Dialogos_10

March 10, 2018 | Author: pccsimoes | Category: God, Science, Aristotle, Aesthetics, Plato
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DE FILOSOFIA VOL. 1

Filosofia 10.º ANO PAULO RUAS Revisão científica PROF. DOUTOR RICARDO SANTOS (Univ. Évora) Revisão pedagógica HELENA LEBRE

O que é a filosofia?

Existe livre-arbítrio?

A felicidade é o fim último da moral?

Em que consiste uma sociedade justa?

Os juízos de valor podem ser verdadeiros ou falsos?

ÍNDICE

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UNIDADE 1 Iniciação à atividade filosófica

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

7 10 18 21 24 26 27 28 28 29 30 33 37 38 40 42 43

1. Onde tudo começou e como evoluiu 2. Alguns problemas e disciplinas da filosofia 3. O que distingue a filosofia das ciências Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico 1. O trabalho filosófico 2. O que são os argumentos 3. Argumentos válidos e inválidos 4. Como se discutem os argumentos 5. Indicadores de premissas e de conclusão Texto de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

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UNIDADE 2 A ação humana: análise e compreensão do agir

1. A rede conceptual da ação

1. O que são as ações 2. Objetivos, deliberação e utilidade esperada 3. Como podemos explicar as ações? 4. Ações voluntárias e involuntárias 5. O problema da acrasia Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

45 47 49 51 52 53 56 58 59

1. Introdução 2. Explorando o problema 3. Que significa ser livre? 4. Liberdade e determinismo 5. O problema do livre-arbítrio 6. Uma justificação do incompatibilismo 7. Determinismo radical e libertismo 8. A crítica determinista moderada 9. Uma crítica libertista ao determinismo moderado Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

60 61 63 64 66 69 71 73 75 76 80 82 83

2. O problema do livre-arbítrio

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1.

UNIDADE 3 Análise e compreensão da experiência valorativa

A questão dos critérios valorativos 1. O que são os valores 85 2. Juízos de facto e juízos de valor 86 3. Emotivismo 88 4. Subjetivismo 90 5. Objetivismo ético 94 Textos de apoio 97 Ficha de avaliação formativa 102 Esquema global-síntese 104 Ideias a reter 105

2. Valores e cultura – a diversidade e o diálogo de culturas

1. Cultura e diversidade 2. Relativismo cultural 3. Dois argumentos a favor do relativismo cultural 4. Dois argumentos contra o relativismo moral Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

106 108 110 113 116 120 122 123

124 1.

UNIDADE 4

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Dimensões da ação humana e dos valores: análise e compreensão da experiência convivencial

Intenção ética e norma moral 1. Intenções e moralidade 2. O egoísmo psicológico 3. O egoísmo ético 4. Uma defesa do egoísmo ético Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

125 127 130 132 135 138 140 141

1. Princípios e normas morais 2. O contrato social Texto de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

142 145 152 154 156 157

1. O papel das intenções 2. Obrigações absolutas e não absolutas 3. O imperativo categórico 4. Objeções à ética kantiana Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

158 160 162 164 166 170 172 173

1. O princípio utilitarista 2. A teoria do valor 3. Duas objeções 4. A teoria da obrigação 5. Duas objeções Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

174 176 178 180 182 186 190 192 192

2. A dimensão pessoal e social da ética 3. A necessidade de fundamentação da moral (Immanuel Kant)

4. A necessidade de fundamentação moral (John Stuart Mill)

5. Ética, direito e política

1. A posição contratualista 2. Os princípios da justiça 3. A desigualdade dos talentos naturais 4. O contrato social 5. Duas objeções Textos de apoio Ficha de avaliação formativa Esquema global-síntese Ideias a reter

No volume 2 poderá estudar: Unidade 5. A dimensão estética: análise e compreensão da experiência estética Unidade 6. A dimensão religiosa: análise e compreensão da experiência religiosa Unidade 7. Temas/problemas do mundo contemporâneo: 1. Os animais têm direitos? 2. Eutanásia 3. Ética ambiental

194 197 200 202 205 208 212 214 215

UNIDADE 1

René Magritte, Golconda, 1953

Iniciação à atividade filosófica

Conceitos e conteúdos a dominar nesta unidade: • O significado etimológico da palavra «filosofia» • A origem da filosofia e algumas das questões que ocuparam os primeiros filósofos • A filosofia da religião e os seus problemas (exemplos) • A ética e os seus problemas (exemplos) • A filosofia política e os seus problemas (exemplos) • A estética e os seus problemas (exemplos)

• • • • • • •

A metafísica e os seus problemas (exemplos) A diferença entre filosofia e ciência A distinção entre problemas empíricos e a priori A noção de argumento O conceito de validade Bons e maus argumentos A importância da argumentação em filosofia

1.

O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

1. Onde tudo começou e como evoluiu

A filosofia, tal como ainda hoje é praticada no Ocidente, nasceu nas antigas colónias gregas da Ásia Menor por volta do século VI a. C., em especial Mileto, a cidade onde viveu Tales, um dos primeiros filósofos conhecidos. Ainda assim, é difícil saber a data exata em que a palavra filosofia começou a ser utilizada num sentido próximo do atual. O matemático Pitágoras terá sido um dos primeiros a fazê-lo, ao designar por filosofia a atividade a que se dedicavam todos aqueles que procuravam o conhecimento. Filosofia é uma palavra composta que resulta das palavras gregas philia (que significa amizade ou amor) e sophia (que significa conhecimento ou sabedoria). No seu sentido original, a filosofia é a atividade a que se dedicam os que amam ou procuram o saber.

PowerPoint O que é a filosofia?

Os primeiros filósofos começaram por se interessar pelo estudo da natureza, tendo ainda contribuído para o desenvolvimento da matemática e da geometria. A curiosidade levou-os a interrogarem-se sobre temas de astronomia, como a predição de eclipses, o cálculo das dimensões do Sol e da Lua, a forma da Terra ou o movimento dos planetas. Desenvolveram também diferentes teorias a respeito da natureza e origem do universo. Tales de Mileto, por exemplo, pensava que tudo era constituído por água, sendo este o elemento primordial a partir do qual o universo fora originado. Para justificar as suas teorias, Tales de Mileto, tal como os outros filósofos, baseou-se na observação atenta dos fenómenos naturais, de maneira a tentar compreender as causas que lhes dão origem. Apesar de as suas teorias terem sido há muito ultrapassadas, o mérito destes Tales de Mileto filósofos foi grande. As suas teorias representaram um enorme avanço em rela- (século VI a. C.) ção às explicações do seu tempo, baseadas na ação de seres ou forças sobrenaturais, como deuses, espíritos, etc. Para os primeiros filósofos, como Tales, pelo contrário, os acontecimentos naturais – o universo no seu conjunto – deviam ser explicados com base em causas naturais. A tarefa do filósofo consistia em descobrir essas causas através da observação cuidada da natureza e da utilização correta da razão. Aos poucos, a explicação tradicional para a origem e ordem do mundo foi abandonada e substituída pelo lento desabrochar de uma nova visão científica da natureza, das suas leis e dos seus padrões de funcionamento. No entanto, a filosofia incluía a procura de conhecimento em todos os domínios, e não apenas acerca da natureza. Um exemplo de curiosidade filosófica e sentido crítico foi Xenófanes, que viveu no século V a. C. Xenófanes estava interessado em compreender os fenómenos físicos, mas, sobretudo, em refletir sobre a religião e

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UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

a natureza de Deus. Ao contrário da grande maioria dos gregos da sua época, que eram politeístas, Xenófanes acreditava num deus único. A maneira como os gregos retratavam as suas divindades, atribuindo-lhes características, vícios e virtudes semelhantes às humanas, parecia-lhe especialmente duvidosa. O facto de os deuses gregos serem tão parecidos connosco levou Xenófanes a suspeitar se não seriam uma invenção humana. Esta ideia fê-lo escrever que se as vacas e os cavalos se preocupassem com religião, também atribuiriam aos seus deuses a forma de vacas e de cavalos. A religião dos seus contemporâneos parecia-lhe uma simples criação humana.

Estátua de Sócrates em Atenas, Grécia

Assim, ao contrário do que pensava a maioria dos seus concidadãos, Xenófanes admitiu a existência de um só deus, um deus infinito e eterno. Mas fazia-o porque pensava ser essa a maneira mais racional de entender a natureza de Deus, e não por ser essa a maneira de pensar habitual no seu tempo. No século XIX, o filósofo alemão Ludwig Feuerbach teve uma ideia semelhante, aplicando-a ao monoteísmo: argumentou que não foi Deus quem criou os homens, mas sim os homens quem criaram Deus. As reflexões de Xenófanes e de Feuerbach são ainda hoje um exemplo de liberdade de pensamento e de sentido crítico. Outro exemplo de filósofo que fazia questão de pensar por si próprio foi Sócrates, que viveu na Grécia entre os anos de 469 a. C. e 399 a. C. A sua vida ainda hoje é considerada um modelo de coragem e coerência. Embora não tenha escrito qualquer livro, a influência de Sócrates na história da Filosofia foi enorme. Ao contrário de Tales e de Xenófanes, Sócrates estava sobretudo interessado em questões de filosofia moral. Saber em que consiste a justiça, a virtude ou o bem eram algumas das suas principais preocupações. Acreditava que só a ignorância podia levar as pessoas a praticarem o mal e considerava a obtenção de conhecimento o objetivo mais importante da vida. Parte da sua fama deveu-se à forma como usava a sua inteligência e o seu sentido crítico para desmascarar o que não passavam de opiniões sem razão de ser.

Estátua de Platão (428/427-348/347 a. C.) em Atenas, Grécia

Platão, um filósofo grego contemporâneo de Sócrates (e que lhe seguiu as pisadas), escreveu uma vasta obra que abrange uma grande variedade de questões filosóficas. No seu livro República, em forma de diálogo, Platão discutiu questões de filosofia política, como saber qual a melhor forma de organização social (a sociedade ideal), e de metafísica, uma tentativa para perceber em que consiste a realidade última das coisas. Platão pensava que aquilo a que se pode chamar o mundo sensível – o mundo que os nossos sentidos captam – não passa de uma aparência. O espaço e o tempo, o movimento e a mudança não são, de acordo com Platão, reais. Os nossos sentidos dizem-nos que vivemos num mundo em mudança, constituído por objetos materiais situados no espaço e no tempo; mas, de acordo com Platão, este mundo não passa de uma aparência. Para conhecer a verdadeira realidade e ir além das aparências, teríamos de pôr de lado os sentidos e as ilusões que os sentidos originam. Por detrás das aparências, esconde-se uma realidade eterna e

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1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

imaterial, um mundo ideal que só a razão pode captar. É esta realidade ideal, situada além do espaço e do tempo, que constitui o objeto do conhecimento – e o único digno de ser contemplado. De facto, caso Platão tivesse razão, porque havíamos de nos interessar por simples aparências? Mas o desprezo de Platão pelos sentidos não era partilhado por todos os filósofos do seu tempo. Aristóteles argumentou que o mundo físico não é uma simples aparência mas o objeto adequado da ciência e da arte. A estética e a filosofia da arte foram assuntos que estimularam a sua curiosidade, tendo escrito sobre ele um tratado chamado Poética, que só em parte chegou até nós. Neste tratado, Aristóteles refletiu sobre algumas das formas da literatura grega, especialmente a tragédia, a comédia e a poesia épica. Para Platão e Aristóteles a arte é imitação. (Uma estátua imita a pessoa ou o objeto que lhe serve de modelo.) A opinião de Platão sobre a arte não era, contudo, muito favorável. Como a arte é imitação, ela tende a reforçar a nossa ligação ao mundo dos sentidos e leva-nos a dar uma atenção desproporcionada às aparências. Platão pensava que a arte acaba por afastar a alma da contemplação da verdade, tornando-se um obstáculo ao conhecimento. Aristóteles, pelo contrário, que não acreditava no mundo ideal de Platão, defendeu que a arte era essencial para a vida em sociedade. A tragédia e a música, por exemplo, podiam desempenhar um papel fundamental na educação dos cidadãos, em especial ao contribuírem para dominarmos os nossos sentimentos mais profundos e intensos.

Aristóteles (384-322 a. C.)

Seja qual for a opinião que possamos ter acerca das ideias dos autores que referimos, o facto é que foram muito influentes. Os exemplos de Tales, Xenófanes, Sócrates, Platão, Aristóteles e outros mostram-nos a variedade de interesses que marcaram as reflexões dos primeiros filósofos. Os problemas que discutiram iam dos fenómenos naturais até questões variadas de ordem religiosa, moral, política, estética e metafísica. Mas, entre a Antiguidade Grega e os nossos dias decorreram mais de dois mil anos. Durante este tempo muitas coisas mudaram, incluindo na filosofia. Hoje, filosofia e ciência tornaram-se áreas distintas, ao contrário do que sucedia no início, quando os primeiros filósofos foram também os primeiros cientistas. O estudo da natureza passou a ser feito por diferentes disciplinas, que se especializaram na investigação de certos setores específicos do mundo natural. Ciências como a astronomia, a física, a química, a biologia, a psicologia, a sociologia, etc., ganharam autonomia, desenvolvendo-se de forma cada vez mais independente da filosofia. O mesmo sucedeu com a matemática e a geometria. Com o decorrer do tempo, a filosofia tornar-se-ia uma disciplina particular, com temas próprios, distintos daqueles de que se ocupam as várias ciências.

Atividades 1. Como se poderá caracterizar, numa primeira análise, a filosofia? 2. Será que a distinção entre filosofia e ciência foi clara desde o início? Porquê? 3. Indique os problemas referidos no texto que pertencem hoje às ciências. 4. Identifique alguns dos problemas filosóficos referidos no texto. 9

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

Muitas das perguntas a que os filósofos procuram dar resposta despertam a nossa atenção desde muito cedo, ainda antes de termos ouvido falar de filosofia. São perguntas difíceis e surpreendentes, para as quais não há respostas óbvias ou seguras. E isto pode ser uma fonte de embaraço e frustração. No entanto, como veremos ao longo do estudo que estamos a iniciar, existem boas razões para confiar nas nossas capacidades de análise, raciocínio e sentido crítico quando enfrentamos tais perguntas.

2. Alguns problemas e disciplinas da filosofia

Filosofia da religião Ética

Disciplinas da filosofia

Filosofia política Estética Metafísica

O primeiro passo consiste em tornar mais precisa a importância humana destes problemas, e a importância que lhes tem sido atribuída no decurso da história. Iremos agrupá-los em função das disciplinas filosóficas a que pertencem. Indicaremos apenas cinco: a filosofia da religião, a ética (ou filosofia moral), a filosofia política, a estética e a metafísica. Um dos problemas mais antigos e significativos da filosofia diz respeito à existência de Deus. Foi este o problema que interessou Xenófanes e consiste em saber se Deus existe, ou que razões haverá para pensar que sim (ou que não). Este é um problema sobre o qual quase todas as pessoas têm opinião, embora nem sempre estejam de acordo entre si.

2.1 Filosofia da religião

Muitos de nós fomos educados para acreditar em Deus. Este é um facto que podemos observar não apenas na nossa cultura mas em muitas outras culturas e sociedades. A prova disso está na existência de religiões como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. Estas religiões têm em comum a crença num Deus único, todo-poderoso e criador de tudo o que existe. Templo Lótus em Nova Deli, Índia, aberto a todas as confissões religiosas

A palavra Buda significa o Iluminado, ou seja, alguém que atingiu o conhecimento supremo. O estado de iluminação (ou de Buda) atinge-se com a libertação definitiva do mundo das aparências.

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Mas nem todas as pessoas que professam uma religião acreditam em Deus. O budismo, uma religião fundada por Siddhartha Gautama, um indiano que viveu no século VI a. C. e é considerado o primeiro Buda, não acredita que o mundo tenha sido criado por um Deus único e todo-poderoso. Mas, se os budistas estiverem enganados, será que poderemos prová-lo? Existirão boas razões para pensar que estão errados? Esta é uma pergunta tipicamente filosófica: queremos descobrir a resposta pelo uso da razão, tal como Xenófanes e os outros filósofos fizeram séculos atrás. Mas não será a existência de Deus somente uma questão de fé?

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Talvez a fé seja importante, e até mesmo essencial, quando se trata de opiniões religiosas. A dificuldade é que os budistas também possuem a sua própria fé, e essa fé está em contradição com aquilo em que os cristãos, os judeus e os muçulmanos acreditam. Não é possível Deus existir, como pensam cristãos, judeus e muçulmanos, e, ao mesmo tempo, não existir, como pensam os budistas: alguém tem de estar enganado. Mas, seja qual for a resposta correta, a dificuldade consistirá sempre em explicar porquê.

Duas afirmações são contraditórias quando não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Por exemplo, «João é português» e «João não é português». Estas afirmações são a negação uma da outra: a verdade de uma implica a falsidade da outra.

O que torna o debate de ideias inevitável é a procura de razões capazes de justificar qualquer destas posições, o que é ótimo para exercitar a nossa capacidade argumentativa e para desenvolver o nosso sentido crítico. Seja qual for a hipótese que mais nos agrade, ela simplesmente pode estar errada. Não basta acreditar numa destas hipóteses: é preciso ter boas razões para o fazer. O problema da existência de Deus teve a atenção de pensadores como Epicuro, São Tomás de Aquino, Santo Anselmo, Blaise Pascal e muitos outros. Estes pensadores tentaram justificar a sua posição (a favor ou contra a existência de Deus) de forma puramente racional. Para o fazerem, tiveram de tornar explícitos os raciocínios que os conduziram à solução que julgaram correta. Mas saber se as razões que propuseram são realmente boas é algo que temos de ser nós a descobrir. Algumas das outras questões que têm sido debatidas em filosofia da religião são as seguintes: Existe vida depois da morte física? Qual a natureza de Deus? Como conciliar a crença num Deus todo-poderoso e bom com o mal existente no mundo? Deus existe?

Filosofia da religião (algumas questões)

Haverá vida para além da morte?

PowerPoint Filosofia da religião

Qual a relação entre fé e razão? Será possível conciliar liberdade humana e presciência divina?

2.2 Ética (ou filosofia moral)

Esta é a área da filosofia que, como vimos, interessou Sócrates particularmente.

A ética trata de problemas relacionados com o bem e o mal, o certo e o errado. Ora, tal como no caso da existência de Deus, nem sempre as pessoas estão de acordo a respeito do que é o bem e do que é o mal. Perguntar como se deve viver pode dar origem a respostas inconciliáveis. O conhecimento das diferentes sociedades humanas mostra que pode haver diversas opiniões sobre o que são ações boas e más, ações certas e erradas. Uma ação pode ser considerada moralmente certa numa sociedade e moralmente errada noutra sociedade: o infanticídio, o adultério, o aborto ou até o sexo antes 11

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

do casamento são ações que podem ser avaliadas de maneira muito diferente consoante se viva em Portugal, no Irão ou na Roma Antiga. Quer isto dizer que o bem e o mal, o certo e o errado, dependem unicamente do ponto de vista de cada sociedade? Esta é seguramente uma importante questão filosófica. Mas há ainda outras possibilidades. Afinal, como notámos no início, dentro da mesma sociedade encontramos pessoas com diferentes conceções morais: algumas pessoas acreditam que abortar é sempre moralmente errado e outras não; algumas pessoas acreditam que temos obrigações morais para com os outros animais (incluindo a de os excluir da nossa alimentação) e outras não; etc. Quererá isto dizer que o bem e o mal, o certo e o errado, dependem unicamente da perspetiva ou dos gostos de cada pessoa? Alguns filósofos rejeitaram completamente qualquer destas hipóteses, preferindo uma terceira. Agir moralmente, defenderam, não consiste em fazer aquilo que está de acordo com o que pensa a maioria das pessoas na nossa sociedade, nem pode consistir em fazer o que está de acordo com a sensibilidade ou os gostos de cada pessoa. Agir moralmente é um assunto demasiado sério para que seja a opinião de cada um ou as decisões da Fotografia de Alexey Menschikov (Rússia), 2008 maioria a ditar as suas leis. Agir moralmente, defenderam, é proceder de acordo com a vontade de Deus. Uma ação é boa quando é desejada por Deus. E é má quando contraria a vontade de Deus. Esta terceira hipótese só poderá ser verdadeira se for verdade que Deus existe. Se não existirem razões que tornem a existência de Deus pelo menos mais provável do que a sua não existência, a ideia de que agir moralmente consiste em obedecer à vontade de Deus deixa de fazer sentido. Contudo, esta hipótese tem a vantagem de fazer com que o bem e o mal, o certo e o errado, possam ser justificadamente considerados os mesmos para todas as pessoas – ou seja, universais –, em vez de dependerem das características particulares de cada sociedade ou pessoa, algo que teria como consequência tornar o entendimento entre elas difícil ou até impossível. Se agir moralmente for obedecer à vontade de Deus, há uma só verdade acerca do bem e do mal – uma verdade que é a mesma para todos. Mas se cada sociedade ou pessoa tiver a sua opinião, como havemos de nos entender? (Imagine-se a tentar convencer um talibã de que é errado punir o adultério ou a homossexualidade com a morte por apedrejamento e percebe a questão.) Será que o bem e o mal, o certo e o errado, poderão ser universais sem necessidade de recorrer a um Deus único? 12

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Vários filósofos admitiram esta hipótese. Kant, que viveu no século XVIII, foi um dos que pensaram que é possível justificar a existência de regras de comportamento universais apelando à sua origem racional. Se quisermos defender a universalidade das regras de conduta, precisamos de as basear em algo que todos os seres humanos tenham em comum. Esse algo, pensava Kant, é a razão. Estamos a falar de regras de conduta moralmente significativas. As maneiras de estar à mesa, por exemplo, obedecem a regras que podem variar de sociedade para sociedade, mas não são moralmente significativas. Comer com as mãos não é imoral, embora possa ser deselegante em algumas sociedades. A proibição de tirar a vida a uma pessoa inocente é moralmente significativa e não pode ser ignorada. É neste campo – quando se trata de saber onde traçar a fronteira entre o que é moralmente permissível e o que é moralmente não permissível – que a razão pode intervir. Claro que o facto de os seres humanos serem racionais e de a moral depender da razão não significa que não possamos discordar sobre o que é uma boa ou uma má ação, o certo e o errado. A questão é que não somos apenas seres racionais: também estamos sujeitos a preconceitos ou ideias para os quais não existe justificação racional e que nos retiram lucidez. É por isso que o uso cuidadoso da razão é tão importante. Ele dá-nos um excelente instrumento para decidir onde está a verdade e o preconceito sempre que há desacordo sobre questões de ordem moral.

Immanuel Kant (1724-1804)

Em síntese, a ética procura refletir sobre questões relacionadas com as ideias de bem e de mal. Alguns exemplos de questões éticas são os seguintes: O que é o bem? Será o aborto permissível? Devemos permitir a eutanásia? Os animais têm direitos? Os valores morais serão universais? Sejam quais forem as respostas para estes (e outros) problemas, teremos de aprender a discuti-las racionalmente, recorrendo a todo o sentido crítico de que formos capazes. Estudar filosofia oferece-nos essa oportunidade. O que é o bem? Em que consiste agir moralmente? Serão os valores morais universais?

Ética (algumas questões)

PowerPoint Ética (ou filosofia moral)

Que princípios devem orientar a nossa vida? O aborto é permissível? Em que circunstâncias? Deve a eutanásia ser permitida? Os animais têm direitos?

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UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

A filosofia política é a disciplina filosófica que trata de questões relacionadas com a forma como as sociedades humanas devem estar organizadas. Na origem desta preocupação está a ideia de que, apesar de na prática as sociedades poderem estar organizadas segundo regras ou princípios muito diferentes, nem todas as formas de organização social são igualmente justas.

2.3 Filosofia política

Será justo, por exemplo, que uma pessoa não beneficie de cuidados médicos quando necessita, apenas porque não ganha dinheiro suficiente para os pagar? Que papel devem ter o Estado e os governos nesta matéria? Se eu não tiver meios para pagar as despesas com uma operação que necessito de fazer, essa operação não deixa de ter custos. E, se não for eu, alguém terá de os pagar. Onde deve o Estado ir buscar o dinheiro para pagar os tratamentos de que necessito? Deverá obrigar os que mais rendimentos têm a pagar mais impostos para que todos (em particular os de menores rendimentos) beneficiem de cuidados de saúde gratuitos? E em que poderá basear-se o direito do Estado a agir deste modo, impondo a sua vontade mesmo aos que discordarem de tais medidas? Esta é uma questão mais ampla do que parece, e que nos obriga a refletir sobre se os mais ricos têm, ou não, obrigações morais para com os mais pobres – por exemplo, a obrigação de garantir que todas as pessoas tenham acesso a bens sociais básicos como a educação, a saúde e outros. De facto, as desigualdades entre ricos e pobres têm aumentado nos últimos anos, não apenas entre os países mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos, como entre a população dos países com as economias mais avançadas. Segundo as Nações Unidas, no final do século XX, as duzentas pessoas mais ricas do mundo usufruíam de um rendimento equivalente ao de 41% da população mundial, isto é, mais de 2 mil milhões de pessoas. Em Portugal, admite-se a existência de perto de 2 milhões de pobres, isto é, cerca de um quinto da população. Será que uma distribuição da riqueza tão desigual pode ser socialmente justa? Mas não só o problema das desigualdades económicas e da distribuição da riqueza tem ocupado a filosofia política. Liberdade e justiça social parecem também inseparáveis. Uma sociedade que não inclua o direito de escolher os seus dirigentes políticos, ou que proíba a expressão de opiniões contrárias às de quem governa, priva as pessoas da sua liberdade. Será justo que o Estado não reconheça aos cidadãos o direito às liberdades políticas (de expressão, reunião, etc.)? Terá um governo o direito de impor as suas decisões sem o consentimento dos cidadãos? Algumas outras questões tradicionais da filosofia política são as seguintes: uma sociedade igualitária é mais ou menos justa do que uma sociedade desigual? Terão os cidadãos o direito de desobedecer ao Estado por razões morais – por exemplo, quando o Estado aprova leis que discriminam os cidadãos em função da raça, sexo ou situação económica? Será que o direito à propriedade deve ser respeitado sem qualquer exceção? 14

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Em que consiste uma sociedade justa?

Filosofia política (algumas questões)

Em que se baseia o direito do Estado a exercer o poder?

PowerPoint Filosofia política

Como deve ser distribuída a riqueza? Uma sociedade igualitária é mais justa do que uma sociedade desigual? Existirá o direito à desobediência civil?

Para muitos de nós, a beleza pode ter muita importância. As coisas belas oferecem-nos uma das mais agradáveis experiências que podemos ter. Uma paisagem, uma canção ou um quadro, por exemplo, podem ser uma fonte de emoções aprazíveis, que nos proporcionam satisfação e bem-estar. Habitualmente, os objetos que nos oferecem este tipo de experiência adquirem um valor especial. Isto explica – em parte, pelo menos – a importância atribuída às obras de arte pelas sociedades humanas.

2.4 Estética

O objetivo da arte foi durante séculos o de produzir beleza. No entanto, existem hoje muitas obras de arte nas quais a beleza parece irremediavelmente ausente. E quando ouvimos os seus autores, a beleza não foi sequer um aspeto que os tenha preocupado. Apesar disso, estas obras proporcionam-nos aquilo a que se pode chamar experiências estéticas. Vemo-las expostas em galerias e em museus, dão origem a diferentes juízos e convidam ao debate. Mas o género de experiência que a arte parece ter o poder de causar (tal como uma paisagem) não é fácil de definir. Kant propôs que a característica principal da experiência estética é o prazer desinteressado. Kant queria dizer com isto que a experiência estética não está ligada a um interesse prático nem tem em vista algo mais além dela própria. É o género de experiência que procuramos por ser tal como é. A contemplação estética desinteressada é um fim em si mesma. Mas uma experiência estética pode dar origem a opiniões David Hockney, A bigger splash, 1967 muito diversas. Se a arte é geralmente muito apreciada, também é frequente encontrarmos pessoas que estão em desacordo sobre o valor estético de certas obras. Uma canção, uma escultura ou um poema podem suscitar apreciações favoráveis por parte de algumas pessoas e deixar outras indiferentes ou até desgostosas. Como se explicam estas diferenças de opinião? Os mesmos quadros, filmes ou peças de teatro podem dar origem a diferentes juízos de gosto. Será que a beleza está presente nas próprias coisas ou apenas existe nos olhos 15

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

do observador? Dito de outro modo: será a beleza objetiva (algo que existe nos próprios objetos) ou subjetiva (que depende do sujeito, do observador, variando de pessoa para pessoa)? Se a beleza não estiver nas próprias coisas mas apenas no olhar de cada um, um objeto ser belo ou não ser depende unicamente do ponto de vista do observador e não das características próprias do objeto. Neste caso, parece não fazer muito sentido tentar discutir os gostos de cada pessoa: não existiriam critérios universais a que recorrer para arbitrar a discussão. Mas a ideia de que os gostos não se discutem está longe de ser evidente. Em geral, somos capazes de justificar os nossos juízos de gosto e de oferecer razões em favor das preferências que estes juízos refletem. Significa isto que, afinal, sempre existe um padrão de gosto universal? Esta ideia não é tão estranha como pode parecer. Nós, seres humanos, partilhamos um mesmo sistema nervoso e somos afetados pelos estímulos do meio de maneira mais ou menos semelhante. Com o treino apropriado, é natural que sejamos capazes de reagir às obras de arte de modo semelhante, preferindo certos estímulos e rejeitando outros. Afinal, os nossos gostos evoluem com o treino e a educação que recebemos. Além das questões associadas à ideia de beleza e ao gosto, podemos ainda perguntar: o que é a arte? Será que um objeto tem de ter características especiais para ser considerado uma obra de arte ou qualquer objeto pode ser arte? Terá um objeto (uma escultura ou um quadro, etc.) de nos proporcionar uma experiência estética para ser arte? O que é a beleza? PowerPoint

Existirá um padrão de gosto universal?

Estética

Estética (algumas questões)

Em que consiste a experiência estética? O que é a arte? Qual o valor da arte?

Em geral, olhamos para o que nos rodeia (árvores, casas, automóveis, céu, estrelas, mar, etc.) sem nos apercebermos do quanto há de surpreendente no facto de todas estas coisas, e muitas mais, existirem. Mas, por vezes, não conseguimos evitar a ideia de que o universo, no seu conjunto, poderia não existir. Ora, se isto for verdade, porque existe alguma coisa em vez de nada? Não será afinal a existência algo muitíssimo surpreendente? Que significado atribuir a tudo isto?

2.5 Metafísica

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1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Estes são alguns exemplos de questões metafísicas. Uma outra questão, especialmente importante, é a seguinte: Será que a nossa existência tem uma razão de ser, um propósito que a justifique, que dê sentido à nossa vida? Muitos de nós, antes até de termos ouvido falar de Filosofia, já nos interrogámos sobre aquilo a que ficará a dever-se a nossa presença no mundo. Seremos um produto acidental da natureza ou a nossa existência possui um desígnio, um objetivo que decorre de um plano pré-estabelecido por Deus? Os adeptos de qualquer das religiões hoje existentes não sentiriam dúvidas em escolher a segunda hipótese. Pelo contrário, filósofos como Jean-Paul Sartre ou Thomas Nagel, nascidos no século XX, tenderão a ser mais prudentes ou mesmo desfavoráveis a esta ideia. Sartre pensava que nada justifica o facto de existirmos. A ideia de a vida humana não ser o produto de um desígnio de Deus também não incomodou Nagel. No entanto, pessoas como Tolstoi, um escritor russo do século XIX, ou William Lane Craig, um filósofo americano contemporâneo, defenderam que, sem Deus, a vida humana seria um absurdo e indigna de ser vivida. Saber onde está a verdade poderá não ser fácil. Porque existe alguma coisa em vez de nada?

Metafísica (algumas questões)

Terá a vida um objetivo?

PowerPoint Metafísica

Qual o valor da vida? Como conciliar a liberdade humana com a causalidade da natureza?

Atividades 1. Elabore uma pequena composição livre sobre o tema da existência de Deus. Indique a sua posição sobre o problema e exponha as razões em que se baseia, bem como as razões que o levam a pensar ser falsa a posição contrária. 2. Na secção de ética encontramos quatro hipóteses sobre o que é o bem: • O bem é aquilo que cada sociedade aprova. • O bem é aquilo que agrada a cada pessoa. • O bem é aquilo que Deus aprova. • O bem é aquilo que a razão estabelece. Escreva uma pequena composição sobre qual destas hipóteses lhe parece mais correta e procure explicar porquê. 3. Exponha o seu ponto de vista sobre como deve estar organizada a sociedade para que mereça ser considerada justa. Justifique a sua posição. 4. Para haver arte tem de haver beleza? Justifique a sua posição. 5. Será que a vida não pode ter valor caso Deus não exista? Porquê?

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UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

3. O que distingue a filosofia das ciências

A filosofia e as diferentes ciências têm uma origem comum: o amor pelo conhecimento, isto é, o desejo de compreender o mundo e de nos compreendermos a nós próprios e às nossas ideias em todos os aspetos. Mas, ao longo do tempo, as ciências acabaram por se separar da filosofia e seguir um rumo próprio. Isto aconteceu porque cada ciência se distingue das restantes num aspeto importante: cada uma tem um objeto de estudo particular e os seus próprios métodos de trabalho. Assim, a álgebra estuda os números, as funções, etc.; a geometria estuda as figuras no espaço; a física as manifestações da matéria inanimada (a gravidade, a eletricidade, etc.); a biologia estuda o mecanismo da evolução da vida na Terra através das suas diferentes espécies; etc. Mas, apesar de estas ciências serem diferentes umas das outras porque estudam coisas diferentes, todas têm um aspeto comum. A física, a química e a biologia procuram descobrir e explicar factos. Podemos saber que há planetas fora do sistema solar porque temos hoje telescópios que nos permitem observá-los. Mas não podemos usar um telescópio ou outro instrumento científico para descobrir se Deus existe ou não. Neste caso, os métodos e instrumentos científicos parecem não ser os mais adequados.

Ciências como a física, a geologia, a biologia, etc., estudam factos e usam a experiência para saber se as explicações que para eles proKumi Yamashita (Japão), Question mark, 2003 pomos são verdadeiras. Quando isto acontece, diz-se que os seus problemas são empíricos. Tal não significa, contudo, que nestes casos o raciocínio é dispensável. Significa que além do raciocínio, é preciso a experiência. Eis alguns problemas empíricos: • Quantos são os satélites naturais de Júpiter? • Porque se movem os continentes? • O que provocou a extinção dos dinossauros? • Será que existiu vida em Marte? • A que velocidades se propagam o som e a luz? Todos estes problemas têm hoje respostas científicas conhecidas. Mas, sem a experiência, não teria sido possível descobri-las. Na verdade, todas estas respostas puderam ser obtidas através do uso de vários instrumentos científicos sofisticados, como telescópios, sondas espaciais, tubos de ensaio, submarinos, etc. Não poderíamos

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

ter obtido estas respostas sentados à lareira, usando apenas as nossas capacidades para raciocinar. • Os problemas das ciências (com a exceção da matemática) são empíricos, isto é, exigem o recurso à experiência para serem solucionados. • Os problemas da filosofia, pelo contrário, são a priori, isto é, a verdade ou a falsidade das teorias filosóficas não se descobre por meio de experiências, mas principalmente pelo raciocínio. Para descobrir e explicar os factos, é necessária a experiência. Mas a filosofia não pretende descobrir e explicar factos, pretende discutir ideias. A experiência tal como é utilizada pelos cientistas não é o elemento crucial. Neste aspeto particular, a filosofia está mais próxima da matemática do que das outras ciências. Ao contrário do que acontece nas ciências, a experiência não é essencial em filosofia. Saber se o aborto é moralmente aceitável não depende decisivamente de uma experiência que possamos realizar num laboratório. Todos os factos que há para conhecer acerca do aborto são hoje conhecidos. Mas, ao discutir o problema do aborto, isso não é suficiente. Todos os factos que há para conhecer acerca do aborto são hoje conhecidos. Mas, ao discutir o problema do aborto, isso não é suficiente.

René Magritte, A reprodução interdita, 1937

Não são os factos que estão principalmente em causa. O que está em causa é saber se o conceito de ação moralmente permissível autoriza pensar que o aborto é uma ação moralmente permissível, em que situações e porquê (ou porque não). O mesmo acontece quando se quer saber em que consiste uma sociedade justa. Conhecemos a maioria dos factos sociais importantes para esta discussão: de que modo a riqueza está distribuída, quantos são pobres e quantos são ricos, que direitos legais são (ou não) reconhecidos, etc. Mas isto, por si só, não é suficiente para estabelecer uma conclusão sobre se estes factos são compatíveis com o conceito de justiça, e por que razão isso acontece. Os problemas da filosofia não são empíricos, são problemas a priori. Temas como a existência de Deus, a distribuição da riqueza ou o aborto estimulam o raciocínio e desafiam o desejo de descobrir as melhores razões em que apoiar as nossas crenças (ou convicções). Daí a importância do raciocínio e do espírito crítico quando se estuda filosofia.

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UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

Problemas conceptuais

Filosofia

Análise e debate de ideias

Problemas a priori

Saberes

Matemática

Método demonstrativo

Ciências Ciências empíricas

Problema empíricos

Método experimental

Atividades 1. Apesar da sua origem comum, com o tempo tornou-se claro que a filosofia e a ciência são atividades diferentes. Esclareça em que se baseia esta distinção. 2. No início deste capítulo (parágrafo dois) são indicados alguns dos problemas que ocuparam os primeiros filósofos (determinar a forma da Terra, etc.). Será que se justificaria hoje considerá-los problemas filosóficos? Porquê? 3. Poderá um problema como o sentido da vida ter uma solução científica? Porquê? 4. Será a teoria do big bang (sobre a origem do universo) uma teoria filosófica? Justifique.

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Textos de apoio

Texto 1

Pensar acerca de ideias, Simon Blackburn

E

is algumas perguntas que qualquer um de nós pode fazer sobre nós próprios. O que sou eu? O que é a consciência? Será que poderia sobreviver à morte do meu corpo? Será que posso estar certo de que as minhas experiências e sensações são como as das outras pessoas? Se não posso partilhar as experiências das outras pessoas, será que posso comunicar com elas? Será que agimos sempre apenas em função do interesse próprio? Será que sou apenas uma espécie de fantoche programado para fazer as coisas que penso fazer devido a possuir livre-arbítrio? Eis algumas perguntas sobre o mundo. Por que razão existe algo em vez de nada? Qual a diferença entre o passado e o futuro? Por que razão a causalidade acontece sempre do passado para o futuro, ou será que faz sentido pensar que o futuro pode influenciar o passado? Por que razão é a natureza regular? Será que o mundo pressupõe um Criador? E, se pressupõe, será que poderemos compreender por que razão o criou?

Por fim, eis algumas perguntas sobre nós e o mundo. Como poderemos ter a certeza de que o mundo é realmente como pensamos que é? O que é o conhecimento e que quantidade de conhecimento temos? O que faz de uma área de investigação uma ciência? Como poderemos saber se as nossas opiniões são objetivas ou meramente subjetivas?

Kumi Yamashita, Conversação, 1999

O que há de singular nestas perguntas não é serem à primeira vista desconcertantes, mas também por desafiarem processos simples de solução. Se alguém me perguntar quando é a maré cheia, sei como fazer para obter uma resposta. Existem tabelas fidedignas que poderei consultar. Posso ter uma ideia de como se fazem essas tabelas. E, se tudo o resto falhar, eu próprio posso ir medir as marés. Uma pergunta deste género refere-se à experiência: é uma pergunta empírica. Pode responder-se por meio de processos comprovados, que incluem olhar e ver, medir ou aplicar regras que, perante a experiência, verificámos que funcionam. As perguntas dos parágrafos anteriores não são assim. Parecem exigir mais reflexão. Não sabemos imediatamente para onde olhar. Talvez tenhamos a sensação de que 21

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

não sabemos exatamente o que queremos dizer quando fazemos aquelas perguntas, ou o que poderia ser considerado uma solução. O que será que me poderia mostrar que sou, afinal, um fantoche programado para fazer as coisas que penso fazer livremente? Deveremos pôr a questão aos cientistas especialistas do cérebro? Mas como iriam eles saber o que procurar? E como saberiam que tinham encontrado algo? Imagine a primeira página do jornal: «Neurocientistas descobrem que os humanos não são fantoches.» Como? O que origina perguntas tão desconcertantes? Numa palavra: a autorreflexão. Os seres humanos têm a capacidade de refletir constantemente sobre si próprios. Podemos fazer algo por hábito, mas depois somos capazes de começar a refletir sobre esse hábito. Podemos perguntar a nós mesmos se sabemos do que estamos a falar. Para responder temos de refletir sobre as nossas próprias posições, a nossa compreensão do que estamos a dizer. E ao fazê-lo, confrontamo-nos com categorias como conhecimento, objetividade, verdade, e podemos querer pensar sobre elas. Neste ponto, começamos a refletir sobre os conceitos, processos e convicções que geralmente nos limitamos a usar. Estamos a olhar para os andaimes do nosso pensamento e a fazer engenharia conceptual. Resumindo: as nossas ideias e conceitos podem ser comparados com lentes através dos quais vemos o mundo. Em Filosofia, são as próprias lentes que constituem o tema de estudo. Seremos bem ou mal sucedidos não em função da quantidade de coisas que sabemos no fim do estudo, mas em função do que podemos fazer quando as coisas se tornam difíceis: quando a maré dos argumentos sobe e se gera a confusão. Ser bem sucedido em Filosofia quer dizer levar a sério o que as ideias implicam. Adaptado de: Pense – Uma introdução à filosofia, Gradiva, pp. 12-15

Atividades 1. Selecione quatro das questões apresentadas no texto de Simon Blackburn que lhe pareçam especialmente intrigantes e explique porque as escolheu. 2. Blackburn defende que os problemas da Filosofia não podem ser resolvidos através de métodos empíricos. Exponha as razões em que o autor se baseia. 3. A Filosofia tem origem na autorreflexão, diz Blackburn. Usamos conceitos para nos referirmos às coisas, mas nem sempre refletimos sobre a natureza dos conceitos que utilizamos. Explique a ideia de Blackburn.

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1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

Texto 2

Três teorias sobre o que é a filosofia Elliott Sober

M

uitos problemas da filosofia envolvem questões fundamentais de justificação. Há muitas coisas em que acreditamos sem hesitação ou reflexão. Estas crenças, que constituem uma segunda natureza, são por vezes chamadas de senso comum. O senso comum afirma que os nossos sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) fornecem a cada um de nós conhecimento acerca do mundo em que habitamos. O senso comum diz ainda que as pessoas agem frequentemente com base no seu livre arbítrio. O senso comum sustenta que algumas ações são corretas e outras erradas. A filosofia examina os nossos pressupostos fundamentais acerca de nós próprios e do mundo em que vivemos e tenta determinar em que medida esses pressupostos são racionalmente justificáveis. Outra característica de muitas das questões filosóficas é serem bastante gerais; com frequência, são mais gerais do que os problemas investigados pelas diferentes ciências. Os biólogos interessaram-se por saber se os genes existem. Os físicos investigaram a existência dos eletrões. E os geólogos tentaram descobrir se os continentes assentam em placas móveis. No entanto, nenhuma destas ciências se preocupou com a questão de saber porque haveríamos de pensar que há objetos físicos. As várias ciências limitam-se a pressupor que existem coisas fora da mente; depois, concentram-se em questões mais específicas sobre como essas coisas são. Em contraste, uma questão tipicamente filosófica é saber porque havemos de acreditar que existe algo fora da mente. A ideia de que a sua mente é a única coisa que existe chama-se solipsismo. Alguns filósofos tentaram lidar com o problema de saber se o solipsismo é verdadeiro. Esta é uma questão bastante mais geral do que a questão de sabermos se existem eletrões, genes ou placas continentais. Uma terceira perspetiva sobre o que é a filosofia afirma que a filosofia é a atividade de clarificar conceitos. Repare em algumas das questões tipicamente filosóficas: O que é o conhecimento?; O que é a liberdade?; O que é a justiça?; etc. Cada um destes conceitos aplica-se a certas coisas e não a outras. O que terão em comum as coisas que recaem sob o conceito e o que as distingue daquelas a que o conceito não se aplica? Cada uma destas três formas de compreender a filosofia deve ser entendida com um grão de sal (ou dois). É possível defender cada uma delas, embora se tratem de simplificações que envolvem alguma distorção. Adaptado de: Core Questions in Philosophy, Prentice Hall, pp. 4-5

Atividades 1. Elliott Sober identifica três características típicas da filosofia e dos seus problemas. Indique cada uma delas e explique por palavras suas em que consistem. 2. Em que sentido se justifica dizer que a filosofia pode pôr em causa o senso comum?

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Ficha de avaliação formativa 1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia 1. A Filosofia ocidental nasceu [A] na Grécia atual. [B] na Grécia Antiga. [C] nos Estados Unidos da América. [D] na Índia.

7. Qual dos seguintes problemas é um problema filosófico? [A] Já houve vida em Marte? [B] Como se formou o planeta Terra? [C] Será que a beleza é objetiva (está realmente presente nas coisas – ou objetos) ou subjetiva (está apenas no sujeito – ou observador)? [D] Será que todos os números pares podem ser representados como a soma de dois números primos?

2. O sentido original da palavra «filosofia» é o de [A] conhecimento da amizade. [B] indiferença perante a sabedoria. [C] amor pelo conhecimento. [D] ódio pelo conhecimento. 3. Originalmente, os filósofos eram pessoas que [A] procuravam acima de tudo a fama e o proveito material. [B] ignoravam a natureza e não praticavam a reflexão. [C] procuravam compreender-se a si próprios. [D] faziam perguntas acerca dos vários aspetos significativos da natureza e da realidade humana. 4. A Filosofia consistia na [A] procura de respostas para a curiosidade humana, com base na observação cuidada e na razão. [B] tentativa de criar e impor novos mitos. [C] procura de explicações sobrenaturais para os fenómenos da natureza. [D] procura de explicações naturais para o modo de vida humano. 5. Os primeiros filósofos [A] acreditavam em tudo o que as antigas tradições diziam. [B] tinham sentido crítico e pensavam por si mesmos, procurando aos poucos corrigir os seus próprios erros. [C] procuravam seguir as opiniões da maioria. [D] tentavam impor aos outros as suas ideias sem sentirem necessidade de as justificar racionalmente. 6. A razão era para os primeiros filósofos e cientistas [A] a última coisa em que pensavam quando se falava em conhecimento. [B] o principal instrumento (a par da observação) a que se devia recorrer para descobrir a verdade. [C] apenas uma maneira de fazerem valer a sua opinião. [D] um sinal de atraso das sociedades.

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8. Qual dos seguintes problemas não é um problema filosófico? [A] A eutanásia e o aborto serão moralmente permissíveis? [B] Como deve numa sociedade justa estar distribuída a riqueza? [C] Será que existe vida além da morte? [D] Haverá matéria suficiente no universo para que este deixe de se expandir daqui a milhões de anos? 9. Ao colocarem em questão muitas das nossas principais convicções (a existência de Deus, por exemplo), os filósofos pretendem [A] saber se há alguma justificação racional a apoiar essas convicções. [B] criticar os outros apenas por criticar. [C] desprezar as convicções alheias sem nada oferecer em troca. [D] ser considerados originais e atrair as atenções. 10. Será a filosofia uma ciência? [A] Sim, porque a filosofia, tal como as ciências, consiste na procura do conhecimento e da verdade. [B] Não, porque os problemas e métodos da filosofia são distintos dos problemas e métodos das ciências. [C] Sim, porque a filosofia, tal como as restantes ciências, baseia-se na experiência e na razão. [D] Não, porque as teorias dos filósofos não passam de opiniões e cada pessoa pode ter a sua. 11. Um problema é empírico quando [A] a experiência não é necessária para o resolver. [B] não é possível descobrir a sua solução com o recurso à experiência. [C] a experiência é tudo o que precisamos para descobrir a resposta. [D] não se pode resolvê-lo sem utilizar a experiência.

NOTA: As soluções, assinaladas com

, são exclusivas do manual do professor.

12. Um dos seguintes problemas é empírico. Identifique-o. [A] Será que o aquecimento atual do planeta está a ameaçar a vida de algumas espécies animais? [B] Quantos valores satisfazem a função x2 = 4? [C] Será que Deus existe? [D] Poderá qualquer objeto ser considerado arte? 13. Um dos seguintes problemas não é empírico. Identifique-o. [A] Haverá verdades morais objetivas (aplicáveis a qualquer ser humano) ou os valores morais dependem do ponto de vista de cada sociedade, de cada cultura ou de cada pessoa? [B] Qual a origem do sistema solar? [C] O desenvolvimento da personalidade é devido à hereditariedade ou ao papel do meio ambiente? [D] Como se formou o universo? 14. Um problema é a priori quando [A] basta a razão para descobrir a sua solução. [B] a resposta tem de ser obrigatoriamente encontrada apenas com base no raciocínio ou na razão. [C] a razão é necessária para o resolver embora só isso não chegue. [D] não é necessário recorrer ao raciocínio para o resolver. 15. Um dos seguintes problemas é a priori. Identifique-o. [A] Quantos satélites naturais tem Saturno? [B] O calor propaga-se melhor num bocado de madeira ou de metal? [C] O que dá ao Estado o direito de exercer o seu poder sobre a sociedade? [D] Haverá um dia cura para a SIDA? 16. Um dos seguintes problemas não é a priori. Identifique-o. [A] Os animais não humanos têm direitos? [B] Será que a existência de um Deus perfeitamente bom é compatível com todo o mal que existe no mundo? [C] O recurso a energias alternativas pode resolver a atual crise do petróleo? [D] Qual o valor de x na equação 2x – 1 = 0?

17. Saber se existem solteiros casados é um problema [A] empírico, porque é preciso investigar os muitos solteiros que há no mundo para ver se algum é, ou não, casado. [B] a priori, porque basta raciocinar sobre o que as palavras «solteiro» e «casado» querem dizer para se perceber imediatamente que ninguém pode, em simultâneo, ser solteiro e casado. [C] empírico, porque a experiência, só por si, basta para o resolver. [D] a priori, porque o raciocínio não é suficiente para encontrar uma solução para um tal absurdo. 18. Os problemas das ciências são empíricos (exceto a matemática) porque [A] dizem essencialmente respeito a factos que se querem explicar, não a ideias. [B] em ciência, não basta refletir demoradamente sobre um problema; é preciso testar as soluções através da experiência. [C] Todas as respostas anteriores. [D] Nenhuma das respostas anteriores. 19. Em filosofia [A] debatemos conceitos: o conceito de justiça (em que consiste uma sociedade justa?), o conceito de bem moral (será o bem algo de objetivo ou depende do ponto de vista de cada sociedade ou pessoa?), etc. [B] analisamos criticamente as várias respostas em busca da verdade e tentamos corrigir os erros cometidos no passado. [C] procuramos justificar as teorias com base nos melhores argumentos disponíveis e sujeitamo-los a uma avaliação crítica. [D] Todas as respostas anteriores. 20. Em filosofia [A] o debate de ideias é essencial, porque as teorias filosóficas não podem ser avaliadas pelos métodos das ciências. [B] pensar de forma autónoma não é essencial porque os melhores filósofos já o fizeram por nós. [C] procurar os fundamentos em que se baseiam as nossas crenças mais básicas não é importante. [D] Nenhuma das respostas anteriores.

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Esquema global–síntese Mapa de conceitos Esquema global-síntese: O que é a filosofia?

O que é a filosofia?

Componentes

Disciplinas

Problemas

Filosofia da religião

Exemplos de problemas da filosofia Deus existe? Haverá vida além da morte?

Teorias

Ética (ou filosofia moral)

Argumentos

O que é o bem? Em que consiste agir moralmente? Em que consiste uma sociedade justa?

Filosofia política

Como deve ser distribuída a riqueza? O que é a arte?

Estética Existirá um padrão de gosto universal? Terá a vida um objetivo? Metafísica Qual o valor da vida?

Outras

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Ideias a reter



filosofia surgiu pela primeira vez nas antigas colónias gregas da Asia Menor por volta do século VI a. C. Os Antigos Gregos foram os primeiros a estudar de forma científica a natureza. Tentaram descobrir com base na observação a origem do universo, bem como muitos outros fenómenos naturais como os eclipses e a forma da Terra. Além disso, interessaram-se por questões como a existência de Deus, a organização justa da sociedade, a natureza da arte e os princípios e regras que deverão orientar o comportamento moral. Interrogaram-se sobre a confiança que podemos atribuir aos sentidos para alcançar conhecimento e em que consiste a verdadeira realidade depois de nos libertarmos de ilusões e de aparências.

A

o longo dos últimos séculos, a filosofia separou-se gradualmente das ciências. Muitas das teorias que ocuparam a tradição filosófica encontraram confirmação experimental, e deram lugar a disciplinas autónomas como a física, a química, a biologia, a psicologia e outras. Estas ciências pretendem obter conhecimentos acerca dos diferentes tipos de factos que constituem o mundo, baseados em observações auxiliadas por diversos instrumentos como telescópios, microscópios, etc. Além disso, os cientistas aprenderam a pôr à prova as teorias, a corrigi-las e, quando necessário, a substituí-las por outras melhores.

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

2

que as teorias filosóficas têm em comum é não serem abordadas com base nos métodos experimentais da ciência. A filosofia é uma disciplina onde refletimos sobre conceitos e não sobre factos. Por isso, os problemas e teorias da filosofia não são empíricos. Para distinguir este aspeto da filosofia das diversas ciências que dela se foram afastando gradualmente, diz-se que é uma disciplina a priori.

O

facto de a filosofia não poder recorrer aos métodos experimentais das ciências tem uma grande importância. As teorias filosóficas não podem ser justificadas empiricamente; a sua verdade ou falsidade não tem uma base experimental. Mas podem ser avaliadas e justificadas racionalmente. É por isso que os argumentos são importantes em filosofia. Os argumentos dão-nos as razões em que os filósofos se basearam para concluir que as suas teorias são verdadeiras. Para saber se uma teoria é verdadeira ou falsa, é necessário conhecer os argumentos em que os filósofos se apoiaram para defender uma coisa ou outra.

À

medida que as diferentes ciências foram ganhando autonomia, a filosofia tornou-se uma disciplina com objetivos e métodos de investigação próprios. Deixou os problemas empíricos (a explicação dos factos) para os cientistas e tornou-se uma reflexão sobre ideias: sobre a natureza e a existência de Deus, sobre os conceitos de bem e de justiça, sobre a beleza, o gosto e a arte, sobre o sentido da vida e porque existe alguma coisa em vez de coisa nenhuma. Agrupados em função do tema, estes problemas deram origem às disciplinas que formam a filosofia: a filosofia da religião, a ética (ou filosofia moral), a filosofia política, a estética, a metafísica e outras que estudaremos no próximo ano.

Fotografia: Simons Center for Geometry and Physics

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2. PowerPoint A dimensão discursiva do trabalho filosófico

Piet Mondrian, Composição com amarelo, vermelho e azul, 1937-1942

A dimensão discursiva do trabalho filosófico

1. O trabalho filosófico

Como vimos no capítulo anterior, os problemas da filosofia não são empíricos. Portanto, não podem ser respondidos através do recurso aos métodos experimentais das ciências. Em filosofia discutem-se ideias; por isso, fazer filosofia não obriga a aprender a utilizar os instrumentos que habitualmente se encontram nos laboratórios de física ou de química. Não precisamos de saber como manusear um microscópio ou um bico de Bunsen, por exemplo. Mas, dado que o essencial do trabalho filosófico consiste em discutir criticamente ideias, é muito importante aprender a argumentar com eficácia. São três, como vimos, os elementos da filosofia: os problemas filosóficos, as teses ou teorias filosóficas e os argumentos em que estas teorias se apoiam. Tal como as teorias da física ou da biologia dependem dos resultados das experiências levadas a cabo pelos cientistas, as teorias filosóficas, não podendo basear-se na experiência, têm de se apoiar em argumentos. Estes três elementos esclarecem-nos sobre o que é a filosofia e como estudá-la. • Em primeiro lugar, trata-se de identificar o problema filosófico a discutir. • Em segundo lugar, temos de identificar as teses ou teorias propostas como solução para o problema. • Em terceiro lugar, é preciso identificar os argumentos em que estas teorias se baseiam.

Atividades

Discutir Filosofia é a mesma coisa que avaliar se uma teoria é verdadeira ou falsa. Para isso, é necessário conhecer as razões em que os filósofos se apoiaram para a defender. Só então ficaremos em condições de saber se uma teoria filosófica é uma boa resposta para o problema a que se quer responder.

1. Quais são os elementos da filosofia? Explique a relação que existe entre eles.

2. Estudar os argumentos é tão importante para um filósofo como saber usar material de laboratório é importante para um cientista. Explique porquê.

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Só depois de identificados o problema, a teoria e os argumentos que queremos estudar, podemos exercer o nosso sentido crítico. Mas, para isso, é conveniente saber o que são os argumentos e como podem ser discutidos.

2. O que são os argumentos

Usamos argumentos quando precisamos de justificar as nossas afirmações. Por exemplo, se uma pessoa for da opinião que abortar é moralmente permissível em certos casos, não pode esperar que a sua opinião seja aceite – ou considerada verdadeira – se não for capaz de justificar como chegou a essa conclusão, isto é, se for incapaz de nos dar razões nas quais é possível basear-nos para pensar que está a dizer a verdade. Mas também podemos ter razões para pensar que uma afirmação é falsa. Podemos, por exemplo, ter razões para pensar que abortar é sempre errado. As afirmações «abortar é moralmente permissível em certos casos» e «abortar é sempre errado» não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Se uma é verdadeira, a outra tem de ser falsa. Mas qual delas é verdadeira e qual delas é falsa? Para saber isto precisamos dos argumentos. Precisamos de conhecer as razões a favor de cada uma delas e decidir com base na sua avaliação imparcial. Nem todas as razões são boas e umas são melhores do que outras. Há argumentos bons, outros maus. Estes exemplos mostram que se pode caracterizar um argumento como uma tentativa para justificar uma afirmação, apresentando as razões em que nos apoiamos para pensar que a afirmação é verdadeira ou falsa. Esta primeira aproximação ao que são os argumentos diz-nos qual é o objetivo da argumentação. Diz-nos onde queremos chegar quando argumentamos. Mas ainda não nos informa sobre o que são os argumentos.

Os argumentos são a expressão linguística dos raciocínios. Quando apresentamos as razões em que nos baseámos para pensar que uma afirmação é verdadeira ou falsa, estamos a expor o raciocínio que nos faz chegar à conclusão que a afirmação é verdadeira ou falsa. Podemos concluir que abortar é sempre errado porque o feto tem o direito à vida e violar um direito é sempre errado. Ou podemos concluir que abortar é permissível em casos de violação, por exemplo, porque o direito de a mulher decidir livremente quando quer ter filhos tem de ser respeitado. As razões que justificam pensar que o aborto é errado ou que é permissível em certos casos são aquilo em que nos baseámos para chegar à conclusão que abortar é, ou não, errado. Assim, os argumentos são formados por um determinado número de razões, as premissas – não obrigatoriamente verdadeiras – e uma conclusão. • As premissas de um argumento são as razões que o argumento apresenta; estas razões dão-nos a justificação em que nos baseamos para afirmar a conclusão. • A conclusão de um argumento é a afirmação cujo verdade temos como objetivo justificar. • Um argumento pode ter várias premissas (podemos ter várias razões para fazer uma afirmação) e uma conclusão. Porém, cada argumento possui apenas uma conclusão. 29

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

• Um argumento é constituído por um conjunto de afirmações relacionadas entre si de tal modo que as premissas servem de fundamento – de justificação – para afirmar a conclusão. Justificar a verdade de uma afirmação. Objetivo Dar razões que fundamentem uma afirmação.

Argumentos Premissas ▶ As razões que apoiam uma afirmação. Elementos

Conclusão ▶ A afirmação que se pretende justificar.

Em geral, raciocinamos corretamente. Mas nem sempre. Por vezes, os nossos raciocínios levam-nos a conclusões erradas, embora nos tenhamos baseado em premissas verdadeiras. Quando chegamos a um resultado matemático errado, pode ter acontecido que fizemos mal os cálculos ou não raciocinámos corretamente de maneira a descobrir a solução certa.

3. Argumentos válidos e inválidos

O mesmo sucede com os argumentos. Nem todos os argumentos são válidos. Quando um argumento não é válido – ou é inválido – isso significa que o raciocínio que ele contém está incorreto. Mas o que é a validade? Vejamos um exemplo: (1) Todos os homens são mortais. (2) Platão é homem. Logo, Platão é mortal. Este é um exemplo bastante simples de argumento válido (ou de raciocínio correto). Se as premissas forem verdadeiras, a conclusão não pode ser falsa. A primeira premissa diz que o conjunto dos homens faz parte do conjunto dos mortais; a segunda premissa diz que Platão pertence ao conjunto dos homens. Isto implica que Platão faz parte do conjunto dos seres mortais. Homens Mortais Platão

Observe o esquema ao lado. O esquema parece mostrar um objeto dentro de uma área que, por sua vez, está incluído dentro de outra maior. Se é verdade que Platão está em H e que H está incluido em M, a consequência é que é impossível Platão não estar em M. Entende-se por validade a característica que este argumento tão bem exemplifica:

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• Se as premissas forem todas verdadeiras, a conclusão tem de ser verdadeira.

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico

A validade é uma propriedade decisiva dos argumentos porque nos dá a garantia de que a conclusão não pode ser falsa caso as razões apresentadas em sua defesa sejam todas verdadeiras. Num argumento válido, a verdade da conclusão é uma consequência lógica da verdade das premissas. Se a verdade das premissas for conhecida, o argumento é uma prova de que a conclusão é verdadeira. No entanto, nem todos os argumentos possuem esta importante característica: (1) Alguns políticos são corruptos. (2) Napoleão é político. Logo, Napoleão é corrupto. Este argumento é inválido. Embora as premissas sejam ambas verdadeiras, não autorizam a concluir que Napoleão é corrupto. Num argumento inválido, a verdade das premissas não garante, ou implica, que a conclusão seja verdadeira. Podemos ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Portanto, a conclusão não é uma consequência lógica das premissas. Vejamos o exemplo anterior. A primeira premissa diz que alguns políticos são corruptos, mas não todos. Assim, fica por esclarecer se Napoleão pertence ao conjunto dos políticos corruptos (ver zona de sobreposição no esquema abaixo) ou ao conjunto dos que o não são (zona rosa). Na realidade, com base nas premissas indicadas não é possível concluir que Napoleão é corrupto. Pensar o contrário seria apenas um exemplo de mau raciocínio. O esquema abaixo explica claramente por que razão. As duas hipóteses que as premissas deixam em aberto são as seguintes, as do esquema ao lado. Dado que apenas se diz que alguns políticos são corruptos, não se pode concluir que Napoleão é corrupto. Afinal, há políticos que tomam decisões honestamente. O argumento é inválido. A conclusão não se segue (não é uma consequência lógica) das premissas. Mas por que razão é a validade importante? A validade dos argumentos é importante porque o objetivo da argumentação consiste precisamente em justificar a verdade da conclusão. Nos argumentos válidos, se as premissas forem todas verdadeiras, ficamos a saber que a conclusão é verdadeira. O objetivo foi alcançado.

Políticos

Corruptos

Mas se um argumento é inválido, essa garantia não existe. Num argumento inválido, as premissas, ainda que verdadeiras, não provam que a conclusão seja verdadeira. O objetivo da argumentação não foi alcançado. Napoleão 31

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

Contudo, para um argumento ser válido, não é necessário ter as premissas verdadeiras. A definição de validade limita-se a afirmar que, na hipótese de as premissas serem verdadeiras, a consequência é a conclusão ser verdadeira. Mas um argumento pode ser válido e ter premissas falsas: (1) Todos os portugueses são asiáticos. (2) Barack Obama é português. Logo, Barack Obama é asiático. Como sabemos, o argumento tem uma premissa e a conclusão falsas. Apesar disso, se as premissas fossem ambas verdadeiras, a conclusão também seria verdadeira. De facto, se Barack Obama fosse português, como os portugueses são europeus, Barack Obama teria de ser europeu. Nem sempre podemos estar seguros de que as nossas razões são verdadeiras. Mas, se o argumento for válido, podemos confiar que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também é verdadeira. A verdade das premissas, em conjunto com a validade, garante a verdade da conclusão. O argumento sobre Barack Obama, embora seja válido, não é um bom argumento, dado que pelo menos uma (a segunda) das premissas é falsa. O argumento sobre Napoleão, por ser inválido, não é um bom argumento. A verdade das premissas não estabelece a verdade da conclusão. São duas as condições que um argumento tem de respeitar para ser bom: (1) ser válido; (2) ter todas as premissas verdadeiras. Avaliar um argumento inclui uma dupla tarefa: verificar se cada uma destas condições é satisfeita. Sempre que uma condição falha, é o argumento que falha.

Validade

Bom argumento

Se as premissas forem verdadeiras, a conclusão tem também de ser verdadeira. A verdade das premissas garante a verdade da conclusão.

Premissas verdadeiras

Num bom argumento, as premissas têm de ser verdadeiras porque razões falsas são irrelevantes para estabelecer a conclusão.

Atividades 1. 2. 3. 4. 32

Explique o que são os argumentos e qual o seu objetivo. Um argumento válido pode ter premissas falsas? Justifique. Por que razão um argumento inválido não pode ser bom? Um argumento com premissas falsas pode ser bom? Porquê?

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico

4. Como se discutem os argumentos

Por vezes, as pessoas discutem apenas pelo prazer de ganhar a discussão. Em Filosofia, no entanto, discute-se como forma de chegar à verdade. Chegar à verdade e tentar ganhar uma discussão são coisas muito diferentes.

A Filosofia é uma atividade em que muitas pessoas cooperam usando o melhor da sua inteligência, com vista ao esclarecimento da verdade. Mas também encontramos a mesma atitude de cooperação no quotidiano. Eis um exemplo: Ana: O problema do aborto deixa-me insegura. Mas acho que abortar é errado. Raquel: Porque dizes isso? Ana: Se o feto tem o direito à vida, abortar é errado. E eu penso que o feto tem o direito à vida. Portanto, isto obriga-me a concluir que abortar é errado. Raquel: Se as tuas razões forem verdadeiras, é claro que abortar tem de ser errado. Ana: Só que o direito à vida do feto não é consensual. Que te parece? O diálogo contém um argumento cujo objetivo é justificar que abortar é errado – hipótese que a Ana se sente inclinada a aceitar. Para o fazer, é-nos oferecido um conjunto de razões ou premissas. Uma vez identificadas as premissas, o argumento pode ser apresentado como se segue: (1) Se o feto tem o direito à vida, abortar é errado. (2) O feto tem o direito à vida. Logo, abortar é errado. A conclusão é uma consequência lógica das premissas: se as premissas forem aceites como verdadeiras, seria incoerente não aceitar a conclusão (algo em que a Raquel, na sua última fala, reparou). Logo, se as premissas forem todas verdadeiras, o mesmo tem de acontecer com a conclusão. Isto significa que uma das condições para o argumento ser bom foi satisfeita. No entanto, a Ana está insegura. Ela está insegura porque o argumento só mostra que o aborto é errado caso todas as premissas sejam verdadeiras. Ora, a Ana sabe que há quem pense que o feto não tem o direito à vida. Se for assim, a premissa (2) é falsa.

Edward Hopper, Conferências à noite, 1949

A Ana sabe que o valor do seu argumento não depende apenas de a conclusão ser uma consequência lógica das premissas. Depende também de todas as premissas serem verdadeiras. Logo, uma pessoa que discorde da Ana (como poderia acontecer com a Raquel) teria de mostrar que pelo menos uma das premissas em 33

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

que a Ana se baseou é falsa. E isto tem todo o sentido. A validade obriga-nos a pensar que se as premissas forem todas verdadeiras, a conclusão é verdadeira. Daí que a conclusão só pode ser falsa se pelo menos uma das premissas for falsa. É o receio de que uma das premissas seja falsa que deixa a Ana insegura. Vejamos a continuação do diálogo: Raquel: É consensual que as pessoas têm o direito à vida. O problema é que o feto não é uma pessoa. Portanto, resta saber se o feto tem o direito à vida. Ana: Que achas disso? Por vezes, fico um pouco confusa e sem saber o que pensar. Raquel: É um problema difícil. Mas, apesar disso, julgo que o feto não possui o direito à vida. Para se ter o direito à vida é necessário ser uma pessoa. Ana: Se ser uma pessoa implicar ter consciência, ser racional, etc., é claro que tens razão. Mas o facto de ser uma pessoa em potência não será suficiente? Raquel: Até aos três meses o feto não é capaz de sentir. Mas virá a ser uma pessoa, sim. Neste diálogo, a Raquel defende que uma das premissas em que a Ana se baseou é falsa (ou, pelo menos, discutível). Ela acha que o feto não tem o direito à vida. Compete-lhe, portanto, justificar-se. Eis o seu argumento: (1)

Para possuir o direito à vida é necessário ser uma pessoa.

(2)

O feto não é uma pessoa.

Logo, o feto não possui o direito à vida. Lendo o diálogo com atenção, verificamos que o argumento da Raquel é válido. Se as premissas forem verdadeiras, a conclusão tem de ser verdadeira. Mas tratar-se-á de um bom argumento? A Ana parece ter dúvidas. Ela pensa que a primeira premissa é falsa, ou pelo menos, discutível.

Costa Pinheiro, La fenêtre de ma tête, 1983-1984

Um feto não é racional, não tem consciência de si e, no primeiro trimestre de gravidez, ainda não consegue sentir seja o que for. Mas, se a gravidez não for interrompida, o feto acabará por se tornar numa pessoa. Estas considerações parecem levar a Ana a propor o seguinte argumento:

(1) As pessoas possuem o direito à vida. (2) O feto é uma pessoa potencial. Logo, o feto tem o direito à vida. 34

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico

Será este um bom argumento? Se examinarmos cuidadosamente as premissas, teremos de concluir que ambas são verdadeiras. Quer isso dizer que a Ana tem razão e que não é necessário ser uma pessoa para possuir o direito à vida – bastando, para isso, ser uma pessoa em potência? Não basta um argumento ter premissas verdadeiras para ser um bom argumento. Além de premissas verdadeiras, é necessário que seja válido. A conclusão do argumento deve ser uma consequência lógica das premissas. Vejamos a sequência do diálogo:

Raquel: Se percebi o que disseste, o teu argumento é o seguinte: o feto é uma pessoa em potência e, como as pessoas possuem o direito à vida, podemos concluir que o mesmo se passa com o feto. É isto que queres dizer? Ana: Julgo que sim. Que achas? Raquel: Julgo que as tuas premissas são verdadeiras, mas falta lógica ao argumento. Não se pode concluir do que disseste que o feto tem o direito à vida. Ana: Não? Porquê? Raquel: Se fosse como dizes, poderíamos concluir que um candidato a Presidente da República pode dissolver o Parlamento. Um candidato a Presidente da República é um presidente em potência mas não tem esse direito. Só um Presidente da República em funções tem esse direito. Ana: Julgo que percebi. Ter potencialmente um direito não implica tê-lo de facto.

O argumento proposto pela Ana tem as premissas verdadeiras mas não é válido. Como a Raquel compreendeu bem, falta lógica ao argumento: as premissas são verdadeiras mas a conclusão pode ser falsa. Para provar que assim é, a Raquel apresentou um argumento em tudo semelhante ao da Ana que não deixa dúvidas sobre este aspeto. Se ter um direito em potência é igual a tê-lo de facto, então o mesmo teria de acontecer com os candidatos à Presidência da República. Mas isto, como se sabe, não é verdade. Seguindo a lógica da Ana, diz a Raquel, seria possível concluir o seguinte: (1) Um Presidente da República possui o direito de dissolver o Parlamento. (2) Um candidato à Presidência da República é um Presidente da República potencial. Logo, um candidato à Presidência da República possui o direito de dissolver o Parlamento. 35

UNIDADE 1 – Iniciação à atividade filosófica

Mas esta lógica – como a Ana acaba por reconhecer – não está certa. As premissas são verdadeiras mas a conclusão é falsa. O mesmo acontece com o argumento da pessoa potencial. Ser uma pessoa em potência é diferente de ser uma pessoa; por isso, não se pode concluir que uma pessoa em potência tem os mesmos direitos que uma pessoa propriamente dita. O diálogo entre a Ana e a Raquel não chegou ao fim. A ética do aborto está na origem de um debate complexo que não se esgota nos argumentos discutidos até aqui. Mas compreender a maneira como o assunto do aborto foi discutido pode ser muito importante para nós, que estamos a começar a estudar Filosofia. Façamos um breve resumo do que se passou. 1.

Em primeiro lugar, há um argumento da Ana para justificar a afirmação de que abortar é moralmente errado. O seu argumento é válido mas baseia-se numa premissa discutível: a ideia de que o feto possui o direito à vida. Como o argumento da Ana é válido, a Raquel, que não concorda com a conclusão, irá pôr em dúvida que o feto tem o direito à vida.

2. Isto vai dar origem ao segundo argumento do debate. A Raquel, para justificar

que o feto não tem o direito à vida, irá dizer que apenas as pessoas têm esse direito. Portanto, como o feto não é uma pessoa, não tem esse direito. O argumento é válido mas uma premissa é falsa ou discutível. 3. O terceiro argumento tem como objetivo mostrar que, para ter o direito à

vida, não é necessário ser uma pessoa: basta ser uma pessoa em potência. Como o feto é uma pessoa em potência, seguir-se-ia que tem o direito à vida. 4. Mas, tal como os anteriores, o terceiro argumento não é um bom argumento,

embora por razões diferentes. Enquanto os dois primeiros argumentos são válidos mas contêm premissas falsas ou, no mínimo, discutíveis, o terceiro argumento tem premissas verdadeiras mas é inválido. Em qualquer caso, nenhum dos argumentos justifica a conclusão. As críticas apresentadas a cada um dos argumentos anteriores mostram o que são, em geral, os pontos fracos dos argumentos. Um argumento não é bom porque contém premissas falsas ou não é bom porque é inválido. Assim, quando discutimos um argumento, a nossa preocupação consiste em perguntar: (1) Será o argumento válido? (2) Serão as suas premissas verdadeiras?

Atividades 1. Apenas os bons argumentos merecem ser aceites. Justifique esta afirmação. 2. Que preocupação se deve ter ao discutir um argumento? Explique porquê.

36

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico

5. Indicadores de premissas e de conclusão

A identificação das premissas e da conclusão dos diferentes argumentos analisados anteriormente pôde ser feita sem demasiadas dificuldades.

Em outros casos, esta identificação pode ser menos imediata. Para nos ajudar nesta tarefa, apresentamos alguns termos que indicam as premissas ou a conclusão dos argumentos. Em geral, estes termos e expressões constituem uma importante ajuda e merecem ser tidos em consideração. A lista apresentada a seguir não é exaustiva. Indicadores de premissas

Indicadores de conclusão

porque

por conseguinte

dado que

logo

assumindo que

portanto

partindo do princípio que

assim

como foi dito

segue-se que

visto que

infere-se que

devido a

daí que

a razão é que

então

se aceitarmos que

consequentemente

sabendo-se que

implica que

pois

por essa razão

em virtude de

tem-se que

uma vez que

do que foi dito extrai-se

Testes interativos Unidade 1 – versão professor Unidade 1 – versão aluno

Atividades Identifique as premissas e a conclusão dos seguintes argumentos:

sáveis pelos seus atos, temos a obrigação de os censurar ao agirem mal.

1. Não pode ter sido o mordomo a cometer o crime. Se tivesse sido, ninguém o teria visto na cidade a fazer compras. Mas há várias testemunhas que afirmam tê-lo visto.

4. Os animais não têm direitos. Só pode ter direitos quem souber o que é respeitar um dever. Mas os animais não sabem o que é respeitar deveres.

2. Se Deus é perfeito, tudo o que criou é perfeito. Ora, o mundo é muito imperfeito. Portanto, ou Deus não é perfeito ou não criou o mundo. 3. Se os seres humanos são livres, são responsáveis pelos seus atos. Portanto, se são livres, devemos censurá-los se agirem mal. Porque, se são respon-

5. Mentir é moralmente errado porque quem mente está a violar uma obrigação moral básica. E violar uma obrigação é sempre moralmente errado. 6. Se Deus é todo-poderoso e bom, o mal não existe. Portanto, ou Deus não é todo-poderoso ou não é bom. Isto porque o mal está por todo o lado. Para as questões 3. e 6., siga as pistas em itálico.

37

Texto de apoio

O que é a argumentação, Anthony Weston

A

lgumas pessoas pensam que argumentar é apenas expor os seus preconceitos de uma nova forma. É por isso que muitas pessoas pensam que os argumentos são desagradáveis e inúteis. Argumentar pode confundir-se com discutir. Dizemos por vezes que duas pessoas discutem, como numa espécie de luta verbal. Mas não é isso que os ar-

gumentos são.

«Apresentar um argumento» quer dizer oferecer um conjunto de razões a favor de uma conclusão ou oferecer dados favoráveis para uma conclusão. Um argumento não é apenas a afirmação de certos pontos de vista, não é só uma disputa. Os argumentos são tentativas de apoiar certos pontos de vista com razões. Os argumentos não são inúteis; são essenciais. Os argumentos são essenciais, em primeiro lugar, porque são uma forma de tentar descobrir quais os melhores pontos de vista. Nem todos os pontos de vista são iguais. Algumas conclusões podem estar apoiadas em boas razões; outras, em razões menos boas. Mas muitas vezes não sabemos quais são as melhores conclusões. Precisamos de argumentos para apoiar diferentes conclusões, e de os avaliar para ver se são realmente bons.

Henri Matisse, O ateliê vermelho, 1911

Neste sentido, um argumento é uma forma de investigação. Alguns filósofos e ativistas argumentaram, por exemplo, que criar animais só para fornecer carne causa um sofrimento imenso aos animais e que, portanto, isso é injustificado e imoral. Será que eles têm razão? Não se pode decidir consultando os preconceitos que têm. Estão envolvidas muitas questões. Temos obrigações morais para com outras espécies, por exemplo, ou é só o sofrimento humano que é realmente mau? Podem os seres humanos viver realmente bem sem carne? Alguns vegetarianos viveram até idades muito avançadas. Será que isto mostra que as dietas vegetarianas são mais saudáveis? Ou é irrelevante, considerando que alguns não vegetarianos viveram até idades também muito avançadas? Talvez as pessoas mais saudáveis tenham tendência para se tornarem vegetarianas, ao contrário das outras? Todas estas questões têm de ser consideradas; as respostas não são, à partida, óbvias. Os argumentos também são essenciais por outra razão. Uma vez chegados a uma conclusão bem apoiada por razões, os argumentos são a maneira pela qual a explicamos

38

1. O que é a filosofia? Disciplinas e problemas da filosofia

e defendemos. Um bom argumento não se limita a repetir as conclusões. Em vez disso, oferece razões e dados para que as outras pessoas possam formar a sua própria opinião. Se o leitor ficar convencido que devemos realmente mudar a forma como criamos e usamos os animais, por exemplo, terá de utilizar argumentos para explicar como chegou a essa conclusão: é assim que convencerá as outras pessoas. Ofereça as razões e os dados que o convenceram a si. Ter opiniões fortes não é um erro. O erro é não ter mais nada. As regras para argumentar não são, pois, arbitrárias: elas têm um objetivo específico. Mas os estudantes (como outros escritores) nem sempre compreendem qual é o objetivo quando pela primeira vez lhes pedem para escrever um ensaio argumentativo — e se não se compreende o objetivo do que é pedido, é improvável que o façamos bem. Muitos estudantes, quando lhes pedem que argumentem a favor dos seus pontos de vista acerca de um qualquer assunto, escrevem declarações intrincadas dos seus pontos de vista, mas não oferecem verdadeiramente nenhumas razões para pensar que os seus pontos de vista são corretos. Escrevem um ensaio, mas não escrevem um ensaio argumentativo. Para escrever um bom ensaio argumentativo, o estudante tem de usar argumentos como um meio de investigação e como uma maneira de explicar e defender as suas conclusões. Para se preparar para o ensaio, o estudante tem de explorar os argumentos que existem para os pontos de vista opostos; é necessário depois escrever o próprio ensaio como um argumento, defendendo as suas conclusões com argumentos e avaliando criticamente alguns dos argumentos dos pontos de vista opostos. É verdade que foi Vasco da Gama que descobriu o caminho marítimo para a Índia, mas quais foram verdadeiramente as causas da política expansionista? Sim, é verdade que Eça de Queirós escreveu Os Maias, mas qual é o significado do romance? Há razões favoráveis a diferentes respostas. Aos estudantes pede-se que aprendam a pensar por si próprios, que formem as suas próprias opiniões de forma responsável. A habilidade para defender as suas opiniões é um sinal dessa capacidade, e é por isso que os ensaios argumentativos são tão importantes. Adaptado de: A arte de argumentar, Gradiva, pp. 13-16

Atividades 1. Explique o que se entende por argumentação. 2. Anthony Weston defende a ideia de que os argumentos, longe de serem inúteis, são essenciais. Exponha as razões em que o autor se baseia.

39

Ficha de avaliação formativa 2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico 1. O principal objetivo da argumentação é [A] convencer os outros de que temos razão. [B] justificar racionalmente a verdade ou falsidade de uma afirmação. [C] justificar que somos melhores do que o nosso oponente. [D] convencer o nosso oponente de que ele está errado. 2. Justificar racionalmente uma afirmação significa [A] dar a volta ao nosso oponente com um discurso bonito e cheio de palavras difíceis. [B] apresentar factos que provem o que dizemos. [C] apresentar razões em que podemos basear-nos para chegar à conclusão de que o que afirmamos é verdade. [D] repetir o nosso ponto de vista as vezes necessárias para o nosso opositor se cansar e desistir. 3. Os argumentos [A] são raciocínios porque as razões apresentadas permitem-nos chegar à conclusão que queremos justificar. [B] não são raciocínios porque nem sempre as razões que apresentamos são corretas ou verdadeiras. [C] são raciocínios porque argumentar dá-nos a prova de que o que afirmamos não pode ser falso. [D] não são raciocínios porque a verdade vem dos factos e não do nosso modo de pensar. 4. Os elementos de um argumento são [A] as premissas e as razões. [B] as frases e as afirmações. [C] a conclusão e as afirmações. [D] as premissas e a conclusão. 5. As premissas dão-nos [A] a conclusão do argumento. [B] as razões que apoiam a conclusão do argumento. [C] Todas as respostas anteriores. [D] Nenhuma das respostas anteriores.

40

6. A conclusão é [A] a razão em que o argumento se baseia. [B] a afirmação que o argumento pretende justificar. [C] Todas as respostas anteriores. [D] Nenhuma das respostas anteriores. 7. Um argumento pode ter [A] duas ou três premissas e uma conclusão. [B] duas conclusões e uma premissa. [C] várias premissas e várias conclusões. [D] várias premissas e uma conclusão. 8. Um argumento [A] pode ter várias premissas, porque podemos ter várias razões para afirmar a conclusão. [B] não pode ter mais do que duas ou três premissas, porque menos é melhor do que mais. [C] pode ter várias conclusões, porque pessoas diferentes podem tirar várias conclusões com base nas mesmas premissas. [D] não pode ter mais do que duas ou três premissas, porque em Filosofia é assim. 9. Num bom argumento [A] as premissas não conseguem justificar a conclusão por não serem todas verdadeiras. [B] as premissas deverão ser todas verdadeiras. [C] há uma maioria de razões verdadeiras, embora nem todas tenham de o ser. [D] as premissas falsas também justificam a conclusão. 10. Num mau argumento [A] pelo menos uma das premissas é falsa e, por isso, não serve de justificação à conclusão. [B] todas as premissas têm de ser falsas. [C] a maioria das premissas tem de ser falsa. [D] ter premissas falsas não é uma razão para rejeitar um argumento.

NOTA: As soluções, assinaladas com

, são exclusivas do manual do professor.

11. Um argumento é válido quando [A] as suas premissas são verdadeiras. [B] as suas premissas são falsas. [C] a conclusão não pode ser falsa se as premissas forem verdadeiras. [D] a conclusão não pode ser falsa. 12. Um argumento válido [A] não pode ter premissas falsas. [B] tem de ter premissas maioritariamente verdadeiras. [C] não pode ter premissas verdadeiras. [D] pode ter premissas falsas. 13. Num argumento que se sabe ser válido, se discordarmos da conclusão temos de [A] esquecer o argumento e manter a nossa opinião. [B] mostrar que pelo menos uma das razões propostas em defesa da conclusão é falsa. [C] mostrar que todas as premissas são falsas. [D] pretender teimosamente que o argumento é inválido. 14. Um argumento inválido não é um bom argumento porque [A] mesmo que todas as premissas sejam verdadeiras, a conclusão continua a poder ser falsa. [B] nem todas as premissas são verdadeiras. [C] ainda que algumas das premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. [D] nem todas as premissas são falsas. 15. A validade é uma característica importante num argumento porque [A] os argumentos inválidos não justificam a conclusão. [B] apenas os argumentos válidos têm as premissas verdadeiras. [C] os argumentos inválidos têm todas as premissas falsas. [D] apenas os argumentos válidos têm uma conclusão verdadeira.

16. Um argumento ter premissas verdadeiras [A] é importante, porque apenas neste caso um argumento pode ser válido. [B] não é importante, porque há argumentos válidos com premissas falsas. [C] é importante, porque só a verdade das premissas pode justificar a conclusão. [D] não é importante, porque a conclusão pode ser verdadeira e as premissas falsas. 17. A verdade é uma característica [A] da conclusão dos argumentos. [B] das premissas dos argumentos. [C] das proposições. [D] Nenhuma das respostas anteriores. 18. Um argumento falha o seu objetivo quando [A] as permissas não são verdadeiras. [B] é inválido. [C] contém pelo menos uma premissa falsa ou a conclusão não se segue das premissas. [D] Nenhuma das respostas anteriores. 19. Avaliar um argumento [A] supõe espírito crítico. [B] exige que nos interroguemos sobre a verdade ou a falsidade das premissas. [C] requer assegurarmo-nos da sua validade. [D] Todas as respostas anteriores. 20. A argumentação é importante em filosofia porque [A] sem argumentos não há razões para aceitar uma solução que os filósofos proponham para um problema filosófico em vez de outra solução qualquer, por muito diferente que seja da primeira. [B] sem argumentos, as teorias dos filósofos não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. [C] Todas as respostas anteriores. [D] Nenhuma das respostas anteriores.

41

Esquema global–síntese Mapa de conceitos Esquema global-síntese: Objeto do trabalho filosófico

Problemas

Conjuntos de proposições

Teorias

Objeto do trabalho filosófico

Valor de verdade

Objetivo

Verdadeiro Falso

Justificar o valor de verdade de uma proposição

Premissas Elementos Conclusão

Argumentos Validade Propriedades Bom argumento

Como se discutem os argumentos

42

Válido Premissas verdadeiras

Será o argumento válido? Serão as premissas todas verdadeiras?

Ideias a reter

A

s teorias filosóficas não podem ser justificadas empiricamente; a sua eventual verdade ou falsidade não tem uma base experimental. Mas podem ser justificadas racionalmente, com base em argumentos. Saber o que são os argumentos e quais são as suas propriedades básicas é tão importante para estudar filosofia como saber utilizar um telescópio é importante para um astrónomo. Os argumentos dão-nos as razões em que um filósofo se baseou para concluir que as suas teorias são verdadeiras. Conhecer os argumentos dos filósofos permite-nos saber que raciocínios os levaram às conclusões que nos propõem. Os argumentos são formados por premissas e conclusão.

• As premissas são as razões dadas em defesa da conclusão.

• A conclusão é a proposição que essas razões jus-

2. A dimensão discursiva do trabalho filosófico

M M

as um argumento pode ser válido e ter premissas falsas. Ser válido significa que na hipótese de as premissas serem verdadeiras, a consequência é a conclusão ser verdadeira. as há argumentos válidos com conclusão falsa e premissas falsas (pelo menos uma). Neste caso, o argumento é mau porque as razões apresentadas em defesa da conclusão são falsas. O argumento falha o seu objetivo (não justifica a conclusão) porque razões falsas não justificam coisa alguma.

A

validade refere-se à relação de consequência lógica entre premissas e conclusão. A validade é uma característica dos argumentos. No entanto, os argumentos são formados por proposições, e as proposições são verdadeiras ou falsas. Mas um argumento ser válido ou inválido não é a mesma coisa do que uma proposição ser verdadeira ou falsa.

tificam.

O

objetivo de qualquer argumento é justificar o valor de verdade da proposição que ocorre na conclusão. E isto pode fazer-se com mais ou menos eficácia. Há bons argumentos e maus argumentos. Podemos justificar o que queremos justificar e podemos não conseguir fazê-lo, embora tenhamos tentado.

• Um argumento é bom quando nos permite atingir o nosso objetivo, ou seja, quando nos oferece razões que justificam a conclusão.

• Um argumento é mau quando não consegue justificar a conclusão. Um argumento pode falhar o seu objetivo por dois tipos de razões: (1) é inválido; (2) tem uma premissa falsa (pelo menos).

U

m argumento é inválido quando não é válido; e não é válido quando a verdade das premissas não garante a verdade da conclusão. Quando um argumento é inválido a conclusão não é uma consequência lógica das premissas: daí as premissas poderem ser verdadeiras e a conclusão falsa. Um argumento inválido, embora possa ter premissas verdadeiras, não prova que a conclusão seja verdadeira. Um argumento inválido é apenas um exemplo de mau raciocínio. Giorgio de Chirico, Conversação entre as ruínas, 1927 43

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