Desenvolvimento Includente, Sustentavel, Sustentado

August 11, 2018 | Author: Micherlane S. Almeida | Category: Economic Development, Economics, Sustainability, Neoliberalism, Taxes
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Descrição: Desenvolvimento Includente, Sustentavel, Sustentado...

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Sachs Desenvolvimento inciudent e,

sust ent ável sustentado

Prefácio

debate sobre o desenvolvimento vem sendo travado há algumas décadas, mas rece ntem ente se intensificou, muit as vezes de maneira estimulante, com as drásticas mudanças políticas que o mundo tem sofrido, o forte acirramento das tensões sociais e a incessante degradação do meio ambi ente . Nesse contex to delicado, surge a proposta

de

um

Desenvolvimento

Sustentável como alternativa desejável - e possível - para promover a inclusão social, o bem-estar econômico e a preservação dos recursos natu rais . Essa tese, articulada pelo professor lgnaçy Sachs, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, conquista cada vez mais apoio em todo o planeta. 0 professor Sachs, um profundo conhecedor dos problemas dos países do assim chamado Terceiro Mundo, e particularmente do Brasil, fundou na França o Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo e o Centro Internacional de Pesquisas sobre lVleio Ambiente e Desenvolvimento, para aprofundar e desdobrar essa problemática. Neste livro, ela é abordada, como sempre de maneira fecunda e criativa, com enfoques centrados nas questões do trabalho, da inclusão social, das políticas públicas, da distribuição de renda - todas

elas perpassadas pelo fio condutor da

ética, como eixo de um pensamento que alia o rigor científico a um humanismo veemente. Como diz Celso Furtado, "a leitura destes ensaios de Ignacy Sachs, grande e lúcido conhecedor da problemática

do

desenvolvimento

especificamente,

dos

e,

impasses

mais que

enfrenta o Brasil no momento atual, nos encoraja a trazer essas questões para primeiro plano." Esta obra é publicada em co-edição pela editora Garamond e o Sebrae, no contexto

do

Projeto

Parcerias

com

Editoras, com o qual o Sebrae busca incentivar o setor editorial brasileiro constituído majoritariamente por pequenas e micro empresas - e simultaneamente direcionar suas publicações, em geral de conteúdo técnico, para todo o segmento dos pe qu en os negócios. O Projeto també m visa a estimular o aparecimento de novos autores, especialistas em assuntos de interesse dos empreendedores e das micro e pe qu en as empr esas, con firm and o assim a vocação do Sebrae e seu compromisso com um projeto de desenvolvimento para o Brasil que seja includente, sustentável e sustentado.

Ignacy Sachs

Desenvolvimento

ineludente, sustentável, sustentado

Ga ra mo nd

Copyright © 2004, Ignacy Sachs Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda. Caixa Postal: 16.230 Cep: 22.222-970 Rio de Ja ne ir o - Brasil Telefax: (21) 2504-9211 e-mail: [email protected]

Revisão Cláudia Rubim Editoração Eletrônica Luiz Oliveira Capa Estúdio Garamond sobre "Quadrados com círculos concêntricos", óleo sobre tela de Wladimir Kandinsky

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÂO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

S126d Sachs, Ignacy, 1927Desenvol vimento : inelu dente , sustent ável, sustent ado / Ignacy Sach s. - Rio de Janei ro : Gar amo nd, 200 8 14x2; 1152p. ISBN 85-7617-04-X 1. Desenvolvimento econômico - América Latina. 2. Desenvolvimento social - América Latina. 3. Desenvolvimento sustentável - América Latina. 4. Brasil - Política e governo. 5. Desenvolvimento econômico - Brasil. I. Título. 04- 256 0.

C D D 338.98 CDU 330.34

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, po r qu al qu er meio, seja tota l ou parcial, co ns ti tu i violação da Lei n° 9.61 0/ 98 .

Sumário PREFÁCIO -

Celso Furtado 7

Desenvolvimento e ética - para onde ir na Améric a Latina? 9 Desenvolvimento includente e trabalho decente para todos 25 Da armadilha da pobreza ao desenvolvimento includente em países menos desenvolvidos 69 Inclusão social pelo trabalho decente: oportunidades, obstáculos, políticas públicas 111

PREFÁCIO

A difícil leitura da realidade Celso Furtado Em um futuro que, imagino, não será muito remoto, parecerá simples devane io de intelectual ocio so a refe rênc ia ao que está ocorrendo na América Latina, neste final de era marcado pelo fundamentalismo mercantil. Ningu ém, em sã consciência, acreditará que um país rico como a Argentina, dotado de uma classe política tão sofisticada, haja sido conduzido, em 2003, a uma situação de tamanha ingovernabilidade e de liquidação de seus ativos. E também causará espanto o que está ocorrendo em outros países do continente. Com efeito, como explicar que uma economia com a vitalidade da brasileira, que, nos primeiros três quartos do século XX, beneficiou-se de um ritmo de crescimento superado apenas pelo do Japão, tenha se conformado com uma taxa de decrescimento (crescimento negativo, para usar o eufemismo da moda) no correr deste último decênio? Trata-se de satisfazer a exigências dos que arbitram as taxas de juros escorchantes que estão absorvendo mais que a totalidade da poupança nacional, conforme nos explicam consultores credenciados. E não se admite que as vítimas do sobre- endivi damento apelem para métodos clássicos de autodefesa. Estas são questões que a coletividade tem não somente o direito, mas o dever de formular. A leitura destes ensaios de Ignacy Sachs, 7

grande e lúcido conhecedor da problemática do desenvolvimento e, mais especificamente, dos impasses que enfrenta o Brasil no momento atual, no s encora ja a trazê-las para o primeiro plano. A leitura deste livro muito nos ajudará a evitar a reprodução da fábula platônica, em que os prisioneiros confundiram a realidade com as imagens projetadas na caverna. Rio de Janeiro, junho de 2004

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Desenvolvimento e ética - para onde ir na América Latina? Estratégias de desenvolvimento nacional na era da globalização

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"Você poderia me dizer, por favor, por qual caminho devo seguir agora?", perguntou ela. "Isso depende muito de aonde você quer ir", respondeu o gato. Lewis Carroll, Alice'sAdventures

in Wonderland.

A - Algumas lições da tragédia desenvolvimentista da Argentina De acordo com Marshall Berman, a segunda parte de Fausto, de Goethe, configura uma tragédia desenvolvimentista. Na Argentina de hoje, somos espectadores de uma tragédia desenvolvimentista da vida real, e não de uma tragédia literária. Alguns chegam a atribuir ao FMI o papel de Mefístófeles. Uma avaliação mais realista é a de que o FMI não conspirou para desenca1 Paper apresentado no Encontro do BID sobre Ética e Desenvolvimento (Buenos Aires, 5 e 6 de setembro de 2002). Versão final de 6 de novembro Development and de 2002. Traduzido do srcinal em inglês, intitulado Ethics. Whither Latin America? National Development Strategies in the Globalization Age, por José Augusto Drummond e Glória Maria Vargas.

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dear o desastre. Ele apenas recomendou (ou aplicou, diria alguém) uma receita terrivelmente equivocada de políticas, inspirada por uma visão idealizada de uma globalização simétri ca e mutua mente b enéfi ca e pelo fundamentalismo de mercado - "má economia e má política", para empregar as palavras de Joe Stiglitz (Stiglitz, 2002a e 2002b). 1- A primeira lição da crise desenvolvimentista da Argentina sinaliza a falácia do pretenso fim da história e da ideologia. Tanto a teoria, com base no estudo histórico comparativo de experiências nacionais, quanto a ideologia, baseada em compromissos éticos, continuam a ser importantes. Devemos repensar a teoria do desenvolvimento e as políticas receitadas que derivam dela à luz do que aconteceu na Argentina - o caso mais extremo de "pobr eza na abundância" (Keynes, 2000) e de "desdesenvolvimento" (ou de involução, para usar um termo de Clif for d Geertz) em circunstâncias não bélicas, uma tragédia que resultou de uma mistura letal de dependência excessiva de recursos externos, de confiança cega no Consenso de Washington e de má governança. O colapso da Argentina significa o fim do Consenso de Washington e da versão neoliberal do fundamentalismo de mercado, tanto quanto o colapso do "soci alism o real", na Europ a Oriental, significou o fim do estatismo e da economi a de coman do. Estes dois paradigmas extremos e diametralmente opostos, agora descartados, delimitam o campo de arranjos institucionais intermediários, aseconomias mistas (Kale cki, 1993; Rodr ik, 2000; Sachs , 1998; 1999; 2000; Tsuru, 1994; Wade, 1990) ao qual pertence o futuro. Os mercados são uma instituição entre muitas; a governança democrática oferece o único esquema adequado à sua regulação (Sen, 2000). Como diz Pradab Bardhan, "cada mecanismo de coordenaçã o da sociedade - o Estado , o mercado, a comu nida de - tem as suas próprias falhas, mas cada um tem algumas vantagens únicas que podemos tentar combinar a fim de coordenar a correção das falhas" (Bardhan, 2001).

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2- Para que isso ocorra, é preciso haver um Estado enxuto, limpo, ativo, planejador e capaz de descortinar o futuro. Como José Serra nos lembrou recentemente, a cidadania global continua a ser, por enquanto, uma utopia. O Estado nacional tem três funções principais: a-A articulação de espaços de desenvolvimento, desde o nível local (que deve ser ampliado e fortalecido) ao transnacional (que de ve ser objeto de uma política cautelosa de integração seletiva, subordinada a uma estratégia de desenvolvimento endógeno); b-A promoção de parcerias entre todos os atores interessados, em torno de um acordo negociado de desenvolvimento sustentável; c-A harmonização de metas sociais, ambientais e econômicas, por meio do planejamento estratégico e do gerenciamento cotidiano da economia e da sociedade, buscando um equilíbrio entre diferentes sustentabilidades (soci al, cultur al, ecol ógic a, ambiental, territorial, econômica e política) e as cinco eficiências (de alo caç ão, de ino vaç ão, a ke yne si ana , a socia l e a ecoeficiência). 3- Em muitos países, como a Argentina, a sustentabilidade social é ainda mais frágil e sujeita à disrapção do que a sustentabilidade ambiental. Disto resulta a necessidade de construir a estratég ia endógena de desenvolvimento com base na questão central do trabalho decente para todos (OIT 2001, 2002a e 2002b), por meio do emprego ou do auto-emprego na produção de meios de subsistência. Sem negar a importância da promoção de exportações, é preciso lembrar que nove entre cada dez pessoas em todo o mundo trabalham para o mercado interno (Ferrer, 2002). Portanto, as potencialidades do mercado interno devem ser aproveitadas como o primeiro passo para revigorar as economias em crise. Há três motivos para isso. a-A falta de oportunidades adequadas para que os países periféricos ampliem as suas exportações na atual ordem internacional 6

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(CEPAL 2002; Oxfam 2002; Ricupero, 2002; UNCTAD 2002); "desenvolvimento a partir de dentro" (Sunkel, 1992) continua a ser a única opção viável para a Argentina e para toda a América Latina (ver também Ferrer, 2002); b-O mercado interno pode ser ampliado por meio da promoção da agenda inacabada de transformação rural (reformas agrárias) e do combate à heterogeneidade extrema das economias periféricas, agenda esta que consta nos escritos de Aníbal Pinto. Essas economias podem ser descritas como um arquipélago de empreendimentos altamente produtivos situados num oceano de atividades de baixa produtividade - o tecido conjuntivo do sistema econômico. Uma grande parte do PIB é produzida nesse arquipélago e as pessoas dão braçadas para sobreviver no oceano em volta. Resultados rápidos podem ser obtidos por uma estratégia centrada nas pessoas e no emprego, com a finalidade dupla de aumentar o número dos empregos de baixa produtividade e simultaneamente melhorar a produtividade destes empregos. Como o seu conteúdo de importaçõe s tende a ser muit o baixo, a sua pro moçã o não exige moeda estrangeira, nem financiamento externo. O limite para o crescimento induzido pelo emprego, que não seja inflacionário e que exija poucas importaçõ es, é dado pela elasticidade da of erta de bens de salário produzidos internamente (Kalecki, op.cit.); c-Um mercado interno em expansão fortalece a competitividade sistêmica da economia nacional. 4- Desde que cada crise constitui uma oportunidade, a Argentina, tão bem dotada de recursos humanos e naturais, tem o potencial necessário para dar início hic et nunc a uma ope ração de ajuste info rmada pelo conceito de desenvolvimento sustentável, baseada nos cinco pilares da endogeneidade (oposta ao crescimento mimético): autoconfiança (oposta à dependência), orientação por necessidades (em oposição à orientação pelo mercado), harmonia com a natureza e abertura à mudança institucional (What now?, 1975).

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Daí a importância dos notáveis estudos, diagnósticos e propostas formulados pelos acadêmicos que preparam o Plan Fénix (ver em particular os números especiais de Enoikos, 20 01 , e de

Encrucijadas UBA, 2001).

B - De Aristóteles ao desenvolvimento sustentável 1- Nos seus textos Ethics and Economics, Amar tya Sen (1990) nos lembrou que a economia e a ética estavam interligadas, desde Aristóteles, por duas questões centrais de fundo: • o problema da motivação humana (como deveríamos viver?); • a avaliação das conquistas sociais. No entanto, a outra origem da economia - as questões logísticas, que Sen chama de "abordagem de engenharia" - se tornou preponderante, hoje, a ponto de fazer a ética ser praticamente esquecida. Daí vem a insistência de Sen na reaproximação entre a economia e a ética, sem esquecer da política. O desenvolvimento, distinto do crescimento econômico, cumpre esse requisito, na medida em que os objetivos do desenvolvimento vão bem além da mera multiplicação da riqueza material. O crescimento é uma condição necessária, mas de forma alguma suficiente (muito menos é um objetivo em si mesmo), para se alcançar a meta de uma vida melhor, mais feliz e mais completa para todos. No contexto histórico em que surgiu, a idéia de desenvolvimento impli ca a expiaç ão e a repar ação de desigu aldade s passadas, criando uma conexão capaz de preencher o abismo civilizatório entre as antigas nações metrop olit anas e a sua antiga perif eria colonial, entre as minorias ricas modernizadas e a maioria ainda atrasada e exausta dos trabalhadores pobres. O desenvolvimento traz consigo a promessa de tudo - a modernidade inclusiva propiciada pela mudança estrutural. 6

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2- Outra maneira de encarar o desenvolvimento consiste em reconceituá-lo em termos da apropriação efetiva das três gerações de direitos humanos: • direitos políticos, civis e cívicos; • direi tos eco nôm ico s, s ociai s e cultur ais, entre eles o direi to ao trabalho digno, criticamente importante, por motivos intrínsecos e instrumentais; • direitos coletivos ao mei o ambient e e ao dese nvol vime nto (Sen, 1999; Sengupta, 2001 e 2002). Igualdade, eqüidadedee solidariedade estão, por dizer, em- de butidas no conceito desenvolvimento, comassim conseqüências longo alcance para que o pensamento econômico sobre o desenvolvimento se diferencie do economicismo redutor. Em vez de maximizar o crescimento do PIB, o objetivo maior se torna promover a igualdade e maximizar a vantagem daqueles que vivem nas piores condições, de forma a reduzir a pobreza, fenômeno vergonhoso, porquanto desnecessário, no nosso mundo de abundância. a-O crescimento, mesmo que acelerado, não é sinônimo de desenvolvimento se ele não amplia o emprego, se não reduz a pobreza e se não atenua as desigualdades, conforme enfatizado, desde os anos 1960, por M. Kalecki e Dudley Seers. De acordo com o mesmo raciocínio, não é suficiente promover a eficiência alocativa. O desenvolvimento exige, conforme mencionado, um equilíbrio de sintonia fina entre cinco diferentes dimensões. Ele também exige que se evite a armadilha da competitividade espúria e, em última instância, autodestrutiva, com base na depreciação da força de trabalho e dos recursos naturais. b-A eqüidade, traduzida em termos operacionais, significa o tratamento desigual dispensado aos desiguais, de forma que as regras do jogo favoreçam os participantes mais fracos e incluam 14

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ações afirmativas que os apoiem. Este princípio se aplica tanto à ordem econômica internacional (conforme colocado por Myrdal, em 1956) quanto às economias nacionais. O recente relatório SEB RAE -PN UD sobre o fut uro dos pequenos produtores no Brasil (Sachs, 2002) desenvolve detalhadamente esse ponto. 3- O conceito de desenvolvimento sustentável acrescenta uma outra dimensão - a sustentabilidade ambiental - à dimensão da sustentabilidade social. Ela é baseada no duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. Ela nos compele a trabalhar com escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional. Ela nos impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras, eliminando o crescimento selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais. Outras estratégias, de curto prazo, levam ao crescimento ambientalmente destrutivo, mas socialmente benéfico, ou ao crescimento ambientalmente benéfico, mas socialmente destrutivo. Os cinco pilares do desenvolvimento sustentável são: a-Social, fundamental por motivos tanto intrínsecos quanto instrumentais, por causa da perspectiva de disrupção social que paira de forma ameaçadora sobre muitos lugares problemáticos do nosso planeta; b-Ambiental, com as suas duas dimensões (os sistemas de sustentação da vida como provedores de recursos e como "recipientes" para a disposição de resíduos); c-Territorial, relacionado à distribuição espacial dos recursos, das populações e das atividades; d-Econômico, sendo a viabilidade econômica a condido sine qua non para que as coisas aconteçam; 6

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e-Político, a governança democrática é um valor fundador e um instrumento necessário para fazer as coisas acontecerem; a liberdade faz toda a diferença. 2 4- Para se progredir simultaneamente nessas cinco dimensões, muita coisa tem que ocorrer, de fato. A reunião de Joanesburgo foi uma oportunidade perdida para deslanchar uma transição planetária para o desenvolvimento sustentável, cujo conteúdo seria: a-Estratégias nacionais diferenciadas, mas complementares, no Norte (mudando os padrões de consumo e os estilos de vida, reduzindo a dependência quanto a combustíveis de srcem fóssil e diminuindo o tamanho da "pegada" da minoria rica); b-No Sul, estratégias de desenvolvimento endógenas e inclusivas (em vez do transplante de modelos do Norte), propiciando um salto para uma civilização moderna, sustentável, com base na biomassa, especialmente adequada aos países tropicais; c-Um acordo Norte/Sul a respeito do desenvolvimento sustentável, aumentando substancialmente o fluxo real de recursos do Norte para o Sul (por meio da ajuda e, mais ainda, do comércio justo), estimulando simultaneamente as economias em crise do Norte; d-Um sistema internacional de impostos (sobre energia, pedágios para o uso de oceanos e espaços aéreos, e algum tipo de taxação sobre transações financeiras); e-Gerenciamento das áreas globais de uso comum. Gallopin (2001) está certo quando afirma que a transição para um mundo sustentável exige um progresso simultâneo em todas essas frentes. As perspectivas imediatas são sombrias. Enquanto prosseguem na batalha política na frente global, os países latino2 Amartya Sen, em artigo recente, afirma o seguinte: "Não é nem um pouco óbvio por que o fortalecimento das liberdades democráticas não deva fazer parte das demandas centrais do desenvolvimento sustentável." {International Herald Tribune, 16 de agosto de 20 02 ). 1 6

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americanos, inclusive a Argentina, poderiam também usar o marco conceituai do desenvolvimento sustentável para desenhar as suas estratégias nacionais.

C - Como chegamos lá? 1- Seria um erro isolar as urgências de curto prazo ligadas ao gerenciamento de crises da reflexão sobre a estratégia de médio e longo prazos. Ambas devem ser informadas pela mesma visão de desenvolvimento sustentável que, de um lado, oferece os critérios de avaliação para as políticas propostas e, de outro, median te um amplo debate societal, se desdobra gradualmente num projeto nacional (de acordo com Jean-Paul Sartre, o homem é um projeto; afortiori, uma socie dade hum an a tam bém dev e ser um projeto). 2- A transição para o desenvolvimento sustentável começa com o gerenciamento de crises, que requer uma mudança imediata de paradigma, passando-se do crescimento financiado pelo influxo de recursos externos e pela acumulação de dívida externa para o do crescimento baseado na mobilização de com recursos pondo as pessoas para trabalhar em atividades baixointernos, conteúdo de importações e para aprender a "vivir con lo nuestro". Conforme mencionado, o único limite para o crescimento não inflacio nário e induzido pelo emp rego é dado p ela disponibilidade de bens de salário. Como não é necessário ter moeda estrangeira para o financiamento de obras públicas, outras atividades poderiam ser financiadas por um Imposto de Valor Adicionado altamente progressivo. Portanto, as condições necessárias para se levar à frente o crescimento induzido pelo emprego são: a-capacidade local de planejamento, entendido como a capacidade de identificação de gargalos e de recursos ociosos capazes de superá-los; 6

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b-estímulo à capacidade de mobilizar recursos e iniciativas locais; c-reabilitação do sistema financeiro nacional, para dotá-lo de um mínimo de capacidade de atender às necessidades das empresas e do financiamento de obras públicas, sem excluir o recurso (em casos excepcionais) à quase-moeda e à promoção do escambo; d-uma reforma fiscal que criasse um Imposto de Valor Adicionado progressivo sobre o consumo: haveria isenção para os bens essenciais, mas ele teria forte incidência sobre artigos de luxo, conforme sugerido por Kalecki, no seu texto sobre a índia (op. cit.); os salários baixos seriam subsidiados com este imposto (Bardhan, op. cit.); Cabe traçar aqui uma analogia com as políticas adotadas por alguns países da Europa e da Ásia, na primeira fase da reconstrução posterior à Segunda Guerra Mundial. Operações de auto-salvação eram a única opção para dar início à recuperação. A reconstrução e a industrialização posteriores à guerra começaram exatamente dessa maneira, por meio do crescimento extensivo, com base na gera3 ção de quantidades maciças de empregos de baixa produtividade. 3- Paral elam ente, o esfo rço deve começa r em todos os níveis do local ao nacional tendo em vista a mont age m de uma agen da de médio prazo de criação de empregos. A emergência de conselhos quatripartites de desenvolvimento facilitaria muito essa tarefa, montando o cenário para o processo de negociação entre todos os atores envolvidos - autoridades públicas, trabalhadores, empregadores e o Terceiro Setor (sociedade civil organizada). objetivo supremo da é omelhor empregoforma decente auto-emprego paraO todos - trata-se de e/ou assegurar simultaneamente a sustentabilidade social e o crescimento econômico. Em

3 A transição para o crescimento intensivo, mais tarde, gerou problema s difíceis, que não precisam ser abordados aqui.

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outras palavras, a ênfase deve ser colocada na mudança da distribuição primária de renda, em vez de se persistir com o padrão excludente de crescimento, a ser corrigido ex post por meio de políticas sociais compensatórias financiadas com a redistribuição de uma parcela do PIB. Tal abordagem exige a combinação de várias políticas complementares: a-Explorar todas as oportunidades de crescimento induzido pelo emprego e com conteúdo zero ou baixo de importações, particularmente: • obras públicas; • construção civil, especialmente programas voluntários de construção de casas populares com apoio governamental (casas populares construídas pelo povo); • serviços sociais (países que pagam salários baixos têm uma vantagem comparativa absoluta na produção deste tipo de serviços); • empregos ligados à conservação de energia e de recursos e à reciclagem de materiais (em outras palavras, ao aumento da produtividade dos recursos), à melhor manutenção do estoque existente de infra-estrutur a, equipamentos e prédios, de form a a ampliar o seu ciclo de vida e, dessa forma, poupar o capital necessário à sua reprodução (nos termos de Kalecki, estas são as fontes de crescimento que não exigem investimento). b-Desenhar políticas para consolidar e modernizar a agricultura familiar como parte de uma estratégia para estimular o desenvolvimento rural com base na pluriatividade da população rural, dando um salto na direção de uma civilização moderna baseada na biomassa (biodiversidade-biomassa-biotecnologias); c-Promover ações afirmativas para melhorar a condição de trabalhadores por conta própria e microempresas, para ajudá-los a

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sair da informalidade, e apoiar diversas formas de atividade empresarial compartilhada, com a finalidade de aumentar o poder de barganha e a competitividade dos pequenos produtores (passando da competitividade espúria para a autêntica); criar uma entidade pública - mas não estatal - que atue como um planejador comprometido com os interesses dos pequenos produtores (o SEBRAE é um bom exemplo); d-Estabelecer conexões mutuamente benéficas entre grandes e pequenas empresas (condições justas de subcontratação, terceirização, integração de franquias de agronegócios); e-Usar as compras governamentais para promover as micro e pequenas empresas. "The Small Business Authority" (Agência para as Pequenas Empresas), dos EUA, criou um complexo sistema de preferências para as micro e pequenas empresas; f-Fortalecer as empresas industriais de grande porte e transformálas em atores competitivos em escala global. Obviamente, é preciso uma estratégia dupla; isto nos traz de volta à importância crucial do sistema financeiro nacional, da sua capacidade de investir e de algum tipo de controle sobre o fluxo de moeda estrangeira que entra e sai. 4- A insistência nessa modalidade de recuperação a partir das próprias forças e nas estratégias nacionais para o desenvolvimento sustentável endógeno não deve ser entendida como uma justificativa para negligenciar a questão primordial da inserção na economia global. Ela tem as suas raízes numa crença dupla: • na con fi gur aç ão atual da eco nomi a mund ial e do equil íbrio de poder, os países periféricos não podem agir de forma diferente; • quanto mais esses países tiverem sucesso na sua estratégia endógena, mais forte será o seu poder de barganha para alcançar a inclusão na economia global em termos mais favoráveis 1

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e para renegociar a sua dívida externa em circunstâncias que avaliem de maneira realista a sua capacidade de gerar excedentes de moeda estrangeira. Enquanto suportam os impactos negativos da globalização na sua forma assimétrica atual, os países periféricos deveriam mobilizar as suas capacidades intelectuais e políticas para organizar em todos os foros internacionais, antes de mais nada na ONU, uma intensa campanha a favor da reforma necessária da ordem econômica internacional. A sessão especial da Assembléia Geral da ONU, em 1975, foi um fracasso. As propostas formuladas, naquela ocasião, não são mais aplicáveis. No entanto, a agenda de 1975 continua a ser bem pertinente. Propostas para a reforma das instituições nascidas em Bretton Woods e a adoção do comércio justo provavelmente não nascerão por iniciativa dos países do G-8, satisfeitos com o status quo. Ao contrário, virão do diálogo entre países periféricos e das suas discussões com os setores progressistas da sociedade civil dos países centrais. O processo provavelmente será longo e difícil. No entanto, podemos abrandar o nosso pessimismo ao pensarmos no processo de formação da UNCTAD, há 10 anos, graças à visão e à energia de Raul Prebisch e dos seus colaboradores.

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Desenvolvimento includente e trabalho decente para todos1

Prólogo Ao longo dos último s sessenta anos, o desenv olvimen to tem sido uma poderosa idée-force para o sistema das Naçõe s Unidas, tanto como conceito analítico quanto como ideologia. Assim como o elefante de Joan Robinson - difícil de se definir, porém, fácil de se reconh ecer o desen volvi mento não se presta a ser encap sulad o em fórmulas simples. A sua multidimensionalidade e complexidade explicam o seu caráter fugidio. Como seria de se esperar, o conceito tem evoluído durante os anos, incorporando experiências positivas e negativas, refletindo as mudanças nas configurações políticas e as modas intelectuais. As discussões em torno deste tema contribuíram para o refinamento do conceito, porém contrastam com o sombrio histórico do desenvolvimento existente em muitas partes do mundo. Daí a necessidade de se revisitar a idéia de desenvolvimento, com vistas a torná-lo mais operacional, enquanto se reafirma, mais do que nun1

Artigo preparado para a Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, OIT, Outubro 2002. Traduzido do srcinal Inclusive Development and Decent Work for Ali, por José Augusto Drummond e Glória Maria Vargas.

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ca, a sua centralidade, já que esta idéia está sendo contestada de dois ângulos distintos. Os autodenominados pós-modernos propõem renunciar ao conceito, alegando que o desenvolvimento tem funcionado como uma armadilha ideológica construída para perpetuar as relações assimétricas entre as minorias dominadoras e as maiorias dominadas, dentro de cada país e entre os países. Propõem avançar para um estágio de pós-desenvolvimento, sem explicar claramente o seu conteúdo operacional concreto. Estão certos, por suposto, quando questionam a possibilidade de crescimento indefinido do pr oduto material, dado o caráter finito do nosso planeta. Porém, esta verdade óbvia não diz muito sobre o quê deveríamos fazer nas próximas décadas para superar os dois principais problemas herdados do século XX, apesar do seu progresso científico e técnico sem precedentes: o desemprego em massa e as desigualdades crescentes. Quanto aos fundamentalistas de mercado, eles implicitamente consideram o desenvolvimento como um conceito redundante. O desenvolvimento virá como resultado natural do crescimento econômico, graças ao "efeito cascata" ( trickle down effect). Não há necessidade de uma teoria do desenvolvimento. Basta aplicar a economia moderna, uma disciplina a-histórica e universalmente válida. A teoria do "efeito cascata" seria totalmente inaceitável em termos éticos, mesmo se funcionasse, o que não é o caso. Num mundo de desigualdades abismais, é um absurdo pretender que os ricos devam ficar mais ricos ainda, para que os destituídos possam ser um pouco menos destituídos. Para enfrentar estes dois problemas, precisa-se urgentemente de uma reaproximação da ética, da economia e da política (A. K. Sen, 1987). Como escreveu Gandhi, "As economias que ignoram considerações morais e sentimentais são como bonecos de cera que, mes26

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mo tendo aparência de vida, ainda carecem de vida real" (M. K. Gandhi, Young índia, 27/10/1921). Na medida em que as desigualdades morais 2 resultam da organização social, elas só podem ser superadas mediante atos de voluntarismo responsável - políticas públicas que promovam a necessária transformação institucional e ações afirmativas em favor dos segmentos mais fracos e silenciosos da nação, a maioria trabalhadora desprovida de oportunidades de trabalho e meios de vida decentes, e condena da a desperdi çar a vida na luta diária pela sobrevivência. Como observou Ricupero (2002, p. 64), as economias não se desenvolvem simplesmente porque existem. O desenvolvimento econômico tem sido uma exceção histórica e não a regra. Não acontece espontaneamente como conseqüência do jogo livre das forças de mercado. Os mercados são apenas uma das muitas instituições que participam do processo de desenvolvimento. Sendo míopes por natureza, socialmente insensíveis e, segundo G. Soros (2002), amorais, a sua regulação - melhor seria dizer a sua reregulação - é urgente, tendo em vista o resultado negativo da aplicação das prescrições neoliberais, resumidas pelo Consenso de Washington. De certa forma, o Consenso de Washington atuou como uma contra-reforma direcionada contra o capitalismo reformado, que atingiu a sua maturidade após a Segunda Guerra Mundial, inspirado 2

Para uma distinção entre desigualdades naturais, ver Jean-Jacques Rousseau: "Je conçois dans 1'e spèce hu mai ne deux sortes d'inégalités; l' une q ue j'a ppell e naturelle, et qui consiste dans la différence des âges, de la santé, des forces du co rps, et de ses qualit és de 1'esprit, ou de 1'âme, 1'autre q u o n pe ut appeler inégalité morale, ou politique, parce qu'elle dépend d'une sorte de convention, et quelle est établie, ou du moins autorisée par le consentement des hommes. Celle-ci consiste dans les différents privilèges, dont quelques uns jouissent, au préjudice des autres, comme d'être plus riches, plus honores, plus puissants queux, ou mê me de s'en faire obéir" (p. 77).

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nos escritos de Keynes e Beverídge e nas experiências do NewDeal americano. O capitalismo reformado foi, assim, construído com o propósito de exorcizar as terríveis lembranças da Grande Depressão, com base nos conceitos de pleno emprego, Estado de Bem-Estar e planejamento. Ele proporcionou também uma alternativa ao "socialismo real" do bloco soviético, que, naquela época, tinha credibilidade entre segmentos importantes da opinião pública, devido ao seu sucesso em mobilizar toda a força de trabalho disponível para o crescimento econômico extensivo e rápido e para a industrialização. 3 Os trinta anos dourados do capitalismo 4 (1945-1975) coincidiram com a Guerra Fria entre os dois velhos blocos e com a corrida armamentista. Esta situação frustrou os esforços das Nações Unidas de construir uma ordem internacional mais eqúitativa, porém, ao mesmo tempo, criou condições favoráveis para que os países em desenvolvimento se envolvessem em políticas de não-alinhamento e tirassem proveito das melhores experiências dos dois blocos competidores. 5 A situação mudou durante os anos 70. Aquanto invasão da Checoslovaquia, emradicalmente 1968, apagou as últimas ilusões à capacidade do bloco soviético de construir uma versão do "socialism o com rost o hum ano ". Os capitalistas per der am assim part e do seu medo e ficaram mais arrogantes. A crise de energia e suas conseqüências foram usadas para desacreditar o keynesianismo e logo

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Conforme colocado por Jean Ziegler (2002, p. 33), os partidos socialdemocratas ocidentais e os seus sindicatos transformaram em vantagens sociais para seus clientes o medo capitalista da expansão do comunismo (Les nouveaux mêtres du monde et ceux qui leur résistent, Fayard, Paris, 2002, p. 33).

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"Les trente années glorieuses", segundo Jean Fourastier.

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Este foi certamente o caso da índia durante o governo de Nehru, a tentativa mais importante de definição de uma terceira via.

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depois a contra-reforma neoliberal ganhou força, com as eleições de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A queda do muro de Berlim marcou o fim do socialismo real como paradigma de desenvolvimento e abriu o cenário para o evangel ho neoli beral , que dominou a cena até o final dos anos 90. Porém, o paradigma neoliberal não cumpriu as suas promessas. A tragédia do desenvolvimento da Argentina 6 pode ser considerada como o fim do Consenso de Washington, se não como um conceito ideológico - as ideologias alienadoras custam a morrer - pelo menos como programa pragmático. Não precisamos aqui entrar na polêmica sobre o papel do FMI (ver, em particular, J. Stiglitz, 2002). Reparemos simplesmente que os únicos países em desenvolvimento que se deram razoavelmente bem, na década passada, foram precisamente aqueles que se recusaram a aplicar à la lettre as prescrições contidas no Consenso de Washington. Assim, estamos sentados em cima das ruínas de dois paradigmas. Chegou o momento de colocar o evangelho neoliberal entre parên7

teses, como um interlúdio infeliz, e de revisitar a breve história da idéia do desenvolvimento, rica em apreciações e recomendações muito pertinentes para a nossa discussão.

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Marshall Berman analisou a segunda parte de Faustus, de Goethe, como a primeira tragédia do desenv olv im ent o. Por analogia, podemos falar da tragédia de desenvolvimento argentino, desta vez verdadeira, e não produto da ficção literária. Usa-se esta palavra em analogia com a observação de Gunnar Myrdal de que o capitalismo de livre mercado foi apenas um interlúdio entre dois períodos marcados pelo intervencionismo do Estado: o mercantilismo e, depois, o capitalismo reformado.

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Desenvolvimento: um conceito fugidio e em evolução Está por ser escrita uma história abrangente da idéia de desenvolvimento. 8 Limitar-me-ei neste espaço a umas poucas observações, enfatizando alguns pontos relevantes para a presente discussão. 1. Reco rdem os qu e a refl exão sobre o desenvol viment o, tal c omo se conhece hoje, começou nos anos 40, no contexto da preparação dos anteprojetos para a reconstrução da periferia devastada da Europa no pós-guerra. Refugiados antifascistas húngaros, poloneses e alemães, residentes na Grã-Bretanha, foram mobilizados para esta tarefa, na suposição de que o Leste Europeu nã o cairia sob a infl uênci a soviética - a Conferência de Yalta não tinha acontecido ainda. Os problemas que estes países enfrentavam eram similares aos de outras periferias: estrutura fundiária anacrônica, agricultura campo n esa atrasada, condições adversas de co mé rci o para as commodities primária s, industr ializ ação incipiente , desem prego e subemprego crônicos, e necessidade de um Estado desenvolvimentista ativo para enfrentar o desafio de estabelecer regimes democráticos capazes simultaneamente de conduzir a reconstrução do pós-guerra e de superar o atraso social e econômico. Em grande medida, o trabalho da primeira geração de economistas do desenvolvimento foi inspirado na cultura econômica dominante da época, que pregava a prioridade do pleno emprego, a importância do Esta8

Um primeiro volume poderia tratar das discussões precursoras dos séculos XIX e XX sobre desenvolvimento avant la lettre, na Rússia, Índia, Japão, China e América Latina, bem como das contribuições dos autores dos países periféricos da Europa. Um seg undo volume deveria focalizar os pla no s de reco nstru ção pa ra a Europa escritos na Grã-Bretanha, principalmente por refu gi ado s de países sob oc up ação nazista, muitos dos quais subseqüentemente ingressaram nas Nações Unidas como a primeira geração de funci oná rio s. U m terceir o vol ume seri a necessário para avaliar a importante contribuição das diferentes agências das Nações Unidas e de outras agências, com ênfase especial nas comissões regionais. Um quarto e último volume concentrar-se-ia no trabalho acadêmico, enfatizando as importantes contribuições de pensadores de países em desenvolvimento.

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do de Bem-Estar, a necess idade de plan ejame nto 9 e a inter vençã o do Estado nos assuntos econômicos para corrigir a miopia e a insensibilidade social dos mercados. Passado meio século, algumas das preocupações srcinais desses planejadores continuam válidas. Como lidar com a heteroge neidade estrutural, tanto econôm ica quanto social? Uma das muitas definições do subdesenvolvimento insiste na impossibilidade de se empregar toda a força de trabalho disponível mediante a adoção de tecnologias avançadas, por falta de capital suficiente. Daí a necessidade de se achar um equilíbrio entre as metas de modernização e industrialização, de uma parte, e, de outra, a promoção do pleno emprego e/ou o auto-emprego sem perder de vista a necessidade de aumentar continuamente a produtividade do trabalho, em última instância, a fonte de progresso econômico. Mesmo hoje, as economias em desenvolvimento ainda podem ser descritas como arquipélagos de empresas modernas com alta produtividade do trabalho, imersas no oceano de atividades de produtividade baixa ou muito ba ixa, que fo rm am o tecido intersticial do 10

sistema econômico. A maior parte do PIB vem do arquipélago. A maior parte das pessoas nadam no oceano, tentando sobreviver. Os padrões de crescimento econômico devem ser avaliados neste contexto. O crescimento rápido impulsionado por empresas modernas não reduzirá por si só a heterogeneidade inicial. Pelo contrário, tende a concentrar a riqueza e a renda nas mãos dos poucos felizardos que controlam o arquipélago, relegando ao oceano todos aqueles que se tornam redundantes, devido à substituição do trabalho pelo capital. Os autores latino-america9

Von Hayek, por causa de sua desco nfian ça qu an to ao plane jam ent o, ficou numa situação de dissidente solitário.

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Esta descrição difere dos dois modelos setoriais das economias formal e inf orm al. A O I T está certa qu and o afi rma que as atividades pode m ser formais ou informais, porém não representam setores separados.

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nos estavam certos ao denunciar este padrão de crescimento como concentrador e excludente. Daí a necessidade de se ter uma estratégia dupla, na qual também se dê atenção às oportunidades para o que pode ser chamado de crescimento puxado pelo emprego, 11 um assunto do qual falaremos em maior detalhe mais adiante. 2. A negociação política feita pelos aliados em Yalta colocou os países do Leste Europeu na trilha do "socialismo real", relativamente bem-sucedido, como foi dito, em promover um crescimento extensivo e acelerado durante as primeiras duas décadas do pós-guerra. Toda a força de trabalho disponível foi utilizada; embora mal paga, ficou protegida contra a maldição do desemprego e se beneficiou de um sistema razoavelmente elaborado de proteção social. As dificuldades que levaram, em última instância, ao colapso do sistema, ainda estavam por vir: a incapacidade de passar de um sistema de crescimento extensivo para um crescimento intensivo guiado pela tecnologia e pelo consumo em massa, a impossibilidade de administrar eficientemente, sob regimes autoritários, economias e sociedades complexas, a repressão manu militari às tenta tivas de se re fo rm ar inte rnam ente o sistema. A credibilidade do socialismo real perdeu-se definitivamente com a invasão a Praga pelos tanques soviéticos, em 1968. As reformas de Gorbatchev vieram tarde demais. A queda do muro de Berlim marcou o fim do paradigma de desenvolvimento não capitalista, conhecido como socialismo real, e a vitória da coalizão liderada pelos Estados Unidos na guerra fria contra o bloco soviético. O fim do socialismo real foi certamente um marco importante na breve história da idéia de desenvolvimento. Alguns se apressa-

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A esse respeito, ver Sachs (1999), que trata da teoria do desenvolvimento de Kalecki ( Monde s en développement).

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ram em ver nele a desq ualif icaçã o fina l do conceito de desenvo lvimento não capitalista, chegando até a proclamar o fim da história. Tal conclusão não tem fundamento. Como conceito histórico e social, o desenvolvimento é por natureza aberto, o que o diferencia da noção de desenvolvimento orgânico. Outras tentativas de transcender o capitalismo podem surgir, na China ou em qualquer outro lugar, e elas não precisam ter o mesmo destino do socialismo real. É ainda mais absurdo descartar o planejamento como tal, por causa do fracasso do planejamento autoritário, centralizado e abrangente do tipo soviético. As suas duas principais fraquezas foram a sua base técnica inapropriada - estávamos ainda na época pré-informática - e, mais importante, a falta de feedbacks da sociedade, por causa da natureza não democrática do regime. A administração de economias complexas requer transparência e responsabilidade, circulação de informações exatas e liberdade de discussão, bem como uma mídia plural. Em contraste com o tipo de planejamento soviético, o planejamento moderno é essencialmente participativo e dialógico, e exige uma negociação quatripartite entre os atores envolvidos no processo de desenvolvimento, levando a arranjos contratuais entre as autoridades públicas, as empresas, as organizações de trabalhadores e a sociedade civil organizada. Certamente, este tipo de planejamento tem um futuro brilhante pela frente. 3. A maior parte da reflexão sobre desenvolvimento realizado nas Nações Unidas ou induzido por esta organização tinha como base implícita o paradigma do capitalismo reformado, reconhecendo, no entanto, uma diferença básica entre o funcionamento das economias desenvolvidas e das menos desenvolvidas. As primeiras são essencialmente limitadas pela demanda, enquanto que os países menos desenvolvidos compartilhavam com os países do socialismo real a característica de serem limitados pela oferta e, portanto, de-

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penderem do investimento dirigido à expansão das capacidades produtivas. Assim, concentraram-se diferentes modalidades e aspectos do desenvolvimento em economias periféricas, estruturalmente heterogêneas, com predominância de mercados capitalistas e mistas. Cada adjetivação exige uma explanação: • perif érica s: opostas às econom ias capitalis tas centrais, às quais estão vinculadas por relações assimétricas, 12 analisadas por Raul Prebisch no seu célebre e ainda pertinente modelo de centroperiferia (ver, em particular, Beilschowsky, R., 2000, e Ricupero, R., 2002); • estruturalmente heterogêneas em vários sentidos: apresentam um contraste forte entre enclaves urbanos modernos e economias rurais mais ou menos atrasadas, enormes disparidades sociais, culturais e de estil o de vida entre as elites ocident aliza das e o grosso da população, padrões concentrados de distribuição de renda e de riqueza; • de merc ado predomi nant eme nte capit alista: já que o setor c apitalista da economia, mesmo coexistindo com outros modelos de produção pré-capitalistas ou protocapitalistas, é o mais dinâmico; • economias mistas, por terem diferentes configurações de seus setores privado e público e, pelo menos em alguns casos, um Estado desenvolvimentista enxuto, limpo e próativo.

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François Perroux definiu dominação como uma relação assimétrica e irreversível.

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Box 1 - Boa sociedade, meios de existência viáveis, trabalho decente.

O desenvolvimento pretende habilitar cada ser humano a manifestar potencialidades, talentos e imaginação, na procura da auto-realização e da felicidade, mediante empreendimentos individuais e coletivos, numa combinação de trabalho autônomo e heterônomo e de tempo dedicado a atividades não produtivas. A boa sociedade é aquela que maximiza essas oportunidades, enquanto cria, simultaneamente, um ambiente de convivência e, em última instância, condições para a produção de meios de existência (livelihoods) viáveis, suprindo as necessidades materiais básicas da vida - comida, abrigo, roupas - numa variedade deformas e de cenários-famílias, parentela, redes, comunidades. A produção de meios de subsistência depende da combinação dos seguintes elementos: • Acesso a ativos requeridos para a produção de bens e serviços para autoconsumo, no âmbito da economia doméstica; • Acesso ao treinamento, técnicas e ativos necessários para a produção de bens e serviços orientados para o mercado mediante auto-emprego; Disponibilidade de trabalho decente, de tempo integral ou parcial, para os membros da família que o desejam; • Acesso universal aos serviços públicos; • Acesso ã habitação autoconstruída, alugada ou adquirida mediante esquemas subsidiados de moradia popular; • Disponibilidade de tempo livre para atividades não produtivas. •

Os aspectos qualitativos são essenciais. As formas viáveis de produção de meios de existência não podem se apoiar em esforços excessivos e extenuantes dos seus produtores, em empregos mal pagos e realizados em condições insalubres, na provisão inadequada de serviços públicos e em padrões subumanos de habitação. 6

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Dois avanços conceituais importantes devem ser enfatizados: a- Desde os anos 70, a atenção dada à problemática ambiental levou a uma ampla reconceitualização do desenvolvimento, em termos de ecodesenvolvimento, recentemente renomeado desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável obedece ao duplo imperativo ético da solidariedade com as gerações presentes e futuras, e exige a explicitação de critérios de sustentabilidades social e ambiental e de viabilidade econômica. Estritamente falando, apenas as soluções que considerem estes três elementos, isto é, que promovam o crescimento econômico com impactos positivos em termos sociais e ambientais, merecem a denominação de desenvolvimento, como se pode ver na tabela a seguir:

Tabela 1: Padrões de Crescimento Econômico impactos sociai s

impactos ambientais

1- desenvolvimento

+

+

2- selvagem

-

-

+

-

-

+

3- soc ial men te b eni gno 4- ambientalmente benigno

Durante as três décadas que separam a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente - a de 1972, realizada em Estocolmo, e a Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, em 2002 -, o conceito de desenvolvimento sustentável foi refinado, levando a importantes avanços epistemológicos. Para os propósitos deste texto, é suficiente enfatizar que a sustentabilidade social é um componente essencial deste conceito. Com relação aos critérios de sustentabilidade social, podemos re^ toma r a pos içã o de Dudl ey Seers, para o qual o cres cim ento eco nô/ mico, mes mo quando rápido, não traz desenv olvimen to, a meno s que gere emprego e contribua para a redução da pobreza e das desigual-

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dades. Kalecki e Seers estiveram entre os primeiros economistas a assinalar, nos anos 60, a necessidade de se analisar o desenvolvimento econômico não só em termos de crescimento do PIB, mas também, e talvez em primeiro lugar, em termos do emprego. b- A segunda e talvez mais importante reconceituação foi fortemen te influ enci ada pelos trabalhos de A. K. Sen (1999). O desen- e* volvimento pode ser redefinido em termos da universalização e do exercício efetivo de todos os direitos humanos: políticos, civis e cívicos; econômicos, sociais e culturais; bem como direitos coletivos ao desenvolvimento, ao ambiente etc. Embora os direitos sejam indivisíveis, deve ser dado um status especial ao direito ao trabalho, visto o seu duplo valor, intrínseco, mas também instrumental, já que o trabalho decente abre o caminho para o exercício de vários outros direitos. 4. Podemos resumir a evolução da idéia de desenvolvimento, no último meio século, apontando para a sua complexificação, representada pela adição de sucessivos adjetivos - econômico, social, político, cultural, sustentável - e, o que é mais importante, pelas novas problemáticas. Mesmo assim, carecemos de um paradigma convincente capaz de lidar com os dois problemas aos quais já nos referimos, isto é, desemprego maciço/subemprego e desigualdade crescente. Segundo a OIT, um terço da força de trabalho está desempregado ou subempregado e os sucessivos relatórios do PNUD sobre o desenvolvimento humano documentam a brecha crescente entre a renda das minorias ricas e as maiorias pobres. A distribuição da riqueza é ainda mais desequilibrada. Vivemos em um mundo crescentemente fragmentado, a despeito de toda a fala sobre a globalização. E mais, as nossas economias se caracterizam por um alto grau de desperdício. De todas as formas de desperdício, a pior de todas é aquela que destrói vidas humanas por meio do déficit de oportunidades de trabalho decente. 6

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Isso não quer dizer que as vítimas do desenvolvimento desigual não trabalhem. Como observou Joan Robinson, elas são pobres demais par a po der em se dar ao luxo de não trabalh ar. Ao m esm o tempo, quando desempregadas, descobrem que pior que ser explorado é não ser sequer explorado. De tal forma, e em sentido estrito, a maioria pobre não está totalmente excluída da esfera econômica. O sociólogo brasileiro José de Souza Martins (2002) tem razão quando fala de formas perversas, anormais e desiguais de inclusão social. 13 Podemos dizer, no entanto, que a maioria pobre está praticamente excluída do processo de desenvolvimento, entendido como a apropriação efetiva da totalidade de direitos humanos (ver, em particular, Kothari, 1993). Sob algumas circunstâncias, a inclusão justa se converte em requisito central para o desenvolvimento. Se o adjetivo deve colocar atenção no aspecto mais essencial do paradigma de desenvolvimento, podemos falar então de desenvolvimento ineludente.

Definindo a inclusão justa

A maneira natural de definir o desenvolvimento ineludente é por oposição ao padrão de crescimento perverso, conhecido, como já se mencionou, na bibliografia latino-americana como "excludente" (do mercado de consumo) e "concentrador" (de renda e riqueza). Dois outros aspectos do crescimento excludente são: • mercados de trabalho fortemente segmentados, que mantêm uma grande parcela da maioria trabalhadora confinada a atividades informais, ou condenada a extrair a sua subsistência precariamente da agricultura familiar de pequena escala, sem quase nenhum acesso à proteção social (ver Rodriguez, O., 13

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Ver também a sua entrevista na de 2002.

Folha de São Paulo, "Mais!", 15 de setembro

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1998, e Revista Latinoamericana de Estúdios dei Trabajo, 1999); • fra ca partic ipação na vida política, ou completa exc lusão dela, de grandes setores da população, pouco instruída, suborganizada e absorvida na luta diária pela sobrevivência, sendo a s mulhe res, sujeitas à discri minaç ão de gênero, as mais fortemente atingidas. O desenvolvimento includente requer, acima de tudo, a garantia democracia é do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos. A um valor verda deir ament e fundam ent al (A. K. Sen) e garant e também transparência e ados responsabilização ( accountability No ) necessárias aao funcionamento processos de desenvolvimento. entanto, existe uma grande distância entre a democracia representativa e ademocracia direta, que cria melhore s condições para o debate dos assuntos de interesse público. Todos os cidadãos devem ter acesso, em igualdade de condições, a programas de assistência para deficie ntes, para mães e filhos, para idosos, voltados para a compensação das desigualdades naturais ou físicas. Políticas sociais compensa tórias finan ciada s pela redistribu ição de renda dev eriam ir mais l onge e incluir subsídios ao desemprego, uma tarefa praticamente impossível naqueles países onde apenas uma pequena minoria está empregada no setor organizado e onde o desemprego aberto é bem menos significativo que o subemprego. O conjunto da população também deveria ter iguais oportunidades de acesso a serviços públicos, tais como educação, proteção à saúde e moradia. Seguem-se alguns comentários a este respeito. A educação é essencial para o desenvol viment o, pelo seu valor intrínseco, na medida em que contribui para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão dos direitos humanos, aumentando a adaptabilidade e o sentido de autonomia, bem como a autoconfiança e a auto-estima. É claro que tem também um valor 6

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instrumental com respeito à empregabilidade. Porém, a educação é condição necessária, mas não suficiente, para se ter acesso a um trabalho decente. Deve vir junto com um pacote de políticas de desenvolvimento, mesmo que alguns prefiram apresentá-la como uma panacéia. Um dos paradoxos que prevalecem hoje é o desemprego maciço de adultos existindo lado a lado com o intolerável fenômeno do trabalho infantil. Para poder colocar todas as crianças na escola é necessário distribuir bolsas para aqueles oriundos de famílias pobres, cuja sobrevivência depende do dinheiro que levam para a casa.14

serviços de saúde, Mesmo sendo muito importante o acesso aos eles fazem parte de um objetivo mais amplo, que é o de melhorar a saúde das pessoas. Isto depende de uma alimentação adequada (segurança alimentar), do acesso à água limpa, da melhoria das condições de moradia e de trabalho, de uma melhor educação e de medidas preventivas, como vacinação. Existe um debate a respeito de a moradia ser ou não um se rviço público. Tratá-la desta forma, nos países do antigo bloco soviético, não resultados satisfatórios. No entanto, a provisão de moradiatrouxe decente para todos, preenchendo, desta forma, uma necessidade básica, é certamente um enorme desafio para o desenvolvimento includente. Daí a importância de políticas de moradias populares e, em particular, de esquemas baseados na autoconstrução assistida, nos quais as autoridades públicas se juntam aos esforços dos futuros moradores, cujo trabalho se constitui numa forma não monetária de poupança. Todos os qua tro itens se serviç os públ ico s citados acim a programas de assistência, a educação, a saúde, e a moradia - exigem financiamento público, por meio da redistribuição de uma

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O programa pioneiro "Bolsa Escola", introduzido por Cristovam Buarque, em Brasília, merece todo o destaque neste contexto.

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parcela do PIB, independentemente da forma como sejam administrados: seja diretamente pela administração pública, por instituições que pertençam ao terceiro setor da sociedade civil organizada ou até por empresas privadas. A questão de se as primeiras três devem permanecer completamente na esfera pública, devido ao seu valor para o bem-estar social, é matéria de acaloradas discussões ideológicas. Os defensores do paradigma neoliberal propõem, em seu lugar, soluções de mercado, no que são auxiliados pelo fato de que, em muitos países, a atuação do setor público tem sido um tanto falha. 15 Os limites entre as esferas pública e privada, assim como a definição dos bens públicos, são outros assuntos a serem discutidos. Mais importante ainda é fazer uma distinção entre as políticas compensatórias financiadas pela redistribuição de renda mediante o sistema fiscal e as políticas de emprego que mudam a distribuição de renda primária. Ambas são necessárias, porém as primeiras são de natureza puramente social e requerem despesas contínuas, ano após ano, enquanto que as segundas, mediante a criação de oportunidades de trabalho decente, geram renda e proporcionam uma solução duradoura ao problema social. Ceteris paribus, a geração de emprego deve ser preferida às políticas assistencialistas compensatórias, se não por outra razão, porque as segundas nunca proporcionam a dignidade que provém do emprego. 16 A economia capitalista é louvada por sua inigualável eficiência na produção de bens (riquezas), porém ela também se sobressai por sua capacidade de produzir males sociais e ambientais. Para 15 16

A este respeito, ver o prólogo de Kannan K. P. e Pillai N. V. (2002). Segundo Há-Joon Chang (2002), J. Stiglitz apóia esta opinião e considera que se exige mais ênfase para que o pleno emprego e a maior participação do emprego sejam considerados como partes essenciais de uma sociedade genuinamente democrática.

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os ideólogos do fundamentalismo de mercado, estes males são o preço inevitável do progresso econômico. Só podem ser mitigados e compensados mediante a produção de bens públicos, tais como a redução da pobreza ou a proteção do meio ambiente. Em outras palavras, o desemprego maciço, o subemprego e as desigualdades sociais são inerentes ao sistema capitalista, porém estes inconvenientes seriam mais do que compensados pela eficiência da economia capitalista de mercado. Este argumento se apóia, no entanto, numa definição muito estreita de eficiência. Nu m impo rtan te livro sobre os limites do mercado, Kuttner (1997) distingue três tipos de eficiência: a alocadora, assoc iada ao no me de Ad am Smit h, a inovadora (schumpeteriana) e a keynesiana, que consis te em ple no emp reg o de todos os meios de produção. Em outro texto, argumentei que há outros dois tipos de eficiência: a social (qu e se sob re põe à keynesiana quanto ao pleno emprego e a força de trabalho) e a ecoeficiência. Não resta dúvi da de que o capi tali smo é muit o eficiente em termos de alocação, porém deficiente em termos das eficiências social e ecoeficiência, que são essenciais ao conceitokeynesiana, de desenvolvimento ineludente, fundamentado no trabalho decente para todos. Lon ge de ser um par âme tro estim ado a partir de comportamentos passados, a elasticidade de emprego do crescimento deve ser tratada como uma variável no planejamento do desenvolvimento, pois é a chave de uma estratégia de desenvolvimento ineludente. Taxas mais altas de crescimento econômico global presumivelmente trarão maior emprego. Porém, é igualmente importante refletir sobre como maximizar o potencial de emprego para uma dada taxa de crescimento, influenciando a composição do produto ( output-mix ) e selecionando as técnicas apropriadas, sem perder de vista o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho, no qual se apóia, em última instância, o progresso econômico. 1

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Produtividade maior e mais empregos - maximizando o potencial de emprego do crescimento. A lamentável situação caracterizada pelo crescimento perverso (desdesenvolvimento) dos países periféricos e pela deterioração do emprego nos países centrais se relaciona muito com a transformação estrutural da economia mundial e com os três descolamentos identificados por Peter Drucker (1986): 1 .descolam ento entre a econo mia f inanc eira e a eco nomi a real (financiarização); 2.descolamento entre o crescimento do PIB e a demanda por

commodities, basi came nte como uma conseq üência do crescim ento da parcela de serviços nos padrões de consumo; 3.descolamento entre o crescimento do PIB e o emprego, devido à substituição de empregos causada pelo progresso técnico. O crescimento da produtividade do trabalho deve ser bem-vindo, já que se constitui na base do progresso econômico. Em teoria, ele deveria nos permit ir avançar pelo camin ho da progress iva eliminação do trabalho heterônomo, doloro so e alienante, libera ndo tempo para atividades autônomas, produtiv as e não produtivas. 17 Esta é a essência da visão generosa proposta, entre outros, por Ivan Illich (1977) e por André Gorz (1988). Não há dúvida de que os países industrializados avançados devem refletir sobre o uso ótimo do progresso técnico: quanto se destina à redução do tempo de trabalho e quanto vai para a acumulação de bens adicionais? Em que ponto se deve parar a busca do crescimento material, se se considera que o objetivo último do desenvolvimento é uma civilização do ser e não do ter, e, mais ainda, que a finitude do planeta estabelece um limite para a expansão da produção material? 17

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Para uma distinção entre trabalho heterônomo (dirigido por outros) e autônomo, ver Ivan Illich. O mesmo autor nos lembra da etimologia da tripallium. palavra francesa " travai /": a tortura medieval chamada

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Essas são, sem dúvida, perguntas muito importantes para um debate prospectivo de longo prazo. Porém, elas não devem nos distrair quanto às urgências sociais que devem ser resolvidas com prioridade. Embora proponha como a meta do desenvolvimento uma civilização do ser, Joseph Lebret especifica como pré-condição necessária um compartilhamento eqüitativo do ter. 18 A nossa preocupação deve dirigir-se imediatamente às imensas desigualdades que existem hoje no acesso às oportunidades de trabalho, na remuneração do trabalho, na proteção e participação sociais e na geração de renda e riqueza. Na ausência de condições e regras de conduta eqüitativas em todos estes quesitos, o fim do trabalho (heterônomo) não tem chance de se converter numa meta realista. Tanto mais que as pessoas ainda têm que aprender a apreciar como uma verdadeira medida de sua liberdade cultural o tempo liberado para atividades autônomas e a dar preferência a elas, em vez de alocar o seu tempo liberado aos prazeres do consumismo. Hic at nunc o nosso problema consiste assim em reconciliar os objetivos do progresso econômico, alimentado pelo aumento da produtividade do trabalho, come opar imperativo proporcionar oportunidades de trabal ho decent a todos. deVárias obser vaçõe s ca bem aqui. • Primeiro, a redução do conteúdo do trabalho por unidade de um dado produto pode ser compensada pelo incremento na demanda total por este produto, estimulada pela redução do preço e pelo crescimento geral do PIB, ocasionado pelo progresso técnico. • Segundo, as reduções na incorporação direta de trabalho são compatíveis com o increm ento da demanda por trabalho a montante da cadeia produtiva (pesquisa, desenho) e a sua jusante (;marketing, distribuição, manutenção). 18

"La civilisation de l'être dans lepartage équitable de 1'avoir". 44

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• Terceiro, o progresso técnico é instrumental para a criação de novos produtos e para o estímulo a novas necessidades. • Quarto, e mais importante, a perda de empregos em alguns setores pode ser compensada com a ampliação do emprego em outros setores, dependendo das mudanças realizadas na composição do produto e na escolha das técnicas. Estas são as duas variáveis-chaves do jogo do planejamento que visa à harmonização dos dois objetivos aparentemente contraditórios, a saber, o progresso técnico veloz e o pleno emprego. Para isto, faz-se necessária uma estratégia dupla. De uma parte, o progresso técnico rápido é uma exigência nas indústrias de bens comercializáveis que competem nos mercados mundiais. Nenhum país pode se dar o luxo de não ter firmas qualificadas que atuem como global players, mes mo que isto impl ique em enxugamento do seu pessoal. De outra parte, as mesmas pressões não se aplicam à produção de bens e serviços não comercializáveis, nem de muitos bens que pertencem à categoria de comercializáveis, mas que, na prática, não enfr entam um a competição externa nos mercados internos, pois estão protegidos pela distância, pelos altos custos de transporte ou pelas preferências dos consumidores (por exemplo, alimentos perecíveis). Nove de cada dez pessoas, pelo menos, estão empregadas na produção de não comercializáveis. Portanto, as tendências negativas do emprego nas indústrias modernas deveriam ser compensadas por meio da ampliação da participação dos bens e serviços não comercializáveis no perfil da produção. Isto requer uma participação maior nos padrões de consumo de serviços e alimentos produzidos localmente (segurança alimentar local), bem como uma maior prioridade para investimentos em infra-estrutura e construção civil (especialmente vivenda social). Richard Méier (2000) se aventurou a sugerir que os países africanos deveriam dar o pulo do gato na direção da sociedade de servi6

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ços, sem necessariamente ter que repetir os estágios de crescimento pelos quais os países industrializados passaram. O universo do crescimento puxado pelo emprego deveria ser plenamente explorado, recorrendo-se, em todas as esferas da produção de não comercializáveis, a métodos intensivos em trabalho. Em outras palavras, precisamos investigar até onde podemos avançar por esta via antes de encontrar a barreira da oferta adequada de bens de salário (uma condição para evitar pressões inflacionárias) e/ou a da escassez de divisas. Como regra, a maior parte dos bens não comercializáveis tem um conteúdo baixo em importações. Em muitos países, a agricultura e as indústrias manufatureiras locais têm a possibilidade de ajustar a oferta de bens de salário até a demanda incrementada que advém dos empregos adicionais gerados pelas obras públicas. Mudando o foco para outros setores da economia, as seguintes margens de liberdade devem ser exploradas: • examinar as sinergias potenciais entre empresas modernas de grande porte e empresas de pequeno porte, trabalhando com métodos relativamente intensivos em mão-de-obra (subcontratação terceirização serviços);rurais um caso especial é da a produção integraçãoe de pequenos dos produtores com os agronegócios (sobre conexões entre empresas, ver UNCTAD, 2000 e 2001); • avalia r as possi bilid ades de expans ão da pro duç ão de vários tipos de biomassa agrícola, florestal e aquática para usos diversificados, como alimento, rações para animais, energia, fertilizantes, materiais de construção, matéria-prima industrial, fármacos e cosméticos. Diversos países em desenvolvimento terão um futuro brilhante se conseguirem explorar competentemente a sua biodiversidade, mediante o uso de biotecnologias, tanto para aumentar a produção de biomassa quanto para aumentar o espectro de produtos deriv ados dela. Desta form a, po de m se engaj ar, antes dos 1

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países industriais, num padrão relativamente intensivo e genuinamente sustentável de emprego, desde que sejam respeitadas as regras de um manejo ecologicamente viável das florestas, dos solos e dos recursos hídricos (ver Sachs, 2000b, 2001 e 2001b); • ativar, mediante métodos intensivos em emprego, fontes de crescimento independentes de investimento, de duas maneiras: (a) prestando mais atenção à produtividade dos recursos naturais, por meio da conservação da energia e da água, reciclando o lixo e usando produtivamente os resíduos agrícolas (Sachs, 1988, Weizsacker, Lovins and Lovins, 1997); (b) garantindo uma melhor manutenção do estoque de infraestruturas, equipamentos e prédios, para prorrogar o seu ciclo de vida e, desta forma, liberar para investimento produtivo adicional o capital que seria de outra maneira exigido para a sua reposição; 19 • por último, cuidar do futuro da maioria trabalhadora dos pequenos produtores, auto-empregados, que trabalham na agricultura familiar e em pequenos negócios e que se pautam por um padrão de racionalidade similar àquele observado por Chayanov na agricultura camponesa. 20 Esta questão será abordada na seção seguinte.

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Kalecki, em sua teoria do crescimento, introduz dois parâmetros responsáveis pelo crescimento sem investimentos: a taxa de depreciação real e o coeficiente melhor utilização das capacidades existentes. Quanto maisdebaixa a taxa de depreciação (atingida produtivas mediante melhor manutenção), maior será ceteris paribus a taxa de crescim ento eco nôm ico . Uma melhor utilização da capacidade produtiva existente também levará a uma maior taxa de crescimento global.

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O dinheiro flui com facilidade dos bolsos das empresas até os bolsos domésticos, e vice-versa, algo totalmente contrário à racionalidade observada em empresas organizadas.

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Box 2 - Taxas de crescimento do emprego

A taxa de crescimento do emprego (e) depende das taxas de crescimento do PIB (r) e da produtividade do trabalho (p): e-r-p

A tabela seguinte apresenta as taxas de crescimento do emprego (e) resultantes das diferentes combinações de r e p. As taxas de crescimento de r figuram na primeira linha horizontal, as taxas de crescimento da produtividade p figuram na primeira coluna à esquerda e as taxas de emprego resultantes da combinação de r e p na interseção das duas.

Para muitos países em desenvolvimento, um crescimento anual do emprego de 2% é o mínimo exigido para absorver os recémchegados ao mercado de trabalho. A redução do desemprego e do subemprego exige combinações de r e de p localizadas à direita da diagonal 2 (assinalada em negrito). Todas as combinações à esquerda da diagonal representam uma deterioração de emprego.

De pequenos produtores a microempresários A categoria de "pequenos produtores" inclui todos aqueles envolvidos em atividades de pequena escala realizadas fora do univer1

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so das empresas modernas. Estas últimas abrangem tanto firmas grandes e médias, como uma variedade de pequenas empresas industriais, comerciais e de serviços, algumas delas unipessoais, que vão desde lojas e restaurantes até sofisticadas empresas de alta tecnologia e firmas de consultoria. As micro e pequenas empresas respondem pela maioria dos postos de trabalho na economia moderna. Porém, isto não significa que o seu coeficiente de capital/ trabalho seja necessariamente baixo. 21 O desafio é transformar pequenos produtores em empresas organizadas de pequena escala, capazes de competir no mercado capitalista. A sua consolidação será produto da atualização das suas competências e capacidades administrativas (incrementando a competitividade intrafirma) e da melhora da sua competitividade sistêmica mediante uma série de ações afirmativas, tais como acesso preferencial a crédito, tecnologias e mercados. O desenho destas ações pressupõe um conhecimento detalhado do funcionamento da economia real (substantiva, nos termos de Polanyi), indo além da dicotomia formal/ inform al. A complexi dade da economia real raramente é reconhecida por economistas convencionais. Ela deriva da presença simultânea de vários modos de produção: • a produção fora do mercado (produção de bens e serviços para autoconsumo); • a peque na produçã o pré e protocapit alista, de artesãos, ve ndedores ambulantes, provedores de serviços pessoais, negócios 22 familiares, lojas, barracas e indústrias caseiras; 21

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O coeficiente capital/trabalho (i), a proporção de produção de capital (k), e a produtividade do trabalho (p) estão vinculados mediante a seguinte relação: i = k x p. Além disso, muitas e mpresas mo der nas são intensivas em conhecimento. A distinção entre indústrias caseiras e de pequeno porte foi estabelecida há mu it o te mp o na ín di a (Dha r P. N. , Sen, A. 1960) . A maiori a dos negócios caseiros não é administrada como empresas, podendo-se fazer uma comparação entre eles e as propri edades agrícolas campon esas.

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• a economia capitalista de mercado, orientada para lucro, que inclui empresas grandes e pequenas, nacionais e estrangeiras, públicas e privadas; • a econ omi a social (cham ada, no Brasil, de econ omi a solidária) orientada para mercado, mas não para o lucro individual (cooperativas, empresas auto-administradas, organizações da sociedade civil, instituições filantrópicas etc. 23 ). A agricultura familiar participa dos quatro modos de produção listados acima. Os serviços públicos formam uma categoria à parte. Todos os bens e serviços entram nos seguintes circuitos: 24

• economia doméstica; • a "ec ono mia popula r", que pro por cion a à pop ula ção de baixa renda bens e serviços de baixo custo, produzidos em parte por pequenos produtores locais, que, no entanto, têm que enfrentar a competição de bens contrabandeados ou fabricados por firmas multinacionais especialmente para a população de baixa renda; estes bens circulam na economia popular por meio de redes de supermercados e também mediante esquemas de distribuição de porta em porta;

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• o mer cado capitalista, do qual o s pequ enos produt ores participam como provedores de serviços pessoais ou de serviços terceirizados para firmas, como vendedores de rua e de porta

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Ver Jean tet (199 9). No Brasil, a eco nom ia soci al é conh ecid a como econ omia solidária (Singer, P. Souza, R. D. (eds), 2000). 24 O escambo de produtos é, em parte, uma extensão da economia doméstica e, em outra, uma forma de trocar bens e serviços produzidos para o mercado sem necessidade de usar o dinheiro, devido a condições anormais na economia monetária (hiperinflação, pouca moeda circulante etc.). 25 No Brasil, um gigante da indústria de cosméticos norte-americana, a Avon, tem uma rede de mais de 700 mil vendedores e vendedoras de porta em porta.

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em porta e, ocasionalmente, como subcontratados de indústrias organizadas; • compras governamentais, uma ferra menta potencialmen te importante para ações afirmativas em favor de pequenos produtores e microempresas. 26 A segmentação dos mercados de bens e serviços caminha lado a lado com a segmentação do mercado de trabalho. Os servidores públicos e de firmas privadas formalizadas têm um status privilegiado, quando comparados com os pequenos produtores, pois estão protegidos pelas leis trabalhistas, têm acesso à previdência social e têm direito à aposentadoria. Mesmo assim, muitos pequenos produtores parecem apegados à sua informalidade. Argumentam que estão em situação melhor em termos de ganhos imediatos, já que não pagam impostos ou encargos sociais. Esta visão é míope e, em última instância, falaciosa. Porém, ela mostra claramente os tipos de políticas que são necessárias para estimular o acesso dos pequenos produtores à economia formal, capitalista ou social. As duas opções estão disponíveis - a primeira dominante e a segunda socialmente preferível. Como mencionado, é necessário dar aos pequenos produtores uma oportunidade de melhora das suas atividades, aperfeiçoando as suas habilidades mediante treinamento. Este ponto é de suma importância para o número crescente de provedores de serviços técnicos e de manutenção para firmas e famílias urbanas e rurais. A demanda por serviços técnicos, mas também sociais e pessoais, muito provavelmente aumentará nas áreas rurais, acompanhando, desta forma, a modernização da agricultura e o estabelecimento de indústrias de processamento de biomassa. Os serviços podem criar

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Os EUA têm uma detalhada legislação que dá às pequenas empresas tratamento preferencial nas compras públicas. 1

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uma importante fonte de emprego para as famílias camponesas, como parte das estratégias de desenvol vimento rural direcionadas promoção da pluriatividade.

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O aperfeiçoamento organizacional é tão importante quanto o aperfeiçoamento técnico. Os pequenos produtores em via de transformação em pequenos empresários precisam melhorar a sua cultura administrativa. Ao mesmo tempo, deve-se ajudá-los a tirar proveito da assistência mútua e do empreendedorismo coletivo, como meios poderosos de fortalecer os seus esforços individuais. 27 O empreendedorismo coletivo pode tomar formas diferentes, desde esquemas de caução mútua para o microcrédito até cooperativas de poupança e crédito, de produção e comércio; 28 associações de poupança e crédito rotativo (conhecidas, no Brasil, sob o nome de consórcios); agrupamentos setoriais e territoriais de produtores e comerciantes, visando à criação de economias de escala e obtenção de melhores preços, mediante compras ou vendas conjuntas, e gerando externalidades positivas para seus negócios, mediante ações colaborativas no campo da tecnologia, de design e do marketing. A concorrência não exclui a cooperação, como aprendemos com a experiência dos distritos industriais no nordeste italiano (a "Terza Itália", nos termos de Arnaldo Bagnasco), também conhecidos como arranjos produtivos locais (APLs), que concentram centenas ou até milhares de trabalhadores e pequenas unidades 27

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Sobre o papel da assistência mútua na evolução social, ver Kropotkin, P. (1988). Cabe aqui uma advertência: no Brasil, os empregadores algumas vezes substituem os seus empregados regulares por meio da contratação dos serviços de cooperativas de trabalhadores, esquivando-se assim do pagamento dos encargos sociais. Não é necessário dizer que esta é uma distorção total dos ideais cooperativos e que ela deve ser vigorosamente combatida.

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29 industriais num município ou microrregião. Os APLs, parecem ser um campo particularmente importante para as políticas públicas voltadas à transformação gradual dos pequenos produtores

em microempresários. Por importante que seja a promoção do empreendedorismo coletivo, ela tem que ser complementada por feixes de políticas públicas que se reforçam mutuamente. A experiência mostra que as reformas agrárias não funcionam enquanto a distribuição da terra não for complementada por medidas que quebrem o poder dos agiotas e comerciantes estabelecidos no campo e que ofereçam aos camponeses os seguintes requisitos necessários para uma modernização bem-sucedida da agricultura familiar: • acesso a tecnologias apropriadas (intensivas em conhecimento e em trabalho, porém poupadoras de capital e recursos) e a serviços de extensão e de capacitação eficientes; • créditos subsidiados para produção e investimentos; • garantia de preç os mínim os, acesso aos merc ados e atendimento preferencial nos mercados institucionais (compras públicas); • assistência na identificação de nich os de merc ado locais, nacionais e internacionais para produtos de qualidade (queijos, vinhos, frutas, hortaliças etc.). 25

Pesquisadores brasileiros, inspirados nos estudos pioneiros da OIT (Pyke, F., Sengerberger W., Becattini, G. 1990, Pyke F., Sengerberger W., 1992) e trabalhando em associação com colegas italianos, estão descobrindo centenas de confecção arranjos produtivos industriais pelo país, especializados na de roupas,locais sapatos e artigosespalhados de couro, móveis, pedras preciosas etc. O SEBRAE está elabo rando u m atlas destes APLs. Os bens prod uzid os nos APLs são freqüentemente comercializados por vendedoras de rua e de porta em porta. São conhecidas como "sacoleiras". Milhares delas visitam os APLs para comprar as suas mercadorias diretamente dos produtores, muitas vezes te nd o que perc orr er longas distânci as. O SEBRAE plan eja dar alta prioridade ao programa de consolidação e desenvolvimento dos APLs.

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Box 3 - Tecnologias apropriadas. Os países em desenvolvimento precisam de padrões de crescimento intensivos em conhecimento e trabalho e, no entanto, poupadores de capital e de recursos, e devem procurar soluções triplamente vitoriosas, isto é, viáveis social, ambiental e economicamente. Isto é, sem dúvida, uma tarefa difícil, na qual a criatividade e a disponibilidade de tecnologias apropriadas que respondam aos critérios acima especificados têm um papel crucial. Na agricultura, estes critérios estão incorporados ao conceito da revolução sempre verde, formulado pioneiramente pelo agrônomo indiano M. S. Swaminathan, e aos sistemas integrados de pro-

dução de alimentos e energia propostos pela Universidade das Nações Unidas (Sachs, Silk, 1990). No entanto, o escopo para tecnologias apropriadas é muito mais amplo. Inclui todos os outros tipos de produção orientada ao mercado, bem como a produção de subsistência na economia familiar fora do mercado. A modernização das economias familiares, nas áreas rurais mais remotas e nas favelas mais pobres, é importante por duas razões: ela melhora a qualidade de vida e/ou reduz o tempo empregado em tarefas domésticas, liberando tempo para atividades orientadas para o mercado e para o lazer. Os pobres das áreas rurais e urbanas precisam de fogões aperfeiçoados, lâmpadas e congeladores funcionando com energia solar, fdtros de água etc., antes de ter acesso aos eletrodomésticos disponíveis para os estratos mais ricos da população. O conceito de tecnologias apropriadas é mais amplo que o de tecnologias intermediárias, defendido por Schumacher. Mesmo sendo úteis em certos contextos, estas estão longe de ser uma panacéia. Deve-se dar atenção ao emprego catalisador de tecnologias avançadas para, assim, garantir a viabilidade das cadeias produtivas intensivas em trabalho. Isto pode acontecer de várias maneiras, por exemplo, abrindo-se novos mercados para produtos naturais, mediante processamentos inovadores, ou proporcionando previsões exatas do tempo para pescadores e agricultores. Pode-se falar em tecnologias combinadas, levando14

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se em conta todo o espectro disponível, desde o conhecimento indígena até as invenções mais sofisticadas. Isto nos leva à alfabetização digital e ao potencial das tecnologias de comunicação e informação (CITs). Sem dúvida, os serviços de extensão rural, de saúde e de educação se beneficiarão delas. Da mesma forma, o acesso instantâneo à informação sobre condições do mercado e preços de commodities, por intennédio de um cyber café rural, pode ser muito importante para um pequeno agricultor, com a condição, no entanto, de que ele disponha de produção excedente à venda e que possa chegar ao mercado sem cair nas rédeas de intermediários gananciosos. O acesso a tecnologias apropriadas é um dos ingredientes do pacote de políticas de desenvolvimento. Para ser efetivo, ele tem que caminhar lado a lado com o acesso à terra, à capacitação, ao crédito e aos mercados. Nenhum destes requisitos será preenchido na ausência de vigorosas políticas públicas, desenhadas e implementadas por um Estado desenvolvi mentist a enxuto, li mpo e pró-ativ o (ver Box 6 e Sachs, I, 2000a e Rodrik D., 2000). O mesmo vale para pequenos produtores dedicados à produção artesanal, aos serviços e ao comércio. Para ajudá-los na sua transformação gradual em microempresários e para integrá-los na economia formal, as seguintes medidas foram recomendadas, num recente estudo patrocinado pelo SEBRAE e o PNUD (Sachs, 2002): • simplifi car os proce dimento s burocráticos e reduzir os custos administrativos do registro de novos negócios; • simplificar o regi me fiscal, com a redu ção signif icativa da carga tributária em todos os níveis (federal, estadual e municipal); • diminuir os encargos e simplificar o acesso aos serviços de saúde e proteção social; • dar tratame nto preferenci al aos micros e pequen os empresár ios nos mercados institucionais e fortalecer os vínculos entre

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as grandes empresas e os pequenos negócios, mediante práticas eqüita tivas de subcont rataç ão, tercei rizaç ão e fr anq uia s 30 destinadas a proteger o interesse dos parceiros mais fracos; • e, por último, proporcionar crédito em base preferencial. Este último ponto exige um esclareciment o. Enq uant o a necessidade de crédito subsidiado para os agricultores é amplamente reconhecida, as agências financiadoras internacionais consideram, em contraste, que os créditos para pequenas atividades não agrícolas não devem ser subsidiados.

Box 4. Terceirização: uma oportunidade real para a criação de emprego?

A terceirização é a última moda da ciência da administração. Para reduzir custos e agilizar a administração, as corporações são aconselhadas a externalizar todas as atividades que não façam parte do núcleo do seu negócio: limpeza, segurança, manutenção, mas também processamento de informação, serviços de atendimento ao cliente, serviços de pedidos e reservas, comércio por Internet. Nas indústrias manufatureiras, a tendência é comprar subsistemas prontos para serem montados; isto é particularmente verdadeiro para o caso da indústria de automóveis. Novos vínculos são assim estabelecidos entre grandes empresas e uma variedade de pequenas indústrias fornecedoras de peças e acessórios ou firmas prestadoras de serviços. No entanto, a terceirização não eqüivale necessariamente à criação de empregos. Em muitos casos, ela ocorre juntamente com a redução de empregos na empresa terceirizadora, o que resulta na substituição de empregos estáveis e decentes por outros mal remunerados e instáveis na firma subcontratada.

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Sobre os víncul os entre grandes empresas mult tados, ver UNCTAD.

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ina cio nai s e os seus cont ra-

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Em contraste, ocorre um aumento líquido de empregos num país quando uma indústria local substitui componentes até então importados. Por outro lado, os serviços TCIs que crescem rapidamente oferecem para osbaseados países emnas desenvolvimento uma oportunidade para se especializar em exportações de atividades qualificadas e intensivas em trabalho, que vão desde a produção de softwares até serviços de atendimento, já que o custo da força de trabalho qualificada e semiqualificada necessária para estas tarefas é muito menor em vários países em desenvolvimento, se comparado com os industrializados, mesmo levando-se em conta o diferencial da produtividade do trabalho. No entanto, não será fácil reproduzir a fenomenal irrupção da índia nos mercados internacionais de softwares e de serviços de informática.3' O sucesso da índia deve-se a uma série de fatores favoráveis: abundante oferta de força de trabalho altamente qualificada e que recebe remunerações bem menores que nos EUA e na Europa, conhecimento do inglês, a presença nos Estados Unidos de uma grande comunidade de cientistas indianos peritos nas ciências da computação (que atuam como intermediários), sem falar das vantagens do país que ingressa primeiro num mercado emergente novo. Levando-se em conta que a montagem é uma atividade intensiva em trabalho, muitas indústrias transferem para os países em desenvolvimento o último estágio do seu processo produtivo. Isto incentivou a proliferação de maquiladoras na fronteira do México com os EUA e em muitas zonas francas. Ai fábricas montadoras são enclaves, praticamente sem conexões produtivas a montante e a jusante no país em que funcionam. Desta forma, os resultados para a economia local são modestos e se restringem ao aumento de empregos não muito bem pagos.

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As receitas do mercado indiano de serviços de software alcançaram US 6,2 bilhões de dólares, a partir de pouco menos de 500 mi lh õe s de dólares registrados na metade de 1990 ( The Economist , 11 de janei ro de 200 3) .

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Microcréditos ou créditos para pequenos produtores? Como reza o ditado popular, os bancos só emprestam dinheiro para aqueles que realmente não precisam dele. Para a grande maioria das pessoas, o acesso ao crédito está bloqueado, pois elas carecem de bens e de garantias suficientes. Em situações de urgência, elas tomam dinheiro de agiotas. Na melhor das hipóteses, podem aspirar a comprar alguns eletrodomésticos ou roupas em prestações, muitas vezes pagando juros até superiores àqueles cobrados pelos agiotas. Nos países que atravessaram períodos de inflação elevada, os consumidores prestam mais atenção à possibilidade de pagar as prestações do que às taxas de juros incorporadas aos preços dos bens adquiridos. A revolucionária experiência do Grameen Bank, em Bangladesh, quebrou o tabu da impossibilidade de acesso ao crédito para os pobres. O seu sucesso se deve ao reconhecimento de que mesmo um empréstimo muito modesto pode mudar radicalmente a vida de uma família pobre ao proporcionar o capital de giro para as atividades que permitem uma circulação rápida deste capital - várias vezes, numa mesma semana (por exemplo, na venda de hortaliças de porta em porta, na compra de ingredientes por vendedores ambulantes de cachorro-quente, pipoca etc.). Igualmente, a aquisição de um animal doméstico - um bode, um porco, aves, uma vaca - significa muito para os mais pobres, os camponeses sem-terra e minifundistas. Além do mais, as garantias não são necessárias desde que os que têm acesso ao crédito estejam organizados em grupos e garantam conjuntamente o reembolso dos empréstimos individuais. O Grameen Bandk opera atualmente de maneira auto-sustentável, cobrando taxas de juros moderadas. Isto só é possível porque os custos administrativos em Bangladesh são baixos. Reproduzir esta experiência bem-sucedida coloca, no entanto, muitas questões: 1

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1- Em muitos países, os programas de microcrédito, administrados por ONG's, cobram taxas de juros altas, mesmo que elas tenham acesso a capital barato de agências internacionais ou governos locais. O motivo é que elas precisam cobrir os seus custos administrativos mediante os encargos que cobram, se pretendem operar de forma sustentada. Ao contrário do que acontece em Bangladesh, num país como o Brasil, estes custos são substanciais. Não é convincente o argumento de que, mesmo assim, as taxas de juros são mais baixas que as cobradas por agiotas; os pobres raras vezes recorrem a agiotas para conseguir capital para fins produtivos. Ademais, as políticas de desenvolvimento deveriam assumir uma meta mais ambiciosa que a de competir com agiotas cobrando taxas de juros um pouco mais baratas, porém ainda altas. 2- Mais importante, o escopo dos microcréditos orientados à produção é limitado às instâncias já mencionadas do pequeno capital de giro de rápida circulação (a taxa de juros, neste caso, é irrelevante) ou à aquisição de animais domésticos, equipamentos baratos - máquinas de costura de segunda mão, congeladores, bicicletas ou materiais para consertos domésticos. As demandas deste tipo são limitadas e, portanto, rapidamente exauridas. O desemprego e o subemprego, nos países em desenvolvimento, não serão resolvidos multiplicando a quantidade de vendedores de cachorro-quente, pipoca, sorvete ou refrigerante ou de entregadores de pizzas. A concorrência entre costureiras já é bastante apertada. O financiamento para a compra de animais produtores de leite, ovos e carne faz muito mais sentido. 3 - 0 que importa é o fornecim ento adequado d e diferentes tip os de créditos - não necessariamente microcréditos - para pequenos produtores. Devemos começar por uma análise abrangente do padrão altamente diversificado de demanda por créditos oriunda das diferentes 6

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categorias de pequenos produtores para, depois, ver como dar conta desta demanda mediante créditos acessíveis ( ajfordable ), de quantidades e condições variáveis, dependendo do caso. A acessibilidade depende, de um lado, da renda dos que tomam os empréstimos e, de outro, das taxas de juros cobradas e das condições de pagamento. Os juros podem ser reduzidos e as condições suavizadas por meio de medidas que visem: • à redução do risco de inadimplência pelo recurso a garantias coletivas por parte de grupos que tomam empréstimos (como se faz no Grameen Bank), mediante fundos de garantia e esquemas de seguros de crédito; • à red uçã o dos custos operaciona is media nte a comb ina ção das seguintes medidas: promovendo, sempre que possível, as finanças de proximidade por meio de cooperativas de crédito e de poupança, associações de poupança e de crédito rotativo (.consórcios) e banc os de APL s; subsíd ios às taxas de ju ros financiados por fundos públicos ou subsídios cruzados mediante a aplicação de spreads difere nciado s a categori as distintas de tomadores de empréstimos; e, finalmente, a administração direta dos créditos por bancos públicos, pelas agências de desenvolvimento e até pelos correios. Os créditos subsidiados para pequenos agricultores, pequenos produtores urbanos e para a autoconstrução de moradias são instrumentos importantes para a promoção do desenvolvimento includente. A rejeição dos subsídios, por motivos ideológicos, não se justifica, apesar das freqüentes práticas equivocadas do passado. Como qualquer outro instrumento de política, os subsídios podem ser bem ou mal aplicados. Reivindicar subsídios para os pequenos produtores, em países em desenvolvimento, não é contraditório com uma posição crítica a respeito dos subsídios à agricultura nos EUA e na União Européia. 6 0

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As agências de desenvolvimento e os bancos internacionais poderiam juntar forças com a Aliança Cooperativa Internacional e com a União Européia (onde a economia social desempenha um papel importante) numa grande iniciativa para promover finanças de proximidade nos países em desenvolvimento, dando ênfase especial às cooperativas de poupança e crédito e aos bancos de APLs.

Desenvolvimento territorial, empoderamento e iniciativas locais A enorme diversidade das configurações socioeconômicas e culturais, bem como das dotações de recursos que prevalecem em diferentes micro e mesorregiões, excluem a aplicação generalizada de estratégias uniformes de desenvolvimento. Para serem eficazes, estas estratégias devem dar respostas aos problemas mais pungentes e às aspirações de cada comunidade, superar os gargalos que obstruem a utilização de recursos potenciais e ociosos e liberar as energias sociais e a imaginação. Para tanto, deve-se garantir a participação de todos os atores envolvidos (trabalhadores, empregadores, o Estado e a sociedade civil organizada) no processo de desenvolvimento. Daí a importância do planejamento territorial nos níveis municipal, microrregional e mesorregional, de forma a reagrupar vários distritos unidos pela identidade cultural e por interesses comuns. Para este fim, deve-se criar espaços para o exercício da democracia direta, na forma de foros de desenvolvimento local que evoluam na direção de formar conselhos consultivos e deliberativos, de forma a empoderar as comunidades para que elas assumam um papel ativo e criativo no desenho do seu futuro. 32 Sobre o conceito de empoderamento ( empowerment ), central na política do desenvolvimento, ver Friedman, John (1999). Sobre a emergência da sociedade civil organizada como o terceiro sistema de poder, ver Nerfin M. (1986) e, de for ma mais geral, toda a coleçã o de dossiês do IF DA (In ter nat ion al Foodservice Distributors Association). Ver também, What Now? (1975). 6 1

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A maior experiência relativamente bem-sucedida de planejamento participativo local ocorreu no estado indiano de Kerala (Isaac e Franke, 2000). Merece também menção uma experiência muito positiva que ocorre na área altamente industrializada da região metropolitana de São Paulo, conhecida como o ABCD. 33 Várias municipalidades reuniram-se para criar um conselho de desenvolvimento regional, ao qual são creditadas várias iniciativas bem-sucedidas. O empoderamento das comunidades e a abertura de espaços para a democracia direta constituem a chave para as políticas de des env olv ime nto (John Fri edm ann ) e pre ss agi am um novo paradigma de economias mistas que funcionam mediante o diálogo, as negociações e os vínculos contratuais entre os atores do desenvolvimento. Não há dúvida de que as iniciativas partidas de baixo terão cada vez mais importância. No entanto, não é possível construir uma estratégia de desenvolvimento simplesmente agregando iniciativas locais de desenvolvimento, no mínimo porque estas iniciativas devem ser harmonizadas, na busca de arranjos colaborativos e sinergias, para evitar duplicações antieconômicas. O planejamento é um processo interativo que inclui procedimentos de baixo para cima e de cima para baixo dentro do marco de um projeto nacional de longo prazo, 34 uma visão compartilhada pela maioria dos cidadãos da nação sobre valores, a sua conversão em objetivos societais e a inserção do seu Estado-Nação num mundo globalizado. 35

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Derivado dos nomes dos municípios que a integram: Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema.

34

Segundo Jean Paul Sartre, o homem é um projeto. des humanas devem ser vistas como projetos.

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A UNCTAD está certa quando afirma que vivemos num mundo já liberalizado e ainda em processo de se globalizar.

A posteriori, as socieda-

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Box 5: Qual o futuro dos Estados-Nação? Na ausência de uma globalização includente, os Estados-Nação continuarão sendo o locus principal das estratégias de desenvol-

vimento. O progresso alcançado dependerá da habilidade de transcender a ênfase excessiva na regulação macroeconômica, junto com uma sobreestimação do papel da racionalidade microeconômica no nível das empresas, e um fortalecimento das instituições e políticas no nível meso. Grande parte do que vai acontecer dependerá das respostas dadas às seguintes perguntas: • Qual o tipo de Estado, qual o tipo de mercados, e para qual tipo de desenvolvimento? • Quais mecanismos institucionais e legais são necessários no âmbitose do funcionamento e da eregulação da economia mista para garantir transparência uma verdadeira democracia? • Qual o papel que cabe ao Estado na promoção da finalidade social do desenvolvimento, respeitando as regras da prudência ambiental e da eficiência econômica? Como devem ajustar-se as considerações sociais no desenho de estratégias de desenvolvimento? Em particular, como desenhar políticas de emprego que sejam a pedra angular das políticas sociais pró-ativas? • Qual o papel do setor público no oferecimento da infra-estrutura necessária para o desenvolvimento, capaz de garantir uma competitividade sistêmica? • Quais formas de articulação devem existir entre padrões de propriedade pública, privada com finalidades lucrativas, privada sem finalidades lucrativas, cooperativa e comunal? • Quais formas de parceria e de cooperação sinergética deve haver entre os atores sociais do desenvolvimento ? • Quais modalidades de articulação devem existir entre os diferentes níveis de decisão e implementação (que sentido concreto deve se dar ao conceito de subsidariedade ?) ? • Quais formas de inserção seletiva devem ser procuradas na economia internacional, afim de garantir a combinação adequada entre abertura e proteção? Mais amplamente, qual relação deve existir entre a governança interna e o sistema emergente de governança global? (Ver também Sachs I., 2001, e Wade R.,1990)

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Inclusão e globalização Ao longo deste trabalho, presumimos que os Estados-Nação soberanos são e continuarão sendo o locus principal para a promoção do desenvolvimento includente. Num artigo recente, Kofi Annan (2002 ) nos lembrou que a traduçã o arábica da palavr a "globa lizaç ão" significa literalmente "inclusividade mundial". No entanto, as formas assimétricas e desiguais da globalização atual prejudicam os interesses dos países em desenvolvimento, favorecendo alguns incluídos e deixando de fora muitos excluídos. Os incluídos vivem no capitalismo reformado, enquanto os excluídos estão condenados a formas mais duras e até selvagens de capitalismo. Os Estados-Nação, nos países em desenvolvimento, se esforçam para proteger a sua gente contra a situação de crescente deterioração. Nas suas formas atuais, a globalização reproduz, entre as nações centrais e periféricas, o mesmo padrão perverso de crescimento concentrado e excludente que se observa dentro das nações. Por analogia, com o desenvolvimento includente podemos postular a consolidação da globalização includente, instituindo uma ordem 36

econômica ba seada no princípio de tratamento desigual aos desiguai s, promovendo o comércio justo, 37 incrementando o fluxo da assistência pública destituída de compromissos implícitos e transformando a ciência e a tecnologia em bens públicos (em contraste com os acordos interna cionais sobr e a propr ieda de intelectual - TRIPs ). Seria desnecessário dizer que a globalização incl udente facilitari a muito a transição para o desenvolvimento includente. Porém, as possibilidades de se avançar neste sentido são remotas no futuro previsível. Isto ressalta a importância crucial das estratégias nacio36

37

1

Aliás, este princípio foi srcinalmente formulado para o estudo das relações econômicas internacionais, entre outros, por Gunnar Myrdal (1956), e constitui a pedra angular sobre qual a UNCTAD foi construída. Sobre este tema, ver Oxfam (2002) e os relatórios anuais da UNCTAD.

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nais baseadas no conceito de "desenvolvimento a partir de dentro" (Oswaldo Sunkel), que não deve ser confundido com um apelo em favor de estratégias voltadas para dentro.

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Da armadilha da pobreza ao desenvolvimento includente em países menos desenvolvidos1

Introdução Os relatórios da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento) sobre os países menos desenvol3 vidos (PMDs 2 ) oferecem uma análise precisa da sua situação. Sejam quais forem as suas diferenças em termos de tamanho, população, densidade demográfica, patrimônio natural, localização geográfica, geopolítica e história, 4 todos eles estão tolhidos por uma

1 - Paper de contextualização escrito para o Least Developed Countries Report, 2004, da UNCTAD. Versão final composta em 21 de julho de 2003. Traduzido do srcinal em inglês por José Augusto Drummond e Gloria Maria Vargas. 2 Nota dos Tradutores: traduzimos « less developed countries » (LDCs) como « países menos desenvolvidos » (PMDs). 3 Ver também Gore C. e Akyiiz Y„ 2001. 4 No momento, 49 países pertencem à categoria de Países Menos Desenvolvidos - são considerados estruturalmente prejudicados no seu processo de desenvolvimento e merecedores do mais alto grau de preocupação por part e da comunidade intern aci onal. O Conselho Econômico e Social da ONU, na sua mais recente revisão trienal sobre a situação dos PMDs, feita em 2000, seguiu os três seguintes critérios: - critério de baixa renda,

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armadilha de pobreza estrutural, em virtude do acentuado subdesenvolvimento de suas forças produtivas, agravado por um ambiente internacional desfavo rável e pela falta de um com promis so autêntico dos países ricos no sentido de lhes dar assistência. Assim, os PMDs são os principais perdedores na globalização assimétrica. Este texto sustenta que, apesar dessas desvantagens, esses países têm um potencial latente para construir estratégias de desenvolvi5 mento nacionais, includentes, sustentáveis e sustentadas, capazes de quebrar o ciclo vicioso de subdesenvolvimento e pobreza, dentro de um esquema de economias mistas, devidamente regulamentadas por estados desenvolvimentistas enxutos, limpos e democráticos. Evidentemente, eles poder iam ser muito auxiliados nesse esforço por ações internacionais efetivas. No entanto, não existe quantidade suficiente de ajuda externa capaz de substituir a mobilização dos recursos internos - físicos ou humanos. Da mesma forma, a ausência dessa ajuda não deve ser invocada como pretexto para adiar a reflexão sobre as estratégias nacionais de desenvolvimento. O "desenvolvimento a partir de dentro" (O. Sunkel, 1992) é a melhor, se não for a única, oportunidade para o desenvolvimento, mesmo em países pequenos. Mercados internos dinâmicos melhoram a competitividade sistêmica das economias nacionais. baseado numa média estimada par a três anos do PIB per capita (men os do que $900 para ser incluído na lista, e acima de $1.035 para sair dela); critério de escassez de recursos humanos, que envolve um índice Físico Ampliado de Qualidade de Vida; -critério de vulnerabilidade econômica, baseado na inst abi lida de da produção agrícola, na instab il id ad e das exportações, na importância econômica das atividades não tradicionais, na concentração de mercadorias exportadas e nas desvantagens de ter pequena dimensão econômica (ver UNCTAD, 2001). 5 Pesquisadores da índia sugerem que se use a expressão desenvolvimento inclusionário, em vez de desenvolvimento includente. O adjetivo sustentável se refere à condicionalidade ambiental, enquanto sustentado se refere à permanência do processo de desenvolvimento. O desenvolvimento sustentado não é o mesmo que o crescimento material.

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Este texto se divide em três partes. Na primeira, revisitamos a caixa de ferramentas analíticas. A segunda oferece peças para a montagem de uma estratégia de desenvolvimento triádica que consiste na consolidação e na expansão de um núcleo modernizador da economia composto de indústrias, minas e agricultura mecanizada de alto valor agregado, intensivos em conhecimento e competitivos, juntamente com a promoção de um crescimento puxado pelo emprego e a ação direta para o bem-estar da população. A terceira parte do texto contém anotações a respeito de uma agenda internacional. O texto se fundamenta nas seguintes pressuposições epistemológicas: • o desenvolvimento é um conceito multidimensional: os seus objetiv os são sempre sociais e éticos (solidar iedade sincrônica). Ele contém um a condicionalidade amb iental explícita (solidari edade diacrônica com as gerações futuras); o crescimento econômico, embora necessário, tem um valor apenas instrumental; o desenvolvimento não pode ocorrer sem crescimento, no entanto, o crescimento não garante por si só o desenvolvimento; o crescimento pode, da mesma forma, estimular o mau desenvolvimento, processo no qual o crescimento do PIB é acompanhado de desigualdades sociais, desemprego e pobreza crescentes; • a necessid ade evidente de respeitar equilíbrios macr oeco nômi cos não é motivo para mergulhar no "curtoprazismo" e na abordagem estritamente orçamentária. Tanto mais que as relações entre os mercados financeiros e a economia real são cada vez mais esquizofrênicas; a análise dos potenciais latentes da economia real deve vir primeiro, e apenas depois se deve refletir sobre o financiamento do desenvolvimento; • na medi da em que a ofert a de oportunid ades d e trabalho decente seja o obje tivo central do desenvolv imento , a elasticidade de emprego do crescimento deve ser tratada como a variável es6

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tratégica fundamental e não como um parâmetro resultante de escolhas q ue visam a maxim izar a taxa de crescimento do PIB. Como prólogo, cabe incluir aqui um ponto de vista africano sobre o desenvolvime nto. Para Josep h Ki-Zerb o (2003), historiador, ativist a dos direitos huma nos e estadista muit o respeitado, oriundo de Burkina Faso, só faz sentido adotar um projeto africano endógeno: " Arrastar toda a África na direção do mercado, sem preparação, significa abolir a civilização e a cultura da África. É um haraquiri programado cujo software está no computador do mercado. Nós, africanos, não conhecemos esse princípio de que "tudo está à venda" ("tout marche"). Talvez isto ocorra porque o mercado do tipo que existe na Europa desde o século XVII teve presença limitada na África" (p. 33). O desenvolvimento autêntico da África não pode acontecer a partir da reprodução de modelos estrangeiros: " Ex is te m coisas que estão, e devem estar, acima efora do mercado. Cabe aos africanos descobrir e inventar novos paradigmas para a sua própria sociedade. Podem os países do Sul mudar as cartas do jogo nos dias de hoje ?Terão sucesso ao montar uma síntese que lhes permita con-

servar Existem o que têm de melhor e incorporar melhor do que vem de fora? motivos para responder sim,o mas há também razões mais fortes para responder não" (p. 157). Nã o só é imp oss íve l copiar o modelo atual dos países ricos; não se pode reproduzir sequer a sua linha evolutiva, o caminho seguido no passado pelos países ricos de hoje. Para Ki-Zerbo, " o desenvolvimento consiste na multiplicação de escolhas quantitativas e qualitativas" (p. 173). É um fe nô me no total que escapa ao reducionismo economicista. Nessa totalidade, os fatores culturais e a educação são primordiais. No entanto, a cultura não pode ser quantificada. Este é o motivo pelo qual é tão difícil classificar os países de acordo com o seu desenvolvimento. "E um problema, porque os aspectos mais íntimos do desenvolvimento são quase impossíveis de definir e to72

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car, tal como felicidade, saúde e alegria" (p. 173). A ciên cia exi ge, é claro, quantificação, " mas coisas raras e refinadas são produzidas em muitos países pobres do mundo. Considerem-se a culinária, a vestimenta, o artesanato, as artes ou a sensibilidade e o refinamento de algumas línguas" (p. 173-174). A educação, tal como existe hoje, é uma "educação antidesenvolvimento". A maioria das crianças africanas rece be hoj e uma educação que destrói o seu futuro. A erradicação do analfabetismo exige recurso às línguas locais. " Usar as línguas africanas significa ao mesmo tempo restaurar a dignidade dos camponeses. Os camponeses sofrem de um complexo de inferioridade, porque as pessoas se dirigem a eles numa língua estrangeira" (p. 176). O Estado tem um papel funda ment al a desempenhar no desenvolvimento. "Quase desde o seu nascimento, o Estado é surrado por instituições como o Banco Mundial. Essas instituições exigem que haja menos Estado ainda, e a influência das empresas transnacionais é cada vez mais forte. A África terá tempo suficiente para criar um Estado que será o clone do Estado europeu? Atualmente, os líderes africanos o transformam num Estado patrimonial ou num Estado étnico, o que não é um Estado genuíno e capaz de transcender interesses particulares em prol do bem comum" (p. 7-8).

I - Revisitando a caixa de ferramentas 1- Aspectos estruturais dos PMDs: orientação para a subsistência, fraca capacidade de poupança e vulnerabilidade às importações. Sejam quais forem as suas diferenças em termos de tamanho, demografia, localização geográfica ou geopolítica, os PMDs compartilham as três características citadas acima. Eles são orientados para a subsistência, na medida em que estas atividades absorvem muito mais tempo de trabalho do que as atividades direcionadas ao mercado. Em todas as sociedades, mesmo 6

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nas mais industrializadas, a parcela de tempo dedicada às atividades caseiras é maior do que a passada no trabalho profissional e remunerado. Os franceses gastam anualmente 43 bilhões de horas nas tarefas domésticas e apenas 39 bilhões de horas no trabalho profissional e no emprego remunerado (Gazier B., 2003, p. 210). Nos PMDs, essa proporção é de fato muito alta, como se pode verificar a partir dos orçamentos do tempo dos membros da família, diferenciados pelo gênero e pela idade e ponderados pelas estações do ano e pelo calendário de atividades agrícolas. Além das atividades diárias ligadas à preparação da comida e aos cuidados com as crianças, alguns domicílios rurais e mesmo urbanos são, em grande parte, auto-suficientes no que diz respeito a alimentos básicos, fazem investimentos não monetários (freqüentemente não contabilizados no PIB), na forma de construção e reparo de prédios, desmatamento, colocação de cercas em pastos etc., em regime de mutirão. Embora seja errado falar de um setor de subsistência inteiramente autônomo, que raramente existe (o mesmo se aplica ao setor 6

informal), o volume de atividades de subsistência e a parcela do tempo disponível consumida por elas devem ser avaliados e explicitamente incluídos numa estratégia de desenvolvimento, já que a mode rni zaç ão das atividades de subsistênc ia teria um efeito duplo: 1.inovações técnicas na agric ultura de subsistênc ia, na criaçã o de animais, na horticultura, no suprimento e na estocagem de água e de energia, no cozimento dos alimentos, na iluminação, na proteção contra mosquitos e outras melhorias nas condições de moradia, assim como a disseminação de conhecimentos práticos de economia doméstica e de higiene, teriam um efeito imediato no bem-estar das pessoas, na sua saúde e na sua capacidade de trabalhar;

6 A esse respeito, ver Wuyts M., 2001. Ver ainda Sachs I. 1980,1988 e 2000a.

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2.ao melhorar a produtividade do trabalho doméstico, tornandoo mais leve e encurtando as longas horas gastas diariamente com a obtenção de água e de lenha, tal modernização liberaria algum tempo das mulheres para que elas se engajassem em atividades adicionais orientadas para o mercado e/ou em alguma atividade de lazer; no caso das crianças em idade escolar, este tempo liberado iria para estudos e diversão. A redução do tempo dedicado às atividades de subsistência assume importância dramática em domicílios que sofrem escassez de mão-de-obra por causa da endemia da AIDS. Consideramos que progressos significativos podem ser alcançados na racionalizaç ão e na moderniz ação das atividades de subsistência, usando recursos modestos e dentro de prazos relativamente curtos. Os PMDs têm fraca capacidade de poupança. À primeira vista, isso parece ser natural em países assolados pela pobreza, dado o seu PIB per capita extremamente baixo. No entanto, a história está cheia de exemplos da extorção de excedentes das populações que viviam abaixo do que seria considerado, nos dias de hoje, a linha de pobreza, aem detrimento do seu em consumo mais atrasados básico e sujeifragal. Na verdade, acumulação primitiva, países rurais tos a governos despóticos, só poderia ter acontecido dessa maneira (se excetuarmos as guerras de conquista), nas costas de escravos semifamintos, servos feudais, peões ou camponeses coletivizados em colc oses e com una s (Sachs I., 1966). Motivos éticos fortes e o compromisso com a democracia excluem a possibilidade de se recorrer a esse atalho cruel para se chegar à modernidade. Não temos o direito de sacrificar a geração presente em prol de um futuro radiante para aqueles que virão depois de nós, da mesma for ma que não temos o direito de privar as gerações futuras de herdarem um planeta habitável. Isso significa que os PMDs estão condenados ao crescimento lento e a ficarem para sempre atrás dos demais? 6

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É possível assumir uma posição menos pessimista, com base nas seguintes considerações: • embora a taxa atual de poupança dos PMDs seja muito baixa, a taxa de extração do excedente é bem substancial; no entanto, parte deste excedente se direciona para fora dos PMDs, por meio dos termos de troca desfavoráveis e do serviço da dívida; além disso, ele financia o consumo conspícuo das elites urbanas e, muitas vezes, sustenta a administração pública supérflua e o Estado patrimonial; em outras palavras, o excedente extraído é flagrantemente mal alocado; 7 • opaíses fluxo industrializados da ajuda oficial externa crescere sérios muito se os ao fossem poderia mini mament quanto seu compromisso de alocar para este fim 0,7% do seu PIB; • a taxa de crescimento do PIB dos PMDs e o volume de investimento podem ser melhorados um pouco se forem exploradas as potencialidades do crescimento puxando o emprego e do desenvolvimento ineludente (ver abaixo). O terceiro aspecto estrutural dos PMDs é a sua vulnerabilidade a importações (Sachs I., 1966 e 1969), em virtude do alto conteúdo de importações de todos os processos de investimento, dada a inexistência de uma indústria doméstica de bens de capital e de capacidade de engenharia, agravadas, em alguns casos, pela dependência de importações de alimentos básicos e de energia. Assim, a vulnerabilidade quanto às importações resulta da estrutura da economia nacional. Ela não depende do grau de abertura econômica, nem da percentagem do comércio exterior na composição do PIB dos PMDs. Muitas economias coloniais eram acentuadamente abertas, como bem aponta a UNCTAD, mas o problema

7 Para uma discussão sobre as distorções patológicas do Estado nos PMDs, ver Mkandawire T. (2001) e Mohne G. C. Z. (2001).

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dos PMDs não é o seu nível de integração com a economia mundial, mas a mane ira pela qual se dá esta integraçã o (U NCTAD , 2002a). A questão crucial é a participação das importações essenciais nas importações totais. Paradoxalmente, quanto mais alta é essa participação (normalmente um sinal de bom gerenciamento de divisas escassas), mais sensível se torna o país a mudanças adversas nos termos de troca e/ou a variações negativas nas receitas obtidas pelas exportações. Quando cai a capacidade de importar, ocorre um corte involuntário nas importações essenciais, o que, por sua vez, desacelera ou mesmo paralisa o processo de investimento em curso. A vulnerabilidade às importações é um componente essencial da armadilha da pobreza que aprisiona os PMDs. 8

2- A armadilha da pobreza Para fins analíticos, pode ser assim resumido o ciclo vicioso e mutuamente alimentado de obstáculos ao desenvolvimento enfrentado pelos PMDs: 9 • uma agricultura primitiva, de baixa produtividade (tanto em termos de rendimentos por hectare quanto de produtividade por trabalhador), é incapaz de produzir um excedente de alimentos para atender às necessidades de uma população urba8 Uma armadilha completamente diferente, uma espécie de "doença holandesa" ou, para usar os termos de Ricupero, "a maldição da riqueza" ( Folha de São Paulo, 25 de maio de 2003), afeta os países produtores de petróleo, como Angola, que têm grande facilidade de importar por causa das suas abundantes receitas de exportação e de suas moedas sobre-valorizadas. Sobre a "doença holandesa" nos PMDs, ver também Mhone, 2001, e as observações de Gustav Ranis no Ad Hoc Expert Group Meeting on "New Trade and Development Strategies in the Least Developed Countries", UNCTAD, Genebra, 11-12 de junho de 2003. 9 Para versões anteriores da análise da armadilha da pobreza, ver Sachs I. 1963, 1967 e 1979.

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na crescente (a armadilha ricardiana) e de oferecer as matériasprimas agrícolas necessárias às indústrias; • por sua vez, a falta de indústrias manufatureiras impede o forneci ment o aos agricultores de implem entos e de máquinas agrícolas, fertilizantes e pesticidas que eles poderiam usar para aumentar a sua produção. Além do mais, tanto o setor primário quanto o secundário sofrem com investimentos insuficientes (por causa do baixo nível de poupança) e com a falta de pessoal qualificado disponível domesticamente. A única maneira de quebrar esse ciclo vicioso é transferir o problema para o comércio externo, recorrendo a importações de insumos e equipamentos para a agricultura, máquinas para as indústrias etc., contratando especialistas estrangeiros e atraindo capital também estrangeiro para aumentar a taxa de investimentos. A capacidade de importar é, portanto, a variável crucial para se escapar da armadilha da pobreza. Se ela puder ser aumentada por meio da expansão das exportações e pelo acesso a fontes externas de capital em condições razoáveis (sem disparar uma outra armadilha - a acumulação de uma dívida externa impossível de ser gerenciada), o país terá entrado no caminho virtuoso do desenvolvimento. Inversamente, se entram em colapso os esforços de aumentar a capacidade de importação e, pior ainda, se o país enfrenta mudanças adversas nos termos de troca, causando declínio das receitas das importações e elevando os custos do capital externo, a armadilha se fecha de novo, desta feita por meio de um poderoso feedback neg ati vo que afe ta as ativi dades corr entes de invest imento, que têm nos PMDs, como sabemos, um alto conteúdo de importações; mesmo se existe poupança interna disponível, a sua transformação em investimento acaba sendo paralisada (ver a figura IA).

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Infelizmente, no entanto, na medida em queeconômico os PMDsintervulneráveis às importações enfrentam um ambiente nacional desfavorável, conforme analisado em sucessivos relatórios da UNCTAD, eles continuam presos na armadilha da pobreza. Para ser mais preciso, eles foram induzidos a buscar uma fuga recorrendo a empréstimos externos excessivos, enquanto colocavam as suas esperanças nos investimentos diretos de capital estrangeiro quefuite não en ocorreram. líquido dívida de suaexterna, malsucedida avant é aOsuaresultado inadministrável que complica ainda mais a busca das saídas da armadilha da pobreza. A saída terá de ocorrer mediante políticas nacionais que tenham as três metas seguintes (ver a figura 1B): 1- aumento da poupança doméstica, tanto como resultado de uma taxa maior de crescimento geral quanto de um aumento da participação da poupança no PIB (ver a próxima seção); 2- remoçã o dos obstáculos institucionais ao desenvolvimento agrícola, por meio de reforma agrária, se for preciso, e da promoção da segurança alimentar; 3- aumento da capacidade de importação, por meio da pr omoç ão das exportações, da substituição de importações e da eliminação de 69

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importações não essenciais, especialmente itens de consumo conspícuo das elites urbanas. 10

Figura 1B

Será necessário algum grau de planejamento. Para propor uma saída à armadilha da pobreza, é necessário saber em que direção se deseja ir e quais são as prioridades derivadas dela, onde estão os gargalos e as potencialidades ainda não aproveitadas, que tipo de estratégia baseada em forças próprias ( bo ot st ra p strategy) aind a está 11 disponível, na ausência de assistência internacional efetiva.

10 As melhores oportunidades de substituir exportações e importações devem ser usadas em proporções variadas, sem qualquer viés ideológico em relação a umas ou outras: o critério para a escolha dos melhores itens é o custo doméstico líquido de uma unidade de moeda estrangeira recebida por me io de exportações ou poupada por me io da su bs ti tu iç ão de imp ortações. 11 Esta seção atualiza trabalhos anteriores de Sachs sobre o assunto (Sachs I., 1963, 1964, 1967, 1969).

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3- Definindo o desenvolvimento includente 12 A maneira natural de se definir o desenvolvimento includente é por oposição ao padrão de crescimento perverso, conhecido, como já se mencionou, na bibliografia latino-americana como "excludente" (do mercado de consumo) e "concentrador" (de renda e riqueza). Dois outros aspectos do crescimento excludente são: • mercados de trabalho fortemente segmentados, que mantêm uma grande parcela da maioria trabalhadora confinada a atividades informais, ou condenada a extrair a sua subsistência precariamente da agricultura familiar de pequena escala, sem quase nenhum acesso à proteção social (ver i.a. Rodriguez, O., 1998, e Revista Latinoamericana de Estúdios dei Trabajo, 1999); • fraca participação na vida política, ou completa exclusão dela, de grandes setores da população, pouco instruída, suborganizada e absorvida na luta diária pela sobrevivência, sendo as mulheres, sujeitas à discriminação de gênero, as mais fortemente atingidas. O desenvolvimento includente requer, acima de tudo, a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos. A democracia é um valor verd adei rame nte fund ame nta l (A. K. Sen) e garant e também a transparência e a responsabilização (accountability) necessárias ao funcionamento dos processos de desenvolvimento. No entanto, existe uma grande distância entre a democracia representativa e a democracia direta, que cria melhores condições para o debate dos assuntos de interesse público. Todos os cidadãos devem ter acesso, em igualdade de condições, a programas de assistência para deficientes, para mães e fi-

12 Esta seção retoma textualmente uma parte do capítulo anterior, de maneira a permitir uma leitura autônoma dos capítulos.

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lhos, para idosos, voltados para a compensação das desigualdades naturais ou físicas. Políticas sociais compensatórias financiadas pela redistribuição de renda deveriam ir mais longe e incluir subsídios ao desemprego, uma tarefa praticamente impossível naqueles países onde apenas uma pequena minoria está empregada no setor organizado e onde o desemprego aberto é bem menos significativo que o subemprego. O conjunto da população também deveria ter iguais oportunidades de acesso a serviços públicos, tais como educação, proteção à saúde e moradia. Seguem-se alguns comentários a este respeito. A educação é essencial para o desenvolvimento, pelo seu valor intrínseco, na medida em que contribui para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão dos direitos humanos, aumentando a adaptabilidade e o sentido de autonomia, bem como a autoconfiança e a auto-estima. É claro que tem também um valor instrumental com respeito à empregabilidade. Porém, a educação é condição necessária, mas não suficiente, para se ter acesso a um trabalho decente. Deve vir junto com um pacote de políticas de desenvolvimento, que alguns apresentá-la como uma panacéia. Ummesmo dos paradoxos que prefiram prevalecem hoje é o desemprego maciço de adultos existindo lado a lado com o intolerável fenômeno do trabalho infantil. Para poder colocar todas as crianças na escola é necessário distribuir bolsas para aqueles oriundos de famílias pobres, cuja sobrevivência depende do dinheiro que levam para a casa.13 Mesmo sendo muito importante o acesso aos serviços de saúde, eles fazem parte de um objetivo mais amplo, que é o de melhorar a saúde das pessoas. Isto depende de uma alimentação adequada (segurança alimentar), do acesso à água limpa, da melhoria das condi-

13 O programa pioneiro "Bolsa Escola", introduzido por Cristovam Buarque, em Brasília, merece todo o destaque neste contexto.

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ções de moradia e de trabalho, de uma melhor educação e de medidas preventivas, como a vacinação. Existe um debate a respeito de a moradia ser ou não um serviço público. Tratá-la desta forma, nos países do antigo bloco soviético, não trouxe resultados satisfatórios. No entanto, a provisão de moradia decente para todos, preenchendo, desta forma, uma necessidade básica, é certamente um enorme desafio para o desenvolvimento ineludente. Daí a importância de políticas de moradias populares e, em particular, de esquemas baseados na autoconstrução assistida, nos quais as autoridades públicas se juntam aos esforços dos futuros moradores, cujo trabalho se constitui numa forma não monetária de poupança. Todos os quatro itens de serviços públicos citados acima - programas de assistência, a educaç ão, a saúde, e a mora dia - exige m financiamento público, por meio da redistribuição de uma parcela do PIB, independentemente da forma como sejam administrados: seja diretamente pela administração pública, por instituições que pertençam ao terceiro setor da sociedade civil organizada ou até por empresas privadas. A questão de se as primeiras três devem permanecer completamente na esfera pública, devido ao seu valor para o bem-estar social, é matéria de acaloradas discussões ideológicas. Os defensores do paradigma neoliberal propõem, em seu lugar, soluções de mer cado , no que são auxilia dos pelo fato de que, em muito s países, a atuação do setor público tem sido um tanto falha. 14 Os limites entre as esferas pública e privada, assim como a definição dos bens públicos, são outros assuntos a serem discutidos. Mais importante ainda é fazer uma distinção entre as políticas compensatórias financiadas pela redistribuição de renda mediante o sistema fiscal e as políticas de emprego que mudam a distribuição de renda primária . Amb as são necessá rias, porém as primei ras são 14 A este respeito, ver o prólogo de Kannan K. P. e Pillai N. V. (2002).

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de natureza puramente social e requerem despesas contínuas, ano após ano, enquanto que as segundas, mediante a criação de oportunidades de trabalho decente, geram renda e proporcionam uma solução duradoura ao problema social. Ceteris paribus, a gera ção de emprego deve ser preferida às políticas assistencialistas compensatórias, se não por outra razão, porque as segundas nunca proporcionam a dignidade que provém do emprego. 15 A economia capitalista é louvada por sua inigualável eficiência na produção de bens (riquezas), porém ela também se sobressai por sua capacidade de produzir males sociais e ambientais. Para os ideólogos do fundamentalismo de mercado, estes males são o preço inevitável do progresso econômico. Só podem ser mitigados e compensados mediante a produção de bens públicos, tais como a redução da pobreza ou a proteção do meio ambiente. Em outras palavras, o desemprego maciço, o subemprego e as desigualdades sociais são inerentes ao sistema capitalista, porém estes inconvenientes seriam mais do que compensados pela eficiência da economia capitalista de mercado. Este argumento se apóia, no entanto, numa definição muito estreita de eficiência. Num importante livro sobre os limites do mercado, Kuttner (1997) distingue três tipos de eficiência: a alocadora, associada ao nome de Adam Smith, a inovadora (schumpeteriana) e a keynesiana, que consiste em pleno emprego de todos os meios de produção. Em outro texto, argumentei que há outros dois tipos de eficiência: a social (que se sobrepõe à keynesiana quanto ao pleno emprego e a força de trabalho) e a ecoeficiência. Não resta dúvida de que o capitalismo é muito eficiente em termos de alocação, porém deficiente em termos das efi15 Segundo Há-Joon Chang, (2002), J. Stiglitz apóia esta opinião e considera que se exige mais ênfase para que o pleno emprego e a maior participação do emprego sejam considerados como partes essenciais de uma sociedade genuinamente democrática.

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ciências keynesiana, social e ecoeficiência, que são essenciais ao conceito de desenvolvimento includente, fundamentado no trabalho decente para todos. Longe de ser um parâmetro estimado a partir de comportamentos passados, a elasticidade de emprego do crescimento deve ser tratada como uma variável no planejamento do desenvolvimento, pois é a chave de uma estratégia de desenvolvimento includente. Taxas mais altas de crescimento econômico global presumivelmente trarão maior emprego. Porém, é igualmente importante refletir sobre como maximizar o potencial de emprego para uma dada taxa de crescimento, influenciando a composição do produto (output-mix) e selecionando as técnicas apropriadas, sem perder de vista o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho, no qual se apoia, em última instância, o progresso econômico.

II- Elementos de uma estratégia triádica de desenvolvimento 1- Por que planejar? Na medida em que as forças do mercado são míopes e insensíveis em termos sociais e ambientais, não se pode esperar que os PMDs entrem na órbita do desenvolvimento includente, sustentável e sustentado apoiando-se exclusivamente nas reformas pró-mercado propostas pelas instituições financeiras internacionais. O seu futuro dependerá da capacidade de criar os padrões de "economia mista", considerado por Dani Rodrik (2000) como o legado mais importante do século XX. 16

16 Esse conceito foi central para a reflexão de Kalecki sobre o desenvolvimento. Tive o privilégio de ser co-autor com ele de um volume a respeito dos problemas de financiamento do desenvolvimento em economias mistas, publicado em polonês, em 1967. Ver também Shigeto Tsuru, 1976.

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O planejamento será, mais do que nunca, necessário para acelerar o crescimento econômico e fazê-lo socialmente responsável. Gargalos devem ser identificados e suprimidos, capacidades ociosas dever ser aproveitadas 17 e recursos latentes (humanos e naturais) devem ser mobilizados para a implementação de uma estratégia societal de longo prazo, cuja explicitação e implementação exigem uma atitude pró-ativa de um estado desenvolviment ista enxuto e limpo. A elaboração de tal estratégia deve começar como um exame rigoroso das potencialidades da economia real. O financiamento do crescimento não inflacionário e sustentado dependerá, em última instância, de duas variáveis reais: • a capacidade de importar e • a ofe rta elástica de aliment os e de outros bens de salário, par a atender à demanda crescente por parte de trabalhadores adicionais e/ou de trabalhadores mais bem remunerados. Desde que essas duas variáveis sejam tratadas de forma apropriada, é possível definir uma meta de crescimento que fique acima da que resulta de uma perspectiva convencional, estreitamente monetarista e orçamentária. Em termos estritamente financeiros, pode-se imaginar a combinação de: • reformas fiscais que eliminem os tributos sobre itens de consumo popular e que, ao mesmo tempo, criem tributos altamente progressivos sobre bens de consumo não essenciais e bens de luxo, combinadas com a arrecadação rigorosa do imposto de renda das empresas e das pessoas físicas no setor moderno;

17 Milhares de fábricas e oficinas existentes nos PMDs, imobilizadas por várias razões, poderiam ser recuperadas e reequipadas a custo moderado, de acordo com um antigo comissário da Comunidade Européia, Edgar Pisani.

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• aumentar a proporção de créditos públicos em relação ao PIB, geralmente muito baixa e inferior às regras de prudência impostas pelo Bank for International Settlements (Banco para Regulamentações Internacionais) e pelo FMI; • abrandamento da disciplina estritamente fiscal recorrendo-se ao uso limitado de financiame nto deficitári o contra-cíclico do crescimento não inflacionário. 18 O planejamento estratégico defendido neste texto tem pouca semelhança, no entanto, com o tipo soviético de planejamento abrangente, adotado pelas economias de comando, com base na crença equivocada de que todas as incertezas poderiam ser exorcizadas por meio da prática de alocação de todos os recursos disponíveis - no presente e no futuro -, de acordo com metas definidas de uma maneir a bastante voluntarista. Sugere-se qu e o pro jeto nacional de desenvolvimento deve emergir gradualmente de um diálogo conduzido, tanto em nível local quanto nacional, entre todos os atores significativos do processo de desenvolvimento (governo, camponeses e trabalhadores, empresários, intelectuais e a sociedade civil organizada), com vistas a alcançar objetivos negociados e a definir as obrigações contratuais de todas as partes envolvidas. Espera-se que o caminho proposto, informado pelo conceito de desenvolvimento includente, sustentável e sustentado, maximize a elasticidade de emprego do crescimento, reduza a dependência de importações e respeite a regra de crescimento não inflacionário. De acordo com a definição sucinta de Kalecki, planejar é pensar por variantes. Planejar consiste em comparar padrões alternativos

18 Uma das principais críticas feitas ao pacote conhecido como o Consenso de Washington é a sua natureza pró-cíclica, que leva a uma política de "parar e andar", enquanto que o desenvolvimento sustentado exige, ao contrário, medidas fortes e contra-cíclicas. Esta mesma polêmica ocorreu na Europa a respeito do chamado pacto da estabilidade.

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de alocação de recursos escassos para finalidades que competem entre si.

2- Os três componentes da estratégia No caso de PMDs, os planejadores devem compatibilizar três objetivos importantes. Um a alta prioridade deve ser conferida à consolidação e à modernização do núcleo modernizador da economia, que consiste de empresas industriais, mineradoras (e, por vezes, agrícolas) intensivas em conhecimento, de alta tecnologia e de alto valor agregado. Elas terão papel decisivo na transformação da estrutura econômica do país, no aumento geral da produtividade da sua economia e na produção de bens que sejam realmente competitivos em mercados externos. Por essas razões, é natural dar alta prioridade aos investimentos no núcleo modernizador. No entanto, por serem capital-intensivos, os empreendimentos desse núcleo geram poucos empregos diretos, embora o seu efeito indireto possa ser substancial: seja pela compra de matérias-primas, seja pelas subcontratações e pela terceirização de atividades como limpeza, m anuten ção e segurança; este efeito indireto se faz ainda sentir por meio do aumento das despesas de consumo por parte das pessoas empregadas por esses empreendimentos modernos. Como forma de compensar a baixa densidade de empregos característica do crescimento do núcleo modernizante, a estratégia de desenvolvimento deveria explorar todas as oportunidades de crescimento produtivo focalizado no emprego, tanto nos setores de atividade naturalmente intensivos em trabalho, quanto nos setores que não sofrem a competição internacional por produzirem bens e serviços chamados "não comercializáveis" ( non-tradables ), de maneira a aumentar a elasticidade emprego /crescime nto e, possivelmente, a melhorar o desempenho do país em termos da taxa de crescimento e de investimento. Este segundo componente da estratégia triádica será abordado detalhadamente na seção II-3. 9

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Além disso, a estratégia deve contemplar maneiras e meios para a ação direta focalizada no bem-estar das pessoas, dando-lhes acesso a serviços básicos como educação, saúde, saneamento e habitação, e apoiando-as na modernização de suas atividades de subsistência fora do mercado. Enquant o os dois primeiros comp onentes da estratégia lidam com setores produtivos, que contribuem para o crescimento do PIB, a provisão de serviços básicos por intermédio de redes públicas deve ser financiada pela redistribuição de uma parcela do PIB, coletada pelo Estado na forma de impostos; as taxas de uso geralmente cobrem apenas uma pequena parte dos custos desses serviços e elas não podem ser cobradas aos pobres. A primeira vista, essa é uma despesa com a qual os PMDs dificilmente podem arcar, ainda mais porque a expansão de serviços básicos compete com desembolsos feitos para programas de redução da pobreza, pretensamente mais eficientes, já que trazem alívio imediato para os necessitados. No entanto, o objetivo não deve ser tanto a mitigação da pobreza, mas a sua erradicação, por meio da combinação da inclusão social pelo trabalho e da implementação de outros direitos da cidadania, tais como o direito à educação, à proteção da saúde, ao acesso à água potável, ao saneamento, a moradias decentes etc. Deve-se, portanto, recomendar aos PMDs, por pobres que sejam, que façam um esforço para aumentar a parcela relativa dos serviços básicos em seus orçamentos, especialmente de serviços educacionais e paramédicos, que são razoavelmente intensivos em trabalho. Mais exatamente, eles são intensivos em trabalho qualificado. Mas o trei nament o de profe ssor es e de para médi cos não é muito complicado. Eles desempenharão tarefas similares às dos seus pares nos países desenvolvidos com a mesma "produtividade" (digamos, o mesmo número de alunos por professor), mas os seus salários serão muito mais baixos. Os PMDs têm, assim, uma vantagem comparativa absoluta no que diz respeito aos custos dos serviços

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básicos. Por isso, eles devem tirar proveito dessa oportunidade, enquanto os salários médios continuam a ser baixos no país. Longe de ser um sonho a ser adiado, a construção de estados de bem-estar 19 havendo diversos nos países pobres é uma possibilidade efetiva, exemplos históricos conclusivos (o México, nos anos 20, as repúblicas soviéticas da Ásia, nos anos 30, e, mais recentemente, China e Cuba, além do estado indiano de Kerala e do Sri Lanka). Em outras palavras, não há motivo para que, nos PMDs, a expansão do consumo coletivo e do acesso a serviços básicos não deva figurar com destaque no modelo de desenvolvimento emergente. Isto é ainda mais verdadeiro por causa dos recentes avanços na tecnologia da comunicação e da informática, que permitem reduzir drasticamente o custo administrativo das redes públicas de serviços básicos. Conforme mencionado, nos PMDs, as atividades de subsistência absorve m grande parte do tem po produtivo da popula ção. A sua racionalização e modernização te riam um efe ito positivo imediato sobre o bem-estar das pessoas. Daí a importância da disseminação de conhecimentos e da disponibilização de técnicas mais eficientes capazes de

poupar esforço, recursos e tempo em atividades tais como: preparação e conservação de alimentos, iluminação, horticultura, construção de moradias, proteção contra insetos e pragas, captação e armazenamento das águas pluviais, e assim por diante. A seguir, examinaremos o escopo para o crescimento puxado pelo emprego, a força motriz do "desenvolvimento a partir de dentro".

3- Identificando oportunidades para o crescimento puxado pelo emprego Podemos distinguir quatro categorias de oportunidades de crescimento puxado pelo emprego: B, C, D, E, na figura 2, na qual a 19 Ver a este respeito artigo de minha autoria publicado na índia há mais de 30 anos (Sachs, I. 1971) e S en A. K„ 199 9.

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produção de bens de salário foi escolhida como uma quinta categoria, para enfatizar o seu papel na busca de trajetórias não inflacionárias do crescimento. A primeira consiste da produção de bens não comercializáveis, que não sofrem concorrência internacional e, portanto, oferecem margens de liberdade muito maiores para a opção por técnicas intensivas em trabalho, sem cair nos exageros de "investimento humano", responsáveis pelo colapso do "grande salto para a frente" da China maoísta. O engajamento de grandes massas de trabalhadores não qualificados em atividades envolvendo pás e picaretas tem as suas limitações, mas ofe rece tam bém al gumas potencialidades em obras públicas de melhoria de infra-estrutura da qual dependem as empresas do núcleo modernizante e as populações urbanas. De acordo com o relatório de 2003 do diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os gastos com infra-estrutura representam cerca de 20% do investimento total dos países em desenvolvimento. "C/ma reorientação das políticas de investimento

em infra-estrutura para assegurar que sejam empregadas opções tecnicamente viáveis, com custos/benefícios favoráveis e intensivos em emprego, acelera a redução da pobreza, ao gerar emprego produtivo e decente" (p. 42). Prog ram as pilotos e de gran de escala de construção intensiva em mão-de-obra das infra-estruturas, executados em diferentes países, mostram que estas abordagens são de 10 a 30% menos caras em termos financeiros, reduzem a demanda de divisas em 50 a 60% e criam entre três a cinco vezes 20 mais empregos para o mesmo volume de investimento. A construção é outro setor no qual técnicas intensivas em trabalho podem ser empregadas. Mas as maiores oportunidades surgem na área de serviços. 20 O relatório da OIT dá ênfase aos resultados positivos do programa de estradas vicinais, realizado em Moçambique, que recuperou cerca de 7.000 kms de estradas vicinais nos últimos 10 anos.

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Figura 2

A Produção de ben s de sal ário

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Artesanatos, indústria e agricultura intensivas em trabalho

Inves timent o não monet ário

E Fontes de cres cimen to que não requ erem

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Os PMDs podem dar o pulo do gato e virar "sociedades de serviços", segundo a sugestão de Richard Meier (2000), desde que se dê aos serviços a prioridade adequada no projeto de desenvolvimento. Conforme dito antes, deve-se enfatizar os serviços básicos oferecidos por meio de redes públicas, como educação, saúde e saneamento, sem se esquecer a comunicação, o correio e a administração pública. Existe também escopo para se ampliar os serviços técnicos, tais como manutenção e reparação ou ainda o transporte de pessoas e mercadorias. O comércio e os serviços pessoais podem criar muitas ocupações, distintas dos serviços domésticos mal pagos. Finalmente, devem-se mencionar os serviços intensivos em trabalho qualificado com base em tecnologias de comunicação e inforsoftware mação (TCI). Hoje em dia, a índia é um líder na oferta de e de serviços baseados na informática, que estão sendo também The terceirizados para países como China, Rússia e Vietnã ( 92

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Economist, 19 de ju lh o de 2003). É prov ável que opor tuni dade s nesse campo surj am também em países africa nos franc ófonos , como a Tunísia, o Marrocos e o Senegal. 21 A expansão dos serviços deve ocupar um lugar destacado no desenvolvimento rural, oferecendo - juntamente com as indústrias rurais - muitas vagas para empregos não agrícolas e reduzindo a clivagem civilizacional entre a cidade e o campo. A pluriatividade tende a se tornar uma palavra-chave para os agricultores e as suas famílias. Entre 1978 e 2000, a China conseguiu criar mais de 120 milhões de empregos não agrícolas em áreas rurais, muitos deles nos setores da construção e da administração. Certamente vale a pena meditar sobre esta lição. A segunda categoria poderia ser chamada de "quase não comercializáveis": alimentos perecíveis e produtos agrícolas volumosos que não suportam o custo do transporte a longa distância. Parte dos produtos da agricultura familiar de pequena escala intensiva em trabalho se destina ao autoconsumo; o resto vai para os mercados locais ou cidades próximas ou é processado por agroindústrias, algumas delas tradicionais, outras pertencentes ao núcleo modernizador da economia. Nesse contexto, a seleção dos cultivos agrícolas se torna muito importante. Sempre que possível, deve-se dar preferência a cultivos intensivos em trabalho, como frutas, hortaliças e flores. Samir Amin (2003) está certo quando afirma que a agricultura camponesa de pequena escala representará um problema ao longo do século XXI, na medida em que 20 milhões de agricultores eficientes poderiam eliminar facilmente os três bilhões de pequenos 21 Ver Le Monde, 27 de maio de 20 03 . De acor do com um estu do, 30 % dos gra ndes gru pos financeiros já rea loc ara m part e dos seus serviços em países que pagam baixos salários, e essa proporção deve crescer até 75% nos próxi mo s anos. Em 2008, os serviços financeiros terão realoca do 35 0 bilhões de euros e dois milhões de empregos.

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produt or es ineficientes, na ausência de políticas apropriadas para protegê-los. 22 A produção de biomassa em regime intensivo de trabalho tem um futuro muito promissor nos PMDs, por várias razões: • para alcançar a segurança alimentar e assegurar uma oferta elástica de bens de salário (comida, principalmente) nas economias em crescimento, será preciso um aumento substancial na produção doméstica de alimentos; • em alguns PMDs, tanto os alimentos básicos quanto os alimentos sofisticados e de luxo são atualmente importados, havendo, pois, vastas possibilidades para a substituição de importações, mais fácil de se conseguir do que nas indústrias; • algumas frutas, hortaliças e outros produtos agrícolas poderão encontrar acolhida em mercados externos; • a biomassa agrícola, florestal e aquática tem diversos usos potenciais: alimento, ração animal, bioenergia, fertilizantes, materiais de construção, matérias-primas para indústrias (fibras, plásticos etc.), fármacos e cosméticos. Vários PMDs de grande extensão territorial são dotados de grande biodiversidade, condições climáticas favoráv eis e disponibilidade de terra e água para cultivar diversos tipos de biomassa, por meio de métodos razoavelmente intensivos em mão-de-obra. As biotecnologias abrem caminho tanto para o aumento da produtivi-

22 O diferencial de produtividade entre a moderna agricultura mecanizada e o trabalho agrícola atrasado e de pequena escala do camponês está hoje numa escala de 2000 para 1. A agricultura avançada capitalista produz entre uma e duas toneladas por trabalhador, por ano. Os fazendeiros que passar am pela "Revolução Verde" produzem en tr e 10 e 50 tone ladas po r ano. Os fazendeiros mais atrasados mal chegam a 1 tonelada por ano (Amin S., 2003, p. 36-39). "Industrialização sem descampenização" (expressão cunhada po r outro econ om is ta egípcio, Ismail Sabri Abdalla) é o único caminho razoável que existe para os países em desenvolvimento.

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dade quanto para a abertura de um vasto leque de produtos derivados da biomassa , produzidos n um arr anjo industrial em duas etapas sugerido por M. S. Swaminathan - refinarias locais de biomassa incumbidas de reduzir o volume do produto a ser transportado para unidades centrais de processamento, integrantes do núcleo modernizador. Na medida em que muitos países tropicais têm condições de dar o pulo do gato na direção de uma civilização moderna, baseada na biomassa e ambientalmente sustentável, seria lamentável que a chave deste desenvolvimento, constituída por biotecnologias verdes (agrícolas), vermelhas (farmacêuticos) e brancas (industriais), fosse monopolizada por multinacionais sediadas em países industrializados. Por isso, impõe-se um grande programa Sul-Sul de pesquisa 23 em biotecnologias aplicadas (Sachs I., 2000a). Ao contrário dos não comercializáveis, a competitividade é um fator crucial a ser considerado para o terceiro componente do crescimento puxado pelo emprego - indústrias e artesanatos naturalmente intensivos em trabalho, capazes de produzir bens de salário não variedade de produtos para os mercados locais, agrícolas nacionaisee uma internacionais. Essas indústrias enfrentam uma dura competição - a dos outros países em desenvolvimento que gozam da mesma vantagem comparativa: mão-de-obra barata. O perigo é transformar essas atividades em indústrias altamente exploradoras dos trabalhadores, em virtude

The 23 Uma revisão recente sobre o assunto da biotecnologia, publicada em Economist, em 29 de março de 200 2, apo nt a a possibi lidade de subst itu ir a atual "economia dos hidrocarbonos" pela futura "economia do carbohidrato", e acrescenta: "As áreas rurais seriam rejuvenescidas como fontes de matérias-primas. Terras atualmente sem cultivo seriam usadas de novo. Instalações químicas de pequeno porte para processar os materiais apareceriam em todos os lugares. Os países produtores de petróleo se veriam desempregados" (p. 16).

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da competitividade espúria (autodestrutiva em longo prazo), obtida com base em salár ios excessivame nte baixos, longas jorn adas de tra balho, uso de trabalho infantil, ausência de rede de segurança social e segurança de emprego, para não mencionar a fraude fiscal. Em compensação, nichos de competitividade autêntica devem emergir em atividades de artesanato artístico que exigem uma tradição solida de trabalho qu alif icad o e srcinal. Como já f oi dito, atividades intensivas em trabalho qualificado - desde tecelagem e talha em madeira até a produção de software e de serviços basea dos em TICs - merecem atenção especial em todos os países em desenvolvimento, inclusive em alguns PMDs. Podemos passar agora para a quarta categoria de atividades intensivas em trabalho que levam à liberação de recursos adicionais para o desenvolvimento e o investimento. Trata-se das chamadas "fontes de crescimento que não exigem investimento" (Kalecki, 1993, Sachs, 1999). Todas as atividades orientadas para poupar recursos naturais (conservação de energia e água, por exe mplo), recicla r resíduos e reutilizar materiais resultam numa melhor utilização das capacidades produtivas existentes e, ceteris paribus, contr ibuem para um a taxa maior de crescimento e para a sustentabilidade ambiental deste crescimento. Por outro lado, uma melhor manutenção do estoque existente de infra-estruturas, equipamentos e prédios, de forma a prorrogar o seu ciclo de vida e a reduzir a sua depreciação (física) real, leva a uma demanda reduzida por capital de reposição e, ceteris paribus, 24 libera recursos para novos investimentos. 24 Ver a teoria do crescimento de Kalecki. A equação básica é: r = i- a +u k onde: r é a taxa de crescimento, i é o tamanho relativo do investimento em relação ao PIB, k é a razão entre o capital e a produção, a é o coeficiente de depreciação real e u é o coeficiente de utilização melhorada do aparato produtivo.

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Acontece que tanto a conservação de recursos quanto a manutenção são atividades intensivas em trabalho. A grande difi culd ade é o desenho de esquemas financeiros e organizacionais e de incentivos adequados para micro e pequenos empreendimentos. Nessa m e s m a linha de r e f l e x ã o , d ev e mo s ex pl or ar as potencialidades do investimento não monetário. Trata-se de uma prática relativamente comum na economia camponesa (embora ela não seja contabilizada no PIB). O investimento não monetário desempenha também um papel significativo na autoconstrução assistida de moradias, tanto rurais quanto urbanas, muitas vezes baseadas em práticas de mutirão. Existe um vasto potencial para programas de autoconstrução assistida de moradias, melhoria das condições de vida nas favelas, captação e armazenamento de água (cisternas), saneamento, construção de escolas e de equipamentos culturais, financiados em parte por contribuições voluntárias em forma de trabalho gratuito. A ajuda mútua pode ser transformada numa poderosa alavanca do desenvolvimento. Para concluir estapelo seção, é importante o objetivo do crescimento puxado emprego não élembrar apenas que a perpetuação de estratégias de sobrevivência, por importante que seja em curto prazo, mas a geração, em números crescentes, de empregos decentes. Como o ponto de partida é caracterizado por uma produtividade do trabalho muito baixa, a estratégia de desenvolvimento precisa incluir um processo constante de sua melhoria, em todos os níveis de atividade. Isto implica na melhoria de todas as atividades informais, que tanta importância têm nos PMDs.

4- Qual o futuro dos pequenos produtores? Atividades informais nos serviços, no comércio, nas oficinas de conserto e no artesanato constituem a maioria esmagadora dos empregos nas áreas urbanas. Qual o seu futuro? 6

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Por muitas décadas, a opinião dominante era que essas atividades eram meros remanescentes de um passado que a modernização se incumbiria de eliminar, mais cedo ou mais tarde. O mesmo destino estaria supostamente reservado às atividades agrícolas de pequena escala dos camponeses, em todo o mundo. Havia ainda a suposição otimista de que os excedentes de mão-de-obra do setor tradicional seriam gradualmente absorvidos pelo setor moderno em expansão. A história se encarregou de desmentir essa visão. Mesmo os países industrializados estão cada vez mais vivenciando um fenômeno maciço de exclusão social. Este resulta de uma combinação de um crescimento lento e que gera relativamente poucos empregos com a incapacidade de traduzir o aumento da produtividade do trabalho num processo eqüânime de redução do tempo de trabalho, de maneira a assegurar o emprego pleno. 25 Por causa disso, o dualismo, antes considerado um sintoma do subdesenvolvimento, está sendo reinterpretado em alguns círculos como um fenômeno inevitável, que ganhou um nome novo para se tornar mais palatável - "sociedade de duas marchas". Da mesma maneira, atividades mal pagas e precárias são elogiadas como uma solução, e não como um prob lema . Algun s chegam a afi rmar que o setor informal é um "motor do crescimento" para as economias africanas.

25 Dois economistas franceses, Coutrot T. e Husson M. (2001), mostraram (p. 42) que, entre 1965 e 1974, o crescimento médio anual do PIB francês foi de 4,96%,porpraticamente igual taxa detendência crescimento da produtividade do trabalho hora (4,93%). A àmesma ocorreu entre 1983 e 1999: o PIB cresceu a 2,12% ao ano e a produtividade do trabalho a 2, 13 % ao ano. Em outras palavras , o crescim ento do emprego (0 ,76 % no prim eir o per ío do, e 0,33%, no segu nd o) se deveu prin cipalmente à red ução da jornada de trabalho (-0,76% e -0,34%). O problema é que essa redução ocorreu de uma maneira eqüânime, levando a um grande crescimento do desemprego.

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No seu excelente estudo sobre as atividades informais da Tanzânia, Wuyts (2001) acertadamente contesta essa posição. Na falta de medid as aprop riadas para se alcança r a seguranç a alimentar, a expansão do setor informal enfrentará a armadilha ricardiana, tal como ocorreu, no passado, com as políticas de substituição de importações. Igualmente, não é realista pretender que trabalhadores informais e moradores de favelas, em todo o mundo, estejam sentados em cima de um tesouro no valor de vários trilhões de dólares, formado por casebres cujos donos poderiam obter hipotecas se os seus direitos de propriedade fossem reconhecidos (de Soto H., 2000). A idealização da economia informal se baseia numa confusão mencionada antes - entre estratégias de sobrevivência e estratégias de desenvolvimento. Mesmo sendo criativas e cheias de invenção, as primeiras só conseguem oferecer rendimentos insuficientes à custa de muitas dificuldades e sacrifício s. Para competir com empresas modernas, as empresas informais são obrigadas a recorrer à competitividade espúria. Além do mais, as relações de trabalho, no âmbito das empresas informais, são tudo, menos idílicas. É errado supor que as atividades informais por naturezadasconviviais. trabalho entre sejam os representantes diferentesMesmo geraçõesas erelações gêneros,de dentro da família e da comunidade, são freqüentemente marcadas por tensões e conflitos. Alguns pais e mães são coniventes com o trabalho infantil. A exploração do trabalho familiar gratuito é corriqueira. Os donos de habitações em favelas freqüentemente cobram aluguéis abusivos e muitos pequenos empreendedores não são particularmente escrupulosos nas suas relações com os empregados. A visão româ ntic a de um setor infor mal convivial con vém àqueles que o consideram, cinicamente, uma válvula de escape para a economia capitalista em apuros, cada vez mais incapaz de gerar oportunidades de trabalho decente em números suficientes para contemplar todos os recém-chegados ao mercado de trabalho, isso sem mencionar o estoque acumulado dos desempregados ou subempregados. 6

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Por isso, deve-se contemplar explicitamente, nas estratégias de desenvolvimento, a saída progressiva dos pequenos produtores da informalidade, contribuindo para a sua transformação em arquitetos do futuro. Para tanto, faz-se necessário um conjunto de políticas públicas complementares baseadas no princípio do tratamento desigual aos desiguais, neste caso, de ações afirmativas que favoreçam os pequenos produtores e os empreendimentos de pequeno porte, para compensar a sua desvantagem inicial em relação a empresas maiores, modernas e mais fortes. Na falta de uma discriminação positiva, a maio ria trabalhad ora de peque nos prod utores te m pouc a c hance de sobreviver ao darwinismo social dos mercados, e menos ainda de se libertar do jugo da competitividade espúria. Um estudo realizado no Brasil para o PNUD e para o SEBRAE (Sachs I., 2003) identificou seis políticas que, tomadas em conjunto, podem estimular uma redução gradual da informalidade: • redução dos entraves burocráticos e dos custos administrativos ligados à abertura de microempresas formais; • isenções fiscais e alíquotas reduzidas de impostos; • acesso simplificado à previdência social e diminuição das contribuições; • acesso ao crédito barato e farto;

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• acesso a tecnologias apropriadas, treinamento e assistência técnica; • acesso a mercados, especialmente por meio de tratamento preferencial das micro e pequenas empresas nas compras públicas.

26 Em muitos países, existe crédito subsidiado para pequenos fazendeiros, mas não para artesãos e pequenos produtores urbanos. Essa assimetria se deve exclusivamente ao preconceito ideológico contra os subsídios. 27 Existe um, legislação detalhada sobre esse assunto nos EUA.

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O efeito conjunto dessas políticas provavelmente induzirá alguns microempresários informais e trabalhadores autônomos a formalizarem os seus negócios ou então a formar cooperativas. Esta segunda solução exige, além das seis políticas enunciadas acima, o apoio público a todas as formas de empreendedorismo coletivo, que é, de longe, a maneira mais ef icaz de fortalecer o poder de negociação, as economias de escala e a competitividade de produtores de pequeno porte. Mesmo assim, outros preferirão manter o seu status atual, por acreditarem que as vantagens oferecidas pela formalização não compensam os custos em que terão de incorrer. As pessoas que estejam vivendo na maior em precariedade meio de a sorte expedientes, mergulhadas complexaspor relações detoda família e dedeparentesco, não tendem a ser bons avaliadores dos prós e contras da formalização. É por isso que a saída da informalidade deve ser tratada sob uma perspectiva de longo prazo, nos PMDs, associada a outras transformações da economia real, cuja complexidade vai muito além da dicoto mia formal-informal . 28

28 O estudo da economia real começa com a identificação dos modos de pr oduç ão distintos que coexistem e interagem de ntr o dela: não- merc ado; pequ ena produçã o pré e protocapitalis ta; produção capitalista orie ntada para o mercado; ec onom ia social; atividades de mercado que não são voltadas para a maximização do lucro (cooperativas, associações mutualistas, empresas de trabalhadores autogeridas, associações de cidadãos). Os bens e serviços produzidos entram em quatro circuitos distintos: a economia doméstica; a economia popular que atinge os estratos de baixa renda da população; a corrente principal da economia de mercado; as compras governamentais. Enquanto a produção externa ao mercado é totalmente absorvida na economia doméstica, uma competição feroz ocorre na economia popular, entre pequenos produtores, grandes empresas nacionais e multinacionais, assim como produtos contrabandeados do exterior ou roubados. Por outro lado, alguns produtos e serviços gerados pelos pequenos produtores chegam à corrente principal do mercado. Uma complicação a mais nesse esquema analítico surge quando se leva em conta o comércio externo. 101

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III- Anotações a respeito de uma agenda internacional Este texto argumentou que os PMDs, por causa de um ambiente internacional desfavorável, devem formular estratégias nacionais de desenvolvimento baseadas no conceito do desenvolvimento a partir de dentro, socialmente ineludente, ambientalmente sustentável e sustentado, e que eles devem começar a adotar estas estratégias para fugir dos constrangimentos da armadilha da pobreza. Quanto mais ced o se eng aj are m nessa longa jorn ada , difí cil e cheia d e aventuras, maior será o seu poder de negociação no âmbito da comunidade internacional, principalmente se forem bem-sucedidos no fortalecimento de sua posição comum e na obtenção do apoio de um movimento não alinhado renovado. 29 A primeira demonstração de autoconfiança de um país deve ser assumir a responsabilidade pelas suas políticas. Aldo Ferrer (2003) cunhou o conceito de "densidade nacional" para denotar as circunstâncias que determinam a capacidade de uma sociedade defender eficientemente o seu interesse nacional num contexto de relações internacionais globalizadas. Para ele, o nacionalismo (mas não o chauvinismo) sempre foi uma condição necessária para o desenvolvimento econômico e social. Como diz, "o desenvolvimento não pode ser importado". Ainda assim, conforme destacado pelo relatório da UNCTAD (2002b), as políticas internas, mesmo sendo centrais, não são os únicos fatores que determinam a capacidade de gerar recursos para a acumul ação acelerada. Estes recursos depende m tamb ém de apoios e limitações externos. "Em virtude das suas fraquezas estruturais, do pequeno tamanho dos seus mercados e da dependência de importações para usar as suas capacidades de produção e para acumular, a capacidade dos países pobres para gerar os recursos neces29 Daí a importância dos esforços recentes do Brasil, da África do Sul e da índia para construir um G-3.

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sários ao desenvolvimento depende muito do grau em que conseguem traduzir os seus recursos naturais não explorados e o excedente de mão-de-obra em receitas de exportação, importações e investimentos" (p. 7). Infel izme nte, a liberdade de ação dos PMD s na definiç ão de suas estratégias de desenvolvimento continua a ser severamente limitada pelas condicionalidades ligadas aos financiamentos multilaterais e à redução da dívida. 30 Às vésperas da XI UNCTAD, estes eram os principais pontos de discórdia: 1- A dívida externa dos PMDs chegou a um nível claramente inadministrável; o seu cancelamento, a sua diminuição ou a sua reestruturação deveriam ser acelerados. Uma fórmula razoável para a reestruturação consistiria em limitar a parcela das receitas de exportação a ser alocada para pagar o serviço da dívida, deixando em aberto o núm ero de anos necessár ios par a saldar a dívida. Isto c ria_ria um incentivo para que os países desenvolvidos facilitassem a entrada dos produtos oriundos de países endividados nos seus merca31

dos.2- Há a necessidade urgente de um controle internacional sobre os fluxos de capitais. Há quem considere isto uma condido sine qua non para o desenvolvimento. Num texto muito bem argumentado, Robert Kuttner (2001) chega à conclusão de que "o re-regulamentação dos fluxos de capitais é precisamente o que se precisa para que os governos de centro-esquerda recuperem a capacidade de adotar políticas de crescimento rápido e de justiça social" (p. 162) e

30 De acordo com Rubens Ricúpero (2002), quando se examina com cuidado 27 Papers sobre Estratégias de Redução de Pobreza em Países SubSaharianos, vê-se que em muitos deles o número médio de condicionalidades chega ao número estonteante de 114 por país (p. 11). 31 Um esquema parecido com esse está sendo usado no Brasil para a reestruturação das dívidas fiscais.

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reinventar uma economia mista para o século XXI, capaz de reproduzir o desempenho da economia mista na era posterior à Segunda Guerra Mundial, quando, pela primeira vez na história do capitalismo, trabalhadores experimentaram a melhoria dos seus níveis de 32 vida, juntamente com segurança social e segurança econômica. Como a re-regulamentação dos mercados de capitais não acontecerá do dia para a noite, nesse meio tempo, são necessários controles nacionais sobre os movimentos do capital volátil de curto prazo. Mesmo The Economist, conhecid o pelo seu conserva dorismo fiscal, reconheceu, a partir de um survey recente sobre as finanças globais, que a rejeição liminar de controles sobre o capital em todas as circunstâncias é um erro. A revista elogiou a experiência do Chile e chegou a recomendar a aplicação de medidas fiscais discriminando os capitais voláteis como uma forma de regulamentação prudencial que deveria ser reconhecida pelo FMI e pelos países ricos, para provar que o me rc ad o global de capitais não func io na apenas para o benefício dos bancos dos países ricos ( The Economist, 3 de maio de 2003). Sob pressão norte-americana, o Chile abriu mão do seu plano, mas, significativamente, um dos primeiros passos do recém-eleito presidente da Argentina foi precisamente criar controles sobre movimentos de capitais de curto prazo. 32 Para Kuttner, "o fato é que a economia mista posterior à guerra foi uma conquista magnífica, e os mercados livres globais minam de diversas maneiras o projeto de manutenção de uma economia doméstica mista, gerenciada e regulamentada. O laissez-faire global empurra o capital para aqueles recantos do planeta em que existe menos regulamentação, o que por sua vez faz com que os países avançados tenham mais dificuldade no controle dos seus bancos, bolsas de valores e mercados de capitais, bem como os seus padrões sociais... o projeto centenário de transformar o capitalismo cru em algo socialmente tolerável é minado de inúmeras maneiras pelo globalismo. Domesticamente, existem mecanismos regulatórios e correntes políticas dotadas de apoio social. Eles são quase varridos do cenário quando se deixa tudo para os mercados, em nome do livre comércio. O me rcad o global desloca a economia nacional doméstica" (p. 154-155).

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3- Juntamente com todos os países em desenvolvimento, os PMDs exigem um comércio eqüitativo, o que significa preços justos e estáveis para as commodities, oport unida des para aumen tar o valor agregado por meio do processamento de matérias-primas e acesso preferencial para os produtos novos aos mercados dos países industrializados. Hoje em dia, o comércio funciona de uma forma prejudicial aos pobres, como foi reconhecido por um editorial recente do International Herald Tribune (21 de ju lho de 2003). 33 4- Eles esperam também que o fluxo da ajuda externa oficial cresça, de maneira a alcançar, em poucos anos, a meta de 0,7% do PIB dos países industrializados, com uma forte concentração de ajuda pública e de doações e créditos do Banco Mundial para os PMDs. 33 A condenação da situação atual foi, de fato, muito forte: "Ao montar o jogo do comércio internacional de forma a prejudicar os fazendeiros de países em desenvolvimento, a Europa, os EUA e o Japão estão essencialmente dando um chute na escada do desenvolvimento na qual se encontram algumas das populações mais desesperadas do planeta. Isso é mo ralmente indecent e. As ". O artigo continua ações dos EUA criando pobreza em todo o mundo afirmando que aestão hipocrisia amplia a revolta e que a globalização consiste de uma rua de mão única: "A gritante falta de credibilidade que divide o discurso de livre comércio do mundo desenvolvido de suas ações sobre a agricultura que distorcem os mercados não pode continuar. Enquanto quase 1 bilhão de pessoas lu tam para viver com 1 dólar por dia, as vacas da Un ião Européia recebem em média um subsídio governamental líquido de 2 dólares por dia." Ironicamente, o mesmo jornal publicou, no mesmo dia, um artigo de Louis Uchitelle, intitulado "How globalization thwarts economic recovery" ["Como a globalização obstrui a recuperação econômica"], atribuindo a fraqueza da recuperação da ec on omia dos EUA à com petição dos pro dutos imp ort ado s da China e de outros países cuja mão-de- obr a é barata. O artigo prevê que os EUA pressionarão os chineses a flutuar o seu câmbio, de maneira a tornar as suas exportações mais caras nos EUA. Como a maior parte dessas exportações vem de empresas cujos proprietários são dos EUA, a alternativa seria os EUA forçarem, por meio de regulamentos, essas empresas norte-americanas a ficar de fora de países que não cumprem os padrões mínimos de proteção da mão-de-obra e do meio ambiente, o que evitaria a perda de mais empregos dentro dos próprios EUA.

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5- Devem ser encontradas maneiras para oferecer acesso preferencial à tecnologia e remédios essenciais, tratando-os como bens públicos internacionais, e não como commodities. 6- O investimento externo direto não representa uma modalidade satisfatória de financiar a expansão do núcleo modernizador, já que ele raramente se ajusta às prioridades colocadas pela estratégia nacional e ainda cria uma vulnerabilidade de longo prazo para o balanço de pagamentos, em função dos lucros repatriados. Seria talvez aconselhável voltar aos empréstimos de longo prazo para a aquisição de equipamentos para novas unidades produtivas, pagáveis por uma parcela das exportações adicionais geradas por estas unidades. 7- A cooperação científica e técnica Sul-Sul, crucial para se criar uma autoconfiança coletiva e para encontrar soluções inovadoras para problemas comuns aos países tropicais, por enquanto praticamente inexiste. Parte da culpa recai no sistema da ONU, que não 34 investiu na cooperação Sul-Sul como uma meta prioritária. Esta lista poderia ser ampliada. Uma avaliação serena do equilíbrio do poder internacional não dá margem a muito otimismo a respeito de se alcançarem mudanças significativas em qualquer uma dessas dimen sões. Avanços mode stos são, evide nteme nte, possíveis e desejáveis. Nesse meio tempo, as estratégias nacionais são a única área na qual se pode esperar um progresso substancial.

34 Ver, no entanto, o programa da UNESCO intitulado "Programme on South-South Cooperation on Environmentally Sound Socio-Economic Development in the Humid Tropics", que promoveu a colaboração em rede de reservas da biosfera da Ásia, África e da América Latina, para intercâmbio de experiências no manejo de recursos naturais para alcançar o desenvolvimento sustentável.

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Inclusão social pelo trabalho decente: oportunidades, obstáculos, políticas públicas Texto para discussão prep ara do parInternacional a o Escritório no Brasil da Organização do Trabalho

Para quando a "fábrica de empregos"? O Brasil entrou no século XXI com um aparelho industrial moderno e diversificado e um setor de agronegócios que lhe confere a 1

liderança mundial em vários outrossocial campos. No entanto, a sua estrutura ocupacional reflete o atraso do país. Segundo a PNAD de 2002, os empregados sem carteira assinada constituíam 24,2% da PEA e os empregados por conta própria 22,3%. 4,2% das pessoas ocupadas trabalhavam unicamente para o próprio consumo, e

1

O Brasil vende 29% de todo o açúcar, 28,5% do café em grão e 43,6% do café solúvel consumidos no mundo. Assumiu a liderança em vendas de carne bovina, em 2003, com 19% de participação no mercado mundial. É o primeiro em vendas de carne de frango, com exportações de 1,9 bilhão de dólares. Detém 38,4% do mercado mundial de soja em grão. Vende 23,1% do tabaco consumido no mundo e 81,9% do suco de laranja (Veja, 14 de janeiro de 2004). 1 1 1

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11,7% não tinham nenhum rendimento monetário. 27,1% dos trabalhadores tinham rendimentos inferiores ou iguais a um saláriomínimo, 26,3% de um a dois salários-mínimos, 12,4% de dois a três salários-mínimos, enquanto apenas 1,3% superava os vinte salários-mínimos. A economia brasileira é constituída de um arquipélago de empresas modernas e eficientes, algumas entre elas de classe mundial, imerso num oceano de atividades de baixíssima produtividade. A riqueza está concentrada no arquipélago, e uma parcela importante da população busca a sobrevivência nadando no oceano da informalidade. 2 Para acomodar os novos contingentes que entram na força de trabalho, da ordem de 1,5 milhão de trabalhadores, e saldar a imensa dí vi da socia l ac um ul ad a sob a fo rm a de de se mp re go e subemprego 3 durante quarenta anos de crescimento econômico e de modernização rápidos, porém socialmente perversos, seguidos de mais de duas décadas quase perdidas, o Brasil precisa se transformar numa gigantesca fábrica de empregos. An o após ano, deverão ser gerados de 2 a 2,5 milhões de postos adicionais de trabalho definido pela OIT como decente, ou seja, empr egos e/o u auto-empregos realizados em boas condições e convenientemente remunerados, fazendo com que a força de trabalho empregada cresça a um ritmo anual de pelo menos 2,5%.

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No dizer de Antônio Ermírio de Moraes, presidente do conselho de administração do grupo Votorantim, juros mais impostos mais burocracia é igual a economia informal. 70% da economia são informais, hoje (entrevista concedida a Carta Capital, n° 272, 24 de dezembro de 2003). 3 A taxa de desemprego aberto é de 12,4% e, portanto, supera a média latinoamericana de 11%. Segundo os dados da OIT, o desemprego afeta, na América Latina e no Caribe, 19 milhões de pessoas, dos quais 10 milhões de brasileiros (O Globo, 8 de janeiro de 2004). Porém, num país como o Brasil, o trabalho precário e o subemprego constituem um desafio ainda mais grave, a menos que se considere a informalidade uma solução e não um grave problema.

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No entanto, como bem observou José Pastore, "o Brasil vive

um tempo paradoxal: euforia no mercado financeiro e desespero no mercado de trabalho",4 Os resultad os alcanç ados no pri meir o ano do governo do presidente Lula, no que diz respeito à redução por dois terços da taxa de risco, revalorização dos papéis brasileiros, balança comercial altamente positiva, superávit fiscal superior a 5% do PIB e valorização das bolsas, mereceram rasgados elogios por parte de altos responsáveis do Banco Mundial. David de Ferranti e Vinod Thomas, respectivamente vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e diretor do seu escritório no Brasil, chegaram a falar de um "Consenso de Brasília" - novo modelo que viria substituir o Consenso de Washington, compatibilizando o desenvolvimento econômico com o progresso social. Para eles, o Consenso de Brasília aponta para um novo paradigma de desenvolvimento, de 5 maior interesse para o conjunto dos países do Sul. Assim, o choque de credibilidade junto à comunidade internacional de banqueiros foi coroado de sucesso, mas ao preço de um desempenho medíocre da economia real: no ano 2003, a taxa de crescimento foi praticamente nula, o rendimento médio do trabalho caiu 12,9%, nas zonas metropolitanas, caindo pelo sexto ano seguido, e a taxa de desemprego só não aumentou porque foram criados numerosos subempregos sem rendimento monetário ou com rendimentos abaixo de um salário-mínimo. O aumento do trabalho precário foi a principal característica do mercado em 2003. Entre dezembro de 2002 e dezembro de 2003, subiu em 812 mil o número de trabalhadores ocupados nas seis principais regiões metropolitanas. Mas a quantidade de empregados com carteira de trabalho, no setor privado, encolheu em 907 mil.

4 5

O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 2003. David de Ferranti e Vinod Thomas, "A new model of growth - why eyes are on Brazil", International Herald Tribune, 24-25 de dezembro de 2003.

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Enquanto isso, cresceu em 446 mil o número de empregados sem 6 carteira e em 334 mil o de trabalhadores por conta própria. Um estudo recente realizado pelo Instituto de Economia da UFRJ, a pedido da CEPAL e coordenado por David Kupfer, apresentou dados estarrecedores sobre a eliminação de empregos que se seguiu à abertura da economia brasileira, em 1990. A modernização tecnológica do país fechou 8,98 milhões de postos de traba lh o no se tor a g r o p e c u á r i o , 3,63 m i l h õ e s na i n d ú s t r i a manu fatu reir a, 902 mil na admini stração púb lica e 757 mil na construção civil. A produtividade do trabalho na agropecuária cresceu, em média, 5,12% ao ano, de 1990 a 2001, e, na indústria, 2,52%. Por sua vez, as importações provocaram a redução de 1,54 milhão de postos de trabalho. Ao todo, perderam-se assim, em onze anos, 12,3 milhões de empregos. Ao mesmo tempo, criaram-se, na economia doméstica, 11,96 milhões de empregos e, nas exportações, 3,58 milhões, com um saldo global positivo, nos onze anos, de 3,24 milhões. Este último número deve ser comparado com a entrada anual de 1,5 a 1,8 milhão de pessoas no mercado trabalho. Os anosconhece2002 e 2003, para os quaisnovas os dados não estãodeainda disponíveis, ram um desempenho similar. O crescimento pífio da economia não 7 compensa os efeitos da modernização tecnológica. Estes números merecem alguns reparos. A perda de empregos industriais é em parte compensada pela criação de ocupações no setor de serviços para o qual as indústrias terceirizaram atividades de limpeza, manutenção etc. A questão que se coloca é saber se a modernização poderia ter sido menos destruidora de empregos, caso fossem aplicadas políticas diferentes na agricultura, na indústria e 6

O Globo, 24 de janeiro Rodrigues, L. "Resultado de um ano de retratação", de 2004. 7 Tod os estes dad os foram citad os em Fát ima Ferna nde s, "Liberali zação à brasileira", Folha de São Paulo, 18 de janeiro de 2004.

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no comércio exterior, já que, ao se ultrapassar certos limites, o que Schumpeter chamava de destruição criadora pas sa a ser dest rui ção tout-court. Qualquer que seja a resposta dada a esta pergunta (pessoalmente, penso que boa parte do estrago poderia ter sido evitada), compreende-se que, nestas condições, o presidente Lula e vários ministros tenham proclamado em vários pronunciamentos recentes a geração de emprego s como a priorid ade máxi ma para o ano de 2004, reconhecendo ao mesmo tempo, com razão, que o crescimento por si só não bastava para assegurar uma trajetória da economia com uma intensidade de emprego satisfatória. O Brasil não está isolado frente a este desafio, bem ao contrá8 rio. Praticamente, o mundo inteiro está à volta com a epidemia de crescimento sem emprego (jobless growth), inclusi ve os Estad os Unidos, onde a retomada recente não se acompanha de criação satisfatória de empregos. 9 O crescimento sem emprego resulta de uma combinação de vários fatores: • introdução agressiva do progresso técnico poupador de trabalho nas indústrias; • renúncia a uma política de salários altos (o fordismo) sacrificados no altar de uma busca desenfreada de lucros financeiros e a conseqüente redução do ritmo de crescimento da demand a efetiva, uma das causas princi pais do cresciment o pífi o; • deslocalização das produções intensivas em mão-de-obra para plataformas de exportação situadas em países periféricos que se satisfazem com a competitividade espúria, lograda por meio O discurso de ano novo do presidente Chirac, na França, bateu na mesma tecla. Em cinco anos, os Estados Unidos perderam 2,9 milhões de empregos industriais {Le Monde, 15 de janeir o de 200 4) .

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de salários excessivamente baixos, longas jornadas de trabalho e ausência de proteção social. 10 Há quem acredite que a epidemia de crescimento sem emprego só pode ser combatida por taxas de crescimento econômico excessivamente elevadas 11 que não entram em linha de conta na conjuntura internacional atual. Elas teriam que ser de 5% ao ano ou mais, enquanto nada for feito para modificar a intensidade em empregos dos paradigmas atuais de crescimento. Em outras palavras, o desemprego, o subemprego e a exclusão social afiguram-se como um mal necessário a ser minorado por vigorosas políticas assistenciais. Neste trabalho, adotaremos uma linha diferente. Continuamos a pensar que é necessário e possível desenhar estratégias de desenvolvimento que asseguram a todos a inclusão social pelo trabalho decente 12 atuando simultaneamente sobre as taxas de crescimento econômico e os coeficientes de elasticidade de emprego/crescimento. Enquanto persistirem as abismais diferenças sociais e os níveis de 10

11

12

A deslocalização abarca as indústrias tradicionais intensivas em mão-de-obra (vestuário, de calçados, montagem de aparelhos srcema às atividades maquiladoras e, cada vez mais,eletrônicos atrai para etc.), paísesdácomo índia os serviços baseados nas tecnologias modernas de informação e comunicação pertencentes à categoria de intensivos em mão-de-obra qualificada. Para o Brasil, coloca-se o problema de competição nos mercados externos, mas também no mercado brasileiro, com produtos fabricados em países que não hesitam em lançar mão da competitividade espúria, a começar pela China. Veja-se, por exemplo, o artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso "Ano bom? Tomara" (O Globo, 4 de janeir o de 200 4): " Os governos também, costumam ser considerados culpados pelas taxas de desemprego. Hoje, no Brasil, elas batem recordes históricos. Nas condições tecnológicas atuais, o

crescimento do PIB precisa ser espetacular (no caso, cabe a qualificação) para ter efeito significativo sobre o desemprego". Veja-se Sachs, Ignacy, 2003, Inclusão social pelo trabalho - desenvolvimento humano, trabalho decente e o futuro dos empreendedores de pequeno porte, relatório patrocinado pelo SEBRAE e pelo PNUD, Garamond, Rio de Janeiro. Veja-se também a reportagem sobre o seminário "A inclusão social pelo tr abal ho decente e o sistema de fom ento ", realizado no BN DES , em setembro de 2003, Rumos, Ano 27, n° 211, setembro-outubro de 2003.

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exclusão que conhecemos hoje no Brasil, as políticas sociais compensatórias serão indispensáveis, além da urgência em se promover o acesso universal aos serviços sociais de base - educação, saúde, saneamento, moradia. Porém, o emprego e o auto-emprego decentes constituem a melhor maneira de atender às necessidades sociais por duas razões: • a inserção no sistema produti vo ofere ce um a solução definitiva, enquanto as medidas assistenciais requerem financiamento público recorrente; • em nível psicológico, o exercício do direito ao trabalho promove a auto-estima, oferece oportunidades para a auto-realização e o avanço na escala social, ao contrário do desânimo e da falta de perspectivas vivenciados por assistidos crônicos. Para avançar nesta direção, o Brasil deverá buscar uma solução ao dilema seguinte: "Sem emprego, a equação brasileira não fecha. Sem crescimento acelerado e industrialização, o Brasil não tem conserto".13 Na realidade, o desenvolvimento é um processo com duas vertentes que devem ser compatibilizadas: • em nível econômico, trata-se de diversificar e complexifícar as estruturas produtivas, logrando, ao mesmo tempo, incrementos significativos e contínuos da produtividade de trabalho, base do aumento do bem-estar; • em nív el social , deve- se, ao con trá rio , pro mo ve r a homogeneização da sociedade, 14 reduzindo as distâncias sociais abismais que separam as diferentes camadas da população. 13 14

Rubens Ricúpero, Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2003. Deve-se ao economista chileno Anibal Pinto, um dos principais pensadores cepalino s, a defi niç ão do des env olv ime nto como superação heterogeneidade social.

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da

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Infelizmente, o crescimento econômico promovido pelas forças do mercado traz, mesmo quando bem-sucedido em nível econômico, resultados sociais opostos aos almejados: as diferenças sociais aumentam, a riqueza se concentra na mão de uma minoria, com marginalização simultânea de uma parcela importante da população. Quando isto acontece, por maiores que sejam as taxas de crescimento do PIB e o progresso alcançado na modernização do aparelho produtivo, o país avança na direção do "maldesenvolvimento", sobretudo quando se lança mão da inflação para eludir os conflitos distributivos. Como dissemos,dos o Brasil por esta experiência nas décadas do já"milagre" anos passou 1940-1980. O quarto de século de baixo crescimento que se seguiu acrescentou a uma herança já compl icada o peso de uma dívida externa e interna de difícil administração. Voltando ao nosso dilema, é normal que recursos financeiros vultosos sejam mobilizados para a indispensável expansão do núcleo modernizador da economia brasileira constituído de indústrias e agronegócios de alta tecnologia, amparados por uma infra-estrutura eficiente nos setores de energia e transporte e capazes de expandir as exportações em condições de competitividade genuína, baseada em conhecimentos, tecnologias avançadas e aproveitamento das vantagens comparativas naturais. Este processo deverá ainda respeitar os preceitos de sustentabilidade ambiental. Devemos nos esforçar por desenhar uma estratégia de desenvolvimento que seja ambientalmente sus15

tentável, economicamente sustentada e socialmente includente, vale dizer, capaz de caminhar na direção de pleno emprego e auto15

Sobre o conceito de desenvolvimento includente, ver Sachs, I., Desenvolvimento includente e trabalho decente para todos, documento preparado para a Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, OIT, outubro de 2002; edi ta do em por tu gu ês pela O I T - escritório no Brasil.

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emprego decentes, no sentido que a OIT dá a este adjetivo, ou seja, condições de trabalho e remuneração dignas. No entanto, o crescimento do núcleo modernizador vai gerar pouquíssimos empregos diretos, ou mesmo reduzir, como vimos, o seu número. Daí a importância de aproveitar da melhor maneira possível o multiplicador de empregos indiretos, tema do qual trataremos em detalhe no decorrer deste trabalho, e que funciona em dois níveis: • por meio de empregos criados a monta nte e a jusa nte das grandes indústrias, nas empresas fornecedoras de insumos e serviços, e nas que usam como insumos os produtos destas indústrias; • por meio da demanda por bens e serviços, gerada pelo consumo dos trabalhadores destas indústrias (aqui aparece o papel do fordismo)\ Mesmo assim, estaremos ainda longe da conta, no que diz respeito ao volume de empregos criados com relação à demanda representada pela entrada dos novos contingentes de força de trabalho, além dos milhões de desempregados e subempregados à espera de trabalho decente. Por isso, deverão ser aproveitadas ao máximo todas as oportunidades de geração de empregos nos setores da economia em que o crescimento puxado pelo emprego 16 é ainda possível, ou seja, nos quais existem margens de liberdade para escolher tecnologias intensivas em mão-de-obra. Acreditamos que, ao contrário de muitos países, o Brasil apresenta potencialidades excepcionais para avançar nesta direção. O fato de possuir uma fronteira agrícola ainda não totalmente explorada, junto com a maior biodiversidade do mundo e climas diversos 16

Ver, a respeito, Sachs, I. 2001 , "Eco nomi a p olítica do dese nvolvi mento segundo Kalecki: crescimento puxado pelo emprego", in Pomeranz L., Miglioli J., Tadeu Lima G. (Org.), Dinâmica econômica do capitalismo contemporâneo (homenagem a M. Kalecki), EDUSP/FAPESP, São Paulo, pp. 269-288.

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e amenos favoráveis à produtividade primária, 17 nos permite pensar num novo ciclo de desenvolvimento rural. Os diferentes setores de produção de bens e serviços não comerciáveis (non tradables), portanto não sujeitos à competição internacional, poderão resultar na criação de numerosos empregos e auto-empregos, em particular na área de serviços. Paradoxalmente, a baixa produtividade do trabalho nas atividades informais abre oportunidades para um avanço rá pido à condiçã o de se desenhar um c onjunto de políticas públicas baseado no conceito de tratamento desigual dos desiguais (discriminação positiva em favor dos atores mais fracos), favorecendo as saídas da informalidade. Por fim, cabe mencionar o desafio de construir sinergias positivas entre as grandes empresas e os empreendimentos de pequeno porte. A meta de transformar o Brasil numa fábrica de empregos afigura-se difícil, porém perfeitamente factível. No que segue, procuraremos justificar o nosso otimismo.

Crescimento, produtividade e emprego A taxa de crescimento da economia r é aproximadamente igual à taxa de crescimento da produtividade do trabalho p mais a taxa de crescimento do emprego e: r=p+e Podemos chamar de crescimento extensivo aquele logrado unicamente por meio do aumento do emprego (p = 0) e de crescimento intensivo aquele obtido por me io dos aument os de produt ivida de (e = 0), sendo que ocorrem ainda casos em que p é maior do que r e o crescimento, por forte que seja, se traduz por reduções de emprego. 17

Uma vez controladas as doenças endêmicas, o trópico passa a ser uma vantagem natural, como intuiu Gilberto Freyre ao lançar o conceito de Tropicologia. Ver, a respeito, Sachs, I., 2002: "Dos tristes trópicos aos trópicos alvissareiros", in: Carvalheira Cunha, L. e Vila Nova S. (orgs.), Dos tristes trópicos aos trópicos alvissareiros, Fundação Joaquim Nabuco / Ed. Massangana, Recife, pp. 23-69.

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Para o planejador, o dilema consiste em encontrar um ponto de equilíbrio entre crescimento extensivo e intensivo. Na medida em que se considera como um imperativo social a absorção, no mínimo, de todo o contingente de jovens que ingressa na força de trabalho, e deve, no mínimo, garantir este objetivo. Se a força de trabalho aumenta a 2% ao ano, e min. = 2. O quadro seguinte nos permite ler a taxa de crescimento do emprego e em função das diferentes combinações de r e p:

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0

1

2

2

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0

1

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-2

-1

0

3

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3

4

1

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\ 4

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-2

-1

0

l

5

-4

-3

-2

-1

0

1

As boas soluções estão à direita da diagonal de e = 2. É claro que sua efetivação seria mais fácil para valores altos de r. Infelizmente, como já dissemos, na atual conjuntura, não se pode esperar que o Brasil logre o pleno emprego por meio de crescimento acelerado, pelo menos nos próximos anos. Daí a necessidade de se desenhar políticas finas que permitam compensar o crescimento intensivo nas indústrias modernas que incorporam as tecnologias de ponta por taxas maiores de crescimento dos setores da economia em que o crescimento extensivo ainda faz sentido. Em outras palavras, trata-se de incentivar um mix apropriado de atividades, atuando em três níveis: • reequil ibrando os setores (mais serviços e , em particular, mais serviços sociais, maior ênfase sobre a construção de moradias e obras públicas); 121

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• privilegiando, dentro dos setores, produções naturalm ente mais intensivas em mão-de-obra, na agricultura, 18 na indústria e no artesanato; • inc enti van do, em nível mic roe con ômi co, a escolha de tecnologias apropriadas, com especial dest aque para o uso de tecnologias híbridas.19

18

A produção de hortigranjeiros requer pelo menos cem vezes mais trabalhadores por ha do que a de grãos altamente mecanizados. Por sua vez, a floricultura absorv e qu in ze vezes mais traba lh ado res po r ha do que os hortigranjeiros. As culturas perenes, como o café e o os cacau, são três a quatro vezes menos intensivas em mão-de-obra do que hortigranjeiros. In fel iz men te , não se po de tr an sf or ma r em floricultura os 100 milh ões de ha de terras cultiváveis ainda disponíveis no Brasil. Em trabalho recente, José Eli da Veiga afirma que, na agricultura brasileira, treze lavouras devoram postos de trabalho: cana-de-açúcar, café, laranja, algodão, milho, cacau, alho, banana, coco-da-bahia, maçã, mandioca, tomate rasteiro e trigo. Porém, outras dez são capazes de aumentar a oferta de ocupação: amendoim, arroz, caju, feijão, malva, mamona, sisal, soja, uva e tomate envarado. Outrossim, grandes quantidades de mão-de-obra podem ainda ser absorvidas pela fruticultura em plena expansão e as produções de borracha, chá, dendê, erva-mate, ervilha, fava, pal mi to e urucum, além da intensa osmose que prevalece entre a policultura destes vegetais e as atividades pecuárias. O Brasil dispõe de um imenso mosaico de sistemas produtivos diversificados, cuja essência é a sinergia agropecuária {Valor Econômico, Estudos Avançados, USP, 17 (48) 2003). 12/08/2003, artigo reproduzido em

19

O conceito de tecnologias apropriadas é mais amplo que o de tecnologias intermediárias, advogadas po r Schu mach er no seu celebrad o livro Smallis beautiful. As tecnologias apropriadas são aquelas que respondem ao conjunto de critérios adotados para sua avaliação. Estes, no nosso entender, não se devem limitar a critérios puramente técnicos, e sim incluir critérios sociais (geração de empregos decentes) e ambientais.

tecnologias aproAs tecnologias híbridas constituem um caso particular de priadas, co mbi na nd o, por um lado, o saber mo de rn o com o tradi cion al (episteme com techne) e, por outro lado, aplicando tecnologias de diferentes intensidades em mão-de-obra nos diferentes elos de uma cadeia de pro dução. Os casos mais interessantes ocorr em quando o uso catalítico de tecnologias de ponta num elo viabiliza o recurso a tecnologias intensivas em mão-de-obra nos demais elos da cadeia. Isto acontece com freqüência nas cadeias de valorização da biomassa, mediante a aplicação de biotecnologi as qu e abrem o leque dos produtos dela derivados.

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Para aprofundar esta discussão, seria interessante poder contar com dados setoriais que relacionam a evolução de r, p e e, nos últimos dez anos, e cotejá-los com dados microeconômicos que ilustram a amplitude das funções de produção que, a um dado momento, coexistem em cada setor. A coexistência de assincronismos é uma característica de subdesenvolvimento. Por outro lado, a in20 corporação do progresso técnico nunca se faz de uma vez só. Acredi tamos que um estudo deste tipo pode ser real izado a partir dos dados existentes no IBGE, IPEA, BNDES e FIESP. Sem esperar por seus resultados, podemos adiantar o estudo do potencial de geração de empregos e auto-empregos decentes no Brasil, apontando para os setores que oferecem as maiores oportunidades.

Um novo ciclo de desenvolvimento rural 21 Acreditamos que o maior potencial de empregos e auto-empregos decentes resida no mundo rural, em que pese a alta taxa de redução de postos de trabalho observada atualmente no setor agropecuár io. N ão acred itamos que o Brasil esteja fada do a repetir a experiência dos países hoje industrializados, que conseguiram reduzir a uma percentagem insignificante o emprego na agricultura e absorveram com sucesso o excedente de mão-de-obra rural nas cidades, principalmente nas indústrias. Esta transformação não se20

21

M. Kalecki introduziu o conceito de período de reestruturação (retoolingperiod). Se uma inovação tecnológica abrange, a cada ano, um décimo do aparelho de produção existente no país, o período de reestruturação será de dez anos. A modulação deste parâmetro pode ser objeto da política industrial. Abordei este tema em três trabalhos recentes. Ver Sachs, I. 2001: "Brasil rural: da descoberta à invenção", in Estudos Avançados n° 15 (43), pp. 7582; "Um projeto para o Brasil: a construção do mercado nacional como motor do desenvolvimento" in Bresser Pereira, L. C. e Rego J. M. (orgs.): 2001, A grande esperança em Celso Furtado , Ed. 34, São Paulo, pp . 45- 52 ; "Quo Vadis Brasil", in Sachs, I.; Wilheim, J. e Pinheiro P. S. (orgs): 2001, Brasil, um século de transformações, Cia das Letras, São Paulo, pp. 488-501.

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ria, aliás, possí vel para os país es europe us sem a emigração massiva para as Américas e o papel desempenhado pelas colônias. As condições mudaram. A desindustrialização em curso torna impossível a reprodução deste padrão, tanto mais que o Brasil já 22 efetuou uma urbanização prematura e excessiva. É um erro supor que os refugiados do campo que migram para as favelas e os bairros periféricos das cidades se transformam automaticamente em citadinos. São can didatos a uma urbaniz ação cuj a efetiv ação depe nderá da criação de empregos e alojamentos decentes e de condições para o exercício da cidadania. Na visão otimista, as favelas funcionam como purgatórios. Tudo indica que o custo da urbanização dos que já foram arraigados do campo será muito mais elevado do que seria a geração de empregos e auto-empregos decentes e a promoção do progresso civílizatório no meio rural. Segundo dados do PRONAF, a agricultura familiar é, hoje, responsável por 77% da ocupação no meio rural e responde por 37% da produção agrícola brasileira. Cerca de 84% dos 5 milhões de estabelecimentos agropecuários são de agricultores familiares. De acordo com um estudo do IBASE, cada operação de financiamento do PRONAF (no ano 2003, 1,147 milhão de contratos num valor total de R$ 3,8 bilhões) estaria garantindo a manutenção de três empregos e a geração de 0,58 ocupações. 23 A agricultu ra fam ilia r tem, portanto, ainda um longo futuro à frente, tanto mais que a sua modernização gradual afigura-se viável e que, sem a sua consolidação, dificilmente o Brasil poderá contar com um sistema eficiente 22

23

Os trabalhos de José Eli da Veiga mostraram que o grau de urbanização real do Brasil é inferior às estatísticas do IBGE: nos 4500 municípios rurais, viviam, no dirimo ano do século passado, quase 52 milhões de habitantes (José Eli da Veiga, 2002, Cidades imaginárias — o Brasil é menos urbano do que se calcula, Ed. Autores Associados, Campinas). Em questão, n°143, 16 de janeiro de 2004. Se estes dados se confirmam, eles indicam um custo extremamente baixo de geração de empregos por meio dos créditos do PRONAF.

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de segurança alimentar. Parte do agronegócio, que tanta importância tem para o comércio exterior do Brasil, é constituída por agricultores familiares bem-sucedidos, por exemplo, no setor de aves ou carne suína. Não se deve considerar a produção mecanizada de grãos (soja), que cria um número diminuto de empregos diretos, como representativa do conjunto de agronegócios. A reforma agrária bem conduzida, cobrando resultados produtivos dos seus beneficiários e incentivando a lógica empreendedora dos assentados, 24 com dest aque para todas as for ma s de empreendedorismo coletivo - cooperativas de produção, venda, poupança e crédito, outras formas de associativismo - , pode ampliar o setor da agricultura familiar viável, gerando empregos e auto-empregos a um custo inferior a qualquer alternativa urbana. Não esqueçamos que a racionalidade da economia familiar é diferente da economia de empresa e que os membros da família não imputam ao seu tempo de trabalho um salário como se estivessem empregados como assalariados. Daí resulta a resiliência dos agricultores familiares submetidos à concorrência dos produtores modernos. 25 Para todo s os efeitos, podem os consid erar a unidade fami liar c omo possuidora de uma reserva potencial de tempo de trabalho a ser aproveitada como uma verdadeira reserva de desenvolvimento. Por isso, longe de serem meramente políticas sociais, a reforma agrária e as

24

Veja, a este respeito, a entrevista de Ricardo Abramovay, no Paulo de 21 de dezembro de 2003. 25

Estado de São

Como observou José Eli da Veiga, no artigo já citado (2003), "é da essência se microeconòmica que a fazenda patronal desfaça imediatamente de qualquer sobra de braços, enquanto entre agricultores familiares, prevalece a tendência inversa. A propensão do sitiante inovador é evitar a ameaça da redundância, ou retardá-la, graças à diversificação, não apenas de seu sistema produtivo, como também das atividades dos membros da família, antes e depois da porteira'.

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medidas de apoio à agricultura familiar afiguram-se como alavancas importantes da estratégia de desenvolvimento. 26 O que importa é criar condições para que esta reserva de tempo de trabalho se transforme em trabalho efetivo mediante aumento da escala das produções já existentes, acréscimo de novos módulos ao sistema familiar de produção agropecuária e investim entos não monetários no de smata mento, na criação de pastos, nas benfeitorias e na moradia. 27 Acreditamos que a complex ificaç ão de sistemas familiares de produçã o agropecuária e a sua adequação aos diferentes ecossistemas constituam uma prioridade para as pesquisas da EMBRAPA. O progresso da agricultura brasileira requer soluções intensivas em conhecimentos e em trabalho, porém poupadoras do capital, da energia fóssil e de recursos naturais escassos (como a água no semi-árido). Esta equação difere da dos países industrializados, empenha dos num a agricultura intensiva em capital e poupadora de mão-de-obra. Um outro fator, geralmente ausente nas políticas de apoio à agricultura familiar, é a oferta de tecnologias apropriadas para a mode rnizaç ão das produções de subsistência, mediante aumento dos rendimentos e/ 26

Carta Capital, de 14 de janeiro de 2004, publicou uma surpreendente entrevista de Alain Touraine, intitulada "Reforma urbana já", na qual o sociólogo francês afirma que a reforma urbana é dez vezes mais importante que a reforma agrária, porque atinge dez vezes mais gente. Touraine considera que não há tempo para esperar que os enormes recursos necessários para a reforma urbana venham do crescimento econômico e propõe, portanto, que ela seja financiada pela redistribuição da riqueza às expensas dos 5 ou 10% mais ricos que notoriamente escapam ao fisco. Concordo com o autor que a reforma urbana é necessária, embora duvide que haja, no Brasil, condições políticas para seguir a suadaproposta Divirjo, no entan to,a idéia frontalmente sua subestimação do papel reforma . agrária. Infelizmente, de que da reforma agrária não passa de uma política social é muito difundida nas elites brasileiras. Já ouvi a tese de que seria mais barato oferecer aos sem-terra motocicletas para que virem motoqueiros nas cidades.

27

Por serem não monetários, estes investimentos não estão incluídos no cômputo do PIB. Em certas circ unstâncias, o seu vo lume pode chegar a ser significativo.

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ou redução do tempo de trabalho que poderá ser aproveitado nas produções voltadas ao mercado ou nas atividades não econômicas. A experiência de numerosos países em desenvolvimento mostra que o não-aprove itame nto desta reserva de desenvolvimento constitui um grave erro de estratégia, já que o êxodo rural prematuro e excessivo gera problemas de difícil solução no meio urbano. Para todos os países que têm ainda uma fronteira rural a explorar, vale o conceito de industrialização sem descamponização (industrialisation sans dépaysannisation), proposto pelo economista egípcio Ismáíl Sabri Abdallah. A observação sobre a necessidade de se assegurar um futuro em longo prazo para a agricultura familiar vale para o conjunto dos países do Sul. Atualmente, cerca da metade da população mundial é constituída de agricultores familiares. Os mais atrasados, do ponto de vista técnico, têm uma produtividade de trabalho ínfima, que chega a ser mil vezes menor que a dos agricultores modernos altamente mecanizados. 28 Estes poderiam, em pouco tempo, varrer do mercado a massa dos agricultores familiares, com conseqüências sociais dramáticas na ausência de estratégias de desenvolvimento que protejam os agricultores familiares e, ao mesmo tempo, promovam a sua gradual modernização, reduzindo a disparidade hoje existente na produtividade do trabalho. O importante é raciocinar em termos de desenvolvimento rural e não meramente agrícola, promovendo a pluriatividade dos membros das famílias de agricultores e incentivando os empregos rurais não agrícolas os mais diversos: nas agroindústrias, no artesanato, nas pequenas indústrias descentralizadas, na prestação de serviços técnicos, de manutenção, sociais e pessoais, no transporte, na construção, no 28

No mundo atual, vinte milhões de camponeses trabalham com um trator, trezentos milhões usam a tração animal, enquanto um bilhão só dispõe de seus braços para trabalhar. Dados da FAO, citados por De Ravignan F., 2003, Lafaim, pourquoi? un déft toujours d'actualité, La Découverte, Paris, p. 79.

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desenvolvimento de atividades turísticas, sem esquecer a administração pública. Entre 1985 e 2001, a China conseguiu criar 140 milhões de atividades não agrícolas nas zonas rurais. Elas ocupam atualmente 168 milhões de pessoas, a comparar com 28 milhões, em 1978. 29 Hoje, este potencial se esgotou, mas a lição vale para outros países. A prospecção do potencial de empregos e auto-empregos, no meio rural, passa pelas etapas seguintes: a) avaliação dos empregos rurais não agrícolas podendo dar lugar a planos locais (municipais) de desenvolvimento; b) avaliação do potencial de emprego e auto-emprego de sistemas agropecuários familiares que combinam a policultura com atividades pecuárias, aqüicultura e produções agroflorestais, com especial destaque para sistemas com culturas perenes que atuam simultaneamente como sumidouros do carbono e a este título podem competir por financiamentos especiais; 30 c) em particular, avaliação do efeito multiplicador da renda auferida pelos trabalhadores do setor de agronegócio constituído pela grande agricultura mecanizada, pouco numerosos, porém bem-remunerados (em particular, empregos na construção civil e nos serviços); d) análise sistemática das relações entre os pequenos produtores rurais e as grandes agroindústrias, com vista à transformação de situações adversariais em sinergias positivas mediante reformulação de contratos; e) alternativamente, organização dos pequenos produtores em cooperativas e promoção de pequenas agroindústrias; 25

Lemoine, Françoise: 2003. L'économie chinoise, La découverte, Paris, p. 29. Dos 168 milhões, 77% estavam empregados em empresas coletivas e 23% em empreendimentos privados e individuais. 30 Trata-se da venda de certificados de carbono prevista pelo Protocolo de Kyoto. Insistimos sobre o fato de que a preferência deva ser para sistemas integrados de produção com fortes impactos sociais e econômicos e não aos projetos de aflorestamento que constituem a forma mais simples de venda de serviços ambientais.

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f) avaliação do potencial de empregos e auto-empregos ligados à valorização dos resíduos agrícolas; g) avaliação do potencial de empregos e auto-empregos voltados à gestão do meio ambie nte , dos solos , água s e florestas; h) por último, identificação de novas oportunidades de geração de empregos e auto-empregos por meio da valorização das biomassas, tema que será tratado na próxima seção deste trabalho.

Empregos e auto-empregos ligados à valorização das biomassas O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo. Seu extenso território abriga ecossistemas variados, em sua maioria dotados de recursos hídricos abundantes e de climas favoráveis à produção de biomassas as mais variadas, terrestres, florestais e aquáticas. A maior floresta tropical do mundo está localizada na Amazônia brasileira. As reservas de solos agriculturáveis são calculadas em dezenas de milhões de hectares, sem contar com a possibilidade de transformar em culturas os extensos pastos. Em outras palavras, a fronteira agrícola ainda pode avançar, mantendo integralmente em pé as florestas into cada s, conqu ant o sejam resp eit adas as regr as de manejo ecologicamente sustentável dos recursos naturais. Por último, o país dispõe de uma base científica sólida nas áreas da agronomia e biologia que lhe permite avançar no caminho da revolução duplamente verde e darevolução azul. 31

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A revolução duplamente verde (evergreen revolution, na terminologia do agrônomo indiano M. S. Swaminathan) busca simultaneamente avanços tecnológicos de produtividade e sustentabilidade ambiental. A revolução azul diz respeito à passagem da caça e coleta ao cultivo de espécies que vivem no meio aquático. Ela se encontra ainda numa fase incipiente. As potencialidades do Brasil resultam da combinação de uma extensa faixa litorânea do oceano Atlântico, em parte protegida pelos recifes de coral, com os ecossistemas amazônicos, o Pantanal e, por fim, os numerosos lagos de represa.

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Nenhum outro país do mundo reúne condições igualmente favoráveis à criação gradual de uma nova civilização sustentável dos trópicos, baseada na exploração sistemática do trinômio biodiversidade-biomassas-biotecnologias, estas últimas aplicadas nas duas pontas para aumentar a produtividade das biomassas e abrir o leque dos produtos dela derivados. As biomassas têm oito usos principais: alimentos, ração animal, bioenergia, fertilizantes, materiais de construção, matérias-primas industriais (fibras, celulose, óleos, resinas etc.), fármacos e cosméticos. Neste elenco, convém ressaltar as bioenergias que permitem a substituição das energias fósseis e, portanto, contribuem para a luta contra o efeit o estu fa. O Brasi l foi pioneiro, em escala mundi al, com o seu plano Pró-Álcool, que está longe de ter esgotado as suas potencialidades. A identificação sistemática de novas oportunidades de aproveitamento de biomassas e a quantificação do número de empregos e auto-empregos que poderão ser gerados constituem uma prioridade para o BNDES, como ficou claro no seminário "A inclusão social pelo trabalho decente e o sistema de fomento", promovido por este banco, em setembro de 2003, em cooperação com a ABDE e a OIT.32 Um passo importante nesta direção seria a confecção de um atlas seletivo de biodiversidade para as diferentes ecorregiões do país, tarefa esta que os pesquisadores da EMBRAPA estão dispostos a empreender. 33 Desde já, podemos adiantar vários temas prioritários. 32

33

Rumos, de setembro-outubro de 2003, publicou uma extensa reportagem sobre este evento. Esta é ta mb ém uma área par a pot enci al cooperaç ão entre os pesquis adores brasileiros e indian os. A declaração de Brasília, de 6 de junho de 2003, pelos mi nistros das Relações Exteriores do Brasil, da Áfri ca do Sul e da índia, cita as biotecnologias, as fontes alternativas de energia e a agricultura, entre os setores científicos e tecnológicos nos quais os três países pretendem am pliar a co op er ação.

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a) do Pró-Álcool ao Pró-Cana: O Pró-Álcool foi implementado como um programa de economia de guerra num breve lapso de tempo, sem se olhar os custos da operação. Ele permitiu ao Brasil reduzir a sua dependência com relação às importações de petróleo e provou ainda que a aditivação do álcool à gasolina não criava problemas no funcionamento dos motores de automóvel, em que pesem as restrições que, na época, foram emitidas. Fundamentado numa aliança entre os grandes usineiros, as montadoras, as indústrias nacionais de equipamentos e o Estado autoritário, ele contribuiu para a concentração de terras e de capital, implantando quase todas as unidades de produção em São Paulo e no Nordeste. A concentração espacial resultou num altíssimo custo de transporte do álcool através do subcontinente brasileiro. Provavelmente, foi um erro autorizar a circulação dos carros movidos a álcool no país inteiro, em vez de se usar esta tecnologia para frotas de circulação restrita (viaturas de serviço público, transporte coletivo). O projeto de incentivar a construção de dezenas de milhares de micro e miniusinas para o abastecimento local de combustível e reduzir, desta maneira, o custo de distribuição do álcool foi encaminhado pelo Ministério da Indústria, mas nunca chegou a ser discutido pelo Congresso. Por outro lado, faltou um programa gêmeo para a substituição parcial do óleo diesel por óleos vegetais, criando uma situação insólita: o Brasil era obrigado a continuar a importar petróleo para atender à demanda pelo diesel, ficando com sobras de gasolina que eram vendidas no exterior a um preço muito baixo. Por fim, todo o esforço foi concentrado sobre o álcool e o açúcar, dando-se pouca atenção ao aproveitamento dos demais subprodutos da cana-de-açúcar, a começar pelo bagaço e pelo vinhoto. A sucroquímica e a alcoolquímica tampouco tiveram o desenvolvimento que se poderia esperar. 14 1

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Estas obser vações são impo rtant es, hoj e, quando se fal a da eventual duplicação da produção do álcool para atender à demanda exterior, principalmente do Japão. Pensamos que esta duplicação poderá ocorrer sem se repetir os erros do primeiro Pró-Álcool e deveria se dar primordialmente por intermédio da implantação de micro e miniusinas no interior do país, aproveitando o potencial das grandes unidades já instaladas para a exportação. Outrossim, esta é uma oportunidade para se analisar a cadeia da cana com o intuito de sua racionalização e densificação em atividades econômicas anexas geradoras de emprego e renda. Acreditamos que esta cadeia proporciona oportunidades de criação de empreendimentos de pequeno porte, cooperativos ou privados, para se 34 aproveitar melhor a palhagem, o bagaço, o vinhoto (tratado no biodigestor) e as proteínas recuperadas das águas de lavagem. Como já foi dito, existe ainda um vasto campo para a diversificação dos produtos derivados do açúcar e do álcool, a começar pela exportação de produtos como o chocolate, em vez do açúcar e do cacau. Um projeto voltado para estes problemas está sendo organizado no estado de Pernambuco, n uma parceria do SEBRAE-P E, SEBRA ENacional e a Confederação Pernambucana das Indústrias. Seria sobremodo interessante a replicação deste projeto no estado de São Paulo.

b) Pró-Óleo: O governo lançou recentemente o Programa Brasileiro de Desenvolvimento Tecnológico de Biodiesel ( Probiodiesel ) e o presidente da República inaugurou, em Piracicaba, o Pólo Nacional de Biocombustíveis, que funcion ará na ESALQ-USP. Junto com o La34

Fonte potencial de cogeração de energia, matéria-prima para a produção de pape l, de briquetes que substituem o carvão vegetal, de mate riais de co nstrução, de fibras para uso industrial e sob forma hidrolizada, ração para gado leiteiro.

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boratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas (Ladetel), este pólo vai desempenhar um papel importante na formulação e implementação do Probiodiesel. O Ladetel está atualmente trabalhando sobre onze variantes de óleos vegetais que pod em servir de aditivo ao diesel: soja , am endo im, girassol, algodão, milho, canola, mamona, pequi, macaúba, babaçu, dendê, além de óleos de recuperação utilizados para fritura nos restaurantes. A UFPE concentra os seus estudos sobre a soja. Aparentemente, todos estes estudos têm um cunho técnico privilegiando a produtividade e os custos. Pensamos que a avaliação das diferentes opções para a aditivação de óleos ao diesel deveria ser objeto de uma avaliação mais ampla, incluindo critérios sociais e ambientais, além de considerações de estratégia de desenvolvimento regional. Senão, corremos o risco que o biodiesel venha a ser mais um fator de expansão da cultura de soja, inclusive em áreas ambientalmente pouco adaptadas para este cultivo, e que se perca assim a oportunidade de gerar um número mais elevado de empregos e auto-empregos pela escolha de plantas que proporcionam maior oferta de ocupação e se enquadram melhor em sistemas policulturais da agricultura familiar. Do ponto de vista ambiental, um critério essencial para o Nordeste semi-árido é a escolha de plantas que requerem pouca água (enquanto a Amazônia deveria se especializar em culturas aqüívoras). A Agência USP de Inovação Tecnológica, que está sendo formada, poderia servir de ponto focai para a avaliação abrangente dos óleos vegetais candidatos ao Probiodiesel, em cooperação com a EMBRAPA. O SEBRAE e a ABDE (que representa o sistema de fome nto ) constitu em, a nosso ver, parceiro s potenciais neste empreendimento, na medida em que estão interessados em identificar, promo ver e viabilizar, do ponto de vista da arquitetura financeira, os empreendimentos de pequeno porte que possam surgir ao longo da cadeia de produção de óleos vegetais desde o campo até a fase de processamento. 133

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Este projeto poderá ocorrer em unidades pequenas, de preferência cooperativas, ou dar ensejo a uma integração dos pequenos produtores de biomassa com agroindústrias de porte maior. Convém lembrar aqui o conceito de refinarias de biomassas, formulado pelo agrônomo indiano M. S. Swaminathan, que se encarregariam da primeira fase de processamento de maneira a reduzir o volume do semiproduto encaminhado para unidades industriais de grande porte. O Probiodiesel prevê, por enquanto, a aditivação de 5% de óleo vegetal ao diesel. Tudo indica que este percentual poderá ulteriormente aumentardosignificativamente, a exemplo que aconteceu com a mistura álcool com a gasolina, abrindo do enormes perspectivas para o cultivo das plantas oleaginosas. O estudo dos óleos vegetais não se deve restringir aos seus usos energéticos. O Brasil está atualmente importando óleos vegetais, em particular o óleo de dendê, para consumo humano. Este potencial de substituição de importações merece figurar alto na lista das prioridades do país. A cultura do dendezeiro (srcinário da África e amplamente difundido na Ásia) encontra um ambiente favorável em várias áreas da Amazônia e na Zona da Mata da Bahia. Estudos indicam que, no mercado mundial, o óleo de dendê é cada vez mais procurado. O seu cultivo é bastante intensivo em mão-de-obra. Dez hectares de dendezeiros requerem um trabalhador a tempo integral durante o ano todo. Como se trata de uma cultura perene, a plantação funciona como um sumidouro do carbono. Na Malásia, as plantações de dendê serviram de base à reforma agrária. No contexto brasileiro, a pedido do governo do Amapá, chegou a ser elaborada, no ano de 2001 (porém não implementada), uma proposta de assentamentos de reforma agrária para ocupar terras já desmatadas da Amazônia com plantações de dendezeiro, à razão de dez hectares para cada família assentada, complementados por ou134

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35 tros dez hectares para cultivos de subsistência e agroflorestais. Entendimentos mantidos, na época, com uma grande empresa nacional especializada na produção do óleo de dendê indicaram a sua disposição em colocar uma usina de processamento conquanto o assentamento tivesse uma área de 5000 hectares cultivados com dendezeiros. A empresa se encarregaria de oferecer as mudas, daria a assistência técnica aos assentados e assinaria um contrato de compra exclusiva dos cachos de dendê a um preço estipulado em percentual do preço mundial do óleo de dendê. Tudo indica que um assentamento deste tipo, além das inegáveis vantagens ambientais (recuperação dos solos, seqüestro do carbono), proporcionaria aos assentados de três a quatro ocupações com rendimentos decentes por família, contando-se os empregos agrícolas, as atividades de subsistência, os empregos na fábrica, no transporte, nos serviços técnicos, sociais, administrativos e pessoais, além do comércio local. Um assentamento de 500 famílias se transformaria, em poucos anos, numa próspera vila agroindustrial. O projeto suscitou grande interesse por parte das autoridades

federais, porém, por circunstâncias que não vem ao caso discutir, não saiu do papel. Ele pode servir, no entanto, de protótipo para projetos de reforma agrária e de desenvolvimento rural sustentável e integrado construídos ao redor de um cultivo perene. Como já foi dito, extensas áreas da Amazônia legal prestam-se à implementação dos projetos de dendê.

c) Madeira e fibras: Um outro componente do complexo agrobioindustrial a ser cuidadosamente estudado, focalizando-se a articulação dos produtores 35

O projeto elaborado pelo SEBRAE, em colaboração com o Ministério da Reforma Agrária, contou com a valiosa contribuição dos professores Ademar Ribeiro Romeiro (Unicamp/IE e Embrapa), Paulo Choji Kitamura (Embrapa / Cnpma) e Paulo Yoshio Kageyama (USP / ESALQ, atualmente MMA).

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familiares com a grande indústria, é o da produção da madeira, com especial destaque para quatro temas: • as florestas familiares (a serem preferidas às Fonas) e o seu encadeamento com as madeireiras na Amazônia; • integração do plantio de eucaliptos e outras espécies para celulose nos projetos de desenvolvimento rural integrado e sustentável; • produção de fibras vegetais com potencial de aproveitamento industrial inovador (por exemplo, uso de fibras vegetais na construção de automóveis); • diversificação de materiais de construção de srcem vegetal (bambu, fibras etc.).

d) Opotencial da revolução azul: A revolução azul, ou seja, a passagem da caça e coleta de espécies aquáticas e anfíbias para a sua criação e cultivo, encontra-se ainda numa fase incipiente, porém de crescimento rápido em nível mundial. Em 1970, a piscicultura respondia por apenas 3,9% da produção total do pescado. Este percentual subiu para 27,3%, no ano 2000. No Brasil, a indústria do camarão tem crescido à taxa de 50% ao ano, e devia alcançar, em 2003, 90 mil toneladas cultivadas sobre 14.000 hectares de tanques, alcançando uma produtividade excepcionalmente alta de 6,4 toneladas por hectare e gerando cerca de 48 mil empregos diretos. Na Tailândia, um dos líderes deste mercado, com 260.000 toneladas, em 2002, a produtividade é de 3,4 toneladas/ha/ ano. 36 Estima-se que foram exportados cerca de US$ 240 milhões,

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Em 2002, a produção mundial de camarão foi de 1,3 milhões de toneladas sobre pouco mais de 2 mil hectares e uma produtividade média de apenas 644 kg/ha/ano. O maior produtor foi a China, com 311 mil toneladas.

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em 2003, o que confere à indústria do camarão do Nordeste o segundo lugar na exportação depois do açúcar. Infelizmente, surgem fortes críticas com relação aos impactos ambientais desta ativ idade. Os exem plos ao Equador e das Filipinas estão lá para sinalizar os perigos daí decorrentes. Por outro lado, os pequenos produtores queixam-se de um padrão insatisfatório de relacionamento com as grandes empresas do ramo que cobram taxas excessivas pela administração e assistência técnica, porém, nas condições atuais, constituem o indispensável elo intermediário para se alcançar os mercados. 37 A piscicultura foi respons ável, em 2003, pela prod uçã o de 120 mil toneladas. Entre as espécie s nativas de peixes , pouca s são ainda as cultivadas em escala comercial, apesar das excelentes qualidades gustativas: tambaqui, pacu, jund iá e matri chã. 38 O potencial brasileiro para aqüicultura marinha e em águas continentais é excepcional. Não há razão para que os peixes não passem a constituir uma fonte importante de proteína animal na dieta dos brasileiros. A introdução da piscicultura nos sistemas integrados de agricultura familiar pode contribuir decisivamente para sua maior rentabilidade. 39

Empregos nos setores não comerciáveis da economia Como já foi dito, por não estarem submetidos à competição internacional, os setores de produção de bens e serviços não comerciáveis deixam uma maior margem de liberdade à escolha de tecnologias. Em vez de aceitar os padrões dos países mais avançados, é possível lan37

Ver Biondi, A., "A guerra do camarão - enquanto produtores americanos acusam os brasileiros de dumping, no Nor des te, o crustáceo gera for tun as e conflitos", in Carta Capital, 21 de Janei ro de 2004 , pp. 8- 14 .

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Dados citados por Philip C. Scott, em entrevista a br o de 2003.

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Segundo certos pesquisadores, faz sentido agregar um módulo de piscicultura nos sistemas integrados de produção de alimentos e energia a partir da canade-açúcar, já que o vinhoto pode ser aproveitado como ração para peixes.

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Rumos, setembro-outu-

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çar mão de tecnologias de menor intensidade de capital. É claro que se deve estipular para cada país e momento a produtividade de trabalho mínima abaixo da qual não faz sentido descer. Convém sempre ter pres ente a dif ere nça entre estratégias de mer a sobreviv ência logradas, muitas vezes, mediante um esforço extenuante, porém de baixíssima produtividade - e estratégias de desenvolvimento que implicam um piso de produtividade além do seu contínuo aumento. Com estas ressalvas, pensamos que, nas condições brasileiras, existem consideráveis reservas de emprego condicionadas por uma escolha mais criteriosa das tecnologias nos setores de produção de não comerciáveis, que passamos a comentar brevemente.

a) Os serviços sociais ministrados pelas redes de educação, saúde pública e assistência social: Paradoxalmente, os países pobres deveriam carregar a sua função-objetivo com os serviços desta natureza enquanto o nível geral de salários permanece baixo, em vez de postergar o desenvolvimento social para uma fase ulterior do seu crescimento. Os professores primários, para citar um exemplo, são tão "produtivos" nos países pobres quanto nos países ricos: nos dois casos, o professor toma conta do mesmo número de alunos. Porém, o seu custo é bem inferior nos países pobres que, por assim dizer, gozam de vantagens comparativas nas atividades intensivas em mão-de-obra qualificada, que exigem investimento módico por posto de trabalho criado. Em outras palavras, o desenvolvimento social não deve esperar pelo desenvolvimento econômico e a seqüência histórica se40 guida pelos países industrializados deve ser invertida. 40

Apresen tei es te arg ume nto , que fi gura proe mi ne nt em en te em vário s trabalhos ulteriores de Amartya Sen, no artigo "Welfare State in poor countries", in Economic and PoliticalWeekly, Bombay, vol. VI, n° 3-4 , jane iro de 197 1, pp. 367-370. O sucesso re cente da Ín di a na ex po rtação de softwares e de serviços relacionados às novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) baseia-se nesta mesma vantagem comparativa.

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Pelo fato de contribuir diretamente ao bem-estar da população, a universalização do acesso aos serviços sociais afigura-se como uma componente essencial do tripé de desenvolvimento ineludente, sustentável e sustentado. Em que pesem as investidas dos economistas neoliberais contra a hipertrofia do aparelho do Estado, a demanda por serviços sociais está longe de ser saturada, inclusive nos países mais ricos do planeta. O escopo, volume e qualidade destes serviços oferecem numerosas oportunidades de emprego e um campo de atuação para organismos públicos, OSCIPs, e diferentes parcerias entre o público e o privado (PPP). Sem dúvida, as administrações pletóricas devem ser reduzidas, ao passo que o número de agentes dos serviços sociais aumenta. Desde 1997, a Grã-Bretanha criou 500 mil empregos adicionais nos serviços públicos, ou seja, a metade de todos os empregos gerados.

b) Serviços, comércio, turismo: Pela facilidade de entrada, os serviços domésticos e o comércio ambulante (camelôs, sacoleiras) são as atividades que hoje abrigam contingentes pletóricos da mão-de-obra em busca de estratégias de sobrevivência. Estas ocupações precárias e mal remuneradas funcionam como a válvula de segurança do capitalismo selvagem. Na maioria dos casos, sua desinformalização e transformação gradual em trabalho decente será acompanhada da redução dos efetivos. Em compe nsaçã o, há espaç o para se expandi r serviços técnicos e pessoais em forma de ocupações decentes para trabalhadores por conta própria, cooperativas de serviços e micro e pequenas empresas. Os serviços de manutenção merecem um comentário. A boa manutenção do estoque existente de equipamentos, das infra-estruturas, do parque imobiliário e viário, resulta numa prorrogação de sua vida útil e, portanto, na redução da demanda pelo capital de reposição. Ceteris paribus, isto signi fica uma dispon ibili dade maior

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de capital para investimento líquido. Trata-se, portanto, de uma importante e subestimada alavanca de desenvolvimento. O mesmo pode ser dito de atividades que poupam os recursos naturais, mediante conservação de solos, água e energia, reciclagem do lixo e dos materiais e aproveitamento dos resíduos agrícolas etc. Elas resultam numa maior produtividade dos recursos e, portanto, contribuem assim para um maior crescimento do PIB. Trata-se de um conjunto de atividades intensivas em mão-de-obra e que deveria ser objeto de um cuidado especial, tanto mais que elas contribuem para a sustentabilidade ecológica do processo de desenvolvimento. A absorção da mão-de-obra pelo setor turismodevaiatração depender do modelo adotado. Quer nos parecer que ode potencial do Brasil para turistas estrangeiros endinheirados está sendo sobreestimado. A competição internacional, neste setor de serviços, já é acirrada e os investimentos em redes de hotéis de luxo são muito dispendiosos. No entanto, o turismo interno de massas e a organização de colônias de férias para trabalhadores e escolares não estão recebendo a devida atenção. O sucesso dos rodeios de Barretos aponta para o efeito indutor de festas populares, festivais, cerimônias religiosas, espetáculos artísticos e esportivos, além do carnaval. O verdadeiro turismo ecológico (denominação usada hoje abusivamente) nunca poderá ser de massas, mas está se impondo como um ramo de atividades a ser integrado nas estratégias de desenvolvimento local de numerosas microrregiões.

c) A construção civil, com especial destaque para a construção de moradias de maneira a reduzir o déficit calculado em vários milhões de unidades habitacionais: Trata-se de uma indústria na qual as tecnologias intensivas em mão-de-obra encontram ainda um vasto campo de aplicação que poderia ser ainda mais ampliado ao se lançar mão da inclusão de 140

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cláusulas apropriadas nos termos das licitações públicas e nos contratos de financiamento por bancos públicos. Pensamos que os bancos públicos e o sistema de fomento podem desempenhar um papel relevante no redirecionamento das tecnologias para a produção de bens não comerciáveis. A tradição do mutirão está arraigada na cultura brasileira. Da í o interesse em se promover grandes programas de construção de moradias populares por meio de mutirão assistido, ou seja, devidamente enquadrado por assistência técnica, dispondo de créditos para a aquisição de materiais de construção por parte dos futuros moradores e provido com terrenos viabilizados. Convém observar que o trabalho fornecido pelos futuros moradores constitui uma forma de poupança não monetária, aumentando ceteris paribus o vol ume do investimento realizado no país.

d) As obras públicas: Como a construção civil, as obras públicas permitem escolher tecnologias de grande intensidade em mão-de-obra, conquanto se respeite um limite mínimo de produtividade de trabalho, abaixo do qual as frentes de trabalho passam a constituir uma política assistencial e não mais um instrumento de política econômica. Entre as obras públicas, destacam-se aquelas que têm um retorno rápido, tais como construção de cisternas no Nordeste, de pequenos perímetros de irrigação, de estradas vicinais, de calçamento de ruas etc. O saneamento foi reconhecido ajusto título como uma prioridade. Acreditamos públicas menos pode serrestritiva grande mente exp que andido o volume ao se dardeumobras a interpretação ao conceito de responsabilidade fiscal. Não há razão para se pensar que um afrouxamento de créditos para estas obras resulte numa pressão inflacionária, conquanto a agricultura e a indústria brasileiras sejam capazes de enxugar a demanda adicional por bens de sa14 1

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lário com uma oferta elástica destes bens a preços estáveis. Esta condição existe no presente. A participação de cooperativas de trabalho genuínas, devidamente fiscalizadas no que diz respeito às leis trabalhistas e previdenciárias, recomenda-se fortemente, podendo se dar em forma de contratos diretos ou de subcontratação por empreiteiras. Mais uma vez, convém lembrar aqui o papel que os bancos públicos e o sistema de fomento podem desempenhar na promoção de tecnologias apropriadas. 41

Indústrias e artesanatonaturalmente intensivas em mão-de-obra Ao contrário do setor de produção dos não comerciáveis, as indústrias naturalmente intensivas em mão-de-obra (têxtil, confecções, sapatos, móveis etc.) estão expostas a uma competição internacional acirrada, já que quase todos os países menos desenvolvidos apostam neste nicho do mercado. O que está acontecendo no mercado de calçados é emblemático. As grandes empresas multinacionais que controlam o acesso ao mercado de países industrializados deslocam a sua produção para as zonas francas dos países que oferecem o menor custo de produção, ou seja, salários extremamente baixos, longas jornadas de trabalho e isenções de 42 impostos e taxas alfandegárias, a começar pela China. 41

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Em seu primeiro pronunciamento, o novo ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, indicou que pretende dar um grande destaque às políticas de combate ao desemprego, à cooperação do seu ministério com os bancos estatais (O Globo, 25 de janeiro de 2004). Os industriais do calçado chineses contrataram numerosos técnicos brasileiros, conseguindo uma entrada espetacular no mercado norte-americano, no qual o Brasil encontra dificuldades crescentes em se manter. Numerosas indústrias maquiladoras no México, localizadas ao longo da fronteira estadunidense, foram adquiridas por empresários chineses, que as fecharam, transferindo a produção para a China e causando uma grave crise de desemprego no México.

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A termo, esta competição selvagem gera, para países como o Brasil, problemas tão graves quanto o protecionismo dos países industrializados com respeito aos produtos agrícolas. Daí a importância de se colocar este tema na pauta das negociações entre os membros dos recém-formados G-3 (Brasil, índia e África do Sul) e G-20. Em paralelo, é preciso envidar esforços para racionalizar estas indústrias de maneira a garantir a sua parcela do mercado interno. Esta racionalização passa pelo fortalecimento dos poucos APLs hoje existentes e políticas de apoio à emergência e consolidação de novos APLs, em outras palavras, na rearticulação das relações entre grandes empresas e empreendimentos de pequeno porte, e na promoção das mais variadas formas de empreendedorismo coletivo a montante (serviços técnicos, treidesign, compr as coletivas) e a jus ante namento da mão-de-obra, (comercialização). Deve-se contemplar ainda a criação de bancos de APLs. Em que pese a competição internacional, o Brasil tem condições para identificar nichos de exportação em certos ramos de confecção (roupas de praia) e indústria de móveis, esta última favorecida pela abundante oferta de madeiras de lei e de couros. Várias regiões do Brasil possuem um artesanato artístico de qualidade, por enquanto insuficientemente conhecido no mundo e pouco utilizado pelas redes nacionais de hotéis e restaurantes, um mercado institucional potencialmente grande. Ao mesmo tempo, é preciso tomar cuid ado para que es te artesanato não seja desnatu ralizad o por meio que de uma detradição massa de pacotilha,artístico, como aconteceu em países têm produção uma gra nde de artesanato como a índia ou o México. Pensamos que o artesanato artístico deveria ser objeto de um programa abrangente: criação de escolas vocacionais, bolsas para artistas populares, concursos anuais com numerosos prêmios de 143

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aquisição (uma maneira de se constituir um acervo de peças para museus e exposições itinerantes), intermediação entre os artesãos e os mercados institucionais, promoção do artesanato artístico brasileiro no exterior.

Empreendimentos de pequeno porte Devido ao seu grande peso na estrutura de empregos e autoempregos, a consolidação, expansão e geração de empreendimentos de pequeno porte devem ocupar um lugar de destaque na estratégia de inclusão social pelo trabalho decente. O relatório já citado do SEBRAE-PNUD mostrou a enorme heterogeneidade deste setor da economia e a conseqüente necessidade de se desenhar políticas diferenciadas para os seus diferentes segmentos: • os trabalh adores por conta própria que s e subd ivide m em duas categorias bem distintas, os empenhados em atividades de baixa qualificação (vendedores ambulantes, sacoleiras, prestadores de serviços domésticos e pessoais etc.) e os prestadores de serviços profissionais altamente qualificados; • micro e pequenas empresas com atividades informais; • micro e pequenas empresas atuando na economia formal; • trabalhadores por conta própria, micro e pequenas empresas pertencentes ao setor cooperativo, às entidades sem fim lucrativo e demais formas de economia solidária. De uma maneira geral, o que caracteriza os empreendimentos de pequeno porte é o reduzido custo em capital de entrada na atividade. O coeficiente capital/trabalho (i) é baixo (com a exceção de certos serviços profissionais que requerem equipamentos de alta tecnologia). Porém, a contraparte de um i módico é constituída por um coeficiente baixo produto/trabalho (p), ao ponto de acarretar, em muitos casos, um coeficiente alto de capital/ 144

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produto (fc).43 Os três coeficientes estão ligados pela identidade: i - kp. A maioria dos pequenos empreendedores é obrigada, pela baixa produtividade do seu trabalho, a buscar a competitividade por meio de expedientes conhecidos como fatores de competitividade espúria'. baixos salários, ausência de proteção social, longas jornadas de trabalho, sonegação de impostos, condições de trabalho insalubres. Em outras palavras, para enfrentar os rigores do darwinismo social no mercado, eles não têm outra solução a não ser mergulhar na informalidade. Os próprios interessados são as primeiras vítimas do trabalho precário, porém a sociedade toda sai perdendo. O Estado deixa de arrecadar, ao mesmo tempo, a luta contra a pobreza sob forma de ações focalizadas assistenciais drena recursos que devem ser desviados de investimentos direcionados à inclusão social pelo trabalho decente. Por isto consideramos que a desinformalízação dos empreendimentos de pequeno porte e o aumento contínuo da sua produtividade de trabalho constituem as prioridades máximas nas políticas voltadas para este setor da economia. Ao mesmo tempo, é necessário consolidar as MPEs existentes e diminuir os altos índices de mortalidade observados atualmente. A concentração dos esforços na promoção de novos empreendimentos fadados a desaparecer em meses ou em poucos anos assemelha-se a um trabalho de Sísifo. Por último, deve-se pensar na expansão das empresas de pequeno porte

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Um em atividades de baixa(roda tecnologia umGan resultado contra-intuitivo.£alto O famoso de fiar)é de dh i, símbolo da resistênambar-cbarka cia indiana aos britânicos, era muito barato, porém excessivamente pouco produtivo, levando o coef icient e capital/produto k a um nível bem superior ao prevalecente nas fiações industriais. Já o caso era bem diferente com relação aos teares manuais. Por isso, durante várias décadas, para salvar os empregos artesanais, a índia aplicou uma política que protegia os tecelões trabalhando em teares manuais com fios de srcem industrial.

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existentes e, sempre que possível, na sua graduação para a categoria de médias empresas. 44 saída da informalidade um feixededetratamento políticas públicas A complementares inspiradasrequer pelo princípio desigual dos desiguais, no caso, ações afirmativas em favor dos empreendedores mais fracos, para que possam, com o tempo, enfrentar o mercado em condições de competitividade genuína e de produtividade suficiente para proporcionar postos de trabalho decente. Listamos a seguir as políticas que se fazem necessárias: • a desburocratização do processo de criação de novos empreendimentos (micro e pequenas empresas, cooperativas, consórcios, associações de produtores etc), em outras palavras, um Fácil mais fácil, mais abrangente e mais barato; • um regime fisca l co m alíquotas mais baixas, ou seja, um Simples mais abrangente, incluindo os impostos federais , estadu ais e municipais; • um Simples previdenciário; • acesso amplo a créditos preferenciais;

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Pensamos que um crédito de imposto associado à geração do primeiro emprego adicional numa microempresa poderia resultar numa expansão significativa de emprego. O aprendizado, devidamente institucionalizado, pode con sti tu ir um a forma importante de criação de oportunidades de trabalho nas microempresas artesanais, como mostra a experiência de vários países industrializados. Por outro lado, a legislação fiscal atual não é favorável à graduação de MPEs na medida em que a passagem do Simples pa ra o regime geral imp li ca um gr an de aumento da carga trib ut ár ia. Deve ria-se pensar numa maneira de se atenuar este choque, prevendo, por exemplo, reduções progressivas da alíquota nos três primeiros anos que seguem à graduação.

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• acesso aos merc ados , por mei o de um reg ime prefere ncia l nas 45 compras públicas e licitações de obras públicas; • gir acesso às tecno s apropriadas, que análogo pro vav elm e vai exia criação de logia um serviço de extensão aos ent serviços de extensão rural; • promoção de todas as formas de empreendedorismo coletivo, o mais importante instrumento de fortalecimento de pequenos empreendedores no enfrentamento do mercado como compradores, vendedores e fornecedores de bens e serviços com especial destaque para a consolidação dos Arranjos Produtivos Locais existentes e emergentes; este é um campo de atuação para instituições como o SEBRAE, os sindicatos, a OIT, a OCB e as incubadoras da economia solidária que estão surgindo em várias universidades; • racionalização da articulação entre as grandes empresas e os empreendimentos de pequeno porte, de maneira a amenizar as relações adversariais, promover, na medida do possível, sinergias positivas (subcontratações, terciarizações, integração 46 nas agroindústrias, franquias etc.), e lograr a necessária 45

A legislação atual, baseada no princípio de aquisição pelo menor custo, não permite incl uir outros critérios (sociais e am bie nta is). Na práti ca, ela discrimina negativamente os empreendedores de pequeno porte que não têm condições de atender às múltiplas exigências do processo de licitação. Existe também uma discriminação de fato contra as cooperativas de trabalho, como se todas fossem cooperativas de gatos criadas para burlar as leis trabalhistas. As cooperativas de gatos devem ser rigorosamente combatidas. Ao mesmo tempo, deve-se instaurar um regime preferencial para autênticas cooperativas de trabalho.

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Um importante estudo do WIDER ("World Institute for Development Economic Research), da Universidade das Nações Unidas, coordenado por Rober t Mclntyre e Bruno Dallago, sobre as experiências da transição à economia de mercado dos países do Leste Europeu, mostrou que, contrariamente ao que se esperava, o setor de pequenas empresas não é capaz por si só de gerar um cresci ment o eco nômi co bem-su ce di do . Para que o

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complementaridade entre a expansão do núcleo modernizador da economia e o universo dos empreendimentos de pequeno porte. Aprovei tando o atual debate sobre a ref orm a tributária, o S EBR AE lei áurea das nacional está empenhado em promover uma autêntica MPEs, integr ando a maio ria das políticas enumer adas acima. Devido à variedade de configurações, o estudo empírico das saídas da informalidade requer um grande número de estudos de caso, tanto nas regiões metropolitanas como em aglomerações de menor porte. A implantação da estratégia de ecombate à pobreza pela Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho Solidariedade da Prefeitura de 47 São Paulo, a atuação do SEBRAE-SP na zona leste de São Paulo e a próxima criação de um observatório social e econômico da zona leste no novo campus da US P criam condições favoráve is para um estudo da maior concentração da pobreza metropolitana no Brasil. Devemos entender melhor os determinantes do comportamento dos informais confrontados com o dilema de permanecer nas ativi-

desenvolvimento aconteça, é preciso criar uma relação sinérgica entre os empreendimentos de pequeno porte e as grandes empresas (UNU / WIDER, "Ten years of transition: what success in building 'market essence'", Helsinki, 17 de dezembro de 2003. Por outro lado, o recente escândalo da Parmalat pôs em evidência a existência de um verdadeiro cartel do leite no Brasil, no qual quatro empresas - Nestlé, Parmalat, Elegê e Paulista - tinham 70% do mercado, impondo aos pequenos fornecedores de leite preços pouco remuneradores. Atualmente, a Nestlé, que, antes da crise desencadeada pela concordata da Parmalat, pagava RS 0,52 por litro, está pag an do R$ 0,43 ("Crise do leite", O Globo, 29 de janeiro de 2004). 47

Vejam os livros organizados por Márcio Pochmann: Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social, São Paulo, Fundação Perseu Abramo/Cortez Ed. 2002; Atlas da exclusão social no Brasil, São Paulo, Cortez Ed., 2003 (2 vols.); e Outra cidade é possível - alternativas de inclusão social em São Paulo, São Paulo, Cortez Ed., 2003.

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dades informais ou sair delas rumo a uma microempresa (muitas vezes, unipessoal) ou ainda a uma cooperativa. Para tanto, deve-se levar em conta a complexidade da economia real urbana, em que se entrelaçam quatro modos de produção (fora do mercado, protocapitalista, capitalista e solidário) com os bens e serviços distribuídos por intermédio de quatro circuitos (a economia doméstica, a economia popular atendendo as populações de baixa renda, os demais setores da economia de mercado e as compras públicas). Contrariamente a um preconceito presente na literatura do tema, não existem duas economias separadas - a formal e a informal - e sim atividades formais e informais entrelaçadas. A economia popular, longe do constituir o apanágio exclusivo de artesãos e produtores protocapitalistas 48 locais, é objeto de uma intensa competição entre os empreendedores de pequeno porte, as multinacionais cujos produtos ali chegam por meio de supermercados e de redes especialmente criadas de revendedores, enfi m os produtos contrabandeados duplamente competitivos por não pagarem nenhuma taxa e por terem sido produzidos em países que não hesitam em promover as suas exportações recorrendo à competitividade espúria. Que impacto terão, nestas condições, as políticas discutidas acima? Os obstáculos à saída da informalidade apresentam-se sob uma luz diferente, num caso como o do pólo de confecções do Agreste Pernambucano que emprega aproximadamente 76 mil pessoas em 12 mil unidades produtivas, das quais 8% apenas são formais. A produção é de 57 milhões de peças por mês, com um fatur amento mensal superior a R$ 144 milhões. Quase toda a produção é escoada através das três grandes feiras semanais realizadas às segundas em Caruaru, às terças em Toritama e às quartas em Santa Cruz do

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Uma maneira de distin guir um prod ut or pro toca pit alis ta de um microempresário capitalista é saber se ele faz a devida distinção entre o bolso da empresa e o bolso familiar.

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Capibaribe, com a presença de cerca de 45 mil compradores que ali 49 comparecem, transportados por ônibus especiais. Trata-se de uma forte concentração geográfica de indústrias de confecção, que atualmente não tem nenhuma semelhança com o tão atrativo mode lo de Arran jos Produtivos Locais encontrado na Terza Itália. A fei ção essencial dos AP Ls é a pres ença sim ultâne a de competição e cooperação entre os produtores. O que mais falta, no pól o do Agreste Pernambucano, é a cooperação. A competição é extremamente acirrada e os pequenos produtores locais enfrentam, em condições adversariais, as empresas de grande porte que as abastecem com tecidos e aviamentos e que vendem a maquinária, os bancos (o crédito é caro e escasso), além de encontrarem dificuldade para escoar os seus produtos por um método mais eficiente do que a colportagem por sacoleiras. Para completar o quadro, os produtores locais se queixam da concorrência de produtos chineses que ali chegam a um preço menor do que os custos de produção locais. É possível fazer evoluir o pólo de confecções do Agreste para que se torne um APL? Que políticas seriam necessárias para isso?

Empreendimentos de pequeno porte de alta tecnologia A sua importância para o desenvolvimento é indiscutível, embora o seu potencial de geração de empregos seja diminuto. As MPEs deste tipo complem entam o tecido produtivo do núcleo modernizador e desempenham uma função extremamente útil na interface entre a pesquisa acadêmica e o setor produtivo. As incubadoras de empresas high-tech jun to às univers idades constituem um instrume nto eficaz para a sua promoção.

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Ver Estudo de caracterização econômica do pólo de confecções do Agreste Pernambucano, relatór io final apr esen tad o ao SEBR AE- PE, em mai o de 2003. Este estudo foi coordenado pelos professores Maria Cristina Raposo e Gustavo Maia Gomes.

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É verdade que a expansão de serviços baseados nas novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) poderia impactar o mercado de trabalho, caso o Brasil pudesse se posicionar favoravelmente nos mercados internacionais, o que não nos parece ser o caso. A tendência mais provável será um aumento de emprego neste tipo de serviços (não necessariamente em micro e pequenas empresas) que não será suficiente para compensar as reduções de emprego nos bancos e escritórios. A terciarização se traduz por uma transferência e não uma criação de empregos adicionais. Em conclusão, pensamos ter mostrado que as potencialidades para transformar o Brasil em "fábrica de empregos decentes" existem. A tarefa mais urge nte é quant ificar aproxi mativam ente o tamanho dos diferentes nichos de oportuni dades, aprofundando, ao m esmo tempo, a discussão sobre os obstáculos que devem ser removidos e as políticas públicas que se fazem necessárias. Sugere-se que o Ministério do Trabalho promova este estudo, valendo-se do acervo de dados acumulados pela OIT para estimar o custo dos diferentes empregos, o conteúdo em divisas dos investimentos propostos, a capacidade de gerar poupança adicional pelos mutirões, e oferecer assim um subsídio importante para a elaboração de estratégias locais e regionais de desenvolvimento. Pela abrangência do estudo, o Ministério do Trabalho iniciador e gestor do projeto deverá buscar parcerias com vários outros ministérios, com o BNDES, o IPEA, a FINEP, a EMBRAPA, a CNI e o SEBRAE, bem como a OIT, o PNUD e a CEPAL.

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Este livro foi composto em Times New Roman 10,5/14,5 impresso em papel off-set 90 gr pela PSI7, em São Paulo para a Editora Garamond no mês de maio de 2012

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deb ate sobre o desenvolvimento

vem

sendo travado há algumas décadas, mas recentemente se intensificou, muitas vezes de maneira

estimulante,

com

as

drásticas

mudanças políticas que o mundo tem sofrido, o forte acirramento das tensões sociais e a incessante degradação do meio ambiente. Nesse contexto delicado, surge a proposta de um Desenvolvimento Sustentável como alternativa desejável - e possível - para promover

a inclusão

social, o

bem-estar

econômico e a preservação dos recursos naturais. Essa tese, articulada pelo professor lgnaçy Sachs, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, conquista cada vez mais apoio em todo o planeta.

ISBN

857617040-X

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