenham sido
to)
motivadas pelo conteúdo da carta, claramente as
relações e obrigações mútuas dos cristãos. Nessas
sociado à situação que a ocasionou.
referências, a cabeça não desfruta nenhuma posi
6.1.2
co rpo de
C
r is
e as partes que o compõem para se referir às
Ensino. Para estudiosos como E. Lohse, ção ou honra especial: é considerada um membro
as supostas diferenças teológicas entre Colossen
comum (ICo 12.21). Em Colossenses e Efésios,
ses e as cartas geralmente aceitas como paulinas
a linha de raciocínio experimenta um avanço,
são decisivas contra a autoria apostólica de Co
deixando para trás a linguagem de símile, como
lossenses, mesmo que as questões de linguagem
em ICoríntios e Romanos, e adota a ideia de um
e estilo não o sejam. Alguns intérpretes alegam
envolvimento real e interpessoal, avanço prova
que a cristologia pós-paulina do autor perten
velmente estimulado pela reflexão de Paulo sobre
ce a um período posterior da história da igreja.
as questões envolvidas na heresia colossense, e
226
C olossenses, C arta aos
faz pleno sentido. Além disso, a melhor maneira
encontrado em Colossenses 1.15-20 e outros ma
de entender o termo
teriais tradicionais a fim de combater heresia na
“
ig r e j a ”
(Cl 1.18), ainda que
geralmente interpretado com o sentido de povo
era subapostólica
de Deus em todo o mundo, a igreja universal ou
é especialmente enfatizado na lista de saudações
mundial, em que Cristo exerce, aqui e agora, seu
de Colossenses. Esse documento, que é uma
senhorio cósmico, é uma assembleia celestial
espécie de carta pastoral, tinha a finalidade de
reunida em torno do Cristo ressuscitado e exalta
conferir autorização apostólica a Epafras, cujos
do (cf. Cl 3.1-4; Ef 2.6). Essa reunião celeste que
ensinos representavam o pensamento de Paulo.
tem Cristo no centro manifesta-se agora na terra.
De acordo com M. Kiley, o autor de Colossenses
A mesma palavra, “igreja” , pode ser usada para
empregou duas cartas paulinas da prisão (Fili-
designar uma congregação local em Colossos
penses e Filemom) como modelos para escrever a
ou mesmo uma pequena comunidade nas casas
carta de recomendação de Epafras. 0 objetivo da
(K
ãsem ann)
. 0 nome de Epafras
(Cl 4.15,16). A congregação nos céus manifesta-se
carta, a qual apresenta aspectos do “catolicismo
e se torna visível como a esfera em que Cristo go
primitivo” da era subapostólica, era mostrar que
verna e em que irmãos santos e fiéis em Cristo se
“o ensino de Paulo não está estritamente limita
reúnem (Cl 1.2).
do às exigências do tempo e do espaço”
6.1.2.3 Escatologia. Alega-se que a
(K
il e y ,
e s c a t o l o g ia
p. 107). “ De um modo novo e poderoso, o autor
futura recuou nessa carta, sendo Colossenses 3.4
de Colossenses transmite a mensagem do apósto
a única referência explícita a esse acontecimento
lo às comunidades”
(L
ohse,
p. 183).
futuro. Em vez disso, segundo alguns estudiosos,
No entanto, em Colossenses 1.23—2.5 é o
predominam conceitos espaciais, ao passo que
evangelho que valida o ministério de Paulo. 0
nenhuma das ideias tipicamente paulinas — pa-
parágrafo não confere legitimidade ao evangelho
rusia, ressurreição dos mortos e juízo do mundo
por meio do ofício apostólico de Paulo para em
— é encontrada na carta. Além disso, diferente
seguida afirmar (Cl 1.7; 4.7-13) a legitimação de
mente das cartas paulinas autênticas, Colossen
Epafras por causa de seu relacionamento com o
ses afirma que os crentes já foram ressuscitados
apóstolo. Ambos servem ao evangelho como co
com Cristo (Cl 2.12,13; 3.1), e isso serve de base
laboradores e ministros da Palavra. Nessas pas
para o imperativo ético.
sagens, não há nenhuma tentativa de conferir
Em Colossenses, existe de fato uma ênfase na
autorização apostólica a Epafras ou a quem quer
escatologia realizada, mas isso foi causado pelas
que seja por estar em sucessão apostólica ou seu
circunstâncias. Além do mais, existe escatologia
ensino representar o pensamento de Paulo.
futura não apenas em Colossenses 3.4,6,24, mas
As denominadas diferenças entre Colossen
também em Colossenses 1.22,28 (cf. Cl 4.11).
ses e as cartas geralmente aceitas como paulinas
Conceitos espaciais são empregados a serviço
não constituem motivo suficiente para rejeitar a
da escatologia, ao passo que perspectivas esca-
autoria apostólica dessa carta. Existem, é claro,
tológicas e transcendentes são vistas, lado a lado
diferenças de ênfase, mas é melhor interpretá-las
e em antítese, nas cartas paulinas incontestes e
como resultado das circunstâncias existentes em
em Colossenses 3.1-4. Há uma motivação esca-
Colossos.
tológica em Colossenses, talvez não dominante,
6.2
Lugar de origem e data. A opinião tradi
porém mesmo assim presente (Cl 3.5 baseia-se
cional de que Paulo escreveu Colossenses duran
em Cl 3.1-4 com sua ênfase escatológica). Ao
te seu aprisionamento em Roma é mais provável
mesmo tempo, além da escatologia há outros mo
do que a possibilidade de ele ter redigido a carta
tivos para exortação nas cartas geralmente aceitas
quando estava em Éfeso ou em Cesareia. Nenhum outro aprisionamento em Atos parece constituir
como paulinas. 6.1.2.4 Tradição. Alguns estudiosos acredi
uma alternativa concreta (há dificuldades quan
tam que as supostas diferenças nas áreas acima
to ao aprisionamento em Cesareia, descrito em
mencionadas derivam de uma “tradição de esco
At 24.27, mas v.
la paulina”, provavelmente baseada em Éfeso.
senses 4, as saudações enviadas por colegas su
O autor pós-paulino apropriou-se do hino agora
gerem que eles tinham acesso direto ao apóstolo.
227
F iu p e n s e s , C a r t a
ao s) .
Em Colos
C olossenses , C arta aos
0 que se harmoniza com o aprisionamento em
A autoria paulina do hino tem sido questiona
Roma, mencionado em Atos 28.30. A referência
da com base em argumentos linguísticos e estru
a Onésimo, que remete à Carta a Filemom, pode
turais. De uma forma ou de outra, os argumentos
ser entendida no contexto da capital do império,
a favor e contra a autoria paulina não são decisi
embora alguns aleguem que a distância entre
vos, por isso devemos aceitar a passagem como
Colossos e Roma seja um obstáculo para a carta
autêntica. Desse modo, há considerável discus
ter partido de Roma. Não é seguro basear-se no
são sobre ter o apóstolo incorporado ou não em
desenvolvimento do pensamento de Paulo como
sua carta um hino já existente. Isso é possível, mas, caso tenha acontecido, ele entreteceu o res
critério para determinar a data de Colossenses. Caso a hipótese romana seja aceita, a data
tante da carta em torno do hino, e o destaque ã
mais provável é o início do primeiro aprisiona
supremacia de Cristo tem o propósito de forta
mento de Paulo em Roma, ou seja, por volta de
lecer os leitores e corrigir as ideias errôneas dos
60-61 d.C. Os que defendem Éfeso como alter
falsos mestres. Pré-paulina ou não, a passagem
nativa situam a carta por volta de 54-57 d.C. ou
adaptou-se perfeitamente aos objetivos que o
mesmo antes, em 52-55 d.C.
apóstolo teve ao escrever Colossenses.
6.3
Ver também
O hino em louvor a Cristo. Colossenses
1.15-20 é uma grandiosa passagem de louvor que
c r is t o l o g i a ;
E f é s io s ,
C arta
aos;
g n o s t ic is m o ; ig r e j a .
exalta a Cristo como Senhor da Criação (Cl 1.15-
DPc: a u t o r id a d e s e p o d e r e s ; m is tic is m o ; p le n it u d e ;
17) e 0 autor da reconciliação (Cl 1.18-20).
TRIUNFO.
Quanto à estrutura do hino, entre os estudiosos Comentários:
T. K. The Epis
não se chegou a nenhum consenso acerca do
B
número e do conteúdo das estrofes. É melhor
tles to the Ephesians and to the Colossians. Edin
considerar certos paralelos (cf. Cl 1.15,18), com
burgh: T & T Clark, 1897. [icc.) ■ B r u c e , F. F. The
orações adjetivas expUcativas ou adverbiais cau
Epistles to the Colossians, to Philemon, and to the
sais (Cl 1.16,19), o emprego frequente de “tudo” ,
Ephesians. Grand Rapids: Eerdmans, 1984
“toda” , “todas” e o quiasmo formal de Colossen
■ C a ir d ,
ses 1.16c e Colossenses 1.20 (v. tb. Cl 1.17,18).
Oxford University Press, 1976. ■
ib l io g r a f ia .
A
bbott,
e do judaísmo rabínico tenha sido proposto como
Grand Rapids: Eerdmans, 1996.
fonte das ideias do hino, um cenário geral da
den,
no
AT
e no judaísmo helenista
(S
D
unn
,
J.
D.
G.
The Epistles to the Colossians and to Philemon.
Embora o contexto do gnosticismo pré-cristão
b e d o r ia
(n ic n t.)
G. B. Paul’s Letters from Prison. Oxford:
sa
j.
L.
(m g tc)
■
H
o u l-
Paul’s Letters from Prison. Philadelphia:
Westminster, 1970. ■ L ig h t f o o t , J. B. Saint Paul’s
c h w íe iz e r )
Epistles to the Colossians and to Philemon. Lon
provavelmente seja o correto. Mas o contexto não permite exphcar como os predicados e atividades
don: Macmillan, 1890. ■ L o h s e , E. Colossians and
atribuídos à Sabedoria vieram a ser aplicados a
Philemon. Philadelphia: Fortress, 1971. [Herm.) R. P. Colossians and Philemon. Grand
Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado den
■ M
tre os mortos havia pouco tempo.
Rapids: Eerdmans, 1981.
Esse parágrafo hínico não é uma digressão ou
a r t in ,
( ncbc.)
■ ______ . Ephe
sians, Colossians, and Philemon. Louisville: John
divagação cristológica, mas algo fundamental no
Knox, 1991. (IntC.) ■ M
contexto em que se encontra. A longa oração de
of Paul the Apostle to the Colossians and to Phi
Paulo (Cl 1.9-14) conduz ao hino, e os temas
lemon. Cambridge: Cambridge University Press,
C. F. D. The Epistles
do hino são retomados e aplicados ao longo de
1957.
todo 0 restante da carta (cp. Cl 1.19 com Cl 2.9;
Waco: Word, 1982.
Cl 1.20 com Cl 1.21-23 e Cl 2.15). Embora a pas
lossians, Philemon, Ephesians. San Francisco:
sagem louve a Cristo, é surpreendente que os
Harper & Row, 1984. ■ S c h v í e i z e r , E. The Letter to
nomes “Jesus”, “ Cristo” e “ Senhor” não apa
the Colossians: a commentary. Minneapolis: Au
reçam nela. A estrofe começa simplesmente
gsburg, 1982. ■ W
assim; “ Este é...” No entanto, fica claro que as
to the Colossians and to Philemon. Grand Rapids:
palavras de louvor não podem ser aplicadas a
Eerdmans, 1986.
outra pessoa.
G. The heresy of Colossians. In:
228
(c g tc .)
■ O ’ B r ie n ,
o u le ,
P.
T. Colossians, Philemon.
[ wbc ,
44.) ■ P a t z i a , A. G. Co
r ig h t,
N. T. The Epistles o f Paul
(tn tc .)
■ Estudos:
B orn k a m m ,
F r a n c is ,
F. 0. &
C o m u n h ã o à m e s a : Evan gelho s
M eeks, W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2. ed. Missoula: Scholars, 1975. p. 123-45.
{s b ls b s ,
3. Os hábitos de Jesus à mesa, de acordo
4.) ■
com Marcos
Cannon , G. E. The use of traditional materials in
4. Os “banquetes” abertos de Jesus, de acor
Colossians. Macon: Mercer University Press, 1983.
do com Lucas 5. Conclusão
• Dibeuus M. The Isis initiation in Apuleius and related initiatory rites. In: Francis, F. O. & Meeks,
W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2. ed. Missoula;
1. A importância das refeições em conjunto
Scholars, 1975. p. 61-121.
■ Francis, F. O.
É difícil exagerar a importância da comunhão à
Meeks, W., orgs. Conflict at Colossae. Missoula;
mesa para as culturas do entorno do Mediter
&
Scholars, 1975.
(s b ls b s )
4.) ■ Hooker, M. D. Were
râneo no século I de nossa era. O momento da
there false teachers in Colossae? In: Lindars, B. &
refeição era muito mais que uma oportunida
Smalley, S. S., orgs. Christ and Spirit in the New
de para alguém se alimentar. Ser bem recebido
Testament: Studies in honor of Charles Francis
numa mesa com o objetivo de se alimentar na
Digby Moule. Cambridge; Cambridge University
companhia de outra pessoa havia se tornado uma
Press, 1973. p. 315-31. ■ Kãsemann, E. A primiti
cerimônia com rico simbolismo de amizade, in
ve Christian baptismal liturgy. I n : _______. Essays
timidade e unidade. Por esse motivo, trair uma
on New Testament themes. Naperville; Allenson,
pessoa com quem se tivesse partilhado uma refei
1964. p. 149-68.
ção ou de alguma maneira ser infiel a ela era visto
(s b ls b s ,
(s b t .)
• Kiley, M. Colossians as
pseudepigraphy. Sheffield:
1986. ■ Lincoln,
como algo particularmente reprovável. Da mes
A. T. Paradise now and not yet. Cambridge: Cam
ma forma, quando uma pessoa estava afastada,
bridge University Press, 1981. [sntsms, 41.) ■ Lyon
0 convite para estar à mesa abria as portas para
net, S. Paul’s adversaries in Colossae. In: Francis,
a reconciliação. Até mesmo as refeições do dia a
F. O. & Meeks, W. A., orgs. Conflict at Colossae. 2.
dia eram acontecimentos complexos, em que se
ed. Missoula: Scholars, 1975. p. 147-61. [sblsbs,
reforçavam valores, limites, níveis e hierarquias
4.) ■ Sanders, J. T. The New Testament Christo-
sociais. Qualquer um que desafiasse essas catego
logical hymns. Cambridge: Cambridge University
rias e limites enfrentaria julgamento por ter agido
Press, 1971. [sntsms, 15.) • Sappington, T. J. Reve
de modo desonroso, uma acusação séria em cul
js o t,
lation and redemption at Colossae. Sheffield; Aca
turas baseadas nos valores de honra e vergonha.
demic, 1991. • Tannehill, R. C. Dying and rising
Transgredir de forma constante e persistente es
with Christ. Berlin: Topelmann, 1967. [bznw , 32.)
ses costumes faria da pessoa um inimigo da esta
■ W right, N. T. Poetry and theology in Col. 1:15-
bilidade social.
20. NTS, v. 36, p. 444-68, 1990.
A família estendida era o contexto usual em que se consumiam as refeições. Reunir-se para co
P T. O’ Brien
mer era ocasião para tornar a sentir que a pessoa C o losso s.
Ver
desfrutava aceitação e era importante no grupo.
C o lo ssenses , C arta a o s .
Além da família, preferia-se comer com pessoas Com unhão .
Ver
ceia d o
da mesma classe social. As refeições entre pes
S e n h o r ; a d o r a ç ã o / culto .
soas do mesmo nível reforçavam os sistemas de C om unhão
à m esa:
E vangelh os
estratificação social, e a disposição dos assentos
Um aspecto distintivo do ministério de Jesus foi
ajudava a distinguir a importância relativa de
a prática de uma comunhão à mesa radicalmente
cada convidado. Os convidados eram pessoas
inclusiva e não hierárquica como estratégia cen
que correspondiam social, religiosa e economica
tral de seu anúncio e redefinição do irromper do
mente ao anfitrião, ou seja, aqueles que estavam
reino de Deus. Agindo assim, Jesus desafiou o ex
em condições de retribuir o favor num relaciona
clusivismo inerente e a consciência de nível social
mento de reciprocidade equilibrada.
existentes nas práticas sociais e reUgiosas aceitas e apresentou uma parábola viva do
I srael
Em Israel, uma divisão social bem perceptível
renovado.
1. A importância das refeições em conjunto 2. O Jesus histórico e a comunhão à mesa
fora criada pela classe sacerdotal que, obrigada pela Torá (Lv 17—26), tinha de viver num esta do especial de pureza durante pelo menos seis
229
CoM U NH Áo À m esa: E v a n g e lh o s
semanas por ano, enquanto se preparava para
por Jesus, é lembrada pelo
servir e, depois, enquanto servia no templo. Cum
vas e hierárquicas que outros grupos judeus tinham
prir essa obrigação causou certa distância física e
para se alimentar, como os essênios, não desempe
social entre as famílias sacerdotais e os demais
nham nenhum papel explícito em nenhum docu
israelitas, que os sacerdotes consideravam mais
mento do cristianismo primitivo. Os Evangelhos
nt.
As práticas exclusi
Sinóticos são consistentes quando, num contraste
ou menos impuros.
acentuado e específico entre Jesus e a prática fari
Durante a helenização forçada que levou à Revolta Macabeia (167-164 a.C.), muitos judeus,
saica, 0 apresentam como aquele que ensina e cura
inclusive um número alarmante de sacerdotes de
e, em nome de Deus, recebe de bom grado à mesa
destaque, abriu mão tanto de sua pureza quanto
uma surpreendente variedade de pessoas, tanto de
de sua identidade, ao oferecer sacrifícios a deuses
boa quanto de má reputação. Isso deixa a forte im
pagãos e adotar costumes gregos. A reação veio
pressão de que, para Jesus, a comunhão aberta à
daqueles que passaram a ser conhecidos como
mesa foi uma estratégia empregada para questio
fariseus, que lembraram o povo do chamado para
nar 0 exclusivismo social e religioso onde quer que
se afastar dos caminhos pagãos, apelo que carac
isso fosse aceito como algo normal ou oficialmente
terizou a restauração de Israel depois do Exílio
sancionado
(cf. Ed 10.11;
V. ju d aísm o ) ,
(K o e n ig ,
p. 20).
e exortaram todos os
judeus a acentuar sua santidade e seu sentimen
2. O Jesus histórico e a comunhão à mesa
to de identidade exclusiva mediante um viver
Existe, entre os estudiosos, um elevado nível de
voluntário de acordo com as leis sacerdotais de
concordância de que Jesus praticou uma comu
pureza todos os dias do ano. Os fariseus não re
nhão à mesa radicalmente inclusiva como es
jeitavam 0 sacerdócio ou o culto no templo, mas,
tratégia central em seu anúncio e redefinição do
tendo em vista a vulnerabilidade dos sacerdotes
irromper do governo de Deus (v.
e do templo à impureza, tentavam renovar Israel,
Embora uns poucos autores tenham questionado
redirecionando para os lares o centro da santida
a historicidade dos relatos de que Jesus comeu
reino de
D eus ) .
de. Isso resultou numa atenção especial à pureza
com “publicanos e pecadores”
dos alimentos no dia a dia e às companhias acei
bem fortes os indícios a favor de uma mesa in
tas à mesa em cada refeição.
tencional e simbolicamente aberta, sendo encon
(S m it h ,
1989), são
Os fariseus acreditavam que as mesas nas ca
trados em múltiplas fontes e em várias formas de
sas podiam fazer as vezes do altar do Senhor no
tradição. As fontes incluem Marcos, a fonte de
templo e, por esse motivo, se esforçavam por man
textos sinóticos (o), o material peculiar a Lucas
ter, nas casas e entre os companheiros de refeição,
e provavelmente o Evangelho de Tomé. As for
0 estado de pureza ritual exigido dos sacerdotes
mas incluem relatos de controvérsia (Mc 2.15-17
no serviço do templo
Era necessário
par. Mt 9.9-13; Lc 5.29-32), as parábolas do rei
o procedimento adequado para com a comida,
no (Lc 14.15-24 par. Mt 22.1-13; Ev To, 64), pro
( N eusner ) .
dando o dízimo correspondente, preparando-a e
nunciamentos (Lc 7.36-50; 19.1-10), declarações
servindo-a, mas em si mesma ela não simbolizava
breves (Mt 8.11,12 par. Lc 13.28,29; 14.12-14), crí
nenhum acontecimento (a Páscoa era exceção).
ticas de adversários (Mt 11.18,19 par. Lc 7.33,34)
Os fariseus não prescreviam nenhuma oração
e um sumário (Lc 15.1,2).
especial ou alimento incomum para as refeições,
Os estudiosos mostram-se intrigados com a
mas insistiam em que se comesse apenas na com
estranha declaração de Jesus encontrada na fonte
panhia de pessoas com “mãos puras” (Mc 7.2-4),
dos Sinóticos
isto é, com pessoas em estado de pureza ritual
paralelo, Lucas 7.31-35. A forma em que a decla
(q ),
em Mateus 11.16-19 e em seu
(cf. Êx 30.19-21). Os fariseus ansiavam por uma
ração aparece revela pouca ou nenhuma ideali
época em que todo o Israel viveria em estado de
zação pós-ressurreição de Jesus. Por isso, parece
santidade. Acreditavam que a identidade e o futu
apresentar um vislumbre autêntico do próprio
ro abençoado de Israel dependiam disso.
ambiente de Jesus, ao ressaltar a crítica do povo,
É nesse contexto que a prática da comunhão à mesa, uma comunhão radical e aberta, adotada
230
segundo a qual
J oão B atista
“tem demônio” e
Jesus é “glutão e bebedor de vinho, amigo de
C o m u n h ã o à m e sa : Evan gelho s
publicanos e pecadores”. A acusação contra João é sem igual no
Ademais, pode se apresentar um forte argu
e parece estranha, à luz da lem
mento a favor da historicidade da crítica de Je
brança dos primeiros cristãos de que Jesus fora
sus aos relacionamentos humanos hierárquicos,
nt
acusado de ser possuído por demônio (Mc 3.22
encontrada em Marcos, no material peculiar a
par.). A acusação contra Jesus também não tem
Lucas e no material pecuUar a Mateus, e lembra
paralelo e deve ter sido fonte de constrangimento
do na forma de pronunciamentos (Mc 9.33-37
para a igreja primitiva, especialmente porque o
par. Lc 9.46-48; Mc 10.42-45 par. Mt 20.25-28 e
insulto não é refutado na passagem.
Lc 22.24-30), parábolas (Lc 14.7-11; 18.9-14),
Em nenhuma outra tradição cristã a comunhão
declarações breves (Mt 23.11,12) e narrativa de
aberta à mesa, praticada por Jesus, é denunciada
gestos simbólicos e comentário (Jo 13.3-16). As
de modo tão contundente, e é possível que aqui
distinções da sociedade eram reforçadas por oca
Jesus esteja ridicularizando seus contemporâneos
sião dos eventos sociais, de modo que o cenário
galileus pelas conclusões a que chegaram acerca
em que Jesus questionou essa prática social, isto
de João e dele próprio. Ao reproduzir o espírito
é, à mesa, enfatizado em Lucas 14.7-11 e 22.24-30
dos comentários do povo, expressos em forma de
e em João 13.3-16, por certo pareceu autêntico
insuhos claros e diretos contra si mesmo, Jesus
para os leitores no mundo antigo.
pode ter tido o propósito de desconcertar seus crí ticos
p.
D os
evangelistas, parece que Marcos e Lucas
Seja como for, as circunstân
estão particularmente interessados no papel de
cias do Jesus histórico, não as das comunidades
refeições nas congregações de seus leitores. Ex
cristãs pós-ressurreição, proporcionam o contexto
pressam essa preocupação apresentando as tra
mais plausível para esse contundente jogo de pa
dições acerca da crítica de Jesus contra posições
lavras. A favor dessa avaliação ocorre, na declara
hierárquicas tradicionais nas refeições e sua co
ção de Jesus, o uso peculiar de “amigo” {philos}.
munhão à mesa, caracterizada por uma inclusivi
Em nenhuma outra passagem Jesus aparece em
dade ofensiva, com ênfases singulares e notáveis.
(K o e n ig ,
2 3 ).
pregando o termo para se referir a si mesmo, nem a palavra é usada em qualquer outra acusação
3. Os hábitos de Jesus à mesa, de acordo
contra ele. Ser censurado como “amigo de publi
com Marcos
canos” situa Jesus plausivelmente num contexto
Marcos apresenta os hábitos de Jesus à mesa
galileu, região onde a maioria do povo evitava os
como uma metáfora do discipulado cristão em
coletores de impostos de Herodes não tanto por
geral. A crescente incapacidade que os discípu
causa da impureza ritual, porém mais por causa
los tinham de compreender o significado dessa
da reputação de serem desonestos, extorquindo
estratégia de Jesus simboUza o fato de eles não
ricos e pobres.
compreenderem a natureza de toda a missão de
Por esse motivo, é bem provável que Jesus te
Jesus
(K lo sinsk i ) .
Para Marcos, a Última Ceia é a
nha se unido várias vezes a esses imorais, à mesa
refeição decisiva e crucial, em que o discipulado
e em outros lugares. E, na condição de alguém
entra em colapso. Marcos enfatiza que, juntos, o
que reivindicava falar em nome de Deus, a au
governo de Deus e o discipulado cristão são uma
sência de discriminação era ofensiva à maioria
comunidade alternativa que praticava uma ética
do povo, que havia sido prejudicada por pessoas
social que solapava fronteiras e subvertia catego
como Levi (Mc 2.13-17). Em sua mensagem e em
rias tradicionais de posição social e hierarquia.
sua prática à mesa, comendo com quem desejasse
Para essa comunidade, a virtude social básica era
estar à mesa com ele, Jesus questionou o papel
servir (que era o trabalho do escravo), simboliza
fundamental desempenhado pela comunhão à
do no serviço uns aos outros numa mesa inclusi
mesa, que era deixar claros os limites e as posi
va em que o próprio Jesus era o exemplo maior
ções sociais, que, conforme se acreditava, eram
(Mc 10.43-45; cf. Jo 13).
sancionados por Deus. 0 uso da comunhão à
Marcos descreve vividamente a estratégia de
mesa como ferramenta divina para solapar limites
Jesus no relato sobre a comemoração que segue
e hierarquias o tornaram, aos olhos da liderança
a resposta positiva de Levi ao chamado que lhe
da época, um inimigo da estabihdade social.
faz Jesus para ser seu discípulo (Mc 2.15-17; cf.
231
C o m u n h ã o à m e s a : E van gelho s
juntos, Jesus e o traidor umedeceram cada um
Mt 9.10-13; Lc 5.29-32). Nesse banquete (o grego de Marcos debca implícito que estavam reclinados
seu pedaço de pão na tigela comum; Judas, não
para uma refeição formal), Jesus e seus seguido
Jesus, tirou a mão da mesa
res, que “eram em grande número” , cruzaram
única refeição em que, na narrativa de Marcos,
barreiras sociais significativas ao comer com
Jesus e os Doze celebram sozinhos, todos segui
“muitos publicanos e pecadores” , provocando
ram Judas ao tornar o pão do perdão no pão de
uma crítica feroz por parte dos escribas e dos
deserção. Só as mulheres, inclusive a discípula
fariseus [também teriam sido convidados?). Isso
anônima que ungiu Jesus para seu sepultamento
constitui o contexto para a observação genérica,
enquanto ele estava reclinado à mesa na casa de
feita por Jesus, de que “ os sãos não precisam de
Simão, o leproso, permaneceram fiéis (Mc 14.3-11;
(B a r tc h y ,
p. 56). Na
médico, mas sim os doentes; eu não vim chamar
15.40,41). Para Marcos e sua comunidade, o dis
justos, mas pecadores”.
cipulado fiel é aquele que entende o que movia Jesus quando partilhou o pão à mesa e vive de
Em Marcos 7.1-23, os fariseus acusam alguns discípulos de Jesus de comer com “mãos impu
acordo com sua prática de serviço.
ras” e, presumivelmente, de não se importar se as mãos de alguns companheiros de mesa estavam
4. Os “banquetes” abertos de Jesus, de
sem lavar, ou seja, de praticar a comunhão aberta
acordo com Lucas
à mesa e ignorar os limites estabelecidos pelas
Lucas dá atenção à etiqueta e à comunhão à mesa
tradições dos anciãos. Jesus defende a prática dos
e às casas em que as refeições eram feitas mais
discípulos, alegando que a pureza ritual do corpo
que qualquer outro autor do
ou do aUmento é irrelevante para Deus. A ques
g elh o de )
tão importante é como a pessoa trata os outros.
mento de comida como ocasiões que revelam o
No entanto, os discípulos são apresentados como
contraste acentuado entre a inclusividade radical
nt
(v.
L ucas, E van
. Ele realça a hospitalidade e o partilha-
pessoas resistentes, que não aprendem a lição,
da missão de Jesus e os vários graus de exclusi
exigindo instrução especial (Mc 7.17-19).
vidade exigidos por aqueles que competiam com
Relacionado tematicamente a essas passa
ele pela renovação de Israel, os fariseus e os es
gens está 0 relato da alimentação dos cinco mil
cribas, que repetidas vezes acusaram Jesus, di
(Mc 6.30-44; Mt 14.13-21; Lc 9.11-17; Jo 6.5-13),
zendo: “Este recebe pecadores e come com eles”
a única tradição de um milagre atribuído a Je
(Lc 15.1,2).
sus que aparece nos quatro Evangelhos (v. tb.
Entre os estudiosos que têm pesquisado o as
a alimentação dos quatro mil em Mc 8.1-9 par.
sunto das refeições no mundo antigo, criou-se o
Mt 15.32-39). Comum aos quatro autores, ha
consenso de que a forma singular em que Lucas
via uma tradição que se tornou extraordinária
apresenta Jesus como mestre nesse contexto foi
em razão do grande número que participou da
influenciada pelo fato de o Evangelista estar cien
abundância inesperada de alimento, sendo Jesus
te da tradição de banquetes, que era popular na
o anfitrião. A comida foi partilhada com todos os
literatura greco-romana
presentes, sem limites ou testes de pureza. Pecu
com essa tradição, que tinha os Banquetes de Pla
Uar a Marcos é a aparente intenção de associar
tão e de Xenofonte como arquétipos, o banquete
a alimentação dos cinco mil e a dos quatro mil
era a festa para se beber e conversar, que vinha
com a refeição final de Jesus com seus discípulos,
logo após a refeição formal. Era a oportunidade
(S m it h ,
1987). De acordo
como sugere o ato de Jesus “abençoar, partir e
não apenas de comer com seus iguais, mas tam
distribuir” o pão nas três passagens.
bém de contar histórias engraçadas e tratar de
Na apresentação da IJltima Ceia em Marcos
assuntos sérios de interesse mútuo. Muitos lei
(Mc 14.18-25), a crescente incapacidade que os
tores de Lucas devem ter participado de banque
discípulos tinham de entender Jesus e sua missão
tes, que constituíam a principal atividade social
culmina com a traição. Nessa última oportunidade
de grupos como os populares clubes funerários,
de comunhão à mesa antes da crucificação, Jesus
as associações comerciais e as escolas filosóficas.
continuou a praticar o perdão que já caracteri
Nas refeições formais, os participantes, instala
zava seus hábitos à mesa. Marcos ressalta que.
dos em poltronas geralmente dispostas em “U”,
232
CoM U NH Ào À m esa: E v a n g e lh o s
o triclínio, reclinavam-se ao redor de uma mesa
uma refeição tensa, é a presença de uma mulher
central. Uma vez que o lugar ocupado pela pes
descrita como “pecadora” , que entrou sem ser
soa à mesa revelava sua posição social em relação
convidada por Simão, o fariseu. 0 texto apresenta
aos demais convidados, o anfitrião tomava todo o
Jesus e Simão discordando fortemente a respeito
cuidado na hora de distribuir os lugares de honra,
da presença dela, se era apropriada ou não. Ela
principiando pela direita da entrada.
se sentia à vontade na companhia de Jesus, que
Lucas 14.7-11 apresenta Jesus reclinado (o
perdoara seus muitos pecados, e o cercava de
grego de Lucas deixa implícita uma situação de
atenção, tratando-o de um modo que evidenciava
banquete formal) e ensinando ã mesa de um fari
o fato de Simão haver debcado de demonstrar as
seu, cujos muitos convidados haviam buscado as
marcas costumeiras de hospitalidade. Tendo em
posições de honra. Nessa parábola, exclusiva de
vista a Usta singular, que vem logo em seguida,
Lucas, Jesus aconselha os convidados a não bus
na qual aparecem os nomes de Maria chamada
car homa, mas deixá-la para outros, “pois todo
Madalena, Joana, Susana e “muitas outras” mu
o que a si mesmo se exaltar será humilhado, e
lheres, tanto na condição de mantenedoras do
aquele que a si mesmo se humilhar será exalta
ministério itinerante de Jesus na Galileia quanto
do” (Lc 14.11), uma declaração que Mateus 23.12
na de companheiras de viagem (Lc 8.1-3), é pro
e Lucas 18.4 apresentam em outros contextos. A
vável que o objetivo de Lucas aqui seja desta
estrutura de Lucas sugere influência adicional do
car que, à sua mesa, Jesus dava as boas-vindas
banquete (gênero literário), não apenas na am-
a todo tipo de mulher (v.
bientação de um diálogo (Lc 14.7,12,15), mas
também o relato exclusivo de Lucas, em que ele
também na menção específica ao anfitrião, ao
apresenta Jesus dando as boas-vindas a Maria
convidado de honra e ao orador principal (Jesus),
como sua discípula no contexto de uma refeição
aos convivas convidados e aos não convidados
que estava por ser servida (Lc 10.38-42).
m ulheres).
Observe-se
A ordem do padrão do banquete parece estar
(Lc 14.13,23,25; 15.1). Talvez a prova mais notável do interesse de
invertida na ceia pós-ressurreição que Jesus tem
Lucas na forma do banquete é a cena em Lu
com dois discípulos em Emaús (Lc 24.13-35),
cas 22.24-27 para a tradição anti-hierárquica
pois, embora o relato da refeição mostre que se tra
encontrada em Marcos 10.35-45. Enquanto está
tava do momento em que se reclinavam, o discur
reclinado com os discípulos, por ocasião da Úl
so veio primeiro, enquanto estavam na estrada. E,
tima Ceia, Jesus lhes dirige palavras fortes sobre
conquanto os dois tivessem convidado a Jesus, ele
quem dentre eles devia ser considerado o maior e
rapidamente se tornou o anfitrião. Lucas buscou
pergunta: “Pois quem é maior? Quem está ã mesa
tanto em Marcos quanto na fonte dos Sinóticos (q)
ou quem serve? Não é quem está à mesa? Eu,
tradições sobre o hábito de Jesus comer com “pu
porém, estou entre vós como quem serve”. Com
blicanos e pecadores” e desenvolveu esse tema ao
essas palavras, Lucas por certo pretendia motivar
caracterizar todo o ministério de Jesus como uma
seus leitores a modificar seus próprios hábitos
missão especial aos pobres, cativos, cegos, oprimi
tradicionais à mesa.
dos e marginalizados da sociedade.
Lucas 7.36-50 e 11.37-52 fornecem dados adi
Lucas emprega especialmente o imaginário
cionais acerca da ênfase helénica às refeições
das refeições como importante meio de transmitir
como contexto para o ensino de Jesus, descreven
as boas-novas de Jesus. Elementos centrais desse
do mais duas ocasiões em que Jesus se rechnou
tema são recordados no relato lucano exclusivo
à mesa e ensinou na casa de um fariseu. Lucas
do incidente em que Jesus come com Zaqueu,
emprega esses cenários para tornar ainda mais
apresentado ao mesmo tempo como “chefe de
vívido 0 contraste entre a mensagem radicalmen
publicanos” e como “pecador” (Lc 19.1-9) num
te inclusiva de Jesus, reforçada por seus hábitos à
cenário que, provavelmente, teve o propósito de
mesa, e os limites absolutos de pureza estabeleci
lembrar o leitor da notável refeição inclusiva de
dos pelos fariseus e escribas às próprias refeições.
que Jesus participou na casa de Levi (Lc 5.27-32).
Peculiar ao cenário da tradição especial de
E, na apresentação lucana do grande banquete
Lucas 7.36-50 (mas v. tb. Mc 14.3-9), em que há
(Lc 14.15-24), uma parábola baseada na fonte
233
C O R ÍN TIO S , CARTAS AOS
dos Sinóticos, estão entre os convidados de Jesus
Jesus. Ed. rev. New York: Scribner’s, 1966. Reim-
à mesa, sob a autoridade divina, "os pobres, os
pr. Philadelphia: Fortress, 1977. ■ K lo sinsk i , L. E.
aleijados, mancos e os cegos” (a versão de Ma
The meals in Mark. 1988. Dissertação. (Ph.D.)
teus, em Mt 22.10, menciona convidados “tan
Claremont Graduate School, 1988. ■
to maus quanto bons”). A ênfase de Lucas foi,
New Testament hospitality. Philadelphia: Fortress,
K o e n ig ,
J.
provavelmente, difícil de engolir pela elite cristã
1985. ■ M o x n es , H. Meals and the new community
de seus leitores, pois a participação numa comu
in Luke,
nidade assim socialmente inclusiva pode muito
Two pictures of the Pharisees: philosophical cir
bem tê-los arrancado das redes sociais de que
cle or eating club?
participavam anteriormente e das quais dependia
N ey r ey ,
sua posição social. Da perspectiva conjunta de
meals and table-fellowship. In:
Atos e Lucas, Deus quer que a nova comunidade
The social world o f Luke-Acts. Peabody: Hendri
sea, v
.
51, p. 158-67, 1986. ■ N eu s n e r , J. a tr, v .
64, p. 525-38, 1982. •
j. H. Ceremonies in Luke-Acts: the case of N eyr ey ,
J. H., ed.
ofereça reconciliação e solidariedade entre judeus
ckson, 1991. p. 361-87. ■ S m it h , D. E. From sym
e gentios, homens e mulheres, ricos e pobres.
posium to eucharist. Minneapolis: Fortress, 2003.
5. Conclusão
the Gospel of Luke,
Aparentemente, um dos objetivos da estratégia
______ . The historical Jesus at table. In:
de Jesus com a comunhão inclusiva à mesa era
J., org. Society o f Biblical Literature 1989 Seminar
apresentar a si mesmo e a seus seguidores como
Papers. Atlanta: Scholars, 1989. p. 466-89.
■ ______ . Table fellowship as a literary motif in jb l, v .
106, p 613-38, 1987. ■
uma parábola viva de como um Israel renovado
L ull,
D.
S. S. B artchy
podia, de fato, viver unido com base na abun dância divina
(K o e n ig ,
p. 28). Jesus apresentou o
C o m u n id a d e j o a n in a .
Ver JoÃo,
C artas d e .
governo de Deus, empregando imagens de comi da, bebida e lar como um salão de banquete iti
C o n v e r s Ao e c h a m a d o d e P a u l o .
nerante, para o qual Deus procurava os israelitas,
são
Ver
P aulo, conver
E CHAMADO DE.
primeiro como convidados e depois como anfitri ões. À mesa, ofereceu-se a eles reconciliação com
CORÍNTIOS, CARTAS AOS
Deus, um verdadeiro lar e abundância espiritual
As Cartas aos Corintios representam pelo me
e material. Assim, poderiam oferecer todas essas
nos duas das quatro ou mais cartas que Paulo
benesses uns aos outros, a outros que ainda vi
escreveu à sua igreja em Corinto, com as igrejas
riam e até mesmo aos inimigos. Uma declaração
da região da Acaia, que cercava essa importante
de Jesus, provavelmente preservada na fonte dos
cidade romana (ICo 1.2; 2.1; cf. Rm 16.1). Na
Sinóticos, associava a prática da comunhão in
condição de fundador da igreja (ICo 4.14,15;
clusiva à mesa com a consumação final: "Digo-
2Co 10.13,14), Paulo conhecia bem a história,
vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente
a natureza e os problemas da igreja. Temos em
e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e
ICoríntios o exemplo mais detalhado dentro do
Jacó no reino do céu” (Mt 8.11 par. Lc 13.29; cf.
corpus paulino de como Paulo aplicava suas con
Is 25.6-8).
vicções teológicas, especialmente a cr istolo gia e a
Ver também
p ec ad o r es ;
r iquezas
e
p o b r e za ;
ESCATOLOGIA,
às questões práticas com que a igreja
se defrontava. Em contraste, em razão das cir
Ú lt im a C e i a .
cunstâncias que mais tarde surgiram em Corinto, BiBLioGRAnA. B a r t c h y ,
S. S. Table fellowship with
Jesus and the “ Lord’s meal” at Corinth. In:
com a chegada de alguns adversários de Paulo,
O w ens,
2Coríntios contém, entre todas as cartas de Paulo,
orgs. Increase in learning: essays
a mais firme defesa de sua autoridade apostólica.
in honor of James G. Van Buren. Manhattan: Ma
Além disso, as duas cartas tratam da coleta para
nhattan Christian College, 1979. p. 45-61. ■ B or g ,
os santos de Jerusalém, que era muito importante
M. J. Conflict, holiness and politics in the tea
para Paulo (ICo 16.1-9; 2Co 8 e 9).
R. & H a m m ,
B .,
chings o f Jesus. New York: Edwin Mellen, 1984.
1. Conteúdo de ICoríntios
p. 71-143. ■ Jer em ia s ,
2. Conteúdo de 2Coríntios
J.
The eucharistic words of
234
CO R ÍN TIO S, CARTAS AOS
3. Corinto e seus cidadãos
A despeito dos problemas vigentes entre os co
4. A igreja e seu apóstolo
ríntios, Paulo começa expressando sua gratidão
5. Algumas questões cruciais
a Deus pela suficiência dos dons espirituais que
6. Temas teológicos de 1 e 2Corintios
possuíam (i.e., a expressão concreta da graça de Deus concedida a eles), visto que Paulo está, des
1. Conteúdo de ICoríntios
sa forma, seguro de que Deus chamou de modo
1.1 A saudação. A saudação de Paulo em ICoríntios 1.1-3 é típica de
irrevogável os coríntios e, portanto, os susterá
antigas pelo fato de
fielmente até o dia do juízo. Por essa razão, o
identificar o remetente e, então, os destinatários,
problema dos coríntios não é a questão dos dons
após o que é feita uma saudação. A saudação de
espirituais em si, mas a atitude que tinham diante
Paulo em ICoríntios é, no entanto, distinta, pois
dos dons e o uso que deles faziam (cf. ICo 12—
cartas
estende a identificação do remetente (Paulo e
14). Fica evidente que os coríntios estão se van
Sóstenes) e dos destinatários (a igreja em Corin
gloriando do próprio chamado e dos dons ( =
to, “com todos os que em todo lugar invocam o
graça), pelos quais somente a Deus é que se deve
nome de nosso Senhor Jesus Cristo” , ICo 1.2). De
agradecer (ICo 1.26-32; 4.7).
um lado, a autoria conjunta de uma carta antíga
1.3
Respostas aos relatos acerca de Corin
é rara. Não temos certeza de quem era Sóstenes
to. O corpo da carta inicia em ICoríntios 1.10
(cf. 0 “ Sóstenes” de At 18.17, que é o dirigente da
e introduz a primeira grande seção (ICo 1.10—
sinagoga de Corinto) ou sua contribuição para a
6.20). Essa seção contém as respostas de Paulo
carta, pois no transcorrer de ICoríntios fica claro
às questões que ouviu de pessoas “da família de
que só Paulo está falando. Além do mais, a posi
Cloé” (ICo 1.11; i.e., um grupo, muito provavel
ção de Paulo como “apóstolo de Jesus Cristo” é
mente de Éfeso, que estava em contato com a si
distinta da pessoa de Sóstenes, que é identificado
tuação de Corínto) e também de outros relatos
apenas como “irmão” (ICo 1.1). De outro lado,
orais (ICo 5.1; cf. ICo 16.15-18). Nessa primeira
temos aqui a mais longa e ampla identificação
grande seção, Paulo também procura esclarecer
dos destinatários nas cartas de Paulo. 0 apóstolo
0 equívoco que os coríntios cometeram na lei
indica que entende ser a igreja em Corinto o cen
tura da carta anterior que lhes havia enviado
tro de um agrupamento de igrejas nas casas na
(ICo 5.9,11). Na primeira unidade dessa seção (ICo 1.10—
região ao redor. Contudo, são mais notáveis na saudação as
6.20), Paulo trata das causas da dissensão e da
duas orações explicativas, que apresentam o mo
rivalidade que haviam tomado corpo entre alguns
tivo geral de Paulo escrever (i.e., porque, pela
coríntios, por causa da lealdade que devotavam a
vontade de Deus, foi chamado para ser apóstolo
vários líderes cristãos, inclusive Paulo, e também
de Cristo Jesus) e de escrever aos coríntios (i.e.,
apresenta a solução para o problema. (Identificar
porque eles também foram chamados para serem
divisões ou “partidos” reais dentro da igreja é for
“ santos” como indivíduos “santificados em Cristo
çar a interpretação de ICoríntios 1.10-12.) As mui
Jesus”). Nos dois casos, o fato de a saudação es
tas tentativas de verificar a origem e a perspectiva
tar centrada em Cristo aponta para o fundamento
teológica distintiva dos que afirmavam pertencer
cristológico dos argumentos de Paulo em 1Corín
a Paulo, Apoio, Cefas e, mais geralmente, a Cristo (ICo 1.12) não têm sido bem-sucedidas. Também
tios. A oração/desejo de ICoríntios 1.3, “graça uma forma cristianizada
fracassou a tentativa, primeiramente proposta
e uma ampliação da saudação típica usada em
por F. C. Baur, de ler esse texto como prova de um
cartas antigas: “saudações
conflito disseminado dentro da igreja primitiva
[ch a ris]
a vós”
[ara), é
[ch a irein ]
a vós”.
1.2 Ação de graças na abertura. De novo, de
entre Pedro, que representava os judeus cristãos,
acordo com seu costume, após saudar os destina
e Paulo, que representava os gentios.
tários, Paulo dá graças pela sua igreja, em ICo-
Contudo, pode se dizer com certeza que o
ríntios 1.4-9. Mais que uma simples expressão
problema era que os coríntios tinham uma com
espontânea de louvor pessoal, a ação de graças
pulsão por poder, prestígio e orgulho, representa
introduz o tema central da carta como um todo.
dos na tradição retórica helenista, com sua glória
235
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
na sabedoria e realização humanas e no corres
pai, excomungando-o com o objetivo de, no final,
pondente estilo de vida escandaloso e extrava
alcançar sua restauração (ICo 5.3-5). Em segui
gante. É essa “ sabedoria de palavra” dos gregos
da, Paulo deixa claro que a nova condição que
(ICo 1.17,20,26; 2.1; 3.19) que Paulo combate,
se tem em Cristo e a adoração que é oferecida
chamando a atenção para a “ sabedoria” e o
a ele exigem pureza e separação correspondente
“ poder” opostos de Deus que se manifestaram
não do mundo, mas dentro do mundo (ICo 5.6-
primeiramente na cruz de Cristo (ICo 1.18-25),
13), pois “ os injustos não herdarão o reino de
então no chamado aos coríntios (ICo 1.26-31)
Deus” (ICo 6.9). A atual condição dos coríntios,
e, finalmente, na natureza intencional do mi
que foram justificados e santificados em Cristo,
nistério de Paulo e seu modo de vida apostólico
deve resultar numa vida de obediência crescente
(ICo 2.1-5; 4.1-13).
às exigências de Deus, pois eles são o templo do Espírito de Deus (ICo 6.11,12-20). Embora para
No entanto, uma vez que “a palavra da cruz ;
0 crente todas as coisas sejam “permitidas”, o
cf. ICo 2.14), só aquele cujo coração foi trans
Espírito não hbera o cristão do chamado à san
formado pela operação do Espírito será capaz de
tidade nesta era, antes o libera para a santidade
aceitar a sabedoria e o poder verdadeiros de Deus,
(ICo 6.12).
é loucura para os que se perdem” (ICo 1.18,
ara
conforme revelados no evangelho (ICo 1.20-24;
Em meio a essa discussão, Paulo trata do fato
2.6-16). Por esse motivo, Paulo adverte os corín
de que os coríntios estão buscando resolver suas
tios de que o fato de se orgulharem de si mesmos
disputas nos tribunais seculares. Aqui também a
e de seus vários líderes espirituais é um sinal pe
espiritualidade dos coríntios deve torná-los capa
rigoso de que o Espírito não está prevalecendo na
zes de expressar a sabedoria de Deus, em vez de
vida deles, pois estão agindo como a pessoa que
permitir que capitulem diante do mundo, espe
ainda é “natural” ou “não espiritual” (ICo 2.14—
cialmente quando estão sendo preparados como
3.4). Caso tal atitude e respectivo comportamen
povo de Deus para participar do juízo derradeiro
to continuem a existir, os coríntios também serão
de Deus sobre o mundo (ICo 6.1-6). E, na hi
alvo do juízo de Deus, que destruirá a sabedoria
pótese de que não se possa chegar a nenhum
deste mundo e todos os que agem para destruir
acordo, os que são espirituais devem estar dis
a igreja, que é templo do Espírito, construída
postos a sofrer injustamente o dano por amor a
sobre o alicerce da cruz de Cristo (ICo 1.19,20;
Cristo (ICo 6.7,8). Como se vê claramente em
3.10-23). Por isso, os coríntios devem se arrepen
ICoríntios 8.1— 11.1 e no capítulo 13, esse é o
der de sua arrogância, reconhecer que tudo que
verdadeiro caminho do amor como o de Cristo, a
possuem é uma dádiva e seguir o padrão de seu
verdadeira expressão do poder, maturidade e ha
apóstolo, cuja vida de fraqueza e sofrimento ma
bilidade espirituais.
nifesta 0 poder do reino de Deus e a realidade da cruz (ICo 1.31; 2.3-5; 4.6-13,14-21).
1.4
A reação de Corinto em relação à car
ta. Principiando com ICoríntios 7.1, Paulo volta
A mesma arrogância e a competição espiritual
sua atenção para as questões acerca das quais os
baseada nos dons espirituais e nos líderes de cada
coríntios haviam recentemente escrito a Paulo,
um, que alguns coríntios haviam unido a uma
pedindo que esclarecesse suas ideias e as impli
vanglória com os feitos da sabedoria helenista
cações dessas ideias. 0 tratamento que Paulo dis
(IC o 1.10—4.21), também se haviam manifes
pensa a esses assuntos constitui a segunda grande
tado na forma de imoralidade flagrante dentro
seção da carta, que vai até ICoríntios 16.12 (cf.
da igreja e de ações judiciais entre irmãos da
0 emprego repetido da fórmula “ quanto a” em
igreja (ICo 5.2,6; 6.9). Em ICoríntios 5.1—6.20,
ICo 7.1; 8.1; 12.1; 16.1,12).
Paulo agora trata desses problemas e dos moti
Em ICoríntios 7.1-40, Paulo analisa o casa mento e 0 celibato. Ele está ciente das tensões
vos subjacentes. No primeiro caso, Paulo responde exercen
e ansiedades que resultam de viver numa era
do sua autoridade. Com a cooperação e o con
maligna entre a primeira e a segunda vindas de
sentimento da igreja de Corinto, ele disciplina o
Cristo (ICo 7.25-35) e também das necessida
homem que está vivendo com a esposa de seu
des e desejos físicos e emocionais que Deus deu
236
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
ao seu povo (ICo 7.1-5,36,38]. 0 fundamento
0 treinamento para o amor de que todos devem
da instrução paulina é, mais uma vez, o papel
participar, os quais, à semelhança de Paulo, são
determinante que o chamado e a capacitação
chamados a perseverar no autocontrole a fim de
divinos desempenham na vida de alguém (cp.
buscar o prêmio do evangelho (ICo 9.23-27).
ICo 7.15,17-24 com ICo 1.26-31). Embora Paulo
Em ICoríntios 10, Paulo passa a advertir os
prefira ser solteiro como o modo de vida mais
crentes de Corinto acerca do que acontecerá se
adequado para servir a Deus (ICo 7.8,32-34,38),
deixarem de perseverar em amor e usarem mal
o objetivo é viver, como casado, viúvo ou sol
seu conhecimento e sua experiência, como pre
teiro, no tipo de devoção ao Senhor que tanto
texto para praticar continuadamente a imoralida
corresponde ã obra de Deus na vida da pessoa
de e o mal (ICo 10.11,12). A exemplo de Israel
quanto reflete o caráter de Deus (ICo 7.19,20,35).
no deserto, eles serão destruídos (ICo 10.1-10).
Em ICoríntios 8.1— 11.1, Paulo trata os pro
Na verdade. Deus preparou um meio de esca
blemas que surgiram pelo fato de os mais instruí
pe mesmo da tentação mais forte, de modo que
dos dentro da igreja estarem ingerindo comida
não há desculpa para não permanecer no amor
que foi sacrificada num templo pagão. Eles che
produzido pela fé genuína (ICo 10.13). Como
garam à conclusão de que os ídolos não existem
amostra, Paulo apresenta parâmetros teológicos
(ICo 8.4-6). Mas seu comportamento se tornou
e conselhos práticos para lidar com a tentação de
pedra de tropeço para os que ainda não pensam
participar da comida oferecida a ídolos. Essa ten
dessa maneira, corrompendo as consciências
tação era comum entre os coríntios em geral, para
mais fracas e destruindo sua fé (ICo 8.7,9,11,12).
quem era costume social comer nas dependên
Paulo considera que, tendo por base os próprios
cias de templos pagãos. Mas Paulo adverte con
direitos e conhecimentos, essa desconsideração
tra os perigos espirituais inerentes, raciocinando
para com o modo de pensar dos outros é um pe
que, embora um ídolo não seja “nada”, quem
cado não apenas contra eles, mas também con
participa da comida oferecida a ídolos está par
tra Cristo. Aquele que verdadeiramente conhece
ticipando da mesa de demônios (IC o 10.14-30).
a Deus e é por ele conhecido empregará sua li
Paulo finalmente retorna ao seu estilo apostó
berdade e seu conhecimento com o propósito de
Uco de não procurar vantagens para si, mas de
edificar os outros na fé, ainda que isso implique
viver para agradar a outros por amor a Cristo
negar os próprios e legítimos direitos como crente
(ICo 10.31,32). Também nisso Paulo é um exem
(ICo 8.1-3,13). Esse é "o amor [que] edifica” , não
plo para os coríntios, convidando-os mais uma
o conhecimento isolado, que apenas “ dá ocasião
vez a serem seus “imitadores” , assim como ele é
ã arrogância” (ICo 8.1).
de Cristo (ICo 11.1; cf. ICo 4.16).
Em apoio a essa ideia, Paulo ilustra o princí
Em ICoríntios 11.2-34 e 12— 14, Paulo con
pio do amor, chamando a atenção para a decisão
centra sua atenção em três questões sobre o
que tomou de se sustentar financeiramente du
comportamento na adoração, comparado com
rante sua estada em Corinto (ICo 9.1-27). Embo
0 de Cristo: 1) o relacionamento entre homens
ra os coríntios aceitassem Paulo como apóstolo
e mulheres na adoração conforme expresso na
(ICo 9.1,2), outros o criticavam por não exercer
prática cultural do uso do véu pelas mulheres
seu legítimo direito apostóUco de receber sustento
[ICo 11.2-16; ao contrário da resposta que ofe
financeiro (ICo 9.3-14), mesmo quando isso sig
rece aos dois problemas seguintes, aqui Paulo
nificou privações e sofrimentos excessivos para
elogia os coríntios e escreve tão somente para
ele (ICo 4.11-13). A resposta de Paulo é que ele
lhes dar uma base teológica à sua prática); 2) o
abrira mão de seus direitos como apóstolo por cau
enquadramento das distinções de classe estabe
sa do progresso do evangelho e pela recompensa
lecidas por eles durante a celebração da
que Deus havia prometido por tais atos de amor
Senh or
c eia do
como abuso do significado desse evento
(ICo 9.15-18). Desse modo, Paulo se faz “escravo
(ICo 11.17-34); 3) o devido uso da profecia e de
de todos para ganhar o maior número possível”
línguas na adoração (ICo 14.1-40), tendo como
(ICo 9.19), embora seja livre para agir de acordo
fundamento a importância dos dons espirituais
com 0 que for mais apropriado em Cristo. Esse é
237
em geral (ICo 12.1-31).
V w UK lI N Il Ui , L A K I A b A UÍ )
Observando-se os argumentos que Paulo apre
para a morte e ressurreição de Cristo como o
senta até aqui em ICoríntios, não é de surpreen
ponto central do evangelho, o qual Paulo havia
der que em cada um desses casos a abordagem
recebido como a tradição comum da igreja e, en
de Paulo seja deixar claro que a verdadeira espi
tão, transmitido aos coríntios como a base para a
ritualidade e a verdadeira realidade dos dons não
salvação deles. Esse é o relato mais antigo que te
são compatíveis com vanglória e a competição
mos do esboço da mensagem cristã primitiva e de
arrogante baseadas na função que alguém exerce
seu fundamento histórico. Paulo suplementa esse
no
na sociedade nem com o
fundamento com a narração de outras aparições
hábito de exibir seus dons diante dos outros (cf.
do Jesus ressurreto. Ele conclui com a experiên
ICo 11.18-22; 12.14-26; 14.6-12). A espiritualida
cia que ele mesmo teve com o Cristo ressuscitado
de genuína manifesta-se na interdependência e
e as consequências dessa ressurreição para sua
complementaridade tanto de homens e mulheres,
vida de “ o menor dos apóstolos” (ICo 15.9-11).
coRPO DE C risto o u
tendo em vista seus papéis distintos, quanto da
Ao se dirigir aos coríntios com base na
ressur
queles que, dentro da igreja, detêm os vários dons
r e iç ã o
espirituais. Os mesmos princípios também devem
tríplice. Primeiro: ninguém pode concluir que não
se manifestar na questão da diversidade cultural
existe ressurreição dentre os mortos (ICo 15.12-
de Cristo, Paulo estabelece um significado
e das diferenças econômicas (cf. ICo 11.11,33,34;
19,29-34). Segundo: a ressurreição de Cristo são
12.4-31; 14.26-40). E, em cada caso, essa espiri
as “ primícias”
tualidade prática está alicerçada na teologia, seja
que estiverem “em Cristo” por ocasião da sua se
a obra criadora de Deus (ICo 11.2-16), seja a obra
gunda vinda, quando “o último inimigo”, a morte,
(ar a)
do que acontecerá a todos
redentora de Cristo (ICo 11.17-34), seja a dádiva
for destruído e todas as autoridades forem outra
dos dons do Espírito (ICo 12— 14).
vez postas em sujeição ao reino de Deus. Por isso,
Finalmente, como o “caminho sobremodo excelente”
[ara]
esboçado em ICoríntios deixa
ao contrário da convicção dos coríntios, segundo a qual na vida que viviam no Espírito já estavam
claro, 0 critério para determinar a aplicação apro
experimentando a plenitude da era vindoura da
priada dessa teologia é o do amor, cujo caráter é
ressurreição (e.g., sua escatologia plenamente
resumido em ICoríntios 13.4-7 (cf. sua aplicação
realizada), a ressurreição final não é de modo
em ICo 12.4-11; 14.6-19). Por conseguinte, se a
algum uma simples experiência de poder e ca
fé em Cristo não estiver se expressando em amor
pacitação espirituais no presente (ICo 15.20-28),
pelo corpo de Cristo, nem a participação na ceia
e sim uma existência corpórea qualitativamente
do Senhor nem a notória posse de dons espiri
diferente, que só pode ser obtida mediante a ou
tuais garantem que a pessoa esteja numa posição
torga de um novo corpo, ressuscitado e espiritual
correta diante de Deus. Na verdade, ela estará sob
(ICo 15.35,36). Terceiro: agora os crentes vivem
o juízo de Deus (cf. ICo 11.16,27-32; 14.37,38),
entre as duas ressurreições, a de Cristo e a deles
visto que só o amor, na condição de expressão
próprios. Vivem numa era que ainda é maligna,
exterior de fé e esperança, permanece para sem
mas que pode ser suportada e superada median
pre (ICo 13.1-3,8-13). Dessa forma, Paulo pode
te a confiança segura de que, por estarem “em
admoestar os coríntios, que se orgulham de seus
Cristo”, participarão da experiência e vitória da
dons e experíências espirituais, e dizer-lhes: “Já
ressurreição que ele, como o Último Adão, ob
que estais desejosos de dons espirituais, procurai
teve sobre a morte (ICo 15.42-54). A implicação
desenvolver os que servem para a edificação da
prática dessa esperança é que os crentes são en
igreja” (ICo 14.12).
corajados a serem “ firmes e constantes, sempre
Paulo inicia a carta fundamentando sua seção inicial na cruz de Cristo (ICo 1.18-25) e agora con
atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil” (ICo 15.58).
clui sua aplicação de verdades teológicas a pro
Como último dos assuntos tratados na Primei
blemas práticos, tratando em ICoríntios 15.1-58
ra Carta aos Coríntios, Paulo conclui suas respos
da certeza e da natureza da ressurreição futura
tas, esboçando algumas instruções a respeito da
em face da ressurreição de Cristo. Primeiramen
administração da coleta que está sendo levan
te, Paulo chama a atenção, em ICoríntios 15.1-5,
tada a favor dos crentes pobres de Jerusalém,
238
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
mencionando seus planos de viagens futuras,
parte de 2Coríntios são patentes desde o início da
recomendando Timóteo e, por fim, apresentando
carta. Em contraste com a ação de graças inicial
uma rápida explicação para o motivo de Apoio
de Paulo na primeira carta (lCl.4-9), Paulo não
não visitar Corinto (ICo 16.1-12).
começa 2Coríntios agradecendo a Deus a obra di
1.5
Observajções finais. A carta termina com vina de graça entre os coríntios, mas louvando a
uma série de admoestações e saudações finais da
Deus por consolar o apóstolo e livrá-lo da adver
parte de Paulo e dos que estavam com o após
sidade (2Co 1.3-11). Ao fazê-lo, Paulo emprega
tolo na Ásia (ICo 16.13-24). No que é um clí
em 2Coríntios 1.3 uma fórmula típica da adora
max apropriado para a carta, essas admoestações
ção judaica ( “Bendito seja Deus”) e que chama a
giram em torno da necessidade de perseverar
atenção para as bênçãos das quais ele participou.
na fé à medida que esta se concretiza em amor
Nas cartas de Paulo, as ações de graças têm a
(ICo 16.13,14) e do anúncio correspondente do
função de introduzir os temas principais sobre os
juízo de Deus contra aquele que “ não ama o Se
quais irá escrever, para expressar sua maneira de
nhor”. Paulo então expressa seu anseio pela volta
vê-los e para apresentar a seus leitores um apelo
de Cristo (ICo 16.22).
implícito a que respondam.
2. Conteúdo de 2Coríntios
logético ao tema que vem em seguida: em vez
Assim, é 2Coríntios 1.1-11 que dá o tom apo 2.1 A saudação. Em 2Coríntíos 1.1,2 a sauda
de pôr em dúvida o apostolado de Paulo, seu so
ção segue o mesmo padrão de ICoríntios 1.1-3,
frimento consubstancia seu chamado. Deus cha
embora a identificação do remetente e dos desti
mou Paulo a sofrer a fim de que, por meio do
natários seja abreviada. É mais uma vez expressa
consolo misericordioso do poder sustentador de
a identidade apostólica de Paulo como resultado
Deus e do seu livramento definitivo, que Paulo
da vontade de Deus. Dessa vez, ressalta-se que
experimenta em sua aflição, ele seja capaz de tor
Timóteo é o corremetente. No entanto, como no
nar conhecido ao mundo o poder e o consolo de
caso de Sóstenes, aqui também Timóteo é iden
Deus (2Co 1.6,7,10). Dessa forma, Paulo pode in
tificado apenas como “ irmão” , o que mais uma
terpretar seu sofrimento (= “morte”) em termos
vez realça claramente o ofício apostólico de Pau
da morte de Cristo e seu livramento desse sofri
lo. Ainda que tenha havido considerável deba
mento como um tipo de ressurreição (2Co 1.9).
te sobre o uso da primeira pessoa do plural em
Dessa forma, o sofrimento e o livramento de Pau
2Coríntíos 1— 7, na dúvida de que se refira a um
lo também se tornam um meio pelo qual a igreja
círculo mais amplo de colaboradores (cf., e.g.,
é encorajada a se manter fiel em meio à adversi
2Co 1.19; 8.16-23), os indícios internos sugerem
dade (2Co 1.7). Sendo o veículo por meio do qual
que só Paulo é o sujeito e o objeto da discussão
se manifesta o consolo divino, o sofrimento de
ao longo de toda a carta, com exceção dos tex
Paulo é, portanto, a marca de seu real chamado
tos em que há explícita indicação contrária (e.g.,
apostólico. Por isso, Paulo conclui a seção convi
2Co 3.18; a palavra dirigida aos coríntios em
dando os coríntios a se unir a ele, agradecendo a
2Co 6.14— 7.1; 8—9). Os destinatários da carta
Deus 0 sofrimento e livramento do apóstolo, exa
continuam sendo as igrejas nas casas em Corinto
tamente o que seus adversários afirmavam que o
e os crentes espalhados em pequenos grupos ao
desqualificava para o apostolado (2Co 1.11).
redor desse centro. A saudação também é a mes ma de ICoríntios.
2.3
A defesa de Paulo a favor de sua mu
dança nos planos de viagem. Na primeira grande
2.2 Ação de graças na abertura. Ao contrário
seção da carta de Paulo, 2Coríntios 1.12—2.13,
da situação que enfrentou em ICoríntios, agora
Paulo explica a lógica da recente e inesperada mu
Paulo se vê envolvido em nova polêmica, na qual
dança de seus planos de viagem (2Co 1.15,16).
sua legitimidade como apóstolo foi duramente
0 objetivo de Paulo é demonstrar que seu
questionada em Corinto e ainda está sendo posta
comportamento tem sido uma expressão de
em dúvida por uma minoria significativa dentro-
sinceridade de motivos que só Deus é capaz de dis
da igreja (v. 4.2 abaixo). A controvérsia e o tom
cernir (2Co 1.12). Ao mesmo tempo, as ações de
apologético correspondente que caracteriza boa
Paulo não são resultado de “sabedoria carnal”
239
(2Co 1.12) nem das vacilações de alguém que
fé (2Co 2.9). Quem experimenta a misericórdia
faz planos “segundo a carne”. Isso pode ser refle
divina não tem outra escolha senão estender mi
xo de uma alegação, aparentemente feita pelos
sericórdia aos que pecaram contra ele, mas agora
adversários de Paulo, de que o apóstolo era cul
se arrependeram. Paulo conclui a seção, portan
pado de um golpe muito bem tramado, que en
to, lembrando aos coríntios do propósito último
volvia enganar os coríntios com a coleta para a
de suas admoestações: impedir que Satanás use a
igreja em Jerusalém e a prática de pregar de gra
situação contra a igreja (2Co 2.11).
ça (2Co 1.17; cf. 2Co 2.17; 7.2; 8.20,21; 11.7-11; 12.13-18).
Por fim, Paulo faz a transição para a divisão seguinte de sua carta, chamando a atenção para
Em 2Coríntios 1.15—2.4, a mensagem de
as mudanças mais recentes de seus planos. Quan
Paulo é que sua decisão anterior de não visitar
do, ao contrário do combinado, Tito não chegou,
Corinto em sua viagem da Macedônia para Je
Paulo não pôde usar as oportunidades de exercer
rusalém (cf. ICo 15.5-9) e a decisão posterior
seu ministério em Trôade e foi se encontrar com
de não voltar a Corinto segunda vez (2Co 1.23)
Tito na Macedônia (cf. 2Co 7.5-7), por causa de
foram ações de alguém que o Espírito “ selou” e
sua profunda preocupação com Tito e do since
que, portanto, está agindo de modo semelhante a
ro desejo de ouvir as notícias que Tito ia trazer
Cristo. Sendo a plena concretização das promes
de Corinto (2Co 2.12,13). Tendo em vista o que
sas de Deus (2Co 1.19,20), Cristo deixa claro que
diz 2Coríntios 11.28, essa ansiedade por seu “ir
o propósito divino ao agir com seu povo é firmar
mão” e pelos coríntios foi mais uma expressão do
a misericórdia antes do juízo. Da mesma forma,
imenso sofrimento de Paulo como apóstolo. Essa
as mudanças nos planos de viagem de Paulo fo
transição aparentemente insignificante leva-nos,
ram todas motivadas por seu desejo de estender
assim, de volta ao tema central da carta.
a misericórdia aos coríntios, a fim de operar a res
2.4
Defesa contandente de Paulo a favor de
tauração deles, em vez de vir para executar juízo
sua autoridade apostólica. Em vez de questionar
(2Co 1.23,24). Paulo alterou seus planos de via
a legitimidade de seu apostolado, o sofrimento de
gem a fim de dar aos coríntios uma oportunidade
Paulo, conforme relatado em 2Coríntios 2.12,13,
de arrependimento (2Co 7.8-13), decidindo não
leva-o mais uma vez a louvar a Deus em 2Corín-
retornar a Corinto depois de sua visita dolorosa
tios 2.14, assim como ocorre em 2Coríntios 1.3-11.
(“visitá-los com tristeza”), mas, em vez disso,
Além do mais, aqui também, em 2Coríntios 2.14,
escrevendo a “carta pesarosa” (2Co 2.1-5). Lon
Paulo emprega uma fórmula típica judaica de
ge de ser expressão de comportamento carnal,
ação de graças ( “graças a Deus”), a fim de marcar
as mudanças dos planos de Paulo foram, desse
a introdução ao tema central da seção seguinte
modo, uma extensão da ação divina em Cristo.
(2Co 2.14— 7.16): “Mas, graças a Deus, que em
Em 2Coríntios 2.5-11, Paulo torna a concen
Cristo sempre nos conduz em triunfo [thriambeuõ]
trar sua atenção naqueles coríntios que, como
à morte em Cristo e por meio de nós manifesta
resposta à “carta pesarosa” do apóstolo, já se ar
em todo lugar o aroma do seu conhecimento” (v.
rependeram de sua deslealdade ao apóstolo (cf.
H afe m a n n
2Co 2.5,8,9; 7.7-16). Paulo os admoesta a que o
para uma defesa dessa tradução).
Assim como em ICoríntios 4.9 pôde descrever
sigam em suas pegadas. Assim como Paulo ha
a si mesmo como alguém sentenciado à morte
via agido para estender a misericórdia aos corín
por Deus na arena romana e em 2Coríntios 1.9
tios, estes também deviam estender misericórdia
como alguém que recebeu “a sentença de morte” ,
ao ofensor arrependido que havia causado tanta
Paulo agora apresenta seu sofrimento de após
dor a Paulo. Devem recebê-lo de volta com boas-
tolo tomando como ilustração o cortejo triunfal
vindas, para que não seja “consumido por tris
romano, em que os que foram feitos cativos pelo
teza excessiva” (2Co 2.7). Além do mais, assim
vencedor (como Paulo levado por Cristo) são
como as ações de Paulo para com os coríntios
conduzidos à morte como escravos (2Co 2.14).
demonstram sua autêntica postura apostólica,
Assim, Paulo encara seu sofrimento como o meio
a disposição deles de estender misericórdia a
divinamente orquestrado pelo qual o conheci
esse indivíduo assume o caráter de um teste de
mento de Deus se revela no mundo. Tendo esse
240
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
texto como introdução, a seção apresenta a defe
foi chamado da mesma forma que Moisés, então
sa mais detalhada que Paulo faz de seu ministério
como seu ministério é diferente do de Moisés?
apostólico. Aqui a defesa de Paulo é dirigida aos
Paulo responde a essa pergunta, estabelecendo
que questionaram seu apostolado por causa de
um contraste entre os acontecimentos de Êxodo
seu sofrimento (cf. 2Co 4.7-15; 6.3-10; 11.23-33),
32— 34, com sua importância para a compreen
sua presença pessoal que causava pouco impacto
são da natureza e do propósito da antiga alian
(cf. 2Co 10.10; ICo 2.1-5) e seu compromisso de
ça, e a nova aliança em Cristo. A ideia básica de
pregar o evangelho à própria custa. Seus adver
Paulo é que, desde o início, a Lei teve a função
sários interpretaram tais coisas como sinais de
de “ matar” Israel, condenando o povo por cau
inferioridade em seu apostolado, como indício
sa de sua pecaminosidade. Isso ocorreu não porque
de uma mensagem de pouca autoridade e como
a Lei era deficiente, mas porque a vasta maioria
parte de um estratagema de enganar os coríntios
de Israel se mostrou obstinada, de modo que
(2Co 2.17; 11.7-15; 12.13-19).
foi incapaz de cumprir a aliança (cf. Êx 32.1-10;
No centro da defesa que Paulo faz de si
33.3,5; 34.9). Como consequência, Israel não po
mesmo está o duplo argumento de 2Corín-
dia suportar a glória de Deus sem ser destruído
tios 2.14— 3.6, com que defende sua aptidão e
(Êx 33.3,5). Por esse motivo, Moisés teve de se
ousadia como apóstolo. De um lado, Paulo afirma
cobrir com um véu — não porque a glória estava
que está qualificado para o chamado apostólico
se desvanecendo, mas para que os efeitos da gló
(2Co 2.16) justamente porque sua vida apostólica
ria de Deus contra um povo obstinado pudessem
de sofrimento, como o meio de revelação do co
ser contidos [katargeõ; 2Co 3.7,11,12, tendo em
nhecimento de Deus, opera no mundo o mesmo
vista Êx 34.29-35). Isso permitiria que a presença
efeito duplo que o apóstolo atribuiu ã palavra da
de Deus continuasse no meio de Israel, a despeito
cruz, em ICoríntios 1.18-25 (2Co 2.15,16). Além
da natureza obstinada do povo. 0 véu de Israel
do mais, ao contrário de seus adversários, por
torna-se, assim, uma metonímia que designa a
vontade própria Paulo tomou sobre si esse sofri
dureza dos corações em Israel sob a antiga a l i a n ç a
mento, quando, como prova de sua sinceridade
(2Co 3.14,15).
e chamado divino (2Co 2.17), pregou de graça
A “ letra” [gramma] de 2Coríntios 3.6 é, por
o evangelho. De outro lado, Paulo pode apontar
tanto, a Lei sem o poder do Espírito, a qual, por
os coríntios como prova concreta e adicional de
si mesma, pode apenas declarar a vontade de
sua quaUficação, visto que a conversão e a vida
Deus e pronunciar juízo por não realizar essa
deles no Espírito, causadas por Paulo, são teste
vontade, mas é incapaz de dar a alguém forças
munhas da natureza genuína do ministério de
para obedecer a ela. Somente o Espírito de Deus,
Paulo no meio deles (2Co 3.2,3). Dessa forma,
que agora está sendo derramado na nova alian
0 ministério de sofrimento de Paulo e o Espírito
ça como resultado da obra de Cristo, é que “ dá
se unem, apoiando a afirmação do apóstolo de
vida” (2Co 3.6) e opera a justiça (2Co 3.8,9).
que sua suficiência procede de Deus e que Deus
Por esse motivo, agora, “com o rosto descober
0 fez ministro “ de uma nova aliança” do Espírito,
to” , os crentes podem, no Espírito, encontrar-se
cumprindo Ezequiel 36 e Jeremias 31 (2Co 3.4-6).
com a mesma glória de Deus com que Moisés se
Em 2Coríntios 3.7-18, uma das passagens
encontrou (2Co 3.16,17). Como resultado, em
mais complexas do corpus paulino, o apóstolo
vez de serem julgados e destruídos pela presen
passa a comparar seu papel de apóstolo da “ nova
ça de Deus, são por ela transformados na imagem
aliança” estabelecida por Cristo com o papel de
de Deus (2Co 3.18). Enquanto Moisés teve de se
Moisés como mediador da “antiga aliança” esta
cobrir com o véu (2Co 3.12,13), como apóstolo
belecida no Sinai. Tal comparação se torna ne
da nova aliança Paulo pode ser ousado em seu
cessária pelo fato de que em 2Coríntios 2.16 e
anúncio do evangelho porque está confiante de
2Coríntios 3.5 a suficiência de Paulo como após
que foi chamado para um ministério do Espírito
tolo se baseia em seu chamado de acordo com o
(2Co 3.8). Dessa forma, ã medida que o minis
padrão do chamado de Moisés, conforme descrito
tério de Paulo intermedeia a glória de Deus para
em Êxodo 4.10
(l x x ,
ouk hikanos eimí). Se Paulo
241
aqueles que tiveram o coração transformado e.
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
por isso, não precisam ter o receio de ser destruí
de que, no presente, ele tem o Espírito Santo
dos, seu ministério vai “eclipsando” o da antiga
(2Co 5.5). Essa confiança leva o apóstolo não
aliança [2Co 3.10,11).
apenas a ansiar corajosamente que isso se torne
Em ICoríntios 4.1-6, Paulo chega à necessária
realidade (2Co 5.2-4), mas também a se esforçar
conclusão do raciocínio que havia apresentado.
por agradar a Deus, sabendo que todos terão de
De um lado, o apostolado de Paulo é legítimo,
se apresentar diante do trono do juiz, que é Cris
pelo fato de que, por meio de sua pregação e de
to, para serem recompensados pelos seus feitos
seu modo de vida, ele se mostra eficaz para tor
(2Co 5.9,10). Esse salutar temor de Deus tam
nar conhecida a “ luz do evangelho da glória de
bém motiva Paulo em seu ministério e na defesa
Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4).
de seu apostolado (2Co 5.11), não por si mes
Foi esse o propósito do chamado de Paulo, des
mo, mas a fim de que os coríntios tenham jus
crito em 2Coríntios 4.6 nos termos de uma nova
to motivo de se orgulhar de Paulo (2Co 5.12-15)
criação, em que Deus “brilhou em nosso cora
e afirmar a verdade do evangelho paulino da re
ção, para iluminação do conhecimento da glória
conciliação (2Co 5.14,16-21).
de Deus na face de Cristo” (v.
conversão e
Fica então clara a consequência do ministé
De outro lado, isso só pode significar
rio de Paulo. Os que foram reconciliados com
que quem rejeita Paulo e a sua mensagem age as
Deus em Cristo são “nova criação” (2Co 5.17; v.
sim porque teve a mente endurecida por Satanás,
CRIAÇÃO,
“ o deus deste século” (2Co 4.3,4).
implícito não apenas um novo relacionamento
CHAMADO
de) .
P au lo ,
nova
c r ia ç ã o ) ,
que, pelo contexto, deixa
Em 2Coríntios 4.7— 6.13, Paulo retorna ao
com Deus, mas também um modo de vida novo
tema de seu sofrimento, dessa vez introduzindo
e justo, em que a pessoa desenvolve o caráter
e concluindo o bloco de pensamento com a se
de Deus em Cristo ao viver a vida pelos outros
gunda e a terceira de suas “listas de sofrimen
(2Co 3.18; 4.5,14,15; 5.21). Em vez de rejeitar
to” (2Co 4.7-15 e 2Co 6.3-13 respectivamente;
Cristo por causa do sofrimento, como Paulo fa
cf. ICo 4.11-13). Depois de ter defendido a legi
zia, quando considerava Cristo de um ponto de
timidade e a finalidade de seu sofrimento, Paulo
vista não espiritual (i.e., “ segundo a carne”), os
passa a tratar da questão da necessidade de seu
que foram feitos nova criatura veem Cristo e os
sofrimento, que, como diz em 2Coríntios 4.7, é
demais ã luz do propósito divino da reconciliação
demonstrar que o poder e a glória que se revelam
(2Co 5.16,19,21).
nele são claramente de Deus, não dele próprio.
Paulo conclui a seção e ao mesmo tempo
A maneira de chegar a isso é a repetida experi
introduz a seguinte, convidando os que são da
ência de sofrimento de Paulo (i.e., “trazendo
igreja de Corinto e ainda rejeitam Paulo e sua
sempre no corpo o morrer de Jesus”, 2Co 4.10;
mensagem a se reconciUar com Deus, não abu
“ somos sempre entregues à morte por causa de
sando da graça e da misericórdia divinas. Com
Jesus” , 2Co 4.11; o fato de que “em nós atua a
esse cuidado, demonstrarão que não foi em
morte” , 2Co 4.12), a fim de que o poder de Deus
vão que aceitaram a graça de Deus (2Co 5.20;
de sustê-lo seja visto (i.e., “para que também a
6.1). Pois, na condição de embabcador de Cristo
vida de Jesus se manifeste em nosso corpo mor
(2Co 5.20), Paulo, à semelhança do “ servo” de
tal” , 2Co 4.10,11) e experimentado por outros
Isaías 49.8, é chamado a levar o povo de volta
(2Co 4.12). Assim, Paulo segue as pegadas dos
para Deus (2Co 6.2). A hsta de sofrimentos de
justos sofredores do
(cf. a citação de SI 115.1,
2Coríntios 6.3-13 tem o objetivo de reforçar esse
em ICo 4.13) e do Justo Sofredor, Jesus,
apelo, novamente demonstrando que, em vez de
suportando o sofrimento por amor aos outros
pôr em xeque sua legitimidade, seus adversários
(cf. 2Co 4.15) e confiando que, no futuro. Deus
devem observar que a resistência de Paulo em
LXX,
at
0 confirmaria e o recompensaria com justiça
meio às adversidades o recomenda como após
(2Co 4.14,16-18).
tolo. A seção termina, portanto, com um apelo
A confiança de Paulo de que sua posição será
adicional aos coríntios ainda sob a influência dos
confirmada no futuro, quando for “ habitar com
adversários de Paulo para que se reconciliem com
0 Senhor” (2Co 5.8,
0 apóstolo (2Co 6.11-13).
ara]
,
baseia-se na garantia
242
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
Tendo em vista o fato de que a igreja de Corin
(2Co 8.8,24; 9.13), e Tito é apresentado como
to está dividida acerca da legitimidade do apos
exemplo de uma fé assim genuína e do amor que
tolado de Paulo e da maneira em que ele entende
ela produz (2Co 8.16,17). Para assegurar a con
Jesus e 0 Espírito (cf. 2Co 11.4), 2Coríntios 6.14—
clusão e a credibilidade da coleta para a glória de
7.2 trata da relação entre crentes e incrédulos,
Deus, Paulo enviará, com Tito, dois irmãos não
sendo estes agora implicitamente identificados
identificados, mas bem conhecidos e respeitados
como aqueles que não se arrependerão nem se
(2Co 8.18-23; 9.1-5).
reconciliarão com Paulo, negando-se a aceitá-lo
Em 2Coríntios 9.6-15, Paulo retorna ao fun
como apóstolo do evangelho. A admoestação de
damento teológico da coleta e, dessa maneira,
Paulo é direta. Baseado em seu entendimento da
conclui sua análise sobre o assunto. A coleta é
igreja como templo de Deus (2Co 6.16) e na exi
necessária porque expressa a confiança que os
gência bíblica de que o povo de Deus se separe da
cristãos de Corinto têm de que Deus cuidará de
idolatria a fim de serem “filhos e filhas” de Deus
suas necessidades, de tal maneira que estão dese
(2Co 6.18), Paulo convoca os coríntios fiéis a se
josos e em condições de contribuir de boa vonta
separar dos que, entre eles, insistem em rejeitar
de (2Co 9.6-9). Deus é fiel e responderá a tais atos
Paulo e seu evangelho (2Co 6.14,15; 7.1).
de fé, agindo para suprir as necessidades dos que
Em 2Coríntios 7.2-16, Paulo retoma o relato
contribuem e recompensando os que usam seus
dos acontecimentos recentes em Corinto, concen
recursos em benefício de outros (2Co 9.8,10-12).
trando-se nas boas notícias que recebeu quando
Ao prosseguir com a coleta, os coríntios estarão
finalmente se encontrou com Tito. Embora de iní
glorificando a Deus, afirmando com suas ações o
cio lamente a dura reprimenda que lhes passou,
evangelho de Cristo (2Co 9.13) e levando outros
Paulo fica aliviado com o fato de que aquela carta
a se unir a eles na glorificação a Deus (2Co 9.12).
(2Co 7.5-8) tenha provocado entre a maioria dos
A coleta também criará um vínculo de oração e
crentes coríntios o tipo de tristeza piedosa que
de gratidão entre os coríntios e a igreja de Jerusa
conduz ao arrependimento, em vez da “tristeza do
lém (2Co 9.14), o que leva Paulo, diante disso, a
mundo”, que traz apenas a morte (2Co 7.9-13).
concluir a seção com louvor a Deus por seu “dom
Consequentemente, a defesa que, em 2Corín-
inexprimível” (2Co 9.15).
tios 2.14— 7.16, Paulo faz de seu apostolado termi na com uma grande expressão de regozijo, consolo
2.6
A defesa final de Paulo e seu ataque aos
adversários. Na última grande seção de 2Coríntios
e confiança nos coríntios como um todo, visto que
(2Co 10.1— 13.10), o tom, o estilo e o assunto vol
a resposta positiva deles às advertências anteriores
tam a mudar notavelmente, deixando para trás as
de Paulo e à missão de Tito era um sinal seguro da
admoestações pastorais de 2Coríntios 7.2-15 e dos
natureza genuína da fé que possuíam e do vínculo
capítulos 8 e 9. Vê-se aqui uma apologética agres
entre Paulo e sua igreja (2Co 7.2-5,11-16).
siva e um contra-ataque dirigido àqueles que são
2.5
A coleta. Em 2Coríntios 8.1—9.15, o as da igreja e ainda se opõem a Paulo (2Co 13.5-10) e
sunto é outro. Paulo retoma a questão da base
a seus adversários que são de fora de Corinto e es
teológica e da administração da coleta a favor dos
tão nas sombras por trás dos coríntios (2Co 10.10;
crentes de Jerusalém, à qual ele tinha dado inicio
11.4,12-15,21,23; v.
em Corinto, mas que, em razão de alguns pro
da são a fraqueza e o sofrimento pessoais de Paulo
a d v e r s á r io s i) .
As questões ain
blemas na igreja, não havia terminado conforme
(2Co 10.1,10; 11.23-33), o fato de se sustentar por
o previsto (2Co 8.6,7,10,11; 9.2; cf. ICo 16.1-4).
conta própria (2Co 11.7-15; 12.13-17) e sua apa
A coleta era necessária não só por causa da ne
rente falta de poder carismático (2Co 12.12; 13.3).
cessidade da igreja de Jerusalém e da capacidade
Em consequência, a visita de Paulo num futuro
dos coríntios em ajudar (2Co 8.14,15), mas tam
próximo domina a seção, na esperança de que será
bém por causa das implicações da entrega de si
um tempo construtivo de cura, em vez de juízo
mesmo que Cristo fizera a favor dos que estão
para a igreja (cf. 2Co 10.2; 12.14,20,21; 13.1-4).
sob seu senhorio (2Co 8.8,9). Por isso, a contri
A passagem de 2Coríntios 10.1-6 é o apelo fi
buição para suprir as necessidades do próximo
nal à reconciliação que Paulo faz à igreja, a fim
torna-se um teste da autenticidade da própria fé
de que, quando ele chegar, “não seja obrigado a
243
C o r ín t io s , c a r t a s a o s
usar de coragem com firmeza” e castigar a de
caso, porém, Paulo se mostra bem hesitante, sa
sobediência, embora esteja pronto para fazê-io
bendo que tal vanglória é a síntese da tolice, jus
(2Co 10.2,6]. Em 2Corintios 10.7-11, numa pas
tamente o motivo que levou Deus a lhe dar “um
sagem em que reforça esse apelo, Paulo reafirma
espinho na carne” , para evitar essas manifesta
sua legitimidade como cristão e como apóstolo,
ções (2Co 12.6-10]. Além do mais, Paulo declara
justificando-a com base na natureza correta de
que o motivo real de seus adversários o terem
sua conduta recente, inclusive sua enérgica de
criticado por pregar sem nada cobrar, por seu so
monstração de autoridade sobre os coríntios. Que
frimento e por sua recusa em se gloriar nas pró
a atitude de Paulo está correta é algo que se torna
prias experiências espirituais é que seu modo de
evidente assim que se aplica o critério correto de
vida e práticas questionam a legitimidade deles
legitimidade apostólica, a saber, a demonstração
como apóstolos, por estar baseada em cobrança
concreta da obra de Deus por meio dele, vista na
financeira e em relatos de experiências espirituais
atividade apostólica de Paulo de fundar a igreja
(2Co 11.12]. A mensagem de Paulo é que nem
em Corinto (2Co 10.12-18]. Por isso, quando rei
características humanas nem linhagem religiosa
vindica autoridade, Paulo não está se recomen
tornam alguém servo de Cristo (cf. 2Co 11.21-23],
dando (2Co 10.12], mas se gloriando “ no Senhor”
e sim a fraqueza, pois Deus declarou que seu “po
daquilo que Deus realizou por meio dele para de
der se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9].
monstrar que é um daqueles a quem o Senhor
Em 2Coríntios 12.11— 13.10, Paulo conclui a se ção, pela última vez lembrando os coríntios de sua
“recomenda” (2Co 10.17,18). Uma vez que Deus já recomendou Paulo por
sinceridade e legitimidade apostólica, conforme
meio de seu trabalho apostólico, é “loucura” a ne
demonstrada em seu ministério do Espírito e do
cessidade de se gloriar do próprio comportamento
sofrimento decorrente da decisão de não ser um
ou de suas realizações (cf. 2Co 11.1,16-21; 12.11].
fardo para os coríntios (2Co 12.11-18]. Os que ain
Entretanto, em 2Coríntios 11.1— 12.10, Paulo se vê
da rejeitam Paulo devem, portanto, arrepender-se
forçado a fazer justamente isso, a fim de refutar
enquanto aguardam sua visita final (2Co 12.19—
as afirmações de seus adversários e reconquistar
13.10]. Deixar de fazê-lo significará estar sob o juí
os que haviam caído sob a influência de tais ad
zo de Deus, visto que Paulo identifica sua pessoa e
versários. O cerne da questão é a afirmação dos
mensagem com a glória de Deus em Cristo e com
adversários de que eles, não Paulo, representam os
0 verdadeiro evangelho (2Co 11.4; 12.21; 13.1-4].
“superapóstolos” de Jerusalém e estão no nível de
Desse modo, o teste derradeiro da natureza autên
les. Nessa seção, Paulo se esforça para mostrar que
tica da fé dos coríntios é se eles irão ou não se re
ele é que é apóstolo autêntico, em pé de igualdade
conciliar com Paulo (2Co 13.5-9]. Por esse motivo
com os líderes da igreja-mãe (2Co 11.5; 12.11], ao
a autodefesa cuidadosa de Paulo não foi feita por
passo que seus adversários, afirmando ter alguma
causa do apóstolo, mas para o bem dos coríntios
ligação com os líderes de Jerusalém, são, na verda
(2Co 12.19], pois Paulo está escrevendo “essas coi
de, “falsos apóstolos” e “obreiros desonestos” , que
sas estando ausente, para que, quando presente,
se disfarçam de “ministros de justiça” (2Co 11.12-
não venha a usar de rigor, segundo a autoridade
15). Desse modo, em 2Coríntios 11.5 e 2Corín-
que o Senhor [lhe] deu para a edificação e não
tios 12.11, Paulo se compara positivamente com
para a destruição” (2Co 13.10].
os “superapóstolos”, ao passo que em 2Coríntios
2.7.
Saudações finais. Em 2Coríntios 13.11-13
11.12-15, estabelece a mais clara distinção possível
(14], Paulo encerra a carta, convidando a igreja a
entre ele próprio e seus adversários.
endireitar seus caminhos, a resolver as rivalida
Por esse motivo, nessa seção Paulo se “glo
des e a viver em harmonia e em paz. Esse ape
ria” primeiro de sua decisão de pregar o evange
lo final baseia-se na promessa de que, se agirem
lho em Corinto, sem cobrar nada (2Co 11.7-12]
assim, “o Deus de paz” estará com os coríntios.
e então de seus outros sofrimentos (2Co 11.2333] como as verdadeiras marcas da legitimidade
3. Corinto e seus cidadãos
de seu apostolado, só para finalmente se glo
Talvez mais que qualquer das outras cartas de
riar de suas experiências espirituais. No último
Paulo, as características sociológicas, associadas
244
CO R iN TIO S, CARTAS AOS
ao ambiente religioso e filosófico da região, in
ístmicos, as quais eram feitas de aipo seco (cf.
fluenciam a interpretação que se faz de 1 e 2Co-
M u r p h y - 0 ’C o n n o r ,
p. 17).
ríntios. Corinto está situada no sopé do monte
Como centro abastado para comerciantes e
Acrocorinto, com 566 metros, no lado sul do ist
marinheiros, Corinto era, evidentemente, reco
mo de 7,2 quilômetros que liga o Peloponeso ao
nhecida pela sua imoralidade, especialmente a
restante da Grécia e faz separação entre os golfos
corrupção sexual, e por seus muitos templos e
Sarônico e de Corinto. Sua localização era estraté
ritos religiosos. Em vista da reputação da cidade,
gica, militar e comercialmente. Corinto controla
Aristófanes (c. 450-385 a.C.) até mesmo cunhou
va o movimento por terra entre a Itália e a Ásia e
0 verbo korinthiazesthai ( “agir como um corín-
também o tráfego entre os portos de Lequeu, 2,4
tio” , i.e., “cometer fornicaçâo”). Platão utilizou a
quilômetros ao norte, e Cencreia, 8,1 quilôme
expressão “ moça coríntia” como eufemismo para
tros a leste. O transporte das embarcações entre
“ prostituta” (Murphy-0’Connor, p. 56). E, embora
os dois portos, que se fazia através de Corinto,
se questione a precisão histórica dessa afirmação,
permitia evitar que se navegasse pelas águas trai
o relato de Estrabão de que havia mil prostitutas
çoeiras ao redor do Peloponeso. 0 transporte era
no templo de Afrodite parece refletir a imagem
facilitado por uma via pavimentada que atraves
da cidade, em que os muitos templos davam sua
sava o istmo e que foi construída no século vi
contribuição em particular para o ambiente im o
a.C. Por esse motivo, Corinto era conhecida como
ral da vida em Corinto (v. Estrabão, Ge, 8.6.20,
cidade abastada, por causa de sua taxação e de
escrito inicialmente em 7 a.C. e ligeiramente re
seu comércio, e como importante centro para as
visto em 18 d.C.).
ideias e o comércio do mundo (v. Estrabão, Ge,
Depois de ter sido restabelecida em 44 a.C.,
8.6.20-23). Em termos de indústria, Corinto era
agora como cidade romana, Corinto passou a re
especialmente conhecida por seus valorizadíssi-
ceber um rápido afluxo de pessoas. Logo se tor
mos objetos de bronze, um dos quais era usado
nou a terceira cidade do império, atrás de Roma
no teatro como "acentuador de ressonância” (cf.
e Alexandria. Além dos veteranos e dos muitos
ICo 13.1; Murphy-O’Connor, p. 50, 76).
representantes das classes mais baixas que se
A história da antiga Corinto é um conto de
mudaram para Corinto, a cidade foi colonizada
duas cidades. Como entidade política, a história
em grande parte por escravos libertos de Roma,
de Corinto remonta ao século viii a.C., e até mea
cuja posição de servos alforriados ficava pouco
dos do século II a.C. florescia como cidade-estado
acima da de um escravo.
grega. Mas sua posição de líder da liga acaia re
rinto deu a Roma a oportunidade de diminuir seu
sultou em sua destruição por Roma, em 146 a.C.
problema de superpopulação e aos libertos uma
Corinto ficou então em ruínas até 44 a.C., quan
chance de aproveitar a oportunidade socioeconô-
do Júlio César a refundou como colônia romana,
mica proporcionada pela nova cidade. Além do
0
repovoamento de Co
não demorando a que ela voltasse a ocupar uma
mais, Corinto também abrigava uma significa
posição de proeminência
tiva comunidade de judeus, que exerciam o di
No século
I,
(A p ia n o ,
Hi ro, 8.136).
Corinto já era o mais importante
centro comercial do sul da Grécia.
reito de administrar seus negócios internos (cf.
partir de
At 18.8,17). Filo relaciona Corinto como uma das
27 a.C. foi a residência do procônsul da região
cidades da diáspora judaica (Le Ga, 281 e 282),
e a capital da província senatorial da Acaia até
e foi encontrada uma verga com a inscrição “si
A
15 d.C., quando se tornou província imperial.
nagoga dos hebreus” , embora não seja possível
Também ficou famosa por administrar os jogos
determinar sua data com precisão (cf.
ístmicos, competição atlética bienal que só per
0 ’C0NN0R,
M urph y-
p. 79). Percebe-se que na época de Pau
dia em importância para os jogos olímpicos. Esse
lo Corinto havia se tornado uma salada de frutas
contexto é refletido em ICoríntios 9.24-27, quan
de culturas, filosofias, estilos de vida e religiões e
do Paulo emprega a metáfora do atietismo e sua
possuía uma atmosfera de pujança.
ênfase na coroa imperecível reservada para os
As categorias em que Paulo, em 1Corín
crentes. Para os coríntios, isso representaria um
tios 12.13, classifica as pessoas da igreja refle
contraste com as coroas conquistadas nos jogos
tem, portanto, a constituição da cidade, como o
245
C o ríntio s , cartas aos
fazem os vários nomes judeus, romanos e gre
depois do qual houve ampla reconstrução da ci
gos mencionados nas cartas (os judeus Áquila,
dade. Quanto à época de Paulo, até o momento a
Priscila, Crispo; os romanos Fortunato, Quarto,
arqueologia confirmou a existência de um templo
Justo; os gregos Estéfanas, Acaico, Erasto). Com
da deusa Fortuna e templos ou santuários dedica
base em ICoríntios 7.20-24, sabemos que alguns
dos a Netuno, Apoio, Afrodite (no Acrocorinto),
dos crentes de Corinto eram escravos. Além do
Vênus, Otávia, Asclépio, Deméter, Core e Posei-
mais, uma vez que agora na Corinto romana não
don (cf.
M
urph y-
0 ’C onnor).
existia nenhuma aristocracia baseada na proprie dade de terra, logo se desenvolveu uma “aristo
4. A igreja e seu apóstolo
cracia monetária”, acompanhada de um espírito
A igreja de Corinto era gentílica em grande par
de feroz independência (assim entende
p. 2).
te (embora não na sua totalidade), conforme se
Essa distinção de classes baseada na riqueza é
percebe pelos seus antecedentes na idolatria pagã
F ee,
refletida nas tensões e facções existentes durante
(ICo
a celebração da ceia do Senhor (ICo 11.17-34),
ção em banquetes nos templos (ICo
visto que a maior parte da igreja provinha, apa
Também era comum os gregos e romanos resol
6.9-11; 8.7; 12.2)
e na questão de participa 8 .1 — 11.1).
rentemente, da classe socioeconômica mais baixa
verem suas disputas nos tribunais seculares, ao
ou média, e apenas umas poucas famílias abasta
passo que os judeus eram proibidos de fazê-lo,
das estavam representadas na comunidade cristã
0 que ajuda a explicar essa prática em Corinto
(ICo 1.26,27).
(cf. ICo
A lei, a cultura e a reUgião romanas eram do
6 .1 -6 ).
A aceitação da prostituição, que
é analisada em ICoríntios
6.12-20,
e as atitudes
minantes em Corinto, e o latim era a língua oficial
diante do casamento refletidas em ICoríntios
da cidade, mas as tradições e as filosofias gre
também estão mais em consonância com um con
gas da região e os cultos de mistério originários
texto gentílico.
do Egito e da Ásia também estavam fortemente
A
7
ig r e ja e m C o r in to se r e u n ia e m v á ria s casas,
representados (cf. ICo 1.20-22). Diógenes, fun
p o is n ã o h a v ia p o s s ib ilid a d e d e u m m o v im e n to
dador da escola cínica, esteve associado com Co
re lig io s o r e c é m -c o n s titu íd o , a in d a s e m
rinto e com 0 Craneu, área residencial próxima de
n h e c im e n to g o v e r n a m e n ta l, v ir a te r u m lo c a l
Corinto. Aliás, acredita-se que Corinto foi a “cida
p ú b lic o p a ra e n c o n tro , c o m o u m a s in a g o g a (c f.
de mais helenista do Novo Testamento”
Rm
(F ee,
p.
o reco
1 6 .2 3 ). C o m b a se n a e s c a v a ç ã o d e q u a tro
4, n. 12). Nos dias de Paulo, o teatro de Corinto
casas n a C o r in to d o p e r ío d o r o m a n o
comportava 1.400 pessoas
é p o c a d e P a u lo ) e n a lista d o s c a t o r z e m e m b r o s
(M
u rphy-
0 ’C
onnor,
(u m a da
p. 36), e isso transparece na metáfora de 1Co
d e se x o m a s c u lin o d a ig r e ja d e 1 e 2 C o rín tio s ,
ríntios 4.9 e 9.24,25. Ademais, embora os relatos
J.
que tenhamos da imoralidade bem disseminada
ig r e ja e m
de Corinto sejam da Corinto grega e não se deva
(M urphy - 0 ’ C o n n o r , p. 1 5 8 ). M a s u m a r e u n iã o da
M u r p h y - 0 ’ C o n n o r c a lc u la q u e, n a su a ba se, a C o r in to c o n ta v a cin q u e n ta m e m b r o s
interpretar que se apliquem à Corinto dos dias de
“ ig r e ja t o d a ” era in c o m u m , p o is e m g e r a l a ig re ja
Paulo, 0 caso é que tal problema também veio a
se reu n ia e m g ru p o s m e n o re s n o s la res d e v á r io s
prevalecer na nova cidade, a romana, por causa
m e m b r o s (c f. I C o 16.19; R m 16.5; C l 4 .1 5 ; F m 2 ).
da sua posição de importante centro geográfico e porto marítimo, atmosfera que vemos refletida
4.1
Os problemas por trás de ICoríntios. 0
comentário de G. D. Fee sobre ICoríntios é a mais
em ICoríntios 5.1,2 e 6.9-20. Por fim, nos dias
completa apresentação da interpretação apologé
de Paulo Corinto estava repleta de locais de cul
tica dos problemas por trás de ICoríntios. Segun
to pagãos (cf. ICo 8.4-6; 10.14,20-30). Com seu
do essa interpretação, a situação histórica por
Descrição da Grécia, volume 2, Pausânio (mor
trás de ICoríntios é fundamentalmente de con
to c. 180 d.C.) é 0 autor do mais antigo guia de
flito entre Paulo e a igreja na sua totahdade. Pelo
Corinto, descrevendo pelo menos 26 lugares sa
que se depreende, no âmago do problema está
grados do panteão greco-romano e dos cultos de
o fato de os coríntios rejeitarem a autoridade de
mistério. Deve se ter em mente que boa parte de
Paulo como fundador da igreja. Por esse motivo,
Corinto foi destruída num terremoto em 77 d.C.,
para Fee, a divisão mais séria da igreja é aquela
246
C o r ín tio s , cartas aos
entre
a maioria da comunidade e Paulo
evangelho por causa da influência de alguns
(F ee, p.
8). Interpreta-se como agressivo o linguajar de
recém-chegados, que eram adversários do após
Paulo ao longo de toda a carta, e suas referências
tolo (cf. 2Co 11.4). Desde então, um segmento
ao próprio apostolado são lidas apologeticamente
significativo da igreja se arrependeu e passou ou
(cf. esp. ICo 4.1-21; 9.1-27; 15.8-11).
tra vez para o lado de Paulo, mas sua autoridade
No entanto, é preferível entender o propó
apostólica já não é denominador comum entre ele
sito de Paulo em escrever ICoríntios como ba
e a igreja inteira. Entre os coríntios, ainda existe
sicamente didático, em vez de apologético. Em
uma oposição considerável a ele, e os adversários
momento algum na carta Paulo defende sua auto
de Paulo estão à espreita por trás dessa oposição.
ridade como apóstolo em si, visto que ele conti
Como consequência, a igreja agora se encontra
nua pressupondo que os coríntios o reconhecem
dividida quanto a Paulo e à legitimidade de seu
como o fundador da igreja (ICo 4.15) e como
apostolado. A situação vigente é refletida na au
seu apóstolo legítimo, embora outros de fora da
sência, em 2Coríntios, de um chamado para imi
igreja talvez não o reconheçam (ICo 9.1,2). Pau
tar Paulo, na atenção constante dedicada à sua
lo prefere escrever para “ lembrar” os coríntios de
autoridade como apóstolo ao longo da maior par
seus “caminhos em Cristo” (ICo 4.17) e chamar
te de 2Coríntios e, o que é mais claro, nos diferen
a atenção deles para o fato de que, sendo ele seu
tes papéis que o sofrimento de Paulo representa
“pai” (IC o 4.15), é o “caminho” dele, o caminho
nas duas cartas. Em ICoríntios 4.8-13 e 9.1-27,
da cruz, que deve ser imitado (ICo 4.16; 11.1).
o sofrimento do apóstolo serve para apoiar suas
Por isso, em nenhum lugar de ICoríntios existe
alegações de sempre buscar o bem-estar dos co
a afirmação de que o sofrimento de Paulo é con
ríntios, ao passo que em toda 2Coríntios Paulo
veniente. Pelo contrário, funciona como premis
tem de defender a legitimidade de seu sofrimento
sa básica para os argumentos de Paulo (cf. esp.
(cf. 2Co 2.17; 11.7-15; 12.13-18). Por esse motivo,
ICo 1.10—4.21; 8.1-11.1; cap. 13; 14.18,19), que
enquanto os problemas de ICoríntios eram inter
por sua vez se baseiam em sua autoridade pater
nos da igreja, o problema central a se resolver
nal em Cristo sobre os coríntios (ICo 4.14-21). 0
em 2Coríntios é o da autoridade e legitimidade de
fato de Paulo poder citar sua prática de pregar de
Paulo como apóstolo.
graça como argumento a favor de seu propósito
4.3
A fonte dos problemas em Corínto e a res
exortativo em ICoríntios 8— 10 indica que o modo
posta de Paulo. É possível identificar a fonte dos
de vida e a autoridade apostólicos ainda eram ti
problemas de Corinto, sejam os de ICoríntios,
dos em alta conta. Caso contrário, o argumento
sejam os de 2Coríntios, na cultura helénica, que
mais elaborado de Paulo em ICoríntios 8— 10,
tanto influenciou os habitantes daquela cidade. A
cujo clímax é o apelo do apóstolo a que o imi
questão-chave era o que significava ser “espiritu
tem (ICo 11.1), cairia por terra. Ao longo de toda
al” (cf. 0 uso da palavra pneumatikos, que Paulo
a carta, os argumentos de Paulo se concentram,
usa catorze vezes só em ICoríntios, em contras
portanto, nos coríntios e em seu comportamento,
te com apenas quatro vezes nas demais cartas
e Paulo se dirige a eles não em tom apologético,
paulinas incontestes). Mesmo sendo crentes, os
mas orientador. A capacidade paulina de emitir
coríntios se apegavam à parte do dualismo hele-
juízos oficiais sobre o comportamento dos corín
nista — corpo/alma ou material/imaterial — que
tios ao longo de toda a carta baseia-se na pressu
fazia pouco caso do mundo físico, a favor do co
posição de que sua autoridade apostólica ainda
nhecimento e da sabedoria “ superiores” da exis
é aceita em Corinto. Os problemas tratados em
tência espiritual. Embora constitua anacronismo
ICoríntios são essencialmente internos, não são
falar de gnósticos ou de gnosticismo em Corinto,
tensões entre a igreja e seu apóstolo.
é possível falar de um “gnosticismo incipiente”
4.2
Os problemas por trás de 2Coríntios. na teologia dos coríntios (assim entende seguindo
Quando Paulo escreveu 2Coríntios, tudo havia
B ruce;
v
.
g n o s t ic is m o ) .
M
a r t in
,
Sob tal influência,
mudado. Por algum tempo, no período entre
os coríntios eram inclinados ao orgulho intelec
escrever a primeira e a segunda carta, a igre
tual, dando grande valor a seu “conhecimento”
ja esteve em rebelião aberta contra Paulo e seu
e às suas experiências espirituais (cf. ICo 1.5;
247
C or ín tio s , cartas aos
8.1,7,10,11; 12.8; 13.2 etc.). O resultado foi uma
No entanto, à época de 2Coríntios os adver
atitude de vanglória e competição dentro da igre
sários de Paulo haviam chegado de fora e se
ja, reforçada ainda por conta de sua arrogância
aproveitado da escatologia plenamente realizada
cultural e por sua admiração pelo poder, estilo e
dos coríntios, pregando um conceito de Cristo e
refinamemo públicos da tradição retórica sofista.
do Espírito que os coríntios estavam dispostos a
Tal atitude os convenceu de que não havia nada
receber (2Co 11.4). Em vez de, com base na res
de errado em levar seus assuntos aos tribunais
surreição e vindicação futuras, conclamar os co
humanos (cf. ICo 5.1— 6.20) e em participar da
ríntios a fielmente suportar as provações em meio
imoralidade e, ao mesmo tempo, levou-os a prati
à adversidade, os adversários de Paulo lhes pro
car um ascetismo indevido (cf. ICo 7.1-5).
metiam uma vida no Espírito que se caracterizava
Contudo, igualmente importante é esse dualis
pela ausência de sofrimento e por uma dieta rica
mo que proporcionou a base conceituai que tornou
de experiências rehgiosas. Sustentavam a afirma
os coríntios tão suscetíveis a uma escatologia plena
ção de serem apóstolos com cartas de recomen
mente realizada que espiritualizava a ressurreição
dação enviadas por outras igrejas (cf. 2Co 3.1),
futura como algo que já estava ocorrendo em suas
com suas marcantes peculiaridades étnicas como
experiências (cf. ICo 4.8; cap. 15). Dessa maneira,
judeus (2Co 3.4-18; 11.21,22) e com a vanglória
entendia-se que a vida presente já participava da
de suas realizações espirituais e de seus sinais
plenitude da realidade celeste do mundo vindou
sobrenaturais, aliados às suas habihdades retóri
ro. A escatologia plenamente realizada inflou ain
cas (2Co 10.10,12; 11.12,18; 12.12). A apologética
da mais o valor que os coríntios atribm'am ao seu
de Paulo em 2Con'ntios 3 permite postular que,
conhecimento espiritual, aos seus dons espirituais
de alguma forma, também associavam seu mi
e às suas experiências religiosas, especialmente o
nistério ao de Moisés e à Lei, embora, diferindo
dom de línguas, que viam como indicação de que
de Gálatas, as questões de pureza ritual e de cir
também participavam da existência espiritual dos
cuncisão não sejam mencionadas em 2Coríntios.
anjos (cf. ICo 13.1; 14.37). Essa atitude, por sua
Além do mais, os adversários de Paulo validavam
vez, provocava mais vanglória e desunião na igreja,
suas afirmações ao exigir dinheiro dos coríntios
bem como a consequente rejeição à legitimidade
como sinal do valor e legitimidade de sua mensa
do apostolado de Paulo e ao seu evangelho.
gem (2Co 2.17). Entretanto, a fim de fazer essas
A resposta de Paulo em ICoríntios está de
afirmações e exigir pagamento, eles eram obriga
cididamente baseada no duplo fundamento do
dos a atacar Paulo e sua legitimidade apostóhca,
e da cristologia (cf. sua resposta, baseada
0 que punha em questionamento o evangelho e o
AT
no AT, ao problema de se vangloriar na sabedoria,
modo de vida deles.
em ICo 1.18—3.23, com citações diretas do a t em
Como resposta, Paulo precisou defender sua
ICo 1.19; 1.31; 2.9; 2.16; 3.19,20). Os dois funda
legitimidade como apóstolo a fim de comprovar a
mentos deixam claro que o poder e a sabedoria de
veracidade de seu evangelho. Mais uma vez ele o
Deus agora se revelam em Crísto e em sua cruz.
faz, retornando ao a t e à cristologia para demons
Ao mesmo tempo, a mensagem paulina da cruz
trar a necessidade e o propósito de seu sofrimen
(ICo 1.17-19) e sua experiência apostólica de so
to em relação ao seu ministério do Espírito sob a
frimento (ICo 4.8-13) demonstram que o reino
nova aliança.
de Deus, embora esteja aqui em poder, ainda não está presente em sua plenitude. Por esse motivo, caso o sofrimento e a fraqueza sejam característi cas essenciais do ministério apostólico em que se
5. Algum as questões cruciais 5.1
Autoria. Ambas as Cartas aos Coríntios
são, na saudação, atribuídas a Paulo e revelam
baseia a vida dos coríntios, na condição de filhos
todos os indícios históricos e literários da autoria
de seu pai espiritual a vida dos coríntios também
paulina. De fato, a autoria paulina de ICoríntios
deve se caracterizar pelo poder da cruz, não por
nunca foi questionada, e a carta já é atestada na
vanglória em feitos ou líderes espirituais. O con
década de 90 do século i por Clemente de Roma
selho mais básico de Paulo, por isso, é este: “ Sede
(cf. ICl, 37.5; 47.1-3; 49.5) e na primeira década
meus imitadores” (ICo 4.16; 11.1).
do século II por Inácio (cf. In, Ef, 16.1; 18.1; In,
248
C or Intio s , cartas aos
Rm, 5.1). Embora 2Coríntios não seja claramente
sua vez, está respondendo a uma variedade de
documentada até o cânon de Marcião (140 d.C.),
temas e questões que lhe foram apresentados por
a partir dessa data é inconteste como parte do
carta pela igreja e também por meio dos relatos
corpus paulino. Até mesmo a erudição moderna
que ouviu.
mais crítica tem aceito consistentemente essas
Na época em que escreveu ICoríntios, Paulo
cartas como autênticas, à exceção de ICoríntios
pretendia voltar a Corinto depois de permane
1.2b, 14.34b,35, que, segundo a alegação de al
cer em Éfeso até o Pentecostes e, então, visitar
guns estudiosos, são interpolações não paulinas.
a Macedônia (v. ICo 16.5-8). Nesse ínterim, ele
Mas os indícios favoráveis à remoção desses tex
enviou Timóteo para visitar os coríntios em seu
tos não convencem a maioria dos estudiosos,
nome (ICo 16.10,11; At 19.22). Timóteo desco-
visto que nenhuma tradição de manuscrito omite
bríu que a tensão entre Paulo e os cristãos de
esses versículos, e pode se ver que as duas pas
Corinto havia aumentado, o que se deveu muito
sagens se encaixam na sequência do pensamento
provavelmente ao fato de alguns adversários de
de Paulo. Outros estudiosos têm defendido que
Paulo, vindos de fora, terem chegado a Corinto.
0 vocabulário e o tema peculiares de 2Coríntios
Como resposta, Paulo partiu imediatamente para
6.14— 7.1 indicam que Paulo adotou essa passa
Corinto, o que se tornou uma “visita dolorosa”,
gem, tirando-a de um escrito paulino anterior,
durante a qual a igreja questionou duramente a
de uma fonte judaica não paulina (frequente
autoridade e o evangelho de Paulo. Um dos lí
mente associada ao movimento essênio ou aos
deres da igreja enfrentou Paulo e o ofendeu (cf.
MANUSCRITOS DO MAR
MoRTo)
OU
de uma tradição
2Co 2.1,5-8; 7.8-13; 11.4).
judaico-cristã. Contudo, ainda que essa hipótese
Paulo deixou Corinto sob ataque, decidido a
prevaleça sobre as ideias dos que defendem que
não fazer aos coríntios outra “visita dolorosa”
seu caráter distintivo se deve aos textos do a t cita
como essa (2Co 2.1,2). Em vez disso, enviou-lhes
dos nessa seção, Paulo integra plenamente a pas
Tito com uma “carta chorosa” de repreensão e
sagem em sua linha de raciocínio em 2Coríntios.
advertência, como tentativa de reconquistá-los
5.2
Unidade entre 1 e ICoríntios e o motivo (cf. ICo 2.3-9; 7.8-12). O fato de que Tito também
que ocasionou as cartas. A fundação da igreja
estava incumbido de organizar a coleta (2Co 8.6)
de Corinto por Paulo, registrada em Atos, acon
indica, contudo, que Paulo ainda não havia perdi
teceu no período de 49 a 51 d.C. como parte da
do as esperanças com os coríntios e considerava
segunda viagem missionária de Paulo. Quando
que pudessem se arrepender. A “carta chorosa”
Paulo partiu de Corinto, dezoito meses depois, a
se perdeu, embora alguns estudiosos tenham pro
nova igreja florescia. Mais tarde, Paulo, de Éfeso,
curado identificá-la com a ICoríntios canônica ou
escreveu uma carta aos coríntios, um documento
com os quatro capítulos de 2Coríntios 10— 13.
não mais existente, no qual tratava de algumas
Mas ICoríntios não é suficientemente dura nem
questões éticas específicas que incomodavam os
dolorosa para se qualificar como tal, nem o as
novos crentes. No entanto, os coríntios tiveram
sunto tratado se enquadra na natureza da descri
dificuldade de entender as admoestações de Pau
ção de 2Coríntios 2.1-4, visto que em ICoríntios
lo e aplicaram-nas de modo errado no contexto
não se analisam consistentemente a rejeição de
em que viviam (cf. ICo 5.9-13). A igreja, então,
Paulo pelos coríntios, nem a influência dos ad
enviou a Paulo uma carta por mãos dos mensa
versários de Paulo em Corinto, nem o ofensor de
geiros relacionados em Atos 16.15-17, a fim de
2Coríntios 2.5-11.
obter maiores esclarecimentos. Em resposta a
Enquanto Paulo aguardava o retorno de Tito
essa carta, Paulo escreveu a ICoríntios canônica.
com seu relatório sobre o impacto dessa carta,
0 objetivo de Paulo era esclarecer sua posição e
sua mente não conseguia sossegar. Estava ansio
responder a outras informações que tinha ouvi
so com a situação em Corinto (2Co 2.12,13). Por
do a respeito de sérios problemas surgidos em
esse motivo Paulo partiu de ’nrôade para se en
Corinto (ICo 1.11; 5.1; cf. ICo 16.15-18; v. 4.2
contrar com Tito, e, quando o fez, Tito deu a Pau
acima). A natureza um tanto desconexa e tópica
lo a boa notícia de que sua “carta chorosa” havia
de ICoríntios é fruto do fato de que Paulo, por
de fato reconquistado a maioria dos coríntios
249
C or ín tio s , cartas aos
(2Co 7.6-13). Ademais, pelo fato de a igreja ter
de 2Coríntios 10— 13 é a última defesa e ataque
reagido de modo tão positivo, Paulo pode ago
diretos de Paulo aos seus adversários, depois de
ra planejar visitá-los outra vez {cf. 2 Co 2.3; 9.5;
basicamente ter se dirigido à maioria reconciliada
12.20-13.1).
da igreja em 2Coríntios 1—9 e talvez depois de al
Na expectativa dessa terceira visita, Paulo es
gum intervalo de tempo ou da chegada de novas
creve a 2Coríntios canônica ou, pelo menos, 2Co-
e ameaçadoras informações. Essa é a abordagem
ríntios 1—9 como a temos hoje. 0 fato de que a
adotada na visão geral de 2Coríntios acima.
maioria da igreja havia se arrependido e voltado
No outro extremo, uns poucos estudiosos
para Paulo, enquanto um segmento significativo
têm buscado isolar cada uma das seções, tratan-
ainda resistia à sua autoridade e ao seu evange
do-as como um texto separado e identificando
lho, explica por que essa seção é mesclada. Nela,
cada uma com a história da interação de Paulo com
Paulo consola e encoraja a maioria da igreja, ao
os coríntios, conforme esboçada acima. Nesse ce
mesmo tempo que defende seu apostolado, a fim
nário, como já ressaltamos, alguns entendem que
de fortalecer os que se arrependeram e reconquis
2Coríntios 10— 13 faz parte da “carta chorosa”; 2Co-
tar a minoria recalcitrante. Além do mais, por trás
ríntios 2.14—6.13 faz parte de uma cartaperdida,
dos coríntios estavam à espreita os adversários
em que Paulo se defende; 2Coríntios 1.1—2.13 e
de Paulo, aos quais Paulo não se dirige direta
7.5-16 compõem a carta de reconciliação de Pau
mente, mas sem dúvida são eles a fonte primá
lo após 0 relatório de Tito; 2Coríntios 6.14— 7.1
ria do problema. Por isso, o objetivo de Paulo ao
faz parte de ainda outro texto perdido, paulino
escrever a carta é preparar os coríntios para sua
ou não paulino, ou mesmo parte da “carta ante
visita seguinte, durante a qual terá de julgar os
rior” de ICoríntios 5.9. O consenso crescente é
que insistem em rejeitar a ele e ao seu evangelho.
que 2Coríntios 1—9 é uma composição unifica
Paulo de fato voltou a Corinto (cf. At 20.2), de
da escrita depois do encontro entre Paulo e Tito
onde menos de um ano depois escreveu sua carta
(cf. 2Co 7.5-13). Interpreta-se 2Coríntios 10— 13,
aos Romanos.
portanto, como uma obra subsequente, escrita de
Tendo em vista esse cenário, a questão da
pois de um novo surto de problemas em Corinto e
unidade literária de 2Coríntios foi respondida de
anexada à seção anterior em algum momento no
várias maneiras, por causa das transições e mu
início da história dessas tradições, visto que não
danças de assunto notoriamente abruptas no cor
há nenhum dado crítico-textual de que 2Coríntios
po da carta. As questões-chave são as notórias
10— 13 tenha chegado a circular independente
interrupções de pensamento — entre 2Coríntios
mente de 2Coríntios 1—9 (v., e.g., os comentários
2.13 e 14; 7.4 e 5; 6.13 e 14; 7.1 e 2 — e os as
de
M
a r t in
e
F u r n is h ) .
suntos tratados claramente de forma separada:
5.3 Local e data. A Primeira Carta aos Corín
a coleta, em ICoríntios 8—9; a unidade distinta
tios foi escrita em Éfeso, entre a época em que
de 2Coríntios 10.1— 13.14. Se cada uma dessas
Paulo deixou Corinto (51-52 d.C.) e três anos
transições representa um documento distínto,
depois, entre o outono de 52 d.C. e a primave
2Coríntios se torna uma combinação destes seis
ra de 55 d.C., sendo a determinação da data de
importantes fragmentos, os quais foram poste
pendente dos seguintes fatores: a data do édito
riormente unificados numa única carta: 2Corín-
de Cláudio e a duração do mandato de Gálio (cf.
tios 1.1—2.13 e 7.5-16; 2Coríntios 2.14—6.13;
At 18.2,12); a época em que Paulo partiu de Co
2Coríntios 6.14— 7.1; 2Coríntios 8; 2Coríntios 9;
rinto (At 18.18); a subsequente duração de sua
2Coríntios 10— 13.
estada posterior em Éfeso. A Segunda Carta aos
Um grupo minoritário de estudiosos ainda
Coríntios (vista como um todo ou pelo menos
sustenta a unidade literária da carta. Os que de
2Co 1—9) foi concluída aproximadamente no ano
fendem esse ponto de vista buscam explicar a
seguinte a ICoríntios e escrita na Macedônia.
integridade das transições em cada ponto dentro
5.4 Os adversários de Paulo. As passagens-
da carta. Além disso, entendem que as mudanças
chave para identificar a oposição a Paulo em Co
de tema ao longo de 2Coríntios são resultado da
rinto têm sido, tradicionalmente, ICoríntios 1.12;
natureza mista da comunidade coríntia. 0 texto
3.22; 9.5; 2Coríntios 3.1-18; 11.4,22,23. Com base
250
C oríntio s , cartas aos
nesses textos, fica claro que os adversários de
sincretista, mais parecido com o essenismo que
Paulo eram judeus que, de um lado, estavam fa
com qualquer outro grupo
miliarizados com o mundo helenista e esposavam
Mas, na tentativa de criar um consenso entre os
valores e técnicas retóricas sofistas e, de outro,
treze enfoques diferentes que catalogou, Gunther
confiavam em sua herança espiritual judaica (v.
ampliou tanto a base desse consenso que sua des
4.3 acima). Fora esse esboço bastante simples,
crição é indefinível.
(G
u n th er ,
p. 315).
determinar com maior precisão a identidade e a
Por esse motivo, deve se dar as boas-vindas à
teologia dos adversários de Paulo é uma tarefa
recente proposta de J. L. Sumney. Ele adotou uma
de reconstrução para os estudiosos, visto que 1
metodologia baseada numa “abordagem minima
e 2Coríntios são os línicos dados de que dispo
lista” para identificar os adversários de Paulo. A
mos, embora material proveniente de Filipenses
proposta de Sumney inclui: 1) ênfase na priorida
(quando essa carta é datada no período de Paulo
de da exegese num “método centrado no texto”;
em Éfeso) tenha sido introduzido por alguns es
2) insistência numa avaUação equilibrada das de
tudiosos (v. comentários).
vidas fontes; 3) apUcação rigorosamente limitada
Desde o século xvii, os estudiosos têm apre
da “técnica de espelhamento” (i.e., a prática de
sentado três teorias básicas sobre a identidade
ler as afirmações de Paulo como reflexo direto das
dos adversários de Paulo em 2Coríntios. A elabo
ideias contrárias de seus adversários); 4) rejeição
ração dessas hipóteses foi, predominantemente,
à tentativa de abordar o texto a partir de uma
resultado da leitura dos argumentos de Paulo em
reconstrução previamente determinada e funda
contraste direto com as opiniões de seus adver
mentada externamente. Mas, tendo em vista a
sários (a denominada técnica de espelhamento).
história da pesquisa, é significativo que Sumney,
As teorias propostas são: 1) gnósticos; 2) judai-
ao aplicar seu método a 2Coríntios, não ofereça
zantes legalistas semelhantes àqueles que Paulo
nenhuma ideia nova sobre a identidade dos ad
combatia em outros lugares; 3) uma mistura de
versários de Paulo. Sumney conclui concordando
elementos legalistas e gnósticos e/ou ardorosos
com a proposta anterior de E. Kãsemann, segun
e espirituais de várias tendências. Esses são os
do a qual os adversários por trás de 2Coríntios
pontos de vista principais, que têm sido repeti
10— 13 eram espiritualizantes, não judaizantes,
damente aprimorados e combinados de várias
tampouco os gnósticos ou os “homens divinos”
maneiras, de modo que, entre 1908 e 1940, um
de Georgi, e que o pouco espaço de tempo en
línico estudioso expressou nada menos de onze
tre os fragmentos de 2Corintios 1—9 e 2Coríntios
sugestões diferentes sobre 2Coríntios. Desde en
10— 13 leva à “conclusão razoável” de que nos
tão, essas três opiniões básicas foram defendidas
dois casos os adversários fazem parte do mesmo
vigorosamente por R. Bultmann e W. Schmithals
grupo
(a hipótese gnóstica), C. K. Barrett (a hipótese ju-
(S
um ney,
p. 183).
Hoje, a hipótese gnóstica está morta em razão
daizante) e D. Georgi (espiritualidade helem'stico-
da falta de provas da existência do gnosticisimo
judaica e missionários de origem palestina que
na era pré-cristã ou do
esposavam a teologia do “homem divino” [theios
gi, com sua reconstrução baseada em missioná
anêr] centrada em Moisés).
rios judeus antigos e a compreensão de Moisés
nt
. E
a proposta de Geor
Depois do surgimento dessas abordagens,
como um “homem divino”, enfrenta sérias crí
o úrúco grande estudo sobre os adversários de
ticas. A saída para o impasse é perceber que o
Paulo em geral. St. Paul’s opponents and their
motivo da preocupação dos judaizantes com a
background, de J. J. Gunther, não ofereceu uma
Lei não era apenas o desejo de manter sua tradi
metodologia nova nem apresentou uma saída cla
ção, mas também de ter acesso a uma experiên
ra para o impasse. A tese de Gunther é de que
cia mais profunda do Espírito (v.
0 ambiente dos adversários de Paulo deve ser
0 divórcio artificial entre a Lei e o Espírito, que
encontrado nos escritos de Qumran e nos textos
leva os estudiosos a postular dois tipos distintos
apócrifos judaicos, de modo que os adversários
de adversários, tem, portanto, de ser superado.
de Paulo são originários de um judaísmo mís
Com base na herança judaica, a questão suscita
tico, apocalíptico, ascético, não conformista e
da pelos adversários de Paulo era essencialmente
251
E s p í r it o S a n t o ) .
C oríntio s , cartas aos
a mesma levantada pelos coríntios, baseados em
a cruz (cf. ICo 1.10—4.21) e a ressurreição de
sua cosmovisão helenística: como alguém conse
Cristo (ICo 15) emolduram teologicamente a in
gue participar plenamente do poder do Espírito?
sistência de Paulo, vista em toda ICoríntios, na
A resposta dos adversários baseava-se numa teo
ligação inextricável entre fé e obediência. No final
logia de glória plenamente realizada, segundo a
das contas, portanto, ICoríntios demonstra que
qual a participação no evangelho que anuncia
a eclesiologia e a escatologia estão arraigadas na
vam, o qual era vinculado à antiga aliança, as
maneira em que Cristo é entendido “segundo as
segurava que a pessoa estava livre do pecado e
Escrituras” (cf. ICo 15.3-5).
do sofrimento neste mundo. No centro do debate,
Em 2Coríntios, o tema central passa a ser a
estava a relação entre a antiga aliança e a nova
relação entre o sofrimento e a glória conforme
aliança, surgida na questão da autoridade e papel
determinados e ilustrados na experiência apos
de Moisés e da Lei em relação ao papel de Paulo
tólica de Paulo. Aqui também os argumentos de
como apóstolo de Cristo e mediador do Espírito
Paulo estão fundamentados em sua escatologia e
(cf. 2C0 2.16; 3.14-18).
cristologia, ambas desenvolvidas dentro de um arcabouço do
at
e consistentemente aplicadas
à
6. Temas teológicos de 1 e 2Coríntios
sua vida de apóstolo. A ideia de Paulo é tão sim
É notável que em ICoríntios a maioria das or
ples quanto profunda. Em vez de questionar sua
dens gire em torno de algum aspecto da unidade
legitimidade como apóstolo, os sofrimentos de
da igreja (cf. ICo 1.10; 3.1-3; 4.14,16; 5.4,5,7,8;
Paulo são um veículo que Deus determinou para
6.1,4,6,7,18,20; 8.9,13; 10.14; 11.33,34; 12.14
validar seu apostolado e revelar o conhecimento
etc.). Fica claro que a preocupação básica de
de seu poder e glória, agora revelados no evange
Paulo são a natureza e a vida verdadeiras da
lho de Cristo. O ministério paulino do sofrimen
igreja, tornando a eclesiologia o tema principal
to e do Espírito não constitui uma tensão não
de ICoríntios. Na condição de “igreja de Deus”
resolvida que questione sua suficiência como
(ICo 1.2), os coríntios são “ santuário de Deus” ,
apóstolo da verdade, pois tanto a cruz quanto o
pelo fato de terem recebido o Espírito Santo
poder divino da ressurreição estão se revelando
(ICo 3.16,17; 14.24,25), e o “corpo de Cristo” ,
na vida de sofrimento divinamente ordenada de
pelo fato de estarem submissos ao senhorio de
Paulo. E, conquanto nem em ICoríntios nem em
Cristo (ICo 6.17; 10.17; 11.29; 12.12-16,27). Mas,
2Coríntios exista alguma convocação a todos os
ao concentrar a atenção nos coríntios como povo
cristãos para o sofrimento nem sinal de uma teo
de Deus, o arcabouço escatológico da teologia
logia do martírio, Paulo afirma que o povo de
paulina também fica em relevo em ICoríntios.
Deus, sempre que é levado a passar pela mes
Por toda a carta, Paulo se esforça para deixar cla
ma espécie de sofrimentos a que ele foi chama
ro que, embora já tenha chegado a alvorada do
do como apóstolo, também se tornará veículo
reino de Deus, o que fica demonstrado no poder
para a manifestação do poder de Deus em meio
da ressurreição de Cristo e no derramamento do
ã adversidade (2Co 1.7). Em apoio a essa ideia
Espírito na vida dos coríntios (cf. ICo 4.20), as
principal e ao raciocínio apologético correspon
sim mesmo o reino ainda não está aqui em sua
dente a favor de sua autoridade apostólica, Paulo
plenitude, uma ressalva claramente vista no so
esboça a natureza da nova aliança em relação
frimento de Paulo e na natureza qualitativamente
à
diferente da futura ressurreição corpórea e do fim
nova criação no meio da antiga (2Co 4.6— 5.21)
aliança do Sinai (2Co 3.6-18), a natureza da
dos tempos. Ao mesmo tempo, Paulo também
e 0 alicerce cristológico para viver em razão dos
precisa deixar claro aos coríntios que, conquan
outros porque agora se vive por causa de Cristo
to o reino de Deus ainda não esteja presente em
(2Co 5.15; 8.1-9.14).
sua plenitude, a vida ética do seguidor de Cristo ainda deve ser controlada pela realidade alvore-
Ver também C r is t o ;
a d v e r s á r io s ;
e s c a t o l o g ia ;
apó sto lo ;
E s p í r it o S a n t o ; L
c o r po
de
e i ; r e s s u r r e iç ã o .
cente da era vindoura, na qual o Espírito capaci
D P c : a u t o r id a d e ; c o l e t a p a r a o s s a n t o s ; c r u z , t e o
ta a pessoa a guardar os mandamentos de Deus
l o g i a d a ; d o n s d o e s p ír it o ; g l ó r i a , g l o r i f i c a ç ã o ; M o i
(cf. ICo 5.7,8; 6.1-6; 7.29-31; 10.11 etc.). Por isso.
s és; p o d e r ; s a b e d o r ia ; s o f r i m e n t o .
252
C orpo de C risto : Paulo
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Os escritos paulinos empregam a expressão exata “corpo de Cristo” apenas quatro vezes (to sõma
1
tou Christou: Rm 7.4; ICo 10.16; Ef 4.12; sõma Christou, ICo 12.27). Há também expressões equivalentes: “o corpo do Senhor” (ICo 11.27);
studies
“ corpo da sua carne” (Cl. 1.22); “corpo da sua
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The
glória” (Fp 3.21); “seu corpo” (Ef 1.23; 5.30;
P h ila
Cl 1.24); “meu corpo” (ICo 11.24). Intimamente
St. Paul’s
relacionados com as expressões acima estão os
a study of a p o
termos “ o corpo” (IC o 11.29; Ef 5.23; Cl 1.18;
calyptic a n d J ew ish sectarian teachings. Leiden ;
2.19) e “um só corpo” (Rm 12.5; ICo 10.17;
d elp h ia: Fortress,
1986.
■ G unther , J. J.
opponents and their background:
253
C orpo de C risto : Paulo
adoração a ídolos (ICo 10.14), sugere que, pela
12.13; Ef 2.16; 4.4; Cl 3.15). Essas 21 expressões podem, de acordo com o contexto, seguindo o
analogia do corpo em ICoríntios 10.16,17, a men
esboço abaixo, ser classificadas em três grupos.
sagem de Paulo não é tanto a unidade do cor
É significativo, porém, que todas digam respeito
po formado por cristãos, mas sua solidariedade
ou ao corpo físico (crucificado ou ressurreto) de
como único corpo em união com Cristo, o que
Cristo ou ao corpo metafórico de Cristo, a igreja.
impede uma união semelhante com demônios
1. O corpo físico de Cristo
(cf. ICo 10.21). Isso implica que o “um só corpo”
2. 0 corpo de Cristo em contextos eucarísticos
de ICoríntios 10.17 se refere ao corpo de Cristo,
3. 0 corpo de Cristo como designação da
a igreja. Uma mudança semelhante, em que o signifi
igreja
cado deixa de ser o corpo crucificado de Cristo e 1. O corpo físico de Cristo
passa a ser a igreja como corpo de Cristo, ocorre
Em Romanos 7.4, “o corpo de Cristo”, que é o
em ICoríntios 11.23-32. Por ocasião da instituição
instrumento por meio do qual os crentes foram
da ceia do Senhor, o pão significa ou representa
considerados mortos e, desse modo, livres da
0 corpo concreto de Cristo que está na iminência
Lei, refere-se ao corpo físico de Cristo em que ele
de ser oferecido na cruz (ICo 11.24). Em decor
sofreu a morte na cruz. De modo semelhante, o
rência disso, comer o pão de modo indigno é ser
“corpo da sua carne” é um hebraísmo (com pa
culpado do “corpo [...] do Senhor” (ICo 11.27).
ralelos em Qumran) que denota o corpo físico de
Há consenso de que essa expressão seja uma refe
Cristo, que mediante a morte se tornou o meio
rência ao corpo crucificado de Jesus, por estar li
pelo qual reconciliou pecadores consigo mesmo.
gada (cf. ICo 10.16) ao “ sangue do Senhor”. Mas
0 acréscimo “carne” insiste, opondo-se à heresia
a expressão “ sem discernir o corpo” , em ICorín-
colossense, na verdadeira humanidade do Jesus
tios 11.29
encarnado. Em Filipenses 3.21, o “corpo da sua
deixa de discernir no pão da eucaristia o corpo do
glória” opõe-se, num paralelismo antitético, ao
Senhor entregue na cruz (cf. ICo 11.24,27), mas
“corpo da nossa humilhação” e se refere ao corpo
a deixar de reconhecer no grupo de crentes reuni
ressurreto com o qual se aguarda o retorno do
dos para a ceia do Senhor o corpo metafórico de
Senhor Jesus do céu (cf. Fp 3.20).
Cristo (ICo 10.17), erro que resultou nos vergo
(ara),
talvez não se refira àquele que
nhosos abusos descritos em ICoríntios 11.17-22 2. O corpo de Cristo em contextos
(B o r n k a m m ,
p. 190-5).
eucarísticos Às vezes, em ICoríntios, o conceito de corpo apa
3. O corpo de Cristo como designação da
rece associado bem de perto à eucaristia, ou
igreja
c eia
Os textos revelam uma relação íntima
Esse emprego do conceito de corpo, do qual dois
entre o corpo físico de Cristo, que foi crucificado,
exemplos já foram mencionados (ICo 10.17;
DO S e n h o r .
11.29), é peculiar a Paulo no
e a igreja como o corpo do Cristo ressuscitado.
nt.
Antes de exami
Desse modo, ingerir o cálice e o pão na eu
nar o uso do conceito nos demais escritos pauli
caristia tem o sentido de participar do sangue e
nos, analisaremos as questões sobre a origem e a
do corpo de Cristo (ICo 10.16), ou seja, dos be
natureza desse conceito.
nefícios de sua morte e da comunhão com ele. O
3.1
A origem do conceito. Já houve muita
paralelismo estrito entre “ o corpo de Cristo” e "o
especulação acerca das possíveis fontes que Pau
sangue de Cristo” mostra que aquele se refere ao
lo utilizou para a ideia de “corpo de Cristo”. 1)
corpo de Jesus entregue à morte (cf. ICo 11.24) e
No passado, costumava-se associá-la ao concei
que este diz respeito ao sangue derramado como
to gnóstico de homem primevo, cujo corpo era
expiatório (cf. ICo 11.25; v. Jeremias). Assim
concebido como cósmico (cf.
como existe um único pão na eucaristia, de igual
m a n n ).
modo os que participam conjuntamente do único
pelo fato de os indícios serem tardios (séc. iii).
B u ltm ann
e
K ase-
Hoje, a ideia é em geral desconsiderada,
pão constituem um único corpo (IC o 10.17). 0
2) Com certeza, é exagerada a ideia de que o
contexto, com a exortação de ficarmos longe da
templo de Asclépio, com suas ofertas votivas de
254
C orpo de C risto : Pa ulo
p a rte s d e s m e m b ra d a s d o c o r p o q u e fo ra m c u ra
1)
sid o
0
de membros interdependentes é um clichê es-
e le m e n t o c a ta lis a d o r p a ra a fo r m a ç ã o d o
c o n c e ito p a u lin o
(H ill).
3)
A comparação do Estado {polis] ou Estado
mundial [cosmopolis] com um corpo constituído
d a s re p re s e n ta d a s e m im a g e n s d e b a rro , te n lia m
toico e, como ressalta C. F. D. Moule (p.
P a re c e d u v id o s a a
84 -5 ),
p r o p o s ta d e q u e a e x p re s s ã o p a u lin a “ c o r p o d e
paralelos bem claros com o emprego paulino da
C r is to ” ten h a s id o cria d a c o m b a s e na a n a lo g ia
analogia são dados, por exemplo, por Sêneca,
c o m a e x p re s s ã o “ c o r p o d e A d ã o ” , s u p o s ta m e n
que se dirige a Nero como “a alma da república
te im p líc ita n o u so r a b ín ic o (v . Davies) ou , p e lo
[que] é 0 teu corpo” [De cl,
m e n o s , in flu e n c ia d a p e la id e ia ju d a ic a d e “ c o r p o
bém se refere a Nero como a cabeça, de quem
d e A d ã o ” (J e w e t t ), v is to q u e n a litera tu ra rab í-
depende a boa saúde do corpo, que é o império {De cl,
n ic a n ã o h á e x e m p lo s d is p o n ív e is d a e x p re s s ã o “ c o rp o d e A d ã o ” , e
é
2 .2 .1 ).
Sêneca tam
Diz ainda; “Somos membros de um
grande corpo”
r e c o n h e c id o q u e “ a id e ia
1 .5 .1 ).
(S ê n e c a ,
Ep mo,
9 5 .5 2 ).
Filo, num
ju d a ic a d o c o r p o d e A d ã o n ã o n o s o fe r e c e u m
contexto diferente, afirma que, quando oferece
sõma
sacrifício pela nação, ele tem o propósito de que
p a r a le lo e x a to c o m o c o n c e ito p a u lin o d e
Christou
[c o r p o d e C r is t o ]” (J e w e tt, p. 2 4 5 ). 4 ).
“cada idade [de pessoas] e todas as partes da na
A id e ia (R aw lin son e C onzelm ann) d e q u e P a u lo
ção sejam fundidos numa única e mesma família,
b a s e o u su a e x p r e s s ã o “ c o r p o d e C r is to ” n a tra
como se fosse um único corpo” {Sp le,
d u ç ã o e u c a rís tic a — p o r o c a s iã o d a eu c a ris tia a
2)
3.131).
Paulo estava familiarizado com o conceito
hebraico de “personalidade corporativa” , com sua
p a r tic ip a ç ã o s a c ra m e n ta l a d q u ir id a n o c o r p o d e C risto to r n a o s p a rtic ip a n te s o c o r p o d e C risto
oscilação entre o indivíduo e a corporação, e sua
“comer
noção sobre a inclusão dos muitos num só: pode
p. 8 7 ). 5)
se considerar que um personagem que sobressai
— d e p a r a c o m a s im p le s o b je ç ã o d e q u e
0
co rp o n ã o
é ser o
c o rp o ” (M
oule ,
É p o u c o p r o v á v e l a p r o p o s ta d e q u e P a u lo , c o m
(e.g.,
b a s e n o c o n c e ito d e Is ra e l c o m o n o iv a d e D eu s
sua pessoa, aqueles nela representados. É essa
A d ão; A b ra ã o;
Noé; Moisés) incorpora, em
(Jr 2 .2 ) e m e d ia n te a t e o lo g ia d a n o v a a lia n ç a (v.
ideia de solidariedade entre o um e os muitos, da
ALIANÇA, NOVA
união entre crentes e Cristo, que Paulo enfatiza em
a l ia n ç a )
, ten h a d e s e n v o lv id o o c o n
c e ito d e “ c o r p o d e C r is to ” c o m o p a r a le lo p a ra o
sua apresentação da igreja como corpo de Cristo.
n o v o Isra el, a ig r e ja (B ass , p. 5 3 0 -1 ), v is to q u e a
A
lin h a m a is ló g ic a d e d e s e n v o lv im e n t o
é
analogia, de um lado, entre todos os homens
e mulheres “em Adão” pelo nascimento natural
d e Isra el
c o m o n o iv a d e Jesu s p a ra a ig r e ja c o m o n o iv a d e
e, de outro, entre todos os crentes “em Cristo” ,
C risto . 6 ) A a fir m a ç ã o d e q u e G ê n e s is 2 .2 4 — “ 0
em razão do novo nascimento (Rm
h o m e m debcará seu p a i e su a m ã e e se u n irá à
ICo
su a m u lh er, e e le s s e rã o u m a só c a r n e ” (c it. e m
logia paulina.
E f 5.31) — “ p a r e c e p r o p o r c io n a r a ló g ic a b íb lic a
1 5 .2 2 ,4 5 ),
3)
5.12-21;
é um elemento importante da teo
A ideia de solidariedade entre Cristo e seu
povo encontra expressão no ensino de Jesus
e o a lic e r c e c o n c e itu a i pa ra o e n te n d im e n to q u e , a o lo n g o d e su as ca rta s, o a p ó s to lo d e m o n s tr a
(Mc
a c e rc a d o c o n c e ito d e ig r e ja c o m o c o r p o d e C ris
na associação que o Senhor ressurreto faz de si
t o ” (E llis , p. 4 2 ) fa z le m b ra r a te n ta tiv a , fe ita p o r
mesmo com seu povo perseguido (At
C. Chavasse,
quanto seja provavelmente impossível ter certeza
d e id e n tific a r a o r ig e m d a e x p re s s ã o
9 .37
par.; cf. Mt
18.5; 2 5 .4 0 )
e está implícita 9 .4 ).
Con
p a u lin a n a u n iã o n u p c ia l e m q u e n o iv o e n o iv a
absoluta sobre a origem exata (ou as origens exa
se to r n a m “ u m a ú n ic a c a r n e ”. M a s p a ra F. F B ru
tas) da expressão pauhna, pode ser que Paulo a
c e “ ta n to a a p lic a ç ã o e u c a rís tic a q u a n to a n u p
tenha cunhado com base na imagem costumeira
c ia l d o p e n s a m e n to d e P a u lo a r e s p e ito d e r iv a m
que a filosofia popular fazia do corpo e no concei
d e se u c o n c e ito d e ig r e ja c o m o c o r p o d e C risto ,
to hebraico de personalidade corporativa, sendo
n ã o o c o n tr á r io ” (B r u c e , 1984, p . 69, n. 141).
as palavras do Jesus ressuscitado ditas a Paulo na
Em vez de ser algo que se possa atribuir a
estrada de Damasco o germe da concepção em
imia só fonte, o mais provável é que o conceito
sua mente ou, então, o elemento catalisador para
de corpo de Cristo seja resultado da interação de
a formação da expressão peculiar a Paulo (v. Kim,
algumas influências.
p.
255
2 5 2 -6 ).
C orpo de C risto : Paulo
3.2 A natureza do conceito. Fica óbvio que
indivíduo crente com o Senhor: não há nenhu
0 conceito de corpo de Cristo não é usado ale-
ma referência aos crentes como uma entidade
goricamente. Em ICoríntios 12, por exemplo, as
corporativa.
diferentes partes do corpo não representam indi
Mais tarde, na mesma carta, Paulo diz à con
víduos ou segmentos diferentes da igreja de Co
gregação local de Corinto: “Vós sois corpo de
rinto. Já foi dito que a expressão “corpo de Cristo”
Cristo e, individualmente, membros desse corpo”
(no sentido de igreja) “é empregada realística,
(ICo 12.27; a expressão grega não traz artigo an
ontológica e, por isso, metafórica, simbólica ou
tes de “corpo” nem antes de “ Cristo” , mas é como
p. 256-7, n. 1),
se ambos os substantivos tivessem o artigo — um
porém o mais costumeiro é descrever seu uso ou
exemplo da regra gramatical conhecida como “câ
analogicamente”
( R ic h a r d s o n ,
como realístico/ontológico ou analógico/metafó
none de Apolônio”). Essa metáfora surge como
rico. 0 entendimento realístico da expressão, de
um sumário e clímax dos quinze versículos pre
fendido por estudiosos como A. Schweitzer, para
cedentes (ICo 12.12-26), em que a natureza do
quem os eleitos entram em união corpórea com
conceito de corpo como símile é claramente in
0 Cristo ressuscitado, e J. A. T. Robinson, para
dicada na frase inicial: “Assim como
quem a igreja está literalmente identificada com o
corpo é uma só unidade e tem muitos membros
[k a t h a p e r ]
o
corpo ressurreto de Cristo, viola os claros indícios
[...] assim também
de uma comparação apresentados em Romanos
ção a Cristo” (ICo 12.12; cf.
12.4,5 e ICoríntios 12.12 (“assim também [...]
um só corpo” [grifo nosso]). Uma vez que Paulo
assim como”). Além disso, ignora a cuidadosa
não diz: “... assim também é a igreja” nem “... o
[h o u tõ s ]
acontece com rela neb:
“ Cristo é como
distinção entre a ressurreição de Cristo no passa
corpo de Cristo” , mas apenas “ [o] Cristo” , alguns
do e a (ainda aguardada) ressurreição dos crentes
intérpretes concebem a ideia de Cristo como o
no futuro. Podemos, portanto, com o apoio da
todo, do qual os vários membros são parte. Con
maioria dos intérpretes protestantes de tempos
tudo, tendo em vista ICoríntios 12.27, 28, parece
recentes, entender o conceito de corpo de modo
melhor considerar que aqui Paulo está fazendo
metafórico, não literal, biológico ou místico.
uso de metonímia ( “corpo de Cristo” no lugar de
3.3 O conceito no uso de Paulo. Podem se
“Cristo”) ou omitindo o passado lógico interme
distinguir duas etapas no uso que Paulo faz do
diário: o próprio Cristo pode ser descrito como
conceito de corpo quando se refere
um corpo com muitos membros, uma vez que a
ã ig r e ja :
em
grande parte como um símile, em ICoríntios e Romanos (a igreja é como um corpo); como uma
igreja é o corpo de Cristo. Dentro desse “ um só corpo” é que os crentes
metáfora, em Colossenses e Efésios (a igreja é o
— aqui o “todos nós” [hêmeisp a n t e s ,
corpo do qual Cristo é a cabeça). “ 0 avanço da
se referir a um grupo maior que o “vós” [hymeis]
linguagem de símile em ICoríntios e Romanos
do versículo 27 e poderia incluir todos os cristãos
para a de envolvimento interpessoal real expres
— batizados num só Espírito (ICo 12.13; presumi
ara]
parece
so no linguajar de Colossenses e Efésios pode ter
velmente, 0 batizante é Cristo: cf. Mt 3.11; Lc 3.16;
sido estimulado pelas considerações, feitas por
V. E s pírito S a n t o )
Paulo, sobre as questões envolvidas na heresia
te, por desígnio divino (ICo 12.18), uma multi
colossense”
plicidade de membros e funções (ICo 12.14-16),
3.3.1
( B ru ce ,
1977, p. 421).
. Dentro desse corpo único exis
As primeiras cartas: ICoríntios e Roma necessária não apenas para o corpo como um
nos. Diz ICoríntios 6.15 que os corpos dos crentes
todo (ICo 12.17,19,20), mas também para os
são “membros de Cristo”. Aqui a palavra “mem
membros (ICo 12.21), os quais estão todos en
bros”
significa “partes do corpo” , deixando
volvidos numa solidariedade de experiência ou
implícito que os crentes são membros do “corpo”
unidade de destino (ICo 12.26). Por conseguinte,
[m e lé ]
de Cristo. No entanto, Paulo passa imediata
não há espaço para ressentimentos resultantes de
mente a falar do próprio corpo como “membros
um senso de inferioridade (IC o 12.15,16) nem
[plural] de Cristo”, que ele não transformará em
para a arrogância que surge do senso de supe
“membros de uma prostituta”. Isso mostra que
rioridade (ICo 12.21). Aliás, os membros deno
aqui sua preocupação está no relacionamento do
minados “ mais fracos” do corpo humano são, na
256
C orpo de C risto : Paulo
verdade, indispensáveis [ICo 12.22). E, mais uma
num sentido “ecumênico”, por amor de quem os
vez por desígnio divino (ICo 12.24), está em ação
apóstolos sofrem. Colossenses 1.18 chama Cristo
no corpo humano certo princípio de compensa
“cabeça do corpo, que é a igreja”.
ção ou complementaridade que, conforme Paulo
A maioria dos estudiosos acredita 1) que Co
deixa implícito, proporciona um padrão para a
lossenses 1.15-20 é um hino pré-pauUno inserido
conduta cristã (ICo 12.23-25).
na linha de raciocínio da carta; 2) que nesse hino
As mesmas locuções correlativas emprega
o “corpo” cujo “cabeça” é Cristo é originariamen
das em ICoríntios 12.12 aparecem em Roma
te o Universo, ou cosmo; 3) que a expressão “a
nos 12.4,5: “Assim como [kathaper] em um corpo
igreja” , em Colossenses 1.18, é uma glosa acres
temos muitos membros [...] assim também [hou
centada por Paulo ou pelo redator final da carta,
tõs] nós, embora muitos, somos um só corpo em
de modo a reinterpretar a referência cosmológi-
Cristo”. Assim como em ICoríntios 12.27 o símile
ca original de acordo com ideias eclesiológicas
do corpo é aplicado à congregação local de cris
(S c h w e it z e r ,
tãos, com uma mudança terminológica de “o cor
questionada (v., e.g.,
po de Cristo” para “um só corpo em Cristo” , a
versículo (Cl 1.18) pode ser entendido simples
última expressão destaca a ideia de que a unidade
mente como está. 0 resultado é que a igreja como
orgânica dos cristãos como um corpo está alicer
corpo de Cristo está agora definitivamente rela
p. 1074-7). Essa teoria, porém, foi O ’ B r ie n ,
1982, p. 48-9): o
çada na incorporação comum em Cristo. Contu
cionada a Cristo, de quem ele é a cabeça. Embora
do, uma vez que é razoável considerar que esses
uns poucos estudiosos (de forma mais notável
dois versículos de Romanos sejam um sumário do
R id d erb o s ,
tratamento mais abrangente de ICoríntios 12.12-
outros textos paulinos “cabeça” e “corpo” não
p. 379-83) insistam em que nesse e em
26, 0 “um só corpo em Cristo” refere-se à mesma
formem uma metáfora, mas devam ser conside
reahdade também como “corpo de Cristo”.
rados imagens independentes, a leitura natural
Em ICoríntios 12 e Romanos 12, o tema da
do presente texto parece mostrar com clareza um
imagem do corpo é o de “um só corpo, muitos
relacionamento orgânico em que Cristo, a cabeça,
membros”, de “ diversidade dentro da unidade”
exerce controle sobre seu corpo, a igreja.
da igreja como corpo de Cristo. Até agora, a figu
Em Colossenses 2.19, a metáfora apresenta o
ra do corpo enfatiza, basicamente, os relaciona
novo elemento de crescimento: Cristo, como ca
mentos e obrigações mútuos que os crentes têm
beça do corpo, é a fonte do crescimento do corpo
uns com os outros e, secundariamente, sua união
[ex hou, “de quem [Cristo]” , em vez de ex hês,
com Cristo, mas a imagem deixa indefinida a exa
“da qual [cabeça]” , provavelmente um exemplo
ta relação que a igreja como corpo de Cristo tem
de construção conforme o sentido). A ideia se
com Cristo: em ICoríntios 12.21, a “cabeça” do
guinte, de 0 corpo inteiro ser entretecido e crescer
corpo é, aparentemente, algum membro presun
junto, é apropriada, tendo em vista o fato de que
çoso da igreja local.
ser cabeça envolve direção e controle. W. A. Gru
3.3.2
As cartas posteriores: Colossenses e Efésios. dem apresenta vários textos de Filo e Plutarco e
Apesar das aparências, em Colossenses 2.17 as pa
também de Platão que dizem explicitamente ser
lavras finais no grego [to de sõma tou Christou] não
a cabeça a parte que governa o corpo.
são uma referência ao “corpo de Cristo”, mas signi
Desse modo, em Colossenses o uso da metá
ficam “a substância [em contraste com a sombra]
fora de corpo difere daquela das cartas anteriores
pertence a Cristo”. Em Colossenses 3.15, os crentes
pelo fato de que se abandona a aplicação explí
de Colossos são descritos como pessoas que foram
cita ao relacionamento mútuo entre os crentes —
chamadas para “um só corpo”, por isso são mem
embora a noção de sua união e funcionamento
bros de um único organismo. Se esse organismo,
harmoniosos estejam implícitos na descrição de
possivelmente por imphcação, for o corpo de Cris
Colossenses 2.19 — e se introduz em seu lugar a
to, então, como nas duas cartas anteriores, temos
direção de Cristo como cabeça e o crescimento da
aqui a mesma ênfase na unidade do corpo de Cris
igreja como um organismo vivo.
to. Em Colossenses 1.24, o corpo de Cristo é defi
Conquanto nas três cartas já examinadas o ter
nitivamente identificado como a igreja, claramente
mo “corpo” seja também usado de outras formas.
257
C orpo de C risto : Paulo
em Efésios é empregado exclusivamente em co
Ef 4.13), ocorre 1) quando o corpo está devida
nexão com a igreja. Aqui a metáfora é desen
mente ligado à cabeça, firmemente presa a ela
volvida de modo ainda mais abrangente que em
(cf. Cl 2.19) e dela recebe sustento (cf. Ef 1.23);
Colossenses ou pelo menos suas implicações são
2) quando os membros do corpo estão devida
formuladas de maneira mais explícita. Em Efé
mente ligados uns aos outros, cada um dando
sios 1.22,23, a igreja é chamada “corpo de Cris
sua contribuição, de acordo com a medida de seu
to”, e Cristo é a “cabeça suprema”
0 texto
dom e função, para a edificação do todo em amor.
introduz um elemento inteiramente novo: Cristo
É menos provável a leitura alternativa de Efésios
enche seu corpo da mesma forma em que preen
4.16 que considera que os particípios (traduzidos
che o Universo. (Interpretamos passivamente o
na ARA por “ajustado e consolidado”) não indicam
substantivo plêrõma, “plenitude” , e o particípio
0 relacionamento mútuo entre os crentes, mas o
( n eb ) .
plêroumenou como voz média, “enchendo”, em
relacionamento entre crentes, de um lado, e Cris
vez de passivo, “ sendo cheio”; cf. Ef 4.10.) Em
to, de outro. Também não é provável que “todas
Efésios 2.16, a expressão “ um só corpo” , no qual
as juntas” , de Efésios 4.16, se refira ao ministério
ocorrem a reconciliação do judeu (v.
de Efésios 4.11, interpretação segundo a qual es
I sra e l )
e do
gentio com Deus e a reconciliação entre o judeu
sas juntas seriam os ligamentos que unem a igre
e o gentio, é uma referência à igreja (o mesmo
ja a Cristo (como defendido por
L
in c o l n ,
ad loc.).
Em Efésios 4.25, o fato de os crentes serem
que o “ novo homem” de Ef 2.15), não ao corpo crucificado de Cristo. A favor dessa conclusão
“ membros uns dos outros” (cf. Rm 12.5), com o
acham-se o emprego de “um só corpo”, em vez
sentido de “membros no ‘um só corpo’, que é o
de “seu corpo” , e a ordem da expressão “ambos
corpo de Cristo”, proporciona a motivação para
em um só corpo” {tous amphoterous en heni sõma-
relações honestas uns com os outros. Em Efésios
ti). Aqui a unidade do corpo, que não diz respei
5.23, a construção no grego descreve Cristo como
to a indivíduos, mas a duas grandes divisões da
“cabeça da igreja” e “ o Salvador do corpo”, não
humanidade (cf. Ef 3.6, que utiliza um adjetivo
exatamente como “a cabeça de seu corpo, a igre
cognato, syssõmos, “corporativo” , “ que partilha
ja” , nem mesmo “cabeça da igreja, seu corpo” , de forma que é possível alegar que, pelo
do mesmo corpo”), apresenta mais uma vez um
(rsv;
novo aspecto da metáfora do corpo, mas o “um
menos aqui, “cabeça” e “corpo” não formam uma
só corpo” não é especificamente chamado corpo
imagem composta. No entanto, o fato de Efésios
n v í)
“ de Cristo”. Semelhantemente, em Efésios 4.4 o
5.30 dizer que os crentes são “membros do seu
“ um só corpo” vivificado por “um só Espírito”
corpo” sugere que, também em Efésios 5.23, a
(que em Efésios 2.18 cria a unidade do “um só
descrição de Cristo como “cabeça da igreja” en
corpo” de crentes judeus e gentios) é distinto do
volve a figura correlata da igreja como seu corpo
“um só Senhor” de Efésios 4.5, sendo uma sim
(cf. Ef 1.22,23; 4.15,16), muito embora não haja
ples descrição da comunidade cristã como unida
essa correspondência no relacionamento entre
de. A unidade do corpo proporciona a motivação
marido e mulher. Desse modo, a metáfora do corpo em Efésios
para manter a unidade do Espírito (Ef 4.3). Em Efésios 4.12-16, texto em que a igreja é
combina as expressões do conceito empregadas
de novo (cf. Ef 1.22,23) designada como corpo de
anteriormente nas outras três cartas e vai além
Cristo (Ef 1.22), a unidade da igreja é outra vez
delas, mostrando que a igreja foi preenchida por
(como já visto em Ef 4.4, Rm 12 e ICo 12) des
Cristo e, na sua unidade, abarca judeus e gentios.
crita em termos de membros individuais, e sua
Outro aspecto do uso da metáfora do corpo em
dependência mútua é considerada necessária
Efésios, 0 qual também é especialmente digno de
para o crescimento do corpo, sobre o qual se afir
nota, é a fusão com outras metáforas da igreja. 0
ma que tanto procede de Cristo (Ef 4.16: ex hou,
edifício do templo cresce (Ef 2.21) ao mesmo tem
“ de quem” , como em Cl 2.19) quanto é para ele
po que 0 corpo é edificado (Ef 4.16; cf. 4.12). Em
(Ef 4.15: eis auton, “ naquele” , “para aquele”).
Efésios 5.22,23, passagem em que o conceito de
Parece indicar que o crescimento do corpo, que
união corpórea propicia o vínculo entre as ideias
tem como objetivo a conformidade a Cristo (cf.
(Gn 2.24; Ef 5.31), a figura da igreja como corpo de
258
C o r p o d e C r is t o : P a u l o
Cristo é suplementada pela figura do corpo. Os as
4) Cristo, na condição de cabeça, está não so
pectos gêmeos do senhorio de Cristo sobre a igreja
mente unido à igreja, seu corpo, sendo fonte de
e de sua união com ela, os quais estão ligados ao
vida para ela, mas também acima dela, como seu
conceito de corpo, são apresentados de modo a
governante absoluto (Cl 1.18; Ef 1.22,23; 4.15;
ilustrar e enfatízar 1) a obrigação que a igreja tem
5.23), preenchendo-a com todos os recursos de
para com Cristo (a esposa [cf. a igreja como cor
seu poder e graça (Ef 1.23).
po] deve estar sujeita ao marido [cf. Cristo como
5) A igreja cresce na medida em que seus
cabeça]); 2) o amor de Cristo pela igreja (o marido
membros se relacionam devidamente com Cristo,
deve amar a esposa como ao próprio corpo, assim
sua cabeça, e uns com os outros como membros
como Cristo [a cabeça] amou a igreja [seu corpo]).
do mesmo corpo (Cl 2.19; Ef 4.16) .
3.3.3
Resumo e conclusão. À guisa de resumo
6) A combinação de metáforas talvez indique
e conclusão, com base no emprego paulino do
não haver uma metáfora única, em si mesma
conceito de corpo de Cristo como designação da
suficiente para transmitir a mensagem completa
igreja, é possível afirmar;
acerca da natureza e da função da igreja. Ape
1) Paulo aplica a figura do corpo de Cristo a
sar disso, praticamente não há dúvida de que,
tmia congregação local (ICo 12.27), a cristãos
mais que qualquer outro, o quadro do corpo de
que não eram necessariamente membros da mes
Cristo representa as reflexões mais maduras de
ma congregação (Rm 12.4,5; cf. 16.3-15) e tam
Paulo sobre o assunto. Conforme já foi demons
bém a um grupo mais amplo que talvez incluísse
trado em outro verbete, é com esse conceito de
todos os crentes em Cristo (ICo 12.12,13). Não
igreja que o conceito paulino de carisma (v.
há dúvida de que Cristo, a cabeça do corpo, é o
do
E s p í r it o )
dons
está em perfeita correspondência, e
Senhor exaltado e celeste (Ef 1.20,21), mas ale
nos termos dele que se deve entender, em grande
gar que, em Colossenses e Efésios, "a imagem do
parte, a doutrina paulina do ministério (v.
‘corpo’ é empregada para denotar uma entidade
esp. p. 15-20).
Fung,
celestial”, visto que o corpo de Cristo, a igreja,
7) A imagem da igreja como corpo de Cristo
também se encontra onde ele está, ou seja, no
olha para o interior (para o relacionamento mú
céu
tuo dos crentes como membros do corpo) e para
( O ’ B r ie n ,
1987, p. 112, 170; mas v.
ig r e j a ) ,
é esquecer a natureza do conceito de corpo de
cima (para o relacionamento entre o corpo e sua
Cristo como metáfora. Quando se afirma que os
cabeça), mas não para fora (para o relacionamen
crentes ressuscitaram e estão assentados nos lu
to entre a igreja e o mundo). A ideia de que Paulo
gares celestiais com Cristo (Cl 3.1; Ef 2.6), isso
considerava a igreja uma extensão da encarnação
não se faz em conjunto com a imagem de corpo.
no mundo é certamente descartada pelo fato de
2) A igreja como corpo de Cristo é uma enti
que a metáfora do corpo mantém uma clara dis
dade orgânica, viva, composta de uma multiplici
tinção entre Cristo como cabeça e a igreja como
dade de membros (i.e., crentes individuais, não
corpo. Esse ponto de vista ignora a diferença fun
congregações individuais), cada um necessário
damental entre Cristo como alguém sem pecado
ao outro e ao crescimento do todo (ICo 10.16,17;
e a igreja, que ainda não é perfeita.
12.12-27; Rm 12.4,5; Cl 1.24; 3.15; Ef 4.16). A
8) 0 corpo de Cristo constitui, em geral, o lo-
imidade, vista de outro ângulo, diz respeito às di
cus do ministério cristão. 0 dom de evangelismo é
versas raças do mundo (Ef 2.16-18).
de fato dirigido às pessoas de fora, e aquele “que
3) Essa dimensão horizontal de unidade ba-
usa de misericórdia” (Rm 12.8) presta um serviço
seia-se na unidade vertical entre a igreja como
que extrapola os limites da comunhão cristã. IVIas
corpo de Cristo e Cristo como cabeça da igreja.
não se pode negar que, quando Paulo fala do mi
Com respeito a seus membros, a igreja une-se
nistério, sua ênfase recai sobre como o ministério
a Cristo mediante o batismo num só Espírito
deve servir a igreja, não sobre como deve servir
(ICo 12.13; Ef 2.18) e mantém essa união me
0 mundo, e que o propósito de se equipar a igre
diante participação na eucaristia (ICo 10.16,17),
ja com o ministério não é para servir o mundo,
de modo que Cristo e o Espírito são a fonte da
mas para edificar a si mesma (Ef 4.12,16). Em
unidade da igreja (cf. Ef 4.4,5).
grande parte, pode se afirmar que, para Paulo, o
259
C r ia ç à o , n o v a c r ia ç ã o : P a u l o
“ m in is t é r io é d o c o r p o , p a r a o c o r p o e p e l o c o r
church...” coming to terms with metaphor. EvQ,
p o ” (E l l is , p . 1 4 ).
V.
Ver também
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n o v a c r ia ç ã o :
P
aulo
“ Nova criação”, kainê k tisis, é uma expressão que
1992, p. 146-
Paulo emprega em ZCoríntios 5.17 e Gálatas 6.15.
Pauline theology:
Está intimamente hgada à expressão “novo homem
jsot ,
E . E.
C r ia ç ã o ,
ministry and society. Grand Rapids: Eerdmans,
[nova humanidade] ”, kainos a n th w p o s , encontrada
1989. •
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Fu n g,
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response to recent studies, 1990. ■
G u n d ry ,
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H.
tj,
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11 {n.s.), p. 3-72,
Sõma in biblical theology.
{s n t s m s ,
V.
29.) ■ H i l l , A. E. The temple of Asclepius:
99, p. 437-9, 1980. ■ Jerem ias,
J.
sociadas a ela ocorrem em vários textos literários e tradições do judaísmo do segundo templo. 1. Necessidade de uma nova criação
Cambridge: Cambridge University Press, 1976. an alternative source for Paul’s body theology,
expressão não é peculiar a Paulo. Ela e ideias as
2. Alcance da nova criação 3. Características da nova criação
jbl,
The eucharis
1. Necessidade de uma nova criação
tic words of Jesus. New York: Charles Scribner’s,
Muitos antigos intérpretes judeus acreditavam
1966. ■
que Deus havia criado o mundo bom com a me
J ew ett,
Leiden: E.
R. Paul’s anthropological terms. 10.) ■ K ãsem ann , E.
diação da Sabedoria (Pv 8.22-31; Eo 24; Sb 7.22—
The theological problem presented by the motif
8.1). Paulo identifica essa Sabedoria com Jesus
of the body of Christ. In :______ . Perspectives on
Cristo (ICo 1.17-25; Cl 1.15-20). Também re
J.
Brill, 1971.
{a g j u ,
Paul. Philadelphia: Fortress, 1971. p. 102-21. •
K im ,
conhece que o pecado provoca danos a essa
S. The origin o f Paul’s gospel. Grand Rapids: Eer
boa criação, ao sujeitar a humanidade à morte
dmans, 1981. ■ Word, 1990.
A. T. Ephesians. Dallas:
(Rm 5.12-14; ICo 15.21,22; cf. 4Ed 7.116-131; 2Ap
42.) ■ M o u le , C. F. D. The origin
Br, 54.13-19) e o mundo natural à deterioração
L in c o ln ,
( wbc,
of christology. Cambridge: Cambridge University
(Rm 8.19-22; cf. 4Ed 7.11-14; 2Ap Br, 56.6-10).
Press, 1978. p. 47-96. ■ O ’ B r ie n , P. T. Colossians,
A desilusão com a situação vigente levou mui
Philemon. Waco: Word, 1982.
44.) ■ ______ .
tos dos antigos intérpretes judeus a esperar uma
The church as a heavenly and eschatological
nova criação numa nova era vindoura, quando
entity. In:
a criação toda seria Ubertada da futilidade e res
C arson,
( w bc,
D. A., org. The church in the
Bible and the world. Grand Rapids: Baker, 1987.
taurada à sua bondade original (e.g., 4Ed 7.75;
p. 88-119. ■ P e r r im a n , A. “His body, which is the
2Ap Br, 73— 74). Para Paulo, essa era viria com a
260
C r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o : P a u l o
pamsia, a apariçao futura de Jesus (Rm 8.18; Ef 1.9,10; Cl .1-4; v.
em que “nem a circuncisão nem a incircuncisão são coisa alguma”. Em Efésios 2.11-22 (e Cl 3.11),
e s c a t o l o g ia ) .
a nova humanidade é composta de judeus e tam 2. Alcance da nova criação
bém de gentios, os de “longe” (cf. Is 57.19). Por
Em 2Coríntíos 5.17, Paulo sugere que essa realida
esse motivo, a igreja é um novo Israel, em que
de futura já está presente. Há três maneiras de ex
judeus e gentios estão unidos em paz.
plicar exatamente como se deve entender a nova
2.3
Cosmo. Muitos intérpretes apocalípticos ju
criação: por meio de indivíduos convertidos, por
deus desenvolveram, em detalhes, a esperança dos
meio da comunidade de fé ou por meio do cosmo
novos céus e da nova terra mencionada por Isaías
como um todo. Cada opção reflete uma opinião
56—66. São variadas as ênfases, inclusive: a res
diferente sobre quais antigos textos e tradições ju
tauração de Israel [Jb, 4.26; lEn, 45.4,5); a trans
daicos em particular eram preeminentes na mente
formação do justo numa ressurreição final (2Ap
de Paulo quando ele se referia à nova criação.
Br, 51.1-16); a libertação do mundo natural {lEn,
2.1 Convertidos. No Rabbah de Gênesis 39.4,
51.4,5); a volta da criação a seu estado original de
0 gentio convertido ao judaísmo é considerado
bondade [2Ap Br, 73— 74). A convicção contínua
nova criação: "Quem quer que leve um pagão a
da perspectiva apocalíptica é que a nova era que
se aproximar de Deus e o converter é como se o
está por vir será decididamente diferente da atual,
tivesse criado”. Na lenda judaica de José e Ase-
que é má, e qualitativamente superior a ela.
nate, um ser celeste diz a Asenate, logo após sua
Paulo reflete esse contexto apocalíptico quan
conversão ao judaísmo; “Serás renovada e feita
do, em 2Coríntios 5.17,18, descreve uma disjun
de novo” [Jo e As, 15.4). É possível que Paulo,
ção radical entre “as coisas velhas” (ía archaia] e
como seus compatriotas, cresse que o convertido
as “novas” [kaina]. Tais palavras indicam muito
a Cristo fosse uma nova criação.
mais que transformação individual. Na verdade,
2.2 Comanidade da fé. Em Isaías 65.17-19, o
Paulo afirma que Deus reconciliou “tudo” (ía
autor estabelece um paralelo entre uma recriação
panta] por meio de Cristo, inclusive, pelo que
cósmica e a recriação de Jerusalém e seus habi
se presume, a totalidade do mundo natural. Se
tantes: “Criarei novos céus e nova terra [...] vou
2Coríntios 5.16,17 proporciona um vislumbre do
criar Jerusalém para regozijo, e seu povo para
início da nova criação, outras passagens ofere
alegria”
Em Isaías 66.22,23, o autor expan
cem um prenúncio de sua conclusão. De acordo
de seu pensamento, quando prediz que, nessa
com Romanos 8.18-25, “a própria criação [será]
nova criação, Israel experimentará um grande
libertada do cativeiro da degeneração” (Rm 8.21),
afluxo de gentios para adorar a Deus.
enquanto, de acordo com Efésios 1.10, “todas as
[ n v í] .
Ambos os elementos — a recriação de uma nova comunidade de crentes e o afluxo de gen
coisas, tanto as do céu como as que estão na ter ra” serão reunidas em Cristo (cf. ICo 15.24-28).
tios — destacam duas das passagens paulinas
Não é possível fazer uma escolha definitiva
que contêm referências à nova criação ou à nova
entre essas opções. Nem é necessário, pois as três
humanidade. Nos dois textos, a nova criação
se esclarecem mutuamente. 0 convertido, como
ou nova humanidade é uma realidade partilha
parte da comunidade de fé, passa a participar do
da por todos. Em Gálatas 6.15,16, Paulo chega
drama cósmico de recriação, ao qual Deus deu
a fazer um paralelo entre a nova criação e uma
início por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo
comunidade específica, “o Israel de Deus”. Em
e concluirá por ocasião da parusia (v.
e s c a t o l o g ia )
.
Efésios 2.14-16, a nova comunidade é constituída de comunidades, em vez de indivíduos: “Ele é a
3. Características da nova criação
nossa paz. De ambos os povos fez um (...) para
Um estudo dos contextos paulinos das expressões
em si mesmo criar dos dois um novo homem [ou
“nova criação” e “ nova humanidade” revela os
humanidade] ”.
valores últimos que caracterizam a comunidade
Concomitantemente, nas duas passagens os
de fé. Ao incorporar esses valores, a comunidade
gentios são a comunidade incluída nos judeus. Em
introduz e já realiza antecipadamente a restaura
Gálatas 6.15, a nova criação é uma comunidade
ção cósmica e final da bondade da criação.
261
t.RiSTO
i: os
3.1
tV A N G E L H O S
Recontíliação.
O
conceito-chave
que
B ib lio g r a fia .
D ah l, N .
A.
W.
Christ, creation, an d the
The
acompanha as referências de Paulo à nova criação
church. In: D avies,
ou nova humanidade é a reconciliação. 0 tema
background o f the New Testament and its escha
dominante de 2Coríntios 5.17-21 é que os crentes,
tology.
que foram reconciliados com Deus, devem, por
1956.
meio do ministério apostólico de proclamação e
Judaism. 4.
testemunho, anunciar a reconciliação do mundo
36-57, 119-31. ■ D e r r e t t ,
D . & D aube , D ., orgs.
C am b rid ge: C am b rid ge U niversity Press,
p.
422-43.
■ D avies,
W.
D.
Paul and rabbinic
ed. Ph ilad elph ia: Fortress,
com Deus, à qual Deus deu imcio por meio de
Q u m ran , Paul, the church, a n d Jesus.
Jesus. A ênfase de Gálatas 6.15, Efésios 2.11-22 e
p.
597-608, 1988. •
Colossenses 3.10,11 é que a nova criação e a nova
G ard en City: D ou b le d a y, [a b ,
trora divididos são de fato reconciliados em Cristo.
doctrine o f
3.2 Rejeição aos padrões mundanos. A re
32A.) ■ L a m p e , ktisis.
V.
F u r n is h ,
humanidade surgem somente quando povos ou
1984.
W. H.
G. s jt,
v.
p.
p.
RevQ,
13,
v.
2 Corinthians.
P.
309-16, 329-33.
T h e N e w Testam ent
17,
p.
P arsons , iVI. T h e n e w creation.
449-62, 1964. ■
ExpT,
v.
99,
p.
3-4,
conciliação só pode acontecer quando os crentes
1987. ■
deixam de viver e de julgar os outros pelos pa
tion. ABO, V.
drões humanos. A presença de uma nova cria
The new creation:
ção significa que novos padrões de unidade e paz
o f creation, innocence, sin a n d redem ption. N e w
substituem os velhos padrões de juízo e divisão.
York: Pageant,
R u s s e ll,
3,
L. p.
M.
1980.
J. D . iVI. N e w creation:
Partnership in n e w crea
161-71, 1984. ■
T aylor, L .
H.
a study o f the P aulin e doctrines
1958.
A divisão racial entre judeu e gentio, em parti
J. R. L eVISON
cular, baseia-se num critério obsoleto: “ De nada vale ser circuncidado ou não. 0 que importa é ser
C r is t o
uma nova criação” (G1 6.15, nv/; cf. Ef 2.11-22).
A palavra grega traduzida por “cristo” (christos)
i : os
E vangelh o s
De modo semelhante, a rivaUdade entre indivídu
aparece 531 vezes no
os não tem lugar na nova criação. A referência de
sendo “ Cristo” um dos termos mais comuns pe
Paulo à “nova criação” em 2Coríntios 5.17 [nvj) é
los quais Jesus é conhecido no
polêmica. Com essa referência, ele confronta os
cristã posterior. Os Evangelhos canônicos apli
nt
(N
estle- A l a n d
nt
,
26. ed.),
e na tradição
padrões falhos de seus adversários em Corinto,
cam o termo a Jesus, mas cada um apresenta
os quais o julgam de conformidade com padrões
uma variação própria e interessante na maneira
mundanos, como capacidade retórica e força fí
em que Jesus é apresentado como “ Cristo”. 0
sica (e.g., 2Co 10.1-11). Paulo alega que na nova
uso de “Cristo” nos Evangelhos reflete a origem
criação ninguém é julgado “ do ponto de vista hu
judaica (v.
mano” , pois até mesmo Cristo não é mais julgado
tianismo e os ajustes da tradição judaica que
por padrões humanos (2Co 5.16,
Os novos
caracterizam a fé cristã primitiva. Para todos
padrões aplicam-se não apenas a grupos étnicos
os Evangehstas, Jesus é “ o Cristo” , o Messias
n v í) .
j u d a ís m o e o
Novo
T
estam en to )
do cris
ou a líderes de igreja, mas também a todo crente,
da esperança de Israel. Mas todos eles também
que participa da nova humanidade. Ele deve pôr
refletem a convicção de que Jesus é também o
de lado a conduta que caracteriza a “velha huma
Filho de Deus, além de transmitirem a ideia de
nidade” , como cobiça, maledicência e crueldade
que ele é divino, ou é pelo menos à semelhança
(Cl 3.5-9; Ef 4.25-30), e se vestir do novo homem,
do divino. Além disso, a crucificação de Jesus é
“ o qual está sendo renovado em conhecimen
apresentada como um aspecto decisivo de sua
to, à imagem do seu Criador” (Cl 3.10,
obra messiânica, embora não pareça haver pre
n v i;
cf.
Gn 1.26). Essa nova humanidade caracteriza-se
cedentes judaicos para considerar que a obra do
por compaixão, paciência, verdade (Cl 3.12-17;
Messias incluía uma morte violenta (v.
Ef 4.23,24,32) e, novamente, pela reconciliação
MORTE
A
dão e
C r is t o ;
C
r is t o ,
.
Para analisar o uso do vocábulo nos Evan
de povos outrora hostis entre si (Cl 3.11). Ver também
de)
gelhos canônicos, temos também de avahar
e s c a t o l o g ia .
D Pc: c e n t r o d a t e o lo g ia d e P a u lo ; m u n do, cosm o
algumas questões afins, especialmente os ante
l o g i a ; NATUREZA NOVA E NATUREZA VELHA; P a U L O , RECON-
cedentes do termo e as expectativas escatológicas
CIUAÇÃO; RESTAURAÇÃO DE ISRAEL.
relacionadas ao judaísmo antigo, bem como o
262
C r ist o i : o s E v a n g e l h o s
uso do termo Cristo no cristianismo primitivo do
de um “messias”, e parece que houve algumas
período anterior aos Evangelhos.
variações na descrição das figuras messiânicas (e.g.,
1. Origem, significado e antecedentes 2. Uso neotestamentário fora dos Evangelhos
N
eusner,
G
reen
& F r e r ic h s ;
De J o n g e ) .
Nos textos de Qumran, por exemplo (150
3. “ Cristo” nos quatro Evangelhos
a.C.-170 d.C.; v.
4. Conclusão
contramos 0 que parece ser a expectativa de duas pessoas
1. Origem, significado e antecedentes
m a n u s c r it o s
“ ungidas”
do
m ar
(e.g.,
M
o rto ) ,
IQS
en
9.10,11;
CD 12.22,23) que no futuro presidiriam sobre os
0 termo “cristo” é a forma aportuguesada da
eleitos: um “messias de Israel” (provavelmente
palavra grega christos, que era na origem um ad
um personagem régio) e um “ messias de Arão”
jetivo com a acepção de “ungido” (com unguen-
(um personagem sacerdotal). A comunidade de
to ou óleo), adjetivo que provém do verbo
c h r iõ
Qumran aparentemente considerava o último per
( “ungir” ou “untar com óleo ou unguento”). Na
sonagem hierarquicamente superior ao “messias”
Antiguidade, antes da influência judaica e cristã,
régio (v. S.
a palavra christos não tinha nenhum significado
Entretanto, nos Salmos de Salomão (final do sé
reUgioso especial (sobre a história do vocábulo,
culo I a.C.) a esperança de restauração de Israel
et al.). Nos antigos círculos judeus
está vinculada ao surgimento, por designação di
e cristãos de fala grega, christos é tradução do
vina, de um descendente de Davi como “o ungido
termo hebraico
(c. 45 vezes na l x x ) , que,
do Senhor” (christos kyriou, SI Sa, 17.32; 18.7), e
de igual modo, significa “ungido” (com óleo),
aqui o messianismo é exclusivamente régio. Em
V. G r u n d m a n n
m ã s h ia h
T
alm o n,
in:
N
eusner,
G
reen
& F r e r ic h s ) .
mas transmite um sentido especial, dada a práti
lEnoqne, temos outra imagem; o personagem
ca israelita de ungir com óleo a pessoa designada
messiânico ( “o eleito”, “ o filho do homem”) é
para um cargo especial, como o rei ou o sacerdo
apresentado em termos elevados na glória ce
te (e.g., ISm 9.15,16; 10.1, Saul; ISm 16.3,12,13,
leste, e parece ser identificado como Enoque (cf.
Davi; Êx 28.41, Arão e filhos; ICr 29.22, Zadoque
Gn 5.21-24). Não está claro se esse é outro tipo
e Salomão). Nesses contextos, a unção indicava
de messianismo ou se o autor fez uso da imagem
que a pessoa estava comissionada e aprovada
régio-messiânica para descrever outro tipo de per
(por Deus e pelo povo) para a função ou tarefa
sonagem subUme associado a esperanças de uma
especial. O termo m ã s h ia h
salvação escatológica.
é
especialmente signifi associadas ao
Não temos como analisar aqui em mais de
rei israelita (e.g., ISm 24.6; 2Sm 1.14; cf. SI 2.2),
talhes as esperanças escatológicas judaicas do
nas quais o termo parece ser um título real ( “o
pen'odo pré-cristão, nem a diversidade de expec
ungido do
tativas messiânicas. Deve se ressaltar, no entanto,
cativo em algumas passagens do
S en h or”
at
etc.), e a conotação religiosa
que, nos textos judaicos, as expectativas e espe
é enfatizada. descobre-se a
culações sobre um ou mais messias estão ligadas
esperança de uma monarquia (davídica) restau
a outras aspirações, sendo por elas obscurecidas.
rada, descrita em dimensões e qualidades impo
Entre essas outras aspirações estão: a libertação
Em textos pós-exflicos do
at,
nentes (e.g., Ag 2.20-23; Zc 9.9,10; 12.7-13.1).
do povo judeu de sob o domínio gentílico, e/ou o
Com base nessa esperança, mas provavelmente
triunfo de determinada visão religiosa da vontade
apenas em algum tempo já no período helenísti-
divina (e.g., Qumran), e/ou um anseio mais gené
co (depois de 331 a.C.), os judeus vieram a usar
rico pelo reino de Deus ou por seu triunfo sobre a
mãshiah (e o equivalente grego christos) como de
iniquidade e a injustiça. Ou seja, a esperança ju
signação de um agente futuro (“ messias”) a ser
daica de um (ou mais) messias nunca foi em si o
enviado por Deus, geralmente para restaurar a
centro da preocupação religiosa, mas funcionava
independência e a justiça de Israel. No entanto,
como parte da tentativa de projetar o triunfo esca
pesquisas recentes mostram que as antigas ex
tológico de Deus e a concretização de aspirações
pectativas escatológicas dos judeus quanto ã li
associadas a esse triunfo. Isso contrasta com a for
bertação e à santificação dos eleitos nem sempre
ma em que a pessoa de Jesus se tornou central e
incluíam a antecipação explícita ou proeminente
vital já bem no início da devoção cristã.
263
C r ist o i : o s E v a n g e l h o s
se estabelece uma relação entre
a 100 d.C., alguns decênios após o início do movi
Jesus e os antecedentes religiosos judaicos, parece
Quando no
mento cristão. Para acompanhar o uso de christos
que 0 tipo de expectativa messiânica mais aludido
nas décadas iniciais, os indícios mais importantes
nt
e pressuposto é aquele que se assemelha ao mes
de que dispomos se encontram nas cartas incon
sianismo régio dos Salmos de Salomão. Isso suge
testavelmente paulinas, em geral datadas de cer
re que a ideia de um agente régio nomeado por
ca de 50 a 60 d.C., que são os escritos cristãos
Deus para livrar e purificar a nação não era estra
mais antigos que ainda existem. Cumpre apenas
nha a alguns círculos judaicos (e.g., At 2.30-36),
rever aqui algumas questões relativas ao uso de
mas não está claro qual tenha sido o grau de acei
christos nos Evangelhos.
tação dessa esperança.
Para começar, podemos comparar o uso que Paulo faz de christos com o emprego que ele
2. Uso neotestamentário fora dos
mesmo faz de outros títulos cristológicos impor
Evangelhos
tantes nesses escritos. As ocorrências de christos
Merece destaque a distribuição do termo christos
nas sete cartas inegavelmente paulinas consti
no
Das 531 ocorrências do termo, 383 estão
tuem 51% do total de ocorrências do termo no
no corpus paulino, e, dessas, 270 ocorrem nas
NT (72% acham-se nos escritos neotestamentários
sete cartas cuja autoria é praticamente inquestio
atribuídos a Paulo). Ficam em evidência dois da
nt
.
nável: Romanos, ICoríntios, 2Coríntios, Gálatas,
dos pertinentes a christos: dentre os mais antigos
Filipenses, ITessalonicenses e Filemom. Também
títulos cristãos para Jesus, christos é, de longe, o
em outros escritos do
preferido de Paulo; tendo por base a antiguidade
nt
o
emprego de christos
é bem fiequente tendo em vista o tamanho de
das cartas de Paulo, podemos concluir que, já nos
cada texto: IPedro (22); IJoão (8); Judas (6). Em
primeiros anos do movimento cristão, christos
alguns textos mais longos, porém, o termo não
tornou-se título de destaque para designar Jesus.
é tão freqüente: Hebreus (12); Apocalipse (7).
Entretanto, um exame cuidadoso do emprego
Levando-se em conta o tamanho, os Evangelhos
de christos nas cartas de Paulo mostra que ele uti
(esp. os Sinóticos) não usam christos com muita
liza 0 termo quase como nome ou parte do nome
frequência: Mateus (16); Marcos (7); Lucas (12,
de Jesus, não caracteristicamente como título. Por
mais 25 ocorrências em Atos); João (19).
exemplo, em Paulo christos aparece nas seguintes
Esse panorama da distribuição de christos no
fórmulas: “ Cristo Jesus” , “Jesus Cristo”, “ Senhor
revela três coisas. Primeira: a variação na fre
Jesus Cristo” e às vezes simplesmente “ Cristo”.
quência do termo pode revelar diferentes graus
Isso tem levado alguns a indagar se Paulo de fato
nt
de importância que os vários autores do
atri
associava o termo christos a uma compreensão de
buem à palavra. Mas pode também ser explicada
Jesus como o “Messias” ou quão bem o fazia, e
nt
pelas diferenças de tema e de propósito entre os
também até que ponto christos representava para
vários autores. Segunda: a grande concentração
Paulo, assim como os nomes próprios, uma sim
de ocorrências de christos nas cartas de Paulo (os
ples maneira de ele se referir a Jesus. Na resposta
mais antigos dos escritos do
a essa pergunta, alguns fatores são importantes.
nt)
sugere que bem
cedo o termo se tornou parte importante do vo
Primeiro: fica claro que, para os gentios, não
cabulário da fé cristã. Terceira: na totalidade do
familiarizados com as expectativas messiânicas
a ocorrência notadamente pequena de christos
dos judeus, o significado religioso do termo chris
NT,
nos Evangelhos e a variação no número de ocor
tos não era imediatamente percebido. Por exem
rência da palavra entre eles tornam pertinente
plo, os documentos existentes mostram que não
indagar o significado e o papel do termo nesses
raro os pagãos confundiam a palavra christos com
escritos. Contudo, antes da análise detalhada do
o substantivo grego chrestos ( “útil”), usado espe
uso de christos nos Evangelhos, será proveitoso
cialmente para designar os escravos (cf.
comentar um pouco mais o uso que os cristãos
Cláudio, 25.4).
fizeram dessa palavra antes dos Evangelhos. 2.1
S u e t ô n io ,
Segundo: é provável, no entanto, que Paulo,
Uso anterior aos Evangelhos. Costuma se como judeu famiharizado com a tradição de seus
atribuir aos Evangelhos a data aproximada de 65
264
ancestrais (G1 1.13,14), conhecesse a relevância
C r ist o i : o s E v a n g e l h o s
de christos em associação com as expectativas
usar 0 termo christos quase como um nome para
messiânicas dos judeus. Com toda a probabilida
Jesus sugere que, entre seus convertidos gentios,
de, o termo christos começou a ser usado entre
a associação com as expectativas messiânicas dos
cristãos judeus para se referirem a Jesus antes
judeus não recebia destaque. Mas, como vemos
mesmo da missão apostólica de Paulo. Christos
demonstrado nos Evangelhos, a declaração de
deve ter sido um termo que cristãos judeus to
que Jesus é o Messias continuou fazendo parte
maram de círculos judaicos de faia grega, fun
da fé cristã primitiva bem depois que o movimen
cionando como tradução da palavra mãshiah; de
to se expandiu além de sua etapa inicial como
outra forma, é impossível explicar o surgimento
seita do judaísmo antigo. Como mostraremos nas
de christos como título de Jesus. A maneira fre
seções seguintes, embora os primeiros cristãos
quente e desenvolta com que Paulo utiliza o ter
tenham alterado a conotação do termo christos
mo reflete um emprego bem consolidado entre os
à luz da morte de Jesus e da experiência deles
cristãos, sendo forte indício de que christos fazia
com a glória de sua ressurreição, o termo man
parte do vocabulário religioso dos grupos cristãos
teve algo do sentido de designar Jesus como o
dos primeiros anos (30-50 d.C.).
“Messias” , o agente de salvação divinamente
Terceiro: embora nas cartas de Paulo a palavra
nomeado.
christos tenha características sintáticas mais pró
2.2
Uso de Christos em outros escritos neotes
prias de nome do que de título (como “ o Cristo”)
tamentários. Nas muitas ocorrências de christos
para Jesus, parece que em Paulo o termo conser
no corpus paulino cuja autoria é questionada por
va algo de sua conotação messiânica. Isso aconte
estudiosos ou sobre a qual repousa um grande
ce não apenas em passagens como Romanos 9.5,
número de dúvidas — às vezes denominadas car
com sua referência explícita a Jesus como "o Crís
tas deuteropaulinas: Efésios, Colossenses, 2Tes-
to” (ho christos], mas também no padrão mais
salonicenses, 1 e 2Timóteo e Tito — , o emprego
extenso do uso paulino. Assim como demons
é basicamente idêntico ao encontrado nas cartas
tra W. Kramer, Paulo costuma empregar chris
incontestavelmente paulinas. No entanto, o uso
tos (seja isoladamente, seja em associação com
do termo em escritos neotestamentários fora dos
“Jesus”) em passagens que se referem à morte
Evangelhos e do corpus pauUno é relevante para
e à ressurreição de Jesus (e.g., ICo 15; Rm 3.23;
entendermos os antecedentes do uso de christos
5.6,7; G1 3.13), e é provável que essas passagens
nos Evangelhos. Por exemplo, IPedro utiliza o
reflitam duas coisas: ele não só estava famiUari-
termo 22 vezes, quase sempre associado ao tema
zado com a convicção cristã primitiva de que a
do sofrimento — de Cristo e/ou dos cristãos: os
crucificação de Jesus fazia parte de sua missão
profetas do
como “IVIessias” , mas também procurava enfati
Cristo (IPe 1.11); o sofrimento redentor de Cris
zar essa mesma convicção. (A ideia de F.
at
predisseram os sofrimentos de
,
to é mencionado algumas vezes (IPe 2.21; 3.18;
p. 161-2, de que a declaração cristã mais antiga
4.1; 5.1); os cristãos partilham dos sofrimentos
de Jesus como Messias estava associada exclusi
de Cristo. A relação entre o termo christos e o
H
ahn
vamente à esperança de seu retorno escatológico
sofrimento talvez reflita a ênfase cristã primitiva
não faz justiça a essa íntima associação entre o
mencionada anteriormente — a crucificação de
termo christos e a ideia de morte e ressurreição de
Jesus foi um acontecimento messiânico. Também
Jesus em Paulo, que é o dado mais antigo de que
mostra que a ideia de Jesus como Messias sofre
dispomos sobre seu uso pelos cristãos.)
dor foi usada para inspirar os cristãos a suportar
Assim, embora as cartas de Paulo não pareçam
os sofrimentos em nome dele.
enfatizar nem exphcitar a conotação messiânica
Em Apocalipse, nas ocorrências mais formula
do termo “ Cristo”, elas apresentam indícios de
res de christos (“Jesus Cristo”, e.g., Ap 1.1,2,5),
que o termo teve origem nos círculos de cristãos
existem passagens interessantes em que o termo
judeus em que essa conotação era enfatizada,
é usado como título: “messias” (e.g., Ap 11.15,
além de mostrarem que a proclamação de Jesus
“ de nosso Senhor e de seu Cristo” ; Ap 12.10, “a
como Messias fazia parte da fé cristã primitiva.
autoridade do seu Cristo”). Essas passagens des
Alguns estudiosos entendem que o fato de Paulo
crevem o triunfo escatológico de Deus com uma
265
C r ist o i ; o s E v a n g e l h o s
linguagem tomada de empréstimo da expectativa
Nas palavras iniciais de Marcos 1.1, percebe-
messiânica dos judeus e, assim, confirmam a per
se que 0 autor conhece e aceita a aphcação do
cepção ininterrupta nos círculos cristãos do sé
termo a Jesus ( “evangelho de Jesus Cristo”), e
culo I segundo a qual “Cristo” é uma designação
em vários outros momentos ele utihza o termo
messiânica.
como forma de se referir a Jesus. Por exemplo,
De modo semelhante, em IJoão 2.22 e 5.1, a
em Marcos 9.41 há uma promessa de recompensa
confissão de que Jesus é “o Cristo” reflete a afirma
a quem der um copo de água aos discípulos de
ção messiânica. IVIas o mesmo documento mostra
Jesus, “porque sois de Cristo” (cf. Mc 10.42).
0 surgimento de divergências quanto a doutrinas
Em Marcos 13.21,22, a advertência quanto
caracteristicamente cristãs sobre a reahdade ou a
aos tempos vindouros de crise, quando alguns
importância da natureza humana de Jesus (e.g.,
dirão “Aqui está o Cristo!” , e a admoestação a
IJo 4.2,
“Jesus Cristo veio em carne”), e o
respeito dos “falsos cristos” mostram implicita
autor cunha o termo “anticristo” para designar
mente que para Marcos o título só pode ser apli
aqueles cuja cristologia considera imprópria (IJo
cado a Jesus, cuja vinda em glória não exigirá
2.22). Em IJoão, vemos outra vez que christos tan
nenhum anúncio desse tipo (Mc 13.26,27). Nessa
to pode servir de título de Jesus, do ponto de vista
passagem, christos é usado como título, e o tex
messiânico, como de nome para ele.
to insiste no fato de que o único cumprimento
ara
:
Esse breve apanhado do uso da palavra chris tos nos escritos do
genuíno das esperanças messiânicas — do qual
fora dos Evangelhos nos
falsamente se apropriam os enganadores — será
permite uma compreensão geral dos antecedentes
a aparição de Jesus como “ Filho do homem [...]
cristãos no século i de um termo que se pressupõe
nas nuvens, com grande poder e glória”. A ad
conhecido dos leitores dos Evangelhos. Com isso
vertência acerca dos enganadores provavelmente
em mente, estamos agora em condições de anah-
reflete um conflito entre afirmações cristãs mais
nt
sar com mais detalhes o emprego que cada Evan
antigas a respeito de Jesus como Messias e ou
gelista faz do termo ao contar a história de Jesus.
tras esperanças messiânicas que circulavam em grupos judeus. (Cf. em Mc 13.6 uma referência
3. “Cristo” nos quatro Evangellios
a enganadores que afirmam acerca de si mes
Como já dissemos, cada EvangeUsta aplica chris
mos: “Sou eu” ) A variação encontrada em alguns
tos a Jesus, porém o faz com ênfases e nuanças
manuscritos: “Eu sou o Cristo” talvez seja obra
particulares. Por isso, analisaremos caso por
de algum escriba que procurou harmonizar a
caso, e, seguindo a opinião geralmente aceita en
passagem com Mateus 24.5. Há dúvida entre os
tre os estudiosos, examinaremos os Evangehstas
estudiosos se “ Sou eu” significa uma afirmação
por ordem cronológica.
messiânica ou uma alegação de divindade, numa
A investigação acadêmica da cristologia do
alusão à autoidentificação de Deus (v., abaixo, a
nt
tem dedicado bastante esforço hoje em dia à anáhse dos títulos cristológicos nos Evangelhos e nos demais escritos do
Em outras passagens, porém, christos é usado
Apesar disso,
com certa reserva ou sutileza, o que tem gerado
continuam existindo discordâncias nos debates
debate entre os estudiosos em torno do objetivo
contemporâneos, o que faz com que uma análi
de Marcos. Talvez a mais conhecida seja Mar
se como essa se torne uma empreitada difícil. Até
cos 8.29,30, em que Pedro saúda Jesus como “o
certo ponto, as conclusões sobre um título especí
Cristo” [ho christos] e, com os demais discípu
fico, como christos, estão associadas a conclusões
los, recebe de Jesus ordens imediatas para “ que
nt
(e.g.,
análise de Mc 14.61,62.)
H
ah n).
sobre o uso que os Evangelistas fazem dos demais
a ninguém contassem que ele era o Cristo” (cf.
títulos, e isso se refletirá no debate a seguir.
Mt 16.16-20; Lc 9.20,21). Acreditando que Jesus
3.1
Marcos. Marcos, o mais antigo dos Evan não via a si mesmo como o Messias, alguns es
gelhos canônicos, mostra a complexidade de aph-
tudiosos são de opinião que a resposta que Jesus
car 0 termo christos a Jesus (v.
E vang elh o
de fato deu à aclamação de Pedro foi repreendê-
De diferentes maneiras, essa complexidade
-lo: “Para trás de mim, Satanás!” (Mc 8.33). Isso
de) .
M
arcos,
caracteriza os quatro Evangelhos.
indicaria que Jesus, portanto, rejeitou o título
266
C risto i : o s E v a n g e l h o s
messiânico. Segundo essa interpretação. Marcos
que ele tinha de sua tarefa, sendo ainda passível
remodelou o ocorrido, introduzindo a ordem de
do que ele considerava grave erro de julgamento.
sigilo (Mc 8.30) e apresentando a repreensão
Assim, é plausível que a ordem para manter se
como se ela se aplicasse ao fato de Pedro rejei
gredo em Marcos 8.30 seja tão autêntica quanto
tar os sofrimentos de Jesus (Mc 8.31-33). Duas
a reprimenda de Jesus a Pedro em Marcos 8.33.
questões, portanto, estão em jogo: a atitude de
Por isso, o debate sobre o que Jesus pode ou
Jesus diante do título “messias” e como Marcos
não ter sentido acerca do termo “messias” é mais
nessa passagem trata o termo “messias/chrístos”.
complicado do que alguns estudiosos reconhe
A última destas é a nossa principal preocupação,
cem. Determinar o objetivo de Marcos é compa
mas também cabem alguns comentários sobre a
rativamente mais fácil, embora a tarefa não esteja
autenticidade do cenário descrito por Marcos.
livre de problemas. Em vista do uso que Marcos
É provavelmente malconcebida a tentativa de
faz de christos nas passagens examinadas, temos
reconstruir, por especulação, o diálogo original
de concluir que, para ele, o fato de Pedro chamar
entre Pedro e Jesus, como vimos acima. Quase
Jesus de “ Cristo” deve ser interpretado positiva
não há fundamento para considerar uma inven
mente pelo menos em algum sentido. A ordem
ção de Marcos a ordem de sigilo expedida por
de Jesus em Marcos 8.30 é que não se diga nada
Jesus em Marcos 8.30 e ao mesmo tempo aceitar
a seu respeito a outras pessoas; não é uma rejei
como autêntica a repreensão de Jesus a Pedro em
ção do termo christos. Contudo, Marcos 8.30-33
Marcos 8.33. De um lado, ambos os elementos
revela uma reserva em relação ao termo, e o
funcionam muito bem na cena como intervenção
motivo parece ser que nenhuma das definições
editorial, e seria possível explicá-los com base
pré-cristãs de christos preparou as pessoas para
nos propósitos editoriais de Marcos (Lc 9.20-22
entender a missão de Jesus, como revela a rea
não inclui a reprimenda de Jesus a Pedro). De
ção de Pedro diante da predição dos sofrimentos
outro lado, ambas as afirmações podem igual
de Jesus. Dessa maneira. Marcos 8.29-33 insinua
mente ser atribuídas a Jesus. Se Jesus de fato
que o termo christos alcança seu significado mais
predisse que seria rejeitado e morto (o que não
adequado como título de Jesus quando também
é muito improvável, tendo em vista a antiga tra
levamos em conta seus sofrimentos divinamente
dição judaica da rejeição aos profetas por Israel
estabelecidos (a exigência divina se percebe em
0 martírio de João Batista, com quem Jesus an
Mc 8.31: “ Era necessário que [...] sofresse”). Ou
dou), a reação negativa de Pedro é compreensí
seja, o texto sugere que Jesus é o Cristo, mas não
vel, bem como a repreensão de Jesus a Pedro em
pode ser assim identificado sem que se reconheça
e
Marcos 8.33. E a ideia de que Jesus não via a si
sua crucificação como algo fundamental em sua
mesmo de uma perspectiva messiânica se funda
tarefa messiânica.
menta, até certo ponto, na pressuposição de que
0 fato de o título “Cristo” aparecer em Marcos
0 termo “ messias” comportava apenas um senti
8.27-30 também deve ser considerado à luz da
do, vinculado a um personagem davídico, régio,
narrativa desse Evangelho como um todo. Antes
com intenções militares. Há um amplo reconhe
desse episódio, em várias passagens de Marcos
cimento de que não se pode comparar Jesus com
há indagações a respeito de Jesus (Mc 1.27; 2.7;
esse personagem e de que ele não via a si mesmo
4.41; 6.2,3) ou declarações sobre ele (Mc 1.24;
dessa maneira. Mas a diversidade evidente nas
3.22; 5.7; 6.14-16). Em Marcos 8.27-30, porém, é
antigas especulações messiânicas judaicas (e.g.,
Jesus quem indaga sobre a própria identidade e
SMrrH; Neusner; Green & Frerichs; De Jonge) leva a
exige uma resposta dos Doze, o que tem o efeito
crer que Jesus pode ter rejeitado essa ou aquela
de tornar explícita a pergunta já latente acerca da
forma de especulação messiânica, sem deixar de
verdadeira importância de Jesus. Marcos 8.27-30,
entender sua missão à luz de uma maneira pró
portanto, é um ponto decisivo nesse Evangelho. A
pria de ver o ofício messiânico. Por esse motivo,
pergunta de Jesus deve ser analisada levando em
Jesus pode ter ordenado a seus discípulos silêncio
conta as narrativas precedentes de seu ministé
sobre o uso do título Messias/Cristo porque o tí
rio. Essa mesma pergunta condensa tudo o que se
tulo em si não comunicava claramente a visão
passou antes disso em Marcos. Estruturalmente,
267
C risto i : os E v a n g e l h o s
a pergunta antevê também a indagação do sacer
E a intenção de Marcos 12.35-37 é mostrar que o
dote, em Marcos 14.61, que é o clímax do julga
termo “Filho de Davi” é insuficiente para exphcar
mento de Jesus e de sua rejeição pelos judeus (v.
quem é o Cristo, pois Davi o chama “Senhor” (gr.,
Nesse episódio, pergunta-se
kyrios; hebr., adõnãy], dando a entender que o
Je su s,
ju lg a m e n to de) .
a Jesus sobre sua identidade, e ele ratifica a acla
Cristo é muito superior a Davi. Ou seja, Davi não
mação messiânica de Pedro.
é o modelo ideal para a obra ou a pessoa de Cris
Em Marcos 14.61,62, o sumo sacerdote inter
to. Aqui também, christos é implicitamente aceito
roga Jesus: “1\i és o Cristo, o Filho do Deus ben
como título de Jesus, mas uma das concepções
dito?”. Jesus responde afirmativamente — “Eu
populares do termo (atribuída aos “escribas”,
sou” [egõ eimi) — e prediz que isso será confir
Mc 12.35) é tida como insuficiente. Em vista das
mado quando estiver “à direita” de Deus. A forma
passagens em que Deus identifica Jesus como o
marcana da resposta de Jesus é mais enfática que
Filho divino (Mc 1.11; 9.7) e de outros sinais em
nos textos paralelos dos demais Evangelhos (cf.
Marcos sobre a importância de Jesus ser seme
Mt 26.64; Lc 22.70; as variantes em algumas das
lhante a Deus (e.g., acalmar a tempestade em
cópias de Marcos são provavelmente harmoniza
Mc 4.35-41; v. esp. a pergunta cheia de espanto
ções que escribas fizeram levando em conta esses
dos discípulos em Mc 4.41), espera-se que o leitor
textos paralelos). Também é possível que com o
veja que Jesus, “o Cristo”, está bem acima das
“eu sou” , possível alusão à linguagem autodes-
concepções costumeiramente aceitas do Messias.
critiva de Deus no
(e.g.. Is 43.10,13), Marcos
A última ocorrência de christos nesse Evan
tivesse a intenção de mostrar a transcendência do
gelho acha-se em Marcos 15.32, texto em que
at
significado de Jesus.
observadores da crucificação de Jesus se dirigem
Isso se torna ainda mais provável aqui pela
zombeteiramente a ele como “ o Cristo, o rei de
alusão à glorificação do “filho de homem” de
Israel”. Eis um dos muitos exemplos de ironia em
Daniel 7.13,14. Na resposta inequívoca à per
Marcos (freqüente no relato da Paixão) e uma das
gunta do sacerdote, Jesus assevera que, embora
várias passagens em que se pergunta se Jesus é
não pareça se enquadrar em algumas expectati
0 rei de Israel ou dos judeus na narrativa do jul
vas messiânicas (como o modelo régio-davídico
gamento e da crucificação (cf. Mc 15.2,9,12,18-
mencionado em Mc 12.35), ele é legitimamente
20,26;
christos, e sua condição será confirmada em di
Marcos, especificamente na zombaria que se faz
V.
Ju e l) .
A ironia presente no texto de
mensões gloriosas. Contrariando as ideias de al
do “ Cristo” em 15.32, é que, ao contrário do que
guns estudiosos mais antigos, a expressão “Filho
pensam os zombadores, Jesus é “o Cristo, o rei
do homem” (Mc 14.62) não é título de nenhum
de Israel”, embora a derradeira confirmação disso
personagem conhecido da especulação escatoló
seja sua crucificação e aparente fracasso. A forma
gica judaica (v., eg.,
pagã da zombaria, vista no título que é afixado à
C asey) ,
e Moisés não teve o
propósito de usá-la como título preferido em lu
cruz (“o
gar de christos (v, esp.
qual foi executado, mas também é uma verdade
K
in g s b u r y ,
1983). Para Mar
cos, Jesus é o Cristo (Messias), o
F il h o
de
D
e us,
e a alusão à cena de triunfo divino que Daniel
REI DOS
jud eus”
),
apresenta o crime pelo
irônica; Jesus era, de fato, o “rei” legítimo, rejei tado pelos líderes pagãos e judeus.
descreve deixa claro que “ o Filho do homem”,
É interessante ressaltar a distribuição do uso
rejeitado pelos líderes judeus, será confirmado
de christos em Marcos. As ocorrências de chris
como christos e Filho divino na glória celestial (v.
tos concentram-se na segunda metade do Uvro,
F il h o
onde a sombra da morte iminente de Jesus paira
do hom em )
.
Outra passagem bastante discutida é Mar
sobre a narrativa. Depois das palavras introdutó
cos 12.35-37 (cf. Mt 22.41-45; Lc 20.41-44). A per
rias de Marcos 1.1, christos não volta a ocorrer
gunta de Jesus sobre como é possível dizer que o
no Evangelho, a não ser em Marcos 8.29,30, em
Cristo é 0 Filho de Davi não é teórica. Espera-se
um conjunto de materiais que reúne a pergunta
que 0 leitor entenda que a pergunta, ainda que
explícita de Jesus sobre sua importância e a pri
de maneira um tanto indireta, tem relação com
meira predição de seus sofrimentos (as variantes
a verdadeira identidade e importância de Jesus.
de Mc 1.34 são provavelmente harmonizações
268
C risto i : o s E v a n g e l h o s
que escribas fizeram com Lc 4.41). Depois disso,
espelhou a associação que se fazia entre christos
à exceção de Marcos 9.41, christos aparece no ma
e a morte de Jesus. Mas, ao contrário dos outros
terial que descreve a confiontação final de Jesus
Evangehstas, o uso de christos em Marcos é qua
com autoridades judaicas em Jerusalém, que cul
se totalmente confinado ao material da Paixão,
mina em sua execução. A verdadeira estatura de
tornando mais enfática a associação do termo à
“o Cristo” é aquela incômoda pergunta que Jesus
morte de Jesus.
faz na lista de perguntas analisadas em Marcos
3.2
11.27— 12.40. 0 discurso de Jesus sobre o futu
Mateus. Como 90% de Marcos aparece
em Mateus, não é de surpreender que um nú
ro (Mc 13.5-37) inclui a destacada referência a
mero considerável de usos marcanos de christos
“falsos cristos” , que devem ser distinguidos do
reapareça em Mateus. Mas, no uso do termo por
verdadeiro Cristo. No julgamento diante dos ju
Mateus, há também peculiaridades dignas de
deus, a pergunta sobre Jesus ser o Cristo é o ápice
nota, dentre as quais o padrão de uso (v.
do interrogatório. E, no relato da crucificação, a
Evan g elh o
de)
M
ateus,
.
aclamação zombeteira de Jesus como “o Cristo” é
Para começar, há várias ocorrências de christos
a infâmia final e irônica que seus atormentadores
no início do livro. As palavras iniciais de Mateus
lançam sobre ele. Marcos emprega christos espar-
(Mt 1.1) referem-se a “Jesus Cristo, filho de Davi,
samente, mas cada ocorrência é significativa.
filho de Abraão”. Aí está um exemplo do tom ju
Desse modo, embora Marcos empregue outros
daico próprio do relato de Mateus e prefigura a
títulos cristológicos em referência a Jesus (de es
maneira em que o autor associará Jesus à história
pecial importância “Filho de Deus” e variantes em
e às esperanças reUgiosas de Israel no material
Mc 1.1,11,24,34; 3.11,12; 5.7; 9.7; 15.39; v., e.g.,
que se segue. A natureza judaica da apresentação
1983), christos também é um termo
de Jesus também fica evidente em Mateus 1.16,
importante na aclamação que Marcos faz de Je
que encerra a genealogia de Jesus referindo-se a
sus. A concentração do uso de christos nos relatos
ele simplesmente como “o Cristo”
do conflito final de Jesus com o sistema religioso
entre Jesus e Israel é ilustrada em Mateus 1.17,
K in g s b u r y ,
(a r a ) .
A relação
judaico, quando foi rejeitado por eles e executa
que apresenta a história de Israel em três etapas,
do nas mãos do governante romano, reflete duas
também culminando com “ o Cristo”.
coisas: a íntima relação existente, na proclamação
A ênfase dada por Mateus às conotações ré
primitiva e em Marcos, entre o termo christos e a
gias do termo “ Cristo” é já insinuada em Mateus
morte de Jesus; o reconhecimento de que a identi
2.1-4, quando os magos indagam sobre o nasci
ficação cristã de Jesus como christos envolve uma
mento do “ rei dos judeus” , e Herodes responde,
afirmação em que se faz especial referência a espe
inquirindo acerca de profecias do
ranças e crenças religiosas judaicas.
local de nascimento do “ Cristo”.
at
acerca do
Marcos insiste que christos só recebe seu sig
Mas, depois desse grupo de ocorrências, chris
nificado verdadeiro como título de Jesus levando
tos só volta a aparecer em Mateus 11.2, quando
em conta o próprio Jesus, seu sofrimento divi
João Batista, que estava preso, ouve “falar das
namente determinado e seu significado transcen
obras de Cristo” , dos feitos de Jesus (cf. Lc 7.18).
dente como “Filho do homem”. Marcos mostra
A frase pode estar se referindo à totahdade do
que a identificação de Jesus como christos impli
relato anterior sobre o ministério de Jesus (Mt
ca uma reivindicação que desafiava a liderança
1— 10). Se for assim, ela confere à narrativa, como
religiosa judaica pela forma com que ela lidara
um todo, um tom exphcitamente messiânico.
com seu ministério e por sua constante reação ne
Em Mateus, a confirmação do título christos
gativa diante da proclamação da igreja primitiva
também fica evidente na ocorrência seguinte
acerca de Jesus.
(Mt 16.16), passagem em que Pedro aclama Jesus
A concentração de usos de christos nos ca
como “o Cristo, o Filho do Deus vivo”. 0 texto
pítulos finais do relato sobre Jesus também é
é um paralelo de Marcos 8.29. A segunda parte
observada em Mateus e Lucas, como veremos.
da aclamação expande a forma mais simplificada
Assim, nesse aspecto. Marcos influenciou os ou
de Marcos e faz com que cada título interprete
tros Evangehstas e/ou, com os demais Sinóticos,
o outro. Ou seja, “ Filho do Deus vivo” ressalta
269
C risto i : os Evangelhos
a posição exaltada de Jesus, e "o Cristo” enfa
paralelos marcanos omitem o termo. Além dis
tiza que o Filho divino concretiza todas as es
so, em Mateus ocorre uma associação mais clara
peranças messiânicas. O texto de Mateus 16.20
entre christos e Israel, aspecto particularmente
preserva a ordem de Jesus em Marcos 8.30 para
observável no relato da natividade. Entretanto,
que guardassem segredo quanto ao título chris
como em Marcos, Mateus apresenta uma concen
tos, mas essa ordem é mais expUcita em Mateus
tração de ocorrências no relato sobre o conflito
que em Marcos. Assim como em Marcos, existe
final entre Jesus e os líderes judeus e sobre sua
uma concentração de ocorrências de christos nos
execução. E, também como em Marcos, para Ma
capítulos que tratam dos dias finais de Jesus em
teus é Jesus, não outros, quem define o termo
Jerusalém. Mateus 22.41-45 apresenta a pergun
“Cristo/Messias”. As expectativas judaicas sobre
ta sobre o Cristo como Filho de Davi (discutida
0 Messias não são suficientes para avaliar as rei
abaixo) e, assim como Marcos, faz dessa pergun
vindicações messiânicas de Jesus. Assim, Jesus,
ta o ápice de uma série de debates entre Jesus e
o Cristo, é 0 “ Filho do Deus vivo” , e sua rejeição
seus críticos. Mas, em uma declaração exclusiva
e crucificação constituem parte importante de sua
de Mateus (Mt 23.10), os discípulos ouvem di
missão messiânica, em que as duas reivindica
zer que seu verdadeiro "Guia” [kathêgêtês] é “ o
ções constituem modificações significativas na
Cristo”. Isso reflete a ênfase de Mateus no fato de
especulação messiânica pré-cristã.
que “ o Cristo” é o mestre oficial da comunidade, tema muitíssimo evidente nos grandes blocos de
3.3
Lucas-Atos. Ao considerar o uso de chris
tos em Lucas, temos de levar em conta o segun
material de ensino nesse Evangelho (Mt 5— 7; 10;
do volume da obra do autor. Atos dos Apóstolos,
13; 18; 23—25).
que examinaremos rapidamente num primeiro
As demais ocorrências de Mateus aparecem em passagens com paralelos em Marcos. Mas em Mateus a forma das passagens geralmente deixa
momento (v. g elh o d e ;
A
F it z m e y e r ,
tos dos
3.3.1
A
p. 197-200; v.
pó sto lo s)
L
ucas,
E van
.
Uso em Atos. Pouco mais da metade (13)
mais explícito o tema da condição messiânica
das 25 ocorrências de christos em Atos encon
de Jesus. Em Mateus 24.5, a falsa reivindicação
tram-se em referências formulares a Jesus: “Jesus
dos enganadores, que conflita com a condição
Cristo” (At 2.38; 3.6; 4.10; 8,12; 9.34; 10.36,48;
legítima de Jesus, tem conotações claramente
16.18), “Cristo Jesus” (At 18.5; 24.24), “Senhor
messiânicas: “Eu sou o Cristo” (cf. Mt 24.23;
Jesus Cristo” (At 11.17; 15.26; 28.31). Descon
Mc 13.6: “ Sou eu”). Em Mateus 26.63,64, indaga-
siderando Atos 4.26, em que christos aparece
se de Jesus se ele
“ o Cristo, o Filho de Deus”. A
em uma citação de Salmos 2.2, as outras onze
feita com a ordem de que Jesus jure
ocorrências se encontram em situações em que
solenemente. E, conquanto a resposta de Jesus
cristãos tentam convencer judeus de que Jesus é
pergunta
é
é
seja menos direta (“Tu o disseste” ,
inter
“o Cristo”, ou seja, apresentam Jesus como cum
pretada como um “ sim”, confirmado em Mateus
primento das esperanças messiânicas. Nesses ca
26.68 pela forma pecuhar com que Mateus se re
sos, 0 termo é utilizado como título, e seu sentido
fere ã zombaria dos que atormentam a Jesus, “ Ó
obviamente tem origem no contexto das expecta
Cristo, profetiza-nos” (cf. Mc 14.65; Lc 22.64).
tivas judaicas de um Messias. Algumas das pas
Por último, em uma forma de expressão típica de
sagens de Atos refletem a tentativa de apresentar
Mateus, Pilatos pergunta duas vezes o que os ju
os sofrimentos de Jesus como cumprimento de
deus querem que ele faça com “Jesus, chamado
textos do
Cristo” (Mt 27.17,22), tornando bem explícita a
(At 2.31; 3.18; 17.3; 26.23). Outras passagens
questão da condição messiânica de Jesus.
contêm afirmações mais genéricas de que Jesus
ara),
é
É claro que para Mateus christos é título cris
at
considerados profecias messiânicas
é o Messias (At 2.36; 3.20; 5.42; 8.5; 9.22; 18.28).
tológico importante. Em comparação com Mar
Atos afirma apresentar a pregação dos primei
cos, parece que em Mateus o título é elemento de
ros decênios do cristianismo. Por se somar a isso
maior destaque no vocabulário religioso. “ Cristo”
a redação própria de algumas passagens de Atos,
aparece em Mateus mais que o dobro de vezes
para alguns estudiosos, com base nesse livro é
do que aparece em Marcos e nas passagens cujos
possível reconstruir formas antigas de fé cristã
270
C risto i: os Evangelhos
que podem ser distinguidas daquelas mais desen volvidas, encontradas em outros escritos do
o Messias, seria confirmado de forma grandiosa
.
num futuro triunfo dos propósitos de Deus. É
Essa teoria às vezes se baseia em Atos 2.36, texto
preciso que se repita, no entanto, que nada em
nt
em que lemos que Deus fez Jesus igualmente “Se
Atos 3.20 exige a conclusão de que o texto con
nhor e Cristo”, ou em Atos 3.20, que define Jesus
serva vestígios de uma compreensão puramente
como “ o Cristo, que já vos foi predeterminado”,
futurista sobre o messiado de Jesus. Só é possí
isto é, designado para Israel. Como querem alguns,
vel entender que a passagem refhta algum tipo
na primeira passagem talvez tenhamos vestígios
de adocianismo ou messianismo puramente fu
de um típo antigo de cristologia adocianista, se
turista se antes presumirmos o que ainda precisa
gundo a qual Jesus recebe o nome de Messias por
ser demonstrado: que essas ideias caracterizavam
ocasião de sua ressurreição. Na segunda passa
os círculos cristãos primitivos. No entanto, para
gem, alguns enxergam indícios da ideia de Jesus
formularmos nossas cristologias primitivas, pre
como uma espécie de Messias nomeado que exer
cisamos certamente estar ancorados em mais do
cerá sua função apenas no futuro, quando enviado
que meras pressuposições.
a presidir a restauração escatológica de Israel. Os
Em suma, o uso de christos em Atos reflete
estudiosos que propõem essa teoria acreditam que
três características: 1) “ Cristo” faz parte da for
talvez possamos encontrar vestígios do desenvol
ma comum de designar Jesus, ou atribuir-lhe um
vimento e da transformação no entendimento cris
nome, nos círculos cristãos primitivos. 2) O ter
tão inicial de Jesus como Messias.
mo era também usado como título sempre que o
0 autor de Atos não acolhe nenhuma das
autor desejava explicitar a reivindicação de que
formas de cristologia acima. Por exemplo, a nar
Jesus era o cumprimento das esperanças de Israel
rativa lucana do nascimento de Jesus (Lc 1—2)
para a redenção de Deus. 3) 0 autor está espe
mostra que o autor considera Jesus o Messias a
cialmente preocupado em insistir no fato de que
partir do momento de sua concepção miraculosa
a crucificação de Jesus foi predita no
(v.
desqualifica como Messias (v.
Jesu s,
n a s c im e n t o
de).
E é duvidoso que Lucas
tenha incorporado a seu relato do cristianismo
3.3.2
C r is t o ,
at
e não o
m o rte de).
Uso no próprio Evangelho. As frequentes
primitivo ideias cristológicas conflitantes com
ocorrências de christos como título em Atos de
as suas, sem mostrar que se tratava de falhas.
vem ser postas lado a lado com o uso sistemático
Isso não resolve a questão do significado original
do termo em doze ocorrências no Evangelho de
das afirmações, mas sugere que o autor de Atos
Lucas. A única possível exceção é Lucas 2.11, em
não entendia tais afirmações da maneira que são
que o anjo anuncia o nascimento do “Salvador,
compreendidas por alguns estudiosos modernos.
que é Cristo, o Senhor” (christos kyrios]. Contu
A verdade é que não existe nada em nenhuma
do, mesmo aqui é provável que o autor esteja
das duas passagens que transmita as ideias cristo
empregando o termo como título: “ Cristo, o Se
lógicas que alguns lhes atribuem. Os títulos “ Se
nhor” (cf. At 2.36; pressupondo-se que a varian
nhor” e “ Cristo” (kyrios e christos], em Atos 2.36,
te confirmada em algumas versões — “ o Cristo
apresentam uma ideia sublimada de Jesus, e a
do Senhor” [christos kyriou] — não seja a leitura
passagem assevera que é pela vontade de Deus
original).
que Jesus está assim exaltado. Nada exige a con
Sem dúvida, em todas as ocorrências de
clusão de que Jesus se tornou Messias somente
christos em Lucas, o termo é empregado como
por ocasião de seu batismo ou da ressurreição. É
título (Messias), ficando evidente o fato de que
anacrônico enxergar uma cristologia adocianista
ali Jesus é associado a antigas esperanças mes
nessa passagem. De modo semelhante. Atos 3.20
siânicas judaicas. Essa associação fica evidente
ressalta que, apesar de rejeitar Jesus, Israel ainda
em Lucas 2.26, passagem em que somos apre
pode participar do cumprimento das esperanças
sentados a Simeão, que aguardava “a consolação
messiânicas se o reconhecer como seu único e
de Israel” e recebera de Deus a promessa de que
verdadeiro Messias. Aqui temos um reflexo da
viveria para ver “o Cristo do Senhor”
tendência escatológica da fé cristã em seus pri
modo semelhante, em Lucas 3.15 pergunta-se a
mórdios, a qual incluía a convicção de que Jesus,
João Batista se ele é “ o Cristo” , e ele responde
271
(ara).
De
C risto i : os Evangelhos
contrastando a si próprio com o “mais podero
mesmo tempo, essas passagens mostram que a
so” que virá depois dele. Em Lucas 4.41, o co
condição messiânica de Jesus implica um afasta
nhecimento que os demônios detinham de Jesus
mento significativo das expectativas messiânicas
tem relação direta com sua condição messiânica,
judaicas mais conhecidas, especialmente levando
“pois sabiam que ele [Jesus] era o Cristo” (cf.
em conta sua crucificação. Mostram também que
Mc 1.34). Depois disso, christos não volta a apa
nem mesmo os discípulos de Jesus estão prepa
recer, senão em Lucas 9.20, na aclamação em que
rados para sua execução (“ Ó tolos, que demorais
Pedro chama Jesus “o Cristo de Deus” , a qual soa
a crer no coração...”, Lc 24.25), e o Jesus res
mais judaica que as versões de Mateus 16.16 e
surreto “lhes abriu o entendimento” para lerem
Marcos 8.29. (V. tb. Lc 23.35, quando os judeus
o AT e compreenderem tudo que estava predito
zombam de Jesus.)
(Lc 24.27,45).
Como acontece com os outros Sinóticos, Lu
Assim, como acontece nos outros Sinóticos, a
cas também apresenta um agrupamento de ocor
afirmação de que Jesus é “ Cristo” em Lucas não
rências de christos no material que descreve os
é mera identificação dele com as expectativas ju
dias finais de conflitos enfrentados por Jesus em
daicas, mas uma redefinição da função messiâni
Jerusalém. Temos a pergunta de Jesus sobre o
ca, baseada quase inteiramente na vida de Jesus
Messias ser ou não o Filho de Davi (Lc 20.41),
e criando uma noção caracteristicamente cristã
pergunta que já discutimos em nossa anáhse de
de “ o Cristo”. Lucas ressalta os sofrimentos do
Marcos. Ao contrário de Mateus e de Lucas, em
“ Cristo” como conclusão divinamente predita e
21.8 deste último a predição de Jesus de que ha
cerne de sua obra terrena, resultantes na procla
veria enganadores não menciona explicitamente
mação de perdão a Israel e ao mundo (Lc 24.47)
falsos messias: refere-se apenas aos que dirão:
anunciada em Atos (e.g., At 1.8).
“ Sou eu”. No entanto, no julgamento judaico, o
À semelhança de Mateus, Lucas associa Jesus
sacerdote exige saber se Jesus se declara “ o Cris
enfaticamente ao
to” (Lc 22.67). A pergunta seguinte — “Logo, tu
padrão das ocorrências de christos comuns a am
és 0 Filho de Deus?” (Lc 22.70) — também deve
bos os Evangelhos. Mateus e Lucas apresentam
ser entendida como investigação acerca da reivin
ocorrências importantes nas narrativas da nativi
dicação messiânica de Jesus. A resposta de Jesus
dade, além do agrupamento de ocorrências em
parece aqui menos direta que na versão de Marcos
seus capítulos finais, e ambos os relatos da nati
(Mc 14.62), mas não há dúvida de que deve ser
vidade interpretam o nascimento de Jesus como
at
e a Israel. Isso se reflete no
interpretada como confirmação. Como já vimos,
cumprimento de esperanças messiânicas. Aliás,
Lucas claramente apresenta Jesus como o Mes
Mateus e Lucas também interpretam a condição
sias, contando ainda com a corroboração da ver
messiânica de Jesus como momento decisivo
são lucana, em Lucas 23.2, das acusações contra
para Israel e mostram que a rejeição de Jesus pe
Jesus perante Pilatos, a qual inclui a informação
los judeus era o mesmo que deixarem de acolher
de que Jesus afirmou ser “o Cristo, um rei”
0 verdadeiro rei de Israel. Os estudiosos de hoje
[ n v i] .
Assim, Lucas associa os julgamentos judaico e ro
têm dispensado bastante atenção à crítica que se
mano a considerações sobre o caráter messiânico
faz aos judeus nesses Evangelhos. À luz do tra
de Jesus, pois, a despeito de Pilatos ter afirmado
tamento dispensado pelas sociedades cristãs aos
considerar Jesus inocente de todas as acusações
judeus ao longo dos séculos, essa crítica causa
(Lc 23.13-16,22), a zombaria dos judeus e roma
certo desconforto. Mas essa forma fortemente
nos (Lc 23.35-37) e a inscrição afixada na cruz
negativa de descrever os adversários judeus de
(Lc 23.38) tornam a execução de Jesus uma rejei
Jesus não surgiu por pura maldade. Ela reflete
ção de sua reivindicação messiânica.
como era importante para os primeiros cristãos
As afirmações finais acerca do caráter messiâ
a convicção de que Jesus era “ o Cristo” , o Mes
nico de Jesus encontram-se em Lucas 24.26,27 e
sias, prometido por Deus, como entendiam, no
24.44-47, passagens em que o Jesus ressuscitado
AT e descrito de várias maneiras (imprecisas, aos
se identifica como “o Cristo” , cujos sofrimentos
olhos desses cristãos) na antiga tradição judaica.
e subsequente glória estão preditos no
Para os cristãos, cuja fé se reflete nos Evangelhos,
at.
Ao
272
C risto i : os Evangelhos
Jesus era superior ao Messias das expectativas
Deus” (Jo 1.34), mas esses títulos devem ser li
judaicas, e eles jamais deixaram de afirmar que
dos junto com João 3.25-30, em que João Batista
Jesus também era o verdadeiro Messias.
nega, mais uma vez, que seja “o Cristo” , aph-
3.4
João. No que diz respeito ao início do cando o título a Jesus. 0 autor apresenta João
cristianismo, a profunda redefinição da condição
Batista como testemunha autêntica de Jesus, e
messiânica e a tensão com as tradições messiâni
as aclamações de João Batista referem-se tanto à
cas judaicas em nenhum lugar são mais evidentes
condição de Filho de Deus, desfrutada por, quan
que em João. Das dezenove ocorrências de chris
to à sua posição como Messias.
tos em João, apenas duas são formulares (“Jesus
O messianismo implícito na aclamação de Jesus
Cristo” , Jo 1.17; 17.3). Nas demais ocorrências,
por João Batista é confirmado nas narrativas que
christos aparece como título, e há menção às ex
mostram a reação a Jesus por parte dos seguido
pectativas messiânicas judaicas. Embora a cris
res de João Batista, entre outros. Em João 1.41,
tologia de João ultrapasse em muito a afirmação
André refere-se a Jesus como “o Messias” [mes
de Jesus ser o Messias, a frequência compara
sias], e esse termo aramaico transhterado, explica
tivamente maior de christos em João e a forma
o autor, significa christos. Em João 1.45, Fihpe
enfática em que o termo é usado na narrativa dei
descreve Jesus como aquele que foi predito na
xam claro que o caráter messiânico de Jesus é um
Lei e nos Profetas. A declaração imediatamente
dos aspectos de destaque da fé do autor (v. JoAo,
posterior de que Jesus era “o Filho de Deus [...]
E vangelho
0 rei de Israel” (Jo 1.49) confirma que ele está
d e)
.
Talvez a passagem mais importante para ava
pensando no Messias. Como faz supor a resposta
liar o significado de christos seja João 20.31, texto
de Jesus a Natanael (Jo 1.50,51), os discípulos
em que o autor debca claro seu objetivo: procurar
não percebem a plenitude da pessoa e da posição
promover a crença de que “Jesus é o Cristo, o
de Jesus, mas João quer que entendamos o
Filho de Deus”. De um lado, a aclamação de Je
fato de que, até certo ponto, é correto aclamar
sus como “ o Cristo” constitui elemento central da
Jesus com categorias messiânicas.
súmula que o próprio autor faz da fé cristã, sen
Em João 7.25-44, as especulações messiânicas
do um dos dois títulos que o autor escolhe aqui
dos judeus são confrontadas com a identidade
para apresentar Jesus. De outro lado, “o Cristo”
messiânica de Jesus. A multidão fica imaginan
também é “o Filho de Deus” , e João considera
do se as autoridades admitem em segredo que
categoria cristológica fundamental a condição de
Jesus é “o Cristo” (Jo 7.26), mas alguns têm di
Filho de Deus desfrutada por Jesus, que implica
ficuldade de conciliar essa interpretação de Jesus
va o entendimento de que Jesus era preexisten
com a tradição segundo a qual, “ quando vier o
te e partilhava ricamente da glória divina (e.g.,
Cristo, ninguém saberá de onde vem” (Jo 7.27,
Jo 17.1-5). Assim, João 20.31 reflete as afirma
tradição messiânica não confirmada em outros
ções de que Jesus é o Messias e de que esse Mes
lugares). Em João 7.31, há uma alusão ao Mes
sias é muito mais subUme que o permitido nas
sias como aquele que realiza sinais, e alguns en
especulações messiânicas dos judeus. Essas afir
tendem que os sinais de Jesus são um indício de
mações também se refletem de várias maneiras
que ele ocupa a posição de Messias. Um pouco
nos outros Evangelhos canônicos, mas em João
mais adiante (Jo 7.40-44), lemos que, se alguns
são expressas com particular força.
concluem ser Jesus “o Cristo” , outros têm difi
Bem mais que os demais Evangelistas, João
culdade de conciliar os antecedentes galileus de
emprega as especulações messiânicas judaicas
Jesus com a tradição de que o Messias virá de
como contraposto na apresentação de Jesus. Em
Belém e será descendente de Davi.
João 1.19-28, ele nos apresenta às especulações
Mais uma vez, em João 12.34 a multidão se
judaicas, em que os líderes judeus interrogam
refere a uma tradição segundo a qual “o Cristo
João Batista para saber se ele alega ser “ o Cris
permanece para sempre” e pergunta se é pos
to” , Ehas ou “o profeta” — e a cada pergunta ele
sível conciliar isso com a predição de Jesus de
responde “não”. João Batista aclama Jesus como
que ele será “levantado”. E a mulher samaritana menciona a tradição de que o Messias “ nos
“ o Cordeiro de Deus” (Jo 1.29,36) e “ o Filho de
273
C risto i : os Ev angelhos
anunciará todas as coisas” (Jo 4.25). concluindo
objetivo é muito mais que a mera identificação
que o notável conhecimento que Jesus revela ter
de Jesus como o Messias da expectativa judaica.
a respeito dela sugere que talvez ele seja “o Cris
Nesse episódio, o problema dos judeus não é a
to” (Jo 4.29).
dificuldade de encaixar o que sabem a respeito
A precisão das referências de João às tradi
de Jesus em alguma tradição messiânica, mas
ções messiânicas dos judeus é uma questão inte
a incapacidade de aceitar a afirmação de que o
ressante, mas não pode nos deter aqui. Algumas
Messias Jesus é o Filho de Deus, que partilha da
delas não são claramente confirmadas em outros
divindade com o Pai (Jo 10.37,38).
lugares, mas pesquisas recentes dão conta de que
Outras passagens confirmam que christos é
João inclui algum material de procedência da Pa
título cristológico importante em João e que o au
lestina, e essas referências a tradições messiâni
tor deseja apresentar Jesus como o Messias ver
cas dos judeus podem ser mais valiosas do que
dadeiro. Em João 9.22, a confissão de que Jesus
alguns gostariam de admitir (v., e.g..
Jonge,
é o “Cristo” provoca sua expulsão da sinagoga.
Mais pertinente a esta análise é a questão
hoje em dia, refletia as controvérsias cristológicas
sobre qual seja a ideia central do autor nessas
entre os cristãos joaninos e as autoridades judai
passagens. Resumidamente, parece que João
cas da época. De forma especial entre os autores
D
e
1972-1973).
Essa passagem, segundo geralmente se interpreta
está empregando ironia nas passagens em que
dos Evangelhos, duas vezes João claramente as
os judeus não conseguem conciliar Jesus com as
socia 0 termo christos ao termo semítico Messias
tradições messiânicas. Sem perceber, os judeus
[messias, Jo 1.41; 4.25), O Evangelista considera
demonstram desconhecimento das próprias tradi
imperfeitas as definições judaicas sobre o Mes
ções ou não sabem o bastante a respeito de Jesus,
sias, mas na descrição de Jesus não abre mão da
achando que o conhecem e que podem muito fa
categoria fundamental.
cilmente descartá-lo. Dessa maneira, consideran
No episódio que envolve Lázaro, estrutural
do passagens como João 1.1-18 e 6.41-45, o leitor
mente importante por ser o sétimo e culminante
percebe que os judeus realmente não sabem de
“ sinal” em João, a aclamação feita por Maria de
onde Jesus procede (do céu), nem que Jesus é, na
que Jesus é “o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 11.27),
verdade, o cumprimento da tradição segundo a
confirma a identificação que ele faz de si mesmo
qual a origem do Messias é desconhecida. Seme
como “a ressurreição e a vida” e corresponde à
lhantemente, em João 12.34, o Filho do homem,
descrição pelo Evangelista da correta confissão
que deve ser “levantado”, também “permanece
cristã de João 20.31.
para sempre”, pois desceu dos céus e ascende
A tensão entre tradições messiânicas judaicas
de volta à glória celeste com Deus, cumprindo
e o entendimento joanino de Jesus tem levado
assim a mencionada tradição messiânica. Talvez
alguns estudiosos a propor que christos não era
devamos interpretar João 7.40-42 como texto
um título assim tão importante para João (e.g.,
igualmente irônico — João toma por certo que
M
seus leitores conhecem a tradição cristã segundo
[de Deus]” é a chave para a cristologia do autor
a qual Jesus nasceu em Belém e, assim, cumpre o
e o tema dominante de sua apresentação de Je
que “afirma a Escritura” acerca do lugar de nasci
sus. É com “ o Filho” que se revela o verdadeiro
mento do Messias.
significado transcendente de Jesus. Mas João não
aloney).
a ideia joanina de Jesus como “ o Filho
A interação entre o messianismo judaico e a
considera christos um título insatisfatório. Pelo
redefinição cristã em seus primórdios também
contrário, para ele as especulações messiânicas
é evidente em João 10.22-39, Aqui, “ os judeus”
judaicas é que são insuficientes para a correta
perguntam diretamente a Jesus se ele é “ o Cristo”
compreensão de quem é o Messias, e ele consi
(Jo 10,24), e a resposta de Jesus é uma afirmati
dera as autoridades judaicas incapazes de aceitar
va indireta (Jo 10.25-39). Mas em seguida Jesus
a devida definição de Messias e de Filho divino.
também faz declarações sobre a relação Pai-Filho
João não rejeita christos como título cristológico
para descrever sua posição, e o fato de isso ser
a favor de outros, como “Filho do homem” ou
ofensivo aos judeus (Jo 10,33,39) mostra que o
“Filho de Deus”. Ele exige que se reconheça que
274
C rísto í : os Evangelhos
Jesus, o Filho divino e o Filho do homem, é “o
desconsiderem a verdade irônica de suas zomba
Cristo”. Ele também reflete a redefinição da cate
rias e acusações, espera-se que o leitor de João
goria “o Cristo” que leva em conta o significado
perceba a verdade maior da filiação divina de
divino de Jesus e assim prefere unir “ Cristo” e
Jesus e de sua condição de rei. Diferentemente dos Evangelhos Sinótícos, em
“Filho de Deus” como forma de confessar Jesus da forma correta.
que a palavra christos está confinada em sua qua
Para João, Jesus é mais que o rei mosaico de
se totahdade aos relatos da Paixão e da nativida
Israel: é o rei messiânico, ainda que de estatura tão
de (Mateus e Lucas), em João, christos aparece
transcendente, jamais imaginada pelos “judeus”.
por todo o livro, demonstrando a importância
E, justamente por causa do enfoque de Jesus como
do título para esse evangelho. João não apenas
Messias, o autor critica de modo contundente as
deixa claro que João Batista não é o Messias,
autoridades judaicas por rejeitarem a Jesus. Je
mas também menciona que o Batista endossou o
sus foge da multidão que tenta fazê-lo rei ã força
messiado de Jesus. João também menciona com
(Jo 6.15) após 0 milagre dos pães, mas não se deve
exclusividade o fato de que os primeiros discípu
interpretar isso como absoluta rejeição da função
los de Jesus o aclamaram usando diversos termos
régio-messiânica, pois em outras passagens João
messiânicos. Jesus é reconhecido como Messias
declara que Jesus é o rei verdadeiro. Por exemplo,
pela mulher samaritana, e em alguns momentos
na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, a mul
João destaca a incapacidade dos “judeus” em re
tidão o saúda como “o rei de Israel” (Jo 12.13).
conhecer a condição messiânica de Jesus. Diante
Nesse episódio, Jesus vê o cumprimento de Zaca
de todos esses dados, flca evidente que o autor
rias 9.9, que prediz a vinda do rei de Sião ã cidade
acredita ser Jesus o Messias verdadeiro, com sig
(Jo 12.14-16). Dessa maneira, por mais superficial
nificado especial para a fé cristã.
que seja o entendimento da multidão quando acla
João não joga um título cristológico contra ou
ma Jesus como rei, o EvangeUsta entende que o
tro, embora empregue de modo profuso os títulos
título régio é cabível a Jesus.
honoríficos — muito mais que os demais Evange
0 entrelaçamento das ideias do autor acerca
lhos — para descrever Jesus (e.g., as várias fór
de Jesus como Messias régio e Filho transcen
mulas “ Eu sou”). “Filho do homem” não é uma
dente de Deus também aparece na narrativa da
alternativa preferida para “ Cristo” (ao contrário
Paixão. Em João 18.33-38, Pilatos pergunta a
do que afirma
Jesus se ele se declara “rei dos judeus” — in
desceu dos céus, é “o Cristo, o Filho de Deus” —
terpretação romana da afirmação messiânica. A
e isso está no âmago da fé de João.
M
aloney)
. O Filho do homem, que
resposta de Jesus consiste na rejeição da realeza 4. Conclusão
terrena, igual às demais, ao mesmo tempo que confirma sua realeza superior e a consequente
Os estudiosos da atualidade têm sido acertada-
missão de “ dar testemunho da verdade” de Deus.
mente criticados pelo fato de que, quando bus
Na sequência, o autor continua a entrelaçar o
cam identificar a natureza da cristologia do
tema da realeza de Jesus com o de sua condição
dependem demais dos estudos sobre os títulos
nt
,
de Filho de Deus. Às vezes, os romanos tratam
cristológicos do
Jesus com pouco caso, chamando-o “rei” (Jo
em parte ou no todo será capaz de revelar ple
nt
.
Nenhuma análise dos títulos
18.39; 19.3,14,15), e em João 19.19-22 o tema da
namente a fé cristológica dos autores do
realeza é destacado no fato — registrado apenas
títulos como “Cristo” são indicadores significati
nt
.
Mas
em João — de Püatos se recusar a tirar o títu
vos da fé de autores como os quatro Evangehstas.
lo da cruz. Em João, as acusações contra Jesus
Nos quatro Evangelhos, “ Cristo” é sempre uma
aUam os aspectos messiânico e transcendente
referência significativa a Jesus. Pode se dizer
de sua cristologia. Em João 19.12, “ os judeus”
que, para os Evangehstas, é termo cristológico
acusam Jesus de se pretender rei em oposição
fundamental. Mas todos revelam ter consciência
a César, mas em João 19.7 Jesus é acusado de
de que, em seus primórdios, a fé cristã envolvia
blasfêmia por se pretender “Filho de Deus”. Em
uma apropriação e uma importante adaptação do
bora os adversários judeus e romanos de Jesus
significado do termo em sua aphcação a Jesus.
275
C risto ii : Paulo
De diferentes maneiras, os Evangelhos refle
M. Christology in context. Philadelphia: Westmins
tem duas modificações significativas no conceito
ter, 1988. • ______ , Jewish expectations about the
de Messias. 1) A crucificação representou um for
“Messiah” according to the foirrth Gospel, nts , v . 19,
te obstáculo para os judeus na aceitação de Jesus
p. 246-70,1972-1973. • ______ . The use of ho chris
como Messias, exigindo fundamentação no
a t,
e
tos in the Passion narratives. In:
J., org. Je
D u p o n t,
foi o acontecimento que demandou dos primeiros
sus aux origines de la christologie. Leuven: Leuven
círculos cristãos uma reformulação da maneira
University, 1975, p. 169-92. ■______ , The use of the
em que entendiam a natureza e a obra do Mes
w o rd “anointed” in the time o f Jesus.
sias. 2) A convicção cristã inicial sobre o signi
132-48,1966.
ficado ou natureza transcendente de Jesus faz
Lukei-ix.
com que a natureza do Messias seja muito mais
(a s .)
• F ttzmyer, J.
s.n., s.d.]. V,
na vida religiosa do que a tradição judaica estava
sus in christology.
preparada para admitir. (Seria anacrônico ler os
M.
Evangelhos inserindo neles detalhes da cristolo
65-77.
gia das duas naturezas, discutida séculos depois.
V.
Mas a leitura superficial dos Evangelhos mante
M issoula; Scholars,
rá ocultos 0 papel e as qualidades sublimes, até
D.
mesmo transcendentes, atribuídos de diferentes
Fortress,
maneiras a Jesus pelos Evangehstas.)
tology, kingdom .
Nas modificações da categoria messiânica e na
1981.
G arden City: D oubleday,
• G rundmann , W . et al. x p iw
sublime e que ele seja mais importante e central
9. p. 493-580.
NovT,
v. 8, p.
The Gospel according to
Between Jesus and Paul.
td n t. [S.L:
The titles o f Je
■ H a h n , F.
1969.
N e w York: W orld ,
192-219.
p.
k t A.
• H engel ,
London: scm ,
1983.
p.
■ Jones, D . T he title christos in Luke-Acts. cbq,
32, p. 69-76,1970.
■ Juel, D.
1977.
Messiah and temple.
(s b ld s ,
31.)
■ K in g s b u r y , J.
The christology o f Mark’s Gospel.
K ram er,
1983, ■ ______ . Matthew: W.
Philadelphia:
structure, chris
1975.
Philadelphia: Fortress,
Christ, Lord, Son of Cod.
■
London: scm ,
contínua insistência em manter “Cristo” como tí
1966.
tulo para Jesus, vemos algo da essência da fé cris
presentation of Jesus as “the Christ” and J. A . T.
(s b t,
50.)
■ Maloney, F T he fourth G ospel’s
tã em seus primórdios, um movimento religioso
Robinson’s redating.
que surgiu como desenvolvimento particular da
239-53, 1977.
tradição bíblica pré-cristã. Nele, Jesus tornou-se
Acts. In; K e c k , L.
“ o Cristo” para todas as nações, não apenas para
in Luke-Acts.
Israel. Mas os Evangelhos mostram que no im'cio
85.
Downside Review,
95,
v.
p.
■ M oule, C. F. D . T he christology of
E. &
M artyn, J. L., orgs.
1966.
N e w York; A bin gd on ,
• N e u s n e r , J.; G r e e n , W , S.; F r e r ic h s ,
Studies p.
159-
E. Judais
os cristãos vinculavam sua confissão de Jesus
ms and their messiahs at the turn of the Christian
como “o Cristo” à herança bíblica e às esperan
era.
ças que Israel tinha de um redentor. Por mais que
■ ReNGSTORF, K .
Cam bridge: C am bridge University Press, XpiOTÓÇ. NEINTT.
[S.I.:
1987.
s.n,, s.d.]. V.
“Cristo” tenha se tornado parte do nome-fórmula
2.
referente a Jesus, para os Evangelistas o termo
again. In: L indars,
preservou uma associação com antígas visões da
and Spirit in the New Testament.
intervenção escatológica visível de Deus a favor
bridge University Press,
de seu povo. Para os Evangelistas, a rejeição a Je
W h a t is im plied b y the variety o f messianic figures?
sus representou a rejeição ao Messias de Israel,
JBL, V.
p.
334-43.
■ Smalley , S, S. T he christology of Acts
B. &
Smalley ,
1973.
p.
S. S.,
orgs.
Christ
Cam bridge: C am
79-94,
■ S mhti, M .
78, p. 66-72, 1959.
Talvez como em nenhum outro título cristoló
L. W.
H
u rtado
gico, o uso que os Evangehstas fazem de “ Cristo” desnuda as raízes judaicas da fé cristã e a inova
C r is t o
ção que essa fé representou.
A
Ver também c r is t o l o g i a ; hom em ;
F il h o
de
D
eus;
F il h o
ii:
P aulo
frequência extraordinária com que Paulo em
prega o termo Christos exige explicação. Paulo
do
usava 0 termo praticamente como um segundo
Se nh o r.
nome para Jesus ou para fazer distinção entre M. Son of Man. London:
spck,
esse Jesus e todos os outros de mesmo nome.
1979. ■ C u l l m a n n , 0. The christology of the New Tes
Vários textos também mostram que Paulo esta
tament. Ed. rev, Philadelphia: Westminster, 1963.
va bem consciente da implicação mais ampla do
N. The crucified Messiah and other essays.
termo Christos/mãshiah. Também é notável que
B ib u o g r a r a . C a s e y ,
■ D
ah l,
Miimeapolis: Augsburg, 1974. p. 37-47. •
D
e
Jo n g e ,
276
Paulo se abstenha de usar o termo Christos de
C risto ií : Pa ulo
certas maneiras. Por exemplo, jamais encontra
se ressaltar, porém, que nenhum dos livros mais
mos a expressão “Jesus, o Cristo”. Um estudo cui
recentes do
dadoso dos antecedentes judaicos e gregos não
rência à pessoa da realeza, no futuro, que seria
at
utihza o termo christos em refe
explica a frequência e a maneira em que Paulo
como Davi (cf., e.g., Zc 9.9,10; 12.7— 13.1). Em
emprega o termo Christos. A melhor explicação
Isaías 45.1, o termo se refere a Ciro e, em Habacu-
é o fato de que Paulo recebeu uma tradição que
que 3.13 parece designar alguém que reinava na
associava o termo Cristo ao âmago da mensagem
época. Além do mais, na hteratura judaica mais
cristã primitiva: a morte e a ressurreição de Jesus
antiga, o termo é visto com pouca frequência
(cf. ICo 15.3,4). Essa tradição recebida, aliada ã
(cf. SI Sa, 18.5; 4QPBless 3; CD 12.23,24; 14.19;
experiência singular que Paulo teve com Cristo na
19.10,11; lEn, 48.10; 52.4) e não parece ter sido
estrada de Damasco (v.
“uma designação essencial de qualquer futuro re
do de)
P
a u lo , conversão e c h a m a
, esforça-se bastante para explicar as ideias
dentor”
bem definidas que associava ao fato de Jesus ser
(D e JoNGE,
1966, p. 147).
Houve diversas formas de expectativas mes
0 Cristo. Não existe, contudo, nenhuma exphca-
siânicas no início do judaísmo, mas parece que
ção ou lógica que justifique, de modo claro, as
os termos traduzidos em nosso idioma por “Mes
alterações e combinações que encontramos nas
sias” não foram muito usados, e provavelmente
cartas de Paulo, onde ele justapõe Cristo a vários
nem fossem termos técnicos para designar um
outros nomes e títulos. Parece que, na maioria
redentor futuro. A esperança messiânica dos pri
das vezes, Christos é usado nas ocasiões em que
mórdios do judaísmo podia incorporar a ideia de
estão em jogo a morte, a ressurreição e o retor
um ou mais personagens messiânicos, como é o
no de Cristo. De muitas maneiras, a fórmula en
caso dos que foram ungidos como rei ou como sa
Christõ é a que melhor sintetiza a ideia de Paulo
cerdote nos textos de Qumran (e.g., IQS 9.10,11;
sobre a condição e a posição dos cristãos: eles es
CD 12.22,23), ou mesmo nenhum, quando se
tão
cria que Javé finalmente resgataria seu povo
“
em
C r is t o ” .
Nas cartas cuja autoria paulina é
contestada, o uso do termo Christos pouco difere
(e.g., IQM 11,12).
do que encontramos naquelas cartas geralmente consideradas autênticas, exceto pelo fato de que
2. Uso grego
há mais ênfase no que se pode chamar “cristolo
É surpreendente que o termo Christos seja usado
gia cósmica”.
com tanta frequência por Paulo (270 vezes den
1. Antecedentes judaicos
tre os 531 usos no
2. Uso grego
usado como nome de Jesus, não como título ou
nt)
e que, ao que parece, seja
3. Origem do uso de Christos entre os cristãos
termo descritivo. Isso impressiona especialmen
4. Uso paulino
te porque, em geral, Paulo estava escrevendo a
5. A fórmula en Christõ
gentios que podiam ou não ter tido alguma fami
6. Christos nas cartas paulinas contestadas
liaridade com os antecedentes judaicos do termo. No uso grego secular, o termo christos tem sim
1. Antecedentes judaicos
plesmente 0 sentido de unguento ou cosmético,
O adjetivo grego christos, formado a partir de um
mas ao que tudo indica nunca designava a pessoa
particípio (vindo depois a ser usado como subs
ungida (cf.
tantivo), e seu equivalente hebraico mãshiah fo
fragmento de um manuscrito, escrito por Diodo-
E u r íp id e s ,
Hp, 516;
M
o u le ,
p. 32). Um
ram termos usados no início do judaísmo e do
ro Sículo (Ib; 38-39, 4) pouco antes da época de
cristianismo em referência a uma pessoa ungida
Jesus, emprega o termo neochristos para indicar
e separada para uma tarefa especial, e, em par
um prédio “recém-rebocado”. Por isso, faz-se
ticular, a um personagem régio e/ou messiânico.
necessária uma explicação para o prolífico uso
Na esfera política, o termo foi usado para desig
paulino do termo Christos, quase como um nome
nar reis davídicos (SI 18.50; 89.20; 132.10-17).
de Jesus. Ainda mais quando existia uma pala
Nesse aspecto, 2Samuel 7.8-16 é de valor funda
vra grega própria para designar alguém que fosse
mental, pois expressa a esperança de que Deus
ungido: êleimmenos (do verbo aleiphõ, “ungir”).
providenciaria o governante davídico ideal. Deve
E,
277
por sinal, foi o termo que Áquila utilizou para
C risto ii : Paulo
traduzir a palavra hebraica mãshiah em sua cita ção do AT traduzida do grego.
uma importância inequívoca. Todos esses termos e expressões se referem à mesma pessoa no re
A hipótese de que o uso do termo Christos com
lacionamento com seu povo. Estudos detalhados
a função de sobrenome de Jesus tenha surgido no
sobre o emprego paulino do termo “ Cristo” têm
cristianismo gentílico, em que as conotações ju
deixado claro que Paulo utiliza o vocábulo de vá
daicas originais de natureza régia ou messiânica
rias maneiras e em combinações com outros no
não eram mais entendidas, não explica por que
mes e títulos, e só raramente é possível exphcar
Paulo, um judeu, foi quem mais utilizou o termo
essas modificações. A impressão é que não existe
entre os autores do
0 entendimento
razão teológica para Paulo às vezes usar a expres
que Paulo tinha do sentido do termo fica claro
são “Cristo Jesus” em vez de “Jesus Cristo” ou
nt
(H
engel).
com base em 2Coríntios 1.21, texto no qual en
preferir a expressão “o Senhor Jesus Cristo” a
contramos o seguinte jogo de palavras: “É Deus
apenas “ Cristo”.
quem nos mantém firmes convosco em Cristo
É possível demonstrar que Paulo emprega o
[eis Christon] e foi ele quem nos ungiu [chrisas] ”.
termo Christos e suas variantes especialmente em
Contudo, 0 que é bastante surpreendente, Paulo
contextos cuja base seja uma tradição pré-paulina
pouco menciona “o Cristo” , e sim lêsous Christos
ou ao refletir sobre o significado escatológico da
( “Jesus Cristo”) e às vezes Christos lêsous (“Cris
morte, da ressurreição e da parusia (v.
to Jesus”) ou mesmo ho Kyrios lêsous Christos (“o
g ia ) .
Senhor Jesus Cristo”). É um forte indício de que
motivo básico de Paulo empregar “Jesus Chris
esc ato lo
Esses acontecimentos momentosos são o
antes de Paulo escrever suas cartas o termo Chris
tos” (cf.
tos era amplamente usado nos primórdios do cris
é possível encontrar uma síntese da cristologia
tianismo como parte do nome de Jesus. Se não
pauhna. Cristo é aquele que morreu — de uma
fosse assim, era de esperar que, em algum mo
vez por todas — e ressuscitou a fim de que vivam
mento, Paulo explicasse a seus leitores o sentido
para ele aqueles a quem redimiu. Esses aconteci
do termo. Precisamos examinar rapidamente os
mentos dão testemunho do amor sacrificial que
H
engel,
p. 146-8). Em 2Coríndos 5.14-21,
dados que sinalizam o uso pré-paulino do termo
Cristo manifestou por seu povo e que este, por
Christos em referência a Jesus.
sua vez, deve imitar. Cristo é, portanto, o gran de reconciliador entre os seres humanos e Deus
3. Origem do uso de Christos entre os
(2Co 5.19) e dos seres humanos uns com os ou
cristãos
tros (Cl 3.28). São os acontecimentos salvíficos
Em ITessalonicenses, uma das cartas mais anti
culminantes do final da vida de Jesus que levam
gas de Paulo, provavelmente escrita na década
Paulo, de modo especial, a chamar Jesus de Cris
de 50 do século i, se não antes, aparece uma va
to. A importância desses acontecimentos na defi
riedade de usos de Christos. Por exemplo, Pau
nição do Cristo é algo que também fica claro com
lo menciona o “ Senhor Jesus Cristo” (ITs 1.1;
0 quase silêncio de Paulo acerca dos milagres de
5.23,28), “ Cristo” (ITs 2.6), “em Cristo Jesus”
Jesus. Além do mais, embora em ICoríntios e
(ITs 2.14) e o que haveria de se tornar uma
em outras passagens Paulo se baseie na tradição
das expressões favoritas de Paulo: “em Cristo”
sobre as declarações de Jesus, ele não as utiliza
(ITs 4.16). Isso mostra que, no início da déca
como se fossem a essência ou querigma de seu
da de 50 ou mesmo antes, o termo Christos já
evangelho, nem como o cerne da confissão de fé
havia se tornado, na prática, um nome para Je
que os primeiros cristãos faziam de Cristo.
sus, sendo, como tal, reconhecido pelos leitores
É importante ressaltar que, quando Paulo reci
de Paulo na Macedônia. Em ICoríntios, obser-
ta a parodosís, a sagrada “tradição” dos primeiros
va-se uma variedade semelhante de uso e de
cristãos, que fora transmitida por ele e por ou
pressuposições. Por exemplo, encontramos não
tros, ele dá a entender que ela incluía a confissão
apenas a expressão “ Cristo Jesus” (ICo 1.1-40),
de que “Cristos morreu pelos nossos pecados”
mas também “Cristo” (ICo 1.6), bem como “ nos
(ICo 15.3). Essa fórmula extraordinária, da qual
so Senhor Jesus Cristo” e “Jesus Cristo, nosso
não se conhece nenhum precedente no judaísmo
Senhor” (ICo 1.2,7-10). Essa variação não tem
primitivo, é considerada por Paulo o âmago da
278
C risto i i : Paulo
fé cristã, que havia aprendido com aqueles que
(G r u n d m a n n ,
estavam “em Cristo” antes dele. Isso significa
a essa regra encontra-se em Colossenses 3.24,
que, no período entre 30 d.C. e o ponto em que
em que encontramos tõ kyriõ Christõ douleuete
p. 542-3). A única possível exceção
Paulo recebeu essa tradição (sem dúvida antes de
(“servi a Cristo, o Senhor” [como escravos]), mas
suas viagens missionárias), o termo Christos não
kyrios pode ter aqui o sentido secular de “amo,
era usado pelos cristãos apenas como referência
senhor” , não de Senhor divino (cf. Cl 3.22,23).
exclusiva a Jesus, mas já estava intimamente li
Segundo: Paulo jamais acrescenta um genitivo
gado à morte de Jesus como meio de salvação
[correspondente em português ao adjunto ad-
escatológica.
nominal restritivo] ao termo Christos (como se
N. A. Dahl acredita que seja possível identifi
observa no judaísmo primitivo; e.g., “ o Ungido
car as origens desse desenvolvimento no fato de
do Senhor”). Aliás, ele não utiliza o termo em
Jesus ter sido crucificado como um messias em
nenhuma expressão possessiva, como “Cristo do
busteiro. Há margem, no entanto, para duvidar
Senhor” (mas cf. ICo 3.23). Nas cartas paulinas,
disso, pois é muito possível que o título na cruz
Christos também nunca é usado como simples
trouxesse a inscrição Basileus, Melek e Rex (em
adjetivo. E a expressão “Jesus, o Cristo” também
grego, hebraico e latim, respectivamente), em vez
nunca é encontrada
de Christos, mãshiah e Christus. É mais provável
lo não acha necessária a fórmula “Jesus é o Cris
que 0 uso inicial e mesmo pré-paulino da palavra
to”, nem defende essa ideia. No entanto, entre
Christos, na prática um nome de Jesus, se expli
outros termos, ele utihza o que se considera a
que pelo fato de que, durante seu ministério, de
mais antiga das confissões cristãs: “Jesus é Se
(D a h l,
p. 37). Por sinal, Pau
alguma maneira Jesus se identificou como o agen
nhor” (Rm 10.9,
te final de Deus [mãshiah) e exphcou sua morte
que o fato de Jesus ser ou não o Messias não era
em termos semelhantes àqueles que encontramos
objeto de debate nas comunidades paulinas e que
em Marcos 10.45 (cf.
1990, p. 251-
Paulo entendia ser isso já um pressuposto para as
6). Também é possível que os primeiros cristãos
demais confissões. Por exemplo, nas cartas, ele
judeus de origem helênica soubessem que, para o
não tenta fazer uso de provas textuais para de
falante médio de grego, a palavra Christos, como
monstrar que Jesus era o Messias. Sobre isso, J.
ocorreu com o vocábulo mais conhecido Christus
D.
(cf.
S u e t ô n io ,
W
it h e r in g t o n ,
G.
N V Í}.
Aí está um forte indício de
Dunn afirma que Paulo
Cláudio, 25, em que fica evidente
que Christus é lido como Chrestus], seria enten
não faz nenhuma tentativa de provar que Jesus
dida como se fosse um nome, fazendo distin
é o "Cristo", apesar de seu sofrimento e morte.
ção entre esse Jesus e outros de mesmo nome.
Já não é necessário demonstrar que "Cristo" é
Além do mais, é possível que o nome composto
um título cabível para ser aplicado a Cristo. A
Jesus Cristo tenha em parte se tornado comum
crença em Jesus como o Cristo tornou-se tão
pelo desejo dos primeiros cristãos de ressaltar a
firmemente estabelecida na mente de Paulo
dignidade régia de seu Salvador. Assim, eles lhe
que ele a aceita sem nenhum questionamento,
teriam dado um nome composto, à semelhança
e "Cristo" é tão-somente um modo de se referir
de outros personagens notáveis do período, como
a Jesus, como um nome próprio (é o caso mes
César Augusto.
mo em ICo 15.3)
4. Uso paulino
(D
unn
,
p. 43).
Das formas do termo Christos empregadas
Independentemente de quando Paulo tenha ouvi
por Paulo, uma das mais importantes é a ousada
do Jesus ser chamado pela primeira vez de Chris
expressão que tem o objetivo de quahficar sua
tos, como uma espécie de segundo nome, ele não
pregação: Christos estaurõmenos (“ Cristo crucifi
perdeu de vista o fato de que no início Christos
cado” , ICo 1.23). A expressão deve ter chocado
deve ter sido um título. Vários indícios apontam
os ouvintes judeus, pois não há provas conclusi
para isso. Primeiro: Paulo jamais justapõe Kyrios
vas de que, nos primórdios, os judeus aguardas
a Christos apenas, pois isso significaria combinar
sem um Messias crucificado. A crucificação era
dois títulos, 0 que seria um tanto deselegante
um castigo reservado para os piores criminosos 279
C rísto ii : Paulo
e revolucionários. Parece que os judeus, com
com seus leitores, em grande parte gentios, que
base numa leitura de Deuteronômio 21.23 (cf.
a salvação, num primeiro momento, procede dos
G1 3.13), entenderam a crucificação como um si
judeus e é para os judeus, sendo agora também
nal de que a pessoa crucificada era amaldiçoada
para os gentios (Rm 1.16; v.
Israel).
por Deus. Não há evidência conclusiva de que
Paulo estava ciente das antigas concepções
Isaías 53 tenha, em algum momento, sido aphca-
judaicas de um Messias nascido sob a Lei (cf.
do ao Messias antes dos dias de Jesus (é discutí
G1
vel a evidência encontrada em Tg ís, 53).
Rm 1.3), e tem a satisfação de atribuir tudo isso
4.4) e pertencente à linhagem davídica (cf.
Um exame minucioso do uso paulino do termo
a Jesus. Além disso, em várias passagens Paulo
Christos faz supor que, de modo geral, o signifi
se refere ao caráter inteiramente humano desse
cado adotado por Paulo não se baseava em ideias
Christos (Rm 5.17-19; Fp 2.7; Rm 8.3). Ele tam
judaicas já existentes acerca do ungido de Deus,
bém sabia que, de modo geral, os antigos judeus
e sim em tradições sobre o fim da vida de Jesus
não imaginavam o Messias como um personagem
e seus desdobramentos, associadas à experiência
sobre-humano, e sim como um ser humano mo
do próprio Paulo na estrada de Damasco. Esses
delar especialmente ungido pelo Espírito de Deus
acontecimentos forçaram o apóstolo a repensar o
(G
que era necessário para que alguém fosse consi
que sugerem um personagem sobre-humano, tal
derado 0 Messias davídico
vez o “filho do homem” de Dn 7,
(K
im
)
. 0 fato de Paulo
e outros cristãos da igreja primitiva terem usado o
rundm ann,
p. 526; mas cf. as parábolas em lEn, ar a).
Entre
tanto, aqui também parece que Paulo foi muito
termo Christos em referência a alguém que havia
além do que a maioria de seus contemporâneos
morrido na cruz e ressuscitado dos mortos mos
judeus entendiam sobre o Messias davídico, pois
tra de modo geral até que ponto o significado do
a maneira mais natural de ler a expressão gra
termo sofreu transformação. Christos trouxe re
maticalmente difícil de Romanos 9.5 é: “... vem
denção a seu povo quando morreu, ressuscitou e
0 Cristo que sobre todos é Deus bendito para
foi exaltado a uma posição de autoridade e poder
sempre”
à direita de Deus, acima de todos os principados.
entendimento de Paulo, não apenas Cristo assu
Ele não garantiu a redenção afastando o jugo do
mia funções nos céus, mas em certo sentido era
domínio romano durante seu ministério terreno.
cabível chamá-lo Deus. Isso está em harmonia
Em resumo, Paulo está pensando em algo bem
com Filipenses 2.11, em que Jesus Christos é cha
diferente do que se acha em textos como Salmos
mado pelo nome divino usado na
de Salomão 17— 18, nos quais o Messias é vis
(“ Senhor”) — e com Colossenses 1.19 (“Foi da
to como um herói conquistador que lança fora o
vontade de Deus que nele habitasse toda a pleni
jugo de um governo estrangeiro.
tude [p/êrõma]...”). Ressalte-se que em Romanos
(M
e tzg er ) .
Is so
nos leva a crer que, no
lx x
— kyrios
Contudo, não seria totalmente correto dizer
9.5 Paulo cita “o Cristo”, o que mais uma vez nos
que “a compreensão acerca do Messias perde seu
permite perceber como ele entendia o significado
significado nacional, político e religioso, e assim
maior do termo.
o significado do Messias na história humana é
0 uso do termo Christos nas saudações das
confirmado e explicado. Esse é um feito teológico
cartas paulinas também indica uma visão exal
característico de Paulo”, como afirma W. Grund
tada de Jesus. Por exemplo, Filipenses 1.2 afir
mann (p. 555). Em Romanos 15.8, Paulo relata
ma que a graça e a paz procedem não apenas de
com muita clareza o fato de Cristo ter se tornado
Deus Pai, mas também do Senhor Jesus Cristo.
servo da circuncisão, e apresenta a esperança de
Segundo C. F. C. Moule, “é no mínimo descon
salvação para muitos judeus no fim dos tempos
certante a posição que Jesus ocupa em relação a
(Rm 11.25,26). Só agora Cristo é Salvador dos
Deus, tanto aqui quanto em muitas outras fórmu
gentios por meio de seus ministros e apóstolos,
las introdutórias nas cartas neotestamentárias —
como Paulo (cf. Rm 15.16,18), mas na mente
especialmente quando se considera que foi algo
de Paulo isso não anula o significado do serviço
escrito por judeus monoteístas acerca de um per
que Cristo prestou anteriormente em sua missão
sonagem histórico do passado recente”
aos judeus. Aliás, o objetivo de Paulo é insistir
p. 150). Nesses casos, Jesus Cristo é visto como
280
(M
oule,
C risto ii : Paulo
aquele que outorga algo que somente Deus pode
(v.
verdadeiramente conceder: shalom.
te uma das expressões prediletas de Paulo. Apa
0 trecho de Romanos 1.16 contém uma pos
“
em
C r is t o ” ) .
En Christõ é inquestionavelmen
rece 164 vezes nas principais cartas pauhnas e
sível pista que sinaliza por que Paulo emprega o
outras 6 nas Pastorais, na expressão en Christõ
termo Christos com tanta persistência e por que
lêsou (“em Cristo Jesus”), fato muito impressio
também às vezes dá a entender que o termo era a
nante, uma vez que os outros autores do
princípio um título, mas não usa um termo como
ticamente não utilizam a expressão (mas cf., e.g.,
nt
pra
Sõtêr (“ Salvador”) para se referir a Jesus. Embora
IPe 3.16; 5.10,14). Paulo jamais utiliza o termo
Paulo fosse o apóstolo aos gentios, queria conti
Christianas (“cristão”). A esse adjetivo, parece
nuar afirmando e, por vezes, talvez até mesmo
preferir en Christõ (cf. ICo 3.1). Em outras pas
ressaltando para seu público que a salvação pro
sagens, a expressão en Christõ parece ter sentido
cede dos judeus e é para os judeus, antes de ser
mais fecundo, indicando o ambiente ou atmos
para qualquer outro grupo. Uma forma de fazê-lo
fera em que vivem os cristãos — ou seja, eles
era justapondo os dois termos: lêsous Christos. Na
estão “em Cristo”. A. Deissmann, em seu estudo
condição de judeu, Paulo desejava que ninguém
pioneiro Die Neutestamentliche Formei “in Christo
jamais esquecesse que Jesus só pode ser Salvador
Jesu” (1892), declara que essa fórmula tinha sen
do mundo por ser o Messias judeu. Por isso, tal
tido tanto local quanto místico: Cristo, como uma
vez 0 uso paulino do termo Christos como nome
espécie de Espírito universal, é a própria atmosfe
para Jesus e as formas em que evitou utilizar o
ra em que os crentes viviam.
termo não fossem mera questão de hábito, mas
Um bom exemplo desse uso acha-se em 2Co-
uma tentativa de lembrar a uma igreja cada vez
ríntios 5.17; “Se alguém está em Cristo, é nova
mais gentílica a origem e a natureza judaicas do
criação” (cf. Fp 3.8,9; v.
Salvador e de sua salvação.
outra possível tradução é: “Se alguém está em
c r ia ç ã o ,
nova
c r ia ç ã o ;
0 termo Christos, estudado no contexto dos
Cristo, ah há uma nova criação”). Em outras pa
vários usos no corpus paulino, revela que o após
lavras, pode se dizer que congregações inteiras
tolo se baseou em algumas concepções antigas
estão “em Cristo”, assim como é possível dizer
do Messias e assim as amphou, transformando-as
que estão “em Deus” (cp. Cl 1.22 e Fp 1.1 com
e transcendendo-as. Para Paulo, o conteúdo do
ITs 1.1). Em várias outras passagens, parece
termo Christos teve origem principalmente no ad
haver um sentido locativo (ITs 4.16; G1 2.17;
vento de Cristo e na experiência que ele próprio
ICo 1.2; 15.18). A. Schweitzer, em The mysticism
teve do acontecimento. Sua pregação a respeito
of Paul the Apostle (1931), rejeita grande parte do
de Cristo conduziu a três elementos dos quais se
raciocínio de Deissmann, alegando que a sohda-
desconhecem precedentes no antigo judaísmo:
riedade que Paulo imaginava haver entre os cris
1) o Messias é chamado Deus; 2) afirma-se que
tãos e entre eles e Cristo era em parte de natureza
o Messias foi crucificado e que sua morte tem
física, ocorrendo por meio do rito do batismo de
efeito redentor; 3) espera-se que o Messias vol
água, e não mediante alguma experiência subjeti
te à terra. Os judeus não cristãos desconheciam
va alcançada mediante a fé. Sem dúvida, isso ex
a ideia de um Messias crucificado, bem como a
trapola as informações contidas em textos como
de uma segunda vinda do Messias. Também não
Gálatas 2.16 e Romanos 5.2, além de contradizê-
há indícios de que os antigos judeus estivessem
las. Ao que parece, a ideia de Schweitzer é pro
dispostos a chamar o Messias de “Deus” ou a
duto mais da própria compreensão da escatologia
considerá-lo alguém em quem habitava a pleni
judaica antiga do que do pensamento de Paulo.
tude da Divindade.
É fato que para Paulo Cristo está no crente (G1 2.20; Rm 8.10), mas a ideia não é tão caracte
5. A fórmula en Christõ
rística do apóstolo quanto a expressão en Christõ.
Foi provavelmente por uma reflexão cuidadosa
Não nos parece possível alegar que Paulo este
sobre alguns dos três elementos relacionados
ja simplesmente empregando um linguajar que
acima que Paulo veio a utilizar a expressão en
denota transferência de um domínio para outro,
Christõ (“em Cristo”) da maneira que a utiliza
nem seria possível eliminar totalmente o sentido
281
C risto ii : Paulo
en Christõ
den ota em vários casos.
Deus em Cristo proporcionou salvação e reconci
T am po uco se p o d e explicar esses textos apen as
liação a todos os povos, judeus e gentios, e até
c om o outra fo rm a d e d ize r q u e a lg u é m pertence
mesmo para o cosmo inteiro. A esfera cósmica
a Cristo ou qu e, p o r m eio de Cristo, h á conquistas
do papel de Cristo é particularmente evidenciada
locativo q u e
é um
nessas duas cartas. Por isso, não é de surpreen
conceito central d a perspectiva tanto lógica q u a n
der que essas cartas paulinas deem mais ênfase
p ara o crente. Para Paulo, estar en
Christõ
ao papel contínuo do Cristo exaltado que a maio
to teológica. N ã o se p o d e faze r n a d a com Cristo N in
ria das anteriores, embora não estejam ausentes
g u ém p o d e se a proxim ar do Pai m edian te o Filho
referências à morte e à ressurreição de Cristo.
o u p o r ele, a m enos q u e se esteja
en Christõ.
en Christõ.
Nessas duas cartas. Cristo é visto não apenas
então essa p esso a está
como salvador de indivíduos, mas também como
(v. Filho d e D e u s ) , a m en o s q u e esteja Se a lg u é m está
en Christõ,
[v. igreja). O s resul
governante cósmico. Em Cristo, acha-se o depó
tados de estar em Cristo são os m ais diversos: a
sito da sabedoria e do conhecimento de Deus
n o c orp o dele — a
ekklêsia
tran sform ação espiritual do ser h u m an o p o r m eio
(Cl 2.2-10), embora o mistério não seja esotérico,
d a m orte p ara o p ec a d o , a p osse do Espírito [v.
uma vez que está relacionado com a obra pública
Espírito Santo), o ato de se tornar n o v a criação ou
de Cristo na cruz e, em ambas as cartas, é cuida
criatura, a experiên cia d a ren o vação do ser inte
dosamente relacionado à comunidade da fé. De
rior e d a mente, a obten ção d a esperan ça e da
acordo com Efésios 1.22, Cristo está no controle
certeza de u m a ressurreição corp órea com o a de
do cosmo em prol da igreja, e em Efésios 5.32 se
Cristo e o fato de ser espiritualm ente u n id o a u m a
vê que o mistério diz respeito ao relacionamento
im ensa m ultidão de outros crentes, u m a entidade
de Cristo com sua igreja. Ademais, o relaciona
v iv a q u e Paulo c om p ara a u m corpo.
mento entre o domínio de Cristo sobre o cosmo
As imphcações teológicas da expressão en
e seu domínio sobre a igreja torna-se evidente
Christõ foram habilmente sintetizadas por Moule:
no hino de Colossenses 1.15-20 sobre Cristo, no qual tanto o cosmo quanto a igreja são mencio
Se é de fato verdade que Paulo imaginava a si
nados lado a lado.
mesmo e a outros cristãos "incluídos" ou "si
Entre as “palavras fiéis” que caracterizam as
tuados" em Cristo [...] isso revela um concei
Cartas Pastorais (q.v.), apenas duas acrescentam
to mais que individualista da pessoa de Cristo
algo novo ao conceito de Cristo revelado nas car
[... e] uma pluralidade de pessoas pode se
tas pauhnas anteriores. Em ITimóteo 6.13, faz-se
achar "em Cristo", assim como os membros es
referência ao testemunho de Cristo diante de Pila
tão inseridos no corpo
tos, desse modo apontando para um momento de
(M oule ,
p. 52, 65).
importância cristológica anterior ao da morte de Significa então que Paulo imagina o Cristo
Cristo. Anteriormente, em ITimóteo 1.15, lemos
exaltado como um ser divino em quem cristãos
que Cristo “veio ao mundo” com o objetivo espe
de qualquer lugar podem habitar. Ou seja, as
cífico de salvar pecadores. Esse tema situa ainda
ideias de Paulo sobre a incorporação dos crentes
mais atrás, na história de Jesus, os momentos de
em Cristo e o resultado disso, a saber, o fato de
importância cristológica, no mínimo chegando ao
estarem, portanto, em Cristo, sugerem a ideia de
início da vida humana de Jesus e, possivelmente,
um ser divino "em” quem todos os crentes po
com uma alusão à preexistência de Cristo (v.
dem habitar, ao mesmo tempo que revela um ser
t o l o g ia ) .
divino que pode estar “em” todos os crentes me
mais clara em outras passagens, nos hinos de Fili
diante a presença do Espírito.
c r is
Paulo expressa a última ideia de forma
penses 2.6-11 e Colossenses 1.15-20 sobre Cristo. Em ITimóteo 2.5, a ênfase recai na humanidade de Jesus como mediador entre Deus e a humani
6. Christos nas cartas paulinas contestadas Em Colossenses e em Efésios, encontramos um
dade. Por fim, deve se assinalar que as Pastorais
desenvolvimento ainda maior da cristologia pau
refletem certa predileção pela expressão “ Cristo
lina. Ele concentra a atenção no que é denomi
Jesus” ou, vez por outra, por “ Cristo Jesus” , ao
nado “o mistério de Cristo”. Esse mistério é que
lado de “ nosso Senhor”.
282
C risto hi: A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
O estudo do uso do termo Christos por Pau
e cristãos como equivalente do termo hebraico
lo nos permite captar a natureza do pensamento
mãshiah. Quando empregados como substantivos,
cristológico paulino, mas isso deve ser suplemen
os termos hebraico e grego referem-se a uma pes
tado por um estudo detalhado de outras ideias
soa ungida (v.
cristológicas importantes, como Senhor, Último
tos fosse adjetivo. Às vezes, os judeus usavam o
Adão e Filho de Deus.
termo mãshiah para designar um indivíduo ungido
Ver também c r is t o l o g i a ; d n tb : M
“
i) ,
embora na origem Chris
por Deus, um rei (SI 18.50; 89.20) ou um sacer
C r is t o ” .
em
C r is t o
dote
e s s ia n is m .
(c D
12.23,24; 14.19) ou viam essa pessoa
como aquela que viria restaurar ou renovar Israel. B
ib l io g r a f ia .
C ullm
ann,
0.
The christology o f the
É tênue a evidência de que, antes da época do
New Testament. Ed. rev. Philadelphia: Westmins
NT,
ter, 1963. ■ D a h l , N. A. The messiahship of Jesus
técnico para designar “ messias”
mãshiah — quanto mais Cristo — fosse termo (D
e
Jonge,
1986).
in Paul. In: ______ . The crucified Messiah and
Apesar disso, o uso do termo Christos na an
other essays. Minneapolis: Augsburg, 1974. p. 37-
tiga literatura cristã pressupõe esperanças judai
47. ■ D e Jonge , M. Christology in context. Philadel
cas de alguém ungido e se fundamenta nessas
phia: Westminster, 1988. ■ ______ . The earliest
mesmas esperanças, especialmente em alguém
Christian use of xpicrróç: some suggestions,
da hnhagem de Davi (v.
V.
32, p. 321-43, 1986. ■ ______ . The use of the
w o r d “a n o in ted ” in the time o f Jesus. p.
nts,
132-48, 1966.
■ D u n n , J. D . G.
versity in the New Testament:
NovT,
m ento )
v. 8,
Unity and di
j u d a ís m o e o
Novo
T
esta
. Nos Evangelhos e em Paulo, encontramos
0 uso de Christos como título ou termo que se refere a esse personagem muito aguardado, mas
an in qu iry into the
também vemos o termo sendo usado como se
character o f earliest Christianity. Philadelphia:
gundo nome de Jesus. Por exemplo, o Evange
W estm inster,
1977.
lho de Marcos começa anunciando que contará
■ G ru n d m a n n , W . XpiOTÓç
9.
540-62. ■ H engel,
M
as boas notícias a respeito de “Jesus Cristo” , não
“ C hristo s” in Paul. In:
Between Jesus arul Paul
de “Jesus, o Cristo” , embora não haja dúvida de
Ph ilad elph ia: Fortress,
1983,
TDNT.
[S.L: s.n., s.d .]. v.
p.
The origin o f Paul’s gospel m ans,
1982.
L on d on :
1966.
(s b t,
■ K im , S
que Marcos sabia que o termo antes era um títu
G ran d R apids: Eerd
lo (Mc 13.21,22). Essa dualidade também se vê
Christ, Lord, Son of God.
■ K ramer , W .
scm ,
65-77.
p.
50.)
■ M arshall,
origins o f New Testament christology. 1990 [1976].
cia, o termo é empregado como nome de Jesus,
D o w n e rs
especialmente no início de cartas (e.g., Rm 1.1;
B.
M.
ICo 1.1). Também está claro que Paulo conhece os antecedentes judaicos do termo. Por exemplo,
Christ and Spirit in the New
ele não justapõe “Cristo” a “ Senhor” , pois isso
studies in h on or o f C. F. D. M ou le.
significaria unir dois títulos, e parece que o uso
Smalley , S. S., orgs.
9:5.
■ M etzger ,
In: L indars ,
C am b rid ge : C am b rid ge U niversity Press,
95-112. •
nos escritos de Paulo, onde, com maior frequên
The
H.
B. &
G rove: InterVarsity,
T h e pun ctuation o f R om ans
Testament:
I.
M oule , C. F. D .
1973.
que Paulo faz do termo é basicamente resulta
p.
The origin of christology.
C am b rid ge : C am b rid ge University Press,
do de sua reflexão sobre a narrativa do flm da
1977. ■
vida de Jesus (ICo 1.23).
Judaisms
Fora dos Evangelhos e do corpus paulino, o
and their Messiahs at the turn o f the Christian era.
uso do termo Christos também se enquadra em
N eusner , J.; G reen , W . S.; F rerichs, E.
C am b rid ge: C am b rid ge U niversity Press,
V.
2.
p.
334-43. •
o f Jesus.
W
itherington ,
M in n e ap o h s: Fortress,
[S.L:
1987. ■
certos padrões definidos, alguns dos quais sus
s.n., s.d .].
tentam a ideia de que “ Cristo” era frequentemen
B. The christology
te usado como outro nome para Jesus de Nazaré
1990.
e, às vezes, para descrever um papel, função ou
B.
posição que assumiu em algum momento de sua
R engstorf , K. H. XpiaTÓç. n i d n t t .
W
it h e r in g t o n hi
carreira. 0 fato de que, em várias ocasiões, o C r is t o
h i:
G e r a is , A
A
tos,
H
ebreus,
C artas
mesmo documento (como Atos ou 1Pedro) pode refletir o uso de Christos tanto como título quanto
p o c a l ip s e
O termo grego Christos, traduzido por “Cristo”
como nome próprio mostra a flexibilidade com
em nosso idioma, é usado em contextos judaicos
que era possível utilizar o termo.
283
C risto iii : A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
Lucas ressalta a necessidade dos sofrimentos
1. Atos
e da ressurreição de Jesus (Lc 24.26,27), e nes
2. Hebreus 3. Tiago 0 Judas
se contexto assevera que o plano de Deus reve
4. 1 0 2Pedro
lado nas Escrituras era que “ o Cristo” sofresse
5. Cartas joaninas e Apocalipse
(At 17.2,3) e ressuscitasse (At 2.31, cit. SI 16.10;
6. Conclusões
V.
M
o essner) .
Nessas questões, o cumprimento
das Escrituras é ressaltado quando o contexto é 1. Atos
o da sinagoga ou de um púbhco judeu. Quando o
As 26 ocorrências de Christos em Atos referem-
púbhco é composto de gentios na maioria ou na
se a Jesus. Só raramente o termo ocorre em uma
totalidade, não simpatizantes da sinagoga nem
citação do
sem diivida porque é bem raro no
ligados a judeus, não aparece o termo Christos
grego. Mesmo assim, é fato que Atos 4.26 de
nem como título nem como descrição. Em vários
alguma forma cita Salmos 2.2, fazendo distinção
casos, não aparece nem mesmo em tais contextos
at
at,
entre Deus, como Senhor, e “ seu Ungido” (em
(v. os discursos de Paulo aos moradores de Listra
Atos, tou Christou autou). Textos como esse e
em At 14.15-17, e aos de Atenas em At 17.22-31).
outros, em que o possessivo “seu” aparece (cf.
Para um púbhco judeu, era crucial confessar que
At 3.18), deixam claro que o autor conhece o
Jesus é 0 Cristo (At 9.22; 17.3), ao passo que para
sentido da raiz da palavra Christos e entende sua
os ouvintes gentios era de suma importância con
natureza relacionai. Se alguém é o Cristo, tem de
fessar que alguém chamado Jesus Cristo é o Se
ser ungido por outra pessoa; nesse caso, o Pai.
nhor (cp. At 15.23 com 15.26). A comunidade de
Assim, quando encontramos a expressão “ nosso
judeus e gentios cristãos partilhava a confissão
Senhor Jesus Cristo” em Atos 15.26 e 20.21, ve
de Jesus como “nosso Senhor” (At 15.26; 20.21).
mos implícitos ambos os relacionamentos: Jesus
A pessoa devia ter fé nele (At 24.24; 20.21).
é 0 ungido de Deus e o Senhor do crente.
Não se deve ficar muito impressionado com
O autor de Atos debca claro que, para ser cris
Atos 2.36, pois, embora o texto não diga que
tão, é essencial confessar que Jesus é “o Cristo”
Deus fará Jesus se “tornar” o Messias (presu
[ho Christos, At 9.22; 17.3). No testemunho aos
mivelmente após a crucificação; v.
judeus na sinagoga, há uma insistência no assun
de) ,
to, justamente o assunto que teve de ser demons
fre (At 17.3). Na melhor das hipóteses. Atos 2.36
C r is t o ,
m orte
em outra passagem ele é o Messias que so
trado com base nas Escrituras, para que os judeus
dava a entender para o autor que Jesus, depois da
se tornassem seguidores de Jesus. Em Atos, pa
morte, entrou numa nova etapa em seus papéis e
rece que “ Cristo” funciona principalmente como
deveres messiânicos. É notável que esteja ausente
nome, quando o público é gentílico, mas pode se
de Atos a ideia pauhna de estar
prestar à descrição funcional ou título quando o
dos cristãos como participantes de seu corpo (v.
“ e m C r is t o ”
ou
público é judeu. A expressão “em/pelo nome de
CORPO
Jesus Cristo” ou alguma variante (At 2.38; 4.10;
de Cristo. A cristologia do autor já foi descrita
8.12; 10.48; 15.26; 16.18) mostra, entretanto, não
como “cristologia ausente” , uma vez que Lucas
apenas que Christos podia ser usado como par
ressalta que Cristo ascendeu aos céus e governa
te de um nome, mesmo num contexto judaico
de lá (cf. At 3.11-26;
de
C r is t o ) ,
ou
ainda a ideia da preexistência
R
o b in s o n
e
M
o ule).
(At 4.18, ressaltando-se que as autoridades ju daicas deixam de fora a palavra “ Cristo”), mas
2. Hebreus
também que se acreditava que confessar, invocar
Ao contrário de Atos, em Hebreus as referên
e proclamar seu nome ou orar e exorcizar em seu
cias a Cristo parecem muito mais próximas do
nome produziria acontecimentos miraculosos (v.
uso paulino (v.
MILAGRES, RELATOS DE M iLAG REs),
sões e curas. 0
íncluíndo-se conver-
W
it h e r in g t o n ,
1991), não só na
frequência com que Cristo aparece como nome
“em nome de Jesus Cristo”
e não tanto como uma descrição ou título, mas
é entendido como o rito característico de entra
também na ideia de partilhar ou ser parceiro de
da para judeus e cristãos na comunidade cristã
Cristo (Hb 3.14). Parece que “ Cristo” é um nome
(At 2.38; 10.48; v.
(Hb 5.5; 6.1; 9.11,24,28) para um ser humano
b a t is m o
Jones).
284
C risto hi; A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
de carne e osso (Hb 9.14; 10.10), mas é também
4. 1 e 2Pedro
muito mais que isso, pois “Jesus Cristo é o mes
As cartas IPedro e 2Pedro refletem uma variedade
mo, ontem, hoje e eternamente” (Hb 13.8), sendo
de usos do termo “ Cristo”, e, como cada uma das
também aquele por quem Moisés pôde sofrer an
duas cartas manifesta uma tendência diferente,
tecipadamente (Hb 13.26).
elas merecem ser tratadas de forma separada. Por
Em Hebreus,
nota-se algo característico,
exemplo, em IPedro encontramos a fórmula en
que é a ideia de filiação relacionada ao termo
Christõ (IPe 3.16; 5.14). Já em 2Pedro encontra
“ Cristo” (cf. Hurst;
mos a expressão “ nosso Senhor e Salvador Jesus
v
. F il h o
de
Deus). O texto
de Hebreus 3.6 afirma que Cristo, na condição
Cristo” (2Pe 1.11; 2.20; 3.18)
(R
ic h a r d ,
p. 380-96).
de Filho, é fiel sobre a casa de Deus, e, em He
Em IPedro, há uma importante ênfase no so
breus 5.5, Cristo é quem recebe glorificação,
frimento e na ressurreição de Cristo (IPe 1.2,3,
sendo aquele a quem Deus eleva à realeza, pois
11,19; 2.21; 3.18,21; 4.1; 5.1). O autor também
foi Deus quem lhe disse: “Hi és meu Filho, eu
destaca, no estilo paulino, que o crente pode par
hoje te gerei” (cit. SI 2.7, parte de um poema de
tilhar desses sofrimentos ou de outros de nature
coroação). Notadamente ausente em toda a rica
za semelhante (IPe 4.13; cf. Fp 3.10). O autor de
análise cristológica de Hebreus é a discussão ou
IPedro também não reluta em se referir à volta
a explicação de Jesus como o Cristo, o Ungido,
de Cristo, nesse caso denominada “revelação de
a menos que consideremos que as ponderações
Jesus Cristo” (IPe 1.7, en apokalypsei lêsou Chris
em torno da filiação tomem o lugar dessa aná
tou; IPe 1.13). Também existe, em IPedro 1.11, a
lise. O autor está muito mais interessado no pa
menção ao Espírito de Cristo, que inspirou e ilu
pel de Jesus como sacrifício e sacrificador — o
minou os profetas do at. O autor parece endossar
sumo sacerdote celestial. A influência pauhna
a preexistência de Cristo, mas não discorre sobre
sobre esse documento torna improvável a teoria
0 assunto (cf. IPe 1.20; 2.4; Hanson e Craddock;
de J.
G. Dunn, segundo a qual em Hebreus
cp. com Dunn, 1980). Ele também emprega a ex
1—2 o autor está se referindo à preexistência de
pressão “o nome de Cristo”, o qual pode desper
uma ideia, não à preexistência da pessoa do Fi
tar o ódio contra os que o levam consigo ou que
lho/Cristo (cf.
dele dão testemunho (IPe 3.15). O autor parece
D.
D
unn
,
1980, e também Craddock
e Schweizer).
entender o caráter relacional do termo “Cristo” , pois se refere ao “Deus e Pai de [...] Jesus Cristo”
3. Tiago e Judas
(IPe 1.3).
Quase nada precisa ser dito sobre o uso de Chris
Em 2Pedro, o uso é menos variado, sendo a
tos em Tiago, visto que o termo aparece apenas
passagem mais intrigante aquela que faz refe
duas vezes (Tg 1.1; 2.1) — nos dois casos, um
rência ao “nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”
único e longo nome próprio, “o [nosso] Se
(2Pe 1.1). Parece ser um exemplo claro do
nhor Jesus Cristo” , sendo “Cristo” usado como
que Jesus é chamado Deus (cf.
H
a r r is ,
nt
em
1992). A
nome. Há seis referências a Cristo em Judas, to
carta ressalta a ligação do termo “ Cristo” com o
das do mesmo tipo que encontramos em Tiago
termo “ Salvador” [sõíêr]. Das oito referências
(Jd 4,17,21,25) ou mesmo mais curtas (“Jesus
a Cristo nessa carta, metade delas (2Pe 1.1,11;
Cristo”, Jd 1 [2 vezes]). Tiago, Judas e Hebreus
2.20; 3.18) associa os dois termos.
contêm pouca reflexão acerca de Jesus como o
fase especial no conhecimento de Jesus Cristo
Há
uma ên
Cristo, embora pareçam cartas dirigidas a um
(2Pe 1.16; 2.20; 3.18). Ao longo de todo o tex
púbhco com um bom número de judeus ou cris
to, o autor emprega claramente o termo “Cristo”
tãos judeus. Talvez a explicação esteja no fato
como parte de um nome (e.g., 2Pe 1.1), como
de esses documentos não serem apologéticos ou
ocorre em IPedro. Em 2Pedro, Jesus Cristo não
evangelísticos: foram escritos para aqueles que já
é visto como simples herói da Antiguidade, pois
estão convencidos de que Jesus é o Cristo. Em
em 2Pedro 1.14 ele revela ao autor que o tem
contraste, Lucas-Atos, que, conforme se acredita,
po de sua morte estava próximo. É possível que
é o único documento no wi escrito por um gentio,
2Pe 1.16—2.4 seja uma fonte petrina para essa
demonstra interesse considerável pelo assunto.
passagem, pois essa seção tem fortemente em
285
C risto iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
comum com IPedro não só o vocabulário, mas
Jesus Cristo ou a respeito dele (Ap 1.1; provavel
também as ideias, incluindo-se a forma em que o
mente a primeira está sendo ressaltada), a qual
termo “ Cristo” é usado nessa subseção (cp. IPe
também é um testemunho [martyrian] acerca
3.1 com 2Pe 1.16; v.
W
it h e r in g t o n ,
1985).
de Jesus Cristo (Ap 1.2), abrangendo tudo o que vem em seguida em Apocahpse. Jesus Cristo é a
5. Cartas joaninas e Apocalipse
testemunha fiel que revela todas essas coisas e
À semelhança do autor de Hebreus, o autor das cartas joaninas (v.
Jo ão , C artas
de)
tende a aliar
delas testifica. O autor sabe que Christos é mais que um
ideias sobre fihação com o nome Jesus Cristo.
nome, como fica claro na alusão a ideias do
Lemos repetidamente acerca de “seu Filho Jesus
que se referem a Deus como Senhor e ao Cristo
Cristo” (IJo 1.3; 3.23; 5.20; 2Jo 3). Há também
de Deus (Ap 11.15, apoiado num grande nú
at
uma ênfase especial à necessidade de o crente
mero de textos, entre os quais SI 10.5; 22.28;
verdadeiro confessar que “Jesus Cristo veio em
Dn 7.14; Zc 14.9). O texto de Apocalipse 12.10,
carne” (IJo 4.2; 2Jo 7), provavelmente num refle
que fala do poder ou autoridade do Messias de
xo da necessidade de combater ensinos docéticos
Deus, também deixa isso claro. Entende-se que
ou protognósticos (v.
disseminados
os mártires de Apocalipse 20.4 são os que ressus
por alguns falsos mestres que haviam frequen
citarão e reinarão com Cristo durante mil anos,
tado a comunidade joanina (v.
g n o s t ic is m o )
. Em
dando a entender que o papel de Cristo não aca
IJoão 2.22, percebemos que confessar que Jesus
bou com o que Jesus realizou durante seu minis
é 0 Cristo também é entendido como algo crucial
tério terreno. 0 texto diz que esses mártires são
a d v e r s A r io s )
para sua comunidade.
sacerdotes não somente de Deus, mas também
Nessas cartas, não se deve menosprezar o
de Cristo (Ap 20.6). 0 autor não tem nenhuma
interesse especial pela confissão, e é impressio
dificuldade em fazer distinção entre Deus e Cris
nante a natureza encarnacional do que se deve
to, mas também claramente define Cristo em ter
confessar. Enganadores e anticristos são aqueles
mos, papéis e funções divinos (Ap 19.16). Cristo
que não confessam que o Cristo veio em carne,
é aquele que, dos céus, dispensa graça ao povo
na pessoa de Jesus (2Jo 7). Tendo em vista o
de Deus (Ap 22.21). Assim, tanto o título “Cristo”
conteúdo da confissão, o texto mais importante
quanto essa mesma palavra usada como nome
(IJo 5.6) refere-se não aos sacramentos, mas ao
são evidentes nessa obra, embora o uso como
nascimento (água) e à morte (sangue) de Jesus
nome seja notável apenas no início do documen
Cristo — os dois meios pelos quais ele vem ao
to. Talvez o objetivo seja orientar o ouvinte ou
crente (v.
leitor, que está na iminência de ser apresentado a
W
it h e r in g t o n ,
1989). 0 autor das cartas
também conhece o conceito de komõnia em Jesus
uma multidão de imagens apocalípticas (cf.
Cristo e com ele (IJo 1.3). Em IJoão 5.20, ele faz
d m ann).
referência ao fato de o crente estar não apenas na
ginal messiânico de Christos ainda era conhecido
verdade, mas também “em seu Filho Jesus Cris
no úldmo decênio do século i (cf.
G
run
Apocahpse mostra que o significado ori D
e
Jo ng e ,
1992).
to”. Permanecer em Cristo implica permanecer no ensino de Cristo (2Jo 9), provavelmente aquele
6. Conclusões
mencionado nas declarações confessionais. Jesus
Esforçamo-nos para mostrar o rico e variado uso
Cristo é entendido como alguém intimamente as
da palavra Christos nas cartas não paulinas e em
sociado ao Pai, de modo que as bênçãos divinas
Apocalipse. As conclusões a seguir parecem en
da graça, da misericórdia e da paz chegam ao
tão confirmadas.
crente vindas da parte de ambos (2Jo 3).
Ao que tudo indica, não existe clara distin
0 termo Christos não aparece em 3João.
ção entre a forma em que os cristãos helénicos
Apesar da profusão de imagens de Cristo
e os cristãos judeus lidavam com o conceito do
em Apocalipse (v.
termo
“ Cristo” como simples nome, e alguns documen
“Cristo” aparece ali apenas oito vezes, metade
tos supostamente menos judaicos refletem algum
A
p o c a l ip s e ,
L iv r o
de) ,
o
nos versículos iniciais e finais do documento. 0
conhecimento dos antecedentes judaicos desse
vidente João recebe uma revelação da parte de
conceito.
286
C risto in: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
0 termo “ Cristo” é às vezes usado indiscri
DLNTo: D o c e t is m ; L a m b ; P r e e x i s t e n c e ; S h e p h e r d ,
minadamente para designar qualquer das fases
F lo c k ; S to n e , C o r n e r s to n e .
da carreira de Cristo, ou mesmo todas elas, in cluindo-se, aparentemente, sua existência pré e
B ib u o g r a fia .
pós-encarnação. Pode se dizer que há pouquíssi
Christ in the New Testament. Nashville: Abingdon,
C rad d ock ,
The préexistence of
B.
F.
ma ou mesmo nenhuma evidência de tendências
1968.
adocianistas.
tament. Philadelphia: Westminster, 1963. ■
• C u llm a n n , O.
The christology of the New Tes D a h l,
“ Cristo” é muitas vezes usado como nome e
N. A. Jesus the Christ: the historical origins of chris-
às vezes como título, mas também aparece como
tological doctrine. Minneapolis; Augsburg, 1991. ■
descrição de um relacionamento. Jesus é o ungi
D e Jonge,
do de Deus, mas o Senhor do crente.
914-21,1992. • ______ . The earliest Christian use of
É notável que os textos em questão evitem
Christos.
M. Christ,
[S.L: s.n., s.d,]. v. 1. p.
abd.
32, p. 321-43, 1986. • ______ . The
NTS, V.
justapor os dois títulos, “Senhor” a “ Cristo” , o
use of the expression ho Christos in the Apocalypse
que sugere que os primeiros autores cristãos co
of John. In:
nheciam os antecedentes do termo “ Cristo” e sa
nique et l’apocalyptique dan le Nouveau Testament.
biam que não era meramente um nome, mesmo
Gembloux: Duculot/Louvain: Leuven University,
org. VApocalypse johan-
J.,
L a m b re c h t,
quando não tornam isso explícito ao deixar de
1980.
chamar Jesus de “o Cristo”.
making. Philadelphia; Westminster, p. 51-6,1980. •
Uma ausência notável em todo esse material é F il h o
do h om em
53.)
• D unn,
______ . Christology ( n t ) .
a tentativa de explicar o termo “ Cristo” mediante
0 emprego da expressão “o
{b e tl,
979-91.
9.
p.
T.
fontes que estivemos examinando, mas é possí
1965.
G. Christology in the
[S.L: s.n., s.d.]. v. 1. p.
abd.
527-80.
EDNT. [S.I.; S.n., s.d.]. v.
mo Chrístos não são enfatizados na maioria das
D.
• G rundmann , W . X p i u XpiaTOÇ k t A . td n t.
[S.I.; s.n,, s.d.]. v.
”.
Os antecedentes régio e messiânico do ter
J,
3.
p.
■ H ah n , F. XpiaTÔç.
478-86.
Jesus Christ in the Old Testament. ■ H arris, M , J.
Jesus as God:
■ H anson , A. L ondon:
spck,
the N e w Testa
vel alegar que são determinantes no modo em
ment use of
Theos
in reference to Jesus. G rand Ra
que 0 termo é empregado na maioria dos casos
pids: Baker,
1992.
• H engel, M .
(cf.
Paul.
H
ahn
).
Como defendem alguns, o distanciamento
Philadelphia: Fortress,
T he priestly M essiah,
Between Jesus and
1983.
■ H iggins, A . J. B.
13,
211-39, 1967.
nts, v .
p.
entre judaísmo e cristianismo primitivo no final
H ughes, P.
do século I acelerou o processo, e Jesus passou a
p.
ser aberta e frequentemente chamado Deus. Isso
brew s
pode ter acontecido, mas é digno de nota que al
The glory o f Christ in the New Testament.
guns antigos judeus tenham chegado a empregar
O xford University Press,
um vocabulário de exaltação ao se referir a vários
do,
agentes, sobrenaturais (angéhcos) e humanos,
1988.
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32,
entre Deus e a humanidade (cf.
H
u rtado) .
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T he script
sa hipótese é que o linguajar vividamente cris
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History, literature and
em última instância, a uma parte da linguagem
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ra residisse na Torá (Eo), hipostasiar a Sabedoria
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(Sb) e usar o termo theos para designar Cristo (no
ves on First Peter.
nt
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as penas de tortura mencionadas na hteratura
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da Antiguidade, a crucificação era uma das mais
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horrendas. Não causava danos em nenhum ór
SCM,
logy and gnosticism. In; S.
il s o n ,
gão vital, nem provocava sangramento excessivo. Com isso, a morte chegava lentamente, às vezes
H
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M. D. & W
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depois de vários dias, quando o condenado entra
The christology of Acts again. In;
va em choque, ou por consequência do processo
orgs. Christ and Spi
doloroso de asfixia, à medida que os músculos
spc k,
S m a l l e y , S . S .,
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empregados na respiração sofriam fadiga cada
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vez maior. Com frequência, o que aumentava a
W
it h e r in g t o n
III,
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desonra é que não se concedia permissão para enterrar a pessoa, e o corpo ficava na cruz, ser vindo de carniça ou apodrecendo.
1994. • ______ . Paul’s narrative thought world:
A crucificação era, em última instância, um
the tapestry of tragedy and triumph. Louisville;
assunto púbhco. Nua e presa a um poste, cruz ou
Westminster/John Knox, 1994. ■ ______ . A Petri-
árvore, a vítima era submetida a escárnio cruel
ne source in 2nd Peter?
p. 187- 92, 1985. ■
pelos transeuntes, ao mesmo tempo que o povo
______ . The waters of birth—John 3;5 and 1 John
em geral era lembrado do horrível destino dos
5;6-8.
que se punham contra a autoridade do Estado.
NTS, V.
sb lsp,
35, p. 155-60, 1989. B.
W
i t h e r i n g t o n iii
Na literatura que sobreviveu da Antiguidade, são raras as descrições do ato da crucificação. 0
C r is t o , d iv in d a d e d e .
Ver c r is t o l o g i a
motivo não é a falta de frequência dessa forma de
ii.
execução, e sim as preocupações de ordem estétiC r is t o ,
m orte de i:
E vangelh o s
co-literária. Membros da elite literária e culta he
A crucificação de Jesus sob o comando de Pôncio
sitavam em se delongar sobre esse ato horrendo e
Pilatos figura entre os acontecimentos da vida de
brutal. Aliás, até mesmo as narrativas da Paixão
Jesus que são mais inegáveis da perspectiva histó
nos Evangelhos, que M. Hengel considera as mais
rica e mais fecundos do ponto de vista teológico.
detalhadas descrições do gênero
1. A crucificação no mundo antigo
(H
engel,
1977,
p. 25), são notadamente breves quando relatam o
2. A crucificação de Jesus
ato da crucificação em si. Evitando todos os deta
3. Por que Jesus foi crucificado?
lhes, simplesmente relatam que “ o crucificaram”
4. A morte de Jesus no Evangelho de Mateus
(Mt 27.35; Mc 15.25; Lc 23.33; Jo 19.18).
5. A morte de Jesus no Evangelho de Marcos 6. A morte de Jesus no Evangelho de Lucas
Mesmo quando encontramos descrições, fica óbvio que a crucificação não era praticada de
7. A morte de Jesus no Evangelho de João
maneira uniforme ou de acordo com um padrão. A verdade é que os relatos nem sempre deixam
1. A crucificação no mundo antigo
claro se a crucificação aconteceu antes ou depois
Apesar de sua crueldade como forma de castigo,
da morte da vítima, nem se em cada caso a víti
a crucificação foi praticada em todo o mundo an
ma foi amarrada ou pregada ao poste, ou se uma
tigo. Era usada como método de execução. Em
trave era sempre empregada. No mundo romano,
algumas ocasiões, foi usada para empalamen-
porém, a forma de crucificação era, ao que tudo
to após a morte entre persas, indianos, assírios
indica, mais uniforme; incluía um açoitamento
e outros; e, mais tarde, entre gregos e romanos.
prévio, e as vítimas em geral carregavam a trave
Alguns indícios dão conta de que a crucificação
até o local da crucificação, onde eram pregadas
foi empregada como método de execução pelos
ou amarradas à cruz, com os braços estendidos
judeus antes da época de Herodes, o Grande
e erguidos para cima, talvez sentadas numa se-
sefo,
(J o
C uja, 1.4.6, ■ 97-8; An, 13.14.2, ■ 379-83;
llQTemple 64.6-13).
dícula ou pequeno assento, isto é, uma pequena cavilha de madeira
288
(H
eng el,
1977, p. 22-32).
C risto , morte de i : Evangelhos
Mesmo no mundo romano, o procedimento
tinha os pés colocados um de cada lado da viga
estava sujeito a variações, dependendo do ca
vertical. Além disso, não tendo encontrado ne
pricho dos carrascos. Por exemplo, no relato de
nhum claro indício de ferimento traumático nos
Josefo sobre o cerco romano a Jerusalém, o qual
ossos dos antebraços ou das mãos, ambos pro
ele presenciou, o autor observa que centenas de
põem que a vítima foi amarrada, não pregada à
prisioneiros judeus foram “açoitados e submeti
trave. Por fim, questionaram a teoria de que os
dos a tortura de toda espécie [...] e depois cruci
ossos dos membros inferiores foram quebrados
ficados do lado oposto aos muros da cidade”. Na
antes da morte.
esperança de que a cena repulsiva induzisse os
Embora essa descoberta acrescente dados
judeus a se render, Tito, o comandante romano,
arqueológicos às descrições literárias da crucifi
deu a seus soldados a liberdade de prosseguirem
cação, ainda assim fica claro que a escassez de
com as crucificações como bem quisessem. “Mo
dados antropológicos dessa natureza restringe o
vidos de raiva e ódio, os soldados se divertiam,
grau de certeza com que podem ser interpretados.
pregando os prisioneiros em diferentes posições” (JosE FO ,
1.2 Crucificação: punição militar e política.
Gaju, 5.11.1, § 449-51).
Como regra, os cidadãos romanos eram poupa
Dados arqueológicos relacionados com a prá
dos dessa forma de execução, embora, em casos
tica da crucificação na Palestina do século i são
extremos (e.g., traição à pátria), fosse possível
ainda mais esparsos. Em 1968, foi encontrado
impor morte por crucificação. Entre os romanos,
um ossuário que estava numa caverna encoberta
de modo mais geral, a crucificação era uma pena
em Giv’at ha-Mivtar, no norte de Jerusalém. Con
reservada aos de nível social inferior, a saber,
tinha os ossos de um homem adulto que havia
bandidos perigosos, escravos e o populacho de
morrido depois de crucificado no período entre
províncias estrangeiras. Entre eles, a crucificação
o início e a metade da década de 60, do século i
era um meio de afirmar a autoridade romana e
d.C. Um estudo inicial do que restou do esquele
manter a lei e a ordem. Desse modo, na província
to mostrava a possibihdade de um prego ter sido
da Judeia, revelou-se uma arma eficaz contra a
fincado nos antebraços, tendo os ossos calcâne-
resistência à ocupação romana.
os sido perfurados por um único prego de ferro.
1.3 Crucificação: estigma interpretativo. No
Descobriu-se que esse prego ainda estava preso
importante levantamento que fez na literatura an
ao que os investigadores interpretaram como os
tiga a respeito do tratamento dispensado à cruci
ossos de ambos os calcanhares. Fragmentos de
ficação, Hengel pesquisou se fora do cristianismo
madeira encontrados em ambas as extremidades
primitivo a morte por crucificação chegou a ser
do prego davam sinal de que o prego atravessara
interpretada de modo positivo. No mundo gen
primeiro uma pequena placa de madeira, depois
tílico, ele encontrou no estoicismo o emprego da
os pés da vítima e por úhimo uma viga de ohvei-
crucificação como metáfora “para o sofrimento
ra na posição vertical. Ao que parece, num ges
do qual o sábio consegue se hvrar apenas me
to de misericórdia, as canelas foram quebradas
diante a morte, que liberta a alma do corpo a que
intencionalmente.
está presa”
(H e n g e l,
1977, p. 88; cf. p. 64-8). En
J. Zias e E. Sekeles recentemente reavaharam
tretanto, com exceção disso, a crueldade da cruz
0 que restou do esqueleto encontrado no referido
parece ter proibido toda interpretação ou metáfo
ossuário, comparando-o a fotografias, moldes e
ra positiva da morte por crucificação.
radiografias. Com base nesse exame, propuseram
Se isso era válido para o mundo gentio, mais
várias correções a descobertas anteriores. Mais
ainda seria para o judeu. Uma vez que os roma
importante ainda, chegaram à conclusão de que
nos faziam amplo uso da crucificação como meio
0 prego de ferro, ainda intacto, havia passado do
de intímidar o nacionalismo judaico, é natural
lado direito para o lado esquerdo do osso do cal
concluir que a cruz era símbolo de martírio. Con
canhar (calcâneo) direito. 0 resultado é um qua
tudo, além da humilhação e da brutalidade asso
dro diferente do homem crucificado, pois nessa
ciadas a essa forma de execução, para os judeus
reconstrução os pés não estavam afixados com
havia um obstáculo adicional de natureza profun
um único prego, mas a vítima ao que tudo indica
damente religiosa.
289
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
Já no século i de nossa era, sabia-se que a ví
cronológica gira, portanto, em torno da relação
tima da crucificação se enquadrava nas palavras
dessa sexta-feira com a Páscoa. Admitíndo-se o
de Deuteronômio 21.22,23, a saber, especifica
sistema judaico, em que o dia ia de um pôr do
mente "o que for pendurado no madeiro é mal
sol a outro, a refeição da Páscoa teria sido comida
dito de Deus”
na noite de 15 de nisã. Os Evangelhos Sinótícos
(ar a).
Nesse contexto, a passagem
refere-se à exposição pública do cadáver de um
(e.g., Mc 14.12-16) relatam a Última Ceia como
criminoso executado. Mas há no
uma refeição pascal ocorrida na noite da quinta-
nt
indícios de
que esse sentido havia se amphado considera
feira, 15 de nisã. Com isso, no cálculo deles, o dia
velmente dentro da igreja primitiva, a ponto de
da prisão, do julgamento e da morte de Jesus foi
incluir pessoas que haviam sido crucificadas. Isso
15 de nisã, o dia da Páscoa. Entretanto, o Evange
se vê nas alusões a Deuteronômio 21.22,23 (e.g.,
lho de João dá 14 de nisã como a data da morte
At 5.30; 13.29; IPe 2.24) e na inegável citação
de Jesus, o dia dos preparativos para a Páscoa
de Deuteronômio 21.23 que Paulo faz em Gála
(13.1-4; 18.28; 19.14,31).
tas 3.13. Antes, com exceção do cristianismo, da
Se compararmos essas conclusões com os
dos presentes na literatura de Qumran (4QpNah
dados astronômicos relacionados, supondo que
3—4.1.7-8; llQTemple 64.6-13) e também nos
Jesus tenha sido crucificado por volta de 30 d.C.,
escritos de Filo, judeu alexandrino do século i [Sp
chegamos às seguintes opções; de acordo com o
le, 3.152; Po Ca, 61; So, 2.213), confirmam que no
cômputo joanino, Jesus foi executado ou em 3 de
judaísmo as vítimas de crucificação podiam ser
abril de 33 d.C., ou em 7 de abril de 30 d.C.; de
tidas como malditas. Desse modo, a cruz não po
acordo com o cômputo dos Sinótícos, 27 d.C. ou
dia ser interpretada positivamente como símbolo
34 d.C. seriam os anos prováveis. Devemos acei
da resistência judaica.
tar o cômputo joanino ou o dos Sinóticos?
2. A crucificação de Jesus
problema. Para alguns estudiosos, os Sinóticos
A crucificação de Jesus de Nazaré sob o comando
preservaram a cronologia correta e João revisou
Há três caminhos propostos para a solução do
de Pôncio Pilatos é bem confirmada em fontes
a tradição para apresentar Jesus mais completa
cristãs e não cristãs. É relatada nos quatro Evan
mente como 0 Cordeiro Pascal. É verdade que
gelhos, no centro de relatos da Paixão altamente
João tem uma preocupação teológica dessa na
minuciosos, e citada como acontecimento históri
tureza (cf. Jo 1.29,36; 18.28; 19.14,31,36,37). No
co em todo o
especialmente em Paulo. O his
entanto, um estudo recente de crítica da redação
toriador latino Tácito menciona a morte de Jesus
revelou como altamente provável que a crono
nos Anais: “ Cristo [...] sofreu pena de morte no
logia joanina lhe tenha chegado por meio de
nt
,
reinado de Tibério, por sentença do procurador
sua tradição da Paixão
Pôncio Pilatos” (15.44). Num texto de autentici
Outros acreditam que o relato dos Sinóticos é
dade questionada, Josefo relata que Pilatos con
tendencioso, resultado da tentatíva criatíva de
denou Jesus a ser crucificado
An, 18.3.3,
Marcos de apresentar a Última Ceia como uma
§ 63-4). Por essas e outras razões, a historicidade
refeição pascal. Essa opinião deixa de considerar
da morte de Jesus na cruz está fora de dúvida
0 caráter integrado que têm os elementos da Pás
(J o s e f o ,
(D
auer,
p. 133-6, 140-2).
1988, p. 1). No entanto, três aspectos en
coa na tradição sinótíca, bem como o grau em
contram vários problemas: nossa capacidade de
que até mesmo a narratíva joanina da Última Ceia
datar a crucificação, a historicidade de alguns de
é de caráter pascal
(G
reen,
talhes registrados nos relatos da crucificação e a
(G
reen,
1988, p. 113-6).
Muitos intérpretes têm procurado harmonizar
interpretação da morte de Jesus por ele próprio e
as cronologias sinótíca e joanina. Duas dessas
por seus primeiros seguidores.
teorias são especialmente dignas de nota. Na pri
2.1
A data da crucificação de Jesus. Os qua meira, alguns têm defendido a ideia de que ga-
tro Evangelhos narram a execução de Jesus numa
Mleus (como Jesus e seus discípulos) e fariseus
sexta-feira — ou seja, no dia anterior ao dia judeu
contavam o dia de um nascer do sol a outro, ao
de descanso, o sábado (Mt 27.57,62; Mc 15.42;
contrário dos da Judeia e dos saduceus, que con
Lc 23.54; Jo 19.31,42). A principal questão
tavam de um pôr do sol a outro. Desse modo.
290
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
a refeição pascal (Última Ceia) foi celebrada na
Alguns estudiosos continuam a prática, agora
noite de quinta-feira, 14 de nisã, por Jesus, seus
ultrapassada, de ir retirando as camadas de in
discípulos e outros galileus. Os da Judeia partici
terpretação teológica para chegar ao núcleo his
param da refeição pascal na noite de sexta-feira,
tórico do relato. No entanto, os acontecimentos
15 de nisã. Para outros, é mais plausível a teoria
relatados, justamente pelo fato de serem relata
de que a Páscoa foi celebrada em dois dias dife
dos, são sempre interpretados. Por esse motivo,
rentes no ano da crucificação, por causa da dis
embora a tarefa de apurar a plausibilidade his
paridade entre os calendários dos fariseus e dos
tórica desses acontecimentos narrados continue
saduceus. Ambas as interpretações exigem dois
sendo importante, são desencaminhadas as ten
dias consecutivos de sacrifícios pascais, uma pos
tativas de separar a teologia da história.
sibilidade para a qual não dispomos de indícios
2.2.1
As tradições a respeito da crucificação.
claros. Ao mesmo tempo, podemos imaginar que
A maioria dos estudiosos supõe que Marcos foi a
isso era permitido para manter a paz entre os di
única fonte narrativa que Mateus obteve sobre a
ferentes grupos dentro do judaísmo do século i (v.
crucificação. Com toda a probabilidade, o quar
a análise em
to Evangehsta empregou uma fonte própria, que
M
arsh all,
p. 57-75, 184-5).
Resta concluir que Jesus foi crucificado em
não era marcana
(D
auer;
G
reen,
1988, p. 105-34).
14 de nisã — ou seja, 7 de abril de 30 d.C. ou
No passado, alguns comentaristas trabalharam
3 de abril de 33 d.C. A última data é corrobora
bastante com a hipótese de que o relato de Lucas
da pela necessidade que Pilatos tinha de aplacar
também fosse, na maior parte, independente da
os judeus e assim se manter “amigo de César”
narrativa marcana (e.g.,
(Jo 19.12), sendo também confirmada por sua
mente, porém, tem se conferido maior destaque à
recém-estabelecida amizade com Herodes (cf.
modelagem criativa por parte de Lucas do relato
Lc 23.12). Esses dois fatos são mais bem enten
marcano (e.g..
M
atera,
T
aylo r ).
p. 150-220;
Mais recente
N
eyrey) .
didos se levarmos em conta a mudança na polí
Entretanto, vários indícios apontam para o
tica de Pilatos para com os judeus depois de 32
fato de que Lucas, em seu relato da crucificação
d.C.
p. 71-114). Entretanto, a data de
de Jesus, fez uso de material antigo, de tradição
33 d.C. apresenta alguns problemas, pois compri
não marcana, embora os estudiosos discordem
me o tempo disponível para o movimento cristão
quanto
subsequente e a missão pauhna.
86-101). Primeiro; ele inclui material significativo
(H
2.2
oehner,
à
natureza desse material
(G
reen,
1988, p.
Os relatos da crucificação. Assim como não encontrado em Marcos, o qual, submetido a
o restante do relato da Paixão, a crucificação de
anáhse literária cuidadosa, não parece ser fruto da
Jesus não é recontada apenas para registrar o que
habilidade criativa de Lucas. Esse material inclui;
aconteceu. Esse acontecimento, a execução de
a advertência a Jerusalém, em Lucas 23.27-31;
Jesus numa cruz, foi algo tão chocante e infame
a oração intercessora de Jesus feita na cruz, em
que exigiu interpretação e legitimação. 0 resulta
Lucas 23.34; a interação de Jesus com os crimi
do é uma tapeçaria firmemente entretecida que
nosos crucificados, em Lucas 23.39-49; a des
reúne tanto o acontecimento em si quanto sua
crição do arrependimento das multidões, em
interpretação, e o último dependendo em grande
Lucas 23.48.
parte de referências do
Assim, as vestes de
Segundo; em alguns casos, Lucas narra epi
Jesus são divididas (SI 22.18). Ele é crucificado
sódios também relatados em Marcos, mas apre
com dois criminosos (Is 53.12). É ridicularizado
sentados de forma diferente o bastante para levar
(SI 22.7; 70.3) e insultado (SI 42.10). Oferecem-
a crer que ele está usando o material de outra
lhe vinho (SI 69.21; Pv 31.6). Ele clama da cruz
tradição. Exemplo desse fenômeno é o uso de
(SI 22.1; 31.5). É reconhecido como Filho de Deus
Salmos 22.7 quando se menciona que Jesus era
(cf. Sb 2, 4—5) ou como o Justo (Is 53.11) e, des
zombado pelos que passavam. É interessante
sa forma, é vindicado depois desse tratamento
que Marcos 15.29,30 revela a influência da parte
cruel (Is 52.13-15; 53.10-12). As narrativas da
final de Salmos 22.7 (“balançavam a cabeça”),
at.
crucificação demonstram que Cristo morreu “se
enquanto Lucas 23.35 foi influenciado pela pri
gundo as Escrituras”.
meira metade (“ ridicularizavam”). Isso sugere a
291
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
importância de Salmos 22.7 na tradição primiti va da Paixão e indica que essa tradição chegou
Vários outros aspectos da crucificação de Je sus merecem uma rápida análise.
até Marcos e Lucas de modo independente um
A localização do Gólgota. Todos os Evange
do outro. Outros exemplos que merecem nota in
lhos mencionam o Gólgota como local da execu
cluem os relatos sobre as palavras finais de Jesus
ção de Jesus. Mateus, Marcos e João traduzem o
proferidas na cruz (v. abaixo] e a confissão do
aramaico gülgaltâ (hebr., gulgôlãt] por “Lugar da
centurião.
Caveira”. Lucas evita topônimos aramaicos e diz
Terceiro; alguns aspectos da narrativa lucana
simplesmente “ Caveira”, tradução mais precisa.
que se distanciam de Marcos encontram parale
Muitas tentativas foram feitas para exphcar o sig
lo em outras fontes. Por exemplo, a reação das
nificado do nome desse lugar. Seria uma cohna
muhidões de Lucas 23.48 é parecida com a en
em formato de caveira? Ou uma elevação rochosa
contrada no Evangelho de Pedro 7.25 (“ Então os
em que a vegetação não conseguia crescer?
judeus, e os anciãos, e os sacerdotes, percebendo
O lugar exato do Gólgota é objeto de debate,
0 grande mal que haviam feito para si, começa
embora nosso conhecimento sobre a crucificação
ram a lamentar e a dizer; ‘Ai de nossos pecados.
no mundo romano e nos relatos dos Evangelhos
O juízo e o fim de Israel se aproximam’ ”]. Por
faça supor um local público fora dos muros de Je
último, os pontos em que Lucas se desvia de Mar
rusalém (Jo 19.20; cf. Hb 13.12), talvez próximo
cos do ponto de vista linguístico e sintático não
de uma estrada movimentada (e.g., Mc 15.29,40).
são facilmente exphcáveis apenas com base na
De acordo com João 19.41, o local da crucificação
criatividade de Lucas.
de Jesus ficou nas proximidades do túmulo que
Esses elementos levaram alguns estudiosos
recebeu emprestado.
a supor que Lucas tinha conhecimento de uma
Fortes evidências do entorno da Igreja do San
segunda narrativa da Paixão, de alguma forma
to Sepulcro, localizada dentro da Cidade Velha
ligada à primeira. Para outros, Lucas estava fa
de Jerusalém, apoiam a ideia de que o Gólgota
miliarizado com várias tradições não marcanas
ficava na região em que agora ela está situada. De
discrepantes, orais ou escritas. É plausível que,
acordo com achados arqueológicos da década de
nos Evangelhos canônicos, três relatos primitivos
1960, interpretados em conjunto com a descrição
da crucificação corram mais ou menos em parale
que Josefo apresenta das fortificações da cidade,
lo. Isso depõe a favor da antiguidade da tradição,
esse local teria sido bem fora dos muros da cida
que pode ter feito parte de uma narrativa maior e
de. Antes da expansão da cidade, era uma pedrei
mais antiga da Paixão.
ra em que vários túmulos haviam sido escavados.
2.2.2
História e interpretação na crucificação.
Antes que os investigadores da atuahdade per
Voltando aos relatos, vemos que todos concor
cebessem que na primeira terça parte do século
dam com o fato de que Jesus foi conduzido ao
I de nossa era o perímetro dos muros da cidade
local da crucificação. A menção do nome de Si-
era menor, as buscas eram concentradas na área
mâo de Cirene não serve a nenhum objetivo teo
ao norte da Cidade Velha. Ali identificaram uma
lógico, embora seu recrutamento para carregar a
colina rochosa cuja superfície de pedra lembrava
cruz faça lembrar as palavras de Jesus acerca do
uma caveira. K. M. Kenyon ressalta, contudo, que
discipulado ( “tome a sua cruz”, Mc 8.34). Simão
o atual formato da colina se deve em grande parte
está ausente da narrativa joanina, provavelmente
à extração de pedra feita posteriormente,
por causa do propósito de João que é mostrar de
A oração de Jesus. Só Lucas registra que, após
todos os modos que, mesmo na Paixão, Jesus está
sua crucificação, Jesus orou pelos responsáveis
no controle do próprio destino. Outros, porém,
por sua morte (Lc 23.34). Essa oração está au
veem no ato de Jesus carregar “a própria cruz”
sente de vários manuscritos importantes, presu
(Jo 19.17) uma referência ao quase sacrifício de
mivelmente porque mais tarde alguns copistas
Isaque — ou seja, à tentatíva joanina de desen
se sentiram pouco à vontade com o fato de Je
volver um paralelo entre a Paixão de Jesus e o
sus estender misericórdia a seus adversários ju
episódio em que Isaque foi amarrado (v. Gn 22.6,
deus. Os temas principais da oração — perdão
em que o pai põe a lenha sobre Isaque).
e ignorância — são importantes em Lucas-Atos 292
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
(cf. Lc 1.77; 7.47-50; At 2.38; 3.17; 5.31; 10.43;
cruz, e Lucas ainda acrescenta que os soldados se
13.27,38; 14.16). Ademais, a presença da oração
uniram no escárnio (cf. Mc 15.16-20). Em suma,
é importante para estruturar o relato da Paixão,
insistem em afirmar que, se Jesus fosse quem
que narra uma declaração de Jesus em cada se
ele dizia ser, não estaria naquela situação vergo
ção principal. Para alguns estudiosos, Lucas criou
nhosa e terrível. Por três razões, é quase certa a
a oração com base no pedido semelhante feito por
historicidade das linhas gerais desse relato. Pri
Estêvão em Atos 7.60. Mas por que Estêvão ha
meira: condiz com o que sabemos sobre a prá
veria de servir de modelo para a oração de Jesus,
tica romana, que o ato da crucificação se dava
não o contrário? Além do mais, o pedido de Jesus
na arena púbUca, justamente para estimular esse
para que seus perseguidores fossem perdoados
tipo de escárnio. Segunda: encaixa-se muito bem
está em harmonia com o que, baseados em outros
com o que sabemos acerca de atitudes em rela
textos, sabemos acerca do ensino de Jesus sobre a
ção à morte no judaísmo tardio, como dão conta
atitude que se deve ter diante da hostihdade (e.g.,
textos como Salmos 22.7,8 e Sabedoria 2.18,20.
Mt 5.44;
Os que mantêm um relacionamento especial com
V. L o h s e ,
p. 129-30).
A distribuição das vestes de Jesus. Os Evange
Deus não sofrerão morte vergonhosa. Terceira: o
hstas estão de acordo quando narram a divisão
conteúdo da zombaria é uma sátira das acusa
das vestes de Jesus entre os soldados. Alguns in
ções que levaram à execução de Jesus.
dícios sugerem que essa distribuição das roupas
As últimas palavras de Jesus. Uma questão
da vítima era algo natural na Antiguidade, mas a
mais difícil é suscitada pelas palavras finais de
redação de Salmos 22.18 influenciou claramente
Jesus na cruz, relatadas de diferentes maneiras:
a maneira em que o episódio foi relatado. A inscrição na cruz. É impressionante o fato
Marcos 15.34, citando Salmos 22.1: “Deus
de que todos os Evangelhos registram a inscrição
meu! Deus meu! Por que me desamparaste?”
na cruz de forma sistemática, cada um assina
Lucas 23.46, citando Salmos 31.5: “Pai, nas
lando que foi como “ 0 rei dos judeus” que Jesus
tuas mãos entrego o meu espírito!”
foi executado. Historicamente, essa menção teria
João 19.30: “Está consumado”.
identificado Jesus como um pretendente messiâ nico ao trono. Não há dúvida de que os primei
Os argumentos a favor da historicidade da ver
ros seguidores de Jesus viam nessa acusação um
são marcana (seguida por Mt 27.46) são os mais
anúncio irônico da verdadeira identidade de Je
fortes, embora para vários intérpretes da atuali
sus, e esse fato foi realçado nos detalhes que João
dade a citação de Salmos 22.1 em Marcos 15.34
apresenta em sua narrativa (Jo 19.19-22).
seja a maneira de Marcos indicar o conteúdo do
No passado, costumava-se afirmar que uma
grito sem palavras registrado em Marcos 15.37.
inscrição desse tipo ficava presa ã cruz em
Além de isso exigir que Marcos narrasse apenas
uma crucificação romana. Mas o reexame recente
um grito em vez de dois, o obstáculo mais im
dos dados disponíveis revela o oposto. Era pos
portante para essa ideia é o caráter ofensivo de
sível exigir que, antes da execução, os condena
Salmos 22.1 nos lábios de Jesus. Esse é também
dos exibissem a acusação pela qual haviam sido
o argumento mais forte a favor de sua autentici
sentenciados à morte, mas a inscrição relatada
dade. Pressupondo-se que Lucas tivesse o Evan
nos Evangelhos não encontra correspondentes.
gelho de Marcos como fonte para a Paixão de
Por esse motivo, não se deve questionar a vera
Jesus, em seu relato ele desconsidera esse grito
cidade histórica dessa medida. Como ressalta A.
de abandono. Além disso, em alguns manuscritos
E. Harvey, “por consequência, os primeiros his
de Marcos 15.34, “desamparaste” foi substituído
toriadores da morte de Jesus não precisam ter se
por “censuraste”, e consequentemente o peso das
sentido compelidos a inventar [tal informação] ”
palavras do salmo foi muitíssimo enfraquecido.
(H
arvey,
p. 13).
Isso nos proporciona um indício hterário do cará
A zombaria. Marcos, Mateus e Lucas concor
ter ofensivo da citação na igreja primitiva.
dam com 0 fato de que os líderes judeus zom
Alguns intérpretes acreditam que aqui o ob
baram de Jesus enquanto este se encontrava na
jetivo de usar Salmos 22.1 foi chamar a atenção
293
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
para a confirmação do Justo, prometida no salmo
texto quem foram os responsáveis pela crucifi
quando lido como um todo. Será que, no judaísmo
cação, Lucas continua sua estratégia de exone
do século
a citação das palavras iniciais de um
rar as autoridades romanas de responsabilidade,
salmo tinham o objetivo de recordar o salmo em
ao mesmo tempo que culpa a hderança judaica.
sua totahdade? Dados que indiquem esse fenôme
No entanto, as esperanças frustradas dos segui
I,
no são bem posteriores. Ficamos com o clamor
dores de Jesus é o que realmente está em foco
absoluto que Jesus profere na cruz, um clamor
aqui. Com essas palavras, Cleopas e seu amigo
de tal modo absoluto que depõe incisivamente a
expressam choque e desânimo com a morte de
favor de sua historicidade. Quem inventaria que
Jesus. Também tocam no âmago do problema
Jesus teve uma explosão tão escandalosa?
hermenêutico criado por um Messias crucificado
Que dizer então da citação de Salmos 31.5 no
(v.
C r is t o
i:
E vangelhos).
relato lucano? Será que Lucas simplesmente subs
É certo que a apologética cristã encontrada
tituiu uma citação de Salmos por outra? TVês evi
em Isaías 52.13—53.12 é uma profecia sobre o
dências convergem para a ideia de que Lucas não
Messias sofredor (e.g.,
é 0 único responsável pelo uso de Salmos 31.5
v., mais tarde,
nesse contexto
Mas a expectativa judaica messiânica do século
(G
reen,
1988, p. 97-8]. Primeira;
A
At
t a n á s io ,
3.13-18; IPe 2.21-24; Sobre a encarnação].
encontramos uma coincidência verbal interessan
I concentrava-se sobretudo num régio e glorioso
te quando comparamos Lucas 23.46 com a forma
Filho de Davi. O Messias não é mencionado na
em que Mateus e João relatam a morte de Jesus.
passagem de Isaías, e o judaísmo posterior não
Lucas, nas palavras do salmo, registra que Jesus
usa esse texto para desenhar o retrato do aguar
afirmou “ Entrego o meu espírito” , ao passo que
dado libertador.
Mateus 27.50 relata que ele “entregou o espírito” ,
Se 0 conceito de um Messias sofredor vai de
e João 19.30 narra que Jesus “ rendeu o espírito”
encontro ao que sabemos sobre as especulações
(asa]. Lucas é o único a citar Salmos 31.5 aqui,
messiânicas no século i, muito mais deve ter
mas os textos paralelos sugerem o uso comum de
parecido paradoxal a ideia de um Messias cru
uma tradição bem antiga, cujas raízes estavam
cificado. Afinal, de acordo com a interpretação
no salmo.
vigente na época de Deuteronômio 21.22,23, a
Segunda; embora em outros textos Lucas uti lize o
AT
grego
(lxx]
vítima de crucificação era amaldiçoada por Deus.
de forma sistemática, aqui a
citação é tirada do texto hebraico
No entanto, o “Messias” é literalmente o “Un
Lucas, que
gido de Deus”. Fica claro que a cruz de Cristo
não dá nenhuma indicação de que conhecia he
apresentou um enigma flagrante que clamava por
braico, parece ter emprestado o material de uma
reinterpretação.
( tm ].
fonte que já havia traduzido o texto hebraico para
0 grego.
Alguns intérpretes consideram a ressurreição de Jesus a chave mestra para superar a ignomínia
Terceira: alguns estudiosos acreditam que as
da cruz. Não se deve minimizar o papel que a res
alusões a Salmos 31.5 em Atos 7.59 e em IPe
surreição, a despeito da cruz, teve em autenticar
dro 4.19 revelam o uso geral do salmo em con
a missão de Jesus. Ao mesmo tempo, estaríamos
textos de perigo. Pode até mesmo ter sido usado
terrivelmente enganados, caso supuséssemos que
como uma bênção noturna no judaísmo tardio.
a cruz de Cristo não tem significado sem a res
Isso mostra que Salmos 31.5 é um texto apropria
surreição. Na verdade, seria melhor dizer que a
do para os momentos finais da Paixão de Jesus e
ressurreição autenticou a missão e a mensagem
deixa aberta a possibihdade da autenticidade da
de Jesus, incluindo a mensagem de sua morte
declaração.
numa cruz. Como veremos, os Evangelhos apre
2.3
A crucificação de Jesus como um proble sentam a cruz como o ponto alto de sua missão
ma interpretativo. “ Os principais sacerdotes e as
(cf. e.g., Mc 10.45; Lc 24.25-27; Jo 12.23-28). A
nossas autoridades o entregaram para ser conde
essa altura, vale a pena refletir rapidamente sobre
nado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos
duas questões intimamente relacionadas, a saber,
que fosse ele o que traria a redenção a Israel”
como Jesus entendia a própria morte e como foi
(Lc 24.20,21). Sem identificar exphcitamente no
interpretada pelas igrejas mais antigas.
294
CmSTO, MORTE DE li E v ANGELHOS
Aliando sua reflexão criativa sobre o desenvol
relaçao entre sua missão e sua morte. Por exemplo,
vimento da teologia da expiação no cristianismo
Jesus indagou dos discípulos: “ Quem dizeis que
mais primitivo com sua síntese do pensamento
eu sou?” (Mt 16.13-26; Mc 8.27-38; Lc 9.18-26).
acadêmico tradicional sobre o assunto, Hengel
Será que seu interesse era apenas conseguir que
afirma que a interpretação da morte de Jesus
confessassem quem ele era? Entendidos dessa
como sacrifício vicário e expiatório tem raízes no
maneira, a pergunta de Jesus e o ensino poste
entendimento do próprio Jesus sobre sua morte.
rior sobre o sofrimento do Filho do homem só
0 ponto de partida é o material paulino e algumas
podem ser interpretados como uma tentativa de
tradições pré-paulinas que garantem ser possível
Jesus associar, da maneira mais íntima possível,
identificar a origem da interpretação da morte de
sua execução e missão. Assim, Jesus considerava
Jesus como acontecimento salvífico com as mais
que sua morte iminente era, de alguma maneira,
antigas comunidades cristãs de fala grega (e.g.,
parte de sua missão, que era trazer a redenção a
Rm 4.25; ICo 15.3-5; 01 2.20,21).
Israel e às nações (v.
M
eyer,
p. 216-9).
Avançando um pouco mais, Hengel insiste
Uma preocupação mais premente a ser susci
em afirmar que, para entender a crucificação de
tada contra o estudo de Hengel é sua afirmação
Jesus como a execução do Messias, os cristãos
de que recuperou a interpretação mais antiga e
judeus tinham de atribuir àquela morte um sig
única da morte de Jesus. Ele, porém, não está
nificado extraordinariamente positivo. As cate
sozinho nessa armadilha. A despeito da rica va
gorias interpretativas oferecidas pelas principais
riedade de imagens empregadas no
correntes de estudiosos contemporâneos — Jesus
com a morte de Jesus, a história da reflexão so
nt
para hdar
como “ o sofredor que é justo” e como “o mártir-
bre a cruz está entulhada de tentativas de, com
profeta” — são consideradas por Hengel insu
termos pobres, discernir sua importância. Na
ficientes para entender a crucificação. A única
realidade, assim como a crucificação de Jesus
resposta satisfatória é que também os primeiros
é, dentre os acontecimentos da vida de Jesus, o
discípulos entenderam a morte de Jesus como um
mais historicamente seguro, é também o mais
sacrifício expiatório.
amplamente interpretado.
Indo mais adiante, Hengel indica que a ori
Outra perspectiva sobre sua morte que se
gem dessa interpretação está na declaração so
afirma estar baseada no pensamento de Jesus foi
bre o resgate e nas palavras de Jesus por ocasião
esboçada por D. C. Ahison. Ele faz um levanta
da Última Ceia (Mc 10.45; 14.24). Desse modo,
mento interessante sobre a expectativa, na lite
Jesus antecipou sua morte, percebendo que nela
ratura judaica, de uma grande tribulação final. A
cumpria o papel do Servo Sofredor do Senhor
partir daí, demonstra que a ideia de uma grande
(Is 52.13— 53.12). Hengel conclui que “não eram
tribulação era quase sempre associada à vinda da
basicamente as reflexões teológicas deles pró
era escatológica da salvação, mas não de acordo
prios, mas acima de tudo as declarações interpre
com algum modelo determinado. Retrocedendo
tativas de Jesus durante a Última Ceia que lhes
aos relatos da Paixão nos Evangelhos, ele desco
mostrou como entender devidamente sua morte”
bre que a morte de Jesus assinalou o início do
(H
eng el,
1981, p. 73; cf.
L
cumprimento da expectativa escatológica, e que
ohse) .
Contra essa reconstrução, alguns estudiosos
a morte de Jesus pertence aos “ais” messiânicos
questionam o fato de Hengel aceitar a autenticida
que marcam o nascimento da nova era.
de das declarações atribuídas a Jesus em Marcos
Essa interpretação centrada na crise é sugeri
10.45 e 14.24. Ao mesmo tempo, vale a pena no
da por alguns acontecimentos da Paixão — dentre
tar que um número crescente de estudiosos já ad
os quais trevas ao meio-dia (Mc 15.33), o rasgar
mite a probabihdade de Jesus ter antecipado sua
do véu do templo (Mc 15.38) e a ressurreição dos
execução pelas autoridades romanas. Em face do
santos (Mt 27.51-53). Allison também peneirou
conteúdo de sua mensagem, dificilmente poderia
os Evangelhos à procura de indícios de que Jesus
ter agido de outro modo (v. abaixo). No entanto,
entendia seu ministério da perspectiva da aflição
admitir isso implica absorver seu corolário, a sa
escatológica (e.g., Mt 11.12,13; Lc 12.49-53). Com
ber, a possibilidade de que Jesus refletia sobre a
isso, “Jesus previu para si mesmo sofrimento.
295
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
morte e justificação no drama escatológico, que ele interpretava como já em andamento”
Jesus, portanto, foi executado por sedição.
luso n,
Mas, em vez de responder ã nossa pergunta ini
p. 142). Em suma, a morte e a ressurreição de
cial, essa conclusão apenas a torna mais pungen
Jesus assinalaram a alvorada do grande dia do
te. Deixa-nos intrigados pelo possível nexo entre
Senhor (v.
e s c a t o l o g ia i )
(A
0 que sabemos sobre a vida de Jesus e a lógica
.
Essas são apenas outras duas interpretações
de sua sentença de morte. “A descrição de Jesus,
que examinam mais acuradamente a execução de
como nos é apresentada não só nos Evangelhos,
Jesus e afirmam basear-se no entendimento de Je
mas por todo o Novo Testamento, não pode ser
sus acerca de sua missão e morte. Ainda mais
conciüada com essa explicação de sua morte”
fundamental que isso é a realidade generalizada
(H
arvey,
p. 14; v. p. 11-35;
Sanders,
p. 294-318).
de que o sofrimento e a morte de Jesus foram
Na verdade, ao ser preso Jesus nega que es
reconhecidos e proclamados por sua centrahda-
teja liderando alguma revolta contra o Estado
de no plano redentor de Deus. O enigma de um
(Mt 26.55; Mc 14.48; Lc 22.52). Ademais, os se
Messias crucificado clamava por interpretação.
guidores de Jesus não foram ajuntados e sumaria
Seguindo as pistas oferecidas no entendimento
mente executados, o que seria de esperar se Jesus
de Jesus, os primeiros discípulos viram na cruz o
estivesse à frente de um movimento de insurgên-
cumprimento do propósito divino.
cia (cf., e.g.,
Josefo,
An, 20.5.1—20.8.10, § 97-
188; Gaja, 2.12.3—2.14.1, § 232-72). Além disso, 3. Por que Jesus foi crucificado?
depois da morte de Jesus seus discípulos tiveram
No capítulo mais recente sobre a busca pelo Je
permissão para formar uma comunidade em Jeru
sus histórico, uma pergunta da maior importân
salém, um desdobramento impensável caso se ti
cia é: "Por que Jesus foi crucificado?” Em uma
vesse conhecimento de que formavam um partido
dimensão, a pergunta é respondida com bastante
sedicioso. Por fim, se Jesus tivesse incitado a re
facilidade. Dados históricos externos aos Evan
sistência política contra Roma, seria natural que,
gelhos sinalizam claramente a realidade de que,
após sua morte, seus seguidores se envolvessem
em uma província romana como a Judeia, uma
em uma oposição agressiva contra o Estado. Tudo
execução desse tipo só podia ser levada a efeito
isso nos deixa, portanto, diante de um conjunto
sob as ordens do procurador romano. Além do
de circunstâncias muitíssimo enigmáticas.
mais, como já vimos, nas províncias romanas
Um estudioso que encarou seriamente o
empregava-se a crucificação como recurso visto,
problema foi E. P. Sanders. Ele tentou solucio
acima de tudo, como capaz de conter as sedi
nar o quebra-cabeça fazendo referência espe
ções. Por inferência, podemos concluir que Jesus
cial ao protesto físico de Jesus contra o templo
foi crucificado sob Pôncio Pilatos como insurgen
(Mt 21.12,13; Mc U .15-17; Lc 19.45,46). Esse ato,
te. Nisso, temos o apoio dos Evangelhos, pois ali
insiste Sanders, não teve o objetivo de purificar o
a acusação apresentada a Pilatos é claramente
templo, mas de servir como advertência de sua
de sedição.
destruição (v.
No único registro mais claro das acusações
tem plo ,
p u r if ic a ç ã o
do).
Sanders
alega que esse foi o último ato público de Jesus
levantadas contra Jesus em Lucas 23.2,5, lemos:
após o qual começou a se armar a trama decisi
“Achamos este homem perturbando a nossa na
va contra sua vida. Situado no contexto da pro
ção, proibindo pagar o imposto a César e dizendo
clamação do reino de Deus por Jesus e também
ser ele mesmo o Cristo, um rei. [...] Ele coloca
de sua capacidade de suscitar as esperanças do
o povo em alvoroço e ensina por toda a Judeia,
povo, o ato contra o templo foi o suficiente para
vindo desde a Galileia até aqui”. A pergunta de
que os romanos começassem a ver Jesus como
Pilatos a Jesus, relatada nos quatro Evangelhos,
uma ameaça política. Ele foi executado, então,
é igualmente direta e sem rodeios políticos; “Tu
a pedido da liderança judaica, que o apresentou
és 0 rei dos judeus?” (Mt 27.11; Mc 15.2; Lc 23.3;
como um homem perigoso, mas não como o líder
Jo 18.33). Por último, Jesus é executado ao lado
de um partido insurgente.
de dois insurgentes, e a inscrição na cruz declara que esse também foi seu crime.
Embora plausível, a reconstrução que Sanders oferece da lógica por trás da execução de Jesus
296
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
desconsidera aspectos importantes dos relatos
entre as várias formas de judaísmo então exis
dos Evangelhos. Ele não consegue explicar de
tentes, e externamente, com Roma. A missão de
maneira satisfatória o papel dos líderes judaicos
Jesus, interpretada de forma ampla como a res
no processo da Paixão de Jesus. Aliás, sua hipó
tauração de Israel no contexto da vinda do gover
tese praticamente não deixa espaço para a con
no universal de Deus, deve ter representado uma
tribuição dos judeus nessa ação, visto que, no
ameaça à estrutura social e de poder do judaísmo
entendimento de Sanders, o conflito entre Jesus e
do século
I.
É claro que nada menos que a procla
judeus (fariseus) registrado nos Evangelhos é
mação do reino escatológico feita por Jesus teria
um anacronismo. Além disso, não é convincente
representado uma ameaça política aos que mais
a decisão de deixar de lado material que aparece
apoiavam a ordem vigente, entre os quais as au
registrado cronologicamente nos Evangelhos en
toridades romanas. Embora Jesus não represen
tre o ato no templo e o início do relato da Paixão.
tasse nenhuma ameaça de golpe mihtar violento,
Embora possamos acreditar que o ato no templo
assim mesmo sua mensagem de hbertação e sua
tenha sido um incidente significativo para a pri
crescente popularidade tornavam-no um perigoso
são e condenação de Jesus, parece improvável
risco político. Essa ameaça, acentuada pela ativi
os
que tenha sido a causa imediata.
dade de Jesus posterior à sua chegada a Jerusa
Harvey, no entanto, acredita que os líderes
lém para a Páscoa, conduziu-o à execução.
judeus de fato entregaram Jesus às autoridades romanas, mas só depois de terem fracassado em
4. A morte de Jesus no Evangelho de
hdar efetivamente com esse judeu, a quem consi
Mateus
deravam uma ameaça à paz e à segurança geral.
Qualquer anáhse da morte de Jesus no primeiro
Nesse aspecto, o que atrai Harvey é o relato luca
Evangelho tem de ir além dos hmites da narrati
no, segundo o qual os líderes judeus não conside
va da Paixão registrada em Mateus. Qualquer que
ravam Jesus culpado nem merecedor de pena de
seja a história da tradição do relato da Paixão,
morte (Lc 22.66-71; At 13.27,28; cf. Jo 18.19-23).
ele agora se encontra cuidadosamente integrado
Com isso, Harvey conclui que houve no Sinédrio
no Evangelho como um todo. Analisaremos a
uma audiência informal, cujo propósito foi decidir
descrição que Mateus oferece da morte de Jesus,
se era necessário entregar Jesus a Pilatos e com
considerando quatro aspectos: a rejeição a Jesus
que fundamento. 0 que falta na exphcação de Har
e ao Evangelho; a morte de Jesus e a cristologia
vey é uma discussão sobre o motivo pelo qual o
de Mateus; o caminho da cruz; a morte de Jesus
Sinédrio teria considerado Jesus uma ameaça.
e a nova era de salvação.
Uma pista nessa direção aparece em João 11.4553. Aqui, 0 Sinédrio, reunido informalmente, co
4.1
A rejeição a Jesus e ao evangelho. O trá
gico relato mateusino acerca da rejeição ao Mes
meça a tramar contra Jesus, porque teme sofrer
sias de Deus por parte de Israel serve de principal
represálias da parte de Roma: "Se o deixarmos
enredo para o Evangelho de Mateus. Esse tema
em paz, todos crerão nele; então os romanos vi
atinge o auge em Mateus 27.25, texto em que os
rão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa
judeus aceitam plena responsabihdade pela exe
nação” (Jo 11.48). A verdade é que nos decênios
cução de Jesus: "O sangue dele caia sobre nós e
anteriores à guerra judaica, a Palestina foi palco
sobre nossos filhos”. Essa rejeição está no âmago
de repetidos movimentos libertacionistas, e a re
da narrativa de Mateus sobre a vida e sobre o
petida reação de Roma foi matar os hderes desses
ministério de Jesus, e é possível perceber seu de
movimentos com seus seguidores.
senrolar desde a história de Herodes e os magos
Nisto Sanders está correto: Jesus não teria re
vindos do Oriente (v.
Jesu s,
n a s c im e n t o d e ) .
presentado nenhuma ameaça imediata, não fos
0 trecho de Mateus 2.1-12 está estruturado
se por seus seguidores. Ao mesmo tempo, não
de tal maneira que destaca a natureza das várias
precisamos seguir Sanders e rejeitar totalmente
reações diante do nascimento de Jesus. A impor
o registro da hostihdade entre Jesus e os judeus
tância desse relato e das reações que registra tem
encontrado nos Evangelhos. 0 judaísmo do sécu
ligação com o fato de ser a primeira narrativa em
lo I caracterizava-se pelo conflito: internamente.
que o nascimento de Jesus se tornou púbhco e 297
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
em que o leitor tem consciência da identidade de
vocabulário e de ideias caracterizam a execução
Jesus como “Emanuel” , aquele que salvaria seu
de João como episódio que prenuncia o destino
povo de seus pecados (Mt 1.21-23). De que ma
semelhante de Jesus.
neira Herodes, o rei dos judeus, reagiria à notícia do nascimento desse rei dos judeus?
Entre a introdução de João, registrada em Mateus 11.1, e sua reaparição, em Mateus 14.1,
Tendo descoberto o local do nascimento do
encontram-se ainda outras descrições dessa hos
Messias, os magos vão a Belém para adorá-lo.
tilidade e rejeição. Em Mateus 12.1-13, surge um
Herodes, porém, e com ele os principais sacer
conflito entre Jesus e os fariseus acerca da atitude
dotes e mestres da lei, sabia qual era a cidade do
correta em relação ao sábado. Isso leva à primei
nascimento do Messias, mas não foi lhe dar as
ra menção em Mateus 12.14 de uma conspiração
boas-vindas, nem render tributo. Pelo contrário,
dos judeus contra Jesus. Seguem-se outros regis
o espírito atribulado de Herodes cede à maldade,
tros de conflito: Mateus 12.24-32, passagem em
e ele ordena a morte dos meninos da região de
que os fariseus acusam Jesus de expulsar demô
Belém. Contra os planos de Herodes de matar Je
nios pelo poder de Belzebu; Mateus 12.38-42, em
sus prematuramente. Deus intervém repetidas ve
que os fariseus e os mestres da lei, comparados
zes para proteger a criança (Mt 2.12,13,22). Mas
a uma geração má e adúltera, pedem um sinal
a sorte está lançada; a rejeição e a morte violenta
miraculoso; Mateus 13.53-58, em que Jesus é re
de Jesus são claramente prenunciadas.
jeitado até mesmo pelo povo de sua cidade.
Embora no início da missão de Jesus as mul
No meio dessa seção caracterizada por hosti
tidões reajam favoravelmente à sua mensagem
lidade e pela antecipação da rejeição final de Je
(e.g., Mt 7.28,29), esta traz consigo presságios da
sus por Israel, Mateus introduz um contraponto:
crise vindoura: “Bem-aventurados os perseguidos
Jesus é 0 Servo ungido pelo Espírito e escolhido
por causa da justiça” (Mt 5.10; cf. Mt 5.44). Não
por Deus (Mt 12.17-21, cit. Is 42.1-4). Se ele é re
há dúvida de que, para Mateus, Jesus, que esta
jeitado por Israel, isso é resultado da obediência
va comprometido com o caminho da justiça, era
à sua missão divina. Durante o ministério púbhco
o derradeiro exemplo dessas palavras. Jesus não
de Jesus, os fariseus e os mestres da lei apare
buscava a morte, mas reconhecia que uma vida
cem rotineiramente como seus adversários. Com o
de retidão era uma vida vivida em oposição às
início da narrativa da Paixão, em Mateus 26.1-5,
convenções de seu mundo. 0 resuhado só podia
os principais sacerdotes e os anciãos assumem
ser perseguição.
esse papel e fazem acordo com um dos discípulos
A mudança aparentemente inevitável de atitu
de Jesus (Mt 26.14-16). Então, incitam as multi
de diante de Jesus é prefigurada pela introdução
dões contra Jesus. Por último, o círculo progres
de João Batista em Mateus 11.1-19. Jesus com
sivo de hostilidade atinge o auge: “todo [pas] o
para seu destino ao do João aprisionado: assim
povo” pede a morte de Jesus (Mt 27.25).
como rejeitaram João, de igual modo rejeitarão
Desse modo, a sombra da cruz se projeta por
a Jesus. Esse tema recorrente se cumpre em Ma
todo 0 Evangelho de Mateus. Por meio de prog
teus 14.1-12, em que Mateus narra a decapitação
nóstico e de ameaça, a realidade cruel dessa
de João. A correspondência entre as execuções de
sombra está presente nos temas recorrentes de
João e de Jesus é digna de nota. Em cada relato,
hostilidade e rejeição.
a conspiração contra o protagonista é impedida
4.2
A morte de Jesus e a cristologia de Ma
por sua popularidade (Mt 14.3-5; 21.45,46; 26.3-
teus. Os interesses cristológicos de Mateus já são
5). Ambos os relatos mostram que o respectivo
manifestos na introdução, quando em Mateus 1.1
governante romano está relutante em proceder à
ele apresenta Jesus como Messias, filho de Davi
execução, mas cede à pressão externa (Mt 14.9,10;
e filho de Abraão (v.
27.11-26). Depois de sua morte, os discípulos de
da genealogia de Jesus (Mt 1.2-18) acentua sua
João aparecem, levam seu corpo e o sepultam
identidade como Messias.
A
braão).
0 registro seguinte
(Mt 14.12); de igual maneira, após a morte de Je
Algo também evidente logo no início e de
sus, um de seus discípulos aparece, leva o corpo
importância fundamental para a cristologia de
e 0 sepulta (Mt 27.57-60). Essas semelhanças de
Mateus é sua apresentação da solidariedade entre
298
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
Jesus e 0 povo de Deus e entre Jesus e o propósito
De igual modo, na cena da prisão, Jesus faz
divino. Como revela o registro genealógico, a vin
referência a “ meu Pai”. Nesse contexto, a auto
da de Jesus está arraigada profundamente na his
ridade de Jesus como Filho de Deus ocupa papel
tória da relação entre Deus e Israel (Mt 1.1-18).
central, mas ele não exerce poder como meio de
O relato do nascimento de Jesus e seus paralelos
fuga. Ter agido dessa maneira significaria contra
com 0 passado de Israel acentuam esse tema. Ele
dizer o próprio ensino (Mt 5.44) e rejeitar a von
nasce em meio à hostilidade, é obrigado a seguir
tade de Deus (Mt 26.54,56).
para o exílio, sendo depois trazido do Egito de
Tema semelhante e também recorrente é visto
volta para a terra de Israel (Mt 2.1-23). 0 empre
em Mateus 27.40, na referência ao Filho de Deus.
go, por Mateus, de citações do a t para indicar que
Ao zombar de Jesus, os transeuntes dizem: “ Se és
Jesus é 0 cumprimento de promessas veterotes-
Filho de Deus, desce da cruz”. Com isso, seguem
tamentárias (e.g., Mt 1.22,23; 2.15-18) também
o modelo de tentações que o Diabo apresentou a
se encaixa nesse esquema, arraigando Jesus inse
Jesus em Mateus 4.3,6: “ Se és Filho de Deus...”
paravelmente na história de Israel e das promes
A inferência em cada caso é que, na condição de
sas divinas. Assim, a missão de Jesus revela a
Filho de Deus, Jesus podia fazer o que seus ten
vontade de Deus e está entretecida com a dor e a
tadores lhe pediam. Fazê-lo, porém, seria negar o
esperança de Israel de forma inexorável.
caráter de obediência a Deus inerente à sua natu
Jesus foi crucificado como embusteiro mes
reza de Filho (v.
tentação de
J esu s) .
siânico, mas isso não teria impedido os leitores
Em suma, referir-se a Jesus como o Filho de
de Mateus de perceber um sentido mais pro
Deus corresponde a falar de forma incisiva da
fundo na recorrência dessa acusação (Mt 26.63;
fidelidade que devotava à sua missão, de sua
27.11,17,22,27-31,37). Irônica e inconscientemen
obediência total a Deus. Esse tema recorrente
te, 0 sumo sacerdote, Pilatos e os soldados pro
também é ressaltado quando, no relato da Paixão,
clamam — todos eles — a verdadeira identidade
Mateus retrata Jesus como Servo. As repetidas re
de Jesus. Entretanto, para ocorrer essa guinada
ferências ao silêncio (Mt 26.63; 27.14) e à inocên
interpretatíva, títulos como “Messias” e “rei dos
cia (Mt 27.4,18,19,23,24) de Jesus revelam que a
judeus” têm de ser preenchidos com novo con
Paixão é 0 cumprimento de seu papel como Servo
teúdo, pois nesse contexto precisam de alguma
de Deus por meios que ressaltam sua fidelidade à
forma estar relacionados com a morte de Jesus.
missão divina (cf. Is 53.7,11).
Não é de surpreender, então, que “Cristo” seja
Com o tema recorrente do Servo, Mateus
interpretado ao lado de outras imagens cristoló
expande o campo teológico de sua narrativa da
gicas no relato da Paixão. As principais delas são
Paixão. Isso fica evidenciado nas palavras inter
“ Filho de Deus” e “Servo”. No relato da Paixão,
pretativas de Jesus por ocasião da Última Ceia,
a associação de Cristo com o título Filho de Deus
em que terminologias como “em favor de” são
está mais clara no pedido do sumo sacerdote:
reminiscentes da obra do Servo de Isaías 52.13—
"Ordeno que jures pelo Deus vivo e diga-nos se
53.12. Na interpretação dessas palavras, a morte
tu és 0 Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26.63). Tam
de Jesus é eficaz, mostrando como cumpriria a
bém pertinente é a zombaria contra Jesus quan
promessa de que “ele salvará seu povo dos seus
do ele está na cruz, momento em que “Filho de
pecados” (Mt 1.21). E isso nos ajuda a apreciar
Deus” e “rei dos judeus” são mencionados lado a
a importância do insulto registrado em Ma
íado (Mt 27.40,42,43). A questão crucial, portan
teus 27.42: “Salvou os outros e não consegue sal
to, diz respeito a qual significado atribuir a esse
var a si mesmo”. A missão de Jesus é salvífica,
emprego. A primeira pista para resolver o enigma
mas ele só pode abrir o caminho da salvação me
é o episódio do Getsêmani, pois ah Jesus se di
diante o sacrifício da própria vida (cf. Mt 16.25).
rige a Deus em oração, chamando-o “ meu Pai”
É comum os comentaristas mencionarem a
CMt 26.39,42). Essa oração é, acima de tudo, um
exaltada cristologia do relato mateusino da Pai
ato de submissão a Deus. Na condição de Filho
xão quando comparado ao de Marcos. Logo de
de Deus, Jesus atende à vontade de Deus com
início, Jesus anuncia sua execução iminente
obediência total e sem reservas.
(Mt 299
26.1,2).
Declara
que
chegou
o
tempo
C r is t o , m o r t e d e i ; E v a n g e l h o s
determinado (Mt 26.18). Profetiza sua traição
Paixão, o fracasso dos discípulos é selado quan
0 identifica o traidor (Mt 26.21,25). Abre cami
do, por medo, abandonam Jesus no momento de
nho para Judas concretizar a traição (Mt 26.50).
sua prisão (Mt 27.56). O comportamento desleal
Declara ser capaz de escapar milagrosamente
deles é acentuado pelas ações de personagens
de seu destino (Mt 26.53). Jesus é apresentado
bem menos conhecidos. A mulher que unge Je
como aquele que tem poder e está no controle
sus em Betânia (Mt 26.6-13), José de Arimateia
dos acontecimentos de sua Paixão. E é aí que a
(Mt 27.57-60) e a mulher fiel ao pé da cruz e
atenção se concentra no retrato cristológico pin
junto ao túmulo (Mt 27.55,56,61) são exemplos
tado por Mateus. Jesus não exerce o poder na
de pessoas que, na narrativa da Paixão, recebem
condição de Messias, Filho de Deus, para fugir da
destaque por suas reações autênticas diante das
morte. E isso não acontece por estar desprovido
boas-novas (v.
evang elh o
[g ênero ] ) .
de uma posição régia ou de autoridade. Pelo con
Para compreender o caminho da cruz, não é
trário, Jesus exerce esse poder de maneira inespe
demais relembrar a importância da última predi
rada; em obediência a Deus e derramando a vida
ção sobre a Paixão. Aqui o ministério de Jesus
pelos outros.
de salvar e redirrúr é expresso com termos relati
0 relato da morte de Jesus em Mateus é, des
vos ã morte sacrificial; “0 Filho do homem [...]
sa maneira, o relato de sua fidelidade a Deus, de
não veio para ser servido, mas para servir e para
sua devoção a sua missão e de sua sohdariedade
dar a sua vida em resgate de muitos” (Mt 20.28).
intencional para com a dor e a esperança de seu
Empregando essa terminologia e começando pela
povo.
apresentação que Mateus já fizera de Jesus como
4.3
O ccaninho da cruz. Até que ponto Ma Servo Sofredor (cf. Mt 8.17; 12.17-21), a cruz é
teus entende a cruz como expressão última da
perfeitamente encaixada no centro da vida e da
missão de Jesus se vê, mais que em qualquer ou
obra de Jesus.
tro lugar, na série de predições da Paixão; 16.21-
4.4
A morte de Jesus e a nova era de salva
27, 17.22,23 e 20.17-28. Nessas predições, Jesus
ção. A rejeição a Jesus e à mensagem dele para
caracteriza sua missão como uma viagem a Jeru
Israel não sigiúfica o fim da história para Mateus.
salém e, consequentemente, ao Gólgota.
Mesmo em suas predições de sofrimento e morte,
A primeira é emoldurada pela confissão de
os olhos de Jesus permanecem fixos na ressurrei
Pedro de que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus
ção (Mt 16.21; 17.23; 20.19). De modo semelhan
vivo” (Mt 16.16) e pela reprimenda que o discí
te, a interpretação que ele faz na Última Ceia, a
pulo leva de Jesus após o anúncio do próprio so
qual é tão centrada em sua Paixão, prenuncia seu
frimento iminente. Fica claro que o entendimento
futuro no reino de Deus (Mt 26.29). E, em Ma
que Jesus tem de si mesmo, abrangendo o “dever
teus 26.32, ele prediz sua ressurreição e seu papel
divino” (dei) de sua Paixão, afasta-se das expec
futuro de reconstítuir o grupo disperso dos dis
tativas messiânicas mais comuns, mesmo entre
cípulos. Mesmo sem recorrer ã narrativa da res
seus discípulos. Jesus, no entanto, está conven
surreição em si, o véu do templo agora rasgado,
cido de que o sofrimento está no âmago de sua
0 terremoto e a confissão do centurião dão teste
missão como Cristo, Filho de Deus, e até mesmo
munho de que Jesus estava vindicado, a despeito
estende essa definição à sua ideia de discipula
de ter sido rejeitado por Israel (Mt 27.51-54).
do. A exemplo de Jesus, seus discípulos se veem diante do desafio de perder a vida.
Acerca da confissão do centurião, abrimos mais um espaço para debate. Não apenas de
Embora os discípulos de Jesus tenham uma
modo sutil, mas também de forma transparente,
“pequena fé” (e.g., Mt 14.31; 17.20), são incapa
Mateus proclama que o reino de Deus passará
zes de entender o caminho da cruz. Depois da se
de Israel para “ um povo que dê os seus frutos”
gunda predição da Paixão, “eles se entristeceram
(Mt 21.43). Na mente do Evangelista, o redire-
muito” (Mt 17.23). E, no contexto da terceira, pa
cionamento do reino tem relação direta com a
recem não entender absolutamente nada do que
crise de rejeição — Israel entregando o Messias
Jesus quis dizer, pois ficam preocupando-se com
para ser crucificado. Por exemplo, observa-se a
posições de destaque e autoridade. No relato da
mudança no papel de Jesus como Salvador. Em
300
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
Mateus 1.21, “ele salvará seu povo dos seus pe
seu púbhco acerca da verdadeira natureza de Je
cados”, mas, em Mateus 26.28, ele é “derramado
sus, e faz isso por meio de uma narrativa orienta
em favor de muitos [i.e., de todos], para perdão
da em torno da cruz.
dos pecados”. O tempo da derradeira rejeição de
Alusões que prenunciam a Paixão de Jesus
Jesus por Israel será de morte, mas a morte con
ponteiam a paisagem do Evangelho de Marcos,
duz à vida, a uma nova era de salvação para “to
demonstrando a relação íntima entre a identidade
das as nações” (Mt 28.18-20).
de Jesus e seu sofrimento. Já em Marcos 2.19,20,
0 caráter de novidade dessa era é assinalado
Jesus insinua sua morte repentina, inesperada
de forma diferente pelas declarações interpreta
e intrigante. Em outros textos, autoridades re
tivas de Jesus na Última Ceia. Ao usar na mes
ligiosas e políticas tramam sua morte (Mc 3.6;
ma frase as expressões “aliança” e “perdão [ou
11.18; 12.12), e Jesus anuncia profeticamente que
remissão] dos pecados” (Mt 26.28), Jesus inter
será rejeitado e morto (Mc 8.31; 9.12,31; 10.32-
preta sua missão com base em Jeremias 31.31-34.
34,38,39,45). Como no texto correspondente de
“ Dias virão”, anuncia Jeremias, em que o Senhor
Mateus (v. 4.1 acima), também em Marcos 6.14-29
fará uma “nova ahança”. De acordo com Jesus,
o relato joanino da Paixão prefigura o sofrimento e
esse tempo chegou. Com sua morte, ele inaugu
a morte de Jesus.
rará a nova ordem de salvação.
Em nenhuma outra passagem o vínculo entre a
Mais uma vez percebemos aqui indícios de
morte de Jesus e sua identídade é mais perceptível
que, para Jesus, a morte não era um acontecimen
do que no relato da crucificação, pois Marcos en
to inesperado, sem relação com sua vida e obra.
tende o momento da morte de Jesus como a hora
Em sua morte, manifesta-se sua obediência a
da revelação divina. Só ao morrer Jesus pode ser
Deus, e assim a cruz é entendida como âmago da
plena e devidamente avahado. Esse é o significado
missão de abrir para todos o caminho da salvação.
da confissão do centurião, a única pessoa em todo o Evangelho a reconhecer Jesus como o Filho de
5. A morte de Jesus no Evangelho de
Deus (Mc 15.39). No relato da crucificação. Mar
Marcos
cos ressalta que o centurião faz sua confissão so
A avaliação feita há já um século, e muito citada,
mente depois de ver Jesus dar seu último suspiro.
de que o Evangelho de Marcos seria uma narra
Ou seja, na cruz Jesus é devidamente reconhecido
tiva da Paixão com uma introdução mais longa
como o Filho de Deus. No corpo do Evangelho,
ressalta a proeminência que a morte de Jesus ti
Deus afirma Jesus como Filho de Deus no início
nha para o Evangelista. Contudo, sua narrativa
oficial de sua missão, em seu batismo (Mc 1.9-11)
deixa de estabelecer o nexo teológico e literário
e na curta revelação da glória de Jesus no episódio
entre a vida e a morte de Jesus. Por sinal. Marcos
da transfiguração (Mc 9.2-8). A relação entre esses
apresenta o ministério de Jesus como um avan
três acontecimentos na carreira de Jesus ressalta a
ço incansável de acontecimentos cujo clímax é o
centrahdade da morte para a missão da qual fora
Gólgota. Na cruz, Jesus é revelado como o Filho
incumbido por Deus.
de Deus, que obtém salvação para a nova comu
O correspondente desse entendimento, que
nidade de fé, uma comunidade chamada a segui-
gira em torno da posição de Jesus como Filho
lo em discipulado sacrificial.
de Deus, é a descrição que Marcos faz de Jesus
5.1
A morte de Jesus e a cristologia de Mar como o Filho do homem. De fato, é justamente
cos. Quem é Jesus? Essa pergunta constitui um
como Filho do homem que Jesus sofrerá rejeição
importante tema recorrente do segundo Evange
e morte (e.g., Mc 8.31; 14.21). Como Filho do ho
lho. Embora logo de início sejamos informados de
mem, a missão divina de Jesus se consuma quan
que Jesus é Messias e Filho de Deus (Mc 1.1-15),
do ele entrega a vida a serviço da humanidade,
os personagens do relato de Marcos não têm co
em resgate por muitos (Mc 10.45). Como Filho do
nhecimento dessa informação (e.g., Mc 5.41),
homem, Jesus também aguarda sua justificação e
e, de qualquer forma, a narrativa já segue bem
glória (e.g., Mc 8.38; 14.62).
avançada quando fica claro o que significam es
Qual é, para Marcos, a importância do Filho
ses títulos cristológicos. Marcos deseja instruir
crucificado de Deus? Das referências prefigurativas
301
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
já citadas, as de maior implicação para interpre
da crucificação. Nesse aspecto, são de suprema
tar 0 significado da morte de Jesus são as três
importância as seis ocorrências de “rei” como
predições da Paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.32-34) e a
designativo de Jesus (Mc
menção do resgate (Mc 10.45). Elas destacam a
associadas à tríplice zombaria ao pé da cruz
centralidade da cruz no plano redentor de Deus e
(Mc 15.29-32). Condenado por sua pretensão ao
a obediência de Jesus ao carregar a cruz (cf. Mc
trono, ironicamente Jesus tem direito à condição
14.32-49), e, desse modo, situam a crucificação
de realeza, mas não como alguém poderia ter
no âmago de sua missão. Essa interpretação é
premeditado. Sua obediência à vontade divina
manifesta não apenas no tema do “dever divi
expressou-se com mais clareza na cruz — sinal de
no” das predições (dei), mas também na repetida
sua condição de realeza que se tornará evidente a
15.2,9,12,18,26,32)
associação, feita mais tarde, entre os aconteci
todos após sua justificação e sua vinda na condi
mentos da Paixão e a promessa do
ção de glorioso Filho do homem.
at.
A cruz de
Cristo leva à consumação da vontade revelada de Deus, como em Marcos 14.21, passagem que
S.2
O caminho da cruz. Na visão de Marcos,
o Gólgota não é apenas a expressão máxima da
provavelmente devemos considerar como uma
missão do Cristo. Há também, para os discípulos
alusão a todo o
de forma geral, uma via dolorosa, um caminho
at,
grupo de textos do cos do
at
não a apenas algum texto ou at
.
Contudo, textos específi
cumprem-se na Paixão de Jesus (e.g.,
Zc 13.7, cit. em Mc 14.27). De maior destaque,
da cruz. 5.2.1
“... tome a sua cruz". Marcos 8.22— 10.52
deixa claro o encontro entre a cristologia e o dis
são as várias maneiras em que Jesus é apresen
cipulado ao redor da cruz. Essa seção é emol
tado tipologicamente como o Servo Sofredor e o
durada por dois milagres de cura. O primeiro
Justo Sofredor.
(Mc 8.22-26) serve de parábola; só vagamente os
0 papel desempenhado pela morte de Je
discípulos entendem Jesus. Necessitam de uma
sus no centro do plano redentor de Deus vem
visão mais completa e aguçada da identidade de
à luz em dois textos de Marcos: 10.45 e 14.24.
Cristo. Até aqui têm conhecimento de seu poder,
A importância do primeiro se percebe por sua
de sua vitória sobre as forças malignas de toda
posição no fim da seção central do Evangelho
espécie. Embora Pedro o confesse como Cristo,
(Mc 8.22— 10.52), logo antes da entrada triunfal.
não está preparado para a conversa subsequente
Nessa seção, que esboça ousadamente a correla
sobre sofrimento e morte (Mc 8.27-33). Contudo,
ção entre o caminho de Cristo e o dos discípulos,
para Jesus a messianidade só pode ser entendida
dificilmente a declaração do resgate, ao contrário
na sua plenitude, no contexto do Filho do homem
do que alguns estudiosos têm defendido, seria
sofredor. Além do mais, de acordo com Jesus, se
uma passagem secundária para Marcos. O segun
o caminho de Cristo é o caminho do sofrimen
do texto serve de ápice da cena da Última Ceia.
to, será esse também o caminho do discipulado
Nos dois casos, a morte de Jesus é interpretada
(Mc 8.34).
como salvífica. Nesse ato derradeiro de serviço,
Antes do segundo relato de cura (Mc 10.46-52),
Jesus entrega a vida em sacrifício adunatório ou
pela terceira vez Jesus (Mc 10.32-45) anuncia
reconciliatório (que inclui os aspectos expiatório
sua Paixão. Ele e os discípulos estão a caminho
e propiciatório) para salvação da humanidade. A
[hodos) de Jerusalém, lugar de traição e morte.
ironia representada pela cena da zombaria junto
Aparentemente ainda acreditando que “Cristo”
ã cruz pode ser assim entendida: é por se recusar
significa “rei glorioso” , Tiago e João manifestam
a salvar a si mesmo que ele é capaz de salvar a
0 desejo de terem assentos de honra no reino vin
outros (Mc 15.31; cf. Mc 8.35).
douro. Jesus redireciona o pensamento deles para
A ironia do relato da Paixão em Marcos é ain
o sofrimento e a adversidade, deixando entrever
da mais disseminada, estendendo-se ao longo da
que partilhariam do destino que ele experimenta
aparição de Jesus diante do Sinédrio (e.g., mesmo
ria. O discipulado é um serviço mais bem exem
quando Jesus está sendo ridicularizado como fal
plificado na morte de Jesus. É interessante que, à
so profeta, cumpre-se a profecia acerca da negação
semelhança do relato de cura de Marcos 8.22-26,
de Pedro [Mc 14.66-72]) e chegando até o relato
é possível ler como parábola o relato seguinte de
302
C r is t o , m o r t e d e i : E v a n g e l h o s
Bartimeu. O fiel e persistente Bartimeu, visto no
5.2.3
A incapacidade dos discípulos e a nova
início sentado à beira do caminho {hodos], agora,
comunidade. Repetidas vezes, o Evangelho de
depois de ter sido curado por Jesus, enxerga cla
Marcos deixa entrever a incapacidade dos dis
ramente e segue Jesus pelo mesmo caminho (ho
cípulos, por causa de seu coração endurecido
dos]. O convite para segui-lo é uma convocação a
(Mc 6.52), de entender o significado da missão
trilhar o caminho da cruz.
de Jesus. Essa incapacidade chega ao ponto máxi
5.2.2
O sofrimento da comunidade. Esse tema mo em Marcos 14.50-52, quando eles abandonam
recorrente prossegue e é aprofundado na rela
Jesus nas mãos do grupo que o prende no Getsê
ção que Marcos estabelece entre o sofrimento da
mani. É verdade que Jesus prevê a reabilitação
comunidade (Mc 13) e o sofrimento do Messias
dos discípulos (Mc 14.27,28), mas a narratíva que
{Mc 14— 15). Os sinais de tribulação são apre
aparece entre um ponto e outro já proporciona ce
sentados em paralelo na Paixão de Jesus, como
nas inesperadas de fidelidade. Em deliberada con
se vê a seguir:
traposição com as ações dos líderes judeus e com as de Judas ( “um dos Doze”), a mulher anônima
13.2
Destruição do
14.58; 15.38
unge Jesus para o sepultamento (Mc 14.1-11).
templo 13.9,11,12
Entrega
Simão de Cirene torna-se discípulo modelar: 14.10,11,18,
aquele que leva a cruz (Mc 15.21; cf. Mc 8.34).
passim
Um grupo de discípulas mantém-se fielmente do lado de Jesus enquanto ele morre (Mc 15.40,41).
13.12,13
Traição
14.10.21,43
13.24
Trevas
15.33
Ainda mais importantes pelo papel que de
Filho do homem: 13.26
tribulação,
sempenham na teologia lucana da Paixão de Je sus são 0 rasgar do véu do templo (Mc 15.38)
14.62
parusia
e a confissão do centurião. Como já vimos, es
13.32,33
A “hora”
14.32-42
13.5,9,23,
Vigilância
14.34,37,38
33,35,37
escatológica
13.25
fornece a
ses acontecimentos juntos revelam a identidade de Jesus, mas também falam do tema do disci pulado. A primeira passagem, utilizando-se de
14.17— 15.1
material do templo, já antes encontrado no se
cronologia para 13.36
Voltar, achar,
gundo Evangelho, demonstra que Jesus é o Mes 14.37,40
sias que destrói o templo e o reconstitui como
dormir
comunidade dos fiéis. A importância da última passagem nesse contexto repousa no fato de que
No âmbito literário, esses paralelos amarram
é justamente um centurião gentio que confessa
o destino de Jesus com o de seus discípulos e
que Jesus é Filho de Deus. Dificilmente se pode
também são de profunda importância teológica.
ria encontrar uma palavra mais enfática sobre as
De um lado, significam que o sofrimento dos
implicações universais da morte de Jesus.
discípulos é uma participação no sofrimento do Cristo. De outro lado, indicam as ramificações
6. A morte de Jesus no Evangelho de Lucas
cósmicas desse sofrimento. A cruz de Cristo é
0 terceiro Evangelista não deixa seus leitores em
o ponto decisivo na história, é o parto de uma
dúvida quanto ã centrahdade da morte de Jesus
nova era, a chegada do reino de Deus ao mun
para seu Evangelho. Ele arma o palco para a Pai
do. Isso acentua a seriedade dos sofrimentos dos
xão de Jesus ao acentuar sua narrativa da vida de
discípulos de Jesus. Como ele, sofrerão rejeição.
Jesus acima de tudo como uma história de confli
Aliás, parece que o público-alvo de Marcos já
to. Além disso, ao longo de Lucas-Atos, ele ecoa
antevia um ambiente de perseguição. A justapo
o refrão: “ 0 Cristo tem de sofrer”. 0 que é menos
sição de imagens em Marcos 13— 15 comprova
transparente para Lucas é o significado da morte
que 0 sofrimento deles também faz parte do pla
de Jesus.
no divino e que a dor deles faz parte do proces
6.1
A rejeição ao Messias. Lucas caracteriza a
so pelo qual o reino de Deus está irrompendo
vida de Jesus como um relato de conflito e rejei
no mundo.
ção — preditos por Simeão (Lc 2.34,35), previsão
303
C r is t o , m o r t e de í : E v a n g e l h o s
paradigmaticamente representada pela oposição
Pedro é relacionada com a influência de Sata
a Jesus em Nazaré {Lc 4.16-30) e tragicamente
nás (Lc 22.31-34). Ao relatar a prisão de Jesus,
cumprida quando Pilatos entrega Jesus à vonta
Lucas está visivelmente calado acerca dos dis
de dos principais sacerdotes e do público judeu
cípulos, e 0 resultado é que o destino deles flca
(Lc 23.25). Em certo sentido, esse retrato de Jesus
indefinido. Eles não abandonam Jesus, como
não passa daquilo que seria de esperar. Para Lu
em Mateus e Marcos. Na verdade, os discípu
cas, Jesus é um profeta (cf., e.g., Lc 4.24; 7.16,39;
los estão “com” Jesus de uma forma que não
24.19; At 3.17-26; 7.37), e a rejeição e a morte
encontra correspondência nos outros Sinóticos
são o destino de todos os profetas (cf. Ne 9.26;
(Lc 22.28). Esse fato terá importantes repercus
Lc 4.24; 6.23; 11.47-51; 13.33,34; At 7.52). Em
sões em nossa leitura da ligação entre a cru
Lucas, o profeta Jesus atrai oposição principal
cificação de Jesus e os discípulos, tema a que
mente por se preocupar com um tipo de justiça
retornaremos em seguida.
que colidia com aquela praticada pela liderança religiosa e, ao mesmo tempo, por estar aberto aos
6.2
“Era necessário que o Filho do homem
sofresse”. É verdade que Lucas herdou de Mar
enjeitados da sociedade mediante a prática da co
cos a ênfase sobre a necessidade da Paixão de
munhão ã mesa
. No Evangelho de Lucas,
Jesus (e.g., Mc 8.31). Mas, em Lucas, Jesus re
os principais adversários de Jesus parecem ser
vela, no que diz respeito à cruz, uma determina
os líderes religiosos de Jerusalém, e entre eles os
ção sem correspondência nos Sinótícos. Ele não
(K
a r r is )
principais sacerdotes são destacados e recebem
apenas “manifestou o firme propósito de ir para
especial atenção. Em contraste com sua malevo
Jerusalém” (Lc 9.51), lugar de rejeição e morte
lência, vê-se uma hderança política relativamente
(Lc 18.31,32), mas também no início da Paixão
benigna. Em cada um dos Evangelhos canônicos,
revela uma surpreendente presciência acerca dos
descobrimos que a principal parcela de culpa pela
detalhes de sua traição, prisão e morte. Mais que
morte de Jesus é atribuída aos judeus, especial
nos outros Sinótícos, aqui Jesus está no controle
mente aos líderes judaicos, não aos romanos.
dos acontecimentos que envolvem sua Paixão.
Isso fica especialmente claro no Evangelho de
Quando Jesus prediz seu sofrimento e rejei
Lucas, em que a inocência de Jesus é três vezes
ção, ele ressalta, usando a linguagem da história
declarada por Pilatos e confirmada por Herodes
da salvação [dei], que eles são necessários. A ca
(Lc 23.4,14,15,22).
racterização prossegue mesmo depois do relato
0 tema recorrente do conflito, encontrado em
da Paixão, para demonstrar que o Jesus crucifica
Lucas, não se limita, porém, à interação de Jesus
do podia ser o Messias de Deus: “Acaso o Cristo
com os personagens humanos desse Evangelho.
não tinha de sofrer essas coisas e entrar na sua
A unção divina de Jesus para sua missão é situa
glória?” (Lc 24.25-27). Expressões semelhantes
da no contexto imediato da tentação pelo Diabo
aparecem outras vezes em Lucas-Atos.
(Lc 3.21—4.13), e a narrativa seguinte demonstra
Faz muito tempo que os estudiosos de Lucas-
as contínuas dimensões cósmicas de oposição a
Atos têm consciência da seriedade da morte de
Jesus (e.g., Lc 13.10-17). Com o início do relato
Jesus para Lucas. Observando, porém, que o peso
da Paixão, o conflito sobrenatural desloca-se ou
do interesse teológico de Lucas recai sobre a res
tra vez para o centro do palco; Satanás entra em
surreição e a exaltação de Jesus, ficam intrigados
Judas (Lc 22.3; cf. 22.31), e a luta de Jesus no
com o significado da cruz. De que maneira a mor
monte das Ohveiras, como ao longo de toda a sua
te de Jesus é crucial para o propósito redentor de
missão, é pintada em matizes cósmicos e escató-
Deus? Parece que, nesse problema teológico, Lu
logicos (Lc 22.53; cf. peirasmos, “tentação” , em
cas não foi tão claro. Aliás, de acordo com muitos
LC4.13; 8.13; 22.28,40,46).
intérpretes, parece que, para a pergunta “Por que
Nesse cenário, é significativo que Lucas não oponha os discípulo a Jesus, como ocor re nos outros Sinóticos. Embora Judas de fato
Jesus teve de morrer?”, Lucas responde tão so mente: “Porque Deus quis!” 6.2.1
A morte de Jesus e a soteriologia luca
traia Jesus, ele o faz sob o poder de Satanás
na. No passado, muitos comentaristas pressupu
(Lc 22.3). De modo semelhante, a negação de
seram que Lucas atribuísse à morte de Jesus o
304
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
significado salvífico encontrado em outras passa gens do
NT.
6.2.2
Tanto que Lucas, à semelhança dos
outros autores do
nt
,
A morte de Jesus: martírio? A interpreta
ção da morte de Jesus como martírio conquistou
afirma que “Jesus morreu
amplo apoio no século
xx
(v.
B eck) .
Essa ideia
pelos nossos pecados”. Pesquisas mais recentes,
explora as hgações entre a Paixão lucana e a li
no entanto, contestam essa leitura, insistindo que
teratura de martírio do judaísmo recente. Temas
é preciso 1er Lucas isoladamente, não atrelado às
comuns incluem a) a presença de conflito sobre
categorias teológicas da teologia pauhna da cruz.
natural e a ajuda divina, b) a inocência e a per
Por conseguinte, os estudiosos têm ressaltado que
sistência da vítima e c) a descrição de como o
Lucas omite a declaração do resgate em sua pas
martírio se deu para exemplo dos fiéis.
sagem paralela a Marcos 10.41-45 (Lc 22.24-27);
Embora essa interpretação atribua significado
que os sermões de Atos não estabelecem uma re-
positívo à morte de Jesus em Lucas e reconheça
iação direta entre a cruz e o perdão de pecados;
vários aspectos importantes da narratíva lucana,
que 0 material de Lucas-Atos tomado por emprés
ela se viu objeto de um exame minucioso em
timo de Isaías 52.13— 53.12 deixa de mencionar
anos recentes. Em primeiro lugar, houve questío-
a importância vicária e propiciatória da morte do
namento de até onde Lucas previa que os discí
Servo (e.g., Lc 22.37; At 8.32,33).
pulos seriam convidados a seguir os passos de
É claro que as palavras eucarísticas de Jesus
Jesus. Dessa maneira, o chamado a tomar a cruz
vLc 22.19,20) ancoram a salvação humana na
(Mc 8.34) tornou-se, em Lucas, um chamado a
morte de Jesus (v.
um estílo de vida caracterizado pela cruz (“cada
TJl t i m a C e ia ) .
Entretanto, ob
servando que estão ausentes em algumas teste
dia”, Lc 9.23), não uma referência à perseguição
munhas textuais, vários estudiosos afirmam que
iminente. Em segundo lugar, vários detalhes es
elas não constavam do texto original de Lucas
senciais a histórias de mártires estão faltando
{cf. Bj, nota). Os que acreditam que essas pala
em Lucas, especialmente os detalhes horrendos
vras fazem parte da narrativa original lucana fi
sobre o modo de execução. Em Lucas, além do
cam assim mesmo impressionados pelo fato de,
mais, Jesus, ao contrário dos mártires da hteratu
üinguisticamente, esses versículos soarem como
ra judaica, aparece como aquele que luta contra
aão lucanos. Assim como em Atos 20.28 (a outra
a perspectiva de morte (Lc 22.39-46). Em terceiro
única passagem no corpus lucano que claramente
lugar, como deixa claro o estudo continuado do
baseia a salvação humana na morte de Jesus),
contexto religioso do século i, os temas dos es
parece que Lucas está repetindo terminologia an
critos martirológicos não são exclusivos daquele
tiga, sem identificá-la com sua teologia.
corpus. Por isso, pode se pressupor que Lucas e
Conclusão semelhante se confirma nas passa
a hteratura de martírio beberam de uma visão de
gens em que Lucas deixa transparente seu enten
mundo comum. Por último, tornou-se claro que
dimento sobre o meio da salvação. Em Atos 2.33,
o conceito de Jesus como mártír não faz justíça
5.30.31 e 10.43, percebemos a preocupação de
à rica pintura lucana da Paixão de Jesus. Embo
Lucas em mostrar que o meio da salvação é a
ra Jesus como mártir possa ser um dentre outros
exaltação de Jesus. Dessas três passagens. Atos
interesses de Lucas, está longe de ser um resumo
5.30.31 é de particular interesse, por dois moti
da teologia lucana da morte de Jesus.
vos. Primeiro: é aqui que a lógica é mais clara.
6.3
Do Justo Sofredor para o Servo Sofredor.
Em consequência de sua exaltação Jesus é en
Outros estudiosos de Lucas observaram os repe-
tronizado como Príncipe e Salvador, e nessas
tídos indícios da inocência de Jesus em Lucas 23
competências pode oferecer salvação. Segundo:
e os muitos paralelos entre Jesus e o Justo Sofre
o texto ressalta outra vez a necessidade da morte
dor de Salmos e de Sabedoria de Salomão. Com
de Jesus para a história da salvação.
base nisso, entendem que Lucas apresenta uma
Está claro que, para Lucas, a morte de Jesus
interpretação da Paixão de Jesus como o sofri
tem significado positivo, mas é igualmente claro
mento e a morte do Justo Sofredor de Deus que
que esse significado não está centrado numa in
caminha para a morte, apesar de sua inocência,
terpretação da cruz como sacrifício vicário. Como,
mas é depois justificado por Deus. Esse enfoque
então, esse significado pode ser entendido?
capta 0 tema recorrente da inocência visto no
305
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
relato da Paixão, harmoniza-se com as “fórmulas
Em segundo lugar, a ênfase de Lucas no Servo
de contraste” existentes nas declarações de Atos
proporciona um arcabouço para extrair as impli
(e.g., “ Vós 0 matastes, crucificando-o pelas mãos
cações universais da missão de Jesus. 0 fato de
de ímpios; e Deus o ressuscitou” , At 2.23,24) e
que ele seria “luz para revelação aos gentios” foi
demonstra na vida de Jesus a maneira em que
predito por Simeão (Lc 2.32; Is 49.6), por isso
Deus reverte a injustiça, tema importante em
vale ressaltar que, por ocasião da morte de Jesus,
Lucas-Atos.
um gentío o aclamou Justo. Entretanto, a morte
mesmo tempo, está claro que essa inter
de Jesus não é importante apenas para os gentios,
pretação também é insuficiente para chegar ao
mas também para os judeus (e.g., Lc 23.34,48) e
Ao
cerne do entendimento de Lucas sobre a morte
os criminosos (Lc 23.43). Ou seja, na morte de
de Jesus, pois não explica a necessidade divina
Jesus, percebe-se o auge de uma vida vivida a
da cruz da perspectiva da história da salvação.
favor de outros, incluindo-se os de fora.
Um modelo interpretativo mais bem-sucedido
Em terceiro lugar, ao descrever a carreira de
concentra-se no Servo Sofredor de Isaías, que é
Jesus (especialmente sua morte e ressurreição)
uma personificação mais clara do Justo Sofredor
como a do Servo Sofredor, Lucas demonstra de
do
modo definitivo como ele entende o caminho da
AT ( G r e e n ,
1990).
Lucas está mais interessado no Servo Sofredor,
salvação. Na vida de Isabel e de Zacarias, Lucas
e isso é visível no relato da Paixão e em outras
revela que a salvação divina vem por um padrão
passagens de sua obra, escrita em duas partes. No
de reversão (Lc 1). Para Lucas, a chegada do rei
relato da Paixão, Jesus cita Isaías 53.12 como alu
no de Deus assinala uma transposição de papéis,
são geral a seu sofrimento e morte, comunicando
quando Deus, que é fiel, justifica quem é fiel. A
assim que, em sua Paixão, cumpre o papel do Ser
carreira de Jesus ilustra esse tema de reversão,
vo Sofredor. Jesus é declarado inocente repetidas
pois ele é o Servo inocente que sofre até a morte,
vezes e aclamado “justo” pelo centurião, alusão a
mas é ressuscitado e nomeado Príncipe e Salva
Isaías 53.11 (cf. a ligação de dikaios [“justo” ] com
dor. Ao pôr de lado os planos de autoglorificação
o sofrimento de Jesus em At 3.13,14, em que se
e adotar obedientemente o papel do Servo (cf.
descreve a Paixão de Jesus com palavras empres
Lc 12.37; 22.25-27), Jesus personifica a retidão e
tadas de Is 52.13—53.12). Jesus recusa-se a falar
a humilhação do Servo. A cruz é a consequência,
em defesa própria (Lc 23.9; Is 53.7). E, ao ser
mas Deus reverte essa humilhação, justificando
zombado, é chamado “escolhido”, designação do
seu Servo, exaltando-o e, assim, abrindo o cami
Servo de Deus (Lc 23.35; Is 42.1). Fora do relato
nho do arrependimento e do perdão. Para Lucas,
da Pabcão, aparecem várias referências ao papel
esse é o caminho da salvação e o caminho do
de Jesus como Servo, sendo a mais explícita a ci
discipulado.
tação de Isaías 53.7,8 em Atos 8.32,33 e a referên cia profética à missão de Jesus por Simeão com
7. A morte de Jesus no Evangelho de João
palavras emprestadas de Isaías 49.6 (Lc 2.32).
Até alguns anos atrás, os estudiosos do quarto
Para Lucas, são três os fatores importantes na
Evangelho minimizavam a importância da Paixão
identificação da Paixão de Jesus com a do Servo
para João ao apresentar Jesus. Alguns intérpretes
Sofredor. Em primeiro lugar, mostra que Lucas
chegavam a postular um abismo teológico entre
pode realçar a necessidade histórico-salvífica da
os capítulos 17 e 18 de João, sugerindo que o jul
cruz e dirigir a atenção para a exaltação ou jus
gamento e a execução de Jesus não se coaduna
tificação de Jesus como acontecimento salvífico.
vam com a imagem do Jesus glorioso encontrada
A descrição do Servo Sofredor de Isaías reforça
em outras partes desse Evangelho. Mas a ideia
esses temas gêmeos recorrentes, particularmente
começou a cair em descrédito entre os estudiosos
Isaías 53.11, passagem na qual, após seu sofri
de João, pois as pesquisas vêm mostrando nume
mento, o Justo de Deus justificará a muitos. Ou
rosas alusões ã Paixão nas seções anteriores do
seja, a caracterização lucana de Jesus como o Ser
Evangelho (cf. Jo 2.12-22; 3.14), além do fato de
vo revela a necessidade de sua morte e a conse
que oito capítulos do Evangelho diretamente liga
quência salvífica de sua justificação.
dos à Paixão (Jo 12— 19) começam a demonstrar
306
C r is t o , m o r t e de i : E v a n g e l h o s
de novo a integração da cruz com a totalidade da
mas também nas claras tentativas de, no relato da
cristologia de João. Analisaremos o significado da
Paixão, João descrever a morte de Jesus como sa
morte de Jesus para João, primeiro mediante a
crifício de Páscoa. Nesse aspecto, é possível assi
menção de dois temas secundários — a soberania
nalar os seguintes detalhes: coincidência da hora
de Jesus no relato da Paixão e a morte de Jesus
da morte de Jesus com a hora do sacrifício pascal
como sacrificio — e depois mediante a observa
(Jo 19.14; cf. 18.28); o hissopo e uma vasilha pre
ção de que a cruz se relaciona com a peregrina
sentes na crucificação (Jo 19.29; cf. Êx 12.22);
ção do Filho de Deus, da encarnação ã exaltação.
ênfase no sangue que escorre do lado de Jesus
7.1 Jesus, o Rei soberano. Quando o leitor
(Jo 19.34; Êx 12.13); os soldados não quebram
se afasta das versões sinóticas e se aproxima do
as pernas de Jesus (Jo 19.31-37; Êx 12.46). Essa
relato joanino do sofrimento e da morte de Jesus,
ênfase na Páscoa provavelmente tem relação com
fica imediatamente impressionado com a majes
o discurso expandido sobre Jesus como o Pão da
tade de Jesus em João. Muito antes de ser traído,
Vida (Jo 6.25-59). Quem participa da carne e do
ele já sabe quem o fará (Jo 6.70) e põe em anda
sangue de Jesus terá essa vida.
mento 0 ato de traição (Jo 13.27). Na cena da pri
De modo semelhante, João 3.16 vincula a en
são, não é Judas nem o grupo que vem prendê-lo
carnação do Filho de Deus à oferta de vida. 0
quem está no controle da situação, mas Jesus,
linguajar característico da adunação, encontrado
revelando-se como o “ Sou eu” [egõ eimi] e ne
de maneira mais disseminada em Paulo, também
gociando a soltura dos discípulos (Jo 18.1-11).
tem espaço na narrativa joanina. Assim, João
Na audiência perante Pilatos, ele é apresentado
emprega hyper (“pela vida de”) para ressaltar
como rei e até assume o papel de juiz (Jo 18.28—
a natureza redentora da cruz (Jo 6.51; 10.11,15;
19.16). Sem precisar de nenhuma ajuda, car
11.50-52; 18.14). Por fim, João entende o lava-
rega ele mesmo sua cruz (Jo 19.17). Na cruz,
pés durante a refeição final de Jesus com os dis
revela preocupação com a mãe (Jo 19.25-27)
cípulos não apenas como uma demonstração de
e, antes que os soldados possam lhe desfe
comportamento exemplar, mas também como
rir o golpe de misericórdia, quebrando-lhe as
símbolo da morte salvífica de Jesus (Jo 13.8-11).
pernas para lhe acelerar a morte, ele morre por
7.3
vontade própria (Jo 19.20-33).
Crucificação e exaltação. Da perspectiva
da integração da morte de Jesus com a cristo
Dessa maneira, João demonstra a verdade
logia joanina como um todo, o tema recorren
das palavras de Jesus: “Dou a minha vida para
te mais disseminado é o de “levantamento” ou
retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou
“exaltação”. Somos repetidas vezes informados
espontaneamente” (Jo 10.17,18). Fica claro que
que esse é o destino de Jesus, o Filho do homem
João está interessado em relacionar a Paixão de
(Jo 3.14,15; 8.28; 12.32,33). Esse “ ser levantado”
Jesus com a representação mais ampla que faz
[hypsoõ, Jo 3.14; 8.28; 12.32) sem dúvida tem du
da gloriosa peregrinação de Jesus na terra (cf.
plo sentido. De um lado, no esquema de João,
Jo 1.14b) como ato de autoentrega.
está associado ã terminologia da glorificação. De
7.2 A morte de Jesus: vida para o mundo.
outro, em João 8.28 lemos que os judeus serão
Embora o sacrifício na cruz não seja um elemento
os agentes mediante os quais Jesus será levanta
estrutural do pensamento de João sobre a morte
do, e em João 12.32,33 o Evangelista observa que
de Jesus, ainda assim é de importância para seu
“levantar” é uma metáfora que designa a maneira
Evangelho. Esse tema recorrente aparece inicial
em que Jesus será executado (cf. Jo 18.32).
mente em João 1.29,36, em que o perdão de pe
João, portanto, percebe algumas ligações ín
cados é associado ao título “ Cordeiro de Deus”
timas entre a crucificação de Jesus e sua exalta
para Jesus. Embora “ Cordeiro de Deus” também
ção, e isso sugere que a morte de Jesus deve ser
possa ter outras nuanças, pelo menos é associa
situada no retrato joanino mais abrangente da
do com 0 mundo teológico do cordeiro da Pás
carreira terrena de Jesus. Para o Evangehsta, a
coa. Isso é sugerido não apenas pela teologia da
melhor maneira de entender a vida do Filho de
adunação (aunação, adunamento; obra, sacrifício
Deus é enxergá-la como uma jornada: ele vem de sua condição preexistente nos céus, habita
ou morte reconciliatória) existente em João 1.29,
307
C r is t o , m o r t e d e i : E v a n g e l h o s
entre a humanidade e então retorna aos céus.
Westminster, 1982. ■ H e n g e l , M. The atonement:
Aquele que desceu da glória tem de ascender à
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Como estaria a Paixão de Jesus relacionada
in the ancient world and the folly of the message
com esse movimento cristológico? É o meio me
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diante o qual ele retorna para o Pai. Ou seja, João
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perspectiva da exaltação de Jesus. Essa leitura é
temple: the trial of Jesus in the Gospel of Mark.
estimulada pelo fato de que, nas passagens em
Missoula: Scholars, 1977.
que é mais clara a referência ao “levantamento”
J.
de Jesus (Jo 3.14; 8.28; 12.32-34), João desenvol
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cruz é interpretada pelo tema recorrente da jor
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deixou 0 mundo de baixo para retornar para o
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mundo de cima
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and his people: studies in honor of Nils Alstrup
como a manifestação máxima do amor, o presen
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te de Deus (Jo 3.16). Aliás, o amor de Jesus por
■ L
seus seguidores atinge o ápice em seu serviço e
chungen zur urchristhchen Verkündigung vom
morte sacrificiais (Jo 13.1; 15.13).
Sühntod Jesu Christi. 2. ed. Göttingen: Vande-
Ver também S ervo
de
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R
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Deixando de lado, por enquanto, a variedade
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de materiais tradicionais relacionados ã morte de Jesus que Paulo incorporou em sua correspon
ie j,
35, p. 22-7, 1985.
dência, é possível dar o exemplo de ICoríntios. J. B.
G
Cerca de 25 anos após a crucificação de Jesus,
reen
Paulo escreve sobre o escândalo central e sobre a C r is t o ,
m o r te d e ii:
P aulo
loucura da cruz (IC o 1.18,23), o que insinuava as
A morte de Cristo, em geral mencionada com sua
duras realidades que seriam encontradas na ativi
ocupa posição central na represen
dade missionária inicial. Historicamente, a execu
tação paulina do evangelho. Mediante fórmulas
ção de Jesus numa cruz fez com que sua morte
RESSURREIÇÃO,
confessionais e tradições hínicas, Paulo reconhe
fosse vista como a de um criminoso comum, hu
ce, emprega e desenvolve o significado redentor
milhado no meio de seu povo — aliás, até mesmo
dessa morte. Provavelmente, ele está familiariza
amaldiçoado por Deus (cf. Dt 21.22,23). Como
do com a história do sofrimento e da morte de
esse Jesus poderia ser o “Ungido” (i.e., o Mes
Jesus e relembra a história a seus leitores. Assim,
sias)? A despeito desse problema, Paulo afirma
desenvolve a importância da Pabcão de Cristo
que, enquanto se encontrava entre os coríntios,
em contextos relacionados a todos os aspectos
havia decidido “ nada saber [...] a não ser Jesus
de sua mensagem apostólica, especialmente sua
Cristo, e este, crucificado” (ICo 2.2). Não é exa
soteriologia,
Este
gero dizer que a igreja primitiva tinha de resolver
verbete, embora não de maneira exclusiva, trata
a questão da cruz de Cristo justamente por ser
c r is t o l o g i a ,
e s c a t o l o g ia
e
é t ic a .
dessa atribuição, feita por Paulo, de significado
esse Jesus crucificado e morto que estava sendo
adunatório ao sofrimento e morte de Cristo.
proclamado como o Messias
(G
reen,
p. 157-74).
1. A centralidade da morte de Cristo
Como teólogo da cruz, Paulo desempenhou pa
2. A importância da cruz: pluralidade de me
pel fundamental na exploração do significado do
táforas (figuras)
C r is t o
3. A morte de Cristo e o propósito de Deus
crucificado.
É evidente que Paulo fez uso das tradições
4. A morte de Cristo e a condição humana
cristãs preexistentes acerca da Paixão de Jesus,
5. 0 Messias crucificado e a vida cristã
sendo esse material então incorporados em sua correspondência (cf., e.g., as referências caracte
1. A centralidade da morte de Cristo
rísticas ao processo de transmissão da tradição,
Para Paulo, a cruz de Cristo era fundamental à re
ICo 11.23-25; 15.3-5; cf.
flexão e à vida cristãs, especialmente como meio
também evidente que ele exercitou a própria cria
de salvação proporcionado por Deus e instrumen
tividade ao modelar a tradição, o que não é de
to e paradigma da nova vida em Cristo.
K e r te lg e ,
p. 116-24). É
surpreender, pois uma das motivações básicas
É de grande importância o fato de as cartas
para sua resoluta oposição ao movimento cristão
de Paulo, que são os mais antigos escritos cris
antes de seu encontro com o Senhor ressurreto
tãos de que se tem notícia, já documentarem a
deve ter sido a contradição do querigma cristão,
relevância central da cruz de Cristo. A mesma
pois apresentava a exaltação divina do “amaldi
importância tem esse fato para a nossa com
çoado”. Quando Paulo abraçou “o evangelho de
1 1.6-17), isso implicou uma conversão
preensão do cristianismo primitivo, pois oferece
Cristo”
indícios de quão rapidamente os seguidores de
teológica que o capacitou a ir muito além da in
(G
Jesus foram alertados para o problema teológi
terpretação negativa que inicialmente fez da cruz.
co da crucificação. Sua importância também se
Também sugere uma das influências por trás de
reflete na compreensão do próprio Paulo, pois
sua posterior reflexão sobre a cruz. Vale ressaltar
revela a intensidade com que ele se debateu com
que Paulo resolveu a aparente contradição de um
a cruz e quanto a prezou, demonstrando que seu
Cristo crucificado não negando que ela causasse
pensamento estava em harmonia com a reflexão
perplexidade, mas mostrando que Deus justificou
cristã entendida em sentido mais amplo nos anos
Cristo ao dar à sua morte aparentemente infame
iniciais do movimento de Jesus.
um sentido positivo e inesperado.
309
C r is t o , m o r t e d e ü : P a u l o
Em contraposição, a experiência apostólica de Paulo ressaltou até que ponto o
s o f r im e n t o
e
15.3: “Cristo morreu pelos nossos pecados” (v. tb. Rm 5.6,8; 14.9; ICo 8.11; 2Co 5.14,15; G1 2.21;
a impotência faziam parte inseparável da vida
ITs 5.10). A expressão de Paulo “ Cristo morreu
cristã, a despeito da ressurreição de Jesus. Pela
por nós” é, de acordo com M. Hengel, “a declara
perspectiva paulina, a fraqueza apostólica encon
ção confessional mais frequente e mais importan
trou significado no sofrimento de Cristo. Assim,
te das cartas paulinas e ao mesmo tempo de toda
depois de lembrar aos coríntios que entre eles o
a tradição cristã primitiva de língua grega que
apóstolo havia buscado apenas apresentar Cristo,
está por trás dessas epístolas”
(H
eng el,
p. 37).
e este crucificado, Paulo chama a atenção deles
Essa tradição que lhe serve de base é impor
para o comportamento que teve enquanto viveu
tante para mostrar a intensidade com que Paulo
entre eles: "Estíve convosco em fraqueza, em te
se ahnha com a fé comum da igreja primitiva. Ou
mor e em grande tremor” (ICo 2.2,3; cf. Cl 1.24).
seja, suas cartas empregam o vocabulário comum
Consequentemente, vemos que uma inspiração
das comunidades cristãs; suas inovações em ex
adicional para o trabalho incessante de Paulo
pressões teológicas baseiam-se no ahcerce da fé
para traduzir o significado da cruz era a vida —
compartilhada. Mais especificamente, diante do
sua e da igreja — em Cristo, a qual não desco
antagonismo como o que Paulo enfrentou em Co
nhecia fraqueza, oposição ou sofrimento. Assim,
rinto e na Galácia, a repetição de materiais de tra
para Paulo, a importância da cruz está ahcerçada
dição relacionados com a cruz serve para indicar
em seu encontro com o Senhor ressuscitado e nas
como 0 apóstolo legitimou sua autoridade diante
exigências de seu ministério apostólico.
da oposição (v.
1.1 A cruz e o querigma. Como a centrahdade
1.3
a d v e r s á r io s ) .
A história de Jesus. Com isso não se
da cruz se manifesta para Paulo? Tal centrahdade
quer dizer que Paulo fosse devedor apenas à
está implícita nas expressões que emprega para
tradição formular que partilhava com o cristia
denotar o querigma. Assim, em ICoríntios 1.18,
nismo primitivo. Há também indicações de que
“a palavra da cruz” é, na prática, sinônimo de
ele conhecia a história do sofrimento e da morte
Em 2Coríntios, 5.19, a “mensagem
de Jesus, que lhe teria sido transmitida. Tal refe
da reconciliação” é empregada de maneira seme
rência talvez esteja por trás de Gálatas 3.1, em
lhante, em um contexto em que o acontecimento
que o linguajar ( “ Não foi diante de vós que Jesus
salvífico é apresentado no seguinte paralelismo:
Cristo foi exposto como crucificado”) sugere uma
“Ele morreu por todos, para que os que vivem
característica visual de sua proclamação, abrindo
não vivam mais para si mesmos, mas para aquele
a possibihdade de que sua pregação missionária
que por eles morreu e ressuscitou” (cf. Fp 2.16:
tenha feito uso de uma narrativa da Paixão. De
“a palavra da vida”; At 13.26: “a palavra desta
modo semelhante, a tradição da Última Ceia, “ na
salvação” ; K e r t e l g e , p. 124-7).
noite em que foi traído” (IC o 11.23-25), pres
“
ev an g e lh o ”.
1.2 Expressões formulares. Uma leitura cui
supõe um conhecimento compartilhado de um
dadosa das cartas paulinas também revela duas
contexto narrativo para a tradição eucarística (v.
expressões estereotípicas para a importância
IJltima Ceia). Também são sugestivos os temas
adunatória da cruz
A primeira
com os quais Paulo descreve o próprio sofrimento
fala da “entrega” de Jesus para a salvação da hu
em 2Coríntios. Por exemplo, em 2Coríntios 6.3-10
( H eng el,
p.
3 4 - 9 ).
manidade, seja como ato divino (e.g., Rm
4 .2 5 :
ele relaciona os sofrimentos, a graça e os aspectos
“Ele foi entregue à morte por causa das nossas
paradoxais de seu serviço de um modo que ecoa
transgressões” ; Rm
a história da Paixão de Cristo. Então, não dife
8 .3 2 ;
“Aquele que não pou
pou nem o próprio Filho, mas, pelo contrário, o
rentemente do que se encontra no Evangelho de
entregou por todos nós...”), seja como autoentre
Marcos, Paulo tem um entendimento próprio do
ga (e.g., G1 1 .4 ; “ [Jesus] se entregou a si mesmo
“caminho da cruz” , o caminho de sofrimento por
pelos nossos pecados”; G1
se entregou
meio do qual alguém se identiflca com o sofri
por mim”). A segunda expressão, a “fórmula da
mento de Cristo. Por fim, embora pauhna apenas
morte”, é encontrada várias vezes; por exemplo,
no sentido amplo da palavra, a passagem de I T i
na celebrada tradição representada em ICoríntios
móteo 6.13 alude ao julgamento
2 .2 0 : “ ...
310
de
Jesus perante
C rísto , morte de ii ; Pa ulo
Pôncio Pilatos de uma forma que pressupõe pelo
e sangue, Cristo; “Foi da vontade de Deus que
menos um conhecimento rudimentar do relato da
[...], havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz,
Paixão. Nesses e em outros textos, reconhecemos
por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas
que a teologia de Paulo tem qualidade narrativa,
as coisas” (Cl 1.19,20; cf. Cl 1.14; 2.13,14; 3.13).
ou seja, ele entende a experiência cristã dentro do
Desse modo, Paulo se contrapõe a um estilo de
quadro mais amplo da atividade divina que vai
vida vohado a aplacar os poderes estelares, como
desde a formação do povo de Deus até a parusia,
se fossem o meio de os seres humanos terem
e, como destaque dentro dessa narrativa maior,
acesso a Deus, e, contra uma espiritualização
encontra-se a narrativa da crucificação de Jesus.
algo gnóstica do caminho do discipulado, afirma
Embora Paulo revele pouquíssimo interesse pelos
de modo apaixonado a importância do comporta
detalhes históricos da Paixão de Jesus como fato
mento ético neste mundo material.
histórico em si, parece que tinha consciência de
Em outros momentos, Paulo apresenta a
les e estava interessado em seu significado para a
morte de Jesus como o apogeu de sua vida. Em
fé e a vida cristãs (v.
Filipenses 2.6-11, parece acrescentar a um hino
1.4
Jesus e P a u l o ) .
O padrão de Cristo. Além do mais, isso antigo de louvor a Cristo as palavras “e morte de cruz”. Aqui a vida de Jesus como o Filho obe
aponta para a intensidade com que Paulo está pronto a apresentar a cruz de Cristo como a base
diente de Deus está no centro do palco, e essa
da fé e da vida cristãs. De fato, a referência de
obediência é vista mais profundamente quando
Paulo ã tradição da Última Ceia é situada no con
ele se dispõe a aceitar a rejeição, o sofrimento
texto de sua anáhse da refeição comunitária, a
humano e uma morte horripilante por crucifica
fim de atacar o problema das divisões em Corinto
ção. Desse modo, Paulo sustenta que a morte de
(ICo 11.17-34; cf. ICo 1.10-17). Aqui, um lem
Cristo “é a mais completa expressão de [sua] vida
brete da autoentrega sacrificial de Jesus é a base
e estabelece [para nós] o padrão de uma vida de
para o chamado paulino a uma vida modelada
amor e obediência”
segundo o caminho da Paixão de Jesus e voltada
de várias outras maneiras, Paulo mostra que o
para o serviço, sendo cruciforme (v.
pensamento e a vida cristãos estão ahcerçados no
Ú lt im a C eia ) .
Em Corinto, assim como em Colossos, Pau
( T am ba sco ,
p. 72). Dessas e
acontecimento básico da cruz de Cristo.
lo reflete em boa parte do texto o significado do Cristo crucificado, de modo que se opõe a ideias
2. A importância da cruz: pluralidade de
concorrentes. No caso de sua correspondência
metáforas (figuras)
com 03 coríntios, a palavra da cruz opõe-se a
Assim como a morte de Jesus encontra-se no
ideias desatinadas sobre a natureza da existência
alicerce da teologia de Paulo, da mesma forma
presente, como se fosse o tempo de triunfalismo
parece que Paulo jamais se cansa de acrescentar
após a consumação da nova era. Contra a “ sabe
novas figuras de hnguagem a seu vocabulário in
doria do mundo” e a tendência de seu púbhco
terpretativo, como meio de esclarecer a importân
greco-romano em Corinto de valorizar a posição
cia dessa morte.
social, Paulo postula a escandalosa cruz de Cristo
É verdade que Paulo está muito mais interes
como o “poder de Deus [...] para nós, que es
sado em estabelecer a importância da morte de
tamos sendo salvos”. Normas sociais, filosóficas
Cristo que nas circunstâncias históricas, e comu
ou mesmo soteriológicas são arrancadas quando
nica essa importância acima de tudo do ponto de
Paulo põe em foco “as coisas fracas do mundo” ,
vista de seus benefícios para a humanidade. Em
“as coisas insignificantes do mundo, as despre
reflexão teológica posterior, esses benefícios fo
zadas” , ou seja; “Cristo crucificado” e a comu
ram desenvolvidos com a nomenclatura de “adu
nidade que busca estar em torno desse Cristo
nação” (adunamento, aunação; obra, sacrifício ou morte reconcihatória), e isso representa dois
(ICo 1.18-31). Para os colossenses, Paulo fundamenta sua
problemas para o intérprete moderno.
apresentação do Cristo cósmico — que com Deus
Primeiro; a palavra adunação pode compor
reconciliou o cosmo, incluindo-se os poderes es
tar várias definições. De um lado, muitos hoje
telares — na vida e na morte de alguém de carne
remontam o sentido do termo a suas origens
311
C risto , morte de i i : Paulo
latinas, conforme o uso por teólogos medievais
A maior parte deste verbete é dedicada ao
— ad-una-mentum — e assim o entendem como
exame da teologia pauhna da aunação. Antes,
sinônimo de reconciliação (e.g.,
Essa
porém, é importante chegar a um acordo sobre
associação estabelece, por consequência, uma ci
a realidade mais básica de que Paulo não possui
são entre adunação e noções de expiação, propi
um meio exclusivo de deixar claro o significado
ciação e outras ideias relacionadas à substituição
da cruz. Embora o Cristo crucificado esteja no
ou satisfação. iVlais especificamente, a impor
centro de sua teologia, a verdade central per
tância adunatória da morte de Jesus está assim
mite múltiplas interpretações. A verdade é que
F it zm ye r ) .
dissociada de qualquer consideração da parte de
Paulo é capaz de fazer uma apresentação da im
Paulo a respeito do meio pelo qual se alcança a
portância da morte de Jesus sob medida para as
“a-una-ção” ou reconciliação.
necessidades de seu púbhco, em circunstâncias
Depois de séculos de discussão, hoje é difícil ler
particulares e contextuahzadas (v.
D river ; B o ff ,
Paulo sem o revestimento de uma ou mais das de
p. 78-84;
nominadas teorias clássicas da adunação (as cha
phcações para a contínua missão transcultural da
madas teorias da expiação) (v.
p. 37-67),
igreja, pois sugere que os intérpretes, ao extrair
especialmente a “teoria dramática” , que apre
0 significado da crucificação de Jesus, devem
D river ,
CousAR,
p. 82-7). Esse fato tem sérias im
senta a obra salvadora de Cristo como um dra
continuamente buscar metáforas que falem a de
ma cósmico de conflito e vitória; a “teoria da
terminada cultura e/ou circunstância. Abertos a
satisfação”, que apresenta a cruz de Cristo como
criar maneiras específicas e contextuahzadas de
meio pelo qual se ehmina a barreira entre Deus
comunicar o significado da morte de Cristo, os
e a humanidade, de sorte que por meio da morte
intérpretes contemporâneos que desejam ser fiéis
de Cristo se dá “satisfação” a Deus; a “teoria da
a Paulo serão guiados pelo testemunho apostólico
influência moral” , que se concentra na cruz como
da cruz; estarão fundamentados nas Escrituras,
demonstração, para a humanidade, do amor de
conhecendo a forma em que nelas se baseia sua
Deus, que é sem limites e deve ser imitado. A
tarefa hermenêutica, mostrando-se sensíveis às
ascendência da “teoria da satisfação”, com o fre
imagens e metáforas que, no mundo contemporâ
quente corolário de satisfação penal ou forense
neo, transmitem sentido redentor; demonstrarão
(i.e., uma vez que os seres humanos foram consi
estar vitalmente interessados na relação entre es
derados culpados diante do juiz, que é Deus, eles
ses três (v.
G reen & B ak er ) .
têm de ser punidos, mas Cristo é levado a sofrer o
Das dezenas de metáforas que Paulo emprega
castigo) como forma de entender a teologia pauli
para expor os benefícios da morte de Cristo, aqui
na da cruz tem se revelado especialmente proble
só será possível mencionar algumas delas. São
mática no debate teológico contemporâneo. Para
convenientemente apresentadas em dois textos
alguns, parece que Paulo apresenta Deus como
paulinos: 2Coríntios 5.14—6.12 e Gálatas 3.10-14.
um sádico que castiga e Jesus como o masoquista
Um exame da apresentação das consequências
que suporta o castigo com gosto. Qualquer tenta
da morte de Jesus em 2Coríntios 5.14—6.12 res
tiva de separar os interesses e a atividade de Deus
salta o grau de sobreposição das inúmeras cate
e Cristo, como se a cruz fosse a manifestação da
gorias com que Paulo expõe o significado da cruz.
ira de Deus, mas da misericórdia de Cristo, seria
Embora a reconcihação esteja no centro da passa
problemática na lógica paulina (v. abaixo). E, de
gem (2Co 5.18,19,20), outras categorias também
fato, é bem improvável que os que formularam a
estão em destaque: substituição vicária ( “por to
interpretação substitutiva da morte de Cristo re
dos” , 2Co 5.14,15), representação (2Co 5.14,21)
conhecessem essa caracterização moderna de seu
ou troca (expressão usada por
ponto de vista, mesmo que essa teoria clássica da
1978), sacrifício (2Co 5.21; cf.
adunação tenha se revelado presa fácil dessa lei
JUSTIFICAÇÃO
tura problemática em alguns hinos e na interpre
(2Co 5.19) e nova criação (2Co 5.16,17; v.
tação popular (v. a proveitosa anáhse em
NOVA criação ) .
B eker ,
H outs;
p. 208-11; sobre o uso do termo "aduna
ção” , V. tb.
mor te d e cristo
I
e
312
1984,
p. 42-3),
(implicitamente, 2Co 5.19,21), perdão c r iaç ã o ,
Além do mais, a cruz e a ressurrei
ção de Cristo aparecem lado a lado como aconte cimentos salvíficos (2Co 5.15).
iii).
H oo ker ,
D unn,
C risto , morte de ii : Paulo
Reconciliação é um termo que não se encon
( W r ig h t ,
p. 137-56; cf. em
H oo ker , o
conceito de
tra com frequência no corpus paulino. Além da
troca); justificação (G1 3.11); redenção (G1 3.13),
passagem citada, aparece em Romanos 5.10,11,
evocando o Êxodo e temas exílicos (cf. o corolário
em referência à reconciliação da humanidade
com a adoção, G13.26-29); substituição (“por nós”,
com Deus; em Colossenses 1.20, em referência
G13.13, Axc); sacrifício (imphcitamente, G1 3.13; cf.
à reconciliação do cosmo com Deus; em Efésios
W righ t ,
2.16, em referência à reconciliação de judeus e
0 triunfo sobre os poderes.
p. 153); a promessa do Espírito (G1 3.14);
gentios com Deus e uns com os outros. Quer con
0 último tema recorrente surge de forma
sideremos Efésios paulina, quer não, nesse pon
semelhante em Efésios 2.14,15, em que a Lei
to sua mensagem é claramente pauhna, pois em
aparece como barreira de divisão entre judeus e
Paulo essa noção de relacionamento restaurado
gentios. Ah a morte de Cristo destrói a “parede de
abrange sistematicamente a presença dinâmica
separação”. Em Gálatas, contudo, a Lei é caracte
do amor divino para restaurar o relacionamento
rizada mais como uma força, como os espíritos
divino-humano e estender um chamado e uma
elementares deste mundo, mantendo cativo o
capacitação aos seres humanos, de modo que de
povo judeu (G1 4.1,3). Numa abordagem deter
monstrem uns aos outros a mesma restauração
minada pelo contexto, Paulo insiste que a morte
social. Ademais, especialmente em 2Coríntios e
de Cristo triunfou não mediante a negação da Lei,
Colossenses, a obra da reconciliação é estendida
mas ao demonstrar sua vahdade e executar a bên
a toda a criação.
ção da ahança.
Em 2Coríntios 5, Paulo escolhe os termos e a
Interpretadas conjuntamente, a mensagem da
lógica de raciocínio sob medida para o contex
cruz de 2Coríntios e de Gálatas (e de outras pas
to em questão, pois aqui não apenas precisa se
sagens do corpus pauhno) suscita duas questões
contrapor ã vanglória triunfalista de seus adver
que exigem elucidação mais clara. De um lado,
sários, mas também deseja superar a desarmonia
é preciso dar atenção à importância apocalíptica
entre ele próprio e seus “filhos” de Corinto. An
da cruz: no horizonte apocalíptico, a cruz tem
corando a mensagem da reconcihação na morie
repercussões cósmicas. Essa é a importância do
sacrificial de Jesus e afirmando que essa recon
emprego de expressões como “nova criação” , em
ciliação implica não viver mais para si mesmo, e
2Coríntios 5.17 e em Gálatas 6.15, pois é preci
sim para Cristo e, desse modo, para o próximo,
so que se veja que o foco desses textos não é
ele cumpre seu primeiro objetivo. Espera que seu
0 indivíduo, mas o papel da morte de Jesus no
apelo apaixonado aos coríntios a que se reconci
fim da velha era e na apresentação da nova. A
liassem com Deus (2Co 5.20; 6.1,2), seguido da
morte de Cristo assinala o fim do governo dos
afirmação de que seu coração está aberto para os
poderes apocalípticos (cf.
coríntios (2Co 6.11-13; 7.2), atingirá o segundo
2.15) e o livramento “ deste mundo mau” (G11.4;
objetivo, que é restaurar seu relacionamento com
V. esc atolo gia ) .
os coríndos.
contemporânea tem, para Paulo, consequências
De igual modo, Gálatas é constituído de uma
B eker ,
p. 189-92; Cl
A intrusão do novo mundo na vida
de longo alcance para os que desejam seguir o
convergência de imagens de categorias teológi
Cristo crucificado e personificar na vida comuni
cas, em que Paulo expõe o caráter salvífico da
tária a nova criação revelada na cruz. Os velhos
cruz de Cristo. A unidade maior, Gálatas 3.1-14,
modos de relacionamento (e.g., vangloriar-se
deixa claro que a experiência do recebimento
numa disputa contínua por superioridade no es
do Espírito pela fé significou para os gálatas o
forço por alcançar posição social) e de diferen
cumprimento da promessa divina de abençoar os
ciação entre judeus e gregos, escravos e livres,
gentios por meio de Abraão e que esse cumpri
homens e mulheres são apresentados exatamente
mento se tornou possível por meio da morte de
como são — velhos, ultrapassados e percebidos
Cristo. Os benefícios da morte de Cristo são apre
dessa forma (cf., e.g., G1 3.26-29; Fm).
sentados em Gálatas 3.10-14 mediante uma com
De outro lado, vemos no entendimento que
binação de imagens: Cristo como representante
Paulo tem sobre a cruz uma contínua reflexão
de Israel por cuja morte a aliança atinge o ápice
sua sobre
313
I srael
e, particularmente, uma inclusão
C risto , morte de ii : Paulo
de crentes gentios no “Israel de Deus” (G1 6.16). Para Paulo, os crentes, por terem sido incluídos
3.1
A justiça de Deus. A precedência que
Paulo atribui ã questão de Deus em sua teologia
na obra salvífica de Cristo, partilham dos benefí
da adunação é, talvez, mais bem destacada na
cios da nova criação e, dessa forma, da identida
passagem fundamental e bastante densa de Ro
de que detêm como povo de Deus. Como Paulo
manos 3.21-26. Nos versículos anteriores, surgem
reconhece: “Já estou crucificado com Cristo. Por
duas questões relativas ao caráter de Deus (v.
tanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo
C ou sA R ,
quem vive em mim” (G1 2.19,20). Mesmo que a
dade de Deus, em comparação com as promessas
questão do papel escatológico de Israel no pensa
das alianças que fez com o povo judeu? Se, como
mento pauhno não esteja resolvida, assim mesmo
Paulo raciocinou anteriormente, judeus e gentios
p. 37-41): 1) Que faremos com a fideli
está claro que a morte de Cristo assinala o novo
estão, perante Deus, lado a lado, envolvidos no
éon, ou era, na qual, em Cristo, os gentios podem
pecado, que faremos da história da aliança en
ser acolhidos como filhos de Abraão.
tre Deus e Israel? “A infidelidade deles anulará
Podem se mencionar muitas outras categorias
a fidelidade de Deus?” (Rm 3.3). 2) Se a salva
ou imagens interpretativas nas cartas paulinas,
ção está disponível fora da Lei, não deveríamos
pois o apóstolo faz uso de uma rica variedade
nos dedicar ao mal para que a bondade de Deus
de metáforas como meio de compreender a cruz
se destaque (Rm 3.8)? Ou, fazendo a pergunta
e de estimular tanto o entendimento quanto a
de modo que se leve mais em conta o caráter de
resposta entre os vários grupos a que se dirige.
Deus: se a bondade de Deus está ao alcance dos
Essa multiplicidade sugere que se tenha cautela
pecadores, como ele pode julgar o mundo? A pri
e não se avance rápido demais na defesa de que
meira pergunta é sobre a confiabihdade de Deus;
Paulo teve uma única teoria da adunação (ou
a segunda, sobre sua integridade moral.
uma que tenha sido central entre outras). Para
Essas perguntas conduzem a
j u s t iç a
de Deus
ele, é difícil esgotar a riqueza do significado da
ao banco dos réus, pois no
morte de Cristo.
declarada como fundamental, exprimindo a fide-
at
a justiça divina é
hdade de Deus ã aliança e estabelecendo o pa 3. A morte de Cristo e o propósito de Deus
drão para o comportamento de Israel diante dele.
Para Paulo, a questão do significado primeiramen
Paulo não desconsidera isso. É na revelação pré
te diz respeito a Deus — teologia — e só depois ã
via da justiça de Deus (“atestada pela Lei e pelos
antropologia e à soteriologia. Sua teologia da cruz
profetas” , Rm 3.21) que ele baseia a anáhse das
está ancorada em seu entendimento do propósito
duas questões. Então desenvolve sua perspectiva
divino e de Deus como o ator principal do drama
acerca da fidelidade de Deus, com claros ecos de
da salvação. Embora declare que Cristo “ se entre
ocasiões do passado de Israel, em que se fez e se
gou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos
guardou uma ahança (cf. “redenção”, Rm 3.24;
hvrar deste mundo mau” , ele aflrma que Cristo
“ sacrifício propiciatório” , Rm 3.25). Além disso,
agiu assim “ segundo a vontade de nosso Deus
ele 0 faz por meio de uma fórmula tradicional
e Pai” (G1 1.4). Ou seja, a autoentrega de Cristo
judaico-cristã, ressaltando que essa representa
significa sua identificação e solidariedade com o
ção do caráter de Deus está arraigada na história
objetivo salvífico de Deus. Com essa afirmação,
da interação de Deus com a comunidade do povo
desaprova-se qualquer ideia de que, para Paulo, a
de Deus.
adunação (morte de Cristo) faça distinção entre a
Nesse contexto, a morte salvífica de Cristo
atividade de Deus e a do Filho. Apesar disso, no
demonstra, por assim dizer, a confiabilidade e a
centro do palco se acha a iniciativa divina (e.g.):
integridade de Deus, querendo dizer que a justí
“ Deus estava em Cristo reconciliando consigo
ça de Deus se manifesta na intervenção divina
mesmo o mundo” (2Co 5.19), e “Deus o fez en
para trazer salvação a uma humanidade atolada
viando 0 seu próprio Filho” (Rm 8.3). A teologia
no pecado. E ela é manifesta justamente na re
paulina da adunação tem, assim, suas raízes em
velação de Deus na cruz como aquele que cum
seu entendimento de
pre suas promessas. Deus não passa por cima do
D
eus
e, especialmente, da
justiça, da ira e do amor divinos.
pecado, mas, por meio da obediência fiel e da
314
C risto , morte de ii : Paulo
morte sacrificial de Jesus Cristo, redime todos os
declarações de fundamental importância. Primei
que creem, judeus ou gentios. Dessa forma, não
ra: é impossível mensurar o amor de Deus pela
apresenta um caminho de salvação que anula a
humanidade, pois não existem análogos antro
Lei, mas um que a sustenta [cf. Rm 3.31). Conse
pomórficos em que se possa basear tal medição;
quentemente, Paulo afirma que a justiça de Deus
embora alguém possa ter a coragem de morrer
se revela em Cristo não apenas como descrição
por um justo (Rm 5.7), Cristo morreu pelos “ím
de Deus no papel de juiz, mas também e mais
pios” (Rm 5.6), pelos “pecadores” (Rm 5.8), pe
ainda como a atividade divina de fazer e cumprir
los “inimigos” de Deus (Rm 5.10).
a ahança. Na morte de Cristo, a justiça de Deus
Segunda: os destinatários de Paulo podem es
é demonstrada no ato de Deus que hvra o povo
tar certos de que o sofrimento deles tem sentido,
dos pecados.
visto que o sofrimento de Cristo se revelou sig
3.2 A ira de Deus. Em alguns aspectos, a obra
nificativo. Por meio de sua morte, fomos “justi
de Deus é o corolário da justiça de Deus: “Uma
ficados”, “salvos da ira” de Deus e “reconciliados
vez que a fideUdade divina ã aliança requer res
com Deus” (Rm 5.9-11). Em meio à nossa impo
posta e responsabilidade humanas, a ira é aquilo
tência, Cristo assumiu nossa condição e morreu
que se experimenta quando se rejeita o ofere
em nosso lugar; em consequência de sua morte,
cimento divino de justiça”
partilhamos de sua vida e descobrimos que nosso
T ravis ) . N o
(T am basco,
p. 33; cf.
entanto, é imperativo reconhecer que,
sofrimento tem significado.
para Paulo, a ira de Deus não é uma propriedade
Terceira: numa guinada incomum de raciocí
divina ou um atributo essencial, mas a presença
nio (Rm 5.8), 0 texto diz que Deus demonstra
ativa do
de Deus contra “ toda impiedade e
seu amor por meio daquilo que Cristo fez. Era
injustiça” (Rm 1.18). A ira de Deus não é uma
de esperar que o amor de Deus se manifestasse
juízo
indignação vingativa, nem o impulso de retribuir,
melhor nos feitos divinos. Essa forma de expres
mas a resposta divina à infidehdade humana.
são assegura que “a morte de Cristo não apenas
Para Paulo, a ira de Deus é futura, escatológica
expressa seus sentimentos [...] mas os de Deus;
(Rm 2.5,8; ITs 1.10; 5.9; Cl 3.6). Também já está
ou, em outras palavras, a atitude de Deus diante
presente, pois Deus agora entregou os seres hu
do mundo é demonstrada da forma mais perfeita
manos às consequências do pecado que escolhe
na ação de Cristo”
ram (Rm 1.18,24,26,28; cf. Sb 11.15,16; 12.23).
uma vez, encontramos em Paulo a afirmação ine
Por isso, em qualquer tentativa de entender
( C o u s er ,
p. 45). Assim, mais
xorável da unidade de propósito e de atividade de
a teologia pauhna da adunação é vital saber o
Deus e do Filho de Deus na cruz.
que ele pensava da ira divina. Paulo não apre senta um Deus irado que precisa ser acalmado.
4. A morte de Cristo e a condição humana
Para ele, a ira divina é um meio de ressaltar a
Afirmar que Paulo entende a morte de Cristo
seriedade com que Deus encara o pecado, mas
como algo profundamente teocêntrico não im
não é uma quahdade afetiva nem um sentimento
plica minimizar seu interesse na necessidade de
da parte de Deus. No presente, a justiça divina
adunação no lado humano da equação. Pelo con
é eficaz para salvar, mas, quando o ser huma
trário, isso mostra a aguda distinção que Paulo
no resiste, ele experimenta a justiça divina como
enxerga entre Deus e a humanidade, ou seja, en
condenação.
tre a fidehdade de Deus e a infidehdade humana
3.3 O amor de Deus. De acordo com Roma
(v., e.g., o jogo de palavras em Rm 1.17,18; a
nos 5.6-8, a morte de Cristo é a expressão má
justiça [dikaiosynê] de Deus contra a perversão
xima do amor irrestrito de Deus: “Deus prova o
[adikia] do ser humano). 0 retrato que Paulo
seu amor para conosco ao ter Cristo morrido por
pinta da humanidade “antes de Cristo” é o de
nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8).
pessoas, colefiva e individualmente, presas na
Essa declaração acompanha a afirmação de que
armadilha do pecado, escravizadas a poderes
a experiência humana do amor divino assegura
dos quais são incapazes de fugir. Com o peca
que 0 sofrimento conduzirá a uma esperança
do, acontece o mesmo que com a propiciação: de
que não decepcionará (Rm 5.3-5). Aqui há três
um arsenal linguístico, Paulo consegue apanhar
315
C risto , morte de ii : Paulo
termos que o ajudam a descrever a humanidade afastada de Deus.
outros e com o cosmo (v. Rm 1.26-32). Além de tudo, Paulo reconhece que o objetivo da impieda
De especial interesse nesse resumo da antro
de e da injustiça é a autolegitimação: a humani
pologia paulina é Romanos 1.18-32. Aqui “peca
dade acolhe uma mentira (Rm 1.25) e recebe uma
do” (no sentido amplo do termo; os vocábulos
mente corrompida (Rm 1.28), com a consequên
que Paulo emprega em Rm 1.18 são “impieda
cia de que ela define como justos seus caminhos
de” e ‘injustiça”) não é identificado com ações
injustos.
individuais perversas, mas com uma disposição
Por conseguinte, não é de admirar que a
generalizada de recusa em honrar a Deus como
pregação paulina da cruz e a identificação do
tal e em ser grato a ele, de substituir o Criador por
apóstolo com ela despertasse oposição e mal-en-
coisas criadas, ou seja, desviar-se da existência
tendidos. Uma humanidade que se voltou contra
humana autêntica ao se afastar de Deus.
si mesma da mesma forma que se rebelou contra
Nessa passagem, quatro aspectos das refle
Deus não sancionará com tanta faciüdade um re-
xões de Paulo são de particular interesse. Primei
ordenamento tão revolucionário do mundo como
ro: Paulo não está apresentando a autobiografia
0 que se exige com essa ênfase no Cristo cruci
de indivíduos; não está inclinado a esboçar como
ficado. Isso exigiria uma forma aparentemente
cada pessoa, na própria experiência, se envolve
caótica de entender o que significa ser humano,
no pecado. Sua apresentação é universal, um
uma inversão do sistema social. Poder arraigado
diagnóstico da condição da família humana vista
na impotência? Isso realça o profundo papel que
como um todo (cf. Rm 3.9).
a palavra da cruz desempenhava na concepção
Segundo: os atos de perversidade que Paulo
e na experiência que Paulo tinha da vida cristã
passa a enumerar à guisa de ilustração não são
(v. 5, abaixo) e também a terrível condição que a
em si mesmos o problema. Concupiscência, fo
obra salvadora de Deus teria de tratar.
foca, inveja, engano, atividade homossexual, rebeldia contra os pais e tudo o mais são mani festações do pecado.
5. O Messias crucificado e a vida cristã Por último, exploraremos mais diretamente a
Terceiro: dentro da linha de raciocínio de Pau
pergunta: “ De que maneira a morte de Cristo é
lo, essas atividades são expressões da ira de Deus,
eficaz?”. É claro que, para Paulo, a cruz é o meio
um testemunho da integridade moral de um
pelo qual Deus providenciou a salvação e o ins
Deus que leva o pecado a sério. É o caráter moral
trumento e medida da nova vida em Cristo. Como
de Deus que Paulo defende aqui, e a maneira de
é que a cruz opera nesse aspecto? Paulo não ofe
fazê-lo é mostrando o avanço do pecado. Ele co
rece uma resposta única a essa pergunta, embora
meça pela recusa humana em honrar a Deus com
possamos verificar certos parâmetros nas cartas
a consequente negação da vocação humana de
paulinas.
viver um relacionamento com ele, passa pelo ato
5.1
A morte adunatória de Cristo. Para Pau
em que Deus entrega a humanidade aos próprios
lo, a morte de Jesus não é interpretada com me
desejos, dando ã humanidade, por assim dizer, a
táforas extraídas dos tribunais, mas da história
vida que ela buscava longe dele, e daí chega aos
da aliança entre Deus e Israel. Assim, Paulo não
atos humanos perversos, que, na verdade, não
imagina que Cristo foi castigado mediante exe
despertam a ira de Deus, mas já são eles próprios
cução na cruz, a fim de satisfazer a justiça de
a consequência da presença ativa dessa ira.
Deus
Quarto e último: é notável que, para Paulo, o pecado assinala uma ruptura no relacionamen to divino-humano e também se manifesta nos
( T ravis
e
T am basco) .
A cruz de Cristo pode
ser entendida como substitutiva, mas dentro da estrutura do conceito de sacrifício no Embora o
at
at.
não elabore em profundidade
relacionamentos humanos e nas relações do ser
a lógica por trás do sistema sacrificial, J. D. G.
humano com a natureza criada. Por isso, nesse
Dunn acredita que a ideia de “identificação” ou
sentido amplo, o pecado jamais pode ser enten
de “representação” é fundamental, se quisermos
dido como algo particular ou individualista, pois
entendê-lo. Ou seja, de alguma forma a oferta
sempre se manifesta no relacionamento com
pelo pecado veio a representar os pecadores em
316
C risto , morte de ii : Paulo
seu pecado. Assim, ao impor as mãos sobre a ca
está sugerindo que Paulo não tivesse consciência
beça do animal no ritual de sacrifício, os peca
dessas interpretações martirológicas da morte en
dores se identificavam com o animal, indicando
contradas em textos como 2Macabeus 7.37,38 e
que 0 animal agora representava o pecador em
4Macabeus 6.28,29. Mas esses textos desenvol
seu pecado {i.e., na condição de pecador). Em
vem temas veterotestamentários sobre o sacrifício
consequência, o pecado do pecador era identifi
e 0 Servo, empregando material de Isaías sobre o
cado com 0 animal, e a vida deste se perdia, “da
Servo Sofredor (Is 52.13— 53.12), como fizeram a
mesma forma em que Cristo, tomando a inicia
igreja primitiva e Paulo (v.
tiva do outro lado, se identificou com [os seres
tudo, 0 possível grau de endividamento de Paulo
humanos] em seu estado decaído (Rm 8.3) e se fez pecado (2Co 5.21)”
(D
unn,
p. 44).
S ervo d e Javé ) .
Além de
com 0 judaísmo helénico por via dos contos de martírio da literatura macabeia é afetado pela for
Essa lógica introduz o papel duplo de Cristo
te influência das ideias retributivas desses textos.
em sua morte: tomar o lugar da humanidade pe
Paulo ressalta mais profundamente a iniciativa
rante Deus e diante da justiça de Deus e ficar no
divina de providenciar o sacrifício, e a preocupa
lugar de Deus diante do pecado humano.
ção evidente do apóstolo é estabelecer a universa
O hnguajar característico da representação para
lidade dos benefícios adunatórios de Cristo, que
nos ajudar a entender a substituição não tem o
não se limitam a rituais religiosos e memoriais
propósito de negar o sentido de que Cristo alcan
israelitas que requerem repetição e reencenação
çou algo objetivo com sua morte. De fato, de acor
( H engel,
do com Paulo, Cristo se entregou por nós para que
e de sua preocupação com a manutenção do rela
pudéssemos viver nele (cf. ITs 5.9,10; Rm 8.3,4;
cionamento entre Deus e seu povo da aliança, do
14.9; 2Co 2.15,21;
p. 51). Além do sistema sacrificial do
at
Por mais significativo
Servo Sofredor de Isaías e da martirologia judaica,
que seja para Paulo o tema da participação na mor
os estudiosos têm encontrado também, por trás
te e na ressurreição de Cristo (cf., e.g., Fp 3.10), a
do pensamento de Paulo, reflexos da noção ju
possibihdade dessa participação tem base no fato
daica do quase sacrifício de Isaque (cf.
de que ele primeiramente morreu “por nós”.
D u n n , H e n g e l, B r o w n
T
r a v is ) .
De onde Paulo tira esse modo de interpre
T a m basco,
et al.).
Como diz Hengel, não basta examinar o
at
e
tação? Nos últimos decênios, várias tentativas
os textos judaicos posteriores em busca de pre
foram feitas para identificar um precedente greco-
cursores para a interpretação salvífica pauhna da
romano para o pensamento de Paulo acerca da
morte de Jesus. Uma influência de proporções
morte adunatória de Cristo — ou bem distinto
significativas acha-se muito mais próxima, a sa
do
(S eeley ) ,
ber, a interpretação da cruz de Cristo mediada
( W illiam s ) .
pela repefição da Úhima Ceia nas comunidades
AT
e do judaísmo do segundo templo
ou mediado pelo judaísmo helénico
Contudo, não está claro por que seria preciso
cristãs primitivas. Paulo conhece e repete as pala
estabelecer distinções assim tão rígidas entre a
vras eucarísticas de Jesus (ICo 11.23-25), que in
influência do
terpretam como redentora a autoentrega de Jesus.
at
e a filosofia greco-romana, parti
cularmente levando-se em conta o grau em que o helenismo e o judaísmo se haviam amalgamado por voha do início do século i d.C.
S.2
A morte de Cristo e o seguir a Cristo. De
acordo com Paulo, a morte e a ressurreição de Cristo assinalam o início de uma nova época que
0 mais provável é que as interpretações de
avança em direção ao tempo da parusia (cf.
H en
morte redentora no judaísmo helénico e em Pau
gel )
lo se baseiem na mina comum das Escrituras de
entender a vida no presente. Para começar, ter
Israel e das práticas sacrificiais. O sistema sacri
consciência de que a morte e a ressurreição de
ficial do AT proporciona uma fonte imediata de
Cristo instituíram uma nova época permite que
. Isso modifica fundamentalmente o modo de
especulações sobre a relação entre a morte ino
se vislumbre uma nova vida em contraste com as
cente e o perdão de pecados, em particular desde
velhas maneiras de viver e que se acolha o poder
o período do segundo templo, quando os sacrifí
de Deus exigido para a nova vida. Além disso,
cios em geral foram interpretados pela perspec
considerar o presente à luz do passado mofiva
tiva da redenção. É claro que, com isso, não se
os crentes a agir com gratidão pelo livramento da
317
C rísto , morte de ii ; Paulo
escravidão ao pecado. Por fim, o reconliecimento
A morte de Cristo desempenha um papel
desse novo tempo estimula os crentes a reconhe
central na teologia de Paulo. Ele emprega uma
cer ainda mais que a vida no presente é determi
abundância de imagens por meio das quais deixa
nada pela cruz. Isso significa que um efeito da
claro seu sentido, tanto ao escavar os ricos re
cruz é a possibilidade da humanidade restaurada
cursos que estão a seu alcance nas Escrituras de
— em seus relacionamentos com Deus, consigo
Israel e na fé comum da igreja primitiva quan
mesma e com toda a criação. Também significa
to ao relacionar mais diretamente a mensagem
que a definição de existência apresentada pela
da cruz àqueles a quem se dirige em seus vários
humanidade pecadora foi alterada radicalmente,
contextos e em várias circunstâncias. A cruz de
de modo que os que seguem a Cristo devem bus
Cristo encontra-se na interseção das principais
car nele a expressão da humanidade restaurada.
rotas de sua teologia e de seu entendimento do
“A igreja cuja teologia é moldada pela mensa
que seja um viver fiel antes que Cristo retorne.
gem da cruz deve assumir uma vida cruciforme,
Para Paulo, os crentes aqui e agora manifestam
para que sua teologia transmita credibihdade”
sua obediência a Cristo ao anunciar sua morte
(CousAR, p. 186).
até que ele venha.
Na prática, isso significa, acima de tudo, as
Ver também
ceia do S en h o r; c ris t o lo g ia ; escato
sumir a forma de obediência a Deus representada
lo g ia ; ju stific aç ã o; ressu rreição; salvação; S ervo de
na vida que Cristo viveu, expressa definitivamen
Javé.
te em sua morte. Esse pensamento está por trás
DPC. CENTRO DA TEOLOGIA PAULINA; CRUZ, TEOLOGIA
do emprego que Paulo faz do hino a Cristo, em
da;
Filipenses 2.6-11, e também da defesa de seu mi
MALDIÇÃO, MALDITO, ANATEMA; MORRER E RESSUSCITAR COM
crucifixão ;
ex pia ç ão ,
pr opic iação ,
propiciatório ;
nistério apostólico, da percepção de que em sua
C risto ; p a z , r ec o n c ilia ç ão ; p er d ão ; r e d e n ç ã o ; sacri
fraqueza e sofrimento ele está comprometido com
fíc io , of e r e n d a ; t r iu n f o .
a imitação de Cristo e com a participação no sofri mento do Messias (cf. 5.3
P o b ee ; H a n s o n ; B l o o m q u is t ) .
B ib lio g r a fia .
B eker,
J. C. Paul the Apostle: the
A morte de Cristo e a vida do povo de triumph of God in life and thought. Philadelphia;
Deus. A cruz de Cristo também tem o efeito de
Fortress, 1980. ■
restaurar a humanidade em outro sentido. Pau
o f suffering in Philippians. Sheffield; Academic,
B l o o m q u is t ,
L. G. The function
lo entende que a cruz é um acontecimento que
1993.
destrói fronteiras (cf. Driver, esp. cap. 13). As
passion o f the world: the facts, their interpretation
sim, Paulo pode afirmar em ICoríntios que os
and their meaning yesterday and today. Maryk-
que seguem o exemplo de Cristo em sua morte
noh; Orbis, 1987. ■ B r o w n , C. A. The peace-offe-
abnegada não alimentarão, dentro da comunida
rings (G’ dViz;) and Pauline soteriology. Immanuel
[js N T S u p ,
78.)
■ B o ff,
L. Passion o f Christ,
de cristã, divisões provocadas por posição social,
[The New Testament and Christian-Jewish Dialo
mas alcançarão compreensão e reconhecimento
gue: Studies in Honor o f David Flusser], v. 24/25,
mais profundos do corpo de Cristo (ICo 11.17—
p. 59-76, 1990. ■ C a r r o l l , J. T. &
12.31;
death of Jesus in early Christianity. Peabody; Hen
V. coRPo DE
Cristo). Afinal, essa é uma ma
G reen ,
J.
B.
The
nifestação da nova aliança no sangue de Cristo
drickson, 1995. ■ C o u s A R ,
(ICo 11.25). Mas Paulo também pode afirmar
cross: the death of Jesus in the Pauline Letters.
C. B.
A theology of the
que a identificação fiel com Cristo em sua obra
Minneapolis; Fortress, 1990.
salvífica se contrapõe a fronteiras étnicas, sociais
derstanding the atonement for the mission of the
(o b t.)
■ D r i v e r , J. Un
e de gênero ainda mais fundamentais, “pois to
church. Scottdale; Herald, 1986. ■ D u n n , J.
dos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus”
Paul’s understanding of the death of Jesus as sa
D. G.
(Cl 3.26; cf. Cl 3.27-29; Ef 2.11-22). Portanto, des
crifice. In ;______ . S y k e s , S. W., org. Sacrifice and
se modo a cruz não apenas viabihza uma nova
redemption: Durham essays in theology. Cambrid
vida, mas também aponta para além de si mesma
ge: Cambridge University Press, 1991. p. 35-56. ■
a fim de revelar as normas dessa vida e inaugura
F it z m y e r ,
a nova era, em que a vontade salvífica de Deus
In; To advance the gospel: New Testament studies.
se realizará.
New York: Crossroad, 1981. p. 162-85. ■
318
J. A. Reconciliation in Pauhne theology. G
reen,
C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
J.
The death o f Jesus: tradition and interpreta
B.
tion in the Passion narrative. Tübingen: J. C. Mohr,
J.
1988. (w u n t, 2 .3 3 .) • G reen ,
de pensamento não exclui outras. A cruz também
B.
é vista como uma vitória divina, um ato em que a
B. & B ak er,
humanidade foi liberta do pecado e do mal, uma
M. D. Recovering the scandal o f the cross. Downers
revelação de
Grove: InterVarsity,
T. The pa
de obediência. Nenhuma forma de descrição é
radox o f the cross in the thought of St. Paul. Shef
exaustíva. Os aspectos mais profundos da obra
field:
de Deus na cruz são necessariamente incapazes
2000, ■ H a n so n , A .
js o t, 1987. (jsNTSup, 17.) ■ H e n g e l,
M. The
D eu s
e de seu amor e um padrão
atonement: the origins of the doctrine in the New
de ser expressos em hnguagem humana, como
Testament. Philadelphia: Fortress,
revelam a hnguagem metafórica do
1981. • H o o k e r,
M, D. Interchange and atonement, 462-81, 1978. • ________ .
b j r l , v , 60,
Interchange in Christ,
p.
n t
e a mulü-
phcidade de imagens. Entretanto, não podemos afirmar, obviamente,
j ts ,
V. 22, p. 34 9 -6 1 ,1 9 7 4 . ■ H ou ts, M . C lassical a to n e
que nada se possa saber ou dizer sobre os efeitos
m en t im a g e ry : fe m in is t a n d e v a n g e lic a l c h a lle n
salvadores da morte de Cristo. Da maneira que é
ges.
Catalyst,
característica aos autores do
v. 19, p. 1, 5-6, 1993. ■ K e rte lg e ,
Der Tod Jesu:
n t
,
eles depositam a
culpa objefiva e o perdão radical e escatológico
K . D as V erstä n dn is d es T o d es Jesu b e i Paulus. D eu tu n g e n im
no centro da estrutura da salvação, fazendo com
N e u e n T esta m e n t. 2. e d . F reib u rg: H erd er, 1976.
que os demais aspectos da cruz resultem daí. A
Persecution and
vitória na cruz é vitória porque garante o perdão
In: K e rte lg e , K ., org .
p. 114-36. (oD , 7 4 .) • Pobee, J. S.
martyrdom in the theology ofPaui.
S h e ffie ld : jso t,
dos pecados. A libertação em relação ao poder do
The noble death:
pecado resuha da libertação em relação à culpa
G rec o -R o m a n m a r ty r o lo g y a n d P a u l’ s c o n c e p t o f
objetiva. A cruz revela o amor de Deus pelo fato
s a lv a tio n . S h e ffie ld : jso t, 1990. (jsNTsup, 2 8 .)
•
de Deus ter entregue seu FUho por nossos peca
Travis, S. H . C hrist as b e a re r o f d iv in e ju d g m e n t in
dos. 0 enfoque da salvação como perdão pleno
P a u l’ s th o u g h t a b o u t th e a to n e m e n t. In: Green, J.
estabelece uma disfinção entre os escritos do
1985. (jsNTSup, 6 .) ■ Seeley, D.
B. & T u rn er, M ., orgs.
Jesus of Nazareth:
nt
e as obras do período pós-apostólico. As várias
L o r d an d
C hrist. Essays o n th e h is to ric a l Jesus a n d N e w
imagens da salvação e os textos do
T esta m e n t ch ris to lo g y . G ran d R a pid s: E erdm an s,
dos como ponto de partida dessas imagens são
1994. p. 332-45. ■ T ambasco , A . J.
A theology of
atonement and Paul's vision o f Christianity. Jesus’ death as saving event:
retomados no cristianismo primitívo do século ii. No entanto, ocorre uma mudança na estrutura
ilu a m s ,
das ideias, de modo que nesse período passa-se
th e b a c k g ro u n d
a imaginar que salvação é atíngir a incorrupção e depende da obediência por parte do crente.
a n d o r ig in o f a c o n c e p t. M is so u la : Scholars, 1975. (h d r ,
2 .) ■ WRiGirr, N . T.
The climax o f the cove
1.
Atos
nant:
C h rist a n d th e la w in P a u lin e th e o lo g y . M in
2.
Hebreus
3. 1Pedro
n e a p o h s: Fortress, 1991. J. B. G reen
C r is t o ,
m o r t e d e iii :
C a r t a s G e r a is , A Os escritos do
emprega
C o lle
g e v ille : L itiu 'gic a l Press, 1991. ( zs ; n t .) • W S. K .
at
A
tos,
H
4.
IJoão
5.
Apocalipse
ebreus,
1. Atos
pocaupse
que aqui examinaremos (Atos,
A maneira em que a morte de Cristo é entendida
Hebreus, IPedro, IJoão e Apocahpse) interpre
em Lucas-Atos tem estado, em anos recentes, no
tam a morte de
nt
fundamentalmente da pers
centro do interesse acadêmico. Estudos mais anti
pectiva sacrificial. Isso não quer dizer que esse
gos na área da crítica da redação, particularmente
entendimento da cruz ou a própria morte de Cris
os de P. Vielhauer, H. Conzelmann e E. Haenchen,
C risto
to sempre recebam o destaque. Entretanto, nos
consideraram que o autor de Lucas-Atos não teve
escritos em que aparecem, a salvação (em suas vá
nenhum interesse na morte de Jesus como adu
rias dimensões) é apresentada como algo que foi
nação (v. sobre o assunto no verbete anterior) e,
alcançado no perdão assegurado mediante a mor
concomitantemente, o acusaram de acolher uma
te de Cristo a favor de pecadores. Essa categoria
teologia da glória que mensurava o favor divino
319
C risto , morte de iii : A t os , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse
com base no sucesso externo da
ig reja .
remontam ao século ii e não conseguem resolver
N ovos
estudos têm caminhado em diferentes direções.
a questão. Em casos como esse, a testemunha
Vários estudiosos têm conclamado a que se reco
ocidental, mais breve, deve ser levada a sério.
nheça um entendimento distintamente lucano da
As exphcações costumeiras para uma omissão
morte de Cristo, vendo-a basicamente como um
são insatisfatórias (a saber, que escribas estavam
padrão para a obediência cristã (e.g.,
motivados pelo desejo de harmonizar o relato de
G r een; C a r -
Alguns poucos defendem a ideia
Lucas com Mateus e Marcos ou de manter em se
de que a morte de Jesus como adunação ocupa
gredo as palavras eucarísticas). 0 vocabulário e,
r oll ;
G ar r ett ) .
mais espaço no pensamento de Lucas do que ge
mais importante que isso, a teologia do material
ralmente se reconhece
adicional são contrários ao estilo e ao pensamen
( M oessner ) ,
e outros têm
reafirmado que Lucas rejeita tal entendimento da morte de Jesus
to de Lucas. Apesar de Ehrman recorrer ã importância da
(E h r m a n ) .
Quando todos os dados são levados em conta,
variante ocidental mais breve, o fato de ela estar
fica claro que Lucas entende a morte de Jesus
restrita a algumas testemunhas ocidentais susci
como adunação vicária e que esse entendimento
ta, no mínimo, alguma indagação acerca de sua
é básico para a mensagem de Lucas-Atos. Ob
originalidade, mesmo que não solucione o pro
viamente, Lucas ressalta a natureza salvífica da
blema. E, embora Ehrman tenha acertadamente
de Jesus, mas, ao fazê-lo, reforça,
destacado que não são convincentes as exphca
ressurreição
em vez de diminuir, a importância adunatória
ções usuais das abreviações do texto pelos escri
da morte de Jesus, que para ele é também pa
bas, uma possibilidade adicional e convincente
radigmática e exemplar. Contudo, a despeito da
se apresenta por si mesma. Embora a intenção de
atração que exerce nos dias atuais como categoria
Lucas seja sem dúvida fazer o leitor entender que
para entender a morte de Jesus em Lucas-Atos,
Jesus está dizendo que, depois dessa ceia, não
essa visão não é mais proeminente que a inter
mais comerá nem beberá em companhia dos discí
pretação que Lucas faz da cruz como adunação.
pulos, aparentemente a interpretação presente na
Por fim, a ênfase de Lucas no propósito divino
tradição representada no Códice de Beza dá conta
por trás da morte de Jesus não reduz a responsa
de que as palavras de Jesus significam que ele
bilidade humana por ela.
não participará daquela Páscoa. Em Lucas 22.15,
1.1 A morte de Jesus como adunação
a coluna grega de Beza divide touto de modo que
1.1.1 Considerações crítico-textuais sobre Lu
a leitura fique epethymêsa [tou to] to pascha pha-
cas 22.19,20. Embora durante o século xx a crítica
gein; os artigos genitivo e acusativo assim criados
textual tenha tendido cada vez mais a considerar
sugerem que o desejo de Jesus de comer a Páscoa
original a versão mais longa da instituição da ceia,
com os apóstolos não se cumpriu (cf. ITm 3.1; Êx
B. D. Ehrman (p. 198-209) defendeu convincente
34.24, l x x ; Pv 23.3,6, l x x ; Eo 16.1). Além do mais,
mente a avaliação de Westcott e de Hort de que
em Lucas 22.16, Beza traz: “ Certamente não mais
a versão mais curta é, provavelmente, a autênti
comerei (gr., ouketi mêphagomai; latim, iam non
ca. 0 texto mais breve, uma das chamadas não
manducabo] dela até que seja comida (brõthê;
interpolações ocidentais de Westcott e de Hort,
edatur) de novo no
está preservado no Códice de Beza e em vários
escriba em Lucas 22.19,20 elimina a referência
rein o de D e u s ”.
A omissão do
manuscritos da Antiga latina e omite o material
problemática ao ato de comer de Jesus (Lc 22.20)
em itáhco: “Tomando o pão e tendo dado graças,
e às palavras que instituem a ceia. Levando-se
partiu-o e o entregou a eles, dizendo: Isto é o meu
em conta os paralelos nos outros Sinóticos e em
corpo dado em favor de vós; fazei isto em memória
Paulo, as palavras que correspondem à institui
de mim. Da mesma forma, depois da ceia, tomou
ção da ceia quase exigem a menção subsequente
0 cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em
ao segundo cálice, que em Lucas necessariamen
meu sangue, derramado em favor de vós. Mas a
te se distingue do primeiro pela referência ao fato
mão do que me trai está comigo à mesa”.
de Jesus já ter comido. Emendada dessa maneira,
0 raciocínio de Ehrman é o seguinte: as evi
a passagem também se harmoniza com a reda
dências externas a favor de ambas as leituras
ção de Mateus e de Marcos a respeito do pão, os
320
C rísto , morte de iií : A tos , H ebreus, C artas G eraís , A pocalipse
quais se afastam de Lucas justameme nesse pon
peso menor a probabihdades teológicas intrínse
to, deixando Lucas com um único cálice, ainda
cas. A vahdade da afirmação de Ehrman de que
que isso fuja à seqüência costumeira (v., contu
em nenhum outro lugar, seja em Lucas, seja em
do, Di, 9.1-5). A única questão que essa emenda
Atos, 0 Evangelista apresenta a morte de Jesus
deixa aberta é a da conjunção adversativa plên,
como adunação depende de três considerações:
que dá início a Lucas 22.21. Na versão mais curta,
a interpretação de Atos 20.28, de que trataremos
a afirmação “a mão do que me trai está comigo à
em seguida; a ausência de desenvolvimento ex
mesa” contrasta com as palavras de Jesus “isto é
plícito do tema da morte de Jesus como adunação
0 meu corpo” , uma justaposição impossível, uma
pelo PECADO, a despeito das numerosas alusões ao
vez que a mão do traidor não se opõe à morte
Servo isaiano que sugerem tal entendimento (v.
de Jesus, mas é justamente o meio de sua morte
1.1.4.1 abaixo); a decisão de Lucas de não incluir
(i.e., seu “corpo”). Parece que a versão mais curta
a declaração do resgate de Marcos 10.45. As duas
em Beza e provavelmente na tradição ocidental
últimas observações oferecem apenas argumen
em geral representa uma tentativa de solucionar
tos baseados no silêncio, que são frágeis, espe
uma dificuldade que se percebia no texto lucano
cialmente nesse caso.
e de tirar a participação de Jesus na Páscoa.
É de considerável importância que Lucas
As probabilidades intrínsecas de vocabulário
transponha a disputa que os discípulos travam
não enfraquecem e podem fortalecer essa avalia
pela grandeza, retirando-a da posição que ocu
ção. Palavras inexistentes em outras passagens
pa em Marcos, logo após a terceira predição da
de Lucas-Atos aparecem no texto mais longo, em
Paixão (Mc 10.41-45), e situando-a, em seu Evan
particular as referências ã “ memória” de Jesus e
gelho, após a
ã nova aliança. Entretanto, esse fenômeno não é
terial caracteristicamente lucano na versão mais
diferente das falas registradas em Atos, cada qual
longa das palavras de instituição (“ dado em favor
contendo vocabulário característico. Ademais,
de vós” , “ nova aliança em meu sangue”) talvez
vários itens do vocabulário associam o texto mais
funcione como substituto da declaração que ele
longo ao material circundante. A linguagem na
optou por omitir. A troca de material feita por Lu
segunda pessoa do plural (“por vós” [2x]) tem
cas (ou 0 emprego de uma tradição alternativa;
Ú lt im a C eia
(Lc 22.24-27). 0 ma
correspondência bem próxima no contexto lu
G r een,
cano, incluindo-se o desejo de Jesus de comer
nia consideráveis à narrativa. Enquanto Jesus fala
1988, p. 44-6) acrescenta pungência e iro
a Páscoa “convosco” e sua instrução acerca do
de sua afeição e autoentrega, os discípulos estão
primeiro cálice; “Tomai-o e reparti-o entre vós”
envolvidos na busca dos próprios interesses e em
(Lc 22.17,18). 0 “sangue derramado em favor de
disputas. Enquanto em Marcos a grandeza é des
vós” (Lc 22.20) diverge de Marcos e Mateus, que
crita pelo que se faz, em Lucas consiste naquilo
dizem; “ derramado em favor de muitos” , o
que a pessoa é. O maior deve ser como o mais jo
que corresponde a referências ao martírio em
vem e como aquele que serve, assim como Jesus
outras
11.50;
é o que serve. Essa ênfase corresponde à apre
At 22.20). Além disso, como faz Marcos, Lu
sentação que Lucas faz de Jesus como o Servo
passagens
de
Lucas-Atos
(Lc
cas mostra que Jesus deu o pão aos discípulos
obediente de Deus (v. 1.1.3 abaixo) e, portanto,
(Lc 22.19; Mc 14.22). E, distintamente da versão
talvez explique por que Lucas deixou de fora a
paulina (ICo 11.24), Jesus mostra (Lc 22.19) que
declaração do resgate. Ele prefere concentrar-se
seu corpo é “dado por vós”. É concebível que um
na humildade e na submissão de Jesus ã vontade
copista tenha entremeado artisticamente o “dar”
divina a focar-se no desejo pessoal de Jesus. 0
de Marcos com o “por vós” de Paulo, porém é
enredo da autoentrega de Jesus está inextricavel-
mais provável que seja uma composição lucana,
mente associado ao fato de Deus o haver enviado
associando Lucas 22.19 a seu contexto (v. tb.
(v. 1.1.4.3 abaixo).
en,
G re
1988, p. 28-42).
1.1.2
Resumo de Lucas 22.19,20. Podemos
Em razão do espaço que abrem para juízos
dizer com segurança que o peso dos indícios
subjetivos, na avaliação da autenticidade de
externos e internos favorece a originahdade de
qualquer variante redacional deve se atribuir o
Lucas 22.19,20 (outra análise em
321
G reen,
1988,
C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
p. 35-42). Nesse caso, Lucas claramente vincu
morte de Jesus, mas o anúncio de sua ressurrei
la um significado adunatório à morte de Jesus,
ção que traz o arrependimento.
especialmente na alusão a Jeremias 31.31-34.
Declarações que falam do “sofrimento de
0 corpo de Jesus é entregue, e seu sangue é der
Deus” , do “Deus crucificado” ou mesmo do
ramado “por vós” , assegurando a nova
a l ia n ç a
“ sangue de Deus” são comuns entre os autores
em que pecados e transgressões são perdoados.
cristãos até o final do século ii, quando conceitos
Essa passagem é essencial para Lucas-Atos, pois
(monarquianistas) de que Deus existia em modos
informa ao leitor o motivo pelo qual o
de
sequenciais forçaram uma definição mais precisa
arrependimento de João é insuficiente e a fé em
a fim de evitar conotações de patripassionismo
b a t is m o
Jesus é necessária (cf. Lc 3.3; 24.27; At 19.4). Lu
(e.g., In, Ef, 1.1; v.
cas não deseja que o leitor se esqueça disso e
tivo, não devemos ficar surpresos por encontrar
tem por propósito que se leia a narrativa posterior
essas expressões nos autores do
de Atos, em sua inteireza, ã luz dessas palavras,
antecedente ao sangue de Jesus (Lc 22.19,20) dei
conforme Atos 20.28 deixa claro.
xa claro que, quando Lucas emprega a expressão
1.1.3
Ehrm an,
p. 87-8). Por esse mo nt.
A referência
Atos 20.28. A segunda referência explí “o sangue do próprio Deus”, está pensando no
cita à morte de Cristo como sacrifício adunató
sangue de Cristo e, como aconteceu com os auto
rio aparece em Atos 20.28, em que questões de
res cristãos do século ii, essa afirmação represen
crítica textual e de interpretação estão outra vez
ta uma ousada atribuição de divindade a Cristo.
entremeadas. Embora os dados externos não fa
0 fato de Lucas ser direto em sua declaração não
voreçam nenhum lado da questão, é provável que
é de surpreender, pois em outras passagens ele
0 texto original trouxesse “a igreja de Deus” , não
ressalta que Jesus é
a forma variante “a igreja do Senhor”. A última
nuanças de divindade (e.g., At 2.21). E Paulo, em
expressão muito provavelmente representa a obra
cuja boca aparecem essas palavras, é bem capaz
de um escriba que tentou melhorar a difícil cons
de fazer tal afirmação (Rm 9.5; ICo 8.6).
Senh o r , o
que traz consigo
trução “a igreja de Deus, que ele comprou com o
Não devemos desprezar as alusões bíblicas
próprio sangue”, que aos ouvidos modernos su
comunicadas pelo linguajar de Lucas. A palavra
gere patripassionismo (i.e., afirma-se que o Pai é
que a a r a traduz por “comprou”
quem sofre), como também deve ter acontecido
rip o iê sis)
com os escribas do século iii em diante. Como no
lhor tradução pode ser “poupou para si mesmo”
caso de algumas traduções bíblicas (e.g.,
bj) ,
a
{p e r ip o ie õ ;
cf. p e -
transmite nuanças salvíficas, e uma me
ou “livrou para si mesmo” (v. Lc 17.33; Ml 3.17,
maioria dos comentaristas opta por ler a passa
lxx;
gem como se ela falasse da “igreja de Deus, que
palavra também transmite a ideia de posse, por
Nm 22.33,
ele comprou com o sangue do próprio Filho” ,
isso relembra o Êxodo, quando Deus adquiriu um
caso em que a palavra “Filho” é acrescentada.
povo para si mesmo a fim de salvá-lo. São sua
lxx;
SI 78.11,
lx x ;
Jt 11.9). Mas a
Isso é gramaticalmente possível, mas improvável.
“propriedade exclusiva”
Lucas tem o hábito de pôr adjetivos e locuções
Êx 19,5; Dt 7,6; 14.2; 26.18; cf. IPe 2.9; SI 73.2,
adjetivas na forma em questão. Caso seu objetivo
lxx) .
fosse falar do “próprio Filho de Deus” , por certo
de Deus como rebanho está baseada no Êxodo
[s^gullã; p erio u sia s, l x x ;
De modo semelhante, a descrição do povo
teria incluído o substantivo ao final (cf. Rm 8.32).
(SI 78.52; cf. Nm 27.15-17). Portanto, a referên
O que temos então diante de nós é o linguajar
cia ao “ próprio sangue de Deus” provavelmente
incomum com que Lucas descreve a morte de
relembra a Páscoa e sugere uma tipologia em que
Cristo. Mas como vamos entendê-la?
Cristo transcende a Páscoa original. A redação in
Não é convincente a afirmação de Ehrman
comum de Lucas assinala, então, um contraste
(p. 202-3) de que Lucas não considera o sangue
entre a Páscoa original e a cruz. Se essa leitura
de Jesus uma adunação, mas algo que salva por
do texto está correta, no discurso de Paulo em
trazer um reconhecimento de culpa. Mas a acu
Mileto temos uma poderosa lembrança das pala
sação de culpa pela morte de Jesus está presente
vras de Lucas relativas à instituição (22.19,20),
apenas nos discursos em Jerusalém e desaparece
em que ele relata a interpretação que Jesus dá à
depois de Atos 7. Além do mais, em Atos não é a
própria morte (mais precisamente a seu sangue)
322
C risto , morte de iii : A to s , H ebreus , C artas G érais , A pocalipse
como uma nova aliança. Noções de cumprimento
na morte injusta do Servo de Deus, porém assim
estão presentes nas duas passagens. E a incomum
mesmo algumas noções de propiciação se encon
atribuição de divindade a Cristo caracteriza Atos
tram provocadoramente próximas (Is 53.6) e vêm
20.28 como texto essencial.
à mente de quem deseja conhecer as palavras de
Na narrativa, em oposição ao discurso teológi co direto, o papel do falante e o contexto da fala
Jesus por ocasião da Última Ceia e o contexto isaiano mais amplo.
dizem muito. A frequência com que um pensa
A citação de Isaías 53.7,8 não está sozinha
mento ou uma expressão aparece é bem menos
em Lucas-Atos. Referências à identidade de Jesus
importante do que quem o diz e de quando se
como o Servo isaiano remontam à definição que
diz. Por isso, não devemos deixar de observar que
Jesus apresenta de seu ministério (Lc 4.18,19;
essa única referência explícita em Atos à morte de
Is 61.1,2) e avançam no relato de sua Paixão
Jesus como adunação aparece num ponto deci
(Lc 22.37; Is 53.12). Como assinala J. B. Green,
sivo, na boca daquele a quem Lucas apresenta
a última referência é o único caso no
como vaso escolhido de Cristo, a testemunha
se encontra material acerca do Servo nos lábios
nt
em que
apostóhca em quem se cumpre a promessa de
de Jesus
Atos 1.8. Sem depreciar o testemunho ininter
lucano da morte de Jesus faz supor que o centu
rupto de Paulo, Lucas apresenta seu discurso em
rião que observava os acontecimentos reconhe
Mileto como o encerramento de seu ministério
ceu Jesus inconscientemente como o “justo” , o
( G r een ,
1990, p. 22). E apenas o relato
às igrejas. Isso é visível em todas as partes do
Servo (Lc 23.47; Is 53.11; v.
discurso, desde a predição de Paulo de que não
Lucas, as passagens do Servo em Isaías refletem
tornaria a ver os anciãos de Éfeso (At 20.25} até
um entendimento bíbhco mais amplo sobre o pa
a vigorosa
pel do Messias (Lc 24.25-27,44-49), incluindo sua
cr istolo gia
que se observa. Em certo
sentido, os anciãos são responsáveis não apenas
K arris ) .
De fato, para
missão aos gentios (At 13.47).
pela igreja de Éfeso, mas também pela “igreja
0 papel de Jesus como o Servo dá substância
de Deus”. Por isso, quando Paulo diz que Deus
aos discursos de Atos, onde o tema contínuo da
“hvrou a igreja para si mesmo com seu próprio
reversão se baseia no tema bíblico recorrente da
sangue”, Lucas está mostrando que a morte
justificação do Justo Sofredor, ideia central na pas
adunatória de Jesus está por trás de tudo o que
sagem do Servo em Isaías 52.13— 53.12. Quando
ele operou entre judeus e gentios desde a cruz
Pedro proclama que Deus “glorificou seu Servo
(Lc 22.19,20). Em vez de ter papel insignificante,
[pais] Jesus” e afirma que o povo rejeitou “o Santo
as duas referências explícitas à morte adunatória
e Justo”, ele faz menção a Isaías 52.13 e 53.11. O
de Jesus formam um parêntese junto com toda a
elemento próprio da imagem do Servo, que o faz
narrativa interveniente e assim a esclarecem.
sobressair na categoria mais ampla do Justo So
1.1.4
Alusões à morte de Jesus como aduna fredor, é a ideia de que o perdão é concedido por
ção. Por que Lucas emprega inúmeras alusões bí
intermédio dele (Is 53.4-6,10,11). Esse tema carac
blicas à morte de Jesus como adunação, mas ao
teriza a narrativa de Lucas. 0 oferecimento de sal
mesmo tempo não as desenvolve? A resposta está
vação ao ladrão na cruz e a omissão das palavras
em parte em sua ênfase sobre a ressurreição de
que expressam o abandono levam a narrativa luca
Jesus e em parte no parêntese que acabamos de
na da Paixão para longe da apresentação marcana
observar. As palavras de instituição e a afirma
de Jesus como sofredor justo e ao mesmo tempo
ção seguinte de Paulo fornecem a interpretação
para perto do conceito presente em Isaías (cf.
da morte de Jesus como adunação, o que Lucas
en,
reforça mediante repetidas alusões ao Servo de
perdão é básico na proclamação do Cristo em Atos
Isaías, ao partir do pão e à necessidade divina da
(At 2.38,39; 3.18-20; 10.43; 13.38,39).
morte de Jesus. 1.1.4.1
G re
1990, p. 23). De igual modo, o oferecimento de
Por esse motivo, Lucas não considera a mor
Jesus como o Servo de Isaías. A mais te de Jesus a de um mártir, ou herói, ou mesmo
proeminente dessas alusões é a seção de Isaías 53,
do Justo Sofredor da Bíblia, mas a do Messias-
que o eunuco etíope estava lendo ao encontrar
Servo Sofredor por meio de quem Deus oferece o
Filipe (At 8.32,33; Is 53.7,8). Lucas concentra-se
perdão dos pecados. Esse conceito de Jesus e o
323
C risto , morte de iii : A t os , H ebreus, C artas G érais , A pocaupse
contexto isaiano que Ihe serve de fonte reforçam
10.43; 13.27; 17.3; 26.23). Sendo o Messias, Jesus
as duas referências lucanas à morte adunatória
está destinado a cumprú o papel prescrito para
de Jésus, as quais dão substância à representa
ele como o Servo Sofredor. Esse tema recorrente
ção inteira. Levando-se em conta as abundantes
ressalta sutilmente a interpretação que Jesus dá
alusões de Lucas ao Servo isaiano, é muito prová
ã sua morte como adunatória (Lc 22.19,20), vis
vel que ele queira que seus leitores estabeleçam
to que nessa interpretação temos a única vez em
essa associação.
Lucas-Atos em que o propósito divino para a cruz
1.1.4.2 0 partir do pão. Lucas também dese
é revelado. Lucas não apenas afirma que o Mes
ja que seus leitores entendam o “partir do pão”
sias morreu porque Deus o quis, mas apresenta a
da comunidade crente como uma expressão de
interpretação de Jesus para essa morte.
fé e obediência ã ordem de Jesus: “Fazei isto em
Entretanto, o tema da necessidade do sofri
memória de mim” (Lc 22.19). Como observa D.
mento do Messias também serve a uma finalidade
P. Moessner (p. 182), o equívoco e a decepção
maior e apologética em Atos. Longe de desquali
dos discípulos no caminho de Emaús são rever
ficar Jesus como o Messias prometido, sua mor
tidos não apenas mediante a exphcação pelo Je
te injusta cumpre as palavras dos profetas (e.g.,
sus incógnito, mas no ato em que Jesus parte o
At 13.27). Essa apologia da cruz e a interpretação
pão, sugerindo que suas palavras por ocasião da
lucana da morte de Jesus como adunação estão
Última Ceia representam o auge do testemunho
amarradas uma ã outra, como em sua ênfase na
bíbhco e o ponto central da revelação (Lc 24.30-
ressurreição.
32). Além disso, como acontece nas referências
1.1.5
A morte adunatória de Jesus e sua res
que Lucas faz à morte adunatória de Jesus, suas
surreição salvífica. Lucas apresenta, em Atos, a
menções ao “partir do pão” comunal emolduram
ressurreição de Jesus como evento salvífico cen
sua apresentação da disseminação do evangelho.
tral, para assim ressaltar as afirmações exclusivas
Ele a inclui em seu esboço sobre a vida piedosa
de seu evangelho. A ressurreição não apenas con
da igreja nascente (At 2.42,46) e torna a mencio-
firma Jesus como o Messias-Servo, mas também
ná-la no encontro final entre Paulo e a igreja de
o eleva ao papel de Senhor ressurreto. As pro
iVôade (At 20.7,11). Os crentes “partem o pão”
messas salvadoras de Deus a Israel e às nações
concomitantemente com o ensino, a comunhão e
se cumpriram agora nele. Tendo derramado o
a oração (At 2.42) e se reúnem para isso no pri
Espírito (v.
meiro dia da semana (At 20.7). Tendo em vista o
mundo, enviando a mensagem de salvação aos
E spírito S a n t o ) ,
agora está atuando no
lugar que ocupam na narrativa, essas descrições
confins da terra (v.
têm 0 objetivo de mostrar que tais práticas eram
portanto, o único mediador da salvação para a
comuns nas igrejas. Assim, Lucas mostra que os
humanidade. Não é apenas o profeta semelhan
primeiros discípulos seguiam a ordem de Jesus de
te a Moisés, a quem todo o
lembrar sua morte adunatória. Lucas espera que
(At 3.22-26), mas também aquele que julgará os
seus leitores façam o mesmo.
vivos e os mortos e a quem o mundo inteiro terá
1.1.4.3 A morte de Jesus como exigência divi na. Assim como acontece em Mateus, em Marcos
c r iaç ã o , no v a criação ) .
I srael
Ele é,
deve obedecer
de prestar contas (At 10.42; 17.31). A salvação é concedida apenas em seu nome (At 4.12).
e em João, a morte de Jesus em Lucas-Atos não é
Na condição de cumprimento da promes
0 simples resultado de ignorância e erro humanos
sa, a ressurreição também serve de apologia da
que Deus corrige com a ressurreição. Na verdade,
cruz, confirmando Jesus como Messias e Se
o sofrimento do Messias é a vontade e o plano de
nhor. Essa preocupação é especialmente visível
Deus, que tem de se cumprir. Esse tema aparece
nas referências de Lucas à morte de Jesus “ num
não somente nas predições da Paixão (Lc 9.22,44;
madeiro” (At 5.30; 10.39,40; 13.28-30), o que
18.31) e na predição da traição (Lc 22.21), mas
reflete a antiga interpretação judaica de Deute
também na referência que Jesus faz a seu papel de
ronômio 21.22,23, que fala da crucificação como
Servo isaiano (Lc 22.37; Is 53.12). A necessidade
castigo imposto aos culpados de crimes graves
divina da morte de Jesus consiste no que está es
(W iLCOx;
crito a respeito dele (Lc 24.26,27,44-47; At 3.18;
da culpa e da inocência estão presentes nas três
324
cf. llQTemple 64.7-9). Questões na área
C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
ocorrências dessa descrição da morte de Jesus.
mas a defende nas próprias circunstâncias, ao
Em cada caso, o falante aponta para a ressurrei
proporcionar o arcabouço detalhado e a base de
ção como a exculpação de Jesus e a confirma
sua aceitação.
ção do favor divino sobre ele. A ênfase de Lucas
Duas últimas afirmações ajudam a confirmar
na ação de Deus sugere que ele tem consciência
essa conclusão. Primeira: embora seja verdade
de que Deuteronômio 21.22,23 era considerado
que a ressurreição recebe atenção maior em Atos
a maldição divina proferida contra os culpados;
e que Lucas não associa diretamente o perdão
contudo, ele não alega que Jesus tenha carregado
dos pecados à morte de Jesus, também é verdade
maldição em lugar de outros (cf. G1 3.13). Sua
que a exaltação de Jesus e o perdão dos pecados
atenção está concentrada na eliminação de quais
não são independentes da cruz. A ressurreição e a
quer dúvidas acerca da defesa de Jesus por parte
exaltação não são vistas como algo abstrato, mas
de Deus.
como um ato divino no Servo crucificado (e.g.,
Aqui somos levados de volta a uma das ques
At 2.33; 5.30,31). 0 perdão não é proclamado
tões mais prementes sobre o entendimento de
independentemente da morte de Jesus (At 2.38;
Lucas acerca da salvação. A tendência tem sido
3.18-21; 5.30, 31; 10.40-43; 13.38,39; 26.18,23).
supor que, uma vez que Lucas não desenvolve
Segunda e mais importante: os autores do
0 tema da morte de Jesus como adunação e põe
tumam atribuir significado salvífico tanto ã cruz
nt
cos
na ressurreição sua ênfase maior, ele não entende
quanto ã ressurreição, sem sugerir que o signifi
a morte de Jesus como adunatória
e
cado de um ofusque o do outro (e.g., Rm 4.25).
a rejeita, ou, embora tenha cons
Ambas são elementos essenciais da obra salva
C onzelmann), o u
( V ielhauer
ciência dela, não a acolheu para si (v.
M ar sh all,
1970, p. 169-75).
dora de Deus em Cristo. Se isso ocorre em ou tras passagens, não devemos nos surpreender em
Contudo, esses juízos desconsideram o cará ter de Atos como narrativa e a função da ênfa
encontrá-lo em Lucas-Atos. 1.2
0 sofrimento de Jesus como padrão para
se de Lucas na ressurreição. Como já dissemos,
os crentes. Lucas também fornece sinais de que
não é importante o fato de haver poucas referên
considera o sofrimento e a morte de Jesus um
cias à morte de Jesus como adunação. Na narra
paradigma para os que creem nele. O chamado
tiva, o personagem que fala e o momento da fala
ao discipulado no Evangelho de Lucas inclui uma
pesam bem mais. Além do mais, Lucas deseja
aplicação geral. Os seguidores de Jesus devem
dar segurança a um círculo de leitores que já re
tomar a cruz a “cada dia” (Lc 9.23). Quem não
ceberam instrução básica (Lc 1.1-4), segurança
carrega uma cruz não pode ser discípulo de Jesus
que necessariamente imphca confirmação dos
(Lc 14.27). Além do mais, os apóstolos são os que
acontecimentos em que tal instrução se baseou.
estiveram com Jesus nas tribulações pelas quais
Ao se concentrar na ressurreição e na exaltação
ele passou e a quem ele conferiu um reino, assim
de Jesus, Lucas apresenta uma apologia das
como o Pai lhe conferiu (Lc 22.28-30; v.
afirmações de seu evangelho, reforçando e não
D eus ) .
diminuindo o entendimento de que a morte de
está em operação. Assim como é preciso que o
Jesus foi uma adunação vicária. Além do mais,
Messias sofra, é necessário àqueles que creem
r eino de
Algo além de seguir o exemplo de Jesus
o papel central da exaltação de Jesus em Atos é
nele “entrar no reino de Deus” (At 14.22). Essa
indicativo da perspectiva histórico-salvífica, que
instrução de Paulo às igrejas de Listra, Icônio e
é essencial para entender a morte de Jesus como
Antioquia da Pisídia é a única afirmação explícita
adunação. Do ponto de vista de Lucas, a menos
sobre o assunto em Atos. Lucas, contudo, sinahza
que Jesus tenha ressuscitado dentre os mortos,
para seus leitores sua expectativa de sofrimento
não faz sentido falar dessa maneira acerca de
ao descrever as experiências da igreja primitiva
sua morte. E, a menos que haja um juízo vin
(At 8.1-3) e de seus líderes (At 5.41), do primeiro
douro, não faz sentido falar de perdão de peca
mártir, Estêvão (At 6— 7), e de Paulo, o “instru
dos. Lucas não enfrenta uma situação em que
mento escolhido” do Senhor, a quem Jesus pro
se dá menos valor ã obra adunatória da cruz,
mete revelar “ quanto lhe é necessário sofrer pelo
como acontece com Paulo e o autor de Hebreus,
meu nome” (At 9.16).
325
C rísto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
É notável o paralelo com o tratamento que Lu
pois Lucas entende que Pilatos havia decidido
cas dispensa à morte de Jesus como adunação.
soltar Jesus, mas enfrentou a oposição do povo
Além de mais, temos inúmeras alusões ao lado de
(Lc 23.13-25; At 2.23; 3.13; 10.39; 13.27,28). Em
um único pronunciamento esclarecedor, que deve
Jerusalém, os líderes são declarados culpados
ser entendido como típico. E, nesse caso, Lucas
(Lc 22.66—23.5; At 3.17; 5.30,31).
oferece ainda menos informações sobre essa ex
Mesmo assim, essa culpa não exclui ninguém
periência. Obviamente, ele considera que o povo
da salvação. Líderes e povo agiram na ignorân
de Deus está identificado com o Messias. Isso fica
cia e são convidados a se arrepender, crer e ser
claro quando Estêvão, morrendo, vê o Filho do
batizados, para que recebam as promessas que
homem de pé à direita de Deus (At 7.55) e quan
Deus fez a Israel (At 2.38,39; 3.17-21; 5.31). Lu
do as palavras do Jesus ressuscitado atingem o
cas considera que a porta da salvação continua
atônito Saulo (“Por que me persegues?” , At 9.4
aberta para Israel. As palavras finais de Paulo no
etc.). E, assim como Cristo se identifica com eles,
hvro de Atos não o contradizem (At 28.25-28). 0
Lucas deixa implícito que eles se identificam com
endurecimento do coração de Israel não significa
Cristo. A vontade de Deus foi realizada no caso
que nenhum judeu creu ou que chegará a fazê-lo,
de seu Servo [pais], e seus servos [douloi] oram
mas que ainda está por chegar a época em que a
para que também opere neles (At 4.23-31). En
nação toda se voltará para o Messias (At 3.19-21).
tretanto, Lucas não dá detalhes sobre a nature za e a base dessa relação. De uma perspectiva,
2. Hebreus
a perseguição aos crentes é resuhado de darem
A morte de Cristo, formando par com sua exal
testemunho do nome de Jesus (At 5.41; 9.16;
tação, é o ponto principal e a base da exortação
15.17; 26.9). Há em Lucas também um leve in
homilética de Hebreus. Para sua interpretação da
dício do papel do Messias como segundo Adão
cruz, o autor extrai seu arcabouço basicamente
(At 26.13). Qualquer que seja sua base em Lucas-
do culto do
Atos, o tema da conformação à morte de Cristo,
dotal do Dia da Expiação (Lv 16). A morte de
que é bem diferente da ideia de imitação, reapa
Cristo opera a purificação do pecado e capacita
rece nas cartas paulinas, em Hebreus, em IPedro,
a pessoa a se aproximar de um Deus gracioso
AT,
em particular do serviço sacer
em IJoão e em Apocahpse (v. Apocalipse, Livro
(Hb 4.14-16). O sacerdócio levítico, o tabernáculo
com a interpretação da morte de Jesus como
no deserto e seus sacrifícios prenunciaram a im
d e) ,
adunação pelo pecado. 1.3
portância salvífica da morte de Cristo, oferecendo
A responsabilidade humana pela morte um padrão ou tipo terreno dos benefícios celes
de Jesus. A despeito da considerável ênfase de
tiais que Cristo conquistou (Hb 8.5; 9.23). O sa
Lucas ao propósito divino por trás da morte do
crifício de Cristo é superior aos prescritos na
Messias, ele não diminui a responsabilidade hu
pois estes são meras cópias e sombras das reali
mana pela crucificação de Jesus. Aliás, aqui a
dades eternas alcançadas na cruz (Hb 8.5; 9.23;
L ei,
tensão bíblica entre a soberania divina e a res
10.1). Se, de um lado, o culto do
ponsabihdade humana atinge o nível máximo. A
do, seu mundo conceituai foi mantido solidamen
cruz não é uma tragédia da qual Deus, de algu
te como base para entender a morte de Cristo (ao
at
foi suplanta
ma forma, extrai algum bem: ela faz parte de seu
contrário de
plano, predito pelos profetas. Contudo, os que
na concisa introdução à obra salvadora do Filho.
perpetraram o mal não são eximidos de responsa
Ela afirma que ele fez “a purificação dos peca
bilidade, mas chamados a se arrepender.
dos” (Hb 1.3), interpreta a cruz da perspectiva
T u c k et t , v .
1, p. 521). Isso é evidente
Ao contrário dos escritores cristãos do século ii,
sacrificial e prenuncia o tema posterior do perdão
Lucas evidencia cuidadosamente a culpa pela mor
como efeito inigualável da cruz. Outras maneiras
te de Jesus. Ele considera responsáveis pela morte
de interpretar a morte de Cristo suplementam e
de Jesus todos os que participaram de seu julga
expandem essa ideia. A morte de Cristo retirou do
mento e execução: Herodes e Pilatos, os gentios e
Diabo o poder da morte. Além disso, abriu para
0 povo de Israel (At 4.23-28; cf. 7.51-53), mas os
todos os filhos de Deus o caminho até a presença
judeus de Jerusalém são especialmente acusados.
divina (Hb 2.10,14-16).
326
C risto, morte de iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
2.1 Um grande sumo sacerdote. 0 autor in
sacerdotes terrenos [Hb 7.26-28). A entrada de
troduz o tema recorrente de Cristo como sumo
Cristo no céu, associada à sua cruz (Hb 9.12), é
sacerdote à guisa de resumo da encarnação,
seguida do ato de se assentar à direita de Deus,
tema de destaque na primeira parte do material
como ressalta o autor [Hb 1.3; 8.1; 10.11-13).
[Hb 2.1-18; 4.14—5.10). Jesus teve de partilhar
Essas considerações têm grande peso contra a
“carne e sangue”, incluindo o sofrimento da mor
interpretação de que, em Hebreus, o ministério
te, a fim de “ ser um sumo sacerdote misericor
de Cristo inclui uma aplicação de seu sangue no
dioso e fiel”. Esse pensamento é recorrente e tem
santuário celeste após sua morte. Pelo contrário,
um desfecho impressionante em Hebreus 5.7-
a totalidade da obra de Cristo é realizada na cruz,
9, quando o autor, relembrando a antíga tradi
de uma vez por todas [Hb 7.27; 9.28; 10.10). Seu
ção cristã da oração no Getsêmani, descreve a
ministério como sumo sacerdote não implica
experiência totalmente humana de Jesus, que
uma oferta perpétua, mas sua presença diante de
enfrentou a provação da cruz, afirmando que,
Deus a nosso favor [Hb 4.14-16; 6.19,20; 7.26-28;
“com grande clamor e lágrimas, Jesus ofereceu
9.23-28).
orações e súplicas àquele que podia livrá-lo da
Esse ministério celeste possui dois aspec
morte”. Até mesmo o Filho aprendeu a obediên
tos inter-relacionados. Primeiro: Cristo serve de
cia no sofrimento e foi “aperfeiçoado” no papel
mediador, intercedendo eternamente por aque
de sumo sacerdote. Esse atributo o distíngue do
les que, por meio dele, se aproximam de Deus,
sacerdócio terreno e o qualifica a um sacerdócio
e proporcionando graça e misericórdia (Hb 2.18;
eterno [Hb 4.15; 5.2,3; 7.26-28;
p. 104-
4.16; 7.25). Segundo: sua entrada na presença
25). Seu sofrimento o capacita a ter compaixão de
de Deus por nós é uma entrada à frente de nós.
nossa fraqueza moral [astheneia; cf. Hb 5.2; 7.28)
Com suas lutas, sofrimento e morte, ele instituiu
e a nos ajudar [Hb 4.16). O Filho tornou-se não
a peregrinação de seus irmãos até a presença de
apenas um sumo sacerdote misericordioso e fiel,
Deus (Hb 6.19,20). Na humanidade de Jesus, a
mas também “um grande sumo sacerdote” que
humanidade foi “aperfeiçoada” , tendo ele pas
entrou no céu [Hb 4.14). Este é o tema dominante
sado obedientemente pelo sofrimento e entrado
de Hebreus 7— 10, em que o autor apresenta a
no céu. Em razão do propósito salvador de Deus
superioridade de Cristo tanto no caráter eficaz do
para a raça humana (não por um plano material,
sacrifício que fez “ de uma vez por todas” quanto
como entendem Inácio ou Ireneu), o linguajar do
em sua condição eterna de sumo sacerdote, uma
sumo sacerdote flui e avança sobre a imagem de
justaposição que suscita a questão do ministério
progresso e conquista. Cristo é o “líder do clã”
P eter son ,
[archêgos; cf. Êx 6.14; Nm 10.4; Dt 33.21) no que
eterno de Cristo. 2.2 O sacrifício 2.2.1
diz respeito à salvação (Hb 2.10; 12.2) e é seu
Sangue. Para o raciocínio do autor aperfeiçoador [Hb 12.2). Ele entrou na presença
é fundamental a afirmação de que o sangue
de Deus como precursor, por nós (Hb 6.20). Con
de Cristo proporciona purificação do pecado
tudo, o papel singular de Cristo como sumo sa
(Hb 9.14,22,23; 10.22). Nesses contextos, “san
cerdote não é posto de lado diante dessas outras
gue” significa morte sacrificial, não a vida da ví
ideias. Só ele é o mediador sem pecado que age
tima, como entendem alguns (v. esp. Hb 9.15-22;
misericordiosamente com pecadores (Hb 2.17;
cf. Hb 10.5,10, em que aparece o termo paralelo
7.26-28). O caminho para a presença de Deus ba
“corpo”). Ao esclarecer a obra de Cristo, o autor
seia-se no perdão assegurado na cruz, não numa
não faz uso de todos os aspectos do ritual adu
divinização da humanidade. E o perdão de uma
natório e, em particular, não faz menção de uma
vez por todas assegurado possui sua aplicação na
apresentação de sangue no santuário celeste [cf.
ajuda essencial que propicia aos “filhos” no difí
Lv 16.15-19). Cristo entra nos céus não com seu
cil caminho para a glória.
sangue, mas por meio de seu sangue, ou seja,
2.2.2
Oferta. Ao expor a relação entre os sa
por meio de sua morte na cruz (Hb 9.12). Além
crifícios da antiga aliança e a morte de Cristo, o
do mais, a finalidade da oferta de Cristo estabe
autor geralmente emprega o bem conhecido vo
lece uma distinção entre seu ministério e o dos
cabulário da “oferta”. No entanto, é significativo
327
C risto , morte de iií : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
que, no início e na conclusão do argumento prin
0 castigo deles. Não significa apenas que na cruz
cipal, apareçam termos teológicos interpretativos.
ele os representou, mas que o castigo destinado a
O autor introduz o papel de Jesus como sumo
eles passou a ser dele, de modo que agora aguar
sacerdote, descrevendo seu propósito de “fazer
dam salvação, não juízo condenatório (contra
propiciação pelos pecados do povo” (eis to hi-
H o o ke r ) .
laskesthai tas hamartias tou laou, Hb 2.17). Tem
sacrificial, aqui o autor pressupõe a realidade e a
sido o tema de amplo debate se o verbo grego hi-
validade desse ato substitutivo (sobre esse tópi
laskesthai significa, no grego bíblico, a propiciação
co,
Assim como faz com toda a estrutura
V. H i l l ; M o r r is , 1 9 6 5 ).
2.2.3
da ira divina, como no grego secular, ou a expiação
Adunação. Como ocorre em outros
de pecados. No entanto, uma vez que se reconhe
contextos do
ça que a eliminação dos pecados desvia a ira divi
terpretada como adunação. Deus é não apenas
n t,
em que a morte de Cristo é in
na, como é 0 caso aqui (v. 2.2.3 abaixo), chega-se
o objeto do sacrifício de Cristo (Hb
ã ideia da “propiciação”. Excluir o desvio da ação
também seu sujeito (Hb
punitiva de Deus é eliminar o sacrifício bíblico de
arcabouço baseado na aliança (e.g., Hb
seu contexto aliancístico, no qual o meio de propi
Foi Deus quem ordenou o ministério sacerdotal
ciação é uma dádiva de Deus (e.g., Lv 17.11). Nos
e escolheu Cristo como sumo sacerdote eterno
9 .2 8 ),
2 .1 7 ),
mas
como evidencia o 8 .6 - 1 3 ).
escritos bíblicos, o entendimento pessoal e alian
(Hb
cístico acerca do relacionamento divino-humano
cado (Hb
Ele ofereceu Cristo para levar o pe
continua decisivo, não importando quão significa
ofereceu seu corpo para a santificação do povo de
5 .1 - 6 ).
9 .2 8 ),
e, pela vontade de Deus, Cristo
tivo sejam o “espaço” e os implementos de culto,
Deus (Hb
como evidencia a íntima associação entre sacri
para o perdão de pecados, mas também a supriu
fício e perdão (e.g., Êx 30.30-32; Lv 4.20; caps. 26,
em seu Filho.
1 0 .1 0 ).
2.3.
31 e 35; v. esp. Lv 16.15-22). Na passagem em questão, está claro que para
Deus não só exigiu uma morte
O efeito da morte de Cristo. À seme
lhança dos sacrifícios da Lei, a morte de Cristo
o autor a morte de Jesus desvia a ira de Deus.
“aduna” (reconcilia), “ purifica” e “santifica”. No
É muito significativo que, sem dar justificativa,
entanto, somente a cruz, não os sacrifícios prece
ele alterne entre perdão dos pecados e elimina
dentes, assegura o perdão (Hb
ção do pecado, tudo no contexto da linguagem
vez que os pecados tenham sido eliminados e
sacrificial (Hb 9.22,26; 10.4,18). Se as cláusulas
perdoados, não há mais necessidade de sacrifício
1 0 .4 ,1 1 ).
E, uma
da aliança forem rejeitadas, a ira divina será di
(Hb
rigida contra os desobedientes e incrédulos (Hb
fício e o sacerdócio de Cristo trazem “perfeição” ,
2.1-4; 3.7-19; 4.7,8; 12.25-29). A sintaxe dessa
em contraposição aos sacrifícios da Lei.
passagem tem paralelo na
lx x
em apenas umas
8 .1 2 — 9 .2 6 ; 1 0 .1 8 ).
2.3.1
Da mesma forma, o sacri
Perdão. Em Hebreus, “ santificar” em
poucas passagens de Eclesiástico, nas quais a
geral significa não a operação de melhoria
propiciação está intimamente associada a evitar
moral progressiva, mas perdão (Hb
a ira de Deus (v. esp. Eo 3.30; 28.5). Além dis
1 0 .1 0 ,2 9 ;
so, o autor destaca que a misericórdia é um dos
em foram santificados “ uma vez por todas” por
principais deveres do sumo sacerdote (Hb 2.17;
meio do oferecimento do corpo de Jesus Cristo
cf., contudo, Hb
5.2), deixando implícito que o juízo estrito é a
(Hb
alternativa ã mediação.
perdão dos pecados (v. Hb
A segunda passagem, em que o autor interpre
1 0 .1 0 ).
ney (p.
126)
1 2 .1 4 ).
2 .1 1 ; 9 .1 3 ;
Os que cre
Essa santificação é nada mais que o 1 0 . 2 ,1 8 ).
James Den-
comenta; “ Na Epístola aos Hebreus
ta o linguajar relativo a “ oferta”, corrobora essa
a palavra
leitura de Hebreus 2.17. Ao concluir sua apresen
possível ao vocábulo paulino SiKaioOv. A santifi
ó y ióÇ e iv
corresponde o mais próximo
tação da morte de Cristo como sacrifício superior,
cação de um autor é a justificação do outro; e o
o autor descreve a cruz como ato em que Cristo
TTpoaoycjyri, ou acesso a Deus, que Paulo enfatiza
se ofereceu “uma só vez para levar os pecados de
como a bênção básica da
muitos” (Hb 9.28). Aqui ele obviamente recorda
toda parte em Hebreus como o ato religioso bási
a oferta substitutiva do Servo isaiano (Is 53.4-12).
co de ‘aproximar-se’ de Deus por meio do Grande
Ao carregar os pecados “ de muitos” . Cristo levou
Sumo Sacerdote”.
328
ju stificação,
aparece em
C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse
2.3.2
Perfeição. A “perfeição” dos crentes sig [metathesis, Hb 7.12; 11.5; cf. Hb 1.10-12). Por
nifica sua participação nas bênçãos salvadoras
esse motivo, em Hebreus a salvação não envolve
da era vindoura mediante o perdão conquistado
uma jornada do material para o imaterial, mas do
na cruz. Não era possível alcançar a “perfeição”
mundo presente para a era vindoura.
por meio do sacerdócio levítico, pois a Lei não
De modo correspondente, embora com nu
tomava nada “perfeito”, nem tinha condições
anças variadas, o vocabulário em torno do con
de “aperfeiçoar” os que ofereciam sacrifícios
ceito de “perfeição” tem ímpeto escatológico. O
(Hb 7.11,19; 10.1). Mas com um timco sacrifício
contraste entre a tenda terrena e o maior e “ mais
Cristo “aperfeiçoou para sempre” os que estão
perfeito” tabernáculo em que Cristo entrou quan
sendo santificados (Hb 10.14). As provisões da
do ofereceu seu sacrifício é estritamente escato
Lei eram temporárias e tinham apenas efeito
lógico (Hb 9.11). Por isso, o tema da perfeição
externo, purificando “a carne” e as cópias das
abordado pelo autor é essencialmente histórico-
coisas celestiais. Mas com sua morte Cristo al
salvífico, ressaltando a conclusão dos propósitos
cançou a redenção e purifica a consciência. Agora
redentores de Deus. Em virtude do plano divino,
exaltado, apresenta-se “por nós” diante de Deus
a salvação eterna e completa só ocorre nestes úl
(Hb 9.1-15,23-28).
timos dias por meio do Filho (Hb 11.40; 1.2; cf.
Como termo escatológico, a “perfeição” en
Hb 9.10).
volve uma distinção fundamental entre as ordens
A perfeição dos crentes é obtida à custa da
material e espiritual, mas não um dualismo ir
perfeição do Filho, mediante sofrimento (Hb 2.10;
restrito. Por isso, é um equívoco interpretar He
5.9; 7.28). Aqui também o sentido escatológico é
breus com base no platonismo ou no
g n o s t ic is m o ,
básico. A condição de Cristo não ter pecado ja
como era comum, a despeito do óbvio emprego
mais é questionada em Hebreus — na verdade, é
de terminologia reUgiosa helenista. A oposição
realçada (Hb 4.15; 7.26-28; 9.14). Sua “perfeição”
“verticeil” não é absoluta, mas aparece como um
representa seu progresso até o pleno papel de me
elemento, ainda que fundamental, na estrutura
diador da salvação (Hb 7.26-28). Ao ser aperfei
da história da salvação.
çoado, 0 Filho atinge sua posição escatológica e
Em Hebreus, a esperança não tem o olhar
aguarda a sujeição de todas as coisas debaixo de
flxo numa eternidade desencarnada, mas numa
seus pés (Hb 1.13; 10.13).
transformação em que a criação, subvertida pelo
Acima de tudo, a perfeição dos crentes signi
pecado e pela morte, passa a ser habitação eterna
fica acesso a Deus e participação na Jerusalém
para Deus e seu povo. 0 autor diz que a tenda
celestial (Hb 7.19; 12.22-24). A perfeição também
na qual Cristo entrou como sumo sacerdote não
assume um sentido cognitivo em Hebreus 5.11—
pertence a esta criação (Hb 9.11), debcando implí
6.3, em que a maturidade envolve a capacida
cito que Cristo entrou em uma nova criação. As
de de entender a “palavra da
realidades celestiais são, portanto, realidades es
essa perfeição da mente e do coração sem dúvida
j u s t iç a ” .
Contudo,
catológicas. De modo semelhante, numa surpre
também está presa à e s c a t o l o g ia , pois mostra que,
endente ilustração, ele equaciona a carne física
entre outras coisas, “provaram” o dom celestíal e
de Jesus com o véu diante do Lugar Santíssimo,
os poderes da era vindoura (Hb 6.4-8).
deixando claro que o caminho “não em decompo
Como acontece com o tema da santificação
sição” iprosphatos] e “vivo” que leva à presença
em Hebreus, a “perfeição” dos crentes, que Cristo
divina não é outro senão o outrora crucificado e
realizou com seu sacrifício, implica, em primeiro
agora ressurreto Jesus (Hb 9.11; cf. Hb 6.19,20).
lugar, a remissão dos pecados (Hb 7.11,19; 9.9;
O mundo vindouro é físico, como demonstra a
11.40;
esperança de uma “superior” ressurreição den
observação feita acima de que a categoria funda
tre os mortos (Hb 11.35). Deus “ainda uma vez”
mental do autor para interpretar a morte de Cristo
abalará a estrutura da presente criação, céus e
acha-se no perdão que ela opera. A “perfeição”
V.
esp. Hb 10.14-18). Isso corresponde à
terra (Hb 12.26). As coisas criadas estarão sujei
dos crentes implica a insuperável purificação es
tas não a uma “ mudança” (como trazem algu
catológica realizada na cruz (Hb 10.14). Assim, a
mas versões), mas a uma “transposição” radical
diferença entre a perfeição do Filho e a perfeição
329
C risto , morte de iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
dos crentes pode ser entendida. Ele foi aperfei--
aliança. A inscrição da lei de Deus no coração,
çoado mediante sofrimento; eles são aperfeiçoa
lá em Jeremias, é definida como o ato de “co
dos pelo sofrimento dele. Dessa maneira, eles
nhecer a Deus” , e esse conhecimento se baseia
não são poupados do difícil caminho para a gló
no perdão dos pecados (Jr 31.34; Hb 8.12). Na
ria (Hb 2.10; 12.1-13), mas por meio de Jesus já
segunda vez que menciona o texto de Jeremias
participam do destino que é deles. Ele é o aperfei
(Hb 10.15-18), o autor ressalta a finalidade do
çoador da fé, visto que o fato de ter atingido sua
sacrifício de Cristo, que, ao proporcionar o per
posição escatológica assegura que eles também
dão dos pecados, põe de lado as provisões da Lei.
atingirão (Hb 12.2).
Nessa citação, o autor inclui a promessa divina
2.3.3
Transformação humana. A redenção eter de implantar suas leis no coração de seu povo, o
na efetuada em Cristo se reflete na experiência
que os lembra de que a Lei é incapaz de fazê-lo
do crente. Em contraposição aos sacrifícios ofe
e impUcitamente apresenta a renovação interior
recidos sob a Lei, a morte de Cristo purifica a
como resultado do perdão dos pecados.
consciência, não apenas a “carne”, removendo
Também é importante observar que, para He
0 pecado e a culpa (Hb 9.9,14; 10.2,22). É ne cessário 0 reconhecimento subjetivo da realidade
breus, a igreja, “a comunhão dos santos” , tem
objetiva e externa. No entanto, o sentimento de
perdão significa acesso ao trono da graça, partici
perdão não acontece automaticamente. O acesso
pação na cidade celestíal e peregrinação comuns
a Deus alcançado pela morte de Cristo deve ser
(Hb 3.12-14; 10.24,25; 12.22,23).
origem no perdão que cada pessoa recebeu, pois
obtido e mantido pela fé. Aliás, o caminho da pro
2.3.4 Libertação. Assim como o papel de Cris
va trilhado pelos crentes exige que se ponham ã
to como sumo sacerdote extrapola para o de pa
disposição da ajuda divina. A incredulidade, não
ladino, 0 autor apresenta a obra de Cristo na cruz
a fé, é passiva e morosa. A exortação básica da
como o livramento das mãos do Diabo, que tínha
fé é 0 apelo a ter confiança no perdão que a cruz
poder sobre a morte (Hb 2.14,15). Embora não explique a fonte do poder do Diabo, sem dúvi
conquistou (Hb 3.6; 4.16; 10.35). Em um padrão semelhante ao das cartas de
da pressupõe um antecedente bíblico, em que o
Paulo, em Hebreus o perdão dos pecados não é
Diabo incita os seres humanos a pecar (Gn 3.1;
uma dádiva isolada, mas resulta em serviço a
ICr 21.1) e os acusa diante de Deus (Zc 3.1-5).
Deus. Verbos no modo indicativo que falam de
O contexto imediato sugere que o poder do Diabo
perdão constituem a base do imperativo. Isso é vi
também tem origem nas acusações que ele faz,
sível na forma em que o autor vê o sofrimento. Os
pois a ajuda que Cristo estende a seus irmãos
crentes suportam a adversidade não para se tor
consiste em fazer propiciação por seus pecados
narem “filhos” , mas porque já são “ filhos”. Se não
(Hb 2.17,18; cf. Ap 12.9,10). De igual modo, é
recebem a “ disciplina”, não são “ filhos”. Como
bem provável que o autor pressuponha uma h-
pai amoroso, Deus opera a justiça com eles, o que
gação íntima entre a consciência culpada e o
produzirá fruto pacífico (Hb 12.4-11). De modo
medo da morte, que por toda a vida sujeitou
semelhante, os crentes são peregrinos, porque já
os seres humanos à escravidão (Hb 2.14,15). 0
têm seu verdadeiro lar na cidade celestial (Hb 3.6;
“ medo da morte” em Hebreus tem em vista o juí
12.18-24). Seu progresso está garantído exclusiva
zo divino que se segue a ela (Hb 9.27; 10.27,31;
mente por causa de Cristo, o qual, na condição de
cf. Hb 12.21). O sacrifício de Cristo purifica a
Grande Sumo Sacerdote, propicia a ajuda graciosa
consciência de “obras mortas”, ou seja, “obras
de que necessitam (Hb 2.16-18; 4.16; 7.25).
que trazem o
j u íz o
de morte” , para que os cren
Em Hebreus, portanto, a transformação do co
tes sirvam ao Deus vivo (Hb 9.14). Assim como
ração humano baseia-se no perdão dos pecados.
o perdão, como realidade objetiva apropriada
Isso é especialmente visível nas repetidas referên
subjetivamente, traz a liberdade para servir, em
cias à promessa da “nova aliança” presentes no li
ambos os aspectos, objetivo e subjetívo, a culpa
vro de Jeremias (Jr 31.31-34). Em Hebreus 8.7-12,
torna a pessoa um escravo.
0 autor cita a passagem para demonstrar a in
2.3.5 Ratificação da aliança. J. J. Hughes
suficiência da Lei, a “primeira” e “antiquada”
(p. 27-66) defende de forma convincente o
330
C risto , morte de
iii:
A tos , H ebreus , C artas G erais, A pocaupse
argumento de que, em Hebreus 9.16,17, diathêkê
IPe 2.21; 3.18, textos em que leituras variantes
mantém o sentido bíblico usual de “aliança”
atestam a tendência de os escribas “corrigirem”
(em vez da costumeira tradução “testamento”)
0 fraseado).
e que o correto contexto para a metáfora é o ri tual de sacrifício da aliança refletido no
Ar
Pedro desenvolve de três maneiras o tema da
(e.g.,
excelência da inocência e da humildade de Cristo.
Gn 15.9-21). Os versículos seriam então tradu
Em linguagem que sugere uma confissão comum,
zidos assim: “ Porque, onde há uma aliança, é
ele lembra seus leitores do favor imerecido que
necessário que a morte daquele que a ratifica
receberam por meio do sofrimento de Cristo por
seja atestada [ou representada], pois uma alian
eles. O Cristo sem pecado operou a redenção ao
ça é confirmada com animais mortos, visto não
suportar mansamente a injustiça. Essa redenção,
ser válida enquanto o ratificador ainda vive
por isso, é digna da maior admiração. 0 segun
[i.e., não passou pela morte representativa]”.
do tema proeminente está ligado a essa ideia: em
A morte de Cristo proporciona o sacrifício rati
seu sofrimento e morte. Cristo libertou os crentes
ficador que é pré-requisito para o estabeleci
de seu passado vazio para agirem como ele, des
mento da aliança nova e eterna (Hb 9.15-22),
sa forma agradando a Deus. Finalmente, Pedro
bem como para a redenção das transgressões co
aponta para as “glórias” escatológicas que se se
metidas sob a “primeira aliança” , a Lei.
guem à cruz. Embora rejeitado pelos desobedien
Mas por que o autor caracteriza dessa forma a
tes, Cristo é precioso para Deus, que o ressuscitou
morte de Cristo? A partição ritual dos cadáveres
dos mortos e o exaltou. Os crentes aguardam com
de animais significava o destino que aguardava a
fé e esperança a revelação da glória de Cristo, na
parte ratificadora, caso a pessoa violasse os ter
qual serão libertos e justificados. A carta serve,
mos da aliança. Portanto, a menção ao sangue de
portanto, para encorajar os cristãos gentios que
Cristo como ratificação sem dúvida antecipa as
estavam sob pressão e ameaça de perseguição a
advertências do juízo aterrorizante que sobrevi
perseverar na fé e na excelência de conduta.
rá sobre os que conscientemente rejeitam a nova
Os três temas caracterizam cada uma das
aliança, destacada pelo autor em Hebreus 10 (cf.
três confissões da cruz de Cristo que aparecem
Jr 34.18). Ao fazê-lo, ele emprega a fórmula de
na carta (IPe 1.18-21; 2.21-25; 3.18). A cruz é
ratificação da aliança que usou em Hebreus 9.20:
ao mesmo tempo fonte de perdão, base para a
“ Quanto maior castigo merecerá quem insultou o
conduta e fundamento da esperança escatológica.
Filho de Deus e tratou como profano o sangue da
Além disso, nota-se ao longo da carta certa pro
aliança pelo qual foi santificado” (Hb 10.26-30).
gressão. Em IPedro 1.18-21, a ênfase recai sobre
Existe, portanto, uma referência implícita ã ira
0 contraste entre a vaidade da conduta passada
divina em Hebreus 9.16,17, que corresponde ao
dos leitores e o valor extraordinário da morte re
método usual do autor ao apresentar um tema:
dentora de Cristo. Em IPedro 2.21-25, embora se
ele introduz uma ideia antes de desenvolvê-la (cf.
mantenham esses elementos, a atenção está vol
a descrição de Jesus como sumo sacerdote em
tada para o padrão de vida que Cristo, com sua
Hb 2.17,18, que é, então, seguida da exposição
mansidão, estabeleceu para os crentes. Na ter
que se inicia em Hb 5).
ceira passagem (IPe 3.18 e seu contexto), Pedro destaca a ressurreição justificadora de Cristo e a
3. IPedro
salvação escatológica dos que creem nele.
Pela perspectiva de sua suprema beleza moral e
Essas passagens talvez representem hinos ou
de seu inestimável valor, a morte de Cristo ou,
confissões que o autor utilizou (v.
na linguagem da carta, seu “ sofrimento”, serve
qualquer modo, em cada caso se percebe o voca
de tema recorrente de IPedro. Em outros luga
bulário característico do autor, refletindo seus in
res, a morte de Cristo é, com frequência, descrita
teresses particulares e (como alegamos) contendo
adoração)
. De
como seu sofrimento (esp. nos Evangelhos, Atos
material produzido por seu raciocínio na carta.
e Hebreus; v. In, Ef, 7.2; In, Tr, prescr.; In, Fi, 9.2;
Assim, embora as passagens reflitam tradições
2CÍ, 1.2), mas IPedro o faz de modo exclusivo,
cristãs antigas, não se prestam à reconstrução de
até mesmo alterando fórmulas tradicionais (v.
estratos subjacentes de pensamento. Da forma
331
C risto , morte de ii i : A tos , H ebreus , C artas G érais , A pocalipse
que se encontram na carta, são confessionais na
gentios a segurança de que agora se tornaram
natureza e na forma e podem muito bem ter sido
povo de Deus e de que isso se deu por causa da
elaboradas com vistas à catequese.
morte de Cristo. Também estão implícitas noções
É necessário mencionar rapidamente o debate
de purificação e perdão (cf. Bn, 5.1), visto que a
em torno da descida de Cristo aos mortos, se ela
aspersão de sangue também relembra o Dia da
ocorreu após a morte ou após a ressurreição. Tal
Expiação (Lv 16; v. tb. a cerimônia da novilha
vez alguma forma da interpretação agostiniana
vermelha, Nm 19).
da passagem, embora não desfrute hoje de gran de prestígio, seja a mais satisfatória
(F
e in b e r g
e
Na primeira confissão cristológica ( 1Pe 1.18-21) a referência ao sangue de Cristo como o de um
por ser a que explica melhor
“cordeiro sem defeito e sem mancha” (IPe 1.19)
a referência a Noé e à evangelização dos mor
faz lembrar o sistema sacrificial (e.g., Lv 9.3), e
tos em IPedro 4.6. Essa interpretação encontra
em seu aspecto pessoal e moral apresenta asso
grande apoio na menção ao Espírito de Cristo nos
ciação com 0 Servo Sofredor de Isaías 53. Enten
profetas (IPe 1.11), algo singular entre os autores
der a morte de Cristo como adunação substitutiva
do
Nessa leitura. Cristo não desceu ao inferno
está logo abaixo da superfície da imagem bíbUca
ou ao mundo inferior, mas, pelo Espírito, esteve
que a passagem evoca. 0 foco da confissão acha-
presente na pregação de Noé. Os “espíritos em
se no contraste entre a conduta inútil do mun
prisão” são as pessoas que foram desobedientes
do pagão e o “precioso sangue [...], o sangue de
na ocasião (IPe 3.20; cf. Hb 12.23).
Cristo”.
G
rudem;
n t
.
3.1
cf.
D
alto n] ,
O sofrimento de Cristo como adunação.
A soteriologia é profunda. Como observa L.
Em contraposição a Hebreus, o tema do perdão
Goppelt (p. 117), a “herança ancestral da condu
não é desenvolvido em IPedro. Assim mesmo, é
ta vazia” (IPe 1.18) descreve sociologicamente
sem dúvida imi elemento essencial da confissão
o que a tipologia Adão-Cristo (Rm 5.12-21) afir
acerca de Cristo que Pedro e seus leitores parti
ma teologicamente. Aqui existe algo além de um
lham e sobre a qual ele desenvolve seu raciocí
exemplo negativo que possa ser seguido ou rejei
nio. A importância da cruz como meio de perdão
tado. A humanidade está presa a um padrão de
é visível na saudação inicial, que descreve o ob
vida vazio e repreensível. No entanto, a obra re
jetivo salvífico derradeiro de Deus para seu povo
dentora de Deus em Cristo suplantou a condição
como “a obediência e a aspersão do sangue de
humana decaída. Antes da fundação do mundo,
Jesus Cristo”.
Cristo e sua obra salvadora foram determinados
O primeiro elemento do objetivo divino, a
{proginõskein], e esse sacrifício inestimável foi
“obediência” , descreve de forma eloquente a fé
feito por aqueles cujos feitos eram inúteis. Entre
(v. IPe 1.22), aqui representada como ato básico
tanto, uma vez que o juízo imparcial de Deus está
de obediência (IPe 1.7-9; ao contrário de
a r l in g -
diante dos cristãos, estes devem se portar com
com a ideia subjacente de que a fé deve se
temor reverente, sabendo o preço incalculável da
refletir em conduta santa (IPe 1.14). Essa ma
redenção e a eficácia que esse custo implica. Aqui
neira de falar talvez seja por influência paulina,
0 imperativo resulta do indicativo, tão paradoxal
pois o termo “ obediência” é pouco frequente fora
quanto em Paulo. A força sustentadora da exorta
de suas cartas. E o emprego de “ obediência” no
ção é a fé, não a mera gratidão (IPe 1.21), assim
ton) ,
G
sentido de “fé” é inconfundivelmente pauUno.
como a fé, que acertadamente tem grande estima
No início da carta, surge um padrão que é proe
por Cristo e o ama, é introduzida na carta como a
minente nas cartas de Paulo e comum ao
mais importante virtude dos cristãos (IPe 1.5-9).
nt
em
geral. O perdão concedido pela cruz não é uma
O tema da morte de Cristo como adunação
dádiva isolada: está ligado à nova obediência. A
substitutiva reaparece explicitamente na segun
carta concentra-se na nova obediência, mas sua
da confissão, mais longa (IPe 2.21-25). “Cristo
base é o perdão operado pela morte de Cristo.
[...] sofreu por vós” é o que Pedro diz aos leitores
A segunda expressão, que tem nuanças da
(IPe 2.21), ideia expandida na confissão seguinte.
cerimônia pactuai descrita em Êxodo 24 (cf.
Essa confissão é elaborada em torno de Isaías 53 e
Hb 9.13; 10.22; 12.24), transmite aos leitores
representa o uso mais extenso da passagem no
332
nt
.
C risto , morte de iii ; A t o s , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
Tematicamente, é semelhante à citação de Isaías 53.7,8 em Atos 8.32,33, mas vai além justamente
3.2
0 sofrimento de Cristo como padrão para
o procedimento cristão. Já observamos que em
na sua referência à natureza substitutiva da morte
IPedro a morte de Cristo é interpretada como
de Cristo e dos benefícios salvíficos dessa morte;
adunação pelo pecado em conexão com a nova
‘‘ [Cristo] levou nossos pecados em seu corpo so
obediência dos crentes e também como o funda
bre o madeiro” (IPe 2.24; Is 53.12). A expressão
mento dessa obediência. Também observamos
“ sobre o madeiro” reflete a terminologia bíblica
que 0 interesse da carta é basicamente exortativo,
empregada pelos cristãos primitivos para desig
como se vê nas frequentes referências ao “pro
nar a vergonha associada à cruz, refletindo em
cedimento” (o substantivo e o verbo aparecem
particular a maldição de Deuteronômio 21.23 (v.
sete vezes).
At 5.30; 10.39; G13.13; cf. Js 8.29, l x x ; Et 7.9, l x x ) .
Na primeira confissão, essa ideia aparece de
A ideia subjacente a IPedro 1.2 e 1.19 torna-
forma direta, mas não elaborada. A morte de Cris
se explícita agora. Cristo, o Servo sem pecado de
to proporcionou redenção (IPe 1.18) e liberdade
Isaías 53, carregou na cruz os pecados dos que
da escravidão, que, pelo contexto, recorda não
creem. Mais que na confissão anterior, a atenção
apenas práticas vigentes à época para conquistar
concentra-se no novo padrão de procedimento
a manumissão, mas também especificamente o
que a cruz de Cristo assegurou a seu povo. Entre
êxodo do Egito. Estão presentes associações não
tanto, como antes, o caráter substitutivo e único
só com 0 sistema sacrificial (e o Servo Sofredor
da morte de Cristo propicia a base para a exor
de Is 53), mas também com o cordeiro pascal
tação, de modo que o sofrimento de Cristo não
(Êx 12). Escravidão é escravidão ao procedimento
é apenas um exemplo. A ideia de perdoar que
pecaminoso, do qual o “sangue” de Cristo garan
aparece no modo indicativo em IPedro 2.21,24
te libertação.
é estendida ã vida transformada e reunida com
Como já assinalamos, com o avançar de ên
verbos no modo imperativo nas declarações que
fases, a segunda confissão (IPe 2.21-25) faz do
funcionam como síntese. Ele carregou nossos
padrão do sofrimento de Cristo seu tema básico.
pecados, “para que, mortos para o pecado, pu
Talvez com um olhar retrospectivo para a heran
déssemos viver para a justiça” (IPe 2.24). Numa
ça ancestral corrompida (IPe 1.18), Pedro mostra
notável semelhança com Paulo, Pedro entende
que Cristo deixou um modelo, o qual os cren
que a morte de Cristo inclui a morte dos crentes
tes devem seguir, acompanhando suas pegadas
para o pecado, que dá origem a uma nova vida.
(IPe 2.21). A descrição seguinte, da mansidão
Nas palavras de N. Dahl, isso não é imitação, mas
de Cristo diante do sofrimento, deixa claro que o
conformação. Confirma-se aqui a afirmação de
discipulado consiste em conformidade com o ca
Goppelt (p. 206-7) de que a interpretação da mor
ráter de Cristo. Pedro não pressupõe que todos os
te de Cristo da perspectiva de uma mera imitatio
cristãos sofrerão crucificação ou que todos serão
não surgiu senão no século ii.
perseguidos (IPe 1.6; 3.14; 4.14-16). Ele espera
A terceira e sucinta descrição da morte de
que, se possível, evite-se a perseguição, e não os
Cristo como adunação vicária aparece na breve
estimula a procurar maus-tratos ou o martírio,
confissão encontrada em IPedro 3.18. A expres
0 contrário do que Inácio fez, por exemplo. No
são “ Cristo morreu uma única vez pelos pecados
entanto, pressupõe que não se pode fugir a todo
\peri hamartiõn] ” reflete, mais uma vez, a lingua
sofrimento e que os chamados a suportá-lo de
gem sacrificial (e.g., Lv 16.3,5,9,
A referên
vem agir da mesma forma que Cristo. A longa
cia, em seguida, ã morte do “justo pelos injustos”
referência ao Servo Sofredor de Isaías 53 está fun
(cf. Is 53.11) complementa a ideia de substitui
damentada aqui e é expandida com a recusa de
lxx) .
ção. Como nas confissões anteriores, Pedro inter
Cristo em retahar verbalmente; “Ao ser insultado,
preta a cruz sob a ótica sacrificial, como um ato
não retribuía o insulto, quando sofria, não ame
adunatório que traz graça e perdão. 0 gritante
açava”. Pelo contrário, confiava a vida a Deus, o
contraste moral entre Cristo e os que ele resgatou
justo juiz (IPe 2.23).
reforça o tema contínuo do mérito do sofrimento
Nessa
de Cristo.
virtude
extraordinária.
Cristo
deu
exemplo para os crentes (cf. IPe 3.9,10; 4.19). No
333
C risto , morte de iii ; A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
entanto, como observamos, Pedro não exige mera
Cristo” (IJo 2.22; 5.1,5) e que “Jesus Cristo veio
imitação; a salvação é entendida como conforma
em carne” (IJo 4.2). Essa negação implícita da
ção ao caráter de Cristo; “Pelas suas feridas fos
necessidade da cruz aparece lado a lado com a
tes sarados” (IPe 2.24). Cristo permanece ativo,
afirmação do grupo rebelde de que se dizia sem
guardando e guiando seu povo, “porque vivíeis
culpa e sem pecado (IJo 1.8-10). Respondendo
como ovelhas desgarradas, mas agora retornastes
a isso, 0 autor insiste não apenas na confissão
ao Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). Por
de que Jesus é o Cristo, mas também no papel
meio da cruz. Cristo garantiu que seu povo vies
fundamental que a morte de Cristo desempenha
se a ser completo, e essa completude consiste na
na obtenção da salvação. Em particular, a refe
conformidade a seu justo caráter (v. IPe 2.20).
rência inicial e final ã cruz em IJoão tratam desse
3.3
O sofrimento de Cristo e a glória escato erro, especificando que o “ sangue” de Jesus Cris
lógica De uma forma que lembra Lucas-Atos (v.,
to é essencial à confissão cristã (IJo 1.7; 5.6,8).
e.g., Lc 24.26,46), Pedro descreve o interesse dos
Percebe-se aqui certa ênfase na realidade física da
profetas sobre “os sofrimentos que sobreviriam a
morte de Cristo e a seu efeito salvador, apresen-
Cristo e a glória que viria depois desses sofrimen
tando-o como sacrifício adunatório.
tos” (IPe 1.11). A rejeição a Cristo por parte dos
0 fato de a primeira das referências ã mor
seres humanos foi suplantada pelo prazer de Deus
te adunatória de Cristo estar no início da carta
em Cristo e em seus méritos (IPe 2.4,19; 3.4,12).
(IJo 1.7—2.2) assinala a importância desse tópico
Embora morto na carne, foi vivificado pelo Espírito
para o discurso todo. A linguagem litúrgica surge
(IPe 3.18) e exaltado ã direita de Deus (IPe 3.22).
imediatamente, o que transmite associações com a
Os cristãos que partilham de seu sofrimento de
morte violenta de Cristo; “0 sangue de Jesus, seu
vem, portanto, se regozijar, pois essa dificuldade
Filho, nos purifica de todo pecado” (cf. Lv 8.15;
prenuncia bênção escatológica para eles por oca
16.30). O autor tem em vista a restauração do ser
sião da revelação da glória de Cristo (IPe 4.13;
humano, impulsionada pelo perdão dos pecados,
1.7). Assim como a excelência moral de Cristo re
como sugere ao elaborar a ideia em IJoão 1.9 e ao
cebeu a recompensa divina, os que partilham do
desenvolver o entendimento de que a obra de Cris
sofrimento dele terão parte em sua glória.
to nos liberta do pecado (IJo 2.1,2; 3.1-10).
4. IJoão
conclui que ela é hilasmos pelo pecado, em tor
A morte de Cristo em seu significado sacrificial e
no do que tem havido considerável debate (como
adunatório é também fundamental para a mensa
também no caso do vocábulo afim hilaskesthai,
A interpretação sacrificial da morte de Cristo
gem dessa carta. O autor escreve a uma comuni
Hb 2.17;
dade de fé confusa e exausta que foi prejudicada
transmite apenas a ideia de expiação pelo peca
por alguma forma de docetismo. As afirmações
do, ou também a de propiciação da ira divina?
do grupo desobediente e a condição da comu
Embora a ira apareça nos antecedentes, nessa
nidade remanescente devem ser testadas com
carta a morte não é um efeito impessoal, mas
base no testemunho apostólico da encarnação e
0 resultado do juízo divino (IJo 2.28; 4.17,18),
da morte adunatória de Cristo. A cruz constitui
consequência da desobediência e da increduli
a revelação escatológica do amor de Deus, que
dade (IJo 2.17; 3.14). Cristo é nosso Advogado
V.
2.2.2 acima). Será que a expressão
deve determinar a confissão e a conduta dos
(paraklêtos) junto ao Pai (IJo 2.1), e a defesa bro
que lhe pertencem. A fé e a obediência estão
ta implicitamente do fato de ele ser o hilasmos
inerentemente ligadas entre si não por simples
pelo pecado (IJo 2.2). Por isso, é melhor enten
ética de obrigação ao padrão de comportamen
der que 0 termo inclui o sentido de propiciação
to de Jesus, e sim, mais fundamentalmente, no
com a ideia de purificação, que está obviamente
ato divino de “ gerar” os crentes e na dádiva do
presente (IJo 1.7,9).
Espírito (IJo 2.29; 3.24). O mundo e as obras 4.1
De novo, assim como ocorre com todos os de mais escritos do
do Diabo foram vencidos na cruz (IJo 3.8; 5.4).
nt
,
Deus é tanto o sujeito quanto
A morte de Cristo como sacrifício propi 0 objeto da morte adunatória de Cristo. Ele é fiel e
ciatório. Os adversários negam que “Jesus é o
334
justo para perdoar nossos pecados e nos purificar,
C risto , morte de íii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
ao mesmo tempo que Cristo é nosso Advogado
alguém distinto de seus destinatários. Ele viu a
diante dele (IJo 1.9; 2.1). Ele enviou seu Filho
“ vida eterna” (IJo 1.2,3), mas eles, não. Apenas
como propiciação [hilasmos] por nossos pecados
ouviram falar dela (IJo 1.5). Mesmo a visão do
(IJo 4.10).
autor é apenas proléptica. Ele não viu a Deus
A referência final à morte de Cristo torna a
nem a Cristo “como ele é”, em sua glória es
empregar o termo “ sangue”, relembrando a inter
catológica (IJo 3.2; 4.12). Entretanto, viu e dá
pretação inicial de sua morte como sacrifício adu
testemunho de que o Pai enviou o Filho como
natório e, desse modo, transmitindo conotações
Salvador do mundo (IJo 4.14). E, ao enviar seu
salvíficas que reforçam implicitamente a afirma
tinico Filho para que “ o mundo” vivesse. Deus
ção do autor de que Jesus Cristo veio “não só pela
manifestou seu amor (IJo 4.9). Em IJoão, por
água, mas pela água e pelo sangue” (IJo 5.6),
tanto, a revelação é de caráter objetivo, não uma
que aqui e em IJoão 5.8 muito provavelmente se
questão de iluminação do interior. “Ver” ocorre
refere ao batismo de Jesus e ã sua morte na cruz
apenas à medida que o testemunho é ouvido,
(v.
Jesus foi confirmado como o Cris
crido e obedecido (IJo 2.7-11,24; 4.6; 5.5-12).
to não apenas no batismo, mas também em sua
Em última instância, a recepção dessa revelação
S m alley).
crucificação. Sua morte, longe de desquaUficá-lo
não depende de capacidade humana: é obra di
como Cristo, é essencial para o testemunho que
vina, um ser gerado por Deus (IJo 5.1), ungido
Deus dá a respeito dele.
por ele (IJo 2.20,27) e que recebeu o Espírito
A morte de Cristo é um sacrifício adunatório
(IJo 4.13).
não apenas para os que creem, mas também para
A cruz é a revelação do amor de Deus e do
“o mundo”. “ Mundo” não é uma palavra de sen
amor em si. E revela esse amor pela morte em
tido neutro, mas transmite a ideia da hostilida
nosso lugar, por nossos pecados. Conhecemos o
de que a humanidade caída tem contra Deus e
amor por meio da entrega que Cristo fez de sua
seus propósitos (e.g., IJo 2.15-17; 3.1,13; 4.4). 0
vida por nós na cruz (IJo 3.16; cf. Mc 10.45;
alcance da adunação contrasta com o aparente
Is 53.10). Deus manifesta seu amor ao enviar seu
exclusivismo do grupo que havia deixado a igre
único [monogenês] Filho como sacrifício propicia
ja. No entanto, IJoão é decididamente irredutível
tório [hilasmos] por nossos pecados (IJo 4.9,10).
em insistir na fé em Jesus e na crença de que
A natureza radical dessa afirmação procede, de
o mundo inteiro está sob o poder do Maligno
um lado, da ideia que o autor tem de que “o
(IJo 5.19). Somam-se a essa crença claras afir
mundo” está cheio de ódio (IJo 3.11,12) e, de ou
mações sobre o papel derradeiro de Deus na sal
tro, do fato de que Cristo deu sua vida por esse
vação (e.g., IJo 3.9; 4.4). O autor não demonstra
mundo, que o odeia (IJo 2.2). 0 amor como reah
nenhum constrangimento com essa justaposição.
dade entre os que creem não surge de nosso amor
0 Deus revelado na oferta de perdão na cruz é,
por Deus, mas do amor dele por nós manifesto na
ainda assim, o Deus que livre e soberanamente
morte adunatória de Cristo por nossos pecados
oferece o novo nascimento.
(IJo 4.10). Fora da cruz, um amor dessa natureza
4.2
A morte de Cristo como revelação esca permaneceria desconhecido. Por meio da cruz,
tológica. Em IJoão, a cruz é predominantemente
ele raiou no mundo como uma reahdade escato
interpretada como revelação, como fica evidente
lógica (IJo 2.8-11).
na ênfase do parágrafo inicial (IJo 1.1-4) e nos
0 amor de Deus revelado na cruz impõe aos
temas correntes: verdade, conhecimento e reve
crentes uma obrigação moral. “ Se Deus nos amou
lação. Essa perspectiva não diminui sua condi
assim, nós também devemos amar uns aos ou
ção de acontecimento adunatório. Na condição
tros” (IJo 4.11). No entanto, a ética de IJoão
de sacrifício pelos pecados, a morte de Jesus na
nasce, em última instância, das realidades esca
cruz é 0 acontecimento revelador decisivo, a ma
tológicas introduzidas pela cruz. A conduta re
nifestação escatológica de Deus, de seu amor e
vela se alguém conhece a Deus, se a pessoa está
da vida eterna.
“nele”. Deus está ativo na revelação de seu amor,
A dimensão histórica está ligada a essa in terpretação da cruz como salvação. 0 autor é
de modo que a perfeição do amor se encontra na recriação do ser humano (IJo 2.5; 4.17,18).
335
C risto , morte de iii : A tos , H ebreus, C artas G érais , A pocalipse
O caráter escatológico da cruz é aparente em
disso, como vimos nos demais escritos do
nt
,
é
outras referências (IJo 3.14; 5.4) e proporciona
na condição de sacrifício adunatório que a morte
a estrutura essencial para as declarações aparen
de Cristo alcança o triunfo divino. Não apenas
temente conflitantes sobre a relação dos crentes
a morte e a vida, a derrota aparente e a vitória
com o pecado. Como já vimos, na declaração ini
impressionante estão justapostas na carta, mas
cial da carta, a contínua confissão dos pecados é
também a divindade e a humanidade de Cristo.
0 sinal da verdadeira espiritualidade (IJo 1.9,10). Contudo, 0 autor afirma que não é possível que
simples reversão do destino. Cristo morreu como
o crente peque (IJo 3.6,9) e baseia a declaração
Deus e como homem.
Por isso, 0 paradoxo é mais profundo que uma
em parte na cruz: "Ele se manifestou para tirar os
5.1 A morte de Cristo como a morte de Deus.
pecados; e não há pecado nele” (IJo 3.5). A ideia
Embora a divindade de Cristo e sua morte não
seguinte, de “permanecer nele” (IJo 3.6), sugere
apareçam lado a lado em nenhuma outra passa
que a expressão “não há pecado nele” se refere
gem de Apocalipse, o emprego dessa justaposição
ao estado escatológico trazido por Cristo.
na visão inicial e na mensagem à igreja de Esmirna
“Tirar” pecados muito provavelmente signifi
(Ap 2.8) esclarece de modo significativo o drama
ca tanto o perdão quanto a recriação restauradora
que se desemola, particularmente a adoração do
da vida (v. esp. IJo 3.5). Com o perdão conquis
Cordeiro (Ap 5.8-14). 0 fato de o Cordeiro ser dig
tado na cruz, chegou o estado escatológico em
no de receber adoração é resultado não apenas de
que 0 poder do pecado foi abolido pelo perdão.
sua morte redentora, mas também, sutil e impli
Isso corresponde a IJoão 3.8, em que se diz que
citamente, de seu ser. Cristo é “o primeiro e o lil-
0 propósito da encarnação é “ destruir as obras
timo” (1.17; 2.8; 22.13), título de autossuficiência
do Diabo”. Agora se diz que a semente divina
e singularidade divinas (cf. Is 43.10; 44.6; 48.12).
permanece com os que creem (IJo 3.9) assim
Ele é “o que vive”, expressão empregada para
como ele permanece com eles (IJo 3.6). Da pers
descrever o que está sentado no trono (Ap 4.9,10;
pectiva escatológica, a dos efeitos da cruz, foi
cf. Ap 10.6; Eo 18.1). Apesar disso, ele morreu e
concedida a “inabilidade para pecar”. Essa situa
tornou a viver (Ap 1.18; 2.8) e agora vive para
ção, porém, é proléptica. Os crentes vivem entre
sempre e tem autoridade sobre a morte (Ap 1.18),
as épocas. Por isso, devem continuar a confessar
com o que encoraja a igreja sofredora (Ap 2.9-11).
seus pecados. Mas também devem viver ã luz
A relação paradoxal concentra a atenção em sua
da consumação e purificar-se, assim como Cristo
morte, explicável apenas como ato redentor.
é puro (IJo 3.3). Está implícito na referência ã
5.2 A morte de Cristo como redenção e triun
semente divina que as realidades escatológicas
fo. Em Apocalipse, na maioria das vezes a morte
penetraram o presente e marcam indelevelmente
de Cristo é apresentada em seu significado salví
a conduta daquele que crê.
fico e na linguagem sacrificial. Como em outros
Como realidade escatológica, a morte de Cristo
lugares, a morte de Cristo é seu “ sangue” que re
representa um triunfo sobre o Diabo e a destrui
dime do pecado (Ap 1.5; 7.14) e adquire um povo
ção de suas obras (IJo 3.8), um triunfo parti
para Deus (Ap 5.9; cf. Ap 14.3,4). Os termos de
lhado pelos que creem (IJo 2.12,14; 4.5). Além
aquisição, emprestados do ambiente da escrava
do mais, a vitória consiste na confissão de que
tura, expressam que Deus reivindica os redimidos
Jesus é o Filho de Deus, inclusive o fato de
para si. A cruz os liberta para que desempenhem
que “veio pela água e pelo sangue”, de modo que
o papel de governantes e de sacerdotes, para os
o perdão operado mediante a cruz está por trás
quais Deus os nomeou (Ap 1.6; 5.10). A imagem
do triunfo, conexão também sugerida pelo para
de Cristo como o “Cordeiro que foi morto” asso cia ainda mais os termos de redenção e aquisição
lelo entre IJoão 3.5 e IJoão 3.8.
com a Páscoa e o Êxodo (Êx 12— 13; cf. ICo 5.7) 5. Apocalipse
e com 0 Servo Sofredor de Isaías (Is 53.7; cf.
Paradoxalmente, no Apocalipse de João, a cruz
At 8.32; IPe 1.19; Jo 1.29).
de Cristo é o caminho para seu senhorio e para
A frequente representação de Cristo como
0 reinado daqueles que lhe pertencem. Além
o Cordeiro ressalta a centralidade de sua morte
336
C ris to , m o rte de
iii:
A to s , Hebreus, C a rta s G era is, Apocaupse
salvadora em Apocalipse (Ap 5.6; passim). Em : of John. Garden City: Doubleday, 1982.
(a b .
uma justaposição irônica, o Cordeiro é apresen
Carrou , J. T. & Green, J. B. The death of Jesus in
tado antes como o Leão conquistador da tribo de
early Christianity. Peabody: Hendrickson, 1995. ■
Judá (Ap 5.5). Deus alcançou a vitória não me
Conzelmann, H. The theology of Luke. N ew York:
diante a força, mas mediante a fraqueza, na mor
Harper & Row, 1961. ■ Cullmann, O. The christo
te de Cristo. A violência e a opressão do mundo e
logy o f the New Testament Ed. rev. Philadelphia:
o Diabo só têm feito os propósitos divinos serem
Westminster, 1959. ■ Dalton, W. J. Christ’s procla
bem-sucedidos.
mation to the spirits: a study of 1 Peter 3:18—4:6.
Esses propósitos consistem na operação do
2. ed. Rome: Pontifical Biblical Institute, 1989.
perdão dos pecados, ideia inerente à linguagem
[AnBib, 23.) ■ Davids, P. H. The First Epistle of
sacrificial de ApocaUpse e que aparece de modo
Peter. Grand Rapids: Eerdmans, 1990.
notável no anúncio proléptico de triunfo em Apo
Denney, J.
&
[ n ic n t .]
■
Tasker, R. V. G., orgs. The death of
calipse 12.10-12. O reino de Deus chegou, porque
Christ. London: Tyndale, 1951. ■ Ehrman, B. D. The
o “acusador de nossos irmãos” foi expulso dos
orthodox corruption o f Scripture: the effects of ear
céus (Ap 12.10; cf. Jó 1.9-11). 0 Diabo, que se
ly Christological controversies on the text of the
opõe ao propósito salvador de Deus, trazendo
New Testament. Oxford: Oxford University Press,
acusações contra o povo de Deus por causa dos
1993. ■ Feinberg, J. S. 1 Peter 3:18-20, ancient
pecados deles, foi derrotado por meio do “ sangue
mythology and the intermediate state,
do Cordeiro” e pelo fiel testemunho acerca desse
p. 303-36, 1986. • Garlington, D. The obedience of
Cordeiro. Os que não creem estão sujeitos à ira de
faith. Tübingen: Mohr Siebeck, 1991. (iviiNr, 38.)
Deus e do Cordeiro (Ap 6.16,17; 14.9-11).
• G a rre tt,
w tj, v .
48,
S. R. The meaning of Jesus’ death in
O Cordeiro é digno de supremo louvor por
Luke. Word & World, p. 11-6, 1992. • Gebe, H. Es
causa de sua morte sacrificial (Ap 5.9-12). A exce
says on biblical theology. Minneapolis: Augsburg,
lência moral de seu ato estabelece distinção entre
1981. •
0 que ele fez e a inútação barata que, num feri
Hahn. Grand Rapids: Eerdmans, 1993. ■ G r a y s t o n ,
mento mortal, a besta faz desse ato (Ap 13.3,12).
K. Dying, we live: a new enquiry into the death of
5.3
G o p p e lt ,
L. A commentary on I Peter. Ed. F.
A morte de Cristo como destino dos cren Christ in the New Testament. N ew York: Oxford J. B. The death
tes. Uma gritante divisão entre crença e descrença
University Press, 1990. •
surge em Apocalipse. Ou se é seguidor da besta
of Jesus. Tübingen: Mohr Siebeck, 1988.
(Ap 13.3,4) ou do Cordeiro (Ap 14.4), sujeito à
33.) ■ ______ . The death of Jesus, God’s servant.
G reen ,
[w u n t,
hostilidade que ele enfrentou (Ap 12.17). A rela
In:
ção das igrejas com o Senhor ressurreto é a que
Lukan Jesus. Athenum Monographien/Theologie.
S y lv a ,
D. D., org. Reimaging the death of the
ele teve com o Pai durante seu ministério terreno
Frankfurt: Hain, 1990, p. 1-28.
(Ap 2.26-28; 3.21,22). São martirizados por causa
J.
do testemunho que dão (Ap 6.9-11; 12.10), assim
cross: atonement in New Testament & contempo
como ele foi martirizado pelo testemunho que deu
rary contexts. Downers Grove: InterVarsity, 2000.
B.
[ bbb,
73.)
• G reen ,
& B a k e r , M. D. Recovering the scandal of the
W. Christ preaching through Noah: 1
(Ap 1.5). E, de modo semelhante, participam do
■ G ru d em ,
triunfo do Cordeiro (Ap 7.17; 15.3-5; 19.1-20.15).
Peter 3:19-20 in the light of dominant themes in
Ver também c e ia r e iç ã o ;
S ervo
de
do
Senhor;
Jewish literature,
j u s t if ic a ç ã o ; r e s s u r
ch en ,
Javé.
tj,
v.
7, p. 3-31, 1986. •
H aen
E. The Acts of the Apostles: a commentary.
Philadelphia: Westminster, 1971. ■ H
ill,
D. Greek
G. Christus Victor: a histori
words and Hebrew meanings: studies in the se
cal study of the three main types of the idea of
mantics of soteriological terms. London: Cambrid
atonement. New York: Macmillan, 1969. •
ge University Press, 1967.
B ib u o g r a f ia . A
ulén,
B a il e y ,
[ sn tsm s,
5.) ■ H o o k e r , M.
D. P. Concepts of Stellvertretung in the interpre
D. Not ashamed of the gospel: New Testament in
tation of Isaiah 53. In:
terpretations of the death of Christ. Grand Rapids:
F arm er,
W. R., org. Jesus
and the Suffering Servant: Isaiah 53 and Chris
Eerdmans, 1995. ■
tian origins. Harrisburg: Trinity Press Internatio
and Galatians 3:15ff.: a study in covenant prac
nal, 1988. p. 223-51. ■ B r o w n , R. E. The Epistles
tice and procedure. NovT, v. 21, p. 27-96, 1979. ■
337
H
ughes,
J. J. Hebrews 9:15ff.
C ristologia i : Pa ulo
B. Sühne als Heilsgeschehen: Studien zur
ela não abrange o quadro inteiro da cristologia
Sühnetheologie der Priesterschrift und zur Wur
paulina. Na tentativa de aprofundar uma perspec
zel KPR im alten Orient und im Alten Testament.
tiva obtida por meio de um relato das facetas in
J a n o w s k i,
55.) •
dividuais da cristologia de Paulo, este verbete se
R. J. Luke 23;47 and the Lukan view of
concentrará na origem da cristologia paulina, em
Neukirchen; Neukirchener, 1982. K a r r is ,
{w
m ant,
D., org. Reimaging the
sua estrutura narrativa e no duplo foco da divin
death o f the Lukan Jesus. Athenum Monogra
dade e humanidade de Cristo. Também anahsará
Jesus’ death. In:
S y lv a , D .
a importância da cristologia de Paulo para a igreja
phien/Theologie. Frankfurt: Hain, 1990. p. 68-78. [bbb,
73.) ■ K o d e l l ,
J.
Luke’s theology of the death
primitiva e a contribuição inconfundível da cris
org. Sin, salvaäon and the
tologia de Paulo em comparação e em contraste
Spirit. Collegeville; Liturgical Press, 1979. p. 221-
com outras cristologias canônicas. (Quanto à cris
30. ■ M
tologia dos Evangelhos, o leitor deve consultar os
of Jesus. In: D u r k e n ,
D .,
I. H. The Epistles of John. Grand
ar sh all,
Rapids; Eerdmans, 1978.
{ n i c n t . ) ■ _________
verbetes sobre cada Evangelho.)
. Luke:
historian and theologian. Exeter; Paternoster,
1. As origens da cristologia de Paulo
1970. ■ M o e s s n e r , D. P. “The Christ must suffer” ,
2. A estrutura narrativa da cristologia de Paulo
the church must suffer; Rethinking the theology of the cross in Luke-Acts.
sb lsp,
v.
3. A divindade e a humanidade de Jesus
29, p. 165-95,
Cristo na cristologia de Paulo
1990. ■ M o r r i s , L. L. The apostolic preaching of the
4. 0 impacto e a influência da cristologia de
cross. Grand Rapids: Eerdmans, 1965. ■ ______ . The atonement: its meaning and significance. Downers Grove; InterVarsity, 1983. ■ N
eyrey,
Paulo
J. H.
5. Aspectos exclusivos e comuns da cristolo gia de Paulo
The Passion according to Luke. New York; Paulist, 1985. ■ Peterson, D. Hebrews and perfection: an examination of the concept of perfection in the
1. As origens da cristologia de Paulo
“Epistle to the Hebrews”. Cambridge; Cambridge
Existem vários possíveis pontos de partida para
University, 1982.
analisar as fontes/origens da cristologia de Paulo.
[sntsm s,
47.) ■ S m a l l e y ,
3 John. Waco; Word, 1984.
(w s c .)
S. S.
1, 2,
1.1
■ S t o t t , J. R. W.
Judaísmo. Uma abordagem é tentar extra
The cross of Christ. Downers Grove: toterVarsity,
polar, partindo dos documentos do
1986. ■ T a y l o r ,
tes extracanônicas, as crenças do Paulo fariseu
V.
The atonement in the New Testa
nt
e de fon
ment tearhing. London; Epworth, 1958, ■ T u c k e t t ,
(v.
C.
[S.l.: s.n., s.d.].
Quanto a cristologia de Paulo foi devedora a suas
M .
Atonement in the
n t.
abd
.
P
au lo ,
o
Ju d e u )
acerca do Messias vindouro.
1. p. 518-22. ■ T y s o n , J. B. The death of Jesus in
crenças messiânicas pré-cristãs? Essa empreitada,
Luke-Acts. Columbia; University of South Carolina
contudo, envolve um imenso volume de conjectu
Press, 1986. ■ V i e l h a u e r , P. On the "Paulinism” of
ras não apenas sobre a fé messiânica do farisaís-
Acts. In:
L. E. &. M a r t y n , J. L., orgs. Studies
mo anterior a 70 d.C., mas também sobre o uso
in Luke-Acts. Nashville; Abingdon, 1966. p. 33-
peculiar que Paulo faz de sua herança. (Quanto
50. ■ W
à complexidade dos dados acerca dos judaísmos
V.
K eck,
a lla c e ,
R. S. The atoning death of Christ.
Westchester; Crossway, 1981. ■ W
ilc o x , M .
“Upon
the tree” — Deut 21:22-23 in the New Testament. jbl,
V.
dos dias de Paulo, v.
N
eusner
et al.) Infelizmente,
além de umas poucas referências aqui e ah, Paulo quase nada informa de suas crenças pré-cristãs
96, p. 85-99, 1977. M .
A.
sobre o Messias. O máximo que se pode pressu
S e if r id
por, a julgar por textos como Romanos 9.5, é que C r i s t o l o g ia
i:
ele deve ter acreditado num Messias davídico que
P aulo
Não raro a cristologia pauhna tem sido estuda
viria como homem. Embora a dívida de Paulo
da sob a designação dos bem conhecidos títulos
para com o messianismo judaico e, em particular,
que Paulo empregava — Cristo, Senhor, Filho de
o messianismo farisaico tenha sido certamente
Deus, Salvador — e outras conhecidas analogias,
maior que isso, os dados para descobrir o grau ou
como Adão e Sabedoria. No entanto, por mais im
a natureza dessa dívida não estão disponíveis (v.,
portante que seja essa nomenclatura cristológica.
porém,
338
H
engel,
1991).
C ristologia i : Paulo
1.2 Helenismo. Outro método para descobrir as
declarações de Paulo acerca de seu chamado/
origens do pensamento cristológico de Paulo tem
conversão (v.
sido a abordagem religionsgeschichtliche ("história
base nesses dados, é possível chegar a conclusões
das religiões”). Talvez o exemplo máximo e mais
sobre a forma como essa experiência, junto com
influente dessa abordagem seja a obra clássica
0 contato de Paulo com antigas confissões cristãs,
Kyrios Christos, de Bousset (1913). Nela, a cristolo
pode ter moldado sua cristologia.
P au lo ,
co nve r são e c h a m a d o de)
. Com
gia de Paulo e da igreja primitiva é comparada às
A passagem de Gálatas 1.11-23 oferece a infor
ideias do mundo greco-romano, particularmente
mação mais clara e provavelmente a mais antiga
àquelas encontradas nas várias formas de pen
da parte de Paulo a respeito de sua conversão e
samento religioso pagão. Por exemplo, supõe-se
das consequências imediatas desse acontecimen
que Paiüo tenha se apropriado do título kyrios
to. Nessa passagem, Paulo é inflexível ao afirmar
(“Senhor”), tomando-o emprestado do paganis
que não recebeu seu evangelho por meio de seres
mo, refletindo desse modo a influência helenista
humanos, que ele não é de origem humana nem
no pensamento cristão primitivo. Entretanto, uma
resultado de alguma instrução que tenha recebi
premissa subjacente a essa abordagem pressupõe
do de homens. Pelo contrário, Paulo afirma que
uma distinção radical entre o helenismo e o ju
recebeu seu evangelho mediante uma revelação
daísmo palestino, teoria que foi seriamente desa
direta da parte de Deus. Deve se destacar que
bonada pela obra de M. Hengel e outros
Paulo está basicamente defendendo a fonte e o
(H
engel,
1974). Pesqtúsas têm mostrado, por exemplo, que
conteúdo de seu evangelho, não sua conversão
documentos como Eclesiástico e o corpus macabeu
a Cristo, e isso é importante para exphcar a di
atestam a influência do helenismo sobre o pensa
ferença observada entre esse relato e a narrativa
mento judaico da Palestina a respeito de Deus e de
de Atos, particularmente os capítulos 9 e 22. Va
outras questões religiosas bem antes da era cristã.
mos supor, para entender o raciocínio, que Atos
Entretanto, afora essas considerações mais
forneça alguns dados confiáveis sobre a questão
gerais, há indícios de que o título kyrios passou
do chamado/conversão de Paulo. Nas cartas de
a ser usado num capítulo antigo no surgimento
Paulo e no terceiro relato de Atos sobre sua con
da igreja e não foi produto da helenização pos
versão/chamado (At 26), fica claro que Paulo não
terior do cristianismo. O grito aramaico Marana
entendia que sua comissão, missão e mensagem
tha: “Vem, Senhor!” (ICo 16.22), que sem dúvida
procedessem de fonte humana. Não há nenhu
remonta aos cristãos palestinos de fala aramaica
ma passagem que mencione uma instrução cris
ou aos cristãos judeus biUngues de Antioquia,
tã entregue a Saulo antes de sua experiência na
mostra que, antes da redação das cartas remanes
estrada de Damasco, e, como Atos 26 deixa cla
centes de Paulo, Jesus era invocado e reconhe
ro, Ananias não foi a fonte última da comissão
cido como o Senhor divino que regressaria para
e missão de Paulo. Os três elementos são iden
seu povo. Se os primeiros cristãos acreditassem
tificados em seu encontro com o Senhor exalta
que Jesus não passava de um simples e falecido
do. Essa ideia é igualmente clara em Atos 9.15 e,
mestre judeu da Palestina, esse tipo de expressão
em grau menor, mas assim mesmo significativo,
jamais teria surgido (cf.
em Atos 22.14.
M
oule
e
L ongenecker)
.E
sua preservação em aramaico, com transhteração
1.3.1
“O evangelho de Cristo". Para Paulo, a
em grego, confirma o lugar reverente que ocupou
verdadeira questão em Gálatas não é provar que
na devoção que os primeiros cristãos tinham por
ele é um cristão autêntico, nem mostrar que rece
Cristo (v.
beu uma incumbência missionária, nem mesmo
adoração).
1.3 Conversão/chamado de Paulo e a tradi
identificar a fonte do
evang elh o
paulino: a questão
ção da igreja primitiva. Por motivos como os
é 0 conteúdo de seu evangelho. Em Gálatas 1.7,
que acabamos de apresentar, as pesquisas de
Paulo identifica seu evangelho como “o evange
hoje sobre a origem da cristologia paulina têm
lho de Cristo” , um evangelho que seus adversá
descoberto uma abordagem mais promissora no
rios na Galácia procuravam distorcer. A expressão
exame de confissões cristológicas primitivas in
“evangelho de Cristo” pode ser entendida como
seridas nas cartas de Paulo e na exploração das
“0 evangelho que vem da parte de Cristo” ou “o
339
C ristologia i : Paulo
evangelho do quai Cristo é o conteúdo”. A dife
verdadeiras. Com base no que diz em 1Corín
rença é significativa, e uma pista de seu significa
tios 9.1 — “ Não vi Jesus, nosso Senhor?” (cf.
do para Paulo encontra-se no contexto imediato,
ICo 15.8) — , sabemos que Paulo chegou a essa
quando Paulo diz que Deus “ se agradou em reve
conclusão, no momento de sua conversão/cha
lar seu Filho em mim” {01 1.15,16). Paulo apela
mado ou mais tarde. Na mente de Paulo, cer
a uma revelação cujo conteúdo foi o “ Filho de
tas coisas eram necessariamente consequência
Deus”. Provavelmente esse é também o significa
dessa conclusão. Se depois de sua morte Jesus
do de “evangelho de Cristo” em Gálatas 1.7. Nes
havia sido exaltado nos céus, então com certe
se caso, é relevante para esse argumento que, nos
za isso significava que as afirmações feitas por
relatos de Atos 9 e 22, Ananias não ensine a Saulo
Jesus, ou pelo menos as afirmações a respeito
a respeito de Jesus Cristo. Pelo contrário, em Atos
dele, haviam sido confirmadas. Por isso, em Ro
9 ele lhe diz que se levante, receba a vista e seja
manos 1.4, Paulo diz que Jesus foi justificado
batizado, ao passo que em Atos 22 Ananias expõe
como Filho de Deus (ou designado para sê-lo),
0 significado da comissão de Paulo. De uma for
em poder, por meio de sua ressurreição dentre
ma ou de outra, ã luz da palavra do Senhor que
os mortos (v.
veio a Ananias em Atos 9.15,16, provavelmente
rejeitou a afirmação de que era o Messias, Paulo
devemos entender que Ananias está entregando
pode ter chegado ã conclusão de que, se Jesus
uma palavra profética a Paulo, não dando instru
estava vivo nos céus, então devia ser o ungido
ção ou conselho humanos.
de Deus. Por que outro motivo Deus justificaria
r e s s u r r e iç ã o
).
Visto que Jesus não
Além do mais, não importando o que Paulo
alguém que havia morrido por crucificação, uma
pretendia dizer com “ o evangelho de Cristo”,
morte que, ã luz de Deuteronômio 21.22,23, sig
ele tinha consciência de que após sua conver
nificava que o crucificado estava sob maldição?
são recebera de outros cristãos (talvez até de
Gálatas 3.13 deixa claro que Paulo veio a crer
Pedro, quando visitou Jerusalém pela primeira
que Cristo se havia tornado maldição para os
vez; G1 1.18) tradições a respeito de Jesus e seus
que creem a fim de resgatá-los da maldição da
ensinamentos. E mal conseguimos acreditar que,
Lei (cf. ICo 12.3). Em suma, a experiência de
quando Paulo tornou a subir a Jerusalém “ depois
Paulo com o Jesus ressurreto e exaltado provo
de catorze anos” , Pedro, Tiago e João ficaram ou
cou uma reviravolta em sua avaliação de Jesus e
vindo silenciosamente enquanto ele lhes expunha
de sua crucificação.
o evangelho que havia proclamado entre os gen
Outrora, Paulo havia analisado Jesus de uma
tios (G1 2.1-10). É quase certo que, embora Paulo
perspectiva puramente humana (2Co 5.16) — um
possa dizer que “aqueles que pareciam ser impor
fracasso, talvez um tolo e certamente jamais o
tantes [...] nada me acrescentaram” , a conversa
Messias dos judeus. Mas, depois da experiência
deles com Paulo foi mais que um simples endosso
na estrada de Damasco, mudou de atitude. Agora
ã comissão de Paulo. A mensagem de Paulo em
via Jesus como o Filho de Deus. Isso não significa
Gálatas 2 é que seu “evangelho de Cristo” — as
que Paulo não tivesse uso para as tradições apos
ideias inconfundíveis e essenciais que recebeu di
tólicas a respeito de Cristo ou para as palavras
retamente de Cristo durante a experiência na es
reais de Jesus.
trada de Damasco ou em consequência de refletir
1.3.3
O Crísto do corpo. A segunda dedução
sobre essa experiência — permaneceu intocado.
de seu encontro na estrada de Damasco foi que
Que elementos teria aprendido em primeira mão
Jesus se identificava muito de perto com os cris
naquele encontro na estrada de Damasco?
tãos que Paulo vinha perseguindo. Como confir
1.3.2
O Crísto ressurreto e exaltado. Antes de ma Atos, o Senhor ressuscitado indagou a Saulo:
tudo, 0 apóstolo aprendeu que Jesus ainda esta
“ Saulo, Saulo, por que me persegues? [...] Eu sou
va vivo — embora de uma forma que transcen
Jesus, a quem persegues” (At 9.4,5; cf. At 22.7,8;
dia simples carne e sangue. Paulo era fariseu e
26.14,15). Isso deve ter indicado a ele que os
acreditava na ressurreição; assim, provavelmen
cristãos eram o povo de Deus. Se o Filho especial
te chegou logo ã conclusão de que as afirmações
de Deus estava se identificando tão de perto com
dos cristãos sobre a ressurreição de Jesus eram
aqueles a quem Saulo estava perseguindo, então
340
C ristologia i : Paulo
ele precisava reavaliar seu conceito de povo de
que tornava possível um estilo de vida agradável
Deus. Longe de fazer a vontade de Deus ao perse
a Deus. Além disso, a Lei, embora esplêndida,
guir cristãos, ele descobriu que estava se opondo
detinha um esplendor apenas parcial e evanes-
ao Cristo de Deus e, assim, lutando contra Deus. É
cente, que foi eclipsado por Cristo, a revelação
possível que a teologia paulina posterior do corpo
mais completa e definitiva da vontade e do ca
de Cristo (v.
ráter bons e perfeitos de Deus (cf. 2Co 3.4-18).
c o r po de
C r is t o )
deva algo
à
sua expe
riência na estrada de Damasco, onde aprendeu
Não é de surpreender que Paulo tenha se
que as aflições dos cristãos também eram as afli
concentrado em pregar a Cristo crucificado e
ções de Cristo (cf.
ressuscitado, pois em sua mente foram os acon
1.3.4
R o b in s o n ,
p. 58;
K
im
,
p. 252-6).
O Cristo salvador. Paulo pode ter apren tecimentos decisivos que haviam mudado a si
dido também que havia sido salvo ou convertido
tuação humana diante de Deus. Alguém que
na estrada para Damasco independentemente de
anteriormente houvesse estado sob a Lei e sua
suas ações e méritos. De fato, Cristo requisitou
condenação podia agora, em Cristo, achar-se sob
Paulo para si, a despeito das ações deste. Isso só
a graça e a justificação trazida por ela. Se a sal
podia levar à conclusão de que a salvação em seu
vação era pela graça, por meio da fé no Senhor
poder perdoador e transformador era uma dádiva
Jesus que foi crucificado e ressuscitado, nada
da graça (v.
1977, p. 190).
impedia quem quer que fosse — incluindo-se os
Por sua vez, a experiência da graça signifi
gentios — de ser salvo independentemente da Lei
cou que Paulo teve de assumir uma nova postu
mosaica. Para Paulo, a eliminação da Lei como
ra diante da Lei. Antes, a Lei havia sido o ponto
forma de alcançar uma posição correta diante de
central de sua vida rehgiosa perante Deus; agora.
Deus, como meio de ser salvo ou de operar sua
D
unn
,
Cristo e a experiência de Cristo eram os fatores in
salvação, havia derrubado a barreira entre ju
tegradores de sua vida. A totalidade da vida tinha
deus e gentios (cf. Ef 2.14,15). Se a fé no Senhor
de ser vista pelos olhos de Cristo, não pelas lentes
ressurreto era o caminho da salvação, então ela
da Lei. Para Paulo, Cristo era o objetivo final da
podia ser oferecida a todos, sem necessidade de
Lei, à medida que a Lei podia ser entendida como
compromisso religioso prévio com as exigências
meio de salvação. A salvação pelas obras ou mes
judaicas de circuncisão, leis alimentares e obser
mo a que se obtém, em resposta ã obra e à graça
vância de toda a Torá.
iniciais de Deus, mediante obediência à Lei mo saica (nomismo aliancístico; v.
Para Paulo, de acordo com Gálatas 1.16, o pro
não era mais
pósito de sua conversão foi seu chamado para ser
possível — se é que alguma vez o havia sido. A
missionário aos gentios. Esse chamado comple
L
e i)
vida perante Deus não podia mais ser uma questão
mentou sua experiência da graça de Deus. Se a
de “faze isso e viverás”. Tomou-se uma questão de
posição correta de alguém diante de Deus depen
justiça recebida pela graça, por intermédio da fé,
dia inteiramente da graça, não havia motivo pelo
a qual possibilitava que, por gratidão, se obede
qual a graça não pudesse ser oferecida a todos,
cesse à lei de Cristo (uma questão diferente da
sem as precondições da Lei. Desse modo, é
Lei de Moisés).
bem possível que Paulo tenha deduzido o âma
Entretanto, nada disso significou que Paulo
go de seu evangelho a partir de sua experiência
não enxergasse nenhum valor na Lei mosaica.
de conversão. Quando Paulo falou da revelação
Aliás, para ele a Lei era santa, justa e boa, e parte
[apocalypsis] de Cristo (G1 1.12,16) ou de Cristo
de sua instmção era vista como guia moral valio
como a glória de Deus (2Co 4,6), talvez estivesse
so para o viver cristão, particularmente os trechos
refletindo sobre a experiência registrada em Atos
narrativos que podiam ser usados de modo tipo-
de uma luz cegante que acompanhou a revela
lógico (cf. ICo 10). 0 problema da Lei era que,
ção do Senhor ressuscitado. Na mente de Paulo,
embora pudesse instmir o povo sobre o que era
a revelação de Jesus em glória na estrada de Da
mau ou bom, era incapaz de fazer evitar o mal ou
masco provavelmente sinalizou a chegada da era
levar a fazer o bem. Ela era incapaz de propor
escatológica (v.
cionar a vida e o poder que estava dispomvel em
estavam passando e desapareceriam, e coisas no
Cristo por meio do Espírito (v.
vas passavam a existir
E s p í r it o S a n t o ) ,
o
341
e s c a t o l o g ia ) ,
(K
im
em que coisas velhas ,
p. 71-4; cf.
B urton,
C ristologia i : Paulo
p. 42-3). A chegada da nova era apresentou para
concílios posteriores da igreja. Cristo era uma
Paulo uma nova ideia cristocêntrica acerca da Lei
maneira em que Deus se havia manifestado ao
e da ética em geral. Mas isso era apenas parte
mundo. Cristo podia ser objeto de confissão e
da empreitada mais ampla de rever a história de
adoração para Paulo e para outros antigos cris
Israel à luz da história de Cristo.
tãos judeus justamente por ser visto como divino. Ao defender a adoração a Cristo, Paulo não estava
2. A estrutura narrativa da cristologia de
instigando uma violação ao monoteísmo judaico
Paulo
(v.
O universo do pensamento de Paulo girava em
W. Hurtado demonstrou que o monoteísmo judai
D e u s ),
pois acreditava que Cristo era divino. L.
torno do Filho de Deus, Jesus Cristo. A cristologia
co antigo podia abarcar a ideia da agência divina,
de Paulo aclarava seu modo de pensar em sua
que por vezes significava enxergar um persona
totahdade, às vezes lançando luz sobre alguns
gem humano do passado distante, como Enoque
aspectos de seu pensamento que, como era de
ou um dos patriarcas, como agente divino (cf.
esperar, não haviam sido afetados pela cristolo
H u rta d o ,
gia. Por exemplo, quem imaginaria que Paulo,
como agente de Deus ou como a Sabedoria em
p.
1 7 - 9 2 ).
Nesse contexto, ver o Messias
em estilo midráshico, dissesse a seus leitores co
pessoa não era um distanciamento radical da or
ríntios que a rocha que forneceu água para os
todoxia judaica, como às vezes se imagina (v. tb.
israelitas durante o período de peregrinação no
B a u c k h a m , 1 9 9 9 ).
Essa afirmação
As cartas de Paulo não apresentam uma dou
baseia-se em ideias sapienciais sobre o papel da
trina desenvolvida da Trindade, nem uma longa
Sabedoria personificada em Israel (cf. Sb
explicação das relações dentro da Divindade,
deserto era Cristo (ICo
1 0 .4 )?
1 1.2-4,
"Eles atravessaram desertos inabitáveis [...].
mas, ao atribuir divindade ao Pai, ao Filho e ao
Tiveram sede e vos invocaram [a Sabedoria]: foi-
Espírito, Paulo providenciou os dados elementa
cn b b :
lhes dada água de um rochedo altíssimo”). A
res para o trinitarismo cristão posterior. A cris
ideia que Paulo tinha de Cristo era tão vasta que
tologia foi uma forma de teologia para Paulo,
ele podia imaginá-lo envolvido na forma de Deus
embora de modo algum a única. Quando Paulo
tratar com seu povo muito antes de ter nascido e
declarou que Cristo entregaria o reino ao Pai,
iniciado seu ministério terreno. Aparentemente,
“para que Deus seja tudo em todos” (ICo
esse é o motivo pelo qual via Cristo como a Sa
não estava dissolvendo cristologia em teologia
bedoria vinda em carne (cf. ICo
(cf.
1 .2 4 ),
e, portan
B eck er,
p.
1 5 .2 8 ),
2 0 0 , 3 4 4 ).
to, 0 que quer que se tivesse sido dito acerca da
De igual modo, Paulo não foi cristomonista —
Sabedoria no pensamento judaico antigo, inclusi
a perspectiva que considera a cristologia a única
ve sua existência nos céus antes da Criação (cf.
ou quase a única forma de teologia. Conquanto
Pv
tenha passado a enxergar o mundo e até mesmo
(cf.
8;
Eo
24;
Sb
7 ),
agora era atribuído a Cristo
W it h e r in g t o n , 1 9 9 4 ,
2.1
caps.
7
e
Deus com uma visão cristocêntrica, Paulo man
8 ).
Cristologia e teologia. Devem se evitar tinha um espaço significativo para o Pai e o Es
dois perigosos extremos no estudo da cristologia
pírito. Para Paulo, foi somente o Pai que enviou
paulina. 0 primeiro é subestimar a importância
o Filho, somente o Filho que morreu na cruz e
e 0 peso da cristologia paulina para o universo
somente o Espírito aquele por meio de quem os
de pensamento de Paulo. A cristologia de Paulo
crentes foram batizados no corpo único de Cris
deve ser vista como subdivisão de sua teologia.
to. Paulo fazia distinção entre os três não só em
Para ele, “Jesus é o Senhor” não é apenas uma
razão de suas funções, mas também por causa da
descrição funcional da obra de Cristo desde sua
natureza deles — à medida que podem ser com
ressurreição. Muitos — mas não a totalidade —
parados com a natureza humana de Cristo (i.e., o
dos nomes, títulos, papéis e funções de Deus fo
Pai e 0 Espírito não têm natureza humana). Des
ram atribuídos a Cristo justamente porque Paulo
crever a teologia de Paulo como cristomonismo
acreditava estar lidando com Deus em Cristo e
é negar que o apóstolo fizesse diferença entre os
Deus como Cristo, embora em nenhum dos dois
papéis, funções e caracten'sticas inconfundíveis
aspectos chegasse a defini-los com a precisão dos
do Pai, do Filho e do Espírito.
342
C ristologia i : Paulo
Com demasiada frequência, os debates sobre
e Senhor triunfante. Assim, a narrativa paulina
a cristologia de Paulo, embora reconheçam que
de Cristo transcende o padrão mais costumeiro de
seja uma subdivisão de sua teologia, têm aborda
Endzeit = Urzeit (fim dos tempos = tempos pri
do o assunto gradativamente, analisando títulos
mevos). A exaltação de Cristo não é a simples
cristológicos isolados uns dos outros. 0 resulta
recapitulação de sua preexistência. Uns poucos
do mais comum tem sido uma apresentação de
exemplos ilustram algumas dessas ideias.
ideias arrancadas do tecido do pensamento de
Primeiro: o hino cristológico de Filipenses 2.6-
Paulo com quase nenhuma exphcação para o
11 revela que a carreira de Cristo determina como
núcleo coerente da cristologia paulina como era
ele deve ser confessado. Jesus recebeu o nome
expressa nas contingências dos casos que ele tra
régio "Senhor” , justamente porque Deus o exal
tava. J. C. Beker acertadamente aponta tanto para
tou supremamente por consequência de sua obra
a coerência do pensamento de Paulo ao longo do
concluída na terra, a qual incluiu a morte numa
tempo quanto para a contingência desse pensa
cruz. O dio kai de Filipenses 2.9 é essencial e
mento enquanto trata de situações e preocupa
deve ser traduzido por "e portanto” ou “e esse é
ções específicas. O estudo dos títulos cristológicos
0 motivo por que”. Desde sua morte e justamen
pode ser útil, mas também pode ser reducionis-
te por causa de sua vida e morte terrenas como
ta, tratando os elementos do pensamento pauli
servo, Jesus tem ocupado um lugar de honra e de
no como se fossem permutações na história das
poder divinos; por isso, agora está atuando como
ideias teológicas. Essa abordagem desconsidera o
Senhor. É por esse motivo que na era presente
fato de que o pensamento teológico de Paulo está
é possível confessá-lo como “ Senhor” , o nome
entretecido com seu pensamento ético e prático,
divino e régio.
bem como com suas preocupações sociais. Isolar
Segundo: o título “Cristo” tornou-se, entre os
a cristologia ã custa de negligenciar o restante de
primeiros cristãos, outro nome de Jesus. Mas Jesus
seu modo de pensar resulta quase sempre num
era um ser humano, exatamente como os antigos
quadro distorcido. A totalidade da cristologia de
judeus esperavam que o Messias fosse. “Cristo” ,
Paulo é muito maior que a soma de suas partes.
nas várias ocasiões em que aparece como título
2.2
Narrativa quádrupla. Uma abordagem em Paulo, refere-se basicamente ao papel de Jesus
mais satisfatória da cristologia de Paulo reconhe
durante sua vida terrena, cujo ápice foi a cruz. Por
ce seu formato narrativo (cf.
quer di
isso, Paulo pôde decidir nada saber entre os corín
zer que a cristologia paulina implica um relato
tios, senão o “ Cristo crucificado” (ICo 1.23). Por
em que é possível identificar quatro aspectos: a
vezes, a palavra também pode ser empregada em
H
ays) .
Isso
narrativa de Cristo, a narrativa de Israel, a narra
referência aos papéis de Cristo após sua morte e
tiva do mundo e a narrativa de Deus.
ressurreição, ou mesmo em sua preexistência (cf.
2.2.1
A narrativa de Cristo. A estrutura nar ICo 10.4). Por isso, é crucial entender os títulos
rativa segue o curso daquele que esteve na pró
cristológicos dentro da estrutura da narrativa de
pria forma de Deus (Fp 2.6), mas pôs de lado
Cristo apresentada por Paulo.
suas prerrogativas e posição divinas para assu
2.2.2
A narrativa de Israel. Uma narratíva
mir a condição de escravo e sofrer a morte de
maior, a de Israel, também permeou a cristolo
um escravo. Por esse motivo. Deus o exaltou. Boa
gia de Paulo. Jesus nasceu de mulher e sob a Lei
parte dessa narrativa, Paulo pode ter extraído da
(Cl 4.4). Para Paulo, isso significou o envio do
reflexão sobre os hinos cristológicos já existentes
Filho de Deus para ser o Jesus humano. Além
e que faziam parte da adoração cristã primitiva
disso, esse Filho foi enviado para redimir os que
(cf. Fp 2.6-11; Cl 1.15-20; Hb 1.2-4; v. tb. Jo 1.1-
estavam sob a Lei, ou seja, Israel, fato que pres
14). Esses hinos atribuíam a Cristo características
supõe que o povo estava perdido. Mais importan
que 0 judaísmo antigo havia atribuído à Sabe
te ainda, a narrativa de Israel influenciou o modo
doria personificada (cf.
1994, cap.
em que Paulo via o nome e os papéis de Cristo.
7). Paulo, no entanto, prossegue com a narrati
Ele é 0 Filho régio e mesmo preexistente de Deus,
va, relatando o papel continuado de Cristo nos
enviado para resgatar o povo de Deus. Pois foi
céus e seu retorno futuro à terra como juiz divino
a Israel que se fez a promessa de um Messias,
W
it h e r in g t o n ,
343
C ristologia i : Paulo
e de Israel o Messias devia vir (Rm 9.4,5). Para
pois, não importando o que se possa concluir da
Paulo, referir-se a Jesus como Filho era outra
autoria de Colossenses ou das circunstâncias tra
maneira de apresentá-lo como personagem régio
tadas nessa carta, os elementos dessa cristologia
ou messiânico judaico que veio trazer liberdade
já estavam evidentes na cristologia de Paulo, con
a seu povo. Por esse motivo, Paulo anunciou o
forme expresso em ICoríntios 15.24-26. Além do
evangelho como mensagem primeiro para o ju
mais, essa é uma narrativa escatológica, pois, ao
deu (Rm 1.16).
relatar a ação final de Deus para com sua criação, ela é escatológica tanto na estrutura quanto no
2.2.3 A narrativa do mundo. As narrativas de
conteúdo (v.
Cristo e de Israel fazem parte de uma narrativa
e s c a t o l o g ia ) .
ainda maior: a narrativa do mundo. Para Paulo, o mundo está decaído (cf. Rm 1) em sobrevida;
3. A divindade e a humanidade de Jesus
a forma presente deste mundo está desaparecen
Cristo na cristologia de Paulo
do (ICo 7.31; cf. G1 1.4). De um lado, esse fato
3.1 A divindade de Cristo. Já vimos que
relativiza os relacionamentos e outras realida
Paulo, ao se apropriar dos hinos cristológicos,
des sociais que podem ter parecido de suprema
subscreveu ao conceito cristológico de que Cristo
importância no passado. De outro, a realidade
existia antes de assumir carne humana. Ele se re
do colapso gradual do mundo torna ainda mais
feriu a Jesus como a Sabedoria de Deus, o agente
indispensáveis as decisões sobre as questões
divino na Criação (ICo 1.24,30; 8.6; Cl 1.15-17; v. p. 195), e como aquele que acompanhou
fundamentais da vida. 0 mundo está inclina
B ruce,
do à autodestruição, no entanto anseia por li
Israel como a “rocha” no deserto (ICo 10.4). Ten
berdade; não apenas o mundo humano, mas a
do em vista o papel que Cristo desempenha em
totalidade do mundo físico (Rm 8.20-22). Além
ICoríntios 10.4, Paulo não está fundamentando a
disso, Paulo menciona os poderes sobrenaturais
história de Cristo na história arquetípica de Israel,
malévolos, que incluem Satanás e demônios e
e sim na história da Sabedoria divina, que ajudou
fazem parte da era presente (cf. ICo 10.20,21;
Israel no deserto. 3.1.1 “Cristo, a sabedoria de Deus”. Além
2Co 2.11; 4.4). É nesse cenário sombrio e no meio deste mundo
disso, parece provável que as ideias sapienciais
que se desenrola o drama de Israel com seu Mes
encontradas em ICoríntios 1.24,30 e 8.6 desabro
sias e da comunidade cristã (cf.
charam plenamente no conceito paulino do Cristo
W
r ig h t ,
cap. 2).
cósmico — ele é não apenas Senhor da terra e
2.2.4 A narrativa de Deus. Transcendendo a narrativa do mundo, temos a narrativa do Filho
do Universo, mas também está envolvido em sua
como parte da vida contínua de Deus. Trata-se de
criação. A flor desabrochada desse pensamen
uma narrativa sobre a relação entre o Pai, o Filho
to sapiencial cristológico se expressa no hino de
e 0 Espírito, e ela também influencia a cristolo
Colossenses 1.15-20, no qual se diz que Cristo é
gia de Paulo. A narrativa de Deus está entretecida
“a imagem do Deus invisível”, o “primogênito”,
com a narrativa do mundo. 0 hino cristológico de
o meio e o objetivo da criação. Aqui as qualida
Colossenses 1.15-20 (cf. 2Co 4.4) mostra que o
des que o judaísmo podia atribuir à Sabedoria são
Filho desempenhou um papel na criação de todas
transferidas para Cristo, conforme ilustrado em
as coisas, mesmo da humanidade. Assim, o papel
textos como Sabedoria de Salomão 7.25.26: “Ela
de Cristo como redentor faz parte da iniciativa
é o sopro do poder de Deus, uma emanação pura
divina de reconcihar todas as coisas com Deus. E
da glória do Todo-Poderoso. Por isso, nada de im
a encarnação faz parte da narrativa de Deus.
puro pode introduzir-se nela; ela é reflexo da luz
Além do mais. a subjugação e a reconciliação dos
eterna, espelho sem mancha do poder de Deus
poderes e principados também faz parte da nar
e imagem da sua bondade”
rativa mais ampla de Deus, embora essa missão
lo tenha adotado e adaptado esse entendimento
( cnbb) .
Embora Pau
cósmica também esteja entretecida com a nar
da Sabedoria tendo em vista objetivos pessoais,
rativa de Cristo como redentor da humanidade
as implicações dessa ideia são importantes — os
(ICo 15.24). No pensamento de Paulo, o lugar
apóstolos atribuíram qualidades divinas a Jesus
dessa cristologia cósmica está bem consolidado.
Cristo.
344
C ristologia i : Paulo
Será que Paulo considerava Jesus um ser divi
recomeça com a frase que expressa desejo: ‘Seja
no? Dois textos difíceis requerem exame: Roma
0 Deus supremo sobre todos bendito para sem
nos 9.5 e Filipenses 2.6,7.
pre’. Dessa forma, evita atribuir a Jesus Cristo a
3.1.2
Cristo, o “Deus bendito” (Rm 9.5). Esse qualidade de Deus, mas introduz uma relação
versículo aparece no início da análise paulina so
assindética entre as frases, ou seja, as duas exis
bre as vantagens da naçâo de Israel, mas apre
tem de forma independente, sem conectivos, e
senta um problema exegético de pontuação. F. C.
não há motivo de ordem gramatical para que um
Burkit disse, com certo exagero, que a pontuação
particípio que concorde com ‘Messias’ seja disso
de Romanos 9.5 tem sido provavelmente mais de
ciado dessa palavra e passe a expressar volição
batida que a de qualquer outra frase da literatura.
por parte do falante, tendo uma pessoa diferente
Visto que nos manuscritos gregos mais antigos
como sujeito. Na verdade, não soa natural dis
não existe quase nenhuma ou mesmo nenhuma
sociar particípio de seu antecedente”. É melhor
pontuação, o leitor ou exegeta tem de identificá-
acompanhar a n v i e ler “ Cristo, que é Deus acima
la. No caso de Romanos 9.5, o resultado é que
de todos, bendito para sempre!”.
o texto tem sido interpretado de várias manei ras (v.
M e tz g e r ).
Metzger também observa que em outras pas
A discussão gira em torno de
Romanos 9.5b; se deve ser lido conforme a
sagens as doxologias paulinas são sempre Ugadas
ara
a algum antecedente: não são assindéticas (i.e.,
( “ Cristo, [...] 0 qual é sobre todos. Deus bendito
sem conectivos). Além do mais, é um padrão
eternamente”), ou segundo a
( “Cristo, que é
quase universal as doxologias no hebraico e na
Deus acima de todos, bendito para sempre”), ou
LXX trazerem “bendito seja Deus” , não “ Deus
como na anotação marginal da n v i (“ Cristo, que é
bendito” , como temos aqui, caso algumas das tra
sobre tudo. Seja Deus louvado para sempre!”), ou
duções sejam seguidas. De modo que o provável
como na n e b ( “Cristo. Seja o Deus supremo sobre
é que “Deus bendito” (ou “Deus louvado”) não
todos bendito para sempre”). No último caso. Ro
expressa o desejo de que Deus seja bendito para
manos 9.5b torna-se um período gramatical dis
sempre. Trata-se da afirmação de que o Messias,
tinto de Romanos 9.5a, ou ao menos uma oração
que é Deus, é por natureza bendito para sempre
nvi
gramatical distinta. A maioria das traduções em
(mas cf.
português apoia que “o qual é sobre todos. Deus
antigas também favorecem a tradução da
bendito eternamente” está qualificando a Cristo.
da n v i . Caso alguém indague por que em nenhum
Parece que tanto o contexto quanto a gramática
outro lugar Paulo chama Cristo explicitamente de
favorecem a leitura da
ara
ou
da n v i .
Dunn,
1988, p. 528-9, 535-6). As versões ara
ou
“Deus” , Metzger tem uma boa resposta: “O moti
A passagem de Romanos 9.5a traz a expres
vo de existirem tão poucas afirmações nas epísto
são ho Christos to kata sarka. Como observa B.
las de Paulo que tratam da natureza essencial de
Metzger, no caso de Romanos 1.3,4 e de outras
Cristo [...] tem, sem dúvida alguma, relação com
passagens, é normal esperar um contraste quan
um aspecto frequentemente observado por outros
do deparamos com a expressão kata sarka (“se
autores, a saber, que o apóstolo, tendo em vista o
gundo a carne”). Por isso, em Romanos 1.3,4, o
objetivo de instruir na fé cristã, geralmente prefe
contraste é entre kata sarka (“ segundo a carne”)
re falar dos relacionamentos funcionais de Cristo,
e kata pneuma ( “ segundo o Espírito”) . Em Roma
não dos ontológicos”
(M e tz g e r ,
p. 111-2).
nos 9.5a, kata sarka não soa natural caso o autor
Concluímos que em Romanos 9.5 Paulo cha
não insista em dizer que Cristo é segundo alguma
ma Cristo de Deus e dessa maneira demonstra
outra coisa além da carne.
até que ponto a experiência que o apóstolo teve com 0 Senhor ressuscitado o levou a adjetivar ou
Além disso, a expressão “ o qual é” (ho õn] normalmente é interpretada como introdução
transformar seu monoteísmo judaico (cf.
de uma oração adjetiva explicativa, e 2Corín-
p. 237). Isso significa que Paulo tinha uma cristo
W
r ig h t ,
tios 11.31 ( “que é eternamente bendito”, ho õn
logia elevada antes mesmo de empregar o hino a
eulogêtos eis tous aiõnas) é um bom paralelo de
Cristo em Filipenses 2 (supondo-se que Filipenses
Romanos 9.5. Para N. Turner (p. 15), “o texto da
seja posterior a Romanos e que Paulo não conhe
NEB simplesmente termina a frase em ‘Cristo’ e
cesse o hino antes de escrever Romanos).
345
C ristologia i : Paulo
3.1.3
Deus, |iop Fiorenza,
R. E'. Rôles of women in the fourth gos 36, p. 688-99, 1975. ■ ______ . _______.
tramos muito mais informações que alguns dos
E. S. In memory o f her: a feminist theological
Doze, sejam incluídas como discípulas e emis
reconstruction o f Christian origins. N ew York:
sárias durante o ministério de Jesus (para não
Crossroad, 1983. • Giles, K. Jesus and women.
mencionar Isabel e Ana, em Lc 1—2). Têm se
Interchange, v. 19, p. 131-6, 1976. ■ G ill, A. W o
observado também que os Doze eram todos ju
men ministers in the Gospel of Mark. AusBR,
deus, mas a igreja primitiva, à medida que se de
V.
senvolveu em outros ambientes sociais, passou a
J. A. Mary Magdalene and the women in Jesus’
35, p. 14-21, 1987. ■ Grassi, C. M. & Grassi,
aceitar gemios na Uderança. Desse modo, não se
life. Kansas City: Sheed & Ward, 1986. ■ Hur
deve insistir demasiadamente na exata composi
ley, J. B. Man and woman in biblical perspec
ção dos Doze.
tive. Grand Rapids; Zondervan, 1981. ■ Ilan, T.
Mais significativo é o fato de que os Doze
Jewish women in Greco-Roman Palestine. Peabo
não constituíram nem forneceram o modelo ou
dy: Hendrickson, 1996. • Klassen, W. The role
a base para a liderança ou a autoridade na igreja
of Jesus in the transformation of feminine cons
primitiva, exceto nos dias iniciais da igreja em Je
ciousness.
rusalém. Em vez disso, mais significativo para o
J. Jesus and women: Luke’s Gospel. TToday,
JCSR, V.
7, p. 182-210, 1980. • Kopas,
caráter da Uderança na igreja primitiva era o cha
V.
mado de Jesus ao discipulado, a definição de dis
enads, martyrs, matrons, monastics: a source
cipulado da perspectiva do serviço e o fato de que
book on w om en’ s religions in the Greco-Roman
homens e mulheres estavam entre os seguidores
world. Philadelphia: Fortress, 1988. •
dG Jesus como discípulos e emissários.
R. G. Her testimony is true: wom en as witnesses
Às vezes, observa-se que Jesus nâo desig
43, p. 192-202, 1986. ■ Kraemer, R. S. Ma
a c c o r d in g
M a c c in i,
to John. Sheffield: Academic, 1996.
nou mulheres para nenhuma função. Mas Je
[js N T s u p ,
sus também não designou nenhum homem
male and female: the fate of a dominical saying
para alguma função (com exceção de Fedro,
in Paul aHd gnosticism. Philadelphia: Fortress,
125.) ■
M a c D o n a ld , D .
R. There is no
e isso não determinou a estrutura da igreja, a
1987.
não SGr a liderança inicial da igreja em Jerusa
ancient Israelite women in context. N ew York:
(h d r .
20.) •
C. Discovering Eve:
M eyers,
lém). As estruturas de Uderança e autoridade
Oxford University Press, 1988. ■
nas igrejas dos primórdios, especialmente nas
W om en in Jesus’ ministry,
de Paulo, acerca das quais existem mais evi
91, 1989. ■
dências disponíveis, eram às vezes mutáveis
woman.
e sem organização muito detalhada. Em tais
_____ . Women in Judaism: the status of women
contextos, algumas mulheres exerciam, sim,
in formative Judaism. Metuchen: Scarecrow,
S w id le r ,
O sb o rn e,
v/t j , v .
G. R.
51, p. 259-
L. Biblical affirmations of
Philadelphia:
Westminster,
1979.
■
liderança e autoridade (sabe-se o nome de
1976. •
doze mulheres que estavam entre os colabo
o f the church: women and ministry from New
radores de Paulo no ministério; v. Rm 16.1-16;
Testament times to the present. Grand Rapids:
Fp 4.2,3; ICo 1.11; Cl 4.15; At 16.14,15,40).
Zondervan, 1987. ■ W
Ver também J e s u s , djg;
D
iv o r c e ;
M
Song; P
ucker,
R. A. &
L
ie f e l d ,
it h e r in g t o n
W .
iii,
Daughters
B. Women
in the ministry o f Jesus: a study of Jesus’ attitu
n a s c i m e n t o d e ; r e s s u r r e iç ã o .
ary’s
T
des to women and their roles as reflected in his
r o s t it u t e .
955
M u lh er e s i i : P a u l o
earthly life. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
(sntsm s,
51.)
incisivas, dirigidas a homens e mulheres conside rados em bases iguais. Os contratos matrimoniais
D. M
SCHOLER
judaicos estipulavam certos deveres exigidos de maridos e mulheres, mas Paulo se concentra
M
u lheres ii:
P aulo
Nenhum outro autor do
em um único dever, que é pertinente aqui: as re tem sido mais criti
lações sexuais. A questão aqui é que não se trata
cado por sua suposta postura negativa diante
de um simples dever dos maridos, como se vê em
nt
das mulheres que o apóstolo Paulo. Apesar da
alguns textos judaicos, mas de uma obrigação re
ideia paulina de que “não há homem nem mu
cíproca (ICo 7.3,4). Tanto os contratos judaicos
lher [...] em Cristo Jesus” (GI 3.28), ele tem sido
quanto Paulo revelam uma sensibilidade espe
visto como um mero produto de sua época em
cial pelos sentimentos da esposa, em forte con
outros textos, em que aparece subordinar ou de
traste com 0 destaque que a cultura grega dava
negrir as mulheres (e.g., ICo 14.34,35). Só é pos
à gratificação sexual do homem
sível identificar se Paulo simplesmente reflete as
p. 67-82).
( K eener,
1991,
ideias de sua cultura acerca das mulheres ou se
Outra comphcação para esse estilo de vida
diverge (positiva ou negativamente) de tais ideias
é que alguns cristãos agora queriam se divor
mediante o exame, à luz da cultura de Paulo, de
ciar por falta de satisfação sexual ou, mais pro
algumas de suas passagens mais debatidas.
vavelmente, para buscar uma vida celibatária
1. Paulo e os papéis do homem e da mulher em geral
(ou, na ideia de filósofos cínicos, um estilo de vida livre do ônus do casamento, mas não de
2. Paulo e o véu para as mulheres
relações sexuais; cf. ICo 6.12-20). Em sua res
3. Paulo e a submissão da mulher
posta, Paulo cita Jesus: o divórcio não é permis-
4. Paulo e 0 ministério feminino
sível (ICo 7.10,11; cf. Mc 10.11,12). Entretanto, depois de recorrer à proibição do divórcio, es
1. Paulo e os papéis do homem e da
tabelecida por Jesus, Paulo passa a ser mais
mulher em geral
específico, sem que em momento algum acredite
As cartas de Paulo são esporádicas, ou seja, foram
estar questionando a autoridade daquela proibi
escritas para atender a determinadas circunstân
ção. Havia uma ampla compreensão de que as
cias, e, desse modo, os temas nelas tratados cons
declarações gerais de princípio precisavam ser
tituem respostas a questões levantadas a respeito
exphcitadas em certas situações, especialmente
desses temas. As cartas mais antigas de Paulo
quando se tinha em vista que o estilo judaico de
(principalmente as reconhecidamente atribuídas
ensino de Jesus às vezes incluía hipérboles, isto
ao apóstolo) não tratam com muita frequência da
é, exageros retóricos (v.
questão específica de homens, mulheres ou casa
certo que o crente não tem permissão para tomar
mento, mas o tema é tratado, especialmente em
a iniciativa de romper com seu casamento, mas,
ICorintios 7.
K eener,
1991, p. 13-28). É
se for obrigado a isso (aqui o exemplo oferecido
Em ICorintios, Paulo se dirige a cristãos que,
por Paulo abrange o abandono e o divórcio contra
à semelhança de uns poucos grupos de sua cul
a vontade do crente; pela lei romana, qualquer
tura, tinham agora em alta consideração o estilo
um dos cônjuges podia agir unilateralmente e se
de vida celibatário. Essa convicção, no entanto,
divorciar), “nem o irmão nem a irmã estão sujei
havia criado certas comphcações. Uma delas é
tos à servidão” (ICo 7.15), pois não existe garan
que alguns dos que admirava^aía yjda celibatária
tia de que o incrédulo vá se converter (ICo 7.16).
já eram casados, e o fato de buscarem o celibato
Quando Paulo diz que os cônjuges “ [não]
dentro do casamento criava para seus cônjuges e
estão sujeitos à servidão” , ele repete a exata
possivelmente para si mesmos o perigo de serem
linguagem de contratos judaicos de divórcio, sig
tentados sexualmente (IC o 7.2,5; cf. ICo 7.9).
nificando que 0 divórcio era váUdo e que ambos
É possível que Paulo esteja aludindo a algum
estavam “hvres” para tornar a casar (v.
ponto de vista dos coríntios em ICorintios 7.1,
1991, p. 50-66). Ler essa expressão de outra ma
mas em ICorintios 7.2-5 as palavras de Paulo são
neira que não a liberdade para se casar de novo
956
K eener,
M u l h er e s íí ; P a u l o
é ignorar como os leitores judeus do século i te
no casamento e na igreja, os temas que provocam
riam entendido as palavras de Paulo (para não
mais debate no que tange ao papel das mulheres
mencionar o fato de desconsiderar o sinônimo
em Paulo.
em ICo 7.27,39). Ao longo de sua análise inicial 2. Paulo e o véu para as mulheres
sobre o divórcio, Paulo tem o cuidado de manter o equilíbrio de uma linguagem inclusiva, envol
Alguns comentaristas procuram negar a autoria
vendo igualmente maridos e esposas na respon
paulina de praticamente todas as passagens das
sabilidade e na liberdade espirituais.
cartas que ípresentam controvérsia em relação às
Paulo, depois de insistir com seus leitores
mulheres, mas as provas textuais a favor dessa
que é melhor permanecer na condição em que se
tendência são tão fracas que bem poucos estudio
encontram (i.e., ele prefere ficar solteiro e, com
sos a apoiam. Em vez disso, a maioria dos auto
mais veemência, defende que se evite o divórcio;
res tem se ocupado com mais diligência da tarefa
cf. ICo 7.14-24), explica que as virgens provavel
de entender o texto. 0 texto claramente se refere
mente estarão em melhor condição se continua
ao costume que tinham as mulheres de cobrir a
rem solteiras (ICo 7.25-38), embora reconheça
cabeça, pelo menos na hora da adoração, e para
que essa decisão só funciona para quem está pre
isso algumas usavam um xale (cobrindo apenas o
parado (ICo 7.36; cf. ICo 7.9). Nesse contexto,
cabelo), mas em alguns lugares utilizava-se tam
ele retorna, momentaneamente, à questão do di
bém um véu que cobria todo o rosto. Contudo,
vórcio. Digressões eram comuns na Antiguidade
há um número tão grande de contextos em que
e em Paulo em particular, e no contexto imediato
se usavam coberturas para a cabeça que é preciso
o rumo do pensamento não deixa dúvida de que
indagar de qual desses contextos Paulo está tra
ICorintios 7.27,28 se refere ao divórcio: “Estás
tando. Por exemplo, as pessoas cobriam a cabeça
casado? Não procures te divorciar. Estás divorcia
em sinal de luto ou de vergonha, mas, uma vez
do [a mesma palavra grega da frase precedente]?
que era uma prática comum a homens e mulhe
Não queiras casar-te outra vez. Mas, se voltares a
res, é improvável que Paulo estivesse pensando
te casar, com isso não pecas: e o mesmo se aplica
somente nelas.
a quem não estava casada” (tradução do autor).
Tradicionalmente, as mulheres gregas, em
Aqui 0 linguajar de Paulo é menos inclusivo, mas
grande parte, ficavam reclusas em seus lares, e
0 objetivo de sua mensagem diz respeito a am
não há muitos dados que indiquem que nesse pe
bos os sexos: quando chega a ICorintios 7.32-
ríodo elas cobriam a cabeça, pelo menos não as
34, ele valoriza a devoção espiritual de homens e
mulheres de posses. Contudo, a leste da Grécia, o
de mulheres.
costume predominava, mesmo na Palestina e no
Talvez ICorintios 7.36-38 seja pertinente em
sul da Ásia romana (e.g.. Tarso: v.
M
acM ullen).
nossa análise, caso se refira a casamentos arran
Além disso, as mulheres romanas, à semelhança
jados pelos pais, 0 que é provável. Contudo, os
dos homens romanos, cobriam a cabeça quando
estudiosos estão divididos em proporções prati
adoravam, em contraste com homens e mulhe
camente iguais quanto ã pessoa a quem o texto
res gregos. A igreja coríntia, situada perto de
se dirige: se ao pai da virgem ou ao noivo. No
um porto importante e nascida em uma sinago
primeiro caso, Paulo está simplesmente se diri
ga (At 18.4,7,8), provavelmente abrigava alguns
gindo ao pai da eventual noiva na situação cul
imigrantes orientais, para quem cobrir a cabeça
tural então predominante; os pais arranjavam
era uma prática importante. Dados provenientes
0 casamento dos filhos, geralmente ouvindo a
do Egito indicam que, fora da Palestina, muitas
opinião destes. No segundo caso, não dispomos
mulheres judias cobriam a cabeça, mesmo que
de nenhum paralelo cultural para a situação aqui
em muitos outros aspectos fossem helenizadas Jo e As). Mas sem dúvida havia mais coisas
tratada. Entretanto, em qualquer uma das duas
(F
leituras Paulo parece sugerir sensibiUdade para
envolvidas do que um choque de símbolos cultu
com os desejos da moça (ICo 7.36).
rais. A cobertura da cabeça era uma questão cul
il o ;
tural, mas simbolizava certos valores, bem mais
Agora temos de nos vohar para questões mais
profundos que o símbolo em si.
específicas: a cobertura de cabeça e a autoridade
957
M u l h er e s i i : P a u l o
No antigo mundo mediterrâneo, o cabelo
descobrindo-a numa cultura em que isso é de
da mulher era objeto básico de desejo masculi
sonroso, estará também desonrando o marido
no
Me, 2.8, 9; Sipre, Nm 11.2.3); desse
(ICo 11.2-6). Ao estabelecer uma analogia entre
modo, para as sociedades que adotavam a cober
cabeças descobertas e rapadas (técnica retórica
tura para a cabeça, as mulheres casadas sem a co
denominada reductio ad absurdum; Paulo diz:
( A p u l e io ,
bertura eram infiéis aos maridos, ou seja, estavam
“Se desejas estar descoberta, por que não vai até
à procura de outro homem (cf. m. Ketub., 7.6; mas
0 fim com isso?”), o apóstolo reforça esse sen
era normal que as virgens e as prostitutas não co
timento de vergonha. Quando o cabelo da mu
brissem a cabeça, pois estavam à procura de ho
lher era cortado bem curto ou rapado, era uma
mens) . Dessa maneira, as mulheres que cobriam
grande desonra e simbolizava a perda de sua
a cabeça viam as mulheres de cabeça descoberta
feminilidade.
como uma ameaça. No entanto, sem dúvida as
Embora Paulo esteja argumentando com base
mulheres de cabeça descoberta viam o costume
em um jogo de palavras, intérpretes da atualidade
de cobri-la como uma restrição à liberdade e en
têm se apegado a uma única palavra — “cabQça”
tendiam que a maneira de apresentar o cabelo
(gr., kephalê) — e debatido o que Paulo quis dizer
era questão pessoal. É significatívo que entre as
quando chamou o marido de “cabeça”. Alguns es
mulheres de cabeça descoberta provavelmente
tudiosos afirmam que o termo significa “autorida
estavam as mulheres cultas, de posição social
de” ou “chefe”. A palavra hebraica para “cabeça”
mais elevada, cujos lares hospedavam a maioria
[rõ ’sh] pode significar isso, e às vezes kephalê tem
das igrejas domiciliares. Algumas estátuas repro
esse sentido na
duzem mulheres de posses usando penteados da
questionam esse sentido, observando que os tra
moda e com a cabeça descoberta: as mulheres
dutores geralmente se esforçam ao máximo para
mais pobres provavelmente consideravam esses
evitar traduzir o vocábulo hebraico rõsh pelo
lxx
(G ru d e m
e
F it z m y e r ).
Outros
penteados sedutores. Tendo em conta o confli
termo grego kephalê, pois kephalê geralmente não
to de classes na igreja de Corinto, que fica evi
tem 0 sentido de “autoridade” ou “chefe”. O se
dente em outras passagens em ICorintios (e.g.,
gundo grupo de estudiosos defende o sentido de
ICo 11.21,22;
V . T h e is s e n ) ,
não seria difícil esse
comportamento gerar controvérsia (v. 1992, p. 22-31; cf.
“ fonte” , que de fato é o significado em alguns tex tos
K een er,
(M ic k e ls e n ,
in:
M ic k e ls e n ,
p. 97-111;
S cro g g s,
p. 284). Contudo, os estudiosos a favor do senti
T h o m pso n ).
Tanto o livro de Atos quanto as cartas de Pau
do de “autoridade” replicam que na
lx x
“fonte”,
lo apresentam o apóstolo como um hábil debate-
como tradução de kephalê, é um sentído ainda
dor, familiarizado com a lógica e a retórica de sua
mais raro que o de “autoridade”. Os dois grupos
cultura. Na retórica antiga, os argumentos que
estão plenamente convictos do que afirmam, mas
alguém apresentava a favor de uma opinião não
talvez nâo consigam provar o que negam. O ter
precisavam ser as mesmas razões que ele tinha
mo às vezes significa “ fonte” e às vezes tem o
para manter seu ponto de vista. 0 propósito de
sentido de “autoridade”, pelo menos no “grego
Paulo ao aconselhar as mulheres a cobrir a ca
judaico” influenciado pelo compasso da ixx.
beça pode ter sido preservar a unidade da igreja,
A pergunta é: qual sentido se deve atribuir
mas apresentou os argumentos que funcionariam
ao termo em ICorintios 11.3? Tendo em vista a
melhor para persuadir seus leitores. Ele apresenta
alusão a Adão como fonte de Eva em ICorintios
quatro argumentos principais em defesa daquela
11.8, é bem provável que Paulo esteja falando do
ideia: valores famihares, a orderruda criação, o
homem (Adão) como a “ fonte” de sua esposa, as
exemplo da natureza e a modéstia, conforme de
sim como Cristo havia criado Adão e, mais tarde,
terminada pelos costumes.
em sua encarnação procedeu do Pai (caso em que
Primeiro, com base em valores familiares e
ICo 11.3 se encontra em sequência cronológica;
em um jogo de palavras (prática comum na apre
v.
sentação de argumentos na Antiguidade entre ju
Efésios 5.23, a esposa deve se submeter ao mari
deus e gregos): o marido é o cabeça da mulher,
do, seu “cabeça” , ou seja, alguém com autorida
de modo que, se ela desonra a própria cabeça.
de sobre ela, embora simukaneamente se espere
958
B il e z ik ia n ,
p. 138). Em contrapartida, segundo
M u l h er e s h : P a u l o
que 0 marido defina a condição de ser cabeça por
que estavam presentes na adoração, conforme
meio do serviço sacrificial a favor da esposa. No
testemunho de alguns textos de Qumran, os quais
entanto, nem mesmo Efésios 5 oferece uma ideia
poderiam ficar ofendidos com o abandono da
transcultural da autoridade do marido. Nessa
modéstia, o que culturalmente tinha o sentido de
passagem, a autoridade dele reflete a condição da
desconsideração pela honra da própria família;
mulher numa sociedade em que ela já era subor
anjos que governavam as nações, os quais os cris
dinada ao marido e atenua essa condição em uma
tãos um dia julgariam — nesse caso, Paulo estaria
direção mais progressista (v. 3 abaixo).
exortando as"mulheres a reconhecer a autoridade
3)
Segundo: com base na ordem da criação
que têm sobre a própria cabeça, mas também a
(ICo 11.7-12), Paulo apresenta outro argumento.
usar essa autoridade de maneira responsável (cf.
Em essência, ele diz; “Adão foi criado antes de
ICo
Eva, por isso as mulheres devem usar cobertura
mostra que Paulo reconhece a autoridade que a
para a cabeça”. Esse argumento não soa muito
mulher tem sobre a cabeça e argumenta com ela
bem para a lógica moderna, mas sem dúvida
para que a cubra por motivo de modéstia, mas o
transmitiu admiravelmente a mensagem para os
argumento do apóstolo não vai além.
6 .3 ) .
De qualquer forma, a construção grega
coríntios. Conquanto Paulo soubesse, com base
Terceiro: Paulo argumenta com base na na
em Gênesis 1.26,27, que juntos o homem e a mu
tureza, isto é, a na ordem natural das coisas
lher representam a imagem de Deus (cf. Rm 8.29;
(ICo
2Co 3.18), ele destaca que a mulher, que saiu
vam argumentos baseados na natureza, e outros
do homem, também reflete a glória do homem
autores adotavam a mesma prática. É possível
1 1 .1 3 -1 5 ).
Em geral, os estoicos apresenta
(ICo 11.7) e, por isso, pode fazer com que os
que Paulo esteja argumentando com base no
homens se desviem da adoração. Isso pode estar
costume vigente entre gregos e romanos (outros
relacionado ao perigo da típica lascívia masculina
povos dos dias de Paulo e os gregos em perío
naquela cultura. Mas, logo depois que apresen
do anterior usavam cabelo comprido), embora a
tou seu argumento baseado na ordem da criação,
“natureza” geralmente signifique algo mais forte
Paulo o retoma: é verdade que a mulher procede
que isso. Ele pode também estar argumentando
do homem, mas também é verdade que o homem
que 0 cabelo das mulheres naturalmente cresce
procede da mulher: ambos dependem um do ou
mais que o dos homens.
tro no Senhor (ICo 11.11,12). Para sustentar seu
Quarto: Paulo emprega um argumento clássi
ponto de vista, Paulo precisa apenas mencionar
co da antiga retórica judaica e também da retó
que a mulher procede do homem, mas expõe seu
rica greco-romana: “É exatamente assim que as
argumento de modo que ninguém possa forçar o
coisas são feitas” (ICo
sentido para além do que ele pretende, mencio
Um grupo de filósofos, os céticos, só aceitava ar
nando 0 assunto apenas como um argumento ad
gumentos baseados nos costumes, enquanto a
hoc para defender o costume de cobrir a cabeça,
maioria dos outros pensadores o aprovava como
não para tudo o que se possa derivar dele.
11 .1 6 ,
tradução do autor).
argumento auxiliar. Raciocinando para incluir
Paulo conclui o segundo argumento com uma
todos os seus leitores (influenciados pelo pensa
frase tão curta que tem gerado considerável va
mento dos judeus, dos estoicos e talvez dos céti
riedade de interpretações: “Porianto, é apropriado
cos), Paulo conclui com um argumento que diz
para a mulher exercer autoridade sobre sua cabe
respeito ao verdadeiro propósito de ter escrito sua
ça [nao “ter um sinal de autoridade em” sua cabe
carta: evitar contendas (cf.
ça, como em algumas traduções; v.
para mais documentação a essa seção).
H o o ker],
por
K eener, 1 9 9 2 ,
p.
31-4 7,
causa dos anjos” (ICo 11.10, tradução do autor).
Alguns pontos estão claros aqui. Um deles é
Os anjos podem ser; 1) anjos lascivos, como na
que Paulo trata das questões com que sua con
maioria das interpretações judaicas de Gênesis 6.2
gregação está lutando, incluindo-se aquela sobre
(v. tb. 2Pe 2.4; Jd 6; provavelmente IPe 3.19-22),
os sexos, e temas que tinham origem na cultura.
mas presumivelmente Paulo teria falado mais
Ele também sustenta a importância da famíha
desses anjos aqui e em outras passagens se acre
cristã e da unidade da igreja. Além disso, embora
ditasse que representavam uma ameaça; 2) anjos
apresente argumentos favoráveis à modéstia no
959
M u lh er e s i i : P a u l o
vestuário para manter a igreja unida, ele procura
tornar “ intelectualmente homem” ! De forma se
persuadir as muiiieres que ouvirem a leitura de
melhante, Plutarco, um dos escritores mais escla
sua carta na igreja a manter esses argumentos em
recidos sobre o assunto, sugere que as mulheres
mente, mas sem questionar o direito que elas têm
podem aprender filosofia com seu marido, mas
de se vestir como quiserem (ICo 11.10), algo bem
fundamenta a sugestão na ideia de que elas irão
diferente de argumentos mais fortes encontrados
atrás de tolices caso sejam deixadas à vontade
em outras passagens na carta (fCo 4.18—S.S;
(P
11.29-34). Entretanto, para nossa análise, talvez
naturalmente afetaram a maneira em que eram
lutarco,
Cn pr, 48; Mo, 14SDE). Tais atitudes
0 mais importante seja o que ele omite: em ne
tratadas no lar, onde os homens detinham o po
nhum lugar do texto Paulo impõe subordinação à
der. 0 direito romano outorgava ao chefe da casa.
mulher, nem mesmo toca no assunto.
conhecido como pater famílias, autoridade total sobre esposa, filhos e escravos. Por toda a anti
3. Paulo e a submissão da mulher
guidade greco-romana, via-se a submissão mansa
Embora várias passagens paulinas tratem da su
da esposa como uma de suas maiores virtudes
bordinação da mulher no lar (Ef 5.22-33; Cl 3.18:
(e.g., Eo 26.14-16: 30.19: v. contratos gregas de
ITm S.14; Tt 2.4,5), examinaremos detalhada
casamento).
mente apenas a mais longa dessas passagens,
Talvez devido à proliferação do infanticídio fe
visto que todas estão inseridas no mesmo am
minino (esse detalhe é objeto de debate), parece
biente cultural, e as duas referências nas Cartas
ter havido uma diminuição de mulheres na socie
Pastorais podem refletir a situação social descrita
dade grega, e o casamento de homens na casa dos
em nosso comentário de ITimóteo 2.9-15, mais
trinta anos com meninas no início e na metade
adiante. 0 fato de a situação social influenciar
da adolescência era prática padrão. Até chegar à
as determinações é algo que fica claro diante de
casa dos trinta anos, os homens tinham relações
uma comparação por amostragem entre, diga
sexuais com escravas, prostitutas ou uns com os
mos, ITimóteo e Provérbios 31.10-31.
outros. Na Atenas clássica, quando um homem se
3.1
A situação social. Antes de examinar o casava, era comum ele achar sua esposa (mal en
que Paulo quis dizer em Efésios 5.22-33, deve
trando na puberdade) menos interessante intelec
mos observar que até mesmo a interpretação
tualmente que as prostitutas. Embora a situação
mais restritiva dessa passagem deve considerar
nos dias de Paulo não fosse assim tão desalenta-
Paulo alguém que não é mais conservador do que
dora em todo o império, pois algumas inscrições
qualquer outro homem de sua cultura. Embora
tumulares dão testemunho de amor genuíno entre
as mulheres estivessem experimentando algum
maridos e esposas, a própria estrutura da socie
progresso nessa época (qualquer coisa teria sido
dade antiga impedia que o marido visse a esposa
uma melhoria em comparação com a Atenas clás
como alguém potencialmente igual a ele.
sica!) e em algumas regiões (e.g., a Asia romana
Por sinal, a partir da época de Aristóteles, era
urbana e a Macedônia) tivessem mais liberdade
usual que os filósofos morais aconselhassem os
que em outras, em nenhum lugar elas desfruta
leitores sobre a maneira correta de governar a
vam da liberdade social hoje reconhecida como
esposa e os outros membros da casa. Essas ins
direito delas.
truções vieram a ser conhecidas como códigos
Na Antiguidade, as atitudes de homens in
domésticos (ou Haustafein, que é a forma ale
fluentes para com as mulheres em geral soam
mã do título e a mais comum na literatura aca
cruéis aos ouvidos de hoje.,¥ar^ alguns antigos
dêmica). Aristóteles e muitos moralistas depois
mestres judeus, as mulheres eram inerentemente
dele estabeleceram as três principais categorias
más (cf. Eo 42.12-14; m. 'Abot, 2.7). Josefo afirma
de subordinados ao chefe da casa: esposas, fi
que, para o bem delas próprias, a Lei determina
lhos e escravos
(A
r is t ó t e l e s ,
Po, 1.2.1, 1253b).
Co Áp, 2.24,
Embora admitisse que o caráter da respectiva
§ 200-1). Filo se queixa de que as mulheres são
subordinação podia ser variado (e.g., os filhos
quase desprovidas de sensatez
homens exigiam menos subordinação à medida
que estejam subordinadas
(J o s e f o ,
(F
il o ,
Ompb, 117)
e exaha uma exceção, a imperadora Lívia, por se
960
que cresciam; cf.
A
r is t ó t e l e s ,
Po, 1.5.12, 1250b),
M u l h er e s n : P a u l o
ele alegava que tal subordinação era uma ques
estava em Roma e tinha bastante consciência
tão de natureza, não apenas da cultura [acerca
das atitudes dos romanos em relação aos cultos
das mulheres, v.
Po, 1.2.12, 1245b).
orientais, como os adoradores de ísis e de Dioní
Os temas morais atraíam os romanos, que tinham
sio e como o judaísmo em suas formas cristã e
uma cultura que destacava o dever e a ordem e
não cristã (que hoje chamamos “cristianismo” e
A r is t ó t e l e s ,
que nutriam suspeitas com respeito a quaisquer
“judaísmo” , respectivamente). Paulo também
ameaças em potencial à ordem da sociedade
está consciente de que o ostracismo social que
(e.g., o culto socialmente perturbador de Dioní
os judeus e 6s cristãos muitas vezes enfrentavam podia ficar bem pior caso o resuhado do próprio
sio, no século II a.C.). e ii, muitos aristocratas roma
julgamento estabelecesse um precedente negati
nos (e.g., Petrônio e Juvenal) encontraram mo
vo para cristãos de outras regiões (Fp 1.7, dirigida
tivos para denegrir os grupos religiosos vindos
a uma congregação que incluía alguns cidadãos
do Oriente, especialmente quando esses grupos
romanos, como ele próprio). Assim como os re
convertiam mulheres romanas e subvertiam os
presentantes de outros grupos religiosos existen
valores romanos tradicionais. No século i, alguns
tes no império, que sofriam com a desconfiança
escândalos de grande repercussão envolvendo
dos romanos, Paulo tinha bons motivos estraté
Nos séculos
I
mulheres, ocorridos em Roma e provocados por
gicos para manter os valores familiares romanos
judeus e seguidores de ísis, resultaram em repre
tradicionais.
An, 2.85; Jo
À primeira vista, pode parecer que Paulo faz
An, 18.3.4, § 64-80). Para provar que não
apenas isso, e, diante da situação social, não é de
estavam subvertendo os valores familiares tradi
surpreender que o apóstolo apresente códigos do
cionais dos romanos, os grupos suspeitos cria
mésticos em suas três categorias básicas: relações
vam conjuntos próprios de códigos domésticos,
entre marido e mulher, entre filhos e pais e entre
sálias por parte do governo sefo ,
( T á c it o ,
seguindo os modelos propostos pelos filósofos
escravos e senhores. iVIas ao contrário de nossas
morais: instruções sobre como cada chefe devia
expectativas e de maneira significativa, Paulo
governar a esposa, os filhos e os escravos
( J o sefo,
faz uma adaptação a essa lista. É verdade, sim,
para uma exten
que mulher, filhos e escravos devem se submeter
sa exposição sobre os códigos familiares de Aris
e, dessa maneira, calar as objeções culturais ao
tóteles por meio de Josefo).
evangelho (aqui submissão é “ no temor de Cris
Co Áp, 2.25-31, § 201-7; v.
3.2
B alch
Efésios 5.22-33. Alguns estudiosos afir to” , i.e., “ por causa do Senhor” , Ef 5.21; 6.5-8).
mam que 0 Paulo original (conforme refletido
Mas para Paulo uma ética verdadeiramente cristã
em Rm 16.3-15; Fp 4.2,3) preservou o espírito de
compatível com o ensino e o exemplo de Jesus
igualitarismo de Jesus, mas que a segunda e a
acerca do serviço vai além disso: o chefe da casa
terceira gerações de discípulos do apóstolo (re
também deve se submeter. Que Paulo exija isso
fletidas nas cartas aos colossenses e aos efésios
do pater famílias é algo que está implícito de vá
e nas Cartas Pastorais, respectivamente) foram
rias maneiras, e a distinção entre essa ideia e a
cada vez mais impondo submissão às mulheres,
ordem antiga e mais usual de que o chefe da casa
enquadrando-as assim nos padrões de sua cul
estivesse no controle deve ter sido clara para os
tura. Embora esse ponto de vista tenha alguns
leitores de sua época.
elementos a seu favor, ele repousa sobre duas
Em primeiro lugar, Paulo apresenta sua estru
hipóteses que precisam de comprovação: a pri
tura dividida em três partes, uma forma bem in
meira é que os escritos canônicos paulinos poste
comum. Como ápice de suas exortações, em que
riores não são autênticos; a segunda consiste em
descreve uma vida cheia do Espírito (Ef 5.18-21),
uma leitura singular dessas cartas posteriores. 0
Paulo conclama todos os crentes a se submeter
texto de Efésios não dá apoio à ideia de que seu
uns aos outros (Ef 5.21). É verdade que o contex
autor se tornou mais machista que o Paulo das
to a seguir dehneia diferentes formas de submis
cartas anteriores.
são, todas em conformidade com os diferentes
Pressupondo-se que Efésios seja da autoria
papéis sociais, mas a própria ideia de submissão
de Paulo, ela foi escrita por um prisioneiro que
mútua forçava o sentido usual do termo: às vezes.
961
M u lh er e s i i : P a u lo
o chefe da casa é aconselhado a se mostrar mais
os códigos domésticos exigiam bem mais da es
sensível em relação à esposa, aos filhos e aos es
posa que simples respeito. Todavia, mesmo nessa
cravos, porém jamais lhe é dito que se submeta a
situação social, a ideia de Paulo acerca da subor
eles. É evidente, quando lemos sua exortação em
dinação das mulheres por certo não era muito
Efésios 6.9, que Paulo entendia que essa submis
mais fraca.
são mútua devia abranger também o relaciona
Em quarto lugar, a subordinação da mulher ao
mento entre escravo e senhor. Depois de explicar
marido encontra um paralelo direto com a subor
como e por que os escravos devem se submeter
dinação do escravo a seu senhor — em ambos os
(Ef 6.5-8), ele conclama os senhores a agir com os
casos, aquele que se submete “a Cristo” , o qual
escravos “de igual modo”
ideia que, levada
é igualmente comparado ao senhor do escravo e
ao pé da letra, vai além de qualquer outro texto
ao marido. Hoje em dia, a maioria dos intérpretes
antigo que tenha sobrevivido até os dias de hoje.
reconhece que Efésios 5.5-9 não trata da institui
Em segundo lugar, os deveres alistados são
ção social da escravatura: apenas aconselha os
recíprocos. Enquanto a maioria dos códigos do
escravos nessa situação. A semelhança de alguns
mésticos simplesmente se dirigia ao chefe da
filósofos estoicos, Paulo podia recomendar aos es
casa, instruindo-os sobre como governar os ou
cravos que buscassem a própria liberdade quan
tros membros da famflia, Paulo primeiramente se
do isso fosse possível (ICo 7.21,22). E, da mesma
( /u m ) ,
dirige às esposas, aos filhos e aos escravos. Longe
forma que uns raros filósofos, que Aristóteles cri
de instruir o pater famílias sobre como governar
ticou por sugerirem que a escravidão era contrária
sua esposa, filhos e escravos, ele evita qualquer
à natureza e, portanto, errada, Paulo claramente
exortação ao governo da casa e simplesmente
considerava como não natural a subordinação
o aconselha a amar a esposa (sem dúvida uma
de um ser humano a outro (Ef 6.9). Enquanto
prática comum, mas raramente prescrita), a ser
0 AT ordenava a obediência dos filhos à instru
contido na disciplina dos filhos e a considerar os
ção moralmente sadia dos pais (Dt 21.18-21),
escravos pessoas iguais perante Deus. Dificilmen
em nenhum lugar o
te essas prescrições seriam encontradas em um
as esposas e os escravos sejam submissos, embora
at
ordena explicitamente que
código doméstico comum, embora alguns dos fi
eles regularmente apareçam em papéis culturais
lósofos antigos também exortassem moderação e
de subordinação, que às vezes Deus transgrediu.
tratamento justo dos subordinados. A esposa, os
Paulo aconselha, sim, as esposas e os escravos de
filhos e os escravos devem mostrar-se voluntaria
sua cuhura a se submeter em algum sentido, mas
mente submissos.
com isso não está aprovando as instituições do
Em terceiro lugar, Paulo não relaciona os de
casamento patriarcal ou da escravidão, as quais
veres que estão vinculados à submissão. O lei
fazem parte da autoridade do pater famílías e dos
tor da época poderia, então, ser tentado a ler a
códigos domésticos com os quais tinha de hdar.
submissão da esposa com o sentido de tudo o
Tem se observado que as instruções de Paulo a
que isso imphcava naquela cultura, o que envol
esposas e escravos se limitavam a esposas e escra
ve, como já ressahamos, consideravelmente mais
vos culturalmente subordinados ao homem que
subordinação que qualquer intérprete cristão da
era o chefe da casa (e.g.,
atualidade aplicaria às mulheres de hoje. (Aplicar
p. 43). A objeção de que Paulo poderia ter rejei
0 texto dessa maneira significaria terem as mu
tado a instituição da escravatura, mas que sem
lheres raras oportunidades de estudar em uma fa
dúvida teria apoiado a instituição do casamento
M a r t in ,
p. 206-31;
G il e s ,
culdade, privUégios de votos cancdados, e assim
( K n ig h t ,
por diante). Entretanto, Paulo define, sim, uma
principal. 0 que Paulo tem em vista aqui não é
vez, o que vem a ser a submissão da esposa em
a instituição do casamento em si, mas a instítui-
um lugar estratégico: no resumo da conclusão de
ção do casamento patriarcal. Era o que aparecia
seu conselho aos casais. Espera-se que a esposa
nos códigos domésticos. Em outra passagem, o
p. 21-5), simplesmente foge à questão
“respeite” (Ef 5.33) o marido. Embora se possa
apóstolo conclama os crentes a se submeter, em
empregar o termo geralmente traduzido por “ sub
circunstâncias normais, a todos os que estão em
missão” com 0 sentido mais fraco de “respeito” .
posição de autoridade (Rm 13.1-7), como Pedro
962
M u l h er e s i i : P a u l o
também o faz (IPe 2.13-17], mas isso não significa
Em breve carta de recomendação, na conclu
que ele considere certas estruturas de autoridade
são de Romanos, Paulo elogia a portadora de sua
(e.g., monarquia) necessárias a todas as culturas.
carta, em cuja capacidade para explicar a carta
Pelo fato de as instruções de Paulo contemplarem
os romanos podem confiar (Rm 16.1,2). Febe é
as instituições exatamente como existiam na épo
“serva” da igreja em Cencreia, a cidade portuária
ca, os intérpretes do apóstolo que não insistem na
de Corinto, e o termo talvez se refira a um “diá
reinstituição da escravatura ou da monarquia tam
cono” [diakonos], aparentemente alguém com
bém não devem insistir no casamento patriarcal,
responsabihdade administrativa na igreja primi
que impõe submissão à esposa. Aliás, levando-se
tiva. Entretanto, nas cartas de Paulo, o vocábulo
em conta que, para a submissão da esposa, Paulo
geralmente se refere a um ministro da palavra
oferece a débil definição de “respeito” (Ef 5.33; v.
de Deus, como o próprio apóstolo. Ele também
acima), parece que o apóstolo defendia a submis
a chama “ protetora” de muitos, termo que na
são feminina apenas até certo ponto, mesmo na
Antiguidade normalmente designava benfeitores,
situação social em que ele vivia.
alguns dos quais eram mulheres. Na condição de benfeitora, além de ser a dona da casa em que
4. Paulo e o ministério feminino 4.1
a igreja se reunia, ela ocupava uma posição de
Passagem em que Paulo aprova o minis honra (v. tb.
tério das mulheres. Embora algumas mulheres
K ee n er ,
1992. p. 237-40).
Nas saudações que faz em seguida (Rm 16.3-
gregas e romanas tenham se tomado filósofas,
15), Paulo cita cerca de duas vezes mais homens
geralmente se reservava aos homens uma edu
que mulheres, porém elogia duas vezes mais as
cação mais refinada em retórica e filosofia. Em
mulheres que os homens. Isso pode indicar sua
uma sociedade em que
maioria das pessoas era
sensibilidade diante da oposição que, em alguns
semianalfabeta, especialmente a população cam
lugares, elas sem dúvida enfrentavam no exercício
pesina, que talvez representasse 90 % da popula
de seu ministério. Dentre as ministras mais impor
ção do império, a função do ensino naturalmente
tantes que ele menciona está Prisca (diminutivo
recairia
e
de Priscila), cujo nome possivelmente aparece à
fontes judaicas
frente do nome de seu marido, Áquila, por causa
sugerem que esses papéis eram, com raras exce
da posição social mais elevada que ela desfrutava
a
s o b r e a q u e le s q u e e r a m
falar bem. Quase todas ções. hmitados
a
capazes
as n o s s a s
de ler
homens.
(Rm 16.3.4). Lucas também a apresenta como co
Algumas inscrições encontradas em sinagogas
lega de ministério de seu marido, tendo-o ajudado
antigas revelam que as mulheres desempenhavam
a instruir outro ministro, Apoio (At 18.26).
um papel de proeminência em algumas sinagogas (v.
B ro o ten ) ,
Paulo também relaciona dois colegas após
mas as mesmas inscrições mostram
tolos (a maneira mais natural de interpretar
que essa era a exceção, não a regra. Nossas fon
“os quais se destacam entre os apóstolos” , uma
tes revelam que a maioria dos homens judeus,
vez que em oenhum outro lugar Paulo recorre a
como Filo, Josefo e muitos rabinos posteriores,
menções favoráveis da parie dos “apóstolos”),
refletiam o preconceito de boa parte da cultura
Andrônico e Júnias. Júnias sem dúvida é nome
mais ampla dos gregos e romanos. Na maioria
de mulher, mas alguns estudiosos que tendem a
dos casos, Josefo [An, 4.8.15, § 219) e os rabinos
duvidar que Paulo pudesse ter se referido a uma
desconfiavam da fidedignidade do testemunho de
apóstola têm proposto que o nome é uma forma
mulheres, e, com as possíveis exceções de Beru
contraída do nome masculino latino Juniano.
ria, esposa do rabi Meir, e as seguidoras de Jesus
Mas essa contração não ocorre em inscrições en
(Mc 15.40-41; Lc 8.1-3; 10.38-42), parece que elas
contradas em Roma e, de qualquer forma, o nome
nunca atingiram a condição de mestras ou de dis
Juniano é bem raro em comparação com a forma
cípulas (v.
. Enquanto os papéis das mu
feminina do nome. A proposta apoia-se apenas
lheres variavam de uma região para outra, certas
na suposição de que uma mulher não podia ser
passagens paulinas deixam claro que ele estava
apóstola, não em algum dado inerente ao texto.
S w id l e r )
entre os autores mais avançados — não entre os
Em outra carta, Paulo refere-se ao minis
mais machistas — de sua época.
tério de duas mulheres em Filipos, as quais, à
963
M u l h er e s i i ; P a u l o
por sexo, como era praxe nas sinagogas, para
semelhança de muitos homens de ministério do sexo masculino, ali participavam do trabalho do
evitar que a comunicação entre os sexos pertur
apóstolo pela causa do evangelho (Fp 4.2,3).
basse o culto, mas essa ideia é refutada pela ar
A Macedônia era uma das regiões nas quais as
quitetura das sinagogas do período
mulheres exerceram os papéis rehgiosos mais
dos lares como aqueles em que a igreja coríntia
proeminentes
(B
r o o te n)
e
e para as colegas de
se reunia. Outros ainda, examinando o contexto,
ministério de Paulo isso pode ter tornado mais
acreditam que Paulo esteja se referindo a mulhe
fácil 0 acesso a uma posição de proeminência (v.
res que faziam mau uso dos dons do Espírito ou
(A
braham sen),
então de um problema relativo ao julgamento das
tb. At 16.14,15). Paulo, que na ordem de importância situa os
profecias. Ainda que, com base no contexto, seja
profetas em segundo lugar, logo após os apóstolos
possível defender ambos os pontos de vista, na
(ICo 12.28), pressupõe a existência de profetisas
Antiguidade os escritores em geral e Paulo em
e exige apenas que elas, à semelhança das ou
particular tinham o hábho de fazer digressões, e
tras mulheres da congregação, cubram a cabeça
pode ser que ICorintios 14.34,35 represente ape
(ICo 11.S). Nisso ele segue a tradição do
(épo
nas uma digressão sobre uma questão específica
ca em que as mulheres cumpriam a função pro
de ordem eclesiástica, sem nenhuma relação com
fética, porém não com a mesma regularidade que
outros assuntos também de ordem eclesiástica
05 homens; ainda assim podiam atingir posições
que aparecem no contexto.
at
de proeminência e autoridade; e.g., Êx 15.20;
O mais provável é que Paulo esteja restringindo
Jz 4.4; 2Rs 22.13,14) e de outros elementos do
o único tipo de intervenção no culto diretamen te tratado nesses versículos; as perguntas
cristianismo primitivo (At 2.17,18; 21.9).
(G
il e s ,
Apenas esses textos são suficientes para situar
p. 56). No mundo antigo, era comum os ouvintes
Paulo entre os autores mais avançados de sua
interromperem os mestres com perguntas, mas, se
cuhura, mas é preciso examinar outras passagens
as perguntas refletissem ignorância sobre o assun
antes que se possa decidir quão avançado ele era.
to, a interrupção era tida por grosseria (v.
E são essas passagens as que têm suscitado maior
co,
controvérsia.
eram, de modo geral, consideravelmente menos
4.2
P lutar
Acerca de preleções). Uma vez que as muhieres
Passagens em que Paulo parece restringir instruídas que os homens, Paulo propõe uma so
o ministério das mulheres. Embora as duas pas
lução de curto prazo e uma de longo prazo para
sagens a seguir sejam objeto de um desnorteante
o problema. A solução de curto prazo é que as
número de interpretações, nenhuma delas é uni
mulheres parem de fazer perguntas que venham
versalmente aceita como paulina. Tem se ques
a perturbar a reunião; a solução de longo prazo é
tionado não apenas a autoria de ITimóteo, mas
que elas sejam instruídas, recebendo ensino par
também a de ICorintios 14.34,35. Com base em
ticular por parte dos maridos. A maioria dos ma
prova textual (reconhecidamente frágil), alguns
ridos da época duvidava do potencial intelectual
proeminentes críticos textuais negam que a última
das esposas, mas Paulo estava entre os autores de
passagem seja paulina, crendo que, era vez disso,
sua época mais avançados sobre o assunto. A so
outra pessoa a tenha inserido
lução pauhna de longo prazo afirma a capacidade
(F
ee,
p. 699-705).
Embora isso seja possível, pode se exphcar a pas
de aprendizado das mulheres e as deixa em pé de
sagem como uma digressão de Paulo sobre deter
igualdade com os homens (v. uma exposição mais
minado aspecto da ordem na igreja pertinente ao
completa em K e e n e r , 1992, p. 80-5).
povo de Corinto.
‘
Contudo, em qualquer interpretação que se
^
Em vez de questionar a autoria da passagem,
aceite, dois pontos estão muito claros. Primeiro:
alguns intérpretes entendem que aqui Paulo está
é perceptível que Paulo não determina o silêncio
chando uma postura dos coríntios (ICo 14.34,35),
absoluto das mulheres, visto que anteriormen
a qual ele então refuta (ICo 14.36), mas 1Corín
te, na mesma carta, ele espera que elas orem e
tios 14.36 não soa naturalmente como a refutação
profetizem publicamente, tanto quanto os ho
de ICorintios 14.34,35. Para outros estudiosos, as
mens (ICo 11.4,5). Desse modo, ele deve estar
pessoas, nos cultos da igreja, estavam divididas
ordenando que se faça silêncio em relação a
964
M u lh er e s i i : P a u l o
determinada forma de falar. Segundo: no contex
homicida” ou “proclamar-se criadora”. Uma vez
to, não existe nada que apoie a ideia de que Paulo
que para alguns gnósticos do século ii Eva tinha
esteja se referindo ao ensino das Escrituras pelas
dado origem ao homem, é possível que ITimóteo
mulheres. A única passagem em toda a Bíblia que
estivesse refutando um mito gnóstico
pode ser citada a favor desse ponto de vista é
K
ITimóteo 2.11-14.
tável erudição e até mesmo propõem que parte
roeger
(K
roeger
&
defendem esse ponto de vista com no
Em ITimóteo 2.8-15, Paulo (acerca da autoria,
dessa passagem cita uma fonte gnóstica a fim de
aparentemente trata do com
refutá-la). Essa hipótese funcionaria bem se IT i
V. C a r t a s P a s t o r a is )
portamento apropriado e decente que homens e
móteo tivesse sido escrita no século ii por outra
mulheres devem ter quando oram. Paulo começa
pessoa que usou o nome de Paulo (algo em que
falando acerca dos homens das igrejas de Éfeso,
muitos estudiosos acreditam, mas os Kroegers
os quais estão aparentemente envolvidos em al
não). No entanto, se a carta foi escrita por Paulo
gum conflito não condizente com a condição de
ou por seus amanuenses, o termo provavelmente
adoradores de Deus (ITm 2.8). Então, em uma
tem o sentido de “ter autoridade” ou (mais prova
passagem
v e lm e n te )
m a is
longa, ele passa
b le m a s e m q u e a s m u lh e r e s
a
dessas
tratar de pro
"apoderar-se de autoridade”.
con g reg a ções
E n t r e t a n t o , o c o n t e x t o s o c ia l d a c a r t a t a l v e z
estão envolvidas. Como já dissemos, no Oriente,
ofereça uma base mais frutífera que as amplas
as mulheres de condição econômica mais baixa
possibilidades léxicas para solucionar a questão
costumavam cobrir a cabeça, mas nas congrega
do significado do texto. Paulo e seus leitores,
ções urbanas de Éfeso por certo havia mulheres
quando ham o texto, pressupunham essa situa
de posição social mais elevada que ostentavam
ção, e, desse modo, a situação que deu origem à
sua condição pela forma sofisticada de pentear o
resposta de Paulo faz então parte do significado
cabelo. Para as mulheres mais pobres da congre
que ele quis transmitir. Algumas pistas no texto in
gação, o guarda-roupa das mais ricas representava
dicam a seguinte shuação: falsos mestres homens
ostentação e sedução em potencial, de modo que
(ITm 1.20; 2Tm 2.17) vinham introduzindo uma
Paulo 0 condena, ao tomar emprestado a hngua
heresia perigosa na igreja de Éfeso (ITm 1.4-7;
gem comum dos moralistas de sua época (ITm
6.3-5), 0 que em geral começavam a fazer depois
2.9,10;
de convencer as mulheres da igreja, pois era di
ScHOLER,
p. 3-6;
K
eener,
1992, p. 103-7).
Depois de pedir às mulheres da congregação
fícil fiscalizá-las, uma vez que ficavam mais res
que se apresentassem da maneira devida, ele as
tritas à esfera doméstica (2Tm 3.6,7). Pelo fato
proíbe de “ensinar de forma que assumam autori
de as mulheres ainda não estarem bem treinadas
dade" (lendo os verbos “ensinai", didasko, e "as
nas Escrituras (v. acima), eram muitíssimo susce
sumir autoridade”, authenteõ, em conjunto, como
tíveis aos ensinos dos falsos mestres e acabavam
fazem muitos estudiosos, embora possam ser li
se tornando a rede por meio da qual eles tumul
dos como proibições distintas). Tem se debatido
tuavam os lares (ITm 5.13; cf. ITm 3.11). Tendo
o sentido exato desse raro termo grego que aqui
em vista que a sociedade romana tinha a percep
significa “assumir autoridade”. Alguns estudiosos
ção de que os cristãos constituíam um cuho sub
sugerem que o termo significa simplesmente “ter
versivo, não se podia permitir (cf. ITm 3.2,7,10;
autoridade” e que, desse modo, a passagem ex
5.7,10,14; 6.1; Tt 1.6; 2.1-5,8,10; cf. P a d c e t t , p. 52;
clui as mulheres de exercer qualquer autoridade
K
na igreja. Outros têm demonstrado que na épo
so que minasse as estratégias de Paulo para o tes
ca 0 verbo era bastante usado com sentido mais
temunho público da igreja (v. acima comentário
forte e pode significar “apoderar-se de autorida
sobre Ef 5—6).
eener,
1991, p. 85-7;
V
erner)
nenhum ensino fal
de”. Nessa leitura, Paulo está apenas proibindo as
Seja porque as mulheres não tinham instru
mulheres de usar qualquer forma de dominação
ção e dessa maneira eram suscetíveis a erro, seja
para obter autoridade, atitude que teria igual
porque o fato de se apoderarem de autoridade
mente reprovado nos homens. Há também quem
teria prejudicado o testemunho da igreja em uma
recorra a exemplos do campo semântico e pro
situação social tensa, seja (o que é mais prová
ponha sentidos como “dominadora de maneira
vel) porque ambas as coisas ocorriam, a situação
965
M u lh er e s i i : P a u l o
específica tratada por Paulo dá margem a sua res
situação das mulheres de Éfeso, a quem ele está
posta. Mais uma vez, Paulo oferece uma solução
se dirigindo, as quais são facilmente enganadas
de curto prazo e uma de longo prazo. A solução
pelo fato de não serem instruídas. Em outra pas
de curto prazo é que elas não devem assumir
sagem, Paulo usa o exemplo de Eva para se referir
funções de direção como mestras na igreja. A so
a qualquer um que seja enganado, não apenas as
lução de longo prazo é que lhes seja permitido
mulheres (2Co 11.3). Finalmente, é possível que
aprender. Mais uma vez, Paulo declara que elas
ITimóteo 2.15 tenha como objetivo tornar mais
são capazes de aprender, e propõe que instruí-las
explícitos os versículos precedentes, embora haja
é uma solução de longo prazo para o problema
considerável debate sobre seu significado (a vin
existente. 0 fato de que elas devem “aprender
da da salvação, que se deu apenas porque Maria
em silêncio, com toda a submissão” pode estar,
deu à luz, talvez como a nova Eva; a submissão
de novo, refletindo o testemunho delas dentro
das mulheres aos papéis tradicionais, como dar à
da sociedade (era o que normalmente se espe
luz; 0 simples fato de uma mulher dar à luz com
rava das mulheres), mas deve se assinalar que
segurança, desafiando a maldição do Éden).
era dessa maneira que todos os novatos deviam
Outras passagens pauhnas que claramente
aprender, o que também caracteriza o compor
demonstram que ele aprova o ministério femini
tamento desejado de toda a igreja (ITm 2.2).
no da Palavra de Deus (acima) indicam que IT i
0 fato de Paulo dirigir essas admoestações às
móteo 2.9-15 (caso seja, conforme pressupomos
mulheres, em vez de falar aos homens, é algo
aqui, uma passagem genuinamente paulina) não
determinado pela situação social tanto quanto
pode proibir o ministério das mulheres em todas
a admoestação aos homens para que deixem
as situações, mas se limita à situação de Éfeso e
de lado a discórdia (ITm 2.8). É óbvio que ele
talvez de outras congregações que enfrentavam
também não desejava que as mulheres conten
crises semelhantes nesse período da história da
dessem, mas se dirigia apenas aos que estavam
igreja. Os textos paulinos que tratam dos papéis
envolvidos no problema.
das mulheres na igreja e no lar recomendam a Paulo um lugar entre os mais avançados escrito
Essa solução pode parecer bastante previsível,
res da Antiguidade.
a ponto de tornar o debate supérfluo, não fosse
0 argumento que Paulo apresenta a seguir, pelo
DPC
a u t o r id a d e ;
colaboradores,
P
au lo
e
seus;
qual parece fundamentar nos papéis de Adão e
c a b e ç a ; c asas
Eva (ITm 2.13,14) suas admoestações às mulhe
v O r c io , a d u l t é r io e in c e s t o ; s e x u a l id a d e , ê t ic a s e x u a l .
e c ó d ig o s
d o m é s t ic o s ; c a s a m e n t o
e d i-
res. O que se deve indagar é se Paulo apresenta A brahamsen , V. A . The rock reliefs and
esses exemplos como algo fundamental para seu
B ib u o g r a fia .
raciocínio ou se consthuem apenas um argu
the cult of Diana at Philippi- 1986. T e se . (D o u to
mento ad hoc para apoiar esse raciocínio. Aqui
r a d o em t e o lo g ia .) — H a r v a r d D iv in ity S c h o o l,
(ITm 2.13) seu argumento baseado na ordem da
1986. ■ B alch , D . L. Let wives be submissive: th e
criação não é mais simples e direto do que na
d o m e s t ic c o d e in 1 P eter. C h ic o : S c h o la r s , 1981.
26.) ■ B ilezikian , G . Beyond sex roles: w h a t
ocasião em que ele o empregou para sustentar a
[s b lm s ,
ideia de que as mulheres deviam cobrir a cabeça
th e B ib le s a y s a b o u t a w o m a n ’ s p la c e in c h u r c h
(ICo 11.7-9). Seu argumento baseado no fato de
a n d fa m ily . G r a n d R a p id s : B a k e r, 1986. • B rooten ,
Eva ter sido enganada torna ainda mais provável
B. J. Women leaders in the ancient synagogue: in s-
que seja um argumento ad hoc. Se ele afirma que
c r ip tio n a l e v id e n c e a n d b a c k g r o u n d is s u e s . C h ic o :
o engano de Eva impede que fodâs as mulheres
S c h o la r s , 1982. ■ F ee , G . D . The First Epistle to
ensinem, então está querendo dizer que todas as
the Corinthians. G r a n d R a p id s : E e r d m a n s , 1987.
mulheres, à semelhança de Eva, são mais facil
( m cn t .) ■ F itzmyer , J . A . A n o th e r lo o k a t
mente enganadas que os homens. Se o engano
in 1 C o r in th ia n s 11.3.
n ts , v .
k e p h a le
35, p . 503-11, 1989.
não se aplica a todas as mulheres, também não
■ G ardner , J. Women in Roman law and society.
se aplicaria a todas as mulheres a proibição de
B lo o m in g to n : I n d ia n a U n iv e rs ity P r e s s, 1986. ■ K . Created woman: a fr e sh s t u d y o f th e b i
ensinar. É bem mais provável que, em vez dis
G ile s ,
so, Paulo esteja usando Eva para ilustrar a difícil
b lic a l t e a c h in g . C a n b e r r a : A c o rn , 1985. • G rudem ,
966
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A
tos,
H
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Muitas vezes, não se menciona o nome dessas
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R. Women in pubhc
mulheres: são em geral indicadas pelo tipo de
in the Roman Empire. Historia, v. 29, p. 209-18,
ministério, por sua posição social ou pelo estado
1980. ■
C. J. The Haustafein (household
civil. Às vezes, há indícios de um envolvimen
codes) in African American bibhcal interpreta
to mais profundo na hderança. embora isso seja
tion: “free slaves” and "subordinate women". In:
algo que nâo se possa demonstrar com seguran
FKO wiTz, M .
F e ld e r ,
R. & F a n t ,
ulh e r e s iii;
M .
I V I a c M u lle n ,
M a r t in ,
ça. Mesmo assim, deve se reconhecer e explorar
C. H„ org. Stony the road we trod: African
American bibhcal interpretation. Minneapohs: For
tais possibilidades.
tress, 1990. p. 206-31. • M e e k s , W. A. The image of
1. As mulheres como líderes em Atos
the androgyne: some uses of a symbol in earliest
2. 0 ministério de Paulo entre as mulheres
Christianity. History of Religions, v. 13, p. 165-208,
em Atos
1974. ■ M ic k e ls e n , A., org. Women, authority and
3. Priscila: um caso que ajuda a resolver ou
the Bible. Downers Grove: InterVarsity, 1986. ■ P a d g e tt,
A. The Pauline rationale for submission:
tros casos semelhantes 4. As mulheres no ministério profético
biblical feminism and the hina clauses of Titus
5. As mulheres nas tradições evangelísticas
2:1-10. EvQ,
6. As mulheres como hderes das igrejas nas
S u lliv a n ,
V.
59, p. 39-52, 1987. ■ P e r a d o t t o , J. &
J. P., orgs. Women in the ancient world:
casas
the Arethusa papers. Albany: State University of
7. Viúvas e mulheres sem direitos civis
New York, 1984.
8. Mulheres casadas e solteiras
[ s u n y .)
■ P o m e r o y , S. B. Goddes
ses, whores, wives, and slaves: women in classical antiquity. New York: Schocken, 1975. • R a w s o n , B.
1. As mulheres como líderes em Atos
The Roman family. In:
Em todo 0 livro de Atos. há uma cuidadosa in
R aw son,
B., org. The family
in ancient Rome: new perspectives. Ithaca: Cornell
clusão de homens e também de mulheres, tanto
967
M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e
na condição de crentes (At 5.14; 8.12; 17.4,12)
indecente e destrutiva, obscenidade, nudez,
quanto em circunstâncias de perseguição (At 8.3;
promiscuidade e gritos rituais eram compo
9.2,3; 22.4). Nada menos que onze mulheres
nentes importantes dos cultos de que elas par
são mencionadas pelo nome, e cinco se acham
ticipavam. Alguns desses elementos estão bem
envolvidas em ministérios relacionados à igreja.
ilustrados no famoso afresco que retrata uma
Depois da ascensão de Cristo, Maria, a mãe de
iniciação dionisíaca na vila dos Mistérios, em
Jesus, e as mulheres com quem estava associa
Pompeia. Naquela região, em certas rehgiões
da participam da decisão de escolher aquele que
de êxtase (v. ICo 12.2), as mulheres despeda
substituiria Judas entre os Doze (At 1.14). Exi
çavam crias de animais e consumiam a carne
gia-se como qualificações para ser apóstolo que
ainda crua, quente e estremecendo. Seria extre
o candidato tivesse convivido com Jesus durante
mamente difícil incorporar essas pessoas a uma
todo o seu ministério e testemunhado sua ressur
comunidade de adoração sem afrontar seria
reição (At 2.21,22). Embora não se tenha escolhi
mente as sensibilidades dos demais.
do uma mulher para a função, o registro de Lucas
No final da primeira viagem missionária de
deixa claro que algumas das seguidoras de Jesus
Paulo, ele e Barnabé foram convocados a Jeru
cumpriam as exigências (ICo 8.1-3; 23.49,55,56;
salém para decidir como os gentios poderiam
24.1-10). Em outra situação, uma mulher, Dor-
ser integrados nas comunidades de fé compos
cas, é chamada "discípula” porque seu ministério
tas em grande parte por judeus e proséhtos. Cer
de alcance social e espiritual a tornava pessoa de
tas práticas foram proscritas, especialmente a
imenso valor para a igreja nascente. E, quando
idolatria, a imoralidade e o ato de comer sangue
de sua morte prematura, ela foi restaurada à co
(At 15.20,29). Levando consigo essas decisões,
munidade que tão desesperadamente carecia de
Paulo retornou a todas as igrejas que havia vi
seus serviços (At 9.36-41).
sitado na primeira viagem e explicou a decisão do Concího de Jerusalém (At 15.36). Depois
2. O ministério de Paulo entre as mulheres
disso, melhorou muito seu relacionamento com
em Atos
as mulheres de boas maneiras, como aquelas
Lucas assinala a reação das mulheres em relação
que haviam protestado tão veementemente con
ao apóstolo Paulo. Quando ele chegou a Antio
tra seus esforços missionários em Antioquia
quia da Pisídia. recebeu as boas-vindas na sina
da Pisídia. Seu primeiro contato em Filipos foi
goga e foi incentivado a voltar no sábado seguinte
principalmente com mulheres, e Lídia, a primei
(At 13). A congregação, constituída de judeus,
ra pessoa a se converter, tornou-se a líder de
proséhtos e tementes a Deus, ficou ofendida com
uma igreja domicihar (At 16.12-15,40). Embora
0 comportamento dos gentios que participaram
Paulo tivesse recebido a visão de um homem
do culto no sábado seguinte. Os que estavam
macedônio, que o chamava para aquela região,
acostumados a adorar na forma ordeira dos ju
os primeiros alvos de seu ministério ali foram
deus ficaram irados com o ochlos dos pagãos. (O
as mulheres.
termo grego pode ser usado para designar uma
Algumas mulheres gregas de grande proemi
multidão e também o comportamento desordei
nência receberam alegremente a mensagem de
ro de que ela é capaz; v. At 19.26; 24.12.) As
Paulo em Tessalônica (At 17.4) e em Bereia, onde
mulheres de boas maneiras [euschemonaí] que
a reação delas é assinalada antes da atitude dos
participavam da vida calma da sinagoga ficaram
homens (At 17.12). Em Atenas, o centro intelec
particularmente indignadas, talvíz com a con
tual do mundo antigo, uma mulher de nome Dâ-
duta das mulheres pagãs, e insistiram que Paulo
maris se converteu. Provavelmente, ela era uma das cortesãs {hetairaí) e bastante culta, pois essas
fosse expulso da cidade (At 13.50). Um conhecido tema hterário e artístico (e.g., Ju v e n a l ,
Sá, 6;
P
lu tar c o ,
M u vi, 13; Mo;
D
io d o -
mulheres são associadas a várias escolas de fi losofia. A presença de Dâmaris no círculo aca
Bb hi, 4.3.2) era a rejeição aos pa
dêmico do Areópago indica que ela estava bem
drões de adoração ofensivos e descontrolados
preparada para acompanhar o raciocínio de Paulo
das mulheres não judias. Embriaguez, conduta
e chegar a uma conclusão própria (At 17.34).
R o S íc u L o ,
968
M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
3. Priscila: um caso que ajuda a resolver
lhe proporcionaram um nível mais elevado de
outros casos semelhantes
instrução.
Em Atos 18, temos o primeiro encomro com Pris
Aparentemente, Priscila tinha uma mente ex
cila, uma importante mulher associada ao após
cepcional e uma educação excelente a ponto de
tolo Paulo e eia própria uma corajosa defensora
ter influenciado Apoio, alguém com tanto conhe
do evangelho. Casada com um judeu originário
cimento. A partir de então. Apoio “com grande
do Ponto, na Ásia Menor, aparentemente ela era
poder refutav^ pubhcamente os judeus, demons
natural de Roma, de onde o casal havia sido ex
trando pelas Escrituras que Jesus era o Cristo”
pulso por causa da perseguição promovida pelo
(At 18.28). Por esse motivo. Crisóstomo chamou
imperador Cláudio. O nome do marido, Áquila,
Priscila de “ mestra dos mestres” , uma evidência
que podia também ser o nome de um cidadão
de que ela realizou a mesma obra evangelísti
de Roma, era mais corriqueiro como nome de
ca de seu marido
escravo e talvez indique que ele fosse um liber
cimento do grande zelo que ela manifestou
to empreendedor. Príscila era um nome comum
62.658A; 51.187).
(pg,
60.281D) e um reconhe (pg ,
entre as mulheres da aristocracia romana, talvez
Quando Apoio manifestou o desejo de prosse
denotando que ela não fosse judia de nascimento
guir com seu esforço evangelístico na Grécia, os
e desfrutasse de uma posição social mais elevada.
crentes de Éfeso, entre os quais mais se destaca
Marido e mulher receberam o apóstolo Paulo
vam Priscila e Áquila, deram-lhe cartas de reco
em casa, em seu negócio (o de fazer tendas) e
mendação. A recepção que ele teve com certeza é
na comunhão e ministério cristãos. É bem possí
sinal da confiança que a comunidade cristã tinha
vel que também tenham estendido hosphalidade
em Priscila e Áquila. Aparentemente, eles eram
a Timóteo e a Silas (At 18.5). A mobihdade de
bem conhecidos e respeitados em todo o mundo
Priscila e de Áquila em viagens missionárias pode
pauhno como “cooperadores” que haviam arris
revelar que tinham uma rede de estabelecimen
cado a vida por amor ao apóstolo (Rm 16.3,4). A.
tos da família que abrangia as cidades de Roma
von Harnack foi um dos primeiros a propor
(At 18.2; Rm 16.3-5), Corinto (At 18.2), Éfeso
que Priscila e Áquila podem ter sido os autores da Hebreus, proposta que recebeu o apoio
(At 18.18,19) e talvez outros lugares. Negócios
C arta
com fihais em locais distantes são bem documen
de J. H. Moulton, F. M. Schiele, A. S. Peake, J.
tados no mundo antigo.
R, Harris e outros. No raciocínio de Harnack, se
aos
No final da primeira visita de Paulo a Corinto,
Priscila era vista como a autora principal, pode
Priscila e Áquila acompanharam o apóstolo em
ter havido uma tendência de suprimir esse fato.
sua viagem a Éfeso. Aqui o texto traz o nome de
Como prova do preconceito dos escribas contra
Priscila antGS do de Áquila (At 18.18, tb. At 18.26;
as mulheres, ele cita o Códice de Beza, em que
Rm 16.3; 2Tm 4.19), aparentemente indicando
ocorre a supressão da conversão de Dâmaris
que o ministério e a influência dela eram maiores
(At 17.34) e a mudança de “mulheres gregas de
que os do marido. Depois da partida de Paulo,
alta posição e vários homens” (At 17.12) para
Priscila e Áquila encontraram Apoio na sinagoga.
“gregos e pessoas de alta posição, muhos homens
Apoio era um brilhante pensador judeu cujo co
e mulheres”. O Códice de Beza também inverte
nhecimento do evangelho era limitado, a despeito
a ordem de Atos 17.4, mencionando primeiro os
de seu grande domínio das Escrituras. Mais uma
homens e depois as mulheres. Num ambiente as
vez, 0 nome de Priscila aparece em primeiro lu
sim, a atribuição da autoria a uma mulher pode
gar quando o casal o chama de lado, talvez em
ria muito bem desaparecer de vista.
sua casa, onde ele se hospeda por algum tempo,
Embora a carta apresente sinais inconfundí
a fim de lhe dar a instrução que lhe faltava. O
veis de proximidade com Paulo, seu autor não é
verbo “expuseram” [exenthento] deixa imphcito
o apóstolo: trata-se na verdade de um documento
um exame cuidadoso das Escrituras (v. o uso do
do NT que não possui nenhuma indicação de au
mesmo verbo em At 11.4 e 28.23). Embora a com
toria. 0 autor pertencia ao círculo mais chegado
preensão básica de Apoio fosse satisfatória, Pris
de Paulo e desfrutava um relacionamento de co-
cila, mulher de extrema capacidade, e seu marido
leguismo e cooperação com Timóteo (Hb 13.23).
969
M u lh er e s m: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
Ele ou ela não conheceu Jesus pessoalmente, mas
do Pentecostes, conforme profeüzado pelo profe
teve contato com seus ensinos por meio de outros
ta Joel. A promessa de que “vossas filhas profeti
que conviveram com ele (Hb 2.3). 0 tom apostó
zarão” (J1 2.28-32) cumpriu-se no ministério das
lico revela o nível de influência e de autoridade
filhas profetisas do evangehsta Fihpe, conforme
exercido pelo autor da carta (Hb 13.17-23).
registrado no relato da visita do apóstolo Paulo
A equipe de redação ou o autor individu
àquela casa (At 21.8,9). Uma tradição posterior
al tinha familiaridade com as perseguições que
afirma que Filipe viajou com as filhas até Hierá
haviam ocorrido em Roma e, como se pode de
polis, onde se envolveu na obra da evangelização
monstrar, sofrera influência do pensamento de
que por fim o levou ao martírio. As filhas deram
FUo de Alexandria, filósofo judeu que visitou
prosseguimento ao ministério do pai, e duas delas
Roma em 40 d.C. Priscila e Áquila podem ter sido
foram sepuhadas em Hierápolis. De acordo com
os associados de Paulo que mais provavelmente
Papias, elas reuniram tradições sobre a vida de Cristo. Papias também afirma que essas mulheres
se familiarizaram com Filo. Os autores haviam sido líderes na comuni
lhe deram ciência acerca de dois acontecimentos do Evangelho
dade para a qual escreveram a carta e tinham
(E
u s é b io ,
Hi ec, 3.31,37,39).
conhecimento da falta de maturidade espiritual
Além das profetisas de Corinto (v. W ire), ou
dos membros daquela comunidade (Hb 5.11,12).
tra profetisa estava sediada na Ásia Menor, uma
Imersos nas Escrituras judaicas, eles escrevem
cidadã de Tiatira, e seus ensinos são considera
acerca do ritual do tabernáculo, mas sem dar ne
dos falsos (Ap 2,14). É significativo que ela não
nhum sinal de terem conhecimento dos procedi
seja condenada por ser mulher, mas pelo mal que
mentos no templo. Um judeu que tivesse visitado
causou. A semelhança dos nicolaítas de Pérgamo
Jerusalém inevitavelmente teria incluído alusões
(Ap 2.14,15), ela instruía seus seguidores a comer
às práticas do templo. Dentre os que faziam parte
carne sacrificada a ídolos e a praticar a fornicação
do círculo social de Paulo, Priscila e Áquila fogem
ritual (Ap 2.20). Suas doutrinas foram denomina
a esse padrão, porque não há registro de que te
das “coisas profundas de Satanás” (Ap 2.24), que
nham estado em Jerusalém.
talvez representem uma forma primitiva da seita
Harnack observa que o autor ou autores pas
gnóstica dos ofitas. Ela foi ameaçada de castigo
sam facilmente da primeira pessoa do singular
por sua faha de decência (Ap 2.22,23) e por in
para a primeha do plural, o que talvez mostre um
duzir o povo de Deus a erro. Talvez já no início
trabalho em equipe, não a obra de um único in
do século II as mulheres montanistas da região da
divíduo. 0 uso da forma masculina singular pode
Frigia, na Ásia Menor, tivessem adotado a tradi
indicar informação dada por um homem, ao passo
ção de profetizar. Em apoio a seu ministério, elas
que a óbvia empatia pelas mulheres pode apontar
reivindicavam o precedente de Débora, Hulda e
para os interesses de Priscila (Hb U .11,31,35). Em
Ana, das filhas de Fihpe e de uma profetisa des
contraste com a referência de Gênesis ao riso in
conhecida de nome Âmia.
crédulo de Sara diante da promessa de ter um fi lho na velhice (Gn 18.11-15), o relato de Hebreus
5. As mulheres nas tradições evangelísticas
destaca sua fé por haver enfrentado os desafios
Entre as tradições não bíblicas preservadas a
da concepção, gestação e parto (Hb 11.11). 0 livro
respeito dos apóstolos, pouquíssimas são mais
de Êxodo registra as atividades da mãe de Moisés,
bem atestadas que o poder que Paulo concedeu
escondendo o nascimento do filho e preservando
a mulheres no ministério. Antes de seu chamado
sua vida (Êx 2.2-9), mas aqui é des6cada a ativi
para estar com a igreja em Antioquia, parece que
dade de marido e esposa (Hb 11.31). Não é possí
ele se envolveu em um trabalho bastante amplo
vel comprovar a teoria de Harnack, mas deve ser
de evangehzação na Ásia Menor (At 11.25,26; 15.41). Alguns relatos posteriores de mulheres re
considerada com respeho.
conhecidas no ministério são condizentes com a 4. As mulheres no ministério profético
designação que Paulo faz de sete mulheres como
As mulheres recebem o derramamento do
E s p ír it o
suas cooperadoras (Rm 16.3,6,12,15; Fp 4.2,3).
(At 2.37,38) em sua plenitude por ocasião
Escrevendo em 112 d.C. na Ásia Menor, Plínio, o
S an to
970
M u lh e r e s
iii:
A t o s , H e b re u s, C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e
Jovem, relata ao imperador Trajano que imerro-
libertação da prisão (At 12.5-17) Pedro se diri
gou duas líderes da comunidade cristã que eram
giu até a casa da mãe de João Marcos. A pessoa
escravas denominadas ministrae (“diaconisas”
que estava de guarda junto à porta, uma escra
ou “ministras” ; P l í n i o , Ep, 96,97).
va de confiança de nome Rode, reconheceu a voz
A história mais interessante, no entanto, é a
de Pedro e correu até os outros a fim de obter au
do comissionamento por Paulo de sua jovem con
torização para deixar o apóstolo entrar. Embora
vertida Tecla como apóstola para Selêucia, perto
inicialmenteí os participantes da reunião tenham
da cidade de Tarso, onde ele nasceu. A história
questionado a credibihdade da história da moça,
de Tecla é contada em Atos de Paulo e Tecla, texto
ela permaneceu firme em sua convicção. Por in
em geral datado de meados do século ii
sistência dela, a porta foi aberta, e Pedro foi re
(M
acD o-
Entretanto, W. M. Ramsay insiste em afir
cebido, confirmando-se o que dissera a escrava.
mar que a obra “remonta, em última instância, a
A função de guardar a porta em uma época de
nald ).
um documento oriundo do século i”
p.
perseguição intensa revela a importância de Rode
375-6), embora adornado com acréscimos poste
para aquela comunidade cristã e a confiança que
riores. No entendimento desse autor, pelo menos
se depositava na jovem. Por meio dessa igreja em
al5uns dos aspectos requerem um conhecimento
casa, cujas líderes eram Maria e Rode, Pedro en
(R
am say,
íntimo do ambiente do século i e lançam “luz so
viou sua mensagem aos crentes de toda a Jerusa
bre a natureza do cristianismo popular na Ásia
lém (At 12.17).
Menor durante aquele período”
(R
am say,
p. 403).
0 lar de Lídia, a primeira pessoa a se conver
0 local de seu ministério (Aya Theckla), um
ter na Europa, tornou-se o centro da nascente co
dos mais bem atestados locais da antiguidade
munidade cristã em Filipos, e foi ali que Paulo e
cristã
Silas se recuperaram após serem soltos da prisão.
(F
e s t u g iè r e ,
p. 21-2), foi continuamente
ocupado como local de peregrinação e comuni
B. Witherington comenta: “Em dois momentos de
dade monástica até a invasão turca, no século
Atos, quando Lucas sem dúvida nos conta sobre
Parte da abside ainda se encontra acima do
uma reunião da igreja na casa de uma pessoa
XV.
grande santuário erigido sobre a caverna original
em particular, tal reunião ocorre no lar de uma
onde ela estabeleceu seu ministério. A pequena
mulher”
capela subterrânea contígua à caverna revela tra
lemos sobre igrejas nos lares de Cloé. de Ninfa
(W
it h e r in g t o n ,
1990, p. 213). Também
ços de uma obra de alvenaria com data do sécu
e de Priscila e Áquila (Cl 4.15; ICo 1.11; 16.19;
lo 1 ( H e r z f e l d
a vinculação Gistemática
Rm 16.3-S). Dessa maneira, com sua hospitali
de um nome feminino idêntico ao local indica o
dade e com o cuidado que dispensavam à vida
envolvimento de uma líder forte no início da cris
congregacíonal que se desenvolvia em seus lares,
&
E u y e r ).
tianização de Selêucia.
mulheres com espaço suficiente em casa propor cionavam essa recepção tão necessária.
6. As mulheres como líderes das igrejas
No caso de Lídia, sua sala de trabalho, bem
nas casas
como seu lar, podem ter servido aos propóshos
Pela leitura dos textos bíblicos, tomamos conhe
do evangelho. A semelhança de Priscila, ela es
cimento de mais nomes de mulheres líderes que
tava envolvida na indústria têxtíl e dirigia um
de líderes homens nas igrejas estabelecidas nos
negócio: a fabricação da cobiçada púrpura. 0
lares. Mulheres que demonstravam generosidade
texto diz que toda a sua casa foi batizada (v.
e hospitahdade recebiam em casa os missionários
t is m o ) ,
em trânsito e aqueles que procuravam um local
As salas de trabalho das mulheres e os lares ofe
de adoração e comunhão cristãs. A mãe de João
reciam oportunidades excelentes para a propaga
Marcos, uma viúva, abriu as portas da casa para
ção do evangelho nos primeiros séculos da igreja
uma reunião de oração, apesar da atmosfera re
(D e n B o e r ) .
pleta de perigo que se respirava em Jerusalém,
ba
até mesmo os que trabalhavam para ela.
As cartas joaninas (v. JoAo,
C artas
de)
revelam
visto que se aguardava a execução de Pedro no
a importância da hospitahdade que os cristãos
dia seguinte. Reunir-se ali deve ter sido um há
mais influentes ofereciam a missionários e evan
bho bem comum, porque após sua miraculosa
gelistas em trânsito, os quais às vezes traziam
971
M u l h er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip se
mensagens escritas e faladas (3Jo 5-10; v. tb. Di,
(At 16.16-24). Várias escravas recebiam funções
11 e 12; Rm 12.13; IPe 4.9; Hb 13.2). Em uma
de particular responsabihdade na igreja nascente:
comunidade, os líderes de uma igreja em casa po
Rode guardava a porta de uma igreja em casa,
diam controlar a pureza da mensagem do evan
e duas escravas da Bitínia eram líderes de uma
gelho, hospedando apenas os emissários mais
comunidade cristã, sendo chamadas “ministras”
recomendáveis (3Jo 8). Dar as boas-vindas a um
ou "diaconisas”. De acordo com o que exigia a lei
falso mestre punha em perigo a vida espiritual de
romana no caso de escravos, o testemunho delas
toda a comunidade de fé (2Jo 10,11).
foi obtido sob tortura e confirma a natureza ino fensiva da adoração cristã
Desse modo, as igrejas nos lares se tornaram
Demonstrava-se
a base para a propagação do evangelho em suas
(P
l ín io
,
sensibUidade
Ep, 96). em particu
respectivas comunidades, e os anfitriões eram
lar pelas viúvas e por mulheres que padeciam
os “cooperadores” (3Jo 8). D. W. Riddle acredha
privações. Cientes de que as viúvas dos judeus
que não apenas esses líderes ajudaram a propa
helenistas estavam recebendo menos ajuda que
gar 0 reino, mas também essas casas constituíam
as de origem palestina, os hderes da igreja pri
pontos de coleta de tradições orais e escritas que
mitiva instituíram
mais tarde seriam preservadas nos escritos do
.
rantir uma distribuição equitativa (At 6.1-6; cf.
Por esse motivo, o papel das líderes das igrejas
Mc 12.40; Lc 18.2-5). É dito que o ministério de
nos lares é bem mais importante do que pode pa-
Dorcas abrangia as viúvas, que eram acolhidas e
TQcer à primeira vista.
recebiam cuidados em um ambiente receptivo e
n t
Embora a maioria dos estudiosos da Bíbha en tenda que a “senhora eleita” a quem é destinada a
u m a
ordem diaconal para ga
piedoso (At 9.36-41; sobre a ideia de que Dorcas era líder de uma ordem de viúvas, v.
V it e a u ).
Segunda Carta de João represente uma igreja, não
Tiago, irmão de Jesus, ordenou que os cren
uma pessoa, uns poucos teólogos são da opinião
tes cuidassem das viúvas (Tg 1.27), enquanto
de que a carta foi mesmo escrha a uma mulher,
a Primeira Carta a Timóteo prescreve normas
como A. T. Robinson, A. Clarke, A. Plummer, C.
de conduta para essas mulheres enlutadas, mas
C. Ryrie, A. Ross e D. W. Burdick. Se for o caso,
também lhes confere legitimidade e poderes
ela deve ter sido a líder de uma igreja em casa em
para participar de um ministério organizado de
alguma locahdade próxima de Éfeso, e era seu de
evangelização e intercessão (ITm 5.3-16). Inácio
ver defender seus filhos contra a heresia. 0 nome
pede a Policarpo que dispense cuidado especial
pelo qual é chamada, Kyria Eklektê, é usualmente
às viúvas e assuma a guarda delas (In, Po, 4). As
traduzido por “ senhora eleita” , embora Kyria fos
viúvas da igreja eram sustentadas pelas dádivas
se um nome de uso confirmado na Ásia Menor,
dos outros membros em compensação por seus
ssendo na verdade uma tradução grega do ara
serviços espirituais e sociais. Policarpo reconhece
maico Marta
de 2Joio também
a presença delas na congregação de Fihpos (Po,
contém saudações por parte de uma “irmã eleita”
Fp, 6.1) e as instrui quanto à melhor atitude que
( H a r r is ) .
O
te x to
e seus filhos (2Jo 13), quer isso signifique uma
devem ter no cumprimento de seus deveres. Elas
igreja irmã, quer outra líder de uma igreja em
devem ser discretas, não falar da vida alheia e
casa. A. Spencer observa que não se pode refe
evitar ofensas, fofocas, cobiça e afirmações fal
rir a toda uma congregação como uma senhora e
sas. Também devem se entregar à oração cons
seus filhos
tante por todos, porque "são um altar de Deus”
(S p e n c e r ,
p. 110-1). Em IJoão e 3João,
as crianças representam o rebanho, ao passo que
(Po, Fp, 4). Parece que Inácio de Antioquia está se diri
os líderes são indicados separadanfente.
gindo a mulheres que desempenham uma fun 7. Viúvas e mulheres despojadas de seus
ção definida quando escreve a “virgens que são
direitos
chamadas viúvas” (In, Es, 13.1). Witherington
Ao longo de toda a obra de Lucas-Atos, demons
acredita que “viúva” se tornou um termo téc
tra-se especial empatia pelas mulheres despojadas
nico que designava "todas as mulheres não ca
de seus direitos, de modo que Paulo, arriscando a
sadas dedicadas ao cehbato e ao trabalho do
própria segurança, cura uma escrava perturbada
Senhor, incluindo-se as que nunca se casaram”
972
M u lh er e s i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
( W it h e r in g t o n ,
1988, p, 201; v. tb.
S t ã h l in , v .
9,
apostólico que recebeu, Essa tendência é precur
p. 451). Grapte devia dar às viúvas instrução es
sora do ascetismo que mais tarde se disseminaria
pecial a respeito da mensagem de Hermas (He,
pela igreja primitiva,
“Vi” , 2.8.3), enquanto este assumia a responsabi
0 pastor, de Hermas, revela uma prática co
lidade pelo cuidado das viúvas e dos órfãos (He,
nhecida como sineisacatismo, segunda a qual o
“ Or” , 8.10). Mais tarde, especialmente no Orien
homem vivia com uma mulher, mas “como ir
te, as viúvas se tornariam parte do clero ordena
mão, não como marido” [He, “Si”, 9.11.3; cf. He,
do, vinculadas a igrejas locais e dedicadas a um
“Vi” , 1.7.2). Embora pudessem ocupar a mesma
ministério de oração e de boas obras.
cama com o homem, as mulheres (denominadas sübintToductae ou agapêtaí) eram ostensivamen
8. Mulheres casadas e solteiras
te virgens, comprometidas com o ministério do
A condição social das muUieres é de considerável
evangelho. É possível que o apóstolo Paulo esteja
interesse para os autores da literatura cristã pri
se referindo a essa prática quando fala da virgem
mitiva. As mulheres casadas aparecem em Atos
que é hvre para servir a Cristo, em vez de servir o
como pessoas maduras, das quais se exigia que
marido, e do homem que "conserva sua virgem”
assumissem a responsabilidade por suas ações.
(ICo 7.34-37. 0 original não traz “ filha”). Uma
Safira, com o marido, é considerada responsá
vantagem de tal “casamento espiritual” era que
vel pelo engodo que tentara impingir à igreja
ele proporcionava segurança material, proteção
(At 5.1-10). Priscila participa em pé de igualda
masculina e liberdade de responsabihdade mari
de da hderança e do exercício do ministério que
tal à mulher soheira desejosa de estar envolvida
partilha com o marido. Até mesmo as rainhas
no serviço cristão
(M c N a m a r a ).
herodianas ouvem com interesse a mensagem de
De acordo com uma tradição que chegou ao
Paulo (At 24.24; 25.13,23; 26.20). Embora vistas
conhecimento de Clemente de Alexandria, as
nas fontes históricas seculares como concubinas
esposas dos primeiros apóstolos acompanha-
e como esposas que eram quase sempre objetos
vam-nos nas viagens a fim de se obterem me
de manipulação de governantes ávidos de poder,
lhores resultados na divulgação do evangelho
elas aparecem em Atos como pessoas de poder e
( C l e m e n t e d e A l e x a n d r ia ,
integridade, capazes de tomar as próprias deci
PL 17, c496). Talvez se encontre uma indicação
sões morais e espirituais.
desse ministério partilhado na declaração de IPe
Como Jesus havia advertido (Mt 10.35,36;
St, 3.6; cf.
A m b r o s ia s t r o ,
dro S.13: “Aquela que é coeleita convosco, que
Lc 14.26), abraçar a nova fé nem sempre ajudava
está na Babilônia, vos cumprimenta, como tam
na harmonia dos relacionamentos familiares, em
bém meu filho Marcos”. Ainda que alguns estu
bora às vezes fortalecesse os mesmo3 vínculos.
diosos acreditem que se trata da personificação
Domitila, sobrinha do Imperador Domiciano (que
de uma congregação inteira, isso não parece se
reinou entre 61 e 96 d.C.), foi exilada; seu mari
harmonizar com a menção direta a Marcos, que
do, que aparentemente também era cristão, foi
estava cuidando de Pedro em Roma. Foi Mar
executado
cos que, no Evangelho que leva seu nome, de
C â s s io ,
2)
(S u e t ô n w ,
Domiciano, 10.15.17;
Hi, 67.14). Justino Mártir
(J u s t in o ,
D iã o
Ap ii,
vidamente registrou o fato de Pedro ser casado
história de uma mulher cujo marido
(Mc 1.29-31). Uma vez que Babilônia era um co-
dissoluto a denunciou como cristã e conseguiu o
dinome amplamente usado para designar Roma,
castigo da pessoa que a instruía.
J. A. Bengel, E. T. Mayerhoff, K. R. Jackmann,
c o n ta a
A virgindade das mulheres dedicadas ao mi
H. Alford,
A .
T. Robinson e outros propõem que
nistério exige respeito especial. As quatro pro
essa talvez seja uma referência à esposa de Pedro,
fetisas filhas de Fihpe eram virgens, ao passo
pois é sabido que ela acompanhou o marido em
que Ana, a única profetisa presente a proclamar
suas viagens missionárias (ICo 9.5). Clemente
0 nascimento do Messias, com exceção de sete
de Alexandria até mesmo preservou um relato do
anos viveu a vida inteira como celibatária. Te
encorajamento que ela recebeu de Pedro pouco
cla, convertida e seguidora do apóstolo Paulo,
antes de ser martirizada
fez do cehbato uma condição para o chamado
St, 7.11.53). C. Bigg observa que seria natural
973
( C l e m e n t e d e A l e x a n d r ia ,
M u l h er e s n i; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a lipse
uma mulher que havia participado do ministério
Manchester University Press, 1930.
do marido enviar uma saudação própria às igrejas
MacDonald, D. R. The legend and the apostle: the
a que ela também havia servido na obra do evan
battle for Paul in story and in canon. Philadel
gelho. Para Bigg, o fato de o apóstolo incluir uma
phia: Westminster, 1983. ■ McKenna, M. L. Wo
[m
am a
,
2.)
■
mensagem da esposa revela “um aspecto nobre e
men o f the church: role and renewal. New York:
inconfundível do caráter de Pedro e [...] um tipo
P. J. Kennedy and Sons, 1967. ■ McNamara,
de athude que depõe fortemente a favor da genui
A. A new song: celibate women in the first three
nidade da epístola”
Christian centuries. New York: Harrington Park
À
(B igg ,
semelhança de
p.
77].
Sara,
que
J.
Press, 1985. ■ Ramsay, W. M. The church in the Ro
abandonou
uma vida estável por uma existência nômade
man Empire before A.D. 170. London: Hodder &
(IPe 3.6), a esposa de Pedro perseverou como
Stoughton, 1893. ■ Riddle, D. W. Early Christian
companheira constante e ajudou a fundar uma
hospitality: a factor in the Gospel transmission.
nova comunidade de nova e viva fé. Homens e
JBL,
mulheres por todo o Império Romano depararam
the curse: women called to ministry. Nashville:
com 0 mesmo desafio quando abraçaram Jesus
Thomas Nelson, 1985. ■ Stahlin, G. xiIp«’
Cristo como Salvador e Senhor de sua vida e se
V.
to rn a ra m , dlntd
:
de fato, “filhos de Sara”. H o u s e h o ld
C odes;
v. 57, p. 141-54, 1938. ■ S p e n c e r , A. B. Beyond
9, p. 40-65.
■
et des veuves — Actes 6:1-10, 8:4-40, 21:8.
H o u s e h o ld ,
22, p. S32-6,1926. •
F a m ilv ;
tdnt,
Viteau, J. L’institution des diacres V o n H arn ack ,
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974
Ver J o ã o ,
E vangelho
de.
NASCIMENTO DE J eSUS. V s r JESUS, NASCIMENTO DE.
NASCIMENTO, NARRATIVAS DO.
Vei
J eSUS, NASCIMENTO DE;
NOMISMO ALIANCÍSTICO.
Vei
NOMISMO FACTUAL.
NOMISMO FACTUAL. V C I JUSTIFICAÇÃO; L eI II.
MILAGRES, RELATOS DE MILAGRES I. NOVA ALIANÇA. V e r ALIANÇA, NOVA ALIANÇA. NASCIMENTO VIRGINAL. V C I J e SUS, NASCIMENTO DE.
NOVA CRIAÇÃO. V e r criação, nova CRIAÇÃO. NATIVIDADE DE J eSUS. V e i J e SUS, NASCIMENTO DE.
NOVA PERSPECTIVA SOBRE P a u l o . NATIVIDADE, NARRATIVAS DA. V e r JeSUS, NASCIMENTO DEj
R o m an o s , C arta
aos .
MILAGRES, RELATOS DE MILAGRES I. NOVO I s r a e l.
Ver I s r a e l .
Ver
JUSTIFICAÇÃO; L ei
ii ;
OBRAS DA LEI.
O n ésim o .
Ver
Ver
justificação ;
F ilem om , C arta
OPONENTES DE P a ULO.
Vei
L ei .
a.
ADVERSÁRIOS I.
OPULÊNCIA.
ORAÇÃO.
Ver
Ver
ORÁCULOS.
riquezas e pobrezas .
adoração /culto .
Ver
religiões greco -r o m a n as .
P
a i,
P
a ix
D
eus c o m o .
Ver Deus i.
ponto de partida é a obra de A. Jühcher, estudioso do NT cuja obra sobre as parábolas, em dois volu
Ao ,
n a r r a t iv a s
JULGAMENTO
da
.
Ver
C r is t o ,
m o rte de i ;
Jesu s,
mes (1888, 1889), domina o estudo das parábolas até hoje, embora nâo tenha sido traduzida nem
de .
mesmo para o inglês. P a ix ã o , p r e d iç õ e s a c e r c a d a .
Ver
1.1
ressurreição i.
Antes de Jülicher. Durante a maior parte
da história da igreja, em vez de interpretadas, as P
parábolas de Jesus têm sido alegorizadas. Ou seja,
arábolas
A palavra “parábola” designa uma breve narrativa
são inseridos nas parábolas elementos da teologia
com dois níveis de sentido. Os termos grego e hebrai
da igreja alheios ao sentido original pretendido por
co têm significado bem mais amplo. As parábolas
Jesus. O exemplo mais conhecido é a interpretação
de Jesus são obras de arte e ao mesmo tempo ar
que Agostinho faz da parábola do bom samaritano
mas que ele utilizou em debates com os adversários,
(Lc 10.30-37), em que praticamente todo detalhe
além de constituírem o método de ensino que ele
recebeu significado teológico. 0 homem é Adão:
empregou mais vezes para explicar o
e
Jerusalém é a cidade celestial: Jericó é a Lua, que
mostrar o caráter de Deus e as expectativas que ele
representa nossa mortalidade: os salteadores são
tem com respeito à humanidade. Apesar da tradição
0 Diabo e seus anjos, os quais arrancam do ser
que alega que as parábolas de Jesus têm uma única
humano a imortalidade e o espancam quando o
mensagem, muitas parábolas transmitem duas ou
induzem ao pecado: o sacerdote e o levita são
três verdades, e pode haver várias correspondências
0 sacerdócio e o ministério do a t ; o bom samarita no é Cristo; 0 ato de curar as feridas é o refreamen-
r e in o d e
D
eus
entre a parábola e a reahdade que ela representa. 1. História da interpretação
to do pecado: o óleo e o vinho são o consolo da
2. Definição de p a ra h o lê e termos afins
esperança e a disposição para o trabalho; o animal
3. Características das parábolas
é a encarnação; a estalagem é a igreja; o dia se
4. As parábolas antes de Jesus
guinte é 0 tempo depois da ressurreição de Cristo;
3. Distribuição das parábolas nos Evangelhos
0 estalajadeiro é o apóstolo Paulo; os dois denários
6. A autenticidade das parábolas
são os dois mandamentos do amor ou a promessa
7. O propósito das parábolas
desta vida e da vindoura
8. Diretrizes para a interpretação
De modo semelhante, Gregório, o Grande, alego-
9. 0 ensino das parábolas
rizou a parábola da figueira estéril (Lc 13.6-9),
(A
c o s t in h o ,
Qa Ev, 2.19).
de forma que as três vezes em que o proprietário 1. História da interpretação
procura fruto nela representam, respectivamente, a
A história da interpretação é praticamente um pré-
vinda de Deus antes da outorga da Lei, sua vinda
requisho para estudar as parábolas de Jesus, e o
na ocasião em que a Lei foi escrita e sua vinda em
Parábo las
as parábolas de Jesus em seu contexto histórico
graça e misericórdia na pessoa de Cristo. O dono da figueira representa os que dirigem a igreja, e o
e escatológico (v.
ato de escavar e colocar estrume simboliza a re
ehminar os elementos alegóricos das parábolas.
preensão a pessoas infrutíferas e à lembrança dos
Dodd entendia a mensagem de Jesus como esca
pecados
Homilia 31). Outros,
tologia realizada: o reino já chegou. As parábolas
como João Crisóstomo, da escola de Antioquia,
que falam de colheita não se referem a um des
e João Calvino, não alegorizavam as parábolas,
fecho que ainda está por vir, mas ao período do
mas, até o final do século xix, a alegorização era o
ministério terreno de Jesus.
(G
r e g ó r io , o
G
rande,
meio predominante de interpretação.
escatologia) .
Ambos queriam
Jeremias procurou oferecer evidências históri
1.2 Jülicher. Outros antes de Jülicher ha
cas G culturais para entender as parábolas e, sob a
viam criticado a alegorização, mas a obra des
influência da crítica da forma, identificar sua for
se estudioso foi como o beijo da morte nesse
ma original mediante a ehminação dos aspectos
procedimento interpretativo. As parábolas são
alegóricos e dos acréscimos feitos pela igreja pri
0 desenvolvimento dos símiles, ao passo que as
mitiva. Como é normal nesses casos, isso condu
alegorias são o desenvolvimento das metáforas.
ziu a uma reconstrução supostamente original da
À semelhança das metáforas, as alegorias não re
forma das parábolas. Quase invariavelmente, o
presentam a realidade e têm de ser decodificadas.
contexto dos Evangelhos, as introduções, as con
O propósito de Jesus não era obscurecer; por isso,
clusões e quaisquer comentários interpretativos
não podemos ver suas parábolas como alegorias.
foram considerados secundários. Essas formas
1.3 Depois de Jülicher. Todos os estudos poste
abreviadas e desalegorizadas guardam proximi
riores sobre as parábolas tiveram de levar em con
dade com as parábolas existentes no Evangelho
sideração as ideias de Jühcher. No im'cio, houve
de Tomé, uma coleção de frases de Jesus com data
alguns ataques contra os argumentos de Jühcher,
provável no século ii. A relação do Evangelho de
particularmente por parte de P. Flebig (começando
Tomé com os Evangelhos canônicos, a data desse
em 1904). Flebig alegava que Jülicher baseava sua
Evangelho e sua natureza são objeto de debate. O
compreensão das parábolas na retórica grega, não
fato de que Jeremias e outros propuseram versões
no mundo hebraico, onde são comuns as parábo
mais curtas das parábolas antes que o Evangelho
las alegóricas. Outros reconheceram que Jühcher
de Tomé se tornasse conhecido convenceu alguns
havia se livrado da alegoria, que é um estilo h-
estudiosos de que essa obra preserva a forma ori
terário, enquanto o problema era a alegorização
ginal de algumas das parábolas.
— 0 procedimento interpretativo de inserir nas
Embora reconhecesse a presença do reino no
parábolas uma teologia não pretendida por Jesus.
ministério de Jesus, Jeremias considerava sua
Hoje em dia, pouquíssimos Intérpretes aceitariam
mensagem uma escatologia em processo de reah-
as definições de Jühcher sobre a parábola ou sua
zação. Em suas parábolas, Jesus deixava o povo
ideia de que as parábolas apresentam máximas re
diante de uma decisão crítica e o convidava a cor
ligiosas de cunho geral. As críticas a seu conceito
responder à misericórdia de Deus. A influência de
de alegoria são devastadoras, mesmo assim ainda
Jeremias tem sido tão forte que, segundo N. Perrin,
se admhe que a parábola contém uma única men
no futuro as parábolas só serão interpretadas com
sagem e se resiste à ideia de que alguma parte das
base na anáhse de Jeremias
parábolas de Jesus seja de sentido alegórico. Além
1.3.2
(P
e r r in ,
p. 101).
Abordagens existencialista, estmturalís-
disso, a interpretação das parábolas tem passado
ta e literária. Várias formas atuais de abordar as
por várias etapas.
parábolas têm se originado em correntes filosó
1.3.1
^
C. H. Dodd e J. Jeremias. No estudo ficas. Algumas delas também resultam da insa
das parábolas, a era de Dodd e Jeremias vai de
tisfação com o fato de Dodd e Jeremias terem se
1935 até cerca de 1970, embora a obra de Jere
concentrado na abordagem histórica. Apesar da
mias sobre as parábolas ainda exerça influência.
busca por algo além do meramente histórico, es
A obra de Jeremias foi um desenvolvimento do
sas abordagens ainda seguem Jeremias quando
trabalho de Dodd, e ambos foram influenciados
se desfazem dos acréscimos alegóricos e interpre
por Jühcher. Dodd e Jeremias tentavam entender
tativos. A nova hermenêutica de E. Fuchs e E.
978
Pa r a b o l a s
Jüngel ressalta o poder que as parábolas de Jesus
0 significado do texto era determinado pela inte
têm de expressar a realidade para a qual apon
ração deste com o lehor. Essa abordagem é subje
tam. As parábolas são entendidas como “acon
tiva demais e produz uma variedade de sentidos,
tecimentos linguísticos” [Sprachereignisse]. Nas
todos considerados corretos. Essa compreensão
parábolas, Jesus expressa a compreensão que
polivalente de textos convida o intérprete a ser
tem de sua existência de uma forma compreen
um “jogador treinado” e a ler os textos com tantas
sível a todos os ouvintes. As parábolas são uma
associações quantas forem desejadas. Por exem
convocação a essa existência.
plo, a parábola .do fllho pródigo pode ser hda à
De forma semelhante, G. V. Jones, A. N. Wil
luz da psicanálise freudiana: o filho pródigo, o
der e D. Via destacam a natureza artística e exis
irmão mais velho e o pai refletem o id, o ego e o
tencial das parábolas. Para Via especialmente, as
superego. Com esse método, é possível ler a pa
parábolas não estão presas ao propósito do au
rábola de forma igualmente legítima. Entretanto,
tor. São obras estéticas que tratam do presente,
as leituras subjetivas das parábolas não são inter
porque em seus padrões há uma compreensão da
pretações; são maneiras de recontar a história em
existência que requer uma decisão.
um novo contexto. Para entender a mensagem de
Vale assinalar a obra de K. BaUey sobre as
Jesus, será preciso fazer justiça ao contexto histó
parábolas, dada a meticulosa atenção que ele
rico em que as parábolas foram contadas. 1.4
dispensa à estrutura retórica das parábolas, bem
Interpretações baseadas em comparações
como a sua Interpretação à luz do modo de pen
com as parábolas judaicas. Nos estudos recentes
sar da Palestina, o qual ele veio a conhecer en
sobre as parábolas, constatou-se a tendência de
quanto atuava como missionário no Ubano.
obter percepções pelo estudo das antigas pará
Na década de 1970, as abordagens estruturahs-
bolas rabínicas. Comparar as parábolas judaicas
tas dominaram os estudos das parábolas. Os estru-
com as de Jesus não é algo novo. Fiebig fez isso
turalistas não estavam interessados no significado
ao combater a abordagem de Jülicher, e, mais ou
histórico nem na hitenção do autor. Em vez disso,
menos na mesma época, A. Feldman reuniu as
procuravam comparar as estruturas de superfície e
parábolas judaicas que facilitavam ainda mais
as camadas mais profundas de várias passagens,
essa comparação. Até agora, já foram coletadas
ou seja, buscavam comparar os deslocamentos, as
cerca de 2 mü parábolas rabínicas. Em anos re
causas, as funções, as oposições e as resoluções
centes, foram publicadas várias obras
existentes nesses textos. Às vezes, uma análise
da teoria das parábolas à luz das parábolas rabí
que
tratam
estmturalista pode ser lítil, como aquela em que
nicas e repensam teorias e interpretações ante
J. D. Crossan identifica as categorias de advento,
riores. Dentre essas obras, a mais importante é
reversão e ação como básicas para entender as pa
a pesquisa de D. Flusser, estudioso judeu do
rábolas. 0 reino de Deus é tanto um advento quan
cuja obra principal ainda não foi traduzida para o
to um presente de Deus. E também a inversão do
inglês. As obras de Flusser e de outros estudiosos
mundo de alguém e a capacitação para a ação. No
que se concentram no estudo do judaísmo ques
entanto, em sua maioria, os estudos estruturalis-
tionam não apenas as conclusões de Jülicher,
n t
tas têm sido dominados por jargões técnicos, sem
mas também as de Jeremias, as das abordagens
acrescentar muita luz ao assunto.
centradas no leitor e de boa parte dos estudiosos
A década de 1980 testemunhou mudanças
do NT. Flusser admite que as parábolas sofreram,
perceptíveis no estudo das parábolas, em gran
por parte dos Evangelistas, um extenso trabalho
de parte por influência da crítica hterária. Em
editorial, mas é otimista quanto à confiabUidade
bora desde a década de 1950 tenha havido certo
do material dos Evangelhos. Ele alega que em ge
interesse nas ênfases editoriais dos autores dos
ral 0 contexto das parábolas está correto, sendo a
Evangelhos, os interesses hterários têm desperta
introdução e a conclusão indispensáveis e geral
do muito mais atenção à técnica e aos propósitos
mente tendo origem em Jesus. No seu entender,
dos Evangehstas na composição dessas obras. A
o Evangelho de Tomé depende dos Evangelhos Si
crítica hterária também tendia a destacar uma
nóticos e não tem valor para a pesquisa sobre as
abordagem de leitura centrada no lehor, na qual
palavras de Jesus.
979
Parábo las
O tratamento que C. Blomberg dispensa às
banquete (Lc 14.15-24) provavelmente se encaixa
parábolas demonstra o distanciamento em rela
nessa definição. Nesse sistema de classificação, a
ção às obras de Jülicher e de Jeremias. Blomberg
alegoria consiste em uma série de metáforas rela
entende que, à semelhança das parábolas dos
cionadas — a parábola do semeador talvez seja
rabinos, as de Jesus são alegorias e geralmente
um exemplo de alegoria.
apresentam duas ou três mensagens, dependen
Embora essa classificação quádrupla seja po
do do número de personagens principais que a
pular, muitos estudiosos não a consideram Ideal.
parábola possua.
Alguns fazem objeção à categoria “história-modelo” , mas, se não desconsiderarmos o fato de
2. Definição de parabolê e termos afins
que essas histórias podem estar apresentando
O termo grego parabolê tem um sentido muho
mais que apenas um modelo, essa classificação
mais amplo nos Evangelhos que nossa palavra
pode ser de grande vaha. Está claro que em al
“parábola”. A palavra grega pode designar um
guns aspectos elas são diferentes de outras pa
provérbio (Lc 4.23), um enigma (Mc 3.23), uma
rábolas. Mais complicada é a suposta distinção
comparação (Mt 13.33), um contraste (Lc 18.1-8),
entre parábola e alegoria, um dos assuntos mais
histórias simples (Lc 13.6-9) e também comple
debatidos nos estudos do
xas (Mt 22.1-14). Essa gama de sentidos deriva
M. Boucher, a alegoria não é uma forma literá
da palavra hebraica mãshal, que a lx x geralmen
ria, e sim um recurso de expressão de significado
nt.
Para alguns, como
te traduz por parabolê (28 das 39 ocorrências).
— por esse motivo, todas as parábolas são ale
Além disso, é possível usar mãshal com o sentido
góricas na totahdade ou em alguns de seus ele
de "zombaria” , “oráculo profético” ou “adágio”.
mentos. São poucas as parábolas que possuem
Mãshal é qualquer frase ambígua que tenha o pro
apenas uma correspondência entre a história e a
pósito de estimular o pensamento.
realidade que refletem, embora não se deva con
Além de distinguir a ampla gama de sentidos
siderar a interpretação das parábolas um proces
das palavras parabolê e mãshal, é preciso escla
so de decifração de mensagens. É melhor definir
recer 0 conceito de parábola. Em geral, distin
parábola como uma história com dois níveis de
guem-se quatro formas de parábolas: analogia,
significado. Os níveis da história constituem um
história-modelo, parábola e alegoria. A analo
espelho mediante o qual se percebe e se entende
gia é 0 desenvolvimento do símile (comparação
a realidade. Na realidade, as parábolas são jardins
explícita que emprega a palavra “como” ou a ex
imaginários com sapos de verdade lá dentro.
pressão “ semelhante a” , “à semelhança de”). É uma comparação que envolve um acontecimento
3. Características das parábolas
típico ou recorrente da vida real e quase sem
As parábolas tendem a ser breves e simétricas e
pre gxpressa no tempo presente. A parábola do
em geral empregam estruturas em equIlilDrio que
fermento (Mt 13.33) é uma analogia. A história-
envolvem dois ou três atos. Normalmente, omi
modelo apresenta um personagem de caráter
tem descrições desnecessárias, e é comum as mo
positivo ou negativo (ou ambos), cujo exemplo
tivações ficarem sem exphcação, e as perguntas
deve ser imitado ou cujas características e ações
implícitas, sem resposta. Costumam ser baseadas
devem ser evitadas. Implícita ou explichamente,
na vida cotidiana, mas não são necessariamen
a história-modelo diz: “Vai e faze [ou não faças]
te realistas. Por causa do uso da hipérbole e de
desse modo” (cf. Lc 10.37). Em geral, apenas
elementos improváveis, com frequência são pseu-
quatro parábolas nos Evangelhos, tpdas no Evan
dorreahstas e apresentam elementos chocantes.
gelho de Lucas, são identificadas como história-
Por exemplo, é improvável que alguém na Pales
modelo: 0 bom samaritano; o rico insensato; o
tina do século I contraísse uma dívida de 10 mil
rico e Lázaro; o fariseu e o pubhcano. A parábola
talentos (algumas dezenas de milhões de dóla
é o desenvolvimento da metáfora (comparação
res), como no caso da parábola do credor incom-
implícita) que se refere a um acontecimento fic
passivo (Mt 18.23-35). Além disso, as parábolas
tício ou a fatos do passado, exprimindo uma ver
despertam o pensamento. Vinte e duas parábolas
dade moral ou espiritual. A parábola do grande
iniciam com perguntas do tipo: "Qual de vós...?” ;
980
Pa rá bo la s
“Que vos parece...?”. É normal que a parábola
0 AT apresenta sete parábolas que constituem
leve o ouvinte a julgar os acontecimentos nela re
precedentes para as parábolas de Jesus: a pará
latados e então exija também um julgamento em
bola que Natã contou a Davi acerca do homem
questões religiosas. Com frequência, as parábolas
pobre e sua ovelha (2Sm 12.1-10); a história que
exigem uma mudança no pensamento da pessoa.
a mulher de Tecoa contou sobre seus dois filhos
O samaritano desprezado é o próximo; o publi
(2Sm 14.5-20); a parábola encenada, em que o
cano, não o fariseu, é quem é justo. A questão
profeta condena Acabe (IRs 20.35-40); a canção
crucial é apresentada no final da parábola, e, de
da vinha (fs 5.1-7); as aves e a videira {Ez 17.2-10);
modo correspondente, “a regra da tensão final”
a leoa e seus filhotes {Ez 19.2-9); a videira
exige que a interpretação se concentre no encerra
{Ez 19.10-14). Só Ezequiel 17.2-10 é exphcita
mento da parábola. Embora a parábola dos agri
mente denominado mãshal. Além disso. Juizes
cultores maus tenha imphcações cristológicas, a
9.7-15 e 2Reis 14.9 contêm fábulas. Das parábolas
maioria das parábolas é teocêntrica, pois se con
do
centra em Deus, em seu reino e nas expectativas
bre e sua ovelha constitui um paralelo verdadeiro
com respeito aos seres humanos. Por consequ
com as parábolas de Jesus.
ência, as parábolas quase sempre são convhes a uma mudança de comportamento e ao discipula do. 0 grau em que o referente teológico é claro para o ouvinte varia de parábola para parábola.
AT,
só a história de Natã sobre o homem po
5. Distribuição das parábolas nos Evangelhos Cerca de um terço dos ensinamentos de Jesus está nas parábolas. A palavra grega paraholê apa
4. As parábolas antes de Jesus
rece cinquenta vezes no
Jesus não foi a primeira pessoa a ensinar por pa
Hebreus 9.9 e 11.19, todas as ocorrências estão
rábolas e por meio de histórias. Existem prece
nos Evangelhos Sinóticos. As parábolas apare
dentes gregos e semíticos, mas não há nenhum
cem em todos os níveis dos Sinóticos. Caso se
indício de que alguém antes de Jesus tenha usa
aceite a Hipótese das Quatro Fontes da origem
nt,
e, com exceção de
do as parábolas de forma tão sistemática, cria
dos Evangelhos, as parábolas constituem 16% de
tiva e eficaz. Existem tantas parábolas rabínicas
Marcos, cerca de 29% de
semelhantes às contadas por Jesus que alguns
cerca de 52% de l
estudiosos afirmam que Jesus as extraiu de um
contém parábolas em forma de história, mas al
repositório de histórias populares ou pelo menos
gumas passagens se encaixam no sentido amplo
q,
cerca de 43% de
[ v . P roblema S inótico ) .
m
e
João não
extraiu desse reposhório os temas e as estruturas
de mãshal, como a do bom pastor (Jo 10) e a da
que utilizou. Como sempre ocorre com os dados
videira verdadeira (Jo 15). (João emprega quatro
rabínicos, o problema é que esses escritos são
vezes a palavra paroímía. Essa palavra, em al
posteriores à época do
guns aspectos, é semelhante a parabolê.)
nt
.
Pelo fato de existirem
tão poucos indícios de ensino por parábolas an
Não se pode apresentar um número exato de
tes de Jesus, alguns estudiosos entendem que o
parábolas, visto que entre os estudiosos não exis
uso de parábolas por Jesus foi algo novo. Até o
te concordância sobre quais passagens devem ser
momento, não foram identificadas parábolas nos
classificadas como parábola. Existem trinta ex
textos de Qumran, e não há nenhuma nos livros
plicitamente rotuladas como parabolê, mas isso
apócrifos ou nos pseudepigráficos {excluindo-se
inclui provérbios (Lc 4.23). enigmas (Mc 3.23),
as denominadas Similitudes de Enoque, que apa
frases breves (Mc 7.15) e perguntas (Lc 6.39).
rentemente são de origem posterior). Praticamen
Existem pelo menos quarenta parábolas em sen
te nenhuma das parábolas rabínicas procede de
tido mais restrito, mas elas podem chegar a 65,
um período tão remoto quanto a primeira metade
caso se incluam certas frases de Jesus como aque
do século 1. Além do problema de data, as parábo
la a respeito da pessoa que tem uma viga no olho
las rabínicas, todas escritas em hebraico, não em
e tenta tirar o cisco do olho de outra (Mt 7.3-5).
aramaico, são usadas basicamente como meio de
Nos Sinóticos, as parábolas são organizadas
interpretar as Escrituras, ao passo que Jesus não
tematicamente. Marcos registra apenas quatro pa
empregou as parábolas dessa maneira.
rábolas em forma de história: em Marcos 4, temos
981
Pará bo la s
o semeador, a semente de mostarda e a semente
Ao mesmo tempo, alguns estudiosos mais
que cresce em segredo; em Marcos 12, temos os
críticos têm se dedicado ao debate da autentici
agricultores maus. Com exceção da semente que
dade de determinadas parábolas, em parte e no
cresce em segredo, Mateus e Lucas registram as
todo. O chamado Jesus Seminar [Seminário Je
parábolas de Marcos, e ambos registram as pará
sus] chegou até mesmo a elaborar uma edição
bolas do fermento e da ovelha perdida. Mateus
das parábolas de Jesus em que as palavras ou fra
e Lucas registram parábolas a respeito de pes
ses das parábolas aparecem nas cores vermelha,
soas que rejeitam o convite para um banquete
rosa, cinza ou preta, refletindo respectivamente
(Mt 22.1-4; Lc 14.16-24) e de servos que recebem,
as opiniões de que Jesus; 1) disse mesmo aque
em confiança, dinheiro para investir (Mt 25.14-
las palavras; 2) disse algo parecido com aquelas
30; Lc 19.11-27). Entretanto, em nenhum desses
palavras; 3) não disse aquelas palavras, mas ex
dois paralelos existe semelhança fraseológica, e
pressou ideias semelhantes: 4) não disse aquelas
não há certeza se Mateus e Lucas estão relatando
palavras, sendo as ideias de período posterior.
as mesmas parábolas ou apenas parábolas seme
Apenas três parábolas representadas na tradição
lhantes. Sem dúvida, Jesus contou algumas pará
canônica foram impressas totalmente em preto
bolas mais de uma vez, com variantes baseadas
(aquele que constrói uma torre e o rei que vai à
na mesma estrutura básica. Mateus organizou a
guerra, ambas em Lc 14.28-32, e a rede de pes
maioria de suas parábolas em Mateus 12, 13, 18
car), e outras quatro foram impressas totalmente
e 20—25. Ele registra pelo menos doze parábolas
na cor cinza (nesses casos, porém, é comum a
inéditas. Lucas reúne a maioria de suas parábolas
preferência à versão da parábola como está regis
em Lucas 10— 19, que faz parie da denominada
trada no Evangelho de Tomé]. Ainda que esse trabalho reforce a confiança
"narrativa de viagem”. Lucas registra pelo menos
que se tem na tradição das parábolas, as pres
quinze parábolas inéditas. Catorze parábolas aparecem no Evangelho
suposições e os procedimentos adotados pelo
de Tomé, três das quais não são registradas nos
Seminário Jesus e por muitos outros estudiosos
Evangelhos canônicos. O Apócrifo de Tiago tam
são inaceitáveis. 0 Seminário Jesus, à semelhan
bém traz três parábolas não registradas nos Evan
ça de muhos outros estudiosos de um período anterior, sucumbiu à tendência de encontrar um
gelhos canônicos.
Jesus palatável às expectativas modernas. Con 6. A autenticidade das parábolas
cedeu extrema deferência ao Evangelho de Tomé,
Mesmo os estudiosos convencidos de que as pa
obra que. segundo parece, teve origem em uma
rábolas dos Evangelhos contêm acréscimos feitos
segunda etapa da tradição oral. Além do mais,
pela igreja primitiva ainda entendem que as pa
à luz de pesquisas recentes sobre as parábolas
rábolas oferecem algo do ensino mais autêntico
judaicas, a rejeição das introduções e conclusões
e confiável de Jesus. São fortes os dados a favor
das parábolas e de qualquer ideia alegórica é
dessa certeza:
algo que não se justifica. Sem dúvida, a tradição oral deu forma às parábolas, e os Evangelistas as
1) As parábolas refletem a clareza e a escato
editaram de acordo com suas tendências estilísti
logia da pregação de Jesus e seu conflito com as
cas e propósitos teológicos. Podemos e devemos
autoridades judaicas.
identificar muitas dessas mudanças. Entretanto, qualquer tentativa de identificar as ipsissima ver
2) Elas refletem a vida cotidiana na Palestina. 3) Não há praticamente nènhym indício de
ba (i.e., as exatas palavras) de Jesus é, na me
que antes de Jesus houvesse um uso frequente
lhor das hipóteses, ingênua. E em lugar algum
de parábolas.
aquela voz é ouvida com tanta clareza como nas
4) Tendo em vista o fato de que no
nt
não
parábolas.
há parábolas fora dos Evangelhos e que elas ra ramente existem em outra hteratura cristã pri
7. O propósito das parábolas
mitiva, a igreja primitiva não revela nenhuma
Costuma-se dizer que as parábolas de Jesus não
propensão à criação de parábolas.
são apenas ilustrações dos sermões de Jesus, mas
982
Pa rá bo la s
são elas próprias a pregação. Está claro que as
Alguns intérpretes entendem que essa estru
parábolas têm a função de atrair a atenção e ins
tura é quiasmástica, sendo o centro do quias
truir, mas não é correto considerá-las a pregação
mo a interpretação da parábola do semeador.
em si. As parábolas exigem interpretação; apon
(Quiasmo é um padrão poético do tipo a-b-b’-a’.)
tam para algo mais. Não são meras histórias para
Observe-se que em Marcos 4.35-41 Jesus e seus
deleite dos ouvintes. Elas apresentam uma reali
discípulos estão de volta ao barco. Essa seção re
dade que reflete outra: o reino de Deus. Por meio
toma a apresentação cronológica que Marcos 4.9
delas, pode se chegar à compreensão do reino.
parece ter ábandonado. Por esse motivo. Marcos
Jesus contou parábolas com o intento de confron
4.10-34 constitui uma organização temática do
tar as pessoas com a natureza do reino de Deus
autor. Observe-se também que Marcos 3.31-34,
e convidá-las a participar do reino e a viver em
que se ocupa da famíha de Jesus do lado de fora,
conformidade com ele.
a procurá-lo, emoldura a parábola do semeador,
Marcos 4.10-12 parece, porém, dizer exata mente o contrário. Na superfície, esses versícu
assim como a parábola do semeador e sua inter pretação emolduram Mc 4.10-12.
los afirmam que Jesus revela o segredo do reino
Nesse capítulo, o tema dominante é ouvir —
apenas a seus discípulos. “A vós é confiado o
o verbo é mencionado treze vezes. A passagem
mistério do reino de Deus, mas tudo se diz por
de Isaías 6.9,10, citada em uma versão semelhan
meio de parábolas aos de fora, para que, vendo,
te ao Targum sobre Isaías, era um texto clássico
vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não
acerca da dureza do coração humano, pelo fato de
entendam, para que não se convertam e não se
se recusarem a ouvir a palavra profética de Deus.
jam perdoados” (Mc 4.11,12). A parte final dessa
A dureza de coração é tema importante para Mar
declaração é uma chação de Isaías 6.9,10.
cos e algo até mesmo possível de ser constatado
Para entender Marcos, é preciso atentar para a
entre os discípulos de Jesus (cf. Mc 8.16-21, que
técnica, a estrutura e as ênfases teológicas que ele
emprega palavras semelhantes a Is 6.9,10, porém
apresenta. Marcos utihza a técnica de emoldura
extraídas de Jr 5.21 ou Ez 12.2).
mento para propiciar uma compreensão de cada
Vários estudiosos têm procurado atenuar
seção de seu Evangelho. Por exemplo, a purifica
o impacto de Marcos 4.12, alegando que hina
ção do templo é emoldurada pelo ato de amaldi
(“para que”) expressa algo menos que propósito.
çoar a figueira (Mc 11.12-14) e pela lição extraída
T. W. Manson aventa a hipótese de que hina é um
da figueira ressecada (Mc 11.20-25). Além disso,
0rro de tradução do aramaico de,
0 material de Marcos 4.1-34 foi cuidadosamgnte
o sentido de “quem”. Dessa maneira, ele prefere
organizado:
traduzir “ tudo se ensina por meio de parábolas,
que
pode ter
para os que estão de fora e de fato veem, mas Marcos 4.1,2 — Introdução narrativa, infor
não sabem”
(M
anson,
p. 76-8). Joachim Jeremias
mando que Jesus ensinou essas parábolas en
entende que hina é a forma abreviada de hina
quanto estava em um barco.
pkrothe (“para que se cumprisse”). Outros suge
Marcos 4.3-9 — A parábola do semeador.
rem que se interprete hina como “porque”, como
Marcos 4.10-12 — Jesus fica a sós com os dis
em Apocalipse 14.13, especialmente porque o pa
cípulos, os quais ele contrasta com os que estão
ralelo em Mateus 13.13 traz hoti (“ porque”). A
de fora.
sugestão de Jeremias é útil, mas essas explicações
Marcos 10.13-20 — Interpretação da parábola
são desnecessárias, pois apenas ressaltam a difi
do semeador.
culdade de aceitar a possibihdade de que Jesus
Marcos 10.21-25 — Ensinos apresentados em
contava parábolas para impedir a compreensão.
forma de parábola acerca do ouvir.
Os estudiosos, em vez de atribuir as parábolas a
Marcos 4.26-32 — Duas parábolas: a da se
Jesus, muitas vezes preferem acreditar em uma
mente que cresce em segredo e a do grão de
suposta teoria de Marcos acerca das parábolas.
mostarda.
No entanto, não existe em Marcos uma teoria
Marcos 4.33,34 — Conclusão que apresenta
de que as parábolas impeçam a compreensão
um resumo do objetivo dessa seção.
(cf. Mc 12.12).
983
Parábo las
Tabela 1. As parábolas de Jesus
Parábolas marcanas
Marcos
Os convidados do noivo 0 tecido novo 0 vinho novo O homem forte que é amarrado O semeador A candeia e a medida A semente que cresce em segredo O grão de mostarda Os agricuhores maus A figueira que se renova A sentinela
2.19,20 2^21 2.22 3.22-27 4.1-9,13-20 4.21-25 4.26-29 4.30-32 12.1-12 13.28-32 13.34-36
Parábolas partilhadas por Mateus e Lucas
Lucas
Mateus 9.15 9.16 ’ "9.17 12.29,30 '113.1-9,18-23
5.33-39 5.36 : 537-39 ' ' 11.21-23 ' 8.4-8,11-15 8.16-18
13.31,32 21.33-46 24.32-36
; 13.18,19 : 20.9-19 21.29-33 12.35-38
(q)
Os construtores: o sábio e o tolo 0 pai e 0 pedido dos filhos Os dois caminhos/as duas portas 0 fermento A ovelha perdida A festa de casainento O ladrão de noite Os dois servos Os talentos Parábolas encontradas apenas em Mateus
7.24-27 7.9-11 7.13,14 13.31,32 1%12-14 ‘ 22.1-14 24.42-44 24.45-51 25.14-30
As árvores boas e ruins A rede de pesca 0 joio e o trigo 0 tesouro A pérola de grande valor 0 servo impiedoso Os trabalhadores na vinha Os dois filhos As virgens sábias e tolas Os bodes e as ovelhas Parábolas encontradas apenas em Lucas Os dois devedores 0 bom samaritano 0 amigo à meia-noite 0 rico insensato A figueira estéril 0 construtor de uma torre 0 rei que saiu à guerra A ovelha perdida A moeda perdida 0 filho pródigo 0 mordomo infiel 0 rico e Lázaro 0 servo humilde 0 juiz incompassivo 0 fariseu e o publicano Parábolas encontradas apenas em João
7.16-20 13.47 .SO 13.24-30,36-43 13.44 13.45,46 18.23-35 20.1-16 21.28-32 25J-13 25.31-46
6.47-49 11.11-13 13.23-27 13.20,21 1 5 . 1-7
^
14^15-24 12.39,40 12.42-46 19.11-27
7.41-50 10.2S-37
n.5-8
'^
Ï2.13-21 13.6;9 14.28-30 14.31-33
rs;i-7
15.8-10 15.11-32 16.1-8 16.19-31 ' 17.7-10 18.1-8 18.9-14
O bom pastor — 10.1-18 (cf. Mt 18.12-14; Lc 15. 1-7) A videira verdadeira — 15.1-8
984
'
Parabo las
O objetivo de Marcos 4.10-12 fica claro se pres
estrutura específica, como paralelismo ou quias
tarmos atenção ao contexto. 0 reino é o reino da
mo. Por exemplo, existem paralelos significativos
Palavra, e a questão é como o ser humano ouve e
entre o filho mais novo e o mais velho na parábola
reage à Palavra. A parábola do semeador é sobre
lucana do filho pródigo (Lc 15.11-32). Mudanças
0 ouvir. Em Marcos 4.10-12, o Evangelista mostra
significativas de fraseologia entre os vários rela
o que normalmente acontecia no ministério de
tos precisam ser entendidas à luz dos propósitos
Jesus. (Observe-se em Mc 4.10,11 o uso dos tem
editoriais dos Evangelistas. Não se deve presumir
pos imperfeitos no grego, o que indicava algo que
que um Evangelho em particular sempre apresen
acontecia costumeiramente.) Jesus ensinava as
te a versão mais antiga de determinada parábola.
multidões, mas seu ensino requeria uma resposta.
Também não se deve eliminar a introdução e a
Quando alguém correspondia de forma positiva,
conclusão de nenhuma parábola.
dava-se mais um ensino. O padrão de ensino pú
2) Na parábola, observe aspectos culturais ou
blico seguido de ensino particular a um círculo de
históricos que proporcionam compreensão mais
discípulos também aparece em outra passagem de
aprofundada. A maioria das parábolas contém
Marcos (7.17; 10.10). As fortes palavras de Isaías
esses aspectos, os quais exigem investigação. Por
6.9,10 não querem dar a ideia de que Deus não de
exemplo, o impacto da parábola do fariseu e do
sejava perdoar ao povo. Trata-se de uma declara
publicano (Lc 18.9-14) é acentuado quando se
ção sem rodeios que exprime o inevitável. 0 povo
tem consciência de que os dois homens prova
ouvia, mas não entendia de verdade.
velmente foram ao templo para orar na hora do
A dureza de coração e a falta de receptividade
sacrifício expiatório da manhã ou da tarde. Na
constatadas por Isaías encontraram reflexo no mi
prática, o publicano orou; “Que o resultado do
nistério de Jesus. A questão é se o coração da pes
sacrifício para mim seja a misericórdia”.
soa se endurecerá ou se ela ouvirá e obedecerá.
3) Ouça as parábolas no contexto do ministé
Receber a mensagem, ainda que com alegria, não
rio de Jesus. Os leitores de hoje mostram-se em
é suficiente (Mc 4.16). 0 que se exige é um ouvir
geral tão familiarizados com as parábolas que
que resulte em um viver frutífero. Esse é sem dú
não se dão conta do choque que os ouvintes de
vida 0 objetivo de Marcos, pelo que se depreende
Jesus devem ter sentido. Tendemos a ter ideias
deste resumo; “E dirigia-lhes a palavra com mui
negativas sobre os fariseus e não ficamos surpre
tas outras parábolas como essas, conforme con
sos em ouvir Jesus dizer que o publicano, não o
seguiam compreender” (Mc 4.33). A declaração
fariseu, é que foi declarado justo. Os ouvintes de
de Marcos 4.22 também é uma pista importante
Jesus sem dúvida pressupunham
para entender o objetivo do Evangelista: “Nada
era um homem jesto, e
o
que
o fariseu
publicano, um trapacei
está encoberto que não seja para ser manifesto”.
ro. Não nos surpreende o fato de um samaritano
Parece ser essa a maneira de Marcos entender
ajudar uma vítima (Lc 10.30-37), mas os ouvintes
as parábolas. As parábolas ocultam para revelar.
de Jesus, como o escriba a quem ele se dirigia,
Embora alguns reagissem com dureza de coração
provavelmente jamais teriam proferido as pala
ou negando-se a ouvir, Jesus ensinava por meio
vras “ samaritano” e “próximo” na mesma frase.
de parábolas para induzi-los a que ouvissem e
As parábolas costumam induzir os ouvintes a
prestassem obediência.
mudanças na forma de pensar.
8. Diretrizes para a interpretação
0 contexto de muitas parábolas não foi preserva
4) Procure ajuda no contexto, mas saiba que A interpretação das parábolas não é um procedi
do. A parábola dos agricultores maus (Mt 21.33-
mento científico, mas é possível estabelecer dire
44 e par.) deve ser vista à luz da indagação sobre
trizes que favoreçam a compreensão e evitem o
a autoridade com que Jesus realiza suas ações
mau uso delas.
(Mt 21.23-27). Em contraste, Mateus 13 proporcio
1)
Analise a sequência, a estrutura e a fra na uma coletânea temática de oito parábolas sobre
seologia da parábola, inclnindo-se os paralelos
o reino, das quais não se preservou o contexto.
presentes nos outros Evangelhos. Acompanhe o
5) Observe como a parábola e sua forma edi
desenvolvimento da parábola e observe qualquer
torial se enquadram no plano e nos propósitos
985
P arábo las
Evangehstas. Uma maneira eficaz de descobrir a
do Evangelho em que ela aparece. Para realçar a mensagem de Jesus, os Evangelistas organi
função de uma parábola é indagar qual pergun
zaram tematicamente a maioria das parábolas.
ta ela procura responder. Às vezes, a pergunta é
Com essa organização, eles revelam as próprias
explícita, como na parábola do bom samaritano
tendências teológicas. Por exemplo, as parábolas
(Lc 10.25-37), que trata da pergunta “Quem é o
de Lucas aparecem basicamente em sua narrati
meu próximo?” Em outras ocasiões, a pergunta
va de viagem (Lc 9.51— 19.48), que tem estrutura
está implícita, como nas parábolas do rei que vai
quiasmática. Lucas está interessado na oração, na
à guerra e do homem que constrói uma torre, que
riqueza e nos enjeitados. Não surpreende, pois,
tratam da pergunta “É fácil ser discípulo?”.
que tenha organizado as parábolas sobre oração
7) Apure o significado teológico da história. O
em Lucas 11.5-13 e 18.1-14, sobre a riqueza em
que a parábola ensina acerca de Deus e de seu
Lucas 12.13-21 e 1Ó.1-31, sobre convites para um
reino deve refletir em outras paries do ensino de
banquete (particularmente convites para enjeita
Jesus. Não existe nenhuma proposta de que deva
dos) como reflexo do reino em Lucas 14.7-24 e
mos reduzir a parábola a proposições teológicas;
sobre a alegria de recuperar algo que estava per
no entanto, as parábolas expressam, sim, uma
dido em Lucas 15.1-32. Além das parábolas do
teologia. Mais uma vez, não se deve dar demasia
reino de Mateus 13, em Mateus 18.10-14,21-35, o
da atenção aos detalhes das parábolas. Por exem
Evangelista apresenta duas parábolas no contex
plo, embora Mateus 18.34 ressalte a seriedade do
to de seu “discurso eclesiástico”. Mateus também
juízo divino, isso não quer dizer que Deus tenha
reúne, em Mateus 21.28— 22.14, três parábolas
verdugos ou atormentadores!
sobre a rejeição de Israel ao convite divino e,
8) Preste especial atenção ao final da parábo
em Mateus 24.32— 25.46, sete outras, de cunho
la. A regra da tensão final reconhece que a par
escatológico. Mateus e Lucas também diferem
te mais importante da parábola é a conclusão,
no posicionamento de algumas parábolas. Por
ponto em que se exige uma decisão ou em que
exemplo, Lucas apresenta a parábola da ovelha
o ouvinte é induzido a mudar sua maneira de
perdida (Lc 15.1-7) em um contexto que trata do
pensar. 0 final da parábola dos agricultores maus
arrependimento dos pecadores, enquanto Mateus
(Mt 21.33-44) é uma citação de Salmos 118.22,23.
a situa em um contexto que trata do discípulo
Por meio de um jogo de palavras, as autoridades
que erra. É certo que Jesus contou algumas das
rehgiosas são levadas a perceber que, na condição
parábolas mais de uma vez, mas essas variações
de “construtores” da nação judaica, rejeitaram o
podem ser resultado de intervenção editorial.
F il h o
6)
de
D
eus.
Independentemente do que mais
Identifique a função que tem a história possa ser verdade na parábola da ovelha perdida,
como um todo para o ensino de Jesus e para os
0 fato é que a atenção se concentra na alegria de
Evangelistas. Pode haver mais de uma verdade na
recuperar a que estava perdida.
parábola e várias correspondências com a reali dade que ela reflete. No entanto, isso não é uma
9. O ensino das parábolas
licença para alegorizar. Algumas parábolas che
As parábolas concentram-se basicamente na vin
gam a ter dois clímaces. Observe a parábola do
da do reino e no consequente discipulado que
filho pródigo (ou mais corretamente identificada
se exige. Quando Jesus proclamou o reino, quis
pelo título “a parábola do pai e dos dois filhos”),
dizer que Deus estava exercendo seu poder e do
em Lucas 15.11-32, e a parábola do banquete de
mínio para perdoar o mal e estabelecer a justiça,
casamento, em Mateus 22.1-14, etftbora a última
cumprindo assim as promessas do
possa ser a junção de duas parábolas. Qualquer
e no ministério de Jesus, esses atos estavam sen
at.
Na pessoa
correspondência entre a parábola e a realidade
do realizados, e o reino agora estava à disposi
que ela reflete provavelmente estará limitada
ção do povo. 0 reino é acompanhado de graça
aos elementos principais da história. Não se de
sem limite, mas também de exigências sem limi
vem alegorizar os detalhes nem forçar as pará
te — por isso, é impossível falar do reino sem
bolas além de seu propósito. 0 objetivo é ouvir
falar de discipulado. Embora algumas parábolas
a intenção de Jesus conforme transmitida pelos
antecipem aspectos do futuro reino de Deus, boa
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Pa rá bo la s
parte da atenção se concentra no reino como algo (Mc 4.26-29), ressaltando que o reino é obra de presente e dispomvel aos ouvintes de Jesus. Ao Deus, não resultado da ação humana. mesmo tempo, o reino é presente e ainda aguar Outras parábolas também destacam o aspecto da consumação. Com a atenção voltada para o presente do reino. As parábolas do grande ban presente, vem o convite para ingressar no reino e quete (Lc 14.15-24) e das bodas (Mt 22.1-14) afir viver de acordo com seus padrões. A oração e o mam que tudo está pronto e que os convidados uso das riquezas são duas áreas da vida do reino já podem vjr (Lj; 14.17; Mt 22.4). Também se em tratadas nas parábolas. prega 0 tema db banquete para expressar outras 9.1 O reino como algo presente. Uma parábo ideias. Essas parábolas e muitas outras apontam la curta em Mateus 12.29 é uma das mais fortes para a recusa do povo judeu em atender à mensa declarações acerca da presença do reino, e essa gem de Jesus. Parábolas como a da figueira estéril parábola também tem implicações cristológicas. (Lc 13.6-9) põem o ser humano diante de uma Em resposta à acusação de que Jesus expulsava decisão crítica que deve conduzi-lo ao arrependi demônios pelo poder de Belzebu (Mt 12.24), ele mento. Além disso, as parábolas sobre banquetes aponta para a atividade do Espírito (v. EspÍRrro e outras, como a do filho pródigo (Lc 15.11-32), S a n t o ) em seu ministério como prova de que o proclamam, na prática, que Deus está promoven reino está presente (Mt 12.28). A parábola de Ma do uma celebração e pergunta aos ouvintes por teus 12.29 sustenta que ninguém pode entrar e que eles não estão participando. saquear a casa de um homem forte, a menos que O reino se revela como uma maravilhosa ma antes amarre o homem. Fica claro que para Jesus nifestação da graça de Deus. Os Evangelhos não seu ministério consiste em prender Satanás e sa registram que Jesus ensinou sobre a graça, mas quear sua casa. nenhuma palavra sintetiza tão bem o impacto Embora todas as parábolas sejam, em certo do reino. O convite aos enjeitados nas parábo sentido, parábolas do reino, as de Mateus 13 es las sobre banquetes sem dúvida é uma expres tão agrupadas com o objetivo de propiciar uma são da graça. As parábolas dos dois devedores compreensão do reino. A parábola do semeador (Lc 7.41-43), da ovelha perdida, da moeda per revela que o reino envolve a apresentação de uma dida e do fllho pródigo (Lc 15), do servo impie mensagem e a necessidade de uma resposta que doso (Mt 18.23-35) e dos trabalhadores na vinha conduz a uma vida frutífera. Nessa seção, parece (Mt 20.1-16) apontam todas elas para o desejo que várias parábolas têm o propósito de respon divino de favorecer o ser humano, buscando-o, der a perguntas feitas pelos ouvintes de Jesus a perdoando-lhe e aceitando-o. A parábola dos tra respeito de afirmações que ele fazia sobre o reino balhadores na vinha também constitui uma críti como realidade presente. Parece que a parábola ca contra aqueles que acham que a graça divina do joio e do trigo tem o objetivo de responder deve ser concedida com base no mérito. à pergunta “Como o reino pode ter vindo, se o 9.2 O reino como algo futuro. O ensino de mal ainda está presente?”. 0 reino está presente Jesus sobre o aspecto futuro do reino é visto mais e cresce mesmo no meio do mal, e o juízo acon claramente nas parábolas que falam de juízo tecerá no futuro. Por esse motivo, o reino convi ou do senhor que volta para fazer o acerto de da ao envolvimento e à paciência. As parábolas contas. As parábolas sobre crescimento também gêmeas da semente de mostarda e do fermento apontam para uma separação entre os que foram tratam da mesma pergunta: “Como o reino pode obedientes, fiéis, preparados ou misericordiosos estar presente, se os resultados parecem tão in e os que não foram. O primeiro grupo entra no significantes?”. O começo pode ser pequeno, mas reino, recebe elogios e experimenta alegria. 0 0 resultado será grande e significativo. As pará outro grupo sofre castigo ou destruição. Explícita bolas gêmeas do tesouro e da pérola de grande ou implicitamente, a base do juízo é saber se a valor ressaltam que o reino é de valor supremo pessoa demonstrou misericórdia. Nem todas as e deve ser escolhido acima de tudo o mais. Em parábolas de juízo dizem respeito ao futuro. Al sua seção sobre as parábolas do reino. Marcos in gumas falam de um juízo mais imediato, como clui a parábola da semente que germina e cresce a parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31) ou a 987
P a r á b o ia s
parábola que expressa a crise com que se defron de Jesus, Lucas dedica especial atenção ao uso tava 0 povo judeu (Lc 13.6-9). Mesmo assim, o correto das riquezas. Várias parábolas exclusivas desse Evangelho analisam o tema. 0 rico insen juízo futuro é um tema importante nas parábolas sato (Lc 12.16-21) só pensava em usar seus bens de Jesus. As parábolas sobre o futuro não têm o propó para o próprio deleite. Deixou de considerar a fon sito de satisfazer alguma curiosidade. Seu obje te de suas riquezas ou o fato de que a vida consis tivo é mudar a vida no presente. Ao dar atenção te em muito mais que acumular bens materiais. ao juízo e ao retorno do Senhor, elas se propõem O texto de Lucas 12.20 sugere que a vida é um incentivar a fidelidade, a sabedoria e a vigilân empréstimo feito por Deus e que temos de pres cia. Esses temas são encontrados na parábola dos tar contas a ele. As parábolas e frases de Lucas dois servos (Mt 24.45-51; Lc 12.41-48), na pará 16 proporcionam alguns dos ensinos mais diretos bola das dez virgens (Mt 25.1-13) e na parábola acerca das riquezas. A parábola do mordomo in dos talentos (Mt 25.14-30 par Lc 19.11-27?). Es fiel é objeto de debate por não se saber com segu ses temas também são evidenciados em parábo rança qual foi 0 desconto que ele concedeu: um las sobre o presente (v. esp. Lc 16.1-13). Tanto abatimento da própria comissão, uma redução na as parábolas que se referem ao presente quanto taxa usurária ilegal que iria para seu senhor ou as que apresentam uma escatologia futura têm simplesmente o resultado de um ato impulsivo como objetivo levar o ser humano a adotar uma em que ele contava com a misericórdia de seu vida correta no presente. senhor 0 objetivo da parábola assim mesmo é 9.3 Discipulado. 0 discipulado é o principal claro. A mensagem de Jesus em Lucas 16.8,9 é propósito do ensino de Jesus; por isso, as parábo que neste mundo as pessoas entendem melhor a las muitas vezes se concentram nesse tema. Em sagacidade no uso dos recursos que os discípu muitos casos, o discipulado é o assunto pressu los, a economia do reino. Os discípulos de Jesus posto. Em outras passagens, o interesse no dis devem fazer amigos mediante o uso correto do cipulado é explícito. Nas parábolas gêmeas do “mamom injusto”, dinheiro que tende a levar à construtor de uma torre e do rei que vai à guer injustiça. Mediante o uso correto do dinheiro em ra (Lc 14.28-32), as pessoas são aconselhadas a atos de misericórdia, eles fazem amizades com benefícios eternos (cf. Lc 12.33). A parábola do considerar o custo, pois ser discípulo não é fácil. rico e Lázaro apresenta a mesma mensagem de A parábola do servo e seu senhor (Lc 17.7-10) apresenta a obediência como algo que se espe forma pungente. O propósito não é tanto ofere ra, algo que as pessoas devem fazer, não algo cer uma descrição de juízo quanto ressaltar as consequências eternas de negUgenciar os atos de excepcional. (Cp. com a parábola de Lc 12.37, que conta a história de um senhor que serve seus misericórdia. Ser discípulo do reino é reorganizar servos porque eles foram fiéis!) A parábola dos as prioridades com respeito às finanças. dois construtores descreve o sábio como aquele 9.3.2 Oração. Outra preocupação editorial que ouve os ensinos de Jesus e os pratica. Em que Lucas transmite por meio das parábolas é outras passagens, o sábio é aquele que entende a oração. Duas delas, a do amigo à meia-noite as realidades escatológicas e vive à altura de tais (Lc 11.5-8) e a do juiz incompassivo (Lc 18.1-8), realidades. De modo semelhante, a parábola dos são contrastes entre a resposta humana a alguns dois filhos (Mt 21.28-32) destaca a importância pedidos e a maneira de Deus responder à oração. da obediência, em contraste com o objetivo de A parábola do amigo à meia-noite não é sobre per fazer a vontade do Pai. Quando a^obediência é sistência. Em Lucas 11.8, a palavra anaideia, às mencionada, a atenção se concentra na neces vezes traduzida por “importunação” ou “persis tência”, significa “sem pudor” e quase certamente sidade de praticar atos de misericórdia (v. esp. Mt 18.33; 25.32-46; Lc 10.25-37). Não se pode se refere à audácia do homem que bate à porta. A experimentar a graça do reino sem que ela seja mensagem da parábola é que, se um ser humano responde a alguém que bate à porta dessa ma também estendida aos outros. 9.3.1 O uso correto das riquezas. Embora o uso neira, quanto mais Deus responderá às orações do dinheiro seja um assunto recorrente no ensino de seu povo (cf. Lc 11.13). De forma semelhante. 988
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o juiz incompassivo age a favor da viúva para que ela não fique a importuná-lo. Mas a parábola mostra que Deus não é como o juiz incompassivo. Pelo contrário, ele decidirá rapidamente a causa de seu povo. Lucas dá a seus leitores a confiança de que Deus ouve as orações e responde. A última parábola sobre oração, a do fariseu e do publicano, realça a humildade e o arrependimento com que devemos nos aproximar de Deus. Ver também r e i n o d e D e u s . djg :
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parên ese.
'^er E s p ír it o
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JoAo, E v a n g e l h o
de.
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Ver a p o c a lip t is m o ;
e s c a to lo g ia .
B ib lio g r a f ia . B a ile y ,
Ver Ú l t i m a C e ia . PASTORES. Ver Jesus, nascimento de. PA scoa.
P a u i o c o m o m is s io n A r io .
Ver
P a u lo
em A t o s
e nas
ca rta s .
P a u l o , co n versão e c h a m a d o de Uma das narrativas mais conhecidas do n t é o episódio da conversão de Paulo e seu chamado para ser apóstolo aos gentios. Os estudiosos dis cordam sobre a melhor maneira de entender a experiência de Paulo: como conversão ou como chamado a uma missão como apóstolo entre os gentios. Referências à experiência de conversão/ chamado de Paulo são encontradas em Gálatas 1, Filipenses 3, Atos 9, Atos 22 e Atos 26. 1. H i s t ó r i a d a i n t e r p r e t a ç ã o d a c o n v e r s ã o / chamado de Paulo 2. Relatos da conversão/chamado de Paulo 3. Algumas questões de fundamental impor tância 1. História da interpretação da conversão/ chamado de Paulo
Algumas décadas atrás, muitos estudiosos da Bí blia teriam concordado com a afirmação de que a notável experiência de Paulo na estrada de Da masco foi um caso paradigmático de conversão cristã. Hoje, muitos desses estudiosos descreve riam a mesma experiência como um chamado fei to singularmente a Paulo para ser apóstolo entre os gentios. Essa mudança na maneira de entender determinou as prioridades de muitos estudos re centes sobre a conversão/chamado de Paulo. A visão tradicional, que entende como con versão a experiência que Paulo teve na estrada
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de Damasco, tem uma longa história no pensa mento ocidental, remontando a Agostinho e à maneira de ele entender a própria conversão. 0 estudo psicológico realizado por William James sobre a conversão foi profundamente influencia do por essa tradição. James define a conversão como o processo no qual, por consequência de se chegar a um controle mais firme das realidades espirituais, a pessoa que lutava com o sentimen to de culpa e de inferioridade se torna alguém com o sentimento e a consciência de estar certo e de ser uma pessoa completa. Com base nessa perspectiva tradicional, a experiência que Paulo teve na estrada de Damasco é vista como um exemplo excelente de conversão. Um judeu fari seu, consciente de sua incapacidade de cumprir a Lei, experimenta uma profunda mudança inte rior quando recebe a revelação de que pode ser Justificado pela fé em Jesus Cristo. 0 perseguidor judeu torna-se o convertido cristão que prega a mensagem de justificação pela fé em Jesus Cris to. Até bem recentemente, essa maneira de ver a conversão de Paulo dominava os estudos bíblicos (v. N o c k e S t e w a r t ) . Contudo, nas liltimas décadas, essa ideia em torno da conversão de Paulo passou a ser vis ta com sérias suspeitas. 0 estudioso biTjlico em grande parte responsável por questionar a ideia tradicional sobre a conversão de Paulo é K. Sten dahl, em seu livro Paal among Jews and Gentiles [Paulo entre judeus e gentios] [1975). Stendahl afirma que a maneira ocidental de entender Paulo se deve mais às leituras introspectivas de Agosti nho e de Lutero que aos registros do . A expe riência de Paulo na estrada de Damasco não foi a experiência íntima de conversão que a teologia ocidental pressupõe, tampouco uma conversão em que trocou as obras do judaísmo pela justiça. Na realidade, de acordo com as definições tradi cionais de conversão, a experiência de Paulo na estrada de Damasco não foi absolutamente uma conversão. Paulo não trocou'tie^religião, nem se sentiu afligido pela culpa ou pelo desespero. De acordo com Stendahl, é melhor entender a experiência de Paulo como um chamado para ser apóstolo entre os gentios. Por causa desse cha mado, ele começa a indagar sobre o que acontece com a Lei agora que o Messias (v. C r i s t o ) já veio e sobre o que a vinda do Messias significa para as n t
relações entre judeus e gentíos. É por responder a essas questões, não por se debater com o signifi cado da Lei para sua vida, que Paulo chega a uma nova concepção da Lei. A experiência de Paulo na estrada de Damasco faz parte de seu chamado apostólico singular, sem ter o propósito de ser um exemplo de conversão cristã. 0 fato de Stendahl compreender a experiên cia de Paulo na estrada de Damasco como um chamado e o questionamento que ele faz acer ca de maneiras tradicionais de entender essa conversão resultaram em um novo conjunto de perguntas para os que estudam a conversão/cha mado de Paulo: “Como definir c o n v e r s ã o e c o m o as definições modernas são aplicadas em Paulo? Paulo continuou judeu ou mudou de religião? E melhor entender sua experiência como chamado ou como conversão? A experiência de Paulo tem 0 propósito de ser um exemplo para os cristãos? Como a conversão/chamado de Paulo influenciou sua teologia?”. Mais importante ainda foi que o questionamento de Stendahl forçou os estudiosos da Bíblia a retornar aos textos do n t que tratam da conversão/chamado de Paulo para assim res ponderem a essas perguntas. 2. Relatos da conversão/chamado de Paulo
Relatos sobre a conversão/chamado de Paulo são encontrados em dois lugares diferentes do n t : nas cartas de Paulo e no livro de Atos. As pas sagens de Gálatas 1.11-17 e de Filipenses 3.3-17 são dois textos em que Paulo escreve a respeito de sua experiência de conversão/chamado. Além disso, ITimóteo 1.12-17 e Romanos 7 são às vezes considerados relatos autobiográficos dessa experiência. Atos contém três diferentes relatos da experiência de Paulo na estrada de Damasco (At 9.1-20; 22.1-21; 26.2-23). Uma das questões envolvidas no estudo da conversão/chamado de Paulo é como interpretar as informações do n t . A pesquisa histórica dá maior valor às cartas, em que o próprio Paulo conta sua experiência, em detrimento de Atos, que é uma interpretação posterior de uma perspectiva em particular. As sim, metodologicamente, parece melhor começar com os relatos contidos nas cartas de Paulo e só depois analisar o material de Atos. Também é im portante indagar como os relatos nas cartas e em Atos se relacionam uns com os outros.
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2.1 Gálatas 1.11-17. As referências autobio gráficas em Gálatas 1.11-17 fazem parte da defesa que Paulo apresenta de seu evangelho. Muitos estudiosos entendem que os adversários de Paulo eram judaizantes, aqueles que acreditavam que os cristãos gentios deviam guardar a Lei e ser cir cuncidados. Em Gálatas, Paulo discute com esses judaizantes e afirma que, em Cristo, os gentios não precisam guardar a Lei nem ser circuncida dos. Paulo apresenta sua experiência como parte de seu argumento para com isso destacar a natu reza reveladora do evangelho sem a Lei que ele prega entre os gentios. A origem divina do evangelho que Paulo pre ga (G1 1.11,12] também se vê na fonte do cha mado de Paulo [G11.15-17). A análise que Paulo faz da revelação que recebeu (G11.15) é expressa na linguagem dos chamados proféticos do a t (cf. Jr 1.5). Essa linguagem destaca o papel de Paulo como alguém chamado a proclamar a palavra de Deus e aponta para a origem divina da mensagem proclamada. 0 objeto dessa revelação é Jesus Cristo: essa é a mensagem de Deus que Paulo é chamado a proclamar entre os gentios (G1 1.16). Embora Paulo não relate praticamente nada dos acontecimentos que cercaram essa revelação, ele conta, s i m , que depois dessa experiência ele não r e c e b e u i n f l u ê n c i a d e n e n h u m m e i o h u m a n o (Gi 1.16,17). Paulo utiliza a experiência de s u a c o n v e r s ã o / c h a m a d o para mostrar que seu e v a n gelho a o s gentios tem raízes na revelação e no chamado divinos. É nesse contexto que é preciso entender a menção paulina à sua convivência anterior com o JUDAÍSMO (GI 1.14,15). Não existe explicação hu mana para sua experiência, e nada o preparou para a revelação que recebeu. O judeu que era tão zeloso das tradições de seus ancestrais e que perseguia os que acreditavam em Cristo agora de fendia um evangelho sem a Lei. proclamando-o entre os gentios. O contraste entre a vida anterior de Paulo como judeu e sua nova vida como após tolo aos gentios é visto como prova da origem divina do evangelho que ele pregava na condição de apóstolo aos gentios. 2.2 Filipenses 3.3-17. A razão de Paulo ter feito declarações autobiográficas em Filipenses 3.3-17 não é tão clara quanto a de Gálatas 1.1-17. Mas é provável que ele esteja outra vez apresentando
argumentos contra as tendências judaizantes da igreja. É o que se deduz pela referência aos que mutilam a carne (Fp 3.2) e pelo fato de Paulo afir mar que somos a verdadeira circuncisão (Fp 3.3). Embora as tendências judaizantes não pareçam ser um problema de maior importância em Filipos, Paulo apresenta sua vida como exemplo do que vem a ser a verdadeira circuncisão. Paulo entende que sua experiência é uma expressão paradigmá tica do grande contraste entre a vida sob a Lei e a graça transformadora da nova vida em Cristo. Paulo está desejoso de se comparar aos que acreditam ter motivo para confiar na carne, pois ele tem motivos ainda melhores para tal confian ça (Fp 3.4-6). Três dos motivos para Paulo ter confiança na carne baseiam-se em fatores heredi tários: nasceu judeu; foi circuncidado de acordo com a Lei; foi criado como um judeu que falava hebraico e era culturalmente puro (v. P a u l o , o J u d e u ). As convicções pessoais de Paulo na con dição de judeu também lhe dão motivo para se vangloriar: sua atitude em relação à Lei foi a da rigorosa seita dos fariseus, ele foi um perseguidor zeloso da igreja e foi inculpável na observância da Lei. Os antecedentes de Paulo situam-no na posição de alguém que tem total competência para julgar qualquer questão que envolva a Lei. Entretanto, o fato de ele ter conhecido a Cristo Jesus provocou uma reviravolta em sua vida. 0 juízo que ele fazia de todas aquelas vantagens, tudo que ele considerava lucro, é agora tido como perda (Fp 3.7,8). 0 resultado da experiência de conversão/chamado, ocasião em que Paulo veio a conhecer a Cristo, é uma completa transforma ção. Ser achado em Cristo significa que Paulo não é mais encontrado na Lei (Fp 3.9). Agora toda a vida de Paulo é moldada pelo partilhar da morte e ressurreição de Cristo (Fp 3.10,11), e o proces so de ser transformado em Cristo é contínuo na vida de Paulo, enquanto ele se mantém fiel ao chamado de Deus em Cristo Jesus (Fp 3.12-14). Pelo fato de a experiência paulina de conver são/chamado ter resultado na transformação to tal de sua vida, Paulo entende que a relação com seus leitores é de um tipo que deve ser imitado (Fp 3.15-17). A ideia de si mesmo como exemplo da vida em Cristo é o propósito escondido no re lato que Paulo apresenta de sua experiência em Filipenses 3.3-17.
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2.3 Outros relatos paulinos? Existem ainda a maioria dos estudiosos da história agora rejeita duas outras passagens nas cartas paulinas que são essa possibilidade. Em vez disso, entendem que consideradas relatos autobiográficos da conversão nessa passagem Paulo examina a Lei em sentido geral, mas de uma perspectiva cristã. 0 empre de Paulo: ITimóteo 1.12-16 e Romanos 7.7-25. A passagem de ITimóteo 1.12-16 é sem dú go da primeira pessoa do singular representa seu vida um relato da conversão de Paulo, porém profundo envolvimento pessoal na questão da muitos estudiosos não acreditam que Paulo tenha Lei. A. F. Segai tem uma interpretação diferente e escrito ITimóteo e, desse modo, questionam seu convincente de Romanos 7.7-25: Paulo está des crevendo a experiência judaico-cristã após a con valor como declaração autobiográfica (v. C a r t a s versão e emprega a primeira pessoa do singular P a s t o r a i s ) . Nessa passagem, o contraste entre a porque fala como cristão judeu a cristãos judeus. vida anterior de Paulo e sua vida em Cristo (v. Nenhum cristão sairá vitorioso na luta contra a “ em C r i s t o ” ) recebe mais uma vez grande desta que. No entanto, dois aspectos desse contraste Lei enquanto sua observância for uma opção le diferem do que lemos em Filipenses 3 e em Gála vada a sério na comunidade cristã. Um evange tas 1. 0 primeiro é que não há menção ao judaís lho sem a Lei é a única solução. Dessa maneira. mo. 0 segundo é que Paulo se identifica como o Romanos 7.7-25 descreve a luta pessoal experi maior dos pecadores, juízo que não apresenta em mentada por qualquer judeu cristão que procura nenhuma das duas outras passagens. Entretanto, também guardar a Lei. Por causa da multiplicidade de interpretações como ocorre em Filipenses 3, a transformação na vida de Paulo é apresentada como exemplo para de Romanos 7.7-25 e da falta de informação bio os crentes. Seja ou não paulino, esse texto repre gráfica direta no texto, parece melhor não con senta essa tradição e é válido como informação siderar essa passagem um relato da conversão/ sobre a maneira em que a experiência de conver chamado de Paulo. 2.4 Em Atos. Não há nas cartas de Paulo pra são/chamado de Paulo era entendida nas igrejas ticamente nenhuma informação sobre o aconte gentílicas que ele fundou. cimento em si da conversão/chamado. Em vez A natureza autobiográfica de Romanos 7.7-25 não é apenas questionada: é o centro de uma disso, refletem a mudança radical de Paulo em relação a seus valores e compromissos. Essa mu importante controvérsia nos estudos paulinos. A questão principal é como entender o emprego dança ocorreu depois que ele recebeu uma reve lação de Cristo. Mas as três referências em Atos da primeira pessoa do singular nessa passagem. concentram-se nos acontecimentos que cercam a (Para um resumo histórico das várias maneiras conversão/chamado. 0 fato de o relato da con em que o uso do “eu” tem sido interpretado, v. versão/chamado ser repetido três vezes sugere C , p. 342-7.) Será que Paulo está falando de sua experiência pessoal, seja como judeu, seja que esse acontecimento é de g r a n d e importân como cristão? Ou estaria falando de forma genéri cia na narrativa de Lucas. 0 primeiro relato, em ca sobre a experiência judaica, cristã ou humana Atos 9.1-20, faz parte da narrativa histórica. Os em geral? Ou ainda estaria empregando a primei outros relatos (At 22.1-21; 26.2-23) integram os ra pessoa do singular apenas para falar da Lei em discursos de Paulo perante os judeus e o rei Agri pa, respectivamente. Em relação a essas narrati sentido mais geral? A ideia tradicional sobre a conversão/chama vas, existe agora nos estudos do n t a tendência de do de Paulo é que essa passagem constitui um isolá-las do restante de Atos e então compará-las relato autobiográfico sobre sua e£periência pré- com os relatos de Paulo. Entretanto, é aconselhá vel anahsar as passagens de Atos em seu con cristã como judeu. Entende-se Romanos 7.7-25 como um indicativo dos sentimentos de culpa e texto. Lucas as utiliza para mostrar o progresso inferioridade que Paulo nutria como judeu por da igreja depois que esta deixou de ser uma co munidade judaica e se tornou uma comunidade ser incapaz de guardar perfeitamente a Lei. Mas essa leitura de Romanos 7.7-25 contradiz as de gentílica, e para justificar a missão de Paulo entre clarações de Paulo em Gálatas 1 e em Filipenses 3 os gentíos. Em razão da clara intenção apologé a respeito de sua vida como judeu, de modo que tica de Lucas, alguns estudiosos questionam a r a n f ie l d
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confiabilidade histórica das narrativas de Atos. É certo que Lucas detém conhecimento de primeira mão acerca do episódio da conversão/chamado de Paulo, mas tem a vantagem da perspectiva his tórica e consegue enxergar a importância desse fato como nem Paulo podia enxergá-lo. Os acontecimentos de Atos 9.1-19 assinalam uma virada importante na narrativa de Atos. Aqui o registro é de natureza histórica e descreve um acontecimento que Lucas considera de impor tância crucial para a missão cristã. 0 relato da eletrizante conversão/chamado é inserido logo antes da história de Cornélio e denota o inicio da missão aos gentios. Na introdução de Atos 9, Paulo é apresentado como perseguidor da igreja, um inimigo dos discípulos do Senhor. Todavia, enquanto se dirige a Damasco, em perseguição dos discípulos, a viagem é interrompida; Jesus aparece a ele em uma visão. A luz cegante, o du plo vocativo (“Saulo, Saulo”), a queda de Paulo ao chão e as perguntas que ele faz a Jesus sem dúvida caracterizam esse acontecimento como uma teofania, semelhante às que ocorriam nos chamados proféticos. Paulo sai dessa experiência uma pessoa diferente, mas ainda sem ter rece bido seu chamado, que se concretiza por meio de um discípulo de Damasco, uma das pessoas que Paulo antes perseguira. 0 fato de o chamado acontecer em uma visão à parte dá maior desta que ao tema, embora ainda faça parte do mesmo acontecimento. A nova definição de Saulo, feita por Ananias, diz que Paulo é um “instrumento escolhido”, designado para uma importantíssima missão. O nome que ele perseguiu será o mes mo que ele apresentará aos gentios, aos reis e ao povo de Israel, e sofrerá por causa desse mesmo nome. Seu chamado está além do chamado que diga respeito a qualquer cronte, pois é nada me nos que um comissionamento apostólico. Embo ra Atos 9.1-19 apresente Paulo como alguém que Gxperim entou uma reviravolta im pressionante na própria vida, a passagem destaca mais seu cha mado para ser apóstolo entre os gentios que a mudança em sua vida. Os textos de Atos 22.1-21 e 26.2-23 contam a mesma história, porém com outra ênfase, e pare cem servir a um propósito diferente na narrativa. Os dois discursos chamam a atenção para a re lação de Paulo com o judaísmo e talvez reflitam
uma controvérsia entre judeus e cristãos a res peito da autenticidade da missão gentílica. Esse destaque ao relacionamento de Paulo com o juda ísmo é ressaltado especialmente em Atos 22.1-21, quando Paulo é apresentado como judeu piedo so e leal. Por sinal, o destaque que Paulo recebe como judei^piedoso pode explicar a maioria das diferenças entre'Atos 9 e Atos 22. Isso fica parti cularmente claro no relato que Paulo apresenta de seu comissionamento. Aqui Ananias também é apresentado como judeu devoto, e o chamado é expresso de uma forma aceitável às susceptibihdades judaicas. 0 chamado para a missão aos gentios nâo é comunicado por Ananias, mas por Jesus. Isso ocorre em outra visão, numa hora em que Paulo está orando no templo. Esse texto não deixa dúvidas de que a missão aos gentios é que é 0 problema na relação entre judeus e cristãos. Quando Paulo declara que o chamado para pregar aos genüos aconteceu no templo, os judeus que o ouvem começam a gritar, enfurecidos. A ênfase em Atos 26.2-23 difere apenas ligei ramente. Aqui Paulo destaca sua obediência ao chamado. É nessa passagem que aparece a frase “É inútil resistires ao aguilhão”. Embora muitos intérpretes entendam essa expressão como refe rência à luta interior de Paulo antes da conversão, 0 mais provável é que diga respeito à sua futura tarefa e ao custo de obedecer ao chamado que está prestes a receber. A expressão mostra que esse chamado restringirá a vida de Paulo e a con formará totalmente ao propósito de tornar Cristo conhecido entre os gentios. Lucas conta com uma única tradição acerca da conversão/chamado de Paulo, a qual ele em prega de diferentes maneiras para alcançar seus propósitos em Atos. Paulo é a força motriz por trás da missão gentílica do cristianismo, e Lucas utiliza a experiência de conversão/chamado de Paulo para justificar essa missão e o cristianismo gentílico que ela gerou.
993
2.5
A œnversâo/chamado de Paulo no n t .
contrário do que possa parecer, comparar o relato de Atos acerca da conversão/chamado de Paulo com os relatos do próprio Paulo não é tarefa tão simples. Ao escrever a várias igrejas, Paulo faz diversos comentários sobre sua vida, enquanto Lucas conta uma história impulsionado por um propósito narrativo bem abrangente. Embora a
Ao
P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o de
pesquisa iiistórica dispense maior valor às cartas, 0 material do livro de Atos é essencial para enten
der os acontecimentos que cercam a experiência de conversão/chamado de Paulo. Quais as seme lhanças e diferenças mais importantes entre o material de Atos e os relatos de Paulo? Deve se ressaltar que todos os cinco relatos da conversão/chamado de Paulo ocorrem em con textos em que o relacionamento entre judaísmo e cristianismo é questão de controvérsia. Em Atos, está em jogo a autenticidade da missão aos gen tios; em Gálatas 1 e provavelmente também em Filipenses 3, o pomo da discórdia é a validade do evangelho sem a Lei pregado por Paulo. Nesses contexto8, destaca-se a natureza reveladora da conversão/chamado de Paulo. A vida anterior de Paulo como judeu zeloso e perseguidor da igreja e sua transformação em se guidor de Cristo fazem parte importante de todas as cinco passagens. O tema do contraste entre a vida anterior e a vida atual de Paulo é de especial proeminência nas passagens autobiográficas de Gálatas 1 e de Filipenses 3. A forte sensação de contraste é um dos argumentos a favor da ideia de que ITimóteo 1 e Romanos 7 também são autobiográficos. As três passagens de Atos e a de Gálatas 1 mencionam um chamado para proclamar Cristo aos gentios como parte da experiência de revela ção. IVlas é notável que Fihpenses 3 nem mesmo insinue um chamado apostólico especial. Em vez disso, Paulo fala de uma “soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” ( ) de contornos gené ricos. Por que uma perspectiva tão proeminente nos outros relatos está ausente em Fihpenses 3? Pelo fato de a missão gentíhca de Paulo e seu evangelho aos gentios não estarem sob ameaça no momento, talvez ele não precise destacar a origem divina de seu evangelho. Outra exphca ção possível é que, se Paulo está conferindo des taque a seu papel como exemplo a ser imitado, ele não precisa mencionar aqãèla^jarte de sua experiência que lhe é tão peduhar. Caso o texto de ITimóteo seja genuinamente paulino, surge outra possibilidade. Como a missão aos gentios já se havia consohdado e Paulo agora precisava justificar cada vez menos o seu evangelho, ele via a transformação de sua vida como a parte mais importante de sua experiência e entendia que ser a r a
um exemplo da graça transformadora de Cristo era parte de seu papel apostólico. As diferenças entre os relatos de Lucas e de Paulo acerca da conversão/chamado têm origem nos propósitos de cada um deles, que são diferen tes. Lucas deseja mostrar o progresso da igreja, que deixou de ser uma comunidade judaica para ser uma comunidade gentílica. Paulo está inte ressado no relacionamento que. na condição de apóstolo, ele tem com as comunidades gentíhcas que fundou. Em última instância, porém, Paulo e Lucas entendem a conversão/chamado de Paulo de maneira semelhante. Ambos estão interessa dos no relacionamento entre judeus e gentios e veem o chamado de Paulo para ser apóstolo entre os gentios como fator imporiante nesse relacio namento. Ambos consideram essa conversão/ chamado um acontecimento revelador e transfor mador na vida de Paulo e na vida da igreja, e tan to Paulo quanto Lucas estão convencidos de que, para a igreja, a experiência de Paulo é modelo da graça transformadora de Deus. Essas semelhan ças tornam possível a busca do entendimento do NT acerca da experiência de conversão/chamado de Paulo. 3. Algumas questões de fundamental importância
As questões que os estudiosos da Bíblia dirigem ao N T quase sempre desafiam p r e s s u p o s i ç õ e s tradicionais acerca do texto, principalmente no que tange à s perguntas que os estudiosos fazem sobre a experiência de conversão/chamado de Paulo. Não apenas Stendahl questiona as formas ocidentais e tradicionais de entender a experiên cia de Paulo, mas outros estudiosos também têm questionado a interpretação de Stendahl. Esses questionamentos resultam em várias questões fundamentais que precisam ser tratadas em qual quer estudo sobre a experiência de conversão/ chamado de Paulo. As respostas a essas várias questões estão todas relacionadas à questão prin cipal: é melhor entender a experiência de Paulo como conversão ou como chamado? 3.1 Definição de “conversão”. Para que o termo “conversão” nos ajude a entender Paulo, será preciso defini-lo. Conforme assinalado por Stendahl, as definições ocidentais de conversão têm sido fortemente influenciadas pelas ideias
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de Agostinho e de Lutero sobre a conversão de sociológica de conversão, isso seria possível e Paulo. Esses conceitos dominaram o início das responderia a uma das objeções levantadas por pesquisas na área da psicologia, as quais tendiam Stendahl ao fato de se chamar a experiência de a se concentrar em conversões de impacto e en Paulo de “conversão”. Stendahl afirma que Pau tendiam que a conversão era uma solução para lo, na realidade, nâo trocou de rehgião. Ele tinha o pecado e a culpa insuportáveis. Contudo, cien um novo chamado, mas ainda servia ao mesmo tistas sociais e também estudiosos da Bíblia têm Deus. Comojudeu, tinha a incumbência de levar questionado essa definição e procurado oferecer a mensagem dé"Í)eus aos gentíos. Sua experiên modelos mais úteis para quem procura entender cia não conduziu a uma nova religião, mas a uma a conversão tanto da perspectiva teológica quan nova compreensão da Lei em sua relação com os to do ponto de vista sociocientífico. gentios. Depois que Paulo foi transformado por Estudos mais recentes sobre a conversão têm meio daquela experiência, o cristianismo ainda adotado, em sua maioria, uma abordagem so não estava definido como religião diferente do ciológica. Assim, eles têm definido a conversão judaísmo, de modo que talvez seja melhor di como o ato em que uma pessoa se transfere de zer que Paulo trocou de comunidade dentro do uma comunidade para outra. Esses estudos tam judaísmo. bém ressaltam que a principal característica do Essa leitura de Paulo, contudo, não leva em convertido é a predisposição para reinterpretar conta a natureza radical da reinterpretação que seu passado pela perspectiva de sua nova comu ele faz do judaísmo. Sua afirmação de que os nidade. A conversão representa a escolha cons gentios nio precisam ser circuncidados para ciente de socializar com um novo grupo e aceitar entrar na comunidade cristã era mais que uma a estrutura da realidade desse grupo (v. B erger & reinterpretação casual da Lei. Além disso, ele L u c k m a n n , p. 144-50). São notáveis as analogias afirmava ter recebido essa nova compreensão da entre essa definição sociológica de conversão e a Lei em um acontecimento revelador que mudara experiência de Paulo. Paulo deixou uma comuni sua vida. Essas afirmações lhe causaram proble dade farisaica e ingressou em uma comunidade mas até dentro da comunidade cristã. Comparar que acolhia os gentios. Essa nova comunidade o Paulo com os cristãos fariseus de Atos 15 e de ajudou a entender sua experiência com a revela Gálatas 2, os quais queriam obrigar os cristãos gentios a se circuncidar, mostra quão radical foi ção e a reinterpretar seu passado. A reinterpreta sua reinterpretação do judaísmo. Paulo deixou a ção de seu passado como fariseu é evidente nos comunidade farisaica, e foi por ela rejeitado. Em relatos autobiográficos de Gálatas 1 e de Filipen ses 3, e as afirmações de Paulo acerca de seu pas Filipenses 3.7,8 Paulo afirma que considera “es sado são grandemente influenciadas pelos seus terco” ( a b c ) o s motivos que, como judeu, tinha compromissos no presente. para estar confiante. E essa sua afirmação revela Por mais úteis que sejam essas modernas de uma ruptura total com seu passado judaico. Em finições sociológicas, precisamos ter cuidado ao bora as passagens de Atos acerca da experiência aplicá-las à experiência de Paulo. A respeito de de Paulo o apresentem como judeu devoto, elas Paulo, não possuímos evidências históricas su também mostram que a vida e os valores de Pau ficientes para uma adequada análise psicológica lo foram radicalmente alterados por sua experiên ou sociológica. Precisamos ter o cuidado de não cia na estrada de Damasco e que ele não fazia reduzir a experiência singular de Paulo a uma concessões em sua convicção de que os gentíos fórmula, e também não podemos permitir que não precisavam ser circuncidados. Se o ingres os estudos modernos definam a experiência do so de Paulo na comunidade cristã envolveu um apóstolo. No entanto, podemos empregar catego redirecionamento assim tão radical em sua vida rias modernas para obter esclarecimentos sobre e em seus valores religiosos, afirmar que Paulo continuou sendo judeu depois do chamado é algo determinados aspectos de sua experiência. 3.2 Teria Paulo trocado de religião? Será que que parece induzir a erro. É possível que Paulo Paulo continuou judeu mesmo depois de ter mu de fato se visse como judeu ao longo de toda a dado de comunidade? De acordo com a definição sua vida. Contudo, ele também insistiu em uma 995
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a uma compreensão distorcida da experiência reinterpretação tão radical da Torá que, por fim, de Paulo. De acordo com essa ideia de conver criou um novo padrão religioso. 3.3 Conversão ou chamado? Sob muitos as são, Paulo era um judeu que se debatia com a pectos, definir a experiência de Paulo na estrada culpa por nâo conseguir guardar a Lei. Paulo de Damasco como chamado ou como conversão declara: “Quanto à justiça que há na lei, eu era é uma questão artificial. Parece que a pergun irrepreensível” (Fp 3.6). Tal entendimento tam ta impõe categorias modernas a um aconteci bém vê a conversão de Paulo como a experiência mento religioso antigo e complexo. Mas fazer a de ser justificado pela fé, nâo de conhecer a Cris pergunta também nos permite perceber que a to e ser chamado a proclamá-lo entre os gentios. experiência de Paulo é demasiadamente rica para Embora não seja uma distorção séria dos textos estar enquadrada em quaisquer de nossas cate do NT, ainda é uma tentativa de enquadrar Paulo gorias. Ela é ao mesmo tempo chamado e con nas categorias protestantes tradicionais, em vez versão, de modo que, quando indagamos o que de procurar entender as complexidades da expe vem a ser a experiência de Paulo, não estamos riência de Paulo. As definições sociológicas de apenas perguntando qual seria o melhor termo conversão parecem mais condizentes com o que para defini-la; também queremos saber se algum lemos no n t a respeito da experiência de Paulo. termo isolado pode explicar com precisão esse 5e 0 resultado da conversão é a mudança de uma comunidade para outra e uma reinterpretação da acontecimerno. 0 chamado de Paulo para ser apóstolo entre vida anterior, sem dúvida a experiência de Paulo foi uma conversão. Embora as definições socio os gentios é fundamental em Atos e em Gálatas 1. Contudo, ele parece muito mais importante no li lógicas de conversão não distorçam a experiên vro de Atos, uma vez que procura justificar a mis cia de Paulo, elas também nâo a definem com são de Paulo entre os gentios. Em Gálatas 1, Paulo precisão. A experiência de Paulo contém uma o menciona na defesa de seu evangelho, mas não poderosa dimensão de revelação, e Paulo afirma há menção a um chamado apostólico em Filipen que sua experiência e o evangelho que recebeu ses 3. Com isso vemos que Paulo parecia enten são de origem divina. O acontecimento que o le der sua experiência com a revelação basicamente vou a mudar de comunidade foi um chamado como um chamado, embora seu chamado para para ser apóstolo entre os gentios, e o fato que ser apóstolo entre os gentios fosse parte daquela o levou a reavaliar sua vida foi uma revelação experiência. Os que entendem a experiência de direta de Cristo. As definições sociocientíficas de Paulo como chamado provavelmente estão sendo conversão são insuficientes para explicar esses mais influenciados por Lucas e pelos propósitos elementos de revelação na experiência de con do autor de Atos do que pela interpretação que versão de Paulo. Paulo dá a sua experiência. Parece que não há nenhum termo isolado que 0 tema central das passagens autobiográficas consiga desvendar a complexidade da experiên de Gálatas 1 e Filipenses 3 é o contraste entre a cia de Paulo na estrada de Damasco. Dada a vida anterior de Paulo no judaísmo e sua vida existência de fortes contrastes em cada relato da atual em Cristo. Em Filipenses 3, Paulo afirma experiência de Paulo, ela certamente se classifica que esse contraste se deve à natureza transfor como um tipo de experiência de conversão, mas madora da experiência de conhecer a Cristo. Esse também é importante incluir o aspecto da revela mesmo contraste também se encontra nas três ção e reconhecê-la como experiência de chama passagens de Atos. Essa evidêfitíaíde ter havido do. Em outras palavras, o chamado de Paulo para uma mudança profunda na vida de Paulo signi ser apóstolo entre os gentios faz parte de uma ficaria então que a melhor maneira de encarar a experiência de conversão profunda e transforma experiência na estrada de Damasco seria enten dora. Tanto a conversão quanto o chamado são dê-la como uma conversão? A resposta a essa aspectos de uma revelação divina acerca de Cris pergunta depende de como se define “conversão”. to recebida por Paulo. As mudanças na vida de O entendimento ocidental tradicional de con Paulo e sua missão aos gentios são o resultado da versão, quando imposto aos textos do n t , conduz profunda experiência de conhecer a Cristo. 996
P a u l o , c o n v e r s ã o e c h ã m a d o de
3.4
A experiência de Paulo como exemplo repensa
Até que ponto a experiência de Paulo na estrada de Damasco teve o objetivo de ser um modelo para os cristãos? Em Filipen ses 3.17, Paulo insiste com seus leitores: “Sede meus imitadores e prestai atenção nos que an dam conforme o exemplo que tendes em nós”. Que aspectos da experiência de Paulo ele deseja que seus leitores imitem? Ao responder a essa pergunta, é importante manter distinção entre os aspectos do chamado e da conversão de Paulo. É interessante que, entre as passagens que tratam da experiência de Paulo na estrada de Da masco, a única em que ele convida os leitores a seguir seu exemplo é aquela em que ele não faz menção de seu chamado apostólico. Não há nenhum indício de que Paulo tenha alguma vez insinuado que alguém deveria imltá-lo em re lação a seu papel de apóstolo entre os gentios. AUás, Gálatas 1—2 parece indicar de forma bem incisiva que Paulo entendia que seu chamado era especial e que ele defendia com muito zelo sua missão e sua perspectiva pecuUares. As passa gens de Atos também o apresentam como o após tolo aos gentios e lhe dão o crédito de ter sido o responsável pela missão gQntflica da igreja primi tiva. É por isso que estudiosos como Stendahl, que entendem a experiência de Paulo como cha mado, são céticos quanto às tentatívas de tornar a experiência de Paulo normativa para a igreja. Então, 0 que Paulo quer dizer quando Insiste “Sede meus imitadores”? Em Filipenses 3, Paulo está refletindo sobre sua experiência com Cristo. Paulo trata da questão de conhecer a Cristo de tal maneira que essa experiência só pode ser algo obtido no processo de transformação. Todos os cristãos devem fazer parte da comunidade dosque estão sendo transformados por Cristo pa ra que verdadeiramente conheçam a Cristo. Em Filipenses 3.14, Paulo diz que essa transformação continua ocorrendo à medida que ele persegue 0 “chamado celestial de Deus em Cristo Jesus”. Aqui Paulo não está falando de seu chamado apostólico, e sim de seu chamado para a transfor mação, 0 qual é dirigido a todos os crentes. Ser transformado envolve esquecer o que ficou para trás e se esforçar para seguir adiante (Fp 3.13). Desse modo, a dinâmica dessa transformação é bem parecida com a da conversão, em que alguém
para os cristãos.
totalmente o passado à luz dos compro missos presentes. Com a comunidade filipense, Paulo partilha o "chamado celestial de Deus em Cristo Jesus” e a experiência de ser transformado por essa vocação. Todos os cristãos devem fazer parte da comunidade dos que estão sendo trans formados por.Cristo para que verdadeiramente •17 conheçam a Cristí). Ao convidar os fihpenses a imitá-lo, Paulo está querendo que todos se unam a ele, respondendo positivamente àquele chama do, e assim permitam que Cristo lhes transforme a vida. Conhecer a Cristo resultou em transfor mação total da vida e dos valores de Paulo, e é a experiência de ser transformado por Cristo que Paulo deseja que seus leitores imitem. 3.5 Â experiência de Paulo e sua teologia. A maioria dos estudiosos ou desconsidera a questão da experiência de Paulo por a acharem inaplicá vel, ou entendem que ela é a chave para entender a teologia de Paulo. Mas os que acreditam que a conversão/chamado de Paulo afetou sua teolo gia não estão de acordo sobre como exatamente se deu essa influência. Boa parte dessa falta de concordância entre os estudiosos deve-se às dife rentes maneiras de entenderem a experiência de Paulo. Os que a consideram um chamado enten dem que ela exerceu na teologia de Paulo uma influência bem diferente do que imaginam os que a veem como conversão. A ideia tradicional sobre a conversão de Pau lo, segundo a qual ele teve a experiência de ser justificado pela fé, também entende que o centro de sua teologia é a doutrina da jusTincAÇAo pela fé. Paulo chegou a sua concepção da Lei em razão da luta que, como judeu, ele travava com a Lei e da posterior experiência de ter sido liberto por Cristo dessa luta. Ele rejeita as obras de justiça do judaísmo a favor do caminho cristão da justi ficação pela fé. Embora a maioria dos estudiosos da Bíblia não mais defina de maneira tradicional a conversão de Paulo, a ideia do relacionamento entre a experiência de Paulo e sua teologia ainda é apresentada em variantes atenuadas (v. T h e is s e n , p. 177-265). Os que veem a experiência de Paulo como chamado têm uma ideia bem diferente do rela cionamento dessa experiência com a teologia paulina. Para esses estudiosos, o centro da teo logia de Paulo repousa em seu chamado como
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Pa u lo , co nversão
e c h a m a d o
de
apóstolo entre os gentios (essa é, em parte, a experiência de conversão, e toda a sua teologia é ideia de S a n d e r s ) . Para Paulo, esse chamado sus diretamente oriunda dessa experiência. citou indagações a respeito da Lei: se agora os Segai apresenta um forte argumento a favor gentios estão incluídos no povo de Deus, será que da íntima hgação entre a experiência paulina de têm de guardar a Lei? 0 que acontece com a Lei, conversão — entendida, com base em perspecti agora que o Messias já veio? 0 que isso significa vas sociológicas, como mudança de comunidades para as relações entre judeus e gentios e para o — e sua teologia. 0 entendimento que Paulo tem lugar dos gentios na igreja? Paulo chegou a seu da Lei resulta de sua experiência de conversão entendimento da Lei ao responder a essas per e de sua experiência posterior na igreja gentíli guntas, não como resultado da experiência que, ca. O princípio legal de Paulo em Romanos 7.4 antes ou depois de seu chamado, teve com a Lei (segundo o qual os que morreram com Cristo es (v. S t e n d a h l ; M u n c k ; D u n n ) . tão morios para a Lei) é uma metáfora de sua Em anos recentea, os estudi030s que enten conversão. Sua experiência de mudança radical dem a experiência de Paulo como uma conversão conduziu a uma avaliação nova e radical da Lei. aasociam sua conversão e sua teologia de ma Boa parte de sua teologia do evangelho sem a neiras bem diferentes do modelo tradicional da Lei formou-se nos embates com cristãos judeus justificação pela fé. Para eles. toda a teologia de acerca do papel da Lei nas comunidades cristãs Paulo, não apenas sua doutrina da justíficação gentíhcas. 0 entendimento paulino da transfor pela fé. tem origem em sua experiência na estra mação, que é o resultado de sua experiência de da de Damasco. c o n v e r s ã o , d e s e m p e n h a um papel v i t a l na m a n e i S. Kim concorda com a afirmação de Paulo r a e m q u e e l e e n t e n d e a c o m u n i d a d e cristã. Todos segundo a qual ele recebeu seu evangelho “por os cristãos devem fazer parte de uma comunidade uma revelação de Jesus Cristo” (01 1.12) e en redimida, transformada e em desenvolvimento, e tende que a experiência de conversão de Paulo todos os membros dessa comunidade são igual na estrada de Damasco foi a fonte de seu chama mente membros de Cristo. Em líltíma instância, do apostólico e de sua compreensão teológica do é possível identificar na experiência de conversão evangelho. A cristologia de Paulo é resultado de Paulo a origem de toda a sua teologia: “Tendo do reconhecimento de que a glória de Deus se principiado com a própria experiência, Paulo de revela na face de Cristo (2Co 4.6). Essa revelação senvolve sua teoria não apenas para incluir sua conduz à proclamação paulina da salvação como salvação e a salvação dos genüos, mas também realidade presente que se consumará no flm (v. toda a história da humanidade, desde Adão até a e s c a t o l o g ia ) , quando a glória de Cristo se tornar consumação” (S e g a l . p. 183). Uma vez que a vida visível (v. N e w m a n ) . Esse Cristo é a personifica de Paulo e também boa parte de seus escritos per ção do plano divino de salvação que inclui judeus sonificaram a solução para as questões com que e gentíos. Cristo é o fim da Lei. É por isso que a igreja se defrontou em seu início, o cristianismo Paulo abriu mão de sua justiça baseada na Lei recebeu a influência da personalidade de Paulo para receber a justiça de Deus, que se baseia na fé e passou a ser visto como comunidade de con em Cristo. A experiência da graça reconciliadora vertidos. A conversão de Paulo influenciou não de Deus permitiu que Paulo desenvolvesse uma apenas sua teologia: ela definiu o cristianismo. doutrina partícular da morte adunatória de Cristo Ver também P a u l o , o J u d e u ; L e i ; P a u l o e m A t o s como o ato em que Deus reconcilia o mundo con E NAS c a r t a s . sigo mesmo por meio de Crisfo. Vfer esse Cristo D PC : CHAMAR, CHAMAMENTO; MISTICISMO; PROFETA, glorificado como imagem de Deus, que restaurou P a u l o c o m o ; v is õ e s , e x p e r iê n c ia e x t á t ic a . a imagem e a glória divinas perdidas por Adão, teve como resultado direto o fato de Paulo pas B iB U O G R A n A . B e r g e r , P, & L u c k m a n n , T. The social sar a imaginar os crentes como seres humanos construction of reality: a treatíse on the sociolo que estão se conformando à imagem de Cristo gy of knowledge. Garden City: Doubleday, 1966. e se tornando uma nova criação. Ou seja, Paulo • B e t z , H. D. Galatians: a commentary on Paul’s de fato recebeu seu evangelho como parte de sua letter to the churches in Galaüa. Philadelphia: 998
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unck,
J.
Paul and the salvation of mankind.
J. E . P
P
aulo em
A
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tos e n as c ar tas
As cartas de Paulo contêm informações básicas sobre o apóstolo, ao passo que o livro de Atos apresenta o que mais se aproxima de um relato metódico de sua vida e ministério. Essas duas fontes independentes nos permitem elaborar um retrato complexo da multifacetada personalidade que conhecemos como apóstolo Paulo — sua car reira, sua missão e sua mensagem.
A to s e n as cartas
1. Fontes 2. A carreira de Paulo 3. 0 programa de ação e a mensagem missio nária de Paulo 4. A influência de Paulo
[Herm.]
ty according to Paul.
Atlanta: John Knox, 1977. ■ N e w m a n , C. Paul’s glory-christology: traditíon and rhetoric. Leiden: E. J. Brill, 1992. (NovTSup, 69.) ■ N o c k , A. D. Conver sion: the old and new in religion from Alexander the Great to Augustine of Hippo. Oxford: Oxford University Press, 1933. ■ S a n d e r s , E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress, 1977. • S e g a l , A. F. Paul the Convert: the apostolate and apostasy of Saul the Pharisee. New Haven: Yale University Press, 1990. ■ S t e n d a h l , K. Paul among Jews and Gentiles. Philadelphia: Fortress, 1976. ■ S t e w a r t , J. S . A man in Christ: the vital elements of St. Paul’s religion. New York: Harper & Brothers, 1935. ■ T h e is s e n , G. Psychological aspects of Pauline theobgy. Philadelphia: Fortress, 1987.
em
1. Fontes
Existem duas fontes principais para conhecermos Paulo: seus escritos e o livro de Atos. Ao que pare ce, essas duas fontes são totalmente independen tes entre si. Os escritos de Paulo apresentam-no como escritor de cartas — ahás, na literatura mundial, ele é um dos grandes escritores de cartas —, ao passo que Atos nada menciona sobre essa característica de Paulo. A opinião majoritária é que Atos em momento algum se utilizou das car tas paulinas, embora as cartas reconhecidamente de sua autoria já existissem (apesar de ainda não estarem reunidas) quando o livro foi escrito. Um conjunto secundário de materiais que ser vem de fonte para esse estudo são as evidências hoje disponíveis sobre a vida social, política e re ligiosa das regiões do Mediterrâneo por onde Pau lo andou e trabalhou, desde a Judeia até Roma. 1.1 As cartas de Paulo. As cartas de Paulo trazem evidências fundamentais para que conhe çamos o homem propriamente dito. A maioria delas foi escrita a igrejas que ele havia fundado e tratava de questões surgidas durante a ausência do apóstolo. Em geral, melhor que elas, apenas a presença dele e suas palavras proferidas de viva voz. Em Gálatas 4.20, por exemplo, ele expressa o desejo de poder estar com seus leitores para que pudessem perceber no tom de sua voz a in tensidade das emoções que sentia, algo que não podia ser captado pela carta. No entanto, em de terminada ocasião, ele deliberadamente deixa de visitar a igreja de Corinto, embora pudesse tê-lo feito, porque era mais fácil se expressar com du reza por escrito que de viva voz. Evidentemente, era difícil para ele ser duro na presença de amigos e convertidos, e assim queria poupar tanto a eles quanto a si próprio do constrangimento de uma confrontação face a face (2Co 1.23—2.4). A notável exceção à regra segundo a qual Pau lo enviava suas cartas às igrejas fundadas por ele é a Carta aos R o m a n o s . (A Carta aos Colossenses não é, na verdade, uma exceção; foi enviada a uma igreja que ficava no campo missionário de
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Pau lo
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Paulo, igreja fundada por seu ajudante Epafras.) A Carta aos Romanos foi enviada à comunidade cristã de Roma quando Paulo estava na iminência de fazer sua primeira visita à cidade. Desejava não apenas preparar os cristãos romanos para sua visita, mas também obter o apoio e o envolvi mento deles na empreitada apostólica que ainda queria realizar, a qual consistia na evangelização da Espanha e na execução e continuação de sua obra no mundo gentílico em geral. Suas princi pais cartas, escritas em seu apogeu apostólico — Gálatas, Coríntios e Romanos — são às vezes chamadas suas “quatro grandes cartas”. Elas são nossa principal fonte de informação sobre o con teúdo e o propósito da mensagem do apóstolo. As cartas do “cativeiro” ou da “prisão” (Filipenses, Efésios, Colossenses, Filemom) têm esse nome porque, a o que tudo indica, ele estava submeti do a algum tipo de prisão quando as escreveu. Tradicionalmente, tem se atribuído a estas cartas a data de seus dois anos de prisão domiciliar em Roma, principalmente a Carta aos Filipenses, em bora alguns estudiosos agora atribuam a redação de F iu p e n s e s e das outras cartas do cativeiro à épo ca de seu aprisionamento em Cesareia (At 24.27) ou da prisão ocorrida anteriormente, em Éfeso, a qual não é explicitamente registrada. Uma das cartas da prisão, o bilhete enviado a Filemom, amigo de Paulo originário de Colossos, na qual o apóstolo intercede a favor de Onési mo, escravo de Filemom e agora convertido de Paulo, faz parte do mesmo contexto de Colossen ses (v. Cl 4.9, com as referências a Arquipo em Fm 2 e em Cl 4.17). Já a Carta aos E f é s io s não está associada a uma igreja específica; a expres são “em Éfeso” (Ef 1.1), da qual se extrai o título tradicional, provavelmente nâo faz parte do tex to original. Essa carta tem as características de um testamento dirigido ao campo missionário de Paulo, especialmente o da Ásia proconsular, texto em que Paulo apresenta seu ministério aos gen tios como meio de cumprir o propgsito eterno de Deus, a saber, unir o Universo em Cristo. As C a r t a s P a s t o r a is (1 e 2Timóteo e Tito), de data incerta, contêm várias observações de cará ter pessoal, especialmente 2Timóteo; ITimóteo e Tito, porém, fazem lembrar bastante os primeiros manuais de ordem eclesiástica, ao passo que 2Timóteo tem a natureza de um testamento pessoal.
As cartas de Paulo eram ditadas a amanuen ses (o nome de um deles, Tércio, é mencionado em Rm 16.22). Paulo costumava autenticar suas cartas com o acréscimo, bem no final, de uma ou duas frases escritas de próprio punho (cf. GI 6.11). Vez por outra, esse acréscimo autográfico incluía seu nome (cf. ICo 16.21; Cl 4.18; 2Ts 3.17; v. tb. Fm 19). Na saudação inicial, Paulo em geral associava a seu nome um ou mais amigos que porventura estivessem com ele no momento em que a carta era escrita. Só de vez em quando o conteúdo da carta s u g e r e q u e um deles e r a responsável com Paulo pela redação, como é o caso de Silvano, em 1 e 2Tessalonicenses, e Timóteo, em Colossenses. Em 1 e 2Tessalonicenses, as passagens em que encontramos o pronome de primeira pessoa do singular, “eu” (e.g., “eu, Paulo”, em ITs 2.18), são evidentemente de autoria do apóstolo. A maioria das cartas de Paulo são “documen tos esporádicos”, ou seja, foram escritas para atender a alguma necessidade pontual quando Paulo estava distante e não podia resolver pes soalmente a situação. Até onde sabemos, apenas uma vez ele preferiu tratar por carta uma situação crítica, em vez de tomar providências no próprio local (2Co 1.23—2.4). Até mesmo Romanos é uma carta pontual, pois foi motivada por um de sejo de Paulo, qual fosse visitar Roma depois de entregar em Jerusalém o dinheiro coletado paia ajudar essa igreja, que passava por necessidade (Rm 15.23-32), embora tenha aproveitado a opor tunidade para apresentar aos cristãos de Roma um resumo do evangelho como ele o entendia e pregava. 1.2 Atos. No livro de Atos, segunda parte da história escrita por Lucas acerca das origens cristãs (e uma continuação do terceiro Evange lho), Paulo é apresentado ainda na etapa inicial. Seu chamado para ser testemunha de Cristo no mundo inteiro é contado, pela primeira vez, em Atos 9.1-20. e. de Atos 15.40 até o final do livro, ele domina a narrativa, terminando com sua che gada a Roma e os dois anos que ali permanece sob custódia. Após a conclusão de Atos, temos apenas evidências esparsas e incertas sobre o res tante de sua vida. Caso o autor de Atos tenha sido, como é bem provável, uma pessoa conhe cida e um companheiro esporádico do apóstolo.
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então Atos deve ser reconhecido como fonte bási viver como judeu entre os judeus para conquis ca de informação sobre Paulo. tar 0$ judeus e como gentio entre os gentios para Na realidade, uma coletânea de cartas esporá conquistar os gentios. dicas escritas por algum personagem histórico em A partir do momento em que assume um pa momentos decisivas de sua carreira terá valor e pel de destaque na narrativa de Atos, Paulo se imediaticidade próprios, pois apresenta a opinião torna o herói de Lucas. Na verdade, é um ser desse personagem a respeito de pessoas e aconte humano cotno os outros (At 14.15), mas no re cimentos e (no caso de um homem que revelava trato pintado pòr Lucas ele domina a cena. Está o coração no que escrevia, como Paulo fazia) nos sempre seguro de si e sempre triunfa. 0 Paulo permite discernir sua mente e suas motivações. das cartas mistura-se com seus irmãos em Cristo Essa coletânea, contudo, não pode ocupar o lu quando diz que eles são “mais que vencedores” gar de um relato organizado dos acontecimentos por meio de Cristo (Rm 8.37), mas não existe pra em que tal personagem desempenhou um papel ticamente nenhum triunfalismo nos depoimen relevante, escrito do ponto de vista mais objetivo tos que ele faz de sua atividade apostólica. Em de um escritor que se baseou tanto em material Cristo, ele é conduzido “em triunfo” (2Co 2.14) colhido de fontes confiáveis quanto em seu en — na procissão triunfal de Cristo — e pode agra volvimento pessoal, situado no contexto da his decer a Deus porque, pela 5raça divina, trabalhou tória da época. mais arduamente que qualquer um dos outros 1.3 Comparação entre as cartas e Atos. Em designados para a mesma tarefa evangelística bora nossas duas principais fontes de informações (ICo 15.10). Entretanto, mesmo quando conside sobre Paulo sejam aparentemente independentes ra com satisfação o fato de ter pregado o evange uma da outra, há notáveis paralelos entre ambas lho “desde Jerusalém e arredores, até o llírico” no que diz respeito à pessoa do apóstolo. (Rm 15.19), Paulo não reivindica nenhum crédito Nas duas fontes, Paulo se sustenta com o pró para si, e sim para Cristo, que trabalha por meio prio trabalho para não ser um fardo financeiro dele. Paulo se considera um vaso de barro barato a seus amigos e convertidos. Sua estratégia, re e dispensável, mas a esse vaso foi confiado o te gistrada em Atos, de visitar primeiro a sinagoga souro supremo do evangelho, “para mostrar que ao chegar a uma cidade, está em consonância este poder que a tudo excede provém de Deus” com sua convicção, expressa em Romanos 1.16, (2Co 4.7, Nvi), não de Paulo ou de qualquer um de que o evangelho deve ser primeiro pregado de seus colegas pregadores. ao judeu. Além disso, o apóstolo aos gentios, Se Paulo foi um herói para Lucas, não o foi que é como ele se via, descobriu que os simpa aos p r ó p r i o s olhos. Em suas cartas, ele padece de tizantes gentios que frequentavam os cultos na e m o ç õ e s em conflito, “lutas por fora, temores p o r sinagoga representavam o núcleo mais promissor dentro” (2Co 7.5, a r a ) . Ele confessa que não tem para uma comunidade cristã. É óbvio que ele nâo a autoconfiança nem a autoafirmação de alguns considerava o fato de visitar a sinagoga e fazer de seus opositores — por exemplo, dos intrusos contato com judeus uma quebra de seu acordo que tentaram subtrair-lhe a autoridade na igreja com os líderes da igreja de Jerusalém, segundo o de Corinto. Esses intrusos exploravam os conver qual estes deveriam se concentrar na evangeliza tidos de Paulo, enquanto ele próprio hesitava em ção dos judeus, enquanto Paulo e Barnabé prega reivindicar seus direitos de pai espiritual, e alguns vam aos gentios (GI 2.7-9). Mesmo assim, não era deles 0 menosprezavam por causa de sua “fra sua característica ficar calado a respeito de Jesus queza” (2Co 10.1—12.13). Às vezes, ele afirmava quando estava na companhia dos judeus. Ele se sua autoridade com confiança, embora o leitor de sentia em dívida para com os de sua raça, assim suas cartas talvez suspeite (como alguns de seus como para com todos os outros (v. I s r a e l ) . convertidos) que ele achava mais fácil fazê-lo por Em Atos, Paulo demonstra grande capacidade carta, a distância, do que falando cara a cara. 0 de adaptação. Está igualmente à vontade entre Paulo mostrado em Atos é alguém que pode pron gentios e entre judeus praticantes da religião. tamente afirmar sua autoridade, uma pessoa de Esse é o Paulo que, em ICorintios 9.12-23, afirma poder carismático. Contudo, ele era uma pessoa 1001
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de personalidade multifacetada, e suas cartas expõem várias características não mostradas em Atos. 0 lado mais revelador exposto nas cartas é provavelmente aquele que diz: “De muito boa vontade me gloriarei nas minhas fraquezas, a fim de que o poder de Cristo repouse sobre mim. Por isso, eu me contento nas fraquezas, nas ofensas, nas dificuldades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco, en tão é que sou forte” (2Co 12.9,10).
pai ou seu avô pode ter recebido a honraria por serviços prestados a algum procônsul militar, como Pompeu ou Antônio. Nesse caso, o pai de Paulo deve tê-lo registrado como cidadão roma no em Tarso. A cidadania romana compreendia vários privilégios, dos quais Paulo pôde tirar pro veito durante sua carreira; por exemplo, o direito a um julgamento justo, a imunidade a castigos degradantes como açoitamento e, especialmente, o direito de apelar e ter seu caso transferido de um tribunal inferior para a corte do imperador, 2. A carreira de Paulo em Roma (At 16.37; 22.25; 25.11). 2.1 Família e cidadania. Paulo nasceu em 2.2 Formação em Jerusalém. Embora tenha uma família de judeus praticantes que residia em nascido em um centro cultural grego, nâo foi em Tarso, na Cilícia, aparentemente na primeira dé nenhuma das escolas de Tarso que Paulo foi edu cada do século I d.C. De acordo com Jerônimo [ V i cado. Foi provavelmente em etapa posterior que i l , 5), sua família era originária de Giscala, cidade ganhou o volume de conhecimento literário e de da Galileia (v. P a u l o , o J u d e u ) . A família pertencia pensamento estoico atestado em seus escritos e à tribo de Benjamim, e Paulo recebeu o nome de discursos. Como ele próprio relata, foi educado Saulo, que também era o nome do mais ilustre nos moldes da tradição de seus ancestrais, sen membro de sua tribo em todos os tempos — Saul, do superior, no estudo e na prática do judaísmo o primeiro rei de Israel. O nome Paulo, pelo qual (GI 1.14), a muitos dos de sua época. Em seu é mais conhecido, fazia parte do nome triplo que pronunciamento de Atos 22.3, é ainda mais es ele tinha na condição de cidadão romano: é o pecífico e afirma que, embora nascido em Tarso, cognome romano Paulus. foi criado em Jerusalém e foi “instruído de acor Não se sabe quantas gerações viveram em do com o rigor da lei de nossos pais, aos pés de Tarso, mas o negócio da família — fabricação de Gamaliel”. tendas {ou talvez, em sentido mais genérico, fa De acordo com uma tradição posterior, Ga bricação de produtos de couro) — evidentemente maliel, destacado mestre judeu de sua época, foi prosperou. Paulo nasceu cidadão de Tarso — des chefe da escola rabínica que Hillel fundara por crita em suas palavras como “cidade de impor volta de 10 a.C., se é que ele próprio não era tância na Cilícia” (At 21.39) —, e isso implicava membro da família de Hillel. No entanto, as tradi certo nível de riqueza. Para se qualificar como ções mais antigas que refletem alguma lembrança cidadão de Tarso era preciso ter bens no valor de direta de Gamaliel e de seus ensinos não o asso quinhentas dracmas (Diâo C r is ó s t o m o , Or, 34.23). ciam à escola de Hillel. Em vez disso, fazem men Além da exigência de bens, a prática do judaísmo ção de membros da escola de Gamaliel, como se deve ter sido outro obstáculo para quem procu ele mesmo tivesse fundado uma escola. E, mes rava conquistar a cidadania. Caso os cidadãos de mo que Gamahel tenha sido seguidor de Hillel, Tarso estivessem organizados em tribos, como isso não quer dizer que Paulo também o fosse. Os era o caso de muitas cidades helênicas, ser mem escritos de Paulo não fornecem evidências sufi bro de uma dessas tribos envolvia práticas que os cientes para demonstrar com segurança que antes judeus consideravam ofensivas,^ P96sível que os de se tornar cristão ele tivesse sido hillelita ou cidadãos judeus de Tarso fizeãsem parte de uma simpatizante da escola rival de Shammai. Alguém tribo própria, embora nâo haja evidências disso. poderá concluir que o fato de ele ter afirmado No entanto, muito mais importante que o fato que quem se submete à circuncisão “fica obriga de a família ter a cidadania de Tarso foi obter a do a cumprir toda a lei” (GI 5.3) reflete a doutrina cidadania romana — honra poucas vezes conce mais estrita dos shammaítas, mas uma afirmação dida aos habitantes das províncias. Paulo herdou feita em um contexto polêmico não permite uma essa cidadania por motivos de nascimento: seu conclusão segura. Seu zelo como perseguidor da 1002
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igreja estabelece um contraste gritante com a po lítica de contemporização defendida por Gama liel em Atos 5.34-39, mas talvez a explicação seja simplesmente que Paulo viu com mais clareza do que Gamaliel as sérias implicações do movimento cristão para a vida e a saúde do judaísmo. 2.3 Perseguidor da igreja. De acordo com as cartas e Atos, Paulo antes de ser apóstolo e se tornar cristão, foi um ativo perseguidor da igre ja. Em sua tentativa de destruí-la, atacou a igreja nascente com a máxima violência (GI 1.13). Esse foi o aspecto negativo de seu zelo pela Lei e pelas tradições de Israel que talvez encontrou um extra vasamento positivo no proselitismo dos gentios. Acredita-se que sua indagação “Se continuo pre gando a circuncisão, por que ainda sou persegui do?” (GI 5.11) aponte nessa direção. Quando ele afirma “Persegui a igreja de Deus” (ICo 15.9), é natural pensar na igreja de Jeru salém. Nos dois ou três anos que se seguiram à ressurreição de Cristo, a “igreja de Deus” di ficilmente teria sido encontrada como realidade reconhecível em outro lugar além de Jerusalém. 0 registro de Atos deixa isso bem claro ao dizer que Paulo “assolava a igreja; entrando pelas ca sas, arrastava homens e mulheres e os colocava na prisão” (At 8.3). Quando a perseguição levou à dispersão dos crentes, ele passou a perseguir os refugiados até mesmo além das fronteiras da província da Judeia. Lendo nas entrelinhas, pode se inferir que os “helenistas”, não os “hebreus” (cf. At 6.1, a r a ], eram o principal alvo de seu ata que. Os apóstolos permaneceram incólumes em Jerusalém (At 8.2). 2.4 Chamado ao apostolado. Foi quando Paulo estava a caminho de Damasco, tendo em mãos a autorização concedida pelo sumo sacerdote para prender alguns que se haviam refugiado ali, que ele se viu diante do Cristo ressuscitado e exalta do e teve de se desviar de seu caminho. Então foi chamado para ser embaixador de Cristo no mundo gentíKco (v. P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ) . Esse encontro com Cristo determinou todo o rumo do pensamento e da ação posteriores de Paulo. Até aquele momento, parecia óbvio para Pau lo que alguém que houvesse padecido o tipo de morte sobre a qual a Lei pronunciava a ira divina (Dt 21.23) não podia ser o IVIessias, o eleito de Deus, como os seguidores de Cristo afirmavam.
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A afirmação deles, portanto, constituía blasfêmia. Mas agora ele percebia que a asserção deles era verdadeira. Ele tinha visto e ouvido Jesus, aquele que havia morrido na cruz, mas que agora estava vivo e glorificado. E fora sua devoção à Lei que o tornara um perseguidor tão zeloso, ou seja, ele percebeu que sua fidelidade à Lei o havia levado à mais pecaiqànqsa de todas as práticas: ele esti vera a lutar contra' Deus, contra seu F i l h o e contra seu povo. A Lei nada fizera para o advertir desse comportamento pecaminoso. A Lei se havia re velado ineficaz. Mas Cristo, cuja graça eliminou inteiramente a culpa de Paulo e o capacitou como seu enviado especial, tomou o lugar de centra lidade que a Lei antes ocupava na vida de Pau lo. Daí por diante, para Paulo “o viver é Cristo” (Fp 1.21). Foi então que Paulo se deu conta de que ele era aceitável a Deus por meio da obra redentora de Cristo, não por causa das obras de justiça que praticava. A própria morte de Cristo, que incorria em maldição divina, se revelou, para 0 povo de Cristo, o livramento da maldição da Lei obsoleta (GI 3.10-14). 2.5 Apóstolo aos gentios. Paulo rapidamen te respondeu a seu chamado de evangeUzar os gentios, viajando para o território dos árabes nabateus, ali perto, e, ao que parece, seu trabalho despertou o antagonismo das autoridades locais (GI 1.17; 2Co 11.32,33). Dali, ele regressou a Da masco e depois subiu a Jerusalém para visitar Pe dro. Também se encontrou com Tiago, o irmão do Senhor, ficando evidente que os demais apóstolos estavam fora de Jerusalém. Sem dúvida, foi nessa visita que Paulo ficou sabendo que Jesus havia aparecido em corpo ressurreto a Pedro e a Tiago, como ele registra em ICorintios 15.5,7, e eles, por sua vez, souberam que o próprio Paulo também se encontrara com o Cristo ressurreto. Depois de duas semanas, ele retornou a Tar so, onde havia nascido, e passou vários anos na província unida da Síria e Cilícia, propagando ativamente a fé que outrora ele havia tentado eliminar (Cl 1.21-24). Enquanto estava envolvi do nessa obra, Barnabé convidou-o a se unir a ele em um novo movimento para a propagação do evangelho, iniciado recentemente em Antio quia do Orontes, onde grande número de gen tios estava aceitando de bom grado o evangelho (At 11.19-26).
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Paulo afirmava ser “apóstolo de Jesus Cristo” — e, sempre que necessário, insistia no título. Mas em que sentido ele foi apóstolo? O n t empre ga 0 termo de várias maneiras. Lucas geralmente o restringe aos Doze (com Matias substituindo Ju das Iscariotes). Se um requisito para o apostola do era ter estado na companhia de Jesus durante seu ministério ptíblico, então Paulo não satisfazia esse requisito. Em determinada seção de sua nar rativa (At 14.4,14) Lucas emprega o plural “após tolos” para se referir a Barnabé e a Paulo juntos. É possível que nesse ponto Lucas tenha extraído essa palavra da fonte que usa como base. É bem possível que Barnabé tenha reconhecido Paulo como apóstolo. Com a expressão “os que já eram apóstolos antes de mim” (01 1.17), ele provavel mente quer dizer os Doze; no entanto, ele quase certamente vê Tiago, o irmão do Senhor, como apóstolo (01 1.19), junto com "todos os apósto los” que viram o Senhor ressurreto em sequência desde Tiago (ICo 15.7) e que parecem ser dife renciados dos Doze, os quais são mencionados junto com Pedro em ICorintios 15.5. Quando se refere a Andrônico e a Jiínias, cuja fé em Cris to era anterior à dele, e os trata como pessoas que “se destacam entre os apóstolos” (Rm 16.7), provavelmente Paulo quer dizer que eles mesmos eram apóstolos. (Os apostolai de 2Co 8.23, ou “mensageiros”, os quais eram enviados das igre jas, estão em uma categoria diferente.) Se ser apóstolo significava ter visto o Senhor ressuscitado e ter sido chamado e comissionado por ele para ser sua testemunha e mensageiro, então Paulo foi proeminentemente um apósto lo de Jesus Cristo, confirmado nessa condição mediante os “sinais” apostólicos presentes em seu ministério (ICo 9.1,2; 2Co 12.12). Paulo foi chamado e comissionado para ser apóstolo entre os gentios (Rm 11.13; Cl 1.16), e parece que seu apostolado gentílico foi reconhecido pelo líder da igreja de Jerusalém (Cl 2.7,8). Mas não houve ne nhuma testemunha quando o Seiihqr o comissio nou. Qualquer um que se recusasse a reconhecer esse apostolado poderia recorrer para isso à ine xistência de testemunho independente. Paulo não podia apresentar nada que fosse parecido com uma credencial. Suas credenciais eram os convertidos que havia conquistado e as igrejas que havia fundado — sem dtívida, eram
credenciais mais que apropriadas. Ele havia tra balhado mais arduamente e pregado em uma área mais ampla que qualquer um daqueles que tinham visto o Cristo ressuscitado antes dele; ele havia fundado mais igrejas e observado a colheita do Espírito na vida dos que haviam conhecido a Cristo por meio de seu ministério. É quase inacre ditável que algumas pessoas tenham invadido o campo missionário de Paulo, tentando persuadir seus convertidos de que sua posição de apósto lo era questionável, e que tenham até mesmo conseguido convencer alguns deles. Em tais si tuações, o argumento de Paulo era prático: seus convertidos eram as líltimas pessoas a ter moti vos para questionar seu apostolado, pois deviam sua nova existência em Cristo a seu ministério apostólico — eram o selo e a garantia desse apos tolado (ICo 9.2). Mas o que importava não era o título, e sim a obra que realizou. À luz de suas realizações, Paulo pôde concluir seus argumentos perante o tribunal da história — para não falar do tribunal superior que ele tinha sempre em vista, porque procurava cumprir sua missão de tal ma neira que 0 dia de Cristo revelasse “que não foi em vão que corri ou trabalhei” (Fp 2.16). 2.6 Conferência em Jerusalém. A igreja de Antioquia, basicamente gentílica, tinha sido fundada havia pouco tempo. Seus membros de monstraram valor ao enviar certa quantia para a igreja-mãe, em Jerusalém, a fim de ampará-la em um período de escassez de alimento na Judeia, nomeando Barnabé e Paulo para levar a doação (At 11.27-30). É possível que essa missão tenha criado a oportunidade para a conferência que Paulo menciona em Gálatas 2.1-10. Barnabé e Paulo foram recebidos pelos líderes da igreja em Jerusalém, Tiago (o irmão do Senhor), Pedro e João, os três chamados “colunas da igreja”. Concordou-se que Barnabé e Paulo deveriam conti nuar concentrados na missão gentílica, enquanto os líderes de Jerusalém se dedicariam ao teste munho do evangelho entre os judeus. Não está implícito que estivessem envolvidas duas versões do evangelho: Paulo apresentou aos líderes em Jerusalém seu evangelho sem a Lei, e é eviden te que eles consideraram aceitável a mensagem pregada por Paulo. Na verdade, a diferença es tava nos dois campos missionários e na apre sentação da mensagem. 0 pacto ocultava várias 004
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ambiguidades, que podiam gerar alguma tensão, caso não se mantivesse a confiança de ambos os lados. A pedido dos líderes de Jerusalém, Barna bé e Paulo se comprometeram em lembrar-se dos pobres da igreja-mãe — compromisso que Paulo levou bastante a sério. 2.7 Com Barnabé em Chipre e na Anatólia.
Ao voltar a Antioquia, Barnabé e Paulo foram li berados pela igreja para embarcar em uma viagem missionária, que os levou a Chipre e depois à Ana tólia Central e às regiões das cidades da Pisídia da Cilícia, Frigia e Licaônia, situadas na província romana da Galácia. As igrejas que eles plantaram nas cidades de Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe, no transcorrer dessa missão, estão pro vavelmente entre as “igrejas da Galácia” às quais Paulo escreveu a Carta aos Gálatas. A historicidade dessa campanha tem sido ob jeto de debate. Alguns a interpretam como uma “viagem-modelo”, estabelecendo a forma em que Lucas imaginou que se deveria realizar uma campanha missionária, incluindo-se como o evan gelho devia ser apresentado tanto em uma sina goga, como aconteceu no discurso de Paulo em Antioquia da Pisídia (At 13.16-41), quanto a um público pagão, como na ocasião em que Barnabé e Paulo confrontam os idólatras habitantes de Lis tra com a revelação do Deus verdadeiro nas obras de criação e na providência divina (At 14.15-17). Mas os detalhes da viagem, examinados à luz da geografia histórica, dão a forte impressão de vera cidade. Além do mais, há uma semelhança mar cante entre a objeção que se fez em Listra contra a idolatria e o lembrete de Paulo aos tessaloni censes; “Vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro” (ITs 1.9). 2.8 As condições para a aceitação dos gen
Quando voltaram a Antioquia do Orontes, Barnabé e Paulo logo se viram envolvi dos em uma controvérsia. 0 pacto recentemente estabelecido em Jerusalém, ao que tudo indica, fora entendido de modo diferente pelas duas par tes. Aparentemente, Paulo começou a sentir que o espírito do pacto não estava sendo observado pe los líderes de Jerusalém. Em Antioquia, houve um choque entre ele e Pedro, quando este passava aU algum tempo com a igreja. No início, Pedro comia sem reservas com os cristãos gentios, mas alguns mensageiros chegados de Jerusalém da parte de tíos na igreja.
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Tiago 0 persuadiram a mudar seu comportamento e a se retirar da comunhão à mesa com os gentios. Aos olhos de Paulo, as implicações da conduta de Pedro ameaçavam os alicerces do evangelho da graça. No entanto, outros cristãos judeus de An tioquia, até mesmo Barnabé, ficaram do lado de Pedro, e Antioquia não pôde mais servir de base para a atividadí migsionária de Paulo. Não se podia permitir que uma discordância dessa magnitude, a qual afetava a unidade da igreja e até mesmo a própria natureza do evange lho, ficasse sem solução, e não há dúvida de que o próprio Pedro nâo ficou contente com a situa ção embaraçosa em que se envolveu. Para tratar do assunto, convocou-se uma reunião dos após tolos e anciãos da igreja-mãe. Essa assembleia é comumente denominada Concílio de Jerusalém, e alguns observadores da igreja de Antioquia foram convocados a participar. Aos membros da igreja de Jerusalém que entendiam que os convertidos gentios deviam ser circuncidados e se submeter à Lei mosaica concedeu-se a oportunidade de ex pressar seu ponto de vista, mas os apóstolos e an ciãos resolveram que não se deviam impor essas condições, ou seja, devia-se exigir dos cristãos gentios apenas a abstinência de comer sangue e carne de animais sacrificados aos deuses pagãos e também a abstinência da fornicação, exigência que talvez incluísse as uniões conjugais proibidas pelas regras judaicas (At 15.23-29). Se os cristãos gentios concordassem com essas condições, seria eliminado o impedimento de terem comunhão à mesa, e a maioria deles concordou prontamente. Sem dúvida, Pedro deve ter ficado satisfeito com a solução que se deu ao dilema. Entretanto, mais tarde, quando os convertidos de Paulo em Corinto 0 consultaram sobre a questão da carne sacrificada aos ídolos, sua resposta foi que co mer esse tipo de carne não causava mal algum, a menos que violasse a consciência ou escanda lizasse um irmão em Cristo. Quanto à proibição da fornicação, Paulo concordou que a fornicação violava a ordem da criação e frustrava o propósi to de Deus, o qual, ao criar a raça humana, fez homem e mulher. 2.9 Na Macedônia e na Acaia. Um dos men sageiros escolhidos para transmitir as resoluções do Concího de Jerusalém às igrejas gentílicas da Síria e da Cilícia foi Silas, ou Silvano, que Paulo
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considerava um bom companhieiro. Paulo convi dou-o a ir com ele em uma expedição missionária ao Ocidente. Viajando por terra pela Ásia Menor, primeiramente visitaram as igrejas que Paulo e Barnabé haviam fundado poucos anos antes. Em Listra, Paulo encontrou Timóteo, jovem que se con vertera por seu ministério, e também o convidou a acompanhá-lo. Timóteo tornou-se um ajudante dedicado de Paulo até o fim da vida do apóstolo. A viagem deles para o Ocidente os teria levado a Éfe so, o que talvez fosse o objetivo principal de Paulo, mas eles foram desviados dessa rota por circuns tâncias que reconheceram como pequenos sinais da direção do Espírito Santo (v. E s p ír it o S a n t o i i ) e rumaram para noroeste até chegar ao mar Egeu, em Trôade de Alexandria. AU embarcaram em um navio para Neápolis, na Macedônia. Na Macedônia, pregaram o evangelho e plan taram igrejas em três cidades: Filipos, Tessalôni ca e Bereia, mas, depois de uma curta estada em cada uma dessas locahdades, foram forçados a partir, visto que o povo foi induzido a fazer mani festações violentas contra eles — em Filipos, por uma alegada interferência nos direitos dos cida dãos à propriedade; nas outras cidades, por causa da atívidade de alguns adversários dentro da co munidade judaica. Filipos e Tessalônica ficavam na grande via Inaciana que hgava o mar Egeu ao mar Adriático, e é possível que Paulo tenha pla nejado ir até sua extremidade ocidental para atra vessar 0 Adriático e chegar à Itália. Essa teria sido uma das muitas ocasiões em que ele planejou vi sitar Roma (como relata aos cristãos de Roma em Rm L13). Se essa hipótese for verdadeira, o fato de não ter conseguido prosseguir naquela direção foi providencial, pois, se tivesse continuado, teria se encontrado com judeus (entre os quais cris tãos judeus) que estavam viajando para o Oriente por causa do édito de Cláudio, que expulsou os judeus em 49 d.C. (v. At 18.2). O que aconteceu foi que Paulo teve de sair da via Inaciana e logo se viu forçado a deixar a Macedôpia vez. Para a segurança dele, seus amigos de Bereia o tiraram da cidade, e, depois de uma breve estada em Ate nas, tomou o rumo de Corinto. A breve missão de Paulo na Macedônia, no entanto, revelou-se surpreendentemente bem-su cedida: as igrejas dessa região deram-lhe muitos motivos de encorajamento e gratidão a Deus. Ao
mesmo tempo, a empreitada na Macedônia deve ter parecido um fracasso, apesar dos claros sinais da direção divina que levaram Paulo e seus com panheiros a se lançar a essa tarefa. Ele partiu da Macedônia profundamente deprimido e chegou a Corinto, como confessou, “em fraqueza, em te mor e em grande tremor” (ICo 2.3). Se a Mace dônia se mostrara pouco receptiva, Corinto por certo 0 seria menos ainda: a reputação de seus habitantes fazia pensar que não havia solo recep tivo à semente do evangelho. Mesmo assim, Pau lo passou dezoito meses em Corinto, pregando o evangelho e edificando a igreja sem ser seriamen te molestado (v. C o r í n t i o s , C a r t a s a o s ) . Ali Paulo encontrou o casal Priscila e Áqui la. Eles haviam saído de Roma quando Cláudio expulsou os judeus que moravam na cidade. Os dois se tornaram amigos prestimosos e devotados pelo resto da vida do apóstolo (cf. Rm 16.3-5). Durante o ministério de Paulo em Corinto, hou ve uma séria tentativa de dar fim ã atividade de Paulo. Um líder judeu acusou Paulo perante Gálio (que chegara à cidade havia pouco tempo na con dição de procônsul da província da Acaia) de pro pagar uma forma de religião não autorizada pela lei romana. Uma resolução de uma autoridade im perial tão proeminente teria peso muito maior que uma decisão tomada por um magistrado da cida de. Se Gálio aceitasse a acusação, o progresso do evangelho seria prejudicado não apenas na Acaia, mas em outras regiões do Império Romano. Entre tanto, depois de ouvir a acusação, Gálio concluiu que se tratava de uma disputa sobre interpretações da Lei judaica e não quis se envolver no assunto. A resposta negativa de Gálio favoreceu Paulo: ele continuou seu trabalho sem nenhum empecilho. A menção a Gálio em Atos 18.12 é um pon to de referência para estabelecer a cronologia da carreira de Paulo. Em Delfos, há uma inscrição que registra uma ordem oficial de Cláudio emiti da nos sete primeiros meses de 52 d.C. e se refere a Gálio como procônsul recentemente nomeado para a Acaia. A implicação é que ele se tornou procônsul no início do verão de 51. Com base em outras fontes, ficamos sabendo que, por proble mas de saúde, ele nâo permaneceu muito tempo no cargo. Pode se dizer com segurança que os dezoito meses em que Paulo esteve em Corinto corresponde à data do outono do ano 50 até a 006
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primavera do ano 52, considerando essas esta testemunhar a parusia (v. e s c a t o l o g ia ) . Antes dis ções quando elas ocorrem no Hemisfério Norte. so, ao se referir à parusia e à ressurreição que a Na época em que o trabalho em Corinto estava acompanha, ele tendia a se incluir entre os que concluído, Paulo deixou para trás uma comunida ainda estariam vivos na ocasião. A partir de en de cristã grande e capaz, embora nos anos seguin tão, ele passou a se incluir entre os que serão tes em alguns momentos Paulo tenha lamentado o ressuscitados dentre os mortos. Pelos dados dis deficiente alicerce moral daquela igreja. poníveis, foi^ssa^a primeira vez que ele exami 2.10 Em Éfeso e na Ásia proconsular. A se nou com seriedade sua condição imediatamente guinte sede de operações de Paulo foi a cidade após a morte: sua conclusão, conforme exposta de Éfeso, na província da Ásia, onde se estabele em 2Coríntios 5.1-10, é que ele não permanece ceu pela maior parte de três anos. Esses três anos ria um único momento em estado de nudez, mas constituíram uma das fases mais frutíferas de seu seria revestido com a vestimenta que lhe está re ministério apostólico. A evangelização da provín servada nos céus. Com a palavra “despidos”, ele cia foi alcançada mediante a atividade de Paulo e quer dizer a falta de todos os meios de comuni vários de seus colegas. Um deles, Epafras, traba cação com o ambiente, e para o apóstolo o am lhou como evangelista no vale do Lico, onde seu biente do cristão logo após a morte se resume na esforço resultou na fundação de igrejas em Hie expressão “habitar com o Senhor” (2Co 5.8, a r a ] . rápolis, Laodiceia e Colossos (Cl 1.7,8; 4.12,13). Alguns estudiosos de Paulo, notadamente C. 0 trabalho não se realizou sem riscos. Al H. Dodd, entendem o conteúdo dessas cartas guns acontecimentos são registrados por Lucas, como uma “segunda conversão” de Paulo por e o próprio Paulo faz menção de alguns deles. volta dessa época. Não era apenas uma questão Podem estar aí incluídas uma ou duas das várias de mudança de perspectiva escatológica: Dodd detenções que ele menciona em 2Coríntios 11.23. chama a atenção para uma mudança de atitude Contudo, é duvidoso que se possa atribuir a data nas cartas posteriores. Paulo é menos contunden de qualquer de suas cartas da prisão ao período te em suas polêmicas, menos insistente em sua de uma detenção em Éfeso. Lucas narra vivida- posição, mais calmo em relação aos irmãos em mente as manifestações violentas deflagradas no Cristo que tentaram tornar mais difícil sua tarefa grande teatro de Éfeso contra Paulo e sua prega apostólica. Tem se apontado para o contraste en ção (At 19.19-41). A advidade de Paulo foi vista tre a denúncia aberta contra os intrusos nas igre como uma ameaça econômica aos comerciantes, jas da Galácia (GI 1.6-9; 5.10,12) e a referência que dependiam financeiramente do culto a Árte bondosa aos adversários cristãos (possivelmente mis, a grande deusa da cidade, cujo templo era em Roma) que se achavam no direito de agra uma das sete maravilhas do mundo antigo. Con var a situação de Paulo, tirando vantagem de sua tudo, o maior perigo pessoal que ele enfrentou prisão para pregar o evangelho com mais vigor naqueles anos, já perto do fim de seu ministério (Fp 1,15-18). É certo que não se pode desprezar em Éfeso, é mencionado pelo próprio Paulo em a diferença entre as duas situações, mas é indis 2Coríntios 1.8-10. Ele fala de uma situação tão cutível a mudança de atitude. Não se pode afir ameaçadora que a morte lhe pareceu inevitável, mar com certeza se a mudança foi gradual ou foi e, quando, apesar de parecer impossível, o livra precipitada por alguma crise, como aquela men mento finalmente chegou, ele o saudou como cionada em 2Coríntios 1.8, mas uma passagem sinal do poder divino de ressuscitar os mortos. como Filipenses 3.7-16 nos ajuda a “ver de forma Acredita-se que essa ocasião de perigo estava h- extremamente clara o que a experiência fez com gada à crise resultante do assassinato de M. Júesse homem, que por natureza era orgulhoso, aunio Silano, no final do ano 54 d.C. A situação, ao toconfiante e impaciente” ( D o d d , p. 81). que parece, foi tão desfavorável para Paulo que Outra experiência que influenciou profunda apelar para César, recurso normalmente aberto a mente a atitude de Paulo diante da vida é a que um cidadão romano, teria sido contraproducente. ele situa vários anos antes desse acontecimento, Quase certamente foi essa a experiência embora só a registre no final de seu ministério que o levou a pensar que não sobreviveria para em Éfeso (2Co 12.2-10). Uma experiência mística 1007
Pa u lo em A to s e nas cartas
deixou-0 com uma deficiência física, a que ele de visível daquela “oferta dos gentios” que ele havia nomina “espinho na carne”. Qualquer que tenha planejado apresentar a Deus em Jerusalém como sido a natureza dessa deficiência, evidentemente coroa de seu “dever sacerdotal” (Rm 15.16, n v i ] , ela ameaçava incapacitá-lo de continuar sua ati Ele esperava completar sua ação de graças pelo vidade apostóhca; por isso, ele orou três vezes passado e sua dedicação no futuro mediante um para que ela fosse retirada. Em vez de sua oração ato de adoração no templo, onde muitos anos ser respondida, Paulo recebeu a garantia de que a antes o Senhor lhe aparecera e o enviara “para graça de Cristo o capacitaria a conviver com ela. longe, aos gentíos” (At 22.21). Aliás, ele aprendeu a se regozijar nela porque ela 2.12 Detenção em Jerusalém; julgamento em 0 ajudava a depender mais plenamente do poder Cesareia; viagem a Roma. Depois de seu longo de Cristo que operava na fraqueza do apóstolo. e frutífero ministério na província da Ásia, Pau 2.11 A coleta para Jerusalém. Perto do final lo tornou a visitar as igrejas da Macedônia e da de seu ministério em Éfeso, Paulo estava bem Acaia. Ele e alguns de seus companheiros, espe ocupado em levantar uma coleta entre as igrejas cialmente Tito, ajudaram essas igrejas a concluir que havia fundado a leste e a oeste do mar Egeu a coleta do dinheiro para a oferta a ser enviada a com o propósito de socorrer a igreja de Jerusalém, Jerusalém. Foi provavelmente nessa época que assolada por uma pobreza crônica. Quando ele e ele também viajou para o oeste, pela via Inacia Barnabé se encontraram com Tiago, Pedro e João na, e então se dirigiu para o norte, na direção do em Jerusalém, as três “colunas” lhe rogaram que llírico (Rm 15.19). se lembrasse dos pobres na igreja-mãe (GI 2.10). Depois de passar o inverno de 56/57 em Co Paulo considerou o caso uma obrigação solene, rinto, seguiu por via marítima para a Judeia com tanto naquela ocasião quanto durante todo o seu representantes das igrejas gentílicas nomeados ministério depois disso. Quanto a essa coleta es para levar a Jerusalém as contribuições de suas pecial, a força propulsora por trás dela era o forte igrejas. Paulo esperava que a presença daqueles desejo de unir mais intimamente as igrejas gentíli homens fosse mais um testemunho para a igre cas com a igreja de Jerusalém. Elas provavelmente ja de Jerusalém acerca da bênção divina sobre a imaginavam que poderiam manter ótímas relações missão gentílica. Mas a visita final de Paulo a Je com Jerusalém, mas muitos membros da igreja de rusalém se revelou catastrófica. Na área do tem Jerusalém viam com certo receio tanto a prega plo, ele foi atacado por alguns de seus antígos ção de um evangelho sem a Lei, anunciado por inimigos da Ásia proconsular que o acusaram de Paulo, quanto as igrejas gentílicas fundadas com sacrilégio (profanar a área sagrada ao trazer gen base nessa pregação. Paulo sentia que, se fosse tios para o templo). Ele foi posto sob custódia possível forjar um vínculo de gratidão, confiança pelo comandante da guarnição romana existente e amor entre Jerusalém e as igrejas de seu campo na fortaleza Antônia e enviado a Cesareia para missionário, seu ministério tínha valido a pena. ser julgado pelo procurador Félix. Depois de seus Um presente generoso persuadiria a igreja-mãe de detentores procrastinarem o processo por dois que 0 compromisso dos gentios com o evangelho anos, ele resolveu exercer seu privilégio de cida era genuíno e prátíco, de modo que insistia com dão romano e apelou, a fim de que seu caso fosse seus convertídos, por carta e, sempre que possível, transferido para a corte de Roma e julgado pelo mediante visitas pessoais, para que contribuíssem imperador. Atendendo ao pedido de Paulo, eles o de maneira generosa para aquela boa causa. Ele enviaram para lá. Depois de dois anos sob prisão também incentivou o espírito de cóm^etíção. Por domiciliar em Roma, ele foi intimado a se apre exemplo, em sua Carta aos Coríntios, ele se mostra sentar perante o supremo tribunal, quando final entusiasmado com a generosidade sacrificial das mente seu caso foi julgado. Não é possível saber igrejas da Macedônia e elogia a pronta reação dos com certeza o veredicto do tribunal, porque o re coríntios à oferta dos macedônios. gistro de Atos termina pouco antes do julgamen Além do mais, aos olhos de Paulo, a entrega to. A carta de Paulo aos filipenses, aparentemente da coleta em Jerusalém seria o ápice do serviço escrita quando o julgamento estava para iniciar, apostólico que havia realizado até então, sinal mostra que ele estava preparado tanto para um 1008
Pau lo em A tos e n a s cartas
resultado favorável quanto para uma sentença desfavorável — absolvição (seguida de liberdade para realizar mais de seu ministério) ou condena ção (seguida de execução) —, embora ele achasse mais provável que seria absolvido. A absolvição, que teria concretizado sua espe rança de pregar o evangelho na Espanha, é algo pressuposto ou implícito nos textos de vários escritores de Clemente de Roma em diante (Cle mente não menciona a palavra “Espanha”, mas é difícil imaginar que outra região estaria insinuan do com a expressão “o limite do Ocidente”, que Paulo teria alcançado antes de ser “elevado para o santo lugar” [ICl, 5.7]). Mas não está claro que algum desses escritores tivesse evidências con cretas para tal crença, a não ser uma inferência baseada em Romanos 15.23-29, em que Paulo, após a entrega da oferta em Jerusalém, faia de seu plano de iniciar a evangehzação da Espanha e de, a caminho, visitar Roma. Existe uma tradição (aceita por Eusébio e Jerô nimo) de que, depois de ser absolvido no julgamen to em Roma, Paulo foi preso outra vez e submetido a uma detenção e a um julgamento mais rigorosos naquela cidade. Acerca desses acontecimentos há referência em 2Timóteo 1.16-18 e 4.16-18, Dessa vez, não houve absolvição: Paulo foi condenado e
decapitado à espada no terceiro marco miliário da via Ostiense, num local chamado Aquae Salviae, e sepultado no local sobre o qual existe a Basílica de São Paulo Extramuros — provavelmente o lo cal onde de fato tudo isso aconteceu. Esse tíltimo processo contra Paulo pode muito bem ter ocorrido durante a p^rsegjiição que Nero promoveu contra os cristãos, por Volta de 65 d.C. 3. O programa de ação e a mensagem missionária de Paulo
A política missionária de Paulo foi conquistar para Cristo, durante a vida, o máximo possível do mundo gentíhco, e, quando começou a ficar evidente que essa tarefa não seria concluída du rante sua vida, ele tentou — com sucesso, ao que parece — levar a comunidade cristã de Roma a partilhar de sua visão. 3.1 A missão do apóstolo. A execução des se plano de ação não exigia a apresentação do evangelho a cada indivíduo nas regiões em que ele evangelizava, e sim a plantação de igrejas lo cais que servissem de células de autopropagação naquelas regiões (v, i g r e j a i i ) . Seu piano envolvia evangelização pioneira, ou seja, pregar o evange lho “não onde Cristo já havia sido proclamado” (Rm 15,20,21), lançando ele próprio os alicerces.
Tabela cronológica
c. 33 35 35-45 46
Chamado ao apostolado; missão na Arábia (Gi 1.15-17) Breve visita a Jerusalém (GI 1.18-20) Cilícia, Síria, Antioquia Conferência com as “colunas” em Jerusalém (GI 2.1-10); socorro para a fome enviado de Antioquia (At 11.27-30) 47-48 Paulo e Barnabé em Chipre e na Anatólia (At 13.4—14.28) 48/49 Concilio de Jerusalém; decreto apostólico (At 15.6-29) 49-51/52 Paulo e Siias/Silvano na Macedônia e na Acaia; plantadas as igrejas de Fihpos, Tessa lônica, Bereia e Corinto (At 16.9— 18,18) 51/52 Visita ligeira de Paulo a Jerusalém, a Antioquia e à Anatólia 52-55 : Paulo em Éfeso (At 19.1-20.1) 55-57 Paulo na Macedônia, no llírico e em Corinto (Rm 15.19; 16.23) 57 ; Última visita a Jerusalém; prisão e perda de liberdade (At 21.17—23.35) 57-59 Detenção em Cesareia (At 23.35—26.32) 59-60 Viagem à Itália (At 27.1-28.15) 60-62 Prisão domiciliar em Roma (At 28.16-31) ? 62 Julgamento de Paulo perante César 64 Grande incêndio de Roma 1009
Pa u l o e m A to s e n a s ca rta s
Exigiu-se de Paulo uma combinação de plane podem ter preservado alguma semelhança com jamento estratégico e abertura à direção divina. as sinagogas, embora, tendo por fundamento um Ele se lançou a esse empreendimento “no poder evangelho sem a Lei, estivessem separadas delas. do Espírito Santo” (Rm 15.19) e experimentou a Até certo ponto, as igrejas lembravam outras as direção do Espírito em ocasiões especiais, como sociações privadas com propósitos religiosos ou quando seus passos foram desviados da estrada beneficentes, as quais comprovadamente existi que ia para o oeste, na direção de Éfeso, e di ram em várias regiões do mundo helênico. Contu rigidos para Trôade e depois para a Macedônia do, Paulo dedicava um cuidado pastoral contínuo (At 16.6-10). Paulo pode ter discernido que o Es a elas, pois seu alvo era que cada igreja fosse uma pírito também prevaleceu nos repetidos obstácu extensão de seu ministério apostólico. Assim que los, os quais, até a época de escrever ã igreja de estabelecia uma igreja, depois de ministrar os Roma, foram colocados diante de seu plano de ensinamentos básicos, sua esperança era seguir visitar aquela cidade (Rm 1.13; 15.22). Também para outro lugar, confiante de que aquela igreja houve ocasiões em que ele discerniu a interferên assumiria o mesmo testemunho do evangelho e cia sobrenatural oriunda de uma fonte diferente: espalharia a mensagem. Por isso, apenas umas “Satanás nos impediu” foi sua explicação para poucas semanas depois de partir de Tessalôni os fatores que o impediram de voltar a Tessa ca ele pôde elogiar a jovem igreja que ele havia lônica depois de ser obrigado a deixar a cidade deixado para trás, porque, conforme ele disse, “A (ITs 2.18). partir de vós, não somente a palavra do Senhor Quando escreveu aos cristãos romanos, Paulo foi ouvida na Macedônia e na Acaia, mas também considerava concluída sua obra a leste e a oeste a vossa fé em Deus foi divulgada em todos os do Egeu, “não tendo mais o que me detenha nes lugares” (ITs 1.8). sas regiões” (Rm 15.23). Seu trabalho durante o Uma igreja assim não era incentivada a pensar tempo em que pregou “o evangelho de Cristo” em si mesma como um “jardim fechado”, mais plenamente “desde Jerusalém e arredores, até o preocupada em evitar invasões pelo deserto ao llírico”, é impressionante, independentemente de redor. Em vez disso, sua responsabilidade era quais tenham sido as circunstâncias. Como diz R. avançar mais e mais deserto adentro. Allen, em 47 d.C. não havia uma tinica igreja nas O mundo romano tinha de ser evangelizado o províncias da Galácia, Ásia, Macedônia e Acaia. mais breve possível. O tempo era limitado. Pau Agora, dez anos depois, as quatro províncias es lo sabia que ele próprio era o agente especial do tavam evangelizadas de modo tão completo que Senhor nessa empreitada. Sua missão não era a Paulo pôde declarar que seu trabalho naquela tinica entre os gentios, mas ele trabalhou “mui parte do mundo estava concluído e que estava to mais que todos eles” (ICo 15.10). Ele talvez planejando repetir um programa semelhante no não vivesse para concluir a tarefa, mas faria o Mediterrâneo Ocidental. máximo possível enquanto pudesse, plantando Desse modo, a obra de Paulo foi extensa, em uma “colônia do céu” (Fp 3.20, tradução do au vez de intensa. Ele se concentrou nas cidades tor; “pátria [...] no céu”) após outra, de modo mais importantes localizadas ao longo das estra que Cristo fosse apresentado, proclamado e glori das principais, às vezes auxiliado por companhei ficado em cada setor da região apostólica que lhe ros naquelas cidades ou em cidades vizinhas. Por fora designada. As igrejas deviam brilhar “como exemplo, durante seu ministério em Éfeso, seus luminares no mundo” (Fp 2.15). Assim, um micompanheiros trabalharam nas áreas periféricas mero cada vez maior de pessoas veria “a luz do da província da Ásia (como é õ caso de Epafras, evangelho da glória de Cristo” (2Co 4.4). no vale do Lico), enquanto ele mesmo atuava em 3.3 A autoridade apostólica e as igrejas. Não Éfeso, a fim de que “todos os que habitavam na parece que as igrejas pauhnas tenham estado li Ásia [proconsular], tanto judeus como gregos, gadas entre si por meio de alguma organização [ouvissem] a palavra do Senhor” (At 19.10). formal ou visível. Paulo foi o apóstolo que as fun 3.2 A missão das igrejas. As igrejas locais dou, e era por meio de sua autoridade apostóhca fundadas por Paulo em todas essas províncias que a autoridade de Cristo, o Senhor de todas as 1010
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igrejas, era transmitida às igrejas paulinas e por elas aceita. 0 línico exemplo de algo que se possa chamar “organização” entre as igrejas de Paulo é seu trabalho de coordenar a coleta para socor rer os pobres da igreja de Jerusalém {ICo 16.14 etc.). É possível que o cuidado e a sabedoria prática vistas tão claramente na organização des sa coleta de socorro tenham sido empregados na organização da vida e da administração de igrejas individuais e de grupos de igrejas. Mas é evidente que Paulo não estava muito preocupado com esse tipo de organização. Na verdade, seu interesse era que em cada uma de suas igrejas houvesse membros capazes de assumir a lide rança espiritual aos demais. Ele preferia que essa capacidade se desenvolvesse e se tornasse visí vel no transcorrer do tempo (semanas ou meses, não anos). E, caso achasse que uma igreja estava demorando a reconhecer as qualidades de lide rança desta ou daquela pessoa, ele aconselhava a igreja a relevar esses líderes. Por exemplo, ele convida a igreja de Corinto a atentar para a casa de Estéfanas, cujos membros “têm se dedicado ao serviço dos santos”, e a se sujeitar “aos que são como eles e a todo que coopera e trabalha na obra” (ICo 16.15,16). Os cristãos de Corinto, ao que parece, eram impacientes com tudo que dizia respeito à auto ridade. No entanto, uns dez ou doze anos após a fundação da igreja de Filipos, constituiu-se ah uma administração organizada de “bispos e diáconos” (Fp 1.1). Contudo, mesmo quando escreveu à igreja de Filipos, Paulo recomendou Epafrodito, homem que merecia honra especial por se sacrificar em sua devoção à obra de Cristo (Fp 2.29,30). É natural que as igrejas paulinas apresentas sem certos aspectos em comum, mas não se fez nenhuma tentativa de impor conformidade por meio de regras. Paulo criticou uma de suas igrejas por ter perdido a sintonia com as demais. Entre tanto, se ela insistisse nessa postura, tudo que ele podia dizer era: “Se alguém quer ser conten cioso, saiba que nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus” (ICo 11.16, a r a ) . Ou seja, se alguém se dispõe a estar em desacordo, que reco nheça que o faz por escolha própria. Em casos extremos, um membro pode ser excluído da comunidade, como o homem que
estava vivendo uma relação incestuosa em Corin to, subvertendo a ética do evangelho e trazendo descrédito ao nome cristão em uma cidade pagã e permissiva — embora até mesmo essa medida drástica tivesse o propósito de alcançar a salva ção do infrator no final (ICo 5.5). Mas não havia meio de excluir urna igreja — não que Paulo ti vesse contemplaüo tal ação derrotista, que seria 0 mesmo que repudiar um grupo de seus filhos espirituais, “selo” de seu “apostolado no Senhor” (ICo 4.14-16; 9.2). Em todas essas coisas — disciplina, adminis tração e outras —, a presença e o poder orienta dor do Espírito Santo eram tão reais para Paulo que ele os deixa implícitos até mesmo onde não os menciona. Se acontecesse de Paulo não confiar que seus convertidos — quer como corpo, quer como indivíduos — progrediriam pelos caminhos que ele havia proposto diante deles, o “modo de vida [de Paulo] em Cristo Jesus” (ICo 4.17), ain da assim confiaria no Espírito Santo para que este operasse naqueles convertidos. Desse modo é que as comunidades paulinas foram preparadas para executar o ministério de Paulo no mundo. As restrições alimentares e a observância de dias sagrados não as impediram de ter refeições em comum ou de participar de outras formas de comunhão social com seus vi zinhos pagãos (ICo 10.27-30). Apenas a idolatria patente ou a imoralidade sexual foram proibidas. Não por segregação, mas mediante participação, eles podiam brilhar com maior eficácia entre seus vizinhos “como luminares no mundo, retendo a palavra da vida” (Fp 2.15,16). 3.4 Batismo e ceia do Senhor. O b a t is m o e a c e i a d o S e n h o r foram duas instituições dos pri mórdios da igreja que Paulo “recebeu” daqueles que estavam em Cristo antes dele e manteve nas igrejas que fundou. 0 batismo era iniciatório. Com base na de claração de Jesus aos apóstolos — “João bati zou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias” (At 1.5; 11.16) — , podia se inferir que o batismo com o Espírito Santo ocuparia o lugar do batismo em água, mas na verdade ocorreu o contrário. 0 ba tismo em água adquiriu significado novo em sua associação com a dádiva do Espírito. Paulo re lembra seus convertidos de Corinto de que “todos
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P a u l o e m A to s e n a s c a r t a s
fomos batizados [...] para ser um só corpo [...] e a todos nós foi dado beber [epotisthêmen] de um só Espírito” (ICo 12.13). 0 batismo não é nenliuma experiência individual: “Todos nós, que fo mos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte [...] para que [...] assim andemos nós também em novidade de vida” (Rm 6.3,4), “porque todos vós que em Cristo fostes batizados vos revestistes de Cristo [...] [e] porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Cl 3.27,28). No sentido cristão, ser batizado envolve tornar-se membro do Cristo corporificado — por meio do Espírito, que partilha a vida do Cristo exaltado com todos os que estão unidos com ele pela fé. Talvez Paulo não nos tivesse permitido co nhecer como ele entendia a ceia do Senhor, se seus convertidos, especialmente os de Corinto, não tivessem se comportado de uma forma que negasse a importância desse rito — uma refei ção em que celebravam de tempos em tempos a comunhão que tinham com Cristo e uns com os outros. Mas os membros da igreja que osten sivamente participavam da “mesa do Senhor” e também se sentiam livres para cear em um tem plo pagão, sob a proteção da divindade ali adora da, na prática negavam sua profissão de fé cristã (ICo 10.14-22). De igual modo, os que ostensi vamente celebravam a comunhão com os irmãos em Cristo por meio da refeição memorial comum, mas agiam sem bondade e sem consideração para com alguns deles, principalmente os mais pobres e destituídos, era réu de profanação do corpo e do sangue do Senhor e, ao comer e beber, atraíam juízo, não bênção, sobre si (ICo 11.17-32). Nem 0 batismo nem a ceia do Senhor são meios sobrenaturais de evitar o juízo divino, algo que neutralize a lei da semeadura e da colhei ta. Eles simbolizam e selam a graça perdoadora de Deus com suas implicações éticas para a vida do crente. Quem acha que está firme deve, portanto, manter-se alerta, a fim de que não caia (ICo 10.11). ' ■ 4. A influência de Paulo 4.1 Nos primeiros séculos. Após sua morte, Pau lo foi venerado como santo, apóstolo e mártir pela igreja em quase todos os lugares. É certo que algumas tradições judaizantes execraram sua memória, como aquelas identificadas como 101
literatura pseudoclementina, dos séculos iii e iv. No entanto, elas não afetaram a corrente predo minante do pensamento cristão. A igreja de Roma reivindicou-o para si de modo especial, porque foi em Roma que ele pas sou seus liltimos dias, e ah ocorreu o martírio que consumou sua carreira apostólica. Perto do final do século ii, os cristãos romanos apontavam com certo orgulho para o monumento fúnebre de Paulo, situado junto à via Ostiense, como se isso acentuasse a autoridade da igreja naquela cidade. Aliás, Paulo recebeu a honra de ser reconhecido com Pedro como o fundador da igreja de Roma — dignidade que o próprio Paulo teria criticado. E quase todas as igrejas com as quais o registro do NT 0 associa tiraram o máximo proveito des sa associação (só em Éfeso é que seu nome ten deu a ser ofuscado pelo de “João, o discípulo do Senhor”). No entanto, enquanto a memória de Paulo era reverenciada, sua mensagem era pouco com preendida. Saber-se gratuitamente justificado pela graça de Deus e regozijar-se na liberdade do Espírito foram experiências desfrutadas por um niimero bem pequeno de cristãos nas gerações pós-paulinas. Inácio de Antioquia não as des frutou, pois acreditava que sua aceitação final perante Deus só estaria garantida se seus ossos fossem esmigalhados pelos dentes de animais sel vagens. Hermas, em sua maneira mais prosaica, também não as desfrutou, porque era assombra do pelo temor de que por algum erro viesse a per der irrecuperavelmente o perdão divino. O evangelho sem a Lei pregado por Paulo não é aceito por muitos religiosos, que preferem di rigir a própria vida e a dos outros por meio de normas e regras. Assim, ele foi domesticado: o apóstolo que falou tão “perigosamente” (como alguns pensavam) sobre estar hvre da Lei foi transformado em um moralista, para não dizer um legalista. Até o final do século ii, a única pes soa que entendia o que Paulo queria dizer com estar livre da Lei, segundo temos conhecimento, foi Marcião — e, nas palavras de Harnack, “até em sua compreensão ele entendeu Paulo erronea mente” [History of dogma / [A história do dogma i], London, 1894, p. 89). A heresia de Marcião consistiu em grande parte no fato de forçar a antítese paulina entre Lei e graça até o que ele
Paulo em A tos e nas cartas
julgava ser a conclusão lógica: rejeitar o a t e o Deus revelado no a t por serem irrelevantes para o evangelho de Cristo, aquele que revelou o Pai, até então desconhecido. Por causa de sua heresia, ele não pôde transmitir ao mundo cristão o que ele entendia da mensagem de Paulo, porque o ensino de Marcião foi rejeitado em sua totalidade. Marcião recusava-se a dar à ética do evange lho o ahcerce das sanções da Lei. Quando alguns moralistas cristãos, como Tertuhano, escreveram duas gerações após a morte de Marcião e indaga ram retoricamente se, com a ausência de tais san ções, os cristãos não se entregariam totalmente ao pecado, a resposta de Marcião ainda era “De modo nenhum!” [absit], a qual Tertuliano ridicu larizou (Mr, 1.27). Está claro que Marcião estava repetindo a pergunta indignada de Paulo: “Ha vemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?” e também a resposta pauhna: “De modo nenhum” (Rm 6.15). Talvez Tertuliano soubesse disso muito bem, mas não resistiu à tentação de marcar um ponto no deba te, Mesmo assim, seu raciocínio atraiu a réplica: “E será que teu único motivo para te absteres do pecado é que temes a ira vindoura?” Foi por meio da experiência e do pensamento de Agostinho que se tornou a dar valor ao evan gelho pauhno da graça. Quando Agostinho, no jar dim da casa de seu amigo em Milão, ouviu uma criança cantar “Tolle, lege!” (“Apanha e lê!”), não foi por acidente que seus olhos repentinamente de pararam com as palavras de Paulo (Rm 13.13,14), que encheram sua alma com uma clara luz, desfa zendo as trevas da dúvida (386 d.C.). Outros já ha viam publicado obras a respeito da graça de Deus, mas nenhum o havia feito de forma tão completa e sistemática, nem com tanta profundidade. Assim como Paulo, Agostinho via-se como alvo imere cido da graça divina. Isso é demonstrado de for ma suprema em suas Confissões (397-401), não em seus tratados mais formais sobre a graça, nos quais às vezes a lógica de seus argumentos e as exigências da sistematização ameaçam impor limi tes à inerentemente ilimitada liberdade e soberania da graça de Deus. No entanto, mesmo nas Confissões se percebe um elemento não paulino. Nessa obra, Agostinho nos presenteia talvez com o primeiro grande en saio da literatura mundial sobre a introspecção in i
espiritual. Com certeza, ele percebeu que Paulo falava com entusiasmo da própria condição, mas por esse motivo surgiu a tendência injustificada de supor que antes da conversão Paulo era afe tado pelo mesmo tipo de consciência dividida experimentada por Agostinho. Na verdade, Paulo em momento algum demonstra viver um confli to interior. Mesmo quando estava perseguindo a igreja, ele mantinha uma boa consciência, porque estava convicto de que fazia a vontade de Deus. Aliás, depois da conversão, quando percebeu a pecaminosidade do caminho que vinha percor rendo, ele exaltou a graça divina, que o havia perdoado e chamado a ser apóstolo (v. S t e n d a h l , p. 78-96). Assim, a doutrina da graça transmitida por Agostinho na Idade Média era pauUna apenas em parte, mas não totalmente pura, 4.2 Os séculos posteriores. No aspecto teoló gico, a Reforma do século xvi na Europa assinalou um renascimento sem precedentes da mensagem paulina ou pelo menos uma de suas importantes proposições. Martinho Lutero revela sua frustra ção ao tentar entender, na Carta aos Romanos, o argumento em que aparece a expressão “a justiça de Deus” (Rm 1.17). Ele a interpretava como “a justiça mediante a qual Deus é justo e age com justíça castigando os injustos”. Ao estudar mais atentamente as Escrituras, porém, ele “entendeu a verdade de que a justiça de Deus é aquela me diante a qual, por meio de sua graça e absoluta misericórdia, ele nos justifica pela fé”. Então ele declarou: “Senti que renasci e entrei no paraíso por portas abertas” [Luther's works [Obras de Lutero], edição americana, Philadelphia, 1960, p. 336-7). Como observa K. Stendahl, Martinho Lutero, à semelhança de Agostinho, encontrou na mensagem de Paulo alívio para um conflito inte rior. 0 conflito de Lutero era espiritual, enquanto 0 de Agostinho era moral, e em nenhum aspecto eles chegaram a reproduzir a experiência de Pau lo, mas a graça justiflcadora de Deus fala à mais ampla variedade de condições humanas. Pode ser que a maneira de Lutero entender a justificação pela fé não tenha deixado de levar em conta outros aspectos da participação que o crente tem em Cristo, mesmo os aspectos éticos. A descoberta de Lutero teve um relevante papel no Grande Avivamento ocorrido no sécu lo xvm, principalmente nos Estados Unidos e na
Pa u lo em A tos e nas cartas
Inglaterra, embora outras forças também estives sem atuando, de sorte que se proclamou uma versão mais abrangente do evangelho de Paulo, insistindo na “santidade segundo as Escrituras” e ao mesmo tempo aceitando a justificação pela fé. A mais importante dessas influências poste riores foi um livreto publicado em 1677 na Escó cia, The Ufe of God in the soul of man {A vida de Deus na alma do homem], da autoria de Henry Scougal. Trata-se de uma descoberta e uma ex posição do entendimento paulino da vida cristã como “união da alma com Deus, participação real na natureza divina, a própria imagem de Deus sendo o ahcerce da alma, ou, na expressão do apóstolo, ‘Cristo formado em nós’ (cf. Cl 4.19)”. Foi a leitura de The Ufe of God in the soul of man que levou George Whitefield à conversão em 1733, e foi outro expositor das ideias de Paulo que conduziu os irmãos Charles e John Wesley a experiências semelhantes em 1738. Charles foi cativado pela primeira leitura do comentário de Lutero sobre Gálatas, e as palavras de Gála tas 2.20 atingiram-no poderosamente: "... que me amou e se entregou por mim" (GI 2.20). Poucos dias depois, ocorreu a experiência de John Wes ley na rua Aldergate, quando ele sentiu o cora ção “estranhamente aquecido” enquanto ouvia a leitura do prefácio do comentário de Lutero da Carta aos Romanos. Ele escreveu em seu diário: “Senti que confiei mesmo em Cristo, somente em Cristo, para salvação, e tive a certeza de que ele havia levado meus pecados, realmente meus, e me salvado da lei do pecado e da morte”. Esse era o evangelho de Paulo a manifestar na vida pessoal seu poder vital e duradouro, com con sequências profundas para a vida social. Foi tal vez a combinação de dois elementos essenciais do paulinismo — apropriação inicial da graça justiflcadora de Deus e obra gradativa do Espíri to, a reproduzir a semelhança de Cristo na vida do crente — que proporcionou ao reavivamento evangélico um equiliTjrio tão desejável. A concen tração em um elemento sem a presença do outro produz uma religião distorcida. Pode se adentrar ainda o século xx e lembrar que Karl Barth, quando começou a ensinar Ro manos, sentiu-se como alguém que, apanhando no escuro uma corda para se apoiar, descobre que puxou a corda de um sino, provocando um 101
barulho capaz de acordar os mortos. Quando surgiu a primeira edição de sua Rõmerbrief [Car ta aos Romanos], em 1918, um teólogo católico afirmou que o hvro caiu “como uma bomba no playground dos teólogos” (K. A d a m ) . 0 poder explosivo dessa “bomba” era a voz do próprio Paulo, e em todos os movimentos im pulsionados pelo Espírito que analisamos, e em outros movimentos também, é a voz do Paulo autêntico, o Paulo das principais cartas, que tem soado, tornando poderosa sua mensagem perene de libertação. Morto, Paulo continua a falar. Ver também a d v e r s á r io s i ; P a u l o , o J u d e u . D PC : AM BIENTE SOCIAL DAS IGREJAS M ISSIONÁRIAS; CRO
NOLOGIA DE P a u l o ; m is s ã o ; p a s t o r , P a u l o c o m o ; P a u lo
E se u s in t é r p r e t e s ; P a u lo
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P a u l o , f a m íl ia e f o r m a ç ã o d e .
Ver P a u l o
em
A tos e
NAS CARTAS.
P a u l o , in f l u ê n c ia d e .
P a u l o , in im ig o s d e .
P
aulo
,
o
Ver P a u l o
em
Ver a d v e r s á r io s
A to s e n a s c a r t a s .
i.
Judeu
Nos últimos anos, ocorreu uma mudança signi ficativa nos estudos paulinos. Durante a primei ra metade do século xx, a dominante escola da história das religiões enfatizou uma abordagem helenista de Paulo: entendia-se que Paulo era um judeu helenizado da Diáspora. R. Bultmann e seus seguidores, por exemplo, entendiam que o judaísmo sincretista da Diáspora e a filosofia po pular da época foram os antecedentes do pensa mento de Paulo. Hoje, porém, os estudiosos do n t encontram cada vez mais provas da judaicidade da vida e do pensamento de Paulo. Essa mudan ça faz parte de um movimento geral nos estudos cristãos para redescobrir as raízes judaicas do cristianismo. Ao mesmo tempo, os estudiosos ju deus demonstram interesse crescente em reivin dicar a judaicidade de Jesus e de Paulo. Por esse motivo, este verbete destaca a dimensão judaica da vida e do pensamento paulinos. Boa parte da atenção que hoje em dia se de dica à judaicidade de Paulo está concentrada em seu mundo social. Procura se ir além dos pen samentos e palavras de Paulo e assim alcançar questões em torno de seu estilo de vida e com portamento. Por exemplo, Paulo alimentava a esperança apocalíptica do cristianismo primitivo.
mas o que isso significava para o cotidiano de um grupo que vivia à parte da vida social pre dominante do Império Romano? Uma vez que o estudo social de Paulo é hoje um campo próprio, não é possível apresentar aqui com precisão esse aspecto dos estudos pauhnos. Entretanto, um estudo recente feito por J. Neyrey demonstra que a antropologia cultural lança alguma luz sobre as cartas pauhnas e sobre Paulo, o Judeu. De acordo com Neyrey, o início da criação de Paulo ou sua sociahzação como judeu zeloso da seita dos fariseus condicionou sua maneira de ver o mundo e a realidade. Por essa razão, Paulo nutria profundo interesse por categorias como ordem, hierarquia e hmites em questões de pureza. 0 interesse de Paulo nessas categorias foi transferido para sua perspectiva pós-conversão (v. P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ) . Dessa maneira, após a conversão, Paulo não era uma pessoa inteiramente nova: seu passado ju daico continuava a influenciá-lo. Essa continui dade será ilustrada mais adiante, na análise que se segue. 1. Declarações autobiográficas de Paulo 2. A educação formal de Paulo no judaísmo 3. A cosmovisão apocalíptica de Paulo 4. Paulo e a compreensão de si mesmo como judeu 5. 0 misticismo de Paulo 6. Paulo e a Torá 1. Declarações autobiográficas de Paulo
lugar certo para começar um estudo sobre Pau lo como judeu são suas declarações autobiográfi cas. Nesse aspecto, a passagem mais pertinente é Filipenses 3.4-6, texto polêmico em que Paulo destaca explicitamente suas credenciais como ju deu: “Eu poderia até mesmo confiar na carne. Se alguém pensa que pode confiar na carne, muito mais eu; circuncidado no oitavo dia, da descen dência de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fui fariseu; quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que há na lei, eu era irrepreensível”. Nessa passagem, Paulo deixa claro que pouquíssimos judeus ou cristãos judeus podiam igualar suas credenciais judaicas e seu zelo pela religião. Ainda perseguidos por uma falsa dicotomia entre o judaísmo da Palestina e o da Diáspora, O
1015
Pa u lo , o J udeu
muitos estudiosos de Paulo se recusam a aceitar essas declarações autobiográficas. Os estudos de uma geração anterior concluíram que na Palesti na havia um judaísmo puro, centrado na Torá; já na Diáspora, havia um judaísmo helênico e sin cretista. E, uma vez que Tarso estava situada na Diáspora, Paulo foi classificado na categoria de judeu helênico sincretista. Em contraste com essa ideia antiga, recentes descobertas arqueológicas e hterárias demons tram a rica variedade existente no judaísmo da Palestina, diversificada no que diz respeito à ade são à Lei e às línguas faladas além do aramai co. Boa parte dessa diversificação está presente no judaísmo da Diáspora, embora o grego fosse 0 idioma predominante. Enquanto o grego era a língua dos judeus de Alexandria e do Egito, a situação linguística era diferente na Síria. Mais tarde, a Síria produziu literatura em aramaico. Geograficamente, Tarso fica bem perto da Síria. Além disso, Jerônimo registra que os pais de Pau lo eram oriundos de Giscala, na Galileia. Se Je rônimo estiver certo, é bem provável que Paulo falasse hebraico ou aramaico em casa. Entretanto, em Filipenses 3.4-6, há outras informações acerca do judaísmo de Paulo, além do fato de ele reivindicar identidade judaica. Por exemplo, ele afirma ser benjamita. Não está claro o que Paulo queria dizer exatamente com essa afirmação. No entanto, é possível que o que se gue esteja expressando certa jactância de Paulo. Jerusalém e o templo estavam localizados nas terras da tribo de Benjamim. Na separação entre o Reino do Norte e Judá, Benjamim e Judá per maneceram leais aos reis davídicos. Após o Exílio babilónico. Benjamim e Judá passaram a ser o centro da nova comunidade. Em seguida, Paulo declara ser um “hebreu de hebreus”. Mais uma vez, temos uma expressão ambígua (cf. 2Co 1L22). É possível que esteja querendo dizer que seu sangue era puro no senti do de não ter nenhum ancestrargentílico. 0 mais provável, porém, é que ele procura mostrar o con traste com os judeus helenistas ou de fala grega. Desse modo, ele está dizendo que aprendeu a falar hebraico em casa. De acordo com R. N. Lon genecker, essa interpretação é a mais provável, se lermos Fihpenses à luz de 2Coríntios 11.22, em que Paulo equipara suas qualificações com as de \
101
outros judeus ou cristãos judeus: “São hebreus? Eu também sou. São israehtas? Eu também sou. São descendentes de Abraão? Eu também sou” ( L o n g e n e c k e r , p. 22). Como motivo adicional para a jactância de Fi lipenses, Paulo afirma ser fariseu. Aqui o termo é definido com precisão. A frase “Quanto à lei, fiii fariseu” refere-se à lei oral. Os saduceus entendiam que apenas a Lei escrita era de obediência obrigató ria, ao passo que os fariseus acreditavam que Deus havia revelado a lei oral, bem como a lei escrita. Em Gálatas 1.14, Paulo diz que era “extremamente zelo so das tradições de meus antepassados”. A palavra grega para “tradições” é um termo técnico {parado sis] que designa a lei oral. A mesma palavra ocorre em Marcos 7.5, passagem em que o Evangelista fala da “tradição dos anciãos”. De acordo com E. Rivkin, dessa forma Paulo se via como membro da classe de estudiosos que ensinava a lei dupla. Ao declarar que os fariseus se assentavam na ca deira de Moisés (Mt 23.2), Jesus reconheceu que eles eram mestres competentes da Lei. Por isso, os fariseus acreditavam que eram o verdadeiro Israel e que sabiam qual era a vontade de Deus para o mundo. Outra crença fundamental dos fariseus era a ressurreição dos mortos. Se um membro da comu nidade pactuai (judeu) ou um gentio convertido obedecesse à lei oral e escrita, ele tínha a garantía de que seria ressuscitado para a vida eterna. Resumindo: Paulo está dizendo que era al guém que falava hebraico e interpretava e ensina va a lei oral e a lei escrita. Cabe ainda uma observação, agora no que diz respeito a esta declaração de Paulo: “Quanto à jus tiça que há na lei, eu era irrepreensível” (Fp 3.6). Não se deve projetar na psique de Paulo a consci ência incomodada pelo sentimento de culpa que se vê no Ocidente, particularmente em Martinho Lutero e sua época (v. S t e n d a h l ) . As inquietações de uma época não são as preocupações de outra. As declarações autobiográficas de Paulo serão mais bem compreendidas se tomadas ao pé da le tra — à semelhança dos fariseus nos Evangelhos, ele via a si mesmo como alguém zeloso e justo. 2. A educação formal de Paulo no judaísmo
De acordo com Atos 22.3, Paulo recebeu edu cação formal no judaísmo da época “aos pés de 6
Pa ulo , o J udeu
Gamaliel”. 0 famoso Gamaliel foi neto ou filho do renomado Hillel, criador dos métodos exegéticos [middút] mediante os quais se deviam estu dar as Escrituras (cf. /. Sank, 7.11; 'Abot R. Nat. [A],§ 37). Alguns estudiosos hoje questionam a afirmação de que Paulo foi instruído por Gama liel. Não é possível aqui recapitular o debate so bre esse tema, mas uma breve consideração sobre a educação judaica nos dias de Paulo ilumina o contexto dos primeiros dias de Paulo (v. H e n g e l , V . 1, p. 78-83). No início do período helenista, encontramos a apresentação que o renomado Ben- Siraque faz de sua escola, a qual tinha o propósito de ensinar sabedoria aos moços da classe alta (Eo 51.23-28). Algum tempo depois, ainda no período helenista, surgiu um movimento para instruir na Lei toda a população judaica [b. B. Bat., 21a). Esse movi mento tentava evitar que o judaísmo fosse absor vido pela cultura e língua gregas. Mesmo mais tarde, o esforço por instruir todo o povo tornouse um objetivo preponderante do farisaísmo. Na época de Paulo, havia uma rede de escolas ele mentares que ensinavam as Escrituras hebraicas, basicamente o Pentateuco, para meninos de 6 ou 7 anos de idade que começavam a frequentar a escola (y. Ketub., 32c, 4). As escolas mais avança das ensinavam os moços a interpretar o texto da BíbUa e a exphcar contradições ali encontradas. Os métodos exegéticos estabelecidos por Hillel foram usados na interpretação do texto da BiTíUa, bem como na aplicação das leis do Pentateuco às necessidades da sociedade judaica da época. Obtém-se alguma compreensão sobre a educa ção formal de Paulo quando se consideram suas habilidades exegéticas em uma passagem como Romanos 9.5-29, em que ele emprega as Escritu ras hebraicas, técnicas midráshicas e as tradições exegéticas de sua época. Nessa passagem, Paulo discute um problema enfrentado pelos cristãos primitivos: por que a maioria dos judeus rejei tou seu Cristo? Ele introduz o tema em Roma nos 9.6: “Não é o caso de a palavra de Deus ter falhado”. Em seguida, volta-se para o Pentateuco em busca de passagens que tratam do assunto. 0 texto inicial a que Paulo recorre é Gênesis 21.12: "Em Isaque será chamada a tua descendência” (Rm 9.7, a r a ) . Um segundo texto suplementar é tirado de Gênesis 18.10: “Por este tempo virei, e
Sara terá um filho” (Rm 9.9). No argumento que vem a seguir, Paulo cita outros textos subordina dos do AT. As citações subordinadas estão ligadas aos textos inicial e secundário mediante o uso de três palavras-chave: "descendentes” [sperma), “chamado” [kaleõ] e “filho” [huios; v. a d o ç ã o , f i l ia ç ã o ) . E . E . Ellis esboçou da seguinte maneira o padrão de uso das Escrituras nessa passagem de Paulo ( E l l is , p. 155): Romanos 9.6,7
Tema e texto inicial: Gênesis 21.12
Romanos 9.9
Texto secundário e suplemen tar: Gênesis 18.10 Romanos 9.10-28 Explanação contendo citações adicionais (Rm 9.13,15,17,2528) e ligada aos textos iniciais mediante o uso das palavraschave kaleõ (“chamar”) e huios (“filho”) (Rm 9.12,24-27) Romanos 9.29 Texto final que, com o uso da palavra-chave sperma (“des cendentes” ou “filhos”), faz alusão ao texto inicial
Paulo utiUza várias técnicas midráshicas para compor essa seção. 0 uso de um texto secundá rio paralelo para suplementar e elucidar o texto primário é, com frequência, encontrado nos mi drashim clássicos posteriores. Também é comum o emprego de um termo-chave no texto inicial e na conclusão, criando dentro da análise uma cor respondência entre início e fim [inclusio). Tam bém é conhecido o uso de palavras-chave para incluir outras passagens das Escrituras. Na com posição de Paulo, a palavra-chave nem sempre é encontrada no texto citado, mas sempre aparece no contexto da citação, senão no próprio texto ci tado. De modo semelhante, os rabinos de épocas posteriores nem sempre citavam a palavra-chave. Outros elementos midráshicos encontrados aqui são: fórmulas de introdução ou de citação das Escrituras; interrupções na linha de raciocí nio pela necessidade de tratar de uma inferência incorreta ou de um adversário imaginário (tam bém encontradas na diatribe); uso de palavras extraídas do texto inicial da exposição. Talvez, nessa unidade, o elemento mais signi ficativo nessa espécie de midrash seja o uso que 1 017
Pa u l o , o J u d e u
Paulo faz de tradições exegéticas da época que foram preservadas para nós em obras rabínicas posteriores. Um exemplo fora de Romanos 9.6-29 é ICorintios 10.4, em que Paulo escreve: “Todos beberam da mesma bebida espiritual, porque be biam da rocha espiritual que os acompanhava”. A narrativa bíblica não contém nenhuma indicação de que a rocha se movia. Como Paulo sabia disso? De acordo com H, Conzelmann (p. 166-7), Paulo estava utihzando uma tradição hagádica judaica que aparece em obra posterior (t. Sukk., 3.11; cf. b. Ta‘an., 9a; An bí, 11.14; F i l o , Lgal, 2.86). Em Romanos 9.6-29, o texto inicial (Gn 21.12) foi mais tarde empregado de duas maneiras nas obras rabínicas. Primeira: o Talmude babilónico cita Gênesis 21.12 em vários lugares. A passagem a seguir, de Sanhedrin 59b, é típica: Desde o início, a circuncisão foi ordenada apenas a Abraão [...]. Se é assim, não devia ser obrigatória para os filhos de Ismael (filho de Abraão)? Pois em Isaque será chamada a tua semente. Então os filhos de Esaii não estariam obrigados a praticá-la? Em Isaque, mas nâo em todo Isaque (edição de Soncino}. Tanto Paulo quanto o Talmude babilónico, escrito mais tarde, utilizam o mesmo texto para mostrar quem pertencia a Israel, e ambos associam Esaú a esse texto. Entretanto, ao contrário de Paulo, o Tal mude associa a expressão “em Isaque” ã descen dência meramente física de ancestrais judaicos. Contudo, é ainda mais notável a maneira em que Paulo e, mais tarde, o Rabbah de Gêne sis fazem a exegese desse texto. Aqui, além da descendência física, existe outro fator associado à expressão “em Isaque”. (A fim de entender a passagem abaixo, o leitor precisa saber que no hebraico do século i as letras também tinham valor numérico: visto que bêt é a segunda letra do alfabeto, também era o sínibolo do número dois.) No Midrash Rabbah Gênesis 53.12, lemos 0 seguinte: E D eus
d is s e a
A b r a ã o : n ã o t e p a r e ç a is s o m a l
AOS TEUS OLHOS [ . . . )
PORQUE EM ISAQUE A SEMENTE
12); 0 T. Judan b. Shi\ lum disse: Não “Isaque”, mas e m I s a q u e está escrito aqui. 0 v. ‘Azariah disse que no nome SERÁ CHAMADA PARA T I ( x x i ,
de Bar utah o bêt ( e m ) denota dois, isto é, [tua semente será chamada] naquele que reconhece a existência de dois mundos; ele herdará dois mundos [Deus diz]; “dei um sinal [mediante o qual se podem conhecer os verdadeiros des cendentes de Abraão]”, a saber, aquele que expressamente reconhece [os juízos de Deus]: dessa forma, quem quer que acredite nos dois mundos será chamado “tua semente”, enquan to aquele que rejeita a crença nos dois mundos não será chamado “tua semente” (edição de Soncino, p. 471) Nesse midrash, os verdadeiros descendentes de Abraão vivem em dois mundos. Essa é exatamen te a ideia de Paulo em Romanos. Sozinha, a des cendência física não é suficiente; os que detêm certa crença ou tipo de fé são filhos de Abraão. Ao comentar acerca de Romanos 9.6-29, Paulo es creve 0 seguinte em Romanos 9.30-32: Que diremos? Que os gentios, que não bus cavam justiça, alcançaram justiça, mas justíça que vem da fé. Mas Israel, buscando a lei da justiça, não alcançou essa lei. Por quê? Porque não a buscaram pela fé, mas com base nas obras; e tropeçaram na pedra de tropeço. A concepção paulina de fé está intímamente rela cionada ao que observamos no Midrash Rabbah. Na condição de fariseu, Paulo havia crido nos dois mundos, isto é, não apenas no mundo pre sente, mas também na ressurreição — o mundo por vir. Depois que se encontrou com o Cristo res suscitado na estrada de Damasco, Paulo interpre tou o Cristo como as “primícias” da ressurreição geral que se seguiria. Desse momento em diante, sua crença em uma ressurreição gera! se concre tizou em uma pessoa específica, por intermédio de quem ele havia experimentado tanto reconci liação com Deus quanto tudo que o termo “fé” significava para ele. Contudo, antes de tirar quaisquer conclusões, é preciso acrescentar outro detalhe ao quadro. Rabbah de Gênesis não é o único escrito rabíni co posterior em que a crença em dois mundos é associada a Gênesis 21.12. Boa parte da mesma interpretação também se encontra no Talmude de Jerusalém [Ned., 2.10). Aqui também o bêt
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significa “dois” e aponta para um judeu que crê em dois mundos. Essas duas fontes palestinas mais recentes aventam a possibilidade de que na Palestina havia uma tradição exegética que associava Gê nesis 21.12 à crença em dois mundos. Como já vimos, o Talmude babilónico desconhece essa tradição e entende que Gênesis 21.12 significa apenas descendência física. Ainda assim, permanece a pergunta: como Paulo e essa tradição exegética (se é que era isso) encontrada em fontes publicadas centenas de anos depois do apóstolo poderiam ter interpreta do o mesmo versículo de forma tão semelhante? G. Vermes apresenta uma solução (V e r m e s , cap. 6). Antes de tudo, ele rejeita várias possibilida des: que o NT depende do Talmude e do Rabbah de Gênesis (que não existiam na época do n t ) ; que a tradição exegética posterior se baseou em Paulo; que as semelhanças são mera coincidência (existe demasiada sobreposição). Em vez disso, ele deixa em aberto a possibilidade de que o n t e a tradição exegética rabínica posterior tiveram uma fonte comum, a saber, o ensino judaico tra dicional. As tradições exegéticas existiram por centenas de anos, e Vermes é de opinião que Paulo conhecia a tradição exegética associada a Gênesis 21.12. Essa tradição existia nas escolas da Palestina e mais tarde ressurgiu no Talmude de Jerusalém e no Rabbah de Gênesis. E, é claro, isso resulta na possibilidade de que uma tradição exegética palestina tenha sido uma das fontes da doutrina paulina da justificação por meio da fé. Além disso, aparentemente, outra tradição exegética estava associada ao segundo texto de Paulo: “Por este tempo virei, e Sara terá um fi lho”. No Rabbah de Gênesis e em outras passa gens (v. S t e g n e r , p. 47), Gênesis 18.10 e a figura de Sara estavam associados ao tema da imutabili dade da obra de Deus. 0 uso de técnicas midráshicas e tradições exe géticas de sua época que Paulo faz das Escritu ras em sua análise de Romanos 9.6-29 produziu uma composição bastante refinada. Portanto, não pode ter sido produto de uma mente não instruí da. Se Paulo não foi ensinado por Gamaliel, então 0 foi por outro mestre judeu. De qualquer forma, parece claro que Paulo recebeu uma educação formal no judaísmo. 101
3. A cosm ovisão apocalíptica de Paulo
Será que a cosmovisão apocalíptica de Paulo (v. a p o c a u p t is m o ) ocupava o centro de seu pensamen to e de sua teologia? Ao responder a essa per gunta, alguns estudiosos começam definindo o termo, depois procuram passagens paulinas que correspondam àquela definição e, desse modo, concluem se o apocaliptismo era ou não o foco da atenção no pensamento do apóstolo. Entre tanto, uma vez que as definições variam de um estudioso para outro, é melhor começar com a centralidade da crença paulina na ressurreição de Jesus e a partir daí desenvolver o assunto. W. Pannenberg sem dúvida está correto em ressaltar que no judaísmo do século i a r e s s u r r e i ç ã o só podia ser expressa na linguagem da tradi ção apocalíptica ( P a n n e n b e r g , p. 96). De fato, a crença na ressurreição fazia parte da esperança e da cosmovisão apocalíptica. Por exemplo, os dis cípulos tinham de ter um entendimento da res surreição antes de concluir que o túmulo vazio e as aparições de Jesus indicavam que ele havia ressuscitado. As centenas de ossários (recipien tes em que se guardavam os ossos dos mortos) que os arqueólogos descobriram em Jerusalém podem ser a prova material da esperança de uma ressurreição futura alimentada pelos judeus do século I. É óbvio que a ressurreição era um dos elemen tos principais da mensagem de Paulo. 0 texto de ICorintios 15 é mais que suficiente para ilustrar essa ideia, e Paulo repetidas vezes menciona a ressurreição: a morte salvadora de Cristo e sua ressurreição parecem ter sido o foco da pregação do apóstolo. Além do mais, a ressurreição de Jesus são as primícias que antecipam e autenticam a ressurrei ção de todos os que pertencem a ele (ICo 15.23). Essa ressurreição envolverá uma transformação como a que o corpo de Jesus experimentou no túmulo. Paulo apresenta uma demonstração dis so em Filipenses 3.20,21: “Aguardamos um Sal vador, 0 Senhor Jesus Cristo, que transformará o corpo da nossa humilhação, para ser semelhante ao corpo da sua glória, pelo seu poder eficaz de sujeitar a si todas as coisas”. Em estilo apocalíp tico, Paulo fala de ressurreição e transformação corpóreas até onde se pode imaginar um corpo espiritual na qualidade de corpo. 9
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Além disso, a ressurreição de Jesus como as primícias do fim acentuou a expectativa da res surreição geral no fim desta era e a consequente transformação de toda a criação (v. esca to lo gia ] . Assim, Paulo acreditava que o fim desta era es tava bem próximo. De acordo com ITessaloni censes 4.13-18, ele esperava estar vivo (ITs 4.15) quando Jesus voltasse. Então se dariam dois acontecimentos inter-relacionados. Primeiro, “Os que morreram em Cristo ressuscitarão”. Segundo, os vivos serão transformados (ideia também exis tente em ICo 15.51). A ressurreição dos mortos e a transformação dos vivos seriam acompanhadas da transformação da natureza e de toda a cria ção; “A própria criação [será] libertada do cati veiro da degeneração, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). Isso é sem dtívida apocaUptismo. Paulo partilhava da crença apocalíptica nas duas eras: a era presente e má será transformada por um ato de Deus na era vindoura, o reino de Deus (v. REINO d e D e u s ) . Dessa maneira, Paulo diz que “toda a criação geme e agoniza até agora” (Rm 8.22) e “aguarda ansiosamente a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8.19). Talvez o principal ingrediente do apocaliptismo tenha sido a categoria da revelação. A maioria dos escritos apocalípticos revela o futuro. Paulo também revela o futuro. Ao descrever o propósito divino para o futu ro, Paulo, como outros apocaliptistas, emprega a palavra “mistério” [mysterion, e.g., Rm 11.25). 0 uso que Paulo faz do termo tem antecedentes ju daicos e apocalípticos. Falando de modo geral, os apocahpses judaicos apresentavam os propósitos de Deus para a história, bem como a proximidade do fim desta era. 0 termo “mistério” designava um propósito ou segredo divino que os seres hu manos não podiam conhecer mediante a razão: tinha de ser revelado por Deus. De acordo com o mistério que Paulo está re velando, Deus formou outro povo em Cristo, e a descrença do povo judeu levou o evangelho a ser pregado aos gentios. Entretanto, no final dos tempos Deus atrairá “todo o Israel” para a fé, presumivelmente o povo judeu que não crê em Cristo (v. I s r a e l ) . Muitos intérpretes concluem que Paulo está contando um segredo ou uma revelação que
recebeu de Deus. Outros não estão seguros dis so. A despeito de como Paulo recebeu o misté rio, esse termo era de uso comum na linguagem apocalíptica. Mesmo assim, no emprego de imagens e hn guagem apocalípticas tradicionais, existe uma diferença entre Paulo e os demais apocaliptistas. Está ausente em Paulo a clara separação entre esta era e a vindoura. A ressurreição de Jesus, mais especificamente sua crucificação e ressurrei ção, introduziu um novo fator na equação. Existe uma sobreposição entre as duas eras: a nova era está prolepticamente presente na obra da reconci liação realizada por Cristo. Realmente, a transfor mação dos crentes ocorre em segredo no interior: “Todos nós, [...] refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem” (2Co 3.18). 4. Paulo e a compreensão de si mesmo como judeu
A anáhse do termo “mistério” e o contexto imediato da palavra em Romanos 9—11 intro duzem outra dimensão da judaicidade de Paulo, a saber, a contínua compreensão de si mesmo como judeu. A seção de Romanos 9— 11, mais que qualquer outra passagem, permite perscrutar a maneira em que Paulo se entendia como judeu. Ao iniciar sua anáhse, em Romanos 9.2,3, ele revela o que sente por seu povo, seus "parentes segundo a carne”. Ele sofre com a increduhdade dos judeus como só um judeu seria capaz de so frer. Perturbado com o fato de os judeus em geral terem rejeitado o “Cristo”, Paulo rejeita a possibih dade “de a palavra de Deus ter falhado” (Rm 9.6). Em Romanos 11.1, Paulo também não aceita a ideia de que Deus “rejeitou o seu povo". A solu ção é simples: a increduhdade dos judeus levou o evangelho a ser pregado aos gentios, que por sua vez creram. Embora Paulo fosse o “apóstolo dos gentios” (Rm 11.13), ele não consegue se esque cer de seu povo. Na verdade, o fato de os gentios se voltarem para Cristo faz com que os judeus fi quem enciumados: “Uma vez que sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se de algum modo posso provocar ciiimes nos da minha raça e salvar alguns deles” (Rm 11.13,14). 0 próprio vigor com que Paulo desempenhou seu apostolado gentílico indica para alguns intérpretes
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que Paulo acreditava estar se envolvendo no pro pósito escatológico divino de salvar todo o Israel. Paulo não apenas sentia “grande tristeza” pelos de sua etnia, mas também se dedicou à salvação deles, sendo a conversão dos judeus uma conse quência de sua missão gentílica. Nesse ponto, a tendência dos estudos recen tes tem sido tomar caminhos opostos. Alguns estudiosos sustentam que Paulo está defendendo um povo de Deus dividido por duas alianças: os gentios se aproximam de Deus por meio da fé, ao passo que os judeus se aproximam dele por meio da Torá ( G a s t o n ; G a g e r ; S t e n d a h l ) . Sem dúvida, a maioria dos estudiosos do n t está certa em defen der que a abordagem a qualquer uma das duas ahanças levará o navio a pique quando se chocar com a rocha de Romanos 10 (v. L e i ) . Se os judeus precisam vir a crer em Cristo para ser salvos, como Deus reahzará isso? Paulo sabe que a eleição dos judeus ainda está de pé (Rm 11.28,29) e conhece o plano secreto (“mis tério”) de Deus (observem-se os elementos de autocompreensão implícitos aqui). Depois que “o número completo de não judeus [vier] para Deus” (n t l h ) , então “todo o Israel será salvo” (Rm 11.25,26). Será que o ciúme por causa do “número completo” de gentios levará os judeus à fé? Será que a segunda vinda de Jesus despertará essa fé? Paulo revela o propósito geral de Deus para Israel, mas não os detalhes. Paulo ainda se vê como um judeu que crê em Cristo e tem acesso ao plano oculto de Deus. Até mesmo a ideia de os gentios serem reuni dos no fim dos tempos fazia parte da herança ju daica de Paulo. Em alguns cenários apocalípticos, os gentios seriam convertidos no final dos tempos e fariam uma peregrinação a Jerusalém. Parece que a expectativa de os gentios serem reunidos está por trás de Romanos 11.25. Entretanto, no mistério que Paulo está partilhando. Deus formou com cristãos judeus e convertidos gentios um novo povo de Deus em Cristo. Como já vimos, a increduhdade do povo judeu levou o evangelho a ser pregado aos gentios. 5. O m isticism o de Paulo
Os estudos contemporâneos estão apenas come çando a explorar o misticismo de Paulo. 0 misti cismo de Paulo é misticismo judaico, deriva do
judaísmo da Palestina e precisa ser definido com cuidado. O misticismo de Paulo é tão bem definido pelo que não é quanto por aquilo que é. Fracassou a tentativa de uma geração anterior de inserir Paulo nas religiões de mistério do mundo helênico (v. r e l i g i õ e s g r e c o - r o m a n a s ) com base no uso paulino do termo grego mystèrion. Além disso, o debate mais antigo sobre o misticismo de Paulo acerca de Cristo, relacionado com o fato de ele usar repetidamente a expressão “ em C r i s t o ” , não é a questão na qual os estudiosos de hoje estão in teressados. Em vez disso, a melhor maneira de definir o misticismo de Paulo é mediante 1) a ex periência contada por ele em 2Coríntios 12.1-4 e mediante 2) seu conhecimento do plano escato lógico de Deus (já explicado na análise do termo “mistério”). Em 2Coríntios 12.1, Paulo se gloria de “visões e revelações do Senhor”. Ele passa a relatar a ocasião em que foi “arrebatado ao ter ceiro céu” (2Co 12.2) e depois “arrebatado ao paraíso” (2Co 12.3), onde “ouviu palavras inex primíveis, as quais não é permitido ao homem mencionar” (2Co 12.4). Quais são os antecedentes desse tipo de expe riência? Está surgindo entre os estudiosos o con senso de que o misticismo merkabah (relacionado com a visão que Ezequiel teve do carro-trono — merkãbá — de Deus) representa os antecedentes da experiência de Paulo (v., e.g., B o w ík e r e S e g a l ) . G . Scholem, na Enciclopédia judaica, associa o misticismo merkabah antigo a certos círculos de fariseus, particularmente Johanan ben Zakkai, que se distinguiu por voha de 70 d.C., e com Aki ba, que viveu mais tarde. Hoje em dia, os estudiosos estão situando o misticismo merkabah em data anterior àquela proposta por Scholem. Entre os m a n u s c r ito s d o m a r M o r t o , foram encontrados fragmentos de uma Liturgia angélica (4Q400-407 = 4QShirShabb). Esses fragmentos descrevem o carro-trono divi no, tema central do misticismo judaico primitivo. Esse achado mostra que Paulo podia estar fami liarizado com 0 misticismo merkabah, especial mente pelo fato de ter sido contemporâneo de Johanan ben Zakkai. O misticismo judaico primitivo estava con centrado na Palestina e se expressa na literatura apocalíptica, como a tradição de Enoque — por
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exemplo, em lEnoque (70 e 71), 2Enoque (22) 3EnoCertos círculos farisaicos se concentravam no primeiro capítulo de Ezequiel, que conta a histó ria do carro-trono (merkãbá) de Deus. Scholem acrescenta que, no início, a literatura fala de uma “subida à merkabah” (S c h o le m , 1961, p. 46). Essa forma inicial de misticismo judaico se harmoniza com as declarações autobiográficas de Paulo. Em Filipenses 3.5,6, Paulo conta que foi um fariseu zeloso e irrepreensível “quanto à justiça que há na lei”. Em 2Coríntios 11.22, pas sagem que imediatamente precede a descrição de suas visões, Paulo destaca que descende de Abraão: “São descendentes de Abraão? Eu tam bém sou”. Em seu im'cio, o misticismo judaico era praticado em certos círculos farisaicos. Entretan to, nem todo fariseu tinha permissão para estudar Ezequiel 1, por causa dos perigos envolvidos (cf. m. ag., 2.1), pois, se o exegeta tivesse de novo a visão do carro-trono e não estivesse em estado de pureza ritual, poderia morrer: “Não poderás ver a minha face, porque homem nenhum pode ver a minha face e viver” (Êx 33.20). Por esse moti vo, Johanan ben Zakkai ensinava a contemplação mística apenas a “seus alunos prediletos”. J. W. Bowker destaca a importância das credenciais judaicas do exegeta, como o fato de descender diretamente de Abraão. As credenciais de Paulo atendem a essas exigências. Entretanto, ainda mais importantes que as credenciais de Paulo para estabelecer uma liga ção entre o apóstolo e o misticismo merkabah é o que ele escreve em 2Coríntios 12.1-4. Destacamse três expressões: ser “arrebatado” [harpazõ), o “terceiro céu” (tritos ouranos) e “paraíso” [paradeisos). J. D. Tabor demonstra que essas palavras pertenciam ao vocabulário do misticismo judai co e, como ilustração, cita Vida de Adão e Eva (25.3), obra do século i:
que.
E eu vi um carro como o vento, e suas ro das eram de fogo. Fui arrebatado ao Paraíso de justiça e vi 0 Senhor assentado, e sua aparên cia era de um insuportável fogo abrasador. E muitos milhares de anjos estavam ã direita e ã esquerda do carro (orp, v. 2, p. 266-8). Nesse excerto, o místico não está falando do futu ro, mas da habitação de Deus no Paraíso, talvez
no sétimo céu. Outras visões associam o Paraíso ao terceiro céu. Por fim, 0 livro de Atos registra que Paulo teve experiências de visões. Embora nem todas as vi sões sejam as mesmas, a repetição de vocabulário mais as credenciais de Paulo mostram que sua visão de 2Coríntios 12.1-4 era do tipo associado ao misticismo merkabah. Ademais, a cosmovisão apocalíptica de Paulo e seu conceito de mistério (revelação do plano futuro de Deus) são outras indicações de sua tendência ao misticismo. Existe uma interação fascinante entre as fa cetas de Paulo, o Judeu, que examinamos até aqui. As declarações autobiográficas revelam seu farisaísmo, seu zelo e sua justiça sob a Lei. Seus escritos revelam habilidades exegéticas e uma apropriação das tradições exegéticas mediante as quais ele interpretava as passagens da l x x . Tudo isso é prova de que ele recebeu instrução formal no judaísmo de sua época. É claro que o ensi no formal foi uma condição prévia para sua ins trução no misticismo merkabah. Além do mais, seu misticismo e sua cosmovisão apocalíptica se harmonizam com perfeição. Uma vez que a revelação do plano de Deus para o futuro é um ingrediente essencial do apocaliptismo, a revela ção mística e o apocaliptismo são mutuamente dependentes. Duas notáveis observações surgem do resumo que acabamos de apresentar. A primeira inda ga até que ponto Paulo se encaixa no judaísmo palestino do século i antes de 70 d.C., conforme o conhecemos de outras fontes. Por exemplo, a mesma combinação de zelo pela Lei, cosmovi são apocalíptica e misticismo caracterizaram os sectários de Qumran. Embora não fosse essênio, Paulo se destaca como um fariseu da época ca racterizado por uma grande devoção religiosa. A segunda observação diz respeito à maneira em que as várias peças se encaixam tão bem num todo harmonioso. Até agora, Paulo foi apresenta do como alguém sem grande importância, que se sentia pouco ã vontade vivendo em dois mundos — o helenista e o judaico. Até agora, Paulo foi apresentado como um homem marcado por ob jetivos conflitantes e sérias contradições íntimas. Esse não é o quadro que surge do estudo acima, A esta altura, estamos prontos para examinar o elemento que despedaçou a unidade de sua
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síntese pré-conversão — sua relação com a Torá. Contudo, nada define Paulo, o Judeu, de modo tão convincente quanto seu contínuo interesse na Torá. De um lado, ele não pode rejeitá-la total mente; de outro, não pode aceitá-la como antes.
simplesmente o meio de manter aquela condi ção dentro do pacto. Então o que Paulo estava condenando ao mencionar as “obras da lei”? Ao responder a essa pergunta, J. D. G. Dunn. que aceita a ideia de Sanders sobre o judaísmo do século i, leva 6. Paulo e a Torá o argumento mais adiante. Dunn destaca que São muitas as obras sobre a relação entre Paulo e a expressão “obras da lei” ocorre três vezes em a Torá, ou seja, a Lei. Aqui, nosso propósito não é Gálatas 2.16. Mais importante ainda, nessa passa recapitular essas obras (v., e.g., D u n n e S a n d e r s ) , gem, a questão é a comunhão à mesa entre cris mas esboçar os temas importantes no debate tãos judeus e cristãos gentios, e nesse contexto atual (v. L e i ) . Aliás, em consequência do debate Paulo estava se opondo aos cristãos judeus que contemporâneo, uma nova perspectiva de Paulo insistiam em manter as leis alimentares. Para o está começando a receber atenção. apóstolo, 0 âmago da questão é a inclusão dos Para os estudiosos, o dilema é criado pelas gentios na comunidade messiânica em pé de declarações aparentemente contraditórias que igualdade com os cristãos judeus. Os cristãos ju Paulo faz acerca da Lei. Por um lado, parece deus desejavam que os gentios se tornassem ju que Paulo tinha uma ideia positiva da Lei: “A lei deus para então participar da comunhão à mesa é santa, e o mandamento, santo, justo e bom” com os cristãos que observavam as leis judaicas. (Rm 7.12); “Por acaso anulamos a lei pela fé? Desse modo, a questão não era tanto a justiça de De modo nenhum; pelo contrário, confirmamos corrente de méritos, e sim a exclusividade racial. a lei” (Rm 3.31). Por outro lado, Paulo escreve De acordo com Dunn, Paulo achava que o proble negativamente a respeito da Lei e parece atacáma eram as observâncias da Lei, que separavam la: “Ninguém será justificado pelas obras da lei” judeus e gentios. (GI 2.16); “Cristo é o fim [no sentido de término] Para Dunn, o assunto tratado por Paulo não da lei para a justificação de todo aquele que crê” dizia respeito à salvação: era uma questão so (Rm 10.4). Estaria Paulo se contradizendo? ciológica. As “obras da lei” eram a circuncisão, De acordo com o pensamento tradicional, as leis sobre pureza e alimentação e a guarda do Paulo rompeu radicalmente com a ideia positiva sábado. No mundo antigo, os escritores pagãos do ATsobre a Lei. Ele rejeitou a Lei e viu em Cristo consideravam essas práticas exclusivamente ju o término ou o fim da Lei. R. Bultmann e outros daicas. As “obras da lei” demarcavam “os limites exegetas luteranos da Alemanha expressam me do povo da aUança” (D u n n , p. 193). Paulo dizia lhor esse pensamento. Os judeus obedeciam à Lei não à Lei no momento em que ela estabelecia a fim de acumular méritos para si e, desse modo, limites para o povo da aUança. Dessa maneira, alcançar a salvação. Aliás, o fariseu era pior que ele estava ao mesmo tempo dizendo sim e não a maioria dos pecadores por ser quem melhor para a Lei. De acordo com Dunn, Paulo dizia não exemplificava o esforço humano de afirmar sua à Lei quando ela reforçava a nacionalidade e o independência de Deus e de sua graça. exclusivismo judaicos, mas dizia sim quando ela E. P. Sanders, com base no nomismo pactu expressava a vontade de Deus. ai, objetou à interpretação tradicional da Lei. Como Paulo, o Judeu, podia fazer isso? Como Depois de examinar exaustivamente a literatura podia dizer não a algumas determinações da Lei e judaica da época, Sanders questionou a compre sim para outras? Parece que a resposta está na ensão de Bultmann sobre o judaísmo do século cosmovisão apocalíptica de Paulo. Uma mudan i: Bultmann havia projetado no século i o con ça havia ocorrido da antiga era para a nova era flito de Lutero com o catolicismo. A aUança, a em Cristo. A Lei, ou seja, a Torá, foi substituí Lei e a condição especial de povo eleito de Deus da por Cristo. A declaração de Paulo em Roma (daí 0 termo “nomismo pactuai”) eram dons da nos 10.4 é decisiva: “Cristo é o fim da lei para a graça de Deus para Israel. Os judeus não preci justificação de todo aquele que crê”. Paulo não savam conquistar o que já possuíam: a Lei era estava falando do “fim” como término da Lei, mas 1023
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como objetivo ou cumprimento. Embora a Lei ainda definisse a vontade de Deus, ela não mais atuava para a salvação. A nova era havia chegado, e a Lei havia sido substituída pelo novo presente de Deus: Cristo. Por isso, Paulo escreveu em ICo rintios 15.20-22: Na verdade. Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele o primeiro entre os que fa leceram. Porque, assim como a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Pois, assim como em Adão todos morrem, do mesmo modo em Cris to todos serão vivificados. A nova perspectiva, primeiramente proposta por Sanders e depois promovida por Dunn, não res ponde a todas as perguntas sobre Paulo e a Torá, mas apresenta algumas respostas. Ela tende a resolver a denominada “atitude contraditória” de Paulo diante da Lei, como já vimos. Essa nova perspectiva também dá margem a certa continui dade entre a atitude geralmente positiva do at diante da Lei e a atitude de Paulo. Paulo opôs-se aos aspectos mais nacionalistas e exclusivistas da Lei porque o novo ato de Deus em Cristo havia estendido a aliança aos gentios: a graça substituí ra os rituais e a raça. A recente pesquisa de P. Tomson confirma de modo notável a observação, feita por Dunn, de que Paulo sustentava a Lei quando ela expressa va a vontade de Deus. Em ICoríndos 5.1-5, por exemplo, Paulo escreve sobre um homem que está a “manter relações sexuais com a mulher de seu pai”. A questão são as relações sexuais proibidas de acordo com Levítico 18.1-18. Paulo insiste que a igreja expulse esse homem. Tomson descobre uma conformidade ponto por ponto en tre a análise feita por Paulo e a tradição judaica posterior que esclarece a questão das relações sexuais proibidas. Esse é apenas um exemplo da continuidade entre os ensinos éticos de Paulo e a tradição legal judaica. Por último, essa nova perspectiva nos permi te ver Paulo mais claramente como um judeu do século 1. Os estudiosos judeus há muito tempo vêm alegando que Paulo entendeu erroneamente o judaísmo e que seu entendimento da Lei divergia da maioria dos judeus do século i. Na realidade, li
de acordo com Dunn, a versão luterana do pensa mento de Paulo tem sido o problema. Paulo foi um autêntico judeu do século i, e não houve ruptura significativa entre ele e seu passado judaico. Ele era um filho de Abraão que não concordava que se limitasse a ahança ã nação judaica: Abraão deveria ser uma bênção para todas as famílias da terra. Dentre várias perguntas que ainda estão sem resposta, está aquela sobre o ensino que Paulo ministrou ao cristianismo judaico. Estaria Paulo pedindo aos cristãos judeus que, em sua prática, abandonassem os demarcadores da Lei? Estaria ele ensinando que deixassem de circuncidar os filhos e de observar as leis alimentares em casa? Ou estaria falando da comunhão entre cristãos judeus e cristãos gentios em lugares como Antio quia e outras congregações mistas? Pode se fazer a pergunta de modo mais direto: teria o próprio Paulo abandonado aqueles demarcadores (“obras da lei”)? Ou será que ele continuava a observálos, desde que não interferissem no seu apostola do aos gentios? Parece ainda não haver uma res posta clara a essa pergunta. Só umas poucas vozes cristãs judaicas sobre viveram para nos contar como o cristianismo ju daico reagiu às ideias de Paulo a respeito da Lei. Se essas vozes sobreviventes são representativas dos vários grupos que constituíam o cristianismo judaico, não sabemos. Entretanto, embora ressal tassem a judaicidade de Jesus, elas tinham Paulo na conta de vilão ( F l u s s e r , cap. 13). Alguns cris tãos judeus viam em Pedro seu verdadeiro líder, enquanto outros preferiam Tiago, o líder da igreja em Jerusalém. Será que essas vozes judaico-cristãs represen tam o veredicto final acerca de Paulo, o Judeu? Esperamos que não. Com a redescoberta, pelos estudiosos, do judaísmo dos dias de Paulo, tal vez algumas vozes judaicas contemporâneas do apóstolo venham a oferecer uma avaliação mais positiva de Paulo, o Judeu. Ver também a p o c a lip t is m o ; I s r a e l ; ju d a ís m o e o Novo T e s t a m e n t o ; L e i ; P a u l o , c o n v e r s ã o e c h a m a d o d e ; P a u l o em A t o s e n a s c a r t a s ; t r a d i ç õ e s e e s c r i t o s
RABÍNICOS.
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v is õ e s , e x p e r iê n c ia e x t á t i c a .
obras
da
restauração
P e ca d o i : Pau lo
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P
au lo
,
o ponentes d e.
P a u l o , v ia g e n s d e .
P
ecado i:
Ver
a d v e r s á r io s
Ver P a u l o
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em A t o s e n a s c a r t a s .
P aulo
existem mais de 30 palavras que transmi tem algum conceito de pecado, e Paulo emprega pelo menos 24 delas. Palavras com o sentido psi cológico de “culpa” são bem pouco usadas por ele, mas podemos afirmar que muito do que ele diz sobre pecado inclui a ideia de que o peca dor é alguém que tem culpa. Afinal, cometer um pecado é ser culpado desse pecado. Embora não se possa dizer que Paulo tinha uma preocupação mórbida com o pecado, pode se apontar para o fato de que ele reconhece que o mal que o ser humano pratica é uma barreira à comunhão com D e u s e, a menos que se encontre uma maneira de lidar com o problema do pecado, no futuro todos terão, na condição de pecadores, de prestar con tas por suas decisões morais (Rm 2.16; ICo 4.5; 2Co 5.10). A isso também devemos acrescentar que a atitude que prevalece em Paulo não é de tristeza, nem de pessimismo sem fim. Pelo con trário, ele continuamente se regozija no fato de que em C r i s t o o pecado foi derrotado, de modo que 0 crente não tem nada que temer nem nes te mundo, nem no vindouro. (Quanto à ideia de que o pensamento de Paulo se move “para trás”, da solução da salvação em Cristo para a condi ção desfavorável dos seres humanos, v. S a n d e r s , 1977, p. 442-7, 474-511; cf. W r i g h t , p. 258-62.) Em sua Carta aos Romanos, Paulo discorre ex tensamente sobre o problema do pecado. Nessa carta, ele usa 48 vezes o substantivo “pecado” [hamartia), 9 vezes o substantivo “transgressão” ou “ofensa” [paraptõma), 7 vezes o verbo “pecar” [hamartãno], 4 vezes o substantivo “pecador” [hamartõlos], 15 vezes o adjetivo “mau” [kakos] e 7 vezes o substantivo “injustiça” [adikia]. Além disso, Paulo emprega várias outras palavras de sentidos semelhantes que não ocorrem isolada mente com tanta frequência, mas, quando reu nidas, formam um ntimero significativo no texto de Romanos. Não se encontra em nenhuma outra parte do n t semelhante concentração de pala vras a respeito do mal. Em Romanos, o relevante problema do pecado é examinado bem de per to, e Paulo faz algumas declarações à luz de seu N o n t,
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anúncio programático das boas-novas de Deus (Rm 1.16,17], Paulo não define pecado, mas está claro que ele não entende o pecado primordialmente como uma ofensa contra outro ser humano; para o apóstolo, 0 pecado constitui, antes de tudo, uma ofensa contra Deus (cf. Rm 8.7; ICo 8.12). A con sequência de romper um relacionamento correto com Deus é prejudicar os relacionamentos corre tos com os seres humanos, mas a ofensa contra Deus é a questão principal. 1. A Queda 2. A universalidade do pecado 3. 0 pecado e a Lei 4. Os efeitos do pecado 5. A morte de Jesus 6. A oposição cristã ao mal 7. Vencendo o pecado 8. O juízo sobre o pecado
fizestes? Pois, embora fostes tu quem pecou, a Queda não foi apenas tua, mas também de nós, que somos teus descendentes”. Paulo, no entan to, nunca usa o recurso literário de se dirigir dire tamente a Adão. 2. A universalidade do pecado
Na parte inicial de Romanos, o apóstolo apresen ta um forte argumento para mostrar que judeus e gentios estão “debaixo do pecado”. Ele cita as Escrituras: “Não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Toda a raça humana está envolvida no pecado, mas Paulo reconhece que por vezes o ser humano age com bondade e faz o bem (Rm 2.710,14). Mas isso não é problema. O pecado é que é. E não é um problema de pequena monta, pois atinge toda a raça humana e tem consequências calamitosas para cada pecador (v. H o o k e r ) . 3. O pecado e a Lei
1. A Queda
Paulo não se prende muito à origem do mal. Por exemplo, ele não emprega termos já estabeleci dos que tratam da Queda, como se ele pudesse explicar a origem do mal. A única passagem em que descreve o palco da queda da humanidade é 2Coríntios 11.3 (cf. ITm 2.13-15), que, em con cordância com o pensamento judaico, relaciona a queda de Adão à influência de Eva (cf. Eo 25.24; Ad e Ev, 3). Entretanto, ele apresenta uma ques tão importante em torno de Adão (Rm 5), deixan do claro que aceita a verdade de que o pecado não fazia parte da criação original. O texto de Romanos 8.19-23 talvez mostre que o cosmo foi afetado pela queda do homem ou mesmo de Sa tanás. Paulo entende que Adão trouxe o pecado ao mundo e que desde a Queda toda a raça hu mana tem cometido pecado, “porque todos peca ram” (Rm 3.23). Todos cometem pecado, mas de alguma forma todos são também enredados no pecado de Adão, pois “pela transgressão de um muitos morreram” (Rm 5.15). Para Paulo, o peca do não faz parte da natureza humana conforme Deus a criou. Deus não é responsável por uma criação defeituosa. É isso que torna tão grave o pecado de Adão, pois significou inserir o pecado em uma criação que originariamente não tinha defeito algum. Paulo poderia ter se expressado nas palavras de 4Esdras 7.118: “Oh, Adão! O que
Como judeu praticante, Paulo havia aceitado a L e i como presente de Deus, sinal do favor di vino. Mas, como cristão, veio a perceber que a Lei ensinava algumas coisas desagradáveis sobre o pecado. A Lei torna o mundo inteiro culpado perante Deus: “Todos os que são das obras da lei [i.e., que dependem da Lei] estão debabco de maldição” (GI 3.10). Por meio da Lei, vem o co nhecimento do pecado (Rm 3.19,20). Aliás, Paulo não teria conhecido o pecado, não fosse pela Lei (Rm 7.7), Para ele, a função da Lei não é evitar 0 pecado, e ele até mesmo afirma que ela multi plicou o pecado (Rm 5.20). Sua função era deixar claro o que é o pecado, e sua definição nítida de certo e errado não deixou dúvidas de que muitas coisas eram pecaminosas, as quais a humanidade de todas as épocas estava disposta a ignorar. A Lei era incapaz de lhes trazer s a lv a ç ã o , mas po dia conduzir os seres humanos a Cristo para que pudessem ser justificados pela fé (GI 3.24; cL W r i g h t , p. 193-216, para quem o papel da Lei foi concentrar o pecado em Israel, de modo que o Messias, o representante de Israel, pudesse tratar do pecado de uma vez para sempre). 4. Os efeitos do pecado
Paulo enxerga uma ligação entre o pecado e a morte. Aliás, ele diz que a morte veio por meio do pecado e, indo além, afirma que, se todos
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pecaram, a morte veio para todos (Rm 5.12). Ele reconhece que, embora os pecados de alguns não sejam como a transgressão de Adão, mesmo as sim a morte reinou sobre toda a raça (Rm 5.14; cf. Rm 5.21), porque toda a humanidade parece ter sido representada em Adão (Rm 5.12; sobre esse versículo, v. comentários; W i l l i a m s ) . Em ou tra passagem, ele simplesmente diz: “0 salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Outrora, ele vivia sem a Lei, “mas, quando veio o manda mento, 0 pecado reviveu, e eu morri” (Rm 7.9,10; cf. Gn 4.7). Em Romanos 7.11,13, Paulo repete o pensamento de que o pecado, conceitualizado como um poder (talvez com a ideia de que o pe cado seja como um demônio ou um monstro), o matou. Aliás, o tema do pecado como um poder externo, poderoso e ativo é recorrente em Roma nos 5—7 (cf. Rm 5.12,21; 6.6,11,12,14,16-18,20; V. S a n d e r s , a b d ; B e k e r , p. 213-34; R õ h s e r ) . Em Efé sios, Paulo lembra a seus leitores que o pecado joga com a morte, privando as pessoas da vida que é vida de verdade (Ef 4.18). Paulo expressa de outra forma a seriedade do pecado ao insistir que os pecadores são escravos do pecado (v. M a r t i n ) . Eles podem até acreditar que ao praticar a maldade continuam livres, que estão fazendo o que escolhem fazer, mas Paulo não concorda e lembra aos romanos que, na con dição pré-cristã, eles foram “escravos do pecado” (Rm 6.17,20), Ele diz que ele próprio é “limita do pela carne, vendido como escravo do pecado” (Rm 7.14) e “escravo da lei do pecado” (Rm 7.23). Repetindo Ovídio, ele comenta que deseja fazer o bem, mas ainda faz o mal (Rm 7.19). Com a mente, ele pode servir à lei de Deus, “mas com a carne [serve] à lei do pecado” (Rm 7.25). Mesmo quando deseja fazer o bem, o mal está com ele. Na verdade, o pecado “habita” nele (Rm 7.20,21). 0 pecado cria um abismo entre os pecadores e Deus, como Paulo deixa claro, em Romanos 1.2125, ao afirmar que eles estão “separados da vida de Deus” (Ef 4.18). Ele diz também que os co lossenses antes eram “estrangeiros e inimigos no entendimento por causa das vossas obras más” (Cl 1.21). De qualquer forma, está claro que, quando os seres criados pecam contra o Criador, uma barreira é erguida entre Deus e eles próprios. Os pecadores também rompem relaciona mentos uns com os outros, como mostra, por
exemplo, a lista de pecados de Romanos 1: cobi ça, inveja, homicídio, contenda, dolo, insolência, quebra de pacto ou de compromissos, e assim por diante. Os seres humanos podem estar unidos no pecado, mas isso não faz com que estejam unidos entre si. Paulo demonstra uma compreensão única do assunto ao observar que o pecado faz com que as pessoas fiquem aUenadas da criação, aprofun dando 0 assunto em Romanos 8.19-23. Com base nesse ensino, os cristãos fazem bem em cuidar do meio ambiente, não apenas por causa dos apelos dos modernos ambientalistas seculares, mas por que este é 0 mundo de Deus e porque os cristãos vivem na expectativa do momento em que toda a criação será “hbertada do cativeiro da degenera ção” (Rm 8.21). Pelo que se vê nos escritos de Paulo, fica cla ro que ele considera o pecado, não importando a maneira em que se apresente, um assunto sério e algo inseparável da raça humana. Para ele, essa condição permanecerá até o fim, pois, referindose ao final dos tempos, ele fala da vinda de um ser maligno a quem chama “o homem da iniqui dade” (2Ts 2.3 [ a r a ] ; tradicionalmente, esse ser é chamado “o homem do pecado”). Com muita perspicácia, Paulo entende que o pecado opera em toda a raça humana como algo que durará até o fim da história. Para Paulo, o pecado é universal, mas ele tam bém está convencido de que o pecado impregnou o ser humano por inteiro. Há quem considere que o pecado se encontra apenas nas funções corpó reas, enquanto o “coração” (“mente”, “espírito”) permanece puro, porém de modo algum essa ideia tem origem no apóstolo. É verdade que ele diz que quem comete pecado sexual “peca con tra o seu corpo” (ICo 6.18). Ele também declara que a c a r n e se opõe ao Espírito e então apresenta uma lista terrível das “obras da carne” (GI 5.1721). Mas essa hsta inclui coisas como inimizade e inveja, o que mostra que ele está falando de pe cados do espírito humano, bem como de pecados da carne. Os escritos de Paulo como um todo de monstram que, para ele, o pecado envolvia a pes soa inteira, não apenas uma parte. Apresentando um exemplo aleatório, “o amor ao dinheiro” não é uma atividade da carne, mas envolve “todos os males” (ITm 6.10).
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P e ca d o í : Paulo
5. A morte de Jesus
Paulo tem muito que dizer sobre a morte de Je sus — na verdade, bem mais que qualquer outro autor do n t , e ele diz que a morte do Salvador foi causada, de alguma maneira, pelo pecado. As sim, ele afirma que Cristo “morreu pelos nossos pecados” (ICo 15.3). No entendimento do após tolo, essa declaração credal é de grande impor tância, como revela a expressão “antes de tudo” [a r a ] e a frase “se entregou a si mesmo pelos nos sos pecados” (G1 1.4). Ele diz aos romanos que Jesus “foi entregue à morte por causa das nossas transgressões” (Rm 4.25) e também que, “quanto a ter morrido, morreu para o pecado de uma vez por todas” (Rm 6.10). Não existe a menor dúvida de que, para Paulo, a morte de Jesus estava liga da aos pecados da humanidade, pois acredita que eles levaram Jesus à morte e que sua morte teve o propósito de resolver a questão do pecado. Ele diz ainda que a morte de Jesus foi pe los pecadores: “Cristo morreu pelos ímpios” (Rm 5.6). Em uma passagem notável, Paulo de clara que “Deus prova o seu amor para conos co ao ter Cristo morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8). “Seu amor” é um elemento importante. Seria fácil dizer que a cruz demonstra o amor de Cristo, mas o que Paulo está dizendo é que, embora isso seja verdade, também é certo que o amor do Pai foi demons trado na morte do Filho. E essa morte ocorreu “quando ainda éramos pecadores”. Não é que tenhamos sido purificados de alguma maneira, para depois o amor divino se manifestar. 0 amor de Deus atuou de maneira sacrificial para tratar 0 problema do pecado humano. Em duas outras notáveis declarações, Paulo afirma: “Um morreu por todos” (2Co 5.14); “Cristo [...] morreu por nós” (ITs 5.9,10). A primeira delas expressa a verdade de que a morte de Jesus é de aphcação universal; a segunda, de que ela é eficaz para os crentes. Paulo leva o último pensamento um pouco adiante, até a tocante referência ao “ F i l h o DE D e u s , que me amou e se entregou por mim” (Cl 2.20). A influência de Isaías 53, bem como dos primeiros credos, é patente nesses textos que relembram a Paixão de Cristo (v. P o p k e s ). Em uma passagem importante para o tema, Paulo diz; “Aquele que não conheceu pecado, ele [o Pai] o fez pecado por nós; para que, nele.
fôssemos feitos j u s t iç a de Deus” (2Co 5.21, a r a ) . Esse texto muitas vezes é citado erroneamente, como um verbo na voz passiva (“foi feito peca do”), dando a impressão de um processo impes soal. Paulo, porém, está se referindo a uma ação do Pai, bem como ã ação salvadora do Filho. O Pai está envolvido na solução do problema do pe cado da mesma forma que o Filho. Isso deve ficar bem claro. Paulo não considera que o Pai seja um expectador indiferente no processo que trata da questão do pecado. Ele estava ali, e o ato salva dor aconteceu de acordo com a vontade divina. “Fez pecado” não é uma expressão fácil de enten der, mas com certeza mostra uma identificação com o pecado e com os pecadores. A morte de Cristo (como a oferta de Is 53.6) foi o sacrifício que removeu o pecado. Paulo escreve aos colossenses, dizendo que em Cristo temos a “remissão dos pecados” (Cl 1.14, a r a ) . A expressão é um aposto de “re denção” e mais uma vez claramente nos dirige para a cruz. Para o apóstolo, significa muito o fato de que Cristo tratou de todo o mal que os seres humanos têm feito e trouxe o perdão dos pecados aos crentes. 6. A oposição cristã ao mal
Paulo reconhece o caráter disseminado do peca do, mas não concorda com sua inevitabilidade. Ele insiste em que os crentes não cedam ao mal, mas que, pelo contrário, façam o que é bom. Ele ora para que os coríntios não cometam nenhu ma maldade (2Co 13.7) e conclama os colos senses a destruir o mal que existe dentro deles (Cl 3.5). Também implora aos romanos que não retaliem quando o mal for praticado contra eles, mas que, em vez disso, vençam o mal com o bem (Rm 12.17,21), e faz aos tessalonicenses uma exortação semelhante (ITs 5.15). É importante ter em mente que o amor, que obviamente deve caracterizar todos os cristãos, não guarda ressen timento do mal sofrido (ICo 13.5). Paulo não se limita a denunciar os males na esfera rehgiosa. Ele diz a Timóteo que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (ITm 6.10). Ele pede aos romanos que pratiquem o bem, de modo a merecer a aprovação dos governantes (Rm 13.3), e lembra-os de que o amor não faz nenhum mal contra o próximo (Rm 13.10).
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P e c a d o h : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a l ipse
7. Vencendo o pecado
D Pc:
Que o pecado está presente em tudo e que Cris to morreu para tratar dos efeitos do pecado são duas ideias que Paulo apresenta com certa ênfa se. Algumas de suas declarações também deixam claro que ele não imagina os cristãos como um povo que continua a pecar (Rm 6.1,15; G1 5.13), embora saibam que seu pecado já está perdoa do. Ele tem consciência de que o pecado está tão firmemente arraigado à natureza humana que a opinião do apóstolo é que nesta vida é presun ção alguém afirmar que está hvre de qualquer pecado. Mas ele também é claro ao dizer que ‘‘o pecado não terá domínio sobre vós” (Rm 6.14), acrescentando que “não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça”. Não é a submissão a um conjunto de regras (como os judeus faziam, ao afirmar que guardavam a Lei, como se isso fosse um marco de sua identidade ou de sua eleição) que caracteriza o cristão, e sim a presença da gra ça de Deus. É pela graça que o crente é salvo, e pela graça é que se vive toda a vida cristã. Ahás, Paulo chega a ponto de dizer que os cristãos, ago ra hbertos da dominação do pecado, foram “fei tos escravos da justiça” (Rm 6.18). 8. O juízo sobre o pecado
O pecado leva inevitavelmente ao juízo final. Existe alguma antecipação, ou seja, um juízo presente, pois cometer pecado significa fazer-se pecador. A terrível consequência de ser peca dor é expressa nas três ocorrências de “Deus os entregou” em Romanos 1.24,26,28, com a hor renda hsta de consequências que o pecado traz no tempo presente. Ademais, Paulo deixa claro que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Paulo também destaca que colhemos aquilo que semeamos e que semear a carne significa colher corrupção (G1 6.7,8). Isso significa que o pecado traz julzo no tempo presente. No entanto, Paulo também insiste que final mente se tratará do pecado por ocasião do juízo no tribunal de Crísto, verdade que ele expressa vigorosamente, por exemplo, em Romanos 2.112,16. Esse juízo faz parte da verdade cristã e aponta para o tratamento final que o mal receberá (ICo 4.4-6). Ver também A d â o e C w s t o ; c a r n e ; C r i s t o , m o r t e d e ; j u l z o ; j u s t i ç a / r e t i d ã o ; j u s t i f i c a ç ã o ; L e i.
C ó le r a ,
im p ie d a d e e
d e s t r u iç ã o ;
poder
c o n s c iê n c ia ;
r e s t r in g e n t e ;
h om em d a
m a ld iç ã o ,
m a ld ito ,
a n A tem a ; id o la t r ia ; n a tu r e z a n o v a e n a tu r e z a v e lh a ; p e r d ã o ; p u r e z a e im p u r e z a ; s a n t id a d e , s a n t i f i c a ç ã o ; s a t a n á s , d ia b o ; v íc io s e v i r t u d e s ; v i d a e m o r t e .
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P
ec ad o ii:
G
e r a is ,
A
A
tos,
H
ebreus,
o r r is
C artas
p o c a l ip s e
Com o emprego de várias palavras gregas, pecado e impiedade são conceitos presentes nos escritos I I 029
P e c a d o i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a l ipse
posteriores do n t . A s principais palavras emprega das para designar pecado e impiedade são kakos e ponêros, duas palavras genéricas que designam o mal ou o comportamento mau; adikia, palavra de sentido genérico que denota o mal ou o peca do; hamartia, termo mais específico para denotar pecado e que em geral envolve a violação à L e i; asebeia, palavra que designa impiedade; parabasis, vocábulo que tem o sentido de desobediência pecaminosa; os cognatos dessas palavras. Embo ra em alguns contextos seja possível distínguir os sentidos dessas palavras, também existe uma boa dose de sobreposição; por isso, é melhor fa zer distinção entre os vários sentidos de pecado e de impiedade do que aplicar elementos léxicos individuais. O pecado e a impiedade são condenados como comportamento impróprio e até mesmo de violação à Lei no relacionamento entre os seres humanos e com D e u s . É comum o pecado e a im piedade serem contrastados com virtudes como a bondade e o amor. Esse duahsmo está de acordo com a moral exortativa e a natureza parenética de boa parte desses escritos. Os resuhados do peca do e da impiedade são a ruptura das relações en tre o ser humano e Deus e o consequente castigo, incluindo-se o juízo e a condenação finais. 1. O pecado e o comportamento humano 2. 0 pecado e Cristo 3. O pecado e o amor de Deus 4. O pecado e o juízo final 1. O pecado e o comportamento humano
Uma das distinções fundamentais existentes nesse conjunto de escritos é a oposição entre bem e mal, geralmente da perspectiva do comporta mento. Nessa oposição, o bem deve ser preferido, sendo reflexo de maturidade, obediência e busca por fazer o que é certo, ao passo que o mal deve ser evitado, sendo reflexo de imaturidade, deso bediência e fazer o que é errado (e.g., Hb 5.14; Tg 2.9; IPe 2.14; 3.8-12). Em muitos contextos, o mal está diretamente hgado ao pecado e à im piedade, visto que o comportamento decorrente do mal se opõe à bondade e à justiça de Deus (Hb 1.9; 13.12; 8.12; Tg 1.13; 4.17; IPe 2.1,16; 3.12; 3Jo 11). Nesses escritos, o ser humano quase sempre é classificado com base em seu comportamento
pecaminoso ou mau. Há orientação para que não sejamos o tipo de pessoa que é flagrado prati cando ações ímpias ou más (e.g., At 3.26; 8.23; Hb 12.1; Tg 2.4; 4.16; 2Pe 2.13,15; Jd 11; Ap 2.2), que tem má consciência por causa da impureza (Hb 10.22) ou mesmo que recebe em sua casa alguém que pratica o mal (2Jo 11). De acordo com Tiago, alguns pecados são tidos não como desobediência direta à vontade de Deus, mas como resultado de desejo, aceito pela pessoa, de dar origem ao pecado, o que então leva à morte (Tg 1.15; 5.20). É bem possível que o exemplo clássico desse processo seja o mal que Caim fez a seu irmão Abel (IJo 3.12). Pelo fato de Caim pertencerão Maligno (v. tb. IJo 2.13,14; 5.18,19), ele praticou um ato de maldade, assassinando o irmão, cujas ações eram justas. Em Hebreus, bem como em Tiago, há uma clara revelação do pecado como desobediência à lei de Deus. A Carta aos Hebreus ecoa a hngua gem do templo do a t e do cuho (e.g., purificação, Hb 1.3; propiciação, Hb 2.17; a Lei como sombra do que estava por vir, Hb 10.2-4,8). Hebreus es tabelece analogias com o sacerdócio e sua fun ção de apresentar ofertas pelo pecado (Hb 5.1,3; 10.11; 13.11), em que o papel do sacerdote é ago ra assumido por C r i s t o (Hb 2.17). 0 autor vai além e não apenas afirma a função sacerdotal de Cristo, mas também o apresenta como o próprio sacrifício, um sacrifício único (Hb 7.27; 9.28; cf. Ap 1.5) que desfaz a necessidade de qualquer ou tro sacrifício para ehminar o pecado (Hb 9.26). O resultado é o perdão dos pecados — que nunca mais serão trazidos à lembrança (Hb 8.12; 10.18). O texto de Hebreus 9.15 constitui uma boa sínte se da anáhse do pecado no hvro quando declara que Cristo é o mediador de uma nova ahança que traz como recompensa uma herança eterna, uma vez que Cristo morreu para hbertar a humanida de dos pecados comefidos sob a aliança anterior. 2. O pecado e Cristo
Em várias passagens desse corpo de escritos, há comentários sobre a ausência de pecado em Je sus Cristo, o qual está em oposição ao comporta mento humano pecaminoso. Essas passagens têm suscitado indagações teológicas sobre a possibi lidade de Cristo pecar — por exemplo, se ele foi perpetuamente sem pecado, se alguma vez teve
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P e c a d o i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A po c a u p s e
a capacidade de pecar ou se alcançou a condição de ausência de pecado e foi exaltado no estado de impecabilidade. Em Hebreus 4.15, o autor declara que a hu manidade não tem um sumo sacerdote incapaz de ter compaixão de suas fraquezas, e sim um que foi tentado em todos os aspectos, como acon tece com todos os seres humanos. Apesar disso, ele era alguém sem pecado, e é a expressão “sem pecado” a responsável por criar as maiores difi culdades. Parece que no contexto de Hebreus o pecado gira em torno da reação de Jesus à tenta ção, não um tipo de natureza inerentemente sem pecado ou seu parentesco com a humanidade decaída. Parece que a afirmação é que Cristo resistiu à tentação em cada etapa da vida, de modo que, quando é oferecido sem mácula pe rante Deus {Hb 9.14), esse fato reflete não uma inculpabilidade definitiva ou conquistada, mas a perfeição daquele que sempre resistiu à tentação. Existe o mesmo sentido em IPedro 2.22, quando o autor cita Isaías 53.9, declarando que Cristo não cometeu pecado e também que não se achou engano nele. Isso permite que o autor afirme em IPedro 3.18, versículo inicial da seção cristológica mais importante da carta, que Cristo padeceu a morte de uma pessoa justa, morrendo pelos injustos no que concerne aos pecados deles (v. C r i s t o , m o r t e d e ) . 3. O pecado e o amor de Deus
Uma pressuposição dessa parte do n t é que a ir reverência e a impiedade são formas de pecami nosidade e devem ser eliminadas (Jd 4,15,18; 2Pe 2.5,6; 3.7). No passado. Deus teve sua ira des pertada pelo pecado, pelos anjos desobedientes (2Pe 2.4) e pelos israehtas (Hb 3.17). Ele também pode se irar com o comportamento do cristão no presente. Essa dinâmica é bem ilustrada em IJoão, carta que procura explicar a ordem ética obriga tória para os que viram e conheceram a Cristo. A carta contém exemplos do que significa amar a Deus do ponto de vista de um comportamento amoroso para com os outros (v. tb. IPe 4.8). Em IJoão, várias passagens deixam implícito que a ausência de pecado é algo atingível, ao pas so que outras reconhecem a pecaminosidade hu mana como um fato. R. E. Brown relaciona sete possíveis soluções para os problemas suscitados
por essas passagens, embora nenhuma seja to talmente convincente. Por exemplo, uma distin ção padrão entre os tempos presente e aoristo do verbo grego: embora o ser humano continue a cometer pecados esporádicos do passado (tempo aoristo), ele não persiste no pecado (tempo pre sente), mas isso entra em choque com a maneira que os tempos verbais são usados no hvro. Por exemplo, IJoão 3.4,6,8 emprega o tempo presen te para descrever atos pecaminosos concretos, e o tempo perfeito é utihzado em IJoão 1.10 em uma declaração oposta acerca do pecado. Uma solução mais plausível, que não depende dos tempos verbais do grego, é que a carta está buscando um equilíbrio entre o ideal de não pe car, para ser coerente com a confissão em Cristo, e a realidade da persistente pecaminosidade hu mana. 0 ideal ético é equilibrado pela realidade moral, embora sem desconsiderar a provisão do perdão. No argumento da carta, declara-se a reali dade antes de se declarar o ideal. Em IJoão 1.8-10, o autor declara que, se dissermos que não temos pecado, estamos nos enganando. Se dissermos que não pecamos, fazemos Deus mentiroso, e sua palavra não está em nós. 0 ideal é estabelecido em passagens como IJoão 3.6, em que o autor diz que quem permanece em Cristo não peca, e aque le que de fato peca não o tem visto, e IJoão 5.18, em que ele declara que quem é gerado de Deus não peca. Aqui o pecado é visto como uma viola ção à lei divina (IJo 3.4). Embora os que perma necem em Cristo conheçam as exigências de um comportamento amoroso por meio da obediência, inevitavelmente falharão. Apesar disso, nem tudo está perdido. A solução para esse dilema acha-se em Cristo. Em IJoão 2.1, depois de declarar que está escrevendo para que seus leitores não pe quem, 0 autor acrescenta que, se pecarem, eles têm um advogado junto ao Pai: Jesus Cristo, o jus to. É Cristo quem purifica e perdoa todo pecado (IJo 1.7,9; 2.12; 3.5), uma vez que é o sacrifício propiciatório pelos pecados (IJo 2.2; 4.10). 4. O pecado e o juízo final
Em poucas passagens nesses livros do n t , encon tramos declarações acerca do ju íz o h n a l para peca dores e ímpios. À luz de Deus e de sua exigência de um comportamento justo, esses textos impres sionam 0 leitor com a seriedade do pecado e da
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P eca d o r es : Evan gelho s
impiedade. Normalmente, essas passagens empre gam imagens apocalípticas ao pintar um quadro do juízo final. Por exemplo, Hebreus 2.2,3 faz uma pergunta retórica: se a mensagem dos anjos é que cada violação à lei de Deus e cada ato de desobe diência recebe castigo, como o cristão pode ter a esperança de escapar, se desconsidera o chamado da SALVAÇÃO? De modo semelhante, Hebreus 10.26 diz que quem continua pecando deve esperar o juí zo de Deus. A passagem de Apocalipse 18.4ss faz um contraste entre os que participam do pecado da Babilônia e os que nâo o fazem. Os que participam terão apenas aborrecimento, incluindo-se a paga por seus pecados pela morte final e destruição no fogo, executadas por um Deus que é juiz. Embora a linguagem apocalíptica seja relati vamente frequente em A p o c a l i p s e , uma das pas sagens com maior concentração de tais imagens é 2Pedro 2.9-16. Depois de lembrar que Deus não poupou algumas pessoas nos tempos do a t , o autor afirma que Deus sabe como resgatará os piedosos de suas tribulações e como reterá os injustos para o dia do castigo. Ele então identi fica os injustos por meio de um extenso catálogo de defehos, que inclui a blasfêmia e outros pe cados tão perniciosos que nem mesmo os anjos ousariam cometer. Mas essas pessoas receberão a retribuição por seus pecados. O autor afirma isso, na expectativa do dia do Senhor, em que os ímpios serão destruídos (2Pe 3.7). Ver também c a r n e . dlntd
: C o n s c ie n c e ; F o r g i v e n e s s ; J u d g m e n t ; O b e
d ie n c e ; R e d e m p t io n ; V i r t u e s a n d V ic e s .
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■ L in d a r s , B .
The theology of the Letter to the He
Cambridge: Cambridge University Press, 1991. ( n t t . ) ■ P e t e r s o n , D. Hebrews and perfec tion. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. [s n ts m s , 47.) S. E. P o r t e r
brews.
PECADO o r i g i n a l .
Ver p e c a d o .
P
E vangelh os
ecadores:
Nos Evangelhos, o termo “pecador” é empregado de duas maneiras: para definir o indivíduo que se opõe a Deus e à vontade divina e para identificar, por parte dos adversários de Jesus, os que não pertencem ao grupo deles e que recebem de Jesus a oferta do evangelho de s a lv a ç ã o . A natureza e a idenfidade desses pecadores têm sido assunto de investigação entre os estudiosos. 1. Terminologia e significado 2. Uso do termo nos Evangelhos 3. Jesus e os pecadores 4. Conclusão 1, Terminologia e significado
“Pecador” é a palavra usada com maior frequên cia para traduzir o termo grego hamartõlos, adje tivo relacionado com o verbo hamartanõ, “pecar”, e com os substantivos que designam pecado hamartêma e hamartia. Na l x x , o termo grego hamar tõlos ocorre cerca de 94 vezes, correspondendo a cinco raízes no t m : h f (15 vezes: e.g., Nm 32.14), hnp (uma vez: Pv 11.9), hrsh (uma vez: S l 128.3), r ' (uma vez: Pv 12.13) e rsh‘ (74 vezes: e.g., 2Cr 19.2). Nos targumim aramaicos, há evidências de que um termo mais amplo, hwb’, com o sen tido de “devedor” ou “pecador”, é o equivalente natural de hamartõlos na l x x . No Targum sobre Isa ías, os “devedores” ou “pecadores” são castigados pelo Messias [Tgls, 11.4) e destruídos pelo S enhor (Tg Is, 14.4,5), mas também são capazes de se arrepender (Tg Is, 28.24,25). Na l x x , hamartõlos corresponde, com maior frequência, ao hebraico rãshã‘, 0 substantivo “ímpio”. Especialmente em S a lm o s , utiliza-se rãshã‘ em paralelo com quase toda palavra que expresse a ideia de pecado, mal e iniqüidade, e o vocábulo também funciona como adjetivo para designar as ações e a conduta de certo tipo de pessoa (cf. S l 10.4,7; 36.1; 49.6,13; 50.16,17). Em geral, rãshã‘, o “ímpio”, aparece em paralehsmo antitético com tsaddsq, o “justo” (cf. S l 1.6). Esse é o sentido comum do termo tam bém nos primeiros escritos do judaísmo, como no Eclesiástico (v. tb. lEn [G a ], 22.10-14). A palavra “pecador” também ocorre no que podemos chamar “contextos faccionários”, para denotar os que estão fora da linha divisória do
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grupo que emprega o termo. Nesses casos, por definição, impiedade é a conduta fora do grupo considerada inaceitável para os que pertencem a ele. Desse modo, seria possível usar a pala vra “pecador” mais ou menos como sinônimo de “gentio” (Sl 9.17; Tb 13.8; Jb, 23.23,24). No entanto, com o desenvolvimento do judaísmo, foi possível também estabelecer linhas divisórias entre o povo de I s r a e l, situação em que o termo “pecador” era usado para designar algo que os membros de determinada facção reprovavam. Desse modo, os “pecadores” podiam ser judeus apóstatas (IMc 1.34; 2.44,48), judeus que calcu lavam erradamente os meses, as festas e os anos (lEn, 82.4-7), judeus que não aceitavam a inter pretação sectária da comunidade de Qumran (c d 4.8; IQS 5.7-11; IQH 7.12; v. MANUscRrros d o m a r M o r t o ) , adversários judeus dos “devotos” [Sl Sa, 1.8; 2.3; 7.2; 8.12,13; 17.5-8; 23) ou judeus que interpretavam de maneira diferente as exigências de pureza ritual [A çM s, 7.3,9,10). 2. Uso do termo nos Evangelhos
ocorre 47 vezes no n t , 33 vezes nos Evangelhos, nenhuma em Atos, 14 nas Cartas e nunca em Apocahpse. Nos Evangelhos, as ocor rências estão agrupadas em treze perícopes, apa recendo a palavra em dez delas como substantivo e em três como adjetivo. Na maioria das vezes, o termo aparece em um emaranhado de tradições que os Evangelistas adotaram. Dos treze relatos dos Evangelhos em que o termo ocorre, um deles aparece em todos os Sinóticos, em uma denomi nada tradição tríplice (a disputa acerca da c o m u n h ã o À m esa : Mt 9.10,11,13 par. Mc 2.15,16 [2x]; Lc 5.30,32), outro aparece em Marcos e Mateus (a prisão no Getsêmani: Mt 26.45 par. Mc 14.41) e outro ainda aparece em Mateus e Lucas, consi derado um material de q ( o contraste entre João Batista e Jesus: Mt 11.19 par. Lc 7.34). Mateus faz referência aos pecadores apenas em três ocasiões: a tradição tríplice (Mt 9.10,11,13 par. Mc 2.15,16 [2x]; Lc 5.30,32), a passagem compar tilhada com Marcos (Mt 26.45 par. Mc 14.41) e a passagem compartilhada com Lucas/o (Mt 11.19 par. Lc 7.34). De modo semelhante. Marcos referese aos pecadores em apenas três ocasiões: a tra dição tríplice [Mc 2.15,16 [2x] par. Mt 9.10,11,13; Lc 5.30,32), a passagem compartilhada com Hamartõlos
Mateus (Mc 14.41 par. Mt 26.45) e um episódio da tradição tríplice em que só Marcos emprega a forma adjetíva do termo (“nesta geração [...] pe cadora”: Mc 8.38 par. Mt 16.26,27; Lc 9.26). João não tem em comum com os Sinóticos nenhuma referência a pecadores e menciona o termo em apenas uma perícope (o cego curado falando com os fariseus: Jo 9.16,24,25,31). Lucas é quem registra mais vezes o termo “pe cadores”, fazendo referência a ele em dez ocasi ões; a tradição tríphce (Lc 5.30,32 par. Mc 2.15,16 [2x] ; Mt 9.10,11,13), a passagem compartilhada com Mateus/o (Lc 7.34 par. Mt 11.19) e oito epi sódios encontrados apenas em Lucas. Desses oito relatos, um episódio é material da tradição tríplice, em que somente Lucas incluiu o termo (o testemunho do anjo, Lc 24.7), e dois episódios têm material semelhante a Mateus (não material de q), mas só Lucas emprega o termo (amor pelos inimigos, Lc 6.32,33,34 [2x]; parábolas sobre coi sas perdidas, Lc 15.7,10). Em cinco dos oito epi sódios, o termo ocorre em material exclusivo do Evangelho de Lucas (confissão de Pedro, Lc 5.8; 0 fariseu Simão e a mulher chamada “pecadora”, Lc 7.37,39; mártires galileus, Lc 13.2; a parábola do fariseu e do publicano, Lc 18.13; o chamado de Zaqueu, Lc 19.7). 3. Jesus e os pecadores
Um dos aspectos mais destacados da mensa gem e do ministério de Jesus é a promessa de SALVAÇÃOaos pecadores. Além do extenso material que inclui essa mensagem, ela é encontrada em diversas formas literárias — que vão de frases e p a r á b o la s a relatos sobre a atividade de Jesus e acusações contra ele. Alguns textos dizem que ele se associou com pecadores (Mc 2.15,16 e par.) e procurou os pecadores justamente por estarem perdidos (e.g., Lc 15.7,10). Jesus afirma categoricamente que um aspecto de seu minis tério “não [era] chamar justos, mas pecadores” (Mc 2.17 e par.). Não é difícil entender que o uso genérico de “pecador” nos Evangelhos designa a pessoa que comete os atos pecaminosos defini dos na L e i, como talvez seja o caso da mulher pecadora, em Lucas 7.36-50. Mas, nos relatos dos Evangelhos, o termo “pecador” também denota um pequeno segmento do povo. Uma expressão bem conhecida, em que as duas palavras estão np:?
Peca d o res: Evan gelho s
combinadas, “publicanos e pecadores”, parece especificar um segmento identificável do povo que associa os “pecadores” aos “publicanos” (Mt 9.10,11,13 par. Mt 11.19; Lc 15.7). Em várias ocasiões, os fariseus são apresentados em con traste com os “pecadores”, aparentemente um segmento identificável do povo que os fariseus criticavam de modo especial (cf. Mt 9.10,11,13 par. Lc 7.37,39; 15.1,2; 18.13; Jo 9.16,24,25). In vestigações recentes levadas a efeito por alguns estudiosos têm procurado identificar o segmento do povo denominado “pecadores”. 3.1 Os que não observavam os rituais sec
J. Jeremias é o representante de uma interpretação amplamente aceita que identifica os pecadores como pessoas comuns, os ‘ammê hã'ãrets, que os fariseus desaprovavam. Essa in terpretação sugere que, nos Evangelhos, o grupo conhecido como “pecadores” era visto de duas perspectivas. Da perspectiva dos adversários de Jesus, o termo “pecador” foi cunhado para ex primir o desprezo por aqueles que seguiam a Je sus. Os adversários de Jesus eram quase todos fariseus, que Jeremias considera equivalentes aos haberim, uma irmandade que insistia na pu reza ritual para a comunhão á mesa. Para eles, os seguidores de Jesus eram pessoas mal-afamadas, os ‘ammê hãarets, gente sem instrução, cuja ignorância religiosa e comportamento moral bloqueavam o acesso à salvação. Outro nome de preciativo em referência aos seguidores de Jesus era “pequeninos” (e.g., Mc 9.42; Mt 11.25). Desse modo, os “pecadores” são aqueles que ofenderam o exclusivismo das leis de pureza dos fariseus (especialmente a comunhão á mesa) e/ ou sua rigorosa observância da Lei. Embora os seguidores de Jesus, da perspectiva de seus ad versários, sejam chamados “pecadores”, da pers pectiva de Jesus eles são chamados “pobres” ou “cansados e sobrecarregados” (e.g., Mt 11.5,28) — pessoas despojadas de seus direitos na vida religiosa, social e política de Israel. tários.
3.2 Os perversos, que viviam à margem da
E. P. Sanders é um representante do questio namento da ideia de Jeremias. Sanders alega que 0 equivalente veterotestamentário de hamartõloi é rèsha‘m (ou o equivalente aramaico), um termo praticamente técnico. Ele sugere que uma tradu ção melhor é “o ímpio” e que a palavra se refere
Lei.
aos que pecaram deliberada e abominavelmente e não se arrependeram. Quando a palavra é posta ao lado do termo “publicanos”, os dois nomes adqui rem 0 sentido de “traidores”: os publicanos eram aqueles que colaboravam com Roma, e os pecado res eram os ímpios, que haviam traído o Deus que redimira Israel e outorgara a Lei a seu povo. Sanders alega também que os fariseus não eram um grupo preocupado unicamente com a comunhão à mesa, melindrado com o fato de Jesus oferecer salvação aos excluídos da comu nhão. Na verdade, eles constituíam um partido dedicado à exphcação oral da Torá. Os pecado res não eram apenas pessoas comuns { ‘ammê hã arets): eram ímpios que haviam sido convida dos a integrar o grupo de Jesus sem a exigência do arrependimento normal exigido pela Lei. Jesus permitiu que eles se tornassem seus seguidores e permanecessem “ímpios”. Isso estabeleceu um conflito entre Jesus e todos os líderes de Israel, para os quais a Lei ocupava o centro da vida re hgiosa e social. A força do argumento de Sanders é que ele substitui uma representação distorcida e simphsta do judaísmo. No pensamento de Jeremias, os fariseus são incorrigivelmente formahstas, a pon to de a indignação com o fato de Jesus oferecer a salvação a pessoas comuns ter despertado neles 0 desejo de matá-lo (v. J e s u s , j u l g a m e n t o d e ) . Mas a alternativa de Sanders, de que Jesus ofereceu salvação aos pecadores sem exigir que mudassem de comportamento, não corresponde ao perfil de Jesus apresentado nos Evangelhos. 3.3
Os que se opunham à vontade de Deus.
Várias passagens dos Evangelhos revelam um sig nificado lato do termo “pecador” ao se referirem à pessoa que se opõe ã vontade de Deus. Uma pers pectiva importante está em Marcos 14.41 (par. Mt 26.45), em que Jesus, anunciando sua prisão iminente, diz: “O Filho do homem está sendo en tregue nas mãos dos pecadores”. Essas palavras se destinam, em última instância, aos principais sacerdotes, escribas e anciãos, que haviam plane jado sua prisão (Mc 14.43 par. Mt 26.47). 0 que torna os lideres de Israel pecadores é sua opo sição à vontade de Deus, conforme operada no ministério de Jesus. 0 relato de Lucas sobre os anjos junto ao túmulo ecoa essas palavras com o uso de hamartõlos como adjetivo (Lc 24.7).
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Peca d o res: Evan gelho s
Em Marcos 8.38, as palavras de Jesus diri gidas a uma "geração adúltera e pecadora” não visam a nenhum segmento específico do povo, mas à totalidade do povo de Israel, que o havia rejeitado. Em Lucas 5.8, a reação de Simão Pedro diante da pesca milagrosa operada por Jesus foi confessar que era um homem pecador. Sua con fissão ocorre na presença daquele a quem cha ma “Senhor”, indicando, pelo menos, que Pedro reconhece a própria humildade na presença dos atos de Deus em Jesus. Lucas conta a história dos peregrinos galileus que tinham vindo a Jerusalém para apresentar sacrifícios no templo e foram mortos por Pilatos. Jesus, empregando o termo “pecador”, contraria a crença judaica comum de que as catástrofes da vida eram resultado de pecados cometidos no passado. Esse é um sentido geral do termo “pe cador”, visto que a expectativa é que, em última instância, teria sido um juízo executado por Deus e, por esse motivo, o castigo de um pecado con tra Deus. A confirmação está no versículo 4, em que o termo paralelo é opheiletai, empregado no sentido de um devedor ou pecador contra Deus. Essas passagens dos Sinóticos demonstram a existência de um uso do termo em contextos não sectários e apontam para um sentido lato, que designa a pessoa que se opõe à vontade de Deus. Esse conceito de “pecador” é corroborado no quarto Evangelho. No relato da controvérsia com os fariseus, o homem que havia sido curado de cegueira diz: “Sabemos que Deus não atende pecadores; mas, se alguém for temente a Deus e fizer a sua vontade, este ele atende” (Jo 9.31]. Aqui, a implicação é que o pecador é alguém que não teme a Deus e despreza a vontade di vina. Embora no contexto precedente os fari seus tenham destacado a observância do sábado (Jo 9.16,24,25], o homem curado deixa implícito um significado mais amplo do termo, não apon tando apenas para a pessoa que não observa as normas da Lei. 4. Conclusão
O uso do termo “pecador” na l x x e nos primór dios da hteratura judaica ajuda-nos a entender os diferentes sentidos que ele assume nos Evangelãos. Em seu uso comum, o termo designava o "ímpio”, quase sempre em paralelismo antitético
com 0 “justo”. Mas o termo também era empre gado no contexto das facções, tanto para desig nar os gentios fora dos hmites de Israel quanto pessoas no contexto de grupos rivais dentro do judaísmo. Esses dois significados estão em con formidade com 0 emprego do termo “pecador” nos Evangelhos. Existe um número significativo de passagens em que a palavra “pecador” tem sentido lato e designa “aquele que se opõe à von tade de Deus”, além de várias outras passagens que envolvem questões sectárias. J. Jeremias concentra-se basicamente no gru po de passagens que apresentam o conflito entre os fariseus e os pecadores. Apesar das objeções de Sanders, a força do argumento de Jeremias é que ele não desconsidera o sentido do termo nas disputas internas no judaísmo. J. D. G. Dunn acredita que os fariseus eram uma seita com ideias bem definidas sobre o caráter da vida e da conduta exigidas para manter a j u s t iç a pactuai do povo de Deus. Nesse caso, é muito provável que considerassem pecadores os que discordavam de les e vivessem em aberta desconsideração para com essa justíça — como era o caso dos grupos por trás das tradições apocalípticas de Enoque, dos Salmos de Salomão e dos manuscritos do mar Morto. Os fariseus acreditavam firmemente na autoridade das tradições orais, e, para eles, os que se opunham a suas práticas estavam também se opondo a Deus. Sanders tende a se apoiar nas passagens que põem os publicanos junto com os pecadores. Ele critíca Jeremias por não atentar para a força do termo e torná-lo um mero equivalente de “não fa riseus”. Nas questões sobre a pureza, os fariseus não eram tão rígidos quanto os essênios, pois não consideravam os não fariseus necessariamente pe cadores — talvez só os que faziam pouco caso das preocupações farisaicas. Assim, é provável que, quanto mais os membros da comunidade judaica se distanciavam dos padrões farisaicos, mais os fariseus se inclinavam a rotulá-los de “pecadores”. Embora Sanders vá longe demais ao insistir que o termo sempre designa ostensivos infratores da Lei, os fariseus, quando empregavam a palavra “pecadores”, queriam dizer aquele que se opunha ã vontade de Deus, conforme refletida na maneira de entenderem a halakõ — as leis rabínicas que regiam a vida. Por trás das objeções e acusações
P e d r o , P r im e ir a C a r t a de
feitas a Jesus, havia o fato de que ele estava des considerando e abolindo barreiras que certos gru pos haviam erigido d e n t r o de Israel. Desse modo, do ponto de vista dos adversários de Jesus, peca dor era alguém que não se conformava às expecta tivas da seita. Do ponto de vista de Jesus, pecador era aquele que se opunha à vontade de Deus, mas que se tornava seu d is c íp u l o a partir do momen to que aceitava a oferta de perdão e pela fé se comprometia a seguir Jesus. A oferta de salvação feita por Jesus aos pecadores sem a necessidade de observar as normas de alguma facção representava uma ameaça para o próprio fundamento e para o estilo de vida dos judeus sectários, mas esse ofere cimento estava no âmago do evangelho que Jesus vinha anunciando. Ver também c o m u n h ã o à m e s a ; d is c íp u l o s ; I s r a e l ; d j g : C l e a n a n d U n c l e a n ; D is c ip le s h ip ; P h a r is e e s .
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S a n d ers,
M. J.
PEDOBATISMO.
P
edro.
edro,
P
r im e ir a
Carta
de
Os Evangelhos sistematicamente apresentam Pe dro como líder e porta-voz entre os discípulos de Jesus, papel que continua a desempenhar nos primórdios do movimento cristão, como se lê na primeira metade do hvro de Atos. Por isso, não é de surpreender que duas cartas do n t levem seu nome. A primeira delas, tradicionalmente deno minada “primeira” porque a outra, mais curta, explicitamente afirma ser a segunda (2Pe 3.1), é uma obra notavelmente concisa e persuasiva da fé e da prática cristãs. 1. Autor e leitores 2. Integridade e estrutura literária 3. Antecedentes históricos e sociais 4. Contribuições teológicas ao cânon 1. Autor e leitores
SALVAÇÃO.
B
P
W
il k in s
Ver BATISMO INFANTIL. Ver BATISMO III.
Ver d is c íp u l o s ;
P
edro,
P
r im e ir a
C arta
de.
1
A Primeira Carta de Pedro segue bem de perto o formato literário das cartas de Paulo, identifican do 0 autor e os leitores nos dois primeiros versí culos da carta e apresentando em seguida uma saudação com a fórmula “graça e paz”. Com exce ção de Gálatas e Efésios, difere das cartas de Pau lo por não ser dirigida a uma congregação local específica, mas a um grupo de congregações espa lhadas por uma área geográfica extensa — nesse aspecto, compare-se a Apocalipse (v. A p o c a u p s e , L iv r o d e ) , especialmente Apocahpse 1.4-6,10,11. 1.1 Autoria que a carta faz supor. Assim como Paulo em cinco de suas cartas se apresenta como “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo”, o autor dessa carta se identifica como “Pedro, apóstolo de Je sus Cristo” (IPe 1.1). Quem quer que seja o ver dadeiro autor, ele se apresenta como o apóstolo Pedro. No contexto do cânon do n t , parece que Pedro está exercendo a autoridade legal que Jesus lhe conferiu (de acordo com Mt 16.19) de ligar e desligar ou, então, está executando a ordem de Jesus (de acordo com Jo 21.15-17) de alimentar ou apascentar o rebanho cristão. No restante da carta, não se dá praticamente nenhum valor a essa declaração de autoridade apostóhca. Apenas três vezes o autor escreve na primeira pessoa do singular. Na primeira delas (IPe 2.11), ele diz “exorto-vos” (parakalõn]-, na segunda, “suplico aos presbíteros que há entre vós”, referindo-se a si mesmo não como apóstolo, mas como um “presbítero [...], testemunha dos 036
P e d r o , P r im e ir a C a r t a de
sofrimentos de Cristo e participante da glória que será revelada” (IPe 5.1). À primeira vista, trata-se de uma afirmação mais modesta, mas o propósito óbvio é estabelecer um relacionamento amistoso e uma base comum com os leitores, justamen te o que faria uma pessoa de grande autoridade. Podemos comparar Pedro com o profeta João, que se apresenta a seus leitores como “vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus” (Ap 1.9; v. r e in o d e D e u s ) , o u mesmo com o anjo que, dirigindo-se a João, diz ser “conservo teu e de teus irmãos” (Ap 19.10; 22.9). Essa maneira de falar pressupõe que o autor ocupa um lugar de certa importância e também entende que detém alguma autoridade, a qual é perceptível em toda a carta. A terceira vez que Pedro se expressa na pri meira pessoa do singular é na conclusão da carta. Ele diz: “Por intermédio de Silvano, que conside ro nosso fiel irmão, escrevo de forma abreviada, exortando [parakalõn] e testemunhando que esta é a verdadeira graça de Deus” (IPe 5.12). Então ele envia saudações daquela “que é coeleita con vosco, que está na Babilônia [...] como também meu filho Marcos” (IPe 5.13). Por isso, Pedro é situado geograficamente na “Babilônia”, talvez uma metáfora para Roma (como também ocor re em Apocalipse), e dois dos companheiros de Paulo - Silvano (ITs 1.1; 2Ts 1.1; 2Co 1.19) e Marcos (Fm 24; Cl 4.10; 2Tm 4.11) — são asso ciados a ele. Pelo fato de adotar o formato das cartas pau hnas e de se referir aos companheiros de Paulo, alguns intérpretes inferem que o autor de IPedro deseja apresentar Pedro como amigo ou colabora dor de Paulo (compare-se a referência ao “nosso amado irmão Paulo”, em 2Pe 3.15). A tendência de concluir que o autor que o texto faz supor é paulinista é em si mesma de pouca relevância, embora não seja nem mesmo possível comprovar a teoria. Mas, quando os intérpretes são levados a avahar a carta com base nos escritos de Paulo, a teoria deixa de ser justa com IPedro, pois o resul tado é que a carta não tem os grandes temas pau hnos da justificação pela fé e da vida no Espírito (v. E s p í r it o S a n t o ) o u então se apresenta um tanto em descompasso com qualquer vertente oriunda do paulinismo. Em vez disso, deve se ler IPedro como uma carta que não depende das cartas de
Paulo e dá um testemunho autônomo e importan te da fé e da vida cristãs. Não só nas passagens em que faz referência a si mesmo, mas por toda a carta, o autor demonstra modéstia ao se identificar como “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo”. Jesus chamou Simão Pedro de “pedra” (ou “rocha”, Mt 16.18), mas em IPedro a “pedra viva” é o próprio Jesus Cristo (IPe 2.4). Je sus também disse a Pedro: “Tu és para mim pedra de tropeço” (Mt 16.23, a r a ) . Em IPedro, porém, é Jesus Cristo a “pedra de tropeço e rocha que causa a queda” (IPe 2.8), não para o povo de Deus, mas para os incrédulos. A ironia é inegável. Jesus no meou Pedro pastor de seu rebanho (Jo 21.15-17), e, mais uma vez, o autor de IPedro atribui esse papel a Jesus, o “Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). “Pastoreai o rebanho de Deus que está entre vós” (IPe 5.2), diz ele aos anciãos, mas não atribui nenhuma importância especial a seu papel de pastor. Em vez disso, ele e os anciãos, juntos, aguardam que Cristo, “o Supremo Pastor” (IPe 5.4), a quem todas as ovelhas e pastores têm de prestar contas, seja revelado. Não se deve entender a afirmação de que o autor foi “testemunha dos sofrimentos de Cris to e participante da glória que será revelada” (IPe 5.1) como uma forma de ressahar que Pedro foi testemunha ocular da vida ou da m o r t e de Je sus na cruz (e.g., como em 2Pe 1.16-18). Estrita mente falando, Pedro não foi testemunha ocular dos sofrimentos de Jesus, porque, como outros discípulos, ele o abandonou no Getsêmani e não estava presente na hora da crucificação. Além do mais, o autor está enfatizando o que tem em co mum com os anciãos a quem se dirige na carta, não algo que ele tenha presenciado e os anciãos não testemunharam. O que Pedro está dizendo é que, á semelhança deles e dos profetas do passa do (IPe 1.11), ele dá testemunho do evangelho do sofrimento e da confirmação de Jesus enquanto aguarda a glória futura que há de se revelar. 1.2 Pedro como o verdadeiro autor. A tradi ção da igreja primitiva, ao mencionar a carta, é unânime em identificar Pedro como seu autor. Papias de Hierápolis, que em meados do século II escreveu na região que era mais ou menos a mesma para qual a carta foi enviada, aceita as afirmações, existentes na própria carta, de que ela procede de Pedro, foi escrita na “Babilônia”
1037
P e d r o , P r im e ir a C a r t a de
(que Papias interpretava como Roma) e transmi te saudações da parte de Marcos, a quem Pedro chama “meu filho” (IPe 5.13; v. E u s é b io , Hi ec, 2.15.2). Da mesma forma, perto do final do sé culo II, Ireneu, que morou na Ásia Menor e mais tarde na Gáha, cita IPedro como obra de Pedro ( I r e n e u , He, 4.9.2; 4.16.5; 5.7.2). 0 mesmo vale para Tertuliano, na romana África do Norte (Sc, 12), e Clemente de Alexandria, no Egho (e.g.. C l e m e n t e , Pd, 1.6; St, 3.12). Orígenes, também de Alexandria, aceita IPedro sem titubear, mas acei ta 2Pedro com reservas; “Pedro, contra quem o Hades não prevalecerá, deixou uma epístola reco nhecida e, talvez, uma segunda epístola, porque há diívidas a esse respeito” ( E u s é b io , Hi ec, 5.25.8; de acordo com Eusébio, essa citação foi tirada de um comentário de Orígenes aos romanos, obra que se perdeu). Os estudiosos da atualidade, ao contrário da igreja primitiva, não aceitam universalmente a afirmação, existente na própria carta, de que foi Pedro quem a escreveu. Pedro é o autor indica do, mas seria o autor de fato? Os que consideram IPedro uma obra pseudonímica (i.e., de alguém que em época posterior adotou o nome de Pe dro como recurso hterário) alegam que o estilo é demasiadamente refinado para Simão Pedro, o pescador galileu. Em Atos 4.13, logo depois de Pedro ter citado Salmos 118.22 (o mesmo texto que ele cita em IPe 2.7), ele e seu colega João são descritos como “homens simples e sem eru dição”. No entanto, IPedro contém alguns dos melhores textos gregos do n t . Outros, apontando para tradições sobre o martírio de Pedro (c. 64 d.C., durante a perseguição promovida por Nero), não acreditam ser possível que IPedro tenha sido escrita antes dessa data. 0 úhimo argumento é frágil, porque ninguém sabe quando ou como Pedro morreu. 0 teste munho de 2Pedro é que ele teve bastante tem po para planejar sua partida, e isso é compatível com a ideia de que o apóstolo teve morte natu ral (2Pe 1.12-15). Esse testemunho é importan te mesmo que Pedro não tenha escrito 2Pedro, pois reflete a crença cristã primitiva acerca de sua morte. O mesmo vale para a referência à sua mor te no Evangelho de João (Jo 21.18,19), que é mais um enigma sobre a juventude e a velhice que uma predição de martírio. Só algumas tradições
posteriores apresentam Pedro como mártir, como Orígenes, Tertuhano, Eusébio e, acima de tudo. Atos de Pedro e dos doze apóstolos 30—41. Mas IClemente 5.4, escrita em Roma perto do final do século II, é bem obscura a respeito. Quanto ao estilo da carta, vários estudiosos (S e l w y n ; K
elly;
D
a v id s ;
Marshall) atribuem a com
posição da carta a Silvano ( “ por intermédio de Silvano” , IP e
5.12),
mas a expressão é mais pro
vavelmente uma recomendação de Silvano como portador da carta — como no caso das cartas de
11.2), aos esmir12.1), aos romanos (In, Rm, 10.1) e a Policarpo (In, Po, 8.1), e na carta de Pohcarpo aos filipenses (Po, Fp, 14.1). Embora essa hipóte
Inácio aos filadelfenos (In, Fi, neus (In, Es,
se tenha se tornado popular entre alguns estudio sos como defesa da autoria petrina, o resultado é que Silvano, não Pedro, se torna o verdadeiro autor da carta, assim como Marcos, não Pedro, foi identificado como autor do Evangelho de Mar cos (v. Marcos, Evangelho
de,
1.2). Pelo menos um
defensor dessa hipótese aceita a possibilidade de que Pedro “ talvez nem mesmo tenha visto” a car ta, “ tendo passado [a Silvano] apenas instruções extremamente curtas”
(D
a v id s ,
p. 7).
A ideia de que Pedro ajudou na composição da carta não sustenta nem derruba a hipótese da autoria de Silvano. Se IPedro é, como parece ser, uma encíclica em nome da igreja de Roma (“Ba bilônia”) destinada a um amplo círculo de igre jas situadas nos hmites do Império Romano, em cinco províncias da Ásia Menor (“Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia”, IPe 1.2), então prova velmente o autor deve ter contado com a ajuda de escribas quanto ao vocabulário e ao estilo, e esses auxihares teriam permanecido anônimos. O ônus da prova ainda recai sobre os que rejeitam a ideia de que a carta procede do apóstolo Pedro. 1.3 Os leitores que a carta faz supor. A Pri meira Carta de Pedro revela não ter nenhum ou praticamente nenhum conhecimento das circuns tâncias de seus leitores, pois estão espalhados por uma área geográfica imensa e distante, e tudo o que podemos saber acerca desses leitores é pela maneira que o autor os visualiza. À semelhança dos leitores das cartas de Paulo, os leitores tácitos de IPedro são gentios que vieram a crer em Jesus. Eles não são mais escravos dos “desejos que (ti nham] em tempos passados na [sua] ignorância”
1038
P e d r o , P r im e ir a C a r t a de
(IPe 1.14), mas foram “resgatados da [sua] ma neira fútíl de viver, recebida por tradição dos [seus] pais” (IPe 1.18). Eles antes estavam entre gues a “libertinagem, prazeres, embriaguez, or gias, bebedeiras e idolatrias repulsivas” (IPe 4.3), mas por intermédio de Jesus Cristo chegaram à fé e à esperança no único Deus verdadeiro, o Deus de Israel (IPe 1.21). Eles agora têm a salva ção, mas não têm um passado nem uma noção de identidade. A carta lhes confere um passado judaico e uma identidade pratícamente judaica, quando afirma que certos títulos e privilégios outrora concedidos a Israel agora pertencem a eles também. Eles são “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (IPe 2.9a; cf. Êx 19.6; Is 43.20,21). Assim como no Israel antigo, esses privilé gios trazem consigo responsabihdades análogas. À semelhança dos judeus, esses cristãos gentios são uma diáspora, um povo escolhido que está disperso e vive como estrangeiro em um mundo hostil (IPe 1.1). É responsabilidade deles serem “santos em todo [o seu] procedimento” [anastrophe, IPe 1.15). Devem, por isso, anunciar “as grandezas daquele que [os] chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (IPe 2.9b). A socie dade em que vivem é hostil, mas as autoridades romanas são justas (IPe 2.13-17). A responsa bilidade dos cristãos é demonstrar respeito por todos, amar os irmãos, temer a Deus e respeitar o imperador (IPe 2.17). Isso não evitará que se jam acusados de fazer o mal (IPe 2.12; 3.15,16; 4.15,16), mas a esperança é que, quando forem acusados, seus acusadores “fiquem envergonha dos” (IPe 3.16) ou então, “ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação” {IPe 2.12). A situação vivida pelos leitores não é específi ca nem restrita a uma área geográfica, mas resul ta da generalização, pelo autor, da situação dos cristãos na sociedade romana na época em que a carta foi escrita. Na mente do autor, seus leitores representam todos os cristãos de todos os lugares. Por esse motivo, é apropriada a classificação de IPedro como uma das Cartas Católicas ou Gerais. 2. Integridade e estrutura literária
Nos últimos anos, têm sido gran demente rejeitadas as tentativas de questionar
2.1 Integridade.
a integridade hterária de IPedro. Ao contrário do que era comum uma geração anterior (e.g., C r o ss ) , hoje em dia são raros os argumentos a fa vor da ideia de que parte da carta (IPe 1.3—4.11) foi em sua origem um sermão batismal para novos convertidos ou mesmo uma hturgia batismal com pleta (v. a d o r a ç ã o ) . E a proposta de C . F. D. Moule de haver uma interrupção entre IPedro 4.11 e IPedro 4.12 também não tem recebido muito apoio em tempos recentes. 0 raciocínio de Moule é que a perseguição, uma possibihdade bem remota em IPedro 1.3—4.11, se torna um assunto premente em IPedro 4.12—5.11. Ou o autor recebeu repen tinamente a notícia de uma onda de perseguição, ou dehberadamente planejou duas cartas, uma para as congregações que enfrentavam pressões sociais, mas não perseguição ostensiva (IPe 1.1— 4.11; 5.12-14), e outra, mais curta e urgente, para as congregações que já estavam sofrendo com o “fogo” (IPe 1.1—2.10; 4.12—5.14). Contudo, tais ideias não passam de especulação e carecem do apoio de manuscritos antigos. 2.2 Estrutura literária. Percebe-se uma rup tura estrutural entre IPedro 4.11 e IPedro 4.12, embora isso não comprometa a integridade da carta. A ruptura é assinalada pela forma direta de se dirigir aos leitores — “Amados” — em 1Pe dro 4.12. Esse mesmo recurso assinala uma rup tura semelhante em IPedro 2.11. Os dois apelos dividem a carta em três partes principais seguidas de um pós-escrito; IPedro 1.1—2.10; 2.11—4.11; 4.12—5.11. A primeira parte gira em torno da identidade tácha dos leitores como povo de Deus, a qual se ba seia em seu renascimento espiritual (IPe 1.3,22,23; 2.2,3) e na conseqüente esperança de salvação (IPe 1.5,9,10; 2.3). Em IPedro 1.1,2, o autor anun cia programaticamente a identidade que eles têm e a confirma em IPedro 2.9,10, como que emoldu rando toda a seção. Dentro dessa estrutura, ele con ta o que Deus fez e fará (IPe 1.3-12,18-21; 2.4-8), lembrando-os da responsabilidade que têm de viver com esperança, na condição de povo santo (IPe 1.13-16), com reverente temor diante do Deus que os salvou a um preço infinito (IPe 1.17-19), com amor uns pelos outros e com um desejo por Deus (IPe 1.22; 2.1-3). A segunda seção é um apelo aos leitores (IPe 2.11), concentrando-se na responsabihdade
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que eles têm de demonstrar reverência para com Deus, amor uns pelos outros e honra e respei to para com todos, a começar pelo imperador [IPe 2.13-17). Pedro exorta os cristãos a tratar de forma pacífica e respeitosa os que denunciam os cristãos por professar a fé e os acusam de praticar 0 mal (IPe 2.12; 3.16). Ele tem em mente o con flito social no ambiente das casas romanas, entre escravos cristãos que são propriedade de senho res não cristãos (IPe 2.18-25) e de esposas cristãs casadas com maridos incrédulos (IPe 3.1-6). O código de deveres domésticos que ele apresenta (cp. Cl 3.18—4.1; Ef 5.21—6.9) está mais direcio nado para o relacionamento entre cristãos e incré dulos, e na mesma casa, que entre cristãos, e está no âmago das exigências éticas da carta. Os cris tãos são aconselhados a fazer o bem, mesmo à custa de difamação e ameaças (IPe 3.8,9), seguin do 0 exemplo de Cristo (IPe 2.22,23), na certeza de que Deus os confirmará (IPe 3.16,17; 4.5,6), assim como confirmou Cristo na ressurreição e no retorno vitorioso para o céu (IPe 3.18-22). Pedro destaca, então, a responsabilidade dos cris tãos para com Deus e de uns para com os outros, incentivando-os ao amor mútuo, ao ministério e à hospitahdade no ambiente da comunidade dos fiéis, e conclui com uma doxologia (IPe 4.7-11). A terceira seção reitera os temas da segunda, dando especial atenção às congregações dirigidas por membros mais idosos, os anciãos. A forma em que Pedro se dirige às igrejas (“Amados”) deixa prever o que ele vai dizer em IPedro 5.1: “Suplico aos presbíteros que há entre vós...” (cf. IPe 2.11, “Amados, exorto-vos...”). O objetivo de Pedro é aprofundar-se nas admoestações inicia das em IPedro 4.7-11, expondo com mais deta lhes as responsabihdades mútuas dos membros mais jovens e mais idosos (i.e., presbíteros) das congregações, pelo menos nas congregações em que havia tal distinção. Mas ele faz uma digres são (IPe 4.12-19), a fim de ressaltar mais uma vez e com maior insistência, à luz de sua convic ção de que “já está próximo o fim de todas as coi sas” (IPe 4.7), os temas da seção anterior. Pedro vê um “fogo” (IPe 4.12) irrompendo e o juízo di vino começando “pela casa de Deus” (IPe 4.17). Acompanhando Ezequiel, ele interpreta que o sentído disso é que o juízo começa pelos anciãos (cf. Ez 9.6). Por isso. em relação à crise que se
aproxima (IPe 5.6-9), ele começa com os anciãos e suas responsabihdades (IPe 5.1-4) e então pas sa para os mais jovens e, desse modo, a todos os membros das congregações (IPe 5.5). De novo, ele conclui com uma doxologia (IPe 5.10,11). Retoricamente, a melhor classificação para IPedro é a de um discurso de persuasão. Em seu pós-escrito (IPe 5.12-14), Pedro parece fazer da carta uma combinação de apelo e testemunho (parakalõon kai epimartyrõn, IPe 5.12), mas não se devem separar os dois termos. Aqui o testemu nho de Pedro não é tanto o anúncio salvífico por trás de seu apelo (e.g., em IPe 1.3-12) quanto a conclusão do apelo em si, o que é mais provável. Essas palavras são a solene certeza da parte de Pedro de que a carta que acabou de escrever é “a verdadeira graça de Deus” (IPe 5.12). A carta é a demonstração do princípio de que os cristãos de vem usar os dons espirituais para servir uns aos outros: “Servi uns aos outros conforme o dom que cada um recebeu, como bons administrado res da multiforme graça de Deus” (IPe 4.10). 3. Antecedentes históricos e sociais
Há duzentos anos, os estudiosos da Bíblia procu ram identificar a exata situação histórica em que ou para a qual cada livro da Bíblia foi escrito. Nas últimas duas décadas, tem se dado igual ou maior atenção à situação social ou à sociedade dos escritos bíblicos. No nível mais simples, a diferença entre as duas empreitadas é que a investigação histórica examina o que é exclusivo, datável e histórica e geograficamente determinado quanto ao ambien te vivencial [Sitz im Leben] dessas obras antígas, ao passo que a teoria sociocientífica procura fato res que não são únicos, mas que apresentem pa ralelos bem próximos com outras épocas, lugares e culturas — às vezes, bem diferentes. No passa do, 0 estudo sociocientífico era reahzado como parte do campo mais amplo da história, mas a tendência recente tem sido separar os dois, espe cialmente quando a investigação histórica por si mesma se revela inconclusiva. No caso de IPe dro, as duas disciplinas estão relacionadas, mas não são totalmente permutáveis. 3.1 Antecedentes históricos. Tornou-se lugarcomum definir o ambiente vivencial de IPedro como de sofrimento ou perseguição. Em razão
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disso, a tendência tem sido situar a carta em um período de alguma perseguição conhecida no Império Romano, seja a de Nero (c. 64 d.C.), pressupondo-se que Pedro seja o verdadeiro au tor da carta ( S e l w y n ) , seja a de Trajano (início do séc. ii), na pressuposição de que a carta é pseu donímica ( B e a r e ) . Uma terceira opção, a de que foi escrita na época de Domiciano (entre 81 e 96 d.C.), é menos comum, possivelmente porque são fracos os indícios de ter havido perseguição nesse periodo. Mas será que a carta pressupõe uma situação de perseguição ostensiva? A atitu de de Pedro para com o Império Romano parece semelhante à de Paulo: “Sujeitai-vos a toda auto ridade humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como por ele enviados para punir os praticantes do mal e honrar os que fazem o bem” (IPe 2.13,14). Além disso, ele é mais claro e mais explícho que Paulo, que foi vago a respeito das “autoridades superio res” (Rm 13.1, a r a ] o u “autoridades do governo”. É dificil imaginar Paulo ou Pedro escrevendo tais palavras em uma época de perseguição sistemá tica aos cristãos. Contudo, Pedro menciona, sim, “várias prova ções”, ou testes de fé, relacionando-as ao fato de o cristão ser “provado pelo fogo” (IPe 1.6,7) ou com a “provação que como fogo vos sobrevêm” (IPe 4.12). Pelo menos parte da retórica petrina contempla a perseguição e o martírio. Para os cristãos. Cristo é o exemplo supremo, exatamen te por ser um mártir confirmado, aquele que foi “morto na carne, mas vivificado pelo Espirito” (IPe 3.18; cf. 2.21-24; 4.1,2). Sem dúvida, Pedro estava ciente de que ele próprio e seus leitores corriam perigo, mas não da parte do imperador nem dos governadores das províncias, que haviam sido constituídos por Deus “para punir os praticantes do mal e hon rar os que fazem o bem” (IPe 2.14). A ameaça que ele percebia era da parte de concidadãos em Roma (e, como Pedro pressupunha, nas provín cias) que não partilhavam a fé tácita dos leitores e por isso rejeitavam a adoração peculiar e o estilo de vida dos cristãos. Por isso, Pedro deseja que, “fazendo o bem, caleis a ignorância dos insen satos” (IPe 2.15). A perseguição que ele tem em mente é do tipo que não é executada com espada nem com fogo, mas com palavras — zombaria.
difamaçao e às vezes acusações formais de cri mes contra a sociedade (v. IPe 2.12; 3.13-17; 4.14-16). É dificil situar tal perseguição na história, cro nológica ou geograficamente. Ela pode ter ocor rido em qualquer momento e local do mundo medherrâneo do final do século i e início do n. 0 fato incômodo é que não sabemos praticamen te nada dos antecedentes históricos de IPedro. É possível que, quando Pedro diz que “chegou a hora de começar o julgamento pela casa de Deus” (IPe 4.17), ele tenha em mente a destruição de Jerusalém e do templo, em 70 d.C., pelos roma nos (“Babilônia”, IPe 5.13) e entenda que esse acontecimento signifique perigo para todos os que adoram ao Deus de Israel, cristãos e judeus. Mas não existe nenhuma prova disso. Sem pontos de referência mais claros, não é possível recorrer à história para iluminar o texto de IPedro. 3.2 Antecedentes sociais. A partir da década de 1970, os estudos sobre IPedro (e.g., C o p p e l t , E l l i o t t ; B a l c h ) têm se concentrado mais nos an tecedentes sociais que históricos. Qualquer que seja o exato ambiente histórico, a carta menciona uma situação em que os leitores são vistos como estrangeiros no Império Romano. Pedro escreve em uma comunidade cristã localizada na “Babi lônia” (IPe 5.13), que na tradição judaica é um local de exílio e alienação, escrevendo a cristãos que se encontram em situação semelhante, na Dispersão (ou Diáspora, IPe 1.1), espalhados como estrangeiros pelas províncias do Império Romano. Tanto para o autor quanto para os lei tores, diferenças marcantes distinguem os valores que eles adotaram dos valores das sociedades em que estão inseridos. As obras de J. H. EUiott e D. Balch revelaram em IPedro uma tensão entre a “aculturação” (i.e., quando possível, uma conformação aos valores prevalecentes na sociedade) e a “preservação de hmites” (i.e., a salvaguarda das características cristãs em uma sociedade hostíl). No dizer de um estudioso, a carta tem ao mesmo tempo dois obje tivos: “1) a coesão social dos grupos cristãos e 2) a adaptação social dos grupos cristãos a seu am biente cultural. Sem a primeira, a identidade cristã teria se perdido. Sem a segunda, os cristãos não teriam sido aceitos, o que também é necessário à sobrevivência e à evangehzação” ( T a l b e r t , p. 148).
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Os cristãos tinham, sim, alguns valores em co mum com a cuhura do mundo mediterrâneo, em especial as realidades sociais de contraste entre honra e vergonha. Pratícamente todos os estudos recentes do mundo social do n t tratam de alguma forma da questão da honra e da vergonha, e em nenhum outro livro do n t o contraste é mais acen tuado que em IPedro. Tanto para os destinatários da carta quanto para os inimigos deles na socie dade romana, a honra era uma virtude desejável, talvez o objetivo supremo da vida, ao passo que a vergonha era algo que se devia evitar a qual quer custo. A diferença radical entre os cristãos e seus contemporâneos residia no que se julgava ser honra e no que era considerado vergonha. Para os romanos, a honra envolvia o louvor e a estima dos concidadãos, geralmente com algum tipo de reconhecimento público por coisas boas que haviam feito em casa ou a favor da comu nidade. Atos individuais de honra traziam honra para a família, o Estado, o imperador e os deuses. A vergonha era resultado de comportamento antíssocial e tendia a minar ou desacredhar aquelas instituições e, consequentemente, aos olhos da comunidade, trazer ignomínia aos culpados de tal comportamento. De acordo com IPedro, honra e vergonha não são determinados pela opinião púbhca, pelo imperador ou pelos deuses romanos, mas unica mente pelo Deus de Israel, que é o Pai daqueles que creem em Jesus e o Juiz universal a quem todos terão de prestar contas (IPe 1.17; 4.5). Não são seus atos de serviço público, mas a lealdade a Deus e a perseverança fiel diante das “várias pro vações” que os cristãos trocarão por “louvor, gló ria e honra” por ocasião da futura “revelação de Jesus Cristo” (IPe 1.6,7). Jesus foi morto como o divino “cordeiro sem defeito e sem mancha”, mas Deus “o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória” (IPe 1.19,21). Fazendo uso da hnguagem bíblica (Is 28.16), Pedro compara Jesus a “uma pedra angular, eleita e preciosa”, existente em Sião, e anuncia que “quem nela crer não será, de modo algum, envergonhado” (IPe 2.6, ara ). A honra de jamais ser envergonhado pertence aos cristãos (IPe 2.7), ao passo que, para os incré dulos, Cristo se torna “pedra de tropeço e rocha que causa a queda” (IPe 2.8) — destino para o qual “foram destinados” (IPe 2.8). O dualismo de
tais textos é absoluto: os cristãos estão destinados para a honra, e os não cristãos, para a vergonha eterna. No entanto, há também uma sobreposição en tre os valores de Pedro e os da sociedade, pois às vezes ele se mostra propenso a mensurar honra e vergonha com base nas responsabihdades de alguém para com a famíha, a comunidade e o Es tado, bem como para com Deus e os irmãos na fé: “Honrai a todos. Amai os irmãos. Temei a Deus. Honrai o rei” (IPe 2.17). Pedro aconselha seus leitores a responder às calúnias de seus detratores com palavras bondo sas e uma boa conduta, "para que naquilo de que falam, mal de vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glori fiquem a Deus no dia da visitação” (IPe 2.12). Seu propósito não é minar o mundo social em que seus leitores vivem, mas conquistá-lo — ou pelo menos convencer as pessoas a que abando nem os valores do mundo e passem a honrar ao Deus cristão, recebendo, por sua vez, a honra que só Deus pode conceder. Pedro sabe que isso nem sempre acontecerá, e às vezes ele escreve como que suspehando de que talvez nunca acon teça. Todavia, qualquer que seja o resultado, os cristãos devem estar “sempre preparados para responder a todo o que vos pedir a razão da es perança que há em vós [...] [fazendo] isso com mansidão e temor, tendo boa consciência, para que os que caluniam o vosso bom procedimento em Cristo fiquem envergonhados naquilo [en hõ] de que falam mal de vós” (IPe 3.15,16). Para Pedro, as situações que ele vislumbra, ou seja, ocasiões em que os cristãos são acusados de ter praticado maldade ou de algum comportamen to antissocial, são o teste decisivo de honra ou de vergonha, respectivamente, quer para os próprios cristãos, quer para seus acusadores. “Nenhum de vós sofra como homicida, ladrão, praticante do mal, ou como quem se intromete em negócios alheios” (IPe 4.15,16), conclui Pedro, acrescen tando; “Mas, se padece como cristão, não se en vergonhe; antes, glorifique a Deus nesta parte” (neste versículo, deve se dar preferência à a r c ) . De acordo com Pedro, ser acusado de cometer atos criminosos, como às vezes ocorria com os cristãos, ou ser tachado de “intrometido” (aquele que se nomeou guardião da moral púbhca), como
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acontecia muitas vezes e ainda acontece, não é motivo de vergonlia. Só há vergonha quando tais acusações são procedentes. Em IPedro, a honra não é a recompensa de sofrer, como se isso fosse uma virtude em si, mas de sofrer por fazer o bem. Pedro não está encora jando a paranóia nem o masoquismo. O que ele está dizendo é: “Assegurem-se de que, quando vocês forem denunciados ou acusados, não seja por terem de fato agido com maldade ou por al gum comportamento antissocial, mas apenas por causa da fé cristã”. O ideal romano de honra e boa cidadania é eclipsado e relativizado, mas não negado. Os cristãos são uma contracuhura na so ciedade romana e têm os mesmos deveres que outros habitantes de Roma e das províncias para com a família e o Estado, desde que esses deveres não impliquem adoração aos deuses romanos. Na época em que escreveu a carta, o autor es tava confiante da conduta de seus leitores. Embo ra o martírio não seja descartado (IPe 4.6; 5.8,9), também não é um tema importante da carta. A Babilônia ainda é um lugar de exílio, não o trono de Satanás nem o do Anticristo, como no hvro de Apocahpse. A reahdade da vida no que podemos chamar “sociedade pluralista” torna ainda mais gritante o duahsmo de IPedro. Para os cristãos ocidentais do século xxi, esse breve tratado, es crito no ambiente de uma cuhura ainda não cris tã, se torna um relevante livro-texto sobre a vida cristã em uma cultura que não é mais cristã. 4. Contribuições teológicas ao cánon
O lugar de IPedro no cânon do n t é discreto, le vando-se em conta a proeminência de Pedro como a “pedra” sobre a qual a igreja seria construída (Mt 16.18,19) e como o pastor cuja responsabihda de era alimentar as ovelhas de Cristo (Jo 21.15-17). A razão disso pode ser a brevidade da carta ou o fato de que o n t contém apenas duas cartas que levam o nome de Pedro, ao passo que Paulo tem doze. Outro motivo pode ser que há muito tempo IPedro é associada a 2Pedro, cuja autenticidade tem sido posta em xeque desde o início, ou ainda que a atitude excessivamente modesta do autor ao se identíficar apenas como “Pedro” (v. 1.1 acima) tenha tido uma influência permanente na forma em que a carta foi lida. Qualquer que seja a razão, nos primeiros séculos, quando os cristãos
falavam do “apóstolo”, especialmente quando o assunto era cânon, quase sempre estavam se re ferindo a Paulo, não a Pedro. No entanto, Pedro oferece um equilíbrio maior que Paulo entre o ensino e o exemplo de Jesus, de um lado, e sua morte e ressurreição, de outro. Mais que em qualquer outra carta do NT, IPedro completa o testemunho dos quatro Evangelhos, especialmente Marcos, e até mesmo apresenta mais detalhadamente esse testemunho. Ele o faz de três maneiras. Primeira: dá ao lei tor um sentido para viver em um mundo em que Jesus não está presente ou ainda não é visível. Segunda: destaca o discipulado cristão como uma caminhada, seguindo as pegadas de Cristo até a cruz e daí até o céu. Terceira: a vitória sobre os “espíritos impuros”, iniciada no ministério de Je sus, prossegue, em IPedro, com a ressurreição e ascensão, dando aos discípulos a certeza de que serão confirmados contra seus opressores quando ele voltar e se tornar visível outra vez. 4.1 O Cristo escondido. A “viva esperança” dos cristãos (IPe 1.3) não é a “vinda” [parou sia] de Jesus, e sim sua “revelação” ou apoca lipse [apokalypsis-, v. IPe 1.7,13). Quando ele for revelado, a “salvação” (IPe 1.5,9) e a “glória” (IPe 4.13) também serão reveladas. Uma vez, Je sus apareceu no mundo ou se tornou visível, e tornará a fazê-lo [phanerõthentes, IPe 1.20; 5.4). Esses temas são apocalípticos por tratarem de um apocahpse (“revelação”) decisivo. A Primei ra Carta de Pedro, contudo, não é apocalíptica, como o hvro de Apocahpse. Jamais se intitula um “apocalipse”, como faz aquele hvro (Ap 1.1), nem afirma que Pedro, ã semelhança de Paulo (Cl 1.12), recebeu uma revelação direta da par te de Jesus Cristo (cp. 2Pe 1.16-18). A revelação ou apocahpse decisivo é futuro. A única outra revelação mencionada é uma espécie de não re velação aos antigos profetas, ou seja, suas pro fecias acerca de Cristo não eram endereçadas a eles mesmos nem à sua época, mas olhavam para um futuro distante, o qual, para Pedro e seus leitores, é o tempo presente (IPe 1.10-12). A Primeira Carta de Pedro não é tanto uma car ta apocalíptica: devemos classificá-la como uma carta pré-apocalíptica. Os cristãos não podem ver Jesus agora (IPe 1.8), mas estão no limiar de um grande apocahpse, em que o verão em toda a sua
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glória e abraçarão jubilosamente a salvação que A situação dos leitores é semelhante à de Pe dro e dos primeiros discípulos de Jesus. Em IPe ele lhes reservou. 4.2 O discipulado como jornada. Diante dis dro, a jornada de Jesus vai além da cruz e além so, alguém poderá concluir que a revelação de da Gahleia: ela termina no céu. Como deixa claro Jesus Cristo e da plena salvação é algo que os o capítulo seguinte, Jesus não apenas foi “morto cristãos simplesmente aguardam. A referência na carne” e “vivificado pelo Espírito” (IPe 3.18), de Pedro a “uma herança que não perece, não se mas também subiu “ao céu [...] e a ele sujeitacontamina nem se ahera, reservada nos céus para ram-se os anjos, as autoridades e os poderes” vós” (IPe 1.4) está aberta a uma interpretação as (IPe 3.22). Consequentemente a jornada dos sim. Mas não é o caso. A salvação não é algo que discípulos cristãos também tem como destino o chega a nós, e sim algo que está no “fim” de uma céu, à semelhança da peregrinação mencionada vida ativa de fidelidade (IPe 1.9) e na direção da na Carta aos Hebreus (e.g., Hb 11.10,16; 12.22; qual crescemos (IPe 2.2). Jesus é visto não como 13.14) ou da jornada do Cristão, no hvro de John alguém que vem a nós, mas como aquele na di Bunyan, O peregrino. 0 alvo dos seguidores fi reção de quem estamos indo (IPe 2.4), primeiro éis de Jesus é nada menos que a “maravilhosa na conversão e em seguida em um processo que luz” de Deus (IPe 2.9), ou “sua eterna glória” dura a vida toda, pelo qual somos “edificados (IPe 5.10). como casa espiritual para [serj sacerdócio santo” 4.3 Vitória sobre os espíritos maus. De ou (IPe 2.5). A metáfora favorita de Paulo para esse tra perspectiva, IPedro desenvolve o testemunho processo é a de uma jornada, ou seja, seguir os de Marcos a respeito de Jesus, indo além do mi nistério de Jesus na terra e chegando à época e “passos” de Jesus (IPe 2.21). Essa é a metáfora dos autores dos Evangelhos, às circunstâncias de seus leitores. 0 Evangelho de Marcos dedica atenção especial aos aconteci principalmente de Marcos (v. Mc 1.16-20; 8.34) e presumivelmente de Jesus. Na maioria das ve mentos em que Jesus expulsa “espíritos impuros” zes, Paulo prefere a noção não metafórica de fé de pessoas possessas por demônios (v. Mc 1.23(ou crença). Embora seja possível alegar de modo 28,32-34; 3.11,12; 5.1-20; 7.24-30; 9.14-29). Em plausível que Paulo entendia a fé como o equiva bora várias dessas histórias sejam repetidas em lente a seguir o exemplo que Jesus deixou de fide Mateus e Lucas, o exorcismo não tem lugar entre lidade, coube a IPedro unir a noção pauhna de fé os dons e ministérios que Paulo menciona em suas cartas e exerce um papel de menor impor e a ordem de Jesus, encontrada nos Evangelhos, de segui-lo na condição de discípulos. Qualquer tância nas narrativas da missão cristã em seus que seja o sentido de “fé” para Paulo, em IPedro primórdios (v. At 16.16-18; 19.11-16). ela inclui a fidelidade (v. IPe 1.5,7,9), e fidelida Só IPedro, além da ressurreição e da ascensão de significa seguir a Cristo em uma jornada até a de Jesus, desenvolve o tema da vitória sobre os cruz — e para além dela (IPe 2.21-25). espíritos malignos (IPe 3.18-22). A caminho do Em Marcos, já existe uma indicação de que céu, Jesus “pregou” aos espíritos, aqui classifi a jornada vai além da cruz, pois, se fosse ape cados como espíritos “rebeldes” e vistos como nas até a cruz, a jornada seria um fracasso, pois resuhado de uma união não natural entre mulhe os discípulos abandonaram Jesus quando ele res e anjos maus (Gn 6.1-6; v. lEn, 15.8-10; v. foi preso (Mc 14.50). Entretanto, ao prever que tb. D alto n ; M ichaels, 1988). Com isso, ele obteve eles o abandonariam (Mc 14.27), Jesus acrescen para seus seguidores a vitória sobre esses espíri tos. A imphcação estabelecida em IPedro não é tou: “Todavia, depois da minha ressurreição irei de que quem passou pela água (como Noé) — a adiante de vós [i.e., como pastor, vos conduzirei] para a Gahleia” (Mc 14.28). É irônico que tenha água salvadora do batismo (IPe 3.20) — agora sido Pedro o único a protestar: “Ainda que todos tem 0 poder de realizar exorcismos, mas que ele desertem, eu nunca desertarei” (Mc 14.29), e não tem nada a temer dos opressores humanos da sociedade romana, os quais (como os espíritos) parece que só Pedro alude ao episódio: “Vivíeis “desobedecem” a Deus (v. IPe 2.8; 3.1; 4.17). A como ovelhas desgarradas, mas agora retornastes mensagem triunfante de Pedro é que Jesus Cristo ao Pastor e Bispo da vossa alma” (IPe 2.25). 1i044
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reina nos céus sobre “os anjos, as autoridades e Peter. 2. ed. London: Macmillan, 1947. ■ Senior , os poderes” (IPe 3.22). D. 1 and 2 Peter Wilmington: Michael Glazier, 4.4 Conclusão. Esses e outros aspectos de IPe 1980. ( n t Message, 20.) ■ Estudos; B alch , D . Let dro não apenas justificam sua inclusão no cânon wives be submissive: the domestic code in 1 Peter. do NT, mas também mostram que sua importância Chico: Scholars, 1981. [sblm s, 26.) • C hester, A. & dentro do cânon tem sido subestimada. Apesar de M a rtin , R. P. The theology of the letters of James, sua associação com 2Pedro, em decorrência da Peter and Jude. Cambridge; Cambridge Universi atribuição a um único autor para ambas as cartas, ty Press, 1994. • Cross, F. L. 1 Peter: a paschal tudo o que ela tem em comum com 2Pedro é uma liturgy. London: Mowbray, 1954. • D a lto n , W. J. forte ênfase no juízo vindouro de Deus. Sua fun Christ’s proclamation to the spirits: a study of 1 ção mais importante no n t é servir de ponte entre Peter 3:18— 4:6. 2. ed. Rome: Pontifical Biblical os Evangelhos e as cartas de Paulo. Insthute, 1989. ■ E l l i o t t , J. H. 1 Peter: estrange Ao que parece, IPedro aponta para essa fun ment and community. Chicago: Franciscan He ção com sucintas referências a Silvano, que foi rald, 1979. ■ ____ . A home for the homeless: a companheiro de Paulo, e a “meu filho Marcos” sociological exegesis of 1 Peter, its situation and (IPe 5.12,13). Durante séculos. Marcos foi um strategy. Philadelphia: Fortress, 1981. ■ M a r t in , T. Evangelho posto em segundo plano, e, se Marcos W. Metaphor and composition in 1 Peter. Atlan registra as memórias de Pedro, de acordo com ta: Scholars, 1992. ( sblds, 131.) • M ichaels, J. R. a tradição de Papias (E u s é b io , Hi ec, 3.39.15), é Word biblical themes: 1 Peter. Dahas: Word, 1989. justo pensar que IPedro seja um texto que, por ■ M o u le , C. F. D. The nature and purpose of 1 assim dizer, faz parceria com Marcos; por isso, Peter, nts, v . 3, p. 1-11, 1956-1957. ■ S ch u tter, W. não é de admirar que essa breve carta também L. Hermeneutic and composition in 1 Peter T ü tenha sido negligenciada. A abundância de es bingen: Mohr Siebeck, 1989. (w u n t.) • T a lb e r t, C. tudos recentes talvez mostre que esse “enteado H., org. Perspectives on First Peter Macon: Mercer exegético” ( E l l i o t t ) do cânon esteja a caminho da University Press, 1986. [nabprss.) ■ V a n U n n ik , W. reabilitação que merece. C. The teaching of good works in 1 Peter, nts, v . Ver também P e d r o , S e g u n d a C a r t a d e . I, p. 92-110, 1954-1955. ■ W inter , B. W . Seek the d l n t d : H o u s e h o l d C o d e s ; O l d T e s t a m e n t in Ge welfare of the city: Christians as benefactors and n e r a l E p is t le s . citizens. Grand Rapids: Eerdmans, 1994. J. R. M ichaels B i b l i o g r a f i a . Comentários: A chtemeier, P. J. 1 Pe ter. Minneapohs: Fortress, 1996. [Herm.) ■ Bea
P
re,
A Segunda Carta de Pedro apresenta-se como testamento ou discurso de despedida do apóstolo Pedro, escrito na forma de carta pouco antes de sua morte (2Pe 1.14). Seu objetivo é lembrar os leitores sobre o ensino de Pedro e defender esse ensino contra objeções feitas por falsos profetas que estavam semeando dúvidas quanto à expec tativa cristã da parusia e defendendo uma liber tinagem ética. 1. Estrutura e gênero hterários 2. Atribuição a Pedro e data 3. Oponentes e resposta 4. Caráter teológico
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edro,
Segunda Car ta
de
1. Estrutura e gênero literários
É possível esboçar a estrutura de 2Pedro da se guinte maneira.
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P e d r o , S e g u n d a C a r t a de
(A = apologética; C = carta; E = exortação/de núncia; T = testamento) (C*) Indicação dos destinatários e saudações (2Pe 2.1,2) (T‘) Tema: Resumo da mensagem de Pedro (2Pe 1.3-11) (T^) Ocasião: Testamento de Pedro (2Pe 1.12-16) (A‘) Primeira seção apologética (2Pe 1.16-21) Duas respostas à objeção 1: que os apósto los basearam em mitos feitos pelo homem sua pregação da parusia (2Pe 1.16-19) Resposta à objeção 2: que as profecias do AT foram produto de mentes humanas (2Pe 1.20,21) (T^) A predição de falsos mestres feita por Pedro (2Pe2.1-3a) (A^) Segunda seção apologética (2Pe 2.3b-10a) Resposta à objeção 3: que o juízo divino nunca acontece (2Pe 2.3b-10a) (E‘) Denúncia contra os falsos mestres (2Pe2.10b-22) (T“) A predição de zombaria feita por Pedro (2Pe 3.1-4) (incluindo-se a objeção 4: 2Pe 3.4) (A^) Terceira seção apologética (2Pe 3.5-10) Duas respostas ã objeção 4: que a expectati va da parusia se revela infundada em razão de sua demora (2Pe 3.5-10) (E^) Exortação a um viver santo (2Pe 3.11-16) (C^) Conclusão (2Pe 3.17,18) A Segunda Carta de Pedro é mesmo uma car ta, visto que tem a introdução formal desse gêne ro (2Pe 1.1,2); a conclusão (2Pe 3.17,18), embora não seja de natureza especificamente epistolar, pode servir de conclusão para a carta (v. c a r t a s , FORMAS DE CARTAs). Ademais, parece que 2Pedro é dirigida às mesmas igrejas a que IPedro foi diri gida (2Pe 3.1), ou pelo menos a algumas delas. Além de ser uma carta, 2Pedro pertence ao gê nero hterário de testamento, bem conhecido na hteratura judaica do período (e.g.. Te Ms; lEn, 91—104; 2Ap Br, 57—86; 4Ed 14.28-36). Nesses testamentos, um personagem do a t , como Moi sés ou Esdras, faz um discurso final a seu povo, normalmente incluindo exortações éticas e reve lações proféticas acerca do futuro. Em 2Pedro, há quatro passagens (T^-T“ no esboço acima [2Pe 1.3-11; 1.12-16; 2.1-3a; 3.1-4]) que de modo
particular se assemelham à hteratura testamentária judaica e identificam a obra de Pedro como testamento. Em 2Pedro 1.12-15, passagem repleta de hnguagem testamentária convencional, Pedro declara que o motivo de escrever é o fato de ele ter consciência de que a morte se aproxima e deseja fazer com que seu ensino seja lembrado depois que ele morrer. Um resumo do ensino é apresentado em 2Pedro 1.3-11, uma homilia em miniatura que segue um padrão usado em discur sos de despedida. A passagem desempenha um papel fundamental no hvro: o de resumo defini tivo da instrução ética e rehgiosa de Pedro. Tam bém há duas passagens proféticas (2Pe 2.1-3a; 3.1-4) em que Pedro antevê que depois de sua morte sua mensagem será questionada por falsos mestres. 0 restante de 2Pedro está estruturado em tor no de quatro passagens que pertencem ao gêne ro de testamento. Inclui três seções apologéticas (A'-A^ [2Pe 1.16-21; 2.3b-10a; 3.5-10]) que têm o objetivo de responder às objeções dos falsos mes tres ao ensino de Pedro. Existem quatro dessas objeções, mas apenas na última o texto afirma exphcitamente ser uma objeção (2Pe 3.4). Nos outros três casos, a objeção está implícita no fato de o autor rejeitar tais ideias (2Pe 1.16a,20; 2.3b). Essas seções apologéticas conferem a 2Pedro sua natureza polêmica de não ser apenas uma decla ração testamentária da mensagem de Pedro, mas também uma defesa dessa mensagem contra as objeções que lhe foram fehas. Duas passagens (E‘ e E^ [2Pe 2.10b-22; 3.11-16]) fazem contraste en tre 0 comportamento libertino dos falsos mestres, denunciado em 2Pedro 2.10b-22, e o viver santo esperado dos leitores, se forem fiéis ao ensino de Pedro (2Pe 3.11-16). 2. Atribuição a Pedro e data
O problema com a autoria de 2Pedro deve-se em parte à forma e ã estrutura da carta. Na htera tura judaica desse periodo, os testamentos eram pseudepigráficos e atribuídos a personagens veterotestamentários mortos havia muito tempo. Provavelmente, entendia-se que eram exercícios de imaginação histórica que punham na boca dos personagens o que se esperaria que dissessem em discursos de despedida. Isso leva ã pressuposi ção de que 2Pedro, de modo semelhante, é uma
1046
P edro , S e q u n d a C arta de
obra escrita por outra pessoa em nome de Pedro
convincentes para negar a autoria de Pedro são as
após a morte do apóstolo, embora seja possível
ideias e a linguagem religiosa helenísticas e as in
que o próprio Pedro tenha empregado o gênero
formações que permitem atribuir ã obra uma data
testamento e assim produzido um testamento
posterior à morte de Pedro, ocorrida em meados
autêntico.
da década de 60, no século i (v. abaixo). Embo
Deve-se, contudo, assinalar a natureza predití-
ra não mais se considere difícil acreditar que um
va do gênero testamentário usada em 2Pedro. Na
judeu da Palestina utilizasse ideias e hnguagem
carta, não há nada que reflita a situação em que,
rehgiosa helenísticas, mesmo assim o uso dessa
segundo a própria carta, Pedro está escrevendo.
terminologia é um aspecto notável em 2Pedro e
A obra é dirigida a uma situação após a morte de
mais facilmente atribuível a um cristão da diás
Pedro. As duas predições de Pedro acerca de fal
pora judaica ou de origem gentílica. Entretanto,
sos mestres (2Pe 2.1-3a; 3.1-4) constituem o mo
visto que Pedro pode ter empregado um colabo
tivo do debate apologético com os falsos mestres
rador para escrever a carta, esse argumento não
sobre a validade da mensagem de Pedro.
é decisivo. A data da carta provavelmente é mais
Além do mais, enquanto as passagens testa-
importante para a questão da autenticidade.
mentárias falam dos falsos mestres no tempo fu
Muitos consideram 2Pedro o último dos hvros
turo, predizendo seu surgimento após a morte de
do
Pedro (2Pe 2.1-3a; 3.1-4; cf. 3.17), as seções apo
11, talvez até mesmo por voha de 150 d.C. Mas
logéticas e a denúncia dos falsos mestres fazem
não há motivo para postular uma data tão tardia.
referência a eles no tempo presente (2Pe 2.3b-22;
0 indício mais claro de uma data pós-apostóhca
3.5-10,16b). É praticamente impossível ler 2Pe-
é 2Pedro 3.4. Esse texto revela que, no contexto
NT,
escrito em data bem avançada do século
dro sem pressupor que os falsos mestres eram
do problema surgido pela demora da parusia (v.
contemporâneos do autor, com os quais ele já
e s c a t o lo g ia ),
estava debatendo. Portanto, nas referências aos
chamada “ os pais” , havia morrido. Por isso, é
falsos mestres a melhor maneira de entender a
provável que a carta tenha sido escrita logo após,
alternância entre as seções preditivas e as que
talvez entre 80 e 90 d.C. Essa foi a época em que
são expressas no tempo presente (o que fica mais
se aguardou a parusia, enquanto a geração dos
óbvio em 2Pe 3.1-10,16b, 17) é vê-las como um
apóstolos ainda estava viva, tendo se deflagra
recurso estilístico, mediante o qual o autor indica
do o problema quando essa expectativa não se
que essas profecias apostólicas já estão se cum
realizou. Não há informação de que os cristãos
prindo. Ou seja, a autoria petrina é uma ficção
tenham continuado a se ressentir do problema no
que o autor verdadeiro não se sente obrigado a
século
sustentar ao longo de toda a obra. Nesse caso,
essa possibihdade.
II,
a primeira geração de cristãos, aqui
embora João 21 talvez deixe entrever
deve ser uma ficção transparente, convenção
A relação literária entre 2Pedro e Judas é outra
literária que o autor esperava que seus leitores
consideração que pode ser relevante para apurar a
reconhecessem como tal. (A ideia de que o autor
data de 2Pedro. Existem semelhanças tão marcan
inadvertidamente passa a falar no tempo presen
tes (esp. entre Jd 4-13,16-18 e 2Pe 2.1-18; 3.1-3)
te, esquecendo-se de que devia estar se referindo
que parece inegável algum tipo de relação literá
aos falsos mestres da perspectiva de Pedro no
ria. Alguns estudiosos acreditam que Judas de
passado, não é plausível, pois 2Pedro é uma obra
pende de 2Pedro ou que ambas dependem de uma
composta com cuidado, e nas referências aos fal
fonte comum, mas a conclusão da maioria é que
sos mestres a alternância entre os tempos verbais
2Pedro empregou Judas como fonte. Entretanto,
futuro e presente segue um padrão estrutural.)
uma data tardia para 2Pedro só será confirmada se
Essas considerações sobre o gênero hterário
a data da redação de Judas não for antiga.
talvez sejam, entre os estudiosos, os elementos
Se 2Pedro não foi escrita por Pedro, mas de
que mais contribuíram para o consenso de que
pois que ele morreu, por que o autor verdadeiro
2Pedro é uma obra pseudepigráfica. Só umas
publicou a obra como um testamento do após
poucas análises recentes da obra discordam des
tolo? Talvez seu objetívo tenha sido, no período
sa conclusão. Os argumentos adicionais mais
que se seguiu à morte dos apóstolos (2Pe 3.4),
1047
P edro , S e g u n d a C arta de
defender a mensagem apostólica contra os mes
o conceito da parusia (2Pe 1.16a) e negavam
tres que procuravam desacreditar o ensino dos
a inspiração das profecias escatológicas do
apóstolos em aspectos importantes. Embora es
(2Pe 1.20,21a). Ou talvez recorressem ao ensino
at
ses mestres alegassem que estavam corrigindo o
paulino sobre a liberdade a fim de sustentar as
ensino dos apóstolos, o autor de 2Pedro o consi
ideias libertinas que propagavam, ou ainda talvez
dera normativo para a igreja pós-apostólica. Ao
considerassem que a expectativa de Paulo com
escrever em nome de Pedro, ele nâo reivindica
relação à parusia iminente desacreditava o pró
nenhuma autoridade pessoal, exceto a de fiel me
prio ensino do apóstolo. Em qualquer desses dois
diador da mensagem apostóhca, a qual ele de
sentidos, pode se afirmar que os adversários es
fende contra ataques. Por isso, a carta em forma
tão distorcendo o que Paulo escreveu (2Pe 3.16b).
de testamento apostólico está intimamente asso
Em 2Pedro, não há fundamento para supor
ciada a seu propósho apologético, a confirmação
que esses ensinos tivessem base gnóstica. Não
da autoridade normativa do ensino apostóhco. 0
existe, por exemplo, nenhuma indicação do dua
fato de o autor ter decidido escrever o testamento
hsmo que caracteriza e define o pensamento
de Pedro provavelmente estaria justificado se ele
gnóstico. É mais plausível entender as ideias dos
fosse um líder na igreja de Roma, que na geração
adversários como reflexo de atitudes populares
anterior tivera Pedro como um de seus líderes
pagãs e como o emprego de argumentos próprios
mais prestigiados.
de pagãos céticos, como as alegações dos epicu-
3. Oponentes e resposta
tes provavelmente tinham o objetivo de eliminar
reus — sobre escatologia e revelação. Os oponen Em geral, os falsos mestres a que a carta se opõe
do cristianismo elementos que lhes pareciam cau
têm sido identificados como gnósticos, mas essa
sar constrangimento naquele contexto cultural
identificação, conforme reconhecem estudos re
pagão: a escatologia cósmica, estranha à maior
centes, não é definitiva (v.
parte do pensamento helênico e especialmente
a d v e r s á r io s )
. Com base
na refutação apresentada pelo autor de 2Pedro, os
constrangedora após o aparente fracasso da es
únicos aspectos claros do ensino de tais mestres
perança da parusia, e o rigor ético, que contrasta
são 0 ceticismo escatológico e o libertinismo mo
va com as atitudes mais permissivas do contexto
ral. A parusia fora aguardada durante toda a vida
cultural dos adversários.
dos apóstolos, mas a primeira geração de cristãos
Em resposta a esse desafio, o autor de 2Pedro
havia morrido, e, do ponto de vista dos adversá
elabora uma defesa da expectativa apostólica de
rios, isso provava que a esperança cristã escatoló
juízo e de salvação por ocasião da parusia e da
gica inicial era equivocada (2Pe 3.4,9a). Mas não
motivação daí resultante para que se vivesse uma
haveria nenhum juízo escatológico (2Pe 2.3b),
vida justa. O resumo definitivo sobre o ensino
nenhuma intervenção divina para ehminar o mal
de Pedro (2Pe 1.3-11) ressalta a necessidade de
e estabelecer um mundo de justiça. Essa atitude
esforço moral para que se assegure a salvação es
parece estar baseada em uma negação racionalis
catológica. Essa declaração positiva é então sus
ta da intervenção divina na história (2Pe 3.4b),
tentada por argumentos apologéticos no restante
bem como no não cumprimento da profecia da
da carta.
parusia. Mas também era influenciada pelo liber
0 autor defende que a pregação da parusia
tinismo ético dos oponentes. Eles alegavam estar
pelos apóstolos se baseava solidamente no fato
libertando as pessoas do medo do juízo divino
de terem testemunhado a transfiguração de Je
e, consequentemente, da moral cristã convencio
sus, quando Deus o designou juiz e governante
nal (2Pe 2.19a). Evidentemente, eles se sentiam
escatológico (2Pe 1.16-18), e também nas profe
à vontade para se entregar à imoralidade sexual
cias divinamente inspiradas do
e eram indulgentes com a sensuahdade em geral
Os exemplos do
(2Pe2.2,10a,13,14,18).
acontece, sim, e prefiguram o juízo escatológico
at
at
(2Pe 1.19-21).
provam que o juízo divino
Esse ensino envolvia uma crítica do ensino
(2Pe 2.3b-10a). Assim como Deus decretou a des
tradicional herdado dos apóstolos. Os adversários
truição do mundo antigo pelo Dilúvio, de igual
afirmavam que os apóstolos haviam inventado
modo decretou a destruição do mundo presente
II048
P edro , S e c u n d a C arta de
pelo fogo de seu juízo escatológico (2Pe 3.5-7,10).
e aspirações da cuhura pagã da época. Está en
O problema da demora da parusia é tratado com
volvido na tarefa de traduzir o evangelho de
argumentos tradicionais extraídos da tradição ju
modo inteligível a um novo ambiente cultural.
daica: que a demora é longa apenas pelos padrões
Mas essa é uma tarefa delicada, e todo cuidado
humanos, não pela perspectiva da eternidade de
é necessário, para que não se perca o autêntico
Deus, e deve ser vista como um ato gracioso divi
conteúdo cristão do evangelho. No entender do
no, que retém o juízo a fim de que os pecadores se
autor de 2Pedro, isso é o que estava acontecendo
Tais argumen
na versão do cristianismo apresentada por seus
tos permitem que o autor, numa época em que a
adversários. Na tentativa de adaptar o cristianis
arrependam (2Pe 3.8,9; v.
p e c a d o ).
esperança da parusia se havia tornado problemá
mo à cultura helenística, os adversários estavam
tica, não a deixe desvanecer por adiá-la indefini
fazendo concessões em aspectos essenciais da
damente, mas reafirme com vigor a esperança e a
mensagem apostólica, defendendo nada mais
relevância cristãs tradicionais. Por toda a carta, o
que um ceticismo pagão para com a escatologia e
autor mostra-se interessado em que a esperança
acolhendo a permissividade moral.
para a confirmação e o estabelecimento da justiça
Por isso, a fim de defender o evangelho con
de Deus no futuro (2Pe 2.9; 3.7,13) motive os cris
tra a helenização excessiva, o autor recorre a
tãos a buscar essa justiça (2Pe 3.11,14).
determinadas fontes, como a Carta de Judas, e a ideias próximas do enfoque escatológico dos
4. Caráter teológico
primórdios do cristianismo judaico. No seu en
0 caráter teológico que caracteriza 2Pedro é visto
tender, para que o cristíanismo helenizado não se
em sua notável combinação de hnguagem rehgio
torne um cristianismo paganizado, a escatologia
sa helenística com ideias e imagens escatológi
cósmica — a esperança do triunfo da justiça de
cas judaicas. Por exemplo, o autor, por um lado,
Deus na totalidade de sua criação — precisa ser
apresenta um resumo do ensino petrino em uma
reafirmada, com a moüvação ética que tal reafir
passagem que, em sua terminologia rehgiosa e
mação proporciona. Desse modo, 2Pedro mantém
ética, talvez seja a mais tipicamente helenística
um equilíbrio entre a helenização da mensagem
de todo 0 NT (2Pe 1.3-11), como se percebe pelos
do evangelho e, em nome da escatologia cósmi
termos éticos emprestados da filosofia moral he
ca, um protesto contra uma helenização extrema,
lenística (2Pe 1.5-7) e pela promessa de escapar
que dissolveria o conteúdo cristão real da men
à corrupção e compartilhar da natureza divina. A
sagem do evangelho. É uma testemunha vahosa
terminologia helenística é cuidadosamente situa
da difícil transição pela qual a igreja passou, ou
da em um contexto que lhe confere um significa
seja, de um contexto judaico (ainda que heleniza
do cristão (e.g., o primeiro e o último elementos
do) para um ambiente helenístico predominante
— “fé” e “amor” — das virtudes mencionadas
mente não judaico e da era apostóhca para a fase
em 2Pe 1.5-7 dão a essa lista um caráter cristão).
pós-apostólica.
Mesmo assim, parece uma tentativa notável e de
Pode se afirmar que esse modo de entender
liberada de estabelecer contato com o ambiente
0 caráter teológico de 2Pedro faz mais justiça
rehgioso helenístico. Por outro lado, 2Pedro re
ao conteúdo do hvro que a tendência, vista em
produz com exatidão e maestria os concehos e
estudos mais antigos, de classificar 2Pedro na
imagens da escatologia cósmica judaica, especial
categoria de catolicismo primitivo, classificação
mente em 2Pedro 3.3-13, os quais talvez estejam
que em geral reflete a intenção de denegrir o li
diretamente baseados em um apocalipse judaico.
vro, apresentando-o como inferior aos textos teo
É possível exphcar essa combinação de dois
lógicos que serviam de padrão no cristianismo
estilos teológicos como a intenção do autor, que
anterior (que geralmente significa pauhno). Essa
é interpretar e defender a mensagem apostóhca
classificação de 2Pedro exige que se lhe atribu
em um período pós-apostólico e em um ambiente
am aspectos do chamado “catolicismo primitivo”
cultural pagão. Quando ele declara positivamen
não encontrados no texto, como a instítuciona-
te a mensagem cristã (2Pe 1.3-11), ele o faz de
lização eclesiológica e a cristalização da fé em
tal maneira que estabelece contato com os ideais
fórmulas rígidas. Também deixa de exphcar ou
1049
Pr oblem a S inótico
d e r e c o n h e c e r a c o m b in a ç ã o d e h b e ra d a e c ria tiv a
p ovo da t e r r a .
Ver p ec a d ores.
q u e 2 P e d ro fa z d a e s c a to lo g ia ju d a ic a c o m a te r m in o lo g ia r e h g io s a h e le n ís tic a .
Ver também
a d v e r s á r io s ;
PRIMÍCL4S. e s c a to lo g ia ;
C a r t a d e ; P e d r o , P r im e ir a C a r t a de. dlntd:
Ver ESCATOLOGIA
p r in c ip a d o s e p o t e s t a d e s .
PRIORIDADE DE M a r c o s .
Comentários;
■
W a c o : W o rd , 1 9 8 3 . (w bc.]
H o r r e ll, D.
V a lley F orge: Trin i
ty Press In tern a tion a l, 1 9 9 8 . (bc.) ■ K e lly ,
The epistles of Peter and Jude. R o w , 1 9 6 9 . (bntc.) • M ayor,
M a c m illa n , 1 9 0 7 . ■ M o o , D.
J.
■ Estudos: research,
A. &
P
roblem a
Ao ler os quatro Evangelhos, fica óbvio que três deles são semelhantes e um é diferente. Um rá pido exame de qualquer sinopse dos Evangelhos
The Epistle o f St.
mostrará que Mateus, Marcos e Lucas têm em co
J.
B.
London:
J. 2 Peter, Jude.
G rand
J.
mum inúmeras e notáveis semelhanças. Proble ma Sinótico é 0 nome dado à tarefa de exphcar por que os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lu
G a rd en C ity: D o u b le d a y, 1 9 9 3 . (ab.)
cas são tão parecidos. Por que se parecem tanto
Bauckham, R.
J.
P eter: an a cco u n t o f
2
a n r w , ii. 2 5 . 5 ,
p. 3 7 1 3 - 5 2 , 1 9 8 8 . • Ches
M a rtin , R. P.
The theology o f the letters
no conteúdo, na fraseologia e na ordem dos acon tecimentos neles registrados? 1. A semelhança dos Evangelhos Sinótícos
C a m b rid g e: C a m b rid g e
U n iv e rs ity Press, 1 9 9 4 . ■ F ornberg, T.
church in a pluralistic society.
2. A existência de um vínculo literário
An early
3. Várias explicações literárias
L u n d : G leeru p , 1 9 7 7 . 4.
■ H arvey,
A. E.
Peter. In : Dawes, P. R.
te to Geza Vermes:
T h e testa m en t o f S im eo n
& W h i t e , R. T.,
orgs.
[jsaisup,
1 0 0 .)
6. Problemas com a Hipótese das Duas
essays o n J ew ish an d C hristian
E.
• K asem an n ,
Fontes 7.
A n a p o lo g ia fo r
1 6 9 -9 5 .
scm , 1 9 6 4 ,
p.
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Tübingen: Mohr Siebeck,
D. F. Invention, arrangement and style: rhetorical criticism of Jude and 1988.
(s b ld s ,
1 0 4 .)
2
Peter. Atianta: Scholars,
■ W o lte r s ,
A. “Partners of the
deity” : a covenantal reading of 25,
p.
1. A semelhança dos Evangelhos Sinóticos 1.1
[ w u n t .) • W a t s o n ,
1986.
2
Peter
1 :4 . c t j , v .
A importância da solução do Problema Sinótico
primitive Christian eschatology. In :______ . Essays on New Testament themes. London:
A Hipótese de Griesbach
5. A Hipótese das Duas Fontes
A tribu
literatu re a n d history. S h e ffield : j s o t , 1 9 9 0 , p. 3 3 9 54.
S in ó t ic o
H.
o f James, Peter and Jude.
[ConNT.)
Semelhança na fraseologia. É fácil per
ceber a semelhança na fraseologia quando se comparam vários textos paralelos encontrados nos Sinóticos. A melhor maneira de fazê-lo é por meio de uma sinopse. Estas são algumas passa gens úteis para comparação:
2 8 -4 4 , 1990.
R. j . B a u c k h a m
p e r g a m in h o s d o m a r M o r t o .
Ver
m a n u s c r it o s d o m a r
Ver
m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o .
P l a t A o , p l a t o n is m o .
p ob reza.
Mateus
1 9 .1 3 - 1 5
Marcos
1 0 .1 3 - 1 6
Lucas
M o rto .
P ésh er.
S in ó tic o .
N e w York: H a rp er &
R apid s: Z o n d e r v a n , 1 9 9 7 . [ nivac .) ■ N eyrey,
Peter, Jude.
Ver P r o b l e m a
N . D.
Jude and the Second Epistle of St. Peter
te r ,
C a r ta aos.
J. Jude,
Bauckham, R .
The epistles o f Peter and Jude.
2
Ver E f é s io s ,
E a r l y C a t h o lic is m ; P a r o u s ia ; P s e u d e p ig ra p h y .
B ib u o g r a fia .
2 Peter.
II.
Ju das,
Ver
Ver r iq u e z a s
PÔNCIO P i l a t o s .
e p ob reza.
Ver J esu s,
Mateus
2 2 .2 3 -3 3
Marcos
1 2 .1 8 -2 7
Lucas
filo s o fia ,
1050
2 0 .2 7 -4 0
Mateus
2 4 .4 -8
Marcos
1 3 .5 - 8
Lucas
ju lg a m e n to d e.
1 8 .1 5 -1 7
2 1 .8 -1 1
Pr oblem a S inótico
1.2 Semelhança na ordem. É possível encon
negar que os Evangelhos Sinóticos oferecem um
trar outra área de semelhanças quando se com
relato preciso do que Jesus fez e disse, é preciso
para a sequência dos vários relatos {perícopes].
lembrar que às vezes encontramos uma sequên
Observem-se:
cia diferente de acontecimentos, bem como uma fraseologia diferente. Nesses casos, teríamos de
Mateus 16.13—20.34
pressupor que tais palavras e acontecimentos
Marcos 8.27-10.52
não são históricos? Um episódio no ministério de
Lucas 9.18-51; 18.15-43
Jesus podia ser relatado de diferentes maneiras e associado a vários acontecimentos. Além do
Mateus 12.46-13.58
mais, uma declaração de Jesus na língua mater
Marcos 3.31—6.6a
na, que era o aramaico, podia ser traduzida em
Lucas 8.19-56
grego de diferentes maneiras.
1.3 Semelhança no material parentético.
satisfatório as semelhanças que encontramos nos
Também existe material parentético comum.
Evangelhos Sinóticos. É preciso procurar outra
Observem-se, por exemplo: “quem lê, entenda” ,
exphcação. Já em 1796, J. G. von Herder procu
em Mateus 24.15/Marcos 13.14; “ disse então
rou exphcar o Problema Sinótico ao defender uma
ao paralítico” , em Mateus 9.6/Marcos 2.10/Lu-
tradição oral comum usada por Mateus, Marcos e
cas 5.24; “pois Jesus lhe dissera” , em Marcos 5.8/
Lucas. Em 1818, J. K. L. Gieseler apresentou a
Lucas 8.29.
mesma exphcação, porém de maneira mais ela
As duas exphcações não elucidam de modo
1.4 Semelhança nas citações bíblicas. Às ve
borada. Segundo ele, os discípulos criaram essa
zes, encontramos a forma exata de uma citação
tradição oral, que logo adquiriu forma fixa. Al
do
gum tempo depois de ser traduzida para o grego,
AT.
Não seria de surpreender se essa forma
fosse idêntica ao
at
hebraico ou à tradução grega
do AT conhecida como Septuaginta
essa tradição comum foi usada pelos autores dos
Entre
Sinóticos. Por esse motivo, Mateus, Marcos e Lu
tanto, quando encontramos uma citação idênti
cas se parecem, pois todos seguem a mesma e
ca do
exata tradição oral.
AT,
mas que diverge tanto do
[l x x ] .
at
hebraico
grego, a semelhança exige alguma
É quase certo que houve um período durante
exphcação {cf. Mc 1.2 par. Mt 3.3 e Lc 3.4; Mc 7.7
o qual as tradições circularam oralmente. Se hou
par. Mt 15.9).
ve um período em que essas tradições eram todas
quanto do
at
orais, a duração desse período, o nível de influên 2. A existência de um vínculo literário
cias que elas exerceram sobre Mateus, Marcos e
Já se procurou exphcar de várias maneiras as
Lucas e outras questões ainda não foram e talvez
semelhanças mencionadas acima. Uma delas é
nunca sejam solucionadas. Mas será que essa ex
justificar a semelhança como resultado da inspi
phcação consegue exphcar de maneira satisfatória
ração dos Evangelhos. Essa semelhança existiria
0 grau de semelhança percebido nos Evangelhos
pelo fato de o
ter orientado Mateus,
Sinóticos? Parece não ser esse o caso. Às vezes,
Marcos e Lucas. Mas essa exphcação não resolve
tem-se a impressão de que o grau de semelhança
o problema, pois os que a sugerem geralmente
exige algo mais que uma simples tradição oral.
acreditam que o Evangelho de João também foi
Mais importante ainda, a tradição oral não exph
inspirado. Apesar disso, João não se parece com
ca os comentários edhoriais semelhantes encon
os Sinóticos. Se os quatro Evangelhos foram es
trados nesses Evangelhos. Por que encontramos
critos sob a supervisão do Espírito Santo, não há
na exata posição uma palavra do autor a seu pú
como exphcar por que alguns Evangelhos se pa
blico: “quem lê, entenda” (Mt 24.15/Mc 13.14)?
recem e outro não.
Ainda mais difícil de exphcar é o fato de que os
E sp íR rro S a n t o
Outra tentativa de exphcar essa semelhança
Evangelhos Sinóticos concordam extensamente
envolve o argumento histórico. Mateus, Marcos
na sequência do material. Desse modo, embora
e Lucas se parecem porque são registros históri
não se queira minimizar a influência da tradição
cos precisos daquilo que Jesus fez e disse. Sem
oral sobre os autores dos Evangelhos, parece que
1051
P r oblem a S inótico
as semelhanças com que nos defrontamos apon
4. A Hipótese de Griesbach
tam para a existência de algum vínculo hterário.
Essa hipótese, que aventa a possibihdade de ter sido Mateus o primeiro Evangelho a ser escrito e
3. Várias explicações literárias
segundo a qual Lucas teria feito uso de Mateus, e
Se existe um vínculo literário entre os Evangelhos
Marcos de Mateus e Lucas, foi inicialmente pro
Sinóticos, então o tema a ser investigado na se
posta por H. Owen, em 1764. A hipótese rece
quência é a natureza desse vínculo. Uma exphca-
beu esse nome por ter sido defendida por J. J.
ção, aventada por F. Schleiermacher (1817), é que
Griesbach. Por meio das obras de W. R. Farmer,
os discípulos haviam tomado notas (memórias)
J. B. Orchard e H.-H. Stoldt, ela ressurgiu recen
das palavras e atos de Jesus. Por fim, essas notas
temente e recebeu considerável impulso. A popu
foram reunidas e organizadas por assunto. Com
laridade e a rejeição iniciais foram associadas ao
base nessas memórias assim reunidas, surgiram
surgimento e à derrocada da hipótese de Tübin-
os Evangelhos Sinóticos. É a chamada “hipóte
gen (i.e., Mateus como tese; Lucas como antítese;
se fragmentária” , mas ela nunca recebeu muito
Marcos como síntese). 0 ponto forte da Hipótese
apoio, pois, à semelhança da hipótese oral, não
de Griesbach é que ela parece exphcar vários as
consegue exphcar as extensas concordâncias na
pectos do Problema Sinótico.
sequência dos acontecimentos.
4.1 Os pontos fortes da Hipótese de Griesbach
4.1.1 Concorda com a tradição da igreja.
Outra teoria é a do chamado Evangelho Primi
A
tivo (ou Original). De acordo com G. E. Lessing
tradição da igreja antiga é unânime em afirmar
(1776) e J. G. Eichhorn (1796), houve um antigo
que Mateus foi o primeiro Evangelho a ser escrito
evangelho, escrito em aramaico, que foi traduzi
( I r e n e u ; E u s é b io ; A g o s t i n h o ) .
do para o grego e passou por várias revisões. As
dria declarou que os Evangelhos com genealogias
Clemente de Alexan
semelhanças que encontramos nos Evangelhos
foram escritos primeiro. Além disso, Agostinho
Sinóticos devem-se ao uso comum de uma tradu
diz que Marcos é o resumo de Mateus. Embora a
ção grega do Evangelho Primitivo. A exphcação
prioridade de Marcos fosse desconhecida na igre
para as diferenças é o fato de terem sido cotejadas
ja primitiva, a de Mateus era pressuposta. É claro
diferentes recensões em grego. O principal pro
que a Hipótese de Griesbach se adapta melhor a
blema com esse argumento é que, ã medida que
essa tradição primitiva sobre os Evangelhos Sinó
se procurava reconstruir o que se pareceria com
ticos do que a Hipótese das Duas Fontes. Também
esse Evangelho Primitivo, ele ficava mais e mais
se harmoniza melhor com a ordem dos Evange
parecido com um Marcos Primitivo. Este, por sua
lhos no cânon do
vez, passou a se parecer mais e mais com o Evan
n t.
4.1.2 Explica todas as concordâncias entre os Evangelhos. Ao comparar os vários pontos em
gelho canônico de Marcos. Uma exphcação mais provável é a existência
que a tríplice tradição concorda entre si (passa
de algum tipo de interdependência entre os pró
gens paralelas em Mateus, Marcos e Lucas), des
prios Sinóticos. As três exphcações mais comuns
cobrimos que Mateus e Marcos têm pontos em
em torno da interdependência são:
comum que diveigem de Lucas; que Marcos e
Mateus escreveu primeiro. Marcos fez uso de
Lucas têm pontos em comum que divergem de Mateus; que até mesmo Mateus e Lucas têm pon
Mateus e Lucas fez uso de Marcos (Agostinho). Mateus escreveu primeiro, Lucas fez uso de
tos em comum que divergem de Marcos. A Hi
Mateus e Marcos fez uso de Mateus e Lucas (J. J
pótese de Griesbach consegue exphcar esse fato
G r ie s b a c h ,
1783 e 1789; W. R.
F a rm er,
com bastante facilidade: os pontos que Mateus e
1964).
Marcos escreveu primeiro e Mateus e Lucas
Marcos têm em comum, mas divergem de Lucas,
fizeram uso de Marcos. Mateus e Lucas também
são aqueles em que Lucas se desvia de sua fon
fizeram uso de outra fonte comum conhecida como
te mateusina, porém Marcos não; os pontos que
Q (H .
J H o lt z m a n n , 1863; B.
H . S tre e te r,
1924).
Marcos e Lucas têm em comum, mas divergem de
Das três teorias, as mais prováveis são as duas
Mateus, são aqueles em que Lucas se desvia de
últimas: a Hipótese de Griesbach e a Hipótese das
sua fonte mateusina, e Marcos segue Lucas, não
Duas Fontes.
Mateus; os pontos que Mateus e Lucas têm em
1052
P roblem a S in ótico
comum, mas divergem de Marcos, são aqueles
serão analisados em profundidade (v. 5.1 e 5.2.1
em que Lucas segue Mateus, e Marcos se desvia
abaixo). Há vários outros pontos frágeis na Hipó
de ambas as fontes. Com referência a essa última
tese de Griesbach. 4.2.1 A Hipótese de Griesbach também conflita
questão, a Hipótese de Griesbach é convincente, ao passo que a Hipótese das Duas Fontes é frá
com a tradição da igreja.
gil. A primeira consegue exphcar facilmente os
ig re ja seja u n â n im e e m a fir m a r q u e M a teu s fo i
pontos que Mateus e Lucas têm em comum, mas
e s crito an tes d e M a r c o s e L u ca s, e la t a m b é m d iz
divergem de Marcos, ao passo que a segunda tem
q u e M a te u s fo i e s c rito e m a ra m a ic o (o u h e b r a i
dificuldade para justificar como Mateus e Lucas,
c o ). C o n tu d o , está c la ro q u e o E v a n g e lh o d e M a
trabalhando de forma independente, podem estar
teu s q u e te m o s h o je n ã o é u m a s im p le s tra d u çã o
de acordo entre si e divergir da fonte marcana, se
d o a ra m a ic o (o u h e b r a ic o ) pa ra o g r e g o . D es se
0
E m b o ra a tra d iç ã o da
eles não se conheciam, isto é, se um não fez uso
m odo,
do trabalho do outro.
e n c a ix a n o M a te u s g r e g o d o P r o b le m a S in ó tic o .
4.1.3
Explica as redundâncias de Marcos. Em P o rta n to ,
M a teu s d a tra d iç ã o e c le s iá s tic a n ã o se
se a tra d iç ã o a essa a ltu ra está in c o rre ta
Marcos, encontramos pelo menos 213 casos de
ou está fa la n d o d e u m p r e d e c e s s o r (o u fo n te ) d e
redundância, como Marcos 1.32 (“ Quando anoi
n o s s o M a te u s g r e g o , a tra d iç ã o e c le s iá s tic a será
teceu, depois que o sol se pôs”); Marcos 1.42
d e p o u c o v a lo r p a ra s o lu c io n a r o P r o b le m a S in ó
( “Imediatamente a lepra desapareceu, e ele ficou
tic o (v . M ateus, E van gelho d e ) .
purificado”); Marcos 4.21 ( “Será que a candeia
Outros aspectos da tradição eclesiástica tam
deve ser colocada debaixo da vasilha ou de-
bém criam problema para a Hipótese de Gries
babco da cama?”). A Hipótese de Griesbach dá
bach. Entre eles, podemos citar a declaração de
a entender que a melhor exphcação para essas
Papias, segundo a qual Marcos teve como fonte
redundâncias é que Marcos agiu da mesma for
principal as “memórias” de Pedro e escreveu seu
ma que os primeiros escribas e copistas do
nt
Evangelho sem recorrer a Mateus, e a teoria de
em relação a suas fontes. Quando encontravam
que Lucas foi escrito por último, manifesta em
duas variantes em suas fontes, eles tendiam a
Orígenes, nos prólogos antimarcionitas e em
harmonizá-las, incluindo a ambas. As redundân
Agostinho.
cias de Marcos, portanto, mostram que ele fundia
4.2.2 Algumas concordâncias dos Evangelhos
suas duas fontes quando deparava com variantes.
são mais bem explicadas pela prioridade de Mar
Desse modo, Mateus 8.16 (“Ao cair da tarde”) e
cos. Embora a Hipótese de Griesbach consiga
Lucas 4.40 (“Ao pôr do sol”) se tornam “Quando
explicar todas as concordâncias dos Evangelhos,
anoiteceu, depois que o sol se pôs” (Mc 1.32);
em vários casos não é convincente a exphcação
Mateus 5.14 (“ [Não] acendem [...] debaixo de
do motivo de dois Evangelhos terem pontos em
um cesto”) e Lucas 8.16 (“ Ninguém [...] a põe
comum ao mesmo tempo que divergem de ou
debaixo da cama”) se tornam “ Será que a candeia
tro, especialmente com respeito aos pontos que
deve ser colocada debaixo da vasilha ou debaixo
Mateus e Marcos têm em comum, mas divergem
da cama?” (Mc 4.21).
de Lucas, e aos pontos que Marcos e Lucas têm
Seria possível ainda mencionar outros da
em comum, mas divergem de Mateus. De modo
dos que apoiam a Hipótese de Griesbach, de forma
geral, a Hipótese de Griesbach consegue exphcar
que não haja necessidade de postular uma fonte
com facilidade os pontos de concordância, mas,
hipotética adicional como a fonte q.
quando tenta exphcar por que Marcos e Lucas
4.2
Problemas com a Hipótese de Griesbach. estão de acordo, mas divergem de Mateus, e Mar
Vários problemas encontrados na Hipótese de
cos e Mateus estão de acordo, mas divergem de
Griesbach têm levado muitos estudiosos a con
Lucas, ela se mostra bem pouco convincente (v.
siderar a Hipótese das Duas Fontes uma opção
5.1.6 abaixo). Geralmente, as tentativas baseadas
mais viável para exphcar o Problema Sinótico.
na Hipótese de Griesbach para exphcar o uso lu
Dentre esses problemas, dois deles, os argumen
cano de Mateus e o uso marcano de Mateus e/
tos a favor da prioridade de Marcos e a dificul
ou Lucas são menos convincentes que as explica
dade para afirmar que Lucas fez uso de Marcos,
ções apresentadas pela Hipótese das Duas Fontes
1053
KROBLEMA bINOTICO
sobre como Mateus e Lucas fizeram uso de Mar
a favor da Hipótese de Griesbach. Talvez sejam
cos. A maior parte das investigações no campo
mais bem exphcadas pela Hipótese das Duas Fon
da crítica da redação dos Evangelhos Sinóticos
tes (v. 5.1.2 abaixo).
tem se baseado na ideia de que Mateus e Lucas fizeram uso de Marcos. Os trabalhos em torno da
5. A Hipótese das Duas Fontes
crítica da redação com base na prioridade mateu
A exphcação que veio a dominar os estudos em
sina são poucos e bem menos convincentes.
torno dos Sinóticos nos últimos 150 anos é a
4.2.3
As redundâncias de Marcos podem ser Hipótese das Duas Fontes. Essa teoria sustenta
explicadas pela Hipótese das Duas Fontes. À pri
que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser es
meira vista, parece convincente o argumento de
crito, tendo sido usado de forma independente
que as 213 redundâncias marcanas se devem ao
por Mateus e Lucas. Também defende que, além
fato de Marcos ter compilado Mateus e Lucas,
de Marcos, os Evangelhos de Mateus e de Lucas
porém um exame mais apurado deixa claro que,
empregaram outra fonte comum, denominada
desses 213 exemplos, apenas 17 são casos em
Veja a seguir os pontos a favor da prioridade de
que Mateus apresenta um elemento da redun
Marcos e da existência de q.
dância, e Lucas, o outro. (Em 39 casos, Mateus
q.
5.1 A prioridade de Marcos
e Lucas apresentam os dois paralelos que apare
5.1.1 Marcos é o Evangelho mais curto. Dos
cem em Marcos; em 37 casos, eles não apresen
três Evangelhos Sinóticos, Marcos é o mais cur
tam nenhum; em 60 casos, Mateus apresenta um
to; contém 661 versículos; Mateus contém 1.068;
ou ambos os paralelos que aparecem em Marcos,
Lucas, 1.149. Quando se faz a comparação do
e Lucas não apresenta nenhum; em 26 casos,
conteúdo deles, 97,2% de Marcos tem paralelo
Lucas apresenta um ou ambos os paralelos que
com Mateus e 88,4% tem paralelo com Lucas.
aparecem em Marcos, e Mateus não apresenta
É mais fácil entender que Mateus e Lucas se
nenhum; em 11 casos, Lucas apresenta ambos
utilizaram de Marcos e decidiram acrescentar
os paralelos que aparecem em Marcos, e Mateus
outros materiais do que pensar em Marcos se
apresenta um; em 17 casos, Mateus apresenta
utihzando de Mateus ou de Lucas, ou de ambos,
ambos os paralelos que aparecem em Marcos e
e omitindo tanto material. Qual a razão de Mar
Lucas apresenta um; em 6 casos, Mateus e Lucas
cos ter omitido as narrativas do nascimento, o
apresentam ambos os paralelos que aparecem
S erm ão d o M o n te ,
em Marcos.) Desse modo, estamos falando no
aparições após a ressurreição e outros materiais?
fundo de apenas 17 possíveis exemplos de jun
É mais fácil entender que Mateus e Lucas acres
ção, não de 213.
centaram esses materiais à fonte marcana do
A Hipótese de Griesbach fica ainda mais com
a Oração do Senhor, as várias
que acolher a hipótese de que Marcos resolveu
prometida quando concebe que o Evangelho de
omitir tão grande quantidade de material. A hi
Marcos é caracterizado pela combinação, ao mes
pótese de que Marcos pode ter desejado escrever
mo tempo que o considera um resumo dos Evan
um relato mais resumido tropeça no fato de que
gelhos de Mateus e Lucas. As supostas posições
os relatos comuns nos Evangelhos Sinóticos são,
são essencialmente contraditórias. A harmonia
em geral, mais longos em Marcos. Se Marcos de
dos Evangelhos feita por Taciano e intitulada Dia-
sejava escrever um relato abreviado de Mateus
tessarão (c. ISO d.C.) é um exemplo muho antigo
e/ou Lucas, por que tornou mais longas essas
de combinação de textos. Mas, quando se com
histórias? São tendências contrárias. Quando se
param os trechos do Diatessarão derivados dos
procura resumir uma obra, isso geralmente é fei
Evangelhos Sinóticos, eles são consideravelmente
to não apenas mediante a ehminação de certos
mais longos que qualquer um dos próprios Sinó
materiais, mas também resumindo as seções que
ticos. Marcos, de um lado, é consideravelmente
se decidem manter.
mais breve que Mateus e Lucas. Por isso, esse
5.1.2 Marcos tem o grego nmis pobre. Há um
exemplo antigo de junção resultou em uma obra
consenso de que o grego de Marcos é mais pobre
muito dessemelhante. As redundâncias marcanas
que o de Mateus e o de Lucas. É mais fácil enten
não são, portanto, um argumento convincente
der que Mateus e Lucas empregaram Marcos e
1054
Pr oblem a S inûtico
melhoraram o grego do que aceitar a ideia de que
1) Mateus
2) Marcos
Marcos copiou e empobreceu o grego de Mateus e/ou Lucas. Além disso, há várias expressões ex
Marcos
Lucas
Mateus
^
3) Lucas
/X
Lucas
Mateus
Marcos
clusivamente marcanas. 1) Marcos contém diversos coloquiahsmos (em Mc 10.20, "tudo isso tenho guardado” , aoris to médio; em 2.4, “leho”
[a r a ]
a) Mateus
i
b) Mateus
i
c) Marcos
i
d) Marcos e) Lucas
f) Lucas
i i i
Ma cos
Lucas
Mateus
Lucas
Mateus
Marcos
Lucas
Marcos
Lucas
Mateus
Marcos
Mateus
como krabatton) e
problemas gramaticais (em Mc 4.41, “obedece” , i.e., verbo no singular; em 16.6, “vê” , i.e., verbo
5.1.4 Falta de concordância verbal entre Ma
no singular; em 5.9,10, “ele rogou”, em vez do
teus e Lucas contra Marcos. Observando-se as vá
plural “nós”). 2) Marcos traz expressões aramaicas (Mc 3.17;
rias concordâncias nos Evangelhos Sinóticos, fica
5.41; 7.11,34; 14.36; 15.22,34) que não se encon
claro que, embora Mateus e Marcos tenham mui
tram nem em Mateus, nem em Lucas. É muito
tos pontos em comum, mas divergentes de Lucas,
mais fácil entender que Mateus e Lucas omitiram
e também Marcos e Lucas tenham muitos pontos
essas expressões aramaicas e apresentaram seus
em comum, mas divergentes de Mateus, existem
equivalentes gregos do que pressupor que Marcos
poucos casos de concordância entre Mateus e Lu
tenha escolhido resumir Mateus e/ou Lucas, mas
cas contra Marcos. Pressupondo-se o tipo mais
tenha acrescentado expressões aramaicas que
simples de interdependência, em que o autor de
seus leitores gregos não entendiam.
um Evangelho utihzou-se do trabalho de outro
3) Marcos apresenta muitas redundâncias. Em
Evangehsta, temos as seguintes possibilidades:
diversas passagens (existem nada menos de 213
As demais combinações de interdependência
exemplos). Marcos traz expressões redundan
imphcam que Mateus “conhecia” (no sentido
tes, como “ Quando anoiteceu, depois que o sol
de “usar”) Lucas ou que Lucas “conhecia” Ma
se pôs” (Mc 1.32; v. tb. Mc 1.42; 2.25,26; 4.21;
teus. Como veremos, isso é de todo improvável
15.24). É mais fácil entender que Mateus e/ou
(v. 5.2.1 abaixo).
Lucas tentaram ehminar essas redundâncias do
Levando-se em conta o fato de que os rela
que tentar explicar o motivo de Marcos, ao resu
tos da tradição tríplice raramente mostram con
mir Mateus e/ou Lucas, tê-las acrescentado.
cordância na fraseologia entre Mateus e Lucas
5.1.3
Marcos contém passagens difíceis. Às contra Marcos, as teorias 1) e 3) não conseguem
vezes, encontramos em Marcos uma frase que
explicar o fenômeno. Além do mais 1), c) e e)
representa uma dificuldade teológica, mas não
não exphcam os pontos em comum entre Marcos
encontramos o mesmo problema em Mateus
e Lucas, e 3), b) e d) não explicam os pontos em
ou em Lucas. Em Marcos, por exemplo, encon
comum entre Mateus e Marcos. Só as explicações
tramos aparentes hmitações no poder de Jesus
2), a) e 0 conseguem exphcar a abundância de
(cf. Mc 1.32-34; 3.9,10; 6.5,6 e par.). Em outras
pontos em comum entre Mateus e Marcos e entre
ocasiões,
teológi
Marcos e Lucas, bem como a ausência de pontos
cas em Marcos, mas não em Mateus ou Lucas
em comum entre Mateus e Lucas. Contudo, os
(cf. Mc 10.17,18; 3.4,5; 2.25,26). Em Marcos
argumentos apresentados anteriormente contra
10.17,18, Jesus diz: “ Por que me chamas bom?
dizem a) e f).
encontramos
dificuldades
Ninguém é bom, senão um, que é Deus”. É fá
5.1.5 Falta de concordância na sequência entre
cil ver por que Mateus preferiu mudar o texto,
Mateus e Lucas contra Marcos. Semelhantemente
deixando-o assim: “Por que me perguntas sobre
ao argumento precedente, mas focando-se agora
o que é bom? Somente um é bom”. É mais fácil
na sequência do material, temos a observação de
entender (ou exphcar) que Mateus e /ou Lucas
que, quando Mateus diverge da sequência dos re
fizeram mudanças nas passagens mais difíceis
latos encontrados em Marcos, Lucas nunca está
de Marcos do que justificar o fato de Marcos ter
de acordo com Mateus. Da mesma forma, quan
tornado mais dificeis certas passagens claras de
do Lucas diverge da sequência que encontramos
Mateus e/ou Lucas.
em Marcos, Mateus nunca está sintonizado com
1055
P roblema S in ótico
Lucas nessa divergência. Há quem considere que
a ideia de que Mateus e Lucas se utihzaram de
essa observação, feita por K. Lachmann (1835),
Marcos, o que não acontece com qualquer outra
seja a prova definitiva da prioridade de Marcos.
teoria de interdependência.
No entanto, ela não constitui prova da prioridade
5.1.7
O argumento com base nas intervenções
marcana, pois é possível explicar essa concordân
editoriais por parie dos Evangelistas. Nos dias de
cia na sequência dos materiais valendo-se da Hi
hoje, os argumentos mais importantes a favor da
pótese de Griesbach, segundo a qual Mateus foi
prioridade de Marcos provavelmente envolvem
escrito primeiro, Lucas utilizou-se de Mateus e
os estudos da crítica da redação. É inegável que a
Marcos usou Mateus e Lucas. Lachmann, contu
maioria das investigações dos Evangelhos Sinóti
do, acrescenta a essa observação o argumento de
cos nesse campo avança com base na prioridade
que é compreensível o fato de Mateus divergir
de Marcos. Por exemplo, é mais fácil entender por
de Marcos e de Lucas também divergir de Mar
que Mateus acrescenta o detalhe de que Jesus é
cos, mas não é tão aceitável que Marcos tenha
o “Filho de Davi” ao relato marcano do que jus
divergido de Mateus e de Lucas. À luz dessa ob
tificar o motivo de Lucas e Marcos terem omitido
servação, não há motivo para considerar a ideia
essa informação (cf. Mt 12.23; 15.22; 22.9,15). De
de Lachmann uma falácia.
modo semelhante, é mais fácil entender o fato de
5.1.6
Certas concordâncias literárias são mais Mateus ter acrescentado à sua fonte marcana a
bem explicadas pela prioridade de Marcos. Nos
famosa expressão “Tudo isso aconteceu para que
Evangelhos Sinóticos, existem certos elementos
se cumprisse...” (Mt 1.22; 2.15,17; 4.14; 8.17;
comuns de natureza hterária que são mais bem
12.17; 13.14,35; 21.4; 27.9) do que explicar o mo
explicados com base na ideia de que Mateus e
tivo de Marcos e Lucas terem preferido omitir as
Lucas se utihzaram de Marcos. Por exemplo, em
ocorrências da expressão. Cinco das seis úhimas
Mateus 9.1,2/Marcos 2.1-5/Lucas 5.17-20, Ma
referências revelam isso claramente, pois os para
teus, como de hábito (cf. Mt 8.5-13; 9.18-26),
lelos em Marcos e Lucas não trazem a citação do
abrevia o relato marcano e omite a razão de Je
AT.
sus ter concluído que o paralítico e seus amigos
se utilizaram de Mateus e decidiram omitir essas
tinham fé. Em Mateus 27.15-22/Marcos 15.6-13/
referências do que aceitar o fato de que Mateus as
Lucas 23.18-21, Lucas abrevia o relato e omite,
acrescentou à sua fonte marcana.
É mais difícil pressupor que Marcos e Lucas
Também
no episódio de Barrabás, a explicação de que
descobrimos em
que,
quando
en
aspectos
es
contramos
Páscoa. Em Mateus 3.13-16/Marcos 1.9,10/Lu-
tilísticos
cas 3.21,22, Mateus altera a fraseologia de Mar
exclusivamente no material que Mateus tem em
cos e, ao mudar o segmento “ foi batizado” para
comum com Marcos. O famoso uso marcano de
“ depois de batizado” , deixando apenas o particí-
“logo”/“imediatamente” ocorre 41 vezes em seu
pio, acrescenta a palavra “logo” ao verbo “saiu”.
Evangelho. Em Mateus, ocorre 18 vezes. Dessas
de
Mateus
certos
era costume soltar um prisioneiro na época da
Marcos,
eles
aparecem
quase
0 resultado, embora compreensível, é que Jesus
18 vezes, 14 ocorrem no material que Mateus tem
sai imediatamente da água, em vez de imediata
em comum com Marcos. As outras 4 ocorrem em
mente ver os céus abertos. Em Mateus 19.16,17/
seu material
Marcos 10.17,18/Lucas 18.18,19, Mateus procu
e
ra ehminar a dificuldade encontrada em Marcos:
em Mateus, 10.901 encontram paralelo em Mar
“ Por que me chamas bom? Ninguém é bom, se
cos. Um total de 7.392 não tem paralelo. Isso
não um, que é Deus”. Em vez das duas frases,
significa que existe um “imediatamente”/“logo”
ele registra: “Por que me perguntas sobre o que é
para cada 778 palavras no material que Mateus
bom?”. Entretanto, a frase seguinte revela que sua
tem em comum com Marcos, mas apenas um
fonte continha algo a respeito de Deus ser bom —
“ imediatamente”/“logo” para cada 1.848 palavras
não a ideia de bondade no sentido abstrato, pois
no material não marcano
ele acrescenta: “ Somente um é bom”.
mais frequente de “imediatamente”/“ logo” no
Q.
m
(o material especial de Mateus)
Contudo, das 18.293 palavras que existem
(m
e o). A ocorrência
Essas e outras concordâncias de natureza li
material que Mateus compartilha com Marcos é
terária são mais compreensíveis se aceitarmos
mais facilmente explicada pela utihzação que ele
1056
Pr oblem a S inótico
faz de Marcos, em que a palavra é encontrada em
Mateus e Lucas, mas não encontrado em Mar
abundância, do que por qualquer outra teoria.
cos, o chamado “material
q”.
Alguns exemplos
Outro aspecto estilístico de Marcos é o uso
são: Mateus 6.24/Lucas 16.13, Mateus 7.7-11/
de um segmento editorial com a conjunção “por
Lucas 11.9-13, Mateus 11.25-27/Lucas 10.21,22 e
que” [gar] para explicar algo a seus leitores {v.
Mateus 23.37-39/Lucas 13.34,35. Como se deve
Mc 1.16,22; 5.28; 6.17,18 etc.). Em Marcos, en
exphcar esse material comum? Analisaremos
contramos 34 desses segmentos; em, Mateus, en
abaixo a proposta de que Mateus e Lucas o obti
contramos 10, mas todos aparecem no material
veram de várias tradições orais, porém a exphca
compartilhado com Marcos. Não há uma única
ção mais simples é que ou Mateus usou Lucas, ou
ocorrência no restante do material. Caso Mateus se
Lucas usou Mateus para conseguir esse material.
tenha utihzado de Marcos, a presença desses seg
Existem, no entanto, várias razões que tornam
mentos editoriais é compreensível. Mas por que
improvável a utihzação de Mateus por Lucas. (A
estariam apenas em determinadas seções do mate
teoria de que Mateus empregou Lucas tem pou
rial mateusino, a saber, o material que ele partilha
cos adeptos, e a maioria dos argumentos apre
com Marcos, se Mateus não empregou Marcos?
sentados a seguir também demonstra que Mateus
5.1.8 A teologia de Marcos é menos desenvol
não se utilizou de Lucas.) 5.2.1
vida. Quando se faz uma comparação do material comum entre Mateus, Marcos e Lucas, fica evi
Mateus e Lucas não se conheciam. Isso
fica evidente com base em vários indícios.
dente que os materiais de Mateus e de Lucas são
1) Lucas não traz os acréscimos mateusinos à
teologicamente mais desenvolvidos. Marcos, por
tradição tríplice. Quando encontramos um relato
exemplo, emprega seis vezes o termo “Senhor”
na tradição tríplice e Mateus apresenta algo que
[kyrios] em referência a Jesus, enquanto em Ma
não se encontra em Marcos, jamais encontramos
teus encontramos a palavra não apenas nesses
em Lucas o acréscimo mateusino (cf. Mt 8.17;
mesmos seis casos, mas em outros 24. Quinze
12.5-7; 13.14,15 etc.). Se Lucas fez uso de Ma
desses casos se acham em material em que Mar
teus, por que nunca encontramos nenhum desses
cos não traz o termo. 0 mesmo se pode dizer de
acréscimos em Lucas? A explicação mais plausível
Lucas, que emprega o título com frequência ainda
é que Lucas não se utilizou de Mateus. (0 mesmo
maior. É mais fácil entender que Mateus e Lucas
se pode dizer dos acréscimos lucanos à tradição
acrescentaram esse título à sua fonte marcana do
tríplice: eles nunca aparecem em Mateus.)
que tentar descobrir por que Marcos teria optado
2) O material
q
aparece em um contexto di
por eliminá-lo, caso estivesse usando Mateus e/ou
ferente em Lucas. Em Mateus, o material
Lucas. O mesmo se pode dizer do título “Cristo”.
organizado em cinco blocos de ensino cercados
q
está
5.1.9 Conclusão. 0 motivo pelo qual a maioria
por seis blocos de narrativa. Consequentemente,
dos estudiosos defende a prioridade de Marcos
temos: narrativa (Mt 1—4); ensino (Mt 5— 7); nar
não se fundamenta em algum argumento isolado
rativa (Mt 8—9; ensino (Mt 10); narrativa (Mt 11—
dentre os relacionados acima. Pelo contrário, a
12); ensino (Mt 13); narrativa (Mt 14— 17); ensino
prioridade de Marcos baseia-se no conjunto de to
(Mt 18); narrativa (Mt 19—22); ensino (Mt 23—
dos os argumentos. O peso de um argumento em
25); narrativa (Mt 26—28). Também é necessário
particular pode não ser convincente, mas, juntos,
assinalar que cada uma das seções de ensino ter
eles são bem convincentes, e a melhor hipótese
mina de forma semelhante; por exemplo: “Ao con
para exphcar o Problema Sinótíco é que Mateus
cluir Jesus esse discurso...” (Mt 7.28; 11.1; 13.53;
e Lucas fizeram uso de Marcos na composição de
19.1; 26.1). Lucas, contudo, juntou o material
seus Evangelhos. Por ser uma hipótese, não há
em duas seções: Lucas 6.20—8.3 e 9.51— 18.14.
prova definitiva para a Teoria dos Dois Documen
Caso Lucas tenha se utilizado de Mateus, é difícil
tos, e o Problema Sinótico precisa permanecer
entender o motivo de ele ter abandonado a estru
aberto, à espera de uma hipótese mais plausível.
tura do material q encontrada em Mateus, preferin
5.2
q
A existência de q . Uma vez aceita a priori do uma organização própria do material.
dade de Marcos, deparamos com outro problema
3) Às vezes, o material q é menos desenvolvido
que envolve o material comum encontrado em
em Lucas. Se Lucas tivesse feito uso de Mateus,
1 057
Pr oblem a S inótico
seria de esperar que a forma do material em Lu
fraseologia de alguns paralelos provenientes dessa
cas fosse em geral teologicamente mais desenvol
fonte. Às vezes, a precisão na fraseologia é gritante
vida que o material correspondente em Mateus,
(cf. Mt 6.24 par. Lc 16.13, em que 27 de 28 palavras
mas não é o que acontece. Às vezes, o material
são exatamente as mesmas; Mt 7.7,8 par. Lc 11.9,10,
0 em Lucas é menos desenvolvido. (Cf. Lc 6.20,
em que todas as 24 palavras são exatamente as
“pobres” : v. 21, “agora tendes fome” ; v. 31, ne
mesmas). Seria a melhor exphcação para essa exa
nhuma referência à “Lei e os Profetas” ; 11.2, ao
tidão uma fonte escrita comum? No entanto, certas
“Pai” ; 14.26, ao verbo “aborrece” )
partes do material q não são muito exatas.
4) Inexistência de pontos em comum na
Outro argumento frequentemente apresentado
sequência e na fraseologia de Mateus e Lucas
a favor de uma fonte escrita q envolve a concor
quando divergem de Marcos. Se Lucas fez uso de
dância sequencial. Às vezes, pode se observar que
Mateus, é difícil entender por que a sequência
Mateus e Lucas apresentam sequências semelhan
lucana jamais acompanha Mateus quando este
tes no uso do material
diverge de Marcos e por que existem tão poucos
darem na sequência não imphca necessariamente
q.
Mas o fato de concor
elementos verbais comuns entre Mateus e Lucas
uma fonte escrita. Alguns procuram identificar
quando divergem de Marcos.
uma sequência comum entre o material o encon em Lucas. Por defi
trado em Lucas e em cada uma das cinco seções
é aquele encontrado em Ma
Q de Mateus, ou seja, a ordem de o em Lucas é
teus, mas não em Marcos e em Lucas. Se Lucas
comparável com Mateus 5—7, depois com Mateus
5) Ausência de material nição, 0 material
m
m
fez uso de Mateus, é difícil exphcar por que não
10, com Mateus 13 e assim por diante. Alguns es
incluiu nada desse material. 0 argumento basea
tudiosos estão convencidos do argumento baseado
do no silêncio sempre é questionável, mas, co
na sequência, mas a maioria discorda.
nhecendo-se alguns dos interesses teológicos de
Um terceiro argumento favorável a q como
Lucas, é difícil entender por que ele, caso tenha se
fonte escrita é a presença de duplicatas (relatos
utihzado de Mateus, não empregou esse material,
repetidos do mesmo episódio) em Mateus e em
como é o caso da visita dos sábios (Mt 2.1-12).
Lucas. Isso supostamente demonstra que foram
A menção da presença de gentios por ocasião do
empregadas duas fontes escritas — Marcos e
nascimento de Jesus se encaixaria muito bem em
Contudo, na melhor das hipóteses, caso as tais
seu propósito geral. De modo semelhante, é inex
duphcatas existam, elas demonstram o uso de
q.
plicável a exclusão de histórias como a fuga para o
uma segunda fonte comum, mas pode ter sido
Egito e a volta para Nazaré (Mt 2.13-23), o depoi
uma fonte oral ou fontes escritas fragmentárias.
mento dos guardas junto ao sepulcro (Mt 27.62-
Outra teoria para q como fonte escrita é o esforço
66), o relatório que apresentaram (Mt 28.11-15)
para demonstrar que existe um vocabulário e um
e 0 material exclusivamente mateusino sobre a
estilo comuns no material g, revelando que eles
ressurreição (Mt 28.9,10,16-20).
procedem de uma fonte escrita comum. Essa teo
Com base nos argumentos acima, parece
ria, porém, não é convincente,
razoável concluir que Lucas não conhecia Ma A Hipótese das Duas (ou QuatroJ Fontes
teus (e Mateus não conhecia Lucas). Consequen Marcos
temente, tem se postulado outra fonte comum. É objeto de debate a origem do uso de
q
Q
como
símbolo desse material comum encontrado ape nas em Mateus e em Lucas, mas o mais provável é que seja a letra inicial da palavra alemã Quelle, que significa “fonte”. 5.2.2
Seria
q
uma fonte escrita? Se pressupu
sermos que, além de usar Marcos, Mateus e Lucas empregaram uma fonte comum, seria essa fonte 5.2.3 Resumo. A hipótese
escrita ou oral? Os principais argumentos a favor de uma fonte o escrita apontam para a precisão na
q
nao deixa de ter
seus problemas, mas apresenta menos dificuldades
1058
P roblem a S inótico
que as hipóteses alternativas. Quanto à sua forma,
conformassem uns aos outros. Assim, visto que
é difícil saber ao certo se o material
chegou até
Mateus era o Evangelho Sinótico mais conheci
Mateus e Lucas na forma de uma única fonte es
do e o mais usado, pode ser que bem no início
q
crita, de várias fontes escritas ou de uma tradição
algum escriba, ao copiar o Evangelho de Lucas,
oral. Parece bastante certo que Mateus e Lucas
tenha mudado o texto lucano para se conformar à
não se conheceram. Esse fato, somado ao argu
leitura de Mateus. Em tais casos, o resultado seria
mento da prioridade marcana, favorece algum típo
uma concordância entre Mateus e Lucas.
de hipótese de dois documentos em que Mateus e
6.3
H-adição oral sobreposta. Também é pos
Lucas fizeram uso de Marcos e provavelmente de
sível que Mateus e Lucas às vezes utilizassem
um documento
uma forma de tradição oral que lhes fosse mais
q
escrito. Uma versão relacionada
a essa é a Hipótese das Quatro Fontes, que pressu
familiar do que a fraseologia de sua fonte marca
põe que o material exclusivo de Mateus
na e, por esse motivo, decidissem, de forma inde
Lucas
( l)
(m )
e de
provém de duas outras fontes escritas.
pendente um do outro, elaborar o texto de acordo com a tradição oral. Aqui também o resuhado se
6. Problemas com a Hipótese das Duas
ria uma concordância entre Mateus e Lucas.
Fontes
Dentre vários outros motivos para uma con
A principal ahernativa para a Hipótese das
cordância entre Mateus e Lucas temos: modifi
Duas (ou Quatro) Fontes é a Hipótese de Griesba
cações coincidentes da gramática de Marcos,
ch (v. 4 acima), que oferece uma boa exphcação
omissões coincidentes do material marcano,
para o problema com que se defronta a Hipóte
emprego comum de um Marcos diferente e mo
se das Duas Fontes: a existência de pontos em
dificações coincidentes de passagens difíceis de
comum entre Mateus e Lucas quando há diver
Marcos.
gência de Marcos. Além das várias omissões em comum criadas pelo fato de abreviarem Marcos e
7. A importância da solução do Problema
dos pontos de concordância que surgiram quan
Sinótico
do melhoraram a gramática desse Evangelho,
De diversas maneiras, a solução do Problema Si
Mateus e Lucas têm vários e importantes pontos
nótico se revela importante.
em comum, embora divergentes de Marcos (cf.
7.1
Crítica histórica. A busca da solução para
Mc 17,8; 2.12; 3.24,26-29; 5.27; 6.33; 8.35; 9.2-
esse problema encontrou grande impulso no de
4,18,19; 10.29; 14.65,72 par. em Mateus e Lucas).
sejo de identificar a fonte mais antiga e, pelo que
Embora a Hipótese de Griesbach explique es
se pressupunha, na melhor fonte histórica para
ses pontos em comum melhor do que a Hipótese
investigar a vida de Jesus. Esperava-se que, ao
das Duas Fontes, não devemos esquecer que a
descobrir a fonte básica dos Evangelhos Sinó
recíproca é verdadeira no que diz respeito a todos
ticos, os estudiosos teriam em mãos uma fonte
os argumentos a favor da prioridade marcana e
histórica livre da teologia da igreja primitiva.
contra a ideia de Mateus e Lucas se conhecerem.
Essa fonte seria, portanto, a base para a busca
Esses argumentos são bem mais numerosos e têm
do Jesus histórico. Acredhava-se que Marcos
peso bem maior. Quanto a Mateus e Lucas terem
proporcionava essa fonte. Hoje, percebemos que
pontos em comum quando divergem de Marcos,
Marcos, como os demais Evangelhos, não é uma
várias explicações são possíveis.
biografia objetiva da vida de Jesus no sentido mo
6.1 Tt-adições sobrepostas. Em cerios lugares, deve ter havido sobreposição do material
q
e de
derno da palavra (v.
e v a n g e lh o [ g ê n e r o ] ) .
Que bio
grafia omitiria os trinta primeiros anos da vida de
Marcos. É possível que Mateus e Lucas tenham em
alguém? E qual dos Evangelistas é "objetivo” ? Por
certos momentos dado preferência ao texto de o
isso, fica evidente que a procura de uma biografia
em detrimento do de Marcos e, desse modo, te
totalmente objetiva da vida de Jesus estava desde
nham levado Mateus e Lucas a concordar entre si.
o início fadada ao fracasso.
6.2 Corrupção textual. Sabemos que os an
Entretanto, a busca de uma solução para o
tigos escribas tinham a tendência de fazer com
Problema Sinótíco tem oferecido ferramentas
que os relatos paralelos nos Evangelhos se
úteis para a investigação histórica. 0 critério de
1059
Pr oblem a S in ótico
confirmação múltipla baseia-se na premissa de
The synoptic problem: a criticai analysis. New
que várias testemunhas são melhores que uma.
York: Macmillan, 1964. ■
Desse modo, se um ensino de Jesus tem o tes
pensing with Q. In: Studies in the gospels. Oxford:
temunho de Marcos,
e João, então temos
q , m, l
M. On dis
F a rrer, A .
Blackweh, 1955, p. 55-88. •
J.
F itz m y e r ,
A.
The
cinco fontes dando testemunho da historicidade
priority of Mark and the “ Q” source in Luke. In:
desse ensino (v.
Jesus and man's hope. Pittsburgh: Pittsburgh
r ic a
d o s ).
E v a n g e lh o s , c o n fia b ilid a d e
h is t ó
Outra ferramenta útil é o critério de
padrões divergentes de redação. Por causa da
Theological Seminary, 1970, p. 131-70. • CRE,
G ooda-
M. The case against Q. Harrisburg; Trinity
aplicação da Hipótese das Duas Fontes, os estu
Press International, 2002. • ______ . The synoptic
diosos dos Evangelhos Sinóticos estão hoje mais
problem.
familiarizados com o estilo hterário e as ênfases
C.
teológicas dos Evangehstas. É óbvio que, se um
Kloppenborg,
dos Evangelistas incluiu em seu Evangelho algo
in ancient w is d o m collections. Ph ilad elph ia; For
que parece conflitar com seus propóshos, ele está
tress,
dando testemunho de que aquela tradição era
The synoptic problem:
bem antiga e bem conhecida.
M ac on : M erce r U niversity Press,
7.2 Investigação das intervenções editoriais
F.
Sheffield: Academ ic,
Horae synopticae.
1987.
J.
2001.
The formation o f Q:
S.
■ Longstaff, T. R.
W.
1988.
J. •
trajectories
1716-1988. • Neirynck,
The minor agreements o f Matthew and Lnke
against Mark with a cumulative list
Lucas empregaram Marcos
ve n University Press,
temos melhores
1909.
& Thomas, P. A .
a b ib lio gra p h y
nos Evangelhos. Ao observar como Mateus e e q,
• Hawkins,
O xford: C laren don,
1974.
Leu ven : L e u
• Reicke, B.
The roots
P h ilad elph ia:
Fortress,
condições de entender a ênfase teológica de cada
of the synoptic gospels.
um. Desse modo, fica mais fácil entender o signi
1986.
ficado de suas obras. Basta comparar os seguintes
R apids; Baker,
exemplos com seus respectivos paralelos para ver
gospels.
como eles ajudam a revelar a ênfase teológica do
History and criticism of the Markan hypothesis.
escritor de cada Evangelho: Lucas 5.17; 6.27,28;
M ac on : M erce r U niversity Press,
11.13; Mateus 8.15; 13.35; 15.22.
M . T h e priority o f M ark. In; M oule, C. F
7.3 Percepções hermenêuticas. Vale a pena
The synoptic problem.
• Stein, R. H.
1987.
■ Streeter, B. H.
L on d on : M acm illan ,
1951.
birth of the New Testament. 3.
&. Row,
285-316.
G ran d
The four
• Stoujt, H .-H .
1980.
• Styler, G.
D. The
ed. N e w York: H a r
observar como cada Evangehsta interpreta sua
per
fonte, pois os Evangehstas estavam mais próxi
m ent from order a n d the synoptic p roblem , r z , v.
p.
mos do tempo, da situação, do idioma e do pen
36,
samento de seus contemporâneos que nós. Por
Griesbach hypothesis: an analysis and appraisal.
causa disso, às vezes a interpretação de um texto
Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
p.
338-54, 1980.
• Tuckett, C. M . T h e a rgu
■
______ . The revival of the
difícil é facihtada apenas por observar como eles
R.
H.
S te in
interpretaram esse texto. Por exemplo, com base em Mateus 10.37,38, fica evidente que a ordem de Lucas para “aborrecer” os pais (Lc 14.26,
PROFECIA.
Ver
E s p ír it o S a n t o .
a ra ]
significa que seus discípulos devem amar Jesus
p r o t o g n o s t ic is m o .
mais que a outras pessoas. Também se pode
t a AOS.
Ver a d v e r s á r i o s ;
C o lo s s e n s e s , C a r
descobrir que é possível aphcar certos ensinos Ver
de Jesus observando-se como os Evangehstas
P s e u d e p íg r a fo s .
os aplicam à situação em que viviam. Um bom
n u s c r it o s DO m a r M o r t o .
A p ó c r i f o s e P s e u d e p íg r a f o s ; m a
exemplo disso é a parábola da ovelha perdida (Lc 15.3-7 par. Mt 18.10-14). Ver também
B iB u o G R A n A .
p sE U D E PiG R Á n cos DO
B e llin z o n i
Novo
Jr., A. J. et al. The tivo-
p u r ific a ç ã o d o te m p lo .
Ver t e m p l o ,
source hypothesis: a criticai appraisal. Macon: Mercer University Press, 1985. •
T e s ta m e n to .
Ver
E fé s io s ,
C a r t a a o s ; C a r ta s P a s to r a is .
e v a n g e lh o (g ê n e r o ) .
F a rm er,
W. R.
PURO E IMPURO.
1060
Ver
Lei i.
p u r if ic a ç ã o d o .
RECONCILIAÇÃO.
Ver
1. Terminologia
C r i s t o , m o r t e d e ii.
Os Evangelhos empregam três termos para expres re d e n çã o .
Ver
sar a ideia do reino de Deus: hê basileia tou theou
C r is t o , m o r te de.
(“ o reino de Deus”), hê basileia tõn ouranõn ( “o REFEIÇÕES co M U N rrÁ R iA S .
Ver c o m u n h ã o
reino do[s] céu[s]”) e a forma absoluta hê basileia
à m esa.
( “o reino”). A equivalência das duas primeiras ex r e f e iç õ e s r e lig io s a s .
Ver
pressões está indicada no seu conteúdo, contexto
c e ia d o S e n h o r i.
e permutabilidade nos Evangelhos. (A distinção R e i D a v íd ic o .
Ver
entre reino de Deus como soberania divina e reino
C r i s t o ; F i l h o d e D a v i.
do céu como uma reahdade futura pertencente a R e i, D e u s c o m o .
Ver
uma esfera fora deste mundo, em que o reino de
D eu s.
Deus é concebido como a condição para entrar no r e in o d e C r is t o .
Ver
reino do céu
r e in o d e D e u s ii.
[ P a m m e n t],
não tem base exegética.)
A expressão grega para “o reino do(s) céu(s)” é R e in o
de
D
eus i :
E vangelh os
uma tradução hteral da expressão judaica tardia
o termo “reino de Deus” ou “reino do céu” significa
mal‘kút shãmayim (e.g., 2Ap Br, 73; 3Ap Br, 11.2
0 governo soberano, dinâmico e escatológico (v.
e s-
Aç Ms, 10; Sl Sa, 17.4; IQSb 3.5; m. Ber., 2.2,5
de Deus. O reino de Deus está no âmago
y, Ber, 4a7b), em que, por reverência, “céus’
do ensino de Jesus. Na forma em que foi proclamado
substitui a palavra “Deus” , assim como ’“dõnay
c a t o lo g w )
por Jesus, o reino de Deus estava vinculado à pro
(“senhor” , “ mestre") havia substituído Yahweh
messa do
( “Senhor”) e, no devido tempo, mãkôm ( “lugar”)
AT,
bem como ao pensamento apocalíptico
judaico, mas diferia deles em aspectos importantes.
substituiu
Por exemplo: denotava um governo eterno de Deus,
Também se faz referência ao reino de Deus me
em vez de um reino terrestre; seu âmbito era univer
diante a forma absoluta “reino” , quando a refe
sal, em vez de limitado à nação judaica; era iminente
rência é óbvia.
( “céus”)
(D a lm a n ,
p. 91-101),
e estava potencialmente presente em Jesus, em vez
0 significado básico do hebraico mal’küt (com
de ser uma vaga esperança futura, estando inextrica
seus sinônimos), do aramaico malkú e do grego
velmente ligado à sua pessoa e missão.
basileia é abstrato e dinâmico, ou seja, indica so
1. Terminologia
berania ou governo régio. Esse é quase sempre o
2. Antecedentes veterotestamentários
caso no
3. 3. Judaísmo
aphcado a Deus. 0 sentido de domínio — um reino
4. 4. Jesus e o reino de Deus
territorial — é secundário e surge da necessidade
5. 5. Os Evangelhos
de um local identificado que seja o âmbito do exer
6. 6. 0 reino de Deus e a igreja de hoje
cício da soberania.
at
e na hteratura judaica quando o termo é
R eino de D eus i ; Evangelhos
2. Antecedentes veterotestamentários
futuro (v.
Os Evangelhos, ao apresentar os ministérios de
Davi, trazendo justiça e prosperidade (v.
JoÂo B a t i s t a e de Jesus, declaram que ambos pro
D a v i).
C r is to )
que governaria sobre o reino de F ilh o de
Dessa maneira, o reino davídico foi de certa
clamam a proximidade do reino de Deus. Essa
forma fundido com o governo de Javé. Os grandes
declaração não é seguida de explicação alguma, e
profetas éticos denunciaram a infídehdade de Israel
a conclusão deve ser que o conceito de reino de
contra o Criador e Rei (Senhor) do Universo, que
Deus era bem conhecido.
tinha prazer em se identificar com Israel. A crise
No entanto, a expressão “reino de Deus” está
tornou-se especialmente grave quando os últimos
e ocorre ape
vestígios do reino de Davi foram levados embora
nas uma vez nos Apócrifos, em Sabedoria 10.10.
pelo cativeiro babUônico. Então, em alguns círcu
No entanto, embora o termo esteja ausente, a
los, a promessa de um reino eterno feita a Davi
ideia está presente por todo o
começou a ser radicalmente reinterpretada.
ausente dos livros canônicos do
at
a t.
Em vários tex
tos, Javé é apresentado como rei [Dt 9.26 ISm 12.12; Sl 24.10 [23.10,
lx x ];
Nenhum outro escrito do
[lx x ];
29.10 [28.10,
at
traz mais infor
mações sobre a soberania de Deus que Daniel.
6.5; 33.22; Sf 3.15; Zc 14.16,17). Em ou
Nesse hvro, o reino de Deus é o tema central. En
tras passagens, ele possui um trono régio (Sl 9.4
tretanto, o conceho de reino de Deus apresentado
[9.5,
lx x ];
Is
6.1;
por Daniel é transformado sob o impacto da nova
66.1; Ez 1.26; Eo 1.8), ao passo que ocasional
situação. A soberania divina é contrastada com
mente se declara seu reinado contínuo ou fu
os reinos humanos, e deles se diz que estão sob o
turo (Sl 10.16 [9.37, lx x ]; 146.10 [145.10, lx x ];
controle do Deus do céu, que concede soberania
Is 24.23; Sb 3.8). Ahás, Salmos 22.28 (22.29,
a cada reino de acordo com sua vontade. Daniel 2
lx x ];
45.6 [44.7, l x x ] ; 47.8 [46.9,
lx x ];
Is
tm ;
21.29, lx x ] diz que “ o reino” [hammHâkâ; basi
apresenta o reino de Deus como uma intervenção
leia, lx x ] pertence ao Senhor.
divina direta. Seu agente, na forma de uma pedra
Contudo, a ideia não está confinada aos textos
cortada sem o auxílio de mãos humanas, esmiga
que evidenciam atributos régios: ela está por trás
lha os vários reinos humanos, aqui simbolizados
de todo o relacionamento entre Javé e Israel. A
por metais e barro, e ela (i.e., o reino — “rei”
exigência de deixar Israel partir, feita ao faraó, é a
e “ reino” são permutáveis em Daniel) cresce até
do rei legítimo contra o usurpador. A ahança com
encher toda a terra. Em Daniel 7, muda o sim
Israel é a que afirma a suserania de Deus sobre
bolismo: agora os animais selvagens representam
seu povo. Na conquista de Canaã, Javé, na condi
a natureza ímpia dos reinos humanos. O agente
ção de rei, presenteia seu povo com um território
que atua a favor do reino de Deus é um persona
de que ele, na condição de Criador e Rei da terra,
gem descrito como “alguém parecido com filho
pode dispor como bem lhe agradar. O governo
de homem” (v.
de Deus sobre Israel é especialmente exemplifi
passa a ter o governo régio sobre os poderes es
cado no período dos juizes, que atuaram como
pirituais que atuam por trás dos potentados terre
representantes de Deus. Uma crise surgiu quando
nos, e os santos ligados ao personagem recebem
F ilh o d o h om em )
. Esse personagem
Israel exigiu um rei (ISm 8.4,5), atitude que foi
0 governo régio sobre os monarcas debaixo de
interpretada como rejeição do governo de Javé
todo 0 céu (i.e., os potentados terrenos).
(ISm 8.6-8). Entretanto, com a ascensão de Davi
Desse modo, Daniel não apenas apresenta o
ao trono a situação de certa forma se normalizou,
reino de Deus despido de sua natureza davídi
e 0 entendimento foi que o rei governava como
ca, terreno e política, mas também descreve seu
representante de Javé e estava sob a suserania
agente como um ser celeste e transcendental. A
divina. Ou seja, via-se a monarquia como a ma
nova situação criou não apenas um novo conceho de reino de Deus, mas também uma transforma
nifestação concreta do governo de Javé. Isso explica o papel oficial dos profetas que
ção de seu agente (v.
C a r a g o u n is ,
1986, p. 61-80).
atuavam na corte (e.g., Natã, Gade, Ehas). A pro
Essas ideias foram de importância decisiva na for
messa de estabelecer o trono de Davi para sempre,
mação do pensamento e da escatologia messiâ
apesar da rejeição a Salomão (IRs 11.11-14), fez
nicos, não apenas no judaísmo mas também no
com que a atenção se concentrasse num Messias
ensino de Jesus.
1062
Reino de D eus i : Evangelhos
3. Judaísmo
divino com alegria absoluta maior que a do reino
No início do judaísmo, o conceito de reino de
messiânico. Esse conceito é fortemente contrasta
Deus foi moldado por três fatores. Na base, estava
do com a ideia apocalíptica segundo a qual o rei
a ideia veterotestamentária da epifania escatoló
no de Deus é estabelecido por intervenção divina
gica de Javé, em que este chegava para castigar
direta e é transcendental e eterno, sob o governo
os perversos (i.e., os inimigos de Israel) e recom
de um Messias semelhantemente transcendental
pensar os justos (i.e., Israel). Essa ideia estava
e preexistente denominado Filho do homem —
acompanhada de outra, a de que o governo de
Daniel; 2Esdras; Similitudes, de lEnoque (37— 71).
Deus se daria por meio de seu rei messiânico es
Nesse caso, o Messias participa do juízo, que
colhido, de descendência davídica. Seria um pe
dessa maneira precede o reino messiânico. Esse
ríodo de alegria total e inimaginável para o povo
reino é o reino definitivo de Deus, que deve durar
judeu. 0 segundo fator era que Daniel passou a
para sempre.
entender o reino e seu agente como realidades
No entanto, como é natural, até mesmo a ex
transcendentes e celestiais e o consequente livra
pectativa posterior emprega, em sua maior parte,
mento do povo de Deus como algo presentemente
categorias messiânicas da expectativa anterior, e
dinâmico. 0 terceiro fator era o fato de os gentios
isso torna mais difícil isolar os traços de uma e de
terem governado a Palestina durante séculos, o
outra. 0 que se segue é uma tentativa de ilustrar
que intensificava o anseio por hbertação, iden
em poucas palavras algumas das principais ver
tidade nacional e felicidade (v.
tentes do pensamento judaico acerca do reino de
ju d a ís m o e
o Novo
Deus, sem tentar estabelecer uma hnha demarca-
T e s ta m e n to ) .
Embora o termo “reino de Deus” seja raro no
tória estrita entre as formas inicial e posterior da
judaísmo, a ideia é quase onipresente, quer ex
expectativa ou entre os diferentes pontos de vista
phcitamente, como o reino do Messias, quer
da fase inicial do judaísmo.
imphcitamente em referências à era messiânica.
Especialmente em obras que refletem a influ
Os dois enfoques sobre a expectativa messiânica
ência de Daniel, o irrompimento do reino de Deus
herdados pelo judaísmo sãos refletidos nas des
é precedido por um período de tribulação e tur
crições ambivalentes do reino do Messias. Além
bulência no céu e na terra (Or si, 3.796-808; 2Ap
de desafiar uma apresentação estrhamente sis
Br, 70.2-8; 4Ed 6.24; 9.1-12; 13.29-31; IQM 12.9;
temática do ensino do reino, essa ambivalência
19.1,2; cf. Mt 24.7-12 e par.). Na hteratura rabíni
também dá a entender que temas oriundos de
ca, esse momento veio a ser chamado “as dores
ambas as linhas de pensamento estão misturados
de parto do Messias” [b. Sanh., 98b; Str-B, v. 1,
em diversos níveis. 0 resuhado é uma variedade
p. 950). Às vezes a aparição do Messias é prece
de messianismos e concehos de reino que nem
dida pela vinda de Ehas (Ml 3.1-4; Eo 48.10,11; cf.
sempre se distinguem claramente uns dos outros.
Mt 17.10 e par.; m. 'Ed., 8.7;
No entanto, em geral podemos fazer distinção en
8) ou do profeta semelhante a Moisés (Dt 18.15;
tre as duas principais tendências de concepção
IQS 9.11; 4QTestim 5-8; Jo 1.21).
J u s t in o M á r t i r ,
Dl Tr,
do reino. A primeira é o conceho de um reino
0 Messias é concebido de diversas maneiras. É
davídico temporário, que tem Jerusalém como
tradicional a ideia de um Messias plenamente hu
centro e os judeus como os principais beneficiá
mano, davídico (S/Sa, 17.5,23; Or sí, 3.49) que der
rios — embora às vezes abrangendo o mundo
rota os ímpios (Orsi, 3.652-656; SlSa, 17.23-32),
inteiro. Essa concepção é mais antiga, polftica e
ao passo que em obras pertencentes à tradição de
preocupada com este mundo. A segunda é um
Daniel o Messias é um ser preexistente e sobre
conceito posterior e apocalíptico de um reino que
natural com poderes para julgar os reis e os po
está situado além da esfera da existência física e
derosos — em suma, todos os inimigos de Deus
é transcendental e eterno, sendo concebido em
— e de confirmar os justos [lEn, 46.1-6; 48.2-6;
termos universalistas.
62.5-7; 4Ed 12.32). Outra diferença é que, de
Quando o reino de Deus é considerado tempo
acordo com lEnoque 90.16-38, o Messias apare
rário, segue-se geralmente um juízo, postula-se
cerá depois do juízo, ao passo que na maioria das
um novo mundo e procura-se no céu um reinado
outras obras (Or si, 3.652-656; Sl Sa, 17.14-41;
1053
R eino de D eus i : Evangelhos
lEn, 46.4-6; 62.3-12; 69.27-29; 4Ed 13.32-38; cf.
9.6,7). 0 reino aguardado significará glória para
Mt 25.31-46) ele derrota ou julga seus inimigos.
Israel e castigo para os gentios (Te Ms, 10.7-10).
Fazendo eco à ideia de Salmos 2.1-3, várias
O ZApocalipse de Baruque descreve o reino
obras pressupõem um ataque final dos ímpios
messiânico especialmente em três visões (consi
contra o Messias (Or si, 3.663-668; lEn, 90.16;
deradas anteriores a 70 d.C.). Na primeira visão
IQM 15-19; 4Ed 13.33,34) a fim de frustrar o esta
(2Ap Br, 27—30), a revelação do Messias instaura
belecimento do reino messiânico. Às vezes esses
uma época de prosperidade para “aqueles que fo
poderes são aniquilados por Deus (Te Ms, 10.2-7;
rem encontrados nesta terra” e “tiverem chegado
lEn, 90.18,19) ou, mais frequentemente, pelo
à consumação dos tempos”. Na segunda visão
Messias (4Ed 12.32,33; 13.27,28,37-39; 2Ap Br,
(2Ap Br, 36—40), o Messias aniquilará o inimi
39.7—40.2), que ocasionalmente é apresentado
go, 0 quarto império (refletindo Dn 7), e reinará
como guerreiro (Tgls, 10.27; Gn 49.11) e às vezes
“até que o mundo de corrupção tenha acabado
em categorias judiciais (lEn, 46.4-6; 45.3; 52.4-9;
[...] e os tempos [...] tenham se cumprido”. Na
5S.4; 61.8-10; cf. Mt 25.31-46).
terceira visão (2Ap Br, 53— 74), a prosperidade e
0 estabelecimento do reino do Messias en
a alegria absoluta chegam após a aniquilação dos
volve o ajuntamento dos israelitas dispersos
inimigos de Israel pelo Messias. 0 reino está asso
(Br 4.36,37, l x x ; 5.5-9;
Pm pn, 28; 4Ed 13.39-
ciado à esperança alimentada por Israel durante
47) e a restauração de Jerusalém (Sl Sa, 17.25,33;
muito tempo, embora a condição do Messias seja
lEn, 53.6; 90.28,29; 4Ed 7.26). O entendimento
sobrenatural.
F ilo ,
é que 0 reino messiânico implica o reinado der
As duas obras que revelam a influência mais
radeiro de Deus sobre seu povo (Or si, 3.704-
clara do FUho do homem de Daniel, as Similitudes,
706,756-759; Sl Sa, 17.1-4; IQM 19.1; Sh’môneh
de lEnoque, e 4Esdras, acompanham sua fonte,
'Esrêh, 11 bf’rãkâ], desse modo confirmando o
associando os concehos de reino e FUho do ho
conceito veterotestamentário de Deus como rei
mem. Em vários pontos das Similitudes (ou Pará
sobre Israel. O centro do reino é a Palestina, sen
bolas), 0 Filho do homem é alguém que exerce as
do Jerusalém “a joia do mundo” (Or si, 3.423),
funções de juiz e governante universal (lEn, 46.4-
embora Jubileus (obra de meados do séc. ii a.C.)
6; 62.3-12; 63.4; 69.27-29), e o hvro termina com
provavelmente apresente o primeiro caso de um
uma descrição da era messiânica (lEn, 71.15-17;
reino messiânico temporário de mil anos de dura
cf. lEn, 62.12-16; v.
C a r a g o u n is ,
1986, p. 84-119).
ção. Esse conceito surge gradualmente como re
O hvro de 4Esdras combina o Messias terre
sultado do desenvolvimento moral e espiritual do
no com 0 transcendental (4Ed 12.32), que morre
ser humano, e, durante esse período, os poderes
depois de reinar quatrocentos anos (4Ed 7.28,29;
do mal serão contidos (Jb, 1.29; 23.26-30).
outras versões trazem 1.030 anos). A ascendência
Semelhantemente, o terceiro hvro dos Orácu
davídica do Messias é, talvez, a maneira de o livro
los sibilinos (762-771, séc. ii a.C.) exorta o povo
destacar a continuidade do pensamento messiâni
ao viver justo como condição para Deus “erguer
co, embora o conteúdo seja de um Messias trans
seu reino por todas as eras sobre os homens”.
cendental, como se vê, por exemplo, em 4Esdras
Oráculos sibilinos 5.414 (c. 100 d.C.) descreve o
12.32-34 e 13.26 (v.
C a r a g o u n is ,
1986, p. 119-31).
Messias como “um Homem Bendito” vindo das
Nos manuscritos de Qumran, o termo mafküt
“planícies do céu” , o que talvez reflita a influên
ocorre mais de uma dezena de vezes, mas ape
cia de Daniel. Sob seu reinado, haverá paz (Or si,
nas uma vez para designar o reino de Deus
3.702), fartura e prosperidade (Or si, 3.744), de
(IQM 12.7). Na maioria das outras ocorrências,
que até mesmo o mundo animal participará (Or
designa o reino de Israel. Mas a ideia do reino
si, 3.788-795).
de Deus está latente na crença dos sectários de
De acordo com o Testamento de Moisés 10.1
que constituíam o verdadeiro povo de Deus e que
(séc. I d.C.), o reino de Deus “aparecerá por toda
deviam lutar na batalha escatológica contra os
a sua criação". Entretanto, o reino parece ser ter
inimigos de Deus (v.
reno, dá a impressão de não ter um Messias e
to; sobre o judaísmo em geral, v.
é introduzido pelo arrependimento (Te Ms, 1.18;
p. 492-554).
1
064
m a n u s c r it o s
do
m ar
S ch ü rer,
M o r
v. 2,
Reino de D eus i : Evangelhos
4. Jesus e o reino de Deus
individualista, espiritual é não escatológica, que
No ensino de Jesus, o debate gira em torno de
situava 0 reino de Deus na experiência do coração
duas questões: 1) a natureza e 2) a iminência do
da pessoa. Essa interpretação estava associada à
reino de Deus. Essas duas questões estão relacio
escola liberal. Para os liberais, a essência do cris
nadas entre si e nos últimos cem anos têm ocupa
tianismo se encontrava em certos princípios ge
do o centro do debate entre os estudiosos.
rais ensinados por Jesus, como a paternidade de
4.1 A visão dinâmica de Jesus. 0 pensamen
Deus e a irmandade de todos os humanos (e.g.,
to de Jesus acerca do reino de Deus dava conti
A.
nuidade à promessa do
gunda foi 0 movimento do evangelho social, na
at
e apresentava certas
voN H a rn a ck ,
1886; W.
H errm an n ,
1901). A se
características vistas também no judaísmo apo
Alemanha (C.
calíptico, especialmente em Daniel, mas ia além
e especialmente nos Estados Unidos, com sua ên
deles em alguns aspectos importantes: 1} o rei
fase na presente ordem social baseada no amor e
no de Deus era basicamente dinâmico, não uma
na solidariedade (S.
entidade geográfica; 2) ele estava vinculado ao
1900; particularmente W.
B lu m h a r d t ,
c. 1900; L.
M a th e w s ,
R agaz,
1897; F. G.
Rauschenbusch,
1911)
Peabody,
1912).
destino do Filho do homem; 3) a entrada no reino
Contudo, a interpretação mais importante
não se baseava na aliança nem estava restrita aos
para o ininterrupto debate entre os estudiosos foi
judeus; 4) enquanto no apocaliptismo era uma
a do genro de Ritschl, J. Weiss, em Die Predigt
vaga esperança futura, em Jesus é algo certo e
Jesu vom Reiche Gottes [A proclamação de Jesus
iminente, exigindo resposta imediata.
acerca do reino de Deus] (1892), obra que marcou
À semelhança dos apocaliptistas, Jesus sus
época. Weiss reagiu fortemente à interpretação de
tentava que o reino de Deus não era uma reali
Ritschl, destacando a natureza futura, escatológi
zação humana, mas um ato de Deus. Por outro
ca e apocalíptica do reino de Deus, que enfrenta
lado, ao contrário deles, Jesus não imaginava o
a oposição do reino de Satanás. O reino de Deus
reino de Deus se manifestando após um período
irromperia sem aviso, seria exclusivamente obra
de catástrofes, mas surgindo de maneira mansa,
de Deus e eliminaria a ordem presente. A obra de
tranquila e discreta. Para Jesus, o elemento ca
Weiss provocou uma tempestade e, com ela, um
tastrófico consistia no abalo que seu chamado
interesse sem precedentes pelo tema. Nas mãos
provocava nas relações entre seus seguidores e
de A. Schweitzer, o enfoque iniciado por Weiss
os famihares, entre amigos e até no ser humano
tornou-se conhecido como Konsequente Escha
consigo mesmo. Os seguidores de Jesus deveriam
tologie ( “escatologia consistente” , “ futurista” ou
estar prontos para “ odiar” a vida se quisessem ser
“completa e profunda”). No devido tempo, a es
dignos dele e do reino de Deus.
catologia reahzada de C. H. Dodd surgiria como
4.2 O reino como presente ou futuro — o
0 polo oposto a esse enfoque. Nesse ínterim, G.
debate atual. No debate atual, a questão do rei
Dalman (1898), recorrendo à filologia, demons
no de Deus no ensino de Jesus gira em torno de
trou 0 caráter dinâmico do reino de Deus no ju
três indagações. Qual a sua essência? Como ele
daísmo e no
está relacionado com a pessoa e a obra de Jesus?
básica de quase todos os debates subsequentes.
Quando virá o reino?
NT,
que veio a ser a pressuposição
De acordo com Dalman, o conceito de reino de
Nos últimos cem anos, desde a obra de A.
Deus não apresenta nenhum aspecto territorial
Ritschl e J. Weiss, o reino de Deus tem ocupado o
ou geográfico, mas expressa dinamicamente o
centro dos debates, e as três perguntas acima têm
governo régio de Deus, que é basicamente esca
recebido diversas respostas. Ritschl, influenciado
tológico. A interpretação teológica, no entanto,
pela filosofia idealista de Kant, concebeu o reino
foi dada por A. Schweitzer.
de Deus em termos éticos, imaginando-o como
Em Das Messianitãts- und Leidensgeheimnis
a organização da humanidade redimida, cujas
(ti:
ações são inspiradas pelo amor
of Jesus’ messiahship and passion. [O mistério
The mystery o f the kingdom o f God: the secret
O interesse gerado pela obra de Ritschl deu
do reino de Deus: o segredo da messianidade e
origem a várias e importantes interpretações do
da Paixão de Jesus]] (1901), especialmente em
reino de Deus. A primeira foi a interpretação
A busca do Jesus histórico (original alemão de
1
Reino de D eus i : Evangelhos
1906), obras que se tornaram ponto de referência
a fraseologia da
lx x
na tradução do aramaico de
nos estudos sobre o reino de Deus, Scliweitzer
Daniel, as expressões idiomáticas gregas da épo
interpreta não apenas o ensino de Jesus, como
ca de Jesus e as parábolas do reino constituíam
Weiss havia feito, mas também todo o ministério
em conjunto um apoio à sua tese de que o reino
de Jesus em termos consistentemente escatológi
de Deus já era uma reahdade presente durante
cos. Jesus é interpretado como um personagem
0 ministério de Jesus. 0 acontecimento decisivo
apocalíptico que esperava que o fim acontecesse
havia ocorrido na vinda de Jesus. As curas opera
durante a missão dos Doze (Mc 6.7-13 e par.),
das por ele, em particular as expulsões de demô
motivo pelo qual não esperava tornar a ver os dis
nios, eram demonstrações de que, na pessoa e na
cípulos. Entretanto, ele estava enganado a respei
obra de Jesus, a soberania divina havia desferido
to disso. O fim não veio — nem o reino de Deus.
0 golpe decisivo no reino de Satanás e era, indu
Tendo arriscado tudo nessa expectativa e desco
bitavelmente, uma reahdade presente. Em certo
brindo que estava errado em sua predição sobre
sentido, Dodd identificou o reino de Deus com a
0 fim, Jesus decidiu se lançar impetuosamente ã
pessoa de Jesus, permitindo que o reino de Deus
morte, na tentativa final e heróica de forçar Deus
fosse entendido como uma reahdade atemporal.
a estabelecer seu reino. 0 impacto de Schweitzer,
“ 0 absoluto, o ‘totalmente outro’, penetrou no
em particular na Alemanha, pode ser aferido pelo
tempo e no espaço”
fato de que essa escatologia futurista se tornou o
vel aconteceu: a história se tornou o veículo do
enfoque alemão característico.
eterno; o absoluto vestiu-se de carne e sangue”
Como reação ã unilaterahdade do ponto de
(D o d d ,
(D o d d ,
p. 81). “O inconcebí
p. 147). Na interpretação de Dodd acerca
vista alemão, vários estudiosos britânicos, como
do reino de Deus, “a escatologia futurista desapa
A. T Cadoux (1930) e T W. Manson (1931), e
rece, e tudo que resta é ‘o eschaton [o fim]’ como
mesmo alguns alemães, como E. von Dobschütz e
0 Eterno”
H.-D. Wendland, destacaram no ensino de Jesus o
Dodd ignorou as afirmações dos Evangelhos que
elemento presente do reino de Deus. À semelhan
apresentavam o reino de Deus como futuro.
(L u n d s tr õ m ,
p. 121). Para chegar a isso,
ça de Schwehzer, R. Bultmann entende que Jesus
A influência de Dodd tem sido imensa, for
esperava que o reino de Deus começasse com
çando importantes modificações na interpretação
sua morte e, por isso, subiu a Jerusalém a fim de
futurista. Nos últimos 45 anos, ela tem suscitado
purificar o templo, como preparativo. Buhmann
várias opiniões intermediárias, que concebem o
concebe o reino de Deus como uma entidade fu
reino de Deus ao mesmo tempo como presente e
tura, escatológica, supra-histórica e sobrenatural,
futuro, com o lado alemão tendendo mais para o
que põe o ser humano diante de uma decisão.
aspecto futuro, e o britânico, mais para o aspecto
Contudo, diferentemente de Schweitzer, na inter
presente. Por exemplo; W. G. Kümmel, Verheis-
pretação desmitologizante de Buhmann o reino
snng und Erfüllung (1945)
de Deus está sempre vindo e, desse modo, deixa
fillment [Promessa e cumprimento], 1961); G. R.
de ser um acontecimento futuro, que se aguarda
Beasley-Murray (1954, p. 312-6; 1986, p. 75-80);
e pode ser aguardado. Uma vez que a decisão é
E. Jüngel, Schnackenburg, N. Perrin, D. C. Alhson
contínua, o reino de Deus não é um acontecimen
(p. 99-114). Numa tendência semelhante, J. Je
to no tempo. Assim, o reino de Deus, esvaziado
remias, por sugestão de E. Haenchen, apresenta
de seu conteúdo, transcende o tempo sem nunca
o reino de Deus como sich realisierende Escha
entrar nele. Em suma, Buhmann entende o rei
tologie (“uma escatologia em processo de rea
no de Deus basicamente de forma existencialista,
lização”), termo preferido por Dodd, mas que
como a hora da decisão do indivíduo.
aparentemente nunca permitiu que modificasse
(t i:
Promise and ful
Entretanto, o estudioso que deu forma defi
sua interpretação básica. R. H. Fuher (p. 25-7)
nitiva a essa reação foi Dodd. Em The parables
interpreta ephthasen como “é chegado”, mas
o f the kingdom [As parábolas do reino] (1935),
apoiado no recurso profético de falar proleptica-
Dodd interpreta, por exemplo,, o éngiken de
mente de um acontecimento, como se já tivesse
Marcos 1.15 e seus pai‘alelos à luz do ephthasen
ocorrido. Para Fuller, ao agir antecipadamente, os
de Mateus 12.28 (par. Lc 11.20). Ele afirma que 1
poderes do reino de Deus já estavam se fazendo
066
Reino de D eus i : E vangelhos
sentir nos feitos de Jesus, e essa interpretação
ativo em Jesus. Os milagres de Jesus eram “ o rei
foi denominada “escatologia proléptica”. G. Flo-
no de Deus em ação”. Mas seria exagero afirmar
rovsky e A. M. Hunter (p. 94) defendem uma
que a presença do reino de Deus indica algo con
escatologia inaugurada, ao passo que, com base
cluído: o reino presente funciona como precursor
numa tradução de ephthasen por “é chegado”, G.
do reino vindouro e consumado de Deus.
E. Ladd acredita num cumprimento do reino de
Beasley-Murray pensa que, como tradução de
Deus na história (i.e., no ministério de Jesus) e
ephthasen (Mt 12.28 e par.), “é chegado” tem um
numa consumação plena, por ocasião do fim da
significado “inambíguo e claro” e critica os de
história, e chama sua concepção de “escatologia
fensores da escatologia futurista por procurarem
do realismo bíblico”.
“ maneiras de emudecer o testemunho [do ter
Kümmel é tido como o estudioso que chegou
m o]”
(B e a s le y - M u r r a y ,
1986, p. 75-6). Os milagres
mais próximo de uma “síntese autêntica das esca-
de Jesus, especialmente as expulsões de demô
tologias realizada e futurista no ensino de nosso
nios, dão um testemunho eloquente da presença
Senhor”
do reino. Contudo, a chegada do reino de Deus,
(B e a s le y - M u r r a y ,
1954, p. 103). Dessa ma
neira, ao mesmo tempo que acertadamente reco
mencionada em Mateus 12.28 e na passagem pa
nhece o caráter futuro das declarações de Jesus
ralela, não é sua consumação, que Beasley-Murray
e admhe um intervalo entre a Pabcão e a parusia
— à semelhança de Schnackenburg, Kümmel,
(Mc 2.18-20; 8.38 par. Lc 12.8,9), ele entende que
Ladd e outros — considera futura.
— seguindo a hnha de pensamento de Dodd — o
Uma opinião semelhante é a de D. C. Alhson.
ephthasen de Mateus 12.28 tem o sentido de “é
Ele acompanha a interpretação usual de ephtha
chegado” e deixava implícito que o fim já esta
sen e, assim, segue o consenso atual de que o
va em operação em Jesus. Na pessoa e nas ações
reino de Deus é ao mesmo tempo presente e fu
de Jesus, o futuro já estava reahzado, pois aquele
turo. A relação entre presente e futuro é expli
que introduziria e realizaria a salvação no final já
cada recorrendo-se ao pensamento judaico, que
estava presente. Dessa forma, o futuro do reino
“podia vislumbrar os acontecimentos finais — o
de Deus e sua vinda estavam intimamente ligados
julgamento do mal e a chegada do reino de Deus
ao presente, que tinha Jesus como seu centro. O
— como algo que se estendia por certo tempo
reino de Deus estava presente na pessoa, ensino e
e como um processo ou série de acontecimentos
obras de Jesus. Pela fé nele as pessoas recebiam o
que podiam envolver o presente. Quando Jesus
reino de Deus e a garantia da aparição desse mes
anunciou que o reino de Deus chegou e está che
mo reino. Essa garantia deixava implícito que o
gando, isso significava que o último ato tivera
reino de Deus devia se cumprir nele. Desse modo,
início, mas ainda não atingira o clímax: as últi
a promessa e o cumprimento estão indissoluvel
mas coisas são chegadas e chegarão”
mente associados um ao outro. Ladd (p. 123-4)
p. 105-6). E, também, “para Jesus o reino de
(A lu s o n ,
critica Kümmel por não exphcar o que é exata
Deus, 0 estabelecimento escatológico do governo
mente o reino de Deus. De acordo com E. Grãsser
régio de Deus, logo estava para chegar em sua
(p. 7), o que Kümmel entende como presente não
plenitude”
é o reino de Deus, mas sua iminência.
(A llis o n ,
p. 114).
Portanto, pode se concluir que os que enfati
R. Morgenthaler, R. Schnackenburg e Beasley-
zam a presença do reino de Deus nas obras de
Murray (1986) interpretam ephthasen com o sen
poder realizadas por Jesus também dão margem a
tido de “é chegado” , embora para Morgenthaler o
uma completação ou consumação futura do reino
termo apenas deixe implícito que o reino de Deus
de Deus. Os que defendem a futuridade do rei
está por perto, mas não de fato presente. Para
no de Deus dão margem a algum tipo de influên
Schnackenburg, significa que o reino de Deus
cia que a proximidade iminente do reino de Deus
está “associado com a pessoa [de Jesus] e sua
teria exercido no ministério de Jesus. Ambas as
obra”
opiniões tentam exphcar elementos importantes
(S c h n a c k e n b u rg ,
p. 109). Embora veja o rei
no de Deus como algo inteiramente escatológico
das informações encontradas nos Evangelhos.
e sobrenatural, no caráter salvífico do reino Sch
De natureza bem diferente é a obra mais re
nackenburg também o concebe como presente e
cente de N. Perrin, que abandonou sua antiga
1067
R eino de D eus i : E vangelhos
convicção (1963). Estimulado por críticos lite
de Jesus e que consistia em Jesus expulsar demô
rários como P. Wheelwright (1962), P. Ricoeur
nios (ou pelo menos ele se ocupava disso) será
(1969), A. N. Wilder (1964), R. W. Funk (1966),
uma resposta satisfatória às indagações sobre a
D. 0. Via (1967) e F. D. Crossan (1973), Perrin
essência, a chegada e a relação do reino de Deus
apresentou a teoria de que “reino de Deus” não
com a pessoa e a obra de Jesus. Caso o reino de
é uma ideia nem um conceito, mas um símbolo
Deus já tivesse chegado na época em que Jesus
mítico
fez a declaração de Mateus 12.28 (par. Lc 11.20),
(P e r r in ,
1976, p. 33). Ele adotou a distin
ção, feita por Wheelwright, entre estenossímbolo
como entender o restante da existência terrena de
(ou monossímbolo), que possui um significado
Jesus? E que dizer do dever do Filho do homem
fixo (uma correspondência um a um entre símbo
de “dar a vida em resgate de muhos”? Qual a im
lo e referente como em hnguagem apocalíptica),
portância de sua morte? E como Jesus relacionou
e símbolo tensivo (ou plurissigno), que é aberto
sua morte com o reino de Deus? Falar de uma
e multissugestivo, possuindo um conjunto ines
consumação flnal ou plena em algum momento
gotável de sentidos. A proclamação do reino de
do futuro não responde satisfatoriamente a essas
Deus feita por Jesus envolvia o símbolo tenso, o
perguntas. E enfatizar a vinda do reino como an
qual, no entanto, seus seguidores transformaram
terior à época do ephthasen nos leva a indagar se
num estenossímbolo apocalíptico, fazendo com
a morte de Jesus não é supérflua para essa vinda.
que 0 reino de Deus perdesse sua rica variedade
Qualquer solução viável precisa levar em conta a
de referências e, em vez disso, se referisse a um
hnguagem empregada e a relação entre o reino de
acontecimento privado da experiência universal.
Deus e o FUho do homem (v. 4.5 abaixo). 4.3.1
Perrin acredita que a totalidade do ensino de Jesus
Ephthasen (Mateus 12.28/Lc 11.20). É
tinha 0 objetivo de “mediar uma experiência de
fato indubitável que os Sinóticos apresentam Jesus
Deus como rei, de tal ordem que conduzirá o
como alguém que anunciou o reino de Deus como
1976, p. 54). Embora
algo iminentemente próximo [éngiken), e João
os aspectos simbólicos e metafóricos do reino de
Batísta também o fez (Mt 3.2). O problema criado
mundo a um fim”
(P e r r in ,
Deus e de suas parábolas devam ser explorados
pelo termo ephthasen resuha de uma interpreta
com proveho, dificilmente se pode afirmar que a
ção dúbia. Ephthasen faz pleno sentido caso seja
análise e as afirmações de Perrin façam justiça
entendido como uma expressão idiomática grega
aos dados bíblicos ou que tenham conduzido a
bem atestada, mas pouco conhecida e em geral
uma compreensão mais aprofundada ou mais vá
mal compreendida. Às vezes, emprega-se o tempo
lida do reino de Deus. Não são poucas as vezes
aoristo para ressaltar a certeza e o imediatismo de
em que a opinião de Perrin envolve contradições
uma ação que pertence propriamente ao futuro,
internas, e suas categorias são inaplicáveis aos
descrevendo-a como se já tívesse ocorrido
textos dos Evangelhos (v. tb. a crítica de
g o u n is ,
M u rra y,
4.3
1986, p. 338-44;
A llis o n ,
B e a s le y -
(C a r a
1989, p. 12-23). Em comparação com as
declarações envolvendo o termo éngiken, ephtha
p. 107-12).
A iminência do reino. Com base no ex sen deixa imphcito um progresso, mas não exa
posto acima, deve ter ficado claro que a interpre
tamente a presença do reino de Deus, o qual, no
tação do termo ephthasen, de Mateus 12.28 (par.
texto de Mateus 12.28/Lucas 11.20, ainda é futuro.
Lc 11.20), termo geralmente aceito como pronun
Na prátíca, o que Jesus está dizendo é; “Se é pelo
ciado numa frase autêntica de Jesus, tem desem
Espírito/dedo de Deus (em vez de por Belzebu,
penhado um papel crucial nos debates sobre o
conforme afirmais) que expulso os demônios (i.e., preparando para a vinda do reino de Deus
reino de Deus. Isso ocorre porque nos Sinóticos é a única de
ao derrotar as forças do mal), então o reino de
claração acerca do reino que aparentemente des
Deus está na iminência de irromper sobre vós (e
creve o reino como já tendo chegado. Dodd estava
vos suplantar em vossa condição de obstinação
tão seguro desse significado que lhe permitiu de
e faha de arrependimento)” (v.
E s p ír it o S a n t o ) .
terminar sua interpretação das declarações envol
Ephthasen debca implícho que a vinda do rei
vendo 0 termo éngiken. DificUmente a afirmação
no de Deus é tão iminente que podemos consi-
de que o reino de Deus haviã chegado na pessoa
derá-lo praticamente entre nós. Isso significa que
1
068
R eino de D eus i : Evangelhos
a força dessa declaração não é meramente infor
paratêréseõs (“com sinais [apocalípticos?] que se
mativa, pois então se teria perdido a força de eph ’
pode observar” ; a
hyma (“sobre vós”), mas de advertência, quase
cia”) e os acréscimos “ Ei-lo aqui!” e “Lá está!”
ara
traz “com visível aparên
de ameaça. A força ameaçadora de eph ’ hymas
Desse modo, a interpretação que não leva em
mostra claramente que o reino de Deus ainda não
conta a intenção do autor, deixando de contrastar
chegou. A relação entre os
de Jesus e o
entos hymõn com meta paratêréseõs, deixa de fa
reino de Deus é que eles dão testemunho da guer
zer justiça ao propósito de Lucas. Aqui Jesus está
ra que 0 Filho do homem (i.e., o agente do reino)
tentando desencorajar especulações apocalípticas
travou contra os poderes do mal, para estabelecê-
e cálculos baseados em sinais observáveis (v.
lo. Mas o reino de Deus não consiste naqueles
C A L iP T isM o).
mUagres. Os mUagres de Jesus são apenas os ele
é a forma de Lucas expressar a natureza e a di
m ila g r e s
apo-
Por isso, parece que “dentro de vós”
mentos prehminares, não o reino de Deus (con
nâmica interiores do reino de Deus, em vez de se
tradizendo Dodd). O reino de Deus é o governo
referir a qualquer presença concreta nos fariseus
dinâmico de Deus sobre seu povo. A declaração
ou no meio deles.
aponta para a cruz. 4.3.2
Parece que nos Sinóticos não existe uma úni
Entos hymõn estin [Lc 17.21). Outra de ca frase acerca do reino de Deus que exija cla
claração frequentemente apresentada como prova
ramente que se interprete no tempo presente.
da presença do reino de Deus é Lucas 17.2L Nes
0 reino de Deus é apresentado como atemporal
sa passagem, Jesus responde, com as seguintes
(notavelmente nas parábolas), ou como objeto de
palavras, à pergunta dos fariseus acerca da época
proclamação, ou ainda em suas exigências (Mar
da vinda do reino de Deus: “ Não vem o reino
cos [9/lOx]; Lucas [17/19x]; Mateus [25/31x])
de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo
ou como algo futuro do ponto de vista da elo
aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está
cução (Marcos [5/6x]; Lucas [19/21x]; Mateus
dentro de vós [entos hymõn estin]"
[19/25x1).
(a r a )
. 0 signifi
4.4
cado básico de entos é “dentro de” , sendo o opos
O reino no ensino de Jesus. Desde o início,
to de ektos, “fora de”. Esse significado aparece em
os Sinóticos apresentam Jesus como alguém en
todo o corpus hterário grego, inclusive os papiros
carregado de apresentar uma única mensagem,
e o grego moderno. Já se tentou interpretar entos
convincente e irresistível, a mensagem de que o
hymõn como “no meio de vós” , “entre vós”, “em
reino de Deus é iminente. A impressão que se tem
vossa esfera” ou “ dentro de vossa compreensão” ,
é de que o fim se aproxima, de que o reino de
implicando que hymõn seja interpretado como re
Deus prometido há muito tempo está na iminên
ferência aos fariseus ou aos futuros seguidores de
cia de aparecer e que chegou a hora da decisão.
Jesus, caso em que é atribuído a estin (“está”) um
0 reino de Deus aparece de duas maneiras; cons
significado futuro (i.e., “o reino de Deus estará
titui 0 âmago do ensino de Jesus e é confirmado
repentinamente entre vós” etc.).
pelos feitos poderosos que ele realizou (v., e.g.,
Um exame dos textos gregos antigos a que se
Mt 4.23; 9.35). Um terceiro componente é que
tem recorrido em busca de apoio para esses signi
0 reino de Deus está inextricavelmente hgado à
ficados (e.g.,
pessoa de Jesus na condição de Filho do homem
H e r ó d o to ; X e n o fo n te ;
Sím.; papiros)
mostra que regularmente o sentido é “ dentro de”
(v. 4.5 abaixo).
e que o senüdo de “entre” é baseado nuns pou cos (e às vezes obscuros) casos
4.4.1
As condições e as exigências do reino. A
Sím.). 0
primeira condição é; “Arrependei-vos e crede no
papiro Oxy 654,16 (que é um paralelo do Evange
evangelho” (Mc 1.15; Mt 4.17). Uma fé como de
lho de Tomé] contém uma declaração semelhante
criança é o pressuposto para ingressar no reino de
à de Lucas, cujo significado claro e direto é: “ 0
Deus (Mt 18.3; Mc 10.14 e par.). 0 evangelho são
(Á q u ila ;
reino [de Deus] está dentro de vós”. Deve se con
as boas-novas sobre a soberania de Deus. 0 ato
siderar decisivo o uso de Lucas. 0 senüdo “entre”
escatológico e salvífico de Deus exige um coração
ocorre um bom número de vezes em Lucas-Atos,
não dividido (Mc 12.29,30 e par.). Por isso, o que
mas a expressão sempre é en [tõ] mesõ hymõn,
abre a porta para o reino de Deus não é professar
nunca é entos. 0 entos hymõn é o oposto de meta
0 evangelho da boca para fora, nem mesmo usar
1 069
R eino
de
Deus
i
:
E va n g e lh o s
0 nome de Jesus para realizar milagres, mas fazer
aplicar rigidamente o princípio de Jühcher, pois
a vontade divina (Mt 7.21-23). Nada pode estar
existem casos em que a parábola pode transmitir
no caminho do reino, pois aquele que põe a mão
mais de uma ideia.)
no arado e olha para trás não é apto para o reino
As parábolas do reino têm sido consideradas
de Deus (Lc 9.62). 0 reino pode exigir o sacrifício
0 elemento mais autêntico do ensino de Jesus e
de renunciar ao casamento, à família (Mt 19.12)
aparecem em coletâneas concentradas em Marcos
ou aos bens (Mc 10.21-27 e par.). Em compensa
4 e Mateus 13. Essas parábolas Uustram aspectos
ção, ele oferece a promessa de recompensar cem
diferentes do reino de Deus: a reação do povo
vezes mais (Mc 10.29-31 e par.). A exigência se
ã mensagem do reino (o semeador, Mc 4.3-9;
torna ainda mais radical quando o candidato a
Mt 13.3-9); a natureza discreta do reino de Deus,
discípulo recebe a oportunidade de escolher entre
em contraste com a expectativa apocalíptica de
deixar que a mão que traz a tentação seja cortada
cataclismo (a semente que cresce em sUêncio,
fora e o olho que traz a tentação seja arrancado
Mc 4.26-29); o crescimento formidável do reino a
ou então mantê-los e ser lançado na geena (Mc
partir de um começo insignificante (a semente de
9.47 e par.; “inferno” , a r a ) . Deve se preferir o rei
mostarda, Mc 4.30-32; Mt 13.31,32; o fermento,
no a tudo 0 mais. Hido isso ilustra a seriedade
Mt 13.33); o fato de que os envolvidos no reino
com que se deve agir com relação ao reino de
de Deus estão misturados com os outros e que
Deus, não os atributos superiores ou morais que
no final ocorrerá a separação (o joio e o trigo,
qualificam o ser humano para a entrada no rei
Mt 13.24-30, com sua provável interpretação ale
no. Ou seja, deve se procurar entrar pela porta
górica, Mt 13.36-43; e, com toda a probabihdade,
estreita (Mt 7.13,14), agir com determinação e se
a rede de arrasto, Mt 13.47-50); o valor inestimá
apoderar do reino (Mt 11.12).
vel do reino de Deus, pelo qual devemos estar
4.4.2 A ética do ráno. A
é tic a
do reino de Deus
é a ética que Deus espera dos que estão determi
dispostos a abrir mão de tudo (o tesouro e a pé rola, Mt 13.44-46).
nados a fazer sua vontade. As exigências éticas
O uso de parábolas por Jesus suscita a ques
estão espalhadas por todo o ensino de Jesus, mas
tão de seu propósito. No relato de Mateus, os
aparecem de maneira mais concentrada no
S er
discípulos indagam acerca do motivo de sua apli
5— 7; v. tb. Lc 6.17-49). Vemos
cação (Mt 13.10), e a resposta de Jesus tem dado
m ã o DO M o n t e ( M t
aqui uma continuação do ensino ético do
em
margem a muhas interpretações: “ Porque a vós é
bora as exigências de Jesus ultrapassem o ensino
dado conhecer os mistérios do reino do céu, mas
do
não a eles” (Mt 13.11). A exphcação parece ser
AT,
a t,
pois alcançam o que está por trás da letra,
chegando ao espírito e à intenção desse mesmo
que, tendo rejeitado a mensagem de Jesus quan
ensino. No fim, Jesus atua motivado por puro
do esta lhes foi exposta, os “de fora” (Mc 4.11)
amor e devoção a Deus e por puro amor ao próxi
deliberadamente mantiveram os olhos fechados
mo. Dessa maneira, por exemplo, os mandamen
e o coração endurecido, de modo que agora a
tos “Não matarás” , “ Não aduherarás” , “ Não dirás
mensagem é apresentada na forma de parábolas,
falso testemunho” são apenas aspectos parciais e
que em parte revelam e em parte ocuham a ver
particulares do maior de todos os mandamentos,
dade. Mas, embora a interpretação — e com ela
a saber, amor absoluto a Deus e ao próximo. 0
o significado exato — lhes seja negado, o povo
amor é o cumprimento de todos os mandamentos
ainda consegue captar satisfatoriamente a ideia
(cf.
geral das parábolas (cf. Mc 12.12 e par.: “... per
M t
22.40). Ao que parece, a conclusão lógica
ceberam que havia proferido essa parábola contra
é que o amor torna supérfluos os mandamentos. 4.4.3 As parábolas do reino. Jesus proclamou
0 reino de Deus também por meio de
p a r á b o la s .
Após séculos de interpretação alegórica, em que
eles”). Por isso, não é exagero dizer que às vezes as parábolas possuem um tom polêmico, além de serem usadas para ilustrar o reino de Deus.
cada detalhe recebia um significado, A. Jühcher
4.5
O reino de Deus e o Filho do homem. Não
demonstrou que as parábolas possuíam uma
se deve fazer separação entre o reino de Deus e
ideia essencial e que os demais detalhes eram os
o Filho do homem, o qual, no ensino de Jesus,
ornamentos necessários ã história. (Não se deve
assim como em Daniel, é o agente desse reino. 0
1070
R eino de D eus i : Evangelhos
destino do Fillio do homem, portanto, está dire
interpretar que, de alguma' maneira, a expressão
tamente hgado à vinda do reino de Deus. A ati
deixe implícita alguma incerteza quanto à vinda
vidade do Filho do homem, especialmente o fato
do reino. “ Em potencial” significa simplesmen
de ele expulsar demônios, faz parte da proclama
te que no ministério de Jesus o reino de Deus
ção do reino de Deus. Essas atividades devem ser
não está presente em sentido absoluto ou inde
consideradas menos como indicação da ocorrên
pendente, mas apenas na medida em que é re
cia real do evento decisivo do reino, e mais como
presentado por Jesus. A chegada e a presença do
a guerra prehminar do Filho do homem contra
reino de Deus pelos próprios méritos são descri
os poderes malignos no seu empenho para tornar
tas como um acontecimento futuro. Dessa manei
possível a entrada do reino de Deus na história
ra, se formos associar a escatologia ao reino de
humana. Não se deve interpretar essa guerra —
Deus durante o ministério terreno de Jesus, então
os ataques do Filho do homem contra o reino do
é mais correto falar de escatologia em potencial.
mal — como simples atividade exorcista helenís
Ou seja, uma escatologia que ainda não começou
tica ou judaica. Em vez disso, ela deve ser asso
a se revelar em acontecimentos finais e catastrófi
ciada à missão do Filho do homem, que é “ servir
cos, mas em princípio eles estão presentes em Je
e [...] dar a vida em resgate de muhos” {Mc 10.45
sus, porque ele, na condição de Filho do homem,
e par.). De outra forma, o vínculo entre o reino de
é o agente do reino de Deus. Entretanto, o minis
Deus e a cruz não seria perceptível.
tério de Jesus e seu ensino apontam para o acon
Por esse motivo, o que propomos é que a
tecimento terrível e imediato da cruz, em que o
perspectiva da proximidade de uma morte vio
Filho do homem cumpre a missão que Deus lhe
lenta (v.
confiou com respeito à chegada do reino de Deus.
C r is t o , m o r te d e ), à
qual Jesus atribuía
um significado propiciatório, o levou a mudar o
4.7
A consumação. Mesmo esse acontecimen
éngiken para ephthasen e, desse modo, caracteri
to decisivo (o conjunto cruz/ressurreição) não es
zar a vinda do reino de Deus como algo que, de
gota a totalidade do conteúdo ou da expectativa
um modo sem precedentes, era certo e iminente.
da promessa. Parece ser o acontecimento funda
Visto dessa perspectiva, o reino de Deus, embora
mental que torna possível a chegada do reino de
estivesse mais próximo que nos casos de éngiken,
Deus no tempo, mas em princípio também torna
ainda não havia chegado, como parece{m) tes
possível sua plena manifestação e consumação,
tificar, nos Evangelhos Sinóticos, a{s) última(s)
que está no fim da história (v.
vez (es) em que o reino de Deus ocorre antes da
Nesse aspecto, o conceito de reino de Deus está
paixão de Cristo.
em paralelo com o conceito joanino de vida eter
4.6
Ladd,
p. 307-28).
Escatologia em potencial. À guisa de con na e o conceito pauhno de salvação. Assim como
clusão, pode se dizer que, durante o ministério
se diz que aqueles que depositam sua fé na obra
de Jesus, o reino de Deus é sempre considerado
expiatória de Cristo têm a vida eterna, estão em
um acontecimento futuro. É um acontecimento
Cristo ou estão salvos — apesar do fato de a vida
aguardado, desejado e pelo qual se deve orar.
eterna ou a salvação serem conceitos essencial
Mas nunca é dito exphcitamente que ele chegou,
mente escatológicos — , assim também se pode
nem mesmo por ocasião da
O que
dizer com precisão, a respeito dos que creem, que
Ú ltim a
C e ia .
está presente é o agente do reino de Deus. Mas,
eles entraram no reino de Deus — apesar do fato
pelo fato de o agente do reino de Deus estar pre
de que o reino de Deus, assim como a vida eterna
sente e ativo por meio de seu ensino e de obras de
e a salvação, só pode ser plenamente experimen
poder, também se pode dizer que o reino de Deus
tado no final dos tempos.
está presente em potencial. Entretanto, ainda está no futuro o acontecimento decisivo para sua vin
5. Os Evangelhos
da, isto é, para que seus poderes sejam liberados
Os Evangelhos Sinóticos contêm 76 menções ao
a fim de produzir bênçãos salvíficas.
reino — ou 103, se incluirmos os textos paralelos:
A expressão “em potencial” não torna mais
1) Marcos, Mateus e Lucas (Mc 4.11 par.
explícito o termo “ reino de Deus”, apenas as pa
Mt 13.11 e Lc 8.10; Mc 4.30 par. Mt 13.31 e
lavras “presente em Jesus”. Por isso, não se deve
Lc 8.10; Mc 4.30 par. Mt 13.31 e Lc 13.18;
1071
Reino de D eus i : Evangelhos
Mc 9.1 par. Mt 16.28 e Lc 9.27; Mc 10.14
Além disso, Mateus possui uma referência
par. Mt 19.14 e Lc 18.16; Mc 10.15 par.
adicional ao “reino de Deus” (Mt 7.21) e uma “ao
Mt 18.3 eL c 18.17; Mc 10.23 par. Mt 19.23
“reino” (Mt 6.13) em parte da tradição textual.
e Lc 18.24; Mc 10.25 par. Mt 19.24 e
As informações contidas nos Evangelhos quanto
Lc 18.25; Mc 14.25 par. Mt 26.29 e
à distribuição das várias expressões aparecem na
Lc 22.18);
tabela 1.
2) Marcos e Mateus (Mc 1.15 par. Mt 4.17); Tabela t
3) Marcos e Lucas (Mc 15.43 par. Lc 23.51); 4) Mateus eLucas (Mt 5.3 par. Lc 6.20; Mt 6.10 par. Lc 11.2; Mt 6.33 par. Lc 12.31; Mt 8.11
Mt
Mc
Lc
Jo
5
14
32
2
: 32
—
—
—
Reino
13
—
'
7
:
3
Total
50
14
,
39
,
5
Reino de Deus
par. Lc 13.29; Mt 10.7 par. Lc 9.2; Mt 11.11 par. Lc 7.28; Mt 11.12 par. Lc 16.16; Mt
Reino do céu
12.28 par. Lc 11.20; Mt 13.33 par. Lc 13.20); 5) Marcos (4.26; 9.47; 10.24; 12.34); 6) Mateus (3.2; 4.23; 5.10,19 [2x],20; 7.21; 8.12; 9.35; 13.19,24,38,41,43,44,45,47,52;
As declarações joaninas não possuem parale
16.19; 18.1,4,23; 19.12; 20.1,21; 21.31,43;
los nos Sinóticos. As três expressões, “reino de
22.2; 23.13; 24.14; 25.1,34);
Deus” (RD), “ reino do céu” (RC) e “reino” (R),
7) Lucas (1.33; 4.43; 8.1; 9.11,60,62; 10.11;
estão distribuídas de acordo com a tabela 2.
12.32; 13.28; 14.15; 17.20,21; 18.29; 19.11; 21.31; 22.16,29,30; 23.42).
Tabela 2
Evangelho
Total 50
Mt
Exclusivo
Mt-Mc-Lc
32; 20 RC 2 RD 10 R
8; 5 RC 1 RD 2R
Mt-Mc 1 RC
Mc-Lc
Mt-Lc —
—
9: 6RC 2RD 1R
—
—
—
Mc
; 14
4 RD
8 RD
1 RD
—
1 RD
Lc
! 39
21; 17 RD 4R
8RD —
—
—
9: 7RD 2R
1 RD —
5.1
Marcos.
M a rco s
introduz o ministério pú mais apocalíptica. O posicionamento dos verbos
blico de Jesus com a declaração, em forma de
“arrependei-vos” e “crede” pode favorecer a se
sumário, de que Jesus proclamou o evangelho
gunda ahernativa; mas, mesmo no caso da espe
de Deus, dizendo: “ Completou-se o tempo, e o
rança nacional, esperava-se que Israel guardasse
reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e cre
impecavelmente a Lei pelo menos por um dia (v.
de no evangelho” (Mc 1.15). A localização desse
b. Ta‘an., 64a).
texto na estrutura de Marcos indica que a pro
Em Marcos 4, o ensino de Jesus por meio de
clamação do reino de Deus estava no âmago da
parábolas diz respeito ao mistério do reino de
pregação de Jesus. A declaração anuncia o cum
Deus, 0 qual é revelado ao grupo mais íntimo dos
primento do tempo para a chegada do reino de
discípulos, ao passo que para os de fora o reino de
Deus. O reino ainda é futuro, mas já se aproxi
Deus é apresentado por meio de parábolas obscu
mou e exige alguns preparativos para que possa
ras e ininteligíveis (Mc 4.11). A apresentação do
ser recebido, a saber, arrependimento e acehação
reino de Deus como uma semente que, lança
do evangelho pela fé. Não há nesse versículo
da à terra, brota e cresce em silêncio (Mc 4.26)
nenhuma pista de que o “reino” seja uma espe
deixa imphcito o aspecto de que o reino não foi
rança nacional ou represente uma expectativa
concebido nos moldes nacionalistas, implicando
1072
Reíno de D eus i : Evangelhos
revolta e guerra ostensivas por libertação, nem na
acompanhada de curas. A mesma ênfase ocorre na
forma de cataclismos apocalípticos. A ênfase na
missão dos Doze (Mt 10.5-8).
ideia semelhante expressa em Marcos 4.30 é a do
O reino de Deus aparece na primeira e na úhi
contraste entre o início insignificante e o cresci
ma bem-aventuranças (Mt 5.3,10), emoldurando
mento imenso do reino de Deus.
a coletânea de frases (recurso literário conheci
Numa declaração isolada, em Marcos 9.1, a
do como inclusio ou emolduramento). A ideia é
manifestação do reino de Deus parece iminente,
que elas sejam entendidas tomando-se por base
dentro de uma ou duas gerações. Em Marcos 9.47,
a primeira e a última bem-aventuranças como
no contexto da resistência às tentações, ressalta-
referência para sua interpretação. (Observe-se
se a importância de entrar no reino de Deus a
que autõn estin [“deles é”] ocorre apenas nes
qualquer custo — mesmo que signifique perder o
sas duas bem-aventuranças. A bem-aventurança
próprio olho — e compara-se o ingresso no reino
de Mateus 5.11 está numa forma diferente [se
de Deus à entrada na “vida” (Mc 9.43,44].
gunda pessoa]). A humildade e o sofrimento do
De acordo com Marcos 10.14, deve se permitir que as crianças tenham acesso a Jesus, porque
justo são pressupostos necessários para possuir
0 reino.
o reino de Deus pertence a pessoas assim. Ahás,
As três afirmações de Mateus 5.19,20 ensinam
o reino de Deus exige fé como a de uma criança
que até mesmo os menores mandamentos afetam
(Mc 10.15). Nas declarações de Marcos 10.23-25,
o relacionamento com o reino de Deus e que a
0 amor aos bens é um estorvo à entrada no reino
religiosidade dos escribas e fariseus (i.e., dos ju
de Deus, a qual exige o sacrifício de tudo e impli
deus) é insuficiente para entrar nele. A centrali-
ca “ser salvo” (Mc 10.26).
dade do reino de Deus também se vê na oração
Ao escriba que reconheceu que o cerne da re
do pai-nosso, em que a vinda futura do reino
ligião hebraica estava na devoção absoluta a Deus
constitui 0 primeiro pedido (Mt 6.10). Algumas
Jesus afirmou que ele não estava longe do reino
testemunhas textuais concluem a oração do pai-
de Deus (Mc 12.34). Na Última Ceia (Mc 14.25),
nosso com a menção ao reino. Caso essa leitura
o reino de Deus é escatológico. Empregando a hn
incerta seja original, a implicação é que, como
guagem do imaginário judaico tradicional, Jesus
no caso das Bem-Aventuranças, aqui também a
diz que se banqueteará com os seus. Finalmente,
oração ocorre no contexto do reino de Deus.
em Marcos 15.43, lemos que José de Arimateia
O radicahsmo associado ao reino de Deus é
é alguém que aguarda o reino de Deus, presu
ressaltado em Mateus 6.33. Essa passagem mos
mivelmente no sentido da esperança tradicional
tra que os interesses do reino devem estar acima
de Israel.
de todos os outros interesses. 0 Sermão do Monte
5.2
Mateus. Conforme ficou implícito, o qua é encerrado com a advertência de que o ingresso
dro do ensino de Jesus sobre o reino de Deus pin
no reino de Deus não será obtido por meras pala
tado por
é mais rico em detalhes e em
vras, mas pelo cumprimento da vontade de Deus
matizes que o de Marcos. Além de 9 declarações
na vida diária (Mt 7.21). No que diz respeho ao
M a te u s
em comum com Marcos e de outras 9 da fonte
q,
32 são exclusivas.
ingresso no reino, haverá uma distinção entre os judeus; a fé, em vez da ascendência, é a condi
Já no início de seu Evangelho, Mateus apresen
ção estabelecida; a porta estará aberta a muitos
ta a pregação de João Batísta como uma mensagem
gentios, ao passo que muhos dos “cidadãos do
de arrependimento, tendo em vista a proximidade
reino” (i.e., descendentes físicos dos patriarcas)
do reino do céu (Mt 3.2). A fraseologia — que Ma
serão excluídos (Mt 8.11,12; 21.43; 22.22).
teus provavelmente estilizou a fim de chamar a
Numa discussão a respeito de João Batísta,
atenção para a continuidade — é posta nos lábios
Jesus declara que João foi o maior dentre todos
de Jesus à guisa de sumário de sua proclamação
os que já nasceram, mas mesmo assim é menor
após a prisão de João Batísta (Mt 4.17). A síntese
que o menor no reino do céu (Mt 11.11), sendo o
da natureza da pregação de Jesus é repetida em
reino aqui apresentado como a reahdade escato
Mateus 4.23 e depois em Mateus 9.35, ao lado
lógica final. 0 papel crucial de João na história
da informação de que a pregação de Jesus era
da salvação é realçado mediante a afirmação de
1 073
Reino de D eus i : E vangelhos
que o tempo de João assinala um novo período
antes que o evangelho do reino tenha sido pro
na concretização do reino. A partir da época de
clamado por todo o mundo. A parábola das dez
João, o reino de Deus passou a ser proclamado e
virgens (Mt 25.1-13) tem o objetivo de ensinar a
tomado por pessoas que ansiavam entrar nele. A
perseverança e a vigilância. A continuação apro
vinda de João deu o sinal de que o reino de Deus
priada dessa parábola está no grande julgamen
se aproximava e que o povo podia se preparar por
to, quando o FUho do homem convidar os fiéis a
meio do arrependimento e do batismo (Mt 11.12).
tomar posse de sua herança, o reino, preparado
Com base em Mateus 21.31, entendemos que
para eles desde a época da fundação do mundo
os mais ávidos por entrar no reino de Deus são
(Mt 25.34). Os justos irão desfrutar o regozijo ab
justamente os considerados mais distantes dele.
soluto do reino, enquanto os injustos irão para o
Expressa-se a iminência do reino de Deus em ter
tormento eterno. Esse quadro apresenta aspectos
mos fortes e sem precedentes em Mateus 12.28,
bem conhecidos do pensamento apocalíptico.
em que se diz que os milagres de Jesus, operados
A úhima ocorrência de reino em Mateus está
pelo Espírito de Deus, são interpretados como um
ligada à Última Ceia, quando Jesus, apontando
sinal do reino.
para o banquete escatológico no reino do Pai,
0 capítulo sobre as parábolas do reino con
promete se abster de vinho até aquele dia. 5.3
tém nada menos que doze menções ao reino de
Lucas. O reino de Deus em Lucas é apre
Deus (v. 4.4.3 acima). A ideia central de Mateus
sentado de maneira mais substancial que em Mar
16.19, quando Pedro recebe as chaves do reíno,
cos, porém com menos matizes que em Mateus,
provavelmente faz parte de uma polêmica con
com nada menos de 21 declarações exclusivas.
tra os despenseiros judeus da graça de Deus, os
A primeira menção ao reino ocorre em Lucas
quais, de acordo com Mateus 23.13, além de não
1.33 e aparece nos lábios do anjo, quando este
conseguirem ingressar no reino de Deus, ainda
entrega a Maria a mensagem do nascimento do
fechavam a porta para os que desejavam entrar.
Messias, que há de se assentar no trono de seu
Essa declaração é geralmente entendida como o
pai Davi, reinando para sempre como o Messias
equivalente cristão à ideia judaica — referente à
definitivo (v.
J esu s, n a s c im e n t o d e ) .
A primeira referência clara ao reino associa
autoridade no ensino — de amarrar e soltar. Mateus atribui ao Filho do homem (Mt 16.28;
da ao ministério de Jesus ocorre em Lucas 4.43,
20.21) um reino que se imagina ser futuro. A per
quando se diz que a missão de Jesus consiste na
gunta dos discípulos sobre quem é o maior no rei
proclamação do reino de Deus. Isso confere ã
no do céu (Mt 18.1) leva Jesus a declarar que uma
afirmação o caráter de declaração sumário e dei
condição para entrar e ser o maior no reino é ter fé
xa implícito que o ministério anterior de Jesus
e humildade como as de uma criança (Mt 18.3,4).
também se ocupou do reino. O mesmo ocorre em
0 reino pertence a pessoas assim (Mt 19.14).
Lucas 8.1.
O reino de Deus ilustra o perdão divino e exige
No Sermão da Planície, Lucas registra uma
um espírito de perdão por parte dos que desejam
afirmação semelhante ã primeira bem-aven-
entrar nele (Mt 18.23). Pode exigir que a pessoa
turança de Mateus, porém dirigida aos pobres,
se abstenha de casar (Mt 19.12) ou que a pessoa
em vez de aos humildes (Lc 6.20). Isso está em
o ame acima de todos os bens (Mt 19.23,24).
conformidade com o sermão de Jesus em Nazaré
As recompensas do reino são outorgadas de
(Lc 4.18) e os interesses sociológicos de Lucas.
acordo com diferentes princípios. As reahzações
Lucas também registra a declaração de que o
pessoais são de pouquíssima importância. No
menor no reino de Deus é maior que João (Lc
esquema divino de avahação, os últimos podem
7.28). Ao interpretar a parábola do semeador,
se tornar os primeiros, e os primeiros, os últimos
Lucas ainda afirma que os discípulos recebem o conhecimento dos mistérios do reino de Deus,
(Mt 20.1). No Sermão Profético (ou Sermão do monte das Oliveiras), o reino de Deus é apresentado em
enquanto os demais devem se satisfazer com pa rábolas não explicadas (Lc 8.10).
termos futuros e apocalípticos. Quem perseverar
Lucas apresenta uma missão dos Doze e
fielmente até o fim será salvo. Mas o fim não virá
uma missão dos Setenta e Dois. Os Doze deviam
1074
Reino de D eus i : Evangelhos
proclamar o reino de Deus (Lc 9.2), ao passo que
pela gentalha — os gentios. Lucas não registra
os Setenta e Dois deviam proclamar que o reino
o incidente do homem que não usava as roupas
de Deus estava próximo (Lc 10.9,11). As curas
apropriadas para o casamento.
iriam acompanhar a pregação de ambos os gru
Lucas também considera que o ministério de
pos. E Jesus instruiu sobre o reino de Deus as
João deu início a uma nova era, que se distin
multidões que o seguiam (Lc 9.11).
guiu da época da Lei e dos Profetas. É o tempo da
Lucas vincula a morte do Filho do homem à
proclamação do reino de Deus, em que todo ser
vinda do reino de Deus e entende que esta se dará
humano tem a oportunidade de forçar a entrada
ainda durante a existência de alguns que estavam
nele (Lc 16.16). Isso mostra que Lucas não com
presentes no momento em que Jesus fez essa de
partilha da ideia apocalíptica do reino de Deus
claração (Lc 9.27). Isso indica que se pensa no
como algo introduzido repentinamente, após a
reino não apenas como uma reahdade futura,
ocorrência de cataclismos escatológicos. O assun
mas também que sua vinda é bem iminente. A
to é introduzido pelos fariseus. A resposta é que
urgência do reino torna imperativo que os que o
0 reino não vem de forma aberta à observação
desejam não permitam que coisa alguma se inter
física (Lc 17.20). Ninguém será capaz de apontar
ponha entre eles e o reino — nem mesmo a morte
para ele, dizendo que está aqui ou ali. O reino de
de parentes (Lc 9.60). Em vez disso, devem se
Deus está “ dentro de vós” (Lc 17.21,
dedicar inteiramente a ele, nunca olhando para
acima). A ideia de reino defendida aqui é de que
trás (Lc 9.62).
Deus está operando discretamente naqueles que
Assim como em Mateus, a vinda do reino se destaca na oração que Jesus ensinou a seus dis
a ra ;
v. 4.3.2
aceitaram as exigências divinas e fielmente toma ram sobre si o jugo da vontade divina.
cípulos (Lc 11.2). Na controvérsia sobre Belzebu,
0 reino de Deus deve ser aceito numa atitude
as obras do poder de Jesus realizadas pelo “dedo”
de confiança infantil (Lc 18.16,17), ao passo que
(Mateus: “Espírito”) de Deus são uma forte indi
os que deposham sua confiança nas riquezas não
cação da iminência do reino (Lc 11.20).
conseguirão entrar no reino (Lc 18.24,25). Con
0 interesse no reino de Deus deve afetar todas
tudo, existe a promessa de uma rica recompensa
as atitudes diante da vida. Deve se pôr de lado
para quem abandona tudo pelo reino de Deus,
a preocupação exagerada com as questões do
não apenas na vida vindoura, mas até mesmo
mundo e dar prioridade aos interesses do reino.
neste mundo (Lc 18.29,30).
Então Deus providenciará o suprimento de todas
No seu registro da parábola dos talentos, Lu
as necessidades legítimas (Lc 12.31). Confiança,
cas mostra que Jesus estava corrigindo a noção
em vez de temor, é o que deve caracterizar os
popular de que o reino de Deus estava na iminên
seguidores de Jesus, visto que Deus se agradou
cia de irromper de forma apocalíptica (Lc 19.11).
em dar-lhes o reino (Lc 13.18,20). À semelhança
A ideia central é que os ouvintes de Jesus deviam
de Mateus, Lucas deixa claro que ninguém entra
administrar fielmente o que lhes fora confiado e
rá no reino de Deus apenas por ter conhecido a
aguardar tranquilos sua total concretização, em
Jesus pessoalmente ou por ter ascendência físi
vez de especular sobre o tempo em que o reino
ca judaica, e sim por aceitar a condição imposta
chegará em sua plenitude. Lucas desencoraja tal
pelo reino — entrar pela porta estreita. Embora
especulação (At 1.6-8). Mesmo na predição sobre
exclua muitos descendentes de Abraão, Isaque
a destruição de Jerusalém, são apresentados ape
e Jacó, esse estatuto permitirá que muitos gen
nas sinais genéricos da chegada do reino de Deus
tios se banqueteiem com os patriarcas no reino
com poder (Lc 21.31). É evidente que Lucas pensa
(Lc 13.28,29). Após alguém comentar que são
no reino de Deus como algo que de certa forma
bem-aventurados os que participam do banque
se aproximou, de modo que do tempo de João
te no reino de Deus (Lc 14.15), Jesus contou a
em diante já é possível se preparar para o reino
parábola da grande ceia, cuja ideia central, ten
e estar ativamente envolvido nele, ao passo que,
do como alvo a rejeição a Jesus e sua mensa
em sua plena capacidade, o reino de Deus é algo
gem por parte dos judeus, é que os convidados
futuro, cuja manifestação é prometida para de
originais não eram dignos e foram substituídos
pois do cumprimento de certas previsões. Desse
1075
R eino de D eus i ; Evangelhos
modo, 0 elemento apocalíptico não está total
reino de Deus ou nele entrar. Com base nisso,
mente ausente em Lucas.
fica evidente que a ideia não tem nenhuma rela
0 fato de que é possível apresentar o reino
ção com a esperança nacional judaica. 0 reino de
de Deus como um acontecimento futuro é confir
Deus é a soberania divina, ã qual o ser humano
mado na Última Ceia, quando Jesus promete se
se submete ao aceitar a mensagem de Jesus pela
abster de comida e bebida até que possa fazê-lo
fé e experimentar um renascimento espiritual. Ao ser interrogado por Pilatos, Jesus, respon
no reino de Deus (Lc 22.16,20). Ocasionalmente, o texto de Lucas diz que o
dendo à pergunta “Tu és o rei dos judeus?”, expli
Pai entregou o reino a Jesus (Lc 22.29,30). Mais
ca: “ 0 meu reino não é deste mundo” (Jo 18.36,
uma vez, o contexto é escatológico.
passagem em que a expressão “meu reino” apa
Finalmente, o ladrão na cruz pede que Jesus
rece três vezes). Não se poderia fazer afirmação
se lembre dele quando entrar no reino (Lc 23.42),
mais clara para mostrar que o reino imaginado
e José de Arimateia era alguém que aguardava o
por Jesus tinha pouquíssima relação com a ex
reino de Deus (Lc 23.51), embora não seja fácil
pectativa nacional de Israel. Essa acusação, feita
definir se ele tinha a expectativa de um reino ter
pelos judeus e também causada pelo título colo
reno ou transcendental.
cado na cruz, indica que no Evangelho de João
5.4
João. O conceho de reino de Deus não a rejeição a Jesus e sua condenação foram moti
desempenha um papel significativo no Evange
vadas em grande parte pela decepção dos judeus
lho de JoÃo. Seu lugar é ocupado pelo conceito
diante da recusa de Jesus em aceitar o papel do
tipicamente joanino de “vida eterna” (17 vezes)
Messias nacional e político (v. tb. Jo 6.15,26).
ou simplesmente “vida” (19 vezes). A equivalên cia entre vida eterna e reino de Deus é demons
6. O reino de Deus e a igreja de hoje
trada na permuta ocasional dos dois termos nos
Teria o conceito de reino de Deus alguma relevân
Sinóticos (Mc 9.43-47 e par.; Mc 10.17-30 e par.;
cia para a proclamação feita pela igreja nos dias
Mt 25.31-46), e as raízes do conceito joanino
de hoje? Aqui somos confrontados com o dilema
se encontram na tradição rabínica (v.
que levou Bultmann a lançar seu controverso pro
D a lm a n ,
p. 116-7, 156-8). O fato de João evitar o termo
grama de desmitologização.
“reino de Deus” pode ser resuhado do desejo de
Em sua proclamação do reino de Deus, Je
evitar associação com as esperanças apocalípti
sus estava solidamente firmado no
cas então existentes. Também pode ser conse
mo tempo, tocava num assunto que fazia bater
a t.
Ao mes
quência de estar escrevendo a não judeus, para
mais rápido o coração de cada judeu. No entanto,
quem um conceito tipicamente judaico poderia
Jesus tomou esse conceho e o transformou, fa
criar problemas de comunicação, especialmente
zendo com que deixasse de ser uma esperança
porque o termo era de uso bem raro na igreja,
nacionalista cristalizada e passasse a ser uma or
pois a ênfase recaía sobre a pessoa e a obra de
dem espiritual e universal, em que a humanidade
Cristo (cristologia e soteriologia), bem como so
encontrasse o cumprimento dos desejos úhimos
bre a igreja (eclesiologia).
que acalenta: retidão, justiça, paz, fehcidade, h-
0 conceito de “reino de Deus” aparece duas
berdade do pecado e da culpa e um relaciona
vezes na história de Nicodemos, e a expressão
mento restaurado com Deus — uma nova ordem
“ meu reino” ocorre três vezes na resposta de Jesus
em que Deus é o rei. Como em qualquer época, o
a Pilatos. No diálogo com Nicodemos, não há ne
problema humano básico de hoje é o pecado e o
nhuma indicação de que o reino de Deus seja o
fato de 0 ser humano estar ahenado de Deus, por
destaque principal do ensino de Jesus ou mesmo
isso a mensagem do reino de Deus é de grande
um tema da conversa. No entanto, com a confis
relevância.
são de Natanael, “Rabi, [...] tu és o rei de Israel”
0 reino de Deus não precisa ser desmholo-
(Jo 1.49), o lehor não está totalmente desprepa
gizado. Mas vale ressaltar que a igreja terrena,
rado para a ideia.
dirigindo-se basicamente a convertidos gentios, evhou um termo carregado de conotações ju
Em João 3.3,5, Jesus diz a Nicodemos que a
daicas nacionais ou apocalípticas que pudessem
regeneração espiritual é a condição para ver o
076
1i
Reino de D eus ii : Paulo
gerar confusão, buscando, em vez disso, equiva
the historical Jesus. New York: Doubleday, 1994.
lentes dinâmicos, como “ vida eterna” ou “ sal
V.
vação” , por serem mais apropriados, embora o
cording to the first gospel,
termo “reino de Deus” nâo tenha desaparecido
1981. ■
totalmente do vocabulário da igreja.
teaching o f Jesus.
igreja
A
continuou a proclamar o legado de seu Mestre,
2. ■ P a m m e n t , M. The kingdom of heaven ac 27, p. 211-32,
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N. The kingdom o f God in the
P e r r in ,
Philadelphia: Westminster,
1963. • ______ . Jesus and the language o f the
porém de maneiras dinâmicas. Cada era tem de
kingdom. Philadelphia: Fortress, 1976. •
encontrar formas próprias e adequadas de expres
Bos, H. The coming of the kingdom. Philadelphia:
sar a mensagem sempre relevante de Jesus acerca
Presbyterian and Reformed, 1962. •
do reino de Deus.
L. et al. BaaiAeúç
forma pode mudar, mas a
A
essência permanece. Ver também
H
e a l in g ;
Serm on
emon,
D
J u b il e e ;
on the
M
e v il ,
L
tdnt.
[S .l.:
1. p. 564-93. ■ S c h n a c k e n b u r g ,
a p o c a lip t is m o ; e s c a t o l o g i a ; E s p ír it o
S a n t o ; é t i c a ; i g r e j a ; p a r á b o la . d jg : D
k tA .
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o spe l
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R e v o l u t io n a r y
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M
N
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ovem ents;
S c h m id t,
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C a r a g o u n is , C . C .
B. Mohr, 1986.
R
e in o d e
D
eus ii:
P
aulo
38.) ■
A totalidade da teologia de Paulo é condicionada
______ . Kingdom of God, Son of man and Jesus’
por uma perspectiva segundo a qual as promessas
C.
T]/nB,
(w unt,
v. 40 , p. 3-23, 1989; v.
escatológicas de Deus tiveram seu cumprimento
The words of
iniciado com a ressurreição de Jesus. Um aspecto
E d in b u rg h : T & T C lark , 1902. • D odd , C.
importante dessa cosmovisão escatológica é o en
se lf-u n d e rsta n d in g .
4 0 .2 , p. 223-38, 1989. • D a l m a n , G.
Jesus. H.
The parables o f the kingdom.
Ed. rev. L o n d o n :
sino sobre o reino de Deus, que se sobrepõe em
The mission and
certo grau ao ensino sobre o reino de Cristo nos
N a p e r v iU e : A lle n s o n , 1954.
materiais paulinos. Essa sobreposição também
Das Problem der Parusie-
proporciona um terreno fértil para demonstrar
C o llin s , 1961. • F u lle r , R . H .
achievement o f Jesus.
( s b t , 12 .) • C rasser, E.
verzögemng in den synoptischen Evangelien und
que a cristologia e a escatologia se entrelaçam no
in der Apostelgeschichte.
pensamento de Paulo.
1957. ( b z n w , 2 2 .)
■ H iers,
B erlin : A . T ö p e lm a n , R. H .
sus and the kingdom o f God. s ity o f F lo r id a P re ss, 1973.
work and words o f Jesus. 1973.
■
Jeremias, J.
The historical Je
•
H u n ter, A . M .
( h u t .)
•
The
The parables o f Jesus.
Paulus
5. Transferência para o reino de Cristo
4. e d . T ü b in g e n : J. C. B. M o h r, 1972.
Kümmel, W . G.
Promise and fulfillment.
The presence o f the future.
E erd m a n s, 1974.
■ L undström ,
God in the teaching o f Jesus. B o y d , 1963.
miracles.
de Cristo? 4. A entrega do reino a Deus Pai
N ew
2.
ed . N a p e r v U le : A lle n s o n , 1961. ( s b t , 2 3 .) • Ladd, G. E.
3. 0 reino de Deus é o mesmo que o reino
Ed. rev. L o n d o n : scm,
Y ork : C h a rles S c rib n e r’ s, 1963. • Jüngel, E.
und Jesus.
1. Evidência estatística 2. 0 reino é presente ou futuro?
G a in es viU e: U n iv e r
■ M eier,
I n : ______
J. P.
G.
1. Evidência estatística Embora a ideia do reino de Deus ou do reino
G ran d R a p id s:
de Cristo seja fundamental para a totalidade do
The kingdom of
pensamento de Paulo, é um tanto surpreendente
Lon d on : O h ver and
constatar a relativa raridade de referências explíci
Mentor, message, and
tas ao reino nas cartas paulinas. 0 termo basileia
. A marginal Jew:
re th in k in g
(“ reinado” ; “reino”) ocorre apenas quinze vezes
1077
Reino de D eus i i : Paulo
(Rm 14.17; ICo 4.20; 6.9,10; 15.24,50; G1 5.21;
futuro, pelo qual Deus confirmará os que sofre
Ef 5.5; Cl 1.12,13; 4.11; ITs 2.12; 2Ts 1.5;
ram por causa de sua fé.
2Tm 4.1,18), ao passo que o verbo basileuõ (“rei
Mais uma vez em sintonia com a dimensão
nar”) ocorre nove vezes (Rm 5.14,17 [2x],21 [2x];
futura do reino de Deus, Paulo em vários mo
6.12; ICo 4.8 [2x]; 15.25). 0 verbo symbasileuõ
mentos se refere ao reino como algo que os fiéis
(“reinar com”) ocorre em ITimóteo 2.12. A ex
herdarão, se tiverem um caráter condizente
pressão “ reino de Deus” ou seu equivalente
(ICo 6.9,10; 15.50; G1 5.21). A ideia de uma he
aparece apenas oito vezes nas cartas paulinas
rança futura também se vê em Colossenses 3.24
(Rm 14.17; ICo 4.20; 6.9; 15.50; G1 5.21; Cl 4.11;
(cf. Cl 1.12). Uma declaração semelhante sobre a
ITs 2.12 [“seu reino”]; 2Ts 1.5). Pode se enten
herança ocorre em Efésios 5.5, com uma hgeira
der também legitimamente a referência à “pátria
aheração: aqui o reino pertence a Deus e a Cristo.
[...] no céu” (to politenma en oumnois], em Fili
Em suma, o reino de Deus é algo que alcança
penses 3.20, como uma expressão paralela. Outro
ambas as dimensões do tempo, sendo presente e
fato que chama a atenção é que, no corpus pau
futuro (como afirma M a r t i n , p. 109-25). Não é pos
lino, 0 reino de Cristo é mencionado explicita
sível limitar a termos temporais o ensino de Paulo
mente apenas em Colossenses 1.13 e Efésios 5.5
sobre o reino de Deus/de Cristo. É verdade que ele
— algo notável, se levarmos em conta o firme
tende a considerar a revelação derradeira do reino
compromisso de Paulo com a messianidade de
como um acontecimento futuro, mas um grande
Jesus Cristo e a frequente associação do
e da
número de informações apoiam a afirmação de
hteratura pseudepigráfica entre o reino e o Mes
que esse reino escatológico também está atuan
at
p. 29-91).
do agora na vida da comunidade cristã. Ahás, G.
Várias questões fundamentais vêm à mente
Johnson, em seu comentário sobre ICorintios 4.20,
sias de Deus (v. detalhes em
K r e itz e r ,
quando se considera o que as cartas de Paulo
sugere que, "em úhima anáhse, a denominada
ensinam acerca do reino.
dimensão ‘escatológica’ do reino foi relegada a um
2. O reino é presente ou futuro?
realidade presente tem sido traduzida pelo grande
papel de pouca importância, e, em vez disso, sua Há muito tempo os estudiosos do
nt
anahsam a
conceito de vida espiritual”
(J o h n s o n ,
p. 151). Des
natureza temporal do reino de Deus conforme
se modo, o reino de Deus/de Cristo pode até mes
encontrada nas palavras de Jesus. Eles chegaram
mo ser denominado “vida no Espírho” ou “vida
a um consenso, a saber, que a mensagem bási
dentro do Corpo de Cristo” , temas muito mais
ca de Jesus era a de um reino inaugurado, que
proeminentes nas cartas pauhnas.
teve início em sua vida e ministério, mas estava aguardando consumação no futuro. Muitas ques
3. O reino de Deus é o mesmo que o reino
tões sobre a natureza temporal do reino, confor
de Cristo?
me encontrado nos materiais dos Evangelhos,
Alguns estudiosos têm proposto que Paulo sus
também aparecem nas cartas pauhnas, apesar da
tenta uma distinção entre o reino de Deus e o
escassez dç referências ao reino como tal. Às ve
reino de Cristo, geralmente apontando ICorintios
zes, Paulo se expressa como se o reino de Deus
15.20-28 como texto-chave e postulando que a
fosse uma realidade presente capaz de ser experi
passagem sugere um reino messiânico temporário
mentada pelos crentes em Cristo. Dois textos são
sobre a terra, que, na plenitude dos tempos, cede
notavelmente eloquentes a respeho disso: Roma
rá lugar ao reino de Deus. Tal proposta encontra paralelo numa distinção semelhante entre os dois
nos 14.17 e ICorintios 4.20. Em outras ocasiões, Paulo apresenta o reino
reinos vista em apocalipses judaicos e cristãos
de Deus como uma esperança futura, algo que
do período do
ainda tem de ser aguardado pelos crentes em
nas [lEn, 93.1-10; 91.12-17); 4Esdras 7.26-30;
n t,
a saber: Apocahpse das Sema
Cristo. Um bom exemplo disso é ITessalonicen
12.31-34; 2Baruque 29.3— 30.1; 40.1-4; Apocahp
ses 2.12, versículo que se encontra entre duas de
se 20.4-6 (v. análise em
K r e itz e r ).
clarações acerca da parusia (ITs 1.10; 2.19). Em
A interpretação literal de textos como esses
2Tessalonicenses 1.5, o reino de Deus é um ato
produziu ao longo da história da igreja um ramo
1078
Reino de D eus ii : Paulo
da escatologia: o quiliasmo ou pré-milenismo. Al
realista é acehar a ideia de que a flexibilidade
guns intérpretes, como A. Schweitzer, recorrem
de expressão é inerente à hteratura escatológica,
a Paulo por julgá-lo um defensor dessa doutrina,
inclusive nas cartas de Paulo. A harmonização de
assinalando a necessidade do corolário da doutri
detalhes escatológicos, mesmo com a intenção
na das duas ressurreições — uma para os santos
de resgatar Paulo do que na percepção de muitos
que participam do reino messiânico temporário
é uma inconsistência danosa, não é a solução.
e, antes da era vindoura, uma ressurreição ge
Talvez consigamos até nos livrar de todas as ten
ral, para juízo. Na prática, isso significa que o
sões e falhas dentro da teologia pauhna, mas nes
reino de Cristo começa com a parusia e conclui
se processo iremos nos distanciar do pensamento
com a chegada do reino de Deus (a era vindou
do apóstolo.
ra] e que o reino do Messias é o intervalo entre
Como, então, o reino de Deus cede lugar ao
as duas ressurreições associadas a esses dois
reino de Cristo como uma expressão da esperança
acontecimentos.
escatológica? Se a base da escatologia de Paulo
Entretanto, não se percebe nas cartas de Paulo
for a proclamação veterotestamentária do reino
uma nítida distinção entre o reino de Deus e o
de Deus, como ele passa a ser designado rei
reino de Cristo, tampouco encontramos em seus
no de Cristo? É quase certo que essa transição se
escritos a doutrina das duas ressurreições, em
dá como resuhado de uma associação íntima en
bora, no registro de Lucas, Paulo mencione uma
tre Jesus de Nazaré e o reino de Deus que Paulo
ressurreição “tanto dos justos como dos injustos”
veio proclamar. Vemos exemplos desse tipo de
(At 24.15). Por isso, a maioria dos estudiosos
mudança de ênfase cristológica justamente na
questiona que Paulo possa ser legitimamente
redação dos Evangelhos, e é provável que nesse
considerado um quUiasta quanto ao seu ponto de
aspecto os materiais pauhnos façam o mesmo,
vista escatológico, se é que ele pode ser chama
como B. Klappert comenta: “ Desse modo, en-
do assim. Eles observam que a ideia pauhna da
tende-se que a expressão ‘basileia de Cristo’ e a
consumação do reino está simplesmente associa
equiparação de ‘reino de Deus’ com Jesus Cristo
da à vinda futura de Jesus Cristo, sem nenhuma
são o resuhado da mudança de uma cristologia
dicotomia forçada implícita entre os dois reinos.
implícita para uma explícita”
(K la p p e r t,
p. 387).
Ou seja, negam que ICorintios 15.20-28 afirme a existência de um reino messiânico temporário,
4. A entrega do reino a Deus Pai
e assim a passagem é harmonizada com outros
No corpus pauhno, ICorintios 15.20-28 é uma
textos (como ICo 15.51-56 e ITs 4.13-18) que
das passagens mais difíceis de interpretar, repleta
discorrem mais detalhadamente sobre a parusia
de imagens e hnguajar apocalípticos (a interpre
de Cristo (G. Vos é um defensor clássico dessa
tação da escatologia apocalíptica pauhna, por E.
abordagem).
K ãsem an n ,
Em geral, para os que seguem essa interpreta
apoia-se fortemente nesses versículos).
Nessa passagem, existe uma curiosa referência
ção, o governo de Cristo sobre o “ reino” , que de
ao “reino” : “Então virá o flm, quando ele entre
acordo com ICorintios 15.24 será entregue por
gar 0 reino a Deus, o Pai, quando houver destruí
ele ao Pai, começou por ocasião da cruz. Essa
do todo domínio, toda autoridade e todo poder”
interpretação tem a vantagem de apresentar um
(ICo 15.24). Um dos aspectos mais frustrantes
Paulo coerente e uniforme em sua esquemati
dessa perícope, bastante condensada, é a ambigui
zação do futuro, evitando apresentá-lo como
dade do sujeito dos verbos. Por exemplo, quem é
alguém incorrigivelmente confuso ou inconsis
o sujeito de hypetaxen (“ sujeitou”) em ICorintios
tente em seu ensino. Entretanto, a passagem de
15.27: Deus ou Cristo? Se pressupormos que Deus
ICorintios 15.20-28 é um tanto obscura, e é fácil
é o sujeito, então algumas dificuldades de entendi
perceber que ela admite também a interpretação
mento surgirão no restante da passagem. Nunca se
quüiasta. A questão é se precisamos que Paulo
tem suficiente certeza sobre quem está sujeitando
seja totalmente consistente ao demonstrar como
o que e a quem. Não resta dúvida de que a confu
0 reino de Deus se relaciona com o reino de Cris
são de referentes entre Deus e Cristo se deve em
to e com a parusia. Uma abordagem bem mais
parte ao emprego cristologicamente motivado de
1 079
Reino de D eus iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocalipse
Raised immortal: the relation between resur
Salmos 110.1 e 8.6b em ICorintios 15.25 e 15.27,
M . J.
respectivamente (v. análise de D e
p. 114-20).
rection and immortality in New Testament teach
Um item relacionado e de importância exegé
ing. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. ■ J o h n s o n , G.
B oer,
tica significatíva é a ligação entre “o reino” e a
“ Kingdom of God” sayings in Paul’s epistles. In:
“ ordem criada” (tapanta, “todas as coisas”) nes
R ic h a r d s o n ,
sa passagem. M. J. Harris associa a ressurreição
Paul: studies in honor of Francis Wright Beare. On
dos mortos e a vinda do reino à restauração da
tario: Wilfred Laurier University, 1984. p. 143-56.
ordem criada (v.
c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ).
Ele diz que
P. &
H u rd ,
J. C., orgs. From Jesus to
E. Primitive Christian apocalyptic. In:
■ K asem ann,
o reino “incorpora o universo racional e o irracio
New Testament questions o f today. Philadelphia:
nal”
Fortress, 1969. p. 108-37, esp. p. 133-7. ■ K l a p p e r t ,
(H a r r is ,
p. 18). Fica claro que existe uma di
mensão cosmológica importante nessa passagem,
B. King, kingdom,
além da dimensão mais tradicional, que no passa
372-90. ■ K r e i t z e r , L.
do foi o foco da atenção dos estudiosos.
eschatology. Sheffield: Academic, 1987. p.131-64.
5. Transferência para o reino de Cristo
congregation. Grand Rapids: Eerdmans, 1984. ■
Em Colossenses 1.13,14, encontramos uma refe
S c h w e itz e r ,
rência incomum ao reino de Cristo: “ Ele [Deus]
London: A & C Black, 1931. ■ Vos, G. The Pau
nos tirou do domínio das trevas e nos transportou
line eschatology. Princeton: Princeton University
para o reino do seu Filho amado, em quem temos
Press, 1930. p. 226-60.
O sN T s u p ,
19.) ■
n id n t t . J.
M a r tin ,
[S.l.: s.n., s.d.]. v. 2. p.
Jesus and God in Paul’s R. P. The Spirit and the
A. The mysticism o f Paul the Apostle.
L.
a redenção, isto é, o perdão dos pecados”. É notá
J. K r e it z e r
vel nessa passagem que a transferência é um ato já reahzado, algo concretizado na vida do crente.
R
Esse afastamento da definição mais característica
C artas G
do reino de Deus/de Cristo como realidade futura
A maior parte dos escritos aqui analisados mostra
e in o d e
D
eus iii:
e r a is ,
A
A
tos,
H
ebreus,
p o c a l ip s e
ainda aguardada tem levado alguns intérpretes a
que 0 reino de Deus continuou a ser um tema vi
questionar a autoria pauhna da carta (v. a análise
tal na pregação da igreja. Esses escritos mantêm
nos comentários de E.
várias características do conceito de Jesus acerca
Lohse,
E.
S c h w e iz e r
e P. T.
do reino de Deus, embora às vezes as expressem
O ’ B r i e n ; v . C o lo s s e n s e s , C a r t a a o s ) .
Concluindo: embora a expressão “ reino de
de uma nova maneira, fazendo adaptação às no
Deus/de Cristo” não seja disseminada nas cartas
vas situações que experimentavam, tanto na his
pauhnas, a ideia é um componente fundamental
tória da salvação quanto na obra missionária.
da perspectiva escatológica de Paulo e está por
1. Atos
trás da totahdade de seu ensino. A mesma tensão
2. Hebreus
entre as dimensões presente e futura de uma teo
3. Cartas Gerais
logia do reino, percebida no ensino de Jesus nos
4. Apocahpse
Evangelhos Sinóticos, também é encontrada nos materiais pauhnos. Talvez ainda mais significati
1. Atos
vo nas cartas pauhnas seja o fato de que a ideia
1.10 reino de Deus como o tema central de Atos.
do reino de Deus ofereça um importante veículo
Na introdução ao hvro de Atos, o segundo volu
para a cristologia pauhna em desenvolvimento,
me de sua obra em dois volumes, Lucas apresenta
em que “reino de Cristo” começa a competir com
um sumário do ensino que o Jesus ressuscitado
“reino de Deus” , tornando-se o ponto principal
ministrara aos seus apóstolos durante os quaren
do interesse teológico.
ta dias antes da ascensão, dizendo que essa dou c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ;
trina dizia respeito “ao reino de Deus” (At 1.3).
c r i s t o l o g i a ; e s c a t o l o g i a ; J esu s e P a u l o ; r e s s u r r e iç ã o .
Lucas conclui sua obra mencionando que Paulo,
Ver também a p o c a lip t is m o ;
D PC :
na caphal do Império Romano, pregou “ o reino
e x a l t a ç ã o e e n t r o n iz a ç ã o .
de Deus” e “coisas concernentes ao Senhor Jesus M. C. The defeat o f death.
Cristo” (At 28.31; v. tb. At 28.23). Com esse in
Sheffield: Academic, 1988. (jswreup, 22.) ■ H a r r i s ,
clusio, que hga o início da mensagem do hvro à
B iB L io G R A n A . D e B o e r ,
Ii
080
R eino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
sua conclusão, Lucas parece estar indicando que
com paciência os sofrimentos para “entrar no rei
o tema central do segundo volume é o reino de
no de Deus” (At 14.22).
Deus, continuando o tema do primeiro volume, o
1.3
O Senhor Jesus Cristo, o atual Regente
Evangelho de Lucas. Isso se confirma nos sumá
e Salvador. No entanto, Lucas está mais interes
rios das mensagens sobre o reino de Deus prega
sado no reino de Deus no presente. O governo
das por Fihpe e Paulo na seção principal de Atos
de Deus ocorre no presente por intermédio do
(At 8.12; 19.8; 20.25; v. tb. At 14.22; 17.7).
Cristo exahado e do Espírito Santo. Em sua exis
Contudo, a combinação, em Lucas, do “reino
tência terrena, Jesus foi o agente por meio de
de Deus” com o “nome de Jesus Cristo” (At 8.12),
quem Deus operou milagres, maravilhas e sinais
como sendo o evangelho de Filipe, e do “reino de
ou mostrou seu reinado de salvação (At 2.22,23).
Deus” com o “ Senhor Jesus Cristo” (At 28.23,31),
Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos e o
como sendo o evangelho de Paulo, sugere uma
exaltou à sua destra como seu vice-rei, cumprin
mudança: no Evangelho de Lucas, o evangelho de
do assim a promessa de Salmos 110.1 (At 2.32-35;
Jesus dizia respeito apenas ao “reino de Deus” ,
5.31). Desse modo, “esse mesmo Jesus [...] Deus
mas em Atos o evangelho dos apóstolos coloca
0 fez Senhor e Cristo” (At 2.35). Em Atos, o título
lado a lado o Senhor Jesus Cristo com o reino
“ Senhor” (kyrios) é aphcado a Jesus e também a
de Deus. Nesses sumários da pregação apostóhca
Deus, com a imphcação de que agora Jesus, em
encontrados em Atos, o objeto do verbo euange-
nome de Deus, exerce o senhorio divino. Esse
lizomai não é somente o reino de Deus (At 8.12),
é o motivo pelo qual a pregação apostóhca do
mas também o Senhor Jesus Cristo (At 5.42; 8.35;
reino de Deus regularmente envolve a pregação
10.36; 11.20; 17.18; cf. At 15.35). De modo se
da realeza ou do senhorio messiânicos de Jesus
melhante, empregando o verbo
ou pelo qual ocasionalmente aquela pregação é
kêryssõ
para re
sumir a pregação apostólica, Lucas especifica que Jesus, o
C r is to
ou
o
F ilh o
de
D eu s
subsdtuída por esta.
(At 8.5;
No
é Javé, na condição de kyrios, quem
a t,
9.20; 19.13; v. tb. At 17.3,7), bem como o rei
perdoa os pecados de seu povo e o salva, mas
no de Deus (At 20.25; 28.31), são o objeto do
agora é Jesus, o kyrios, quem exerce essa prer
verbo. Esses fenômenos, especialmente aqueles
rogativa divina. No
encontrados nos vários sumários do evangelho
de Javé, o Senhor, era salvo (e.g., J1 2.32, cit. em
de Fihpe (At 8.5,12,35), sugerem que a prega
At 2.21), mas agora esse Senhor é ninguém me
ção do reino de Deus era, na prática, a pregação
nos que Jesus Cristo. Por isso, é mediante o nome
a t,
quem invocava o nome
de Jesus Cristo. Como é sabido, o evangelho de
de “Jesus Cristo, Senhor de todos” (At 10.36,
Jesus acerca do reino de Deus nos Evangelhos
n v i),
Sinóticos é, em geral, substituído pelo evangelho
que se obtém o perdão dos pecados, a salvação
apostóhco de Cristo nos livros restantes do
(At 10.43;
n t,
e
o
“juiz dos vivos e dos mortos” (At 10.42),
V.
tb. At 3.15; 4.12,30; 15.18; 22.16).
0 Jesus pregador naqueles se torna o Cristo pre
0 exercício da regência ou senhorio divinos
gado nestes. Em Atos, Lucas também reflete essa
pelo Senhor Jesus Cristo exaltado manifesta-se no
mudança geral e, à sua maneira, mostra como e
ato de ele dirigir a missão da igreja. Na condição
por que isso se deu.
de
1.2
F ilh o
do
hom em
ou de Senhor que está à des
O reino futuro de Deus. A expectativa é tra de Deus, ele recebe o espírito de seu mártir
que a vinda final do reino de Deus seja um acon
Estêvão (At 7.56,59). Ele barra e detém Saulo/
tecimento futuro, mas não devemos estar ansio
Paulo perto de Damasco e o chama para ser seu
sos para “ saber os tempos ou as épocas que o
apóstolo aos gentios (At 9.1-19; 22.3-16; 26.9-18),
Pai reservou por sua autoridade” (At 1.5,7). Serão
garante a Paulo que lhe dará sua proteção (At 18.9),
“tempos de refrigério” ou o “tempo da restaura
redireciona a sua missão (At 22.17-21) e o conduz
ção de todas as coisas” , e ocorrerá por ocasião
a Roma (At 23.11). O Senhor Jesus Cristo abre
da segunda vinda de Cristo (v.
0 coração de Lídia para que ela compreenda e
p a r u s ia ),
quando
todo o Israel se arrepender (At 3.19-21). Desse
se aproprie do evangelho de Paulo (At 15.14,15),
modo, o reino de Deus representa a consumação
torna bem-sucedida a missão cristã em Antioquia
da salvação, e devemos manter a fé e suportar
e leva um grande número de pessoas a se voltar
1081
Reino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
para ele próprio mediante a fé (At 11.21). Em seu
Paulo conclui que “Deus [o] havia chamado
exercício de senhorio divino, Jesus Cristo empre
para [...] anunciar o evangelho” aos macedônios
ga a agência e o poder do Espírito Santo e o mi
(At 16.10). Dessa maneira. Atos 16.6-10 deixa im-
nistério de seus apóstolos.
plícha uma estrutura trinhária de senhorio divi
1.4
Pela agência e poder do Espírito. A exal no, 0 qual é exercido no que diz respeho ã missão
tação divina de Jesus à destra de Deus envolveu
da igreja.
não apenas a autoridade do senhorio divino,
Durante sua existência terrena, Jesus deu
concedida por Deus, mas também a concessão
forma concreta ao governo salvífico de Deus me
do Espírito Santo e a condição de despenseiro
diante seu ministério de exorcismo e curas, o qual
do Espírito divino: "Exahado ã direita de Deus
ele operou por meio do poder do Espírito Santo
e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito
(Lc 11.20 par. Mt 12.28; At 2.22; 10.38). Agora,
Santo, derramou o que agora vedes e ouvis [i.e.,
na condição de Senhor exaltado, ele derramou o
0 Espírito]” (At 2.33). Desse modo, se Deus Pai,
Espírito Santo para sua igreja (At 2.33). Os que
por meio da exaltação de Jesus, o tornou seu re
creem em Jesus e são batizados em seu nome
presentante, para em seu nome exercer a regência
recebem o Espírito (At 2.38; 9.17,18; 10.43,44;
ou o senhorio divinos, no Pentecostes o Senhor
11.16,17; 19.5,6; v.
Jesus Cristo derramou o Espírito Santo para que
bênçãos do poder escatológico de Deus na esfera
este fosse seu agente e, em seu nome, exercesse
do senhorio de Jesus Cristo.
b a tis m o )
e, assim, desfrutam as
sua regência ou senhorio. Enquanto o Senhor Je
Ademais, o ato em que o Senhor Jesus exaha
sus Cristo permanece nos céus ã destra de Deus
do concedeu o Espírito Santo aos seus apóstolos
até sua segunda vinda, para a “restauração de to
teve 0 propósho de capachá-los (At 1.8) a pregar
das as coisas” ou a consumação do reino de Deus
o evangelho de modo eficaz e a realizar muhos
(At 3.19-21), o Espírito Santo exerce o senhorio
exorcismos e milagres de cura como demonstra
de Jesus no lugar deste. Dessa maneira, existe
ções da salvação escatológica. Com frequência,
uma estrutura trinitária na atual manifestação do
os textos dizem que esses “ feitos extraordinários
reino de Deus: Deus Pai reina por intermédio de
e sinais” foram realizados pelos apóstolos “em
seu Filho Jesus Cristo, que por sua vez reina por
nome de Jesus Cristo” (At 3.6,16; 4.30; 8.6-12;
intermédio do Espírito Santo. Por esse motivo, a
16.16-18; cf. At 19.13-20) ou são atribuídos dire
direção da igreja e os poderosos atos redentores
tamente a Deus (At 15.12; 19.11,12) ou ao Senhor
atribuídos ao Senhor Jesus Cristo também são
(Jesus?) (At 14.3). Entretanto, não apenas com
atribuídos ao Espírito.
base em Atos 1.8 e 2.33, mas também em Atos
Assim, a orientação que o Senhor Jesus Cristo
4.29-31, 6.8 e 8.5-19, a imphcação clara é que
dá ã igreja é mediante a agência e o poder do
os apóstolos realizaram os milagres de cura por
Espírito. Antes de sua ascensão, Jesus deu instru
meio do poder do Espírito Santo concedido pelo
ções aos seus apóstolos por intermédio do Espíri
Senhor Jesus Cristo. Desse modo, o Espírito San
to Santo (At 1.2). Mas depois de sua ascensão os
to é o agente que dá forma concreta ao reinado
apóstolos receberam o Espírito Santo, concedido
salvífico do Senhor Jesus Cristo, o qual na reali
pelo Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo os ca
dade é 0 reinado salvífico de Deus. Temos de res
pacitou e os orientou na missão (At 1.5,8; 2.33).
ponder afirmativamente à pergunta retórica feita
Embora haja referências ao Senhor Jesus Cristo
por J. D. G. Dunn: “ Se a presença do reino em Je
assumindo a capacitação e direção da missão dos
sus foi determinada pela vinda do Espírito sobre
apóstolos, há referências paralelas ao Espírito
Jesus no Jordão, não podemos então, ahás, não
exercendo as mesmas atividades (At 8.29; 10.19;
devemos dizer que o reino se tornou presente nos
11.12,28; 13.2,4; 15.28; 16.6,7; 19.21; 20.22,23;
discípulos pela vinda do Espírito no Pentecostes,
21.4,11). Os dois tipos de declaração se referem
ocorrida da mesma maneira?” 1.5
ã mesma reahdade, como sugere Atos 16.6,7: o Espírito Santo que orientou Paulo a deixar a
(D u n n ,
p. 40).
O Senhor Jesus e seus apóstolos. Junto
com 0 Espírito Santo, a igreja, especialmente os
Ásia rumo ã Macedônia é identificado como “o
doze apóstolos, também é o agente que faz com
Espírito de Jesus”. Com base nessa experiência,
que 0 reino de Deus ou de Cristo se concretize no
1 082
Reino de Deus i ii : A to s , Hebreus, C a rta s G e ra is, Apocaupse
tempo presente; ou, mais precisamente, a igreja
ao Senhor e "todos os gentios, sobre os quais se
conduzida e capacitada pelo Espírito Santo cum
invoca o [...] nome [de Cristo]” formam o povo
pre esse papel. Em seu discurso de despedida, o
escatológico de Deus, o reino restaurado de Davi
Jesus terreno prometeu, por meio de uma aliança
ou Israel, sobre o qual Jesus, o Messias davídico,
{d ia tith e m a í],
dar a posse do reino aos Doze, assim
reina (At 15.17). Os doze apóstolos são designa
como o Pai lhe havia concedido o reino por meio
dos seus representantes para que governem e jul
de uma ahança
de modo que pudessem
guem em seu nome (Lc 22.30). Entretanto, não se
participar do reino de Cristo e se tornar regentes e
deve conceber esse reino restaurado de Davi ou
juizes sobre Israel (Lc 22.29,30). Por meio de sua
de Israel como um sistema judaico de natureza
morte, que foi o sacrifício para o estabelecimento
política e nacionalista, que era a ideia corrente
da nova ahança (Lc 22.20), Jesus cumpriu essa
em alguns segmentos judaicos da época (At 1.6).
promessa e criou outro povo de Deus, cujo núcleo
Pelo contrário, deve se pensar nele em termos de
era constituído pelos Doze, correspondendo tipo
uma comunidade de judeus e gentios que invo
[d ie t h e t ó ),
logicamente a Israel com as doze tribos. Assim,
cam o nome do Senhor (i.e., se submetem ao go
por meio de uma aliança, ele insthuiu um novo
verno régio de Jesus, o Messias, o qual representa
povo de Deus, sob o governo de Deus. Então, o
o governo régio de Javé [At 2.21]).
Cristo ressuscitado ensinou-lhes acerca do reino
1.7
Conclusão. Em Atos, Lucas registra a his
de Deus (At 1.3), capachou-os com o Espírito
tória da salvação com base nos seguintes aspec
Santo e os comissionou a dar testemunho do rei
tos: Deus exalta Jesus à sua destra para que o
no de Deus ou de Cristo (At 1.8; 2.1-36).
Filho exerça o senhorio e a monarquia divinos; o
Os doze apóstolos, representados por Pedro
Senhor Jesus Cristo exerce o governo divino por
e outros, como Estêvão, Fihpe, Paulo e Barna-
intermédio do Espírito Santo e de sua igreja; os
bé, saem pela Judeia, por Samaria e pelo mundo
crentes judeus e gentios são conduzidos ao reino
gentílico, chegando até mesmo a Roma, procla
de Deus/de Cristo para salvação. Lucas concen-
mando o reino de Deus ou o senhorio de Cristo
tra-se na manifestação presente do reino, porém
e demonstrando a salvação do reino ("feitos ex
o encara como um processo rumo à consumação,
traordinários e sinais” de exorcismo e cura) por
“a restauração de todas as coisas” , por ocasião da
meio do poder do Espírito Santo. Depois de ba
parusia de Cristo.
tizados em nome do Senhor Jesus Cristo, os que com arrependimento e pela fé aceham o evan
2. Hebreus
gelho são incorporados ã área de influência do
2.1 O reino de Deus. Em Hebreus, existe ape
senhorio de Jesus Cristo (i.e., ao reino de Deus)
nas uma referência explícita ao reino de Deus:
e recebem as bênçãos do reino, o perdão dos pe
"... recebendo um reino inabalável, sejamos gra
cados e 0 poder escatológico do Espírito Santo
tos e, dessa forma, adoremos a Deus de forma
(At 2.38; 19.5,6; 22.16). Dessa maneira, por meio
que lhe seja agradável, com reverência e temor”
da missão da igreja, o reino de Deus ou de Cristo
(Hb 12.28). Nessa passagem, o “reino” parece
é expandido.
não se referir ao governo régio de Deus, e nada
1.6
O Messias, o reino de Davi oa Israel e indica que o versículo tenha em vista nossa sub
os Doze. 0 título Kyrios é usado com o título
missão ao reino ou a participação nele.
"Cristo” (= Messias) para designar Jesus como
Em toda a carta, não existe pratícamen
0 regente no reino de Deus. Deus exaltou o Je
te nenhum ensino acerca do governo régio de
sus crucificado à sua destra e o fez Senhor e
Deus. Em vez disso, parece que a palavra “rei
Cristo (At 2.33,38). Essa exahação do Messias
no” é usada como sinônimo de “cidade [de
significa a ascensão de Jesus ao trono de Davi,
Deus]” (Hb 11.10,16; 12.22), “cidade [...] que
cumprindo a promessa de Deus a Davi (At 2.30;
virá” (Hb 13.14), “ monte Sião” ou “Jerusalém
13.23,32-39; cf. 2Sm 7.12-14). Essa exahação re
celestial” (Hb 12.22) e “pátria” (Hb 11.14). A jul
presenta a restauração do "tabernáculo caído de
gar por esses termos, “reino” parece denotar o
Davi” (At 15.16,
e "o restante dos homens”
lugar de onde Deus governa e onde os crentes
(i.e., o remanescente dos judeus) que buscarem
deverão alcançar o descanso bendito {katapausis,
a r a ),
1083
R eino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
Hb 3.11,18; 4.1,3,5,10,11; sabbatismos, Hb 4.9). a
[ou Rei de Paz]” e “Rei de Justiça” (Hb 7.1-3),
consumação de sua salvação.
em cuja ordem Cristo é apresentado como al
Na verdade, há referências ao trono celestial
guém que foi nomeado sumo sacerdote (Hb 5.6;
de Deus (Hb 4.16; 8.1; 12.2). Na expressão “tro
7.13-28). Esses fatores indicam que em Hebreus
no da Majestade [megalõsynês] no céu” (Hb 8.1)
existe um entendimento de que Jesus Cristo é o
pode haver uma conotação de poder ou soberania
rei messiânico e que, em nome de Deus, exerce
divinos, e, pelo contraste entre a cruz que Jesus
o governo régio divino. Aqui pode estar envol
teve de suportar e o trono divino que por fim al
vido algo mais que um simples reflexo do que
cançou (Hb 12.2), podemos discernir uma cono
rigma comum da igreja primitiva. A declaração
tação semelhante do trono divino. Entretanto, em
de Hebreus 2.3,4 parece refletir o ministério de
nenhum dos dois casos a conotação é forte. Em
pregação (acerca do reino) e cura de Jesus (e.g.,
Hebreus 8.1 e também em 4.16, o significado re
Mt 12.28 par. Lc 11.20). Além disso, é possível
hgioso do trono divino é muho mais proeminente
que a consumação da salvação apresentada em
que o significado político.
Hebreus como um sábado de descanso (Hb 4.9)
2.2
Jesus Cristo exaltado à destra do trono reflha o ministério de cura de Jesus exercido no
de Deus. Um fenômeno semelhante ocorre com
sábado como uma concretização proléptica da
relação a Jesus Cristo. Faz parte do tema centra!
perfeição sabática ou da criação restaurada no
de Hebreus a exaltação de Jesus Cristo, que se
reino de Deus.
assenta à destra de Deus ou de seu trono, cum
Entretanto, não se pode afirmar que a carta
prindo a profecia de Salmos 110.1 (Hb 1.3,13; 8.1;
apresenta uma exposição do tema da regência
10.12; 12.2). Além do fato de que em vários hvros
messiânica de Jesus. Assim como quase nada
do NT Salmos 110.1 cumpre o importante papel
se diz acerca do reinado do Senhor Jesus Cristo
de confirmar o senhorio e o governo régio que o
exahado sobre seu povo ou sobre o mundo, mui
Cristo exahado veio exercer em nome de Deus,
to pouco se diz a respeho do reinado de Deus.
vários fatores em Hebreus apontam para uma
Desde sua exahação à destra de Deus, Cristo
conotação política do tema. 1) Ele é acompanha
aguarda que seus inimigos se tornem estrado
do de referências ao fato de Deus ter designado
para seus pés (Hb 10.13; cf. Sl 110.1). Além de
Jesus, na condição de Filho, seu “herdeiro de to
declarar sua exaltação ao governo régio univer
das as coisas” , em cumprimento de Salmos 2.7,8
sal, isso é tudo que se diz sobre a atividade po
(Hb 1.2,5; 5.5; 7.28) e 2Samuel 7.14 (Hb 1.5),
lftica atual do Cristo exaltado. Em vez disso, a
duas passagens que no judaísmo e na igreja pri
exahação de Cristo à destra de Deus é explicada
mitiva eram interpretadas como profecias acerca
quase exclusivamente em relação ao seu minis
do rei messiânico. 2) Salmos 45.6,7 e 8.4-6 são
tério de sumo sacerdote (cf.
aplicados respectivamente em Hebreus 1.8,9 e
assim como o trono de Deus no santuário celes
2.6-8 para destacar a exaltação de Jesus ao go
tial é quase exclusivamente interpretado em seu
D a v ie s ,
p. 388-9),
verno régio ou senhorio universais. Observe-se
significado rehgioso. Tendo entrado, por meio
especialmente o hnguajar da primeira passagem:
do próprio sangue, de uma vez para sempre
O teu trono, ó Deus, subsiste pelos séculos
eterna para nós (Hb 9.12) e mediando a nova
dos séculos, e o cetro do teu reino é cetro de
ahança (Hb 8.6-13; 9.15-22), Cristo agora exerce
equidade.
a função de sumo sacerdote no santuário celes
no Santo dos Santos, conquistando a redenção
Amaste a justiça e odiaste o pecado; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de
tial, intercedendo por nós (Hb 2.17,18; 4.14-16; 7.25; 8.1,2; 9.24; 10.19-22).
alegria, mais do que a teus companheiros.
2.3
Baseado na tradição sobre Jesus? A ex
posição de Hebreus sobre o trono de Deus no 3)
Em contraste com Moisés, que foi fiel como santuário celestial e sobre a exahação de Cristo à
servo, Hebreus 3.5,6 afirma que “ Cristo, como Fi
destra do santuário, principalmente com relação
lho, é fiel sobre a casa-de Deus”. 4) 0 nome Mel-
ao seu significado rehgioso (embora retenha o
quisedeque é interpretado Como “Rei de Salém
significado político em segundo plano), baseia-se
1084
Reino de D eus iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
na concepção comum do templo, tanto como o
os crentes estão peregrinando rumo a essa reah
santuário onde Deus é adorado quanto como o
dade e devem avançar pela fé e com perseverança,
palácio de onde Deus governa {cf.
seguindo a Jesus Cristo, “o Autor e Consumador
H engel
&
Jesus também combinou os conceitos
da nossa fé” (Hb 12.2). Contudo, ao se apossar
de reino de Deus e de templo: às vezes, explica
da propiciação de Cristo e da nova ahança, num
o primeiro com base no segundo (cf.
e
sentido real eles já chegaram “ao monte Sião, à
conclui sua pregação acerca do reino com um ato
cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial” para
S c h w e m e r ).
A a le n ),
sinalizador da iminente destruição divina do tem
comemorar o sábado numa reunião festiva de an
plo de Jerusalém e da promessa de que ele edifi
jos e santos (Hb 12.22,23). Além da tensão entre
cará um novo templo (Mc 11.15 e par.; Mc 14.58
0 “já” e 0 “ainda não” , característica da escatolo
epar.).
gia do NT como um todo, podemos observar que
Mesmo que cheiropoiêtos (“construído por
a metáfora não está distante do retrato favorito
mãos humanas”) ou acheiropoiêtos (“não feito
de Jesus, em que ele fala de um banquete para
por mãos humanas”) de Marcos 14.58 não seja
celebrar o reino de Deus, nem do ato em que ele
autêntico, a presença do conceito em Atos 7.48,
torna concreta a salvação do reino de Deus por
Hebreus 9.11,24 e Marcos 14.58 indica tratar-se
meio de seu ministério de cura no sábado.
de uma tradição da igreja primitiva para expres sar um contraste entre o templo de Jerusalém e a
3. Cartas Gerais
nova adoração que Jesus Cristo tornou possível.
No restante das Cartas Gerais, a expressão “o
Desse modo, parece que a cena em que Cristo
reino [de Deus]” aparece apenas em Tiago 2.5 e
entra no “tabernáculo maior e mais perfeito, não
2Pedro 1.11, e conceitos relacionados aparecem
erguido por mãos humanas” (Hb 9.11) — que é a
em IPedro 2.4-10.
reahdade celeste da qual o templo de Jerusalém
Em 2Pedro 1.11, os leitores são exortados a
ou seu predecessor (o tabernáculo no deserto)
cultivar virtudes cristãs, para que lhes seja “con
“feito por mãos humanas” era apenas uma có
cedida a entrada no reino eterno do nosso Senhor
pia e uma sombra (Hb 8.2,5; 9.24) — reflete essa
e Salvador Jesus Cristo”. É possível que em IPedro 2 a ideia da igreja como “casa espiritual” , como
tradição. Uma vez que Hebreus revela certa famUiarida-
templo edificado sobre a pedra angular ou pedra
de com a tradição de Jesus (e.g., Hb 2.3,4; 5.7,8;
de alicerce (IPe 2.4-8) e como “geração eleha, sa
13.12), é possível que,
parte dessa tradição, o
cerdócio real, nação santa, povo de propriedade
autor estivesse familiarizado com a atitude nega
exclusiva de Deus” (IPe 2.9; Êx 19.6), reflita o que
tiva de Jesus em relação ao templo de Jerusalém
Jesus tinha em vista com sua pregação acerca do
e com a afirmação, feita por ele como parte de
reino e com sua declaração a respeho do templo:
sua pregação do reino, de que iria construir um
formar um povo de Deus novo e escatológico, ou
novo templo. Desse modo, a grande habUidade
seja, construir um novo “templo”.
à
do autor pode estar em sua exposição sistemá
Lembrando os lehores de que Deus escolheu
tica do elemento rehgioso, presente, no mínimo
os pobres “a fim de fazê-los ricos na fé e herdei
em segundo plano, na pregação de Jesus acerca
ros do reino que prometeu aos que o amam” (Tg
do reino (cf.
2.5), Tiago aconselha-os a guardar a “lei real”
G a s to n ,
p. 65-243)
à
luz de Salmos
110.1,4. Nesse caso, o evangelho do autor de He
[nomos basilikos]: “Amarás o teu próximo como
breus também se baseia, em úhima instância, no
a ti mesmo” (Tg 2.8). Ele também os adverte
evangelho de Jesus a respeho do reino de Deus.
com um quadro em que apresenta um contras
2.4
Já, mas ainda não. Os crentes devem re te com os ricos, que exploram os outros e difamam
ceber “um reino inabalável” (Hb 12.28), ou seja,
0 nome de Deus (Tg 2.6,7). Aqui o vocabulário de
a “Jerusalém celestial”, a “cidade de Deus”. No
Jesus encontra eco nas expressões “os pobres” (Lc
“reino” , “cidade” (e.g., Hb 11.10) ou santuário
4.18; Mt 5.3 par. Lc 6.20) e “herdar o reino” (e.g.,
(Hb 6.19,20) de Deus haverá um sábado de des
Mt 5.5; 25.34).
canso (Hb 4.9) e a festa de que o povo de Deus irá
0 ensino de Jesus também é claramente refle
participar com miríades de anjos. No momento.
tido: como lei do reino, ele deu o mandamento
1085
R eino de D eus iii ; A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
duplo do amor: “Amarás o Senhor teu Deus de
governam a esfera celeste também adoram a
todo 0 coração, de toda a alma e de todo o enten
Deus, reconhecendo a vontade e o poder sobe
dimento” (Mt 22.34-40) e o tornou tangível (e.g.,
ranos do Criador (Ap 4,11). Assim, João enxerga
no Sermão do Monte ou da Planície [Mt 5— 7 par.
que no céu o nome de Deus é engrandecido, ele
Lc 6.20-49]). Os ricos violam essa lei do reino,
reina e sua vontade é obedecida (cf. Mt 6.9,10).
ou “a lei real” : em vez de amar a Deus, difamam
4.2 O reino de Satanás. Na terra, porém.
o nome dele, amam o ídolo Mamom (cf. Mt 6.24
Satanás (o dragão ou serpente), o mais antigo
par. Lc 16.13) e assim inevitavelmente exploram
adversário de Deus e a fonte sobrenatural de to
o próximo. Como conseqüência, serão excluídos
dos os males, está reinando, e usa de todas as
do reino de Deus. Em contraste, “os pobres” são
falsidades para induzir as nações a adorá-lo, em
ricos na fé: dependem de Deus e o amam e, as
vez de adorarem ao Deus verdadeiro (Ap 12).
sim, amam também o próximo, demonstrando
Para João, o reinado de Satanás assume forma
ser 0 povo do reino de Deus, que irá “herdar o
concreta no tirânico Império Romano: o poder
reino” quando este for consumado. O contraste
imperial romano incorporado no imperador é a
entre os pobres e os ricos ecoa fortemente na ver
besta ou o monstro do mar que governa o mun
são lucana das Bem-Aventuranças (Lc 6.20-26).
do em nome do dragão (Ap 13; 17). O dragão, a
Está implícho que os pobres herdarão o reino,
besta e a segunda besta ou monstro da terra, que
quando o Senhor vier para julgar, e, por isso, de
persuade as nações a adorar a besta, são uma
vem aguardar pacientemente, “porque a vinda do
paródia do Deus trino. Pai, Filho e Espírito Santo.
Senhor está próxima” (Tg 5.5-7).
A trindade satânica obriga as nações a se subme ter ao culto imperial, enganando-as com o vinho da meretriz de Babilônia (i.e., a ideologia da pax
4. Apocalipse “ 0 reino de Deus” é o tema de Apocahpse, e, des
romana, Ap 17) e deixando-as maravilhadas com
se modo, estudar o tema implica fazer um apa
o poder aparentemente invencível do Império
nhado de todo o conteúdo do hvro (v.
Romano (Ap 13).
4.1
A p o c a lip s e ) .
Desse modo, o imperador romano se passa
O reino de Deus no céu. Na condição
de “o Alfa e o Ômega, o primeiro e o úhimo” .
por deus na terra, e o nome do Deus verdadeiro
Deus é 0 Criador e o alvo de todas as coisas e,
não é engrandecido: seu reinado é usurpado, e
na condição de pantokratõr (“Todo-poderoso” ou
sua vontade não é obedecida.
“ soberano sobre todas as coisas”), é o Senhor so
4.3 0 reino de Deus na terra: o acontecimen
berano de todo 0 Universo. Deus é aquele “que
to em tomo de Cristo (passado). Deus — aquele
está assentado no trono”, no céu, e dali conduz o
“que é” e “que era” — “há de vir” à terra a fim de
curso da história. De forma impressionante, o vi
estabelecer seu legítimo governo régio, destruin
dente João presencia essa cena numa visão, que
do as forças satânicas. Essa é a mensagem princi
ele conta em Apocahpse 4.
pal de Apocahpse. João está seguro disso porque
Na visão do apóstolo. Deus está assentado
teve uma visão da reahdade celestial do triunfo
no trono celeste e recebe a adoração dos “quatro
de Deus, que, por intermédio de Jesus Cristo, se
seres viventes” e dos “vinte e quatro anciãos”.
revelará na terra (Ap 5). Num sentido real. Deus
Na sala do trono celeste, o protótipo do Santo
já veio e triunfou em Jesus Cristo. Na condição
dos Santos no templo terrestre, os quatro seres
daquele que ostenta os nomes divinos (“ o primei
viventes — com aparência de leão, touro, ser hu
ro e o úhimo” , “o Alfa e o Ômega” e “ o princí
mano e águia, respectivamente — , na condição
pio e o fim”) e que compartilha do trono divino.
de representantes de todas as criaturas, adoram
Cristo é o agente de Deus que estabelece na terra
a Deus, que está no trono. No hino que entoam, exaha-se a santidade do Deus eterno e soberano.
0 governo régio de Deus. É ele quem transforma 0 “ reino do mundo” no “ [reino] de nosso Senhor
Deus, 0 Criador e o Regente de todo o Universo,
e de seu Cristo” (Ap 11.15). Cristo é igualado a
é devidamente engrandecido (Ap 4.8). Os “vinte
Deus, de modo que a vinda futura de Deus para
e quatro anciãos”, os-seres angélicos que cons
a salvação e o juízo não é outra senão a vinda de
tituem 0 conselho celeste
Cristo (Ap 22.12,20).
em nome de Deus,
1086
Reino de D eus iii : A tos , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
Esse Cristo já veio, derrotou as forças satâni
são o reino de Deus que já passou a existir. Dessa
cas e agora está entronizado nos céus (Ap 3.21).
maneira, Jesus Cristo já instituiu o reino de Deus.
Para descrever o conflito entre Cristo e as forças
Assim, Jesus cumpriu a expectativa vetero
satânicas e a redenção da humanidade, João em
testamentária ou judaica do Messias davídico.
prega duas metáforas: a guerra messiânica e o
Entretanto, mais uma vez em conformidade
Êxodo. Jesus é o Messias, “o Leão da tribo de
com Jesus e os Evangelhos, João reinterpreta a
Judá, a raiz de Davi” (Ap 5.5; 22.16), e venceu
messianidade. A vitória messiânica de Jesus foi
as nações rebeldes (cf. Sl 2.8,9) com uma espada
uma vhória sobre as forças malignas de Satanás
afiada de dois gumes, que sai de sua boca (cf.
(Ap 12.7-9), não sobre as nações gentílicas. Em
Is 49.2; Ap 1.16; 2.12,16; 19.11,15,21). Jesus é o
vez de conquistas mUhares, o meio de alcançar
Cordeiro pascal (Ap 5.6,9-11), que, pelo seu san
essa vhória foi seu testemunho da verdade ou do
gue, resgatou um povo dentre todas as nações
Deus verdadeiro e sua morte sacrificial. E o povo
e 0 fez “reino e sacerdotes” para servir a Deus
que se juntou ao reino de Deus para participar do
(Ap 5.9,10; cf. Êx 19.5,6).
governo divino não foi a nação judaica, mas um
Jesus Cristo derrotou as forças satânicas me
novo povo que manteria “o testemunho de Jesus”
diante um testemunho fiel de Deus e depois me
ou se apegaria fielmente ao reino de Deus que
diante sua morte (v.
Jesus proclamou (Ap 12.17; 17.6; 19.10).
C r is to , m o r te d e )
. Jesus Cristo
foi “a testemunha fiel e verdadeira” de Deus até
No relato da visão de Deus entronizado nos
mesmo em sua morte (Ap 3.14; cf. Ap 1.5; 12.17;
céus e de Jesus Cristo como o Cordeiro morto
19.10). Isso deve ser referência à proclamação de
para estabelecer seu reino na terra (Ap 4— 5),
Jesus, durante sua vida terrena, acerca do reino
João apresenta a imagem de um Deus que go
de Deus. Mas a vitória decisiva aconteceu com
verna com amor altruísta e com justiça sobre as
sua morte. É o que mostra a visão de Apocalipse
forças satânicas, as quais governam pela imposi
5
em Apocahpse 5.5, declara-se que
ção de sua vontade e com opressão. Deus reina
Jesus, na condição de Messias davídico, triunfou,
com amor, por isso seu governo régio significa
mas nos versículos subsequentes o Messias triun
salvação para a humanidade, e o evangelho é a
(B a u c k h a m ):
fante aparece como um Cordeiro sacrificado, que
mensagem de sua vinda para estabelecer esse go
está no centro do trono divino e recebe a adora
verno. Assim, a mensagem de João é a mesma do
ção dos “quatro seres viventes” e dos “vinte e
evangelho de Jesus, dos Evangehstas e de Paulo.
quatro anciãos”. Em seguida, a visão mostra uma miríade de anjos e, finalmente, todas as criaturas
4.4
O reino de Deus na igreja e por meio dela
(presente). A igreja ou o povo de Deus resgata
do Universo a adorá-lo e louvá-lo pelo triunfo que
do do reino de Satanás por meio da morte sa
conquistou mediante sua morte sacrificial. Em
crificial de Cristo é o reino de Deus presente na
Apocahpse 12.5-12, a vitória decisiva de Cristo
terra (Ap 1.6; 5.10). Os cristãos tornam real na
sobre Satanás por meio de sua morte é represen
terra o triunfo de Cristo sobre as forças satâni
tada em dois quadros vívidos: Cristo é entroni
cas. Paralelamente ã obra de Cristo, esse papel
zado no céu enquanto Satanás é expulso de lá e
da igreja está vinculado à guerra messiânica. 0
lançado na terra.
dragão, que foi derrotado com a morte de Cristo
Isso está em perfeita conformidade com o en
e expulso do céu, agora, por meio da besta do
sino de Jesus ou dos Evangelhos: por meio de sua
mar e da besta da terra, age com tirania sobre o
pregação do reino de Deus e sua morte sacrificial,
mundo. Com a autoridade de Satanás e por or
Jesus triunfou sobre as forças satânicas. Também
dem deste, os imperadores e governantes locais
em plena conformidade com o próprio ensino de
do Império Romano travam guerra contra a igreja
Jesus ou com os testemunhos dos Evangelhos, o
(Ap 12.13— 13.18). A igreja é o exército do Mes
resuhado da vitória de Jesus sobre as forças satâ
sias, um contingente de 144 mil, tirados das doze
nicas é a criação do povo de Deus, um povo que
tribos de Israel (Ap 7.4-8; i.e., 12 x 12 x 1.000
ele resgatou do reino de Satanás e constituiu “rei
—
no e sacerdotes” para servir a Deus (Ap 5.10). É
citado, o Cordeiro vitorioso, está presente com
o povo sobre quem Deus reina como Rei; ou, eles
sua igreja (Ap 1.13; 2.1) e comanda seu exército
1i087
todos números simbólicos). 0 Cristo ressus
Reino de D eus iii : A t o s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
{Ap 14.1,4; 17.14) na batalha contra a trindade
em que a Babilônia, o regime satânico, cairá (Ap
satânica, capacitando a igreja com o Espírito San
16.16— 18.24), os governantes do mundo que fo
to, que é o poder de Cristo operando no mundo
rem seus aliados serão destruídos (Ap 19.17-21)
(Ap 3.1; 5.6).
e os perversos serão condenados (Ap 14.17-20;
Ainda com relação à obra de Cristo, a guerra
17.12-14; 19.15). A trindade satânica, formada
santa da igreja contra as forças satânicas é expres
pelo dragão, a besta e o falso profeta, também
sa não como uma conquista militar, mas como o
será destruída (Ap 19.19—20.10), mas os santos
testemunho do governo régio de Deus/de Cristo e
serão recolhidos ao reino de Cristo (Ap 14.15,16).
da morte sacrificial de Jesus (Ap 11.1-13; 12.11).
João mostra em duas etapas a destruição do
Os cristãos formam um exércho, que é o exército
dragão. Satanás, e. de maneira correspondente,
do Cordeiro sacrificado (Ap 14.1-5). Nessa con
a consumação da salvação também em duas eta
dição, participam, por meio de seu martírio, da
pas. 0 dragão será capturado e trancado no abis
vitória do Cordeiro sobre as forças satânicas — o
mo por mil anos, e, durante esse periodo, apenas
martírio é a participação deles na morte sacrificial
os mártires serão ressuschados para participar do
do Cordeiro (Ap 7.14). A guerra santa em que
reinado de Cristo. Então Satanás será solto para
estão lutando consiste em dar continuidade ao
reunir Gogue e Magogue (mencionados em Eze
"testemunho de Jesus” acerca do governo régio
quiel) para a batalha final contra o povo de Deus,
do Deus verdadeiro (Ap 12.17; 19.10) e em resis
mas acabará lançado no lago de fogo, onde ficará
tir à idolatria do falso deus, a besta.
para sempre. A morte e o Hades serão destruídos
A perseguição promovida pela besta (o poder
com ele. Isso culminará com a ressurreição ge
imperial romano) é feroz, e o engano da mere
ral e 0 juízo final, que abrange todos os mortos
triz da Babilônia (a ideologia da pax romana] é
(Ap 20.1-10). 0 quadro do reino milenial de Cris
sedutor. No entanto, a igreja foi capacitada pelo
to apresenta a ideia teológica de que, ao contrário
"espírito da profecia” (Ap 11.3-6; 19.10), e o tes
do paraíso do Urzeit (i.e., “tempo primordial”), o
temunho que ela dá, entre todas as nações, a res
Universo, restaurado sob o governo régio de Deus
peito do governo régio do Deus verdadeiro e do
no Endzeit (i.e., “tempo final”), já não estará
Cordeiro que foi morto produz a conversão das
mais vulnerável a Satanás
(B a u c k h a m ).
nações da idolatria para a adoração do Deus ver
Em seguida, João discorre sobre a consu
dadeiro (Ap 11.13; 15.2-4). Assim, por meio do
mação do reino de Deus em hnguagem de uma
testemunho da igreja o governo régio de Deus se
nova criação — “um novo céu e uma nova terra”
torna real sobre as nações no presente.
e “a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia
4.5
A consumação do reino na parusia de do céu, da parte de Deus” (Ap 21.1—22.5). A
Cristo (futuro). Entretanto, restam os que não
nova criação é mais que a simples restauração
dão ouvidos aos juízos divinos de advertência (as
da criação original. Nela, “o mar já não exis
duas séries de juízos: Ap 6.1-17; 8.1,3-5; 8.2,6-11;
te” (Ap 21.1), ao passo que na primeira criação
11.14-19) nem aceitam o testemunho da igreja.
o “mar”, a força primeva do mal (cf. Ap 13.1),
Continuam sob o governo da trindade satânica
permanecia como uma ameaça em potencial ao
enquanto esta existir, blasfemando contra Deus
cosmo (Gn 1.2; 7.11).
e coagindo e iludindo as nações a participar da
Repleta da presença de Deus, a nova criação
adoração da trindade satânica. Os santos continu
será a cidade de Deus, a nova Jerusalém e tam
am a sofrer debaixo da tirania deles, e até mesmo
bém o templo no qual Deus e o Cordeiro serão
a alma de quem já foi martirizado tem de aguar
entronizados. Ah Deus habhará com seu povo, e
dar a consumação de sua salvação e o julgamento
aqueles que “vencerem” mediante a fé em Cristo serão seu povo e habitarão com Deus. Não haverá
dos perversos (Ap 6.9-11). A consumação da salvação e o juízo irão ocor
mais morte, apenas plenhude de vida, pois “ o rio
rer na parusia. Cristo virá como "o Senhor dos
da água da vida” fluirá do trono de Deus e do
senhores e o Rei dos reis” (Ap 17.14; 19.16) e
Cordeiro, e os frutos da “árvore da vida” estarão
encerrará vitorioso a guerra santa contra as forças
disponíveis. Já não haverá trevas, pois a glória
satânicas. Haveráo juízo final (Ap 15.1,5— 16.21),
de Deus e do Cordeiro iluminará toda a cidade.
1088
Religiões greco - r o m a n as
Já não haverá engano satânico nem impureza
e das atitudes rehgiosas tradicionais na época do
(Ap 21.27), mas a Palavra e a verdade divinas
NT.
prevalecerão (Ap 19.11,13). Na condição de filhos
certas expressões de natureza religiosa alcança
de Deus, seu povo herdará todas essas bênçãos e
ram nova proeminência ou novas manifestações
participará do governo divino, e as nações virão
na época do surgimento do cristianismo: o culto
com seus tesouros para adorar a Deus e andar
ao imperador, os mistérios, os oráculos, as curas,
na sua luz, cumprindo as profecias dos profetas
a magia, os demônios, a astrologia e o destino.
No contexto dos antigos cuhos e suas práticas,
do AT e de Jesus. O reino de Deus se consumará
1. As antigas religiões grega e romana
dessa maneira, e se cumprirá o objetivo de Deus
2. Características da rehgião do período heleno-romano
para com sua criação e sua ahança. 4.6
Conclusão. À luz da morte, ressurreição
3. O culto cívico 4. O cuho imperial
e exahação de Cristo, Apocahpse apresenta uma interpretação fiel do evangelho de Jesus acerca
5. Os mistérios
do reino de Deus e uma contextuahzação criativa
6. Outros aspectos
desse evangelho para a lihima metade do século
7. Observações finais
I,
quando o Império Romano apareceu como a en 1. As antígas religiões grega e romana
carnação do reino satânico. Ver também dlntd
tio n ,
A diferença entre a rehgião tradicional grega e a
D eu s; e s c a to lo g ia ; S e n h o r.
: A s c e n s io n ; C r e a t i o n , C o s m o l o g y ; E x a l t a
E n th ro n e m e n t;
G lo r y ;
H eaven,
N ew
H eaven ;
de Roma caracteriza-se pelo fato de que a rehgião grega teve origem nos mitos dos épicos de Home ro e a rehgião romana foi atribuída às instituições
L a n d in E a r l y C h r i s t i a n i t y ; M i l l e n i u m ; P a r o u s ia .
do legislador Numa. Os gregos relacionavamS. “ Reign” and “house” in the
se com suas divindades como se relacionariam
v. 8, p. 215-40, 1961/1962. ■ B a u c k
com seres humanos cuja vida se estendesse para
R. J. The climax o f prophecy: studies on the
além dos hmites da normalidade, ao passo que a
Book of Revelation. Edinburgh: T & T Clark,
rehgião romana tínha um molde claramente le
1992. ■ B e a s l e y - M u r r a y ,
gal. As divindades gregas eram antropomórficas:
B ib u o g r a fia . A a le n ,
Gospels. ham ,
NTS,
R. The Book of Revela
G.
F.
demonstravam paixões humanas, apresentavam
F. The Acts o f the Apostles. Grand Rapids: Eerd
características próprias dos seres humanos, ti
mans, 1990. ■ D a v id s , P. H. Commentary on James.
nham interesse nos negócios humanos e interfe
Grand Rapids: Eerdmans, 1982.
■ D a v ie s ,
riam nesses negócios. Contudo, eram diferentes
J. H. The heavenly work of Christ in Hebrews.
dos seres humanos por não terem idade e nunca
tion. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. ■
[n ig t c .)
B ru ce,
G. Spirh
morrerem, por não serem limitadas pelo espaço e
and kingdom. ExpT, v. 82, p. 36-40, 1970/1971.
por estarem acima da moralidade comum. Os sa
■ Elungworth, p. Commentary on Hebrews. Grand
crifícios não exigiam um sacerdócio profissional
Rapids: Eerdmans, 1993.
L. N o
e eram dominados por um espírito de barganha
stone on another Leiden: E. J. Brih, 1970. ■ Hen
que dizia: “Ofereço dádivas aos deuses e peço
SE, V.
4, p. 384-9, 1968. ■
g e l, M .
& Schwemer,
Dunn,
[n ig tc .)
A. M „
J.
D.
■ G a s to n ,
orgs. Konigsherrschaft
Gottes and himmlischer Kult. Tübingen: J. C.
que façam algo para mim” (v.
P la t ã o ,
E u , 14C-E).
B.
As divindades romanas eram poderes menos per
Mohr, 1991. • Lane, W, L. Hebrews. Dahas: Word,
sonalizados [numina): possuíam funções especí
1991. 2 V.
ficas e hmitadas. As relações dos seres humanos
(w b c .)
■ Marshall, I. H. Luke: historian
com o divino eram de natureza mais contratual,
and theologian. Exeter: Paternoster, 1970. S. K
im
de modo que era preciso obedecer exatamente ao ritual das cerimônias, e havia especialistas pro
R e l ig iõ e s
fissionais [pontifices e augures) que cuidavam
greco-r o m a n as
As tradições rehgiosas da Grécia e de Roma sofre
da observância dos muitos deveres rehgiosos a
ram mudanças significativas nos períodos impe
favor do povo. O cuho doméstico, tanto na Gré
riais helenístico e romano. Apesar disso, seria um
cia quanto em Roma, prosseguiu com grande
erro minimizar a influência da rehgião tradicional
regularidade. As refeições começavam com um
1089
R eligiões greco - r o m a n as
sacrifício de alimento e terminavam com uma
séculos da era cristã. 0 declínio da autonomia
libação.
local nos períodos helenístico e imperial aparen temente conduziu a um despertamento da lealda
2. Características da religião do período
de e do orgulho no culto cívico. À medida que a
heleno-romano
importância política das cidades gregas foi dimi
A distinção que hoje se faz entre rehgião e Estado
nuindo, sua glória passou a ser associada aos seus
não funcionava naquela época. Uma vez que as
templos e deuses. As classes governantes encon
práticas idólatras permeavam todos os aspectos
traram uma forma de dar expressão ao seu patrio
da vida (a pohtica, o exércho, o teatro, o atletis
tismo, ao determinar que se escrevessem histórias
mo, os negócios), os judeus e os cristãos estavam
locais; que se estudassem costumes e mitos anti
em séria desvantagem social e econômica.
gos; que se construíssem novos templos; que se
Incentivava-se o sincretismo mediante a ex
instituíssem festas; que se erigissem monumentos
portação de deuses gregos para terras estrangei
com inscrições comemorativas e de celebração.
ras e a importação de deuses estrangeiros para
Os cuhos cívicos eram estimulados pela educação
0 mundo greco-romano, resultando na identifica
primária e secundária, e Homero era o livro-texto
ção de uma divindade com outra e no emprésti
principal. Dessa maneira, o currículo educacional
mo de ideias.
transmitia os mitos tradicionais e, com eles, os va
0 polheismo era tolerante, ou seja, não era ex
lores tradicionais da cultura grega.
clusivista. 0 exclusivismo do judaísmo e do cris
As autoridades seculares determinavam a
tianismo era ofensivo à mentahdade pagã. Havia
escolha dos profissionais envolvidos no cuho,
uma inclinação para o monoteísmo, mas mesmo
as exigências de pureza ritual, a distribuição de
quando se reconhecia a existência de um deus
itens trazidos para sacrifício, a ordem das pessoas
supremo, mantinham-se os velhos deuses como
nas procissões e outros detalhes externos da htur
poderes subordinados.
gia, e essas regras eram muitas vezes inscritas em
0 individuahsmo acentuado da era helenística
monumentos de pedra. A exigência fundamental
deu mais ênfase aos relacionamentos escolhidos,
de um santuário religioso era um altar para os sa
em detrimento dos que eram herdados, mas os
crifícios. Cereais ou pão, vegetais, azeite de oliva
primeiros continuavam a expressar o lado corpo
e vinho eram sacrifícios mais comuns que a car
rativo ou social da rehgião.
ne, mas esta constituía o sacrifício principal nas
A piedade (lat., pietas; gr., eusebeia) consis
festas periódicas (anuais, quase todas) patrocina
tia basicamente em ritos externos, não tanto em
das pelo Estado, a época em que os mais pobres
athudes interiores. A pessoa piedosa era alguém
tinham carne em sua alimentação. Os sacrifícios
que cumpria seus deveres à risca.
romanos eram acompanhados pela queima de in
0 fundamento da moralidade não era basica
censo e pelo toque de um instrumento de sopro
mente o cuho rehgioso. A tradição hterária conti
{tibia). O sacerdote usava um véu sobre a cabeça,
nha exemplos do que era feito e do que não era,
e 0 altar ficava fora do templo, que era a casa
e os filósofos assumiam o papel de professores
da divindade, não o local de reunião dos adora
de moralidade popular. Alguns cuhos passa
dores. A presença da divindade era simbohzada
ram a incluir normas morais entre as regras de
pela estátua cultuai, que concentrava as atenções
pureza ritual.
no templo. Além da procissão e dos sacrifícios,
Antes do século ii, as necessidades psicológi
as festas periódicas muitas vezes incluíam jogos
cas já incluíam a sensação de desamparo quanto
e disputas. A principal ocasião para sacrifício
ao destino, incerteza sobre a vida após a morte,
particular era a oferta votiva, a dádiva trazida à
curiosidade sobre o sobrenatural e a sensação de
divindade como cumprimento de um voto, um
instabilidade nos assuntos humanos.
ato elementar de piedade pessoal e vida religiosa.
3. O culto cívico
pectos importantes dos cuhos cívicos. No episó
No hvro de Atos, duas narrativas ilustram as Ao contrário do que §e costuma dizer, os cuhos
dio de Listra (At 14.11-13), que pode ter como
cívicos permaneceram dinâçiicos nos primeiros
base a história registrada por Ovídio
1090
(Ovídio,
Religiões greco - r o m an as
Me, 8.620-724), é possível assinalar os seguintes
de divindades. Alexandre, o Grande, e seus su
itens: a natureza antropomórfica dos deuses, os
cessores receberam honras divinas, e aos impe
quais aparecem em forma humana; a atribui
radores romanos foram atribuídas essas honras
ção de nomes gregos a divindades locais (Zeus,
no Oriente grego e, por fim, também no Ocidente
o deus supremo, e Hermes, o mensageiro dos
romano. Era tão grande o poder exercido pelos
deuses; na
“Júpiter” e “Mercúrio” respecti
governantes e tamanha a gratidão pela paz e pela
vamente; Júpiter e Mercúrio eram o equivalente
prosperidade trazidas pelo imperador que só as
a ra ,
romano dos deuses gregos Zeus e Hermes); o sa
honras prestadas aos deuses pareciam uma ex
cerdote designado para servir uma divindade; a
pressão adequada de tributo. A ehte social, que
identificação do culto como Zeus-fora-da-cidade
se beneficiava ao máximo do governo romano,
(nota de rodapé da
que é onde o santuário
era especialmente ativa na promoção do cuho ao
estava localizado; a intenção de sacrificar touros
governante, e geralmente o ímpeto vinha das pro
(o sacrifício mais caro e, desse modo, uma indi
víncias, mas certos governantes, como Calígula e
cação da importância que davam ao incidente)
Domiciano, insistiam em receber honras divinas.
n rs v ),
As formas externas de cuho imperial incluíam
adornados com grinaldas, enfeite comum num
a dedicação de altares e templos, o erguimento
animal oferecido em sacrifício. Num dos episódios de Éfeso (At 19.23-41),
de estátuas que davam à pessoa aparência de
destacam-se outros aspectos relacionados com
divindade, inscrições comemorativas, sacrifícios
os cultos cívicos: mais uma vez, a atribuição de
em honra do governante, instituição de novas
um nome grego a uma divindade local (a Ártemis
festas ou mudança de nomes de festas antigas
— “Diana”, na
— dos efésios não é a deu
e atribuição de títulos divinos. Embora histórias
sa grega clássica da caça, e sim uma deusa-mãe
de milagres estivessem mais relacionadas com o
adorada na Ásia Menor, e, embora o aspecto da
nascimento do governante, parece não ter havido
fertihdade não seja atestado na Ártemis dos efé
nenhuma expectativa de que ele agisse como um
sios, a analogia com outras deusas-mães sugere
ser sobrenatural. Orações e ofertas votivas aos
fecundidade na natureza, mas não imorahdade
governantes eram raras ou mesmo inexistentes.
ara
sexual) ; ahança entre a divindade local mais im
0 cuho imperial era tanto um reconhecimento do
portante e as autoridades locais (At 19.35,38,39)
que parecia um poder quase sobrenatural quan
e provinciais (At 19.31,38); atividade econômica
to um ato de gratidão por benefícios recebidos
(At 19.24-27); fabricação de imagens da divinda
ou em antecipação por esses mesmos benefícios.
de para venda como lembrança ou como oferta
Era uma expressão do nível social do governante,
votiva (At 19.24); aclamações (At 19.34); desig
da lealdade a ele e da unidade dos súditos. Por
nação de Éfeso como “guardiã” [nékoros] de Árte
isso, sua importância era mais política e social
mis (At 19.35); origem divina atribuída ã imagem
que religiosa. A história de Herodes Agripa i (At 12.20-23)
ou símbolo da divindade (At 19.35).
ilustra a bajulação exagerada com que era trata 4. O culto imperial
do na corte um rei de quem se esperavam bene-
No império, o principal cuho cívico local quase
ficios (cf. 0 relato mais completo em
sempre estava ligado ao culto imperial. Dar hon
19.8.2, § 343-52). Os asiarcas mencionados em
ra divina aos governantes era o clímax do cuho
Atos 19.31 eram membros do conselho provin
J o s e fo ,
An,
cívico no mundo greco-romano, especialmente
cial da Ásia, os quais, sem estar necessariamen
depois que a cidade (Roma) se tornou o centro
te envolvidos, supervisionavam o cuho imperial
do mundo, e a famíha imperial personificava a
como parte de seus deveres. O hvro de A p o c a l i p s e ,
cidade. Precedentes para o cuho ao governante
dentre todos os escritos do
estão ligados a ideias existentes no Oriente Mé
maior antagonismo para com Roma e sua perso
dio, em que os reis eram vistos como divinos, em
nificação do culto imperial. Destaca-se o aspecto
função de seu cargo, e também no cuho grego
rehgioso da besta, que será derrotada pelo Senhor
n t, é
o que revela o
aos heróis — seres humanos notáveis que, em
(Ap 13.1,4-8,11-15; 19.20). Os astros, associa
razão de seus feitos, eram alçados à condição
dos não apenas aos deuses do paganismo, mas
1091
R eligiões greco - r o m a n as
visíveis nas moedas de Domiciano com a família
divindade que controlava as forças celestes. Ha
imperial, estão subordinados a Cristo, que tem
via sete níveis de iniciação, desde o grau de “cor
nas mãos as “sete estrelas” (Ap 1.20) e é o ver
vo ” até o de “pai”. 0 fato de o mitraísmo iniciar
dadeiro conquistador do mundo (Ap 3.21). Des
apenas homens e dar ênfase à lealdade talvez
de 0 início. Apocalipse se contrapõe à ideologia
exphque sua popularidade entre os soldados e as
imperial, ao afirmar que Cristo é “ o Príncipe dos
autoridades do governo.
reis da terra” (Ap 1.5), que fez de seu povo um “reino” (Ap 1.6,9; v.
Os mistérios prosperaram por volta do início
Em todo o li
da era cristã, especialmente no século ii, porque
vro, há uma ênfase no governo régio de Deus (Ap
transmitiam a confiança de pertencer a uma po
11.15,17; 12.10; 15.3; 19.6), em Cristo como “ o
sição mais elevada, a sensação de um relaciona
r e i n o d e D e u s ).
Senhor dos senhores e o Rei dos reis” (Ap 17.14)
mento mais íntimo com a divindade e a esperança
e no governo exercido pelos santos (Ap 5.10;
de um estado de felicidade na vida futura. Em
20.4,6; 22.5).
comum com o cristianismo, os mistérios se ocu pavam com a salvação, mas para eles a salvação
5. Os mistérios
era livrar-se da sina e dos pavores da vida após
Os mistérios, cuhos secretos de que os não ini
a morte, não do pecado. Nos mistérios, quando
ciados não podiam participar, eram um aspecto
ocorriam, “a morte e a ressurreição” das divin
da rehgião grega clássica. Um dos mais antigos
dades estavam ligadas ao ciclo da natureza e não
e mais influentes eram os mistérios de Elêusis,
era uma ressurreição de verdade. A terminologia
celebrados em honra de Demétrio. Esse culto era
de mistério empregada pelo
um mistério local, no sentido de que a pessoa
o plano divino, anteriormente oculto, mas ago
tinha de ir a Elêusis, lugar próximo de Atenas,
ra revelado. A iniciação cristã não era nenhum
para receber a iniciação.
também menciona
mistério. Nos mistérios, as abluções faziam parte
um lugar em que havia celebração de mistérios
do ritual prehminar de purificação do iniciado,
0
nt
nt
tem relação com
locais (At 16.11): a Samotrácia, onde se adoravam
não a iniciação propriamente, como é o caso do
a “Mãe dos deuses” e os cabiros (que no período
batismo cristão. Os mistérios eram bem caros e
romano foram confundidos com Dióscoro, Castor
eram para os poucos considerados merecedores,
e Pólux, divindades protetoras dos marinheiros,
ao passo que o cristianismo convidava a todos
At 28.11). Os mistérios de Dionísio também eram
(como o crítico pagão Celso observou, de acordo
conhecidos no período clássico e não se confina
com
O r íg e n e s ,
Co Ce, 3.59).
vam a uma única localidade. Vários cuhos orientais, quando seus devotos
6. Outros aspectos
se tornavam parte do mundo grego, copiavam as
6.1
práticas gregas de iniciação nos mistérios. O culto
Delfos havia sido o mais importante local para
às divindades egípcias ísis e Osíris (no mundo
a comunicação divina no período clássico, mas
Oráculos e cura. 0 santuário de Apoio em
grego, esta foi substituída por Serápis) era bem
estava em declínio no início da era cristã, fato
difundido. Duas fontes do século ii atestam a
para o qual Plutarco procurou explicações (Sobre
popularidade dessas divindades: a interpretação
a obsolescência dos oráculos. Mo, 409E-438E).
filosófica do mito cultuai por Plutarco [Id e Os,
Sua influência foi parcialmente herdada pelos
12—21; Mo, 355D-359) e o relato circunstancial
santuários-filhos, em Claros e Dídima, na Ásia
da iniciação (sem revelar seus segredos) apresen
Menor, e em Dafne, perto de Antioquia da Síria.
tado por Apuleio (Me, 11), que também descreve
Pouco antes do início da era cristã, os oráculos já
outros aspectos da rehgião.
não eram determinantes nas atividades políticas
Vários vestígios arqueológicos atestam a di
e rehgiosas, mas continuaram a ser consultados
fusão dos mistérios de Mitra, especialmente nos
pelas cidades, em assuntos formais sagrados, e
séculos II e III d.C. Embora adorando o deus persa
pelas pessoas, em questões da vida pessoal. Del
Mitra, parece que o mitraísmo romano não teve
fos também era conhecida pelo nome de Pito,
origem na religião persa. Mitra eía associado a
palavra derivada de Píton, a serpente que repre
fenômenos astrológicos e_ era adorado como
sentava a deusa-terra, que foi morta por Apoio,
II092
R eligiões greco - r o m a n as
e a sacerdotisa de Apoio, por meio de quem os
preservada em papiros que muitas vezes parecem
oráculos eram comunicados, chamava-se Pítia.
conter os livros de instruções dos magos pratican
Por esse motivo, “espírito de Píton” era expressão
tes tv. At 19.19).
empregada para designar o poder de pronunciar
0 termo “ magia” tem origem no nome de uma
mensagens oracuiares, como a adivinhação pela
tribo sacerdotal persa, e era empregado pelos gre
jovem escrava em Atos 15.16.
gos para se referir a ritos e fórmulas estranhos,
Os sonhos eram considerados outra forma
passando depois a ser um termo semitécnico para
importante de comunicação divina, crença parti
designar a atividade daqueles que eram conside
lhada por pagãos e judeus e um meio comum de
rados magos. O uso da palavra em Atos 8.9-11
direção providencial no livro de Atos (At 10.10-15;
ilustra a associação da magia com o suposto con
16.9,10; 23.11; 27.23,24).
trole de poderes sobrenaturais. 0 título de mago
Muitos dos santuários de cura eram na ver
é dado a Barjesus (ou Elimas), também chamado
dade locais sagrados para oráculos. No mundo
de “falso profeta” em Atos 13.6,8. Um grande nú
greco-romano, a mais importante divindade na
mero de pessoas do mundo greco-romano acre
operação de curas era o herói Asclépio, filho de
ditava que os judeus possuíam poderes mágicos.
Apoio. Além de seu importante santuário em Epi-
Essa associação é evidente também no relato de
dauro, ele possuía locais de cura em Cós, Corinto,
Atos 19.11-20, que, como era de esperar, ocorreu
Atenas e Roma. Rivahzando com Epidauro, havia
em Éfeso, cidade conhecida como centro de ativi
o santuário de Asclépio em Pérgamo (Ap 2.12-17;
dade mágica (v.
A r n o ld )
. 0 relato ilustra tanto o
que Aélio Aristides, orador do século ii,
emprego de fórmulas de restrição quanto a crença
exaltou em seu hvro Contos sagrados. 0 satirista
comum de que saber o nome de um poder sobre
Luciano de Samósata, também do século ii, conta
natural conferia à pessoa controle sobre aquele
a história de Alexandre, o Falso Profeta, que criou
poder (At 19.13), mas também exemplifica o sig
na Ásia Menor seu santuário de curas e oráculos
nificado diferente que “o nome do Senhor Jesus”
e iludiu muita gente, numa narrativa que revela a
tinha para os cristãos (At 19.15).
V. H e m e r ) ,
6.3
mentalidade religiosa da época e também a crítica
Demônios e superstições. À época do
racionalista do autor. Os santuários de Asclépio
período helenístico, a palavra daimõn passara a
costumavam agir em cooperação com a profis
ser usada para designar seres divinos intermediá
são médica a fim de realizar curas, mas também
rios, que podiam ser bons ou maus. Xenócrates,
se contavam histórias dos mais extraordinários
discípulo de Platão, havia classificado os vários
milagres. A expectativa de que o poder divino
tipos de demônios. No final do século i d.C., outro
operasse milagres de cura é evidente em várias
platonista, Plutarco, produziu considerável volu
passagens de Atos (At 3.1-10; 8.4-7; 9.32-41; 14.8-
me de informação sobre demonologia. A tendên
11; 28.8,9), mas esses relatos são mais comedidos
cia dos filósofos de culpar os seres intermediários
que as histórias que faziam propaganda de Asclé
pelas coisas ruins e pelos aspectos menos acei
pio e estão relacionados à obra salvadora de Jesus
táveis da rehgião pagã preparou terreno para
conforme transmitida por seus mensageiros.
os judeus e os cristãos, que se apropriaram de
6.2
Magia. A rehgião e a magia eram consi daimonion como designativo de seres espirituais
deradas distintas, mas não é fácil distingui-las
malignos (Tg 2.19; 3.15; Ap 9.20; 16.14; 18.2).
no mundo antigo. A despeito das leis contra a
0 termo deisidaimonia (“temor dos demô
prática da magia, ela era bem disseminada. Num
nios”) tornou-se a palavra grega comum para
construto moderno um tanto artificial, quando a
indicar “ superstição” (v.
palavra “ magia” é aphcada à rehgião antiga, ela
perstição, Mo, 164E-171F). A palavra podia ter
designa os esforços de compelir forças sobrena
sentido neutro, como ocorre com daimoniõn
P lu ta r c o ,
Sobre a su
turais por meio de certos objetos materiais e fór
( “deuses”) em Atos 17.18. Mas determinar se
mulas verbais. Tábuas de maldição procuravam
em Atos 17.22 Paulo está usando o vocábulo em
infligir castigo aos inimigos, e usavam-se amu
sentido neutro ou em sentido negativo depende
letos para barrar ataques em potencial de forças
de sabermos se ele está fazendo uma observação
malignas. Uma extensa literatura de magia está
factual sobre a rehgiosidade dos atenienses ou se
1093
R e LISIÖES 5RECO-ROMANA5
está se identificando com a crítica dos filósofos à
Ver ta m b ém g n o s t ic is m o .
religião popular grega.
d n t b : C iv ic C u lts ; F e s tiv a ls a n d H o ly D a ys: G r e -
6.4
Astrologia e destino. A astronomia e a c o - R o m a n ;
I d o l a t r y , J e w is h C o n c e p t io n o f ; M a g i c a l
astrologia não eram distintas no mundo antigo.
P a p y r i;
A crença de que os movimentos absolutamente
p h e ts a n d P r o p h e c y ; R e lig io n , P e r s o n a l; R u le r C u lt ;
regulares dos corpos celestes controlam os acon
T e m p le s , G r e c o - R o m a n .
M y s te r ie s ;
P o ly t h e is m ,
G re c o -R o m a n ;
P ro
tecimentos terrenos em seus mínimos detalhes foi Ephesians:
desenvolvida pelos gregos no Egito durante a épo
B ib lio g r a fia .
ca helenística e começou a ganhar popularidade
m agic. C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity Press,
A r n o ld , C. E.
no início do Império Romano. 0 imperador Tibé-
1989.
rio ficou tão absorto com a astrologia
early Christianity. 2.
( S u e t ô n io ,
[s n t s m s ,
1993.
63.)
• Ferguson, E.
p o w e r an d
Backgrounds of
ed. G ra n d R ap id s: E e rd m a
137-298.
The religions
Tibério, 69] que negligenciou a prática da religião,
ns,
mas poucos chegaram a esse ponto. 0 aspecto re
o f the Roman Empire.
hgioso da astrologia teve origem na identificação
m a n life. Ithaca: C orn e h U n iv ersity Press,
dos planetas com as divindades tradicionais da
• Festugière, a .
p.
j.;
■ Ferguson, J .
A s p e c ts o f G ree k a n d R o
Fabre, P.
1970.
Le monde gréco-
Grécia e de Roma, mas os planetas em si não re
romain au temps de notre-Seigneur:
cebiam devoção rehgiosa. A astronomia instruída
spiritual. B ib h o th è q u e C a th o liq u e des Sciences
ofereceu uma nova cosmovisão, que fazia distin
R eligieu ses
ção, de um lado, entre o mundo sublunar e os sete
Fish-wick,
7.2.
Paris: B lo n d & Gay,
le m ilieu
1935.
v.
2.
•
d. The imperial cult in the Latin West.
planetas, caracterizado por mudança e corrupção
L eid e n : E.
e, de outro lado, o mundo supralunar das estrelas
J. &
J.
1987-1992. 2
Brih,
v. ■ G ill,
D.
W.
W in te r, B. W . Acts a n d R om a n religion . In:
D.
&
The Book of
fixas, caracterizado por imutabilidade e perfeição.
G ill,
A astrologia tornou-se um dos principais susten
Acts in its Greco-Roman setting.
táculos do conceito de um destino absoluto. Em
E e rd m a n s,
bora alguns tenham acolhido abertamente essa
F. C ., org.
ideia, as religiões mais populares eram as que ofe
o f R eligion . N e w York: L ib e ra l A rts Press,
reciam ao ser humano a oportunidade de se ver
■ ______ . Hellenistic religions:
livre do destino — os mistérios de ísis e de Mitra,
tism . T h e L ib ra ry o f R eligion . N e w York: L ib e ral
bem como o cristianismo.
A rts Press,
W . J.
Gempf, C ., orgs.
1994.
p.
79-103.
G ra n d R ap id s:
2.)
(b a f c s ,
Ancient Roman religion.
1953.
■ G ra n t,
T h e L ib ra ry
1957.
the a g e o f sy n cre
• Hemer, C. J .
The letters to
the seven churches o f Asia in their local setting. 1986. [jsNTsup, 11.)
7. Observações finais
S h effield: j s o t ,
A serpente estava associada a muitas das divin
Medicine, miracle and magic in New Testament
dades greco-romanas. Era uma dentre as várias
times.
C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity Press,
formas que Zeus assumia, em particular no cul
1986.
■ M a c M u l l e n , R.
to doméstico. Uma serpente estava representada
Empire.
no escudo de Atena, a deusa padroeira de Ate
1981.
nas, e uma serpente estava associada a Apoio,
a so u rc eb o o k . San Fran cisco: H arper,
em Delfos. A serpente enrolada num bastão era
N ils s o n ,
o símbolo de Asclépio, e, por causa da confusão
Zeit.
com as serpentes gêmeas do bastão de arauto em
ligion.
punhado por Hermes, esse símbolo foi adotado
M ü n c h e n : C. H. Beck,
pela profissão médica. 0 espírito protetor das ca
Conversion:
N ew
M . P.
Paganism in the Roman
H aven:
■ M eyer,
M .
• Kee, H. C.
Yale
U n iv ersity
Press,
The ancient mysteries:
W.
1987.
•
Die hellenistische und römische
I n : ________ .
Geschichte der griechischen Re
H andbuch
d er
A lte rtu m sw is se n s c h a ft.
1950.
v.
2.
■ N o c k , A.
D.
the o ld a n d the n e w in re ligion from
sas gregas, o Agathos Daimon, era representado
A le x a n d e r the G reat to A u g u s tin e o f H ip p o . O x
na forma de serpente, e a serpente simbolizava
ford: C lare n d o n ,
o caráter — ou princípio de vida — da família
ligion and the Ancient World.
nos ahares das casas romanas. Considerando-se
O x fo rd : C lare n d o n ,
as associações biTjlicas entre a serpente e Satanás
Ritual and power:
(Ap 20.2), não é de espantar que para judeus e
A s ia M in or. C a m b rid g e : C a m b rid g e U n iv ersity
cristãos a rehgião pagã era inspirada pelo Diabo.
Press,
1
094
1984.
1933.
• ________ .
1972. 2
Essays on re
Ed.
Z.
Stew art.
v. ■ P r i c e , S. R. F.
the R om a n im p e ria l cult in
■ Smith, J .
Z. Drudgery divine:
on
Ressurreição i : Evangelhos
the comparison of early Christianities and the
A vida e a morte também eram basicamente rela
rehgions of Late Antiquity. Chicago; University
cionadas a esta vida.
of Chicago Press, 1990. ■
U la n s e y ,
D. The ori
Isso não significa que os israelitas acreditas
gins o f the Mithraic mysteries. Oxford; Oxford
sem na aniquilação após a morte. 0
University Press, 1989. ■
A. J. M.
que, num sentido, a morte é a cessação da vida
Baptism and resurrection: studies in Pauhne
— por ocasião da morte, a pessoa retorna ao “pó”
W ed d erb u rn ,
at
sustenta
theology against its Greco- Roman background.
(Gn 3.19; Sl 90.3). Em outro sentido, não é o fim
Tübingen: J. C. B. Mohr, 1987.
absoluto da vida, pois a existência continua — E.
F ergu so n
por ocasião da morte, a pessoa desce ao Sheol (.sh‘ oí), termo que às vezes é sinônimo de “mor
r e m a n e s c e n te d e I s r a e l.
Ver I s r a e l .
te” (Gn 42.38, nvi, nota de rodapé; Sl 89.48), “ se pultura” (Gn 37.35; Is 14.11) ou “além” (Ez 32.21,
re s g a te .
Ver s a lv a ç ã o .
ara;
talvez Sl 86.13). Em alguns casos, o texto diz
que os mortos habitam o Sheol como repãím, ou R e s s u r r e iç ã o i: E v a n g e l h o s
“sombras” (Pv 9.18,
Jesus pressupôs e ensinou uma doutrina escatoló
Jó 88.10; Pv 9.18; Is 26.14 — no original dessas
gica da ressurreição dos mortos, ocasião em que
passagens, aparece a palavra repãím, “sombras”,
nvi,
nota de rodapé; Jó 26.5;
os ímpios seriam entregues para juízo e os piedo
mas várias versões traduzem por “ morte” ou “es
sos receberiam a vida eterna. Além disso, Jesus
pírito dos mortos”) — possivelmente uma exis
realizou milagres de ressurreição e, como predis
tência algo fantasmagórica e indistinta ou então
se, ele próprio foi ressuscitado dentre os mortos.
um sinônimo de “ mortos” (paralelos ugaríticos
Os Evangelhos consideram escatologicamente
favorecem a primeira opção). As referências aos
relevantes as duas categorias de acontecimentos.
repãím e ao Sheol sugerem uma ideia florescente
Todavia, enquanto as pessoas que Jesus ressus
da vida após a morte.
citou dentre os mortos, tecnicamente falando, tornariam a enfrentar a morte, a ressurreição de
Contudo, embora o
at
não dê testemunho ex
plícito de uma crença inicial na existência depois
Jesus dentre os mortos foi um acontecimento
da morte, ele não a nega. Além do mais, dois
de consequências cósmicas. Cada um dos auto
personagens foram “tomados” para estar com
res dos Evangelhos apresenta esse acontecimento
Deus e não experimentaram a morte — Enoque
de maneira distinta, cada um desenvolvendo te
(Gn 5.24) e Elias (2Rs 2.9-11). Conquanto não
mas próprios, mas juntos afirmando a reahdade
haja nessas narrativas uma reflexão teológica
do túmulo vazio e do Cristo ressuscitado e tam
sobre as imphcações desses acontecimentos (le
bém a importância escatológica desse aconteci
mos: “Enoque [...] não foi mais visto, porque
mento único na missão de Jesus.
Deus 0 havia tomado”), o judaísmo posterior (cf.
1. Antecedentes pré-cristãos
Hb 11.5) interpretou essa passagem como uma
2. A ressurreição e o pós-vida nas declarações
“pressuposição” da vida eterna. O incidente em
de Jesus
ISamuel 28.1-25, em que Saul tenta consultar
3. Milagres de ressuscitação de mortos
Samuel por meio da médium de En-Dor, oferece
4. A ressurreição de Jesus nos quatro Evan
indícios adicionais da crença popular de que a
gelhos
morte não era o fim da existência. Vários textos do
at
afirmam a ressurreição
1. Antecedentes pré-cristãos
no sentido de uma preservação coletiva, não de
1.1 A ressurreição no at. Os dados fornecidos
uma vida individual após a morte. Por exemplo,
pelas Escrituras hebraicas indicam que Israel
Oseias 6.2 diz: “Depois de dois dias, ele nos re-
não refletiu muito sobre a questão da vida após
vivificará; no terceiro dia nos levantará, e vivere
a morte, senão mais tarde, no período do
Em
mos diante dele”. Semelhantemente, Oseias 13.14
vez disso, destacavam o envolvimento de Javé
promete: “Eu os redimirei do poder da sepultu
nesta vida. Entendia-se que a bênção do justo e
ra; eu os resgatarei da morte” (nw). Em ambos
0 castigo dos perversos ocorriam na era presente.
os casos, o ato de Israel ser redimido do exílio é
a t.
1 095
KESSURREIÇÃO i: tVANGELHOS
simbolizado no livramento da morte (exílio) para
os “moradores da terra” , mas não mencionam ne
a vida (restauração nacional). Da mesma forma,
nhuma ressurreição para juízo. Oferecendo me
a famosa visão dos ossos secos que passam a vi
nos certeza sobre o assunto, temos Isaías 53.10.
ver, registrada por Ezequiel, representa a restau
Essa passagem diz que, depois de receber “uma
ração de Israel como nação (Ez 37.1-14). Outras
sepultura com os ímpios” (Is 53.9), o Servo de
passagens têm sido empregadas como prova de
Javé (v.
uma esperança de ressurreição, porém elas pa
prolongará os seus dias”. A maioria concorda em
recem se referir a livramentos de situações que
que os termos “prolongará os seus dias” se refere
trazem risco de morte (Dt 32.39; ISm 2.6).
ã vida eterna, mas não há certeza se esse cântico
A pergunta básica é feita em Jó 14.14: “Quan do o homem morre, por acaso voltará a viver?”.
S ervo
de Javé)
“verá a sua posteridade,
se referem a um indivíduo ou a um personagem coletivo, ou seja, ã nação ou ao remanescente.
Uma resposta cautelosa aparece na réplica de Jó a
A fé na ressurreição, que é atestada nos pro
Bildade: “Eu sei que o meu Redentor \gô e/] vive
fetas, tem seu clímax em Daniel 12.1-3,13. Aqui
e que por fim se levantará sobre a terra. Depois,
aparece a primeira declaração exphcita acerca de
destruído o meu corpo, então fora da carne verei
uma ressurreição dos justos e dos injustos: “Mui
Deus” (Jó 19.25,26). É provável que o “redentor”
tos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão,
seja Deus e que o momento do livramento seja
uns para a vida eterna, e outros para vergonha e
após a morte, dessa forma constituindo um reco
desprezo eterno” (Dn 12.2). Não há certeza se a
nhecimento de crença na vida após a morte.
palavra “ muitos” se restringe a Israel ou ao rema
0 hvro de Salmos contém muitas declarações
nescente justo (“ muitos entre os que dormem”)
semelhantes. A crença na ressurreição é eviden
ou faz referência a uma ressurreição geral ( “mui
te em Salmos 49.15 e implicitamente em Salmos
tos, a saber, aqueles que dormem”). 0 versícu
16.10 e 73.24, embora sem qualquer especulação
lo 13 acrescenta a promessa de que “descansarás,
quanto ã forma que a vida após a morte assumi
e receberás a tua herança no final dos dias”.
rá. G. E. Ladd afirma:
Concluindo, o
at
destaca a presença de Deus
nas questões cotidianas desta vida e, desse modo, A esperança baseia-se na confiança no po
tende a não dar atenção ã questão da vida após a
der de Deus sobre a morte, não numa ideia
morte. Apesar disso, o
de algo imortal no homem. Os salmistas não
calado a respeito desse assunto, e várias passa
at
não se mantém de todo
fazem reflexão sobre qual parte do homem so
gens demonstram que, num período posterior da
brevive ã morte — sua alma ou seu espírito
história de Israel, a crença na ressurreição tor-
— nem existe reflexão alguma acerca da natu
nou-se mais explícita. Duas ideias sobressaem; 1)
reza da vida após a morte. Existe apenas a con
uma associação próxima entre o aspecto coletivo
fiança de que nem mesmo a morte é capaz de
e o individual da ressurreição (i.e., restauração
destruir a reahdade da comunhão com o Deus
nacional e ressurreição individual); 2) um víncu
vivo
lo entre a ética e a escatologia (i.e., a ressurreição
(L a d d ,
p. 47)
associada com recompensa e castigo). Os profetas dão testemunho adicional da crença numa ressurreição. Na seção denomina
1.2
Desenvolvimentos intertestamentários.
Conquanto a hteratura judaica intertestamentária
da Apocahpse de Isaías (Is 24.1—27.13), existem
ofereça testemunho da existência de um núme
duas declarações, Isaías 25.8 e 25.19. A primeira
ro bem maior de especulações sobre a vida após
diz que Javé “aniquilará a morte para sempre” e
a morte, não se percebe nenhuma uniformidade
é empregada por Paulo para referir-se ã ressur
nas ideias expressas. G. E. Ladd explica que, em
reição (ICo 15.54). Isso conduz ã afirmação de
parte, isso se explica pela ênfase do judaísmo na
Isaías 26.19: “Os teus mortos viverão, os seus
Torá e na ortopraxia (prática correta), não na or
corpos ressuscitarão; despertai e exultai, vós que
todoxia (doutrina correta)
habitais no pó”. Entretanto, essa ressurreição se
(L a d d ,
p. 52).
De fato, à semelhança dos saduceus dos dias
restringe ao povo de Deus. Os dois versículos se
de Jesus (v.
guintes (Is 26.20,21) falam da ira de Deus sobre
2.1—3.8), alguns judeus não acreditavam na
1i096
J o s e fo ,
An, 18.1.4, § 16; At 4.1,2;
R e s s u r r e iç ã o
i;
Evan g elho s
ressurreição. Em seu primeiro livro, Jesus ben-
de Israel. Daí surgiu uma variedade de pontos de
Siraque escreveu que, por ocasião da morte, a
vista, refletidos nas crenças dos vários partidos
pessoa habita no Sheol, um lugar de sono sem
ou seitas que compunham o judaísmo da época
fim [Eo 30.17; 46.19) e de silêncio (Eo 17.27,28),
de Jesus. Os saduceus rejeitavam qualquer ideia
e a imortalidade se restringe à nação e ao bom
de vida depois da morte (At 23.8; 26.8;
nome da pessoa (Eo 37.26; 39.9; 44.8-15).
An, 18.14; b. Sanh., 90b). Os fariseus ensinavam
J o s e fo ,
Outros textos revelam a influência do helenis
que na era vindoura haveria uma ressurreição e
mo, referindo-se à vida pós-morte como a imorta
recompensa eterna para Israel, excluindo-se ape
lidade, sem vinculá-la a uma ressurreição física.
nas os apóstatas (At 23.6-8; b. Sanh., 90b; b. Ke-
Ao descrever os mesmos sete mártires mencio
tub., 111b). Pelo que se pode apurar dos rolos de
nados em 2Macabeus, 4Macabeus aparentemente
Qumran, não é clara a ideia dos essênios sobre o
se refere a uma imortahdade da alma enquanto
assunto (v.
2Macabeus fala de uma ressurreição física (cp.
ma que eles sustentavam a imortalidade da alma
m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o ) .
Josefo afir
An, 18.1.5, § 18), porém muitos estudio
4Mc 10.15 com 2Mc 7.14; v. tb. 4Mc 9.22; 16.13;
(J o s e fo ,
18.23). De modo semelhante. Sabedoria de Salo
sos alegam que a ideia de fiéis habitando com os
mão diz que os justos encontrarão paz (Sb 3.1-4)
anjos (IQS 2.25; IQH 3.19-23; 11.10-14) deve ser
e uma existência incorruptível (Sb 2.23,24; cf.
entendida como a experiência dos sectários nesta
5.5; 6.19; v.
vida, em vez de uma esperança escatológica.
F ilo ,
Op mu, 135; Gi, 14). No últi
mo hvro de Enoque [lEn, 91— 104; observe-se que os cinco livros contêm ideias diferentes so
2. A ressurreição e o pós-vida nas
bre o assunto), à primeira vista o texto parece
declarações de Jesus
sugerir uma ressurreição física (e.g., lEn, 92.3-5;
Jesus seguiu a tradição que ia de Daniel até os fa
104.2,4), mas em lEnoque 103.4 ficamos sabendo
riseus, ensinando que haveria uma dupla ressur
que os “espíritos” (humanos) é que “viverão e se
reição: os justos para a recompensa e os ímpios
regozijarão” e “não perecerão”.
para o juízo. Embora um estudo aprofundado de
Dentre os textos que mencionam a ressurrei
crítica da tradição esteja além do escopo deste
ção, alguns a restringem a Israel ou aos “ santos”
verbete, é proveitoso examinar, da perspectiva da
[lE n, 22.13; 46.6; 51.1,2; Sl Sa, 3.11-16; 13.9-11;
crítica das fontes, o ensino de Jesus acerca do
14.4-10; 15.12-15), ao passo que vários textos a
assunto (v. 2.1
partir do século i dão testemunho de uma crença na
P r o b le m a S in ó t ic o ) .
Declarações da tradição tríplice. 0 deba
ressurreição dos justos e dos ímpios (4Ed 4.41-43;
te mais claro sobre o ensino de Jesus acerca da
7.32-38; cf. Te Be, 10.6-9; 2Ap Br, 49.2— 51.12;
ressurreição é encontrado na tradição tríplice que
85.13). Embora não se possa ignorar a possibi-
relata a controvérsia entre Jesus e os saduceus
hdade de influência ou de interpolação cristã, a
(Mc 12.18-27 par. Mt 22.23-33 e Lc 20.27-38).
ressurreição dos justos e dos ímpios é, em essên
Mesmo os que defendem que a forma final é um
cia, uma ideia basicamente judaica, refletindo a
desenvolvimento catequético posterior aceitam
escatologia de Daniel 12.2,3. Finalmente, é pos
como autêntica a primeira afirmação ( “como os
sível encontrar um conceito extremamente litera-
anjos”). Lucas, em particular, ressalta o contras
hsta da ressurreição corpórea em 2Macabeus, que
te entre “os filhos deste mundo” e “ os que são
fala não somente de ressuscitar o corpo, mas até
julgados dignos de alcançar o mundo vindouro
mesmo da restauração de membros ou outras par
e a ressurreição dentre os mortos” (Lc 20.34,35),
tes do corpo que estiverem faltando (2Mc 7.10,11;
referência inconfundível a ideias escatológicas
14.46). De forma semelhante, os Oráculos sibili-
acerca de uma vida depois da morte. Contudo,
nos declaram que o corpo ressuscitado terá a exa
a principal questão é o significado da expressão “como os anjos nos céus”. Alguns, com base
ta forma do corpo terreno (Or si, 4.176-182). Fica claro que o judaísmo intertestamentário
nessa expressão, concluem que Jesus acreditava
revelou um interesse muito maior no assunto da
numa ressurreição espiritual, não numa ressur
vida após a morte do que a Bíblia hebraica, sempre
reição física, ou que, à semelhança de algumas
girando em torno do tema da confirmação divina
correntes do judaísmo, ele tinha a ideia de que
1097
nos céus nâo existiria lembrança da existência
Jn 2.1), ou pode ser simplesmente uma referência,
anterior. Entretanto, isso vai além do sentido que
por parte de Jesus, a um breve periodo de tempo.
a passagem tem em mente, uma vez que a ex
Além dessas predições diretas, em numerosas
pressão está estabelecendo um contraste entre o
passagens paralelas Jesus pressupõe sua ressur
casamento na terra e o casamento no céu, em vez
reição futura, como Marcos 9.9 (a ordem de não
de estabelecer a condição do corpo ressuscitado.
contar a ninguém acerca da transfiguração "...
Declarações acerca da recompensa e do juízo
até que o Filho do homem ressuscitasse dentre
também aparecem na tradição tríplice. Em geral,
os mortos”); 12.10,11 (“A pedra que os construto
entende-se que a indagação do jovem rico em
res rejeitaram, tornou-se a pedra angular”); 13.26
“Que
( “ Então 0 Filho do homem será visto vindo nas
farei para herdar a vida eterna?” — é um desejo
nuvens, com grande poder e glória”); 14.25 (“...
Marcos 10.17 (par Mt 19.16 e Lc 18.18) -
de “entrar no reino” em sua presença concretizada
até o dia em que o [i.e., o cáhce escatológico] be
(v.
Embora isso sem dúvida seja
ber, novo, no reino de Deus”); 14.28 (“... depois
parte do significado, não esgota a ideia básica. A
da minha ressurreição irei adiante de vós para a
declaração flnal de Jesus em Marcos 10.30 (par.
Galileia”); 14.62 ( “... vereis o Filho do homem
REINO DE D e u s ).
Mt 19.29 e Lc 18.30) — "... e no mundo vindouro,
assentado à direita do Poderoso, vindo com as
a vida eterna” — forma um emolduramento (m-
nuvens do céu” [v.
F i l h o d o h o m e m ]).
clusió] com a pergunta do jovem e claramente se
Uma das profecias mais notáveis de Jesus não
refere ã vida após a morte. Em Marcos 10.17,30 e
aparece em Lucas, mas está indiretamente registra
passagens paralelas, a expressão “a vida eterna”
da em Marcos 14.58 e 15.29, com um paralelo em
tem conotação presente e futura. No entanto, a
Mateus 26.61 e 27.40 e diretamente em João 2.19:
ressurreição para o juízo aparece na advertência
“Destruí este santuário, e eu o levantarei em três
sobre a geena registrada em Marcos 9.43,45,47
dias”. João 2.21,22 exphca que os discípulos não
(par. Mt 18.8,9; omitida em Lucas). Empregando
entenderam essa profecia direta acerca da ressur
sucessivas metáforas de mãos, pés e olhos, Jesus
reição física, senão depois da ressurreição (ironi
convoca os discípulos a uma resistência disciplina
camente, de acordo com Mt 27.63, os principais
da contra a tentação, para que a pessoa não seja
sacerdotes e os fariseus interpretaram a palavra
lançada “para o inferno, para o fogo que nunca se
profética corretamente antes dos discípulos). Em
apaga” (Mc 9.43; cf. Mt 18.8, “fogo eterno” ; tanto
suma, de acordo com os Evangelhos Jesus espera
Mc 9.43 quanto seu paralelo em Mateus acentuam
va ser confirmado pela ressurreição.
a segunda pessoa do singular, “tu”). 2.2
2.3
A tradição da fonte
q.
A tradição
q
con
As predições da Paixão de Cristo. A tra tém ensino semelhante. 0 “ sinal do profeta
dição mais bem conhecida é a predição tríplice
Jonas” (Mt 12.39-42 par. Lc 11.29-32) é problemá
da Paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.33,34 e par.). No
tico porque só Mateus emprega uma referência
entendimento de muitos intérpretes, essas pas
enigmática à ressurreição como explicação para o
sagens são vaticinium ex eventu (profecias es
sinal (“ três dias e três noites no coração da terra” ,
critas depois do acontecimento), mas a ausência
Mt 12.40). Mas, assim como Mateus acrescentou
do tipo de elaboração teológica encontrada nos
ao seu texto a declaração da fonte o, é igualmente
credos (e.g., “por nossos pecados” , “segundo as
provável que Lucas tenha omitido a declaração de
Escrituras” e a exaltação do tema) torna mais pro
Q
vável que sejam reminiscências históricas. Nos
seus leitores teriam com “três dias e três noites”. Também existem várias passagens de
três relatos, é constante a predição de Jesus de que “ depois de três dias” de sua morte ele seria
a respeito da ressurreição, pela dificuldade que q
a res
peito de recompensa e castigo finais, como aquelas
confirmado com sua ressurreição. 0 tema dos três
encontradas no Sermão do Monte, em Mateus. No
dias (cf. ICo 15.4) pode estar reflefindo Oseias
final da exortação à vigilância (Mt 24.40-44 par. Lc
6.2 (“no terceiro dia nos levantará, e viveremos
17.34-37), encontramos três breves parábolas em
diante dele”), uma alusão mais genérica ao tema
seqüência (homens no campo, mulheres traba
veterotestamentário do terceiro dia como um
lhando no moinho, dois na cama) que demonstram
dia de livramento (cf. Gn 22.4; 42.17,18; Is 2.16;
que “um será levado, e o outro, deixado”. Essas
II 098
R e s s u r r e iç ã o
i:
Ev an g e lh o s
palavras constituem uma dura advertência acerca
que quem convida os pobres (v.
da separação repentina e inesperada por ocasião
za)
da parusia (cf. Mt 24.44; cf. Lc 12.40) entre os que
ressurreição dos justos” (Lc 14.14). Ainda que
recebem salvação e os que serão condenados no
nâo haja nenhum agradecimento nesta vida. Deus
r iq u e z a s e p o b r e
e os aleijados receberá sua recompensa "na
juízo final. Esse contraste fica ainda mais eviden
confirmará as boas ações quando chegar o fim. A
te na parábola dos dois servos (Mt 24.45-51 par.
chave é uma vida de atitude de serviço, que busca
Lc 12.41-46), em que o servo fiel conquista uma
0 lugar de menos prestígio, em vez de um assen
participação na autoridade futura de Jesus, ao pas
to mais importante (Lc 14.8-11), que se preocupa
so que 0 servo mau será “cortado” rodapé; “castigar”,
ara )
[n v i,
nota de
e posto entre os infiéis.
com os que não têm nada ou têm muito pouco, nâo com os que já são ricos (Lc 14.12-14).
Finalmente, Mateus 10.28 e Lucas 12.5 acrescen
Esse tema é levado adiante na parábola do
tam outra declaração sobre o geena, a saber, que
rico e Lázaro (Lc 16.19-31). 0 rico, que indubi
0 discípulo não deve temer aquele que é capaz de
tavelmente teve um funeral grandioso, é descri
matar o corpo, mas “aquele que pode destruir no
to em frases sucintas: “morreu e foi sepultado”,
inferno tanto a alma como o corpo”. Essas passa
indo para o Hades
gens mostram que Jesus aceitava o que Daniel 12.2
pobre, que aparentemente nem chega a ser se
diz acerca da ressurreição dos bons e dos maus,
pultado, é bem diferente: ele "foi levado pelos
uns para a aprovação e outros para o juízo.
anjos para junto de Abraão”. Nessa parábola, há
2.4
As tradições das fontes
peculiar a Mateus
e
l.
. A vida após a morte do
0 material duas ênfases simultâneas: a inversão de papéis
acrescenta al
na ressurreição final e a exigência de uma fé ra
guns dados. Na tradição m, o juízo será universal:
dical na mensagem do reino. Advertências seme
tanto os bons quanto os maus, “no dia do juízo,
lhantes sobre o juízo final são dirigidas aos ricos
[...] terão de prestar contas de toda palavra inútil
e a todos os discípulos em Lucas 3.7-14; 6.24-26;
(m )
e a Lucas
m
[n v i]
(l)
que proferirem” (Mt 12.35-37). Embora o destaque
12.16-21,32-34,42-48; 16.8,9. Não se pode for
esteja em “palavra inútil” ou maligna, o que se
çar demais as imphcações dessa parábola para a
tem em mente é o ser “absolvido” ou “condena
doutrina do pós-morte. O quadro de um “Hades”
do” por tudo que se tiver dito (Mt 12.37). Duas
dividido em compartimentos nâo mostra de fato
outras palavras tratam da separação radical que
“como ele é” ; trata-se de um aspecto da parábola
ocorrerá entre o crente e o descrente por oca
provavelmente oriundo de alguma concepção ju
sião do juízo final. A parábola do joio, em Ma
daica popular acerca do Sheol.
teus 13.24-30,36-43, ensina que só “no fim do mundo” (Mt 13.40) haverá separação entre os
2.5
A tradição joanina. A tradição joanina
contém poucas referências à ressurreição nos
perversos e os bons, aqueles destinados à “for
ensinos de Jesus e da igreja primitiva. Embora
nalha de fogo”, e estes, ã glória (Mt 13.42,43). A
o quarto Evangelho apresente uma escatologia
parábola dos bodes e das ovelhas (também deno
reahzada, num consenso crescente os estudiosos
minada “o juízo das nações”) apresenta um tema
têm detectado uma escatologia futura dentro des
semelhante, mas acrescenta que o juízo também
sa matriz joanina característica (v.
será determinado pela maneira em que as nações
lh o d e ).
tiverem tratado o povo de Deus (“pequeninos”,
a hora em que todos os que estão nos sepulcros
João, E vange
Em João 5.28,29 Jesus declara que “virá
Mt 25.40,45). A recompensa dos misericordiosos
ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem fei
será a “herança, o reino que vos está preparado
to 0 bem, para a ressurreição da vida, e os que
desde a fundação do mundo” (Mt 25.34); o cas
tiverem feito o mal, para a ressurreição da con
tigo para os que não demonstrarem misericór
denação”. 0 contexto apresenta Jesus como o
dia será “o fogo eterno, preparado para o Diabo
Juiz escatológico no presente (Jo 5.19-24) e no
e seus anjos” (Mt 25.41).
futuro (Jo 5.25-30). E em João 6.40,44,54 — num
Várias passagens
mostram o tema lucano da
contexto que destaca a soberania conjunta do Pai
inversão dos papéis por ocasião da ressurreição fi
e do Filho no processo de salvação (cf. “jamais
nal. Na conclusão das instruções sobre a conduta
morrerá”, Jo 11.25,26) — Jesus afirma por três
l
apropriada nos banquetes (Lc 14.7-14), Jesus diz 1
vezes que ressuscitará os fiéis “no úhimo dia”. 099
R e s s u r r e iç ã o
i
: Evangelho s
0 outro lado se vê em João 12.48, em que o
Com base na declaração de Jesus: “A menina
incrédulo é advertido de que a própria palavra de
não está morta, mas dormindo” , muitos intérpre
Jesus “o julgará no ultimo dia”. Finalmente, em
tes entendem que esse é um milagre de cura. En
João 14.2,3 Jesus garante que está preparando
tretanto, a inclusão de detalhes como o choro e
um “ lugar” para seus discípulos e promete vol
lamento de luto dos parentes e pranteadores pro
tar para levá-los, a fim de que possam estar com
fissionais apontam para a realidade da morte da
ele. Alguns interpretam essa passagem como uma
menina. De acordo com o comentário de Jesus, o
ao retorno do
Paráclito/EspíRiTO S a n t o
milagre é um indicador teológico da realidade de
como representante de Jesus, mas o consenso
um “ despertamento” dentre os mortos. Nos Sinó
referência
algum tem
ticos, essa história faz parte de um complexo de
po, Bultmann e outros alegaram que um escriba
milagres (a tempestade acalmada, o endemoni
posterior acrescentou essas passagens futuristas,
nhado geraseno) que demonstram a autoridade
mas que passagens realizadas como João 12.31 e
messiânica de Jesus sobre todos os poderes terre
16.11 (a afirmação de que “o príncipe deste mun
nos e celestiais. Até mesmo o poder derradeiro da
do já está condenado”) são originais. Contudo,
morte é vencido por ele.
é que Jesus se refere
à
parusia.
Há
não há motívo para que as duas não possam estar
3.2 O filho da viúva. Um segundo relato
lado a lado, com uma inter-relação entre a salva
é a tradição lucana, segundo a qual Jesus traz
ção presente e a promessa futura.
de volta à vida o filho de uma viúva de Naim
0 ensino de Jesus enquadra-se na tradição
(Lc 7.11-17). Fazendo lembrar a ocasião em que
contínua que vai de Daniel até os fariseus, dan
Ehas trouxe de voUa à vida o filho de uma viúva
do testemunho da ressurreição física do povo de
(IRs 17.8-24), a passagem de Lucas também faz
Deus para a recompensa e da ressurreição dos
parte de uma seção que trata do ininistério pro
ímpios para o juízo final.
fético de Jesus (observem-se a cura do filho do
3. Milagres de ressuscitação de mortos
Batista em seguida). 0 relato do milagre conclui
Jesus declarou sua crença na ressurreição não
com expressões de surpresa e deslumbramento,
apenas mediante suas palavras, mas também por
indicadas na exclamação do povo: “Um grande
intermédio de seus feitos. Em certo sentido, não
profeta se levantou entre nós” e especialmente
foram ressurreições verdadeiras, e sim milagres
na declaração de que “Deus visitou o seu povo”
centurião pouco antes e o diálogo acerca de João
de ressuscitação, pois as pessoas ainda enfren
(Lc 7.16). A última exclamação faz eco ao Cân
tariam a morte mais tarde. Entretanto, os Evan
tico de Zacarias (Lc 1.68,78) e ao tema lucano
gelhos tratam-nas como sinais da ressurreição
do livramento salvífico. O poder de Jesus sobre
vindoura de Jesus, prova do controle de Deus {e
a vida e a morte é apresentado de forma vívida. 3.3 Lázaro. A ressuscitação de Lázaro (Jo 11.1-
de Jesus) sobre o poder da morte. 3.1
A filha de Jairo. O milagre de ressuscitação 44) é o último e mais espantoso milagre-sinal do
com testemunho mais amplo é o da filha de Jairo.
denominado Livro dos Sinais do Evangelho de
Encontrado na tradição tríphce (Mc 5.21-24,35-43
João (Jo 1.19— 12.50). Também funciona como
par. Mt 9.18,19,23-26 e Lc 8.40-42,49-56), em to
uma transição para o Livro da Glória (Jo 13.1—
dos os três relatos esse milagre é entremeado com
20.31), em que a trama dos líderes judeus está
a cura da mulher com hemorragia. 0 ato de passar
claramente vinculada a esse acontecimento (cf.
da cura para a ressuscitação mostra Jesus como
Jo 11.53; 12.17-19).
Senhor tanto sobre as doenças crônicas quanto
Dentre os denominados milagres de ressur
sobre a morte. 0 interesse úhimo é cristológico,
reição, a ressuscitação de Lázaro é a mais cla
procurando demonstrar o senhorio de Jesus. 0
ramente ligada à questão da vida após a morte.
fato de Jairo — o dirigente ou presidente de uma
Isso se torna evidente no diálogo entre Jesus
sinagoga e homem de grande prestígio social e
e Marta (Jo 11.20-26) e na sua conexão com o
religioso — se prostrar diante de Jesus era surpre
tema joanino da vida eterna como ressurreição
endente para um leitor do século i e indicava que
(cf. 5.19-30). Em João 11.21,25,43,44, Jesus de
Jesus era um profeta designado por Deus.
monstra a presença da ressurreição tanto agora
1 100
R e s s u r r e iç ã o
(os espiritualmente mortos ouvem sua voz e vi
i:
Evan g elho s
4. A ressurreição de Jesus nos quatro
vem, Jo 11.25) quanto no futuro (os que estão
Evangelhos
no túmulo saem, Jo 11.43,44). Isso toma forma
4.1 A ressurreição em Marcos. Com o crescente
concreta em Lázaro — Jesus o ressuscita como
consenso entre os estudiosos dos Evangelhos de
uma clara amostra da ressurreição final — e é
que 0 Evangelho de Marcos termina em Marcos
destacado na justaposição da confissão de Mar
16.8, com as palavras ephobounta gar (“porque
ta (“Sei que ele ressuscitará na ressurreição, no
temiam” ,
último dia” , Jo 11.24) e na ousada afirmação de
ser considerado uma obra-prima da hteratura (v.
Jesus ( “Eu sou a ressurreição e a vida”, Jo 11.25).
M a r c o s , E v a n g e lh o d e ).
Aliás, João 11.25 é o clímax de João 5.21: “Assim
ver Marcos 16.1-8 como uma conclusão brilhante
a r c ],
o
texto de Marcos 16.1-8 veio a Além do mais, é possível
como 0 Pai ressuscita os mortos e concede-lhes
do Evangelho como um todo, conduzindo a um
vida, assim também o Filho concede vida a quem
chmax os dois temas principais de Marcos; a epi
ele quer”. Jesus é posto em pé de igualdade com o
fania oculta de Jesus como Messias e Filho de
Pai, por ser aquele que concede “a ressurreição e
Deus; o discipulado, particularmente o problema
a vida”, unindo assim os temas joaninos da esca
do fracasso nessa tarefa.
tologia reahzada (ressuscitar, i.e., trazer à vida os
A primeira unidade (Mc 16.1-4) combina tra
espiritualmente mortos) e da escatologia futura
dição com redação marcana. É possível encontrar
(a ressurreição do último dia).
tradição pré-marcana nos nomes das mulheres
3.4
Os santos. Finalmente, a enigmática res e na ida ao túmulo ao alvorecer. Entrementes, a
suscitação dos santos em Mateus 27.51-53 oferece
narrativa toda está concatenada com o estilo de
uma ponte teológica que vai da cruz ao túmulo
Marcos e apresenta alguns de seus temas bási
vazio. No que pode ser uma alusão ã visão do vale
cos, particularmente o equívoco das mulheres.
de ossos secos (Ez 37.1-14, esp. 13,14, “ quando
As observações cronológicas proporcionam uma
eu vos abrir as sepulturas e vos fizer sair, [...] vi
transição importante da Paixão de Jesus para a
vereis”), o conciso relato oferece um sumário dos
ressurreição. A ação passa dos acontecimentos
resultados da morte (o juízo e a derrota dos po
terríveis da “véspera do sábado” (Mc 15.42) para
deres da morte; v.
Jesu s, m o r te d e )
e ressurreição
(a ressuscitação dos santos mortos e sua aparição
a decisão de, “passado o sábado” , levar especia rias e então para a ida ao túmulo.
na cidade santa) de Jesus. Desse modo a Paixão
Os nomes também dão continuidade ao relato.
e a ressurreição de Jesus estão inextricavelmente
Na narrativa da Paixão em Marcos (Mc 15.40,47;
ligadas, constituindo um acontecimento único na
16.1) são citados três nomes: Maria Madalena,
história da salvação, e o resuUado, na ressurrei
Maria e Salomé aparecem em Marcos 15.40 e 16.1,
ção e na união dos verdadeiros “santos” de Deus,
e as duas Marias em Marcos 15.47. Lucas acrescen
tanto do passado quanto do futuro, está assegu
ta Joana (Lc 24.10), ao passo que Mateus menciona
rado por esse feito sobrenatural.
apenas as duas Marias (Mt 28.1; embora Mt 27.56
A questão da historicidade desses milagres está além do escopo deste verbete (v. 1990, para argumentos a favor; v. gumentos contra; v.
P e r k in s
par. Mc 15.40 acrescentem “mãe dos filhos de Zebe-
H a r r is ,
deu”) . É provável que a tradição e a redação estejam
para ar
aqui outra vez combinadas. A chave para descobrir
E v a n g e l h o s , c o n f i a b i l i d a d e h is
o propósito de Marcos encontra-se no uso do termo
Pode se afirmar, no entanto, embora
theorein em cada hsta com os nomes, dessa forma
de forma não definitiva, que Jesus ressuscitou os
tornando as mulheres testemunhas oficiais da cru
mortos como resultado de sua função profética e
cificação (Mc 15.40), do sepultamento (Mc 15.47) e
messiânica e que isso foi prenúncio da ressurrei
do túmulo vazio (Mc 15.47).
t ó r ic a d o s ).
ção dele próprio (v.
m ila g r e s , r e l a t o s d e m i l a g r e s ) .
A aquisição de especiarias para ungir o cor
Os milagres de ressuscitação dos mortos per
po de Jesus tem paralelo tanto na compra feita
meiam todas as tradições por trás dos Evangelhos
por José de Arimateia, em Marcos 15.46, quanto
(Marcos,
na unção (que apontava para a morte de Jesus),
m, l ,
João, possivelmente o), e é possível
defender sua historicidade com base no critério
em Marcos 14.3-9. Nesse contexto isso é irôni
da atestação múltipla.
co, pois as conotações messiânicas das unções
1 101
R e s s u r r e iç ã o
i;
b v A N G E iH O S
anteriores, as quais significavam que a morte de
refere a uma expectativa da parusia, não a uma
Jesus era o ato em que ele assumiria a função
aparição do Cristo ressuscitado, mas tal afirma
de Messias régio, tornam a última unção desne
ção é improvável, tendo em vista a ausência de
cessária. Jesus não apenas se tornou o Messias,
um tema de glória e o fato de que em Marcos
mas já ressuscitou, de modo que não haverá mais
tanto a Gahleia quanto a promessa “ o vereis” estão ligadas ã ressurreição, não ã pa
unção. Ironia e equívocos continuam existindo
(p p s e s th e )
não apenas no desejo das mulheres de ungir o
rusia. “Gahleia” aparece treze vezes em Marcos,
corpo de Jesus, mas também por não saberem o
geralmente no contexto da missão de Jesus e do
que fazer diante da necessidade de obter ajuda
sucesso dessa missão (cf. Mc 1.14,28,39; 3.7;
para remover “a pedra da entrada do sepulcro”
15.41). Existe, portanto, uma promessa implícita
(Mc 16.3], a qual era “muito grande” (Mc 16.4].
de que o fracasso dos discípulos será superado
Um intervalo narrativo ocorre na voz passiva “A
e que a responsabilidade será passada adiante,
pedra [...] já havia sido removida” (Mc 16.4),
dando-se assim início ã missão da igreja. Isso é
prenunciando a intervenção sobrenatural do anjo
ainda exemplificado na tradição pré-marcana (cf.
(Mc 16.5; Mt 28.2 indica que o anjo foi o agente).
Lc 24.34; ICo 15.5] de dizer “a seus discípulos, e
Em resumo. Marcos 16.1-4 gira em torno do mal
a Pedro” , o que pode muito bem indicar o retorno
entendido das mulheres (que desempenham um
dos discípulos a essa condição.
papel no tema marcano do discipulado) e leva o
Isso torna o final de Marcos ainda mais sur
leitor a prosseguir até a intervenção divina, a úni
preendente. 0 leitor esperaria que o medo tives
ca capaz de solucionar o dilema.
se acabado em Marcos 15.6, mas aqui o medo
A mensagem angehcal (Mc 16.5-7] também
toma conta das mulheres e as leva a desobedecer
reflete tanto a tradição (a angelofania, a exor
ã ordem do anjo. Contudo, não se destaca o ato
tação a não ter medo, a repreensão implícita, a
de desobediência, mas o impacto entorpecedor
proclamação básica da ressurreição e do túmulo
da surpresa avassaladora. Em todos os sentidos.
vazio) quanto a redação (o fato de flcarem “com
Marcos 16.8 conclui o tema marcano do fracasso
medo” , a designação “ Nazareno” para Jesus, a
no discipulado, pois as mulheres formam paralelo
ordem de ir para a Gahleia). O “segredo messiâni
com muitas cenas de surpresa, sUêncio e equívo
co” , parcialmente desvendado na exclamação do
co por parte dos discípulos (e.g., Mc 6.52; 8.14-
centurião romano, em Marcos 15.39 (“É verdade,
21; 9.6,32; 10.32). Se Marcos 16.8 fosse avaliado
este homem era o Filho de Deus!”], agora está
isoladamente, a conclusão seria incrivelmente
totalmente revelado. A surpresa das mulheres e a
negativa: ficaríamos apenas com a advertência
ordem do anjo para não temerem pertencem ao
de que os discípulos de hoje não repitam o fra
gênero literário da epifania, e a mensagem é uma
casso dos discípulos e das mulheres. No entanto,
fórmula querigmática que remove qualquer dúvi
a mensagem real de Marcos reside na interação
da sobre quem seja o “ Nazareno” , confirmando
entre Marcos 16.7 e Marcos 16.8. As aparições na
a importância das três predições da Paixão rela
narrativa da ressurreição não estão relacionadas
cionadas com o “Filho do homem”. Há de novo
entre si porque a ênfase de Marcos recai sobre
uma tensão introduzida no contraste entre o ob
a presença do Ressuscitado na Gahleia. Surpresa
jetivo piedoso, porém marcado pela ignorância,
e fracasso são experiências bem reais para cada
das mulheres ( “Procurais [alguém que] não está
discípulo, mas Jesus está a postos para remover o
aqui”) e a importância estupenda da reahdade da
medo e assegurar o sucesso na missão.
ressurreição, conforme anunciada.
4.2
A ressurreição em Mateus. Mateus segue
A promessa de Marcos 16.7 — de que os dis
0 esboço básico de Marcos, mas acrescenta uma
cípulos verão Jesus na Gahleia — é a chave para
boa quantidade de material próprio, basicamente
a narrativa de Marcos e está intímamente asso
a narrativa dos guardas do sepulcro (Mt 27.62-66;
ciada ã promessa de Marcos 14.28 (cf. Mc 9.9) de
28.4,11-15] e o relato da aparição de Jesus na
que o equívoco e o fracasso dos discípulos seriam
Gahleia (Mt 28.16-20). Ao fazê-lo, deu feitio a
revertidos numa experiência na Galileia. Alguns
um episódio com o emprego de dois conjuntos
(e.g., W.
de cenas em contraste, demonstrando assim a
M arxsen )
entendem que a promessa se
1 102
R e s s u r r e iç ã o
intervenção de D eu s contra todas as tentativas
i: E v a n g e l h o s
ungir o corpo de Jesus, ressaltando, em vez dis
de obstruir seu p lan o de salvação. Esse p lan o
so, 0 tema do testemunho (cf. Mt 27.56,61). No
segue u m a estrutura p arecida com a da n arra
contexto mateusino, o gesto simples de reverên
tiva da in fân cia e ta m bém d a Paixão, as quais,
cia por parte das mulheres é posto em contraste
p ara M ateus, apologeticam ente giram em torno
com a intriga dos sacerdotes.
d o p od e r divin o q u e vence todos o s obstáculos.
É notável a intervenção sobrenatural de Deus
E m M ateus, a n arrativa da ressurreição tam bém
nas duas cenas de Mateus 28.2-4 e 28.5-10.
d estaca os tem as gêm eos de autoridade e m issão/
Mateus tem predileção por essas cenas escato
com issionam en to, e m pregan d o o tem a do reco
lógicas (v. as cenas do terremoto [seismos], em
n hecim ento e d a com preen são. Tudo isso é u m
Mt 8.24 e 27.51, e as dos anjos, em Mt 1.20,24
su m ário d os tem as principais q u e caracterizam o
e 2.13,19) a fim de destacar o irrompimento da
Evangelho
Mateus. E n qu an to M arco s se con cen
era messiânica mediante atos diretos de Deus. O
tra n o fracasso d os discípulos, em cad a episódio
terremoto estabelece a continuidade com a cru
(e.g., M t
8.21).
de
24.27-32;
cf. M c
6.52;
Mt
16.12;
v. tb.
cificação (Mt 27.51). A exemplo de Atos 16.26
M ateu s m ostra q u e a p resença de Jesus
e Apocalipse 6.12, 8.5 e 16.18, não é tanto um
perm ite q u e os discíp ulos su perem seu fracasso
símbolo de juízo, porém mais um sinal positivo
Mc
e v e n h am a com p reen d er a situação. A cena da
do livramento divino. 0 ato em que o anjo rola a
ressurreição faz esse desen volvim en to culm inar
pedra e se assenta sobre ela tem nuances apoca
n o tem a do d iscipulado.
lípticas (cf. Mt 28.3, que faz paralelo com Dn 7.9;
O primeiro conjunto de cenas em contraste
10.6; lEn, 71.1; Ap 1.14,15; 10.1), descrevendo o
(Mt 27.62—28.10) cria uma oposição entre a tra
alvorecer de uma nova era. O túmulo se abriu,
ma em que os sacerdotes designam guardas para
permitindo que todos testemunhassem o triunfo
o túmulo e o lacram e o ato soberano de Deus de
de Deus.
ressuscitar Jesus dentre os mortos. Sem dúvida,
Mateus claramente se distancia da descrição
existem fortes nuances editoriais na narrativa
simples de Marcos. No entanto, é possível ver sua
dos guardas em Mateus 27.62-66 e também nos
moderação, fazendo-se uma comparação entre
episódios relacionados de Mateus 28.4,11-15.
Mateus 28.2-4 e a narrativa trabalhada do Evan
Contudo, isso não significa ausência de tradição
gelho de Pedro 9.35-45, em que dois anjos ajudam
por trás do relato. A existência de tal tradição é
o Senhor ressuscitado a sair do túmulo, “e a ca
sugerida pelo vocabulário não mateusino, como
beça de ambos chegava aos céus, mas a daquele
epaurion, paraskeuê, planos e asphalizõ. Além
que foi conduzido pelas mãos deles transcende
do mais, ao contrário do que possa parecer ã
os céus”. Mateus dehberadamente evita descrever
primeira vista, os problemas históricos como a
a ressurreição em si. A reação dos guardas, que
probabihdade de os sacerdotes irem a Pilatos no
ficam apavorados, “como mortos” de medo, é o
dia de sábado não são tão difíceis de resolver.
“ testemunho” negativo (o de adversários do pla
Pesquisas sobre as exceções para o dia de sá
no de Deus) às nuances teofânicas da cena. Esse
bado na época de Jesus mostram que poderia
não é o temor causado pela reverência (como o
haver permissão para algo desse tipo, desde que
das mulheres, Mt 28.8), mas o pavor que só os
a pessoa não percorresse mais que a distância
inimigos de Deus sentem.
de um dia de sábado nem entrasse no palácio
A mensagem do anjo (Mt 28.5-7) está mais
(cf. Jo 18.28). É provável que Mateus tenha de
próxima de Marcos. Há, contudo, diferenças sig
senvolvido a tradição acerca do pedido de que
nificatívas na redação. Mateus substitui o “não
se pusessem guardas no túmulo, feito pelos sa
tenhais medo” de Marcos por “não temais” , pro
cerdotes, a fim de rebater as acusações de que
vavelmente para acentuar o contraste com o pa
0 corpo havia sido roubado e para destacar o
vor dos guardas. Ele também liga o anúncio da
poder soberano de Deus na ressurreição, ape
ressurreição de Jesus diretamente às predições da
sar de todas as maquinações dos judeus. Mateus
Paixão, acrescentando; "... como havia falado”.
também evitou a ênfase de Marcos no fato de
Marcos emprega esses termos depois de mencio
as mulheres terem um objetivo equivocado ao
nar que Jesus iria adiante deles para a Gahleia,
1 103
R e s s u r r e iç ã o
i:
Evan gelho s
mas a essa altura, na narrativa de Mateus, o anjo
não existe outra ordem assim); “mas alguns du
conclui, dizendo: “ Eu vos avisei”. Com essa afir
vidaram” (importante tradição sobre a ressurrei
mação, ele destaca a autoridade do mensageiro
ção, mas aparentemente fora de lugar aqui); “no
comissionado por Deus. Desse modo, o encontro
céu e na terra” (expressão não encontrada em
na Galileia torna-se mais diretamente o resultado
nenhum outro lugar em Mateus). Entretanto, o
da proclamação do anjo que a promessa de Je
hnguajar e os temas são tão mateusinos que é
sus (como em Marcos). O surpreendente final de
impossível fazer separação entre edição e tradi
Marcos é radicalmente mudado por Mateus, que
ção (nem iríamos querer limitar a fidedignidade
em Mateus 28.8-10 diz que as mulheres, “com te
histórica a uma delas).
mor e grande alegria” , saíram dali e “correram
Mateus concatenou cuidadosamente o todo,
para contar tudo aos discípulos”. A aparição de
a fim de oferecer um sumário de muitos dos te
Jesus às mulheres é atestada independentemente
mas importantes de seu Evangelho. Alguns pon
em João 20.11-18 e tem origem na tradição. Mas
tos interessantes aparecem na introdução, como
é possível observar que elementos mateusinos
o encontro numa montanha, algo importante
são destacados: “alegria” (cf. Mt 2.10; 13.20,44;
em Mateus como local de revelação (cf. Mt 4.8;
25.21,23), “adoração” (Mt 2.2,11; 4.9,10; 8.1;
5.1; 8.1; 14.23; 15.29; 17.1; 21.1), e a existência
9.18; 14.33; 15.25) e “meus irmãos” , que, numa
de dúvida na adoração dos discípulos. O últi
única palavra, indica que os discípulos, que ha
mo elemento provavelmente dá prosseguimen
viam caído, foram perdoados e estavam sendo re
to ao tema mateusino “ homens de pequena fé”.
conduzidos à sua condição de discípulos (cf. um
No
destaque semelhante em Jo 15.11-17; 20.17). A
em Mateus 14.31, em que Jesus repreende seu
repetição da ordem para ir para a Gahleia é a pre
discípulo: “ Homem de pequena fé, por que du
paração da cena apoteótica de Mateus 28.16-20.
vidaste?” Mas os discípulos respondem: “Verda
0 segundo conjunto de contrastes é o existente
NT,
a palavra distazõ ocorre somente aqui e
deiramente tu és 0 Filho de Deus” (Mt 14.33). É
entre o plano maligno de disseminar mentiras (Mt
provável que a dúvida signifique incerteza, em
28.11-15) e a Grande Comissão da verdade divi
vez de incredulidade, e que esta seja parte da
na (Mt 28.16-20). A ironia do embuste planejado
mensagem do primeiro Evangelho: hesitar espi
pelos sacerdotes é óbvia: agora eles são forçados
ritualmente em meio à adoração é a luta cons
a proclamar exatamente o que haviam tentado
tante de cada discípulo. Só é possível achar a
evitar em Mateus 27.62-66 (i.e., a possibilidade
resposta quando se aphca a promessa inerente
de que o corpo de Jesus fosse roubado). Fica ex
em Mateus 28.18-20.
plícita a apologética de Mateus contra essa polê
O termo-chave da Grande Comissão é “tudo”
mica judaica (observe-se o “até ao dia de hoje” ,
— “toda autoridade”, “todas as nações” , “todas
Mt 28.15).
as coisas” , “todos os dias”. Em muitos aspectos,
A apropriadamente denominada Grande Co
essa breve homiha pode ser intitulada “A totalida
missão de Mateus 28.16-20 pertence ao gênero de
de de Javé”, transmitida à missão dos discípulos
narrativas de comissionamento, vistas com fre
por meio da presença do Ressuscitado no meio
quência no AT e na literatura judaica. Esse gênero
deles. A “autoridade [...] concedida no céu e na
consiste em duas partes: uma introdução narrati
terra” a Jesus é um reflexo de Daniel 7.14, e, por
va (Mt 28.16-18a) e uma frase tríphce, composta
esse motivo, o Ressuscitado é descrito como o Fi
de uma declaração de autoridade (Mt 28.18b),
lho do homem exaltado, que agora tem autoridade
um comissionamento (Mt 28.19,20a) e uma rea
universal sobre todo o reino de Deus. No Evan
firmação da presença contínua do Ressuscitado
gelho de Mateus, a autoridade de Jesus agora se
(Mt 28.20b). É bem provável que o episódio se ba
estende a todo o reino, tanto o celestial quanto o
seie numa tradição, visto que faz paralelo com co
terreno. A missão de discipular “todas as nações”
missionamentos semelhantes, em Lucas 24.47-49
(ideia possivelmente também associada a Dn 7.14)
e João 20.21-23, e contém elementos que apon
ecoa a participação da igreja na missão de que
tam para uma fonte na tradição: foram “para o
Deus incumbiu Jesus, a qual se hmitava a Israel
monte que Jesus lhes designara” (em Mateus,
(Mt 10.5,6; 15.24), mas agora se estende a toda
1 104
R e s s u r r e iç ã o
i:
Evan g elho s
a humanidade. É bastante debatido se ethns (“ na
por uma mudança, com as aparições se concen
ções”, “povos”] se refere apenas à missão gentílica
trando em Jerusalém, não na Galileia. Para Lucas,
(por causa da costumeira restrição do termo aos
isso proporciona ao relato um ponto geográfico
gentios] ou se o acréscimo de pas (“todas”] impU-
central, em que Jerusalém se torna tanto uma
ca a inclusão de Israel entre essas nações. Vários
conclusão (para a vida e o ministério de Jesus)
estudos recentes sobre o escopo da missão univer
quanto um princípio (para a missão contínua da
sal em Mateus entendem que a última interpre
igreja). A narrativa de Lucas é uma preparação
tação é a mais provável. Além disso, em Mateus
para o livro de Atos, de modo que a ressurrei
24.9,13 e 25.32 (as outras três passagens em que a
ção oferece uma transição do ministério de Jesus
expressão “todas as nações” ocorre] a expressão se
para o da igreja primitiva. Conforme muitos têm
refere a “todos os povos” , inclusive o povo judeu.
ressaltado, uma perspectiva de história da salva
Há dois aspectos concomitantes do processo
ção percorre todo o texto. Além disso, há uma
de discipulado; batismo e instrução. 0 manda
forte ênfase credal, seguida de comentários que
mento do Jesus ressurreto torna-se o fundamento
elucidam a importância dos acontecimentos da
do batismo cristão, visto aqui como uma entrada
perspectiva do cumprimento profético (Lc 24.5-
“no” (aqui Mateus, que normalmente faz distin
7,25-27,44-47). Por fim, há uma acirrada polêmica
ção entre as preposições eis e en, emprega eis) se
em torno da dúvida e da realidade da ressurrei
nhorio e na comunhão da divindade trina. Existe
ção. É evidente o destaque ao testemunho, que
um tom mateusino na fórmula trinitária, resumin
inclui provas da ressurreição, mas isso enfrenta
do os relacionamentos Pai-Fílho (Mt 3.17; 11.27)
constante perplexidade e incredulidade. Lucas
e Filho-Espírito (Mt 3.11,16; 12.32). 0 segundo
apresenta esses temas de forma linear, com to
aspecto, o ensino, também é a conclusão de um
dos os acontecimentos ocorrendo em quatro eta
tema principal. 0 Evangelho de Mateus está or
pas no mesmo dia: o túmulo vazio (Lc 24.1-12),
ganizado em torno de cinco grandes unidades de
a estrada de Emaús (Lc 24.13-35], a aparição aos
discursos (5— 7; 10; 13; 18; 23—25], e o discipu
discípulos durante uma refeição e o comissiona
lado em si é definido como uma resposta ética às
mento deles (Lc 24.36-49) e a ascensão aos céus
exigências de Jesus. Como em Mateus 5.17-20 e
(Lc 24.50-52).
24.35, 0 ensino de Jesus é apresentado como as
A narrativa do túmulo vazio (Lc 24.1-12]
palavras normativas de Javé e como o cumpri
acompanha em geral a sequência de Marcos,
mento da Torá (v.
Torá do Messias chegou,
porém introduz algumas interessantes mudan
e nessa nova era o discípulo obedecerá a “todas
ças na redação. É objeto de debate se Lucas em
Lei). A
as coisas” que Jesus ordenou.
prega Marcos e acrescenta material
A resposta obediente do discípulo ao ensino de
l
(a entrada
das mulheres no túmulo, os dois anjos, a apari
Jesus tem como paralelo a promessa da presença
ção a Pedro, em Lc 24.12,34] ou se faz uso de
contínua de Jesus, a qual se desenvolve a partir de
uma fonte não marcana, inserindo alguns deta
promessas anteriores de Jesus como o Emanuel,
lhes marcanos. Seja como for, a redação lucana é
ou “Deus conosco” (Mt 1.23], e como aquele que
evidente. Ele apresenta uma longa exposição dos
está presente sempre que houver “dois ou três reu
preparativos feitos pelas mulheres e do descanso
nidos” (Mt 18.20, am). Aqui vemos a solução para
no sábado (Lc 23.54-56), com quatro observações
a “pequena fé” de Mateus 28.17, a saber, que a po
cronológicas (Lc 23.54a,54b,56; 24.1) que unem
derosa presença do Ressuscitado os sustentaria na
0 fato do sepultamento e do túmulo num todo
fraqueza. Além do mais, essa presença será cons
histórico-salvífico. A ênfase não é tanto no equí
tante “até o final dos tempos”. Muitos têm dado a
voco das mulheres (como em Marcos), porém
essa passagem o nome de “parusia proléptica” por
mais na obra de Deus por trás dos acontecimen
causa das nuances apocalípticas (uma vez mais,
tos. A ação conduz à declaração direta, em Lucas
com base em Dn 7.14) em que a vinda futura ou
24.3, de que as mulheres “ não acharam o corpo”
final de Jesus é mediada pela igreja.
no túmulo. 0 papel das mulheres como testemu
4.3
A ressurreição em Lucas. Em Lucas e em nhas é desenvolvido: elas “viram” não apenas o
João, a abordagem básica da ressurreição passa
túmulo, mas “como o corpo havia sido colocado
1 105
R essurreição i : Evangelhos
ali” (Lc 23.55), e depois foram testemunhas do
o intuito de dar maior destaque à função das
túmulo vazio. A importância disso se vê na obser
mulheres como testemunhas da reahdade da res
vação de Lucas segundo a qual esse era “o corpo
surreição. Contudo, o resultado é inesperado; os
do Senhor Jesus” (embora seja uma “ não inter
“apóstolos” (em seu Evangelho, Lucas emprega
polação ocidental” , ausente na famíha de manus
seis vezes esse título, em contraste com uma
critos ocidentais, que normalmente faz aherações
ocorrência em Mateus e duas em Marcos, para
arriscadas, a maioria dos estudiosos concorda em
realçar a continuidade entre os discípulos e o gru
que a expressão “ do Senhor Jesus” faz parte do
po apostóhco de Atos) não apenas expressaram
texto original). Isso introduz a característica teo
dúvida, como também “não lhes deram crédito” ,
logia lucana da glória logo no início da narrativa
considerando o testemunho das mulheres “um
da ressurreição.
delírio”.
Em Lucas 24.3, a perplexidade das mulheres
Essa incredulidade é um tema destacado na
se transforma em respeito temeroso (Lc 24.4),
narrativa de Lucas sobre o túmulo vazio, prepa
pois agora existem dois anjos com vestes resplan
rando para a superação da dúvida mediante a
decentes (tradição pré-lucana, cf. Jo 20.12). A
presença direta do Ressuscitado no episódio se
mensagem em si (Lc 24.5-7) desvia-se da forma
guinte. Para realçar ainda mais esse tema, Lucas
marcana. O temor delas não é mitigado, mas o
incorpora (outra “ não interpolação ocidental” ,
que ocorre constitui, sim, um desafio e uma pro
que hoje a maioria dos estudiosos aceita como
clamação da reahdade decisiva da ressurreição.
autêntica) outro episódio proveniente da tradição
Nesse pronunciamento, “ Galileia” não é o lugar
(o hnguajar revela similaridade com Jo 20.3-10)
em que Jesus se encontrará com eles, mas o local
sobre a ida de Pedro ao túmulo (Lc 24.10). 0
em que ele havia anunciado sua Paixão e ressur
fato de Pedro sair “admirado” do túmulo silen
reição. Em Lucas, a Gahleia é o lugar do testemu
cia parcialmente a incredulidade dos discípulos
nho autorizado — as próprias mulheres são da
e ao mesmo tempo conclusivamente, pois Pedro
Gahleia (Lc 8.1-3) — e em Atos 1.11 e 13.31 os
fornece a continuidade entre a confusão das mu
discípulos galileus dão testemunho das aparições
lheres em Lucas 24.4 e a surpresa dos viajantes
em Jerusalém. Em outras palavras, o centro da
em Lucas 24.44. A fé plenamente desabrochada
atenção desloca-se do futuro para o passado, e a
surge apenas depois da intervenção soberana do
repetição da predição da Paixão em Lucas 24.7,
próprio Ressuscitado (Lc 24.16,31).
que tem suas raízes em Lucas 9.22,44 e 18.31-33,
Essa luta de fé prossegue na viagem pela estra
enfatiza a ideia de cumprimento de promessa. Em
da de Emaús, segundo o relato de Lucas 24.13-35.
Lucas 24.8, as mulheres “ se lembraram das suas
É difícil detectar a interação entre tradição e
palavras” , ênfase lucana que aponta para uma fé
edição, visto que esse relato aparece apenas em
que está despertando (em oposição a
no
Lucas. No entanto, embora haja uma boa dose
plano salvífico de Deus (especialmente em sua
de edição lucana, pouquíssimos estudiosos iden
hgação com a “necessidade” [dei, “importa que”]
tificariam essa passagem como uma composição
D illo n )
divina de Lc 24.7; cf. Lc 1.54,72; At 11.16). A
livre. É provável que uma forma pré-lucana desse
compreensão que passam a ter as induz a rela
relato tenha constituído a base para uma porção
tar “ todas essas coisas” (não apenas a mensagem
do apêndice acrescentado mais tarde em Marcos
do anjo, mas o fato de que elas próprias foram
(Mc 6.12,13), e que os nomes “Emaús” e “Cleo-
testemunhas do túmulo vazio). Ao contrário de
pas” tivessem sido improváveis numa história
Mateus e Marcos, isso não acontece em resposta
criada livremente. A maioria dos estudiosos crí
a um comissionamento angehcal (algo omitido
ticos aceita um núcleo histórico por trás do todo.
em Lucas), mas é o resuhado direto da fé que
Visto nesse contexto mais amplo, surgem
rapidamente nelas brotava (o que se vê no padrão
vários temas. Como acontece com frequência
“e [...] e [kai... kai]”, encontrado em Lc 24.8,9).
em Lucas, a geografia domina a estrutura. Nes
Lucas reserva a hsta de nomes para esse ponto
se caso, a viagem “ [saindo] de” Jerusalém se
da narrativa (chegando a acrescentar “outras
caracteriza pela derrota; a volta “a” Jerusalém,
que também estavam com elas” , Lc 24.10), com
pelo testemunho e pela vitória. A guinada que
1 106
R essurreição i ; Evangelhos
ocorre com a instrução de Jesus se dá enquanto
uma reminiscência da Últíma Ceia (cf. Lc 22.19).
estão “no caminlro”. A realidade da ressurreição
Entretanto, o tema pode ser mais genérico, sim
é o objetivo do relato, sendo Lucas 24.28-32 o clí
ples alusões às cenas lucanas de refeição ou de
max não apenas desse episódio, mas também da
com unhão
narrativa do túmulo vazio. Essa realidade recebe
Jesus (Lc 5.29; 7.36; 11.37; 12.37; 13.29; 14.1,8,9;
destaque especial na prova baseada nas profecias
22.14;
(Lc 24.25-27), quando Jesus mostra que é mais
co mil], que também tem paralelos nessa passa
que um profeta poderoso (a crença dos viajan
gem). No geral, é possível que ambos os aspectos
V.
a
m es a ,
que aparecem nas instruções de
esp. Lc 9.10-17 [a alimentação dos cin
tes, Lc 24.19), sendo na verdade o cumprimen
se encontrem aqui, principalmente quando se
to da visão profética de um Messias sofredor e
percebe que a eucaristia era uma cena de refeição
glorificado.
nos Evangelhos. Contudo, não podemos ser dog
0 movimento em direção à compreensão é
máticos a respeito disso, e pode ser que o texto
realizado empregando-se um tema de não reco
queira ressahar a comunhão à mesa, não a eu
nhecimento/reconhecimento. Na primeira me
caristia. A ênfase final recai sobre o testemunho
tade do relato, os viajantes estavam “como que
e encerra esse tema, indo da increduhdade em
impedidos de [...] reconhecer” (ar a ) a Jesus, de
Lucas 24.11 para a resposta de fé em Lucas 24.34.
talhe que faz lembrar a necessidade que os discí
É interessante que o testemunho dos dois discí
pulos tiveram de revelação divina para entender
pulos não produz fé; pelo contrário, confirma a
as predições acerca da Paixão (Lc 9.45; 18.34).
fé que resultou do relato da aparição a Simão. Ou
Sem dúvida, o propósito de Lucas é levar o lei
seja, a realidade da ressurreição é confirmada por
tor a abrir os olhos por meio da proclamação da
meio de um testemunho duplo; o de Pedro e o
Palavra (Lc 24.25-27,32) e do partir do pão (Lc
dos dois discípulos.
24.30,31,35). A palavra falada controla a narrativa
No Evangelho de Lucas, a aparição de Jesus
de Lucas 24.17-27 e inclui um sumário dos acon
ocorre em Jerusalém, não na Gahleia. Os estu
tecimentos do túmulo, aprofundando a confissão
diosos têm debatido exaustivamente sobre o sig
de que Jesus “foi profeta, poderoso em obras e
nificado do contraste entre a tradição da aparição
palavras” (Lc 24.19; cf. Lc 24.20-24) e o tema do
na Galileia e a da aparição em Jerusalém, espe
cumprimento das Escrituras (Lc 24.25-27).
cialmente pelo fato de não aparecerem juntas em
Muitos veem aqui um paralelo com o relato
nenhum relato dos quatro Evangelhos (Jo 21 é
do eunuco etíope de Atos 8.26-39, em que cada
um apêndice, acrescentado mais tarde — v. abai
relato segue um padrão: um estranho exphca a
xo) . Muitos acreditam que a tradição da Galileia
Palavra ao viajante e conduz a conversa. Entre
é anterior, visto que é encontrada na tradição
tanto, a instrução em Lucas 24 é, na realidade,
mais antiga (Mc 14.28; 16.7). Entretanto, não é
“pré-evangelização”, pois, embora se diga que o
uma conclusão necessária, pois até mesmo em
coração deles “ardia” enquanto Jesus expunha as
Mateus, em que a aparição na Gahleia está no
Escrituras (Lc 24.32), o partir do pão é o ponto
centro dos acontecimentos, existe uma aparição
decisivo do episódio de Emaús. É nesse momento
— às mulheres — que diz respeito a “Jerusalém”
que Deus age soberanamente, abrindo os olhos
(Mt 28.8-10). Os interesses editoriais dos Evange
dos viajantes (observe-se o passivo divino, i.e.,
lhos podem ter sido motivo suficiente para que
a voz passiva que tem Deus como agente: “ os
concentrassem a atenção numa tradição apenas.
olhos deles foram abertos”, Lc 24.31, fazendo
C. F. D. Moule (1957, 1958) apresenta a tese bem
contraponto a “os olhos deles estavam como que
plausível de que, na condição de peregrinos para
fechados, de modo que não o reconheceram”,
a festa, os discípulos teriam permanecido em Je
Lc 24.16).
rusalém para a Festa dos Pães sem Fermento (daí
É objeto de debate se aí está implícita uma
as aparições de Mt 28.9,10; Lc 24.13-49; Jo 20.11-
celebração eucarístíca. Alguns entendem “partir
29), retornado à Gahleia no período entre as
o pão” como expressão técnica designativa da
festas (Mt 28.16-20; Jo 21) e finalmente volta
eucaristia (At 2.42; 20.7; ICo 11.20), e a ordem
do a Jerusalém para o Pentecostes (a ascensão,
dos acontecimentos em Lucas 24.30 pode ser
Lc 24.50-53; At 1.6-11).
1 107
R essurreição i : Evangelhos
A aparição registrada em Lucas 24,36-43
Salmos é usado com frequência em Atos (cf.
gira em torno da realidade física da ressurrei
At 2.25,26,34,35; 4.11,25,26; 13.33-35) para sus
ção. Do ponto de vista estrutural, encontra-se
tentar a ênfase credal na humilhação-confirma-
intimamente ligada a Lucas 24.13-35, pois Je
ção. 0 comissionamento aprofunda a pregação
sus aparece enquanto os Onze estão discutindo
missionária com temas soteriológicos. Ahás, con
o relato dos dois viajantes. Aqui uma tradição
forme assinalado por Marshall, os termos “arre
pré-lucana está outra vez por trás da história.
pendimento” (cf. Lc 5.32; 13.3,4; 15.7,8; 16.30;
Isso flca evidente na aparição propriamente dita
17.3,4), “perdão dos pecados” (cf. Lc 1.77; 3.3;
(testemunhada por três outras fontes diferentes
5.20,21; At 2.38; 5.31; 10.43) e “pregar” (Lc 3.3;
— ICo 15.5; Mc 16.14,15; Jo 20.19,20); nas in-
4.18,19,43,44; 8.39; 9.2; 12.3) resumem na práti
junções do Ressuscitado; “Paz seja convosco!”
ca a doutrina lucana da salvação. Essa missão é
(cf. Jo 20.19,21,26); no “ Coloca aqui o teu dedo
para ser feita “em seu nome” (expressão lucana
e vê as minhas mãos” (cf. Jo 20.27); no tema da
que denota poder e autoridade no desempenho
dúvida; na prova apologética.
da missão), “a todas as nações” (a missão uni
A saudação de “paz” (Lc 24.36) possui nu
versal), “começando de Jerusalém” (a origem da
ances teológicas, estabelecendo paralelo com a
missão, apontando para At 1— 5). Cada expressão
“paz” dos Setenta e Dois na missão que realiza
visa ao desencadeamento da missão da igreja em
ram (Lc 10.5,6) e possivelmente incluindo o mes
Atos (observe-se que a concatenação de “Jerusa
mo tipo de promessa messiânica, como se vê na
lém” , “testemunhas” e “ poder” ocorre de novo
saudação “Paz seja convosco!”, de João 20. Em
em At 1.8, que é o sumário do hvro de Atos).
seguida, o texto passa a destacar a dúvida dos
Em Lucas, a ascensão fornece uma transição
discípulos, 0 que se vê nos sucessivos verbos de
estrutural do Evangelho de Lucas para o hvro
Lucas 24.37,38; assustar-se, atemorizar-se, acre
de Atos. De fato, é possível apresentar uma boa
ditar ver um espírito, perturbar-se, duvidar. Esse
justificativa para o fato de que a ascensão tem
é um desdobramento surpreendente depois da fé
sido 0 objetivo do texto desde Lucas 9.31, quan
que demonstraram em Lucas 24.31-35, mas se
do Jesus, Moisés e Elias falaram da “ partida” de
trata de uma preparação para a inesperada prova
Jesus [êxodos], “ que estava para acontecer em
que Jesus apresenta de sua ressurreição em Lu
Jerusalém”, algo mais que natural para a ascen
cas 24.39-43. 0 movimento do ver para o tocar e
são (cf. Lc 9.51). Em Lucas 24.50-53 a ascensão
depois para o comer uma refeição real com eles
assume um caráter doxológico, quando Jesus
ressalta, e muito, a continuidade entre o Cristo
profere uma bênção sacerdotal. Em Atos 1.6-11,
crucificado e o ressuscitado (mostrando suas
a ascensão tem imphcações eclesiásticas, pois
mãos e pés com as cicatrizes dos pregos), bem
o Senhor ressuscitado capacita os discípulos e
como a corporeidade da ressurreição ( “Um espíri
inicia a missão da igreja. Em Lucas, a ascensão
to não tem carne nem ossos, como percebeis que
indica um fim; em Atos 1, marca um começo.
eu tenho” , Lc 24.39; comer peixe, Lc 24.43). Na
Assim termina o tema da glória de Jesus em Lu
interpretação de alguns, isso revela que Lucas es
cas 24. O Senhor ressuscitado agora é exaltado e,
tava interessado em refutar a heresia docética em
como Elias, é elevado ao céu. Uma transição adi
sua igreja, mas o que o Evangehsta quer é des
cional para o hvro de Atos se vê nos discípulos,
tacar a natureza do Cristo ressuscitado (“Sou eu
que adoram e “com grande alegria” retornam a
mesmo” , Lc 24.39), não refutar um ensino falso.
Jerusalém, permanecendo “continuamente” no
Acena do comissionamento, em Lucas 24.44-49,
templo (Lc 24.52,53). Cada um desses temas —
funde a tradição litúrgica de Lucas 24.44 (esta
adoração, júbilo e templo — é importante tanto
belecendo paralelo com os sermões de Atos), a
no Evangelho de Lucas quanto em Atos. Os dis
tradição de comissionamento de Lucas 24.47
cípulos e a igreja dão prosseguimento ao minis
(como Mt 28.19; Jo 20.21) e a tradição acerca do
tério de Jesus nessas áreas. 4.4
Espírito de Lucas 24,49 (como Jo 20.22). 0 tema
A ressurreição em João. Nos Evangelhos
do cumprimento recapitula Lucas 24.6,7,25-27,
Sinóticos, a ressurreição caracteriza o ápice da
mas acrescenta Salmos ã Lei e aos Profetas.
vida de Jesus: é ao mesmo tempo confirmação
1108
R essurreição i : Evangelhos
e exaltação, e em certo semido os relatos dos
e também a aparição a Maria — tem raízes na tra
Evangelhos prenunciam a ressurreição. João, no
dição. Em João 20.1-10, ocorre uma mudança su
entanto, vai na direção oposta. Todo o seu Evan
til, abandonando-se o emprego que Mateus, com
gelho é narrado do ponto de vista pós-ressurrei-
objetivos polêmicos, faz da crença de que o corpo
ção. A ressurreição não é o momento em que
de Jesus havia sido roubado. Nesse caso, não se
Jesus assume sua doxa, isto é, sua glória, porque
trata de uma apologética, mas de parte do tema
toda a sua vida e seu ministério consistem em
do equívoco entre os seguidores de Jesus: é Ma
doxa. Os discípulos não são descritos como pes
ria, não os principais sacerdotes (Mt 27.62-66),
soas de “coração endurecido” [cf. Mc 6.52; 8.17).
quem teme esse roubo e prepara o cenário para a
Em vez disso, eles “creram” porque perceberam a
corrida ao túmulo. Esse tema é acentuado com o
glória revelada em Jesus (Jo 2.11). João substitui
comentário de João de que isso aconteceu “estan
as predições da Paixão encontradas nos Sinóticos
do ainda escuro” (Jo 20.1). As trevas pertencem
por três ditos de que o “Filho do homem [será]
ao duahsmo joanino luz-trevas (cf. Jo 3.2; 11.10;
levantado” (Jo 3.14; 8.28; 12.31,32), o que apon
13.30) e aqui simbolizam uma fase de equívocos
ta para a Paixão como exaltação. Descrevem-se a
(cf. Jo 20.9).
vida e a morte de Jesus como acontecimentos da
Entretanto, o equívoco restringe-se basicamen
ressurreição. A ressurreição em si torna-se, por
te a João 20.1,2. Em sua corrida ao túmulo (Jo
tanto, 0 momento final desse drama de glória e,
20.2-10), João dá um passo além de Lucas e atri
como tal, 0 ápice dos temas ressaltados no quarto
bui ao túmulo vazio uma função apologética. Ele
Evangelho: cristologia e soteriologia, em João 20;
o faz de várias maneiras. A alegada rivalidade en
missão e discipulado, em João 21.
tre Pedro e o discípulo amado faz com que ambos
4.4.1
João 20. Cada um dos quatro episódios sejam testemunhas (cf. Dt 19.15) das consequên
do capítulo 20 apresenta uma crise de fé em que
cias do túmulo vazio. Os estudiosos têm debatido
08 participantes lutam com a reahdade da ressur
o significado dessa rivalidade: ambos correm ao
reição. Em cada um dos episódios, o nível de fé
túmulo, mas o discípulo amado chega primeiro; o
cai para um nível mais baixo, do discípulo amado
discípulo amado demora a entrar, mas Pedro vai
com sua fé natural (Jo 20.8,9) para a tristeza de
diretamente para dentro do túmulo. Ao entrar, o
Maria (Jo 20.11), depois para o temor dos discípu
discípulo amado simplesmente “ viu e creu”, en
los [Jo 20.19) e finalmente para a declaração do
quanto fica subentendido que Pedro não creu.
cético Tomé (Jo 20.25). Entretanto, Jesus vem em
Alguns entendem que os dois discípulos são
socorro de cada crise, e os resultados vão se in
apenas símbolos do conflito interno da comunida
tensificando até culminar com o clamor de Tomé:
de joanina, mas isso é duvidoso, em face da repre
“Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28), que é o
sentação consistentemente positiva de Pedro em
clímax da cristologia de João. À semelhança de
todo o Evangelho de João. Nas cenas em que há
Lucas, os quatro episódios ocorrem no mesmo
uma justaposição dos dois [Jo 13.23-25; 18.15,16;
dia: dois pela manhã (Jo 20.1-18) e dois ã noiti-
20.3-10; 21.7,8), de fato há certa rivahdade, mas
nha (Jo 20.19-29).
não para desvantagem de Pedro. Pedro tipifica o
Na verdade, há três cenas em João 20.1-18,
dilema de todos os discípulos que precisam en
pois a corrida ao túmulo (Jo 20.3-10) separa a
carar 0 significado da pessoa de Jesus. Ele tem
descoberta do túmulo vazio por Maria [Jo 20.1,2)
muitas perguntas (Jo 13.23,24), não entende as
da aparição de Jesus a ela (Jo 20.11-18). Alguns
situações (Jo 20.6,7) e falta-lhe visão (Jo 21.7,8).
indicios apontam para uma tradição por trás da
Contudo, cristãos de todas as eras se identificam
passagem. 0 “ nós” na declaração de Maria em
com ele. O discípulo amado é o discípulo arquetí-
João 20.2 é vestígio de uma tradição semelhan
pico, aquele cujo testemunho (cf. Jo 19.35; 21.24)
te ã dos Sinóticos, na qual várias mulheres estão
e fé (Jo 20.8,9) autênticos proporcionam um mo
presentes. Também existem ligações com Lucas
delo de discipulado bem-sucedido.
24.12,34 e com a tradição de Pedro. A maioria
A descrição detalhada dos panos do túmulo
dos estudiosos acredita que cada parte — as duas
(Jo 20.6,7) demonstra, acima de tudo, que o cor
idas ao túmulo, pelas mulheres e pelos discípulos,
po não foi roubado. Nenhum ladrão teria perdido
1 109
R essurreição i : Evangelhos
tempo enrolando com tanto cuidado os panos do
um sentido mais profundo: Jesus talvez esteja
túmulo. Além do mais, a presença do enfaixa-
lhe pedindo que não se “apegue” aos relaciona
mento de linho é prova de que Jesus havia de
mentos antigos (observe-se que ela acabou de
fato ressuscitado dentre os mortos (cf. Jo 11.44,
chamá-lo “ Raboni” [i.e., “meu mestre”]). Essa
quando Lázaro “ saiu” ainda envoho nas faixas
aparente contradição entre “ainda não voltei”
de linho). Finalmente, o discípulo amado crê,
e “estou voltando” (i.e., “estou no processo de
mesmo sem a ajuda do testemunho da “ Escritu
voltar”) explica a tensão. Jesus não deve mais se
ra” (Jo 20.9). A resposta de fé é um dos temas
relacionar com eles como o Mestre deles, pois no
básicos de João e está consistentemente ligada
transcurso de suas aparições ele está concluindo
ao ver e ao saber (observem-se os verbos “ver”,
sua obra e está na iminência de cumprir a pro
em Jo 20.6; 8.14,18; “ saber” , em Jo 20.2,9,13,14;
messa do discurso de despedida: voltar para o
21.4,12,15-17). A tensão entre ver e saber é típica
Pai, a fim de que o Paráclito possa vir (Jo 13.1,3;
das narrativas da ressurreição, tanto no capítulo
14.4,25,26,28; 15.26; 16.5,7,17,28; 17.13). Todos
20 quanto no capítulo 21. 0 compromisso com
os relacionamentos anteriores foram transforma
Cristo é aprofundado quando a visão conduz a fé
dos, e, desse modo, os discípulos são agora “ir
ao saber. Aqui está o primeiro passo: visão que
mãos” (cf. Mt 28.10; cf. Jo 15.15); nessa única
conduz à fé.
palavra asseguram-se o perdão dos discípulos e a
A cena impressionante em que Maria, pro
volta deles à posição que ocupavam.
fundamente perturbada, chega ao entendimento
Entretanto, a proclamação de Maria (Jo 20.18),
(Jo 20.11-18) leva-nos, de um modo mais pro
como nos demais Evangelhos, aparentemente não
fundo, a esse encontro com o significado da res
obtém nenhum resultado. Na cena seguinte, os
surreição. Aqui os anjos não desempenham um
discípulos ainda estão se escondendo, “por medo
papel revelador, como nos Sinóticos. Eles depa
dos judeus” (Jo 20.19). Existe um razoável núme
ram com a tristeza de Maria (observe-se a centra-
ro de semelhanças com Lucas 24: as expressões e
lidade do choro em Jo 20.11,13,15) e preparam-na
frases “primeiro dia da semana”, “colocou-se no
para a presença do Ressuscitado. A repetição da
meio” , “paz seja convosco” e “mostrou-lhes as
pergunta e da resposta nas duas cenas, a saber,
mãos e o lado”, o comissionamento para a mis
com os anjos e com Jesus (Jo 20.13,15), produz
são, a dádiva do Espírito e a ênfase no perdão
uma tensão narrativa. Para o lehor, bastaria um
de pecados. Isso está repleto de destaques edito
ou outro acontecimento (a presença dos anjos ou
riais joaninos e constitui um relato pecuhar e bem
do próprio Senhor ressuscitado). Mas a dor dela
equilibrado. Jesus, a exemplo do que fez com Ma
é intensa demais. Isso serve de preparação para o
ria, trata diretamente do medo e da ausência de
momento em que a cegueira é maravilhosamen
fé dos discípulos. Maria precisou ouvir a voz do
te removida dos olhos dela (Jo 20.16). O “bom
“bom pastor” , mas eles necessitam de algo mais
pastor” (Jo 10.1-18) chama-a pelo nome (cf. “ele
— precisam reconhecer que ele é de fato o mes
chama pelo nome as suas próprias ovelhas”,
mo Jesus, ressuscitado dentre os mortos. Jesus
Jo 10.3 U ra]), e ela o reconhece (cf. “elas [as
não apenas atende a essa necessidade, mas lhes
ovelhas] o seguem [o bom pastor], pois conhe
promete paz messiânica. A saudação: “Paz seja
cem a sua voz” , Jo 10.4). Os resultados diferem
convosco!” (Jo 20.19,21,26), repetida três vezes,
notavelmente de João 20.10, em que os discípulos
controla a segunda unidade do capítulo e cumpre
simplesmente voham para casa num final anti-
a promessa de João 14.1,27 e 16.23. É mais que
apoteótico de sua ida ao túmulo. Aqui Jesus en
a saudação básica shalom: é o clímax do signi
carrega Maria de ser o primeiro arauto da boa
ficado da ressurreição e tem o sentido de trazer a paz de Deus ao crente. Quando os discípulos
notícia da ressurreição. Entretanto, as palavras de Jesus são de di
veem as mãos e o lado de Jesus (apontando, como
fícil compreensão. Ele diz; “ Não me segures” ,
em Lucas, para a realidade da ressurreição física),
que pode refletir uma situação semelhante à de
eles experimentam não só a paz, mas também ale
Mateus 28.9, quando as mulheres “abraçaram”
gria, ao ver o cumprimento da promessa de Jesus
os pés de Jesus. Mas João pode ter em mente
(Jo 16.20-22).
11 10
Ressurreição i : Evangelhos
0 comissionamento de João 20.21-23 apre
entendimento dos discípulos (Jo 11.16) e a confu
senta uma teologia especialmente rica. Depois do
são na mente deles (Jo 14.5). Aqui Tomé também
repetido “paz seja convosco” , em certo sentido
sintetiza as dúvidas dos Onze.
Jesus entrega aos discípulos o diploma de “en
Como nos outros episódios do capítulo 20, Je
viados” (cumprindo Jo 17.18). Um dos conceitos
sus concorda em atender ao pedido, e a resposta
proeminentes da cristologia joanina é o de Jesus
de Tomé revela grande surpresa, culminando na
como “enviado” do Pai. Com base na instituição
cristologia elevada do Evangelho de João com a
judaica do shãlsah, que era um mensageiro ou
confissão: “ [Hi és] Senhor meu e Deus meu!”
enviado autorizado a desempenhar funções em
Isso vai além da reahdade da ressurreição e pas
nome de outro (v.
Jesus, na condição
sa a ser uma interpretação de sua importância.
de enviado, é apresentado como o representante
A ressurreição demonstra a sohdez do destaque
vivo que revela o Pai ao mundo. No discurso de
joanino em seu Evangelho, a saber, que Jesus é
despedida, o Espírito/ParácUto é “enviado” pelo
um com o Pai e, portanto, divino (cf. Jo 1.1,14;
a pó st o lo ) ,
Pai (Jo 14.16,26) e pelo Filho (Jo 15.26; 16.7).
3.18; 8.58; 10.30,34-38; 12.45; 14.9; 17.11). A de
Entretanto, essa sequência de revelação não está
claração final de Jesus, em João 20.29, é ao mes
completa, pois agora, em certo sentido, a Divin
mo tempo uma admoestação (contra a exigência
dade toda está envolvida no “envio” dos discí
de provas empíricas) e um reconhecimento (de
pulos. 0 papel do Espírito se vê no “Pentecostes
que agora Tomé havia chegado a crer). Apesar
joanino” de João 20.22.
disso, assim como em João 10.16 e 17.20, a aten
Cumprindo João 7.39, 15.26 e 16.7, Jesus “ so
ção concentra-se na bem-aventurança dos futuros
prou” 0 Espírito nos discípulos, capacitando-os a
crentes, que irão crer sem ter o benefício de tais
dar testemunho ao mundo afetado pelo pecado
sinais. São eles os verdadeiros “bem-aventura-
(Jo 14.16,17; 15.26,27; 16.7-11). Em comparação
dos” (por Deus).
com Atos 2, esse é um enchimento especial dos
Em João 20.30,31, o tema da centralidade
discípulos, enquanto o fato do Pentecostes, que
da fé oferece uma conclusão não apenas para a
transcorre mais tarde, é uma capacitação públi
narrativa da ressurreição, mas para o Evangelho
ca que dá im'cio à missão da igreja (v.
B en o ît ) .
como um todo. Muitos têm debatido (em parte
A missão é primordial também em João 20.23,
com base na evidência textual de um verbo que
uma declaração que, à semelhança de sua cor
está ou no aoristo ou no presente) se aqui “crer”
respondente em Mateus 16.19, tem gerado muito
tem sentido basicamente evangehstico (desse
debate. 0 poder de deshgar/reter e ligar/perdoar
modo, o objetivo do evangelho seria dirigido
pecados é uma autoridade legal e classifica os
mais para os incrédulos) ou didático (caso em
discípulos como embaixadores dotados de ple
que estaria dirigido para os crentes). Mas como
nos poderes na nova era, determinando juízo ou
um todo claramente o propósito do quarto Evan
salvação, dependendo da aceitação ou rejeição á
gelho é tanto fortalecer os fiéis quanto chamar os
sua mensagem (cf. a autoridade de Jesus como
incrédulos à fé.
juiz, Jo 5.22,27; 8.15,16; 9.39). Em Mateus, essa
4.4.2
João 21. A maioria dos estudiosos afirma
declaração trata da disciplina na igreja, ao passo
que esse capítulo é um apêndice, escrito algum
que aqui gira em torno da tarefa evangelística.
tempo após o término do quarto Evangelho, tal
O último episódio (Jo 20.24-29) gira em torno
vez em razão de uma crise na igreja, à medida
do ceticismo de Tomé e apresenta esse ceticis
que as testemunhas oculares iam morrendo (cf.
mo em termos ainda mais fortes que em Lucas
Jo 21.18-23).
24.10,11. A declaração de Tomé de que não cre
pelo Evangelista ou por outra pessoa. A última
O
debate é se o capítulo foi escrito
ria, a menos que visse e tocasse as feridas nas
possibilidade é sugerida por João 21.24,25, que
mãos e no lado de Jesus é um prolongamento
parece ser o imprimatur de um oficial da igreja,
de João 20.20, quando Jesus mostra suas feridas
em que este confirma a validade do testemunho
aos discípulos, a fim de remover os temores que
do discípulo amado. No entanto, o hnguajar, o
experimentavam. No quarto Evangelho, Tomé é
estilo e as ênfases se assemelham ao restante
um realista teimoso, que exemplifica a falta de
do Evangelho (v.
11 11
O sbo rn e ) ,
e é possível dizer,
R essurreição i : Evãngelhos
embora de modo não definitivo, que o autor do
cristã. Esse tema é pressuposto na pesca maravi
capítulo 20 é 0 mesmo do capítulo 21. De forma
lhosa — 153 peixes grandes (Jo 21.6,11). Muitas
semelhante a João 20, o capítulo 21 divide-se em
soluções engenhosas foram propostas para a in
quatro episódios (Jo 21.1-14,15-17,18-19,20-23),
terpretação do significado dos 153 peixes, porém
sendo seguidos de uma conclusão (Jo 21.24,25).
hoje a maioria entende que seja uma referência
Muitos estudiosos identificam duas tradições distintas (uma aparição e o relato de uma refei
mais genérica aos resultados universalmente significatívos da missão. 0 aspecto final é a cena da refeição, que mui
ção) na história da pesca milagrosa (Jo 21.1-14). Outros (e.g.,
alegam uma tradição una.
tos entendem como uma celebração eucarística.
De um modo ou de outro, de novo o autor combi
Embora haja semelhanças com a alimentação dos
B ultm ann)
na tradição e redação para compor um todo teo
cinco mil (cf. Jo 21.13; 6.11), no texto não existe
lógico. A ideia básica é o poder do Ressuscitado,
uma clara indicação de que essa ceia tenha cono
posto à disposição da igreja. Embora não haja ne
tações eucarísticas (embora os peixes fossem em
nhuma menção explícita ã missão, o simbolismo
pregados em cultos eucarísticos no século ii, não
e também a ideia básica do capítulo têm levado
há prova de que fossem empregados no século i).
a maioria dos estudiosos a aplicar o texto à igre
0 que se pode dizer é que o destaque recai sobre
ja em missão, tanto em termos de evangehzação
um novo nível de comunhão (baseado num tema
(Jo 21.1-8) quanto de comunhão (Jo 21.9-13). Ge
de comunhão à mesa semelhante ao de Lucas)
ralmente, associa-se a aparição de Jesus às mar
entre Jesus e seus seguidores. Isso se vê na estra
gens do mar da Galileia ao milagre semelhante,
nha declaração de que “ nenhum dos discípulos
ocorrido por ocasião do chamado dos discípulos,
ousava perguntar-lhe: Quem és tu? Pois sabiam
em Lucas 5.1-11, o qual, segundo se acredita, é
que era o Senhor” (Jo 21.12). Num nível mais
um relato fora de lugar do mesmo milagre. No
superficial, pairava no ar ainda a antiga dúvida
entanto, conforme assinalado por Marshall, as
(nenhum dos discípulos “ousava perguntar”),
diferenças pesam mais que as semelhanças, e é
mas num nível mais profundo, surgia uma nova
preferível ver os relatos como episódios distintos.
certeza (eles “ sabiam”).
Mas os temas são semelhantes: Jesus pede obe
A recondução (ou reabilitação) de Pedro
diência radical e proporciona uma pesca impres
(Jo 21.15-17) é, com certeza, um dos relatos mais
sionante para demonstrar o novo chamado para
conhecidos da ressurreição. Muitos pastores já
“pescar” pessoas.
pregaram sobre esse texto, fazendo distinção en
0 primeiro elemento do relato (lembrando a
tre os dois níveis de amor [philos e agapê), porém
viagem a Emaús, de Lc 24) gira em torno de uma
se trata de um juízo errôneo. Na reahdade, a pas
cena de reconhecimento. Os discípulos, depois de
sagem emprega quatro conjuntos de sinônimos
pescar a noite toda sem apanhar peixe algum, en
(dois termos para “amar” e “ saber” , três termos
contram um homem a quem não reconhecem. É
para “alimentar” e “ ovelhas”). Além disso, pode
interessante (ao contrário do chamado dos discípu
se demonstrar que no quarto Evangelho tanto phi
los, em Lc 5, e do episódio da estrada para Emaús,
los quanto agapê são empregados para designar o
em Lc 24) que aqui os discípulos obedecem a Je
amor entre Pai e Filho, o amor entre Pai/Filho e
sus mesmo sem tê-lo reconhecido (Jo 21.6). Só
discípulos e 0 amor que caracteriza a comunida
depois da pesca surpreendente é que o discípulo
de. Ou seja, nos quatro casos os termos devem
amado percebe que se trata do Senhor ressuscita
ser entendidos como sinônimos, cujo propósito
do. Assim como em João 20.8, o discípulo amado
é mostrar a riqueza teológica dos termos e a am
representa o perfeito discípulo, cujo amor lhe pro
plitude do amor entre Jesus e seus seguidores. A
porciona uma percepção maior da verdade espiri
mensagem básica desse episódio está relacionada
tual. A ordem dos acontecimentos indica para o
com a responsabihdade pastoral: o amor por Je
leitor a importância do Senhor ressuscitado para o
sus só será completo quando o líder apascentar o
sucesso de todas as empreitadas cristãs.
rebanho de Jesus. Pode estar aí também a reabi
0 aspecto seguinte é o sucesso que, pelo po
litação de Pedro, porque a pergunta “Tu me amas
der do Senhor ressuscitado, é garantido à missão
mais do que estes?” talvez esteja lembrando a
11 12
R essurreição i : Evangelhos
Pedro de que este prometeu, caso necessário, dar
duro (“ Que te importa?”). Ou seja, Pedro não
a própria vida por Jesus (Jo 13.37), e a tríplice re
devia se preocupar com o chamado nem com o
petição estabelece paralelo com a tríplice negação
destino de outra pessoa. Sua responsabilidade
por parte de Pedro. As duas últimas seções dizem respeito ao
era com a própria senda de obediência. Contudo, visto de outra perspectiva, o privilégio de Pedro
martírio de Pedro (Jo 21.18,19) e ao destino do
é maior — “seguir” seu Senhor até o martírio.
discípulo amado (Jo 21.20-23). As duas seções
Muitos estudiosos interpretam que João 20.23 (à
estão ligadas pela ordem do discipulado “ Segue-
luz de Jo 20.24) indica que os versículos de 20 a
me” (Jo 21.19,22), e isso talvez seja de fato a
23 foram escritos à luz do fato de que o discípulo
ideia básica de João 21.18-23: se a vida de alguém
amado havia morrido e a profecia de que ele vive
é interrompida ainda cedo ou se ele tem uma vida
ria até a parusia não estava cumprida. Entretanto,
longa para ministrar ao Senhor, “que te importa?
isso vai além do que a passagem pretende dizer,
Segue-me tu!” (Jo 21.22).
a qual ressalta: “Se eu quiser que ele fique até
A maioria dos estudiosos aceita a hipótese
que eu venha...” (Jo 21.22,23). A mensagem seria
de Bultmann, segundo a qual a profecia do mar
igualmente significativa, caso o discípulo amado
tírio de Pedro é uma adaptação de um suposto
estivesse se aproximando da morte e a igreja esti
provérbio acerca da velhice: como os idosos, no
vesse preocupada com a profecia. De uma manei
fim de sua vida Pedro seria amarrado e levado
ra ou de outra, a ideia mais ampla continua sendo
aonde não desejava ir Essa profecia predizia o
a mesma: a chave para entender a ressurreição
“tipo de morte com que Pedro glorificaria a Deus”
para o discipulado é o desejo de seguir a Jesus,
(Jo 21.19). Tem havido muito debate sobre a ex
não importando qual venha a ser o desfino que
pressão “estenderás as mãos” : se é ou não uma
Deus determine para a pessoa.
referência ã crucificação (a tradição diz que Pe dro foi crucificado de cabeça para baixo). Os que
Ver ta m b ém C risto , gres ,
questionam essa teoria alegam que a sequência (primeiro estender as mãos, então ser cingido e
morte d e ; esc at o lo gia ; m il a
RELATOS DE MILAGRES.
djg :
B u r ia l o f Jesus; Heaven a n d H e l l ; L ife ; P r e
dictions o f Jesus’s P assion an d R e su rrec tio n .
finalmente ser conduzido) não se harmoniza com a crucificação. Entretanto, se entendermos que se
B ib l io g r a f ia . Alsup, J. E.
trata de uma descrição do ato de levar a trave
pearance stories o f the gospel tradition:
da cruz até o local de crucificação, a objeção de
of-tradition analysis. Stuttgart: C alw er,
saparece. Desse modo, cumpre-se não apenas a
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promessa de Pedro — seguir Jesus até a morte
Christ
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de que Pedro deveria se encarregar (Jo 21.15-17)
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em que ele segue até mesmo o martírio de Jesus
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por meio de crucificação. A indagação de Pedro acerca do destino do
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Resur
discípulo amado (Jo 21.20,21) era natural naque
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las circunstâncias. A observação de que o discí
1970.
pulo amado “ o acompanhava” (Jo 21.20) liga as
history.
duas seções e dá apoio ã tese de que a ideia prin
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cipal é o discipulado. A resposta de Jesus ã inda
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gação de Pedro é de um tom surpreendentemente
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Die Osterbotschaft der vier
a fé cristã. É mencionada explicitamente em de
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K a th o lis c h e s
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zessete livros do
nt
e implicitamente em quase
I believe in the resurrection
todos os dez restantes. Praticamente todas as car
G ran d R a p id s: E erd m a n s, 1975. • Lake,
tas do corpus paulino fazem referência à ressur
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reição — as exceções são ITessalonicenses, Tito
Jesus.
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e Filemom). Aliás, para Romanos 10.9 a confis
a J e w is h p e rs p e c tiv e .
são da ressurreição é o equivalente ã aceitação
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do senhorio de Jesus Cristo e uma condição ne
Resurrection and the message of Easter
London:
cessária ã salvação, e ICorintios 15.14 demonstra
Two disciples at
quão próxima, na mente de Paulo, ela está liga
T h e b a c k g ro u n d a n d m e s s a g e o f Jn 20.
da ao seu ministério querigmático. Em Romanos
■ M a r s h a l l , I.
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o f Jesus.
N ew
Y ork: P u tn a m ’ s, 1907.
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the tomb.
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v. 24,
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From death to
lo ahcerça de forma decisiva na ressurreição de
■ M arxsen,
Cristo a doutrina da justificação , ao passo que em
TynB,
H . T h e re s u rre c tio n o f Jesus in Lu k e. p. 55-98, 1974. ■ M a rtin -A c h a rd , R.
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P h ila
Fihpenses 3.11 ele equaciona o conhecer a Cris
org.
to com “o poder da sua ressurreição”. Não é de
M o u l e , C. F. D .,
The significance of the message of the resurrec
surpreender que o capítulo mais longo das cartas
tion for faith in Jesus Christ.
pauhnas (ICo 15) seja inteiramente dedicado a
London:
scm ,
1968.
•
________ . T h e p o s t-re s u rre c tio n a p p e a ra n c e s in the
1957/1958. ■
N ickelsburg ,
uma análise da ressurreição.
4, p. 58-61,
A ressurreição de Jesus Cristo é o tema cen
G. W. E. Resurrection,
tral da escatologia de Paulo, pois inaugura a era
hght of festival pilgrimages,
nts, v .
immoriality, and eternal life in intertestamental
vindoura e proporciona o fundamento para a es
Judaism. Cambridge: Harvard University Press,
perança futura.
1972.
G. The Easter Jesus.
cativas de J. I. H. McDonald, é “ o ponto de apoio
■ ______ . What are they
arquimediano que alavancou o mundo da reh
[h ts,
26.) •
O ’CoLLiNS,
L o n d o n : D a rto n , 1973.
saying about the resurrection? New York: Pauhst, 1978.
■ ______ . Jesus risen.
1987. ■
O s bo r n e ,
O
evento Cristo, nas palavras evo
gião judaica para uma nova ordem”
( M cD o n a l d ,
Paulist,
p. 28). A ressurreição de Cristo e a ressurreição
G. R. The resurrection narra
dos fiéis no último dia estão relacionadas, e a es
N e w Y ork:
tives: a redactional study. Grand Rapids: Baker,
perança desta baseia-se na certeza daquela.
Resurrection: New Testament
De início, são necessárias duas observações a
witness and contemporary reflection. New York:
respeito da ressurreição de Cristo conforme apre
Doubleday, 1984. •
sentada nas cartas pauhnas. Primeira: Paulo ja
1984. •
P er kins , P.
S m it h ,
R. H. Easter gospeb.
Minneapohs: Augsburg, 1983. •
K., org.
mais tenta provar a historicidade da ressurreição
Immortality and resurrection. New York: Macmil
às congregações a que ele dirige suas cartas (con
lan, 1965. ■ S utcliffe , E. The Old Testament and
trariando as ideias de B u l t m a n n sobre ICo 15.3-8).
St en d ah l,
the future life. London: Barnes, Oates & Wash-
0 apóstolo simplesmente afirma a ressurrei
born, 1964. •
ção como um fato (em que presumivelmente as
T rom p,
N. J. Primitive conceptions
11 14
Ressurreição n: Pa ulo
igrejas acreditavam) e procura identificar as im
desdobramento relativamente tardio nos escri
plicações disso para a vida e a fé dessas congre
tos do judaísmo. No
gações. Paulo não está preocupado com questões
sobre a ressurreição dentre os mortos aparecem
filosóficas. Não quer saber como a fé subjetiva
em Daniel 12.2 e (possivelmente) Isaías 26.19,
at,
as primeiras declarações
e a história objetiva se relacionam. Esse é um
embora haja antecedentes de ressurreições nos
assunto predominantemente pós-iluminista im
milagres de ressuscitação fehos por intermédio
pulsionado por preocupações positivistas, que
de Ehas e Eliseu (1 e 2Rs) e em cenas de um
não faz parte da perspectiva de Paulo. Tentativas
reavivamento nacional na hteratura profética do
modernas de defender a verificação histórica da
at
ressurreição de Jesus Cristo com base nos mate
ossos secos, em Ez 37.1-14). Uma ressurreição
riais paulinos estão apontadas na direção errada,
corpórea dentre os mortos também é anunciada
(notavelmente. Os 6.1,2 e a visão do vale dos
embora sejam em geral motivadas pelos melhores
em vários textos judaicos apócrifos e pseudepi
interesses apologéticos (G. E.
gráficos, inclusive IMacabeus, 4Esdras, lEnoque
L add
oferece uma
análise acessível dessa questão).
e ZApocalipse de Bamque. Na tradição clássica
Segundo: em parte alguma Paulo descreve
do platonismo, também há importantes textos de
a ressurreição em si nem procura apresentá-la
apoio, que tratam pelo menos da vida após morte
como fato histórico a ser posto lado a lado com
dessa tradição, geralmente como a imagem de um
outros acontecimentos da história. A ressurreição
despertar espiritual ou da transmigração da alma p. 37-69). 0 assunto tem sido bem
é, sim, histórica, contudo é também mais que his
(v.
tórica, ou, para empregar o termo de McDonald,
pesquisado e não precisa ser reapresentado aqui
é “ meta-histórica”
( M cD o n a l d ,
p. 138). Os relatos
P e r k in s ,
(para estudos detalhados de textos judaicos mais
que Paulo apresenta sobre as aparições do Cristo
antigos que tratam do assunto, v.
ressuscitado são vistos mais como ilustração do
e
N ickelsburg
G reenspoon) .
acontecimento e como garantia circunstancial de
Embora as cartas de Paulo sejam os escritos
sua historicidade. Desse modo, ele inicia sua mais
cristãos mais antígos a mencionar a ressurreição
longa análise do tema da ressurreição mediante a
de Cristo, tudo indica que a ideia fazia parte da
citação de uma fórmula tradicional que sintetiza
própria crença e expectatíva de Jesus. Os quatro
o querigma (ICo 15.3,4) e então passa a aUstar
Evangelhos registram referências a ela em pra-
as testemunhas dessas aparições ocorridas após a
tícamente todos os estratos (alguns talvez ne
ressurreição do Senhor Jesus (ICo 15.6-8). 0 apelo
guem que ela seja mencionada em
ã tradição pré-pauhna realça a centralidade da pro
no que diz respeito à centralidade da ressurreição
clamação da ressurreição desde o período mais an
como uma ideia teológica, que Paulo tenha toma
q) .
É possível,
tigo do movimento cristão (para uma análise dessa
do o conceito do próprio Jesus (v.
passagem, v.
mas não há dúvida de que ela estava presente na
K lo ppenbor g
e
M u r p h y - O ’C o n n o r ) .
Deve se ter em mente essas duas considera ções em todas as questões apologéticas que tra
W it h er in g to n ) ,
ala farisaica do judaísmo, da qual o apóstolo era membro.
tam da ressurreição como base da fé cristã. 1. As origens de uma doutrina da ressurreição
2. Paulo e a crença farisaica na
2. Paulo e a crença farisaica na ressurreição
ressurreição
3. Terminologia da ressurreição
A condição de Paulo como membro do partido
4. Figuras da ressurreição
judaico dos fariseus é afirmada tanto em suas
5. Crucificação e ressurreição com Cristo
cartas (Fp 3.5) quanto por Lucas (At 23.6; 26.5).
6. A ressurreição: algumas questões de inter
Em Atos, a discordância entre os saduceus e os
pretação
fariseus acerca da doutrina da ressurreição do corpo é um tema proeminente (At 4.2; 23.6-8;
1. As origens de uma doutrina da
24.21; cf. At 26.6; 28.20). É razoável pressupor
ressurreição
que Paulo aceitava a ideia tiadicional farisaica da
A maioria dos estudiosos concorda em que
ressurreição do corpo e interpretava seu encontro
a doutrina da ressurreição do corpo é um
com o Senhor Jesus Cristo à luz dessa crença.
11 15
R essurreição ii : Paulo
Como declara R. J. Sider, “como um bom fariseu
de Isaías 60.1. Ao que parece, Paulo não tem a
do século
intenção de manter nenhuma diferença substan
I,
Paulo não podia imaginar a ressur
reição dentre os mortos em termos puramente
cial entre os dois verbos, embora o uso de
imateriais”
possa ser mais tradicional e relacionado a uma
(S id er ,
aprofundada, v.
p. 438; para uma análise mais
D avies ,
e g e ir õ
fonte palestina subjacente (de fato, o verbo apa
p. 285-320).
rece com frequência em passagens que, na inter 3. Terminologia da ressurreição
pretação de muitos, contêm declarações credais,
Nas cartas paulinas, existem várias palavras e
como é 0 caso de ICo 15.4). Em Romanos 6.10 e 14.9 emprega-se o verbo
expressões que são empregadas para descrever a
(“viver”) para indicar a ressurreição de Jesus.
ideia de ressurreição ou de conceitos relaciona
zaõ
dos, 0 verbo anistêmi ( “ressuscitar”) é empregado
É usado semelhantemente em 2Coríntios 13.4 e
um total de cinco vezes para se referir à ressurrei
exphcitamente contrastado com o verbo
ção tanto de Cristo (ITs 4.14; cf. Rm 15.12) quan
( “crucificar”); o versículo também aphca o verbo
to do crente (ITs 4.16; Ef 5.14). O verbo egeirõ
zaõ
("levantar”) aparece 38 vezes para designar a
de Cristo. As formas verbais compostas s y z ê s o m e n
s ta u ro õ
aos cristãos que participarão da ressurreição
ressurreição (Rm 4.24,25; 6.4,9; 7.4; 8.11 [2x],34;
( “viveremos com [ele]”), em Romanos 6.8 e 2Ti-
10,9; 13,11; ICo 6,14; 15.4,12,13,14,15 [2x],16
móteo 2.11, e s y n d o x a s t h õ m e n (“para que também
[2x1,17,20,29,32,35,42,43 [2x],52; 2Co 1.9; 4.14
com [ele] sejamos glorificados”), em Romanos
[2x1; 5.15; G11.1; Ef 1.20; 5.14; Cl 2.12; ITs 1,10;
8.17, são empregadas com a mesma finalidade. 0
2Tm 2.8), e o verbo composto exegeirõ (“le
verbo
vantar”) aparece uma vez para se referir à res
tido baseado numa ideia de ressurreição e ocor
surreição dos crentes (ICo 6.14). Além disso, o
re seis vezes (Rm 4.17; 8,11; ICo 15,22,36,45;
substantivo anastasis (“ressurreição”) ocorre oito
2Co 3,6), em geral no contexto da ressurreição
vezes (Rm 1.4; 6.5; ICo 15.12,13,21,42; Fp 3.10;
derradeira dos santos e da manifestação da glória
2Tm 2.18), e o substantivo exanastasis (“ressur
de Deus, De modo semelhante, o verbo
reição”) é empregado uma vez (Fp 3.11). Esses
( “erguer junto”), em Colossenses 2,12 e 3,1 e
termos são empregados para se referir tanto à
Efésios 2,6, e
ressurreição do próprio Jesus Cristo quanto à res
[com]”), em Colossenses 2,13 e Efésios 2.5, pros
z õ o p o ie õ
(“dar vida a”) também tem o sen
s y n e z õ o p o iê s e n
s y n e g e ir õ
(“vivificou junto
surreição dos crentes, da qual a ressurreição do
seguem com o tema, expressando a união da igre
Senhor
ja na morte de Cristo. O verbo a n a g õ ( “trazer para
ê
garantia (N.
D ahl
elaborou um diagra .
cima”) ocorre uma vez, em Romanos 10.7, para
Alguns entendem que existe uma diferença de
se referir à ressurreição de Jesus Cristo dentre os
ma, em que detalha o emprego dos termos no
nt)
sentido entre os dois grupos de palavras [egeirõ e
mortos
anistêmi) e, com base nisso, procuram identificar
to subir dentre os mortos”).
[C h r is t o n e k n e k r õ n a n a g a g e in ,
O emprego de
um desenvolvimento no uso dos termos nos ma
a n a b a in õ
“fazer Cris
(“subir, ascender”),
teriais pauhnos. L. Coenen, por exemplo, acredita
em Efésios 4.8,10, e de
que um exame cuidadoso “ mostrará que egeirõ,
para cima”), em ITimóteo 3.16, podem também
especialmente na passagem em questão, é usado
refletir um tema subjacente de ressurreição, de
predominantemente para indicar o que aconteceu
monstrando quão intimamente estão associados
a n e lê m p h th ê
(“foi levado
no domingo de Páscoa, i.e., o despertamento do
0 vocabulário concernente à ascensão e o voca
Crucificado à vida, enquanto anistêmi e anastasis
bulário concernente à ressurreição. Isso se torna
se referem mais ao ato de chamar pessoas de vol
mais evidente nos materiais pré-paulinos, como
ta à vida durante o ministério terreno de Jesus e
aqueles que se veem em Romanos 1.4 e 8.34,
à ressurreição escatológica e universal”
(C oenen,
p. 276). Entretanto, tem-se a impressão de que
Fihpenses 2.9 e ITessalonicenses 1.10 (W.
B aird
analisa esse tópico com certa profundidade).
uma distinção absoluta parece bem arbitrária e difícil de defender — parece que em ICorintios
4. Figuras da ressurreição
15.12,13 e 15.42 os dois verbos são permutáveis,
É importante ressaltar a expressão “ressurreição
e Efésios 5.14 inclui ambos os verbos na citação
dentre os mortos"
1 116
[a n a s t a s e õ s
n e k rõ n ,
Rm 1.4;
Ressurreição h : Paulo
cf. Fp 3.11, que traz ek nekrõn, lit. “para fora dos
para descrever aquilo que aguarda a comunidade
mortos”), pois há o risco de se perder algo do
de fé por ocasião da parusia de Cristo. O versículo
dinamismo da expressão, caso entendamos que a
52 descreve essa transformação futura como ins
palavra “mortos” significa um estado ou o local
tantânea (en atomõ en riphê ophthalmou, “num
de habitação dos que partiram, quase como um
momento, num abrir e fechar de olhos”). Aqui a
substantivo abstrato. A expressão grega possui
ideia de transformação é, em sua ênfase, diferen
uma imagem muito mais dinâmica, evocando o
te daquela que existe em passagens de cartas an
quadro de “ficar de pé no meio dos cadáveres”
teriores, como ITessalonicenses 4.13-18, em que
e destacando a natureza somática do corpo da
uma metáfora espacial (“arrebatados com”) do
ressurreição. Mas é essencial observar que Paulo
mina a ação associada à parusia. J. Gillman des
não anuncia uma “ressurreição da carne” , como
creve a mudança indicada nessa diferença como
alguns escritores cristãos fizeram rtiais tarde, en
a transição do implícito para o explícito e sugere
tre eles inclusive o autor de 2Clemente e Justi-
que a imagem do “arrebatamento” de ITessaloni
no Mártir. Quando se trata de seu ensino sobre a
censes é plenamente compatível com o tema da
ressurreição. Paulo mantém uma distinção entre
transformação de ICorintios 15.
sarx
( “ c a r n e ”)
e sõma ( “corpo”).
É importante observar que em ICorintios
É importante mostrar que Paulo faz uso de
15.51-54a Paulo está tratando da questão da
várias ideias, no esforço de comunicar o signifi
transformação dos que estiverem vivos por
cado dessa ressurreição, a qual ele descreve como
ocasião da parusia. Aqui o apóstolo ensina a
um “mistério”
em ICorintios 15.1. A
transformação universal de todos os que estão
ampla variedade de imagens é por si reveladora,
em Cristo, vivos e mortos, mas sustenta que isso
[m y s te r io n ]
demonstrando as limitações da hnguagem quan
significa que nem todos serão ressuscitados. Só
do se tenta descrever o indescritível. A descrição
os que tiverem morrido precisam de ressurreição;
pauhna da ressurreição é totalmente aberta, ou
para os que estiverem vivos por ocasião da pa
seja, há uma flexibilidade na expressão, o que é
rusia a transformação é suficiente para obter a
ao mesmo tempo estimulante e frustrante para
imortahdade na era vindoura. Na interpretação
os intérpretes. É possível analisar as imagens de
de alguns comentaristas do
acordo com oito categorias.
J. Jeremias (que acompanha o raciocínio de A.
4.1
nt,
particularmente
A ressurreição como transformação. Em S c hlatter ) , as expressões contrastantes de ICo
vários pontos, Paulo emprega o conceito de trans
rintios 15.50b-c deixam implícita uma distinção
formação quando descreve a ressurreição que o
semelhante entre os crentes vivos por ocasião da
cristão aguarda no futuro. Em Fihpenses 3.10,
parusia e os que já tiverem morrido (v. detalhes
uma forma participial do verbo symmorphizõ (“as
adicionais em 4.3 abaixo). De qualquer forma, a
sumir a mesma forma”) ocorre justamente nesse
transformação futura está claramente em vista
contexto: "... para conhecer Cristo, e o poder da
em ICorintios 15.
sua ressurreição, e a participação nos seus sofri
Em contraste com isso, encontramos em 2Co-
mentos, identificando-me [symmorphizomenos]
ríntios 3.18 uma descrição da transformação
com ele na sua morte”. Na conclusão do capítulo,
escatológica como algo que está ocorrendo no
a imagem é desenvolvida e diretamente associada
tempo presente. Aqui a voz passiva do presente
à revelação do Senhor Jesus Cristo como Salvador
do verbo metamorphoumetha ( “estamos sendo
que virá dos céus (Fp 3.20). Em Filipenses 3.21,
transformados”) é usada no meio de uma lon
0 conceito de transformação aparece duas vezes:
ga passagem em que Paulo contrasta a glória de
Jesus Cristo “transformará [metaschêmatisei] o
Moisés com a glória de Cristo (2Co 3.12—4.6).
corpo da nossa humilhação, para ser semelhan
Um uso semelhante do verbo ocorre em Romanos
te [symmorphon] ao corpo da sua glória”. Uma
12.2, que mais uma vez destaca o processo atual
das expressões mais claras da ressurreição como
de transformação.
transformação ocorre em ICorintios 15.51,52,
A sugestão de que é possível imaginar dualis-
passagem em que o apóstolo emprega duas vezes
ticamente a transformação (presente e futura) de
0 verbo allagêsometha ( “seremos transformados”)
monstra a tensão inerente à escatologia pauhna
11 17
R essurreição ii ; Paulo
como um todo. Apesar disso, E. E. Ellis insiste em
a revelação de aphtharsia como resuhado da
que Paulo, na realidade, não nos apresenta um
destruição da morte por meio da ressurreição
dualismo verdadeiro, visto que a transformação
de Cristo. Aphtharsia está associada à vida eter
moral é um processo presente, ao passo que a
na em Romanos 2.7, e ICorintios 9.25 emprega
transformação mortal aguarda a dádiva do corpo
aphthartos figuradamente para se referir ao corpo
da ressurreição por ocasião da parusia. 0 que une
da ressurreição no contexto de uma ilustração ba
os dois aspectos da transformação é uma existên
seada no atletismo. Entre as exceções estão Efé
cia coletiva, o fato de que o crente está “em Cris
sios 6.24, em que se usa o termo aphtharsia para
to”. A ideia de ressurreição como expressão da
descrever o amor cristão pelo Senhor (“amor in
transformação espiritual presente do crente em
corruptível",
Cristo também pode ser vista em Romanos 6.1-11,
passagens em que aphthartos ê um atributo de
2Coríntios 4.10-12, 5.15 e 13.4, Gálatas 5.24,25
Deus.
n v i) .
Romanos 1.23 e ITimóteo 1.17,
J. Jeremias tem uma interpretação interes
e 6.14,15, Colossenses 2.12 e Efésios 2.5,6 (con p. 101-5). Mais uma
sante, embora bastante questionada, de 1Corín
vez se afirma a íntima ligação entre a unidade
tios 15.50, sugerindo que se faça uma distinção
dos crentes com Cristo em sua ressurreição e a
entre a metamorfose do crente vivo (ICo 15.50b)
conduta ética dos crentes.
e a do que morreu (ICo 15.50c) e que se estabe
forme defendido por
4.2
H ar r is ,
A ressurreição como incorrupção. No leça um contraste entre os temas paulinos de cor-
meio de seu longo estudo sobre o assunto, em
rupção/incorrupção e mortahdade/imortalidade.
ICorintios 15, Paulo emprega vários termos e
Na prática. Jeremias está dizendo que a frase
imagens contrastantes para descrever como a
“Carne e sangue não podem herdar o reino de
vida de ressurreição é diferente da existência na
Deus” refere-se àqueles que estiverem vivos por
era presente. Aí se incluem os pares em contraste:
ocasião da parusia. Ele entende que “nem o que é
perecível/imperecível (ICo 15.42); desonra/gló
perecível pode herdar o imperecível” diz respeito
ria (ICo 15.43); fraqueza/poder (ICo 15.43); cor
aos que morreram antes da parusia e, no presen
po natural/corpo espiritual (ICo 15.44); homem
te momento, são corpos em decomposição. Ele
feito do pó da terra/homem do céu (ICo 15.47-
prossegue, sugerindo que em ICorintios 15.50-53
49). Em ICorintios 15.50, Paulo reafirma o pri
existe uma distinção semelhante entre os vivos e
meiro desses pares contrastantes — perecível e
os mortos. No entanto, a distinção proposta por
imperecível — quando diz que “carne e sangue
Jeremias nos aprece um tanto forçada (ou pelo
não podem herdar o reino de Deus; nem o que é
menos limitada), e, discordando de Jeremias, a
perecível pode herdar o imperecível”. As palavras
maioria dos estudiosos não mantém rigidamente
gregas relevantes [phthora e aphtharsia] propor
essa distinção (H.
cionam uma imagem bem forte, e uma tradução
dos que discordam de Jeremias).
melhor
seria,
respectivamente,
dade” e “incorruptibilidade” (cf.
C onzelm ann
é um bom exemplo
“corruptibili
Uma parte essencial do raciocínio de Jere
0 termo
mias é o emprego de outro termo em ICorintios
ara).
todas elas
15.53,54: “ imortahdade” [athanasia). Esse termo
no corpus paulino (Rm 2.7; ICo 15.42,50,53,54;
geralmente é usado, como em ITimóteo 6.16,
Ef 6.24; 2Tm 1.10), ao passo que quatro dos sete
para descrever um atributo do próprio Deus
usos do cognato aphthartos ( “imperecível”) no
r is ,
aphtharsia aparece sete vezes no
n t,
(H ar
p. 273-5, oferece uma análise terminológica
NT também são encontrados nas cartas de Pau
minuciosa de aphtharsia e athanasia, traduzindo
lo (Rm 1.23; ICo 9.25; 15.52; ITm 1.17). Em
ambas as palavras por “imortahdade”). Alguns
todos esses textos, há uma íntima ligação entre
entendem que em 2Coríntios 5.2-4 o tema do re
aphtharsia/aphthartos e a ressurreição de Jesus
vestimento também deixa implícita essa distinção
Cristo, uma clara demonstração da importância
entre o crente que já morreu e o crente que esti
escatológica do termo.
ver vivo por ocasião da parusia. 4.3
Além das ocorrências na longa análise da
A ressurreição como imortalidade. Pau
ressurreição em ICorintios 15, a afirmativa en
lo, em ICorintios 15.53b,54, emprega outro ter
contrada em 2Timóteo 1.10 dirige a atenção para
mo interessante para descrever a ressurreição.
1 118
R essurreição ii : Pa ulo
Aqui ele a descreve como a natureza mortal [to
Estritamente falando, Paulo não apresenta
thnetori) que assume imortalidade [athanasia). A
descrições detalhadas da ascensão física de Cris
ressurreição é o meio pelo qual os cristãos adqui
to como se ela correspondesse à exaltação. No
rem imortalidade, e a morte, na imagem poética
NT,
extraída de Isaías 25.8, é “engolida pela vitória”.
e em termos indiretos (como em ITm 3.16). Já as
só encontramos relatos assim em Lucas/Atos
Nem sempre é fácil estabelecer a distinção entre
cartas de Paulo tendem a expressar a condição
athanasia e aphtharsia, mas é certa a associação
de Jesus Cristo após a ressurreição nos termos de
de ambas com a ressurreição do corpo. Harris ad
sua exaltação e glorificação. Mas Paulo deixa
voga de forma persuasiva a ideia de que, embora
implícito, sim, que por ocasião da parusia os
a imortalidade [athanasia ou aphtharsia] e a res
crentes experimentarão uma ascensão física aos
surreição estejam intimamente ligadas, a primeira
céus (ITs 4.16,17).
é consistentemente apresentada como um bem
4.5 A ressurreição como glorificação. A reve
futuro concedido por ocasião da parusia àqueles
lação derradeira da glória de Deus é um aspecto
que pertencem a Cristo. De todo modo, tanto a
bem atestado na escatologia judaica. Em várias
imortalidade quanto a ressurreição fazem parte do
passagens, Paulo também utiliza o linguajar de
pensamento de Paulo e são ideias relacionadas,
glorificação para descrever as implicações que
porém distintas (conforme assinalado por H a r r is ) .
a ressurreição tem para o crente em Cristo. Em
Ambas estão fundamentadas na crença paulina de
ITessalonicenses 2.12, ele faz uma associação
que a esperança escatológica do crente é somática
entre o reino de Deus e a glória, ao passo que
em sua natureza e futura em sua temporalidade.
em 2Tessalonicenses 2.14 o apóstolo estabelece
4.4
A ressurreição como exaltação. Em vá a hgação entre o chamado cristão e o alcançar a
rias passagens das cartas de Paulo, é estabelecida
glória de Jesus Cristo. Em Romanos 5.2, a espe
uma ligação próxima entre a ressurreição de Je
rança de partilhar da glória futura de Deus é mo
sus dentre os mortos e sua exaltação à destra de
tivo de regozijo para Paulo, e em 2Coríntios 4.17
Deus. Muitos consideram que algumas das pas
ele emprega a expressão poética “eterno peso
sagens que sobrepõem as duas imagens refletem
de glória”
tradições pré-paulinas, a saber. Romanos 1.3,4 e
ver 0 que aguarda os crentes fiéis. Em Romanos
Filipenses 2.9-11. No caso do hino em Fihpenses,
8.11-17 e 2Coríntios 4.10-18 são mencionados os
[a iõ n io n h a r o s d o x ê s ; a ra )
0 fato de que existe um movimento da morte de
“corpos mortais”
Cristo (Fp 2.8) para sua exaltação (Fp 2.9-11) é
mortal”
[t a th n ê ta
[th n ê tê s a r x ; a r a ] ,
para descre
ta s õ m a td ] e a “carne que serão glorificados
um tanto incomum e tem levado muitos a acre
como resultado da união entre Cristo e sua igre
ditar que a proclamação cristã original sobre a
ja. Em Romanos 8.30, Paulo emprega até mesmo
ressurreição foi na reahdade uma mensagem teo
uma série de verbos no tempo aoristo, inclusive
lógica de sua confirmação perante Deus, não uma
edoxasen (“glorificou”), para proclamar a certeza
mensagem histórica sobre sua ressurreição cor
da salvação baseada na união entre Cristo e os
pórea dentre os mortos. Entretanto, tal distinção
crentes. Essa descrição da glorificação associada
é improcedente (como destaca
. Em várias
com a ressurreição como algo que ocorreu no
outras passagens paulinas, a exaltação é apresen
passado prenuncia os termos de cartas posterio
tada como algo posterior à ressurreição (Rm 8.34;
res (Cl 1.27; 3.1,4).
H
a r r is )
Ef 1.20; 2.6; Cl 3.1). Embora seja verdade que não
4.6 A ressurreição como vida eterna. Em
se deve entender “ressurreição” e “exaltação”
Gálatas 6.8, Paulo usa uma ilustração de semear/
como sinônimos, existe uma ligação teológica en
colher para explicar que o Espírito concede vida
tre ambos os termos. A exaltação não é tanto uma
eterna ao crente. Essa imagem sem dúvida tem
interpretação teológica da ressurreição quanto a
sentido escatológico, e provavelmente a melhor
consequência inevitável dela, o resultado lógico a
interpretação é que representa a futura vida res-
que a ressurreição conduz. Harris declara: “A res
surreta. A expressão “vida eterna”
surreição [de Jesus] foi o pré-requisito e o meio
também ocorre em passagens que dizem respeito
de sua exaltação, e a exaltação foi o resultado de
aos resultados da fé em Jesus Cristo (Rm 5.21;
sua ressurreição”
6.22,23; ITm 1.16; 6.12; Tt 1.2; 3.7) e ao justo
(H
a r r is ,
p. 85-6).
11 1 9
[ z õ ê a iõ n io s )
R essurreição h: Paulo
juízo final (Rm 2.7). Embora algumas das figu
[apolytrõsis] no corpus pauhno (Rm 3.24; ICo
ras da ressurreição empregadas por Paulo con
1.30; Ef 1.7,14; 4.30; Cl 1.14) devem ser vistos
centrem a atenção na dimensão presente da vida
no contexto da ressurreição de Jesus Cristo e das
em Cristo, a concessão da vida eterna em toda a
implicações dessa ressurreição, tanto para a hu
sua plenitude é (como no caso da imortalidade)
manidade quanto para o cosmo.
algo futuro. 4.7 A ressurreição e a conformação à ima
5. Crucificação e ressurreição com Cristo
gem de Cristo. A expressão “imagem de Cristo” é
Paulo está tão seguro da unidade que existe entre
um recurso mediante o qual Paulo expressa uma
Cristo e sua igreja que considera os crentes (no
verdade cristológica, particularmente no âmbito
contexto da imagem do batismo) participantes
da analogia Adão-Cristo (v.
Afir
da morte e ressurreição de Cristo (Rm 6.3,4,8;
ma-se em várias passagens (Rm 8.29; 2Co 3.18;
G1 3.27; Cl 2.12). Encontramos uma declaração
A
dão
e
C
r is t o ) .
Cl 3.10) que o crente também se encontra no
semelhante em Colossenses 3.1, em que o verbo
processo de ser conformado à imagem de Deus
synegeirõ ( “erguer com”) é empregado numa pró-
(em Cristo). Em cada caso, ocorre uma sobrepo
tase concreta (oração condicional que pressupõe
sição de imagens envolvidas; a conformidade à
a veracidade da afirmação). Essa união com Cris
imagem de Cristo é o alvo escatológico do cris
to em sua morte e ressurreição também significa
tão, e, desse modo, é possível entender que essa
que é possível entender a existência cristã (a vida
conformidade esteja sobreposta à ressurreição.
de ressurreição) como andar “em novidade de
Uma evidência adicional disso é o fato de que em
vida” (Rm 6.4; cf. Rm 8.13; 2Co 5.15; G1 5.24).
ICorintios 15.49 a esperança de ressurreição do
De forma semelhante, em Fihpenses 3.10 Pau
cristão é equivalente a ter “a imagem do homem
lo associa o “conhecer Cristo, e o poder da sua
celestial”. A dimensão celestial do pensamento
ressurreição” com a participação em seus sofri
escatológico de Paulo é um elemento importan
mentos, ressaltando a importância da ressurrei
te em seu entendimento da redenção cósmica
ção de Cristo para um estilo de vida ético capaz
(como sugerido por
de suportar tribulações. Paulo acrescenta que o
L
in c o l n ) .
4.8 A ressurreição e a redenção do corpo. 0
objetivo de tal conduta é alcançar a ressurreição
ensino de Paulo sobre a ressurreição do corpo
(Fp 3.11). Em 2Coríntios 4.10, Paulo emprega ou
surge da antropologia judaica, segundo a qual a
tra imagem. Agora o crente é alguém que carrega
“alma” (hebr., nepesh; gr., psychê) é o princípio
no corpo a morte de Jesus de modo a manifestar
estimulador da vida humana. No pensamento
a ressurreição.
predominante do judaísmo, os seres humanos não têm alma: eles são alma. Essa sustentação
6. Ressurreição: algumas questões de
antropológica tem imphcações tremendas para a
interpretação
doutrina da ressurreição, pois se recusa a abrir
Historicamente falando, várias questões teologi
mão do componente somático do ser humano. A
camente importantes têm surgido com respeito ã
ressurreição envolve a redenção do corpo físico,
ressurreição. Essas questões envolvem, em par
embora, como já foi dito, a natureza somática da
ticular, a exegese de passagens-chave paulinas
existência ressurreta crie oportunidade para algu
ou a interpretação de temas específicos. Indícios
mas das ideias mais criativas de Paulo, expres
bastante antigos da importância de Paulo nesses
sas em ICorintios 15.35-49. Tendo em vista esses
assuntos interpretativos podem ser vistos no fato
antecedentes, é compreensível que, em Romanos
de que, com bastante frequência, os escritores
8.23, Paulo entenda os resultados da ressurreição
gnósticos basearam seus ensinos em materiais
como “a redenção do nosso corpo” [tên apolytrõ-
contidos nas cartas de Paulo. É certo dizer que
sin tou sõmatos hêmõn). Uma ideia semelhante é
o complexo ensino pauhno sobre o corpo da res
expressa em Filipenses 3.20,21, mas dessa vez o
surreição tornou-se um dos pilares para as cren
corpo da ressurreição da comunidade de fé está
ças dos cristãos gnósticos dos séculos ii e iii. Um
intimamente hgado ao do Cristo ressuscitado.
texto gnóstico clássico que trata desses assuntos,
Outros casos envolvendo a ideia de redenção
usando um vocabulário tipicamente pauhno, é a
1 120
Ressurreição ü : Paulo
Epístola a Regino, obra anônima também conhe cida como Tratado sobre a ressurreição
(v . P
ag els) .
Jesus (ICo 15.4; cf. Rm 6.4), em parte alguma faz menção ao túmulo vazio em conexão com a res
Três assuntos requerem anáhse:
surreição de Cristo. Entretanto, C. E. B. Cranfield
6.1 A ressurreição e o messiado de Jesus.
acha que isso está “quase certamente implícito”
Algumas passagens importantes do corpus pau
(C
hno associam o messiado de Jesus com sua res
Cristo estar entre o “morreu” e o “ressuscitou” em
r a n f ie l d ,
p. 168) pelo fato de o sepultamento de
surreição dentre os mortos CRm 1.3,4; ICo 15.4;
ICorintios 15.3,4. Talvez seja apenas algo circuns
2Tm 2.8; v.
Sugerir que, para Paulo, a res
tancial que Paulo nunca mencione o túmulo vazio,
surreição é o ato que inaugura o messiado de Jesus
embora R. H. Stein entenda que a omissão aqui é
talvez seja ir longe demais, contudo se pode dizer
resuhado dos interesses apologéticos do apóstolo:
C r is t o ) .
que seu messiado é confirmado e proclamado por
“Quando o assunto eram as aparições, o apóstolo
meio dela. Aliás, é possível ver que a ressurreição
podia debater em igualdade de condições. Ele tam
demonstra não apenas seu messiado, mas seu
bém havia visto o Senhor. Não podia, porém, dizer
senhorio cósmico Ccomo defende
0 mesmo sobre o túmulo vazio”
v.
B easley- M
urray;
(S t e in ,
p. 12).
De todo modo, o túmulo vazio jamais é apre
Senhor).
Apesar disso, é possível acreditar na ressur
sentado no NT como prova da ressurreição de Je
reição de Jesus dentre os mortos sem afirmar
sus dentre os mortos. Isso tem levado alguns a
que esse ato divino confirmou seu messiado.
fazer separação entre a ressurreição de Jesus e as
Isso talvez seja uma surpresa para muitos cris
provas do túmulo vazio com o objetivo de negar a
tãos, visto que às vezes ambos são vistos como
historicidade da própria ressurreição. Dessa ma
equivalentes. Um bom exemplo desse ponto de
neira, a ressurreição pode ser “espirituahzada”, e
vista é 0 estudioso judeu P. Lapide, que aceita a
sua base histórica é seriamente solapada, senão
historicidade da ressurreição corpórea de Jesus,
eliminada. Em anos recentes, na Grã-Bretanha,
mas nem por isso se identifica como cristão (que
essa linha de raciocínio está mais associada com
é, por definição, alguém que afirma que Jesus é
o ex-bispo de Durham, David Jenkins (v. detalhes
o Messias). Para Lapide, a ressurreição de Jesus
em
faz parte da obra preparatória de Deus, debcan-
a garantia da ressurreição não é o túmulo vazio,
H
a r r is ,
1985). De acordo com esse raciocínio,
do o mundo pronto para a revelação futura do
mas a presença do Senhor ressurreto na vida da
Messias. O ponto de vista de Lapide é um bom
comunidade de fé (v.
motivo para evitar a pressuposição superficial de
Os materiais pauhnos, em especial ICorintios 15,
que a ressurreição de Jesus é também sua auto-
estão no centro de boa parte dos debates atuais. É
proclamação como Messias. Ao mesmo tempo, o
improvável que Paulo tivesse aceitado a verdade
raciocínio de Lapide abre uma interessante janela
da ressurreição de Jesus dentre os mortos sem
para as peculiaridades da interpretação moderna
aceitar que um corolário disso fosse o túmulo
do
Numa era em que muitos estudiosos cris
vazio. Embora o faça de forma sucinta, Barrett
tãos competentes encontram motivo para negar
destaca como se deve apresentar precisa e equi-
NT.
H
a r r is ,
p. 37-44;
W
alker).
a historicidade da ressurreição corpórea de Jesus
hbradamente a fé na historicidade do túmulo va
e, ao mesmo tempo, mantêm a fé cristã, encon
zio: “A fé [...] seria destruída com a descoberta
tramos aqui um estudioso judeu que declara com
do corpo morto de Jesus, mas não pode ser criada
toda a firmeza a ressurreição corpórea de Cristo
simplesmente com a descoberta de um túmulo
e, ao mesmo tempo, procura afirmar que não tem
vazio”
nenhuma fé baseada nela. É uma lição notável
(B
arrett,
1968, p. 349).
Um número crescente de estudiosos afirma a
sobre o conteúdo messiânico da fé na ressurrei
historicidade do túmulo vazio e o conhecimen
ção conforme Paulo a proclama.
to de Paulo a respeito do assunto (v., e.g.,
6.2 A ressurreição e o tema do túmulo va
C r a ig ,
1985). Não se deve interpretar o fato de o túmulo
zio. Em suas narrativas da ressurreição, os quatro
vazio não ser apresentado por Paulo como prova
Evangelhos mencionam o túmulo vazio (Mt 28.6;
de que sua historicidade não seja confiável, mas
Mc 16.6; Lc 24.2; Jo 20.4-7). No entanto, Paulo,
apenas como prova de sua pouca importância
embora chegue a mencionar o sepultamento de
como assunto da proclamação cristã.
11 21
R essurreição ii : Paulo
A ressurreição geral. Em lugar algum Kerygma and myth i & ii. London:
6.3
H.
spc k,
1972. p.
Paulo menciona uma ressurreição geral para toda
1-44. ■ C a v a l l i n ,
C. C. Life after death: Paul’s
a humanidade, embora haja indícios espalhados
argument for the resurrection of the dead in 1 Cor
por suas cartas de que todos (crentes e não cren
15. Lund: Gleerup, 1974. [ConB, 7:1) ■
tes, os vivos e os mortos) um dia serão julgados
L. Resurrection,
m d ntt
.
C
oenen,
[S.l.: s.n., s.d.]. v. 3. p.
(Rm 2.6-11; 2Co 4.5; 5.10; 2Ts 1.6-10; 2Tm 4.1). É
259-309. ■ C r a i g , W. L. The bodily resurrection of
em ICorintios 15.22 que Paulo chega mais perto
Jesus. In:
de sugerir uma ressurreição geral (ou universal):
pel perspectives 1: studies of history and tradition
“Em Cristo todos serão vivificados” (en tõ Christõ
in the four gospels. Sheffield:
pantes zõopoiêthêsontai]. Essa declaração, porém,
■
France,
R. T. &
W
orgs. Gos
, D .,
enham
1980. p. 47-74.
jso t,
. The historicity of the empty tomb of
aparece no meio da analogia pauhna entre Adão
Jesus.
e Cristo e deve ser interpretada em função disso
B. The resurrection of Jesus Christ. ExpT, v. 101,
NTS,
v. 31, p. 39-67, 1985. ■ C r a n f i e l d ,
C.
E.
(i.e., “todos em Cristo” é que serão vivificados
p. 167-72, 1990. ■
ou ressuscitados]. Alguns, com base nas palavras
the soul or resurrection o f the dead? London: Ep-
O. Immortality of
atribuídas ao apóstolo em Atos 24.15, enxergam
worth, 1958. ■ D a h l , M. E. The resurrection o f the
C u llm a n n ,
uma crença paulina na ressurreição geral, porém
body. London:
muitos entendem que isso é metodologicamente
Rabbinic Judaism. 4. ed. Philadelphia: Fortress,
scm ,
1962. ■ D a v ie s , W.
Paul and
D.
suspeito. No entanto, não se pode rejeitar sem
1980. ■ D u n n , J.
maiores considerações a ideia de uma ressurrei
Adam, hfe-giving spirit. In:
ção universal. D. C. Allison defende que a totali
S .,
dade do cristianismo primitivo, inclusive Paulo,
studies in honour of C. F.
associava a ressurreição de Cristo dentre os mor
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D.
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■
ressurreição do Senhor dera início ã ressurreição
Westminster, 1985. ■
geral
V.1-10 in Pauline eschatology.
luson
opõe-se a interpretações que dão
S m a lle y ,
Moule. Cambridge:
D.
tos a uma ressurreição geral e entendia que a (A
B. &
L in d a r s ,
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E.
E.
nts,
ii
Corinthians
v.
6, p. 211-24,
demasiada ênfase ã escatologia realizada na cren
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c o r po ; estad o
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St Paul and duahsm:
Ressurreição hi: H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
nts,
documentos, o único uso de egeirõ para designar
M urphy-O ’Connor,
a ressurreição de Jesus está em IPedro 1.21. Anas
the Pauh n e con ception o f the resurrection,
13,
V.
J.
106-23, 1966/1967.
p.
■
1 Cor 15.3-7.
Tradition an d redaction in
43,
582-9, 1981.
v.
tasis refere-se à ressurreição de Jesus em IPedro 1.3 e 3.21, a uma futura ressurreição geral em He
rectian, immortality and eternal life in intertesta
breus 6.2 e 11.35, e ao que João chama “primei
mental Judaism. 1972.
Press,
gospels. 54.
N ew
■ Nickelsburg,
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E. Resar-
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Themelios,
v.
5,
Apocalipse 1.18 e 2.8 e a “primeira ressurreição” em Apocalipse 20.4,5. Zõopoieõ (“ vivificar”) de nota a ressurreição de Jesus em IPedro 3.18. Fi nalmente, anagõ indica a ação divina de “trazer [Jesus] de volta” dentre os mortos, em Hebreus 13.20.
H. p.
Resurrection, em pty
2. Hebreus: ressurreição e exaltação Para o autor de Hebreus, a “ressurreição dos mor
to m b a n d Easter faith.
ExpT,
172-5,
tos” faz parte da instrução cristã básica (Hb 6.2).
1990.
Jesus, Paul and the end
A ligação de ressurreição com “juízo eterno” su
» W
ttherington ,
of the world. Downers W
right ,
B.
v.
101,
ra ressurreição” em Apocalipse 20.5,6. 0 verbo zaõ (“viver”) descreve a ressurreição de Jesus em
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1992.
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M in n e ap o lis: Fortress,
2003.
gere que ele vislumbra uma futura ressurreição universal, dos justos para a vida eterna e dos ím pios para a condenação (cf. Dn 12.2; Jo 5.28,29;
L. J.
K
r e it z e r
At 24.15). Mais tarde, ele vê a restauração ã vida física {egeirein, Hb 11.19; anastasis, Hb 11.35)
R
e s s u r r e iç ã o i i i :
G
e r a is ,
A
H
ebreus,
C artas
como uma ilustração da ressurreição, no futuro, dos fiéis para a vida eterna.
pocaupse
A ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é
A ressurreição de Jesus é exphcitamente
mencionada explicitamente em três dos escritos
mencionada apenas uma vez, na oração de He
do
analisados aqui. É difícil imaginar que os
breus 13.20,21. Em outras passagens, a atenção
documentos restantes pudessem ter sido escritos
está voltada para a sua exaltação à destra de
sem a convicção de que Jesus havia ressuscita
Deus. 0 destaque pecuhar do autor à exaltação
do e estava ao alcance dos crentes em Cristo. No
de Jesus, em vez de à ressurreição, é uma con
século
a ressurreição de Jesus e dos crentes
sequência natural de ele se concentrar na obra
continuou sendo um tema importante na litera
de Cristo como sumo sacerdote, prefigurado no
tura cristã. Interpretações divergentes a respeito
ritual do Dia da Expiação. Assim como o sumo
NT
II,
caracterizaram a linha divisória que foi surgindo
sacerdote do
na igreja entre as vertentes ortodoxa e gnóstica.
o sangue da vítima do sacrifício, o Jesus cruci
1. Terminologia da ressurreição
at
entrava no Santo dos Santos com
ficado apareceu à direita de Deus no santuário
2. Hebreus: ressurreição e exaltação
celestial (Hb 9.11,12). Nesse arranjo, que destaca
3. IPedro: esperança de vindicação
a exaltação de Jesus até os céus, não existe um
4. Apocahpse: "Fui morto, mas agora estou aqui, vivo para todo o sempre”
lugar em separado para a sua ressurreição. Ela é pressuposta (cf. a ligação desses dois temas em
5. Outros escritos neotestamentários
Rm 8.34; Ef 1.20; Cl 3.1; IPe 3.22). A exaltação
6. Conclusões
de Cristo à destra de Deus pressupõe sua ressur reição dentre os mortos: ela foi o caminho para
1. Terminologia da ressurreição No
Teologicamente, a ressurreição-exaltação de
o sentido básico de “erguer” ou “levantar” e
Jesus está Ugada a outros temas-chave de He
nem sempre se referem
ressurreição dentre os
breus. Ela demonstrou que Deus aceitou seu
mortos (v., e.g., Hb 7.11,15; Tg 5.15). Nesses
sacrifício propiciatório (Hb 10.12; 13.20,21). Ela
,
os
verbos referentes
a exaltação.
ressurreição têm
nt
à
à
1 123
Ressurreição iii : H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
confirmou a filiação divina de Jesus (Hb 1.3-5,13; V. F e -ho
de
D eus) ,
seu sumo sacerdócio (Hb 5.5-10;
Rm 1.3,4; ITm 3.16; v. tb. a análise em p. 124-34;
D unn,
ic h a e l s ,
D
alto n,
p. 204-5).
Em IPedro 3.21,22, o pensamento do leitor é
8.1) e sua condição de último Adão (Hb 1.13— 2.9, combinando Sl 110.1 com Sl 8.4-6; v.
M
conduzido da ressurreição de Jesus para a sua exal tação ã direita de Deus (cf. IPe 1.21; Ef 1.20-22).
p. 108-13). 0 perfil único de Jesus em Hebreus como
Dessa maneira, qualquer que seja o significado
“precursor” {prodromos, Hb 6.20) deixa entrever
da pregação de Jesus aos espíritos em prisão, no
a ligação entre a ressurreição passada de Jesus e a
meio dessa passagem, o centro da atenção está
ressurreição futura dos crentes. Nesse ínterim, ele
vohado para o fato de Jesus ser vindicado por
“vive sempre para interceder por eles” (Hb 7.25).
Deus e ser Senhor sobre todas as coisas.
Saber que por meio da cruz ele chegou à direita
Para os leitores de Pedro, o fato de Deus vin
de Deus inspira-os a permanecer fiéis, confiantes
dicar Jesus lhes dá a sólida esperança de que ele também os vindicará. Por meio da ressurreição de
de que participarão do destino de Jesus. A questão do momento da ressurreição futura
Jesus, Deus concedeu aos crentes um novo nas
surge com a referência “aos espíritos dos justos
cimento, uma herança segura que se revelará no
aperfeiçoados” (Hb 12.23). A interpretação mais
tempo do fim (IPe 1.3,4), transmitido por meio
comum é que se trata de uma menção aos crentes
do batismo (IPe 3.21). Visto que em Cristo Deus
que já morreram (cf. lEn, 22.9) e aguardam, num
os chamou à glória eterna, eles podem permane
estado intermediário, um corpo ressurreto, por
cer firmes no sofrimento (IPe 5.10).
ocasião da segunda vinda de Cristo. Entretanto,
0 autor mantém a tensão tipicamente paulina
parece que Hebreus 12.22-24 está apresentando
entre a salvação já experimentada e a salvação
o encontro derradeiro com Deus na Jerusalém ce
ainda por ser recebida em sua plenitude (e.g.,
lestial, em vez de em um estado prehminar ou
IPe 1.3-9). 0 vínculo entre batismo e ressurrei
intermediário. Por esse motivo, os “espíritos” são
ção, em IPedro 3.21, ecoa as palavras de Roma
provavelmente os justos em seu estado final, em
nos 6.1-14. Mas, pelo fato de se dirigir a cristãos
seu “corpo espiritual” (ICo 15.44). Se for esse o
no contexto de perseguição, Pedro emprega em
caso, 0 texto não trata da questão da existência
sua carta o tema da ressurreição com mais desta
de um estado intermediário e desencarnado entre
que no futuro do que Paulo em Romanos. Embora
a morte e a parusia (v.
a ressurreição de Jesus signifique que os crentes
P
eterso n,
p. 163-7).
entram agora na nova vida, ela inspira a esperan 3. IPedro: esperança de vindicação
ça maior de que no futuro Deus os leve à glória
A ressurreição de Jesus é o alicerce da esperança
por meio do sofrimento.
para o autor de IPedro e seus leitores, cujas igre jas enfrentavam perseguição (IPe 1.3,21; 3.15).
4. Apocalipse: “Fui morto, mas agora estou
0 texto-chave é IPedro 3.18-22, que um grande
aqui, vivo para todo o sempre”
número de estudiosos acredita ser baseado em
A
tradições litúrgicas bem antigas, especialmente
dicação modelam a mensagem de João também
IPedro 3.19-21 (v.
em
M
ic h a e l s ,
p. 197-9).
ameaça de perseguição e a promessa de vin A
po cau pse.
A
morte de crentes por causa do
Cristo foi “morto na carne, mas vivificado
testemunho (martyrid) que dão de Cristo é algo
pelo Espírito” (IPe 3.18). De acordo com algumas
que já vem ocorrendo e irá ocorrer para outros
interpretações, o contraste entre a carne e o espí
(A p
2.10,13; 6.9-11; 12.11; 17.6; 20.4).
rito imphca um duahsmo na natureza humana de
Na introdução do livro, há uma visão do Cris
Cristo ou um contraste entre as naturezas divina
to ressuscitado, “ o primeiro e o último [...] [e]
e humana. Entretanto, esses termos não denotam
0 que vive” (Ap 1.18; cf. Ap 2.8). Uma vez que
duas partes de Cristo, e sim duas esferas de exis
“ o primeiro e o último” é um título de Deus em
tência. Sua vida terrena terminou com a morte,
Isaías 44.6 e 48.12 (cf. Ap 1.8; 21.6), a ressurrei
mas foi sucedida pela vida ressurreta que Paulo
ção aponta para a participação de Cristo no ser
denomina “corpo espiritual” (IC o 15.42-44; v. o
divino eterno e em seu domínio sobre a criação
contraste semelhante entre carne e espírito em
(B
1 124
auckh am
,
1993, Theology, p. 54-8).
Ressurreição iii : H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
Referências mais específicas à ressurreição in
intermediário, mas falar do adiamento escato
dicam a centralidade desse tema no pensamento
lógico, durante o qual a igreja deverá continuar
de João. Jesus é apresentado como “o primogê
a dar seu testemunho
nito dos mortos e o Príncipe dos reis da terra”
p. 55-6).
(B
auckham
,
1993, Climax,
(Ap 1.5). Essa expressão combina a ideia de que
A promessa de Apocahpse 6.9-11 tem seu
Cristo desbravou para outros o caminho da sal
cumprimento no milênio (Ap 20.4-6). As almas
vação (cf. Cl 1.18; “primícias” em ICo 15.20,
dos mártires “reviveram [ezêsan] e reinaram com
AR/i) com 0 hnguajar de Salmos 89.27, em que se
Cristo durante mil anos”. João comenta que os
descreve o Rei Davídico como “meu primogênito,
que participam dessa “primeira ressurreição”
0 mais elevado entre os reis da terra” (aim). Em
[anastasis] estão protegidos da “segunda morte”
virtude de sua ressurreição, Jesus já está estabe
(morte espiritual e eterna, cf. Ap 20.14). Em con
lecendo 0 governo de Deus sobre os poderes ter
traste, “ os outros mortos não reviveram, até que
renos (cf. Ap 5.3-5).
se completassem os mil anos” (a favor da ideia
O Senhor ressurreto começou a cumprir a es
de que em Ap 6.9-11 e 20.4-6 João trata exclusi
perança de estabelecer o governo de Deus sobre a
vamente dos mártires cristãos, v.
terra, de forma que no final Deus, por intermédio
p. 293-4; a favor da ideia de que os textos dei
de Jesus, tornará novas todas as coisas (Ap 21.5).
xam implícito um grupo mais amplo de crentes,
No novo céu e na nova terra. Deus viverá com seu
V. H
a r r is ,
p. 178-9, 228;
M
ealy,
B
easley-M u r r ay,
110-5).
povo ressuscitado (Ap 21,3,4). Em lugar algum
Após os mil anos, há uma cena de um jul
João fala de corpos ressurretos, mas o cenário
gamento universal, que reunirá todos os mortos
de Apocahpse 21—22 dificilmente se encaixaria
perante o trono de Deus (Ap 20.11-15). Essa deve
na noção de que o povo de Deus é constituído
ser a “ segunda ressurreição” , que está implícita
permanentemente de espíritos desencarnados (v.
na referência à “primeira ressurreição” (Ap 20.5).
1, p. 81-3, 176, 184-8, 210, 213-4; v. 2,
Mas pode ser significativo o fato de João se abs
p. 127-8 — 0 argumento de que em Apocalipse as
ter de chamar “ressurreição” a condição em que
C h arles,
v
.
túnicas brancas representam corpos ressurretos).
se encontram diante de Deus para ser julgados.
Ele não especula sobre a separação entre corpo
Talvez, como Paulo, ele tenha preferido reservar
e espírito ou alma nem sobre seu reajuntamen-
0 termo para a ressurreição daqueles que viverão
to: apenas menciona a morte e a ressurreição de
a vida eterna com Cristo.
pessoas
(B
auckham
,
1993, Clímax, p. 62-70). A
esperança de João, à semelhança da esperança
5. Outros escritos neotestamentários
judaica, da qual a joanina brotou, não é apenas
Nas cartas mais breves, o termo “ressurreição”
a esperança da ressurreição de seres humanos,
dificilmente ocorre, embora haja promessas oca
mas também a ressurreição do povo de Deus em
sionais de “vida eterna” (Jd 21), “novos céus e
comunhão mútua num mundo renovado.
nova terra” (2Pe 3.13), “entrada no reino eterno”
Duas passagens relacionadas exigem aten
(2Pe 1.11) e apresentação “ diante da sua glória”
ção especial. De acordo com Apocalipse 6.9-11,
(Jd 24). Em Tiago, Jesus Cristo é o “Senhor da
é dito dos que foram mortos por causa de seu
glória” (Tg 2.1), que promete “a coroa da vida”
testemunho fiel que serão vindicados de seus
aos que permanecem fiéis durante as provações
perseguidores quando se completar o número de
(T g l.l2 ).
mártires. Como se vê em alguns textos apocalíp
Embora IJoão (v.
Jo ã o , C ar tas
de)
mantenha
ticos judaicos, essa passagem se refere aos san
0 destaque do quarto Evangelho à vida eterna
tos falecidos que aguardam a ressurreição como
como um bem que o cristão possui no presente
“almas” {psychai; cf. lEn, 22.3; 2Ap Br, 21.23).
(IJo 3.15; 5.11,12), também existe uma importan
O texto fornece alguma base para o conceito de
te perspectiva futura; “ Sabemos que, quando ele
um estado intermediário, embora o fato de as “al
se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o
mas” vestirem túnicas mostre que não são entí-
veremos como ele é” (IJo 3.2). A interpretação
dades puramente espirituais. O objetivo de João
dessa passagem é difícil. Por exemplo, quem é
talvez não seja ensinar a doutrina de um estado
“ele” : Deus ou Cristo? Seremos “ semelhantes a
1 125
Retórica
J. Raised immortal: the relation be
ele” no caráter ou na aparência? Embora a maio
• H a r r is , M .
ria dos comentaristas interprete que João está se
tween resurrection and immortality in New Testa
referindo à transformação do caráter por ocasião
ment teaching. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. •
da parusia, é provável que esteja dizendo que
H ay,
os cristãos terão um corpo ressurreto como o de
early Christianity. Nashville: Abingdon, 1973. •
Cristo (cf. Fp 3.21; Cl 3.4).
M e a ly ,
D.
M.
Glory at the right hand: Psalm 110 in
J. W. After the thousand years: resurrec
tion and judgment in Revelation 20. Sheffield: 6. Conclusões
Academic, 1992. •
A maior parte da literatura aqui examinada expri
Word, 1988.
me, como Paulo, o significado principal, para a
Testament witness and contemporary reflection.
fé cristã, da ressurreição de Jesus e da expectati
New York: Doubleday, 1984. •
va de ressurreição por parte dos crentes. Mas, ao
brews and perfection. Cambridge: Cambridge
M ic h a e ls ,
contrário do que encontramos em 1 e 2Coríntios,
University Press, 1982.
não existe uma reflexão mais profunda sobre a
J.
natureza da ressurreição.
Apostles’ Creed),
M .
J.
( w b c . ) ■ P e r k in s , P .
1 Peter Waco:
R.
Resurrection: New P e te rs o n ,
{s n t s m s ,
47.) •
D. He
R o b in s o n ,
Jesus: from Easter to Valentinus (or to the jbl,
v.
101, p. 5-37, 1982. S. H.
À semelhança de Paulo, esses autores veem
T
r a v is
a ressurreição de Jesus como o protótipo da res surreição dos crentes. Eles se concentram na
r e s s u r r e iç ã o d e m o r to s , m ila g r e d a .
ressurreição como a vindicação divina dos que
ç ã o I.
Ver
r e s s u r r e i
sofrem por amor a Cristo. Eles não estabelecem uma distinção entre a ressurreição de Cristo e sua
r e s s u r r e iç ã o g e r a l .
Ver r e s s u r r e iç ã o
RESSuscrrAD os COM C
r is t o , s e r .
ii.
exaltação, apenas oferecem um material limita do sobre o momento da ressurreição dos crentes
Ver r e s s u r r e iç ã o
ii.
ou sobre a natureza de um estado intermediário. Embora se afirme imphcitamente a ideia de que
restauração de
Israel.
Ver
Isr a e l.
todos os mortos serão ressuscitados para encarar 0 juízo final, nenhum autor menciona exphcita
R e t ó r ic a
mente uma ressurreição para juízo. É evidente
Ao longo da história dos estudos bíblicos, espe
que, como Paulo, eles preferem reservar o termo
cialmente no período dos pais da
ig r e j a
“ressurreição” para o ato divino que ressuscitou
na crítica bíblica alemã do século
x v iii
Jesus e ressuscitará os crentes para a vida eterna
do XX e, mais recentemente, no final do século xx, o estudo da retórica tem sido visto como um im
em sua presença. Ver também dlntd
primitiva,
até o início
portante recurso para a interpretação do
c r is t o l o g i a ; e s c a t o l o g ia .
: A s c e n s io n ; C r e a t io n ; C o s m o lo g y ; E x a lt a
nt
.
Com
“retórica” geralmente se quer dizer a antiga teoria retórica, que surgiu como um campo específico
tio n , E n th ro n e m e n t; G lo r y ; H e a v e n , N e w H ea ven .
de estudo durante o Império Grego e o Império R. J. The climax o f pro
Romano denominada muitas vezes “retórica clás
phecy: studies on the Book o f Revelation. Edin
sica”. Os gregos em particular desenvolveram a
B
ib l io g r a f ia .
B auckham ,
burgh: T & T Clark, 1993. ■ ______ . The theology
technê logon (“arte das palavras/do discurso”),
o f the Book o f Revelation. Cambridge: Cambridge
que era a exploração da comunicação humana
University Press, 1993.
• B e a s le y - M u r r a y ,
por meio da linguagem. Esse interesse na comu
R. The Book o f Revelation. London; Marshall,
nicação é evidente na hteratura grega mais anti
G.
(n t t .)
A
ga, como na Ilíada de Homero e na dramaturgia
critical and exegetical commentary on the Revela
grega. Vários construtos sociais surgidos nas cida-
tion o f St. John. Edinburgh: T & T Clark, 1920. 2
des-estado da Grécia também contribuíram para
Morgan & Scott, 1974.
(n c b c .)
• C h a r le s ,
R.
H.
W. J. Christ’s proclamation to
a importância da comunicação oral, sendo os tri
the spirits: a study of 1 Peter 3:18—4:6. Rome:
bunais, as assembleias políticas e as cerimônias
Pontifical Biblical Institute, 1965. •
D.
públicas os contextos principais para o discurso
1980.
oral. Foi no século i v a.C. que esse discurso veio a
V.
G.
(/cc.) •
D a lto n ,
Dunn,
Christology in the making. London:
scm ,
J.
1 126
R etórica
ser rotulado de rhêtoriké (“retórica”), especifica
de adornar a fala)
mente definido comopeithõ ( “persuasão”; P l a t ã o ,
minimizou o estilo elaborado de Górgias e desen
Go, 4S3a2).
volveu o estilo que emprega o recurso gramatical
Este verbete examinará a retórica clássica a fim de avaliar sua importância para os estudos
( I sóc rates , C o s o ,
13.16,17). Ele
de não expressar o sujeito e/ou o verbo até o final da frase, criando suspense no ouvinte.
do NT como contexto histórico de comunicação.
A abordagem sofista da retórica, a saber, que
1. História e desenvolvimento da retórica clássica
a sabedoria eloquente persuade, continuou a ser uma escola proeminente ao longo da história da
2. A prática da retórica no século i d.C.
retórica. Na realidade, houve um período conhe
3. A retórica judaica
cido como “ segunda sofística”, que teve início
4. Aspectos que distinguem a retórica cristã
por volta do século ii d.C. Num ambiente de re
5. Relevância para a interpretação do
pressão ã liberdade de expressão por causa da
nt
hoje
política imperial, a retórica tomou o rumo dos ex 1. História e desenvolvimento da retórica
cessos de oratória, em que se destacavam o estilo
clássica
e a apresentação, em vez do conteúdo.
1.1 Os sofistas e a retórica grega prim itiva
1.2 Platão (427-347 a.C.). Sócrates deu início
(séc. V a.C). Na Atenas do século v, alguns mes
a um distanciamento do estilo sofista, rumando
tres que vieram a ser conhecidos como sofistas
para uma retórica mais filosófica (e moral). Seu
apresentaram-se como instrutores de sabedoria e
discípulo Platão aperfeiçoou o método socrático:
eloquência com o intuito de ajudar os atenien
usar perguntas e respostas num diálogo ou
ses de sexo masculino a prosperar na vida cívica.
dialética para avançar na direção da verdade de
Eles valorizavam a expressão do pensamento ou
uma ideia. Ele escreveu duas obras que deram
de ideias mediante técnicas de apresentação de
destaque ã retórica: Górgias e Fedro. A primeira
provas ou recursos de raciocínio, em que revela
concentra-se no orador e, por inferência, apresen
vam os dois lados de cada questão. Seu estilo de
ta uma perspectiva razoavelmente negativa da
ensino incluía principalmente a imitação da boa
retórica, sugerindo que é basicamente arte sem
hteratura ou de bons discursos e a memorização
conhecimento, uma forma de adulação que pro
de certos recursos formulares retóricos. Aristóte
duz prazer nos ouvintes e brinca com a ignorância
les criticava o estilo dos sofistas por não ter o ele
deles (v. esp. Go, 462—466). Em Fedro, há uma
mento artístico e não ser sistemático
(A
r is t ó t e l e s ,
So e/,183a-184b).
análise mais extensa e aprofundada da retórica como tal (v. esp. Ph, 260—264). Platão reconhece
Alguns personagens-chave são Protágoras,
o potencial da retórica para “conduzir a alma” ,
Antífonte, Górgias e Isócrates, sendo os dois úl
caso se aphquem os princípios corretos: conheci
timos os mais influentes. Para Górgias (485-380
mento, lógica, estrutura (unidade das partes).
a.C.), a eloquência e a virtude eram quahdades
1.3 Aristóteles (394^322 O.C.). É nos escritos
que andavam lado a lado. 0 estilo de Górgias
de Aristóteles, em particular na Retórica, que a
empregava recursos de paralehsmo e antítese
retórica como objeto de estudo recebe um trata
que se expressavam em estruturas elaboradas ou
mento sistemático. O mais importante é que, em
em figuras de hnguagem caracterizadas por seus
vez de opor a retórica ã dialética, como faz Platão
padrões sonoros inteligentes e poéticos. Fazer as
em Górgias, ele sugere que a retórica é um contra
ideias soarem bem era algo persuasivo. Entre os
ponto ã dialética. Com isso, a retórica passa a ser
discursos modelares de Górgias que chegaram
um campo da filosofia. Retórica não é uma obra
até nós estão O elogio de Helena e A apologia de
fácil de entender, pois está sem acabamento,
Palamedes. A principal contribuição de Isócrates
com um estilo elíptico, o que possivelmente
(436-338 a.C.) foi estabelecer a retórica como mé
indica ter sido originariamente um conjunto de
todo educativo (v. Antídosis). Ele também lançou
notas para preleções. As contradições internas
o alicerce de três dos principais elementos da re
também sugerem isso e talvez deixem implícita
tórica; invenção (o pensamento), disposição (ma
a influência do trabalho editorial no texto que
neiras de unir os pensamentos) e estilo (maneiras
chegou até nós. Apesar disso, continua sendo
1 127
Retórica
um tratado importantíssimo e basilar. O Livro 1
sabendo que Hermágoras desenvolveu uma teo
é essencialmente uma introdução. Primeiramen
ria de stasis, que procurava determinar o assunto
te, Aristóteles demonstra que a retórica é uma
em questão numa fala ou num discurso. Isso está
arte (de novo se opondo a Górgias) com empre
no âmago da invenção retórica. Hermágoras cria
gos simultâneos. Em seguida, ele apresenta uma
condições para uma transição fundamental da re
definição prática de retórica; “a capacidade de,
tórica grega para a romana. É durante o período
em cada caso, identificar os meios dispomveis de
romano (sécs. i-iv d.C.) que a teoria da retórica
persuasão”
se torna padronizada por meio da influência de
(A
r is t ó t e l e s ,
Re, L2.1355b25,26). Ele
organiza as provas em artísticas [éthos, páthos e
manuais e de retóricos influentes. 1.4.2
Iogas) e não artísticas (provas diretas). Ele divide
Rhetorica ad Herennium. No período
as provas lógicas em dois tipos: exemplos (em
romano, uma das obras mais importantes sobre
pregados em raciocínios indutivos) e entimemas
teoria retórica é Rhetorica ad Herennium (final
(silogismos dedutivos). Em seguida, propõe uma
do séc. I a.C.), escrita em latim. Dentre os textos
teoria de três categorias de assuntos. Finalmente,
que chegaram até nós, é o mais antigo dos que
identifica os três gêneros, ou espécies, de retóri
apresentam os cinco elementos da prática retó
ca: deliberativo (um julgamento sobre o futuro,
rica: invenção (identificação do assunto, tese ou
geralmente a respeito de uma ação), judicial
posição a ser adotados; os argumentos a ser usa
(um julgamento sobre o passado) e epidíctico
dos), disposição (organização dos componentes
(demonstração no tempo presente daquilo que é
num todo eficaz), estilo (configuração e aprimo
honorável). É seu conceito de gêneros retóricos
ramento dos componentes mediante a escolha de
que influencia quase toda a teoria futura sobre a
palavras, figuras de hnguagem e vários recursos),
retórica. 0 Livro 2 examina em profundidade as
memória (memorização da fala para causar im
pressuposições materiais, primeiro naquilo em
pacto e sugerir naturahdade) e apresentação (uso
que elas se relacionam com os três tipos de discur
da voz e de gestos).
sos, depois naquilo em que determinam o éthos
Um dos aspectos importantes da disposição
e o páthos, seguindo-se finalmente uma análise
era a teoria acerca da forma padrão para a re
mais genérica. 0 Livro 3 examina detalhadamente
tórica. Fundamentada principalmente no gênero
formas de argumentação, em particular os enti
judicial, a forma padrão consistia em seis partes
memas. 0 Livro 4 estuda a linguagem (ou estílo)
(Q
da apresentação de provas. O Livro 5 analisa a
partitio, probatio, refutatio, peroratio. Às vezes, o
disposição das provas. Embora exista muita coisa
partitio é visto como parte do narratio, e o refuta
u in t il ia n o
,
In or,
3 .9 .1 - 6 ):
exordium, narratio,
importante, boa parte da terminologia, das defini
tio, como parte do probatio. 0 exordium é como
ções e das categorias não é encontrada na teoria
uma introdução, que procura oferecer informa
retórica posterior, possivelmente pelo fato de que
ções básicas, fazer com que os ouvintes tenham
0 livro não circulou até a bibhoteca pessoal de
uma atitude favorável e dar a conhecer o éthos
Aristóteles ter sido redescoberta, no século i a.C.
do falante. O narratio é uma declaração do caso
1.4
Desenvolvimento da retórica técnica no em questão, esclarecendo o assunto específico ou
período romano (sécs. i a.C.-u d.C.). 1.4.1
stasis que será tratado. 0 pariitio, ou propositio,
Rhetorica ad Alexandrum. Embora haja estabelece a proposição. 0 probatio, ou confirma-
menções a manuais de retórica ao longo da fase
tio, organiza os argumentos a fim de confirmar,
que teve início já no século v a.C. e se estendeu
por meio de estratégias e tópicos convencionais,
até o final dos períodos clássico e helenístico,
a ideia que está sendo defendida. Por antecipação
0 único manual dessa fase que chegou até nós
ou por meio de uma resposta, o refutatio ataca a
é Rhetorica ad Alexandrum (final do séc. iv ou
prova do argumento do adversário. A conclusão,
início do séc. iii a.C.). Também é importante
ou peroratio, recapitula os principais argumentos
mencionar Hermágoras de Temnos, que aparen
e faz um apelo para que sejam aceitos. A crítíca
temente escreveu sobre teoria retórica no final do
retórica inclui, então, a tentativa de anahsar uma
século II a.C., mas cuja obra se perdeu. Com base
fala ou texto mediante a identificação de suas vá
no que informam Cícero e Quintihano, ficamos
rias partes
1 128
(M
ack,
p.
4 1 - 8 ).
Retórica
1.4.3 Cícero (106-44 a.C ). Cícero, que faz parte dessa mesma tradição, combina retórica
nome de gente, mas sinônimo de eloquência” (Q
u in t il ia n o
,
In or, 10.1.112).
sofistica e filosófica com refinamento técnico. Ele escreveu sete obras influentes sobre a retórica,
2. A prática da retórica no século i d.C.
das quais as principais são De inventione e De
2.1 A retórica e a sociedade helenística. É difícil
omtore. Cícero não apenas influenciou a teoria da
avahar quão disseminados eram o conhecimento
retórica, mas também defendeu e personificou os
e a prática da retórica no mundo greco-romano.
deveres de um orador público.
Nas classes mais altas da sociedade helenística,
1.4.4 Demétrio. Outra obra importante dessa
entre os cidadãos hvres e os ricos, a retórica de
época é De elocutione (“ Sobre o estilo”), atribuída
sempenhava um papel fundamental. Mas esse
a Demétrio, mas pseudonímica e de data incer
segmento da sociedade abrangia, no máximo,
ta, porém mais provavelmente do século i a.C.
10% da população, provavelmente menos. E a li
É basicamente um estudo sobre os quatro tipos
teratura desse período que trata do assunto e che
de estilo: elevado, simples, elegante e enérgico.
gou até nós procede, em geral, de centros urbanos
Algo notável — e de interesse para os estudos do
importantes do ponto de vista político e cultural,
NT — é que a seção sobre o estilo simples inclui
como Atenas, Roma, Alexandria ou Antioquia.
uma análise sobre a redação de cartas. Ele define
Conforme os três gêneros de retórica deixam im
carta como metade de um diálogo, mas que se
plícito, as principais áreas da vida social em que
distingue de uma conversa por ser de natureza
se usava a oratória retórica eram os tribunais, as
mais planejada
assembleias civis e as comemorações púbhcas
(D
e m é t r io ,
De el, 224).
1.4.5 Marcos Fábio Quintiliano (c. 40-90
importantes de natureza civil e rehgiosa. Para os
d.C.). Atribui-se a Quintiliano o mais longo texto
que faziam parte dessa esfera da vida social, a
em latim sobre retórica, Institutio oratoria, ou A
impressão que se tinha era que a retórica estava
educação oratória. Ele foi professor de retórica
por toda parte
e em Roma ocupava a cátedra de retórica com
Sá, 15.110-112). A vida nas províncias e nas regi
o patrocínio oficial do governo. Depois de se
ões rurais do império provavelmente não viam o
aposentar, publicou suas preleções na forma de
destaque dado à retórica da mesma maneira que
( D i ã o C r is ó s t o m o ,
Di, 27.6;
J u v e n a l,
tratado, o qual se estendeu por doze livros. Sua
os habitantes dos centros principais, mas há um
obra é importante porque representa o apogeu
volume razoável de dados arqueológicos de cida
da retórica técnica em sua tradição padrão, até
des helenísticas que mostram a existência de an
mesmo canônica, não revelando quase nenhuma
fiteatros, ginásios e mercados, onde os discursos
inovação original, senão percepções bem fun
elaborados eram importantes.
damentadas e úteis acerca da teoria retórica em
Deve se indagar, contudo, quantos dentre os
geral. Sua obra também oferece uma perspectiva
90% conheciam e entendiam a teoria e a prática
histórica útil, pois em muitos pontos é apoiada
retóricas. Embora a capacidade de 1er e escrever
por informações históricas em torno do assunto.
tenha sido mais disseminada no passado do que
É interessante que ele revela a influência dire
se acreditava, essa capacidade era muitas vezes
ta que sofre tanto de Cícero quanto da retórica
hmitada a uma função, como escrever cartas ou
grega clássica. Nos Livros 1 e 2, ele situa o es
fazer registros contábeis. Sem dúvida, a comuni
tudo da retórica num contexto educacional com
cação eficaz era importante para todos, e a imi
pleto, que vai desde o nascimento até a escola
tação de habihdades comunicativas e de formas
primária, e esboça o treinamento e a educação
de discurso, como aquelas que possivelmente se
necessários para um bom retórico. Dos Livros 3
ouviam nos mercados, deve ter ocorrido mesmo
ao 11, ele percorre os cinco elementos básicos da
sem conhecimento e treinamento técnicos.
teoria e prática retóricas. No Livro 12, descreve
2.2
A retórica como parte do cnrrícnlo es
o orador perfeito. Ele próprio oferece uma defi
colar. Um fator importante que contribuiu para
nição bem sofista da retórica: “ o conhecimento
a importância que a retórica desempenhava nas
de como falar bem”
In or, 2.15.34).
classes sociais mais elevadas era o lugar que
Para ele, Cícero é o orador ideal: “ Cícero não é
ocupava como disciphna básica do programa
(Q
u in t il ia n o
,
1 129
Retórica
educacional. É difícil determinar a partir de que
pesquisa futura. 0 discurso judaico possuía gêne
idade as crianças eram introduzidas nos aspec
ros hterários e formas de argumentação próprios.
tos da teoria retórica formal. Parece que entre os
A área em que pode ter havido algum intercâm
doze e os catorze anos de idade a educação he
bio e influência cultural e também influência por
lenística introduziu vários exercícios de composi
intermédio da retórica é a da prática midráshica
ção conhecidos como “ primeiros exercícios” ou
da halaká (v.
“exercícios preliminares” , mais tarde conhecidos
lakd consistia na aplicação de uma declaração en
como progymnasmata. Em sua essência, o aluno
contrada na Bíblia ou na tradição oral [midrash]
tradições e escritos rabínicos )
. A ha-
começava copiando e mais tarde imitando vários
a algum aspecto da vida diária. O processo en
tipos de literatura, a fim de aprender várias téc
volvia 0 discurso oral, quando os rabinos e os
nicas de redação e vários conceitos literários ou
alunos se envolviam em preleções, contestações
retóricos, como fábula, conto, relato jocoso, pro
e debates.
vérbio, refutação/confirmação, e assim por dian
3.2 Análise retórica do discurso oral judaico.
te. Na medida em que adquiria o domínio de cada
Examinando a prática por meio da terminologia
etapa, aumentavam o tamanho e a complexidade
retórica, como “argumento” , “prova” , “estilo” ,
dos exercícios (v.
T
eón
[séc.
i
d.C.];
H
erm ógenes
“apresentação” e “memorização” , percebem-se
v
várias coisas. Em geral, a argumentação incluía
d.C.]). Esses exercícios eram a base para outros,
a citação de autoridades respeitadas, escritos
mais avançados, de declamação, para praticar a
aprovados e apresentação de fatos extraídos da
criação e apresentação de discursos completos
vida. 0 treinamento na apresentação de provas
sobre tópicos designados, que podiam ser polí
era basicamente a citação de uma sucessão de
ticos (suasoriaé] ou judiciais [controversiae]. Em
fontes aceitas. O melhor estilo era a apresentação
sua maior parte, esses exercícios integravam a
clara e lógica das fontes citadas, além da capaci
etapa seguinte da educação, entre os dezesseis e
dade de arrazoar e extrair conclusões com base
os dezoito anos de idade.
declamação também
nessas fontes. Há um uso limitado de figuras de
se tornou uma forma de entretenimento para o
hnguagem e tropos, mas geralmente se condena
povo no Império Romano.
o emprego de tais recursos retóricos. A apresen
DE T
arso
[séc.
ii
d.C.];
A
f t ô n io d e
A
A
n t io q u ia
[séc.
É claro que o domínio da comunicação oral era
tação ocorria em voz aha e clara, com pronúncia
muito importante para o programa educacional,
precisa. Embora quase sempre o orador fizesse
mas esse programa, especialmente depois dos
algum planejamento do assunto a ser abordado,
doze anos de idade, era basicamente para os ricos
parece que tal discurso era geralmente improvisa
ou para a elite. Quando certos escritores latinos
do, e a interrupção por perguntas e argumentos
do século I d.C. analisam a popularidade da retó
impunha mudanças de rumo não planejadas. Por
rica (como
Ep, 3.18.7), estão se referindo
causa das interrupções imprevisíveis, a memória
aos interesses dos ricos — pessoas que tinham
não desempenhava um papel importante, exceto
tempo para lazer e dinheiro para poderem peram
no caso de material bíbhco e mishnaico memori
bular pelas praças ou estar presentes nos tribu
zado. Reconstruir a prática desse tipo de discurso
nais ou assembleias para ouvir os discursos. De
é uma tarefa difícil, porque as fontes, geralmente
forma que, embora a retórica fosse disseminada
ligadas aos textos talmúdicos, são de data poste
P
l ín io
,
na sociedade greco-romana, é improvável que a
rior ao período do
teoria e as habihdades retóricas formais estives
correto incluir essa forma de discurso nas cate
sem difundidas entre a população em geral.
gorias da retórica clássica, mas isso elucidaria o
3. A retórica judaica
comparação com a retórica greco-romana.
nt.
Também é duvidoso se é
que é pecuhar na argumentação oral judaica, em 3.1 Argumentação judaica. Não existe nenhum indício concreto de que a teoria ou a prática da
4. Aspectos que distinguem a retórica
retórica clássica greco-romana tenha influenciado
cristã
o discurso hterário ou oral judaico, embora
4.1 O apelo à autoridade. Os gêneros de discur
continue
so no
sendo
uma
área
importante
para
130
nt
— evangelho, várias formas de cartas,
Retórica
apocalipse — não são formas reconhecidas de
quanto ao uso de lagos, éthos e páthos e, mais
;:scurso retórico, de acordo com os antigos ma
particularmente, como apelo a tópicos especiais
rejais greco-romanos. Entretanto, está claro que textos do
NT
foram escritos para persuadir. A
(E
r ik s s o n ,
p. 273-6). T. Olbricht refere-se à natu
reza distintiva da retórica cristã como retórica
-uestão é o meio empregado para persuasão e o
“eclesiástica”
raráter pecuhar que o distingue, se é que existe.
pressão, dificilmente Olbricht estaria desconside
Em geral, o único aspecto distinto da retórica cris-
rando a retórica aristotélica; antes, está afirmando
íã, apontado por muitos comentaristas, é que ela
que a teoria retórica greco-romana é insuficiente
recorre a uma autoridade. Essa autoridade tem
para entender plenamente a natureza da retóri
sido definida de diferentes maneiras:
Jesus,
ca cristã. Mas Olbricht, como Mack, Eriksson e
Escrituras hebraicas, tradição cris
mesmo Kennedy, observa que a retórica cristã se
E s p í r it o S a n t o ,
D
eus,
(O
l b r ic h t ,
p. 226-7). Com essa ex
tã. Em termos de retórica, uma pergunta-chave
distingue das demais pelo fato de operar no âm
adicional é se existe uma estratégia retórica di
bito de uma cosmovisão particular: “ Deus (por
ferente nos diferentes gêneros dos escritos do
meio do Filho e do Espírito) alcança objetivos di
(K
ennedy,
1984; M
nt
vinos entre os seres humanos”
ack).
(O
l b r ic h t ,
p. 226).
4.2 Retórica cristã radical. O classicista G. A.
Olbricht contenta-se em utilizar a teoria retórica
Kennedy propõe uma definição de retórica cris
aristotéhca para analisar a retórica cristã, mas re
tã, em contraste com a retórica clássica: “Dessa
conhece que ela talvez não seja suficiente para
forma, a pregação cristã não é persuasão, mas
identificar toda a gama de estratégias persuasivas
proclamação, e baseia-se na autoridade e na
existente nos escritos do
graça, não em provas”
1980, p. 127).
dos esses estudiosos concordam é que existe uma
Num hvro posterior, Kennedy refina essa distin
forma distintiva de argumentação, mas a questão
(K e n n e d y ,
nt
.
0 aspecto em que to
ção genérica que faz entre retórica cristã e re
é o grau de correspondência com a convenção re
tórica clássica, apresentando a ideia de que nos
tórica greco-romana. A questão acerca da nature
textos das Escrituras existe uma retórica cristã,
za distintiva da retórica cristã nos escritos do
que emprega persuasão da retórica clássica, e
um tema que continua aberto.
existe uma retórica cristã radical
(K e n n e d y ,
nt
é
1984,
p. 6-8). Ainda empregando a ideia de retórica
5. Relevância para a interpretação do
cristã como proclamação, Kennedy observa que
hoje
mt
algumas partes da Bíblia “apresentam um moti
5.1 Diferentes abordagens retórico-críticas ao
vo pelo qual se deve receber a proclamação e,
NT. 0 estudo do
desse modo, faz um apelo, pelo menos em parte,
dos diferentes textos do
à razão humana”
retórica” . Avahar a retórica do
(K e n n e d y ,
1984, p. 7). A retóri
nt
que procura analisar a retórica nt
é denominado “ crítica nt
depende da
ca cristã radical é diferente por não apelar para
perspectiva que se adote quanto à influência que
um argumento racional: “Quando uma doutrina
a prática retórica greco-romana exerce sobre os
é apenas proclamada e não se expressa em en
escritos do
timemas, chamo essa técnica de ‘retórica cristã
0 debate fundamental é se os próprios autores
radical’ ”
planejaram utihzar a retórica greco-romana, ou se
(K e n n e d y ,
1984, p. 7).
nt
e quanto à natureza da retórica.
4.3 Argumentação distintiva. Usando uma
eles se espelharam, ainda que de forma não tão
abordagem diferente, B. Mack e A. Eriksson ob
manifesta, no contexto da comunicação do perío
servam que a retórica cristã apela oficialmente
do helenístico, que até certo grau é retórica no
ao querigma cristão ou às tradições cristãs como
sentido clássico, ou se o emprego das categorias
convicção fundamental
da retórica greco-romana não se prestam à anáh
(M a c k ,
p. 96-8;
E r ik s s o n ,
p. 273-6). 0 ponto de divergência entre Mack e
se dos escritos do
Eriksson é que, para Mack, esse apelo ocorre fora
a questão da natureza retórica do
das convenções culturais da retórica greco-roma
categorias retóricas clássicas para anahsar a
na, ou seja, fora das normas da razão
nt
.
Outra maneira de abordar nt
é empregar
p.
forma persuasiva e argumentativa dos textos, seja
96-7). Para Eriksson, esse apelo ocorre de acor
porque era a intenção dos autores, seja porque
do com essas convenções culturais, pelo menos
era a prática universal de comunicação na época.
(M a c k ,
1131
Riquezas e pobreza i : Evangelhos
seja porque tais categorias oferecem um meio uni
an introduction to a rhetoric of power. Sheffield:
versal ou heurístico de anáhse de qualquer argu
Academic,
mentação em qualquer época
R. D .
p. 135-51).
(S t a m p s ,
1999. [jS N T s a p , 174.)
■ A n d erson
Uma perspectiva retórico-crítica interessante, que
Leuven: Peeters,
1998. [ c b e t , 18.) ■ E r ik s s o n ,
vem ganhando adeptos, é a crítica sociorretórica,
Special topics in
1
que busca interpretar e avahar a retórica do
S. E. &
nt
S ta m p s,
Corinthians
8— 10.
tation o f Scripture: essays from the
tural e como texto numa cultura de convenção e
Conference. Sheffield: Academic,
(R
Há quem
o b b in s ) .
In;
A.
P o rte r,
L., orgs. The rhetorical interpre
D.
como meio de criar um novo construto sociocul ideologia sociais e literárias
Jr.,
Andent rhetorical theory and Paul. Ed. rev.
{jsNTSup, 180.) ■ K e n n e d y , G.
Malibu
1996
1999.
p.
272-301.
A. Classical rhetoric
adote uma perspectiva retórica moderna para ana
and its Christian and Secular tradition from an
hsar a argumentação, abandonando as categorias
cient to modem times. Chapel Hill: University of North Carohna Press,
retóricas clássicas. 5.2
A retórica e o gênero dos escritos do
Parte do debate em torno da retórica do
nt
centra-se no gênero dos escritos do
(P o r t e r ,
nt
con
p. 507-632). Conforme assinalado acima, parece
n t.
new his
1980. ■ ________. A
tory of classical rhetoric. Princeton; Prince—ton U n iv e rs ity Press, 1994. ■ ________ .
New Testament
interpretation through rhetorical criticism.
C h a p el
H ill; U n iv e rs ity o f N o r th C aroh n a Press, 1984. (ss.)
que a redação de cartas estava excluída da teo
■ LnriN , D .
ria e prática retóricas greco-romanas. Os Evange
C o rin th ian s 1— 4 an d G rec o -R o m a n rh etoric. C a m
lhos, seja como gênero único, seja como gênero
b rid g e : C a m b rid g e U n iv e rs ity Press, 1994. [sntsms,
greco-romano adaptado como o [g ê n e r o ]),
também ficam
à
(v.
b io s
e v a n g e lh o
parte da teoria retó
rica clássica, em razão do uso fundamental de
St. Paul’s theology o f proclamation:
7 9 .) ■ M ack, B. L . M in n e a p o h s :
1
Rhetoric and the New Testament.
A u g sb u rg Fortress,
1990.
( g b s .)
•
A synoptic history of classical
Murphy, J. J., org .
discurso narrativo. De modo semelhante, o livro
rhetoric.
de Apocalipse, como texto apocalíptico ou carta
A n A ris to te h a n rh eto rica l a n alysis o f 1 T h e s s a lo
profética reveladora (v.
n ians. In; B alch, D .; Ferguson, E .; Meeks, W ., orgs.
não é uma
a p o c a lip tis m o ),
D a vis: H erm a go ra s, 1983. • O lb ric h t, T. S.
forma comum de discurso retórico greco-romano.
Greeks, Romans and Christians:
A se confirmarem essas objeções acerca do gêne
o f A . J. M a lh e rb e. M in n e a p o h s : Fortress, 1990. p.
ro, é questionável o uso das convenções retóricas
216-37. ■ Perelm an, C. & O lbrech ts-T yteca, L.
clássicas na anáhse dos textos do
new rhetoric:
n t
.
Não existe uma maneira de solucionar o deba
essays in h o n o r
D a m e : U n iv e rs ity o f N o tre D a m e Press, 1969. •
Handbook of classical rhetoric in
te sobre até que ponto a teoria e prática retóricas
P o rte r , S. E., org .
greco-romanas influenciaram os escritos do
the Hellenistic period 330 b .c.-a .d . 400.
No momento, a crítica retórica do
nt
.
nt
é reahzada a
The
a treatise o n a rg u m en ta tion . N o tre
J. B rill, 1997. ■ Robbins, V. K.
partir de várias perspectivas. A retórica faz parte
Christian discourse:
L e id e n ; E.
The tapestry of early
rh etoric, s o c ie ty an d id e o lo g y .
do contexto hterário e de comunicação do mundo
L o n d o n / N e w York: R o u tled ge , 1996. ■ Stamps, D.
helenístico, que exerceu alguma influência, em
L . R h e to ric a l c ritic is m o f th e N e w Testam en t: a n
maior ou menor grau, sobre a redação do
cie n t a n d m o d e m ev a lu a tio n s o f a rg u m en tation .
Ver também
c a rtas; evang elh o
n t
.
In: P o r t e r , S. E.
( gênero) .
d n t b : A r i s t o t l e , A r is t o t e lia n is m ; B io g r a p h y ,
A n
Testament study.
&
Tom bs,
D.
Approaches to New
S h e ffield : A c a d e m ic ,
c i e n t ; C i c e r o ; D i a t r i b e ; E d u c a t io n ; J e w is h a n d G r e -
129-69. [jsNTSup, 120.) ■ Vickers, B.
co -R o m a n ;
E p is t o la r y
rhetoric.
T es ta m e n t;
L e tte rs ,
T h eory;
G en res
G re c o -R o m a n ;
th e
N ew
L it e r a c y
of
and
d jg :
O x fo rd ; C la re n d on , 1988. ■ W a t s o n , D . R
& Hauser, A . J.
Rhetorical criticism of the Bible:
a
c o m p r e h e n s iv e b ib lio g r a p h y w ith n otes o n h is to ry
B o o k C u l t u r e ; S c h o la r s h ip , G r e e k a n d R o m a n .
a n d m eth o d . L e id e n : E. J. B rill, 1994. [bis, 4 .)
R h e t o r i c a l C r it ic is m .
D P c: r e t ó r ic a ; c r ít ic a r e t ó r ic a ,
1995. p.
In defence of
dlntd
D.
: R h e to r ic ,
L.
S ta m p s
R h e t o r i c a l C r it ic is m .
R iq u e z a s
e po breza i :
E vangelh o s
J. D. H. Academic cons
No mundo palestino do século i, havia duas clas
traints in rhetorical criticism of the New Testament:
ses sociais principais: a classe rica, relativamente
B ib u o g r a f u .
A
m ador,
1132
Riquezas e pobreza i : Evangelhos
pequena, e a classe pobre, grande, que trabalhava
transformou em riqueza. As estimativas dizem
na lavoura ou cuja atividade exigia habihdades
que Herodes e mais tarde sua família podem ter
especiais e que em alguns contextos era denomi
possuído mais da metade das terras sob seu do
nada “povo da terra”. O judaísmo aceitava essa
mínio. Presentear terras a servidores fiéis não era
disparidade social, incentivando os ricos a dar
incomum.
esmolas aos mais pobres dentre os pobres. Jesus,
O terceiro grupo de ricos era o remanescen
entretanto, viu a riqueza como um obstáculo à
te da aristocracia judaica mais antiga (embora
entrada no r e in o
e pronunciou bênção so
boa parte de suas terras tenha sido confiscada
bre os pobres que buscavam a Deus. Ele ensinou
por Herodes e seus filhos) e indivíduos que en
de
D
eus
aos seus seguidores uma ética da doação radical
riqueceram com o comércio, a cobrança de im
que tem como base a confiança em Deus e a vin
postos ou alguma atividade desse tipo. Para ser
da do reino (i.e., uma perspectiva escatológica]
considerado rico, era preciso ser dono de terras,
e que é vivida no contexto da nova comunidade
de modo que os ricos adquiriam propriedades
de discípulos. Os textos indicam que, com base
rurais, mas não as cultivavam. Em vez disso,
nessa perspectiva escatológica, deve se entender
arrendavam-nas aos lavradores e passavam boa
Jesus como um sábio, não como um legislador ou
parte do tempo em atividades civis e religiosas
como um mestre de ideais inalcançáveis.
na cidade (principalmente Jerusalém). Esse sis
1. Os ricos e os pobres no judaísmo do século i
tema resuhou em abusos contra os lavradores e
2. Os ricos e os pobres no ensino de Jesus
os trabalhadores temporários. Os ricos viam esses
3. A escatologia e a ética de Jesus
maus-tratos como perfeitamente legais, porém os pobres consideravam esse tratamento muito in
1. Os ricos e os pobres no judaísmo do
justo (cf. Tg 5.1-6).
século I
Um último grupo de ricos eram os prósperos
Nos Evangelhos, o material sobre os ricos e os
comerciantes, que não faziam parte da aristo
pobres é apresentado no contexto do mundo so
cracia proprietária de terras, embora, como esta,
cial dos dias de Jesus e da reação do judaísmo
controlassem boa parte da vida econômica do
diante desse mundo. Não é sem motivo que Jesus
país. 0 povo da terra ressentia-se tanto dos pro
tenha dedicado mais atenção a esse tópico do que
prietários de terras quanto dos ricos que não as
a quase qualquer outro.
possuíam. Não foi por acaso que, durante a revol
1.1 O mundo social do judaísmo do século
ta judaica de 66 a 70 d.C., quando o povo comum
i. No mundo palestino do século i, havia basica
assumiu o poder em Jerusalém, uma de suas pri
mente dois grupos principais de pessoas: os ricos
meiras providências foi queimar os registros de
e os pobres. Entre os ricos, destacavam-se os clãs
dívidas e matar um bom número de aristocratas.
dos sumos sacerdotes. Consistindo em quatro fa
Portanto, do ponto de vista religioso e social
mílias estendidas, é preciso fazer distinção entre
é possível dividir os quatro grupos de pessoas
esses clãs e os sacerdotes de nível inferior (e.g., o
abastadas em dois outros grupos: 1) líderes ju
Zacarias da narrativa do nascimento em Lucas),
deus praticantes e 2) os ricos associados com
que em geral eram pobres e se sentiam oprimidos
os herodianos e os romanos, cujo poder lhes
pelo sumo sacerdócio. Eram os principais sacer
granjeava certa aceitação. Estes eram enjeitados
dotes que lucravam com os sacrifícios oferecidos
morais (i.e., “judeus que se fizeram gentios”),
no templo (os sacerdotes de nível inferior oficia
embora ninguém ousasse menosprezá-los osten
vam durante apenas duas semanas por ano, ao
sivamente. Às vezes, os dois grupos empregavam
passo que os clãs dos sumos sacerdotes estavam
seu poder para oprimir as classes mais baixas.
sempre presentes) e ainda controlavam o co
0 grupo menos religioso agia mediante o abuso
mércio considerável associado àqueles sacrifícios
irrestrito de poder. 0 grupo praticante justifica
e a outras atividades religiosas (e.g., a atividade
va sua opressão mediante interpretação da Lei,
mencionada em Mc I L 15-19).
0 qual, aos olhos de Jesus, era visto como mais
Outro grupo abastado era a família herodiana e seu séquito, cujo poder político facilmente se
censurável, pois parecia colocar Deus do lado da injustiça.
1 133
R íquezas e pobreza i : Evangelhos
Embora houvesse uma pequena classe média
destes se aproximavam mais dos valores do pe
constituída de alguns artesãos hábeis, de lavra
queno proprietário de terras, não dos membros
dores que possuíam terras de porte médio e de
da ehte urbana.
comerciantes (e socialmente, embora não econo
Havia outras classes de menor importância na
micamente, os sacerdotes de mVel mais baixo), o
sociedade judaica, como os escravos, embora
segundo principal grupo social eram os pobres,
na Palestina se desse preferência aos trabalhado
os camponeses, o “povo da terra” ( ‘am hã- arets,
res temporários, visto que era necessário cuidar
embora o termo hebraico também fosse usado em
dos escravos nos anos ruins e também libertar os
sentido mais amplo, como se verá mais adiante).
escravos judeus no ano sabático. Além do mais,
Esse grupo incluía vários subgrupos.
os escravos gentios podiam se converter ao juda
Os que desfrutavam melhor situação eram
ísmo e passar a desfrutar os direitos dos escravos
os pequenos proprietários de terra que levavam
judeus. Os escravos tendiam a ser empregados do
uma vida precária, dependente da colheita. Um
mésticos na cidade. Também alguns judeus eram
ou dois anos ruins poderiam significar a perda
forçados a deixar a sociedade honrada e se tornar
das terras para o vizinho rico que lhes havia em
enjeitados (“judeus que se faziam gentios”) ou
prestado sementes depois da perda da primeira
então optavam por isso, como era o caso dos co
colheita. Também podia significar que a família
bradores de impostos, pastores contratados tem
passaria fome. Em seguida, entre os que estavam
porariamente, toneleiros e prostitutas. Todos, com
em melhor situação, vinham os lavradores arren
exceção dos cobradores de impostos, estavam
datários, embora fossem obrigados a pagar ao
entre os pobres, mas os cobradores de impostos,
dono das terras antes de atender às necessidades
apesar da boa situação financeira, não eram con
da família. Em piores condições estavam os que
siderados membros das classes mais altas.
não possuíam terra nem habilidade de artesão,
Portanto, no judaísmo os pobres eram, antes
os trabalhadores temporários e os pedintes. Es
de tudo, aqueles que não possuíam nenhuma ter
ses eram os verdadeiramente pobres. O fato de
ra (definição baseada nas categorias veterotesta-
quase não terem recursos para viver não lhes
mentárias de pobreza, principalmente os levitas,
permitia uma vida digna. Misturados nos vários
os estrangeiros, as viúvas e os órfãos). Mas como
mveis dos mais pobres achavam-se os pescadores
alguns dos que não possuíam terras eram ricos,
e carpinteiros, cujo nível social dependia de certa
no período do
prosperidade, embora não possuíssem terras. Ze-
adicional de pobre, agora em termos financeiros
nt
também havia uma definição
bedeu, por exemplo, parece ter sido alguém rela
(refletida em m. Pe’a, 8.7,8, registrada até 250
tivamente próspero, pois em seus barcos, além da
d.C.). Todavia, qualquer que fosse a definição,
família, havia pescadores contratados. Por outro
mesmo nos melhores tempos o pobre vivia em
lado, quando Jesus nasceu, sua família ofereceu
situação crítica, pois viver numa economia agrí
0 sacrifício dos pobres (Lc 2.24). Contudo, é pos
cola sem possuir terra produtiva suficiente para
sível que ao se estabelecer outra vez na Galileia
proporcionar segurança era estar economicamen
tivessem um padrão de vida melhor (mesmo que
te à margem da sociedade. Contudo, o século i
ainda modesto), como o trabalho do artesão ha
não esteve entre os melhores tempos. Mesmo que em anos normais conseguissem obter o suficiente
bilidoso às vezes permitia. Havia diferenças entre as pessoas da classe
para sobreviver, o século i foi marcado por anos
denominada “povo da terra” , pelo fato de que
de fome, especialmente na década de 40
algumas (talvez 8% da população) moravam nas
An, 20.2.5 registra um caso). Essa ameaça jamais
(J o s e f o ,
cidades e, desse modo. estavam mais próximos
esteve distante de qualquer um que pertencesse
da vida e dos valores da elite urbana, ao passo
à classe mais pobre. E havia ainda os impostos
que as demais (i.e., 90% da população) eram
romanos (ou herodianos) e, em cima disso, a Lei
aldeões e viviam longe da cultura dos centros
determinava o dízimo (que podia ir de 17 a 23%
urbanos. Por exemplo, o marceneiro da cidade
da renda bruta da pessoa). Não é de admirar que
provavelmente via o colega de profissão que vivia
os religiosos considerassem o “povo da terra” ne
numa aldeia como alguém “rude”, pois os valores
gligente na observância da Lei.
1 134
R iq uezas e pobreza i : Evangelhos
Essa negligência não era universal, pois pa
a tendência de se associar a riqueza à bênção di
rece que muitos rabinos de épocas posteriores e
vina (a equação
até mesmo os grandes mestres fariseus da época
embora essa atitude ainda existisse no século i de
de Jesus foram pobres, pelo menos durante o pe
nossa era, ela foi modificada em dois aspectos.
p ie d a d e
=
p r o s p e r id a d e ) .
Contudo,
ríodo em que estudavam, mas, em alguns casos,
De um lado, descobriu-se empiricamente que a
durante toda a vida (os mestres não cobravam
riqueza tendia a gerar cobiça e abuso de poder.
para ensinar). Entretanto, a maioria dos fariseus
E, numa sociedade que acreditava que a riqueza
morava na cidade, ao passo que os lavradores das
disponível era limitada, o acúmulo de bens que
aldeias não tinham o zelo e a disciplina dos rabi
não viesse de Deus era suspeito de ser produto de
nos nem estavam próximos da cultura superior. A
abuso (cf.
prática e o conhecimento que tinham da Lei eram
experiência dos justos sob o domínio selêucida
mínimas. Eles seguiam a tradição da aldeia. Por
e mais tarde sob os asmoneus e os da família de
um lado, muitas vezes tinham de escolher entre a
Herodes, parecia que até mesmo a maior parte
piedade proclamada pelos moradores da cidade e
da riqueza era obtida mediante a injustiça e que
M a l in a ,
1981, p. 75-8). Aliás, à luz da
a fome. Por outro lado, mesmo que tivessem o de
a justiça tendia a tornar as pessoas pobres. Al
sejo de seguir rigorosamente a Lei, o fato de mal
guns autores intertestamentários questionaram se
conseguirem sobreviver não lhes deixava pratica
havia algum rico que era justo (Eo 31.3-10). De
mente nenhum tempo para o estudo e a medita
outro lado, os mesmos autores deixam claro que
ção, nem mesmo para ter certeza se sua comida
um rico podia ser justo e honrado, especialmente
era kosher ou se o dízimo havia sido meticulo
se a riqueza fosse produto de herança, e que a
samente pago (conforme os padrões farisaicos).
maneira de demonstrar essa justíça era mediante
Dessa maneira, praticamente todos os lavrado
a beneficência. Desse modo, na tradição judaica
res pobres eram considerados parte das “massas”
Abraão e Jó receberam destaque como ricos que
ou do “povo da terra” { ‘am hã-arets], que para
eram justos por serem generosos (v. Jb e Te Jó],
os fariseus era uma classificação mais religiosa que socioeconômica. No
0 problema real do judaísmo do século i era
a expressão indica
a pobreza, especialmente a pobreza do justo.
ou aqueles que não eram aristocratas (o material
Alguns dos estudiosos que ressaltam a perspec
mais antigo do
não judeus que viviam
tiva antropológica entendem que a pobreza era
na terra tradicional judaica (Esdras-Neemias).
um problema gerado pela perda da posição que
Na literatura rabínica (desse modo começando
a pessoa obtivera por herança, fosse essa posição
no período do
a expressão muitas vezes se
de riqueza ou de pobreza econômica. O resultado
refere àqueles que, em contraste com os fariseus
disso foram as categorias veterotestamentárias de
(e rabinos posteriores), não observam a Lei. Os
pobreza, conforme indicadas acima (cf.
lavradores foram incluídos nessa categoria, pois,
1981, p. 84). Entretanto, ainda que essa fosse a
como já foi dito, os fariseus eram predominante
realidade do período do
mente moradores das cidades. Como resultado, o
completamente na época do
termo pejorativo podia incluir não apenas os po
rabínicas mencionam a indigência econômica
at)
nt),
ou
os
at,
a t,
M auna,
ela não se encaixa n t.
Várias passagens
bres economicamente, mas também aqueles que
enfrentada pelos lavradores mais pobres (e.g.,
possuíam um pouco mais de recursos (inclusive
Rab., Lv 34.6 sobre Lv 25.25; b. B. Bat, 116a; b.
a minúscula classe média) e até mesmo os ricos,
Sanh., 151b). Conforme se escreveu mais tarde,
a menos que se esforçassem por seguir o concei
“no mundo não existe nada mais penoso que a
to farisaico de pureza. De modo geral, porém, a
pobreza — o mais terrível de todos os sofrimen
expressão designava as massas que observavam
tos. Nossos mestres disseram: todos os sofrimen
parcialmente a Lei, a população campesina.
tos estão de um lado, e a pobreza está do outro”
1.2
A resposta do judaísmo à desigualdade {Rab., Êx 31.12 sobre Êx 22.24). Além do mais,
social. De modo geral, o judaísmo não tinha ne
a tradição de Jesus (e.g., Lc 6) contrasta o pobre
nhum problema com a riqueza. Os bens não eram
com o rico, não com o ganancioso ou o ímpio
considerados maus. Aliás, por causa das histórias
(como é 0 caso do a t ) , mostrando que as questões
de Abraão, Salomão e Jó, registradas no
econômicas eram mais importantes na época.
at,
havia
1135
R iquezas e pobreza i : Evangelhos
Tiago também vê a situação da mesma perspec
5.9). Não se sabe exatamente quanto dessa ati
tiva. A necessidade econômica era um problema,
tude existia na época de Jesus, mas com certeza
mesmo que não se ignorasse a condição social
se dava grande valor ã generosidade: “ 0 mundo
obtida por herança.
está ahcerçado sobre três coisas: a Lei, a adoração
A primeira reação do judaísmo diante dos
[i.e., 0 serviço a Deus, inclusive a obediência] e
pobres foi incentivar os ricos a repartir volun
as expressões de amor caridoso [i.e., dar esmolas
tariamente a riqueza, pois, à exceção do apoio
e outros gestos de generosidade]” [m. ’Abot, 1.2).
que a pessoa podia receber da família estendida,
De fato, a generosidade eqüivale a sacrifício e faz
a generosidade (ou filantropia) era a única for
expiação pelos pecados (Eo 35.1,2; cf. 3.3,4).
ma de ajuda social disponível. Os governantes
Ao mesmo tempo, nos círculos rabínicos, pelo
da época só intervinham, quando chegavam a
menos, dar esmolas não era considerado um
fazê-lo, nas situações em que havia ameaça de
meio de mudar a posição social da pessoa, mas
fome para as massas (nesse caso, a motivação
de tirá-la do infortúnio em que caiu e restaurá-
era preservar a arrecadação de impostos e evitar
la à posição social que ocupava anteriormente.
distúrbios sociais). A filantropia incluía: 1) gestos
A existência de posições sociais diferentes não
pessoais de generosidade (e.g., dar a um pedinte,
era vista como um problema. Dessa maneira, um
perdoar uma dívida, garantir que uma pessoa na
lavrador que precisasse de esmola não receberia
penúria tivesse um sepultamento decente), que
a mesma ajuda que um aristocrata empobrecido.
no caso dos ricos podia incluir ajuda significativa
Por exemplo, conta-se a história (possivelmente
a áreas extensas (a rainha Helena de Adiabene, e.
apócrifa) de Hillel, contemporâneo de Jesus, que,
g., enviou para Jerusalém uma significativa ajuda
ao descobrir que o membro empobrecido de uma
em ahmentos, nos anos 40 do séc. i); 2) gestos
família nobre estava viajando, cuidou para que
coletivos de generosidade (i.e., organizados por
ele tivesse um cavalo. Mas não havia nenhum
intermédio do conselho de anciãos de uma aldeia
servo para correr à frente do homem, de maneira
ou por uma sinagoga); 3) generosidade religio
que o próprio rabino assumiu esse papel, para
sa (e.g., os recursos de beneficência coletados e
que 0 homem pudesse viajar da maneira apro
distribuídos por meio do templo). Mais tarde, o
priada ao seu nível social [b. Ketub., 67b). Isso
judaísmo desenvolveu um sistema muito bem or
sem dúvida é generosidade, porém uma genero
ganizado de coleta e distribuição de recursos. No
sidade que levava em conta o nível social. As
século
sim, embora a esmola não tivesse a função de
I,
porém, no que diz respeito à filantropia,
elevar a pessoa acima de seu nível social, ela po
a força motriz era a iniciativa pessoal. Por esse motivo, dar esmolas era visto no
dia restaurar alguém da nobreza à condição que
judaísmo como uma obra de justiça muito im
desfrutara anteriormente (e.g., um dote generoso
portante aos olhos de Deus. Aliás, no judaísmo
e apropriado podia ser providenciado para que
rabínico só a meditação na Torá era mais impor
uma mulher se casasse e mantivesse o nível so
tante que a generosidade como obra de justiça.
cial a que estava acostumada).
Gestos de generosidade eram vistos como maio
No entanto, havia também, como já foi dito,
res que a obediência a todos os mandamentos (b.
um nível social abaixo do qual a vida era terrível.
B. Bat., 9a,b), e, sempre que Satanás tentava acu
Assim, as pessoas que caem abaixo de certo nível
sar os que assim agiam, esses gestos generosos
(definido em m. Pe ’a, 8, que traz alguns debates
os defendiam diante de Deus [Rab., Êx 31.1). Ou
do século i) são sempre objeto de generosidade,
seja, a filantropia era tão importante que o termo
estejam ou não no nível social que herdaram. Ou
“justiça” se tornou sinônimo de dar esmola. Por
seja, assim que as pessoas eram separadas de sua
causa disso, “ os pobres fazem mais pelos ricos
herança, as distinções sociais começavam a de
que os ricos pelos pobres”, pois os pobres dão
saparecer, e as econômicas começavam a tomar
aos justos a oportunidade de obter mérito jun
seu lugar.
to a Deus (b. Shabb., 15b). Do lado negativo, o
A caridade era tratada em vários pontos da
mal vem sobre Israel por deixar de obedecer ao
Lei, não apenas nos incentivos ã esmola. Os ju
mandamento do
deus praticantes não apenas davam aos pobres
at
de dar aos pobres [m. ’Abot,
1 136
R iq uezas e pobreza i : Evangelhos
um dízimo a cada três anos e esmolas ao longo
que Mateus e também uma forma mais incisiva
do ano, como também permitiam que os pobres
do material que ambos incluem. Por exemplo,
respigassem em seus campos e deixavam de cul
Lucas inclui os “ais” em suas bem-aventuranças
tivar os campos um ano a cada sete anos, dando
(Lc 6.20-26), que acentuam o ensino ao declarar
aos pobres permissão para colher o que crescesse
o oposto. Por isso, pode se dizer com justiça que
espontaneamente. O repetido tema veterotesta
Lucas tem um interesse especial no assunto (mo
mentário do cuidado dos pobres não se perdeu
tivo pelo qual a maioria dos estudos sobre o en
no judaísmo posterior, apesar das regulamenta
sino econômico de Jesus se concentra em Lucas),
ções posteriores.
embora, de modo geral, a mesma atitude geral
Ao mesmo tempo, havia o reconhecimento de
seja compartilhada por Mateus e talvez também
que, a despeito da generosidade abundante, os
por Marcos. Os três Evangelistas oferecem um
ricos e os poderosos tendiam a oprimir os jus
quadro consistente da atitude de Jesus diante das
tos. Ou seja, a justiça era inclinada a tornar as
riquezas e da pobreza. Além do mais, o ponto
pessoas pobres. Isso levou a duas reações finais.
de vista que partilham se harmoniza com a ideia
Primeira: a comunidade dos justos era, com toda
no mundo mediterrâneo antigo de que os bens
probabihdade, a comunidade dos pobres — os m a
são limitados e que o ajuntamento de riqueza de
e o texto farisaico Salmos
alguns imphca a perda dos meios básicos de sub
n u s c r it o s
DO MAR M o r t o
de Salomão tornam explícita essa identificação.
sistência de outros. Jesus, porém, não aceitava
É essa comunidade que deve exercer generosida
as riquezas obtidas por herança da mesma forma
de. Segunda: a riqueza chegará aos justos, mas
que seus contemporâneos aceitavam.
não nesta era. Deus reparará todos os erros na
2.1
O perigo das riquezas. Embora para Jesus
era vindoura, quando os pobres justos desta era
os bens não fossem intrinsecamente maus (ele
ceifarão a recompensa de seus gestos generosos.
não era dualista), ele não considerava as riquezas
Essa equação escatológica
p r o s p e r id a d e
algo seguro, mas um recurso perigoso. Em mui
também é importante ao se considerar o ensino
tas de suas declarações, as riquezas são personi
de Jesus.
ficadas como Mamom (no aramaico dos dias de
p ie d a d e
=
Jesus, significava apenas "bens” e podia ser algo 2. Os ricos e os pobres no ensino de Jesus
maligno ou neutro, dependendo do contexto) e
Jesus encaixa-se na situação social da Palesti
tinham exatamente o mesmo papel que os ído
na do século I como a conhecemos. Ele próprio
los aos olhos dos antigos profetas de Israel, pois
pertencia ao "povo da terra”, sendo filho de um
agem sedutoramente, levando a pessoa a aban
carpinteiro que não possuía nem terra obtida por
donar seu compromisso com Deus. Por exemplo,
herança nem que ele próprio houvesse adqui
na parábola do semeador (Mc 4.18,19) é "a se
rido CMt 8.20; Lc 9.58). Ele não era um mestre
dução da riqueza e o desejo por outras coisas”
reconhecido oficialmente, mas um líder carismá
que asfixiam a Palavra, tornando-a infrutífera,
tico com um grupo de seguidores (o que exphca
como se arrancada por Satanás ou extinta pela
a recepção negativa que teve em Nazaré, onde
perseguição. Aqui a riqueza é personificada e age
sua origem social era bem conhecida, Mc 6.3).
produzindo efeitos semelhantes à pessoa do mal
Ele aceitava os rejeitados pela sociedade e muitas
(i.e.. Satanás), embora de maneira mais lenta e
vezes era visto com os pobres. Isso proporciona o
menos notável. As riquezas levam a pessoa a se
contexto imediato de seu ensino.
afastar de Deus.
Esse ensino está registrado nos Evangelhos
0 que ocorre aí não é mera questão de dar o
Sinóticos (mas o quarto Evangelho apresen
lugar devido aos bens e a Deus. Tanto Deus quan
ta relativamente pouca coisa sobre o assunto).
to os bens (i.e., Mamom) reivindicam ser servidos
Embora Marcos contenha algumas narrativas e
pelas pessoas. A reivindicação de Mamom é evi
declarações importantes sobre o tema, a imensa
dente. Devem se preservar as riquezas e ganhar o
maioria dos ensinos encontra-se no material q: há
pão de cada dia, mas Jesus rejeita categoricamente
blocos de
o serviço a Mamom; é impossível servir ao dinhei
q
em Mateus 6 e em Lucas 6, 12 e 16.
Dos dois Evangelhos, Lucas possui mais material
ro e a Deus ao mesmo tempo (Mt 6.24).
1 137
Riquezas e posreza i : Evangelhos
Essa impossibilidade é ressaltada pelo tópico
implícitas nas duas parábolas citadas as ahernati-
que Jesus apresema a seguir, pois, longe de ser
vas para o comportamento dos ricos. 0 primeiro
um sinal do favor divino, as riquezas tornam im
homem poderia ter cuidado de Lázaro, pois pos
possível a entrada no reino. Isso constitui uma
suía os recursos (a parábola ressalta que ele tinha
negação absoluta (pelo menos na maneira em
fartura) e teve oportunidade (Lázaro ficava à sua
que o mundo encara o assunto) da equação
porta e era conhecido do rico, cf. Lc 16.20,24).
dade
=
p r o s p e r id a d e .
p ie
Essa ideia é apresentada de
Quanto ao rico insensato, Lucas define o que Je
várias maneiras. O relato marcano do jovem rico
sus quis dizer com ser “rico diante de Deus” doze
termina em todos os Sinóticos com o comentário:
versículos adiante, quando conclui a seção: “Ven
“ É mais fácil um camelo passar pelo fundo de
dei vossos bens e dai esmolas” (i.e., “ Dai aos ne
uma agulha do que um rico entrar no reino de
cessitados”; Lc 12.33). Essa interpretação do que
Deus” (Mc 10.25). Isso significa que a salvação
se deve fazer com o que sobra é um tema recor
dos ricos é sem dúvida uma impossibilidade. Será
rente no ensino de Jesus (e no restante do
que pessoas assim não podem ser salvas? “ Para
alguém tem mais que o suficiente, a melhor coisa
nt)
. Se
Deus tudo é possível”, é a resposta de Jesus à
a fazer é repartir com os que têm menos que o
pergunta que os discípulos, chocados, lhe fize
suficiente e, dessa maneira, investir no céu.
ram. Depois de apresentar sua versão da história,
Outro exemplo desse ensino encontra-se em
Lucas conta a história de Zaqueu (Lc 19.1-10),
Lucas 16.9, em que Jesus afirma: “ Eu vos digo
que mostra o impossível acontecendo. Mas isso
ainda; Fazei amigos por meio das riquezas da
não deixa Zaqueu rico (i.e., o fato de possuir bens
injustiça, para que, quando estas vos faltarem,
não é algo neutro), pois nesse processo ele abre
eles vos recebam nos tabernáculos eternos”. Pelo
mão de suas riquezas. Só quando ele anuncia seu
contexto, isso provavelmente significa que deve
propósito é que Jesus responde: “Hoje a salvação
mos cuidar dos pobres com as riquezas que pos
chegou a esta casa”.
suímos ( “fazei amigos”), de modo que quando a
Também em sua parábola sobre o rico e Lázaro,
pessoa morrer ( “quando estas vos faharem”, i.e.,
Jesus destaca a impossibilidade de servir a Deus
quando as riquezas forem deixadas para trás, por
e ao dinheiro (Lc 16.19-31). Abraão diz ao rico
ocasião da morte) aqueles pobres recebam nos
no Hades: “ Filho, lembra-te de que em tua vida
céus (“tabernáculos eternos”) os que os ajuda
recebeste bens [...]; agora [és] atormentado”. Isso
ram materialmente.
está em harmonia com o “ai” de Lucas 6.24: “Ai
Esse ensino, é claro, está em conformidade
de vós que sois ricos, porque já recebestes a vossa
com 0 judaísmo da época. Os mais ricos demons
consolação”. Na parábola, o “ai” é apresentado de
travam sua justiça ao cuidar dos pobres, assim
forma literal e vivida, mostrando que apegar-se
como Jó e Abraão haviam feito antes deles (ou,
ao conforto hoje é arriscar a condenação amanhã.
para os cristãos, talvez José de Arimateia ou Bar-
Finalmente, a parábola do rico insensato
nabé). Na cultura mediterrânea da época, isso
(Lc 12.16-21) destaca mais uma vez que não é
tanto demonstrava a virtude da classe quanto
possível servir igualmente a Deus e a Mamom.
mostrava que sua riqueza não havia sido adqui
O rico da história, que tem a felicidade de obter
rida com injustiça. Jesus diferia do judaísmo de
uma colheita extraordinária, age com prudência,
seus dias não pelo grande valor que atribuía ã
guardando para o futuro o que não gastou no
generosidade, mas pelo grau de generosidade que
presente e regozijando-se com o fato de que seu
exigia e o fundamento em que estavam apoiadas
futuro está livre de preocupações financeiras. Aos
suas exigências. 2.3
olhos de Jesus essa prudência, típica do mundo,
Deus tem interesse especial pelo pobre.
caracteriza-o como insensato. A simples posse
Jesus não era um asceta. Não existe nenhuma
dessa fortuna inesperada o condena. Ele armaze
glorificação na pobreza em si nem prazer maso
nou para si, em vez de dar aos pobres (e, desse
quista na privação. Aliás, Jesus consistentemen
modo, se tornar “rico diante de Deus”).
te descreveu a consumação do reino como um
2.2
O único uso sadio das riquezas se dá tempo de abundância, e ele era conhecido como
no contexto do cuidado com os pobres. Estão
alguém que gostava de festas (e.g., Mt 11.19, para
1 138
Riquezas e pobreza i : Evangelhos
não mencionar o bem conliecido tema do ban quete, em Lucas; v.
A
Contudo, o termo “pobre” sempre leva con
de modo
sigo um sentido de experiência de opressão e
que ele com certeza não era contra a boa comida
desamparo ou, nas palavras de B. Malina, de in
com unhão
m esa),
e a boa bebida, embora fosse um hóspede que
capacidade de manter a condição herdada. Uma
podia debcar o anfitrião pouco à vontade.
pessoa que não tivesse necessidades e se sentisse
Ao mesmo tempo, Jesus declarou que Deus
segura não seria chamada “pobre”. Os discípulos
tem um interesse especial pelos pobres, ensino
haviam deixado sua segurança relativa para se
que se baseia no cuidado de Deus pelos pobres
identificar com a insegurança de Jesus. As seitas
no
que rotulavam Israel como “os pobres” sofriam
at.
Por exemplo, tanto em Mateus quanto
em Lucas ele descreve sua missão nos termos
opressão por parte das classes governantes. Mes
de Isaías 61.1,2, mencionando especificamente
mo em Salmos, o termo só foi usado quando o
que as boas notícias são anunciadas aos pobres
salmista se sentiu desamparado: ele podia ter
(Mt 11.5; Lc 4.18-21). Sem dúvida, esses pobres
dinheiro, mas sua riqueza era inútil diante da
são o “povo da terra” , a quem ele envia seus
necessidade pela qual estava passando. Em seu
discípulos (Mt 10.6,7). É a esses pobres que ele
desamparo, ele clamou a Deus para que o Senhor
declara: “Bem-aventurados sois vós, os pobres,
cuidasse dele com o mesmo interesse que a Lei e
porque o reino de Deus é vosso” (Lc 6.20). Embo
os Profetas diziam que Deus tinha pelos pobres.
ra Mateus 5.3 apresente uma versão diferente des
Assim, 0 denominado uso metafórico de “pobres”
sa declaração — “ Bem-aventurados os pobres em
não é totalmente metafórico, pois sempre contém
espírito, pois deles é o reino do céu” — , o sentido
um elemento de sofrimento e insegurança reais,
é semelhante, pois se percebe que em Lucas Jesus
mesmo que o sofrimento não seja necessariamen
se dirige aos pobres que o estão seguindo, e em
te econômico, e sim uma ameaça física.
Mateus, fala aos que demonstram o espirito dos pobres (segundo o
No caso das duas bem-aventuranças, os gru
seja, os que buscam
pos que sofrem empobrecimento são abençoa
a Deus e dependem dele (cf. IQM 14.7, em que
dos. Embora alguém pudesse ser materialmente
a expressão ocorre em seu equivalente hebraico).
pobre sem receber essa bênção, por não seguir
at ) ,
ou
No entanto, alguns estudiosos questionam se
a Cristo ou por não agir de maneira correta, em
esses são os materialmente pobres ou os metafo
nenhuma das duas passagens — ou em qualquer
ricamente pobres. Não é a expressão “ sou pobre e
outra — existe a ideia de que é possível apegar-
necessitado” empregada em Salmos por pessoas
se às riquezas ou a outros recursos e ainda as
em boa situação econômica? Não teria o termo
sim reivindicar essas bênçãos, sob a alegação de
“pobre” se tornado, na época de Jesus, mero si
que seu espírito é “pobre”. É significativo que as
nônimo de Israel como povo oprimido e desam
bênçãos jamais sejam pronunciadas sobre os ri
parado? Sem dúvida, há um sentido espiritual no
cos nessas passagens ou em qualquer outra. Em
que diz respeito a esses “pobres”. Também está
Lucas, essa distinção é ressaltada três versículos
claro que nas obras intertestamentárias, como
depois, por meio de uma maldição contra os ricos
os Salmos de Salomão e os manuscritos do mar
(porque “já receberam sua consolação”
Morto, o termo “pobre” havia passado a desig
porque retiveram suas riquezas, não por causa de
[n v i] ,
i.e.,
nar, respectivamente, as comunidades farisaica
qualquer outra injustiça). Mais uma vez, são “os
e do mar Morto como o remanescente piedoso
pobres, os aleijados, os cegos e os mancos” que
de Israel. Finalmente, fica claro que alguns dos
Deus está convidando para seu banquete messiâ
que pertenciam ao grupo de discípulos de Jesus
nico, ao passo que os ricos (que têm condições de
não eram pobres ao ponto da indigência, embora
comprar terras e bois) são excluídos (Lc 14.21).
não fossem exatamente pessoas abastadas (e.g.,
Quem possui recursos não têm necessidade
Pedro e André possuíam uma casa; Tiago e João
das “boas-novas” que Jesus prega aos pobres. Je
provinham de uma famíha razoavelmente prós
sus não apenas cita Isaías 61.1,2, com seu tema
pera; Mateus/Levi, embora não fosse necessaria
das boas-novas aos pobres, da soltura dos presos,
mente um rico cobrador de impostos, pôde se dar
da visão para os cegos e da hbertação dos oprimi
ao luxo de oferecer um banquete a Jesus).
dos, mas pratica tudo isso em seu ministério. Ele
1139
Riquezas e pobreza i : Evangelhos
dá visão aos cegos e liberta os que estão presos e
tesouros nos céus quando vendem seus bens e
oprimidos (essa libertação em Lucas tem o senti
dão aos pobres, ao passo que Mateus se satisfaz
do de expulsar demônios, embora a liberdade da
em empregar a expressão, que era bem conhecida
sua nova comunidade de discípulos sem dúvida
de seu público judeu). O motivo apresentado para
fosse mais um tipo de livramento). E embora haja
uma atitude tão radical é que o coração persegue
ricos que ingressem no reino, os únicos mencio
naturalmente o tesouro, de modo que um tesouro
nados nos Evangelhos são aqueles que, como Za
no céu significa um coração voltado para o céu,
queu, praticam a generosidade (e desse modo se
ao passo que um tesouro na terra significa, da
identificam com o sofrimento). São rejeitados os
mesma forma, um coração apegado a este mun
que se recusam a se humilhar dessa forma.
do. Jesus com certeza punha em prática o próprio
Estaria Jesus, então, proclamando um perío
conselho, pois João 13.29 indica que os discípu
do de jubileu (Lv 25.8-55), quando prega “o ano
los imaginavam que Judas, ao deixar o grupo, ia
aceitável do Senhor”? Significaria um tempo de
cumprir a ordem de Jesus, ou seja, dar esmolas.
redistribuição de riqueza? Embora essa possibi
Evidentemente, ajudar os necessitados era algo
lidade seja atraente e Lucas certamente veja os
costumeiro para Jesus, pois o texto diz que essa
ideais dos anos sabáticos e do Jubileu se concre
foi a pressuposição natural dos discípulos.
tizando na igreja primitiva (At 4.34; cf. Dt 15.4),
No entanto, a generosidade nâo é simples
isso é improvável. Tal interpretação depende de
questão de ter certeza de que o coração está vol
uma fundamentação linguística demasiadamente
tado para o que é certo ou está se livrando de
restrita e concentra os interesses de Jesus exces
bens perigosos. Ela conquista uma recompensa.
siva e exclusivamente em questões econômicas
Assim como o homem rico é condenado por não
e sociais. Há uma concretização do ideal do Ju
ser generoso com Lázaro, e o rico insensato, por
bileu, porém em termos muito mais amplos que
não armazenar tesouros no céu, no contexto de
aqueles vislumbrados na hteratura do
e sem
um banquete se faz a promessa aos que convidam
0 discurso de Jesus nâo visa às classes sociais,
na ressurreição dos justos” (Lc 14.14). É possível
pois incluiria todos os israelitas materialmente
que aqui Jesus esteja aplicando Provérbios 19.17;
at
suas normas.
os pobres para suas festas; “A tua retribuição será
pobres e excluiria todos os israehtas material
“Quem se compadece do pobre empresta ao
mente ricos. Se fosse assim, ele precisaria deflnir
Senhor,
quão pobre a pessoa tinha de ser para se qualifi
2.5
e este lhe retribuirá o seu benefício”. A confiança radical em Deus é a base
car à inclusão. Ao mesmo tempo, o sentido não
para a capacidade de abrir mão das riquezas. O
é puramente espiritual, falando apenas de uma
chamado de Jesus é radical no contraponto que
condição no íntimo, sem nenhuma referência às
faz entre “ não investir na terra” e “ investir no
circunstâncias externas. Pelo contrário, refere-se
céu” , mas isso se baseia numa promessa igual
aos que, de uma forma ou de outra, estão de fato
mente radical: “ Buscai primeiro o seu reino e a
sofrendo com a opressão e se sentem desampara
sua justiça, e todas essas coisas [materiais] vos
dos ou àqueles que se comovem com esse grupo,
serão acrescentadas” (Mt 6.33). De modo seme
abrindo mão dos próprios recursos e repartindo
lhante, a promessa: “ Não temas, ó pequeno re
generosamente os bens que possuem.
banho, porque é do agrado do vosso Pai dar-vos
2.4
O cuidado com o pobre garante recom o reino” precede a ordem: “Vendei vossos bens”
pensa eterna. Se Deus possui um interesse espe
(Lc 12.32,33). Os que se convencerem de que o
cial pelos pobres (o que ele deixa claro, mesmo
Pai celestial irá de fato cuidar deles serão capazes
no
quando anuncia que é o protetor especial
de abrir mão de tudo. Já a falta de confiança no
dos pobres de Israel — as viúvas, os órfãos e os
Pai (inclusive a dúvida na excelência de sua von
estrangeiros), é de esperar que seus seguidores
tade) levará a pessoa a providenciar o necessário
também revelem igual interesse. Jesus defende
para seu bem-estar, ou seja, a servir a Mamom.
AT,
essa conclusão quando ressalta que é o tesouro
Jesus dá a entender que até mesmo no nível
nos céus que é permanente (Mt 6.20; Lc 12.32-34;
da criação as pessoas devem perceber que podem
Lucas deixa claro que as pessoas armazenam
confiar em Deus, pois, se Deus cuida das aves
1140
Riquezas e pobreza i : Evangelhos
sem que elas tenham de providenciar o necessá
possui e dar aos pobres, mas a fazer isso e en
rio para o próprio bem-estar e veste lindamente
tão seguir a Jesus. Portanto, em certo sentido o
os lírios, com certeza ele está mais interessado
chamado de Jesus à generosidade radical é uma
nos seres humanos (Lc 12.22-31]. Além disso,
decisão individual, mas o contexto é o de um cha
a ansiedade humana e o esforço para garantir
mado à vida comunitária alinhada com a função
o próprio bem-estar são, de todo modo, inúteis
das comunidades de participação voluntária na
(Mt 6.27). 0 que vale é a certeza de que “vos
sociedade dele.
so Pai celestial sabe que precisais de tudo isso”
Boa parte do ensino de Jesus só pode ser en
(Mt 6.32; Lc 12.30). A renúncia resulta do bem-es-
tendida nesse contexto. Por exemplo, a parábola
tar, não da exigência. Mas o bem-estar tem suas
dos bodes e das ovelhas (Mt 25.31-46) está intei
raízes no conhecimento do Pai, não no que está
ramente relacionada com a comunidade. As pes
presente fisicamente.
soas com certeza serão julgadas de acordo com
É nesse nivel que o quarto Evangelho apoia o
seus atos de generosidade (o judaismo teria visto
ensino dos Evangelhos Sinóticos sobre ricos e po
todos os atos mencionados acima como diferen
bres. Embora o tema da riqueza e da pobreza esteja
tes maneiras de dar esmolas), mas o foco da aten
ausente (exceto por duas passagens de Jo 12— 13),
ção está nos atos de generosidade que praticarem
isso não acontece com o tema da confiança radical
a favor de “um destes meus irmãos, ainda que
em Deus. Por exemplo, o Jesus de João afirma que,
dos mais pequeninos” , não dos pobres em geral.
depois da ressurreição, “o Pai vos concederá tudo
Embora esteja claro que as ações generosas de
quanto lhe pedirdes em meu nome”. Esse pedir e
Jesus e de seus seguidores (esp. as curas e ou
receber acontece “para que a vossa alegria seja
tros milagres) se estendiam para além do próprio
plena” (Jo 16.23,24). Essa dependência jubilosa
grupo, a maioria das ações concretas menciona
do Pai, ressaltada inúmeras vezes nos capítulos
das acima estão relacionadas com os seguidores
anteriores e posteriores, e a insistência em que o
de Jesus. Isso vale até mesmo para o proverbial
Pai os ama constituem o alicerce da generosidade
“copo de água fresca”.
despreocupada dos Sinótícos. 2.6
De modo semelhante, as promessas de Je
O contexto pnmordial da renúncia está sus são dirigidas aos seus seguidores. O “vós,
presente na nova comunidade. Toda a vida e
os pobres” de Lucas 6 é dito quando Jesus está
todo o ensino de Jesus transcorreram no con
“olhando para os discípulos”. Ele anuncia as
texto do mundo social do judaísmo do século i.
bem-aventuranças do Sermão do Monte depois
Ou seja, ele estava inserido nessa matriz social,
que “ seus discípulos se aproximaram”. Não existe
nessa comunidade. Em face do individualismo
nenhuma bênção prometida aos pobres que não
moderno do mundo ocidental, boa parte do que
sejam discípulos, embora haja algum tipo de bên
Jesus ensinou sobre riqueza e pobreza parece não
ção para qualquer um, rico ou pobre, que, mesmo
fazer sentido. Todavia, levando-se em conta que
não sendo discípulo de Jesus, preste socorro a um
seus seguidores pressupunham que Jesus estava
discípulo (Mc 9.41; Mt 10.40-42).
certo ao ensinar que o reino de Deus havia che
Finalmente, as bênçãos pronunciadas por Je
gado, esse ensino fazia bastante sentido. Assim
sus são recebidas no contexto da comunidade es
como os fariseus, a comunidade do mar Morto e
catológica (i.e., o grupo de discípulos). Quando
até mesmo os zelotes convidavam pessoas a fazer
Pedro observa que, ao contrário do homem rico,
parte de uma comunidade de apoio que aponta
“Nós deixamos tudo e te seguimos” , Jesus respon
va para uma nova ordem prestes a ser inaugu
de, dizendo que ele e os outros discipulos recebe
rada, assim Jesus convidava os que aceitavam
rão “cem vezes mais, agora no presente, [...] e no
sua mensagem a participar de um novo mundo
mundo vindouro, a vida eterna” (Mc 10.28-30).
social. Eles deviam se tornar seus seguidores, fa
Receber “cem vezes mais” (com as perseguições)
zer parte da comunidade renovada. Os discípulos
não se refere ã recompensa pessoal de alguém,
deixaram seus bens, mas o fizeram para seguir
mas ao partilhar da riqueza da comunidade. Em
a Jesus, para fazer parte de seu grupo. O jovem
termos antropológicos, essas pessoas recebem
rico não é simplesmente chamado a vender o que
uma nova rede de relacionamentos diádicos.
1 141
KIQUEZAS E POBREZA i: tVANGELHOS
Isso significa que, ao constituir uma nova famí
Jesus admitia que seu ensino era um ideal ina
lia estendida, cada um dos discípulos recebe uma
tingível para eles. Além disso, pode se indagar se
família maior que a que foi debcada para trás. Sig
a igreja primitiva teve esse entendimento (reco
nifica que, se a comunidade de discípulos divide
nhecendo-se que os Evangelhos foram os livros
entre si o que possui, cada membro tem acesso
daquela igreja e que ela foi responsável por dar
a muito mais recursos que aqueles de que abriu
forma à tradição).
mão. É concebível que também se possa dizer
Terceira: outra interpretação é ver Jesus como
isso sobre a recompensa celestial. Com certeza,
alguém que oferece uma diretriz hteral a um gru
pelo menos na esfera da recompensa da era pre
po de seguidores em particular. Para os anaba-
sente, sem esse destaque dado à comunidade o
tistas comunais, tratava-se de uma regra literal
ensino de Jesus facilmente degenera numa ética
obrigatória para todos os cristãos que desejassem
de satisfação pessoal.
andar no caminho do discipulado pleno. Para as ordens monásticas, essa “perfeição evangélica”
3. A escatologia e a ética de Jesus
só era compulsória para o religioso que desejasse
É sabido que o ensino de Jesus se deu num
abandonar o mundo e viver a plenitude da vida
contexto da expectativa pelo reino. Jesus veio
cristã. De uma maneira ou de outra, a implicação
anunciar que o tempo havia chegado e que o rei
é que quem não se despe das riquezas e não aju
no de Deus estava às portas. Cada uma das pro
da os pobres deve ser caracterizado, na melhor
messas sobre o cuidado do Pai e as bênçãos das
das hipóteses, como discípulo de segunda classe.
Bem-Aventuranças contém a ordem de buscar o
Quarta: podemos entender o ensino de Jesus
reino ou a promessa do reino. De maneira deci
como uma ética que se deve viver à luz da esca
siva, Deus irrompeu na história: é hora de uma
tologia. As pressuposições dessa leitura são: 1) o
mudança radical.
reino é na realidade a onda do futuro, no sentido
Levando-se em conta esse contexto, é possível
de que, embora não seja visto (exceto nos vários
ler a ética de Jesus de quatro maneiras. Primeira:
sinais de sua vinda), é real, e os aspectos obser
acompanhando a ideia de A. Schweitzer e ou
váveis presentes desta era irão passar; 2) o Pai de
tros, podemos vê-la como uma ética temporária
fato ama os seus e cuida deles; 3) o Espírito San
estabelecida diante do fato de que o reino logo
to (prometido nos Evangelhos) deixa o discípulo
surgirá. Essa perspectiva entende que o ensino
hvre para responder positivamente às exigências
de Jesus sobre ricos e pobres está condicionado à
de Jesus. À luz desses fatores, faz sentido a aph
expectativa de Jesus com relação ao fim dos tem
cação do ensino de Jesus sobre ricos e pobres à
pos, a qual não se cumpriu. Desse modo, a ética
vida na comunidade cristã.
foi irrelevante para gerações posteriores da igre
Relacionado com todas as perspectivas acima
ja. Entretanto, parece não ter sido essa a postura
está 0 fato de que é improvável que Jesus este
assumida pelos primeiros intérpretes de Jesus,
ja instituindo uma nova Lei. Aliás, só o tercei
pois sem dúvida os Evangelhos foram escritos
ro ponto de vista talvez sugira algo assim. Nos
quando já haviam transcorrido uns bons anos do
Evangelhos, descobre-se que Pedro ainda possuía
movimento cristão, e algumas obras, como Tiago,
uma casa (Mc 1.29) e que mulheres providas de
demonstram a aphcação relativamente hteral do
recursos financeiros sustentavam o ministério
ensino de Jesus.
de Jesus, o que parece demonstrar que elas não
Segunda: podemos interpretar o ensino de
se desfizeram de seus bens (Lc 8.3). É evidente
Jesus como um ideal ético, cujo objetivo era ou
que eles entendiam que Jesus falava por meio de
forçar o povo da época a enfrentar a própria in
hipérboles, como era próprio dos sábios judeus
capacidade e reconhecer a necessidade da graça
(como em Provérbios), ou de um contador de his
(esse é em parte o pensamento de R.
tórias, em contraste com o literalismo absoluto de
G u e l ic h ) o u
vigorar a partir do momento em que o reino se
um legislador.
consumasse. A validade desse ponto de vista de
De fato, esses e outros exemplos mostram
pende de se verificar se os discípulos praticaram
duas coisas. Primeira: embora os discípulos te
hteralmente o ensino de Jesus ou se o próprio
nham deixado tudo para seguir a Jesus, eles não
1142
Riq uezas e pobreza i : Evangelhos
renunciaram necessariamente a todos os seus
de ricos e pobres. Contudo, elas mostraram que
bens, embora a decisão que tomaram envolvesse
a escatologia (e, em Paulo e outros, a dádiva do
considerável perda e riscos econômicos e exigisse
E s p ír ito S a n t o
plena confiança em Jesus. Segunda: o ato de re
escatológico) estava relacionada com a ética no
partirem seus bens de forma jubilosa e generosa
início da tradição cristã. Assim, estaremos em
como sinal de entrada do futuro
significava exatamente isso. Não era uma norma
melhores condições de interpretar essa tradição
a que eram obrigados a obedecer. Por exemplo, a
para os dias de hoje.
narrativa da unção em Betânia (Mc 14.1-9 — epi
Ver ta m b ém é t i c a ; j u s t i ç a / r e t i d ã o .
sódio narrado em todos os Evangelhos, ã exceção
d jg : T a x e s .
de Lucas, que, na melhor das hipóteses, o apre senta de maneira bastante diferente) mostra um
B i b l i o g r a f i a . B am m el,
tipo bem diferente de generosidade. A unção de
s .n .,
Jesus “para o sepuhamento” foi com certeza um
Neither poverty nor riches: a biblical theology of
ato radical (talvez de caridade, caso ela, de alguma
possessions. Downers Grove: InterVarsity,
forma, soubesse do sepultamento, o que é impro
[nsbt.] •
s.d.]. v.
p.
6.
C assidy,
E. rrrwxóç 8 8 5 -9 1 5 .
■
vável), mas foi feito para Jesus, não a favor dos po
ty. &
de João, Judas se sente especialmente afrontado).
kingdom. Grand Rapids: Eerdmans,
Com certeza, não existe a sugestão de que teria
vids,
Orbis
M a ry k n o U :
P.
H.
C. L. 1999.
R. A. Jesus, politics, and socie
bres (o que ofendeu os discípulos, e, no Evangelho
J. I.
M c D o n a ld ,
[S.L:
k tA . t d n t. B lo m b e r g ,
H.
B ooks,
•
1978.
C h ilt o n ,
B.
Jesus and the ethics o f the ■
1987.
Da
New Testament foundations for hving
sido melhor a mulher guardar o unguento, para o
more simply. In:
caso de alguma eventuahdade. Para os Evangehs
ply. Downers Grove: InterVarsity,
tas, a questão é se o ato extravagante tinha direção
■ Donahue, J.
certa. Jesus dá a entender que ele tinha precedên
rich an d p o o r in Luke-Acts. In: Knight, D . A . & Pa
cia sobre os pobres; o momento escatológico tinha
ris, P. J., orgs.
prioridade sobre as demais exigências. Dificilmen
n or o f W a h e r H arrelson. Atlanta: Scholars, 1 9 8 9 .
te seria esse o pronunciamento de um legislador,
p. 1 2 9 - 4 4 . • Eichler , J. et al. Possessions, treasu
em qualquer sentido convencional.
re, M a m m o n , w ealth , nidntt . [S.L: s.n., s.d .]. v. 3 .
O teste a ser aphcado a esses pontos de vista,
R.
S id e r,
R. J., org. Living more sim 1980,
p.
4 0 -5 8 .
TVvo decades o f research on the
Justice and the holy:
essays in h o
p. 8 2 9 - 4 7 , 8 5 2 - 3 . • Esser, H .-H . & Brown,
portanto, está dividido em três partes. Primeira:
NIDNTT. [S.l.: s.n., s.d .]. v.
devemos anahsar os Evangelhos e indagar como
T.
3.
C.
Poor.
p. 8 2 0 - 9 . • France,
R.
G o d a n d M a m m o n . E v Q , v. 5 1 , p. 3 - 2 1 , 1 9 7 9 . ■
os contemporâneos de Jesus interpretaram sua
Guelich,
mensagem, tarefa parcialmente realizada aci
W o rd , 1 9 8 2 . ■ Hengel, M .
R.
A.
The Sermon on the M ount
ma. Segunda: devemos anahsar os Evangelhos
the early church.
(e, com eles, talvez Atos, por constituírem uma
J.
Being poor:
W aco:
Poverty and riches in
L on d on : scm, 1 9 7 4 . • Hopps, L.
a b ib h c a l study. W ilm in gto n : M i
única perspectiva com Lucas) e, reconhecendo
chael G lazier, 1 9 8 7 . (gns, 2 0 . ) ■ Jeremias, J.
que esses documentos serviram de base para
salem in the times o f Jesus.
as comunidades cristãs, indagar se existe algu
Johnson, L.
ma coisa neles ou na literatura epistolar do
sy m bo l o f faith. Ph ilad elph ia: Fortress, 1 9 8 1 . •
nt
Jeru
L on d on : scm, 1 9 6 9 . ■
T. Sharing possessions:
m andate an d
que possa nos dirigir a uma compreensão desse
Kraybill, D . B.
ensino como algo que não seja o mandamento
tdale: H erald, 1 9 7 8 . ■ Kvalbein, H. Jesus a n d the
The upside-down kingdom.
do Fundador a ser posto em prática. Terceira:
poor.
devemos analisar as interpretações mais antigas
B. J.
da tradição cristã — como Paulo, em 2Coríntios
Atlanta: John K n ox, 1 9 8 6 . ■
8—9 e ITimóteo 6, e a Carta de Tiago — e ver
tament world:
se concordam com a perspectiva de Jesus ou se
gy. Atlanta: John K n ox, 1 9 8 1 . ■ ________ . W ealth
Themelios,
Scot-
v. 1 2 , p. 8 0 - 7 , 1 9 8 7 . ■ M alin a,
Christian origins and cultural anthropology. ______ . The New Tes
insights from cu h u ral a n th ro p o lo
de alguma forma atenuam a contundência de seu
and poverty in the New Testament and its world.
ensino (v.
Int,
wquezas e pobreza ii
e iii).
Nenhuma dessas considerações irá ehminar o aspecto escatológico do ensino de Jesus acerca
V. 4 1 ,
p.
3 5 4 -6 7 , 1 9 8 7 .
■ P i l g r i m , W. E. Good
news for the poor. Minneapohs: Augsburg, ■ P o B E E , J.
1143
1981.
S. Who are the poor? The Beatitudes
R iquezas e pobreza ii : Paulo
as a call to community. Geneva: wcc, 1987. 32.] •
S eccom be,
( rbs,
d. p. Possessions and the poor in
Luke-Acts. Linz: Fuclis, 1982. [sntsu.] •
e “satisfeito em todas as circunstâncias” (Fp 4.1013] tenha feito com que ele não percebesse o que
S c h m id t ,
a questão significava para outros. No entanto, ele
T. E. Hostility to wealth in the synoptic gospels.
pode ter se mostrado tão sensivel ao assunto que
Sheffield:
15.] ■ S c h o t r o f f , L.
deu apenas instruções verbais aos crentes. De
W. Jesus and the hope of the poor.
todo modo, o fato de Paulo ser um itinerante que
jso t,
& St e g e m a n n ,
1987.
(js N T S u p ,
Maryknoll: Orbis, 1980. ■ S c h ü r e r , E. The history
presumivelmente possuía um mínimo de bens
o f the Jewish people in the age o f Jesus Christ.
para viver e ao mesmo tempo não exigia com
(175 b .c .-A .D . 135). Rev. e ed. G. Vermes, F. Millar
pensações financeiras do povo, sugere que eram
e M. Goodman. Edinburgh: T & T Clark, 1979.
despretensiosas as suas expectativas em relação
■ V
e rh ey,
a. The great reversal: ethics and the
aos crentes com quem convivia.
New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1984.
1.1 A espiritualização das riquezas. Entre os
J. H. The politics o f Jesus. Grand Rapids:
escritores que viveram mais ou menos à época
■ Y
oder,
Eerdmans, 1972.
de Paulo, apenas Filo de Alexandria se aproxima P. H.
D
a v id s
da espiritualização paulina do tema da rique za. A natureza de Deus na dádiva da salvação
R iq u e z a s
e po b r e za ii:
P aulo
é considerada uma “riqueza” , especialmente em
Nem 0 uso correto das riquezas nem o sofrimento
Romanos (Rm 2.4; 9.23; 10.12; 11.33) e Efésios
dos que passam por privação são grandes preocu
(Ef 1.7,18; 2.4,7; 3.8,16; cf. Fp 4.19; Cl 1.27). Des
pações para Paulo, que geralmente espiritualiza o
se modo. Deus enriquece os santos (Rm 11.12;
tema das riquezas. E, quando ele demonstra al
ICo 1.5; 2Co 6.10; 9.11; Cl 2.2; 3.16; Tt 3.6).
guma preocupação com questões econômicas, na
Em 2Coríntios 8.9, Paulo diz que Cristo dei
maior parte seu ensino reflete a piedade judaica
xou a riqueza e se tornou pobre a fim de tornar
padrão.
os outros espiritualmente “ricos”
(ar a).
Em geral,
1. Riquezas
entende-se o “empobrecimento” de Cristo nessa
2. Pobreza
passagem como uma referência ao fato de ele ter, na encarnação, trocado o estado celestial pelo ter
1. Riquezas
reno, mas é possível que isso revele uma renún
Nas cartas paulinas, é notável a falta de atenção
cia hteral de Jesus às riquezas — ou pelo menos
dada aos ricos e ao uso correto das riquezas. O
realce o baixo nível econômico que experimentou
assunto é comum na literatura de sabedoria ju
durante seu ministério na terra. Paulo emprega
daica do período intertestamentário e entre os
uma hnha semelhante de raciocínio em 2Corín-
moralistas greco-romanos da época, e, é claro, os
tios 6.10, alegando que sua pobreza (econômica]
Evangelhos Sinóticos e Tiago revelam considerá
levou riqueza (espiritual] aos coríntios.
vel preocupação com os perigos da riqueza (v.
A inconsistência entre a condição de Paulo
e iii]. As informações conti
como cidadão romano (provável indicação de
das em Atos (e.g., At 16.14; 17.12; 18.7,8] e uma
que pertencia a uma família próspera] e sua vida
r iq u e z a s
e
pobreza
I
anáhse dos nomes mencionados nas cartas de
de evangehsta itinerante talvez ofereça uma pista
Paulo (e.g., Rm 16.1-23] dão a entender que na
para sua postura de viver desligado das riquezas:
igreja primitiva havia muitos convertidos em boa
é em Cristo (v.
situação financeira. Entretanto, Paulo mal toca
valores mundanos são transformados assim a ter
“
em
C
r is t o ”
)
que assim como os
no assunto das riquezas. A única vez em que
minologia mundana tem de ser redefinida. O jogo
faz uma análise mais delongada é em ITimóteo
de palavras em torno da ideia da “riqueza” , em
6.6-10,17-19.
ITimóteo 6.17-19, talvez represente o pensamen
É certo que o uso da riqueza está um tanto
to de Paulo já amadurecido sobre o assunto.
fora do âmbito das questões interpessoais e
1.2 Nível econômico do público-alvo de Pau
intercomunitárias características da ética pauhna.
lo. A leitura de ICorintios 1.26 indica que não ha
É possível que o fato de Paulo estar hvre das
via muitos coríntios em posição de autoridade ou
preocupações deste mundo (ICo 7.28-35; 8.1-13]
de nobreza, mas estudos recentes demonstram
1144
R iquezas e pobreza i i : Paulo
que é errado interpretar essa realidade como um
a prática da autarkeia deixava implícitas não ape
indicador de nível econômico baixo nas igrejas
nas a hbertação e a separação espiritual, mas tam
paulinas. 0 “ nem muitos” permite exceções im
bém a redução voluntária a um nível econômico
portantes (cf. At 18.7,8; Rm 16.23), e as pessoas
mínimo. O ensino de Paulo — e certamente seu
podiam ser ricas sem ter prestígio ou nível so
exemplo — leva em consideração esse grau ex
cial elevado. Aliás, Paulo critica os membros da
tremo de liberalidade por parte dos ricos. Ahás,
igreja inclinados a ambições sociais (ICo 11.19)
ICorintios 13.3 faz alusão aos que se desfazem de
e ao preconceito social (ICo 11.17-22), e seu ex
tudo (desde que com amor). Mas o fato de Paulo
tenso apelo à ajuda financeira pressupõe que as
não tornar explícita essa exigência indica que suas
pessoas a quem se dirigia tinham condições de
expectativas de liberahdade se Umitam ã coleta de
ajudar os pobres de Jerusalém (2Co 8 e 9; v. esp.
dinheiro e ao fornecimento de meios de subsistên
2Co 8.13-15). 0 consenso que está surgindo é que
cia para os crentes necessitados (Ef 4.28).
nas igrejas pauhnas havia uma boa representa ção dos vários segmentos da sociedade urbana:
2. Pobreza
bem poucas pessoas em ambos os extremos da
Paulo tem ainda menos a dizer a respeito dos
escala socioeconômica e uma preponderância de
pobres do que em relação aos ricos. Como já
artífices e comerciantes com níveis variados de
foi dito, isso talvez se deva ao fato de Paulo dar
renda. É possível que alguns dos que possuíam
pouca atenção à própria condição material. Tal
dinheiro, mas não tínham outro meio de alcançar
vez também se deva, em parte, ao fato de que a
melhor posição social, tenham se aproximado do
pobreza não era relevante nas igrejas paulinas.
cristíanismo como forma de melhorar sua posi
Nas cidades, entre os artífices, comerciantes e até
ção social na comunidade.
mesmo escravos que constituíam as comunida
1.3
Uso responsável das riquezas. A ética des primhivas, é possível que bem poucos fossem
econômica pessoal do corpus paulino reflete a
pobres, para os padrões do século i, ou seja, sem
piedade judaica do período. Isso inclui advertên
outro meio de sobrevivência que não fosse a aju
cias contra a cobiça (ICo 5.11; ITm 3.8; Tt 1.7),
da de outros. 2.1
incentivos ao trabalho como forma de evitar
Responsabilidade para com o pobre. Na
a pobreza (Rm 13.8; ITs 4.11,12; cf. 2Ts 3.6-
medida em que são encontrados, os pobres se
12), prioridade ao sustento da famíha (01 6.10;
tornam destínatários ideais da liberahdade cristã
ITm 5.8; cf. At 11.27-30) e auxílio aos outros
(Ef 4.28; cf. At 11.27-30), e o próprio Paulo afir
com liberalidade (Rm 12.8,13; ICo 16.2; 2Co 8.2;
ma que lembrar-se dos pobres faz parte de seu
Ef 4.28). Para Paulo, a liberalidade concentra-se
comissionamento (Cl 2.10; cf. instruções acerca
na coleta para os santos, que parece t€r substi
de viúvas, ITm 5.13-16). As instruções acerca
tuído 0 imposto do templo, sendo a expressão
do trabalho em ITessalonicenses 4.11,12 e 2Tes-
paulina de solidariedade para com a igreja em
salonicenses 3.6-12 deixam implícita uma ideia
Jerusalém (Rm 15.25-29; ICo 16.1-4; 2Co 8—9;
negativa da pobreza como resultado da preguiça.
talvez Cl 2.10). De um modo mais específico,
Em outras passagens e com base nas instruções
Paulo ordena aos ricos que sejam generosos, o
de Paulo aos cristãos para que sejam bondosos
que resultará em bênçãos espirituais nesta vida
e amorosos, podemos inferir certa dose de com
(2Co 9.10-15; Fp 4.14-20; ITm 6.19).
paixão pelos crentes em Cristo, mas a pobreza
Somados a esses aspectos judaicos, há alguns
propriamente dita não é uma preocupação do
elementos gregos no ensino de Paulo (v. esp.
apóstolo. Paulo chama a atenção para sua pobre
2Co 8—9). A advertência contra o “amor ao di
za não para pedir ajuda financeira, à qual renun
nheiro” (ITm 3.3; 6.6-10; 2Tm 3.2) era comum na
cia (ICo 9.15; 2Co 11.10), mas para destacar as
hteratura grega da época. Em Fihpenses 4.11-13,
riquezas espirituais que seu ministério confere às
Paulo defende a “autossuficiência” em todas as
pessoas (2Co 6.10; cf. ICo 4.9-13). Ele chama a
Fp 4.11; cf. ITm 6.7,8),
atenção para a pobreza dos macedônios apenas
termo comum entre os estoicos e os cínicos. Entre
para ressahar o exemplo de generosidade desses
os cínicos, e mais tarde no monasticismo cristão,
crentes (2Co 8.2).
circunstâncias
[a u t a r k ê s ,
11 4 5
Riquezas e pobreza iii : A to s , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
2.2
“Os pobres dentre os santos de Jerusa Christianity: essays on Corinth. Philadelphia: For
lém". Romanos 15.26 menciona as ofertas da
tress, 1982.
Macedônia e da Acaia para os “ pobres dentre os
T. E.
S c h m id t
santos de Jerusalém”. Uma vez que se trata de uma referência à coleta feita por Paulo, que não
R
iq u e z a s e p o b r e z a iii :
é em nenhum outro lugar descrita como ajuda de
H
ebreus,
p o c a l ip s e
C artas G
A
tos,
e r a is ,
socorro, é possível que aqui seja melhor interpre
A
tar a expressão como exphcativa: “ os pobres que
Como se percebe em Atos, Hebreus, nas Cartas
são os santos de Jerusalém”. Isso é consistente
Gerais e em Apocalipse, a abundância ou a falta
com o emprego do título “pobre” como autode-
de bens materiais não foi uma preocupação dos
signação dos judeus, especialmente os sectários
cristãos do século i. A maioria das declarações
de Qumran (v. IQpHab 12.3,6,10; IQM 11.9,13;
parenéticas está mais em conformidade com o
4Q171 37.2-10; cf. Sl 69.32; 72.4), na literatu
pensamento piedoso judaico que com as declara
ra da época. Nesse sentido, o termo “pobres”
ções radicais dos Evangelhos. Entre os desdobra
não é basicamente uma designação econômica,
mentos cristãos mais inconfundíveis está a ênfase
mas sinaliza o anseio pelas riquezas espirituais
na hospitalidade e nas orações feitas pelos pobres
da salvação. Isso está em conformidade com a
a favor dos crentes ricos.
espiritualização do conceito de riquezas em Pau
1. Atos
lo e pode indicar uma conotação não econômica
2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocahpse
quando Paulo se lembra dos pobres (01 2.10). Contudo, se os crentes de Jerusalém — ou parte
1. Atos
deles — estavam em dificuldades financeiras, o
Duas passagens-chave que sintetizam o assunto
título talvez indique essa privação. Alguns podem
(At 2.43-45; 4.32-37) concentram a atenção na
ter sofrido a perda de seus bens como resultado
unidade dos crentes na primeira igreja, em Je
das ações dos adversários judeus (Hb 10.32-34),
rusalém. Com respeito aos bens materiais, essas
da fome (At 11.27-30) ou da diminuição voluntá
passagens apresentam dois aspectos distintivos:
ria de suas posses (At 4.32-37).
os bens pertenciam a todos (At 2.44; 4.32) e
Ver também
eram vendidos para evitar que alguém passasse
é t ic a .
DPC: AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS; CO LETA PARA
necessidade (At 2.45; 4.35). Essas características parecem representar um distanciamento da re
os s a n t o s ; SOFRIMENTO.
núncia radical que nos Evangelhos é exigida dos B ib u o g ra fia . B ammel,
s.n ., s.d.].
V.
E.
tttuxóç ktA. tdnt. [S.l.:
discípulos (e.g., Lc 5.11; 14.33; 18.22), mas essa
6. p. 885-916. ■G eorgi, D. Remem
pode ser uma maneira de atender àquela exigên
bering the poor. N ashville: Abin gdon , 1992. •
cia (cL Lc 8.3; 12.33; 16.9; 19.8). O ato de doar
B lomberg, C. L. Neither poverty nor riches: a bi
bens materiais pode pressupor, no hvro de Atos,
b lical th eo logy o f possessions. D ow ners Grove:
o que é ressaltado nos Evangelhos (i.e., a neces
InterVarsity, 1999.
■H auck, F. & K asch, W.
sidade de os discípulos expressarem dependência
[S.L: s.n., s.d.]. v. 6. p. 318-
total de Deus), mas se concentra na necessidade
32. • H engel, M. Property and riches in the early
dos membros da comunidade. Isso é consistente
church. Philadelphia: Fortress, 1974. • H olmberg,
com os elogios feitos a pessoas que fazem carída-
B. Paul and Power. Lund:
G leerup, 1978. •
de (At 9.36; 10.2,4; cf. At 6.1-6) e com a condena
K eck, L. E. T he poor am on g the saints in the N ew
ção daqueles que davam mais valor ao dinheiro
56, p. 100-29, 1965. • K idd, R.
que às necessidades do próximo (At 5.1-11; 8.14-
M. Wealth and beneficence in the pastoral epis
24). Condiz também com o ideal helenístico da
tles. M issoula: Scholars, 1990.
122.) • M e
amizade ou da harmonia de ideias entre pesso
W. The first urban Christians. N ew Haven:
as, 0 que muitas vezes é expresso pela referência
ttAoOtoç ktA. t d n t .
Testam ent,
eks,
znw , v.
[n s b t .)
cwk
[s b ld s ,
Yale U niversity Press, 1983. • N ickle, K. F. The
à posse comum de bens, mas aqui a prática é
collection: a study of Paul’s strategy. London:
impulsionada pelo Espírito (v.
scm,
1966. ■ T h e is s e n , G. The social setting o f Pauline
não pela amizade.
1 146
E s p í r it o
Sa n to ),
Riquezas e pobreza hi: A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
Alguns estudiosos entendem que a posse co
não deixa que a humildade permaneça no nível de
mum dos bens não é mencionada nos primeiros
atitude. Os “praticantes da palavra” (Tg 1.22) de
escritos cristãos depois de Atos 4 porque esse sis
vem cuidar dos necessitados (Tg 1.27) e renunciar
tema fracassou como experimento social, ou por
aos prazeres do mundo (Tg 4.3-10).
que foi uma medida temporária para ajudar os
Em Apocalipse, Jesus determina à igreja de
peregrinos que foram embora quando ficou óbvio
Laodiceia que pare de se gloriar (pois diz: “ Es
que o eschaton iria demorar. Uma conclusão mais
tou rico”) e aconselha que ela compre “de mim
provável para o silêncio após essa descrição entu
ouro refinado no fogo” (Ap 3.17,18), uma possí
siasmada da vida comunitária da igreja primitiva,
vel alusão a determinadas passagens dos Evange
porém, pode ser que os crentes não continuaram
lhos (Mt 13.44,45; Lc 16.9), em que “comprar” é
naquele nível inicial de obediência.
uma metáfora da renúncia aos bens. Em outras passagens de Apocahpse, as riquezas terrenas
2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse
são associadas aos poderes do mal, e Apocahpse
As Cartas Pastorais e Hebreus refletem o que po
18 apresenta um longo “ai” contra a Babilônia,
demos chamar de “valores da classe média”. Elas
que “a si mesma se gloriflcou e viveu em luxúria”
partilham o desejo de que os cristãos estejam
(Ap 18.7,
satisfeitos com sua situação econômica pessoal
dimento comercial seja até certo ponto uma me
ara].
Embora a descrição de empreen
(ITm 6.6-10; Hb 13.5b) e condenam o amor ao
táfora da rebelião espiritual, a recomendação aos
dinheiro (ITm 6.10; 2Tm 3.2; Hb 13.5a; Tt 1.7),
crentes é clara: “ Saí dela, povo meu, para que não
sem condenar os que possuem muitos bens. Para
sejais participantes dos seus pecados” (Ap 18.4).
os ricos, a recomendação é; “ Pratiquem o bem e
Apocahpse encerra oferecendo um contraste
se enriqueçam com boas obras, sejam solidários
com isso, descrevendo um reino celestial feito
e generosos” (ITm 6.17,18). Ordena-se a todos os
de ouro, cristais e joias (Ap 21.1—22.6). Tíata-se
crentes que pratiquem a hospitalidade (ITm 5.10;
também de uma metáfora, que utihza terminolo
Hb 13.2,16).
gia profética para representar uma comunidade
As cartas de Pedro e de João não contêm prati
perfeitamente ordenada por Deus. Mas, ao re
camente nenhum material pertinente ao assunto.
tratar de forma quase irônica riquezas materiais
Pedro adverte contra as motivações mercenárias
inimagináveis como recompensa para os que re
no ministério (IPe 5.2; 2Pe 2.14,15), e João reco
nunciaram às riquezas na terra, esse vocabulário
menda generosidade para com os crentes neces
faz parte de uma tradição que remonta pelo me
sitados (IJo 3.17); ambos ordenam hospitalidade
nos até Jó e continua em Mateus 5.3-5, 2Corín-
(lPe4.9;3Jo 5-8).
tios 8.13-15 e Apocalipse 2.9: “ Conheço as suas
T
ia g o
e
A
p o c a l ip s e
revelam mais uma atitude
aflições e a sua pobreza; mas você é rico”
crítica para com os rícos e louvor aos pobres, que é
Ver também
característica dos Evangelhos, mas isso não signi fica que os destinatáríos pertençam ao nível social
é t ic a ; T ia g o , C a r t a
[ n v i] .
de.
d ln t d : H o s p h a lity ; S o c ia l S e t t in g o f E a r ly N o n -
PAULINE CHRlSTIANrrY.
mais baixo. Parece que a crítica enérgica contra os ricos em Tiago 5.1-6 é dirigida a opressores não
B i b l i o g r a f i a . B lo m b e r g , C .
cristãos, mas outras passagens (Tg 1.10,11; 2.1-7;
riches: a biblical theology of possessions. Downers
L. Neither poverty nor
4.13-15) deixam impUcita a presença de crentes
Grove: InterVarsity, 1999.
bastante ricos. Além disso, em relação aos desti
W. The rich Christian in the church o f the Early
natários da carta, tanto os ricos quanto os pobres
Empire:
de fora são chamados de “ele”/“eles” (Tg 2.1-7).
Lewiston: Edwin Mellen, 1980, ■ G a r r i s o n , R. Re
Tiago 1.9-11 recomenda aos crentes pobres que se
demptive almsgiving in early Christianity. Shef
contradictions
(n s b t.)
and
■ C o u n t r y m a n , L.
accommodations.
gloriem no fato de que logo passarão a ter “alta
field:
posição” e aos crentes ricos que se gloriem na
a history of early Christian ideas on the origin,
js o t,
1993. ■ G o n z a l e z , J. Faith and wealth:
“ sua humilhação”. O ato de se gloriar reside na
significance and use of money. San Francisco:
transitoriedade de sua riqueza em comparação
Harper & Row, 1990. ■
com a perenidade da vinda do reino, mas Tiago
riches in the early church. Philadelphia: Fortress,
1 147
H e n g e l,
M. Property and
Ro m a
1974. ■ J o h n s o n , L. T. Sharing possessions: man
do Império Romano, em especial as dinastias
date and symbol of faith. Philadelphia: Fortress,
de Júho César e de Flaviano, tem importância
1981. ■ M
direta. 0 conhecimento desse periodo deve-se
aynard
- R e id ,
P. U. Poverty and wealth in
especialmente às obras Anais e Histórias, de Tá
James. Maryknoll: Orbis, 1987. T. E.
S c h m id t
cito, Vida dos Césares, de Suetônio, Histórias, de Dião Cássio, e Guerras judaicas e Antiguidades
ROLOS DO M A R M o r t o .
Ver m a n u s c r it o s
do m ar
M
o rto .
judaicas, de Josefo, além de inscrições, papiros e informações obtidas em moedas e outros ma
Roma
teriais que chegaram até nós (v.
Roma foi a principal cidade da Itália e a capital
M
il n s ;
A
v i- Y o n a h
B a l s d o n ; Jo nes &
) .
do Império Romano. Per causa de seu prestígio
Augusto (27 a.C.-14 d.C.) tornou-se, com
e importância, seu nome é usado para designar
toda a justiça, famoso por estabelecer e manter
tanto a cidade quanto a civilização romana.
a paz (a pax romana, embora houvesse um cus
1. Antecedentes históricos e culturais da ci
to para preservá-la; v.
W
engst) ,
por administrar
com eficiência, inclusive instituindo reformas
dade e do império 2. A cidade de Roma no século i d.C.
legais e financeiras, por defender os valores e a
3. Os romanos na Palestina
moralidade romanas tradicionais e por patrocinar as artes. De estilo de vida modesto, preferia ser
1. Antecedentes históricos e culturais da
conhecido como princeps (“primeiro cidadão”)
cidade e do império
a imperator (“imperador”). O principado de seu
1.1 A república romana. Roma começou como
enteado Tibério (14-37 d.C.) revelou-se mais tirâ
um pequeno assentamento na margem oriental
nico e terminou num reinado de terror. Os males
do rio Tibre. De acordo com a tradição, Roma foi
do poder autocrático tornaram-se ainda mais evi
fundada em 753 a.C. por Rômulo e governada por
dentes no governo de Gaio (Calígula, 37-41 d.C.),
reis, e se tornou uma república em 509 a.C., sen
que pode ser considerado até mesmo insano. Ele
do governada por um senado subordinado a dois
ofendeu os judeus ao ordenar que sua estátua
cônsules. Ela se expandiu com rapidez, conquis
fosse colocada no templo de Jerusalém (o legado
tando os países vizinhos e estabelecendo o domí
sírio Petrônio evitou o confronto mediante uma
nio de seu idioma, o latim. Do século iii ao século
tátíca de protelação). Depois do assassinato de
a.C., Roma tornou-se uma potência naval, der
Gaio, o reinado de Cláudio (41-54 d.C.) propor
rotando sua rival Cartago em duas das Guerras
cionou estabilidade com o desenvolvimento da
Púnicas. Os romanos também adquiriram a su
administração pública, com o fortalecimento do
premacia no Oriente com a derrota de Antíoco iii
império e com a generosa concessão da cidada
da Síria e a conquista da Macedônia e da Grécia
nia romana a muita gente. Ele prosseguiu com
(em 145 a.C., Corinto foi pilhada). A essa altura,
a politíca de Augusto, permitindo que os judeus
possuía um exército profissional conhecido por
tivessem liberdade de adoração e foi amigo de
sua disciphna e elevada eficiência.
Herodes Agripa i, a quem estabeleceu como rei
II
Depois de diversas lutas de classe, rivalidades
(v. 2.2 abaixo). No final de seu reinado, expulsou
políticas e guerras civis, a repúbhca acabou numa
os judeus de Roma, acontecimento que Suetônio
disputa pelo poder, inicialmente entre Pompeu,
[Cláudio, 25.4) afirma ter sido precipitado pelas
Crasso e Júho César (assassinado em 44 a.C.), e
agitações causadas por Chrestus (“por instigação
entre Marco Antônio e Otaviano, que surgiu vito
de Chrestus” [impulsore Chresto], talvez uma for
rioso em Áccio (31 a.C.). Em 27 a.C., Otaviano,
ma distorcida do nome Cristo, embora não haja
tomando para si o sobrenome Augusto, que signi
certeza disso; v.
fica “venerável” (cf. Lc 2.1), “restaurou a repúbli
cêntrico e extravagante de Nero (54-58 d.C.) foi
ca”. Esse foi 0 início de um império que duraria
marcado por um grande incêndio em Roma, pro
muitos séculos.
vavelmente acidental, mas atribuído aos cristãos.
1.2
St e r n ,
p. 113-7). 0 reinado ex
O começo do Império Romano. Para es Isso levou às primeiras perseguições que Roma
tudar os antecedentes do
nt
,
só a primeira fase
desencadeou contra os cristãos.
1 148
Ro m a
Por ocasião da morte de Nero, diferentes fac
desde que fossem compatíveis com as políticas
ções militares lutaram pela sucessão (68-69 d.C., o
do Estado. A religião romana e a política de Roma
Ano dos Quatro Imperadores) até que Vespasiano,
para a religião afetavam a maneira em que o povo
um plebeu e comandante do exército no Orien
romano recebia as religiões estrangeiras, inclusi
te, surgiu vitorioso e reinou de 69 a 79 d.C. Esse
ve 0 judaísmo e o cristianismo, uma vez que a
período assistiu à revolta judaica de 66 a 70 com
religião romana estava intimamente atrelada ao
a brutal pilhagem de Jerusalém pelo filho de Ves
governo de Roma. Um bom exemplo desse víncu
pasiano, Tito, que comemorou o acontecimento
lo é o cuho ao imperador, que parece originário
com seu arco em Roma. Depois disso, a Judeia
do Oriente, onde havia muito tempo os monarcas
tornou-se província imperial romana. Tito reinou
helênicos eram reconhecidos como salvadores di
apenas dois anos (79-81 d.C.) e foi sucedido por
vinos. O cuho ao imperador passou a ser funda
seu irmão Domiciano (81-96 d.C.), administrador
mental e tornou-se um teste de lealdade
eficiente que executou um programa de constru
Ep, 10.96,97), embora em Roma fosse inicialmen
ções públicas. Mas seu governo, como o de Tibério,
te restrito ao imperador falecido (cf. a adoração
terminou num reinado de terror. Ele reivindicou
aos ancestrais já existente) ou ao seu “gênio”
para si o título de “ senhor e deus”
(P
l ín io ,
( S u e t ô n io ,
(espírito da guarda). Nas províncias, e mais tar
Domiciano, 13) e foi o responsável por uma vio
de também em Roma, o imperador costumava
lenta perseguição aos cristãos. Em contraste com
partilhar seu cuho com a deusa Roma, que era
isso, os reinados de Nerva (96-98 d.C.) e Tl-ajano
personificação do poder e do espírito de Roma. [R.
(98-117 d.C.) trouxeram paz e estabihdade.
B. E d w ards]
Pode se entender por que os romanos são fa mosos por sua capacidade militar e administra
No entanto, o vínculo entre a rehgião e a po
tiva, suas leis e suas habilidades nos campos da
lítica se fazia sentir de outras maneiras. Os sacer
arquitetura, engenharia e construção de estradas.
dotes da rehgião estatal serviam de conselheiros
Profundamente devedores à Grécia nos campos
do Senado. Eram consultados para discernir
da hteratura, filosofia e belas-artes, eram tam
a vontade divina por intermédio de sinais e da
bém dotados de destreza na expressão de ideias,
purificação de áreas importantes [augures), de
com pensamento lúcido e linguagem precisa e
terminar o calendário e estabelecer leis rehgiosas
elegante (v.
Tradicional
[pontifices), fazer guerra de maneira rehgiosa-
mente, os romanos valorizavam a vida em família
mente correta [fetiales) e guardar e interpretar os
e as virtudes da gravitas (“ dignidade”) e pietas
Livros Sibilinos [duoviri [mais tarde decemvirí]
H
ow atson
e
B a n d in e l l i) .
( “devoção” ou “ sentímento de obrigação”). Mas,
sacris faciundis). Especialmente no século m a.C.,
como todos os povos, tinham seu lado sombrio, e
os sacerdotes, devido à sua função de interpretar
há muitos casos registrados de corrupção, imora
livros estrangeiros, conclamaram Roma a aceitar
lidade sexual, brutalidade e assassinato. Deve se
em seu meio certas religiões estrangeiras. No fi
ter o cuidado de não idealizá-los nem desprezá-
nal do período da repúbhca, os haruspices (lit.,
los como povo ou no que diz respeito às suas
“prognosticadores”)
reahzações.
associação sacerdotal. Seus membros receberam instrução para discernir a vontade divina median
1.3 A religião e a política romanas 1.3.1
Religião e política.
foram organizados como
Originariamente, te o exame das vísceras de animais sacrificados.
a religião romana era animista, envolvendo os
Em todas as partes da Roma do século i ha
espíritos dos bosques, das fontes de água e das
via lembranças dos deuses. No monte conhecido
montanhas. Os romanos também adoravam deu
como Capitólio, um grande templo foi dedica
ses antropomórficos, como Júpiter, Juno, Marte
do a Júpiter, Juno e Minerva, no primeiro ano
e Minerva, identificando-os com seus equiva
da repúbhca. Ele foi incendiado em 83 a.C, mas
lentes gregos. Estiveram sucessivamente sob a
um novo templo foi construído em 69 a.C. Em
influência dos etruscos, dos gregos e de vários
26 e 9 a.C. Augusto restaurou e ornamentou esse
povos orientais e de cultos estrangeiros que im
templo. Dessa maneira, o templo dominava a ci
portaram, inclusive os de Cibele, ísis e Mitra,
dade quando os primeiros cristãos chegaram a
1 149
Ro m a
Roma. Na orla sul do centro político — o Fórum
Deus (Rm 2.14-16), a Torá (Rm 3.21; 10.4) e a lei
— estavam localizados os templos de Saturno,
política (Rm 3.1-7). A atenção que Paulo dedica a
dos Castores e de Vesta e os espaços para ofícios
questões legais (Rm 2.12-17; 4.13-16; 7, passim)
religiosos dos pontifices e de outro membro de
e a certeza de que seus leitores “conhecem a lei”
sua associação religiosa, o rex sacromm ( “rei das
(Rm 7.1) talvez reflitam não apenas a preocupa
coisas sagradas” , posto religioso que representa
ção judaica com a Torá ou a aha porcentagem de
va os antigos reis de Roma). Na esfera doméstica,
advogados seculares da sociedade romana, mas
os lares (altares para os membros da família já
0 reconhecimento por parte do apóstolo de que
falecidos) e os di penates (deuses da despensa
os romanos viam a rehgião como um assunto de
da família) eram, para a mente religiosa romana,
ordem legal. A ênfase de Roma ao cerimonial le
lembretes constantes da ligação entre este mundo
gal na rehgião pressupunha que os deuses eram
e o outro.
racionais, ideia não partilhada pela maioria dos
A participação no ritual religioso era um es
cuhos estrangeiros introduzidos em Roma. O voto
tilo de vida para os romanos. A possibilidade
rehgioso de 217 a.C. (Lívio, Hi, 22.10) demonstra
de escolher uma rehgião e unir-se a um grupo
que um sacerdote romano podia tratar os deu
definido apenas por sua identidade rehgiosa era
ses como parceiros racionais, com quem faziam
algo desconhecido. Também eram desconhecidos
bons negócios, assim como uma pessoa conversa
grupos organizados exclusivamente com objeti
racionalmente com outra. A Carta aos Romanos
vos rehgiosos, com exceção das associações para
ressalta a ideia de a pessoa ser racional na reh
a formação de sacerdotes para a rehgião estatal,
gião. 0 Deus racional entrega os que o ignoram
as sinagogas judaicas e, mais tarde, as igrejas.
“a uma mentalidade condenável” (Rm 1.28). Agir
Embora houvesse collegia com o nome de certas
contra a própria mente significa agir contra Deus
divindades, os membros de tais associações pos
(Rm 7.20-24), e apresentar o próprio corpo a
suíam uma ocupação ou uma origem étnica co
Deus é a rehgião racional, acompanhada de uma
muns. É plausível que as igrejas em Roma, mais
mente renovada (Rm 12.1-12). 1.3.3
que as sinagogas, tenham mostrado que sua fé
Políticas e atitudes romanas para com
era o princípio organizador, visto que as igrejas
as religiões estrangeiras. Como uma das rehgiões
provavelmente eram constituídas de pessoas de
que mais tarde tentou se introduzir em Roma, o
uma variedade maior, tanto por origem étnica
cristianismo herdou estereótipos e políticas go
quanto por classes sociais.
vernamentais desenvolvidos a partir de contatos
1.3.2
Orientação legal. Em público e em parti entre o governo romano e rehgiões estrangeiras,
cular, a rehgião romana era essencialmente o de
como 0 judaísmo. Qualquer estudo acerca das
sempenho de um ritual. Por esse motivo, dava-se
relações entre igreja e Estado deve não apenas
grande destaque
Na
começar com a rehgião estatal de Roma, mas
hi, 13.10). Os grupos sacerdotais estavam intima
também considerar a forma em que Roma rece
mente ligados ao governo legislativo. Esse fato e
beu as rehgiões estrangeiras que chegaram antes
as minuciosas regras da rehgião romana apontam
do cristianismo, visto que estas não podiam ser
para a natureza essencialmente legal da religião.
introduzidas em Roma sem aprovação oficial do
Em vez de postular um relacionamento pessoal
Senado, e os romanos encaravam a rehgião como
com os deuses, a rehgião romana ensinava que
uma área de interesse do Estado. A partir do final
quem seguisse os rituais de maneira correta obte
da repúbhca, Roma passou a encarar com muita
ria um contrato que alcançava a “paz dos deuses”
suspeita todas as religiões estrangeiras. Ao mes
ipax deorum; cf. Rm 5.1,2, em que Paulo declara
mo tempo, se mostrava disposta a acolher uma
que, pela fé, os crentes têm “paz com Deus”).
rehgião estrangeira, quando percebia que seu cul
à
observância ritual
(P
l ín io ,
Uma vez que os romanos consideravam a reh
to oferecia solução para alguma necessidade não
gião um assunto essencialmente legal, é possível
resolvida em Roma. Por exemplo, o culto de As
interpretar em termos legais a apresentação que
clépio (conhecido em Roma como Aesculapius)
Paulo faz de seu evangelho na Carta aos Roma
foi levado de Epidauro para Roma. Além disso,
nos (v.
os sacerdotes romanos que guardavam os Livros
R
om anos,
C arta
aos) :
a lei moral geral de
1 150
Ro m a
Sibilinos pediram, em 293 a.C., a introdução des
nas regiões fronteiriças, como a Síria, onde as
sa religião para controlar uma peste. Seu templo
legiões ficavam estacionadas). Esses dois tipos
na ilha de Tibre foi dedicado em 1.° de janeiro
de governador eram de nível senatorial. Havia
de 291 a.C. Ah também se adorava a divindade
uma terceira classe de governadores, conhecidos
secundária Higieia, à qual os romanos mais tarde
como prefeitos ou procuradores, de nível infe
ligaram o nome de Salus, sua deusa italiana.
rior ao de cavaleiros, incumbidos de províncias
A introdução oficial de uma nova rehgião não
menores (e.g., Judeia). Os últimos eram, com
significava que a rehgião do Estado fora aban
frequência, especialistas em administração fi
donada. Na rehgião romana, não havia nenhum
nanceira. Todos os governadores tinham auto
mecanismo para abolir práticas tradicionais. Ao
ridade judicial e militar. O número de tropas
contrário, novos cultos foram levados a Roma,
disponíveis podia ser bem pequeno (e.g., uma
e se fizeram novas interpretações à medida que
coorte, consdtuída de trezentos a seiscentos
a história progredia. O exclusivismo rehgioso,
homens), mas em províncias fronteiriças esse
como o do judaísmo e do cristianismo, era, por
número podia chegar a três ou quatro legiões
tanto, algo desconhecido da mente rehgiosa ro
(uma legião consistia em cerca de 3 mil a 6 mil
mana. Embora inicialmente mais tolerante, Roma
soldados de infantaria e 100 a 200 soldados de
passou a ser mais cautelosa com as novas rehgi
cavalaria). Os governadores não podiam ser pro
ões depois de certos fatos ocorridos em 186 a.C.,
cessados por improbidade administrativa, senão
que levaram o governo a suspeitar das rehgiões
após 0 término de seu mandato.
estrangeiras. Nesse ano, o Senado romano proi
0 governo provincial romano tem sido vis
biu a prática das orgia ou bacchanalia dionisía
to mais como “ de supervisão que de execução”
cas. 0 culto a Dionísio havia entrado em Roma
(S h e r w in -W h ite , isb e ,
proveniente da região de Campânia, na Itália.
fica que pouqm'ssimas autoridades romanas es
Como resposta às medidas do Senado
1.196;
tavam envolvidas na atividade de governo: os
ILS 18), o povo de Roma reagiu com violência, e
detalhes da administração ficavam nas mãos das
[ cil
v. 3, p. 1027), o que signi
uma onda de crimes se espalhou pela cidade (Lí
autoridades municipais ou, no caso da Judeia, de
vio, Hi, 39.8-18). Esse incidente ajudou a modelar
conselhos de anciãos reunidos em toparquias. O
o estereótipo romano de que as religiões estran
governo recebia os impostos mediante um siste
geiras inevhavelmente provocavam desordens.
ma próprio de coleta. Em geral, respeitavam-se
Por isso, quando o cristianismo entrou em Roma,
as leis locais e os costumes rehgiosos, desde que
também foi encarado com suspeita.
não criassem dificuldades à administração. Os [M.
R ea s o n e r ]
cidadãos romanos estavam subordinados à lei ro mana. A cidadania podia ser concedida tanto a
1.4 na. adas
A
administração
provincial
roma comunidades inteiras quanto a indivíduos (e.g.,
As primeiras províncias romanas, situ no
Ocidente,
foram
conquistadas
homens com longo período de serviço nas uni
no
dades auxiliares do exército) e era transmitida de
século Hl a.C. Depois da expansão de Roma
pai para filho. Nas províncias orientais, os mem
em direção ao Oriente, foram acrescentadas a
bros das classes mais abastadas adquiriam a cida
Ásia (i.e., 0 lado ocidental da Turquia), a Cilí
dania mediante o uso de influência.
cia e a Bitínia, seguidas pela Síria e pelo Egi
[R. B.
E dw ards]
to. Augusto anexou várias outras províncias e Cláudio acrescentou a Britãnia (43 d.C.)
2. A cidade de Roma no século i d.C.
Sob a administração do império, havia dois ti
2.1 População. Com uma população de 1 mi
pos de províncias: públicas (ou consulares)
lhão de pessoas, aproximadamente, no século i a
governadas por procônsules, que estavam su
cidade de Roma atraía pessoas de todos os can
bordinados à autoridade do Senado, e em ge
tos do império e mesmo além. Durante o reinado
ral eram as mais ricas e organizadas; imperiais
de Augusto, uma força policial urbana (cohortes
governadas por legados, nomeados pelo impera
urbanaé) e unidades de prevenção de incêndio
dor (na maioria das vezes, províncias situadas
[vigiles] foram introduzidas com a finahdade de
1151
manter a ordem na cidade em constante cresci
reunir com objetivos religiosos nas sinagogas, e a
mento. À semelhança das grandes cidades de
observância do sábado pelos judeus não foi usada
hoje, durante o período imperial Roma era o lugar
contra eles. É verdade que os judeus foram expul
para se visitar. A afirmação de Paulo de que mui
sos de Roma em 139 a.C.
tas vezes havia planejado visitar os cristãos roma
di, 1.3,2), em 19 d.C.
nos, antes de escrever a carta para eles (Rm 1.13),
T ác ito ,
era o que provavelmente qualquer morador das
C âss io , Hi,
províncias diria antes de fazer os preparativos fi
25.4; At 18.1,2; alguns estudiosos acreditam que
nais para uma viagem à capital do império.
essa expulsão ocorreu em 41 d.C.). Os dois pri
An, 2.85.5;
( V alério M á x im o ,
(J osefo ,
S u e t ô n io ,
57.18.5) e em 49 d.C.
Fc ac
An, 18.3.5, § 81-4; Tibério, 36; DiAo (S u e t ô n io ,
Cláudio,
Já a partir do século iii a.C., Roma havia se tor
meiros casos foram provavelmente uma reação
nado um local que atraía pessoas de várias etnias.
romana à atividade prosehtista dos judeus, mas
A imigração de itahanos e gregos das províncias,
a terceira talvez tenha sido consequência da agi
que vinha ocorrendo desde a repúbhca, foi, no iní
tação dentro da comunidade judaica por causa do
cio do principado, ultrapassada em número pelos
cristianismo (v. 1.2 acima), Mas essas expulsões
imigrantes que chegavam da Síria, da Ásia Menor
não foram medidas permanentes, e pelo menos
(atual Ibrquia). do Egito, da África, da Espanha e,
nos dois últimos casos não se aplicaram a judeus
mais tarde, da Gáha e da Alemanha. A declaração
que eram cidadãos romanos.
de Juvenal de que “há muito tempo o rio Orontes
0 judaísmo de Roma estava intimamente li
transbordou no Tibre” (Juvenal, Sá, 3.62) mostra
gado ao de Jerusalém, Por volta de 140 a.C., os
como ele via o elevado número de pessoas de
sumos sacerdotes de Jerusalém enviaram emis
origem semítica vivendo na Roma do século i. O
sários a Roma a fim de neutralizar o poder dos
registro mais antigo de presença judaica em Roma
selêucidas. Mais tarde, no século i a.C,, os sacer
é de 139 a.C., e sabe-se que o número de judeus
dotes que estavam no poder apoiaram Júho César
residentes em Roma aumentou quando, em 62
(nâo Pompeu, que havia entrado no templo em
a.C., Pompeu levou um grande número de cativos
63 a.C.), e Herodes, o Grande, foi aliado políti
judeus para usá-los como escravos. Parece que já
co de Augusto. No século i d.C., os príncipes da
na ocasião em que Cícero defendeu Flaco, em 59
famíha de Herodes, como Agripa ii, que mais tar
a.C., os judeus constituíam um grupo de peso po
de teriam o direito de nomear sumos sacerdotes
Fl, 66). Na guerra civil
em Jerusalém, eram educados com o patrocínio
que teve início em 49 a.C., os judeus de Roma e de
imperial em Roma. Então, longe de ser um pri
todo 0 mundo mediterrâneo apoiaram Júho César
mo mal comportado do judaísmo de Jerusalém,
contra Pompeu, o que exphca por que os judeus
o judaísmo de Roma era, na verdade, um filho
prantearam a morte de César, em 44 a.C. (Suetô
dedicado. Foi pelas portas das sinagogas de Roma
lítico importante
n io ,
(C ícero ,
Júlio, 84.5). Calcula-se que havia pelo menos
que o cristianismo entrou na cidade. 2.3
40 mil judeus em Roma no século i d.C. Fontes li
Cristãos em Roma. Embora o cristianismo
terárias do flnal da repúbhca e começo do império
tenha surgido inicialmente como uma seita do
mostram, contudo, que os estrangeiros residentes
judaísmo, ã época em que Paulo fez sua primei
em Roma [peregnni) não eram plenamente acei
ra visita à igreja de Roma o rompimento com o
tos e sofriam discriminação racial. Há registros de
judaísmo já havia começado e deve ter sido to
que os africanos eram menosprezados (Lívio, Hi,
tal por volta de 64 d.C., quando Nero fez com
30.12.18; Salústio, Ja, 91.7), os judeus foram viti
que a perseguição se concentrasse nos cristãos,
mas da mesma discriminação
Fl, 66—69;
culpando-os pelo incêndio na cidade. A igreja de
Sá, 1.9.71,72) e até mesmo os gregos
Roma constituía uma parcela do cristianismo que
H or âc io ,
foram insultados
( C ícero ,
(C ícero ,
Ep, 16.4.2; Tc, 2.65;
Deor, 1.105; 2.13). 2.2
Paulo não podia ignorar. 0 potencial estratégico que representava provinha de sua íntima hgação
Judaísmo em Roma. Os estudiosos não sa com Jerusalém, de sua locahzação na capital do
bem dizer se o judaísmo recebeu o reconhecimen
mundo e de suas ligações com o restante do im
to de religião legalizada [religio lícita], mas parece
pério por meio dos grupos representados nas con
que os judeus tiveram permissão tácita para se
gregações em Roma.
1 152
Ro m a
2.3.1 Origens. A ligação que havia entre os
uma visita a essa igreja proporcionaram a Paulo
judeus de Roma e os de Jerusalém e o elemento
a oportunidade de se defender diante de pessoas
judaico do cristianismo romano primitivo condu
que tinham ligações íntimas com os grupos que
zem à provável conclusão de que o cristianismo
mais criticavam o ministério de Paulo e resistiam
foi levado a Roma por cristãos judeus provenien
ao seu trabalho: o judaísmo e o cristianismo de
tes da Palestina. Isso está confirmado na observa
Jerusalém. Desse modo, Paulo defende diante
ção de que judeus vindos de Roma estavam entre
dos romanos sua teologia (Rm 6.1,2) e sua es
03 ouvintes de Pedro em Jerusalém por ocasião
tratégia missionária (Rm 15.14-24). Ele exphca a
do Pentecostes (At 2.10). Os cristãos judeus mui
visita que pretende fazer a Jerusalém como um
to provavelmente entraram em diálogo com seus
esforço espiritual que vale a pena (Rm 15.25-32).
compatriotas, e isso resuhou em conflitos violen
Embora o cristianismo romano fosse constituído
tos e algumas conversões. Um desses conflitos
basicamente de gentios, como a carta revela, é
aconteceu possivelmente em 49 d.C., quando
provável que houvesse a presença de pessoas de
Cláudio expulsou os judeus de Roma. Em geral,
etnia judaica nas igrejas romanas.
interpreta-se que a breve descrição que Suetônio
2.3.3 Presença servil. Visto que muitos judeus
faz desse acontecimento indica que os judeus
tinham ido para Roma na condição de escravos, é
estavam discutindo entre si a respeito de Cristo.
provável que alguns judeus das igrejas em Roma
Como consequência, Priscila e Áquila, dois cris
pertencessem às classes servis (quer escravos,
tãos judeus, deixaram a Itáha quando Cláudio de
quer hbertos). No primeiro século do principa
terminou que os judeus fossem expulsos de Roma
do, os escravos de Roma eram quase todos de
(At 18.2).
origem estrangeira. Embora em Roma existissem
O componente judaico no início do cristianis
alguns estrangeiros nascidos hvres, a possibili
mo romano é sinal de que as igrejas nos lares se
dade de que muitos fossem estrangeiros servis
desenvolveram em associação com as sinagogas,
se harmoniza com a certeza de Suetônio de que
o que indica que o cristianismo em Roma não
Nero aplicou corretamente a lei romana quando
surgiu numa única igreja, mas numa pluralidade
determinou a crucificação dos cristãos
de igrejas domésticas. A saudação de Paulo na
Nero, 16.2; 19.3), visto que a lei romana proibia a
(S u e t ô n io ,
Carta aos Romanos não é dirigida a uma igreja
crucificação de seus cidadãos. A prova adicional
(cf. ICo 1.2; 2Co 1.1), mas “a todos os que es
da natureza servil da igreja de Roma são as refe
tais em Roma, amados de Deus, chamados para
rências aos que pertenciam a certas famílias ( “os
serdes santos” (Rm 1.7). Mesmo assim, Paulo
da casa de...” , Rm 16.10,11,
emprega o singular “igreja” quando se refere aos
padrão para designar classes servis.
a r a ],
um eufemismo
cristãos que se reuniam em Roma, ao mesmo
2.3.4 Ascetismo. G. La Piana sugere a existên
tempo que reconhece que eles o faziam em vá
cia de um elemento ascético na igreja romana do
rios lugares.
século
I.
Isso parece estar em plena consonância
2.3.2 Presença judaica. Por causa de sua pro
com algumas informações extrabíbhcas e com
vável origem nas sinagogas de Roma, o cristia
os indícios existentes na Carta aos Romanos.
nismo judaico manteve íntima ligação com suas
Ensinava-se o vegetarianismo na escola de Quin
raízes judaicas em Jerusalém. A carta de Paulo ã
to Séxtio, no início do século i, O filósofo Sótion
igreja de Roma é prova disso (Rm 1.16; 3.1-30;
convenceu Sêneca a adotar o vegetarianismo por
9— 11). Meio século depois. Tácito escreve a res
algum tempo
peito do cristianismo e o associa á Judeia
fo influente durante o reinado de Nero, Musônio
(T á c ito ,
(S ê n e c a ,
Ep, 108.22). Outro filóso
An, 15.44.2). O cristianismo romano deve ter in
Rufo, também pregava o vegetarianismo
cluído um elemento inconfundivelmente judaico.
org., Peri Trophes, p. 95). 0 vegetarianismo se re
Teologicamente, a presença judaica na igreja com
flete em 1Clemente 20.4, ao passo que o ascetismo
maior representação de povos do mundo obrigou
é mencionado em IClemente 17.1. Indícios bíbh
( H en s e ,
Paulo a esboçar seu evangelho de uma forma que
cos da existência de ascetismo no cristianismo
exphcasse o relacionamento entre Deus e toda a
romano encontram-se em Hebreus 13.9 e Roma
humanidade (Rm 2.1-16; 15.7-13). Uma carta e
nos 14.1-3,21. Na úhima referência, as diferentes
1 153
Ro m a
atitudes diante das práticas ascéticas distinguem
contatos com outros cristãos em Roma. Embora
fortes e fracos na igreja romana. 0 dualismo men
T. W. Manson afirme que Romanos 16 foi escrito
te/corpo, comum no ascetismo, é visto em Roma
à igreja em Éfeso, mais tarde as obras de H. Gam
nos 1.24, 6.19; 7.23,24 e 12.1,2. Mais tarde, as
ble, P. Lampe e W.-H. Ollrog demonstraram a in
tendências ascéticas do cristianismo romano se
tegridade desse capítulo com o restante da carta.
desenvolveram por meio de um de seus líderes,
Assim, com base em Romanos 16, deduz-se que
Taciano (prosperando em Roma entre 160 e 172
Paulo conhecia várias pessoas em Roma. A carta
d.C.). 0 movimento ascético na igreja de Roma à
foi escrita a fim de fortalecer um relacionamento
época de Paulo pode muito bem tê-lo levado a de
existente. Quando Paulo chegou a Roma, por vol
linear uma ética de responsabilidade: os cristãos
ta de 60 d.C. (At 28.14-16), a fim de ser julgado
de consciência forte deviam respeitar os mais fra
perante o representante de César, que era o pre
cos e os ascéticos (Rm 14.14-17; 15.1-3).
feito pretoriano, algumas coisas já haviam acon
2.3.5
Influência. Fica claro que já na época tecido: Nero havia assassinado a própria mãe, seu
em que Paulo escreveu a Carta aos Romanos a
conselheiro. Burro, havia morrido e Sêneca esta
influência d? igreja de Roma estava crescendo
va aposentado. Provavelmente estavam se espa
entre as igrejas do mundo mediterrâneo. 0 desejo
lhando os boatos de que o governo imperial não
pouco característico de Paulo de visitar a igreja
parecia tão estável quanto no período inicial do
em Roma, que ele não havia fundado (Rm 1.9-13;
reinado de Nero. De acordo com a tradição, Paulo
cf. 15.20), e sua necessidade do apoio e do sus
foi libertado depois de seu primeiro julgamento.
tento desses cristãos (Rm 15.22-24) mostram a
Se o testemunho de Paulo “chegou aos limites do
influência dessa igreja no mundo mediterrâneo.
Ocidente” [ICl, 5.7), é possível que o apóstolo
A influência da igreja romana também se vê em
tenha então chegado à Espanha, como pretendia
IClemente, carta escrita na remota data de 96
(Rm 15.4). Portanto, é muitíssimo provável que
d.C., na qual se diz que a igreja romana espera
Paulo tenha sido detido e mantido preso outra
que suas instruções oficiais sejam seguidas pela
vez em Roma, onde foi executado, em algum mo
igreja-irmã de Corinto {_ICl, 7.1-3; 62.1-3; 65.1).
mento entre 64 e 67 d.C. Ao citar “as colunas da
Embora a igreja em Roma não tenha sido fun
igreja” , IClemente menciona Pedro em primeiro
dada por um apóstolo, Paulo está associado com
lugar e depois Paulo como exemplos de perse
0 início de sua história. Na condição de apóstolo
verança em meio ao sofrimento. Hoje em dia, é
aos gentios, ele a considerava incluída no escopo
possível ver uma escultura de ambos os apóstolos
de seu ministério (Rm 1.11-15). 0 entendimento
batizando seus carcereiros no cárcere Mamertino
acerca do relacionamento de Paulo com o cristia
(a prisão do governo de Roma), um testemunho
nismo romano antes de sua visita, em 60 d.C.,
acerca da tradição de que em Roma ambos sofre
afeta a noção que se tem da história do início
ram por causa de sua fé. São desconhecidos os
da igreja e, por conseguinte, a interpretação da
detalhes do segundo julgamento de Paulo (se é
Carta aos Romanos. Embora Romanos seja a mais
que houve) e de seu martírio. A tradição diz que
sistemática das cartas de Paulo, não se pode ne
ele foi decapitado na via Ostiense aproximada
gar sua natureza ocasional. A influência exercida
mente na mesma época e lugar em que Pedro foi
pelo cristianismo romano provavelmente signifi
executado
(E u s é bio ,
Hi ec, 2.25.7,8). [M.
cava que os cristãos de todo o império sabiam
R ea s o n e r ]
algo acerca da igreja romana. A afirmação de Paulo de que “a vossa fé é anunciada em todo
3. Os romanos na Palestina
o mundo” (Rm 1.8) é provavelmente mais que
3.1
uma lisonja de quem escreve uma carta. Antes
no romano na Palestina é complexa. Entre 66 e
mesmo de 50 d.C., Paulo se havia encontrado
63 a.C., Pompeu comandou sua famosa campa
com cristãos procedentes de Roma, depois que
nha no Oriente, durante a qual foi chamado à
Áquila e Priscila vieram daquela cidade para Co
Palestina pelos dois filhos de Salomé Alexandra,
Até Herodes, o Grande. A história do gover
rinto (At 18.1,2, cf. Rm 16.3-5). Não há dúvida
por causa de uma disputa que ambos travavam
de que nos círculos paulinos os cristãos tinham
pela sucessão ao trono. Ele capturou Jerusalém
1 154
Ro m a
e entrou no templo, mas ordenou sua purifica
foi arruinado pelo derramamento de sangue, in
ção e pôs Hircano de volta como sumo sacerdote.
clusive o massacre de alguns galileus (ao qual
Depois disso, a Síria tornou-se província impe
possivelmente existe uma alusão em Lc 13.1) e
rial, quando Decápolis e Samaria, agora libertas
a matança de muitos samaritanos num incidente
do governo judaico, passaram para o controle da
hediondo, que resuhou em protestos diante do
Síria. Os judeus mantiveram a Judeia, a Galileia,
legado Vitého, na Síria, e na convocação de Pila
a Idumeia e a Pereia como reinos-satélites, depen
tos de volta a Roma. De acordo com Eusébio, ele
dentes de Roma. Júlio César nomeou Antípater
acabou se suicidando.
procurador da Judeia. Seu filho Herodes, que ha
Em 41 d.C., Herodes Agripa i, que havia go
via sido governador da Galileia, ganhou de Roma
vernado o norte da Palestina e a Galileia, foi feito
o título de rei dos judeus, que ele teve de tornar
rei dos judeus (cf. At 12), mas em 44 d.C. a Pales
reahdade por força das armas. Herodes reinou de
tina voltou a ser administrada por governadores
37 a 4 a.C. Ele amphou seus territórios e restau
romanos. Entre 66 e 70, houve a trágica guerra
rou com suntuosidade o templo de Jerusalém,
judaica, com o cerco e a queda de Jerusalém, em
acrescentando-lhe aspectos arquitetônicos greco-
70 d.C. Os patriotas judeus resistiram em Massa
romanos. Herodes era, ao mesmo tempo, amante
da até 73 d.C. e cometeram suicídio para não se
do helenismo e admirador da cultura romana. Ele
submeter a Roma. Entre 132 e 135, a revoUa de
incentivou a educação e os valores sociais hele
Bar Kokhba selou finalmente o destino da Judeia,
nísticos e construiu teatros, anfiteatros e outras
e Jerusalém tornou-se colônia romana (Aelia Ca
obras para o bem-estar do povo, como os aque
pitolina) habitada por não judeus.
dutos. Sob seu governo, a Judeia foi economica
Na Palestina, a atitude dos judeus, líderes e
mente próspera. Mas ele também foi violento e
povo, diante dos romanos variava imensamente.
cruel. 0 massacre dos inocentes em Belém (Mt 2;
Os governantes herodianos e seu grupo eram na
embora sem confirmação
turalmente pró-Roma. Os sumos sacerdotes em
de fontes externas, é consistente com o caráter
geral também favoreciam a cooperação, assim
de Herodes.
como os saduceus. Pelo menos alguns essênios
V. J esu s , n a s c im e n t o d e ) ,
3.2
Depois de Herodes, o Grande. Com a mor se retiraram para o deserto, ao passo que os ze
te de Herodes, seu reino foi dividido em três, e
lotes se envolveram na rebelião armada. Para os
Herodes Antipas tornou-se tetrarca da Galileia
fariseus, sua lealdade suprema estava na adesão
e da Pereia (4 a.C.-39 d.C.), Filipe, tetrarca de
absoluta à Lei e às tradições mosaicas, de forma
liaconites e Itureia (4 a.C-34 d.C.), e Arquelau,
que se recusavam a fazer juramento de lealdade
etnarca da Judeia, Idumeia e Samaria (4 a.C.-6
a Herodes
d.C.; cf. Mt 2.22; Lc 3.1). 0 governo de Arquelau
ativamente ao domínio romano, porém outros fo
terminou em levante, e ele foi deportado. Então
ram mais submissos. Os judeus comuns devem
a Judeia passou para o controle de governadores
ter lutado apenas para sobreviver numa socieda
romanos.
de em que havia grande desigualdade entre ricos
Pôncio Pilatos foi governador da Judeia entre
(J osefo ,
An, 17.42). Alguns resistiram
e pobres e muita oportunidade para opressão.
26/27 e 36 d.C. Tácito {An, 15.44) refere-se a ele
Ver também
H ebreus , C arta a o s ; ju d aísm o e
como procurador e menciona que “ Christus” foi
Novo
morto por ele quando Tibério era imperador. En
GIÕES GRECO-ROMANAS; RoMANOS, C a RTA AOS.
tretanto, uma inscrição encontrada em Cesareia,
o
T e s t am e n to ; P a u l o em A tos e n a s car tas ; r e u -
dntb:
R om an A d m in istration ; Rom an E a st; Rom an
capital romana da Judeia, mostra que o melhor
Em perors; Rom an Empire; R om an G o v e rn o rs o f P a le s
título para ele era “prefeito”. Ele era do nível da
tine; R om an L a w a n d L e g a l System; Rom an M ilit a r y ;
cavalaria, presumivelmente um antigo tribuno
Rom an P o li t i c a l System; Rom an S o c ia l C lasses.
militar, tendo sob seu comando cinco coortes de Dictiona
infantaria e um regimento de cavalaria. Ele tinha
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autoridade absoluta em sua província, mas era
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portante sobre a autoria da Carta aos Romanos.
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Ela foi escrita por Paulo (Rm 1.1). Mais importan
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te é o que a carta nos conta a respeito de Paulo
Clarendon, 1963. • S t e r n , M., org. Greek and Lat
— em particular como ele entendia seu comissio
V.
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namento (v.
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0 apostolado e o consequente compromisso de
P a u l o , con ver são e c h a m a d o de )
para
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pregar o evangelho (Rm 1.1,5,12-17; 15.15-24).
las: Southern Methodist University Press, 1970.
É fato que Paulo, o Judeu, ou preferivelmente
K. Pax romana and the peace o f Jesus
Paulo, o Israelita (Rm 11.1), acreditava que havia
• W atson,
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scm ,
W il k e n ,
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sido comissionado para ser apóstolo aos gentios
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(Rm 11.13), 0 que proporciona à carta seu caráter
Yale University Press, 1984. •
inconfundível e seu lugar de importância.
W il lia m s ,
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Jews among the Greeks and Romans: a diasporan sourcebook. London: Duckworth, 1998. R.
B.
E dwards
e M.
1.2 Data. Quanto à data, o fato mais impor tante é que Paulo escreveu a carta numa época
R ea son e r
em que pensava ter concluído uma fase impor tante de seu trabalho — a evangehzação do qua
R o m a , c id a d e d e .
Ver
drante nordeste do Mediterrâneo (Rm 15.19,23).
Ro m a.
A informação de que estava na iminência de R o m a , c r is t ia n is m o e m .
Ver
partir para uma visita a Jerusalém (Rm 15.25) se
Ro m a.
harmoniza com o quadro mais abrangente, apre R om anos, C arta
sentado em Atos, de uma última visita a Jeru
aos
Romanos é, ao mesmo tempo, a menos contro
salém no que se revelou o final de seu trabalho
versa das principais cartas do
e a mais impor
na Ásia Menor e na Grécia (At 20). Isso aponta
tante. É menos controversa nas questões de quem
sem dúvida para uma data em meados da década
nt
escreveu, o que escreveu, quando escreveu e para
de 50 (55-57 d.C.), embora uma minoria de estu
quem escreveu, questões de difícil definição na
diosos defenda uma data mais recuada — 51/52
É importan
d.C., o que é implausível. 0 fato de Paulo, em
tíssima por ser, dentre as que chegaram até nós,
maioria dos demais escritos do
Romanos, ter sentido a necessidade de apresentar
a primeira exposição teológica bem desenvolvi
uma fundamentação teológica para o pagamento
nt.
da por um teólogo cristão. Trata-se de uma obra
de impostos talvez reflita uma situação de agi
que desde o início tem exercido uma influência
tação em Roma sobre essa questão no início do
incalculável na formação da teologia cristã — po
reinado de Nero, ou seja, por volta do mesmo
dendo se afirmar com segurança que é a mais
período (56-58 d.C.;
importante obra de teologia cristã de todos os
a questão da data exata é de pouca importância,
tempos. Essa característica dupla de Romanos é
além da clara implicação de que a carta assinala
importante, pois significa que a análise da carta
um clímax na obra missionária de Paulo.
T âc ito ,
An, 13). No entanto,
pode deixar logo para trás as questões prelimina
1.3 Local de origem. A correlação entre Ro
res e se concentrar no conteúdo teológico real,
manos 15.25 e Atos 20 também deixa implícito
sem se distrair em demasia com desconhecidos e
0 local de origem, visto que Atos 20.3 mencio
irritantes dados introdutórios.
na o tempo de três meses, passados na Grécia por
1. Autor, data e local de origem
ocasião da viagem final a Jerusalém. Isso suge
2. Destinatários
re Corinto, a principal base de Paulo na Grécia,
3. Propósitos
e se harmoniza com a informação de Romanos
1 157
KOMANOS, LARTA AOS
15: Febe provinha de Cencreia, um dos portos de
por que é possível e plausível que Pedro seja con
Corinto (Rm 16.1,2), e Gaio e Erasto (Rm 16.23)
siderado 0 fundador da igreja em Roma e, mais
provavelmente moravam em Corinto (ICo 1.14;
importante, por que a carta de Paulo é tão domi
NewDocs,
nada pelo tema “ primeiro do judeu e também do
V.
4, p. 150-1). O mais importante é
que um período de très meses passados num úni
grego” (Rm 1.16; 2.9,10; 3.9,29; 9.24; 10.12).
co lugar daria a Paulo tempo para refletir, criar e
2.2 "... e também do grego”. Está implícito
ditar aquela que, dentre suas cartas, é a que foi
na carta, especialmente em Romanos 11.13-32
elaborada com o maior cuidado.
e 15.7-12 (v. tb. Rm 1.6,13; 15.15,16), que nos
2. Destinatários
to, atraídos para a igreja de Roma. Isso significa
Quase não se questiona a quem a carta foi dirigi
ser levado a participar de uma herança essencial
da. Em Romanos 1.7, alguns manuscritos omitem
mente judaica, o que resultaria inevitavelmente
a referência a Roma, mas a melhor expUcação
nas questões sobre as identidades judaica e cristã.
para essa omissão é que a carta, originariamente
Isso já é suficiente para expUcar alguns dos ele
dirigida a um público mais específico, teve mais
mentos e temas característicos da carta: por exem
anos iniciais os gentios foram, em algum momen
tarde um uso mais geral. A questão mais impor
plo, “quem/o que é um judeu?” (Rm 2.25-29);
tante é: quem eram os cristãos de Roma e por
quem são “os eleitos de Deus”? (Rm 1.7; 8.33;
que Paulo, que nunca tinha visitado Roma, achou
9.6-13; 11.5-7,28-32); a afirmação culminante de
necessário escrever para eles?
Romanos 9— 11 e 15.8-12. Não há como dizer
2.1
“Primeiro do judeu...”. Não sabemos com certeza se as agitações ocorridas na comu
como o cristianismo começou em Roma nem
nidade judaica em 49 d.C. tiveram lugar entre os
quais foram os apóstolos que fundaram a igreja
judeus que acreditavam e os que negavam que
naquela cidade. Sabemos, no entanto, que no sé
Jesus era o Messias ( “Chrestus”) ou entre os ju
culo I havia uma grande comunidade judaica em
deus que acolhiam bem os gentios e aqueles (in
Roma, calculada entre 40 mil e 50 mil pessoas.
clusive cristãos judeus) que não os acolhiam.
Também sabemos que houve uma missão cristã
Além disso, caso seja grande o número de
ativa entre os da “circuncisão” (G1 2.9). Mesmo
judeus cristãos entre os que foram expulsos em
a missão aos gentios deve ter descoberto que o
49 d.C. (v. At 18.2), podemos ainda inferir que
terreno mais fértil eram os prosélitos gentios e
as igrejas romanas perderam boa parte de seus
as pessoas tementes a Deus que se associavam
líderes e membros. Era previsível que a liderança
às muitas sinagogas da Diáspora, como indicam
dos gentios tivesse se tornado a regra. Depois que
também Atos e a contínua identificação de Paulo
0 decreto de Cláudio começou a perder força e
com essa instituição judaica, implícita em 2Corín-
os judeus cristãos começaram a voltar a Roma,
tios 11.24. Além do mais, temos a informação inte
é bem possível que tenham surgido algumas ten
ressante de que muitos judeus foram expulsos de
sões entre os antigos e os novos crentes. É exa
Roma, provavelmente em 49 d.C., por causa das
tamente essa a circunstância que parece refletida
agitações “provocadas por Chrestus”
em Romanos 14.1 e 15.1,7.
(S uetônio ,
Cláudio, 25.4), sendo “Chrestus” quase univer
2.3 0 contexto social. Há outros dois fatores im
salmente entendido como uma referência a Cris
portantes que completam, na medida do possível,
to. E a quantidade de nomes de escravos entre
o contexto da carta. 0 primeiro é que a comunida
aqueles a quem Paulo envia saudações em Ro
de judaica era influente em Roma, porém bastante
manos 16 (pelo menos 14 de 24) sugere que não
menosprezada, para não dizer odiada, pelas vozes
poucos eram descendentes de judeus cativos tra
mais influentes da intelectualidade romana. Isso
zidos para Roma, especialmente após Pompeu ter
se devia em parte ao fato de ser uma comunidade
subjugado a Palestina, em 62 a.C., que vieram a
grande e em parte ao tratamento preferencial que
crer em Jesus como o Messias.
havia recebido de Júlio César e de Augusto e —
A implicação óbvia, portanto, é que o cris
provavelmente o mais importante — ao número de
tianismo fincou pé em Roma no ambiente das
gentios que eram atraídos para o judaísmo. Não há
muitas sinagogas de Roma. Isso talvez explique
dúvida de que esses fatores também provocaram
11 58
Ro m a n o s , C arta aos
tensões entre judeus e gentios, que são óbvias na
Alguns intérpretes inferem que Paulo esta
carta e ajudam a explicar determinadas passagens,
va tentando evangelizar Roma (Rm 1.13-15).
como Romanos 1.16 e 12.14— 13.7.
Isso não significa que ele nâo reconhecesse que
Também sabemos que a comunidade judai
já havia cristãos em Roma (cf. Rm 1.8; 15.14).
ca não tinha uma autoridade central em Roma,
No entanto, com base em Romanos 15.20, tem
como tinha em Alexandria. Isso indica uma or
se alegado que aos olhos de Paulo as igrejas ro
ganização mais fragmentada e, provavelmente,
manas não tinham sido fundadas com instrução
grande diversidade entre as diferentes sinagogas.
de um apóstolo e que ele procurou suprir essa
Existe a implicação análoga de que faltava ho
deficiência. Mas isso também é improvável, visto
mogeneidade organizacional à comunidade cristã
que Paulo considerava fundar igrejas uma obra
(o que está implícito no fato incomum de Paulo
apostólica (ICo 9.1,2), e o pequeno constran
nâo falar de uma “igreja” , no singular, existente
gimento evidente em Romanos 1.11,12 é exata
em Roma). Assim como sabemos os nomes de
mente o que esperaríamos de Paulo ao escrever a
umas dez sinagogas em Roma, também sabemos
igrejas em cuja fundação ele não tivera nenhum
de várias igrejas em casas (cinco podem estar im
envolvimento. A tese mais plausível é que Paulo escreveu a
plícitas em Rm 16.5,10,11,14,15). Tudo isso mostra que é possível que grupos
Roma com o objetivo de que as igrejas ali fos
cristãos fossem constituídos de um espectro (às
sem uma base de apoio para sua planejada mis
vezes de composição mais judaica, às vezes mais
são à Espanha. É o que ele diz explicitamente
gentílica, na maioria das vezes misturado) que
(Rm 15.24,28), e não há motivo para duvidar dis
se sobrepunha substancialmente ao espectro das
so. A igreja em Filipos havia desempenhado esse
sinagogas. Paulo conhecia suficientemente bem
papel. No caso de Romanos, a carta seria uma
as pessoas e as circunstâncias (Rm 14.1— 15.7;
tentativa de apresentar o evangelho que até então
16.3-15) e podia elaborar seu ensino e sua exor
havia pregado com tanto êxito e que pretendia
tação com base nisso. Entre outras coisas, ele
pregar na Espanha (Rm 1.16,17). No final da pri
tinha consciência de que sua carta seria lida
meira fase (ou fase anterior) de sua grande estra
não perante um grupo imenso de cristãos (sal
tégia missionária (Rm 15.19,23), ele aproveita a
vo algumas exceções, uma reunião dessas seria
oportunidade para expor em minúcias a teologia
demasiadamente perigosa numa capital imperial,
do evangelho em que basearia seu pedido de aju
que desconfiava de reuniões nâo autorizadas), e
da aos cristãos de Roma.
sim de forma repetida, perante várias igrejas nas
3.2
Propósito apologético. A implicação de
casas, onde diferentes facetas de sua exposição
passagens como Romanos 1.16, 3.8 e 9.1,2, para
causariam diferente impacto entre as diferentes
não mencionar o fato de que Paulo recorre repe
congregações. Isso talvez explique a combinação
tidamente ao estílo de diatribe, é que o apóstolo
de ensino mais geral e exortação específica, que é
achava que ele próprio e sua maneira de enten
um dos aspectos da carta.
der 0 evangelho estavam sendo atacados e que havia necessidade de uma explicação. Por esse
3. Propósitos
motivo, tem se chegado à conclusão óbvia de que
Dentre as questões introdutórias relacionadas com
a carta funciona como uma apologia que Paulo
Romanos, em anos recentes o debate mais acalo
faz de seu evangelho e, dessa maneira, também
rado tem girado em torno do(s) propósito (s) de
uma defesa de si mesmo, pois o trabalho de toda
Paulo ao escrever a carta. Em particular, três pro
a sua vida sempre esteve ligado ao evangelho que
pósitos têm sido minuciosamente escrutinados.
ele pregava.
3.1
Propósito missionário. Esse intento surge
A apologia é dirigida a Roma. Mediante a
especialmente em Romanos 15.18-24,28: Paulo,
longa introdução de Romanos 1.2-6, incluindo
na condição de “apóstolo dos gentios”, ansioso
0 que parece ser uma fórmula credal comum
por arrebanhar “a plenitude dos gentios” (i.e., “ o
(Rm 1.3,4), Paulo apresenta seu cartão de visita e
número máximo de gentios” , Rm 11.13-15,25,26),
revela suas sinceras intenções. Será que ele espe
escreve à capital do império gentílico.
rava que os cristãos de Roma o apoiassem na fase
1159
R o m a n o s , C arta aos
seguinte de sua missão (à Espanha]? Ou será que
o propósito exclusivo, mas nem por isso secundá
ele já pressentia que os grupos cristãos de Roma,
rio, de incentivar seus destinatários a exercitar no
a capital do império, estavam destinados a se tor
dia a dia o que o evangelho e as promessas de
nar, no devido tempo, cada vez mais influentes na
vem significar na prática. Acima de tudo, dá a de
obra cristã em outras regiões do império? Também
vida importância ao que é, em Romanos 15.7-13,
é plausível a ideia de que Paulo apresentou uma
obviamente uma expressão culminante e uma
exposição completa de seu evangelho como uma
conclusão apropriada do tema principal da car
espécie de ensaio flnal para sua autodefesa em
ta. Em contraste, tentar 1er Romanos 12.1— 15.13
Jerusalém e, desse modo, esperava obter o apoio
como uma exortação generalizada e generalizan-
das congregações de Roma em qualquer confronto
te, baseada em parte nas experiências de Paulo
que porventura tivesse em Jerusalém. A probabi
com a igreja em Corinto, dificilmente explicará o
lidade de um confronto com cristãos, não apenas
caráter pecuUar da exortação encontrada na car
com os judeus “ descrentes” , era algo que estava
ta, a paixão com que Paulo escreve ou o clímax
em sua mente, como Romanos 15.31 deixa claro.
de Romanos 15.7-13.
Romanos 15.30 não diz se ele imaginava que as
Além disso, supondo-se que Romanos 16 faz
congregações em Roma pudessem de fato enviar
parte da carta original, é evidente que Paulo man
apoio material ou se ele estava pedindo as orações
tinha contato bem próximo com vários membros
delas (aos olhos de Paulo, um apoio real).
das igrejas de Roma e, por esse motivo, devia
3.3
Propósito pastoral. Em anos recentes. ter um conhecimento razoável das peculiarida
Romanos 14.1— 15.6 tem adquirido uma impor
des dessas igrejas e das circunstâncias que atra
tância fundamental nas tentativas de esclarecer o
vessavam. Com base em Romanos 16, também
propósito de Romanos: Paulo estava escrevendo
podemos ver que Paulo estava escrevendo para
para curar divisões em potencial ou reais entre
apresentar e recomendar Febe (Rm 16.1,2), mas
as igrejas em Roma. Com isso, as exortações de
esse seria um propósito secundário e sozinho di
Romanos 14.1 e 15.7 fazem bastante sentido,
ficilmente seria o motivo de toda a carta.
especialmente levando-se em conta o contexto
3.4
Os propósitos de Romanos. Para cada
já esboçado (em particular, 2.2 acima). Essas
um dos motivos apresentados acima é possí
tentativas têm sido enfraquecidas pelas identifi
vel encontrar um apoio claro na própria carta.
cações demasiadamente apressadas, em que os
Esse fato aponta para a conclusão óbvia: Paulo
“fracos” e os “fortes” são simplesmente judeus e
não tinha em mente apenas um propósito, mas
gentios, e pela hipótese da existência de grupos
vários, quando a escreveu. De certa maneira, a
inconfundíveis, mas também com diferenças gri
natureza da carta exige tal conclusão, pois ne
tantes entre judeus e cristãos. A probabihdade é,
nhum dos motivos propostos consegue exphcar
em vez disso, que havia sinagogas judaicas que
isoladamente o documento em todo o seu esco
eram frequentadas por gentios tementes a Deus,
po. Pelo contrário, é presumível que a carta tenha
por judeus cristãos e por gentios cristãos. Tam
essa natureza porque, pelo fato de Paulo ter vá
bém é provável que houvesse um amplo espectro
rios propósitos em mente, ele preferiu expor do
de grupos cristãos, alguns com um número maior
modo mais completo sua maneira de entender
de gentios (em que estes predominavam, embo
as boas-novas de Cristo, inclusive as implicações
ra não fossem menos atraídos pela sinagoga) e
práticas dessa sua maneira de entender. Por es
outros com mais judeus (em que estes predomi
tar em um dos pontos de transição mais impor
navam, embora não fossem conservadores das
tantes de todo o seu ministério, ele entendia que
tradições e costumes judaicos).
era necessária e desejável uma declaração bem
Isso pode explicar a natureza da carta como
elaborada, que explicasse qual era o evangelho
um todo, e a de Romanos 14.1— 15.6 em relação
que ele pregava, por que como judeu ele o pre
ao restante da carta. Ou seja, Paulo se lança a
gava e como esse evangelho iria se concretizar
demonstrar que, em sua natureza, o evangelho e
no cotidiano daquela comunidade. A completu-
também as promessas a Israel destinam-se igual
de dessa declaração, exigida pela multiplicidade
mente a judeus e gentios. Procede assim não com
de objetivos que procurava alcançar, é que põe
11 60
Ro m a n o s , C arta aos
a carta acima do imediatismo das circunstâncias
indicaria com clareza para um público de boa
que motivaram sua escrita e lhe dá, se não uma
cultura a ênfase da carta.
virtude atemporal, pelo menos uma importância que extrapola o momento de sua redação.
4.1.2 Estrutura epistolar e corpo da carta. Ou tra ideia que surge como resultado do estudo da forma literária é a importância da relação entre
4. Forma literária e coerência
a estrutura epistolar e o corpo da carta. Não se
4.1 A forma literária. Em anos recentes, um se
trata apenas de reconhecer que a estrutura é im
gundo tema de debate tem sido a natureza lite
portante para a interpretação do todo (Romanos
rária da carta. Boa parte desse debate não tem
não é um mero tratado dogmático que se inicia
chegado a conclusão alguma e tem sido, de certa
em Rm 1.17). Como já foi dito, a inserção de Ro
maneira, uma discussão sem sentido sobre até
manos 1.2-6 na estrutura normal da saudação dá
que ponto são apropriadas as categorias tiradas
a esses versículos a força de um prólogo de toda
de outras formas literárias e retóricas — “epiditi-
a carta. De igual modo, o fato de que Romanos
ca” (demonstrativa), “ deliberativa” (persuasiva)
I.16,17 funciona como clímax da introdução e
e “judicial”, para citar apenas três. Contudo, visto
como declaração temática do que vem em se
que essas formas quase sempre estão misturadas
guida indica que Paulo tinha a preocupação de
com outras e que diferentes categorias podem e
integrar a estrutura no corpo da carta. Chega-se à
têm sido aplicadas à Carta aos Romanos, não é
mesma conclusão quanto à repetição dos planos
clara a razão desse exercício. O fato é que, quais
de viagem de Paulo (Rm 1.8-15; 15.14-33) e das
quer que tenham sido as convenções conhecidas
afirmativas sobre o fato de ele ter sido alcançado
e utihzadas por Paulo, a forma que ele elaborou
pela graça de Deus, feitas antes e também depois
é peculiar e única em sua natureza e conteúdo.
do corpo da carta (Rm 1.2-6; 15.14,15). Dessa
Dito isso, a investigação sobre a forma literária e
maneira, ele mostra que a exposição que está en
os paralelos retóricos tem contribuído com várias
tre essas passagens é uma expressão daquela gra
ideias importantes para o entendimento que exis
ça (cf. Rm 1.12) e a base teológica do pedido de
te hoje acerca de Romanos.
apoio com que conclui a reapresentação de seus
4.1.1
Introdução e conclusão. Um desses es planos de viagem (Rm 15.30-33).
clarecimentos é sobre a natureza epistolar do
4.1.3 Diatribe. O terceiro ponto importante
documento, como se pode ver pelo seu início e
que surge no estudo de Romanos como forma
conclusão. Os paralelos literários mostram que
retórica é o reconhecimento renovado do estilo
Paulo tinha consciência clara das convenções
diatríbico e dialogai empregado por Paulo — as
existentes e estava interessado em empregar
pecto que se vê em momentos cruciais de sua ar
um meio que, pelo menos no início, fosse fami-
gumentação (Rm 2.1-5,17-29; 3.27-4.2; 9.19-21;
Uar aos destinatários, por mais que ele tivesse
II.17-24). Uma das características da diatribe é
adaptado o documento para atingir seus objeti
criticar a arrogância e corrigir a vaidade. S. K.
vos. Por isso, ele escreveu como o mestre sábio
Stowers ressalta que a função típica da diatri
que por meio de formas conhecidas conduz os
be, mais do que um recurso de polêmica contra
destinatários à mensagem real da carta. Para o
um adversário, era o questionamento crítico, no
comentarista de nossos dias, é igualmente im
contexto de uma escola filosófica, de um colega
portante 0 fato de que os paralelos literários com
estudante com o objetivo de conduzi-lo à verda
a introdução e a conclusão de Romanos mos
de. Desse modo, ter consciência das convenções
tram não apenas quanto Paulo se conformava
retóricas da época prevenirá o leitor de hoje do
às convenções, mas também em que e como
perigo de ler passagens como Romanos 2 como se
ele se afastava delas. Quanto mais padroniza
fossem expressão de uma polêmica absoluta con
das fossem as convenções, mais pronunciados
tra um adversário ou indicação de uma ruptura
seriam para os destinatários os acréscimos e as
total entre duas entidades monolíticas —
modificações feitos pelo apóstolo. Em particu
e cristianismo. O que as passagens diatríbicas in
lar, o desenvolvimento considerável e esmerado
dicam é que Paulo está envolvido num diálogo
(Rm 1.2-6) da saudação costumeira (Rm 1.1,7)
crítico com seus compatriotas judeus e irmãos em
1161
judaísmo
Ro m a n o s , C arta aos
Cristo. Esse diálogo diz respeito à importância da
depois de Rm 14.23 e de Rm 15.33) mostra que é
nova "seita filosófica” no âmbito do judaísmo
possível que tenham circulado cópias mais breves
(cristianismo) no que concerne à sua relação com
da carta. 0 consenso é que a carta foi abreviada
0 judaísmo, de onde se originou, e com os outros
(para Rm 1.1— 14.23) por influência marcionita,
judaísmos da época.
sendo Romanos 16.25-27 acrescentado para ser
4.2
Coerência literária. A probabilidade de vir de conclusão. Numa fase inicial, os copistas
que Paulo tenha usado ou adaptado material ou
também teriam visto pouco motivo para trans
temas que havia usado anteriormente em seu
crever todos os nomes de Romanos 16 e prova
ensino (cf., e.g., At 19.8-10) tem levado muitos
velmente fizeram circular uma versão mais geral,
a sugerir que é possível identificar parte desse
que terminava em Romanos 15.33, à qual Roma
material como blocos coerentes: por exemplo.
nos 16.25-27 foi acrescentado. É igualmente com
Romanos 5— 8 como uma homília bem definida
preensível que a conclusão bem oportuna para as
ou Romanos 9— 11 como um material previamen
versões mais curtas (Rm 16.25-27) tenha, da mes
te elaborado e incorporado aqui de maneira um
ma forma, sido acrescentada à versão completa
tanto forçada. Tais hipóteses jamais poderão ser
em cópias posteriores.
comprovadas ou rejeitadas, visto que não existe nenhuma linha clara de distinção entre a reutili
5. Questões em pauta
zação de padrões orais nunca apresentados por
5.1 A nova perspectiva sobre Paulo. Tradicio
escrito e a reutihzação de material escrito. Tudo
nalmente tem se tratado Romanos como uma
que precisamos dizer é que as várias seções da
obra de teologia sistemática ou, nas palavras de
argumentação de Romanos formam um todo coe
Melâncton, “um compêndio de doutrina cristã” ,
rente, estão próximas o suficiente e possuem um
uma declaração mais ou menos atemporal do
grau de integração tão elevado que tais hipóte
que 0 evangelho significa. Mas o reconhecimen
ses nada acrescentam à compreensão da carta.
to recente de que a carta diz respeito a ênfases e
Contudo, o mesmo grau de coerência, proximi
circunstâncias específicas da missão de Paulo (v.
dade e integração é decididamente desfavorável
3 acima) tem como corolário que, em maior ou
a dissecções mais complexas do texto ou a teorias
menor grau, as questões tratadas na carta também
mais elaboradas de um trabalho substancial de
devem estar condicionadas pelas mesmas ênfases
edição textual, as quais criam mais problemas do
e circunstâncias. O que está em pauta em Roma
que soluções ou então nos deixam com um Paulo
nos não é 0 evangelho de forma geral ou abstrata,
simplista e sem vida.
mas 0 evangelho em particular, conforme perso
A principal questão levantada pela crítica tex
nificado na vida e no trabalho de Paulo — um
tual é se Romanos 16 pertence ao texto original
evangelho judeu para os gentios e as pressões e
ditado por Paulo. Uma opinião minoritária, porém
tensões que se originaram dessa convicção básica.
influente, insiste em que Romanos 16 foi uma
Essa maneira de ver a carta tem sido reforçada
carta independente, escrita para Éfeso. Isso é im
pela nova perspectiva sobre Paulo e sobre o con
provável. Em particular, uma carta terminando em
texto judaico em que ele surgiu. A exegese protes
Romanos 15.33 sem uma bênção de “graça” a fa
tante tradicional tem visto o judaísmo como um
vor dos destínatários (Rm 16.20) seria bem o opos
obstáculo ao cristianismo, algo que o cristianis
to de Paulo. Romanos 16.1-23 apresenta todas as
mo eliminou ou cuja falência demonstrou, como
características de uma conclusão epistolar, e não é
a religião que Paulo abandonou quando se tornou
implausível que Paulo conhecesse tantas pessoas
cristão. Lidas dessa perspectiva, as antíteses vis
em Roma, como a saudação indica. A comunida
tas em Romanos — particularmente entre pecado
de judaica era numerosa, e os deslocamentos de
e graça, morte e vida. Lei e fé, embora, de forma
Prisca e Áquila indicam que havia uma quantidade
surpreendente, não tanto entre carne e Espírito (v.
razoável de viagens de Roma e para Roma, o que
E spírito Sa n t o )
seria de esperar da capital do império.
mo e cristianismo. O judaísmo tornou-se o tipo
— pareciam antíteses entre judaís
Entretanto, a presença de Romanos 16.25-27
clássico de religião que deu errado, de religião
em diferentes lugares na tradição textual (também
entendida em termos de realizações humanas,
1 162
Ro m a n o s , C arta aos
e m v e z d e e x p re s s ã o d e g ra tid ã o p e la in ic ia tiv a
o Israel” (Rm 11.26). A questão não é tanto a
d a g ra ç a d iv in a e re s p o s ta a essa graça.
universalidade da necessidade humana e da su
Agora, contudo, os protestos antes mais es
ficiência do evangelho, mas se o evangelho, de
parsos contra clichês como judeu e judaísmo
origem e natureza judaicas, vai além da nação
chegaram a um clímax — especialmente no lado
judaica, incluindo as demais nações (“todos” =
cristão do mundo acadêmico de fala inglesa — na
tanto judeus quanto gentios, Rm 1.18— 5.21), e
obra de E. P. Sanders. É ele quem demonstra com
como isso acontece. Há também outra questão; se
mais eficácia do que qualquer outro no mundo
o evangelho, que agora atrai um grande número
de fala inglesa que, em sua essência, o judaísmo
de gentios, continua sendo judaico e ainda é um
era no início uma religião da graça; 1) no início.
evangelho para os judeus (“todos” = tanto gen
Deus escolheu livremente Israel e resgatou-o da
tios quanto judeus, Rm 9— 11).
escravidão; 2) seu sistema tinha como foco o ar
É claro que essa é uma expressão particular
rependimento, a propiciação e o perdão; 3) sua
da afirmação teológica mais ampla sobre a uni
ênfase estava na guarda da Lei como a resposta
versalidade do pecado humano e do que o evan
apropriada de gratidão e fidelidade por parte do
gelho oferece para satisfazer essa necessidade, e é
povo eleito. Com base nessa nova perspectiva,
correto validar em Romanos essa afirmação mais
em Romanos as questões em pauta passam a ter
abrangente. Contudo, é importante reconhecer
uma nuança diferente. Nesse sentido, Sanders
que a afirmação mais ampla deriva da expressão
assinala uma nova era no estudo de Paulo, e os
particular, ou seja, é importante reconhecer sua
comentários sobre Romanos podem ser classifica
especificidade histórica, até mesmo que o evan
dos em antes e depois de Sanders — pelo menos
gelho cristão continua sendo de natureza judai
na medida em que é possível avaliar uma obra
ca, e estar atento para a possibilidade de que os
sobre a teologia de Romanos com base no trata
aspectos individuais dessa expressão particular
mento sério a essa nova perspectiva, mesmo que
sejam determinados por aquele contexto e, desse
discordando dela. 5.2
modo, menos passíveis de generaUzações.
A nova perspectiva sobre Romanos.
5.3
Em
A
fidelidade de Deus.
Nessa ênfa
fa c e d a n o v a p e r s p e c tiv a s o b r e P a u lo , as q u e s tõ e s
se abrangente (judeus e gentios) encaixam-se
d is cu tid a s e m R o m a n o s r e c e b e m n o v a e e s c la
vários outros temas da carta. Um deles é a ques
r e c e d o ra lu z. O s v á r io s tem a s sã o a p res en ta d o s
tão da teodiceia ("o evangelho de Deus”), indi
c u id a d o s a m e n te
de
cado imediatamente na centralidade da “justiça
R o m a n o s 1.2-7: 1) o e v a n g e lh o d e D eu s, 2 ) q u e
de Deus” (v. esp. Rm 1.17; 3.5,21-26; 4.1-25;
c u m p re as p r o fe c ia s da s E scrituras S agradas, 3)
9.30— 10.13). 0 tema é puramente judaico, sen
c o n c e n tra n d o -s e e m Jesus, F ilho
do a abordagem de Paulo a continuação direta
na
c o n h e c id a
in tr o d u ç ã o
de
D avi e F ilho
de
D eus, 4 ) cu ja re s s u rre iç ã o a ssin a la u m a n o v a era
de seu uso em Salmos e em Isaías 40—66. A
e s c a to ló g ic a (v .
questão é dupla. 1) Como o ato redentor com
escatologia )
e 5 ) c u jo s e n h o r io (v.
Senhor ) v a lid a o tra b a lh o m is s io n á rio da ig re ja ,
que Deus se comprometeu a favor de
e s p e c ia lm e n te o d e P a u lo a to d o s o s g e n tio s , 6)
clui os que não pertencem a Israel? A resposta
I srael
in
en tre o s q u a is d e v e m se r c o n ta d o s o s cre n te s d e
é apresentada em parte com base na palavra
R o m a e m pa rticu la r, p o r fa z e r e m p a rte d o p o v o
temática correlacionada “fé” , que sempre foi o
e le ito e a m a d o p o r D eu s. P o r e s s e m o t iv o , a ê n
meio humano pelo qual Deus exerceu sua justi
fa s e (já a ssin a la d a e m 2.1 e 2.2 a c im a ) n a a b ra n
ça salvadora (mais uma vez, v. esp. Rm 4.1-25;
g ê n c ia d o e v a n g e lh o a ju d eu s e g e n tio s a p a re c e na
9.30— 10.17;
d e c la r a ç ã o te m á tic a in ic ia l (R m 1.16) e n o c lím a x
a nova e culminante fase do propósito de Deus
d e R o m a n o s 15.7-12. T a m b é m p o r e s s e m o t iv o o
(o mesmo propósito) marcada pelo ministério de
q u e se d e s ta c a re p e tid a m e n te é o e v a n g e lh o p a ra
Cristo (v. esp. Rm 3.22-26; 9.30— 10.13).
V.
tb. Rm 14.22,23), e em parte com
to d o s — " t o d o a q u e le q u e c r ê ” (R m 1.16; 3.22;
2) O que o evangelho judaico estendido aos
4.11; 10.4,11-13), “ to d a in ju s tiç a ” (R m 1 .1 8 ,2 9 ),
gentios diz acerca da fidelidade de Deus para
“ t o d o s d e b a ix o d o p e c a d o ” (R m 3.9,1 2 ,1 9 ,2 0 ,2 3 ;
com as promessas feitas a Israel? Esse assunto é
5 .1 0 ), “ to d a a d e s c e n d ê n c ia ” (R m 4.1 1 ,1 6 ), “ to d o
um pouco obscurecido pelo fato de que o tema
1163
R o .v a i m s , C arta aos
judaico da fidelidade divina é traduzido de duas
foi simplesmente acentuar a incoerência do pen
maneiras no grego: fidelidade de Deus (Rm 3.3;
samento de Paulo.
mas talvez tb. Rm 1.17; 3.25) e verdade de Deus
Entretanto, na nova perspectiva sobre Paulo
(v. esp. Rm 1.25; 3.7; 15.8). Romanos 3.1-8 de
e Romanos (v. 5.1 e 5.2 acima), é possível uma
senvolve claramente a questão, mas Paulo con
solução mais coerente, pois nas passagens em
segue tratá-la detalhadamente só em Romanos
que a questão básica são as tensões provocadas
9— 11. Nessa passagem, o tema surge quando
por um evangelho judaico oferecido aos gentios,
se pergunta se Deus falhou em cumprir sua pa
é provável que o problema da Lei esteja ligado a
lavra (Rm 9.6). Mais uma vez, ressalta-se a im
essa questão. Assim, o mais natural é ver a Lei
portância que Romanos 15.7-13 (aqui Rm 15.8)
como um importante obstáculo, que impede os
tem como resumo dos objetivos de Paulo e, desse
gentios de aceitar o evangelho. E é o que encon
modo, como indicação de que esses são os obje
tramos em Romanos. É a reivindicação judaica de possuir a Lei e, dessa maneira, de possuir uma
tivos da carta. cristo-
condição privilegiada perante Deus (Rm 2.12-19)
LOGiA não parece fazer parte da questão. Ela é
que concentra o problema da eleição de Israel
De forma um tanto surpreendente, a
fundamental para o evangelho (Rm 1.3,4), mas a
(Rm 3.1). É a jactância dos judeus por sua condi
expressão articulada dessa cristologia em Roma
ção privilegiada, marcada pela obediência à Lei,
nos 3.21-26 é muito breve e talvez empregue ma
que Paulo procura contrabalançar e combater
terial previamente elaborado. Parece também não
com a atenção que dedica à fé (Rm 3.27—4.25).
ser de natureza controversa (daí a razão da brevi
É a Lei, não como algo maligno, mas como um
dade). Parece que a cristologia é a base comum.
elemento fraco e usado como instrumento pelo
A importância universal de Cristo é a pressuposi
pecado, que ele tenta defender (Rm 7.7— 8.4).
ção de Romanos 5—8, não o tema. E, embora Ro
No entendimento de Paulo, Cristo não deu fim à
manos 9.32,33 apresente Cristo como a pedra de
“ lei de justiça” (Rm 9.30— 10.4), mas à lei tipifi
tropeço, é notável que um messianismo peculiar
cada nas obras judaicas, na qual se concentrava o
mente cristão (em contraste com o messianismo
zelo judaico. Ele não deu fim à “lei do Espírito da
judaico) esteja ausente no esclarecimento final do
vida” , mas à “lei do pecado e da morte” (Rm 8.2-
problema da incredulidade de Israel (Rm 11.26;
4). Por isso, à nova luz de Cristo, entende-se
Mais uma vez, o clímax de Romanos
que a Lei exige não as “obras” que diferenciam
V. C risto) .
15.8 é característico da carta: “Afirmo, pois, que
os judeus dos gentios — especialmente, embora
Cristo se tornou servo da circuncisão, por causa
com certa exclusividade, as leis sobre a circun
da fidelidade de Deus”.
cisão e ingestão de alimentos (Rm 2.25-29; 4.9-
S.4
O sabtema da Lei. À luz da nova pers 12; 9.10-13; 14.1-12) — , mas o amor ao próximo
pectiva, um novo tema que se encaixa é o papel da
(Rm 13.8-10; 14.13-15.6).
em Romanos. A tendência do pensamento
Em resumo, nâo é a Lei como expressão da rea
tradicional era ver que a Lei ficava no lado nega
lização humana que Paulo questiona, mas como
L ei
tivo das antíteses apresentadas por Paulo — um
expressão do privilégio judaico. A solução para o
poder hostil, como o pecado e a morte (o que é
problema da Lei em Romanos acha-se não numa
compreensível, em vista de Rm 5.20; 7.5), que
demonização da Lei, nem em apontar o dedo
caracterizava o judaísmo como legalista, uma
para as “contradições” de Paulo, nem na distin
religião de realizações, que dava margem ao or
ção entre lei cerimonial e lei moral, embora seja
gulho humano (cf. Rm 3.27,28; 9.11,32; 11.6). O
possível encontrar nessas abordagens uma solu
fato de que Paulo parece estar igualmente inte
ção para o ensino de Paulo. A preocupação de
ressado em elaborar uma apologética da Lei (Rm
Paulo era mais com a nacionalização da Lei que
3.31; 7.7-25; 8.3,4; 13.8,10) não se harmonizava
com sua ritualização. Pelo fato de a Lei ser tão
com esse entendimento, mas na ideia tradicio
fortemente identificada com Israel e por ser essa
nal não era fácil encontrar uma solução. A nova
identificação tão concentrada em rituais judai
perspectiva abalou o lado negativo da equação,
cos, especialmente as leis sobre circuncisão e ali
mas para alguns
mentos, Paulo achou necessário distinguir entre
(S anders
e
R ãisâ n e n )
o
resultado
1 164
Ro m a n o s , C arta aos
as exigências da Lei e a prática de tais obras. É
convêm” , Rm 1.28). O evangelho começa desta
evidente que, diante das tensões provocadas pela
cando a gravidade dessas coisas (Rm 1.32).
proclamação de um evangelho judaico aos gen
Outros dois elementos ajudam a expUcar a
tios, só por uma argumentação assim ele pôde
progressão rumo ao clímax. O primeiro é que a
defender os dois aspectos do evangelho — sua
história de Adão, em Gênesis 2—3, ressoa forte
natureza judaica e sua abertura a todas as nações.
mente em Romanos 1.19-23. O defeito básico na
6. Argumento da carta
humana deixou de viver de acordo com sua con
natureza da sociedade humana é que a criatura Agora estamos em condições de entender a ideia
dição de ser criado, renunciou à dependência de
básica e a progressão do pensamento de Paulo em
Deus e tentou usurpar o papel do Criador. A con
Romanos. Uma vez que o corpo principal da car
sequência foi 0 oposto — não uma elevação aci
ta é apresentado de modo tão sistemático, uma
ma da condição de ser criado, mas uma queda da
rápida análise da carta proporciona uma sinopse
humanidade para a animaUdade, caracterizada
bastante proveitosa da teologia de Paulo no auge
por idolatria, práticas sexuais anormais e a sor
de sua carreira missionária.
didez já mencionada. 0 segundo é a repetição in
6.1 Introdução (Rm 1.1-17). Já assinalamos
cisiva da polêmica tipicamente judaica contra os
que a saudação elaborada (Rm 1.1-7) permite que
gentios ou, melhor dizendo, em torno da rehgião
Paulo introduza o tema da carta ainda na etapa
gentílica (Rm 1.24-27). Isso aponta justamente
das apresentações amistosas (v. 5.2 acima). Tam
para a idolatria e a sexualidade aviltada (cf. Sb
bém observamos que as explicações pessoais que
11— 15). Assim, de imediato, Paulo acentua que
vêm em seguida, somadas aos elementos típicos
a tensão entre judeus e gentios está no âmago do
de ação de graças e oração (Rm 1.8-15), dão à
assunto que ele pretende tratar.
carta inteira um firme alicerce no contexto histó
6.2.2
Judeus também (Rm 2.1-29). Para a
rico de sua composição e conduzem ã declaração
maioria dos comentaristas. Romanos 2 têm cau
temática fundamental sobre o que vem a seguir
sado mais dificuldades do que qualquer outro
(Rm 1.15,17). Aqui estão claramente enuncia
capítulo, principalmente porque parece vislum
dos os termos principais da carta — o evangelho
brar que a justificação final depende dos feitos
como poder de Deus para a salvação de todos os
humanos, não da fé, e porque sua argumentação
que creem, primeiro dos judeus e depois dos gre
parece depender de uma acusação indiscrimina
gos, a justiça de Deus revelada de fé em fé — com
da contra os judeus em geral. A chave é levar
o texto veterotestamentário de apoio (Hc 2.4).
em conta que o capítulo está emoldurado por
6.2 A condição humana — gentios e judeus
um ataque tipicamente judaico contra o estílo de
(Rm 1.18—3.20). Num estilo que nos séculos se
vida gentílico (Rm 1.18-32) e pela declaração de
guintes foi seguido em inumeráveis reafirmações
que 0 privilégio judaico foi solapado (Rm 3.1).
do evangelho cristão ou em textos teológicos,
Por isso, o que se tem em mente em Romanos 2
Paulo acha necessário definir a condição humana
é a percepção do privilégio e das características
para a qual o evangelho oferece uma resposta.
judaicos que reverberaram tão claramente em
6.2.1
A animalidade humana (Rm 1.18-32). Romanos 1.
Paulo inicia caracterizando o que classicamente se denomina “ depravação humana” (v.
Isso se confirma na primeira ocorrência da
pecadores ;
forma diatríbica (Rm 2.1-5). Desse modo, Pau
— uma expressão muito pesada e abs
lo não conversa com um espectador imaginário,
trata, principalmente quando levamos em conta
mas com o judeu tradicional, que aplaudiria a
que Paulo conclui sua acusação com uma lista
acusação tipicamente judaica de Romanos 1. A
que inclui a sordidez demonstrada no dia a dia
ressonância desse raciocínio judaico, conforme
e a mesquinhez do orgulho humano e dos rela
encontrada em Salmos de Salomão 15.8 e Sabedo
cionamentos rompidos (Rm 1.29-31). Esses as
ria 15.1-6 (Rm 2.3,4) e vista no texto, e também
pectos negativos assinalam o desmoronamento
a citação explícita do princípio teológico judai
da sociedade humana, aspectos deploráveis para
co, em Romanos 2.6, confirmam que Paulo tem
todas as pessoas de boa vontade ( “coisas que não
em mente uma racionahzação judaica que podia
pecado )
1 IfiR
Ro m a n o s , C arta aos
levar a uma autojustificaçâo ou a uma desculpa
aparece em seguida (Rm 3.10-18) consiste princi
para o que condenava nos outros (Rm 2.1-11).
palmente em passagens que pressupõem que os
O quadro se torna mais claro em Romanos
condenados são “eles”, não “ nós”. A mensagem
2.12-16, na medida em que Paulo procura solapar
de Paulo é que tal pressuposição é uma expressão
a certeza dos que pensam que, por terem a Lei,
do poder do pecado que a própria pressuposição
estarão no juízo final em melhor situação que
condenava. A confiança na condição privilegia
os demais. Pelo contrário, o ensino judaico diz
da, a jactância na Lei (especialmente na circun
justamente que cumprir a Lei é mais importante
cisão), que faz com que o judeu seja visto como
que apenas ouvi-la. O orgulho e a insolência do
alguém distinto do gentio, é uma expressão da
“judeu”, resultantes da posse da Lei, se tornam
condição carnal (nesse caso, a identidade étni
explícitos em Romanos 2.17-24. 0 objetivo da
ca) e leva a humanidade a se distanciar de Deus
acusação direta contra o interlocutor judeu típi
(Rm 3.19,20).
co não é condenar imediata e impensadamente
6.3
A resposta do evangelho (Rm 3.21—
todos os judeus, e sim demonstrar que, quando
5.21). Mais uma vez, oferecendo um padrão para
o judeu típico em sua insolência quebra a Lei,
inumeráveis sermões e textos teológicos, Paulo,
ele está arruinando a base de sua condição privi
depois de apresentar a acusação contra a humani
legiada. A ideia recebe a máxima atenção no tó
dade inteira, passa à resposta do evangelho.
pico da circuncisão, característica tão própria do
6.3.1 Pela fé em Cristo (Rm 3.21-26). Numa
“judeu” que os judeus como um todo podem ser
seção notavelmente curta (em comparação com
simplesmente chamados “a circuncisão”. 0 fra
a longa acusação), Paulo aponta a morte de Cris
casso em fazer distinção entre um sinal externo
to como a resposta. A lógica do raciocínio (i.e.,
de identidade étnica e a obra oculta do Espírito
por que a fé em Cristo deve ser a resposta) não
no coração, que resultaria em dar menos impor
é explicada com detalhes e parece estar basea
tância àquele e mais a esta, significa que o judeu
da numa formulação cristã reconhecida. Desse
tradicional nâo se encontra em melhor condição
modo, a resposta deve ter sido uma convicção
diante de Deus (aUás, talvez esteja numa situação
cristã já firmada, na qual Paulo não precisou se
pior) que os gentios (Rm 2.25-29).
aprofundar.
6.2.3 Corolários não elaborados (Rm 3.1-8). 0
Significativo, no entanto, é outra vez o desta
ataque incontido contra a autoconfiança judaica
que ã continuidade total com o que havia ocor
na posição privilegiada de Israel diante de Deus
rido anteriormente (Rm 3.21; a morte de Cristo
suscita problemas que Paulo não pode ignorar —
como sacrifício, Rm 3.25). Portanto, o que está
particularmente com respeito à eleição de Israel
pressuposto aqui é a teologia judaica do sacrifício
e, dessa maneira, também com relação à fideli
e da necessidade de um animal sem defeito como
dade de Deus para com o povo que ele escolheu.
oferta pelo pecado, com a impUcação provável de
Deve se assinalar que Paulo não deseja examinar
que a morte do animal servia para remover ou co
o fato da eleição, mas também que sua sucinta
brir 0 pecado ou mesmo, numa situação em que
defesa da fidelidade de Deus aponta para além
0 animal funcionaria como representante, tirar a
do papel de Deus como parceiro pactuai: para
vida do ofertante contaminado pelo pecado. Por
seu papel de Criador e Juiz. Desse modo, ele dei
um motivo não apresentado no texto, é possível
xa entrever que a solução para as tensões entre
ver a morte de Cristo não apenas como um sacri
“judeu e gentio” será situar a condição pactuai de
fício desse tipo, mas também como um sacrifício
Israel perante seu Deus no quadro mais amplo da
culminante e eficaz para toda a humanidade, pas
condição do mundo perante o Criador. Mas aqui
sada e presente, gentílica e judaica. Assim, por
é possível apenas entrever tal linha de raciocínio.
implicação, foi um sacrifício que acabou com a
6.2.4 Conclusão: todos debaixo do pecado
necessidade de outros sacrifícios, tornando-se o
(Rm 3.9-20). O sumário situa toda a humanida
meio pelo qual o relacionamento humano com
de sob a mesma acusação, mas o alvo ainda é a
Deus pode ser restaurado (v.
insolência judaica de que “o judeu” nâo pode ser acusado. Assim, a sequência de textos do
at
que
justificação )
.
6.3.2 Para judeus e gentios (Rm 3.27-31). O objetivo de Paulo é indicado pela maneira em
11 66
Ro m a n o s , C arta aos
que ele retoma imediatamente (Rm 3.27} o tema
com 0 emprego da palavra num contrato entre
da jactância do “judeu” , motivo da acusação em
seres humanos — afirmação um tanto fortuita,
Romanos 2.17,23. Como já ficou implícito, é a
porém confirmada pelo uso do verbo em Sal
jactância dos privilégios e prerrogativas judaicos
mos 32.1,3. A exposição de “creu” é mais tortuo
que Paulo condena, a qual na prática presume
sa, mas está apoiada em três ideias; o fato de que
“que Deus é somente dos judeus” (Rm 3.29). O
Abraão creu antes da circuncisão e, assim mes
duplo reconhecimento de que Deus é um só (cre
mo, esse crer foi totalmente eficaz (Rm 4.9-12; o
do judaico) e de que ele aceita o ser humano com
mesmo se pode dizer de quando foi provado); o
base na fé aniquila qualquer insolência como
fato de que foi uma fé na promessa (Rm 4.13-17);
essa. Essa universalidade, que alcança o gentio e
o fato de que era impossível a promessa se cum
0 judeu, é 0 que agora se mostra eficaz, pela mor
prir por meio de algum recurso engenhoso inven
te de Jesus Cristo (Rm 3.21-26). Contudo, uma
tado por Abraão (ou por fidelidade; Rm 4.17-21).
vez que é também um universaUsmo judaico, ela
Esse “creu” só podia ser confiança em Deus,
não contradiz os termos do oferecimento inicial
confiança apenas no poder de Deus, e nada mais
da graça a Israel. Ou seja, o evangelho de Jesus
— fé, não fidelidade. A fé requerida no evange
Cristo está em oposição à Lei, que se caracteriza
lho é, portanto, a fé no poder vivificante de Deus
pelas obras de prerrogativa judaica, mas se con
(Rm 4.23-25).
forma à lei que constitui um chamado ã obediên cia de fé (Rm 3.31). 6.3.3
6.3.4
Conclusão: o que isso significa para
o crente (Rm 6.1-11) e para a humanidade
O caso de Abraão ajuda a resolver outros (Rm 5.12-21). Depois de apresentar a ideia de que
casos semelhantes (Rm 4.1-25). Para sustentar sua
o evangelho da aceitação divina é dirigido a to
principal afirmação, Paulo passa a tratar da obje
dos por meio da fé, Paulo encerra a seção central
ção que é o precedente criado pelo “pai Abraão”.
de sua argumentação, explicando detalhadamen
0 precedente é crucial, pois no judaísmo
A braão
te as conseqüências. Para o crente, significa paz
é muito respeitado como modelo de piedade. Já
com Deus, uma experiência de graça que moldará
se dizia que ele observava a Lei quando ela ain
o caráter por meio do sofrimento e uma base se
da estava por ser escrita (e.g., Gn 26.5;
gura de esperança para o futuro (Rm 5.1-11). A
cd
3.2).
Ele era considerado um paradigma de fideUdade à
iniciativa de Deus, a natureza avassaladoramente
aliança, porque se saiu extremamente fortalecido
graciosa dessa iniciativa e a experiência de seu
quando foi provado na questão do oferecimento
amor, já manifestado na morte de Cristo e na
de Isaque em sacrifício (e.g., Jt 8.26; Eo 44.19-21).
dádiva do Espírito, são a rocha firme em que o
Era à luz dessa fidelidade que se entendia Gêne
crente, com total confiança, pode estar firmado
sis 15.6. Abraão foi considerado justo com base
para encarar o presente e o futuro. É a mesma
nessa fidelidade (IM c 2.52; cf. Tg 2.22,23).
confiança que Abraão demonstrou em sua fé
A resposta de Paulo é explicar Gênesis 15.6 de
paradigmática.
outra maneira; “Abraão creu em Deus, e isso lhe
Desse modo, a morte de Cristo assinala um início
foi atribuído como justiça”. Essa é uma das expo
totalmente novo, não apenas para algumas pesso
sições mais longas de um texto do
at
feitas por
as, mas para toda a humanidade (Rm 5.12-21).
um judeu do século i, à exceção de Filo. Por isso,
A
podemos considerá-la um exemplo clássico de
senrolar com Adão, como está implícito em Ro
resposta para a tragédia que começou a se de
midrash dos primórdios do judaísmo. Paulo co
manos 1.19-23 (v. 6.2.1 acima) e Romanos 3.23,
meça anunciando o texto da Escritura (Rm 4.3),
é encontrada em outra história (v.
e então analisa as palavras-chave — “atribuído”
A desobediência de Adão era a maneira antiga de
A d ã o e C r is to ).
(Rm 4.4-8; “imputado” , a r a ] e “creu (Rm 4.9-21).
expUcar como a dura realidade do pecado e da
Por fim, ele reafirma tanto o texto assim explica
morte entrou no mundo e passou a ter domínio
do (Rm 4.22) quanto seu corolário (Rm 4.23-25).
sobre ele. Mas agora a obediência de Cristo abriu
Paulo observa que o termo “atribuído” deve
um caminho e ofereceu outro modelo de existên
ter um significado diferente quando descreve um
cia humana. 0 pecado e a morte nâo precisam
relacionamento divino-humano, em comparação
mais ter a palavra final nos assuntos humanos.
1 157
Ro m a n o s , C arta aos
Os dois homens — Adão e Cristo — sinteti
resposta grosseira: se o pecado resulta em graça,
zam em si mesmos as duas possibilidades car
então, quanto mais pecado, melhor. A resposta
deais para a humanidade. Isso também quer dizer
de Paulo é apontar para o fato de que a morte de
que eles sintetizam a argumentação apresentada
Jesus foi o ponto decisivo de rompimento com
de Romanos 1.18 em diante — da condenação da
o pecado e a morte. 0 pecado e a morte podiam
vida “em Adão”, sob o domínio do pecado e da
chegar só até aí, “pois, quanto a ter morrido,
morte, para o oferecimento da vida “em Cristo” ,
morreu para o pecado de uma vez por todas”
sob 0 reinado da graça. Assim, a seção introdutó
(Rm 6.10). Por esse motivo, para os que se iden
ria da carta (Rm 1.18— 5.21) é ampla e muito bem
tificam com Cristo em sua morte (por meio do
feita — um sumário abrangente da história hu
batismo) ,
mana, de Adão a Cristo. Mas a passagem também
cado ou cooperar com ele. O centro motivador de
destaca os fatores negativos causados por Adão,
sua vida está agora voltado para Cristo e é deter
a saber, o pecado e a morte. Além disso, a Lei
minado pelo próprio Cristo, sobre quem o pecado
funciona como um complicador (Rm 5.20,21), e o
não tem controle algum. Entretanto, o pecado continua sendo uma reali
efeito que o evangelho exerce sobre esses fatores
dade, pois o crente ainda não tem plena participa
exige um esclarecimento adicional. 6.4
não pode haver motivo para tolerar o pe
O problema do pecado, da morte e da ção na ressurreição de Cristo: experimenta ainda
Lei (Rm 6.1— 8.39). Em essência, Paulo apresen
a ação da corrupção na carne e a morte. Desse
ta duas alternativas principais para a existência
modo, o pecado ainda mantém uma cabeça de
humana e mostra que, na prática, cada crente
ponte na vida do crente, e ele deve resistir até o
pode passar de uma para outra, no que concer
fim às suas artimanhas e seduções. Mas na tenta
ne à motivação básica e à formação de caráter.
ção do “ainda não” o “já” da vitória de Cristo é a
Imediatamente surge a pergunta: é possível que
base e a fonte de força para resistir, superar e fazer
a passagem de uma para outra seja total? A res
com que o compromisso assumido no im'cio seja
posta de Paulo resume-se à fórmula “já/ainda
vivido no compromisso renovado de cada dia.
nâo” (v.
e sc a to lo g ia ).
Algo decisivo já aconteceu
(Rm 5.1-11), mas, enquanto a vida durar na tran-
6.4.2
O problema da Lei (Rm 7.1-25). Por trás
da primeira crítica feita ao evangelho de Paulo,
sitoriedade e fraqueza desta existência corpórea,
conforme esboçada em Romanos, havia a suspei
ainda não estará concluído aquele ato decisivo
ta, por parte dos judeus, de que o evangelho de
de Deus. Isso quer dizer que o pecado e a morte
Paulo significava abandonar a Lei. Não era exata
continuam a exercer uma influência da qual os
mente a Lei que servia de fortaleza contra o peca
crentes não conseguem fugir e à qual, em certa
do? Mas o ataque de Paulo à insolência judaica no
medida (a medida de sua condição adâmica),
destaque que ela dava às obras da Lei podia ser
ainda estão sujeitos. Apesar disso, eles devem
facilmente entendido por seus patrícios (e pelos
continuar a resistir, na força do Espírito.
comentaristas de hoje!) como um ataque à pró-
Essa é a linha básica de raciocínio que Paulo
pría Lei. É desse problema que Paulo trata agora.
desenvolve nos três capítulos seguintes — pri
Mais uma vez, ele começa declarando, de
meiro em relação ao pecado, depois à Lei e por
modo direto, sua opinião. A Lei judaica está tão
fim à CARNE e à morte. Em cada caso, ele começa
identificada com o período anterior a Cristo que a
declarando a nova reaUdade que se tornou eficaz
possibilidade de uma existência criada por Crísto
mediante a ação divina em Cristo, para em segui
corresponde a ser liberto da Lei. Nos termos da
da indicar como se deve viver a nova realidade
acusação anterior (Rm 2—3), a Lei tornou-se a
nas condições do “ainda não” da carne ainda pe
oportunidade para a insolência judaica e, desse
caminosa — 0 que indica que a graça de Deus é
modo, 0 instrumento do próprio pecado que ela
a inspiração e a capacitação para o compromisso
deveria frustrar. Assim, a passagem do velho para
e a obediência.
0 novo, de Adão para Cristo, do pecado e da morte
6.4.1
O problema do pecado (Rm 6.1-23). A para a graça também se tornou uma passagem do
afirmação de que a graça oferece uma explicação
código legal que define Israel para a nova vida
mais que suficiente para o pecado dá origem à
do Espírito.
1 168
Ro m a n o s , C arta aos
Contudo, esse tratamento dispensado à Lei
6.5
E Israel? (Rm 9.1— 11.36). Na última se
sem dúvida equivale a identificar a Lei com o pe
ção (exceto Rm 7), em grande parte se perdeu de
cado. A resposta de Paulo é que não se deve cul
vista a questão do judeu e do gentio, que domi
par a Lei: ela e a “carne” [sarx, i.e., a fragilidade
nou as primeiras duas grandes seções da carta
e a finitude humanas] têm sido manipuladas pelo
(Rm 1.18—5.21), pois Paulo concentra sua aten
pecado. A realidade da tensão “já/ainda não” en
ção na operação do evangelho em termos globais
tre 0 que começou com Cristo e em Cristo e a sal
(Adão-Cristo) e pessoais. Mas a terminologia em
vação que ainda há de se completar é algo que se
pregada é a mesma das promessas pactuais de Is
reflete numa dupla ruptura — no indivíduo que
rael (v.
anseia fazer a vontade de Deus, mas continua
Deus aos eleitos suscita a questão da fideUdade
na “carne” , e na Lei, que expressa a vontade de
de Deus a Israel, seu antigo parceiro de aUança.
I srael ) .
E a certeza final da fideUdade de
Deus, mas ainda assim é o instrumento do peca
Conforme indicado no problema da Lei, ao se divi
do e da morte.
dir a história em antes e depois de Cristo criou-se
6.4.3
O problema da came e da morte (Rm 8.1- 0 perigo de lançar Israel como um todo na fase
39). A terceira reafirmação da operação do evan
adâmica. Que dizer, então, das promessas de Deus
gelho a favor do indivíduo começa mais uma
a Israel? Como afirmar a fideUdade de Deus aos
vez com uma forte ênfase sobre a ação divina
crentes ao mesmo tempo que sua fideUdade a Is
na salvação. Deus alcançou em Cristo o que era
rael está sendo minimizada? Essa é a questão que
impossível à Lei, por causa do poder do pecado
Paulo trata agora, numa das passagens mais deba
e da morte e da fraqueza da carne humana. Des
tidas de todos os seus escritos.
se modo, aquele que recebeu o Espírito de Cristo
6.5.1 Introdução (Rm 9.1-5). Paulo começa
possui uma base de operação diferente da carne.
reafirmando seu interesse pessoal por seu povo e
É sobre essa base que ele deve viver e agir. Deve
lembrando os leitores dos privilégios pactuais de
viver a reaUdade da fiUação que já experimenta
Israel, dos quais agora são participantes.
por meio do Espírito e partilha com o Filho de Deus (Rm 8.1-17].
6.5.2 O chamado de Deus (Rm 9.6-29). O apóstolo passa, então, a declarar sua tese bási
Isso não significa que a carne foi deixada para
ca: a promessa de Deus a Israel não malogrou.
trás ou que a morte é evitada. Pelo contrário, a
O fracasso tem sido — por impUcação, por parte
reaUdade da condição humana significa fraqueza
de Israel — deixar de reconhecer a natureza da
incessante e principalmente sofrimento, situa
eleição e de seu chamado. Ou seja, o que fazia
ção que irá perdurar até a conclusão do proces
com que Israel fosse Israel. A eleição fora um ato
so redentor no corpo da ressurreição. A tensão
inteiramente gracioso da parte de Deus, sem levar
presente gera desconforto, mas é partilhada pela
em conta a ascendência física ou as obras que
totalidade da criação, que de igual modo se en
passaram a ser vistas como sinal visível da iden
contra presa na sobreposição das eras entre o que
tidade pactuai.
foi e o que será, entre Adão e Cristo. Essa tensão
O lado negativo dessa eleição é que existe um
se torna suportável pelo fato de o Espírito já estar
“não Israel” — aqueles cuja função é ressaltar a
presente e ativo nessa fraqueza e por meio dela, e
natureza graciosa da eleição de Israel. Esse con
isso é a base dessa esperança (Rm 8.18-30],
ceito desagradável e quase predestinacionista de
A seção termina com um grito de certeza
história é a tentativa paulina de expUcar o que,
entusiasmada, em que são postas de lado todas
para ele, é a simples realidade de um povo esco
as ambiguidades e ressalvas. Não importa quão
lhido num mundo hostil. Ou seja, ele está dizen
grande seja o poder incessante do pecado e da
do que 0 quadro geral tem nuanças mais escuras.
morte, a fraqueza incessante da carne e a hostili
Entretanto, conforme vai ficando cada vez mais
dade incessante desta era — o triunfo de Deus é
evidente, o propósito principal da análise feita
certo. O propósito de Deus em Cristo já alcançou
por Paulo não é impor uma doutrina da predes
a vitória. Nem a morte nem qualquer outro poder
tinação, mas solapar a doutrina da predestinação
são capazes de separar o crente do amor de Deus
do próprio Israel. O que Paulo procura questio
em Cristo (Rm 8.31-39).
nar é a certeza judaica de que, por definição, os
1 169
Ro m a n o s , C arta aos
gentios são o “ não Israel”. Ao citar as Escrituras
das bênçãos da aliança de Israel. É por isso que
de Israel, afirmando que elas também estão se
ele se dedica tanto à sua missão aos gentios. Se o
cumprindo na missão que ele realiza, Paulo ago
fracasso de Israel trouxe bênçãos para os gentios,
ra pode argumentar que, não importando quem
muito maiores elas serão para o mundo inteiro
seja 0 “ não Israel” , o povo escolhido inclui ju
quando Israel, como um todo, aceitar a própria
deus e gentios.
herança em Cristo (Rm 11.11-16)!
6.5.3 0 fracasso de Israel (Rm 9.30— 10.21).
Por sua vez, isso indica que se requer uma
0 fracasso de Israel foi que a nação entendeu
advertência equivalente para os gentios. A inten
seu chamado e seus privilégios de uma forma
sidade com que as bênçãos de Israel passaram
demasiadamente restrita — a Lei entendida em
para os gentios também não lhes dá motivo para
termos de obras, não de fé; a justiça entendida
se orgulharem ou agirem com insolência, como
como exclusividade deles, com a consequente ex
fizeram os judeus, detentores da eleição original.
clusão dos gentios. A vinda de Cristo acabou com
Deus não se desfez de Israel para começar da es
esse mal-entendido. Ele é a profetizada “pedra de
taca zero. Os gentios foram incorporados a Israel
tropeço” , em que todos devem crer. Não se pode
e só continuarão sendo parte de Israel caso se
restringir a fé, que é a única resposta possível à
ativerem à graça e à fé como elementos essenciais
natureza graciosa do chamado divino, aos limites
desse relacionamento (Rm 11.17-24).
de uma lei exclusivamente judaica. De um modo
A realidade da fidelidade divina é que o cha
mais pleno, ela agora se expressa numa pregação
mado original de Israel permanece constante em
que tem alcance universal, o chamado à fé em
termos de graça e fé. O mistério da fidelidade
Jesus como Senhor. Essa é a mensagem que agora
divina é que a expressão pré-cristã da eleição
está sendo proclamada, especialmente pelo pró
— judaica-e-não-gentílica — e a resposta atual
prio Paulo, e aceita pelos gentios. Israel, ao deixar
ao evangelho — gentílica-e-não-judaica — são
de reconhecer que essa missão universal expressa
ambas fases no propósito divino mais amplo. 0
a mesma natureza graciosa do chamado que re
propósito de Deus é que todo o Israel seja salvo.
cebeu, está se recusando a receber o evangelho e,
A desobediência desconcertante vista nessa fase
desse modo, cumprindo suas Escrituras.
do propósito de Deus é apenas a preparação para
6.5.4 O
mistério da fidelidade de Deus
perceber o propósito último de demonstrar mi
(Rm 11.1-32). 0 fato é que no período de sobre
sericórdia a todos e, em certo sentido, o meio de
posição do “já” com o “ainda não” Israel está di
levar a essa percepção.
vidido, como acontece com o crente ou com a Lei (Rm 7.7-25). Alguns israelitas reconheceram a
6.5.5
Um hino de adorajção, como encerra
mento (Rm 11.33-36). De modo bem apropriado,
natureza graciosa da eleição de Israel e responde
Paulo conclui sua exposição de esperança e ideal
ram à graça, como os crentes gentios. A maioria,
teológicos elevados com um hino de louvor ao
porém, não entendeu que estar junto de Deus é
único Deus criador, ou seja, criador de judeus e
uma questão de graça, do início ao fim. Assim,
gentios. 6.6
é irônico que o Israel incrédulo se encontre no
A
operação
prática
do
evangelho
papel de “não Israel” , o papel negativo desempe
(Rm 12.1— 15.13). Assim, após redefinir o Israel
nhado por Esaú e pelo faraó (Rm 9.13,17).
de Deus, torna-se necessário explicar como esse
Desse modo, começa a ser esclarecido o mis
Israel deve viver. 0 Israel definido simplesmente
tério do propósito divino de misericórdia e juízo.
como povo judaico sabia de imediato a resposta;
Assim como foi necessário que o faraó desempe
a Lei fornecia as diretrizes para a vida vivida con
nhasse um papel negativo para que a bondade
forme a aliança. Mas a crítica anterior de Paulo e a
graciosa da redenção divina de Israel se tornasse
redefinição do papel da Lei (Rm 2.1—3.31; 7.1-25)
evidente, foi preciso que a maior parte de Israel
devem ter deixado seus ouvintes imaginando
recusasse o evangelho a fim de que a natureza
onde poderiam encontrar as diretrizes para o vi
graciosa deste fosse manifesta aos gentios. A es
ver cristão.
perança de Paulo é que Israel seja provocado para sentir ciúmes ao ver tantos gentios participando
6.6.1
A base da vida responsável (Rm 12.1,2).
Por esse motivo, Paulo começa conclamando a
1 170
Ro m a n o s , C arta aos
um compromisso na vida diária, que é o equiva
pessoal (Rm 7.24; 8.23), fosse para a salvação de
lente cristão da disciplina e da ordem anterior
Israel (Rm 11.13-15). A mesma perspectiva de
mente estipuladas pelo culto em Jerusalém. Essa
veria proporcionar tanto o estímulo para viver a
abertura e esse compromisso para com o Espírito
nova realidade quanto a motivação para estar em
de Deus tornam possível o conhecimento imedia
Cristo, em vez de permanecer na carne, que é
to da vontade divina que as Escrituras já apresen
autoindulgente e se corrompe.
tavam como ideal.
6.6.7
O problema das leis alimentares e dos
6.6.2 A comunidade de fé (Rm 12.3-8). Na
dias santos (Rm 14.1— 15.6). 0 tema geral, que
nova ordem, o equivalente social do Israel co
nos capítulos anteriores foi exposto na teoria e na
letivo (judaísmo) é o
A vida no
prática, passa a receber atenção especial numa
âmbito do Israel étnico envolvia as funções ca
questão que estava fadada a criar tensões numa
racterísticas de qualquer entidade nacional. O
comunidade mista de judeus e gentios. Onde quer
corpo de Cristo possui funções equivalentes,
que houvesse judeus identificados com a herança
c o rp o de C r is to .
conforme determinadas e viabilizadas pelo Es
dos macabeus e com o judaísmo das décadas pos
pírito. Nenhum membro deve pensar que não
teriores ao movimento macabeu, a observância
possui função ou que existem somente poucas
das leis alimentares estava destinada a ser uma
funções estabelecidas, às quais todos devem
questão de integridade pessoal e nacional (v., e.g., IMc 2.62,63). O mesmo se aplicava aos prosélitos,
aspirar. 6.6.3 0 amor como norma dos relacionamentos
que temiam a Deus, os quais se haviam encontra
sociais (Rm 12.9-21). Quanto às relações dos cris
do religiosamente ao adotar o judaísmo da sina
tãos uns com os outros e com o mundo em geral,
goga. Para esses cristãos, seria difícil livrar-se das
a norma é determinada pelo amor. Paulo ilustra
leis alimentares judaicas. Outros judeus, como era
0 que isso significa na prática e, passando para
0 caso de Paulo, agora estavam convictos de que
as relações em geral, apoia-se na sabedoria que o
essas prescrições da Lei restringiam demais a gra
judaísmo da Diáspora acumulou sobre como viver
ça de Deus e as haviam abandonado em maior ou
em sociedades desconhecidas e hostis. Aqui a re
menor grau. Muitos dos gentios que se converte
gra deve ser a política de boa vizinhança.
ram com essa pregação não viam nenhum motivo
6.6.4 Vivendo como bons cidadãos (Rm 13.1-7).
para acatar essas leis. Nas comunidades mistas,
Pelo fato de viverem na capital do império, os
em que a comunhão à mesa era uma expressão
cristãos de Roma deviam se esforçar por cumprir
fundamental de comunidade, as tensões criadas
as leis quanto fosse possível — inclusive pagando
por tais diferenças eram consideráveis. É possível
os impostos exigidos pelos romanos.
que Paulo tenha tomado conhecimento de tais
6.6.5 Amando o próximo (Rm 13.8-10). A
tensões por intermédio de seus contatos pessoais
exortação inteira resume-se ao mandamento do
em Roma, particularmente nas igrejas daquela
amor. Não é por acaso que esse mandamento
cidade, agora marcadamente gentílicas e para as
também era reconhecido pelo restante do ju
quais os judeus cristãos estavam retornando de
daísmo como uma síntese da Lei; tampouco é
pois de um tempo afastados por causa do decre
acidental que os Evangelhos relatem que Jesus
to de Cláudio. Deve se assinalar que o assunto
também deu proeminência a essa ordem (Mc
era grave, pois ligada a ele estava toda a questão
12.31 etc.). Ou seja, Paulo indica o desejo de
da identidade do novo movimento: era uma seita
mostrar que a Lei ainda oferece diretrizes para
dentro do judaísmo ou o quê? Daí a atenção que
viver e quer mostrar também como ela o faz;
Paulo dedica ao assunto. Na prática, Paulo dirige-se aos dois principais
ela precia ser examinada à luz do ensino e do
grupos, cada um por sua vez. O apóstolo dá um
ministério de Cristo. 6.6.6 A iminência do fim como incentivo
conselho simples aos “fracos”, isto é, àqueles,
(Rm 13.11-14). Sempre por trás do pensamento
principalmente judeus cristãos, que eram mais
de Paulo havia a confiança de que o período de
escrupulosos e guardavam a Lei, considerados
sobreposição do “já” com o “ainda não” não se
“ fracos” pelos demais, para quem estar livres de
estenderia por muito tempo, fosse para a salvação
tais escrúpulos era sinal de força. O conselho de
1 171
Ro m a n o s , C arta aos
Paulo foi este; “ Não façam com que a consciência de vocês seja o padrão para os outros. Reconhe
Ver também A b r a ã o ;
A d ã o e C risto ; Is r a e l; ju sti
ficação; Lei; P a u lo em A t o s e n as ca rta s.
çam que, em tais assuntos, é possível ouvir Deus
DPC: CENTRO da TEOLOGIA PAUUNA; OLIVEIRA; OBRAS DA
falando de diferentes maneiras a diferentes pes
l e i;
soas. Vocês não podem condenar aqueles a quem
R o m a e o c r is t ian is m o r o m a n o .
P a u l o e seus intérpretes ; restauração de I sr a e l ;
Cristo aceitou” (v. Rm 14.3-12). Aos que se denominavam “fortes” , de cujas
BiBLiOGRAnA.
Comentários: B a r r e t t ,
C. K.
2. ed. London: Black, 1991.
mantivessem firmes nas convicções a que haviam
Romans. Collegeville: Michael Glazier, Liturgical
chegado pela fé, mas que também estivessem
Press, 1996. [SacP.] ■ C r a n fie ld ,
dispostos a limitar sua liberdade na vida prática
Edinburgh: T & T Clark, 1975-1979. 2 v. (/cc.) ■
caso houvesse perigo concreto de que seu com
Dunn,
portamento mais livre provocasse aflição real em
[ wbc, 38.) ■ Fitzm yer , J. A. Romans. New York:
(b n tü .)
E.
C.
■
Romans.
ideias Paulo partilhava, o conselho foi que se
B.
B y rn e , B.
Romans.
J. d. G. Romans. Dallas: Word, 1988. 2 v.
outros membros e lhes causasse algum dano à fé
Doubleday, 1993.
(Rm 14.13-23). 0 modelo de tal comportamento
Grand Rapids: Eerdmans, 1980. ■ Moo, D. J. The
é Cristo (Rm 15.1-6) — uma confirmação de que
Epistle to the Romans. Grand Rapids: Eerdmans,
0 ensino e o exemplo de Jesus forneceram a her
1996.
menêutica básica para essa antiquíssima reinter-
Rapids: Baker, 1998. [ becnt.] ■ W r i g h t , N. T. The
pretação cristã da Lei. 6.6.8
•
(m c n t.)
(a b .)
■
S ch rein er,
Letter to the Romans. In:
Resumo (Rm 15.7-13). Com destreza,
pley,
j. Paul;
W r ig h t ,
Kãsem ann,
E. Romans.
T. R. Romans. Grand W a ll,
Robert
W ; Sam-
N. T. The New Interpreter’s
Paulo integra o pedido de aceitação e tolerância
Bible: Acts, Introduction to epistolary literature,
mútuas ao tema mais amplo da carta inteira. Cris
Romans, ICorinthians.
to era judeu, para confirmar a fidelidade de Deus
p. 393-770 [ nibc,
aos judeus e para abrir aos gentios a porta da gra
Philadelphia: Trinity, 1989. [ tpintc.] ■ Estudos:
v.
[S . l . ]:
10).
Abingdon, 2002.
■ Z ie s le r ,
J. Romans.
ça e da fé, cumprindo o propósito geral de Deus,
C am p b ell, W . S.
conforme indicado nas Escrituras.
context: Jew and gentile in the Letter to the Ro
6.7 Conclusão (Rm 15.14— 16.27). Paulo en cerra sua carta recapitulando os temas da introdu
Paul’s gospel in an intercultural
mans. Frankfurt: Peter Lang, 1991.
■ D o n frie d , K.
P., org. The Romans debate. Revised and expan
ção. Descreve mais detalhadamente sua missão,
ded edition. Peabody: Hendrickson, 1991. • D u n n ,
ressaltando que ela dá continuidade ao ministério
J. D. G. The partings of the ways: between Chris
de culto do templo em Jerusalém e relatando o
tianity and Judaism and their significance for the
final bem-sucedido de sua fase oriental. Ele men
character of Christianity. Philadelphia: Trinity,
ciona mais uma vez seus planos para o futuro,
1991. ■ ______ . The theology of Paul the Apostle.
apresentando mais claramente os motivos que
Grand Rapids: Eerdmans, 1998. ■ E l li o t t ,
tem para visitar seus leitores em Roma e as razões
rhetoric o f Romans. Argumentative constraint
de sua demora. Ele conclui expressando sua preo
and strategy and Paul’s dialogue with Judaism. Sheffield:
Jerusalém para entregar a coleta e pedindo as ora
D.
ções dos crentes de Roma (Rm 15.14-33).
of Paul’s Letter to the Romans. Tübingen: Mohr
A seção final traz uma palavra de recomen
[jsN T S u p ,
45.)
The
cupação com o possível resultado de sua visita a
js o t,
1990.
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H a a c k e r,
K. The theo
dação a favor de Febe, diaconisa e benfeitora da
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igreja em Cencreia, e uma extensa hsta de sauda
Cambridge University Press, 2003.
ções a pessoas que ele conhece pessoalmente ou
R.
de nome e que fazem parte das igrejas de Roma.
tile in Romans. Atlanta: John Knox, 1988. ■ L o n
Ele menciona vários líderes proeminentes. Uma
genecker,
advertência final e estereotipada contra os peri
comparison of 4 Ezra and Romans 1— 11. Shef
(n t t . )
■ K a y lo r,
D. Paul’s covenant community: Jew and gen B. W. Eschatology and the covenant: a
gos da dissensão e umas poucas saudações da
field:
parte de outras pessoas concluem a mais impor
mystery o f Romans: the Jewish context of Paul’s
tante das cartas de Paulo (Rm 16.1-23).
Letter. Minneapolis: Fortress, 1996. ■
1 172
js o t,
1991.
[jS N T S u p ,
57.) ■ N a n o s , M. D. The R ãisânen,
Ro m a n o s , C arta aos
H. Paul, God and Israel: Romans 9— 11 in recent
the Romans. Chico: Scholars, 1981.
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W atson ,
N e u sn e r,
J. et al., orgs. The social
world o f formative Christianity and Judaism. Philadelphia: Fortress, 1988. p. 178-206. • ders,
San
E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadel
[s b l d s ,
57.] ■
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ciological approach. Cambridge: Cambridge Uni versity Press, 1986.
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W e d d e rb u r n ,
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phia: Fortress, 1977. ■ ______ . Paul, the Law, and
T Clark, 1988. ■ W r i g h t , N. T. The climax o f the
the Jewish people. Philadelphia: Fortress, 1983. •
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ROMANOS n a P a le s t in a .
K. The diatribe and Paul’s Letter to
1 1 73
Ver
Roma.
Dunn
SABEDORIA.
Ver
1) “livrar de perigo e restaurar a uma situação an
c ris t o lo g ia ; T ia g o , C a r t a de.
terior de segurança e bem-estar” ; 2) “fazer alguém S a b e d o ria d e b e n -S ira q u e.
Ver
A p ó c rifo s e Pseudepí
voltar a estar bem depois de ter ficado doente” ; 3) “fazer alguém experimentar a salvação divina
g ra fo s . S a b e d o r ia d e S a lo m ã o .
Ver A p ó c rifo s
e P seudepígrafos.
— ‘salvar’ ”. 0 verbo é encontrado com frequência nos Evan
sa c e rd o te s.
Ver judaísmo
gelhos (Mt 15x; Mc 14x -h Mc 16.15; Lc 17x; Jo 6x;
e o N o v o Testam ento,
as frases em Mt 18.11 e Lc 9.56 não se encontram sa c rifíc io .
Ver
nos manuscritos mais antigos; Mc 16.16 faz parte
C risto , m orte de.
de um acréscimo posterior a esse Evangelho). 0 sadu ceu s.
Ver judaísmo
e o
Novo
verbo tem vários sentidos.
Testam ento.
1.1.1 S a lm o s de S a lo m ã o .
Ver
A p ó c rifo s e P seudepígrafos.
Os Sinóticos. 1) 0 verbo significa “livrar
de perigo”. Nessa acepção, é empregado em Ma teus 8.25 e 14.30 para denotar a ação de livrar
SALVAÇÃO i: E v a n g e l h o s
do perigo de afogamento. Em Mateus 27.40 (par.
o termo “salvação” (e seus cognatos) tem sido
Mc 15.30), 27.42b (par. Mc 15.31b e Lc 23.35b) e
amplamente empregado na teologia cristã para ex
27.49 e em Lucas 23.37,39, usa-se o verbo para
pressar a provisão divina para a situação humana
passar a ideia de Jesus livrar-se de morrer na cruz
necessitada e pecaminosa. Essas palavras têm um
(presumivelmente por meios milagrosos ou com a
papel teológico menos proeminente nos Evange
ajuda de Elias). Talvez a referência ao fato de Jesus
lhos; mesmo assim, são importantes para expressar
“salvar” os outros expresse esse mesmo senüdo ge
os resultados do ministério de Jesus. Este verbete
ral (Mt 27.42a par. Mc 15.31 e Lc 23.35a).
restringe-se em grande parte ao emprego dessas
Na voz passiva, o verbo pode ter o significado
palavras e não se aprofunda no conceito mais am
de "vir” ou de “ ser conduzido com segurança du
plo de salvação.
rante” um período de perigo para a vida (Mt 10.22; 24.13 par. Mc 13.13; cf. Mt 24.22 par. Mc 13.20).
L Panorama do uso linguístico
Um emprego mais metafórico aparece em Lu
2. Antecedentes do uso nos Evangelhos 3. Salvação em cada Evangelho
cas 19.10, em que Jesus é como o pastor que pro
4. 0 entendimento da salvação nos Evange
cura e salva do perigo de morte a ovelha perdida. 2)
lhos
Com frequência, o verbo tem o significa
do de “curar” (a saber, de enfermidades). Com 1. Panorama do uso linguístico
esse significado, é usado em Mateus 9.21 (par.
1.1 O verbo sõzõ. De acordo com Louw e Nida, o
Mc 5.28), 9.22a (par. Mc 5.34 e Lc 8.48), 9.22b,
verbo “ salvar”
Marcos 5.23, 6.56 (par. Mt 14.36, gr., diasõzõ).
(s õ z õ )
tem três significados no
n t:
SALVAÇÃO i: Evangelhos
10.52 (par. Lc 18.42), Lucas 7.50, 8.36,50 e 17.19
isso como seu propósito. Em João 5.34, registra-
(v. tb. Lc 7.3, gr., diasõzõ). Em alguns desses ca
-se que seus ouvintes foram curados.
sos, ele se refere ao livramento em relação ao
1.2 O verbo rhyomai. Com o significado de
poder de espíritos malignos, que se faz por meio
“livrar” ou “ resgatar”, rhyomai é usado com bem
de exorcismo, ou à ressuscitação dos mortos (v.
menos frequência, geralmente fazendo referên
a passagem de Marcos 3.4 (par.
cia ao livramento de um perigo extremo, como a
Lc 6.9) faz contraste entre “salvar alguém” (aqui
morte ou o ato de cair nas mãos do inimigo. Em
r e s s u r r e iç ã o ),
o gr. psychê pode ter o sentido de “pessoa”) e
Mateus 27.43, o verbo aparece quando os líderes
matar. Usa-se a expressão no contexto de curar,
judeus citam ironicamente Salmos 22.8 na pala
no sentido genérico de fazer o que for necessário
vra que dirigem a Jesus na cruz. Em Lucas 1.74,
para promover a vida e a saúde, e a ideia é pro
o livramento das mãos dos inimigos faz parte
vavelmente de vida física.
da salvação aguardada por Zacarias. Em Mateus
3) No relato da conversa entre Jesus, o jo vem rico e os
discípulos,
parecem ser sinônimas
6.13, os discípulos são incentivados a orar para que sejam livrados do Maligno (ou do mal).
as expressões “herdar a vida eterna” , “entrar no reino de Deus” (v.
rein o de D e u s)
e “ ser salvo”
1.3 O substantivo sõtér. Em Lucas 1.47, Ma ria emprega sõtsr, que significa “salvador” , para
(Mc 10.17,23-26; cf. Mt 1.16,23-25; Lc 18.18,24-
se referir a Deus, e, por ocasião de seu
26). Encontra-se em Lucas 13.23 (“são poucos os
to,
que se salvam”) e 8.12 ( “para que não aconteça
quando este se dirige aos pastores (Lc 2.11). Em
nascimen
Jesus é assim designado pelo anjo do
S en h or,
que, crendo, sejam salvos”) o que pode ser consi
João 4.42, 0 povo samaritano que se mostrara re
derado o uso técnico da salvação espiritual. Jesus
ceptivo a Jesus declara que ele é “o Salvador do
tem esse nome porque, de acordo com o anjo do
mundo” (Jo 4.42).
Senhor, “ele salvará seu povo dos seus pecados” (Mt 1.21).
1.4 O substantivo sõtêria. Sõtêria, substantivo com o significado de “salvação”, pode se referir
Em uma declaração enigmática, Jesus faz
ao processo ou ao resultado de salvar. É encontra
menção de pessoas que querem salvar a pró
do em Lucas 1.69, passagem em que Zacarias de
pria vida e acabam por perdê-la (Mt 16.25 par.
clara que Deus suscitou “um chifre de salvação”
Mc 8.35a e Lc 9.24a), em contraste com os que
[ nvi, nota de rodapé) e então define mais precisa
perdem a vida e (desse modo) a salvam (Mc 8.35b
mente essa dádiva de Deus, dizendo que ele está
par. Lc 9.24b).
“salvando-nos dos nossos inimigos”
4) Em algumas passagens, o termo é ambí
(n v i).
Mais
adiante, no mesmo hino, a tarefa de seu filho
guo, e não fica claro se está se referindo exclusi
João (v.
vamente à saúde e ao bem-estar físico e mental
seu povo conhecimento da salvação pelo perdão
ou também à salvação espiritual (e.g., Lc 7.50,
dos seus pecados”. Jesus comenta que sua visita
João B a tista )
é assim definida: “... dar ao
“A tua fé te salvou”; observe-se que em outras
a Zaqueu trouxe “ salvação” a sua casa (Lc 19.9).
passagens essa expressão designa a cura física:
E Jesus diz à mulher de Samaria que “a salvação
Mc 5.34 par. Lc 8.48; Mc 10.52 par. Lc 18.42; cf.
vem dos judeus” (Jo 4.22).
Lc 8.50; 17.19). 1.1.2
1.5 O substantivo sõtêríon. Outra palavra com
João. 0 uso em João é semelhante ao o sentido de “ salvação” é sõtêríon, encontrada em
dos Sinóticos.
Lucas 2.30, quando Simeão diz que seus olhos
1) Em João 12.27, Jesus ora para que, se
viram a salvação de Deus, e em Lucas 3.6, quan
possível, seja liberado de passar pela cruz. Em
do 0 próprio Evangelista cita Isaías 40.5: “Todos
João 10.9, ele compara as pessoas a ovelhas que
verão a salvação de Deus”. De acordo com Louw
entram no aprisco e vivem em segurança.
e Nida, esse vocábulo significa preferivelmente
2) Em João 11.12, acredita-se que Lázaro este ja dormindo (i.e., em coma) e, portanto, em con
“ o meio pelo qual o povo experimenta a salvação divina”.
dições de ser curado.
1.6 A salvação em sentido espiritual. Esse
3) 0 texto de João 3.17 diz que Jesus veio para
apanhado demonstra que o sentido espiritual
salvar o mundo, e em João 12.17 ele se refere a
está claramente presente em Mateus (1.21) e em
1175
SALVAÇÃO i: E v a n g e l h o s
Marcos (10.26), sendo, porém, mais proeminente
de ajudar a humanidade inteira ou alguma co
em Lucas, o único dos autores dos Sinóticos a
munidade. 0 deus Asclépio era importante, pois
desenvolver o uso dos substantivos junto com o
em diversos santuários era aquele que curava os
verbo. Um fato interessante que surge daí é que
enfermos. 0 termo também designava os chefes
0 significado “literal” da palavra pode ser a ideia
de Estado, e, quando se desenvolvia um culto re
genérica de “resgatar” ou “curar” , e ambos os sig
ligioso aos governantes, “salvador” era um dos
nificados podem estar por trás do uso “espiritual”
títulos honoríficos utilizados.
da terminologia. Louw e Nida (p. 1241, nota 4) comentam que, de forma geral, os tradutores da
3. Salvação em cada Evangelho
Bíblia têm usado palavras que refletem o primeiro
3.1 Mateus.
sentido, mas tem havido certa mudança no em
3.1.1 Salvos do pecado. Já no início, o Evan
prego de palavras que refletem o último significa
gelho de Mateus anuncia que “Jesus” deve ser
do ou na utilização de palavras que dão mais a
chamado por esse nome porque salvará seu povo
ideia de “restaurar” ou “recriar”. Dessa maneira,
dos
a ênfase não tem mais recaído sobre a ação di
signação de Israel, que é considerado uma nação
vina, nem sobre o fato de que o que Deus cria
pecadora. O livramento do pecado está associa
tem a qualidade de ser novo. Destaca-se agora a
do à resposta do povo a João Batista (Mt 3.6) e
PECADOS.
Nesse contexto, o “povo” é uma de
às declarações soberanas de Jesus na condição
restauração do que se perdeu ou se desfigurou.
de Filho do homem (Mt 9,2,5,6), Na
Ú ltim a Ceia,
2. Antecedentes do uso nos Evangelhos
Jesus declara que seu sangue será derramado
Os Evangelhos foram escritos em uma época em
para perdão dos pecados (Mt 26.28). Ele também
que a ig re ja tinha já um vocabulário especial para
afirma que veio realizar uma missão entre os
se referir á experiência cristã, Podemos vislum
pecadores (Mt 9.10-13; cf, 11.19). O significado
brar um processo em duas etapas: o vocabulário
de “ salvar” não é explicado em detalhes, mas
dos cristãos deve ter sido influenciado por Jesus,
as três referências ao perdão mostram de modo
e a escolha das palavras nos Evangelhos pode
suficientemente claro o que se tem em mente. É
ter sido influenciada pelo vocabulário da igreja.
natural que se pense em livrar o ser humano dos
A maneira com que Jesus e seus seguidores se
efeitos de seus pecados, mas ao mesmo tempo
expressavam também deve ter sido influenciada
tem-se em mente capacitá-lo a não pecar. Na iro
pela herança do
e do judaísmo e, até certo pon
nia empregada pelos líderes judeus por ocasião
to, pela necessidade de falar usando termos que
da crucificação, “ salvou os outros” (Mt 27.42a),
at
usa-se 0 verbo em sentido genérico, e não se
seriam compreendidos pelo povo em geral. A ampla pesquisa de E. M. B. Green, de fácil
deve limitá-lo ao sentido de salvar alguém da
leitura, analisa os antecedentes do uso do con
morte (Mt 27.42b). Entretanto, é improvável que
ceito pelo
quem fez tal declaração tenha atribuído signifi
NT.
No
at,
há uma quantidade consi
derável de material em que as palavras hebraicas
cado espiritual a suas palavras.
correspondentes são usadas quase sempre com o
3.1.2 Salvação como algo físico e espiritual As
sentido de livramento em épocas de conflito, es
referências ao livramento da morte iminente no
pecialmente na guerra. Mas a ideia de livramento
mar e à cura de doenças físicas nâo precisam ne
é muito mais ampla e se refere a estar livre de
cessariamente implicar algo além disso. Entretan
perigo de todos os tipos da vida e até mesmo, em
to, vários fatores apontam para um entendimento
sentido mais geral, ao estado de bem-estar que
diferente.
Deus deseja para seu povo. É natural que os is
Primeiro: é bem possível que os fatos envol
raelitas olhassem para Deus como seu supremo e
vendo a “ salvação” física narrados nos Evange
derradeiro Libertador de todos os tipos de dificul
lhos fossem aplicados na igreja com significado
dades e afUções. Ele é o Salvador por excelência
histórico. Desse modo, a interpretação da história dos discípulos no barco durante uma tempesta
(cf. Sl 27.1). O termo “ salvador” era conhecido no mundo
de é que ela simboliza a igreja sofrendo tribula
greco-romano como epíteto dos deuses na função
ção no mundo. Nesse caso, são os seguidores de
1 176
S A L V A Ç Ã O i: E v a n g e l h o s
Jesus que clamam ao Senhor para que ele os “sal
firme e leal a Jesus apesar da perseguição e que
ve” das dificuldades da vida, e a resposta à ora
permanecer firme e leal conduz à “salvação final”.
ção deles pode estar na ehminação ou diminuição
No entanto, em Mateus 24.22 (par. Mc 13.20), o
de suas tribulações ou em serem conduzidos em
sentido pode ser que, se a perseguição demorasse
segurança em meio às tribulações ou levados à
demais, ninguém sobreviveria, de modo que não
salvação final apesar até mesmo da própria mor
sobraria ninguém vivo para dar as boas-vindas ao
te. A disposição das palavras no episódio da cura
Fiiüo DO HOMEM quando ele chegasse. 0 termo não
do paralítico e do perdão dos pecados pode, da
pode ter o sentido de que ninguém conseguiria
mesma forma, ter levado a ver a cura como sím
permanecer firme e leal a ponto de sofrer martírio.
bolo do perdão e salvação espirituais.
Temos aqui, portanto, dois usos diferentes da pa
Segundo: a fórmula traduzida em outras pas
lavra, mas com sentido bem próximo um do outro.
sagens dos Evangelhos por “a tua fé te salvou”
3.1.4 Salvação definitiva. De modo semelhan
é empregada uma vez em Lucas (7.50) para de
te, Mateus 19.25 e suas passagens paralelas de
signar uma pecadora que havia experimentado
vem se referir à “salvação final”. Trata-se de uma
perdão. Aqui, a fórmula é naturalmente traduzi
condição futura de salvo, em contraste com o ato
da por “a tua fé te salvou” , que é, em essência, o
de se perder, que, no imaginário dos Evangelhos,
mesmo de Efésios 2.8 (cf. At 15.11, caso se acom
significa participar, do banquete celestial, sem ser
panhe a tradução proposta por F. F. Bruce, “cre
dele excluído; receber as boas-vindas do Filho do
mos para [de modo a] ser salvos” ; 15.31; Rm 10.9;
homem e entrar no reino celestial, sem ser rejei
Tg 2.14; no final longo de Marcos [16.16], vê-se a
tado e destinado ao fogo eterno (v. jufzo). Isso
mesma terminologia da igreja). Tendo em vista a
nos leva a questionar se a condição de “ salvo”
ambiguidade da fórmula extraída de um contexto
se refere exclusivamente a um estado no mundo
de cura, é bem provável que no im'cio os cristãos
vindouro ou se também pode se referir aos que já
foram levados a ver a cura como símbolo da sal
estão certos de que entrarão no reino. 3.1.5 Salvando e perdendo a própria vida. Em
vação e a estabelecer o paralelo entre a cura pela
Mateus 15.25 e passagens paralelas, há um im
fé e a salvação pela fé. Terceiro: no mundo antigo, não se fazia clara
portante grupo de frases sobre o tema de salvar
distinção entre o físico e o espiritual. Aliás, com
e perder a própria vida. Aqui, a dificuldade é em
frequência o mesmo acontece hoje em dia. Quan
parte provocada pela ambiguidade do sentido da
do o cristão ora a Deus para que ele “abençoe”
palavra “vida” (gr., psychê), que pode se referir à
alguém, é difícil dizer se está pensando no bom
“alma” como algo distinto do corpo (e, dessa ma
êxito dessa pessoa em algum assunto ou aspecto
neira, ter 0 significado de pessoa), ou à “vida” ,
da vida cotidiana, em uma sensação de favor di
ou ainda à “ vida verdadeira” de alguém. Jesus
vino ou no pleno sucesso na realização de algum
parece estar dizendo que quem tenta “ salvar”
aspecto do ministério e do serviço cristãos. Por
(i.e., preservar) a própria vida, no sentido de evi
isso, é difícil fazer distinção entre a cura física e
tar o martírio ou de se apegar às coisas que neste
a cura da “pessoa interior” (cf. Lc 17.19, em que
mundo lhe dão prazer e satisfação, “perderá” a
não fica claro se a declaração se refere exclusiva
vida no final, seja por descobrir não ser possível
mente à cura da lepra).
livrar-se da morte, seja por descobrir que apegar-
Por isso, é provável que os relatos de cura nos
se às coisas terrenas resultará em perda no juí
Evangelhos fossem entendidos como narrativas
zo final e, por conseguinte, no mundo vindouro.
de um processo que envolvia a pessoa toda, nâo
Já os que, por amor a Jesus (Marcos acrescenta:
apenas a cura física ou mental.
“por causa [...] do evangelho”), estão preparados
3.1.3
Salvação apesar da perseguição. O texto para dizer “ não” ’ ao próprio eu, mesmo que isso
de Mateus 10.22 e suas passagens paralelas talvez
signifique a morte, descobrem que “ salvarão”
sejam uma alusão à segurança física experimen
sua vida, no sentido de que alcançarão o reino
tada em meio à perseguição. Entretanto, no ver
de Deus e desfrutarão das bênçãos que realmente
sículo 2, a referência a uma possível morte leva
valem a pena possuir (cf. o paralelo vocabular
a considerar que o versículo fala de permanecer
um pouco diferente em Mt 10.39 e em Lc 17.33).
1 177
SALVAÇÃO i: Evangelhos
3.2 Marcos. No Evangelho de Marcos, o qua
ataques (Lc 1.71). Acima de tudo, Zacarias fala
dro é mais simples que em Mateus. A única re
de uma experiência (gr., gnõsis, “conhecimen
ferência importame sem paralelo em Mateus é
to”) de salvação, intimamente associada ao per
Marcos 3.4, passagem em que Jesus comema a
dão de pecados (Lc 1.77). 0 que Mateus 1.21
questão legal de fazer o bem e “salvar a vida”
afirma da maneira mais breve possível, Lucas
no dia de sábado, em que “salvar a vida” tem o
expressa num quadro maior. Depois disso, não é
sentido lato de curar um enfermo. A expressão
de surpreender que, após o nascimento de Jesus,
contrasta com “matar”, sendo uma crítica direta
a linguagem exaltada empregada para descrevê-lo
contra o que Jesus deixa implícito serem as inten
se refere não somente a seus vínculos davídicos,
ções ocultas de seus críticos, que o atacam por
a seu messiado e a sua posição como Senhor, mas
curar no sábado. No entanto, em Marcos não en
também ao fato de ele ser o Salvador (Lc 2.11).
contramos 0 texto programático de Mateus 1.21,
E todo o drama está resumido no comentário de
e só em Marcos 10.26 há uma ocorrência explici
Simeão: ele afirma que viu a salvação que o Se
tamente teológica do termo.
nhor preparou e que é para todos os povos (“todo
3.3 Lucas. Em Lucas, o caso é diferente. Ele apresenta o mesmo padrão dos outros dois Evan
0 povo” [singular] não é suficientemente literal), entre os quais os gentios (Lc 2.30-32).
gelhos, isto é, o uso das palavras em sentido lato,
3.3.2
A salvação como missão do Filho de
mas existe uma ênfase especial na salvação que
Deus. As notas dessa abertura musical devem
não se vê naqueles Evangelhos.
permanecer em nossos ouvidos à medida que
3.3.1
Introdução à história da salvação. Essa continuamos a ouvir o Evangelho de Lucas, e
ênfase fica evidente acima de tudo nas narrativas
outros usos da terminologia em torno da “ salva
do nascimento (v.
que têm
ção” devem harmonizar com o que já ouvimos.
a função de introdução, sendo apresentados os
Lucas repete bastante do que já encontramos em
temas principais do drama que se segue, porém
Mateus e em Marcos. Podemos assinalar que, ao
com música própria. Aqui uma das notas mais
registrar o material paralelo ao de Marcos, em
características é a salvação, com seis referências
Lucas 8.12, ele acrescenta o motivo de o Diabo
importantes.
arrancar de alguns ouvintes a Palavra: “para que
J e s u s , n a s c im e n t o d e ) ,
A primeira nova soa em Lucas 1.47, em que
não aconteça que, crendo, sejam salvos”. Aqui,
Maria, na condição de futura mãe do Messias,
há um eco da linguagem da igreja primitiva, e Lu
põe-se ao lado do povo de Deus e se regozija em
cas claramente está se referindo ã experiência de
Deus, seu Salvador. A evolução do cãntíco deixa
salvação espiritual que vem por meio de ouvir a
claro que ele é o Salvador dela e também de seu
Palavra de Deus. O mesmo se vê em Lucas 13.23,
povo. A ação de Deus é descrita como potente
quando perguntam a Jesus se são poucos “os que
e eficaz, contra os poderosos e os orgulhosos e
se salvam”. Deve se interpretar essa pergunta à
a favor dos pobres e humildes. Esses grupos de
luz de Mateus 7.13,14, em que se lê que mui
palavras e expressões apontam respectivamente
tos percorrem a estrada que leva à destruição e
para os que se opõem a Deus e os que confiam
poucos encontram o caminho que conduz à vida,
que ele suprirá suas necessidades. Além disso,
havendo correspondência de termos, como em
entende-se que a ação de Deus faz parte de uma
Marcos 10. Isso é confirmado pelo contexto, que
longa história de misericordiosa preocupação
se refere ao futuro banquete no reino de Deus.
com 0 povo escolhido.
A teologia lucana da salvação é resumida em
No segundo cântico, o de Zacarias, a natureza
Lucas 19.10, em que a missão do Filho do homem
da salvação é apresentada mais claramente. Mais
é buscar e salvar os perdidos. 0 texto reflete a
uma vez, soa a nota que indica uma interven
terminologia do pastoreio e se refere, de várias
ção potente e eficaz — “um chifre de salvação”
maneiras possíveis, ao resgate de ovelhas, Uvran-
(Lc 1.69,
— associada à vinda do Messias (v.
do-as da morte. 0 emprego metafórico dessa ter
Mais uma vez, menciona-se a ação divina
minologia para se referir ao cuidado de Deus com
contra os poderosos e os perversos, o que torna
seu povo era algo bem estabelecido e ressoa aqui.
possível ao povo de Deus servi-lo sem medo de
Pode se dizer que uma consequência de Jesus
C r is to ).
n v i)
1 178
SALVAÇÃO i: Evangelhos
ter procurado Zaqueu foi que a salvação chegou
ainda assim significativo, com outros grupos de
imediatamente à casa daquele homem (Lc 19.9).
palavras que recebem atenção bem maior.
Trata-se, portanto, de uma experiência ocorrida naquele momento, envolvendo a c o m u n h ã o
à m esa
Aqui fica claro que os Evangehstas estão refle tindo a realidade histórica de várias situações, ou
entre Jesus e Zaqueu e o início de um novo es
seja, não era um grupo de palavras muito usado
tilo de vida para Zaqueu, que abandona os hábi
por Jesus, especialmente em seu sentido teológi
tos pecaminosos do passado. Jesus destaca que,
co pleno. Mesmo assim, é provável que os Evan
embora Zaqueu seja um pecador, assim mesmo
gehstas tenham descrito corretamente a situação
é uma das ovelhas perdidas da casa de Israel e,
ao reconhecer que, em última instância, a missão
portanto, um alvo legítimo de sua missão.
de Jesus dizia respeito à salvação. Ele anunciou o
3.4
João. No Evangelho de João, a salvação reino de Deus com as bênçãos concomitantes. A
está associada ã missão do
F ilh o d e D eu s
e
é
posta
terminologia em torno da salvação esmiuça o sig
em contraste direto com a possibilidade de con
nificado disso no que diz respeito aos benefícios
denação e morte. Dessa maneira, ser salvo é o
para a humanidade.
oposto de ser julgado e destruído. É o mesmo que
Alguns termos emergem dos Evangelhos:
ganhar a vida eterna (Jo 3.16,17; cf. Jo 12.47). A
1) A salvação está intimamente associada a
salvação não se restringe ao povo judeu. Estende-
Jesus e a sua missão. É um termo abrangente que
se a todo 0 mundo, e isso inclui os samaritanos,
designa os benefícios da ação soberana de Deus
que a ortodoxia judaica considerava excluídos do
por meio do Messias.
favor divino, mas foram eles que confessam que
2) É vista como uma experiência futura, cor
Jesus é “ o Salvador do mundo” (Jo 4.42), a des
respondente ao ingresso no reino de Deus e à
peito de ser verdade que a salvação chegou ao
obtenção da vida eterna, mas também é uma ex
mundo por meio “ dos judeus”. O corolário disso
periência presente, que resulta do encontro pes
é que o testemunho acerca de Jesus é o que leva
soal com Jesus.
as pessoas a experimentar a salvação (Jo 5.34).
3) Por intermédio de Jesus, Deus concede a
O quarto Evangelho também emprega a metáfora
salvação a seu povo,
do pastoreio para expressar o papel de Jesus, mas
embora seja o povo de Deus, Israel não está
Is r a e l.
A implicação é que,
aqui Jesus é a porta por meio da qual as ovelhas
desfrutando da plenitude de vida que Deus lhe
adentram a segurança do aprisco e, assim, estão
deseja. Isso se deve tanto aos efeitos do mal no
Uvres dos perigos lá fora. (Não se deve forçar a
mundo em geral (e.g., a ação do Inimigo) quanto
metáfora; as ovelhas podem sair e entrar com li
à ação das enfermidades e da morte.
berdade e segurança, i.e., os que “pertencem” ao
4) Apesar de sua pecaminosidade, o ser huma
rebanho têm a certeza da proteção do Pastor onde
no não está impedido de obter a salvação que Deus
quer que estejam.)
deseja para seu povo. Pelo contrário, esse fato confirma essa necessidade. A princípio, a salvação
4. O entendimento da salvação nos
também não se limita aos judeus. Há indicações
Evangelhos
de que ela se estende a todos os povos, embora no
Já se disse o suficiente para demonstrar que o
ministério de Jesus só ocorram contatos esporádi
grupo de palavras relacionadas ã “salvação” não
cos com samaritanos e outros não judeus.
alcança nos Evangelhos a proeminência da ex
5) A associação entre cura e fé e o emprego
pressão “reino de Deus” , por exemplo. Isso fica
mais amplo da fórmula “a tua fé te salvou” reve
evidente sobretudo em Marcos. Mateus associa a
lam que a recepção da salvação estava associada
vinda de Jesus a seu papel de Salvador, mas não
à fé, a qual é entendida em sentido lato, consis
desenvolve a terminologia de forma significativa.
tindo no reconhecimento de Jesus como agente
Nas narrativas do nascimento, Lucas destaca o
soberano e poderoso de Deus e também num
tema e não chega a perdê-lo totalmente de vista,
compromisso com ele.
mas não se pode dizer que a terminologia receba
6) Afastar-se do mal faz parte do processo de
destaque. Em João, os termos referentes à “sal
salvação. Aliás, Zaqueu não só abandonou as
vação” ocupam um papel menos destacado, mas
práticas desonestas de sua vida pregressa, mas se
1 179
S alvação ii : Paulo
comprometeu em adotar um novo estilo de vida
ao livramento do pecado e ao livramento derradei
que envolvia o hábito de ajudar os pobres.
ro, quando, no fim dos tempos, os salvos entrarem
Ao apresentar Jesus como Salvador, os no estado de felicidade absoluta com Gristo.
7)
Nos escritos paulinos, destaca-se o livramento
Evangelistas estão lhe atribuindo um papel que o judaísmo reservava para Javé (v.
D e u s ).
Embora
seja possível aplicar o termo a líderes terrenos (os
do
pecado
e de suas consequências, embora para
Paulo seja muito mais natural falar de salvação do
juizes), ele era usado predominantemente para
que dizer que as pessoas são salvas. Ele utiUza o
designar Javé, e o eco, nos Evangelhos, das pas
verbo sõzõ (“salvar”)
sagens do
outro escritor do
AT
que tratam da atividade salvadora
de Javé mostra que seu papel foi agora atribuído
29
vezes (mais que qualquer
o substantivo sõtêr (“ salva
n t);
dor”), 12 vezes (exatamente metade das ocorrên
a Jesus. Antes disso, o termo “ salvador” em re
cias da palavra no
ferência ao Messias não era usado pelo judaís
vezes; sõtêríon (“salvação”) e sõtêríos (“que traz
mo. Ao mesmo tempo, fica implícito que Jesus
salvação”), uma vez cada um. E usa rhyomai
n t);
sõtêria (“salvação”),
18
se opõe a outros humanos (como o imperador
(“resgatar”)
romano) considerados salvadores.
que Paulo está interessado no conceito de salva
Ver também
c r is to lo g ia ;
Lu cas,
E v a n g e lh o
de;
11
vezes. Tais estatísticas mostram
ção; aliás, mais que qualquer outro escritor do
n t.
O conceito de salvação tem ampla gama de
r e in o d e D eu s.
sentidos, e existem diferentes ênfases em diferen B ib lio g rafia . Foerster, W . & Fohrer, G. ctüÇoj ktA. TDNT. [S.l.: S.n., s.d .] v. 7, p. 965-1024. ■ George,
Etudes sur l’oeuvre de Luc.
A.
Paris: G a b a ld a , 1978.
tes partes do
n t.
Nos Evangelhos, por exemplo,
são frequentes as histórias em que Jesus opera m i la g r e s
e os faz acompanhar de frases como “a tua
L’e m ploi ch e z Luc du voc a bu laire
fé te salvou”. Nesses contextos, a salvação tem
de salut, nts, v. 23, p. 308-20, 1977.) ■ Green, E.
forte componente físico (embora seja prudente
p. 307-20. ( =
London: H odder
não excluir o componente espiritual mesmo em
A.
tais passagens). Mas esse não é um emprego
Greek-English lexicon o f the New Testament based
paulino (com exceção de umas poucas passagens
on semantic domains.
possíveis, e.g., ITm
M . B.
&
The meaning o f salvation.
Stoughton, 1965. ■ Louw,
J.
P. & Nida, E.
N e w York: U n ited B ible S o
Luke:
2.15;
v.
3
abaixo). Para Pau
historian an d
lo, a “ salvação” refere-se ao que Cristo fez em seu
theologian. 3. ed. G ran d Rapids: Z o n d e rv a n , 1989.
grande ato redentor pelos pecadores. De alguma
cieties, 1988. ■ M a rs h a ll, I. H.
■ Schneider, J. & Brown,
C. R edem ption etc. m dntt.
maneira, todas as passagens paulinas dizem res
[S.L: s.n., s.d .] v. 3, p. 205-321. ■ V an Unnik, W.
peito a esse ato. Esse termo é fundamental para o
G. L’u sage de
sozein
“s a u v e r” et de ses dérivés
entendimento que Paulo tem da salvação, pois a
J.,
salvação é justamente o propósito da encarnação
d an s les E van giles synoptiques. In: Goppens, org.
La formation des Evangiles.
de B rouw er, 1957. p. 178-94 ( =
Sparsa Collecta.
Bruges: D esclée
do Filho de Deus: “Cristo Jesus veio ao mundo
W . G. van Unnik.
para salvar os pecadores” (ITm
I. H.
1.15).
“Salva
ção” é uma palavra abrangente que traz a lume a
Leiden: Brill, 1973. p. 16-34). M a r s h a ll
verdade de que
D eu s
em
C r is to
resgatou os seres
humanos da condição desesperadora a que seus Salvação
ii:
P
pecados os haviam submetido.
aulo
“Salvação” é um termo genérico que denota livra
1.
“ Deus, nosso Salvador”
mento de vários tipos. É possível utilizá-lo para
2.
Agentes humanos na salvação
designar a cura de uma doença, o cuidado na via
3.
Quem será salvo?
gem ou a proteção em tempos de perigo. Pode ser
4.
Salvação no passado
aplicado a pessoas e coisas. No
a t,
5. Salvação agora
quando Israel
6. Uma salvação futura
era ameaçado por nações hostis, o termo desig nava a proteção por parte de Deus. Nos Evange lhos, é muitas vezes empregado em referência às
1. “Deus, nosso Salvador”
curas realizadas por Jesus (“a tua fé te salvou [i.e.,
Nas Cartas Pastorais, existem várias referências
curou] "). Mas o termo também é usado em relação
a “ Deus, nosso Salvador” (ITm
1 180
1.1; 2.3;
Tt
1.3;
S a lva ç ão ii ; Paulo
2.10; 3.4), ou a “nosso Salvador Cristo Jesus”
salvar os que creem “por meio do absurdo da pre
(2Tm 1.10; Tt 1.4; 2.13; 3.5). Não se deve diferen
gação” (ICo 1.21). Mais adiante, na mesma car
ciar demais esses dois grupos de passagens, pois
ta, Paulo dá a conhecer o evangelho pelo qual os
o ensino neotestamentário de que Deus agiu em
coríntios eram salvos (ICo 15.1,2). Em ambos os
Cristo é resumido nas próprias palavras de Pau
casos, a pregação claramente significa anunciar
lo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo
o que Cristo realizou ao morrer pelos pecadores.
mesmo o mundo” (2Co 5.19). De um lado, fica
Eles são salvos por causa do que ele fez. Paulo
bastante claro que a salvação teve origem no Pai;
pôde identificar “a palavra da verdade” com “ o
de outro, que foi o Filho quem fez o necessário
evangelho da vossa salvação” (Ef 1.13), que é a
para a salvação se tornar uma realidade.
base da confiabiUdade da proclamação do evan
Paulo escreve que Deus não destinou os tes
gelho, que fala da verdade divina e da ação de
salonicenses para a ira, e sim para a salvação,
Deus. A referência ao “será salvo, [mas] como
“por nosso Senhor Jesus Cristo” (ITs 5.9). É Jesus
alguém que passa pelo fogo” (ICo 3.15), tem em
quem “nos livra da ira vindoura” (ITs 1.10) ou,
vista o crente que alcançou tão pouco na vida
expressando de modo um pouco diferente, é “por”
cristã que no dia do jufzo final sua obra será des
Cristo que os crentes serão salvos da ira (Rm 5.9).
truída pelo fogo. No entanto, se estiver sobre o
Paulo desenvolve essa ideia, dizendo que os pe
alicerce que Cristo lançou, esse crente será salvo.
cadores eram inimigos de Deus, mas agora foram
É Cristo quem salva, não o esforço humano. Em
reconciliados por meio da morte do Filho e, uma
última instância, o mais importante é o alicerce
vez reconciliados, serão “salvos pela [ou em] sua
seguro, não a obra incerta.
vida” (Rm 5.10). É improvável que o apóstolo
Em nenhum lugar, Paulo fala de uma salvação
queira dizer que a morte de Jesus opera uma for
operada por esforço humano. Ele, aliás, quer in
ma de salvação, e a ressurreição, outra. Ele está
formar que ele mesmo e seus colaboradores são
se referindo a um único e grandioso ato de reden
“atribulados” por causa da salvação dos coríntios
ção que envolve a morte e a r e s s u r r e iç ã o de Jesus,
(2Co 1.5; cf. Cl 1.24), mas isso significa apenas que
uma salvação que livra os salvos da ira e lhes dá
os evangelistas enfrentam dificuldades para levar a
uma vida sem fim. Caso a preposição “em” seja
mensagem de salvação ao povo. Com certeza, não
significativa, Paulo está dizendo que nossa ple
significa que essas tribulações mereciam como
na salvação significa sermos salvos “na” vida de
prêmio a salvação de seus ouvintes. Essa passa
Cristo. Visto que ele muitas vezes alude ao estar
gem também mostra o apóstolo como alguém que
“em” Cristo, pode muito bem ser esse o significa
foi encorajado, mas não foi o encorajamento re
do aqui. Isso fica explícito quando ele diz que se
cebido por Paulo que lhes trouxe a salvação. Ela
pode obter “a salvação que há em Cristo Jesus”
sempre vem da parte de Deus, Outra passagem
(2Tm 2.10). Ele também pode estar se referindo
mostra que as dificuldades dos primeiros crentes
à importância das Escrituras, que podem fazer o
eram um sinal de sua salvação (Fp 1.28).
ser humano “sábio para a salvação” (2Tm 3.15).
Paulo emprega o tema da salvação para mos
Que a salvação tem sua origem em Deus é algo
trar aspectos da grande verdade de que os crentes,
que se vê quando Paulo fala do “chamado” divi
quando ainda pecadores, não conseguiam escapar
no: Deus “ nos chamou com uma santa vocação”
das consequências de seus atos maus, mas Deus
(2Tm 1.9). Para Paulo, a ideia do chamado é im
agiu para livrá-los. “Pela graça sois salvos” é o que
portante, e aqui ela expressa a verdade de que a
ele escreve à igreja de Éfeso (Ef 2.8), expressão
salvação vem em consequência de uma iniciativa
que vem após a declaração “... estando nós ainda
da parte de Deus ou pode estar associada à graça
mortos em nossos pecados, deu-nos vida junta
para exprimir o fato de que a salvação é para todos
mente com Cristo” (Ef 2.5). A implicação é que
(Tt 2.11). Isso significa que a salvação está dispo
pecados produzem a morte, mas Cristo concede
nível a todos, não que cada pessoa seja salva.
vida aos que estão mortos no pecado. Assim, des
Paulo emprega várias expressões que passam
cobrimos que “não por méritos de atos de justíça
o pensamento de que a salvação vem “por meio
que houvéssemos praticado, mas segundo a sua
da” mensagem cristã. Assim, Deus agradou-se de
misericórdia, ele nos salvou” (Tt 3.5).
1 181
S a l v a ç ã o i i : Pa u l o
Na salvação, a iniciativa é de Deus: “Ele vos
Timóteo é incentivado a permanecer na “dou
escolheu [...] para a salvação” (2Ts 2.13). Na
trina”. Assim, salvará “tanto a ti mesmo como os
verdade, quase toda a passagem, que trata da
que te ouvem” (ITm 4.16). A referência ao “en
salvação, poderia ser citada, pois, em seu modo
sino” mostra que o escritor não está indicando
característico, Paulo (à semelhança de outros es
uma atividade meritória, mas o ensino de que
critores do
Cristo é 0 Salvador, e aqueles que ouvirem isso
n t)
apresenta a seus leitores informa
ção sobre uma salvação que, em certo sentido,
estarão com Timóteo na salvação. Mais uma vez,
já foi concedida por Cristo e, em outro, se con
temos a ideia do esforço humano levando à sal
sumará na era vindoura. Em nenhum dos dois
vação de outras pessoas. Mas é Deus em Cristo
sentidos, existe a mínima indicação de que o es
quem salva.
forço humano é de alguma ajuda. É relevante que Paulo ore pela salvação de
Is r a e l
(Rm 10.1), pois,
3. Quem será salvo?
se o assunto é a salvação, então fica claro que
O fato de que a salvação é um livramento divi
esta é uma dádiva de Deus. A salvação é operada
no não significa que todos serão salvos. Paulo,
por Deus em Cristo. Os cristãos são os “ salvos”
citando as palavras de Isaías, diz: “Ainda que o
(ICo 1.18; 2Co 2.15), não “aqueles que salvam”,
número dos filhos de Israel seja como a areia do
nem os que são salvos por esforço próprio. Esse
mar, o remanescente é que será salvo” (Rm 9.27).
também é o caso quando a fé está associada à sal
0 artigo definido é importante. Paulo não diz
vação (Rm 10.9; ICo 1.21; Ef 2.8), pois fé significa
“um” remanescente, mas “o ” remanescente. Ele
confiar em Cristo ou em Deus, não dependendo
está se referindo ao remanescente bíblico, de que
dos próprios esforços.
Deus fez menção por meio de seus profetas. Esse remanescente é o verdadeiro povo de Deus, e a
2. Agentes humanos na salvação
salvação vem até esse povo, não às multidões da
Em algumas passagens, menciona-se uma agência
nação, que são negligentes com relação às coisas
humana que está operando a salvação, embora
de Deus.
isso, naturalmente, não signifique que os seres
Deve se ressaltar que, embora Paulo aguarde
humanos possam salvar uns aos outros. Quan
que Deus traga a salvação a
do Paulo, por exemplo, fala de sua intenção de
que ele esteja desobrigado de ajudar sua nação.
salvar alguns israelitas (Rm 11.14), ele não quer
Aliás, de qualquer forma, ele considera que, em
dizer que seus esforços efetuarão a salvação, ape
certo sentido, seu ministério aos gentios é um
nas que sua esperança é que a mensagem por ele
meio de fazer aos judeus uma recomendação do
Is r a e l,
não significa
proclamada leve alguns de seus compatriotas a
evangelho. Ele diz que sua situação é de “apósto
se voltar para Deus e, desse modo, a obter a sal
lo dos gentios” e confia que o trabalho que rea
vação que só Deus pode dar. Deve se entender a
liza nessa condição vai “provocar ciúmes nos da
mesma coisa quando se diz que a mulher salvará
minha raça e salvar alguns deles” (Rm 11.13,14).
o marido, e vice-versa (ICo 7.16). Paulo não está
No sentido de “ membro da mesma nação” a ex
afirmando que uma pessoa pode operar a salvação
pressão “minha carne”
dos membros da faimlia, e sim que a esposa crente
destaca seu senso de consanguinidade em relação
(a j m )
é incomum, mas
ou 0 marido cristão pode viver de tal maneira que
a Israel. Ele espera que o êxito de seu trabalho
conduza o cônjuge a Deus e à salvação. Na visão
entre os gentios afete os judeus, de maneira que
de Paulo, o princípio é de aphcação universal en
também “alguns deles” sejam salvos.
tre os cristãos. Ele conclui uma passagem sobre
Para Paulo, uma das principais acusações con
a ingestão de comida oferecida a ídolos, dizendo
tra os judeus é que eles impediam os pregadores
aos destinatários que, seja lá o que comam ou be
cristãos “de pregar aos gentios para que sejam
bam — na realidade, qualquer coisa que façam —,
salvos” (ITs 2.16). Em outro contexto, ele afir
devem fazer tudo para a glória de Deus. Ele afirma
ma que se torna “ tudo para com todos, para de
que ele próprio procura agradar a todos naquilo
todos os meios vir a salvar alguns” (ICo 9.22).
que faz: não procura vantagem pessoal, mas a de
Fica claro que, para o apóstolo, levar a salvação
muitos, “para que sejam salvos” (ICo 10.31-33).
às pessoas em todos os lugares era de suprema
1 182
Sa lva ç ão ii : Pa ulo
importância, e, embora seu ministério fosse dire
“proíbem o casamento” (ITm 4.3), e é bem pro
cionado aos gentios, isso não significava que ele
vável que ele esteja combatendo um ensino falso
tivesse deixado de se importar com Israel. Nunca
e afirmando que as mulheres serão salvas (desde
se deve esquecer a aflição que ele demonstra por
que. naturalmente, permaneçam “na fé, no amor
seu povo em Romanos 9— 11.
e na santificação” , ITm 2.15) no curso normal da
A declaração de que Deus “deseja que todos
vida, dando à luz filhos no casamento.
os homens sejam salvos” (ITm 2.4) provavel mente está associada a isso. É a negação do ex
4. Salvação no passado
clusivismo, seja dos judeus, seja dos gnósticos.
Em certo sentido, pode se dizer que a salvação
que surgiram mais tarde e limitavam a salvação
já ocorreu. Paulo afirma que “ fomos salvos na
aos que eram especialmente iluminados. Deve se
esperança” (Rm 8.24), e o tempo pretérito aqui
entender “todos” da mesma forma que na frase
aponta para o início da vida cristã. “Pela graça
seguinte, na qual se diz que Cristo “ se entregou
sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de
em resgate por todos” (ITm 2.6). Sem dúvida,
vós, é dom de Deus; não vem das obras, para
não devemos entender que Deus deseja a salva
que ninguém se orgulhe. Pois fomos feitos por
ção de toda a raça humana e está decepciona
ele, criados em Cristo Jesus” (Ef 2.8-10). Essa de
do. Outra passagem semelhante é aquela em que
claração é típica dos escritos de Paulo. A salvação
Deus é chamado “ Salvador de todos os homens,
é algo operado por Deus (ou por Cristo), e não há
especialmente dos que creem” (ITm 4.10). Aqui
esforço humano capaz de produzir esse resulta
talvez devamos entender “Salvador” como “Pre
do. Paulo utiliza várias expressões para destacar a
servador” (pois em algum sentido Deus “ salva”
verdade de que a salvação só é alcançada por um
todos nós), mas o destaque aos crentes mostra
ato divino: jamais é resultado da iniciativa ou da
que a salvação que importa alcança apenas os
realização humanas. Também percebemos a mes
que têm fé. Devemos nos lembrar de que os fi
ma realidade na referência a Cristo como “cabeça
lipenses receberam esta exortação: “Realizai a
da igreja” e “Salvador do corpo” (Ef 5.23).
vossa salvação com temor e tremor” (Fp 2.12).
Quando Paulo diz que “fomos salvos na espe
0 plural pode ser uma indicação de que a igreja
rança” , mas que “a esperança que se vê não é es
toda é exortada a trabalhar arduamente pelo seu
perança” (Rm 8.24), ele está olhando tanto para a
bem-estar espiritual. Caso se aplique a exortação
frente quanto para trás. Essa passagem intrigante
ao crente como indivíduo, o significado deve ser
reconhece um sentido em que a salvação está no
muito semelhante. Paulo jamais vê a salvação
passado — “ fomos salvos”. Paulo olha para trás,
como resultado de esforço humano, e seria des
para a morte de Cristo a favor dos pecadores e
propositado encontrar esse sentido aqui (v. Haw-
para a fé que os pecadores arrependidos expres
THORNE,
p. 98-100).
saram quando vieram a Cristo. Mas também fala
Em uma passagem bastante difícil, Paulo diz
de esperança, e isso aponta para o futuro, quan
que “a mulher é que foi enganada” (uma refe
do os crentes experimentarão plenamente tudo o
rência a Eva), “todavia, ela será salva dando ã
que a salvação significa.
luz filhos, desde que permaneça [...] na fé”
Vê-se que a salvação é passada quando o
(ITm 2.14,15). 0 plural, no grego, mostra que
apóstolo diz que. “estando nós ainda mortos em
Paulo está falando das mulheres cristãs em geral,
nossos pecados, [Deus] deu-nos vida juntamente
não limitando suas observações a Eva, mas não é
com Cristo (pela graça sois salvos)” (Ef 2.5). Mais
fácil ver como o ato de dar à luz resulta em salva
adiante, ele repete a ideia essencial “É pela graça
ção ( “Seria uma forma bem estranha de salvação
que fostes salvos, mediante a fé” (Ef 2.8,
pelas obras” , diz W ard, p. 53). Alguns intérpretes
na qual o pretérito perfeito aponta para uma sal
entendem que se deve destacar “ o” dar à luz (i.e.,
vação já realizada. O tempo aoristo de um acon
0 dar à luz a criança) e ver uma referência a Cris
tecimento no passado é percebido quando lemos
c n b b ),
cristãs
que Deus nos salvou “não por méritos de atos de
têm a garantia de que tudo dará certo no parto.
justiça que houvéssemos praticado, mas segundo
Mais adiante, Paulo faz menção de pessoas que
a sua misericórdia” (Tt 3.5), e que Cristo “nos
to. Para outros, significa que as
m u lh e r e s
1 183
iALVAÇAO ii: t^AULO
tirou do domínio das trevas” (Cl 1.13). Paulo não
Embora haja, é claro, uma dimensão escatológi
deixa seus leitores com nenhuma dúvida acerca
ca na salvação pela qual ele ora, nessa passagem
da realidade de que a salvação é um fato concre
a ênfase recai no tempo presente: ele quer que
tizado. Ela aconteceu no passado.
Israel seja salvo agora! A salvação como algo pre sente pode ser vista em outra referência a Israel,
5. Salvação agora
a saber, que é por causa da transgressão de Israel
Contudo, em outro sentido, Paulo destaca que a
que a salvação chegou aos gentios (Rm 11.11).
salvação é algo presente. 0 evangelho “é o po der de Deus para a salvação” , e a j u s t i ç a de Deus
6. Uma salvação futura
está sendo revelada no evangelho (Rm 1.16,17).
Paulo está seguro de que a salvação é uma reali
0 teor dos escritos do apóstolo e sua maneira de
dade presente e também uma experiência trans
viver mostram que ele está se referindo a algo
formadora. Mas está igualmente seguro de que o
que acontece no presente. Mais uma vez, ele cita
máximo que agora sabemos a respeito da salva
Isaías 49.8, que menciona a ajuda de Deus em um
ção não esgota o assunto. Ele aguarda uma sal
dia de salvação, e acrescenta; “Agora é o tempo
vação futura quando diz que “todo o Israel será
aceitável, agora é o dia da salvação” (2Co 6.2). 0
salvo” (Rm 11.26) e também quando dá a estra
duplo “agora” transmite um sentido de urgência.
nha ordem de que certo pecador seja entregue “a
Não se deve adiar a salvação para algum momen
Satanás para destruição da carne, para que o espí
to conveniente no futuro. A salvação é agora. 0
rito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (ICo 5.5;
evangelho deve ser aceito agora.
V. e s c a t o l o g i a )
. Muita coisa nessa passagem é mis
A salvação presente é o que Paulo quer mos
tério para nós, mas a salvação “ no dia do Senhor”
trar quando diz que o evangelho é “para nós, que
vislumbra com certeza a salvação final. Isso tam
somos salvos, poder de Deus” (ICo 1.18,
e
bém está bem claro na referência que o apóstolo
quando se refere aos “ que estão sendo salvos”
faz de nossa cidadania no céu, “de onde também
(2Co 2.15). “ Com a boca se faz confissão para a
aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo”
a ra ]
salvação” (Rm 10.10) é outra indicação de uma
(Fp 3.20). A ideia de que a salvação está mais
salvação presente, não apenas aguardada no fu
próxima do que quando cremos (Rm 13.11) tam
turo. Provavelmente o significado é o mesmo na
bém aponta para um acontecimento futuro. Pode
expressão “tristeza segundo a vontade de Deus”,
se entender que as declarações de que “todo o
a qual “produz o arrependimento que conduz
Israel será salvo” e de que “o Libertador virá de
à salvação” (2Co 7.10). É da salvação que Pau
Sião” (Rm 11.26) dizem respeito ou ao presente,
lo está falando quando, retoricamente, indaga
ou ao futuro. Qualquer que seja a maneira em
“Desgraçado homem que soul Quem me livrará
que as interpretemos, não pode haver dúvida
do corpo desta morte?” E ele mesmo responde;
de que Cristo é o Libertador e detém plena auto
“ Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso
ridade celestial.
S e n h o r !”
(Rm 7.24,25). Paulo está fazendo referência ao
Paulo não entende que essa salvação futura se
nosso corpo mortal e às tentações constantes do
estenda a todos, e existem passagens em que, por
pecado, para as quais o corpo humano cria con
exemplo, ele põe os que são salvos em oposição
dições. E ele exulta no livramento realizado por
aos “ que estão perecendo” (ICo 1.18; 2Co 2.15;
Cristo. Na batalha da vida, pode se dizer que a
2Ts 2.10). A “ira” (Rm 5.9) de que Paulo é salvo
salvação é o “capacete” (Ef 6.17), que pode ser “a
sinahza a catástrofe final. 0 dia do juízo exami
esperança da salvação” (ITs 5.8). De uma forma
nará e provará os fatos. A obra de alguns sobre
ou de outra, agora a salvação é um componente
viverá ao fogo, ao passo que a de outros será
indispensável da armadura do cristão.
totalmente queimada. A respeito desses, Paulo
A atitude do apóstolo com respeito à salvação
afirma: “ Será salvo, como alguém que passa pelo
de Israel também revela um anseio para que algo
fogo” (ICo 3.15). Aqui Paulo está se referindo
aconteça. Ele fala da atitude amorosa e bondosa
aos crentes e mostrando a diferença entre os que
que tem para com sua nação e acrescenta que
construíram bem e os que construíram mal. Mas
está orando pela salvação de seu povo (Rm 10.1).
todos os que construíram sobre o alicerce que
1 184
Sa lva ç ão hi: A to s , H ebreus, C aptas G erais , A pocalipse
Cristo lançou serão salvos. É evidente que aí se
isso, porém é mais que isso. Envolve inteireza,
está falando da salvação futura.
bem-estar total, saúde, bondade, daí a afirmação
Ao falar do “homem do pecado”, que surgirá
de Paulo de que Cristo “nos tirou do domínio das
no final dos tempos, Paulo diz que o Senhor Jesus
trevas” , com a observação “... e nos transportou
destruirá esse ímpio e que esse ser maligno agirá
para o reino do seu Filho amado” (Cl 1.13).
“com todo 0 engano da injustiça para os que pe recem, pois rejeitaram amar a verdade para serem
Ver também
c r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o ; C r is t o , m o r te
d e; e s c a t o lo g ia ; I s r a e l; ju s tific a ç ã o .
salvos” (2Ts 2.10]. Sem dúvida, é uma maneira
D P c: c ó l e r a , d e s t r u i ç ã o ; e s p e r a n ç a ; g e n t i o s ; g r a
incomum de se expressar, mas nos lembra que “o
ç a ; p a z, r e c o n c i l i a ç ã o ; r e s t a u r a ç ã o d e I s r a e l ; S a lv a
amor à verdade” é importante. Até os últimos dias,
d o r; tr iu n fo ;
UNIVERSAUSMO.
as pessoas perecerão por não amarem a verdade. Paulo aguarda o dia em que “o Senhor me le
B i b l i o g r a f i a . F o e r s t e r , W . & F o h r e r , G . ctüÇü) k t A .
vará [lit., “salvará”] para o seu reino celestial”
TDNT. [ S . l . : S .n .,
(2Tm 4.18]. Essa também é a implicação da ideia
M .
s.d.] v. 7, p. 965-1024.
• G reen ,
E.
B. The meaning o f salvation. London: Hodder
de que os justificados serão “por ele salvos da
& Stoughton, 1965. •
ira” (Rm 5.9]. Existe uma dimensão futura na sal
salvation. London:
vação, e que é importante, pois Paulo afirma que
Philippians. Waco: Word, 1983.
H a u g h to n ,
R. The drama of
1976. ■ H a w t h o r n e ,
s p ck ,
(w b c ,
G.
43.) •
F.
H ill,
no fim os pecadores enfrentarão a ira de Deus.
D. Greek words and Hebrew meanings: studies in
Mas existe o livramento final para os que hoje
the semantics of soteriological terms. Cambridge:
depositam sua confiança em Deus. Paulo cita o
Cambridge University Press, 1967.
profeta Joel quando fala da certeza de que “todo
L ie fe ld ,
W.
L. Salvation,
5.) ■
[sntsm s,
[S.l.: s.n., s.d.] v.
isbe.
aquele que invocar o nome do Senhor será sal
4, p. 287-95. ■
vo” (Rm 10.13]. “Invocar” não significa clamar
experience o f forgiveness. London: Nisbet, 1927.
de forma superficial, como alguém que simples
■
mente deseja evitar as consequências pessoais do
1956. ■ S c o t t , C. A. A. Christianity according to
pecado. Aqui “invocar” tem o sentido de um cla
St. Paul. Cambridge: Cambridge University Press,
N e w b ig in ,
M a c k in to s h , H .
R. The Christian
L. Sin and salvation. London:
mor genuíno ao Senhor, que é fruto da convicção
1927. ■ W
de que Deus pode salvar e assim o fará, e aquele
thy & Titus. Waco: Word, 1973.
a rd ,
scm ,
R. A. Commentary on 1 & 2 Timo
que invoca está desesperadamente necessitado.
L.
M o r r is
Com base nesses fatos, vemos que “salvação” é termo abrangente e inclui uma multiplicidade
Salvação
de aspectos — às vezes mais de um aspecto con-
C artas G
iii:
A
e r a is ,
tos,
A
H
ebreus,
p o c a l ip s e
comitantemente, como na declaração do apóstolo
0 substantivo “salvação”
de que Cristo nos livrou e nos livrará “de tão hor
mente associado ao verbo “ salvar”
rível perigo de morte”. Ele acrescenta que Cristo
forma indireta, ao substantivo “ salvador”
é aquele “ que esperamos, e ele ainda nos livra
Tanto na l x x quanto no grego secular, as duas pri
rá” (2Co 1.10). Para Paulo, era importante que
meiras palavras estão associadas à noção de livra
os pecadores ficassem livres da condenação da
mento físico (e.g., dos perigos, das enfermidades,
qual eram merecedores por causa do pecado. 0
da morte). “Salvador” , contudo, tem origem no
apóstolo também destaca a ju stificação, o proces
vocabulário do culto aos governantes nos reinos
[s õ t ê r i a ]
está direta [s õ z õ ]
e, de
[s õ tê r ].
so de absolvição em que os crentes se encontram
greco-romanos da era do
no banco dos réus da justiça de Deus, mas tam
crição de Priene encontrada na Ásia Menor, “Pro
bém menciona o poder do
na vida
vidência [...] nos enviou [...] um salvador [...]
do crente hoje. A salvação permite um triunfo
que acabou com a guerra [...] César [Augusto]”
E s p ír it o S a n t o
n t.
De acordo com a ins
contínuo sobre as forças do mal, e Paulo aguar
(S p ic q , v .
da 0 final desta era, na certeza de que a salva
de palavras é apropriado para transmitir a noção
ção produzirá efeitos por toda a eternidade. Não
metafórica de salvação escatológica. 0 título s õ tê r
devemos pensar na salvação apenas como algo
é aplicado tanto a
negativo, como “livramento de...” Ela também é
ele enviou ao mundo para salvar a humanidade.
1 185
3, p. 353). Em todo o
D eu s
n t,
esse grupo
Pai quanto ao
F ilh o
que
bALVAÇAO i i i : ATOS, HEBREUS, CARTAS IjERA IS, APOCALIPSE
Em resumo, com base nos ministérios dos
1. Atos dos Apóstolos
apóstolos Pedro e Paulo em Atos, ficamos saben
2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse
do que a salvação cumpre a profecia do
at.
Ela se
1. Atos dos Apóstolos
tornou uma realidade presente, porém exclusiva,
Pode ser vista em várias passagens a ideia básica
mediante a morte pelos pecados e a ressurreição
de livramento físico da enfermidade e da morte
dentre os mortos de Jesus de Nazaré, o descen
(At 4.9; 14.9; 7.25).
dente de Davi, sendo recebida quando se aceita a
No entanto, a ideia mais presente é metafóri
mensagem apostóhca.
ca e aplicada à salvação escatológica. Isso ocor re no início da narrativa, no dia de Pentecostes,
2. Hebreus, Cartas Gerais e Apocalipse
quando, em face da vinda do Espírito Santo, Pedro
2.1 Hebreus. Na Carta aos Hebreus, encontramos
cita Joel 2.32
“Todo aquele que invocar o
algumas referências à salvação física, isto é, em
será salvo”. A chegada do Espírito
relação à morte (Hb 5.7) e ao Dilúvio (Hb 11.7).
é prova de que o Senhor, sem experimentar a de
De acordo com Hebreus, a salvação escatológica
composição da morte, ressuscitou e ascendeu aos
pertence ao futuro (Hb 1.14), por ocasião da apa
nome do
(lx x ):
Senhor
céus, e prova também de que a porta da salvação,
rição do
como anunciada pelos profetas, agora está aber
consiste na expectativa ativa da salvação, uma es
ta. Por isso, a exortação de Pedro a seus ouvintes
perança que, de modo incessante, a despeito das
F ilh o d e D eu s
(Hb 9.28). Em Hebreus, a fé
foi: “Salvai-vos”; e todos os dias “ o Senhor lhes
dificuldades, avança para a salvação (Hb 11.1-40,
acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos”
passim). Essa fé é exercida em obediência às boas-
(At 2.40,47). Pedro deixa claro que só em Jesus
novas, à salvação auspiciosa (Hb 2.3; 4.1-6). Essa
Cristo de Nazaré, crucificado e ressuscitado, é que
salvação é encontrada na presença do Deus que é
se pode encontrar salvação (At 4.12). Ele é o Sal
santo, presença essa à qual o Filho encarnado de
vador a quem Deus exaltou à sua direita (At 5.31).
Deus já chegou em virtude de sua fé e obediência.
Contra os que afirmavam que a circuncisão era
Dessa maneira, ele é o “precursor” (gr., archêgos\
pré-requisito para a salvação, Pedro declara que
“Autor”) de seu povo, o exemplo de perseverança
tanto gentios quanto judeus serão salvos “pela gra
e obediência que deve ser seguido no caminho da
ça do Senhor Jesus” (At 15.1,11). A palavra apos
salvação de Deus (Hb 12.2). Apesar disso, o aces
tólica é 0 anúncio, mas também, como entendido
so a essa salvação não é por esforço próprio, mas
pelos ouvintes, o meio de salvação (At 11.14).
por meio daquele que é “sacerdote para sempre,
Na segunda parte de Atos, Paulo, falando
segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 7.17).
como judeu aos ouvintes de uma sinagoga, decla
Ele é a “fonte” (Hb 5.9) da salvação eterna para
ra que “ foi a nós que a palavra desta salvação foi
todos os que lhe obedecem, tendo oferecido de
enviada”. São as boas notícias sobre um descen
uma vez para sempre um único sacrifício pelos
dente do rei Davi, Jesus, a quem Deus enviou a
pecados (Hb 10.12).
Is ra e l
2.2
como “Salvador” , e a quem Deus ressus
Tiago. Na Carta de Tiago, apenas o verbo
citou antes que ele experimentasse a decompo
“ salvar” é utilizado. É a alma que é salva, e salva
sição do túmulo (At 13.26,23,30-41). Mas essa
da morte e da destruição (Tg 1.21; 4.12; 5.20). As
mensagem, rejeitada por aqueles judeus, também
sim, a salvação é escatológica. De acordo com Tia
era para os gentios. Aliás, Deus havia designado
go, é o Legislador e Juiz (i.e.. Deus) quem pode ao
Paulo para ser “luz dos gentios” (At 13.47). Pode
mesmo tempo “salvar e destruir” (Tg 4.12). Mes
se ver a ênfase que Paulo dá à salvação no epi
mo assim, o Senhor, isto é, o Senhor Jesus Cristo,
sódio da jovem adivinha de Filipos, que ficava
que há de vir (Tg 5.7), ressuscitará aquele que faz
repetindo a mensagem: “ Estes homens [...] vos
a oração da fé, um duplo sentido intencional que
anunciam o caminho da salvação” (At 16.17).
aponta tanto para a cura física quanto para a
Isso é confirmado pela pergunta do carcereiro
s u r r e iç ã o
res
final (Tg 5.15). Então, de acordo com Tia
“ Senhores, que preciso fazer para ser salvo?”, a
go, como alguém é salvo? Mediante uma fé viva,
que Paulo respondeu: “ Crê no Senhor Jesus, e tu
autenticada por obras — uma fé vazia ou hipócrita
e tua casa sereis salvos” (At 16.30,31).
não salvará (Tg 2.14).
1 186
Salvo ç âo
2.3
iü
; A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e
IPedw, 2Pedro e Judas. A terminologia como era costume na época. Jesus Cristo é o
em torno da salvação é importante em IPedro.
verdadeiro Salvador, e essa possibilidade é re
Essa salvação é uma realidade presente em Jesus
forçada pelo fato de Pedro relacionar “ Salvador”
Cristo, que foi predestinado antes da fundação do
entre outros títulos imperais: “Deus” e “ Senhor”
mundo, mas só se manifestou no fim dos tempos
(2Pe 1.1,11; 2.20; 3.2,18). Em contraste com os
(IPe 1.20), que “levou nossos pecados em seu cor
governantes vaidosos e maus, Jesus é Deus, Se
po sobre o madeiro” e foi ressuscitado dentre os
nhor e Salvador, por meio de quem nos livramos
mortos como “uma viva esperança [de salvação]”
“da corrupção que há no mundo” e nos tornamos
(IPe 2.24; 1.3). Por meio da pregação das boas-
“participantes da natureza divina” (2Pe 1.4). Isso
novas do evangelho, entra-se agora nessa salva
é salvação, que nos é concedida mediante “ suas
ção, que está “preparada para se revelar no último
preciosas e mais sublimes promessas” (2Pe 1.4).
tempo” (IPe 1.5). O
que é uma resposta
Diferindo de 2Pedro, Judas aphca o títu
ao evangelho, “salva”, embora não pela água, mas
lo “Salvador” ao “único Deus, nosso Salvador”
b a t is m o ,
pela reaUdade interior de uma consciência purifi
(Jd 25). Assim, deve se atribuir a “salvação que
cada em um relacionamento com o Deus santo, o
nos é comum” a Deus, que salvou um povo, ti-
que ocorre por meio da ressurreição de Jesus den
rando-o do Egito. A alternativa para essa salvação
tre 03 mortos (IPe 3.21). Naquilo em que ainda
é o castigo do “fogo eterno” no “juízo do grande
não foi revelado, essa salvação é o alvo ou o final
dia” (Jd 5-7). Por isso. Judas adverte: “ Salvai-os,
da fé (IPe 1.9), uma salvação para a qual os “be
arrebatando-os do fogo” (Jd 23).
bês recém-nascidos” são alimentados com “o puro leite espiritual” do evangelho (IPe 2.2).
2.4 JoAo,
Escritos joaninos. As cartas de João (v.
CARTAS
de)
contêm apenas um exemplo desse
Existe uma alternativa para essa salvação es
grupo de palavras: “O Pai enviou seu Filho como
catológica. É o juízo dos vivos e dos mortos execu
Salvador do mundo” (IJo 4.14; cf. Jo 4.42). Em
tado por Deus, que é santo (IPe 4.5; 1.15), contra
uma passagem paralela, fica claro o significado
os “ desejos [...] [da] ignorância” (IPe 1.14; 4.2).
do vocábulo em João: “Deus [...] enviou seu Filho
Citando Provérbios 11.31 ( lxx ) , Pedro indaga: “ Se
como propiciação [hilasmos] pelos nossos peca
para o justo é difícil ser salvo, onde comparecerá
dos” (IJo 4.10; cf. IJo 2.2). 0 Filho de Deus, Jesus
0 ímpio pecador?” (IPe 4.18).
Cristo, o Justo, é o Salvador, porque por meio de
Só uma vez em 2Pedro o tema aparece:
sua morte ele aplacou a ira de Deus contra os pe
“ Considerai como salvação a paciência de nos
cados, ou seja, cobriu os pecados (cf. Rm 3.25). 0
so Senhor” (2Pe 3.15). Aqui Pedro faz alusão ã
acesso a essa salvação se dá por meio da procla
salvação acerca da qual seu “amado irmão Paulo”
mação apostólica da mensagem da encarnação e
escreveu (em Rm 2.4?), “a exemplo do que faz em
morte do Filho de Deus (IJo 1.2,3; 2.1,2).
todas as suas cartas”. Pedro reconhece a impor
Em Apocalipse, a salvação pertence a Deus,
tância da salvação nos escritos do apóstolo Paulo.
“ que está assentado no trono” da história e cujos
Em um contexto que trata da vinda repentina e
juízos são “verdadeiros e justos” (Ap 7.10; 19.2).
não anunciada do dia do Senhor e do julgamento
No mesmo trono com Deus, está o Cordeiro
que ocorrerá nesse dia, Pedro ensina que o fato
(Ap 7.10; 19.1), uma indicação da soberania di
de Deus adiar a salvação é manifestação da paci
vina do Cordeiro (cf. Ap 4.11; 5.1-5,7,13). Em
ência divina, dando espaço e oportunidade para
bora 0 interesse de Apocalipse seja o desenrolar
que as pessoas encontrem salvação.
e a revelação que conduz a história ã conclusão
A Segunda Carta de Pedro, à semelhança das
apocalíptica preparada por Deus (Ap 16—22), a
Cartas Pastorais, caracteriza-se por várias referên
história e sua consumação são apresentadas ã
cias ao “ Salvador”. Contudo, diferentemente das
luz da salvação, que é uma realidade presente. 0
Pastorais, em que tanto Deus quanto o Senhor
presente e o futuro, que são terríveis por sua mal
Jesus Cristo são chamados “Salvador” ou “nos
dade, revelam-se por causa da salvação divina
so Salvador” , 2Pedro restringe essas expressões a
já concluída na morte e na ressurreição do Cor
Jesus Cristo, talvez com o propósito de refutar a
deiro (Ap 5.7-13). “Agora chegaram a salvação
aplicação do mesmo título ao imperador romano,
[...] do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo”
1 187
(Ap 12.10). Assim, embora pareça o contrário, o
e, depois, os Evangehstas empregaram esse ter
“reino do mundo passou a ser de nosso Senlror
mo ou seu equivalente aramaico para dizer algo
e de seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos
essencial ou mesmo excepcional sobre a persona
séculos” (Ap 11.15; cf. Ap 1.6; 2.8). Os que se
gem central da fé cristã, e verificarmos também
guem o “Cordeiro” , tanto no testemunho fiel que
como vieram a fazê-lo.
ele deu quanto em pureza de vida (Ap 14.3-5),
1. No grego
já possuem essa salvação, já começaram a rei
2. Antecedentes judaicos
nar com Cristo, como reino e sacerdotes de Deus
3. A origem do uso do kyrios cristão
(Ap 1.6; 20.4,6), e não estarão sujeitos à “ segun
4. Jesus como Kyrios
da morte” (Ap 2.11; 21.7).
5. Kyrios nos Evangelhos 6. Conclusão
Nas Cartas Gerais e em Apocahpse, a salvação é quase sempre escatológica em sua concretiza ção, uma realidade presente em Jesus Cristo, que
1. No grego
cumpre as expectativas do
Na época do
e se torna disponí
at
n t
.
o termo kyrios foi empregado em
vel mediante a Palavra de Deus. A Carta de Tiago
contextos rehgiosos e seculares. Por um lado. re
não trata da salvação no que diz respeito a sua
ligiões nacionais e de mistério, especialmente no
realidade presente ou às expectativas do Ver também de
b a t is m o
at
Oriente (i.e.. Egito. Síria. Ásia Menor, mas tam
.
; c r is t o l o g ia ; C r is t o , m o r t e
bém Grécia e outros lugares), utilizavam o termo kyrios ou seu equivalente feminino, kyria, para
; e s c a t o l o g ia ; j u s t iç a / r e t id ã o .
se referir a deuses ou deusas, como ísis. Serápis BiBLiOGRAnA.
F o e rs te r, W .
&
F oh rer,
G.
aüÇu ktA.
ou Osíris.
[S.L: s.n., s.d.] v. 7, p. 965-1003. ■ G r e e n , E.
Por exemplo, temos provas do uso do termo
B. The meaning o f salvation. London: Hodder
em um grande número de papiros e inscrições so
& Stoughton. 1965. ■ K e l l y , J. N. D. Early Chris
bre Serápis. É o que se vê, por exemplo, na carta
tian doctrines. London: Black, 1980. ■ M
c G ra th ,
de Apião. soldado da marinha romana, escrita a
A. Christian theology: an introduction. Oxford:
seu pai no século ii d.C.: “Agradeço ao Senhor Se
Blackwell, 1994. •
rápis
TD NT. M .
I. H. Lnke: historian
M a r s h a ll,
te rso n ,
D.
G.
pois. quando enfrentei perigo no
mar. ele me salvou imediatamente”. Ou também
Hebrews and perfection. Cambridge:
em uma carta que certo Nilo escreveu a sua mãe
Cambridge University Press, 1982. R a d l , W . a ã Ç fú . E D N T. ■ S c h e lk le ,
[t õ k y r iõ ] .
Pe
and theologian. Exeter: Paternoster, 1970. ■
K.
H.
(s n ts m s ,
47.) ■
[S.L: s.n., s.d.] v. 3, p. 319-21.
a u T T ip ia .
e d n t
.
no século II d.C.: “Todos os dias, faço intercessões a seu favor ao Senhor Serápis
[t õ k y r iõ ]”.
Nesses
[S.L: s.n., s.d.]
contextos, o termo kyrios tem a conotação de di
C. Theological lexicon of
vindade que pode responder às orações e mere
the New Testament. Peabody: Hendrickson, 1994.
ce gratidão pela ajuda divina. Essa evolução no
V. 3. p. 344-57. •
sentido da palavra parece ir além do emprego de
V. 3, p. 327-9. ■
S p ic q ,
T h ro c k m o rto n ,
CTUTripia in Luke-Acts.
se,
B. H. IíôÇeiv
kyrios no período grego clássico, em que o termo
v. 6. p. 515-26. 1973. P. W . B a r n e tt
Ver
Salvad o r. S A N T A C E IA . s a n t id a d e
salvação
Ver c E iA
de
s e g r e d o m e s s iâ n ic o
.
parece ter sido título divino (cf.
DO S e n h o r ; a d o r a ç ã o / c u l t o .
Ver
D eus.
Ver
se referia ao grande poder de um deus sobre uma pessoa ou grupo de pessoas, mas ainda não nos
.
P latão ,
D eus i .
P in d a r ,
It ,
5.53;
Le, 12.13).
Tendo em vista nosso propósito aqui, é igual
M arco s, E van g elh o d e .
mente importante o fato de que já na época de Senhor
i:
Nero 0 imperador romano era chamado kyrios
E vangelh o s
0 termo kyrios ( “Senhor”), que para a igreja pri
no sentido de divindade. Contudo, embora fosse
mitiva se tornou a confissão cristã central sobre
divinizado, sabia-se também que ele era um ser
Jesus (cL Rm 10.9; ICo 12.3; Fp 2.11), era de sig
humano. Por exemplo, em um óstraco com data
nificado bastante amplo na Antiguidade. É neces
de 4 de agosto de 63 d.C., lemos: “ No nono ano
sário explorar alguns desses significados antes de
de Nero, o Senhor [tou kyrion]". Entretanto, já
verificarmos se Jesus, os primeiríssimos cristãos
antes dessa época, na região oriental do império
1 188
Senhor
Evan g elho s
e no Egito, o imperador era chamado kyrios em
0 em p reg o de
sentido não simplesmente humano. Por exemplo,
kyrie — já
o papiro 1143 de Oxirrinco, com data de 1 d.C.,
d is c íp u lo s m a is ín t i m o s d e
fala de sacrifícios e libações “ao Deus e Senhor
n i f i c a d o m a is p r o f u n d o q u e a m e r a f o r m a r e s p e i
Imperador [Augusto]”. Mesmo em 12 a.C., temos
t o s a d e t r a t a m e n t o (v . V erm es, p .
[b g u ,
1197, 1, 15).
o e q u i v a l e n t e a r a m a ic o d e
e s t iv e s s e , p e l o m e n o s n o c ír c u lo d o s
Jesus,
a s s u m in d o s i g
109-15).
Talvez haja uma distinção entre o termo kyrios
uma inscrição dedicada a Augusto, em que este é chamado theos kai kyrios, “Deus e Senhor”
mãri —
i:
e seu quase sinônimo despotês. Este dava a ideia de arbitrariedade, enquanto aquele tinha a conotação
Como defende Deissmann (p. 349-51) já há
de autoridade legítima (cf.
B ie t e n h a r d ,
p. 510).
bastante tempo, é bem provável que a igreja pri
Com base nesses exemplos, podemos obser
mitiva tenha deliberadamente atribuído a Jesus
var imediatamente o alcance de uso do termo
títulos usados em referência ao imperador. Nas
kyrios na hteratura grega. Pode ter perfeitamen
comunidades pauhnas, o significado do termo,
te um sentido não rehgioso e assim designar o
a saber, ser divino absoluto a quem uma pessoa
senhor ou proprietário de escravos ou de algum
pertence e deve lealdade e submissão absolutas,
tipo de bens, como as pessoas da casa ou um ne
torna-se ainda mais evidente à luz da maneira em
gócio. No vocativo, o termo também podia ser
que Paulo fala de si mesmo. Para se referir a sua
usado como forma respeitosa de se dirigir a al
relação com Jesus, o Senhor, Paulo diz que ele e
guém, em particular um superior que não era o
outros são douloi, “escravos” (Rm 1.1; 13.4). É
dono ou o patrão, tornando-se tão convencional
possível fazer distinção entre esse termo e mis-
que raramente significava algo mais que a for
thios ou diakonos, empregados para designar ser
ma de tratamento “Prezado senhor...” das cartas
vos contratados e com certos direitos e privilégios.
de hoje. No entanto, no início do século i a.C.,
O doulos que servia a um kyrios não era livre, mas
pelo menos na região oriental do império, o ter
propriedade de seu senhor. Em várias religiões
mo kyrios, no sentído de divindade, era aphcado
orientais, essa era a terminologia normal para
não apenas a deuses mitológicos, como Serápis
expressar a relação do adepto com a divindade.
ou Osíris, mas também a um ser humano em
Não resta dúvida de que, de forma bastante signi
particular: o imperador romano. Nesse contexto,
ficativa, essa conotação teve origem no emprego
é compreensível que Paulo tenha dito que havia
mais comum na instituição da escravidão. No gre
muitos denominados “ deuses” e “ senhores” , em
go clássico e no grego coiné, o termo kyrios tinha
bora para os cristãos houvesse apenas um único
sentido geral e não religioso de “senhor” ou “pro
Senhor: Jesus Cristo (ICo 8.5,6). Por causa do
prietário” de algum bem, até mesmo de pessoas.
uso de kyrios nesses sentidos mais religiosos, W.
Em geral, o vocativo kyrie era simplesmente
Bousset entende que o título “Senhor” só foi aph-
uma forma educada de se dirigir a alguém, como
cado a Jesus depois que o cristíanismo chegou a
também ocorre em nosso idioma. Nesse sentido,
um ambiente preponderantemente grego ou he
0 termo se destaca não apenas na literatura grega
lenístico, mesmo assim sob a influência do uso
secular, mas também ocorre em várias passagens
pagão. Pela anáhse do uso judaico de kyrios e de
do
seus cognatos aramaicos, é possível demonstrar
N T.
Por exemplo, em Atos 9.5 (par.), Paulo utí-
liza o termo kyrie para se dirigir ao Jesus celeste.
que essa conclusão é incorreta.
Uma vez que ele não sabe quem está falando, é improvável que nesse caso o termo tenha outro
2. Antecedentes judaicos
sentído além do vocatívo. Em Marcos 7.28, en
Na LXX, 0 termo kyrios ocorre mais de 9 mil vezes,
contramos outra ocorrência de kyrie que com toda
e em 6.156 delas é utihzado em lugar do nome
probabilidade revela uma forma respeitosa de tra
próprio de Deus: Yahweh ou Javé. Não chega a
tamento, não um reconhecimento de divindade. A
ser uma tradução do nome Javé, e sim um cir
passagem de Lucas 6.46 parece transmitir a ideia
cunlóquio com o objetivo de evitar pronunciar o
de que é incoerente dirigir-se a Jesus de forma
tetragrama sagrado. Todavia, não há certeza de
respeitosa como um grande mestre sem também
que em todos os casos os compiladores originais
fazer o que ele ordena. Mas não é impossível que
da LXX traduziram o tetragrama por kyrios. Alguns
1 189
it N H U K I. C V A N btLH U b
manuscritos trazem o liebraico yhwh em algumas
temos mãrêh como tradução da palavra hebraica
passagens do texto grego, e pelo menos um ma
shadday (“todo-poderoso”). Também existem al
nuscrito da LXX utiliza iao em vez de kyrios para
guns fragmentos da literatura de Enoque prove
representar o tetragrama. As cópias da lx x que
niente da caverna 4, em que mãrêh ou mãran são
trazem kyrios em lugar de yhwh são do século
usados para designar Deus (cf. lEn, 89.31-36), e
IV d.C. em diante e parecem cópias modificadas
a versão grega traz ho kyrios. Outras evidências
por cristãos. Entretanto, J. A. Fitzmyer demons
importantes procedem do templo descoberto em
tra que no início os judeus usavam, sim, o grego
Gaza, chamado Marneum, em que se adorava um
kyrios, bem como adôn ou mãrêh, para se referir
deus de nome Mãr
(J o h n s o n ,
p. 151).
a Javé; por isso, não é impossível que os judeus
L. W. Hurtado (1988) reuniu material que de
cristãos primitivos tenham transferido o título de
monstra a natureza complexa do início do pen
Javé para Jesus
1979, p. 115-42; 1981,
samento judaico a respeito de assuntos como os
p. 218-35). Mas não podemos dizer com segu
agentes divinos. Segundo ele demonstra, existem
rança que isso aconteceu por influência da lx x. É
fartas evidências de que no início do judaísmo o
possível encontrar exemplos de kyrios para desig
conceito judaico do caráter único de Deus podia
( F it z m y e r ,
nar Javé não só em Josefo e em Filo, mas também
coexistir com a ideia de que Deus podia conferir
na remota época da redação de Sabedoria de Sa
um lugar e um papel únicos a uma personagem
lomão (27x; cf. Sb 1.1,7,9; 2.13). Especialmente
ou agente celestial. Isso incluía a ideia de que os
significativa é a observação, feita por Josefo, de
patriarcas exahados (e.g., Enoque e Moisés) e os
que os antigos judeus se recusavam a chamar o
principais anjos (e.g., Miguel) podiam, com au
imperador de kyrios justamente porque consi
toridade e poder divinos, falar e agir em nome
deravam kyrios um nome reservado para Deus
de Deus. Essa informação é importante, porque
(J o se f o ,
Guju, 7.10.1, § 418-9).
emprego de kyrios na
revela um contexto mais amplo da agência divi e em outros tex
na no início do judaísmo no qual até mesmo os
tos do início do judaísmo para traduzir a palavra
primeiros cristãos judeus podiam entender Jesus.
0
u íx
hebraica ’ãdôn é uma tradução literal, não um circunlóquio. Na lx x , ’ãdôn é traduzido por kyrios
3. A origem do uso do kyrios cristão
cerca de 190 vezes e se refere a homens que, em
Evidências aramaicas de particular importân
algum sentido, eram senhores ou comandantes.
cia para nosso estudo podem ser encontradas
Aliás, há indícios de que nos manuscritos bíbli
em ICorintios 16.22 e no que é provavelmente
cos hebraicos de Qumran ’ãdônay era usado como
a mais antiga das obras cristãs extracanônicas: a
substituto de yhwh. É igualmente interessante o
Didaquê (cf. Di, 10.6). Nessa obra, os mais anti
emprego de 'ãdônay em orações invocatórias em
gos cristãos de fala aramaica chamam Jesus de
Qumran (cf. IQM 12.8,18; IQ 34).
Senhor, empregando a expressão maran atha ou,
É possível ver o uso do aramaico mãrêh em
mais provavelmente, marana tha (cf. Ap 22.20,
referência a Deus como Senhor já em Daniel
provavelmente uma tradução grega dessa ex
2.47 e 5.23, embora nesses textos o termo ainda
pressão, e o texto deixa claro que é Jesus quem
não seja utihzado como título em sentido abso
se tinha em mente, fato também evidente em
luto. Gênesis apócrifo (IQapGen) contém algo
ICo 16.22,23). Existem três maneiras possíveis
diferente. Esse documento de Qumran data pro
de traduzir marana tha: 1) “venha. Senhor”; 2)
vavelmente por volta da virada da era cristã, e
“ nosso Senhor veio”; 3) até mesmo um pretérito
nele Deus é chamado mãri ("meu Senhor”) — o
profético — “ o Senhor virá”. Qualquer que seja
único caso conhecido no aramaico. Entretanto, é
a tradução que se escolha (e a primeira parece a
bem comum encontrar o emprego mais munda
mais provável, principalmente tendo-se em vista
no de mãri por parte de uma esposa ou de um
Ap 22.20), alguém que morreu está sendo chama
empregado em referência ao marido ou ao che
do de Senhor. Uma vez que a primeira tradução é
fe da casa. Mãr é a palavra aramaica que tem o
a mais provável, vale repetir a observação perspi
sentido de “senhor” , mas quase sempre aparece
caz de C. F. D. Moule (p. 41): “Além do mais, ain
com algum sufixo. No Targum de Jó (llQtgJob),
da que 'nosso Senhor’ não seja de modo algum
1 190
S enhor
i
: Ev a n g e l h o s
0 mesmo que ‘o Senhor’ e ainda que o aramaico
uma ordem real de Jesus, é presumível que seja
mãrêh tivesse sido usado na maioria das vezes em
uma tradução do aramaico mãrêh. Existem vá
referência a seres humanos, não a Deus (no que
rias formas de entender esse texto. Mesmo que
vimos motivo para questionar), ninguém pede a
de fato tenha sido parte de uma frase de Jesus,
vinda de um simples rabino depois de sua morte.
aqui mãrêh pode se referir ao proprietário ou ao
Caso tenha o sentido de ‘vem, nosso Mestre!’ , a
senhor, o que não deixaria nada implícito sobre
expressão toda — Mamnatha — estaria fadada
a condição divina de Jesus. Alguns comentaris
a exprimir nuanças transcendentais, mesmo que
tas argumentam que Jesus era o proprietário do
em si 0 termo mãran não exprima isso”.
animal (o que o texto não insinua) ou que o pro
Não está totalmente claro se marana tha era
prietário do animal estava com Jesus e já lhe ha
empregado para invocar a presença de Cristo na
via emprestado o animal. A líltima interpretação
adoração ou se era uma oração que expressava
também não encontra no texto indícios que lhe
0 desejo de que Cristo retornasse dos céus. En
deem credibilidade. É mais provável que o sen
tretanto, com base nos fortes indícios de que,
tido aqui seja semelhante ao de Marcos 14.14,
durante a época de Paulo e provavelmente antes
em que se relata o seguinte acerca de Jesus: “ 0
(i.e., os mais antigos cristãos judeus), os cris
Mestre manda perguntar: Onde está o meu apo
tãos judeus de fala aramaica chamavam Jesus
sento?”. Nesse caso, “ Senhor” talvez não seja
de "Senhor” ou pelo menos de "nosso Senhor” ,
mais que uma forma respeitosa de se referir a um
devemos rejeitar o raciocínio de Bousset de que
mestre, como quando se diz que alguém é mestre
o título cristológico kyrios teve origem na missão
em determinada área ou assunto. Aliás, o texto
helenística da igreja primitiva.
dá a entender alguém que reconhecidamente de
É notável que Paulo, na década de 50 do sé culo
tém autoridade para dar ordens ou exigir certas
tenha escrito a cristãos de fala grega que
coisas das pessoas, sejam ou não discípulos. Não
provavelmente não conheciam o aramaico e nâo
está claro se esse emprego de mãrêh tem maiores
se deu o trabalho de traduzir marana tha. Com
implicações.
I,
certeza, isso quer dizer que ele pressupunha
Em várias passagens do quarto Evangelho, é
que eles entendiam o significado da expressão.
possível encontrar apoio para essa ideia. Aqui en
Assim, é possível que em determinada época a
contramos justapostos os dois termos: “Mestre” e
expressão fosse uma invocação usada pelos cris
“Senhor” (Jo 13.1-16). Deve se ressaltar também
tãos. Portanto, o apóstolo não via nenhuma ne
que no antiquíssimo relato da ressurreição, em
cessidade de explicá-la ou traduzi-la. As origens
João 20, encontramos Maria Madalena chamando
do uso cristão do termo “ Senhor” para designar
seu falecido mestre de “meu Senhor” (Jo 20.13),
a Jesus devem remontar pelo menos aos cristãos
e, quando ela reconhece a voz de Jesus falando a
judeus mais antigos, de fala aramaica. Seria pos
ela, ouvimos a exclamação “Raboni!” (Jo 20.16),
sível estabelecer uma origem ainda mais remota?
a qual o texto explica ter o significado de “Mes tre”. Essa passagem parece mostrar também que,
4. Jesus como Kyrios
durante seu ministério, Jesus foi chamado não
Ao que parece, vários textos remontam ao con
apenas de rabbi ou rabbâni, mas provavelmente
texto histórico da vida de Jesus. Por isso, é na
recebeu o tratamento respeitoso de mãrêh, dan
tural indagarmos se Jesus foi chamado “Senhor”
do a entender que Jesus era um grande mestre e
durante seu ministério, e em que sentido. Já tra
exercia autoridade sobre seus discípulos. É nes
tamos de textos em que o vocativo kyrie foi utili
se sentido que os discípulos viam Jesus como
zado e não tornaremos a eles aqui, pois em quase
Mestre. Outra evidência que talvez apoie essa
nada nos ajudam. De maior importância pode ser
linha de raciocínio é a ideia de escravo e senhor
um texto como Marcos 11.3, no qual Jesus orde
(Jo 15.15,20) ao mencionar o relacionamento en
na aos discípulos que lhe busquem um jumento,
tre Jesus e seus discípulos.
para que possa seguir montado até Jerusalém, e
Para nossa análise, uma passagem de funda
digam a quem os questione: “ 0 Senhor precisa
mental importância é Marcos 12.35-37, que cita
dele”. O grego traz ho kyrios, e, caso remonte a
Salmos 110.1: “ O Senhor disse ao meu Senhor:
1191
ÍENHÜR I: CVANbtLHUb
a descoberto a futilidade de esperanças mes
Assenta-te à minha direita”. Na sequência, Jesus indaga: “Se o próprio Davi o chama Senhor, como
siânicas que se limitam ao plano terreno e
ele pode ser seu filho?”. Não se deve rejeitar sem
humano [...]. 0 caráter alusivo da declaração
mais nem menos esse texto, sob a alegação de que
favorece a ideia de que [o segredo] é do pró
ele reflete a teologia posterior da igreja primitiva,
prio Jesus, em parte escondendo e em parte
especialmente por existir um grande número de
revelando o “ segredo messiânico” , o que insi
indícios de que Jesus contemplava a si mesmo sob
nua, mas não declara, a reivindicação de que
a ótica messiânica e, pelo menos indiretamente,
Jesus é de dignidade e origem sobrenaturais e
W it h e r i n g t o n ,
que sua condição de Filho nâo é uma simples
1990). Parece que Marcos 12.35-37 reflete justa
questão de ascendência humana. É difícil ima
mente a forma alusiva ou indireta que Jesus pa
ginar que se pudessem exprimir dessa maneira
rece ter usado em público para indicar como ele
as crenças doutrinárias de uma comunidade.
via a si mesmo. Seu método era fazer alusões à
0 objetivo de uma declaração doutrinária é
fazia reivindicações messiânicas (v.
própria importância, para assim induzir seu púbU
que ela seja entendida, ao passo que o pro
co a refletir com cuidado e em profundidade acer
pósito do que ele diz é desafiar à reflexão e
ca desse assunto fundamental. Aqui a forma de
à decisão. Essa é a maneira típica de Jesus se
ensino é característica dos mestres do judaísmo
expressar, como se percebe na mensagem que
em seus primórdios. Tomando um texto intrigan
envia a João Batista (Lc 7.22s). Mas é possível
te como ponto de partida, ele faziam perguntas a
demonstrar que esse nâo é o estilo nem o mé
respeito do texto, questionando ideias erradas e
todo do cristianismo primitivo.
comuns acerca de vários assuntos — nesse caso, a natureza do Messias como
Isso significa que a proclamação de Jesus
F il h o d e D a v l
A favor da autenticidade dessa tradição, tam
como Senhor remonta a algo que Jesus revelou
bém pesa o fato de que ela parece indicar que
sobre si mesmo, ainda que indiretamente, duran
Jesus questiona a ideia de o Messias ser obrigato
te seu ministério, porém nâo determina em que
riamente de origem davídica, o que a igreja primi
momento os seguidores de Jesus compreenderam
tiva dedicou certo esforço para demonstrar (e.g.,
e começaram a, de fato, ver Jesus dessa maneira.
Mt 1.1-20; Lc 1.27; 3.23-38). Da forma que o tex
Já assinalamos que, na melhor das hipóteses, são
to se encontra, Jesus infere que o Messias é o
praticamente inexistentes os indícios de que, du
Senhor de Davi e nessa condição está acima de
rante 0 ministério de Jesus, seus discípulos o viam
Davi e é anterior a ele. Esse é o motivo de Jesus
como mãrê/i em sentido transcendental (Lc 6.46
perguntar por que os escribas chamam o Messias
talvez indique isso). 0 que, então, levou à confis
“ filho de Davi”. Como Hurtado demonstra (1988,
são de Jesus como Senhor? Aqui podemos anali
p. 41-50), nâo era incomum, no início do judaís
sar algumas pistas, provenientes de várias fontes.
mo, que 0 conceito da preexistência fosse atribuí do a agentes divinos.
Para começar, existe a questão do material confessional primitivo que Paulo emprega em Ro
Então nâo é inconcebível que Jesus aqui faça
manos 1.3,4. Esse texto dá a entender que, por
alusão a si mesmo, não só como o Messias, mas
consequência da ressurreição, Jesus assumiu no
também como o Senhor preexistente, e que seus
vas funções, autoridade e poder. AUás, também
ouvintes assim entendessem. Merece ser citada
como resultado da ressurreição, ele recebeu o
a forma em que V. Taylor (p. 492-3) apresenta
novo título de “Filho de Deus com poder” (/ijm). Outra informação é encontrada no que talvez seja
essa ideia:
um hino cristológico, citado por Paulo em FiUpenSem dúvida, está implícito um segredo de
ses 2.5-11. Aqui ficamos sabendo que, pelo fato
Jesus a respeito de si mesmo. A forma da per
de Jesus abrir mão da posição e das prerrogativas
gunta é determinada pela avaliação que ele
de “ ser igual a Deus” para assumir a forma não
faz do messiado incorporado nele próprio. Seu
apenas de ser humano, mas de escravo, e pelo
propósito, contudo, não é revelar esse segre
fato de ser obediente ao plano de Deus a ponto
do, que é só dele e continua sendo, mas pôr
de morrer, ele foi exaltado e recebeu o nome que
1 192
S enho r i: Evan g elho s
está acima de todos os nomes. Jesus passa de dou
Senhor!” A antiga lista de testemunhas encon
los a kyrios. No contexto do liino, o nome que está
trada em ICorintios 15.5-8 revela a tendência, na
acima de todos os demais não é o nome Jesus,
igreja primitiva, de caminhar na direção oposta e
que ele já possuía, mas o nome régio que passou
afirmar a proeminência dos Doze e dos apóstolos
a ter quando assumiu as funções de divindade,
como testemunhas da ressurreição.
governando todas as coisas. Esse nome é kyrios.
Em João 20.28, encontramos outros indícios
0 texto de Atos 2.36, que talvez reflita algo da pre
de que a experiência do Senhor ressurreto con
gação apostólica primitiva, diz: “Toda a casa de
duziu ã plena confissão da importância de Jesus.
Israel fique absolutamente certa de que esse mes
Nessa passagem, em um Evangelho repleto de
mo Jesus, a quem crucificastes. Deus o fez Senhor
confissões, lemos esta confissão culminante: ho
e Cristo”. Pelo fato de Lucas, em seu Evangelho,
kyrios mou kai ho theos mau ( “Senhor meu e
chamar Jesus de kyrios com toda a naturalidade,
Deus meu!”). É possível que esse material esteja
é muitíssimo improvável que o Evangelista tivesse
incluído aqui pelo fato de o Evangelista, escreven
criado esse texto, que dá a entender — se é que
do perto do fim do século i, ter conhecimento do
não afirma — que o senhorio foi atribuído a Jesus
costume do imperador Domiciano (81-96) de em
após sua morte. Esse texto parece mostrar que es
sua correspondência oficial se intitular dominus
ses títulos resultam do que Deus fez a Jesus após
et deus noster ( “nosso Senhor e Deus”). Talvez
a crucificação, a saber, como Atos 2.32 declara:
João estivesse se opondo a esse título. Entretanto,
“Foi a este Jesus que Deus ressuscitou; e todos
mesmo que seja esse o motivo, parece óbvio que
somos testemunhas disso”.
o apóstolo deseja dizer a seus destinatários que a
Outra pista é encontrada em João 20.18, que
verdadeira confissão de Jesus aconteceu pela pri
parece dar como a mais antiga proclamação de fé
meira vez em razão de alguém ter visto o Senhor
após 0 domingo da ressurreição a seguinte decla
ressuscitado — no caso, Maria Madalena e Tomé.
ração: “ Vi o Senhor [ressuscitado]!”. Em suma,
Para concluir, acrescentamos este comentário:
as informações dão a entender que a confissão “Jesus é Senhor” surgiu das experiências mais
Em vez de tentar explicar que tal evolução
antigas dos discípulos que viram o Cristo ressus
se deve ã veneração de Jesus, explicação que
citado. Paulo deixa entrever que essa confissão
recorre a ideias vagas de empréstimos feitos
não poderia ter surgido senão depois de o Senhor
do mercado de heróis e semideuses do mun
ter ressuscitado e o Espírito (v.
ter
do greco-romano, os estudiosos devem prestar
descido sobre os seguidores de Jesus, pois ele
mais atenção a esse tipo de experiência religio
afirma: “Ninguém pode dizer: Jesus é Senhor! a
sa dos primeiros cristãos. É mais provável que
E s p íw t o S a n t o )
0 primeiro e principal motivo de esse agente
não ser pelo Espírito Santo” (ICo 12.3). Embora pareça que as origens liltimas da con
preeminente e específico (Jesus) ter se tornado
fissão de que Jesus é o Senhor remontem a algo
objeto da devoção religiosa desse grupo judai
a que Jesus fez alusão durante seu ministério, a
co (os cristãos mais antigos) é que eles tiveram
introdução formal do uso dessa confissão pelos
visões e outras experiências que revelaram o
discípulos foi a experiência com o Senhor a par
Cristo ressuscitado e exahado e o apresentaram
tir da ressurreição e o fato de terem recebido o
com uma glória divina tão inaudita e superla
Espírito Santo. O máximo que podemos dizer é
tiva que se sentiram obrigados a reagir dessa
que a primeira pessoa a confessar Jesus dessa
forma devocional
(H u rtad o ,
p. 121)
maneira parece ter sido aquela que pela primeira vez afirmou ter visto o Jesus ressurreto: Maria
Convicções e confissões cristológicas foram
Madalena. Levando em conta a ideia de que, no
inicialmente criadas em face da experiência do
século
havia objeções contra o testemunho de
Senhor ressuscitado e de seu Espírito. Isso nos
uma mulher, especialmente na Palestina (v. Wi-
leva a indagar como o termo kyrios veio a ser
1984), não é aceitável que a igreja
empregado pelos Evangelistas, que provavelmen
primitiva tivesse inventado a informação de que
te compuseram seus Evangelhos na última terça
Maria Madalena foi a primeira a declarar “Vi o
parte do século i d.C.
I,
t h e r in g t o n
,
1 193
iENHOR i: tVANGELHOS
5. Kyrios nos Evangelhos
0 emprego da forma dupUcada — kyrie, kyrie —
Os Evangelhos Sinóticos, especialmente Lucas,
parece refletir um uso corrente na Palestina (cf.
contêm praticamente toda a gama de significados
Mt 7.21,22; 25.11; Lc 6.46).
do termo kyrios que analisamos aqui. Existem
Pode se usar kyrios para se referir ao senhor
717 passagens em que o termo kyrios ocorre no
ou ao dono de bens ou de uma propriedade, bem
e 210 podem ser encontradas em Lucas-Atos
como ao dono de uma vinha (Mc 12.9 e par.).
(outras 275 são encontradas em Paulo). A possí
Já ressaltamos que Marcos 11.3 e suas passagens
vel explicação para o fato de a maioria das ocor
paralelas provavelmente refletem o mesmo senti
rências de kyrios se achar nos escritos de Lucas
do. Pode se usar o termo também para designar o
e de Paulo é que ambos estavam se dirigindo a
senhor de um administrador hvre (Lc 16.3; “mor
NT,
públicos gentílicos ou pelo menos escrevendo
domo” , a r c )
para regiões onde predominava a influência da
se sempre com um possessivo, como “seu” ou
o u
um proprietário de escravos (qua
língua e da cultura gregas. Em contraste com Lu
“ meu”; cf. Mt 18.25; 24.45; Lc 12.37,42; 14.23).
cas, kyrios ocorre apenas 18 vezes em Marcos e
Mas não encontramos nos Evangelhos o termo
80 vezes em Mateus, ao passo que existem 52
kyrios em referência ao imperador ou a quaisquer
casos no quarto Evangelho.
divindades pagãs.
S .l
Kyrios nos Sinôtiœs. Agora
é
possível
Existem, no entanto, alguns exemplos nos
oferecer uma amostra das várias ocorrências em
quais kyrios parece se referir à capacidade e ao
que kyrios não se refere a Jesus. Em Marcos e no
direito de exercer autoridade e poder. Nesses ca
material
sos, a palavra não é usada como título, nem tem
q
.
Deus nunca
é
chamado kyrios, com
exceção de Marcos 5.19 e 13.20. Nem Mateus
implicações transcendentais. Por exemplo, em
nem Lucas seguem Marcos nesses dois exem
Marcos 2.28, quando Jesus diz que o Filho do
plos. No paralelo lucano de Marcos 5.19, encon
homem é Senhor do sábado, ele quer dizer que
tramos ho theos (“Deus” , Lc 8.39) em vez de ho
exerce autoridade sobre as regras que regem o sá
kyrios, que aparece em Marcos, e Mateus não in
bado. De natureza semelhante, é o caso de Lucas
clui material paralelo. No paralelo mateusino de
10.2, em que kyrios não tem a função de título,
Marcos 13.20, o Evangelista emprega a forma in
mas simplesmente afirma que é Deus quem con
direta “Se aqueles dias não fossem abreviados...”
trola a ceifa: ele é o “ Senhor da colheita”.
(Mt 24.22), não a forma direta de Marcos “ Se o
5.2
Kyrios em Lucas. Quanto ao uso absolu
Senhor não abreviasse aqueles dias...” Essa di
to do substantivo kyrios, Mateus e Marcos não
ferença não pode ser explicada com o argumen
empregam o termo em sentido transcendente nas
to de que Mateus e Lucas não chamam Deus de
estruturas narrativas das declarações de Jesus
kyrios, pois principalmente nas narrativas do nas
(Mc 11.3 provavelmente não é exceção). Mas em
cimento ambos o fazem de modo bem claro (cp.
Lucas podemos ver esse emprego. Por exemplo,
Mt 1.20,22,24; 2.13,15,19 com Lc 1.6,9,1,15,17,
em Lucas 7.13 lemos; “ 0 Senhor [ho kyrios] se
25,28,38,45,58,66; 2.9,15,22,23,26,39). Em Ma
encheu de compaixão por ela”. Em Lucas 10.1,
teus e em duas passagens exclusivas do terceiro
o Evangelista escreve: “O Senhor [ho kyrios] de
Evangelho, também encontramos kyrios aphcado
signou outros setenta e dois”. Lucas, na condição
a Deus no material da ressurreição. Como forma
de gentio que escreve a um público exclusiva
respeitosa e convencional de tratamento, a pa
mente gentflico, não demonstra nenhuma hesi
lavra kyrios sempre é utiUzada nos Evangelhos
tação em usar ho kyrios em referência a Jesus e,
toda vez que um escravo se dirige a seu senhor.
dessa forma, deixar implícito o sentido rehgioso
Também é possível encontrá-la nos lábios dos ju
transcendente do termo. Isso não quer dizer que
deus quando eles se dirigem a Pilatos (Mt 27.63);
Lucas esteja sendo anacrônico, pois geralmente
quando os trabalhadores falam ao dono da vinha
ele tem o cuidado de não pôr o termo nos lá
(Lc 13.8); na conversa entre um filho e seu pai
bios de Jesus ou de seus interlocutores com um
(Mt 21.30); no diálogo entre Maria e o “jardinei
sentido estranho à época do ministério de Jesus.
ro” (Jo 20.15); nos lábios da mulher siro-fenícia
Algumas prováveis exceções podem ser vistas em
que faz uma súplica a Jesus (Mc 7.28; Mt 15.27).
Lucas 1.43, quando Isabel declara que Maria é
1 194
S enho r i: Evan g elho s
“a mãe do meu Senhor” ; Lucas 2.11, em que Je
essa aplicação só se torna evidente com base no
sus é apresentado como “ Senhor” aos pastores;
restante da narrativa, não na citação em si. No
Lucas 1.38, em que Maria é chamada “serva do
episódio da tentação, pode parecer à primeira vis
Senhor” , embora o termo aqui pareça se referir a
ta que Mateus 4.7 (“Não tentarás o Senhor teu
Javé (v.
Deus” , Dt 6.16) deixa implícito que kyrios se refe
J e s u s , n a s c im e n t o d e ) .
Inúmeras outras referências no Evangelho de
re a Jesus. Contudo, embora seja Jesus quem está
Lucas dão conta de que o Evangehsta fez uso regu
sendo tentado, dois fatores depõem contra essa
lar de kyrios na estrutura narrativa de seu relato do
leitura: 1) em Mateus 4.10, Jesus cita Deuteronô
ministério de Jesus (cf. Lc 7.19; 10.1,39,41; 11.39;
mio 6.13, texto que deixa bem claro que se trata
12.42; 16.8; 17.5,6; 18.6; 19.8a; 22.61; 24.3,34).
de Javé; 2) Jesus cita as Escrituras em oposição
Quando fala de Jesus, Lucas não reluta em usar o
ao Diabo, e, tanto na primeira citação quanto na
título cristão “Senhor”. A implicação pode ser que
segunda, a referência a Deus não diz respeito a
Lucas esteja indicando que em seu ser — mesmo
Jesus, que está falando.
ainda não totalmente em ação ou não plenamente reconhecido — Jesus já era o kyrios.
A passagem de Mateus 7.21,22 é um exemplo mais promissor, embora o vocativo seja usado.
Parece que Lucas não introduz o título em seu
Nesse texto, tem-se a impressão de que quem
material marcano (Lc 22.61 talvez seja exceção).
clama “Senhor, Senhor!” são discípulos que pro
Isso nos leva a indagar se Lucas encontrou esse
fetizaram e fizeram mUagres em nome de Jesus.
uso frequente do título kyrios no material que lhe
Mas 0 texto deixa claro que chamar Jesus de
serviu de fonte. Entretanto, ao que parece, nas
“Senhor” ou mesmo realizar grandes obras em
passagens em que encontramos kyrios em mate
seu nome não terá valor algum, caso também não
rial tirado de q ou
l,
o termo é um acréscimo feito
pelo próprio Lucas (cf. Lc 7.19; 12.42; 17.5,6). De
se dê atenção às palavras de Jesus e não se faça a vontade do Pai.
forma que, de modo geral, a maioria dos casos em
À medida que o primeiro Evangelho caminha
que 0 terceiro Evangelho utiliza kyrios como título
rumo ao clímax, há um destaque notável ao se
é resultado da atividade editorial de Lucas (cf.
de
nhorio de Jesus. Por exemplo, em Mateus 22.44
LA PorrERiE). Existe, portanto, algum fundamento
fica evidente que Jesus é Senhor, e em Ma
para a teoria de H. Conzelmann, segundo a qual,
teus 24.42 Jesus se refere a si próprio como “o
para Lucas, Jesus é acima de tudo o kyrios a quem
vosso Senhor” (observe-se o paralelo com o “Fi
Deus concedeu domínio e que governa a comuni
lho do homem”, em Mt 24.39). O segundo exem
dade cristã por meio do Espírito (p. 176-9).
plo não é um caso de uso no sentido absoluto,
5.3
Kyrios em Mateus. No primeiro Evange mas interpretado com outros textos já citados e
lho, estranhos, inimigos e Judas Iscariotes sempre
com 0 fato de que Jesus está falando desse Senhor
saúdam Jesus, chamando-o didaskale ou rabbi,
no contexto do yôm Yahweh ( “dia do
mas jamais kyrie, ao passo que os discípulos e os
Sem dúvida devemos entender que nesse caso ho
S e n h o r ” ).
que se aproximam de Jesus em busca de cura ja
kyrios tem um sentido que excede o simples sig
mais utihzam aqueles dois termos, mas sempre se
nificado de “amo”.
dirigem a ele com o vocativo kyrie. Desse modo,
Kingsbury (1975) apresenta algumas con
embora J. D. Kingsbury (1975) talvez tenha ido
clusões interessantes sobre o uso de kyrios em
longe demais com sua interpretação sobre o uso
Mateus, em particular a observação de que em
do vocativo kyrie em Mateus, existe algum funda
Mateus a palavra é mais utilizada como termo re
mento para incluir alguns desses casos em uma
lacional — o senhor em oposição ao escravo, o
análise da cristologia mateusina.
proprietário em oposição ao trabalhador ou mes
0 primeiro EvangeUsta não tem receio de em
mo o pai em oposição ao filho (Mt 21.28-30). En
pregar kyrios em referência a Jesus. Por exem
tretanto, nenhum desses exemplos se encontra em
plo, em Mateus 3.3 (acompanhando Mc 1.3),
passagens cristologicamente significatívas. Contu
ele cita Isaías 40.3 (“ Preparai o caminho do Se
do, é revelador que, nas passagens cristológicas
nhor”) e impUcitamente aplica a Jesus um título
que examinamos, o caráter relacional do termo
que originariamente se referia a Javé. Contudo,
esteja indicado 1) pelo uso do vocatívo “Senhor,
1 195
S enhor i : E vangelhos
Senhor” (Mt 7.21,22), 2) pelo uso de “vosso Se
pés dos discípulos e no qual Pedro utiliza o termo
nhor” (Mt 24.42) e 3) pelo uso de “meu Senhor”
“ Senhor”) tenham algumas implicações cristoló
na citação de Salmos 110.1 (Mt 22.44). Kingsbury
gicas. Mas não devemos desconsiderar a possibi
demonstra, contudo, que kyrios não é o título
lidade de que nessa passagem kyrie seja utilizado
principal de Jesus em Mateus. 0 peso cristológico
como termo respeitoso, em que alguém se dirige
geralmente
a seu mestre. O mesmo se pode dizer das pala
é
explicado
ou
explicitado
por
outro título, e, desse modo, deve-se no máximo
vras de Pedro em João 13.36,37 e de Tomé em
considerar kyrios um título cristológico auxihar no
João 14.5. Podem ter alguma importância os se
primeiro Evangelho. Também pudemos assinalar
guintes fatos: 1) no quarto Evangelho, Jesus não
o caráter um tanto alusivo ou indireto em algumas
se refere a si mesmo como kyrios-, 2) o Evangelis
passagens cristológicas (cf. Mt 3.3; 22.44).
ta não chama Jesus de kyrios em seus comentá
5.4
Kyrios em João. Em comparação com Lu rios editoriais nem ao longo da narrativa; 3) até
cas, João utiliza escassamente a palavra kyrios,
João 20, sempre que a palavra kyrios surge nos
mas o faz de maneira mais evidente que em Ma
lábios de um discípulo, o termo é um vocativo, e
teus. Em João, os títulos “Filho” ,
nenhum desses casos é claramente cristológico.
“ F il h o
de
D
eus”
e “Messias/CRisTo” ocorrem com mais frequência
Nas palavras de Maria Madalena, em João 20.13
que “Senhor”. Isso pode surpreender, quando se
( “meu Senhor”), kyrios não se encontra na forma
leva em conta que provavelmente esse foi o úl
absoluta, e esse é o primeiro caso em que, sem
timo Evangelho, escrito bem depois de a confis
estar no vocativo, o termo é usado por um per
são “Jesus é Senhor” ter sido disseminada pela
sonagem dentro da narrativa, mas mesmo aqui é
igreja. Embora o vocativo usado pelo paralítico
possível que ele não tenha sentido cristológico.
em João 5.7 [kyrie] não deva ser considerado de
Isso significa que João 20.18, 20.28, 21.7 e
valor cristológico, a referência de João a Jesus
possivelmente os múltiplos exemplos de vocativo
como “ o Senhor” tem esse significado (caso não
em João 21.15-21 são, nesse Evangelho, os úni
acompanhemos os poucos manuscritos ociden
cos casos em que um personagem da narrativa
tais
chama Jesus de kyrios no sentido transcendental.
[d ,
086, arm et al.] que ah omitem a expres
são relacionada).
Isso é um forte indício de que o quarto Evange
É possível que o propósito da pergunta de
lista, ao usar esse título, tenta conscientemente
Pedro a Jesus — “ Senhor [kyrie], para quem ire
evitar um anacronismo e deseja indicar que o co
mos?” (Jo 6.68) — seja mais que uma forma res
nhecimento e a confissão do senhorio de Jesus só
peitosa de tratamento, especialmente quando se
ocorreram em decorrência dos encontros entre os
leva em conta a confissão de Pedro em João 6.69.
discípulos e o Senhor ressuscitado.
Na resposta da mulher flagrada em adultério (Jo 8.11), é possível (mas não tão provável) que
6. Conclusão
haja um sentido cristológico, embora originaria
Agora é possível acompanhar a evolução um tan
mente a perícope não fizesse parte desse Evan
to clara do uso do termo kyrios em referência a
gelho. Um caso mais claro é o do cego que foi
Jesus de Nazaré. Iniciando com pistas indiretas
curado: ele emprega kyrie (Jo 9.36) como forma
durante o período do ministério de Jesus, passan
respeitosa de tratamento. 0 comentário editorial
do em seguida por relatos das experiências com o
em João 11.2 apresenta um claro emprego cris
Senhor ressuscitado e depois, no início do cristia
tão de ho kyrios. Por ocasião da entrada triunfal
nismo na Palestina, pelo uso de marana tha em
(Jo 12.13, dt. SI 118.26), é provável que o povo
contextos judaico-cristãos e pelos casos de uso
esteja bendizendo a Deus, não a Jesus, com o
cristológico do termo na estrutura narrativa de
termo kyrios. O texto de João 12.38, que cita
Lucas e João, chegamos por fim ao uso variado
Isaías 53.1, provavelmente também deve ser vis
do termo em Atos. Nesse livro, usa-se o termo em
to dessa maneira.
combinação com outros nomes e títulos, como
À luz do uso que Pedro faz do termo em
forma de se dirigir ao Cristo exaltado e no des
João 6.68,69, é possível que as frases do apóstolo
locamento de referências de Javé para Jesus em
em João 13.6,9 (o episódio em que Jesus lava os
citações do
1 196
at.
Senho r
h
: Paulo
É interessante não encontrarmos nem em Ma
Kyrios and Maranatha and their Aramaic back
teus, nem em Marcos o uso da forma absoluta ou
ground. In: To advance the gospel. New York:
transcendente de kyrios, além de haver o esforço,
Crossroad, 1981. p. 218-35. ■ ______ . The Semitic
por parte de Lucas e do quarto Evangelista, de
background of the New Testament Kyrios-title.
contornar os anacronismos, evitando o sentido
In: A wandering Aramean. Missoula: Scholars,
cristão pleno do termo nos lábios das pessoas du
1979. p. 115-42. •
rante o ministério de Jesus. Também é significati
[S.l.: s.n., s.d.] v. 3, p. 1039-95. •
vo que Lucas-Atos e João deixem implícito que a
Tetragram and the New Testament,
confissão de Jesus como Senhor surgiu em resul
63-83, 1977.
tado das experiências da ressurreição. Em alguns
devotion to Jesus in earhest Christianity. Grand
F o e rs te r,
■ H u rta d o ,
L.
W. KÚpioç
W.
k tA . t d n t .
H ow ard , jb l , v.
G. The 95, p.
Lord Jesus Christ:
casos, porém, isso não impediu que, em suas
Rapids: Eerdmans, 2003. • ______ . One God, One
narrativas, os Evangelistas chamassem de “Se
Lord: early Christian devotion and ancient Jewish
nhor” 0 Jesus do ministério, pois foi “esse mes
monotheism. Philadelphia: Fortress, 1988. • J o h n
mo Jesus”, que Deus havia ressuscitado dentre os
son ,
mortos, que assumiu decididamente as tarefas de
■ K
S. E. Lord.
in g s b u r y ,
iDB.
[S.l.: s.n., s.d.] v. 3, p. 150-1.
J. D. Matthew: structure, christology,
Senhor quando se uniu a Deus no céu. Ou seja, o
kingdom. 2. ed. Minneapolis: Fortress, 1989. •
elo entre o uso de kyrios nos Evangelhos e o uso
______ . The title “Kyrios” in Matthew’s gospel.
no período anterior e posterior à morte e ressur
JBL, V.
reição reflete a crença no elo entre a pessoalidade
origin o f christology. Cambridge: Cambridge Uni
do Jesus histórico e do Senhor ressuscitado.
94, p. 246-55, 1975. ■ M o u l e , C. F. D. The
versity Press, 1977. ■ T a y l o r ,
Era certo que no entendimento da época o
V.
The Gospel accor
ding to St. Mark. New York: St. Martin’s, 1955. ■
termo kyrios, no sentido religioso, deixava im
V erm es,
plícita a divindade de Jesus, especialmente nas
Row, 1973. ■
G. Jesus the Jew. New York: Harper and
regiões orientais do Império Romano e em con
of Jesus. Minneapohs: Fortress, 1990. ■ ______ .
W it h e r in g t o n
iii,
B. The christology
textos gentílicos. Os dados apontam para o fato
Women in the ministry of Jesus. Cambridge: Cam
de que essa notável mudança no conceito judaico
bridge University Press, 1984. B.
de monoteísmo ocorreu na comunidade primitiva
W
i t h e r i n g t o n iii
judaico-cristã da Palestina em resultado de algu mas evidências debcadas por Jesus, especialmen
S enhor
te em decorrência das experiências com o Senhor
Nos escritos paulinos, como no restante do
ii:
P
ressurreto partilhadas por algumas testemunhas
palavra “senhor” geralmente traduz o termo gre
oculares da vida do Jesus histórico. Os dados que
go kyrios. 0 termo tem a conotação de superiori
pudemos estudar mostram que a cristologia ele
dade daquele a quem se atribui o título. Quando
aulo nt
,
a
vada da igreja cristã primitiva não foi um novo
kyrios é usado no vocativo para se dirigir a uma
desdobramento ocorrido no final do século i.
pessoa [kyrie), pode ser um simples gesto de res
Ver também de
D
eus;
F il h o
C r is t o ; D
do h o m e m
eus;
F il h o
de
D
a v i;
F il h o
peito, algo próximo da forma de tratamento “ se nhor” com que nos dirigimos a alguém. (Nesse
.
sentido, é comum nos Evangelhos que as pessoas H. Lord,
B ib lio g r a fia .
B ie te n h a r d ,
s.n., s.d.]
2, p. 510-20. ■
V.
[S.L:
se dirijam a Jesus chamando-o kyrie.) 0 termo
W. Kyrios
também pode designar alguém como o “amo”
m dn tt.
B o u s s e t,
C o n z e l
ou o “mestre” de empregados e seguidores, e era
The theology of St. Luke. New York: Har
aplicado a governantes no sentido de que esta
Christos. Nashville: Abingdon, 1970. ■ m ann, H .
per and Row, 1960. •
A. Light from
vam acima de seus súditos. Com essa conotação,
the Ancient East. Reimpr. Grand Rapids: Baker,
o termo kyrios forma par linguístico com doulos
1978. ■ De
la
P
o t t e r ie ,
D e is s m a n n ,
I. Le titre KYRIOS appli
qué à Jésus dans l’Évangile de Luc. In: A. &
H
alleux,
(“escravo” , “servo”). Kyrios também designava
esc am ps,
divindades, especialmente entre os semitas e os
a. de, orgs. Melanges bibliques en
povos do Oriente durante o período greco-romano
D
hommage au R. P. Rigaux. Gembloux: Duculot,
(v.
1970. p. 117-46. •
romanos a partir do final do século i, à medida
F it z m y e r ,
J. A. New Testament
1 197
adoração ),
e veio a ser aphcado a imperadores
S enhor ii : I^aulo
que a devoção ao imperador era promovida com
de “ muitos deuses [theoi] e muitos senhores
mais vigor. O grego despotês, também traduzido
[kyrioi]" no mundo religioso de sua época.
por “senhor” , “mestre” ou “amo” , é encontrado
Nos sentidos religiosos mais amplos empre
e no corpus paulino,
gados na época de Paulo, dois em particular às
principalmente em códigos domésticos, e aparece
vezes são apontados como de importância direta
apenas em escritos cuja autoria é questionada,
na designação pauhna de Cristo como kyrios: o
apenas dez vezes no
nt
,
passagens em que o termo se refere a um “se
uso do termo em referência a divindades de vá
nhor” dentro de uma relação social (ITm 6.1,2;
rias religiões de mistério e sua aplicação no culto
Tt2.9; 2Tm2.21).
ao imperador romano. Entretanto, essas ideias
Paulo emprega kyrios com mais frequência
são alvo de várias críticas, o que torna imprová
para se referir a Cristo, sendo poucas as vezes
vel que o emprego de kyrios por Paulo em refe
que usa o termo para designar Deus e para se
rência a Cristo tenha origem nesses círculos.
referir a seres humanos em papéis socialmente
Tanto as religiões de mistério quanto o cul
dominantes, como senhores de escravos. Unido
to ao imperador alcançaram nível máximo de
ao título “ Cristo” , que ocorre com maior frequên
popularidade a partír do século ii, depois que o
cia, e ao título “Filho de Deus”, que aparece me
emprego cristão de kyrios estava firmemente es
nos vezes, kyrios (“ Senhor”) é um dos principais
tabelecido. Mais importante ainda é que uma an
títulos cristológicos usados por Paulo.
tipatia generalizada e profundamente arraigada,
0 uso secular de kyrios por parte de Paulo em
além do desprezo pela religiosidade pagã, carac
referência a senhores humanos, e o uso rehgio
terizava judeus como Paulo e outros que cons
so, para designar Deus, refletem as aphcações do
tituíram os círculos iniciais de grupos cristãos e
termo entre judeus e gentios do mundo greco-
exerceram funções de liderança nos primeiros e
romano. É 0 uso de kyrios em referência a Cristo
cruciais decênios do cristianismo. Assim, é difícil
que distingue Paulo como cristão e tem atraído o
entender como o emprego pagão de kyrios pode
interesse dos estudiosos. As questões fundamen
ria ter influenciado a aplicação do termo a Cristo
tais são os antecedentes históricos, com as influ
por parte dos primeiros cristãos.
ências desses antecedentes na aplicação de kyrios
Consequentemente, a tendência dos estudos
a Cristo, a origem desse uso do termo no cris
mais recentes tem sido concluir que o uso pa
tianismo primitivo e seu emprego e significado
gão de kyrios e de termos semelhantes em outros
como título cristológico em Paulo (v.
idiomas não é a causa nem a fonte da aplicação
c r is t o l o g i a ) .
1. Antecedentes
cristã inicial de kyrios como título de Cristo. Em
2. Origens do uso cristão
vez disso, o uso rehgioso pagão do termo apenas
3. Uso paulino
ilustra o contexto linguístico mais amplo no qual
4. Resumo
devemos enxergar o uso cristão de kyrios. Isso mostra que o termo era amplamente aceito como
1. Antecedentes
título apropriado a seres reverenciados e que os
1.1 Gerais. Assim como em muitos outros idio
pagãos percebiam essa conotação de reverência
mas, no hebraico, no aramaico e no grego anti
quando os cristãos o utilizavam em referência a
gos, os termos que denotam a ideia de “ senhor”
Cristo. Contudo, para entender por que Paulo e
ou “amo” eram empregados para designar seres
outros cristãos primitivos chamaram Cristo de
humanos que ocupavam posições sociais mais
kyrios e o que queriam dizer com isso, temos
elevadas, além de divindades (para uma análise
de olhar em outra direção.
mais aprofundada dos antecedentes linguísticos,
1.2
Judaicos. Para a maioria dos estudiosos,
emprego de kyrios como
agora está claro que os antecedentes religiosos
título para divindades parece ser o mais apropria
judaicos do cristianismo primitivo constituem
do para entender a aplicação do termo a Cristo
as fontes e os precedentes linguísticos mais
por parte de Paulo. Em ICorintios 8.5, Paulo faz
importantes para o uso de kyrios como título
alusão ao uso pagão de kyrios como designa
cristológico (v. esp.
ção de seres divinos, ao mencionar a existência
ses antecedentes são os mais relevantes: o uso
V. F oerster & Q u e l l ) . 0
11 9 8
F it z m y e r ) .
Dois aspectos des
S enhor ii : Paulo
religioso de equivalentes em hebraico e aramaico
feitas em parágrafos anteriores. É quase certo que
que foram traduzidos por kyrios e o uso do pró
na leitura real dessas cópias do
prio vocábulo kyrios como termo religioso empre
pronunciava nem Javé nem a palavra indicada
gado por judeus de fala grega.
pelo grego pipi, mas que em vez disso era usa
Na época da origem do cristianismo, parece
at
grego não se
do um substituto, muito provavelmente kyrios,
que religiosos judeus já haviam desenvolvido o
prática demonstrada no
costume, amplamente observado, de evitar a pro
gregos do século i que refletem os antecedentes
núncia do nome hebraico de Deus, Javé, sendo
religiosos judaicos.
e em outros escritos
nt
utilizados vários substitutos. Informações ex
Em suma, além do sentido honorífico geral
traídas de textos judaicos antigos dão conta de
de kyrios e da aplicação religiosa pagã do termo
que nomes substitutos para Javé eram comuns,
a certos personagens divinos, os judeus de fala
até mesmo em referências por escrito. Em he
grega do século i introduziram kyrios em seu vo
braico, muitas vezes Deus era chamado “ o Se
cabulário religioso como forma de se referirem
nhor” , empregando-se a palavra ’ãdônay. Em
reverentemente a Deus. Essa introdução tinha
aramaico, como demonstram alguns documentos
como paralelo o uso de’ãdônay e de mãrêh em
encontrados em Qumran, o termo equivalente,
referência a Deus entre os judeus que falavam
mãryã' (substantivo mãrêh mais o artigo definido,
línguas semíticas e foi por esse uso facilitada. E,
que em aramaico é sufixado), era empregado de
levando-se em conta os antecedentes religiosos
modo semelhante. Ou seja, nos círculos judaicos
judaicos e os escrúpulos teológicos de Paulo e da
do século
os equivalentes semíticos de kyrios
maioria dos cristãos das décadas de formação do
eram utilizados para designar o Deus da Bíblia e,
cristianismo, deve se ver o uso rehgioso judaico
I,
na forma absoluta ( “o Senhor”), como substitu
de kyrios e seus equivalentes semíticos como o
tos do nome sagrado de Deus (Javé).
fator lingüístico mais importante ao examinar o
Na época, desenvolveu-se também entre os ju
uso de kyrios no
nt
.
Os usos de kyrios pelo ju
deus de fala grega a prática de usar equivalentes
daísmo como equivalente de 'ãdônay, ou mesmo
gregos de 'ãdônay em referência a Deus, em vez
como equivalente grego de Javé, aumentam signi
de seu nome hebraico sagrado. Josefo, escreven
ficativamente a gama de possibilidades conotati-
do perto do final do século i, parece ter preferido
vas que se devem analisar, especialmente quando
despotês em lugar do nome de Deus, mas é possí
se interpreta a aplicação do termo a Cristo.
vel que tenha desejado evitar o uso de kyrios pelo fato de 0 vocábulo ter se tornado um dos títulos
2. Origens do uso cristão
do imperador romano, pois trabalhava com o apa
Os escritos cristãos mais antigos que chegaram
drinhamento do monarca. Filo, algumas décadas
até nós são as cartas de Paulo, e elas fornecem
antes de Josefo, utilizou kyrios como substituto
indícios sobre a origem de uma prática anterior
grego de Javé. De forma semelhante e como regra,
ao apóstolo de se referir a Cristo como Senhor (cf.
os autores do
K
nt
empregam kyrios quando citam
ram er,
cuja abordagem desse assunto, contudo,
em que o nome de Deus aparece
repetidas vezes contradiz as informações). Já a
em hebraico, oferecendo prova adicional de que
partir dessas cartas mais antigas, Paulo aphca
passagens do
at
eram usados substitutos gregos para o nome de
kyrios a Jesus sem apresentar exphcação ou jus
Deus, sendo kyrios uma opção popular (preferi
tificativa, o que mostra que seus leitores estavam
da?), que tinha no grego a mesma função do he
familiarizados com o termo e sua conotação. Isso
braico ’ãdônay e do aramaico mãryã’.
também se vê no aspecto formular ou linguisti-
As ocorrências de Javé em caracteres hebrai
camente padronizado de aplicar kyrios a Cristo
cos iyhwh) ou a curiosa combinação de carac
em expressões como “ o Senhor Jesus Cristo”
teres gregos pipi, que parece ter o propósito de
(e.g., ITs 1.1) e “nosso Senhor Jesus Cristo” (e.g.,
sinalizar os caracteres hebraicos de Javé e de se
ITs 1.3), especialmente comuns nas introduções
assemelhar a eles, aparecendo em certas cópias
e conclusões de cartas (v.
judaicas antigas do
tas) ,
at
grego, não podem ser utili
zadas como argumento contrário às observações
cartas,
fo rm as
de
car
que parecem empregar saudações e invo
cações de bênção que eram convencionais na
1 199
S enhor n: Pa ulo
vida litúrgica das igrejas de Paulo. A referência
estendeu a seus convertidos gentílicos. É interes
frequente a Jesus como “ o Senhor” (e.g., ITs 1.6;
sante que Paulo tenha passado a seus convertidos
4.15) demonstra que o termo se tornara de uso
os termos litúrgicos aramaicos empregados para
tão costumeiro para designar Cristo que não era
se dirigir tanto a Deus quanto a Cristo, mostrando
necessária nenhuma identificação adicional. A
a “ forma binária” inicial da devoção cristã nas
partir das etapas mais antígas do ministério de
igrejas de fala aramaica e grega.
Paulo, sua cartas pressupõem uma familiaridade com o termo como título cristológico.
As ideias de que marana tha era uma tradu ção para o aramaico de uma invocação cristã que
Além disso, em princípio, é improvável que
teve origem entre cristãos de fala grega ou de que
Paulo tenha dado início a esse emprego do ter
0 “ Senhor” a quem a invocação era dirigida não
mo, especialmente entre seus convertidos. Di
era Cristo, mas Deus, propostas por W. Bousset,
versas evidências confirmam isso. Embora Paulo
são consideradas hoje em dia maneiras nada
insistisse em seu chamado especial da parte de
convincentes de evitar o óbvio peso histórico da
Deus para evangelizar os gentios e até usasse a
expressão, a saber, que se pode identificar nos
expressão “meu evangelho” (Rm 2.16), ele tam
grupos judaico-cristãos mais antigos a origem da
bém insistia em que sua proclamação incorpora
forma reverente de tratar Cristo como “Senhor”.
va uma ideia acerca de Cristo que era partilhada
Além disso, os textos aramaicos encontrados em
por cristãos judeus de Jerusalém (e.g., G1 1—2;
Qumran, em que se usam formas de mãrêh para
ICo 15.1-11). 0 resumo da fé que ele apresenta
se referir a Deus, refutam a teoria de que não é
em Romanos 10.9,10, que se concentra na ressur
possível que o emprego de mãrêh em referência a
reição de Jesus e em sua condição de kyríos, é
Cristo entre os cristãos de fala grega tenha tído a
apresentado como uma declaração fundamental
conotação de reverência reservada a um ser divi
e inconteste da fé cristã partilhada pelos cristãos
no, mas apenas uma conotação honorífica mais
em geral. Parece que, nas referências de Paulo a
genérica. Parece que mãrêh foi utílizado de forma
Tiago e a outros “irmão(s) do Senhor”, ele está
semelhante ao hebraico 'ãdônay e o grego kyrios,
empregando designações formais dos parentes
até mesmo como título para Deus.
de Jesus, as quais tiveram origem em grupos
Quando se combina esse fato semântico com
judaico-cristãos da Palestína (v., e.g., G1 1.19;
a observação de que a expressão marana tha
ICo 9.5), que se referiam ao Jesus ressuscitado
mostra que a oração/invocação coletiva é dirigi
como “ o Cristo”.
da a Cristo pelo termo mãrêh, fica difícil evitar a
Contudo, a confirmação mais direta de uma
conclusão de que mãrêh demonstra, pelo Cristo
origem antiga e não paulina da referência a Jesus
ressuscitado, uma reverência semelhante ou igual
como “Senhor” encontra-se na transhteração
à que se demonstrava por Deus. Isso significa que
grega
Cristo começou a ser reverenciado como Senhor
da fórmula de invocação
mamnatha
(ICo 16.22), que provavelmente deve ser vocah-
nos círculos judaico-cristãos mais antigos em
zada como marãnã’ ta e significa “nosso Senhor,
termos e ações que correspondem ao que Paulo
vem!” Essa expressão tem origem nos cristãos
mais tarde ligeiramente pressupõe e reflete em to
judeus de fala aramaica. Aqui Paulo a utíliza sem
das as suas cartas.
exphcação ou mesmo sem tradução, o que indica
Ou seja, o título “Senhor”, conferido a Cristo
que os coríntios já a conheciam, por meio do pró
com a mesma conotação atribuída a Deus, parece
prio apóstolo, provavelmente como um sagrado
ter tído origem ainda muito cedo nos círculos mais
elo verbal entre os cristãos gentílicos de Paulo e
antigos do movimento cristão e não parece ter sido
seus antecessores e correligionários na Palestina,
0 resultado de um processo gradual de assimila
os quais se dirigiam ao Jesus ressuscitado como
ção de modelos pagãos de devoção a várias divin
“nosso Senhor” [marãnã’, de mãrêh). A preserva
dades. Também não se pode atribuir a designação
ção por Paulo da forma aramaica de invocação
kyrios a Cristo, expressando a ideia de ser divino,
a Deus como abba [ ’abbã’, Rm 8.15; G1 4.6) é
ao ingresso de um grande número de gentios com
provavelmente um paralelo linguístico e um elo
antecedentes pagãos no movimento cristão (con
litúrgico com os cristãos judeus, o qual Paulo
trariando
1200
C asey).
Linguística e historicamente, a
S enhor i i : Paulo
referência a Cristo como Senhor com uma cono
Em várias citações de passagens do
at
que
tação exaltada parece ter surgido entre os cristãos
mencionam Javé, Paulo aphca o termo a Cris
judeus da Palestina. Como aconteceu com Paulo,
to: Romanos 10.13 (J1 2.32); ICorintios 1.31
de alguma forma eles conseguiram conciliar a re
(Jr 9.23,24); ICorintios 10.26 (SI 24.1); 2Corín-
verência por Cristo com o monoteísmo exclusivis
tios 10.17 (Jr 9.23,24). Existem duas passagens
ta que herdaram do judaísmo, produzindo assim
cujo contexto não nos permite saber se Paulo está
nessa tradição uma pecuhar adaptação “binária”
aplicando a citação a Deus ou a Cristo (cf.
(v . H u r ta do , 1988; v. D eus ).
que entende serem referências a Cristo): Roma
C apes,
nos 14.11 (Is 45.23); ICorintios 2.16 (Is 40.13). 3. Uso paulino
Além disso, várias passagens pauhnas podem
3.1 Citações do a t . A primeira observação a fazer
muito bem incorporar alusões ao texto do
sobre o emprego paulino de kyríos diz respeito
mencionam Javé, em que o kyrios a que Paulo
aos personagens a quem ele aplica o termo. Ape
se refere é Cristo. Por exemplo: ICorintios 10.21
at
que
nas para evitar ficarmos presos em outra questão,
(Ml 1.7,12); ICorintios 10.22 (Dt 32.21); 2Co-
se excluirmos os escritos paulinos considerados
ríntios 3.16 (Êx 34.34); ITessalonicenses 3.13
pseudepigráficos, restam pouco mais de duzen-
(Zc 14.5); ITessalonicenses 4.6 (SI 94.2); 2Tessa-
tas ocorrências de kyrios para anahsar, e as ob
lonicenses 1.7,8 (Is 66.15); 2Tessalonicenses 1.9
servações a seguir não seriam alteradas, caso se
(Is 2.10,19,21); 2Tessalonicenses 1.12 (Is 66.5).
incluíssem as cartas deixadas de lado. Na surpre
Mas com certeza a passagem mais notável nes
endente maioria dessas ocorrências {em torno de
se aspecto é Filipenses 2.10,11, vista como uma
180), Paulo emprega kyrios como título de Cristo,
apropriação da terminologia monoteísta de Isaías
e é a esse uso do termo que dedicaremos a maior
45.23-25 acerca de Javé, cujo propósito é apre
parte de nossa anáhse. Contudo, deve se ressaltar
sentar a aclamação escatológica de Cristo como
que Paulo também se refere a Deus como kyrios,
kyrios, “para glória de Deus Pai”.
embora em diversas passagens seja difícil ter cer teza se a referência é a Deus ou a Cristo.
Se pusermos de lado as passagens ambíguas mencionadas acima, ainda resta um volume con
As passagens em que Paulo está seguramente
siderável de indícios de que Paulo aphcou a Cris
se referindo a Deus como kyrios são todas citações
to a terminologia do a t , até mesmo passagens que
do
em que Deus é mencionado, e kyrios é a pa
originariamente se referiam a Javé. Pelo menos
lavra grega que Paulo usa para traduzir ou subs
nesses casos, parece que o título kyrios conferi
tituir o vocábulo hebraico Javé, prática também
do por Paulo a Cristo baseava-se na ideia de que
seguida na
Deus é sem dúvida o referente
este, de alguma forma, estava direta e singular
nas seguintes passagens pauhnas em que kyrios é
mente associado a Javé e de que o termo tinha
a tradução de Javé no texto hebraico do a t : Roma
essa conotação. Em Filipenses 2.9-11, lemos que
nos 4.8 (Sl 32.1,2); Romanos 9.28,29 (Is 28.22;
Deus outorgou a Cristo “o nome que está acima
1.9); Romanos 10.16 (Is 53.1); Romanos 11.34
de qualquer outro nome”. Quer a passagem seja
at
lx x .
(Is 40.13); Romanos 15.11 (Sl 117.1); ICorín-
da autoria de Paulo, quer tenha ele se apropriado
tios 3.20 (Sl 94.11); 2Coríntios 6.17,18 (Is 52.11;
dela, de uma forma ou de outra ele a conside
2Sm 7.14). Além disso, existem várias passagens
rava uma declaração cristológica. Essa expressão
em que Paulo cita o a t e o modifica, fazendo uma
provavelmente reflete a antiga reverência judaica
referência explícita a Deus como kyrios quando
pelo nome de Deus (Javé), o qual representava,
ela inexiste no hebraico e na
Romanos 11.3
para os antigos judeus, a condição e o ser únicos
(IRs 19.10); Romanos 12.19 (Dt 32.35); ICorín-
de Deus. Assim, a passagem refere-se a uma con
tios 14.21 (Is 28.11). Nessas passagens, Paulo imi
dição e a uma quahdade conferidas a Cristo só
ta o hnguajar das Escrituras gregas e mostra quão
comparáveis ã condição e aos atributos de Deus.
familiarizado está com kyrios como substituto/
Parece ser essa a razão pela qual Paulo se baseia
lx x :
tradução grega de Javé para se referir ao Deus do
em Isaías 45.23-25, passagem que originariamen
entre judeus e cristãos de fala grega. Isso torna
te apresentava um reconhecimento universal de
at
as passagens seguintes ainda mais interessantes.
Javé, predizendo o reconhecimento universal
1201
bENHOR ii: Paulo
de Jesus como kyrios. Nessa passagem, kyríos é
deuses. Embora não seja muito coerente, Capes
necessariamente o equivalente grego na aclama
tende a crer que a aphcação pauhna a Jesus de
ção de Cristo como aquele que leva o nome vete
textos do a t referentes a Javé significa que o após
rotestamentário de Deus.
tolo “acreditava que Jesus era um com Deus”
Outro caso em que Paulo se apropria de uma passagem do
at
para fazer uma afirmação cristo
lógica importante é o texto bastante estudado de
(C
apes,
p. 165) e que, para Paulo, Jesus estava
“identificado com Deus”
(C
p. 169). Ttata-se,
apes,
porém, de simplificações exageradas.
2Coríntios 3.15-18. A afirmação de Paulo de que,
L. J. Kreitzer dedicou-se à anáhse da íntima
“quando um deles se converte ao Senhor, o véu
associação entre Cristo e Deus na escatologia de
é retirado” (2Co 3.16) é uma adaptação de Êxo
Paulo e detectou uma “mudança referencial” do
do 34.34 — em que kyríos é Javé — em referência
termo kyrios em Paulo (e.g.,
a Cristo. Essa aplicação de kyrios a Cristo não é
em que Cristo é o referente que age no papel de
um mero jogo de palavras, mas a indicação de
Deus. Embora não tenha sido essa a intenção de
que Paulo vê Cristo como kyrios da perspectiva
Kreitzer, é possível entender erroneamente que a
divina. Os versículos que se seguem confirmam
expressão “mudança referencial” deixe implícito
isso, ao demonstrarem que kyrios está associado
que Paulo exalta a pessoa de Cristo à custa de
ao Espírito divino (v.
Deus, conduzindo ao cristomonismo. Em outro
E s p í r it o S a n t o )
e é mencio
K
r e it z e r ,
p. 113),
nado como a fonte da “glória” transformadora
ponto de sua obra, Kreitzer menciona uma “ so
(gr., doxa = hebr., kãbôd), um dos atributos mais
breposição conceituai entre Deus e Cristo” em
importantes de Javé no
Paulo
at,
aqui ostentado por
(K
r e it z e r ,
p. 116), e essa talvez seja a ma
Cristo (v. ICo 2.8, que apresenta Cristo como “ o
neira mais apropriada de apresentar a questão.
Senhor da glória”; v. tb.
sobre a impor
Linguisticamente, pode se dizer que Cristo foi
Outro indício de que a referência de Paulo a
liar ao campo referencial de Paulo quando o após
Jesus como kyrios pode ter a conotação de uma
tolo passou a utilizar kyrios como título divino.
associação direta entre Jesus e Javé encontra-se
E, conforme já demonstrado nos casos em que
N
ew m an
,
tância cristológica de doxa].
incorporado de forma bem proeminente e pecu
nas várias passagens em que Paulo emprega o
Paulo aphca a Cristo passagens do
conceito veterotestamentário de “dia do Senhor
catológicas que originariamente diziam respeito
[Javé]” para se referir à vitória escatológica de
a Javé, pela utihzação kyrios, o termo pode ter
Cristo (v.
a conotação de honra e posição dehberadamente
K
r e it z e r ; v
.
e s c a t o l o g ia ) .
Em ITessaloni
censes 5.2, 2Tessalonicenses 2.2 e ICorintios 5.5, embora o contexto deixe claro que é Cristo o
e ações es
comparáveis às de Deus.
Paulo simplesmente se apropria da expressão do at,
at
3.2
Uso nos credos. Outro conjunto particu
larmente importante de indícios sobre a aphca
kyrios, cujo “dia” está se aproximando. Em ou
ção paulina do título kyrios a Cristo são as várias
tras passagens, Paulo modifica a expressão para
passagens que os estudiosos identificam como
identificar Cristo como o kyrios de forma explí
“credais” , ou seja, passagens que provavelmente
cita (ICo 1.8; 2Co 1.14; cf. 2Tm 1.18; 4.8). D.
refletem antigas expressões da fé cristã em Cristo.
B. Capes estudou a aphcação pauhna de kyrios
No entanto, o termo “credal” talvez seja um pouco
a Cristo, destacando especialmente as passagens
enganoso, pois as expressões em questão jamais
do
aphcadas a Cristo e nas quais kyrios origi
tiveram o propósito de ser confissões completas
nariamente se refere a Javé. Infelizmente, a obra
das crenças dos primórdios do cristianismo, nem
at
de Capes está prejudicada em pontos essenciais
foram resultado de deliberações doutrinárias.
por sua tendência de abordar os textos paulinos
Pelo contrário, a origem dessas expressões de fé
com base nas controvérsias cristológicas de sécu
provavelmente foram aclamações no contexto da coletiva nos círculos cristãos. As mais
los posteriores, pela distorção ocasional da obra
adoração
de outros autores (v. esp.
antigas expressões da fé cristã que chegaram até
sua análise de
H
urtado )
C apes,
p. 168-74, em
e pelas afirmação ques
nós aclamam Cristo como kyrios.
tionável de que os judeus do período pré-cristão
Talvez a mais antiga referência à aclamação
estavam dispostos a aceitar a adoração de outros
de Cristo no contexto da adoração cristã seja
202
S enhor ii : Paulo
ICorintios 12.3. Aqui, no meio de uma longa
recebeu o nome divino e, ao mesmo tempo, re
análise sobre o comportamento apropriado na
dunda “para glória de Deus Pai”. Como observa
adoração cristã (ICo 11— 14), Paulo menciona
Kreitzer (p. 161), essa expressão é a prova de que
a aclamação kyríos lêsous, atribuindo-a a uma
Paulo procurava manter a “ integridade” de sua
obra do Espírito Santo na vida dos crentes em
fé monoteísta e conciliá-la com a surpreendente
Cristo. Já mencionamos Romanos 10.9,10, que é
condição de Jesus refletida na aclamação de que
outra referência a essa antiga aclamação litúrgica
ele é o kyríos. Essa preocupação também se re
e provavelmente deve ser traduzido por “Jesus
flete em outras passagens paulinas, com alguma
é Senhor”. Em Romanos 10.9,10, essa aclamação
“palavra ou expressão esclarecedora”
está associada à crença na ressurreição de Cristo,
p. 158) acrescentada a passagens que se referem
o acontecimento que parece ter dado início à con
a Cristo (e.g., ICo 3.23; 11.1; 15.20-28).
(K
r e it z e r ,
vicção de que Cristo havia recebido uma glória
Em ICorintios 8.5,6, a última passagem credal
celestial única ao ser aclamado como kyríos. Essa
a ser examinada aqui, vemos outro exemplo de
passagem mostra que os primeiros grupos cris
como Paulo conciliava a posição exaltada de Cris
tãos consideravam a ressurreição de Jesus a base
to com a herança do monoteísmo. Contrastando
histórica e a prova de sua exahação.
com o ambiente politeísta greco-romano (v.
Faz-se necessário aqui analisar Filipenses 2.911, passagem também já citada. Com base nas
g iõ e s g r e c o - r o m a n a s ) ,
r e l i
Paulo faz uma confissão di
vidida em duas partes: “um só Deus [heis theos],
duas passagens que acabamos de analisar, Fi-
0 Pai” , e “um só Senhor [heis kyríos], Jesus Cris
hpenses 2.9-11 parece também fazer alusão à
to” (essa expressão é outro exemplo da referência
aclamação cristã primitiva de Jesus como kyríos,
mais longa e grandiloqüente a Cristo, menciona
projetando nela uma participação universal fu
da em nossa anáhse de Fp 2.11). Parece influen
tura, a qual os grupos cristãos agora aguardam
ciada por Deuteronômio 6.4: “Ouve, ó Israel: 0
ansiosamente e prefiguram em suas reuniões de
Senhor,
adoração.
heis estin
Devem se ressaltar dois outros aspectos dessa
nosso Deus, é o único [lx x ];
hebr., Yahweh
Senhor” ’e h ã d ) .
{kyríos
Ou seja,
Cristo é incluído em uma proclamação revisada
passagem. Primeiro: a fórmula hgeiramente mais
do caráter único de Deus. Na época de Paulo, os
longa Kyríos lêsous Chrístos (Fp 2.11) é encontra
judeus provavelmente empregavam Deuteronô
da com ligeira variação nas cartas de Paulo, espe
mio 6.4 como parte do Shemá, que era a confis
cialmente nas introduções e nas conclusões (que,
são de fé dos judeus acerca do caráter único de
conforme se imagina, refletem fórmulas htúrgi-
Deus. Portanto, é possível que, também ao fazer
cas empregadas nas igrejas pauhnas), como em
alusão a essa prática confessional judaica, Paulo
Filipenses 1.2. Essa formulação mais completa
tivesse 0 propósito de expressar a versão pecu
mostra que existiam formas variadas de aclama
liarmente cristã do monoteísmo, na qual Cristo é
ção (nessa passagem, trata-se provavelmente de
o “único Kyríos”, título grego usado para se referir
uma tentativa de conferir maior grandiloqüência
a Javé entre os judeus de fala grega e no
e impacto cristológicos) e ao mesmo tempo de
Isso constitui uma aclamação de Cristo no nível
monstra que a aclamação principal continua sen
mais elevado.
at
grego.
do o anúncio de que Jesus é “ Senhor”. E, como
Ao mesmo tempo, devemos observar que a
já foi dito, aqui o título parece mostrar que Jesus
declaração paulina de fé cristã, apresentada por
recebeu o nome (e assim a posição, a homa e os
Paulo em duas partes (i.e., uma declaração “bi
atributos) de Deus.
nária”) em ICorintios 8.6, impõe à aclamação
Segundo: a tentativa de uma expressão cristo
“ um só Senhor, Jesus Cristo” um compromisso
lógica mais completa na fórmula de aclamação de
contínuo com a fé monoteísta. Essa é a mensa
Filipenses 2.11 é seguida de uma expressão que
gem envolvida no uso cuidadoso de preposições
transmite mais precisão teológica que a simples
na declaração de que “todas as coisas”, até mes
aclamação de Jesus como kyríos. De forma singu
mo a redenção dos cristãos (que é provavelmente
lar, Filipenses 2.11 aclama Jesus como “Senhor” ,
o sentido de “ nós”, pronome oculto na palavra
o que constitui um reconhecimento de que ele
“existimos”), procederam “ da parte de” (ek) “um
1203
Senhor ii : Paulo
SÓ
Deus, 0 Pai” , e “por meio do” [dia, subenten
grega e aramaica grupos que confessavam e invo cavam a Cristo como Senhor em suas reuniões e
dido em “pelo qual”) “Senhor, Jesus Cristo”. Apesar disso, embora Paulo tenha ajustado
na vida cotidiana. 3.3
seu conceito de Cristo à fé monoteísta, ele se
Fórmulas de intitulação. Além dos em
sentiu forçado a considerar Cristo sob uma luz
pregos já mencionados, nas sete cartas incontes
surpreendememente exahada, que o levou a re
tés existem cerca de 170 outras ocorrências de
desenhar o monoteísmo. Ahás, tendo em vista o
kyrios referentes a Cristo, das cerca de 200 ocor
compromisso monoteísta de Paulo, é difícil imagi
rências no total, que aparecem em várias formas,
nar uma posição mais exaltada de Cristo sem que
em geral recorrentes e fixas. Pela perspectiva
isso implique substituir Deus por Cristo, algo que
sociolinguística, podemos vê-las como “rotini-
Paulo dificilmente poderia imaginar.
zações” no vocabulário religioso de Paulo e dos
D.
R. Lacey define ICorintios 8.6 como uma cristãos primitivos, as quais demonstram que eles
passagem que representa “um marco significa
estavam bem familiarizados com o uso de kyrios
tivo no desenvolvimento da cristologia do Novo
como título cristológico.
p. 203), e essa afirmação
Em 65 desses casos aproximadamente (de
está correta. Já não se pode dizer com a mesma
cisões quanto a variantes textuais em várias
segurança que Lacey esteja certo ao afirmar que
passagens resultarão em números ligeiramen
a ideia religiosa expressa em ICorintios 8.6 é uma
te diferentes), emprega-se kyrios com outros
elaboração cristológica peculiarmente paulina,
termos cristãos nas seguintes expressões: “Je
“ sua reinterpretação radical do credo de Israel”
sus Cristo, nosso Senhor” (e.g., Rm 1.4; 5.21);
pelo qual ele “pôde conduzir a igreja pela estrada
“nosso Senhor Jesus Cristo” (e.g., Rm 5.1,11;
que leva a uma fé verdadeiramente trinitária” (De
16.20; Cl 6.18); “Cristo Jesus, nosso Senhor”
Testamento” (De
L
acey,
L acey,
(e.g., Rm 6.23; ICo 15.31); “o Senhor Jesus Cris
p. 202).
A bem da verdade, na história pessoal de
to” (e.g., 2Co 13.13); “o Senhor Jesus” (e.g.,
Paulo, há 0 registro de uma “reinterpretação
Rm 14.14; ICo 11.23). Essas expressões se en
radical do credo de Israel” em resultado de sua
contram especialmente (mas nunca de modo ex
experiência cristofânica, na qual Deus escolheu
clusivo) nas introduções e conclusões das cartas
“ revelar seu Filho” ao apóstolo (Cl 1.16), e não
de Paulo, em saudações e despedidas, nas quais,
devemos minimizar as “revelações” e contribui
como já se observou, acredita-se que Paulo faz
ções de Paulo ao considerar as implicações disso.
uso das fórmulas de saudação e de invocação de
A fraseologia de ICorintios 8.6, com suas alusões
bênção utilizadas nas assembleias de adoração
a Deuteronômio 6.4 e à rechação do Shemá pe
dos cristãos primitivos. Talvez aqui estejamos
los judeus, pode muito bem ser uma amostra da
vislumbrando uma fraseologia dehberadamente
criatividade de Paulo ao se expressar e também
grandiloquente, proveniente da hturgia do perío
de sua habihdade retórica. Contudo, é possível
do cristão mais remoto. Sintaticamente, nessas expressões
que muitos outros cristãos (até mesmo cristãos judeus, cuja fé não era resultado do ministério do
“Jesus”
(acompanhado ou não de “ Cristo”) identifica o
apóstolo) tenham chegado ao “ marco significati
“Senhor” , e “Senhor” define quem é Jesus para
vo” a que De Lacey se refere, à reverência por Je
os cristãos, além da relação destes com ele. Ou
sus como kyrios, com a conotação de sua posição
seja, nessas expressões, parece básico o significa
divina, mas dentro dos limites da tradição bíblica
do original do termo kyrios com a denotação de
sobre a singularidade e a supremacia de Deus.
alguém superior, ou “mestre” , ou “amo”. Jesus é
Os indícios considerados acima sobre as acla
o “mestre” ou “amo” dos cristãos, os quais, por
mações coletivas de Jesus como kyrios dão a en
sua vez, são seus seguidores, seus súditos, e sem
tender que o conceito elevado que Paulo tinha
dúvida lhe prestarão obediência.
de Cristo representava a ideia dos cristãos com
Como designação de Jesus, kyrios aparece
quem o apóstolo se relacionava e das igrejas cuja
com maior frequência em Paulo (cerca de cem
devoção ele conhecia. E, como já foi demonstra
vezes nas cartas que estamos examinando) sem
do, devemos considerar os cristãos judeus de fala
estar acompanhado de outro título, mas apenas
1204
S enhor ii : Paulo
na forma absoluta, “ o Senhor” [ho kyrios, e.g.,
em determinados tipos de declarações e contex
Rm 14.5,8; 16.2,8,11-13; ICo 3.5; 4.4,5). É como
tos. Ele assinala que as referências a Jesus como
se “o Senhor” fosse uma forma abreviada de se
kyrios são especialmente frequentes nas passa
referir a Jesus, e Paulo não sente nenhuma neces
gens exortativas de Paulo. Kreitzer e Capes con
sidade de identificar os termos para deixar claro
firmam que as referências a Jesus como kyrios
quem é designado como “ o Senhor”. Como já se
tendem a ocorrer em certos tipos de contextos,
observou, parece que o equivalente à designação
especialmente nas passagens exortativas e esca
de Jesus apenas como ho kyrios, ou seja, "o Se
tológicas de Paulo. Entretanto, é necessário iden
nhor” , entre grupos cristãos de fala aramaica foi
tificar pelo menos três tipos de declarações em
0 termo mãryã ’, que Paulo tomou emprestado dos
que se faz referência a Jesus como kyrios, cada
que o precederam na fé. 0 fato é que em parte
uma refletindo uma maneira importante em que
alguma Paulo considera necessário justificar ou
Paulo e os irmãos na fé se relacionam com Cristo
explicar essa maneira de se referir a Cristo, dando
como Senhor. 0 uso paulino não é inflexível, mas
a entender que se tratava de uma prática já bem
podemos identificar a tendência de se referir mais
estabelecida entre os cristãos de sua época.
vezes a Jesus como kyrios nesses contextos.
A exemplo do que ocorre nas construções
3.4.1
Contextos parenéticos. Sem dúvida, é o
mais completas, devemos ver a conotação básica
caso quando Jesus é chamado kyrios nas passa
de “ Senhor” ou “Mestre” na forma absoluta ho
gens em que Paulo trata de questões do comporta
kyrios, utihzada em referência a Jesus. Ou seja,
mento cristão. Podemos tomar Romanos 14.1-12
Jesus é aquele que os cristãos devem conside
como exemplo. Nessa passagem, Paulo aconse
rar um ser supremo, a quem devem obediência
lha os crentes que divergem em questões de ali
e a quem veem como alguém que Deus desig
mento e do calendário religioso a não julgarem
nou para ser o agente único da redenção e do
duramente uns aos outros. Quer comam, quer
juízo. Por meio de sua morte e ressurreição, agora
se abstenham de comer, quer considerem um
Jesus recebeu autoridade para exercer senhorio
dia especial, quer considerem iguais todos os
(Rm 14.9, kyrieuõ), que agora os cristãos, por li
dias (Rm 14.5-8), Paulo incentiva-os a crer que
vre vontade, reconhecem ao chamá-lo “ Senhor”.
a motivação que têm em comum é fazer “para o
Contudo, é bom lembrar que Paulo e outros
Senhor”. Ele então define a existência cristã em
cristãos empregaram o termo kyrios algumas vezes
geral como viver e morrer “para o Senhor” , a
em referência a Jesus com uma conotação mais
quem pertencera (Rm 14.9).
específica, porém de significado bem abrangente.
Para
citar
outra
passagem,
em
1Corín
Como já se observou, em algumas passagens pau
tios 6.13— 7.40 (em que Paulo trata de várias
linas o termo kyrios é aplicado a Cristo para asso
questões ligadas às relações sexuais), a principal
ciá-lo diretamente com Deus, até mesmo deixando
maneira de o apóstolo se referir a Jesus é como
implícito que ele partilha do nome divino. É possí
“o Senhor”. Proibindo relações com prostitutas,
vel que nem todas as vezes que se referiu a Jesus
Paulo proclama que o corpo do cristão é “para o
por meio de expressões como “o [nosso] Senhor
Senhor” (ICo 6.13). É do “ Senhor” a ordem, que
Jesus Cristo” ou mesmo com o termo “Senhor” o
ele pode ou não citar (ICo 7.10-12,15), quando
apóstolo estivesse pensando no sentido mais pro
responde às perguntas que lhe foram enviadas de
fundo e exaltado de kyrios. Mas é prudente inferir
Corinto acerca de pessoas casadas e não casadas
que um vestígio da conotação mais exaltada estava
(quanto a referências sobre os mandamentos do
presente nessas ocasiões. Ou seja, embora a ênfase
“ Senhor” , v. ICo 9.14; 14.37.) Ahás, aqui e em
do termo variasse de uma ocasião para outra, é
outras passagens Jesus, “ o Senhor”, define a esfe
provável que as várias conotações ou ênfases de
ra da existência cristã. Os cristãos são chamados
kyrios afetassem umas às outras no uso do termo
“pelo Senhor” (ICo 7.22); os solteiros têm menos
por parte de Paulo e de outros cristãos.
distrações, por isso conseguem se dedicar mais
3.4
Contextos. Em seu estudo sobre os títu “ao Senhor” (ICo 7.32-35); a viúva pode tornar
los cristológicos de Paulo, W. Kramer destaca o
a casar-se somente “ no Senhor” (ICo 7.39, i.e.,
fato de que títulos distintos tendem a ser usados
dentro da comunidade cristã).
1205
iENHOR II: KAULO
Em Romanos 16.2-20, Paulo emprega repeti
referência à esperança na volta iminente de Cris
das vezes a expressão “no Senhor” ao se referir
to. Como demonstra ICorintios 15.23, com sua
a pessoas no contexto da comunidade cristã e do
referência à “vinda” escatológica de “ Cristo” ,
serviço a Cristo (Rm 16.2,8,11-13). Comparem-
existe certa variação nos termos que Paulo uti
se essas recomendações com sua crítica a certos
liza em referências escatológicas, bem como em
perturbadores que “não servem a Cristo, nosso
outros tipos de declarações. Mas em geral sua
Senhor” (Rm 16.18). A expressão “a obra do Se
tendência era usar o título “Senhor” em passa
nhor” talvez seja para ele uma forma de se referir
gens que têm em vista a manifestação e a vitória
ao envolvimento cristão na promoção do evange
escatológicas de Jesus (v.
e s c a t o l o g ia ) .
lho (ICo 15.58; 16.10). E Paulo diz que suas an
Às passagens citadas aqui, devemos acrescen
danças, motivadas por seu ministério, dependiam
tar as referências anteriormente mencionadas,
da vontade do “ Senhor” (ICo 4.19; 16.7).
em que Paulo se apropria do conceito/expressão
Em ITessalonicenses 1.6, Paulo cumprimenta
veterotestamentário “dia do Senhor” para des
os tessalonicenses por terem se tornado “nossos
crever a aparição escatológica de Jesus, às vezes
imitadores e do Senhor”, ao obedecer ao evange
modificando a expressão do
lho, apesar das aflições. Em ITessalonicenses 4.1-
de fórmulas como “Senhor Jesus Cristo”. Ahás,
12, passagem em que Paulo exorta os crentes a
é provável que a expressão veterotestamentária
at
mediante o uso
observar as instruções éticas que haviam recebi
“dia do Senhor” e a esperança que ela veio a re
do, ele usa o título “ o Senhor Jesus” (ITs 4.1,2),
presentar na tradição judaica antiga tenham in
ou simplesmente “ Senhor” (ITs 4.6).
fluenciado a tendência paulina de usar “Senhor”
Em suma, podemos dizer que esses exemplos
quando menciona a volta de Jesus. E, levando em
mostram que Paulo tendia a se referir a Jesus
conta a familiaridade de Paulo com o
como “ Senhor” em contextos em que ele instruía
é provável que devamos ver as referências do
suas igrejas na obediência cristã e, de maneira
apóstolo ao “dia do Senhor [Jesus]” como indica
mais geral, ao se referir à vida e relacionamentos
ção de que, para ele, Jesus estava associado com
cristãos e ao serviço envolvido na propagação da
Deus e agiria no papel escatológico de Deus.
at,
também
mensagem do evangelho. Na condição de kyrios
Assim, nessas declarações escatológicas, a
de seus seguidores, Jesus reivindica a obediên
menção a Jesus como kyrios tinha a conotação de
cia deles e define a esfera na qual devem dedicar
algo que ia além do sentído básico de “mestre”,
seus esforços.
“amo” ou “ senhor”. Nessas declarações, o “ Se
3.4.2
Contextos escatológicos. É possível iden nhor” Jesus está revestido de atributos e funções
tificar como escatológico um segundo tipo de
de Javé. Sua aparição escatológica implica julgar
contexto e de declaração em que Paulo tende a
todas as coisas e trazer vitória divina sobre todo
chamar Jesus de kyrios. Examinemos, por exem
o mal. Como demonstrado por Kreitzer, alguns
plo, as várias referências ao retorno escatológico
escritos judaicos pré-cristãos mostram que já se
de Jesus em ITessalonicenses, em que se usa o ter
havia desenvolvido a noção de um personagem
mo kyrios, quer isoladamente (quatro vezes), quer
messiânico agindo em nome de Deus com o intui
com identificadores (“o Senhor”, ITs 4.15-17; “dia
to de operar a redenção escatológica. Nisso existe
do Senhor” , ITs 5.2; “nosso Senhor Jesus Cristo” ,
precedente para que Paulo mencione o fato de Je
ITs 5.23; “nosso Senhor Jesus”, ITs 2.19; 3.13).
sus desempenhar o papel que originariamente era
Ainda outro exemplo desse emprego é 1Co
de Deus. Contudo, é significativo que nos escritos
ríntios 1.7,8, que descreve os coríntios como
de Paulo e em outras passagens do
pessoas que aguardavam a “revelação” e o “Dia”
apenas atue em lugar de Deus nas projeções da
nt
Jesus não
de “ nosso Senhor Jesus Cristo”. E em ICorín-
esperança escatológica, mas também seja men
tios 4.1-5 Paulo menciona a vinda escatológica
cionado como o “ Senhor” cujo “dia” de triunfo
do “ Senhor” , o qual fará o julgamento definiti
escatológico é aguardado com expectativa. Essa
vo de Paulo e de outros ministros do evangelho
associação entre Jesus e Deus — na ação esca
(ICo 4.4,5). Deve se interpretar a curta frase “ 0
tológica e no título — encontra paralelos no
Senhor está perto” (Fp 4.5) como uma provável
onde, no entanto, parece comparativamente mais
1206
nt
,
Senhor íi : Paulo
pronunciada e sistemática do que nas referências
de Jesus como kyríos nas assembleias cristãs pri
judaicas pré-cristãs a agentes importantes da vi
mitivas, a respeito da qual já vimos indícios. Essa
tória escatológica de Deus.
expressão e as referências ao “poder” do Senhor
3.4.3
Contextos litúrgicos. No que diz respeito e ao seu “dia” escatológico mostram que o termo
ao emprego paulino do termo kyrios para desig
kyríos é aqui aplicado a Jesus com uma conotação
nar Jesus, 0 terceiro tipo de passagem e contexto
de atributos e funções transcendentes e semelhan
que devemos destacar tem ligação com a vida
tes aos que são associados a Deus.
de adoração dos mais antigos grupos cristãos. Já
Assim, tanto o emprego de kyríos para designar
mencionamos a identificação de passagens pau
Jesus quanto a conotação transcendente do título
linas que são indícios de fórmulas e práticas an
parecem típicos das passagens paulinas em que se
tigas de aclamação que, nas reuniões cristãs de
faz referência direta às reuniões crístãs de adoração
adoração, eram usadas como confissões litúrgicas
ou nas quais as expressões presentes no contexto
(provavelmente coletivas) de Jesus como kyrios.
nos permitem inferir tais reuniões. Como último
Também assinalamos que em geral se acredita
exemplo, podemos examinar ICorintios 11.17-
que as introduções e conclusões das cartas de
23. A refeição sagrada da reunião cristã é “a ceia
Paulo, com suas grandiloqüentes referências a
do Senhor” [kyriakon deipnon, ICo 11.20; cf. a
“o [ou nosso] kyrios Jesus Cristo” (ou “Cristo Je
“mesa do Senhor”, ICo 10.21; v.
sus, nosso kyrios"), em declarações de saudação
De modo sistemático, a passagem menciona Jesus
c e ia d o
Senhor).
e despedida, igualmente ecoam o vocabulário da
como kyríos (ICo 11.23,26,27,32). Provavelmente,
adoração cristã primitiva. Aqui, a ideia que se
o contexto da adoração e a alusão à aparição es
deve reiterar é que todos esses usos de kyrios têm
catológica (“até que ele venha”) é que exphcam a
origem, ao mesmo tempo, no ambiente das reu
expressão “a morte do Senhor” (ICo 11.26), um
niões cristãs de adoração e comprovam que esse
contraste marcante com a tendência de Paulo de
ambiente foi um dos mais antigos e importantes
usar “ Cristo” quando se refere à morte de Jesus (v.
contextos e fontes de aplicação de kyrios a Cristo.
C r is t o ,
Em mais uma ilustração, podemos examinar
m o r t e de) .
Temos então três tipos principais de contex
ICorintios 5.1-5, que trata do homem culpado de
tos pauhnos em que o apóstolo costuma empre
pomeia ( “imorahdade sexual”) “com a mulher de
gar kyríos para designar Jesus, refletindo três
seu pai”. Paulo exige que, no ambiente da igreja
situações da igreja primitiva em que Jesus era
reunida, haja ação disciplinadora, e estamos par
contemplado com esse título. Nas declarações e
ticularmente interessados em observar a maneira
passagens exortativas de Paulo, o kyríos Jesus é
em que ele descreve a reunião cristã. Provavel
0 “mestre” cujo ensino e exemplo exercem auto
mente, devemos pontuar ICorintios 5.3-5 com
ridade sobre a conduta cristã. Nas referências às
um ponto final em ICorintios 5.3, interpretando a
expectativas escatológicas, parece que a designa
expressão “em nome do Senhor Jesus” (ICo 5.4)
ção de Jesus como kyríos reflete a convicção de
como referência ã assembleia cristã. Assim, deve
que Jesus foi designado kyríos no papel escatoló
se ler ICorintios 5.4,5 da seguinte forma: “ Quan
gico de Deus. Por último, nas referências paulinas
do estiverdes reunidos em nome do Senhor Jesus,
às reuniões de adoração do cristianismo primiti
eu também presente em espírito, com o poder de
vo e em seu vocabulário de influência litúrgica,
nosso Senhor Jesus deveis entregar esse homem a
kyríos designa Jesus como aquele ser transcen
Satanás para a destruição de sua carne, para que
dente e exaltado que recebeu o “ nome” divino e
seu espírito seja salvo no dia do Senhor”.
foi incorporado à vida devocional e litúrgica do
Embora a ocasião dessa assembleia em particu
cristianismo primitivo.
lar possa ter sido incomum, os termos que Paulo
Não se devem separar inteiramente esses três
utiliza para descrever a reunião cristã são prova
contextos. Em cada um desses tipos de passa
velmente usuais, e devemos ressaltar aqui a ideia
gens, podemos distinguir ênfases variáveis do
de que Jesus é repetidamente chamado kyrios. Os
termo kyríos em sua aplicação a Cristo, mas as
coríntios reúnem-se “em nome do Senhor Jesus”,
conotações provavelmente também estavam as
uma provável alusão a uma invocação e aclamação
sociadas umas às outras no pensamento rehgioso
1207
J tlM M U K II. T A U L U
de Paulo e dos cristãos primitivos em geral. Em alguns casos, a associação é explícita, como em
Ver também S a n t o ; F il h o
Filipenses 2.9-11, em que a aclamação futura uni versal, Kyrios lêsous Christos, ecoa na aclamação
D Pc: nos;
de
C
D
r is t o ;
c r is t o l o g i a ;
D
eus;
E s p í r it o
eus.
e x a l t a ç ã o e e n t r o n i z a ç ã o ; im p e r a d o r e s r o m a
Salvad o r.
cristã de Jesus no ambiente de adoração e por sua vez antevê a aclamação futura universal. Ou
Bibliografia. B o u s s e t ,
podemos citar, mais uma vez, ICorintios 11.26,
Abingdon, 1913. ■ ______ . ______ . Nashvüle:
W. Kyrios Christos. Nashvüle;
em que a celebração litúrgica que realizamos
A bin gd on , 1970. • Burton, E. D. A criticai and
hoje da morte do kyrios Jesus na refeição sagra
exegetical commentary on the Epistle to the Gala
da está ligada a sua aparição escatológica. Nas
tians. Edinburgh: T & T C lark, 1921. p. 392-417.
referências pauhnas ã adoração cristã primitiva,
(;cc.) ■ Capes, D. B. Old Testament Yahweh texts
Jesus é o kyrios cuja autoridade sobre a igreja é,
in Paul’s christology. T übingen: J. C. B. Mohr,
no momento presente, real e inseparável de seu
1992. { wunt, 2147.) • Casey, P. M. From Jewish
domínio futuro sobre todas as coisas, e se tornará
prophet to gentile God. Louisville: W estm inster
manifesto no “ dia do Senhor”.
John Knox, 1991. ■ Cerfaux, L. Kyrios dans les citation s p au lin ien n es de I’A n cie n Testam ent.
4. Resumo
In: Akam, N. R ecueil L u cien C erfaux: études
Em qualquer análise da ideia paulina a respei
d ’ exégèse et d ’histoire religieu se de M onseig-
to de Cristo, o termo kyrios deve ocupar o lugar
neu r C erfau x. G em bloux: D uculot, 1954. v. 1.
central. Em Paulo, ele tem várias funções e é enri
• Cullmann, O. The christology o f the New Tes
quecido por conotações diversas. O termo expres
tament.
Ph iladelphia:
sa a relação entre os cristãos e Jesus como seus
______ .
_______.
1957.
W estm inster,
Philadelphia:
•
Westminster,
súditos e seguidores de seu Mestre, como se vê
1963. •
na expressão “nosso Senhor Jesus Cristo”. Em Fi
language. In:
lipenses 3.8, Paulo fala desse relacionamento em
Minneapohs: Fortress, 1991. p. 113-36. •
termos bem pessoais, quando menciona “ Cristo
cey,
Jesus, meu Senhor”. Por Jesus ser o kyrios, seu
R
exemplo e suas ordens são, nas cartas de Paulo,
christology presented to Donald Guthrie. Dow
D
N. A. Sources of Christological
,
Ju e l, D . H .,
org. Jesus the Christ. D
e
L
a
“ One Lord” in Pauline christology. In:
D . R.
owdon,
ahl
H. H., org. Christ the Lord: studies in
autoridades inquestionáveis sobre o comporta
ners Grove: InterVarsity, 1982. p. 191-203.
mento cristão. Paulo reflete a aclamação de Jesus
ter,
W. &
Q
G.
uell,
F oers
ktA. tdnt. [SL: s.n.,
K Ú p io ç
como kyrios no ambiente da adoração, que ele
s.d.]
entende ser o padrão e a prefiguração do reconhe
tic background of the New Testament Kyrios-ti-
cimento universal de Jesus como Senhor, quan
tle. In :______ . A wandering Aramean: collected
do este vier na glória escatológica. No entanto, a
Aramaic essays. Missoula: Scholars, 1979. p.
V.
3, p. 1039-98. •
F it z m y e r , J.
A. The Semi
glória divina de Jesus, o Senhor, já foi revelada a
115-42. {sBLMs, 25.) ■ H u r t a d o ,
Paulo. Por conseguinte, Paulo vê Jesus de modo
Christ: devotion to Jesus in earhest Christianity.
L.
W. Lord Jesus
inacreditavelmente exaltado, o que lhe permite
Grand Rapids: Eerdmans, 2003. • ______ . New
aplicar a Jesus passagens do
Testament christology: a critique of Bousset’s
at
que dizem res
peito a Javé e fazer a representação do kyrios Je
influence, ts,
sus como o agente de toda a criação e redenção
One God, One Lord: early Christian devotion
(ICo 8.6). Resumindo, em pelo menos alguns ca
and ancient Jewish monotheism. Philadelphia:
v
.
40, p. 306-17, 1979. • ______ .
sos, a aphcação pauhna de kyrios a Jesus denota
Fortress, 1988. ■
a convicção de que Jesus passou a participar dos
o f God. London:
scm
,
atributos e da honra do “nome” de Deus (com
______ . London:
scm
,
tudo o que isso representava no
L. J. Jesus and God in Paul’s eschatology. Sheffield:
at
e na antiga
K
ram er,
W. Christ, Lord, Son
1963.
(sbt,
50.) ■ ______ .
1966. { s b t , 50.)
■ K
r e it z e r ,
tradição judaica). Ele se tornou portador da gló
js o t,
ria de Deus em tal plenitude e singularidade que,
glory christology: tradition and rhetoric. Leiden;
na honra e na reverência devidas a Jesus, só era
E.
possível compará-lo e associá-lo a Deus, “o Pai”.
1208
1987. {jsNTSup, 19.) ■
N ew m an, C. C.
Paul’s
J. Brin, 1992. {NovTSap, 69.) L. W.
H
u rtado
S enhor iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocaupse
S enhor
iii:
G
A
e r a is ,
A
tos,
H
ebreus,
C artas
Atos e passando depois para os hvros de Hebreus, Tiago e Judas, as cartas petrinas (v.
p o c a l ip s e
Qualquer análise do
n t,
em particular das cartas
ra
C a rta
de; P e d ro ,
de Paulo, mostrará a importância do termo kyrios
joaninas (v.
para a igreja primitiva (v.
c a lip s e , L i v r o d e ) .
Sen h or
I). A fé da igreja
S egu n da C a rta
João, c a rta s d e )
primitiva envolvia confessar que Jesus é o kyrios
1. Atos dos Apóstolos
ressuscitado e exaltado (ICo 9.1; 12.3; Rm 10.9;
2. Hebreus
P e d r o , P r im e i d e ),
Fp 2.9-11). Essa confissão baseava-se em grande
3. Tiago e Judas
parte no que aconteceu com Jesus depois de sua
4. 1 e 2Pedro
morte (v.
5. As cartas joaninas e Apocahpse
C r is t o , m o r te d e ),
como se vê pelo fato
de o termo kyrios, quando encontrado em textos
as cartas
e Apocalipse (v.
Apo
6. Resumo
de diálogos nos Evangelhos como forma de tra tamento a Jesus, quase sempre ter o sentido de
1. Atos dos Apóstolos
“mestre” ou de “prezado senhor”, não de “ser di
0 termo kyrios aparece 104 vezes em Atos, e
vino” (mas
em pelo menos 18 dessas ocorrências se refere
V.
Mc 12.25-37;
W ith e r in g to n ,
1990).
À semelhança de seu equivalente aramaico
a Deus, em 47 a Jesus, em 4 a mestres, proprie
mãrêh, normalmente kyrios transmitia a ideia de
tários ou governantes, e as referências restantes
um ser humano superior a outro ser humano ou a
dizem respeito a Jesus ou a Deus, embora nesses
um grupo de pessoas, ou ainda que estava acima
casos não esteja claro de quem se está falando
deles. O termo kyrios diz algo acerca da posição
(cf.
da pessoa na relação que ela tem com coisas ou
uso do termo, até quando aparece com o artigo,
com outras pessoas. Isso fica demonstrado no
para se referir a um governante secular (At 25.26,
fato de que, muitas vezes, em contextos sociais,
que é uma referência a Nero) ou ao proprietá
kyrios forma par com o termo doulos (“escravo” ,
rio ou dono de um escravo (At 16.16,19), mas
“ servo”). Aquele é senhor deste. Não é de surpre
seu interesse não está aí. Em alguns textos, não
ender que os primeiros cristãos tenham se apro
há dúvida de que kyrios se refere a Jesus, por
priado dessa terminologia para se referir ao Jesus
que o termo aparece ao lado do nome “Jesus”
K ee,
p. 19). Lucas está familiarizado com o
ressuscitado. No mundo greco-romano, utilizava-
(At 1.21; 4.33; 8.16; 15.11; 16.31; 19.5,13,17;
se o termo em referência a seres exaltados, entre
20.24,35; 21.13) ou da forma combinada “Jesus
os quais deuses e semideuses (cf. ICo 8.5), e para
Cristo” (At 11.17; 15.26; 28.31). Em outros casos,
os cristãos primitivos seu relacionamento com o
0 contexto deixa evidente se está falando de Jesus
Jesus ressuscitado era semelhante ao de um doa-
(e.g., At 9.5,10,11). Em alguns casos, em citações
los com um kyrios (cf. de Rm 1.1 a 2Pe 1.1). Ten
do AT que trazem kyrios combinado com theos,
do visto esses antecedentes, estamos preparados
é evidente que a passagem está se referindo a
para examinar o uso do termo kyrios fora dos
Deus, não a Jesus (At 2.39; 3.22). Seria possí
Evangelhos e dos escritos paulinos.
vel solucionar parte da confusão se tívéssemos
Fora dos Evangelhos e dos textos paulinos,
certeza de que Lucas não recorre ao conceito do
0 termo kyrios é usado de várias maneiras. Em
Filho de Deus preexistente, mas textos como Atos
alguns casos, parece ter conotação funcional sim
2.25 talvez mostrem que esse conceito não lhe
ples, denotando um papel que Jesus ou Deus de
era estranho. A notável citação de Salmos 110.1
sempenham, mas em outros contextos parecem
em Atos 2.34, a qual faz referência a Deus e a
mostrar algo sobre quem Jesus é, a saber, alguém
Jesus como kyrios, mostra que Lucas estava pre
que pode estar ao lado do Criador no contraste
parado para usar o termo com grande flexibilida
Criador/criatura. Esse tipo de distinção, porém,
de. Seria errado, porém, concluir com base nesse
apresenta algumas limitações. Uma recapitulação
texto que Lucas via Jesus apenas como o Senhor
das passagens relacionadas mostra que os cris
dos crentes, pois em Atos 10.36 Jesus é chama
tãos primitivos usavam kyrios ora com o sentido
do “Senhor de todos” [pantõn kyrios). Não foi só
de Cristo, ora com o sentído de Deus. Analisa
o uso do termo kyrios para designar Jesus que
remos as evidências, começando com o hvro de
provocou 0 rompimento entre o cristianismo e
1209
3ENHÜR i ii : m i o s , ntBREUS, UARIAS U tRA IS, APOCALIPSE
O
antigo
ju d a ís m o .
Os cristãos também quiseram
se apropriar do termo e dos textos do
de evitar anacronismos, mas também demons
em que
tra que ele não deseja quebrar a lógica interna
kyrios tinha o sentido mais exaltado de Senhor di
da narratíva, ruptura que levaria os personagens
vino (referindo-se a Javé) e aplicar a Jesus esses
a dizer mais do que deveriam em determinado
textos e os conceitos associados (cf.
at
1991).
momento. A teoria de que Lucas é adocianista
Em gerai, quando uma expressão ou conceito do
baseia-se em textos como Atos 2.36: “Esse mes
como “ dia do Senhor” (At 2.20), “anjo do Se
mo Jesus, a quem crucificastes. Deus o fez kyrios
AT,
Dunn,
nhor” (At 5.19; 12.11,23), “o temor do Senhor”
e Cristo”. O problema é que aqui, como em outras
(At 9.31) ou “a mão do Senhor” (At 13.11), apare
passagens de Atos, Lucas emprega a terminologia
ce no texto, é provável que nesses textos “Senhor”
cristológica de forma que se ajuste à narrativa.
tenha o sentido de “Deus”. A expressão “a palavra
Do ponto de vista de Lucas, em nenhum sentído
do Senhor”, especialmente quando interpretada
pleno Jesus assumiu os papéis de Senhor e Mes
como genitivo objetivo (em português, adjunto
sias sobre todos, senão depois da ressurreição e
adnominal: a palavra acerca do Senhor), parece
da ascensão. Não é que Jesus se tornou alguém
se referir a Jesus (At 8.25; 13.44,49; 15.35,36;
diferente, mas que entrou em uma nova etapa de
19.20), assim como a expressão “ o caminho do
sua carreira ou assumiu novos papéis depois da
Senhor” (At 18.25). Além disso, é provável que a
ascensão (cf.
expressão “o nome do Senhor” (At 18.25) se refi
exaltado Jesus poderia assumir as tarefas de Se
ra a Jesus, especialmente quando se têm em vista
nhor sobre todos e de Messias universal.
textos mais claros, como Atos 19.5,13,17.
Dunn,
1980). Só na condição de ser
Lucas interessa-se pela história de Jesus desde
Uma das chaves para entender o uso de kyrios
seu nascimento até o momento em que, dos céus,
por Lucas no livro de Atos é reconhecer a estru
assume o papel de Senhor e passa a exercê-lo,
tura narrativa (que inclui um componente his
embora um texto como Atos 2,25 talvez seja um
tórico), na qual ele considera todas as questões
sinal de que Lucas conhecia o conceito do Senhor
cristológicas (sobre teologia em estruturas narra
preexistente (cf. At 2.25;
tivas,
Narrrative, 1994). Devem se
acerca de Jesus e a evolução dessa narratíva que
comparar as referências a kyrios em Atos com o
influem no modo em que a terminologia é em
material do Evangelho de Lucas para apurar as di
pregada, não a preocupação em solucionar o de
ferenças, mas 0 que Lucas diz a respeito de Jesus
bate ocorrido mais tarde sobre as ideias opostas
V. W i t h e r i n g t o n ,
C r a d d o c k ).
É a narrativa
depende do momento da carreira de Jesus que
de cristologia funcional e cristologia ontológica.
Lucas está analisando. Deve se indagar se Lucas
Além do mais, distínções sutis entre ser e fazer
está se referindo a Jesus durante seu ministério
teriam parecido impróprias para Lucas. 0 Senhor
histórico ou ao que ele acredita ser válido afirmar
Jesus é capaz de fazer o que faz por ser quem ele
sobre Jesus após a ressurreição e a ascensão.
é. Na mente de Lucas, os papéis que ele assume
Por exemplo,
é amplamente reconhecido
são apropriados ao Jesus exaltado. “Senhor” não
que, em seu Evangelho, Lucas emprega o termo
é visto como simples título honorífico de Jesus,
kyrios na estrutura narrativa e nos comentários
mas como descrição de sua condição e atividade
editoriais de maneira diferente dos demais Si
após a ressurreição.
nóticos, enquanto, ao mesmo tempo, nenhum
0 termo kyrios é o título cristológico mais usa
personagem na narrativa do Evangelho chama
do em toda a obra de Lucas-Atos, sendo emprega
Jesus de kyriosi, a menos que esteja sob inspi
do quase duas vezes mais que o termo “ Cristo”.
ração (Lc 1.43,76), tenha a parficipação de um
Das 717 ocorrências de kyrios no
anjo (Lc 2.11) ou envolva Jesus referindo-se indi
ria encontra-se ou em Lucas-Atos (210 vezes) ou
retamente a si próprio (Lc 19.31,34; cf.
nas cartas pauhnas (275 vezes)
F it z m y e r ,
n t,
a vasta maio
(B ie t e n h a r d , v .
2,
1981). Entretanto, assim que a narratíva chega
p. 513). Esse destaque está em conformidade com
ã ressurreição, vários seres humanos passam a
a ênfase de Lucas ã soberania de Deus sobre a
usar kyrios em referência a Jesus (cf. Lc 24.34;
história e na história ã medida que ela expres
At 10.36-38;
Em parte, isso pode ser ex
sa o plano divino da salvação e à medida que
plicado como um exemplo do desejo de Lucas
esse plano começa a se concretizar por meio de
M o u le ).
1210
S enhor iii : A tos , H ebreus, C artas G erais , A pocalipse
Jesus (cf. Squires). Jesus é aquele que expressa
apostólicos de Atos 15, encontramos apenas um
e, em certo semido, executa o plano da salvação
texto em que kyrios parece claramente se referir
por meio de seus atos no tempo e no espaço e
a Deus, não a Jesus: no discurso apologético de
que, por meio de seus atos como Senhor exalta
Paulo perante o Areópago (At 17.24). Ou seja, é
do, envia o Espírito Santo para agir na terra em
notável a ausência de referências a Deus como
seu nome e em seu lugar. É evidente que, para
kyrios em quase metade de Atos (a saber, a parte
Lucas, a conotação básica do termo kyrios é a de
que inicia em At 16). Nessa metade de Atos, Lu
alguém que exerce domínio sobre o mundo e, em
cas pode ter se baseado no próprio conhecimento
particular, sobre a vida das pessoas e os aconte
e em relatos de viagens.
cimentos em que estão envolvidas. É importante
Em algumas passagens, é possível argumen
não subestimar o significado da transferência do
tar sobre quem é o referente: Deus ou Jesus. Por
termo kyrios de Javé para Cristo em vários pon
exemplo, em Atos 2.47 “ o Senhor” é provavel
tos de Atos. J. A. Fitzmyer declara: “ Quando, em
mente Deus (cf. At 2.34), mas em um texto como
seus escritos, Lucas usa kurios para designar tan
Atos 21.14 kyrios pode se referir a Jesus ou a
to Javé quanto Jesus, ele emprega o título com o
Deus (cf. At 21.13). Em Atos 12.11,17 (cf. At 12.5)
significado que já estava sendo usado na comu
parece que “ Senhor” se refere a Deus, o que fica
nidade cristã primitiva, a qual em algum sentido
mais claro em Atos 12.23. Mas em Atos 7.60,13.2
acreditava que Jesus estava no mesmo plano de
e 16.14,15 parece que as orações são dirigidas a
Javé” (Fitzmyer, 1981, p. 203). Da mesma forma
Jesus, que é ele quem é adorado e em quem se
que nas cartas paulinas. Atos mostra que a con
crê (cf.
fissão básica da igreja primitíva é que Jesus é o
perturba Lucas, porque, em seu modo de ver, a
Senhor ressuscitado (cf. At 10.46; 11.16; 16.31;
terminologia é de igual modo apropriada para de
Kee,
p. 20). Esse tipo de ambiguidade não
20.21). É no Jesus ressuscitado e exaltado que as
signar Deus ou Jesus, especialmente porque ele
pessoas são convidadas a crer, e a ele são tam
via Jesus como objeto legítimo de adoração e al
bém convidadas a se unir (At 5.14; 9.35; 11.17). O
guém a quem podemos fazem petições.
Senhor ressuscitado confrontou Saulo na estrada de Damasco (At 9.10-17; 18.9), e a ele os crentes
2. Hebreus
devem se manter fiéis (At 20.19). Foi com o Se
Das dezesseis referências a kyrios em Hebreus,
nhor Jesus que os primeiros discípulos andaram
apenas três dizem respeito a Jesus (Hb 2.3; 7.14;
(At 1.21), cujo ensino Paulo pôde citar (At 20.35),
13.20). As restantes apontam para Deus. Com
e é o Senhor quem comissiona as pessoas para o
uma única exceção (Hb 8.2), as treze referências
ministério (At 20.24). Nesses textos, parece que
a Deus encontram-se em citações ou paráfrases de
o nome Jesus é posto ao lado de kyrios para não
textos do AT que são importantes para a argumen
deixar dúvidas sobre a identidade desse Senhor.
tação do autor: Salmos 102.25 (cit. em Hb 1.10);
A continuação dessa identidade nos períodos
Salmos 110.4 (cit. em Hb 7.21); Jeremias 31.31-34
anterior e posterior ã ressurreição torna possível
(cit. em Hb 8.8-11); Jeremias 31.33 (cit. em
para Lucas referir-se à atividade e ao ensino de
Hb 10.16); Provérbios 3.11,12 (cit. em Hb 12.5,6);
Jesus na terra pelo emprego do termo kyrios, em
Salmos 118.6 (cit. em Hb 13.6). É surpreendente
bora ele saiba que Jesus não assumiu plena ou
o fato de o autor não enxergar em nenhum dos
verdadeiramente os papéis de Senhor exaltado
textos do
senão depois da ressurreição.
visto que o prólogo (Hb 1.1-4) fala do papel de
Em outros textos em que kyrios designa o
at
uma alusão a Jesus como Senhor,
sempenhado pelo Filho preexistente nos atos da
Senhor Deus, não Jesus (At 2.39; 3.20,22; 4.26;
Criação (cf.
7.31; 10.4,33), essas referências são encontradas
ser explicado em parte pelo fato de o autor não se
ou nos primeiros capítulos de Atos, ou nos lábios
permitir uma interpretação midráshica para atua
de judeus ou prosélitos do judaísmo. À medida
lizar 0
AT,
que se avança em Atos e que mais cristãos falam
(cf. G.
H u g h e s ).
por si mesmos, o termo “ Senhor” quase sempre
vontade para usar o termo “ Senhor” para o Je
designa Jesus. Depois do concího e do decreto
sus terreno que anunciou salvação aos primeiros
1211
W it h e r in g t o n ,
Sage, 1994). Isso pode
enquanto o emprega tipologicamente O autor de Hebreus se sente à
iENHOR i i i : a t o s , HEBREUS, 1_ARTAS LiERAIS, APOCAUPSE
seguidores (Hb 2.3), e ainda mais revelador é o
Devem os enfermos ser ungidos no nome do Se
fato de que, ao mencionar a linhagem de Jesus,
nhor Jesus, para que ele os cure, ou seria essa
ele usa a expressão “ nosso Senhor”. Não há nada
também uma referência ao Senhor Deus, que res
aqui que insinue uma teologia adocianista, mas
ponde às orações e às várias formas de petição,
está claro que não existe nenhum destaque para
como se vê em Tiago 1.5-7 e 5.4? A última op
os papéis cósmicos de Cristo como Senhor do
ção parece a mais provável. Em Tiago, portanto,
Universo. 0 autor concentra-se no fato de que Je
o termo “Senhor” refere-se normalmente àquele
sus é “nosso Senhor”, e em Hebreus, onde quer
que é e que sempre tem sido o Soberano do Uni
que “ Senhor” se refira a Jesus, o assunto são
verso e objeto de oração. As referências a Jesus
seus papéis e experiências históricos (e.g., nas
como Senhor em Tiago 1.1, 2.1 e provavelmente
cimento, proclamação, morte e ressurreição). É
5.7,8 referem-se a papéis que ele assumiu ou as
possivel que um dos motivos de o autor se sentir
sumirá após a ressurreição, pelo que é apropriado
ã vontade para empregar o termo kyrios para de
0 qualificativo encontrado em Tiago 2.1 (“nos
signar Jesus durante seu ministério terreno seja
so Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória”). Essa
que ele o vê como ser humano perfeito, sem pe
maneira de apresentar o assunto talvez considere
cado, e, desse modo, superior a todos os mortais
Jesus em sua condição de ressuscitado em glória,
(cf.
ou como alguém exahado à direita de Deus, ou
H o e k e m a ).
ambos. Parece que o escritor desse documento re 3. Tiago e Judas
flete o pensamento dos cristãos do período mais
0 uso de kyrios em Tiago é mais fácil de ana
primitivo a respeito de Jesus, mantendo até o an
lisar que em alguns hvros do
tigo fervor e a esperança de sua volta iminente.
n t.
Usa-se kyrios
em treze casos, e, com exceção de quatro, em to
No que diz respeito à ênfase, o que vimos aci
dos eles parece certo que a referência é a Deus,
ma contrasta de forma marcante com o uso de
não a Jesus. Caso não se percebam os ecos do
kyrios em outro documento cristão judaico anti
Sermão do Monte em vários trechos de Tiago, as
go; Judas. Nessa carta, com a provável exceção da
referências ao Senhor Jesus Cristo em Tiago 1.1
referência ao Senhor Deus (Jd 9), cinco outras re
e 2.1 são quase os únicos indicios de que esse
ferências a kyrios parecem aplicar-se a Jesus. Tex
documento homilético é cristão (v.
tualmente, é incerto se em Judas 5 a leitura deve
W it h e r in g t o n ,
Sage, 1994). No contexto de um documento cris
ser “ Senhor” ou “Jesus”. “Jesus” ou talvez “Jo
tão, Tiago 5.7,8 provavelmente faz referência à
sué” é a leitura mais bem atestada (cf.
segunda vinda de Cristo. Quanto aos outros ca
p. 726). Em Judas 4, Jesus é chamado “nosso úni
sos de kyrios, nenhum deles reflete significados,
co Soberano [despotên] e Senhor”, Sua segunda
M e tzg e r,
percepções ou nuanças teológicos de natureza
vinda com os santos (anjos?) é mencionada em
especificamente cristã ou que não possam ser
Judas 14, e três vezes ele é chamado “ nosso Se
encontrados de modo geral na antiga literatura
nhor Jesus Cristo” (Jd 17,21,25). É ele aquele que
sapiencial judaica. Assim, é o Senhor Deus a
não apenas está vohando, mas também trará aos
quem os crentes oram (Tg 1.5-7; 5.4 — o “Senhor
crentes a dádiva da vida eterna (Jd 21). 0 texto de
Sebaote” ou “ Senhor dos exércitos” — e a quem
Judas 25 dá a entender que é por meio dele que
adoram (Tg 3.9). Tendo em vista que a expressão
o ser humano se relaciona com Deus e lhe apre
“o Senhor e Pai” (Tg 3.9) traz um único artigo de
senta seus pedidos. Por fim, os apóstolos ou en
finido, ela é, com certeza, uma referência a uma
viados do Senhor são mencionados em Judas 17,
única pessoa. É ao Senhor Deus que as pessoas se
a única referência em que o termo “Senhor” pode
submetem ou diante de quem se humilham (cf.
ser atribuído a Jesus durante seu ministério terre
Tg 4.7,10), cuja vontade determina a duração da
no (cf.
B a u c k h a m ).
vida humana (Tg 4.15). Os profetas falaram em nome do Senhor Deus (Tg 5.10), e foi o Senhor que finalmente se com
4. 1 e 2Pedro Das oito referências a kyrios em IPedro, apenas
padeceu de Jó (Tg 5.11). As referências finais
uma exemplifica o emprego não rehgioso do
ao termo “Senhor” (Tg 5.14,15) são ambíguas.
termo, designando um senhor humano (como
121 2
Senhor hi: A to s , H ebreus , C artas G erais , A pocaupse
Sara chamava Abraão, IPe 3.6), e a maioria dos
em 2Pedro 3.8-10,15 kyrios se refira a Deus (cf.
exemplos restantes envolve alusão a um texto ou
2Pe 3.12; sobre yôm Yahweh, v.
a uma citação do
1992).
a t.
Por exemplo, há várias alu
W it h e r in g t o n ,
sões ao salmo 34. Em IPedro 2.3, há uma citação
Nessa carta, as demais referências dizem
de Salmos 34.8; em IPedro 3.12, há uma citação
respeito a Cristo, pois kyrios sempre forma
de Salmos 34.15,16. E ambos são exemplos de
par com “Jesus” (2Pe 1.2), com “Jesus Cristo”
kyrios. Embora na última chação pareça claro que
(2Pe 1.8,11,14,16; 3.18) ou com sõtêr (2Pe 3.2).
o texto está falando do Senhor Deus, em IPedro
0 autor de 2Pedro gosta de unir os termos kyrios
2.3 a referência pode ser a Cristo, cuja bondade
e “ salvador” (2Pe 1.11; 2.20; 3.2,18). Em nenhu
os leitores descobriram e agora experimentam.
ma das cartas petrinas se dá maior atenção às
Um texto mais claro é IPedro 3.15, apelo para
dimensões cósmicas do senhorio de Cristo (mas
que se reconheça Cristo como o santo Senhor,
cf. IPe 3.21,22). Em vez disso, como demonstra
que talvez inclua uma alusão a Isaias 8.13. Nesse
o qualificativo “ nosso” , a atenção está dirigida
caso, a passagem oferece mais um exemplo de
para o governo e o domínio de Cristo sobre a
texto do AT usado homileticamente para afirmar
comunidade cristã e a vida de cada crente, es
uma verdade a respeito de Jesus (cf.
pecialmente em 2Pedro (mas cf. IPe 1.3). Não
D a v ie s ).
Em IPedro 1.25, tendo em vista a expres
é refletida em 2Pedro a ambiguidade que per
são paralela “palavra de Deus” em IPedro 1.23,
cebemos quando alguns dos outros documentos
kyrios parece ser uma referência a Deus. Mais
do NT empregam o termo kyrios. Em cada caso,
uma vez, um texto do
nesse caso Isaías 40.6-
fica claro quando a referência é ou não a Cristo.
8, está sendo citado. Na ação de graças introdu
Ao contrário de IPedro, o autor de 2Pedro não
tória (IPe 1.3), encontramos uma distinção clara
mostra a sutileza no uso do
entre Deus Pai e “ nosso Senhor Jesus Cristo”. O
senhorio divino.
a t,
at
para falar sobre o
texto diz que aquele que é louvado é ao mesmo tempo Deus e o Pai de Jesus. 0 que é menos
5. As cartas joaninas e Apocalipse
evidente em IPedro é se as menções ao kyrios
Tendo em vista o uso de kyrios no quarto Evange
têm alguma ligação com o sentido implícito do
lho e em Apocahpse e considerando a cristologia
relato sobre as várias etapas da carreira de Jesus,
exaltada que se vê em IJoão, chega a ser sur
embora em IPedro 1.20 (preexistência) e IPedro
presa que nas cartas joaninas não haja nenhuma
3.18-22 (sofrimento e expiação) seja possível en
referência a Deus ou a Cristo como kyrios, nem
contrar pistas que apontam nessa direção. Mas,
mesmo o uso não religioso do termo. Por isso,
quando Cristo é o tema, a atenção concentra-se
devemos voltar a atenção para Apocahpse. Em
no que ele é agora e no que se deve confessar que
Apocalipse, há 21 ocorrências de kyrios. Nesse
ele é. Quando Deus é o tema, geralmente kyrios
livro, que é um pasticho de alusões e imagens do
é introduzido, porque o autor está citando o
a t.
AT com poucas citações diretas, o uso de kyrios,
Mesmo assim, o escritor aparentemente não se
particularmente na primeira metade do hvro,
acanha em usar o
at
para descrever as qualidades
assemelha-se ao que encontramos no
at
(cf.
B la
Além de Apocahpse 7.14 (em que o vocativo
exaltadas de Cristo como Senhor celestial — ele é
c k ).
santo e bom e como tal devemos reconhecê-lo e
kyrie não passa de uma forma respeitosa de tra
ter experiências com ele
. Das catorze re
tamento que tem um sentido parecido com “se
ferências a kyrios em 2Pedro, nenhuma traz uma
nhor” , quando alguém se dirige a outrem), parece
(K r a fft)
citação clara de um texto do a t , mas 2Pedro 2.9,11
que antes de Apocahpse 11.8 todas as referências
faz parte de uma enumeração dos relatos dos juí
dizem respeito a Deus, não a Jesus. João gosta
zos divinos por dilúvio e fogo (Gn 6—8; 18— 19),
de usar a expressão “o Senhor Deus” (kyrios ho
e nesse contexto não é de surpreender que kyrios
theos; Ap 1.8; 4.8; 11.17; 15.3; 16.7; 18.8; 19.6;
se refira ao Senhor Deus. Também parece que,
21.22; 22.5,6). Em um texto como Apocahpse
quando o autor reflete acerca do dia do Senhor,
21.22, em que o termo é utihzado para fazer dis
ele imagina esse dia no contexto do yôm Yahweh
tinção entre Deus e o Cordeiro, torna-se claro que
( “dia do
a expressão não se refere a Jesus, com uma única
S en h or” ),
do
a t.
Assim, é provável que
1213
exceção. Essa expressão surge particularmente
6. Resumo
nos contextos em que oração ou louvor são apre
Em todos esses documentos, vimos a repetição de
sentados a Deus, e às vezes vem combinada com
certos padrões e uma considerável variedade no
o termo pantokratõr (“todo-poderoso” ; Ap 15.3;
uso do termo kyrios. Chama a atenção o fato de
19.6; 21.22) para denotar a magnitude da sobe
que só alguns dos textos canônicos (e.g., Atos) pa
rania de Deus.
recem refletir uma tentativa de usar o termo kyrios
A primeira referência clara a Jesus como kyrios ocorre em Apocalipse 11.8, e essa explicitação se
para expressar o sentido impUcito da narrativa que fala da carreira terrena e celestial de Jesus.
faz de duas maneiras: mediante a referência à
Também chama a atenção o fato de que, quan
crucificação e pelo emprego do pronome “ seu”
to mais um documento é influenciado pelo
ao lado de “ Senhor”. Em um texto como Apoca
por ideias judaicas, maior a probabUidade de o
hpse 14.13, não fica claro se morrer no Senhor
termo kyrios — caso apareça sozinho — se referir
significa morrer por Jesus, mas à luz de Apoca
ao Senhor Deus, não ao Senhor Jesus. Contudo,
at
e
lipse 14.12 essa interpretação é provável. Jesus é
essa é apenas uma tendência, não um padrão
duas vezes aclamado “Rei dos reis e Senhor dos
universal. Essa ausência de padrões claros e uni
senhores” (Ap 17.14; 19.16), em um contexto em
versais mostra que é bom não exagerar a ideia
que Cristo se destaca, em seu papel escatológico,
de que as comunidades judaico-cristãs desenvol
por subjugar os adversários, no final da história.
viam teologias próprias, sem interação com os
Ele é não apenas soberano sobre a igreja, mas, a
cristãos gentíhcos e suas comunidades. Em vez
favor dos fiéis, também exercerá soberania sobre
disso, deve se pensar em fecundação cruzada:
as nações do mundo. A expressão cristã primitiva
todos os cristãos judeus primitivos receberam al
mais usual “Senhor Jesus” ocorre duas vezes no
guma influência helenística, embora um escritor,
final do hvro, passagens em que se invocam a
na maior parte do tempo, reflita naturalmente sua
segunda vinda e uma bênção em nome de Cristo
origem e influências.
(Ap 22.20,21). Uma das questões mais debatidas
Todo esse material leva a considerar que ma
nesse livro é se, no início, os títulos “Senhor” e “o
neiras judaicas de pensar em Jesus e em Deus
Alfa e o Ômega” são atribuídos a Deus ou a Jesus
continuaram existindo, mesmo quando já havia
(Ap 1.8), principalmente porque a terminologia
transcorrido boa parte do século ii, e que a cris
reaparece em Apocahpse 21.6 e 22.13, e é quase
tologia exaltada que se vê em Inácio de Antioquia
certo que no último exemplo a referência é ao Se
teve precedente em documentos cristãos mais an
nhor Jesus, que retorna (v.
Entretan
tigos, que vieram a ser considerados canôtúcos,
to, nas demais passagens, a expressão “o Senhor
especialmente os pauhnos e os joaninos. Quando
Deus” , especialmente quando combinada com
se estuda esse material cuidadosamente, as velhas
c r is to lo g ia ).
“todo-poderoso”, não se refere a Jesus. A maioria
e esmeradas dicotomias entre cristologias judaicas
dos estudiosos acredita que esse também é o caso
antigas e cristologias posteriores, mais exaltadas
em Apocalipse 1.8. Entretanto, Apocahpse 1.7
e mais helenísticas, revelam-se muito simplistas,
talvez indique a conclusão oposta (cf.
especialmente tendo em vista a imensa importân
R o w la n d ) .
O motivo de mencionar essa ambiguidade é que
cia das formas sapienciais de pensar a respeito de
João, especialmente em um contexto doxológico,
Jesus, observadas a partir do início do cristianismo
está desejoso de imputar a Jesus aquilo que ele
primitivo (cf.
atribui ao Senhor Deus, porque para João ambos
W it h e r in g t o n ,
Ver também
Sage, 1994).
C r is to ; c r is t o lo g ia ; F ilh o d e D eu s.
estão no mesmo nível, o que não acontece com os anjos (cf. Ap 19.10). Jesus, à semelhança do
B ibliografia. B a u c k h a m , R .
Espírito de Deus, faz parte da visão de João sobre
Word, 1983.
aquilo que é a Divindade, sem ao mesmo tempo
[S.l.: s.n., s.d.] v. 2, p. 510-20. ■
negar a unidade de Deus. Em tais circunstâncias,
Christological use of the Old Testament in the
é compreensível que nesse livro algumas das re
New Testament,
ferências a kyrios se refiram ao Senhor Jesus ou
»
ao Senhor Deus.
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Convencionalmente, quatro passagens de Isaías
the Epistle to the Hebrews as a New Testament
40—55 são chamadas “ Cânticos do Servo”, por
example of biblical interpretation. Cambridge:
se entender que, juntas, apresentam uma visão
Cambridge University Press, 1979.
36.) ■
peculiar de um “Servo de Javé” ou “ Servo Sofre
sw jt,
dor” em particular, a quem se confia uma mis
28, p. 19-27, 1985. ■ H u r t a d o , L. W. Lord Jesus
são especial a favor de seu povo. 0 Servo foi um
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dos personagens empregados por escritores do
Grand Rapids: Eerdmans, 2003. ■ ______ . One
para iluminar a missão de Jesus.
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sb lsp.
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1. 0 Servo de Javé no Livro de Isaías 2. Jesus como servo nos Evangelhos
[S .l: s.n., s.d.] v. 2, p. 85-101, 1974. ■ K e e , H. C. Good news to the ends of the earth: the theology
1. O Servo de Javé no Livro de Isaías
of Acts. Philadelphia: Trinity Press International,
Em 1892, B. Duhm isolou Isaías 42.1-4, 49.1-6,
1990. ■ K r a f f t , H. Christologie und Eschatologie
50.4-9 e 52.13—53.12, identificando essas pas
im 1. Petrusbrief. EvT, v. 10, p. 120-6, 1950/1951.
sagens como “ Cânticos do Servo”. Outros têm
R. N. The christology of early
procurado ampliar os limites desses cânticos ou
■
L o n gen eck er,
121
O tKVU U t JA V t. C V A N btLH U b
mesmo acrescentar uma parte de Isaías 61 como
Ao que parece, a identificação messiânica está
um quinto cântico. Muitos dos estudiosos mais
tão firmemente estabelecida que não permite ao
antigos pressupunham que essas passagens tive
targumista a opção fácil de uma identificação al
ram origem independente de seu contexto atual
ternativa com Israel ou com algum personagem
no livro de Isaías, porém pesquisas mais recentes
histórico.
concordam que os cânticos pertencem integral mente ao texto de Isaías 40— 55 e não devem ser
2. Jesus como servo nos Evangelhos
interpretados independentemente desse contexto.
A devoção cristã sempre encontrou em Isaías 53
A ideia de
como Servo de Deus não se res
uma representação ímpar do sofrimento vicário e
tringe a essas passagens, mas nelas, especialmen
redentor de Jesus, o que oferece, no que diz res
te em Isaías 53, há um conceito novo e notável de
peito à doutrina cristã clássica da expiação, uma
um Servo cujo papel de sofrimento vicário resulta
apresentação mais clara que qualquer passagem
em cura e libertação para o povo.
isolada do
Is r a e l
n t.
Israel é aqui descrito explicitamente como
Vários estudiosos, contudo, questionam se a
“ servo” de Deus (Is 49.3), bem como em boa par
pessoa do Servo de Javé de fato desempenhou,
te do contexto próximo (Is 41.8,9; 43.10; 44.1,2
no período do
etc.). Mas em algumas partes dos cânticos, no-
senvolvimento da maneira cristã de entender a
tadamente em Isaías 53.4-6,10-12, o Servo é re
missão de Jesus. Foi esse o questionamento de
n t,
algum papel importante no de
presentado como indivíduo, em contrsposição a
C. K. Barrett, de C. F. D. Moule e, de maneira
Israel, e como alguém que sofre por Israel.
mais aprofundada, de M. D. Hooker. Hooker de
Essa ambiguidade quanto à identidade do Ser
monstra que algumas das supostas referências
vo e a questão sobre ser ele entendido como um
às passagens sobre o Servo são no mínimo ques
personagem coletivo ou como um indivíduo (ou
tionáveis, e destaca, acertadamente, que mesmo
mesmo se em Isaías os vários textos chegam a
nas passagens em que a referência é inegável,
indicar uma única “figura do Servo”) têm gerado
não ocorre um destaque tão unilateral ao papel
um debate intenso entre os intérpretes, tanto do
da redenção vicária exercido pelo Servo — o que
passado quanto de hoje.
seria de esperar do pensamento cristão. Mas a
Nenhuma declaração sobre a interpretação ju
interpretação de que a pessoa do Servo não foi
daica por volta do século i d.C. pode ser definiti
um fator importante na
va, pois são poucos os dados documentais acerca
não convence a maioria dos estudiosos. Além dis
do pensamento judaico desse período, e mesmo
so, Hooker não apresenta para consideração ne
esses dados não são necessariamente caracterís
nhuma fonte igualmente plausível para a teoria
ticos das crenças comuns. Embora os escritores
de que a convicção de Jesus era que sua missão
judaicos pudessem aphcar essas expressões a vá
consistia em sofrer e morrer porque isso estava
rios personagens históricos ou a Israel coletiva
“escrito” (v.
mente, também há indícios de que na época do n t
c r is to lo g ia
mais remota
C r is to , m o rte d e ).
O uso direto do título “Servo” {pais [de
alguns entendiam que tais expressões se referiam
para designar Jesus não ocorre no
nt
D e u s ])
fora dos ca
a um indivíduo que no futuro atuaria como agen
pítulos iniciais de Atos (At 3.13,26; 4.27,30), mas
te de Deus a favor da restauração de seu povo,
as passagens isaianas do Servo são citadas várias
ou seja, um personagem messiânico.
(J . J e r e m ia s
vezes, e sua terminologia e ideias estão por trás
5, p. 682-700] apresenta dados suficien
de algumas das declarações mais fundamentais
[t d n t , v.
tes a favor dessa tese, embora esse levantamento
sobre a missão de Jesus.
tenha sido tendencioso.)
2.1
Isso fica especialmente claro no Targum sobre
A tradição sinótica em geral. Cada um
dos Evangelhos Sinóticos identifica Jesus, na oca
Isaías 53, que identifica o Servo com “o Messias”,
sião de seu
embora seu autor seja hostil ã ideia de sofrimen
parte de Deus, mais tarde repetida na transfigu
to messiânico, de modo que cada referência ao
ração: “Tu és o meu Filho amado; em ti me agra
sofrimento é cuidadosamente reinterpretada ou
do” (Mc 1.11; 9.7). Embora o termo “servo” não
transferida para o povo ou para outra pessoa.
seja empregado, quase todos os comentaristas
1216
b a tis m o ,
por uma declaração direta da
S ervo de Ja v e : Evangelhos
concordam que essas palavras são um eco de
tão clara do sofrimento messiânico quanto Isaí
liberado da introdução ao primeiro Cântico do
as 53, e já vimos que alguns pronunciamentos
Servo (Is 42.1). Assim, a missão de Jesus é logo
essenciais de Jesus acerca de sua missão ecoam
de imcio caracterizada (e com a maior autoridade
essa passagem, Com base nisso, muitos acreditam que a ideia
possível] como a do Servo, Alusões mais diretas a Isaías 53 ocorrem em
da pessoa do Servo, conforme vista em Isaías,
duas declarações essenciais sobre a importância
foi um fator destacado na maneira em que Jesus
redentora da morte de Jesus, que se aproximava,
entendia a própria missão e também o elemen
Para os discípulos, Marcos 10,43 define grande
to fundamental para que seus seguidores en
za em termos da aceitação do papel de servo, e
tendessem que sua morte era cumprimento das
Marcos 10,45 reforça essa exigência com o pró
Escrituras, Já foram citados os principais textos
prio exemplo de Jesus: “0 próprio Filho do ho
marcanos sobre essa crença, porém cada um dos
mem não veio para ser servido, mas para servir
Evangelistas desenvolve, à própria maneira, o
e para dar a vida em resgate de muitos” . Aqui
tema de Jesus como o Servo de Javé,
não é apenas o tema do "serviço” que remete às
2.2
Mateus. Duas das onze citações formu
passagens de Isaías, porém mais especificamente
lares encontradas em Mateus são extraídas dos
a ideia da morte vicária e do resgate e a expressão
Cânticos do Servo. Em Mateus 8,17, o ministério
“de muitos”, que ecoa Isaías 53,11,12, E, por
de cura realizado por Jesus é visto como o cum
ocasião da
primento de Isaías 53,4: “ Ele tomou sobre si as
Ú ltim a
Ceia, as palavras de Jesus acer
ca do cálice empregam terminologia semelhante,
nossas enfermidades e carregou as nossas doen
quando ele diz que seu sangue será derramado
ças”, Em Mateus 12,15-21, o fato de Jesus não
“em favor de muitos” (Mc 14,24; para uma aná
querer chamar a atenção do povo é entendido
hse detalhada dos vínculos verbais e conceituais
à luz do primeiro Cântico do Servo (Is 42,1-4),
entre essas passagens e os Cânticos do Servo, v,
citado na íntegra, Não há, portanto, nenhuma
France, p, 116-23],
dúvida de que para Mateus era importante que
Alguns estudiosos defendem, embora com
Jesus cumprisse o papel do Servo isaiano de Javé,
muito menos probabihdade, a existência de vá
Mas é notável que nenhuma das duas passagens
rias outras alusões verbais. Contudo, mais im
mencione o inconfundível papel de sofrimento re
portante que qualquer eco verbal é o conceito
dentor, seja nas palavras que são citadas, seja no
bastante repetido da missão do
d o h o m em ,
aspecto do ministério de Jesus a que se aplicam,
que com sua rejeição, sofrimento e morte cumpre
O ministério terreno de cura e libertação reahza-
F ilh o
a vontade de Deus, pois tudo isso está “escrito”
do por Jesus e seu estilo não beligerante consti
a respeito dele (Mc 8,31; 9,12,31; 10,32-34; 14,21
tuem, como sua morte vicária, o cumprimento da
etc,), Embora alguns percebam em Daniel 7 an
missão do Servo,
tecedentes satisfatórios para esse conceito (na
Tem-se visto em Mateus 3,15 outra possível
opressão dos samos, que precede sua confirma
alusão a Isaías 53, Na passagem de Mateus, a de
ção e está simbolizada na pessoa de “alguém
signação divina de Jesus com os termos extraídos
parecido com filho de homem”), o judaísmo en
de Isaías 42,1 é precedida pela justificativa de que
tendia que o personagem de Daniel 7,13,14 era,
seu batismo é para “cumprir toda a justiça”, É
de fato e coerentemente, uma pessoa majestosa e
possível entender que esse pronunciamento que
vitoriosa, Que esse “filho de homem” tivesse de
tem a má fama de ser pouco claro se refira não
sofrer e ser morto era um paradoxo e chamava
apenas ao papel de representante desempenha
a atenção, e não se pode apresentar uma fonte
do pelo Servo, levando Jesus a se identificar com
mais provável dessa teologia inovadora que o so
os pecadores arrependidos, mas também seja
frimento do Servo de Isaías, A ideia de um Mes
uma alusão bastante enigmática a Isaías 53,11,
sias sofredor pode ter tido origem em alguns dos
o “justo [,,.] justificará a muitos”, A mesma ideia
salmos que falam do justo que sofre ou no pastor
de identificação talvez esteja também por trás
traspassado e rejeitado de Zacarias 11— 13, mas
da menção, por Mateus, de que José de Arima-
nenhuma passagem do
teia era “rico” (Mt 27,57], trazendo Isaías 53.9 à
at
oferece uma predição
1217
bERVO DE j a v e : tVANGELHOS
memória: “ Deram-lhe uma sepultura com os ím
pregação? A quem se manifestou o braço do
pios, e ficou com o rico na sua morte”.
n h or?”
Se
(Is 53.1). Uma vez que a incredulidade
2.3 Lucas. Nos cânticos de Lucas 1, a designa
mencionada em Isaías é característica da natureza
ção “servo” de Deus não é aphcada a Jesus, mas
paradoxal da aparição e da experiência do Servo
a Israel (Lc 1.54) e a Davi (Lc 1.69). E, embora
e uma vez que o ministério de Jesus esteve igual
Mateus apresente paralelos praticamente iguais a
mente sujeito a incompreensão e rejeição, é esta
Marcos 10.45 e 14.24, os equivalentes lucanos não
belecido aqui um paralelo entre Jesus e o Servo,
partilham as mesmas e claras alusões a Isaías 53
que, à luz de outras referências cristãs ao Servo,
(embora o tema do “ serviço” ainda esteja em des
parece totalmente adequado. Deve se admitír, no
taque em Lc 22.26,27). Isso talvez mostre que Lu
entanto, que nesse ponto do quarto Evangelho a
cas está menos interessado que Marcos e Mateus
atenção não se concentra na missão redentora do
no Servo isaiano como modelo para o ministério
Servo ou de Jesus, e sim no simples fato da incre-
de Jesus. Mas não devemos nos esquecer de que
duhdade judaica.
é 0 mesmo Lucas quem registra precisamente o
Outra possível alusão a Isaías 53 pode ser
título “Servo” de Deus usado para designar Jesus
encontrada quando João Batísta apresenta Jesus
(At 3.13,26; observe-se, porém, que Davi também
como “ o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
é descrito como pais, “servo”, de Deus em At 4.25;
mundo” (Jo 1.29,36). Em Isaías 53.7, o Servo é
cf. os paralelos verbais entre At 3/Is 52.13—52.12
comparado a um cordeiro levado ao matadouro,
At 3.13/Is 52.13; At 3.13/Is 53.6,12; At 3.14/
e a ideia do capítulo inteiro é a eliminação dos
[lx x ]:
Is 53.11). E também é Lucas quem apresenta a
pecados de sobre o povo por meio do sofrimen
única citação formal de Isaías 53 nos Evangelhos
to e morte do Servo. A expressão “o cordeiro de
Sinóticos. A frase “... foi contado com os transgres
Deus” pode estar relacionada a vários cordeiros
sores” (extraída de Is 53.12) é introduzida pela
do AT e, mais tarde, do pensamento judaico, po
fórmula “Pois vos digo que se deve cumprir em
rém na maioria dos casos (e.g., o cordeiro pascal,
mim o que está escrito” e seguida da afirmação
0 cordeiro do sacrifício diário ou o cordeiro mes
adicional “Pois o que me diz respeito [i.e., o que
siânico da hteratura apocalíptica, surgido mais
está escrito] já está para se cumprir” (Lc 22.37).
tarde) ela nâo oferece sustentação direta à ideia
Assim, não há dúvida de que para Lucas a missão
da eliminação de pecado, de modo que faz senti
do Servo, em Isaías 53, é um plano para a missão
do interpretar que a pessoa do Servo contribui de
de Jesus: o Servo é Jesus.
maneira significativa para essa imagem.
No Evangelho de Lucas, a passagem do
at
que
define de forma mais proeminente o ministério de
2.5
Conclusão. As informações acima mos
tram que, embora a pessoa do Servo de Javé não
Jesus é Isaías 61.1,2, texto do sermão que Jesus
fosse necessariamente a mais proeminente no
prega em Nazaré (Lc 4.16-27). Jesus declara que
pensamento cristológico dos Evangelistas, eles
essas Escrituras estão agora se cumprindo em seu
a aceitavam como modelo satisfatório e esclare
ministério (Lc 4.21). É claro que Isaías 61 não é, de
cedor da missão de Jesus, que impUcava sofrer
acordo com a anáhse de Duhm, um dos Cânticos do
e morrer vicariamente pelos pecados do povo e
Servo. Mas, com Isaías 42.1-4 essa passagem parti
também (pelo menos no caso de Mateus) o mi
lha vários temas importantes sobre o ministério do
nistério mais amplo de curar e libertar. Foi o fato
Ungido de Deus para a obra de libertação de seu
de o próprio Jesus estar consciente de que viera
povo, e muitos comentaristas entendem que as pas
ao mundo para cumprir o papel do Servo que deu
sagens estão, no fundo, relacionadas pelo conteú
base escriturística a esse conceito novo e revolu
do, mesmo que não seja em sentído literário formal.
cionário do papel do Messias, caracterizado por
Não é improvável que Lucas, ao registrar o sermão
rejeição, sofrimento e morte, em lugar de vitória
de Jesus sobre Isaías 61, estívesse pensando na mis
e glória terrenas. E foi esse modelo que, no fim,
são de Jesus como a missão do Servo de Javé.
permitiu aos discípulos entender a morte de Jesus
2.4 João. João também traz uma citação for mal de Isaías 53. Em João 12.38, o texto explica
não como uma derrota, mas como um grande fei to, a base da
a incredulidade dos judeus: “Quem creu na nossa
1218
s a lv a ç ã o
Ver também
do povo de Deus.
C r i s t o ; C r i s t o , m o r t e d e.
BiBuoGRAnA. Barrett, C. K. The background of
A sinagoga continua a desempenhar um papel
Mark 10:45. In: H iggins, A. J. B., org. New Tes
importante na igreja primitiva e é mencionada
Manchester: Manchester Uni
com frequência no livro de Atos, sendo a palavra
versity Press, 1959. p. 1-18. • Cullmann, 0. The
tament essays.
usada cerca de dezenove vezes. Embora se diga
christology of the New Testamentd. Ed. rev. Phi
que Paulo visitava as sinagogas e ali pregava, ele
ladelphia: Westminster, 1963. p. 51-82. ■ Fran
jamais utiliza a palavra em suas cartas. Ahás, a
R. T. Jesus and the Old Testament. London:
palavra “ sinagoga” raramente ocorre no restante
ce,
Tyndale, 1971. p. 110-35. ■ Gerhardsson, B. Sa
dos escritos do
crificial service and atonement in the Gospel of
em Tiago, em uma referência à assembleia cristã
n t,
aparecendo apenas uma vez
Matthew. In: Banks, R., org. Reconciliation and
(Tg 2.2), e duas vezes em Apocalipse, quando faz
hope. Grand Rapids: Eerdmans, 1974. p. 25-35 •
referência a uma “sinagoga de Satanás” , uma as
Green, J. B. The death of Jesus, God’s Servant.
sembleia, talvez judaica (os “ que se dizem judeus
In: Sylva, D. D., org. Reimaging the death o f the
e não são, mas mentem”), que se opõe à comuni
Lukan Jesus. Frankfurt am Main: Anton Hain,
dade cristã (Ap 2.9; 3.9).
1990. p. 1-28, 170-3. [bbb, 73.) • H ooker, M. D.
1. Nomes e origem
Jesus and the Servant. London:
2. Ofícios
remias,
spck,
1959. ■ Je
J. New Testament theology. N ew York:
3. Cultos e outras atividades
Scribner’s, 1971. v. 1. p. 286-99. ■ Juel, D. Mes
4. Ruínas
sianic exegesis: Christological interpretation of
5. Interior
the Old Testament in early Christianity. Phila delphia: Fortress, 1988. ■ M ichel, 0. & M arshall,
1. Nomes e origem
I. H.
[S.l.: s.n., s.d.] v. 3.
“Sinagoga” é derivada do grego synagõgê, que ori
p. 607-13. ■ M oule, C. F. D. The phenomenon of
ginariamente designava uma assembleia, como a
the New Testament. London:
das reuniões judaicas para adoração. Na lx x, ela
0EoO
T ia íç
k t A . N ID N T T .
sc m ,
1967. p. 82-99.
■ N orth, C. R. The suffering Servant in Deutero-
é empregada, por exemplo, em Êxodo 12.3, para
Isaiah. 2. ed. Oxford: Oxford University Press,
designar toda a congregação de Israel. Passou a ter
1956.
•
o sentído de reuniões locais dos judeus e, mais tar
TD N T.
[S.l.: s.n., s.d.] v. 5, p. 654-717.
Z immerli, W.
& J e r e m ia s ,
J.
tr a íç
0 eoO
R. T.
k t ^.
de, passou a se referir ao prédio em que as congre F ra n ce
gações judaicas se reuniam. Especialmente depois da destruição do templo, em 70 d.C., as sinagogas
S e r v o d e Is a ía s , o .
Ver
tornaram-se centros de atividade rehgiosa e comu
S e rv o d e Javé.
nitária, sempre que houvesse um minyan — ou S e rv o S o fr e d o r .
Ver
quórum — de dez homens judeus. O Talmude afir
S e r v o d e Javé.
mava que havia 480 sinagogas em Jerusalém antes Ver a p ó s t o l o ;
S e te n ta , os.
de 70 d.C. 0 Peregrino de Bordeaux (séc. iv d.C.)
d is c íp u lo s .
relatou que restavam apenas sete em sua época. S h a m m a i.
Ver t r a d i ç õ e s
Em inscrições, papiros. Filo e Josefo, a pala
e e s c r i t o s r a b ín ic o s .
vra grega proseuche (lit., “oração”) também foi Shemá. Ver
utílizada como sinônimo de sinagoga. É objeto
a d o r a ç ã o / c u lto ; c r is t o lo g ia .
de debate se a ocorrência dessa palavra em Atos SINAGOGA
16.13
A sinagoga era a reunião judaica regular para ora
de oração em Fihpos. Outra palavra grega, utiliza
ção e adoração. Jesus ensinou e realizou milagres
da em um papiro para designar um local judaico
no ambiente das sinagogas da Galileia (Mt 4.23;
de oração é o termo eucheion. Josefo (An, 16.6.2,
Lc 4.15), especialmente em Nazaré (Mt 13.54;
§ 164) cita o termo sabbateion com o sentído de
se refere a uma sinagoga ou a uma reunião
Me 6.2; Lc 4.16) e em Cafarnaum (Me 1.21;
“sinagoga”. Na tradição hebraica posterior, a si
Lc 7.5; Jo 6.59). Nessa cidade, a sinagoga foi pro
nagoga era designada de diversas maneiras: bêt
vavelmente construída pelo centurião (Lc 7.5),
tépillâ ( “casa de oração”); bêt midrash (“casa de
cuja serva Jesus curou.
estudo”); bêtkénêsset ( “casa da assembleia”).
1219
Embora alguns poucos estudiosos (e.g., J. W e i n -
de sinagoga. Se não encontrar a filha de um
tenham destacado as raízes pré-exílicas da
chefe de sinagoga, que se case com a filha de
sinagoga, a maioria prefere atribuir seu surgimen
um tesoureiro de beneficência. Se não encon
to ao período pós-exílico. Muitos situariam essa
trar a filha de um tesoureiro de beneficência,
evolução na comunidade exílica da Mesopotâmia.
que se case com a filha de um professor de
green )
Os mais antigos dados de inscrições de que se
ensino elementar, mas que não se case com a
tem conhecimento são referências a proseuchê em
filha de alguém do ‘am hãarets (“povo da ter
inscrições e papiros do período ptolomaico, no
ra”), pois é detestável e sobre suas filhas se
Egito (E.
S c h ü r e r ],
e o mais antigo remonta ao rei
diz “ Maldito aquele que se deitar com algum
nado de Ptolomeu iii Evérgeta [246-221 a.C.). Esse
animal” (Dt 27.21).
texto se refere à fundação de uma proseuchê em Esquedia, a cerca de 30 quilômetros de Alexan
A palavra archisynagõgos aparece em trinta
dria. Outro texto do período desse reinado refere-
inscrições gregas e latinas. Em três inscrições
se a uma proseuchê em Arsínoe-Crocodilópohs, na
(encontradas em Esmirna e Mindos, na lUrquia
região do Faium. A existência de uma sinagoga
ocidental, e em Gortina, em Creta), o termo re-
nessa cidade também é confirmada em um papiro
fere-se a mulheres. B. Brooten sustenta que es
que registra um levantamento de terras e imóveis
ses e outros títulos (presbytem, “anciã”; hiereia,
(papiro de Tebtúnis 86). Uma inscrição de Ptolo
“ sacerdotisa”) não eram apenas honoríficos, mas
meu VII (145-17 a.C.) menciona a dedicação do
designavam mulheres que eram líderes. Em uma
“pilono”, porta monumental de uma sinagoga (G r iffith s ,
p. 10).
inscrição que se refere a uma criancinha como archisynagõgos, o termo sem dúvida é honorífico.
Alguns estudiosos questionam a interpretação
Um grupo de anciãos dirigia as atividades da
de que esses proseuchai do Egito sejam referên
sinagoga. O archisynagõgos provavelmente era al
cias a sinagogas e sustentam que, como institui
guém escolhido desse grupo. 0 encarregado da
ção, as sinagogas se desenvolveram na Palestina
beneficência recebia as ofertas e distribuía esmo
no século II a.C., com o surgimento dos fariseus
las. 0 hazzãn (“ajudante”) era o responsável pela
(J.
guarda dos rolos das Escrituras. Jesus devolveu o
G u t m a n n ).
rolo de Isaías a um desses ajudantes (gr., hypêre2. Ofícios
tê, Lc 4.20). E, com o toque do shôpãr, um chifre
Jairo, cuja filha foi curada por Jesus (Mc 5.22,
de carneiro, o hazzãn anunciava o início e o fim
35,36,38; Lc 8.49), era o chefe da sinagoga (gr.,
do sábado. Mais tarde, o hazzãn passou a ser re
archisynagõgos]. 0 texto de Lucas 8.41 dá conta
munerado e a se alojar na sinagoga, servindo de
de que Jairo era archõn tês synagõgês, “chefe da
zelador,
sinagoga” , e Mateus 9.23 refere-se a ele simples mente como archõn. Com base em Lucas 13.10-17
3. Cultos e outras atividades
e Atos 18.1-17, podemos inferir que o ocupante
Sabemos que mais tarde os cultos nas sinagogas
desse cargo era responsável por fazer com que a
adotaram elementos como a recitação do Shemá
congregação se mantivesse fiel à Torá. 0 relativo apreço que se tinha na sociedade
(“ Ouve, ó ouve” , Dt 6.4-9; 11.13-21; Nm 15.37-41), a oração feita com o rosto voltado para Jerusa
judaica pelo “chefe da sinagoga” é revelado em
lém, 0 “amém” respondido pela congregação, a
uma passagem do Talmude [b. Pesah, 49b):
leitura de passagens dos rolos da Torá (At 15.21) e dos Profetas, a tradução das Escrituras com pa
Nossos rabinos ensinaram: que um homem sempre venda tudo que possui e se case com a
ráfrases em aramaico, o sermão e a invocação de bênção (cf. Ne 8).
filha de um sábio. Se não encontrar a filha de
Tornou-se prática comum recitar, em pé e
um sábio, que se case com a filha de um dos
como oração, o Shemoneh Esreh (Dezoito bên
grandes homens de sua geração. Se não encon
çãos). Perto do fim do século i d.C., acrescen-
trar a filha de um dos grandes homens de sua
tou-se outra bênção, que na verdade era uma
geração, que se case com a filha de um chefe
maldição contra os miním ou hereges — a saber,
220
os cristãos. Qualquer pessoa de sexo masculino
a hospedaria, os aposentos e a aparelhagem de
podia ser chamada para orar ou ler trechos da
água para atender às necessidades de viajantes
Torá ou dos Profetas [haptãrüf]. Em certa ocasião,
vindos do estrangeiro, e cujo pai, com os anciãos
na sinagoga de Nazaré, Jesus leu uma passagem
e Simônides, fundou a sinagoga”.
do rolo do profeta Isaías (61.1,2). Qualquer pes
Y. Yadin identificou como uma sinagoga do
soa capaz podia ser chamada para pregar o ser
século I um prédio de 12 por 15 metros localiza
mão (cf. At 13.15,42; 14.1; 17.2).
do na fortaleza herodiana de Massada. Ele tinha
Jesus refere-se ao costume dos mestres da lei
bancos e duas fileiras de colunas. A entrada do
e dos fariseus, que se assentavam na cadeira de
prédio estava voltada para Jerusalém. No local,
Moisés (Mt 23.2). Esse assento de honra foi en
Yadin encontrou um óstraco com a inscrição “ dí
contrado em Corazim. Bancos de pedra ao longo
zimo sacerdotal”. Ele sustenta que originariamen
das paredes eram reservados para as pessoas im
te Herodes havia construído o prédio para servir
portantes. A congregação em geral provavelmen
de sinagoga a seus partidários judeus. Mais tarde,
te se sentava em esteiras ou tapetes.
o prédio foi reutilizado pelos zelotes, até a queda
Embora na Idade Média as sinagogas tivessem
de Massada diante dos romanos, em 73 d,C. Nes
galerias separadas para as mulheres, não há si
se prédio, as covas serviram de genízâ, ou seja,
nais dessa prática nas sinagogas antigas. No
local de armazenagem dos rolos das Escrituras
n t,
a presença de mulheres na congregação é confir
(Deuteronômio e Ezequiel) que já não eram mais
mada pelo fato de que Jesus curou uma mulher
usados. Perto delas ficavam as miqwã’ôt, tanques
aleijada enquanto ensinava em uma sinagoga
com escadas, para purificação ritual.
(Lc 13.10-17).
Os zelotes transformaram em sinagoga um tri-
Por ser o prédio mais importante da comu
clinium (sala de jantar) existente no Herodium. 0
nidade, a sinagoga não era usada apenas para
prédio media 10,5 por 15 metros, e tinha bancos
os cultos dos sábados, segundas-feiras, quintas-
ao longo das paredes. Uma miqwâ fica perto da
-feiras e dias de festa, mas também para diversas
entrada. Esse prédio se parece com o de Massada.
atividades da comunidade. Ah, o hazzãn ensinava
S. Guttman acredita que um prédio existente em
as crianças. Os valores eram guardados em uma
Gamla, nas colinas de Golã, escavado por ele em
tesouraria comunitária existente na sinagoga.
1976, também seja uma sinagoga do século i d.C.
Os transgressores podiam ser julgados na si
Entretanto, a suposta sinagoga que V. Corbo
nagoga, na presença dos anciãos, e castigados
e S. Loffreda escavaram em 1975 revelou ser par
pelo hazzãn com quarenta açoites menos um
te de uma casa de campo. Não há ruínas visí
(Mc 13.9; 2Co 11.24). Os apóstatas podiam ser
veis em um prédio do século i d.C., escavado em
excomungados (Jo 9.22; 12.42; 16.2).
Corazim, que alguns estudiosos identificaram como uma sinagoga. A sinagoga de basalto visí
4. Ruínas
vel em Corazim pertence a um período bem pos
Calcula-se que existam ruínas de mais de cem
terior. (Na Diáspora, um prédio da ilha de Delos,
sinagogas na Palestina e de cerca de vinte na
no mar Egeu, foi identificado como uma sinagoga
Diáspora. Existem relativamente poucos vestígios
do período pré-cristão.)
arqueológicos das sinagogas que existiram na
As ruínas da mais esplêndida sinagoga da
Palestina nos séculos i ou ii d,C. Uma inscrição
Palestina são uma estrutura em calcário branco
de Teodoto de Jerusalém, geralmente datada de
encontrada em Cafarnaum. Pela análise das moe
antes de 70 d.C., menciona a construção de uma
das, os escavadores franciscanos atribuíram a
hospedagem para peregrinos, e é possível que
esse prédio uma data do século iv ou v d.C., mas
esteja relacionada ã sinagoga dos Libertos (i.e.,
os estudiosos israelenses ainda preferem atribuir-
antigos escravos, At 6.9). Diz o seguinte: “Teo
lhe uma data do século ii ou iii. Em 1981, V. Cor
doto, filho de Veteno, sacerdote e archisynagõgos,
bo encontrou debaixo dessa sinagoga paredes de
filho de archisynagõgos e neto de archisynagõgos,
basalto escuro que ele identificou como vestígios
que construiu a sinagoga para atender ao propó
de uma sinagoga mais antiga. Dentro da nave, foi
sito de recitar a Lei e estudar os mandamentos, e
escavada uma vala que revelou uma parede de
1221
basalto de 24 metros de comprimento. As paredes
flcavam penduradas nas paredes das sinagogas.
têm aproximadamente 1,2 metro de espessura. 0
A maioria das inscrições nas sinagogas mencio
piso é feito de seixos rolados de basalto negro.
nava o nome das pessoas que contribuíram para
A cerâmica associada ao piso revela uma data
sua construção. A sinagoga do século m d.C. em
do século I d.C. Corbo identificou essa estrutura
Dura-Europos, junto ao rio Eufrates, tem nas pa
como a sinagoga construída pelo centurião aten
redes pinturas que retratam narrativas bíblicas.
dido por Jesus (Lc 7.1-5; v.
Pelo fato de haver pouquíssimas ruínas de
S t r a n g e & S h a n k s ).
Não há ruínas do século n que possam ser
sinagogas do século i d.C. na Palestina, alguns
identificadas com segurança como de uma si
estudiosos afirmam que Lucas-Atos é uma obra
nagoga, com exceção das ruínas de Nabratein,
anacrônica quando se refere aos prédios das si
embora alguns arqueólogos catóUcos afirmem
nagogas. Mas isso não leva em conta a natureza
que escavaram e descobriram uma sinagoga de
fragmentária das evidências arqueológicas e des
"cristãos judeus” (séc. iii/iv) no local da Igreja
considera o testemunho não apenas do
da Anunciação, em Nazaré. Também afirmam que
também de Josefo [Vida, 277, 280), que men
fragmentos arquitetônicos do mosteiro franciscano
ciona uma proseuchê, que era um grande prédio
de Nazaré procedem de uma sinagoga (séc. ii/in).
em Tiberíades (v. tb.
J o s e fo ,
n t,
mas
Guju, 2.14.4, § 285;
A maior parte das ruínas de sinagogas é do
An, 14.10.23, § 258; 19.6.3, § 300). O relato de
final dos períodos romano e bizantino (300-600
Filo sobre ataques de turbas antissemitas contra
d.C.), entre elas quinze estruturas na Galileia e
as proseuchas de Alexandria, em 38 d.C. (Le Ga,
um número semelhante nas colinas de Golã. As
132), sem dúvida é uma referência aos prédios
sinagogas são de três tipos; 1) casa ampla, com
das sinagogas.
0 bema, ou plataforma, junto à parede mais
Ver também a d o r a ç A o / c u l t o ;
ju d a ís m o ; t e m p lo .
comprida no lado sul, como em Khirbet Shema; 2) tipo basíhca, como em Cafarnaum e Corazim;
B ib lio g r a fia . B ro o te n ,
3) a basílica com abside, como em Beth Alpha.
cient synagogue. Chico: Scholars, 1982. •
B. Women leaders in the an C h ia t ,
M. J. S. Handbook o f synagogue architecture. Chi 5. Interior
co: Scholars, 1982. ■
As sinagogas construídas mais tarde eram deco
in pre-70 Palestine,
L. L. Synagogues
G rab b e,
jts , v .
39, p. 401-10, 1988. ■
radas com bastante esmero, com o emprego de
G r iffith s ,
símbolos como o candeeiro (ménôrã), ramos de
gue.
palmeira e cidreiras. Elas tinham um bema, para
Ancient synagogues: the state of research. Chico:
JTS,
J.
G.
Egypt and the rise of the synago
v. 38, p. 1-15, 1987. ■ G u t m a n n , J., org.
a leitura das Escrituras, e um vão, em que ficava
Scholars, 1981. ■ ______ , org. The syrmgogue:
exposta a arca, ou baú [arôn), para guarda dos
studies in origins, archaeology and architecture.
rolos bíblicos. Em 1980, E. e C. Meyers descobri
New York:
ram parte de um vão de arca em Nabratein. Esse
und Synagoge. In:
frontão triangular estava decorado com imagens
gem ann,
em relevo de leões ameaçadores e uma concha
fiir Karl Georg Kuhn. Gottingen: Vandenhoeck &
k ta v ,
1975. •
H e n g e l,
J e r e m ia s ,
G.;
Ruprecht, 1971. p. 157-84. ■
lamparina que era acesa perpetuamente.
R eeg,
Muitas das sinagogas bizantinas eram suntuo-
W.;
S te -
H., orgs. Tradition und Glaube: Festgabe
de vieira com um buraco para o pavio de uma
samente decoradas com mosaicos: quatro delas,
M. Proseuche
Kuhn, H .
H u tte n m e is te r ,
F. &
G. Die antiken Synagogen in Israel. Wies
baden:
L.
Reichert, 1977. 2 v. ■
L e v in e ,
L. The
ancient synagogue: the first thousand years. New
apresentando mosaicos com os signos do zodía
Haven: Yale University Press, 2000. ■ ______ , org.
co, foram encontradas em Hamat Tiberíades,
Ancient synagogues revealed. Jerusalem: Israel
Beth Alpha, Na'aran e Husifa. 0 mosaico em Ha
Exploration Society, 1981. ■ ______ . The syna
mat Tiberíades traz um painel central com Hélios
gogue in late antiquity. Philadelphia: American
(o Sol) em seu carro e, nos cantos, pessoas repre
Schools of Oriental Research, 1987. ■ L e v in s k a y a ,
sentando as quatro estações.
I. A Jewish or gentile prayer house? The meaning
Também temos três exemplares das listas
of
PROSEUCH.
das 24 maldições sacerdotais {mishmãrôf), que
E.
M .
222
TynB, v. 41, p. 154-9, 1990. ■ M e y e r s ,
Synagogues of Galilee. Archaeology, v. 35.3,
SINAGOGA
p. 51-8, 1985.
■ S ch ü rer,
E. cSi V e r m e s , G. et al. The
history o f the Jewish people in the age of Jesus.
SINAIS.
Ver
J o ã o , E va n g e l h o d e ; m il a g r e s , relatos de
m il a g r e s .
Ed. rev. Edinburgh: T & T Clark, 1979. p. 423-54. •
Shanks,
H. Judaism in stone: the archaeology
of ancient synagogues. New York: Harper & Row, 1979.
•
S tra n g e ,
J. F. cSi
S h an ks,
■ W e in g r e e n ,
■ Y a d in ,
o Novo
b a r,
Ver J o ã o ,
S iNÓ Ticos E J o ã o .
E v a n g e lh o de.
J. The origin
of the synagogue. Hermathena, v. 98, p. 68-84, 1964.
j u l g a m e n t o d e ; ju d a ís m o e
T e s ta m e n to .
H. Synagogue
where Jesus preached found at Capernaum, v. 9.6, p. 24-31, 1983.
SiNÉDRio. Ver J esu s,
S ir a q u e .
Ver
A p ó c r i f o s e P s e u d e p íg r a fo s .
Y. Masada. New York: Random
House, 1966.
SUMOS s a c e r d o t e s .
E.
Ver ju d a ís m o
e o N o v o T e s ta m e n to ,
Yam auchi s u p e r s tiç ã o .
1223
Ver
r e lig iõ e s g re c o -ro m a n a s .
T a lm u d e b a b iló n ic o .
Ver t r a d i ç õ e s
e e s c r i t o s r a b ín ic o s .
1. O episódio do templo nos quatro Evangelhos
T a l m u d e d e J e r u s a lé m .
Ver t r a d i ç õ e s
e e s c r it o s r a b ín ic o s .
Supondo-se que Marcos seja o mais antigo dos Evangelhos e que Mateus e Lucas tenham feito
T a lm u d e .
Ver t r a d i ç õ e s
e ESCRrros r a b ín ic o s .
uso de Marcos, examinaremos o episódio primei ramente em Marcos para então compará-lo com as
T a rgu m .
Ver
m a n u s c r it o s d o m a r M o r t o ; t r a d i ç õ e s e
e s c r i t o s r a b ín ic o s .
versões dos outros dois Evangehstas (v. S iN ó T ic o ).
P r o b le m a
Embora a versão de João sobre o aconte
cimento tenha afinidades inegáveis com os relatos t e m p lo .
Ver
a d o r a ç ã o / c u l t o ; ju d a ís m o e o N o v o T e s t a
dos Sinóticos e possa ter surgido de uma tradição comum, é muito provável que não tenha sido ba
m e n t o ; t e m p l o , p u r if ic a ç ã o d o .
seada em Marcos. t e m p lo , a t o d o .
Ver t e m p l o ,
p u r if ic a ç ã o d o .
1.1
Marcos: destruição simbólica do templo.
0 esboço a seguir situará o episódio no templo em te m p lo , d e s tr u iç ã o d o .
Ver
ju d a ís m o e o N o v o T e s t a
seu contexto marcano: 1) Entrada (Mc 11.11).
m e n t o ; t e m p l o , p u r if ic a ç ã o d o .
2) Moldura A (figueira) (Mc 11.12-14). t e m p lo , i g r e j a c o m o .
Ver i g r e j a
ii.
3) Episódio do templo (Mc 11.15-17). 4) Resultado (Mc 11.18,19).
TEMPLO, PURIFICAÇÃO DO
5) Moldura B (figueira) (Mc 11.20-26).
O episódio no templo é registrado nos quatro Evan
Marcos emoldura o episódio do templo com a
gelhos (Mt 21.10-17; Mc 11.11,15-17; Lc 19.45,46;
maldição da figueira, de modo que os dois aconte
Jo 2.13-17), embora cada escritor tenha interpreta
cimentos são comentário um do outro. Visto à luz
do 0 acontecimento à sua maneira. Justamente por
do episódio da figueira, o acontecimento no templo
ser atestado nos quatro Evangelhos, muitos acre
é mais uma destruição simbóhca que uma purifi
ditam que 0 acontecimento remonte a um fato do
cação. Por ter sido infrutífero como a figueira, o
ministério de Jesus, a despeito de haver bastante
templo será ressecado até as raízes.
debate sobre seu significado. Este verbete examina
Exclusivo de Marcos é o fato de que um dia
rá primeiramente o episódio conforme a interpreta
inteiro faz separação entre a entrada e o episódio
ção de cada EvangeUsta, antes de apresentar para
do templo. Jesus primeiro entra em Jerusalém, de
consideração o sentido que o acontecimento pode
pois chega ao templo, “tendo observado [períblep-
ter tido no contexto do ministério de Jesus.
samenos] tudo”, antes de retornar a Betãnia para
1. 0 episódio do templo nos quatro Evangelhos
ali passar a noite. O verbo é peculiarmente marca
2. O episódio do templo no ministério de Jesus
no: ocorre em Marcos seis das sete vezes em que
TEMPLO, PURIFICAÇAO DO
e, quando utilizado em referência a
para trocar moeda estrangeira pelo dinheiro tírio,
Jesus, tem a conotação de lançar um olhar crítico
aparece no
exigido pelo templo, e os vendedores forneciam
ou perspicaz (Mc 3.5,34; 5.32; 10.23). A primeira
animais sem defeito e ritualmente aceitáveis para
visita prepara o leitor para o retorno de Jesus.
os sacrifícios. É difícil interpretar o ataque de Je
nt
Ao criar duas visitas ao templo. Marcos cria um
sus contra eles como um ato de purificação do
espaço para a primeira parte do episódio da fi
templo sob a alegação de desenvolverem um co
gueira, o qual, de outra forma, teria interferido no
mércio abusivo. Em parte alguma Jesus demons
relato da entrada triunfal (Mc 11.1-10).
tra lealdade e zelo para com o templo, virtudes
Quando, no dia seguinte, Jesus entrou no tem
que lhe são atribuídas por aqueles que leem a
plo, 0 que ele fez foi “expulsar” [ekballein] os
passagem dessa forma. Por fim, essa leitura não
compradores e os comerciantes. Em seguida, “re-
se harmoniza com o emolduramento marcano.
virou” (katestrepsen] as mesas dos cambistas e as
Qual leitura respeita, então, o emolduramento
cadeiras dos vendedores de pombas (Mc 11.15).
e 0 relato da ação de Jesus? 0 episódio faz bas
Parece que as ações de Jesus eram dirigidas con
tante sentido como ação profética simbólica, em
tra todos os envolvidos no comércio dos sacri
que Jesus dramatiza a rejeição às autoridades do
fícios e contra seus clientes, entre os quais estão,
templo e ao sistema econômico que sustentava e
sem dúvida alguma, os peregrinos que visitavam
fortalecia o controle sobre as funções do templo.
Jerusalém para cumprir seu dever determinado
“Expulsar” e “ revirar” representam rejeição, não
pela Torá. Jesus escolheu justamente os cambis
purificação. Caso skeuos (v. 16) se refira a utensí
tas, que trocavam o dinheiro trazido pelos pere
lios sagrados (Jesus não permitiria que ninguém
grinos por moedas tírias, conforme exigido pelas
carregasse um utensílio sagrado pelo pátio), suas
autoridades do templo para pagamento do im
ações se complementam. Como de costume, ele
posto sagrado, e os vendedores de pombas, que
não permitiria nenhum comércio, fosse nos sub
forneciam os sacrifícios para os pobres.
sistemas que sustentavam o templo, fosse nas
Muitos interpretam esse gesto como uma pu
atividades religiosas em si.
rificação do templo, embora a natureza dessa
0 pronunciamento de Jesus, em uma alusão
purificação seja objeto de debate. Estaria Jesus
baseada em Isaías 56.7 e Jeremias 7.11, reforça
preservando a natureza espiritual do templo ao
essa leitura. Declara que a vontade Deus é fazer
condenar as transações comerciais? Ou estava
que o templo seja para todos os povos uma fonte
opondo-se ao abuso dos comerciantes, que tira
de acesso a Javé, além de denunciar a distorção
vam vantagem dos peregrinos, cobrando preços
desse propósito por parte dos que transformaram
abusivos? Ou estava então protestando contra o
o templo em “antro de assaltantes” [spêlaion lês-
envolvimento do sacerdócio no comércio pratica
ton). A citação de Isaías 56.7 provavelmente refle
do no pátio externo?
te 0 interesse que Marcos tem pelos gentios, ao
Segundo uma interpretação que leva em conta
passo que a alusão ao sermão de Jeremias sobre
essa estrutura. Marcos 11.16 mostra Jesus proi
o templo constitui um oráculo profético de con
bindo o povo de tomar atalhos no pátio externo
denação e destruição. 0 motivo para a destruição
ou impedindo as pessoas de trazer objetos não
do templo torna-se claro.
consagrados para aquela parte do templo. Qual
Quando o episódio é entendido como ato pro
quer que seja o caso, Jesus estaria revelando o
fético que sinaliza a rejeição e a destruição do
desejo de restaurar a santidade do templo por
templo, é compreensível a reação dos principais
acreditar que aquele local era santo.
sacerdotes e dos escribas. Eles procuram uma
São inúmeros os problemas com essa leitura de
maneira de destruir Jesus.
Marcos 11.15,16. Os comerciantes e os cambistas
1.2
Mateus: purificação do templo. 0 esboço
prestavam um serviço essencial aos peregrinos e
a seguir mostra como Mateus situa o episódio em
demais adoradores. Aliás, sem essa infraestrutura
sua narrativa.
de serviços, talvez fosse impossível a realização
1) Entrada (Mt 21.10,11).
dos sacrifícios contínuos no templo. Além disso,
2) Episódio (Mt 21.12,13).
os cambistas cobravam uma comissão modesta
3) Resultados.
1225
TEMPLO, PURIFICAÇAO DO
a) Mateus 21,14-17.
que Jesus diz e faz. Os cegos, os coxos e as crian
b) Mateus 21.18-22.
ças no monte do templo constituem um parale
c) Mateus 21.23-37.
lo com as multidões à entrada da cidade, assim
Mateus retira a maldição da figueira, e assim
como a Jerusalém intrigada constitui um paralelo
ela deixa de ser a moldura do episódio no templo.
com as autoridades do templo. Mateus apresenta
Isso lhe permite trabalhar mais esmeradamente
uma grande inversão: os de dentro são ignorantes
na entrada. Quando Jesus entrou em Jerusalém,
ou obstinados, ao passo que os de fora reagem
"toda a cidade se agitou” [eseisthê, Mt 21.10). A
de forma positiva ao Messias de Deus (v. Cristo),
terminologia é sísmica e, dessa maneira, situa a
enquanto ele restaura o templo.
entrada no imaginário de uma teofania. Ao con
Os dois outros acontecimentos ocorrem logo
trário de Marcos, essa não é uma demonstração
depois do episódio e vêm na sua esteira. O episó
que se limita aos seguidores de Jesus. A cidade
dio da figueira (Mt 21.18-22) confirma a inversão
toda repara, embora seus cidadãos fiquem intri
entre os de dentro e os de fora, especialmente
gados e indaguem: “Quem é este?”. Mas o que
0 juízo contra os que estão no templo, enquan
Jerusalém não sabe, a multidão conhece: “Este é
to a disputa sobre a questão da autoridade tem
o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”. A oposi
agora de ser lida à luz do episódio inteiro. O epi
ção implícita da multidão a Jerusalém mostra que
sódio do questionamento da autoridade de Jesus
essa é uma declaração positiva, não uma cristo-
(Mt 21.23-27) traz de volta a questão das curas,
logia deficiente. “ 0 profeta Jesus” talvez identifi
bem como a agitação no pátio externo do templo.
que Jesus como o cumprimento da promessa feita em Deuteronômio 18.15.
1.3
Lucas: preparação do templo. Como nos
casos anteriores, aqui também será proveitoso es
Mateus acompanha Marcos ao descrever as ações iniciais de Jesus no templo. Jesus “expul
tudar o episódio do templo no contexto narrativo de Lucas.
sou” os vendedores e compradores e “revirou” as
1) Texto estruturador: choro pela cidade
mesas dos cambistas e dos vendedores de pom
(Lc 19.41-44).
bas. Entretanto, ele omite Marcos 11.16, talvez
2) Episódio (Lc 19.45,45).
porque o sentido seja incerto. De modo seme
3) Resultados.
lhante, 0 pronunciamento de Jesus é condensado.
a) Lucas 19.47,48.
A expressão “para todas as nações” é omitida na
b) Lucas 20.1-8.
citação, acentuando a acusação contra as autori
c) Lucas 20.9-19.
dades do templo, cuja liderança o havia afastado do propósito divino (v. Gundry, p. 412-3).
0 mais surpreendente é que Lucas omite o episódio quase inteiro, pois Jesus “começou a ex
A justificativa para o episódio está ilustrada
pulsar os que ali vendiam”. Estão ausentes as re
no material especialmente mateusino que vem na
ferências a compradores, cambistas e vendedores
seqüência (Mt 21.14-16). Depois de denunciar a
de pombas. Além disso, Jesus se dirige a eles de
deturpação da finalidade do templo, Jesus restau
uma forma que parece estar se opondo ã ativida
ra seu propósito mediante a cura dos rejeitados
de comercial que desenvolviam, presumivelmen
pela sociedade. Cumprindo as Escrituras (SI 8.2),
te por comprometer o propósito divino de que o
as crianças que estavam no templo exaltam seus
templo seja uma casa de oração.
poderes miraculosos, mas esses mesmos poderes
0 resultado imediato foi que “todos os dias
provocam uma reação negativa por parte dos lí
ensinava no [pátio do] templo” ao povo [laos,
deres do templo.
não ochlos, “ multidão”) interessado, o qual aten
Interpretadas em conjunto, as curas e a con
tava para cada palavra de Jesus. Lucas mostra
trovérsia gerada por elas refletem um padrão tipi
que Jesus, ao expulsar os vendedores, prepara
camente mateusino: Jesus age, seus adversários
va a restauração do pátio do templo como lugar
protestam e Jesus cita as Escrituras. Elas também
de ensino. Os temas gêmeos desse ensino são
expressam o cumprimento do propósito do tem
expressos nas duas perícopes seguintes: a ques
plo, frustrado justamente por seus principais sa
tão sobre a autoridade (Lc 20.1-8) e a parábola
cerdotes e escribas, que se opõem ferozmente ao
dos agricultores maus e as declarações que a
1226
TEMPIO, PURIFICAÇÃO DO
acompanham (Lc 20.9-19). A primeira perícope
bem como a resposta de Jesus (Jo 2.18,19). A
identifica a autoridade de Jesus para ensinar no
profecia de Zacarias refere-se ao dia escatológico
templo, enquanto a segunda especifica a acusa
do Senhor (v.
ção contra as autoridades da época.
tornará o centro de adoração para todos os povos,
O episódio inteiro tem como introdução o
a p o c a l ip t is m o ) ,
em que o templo se
e “ naquele dia não haverá mais comerciantes
lamento profético de Jesus acerca de Jerusalém
no templo do
(Lc 19.41-44), concluído com a revelação do mo
Assim, um zelo purificador (cf.
tivo da turbulência e devastação que aguarda a
transformação da casa de Deus em sua forma es-
S en h or
dos Exércitos” (Zc 14.21). Sl
69.9) pela
cidade e o templo, “pois não reconheceste o tem
catológica parece permear as ações de Jesus. Nes
po [kaiwn] em que foste visitada”. É marcante o
se contexto, João 2.19 é a promessa da realização
contraste entre a visitação mortal dos exércitos
desse ato, transmitindo a ideia de que, mesmo
que cercam a cidade (Lc 19.43,44) e a visitação
que 0 templo fosse destruído, em apenas três dias
graciosa por Jesus. O fato de não compreenderem
ele edificaria outro melhor em seu lugar. João, porém, impõe sua interpretação da de
esta leva ao resultado fatal daquela. Para que, então, Jesus prepara o templo? À luz
claração de Jesus, fazendo com que se refira à
de sua posterior destruição, profeticamente vis
sua ressurreição (Jo 2.21,22). E, pela maneira em
lumbrada no lamento, estaria Jesus preparando
que o narrador interpreta as palavras de Jesus, a
0 templo para ser destruído? Não. Entendido no
purificação do templo se torna o tema da substi
contexto de Lucas-Atos, o episódio preparava o
tuição. Para a comunidade de João, o corpo de
templo para seu papel de ponto de partida de um
Jesus é 0 templo que substituiu o templo de épo
novo movimento, o qual, saindo de Jerusalém,
cas anteriores.
teria o padrão do testemunho encontrado em Lu cas 24.47 e em Atos 1.8. Jerusalém e o templo
2. O episódio do templo no ministério de
não seriam mais o alvo da peregrinação, e sim o
Jesus
ponto de partida de uma nova missão.
Levando em conta a diversidade entre os escri
João: purificação e substituição do tem tores dos Evangelhos, não é de surpreender que
1.4
plo. Em João, o episódio ocorre no início do mi
os estudiosos tenham discordado acerca do sig
nistério de Jesus, durante sua primeira viagem a
nificado e dos detalhes do episódio no ministério
Jerusalém.
de Jesus. 0 consenso situa o acontecimento no
1) Entrada (Jo 2.13).
final do ministério de Jesus, não no início, favo
2) Episódio (Jo 2.14-17).
recendo os Sinóticos, em detrimento de João. A
3) Questionamento (Jo 2.18-22).
partir desse ponto, porém, os estudiosos deixam
0 episódio inteiro é independente. 0 tex
de concordar entre si.
to de João 2.12 separa-o do milagre de Caná, e
Embora variadas, as interpretações do episó
João 2.23-25 separa-o dos acontecimentos poste
dio enquadram-se em quatro categorias básicas: 1) é um acontecimento religioso com o objetivo
riores em Jerusalém. Há diferenças significativas entre as versões
de eliminar as impurezas do templo, quer comer
joanina e as sinóticas. As ações de Jesus são mais
ciais, quer sacerdotais; 2) é um acontecimento
radicais em João. Ele confecciona um chicote
messiânico com o objetívo de incluir os gentios
para expulsar tanto os vendedores de ovelhas e
no âmbito das atividades do templo; 3) é um
de bois quanto os cambistas, cujas moedas ele
acontecimento profético com o objetivo de anun
joga no pátio do templo. Mas trata os vendedo
ciar a destruição do templo e sua restauração es-
res de pombas com mais leniência, simplesmente
catológica; 4) é um acontecimento político com o
ordenando-lhes que vão embora com seus bens.
objetivo de dificultar as atividades comerciais e
O
pronunciamento em si estabelece um con sacerdotais do templo, porque se haviam torna
traste entre a “casa de meu Pai” e “ um mercado” ,
do formas de opressão e exploração. Entretanto,
e a alusão escriturística é a Zacarias 14.21, que
qualquer que seja a abordagem ou combinação
sem dtívida ajuda a interpretar os questionamen
de abordagens que os intérpretes adotem, é pre
tos e 0 pedido de um sinal resultantes dessa ação,
ciso solucionar alguns problemas básicos sobre
1
227
I ESSALONiCENSES, LARTAS AOS
0 âmbito, 0 propósito e o conteiído do aconteci
religioso. Entendido dessa forma, a declaração
mento. A mellior maneira de fazê-lo á examinar
se harmoniza com a ação, e ambas delineiam o
as duas partes que compõem o episódio, a saber:
julgamento profético do templo, o qual incitou as
as ações de Jesus e seu pronunciamento.
autoridades contra Jesus e o levou ã crucificação.
2.1
As ações de Jesus no
templo. Para alguns
estudiosos, o episódio relata a purificação do
B
templo, feita por Jesus, além da afirmação de que
and the den of thieves. In:
seu propósito espiritual é ser uma casa de oração.
E .,
ib l i o g r a f ia .
B arrett, C.
K. The house of prayer &
E l l is , E . E .
G
rabber,
orgs. Jesus und Paulus: Festschrift fiir Werner
Para outros, trata-se de um ataque direto ao tem
Georg Kiimmel. Göttingen: Vandenhoeck & Rupre
plo e uma tentativa de controlá-lo politicamente.
cht, 1975. p. 13-20. ■ B u c h a n a n , G. W. Mark 11:15-
Entre esses dois extremos, estudiosos como R. A.
19: brigands in the temple,
Horsley e E. P. Sanders interpretam o fato como
1959. •
uma ação profético-simbólica de âmbito limitado
Park: Pennsylvania State University Press, 1992.
que condena o templo.
•
Sanders conclui que Jesus profetizou ou amea
D
C h ilto n ,
errett,
j.
B.
huca,
v.
30, p. 169-77,
Temple of Jesus. University
M. The zeal of the house and
D.
the cleansing of the temple. DRev, v. 95, p. 79-94,
çou a destruição do templo como prelúdio da res
1977. ■ E p p b te in , V. The historicity of the gospel
tauração escatológica da casa de Deus. De acordo
account of the cleansing of the temple,
com Horsley, a ação foi um ataque contra o opres
p. 42-58, 1964. ■ E v a n s ,
C.
55,
zn w , v.
A. Jesus’ action in the
sivo sistema político e econômico que se instalou
temple: cleansing or portent of destruction?
no templo. Mais que uma ação simbólica, envol
V.
veu violência contra os exploradores do povo. Am
a commentary on his literary and theological art.
51, p. 237-70, 1989. ■ G u n d r y , R.
bos concordam que a demonstração foi limitada
Grand Rapids: Eerdmans, 1982. •
0 bastante para não atrair a atenção da polícia do
Temple cleansing and temple bank,
H.
H a m ilto n ,
N. Q. 83, p.
jb l, v .
templo, nem das tropas romanas estacionadas na
365-72, 1964. ■
fortaleza Antônia, mas foi importante o suficiente
temple: preparation for the kingdom of God.
para suscitar uma ação conjunta contra Jesus.
v. 90, p. 82-90, 1971. •
H ie r s , R .
H.
cbq,
Matthew:
Purification of the
H o r b le y , R .
jb l,
A. Jesus ami
2.2 O pronunciamento de Jesus no templo.
the spiral o f violence: popular Jewish resistance in
Há muito debate em torno dessa declaração, e a
Roman Palestine. San Francisco: Harper & Row,
maioria dos estudiosos a considera marcana ou
1987. ■ R o t h ,
pré-marcana, mas sem ser possível identificá-la
Zechariah. NovT, v. 4, p. 174-81, 1960. •
com Jesus. Por exemplo, G. W. Buchanan defende
E.
C.
The cleansing of the temple and Sanders,
P. Jesus and Judaism. Philadelphia: Fortress,
um contexto marcano, ao identificar o lêstai com os
1985. ■ W
“assaltantes” que tomaram o templo durante a re
Minneapolis: Fortress, 1996. p. 413-28.
r ig h t ,
N. T. Jesus and the victory o f God.
volta contra Roma. Outros entendem que a declara
W . R. H
e r z o g ii
ção de João 2.19 talvez reflita as palavras de Jesus com mais precisão que a do Evangelho de Marcos. Contudo, se as leituras profétíco-polítícas da
te n ta ç ã o de
Evangelho
J esu s.
Ver L u c a s ,
E vangelho
de;
M
ateus,
de.
passagem estão corretas, elas mostram, no que tange à declaração registrada em Marcos, que o
T essalo n icen ses , C a r t a s
episódio pode ser situado no contexto do ministé
Paulo e Silas, acompanhados de seu ajudante, Ti
rio de Jesus. Se for assim, então Jesus está decla
móteo, deram os primeiros passos para estabele
rando que os verdadeiros salteadores sociais não
cer uma comunidade cristã em Tessalônica como
aos
são os bandidos que agem a partir de cavernas
parte da primeira missão cristã na província da
no deserto da Judeia, mas as eminentes autorida
Macedônia. Tessalônica era uma das principais
des da casa de Deus, construída sobre a caverna
cidades do Império Romano. Os posteriores con
sagrada do monte do templo. A exploração e a
tatos dos missionários com a igreja dessa cidade
opressão que se faziam por meio de impostos e tri
resultaram em duas cartas (v.
butos representam o verdadeiro banditismo social
cartab) ,
da época, embora mascarado de piedade e dever
documentos cristãos que tenhamos hoje. Apesar
1228
cartab,
fo rm as
de
que são provavelmente os mais antigos
T essalonicenses , C artas aos
de sua brevidade e, em comparação com as ou
Uma oração a favor dos tessalonicenses,
tras cartas do corpus paulino, e da relativa au
pedindo que o contato se mantenha, que eles
sência de temas teológicos significativamente
manifestem
desenvolvidos, as Cartas aos Tessalonicenses tor-
(ITs 3.11-13), conclui a primeira seção principal
amor
e
que
sejam
inculpáveis
naram-se objeto de muita análise pelos estudio
da carta (ITs 1—3). Nessa seção, Paulo identifi
sos, especialmente nas áreas de crítica retórica,
ca 0 elo entre os cristãos gentios de Tessalônica
análise sociológica e início do desenvolvimento
(v. ITs 1.9) e outros que pertencem ao povo de
da teologia paulina.
Deus, incluindo-se os profetas do
at
(ITs 2.15)
1. Conteúdo das cartas
e, especialmente, os missionários que levaram
2. A cidade de Tessalônica
o evangelho a Tessalônica. Com essa ênfase no
3. A missão paulina
lugar que ocupavam entre o povo de Deus e nos
4. A composição das cartas
vínculos que mantinham com a missão apostóU-
5. Questões literárias e históricas
ca, Paulo oferece aos cristãos de Tessalônica uma
6. Teologia de Paulo na fase inicial
maneira de pensar sobre si mesmos que lhes per mitirá permanecer firmes e seguros no meio da
1. Conteúdo das cartas
adversidade que estão enfrentando. Esse conceito
A abertura das duas cartas aos tessalonicenses
lança os alicerces para a segunda seção principal
(ITs 1.1; 2Ts 1.1,2) identifica seus autores como
da carta, em que Paulo repetidas vezes se refere
Paulo, Silas (que nas cartas é chamado Silvano)
às tradições e instruções que os tessalonicenses
e Timóteo. Mas, com base em cartas posteriores
receberam dos missionários (ITs 4.1,2,9,11).
de Paulo (v. tb. ITs 3.6), podemos supor que, no
A segunda seção (ITs 4— 5) começa com uma
mínimo, Paulo desempenhou o papel principal
exortação à vida santa (ITs 4.1-12), que tem como
em sua composição. 1.1
foco a imoralidade sexual. Em seguida, Paulo ITessalonicenses. Em ITessalonicenses, discorre sobre a volta de Cristo (ITs 4.13—5.11;
Paulo agradece a Deus pelos cristãos de Tessalôni
v.
ca, lembrando-os de que eles haviam “recebido a
para uma exortação a uma vida de sobriedade, à
e s c a t o l o g ia ) ,
a qual proporciona o fundamento
palavra” pregada por Paulo e seus colaboradores
fé, ao amor, à esperança e ao encorajamento mú
“em meio a muita tribulação” (ITs 1.6) e assim
tuo (ITs 5.4-8,11). Mas parece que sua motivação
se tornaram exemplo para outros que haveriam
principal ao escrever essa seção escatológica foi
de ouvir o evangelho (ITs 1.7-10). Ele os lembra
a preocupação que alguns cristãos de Tessalôni
também das circunstâncias difíceis e da sinceri
ca tinham com o destino dos membros da igre
dade e seriedade que caracterizaram a primeira
ja que haviam morrido antes da volta de Cristo
missão apostólica (v.
apó sto lo )
entre os tessaloni-
censes (ITs 2.1-12). Aparentemente, ele faz men
(ITs 4.13-18; v.
r e s s u r r e iç ã o ) .
A carta termina com
admoestações e bênçãos gerais (ITs 5.12-28).
ção disso para apresentar a si mesmo e a seus
1.2
2Tessalonicenses. A ação de graças de
auxiliares perante seus leitores como exemplos
Paulo em 2Tessalonicenses 1.3-12, à semelhança
de inculpabilidade. Paulo passa então a agradecer
da que vemos em ITessalonicenses, menciona a
a Deus pela receptividade dos tessalonicenses ao
firmeza característica que os cristãos de Tessalô
evangelho. Ele os põe em um dos lados da linha
nica revelavam no sofrimento e o exemplo que
divisória que separa o povo sofredor de Deus e os
eram para outros. Uma vez mais, Paulo vê o sofri
perseguidores que rejeitam a Palavra de Deus, es
mento e as reahzações dos tessalonicenses numa
tes exemplificados pelos “judeus” (ITs 2.13-16).
estrutura escatológica.
Em seguida, declara que o amor que tem por eles
A Segunda Carta aos Tessalonicenses também
e a preocupação de que permaneçam firmes fize
revela que as questões referentes à escatologia
ram com que ele e seus colabodores retomassem
eram essenciais na preocupação de Paulo com a
contato com os tessalonicenses. Agora que Timó
comunidade cristã de Tessalônica (2Ts 2.1-12).
teo havia retornado de Tessalônica, a notícia de
0 problema talvez fosse que alguns acredita
que os crentes ali estavam firmes trouxe muita
vam que “ o dia do Senhor” já havia acontecido
alegria (ITs 2.17—3.10).
(2Ts 2.2). Paulo responde, argumentando que
1 229
I C JJM L U IN IU C IN J C O , \_ M IM M J M U J
algumas coisas terão de acontecer antes daquele
a palavra grega
“ dia” (2Ts 2.3-12). Como acontece em ITessaloni-
que não é encontrada em outro lugar senão no
censes, depois de responder às preocupações ini
relato de Atos sobre a missão de Paulo à cidade
p o lita rc h ê s
( “autoridade civil”),
ciais dos crentes, Paulo passa a dar graças por eles
(At 17.6). Inscrições que mostram que os judeus
(2Ts 2.13-17). Um problema tratado nas admo
haviam se instalado na cidade datam do final do
estações gerais de 2Tessalonicenses (2Ts 3.1-15)
período romano. Uma inscrição de uma sinago
é o fato de alguns membros da igreja se recusa
ga samaritana data de período anterior, talvez do
rem a trabalhar (2Ts 3.10-12). A prática dos mis
século III a.C.
sionários apostólicos é apresentada então como exemplo de trabalho e autossuficiência econômi
3. A missão paulina
ca (2Ts 3.7-9). A carta termina com bênçãos e uma saudação pessoal de Paulo (2Ts 3.16-18).
3.1
O relato em Atos. 0 contexto judaico da
primeira missão cristã em Tessalônica é proemi nente em Atos (At 17.1-10). A missão de Paulo e
2. A cidade de Tessalônica
Silas, que se deu principal ou totalmente em uma
Tessalônica era uma cidade populosa que expe
sinagoga judaica, consistiu em provar aos judeus,
rimentou bastante prosperidade durante a maior
com base nas Escrituras hebraicas, que Jesus era
parte dos períodos helenístico e romano. Foi fun
o Messias (v.
dada por volta de 315 a.C. por Cassandro, ex-ge
tidos, havia alguns judeus, boa parte dos adora
C
r is t o ) .
Entre os primeiros conver
neral de Alexandre, o Grande, no lugar da antiga
dores gentios do Deus de Israel e várias mulheres
Terma ou nas proximidades, à entrada do golfo
de destaque que provavelmente também faziam
de Terma, hoje denominado golfo de Salônica.
parte do grupo de adoradores gentios do Deus de
Importante porto militar e comercial, tornou-se
Israel. A oposição à missão teve início por inicia
a principal cidade da Macedônia. Foi designada
tiva de judeus (At 17.13), embora tenha se es
capital de um dos quatro distritos administrativos
palhado rapidamente entre os gentios, primeiro
em que Roma dividiu a Macedônia em 168 a.C.
entre uma turba descontrolada e depois entre as
No ano 146 a.C., tornou-se a capital da província
autoridades da cidade. Além da dificuldade que
da Macedônia, que então estava unificada. No
criou para a nova comunidade cristã, a oposição
mesmo ano, construiu-se a via Inaciana, que liga
fez com que a partida de Paulo e Silas (e Timóteo,
va a Ásia Menor ao mar Adriático (e a Roma, do
embora não seja mencionado em Atos) fosse a
outro lado do Adriático). Foi por essa estrada que
atitude mais prudente. Desse modo, perante as
Paulo e seus colaboradores viajaram de Fihpos
autoridades os judeus que se opuseram à missão
a Tessalônica (At 17.1). Como recompensa pelo
paulina conseguiram culpar os cristãos por uma
apoio que deu a Antônio e Otaviano, em 42 a.C.,
agitação que os próprios judeus haviam criado.
Tessalônica tornou-se uma cidade livre. Até os sé
Entretanto, em um primeiro exame as cartas
culos III e IV d.C., continuou sendo a cidade mais
de Paulo aos cristãos tessalonicenses não pare
importante e populosa da Macedônia. Com o
cem sustentar o relato de Atos sobre o início da
nome de Salônica, hoje é a segunda maior cidade
igreja em Tessalônica. Apesar de Paulo ter expli
da Grécia e ainda um importante porto marítímo.
cado pessoalmente as Escrituras (cf. At 17.2,3),
Nos sítios arqueológicos na cidade, foram en contrados parte da muralha romana da cidade,
nenhuma das cartas cita o
at:
existem apenas
ecos esporádicos e vagos das Escrituras hebrai
um fórum romano do século i, uma ágora hele-
cas, dos quais o mais significativo é Daniel 11.36,
nística de época anterior, um hipódromo, três
em 2Tessalonicenses 2.4. Não é o que seria de
vãos do arco triunfal de Galério e várias igrejas
esperar de um escritor versado nas Escrituras,
bizantinas. A porta de Vardar, que ficava no aces
do escritor de Gálatas e Romanos, especialmente
so para a via Inaciana, no lado oeste da cidade,
quando ele se dirige a um grupo de pessoas que
e o arco de Galério, no lado leste da cidade, fo
até recentemente frequentara a sinagoga. Além
ram demolidos no século xix. Uma inscrição en
do mais, o autor lembra os leitores de que eles,
contrada na porta, com data aproximada do final
“deixando os ídolos”, agora aguardavam o Filho
do século I a.C. ao início do século ii d.C., traz
de Deus (v.
1230
F il h o
de
D
eus) ,
que viria dos céus
T essalonicenses , C artas aos
Em nenhuma das duas cartas
de modo enérgico (ITs 2.14-16) e destacam ou
existe a mínima indicação de que, antes de se
talvez até mesmo exagerem a origem pagã dos
encontrar com Paulo e Silas, algum dos leitores
destinatários (ITs 1.9) — possivelmente em razão
(ITs 1.9,10,
tivesse contato positivo e significativo com o ju
das circunstâncias em que a igreja dos tessaloni
daísmo, muito menos a indicação de que alguns
censes teve início ou porque a reação de Paulo
deles fossem judeus. (0 contraste pelo menos não
contra o judaísmo era resultado de seu chamado
é tão certo no que diz respeito aos adversários de
à fé e ao apostolado cristãos (sobre a última pos
Paulo e Silas: em Atos, a oposição é constituída
sibilidade,
no final por judeus e gentios; em ITessalonicen
ção não leve ITessalonicenses em conta).
V. G
ager,
embora em sua argumenta
ses, os adversários são os “concidadãos” dos
Qualquer tentativa de dizer algo mais acerca
cristãos [ITs 2.14], e essa designação pode muito
dos cristãos de Tessalônica com base nas duas car
bem incluir alguns judeus.) Por isso, muitos acre
tas tem de considerar o fato de que Paulo aparen
ditam que 0 relato de Atos acerca da missão em
temente pregou uma mensagem de forie conteúdo
Tessalônica é inexato ou pelo menos faz parte da
escatológico e que alguns membros da comunida
descrição, pelo autor de Atos, da estratégia mis
de aparentemente levaram essa mensagem ao ex
sionária de Paulo e das relações entre cristãos e
tremo (ITs 4.13— 5.11; 2Ts 2.1-12;
judeus (cf, At 13.44-50; 14.19; 18.12-17 etc.).
Talvez essa agitação escatológica tenha sido forte
3.2
S im p s o n ,
1998).
O quadro sugerido pelas cartas. 0 relato o bastante para gerar acusações de subversão polí
pode, aliás, estar descrevendo apenas um lado
tica (At 17.6,7). Estudos sociológicos sobre grupos
de uma missão que, de modo mais significativo,
que dão demasiada ênfase à escatologia ou ao mi-
havia alcançado gentios não influenciados pelo
lenismo ressaltam que uma nova experiência de
judaísmo. Ao se referir nas duas cartas a seu la
relativa privação surgida de mudanças nas estru
bor físico (ITs 2.9; 2Ts 3.7-9), Paulo dá uma pista
turas da sociedade e de padrões de relacionamento
desse outro lado da missão; seu local de traba
costumam estar por trás desse tipo de interesse es
lho pode ter sido aquele em que muitos gentios
catológico, justamente o tipo de fé que a pregação
que moravam na cidade e não eram judaizados
paulina do evangelho oferecia. Teria havido em
ouviram o evangelho. Isso está em conformidade
Tessalônica uma situação social que tornara atra
com os métodos utilizados por outros pregadores
ente o evangelho de Paulo?
p. 38-41;
Mesmo que os cristãos tessalonicenses não
1987, p. 17-20). O fato de Paulo ter
se sentissem à vontade com a situação social
trabalhado como artesão em Tessalônica (como
vigente, seria um erro supor que todos estavam
aconteceu em Corinto, At 18.2,3) dá a entender
na base da pirâmide social. Aliás, W. A. Meeks
e filósofos populares da época M a lh e r b e ,
(H o ck,
uma estada mais longa na cidade que o perío
(p. 173-4) acredita que alguns dos convertidos de
do de três semanas ou pouco mais, que se pode
Paulo eram pessoas relativamente abastadas que
inferir de Atos 17.2. Mais de uma vez, os cris
experimentavam uma “incongruência em relação
tãos de Filipos enviaram ajuda financeira a Paulo
a sua posição social” ou uma “dissonância em
enquanto ele esteve em Tessalônica (Fp 4.15,16).
relação a essa posição social” , porque sua posi
Isso aponta para a mesma conclusão.
ção não correspondia a sua riqueza. Essa incon
Mas pode ser que a situação fosse mais com
gruência estaria por trás de sua atração pela fé
plexa, não apenas pelo que Atos nos permite
escatológica pregada por Paulo. Duas evidências
ver, mas também pelo que podemos inferir das
revelam que a igreja de Tessalônica era constituí
próprias cartas. Talvez Paulo tenha procurado
da de pobres e ricos: a decisão de alguns de parar
minimizar a influência judaica sobre alguns dos
de trabalhar (2Ts 3.11) e as referências em Atos
cristãos tessalonicenses. Da maneira que se en
a “mulheres de posição” e a Jasom, que possuía
contra, a estrutura da crença refletida nas cartas é
uma casa (At 17.4,5). R. Jewett (p. 113-32) apresenta para consi
uma forma apocalíptico-messiãnica de judaísmo embora as cartas
deração alguns fatores sociais de Tessalônica
jamais se refiram às Escrituras judaicas, Elas tam
que podem ter desempenhado um papel funda
bém incluem uma polêmica antijudaica expressa
mental na reação positiva dos tessalonicenses à
(v.
a p o c a l ip t is m o ;
e s c a t o l o g ia )
,
1231
I C iJ J M L U I ^ H -C I N iC i,
MU:>
mensagem de Paulo. Jewett cita o fato de a cidade
boa notícia sobre a estabilidade da comunidade
de Tessalônica ter absorvido, no século i d.C., o
cristã naquele lugar (ITs 3.6). Paulo ainda espe
culto a Cabiros (v.
rava voltar a Tessalônica (ITs 3.10,11). Nesse ín
D
o n f r ie d ,
1 9 8 5 ),
que era um
culto local a um redentor escatológico, popular
terim, ele e seus colegas enviaram as duas cartas
entre as classes mais baixas, apresentando algu
para encorajar e exortar a igreja inexperiente a
mas semelhanças superficiais com o evangelho
que procurasse resolver parte da confusão sobre a
cristão. Para alguns dos que haviam sido adeptos
expectativa escatológica que eles haviam procla
do culto a Cabiros e haviam assim perdido o que
mado e que tratasse do problema da ociosidade
a fé que recentemente abraçaram lhes proporcio
por parte de alguns membros.
nava, 0 evangelho pode ter sido um substituto à
Em geral, entende-se que as cartas aos tessa
altura. Jewett também aponta para as mudanças
lonicenses surgiram de uma situação de conflito
na sociedade tessalonicense com a transferência
ideológico, determinada pela influência de outras
de poder para os romanos e a chegada de pessoas
cartas mais polêmicas de Paulo (posição adota
com poder político e comercial. Essa mudança te
da, de diferentes maneiras, e.g., por
ria contribuído para uma situação social em que
p. 123-218;
0 evangelho escatológico de Paulo teria sido visto
gem é quase sempre parte de um quadro monolí
de maneira favorável.
tico e incorreto sobre os adversários de Paulo ou
Qualquer que seja a maneira de entendermos
Je w e t t ,
S c h m it h a l s ,
p. 149-57). Mas essa aborda
sobre as religiões existentes na época (v.
g n o s t ic is -
sua origem, a igreja em Tessalônica parece ter
M o ).
se mantido estável e em relacionamento amisto
depende de ligações tênues estabelecidas entre as
so com Paulo e seus colaboradores. 0 texto de
exortações paulinas e outras declarações e fenô
Atos 20.4 menciona dois homens de Tessalônica
menos do mundo antigo ou entre as diferentes
entre os representantes das igrejas gentílicas que
cartas de Paulo (e.g., ITessalonicenses e 2Corín-
acompanharam Paulo em sua última viagem a
tios). Depende também de que se identifiquem
Jerusalém. Em 2Timóteo 4.10, menciona-se certo
algumas partes das cartas aos tessalonicenses
Demas, que abandonou Paulo e foi para Tessalô
como polêmicas (v. 5.1 abaixo). Estaremos em
nica. Essa breve observação não é suficiente para
terreno mais firme, falando de modo geral, se
presumir que a igreja daquela cidade deixou de
pensarmos que os problemas na igreja tessaloni
apoiar o apóstolo.
cense surgiram das possibilidades do cristianismo
Além do mais, a identificação dessa situação
paulino, não de alguma distorção ideológica sur 4. A composição das cartas
gida fora da comunidade.
Aparentemente, as cartas aos cristãos de Tessa
Nessa estrutura, parece que uma escatologia
lônica foram escritas não muito depois de Pau
plenamente realizada era defendida pelo menos
lo, Silas e Timóteo terem partido dessa cidade e
por alguns membros da igreja de Tessalônica. Ao
chegado a Atenas (ITs 2.17; 3.1; At 17.10-15). As
que parece, a confusão escatológica tratada por
tentativas feitas por Paulo de voltar a Tessalônica
Paulo girava em torno do tempo que restava até a
foram frustradas {ITs 2.18), talvez pela garantia
esperada volta de Jesus. Alguns membros da co
exigida pelas autoridades da cidade dos cristãos
munidade já haviam morrido, e os que continua
de Tessalônica de que ele não retornaria (At 17.9).
vam vivos não estavam certos de que os mortos se
iVIas ele conseguiu enviar Timóteo de volta à ci
beneficiariam com a volta de Cristo (ITs 4.13-18). Nessa situação, alguns membros da comunida
dade (ITs 3.2). Sem dúvida, Timóteo foi portador de uma
de talvez tivessem encontrado consolo na cren
mensagem escrita, porém não a temos, a menos
ça de que o aguardado retorno escatológico já
que seja 2Tessalonicenses (que seria, então, a
havia ocorrido em algum sentido (2Ts 2.1-3; v.
mais antiga das duas cartas; essa é a opinião de
r e s s u r r e iç ã o ) .
v., abaixo, sobre a sequên
Paulo não dá a razão por trás da recusa de
cia das cartas). De qualquer maneira, ITessaloni
alguns em trabalhar (ITs 4.10-12; 5.14; 2Ts 3.6-
W
anam aker,
p.
3 7 -4 5 ;
censes e talvez 2Tessalonicenses foram escritas
12), nem diz se ao menos havia alguma razão por
depois que Timóteo voltou de Tessalônica com a
trás disso. Ele nem mesmo diz ou deixa implícito
1 2 32
T essalonicenses , C artas aos
que esse padrão de comportamento surgiu após
5. Questões literárias e históricas
a conversão ao cristianismo. Portanto, a ideia co
5.1 Crítica da forma e critica retórica. A
mum de que essa ociosidade era motivada por
maioria das cartas de Paulo traz, após a saudação,
novas crenças escatológicas, constituindo-se ou
uma “ação de graças epistolar” (e.g., Rm 1.8-15;
tra manifestação da confusão escatológica abor
ICo 1.4-9; Fp 1.3-11), e nisso elas se assemelham
dada nas cartas (e.g.,
a outras cartas helenísticas (v.
M
arsh all,
p.
117, 2 1 8 ),
não
passa de conjectura.
cartas).
cartas, fo rm as
de
As duas cartas aos tessalonicenses são
Outra teoria apresentada é que o problema
anômalas pelo fato de cada uma possuir o que
causado por pregadores cristãos que reivindica
pode ser descrito como duas seções de ação de
vam sustento por parte de seus ouvintes estava
graças (ITs 1.2-10; 2.13-16; 2Ts 1.3,4; 2.13,14),
se revelando nessa recusa em trabalhar
r il l in g ,
e em ITessalonicenses encontramos ainda outra
1972, p. 96-8). Mas esse problema, no qual Paulo
expressão de ação de graças (ITs 3.9,10). A pre
não queria se envolver, em Corinto ou em Tessa
sença de duas ações de graças em 2Tessalonicen-
lônica (ITs 2.9; 2Ts 3.7-9; ICo 9), e de que trata a
ses é interpretada como prova de que essa carta
Didaquê [Di, 12), estava associado com os prega
é uma imitação não paulina de ITessalonicenses
dores itinerantes. As cartas aos tessalonicenses,
(v., abaixo, sobre a questão da autoria).
(T
porém, tratam de um problema de ociosidade en tre os membros da igreja.
Contudo, em ITessalonicenses, essa anoma lia é resolvida mediante o ajuste das categorias
É comum pensar que ITessalonicenses 2.1-12
normais da crítica da forma (e.g., interpenetração
seja uma resposta a acusações de que Paulo e seus
entre corpo da carta e ação de graças), mediante
colegas eram hipócritas não motivados por leal
identificação de ITessalonicenses como uma fu
dade a Deus nem por amor aos tessalonicenses,
são de duas cartas
mas por amor ao dinheiro (e.g.,
de ITessalonicenses 2.13-16 como uma interpola
B ruce,
p. 27-8),
(S
c h m it h a l s )
ou
a identificação
ou de que Paulo havia descuidado dos dons ca
ção pós-pauUna (e.g.,
rismáticos (cf. ITs 1.5; 2Co 10.10; 11.6;
S c h m tt-
da interpolação concentra-se no contraste entre o
p. 139-40, no que é seguido por
P
earso n
e
S c h m id t ) .
A ideia
Je w e t t ,
que Paulo diz acerca dos “judeus” em ITessaloni
p. 102-3). Mas já se demonstrou que essa passa
censes 2.14-16 e a alta consideração demonstrada
gem é apenas um exemplo de um padrão retóri
pelos judeus não cristãos em Romanos 9— 11, in-
co antigo e comum, em que o orador ou escritor
cluindo-se sua declaração sobre a futura salvação
apresenta um exemplo a ser imitado, descrevendo
dos judeus (Rm 11.26). A ideia da interpolação
o próprio comportamento em termos antitéticos
também se concentra em outros argumentos ba
( “não aquilo, mas isto” ;
seados no conteúdo e na estrutura da segunda
HALS,
L yons,
p. 184;
M
alh erbe,
1970, 1983).
ação de graças.
Outra afirmação é que alguns aspectos do
Costuma-se
aceitar
sem
questionamento
material exortativo de ITessalonicenses tratam
que a polêmica incisiva vista em ITessalonicen
de problemas específicos da comunidade cris
ses 2.13-16 surge de uma situação de animosi
tã em Tessalônica (e.g.,
dade, mas essa pressuposição é minada pelos
Je w e t t ,
p. 100-2, sobre
ITs 5.19-22; p. 103-4, sobre 5.12,13;
p. 87,
dados que mostram a polêmica incisiva como
sobre ITs 4.3-8). Está claro que Paulo tem em
generalizada no mundo antigo, e mesmo dentro
B ruce,
mente o problema da ociosidade em 2Tessaloni-
do judaísmo e da igreja (v.
censes e, por extensão, em ITessalonicenses. Mas
parece que Romanos 9— 11 se baseia numa ava-
Jo h n so n ).
Além disso,
em outras exortações, a saber, as que tratam de
Uação negativa da situação vigente entre judeus
adultério e outras formas de imorahdade sexual
não cristãos (em particular, Rm 11.7-10). E, se a
(ITs 4.3-8) e de respeito pelos Uderes da igreja
crítica da forma assumir a função de ferramenta
(ITs 5.12,13, talvez com 2Ts 3.14,15), Paulo em
de descrição, não de definição, será difícil utihzá-
prega exortações padronizadas e expressas em
la para elaborar qualquer argumento a favor de
padrões retóricos normais, sem nenhuma indica
uma interpolação (ou, no que diz respeito a ITes
ção de que algum problema em particular esteja
salonicenses, de um produto de fusão). O mes
sendo tratado.
mo se pode dizer dos argumentos de que outras
1 233
passagens das cartas aos tessalonicenses sofre
As passagens de 2Tessalonicenses 2.2 e 3.17 são
ram interpolação [e.g., ITs 5.1-11).
consideradas tentatívas de encobrir os vestígios
A crítica da forma permite isolar o aspecto
de falsificação e de denunciar ITessalonicenses, e
linico 0, portanto, o interesse especial dos três
o apelo direto ã autoridade apostólica em 2Tessa-
primeiros capítulos de ITessalonicenses, que é,
lonicenses 2.15 é visto como característica de um
em termos genéricos, o desejo de Paulo de retor
contexto pós-paulino.
nar à ação de graças quando pensa no início de seu trabalho entre os tessalonicenses (v.
No entanto, a diferença na escatologia entre
S im p s o n ,
as duas cartas tem sido exagerada. Que a parusia
1990). A renovação da ação de graças em 2Tes-
seria inesperada (ITs 5) e que sinais a precede
salonicenses 2.13, qualquer que seja o modo em
riam (2Ts 2) eram, na verdade, crenças que a igre
que é descrita pela crítíca da forma, permite que
ja mais primitiva sustentava (e.g., Mc 13). Como
0 escritor faça contraste entre “os que vos atri
falsa alegação de autenticidade, 2Tessalonicenses
bulam” (2Ts 1.6) e “ os que perecem” (2Ts 2.10),
está longe de ser convincente, visto que nenhuma
de um lado, e os destinatários, de outro, emoldu
outra carta paulina apresenta tema semelhante. O
rando as palavras acerca daqueles com ação de
apelo ã autoridade apostólica, em 2Tessalonicen-
graças por estes.
ses 2.15, não é mais incisivo que o encontrado
De modo geral, a crítica retórica das carias
em ITessalonicenses: apenas é mais explícito.
consiste em identificar os antígos componentes
Os influentes argumentos de W. TriUing contra
retóricos (e.g., exordium, paititio, nanatio) das
a autoria de 2Tessalonicenses têm feito com que a
cartas e assim considerar que as seções e as car
atenção se desvie da escatologia e das referências
tas têm 0 propósito de ser entidades completas
a uma carta anterior e se concentre em outras
com as funções generalizadas associadas aos
questões: 1) várias diferenças de estilo e teologia
termos retóricos. Desse modo, interpretam-se as
entre 2Tessalonicenses e ITessalonicenses com as
cartas como um conjunto oratório com estrutura
outras cartas paulinas incontestés; 2) diferença
epistolar. Essa atenção cada vez maior à estrutura
de atitude entre as duas cartas; 3) ausência de
retórica das cartas não tem levado a uma concor
referências pessoais em 2Tessalonicenses.
dância total (v.
p. 63-87, 221, 225;
A afirmação de que 2Tessalonicenses foi es
p. 48-52), mas tem permitido abordagens
crita por Paulo e seus colaboradores ainda não
mais flexíveis e novas maneiras de entender as
enfrenta nenhum argumento que pelos menos
funções das diferentes partes das cartas e as rela
se aproxime de tornar a autoria pós-paulina uma
ções existentes entre essas partes (mesmo no caso
conclusão convincente. Cada um dos argumentos
de ITs 2.13-16), principalmente em comparação
apresentados por Trilling, em particular o das di
com as análises temáticas e da crítica da forma.
ferenças estilísticas, é praticamente de nenhum
A anáhse retórica também reanimou a questão do
valor para alguns estudiosos que as examinaram
gênero e do tópico principal das cartas de Paulo.
detalhadamente. A diferença de atitude nas car
Cada vez mais, são consideradas retóricas as dis-
tas, necessariamente relacionada com a ausência
cordâncias no que diz respeito, por exemplo, ao
de referências pessoais em 2Tessalonicenses, tal
propósito de ITessalonicenses 2.1-12.
vez aponte não para destinatários diferentes, mas
m aker,
5.2
Je w e t t ,
W
ana
A autoria de ZTessalonicenses. Muitos para um volume diferente de informações sobre
estudiosos das cartas aos tessalonicenses estão
a mesma situação, o que, na hipótese de ambas
convencidos de que, embora Paulo e seus co
as cartas serem paulinas, suscita a questão da or
laboradores
dem cronológica.
tenham
escrito
ITessalonicenses
S.
aos cristãos de Tessalônica, um paulinista pós-
3 A ordem das cartas. A ordem canônica
pauhno escreveu 2Tessalonicenses, utihzando
de 1 e 2Tessalonicenses corresponde à ideia mais
como modelo uma carta autêntica. Em geral, os
aceita sobre a sequência cronológica das cartas,
argumentos a favor dessa ideia giram em torno
mas tal ideia não tem valor como argumento,
da compreensão de que 2Tessalonicenses é uma
pois se baseia apenas no volume das cartas. 0
correção consciente de um apocaliptismo exa
que importa são as diferenças na maneira em que
gerado, em parte inspirado pela carta autêntica.
as mesmas preocupações são tratadas nas duas
1234
T essalonicenses , C artas aos
cartas e as pistas que contêm sobre a movimen
trabalhar), a linguagem provavelmente é a mes
tação das pessoas e das próprias cartas. Seria
ma da época da proclamação básica do evangelho
mais plausível dizer que a maneira de tratar as
e, sem dúvida, não passa de um desenvolvimento
questões da escatologia e da ociosidade se desen
dos temas daquela proclamação.
volve de ITessalonicenses para ITessalonicenses?
Em particular, ITessalonicenses 1.9,10 permi
Ou será o inverso? Como entender as referências
te ver algo do padrão geral da pregação inicial de
que parecem aludir a uma experiência passada
Paulo a púbhcos gentílicos, concentrada no único
em ITessalonicenses 1.6, 2.14 e 3.3, mas a algo
Deus e em Jesus, aquele que vem, o Mediador da
presente em ITessalonicenses 1.4-7? Sem dúvida,
redenção operada por Deus a favor da humani
Timóteo levou alguma comunicação escrita con
dade (cf. At 17.23-31; ICo 8.6). 0 único Deus era
sigo na viagem mencionada em ITessalonicenses
essencial a qualquer forma de judaísmo, e a men
3.2-8, mas seria essa comunicação o que chama
sagem do fim apocalíptico do tempo presente era
mos Segunda Carta aos Tessalonicenses? Ou seria
aceita por boa parte dos judeus, embora, é claro,
ITessalonicenses a carta mencionada em ITessa
0 lugar de Jesus (v.
lonicenses 2.2? Será que uma situação que estava
Paulo fosse além do conteúdo judaico.
J esu s
e
P au lo )
na pregação de
se agravando fez com que a atitude amistosa e de
A Primeira Carta aos Tessalonicenses também
gratidão a Deus encontrada em ITessalonicenses
mostra que a pregação pauUna do monoteísmo
se transformasse no tom mais oficial de 2Tessa-
judaico (v.
lonicenses, ou teria um melhor entendimento da
drão contra a idolatria pagã (cf., e.g., Jt 10.1-10;
D
eus)
incluía a polêmica judaica pa
situação (por meio do relatório de Timóteo; cf.
Sb 13— 15). Paulo identificava esse único Deus
ITs 3.6) levado a uma atitude mais agradecida?
como o “Pai” de Jesus e dos cristãos (e.g.,
É possível elaborar argumentos fortes a favor da prioridade de ITessalonicenses
ITs 1.2,3,9,10). Como pregador, Paulo também
p. 24-30)
falava da morte (ITs 1.6; 2.15; 5.10), da ressur
anam aker,
reição (ITs 1.10; 4.14) e da aguardada volta es
p. 37-45). Saber qual das duas veio primeiro é
catológica de Jesus (ITs 1.10; 2.19; 3.13; 5.23
(J e w e t t ,
tanto quanto de 2Tessalonicenses
(W
uma indagação para a qual não temos uma res
— referências além das seções escatológicas espe
posta precisa. Por esse motivo, não temos ele
cíficas nas duas cartas; v.
mentos para construir com segurança uma teoria
motivação apresentada para aceitar a mensagem
sobre o contexto da carta. Como normalmente
de Paulo (“... recebestes [...] como a palavra de
acontece, o que temos à disposição é o conteúdo
Deus” , ITs 2.13) era que a fé em Jesus, o qual
e s c a t o l o g ia ) .
A principal
das cartas, mas não o volume de informações que
“nos livra da ira vindoura”, é o caminho de fuga
gostaríamos de ter sobre sua origem.
do juízo divino que virá (ITs 1.10; 5.9; 2Ts 2.13).
6. Teologia de Paulo na fase inicial
cristologia desenvolvida, Jesus, “ o Senhor” , é pos
Boa parte do valor de 1 e 2Tessalonicenses como
to ao lado de Deus Pai como a fonte da existência
Embora as cartas não tornem explícita uma
documentos de teologia pauhna baseia-se no fato
da igreja tessalonicense (ITs 1.1; 2Ts 1.1), como o
de estarem aparentemente bem ligadas à prega
guia da missão apostólica (ITs 3.11) e como aquele
ção missionária de Paulo. As duas cartas são di
que dá consolo e esperança ao cristão (2Ts 2.16).
rigidas a uma igreja fundada havia pouco tempo.
Ele também é visto como exemplo para o povo
Boa parte das cartas fala da obra de proclamação
sofredor de Deus, com os profetas, os apósto
a que a igreja de Tessalônica deve sua origem, e
los e os cristãos tessalonicenses (ITs 1.6; 2.15).
quase nada do conteúdo é ocasionado por preo
Mas seu sofrimento e sua morte possuem signi
cupações com situações especiais, pelo menos em
ficado maior: é o que dá origem à vida eterna do
comparação com outras cartas de Paulo. Em gran
crente em união “com ele” (ITs 5.10,17).
de parte, procuram apenas encorajar os membros
Essa perspectiva de vida com Cristo (2Ts 2.1,2)
da nova comunidade cristã na nova condição em
distingue os cristãos como um povo que tem es
que se encontram. Mesmo quando não tratam de
perança (ITs 4.13,18). Essa vida começará com a
preocupações com situações especiais (nas se
iniciativa divina de Jesus descer dos céus e com
ções escatológicas e nas palavras sobre o dever de 1
0 chamado do arcanjo (ITs 4.16; cf. ICo 15.52); 235
os crentes que tiverem morrido serão ressuscita
2Ts 3.4,14,15), mas essa responsabilidade tam
dos, e os que estiverem vivos serão levados até
bém era dos membros da igreja (ITs 5.11). O pa
as nuvens, para que uns e outros partilhem da
pel central que o sofrimento dos proclamadores
vida com ele (ITs 4.14-17; 5.10). A vinda de Jesus
do evangelho, e do próprio Paulo, ocupa na teo
e “nossa reunião com ele” (2Ts 2.1) serão pre
logia do apóstolo parece ter sido bastante influen
cedidas por uma forte manifestação do mal, que
ciado por sua ligação com a igreja de Tessalônica
tentará tomar o lugar de Deus e receber adoração,
(v. esp. ITs 2; cf. 2Co 10— 13; Fp 3; G1 4.12-19;
apoiando suas reivindicações com milagres e, as
5.11). A imitação é o vínculo entre os que estão
sim, convencendo os incrédulos (2Ts 2.3,9,10).
chegando à fé e seus líderes que sofrem e os que
Esse mal sempre está agindo, embora sua eficácia
os antecederam na fé (ITs 1.7; 2.14; cf. 2Ts 1.4), e
esteja agora limitada (2Ts 2.6,7). Quando se ma
0 sofrimento é a experiência inevitável dos prega
nifestar plenamente, ele o fará apenas como parte
dores e da comunidade cristã (ITs 3.3,4).
do plano divino de juízo (2Ts 2.11,12) e apenas
Ver também
e s c a t o l o g ia .
para ser destruído por Cristo, quando este vier em socorro dos crentes (2Ts 2.8).
B ib u o g r a f i a .
Para os incrédulos, a vinda de Cristo não será esperada, e não se pode precisar sua data
Comentários:
B e s t,
E. A commenta
ry on the First and Second Epistles to the Thessalonians. Peabody: Hendrickson, 1972.
(ITs 5.1-3). Para os crentes, é não somente razão
•
(b o t c .)
________ Peabody; Hendrickson, 1988.
da esperança, mas também a motivação funda
(b n tc .)
mental para uma vida correta e para a edificação
Word, 1982.
da comunidade (ITs 5.4-11). Nada nas exortações
to the Thessalonians. New York: Doubleday,
•
B ru ce,
F. F. 1 and 2 Thessalonians. Waco:
(w b c .)
morais de Paulo é peculiarmente judaico ou cris
2000.
tão: tudo podia ser encontrado entre os prega
nians. Grand Rapids: Eerdmans, 1983.
dores gentílicos não cristãos e entre os filósofos
M o r r is ,
morais da época (v.
Thessalonians. Grand Rapids: Eerdmans, 1959.
M alherbe,
1987). Mas, para
■
■ M a l h e r b e , A. J. The Letters
(a b .)
M a r s h a ll,
I. H. 1 and 2 Thessalo (w c b c .)
■
L. The First and Second Epistles to the
Paulo, o fundamento da exortação ética é diferen
(m c n t .)
te: é o chamado de Deus “ para o seu reino e gló
salonians. Collegeville; Liturgical Press, 1995. ■
•
ria” (ITs 2.12; cf. 2Ts 1.11), é a vontade de Deus
W a n a m a k er,
(ITs 4.3), é o conhecimento de Deus por meio da
Rapids: Eerdmans, 1990.
proclamação cristã (ITs 4.5) e é a expectativa do
s le r ,
juízo de Deus (do “Senhor”, talvez uma referên
Fortress, 1991. v. 1. ■
cia a Jesus; ITs 4.6). É um chamado à santidade
the First Letter to the Thessalonians. Louvain; Pe-
R ic h a r d ,
E. J. First and Second Thes
C. A. 1 and 2 Thessalonians. Grand ( n ig t c . )
■ Estudos:
B as-
j. M., org. Pauline theology. Minneapolis; C o lu n s ,
R.
F. Studies on
(ITs 4.3,4; cf. 5.23) e a um relacionamento com
eters/Louvain University,
Deus, que é desfrutado por aqueles que partilham
K. P. The cults of Thessalonica and the Thessalo-
de seu Espírito (ITs 4.8; 5.19; 2Ts 2.13).
nian correspondence,
A fé no evangelho dera origem a uma comu
•
D o n fr ie d ,
K. P. &
nts,
(b e tl,
v.
66.) ■
D o n fr ie d ,
31, p. 336-56, 1985.
B e u t le r , J.
The Thessalonians
nidade que devia se concentrar no amor mú
debate: methodological discord or methodologi
tuo (ITs 3.12; 4.9; 2Ts 1.3) e na admoestação
cal synthesis? Grand Rapids; Eerdmans, 2000. • G. Some notes on Paul’s conversion,
(ITs 5.11; 2Ts 3.15). A disseminação do evange
G a g e r , J.
lho em novas áreas era uma preocupação impor
p. 697-704, 1981. ■ H o c k , R. F. The social context
tante da igreja, mais ainda de seus missionários
o f Paul’s ministry: tentmaking and apostleship.
nts,
(ITs 1.8,9; 2Ts 3.1). As cartas praticamente não
Philadelphia; Fortress, 1980. ■ H u g h e s , F.
permitem vislumbrar as estruturas eclesiásticas
Christian rhetoric and 2 Thessalonians. Sheffield:
surgidas nesse momento inicial, mas Paulo deixa
js o t,
claro que o entendimento era que os missioná
lonian correspondence: Pauline rhetoric and mil-
rios e os líderes locais tinham autoridade sobre
lenarian piety. Philadelphia: Fortress, 1986. (íf.)
a vida dos crentes. Uma função importante de
■ J ohnson,
líderes locais e apostólicos era servir de exem
slander and the conventions of ancient polemic.
plo ético e fazer exortações (ITs 2.11,12; 5.12,13;
JBL, V.
1236
W.
Early
1989. OsNTSup, 30.) ■ J e w e t t , R. The Thessa-
L.
T. The New Testament’s anti-Jewish
108, p. 419-41, 1989. ■
Lyons, G .
Pauline
T ia g o , C arta de
autobiography: toward a new understanding. Atlanta; Scholars, p. 177-221. lh erbe,
NovT,
73.) ■
exige mais que meras confissões ortodoxas de fé.
M a
Nesse sentido, Tiago oferece um controle comple
A. J. Exhortation in First Thessalonians.
mentar e um contrapeso para as tendências das
[s b ld s ,
25, p. 238-56, 1983. ■ _____ _ “ Gentle
carias paulinas, ajudando a elaborar um testemu
as a nurse”; the stoic background to 1 Thess. ii.
nho bíblico que recomenda uma firme confiança
NovT,
na obra redentora do Senhor Jesus (Paulo) e uma
V.
V.
12,
203-17, 1970. ■ _____ _ Paul and
p.
the Thessalonians: the philosophical tradition of
sabedoria prática que segue o modelo da vida de
pastoral care. Philadelphia: Fortress, 1987. •
Jesus (Tiago).
M e
W. A. The first urban Christians: the social
1. 0(s) autor (es) de Tiago
world of the apostle Paul. New Haven: Yale Uni
2. O púbhco-alvo de Tiago
eks,
versity Press, 1983. ■ P e a r s o n , B. A. 1 Thessalo
3. A literatura de Tiago
nians 2:13-16: A deutero-Pauhne interpolation.
4. Abordagem canônica em relação a Tiago
HTR,
V.
64, p. 79-94, 1971. ■
S c h m id t ,
D. 1 Thess
5. 0 evangelho na visão de Tiago
2:13-16: linguistic evidence for an interpolation. JBL,
V.
6. 0 argumento de Tiago
102, p. 269-79, 1983. ■ S c h m i t h a l s , W. Paul
and the gnostics. Nashville: Abingdon, 1972. p. 123-218. ■
S im p s o n ,
1. 0 (s ) autor (es) de Tiago
J. W. Problems posed by
1 Thessalonians 2:15-16 and a solution,
1.1
Candidatos a autores. Para qualquer in
.
térprete interessado numa ampla gama de ques
12, p. 42-72,1990. ■_____ _ Shaped by the stories:
tões históricas, é importante a identidade tanto
narrative in 1 Thessalonians.
do autor de um livro quanto de seus primeiros
1998. ■ T
r il l in g
,
a tj,
v
.
h bt, v
53, p. 15-25,
W. Untersuchungen zum zweiten
Thessahnicherbrief Leipzig: St. Benno, 1972. J. W.
leitores. Por exemplo, é difícil situar uma com posição em seu contexto original, saber algo do
S im p s o n
Jr.
que a ocasionou e quando e como ela influenciou seus primeiros leitores sem que se tenha uma boa
T
e st a m e n t o d e
T
e st a m e n t o
Jó. Ver
ideia de quem a escreveu e por que o fez.
A p ó c r if o s e P s e u d e p íg r a fo s .
0 versículo inicial reivindica diretamente a de
M
o is é s .
Ver
A p ó c r ifo s
e
P s e u d e p í-
autoria de “Tiago, servo de Deus e do Senhor Je sus Cristo” (Tg 1.1). Apesar disso, a identidade
g r a fo s .
do autor continua sendo objeto de debate entre T e st a m e n t o s
d o s d o z e p a t r ia r c a s .
Ver
A p ó c r ifo s
e
os estudiosos da atualidade. Duas questões críti cas estão em jogo. Quem é esse Tiago menciona
P s e u d e p íg r a fo s .
do no im'cio da carta? Seria ele necessariamente T
ia g o ,
Carta
o autor da carta? Não há dados históricos que
de
A Carta de Tiago está entre os livros do
que
possam resolver essas questões: não dispomos de
têm recebido menos atenção. A maioria dos cren
nenhum outro texto da autoria de Tiago com o
tes e de suas tradições de fé (especialmente os
qual possamos comparar seu estilo literário e o
protestantes) ainda concorda com o veredicto
assunto de que ele trata, nem existe ninguém da
negativo de Lutero sobre sua utilidade para a for
época desse autor que confirme sua identidade.
nt
mação cristã, assinalando a falta de referência a
Mesmo que se concorde que a epígrafe do
Cristo e sua aparente discordância de Paulo como
livro identifica seu autor verdadeiro, existem
bons motivos para que a releguemos a uma posi
vários líderes cristãos de nome Tiago dentre os
ção secundária no âmbito da igreja. Os estudiosos
quais podemos escolher o autor, incluindo-se seis
de nossa época têm até mesmo considerado que
mencionados no n t . A essa hsta, por mera conjec
a tendência mais prática do livro é inerentemente
tura, alguns acrescentam até mesmo um “Tiago
inferior quando comparada à profundidade teo
desconhecido”
lógica da correspondência pauhna. Ao mesmo
nas Escrituras, existem dois apóstolos, o que os
tempo, outros apelaram para as soluções sábias
torna candidatos atraentes, por causa da íntima
que a carta apresenta para situações cotidianas,
hgação histórica entre canonicidade e apostoli-
demonstrando que a religião plenamente biTjlica
cidade, ideia que durante algum tempo recebeu
1 237
(M offatt).
Entre os Tiagos citados
T ia g o , C arta de
acolhida no Ocidente, onde alguns achavam que
lendário, cuja piedade vibrante e estilo de vida
0 livro fora escrito pelo apóstolo Tiago, filho de
ascético corrigiram uma igreja que se havia tor
Alfeu (cf. Mc 3.18; At 1.13). Contudo, fora das
nado demasiadamente secular e de classe média
Escrituras não há registro de seu ministério apos-
para o gosto de seus membros judeus e gnósticos
tóhco. De qualquer maneira, não parece que se
mais conservadores
deva exigir do autor uma credencial apostólica:
É quase certo que a igreja pensava nesse Tiago
a abertura do hvro não apela para uma função
como 0 que aparece na abertura da carta que leva
( W a l l & L e m c io ,
p. 250-71).
apostólica como forma de conferir autoridade
seu nome, ao canonizar os livros do
ao texto, e sim ao relacionamento mais modes
temunho que ele deu de Cristo e a permanente
n t.
Só o tes
to que, na condição de “ servo” , o autor mantém
autoridade que desfrutou bem no início do cris
com Deus e com o Senhor Jesus. Orígenes e Jerô-
tianismo, algo que o torna único entre os pos
nimo eram de opinião que nenhum apóstolo po
síveis candidatos, justificam a posição canônica
deria ter escrito Tiago, uma vez que discorda tão
atribuída a essa composição controversa. Dian
claramente do pensamento paulino, ideia que,
te disso,
séculos depois, Lutero acompanhou.
a Carta de Tiago reivindica ter sido escrita [pelo
W. G.
Kümmel conclui; “ Sem dúvida,
A maioria dos estudiosos presume que o úni
irmão de Jesus] e, mesmo que não seja autênti
co candidato viável continua sendo Tiago, o Jus
ca, apela para o nome desse Tiago famoso e para
to, irmão de Jesus, veredicto que encontra apoio
o peso de sua pessoa como fonte de autoridade
limitado na tradição antiga (v.
para seu conteúdo”
2 .2 3 .4 ).
E u s éb io ,
Hi ec,
1.2
Embora não fosse um dos Doze, o retrato
(K üm m el,
p. 412).
Estilo autoral e assunto. Será que “esse
que a BíbUa apresenta de Tiago é o de um líder
Tiago famoso” escreveu o livro que leva seu
importante no cristianismo judaico mais antigo.
nome? A maioria dos estudiosos da atualidade
1 5 .7 ),
acredita que não e favorece uma data pós-apos-
aparentemente para um ministério importante
tólica, embora já existam alusões significativas a
(v. Ev hb,
Tiago em 1Clemente e Hermas, no final do sécu
Jesus o escolheu após a ressurreição {ICo 7 ).
Por isso, não surpreende que Atos
apresente Tiago como sucessor de Pedro em Je
lo
rusalém (At
pois a liderança
que o grego coiné mais apurado e a capacidade
pastoral que exerceu sobre a igreja em Jerusalém
artístico-literária que se veem na composição,
1 2 .1 7 ; W a l l , 1 9 9 1 ),
I ( D a v id s ,
p.
8 - 9 ).
Esses estudiosos pressupõem
se tornou cada vez mais estratégica, primeira
além do conhecimento substancial que o autor
mente no Concilio de Jerusalém (At
e
tem da filosofia helenística da época, estão além
1 5 .1 3 -2 1 )
mais tarde durante seu relacionamento com Pau
da capacidade e da origem desse judeu prove
lo (At 2 1 .1 7 - 2 6 ). Paulo cita Tiago como a primeira
niente da classe trabalhadora da Galileia
das três “colunas” da igreja judaica (Cl
L aw s ) .
2 .9 ),
cuja
contínua observância da circuncisão e das leis de
( R eicke
e
Tiago pode até mesmo ter se valido do que
na época era uma prática comum, a saber, usado
pureza ritual minou o evangelho da missão pau
um amanuense ou secretário de confiança e de
lina entre os gentios de Antioquia (Cl
boa formação, que conhecia bem o grego e que
2 .1 1 - 1 5 ).
Na verdade, a igreja judaica preservou as ri
teria transcrito as exortações pastorais de Tiago
cas memórias de Tiago, o Justo, até quando o
em estilo mais fluente e Uterário para um públi
século II já ia bem avançado, porque o via como
co mais amplo de fala grega
discípulo-modelo
tempo que mantinha seu jeito semítico original.
( M a r t in ,
p. xli-bd). Eusébio cita
( M it t o n ) ,
ao mesmo
até mesmo Hegésipo, crente judeu do século ii
Essa solução é desnecessária. Basta recorrer
e originário de Jerusalém, que descreve com al
às evidências que, em número cada vez maior,
guns detalhes a superioridade moral e religiosa
demonstram uma inter-relação bastante ativa en
de Tiago
Hi ec, 2.23.4). Aliás, um con
tre as culturas helenística e palestina durante o
junto significativo de escritos cristãos apócrifos
final do período do segundo templo. Os judeus
(em grande parte gnósticos), compostos pseude-
religiosos, especialmente na Galileia, podem mui
pigraficamente em nome de Tiago nos século ii
to bem ter sido anti-helenísticos antes e durante a
e
queda de Jerusalém, em 70 d.C. (v.
III ( i
(E u séb io ,
e 2Ap Tg; A f Tg; Pt [= Livro] Tg; v. Eu
hb; Ep Pe Fi), exalta um Tiago exemplar, senão
ju d a ísm o ) .
En
tretanto, judeus e gregos se misturavam, mesmo
1238
T ía g o , C arta de
se sentindo um pouco desconfortáveis. Dessa
imagens e ideias a respeito de Jesus. Desse modo,
maneira, 0 livro de Atos descreve uma congre
uma cristologia mais completa ou desenvolvida
gação em Jerusalém que incluía judeus de fala
aparecerá em uma composição mais tardia. Com
grega e um pastor (Tiago) que citava a tradução
esse raciocínio, é mais fácil explicar as escassas
grega [ lxx ] das Escrituras quando os instruía
referências a Jesus em Tiago (Tg
(At 15.17,18; cf. Tg 4.6). Ou seja, Tiago cresceu
não contêm nem mesmo uma eventual alusão à
em uma cultura judaica helenizada em que se fa
sua morte expiatória (v.
lava o grego, que ele talvez tenha aprendido sufi
a carta tenha sido escrita em meados do século i.
C r is to ,
1.1; 2 .1 ),
m o rte
d e ),
que caso
Por fim, a consideração mais importante so
cientemente bem para escrever esse Uvro. Outros entendem que o escritor da carta não
bre o assunto é se o autor está reagindo a ele
pode ter sido o irmão de Jesus, cujo perfil nas
mentos controversos do ensino de Paulo, entre
Escrituras é o de quem valoriza as minúcias da
os quais a relação entre fé e obras e entre lei e
Lei judaica, que se chocam com a ideia básica da
liberdade. Uma vez que essas combinações não
carta
(K üm m el).
Essa objeção também é de pouco
se acham nem em fontes judaicas, nem nas tradi
valor. Um número cada vez maior de estudiosos
ções cristãs mais antigas do
acredita que esse molde teológico e as intenções
pressupõem que o autor esteja reagindo a ideias
pastorais judaico-cristãs, que se percebem na car
encontradas nos escritos de Paulo, quando esses
ta, espelham os mesmos compromissos do Tia
passaram a ter uma circulação mais ampla, perto
go bíbUco. Por exemplo, sua preocupação com
do final do século i (e.g.,
pureza religiosa (At 21) e com o procedimento
que Tiago foi executado em
n t,
alguns estudiosos
D ib e liu s
62
e
L a w s ).
Visto
d.C. pelo sumo
público de conformidade com a Torá (G1 2) se
sacerdote Anano ii, esses estudiosos pressupõem
destaca no texto (Tg 1.22-27; 2.8-26). Seu com
ainda que Tiago, o Justo, não poderia ter escrito
promisso com os pobres, que Paulo menciona em
a Carta de Tiago.
Gálatas 2.10, também reflete um tema importante
Entretanto, muitos relutam em aceitar que
do livro (Tg 1.9-11; 2.1-7; 5.1-6). Até mesmo o
0 autor foi motivado pelos escritos de Paulo.
Tiago conciUador de Atos 15 parece condizente
Alguns acham impossível que um leitor cristão
com a atitude por trás do livro. De igual modo, as
dos escritos de Paulo pudesse criticá-lo de ma
tradições que Lucas emprega para narrar o pro
neira tão aberta, especialmente no final do século
nunciamento de Tiago no Concílio de Jerusalém
1 o u in íc io d o s é c u lo ii, q u a n d o seus es crito s já
(At 15.13-21) e a carta posteriormente enviada
e s ta v a m s e n d o r e c o n h e c id o s c o m o “ E s critu ra s”
a Antioquia [At 15.23-29) revelam uma notável
[2 P e 3 .1 5 ,1 6 ). O u tros a in d a c o n s id e r a m q u e a
semelhança com o conteúdo e o vocabulário da
q u e s tã o d e d e p e n d ê n c ia literá ria está e m a b e rto
p. 18-20). Além disso,
(M ayor ; D avids ; M ar tin ) . M e s m o q u e T ia g o e Pa u
com base em Atos e no mundo social do judaís
Carta de Tiago
lo q u e ira m d iz e r a m e s m a c o is a c o m “ fé e o b ra s ”
mo messiânico do século i, pode se dizer que os
ou c o m “ le i e U b e rd a d e ” —
muitos temas e imagens de natureza apocalíptica
s e n d o q u e s tio n a d o p e lo s e s tu d io s o s — , P a u lo p o
encontrados no texto de Tiago dão ensejo a uma
d e ria m u ito b e m esta r re s p o n d e n d o a o q u e rig m a
sociologia de sofrimento, semelhante à da comu
d o cris tia n is m o d e J eru sa lém , e s p e c ia lm e n te e m
nidade de Jerusalém, pastoreada por Tiago. Vale
R o m a n o s e G álatas, liv r o s e m q u e se en c o n tra m
também ressaltar as várias alusões a materiais
n u m e ro s o s p a ra le lo s. E m a p o io a iss o , p o d e se
(A d am so n,
a lg o q u e co n tin u a
targúmicos e midráshicos encontrados em Tiago
cita r a c o n h e c id a a fir m a ç ã o d e G. B o rn k a m m d e
que ocorrem após seu pronunciamento em Atos,
q u e P a u lo e s c r e v e u R o m a n o s c o m o “ su a ú ltim a
quando ele, valendo-se de um midrash sobre o
v o n ta d e e t e s ta m e n to ” , a fim d e r e le m b r a r as c o n
livro bíblico de Amós, resolve um conflito interno
tro vérs ia s g era d a s p o r seu tra b a lh o m is s io n á rio ,
crucial (At 15.17-21).
p a rtic u la rm e n te en tre os cren tes e m J eru sa lém ,
A concordância entre esse Tiago e o assunto
e r e s p o n d e r a ela s (B o r n k am m , p. 17-31). E m b o ra
da carta também é confirmada por indícíos me
as id e ia s e o a rg u m e n to d e T ia g o n ã o p re c is e m
nos evidentes. Muitos acreditam que é possível
se r a n te rio re s
calcular as datas de composição com base nas
corpus 239
à
m is s ã o g e n tílic a d e P a u lo e ao
p a u lin o . é p o s s ív e l q u e sua p o s iç ã o n o
T ia g o , C arta de
cristianismo mais antigo seja mais real e certa do
teológicos, sociológicos e literários, então refleti
que em geral se supõe. Em suma, não há motivo
dos na forma flnal e no assunto da carta.
convincente para defender uma posição contrária
Por exemplo, a reorganização que o editor
à tradicional, pois é possível pressupor uma data
faz de tradições mais antígas para combinar com
pré-paulina para a carta e aceitar Tiago, o Justo,
lemas pauhnos (Tg 2.12-16) e fazer alusões es
como seu autor (v., porém, 4 abaixo).
tratégicas ao ministério de Jesus entre os pobres,
1.3
Estágios da composição. Talvez a contí além da inteligente combinação de citações da
nua indefinição do problema sugira outra solu
Torá (ou alusões a ela) e dos Profetas com o bom
ção, que leve em conta e integre um campo mais
senso (Tg 1.19-27; 4.6-10; 4.13—5.6), teve o pro
amplo de informações. Nesse sentido, J. Cantinat,
pósito de criar um contexto mais rico, no qual
que em tempos mais recentes foi cautelosamente
seu público pudesse interpretar melhor o teste
seguido por P. H. Davids, apresenta para consi
munho oficial de Tiago acerca do evangelho. Ao
deração a ideia de que a composição da forma
contrário de qualquer sermão pregado por Tiago,
bíblica de Tiago se desenvolveu em dois estágios
uma composição escrita alcança novos públicos e
diversos (v.
p. 12-3). De acordo com essa
o faz de uma nova maneira, que apresenta com
hipótese, Tiago, o Justo, é responsável pela maior
mais eficácia uma solução inspirada para a crise
D a v id s ,
parte do material básico do Uvro, apresentado
espiritual que atravessam. Embora o editor tenha
inicialmente como homiUas e preservado por
seguido as convicções fundamentais de Tiago, o
cristãos judeus da Diáspora (Tg 1.1; cf. At 8.4;
Justo, seu plano literário acentua certas convic
11.19). Isso talvez explique o conteúdo teológico
ções teológicas que eram relevantes para as novas
“primitivo” da carta.
contingências de sua igreja no final do século i,
Essas memórias preciosas de Tiago foram,
a qual se encontrava em um contexto geográfico,
então, editadas e escritas por outra pessoa, pro
hnguístíco e cultural bem diferente daquele dos
vavelmente — embora não necessariamente —
velhos dias em Jerusalém. Por isso, o intérprete
após a morte de Tiago, por causa das pressões da
que optar pela hipótese da composição em dois
missão educacional de uma igreja em expansão.
estágios deve considerar o editor o verdadeiro
0 editor que escreveu Tiago pode tê-lo feito sem
autor da carta, e o final do século i, a verdadeira
interesses religiosos pessoais, mas apenas com o
data de sua composição.
objetivo de compilar e preservar para futuros lei tores as mais perenes “frases de Tiago”. Se for de
2. O público-alvo de Tiago As cartas do
fato necessária, essa conjectura talvez explique a verbalização do cristianismo de Tiago na forma
nt
são escritos situacionais, na
maioria das vezes redigidos para defender ou nutrir a fé hesitante de um público-alvo imaturo.
literária e intelectual da cultura helenística. No entanto, raramente os editores são assim
Embora o conselho do autor só raramente assu
tão objetivos. Até mesmo os que não costumam
ma a forma narrativa, cada carta, ainda que de
sobrepor perspectivas teológicas ao compor uma
forma implícita, conta uma história dos esforços
obra precisam escolher algum material dentre as
empreendidos por seu público-alvo para confir
tradições disponíveis — o que é um ato de juízo
mar sua fé. No caso de Tiago, o enredo da histó
interpretativo. Além disso, o ato de reprocessar
ria envolve o sofrimento de crentes judeus cuja
tradições antigas é normalmente ocasionado pe
devoção ao Senhor e uns aos outros é provada
las necessidades dos novos leitores. A estrutura
por conflitos de vários tipos, tanto espirituais
literária e a coerência teológica cuidadosas da
quanto sociais. 2.1
carta parecem refletir exatamente esse tipo de de
Identidade do público-alvo. A identidade
cisão editorial. É improvável que Tiago seja uma
dos primeiros leitores de Tiago é indefinida, e as
simples compilação de frases, como alguns têm
opiniões permanecem divididas. Diante da escas
sugerido (v. 3 abaixo), ou a cópia de um discurso
sa informação sobre a identidade dos leitores, a
antigo. Aliás, caso se aceite a ideia da composição
maioria dos exegetas se satisfaz em situá-los em
em dois estágios, talvez seja necessário pressu
um de dois lugares; na Diáspora pós-paulina ou
por que 0 editor tinha em mente certos objetivos
na Síria-Palestina antes da guerra (66-70 d.C.).
1 240
T ia g o , C arta de
Contudo, todos concordam que o lugar certo para
sentido, eram estrangeiros em sua pátria e fora
começar essa análise é o versículo inicial da car
dela. Mesmo na Palestina, o solo pátrio costuma
ta, que saúda o público-alvo, identificado como
va estar nas mãos dos ricos proprietários de terras
as “ doze tribos da Dispersão”. Qualquer que seja
(Tg 5.1), os quais controlavam a vida econômica
a maneira em que for entendida, essa expressão
(Tg 5.4,6) e religiosa (Tg 2.2-7) dos empregados
enigmática pode ser empregada para interpretar
pobres, às vezes de maneira desonesta e cruel
as referências posteriores que a própria carta faz
(v. 2.2 abaixo).
aos leitores, resultando em um quadro mais de talhado e nítido.
De modo semelhante, nas Escrituras, a Diás pora ressalta exatamente esse tipo de experiência
Caso se interprete ao pé da letra a expressão
(cf. IPe 1.1; Is 49.6), em que a dor de um povo
inicial, os leitores são provavelmente crentes ju
é resultado de estar ele separado da terra abun
deus (“doze tribos”) que residem em algum terri
dante da bênção divina, seja essa terra Israel ou
tório romano fora da Palestina (“da Dispersão”),
os céus. No sentido rehgioso, o sofrimento revela
talvez Roma, Alexandria ou mesmo a Síria, perto
a condição de “peregrino e estrangeiro” da pes
do final do agitado reinado de Domiciano
soa, porém, mais significativamente, a ausência
( R e ic k e ) .
Mas, se a expressão for entendida metaforicamen
da salvação prometida, ainda futura. Aliás, esse
te, o âmbito de possíveis sentidos e contextos é
entendimento teológico de lugar acrescenta ou
significativamente ampliado. Com base nisso,
tra camada de significado à expressão “as doze
alguns criaram contextos complexos de conflito
tribos” , cuja herança futura das bênçãos do reino
social e espiritual, confirmados pelas cenas de
atenua as provações do exílio presente.
hostilidade encontradas ao longo da carta.
A ambivalência que vem à mente, entre o atu
Na verdade, uma leitura metafórica de “as
al sofrimento do público-alvo na Diáspora e sua
doze tribos” concorda com o emprego da expres
restauração futura na condição de doze tribos,
são por outros autores bíblicos. Os profetas bíbli
ressalta a crise espiritual que levou à composi
cos, por exemplo, usam a expressão (ou, então,
ção e à leitura da carta. 0 raciocínio é muito bem
“tribos de Israel”) para se referir a um Israel futu
apresentado: embora pertençam ao Israel redimi
ro e restaurado (Ez 47.13,22; Is 49.6; Zc 9.1). No
do e restaurado, os crentes ainda enfrentam as
argumento de Paulo, o “ Israel de Deus” (G1 6.15)
adversidades e a aflição da Diáspora, que provam
é um povo espiritual, não étnico (cf. Rm 9— 11;
sua devoção a Deus (Tg 1.2,3). 0 possível fra
G1 3—6), que pertence a Cristo (Rm 9.1-18),
casso espiritual traz consigo esta consequência:
sendo o legítimo herdeiro da promessa bíblica
a perda da bênção prometida (Tg 1.12-15). A
de salvação (G1 3.21—4.7; cf. Tg 2.5). De modo
aprovação no teste espiritual, possibiUtado pela
semelhante, o público-alvo de Tiago é constituí
sabedoria divina, assegura a salvação futura da
do de pessoas, cuja identidade básica parece re
comunidade (Tg 1.16-21). Por isso, a considera
ligiosa e escatológica, não étnica e nacional. Ou
ção jubilosa que a comunidade dá ao sofrimento
seja, constituem um povo espiritual que tem a
presente (Tg 1.2) tem em mente a perspectiva de
vida orientada pela Palavra de Deus e o destino
uma restauração futura, quando tudo se tornará
concretizado na bênção prometida por Deus.
completo e perfeito e nada faltará (Tg 1.4).
Os escritos judaicos também atestam o uso
2.2
O mundo social e espiritual do público-al-
metafórico da Diáspora para designar os crentes
vo. As referências aos primeiros leitores da carta,
que viviam na Palestina, sem ser alcançados pe
por mais tênues ou mesmo obscuras, fornecem
los sistemas de apoio social e religioso
(O ve r m an
vários indícios sobre a natureza do conflito, o que
. Nesse caso, uma referência aos
talvez nos ajude a contar a história não registrada
e
M a y n a r d - R e id )
judeus da Diáspora não precisa situá-los em um
desses leitores. Eles são crentes (Tg 1.2), mem
lugar geográfico, e sim em um mundo social.
bros de uma sinagoga judaico-cristã (Tg 2.1,2),
Além disso, eles foram muitas vezes expulsos
que desejam ser “ricos em fé”, na condição de
de sua terra natal por motivos políticos (e.g.,
herdeiros do reino prometido (Tg 2.5), e, ao mes
criminosos) e econômicos (e.g., trabalhadores
mo tempo, procuram os prazeres terrenos de que
desempregados, devedores de impostos). Nesse
sentem falta (Tg 4.1-5). Parte do sofrimento que
1241
T ia g o , C arta de
experimentam se deve à sua pobreza. São uma
de Deus (Tg 1.5-8) ou mesmo a ideia enganosa
congregação “de condição humilde” (Tg==1.9-ll;
e nociva de que Deus é culpado das coisas ruins
cf. Tg 4.6-10), constituída de membros da classe
que acontecem na vida (Tg 1.13-16). A ansieda
trabalhadora pobre (Tg 5.1-6) e de outros gru
de pela segurança pessoal talvez levasse alguém
pos sociais que abrangem os mais desprezados
a supor que as confissões superficiais da fé or
(Tg 1.27; cf. At 6.1-6), os mais oprimidos (Tg 2.1-7;
todoxa fossem suficientes para a aprovação de Deus (Tg 1.22-27; 2.14-20), funcionando como
cf. G1 2.9,10) e os mais pobres (Tg 2.14-17). Seus inimigos são os latifundiários ricos
substitutas de uma vida moralmente rigorosa que
(Tg 5.1) e a classe média envolvida no comércio
expressa misericórdia pelos pobres e impotentes
(Tg 4.13), sendo ambos os grupos membros de
explorados pelos ricos e poderosos (Tg 2.1-13,21-
uma congregação judaica ligada à sinagoga local
26). Um desejo íntimo e ardente por prazeres de
(Tg 2.2-4; cf. Tg 1.9). No entanto, o que mani
que sentem falta (Tg 4.1,2) entrega a pessoa a
festam — a exploração dos pobres, a ganância e
um desejo corrosivo de coisas à custa do relacio
a maldade, que ofendem os alicerces morais da
namento com Deus (Tg 4.6-12) e com o próximo
tradição bíblica (Tg 2.8-10) — reforça a crítica do
(Tg 4.3-5). O fracasso espiritual é resultado de
autor contra eles. São tolos porque olham para
engano teológico, quando uma ideia errada sobre
o “espelho" (= lei bíblica) e então se desviam
a Palavra de Deus dá margem a decisões ruins e,
dele (Tg 1.22-24), sem que, à vista da luz eterna
no final, impede a participação na nova ordem
da vontade de Deus (Tg 4.14-17) e da vinda imi
(Tg 1.17-21; 2.12,13; 3.14-16; 4.11,12). 2.3
nente do juízo divino (Tg 5.4-9), reflitam sobre a própria fragilidade (ou riquezas, Tg 5.1-3). Aliás,
Tensões sociais e espirituais. Retratar
com precisão um cenário no mundo romano do
eles se tornaram “estrangeiros” (Tg 2.6,7) para o
século
reino de Deus (Tg 2.5), não mais pertencendo às
extremamente difícil. Por isso, alguns preferem
I,
seja helenístico, seja palestino, é tarefa
“ doze tribos” , nem podendo mais aguardar com
acompanhar Dibelius na ideia de que essa forma
regozijo a completa restauração. Demonstrando
de literatura (parênese) resiste a qualquer teoria
que são de fora, oprimem os membros necessita
sobre as circunstâncias que possam ter ocasiona
dos da congregação (Tg 2.2), usando até mesmo
do a composição e a primeira versão desse tex
de influência política para explorar os pobres da
to. Pode se pensar talvez em uma cultura moral
classe trabalhadora (Tg 5.1-6) e exigir veredictos
que essa literatura está ajudando a modelar com
favoráveis no tribunal civil (Tg 2.6,7) e no da si
seu conselho, delimitando as fronteiras sociorre-
nagoga (Tg 2.3,4;
ligiosas da comunidade em um ambiente hostil
W ard).
Essas pressões externas criaram tensões na congregação, ameaçando sua unidade e tam
(P erdue; Elu o t).
Talvez até as imagens apocalíp
ticas encontradas em toda a carta desempenhem
bém a sobrevivência escatológica. O conflito
o mesmo papel social; imagens que prefiguram
entre os crentes apresenta-se de muitas formas.
uma nova ordem cultural que promete uma pátria
Alguns menosprezam os pobres da congrega
alternativa, mais acolhedora, para um povo pobre
ção para honrar os ricos e poderosos de fora
e impotente
(W a ll,
1990).
(Tg 1.22—2.26). As ofensas entre mestres rivais
Mesmo assim, alguns continuam a investigar
enfraquecem o ministério de ensino e a formação
Tiago em busca de um Sitz im Leben (“contexto
espiritual do povo (Tg 3.1-18). A fonte das hosti
de vida”) histórico em particular. A opinião tra
lidades entre os crentes (Tg 4.1,2) e, por fim, con
dicional situa 0 autor e seu público-alvo na Pa
tra Deus (Tg 4.7-10) é a frustração por não terem
lestina pré-guerra. As informações extraídas da carta encaixam-se bem nesse contexto
os bens materiais que desejam ardentemente.
( D a v id s ,
Talvez mais perturbador que esse conflito
p. 28-34). Naturalmente, ninguém que aceite a
entre ricos e pobres, que, por sua vez, ameaça
Diáspora literal concordaria com esse contexto.
a solidariedade da congregação, seja o conflito
Além disso, embora as imagens e metáforas ba
espiritual ou psicológico, que ameaça o relacio
seadas na natureza fiquem mais nítidas contra o
namento do crente com Deus. As mesmas tribula
cenário da Palestina
ções também geram dúvida sobre a generosidade
outros, não se convence com esses dados e reage.
1242
( H a d id ia n ) ,
S. S. Laws, entre
T ia g o , C arta de
apontando para o uso de imagens semelhantes na
saduceu. 0 argumento de Martin aceita o registro
literatura grega, assim como outros apontam para
histórico de Josefo, segundo o qual Tiago foi exe
as Escrituras como fonte dessas imagens.
cutado por Anano ii, sacerdote saduceu, no ano
Entretanto, se o contexto da Diáspora for visto
62, no auge das tensões com a igreja de Jerusa
como metáfora da desestruturação espiritual ou
lém. Tiago pode ser lido como outro tipo de regis
social, as referências à luta de classes entre ricos
tro sobre o episódio. Sua argumentação também
e pobres oferecem indícios mais convincentes a
faz sentido no que diz respeito não apenas ao con
favor de uma origem palestina
flito econômico mencionado na carta (Tg 5.1-6;
( M a y n a r d - R e id ) .
Na Palestina, como em todo o mundo romano, as
2.6,7), pois a aristocracia proprietária de terras
áreas rurais e a riqueza estavam concentradas nas
era composta essencialmente por saduceus, mas
mãos de uns poucos fazendeiros ricos (Tg 5.1).
também ao religioso, à disposição teológica do
Comerciantes de classe média (Tg 4.13) só po
livro, porque os saduceus também observavam
diam sonhar com uma vida luxuosa se conquis
a Torá (Tg 1.22-25; 2.8-13) e estavam profunda
tassem um lugar entre a aristocracia proprietária
mente temerosos de qualquer movimento apoca-
de terras. Com esse objetivo, os comerciantes tra
líptico-messiânico — ao qual os leitores de Tiago
balhavam com os grandes proprietários de terra
pertenciam (Tg 2.1; M
a fim de controlar o comércio agrário, o que só
to, ao contrário dos zelotes, cujo
tornava os trabalhadores mais dependentes do
0 mais temido pelos saduceus, Tiago conduz seus
proprietário das terras e a situação do fazendeiro
leitores em uma direção mais espiritual e menos
pequeno e independente mais difícil de suportar.
violenta, de modo que as lutas dos pobres contra
Contudo, não havia quase nenhum movimen to ascendente entre essas classes sociais, porque
a r t in
,
p. Ixiv-lxv). Entretan a p o c a u p t is m o
era
os ricos são internalizadas como guerra espiritual contra o materialismo (Tg 4.1-5).
Roma mantinha uma sociedade estratificada como forma de controlar as massas. Por temer
3. A literatura de Tiago
uma greve de trabalhadores, Roma não encora
3.1
Tiago como exortação. A maioria dos es
java a exploração dos pobres pela aliança entre
tudiosos aceita com reservas a importante con
comerciantes e fazendeiros, mas a situação era
clusão crítico-formal a que Dibelius chegou, a
tolerada para que se pudesse manter a frágil pros
saber, que Tiago é uma parênese, antigo gênero
peridade da região. Principalmente nas épocas de
de hteratura moral caracterizado por uma compi
fome (v. Tg 5.17,18; At 11.27,28), a pressão sobre
lação de várias máximas morais e pequenas com
a mão de obra no campo e os que trabalhavam na
posições temáticas, mais ou menos ligadas entre
ceifa se intensificava, e o bem-estar econômico
si por temas comuns e palavras-chave, mas sem
dessas pessoas se tornava mais precário à medida
rima, motivo teológico ou situação social especí
que os proprietários de terras tentavam aumen
fica. 0 clima dominante da parênese é imperatí-
tar ao máximo os lucros (Tg 4.4-6). O resultado
vo: a exortação básica é a que se viva uma vida
é que alguns não tinham nem mesmo o míni
virtuosa. Os leitores são lembrados várias vezes
mo para sua subsistência (v. Tg 2.15,16). Desse
da verdade moral que todos devem aceitar (e.g.,
modo, a maioria da população palestina estava
Tg 1.19; 3.1-8; 4.3,4) e dos exemplos de heroísmo
confinada a guetos de trabalhadores, com um pa
(e.g., Jesus, Abraão, Raabe, Jó, EUas) que todos
drão de vida que mal lhes permitia sobreviver e
devem imitar.
sem esperança de uma vida melhor. Esse deter
Mesmo que se aceite que Tiago manifesta as
minismo histórico dava origem ou ao ódio social
convenções da literatura parenética e tem forte
e à rebelião campesina em potencial, ou a um
apelo, a forma final emoldura um testemunho
sentimento rehgioso profundamente arraigado a
sobre Deus cuidadosamente organizado que obri
uma “piedade da pobreza” e a uma esperança
ga os crentes a uma resposta fiel e cristã diante
apocalíptica.
das afirmações desse testemunho. Desde a obra
Além disso, Martin defende que a Carta de
de Dibelius, vários intérpretes têm demonstrado
Tiago foi escrita a uma comunidade de pessoas
que a composição se desenvolve ao longo de uma
pobres e seus líderes, que sofriam sob o domínio
estratégia retórica (e.g.,
i:243
Jo h n so n
e
W atson)
que
T ia g o , C arta de
defende uma mensagem teológica especifica. L.
demonstrada durante a provação pessoal, quando
T. Johnson argumenta que Tiago deve ser analisa
as ações dos sábios resultam em bênção pessoal
do como apresentação oral e defende a existência
e divina (v.
de uma coerência temática e literária estrutura
contraste entre as confissões de confiança e a fé
da por duas cosmovisões rivais: “amizade com o
incorporada podem ser menos uma resposta ao
mundo” e “amizade com Deus”
ensino paulino e mais um reflexo do contraste en
(J o h n s o n ,
1995,
Jo h n s o n ,
1995, p. 27-9). 0 conhecido
tre discurso eloquente e ação moral encontrado
p. 13-5). 3.2 Tiago como epístola. Também é possível
em certos moralistas helenísticos como Epicteto.
estudar Tiago como literatura epistolar. Embora
As características de uma vida virtuosa, con
omita muitos aspectos da forma epistolar paulina
centradas na lista encontrada em Tiago 3.7 e
helenística, a estrutura de Tiago ainda apre
complementadas pela ênfase a uma vida de pa
o u
:
ciência, perfeição, constância e autocontrole, são
existe uma abertura (Tg 1.1), seguida de uma
temas comuns entre as filosofias morais da épo
proposição (Tg 1.2-21) que esclarece o fator mo
ca, especialmente o estoicismo e o cinismo.
senta um vago paralelo com outras cartas do
n t
tivador da carta e introduz o conselho do autor.
Este verbete procura entender essa mesma
Apresenta, então, várias exortações e juramentos
avaliação moral e seus vários temas à luz dos es
que promovem a piedade cristã (Tg 5.5-7,9-18),
critos sapienciais judaicos. 0 tema teológico de
antes de declarar o verdadeiro propósito da carta
Tiago é profundamente bíbUco, e os padrões lite
(Tg 5.19,20). Entre as proposições iniciais e as
rários greco-romanos e os temas encontrados nes
exortações de conclusão, fica o corpo da carta
sa composição estão incluídos na visão biTjlica do
(Tg 1.22—5.6), constituído de três composições
autor. De acordo com Tiago, a moral é intensifi
razoavelmente longas sobre a sabedoria que há
cada pela fé que o crente tem em Deus. Não é,
em ser “pronto a ouvir” (Tg 1.22—2.26), “tar
portanto, uma ética da virtude, cujo fracasso é
dio para falar” (Tg 3.1-18) e “tardio para se irar”
o defeito de caráter e a autodestruição. Em vez
(Tg 4.1—5.6), 0 que transmite de modo mais
disso, é uma ética teológica, pois a falta de sabe
completo sua mensagem pastoral a leitores reple
doria ameaça as relações do crente com Deus e
tos de problemas.
põe em perigo a perspectiva de bênção no reino
É evidente que a forma Uterária do corpo prin
futuro de Deus na terra. Por isso, Tiago se enqua
cipal de Tiago difere, em convenção e conteúdo,
dra muito mais facilmente como Escritura que
das cartas pauhnas, quando comparada com elas.
como antologia de filosofia moral helenística. É
Entretanto, sua função é exatamente a mesma:
claro que as duas fontes, a helenística e a bíblica,
proporcionar aos leitores uma interpretação per
não divergem na forma nem no conteúdo e estão
suasiva da crise espiritual que atravessam e ofe
integradas a escritos judaicos intertestamentá-
recer-lhes uma solução prática que promova sua
rios, como Eclesiástico e Sabedoria de Salomão,
salvação futura (v. 4 abaixo).
os quais, sem dúvida, fazem parte da tradição
3.3 Tiago como escrito sapiencial. A questão
sapiencial herdada por esse autor. Há também
das fontes continua sendo espinhosa: de onde
vários paralelos com os escritos de Filo. Tiago
vem esse entendimento que o livro tem acerca da
é uma sabedoria tradicional, e suas percepções
sabedoria? No meu ponto de vista, a sabedoria
são mais judaicas que greco-romanas. Em várias
é a ideia que dá direção a esse Uvro e por meio
passagens, os assuntos fundamentais, implícitos
da qual tudo o mais é entendido. Tiago refere-se
nessa composição, não são greco-romanos, mas
à sabedoria como a divina “palavra da verdade” ,
bíblicos — perspectiva que Johnson recentemen
graciosamente concedida a um povo fiel para que
te defendeu em seu comentário sobre Tiago.
este entenda suas tribulações e possa se orien
Por esse motivo, o intérprete procura nas Es
tar em meio às tribulações, a fim de garantir seu
crituras, não nos escritos dos moraUstas e dos
p. bcxxii-
filósofos greco-romanos, a relação entre Tiago
bcxxiv). Tem se afirmado, de modo convincente,
e os assuiítos ali tratados: Tiago apresenta uma
que Tiago partilha do mundo moral greco-roma-
leitura atuaUzada da sabedoria bíblica (Tg 1.19;
no
V.
destino na nova criação (cf.
(L aw s)
M a r t in ,
: a virtude da comunidade dos sábios é
1 244
6 abaixo). A estratégia interpretativa geral de
T ia g o , C arta de
Tiago é sapiencial no sentido de que as tradições
Tiago e essas outras vozes bíblicas. Às vezes,
não sapienciais e extrabíblicas passam pelo fil
0 que falta em uma citação bíblica acrescenta
tro da sabedoria judaica. Então, nesse sentido, a
a Tiago um aspecto que lhe dá significado. Por
provação que Tiago menciona é espiritual, não
exemplo, a elaborada referência a Raabe, em Tia
pessoal, e esse “caminho da sabedoria” promete
go 2.25, pressupõe, por aquilo que omite, que o
uma bênção escatológica (Tg 1.12) para os que
leitor conhece bem a história desse personagem,
vivem e agem ã luz do triunfo vindouro do Se
conforme relatada em Josué 2. Dessa forma, Tia
nhor (Tg2.5; 5.7-9).
go não precisa nem mesmo mencionar a fé de Ra
3.4
Tiago como midrash. Tiago é um escri abe, pois o relato bíblico acerca de Raabe afirma
to midráshico. Embora vários exegetas tenham
que as obras de sua hospitalidade são a marca
detectado fragmentos de midrashim judaicos da
da autenticidade da verdadeira religião. Desse
época empregados por Tiago (e.g.,
John
modo, vim a 1er Tiago como o produto literário de
pouquíssimos ousam afirmar como M. Ger-
um autor cuja consciência sobre o cânon faz com
tner que o livro todo de Tiago é um midrash do
que sua BíbUa passe a ser o símbolo principal de
salmo 12. Mais comedida é a ideia de Johnson,
sua vida reUgiosa e então rotineiramente recorra
que encontra em Tiago exemplos de um midrash
a ela, às vezes de maneira sutil, para justificar a
halákico de Levítico 19 que dão coesão à visão
autoridade moral do conselho que está dando a
moral do livro e a justificam
seus leitores.
s o n ),
W a rd
(J o h n s o n ,
e
1982).
A teoria literária contemporânea emprega o
Percebe-se a natureza dinâmica de uma leitu
midrash como metáfora para designar a intera
ra intertextual de Tiago mesmo quando o exegeta
ção reflexiva de um texto literário com outro mais
estreita seu quadro de referências para a intratex-
antigo. Ou seja, um texto literário é midráshico
tualidade do livro em si. Seguindo a pista indi
quando interpreta um texto mais antigo como
cada por G. Lindbeck, descobre-se o significado
parte da própria redação e argumentação, tendo
pleno de Tiago quando uma passagem é analisa
em vista alcançar um novo público-alvo e a si
da no contexto literário e teológico da composi
tuação desse público. Nesse sentído, o indicador
ção, quando esta se torna o meio privilegiado da
principal do midrash bíbUco não é uma forma
própria interpretação. Nesse sentido, aborda-se
de literatura (e.g., halákica) produzida de acor
Tiago como um texto autônomo que fornece a
do com certas normas rabínicas de comentário
própria “gramática” , que leva seu “mundo consti
das Escrituras: o indicador principal é uma inter-
tuído por textos” a fazer sentido
textualidade, quando o leitor de um texto bíbUco
Dessa perspectiva intratextual, é possível discer
reconhece a citação, alusão ou eco de outro texto
nir, com base na repetição dos mais importantes
bíbUco mais antigo que completa e ressalta o sig
lemas e palavras-chave em diferentes pontos do
( L in d b e c k ,
p. 136).
nificado do texto mais recente. Na minha leitura
argumento, um significado mais profundo desses
da intertextualidade do midrash, os textos bíbU-
lemas e palavras (v., e.g., o uso que o autor faz
cos ecoam outros textos bíblicos como pistas lite
da palavra “perfeito” [Tg 1.4,17,25; 2.22; 3.2; cf.
rárias que apontam para aquelas histórias, temas,
2.8; 5.11]). Pela repetição, essas palavras adqui
pessoas ou lugares a fim de elaborar um contexto
rem sentidos novos e ampliados, ao passo que,
bíbUco mais completo, no qual o intérprete com
ao mesmo tempo, os usos anteriores alertam o
petente considera o significado teológico da pas
intérprete para possíveis significados que podem
sagem um objeto de análise.
muito bem estar obscurecidos no novo contex
Assim, tendo em mente essa compreensão do
to Uterário e lingüístico. Esse aspecto Uterário de
que seja o midrash, no que diz respeito a palavras
Tiago é especialmente importante, porque pro
e ideias semelhantes encontradas em diferentes
porciona uma coerência Uterária que, de outra
partes das Escrituras, em Tiago ocorrem citações,
forma, parece não existir para alguns intérpretes.
alusões e ecos — palavras e ideias que acrescen
Os dois aspectos da habilidade artístico-Ute-
tam um sentido rico e implícito à mensagem do
rária de Tiago mencionados acima também são
livro. Trata-se de uma mensagem emoldurada
importantes no discurso de persuasão da cultura
por um diálogo espontâneo e enriquecedor entre
literária greco-romana, o que também contribuiu
1245
T ia g o , C arta de
para dar forma ao corpo principal da composição
fonte pré-sinótica, argumentando que as frases
Está claro que a repetição de palavras
semelhantes em Tiago sugerem uma fonte ain
(W atson).
e ideias-chave em uma composição era um dos
da mais primitiva e, além disso, possuem forma
aspectos da retórica antiga, escrita ou falada.
e função literárias diferentes do que ocorre em
Por exemplo, por meio da repetição de palavras-
Q e nos Evangelhos Sinóticos. Seja como for, B.
chave ao longo de uma composição ou discurso,
Witherington está certo ao argumentar que Tia
alguém como o autor de Tiago podia, tendo em
go apresenta uma concepção teológica mais con
mente seus destinatários, organizar seções dife
vencional e menos profética que a encontrada
rentes de uma composição e estabelecer relações
nos lábios do Jesus dos Evangelhos Sinóticos
entre elas. Nesse aspecto, é essencial a natureza
( W it h e r in g t o n ,
p. 236-47).
espontânea da repetição, de modo que os usos posteriores de uma palavra ou expressão natural
4. Abordagem canônica em relação a Tiago
mente ampliavam e esclareciam como o ouvinte
Toda abordagem canônica da interpretação bíbli
ou leitor devia entender um tema que era impor
ca considera a leitura das Escrituras em sua tota
tante para a composição como um todo.
lidade como 0 testemunho oficial ou canônico da
O emprego de exemplos proféticos em Tiago
igreja a respeito de Deus e, desse modo, formador
também segue a prática retórica da Antiguidade.
e normativo do entendimento que a própria igreja
No caso de Tiago, referências a personagens bí
tem acerca de Deus
blicos conhecidos (Abraão, Raabe, Jó, Ehas) não
reconhece esse papel teológico mais claramente
apenas proporcionavam oficialmente exemplos
quando reflete sobre as Escrituras em seus con
em apoio à mensagem — essas pessoas foram
textos bíblicos e eclesiásticos, não em seu am
aprovadas em suas tribulações e dificuldades
biente histórico ou literário “original”. Embora as
espirituais — , mas também exemplos para a co
reconstruções históricas e literárias do Tiago “ori
(W a ll,
1995). 0 intérprete
munidade escatológica: estas receberam de Deus
ginal” tenham tido certo valor na identificação do
as bênçãos prometidas. 0 emprego desses exem
sentido pleno do texto bíblico, é errôneo pressu
plos em Tiago é mais que retórico, pois cada um
por que a investigação histórico-crítica determina
chama a atenção para uma história bíblica que
seu sentido normativo. A propriedade principal
fornece uma mensagem básica que está implíci
do texto bíblico não é histórica nem literária, mas
ta e, por sua vez, aprofunda o tema que Tiago
teológica. Para o exegeta, situar essa composição
apresenta.
no contexto do século i e apurar seu sentido ali é
3 .5
F o n te s lit e r á r ia s . O p o s s ív e l c o n h e c im e n
identificar erradamente o verdadeiro referente do
to e u so d e tra d iç õ e s d o n t p o r p a r te d o autor,
testemunho bíblico, que é Deus. Caso o interesse
e s p e c ific a m e n te as e n c o n tra d a s n o s E v a n g e lh o s
que orienta a tarefa do intérprete diante das Es
S in ó tic o s e nas ca rta s p a u lin a s e p e trin a s, c o n
crituras sejam os papéis que elas desempenham
tin u a s e n d o o b je to d e d e b a te . E m b o ra h a ja im
com autoridade dentro da igreja, então todas as
p o rta n te s p a ra le lo s lin g u ís tic o s e te m á tic o s en tre
várias tarefas, a exegese e a interpretação bus
T ia g o e as p rin c ip a is cartas d e P a u lo e
1P e d r o
—
m a is n u m e ro s o s e g a ra n tid o s d o q u e a m a io ria
carão entender um texto bíblico como fonte de reflexão e compreensão teológicas.
d o s e s tu d io s o s a d m ite — , a q u e s tã o d a d e p e n d ê n
Em seu contexto vivencial bíblico, o livro de
c ia lite rá ria p e r m a n e c e in d e fin id a (v . 1 a c im a ).
Tiago proporciona um testemunho peculiar e
O m e s m o se p o d e d iz e r d a p o s s ív e l a p ro p ria ç ã o
complementar acerca de Deus, de modo que não
p o r T ia g o d e u m a fra se d e Jesus e n c o n tra d a e m
é uma expressão única da Palavra de Deus, nem
e d e p o is e m L u ca s (D avids), m as
uma voz dissonante a ser excluída das outras que,
e s p e c ia lm e n te e m M a te u s (Shepherd). A liá s , os
juntas, concordam sobre a Palavra. Nesse senti
p a ra le lo s en tre T ia g o e o S e rm ã o d o M o n te , e m
do, a fé cristã é distorcida quando não se leva a
su a v e r s ã o m a te u s in a (q u e te m p a ra le lo s e m L u
sério 0 testemunho peculiar de Tiago. Entende-
Q (M a rtin ,
1991)
ca s e o ) sã o n o ta v e lm e n te p r ó x im o s (e .g ., M ayor,
se melhor o significado especial do testemunho
E n tre
desse livro acerca de Deus quando se examina
ta n to , D . D . D e p p e p o s ic io n a -s e c o n tra q u a lq u e r
sua relação com o testemunho de outros hvros
p . Ix x x ii- b íx x iv ; Shepherd; c f. M artin ,
1993).
1 246
T ia g o , C arta de
e coleções bíblicos, justamente porque cada um
cristã e o tema teológico da obra em uma tradi
entende Deus de maneira diferente, ainda que
ção particular — a de Tiago de Jerusalém, irmão
complementar, e pela “crítica mútua” , compõe
de Jesus. Por sua vez, o nome Tiago, encontrado
uma fé mais objetiva e característica.
no título bíblico e na abertura epistolar, atribui
Além dessa perspectiva geral sobre o estudo
esse escrito à tradição revelacional fundada por
das Escrituras, o intérprete recebe uma orienta
Tiago, ou seja, uma forma conservadora do cris
ção importante por meio do título que introduz o
tianismo judaico.
livro na coleção canônica de que faz parte; pela
4.2
Posicionamento no cânon. A posição das
disposição dos escritos no cânon como um todo;
cartas no corpo do
por meio da forma literária final de uma composi
revela o papel que esse livro continua a desem
ção, que, nesse gênero, melhor expressa a Palavra
penhar como parte das Escrituras. Tiago faz parte
de Deus; por meio do uso que o autor faz das
de uma segunda coleção de cartas do
Escrituras, pista inconfundível de que o público-
ra por um longo tempo a relação existente entre
nt
e de Tiago no meio delas
nt.
Embo
alvo canônico deve ler seu livro como Escritura;
os quatro Evangelhos venha sendo assunto de
por meio da história da interpretação do livro, ou
investigação entre os estudiosos, pouquíssimos
seja, um livro se “torna canônico” quando intér
consideram importante a relação entre as duas
pretes fiéis o usam repetidas vezes para confortar
coleções de cartas do
os aflitos e afligir os confortáveis.
entre as cartas não paulinas e as paulinas na for
4.1
nt.
Qual a possível relação
Título. Os títulos são propriedades do pro mação de nossa compreensão teológica (que é a
cesso canônico e, como tais, indicadores de uma
função das Escrituras)? Como essa consideração
tradição teológica. Eles desempenham um papel
pode ajudar o intérprete a discernir o papel espe
prático, exercendo autoridade na formação da fé
cial que Tiago desempenha na Bíblia?
e no testemunho dos leitores das Escrituras. Mes
No protestantismo, principalmente, a atenção
mo não havendo certeza de que Tiago deva ser
básica tem se concentrado na coleção paulina
Udo como carta literária, a igreja antiga reconhe
com o objetivo de investigar não apenas o sen
ceu sua inspiração divina justamente quando a
tido de cada carta, mas também a relação entre
utilizou como carta. Desse modo, o título lakõbou
elas. A seqüência das cartas explica em parte o
epistolê (“ Carta de Tiago”] é acrescentado a essa
profundo interesse que existe no testemunho de
não carta (ou pelo menos uma carta literária dife
Paulo a respeito do evangelho, visto que as cartas
rente das escritas pela escola paulina) para fazê-
paulinas são posicionadas em primeiro lugar. No
la se enquadrar em uma coleção mais ampla de
entanto, essa prioridade tem levado a um redu-
escritos epistolares que têm em comum o papel
cionismo no estudo da segunda coleção de cartas,
de nutrir a fé dos crentes. Ou seja, as cartas fun
uma coleção não paulina. Um exemplo é a ideia
cionavam como veículos pastorais de instrução
comum de que Tiago apresenta ou uma fé pauli
e exortação e foram escritas para os crentes cuja
na, embora em uma fraseologia diferente, ou uma
adoração a Deus estava ameaçada por sofrimen
fé antipaulina. De uma forma ou de outra, a natu
tos pessoais ou por confusão teológica. Por essa
reza mais complementar da relação intracanôni-
perspectiva, o púbUco-alvo canônico lê a carta
ca entre Tiago e Paulo fica seriamente distorcida,
escrita por Tiago como Escritura cristã.
bem como, em sua totaUdade, o testemunho que
Na abertura de uma carta bíblica, a impor
eles dão do evangelho de Deus.
tância das afirmações sobre a autoria não é ex
Desse modo, pode se considerar que um papel
clusivamente histórica. Na verdade, os nomes
crítico desempenhado pela segunda coleção de
encontrados em títulos e saudações às vezes
cartas (i.e., de cartas não paulinas) é aprimorar
situam as composições em determinadas tradi
nosso entendimento acerca da primeira coleção
ções teológicas, cada uma dando um testemunho
(i.e., as cartas paulinas), oferecendo dispositivos
oficial da atividade salvadora de Deus em Cristo
de controle e de equilíbrio que impedem a distor
Jesus. Em nosso caso, o título situa a composição
ção do evangelho em sua totalidade
de Tiago em um gênero específico de literatura
p. 208-71). À luz da história da interpretação de
para realçar seu papel prático na formação da fé
(W all,
1992,
Tiago, o intérprete é desafiado a ouvir na carta 247
I lAGO, LARTA DE
uma voz diferente daquela ouvida quando lê Pau
promete uma nova ordem do cosmo (Tg 1.18),
lo. Entretanto, não se trata da voz de um ventrí
que será recriado perfeita e completamente, uma
loquo nem de um adversário, mas de um colega,
ordem em que nada falta (Tg 1.4). Como prepa
cuja nova perspectiva acrescenta um equilíbrio
rativo para o triunfo vindouro de Criador, Deus
necessário ao que Paulo escreveu e já foi lido e
concede apenas boas dádivas à comunidade de
aceito (v. 5 abako).
fé (Tg 1.13-17), especialmente o dom da sabe
4.3
O público-alvo canônico. Embora os lei doria (Tg 1.5,6; 3.17), que é capaz de "salvar a
tores mudem constantemente, as cartas bíblicas
vossa vida” (Tg 1.21; 3.18). Deus também atende
permitem a adaptação contínua de sua mensa
aos que lhe pedem sabedoria (Tg 1.5; 4.3) e cura
gem prática a cada geração de crentes. Não há
(Tg 5.13-18). Deus é fiel à promessa de salvação
garantia de que quem lê Tiago hoje partilhe de
(Tg 2.5; 4.6-10) e, na era futura, reverterá a con
algum dos mundos em que viveram os primeiros
dição dos pobres e impotentes que forem fiéis
leitores da carta. Também não devemos esperar a
(Tg 1.9-11; 2.1-5). Pelo fato de Deus ser Salvador e
recuperação de todo o sentido das palavras que
Juiz de toda a criação (Tg 2.12,16; 4.11-17; 5.1-9),
Tiago escreveu originariamente. Justamente pelo
ele é adorado (Tg 3.9,10; 4.7-10), e a lei de Deus
fato de Tiago ser Escritura canônica, os leitores
é obedecida (Tg 1.22-27).
5.2
não devem entender que seu sentido pertence a
Uma história da salvação de Deus. Em
um passado distante. 0 tema central de provação
tempos recentes, os estudiosos da Bíblia passa
espiritual parece pertinente, e é comum os leito
ram a ressaltar o aspecto narrativo do conteúdo
res fazerem parte do grupo de ricos e poderosos
teológico das Escrituras — na expressão sucinta
que menosprezam os marginalizados, ou então
de J. A. Sanders: “Deus também tem uma histó
do grupo dos marginalizados que precisam do
ria”. É dupla a importância prática dessa Unha de
apoio divino contra os poderosos e o recebem.
investigação. Em primeiro lugar, ela oferece aos
Às vezes, Tiago desnuda a insensatez dos crentes
teólogos bíblicos um arcabouço no qual podem
que substituem a devoção concreta a Deus por
desenvolver um tratamento abrangente e coerente
uma confissão superficial ou fazem uso de pa
do conteúdo teológico das Escrituras. Em segundo
lavras maldosas para obter vantagem sobre um
lugar, essas histórias têm a função de estimular
rival — ambos temas importantes em Tiago. Suas
uma identificação mais pessoal e imediata entre a
palavras sábias podem soar proféticas, como uma
narrativa bíblica e o púbUco-alvo original.
crítica contundente contra os que só pensam nos
Nesse aspecto, um trabalho que produziu re
próprios negócios. Elas também convidam ao ar
sultados foi o de R. Hays. Ele defende a ideia de
rependimento ou podem assumir um tom pasto
que a teologia pauUna engloba o estilo narrativo.
ral diante dos que mais necessitam da promessa
Para Hays, o âmago das convicções teológicas de
do evangelho. A mensagem é esta: o livro de Tia
Paulo abrange uma sequência de seis aconteci
go encontrou lugar nas Escrituras não apenas por
mentos, começando com a promessa divina de
oferecer limites à maneira em que entendemos
bênção a Abraão e terminando com a segunda
Deus, mas também por iluminar nossa caminha
vinda do Senhor. Entre esses dois acontecimen
da na presença de Deus, especialmente quando
tos, acham-se os episódios que constituem o evento crístico, cujo clímax é a morte e ressur
considerado como parte de um todo inspirado.
reição de Jesus e o resultado disso na comuni
5. O evangelho na visão de Tiago
5.1
dade de fé. Embora as ênfases paulinas sejam
Um retrato de Deus. A velha conclusão exclusivas do
nt,
a teologia narrativa de outros
da crítica de que Tiago não é um escrito teológico
escritores sagrados, entre os quais Tiago, segue
tem enfraquecido em anos recentes. Na pior das
um roteiro parecido. À semelhança de Hays, E. E.
hipóteses, a maioria dos estudiosos hoje reconhe
Lemcio isolou os elementos básicos de um “que
ce a importância das imagens e dos temas teológi
rigma unificador” em cada unidade canônica
cos na mensagem desse Uvro. Por exemplo, Tiago
(i.e.. Evangelhos, Atos, Cartas, Apocalipse) do
nt.
pinta em cores nítidas o retrato de Deus. Deus é
0 evangelho quádruplo providencia a es
Criador, governando todas as coisas (Tg 1.17), e
trutura e o fundamento das Escrituras em uma
1248
T ia g o , C arta de
subestmtura narrativa. Ou seja. a liistória de
não duvide de sua eficácia (Tg 1.6-8). Além disso,
Jesus torna-se a pressuposição fundamental do
a Palavra fincou raízes (Tg 1.21) e, dessa maneira,
intérprete para entender o conselho prático e
traçou a linha que delimita a comunidade eleita
as afirmações teológicas contidas em cada livro
dos pobres (Tg 1.27). A condição de membro des
posterior do
Também dessa perspectiva Tiago
sa comunidade e, com ela, a perspectiva de uma
partilha com outros escritores bíblicos uma histó
bênção futura são mantidas pelos que observam
ria comum da salvação divina por meio de Jesus
a Palavra (Tg 1.22-25; cf. 4.13-17), que a ensinam
nt.
Cristo, o que proporciona a estrutura e o tema de
sem inveja (Tg 3.1-18) e resistem às paixões que
uma teologia bíblica completa e integral.
minam a atuação da comunidade.
O acontecimento inaugural da história é 1) o
5) A crise vigente que leva à prova espiritual
ato em que Deus elege um povo para salvá-lo.
é provocada em cada luta pelo fato de o cren
Tiago entende a eleição divina da perspectiva
te permanecer fiel em um mundo que se opõe a
social: Deus escolhe os pobres como herdeiros
Deus (Tg 1.2,3; 3.13-16). Na situação presente,
do reino prometido (Tg 2.5). Essa herança foi
quando o sofrimento da comunidade parece mos
inicialmente prometida aos filhos de Abraão,
trar que, da parte de Deus, não há boas inten
mas não está condicionada à identidade nacio
ções para com a criação, Tiago argumenta que a
nal ou étnica deles, e sim ã devoção que dedi
sabedoria proverbial concede a força necessária
cam a Deus, a serem “ricos em fé” (cf. Tg 1.12;
para passar pela prova espiritual, de modo que
2.5), o que se concretiza em atos de misericórdia
mesmo agora “ os primeiros frutos” de uma nova
(Tg 2.8-26).
criação já se manifestam na vida da comunidade
2) Deus envia ao mundo um agente da
salva
(Tg 1.18; 3.17,18). Nesse sentido, o testemunho
para libertar a humanidade dos efeitos de seu
da comunidade sábia antecipa a era vindoura: a
pecado. De acordo com Tiago, Deus “dá” a “pa
religião verdadeira e aprovada é um povo ético,
ção
lavra da verdade” aos pobres piedosos para que
cujo testemunho acerca de Deus é medido pela
possam superar as provas espirituais (Tg 1.2,3)
pureza de sua vida coletiva e pessoal (Tg 1.27;
e restaurá-los como parte da ordem vindoura
2.14-16). Assim, no final, as obras piibhcas de
(Tg 1.4,17,18). 0 assunto da Palavra divina é a
sabedoria — a qual exige que a comunidade trate
sabedoria proverbial (Tg 1.5), a qual requer que
com bondade seus pobres (Tg 1.22—2.26), que
o conjunto dos crentes (i.e., a comunidade da
as palavras proferidas sejam puras (Tg 3.1-18) e
fé) seja “pronto a ouvir, [...] tardio para falar e
que quem deseja pertencer à classe média renun
tardio para se irar” (Tg 1.19; v. 6 abaixo). Essa
cie ao gosto pelos bens materiais (Tg 4.1— 5.6)
palavra de sabedoria pode salvar a comunidade
— é que constituem a identidade essencial de um
(Tg 1.21; 3.17,18), livrando-a de toda a insensa
povo escatológico.
tez (Tg 1.16) e a imundícia (Tg 1.21), as quais
6) A esperança da comunidade concentra-se
produzem a morte (Tg 1.14,15; 3.14-16; 5.19,20).
na consumação da história, a vinda iminente do
3) A Palavra de Deus é revelada na “fé de nos so Senhor Jesus Cristo” (Tg 2.1,
Senhor, que virá dos céus (Tg 5.7-9). Essa vin
Diferente
da introduz na história a bondade derradeira e
mente de Paulo, que compreende a fé de Jesus
a dádiva que aperfeiçoa, as quais procedem lá
arc) .
da perspectiva de sua morte e ressurreição mes
de cima. Nesse culminante “a qualquer momen
siânicas, Tiago a entende como exemplo de uma
to” , a comunidade escatológica será confirmada:
sabedoria vivenciada (a “palavra da verdade”).
Deus julgará os insensatos e abençoará os sábios
Em particular, a devoção de Jesus a Deus é con
(Tg 2.13; 4.11,12; 5.4-9; cf. Mt 7.24-27). No final,
firmada pela maneira justa em que ele tratou o
Tiago e Paulo concordam a respeito desse acon
pobre, o que Deus requer de acordo com a lei
tecimento derradeiro. Ambos concordam que o
“real” (Tg 2.8; cf. 1.27).
juízo e a bênção divinos são, em última anáhse,
4) A sabedoria divina, que já se tornou conhe
atividades criadoras que dão origem à nova or
cida nas Escrituras e foi exemplificada por Jesus,
dem das coisas (Tg 1.4; 1.18; 3.18; 5.7,8). Os dois
ilumina “o caminho” que leva às bênçãos divinas
concordam que a parusia é iminente, de modo
a qualquer crente que a peça a Deus (Tg 1.5) e
que as convicções do monoteísmo cristológico e
1,249
T ia g o , C arta de
as exigências do testemunho púbUco são apresen
pressupõe que Deus é responsável pelas tribula
tadas com mais vigor e se concretizam com mais
ções da humanidade e também deseja sua morte.
prontidão. O tempo para o arrependimento é cur
No entanto, o resultado desse engano é a rejeição
to, porque o tempo do juízo divino está próximo
aos méritos do conselho divino (cf. 1.21). Essa
(Tg 5.7-9,19,20).
dúvida tem por consequência o fracasso espiritu al quando se enfrentam as tribulações do tempo presente, e o resultado escatológico desse fracas
6. O argumento de Tiago 6.1
Introdução temática (Tg 1.1-21). Tiago so no presente é a perda da “coroa da vida” , que é
foi escrita para uma comunidade cuja fé em Deus
a bênção para quem permanecer firme (Tg 1.12).
está sendo ameaçada por tribulações constantes (Tg 1.2-4). Essas “provações” da fé são causadas
6.2
A sabedoria de ser “pronto a ouvir"
(Tg 1.22—2.26). Na primeira seção do corpo
por uma variedade de circunstâncias, externas e
principal da carta, a sabedoria do estar “pronto a
históricas. 0 mais importante é que cada teste
ouvir” faz eco à Torá: “ouvir” é praticar as obras
gera uma crise teológica, quando o crente é en
da Torá (Tg 1.22-25). Ou seja, a sabedoria de
ganado ou confundido com mais faciUdade sobre
estar “pronto a ouvir” significa obedecer às leis
quem Deus é e como ele age (Tg 1.5-8). Em uma
levíticas sobre compaixão para com o próximo
crise profunda, que leva à reflexão teológica, em
(Tg 1.26,27). Essa porção da Torá é apresentada
grande parte interna e espiritual (Tg 1.13-15),
como atitude sábia a tomar diante de uma situa
requer-se uma decisão que, em última instância,
ção em que são desconsideradas as necessidades
é a medida da verdadeira devoção do crente a
materiais dos membros mais pobres e marginali
Deus. Ou seja, é o que determina se ele está ou
zados da comunidade da fé. Essa situação é pro
não em condições de participar do reino vindou
vocada pelo tratamento preferencial dispensado
ro de Deus (Tg 1.12). Permanecer fiel a Deus no
aos ricos e poderosos de fora nos julgamentos
presente é o caminho para receber, no futuro, as
realizados na sinagoga (Tg 2.2-4) e nos tribunais (Tg 2.6,7). Nessa situação, a Torá exige que se
bênçãos que Deus prometeu. A decisão da comunidade a favor de Deus ou contra ele está arraigada a uma percepção da li
libertem os pobres e os fracos de seus opressores (Tg 2.8-13).
berdade moral. Que forma essa liberdade assu
Embora possa ter em vista a sobrevivência no
mirá? De um lado, o crente sábio ama a Deus
curto prazo, a decisão de favorecer os ricos de
e acredita que ele é um Pai leal e coerente, que
fora, em prejuízo dos pobres de dentro, imphca a
concede generosamente à comunidade da fé a
reprovação no “ teste de fé” da comunidade, por
“palavra da verdade” , que orienta a peregrinação
que Deus escolheu os pobres piedosos do mundo
do crente na terra, em meio ao deserto de tribu
para receberem suas bênçãos (Tg 2.5). Além dis
lações, rumo à terra prometida da vida eterna
so, esse favoritismo implica possíveis concessões
(Tg 1.16-18). 0 resultado antecipado de receber
aos males da ordem deste mundo. A natureza
essa palavra, que diz respeito à sabedoria prover
de um erro teológico é de tal ordem que põe em
bial (Tg 1.19,20), é a capacidade cada vez maior
risco a salvação futura da comunidade, pois a
de permanecer fiel a Deus durante as provações
salvação requer obras reais de compabcão para
desta era, até que o Senhor se manifeste triun
com os pobres (a diáspora social). Deus con
fante sobre o pecado e a morte. 0 crente sábio
firmou Jesus como “Senhor da glória” (Tg 2.1)
e fiel ingressará na era vindoura, quando tudo o
porque, de acordo com a “lei real” (Tg 2.8), ele
que lhe falta agora será suprido e tudo se tornará
amou 0 próximo pobre e desvalido. Seu exemplo
perfeito por obra do Criador, que dará completi-
de compaixão divina, que se seguiu à lição deixa
tude à existência material (Tg 1.9-11) e espiritual
da por seu ancestral Abraão (Tg 2.21-24) e tam
(Tg 1.21) da humanidade.
bém pela prostituta Raabe (Tg 2.25) — mapeia o
De outro lado, o crente insensato pensa que Deus é desleal e não cumprirá a promessa de
caminho da salvação para todos, o qual conduz à vida eterna.
uma nova vida, sendo o responsável pelas tribu
A comunidade sábia está pronta para ouvir e
lações da comunidade (Tg 1.13-16). O insensato
agir com base no que a Torá ordena, sabendo que
1250
T ia g o , C arta de
ela expressa a vontade de Deus, de acordo com a
colheita da bênção de paz para o mestre “perfei
qual todas as pessoas serão abençoadas ou então
to” (Tg 3.1,2), que a pratica (Tg 3.18).
julgadas por ocasião da vinda triunfante do reino
6.4 A sabedoria de ser “tardw para se irar"
de Deus (Tg 2.12,13). Se o fundamento da Torá é
(Tg 4.1— 5.6). 0 texto de Tiago 4.1— 5.6 inter
0 mandamento de amar o próximo, especialmen
preta o significado da exortação proverbial para
te os que são como “os órfãos e as viúvas nas
o crente ser “tardio para se irar”. De acordo com
suas dificuldades” , então é insensatez favorecer
Tiago, a fonte da ira da comunidade (Tg 4.1) é
os ricos em detrimento dos pobres, quando o re
o desejo íntimo e intenso de prazeres materiais
sultado é a retribuição eterna. De acordo com a
que 0 crente não desfruta (Tg 4.2,3). A tribula
Torá, a fé em Deus se concretiza em obras de
ção que põe em risco a participação da comuni
compaixão: a verdadeira religião é uma religião
dade no triunfo vindouro de Deus tem raízes na
ética, não uma ortodoxia confessional (Tg 2.14-
incapacidade de estar satisfeito com a condição
26). É insensatez professar devoção a Deus sem
humilde, cobiçando, então, os bens materiais
0 acompanhamento das obras de compaixão
dos outros (Tg 4.4,5). Esse desejo intenso pelas
(Tg 2.20). Tal reUgião é sem valor, seja para
coisas materiais põe em teste a dependência que
anunciar a era vindoura, seja para ingressar nela
a comunidade tem de Deus, o qual resiste ao ar
(Tg 2.17,26).
rogante e exalta os de condição humilde (Tg 4.6;
6.3
A sabedoria de ser “tardio para falar” cf. 2.5). A comunidade sábia humilha-se perante
(Tg 3.1-18).0 texto de Tiago sobre a sabedoria
Deus (Tg 4.7-10), que sozinho determina o crité
proverbial de ser “tardio para falar” é especial
rio para o juízo e a salvação (Tg 4.11,12).
mente apropriado para o “ deserto” (Tg 3.11,12),
0 insensato, contudo, continua a se deleitar
quando a caminhada espiritual é mais insegura
no desejo intenso e egoísta de lucro material, sem
(Tg 3.3-6) e a orientação de um mestre que é
levar em consideração a vontade de Deus para a
“ sábio e tem conhecimento” (Tg 3.18) é decisi
existência humana (Tg 4.13-17). Na verdade, os
va, mas também quando se torna mais fácil dizer
que preferem Mamom a Deus também escolhe
palavras duras. O risco de falar é ainda maior em
rão Mamom em detrimento do próximo e trata
razão da dificuldade inerente de controlar o que
rão os pobres com descaso (Tg 5.4) e hostilidade
se diz (Tg 3.7,8).
(Tg 5.6). É irônico que a penúria de trabalhadores
Cada crise social também carrega consigo uma
maltratados prenuncie a penúria dos ricos no últi
crise teológica, a saber, uma crise de fé no Cria
mo dia, quando perderão a riqueza (Tg 5.1,2) e a
dor (Tg 3.9,10). A difamação, que amaldiçoa o
vida (Tg 5.4) nas mãos de um Deus irado.
próximo, o qual deve ser objeto de amor (Tg 2.8),
6.5 Exortações finais (Tg 5.7-20). Tiago en
ofende as boas intenções do Criador, que fez o ser
cerra da mesma maneira que inicia: com duas
humano à imagem de Deus. A lógica mais pene
afirmações completas. Ao trazer à lembrança
trante da teologia da criação é que Deus estabele
lemas e expressões importantes das afirmações
ceu padrões na ordem criada (Tg 3.11,12). Nesse
introdutórias, repetindo sua proposição básica, o
sentido, as palavras profanas não produzem re
autor emoldura seu comentário sobre a sabedo
sultados espirituais (Tg 3.17,18).
ria. Mais que uma retrospectiva sobre o caminho
Ou seja, o resultado de palavras que substi
da sabedoria segundo Tiago, a conclusão tam
tuem a sabedoria "espiritual” (Tg 3.17) pela sabe
bém apresenta a principal motivação para seguir
doria “terrena” (Tg 3.15) é a "confusão” (Tg 3.16),
0 conselho sapiencial: a vinda do Senhor está
que é o oposto do propósito do Criador para a
próxima (Tg 5.7-9).
criação restaurada (cf. Gn 1.2). 0 discurso demo-
As exortações para que se suporte a provação
maco destrói relacionamentos humanos e impede
da fé, ideia implícita por toda a carta, denota cer
a formação espiritual que capacita a comunidade
ta urgência por causa das incisivas afirmações de
para a caminhada em meio às tribulações, rumo
que a parusia é iminente. À semelhança de Jó
à promessa futura de uma nova ordem. A mensa
(Tg 5.10-12) e ao contrário de seus amigos quei
gem “pura” e “cheia de misericórdia” (Tg 3.17),
xosos (Tg 5.9), a comunidade é incentivada a
que se conforma à sabedoria celestial, resulta na
exercitar a paciência (Tg 5.7,8), e à semelhança
1251
I lAGO, LARTA DE
de Elias (Tg 5.17,18), incentivada a orar pela cura
The message of James,
s jt , v.
(Tg 5.13-16), a fim de garantir a participação na
45,1965. ■ D eppe,
The sayings o f Jesus in the
vinda triunfante do reino de Deus.
Epistle of James. Chelsea: Bookcrafters, 1989. ■
Os versículos finais (Tg 5.19,20) constituem
E llio t ,
J.
H.
D. D.
18, p. 182-93, 338-
The Epistle of James in rhetorical and
uma convocação aos leitores para uma missão
social scientific perspective: holiness-wholeness
especial entre os crentes insensatos, que têm sido
and patterns of replication,
enganados pela falsidade e se afastado da “pala
1993. ■ G e r t n e r , M. Midrashic terms and techni
vra da verdade”, a qual determina o caminho da
ques in the New Testament: the Epistle of James,
sabedoria. A cura espiritual dessas pessoas resul
a midrash on a psalm. [S.l: s.n.], 1964. p. 463.
(se
tará, no fim dos tempos, em salvação, em lugar
3 [ = Texte und Untersuchungen, 88].) ■ G o w a n ,
D.
de condenação. Ser igreja é ser sábio na hora da
E. Wisdom and endurance in James,
23, p. 71-81,
b tb , v.
h b t, v .
15, p.
provação, sabendo que a presente provação da fé
145-53, 1993. ■
determina o ingresso na era vindoura.
in the Epistles of James. ExpT, v. 63, p. 227-8, 1952. ■ H a r t in , p. j. “Come now, you rich, weep
Ver também s a b e d o r ia .
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jb l, v .
e os targumim — foram escritos ao longo de vá rios séculos após o período do
nt
,
mas contêm
W a ll, R. W. Colossians & Philemon. Downers Gro
tradições mais antigas, algumas com data do sé
ve: InterVarsity, 1993.
culo
( iv p n t c .) ■
apocalyptic paraenesis.
rq , v.
_______James as
32, p. 11-22, 1990.
I.
Para os que estudam o
nt
,
o valor desses
documentos é que, avaliados criticamente, ofere
■ _______Reading the New Testament in canoni
cem uma percepção da matriz judaica em que o
cal context. In:
cristianismo nasceu.
G reen,
J. B., org. Hearing the New
Testament: strategies for interpretation. Grand Ra
1. As raízes do movimento rabínico
pids: Eerdmans, 1995. p. 370-93. ■ _______Suc
2. A transição para o judaísmo rabínico
cessors to “the Twelve” according to Acts 12:1-17. CBQ, V.
53,
p.
3. O surgimento dos escritos rabínicos
628-43, 1991. • _______A unifying
4. O uso dos escritos rabínicos para entender
theology of the CathoUc Epistles: a canonical ap
Jesus e os Evangelhos
proach. In: ScHLossER, J. Catholic Epistles and the tradition. Leuven: Peeters, 2003.
[ b e t l.]
■ W a ll, R.
1. As raízes do movimento rabínico
W. & L em c io , E. E. The New Testament as canon: a
Em sua fase mais antiga, o movimento rabínico
reader in canonical criticism. Sheffield:
pode ser identificado com o farisaísmo. Josefo
jsot ,
1992.
[jSNTsup, 76.) ■ W ard, R. B. Partiality in the as
define os fariseus como religiosos que criticavam
sembly: James 2:2-4.
0 sacerdócio asmoneu. O discurso dos fariseus
h tr, v.
62, p. 87-97, 1969. ■
_______The works of Abraham: James 2:14-26.
(J o s e f o ,
An, 13.10.5,6,
§ 288-98), e eles podiam recorrer à ação violen
2 in hght of Greco-Roman schemes of argumen
ta, como aconteceu quando exigiram a execução
tation.
61, p. 283-90, 1968. ■ W
foi inicialmente político
D. F. James
HTR, V.
NTS, V.
atso n ,
39, p. 94-121, 1993. ■ _______The
dos conselheiros que recomendaram a Alexandre
rhetoric of James 3:1-12 and a classical pattern
Janeu que matasse alguns simpatizantes desse
of argumentation. NovT, v. 35, p. 487-94, 1993. ■
grupo
W it h e r in g t o n ,
B. Jesus the Sage. Minneapohs: For
tress, 1994.
(J o s e f o ,
Guju, 1.5.2,3, § 110-4). Contudo, o
interesse maior dos fariseus era alcançar e man ter a pureza. Em essência, procuravam alcançar
R. W. W all
a pureza, fazendo com que as ofertas, as pessoas e os sacerdotes estivessem em condições adequa
T im ó t e o , P r im e ir a C a r ta
a.
Ver
das para o culto no templo. Por isso, eram de vital
C a r ta s P a s to r a is .
importância as questões referentes aos membros T im ó t e o , S e g u n d a C a r t a
a.
Ver
do sacerdócio, aos tipos de animais e bens que
C a r ta s P a s to r a is ,
podiam ser oferecidos e à proximidade que po t ip o l o g ia .
Ver A d ã o
diam ter de todas as fontes de impureza.
e C r is to .
1.1 T ito ,
C arta
a.
Ver
Hillel. No início da era cristã, os fariseus ti
nham na pessoa de Hillel um eminente mestre em
C a r ta s P a s t o r a is .
Jerusalém. Hillel, com justiça, é conhecido pela Torá. Ver
famosa frase, proferida uns vinte anos antes de Je
P a u l o , o Ju d e u ; L e i.
sus: “Aquilo que odiais não façais a algum de vós; T o se ft A.
Ver t r a d iç õ e s
a Torá se resume a isso, ao passo que o restante
e e s c r it o s ra b ín ico s.
é comentário” [b. Shabb., 31a). A frase é notável, t r a d iç ã o .
Ver
mas também pode induzir a erro. No contexto,
C a r ta s P a s to r a is ,
Hillel está falando com um prosélito impaciente t r a d iç ã o l .
Ver
que deseja aprender a Torá ao mesmo tempo que
P r o b le m a S in ó tic o .
procura viver de modo independente; sua impa t r a d iç ã o m.
Ver
ciência acabara de lhe render a reprimenda por
P r o b le m a S in ó tic o .
parte de Shammai, rabino com quem Hillel é in T
tencionalmente contrastado na Mishná. É claro
r a d iç õ e s e e s c r it o s r a b ín ic o s
Os documentos do judaísmo rabínico — basica
que Hillel não tinha nenhum interesse declarado
mente a Mishná, a Toseftá, o Talmude, o midrash
de reduzir a Torá com base em algum princípio, e
1253
disse ao prosélito: “Vai e estuda a ToráV’. Ou seja,
Soáa, 14.9; í. ag., 2.9; t. Sanh., 7.1; y. ag.,2.2;y.
Hillel estava dizendo ao gentio que a revelação
Sanh., 1.4). A noção de uma unidade original que
dada a Moisés é a expressão da melhor ética, e,
teria sido perturbada por divisões nessa época é
' por esse motivo, ele devia dominar a Torá por completo, não apenas em parte.
provavelmente um mito, mas sem dúvida os fa riseus desenvolveram sua tradição oral mediante
De qualquer forma, para os fariseus, Hillel havia adquirido proeminência por decidir uma
uma compreensão estruturada do passado e tam bém por meio de técnicas mnemônicas.
questão muito diferente das demais: se o sacri
1.2
Os fariseus. É provável que o termo “ fari
fício da Páscoa devia ser oferecido no sábado.
seu” tenha sido criado por pessoas de fora do mo
Hillel apresentou primeiramente um argumento
vimento e talvez tenha o sentido de “separatista”
baseado nas Escrituras para aceitar a prática: vis
ou “purista”. Ao que parece, os participantes do
to que outras formas de serviço sacerdotal eram
movimento se referiam a seus antecessores mais
permitidas, o mesmo ocorria com o sacrifício
antigos (depois de Esdras) como “ os sábios” ou
do cordeiro. Seus ouvintes não se deixaram im
“ os instruídos”, e aos mais recentes e aos de sua
pressionar até que ele simplesmente afirmou ter
época como “mestres” (cf. rab em m. Abot, 1.6;
aprendido esse ponto de vista na Babilônia, com
sophistês em
Semaias e Abtalião, eminentes antecessores do
tosa de se dirigir a um mestre era: “ meu grande”
J osefo ) .
A maneira normal e respei
movimento. A autoridade de ambos foi suficiente
ou então rabbi ( “meu mestre”). Nos Evangelhos,
para se impor aos líderes da opinião farisaica na
0 povo chama Jesus de “Rabi”, título mais usado
época, os “ filhos de Batira” (cf. t. Pesah., 4.13,14;
que qualquer outro. Além do mais, em Jesus foi
y. Pesah., 6.1; y. Shabb., 19.1; b. Pesah., 66a).
característico o interesse pela pureza, e uma dis
Essa história pode parecer um tanto misterio sa, mas também é a mais evocativa da cultura
puta sobre o sacrifício apropriado no templo lhe custou a vida.
farisaica. De modo sistemático, Hillel envolveu-se
Os Evangelhos, como os temos hoje, per
em questões e embates litúrgicos em Jerusalém.
mitem deduzir de modo simples e claro que
Também se afirma que sua opinião convenceu
os seguidores de Jesus o chamavam de “ Rabi”
outro mestre, Baba ben Buta, a fornecer, para os
(Mt
sacrifícios, grande número de animais apropria
Jo 1.38,49; 3.2; 4.31; 6.25; 9.2; 11.8). Permitem
26.25,49;
Mc
9.5;
10.51;
11.21;
14.45;
dos do ponto de vista litúrgico, com a estipulação
também inferir, de modo igualmente simples e
de que o ofertante (ao contrário do que ensinava
claro, que o mais natural é associá-lo aos fari
a escola de Shammai) impusesse as mãos sobre a
seus de sua época. Mas ao longo do século xx os
vítima logo antes do sacrifício (cf. t. ag.,. 2.11; y.
estudiosos manifestaram reservas sobre esse en
ag, 2.3;y. Besa, 2.4; b. Besa, 20a,b; v. 4.3 abaixo).
tendimento, tendo em mente o perigo de identifi
Além do mais, como já foi dito, a base da au
car Jesus com o movimento rabínico pós-70 d.C.,
toridade de Hillel não era tanto o conhecimento
que era mais sistematizado que o dos fariseus do
das Escrituras quanto o domínio do que ele havia
período anterior a 70 d.C., eqüivalendo ao po
aprendido com os mestres que o precederam. Hil
der estabelecido dentro do judaísmo. Durante a
lel personifica o princípio farisaico de que a con
época de Hillel e Shammai, até o ano 70 d.C., o
tinuidade de sua tradição era normativa para a
ensino farisaico cuidava da conduta no culto do
pureza. 0 entendimento era que essa continuida
templo, mas sua influência era limitada. Apesar
de, ou “corrente”, havia se desenvolvido a partir
disso, parece que eles se saíam razoavelmente
de Moisés e chegado aos Profetas. Depois disso,
bem nas cidades e aldeias. Mesmo na Galileia,
0 desenvolvimento continuou com Esdras e “os
instavam a população local a manter o tipo de pu
homens da grande congregação” e, por fim, com
reza que permitia a devida participação no culto.
os mestres, que em geral formavam “duplas” e
É possível que João de Giscala, companheiro de
aos quais se recorriam (m. ‘Abot, 1.1-18). A úl
Josefo na resistência armada contra Roma e tam
tima “dupla” foi Hillel e Shammai, a partir dos
bém seu arquirrival, estivesse representando os
quais os fariseus reconheceram que a divisão au
interesses dos fariseus quando conseguiu que os
mentou em Israel [b. Soda, 47b; b. Sanh., 88b t.
judeus da Síria adquirissem óleo exclusivamente
i : 254
T radições e escritos rabínicos
dos produtores da Galileia
(J o s e fo ,
Guju, 2.21.2,
farisaico-rabínico passou a ser aphcado não ape
§ 591-3). De qualquer modo, parece claro que al
nas às questões de pureza e sacrifício, mas tam
guns fariseus apoiaram a revolta de 66-80 d.C.,
bém à adoração em geral, à ética e à vida diária.
ao passo que outros não o fizeram. Contudo,
Atribui-se a Yohanan a ideia de que o mundo,
enquanto alguns sacerdotes e essênios morre
até então sustentado pelo templo, pela Lei e pelos
ram nas disputas internas durante a revolta e na
atos de amor fiel, agora dependeria apenas dos
guerra contra os romanos, quando a aristocracia
dois últimos (A bot R. Nat., 4). Além disso, com
dos escribas e dos anciãos em Jerusalém ficou
base na tradição que representava, ele determi
desacreditada e foi dizimada, os fariseus sobrevi
nou como os dias de festas deveriam ser guar
veram à guerra melhor que qualquer outro grupo
dados na reunião para leitura, oração e debate,
e eram bem aceitos em todos os lugares. Fazia
chamada “congregação” ou “ sinagoga” [kenêset,
muito tempo, haviam se adaptado à situação de
palavra também aphcada a prédios construídos
serem vistos como um grupo um tanto à margem
com 0 propósito de abrigar tais reuniões; cf. m.
da sociedade e sobreviveram com seu pessoal e
Sukk., 3.12; m. Rosh Hash., 4.1,3,4). O desenvol
suas tradições relativamente intactos.
vimento desse tipo de adoração para substituir as
A própria literatura rabínica personifica a so
atividades do templo teve certo paralelo com o
brevivência do movimento em um relato acerca
período anterior a 70 d.C. A Mishná [m. Ta‘an.,
do rabi Yohanan ben Zakkai. Segundo a história,
4.2) concebe um sistema em que sacerdotes, levi
ele conseguiu ser levado para fora de Jerusalém
tas e leigos se reuniam em cada sinagoga enquan
fingindo-se de morto, para em seguida aclamar
to seus representantes estavam em Jerusalém.
Vespasiano rei. Ao subir ao trono, Vespasiano sa
A semente de tal piedade talvez esteja no
tisfez o desejo de Yohanan, que era se estabelecer
sistema sacerdotal de escalas de serviço, o qual
na cidade de Yavné, onde estava o grupo do rabi
permitia a existência de um grupo significativo
Gamaliel, e de obter cuidado médico para o rabi
de sacerdotes divididos em 24 escalas. Durante a
Zadoque (cf. b. Git., 56a). Pelo fato de Josefo afir
semana coberta por uma escala, uns poucos sa
mar ter adulado Vespasiano
Guju, 3.8.9,
cerdotes eram escolhidos para oficiar em Jerusa
§ 399-408) e interpretado sua vinda como o cum
lém. Nesse ínterim, os demais talvez reunissem a
primento de uma profecia messiânica
(J o sefo ,
população das cidades e aldeias em que normal
Guju, 6.5.4, § 310-5), deve se ter algum cuidado
mente viviam para a leitura dos textos bíbhcos
(J osefo ,
antes de aceitar a história. Mas ela não deixa de
(ICr 24.1-19;
revelar o éthos rabínico.
nessas reuniões os fiéis de Israel foi um desdo
J o sefo ,
An, 7.14.7, § 365-7). Incluir
bramento natural sob a liderança dos rabinos, 2. A transição para o judaísmo rabínico
e fazia tempo que as reuniões gerais de oração e
Com a fundação das academias, como a de Yav
instrução eram um aspecto comum do judaísmo
né, depois de 70 d.C., pode se falar da transição
da Diáspora. Por isso, era natural que a adoração
do farisaísmo para o judaísmo rabínico. Os ra
nas sinagogas se desenvolvesse como uma espé
binos que contribuíram diretamente para a lite
cie de substituto da adoração no templo.
2.2
ratura rabínica e para o judaísmo formado por
A consolidação do poder. Entretanto, a
essa literatura pertenciam a um movimento que,
transição do farisaísmo para o judaísmo rabínico
embora surgido do puritanismo popular dos fa
não ocorreu logo após o ano 70 d.C., nem foi sim
riseus, sofreu várias mudanças. No início, isso
ples questão de o mesmo movimento com o mes
aconteceu por motivos alheios à vontade deles.
mo pessoal prosseguir em novo ambiente. É claro
2.1
A aplicação mais ampla da tradição. que 0 ambiente era novo e favorecia, como nunca
0 tipo de liderança que alguém como Yohanan
antes, a autoridade dos rabinos, Mas os fariseus
ben Zakkai podia oferecer passou então a ser
desse período foram flexíveis o bastante para aco
algo atraente, tendo em vista a ausência de al
lher em suas fileiras, após a destruição do templo,
ternativas por parte dos sacerdotes, essênios e
um afluxo de sacerdotes e escribas. Está claro que
escribas. Por esse motivo, o alvo da aphcação
o interesse sacerdotal do movimento farisaico fa
da tradição tornou-se mais amplo. O programa
zia parte de sua história, e é notável a presença
1255
T radições e escritos rabínicos
de referências a sacerdotes em histórias e ensinos
resultado seria impuro, pois aqueles materiais ja
a partir de Yoahanan (cf. rabi Yosi, o Sacerdote;
mais poderiam ser reutilizados. O acerto de Ehé-
m. ‘A bot, 2.8) até um período bem avançado no
zer foi demonstrado por uma árvore, arrancada
Além do mais, só foi possível garantir a
a seu pedido, por um riacho que, por ordem do
consolidação do poder dos rabinos depois do ano
próprio Eliézer, correu no sentido contrário, por
século
II.
70 d.C., resultado da influência que exerciam em
um prédio que ele demohu de modo semelhante
todos os lugares, do controle sobre as decisões ju
e por uma voz vinda dos céus. Apesar desses si
diciais em cada um desses lugares, bem como do
nais, a maioria manteve sua interpretação, sob a
controle sobre a adoração e os estudos. A tendên
alegação de que o ensino deles era de aceitação
cia dos escribas de se alinharem com os fariseus
obrigatória
e também o fato de os sacerdotes e simpatizantes
que foram surgindo os rudimentos de uma insti
aderirem ao movimento garantiram o surgimento
tuição, a autoridade pessoal de Ehézer diminuiu.
e 0 sucesso dos rabinos.
Os rabinos do século ii ressaltavam que a pureza
(b. B. Mes., 59a,b). Assim, ã medida
0 triunfo da autoridade rabínica assegurou a
se alcançava de modo racional e consensual, e na
influência ininterrupta dos sacerdotes nas ques
época do Talmude o entendimento era que essa
tões de pureza, na ministração de bênçãos e nos
pureza era maior que a alcançada apenas pela
recibos de pagamento de resgate e de dízimos.
autoridade carismática.
Ao mesmo tempo, também é notável a influência dos escribas na produção de materiais escritos
2.4
O fracasso do messianismo popular. Mes
mo assim, a preocupação histórica com o templo
e na convocação de tribunais formais. Mesmo
como 0 centro real da pureza resultou em uma
assim, na prática, a consolidação do poder dos
tentativa final e quase catastrófica — encoraja
antigos grupos e facções só ocorreu na época do
da por alguns rabinos — de liberar e restaurar
rabi Judá (final do séc. ii), quando surgiu um pa-
esse lugar santo. O rabino mais proeminente no
triarcado reconhecido e o apoiado pelos romanos.
apoio ã empreitada foi Akiba, que era discípulo
2.3
A prioridade do consenso entre os es de Eliézer e pessoa renomada por seu profundo
tudiosos. Na esteira dos acontecimentos de 70
conhecimento da tradição. Akiba apoiou a rei
d.C. e no confisco, pelos romanos, do imposto
vindicação feita por Simeão bar Kosibah, que se
antes pago ao templo, nem Jerusalém nem seus
proclamou novo príncipe de Israel, atuando com
arredores eram lugares apropriados para conti
outro príncipe, de nome Eleazar. Os seguidores
nuar como centro do movimento. No século ii,
de Simeão chamavam-no Bar Kokhba (“ filho de
havia centros na próspera Galileia, como Usha e
uma estrela), projetando nele as expectativas re
Bete-Searim, que ofuscavam até mesmo Yavné.
gistradas em Números 24.17, ao passo que seus
Mais tarde, metrópoles como Séforis e Tiberíades
críticos vieram a chamá-lo Bar Koziba (“ filho de
tornaram-se importantes centros de liderança.
uma mentira”). 0 sucesso inicial que obteve e
No início, não havia nada parecido com uma h-
sua astúcia mihtar são confirmados pelas cartas
derança central ou mesmo uma política comum,
que ele enviou a seus comandantes durante a
mas foi o fato de os fariseus, sacerdotes e escribas
revolta e o regime que liderou, que duraram de
buscarem a pureza da nação judaica que deu ori
132 a 135 d.C. Dessa vez, a resposta do Império
gem ao judaísmo rabínico. A saúde do movimen
Romano foi ainda mais definitiva que a de 70 d.C.
to exigiu uma mudança da autoridade pessoal
0 imperador Adriano determinou que as ruínas
bastante elevada dos fariseus para alguma noção
do templo fossem espalhadas e que novos altares fossem construídos na cidade. A própria Jerusa
de consenso entre os estudiosos. Tal mudança se vê refletida em uma histó
lém passou a ser chamada Aelia Capitolina, os
ria talmúdica acerca de um grande mestre, rabi
judeus foram proibidos de entrar na cidade e a
Eliézer ben Hircano. Diz a história que Eliézer
Judeia passou a formar a Síria-Palestina.
se opunha ã maioria de seus colegas, afirmando
Os rabinos sobreviveram, distanciando-se dos
que, se um forno de cerâmica ficasse impuro, ele
anseios personificados em Akiba, porém man
podia ser remontado, desde que as peças fossem
tendo boa parte de seus ensinos. “Akiba, erva
separadas por areia. A maioria ensinava que o
crescerá de tua maxila antes que venha o Filho
1256
T radições e escritos rabínicos
de Davi” (y. Ta‘an., 4.7; cf. Rab., Lm 2.2.4). Ou
um agrupamento de fazendas que uma nação”. O
seja, o Messias deve pertencer a Davi (v.
F il h o de
paradoxo, porém, é que a mudança do rabi Judá
não pode ser alguém da escolha do povo,
de Bete-Searim para Séforis sinalizou o surgimen
nem se pode forçar sua vinda. Mas a grande con
to da autoridade rabínica no ambiente das cida
tribuição dos rabinos diante da derrota da nação
des, em íntima associação com o poder romano.
e na redefinição que deram ao judaísmo consistiu
Quando se lê a Mishná, é preciso levar em conta
não tanto na formulação de um ensino especí
a existência de anacronismos em vários níveis.
D a vi ) ,
fico sobre o messianismo (que de algum modo
Ao longo da história do judaísmo e dentre os
retorna de tempos em tempos em alguma forma
acontecimentos que foram importantes para a
de judaísmo), quanto no fato de expressarem de
formação do movimento, a centrahzação radical
modo textual uma forma de pensamento, discipli
reahzada sob a liderança do rabi Judá se asseme
na e vida — a Mishná.
lha à reforma de Esdras. Mas, enquanto o progra ma de Esdras estava localizado em uma cidade
3. O surgimento dos escritos rabínicos 3.1
(Jerusalém), o programa do rabi Judá tinha tam
A Mishná. Rabinos como Akiba haviam bém sua base em uma cidade (Bete-Searim ou
ensinado normas próprias que vieram a ser co
Séforis), mas estava localizado em sua mente. A
nhecidas como halakoth [halãkôt, pl. de halãkâ,
Mishná que daí surgiu foi um padrão de reflexão
“o caminho”), e obrigavam seus discípulos a
que permitia a qualquer rabino, em qualquer lu
decorá-las. 0 discípulo [talmíd) podia internalizar
gar, se juntar à reflexão e à disciplina que tinham
o que havia aprendido (i.e., internalizar a mish-
o objetivo de manter ou alcançar a pureza de Is
nâ, “ou repetição” , de seu mestre; pl. mishnâyôf)
rael. Nesse sentido, a santidade podia se tornar o
e promulgar tanto o que havia aprendido quan
propósito dos estudiosos, não importando o lugar
to suas halakoth. Mas, depois do insucesso de
em que vivessem. É claro que o surgimento da
Bar Kokhba, os rabinos, sob a Uderança do rabi
Mishná suscitou a questão de sua posição, com
Judá ha-Nasi (ou “o Príncipe” , título que denota
parada com as Escrituras, e a revolta liderada por
um contraste absoluto com as aspirações de Bar
Bar Kokhba destacou como nunca a importância
Kokhba), passaram a reunir as mishnayoth geral
das obras que prometiam uma rápida reconstru
mente bastante valorizadas.
ção do templo depois de 70 d.C. (cf. 2Esdras e o
Certos aspectos dessa empreitada são ao mes
Targum sobre Isaías).
mo tempo notáveis e de importância paradigmá
0 cânon sacerdotal, descrito por Josefo (mas
tica para o judaísmo rabínico. 0 mais importante
computado de forma excêntrica; v.
é que a Mishná representa tradições mais antigas
L8, § 39), já havia reivindicado o reconhecimen
postas em uma relação dialética. O raciocínio
to de 24 livros. Os rabinos, invocando o apoio
existe em um presente eterno entre opiniões an
desse conjunto de hvros, puderam assim contro
tes separadas pelo tempo e/ou espaço. A prin
lar
cipal contribuição da Mishná é justamente o
lesse algum livro fora daquele cânon não parti
os
Jo se fo ,
Co Áp,
anseios messiânicos, ao insistir que quem
convite a uma reflexão dialética sobre a pureza,
ciparia de modo algum do mundo vindouro (m.
sem hmitações históricas ou cronológicas. Entre
Sanh., 10.1). Apesar disso, a questão do messia
tanto, é preciso dizer que a síntese, quase sempre
nismo era mais acidental que sistêmica. Precisava
irregular, é apresentada em um sistema definido
ser tratada (e o foi, sem dijvida) pelos rabinos,
de tratados que tipicamente tratam do tema in
mas a questão fundamental era a relação entre as
dicado no título e estão organizados em certas
Escrituras e a Mishná. Passaram-se vários séculos
categorias {sedãrím). Cada categoria pressupõe
até se chegar a uma solução.
a atividade agrícola que os rabinos considera
3.2
O midrash. Pode se dizer que o midrash
vam normal para Israel. Como rabinos — eles
é um tipo de pensamento e de literatura que pro
deixavam implícito — , “ falamos da pureza que
cura explicar as Escrituras por meio do ensino
podemos alcançar para um templo que sempre
rabínico. Como se costuma afirmar, é verdade
deveria ter existido, mas o fazemos sabendo que
que 0 substantivo deriva do verbo dãrash, que
0 Israel de que tratamos e que nos apoia é mais
significa “ indagar” , “ investigar” , mas esse fato é
1 257
I RADIÇÔES E ESCRITOS RABÍNICOS
irrelevante. Do ponto de vista formal, qualquer
como analisamos acima. O segundo era ainda
midrash cita as passagens das Escrituras de modo
mais fundamental, pois envolvia o tratamento
semelhante ao dos Pesherim de Qumran (v.
ma
ao debate gerado pela Mishná. Se a questão das
mas em geral a exegese
Escrituras girava em torno da autoridade dos ra
não é a ideia da apreciação. Em vez disso, a ci
binos em relação ao passado, como representado
tação se torna uma oportunidade para invocar o
no cânon, a outra questão girava em torno da
n u sc rito s
DO MAR M o r to ) ,
ensino rabínico que pode estar associado ao texto
autoridade que tinham sobre seus sucessores. A
bíbUco em análise. A autonomia relativa desse
Mishná abordava uma dialética da pureza eter
ensino em relação a qualquer texto fica óbvia no
na, mas como essa dialética, uma vez registrada
que chamamos midrashim (pl. de midrash] "ta-
por escrito, deveria se relacionar com o debate
naíticos” ou “halákicos”. 0 adjetivo “tanaítico”
rabínico no tempo presente? Os dois dilemas são
refere-se aos tanaim ("os repetidores” , rabinos do
tratados de forma não definitiva na Toseftá (ou
período mishnaico, embora o título esteja mais
Tosepta). 0 termo significa “acréscimo” , no sen
associado ã tradição e derive do verbo aramaico
tido de que em séculos posteriores o corpus foi
tenã’, "repetir”), ao passo que "halákico” se refe
visto como um adendo à Mishná.
re ao conteúdo do ensino desses rabinos. Esses
Na verdade, a Toseftá, até certo ponto, é uma
documentos incluem dois midrashim sobre Êxo
Mishná nova que incorpora a obra de rabinos pos
do, cada um denominado Mekilta (que significa
teriores e conduz as ideias desses rabinos a um
"medida”), um deles atribuído ao rabi Ismael, e
debate com os pensamentos dos tanaim. Apesar
o outro, ao rabi Simeão ben Yohai (embora esteja
disso, a Toseftá é no fundo conservadora, pois de
claro que seja de um período posterior), tendo
pende dos materiais e da estrutura da Mishná e
ambos vivido no século ii. Levítico recebe trata
não promulga a ideia radical (esboçada em ‘Abot,
mento parecido em Sifra (ou Sipra, palavra que
tratado acrescentado à Mishná por volta do ano
tem 0 sentido de “livro”), e Números e Deutero
250) de que, com a Torá que consta nas Escrituras
nômio, em Sifre (ou Sipre, que significa “ livros”).
Moisés recebeu uma Torá oral que foi transmi
A influência do rabi Ismael fica visível no fato
tida por intermédio dos profetas e dos sábios e
de se atribuírem a ele (como antes ocorria com
por fim chegou aos rabinos. A Toseftá tem um
Hillel) regras [middôt] de interpretação. As regras
caráter muito mais abrangente na suplementação
de modo nenhum controlam o que os rabinos po
da Mishná, porém aponta para a necessidade da
diam ensinar, mas representam a gramática (que
ousadia que lhe falta: dar destaque aos rabinos
estava se desenvolvendo) da associação do en
não apenas mediante a inclusão de seus ensinos,
sino deles com as Escrituras. Do ponto de vista
mas também permitindo o diálogo direto com os
da forma, as middôt estabeleceram os padrões de
rabinos ilustres que os precederam no estudo das
semelhança, analogia e classificação lógica a ser
Escrituras e que continuavam a ser lembrados.
apresentados como apoio a determinado ensino
3.4
O Talmude. A relativa abrangência da
ou afirmação. Pode se observar sua aplicação no
Toseftá não garantiu seu sucesso. A Mishná não
debate realizado entre os rabinos, mas dizem res
foi substituída pela Toseftá nem por nenhuma
peito mais apropriadamente ao tipo de inferência
outra obra posterior na tradição rabínica. Além
envolvida na interpretação do que ao programa
disso, até mesmo os rabinos reconheciam as prer
mediante o qual se processava essa associação. A
rogativas das Escrituras, no sentido de que se pri-
impressão clara passada por Mekilta (em ambas
vUegiava a citação de um texto para demonstrar
as tradições), Sifra e Sifre é que o texto bíbhco era
ou ilustrar uma ideia. 0 problema de como tratar
uma oportunidade para a exposição de ideias e
no presente a verdade eterna da tradição (e vice-
métodos de pensar fundamentalmente rabínicos.
versa) foi solucionado mediante uma inovação.
3.3
Os rabinos como expositores das Escrituras
A Toseftá. Apesar do sucesso do experi
mento do rabi Judá, o século iii presenciou uma
[amoraim, palavra derivada de ’amõrã’, “ intér
crise no entendimento do que poderia ser feito
prete” , em contraste com os tanaim, “repetido
com a Mishná. Essa crise é visível em dois di
res”) passaram a tratar a Mishná como Escritura.
lemas. 0 primeiro dizia respeito às Escrituras,
Ou seja, produziram um comentário sobre a
i:258
T radições e escritos rabínicos
Mishná que passou a ser conhecido como Tal
que lhe é peculiar, pelo menos até o período mo
mude [talmüd, substantivo que tem o sentido de
derno. Essa natureza era e é transmitida em sua
“aprendizado”). 0 comentário (como no caso do
obra magna, provavelmente concluída no século
midrash) é mais uma questão de usar um texto
vi: o Talmude babilónico ou Babli. Ele oferece um
como oportunidade para associar um ensino do
tratamento mais completo e mais engenhoso da
que uma exposição ou exegese, porém os amo-
Mishná do que o Yerushalmi, empregando recur
raim obtiveram sucesso naquilo que a Toseftá
sos narrativos ricos e bem elaborados que per
não teve: preservou-se a Mishná, e ao mesmo
mitiam trazer ao mundo contemporâneo o éthos
tempo foi mantida sua atividade criadora e lógi
rabínico. Até certo ponto, cada rabino é um Moi
ca. O avanço ideológico que permitiu esse feito
sés, pois, conta-se, quando o próprio Moisés visi
foi a doutrina de que a Torá era conhecida não
tou a academia de Akiba e comentou com Deus
apenas na forma escrita, mas também oral.
que o debate era muito complexo, a falta de mé
3.4.1 O Talmude de Jerusalém (c. 400 d.C.).
ritos do Legislador ficou óbvia (b. Menah., 29b).
O Talmude de Jerusalém, ou Yerushalmi, foi a
Mas os rabinos também apresentam mensagens
última grande produção do judaísmo rabínico
antigas de forma respeitosa e contemporânea, o
na Palestina (conforme o movimento veio a ser
que acontece, por exemplo, quando o rabi José
chamado no período romano). Do ponto de vista
de Pumbedita, o mestre cego, reconhece que
sociológico, era difícil manter a discipUna de pu
sem o Targum ele não entenderia as Escrituras
reza que os rabinos praticavam e queriam que os
(b. Sanh., 94b). O conhecimento e a perícia deles
outros praticassem em um território recentemen
são, na prática, infinitos: é possível consultar um
te conquistado pelos romanos. O fato de Adriano
rabino acerca da visão da carruagem de Deus,
ter proibido a circuncisão pode ou não ter sido
sobre como fazer amor ou sobre a maneira de
um grande obstáculo (dependendo do momento
curar prisão de ventre. Embora o Talmude (e, do
e do local na história do império), mas o avanço
ponto de vista prático, o Babli é o Talmude) seja
das instituições e da cultura romanas, mesmo de
enorme, seu escopo é uma declaração sucinta de
forma localizada, foi, a partir do século ii, uma
seu propósito: transformar a totalidade da vida
realidade nunca antes presenciada.
ã luz da Torá conforme esta é interpretada pelos
Perto do fim do período dos amoraim da Pa
rabinos. 3.5
lestina, parece que o próprio patriarcado, que
Os targumim e o Midrash Rabbah. 0 ím
confirmara o sucesso dos rabinos na redação da
peto e a capacidade dos rabinos da Babilônia per
Mishná, estava mais ahnhado com a aristocracia
mitiram que concluíssem a recensão padrão dos
local. A urbanização crescente não era compa
targumim e a publicação de um midrash na forma
tível com a perpetuação do poder rabínico na
mais completa já produzida. 0 Midrash Rabbah
Palestina. Além disso, no século m, a Babilônia
apresenta não apenas os livros bíblicos utilizados
assistiu ã chegada dos sassânidas ao poder e ã
em ocasiões festivas e comemorativas (Ester, Rute,
forma de zoroastrismo que praticavam, tendo
Cantares, Eclesiastes, Lamentações), mas também
uma política de relativa tolerância para com a
0 Pentateuco. A segurança que os rabinos da Babi
prática do judaísmo. A vida econômica dos ju
lônia tinham no próprio éthos era tão forte que o
deus na Babilônia, na maioria estabelecidos em
comentário sobre as Escrituras podia incluir narra
cidades e aldeias autônomas sustentadas pela
tivas explícitas sobre os rabinos, bem como expo
agricultura, era mais adequada ao éthos rabínico
sição e discussão formal. 0 término da elaboração
do que o crescente sincretismo que se viu no Im
do Midrash Rabbah provavelmente ocorreu duran
pério Romano a partir do século ii. Os sassânidas
te o século VIU, e essa obra representa a confiança
incentivavam ou toleravam (em níveis variados
de que, em essência, a Torá, quer nas Escrituras,
ao longo do tempo) a formação das academias
quer no Talmude, é uma só. O entrelaçamento das
em locais como Sura, Pumbedita e Nehardea, que
Escrituras com o ensino rabínico também está re presentado nos midrashim homiléticos de um pe
constituíam o dínamo do debate rabínico. 3.4.2 O Talmude babilónico (c. séc. vi). Os ra binos da Babilônia deram ao judaísmo a natureza
ríodo posterior: a Pesiqta Rabbati, a Pesiqta de Rab Kahana e Tanhuma.
1259
O r d e n s e t r a t a d o s d a M is h n á , d a T o s e f t á e d o T a lm u d e
Zem'im
Sementes, em relação às contribuições
Neziqin
Danos
Berakot
Bênçãos
Baia Qamma
Primeiro portão
Pe’a
Respigos
Baba MetsVa
Portão do meio
Demai
Produto da terra sem dízimo certo
Baba Batra
Último portão
KiVayim
Tipos diversos
ShebVit
Sétimo ano
Temmot
Ofertas alçadas
Ma'asemt
Dízimos
Ma'oser Sheni
Segundo dízimo
Sanhédrin
Sinédrio
Makkot
Açoites
Shebu'ot
Juramentos
‘Eduyyot
Testemunhos
Halla
Oferta de massa
'Aboda Zara
Idolatria
■Orla
Fruto das árvores novas/Enxerto
'Abot
Pais
Bikkwim
Primeiros fmtos/Primícias
Horayot
Instruções/Decisões
Mo'ed
Festas fixas
Qodashim
Coisas sagradas
Shabbat
Sábado
Zebahim
Ofertas de animais/ Sacrifícios
'Erubin
Limites do sábado
Menahot
Ofertas de alimentos
Pesahim
Festa de Páscoa
Huüin
Animais mortos para comer/ Coisas comuns
Sheqalim
Siclos pagáveis
Bekorot
Primogênitos
Yoma (= Kippanm)
Dia da Expiação
'Arakin
Dedicações vicária
Sukka
Festa dos Tabernáculos
Temura
Substituição
Betsa ( = Yom tob)
Festas
Keritot
Extirpações
Eosh Hashshana
Ano-novo
Me'ila
Sacrilégio
Ta'anit
Dias de jejum
Tamid
0 holocausto diário
Megilla
Rolo de Ester
Middot
Medidas
Mo'ed Qatan
Pequena festa
Qinnim
Ofertas de aves / Ninhos
Hagiga
Oferta festiva
Nashim
Mulheres
Toharot
Purezas
Yebamot
Casamento de levirato
Kelim
Utensílios
Ketubot
Certidões de casamento
Oholot
Tendas
Nedarim
Votos
Nega'im
Sinais de lepra /Pragas
Nazir
0 voto do nazireado
Para
A novilha vermelha
Sota
Mulher suspeita de adultério
Toharot
Purezas
Gifíin
Certidões de divórcio
Miqwaot
Tanques de imersão
Qiddushin
Noivados
Niddnh
A menstruada / Separação
Makshirin ( = Maskqin)
Os que dão a herança de antemão
Zabim
Os que sofrem fluxo/ Emissões seminais
Tebul Yom
Imersão do dia
Yadayim
Mãos
'Uqtsin
Hastes
1260
T radições e escritos rabínicos
O Sefer Yesirá. 0 período rabínico termi debate como Torá — fez com que palavras ou
3.6
nou com o surgimento do islã e a reação poste
frases fossem atribuídas anacronicamente a seus
rior dos geonim, que sucederam aos rabinos e
antecessores. Ao usar o material rabínico, deve
mantiveram e ampliaram o judaísmo rabínico,
se ter cautela quando se atribuem certas ideias a
imprimindo-lhes uma tendência peculiarmente
determinado rabino, especialmente no caso dos
acadêmica e às vezes racionalista. A obra dos geo
períodos que vão até o tanaítico, inclusive. 4.1
nim foi adquirindo natureza cada vez mais literá
Anacronismos. Um exemplo é a referência
ria e pressupunha o cânon rabínico como fato a
já feita (v. 1.1 acima) ao ensino de Hillel acerca
reconhecer, não como realidade a alcançar. Além
do amor. Hillel era venerado como o precursor
do mais, tornou-se manifesta uma tendência em
do patriarcado e — ao longo do tempo — che
direção à filosofia e ao esoterismo.
gou-se a dizer que foi descendente de Davi (Rab.,
0 Sefer Yesirá ( “livro da formação”) é um bom
Gn 98), o que reforçava a reivindicação à autori
exemplo de obra de transição entre os amoraim
dade por parte de qualquer patriarca que viesse
e os geonim, e provavelmente foi composto no
depois dele e a ele estivesse relacionado. À época
século
Seu ponto de partida é uma tradição
dos amoraim, um rabino era visto como alguém
mística que remonta pelo menos a Yohanan ben
que apresentava em sua halaká o equivalente
Zakkai, segundo a qual é possível ver a carrua
funcional da Torá. E é justamente isso que Hillel
VII.
gem (merkabah) de Ezequiel 1 e conhecer a
faz na história que contamos. Com um único gol
estrutura da criação. No entanto, enquanto os
pe, ele derrota o pedido simplório do prosélito e o
rabinos afirmavam que tais experimentações só
exclusivismo ofensivo de Shammai. Hillel torna-
eram válidas em apresentações particulares (mes
se 0 que qualquer amoraim desejava ser: um he
mo assim, sob controle rígido, cf. b. Shabb., 80b;
rói na defesa da Torá, porque entendia a força da
b. ag., llb,13a,14b), o Sefer Yesirá dá início a uma
Torá. Pelo fato de esse relato acerca de HiUel ser
tradição de esoterismo literário e racional que é
condizente com o éthos dos amoraim e aparecer
mais típica da cabala da Idade Média do que do
apenas nessa etapa do Babli (b. Shabb., 31a), não
judaísmo dos rabinos. A dialética dos rabinos ba
se deve atribuir necessariamente ao próprio Hillel
seava-se na argumentação oral que produziu sua
0 destaque que se dá à aprendizagem da totali
literatura e à qual sua literatura tinha o propósito
dade da Torá.
de servir. Estritamente falando, quando a lógica
4.Z Analogias. No entanto, a presença de
do discurso literário passa a prevalecer, a estrutu
uma forma do que é geralmente conhecido como
ra do judaísmo já não é rabínica.
Regra de Ouro mostra que é imprudente negar
4. O uso dos escritos rabínicos para
buído no Babli. A versão que temos do relato tal
entender Jesus e os Evangelhos
vez reflita o éthos dos amoraim, mas é possível
A literatura rabínica desenvolveu-se de uma for
que uma declaração feita por Hillel esteja por trás
que Hillel tenha dito algo como o que lhe é atri
ma que a torna diferente dos Evangelhos. Em
da história que lhe é atribuída. Na condição de
termos sociais e religiosos, não é possível fazer
ordem para que a pessoa não faça o que consi
comparação direta entre os escritos do judaísmo
dera repulsivo, parece que a máxima teve ampla
rabínico e os do cristianismo primitivo. Por esse
circulação no período antigo (cf.
motivo, a existência de um suposto paralelo entre
lecta 15.23; Tb 4.15; Ar, 207;
C o n f ú c io ,
E u sébio ,
Ana-
Pr ev, 8.7
um texto rabínico e uma passagem dos Evange
[quanto à citação feita de Filo]; Te Na, 1.6 [hebr.];
lhos não deve, por si só, ser interpretada como
2En, 61.1,2; Se Sx, 89 [e 210b]). Também influen
prova de que o judaísmo é que deu origem ao
ciou a forma da Regra de Ouro, como se vê em
tema da passagem em questão. (Às vezes, o ter
Didaquê 1.2 (cf. At 15.20,29 em
mo "paralelo” é titil apenas quando se tem em
que não queres que te façam não faças a outrem.
d;
Rm 13.10): o
mente que o adjetivo descreve Unhas que na
Tendo em vista que a forma proverbial da Re
realidade nunca se encontram.) Ademais, o pró
gra de Ouro (i.e., negativa) é a que predomina na
prio programa dos rabinos — a saber, retomar o
antiguidade cristã, não há necessidade de alegar
debate perene sobre a pureza e promulgar esse
que a versão de HiUel influenciou a declaração
1261
de Jesus. Além do mais, a forma negativa é bas
Em termos gerais, a hagadá [haggaddâ, “nar
tante comum na tradição cristã, como em muitas
ração, instrução”) acerca de Hillel, Baba ben Buta
outras. Não há, portanto, necessidade ou moti
e as ovelhas é mais característica do programa
vo de apresentar algo específico (como no caso
farisaico-rabínico do que a breve menção da Re
da frase de Hillel) para exphcar uma afirmação
gra de Ouro. Além disso, o fato de a história estar
convencional.
mais bem atestada nos dois Talmudes e também
Aliás, um aspecto que pode ser peculiar e sig
aparecer na Toseftá mostram que talvez reflita
nificativo na máxima atribuída a Jesus em Ma
uma disputa que de fato tenha ocorrido. Por fim,
teus 7.12 e em Lucas 6.31 é que, do ponto de
embora os contestantes de Hillel sejam estereotí
vista formal, ela aparece no imperativo afirmati
picos, é notável que em Beía, 20a (cf. t. ag., 2.11)
vo. Embora o conteúdo do ensino seja proverbial
Hillel faz de conta que o animal é uma fêmea
e esteja longe de ser exclusivo de Jesus, não há
para um sacrifício pacífico [zíblfê shelãmim), com
dúvida de que existe um elemento incomum na
0 intuito de que os discípulos de Shammai acei
aphcação do princípio apresentado na máxima.
tem 0 animal. Ou seja, a versão da história no Ba
O desejo firme de fazer aos outros o bem que
bli pressupõe que são os seguidores de Shammai
alguém deseja para si é, obviamente, uma ver
que de fato controlam o que os adoradores fazem
são mais enérgica do imperativo de não fazer aos
no templo. A hagadá é bem diferente do tipo de
outros 0 mal que não gostaria de sofrer. A impor
história em que Hillel é apresentado como o pa
tância do que é atribuído a Hillel no Babli não é
triarca prototípico do judaísmo rabínico.
que fica demonstrada a existência de um paralelo
Em certo sentido, a tradição acerca de Hillel
do século I com o ensino de Jesus, mas que fica
contempla um movimento oposto ao de Jesus no
demonstrado, por meio do comraste, que no ju
templo (Mt 21.12,13; Mc 11.15-17; Lc 19.45,46;
daísmo rabínico — e provavelmente nos círculos
Jo 2.13-17;
farisaicos do judaísmo antigo — era comum a for
são trazidos para o templo, em vez de seus co
ma proverbial e negativa da máxima.
merciantes serem expulsos. Mas o propósito da
V. TEMPLO, p u r if ic a ç ã o d o ) ;
os animais
Mesmo assim, só é possível chegar a essa
ação do partidário de Hillel é compehr a uma
ideia intuída e pouco relevante quando se lê o Ba
compreensão do que seja a adoração correta, e
bli dentro do quadro de referência de documen
os Evangelhos também atribuem essa motivação
tos mais antigos. Não há nenhuma possibilidade,
a Jesus. Na prática, a halaká de Hillel insiste na
com base apenas nos Evangelhos e no Babli, de
participação do ofertante, porque este é o dono
se fazer entre Jesus e Hillel uma comparação di
do animal oferecido, fato comprovado pela im
reta que seja aceitável do ponto de vista crítico.
posição de mãos (cf. b. Pesah., 66b). De acordo
4.3
Ambiente. Como já mencionamos (v. 1.1 com a história, a casa de Shammai sanciona o
acima), conta-se que Hillel ensinou que as ofertas
sacrifício sem exigir que o ofertante participe ine
deviam ser levadas ao templo, onde os donos im
quivocamente desse ato. Embora nada parecido
poriam as mãos sobre elas e as entregariam aos
com a violência de Jesus seja atribuído a Baba
sacerdotes para o sacrifício (cf. t.
ag., 2.11; y.
ben Buta, o que ele oferece é uma analogia sobre
ag., 2.3;y. Beía, 2.4; b. Beía, 20a,b). Seus eternos
a insistência na adoração correta no templo por
e estereotípicos contestantes, os da casa de Sham
parte de um fariseu.
mai, resistiram, insistindo que os animais deviam
A própria Mishná reflete a preocupação de
ser entregues diretamente ao sacerdote, sem a
controlar os acertos comerciais associados ao
imposição de mãos. Contudo, alguém da casa de
templo, e essa preocupação também é um tanto
Shammai (a quem o Babli e a Toseftá se referem
quanto análoga à ação de Jesus no pátio externo.
pelo nome de Baba ben Buta) ficou tão impressio
Conta-se a seguinte história sobre um dos suces
nado com a justeza da posição de Hillel que fez
sores de Hillel [m. Ker., 1.7);
com que se levassem cerca de 3 mil animais (nú mero indicado apenas no Yerushalmi] ao templo
Certa vez, em Jerusalém, dois pombos cus
para distribuir entre os que desejassem impor as
tavam um denário de ouro. 0 rabban Simeão
mãos sobre os animais antes do sacrifício.
ben Gamahel disse; “Juro por este lugar que 1262
T radições e escritos rab Inicos
não descansarei esta noite antes que eles cus
acreditarmos na história), e os preços ficaram
tem apenas um denário [de prata]
ainda mais baixos do que Simeão tinha preten
Ele foi para
o pátio e ensinou: “ Se uma mulher sofresse
dido. Pode se presumir que não tenha havido
cinco abortos sobre os quais não houvesse dú
nenhum motivo para ele continuar a promulgar
vida, ela precisaria trazer apenas uma oferta, e
seu ensino no pátio do templo, e tanto ele quanto
poderia então comer dos sacrifícios; e dela não
os comerciantes ficaram satisfeitos com o acordo.
se exigem os demais sacrifícios”. No mesmo
Em comparação com as datas da Toseftá, do
dia, dois pombos passaram a custar um quarto
Yerushalmi e do Babli, a data da Mishná faz com
de denário cada um.
que seu material — quando pode, de alguma ma neira, ser comparado com os Evangelhos — seja
Embora seja necessário mais esforço para en
de interesse imediato para os que estudam a vida
tender essa história que a de Hillel, vale a pena
e os ensinos de Jesus. Apesar de toda a sua com
anahsá-la. A pressuposição de toda a história é
plexidade, a hagadá do tratado mishnaico Keritot
que uma mulher podia oferecer um par de pom
é de vital importância para entender o tipo de
bos tanto como oferta queimada quanto como sa
intervenção que os fariseus do século i podiam
crifício pelo pecado a fim de ser purificada após o
fazer no funcionamento do templo. (Talvez a his
parto. Desses sacrifícios, o de purificação após
tória a respeito de Simeão seja mais complicada,
0 parto era apresentado normalmente, ao passo
justamente por estar mais próxima das preocupa
que no outro, se a mulher fosse pobre, os pombos
ções dos fariseus que a hagadá posterior a res
podiam substituir um cordeiro de um ano de ida
peito de Hillel e Baba ben Buta.) Hillel, Simeão e
de (Lv 12.6-8). A história também pressupõe que,
Jesus são apresentados como pessoas interessa
do ponto de vista da pureza cerimonial, abortos
das nos animais oferecidos no templo a ponto de
e situações incomuns semelhantes deveriam ser
intervir (ou agir por meio de um representante,
tratados como partos. Essa associação é caracte
como no caso de Hillel) no pátio externo, a fim
risticamente farisaica, como também a questão de
de influenciar o andamento normal da adoração.
quando era possível considerar a mulher em con
Até esse ponto, podemos dizer que as tradições
dições de comer das ofertas. Os fariseus definiam
e os escritos rabínicos oferecem um contexto no
pureza como a condição de poder participar do sa
qual é possível interpretar uma ação bem docu
crifício e das refeições, que, de acordo com o ensi
mentada de Jesus.
no deles, eram extensões da santidade do templo.
4.4
Resumo. A utihdade dos documentos do
Por isso, a ira de Simeão, que o leva a jurar
judaísmo rabínico na interpretação de Jesus e
pelo templo {cf. Mt 23.12-22), é até certo pon
dos Evangelhos depende de três considerações
to motivada por considerações econômicas. Sua
críticas, analisadas nos exemplos apresentados
reação, à semelhança da de Jesus, é ensinar no
acima. Primeira: deve se levar em conta a data
pátio do templo, para onde as ofertas eram leva
relativamente tardia da hteratura, embora os elos
das. Mas a ação de Simeão no pátio é bem me
entre o judaísmo rabínico e o farisaísmo do sécu
nos direta que a de Hillel ou a de Jesus. Em vez
lo I mostrem que são possíveis algumas analogias
de trazer mais aves ou de hbertar as que foram
entre os Evangelhos e os escritos rabínicos. Se
trazidas a um preço abusivo, ele promulga uma
gunda: um reconhecimento das transformações
halaká, cujo propósito é diminuir o comércio de
sociais e religiosas envolvidas no surgimento
pombos, não importando o preço desses animais.
do judaísmo rabínico deve deixar o leitor alerta
Se uma mulher pode aguardar vários [até
quanto à possibilidade de anacronismos ou quan
cinco) abortos ou fluxos de sangue e então ofer
to à apresentação de mestres mais antigos como
tar um único par de pombos e ser considerada
porta-vozes de teologias posteriores. Terceira: de
pura para comer do animal ofertado, é óbvio que
vemos entender que o alvo inicial da investigação
cairia a renda auferida do comércio de pombos.
é recuperar o ambiente do judaísmo primitivo.
Na prática, Simeão opõe-se aos preços inflacio
Ou seja, não devemos tanto procurar aconteci
nários com monetarismo sacrificial. A hção po
mentos e frases que tenham paralelo nos Evan
lítica foi logo entendida (naquele mesmo dia, se
gelhos, quanto recapturar a matriz da fé cristã,
1 263
conforme indiretamente refletida tanto nos Evan gelhos quanto nos escritos rabínicos. Ver também A pócrifos
e
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1264
Ver
ADORAÇÃo /CULTO; CRISTO
Ú
l t im a
C e ia : E v a n g e lh o s
Na história da igreja, diferentes termos já foram
técnicos usados em referência ã transmissão da tra dição oral; cf. Lc 1.2; ICo 15.3.) Não há absoluta
associados à Última Ceia. Alguns desses ter
certeza se essa tradição foi “recebida” da igreja de
mos, como “partir do pão” (At 2.42,46; 20.7,11),
Antioquia (At 11.26), em meados da década de 40,
“eucaristia” (Mt 26.27; Mc 14.23; Lc 22.17,19;
ou da igreja de Damasco (At 9.19; G1 1.17), em
ICo 11.24), “ mesa do Senhor” (ICo 10.21), “comu
meados da década de 30. Os relatos dos Evange
nhão” (ICo 10.16) e “ceia do Senhor” (ICo 11.20),
lhos datam mais provavelmente de 65 a 90 a.C.
Outros estão ausentes, como
Os quatro relatos sobre a Última Ceia enqua-
“ missa” (do final latino do rito romano: Ite, missa
dram-se em dois grupos distintos, representando
encontram-se no
nt.
est — “Vai, que estás despedido”) e “Última Ceia”. No
NT,
há várias referências e alusões à Últi
duas versões específicas da tradição. São eles: Ma teus 26.26-29/Marcos 14.22-25 e Lucas 22.15-20/
ma Ceia (ICo 10.1-22; 11.20-22; Lc 24.30; At 27.35;
ICorintios 11.23-26. As duas versões podem ser ca
Mc 6.41; 8.6; Jo 6.25-59; 19.34; At 2.42,46;
racterizadas da seguinte maneira:
20.7,11), porém as mais importantes estão nestes
0 relato de Lucas é o mais diferente dos qua
quatro relatos: Mateus 26.26-29; Marcos 14.22-25;
tro. É o único que menciona o cálice antes do pão
Lucas 22.15-20; ICorintios 11.23-26, sendo este
(Lc 22.17) e traz a informação a respeito do reino
último
futuro (v.
D
relato mais antigo.
1. A tradição da igreja primitiva e os relatos dos Evangelhos 2. Antecedentes históricos
REINO DE D eus )
no início da ceia (Lc 22.16),
não no fim, como nos demais relatos. Há também um problema textual no relato lucano, uma vez que alguns manuscritos importantes, sobretudo o
3. A Última Ceia no contexto da Páscoa
Códice de Beza e vários antigos manuscritos lati
4. As quatro declarações da Última Ceia
nos, omitem Lucas 22.19b,20: “dado em favor de
5. A celebração da ceia
vós; fazei isto em memória de mim. Da mesma forma, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo;
1. A tradição da igreja p rim itiva e os relatos
Este cálice é a nova aUança em meu sangue, der
dos Evangelhos
ramado em favor de vós”. São dois os argumentos
Na Primeira Carta aos Coríntios, que Paulo escre
mais importantes a favor dessa versão mais curta
veu por volta de meados da década de 50, no sécu
da passagem. 1) A natureza insólita da variante.
lo
ele faz menção de uma tradição que recebeu
É, sem dúvida alguma, a variante de mais difícil
do Senhor. Com isso, quer dizer que, em última
leitura, já que seria improvável que um escriba de
anáhse, a tradição da Última Ceia tem origem em
sejasse omitir justamente o final mais tradicional.
I,
Jesus. No entanto, tendo em vista o uso que ele faz
2) É uma variante mais curta, o que, segundo os
dos verbos “ recebi” e “entreguei”, fica claro que
princípios crítico-textuais, geralmente seria a ver
está se referindo a uma tradição que lhe foi ensina
são preferida. Isso se aplica até mesmo no caso de
da pela igreja. (“Recebi” e “entreguei” eram termos
uma não interpolação ocidental (i.e., uma versão
1IVI/-V \ _ L I« . UVMtVVJCLnUJ
não encontrada na famflia ocidental de manuscri
cretizou (Mt 26.21-25,36,56; Mc 14.18-21,32-42;
tos), e variantes mais breves, como essa, são con
Lc 22.21-23,39-53).
trárias à tendência da tradição copista ocidental.
2 . 1 0 problema de Marcos 14.12. Nesse versí
Não obstante, as evidências contídas nos manus
culo, encontramos uma dificuldade em relação à
critos a favor da inclusão de Lucas 22.19b,20 são
data da Última Ceia. Marcos declara: “ No primei
tão convincentes que não podem simplesmente
ro dia da Festa dos Pães sem Fermento, quando
ser desprezadas, e pareceria que em algum ponto
sacrificavam o cordeiro pascal, seus discípulos
da tradição um escriba tenha se confundido com
lhe disseram; Onde queres que façamos os pre
a seqüência cálice-pão-cálice de Lucas e tenha as
parativos para comeres a refeição da Páscoa?” A
sim omitido a segunda menção do cálice.
Páscoa, que ocorria no primeiro dia da Festa dos Pães sem Fermento, era comemorada no dia 15 de
M a te u s/M a rc o s
____
nisã. O sacrifício do cordeiro pascal, entretanto,
L u c a s/ lC o rín tio s
ocorria no dia 14, quando se dava a busca ritual “abençoando-o” [o pão]
___ “tendo dado graças” [pão]
“Tomai”
___ [Ausência de “Tomai”]
“isto é 0 meu corpo”
___ “Isto é o meu corpo + dado [...] vós”
por fermento. O mais provável é que Marcos não esteja fazendo uso de terminologia técnica aqui. Na compreensão mais popular, essa distinção téc nica se perdeu, porque o começo da Festa dos Pães sem Fermento se dava no dia anterior, no qual ocorriam as preparações, como a matança do cordeiro pascal e a busca por fermento na
[Ausência de “fazei ___ “fazei isto em memória isto em memória de de mim” mim”]
casa. Marcos, na apresentação que faz no rela to, está agindo como algumas pessoas de nossos dias, quando dizem que comemoram o Natal na
“isto”
“Este cálice”
“rendeu graças” antes do cálice
[Ausência de “tendo dado graças” antes do cálice]
véspera, dia em que geralmente acontece a troca de presentes. De modo semelhante. Marcos 14.12
Referência a todos
0 cálice é bebido
é mais bem compreendido como uma referência inexata, que reflete uma visão popular do acon tecimento (cf.
J o s e fo ,
Gu jn, 5.3.1, sobre uma
referência semelhante ao dia 14 de nisã como o
Ausência de uma referência a todos
começo da Festa dos Pães sem Fermento).
2.2 A Última Ceia estava associada à refei ção da Páscoa? Fica claro nos quatro Evangelhos
___ [0 cálice é bebido]
que a crucificação de Jesus ocorreu numa sexta"meu sangue, o sangue da aliança”
“nova aliança em meu sangue”
“derramado em favor de muitos”
Lucas traz “derramado em favor de vós” [ausente de ICorintios]
feira (Mt 27.62; Mc 15.42; Lc 23.54; Jo 19.31,42). Isso, naturalmente, significa sexta-feira antes das seis horas da tarde, pois, na maneira de o judeu contar o tempo, esse horário marca o fim da sextafeira e o começo do sábado. A questão principal a respeito da data da Última Ceia exerce impacto
2. Antecedentes históricos
sobre o fato de ela estar ou não associada a uma
Várias questões históricas são suscitadas em
refeição pascal. Isso parece inquestionável, levan-
qualquer tentativa de compreender corretamen
do-se em conta Mateus 26.17-19, Marcos 14.12-
te a Última Ceia. Os quatro relatos mostram que
16 e Lucas 22.7-15. Mas João 13.1,29, 18.28 e
a ceia foi celebrada “na noite em que foi traí
19.31 dão a impressão de que o julgamento e a
do” (ICo 11.23). Isso é especificamente men
crucificação ocorreram antes da Páscoa. Assim,
cionado na versão paulina da Última Ceia, mas
tomando João como ponto de partida, parece que
cada Evangelho também mostra que, na noite
a Última Ceia deve ter ocorrido ou no dia 14 de
da Última Ceia, Jesus anunciou sua traição e
nisã, ou antes. Inúmeras teorias tentam explicar
dirigiu-se ao Getsêmani, onde a traição se con
0 fato. Alguma delas são:
1266
Ú ltim a C e ia : Evangelhos
1) Os Evangelhos Sinóticos estão corretos. A
que Mateus 26.26, Marcos 14.22 e Lucas 22.15-17
IJltimo Ceia era uma refeição pascal. 0 termo
situem a Última Ceia no período associado a uma
“Páscoa” em João 18.28 não se refere ao cordeiro
refeição pascal, ela não foi uma refeição pascal
pascal, mas às festas e aos sacrifícios posteriores
para eles. Isso fica especialmente claro em Lucas,
associados à Festa dos Pães sem Fermento.
visto que nenhuma de suas referências ao partir do
2) João está correto. Jesus não participou da re
pão em Atos é associada à Páscoa judaica. Além
feição pascal costumeira com seus discípulos, mas
disso, Paulo parece separar o “cálice” em relação à
se adiantou a ela e a comeu antes, porque sabia
ceia em si (ICo 11.25). Assim, ainda que a Última
que seria morto por ocasião da Páscoa. João 18.28,
Ceia estivesse associada à refeição pascal e ainda
entretanto, refere-se à Páscoa propriamente dita.
que a
c e ia do
S enhor
estivesse associada na igreja
3) Tanto os Evangelhos Sinóticos quanto João
primitiva a uma refeição (a “festa de amor”), ja
estão corretos, porque a Páscoa foi celebrada na
mais foi entendida como idêntica a essas refeições. 2.3
quele ano em dois dias separados.
A Última Ceia associada com uma re
Diversas objeções foram levantadas contra a
feição de Páscoa. Vários argumentos persuasivos
opinião de que a Última Ceia estava associada
favorecem a perspectiva segundo a qual a Última
a uma refeição pascal. Em primeiro lugar, não se
Ceia estava associada a uma refeição pascal. Al
faz menção ao cordeiro pascal. Em segundo lu
guns deles são:
gar, a palavra usada para “pão” no relato é artos,
1) A refeição da Páscoa tinha de ser consumi
o termo comum para “ pão com fermento” , não
da dentro da cidade murada de Jerusalém, e a Úl
sendo possível que fosse empregada para desig
tima Ceia aconteceu dentro dos muros da cidade.
nar o pão asmo. Em terceiro lugar, não são men
2) A noite da Páscoa tinha de ser passada den
cionados os quatro cálices usados na celebração
tro da Grande Jerusalém, que incluía Jerusalém
judaica tradicional da Páscoa.
e os montes circunvizinhos em que ela estava
Essas objeções não são de grande monta, en
situada. Naquela noite, diferentemente de outras
tretanto, pois os relatos da Última Ceia são resu
noites, Jesus e os discípulos passaram todo o
mos do que de fato aconteceu, e seria de esperar
tempo no Getsêmani, dentro da Grande Jerusa
que se concentrassem nos aspectos mais perti
lém. não em Betânia.
nentes à celebração. Além disso, uma vez que
3) Jesus e os discípulos reclinaram-se enquan
a igreja primitiva continuava a celebrar a Última
to comiam (Mc 14.18), Era costumeiro sentar-se
Ceia separadamente em relação à festa judaica
nas refeições comuns e reclinar-se na Páscoa.
anual da Páscoa, aqueles aspectos da Páscoa com
4) As pessoas em Israel geralmente faziam duas
pouca ou nenhuma importância para a Última
refeições diárias. A primeira era um desjejum, por
Ceia logo caíram em desuso. Quanto à afirmação
volta das dez ou onze horas, e a segunda era a
de que artos não poderia ser usado para designar
refeição principal, no final da tarde. A Última Ceia
0 pão asmo da Páscoa, essa informação simples
aconteceu à noite (ICo 11.23; Mc 14.17), segundo
mente não confere. O termo geral para “pão” , seja
0 que a Lei exigia no caso da Páscoa (Êx 12.8).
0 grego artos, seja o hebraico lehem, foi sempre
5) A Última Ceia foi encerrada com um hino
na Mishná e nos targumim
(Mt 26.30; Mc 14.26), e era hábito no fim da Pás
em referência ao pão consagrado, que se tratava
coa entoar a última parte dos salmos de Hallel
de um pão asmo. Outras objeções alegam que o
(Sl 115— 118).
usado no
a t,
na
lxx,
julgamento de Jesus (v.
Jesus, ju lg a m e n to d e )
6) A interpretação dos elementos fazia parte,
po
costumeiramente, do ritual da Páscoa (Êx 12.26,27).
der ter ocorrido no dia da Páscoa. Ainda carece de esclarecimento a questão so
7) Era também comum na Páscoa dar algum
bre 0 fato de a Última Ceia ter sido uma refeição
dinheiro aos pobres, prática que explicaria o fato
pascal. A Última Ceia não foi uma refeição pascal.
de Judas ter deixado a reunião (Jo 13.29).
Não era celebrada anualmente, e encerra apenas
Nenhum desses argumentos é decisivo iso
dois elementos — o pão e o vinho. Não estão pre
ladamente, mas em seu peso total são bastante
sentes 0 cordeiro pascal propriamente dito, nem
persuasivos em demonstrar que a Última Ceia
os outros elementos da refeição da Páscoa. Ainda
estava de fato associada a uma refeição pascal.
1267
Os argumentos ainda recebem mais apoio do fato
6)
Por último, havia quatro cálices de vinho,
de Paulo chamar Jesus de “ Cristo, nosso cordei
numa mistura com três porções de água para
ro da Páscoa” (ICo 5.7), e de se referir ao “cálice
uma de vinho, que lembrava as promessas de
da bênção” (ICo 10.16), nome dado ao terceiro
Êxodo 6.6,7. O terceiro cálice da bênção era
cálice da refeição pascal. A hipótese segundo a
provavelmente o que Jesus usou na Última Ceia
qual a Última Ceia era um qiddúsh ou outra re
(Lc 22.20; ICo 10.16; 11.25). 0 quarto cálice era
feição religiosa realizada na véspera do sábado e
seguido de uma bênção e de um cântico.
incluía uma bênção sobre o pão e o cálice é impro vável, dadas as inúmeras associações da Última
3.2
Os paralelos da Páscoa. Durante a refei
ção da Páscoa, alguém, geralmente o filho mais
Ceia com a celebração da Páscoa. Na realidade, os
novo, era designado para fazer a pergunta; “Por
materiais tradicionais que nos informam sobre o
que esta noite é diferente das outras noites?”
qiddúsh são pós-cristãos, e o qiddúsh jamais era ce
Nesse momento, o anfitrião recontaria a histó
lebrado 24 horas antes do sábado, mas bem cedo,
ria da libertação de Israel em relação ao Egito e
na véspera do sábado. Existe até mesmo dúvida
o significado dos vários elementos da refeição.
se o qiddúsh era uma refeição ou apenas uma bên
Como anfitrião da Última Ceia, Jesus teria sido
ção pronunciada numa refeição. No que se refe
o responsável por essa preleção. Mais tarde, os
re à datação joanina da Páscoa, deve se ressaltar
paralelos entre a Páscoa e a Última Ceia que Jesus
que isso se encaixa muito bem com suas ênfases
estava estabelecendo ficariam bastante evidentes.
teológicas, visto que João procura estabelecer um vínculo estreito entre a morte de Jesus e a Páscoa
A Páscoa
A Última Ceia
(cf. Jo 1.29,35; 19.36; Êx 12.46; Nm 9.12). 3. A Última Ceia no contexto da Páscoa
Deus lembra-se
Uma nova aliança é
de sua aliança
decretada
Se de fato a Última Ceia ocorreu em uma refeição pascal, como se tem defendido, qualquer inter
Escravidão no
[Escravidão ao
pretação correta deve buscar compreendê-la à luz
Egito
pecado?]
repleto de simbolismos e com inúmeras alusões à
Libertação do
Perdão de pecados
história da redenção.
Egito
(Mt 26.28)
Sangue do cor
Sangue de Cristo
desse contexto. A Páscoa era um ritual intricado,
3.1 Os elementos da Páscoa. A refeição consistía principalmente em seis elementos. 1) O mais significativo era o cordeiro pascal,
deiro pascal
(nossa Páscoa,
que tinha de ser assado sobre brasas. Todo o cor
ICo 5.7; 0 Cordeiro
deiro tinha de ser comido na mesma noite. Nada
de Deus, Jo 1.29,35)
podia ser guardado para depois. 0 cordeiro, na turalmente, lembrava os participantes da primei
Interpretação
Interpretação dos
ra Páscoa, na qual o anjo da morte foi impedido
dos elementos
elementos
Chamado a
Chamado a uma
uma celebração
contínua celebração
de descer sobre os primogênitos de Israel pelo fato de estarem protegidos pelo sangue do cordeiro. 2) 0 pão asmo lembrava a rapidez com que Deus os libertara. Sua salvação fora tão rápida
contínua
que 0 povo de Israel não teve tempo de assar pão. 3) A bacia de água salgada lembrava as lágrimas vertidas no cativeiro e a travessia do mar Vermelho. 4) As ervas amargas recordavam a amargura da escravidão.
4. As quatro declarações da Última Ceia Embora alguns estudiosos sustentem que a fór mula paulina seja a mais original, em geral a
5) Um purê de frutas chamado charosheth
maioria deles conclui que a forma mais antiga é
lembrava a argila que eles usavam para fazer tijo
a encontrada na versão marcana. Entre as razões
los durante o cativeiro no Egito.
mais importantes estão; 1) o fato de que o relato
1268
Ú lT!m a C e!a : Evangelhos
marcano contém mais aramaísmos que o relato
por objetivo dar a Israel a possibilidade de se
paulino (e.g., “ tomou o pão e, abençoando-o,
lembrar “ do dia da tua saída da terra do Egito”
partiu-o”); 2) o fato de que é mais fácil entender a
(Dt 16.3). A morte vicária de Jesus e a nova alian
versão paulino-lucana como originada da fórmu
ça inaugurada por ele deviam ser lembradas da
la marcana do que mesmo o contrário. Pareceria
mesma maneira. 0 que exatamente subjaz a essa lembrança
que a fórmula original continha quatro elemen
é discutível. J. Jeremias era de opinião de que
tos, “ palavras” ou declarações. 4.1 “Isto é o meu corpo". O acréscimo de
a lembrança significava a petição por parte dos
“ [que é] dado em favor de [por] vós” em Lucas
discípulos de que Deus se lembrasse de Jesus e
e ICorintios pode ser um comentário interpreta
viesse salvá-lo. A Última Ceia, portanto, não se
tivo para ajudar a explicar o significado do pão
concentra no fato de a humanidade ser media
para o crente. No entanto, ainda que não sejam
da por Jesus diante de Deus, e sim na interces
as próprias palavras proferidas por Jesus, esse
são dos seguidores de Jesus diante de Deus em
comentário sem dúvida é subentendido e torna
nome de Jesus. Outra perspectiva compreende
claro 0 que estava implícito nas palavras de Je
essa lembrança como um memorial em que o
sus. É difícil crer que os discípulos não interpreta
crente se lembra da morte de Jesus e nela reflete.
ram 0 “é” metaforicamente. Se lhes perguntassem
Um terceiro modo de entender esse elemento da
“ Onde está o corpo de Jesus?” , eles apontariam
ceia é interpretá-lo com o significado de “em pro
para Jesus, não para o pão. 0 uso freqüente que
clamação de mim”. Com a Última Ceia, a igreja
ele fazia da linguagem metafórica teria fornecido
proclama a morte de Jesus. Essa teoria encontra
o contexto para interpretar o “é” de maneira não
apoio em ICorintios 11.26. A tendência nesse
literal. A interpretação metafórica do “é ” apoia-se
caso é considerar que o propósito da Última Ceia
no fato de eles ainda serem chamados “pão” e
é de natureza evangelística. A Última Ceia, entre
“cálice” (ICo n .25-28), referência que seria es
tanto, destina-se, acima de qualquer outra coisa,
tranha, se os elementos tivessem sido submetidos
à igreja. Talvez a melhor interpretação dessa or
a uma transubstanciação.
dem seria compreendê-la como a determinação
Na primeira declaração, Jesus mostra que veio
de que continuamente se recapitule ou se reconte
para dar seu corpo — ele mesmo em pessoa — a fa
a Paixão e a vinda de Jesus Cristo, exatamente
vor deles (cf. Fp 1.20; Rm 12.1; ICo 9.27). Mais tar
como a refeição da Páscoa representava os acon
de, a igreja compreenderia mais plenamente o que
tecimentos do Êxodo (Êx 12.1-20). 4.3
isso significava e perceberia que o pão representa a encarnação: quando o “Verbo [que] se fez carne”
“Isto é o meu sangue, o sangue da alian
ça derramado em favor de muitos". No terceiro
carregou nossos pecados em seu corpo (IPe 2.24) a
cálice da refeição da Páscoa, após a bênção tra
fim de conquistar a redenção do mundo.
dicional “ Bendito sejas tu. Senhor nosso Deus,
4.2 "... fazei isto em memória de mim”. A
Rei do mundo, que criaste o fruto da vide” , ou
autenticidade dessas palavras tem sido negada,
em lugar dela, Jesus disse: “Isto é o meu sangue,
acima de tudo pelo fato de não constarem em
0 sangue da aliança derramado em favor de mui
Marcos e em Mateus. No entanto, se Jesus via
tos”. As imagens relembram Êxodo 24.8, em que
sua morte como o selo de uma nova aliança, no
Moisés sela a aliança divina derramando metade
contexto da repetição contínua da Páscoa, teria
do “ sangue da aliança” sobre o altar e aspergindo
sido perfeitamente natural para ele afirmar que
a outra metade sobre o povo. Entende-se no Tar
essa nova e mais significativa libertação do povo
gum do psendo-Jônatas e no Targum de Ônquelos
de Deus por seu sangue deve ser da mesma forma
que 0 sangue da aliança de Êxodo 24.8 foi dado
continuamente lembrada. Além do mais, pode se
para “expiar” os pecados do povo, sendo, por
entender que a prática da igreja primitiva de ce
tanto, de natureza reconciUatória. De modo se
lebrar a ceia do Senhor regularmente, não apenas
melhante, o acréscimo feito em Mateus — “para
anualmente, como no caso da Páscoa, deva estar
perdão dos pecados” (Mt 26.28) — deixa explíci
relacionada ao fato de Jesus ter dito algo como:
to o que já está implícito na expressão “ sangue da
“Fazei isso em minha lembrança”. A Páscoa tinha
aliança” (cf. Hb 9.20-22; 10.26-29).
1 269
0 texto de Jeremias 31.31-34, com sua refe
o que imaginassem ser sangue de verdade. O fato
rência a uma “nova” aliança, embora não men
de não haver a menor hesitação ou reserva men
cionado diretamente, é também aludido nessa
cionada em nenhum dos relatos quanto a beber
frase. À semelhança da comunidade de Qumran,
o cálice demonstra que eles interpretaram as pa
que falava de uma “nova aliança” (CD 5.19; 8.21;
lavras de Jesus metaforicamente. 0 cálice — ou
19.33,34; 20.1,2; IQpHab 2.1-4; lQ28b 3.25,26;
seja, o conteúdo do cálice — simboliza a morte
5.21,22; 1Q34 frag. 3 2.5,6), Jesus enxergava que
de Jesus, seu sangue derramado, vertido como
sua missão havia inaugurado uma nova aliança,
sacrifício que sela uma ahança.
que seria selada por sua morte sacrificial. Ainda
4.4
até [...] no reino de Deus". Assim
que Jesus não tenha usado expressamente o adje
como a celebração da Páscoa implicava uma ex
tivo “nova” , ele está implícito. Nisso lembramos
pectativa e um anseio pelo dia final, em que Isra
Jeremias 31.34, que fala do perdão dos pecados
el participaria do banquete messiânico (Is 25.6-9;
como consequência de uma nova aliança. A cen-
53.12; cf. Is 55.1,2), os quatro relatos da Úldma
tralidade do perdão nessa nova aliança é também
Ceia contêm uma declaração a respeito do futuro.
apoiada pelo acréscimo da expressão “derrama
Embora a redação de Lucas contenha variantes
do em favor de muitos” , encontrada nos relatos
e seja diferente das demais pelo fato de situar
de Marcos e de Mateus. (A expressão “em favor
a expressão antes do pão, os Sinóticos dão um
de vós” de Lucas, em Lc 22.20, é provavelmente
testemunho unificado das palavras de Jesus: “Di-
uma mudança litúrgica introduzida para equiU-
go-vos que desde agora não mais beberei deste
brar o “em favor de vós” de Lc 22.19.) Isso faz
fruto da videira até aquele dia em que beberei o
lembrar a autoentrega expiatória e sacrificial do
vinho novo convosco, no reino de meu Pai”. A
Servo Sofredor de Isaías 53.12, que carrega o pe
declaração paulina acerca do futuro não proce
cado de muitos (v. Servo
Javé). Não seria legí
de dos lábios de Jesus, mas é um comentário do
timo interpretar "muitos” como algo que denote
próprio apóstolo, no qual ele afirma que, quando
uma expiação limitada, pois a expressão aqui se
a igreja celebra a ceia do senhor, ela proclama
de
refere a “ transgressores”; ou seja, diz respeito a
“a morte do Senhor, até que ele venha”. Nos Si
todos, como claramente mostra o paralelismo si-
nóticos, essa declaração aponta triunfantemente
nonímico de Isaías 53.12b,c.
para o banquete messiânico futuro, no qual Jesus
Essa declaração mostra que Jesus, ao referir-
comerá uma vez mais com os discípulos.
se a seu “ sangue derramado” , entendia que sua
Em outras passagens, vê-se que Jesus em
morte era sacrificial (Lv 17.11-14), sendo também
várias ocasiões se referiu à participação jubilo
0 selo de uma nova aliança. É difícil interpretar
sa no reino consumado como uma participação
essa declaração fora do contexto de Marcos 10.45,
no banquete messiânico (Mt 8.11 par. Lc 13.29;
ICorintios 15.3, 2Coríntios 5.21 e outras passa
Mt 5.6 par. Lc 6.21; Lc 12.35-38; Mc 7.24-30; v.
gens em que Jesus dá sua vida — derrama sangue
c o m u n h Ao
— numa morte vicária pela humanidade pecami
em que 5 mil e 4 mil são alimentados fossem
nosa. Essa declaração, acrescida à primeira, vem
compreendidos pelos Evangelistas como par
mostrar a natureza voluntária da autoentrega de
ticipações prolépticas da Última Ceia e do ban
à
m esa) .
Talvez também os episódios
Jesus, mas acrescenta a informação de que essa
quete escatológico (Mt 14.19 par. Mc 6.41 e Lc
autoentrega implica uma morte sacrificial que es
9.16 [Jo 6.11]; Mt 15.36 par. Mc 8.6). Lucas na
tabelece uma nova aliança. Parece também claro
realidade intensifica a alusão a isso, separando
que a frase “isto é o meu sangue” não teria sido
a referência aos peixes (Lc 9.16). De acordo com
interpretada literalmente por nenhum dos dis
a tradição judaica na Mekilta de Êxodo 12.42, a
cípulos, tendo em vista a proibição veterotesta-
futura redenção de Israel viria na noite da Páscoa.
mentária de ingerir sangue (cf. Lv 3.17; 7.26,27;
Por conseguinte, a celebração da Páscoa revisita-
17.14 etc.), porque, basta lembrar a dificuldade
va o mais importante acontecimento redentivo do
que Pedro encontrou em Atos 10.6-16 diante da
AT
carne não kosher, e dificilmente se concluirá que
da era messiânica. De modo semelhante, Jesus,
os discípulos não teriam nenhum pavor de beber
na Última Ceia, chama a atenção dos discípulos
r 270
e antevia a expectativa jubilante da chegada
Ú ltim a C e ia : Evangelhos
para o acontecimento redentivo mais importante
rejeita uma visão sacramental não refinada da
do NT, que logo será passado, e para a chegada do
ceia do Senhor. Como acontece com a circunci
reino em glória, quando ele voltar (ICo 11.26) e
são, a ceia do Senhor e o batismo têm valor quan
participar do banquete messiânico com seus se
do acompanhados por fé e obediência (Rm 2.25).
guidores (Mt 26.29; Mc 14.25; Lc 22.16).
Há também uma advertência específica a respeito
Sem dúvida, Jesus não vê sua Paixão como uma tragédia ou um equívoco, mas o ato culmi
do perigo de participar da ceia do Senhor “de ma neira indigna” (ICo 11.27-32).
nante de seu ministério, no qual ele derrama seu sangue como sacrifício definitivo, feito de uma
S. A celebração da ceia
vez por todas, assugurando assim a redenção "em
Em Atos, encontramos diversas referências ao
favor de muitos” e garantindo uma consumação
“ partir do pão” (At 2.42,46; 20.7,11; Lc 24.30).
gloriosa no futuro. Paulo, em sua declaração de
Embora seja discutível se isso diz respeito a uma
caráter futuro, refere-se mais especificamente ao
celebração oriunda da Última Ceia, está claro que
acontecimento que produzirá essa consumação
era assim que o Evangelista a entendia. Isso fica
— a parusia. Assim, a Última Ceia, embora não
evidente pelo uso que Lucas faz da expressão
seja a concretização do banquete messiânico, é
“ partiu-o [o pão]” (Lc 22.19). É ainda apoiado
uma experiência proléptica, uma espécie de ante
pelo fato de que em Atos 20.7 encontramos o par
gozo, ou primícias, desse banquete,
tir do pão acontecendo no contexto da adoração
4.5
Acréscimos posteriores à Última Ceia. da igreja no primeiro dia da semana. Assim, para
Nos quatro relatos da Última Ceia, encontramos
Lucas, as referências ao “partir do pão” são com
vários comentários litúrgicos e interpretativos. 0
preendidas como o cumprimento da ordem de Je
que não é de surpreender. Embora seja impossí
sus “ Fazei isto em memória de mim” , encontrada
vel chegarmos a uma certeza total, as expressões
em seu Evangelho. Interpretá-las como refeições
seguintes podem ser acréscimos litúrgicos: “To
comuns, ou mesmo como festas de amor, contra
mai” (Mt 26.26; Mc 14.22); “comei” (Mt 26.26);
diz a prática normal de Lucas de mostrar como a
“ Bebei dele todos” (Mt 26.27); “e todos beberam”
igreja em Atos punha em prática os ensinamen
(Mc 14.23); “Do mesmo modo, depois de comer,
tos de Jesus. Talvez o partir do pão normalmen
tomou o cálice, dizendo” (ICo 11.25); “cálice”
te ocorresse no contexto de uma festa de amor,
(ICo 11.25; Lc 22.20); "Porque todas as vezes
mas a semelhança da redação com a Última Ceia
que comerdes deste pão e beberdes do cálice pro
(“partiu-o [o pão]”) mostra que o mais impor
clamais a morte do Senhor, até que ele venha”
tante para Lucas é a celebração da ceia. A única
(ICo 11.26). Alguns comentários interpretativos
dificuldade com essa compreensão é Atos 27.35,
que podem ter sido acrescentados ao relato são:
mas não é séria o bastante para superar aqueles
“em favor de vós” (Lc 22.19; ICo 11.24); “dado”
fatos já citados.
(Lc 22.19); “fazei isto em memória de mim”
Na igreja primitiva, a celebração da ceia foi
(Lc 22.19; ICo 11.24; v. 4.2 acima); "nova [alian
quase imediatamente separada da Páscoa, pois
ça]” (Lc 22.20; ICo 11.25); “para perdão dos
o “ partir do pão” era praticado com bastante
pecados” (Mt 26.28). Em todos esses casos, a in
frequência, não apenas uma vez por ano. Há
tenção de Jesus não é modificada, mas os acrésci
indícios de que fosse celebrada semanalmente
mos ou tornam explícito o que talvez só estivesse
(At 20.7,11; ICo 16.2) ou mesmo diariamente
implícito, ou tornam o formato do sacramento
(At 2.46,47). Não há no
mais útil liturgicamente.
prescrição específica sobre a regularidade com
Vários outros comentários interpretativos são encontrados no
nt
a respeito da Última Ceia. Em
nt,
entretanto, nenhuma
que deva ser celebrada. Na primeira fase da igre ja, a ceia estava vinculada a uma “ festa de amor”
ICorintios 10.3,4, Paulo faz uma advertência con
(Jd 12; At 2.42,46; ICo 11.20-22,33,34). Pode ser
tra o perigo de supor que a mera participação na
que Atos 2.42 deva ser interpretado assim: “Eles
ceia do Senhor e no
cristão (ICo 10.1,2)
perseveravam no ensino dos apóstolos e na co
garanta ao participante uma posição favorável
munhão [na festa de amor], no partir do pão [na
com Deus (v, tb. Lc 13.26). Paulo claramente
ceia] e nas orações”. De modo semelhante. Atos
b a tis m o
1271
U ltima C e ia : Evangelhos
2.46 pode ser lido assim: “... e partindo o pão [a ceia] em casa, comiam [a festa de amor] com ale
b ib l io g r a f ia .
gria e simplicidade de coração”. Essa prática bro
N ashville: A bingdon, 1967. ■ Barth, M. Redis
tara do fato de que a Última Ceia estava associada
covering the Lord’s Supper. Atlanta: John Knox,
Barclay,
The Lord’s Supper.
W.
a uma refeição (Lc 22.20; ICo 1L25). Entretanto,
1988. • Bornkamm, G. Lord’s Supper and church in
logo passou a ocorrer separadamente, provavel
Paul. In: Early Christian experience. London: scm,
mente em virtude de problemas como os que
1969. p. 123-60. • Green, J. B. The death o f Jesus.
Paulo menciona em ICorintios 11.20-22,33,34 —
Tübingen: J.
em que o apóstolo se refere a ela como a ceia do
Eucharistic words o f Jesus. London: scm, 1966.
C.
B. Mohr, 1988. ■ Jeremias, J. The
Senhor [kyriakos deipnom, ICo 11.20). Em mea
■ L eon-D ufour, X. Sharing the Eucharistic bread.
dos do século
N ew York: Paulist, 1987. ■ K lappert, B. Lord’s
II,
essa separação já era completa.
A ceia do Senhor contém um foco bidimensio nal. Ela relata a Paixão do
Supper. NiDNTT. [S.L: s.n., s.d.] v. 2. p. 520-38. •
e sua
L ietzmann, H. Mass and the Lord’s Supper Leiden:
morte sacrificial com que selou uma nova alian
E. J. Brill, 1979. • M arshall, I. H. Last Supper and
ça para a humanidade. Não é possível celebrar a
Lord’s Supper Grand Rapids: Eerdmans, 1980. ■
F il h o do h o m e m
ceia do Senhor sem olhar para trás, para a cruz e
M arxsen, W. The Lord’s Supper as a Christological
para o sofrimento de Cristo, nossa Páscoa. Con
problem. Philadelphia: Fortress, 1970. ■O gg , G.
sequentemente, há nessa celebração a presença
T h e chron ology of the Last Supper. In: N ineham ,
de certa dose de tristeza e de pesar. Mas há uma
D. E. et al., orgs. Historicity and chronology in the
dimensão que olha adiante e não permite que a
New Testament. London:
ceia do Senhor se torne mera relembrança mór
Reumann, J. The Supper of the Lord. Philadelphia:
bida da Paixão de Cristo. Os crentes proclamam
Fortress, 1985. ■
“a morte do Senhor, até que ele venha”. Como
according to the New Testament. Philadelphia:
spck,
S c h w e iz e r ,
1965. p. 75-96. ■
E. The Lord’s Supper
a dimensão final da ceia vislumbra e aguarda
Fortress, 1967. •
com expectativa o banquete messiânico, a ceia
eschatology. N ew York: Oxford U niversity Press,
do Senhor não é simplesmente praticada: ela é
1981.
W a in w r ig h t ,
comemorada pela fé. Nessa celebração, a igreja
R. H.
crê, espera e canta Marana tha — “Vem, Senhor! ” (ICo 16.22; Ap 22.20) — e aguarda a consuma
Ú l t im o A dAo .
Ver A d ã o
e
C r is t o .
ção, quando a fé ganhará forma concreta à mesa do Senhor. Ver também
UNIÃO c o m C r i s t o . c eia do
G. Eucharist and
Se n h o r; co m u n h ão à m e sa.
1272
Ver
b a t is m o i i .
S t e in
VERDADEIRO ISRAEL. V e r ISRAEL.
VÉU ( a u t o r id a d e ) .
Ver m u lh er es n.
VIDA APÓS A m o r t e .
VIDA ETERNA.
Ver
Ver JoÃo,
re ssu rre iç ã o .
Evangelh o d e.
G lo ssá r io As definições abaixo foram extraídas em grande par
anônimo. (Do gr. a, “sem” , + onoma, “ nome” )
te do Pocket dictionary of biblical studies, de autoria I de Arthur G. Patzia e Anthony J. Petrotta (InterVar
Literalmente, “ sem nome”. É empregado nos
sity, 2002; edição em português; Dicionário de estu
autoria de um documento,
dos bíblicos. Ed. de bolso. IVadução Pedro Wazen de
estudos do
nt
para, de modo geral, se referir à
antinomiano. (Do gr. anti, “contra” ,
nomos,
Freitas. São Paulo; Vida, 2003. 165 p.),
“lei” ) Nos estudos do
a.E.c. Abreviatura de “antes da Era Comum”. For
berava de todas as obrigações morais. Alguns
ma alternativa de “a.C.” e caracteristicamente
desses cristãos chegaram à conclusão de que
nt,
cristão primitivo para
quem a salvação pela fé em Jesus Cristo o li
usada em contextos judaicos e judaico-cristãos. abominação assoladora. Expressão tirada da pro
podiam pecar impunemente, antíteses. Nos estudos do
n t , os
seis contrapontos
fecia de Daniel (Dn 11.31;12.11), na qual o pro
entre o ensino de Moisés e o de Jesus apre
feta afirma que o templo será o lugar em que
sentados em Mateus 5.21-48. Nessa passagem,
algo abominável e revoltante acontecerá, adocianismo. Nos estudos do
nt,
cada antítese é introduzida pela fórmula “Ou
ideia de que o
homem Jesus foi “adotado” por Deus como Filho, em vez de o Filho preexistir com o Pai. aforismo. (Do gr. aphorismos.) Definição ou de claração curta, dito lacônico ou expressão su
vistes 0 que foi dito aos antigos...” e seguida da resposta antitética “ Eu, porém, vos digo”, antítipo. Cumprimento ou contrapartida de um tipo. Ver TIPOLOGIA. apocalipse. (Do gr. apokalypsis.) Literalmente,
cinta de uma verdade; máxima.ágrafo. (Do gr.
“desvelamento” ou “revelação” (Ap 1.1). Gê
agraphon; pl., agrapha.) Declaração não escri
nero literário em que se revelam “segredos”
ta, atribuída a Jesus, mas não encontrada nos alegoria. Gênero Uterário em que uma história é contada com base naquilo que ela significa e não em seu sentido hteral.
social ou um sistema de crenças que produz literatura apocalíptica. Ver a p o c a l ip s e . apocalíptico. Adjetivo empregado com mais de
amanuense. Escriba ou secretário contratado para escrever (em geral cartas, nos estudos do
sobre o mundo celeste ou o fim dos tempos, apocaliptismo. Em geral designa um movimento
Evangelhos canônicos,
um sentido; refere-se ao gênero literário apo
nt)
calipse ou à perspectiva religiosa subjacente
algo previamente ditado ou esboçado (do lat.
ao gênero (e.g., escatologia apocalíptica). Ver
manu, “mão”). amoraim. Designação do mestre rabínico tanto na
APOCALIPSE.
apócrifo. Adjetivo às vezes usado em referência
Palestina quanto na Babilônia durante os sé
aos Apócrifos, mas com frequência empregado
culos III a VI d.C. (o termo hebraico significa
também para designar texto ou dito de autoria
“ orador” ou “ intérprete”).
ou veracidade duvidosa.
G lossário
Apócrifos, os. (Do gr. apokryptõ, “esconder, ocul
autógrafo. (Do gr. autograpkos, “escrito pela pró
tar”.) Nome dado a uma coleção variável de
pria mão”.) Manuscrito ou original da obra
livros que, segundo se acreditava, continham
de um autor.
verdades “escondidas”. Com hgeiras varia
Biblioteca de Nag Hammadi. Coletânea de docu
ções, estão incluídos nos cânones das igre
mentos, na maioria gnósticos (em forma de
jas Católica Romana e Ortodoxa. Ver
“livro” ou códice) com data a partir do século
livr o s
IV d.C. e descoberta por volta de 1945/1946,
DEUTEROCANÔNICOS.
apotegma. (Do gr. apophthegm, “ dizer aberta
perto de Nag Hammadi, cidade do alto Egito,
mente 0 que pensa”.) Aquilo que é dito aber
cânon. (Do gr. kanon, “vara de medir, padrão”.}
tamente. Palavra empregada para designar
Coletânea ou lista reconhecida de escritos re
ditos proverbiais e sapienciais de Jesus que
ligiosos; nesse caso, de livros bíblicos.
foram transmitidos oralmente antes de ser
Cartas Gerais. Cartas não paulinas do Novo Tes
registrados por escrito e incorporados aos
tamento que, segundo se acredita, foram es
Evangelhos.
critas a toda a igreja (também denominadas Cartas Católicas): Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e
Aqedah. { ‘‘qêdâ significa “amarração” [de Isa-
3João e Judas.
que].) Termo rabínico que designa o relato e as interpretações do “sacrifício” de Isaque
Cartas Pastorais. Termo coletivo que compre
por Abraão narrado em Gênesis 22. Nessa
ende 1 e 2Timóteo e Tito, cartas que foram
passagem, relata-se que Isaque foi amarrado
escritas para “pastores” e não igrejas e, em
e colocado sobre um altar,
termos gerais, tratam de questões pastorais,
aramaísmo. Influências da língua aramaica na
catálogo dos defeitos e das virtudes. Relação de
linguagem, na forma e no conteúdo de textos
defeitos e virtudes feita por um autor do
gregos (ou de outros idiomas),
(e.g., em G1 5.19-21), adotando um recurso
aretologia. Designa milagres, grandes feitos, po
de instrução ética encontrado na filosofia
deres sobrenaturais, atos poderosos e virtu des de um deus ou de um “homem divino”
nt
estoica. catolicismo primitivo. Termo técnico que desig na uma etapa posterior da igreja primitiva
(do gr. aretê). Arísteas, Carta de. Documento que supostamen
e se baseia na hipótese de que, a partir de
te relata as circunstâncias em torno da tradu
uma comunidade carismática existente na era
ção do AT para o grego, a Septuaginta.
apostólica e à qual o Espírito Santo deu uma
asmoneus. Dinastia Asmoneia. Asmoneu é um
estrutura flexível, a igreja se desenvolveu em
adjetivo que se origina do sobrenome da fa
uma comunidade bem formal ou “institucio nalizada” na era pós-apostólica.
mília sacerdotal e real macabeia que gover nou Israel entre os anos 60 do século ii a.C.
chreia. (PL, chreiai.) Termo técrúco utilizado na
até a captura de Jerusalém pelos romanos,
retórica grega antiga para designar expres
em 63 a.C. Ver m a c a b e u s .
sões lacônicas ou breves dizeres (epigramas),
R evolta M a c a b e ia .
atestação múltipla, critério da. Critério de auten
além de ações que são contadas sobre alguém
ticidade em que declarações ou ações de Jesus
importante ou em sua honra e são úteis para a vida diária,
são consideradas autênticas caso declarações idênticas ou semelhantes sejam atestadas em
cínicos. Seguidores do movimento filosófico
fontes múltiplas além dos Evangelhos (e.g.,
fundado por Diógenes de Sinope (c. 400-325
no caso da Hipótese dos Quatro Documentos:
a.C.). O cinismo foi mais um modo de vida
Marcos, o,
m
, l) .
Ver a u t e n t ic id a d e ,
estudiosos do
nt
do que um sistema de princípios filosóficos,
critér io s d a .
autenticidade, critérios da. Os vários testes que
código da família. “Regra” ou “conjunto de re
empregam para apurar a au
gras” encontradas no
nt
e também em vários
tenticidade histórica das declarações de Jesus
textos da literatura grega que tratam das re
nos Evangelhos. Ver
c o e r ê n c ia ,
da;
lações domésticas: marido e mulher, pais
d e s s e m e lh a n ç a ,
da;
m ú l t ip l a ,
e filhos, escravos e mestres (Ef 5.21—6.9;
c r it é r io
c r it é r io
a te sta ç ã o
Cl 3.18—4.1; IPe 2.18—3.7).
c r it é r io d a .
12 7 5
U 'lL lU M d M U
LtrU IU yiLU
U U
código doméstico. Ver
IM U V U
leb Ld lfieilLU
que de fato aconteceu”. O método histórico-
c ó d ig o d a f a m íl ia .
coerência, critério da. Critério de autenticida
-crítico se refere aos princípios e ferramentas
de em que um dito de Jesus é considerado
da crítica histórica empregados na reconstru
autêntico caso seja coerente ou condiga na
ção do contexto histórico e do senüdo origi
forma e no conteúdo com outro material que,
nal de um texto,
mediante outros critérios, como desseme
crítica literária. Abordagem do texto bíblico que
lhança ou atestação múltipla, seja conside
reconhece sua natureza literária e procura
rado autêntico. Ver a u t e n t ic id a d e ,
interpretá-lo de acordo com os métodos da
c ritér io s d a .
credo. (Do lat. credo, “creio”.) Declaração formal ou confessional de fé, geralmente baseada na
análise literária, crítica retórica. Abordagem do texto bíblico que
vida cultual/reUgiosa de comunidades de fé.
se concentra na maneira em que a língua é
crítica. Anáhse fundamentada e racional sobre
usada, especialmente em conformidade com
a origem, natureza, história e significado de
a teoria/prática retórica da Antiguidade, com
obras escritas, como os hvros do
nt.
O termo
o
propósito de persuadir o público-alvo.
em si não implica a ideia de encontrar defei
crítica sociocientífica. Aplicação de teorias so
tos. Existem várias formas de crítica. Ver c r ít i
ciológicas, antropológicas, políticas e so-
DA f o r m a ; c r it ic a l it e r A r i a ; c r ít ic a d a r e d a ç ã o ;
cioculturais a textos bíblicos, com o fim de
ca
compreender as comunidades em que eles sur
c r ít ic a t e x t u a l ; c r ít ic a d a t r a d iç ã o .
crítica da forma. (lYaduzido do alemão Formges-
giram (nesse caso, o cristianismo primitivo),
chichte ou Cattungsgeschichte.) Abordagem
crítica textual. Disciplina acadêmica de estabe
interpretativa que procura descobrir a tradi
lecer determinado texto (nesse caso, o texto
ção oral incrustada nos textos escritos que
do
temos hoje à disposição e assim classificá-los
do material original. Os críticos textuais do n t
nt)
o
mais próximo possível ou provável
em certas categorias ou “formas” e, dessa
chegam a suas conclusões mediante o estudo
maneira, descobrir a história de seu desen
de manuscritos antigos, versões e traduções,
volvimento dentro da igreja primitiva,
culto. (Do lat. cnltus, “reverência” ) Termo em
crítica da redação. Abordagem interpretativa (nos estudos do
nt,
pregado para designar a adoração pública em
basicamente relativa aos
geral, em particular as festas, rituais, sacrifí
Evangelhos) que procura mostrar como au
cios e outras práticas no serviço a Deus ou
tores/editores selecionaram as fontes, deram-
aos deuses.
-Ihes forma e as estruturaram na composição
Cunrã. Ver
de suas obras e na comunicação de suas
dessemelhança, critério da. Critério de auten
perspectivas. [0 termo crítica da redação já
ticidade em que declarações de Jesus são
está consagrado em língua portuguesa e é
consideradas autênticas caso sejam “ desse
empregado na falta de termo mais preciso,
melhantes” — isto é, diferentes de declara
como seria, por exemplo, “crítica da edição”.]
ções ou crenças comuns à igreja primitiva ou
crítica da tradição. (Tíaduzido do alemão Tradi-
Q um ran.
ao judaísmo do segundo templo. Ver
tionsgeschichte ou Überlieferungsgeschichte.)
c id a d e ,
a u t e n t i
CRrrÉRIO DA.
Abordagem textual que procura explicar as
deuterocanônicos, livros. Literalmente, “do se
maneiras em que as várias tradições dentro
gundo cânon” ou “ do cânon secundário”. São
de um texto se desenvolveram durante o
os livros ou trechos de livros não incluídos
período de sua transmissão oral.
no cânon hebraico, mas encontrados no
crítica das fontes. Abordagem de textos (nos estudos do
nt,
at
grego e comumente denominados Apócrifos
especialmente relativa aos
(v.
A p ó c rifo s , o s )
. Em maior ou menor exten
Evangelhos) que procura descobrir as fontes
são, esses hvros se encontram nos cânones
literárias de um documento,
escriturísticos das igrejas Católica Romana e
crítica histórica. Abordagem do texto bíblico que
Ortodoxa.
busca identificar as origens históricas de um
deuteropaulinas. Mais apropriadamente deve
texto assim como (quando é o caso) “aquilo
ria ser "deutero”( “segundo’’)-Paulo. O termo
1 276
G lossário
é empregado em referências a epístolas atri
escatologia. Termo de origem grega com o senti
buídas explicitamente a Paulo, mas cuja
do de estudo ou crenças sobre o fim dos tem
autoria é questionada em virtude de certos
pos (do gr. eschatos, "últimas [coisas]”),
fatores linguísticos, teológicos e históricos
escatologia consistente. Ideia, associada a Albert
(e.g., ITessalonicenses, Colossenses, Efésios,
Schweitzer, de que no pensamento escatoló
1 e 2Timóteo e Tito).
gico de Jesus era iminente o fim desta era e
Diáspora. Substantivo coletivo que designa os
de que suas declarações têm de ser sistemati
judeus residentes fora da terra de Israel em
camente interpretadas levando isso em conta ou de maneira condizente com isso.
lugares como Babilônia, Egito e Asia Menor. Originalmente, foram forçados a viver nesses
escatologia realizada (ou concretizada). Ideia
lugares por alguma nação que os conquis
de que no ensino de Jesus o reino de Deus
tou, como aconteceu no Exílio Babilónico de
não é futuro, mas concretizado na pessoa e missão de Jesus,
585 a.C. diatribe. Forma de retórica caracterizada por
essênios. Uma das seitas dos judeus que (jun
breves discursos éticos, perguntas e diálo
to com os fariseus e saduceus, entre outras
gos retóricos e falas argumentativas, na qual
seitas) existiu na Palestina durante o período
0 autor ou orador debate com uma pessoa (interlocutor) imaginária com o objetivo de
d o NT.
Eusébio (c. 260-340). Bispo de Cesareia, comu mente denominado o “pai da história da igre
instruir o público, discurso de despedida. Nos escritos bíblicos e
ja” , em razão de sua obra História eclesiástica.
extrabíblicos, fala (com frequência com a in
Evangelhos Sinóticos. Os evangelhos de Mateus,
clusão de instruções e advertências) em que
Marcos e Lucas, os quais “enxergam da mes ma maneira” a vida de Jesus,
alguém à beira da morte se dirige a membros
exegese. (Do gr. exêgeomai, “extrair, levar para
da família, amigos ou discípulos, docetismo. Heresia cristã primitiva que surgiu no
fora”.) Interpretação de uma passagem com
século I e negava a humanidade plena de Je
base nela mesma. Às vezes é contrastada com
sus e, em consequência disso, a realidade de
a imposição das próprias ideias do intérpre
seus sofrimentos e morte.
te a uma passagem, o que recebe o nome de
E.c. Abreviatura de "Era Comum”. Forma alterna tiva de “ d.C.” e caracteristicamente usada em
“eisegese”. fariseus. Uma das principais seitas do judaís mo na época do
contextos judaicos e judaico-cristãos.
nt
.
Notabilizava-se por crer
ebionitas, ebionismo. Seita judaico-cristã cujo
que a Torá oral fora revelada no Sinai além
nome deriva de uma palavra hebraica que
da Torá escrita e por buscar a restauração de
significa “os pobres”, tendo sido mencionada
Israel, além de aplicar leis sacerdotais de pu
pela primeira vez nos escritos de Ireneu, pai da
reza ritual à vida diária.
igreja do século ii. O perfil exato desse grupo é
Filo de Alexandria (c. 20 a.C-50 d.C.). Judeu
objeto de debate, mas destaca-se o fato de que
helenista que foi filósofo, político, exegeta e
se caracteriza por se prender à Lei, ao estilo de
contemporâneo de Jesus e Paulo e cujas inú
vida judaico e a uma cristologia adocianista.
meras obras lançam luz sobre a maneira de
elemento litúrgico. Fragmento de hino, credo, oração, bênção, doxologia ou palavra de
pensar do judaísmo helenista. fonte Q. (A designação q deriva do alemão Quelle,
aprovação que era empregado na adoração
"fonte”.) Documento hipotético que consis
cristã primitiva e agora pode ser detectado
te em uma coletânea das declarações de Je
dentro dos escritos do
sus comuns a Mateus e a Lucas, mas não a
nt
.
emolduramento. Termo técnico que designa o recurso de envolver ou confinar um texto re-
Marcos. gênero. Tipo, espécie ou forma de literatura
petíndo ao final de uma passagem a expres
(da palavra francesa que significa “estilo”).
são ou ideia inicial. Também conhecido como
Evangelho, carta e apocalipse são gêneros
inclusio.
neotestamentários.
1277
Ulcionário teológico ao
no vo
lestamento
harmonia (dos Evangelhos). Livro que organiza
são fontes importantes para entender o mun
0 material paralelo dos Evangelhos Sinóticos
do histórico e religioso da Palestina durante o
(Mateus, Marcos, Lucas) e às vezes do Evan
domínio romano,
gelho de João em colunas verticais, de modo
judaísmo helenista. Segmento do judaísmo que
que estudantes e estudiosos podem observar
sofreu influência mais profunda dos valores e
com facilidade as semelhanças e diferenças entre eles.
cuhura do helenismo. judaizantes. Grupo de cristãos judeus para quem
Hauptbriefe. (Do alemão Haupt, “cabeça” ou
todos os cristãos gentios deviam “viver como
“principal”, + Briefe, “cartas” ) Termo que
judeus” (G1 2.14), acolhendo os costumes
designa quatro cartas fundamentais de Paulo: Romanos, 1 e 2Corintlos e Gálatas.
judaicos. leitura por/técnica de espelhamento. Técnica
helenismo. Influências culturais de origem grega
de ler um texto buscando imagens reversas
(e.g., ideias, costumes, governo, arquitetu
dos adversários do autor. Exemplo dessa
ra, língua, hteratura, arte) que Alexandre, o
ideia é que aquilo a que Paulo se opõe em
Grande (morto em 323 a.C.), e seus suces
Corinto é o que seus adversários defendem,
sores disseminaram no mundo mediterrâneo,
e,
das teorias de interpretação,
a partir disso, é possível então pôr a desco
berto 0 perfil de seus adversários,
hermenêutica. Teoria da interpretação ou estudo
lucano. Que diz respeito a Lucas ou a seus escritos,
herodianos. Partido judaico que favorecia a di
macabeus. Revolta Macabeia. Os líderes (entre
nastia de,Herodes.
os quais o mais proeminente foi Judas Maca-
hipótese agostiniana. A opinião de Agostinho de
beu, “o martelo”) e a revolta judaica que em
que a atual ordem canônica dos Evangelhos
167-164 a.C. conduziram contra os suseranos
(Mateus, Marcos, Lucas e João) é a ordem cro
selêucidas.
nológica em que eles foram de fato escritos.
manumissão. Ato de tornar alguém livre da escra
Hipótese das Duas Fontes. Teoria que procura
vidão ou da servidão; alforria.marcano. Que
explicar a composição dos Evangelhos Sinó
diz respeito a Marcos ou a seu Evangelho,
ticos apresentando a hipótese de que Mateus
mateusino. Que diz respeito a Mateus ou a seu
e Lucas empregaram materiais de duas fontes distintas: Marcos e o.
Evangelho. midrash. (Forma do verbo hebraico d‘^rash, “bus
Hipótese das Quatro Fontes. Também conheci
car, investigar” ) Forma específica de exposi
da como Hipótese dos Quatro Documentos,
ção bíblica judaica ou gênero caracterizado
é a teoria de que os Evangelhos Sinóticos se
por essa forma.
baseiam em quatro fontes diversas: Marcos,
Mishná. Corpus de material judaico acerca da lei que adquiriu forma escrita por volta de 200
Q, L 0 M.
Hipótese de Griesbach. Teoria apresentada por
d.C. e se baseia na tradição rabínica de deba
Johann Jakob Griesbach (1745-1812), segun
te e interpretação de leis bíblicas,
do a qual Mateus, e não Marcos, foi o Evan
mistério, religiões de. Nome dado a uma série
gelho mais antigo a ser escrito, tendo Marcos
de cultos religiosos de origem antiga. Designa
e Lucas utilizado Mateus para compor seus
também a tendência e as práticas sincretistas
Evangelhos.
(com iniciações secretas) que prevaleceram
Jesus histórico, o. Vida e ensinos de Jesus con
no mundo mediterrâneo entre os séculos vni
forme estabelecidos por métodos histórico-criticos. Essa contínua empreitada moderna
a.C. e IV d.C. nomismo aliancístico. Termo cunhado por E.
é, com frequência, denominada a busca do
P. Sanders para designar sua maneira de en
Jesus histórico,
tender a estrutura essencial do judaísmo do
joanino. Que diz respeito a João ou a seus escritos.
segundo templo: “ que o lugar de alguém
Josefo. Historiador judeu do século i (c. 37/38-
no plano de Deus é determinado com base
110 d.C.), cujas principais obras. Antiguida
na aliança e que a aliança requer como res
des dos judeus, Guerras dos judeus e Vida,
posta correta do homem a obediência aos
1278
G lossário
mandamentos, ao mesmo tempo que fornece
período intertestamentário. O período apro
0 meio de expiar a transgressão” [Paul and
ximado da história judaica entre o Antigo e
Palestinian Judaism, p. 75). Isso contrasta
o Novo Testamento ou entre o período pós-
com a ideia mais tradicional (protestante) de
-exílico, que terminou por volta de 400 a.C., e
que os judeus consideravam ser a Lei o meio
o século I d.C. Atualmente, muitos estudiosos se referem a esse mesmo período geral pelo
de fazer por "merecer” a justiça, pais apostólicos. Conjunto de escritores ou es
termo “judaísmo do segundo templo”.
critos cristãos do final do século i e início
Pésher. Palavra hebraica que significa “inter
do II que não chegaram a ser reconhecidos
pretação”. Designa um estilo peculiar de
como canônicos, mas foram tidos em grande
comentário encontrado especialmente nos
estima pela igreja primitiva (e.g., IClemente,
manuscritos do mar Morto, em que um ver
2Clemente, Epístola a Diogneto, Epístola de
sículo das Escrituras é interpretado com base
Inácio, Didaquê, O pastor, de Hermas).
na própria época e situação do intérprete
panteão. Conjunto de deuses de determinado povo.
(e.g., a comunidade de Qumran), os quais em
Papias. Pai da igreja primitiva (c. 70-160 d.C.)
geral são vistos como os últimos dias.
e bispo de Hierápolis, na Frigia, cuja obra
petrino. Que diz respeito a Pedro ou a seus
(que inclui comentários sobre a autoria dos Evangelhos)
está preservada
apenas
em
escritos. Plínio Jovem (c. 61/62-113 d.C.). Escritor roma
fragmentos.
no e administrador da província romana da
paradosis. Palavra grega que significa “aquilo
Bitínia durante o governo do imperador Tra-
que foi passado adiante”. Desse modo, é ter
jano (98-117 d.C.). pré-paulino. Material (e.g., credos, hinos) ou
mo técnico que designa a tradição, parênese. Termo técnico usado na crítica da
ideias de origens diversas e incorporados por
forma em referência à exortação ou admo
Paulo em seu pensamento e cartas. 0 que
estação (do gr. parainesis, “exortação” ou
se quer mostrar é que o material ou ideias
“conselho”),
existiam antes de Paulo vir a usá-las e não
parusia. (Do grego parousia, “vinda, chegada” )
que eram anteriores à vida ou à conversão
Tipicamente se refere à segunda vinda e à presença (pareimi) de Cristo no fim do mun
de Paulo. Problema Sinótico. O “ problema” de como expli
do (ICo 16.22; Ap 22.7,12,20).
car as semelhanças e diferenças que existem
parusia apostólica. Ideia de que, embora Paulo não estivesse presente em pessoa em uma
entre os três Evangelhos Sinóticos. prosélito. Alguém que se converte a outra reh-
das igrejas, assim mesmo sua autoridade
gião e se torna membro dessa comunidade,
apostóhca estava presente e devia ser reco
protognosticismo. Forma primitiva ou incipiente
nhecida em sua carta à igreja ou em alguém
de gnosticismo que pode ter existido durante
0 período do
especificamente enviado, como Timóteo, paulino. Que diz respeito a Paulo ou a seus
n t.
Pseudepígrafos. Coletânea de antigos textos
escritos.
judaicos e helenistas que foram escritos du
perícope. (Do gr. perikoptõ.) Breve unidade literá
rante o período do segundo templo, mas não
ria que mantém a integridade mesmo quando
fazem parte do
destacada de uma passagem mais extensa,
fos, e com frequência são atribuídos a gran
período do segundo templo. Período da história
des personagens do passado (v., de James
at
canônico, nem dos Apócri
e da literatura judaica que vai da conclusão
Charlesworth, org., The Old Testament pseu-
do segundo templo, em 516 a.C. (ou do de
depigrapha [2 v.]).
creto de Ciro em 538 a.C. para reconstruir o
pseudônimo. Declaração “falsa” de autoria de
templo), até a queda de Jerusalém e a des
uma obra literária. Nos escritos judaicos do
truição do templo de Herodes pelos romanos,
segundo templo, havia uma convenção literá
em 70 d.C. É muitas vezes empregado como
ria de atribuir obras da época a grandes per
sinônimo de período intertestamentário.
sonagens do passado distante. 1
279
quiasmo. (Derivado da letra grega x, chi.) Recur
existente na igreja primitiva que permitiu
so retórico em que linhas paralelas de um tex
que parábolas, declarações e relatos de Jesus
to correspondem a um padrão x, como, por
adquirissem a forma em que os autores dos
exemplo, em
Evangelhos os herdaram.
a -b - c - b -a
(neste caso, o centro
do quiasmo é c, e uma linha de um dos lados
Talmude. Compêndio definitivo da lei rabínica e
corresponderá a outra linha do outro lado, ou
constituído da Mishná e de seu comentário, a
seja,
Guemará, e que aparece em duas edições di
A
corresponderá a a e assim por diante).
Qumran. Local situado junto à margem noroeste
ferentes; o Talmude da Babilônia e o Talmude
do mar Morto, cujas ruínas estão associadas aos manuscritos do mar Morto, descobertos
de Jerusalém (ou da Palestina]. Targum. Tradução aramaica interpretativa da Bí
em 1947, nas proximidades do local, retórica. Nos estudos do
nt
,
blia hebraica (da palavra hebraica que signifi
antigas teorias gre
gas e romanas acerca do discurso eficaz, oral
ca “interpretação”, tiaguino. Que diz respeito a Tiago ou a seus
ou escrito. Podem ter sido utilizadas por au tores do
escritos. tipologia. (Do gr. typos, “padrão” ) Estudo do pa
NT.
saduceus. Seita importante do judaísmo durante o
período do
nt
,
drão de correspondência entre pessoas, obje
constituída principalmente
tos, acontecimentos ou instituições dentro de
da classe sacerdotal rica. Distinguia-se pela
um texto, geralmente entre o
negação da ressurreição dos mortos,
Rm 5, em que Adão é o tipo de Cristo, o qual
samaritanos. Naturais da Samaria, a província
at
e o
nt
(e.g.,
é o seu antítipo).
ao norte da Judeia, e desdenhados pelos “pri
Torá. A primeira parte do cânon hebraico das
mos” judeus. Suas crenças e práticas reUgio-
Escrituras, correspondente ao Pentateuco ou
sas se baseavam nos cinco livros de Moisés
cinco livros de Moisés. Uma boa tradução
(Pentateuco samaritano).
para a palavra torá [tôrâ] é “instrução”, em
Septuaginta. A mais antiga tradução grega da Bí bUa hebraica, comumente abreviada
lxx
bora tenha sido traduzida para o grego por
(em
nomos e, desse modo, tenha chegado ao por
razão da lenda de seus setenta tradutores), mas que inclui livros que não fazem parte do cânon hebraico (v.
tuguês como “lei”, tradição. Material oral ou escrito transmitido de uma pessoa ou grupo a outra pessoa ou gru
A p ó c r ifo s o s ).
sincretismo. Mescla de princípios e práticas bási
po, embora em geral dentro de determinada
cos e variados, e com frequência contraditó rios, com o objetivo de formar um só sistema.
comunidade, tradição dúpUce. Declarações de Jesus comuns a
Também designa a simples adaptação e as similação de ideias e práticas estranhas no
Mateus e a Lucas. Ver t r a d i ç ã o tradição
sistema de crenças de alguém.
l
.
tr íp u c e .
Material exclusivo do Evangelho de
Lucas e possivelmente extraído de fonte
Sinédrio. (Do gr. synedrion.) Conselho ou assem bleia administrativa de líderes judaicos. Um
independente, tradição
tratado da Mishná é dedicado à organização e
m
.
Material exclusivo do Evangelho de
Mateus e possivelmente extraído de fonte
ao funcionamento desse conselho.
independente,
Sitz im Leben. Termo alemão cuja tradução li
tradição tríplice. Material comum aos três Evan
teral é “contexto de vida” ou “situação de
gelhos Sinóticos; Mateus, Marcos e Lucas,
vida”. É empregado principalmente na críti
zelotes. Movimento judaico revolucionário do
ca da forma para designar o contexto social
1280
século I d.C.
r
I n d ic e
de verbetes ÉTICA i: E v a n g e lh o s , 508 ; é t i c a ii: P a u lo , 523 ; ÉncA iii:
A b ra ã o : N o v o T estam en to, 1
A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 531
A d ã o e C ris to : P a u lo , 17
e v a n g e lh o (g ê n e r o ) , 535
ADOÇÃO, filia ç ã o : P a u lo , 25
E v a n g e lh o s , c o n fia b iu d a d e h is t ó r ic a d o s , 543
a d o ra çã o / c u lto i: E van gelh os, 2 9 ; a d o ra çã o / c u lto ii: P a u lo , 33; a d o ra çã o / c u lto iii: A t o s , Hebreus, C a rta s G erais, A poca lipse, 43 a dversários i; P a u lo , 6 0 ; a dversários
F ile m o m , C a r t a a , 552 ii:
C a rta s G erais,
F i l h o d e D a v i: E v a n g e lh o s , 556
C a rta s P a sto ra is, A pocalipse, 70
F i l h o d e D eu s i: E v a n g e lh o s , 560 ; F i l h o d e D eu s ii:
a lia n ç a , nova a lia n ç a : P a u lo , A t o s , Hebreus, 80
P a u lo , 567; F i l h o d e D e u s iii: A t o s , H e b re u s ,
A poca lipse, L iv r o de, 88
C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 575
apocauptism o: N o v o Testam ento, 101
F ilh o d o H om em : E v a n g e lh o s , 578
A p ó c rifo s e Pseu d epígra fos, 114
F ilip e n s e s , C a r t a a o s , 585
a p ó s to lo : N o v o T estam en to, 122
f i l o s o f i a , 593
A t o s dos A p ó s to lo s , 139
B
G á la t a s , C a r t a a o s , 598
BATISMO i: E v a n g e lh o s , 159; batism o ii: P a u lo , 163;
g n o s tic is m o , 611
b atism o iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 170
H H e b re u s , C a r t a a o s , 617
c a r n e : P a u lo , 184
I
c a r ta s , fo r m a s d e c a r ta s i: P a u lo , 188; c a r ta s , fo r m a s de
ig r e j a i: E v a n g e lh o s , 6 3 5 ; ig r e ia ii: P a u lo , 6 3 9 ; ig r e ja
c a r t a s ii: H e b re u s , C a r ta s G e r a is , A p o c a u p s e , 192
iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 649
C a r t a s P a s t o r a is , 196
I s r a e l i: E v a n g e lh o s , 656 ; I s r a e l ii: P a u lo , 665
CEIA DO S e n h o r i: P a u lo , 206 ; c e ia d o S e n h o r ii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 213 C o lo s s e n s e s , C a r t a a o s , 2 22
Jesus e P a u lo , 572
co m u n h ã o à m esa: E v a n g e lh o s , 229
CoRlNTios, C a r t a s a o s , 2 34
Jesus, ju lg a m e n t o d e , 6 8 6 Jesus, n a s c im e n to d e , 702
c o r p o d e C r i s t o : P a u lo , 253
J o ã o B a t is t a , 720
C r ia ç ã o , n o v a c r ia ç ã o : P a u lo , 2 60
J o ã o , C a r t a s d e, 730
C r is t o i: E v a n g e lh o s , 2 6 2 ; C r is t o ii: P a u lo , 2 76 ; C r is t o
J o ã o , E v a n g e lh o d e , 743
iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 283
JUDAÍSMO E
C r is t o , m o r t e d e i: E v a n g e lh o s , 288 ; C r is t o , m o r t e d e
o
N o v o T e s ta m e n to , 761
Ju das, C a r t a d e , 776
ii: P a u lo , 309; C r is t o , m o r t e d e iii: A t o s , H e b re u s ,
Juízo
C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 319
i: E v a n g e lh o s , 785 ;
Juízo
ii: P a u lo , 788 ;
Juízo
iii:
A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 790
c r i s t o l o g i a i: P a u lo , 3 3 8 ; c r i s t o l o g i a ii: A t o s , H e b re u s ,
ju s t iç a / r e t id ã o i: E v a n g e lh o s , 794 ; ju s t iç a / r e t id ã o ii:
C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e . 357
P a u lo , 800 ; ju s t iç a / r e t id ã o iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 811
D
ju s t ific a ç ã o : P a u lo , 816
D e u s i: E v a n g e lh o s , 369 ; D eu s ii: P a u lo , 376 ; D eu s iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 395 DisctpuLos: E v a n g e lh o s , 414
L e i i: E v a n g e lh o s , 824 ; L e i ii: P a u lo , 838 ; L e i iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is , A p o c a u p s e , 854 L u c a s , E v a n g e lh o d e , 859
E fé s io s , C a r t a a o s , 4 22 “ em C r i s t o ” : P a u lo , 4 34
M
e s c a t o lo g ia i: E v a n g e lh o s , 4 3 9 ; e s c a t o lo g ia ii: P a u lo ,
m a n u s c rito s d o m a r M o r t o , 880
4 4 3 ; e s c a t o lo g ia iii: A t o s , H e b re u s , C a r t a s G e r a is ,
M a r c o s , E v a n g e lh o d e , 893
A p o c a u p s e , 4 62
M a te u s , E v a n g e lh o d e , 909
E s p ír ito S a n t o i: E v a n g e lh o s , 4 7 5 ; E s p ír ito S a n t o ii: P a u lo , 4 8 8 ; E s p ír ito S a n t o iii: A t o s , H e b re u s ,
m ila g r e s , r e l a t o s d e m ila g r e s i: E v a n g e lh o s , 927;
C a r t a s G e r a is , A p o c a lip s e , 498
m ila g r e s , r e l a t o s d e m ila g r e s ii: A t o s , 940
1281
MULHERES I! E v ANGELHOS,
956;
947;
MULHERES Ii: P a ULO,
r iq u e z a s e p o b r e z a i :
MULHERES iii: A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a i s ,
A p o c a l ip s e ,
po b r e za ii:
967
A t o s , H ebreus, R om a,
1132; r i q u e z a s e 1144; r i q u e z a s e p o b r e z a i i i : C a r t a s G e r a i s , A p o c a l i p s e , 1146 E van g elh o s,
P au lo ,
1148
R o m ano s, C arta ao s, PARÁBOLAS,
989
P au lo , conversão e ch am ad o de, P au lo em A tos e n a s c ar tas,
1015 P a u l o , 1025;
999
salvação i :
P a u l o , o Ju d e u , PECADO i:
pecado
ii:
A t o s, H ebreus,
A p o c a l ip s e ,
1029
de
1197;
E van g elh o s,
D eus i: E va n g e lh o s ,
P au lo ,
1077;
1174;
salvação ii:
P au lo ,
1180;
r e in o d e
1062;
1185
Senh o r i : E vangelh os,
1032 P e d r o , P r i m e i r a C a r t a d e , 1036 P e d r o , S e g u n d a C a r t a d e , 1045 P r o b l e m a S i n ó t i c o , 1050
r e in o
E van g elh o s,
SALVAÇÃO iii: A t o s , H e b r e u s , E s p í s t o l a s G e r a i s ,
C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e , pecado res:
1157
977
1188;
A p o c a l ip s e ,
1209
S e r v o d e Ja v é : E v a n g e l h o s , s in a g o g a ,
r e in o d e
S en h o r ii: P a u l o ,
S e n h o r i i i : A t o s , H e b r e u s , C a r t a s G e r a is ,
1215
1219
Templo, PuRincAÇÃO oo, 1225 T e s s a l o n i c e n s e s , C a r t a s a o s , 1228 T i a g o , C a r t a d e , 1237 t r a d i ç õ e s e e s c r it o s r a b í n i c o s , 1253
D e u s ii
D eus iii: A to s , H e b r e u s,
1080 1089 r e s s u r r e i ç ã o i : E v a n g e l h o s , 1095; r e s s u r r e i ç ã o i i : P a u l o , 1114; r e s s u r r e i ç ã o i i i : H e b r e u s , C a r t a s G e r a i s , A p o c a l i p s e , 1123 r e t ó r i c a , 1126 C a r t a s G e r a is , A p o c a l ip s e ,
r e l ig iõ e s g r e c o - r o m a n a s ,
U Ú l t im a C e ia : E v a n g e l h o s ,
1282
1266
PESQUISA DE PO N TA ♦
GRANDES ESPECIALISTAS EM N T ♦
TEMAS MAIS RELEVANTES D O N T ♦
in ■||.
LEITURA AGRADÁVEL ♦
CONCISÃO
ACESSIBILIDADE
altava-nos em língua portuguesa uma obra de consulta que reunisse o que há de mais avançado na pesquisa e nos estudos bíblico-teológicos sobre o NT. O
Dicionário Teológico do Novo Testamento (D T N T ) vem justamente
preencher essa lacuna! Destaca-se em relação a todos os demais dicionários bíblicos ou teológicos que temos hoje à disposição por oferecer artigos representativos das principais correntes de interpretação do N T — escritos por especialistas como Craig Blomberg, David Dockery, Larry Hurtado, Alister McGrath, Peter O ’Brien, Frank Ihielman, Ben Witherington, entre outros — e tratando dos temas neotestamentários mais importantes e mais necessários a estudantes de teologia ou ciências da religião em geral, sejam eles teólogos, seminaristas, pastores ou líderes. Nos .seus mais de 1.30 verbetes, o D I N T trata dos .seguintes aspectos: todos os livros do N T; temas teológicos relevantes; acontecimentos decisivos da época do N T; questões de antecedentes histórico-culturais e métodos de estudo associados ao N I'. Além di.sso, inclui recursos como diagramas e tabelas, um glossário de termos técnicos e uma bibliografia para cada assunto abordado. Você tem nas mãos tnn texto versátil, focado e de fácil acesso, uma rica fonte de informações sobre o N T e sua interpretação. Esplêndido!
N. T. Wright,
Bispo de Durham
Uma obra bem-vinda ■
C ordon D . Fee,
c muito necessana.
Regent College
A editora c ,scus organizadores .são dignos dos nossos cumprimentos.
Bruce M. Metzger,
Princeton lheologicat Seminary
D A N I E I . t i . R E I D c u m e x p c ric iu c o rgan l/.ad o r d c o h ras d c c o n su lia c livros a ca d ê m ic o s. Foi la m h êm e d ito r d o s d ic io n á rio s so b re t) N I' q iic d eram o rig e m a este v o lu m e e já ven d eram m a is d e 100 m il ex em p lare s n os E U A .
Edições Loyola
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