Depois Da Religião (Luc Ferry)
April 15, 2017 | Author: Célio Souza | Category: N/A
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Luc
C omo pensar o fenômeno religioso depois da saída da rel igião?
FERRY
Será necessário ver no âmago da idad e laica uma persistência
MARCEL GAUCHET
do sagrado? Estará o mundo destinado ao desencantamento ou prometido a um reencantamento? Luc .Ferry e Mareei Gauchet esclarecem aqui nossa perplexidade e seu desacordo por meio de uma discussão densa, sem polêmica nem concessões.
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Autor: Ferry, Luc, Título: Depois de religião : o que será Capa: Simone Villas-Boas
I Foto: Bocos Benedict/Fotolia
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Ac. 413715 N° Pat.:2011
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LUC FERRY & MARCEL GAUCHET
Luc Ferry:
O QUE É UMA VIDA BEM-SUCEDIDA? O HOMEM-DEUS OU O SENTIDO DA VIDA
DEPOIS DA RELIGIÃO O que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei?
Tradução Nicia Adan Bonatti
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DI FEL
Copyright «7! Editions GRASSET & FASQUELLE, 1996 Título original: Le religieux apres la religion Capa: Simone Villas-Boas Editoração: DFL
2008 Impresso no Brasil Printed in Brazil
DEPOIS DA RELIGIÃO
CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros- RJ F456d
Ferry, Luc, 1951Depois da religião: o que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei?fLue Ferry & Mareei Gauchet; tradução Nícia Adan Bonatti. -Rio de Janeiro: DIFEL, 2008. l08p. Tradução de: Le religieux apres la religion ISBN 978-85-7432-082-3 l. Religião- Filosofia. 2. Religião- História - Século XXI. 3. Secularização (Teologia). I. Gauchet, Mareei, 1946-. II. Título.
08-0411
CDD- 211.6 CDU- 211.5
Todos os direitos reservados pela: DIFEL - selo editorial da EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 - 1• andar - São Cristóvão 20921-380- Rio de Janeiro- RJ Te!.: (Oxx21) 2585-2070 - Fax: (Oxx21) 2585-2087 Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
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Vivemos a "morte de Deus" ou, ao contrário, o retorno do religioso? A questão não cessa de se colocar. Por um lado, as Igrejas e os dogmas enfraquecem em proveito de crenças mais pessoais, "à la carte", dizem alguns. Por outro - é preciso constatar - , os integrismos e outros fundamentalismos de todo gênero nunca se comportaram tão bem. Como se situar entre tendências tão contraditórias? Luc Ferry e Mareei Gauchet esclarecem aqui nossa perplexidade por meio de uma reflexão que não hesita em recorrer à história da civilização. Assistimos, eles concordam, a um duplo processo, que Mareei Gauchet havia descrito em seu livro Le désenchantement du monde (Gallimard, 1985): de um lado, a "saída da religião" e, do outro, a "individualização do crer". De fato, o que se apaga, de modo definitivo, é uma visão do mundo inteiramente estruturada pela religião (como heteronomia), uma concepção em que o religioso impregna todos os setores da vida pública e privada. Saímos de tal maneira desse universo que doravante é em nome da livre escolha pessoal que rei-
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vindicamos- ou não- uma crença religiosa. Para isso o religioso, como aspiração ao absoluto, como busca de sentido numa interrogação sobre a morte, está muito longe de desaparecer na época contemporânea: ele persiste como uma hiância que mesmo os reducionismos mais radicais não conseguem preencher. Compreendese dessa forma como, em nossos dias, o enfraquecimento das religiões e a permanência do religioso podem se encontrar no mesmo patamar. Assim, resta pensar o estatuto desse religioso - inquieto, problemático e incerto -num universo laicizado. Como pensar o religioso depois da religião? É sobre esse ponto que as análises de Luc Ferry e de Mareei Gauchet divergem radicalmente. Seu desacordo havia sido expresso, de forma um tanto implícita e rápida, em algumas de suas obras. I O College de Philosophie convidou-os a explicitar essa discordância por ocasião de uma sessão de seu seminário público. Foi na Sorbonne, em 9 de janeiro de 1999: este livro apresenta a transcrição, revista e corrigida pelos autores. Lembremos aqui alguns elementos de contexto que permitirão ao leitor apreender o sentido de suas posições respectivas. Para Luc Ferry, a época contemporânea caracterizase pelo cruzamento de dois processos: por um lado, o que ele chama de "humanização do divino", ou seja, o
1 Luc Ferry. L'homme-dieu. Paris: Grasset, 1996, p. 54, nota; Mareei Gauchet. La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998, p. 64, nota. (Ed. bras. O homem-Deus. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Difel, 2007.)
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fato de que toda a história cultural moderna consiste na tradução dos conteúdos teóricos e práticos da religião na linguagem do humanismo ou, dito de outra forma, numa linguagem que seja compatível com o indivíduo posto como valor cardinal. Por outro lado, a "divinização do humano", isto é, o fato de que no âmago desse individualismo autônomo - condição do homem moderno - reemerge a transcendência: uma transcendência não mais vertical (entre os homens e o além), mas horizontal (entre os próprios homens). É esse duplo processo que faria do humanismo contemporâneo um humanismo do homem-Deus. No coração desse humanismo, única alternativa a uma interpretação materialista e imanentista da vida humana, o religioso não estaria destinado a se enfraquecer, mas, ao contrário, a encontrar sua forma mais autêntica. Para Luc Ferry, a "verdadeira" religião- isto é, aquela mais conforme à aspiração humana- não estaria atrás de nós, mas adiante, como um horizonte a ser elaborado. Mareei Gauchet, por sua vez, contesta essa alternativa do materialismo e do humanismo do homem-Deus, considerando que uma interpretação radicalmente não religiosa da transcendência é possível. Ele persiste assim na idéia de que vivemos a época de um afastamento e de uma separação entre o homem e Deus que não cessa de se ampliar. É essa separação que teria atingido atualmente sua amplitude máxima, de tal forma que o humanismo contemporâneo, que deveria ser pensado ou inventado em nossos dias, não seria aquele do ho-
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mem-Deus, mas, ao contrário, aquele do homem sem Deus e do homem definitiva e irrevogavelmente sem Deus. A figura histórica do sagrado é destinada a enfraquecer em proveito de um "absoluto terrestre", cujas modalidades e formas ainda necessitam ser identificadas. O que se tornará a exigência humana do sentido último, agora que ela está órfã do consolo dos discursos religiosos tradicionais? São esses os termos do debate. O leitor decidirá por si mesmo o caminho que desejará tomar nesse percurso multissecular que engaja também o devir humano. Mas ele será conquistado, pensamos, pela qualidade da argumentação, que não cede à vã polêmica, nem ao acordo fácil. Se cada um dos autores permanece, ao final, fiel às suas posições, nenhum deles sai totalmente indene da discussão: a natureza do desacordo, seu alcance e tudo aquilo que está em jogo se viram aprofundados e esclarecidos. Prova disso são os desenvolvimentos que posteriormente serão dados a esse debate. A partir de 1999, com efeito, a obra dos dois autores se enriqueceu de maneira considerável. Luc Ferry publicou O que é uma vida bem-sucedida?,2 em que desenvolve a idéia de uma reconfiguração humanista da questão religiosa. Por sua vez, Mareei Gauchet publicou, entre outros, um livro de entrevistas, La condition histoz Luc Ferry. Qu'est-ce qu'une vie réussie? Paris: Grasset, 2002. (Ed. bras. O que é uma vida bem-sucedida?. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro: Difel, 2004.) (N.T.)
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rique (Stock, 2003), que não somente constitui uma introdução ao seu trabalho, mas uma verdadeira síntese se não a chave de seu projeto filosófico e histórico. Lendo essas duas obras, percebe-se uma seqüência e um aprofundamento das teses aqui apresentadas. A pergunta "O que é uma vida bem-sucedida?" fornece a Luc Ferry um fio condutor para estudar as metamorfoses do que chama de "figura metafísica do religioso". Sob suas três dimensões, teórica, prática e soteriológica, essa figura emerge com a filosofia grega e prossegue seu destino no cristianismo- que se concebia como uma superação das sabedorias antigas - e até nos dispositivos contemporâneos aparentemente mais distantes dessas preocupações, como, por exemplo, no "materialismo" nietzschiano. Que forma pode tomar a reformulação humanista e individualista dessa pergunta diretriz da existência pessoal? Luc Ferry se dedica a identificá-la na última parte de seu livro, desdobrando assim as balizas colocadas na presente discussão. A sabedoria do homem-Deus, longe de deixar lugar ao orgulho e à desmedida (a hybris dos gregos), tentará encontrar no indivíduo finito e mortal os meios de sua justificação, de sua salvação e de sua grandeza. Mareei Gauchet, por sua vez, também traz certo número de complementos que permitem precisar as formas que seriam suscetíveis de revestir o "absoluto terrestre" num mundo desencantado. Há em nossa época, diz ele, experiências profanas do religioso ou ainda da "religiosidade que se ignora" (La condition historique, I
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p. 311-312): "Muitos jovens sonhadores, que se querem modernos até o último fio de cabelo e que se julgam libertos dessas velharias que mal se podem imaginar, são místicos sem sabê-lo, em busca de uma experiência espiritual. Festa, transe, vertigem, estados alterados de consciência obtidos pela música ou por substâncias adequadas: o que sempre está em causa é o acesso a uma outra ordem de realidade. O lugar tomado pelas drogas em nossas sociedades se explica em grande parte por isso. Diz respeito à aspiração a fugir da prisão do cotidiano." Mas não são essas as únicas manifestações: "Seria preciso falar no mesmo sentido da ascese esportiva ... do que está em jogo no trabalho sobre o corpo, na ética do esforço, na busca da superação de si." Até a "experiência da arte" que, despida de sua relação especulativa com o sagrado, permanece "uma experiência íntima de ordem espiritual para muitos ... O que se busca no êxtase musical ou no deslumbramento pelo verbo é a passagem para um mundo impalpável e mais pleno do que aquele que nos é ordinariamente dado". Em suma, conclui Gauchet, "o animal metafísico não se conhece mais como tal, mas isso não o impede de existir". Como pensar esse animal metafísico que é o homem? E como pensá-lo hoje, quando os dispositivos religiosos se apagaram em sua força de evidência e de coerção? Tal é o fundo do problema e do dilema. O excesso do homem em relação à sua própria natureza: será preciso interpretá-lo como o sinal de que há nele mais do que ele mesmo, algo de divino, no sentido em que o com-
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preende Luc Ferry? Ou, ao contrário, como pensa Mareei Gauchet, não se pode ver nada além da manifestação da condição humana, simples e exclusivamente humana? Em suma, é um possível reencantamento ou um desencantamento radical que se desenha no horizonte no mundo por vir? Eric Deschavanne Pierre-Henri Tavoillot
Pierre-Henri Tavoillot
O Collêge de Philosophie está particularmente honrado e feliz em receber Luc Ferry e Mareei Gauchet para debater a questão das relações entre filosofia e religião. Essa discussão é muito esperada, por pelo menos duas razões. Para quem os lê atentamente, na compreensão e ao mesmo tempo na extensão de suas obras, a proximidade de suas perspectivas e de suas ambições intelectuais é surpreendente. Trata-se, nos dois casos, nada menos que do projeto de pensar as metamorfoses modernas da cultura, de interrogar a reinvenção contemporânea da humanidade sob seus aspectos mais significativos: espiritual, político, ético, psicológico, estético... Contudo, lendo-os ainda mais detidamente, descobre-se, nas notas de rodapé, algo como uma discussão mais discreta que dá testemunho, além da diferença entre seus respectivos métodos - mais filosófico para um, mais histórico para outro - , de nuanças, ou até
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mesmo de francos desacordos, sobre o diagnóstico e a interpretação. Noto dois, de passagem e de memória: um que diz respeito à periodização da história da subjetividade; o outro, à nova articulação do privado e do público nas sociedades contemporâneas. Não insisto neles, pois o ponto que nos ocupará hoje é muito vasto: ele concerne ao lugar do sagrado na idade laica. Está destinado a desaparecer ou encontra uma nova configuração no horizonte do humanismo? Em que recanto de nossas sociedades de indivíduos as grandes questões sobre o sentido da existência irão doravante se aninhar ou se esconder? Em suma, o que se tornará o religioso depois da "saída da religião"? Para começar, passo a palavra a Luc Ferry.
Luc Ferry Relendo Mareei Gauchet para preparar esse encontro, perguntei-me se os desacordos que notam entre nós são efetivamente reais ou somente fictícios. Hoje seria uma boa ocasião para tentar medi-los. Entre as três dissensões mencionadas por Pierre-Henri Tavoillot, parece-me de fato que a mais importante, se é que existe, é aquela que diz respeito ao uso da palavra sagrado e à legitimidade ou não de falar, como o faço, da "divinização do humano", ou ainda da relação com o sagrado ou da "espiritualidade laica". Esse vocabulário seria legítimo em nossos dias? Não é abusivo? Provavelmente é isso
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que pode suscitar a principal dissensão. A questão da periodização da história da subjetividade me interessa muito; mas é uma questão, convenhamos, relativamente marginal em relação à da legitimidade de um discurso sobre a espiritualidade ou sobre o sagrado que não seria um discurso puramente histórico ou historiador, um discurso que aceitaria essas categorias como sendo ainda legítimas hoje em dia. Creio ser o ponto central e, na mesma medida, ir diretamente - se é que há divergência entre nós (veremos isso daqui a pouco)- ao essencial. Partirei do último livro de Mareei Gauchet,J no qual há uma pequena nota que me diz respeito e que parece, ao menos à primeira vista, bastante clara. Ela corresponde a uma passagem na qual Mareei Gauchet explica que o homem e Deus estão separados como jamais estiveram na história da Europa e provavelmente na história do mundo e que, diz ele, saímos da era de uma autonomia a ser conquistada contra a heteronomia. Dito de outra maneira, esse processo de conquista da autonomia está terminado. Vivemos definitivamente num mundo sem Deus, no qual o homem está completamente separado do divino. Tese que vem reforçar, portanto, a seguinte nota: "Não se pode estar mais enganado no diagnóstico, a meu ver, que Luc Ferry, ao falar da humanização do divino e da divinização do humano. Trata-se de, exatamente ao contrário, uma dinâmica separatista que 1
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desantropomorfiza o divino e retira do humano tudo o que nele ainda poderia subsistir de uma participação, mesmo longínqua, no divino." Por conseguinte, continua Mareei Gauchet, falar de humanização do divino e de divinização do humano, como eu fiz em O homem-Deus, é imaginar que esses dois termos estão hoje em dia em vias de aproximação, ou mesmo aproximados, é o erro por excelência, pois a história da Europa leva, ao contrário, a manifestar sua separação radical e provavelmente definitiva. Creio que de fato é o ponto sobre o qual é preciso que reflitamos, saber se realmente se trata de uma oposição- o que é possível, não excluo essa hipótese, mas também não estou absolutamente certo dela - ou, ao contrário, se é muito mais uma querela de palavras que de fundo. Porém, uma vez mais, quando digo que não excluo as duas possibilidades, é porque verdadeiramente não sei, dado que a nota de Gauchet não é, realmente, muito explícita: ela expressa mais uma rejeição que uma explicação. Para tentar esclarecer, gostaria de fazer algumas observações que partirão em primeiro lugar do problema central, a meu ver, que é a definição do religioso, pois evidentemente quando se fala de "sagrado", de "divino", de "religioso", de "espiritual", tudo depende do que se coloca sob esses termos. A questão é, portanto, saber se quando se fala de uma aproximação, como faço, entre o humano e o divino, ou, ao contrário, de uma separação total, se expressam verdadeiramente pontos de vista tão contraditórios quanto parecem à primeira vista.
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O que Michel Gauchet compreende como religioso? Penso que ele retém três grandes características do religioso que não parecem formar, de fato, uma definição legítima e coerente- uma definição que não ponho em causa, mas que nem por isso penso ser a única possível. 1) O primeiro traço é, no sentido amplo, a heteronomia: o religioso é um princípio exterior e superior à humanidade. Sobretudo na relação com a lei, é a idéia de que a lei é simultaneamente exterior e superior aos homens. É nesse sentido que Mareei Gauchet tem razão em dizer que o religioso "mais religioso" está na origem da história, sobretudo nas sociedades selvagens ou primitivas - o nome que se dá a elas pouco importa. O verdadeiro religioso, se posso dizer assim, está na origem, dado que é nela que a exterioridade das matrizes da lei ou da organização social e política em geral é maior. Em outras palavras, o religioso não é simplesmente a heteronomia- isto é, o fato de que a lei vem de outro lugar que não a própria humanidade - , mas, de certa forma, a denegação da autonomia - vale dizer, o fato de que os seres humanos se recusam a atribuir a si mesmos a organização social, a história, a elaboração das leis- e que, recusando-se a perceber a si mesmos como matrizes da organização social, da lei e do político, eles extra-põem essa fonte numa transcendência, numa exterioridade, numa superioridade e, em suma, numa dependência radicais. 2) Segunda grande característica: se entendemos o religioso nesse sentido - notem que a originalidade do
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trabalho de Mareei Gauchet está em partir de uma definição política do religioso, isto é, que se trata de compreender o religioso em seu laço com a organização social e com a lei, e quase todas as objeções que lhe são feitas normalmente não se sustentam porque na maior parte das vezes elas não levam em conta essa particularidade de sua definição - , então se compreendemos bem que a definição do religioso dada por Mareei Gauchet está ligada à questão da organização política e da produção da lei, compreendemos também que o religioso na história da Europa pertence, com efeito, ao passado. Pertence a um tempo terminado, e aí está sua segunda característica, não simplesmente no sentido em que se poderia dizer: "aí está: as grandes idéias religiosas desapareceram, vivemos em sociedades em que a secularização, a laicização produziram seus efeitos etc." - e é, aliás, por isso que Mareei Gauchet rejeita, a justo título, o uso dos termos secularização ou laicização em sua própria perspectiva. Mas o religioso pertence ao passado em um sentido muito mais profundo e muito mais estrutural: não é simplesmente que saímos das ingenuidades religiosas; é o fato de que o religioso, entendido nesse sentido, pertence a formas de organização política tradicionais, nas quais a lei é pensada como a herança de uma tradição que, ela mesma, se enraíza num passado imemorial e finalmente divino. Ora, é essa estrutura da organização social na qual a temporalidade pertence ao passado que está, por excelência, hoje extinta, na medida em que, grosseiramente, a partir da Revolução Francesa - poderíamos mesmo mostrar como isso se enraíza
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no nascimento do Estado - , temos sociedades organizadas a partir da idéia de auto-instituição, da idéia de que os homens fazem sua história, elaboram a lei, sobretudo com o nascimento dos Parlamentos e principalmente com a idéia de que a temporalidade dessas sociedades se pensa a partir do futuro. Como dizia Clastres, 4 um chefe indígena, desejando ser eleito (a idéia de eleição não tem pertinência aqui, mas trata-se de uma imagem), teria dito: 'J\cima de tudo não mudarei nada na sociedade em que vivo, pois a inovação é um pecado por excelência." Vejam que atualmente um candidato que se apresentasse às eleições, tendo como programa unicamente a promessa solene de que jamais mudaria coisa alguma, teria pouca chance de se eleger. Temos aqui uma estrutura de temporalidade completamente diferente. Se insisto com exemplos voluntariamente simplistas é para dizer que a pertença do religioso ao passado não é superficial não é como se, numa visão positivista ou historicista, disséssemos a nós mesmos: acabamos com as ilusões da religião, assim como fizemos com todas as velhas superstições vencidas pelas Luzes da razão e da ciência etc. Não é o que Mareei Gauchet quer dizer quando decreta que o religioso pertence fundamentalmente ao passado: ele quer dizer que, estruturalmente, a idéia religiosa, tal como a define, está ligada a sociedades tradicionais. Isso evidentemente não significa que não haja
Pierre Clastres. La société contre l'État. Paris: Minuit, 1974. (Ed. bras. A sociedade contra o Estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.)
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mais crentes - provavelmente há nesta própria sala cerca de 60% de cristãos-, mas que a religião setornou uma opinião particular entre outras, uma crença pessoal entre outras e que ela não estrutura mais o espaço público e nem é mais a matriz da ·lei. 3) A terceira característica é que, como se pressente inevitavelmente nessa perspectiva, a religião não é uma "disposição natural" do humano em geral, no sentido que Kant dava a essa expressão. Não é uma disposição metafísica do homem. Dito de outra forma, a necessidade religiosa não é - ou, em todo caso, nada permite afirmá-lo com certeza- algo como uma dessas categorias transcendentais da experiência humana, como se a religião estivesse inscrita desde sempre e para sempre na configuração essencial do ser humano. A religião pertence, ao contrário, a um período passado e ultrapassado da história. Ela tem um começo e um fim. Pode-se imaginar uma organização social dos seres humanos definitivamente sem religião, sem que com isso as velhas ameaças da Igreja nos caiam sobre a cabeça e sem que, forçosamente, essas sociedades sem religião, puramente humanas, estejam fadadas ao totalitarismo ou, quem sabe, a alguma catástrofe qualquer, ao imoralismo, ao materialismo etc. Acredito que tudo isso está devidamente afastado por Mareei Gauchet. Dito isso, o corolário dessa "vassourada", por assim dizer, é que a religião não aparece mais como uma disposição metafísica, essencial à humanidade, mas como um momento histórico ligado a uma organização social e política particular.
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Sobre esses três pontos, direi francamente o que penso: se nos colocarmos na perspectiva política de Mareei Gauchet, ele tem evidentemente razão. E, mais uma vez, a maior parte das objeções que lhe são feitas cai por terra, tais como: "Veja a atual revanche de Deus: o Dia Mundial da Juventude na França e o islã às nossas portas." Tudo isso, acredito, não incomoda Mareei Gauchet. No primeiro caso, trata-se, apesar de tudo, de manifestações privadas da religião: mesmo que transpareçam no espaço público, não correm o risco de reaparecer como figura da organização pública ou, ainda menos, como um princípio fundador. No segundo caso, fala-se de povos e de países que jamais conheceram nem a laicidade nem a democracia, e que freqüentemente se debruçaram sobre a religião para encontrar uma "identidade nacional" forte no quadro dos processos de descolonização. Apesar disso, se tomarmos outra definição do religioso, podemos - sem que estejamos em desacordo fundamental com a perspectiva de Mareei Gauchet, que mais uma vez me parece, pelo menos em seu campo, pouco contestável - chegar a conclusões muito diferentes das suas. Serão elas contraditórias? É possível, mas, contrariamente ao próprio Mareei Gauchet, não tenho de forma alguma certeza sobre isso a priori. Penso que é então preciso se dar ao trabalho de pensar um pouco além das aparências, se não for pedir demais. Podemos distinguir ao menos três grandes definições do religioso.
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Conforme a primeira delas, que conhece um grande impulso no século xvm e prossegue sua longa história com Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, a religião deveria ser compreendida como o ópio do povo, como niilismo, como neurose obsessiva da humanidade, sempre com uma mesma estrutura, a do "fetichismo": uma atividade intelectual, meio imaginária, meio racional, que fabrica um produto, no caso a idéia de Deus, depois se apressa em esquecer que é inteiramente a responsável pela autoria. No fundo, o princípio dessa crítica já está contido na famosa frase de Voltaire, que cito de memória: "Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou na mesma moeda." Não insisto. Essa definição da religião como superstição, hipóstase fetichizada ou alienação não interessa a nenhum de nós dois senão de maneira marginal. Há uma segunda definição do religioso. É a definição política no sentido forte, aquela em cuja perspectiva se situam os trabalhos de Mareei Gauchet, sobre a qual acabo de falar. Uma terceira definição situa-se num plano não mais histórico e político, mas filosófico e metafísico - o religioso, bem simplesmente, como discurso que diz respeito ao elo entre o finito e o infinito, entre o relativo e o absoluto, com uma questão central: a da finitude ou, para ser mais preciso, da morte. Essa figura metafísica do religioso é, sob certos aspectos, relativamente independente da definição política que é dada por Mareei Gauchet. É a definição que encontrarã o- aliás, já
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defendida por mim num artigo da Débat5 - na filosofia moderna, ao menos a partir de Descartes. Parece, de fato, que a filosofia moderna não pode ser verdadeiramente compreendida senão como uma tentativa de traduzir num vocabulário que é o da razão, portanto nos conceitos por essência laicos, os grandes discursos religiosos, começando, é claro, pelo discurso cristão. O exemplo mais significativo é sem dúvida o do hegelianismo. A fenomenologia do espírito, como sabem, conta o trajeto de uma consciência que Hegel chama de 11 • "" • • .... ..... consciencia mgenua ,, , a 11 consc1encia natural", como o diz ainda, dado que ela mal emerge da natureza, isto é, o ser humano, finito e ignorante, que por etapas se aproxima do Absoluto, a saber, de Deus, da compreensão infinita, desse "saber absoluto" que evidentement e nada mais é que um dos nomes do divino. O projeto de Hegel é fazer de modo que esse estranho itinerário pelo qual o ser humano encontra Deus - o ser finito se reúne com o saber absoluto-, esse trajeto que é efetuado pela fé na religião (esse lampejo que nos impele à fusão imediata com Deus) seja, ao contrário, operado pela filosofia no âmago desse elemento profundamen te laico que é o da razão. Creio que, num sentido a ser ainda precisado, essa trajetória de A fenomenologia do espírito vale de modo emblemático para toda a filosofia moderna- não simplesmente para Hegel, mas também para Descartes e mesmo para Kant. A filosofia ocidental moderna poderia definir-se como uma tentativa de 5
Le débat, "La ph!losophie qui vient",
n~
72, nov.-dez. 1992.
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retraduzir os grandes conceitos da religião cristã no interior de um discurso laico, isto é, de um discurso racionalista. De certa forma, a Declaração dos Direitos Humanos - num modo diferente e num outro registro - freqüentemente não passa de um cristianismo laicizado ou racionalizado. Falo aqui do conteúdo, e não dos atos declaratórios ou ainda da história da Declaração; falo dos valores que ela veicula e que a meu ver não somam grande coisa aos valores cristãos. No fundo, parece-me que não há uma descoberta surpreendente de novos valores ou de uma nova moral no século XVill na Europa, mas muito mais uma laicização dos valores tradicionais do cristianismo. Nessa perspectiva de uma definição do religioso como relação com o Absoluto, portanto com essa questão central na filosofia moderna que é a da finitude, as três características do religioso segundo Mareei Gauchet são evidentemente contestáveis, porque nós nos colocamos de um ponto de vista totalmente diferente. Aqui, a religião não é necessariamente heteronomia. Pode-se, por exemplo, descobrir o religioso a partir de experiências inteiramente autônomas, essas Erlebnisse, experiências vividas, das quais falava principalmente Husserl. Ou, mais exatamente, poderíamos dizer que o religioso aparece como o horizonte das experiências vividas pelos seres humanos- esse horizonte de transcendência sobre o qual voltarei a falar adiante e que não me parece necessariamente fadado à heteronomia. A transcendência e a heteronomia não são a mesma coisa. O religioso também não pertence obrigatoriamente ao
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passado porque, como horizonte de certas experiências vividas pelo indivíduo, ele pode perfeitamente tomar a dimensão do presente ou mesmo do futuro. Ele não está indispensavelmente aqui ligado a um período histórico ou a uma organização social particular; pode aparecer como uma disposição natural para a metafísica, cuja origem, aliás, permanece extremamente problemática ou talvez mesmo misteriosa, e sobre a qual a reflexão poderia felizmente aplicar-se. Gostaria de desenvolver rapidamente as conseqüências opostas ou, em todo caso, aparentemente opostas, dessa outra definição do religioso - que, diga-se de passagem, provavelmente não escapa a Mareei Gauchet, mas que simplesmente não faz parte de sua proposta. Em que o religioso, definido muito simplesmente como acabo de fazê-lo, em seu sentido puramente metafísico e filosófico, pode parecer atualmente, no âmago das sociedades laicas, como uma dimensão legítima e, se posso usar aqui a expressão gasta, "incontornável" da existência humana? Darei dois indícios. O primeiro é que a noção de transcendência não é redutível à de heteronomia ou de dependência radical. Na história da filosofia há, seja dito de passagem, ao menos duas grandes figuras da transcendência, duas grandes definições da transcendência. Em primeiro lugar há a transcendência tal como ela existe a montante da consciência humana, antes e acima dela. É a transcendência da Revelação, a transcendência da heteronomia de que fala Mareei Gauchet, a transcendência à qual o papa convida seus seguidores a voltar, quando diz, no
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fundo, em Esplendor da verdade: vocês não são obrigados a ser cristãos, mas, se forem cristãos, então admitam que há uma verdade revelada, uma verdade crística e que essa verdade dada pelo próprio Deus possui um certo número de implicações morais - e funda o que o papa chama, aliás corretamente, nessa perspectiva, de "teologia moral". Diante dessa verdade, a atitude que convém não é a do orgulho cartesiano, que pensa tudo pôr em dúvida e tudo submeter ao crivo do exame crítico, em nome da recusa dos argumentos de autoridade, mas a atitude da humildade. Transcendência, portanto, com T maiúsculo, transcendência a montante da consciência, transcendência heterônoma. Esta, nós conhecemos, no fundo, é também aquela de que fala Gauchet, mesmo que ele evidentemente a inclua - e é uma das contribuições de seu trabalho- numa perspectiva política e histórica de estrutura de organização social. Mas há também uma outra figura da transcendência que, a meu ver, não é menos transcendente que a primeira- e é sobre ela que deve incidir o debate. Em certo sentido, penso que ela não é menos religiosa: acho mesmo que ela designa precisamente a verdade das religiões. Trata-se de uma segunda forma de transcendência, de uma transcendência que não está a montante da consciência humana, mas, ao contrário, a jusante das experiências vividas, que não está, portanto, situada estruturalmente no passado, e sim no futuro; uma transcendência que corresponde àquilo que Husserl designava como uma "transcendência na imanência", isto é, o horizonte inevitável e incontornável de nossas expe-
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riências vividas, não só na ordem da verdade ("2 + 2 4" é transcendente em relação à menor individualidade: não é uma questão de gosto e resiste formidavelmente ao relativismo ambiente), mas também- e é claro que aqui se trata de uma metáfora - uma transcendência na ordem da ética, e, por que não, da cultura. Pois aqui também, apesar do que se diz freqüentemente, temos a sensação de que descobrimos "verdades", que não as inventamos - o que, convenhamos, é muito diferente e singularmente problemático para o individualismo e para o materialismo. Transcendência na ordem da moral, é claro, mas também da estética, como eu dizia, e na ordem daquilo que Spinoza chamava de ética, isto é, no fundo, na ordem do amor. Não é por sentimentalismo que falo hoje de amor, mas porque essa quarta esfera, além da verdade, além da moral, além da estética e do simbólico, essa esfera da ética no sentido de Spinoza, mas ao mesmo tempo da Sittlichkeit no sentido de Hegel, é a que mais nos aproxima do religioso- fato de que tanto Spinoza quanto Hegel tinham perfeita consciência. Essa dimensão do amor faz parte, com pleno direito, da história da filosofia moderna. Digo que no horizonte dessas quatro experiências, de qualquer modo que se as vivenciem, há a necessidade de uma experiência de transcendência, não sob o modo da heteronomia e da dependência, mas na imanência. O que gostaria de acrescentar, para que se compreenda bem, é que essa transcendência na imanência tem uma história. Não é um acaso que a palavra apareça em Husserl; ela tem uma história que se enraíza na filosofia
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transcendental, e mesmo - se alguns estudantes desejassem fazer uma pesquisa sobre este assunto ela seria bem-vinda- ela parte de Leibniz, nos dois domínios da filosofia, o da teoria e o da moral, isto é, do lado da verdade e do lado do bem e do mal. Em poucas palavras: por que a teoria kantiana da verdade é a primeira figura dessa idéia grandiosa, a meu ver, de transcendência na imanência? Quando o problema da representação se coloca na filosofia kantiana, a partir dos anos 17701771, Kant, no fundo, diz o seguinte: habitualmente se põe o problema da verdade nos seguintes termos: temos representações, por exemplo, uma garrafa, e a verdade seria a adequação dessa representação de garrafa ao objeto em si que lhe corresponde. Portanto, o ideal de verdade seria fazer corresponder nossas representações, nossos pensamentos, e o objeto em si. A grande revolução kantiana, a que se convencionou designar como revolução copernicana, consiste em dizer que essa maneira de colocar o problema é absurda e que a verdade científica não seria uma relação entre representações subjetivas e as coisas em si, mas que ela reside simplesmente numa certa ligação das representações, numa certa associação das representações que vale universalmente. É, tendo Leibniz no horizonte, um "devaneio bem amarrado", graças a regras universais, aquelas que fornecem ao método científico as categorias do entendimento. Em outras palavras, a verdade é fundada, para Kant, sem sair do domínio das representações, ou, para me encaminhar para a fórmula de Husserl: a verdade está fundada na imanência da subjetividade,
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mas como algo que transcende a particularidade de cada um de nós. Aí está, parece-me, a primeira figura da transcendência na imanência. A segunda se situa no campo da moral. Kant é aquele que vai fundar a moral, talvez pela primeira vez, sem nenhuma referência a Deus, nem a algum princípio substancial, por exemplo cosmológico, exterior e superior à humanidade. A moral é puramente fundada sobre princípios humanos -poderíamos mesmo dizer humanistas. Contudo, por outro lado, é essa reviravolta que me parece fundamental para compreender a situação do religioso hoje em dia. O religioso se reintroduz no final do percurso como o horizonte das práticas humanas; é esse o sentido dos famosos postulados da razão prática, a idéia de que a moral não é fundada na religião, de que se ela o fosse seria um desastre é, portanto, o fim do teológico-ético - , mas que, ao mesmo tempo, no horizonte de nossas ações morais não pode deixar de existir uma problemática religiosa, aquela aberta pelos famosos postulados da razão prática. Isso também constitui uma verdadeira revolução, devida à idéia de que o religioso não se encontra mais a montante da moral, como quer o papa (a teologia moral), mas sim inteiramente a sua jusante, isto é, ele passou para o lado do futuro. Em outros termos, o religioso não é mais da ordem da heteronomia, da dependência radical, mas da ordem da transcendência na imanência. Não se trata mais de sobre o que a moral vai se fundar e que é exterior aos seres humanos, mas na direção de que a
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moral tende e o que é pensado a partir da autonomia das experiências individuais. É claro que se poderia discutir longamente a respeito do bom fundamento de tal revolução. Creio que, no mínimo, sua realidade é pouco contestável e que ela abre, a respeito do estatuto do religioso depois da religião, isto é, no âmago de um mundo laico e desencantado, uma perspectiva, sob alguns aspectos, diferente daquela tomada por Mareei Gauchet - isso, aliás, não significa sempre que ela lhe seja oposta, o que é ainda uma outra abordagem. Adiciono ainda uma última idéia, pois sugeri que havia dois indícios da persistência legítima do religioso no coração do mundo democrático. Primeiro indício: podemos pensar o religioso de outra forma que não a heteronomia e como estrutura passada ou ultrapassada. Aí está o efeito dessa reviravolta extraordinária entre moral e religião produzida em algum momento do século XVIII. Segundo índice: aqui se trataria de uma discussão com nosso amigo Lipovetsky- é a idéia de que, contrariamente ao que às vezes sugere seu livro O crepúsculo do dever,6 a noção de sacrifício de modo algum desapareceu da problemática moral de nossos contemporâneos. Penso que, ao contrário, ela está presente, mas que simplesmente os motivos do sacrifício se huma-
Gilles Lipovetsky. Le crepuscule du devoir. Paris: Gallimard, 1992. (Ed. bras. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005.)
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nizaram. Como busquei mostrar longamente em O homem-Deus, baseando-me principalmente nos trabalhos dos historiadores das mentalidades dedicados ao nascimento da família moderna, hoje na Europa não nos sacrificamos mais por entidades religiosas; mas, por outro lado, penso que inúmeros indivíduos estariam prontos a arriscar suas vidas para defender certo número de valores, ou, simplesmente, para defender seus próximos. Por que fazer essa constatação, que poderia parecer de uma banalidade consternadora, tenho consciência disso? Porque acho- e retomo aqui uma maneira nietzschiana de descrever o religioso ou o sagrado que a partir do momento em que se estabelecem valores superiores à vida material, biológica, entra-se na esfera do religioso. É isso que quero dizer. Ou então afirma-se que é uma ilusão, como faz meu amigo André ComteSponville. De fato, vocês encontrarão à disposição uma plêiade de discursos nietzschianos, freudianos, marxistas, sociológicos, biológicos (o gene egoísta ou altruísta) etc. explicando que a idéia do sagrado, nesse sentido, é uma ilusão. Compreendo-os e chego até mesmo a dizer que é possível. Contudo, se vocês admitirem que não é uma ilusão, que a idéia do sacrifício de sua vida não é uma idéia ilusória, mas, ao contrário, uma idéia inteiramente inerente à moral moderna, então nesse caso serão obrigados a refletir sobre aquilo que faz com que, numa sociedade sem religião, numa sociedade globalmente materialista, a referência a princípios superiores à vida não se tenha tornado integralmente absurda.
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É exatamente isso que eu queria sugerir ao falar da divinização do humano. É claro que não desejo sugerir
que se volte ao religioso no sentido em que se fala de revanche de Deus, no sentido em que há, hoje em dia, um sincretismo místico-budista-cristão ou similares. Não é a isso que me refiro, mas ao fato de que a idéia de transcendência não desapareceu e que não podemos e este será o sentido de minha conclusão - nos satisfazer simplesmente com as morais laicas. Quando escrevi, com André Comte-Sponville, A sabedoria dos modernos, 7 o subtítulo do livro era 'í\lém da moral". As morais laicas foram formidáveis para colocar e talvez mesmo resolver de modo laico, isto é, sem a hipótese de Deus, a questão do bem e do mal. Por fim, o que nos diz essa carta das morais laicas que é a Declaração dos Direitos Humanos? Que o fundo da moral é o respeito pelos outros, que é preciso respeitar os interesses, a liberdade e a dignidade dos outros. Muito bem. Mas você pode perfeitamente respeitar os interesses, a liberdade e a dignidade dos outros, aplicar impecavelmente os direitos humanos em toda sua existência e mesmo ir além deles, até atingir a santidade mais perfeita. O que afirmo simplesmente é que isso em nada responderá - em nada - às questões existenciais ligadas à condição humana: por exemplo, de que serve envelhecer, como educar seus filhos, como pensar, como
7 Luc Ferry e André Comte-Sponville. La sagesse des modernes. Paris: Laffont, 1998. (Ed. bras. A sabedoria dos modernos. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.)
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administrar, por assim dizer, o luto de um ser amado, ou como, simplesmente, lutar contra o tédio, contra a banalidade cotidiana? Em outras palavras, todas essas questões, além de muitas outras, que antigamente pertenciam à órbita do discurso religioso e metafísico, não são atualmente reguladas pelo discurso moral. Muito mais que isso, o discurso das morais laicas nada lhe diz sobre elas. Uno essas duas idéias entre si e me detenho: 1) Não está excluído que a idéia de transcendência conserve um sentido a jusante das morais laicas e, portanto, também não o faça sobre o modo do teológico-ético, mas sim sobre o modo do ético-espiritual. Nesse sentido, a problemática da religião ou da espiritualidade não pertence a uma estrutura de organização passada. 2) Essa idéia, que me parece plausível, também me parece estar de facto relativamente bem encarnada na realidade das sociedades em que vivemos, justamente por meio de uma aspiração cada vez mais evidente para além da moral; uma consciência cada vez mais clara, mesmo que não expressa como tal, de que a moral não basta. Então, isso não quer dizer que eu tenha me tornado um "imoralista", como simploriamente disseram alguns críticos. Simplesmente dei-me conta, no decorrer destes últimos anos ou, para dizer a verdade, há muito tempo, de que as grandes morais laicas não respondiam às questões às quais redargüíam, ou pretendiam redargüir, os grandes discursos religiosos. Nesse sentido, o deslocamento do "a montante" para o "a jusante" parece-me ser algo singularmente interessante, para dizê-lo
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de modo minimalista. Essas são as observações que eu gostaria de submeter a discussão.
SAÍDA DA RELIGIÃO E PERMANÊNCIA DO RELIGIOSO
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Luc Ferry Estou de acordo, salvo pelo fato de que creio ter dito várias vezes que não é tanto o conteúdo das religiões, da religião cristã em particular, que mudou, que seu estatuto, dado que ela não vem mais a montante das experiências humanas, mas sim a jusante, e com um outro regime de transcendência ...
Mareei Gauehet
Mareei Gauehet
Não é fácil ter de improvisar uma resposta a uma intervenção tão meditada e construída. Uma primeira observação, para iniciar: se Luc Ferry tem razão, assistimos a um acontecimento notabilíssimo na história universal das religiões, a saber, nada menos que uma reinvenção da religião. O que seu discurso evoca é algo como uma refundação da religião. E afinal, por que não? Haveria uma trajetória histórica das religiões que se desdobrou, no essencial, sob o signo da heteronomia- estamos de acordo sobre esse ponto. Depois, na era da filosofia, isto é, a partir de recursos puramente racionais descobertos pelo discurso filosófico, assistiríamos ao aparecimento de um outro discurso religioso profundamente diferente do que foram as religiões, em seu conteúdo, desde que a humanidade é humanidade. A questão merece, no mínimo, que a examinemos com alguma atenção.
Teremos o pudor de não nos estendermos sobre as modalidades de organização da nova Igreja. Não falaremos senão de princípios. Segunda observação preliminar: estou de acordo com as duas constatações descritivas com as quais Luc Ferry terminou sua exposição, mesmo que, de meu lado, eu as interprete diferentemente. Menciono-as logo de saída, porque essas constatações têm importância para apreciar a situação atual e o alcance das mudanças que vivemos. 1) Por um lado, parece-me exato que as morais laicas não conseguem se encarregar do conjunto da experiência dos indivíduos atuais. O discurso moral, tal como nossas sociedades o compreendem (isto é, a regulagem da relação com os outros segundo a norma de reciprocidade), não responde a tudo. Uma vasta gama de questões relativas a si mesmo, à conduta de sua existência, à orientação de sua experiência, escapa ao discurso moral.
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Registrada essa carência, coloca-se a questão de saber como tratar esses problemas. As religiões tradicionais, as confissões vigentes trazem-lhes respostas. Estas não têm mais valia para grande número de nossos contemporâneos. Será que existe, do lado da filosofia, a possibilidade de fornecer novas respostas que não tomem emprestado dos discursos religiosos clássicos e que, a despeito disso, constituam respostas substanciais para esses problemas? Ou é preciso considerar uma outra maneira de viver com esses problemas? Também estou de acordo com Luc Ferry, na mesma ordem de idéias, para considerar que as noções de sacrifício e de dever conservam um sentido em nossos dias. Sacrifício e dever, longe de estarem condenados a desaparecer porque teriam somente um conteúdo religioso, continuam a ser perspectivas organizadoras, eixos da experiência humana. Não se pode confundir sua prática e seu significado. Talvez só façamos deles um uso moderado, mas precisamos deles para nos pensar. Impor-se imperativamente a obrigação e dispor de sua existência com vistas a uma finalidade mais alta permanecem inscritos no âmago de nossa relação conosco mesmos. Como vêem, não procuro facilitar minha vida. 2) Segundo ponto: por outro lado, a idéia de transcendência conserva um sentido? Da mesma forma, concordo com Luc Ferry: sim, ela conserva um sentido! Mas, qual sentido? O problema está aí. Limito-me, no momento, a formular a questão: qual é o estatuto dessa transcendência que habita nossa experiência? Podemos de direito qualificá-la de religiosa se empregarmos esse
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termo com um mínimo de rigor terminológico? Vocês podem adivinhar que tenho as maiores dúvidas a esse respeito. Agora, para entrar no fundo das coisas, permitamme voltar brevemente ao meu próprio método de abordagem do fenômeno religião. De fato, é provável que uma parte da discussão diga respeito à diferença de nossas abordagens e de nossos interesses. Vamos circunscrevê-las para evitar inúteis querelas de palavras. Mas aproveitemos para ver aí, tão claramente quanto possível, o que os conceitos que empregamos recobrem. Pois tudo se passa na esfera da conceitualização do fenômeno. O que tentei fazer foi uma história filosófica da religião. Dediquei-me, no fundo, a tratar de um problema que não parece ser mais da atualidade, com o declínio do marxismo ajudando, mas que subsiste: o problema da natureza, do lugar e do papel da religião, a partir do momento em que se recusa a explicação da "superestrutura" pelas necessidades da "infra-estrutura" econômica e social. Não é mais de bom-tom raciocinar nesses termos. Isso não impede que o economismos seja tão pregnante, de maneira difusa, na inteligência da história e do funcionamento das sociedades, não impede que o modelo continue a reinar implicitamente. Há as coisas sérias e também há uma roupagem "ideal" que legitima fantasmaticamente uma organização coletiva estabelecida por motivos sólidos. Ora, esse modo de pensar inters Interpretação e explicação dos comportamentos efetuados pelo viés dos métodos e das teorias econômicas. (N.T.)
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dita, de maneira absoluta, compreender a especificidade do fenômeno religioso e, ao mesmo tempo, sua onipresença na quase totalidade da história humana. Ele não está somente na cabeça dos atores para esconder-lhes a realidade de seu mundo. Ele organiza seu mundo. O que a religião representa nessas condições? O que ela manifesta? O que significa seu papel estruturante? Por que, para resumir, houve religião? Esses enigmas tornam-se ainda mais opacos se concordarmos que não dá para respondê-los como sendo uma necessidade invariante da consciência coletiva ou da constituição do social. Pois, se, por um lado, as religiões tiveram um papel determinante na maior parte das sociedades do passado, por outro, é necessário constatar que elas progressivamente perderam esse lugar, há alguns séculos, na história européia moderna. Deve-se atribuir a mesma importância tanto à religião nas sociedades antigas quanto à saída da religião nas sociedades modernas. A reflexão deve desdobrar-se nas duas linhas de frente. Trata-se de apreender no passado os mecanismos dessa eficácia estruturante do religioso. E trata-se de comparar, de reler o modo de estruturação da sociedade que se infere de uma compreensão religiosa de sua ordem. As sociedades funcionaram maciçamente na religião. O que acontece quando uma sociedade se põe a funcionar fora da religião? É isso que está em jogo no "desencantamento do mundo". A constatação é, em si mesma, banal. Uma vez que a formulamos, ainda falta elucidar as formas que o processo de desencantamento toma emprestadas e as conseqüências às quais ele conduz. A interpre-
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tação supõe já ter medido previamente o que significa o encantamento do mundo. Aí estão, sumariamente, os dados primordiais do problema e as indicações de como tomá-los. Um dos primeiros beneficios da abordagem é permitir escapar do falso debate entre a morte de Deus e o retorno das religiões, cujas oscilações periódicas dão, há dois séculos, ritmo à discussão em torno do futuro religioso da humanidade ocidental. O mecanismo é simples. Por um lado, com base num fato indiscutível- o recuo da empresa organizadora do religioso sobre a vida das sociedades - , conclui-se sobre a perda de função da religião e, portanto, sobre seu desaparecimento inevitável (que seria somente uma questão de tempo). Por outro lado, parte-se de dois fatos também indiscutíveis: em primeiro lugar, a permanência da fé e, em segundo, a revivescência periódica dessa fé, por motivos às vezes conjunturais (a Libertação), às vezes ligados aos movimentos profundos da cultura (romantismo e neo-romantismo). A partir desses fatos, anuncia-se o retorno iminente do religioso, procedendo a uma mesma extrapolação profética. A saída moderna da religião não terá sido, então, nada além de um eclipse temporário e superficial. Nenhuma dessas interpretações é defensável. Assistimos a dois processos simultâneos: a uma saída da religião, compreendida como saída da capacidade do religioso em estruturar a política e a sociedade, e a uma permanência do religioso na ordem da convicção última dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo espec-
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tro de variações, segundo as experiências históricas e nacionais. No caso americano, temos uma sociedade ainda copiosamente impregnada de religiosidade. Da mesma forma, em alguns lugares da Europa como, por exemplo, a Irlanda, a Polônia e a Grécia, para tomar os três casos clássicos, onde as Igrejas, por motivos históricos, se viram depositárias da identidade nacional, veremos subsistir uma forte inserção do religioso no espaço público. Na Europa ocidental, em contrapartida, notase de forma geral uma debandada das Igrejas estabelecidas e um decréscimo impressionante das crenças declaradas. Pouco importa: fervor americano ou debandada na Europa ocidental são fenômenos que não tocam o ponto central, a saída da estruturação religiosa das sociedades. Saída que não impede a manutenção de uma vida religiosa na escala dos indivíduos. De fato, no próprio lugar onde o recuo da religião, inclusive no registro da convicção privada, é o mais avançado, como é o caso da Europa ocidental, ele não implica o desaparecimento puro e simples da preocupação espiritual, sem que busquemos defini-la bem por enquanto. Vamos tomar essa preocupação como sendo as questões últimas, as questões que dizem respeito à destinação humana, à significação das experiências fundamentais da vida humana e à orientação ética global da existência. É sobre essa segunda parte que devemos refletirnão insisto a respeito da primeira parte, porque estamos de acordo sobre ela. O problema que se coloca concerne a essa segunda parte: aquilo que subsiste de religiosidade para além do declínio social da religião, seja essa religio-
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sidade explicitamente enquadrada pelos dogmas tradicionais ou seja espontânea, mais ou menos pessoal, mais ou menos artesanal, mais ou menos selvagem, ou até mesmo inconsciente de suas amarras religiosas. Essa parte existe e é ela o objeto de discussão entre nós. Não posso abordá-la sem começar reconhecendo que ela escapa àquilo de que tive oportunidade de tratar até agora. É o aspecto do fenômeno religioso que deixei de lado até agora ou, em todo caso, naquilo que publiquei. Vou explicar-me. Mas refleti um pouco sobre ele, o suficiente para trazer uma resposta ao problema que é sensivelmente diferente daquela que Luc Ferry me atribuiu, mesmo que ele tivesse o direito de fazer uma inferência sobre o que escrevi, no sentido em que fez. Creio, entretanto, que a inferência é inexata. A questão em forma de objeção levantada por Luc Ferry é a seguinte: há, como ele crê, uma disposição natural do espírito humano para a metafisica? Eu o admitiria também, tacitamente, colocando-me por isso em contradição comigo mesmo. Admito, de fato, alguma coisa dessa ordem, mas alguma coisa que compreendo diferentemente de Luc Ferry e que está, me parece, em plena coerência com o resto de minha análise. A questão de Luc Ferry é inteiramente legítima. Na perspectiva de minha análise, eu a retraduzo assim: com o que pôde trabalhar a invenção histórica das religiões?
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A DISPOSIÇÃO RELIGIOSA DA HUMANIDADE
Recomecemos da tese fundamental que os dados que nos são acessíveis me parecem impor: a religião é posição da heteronomia, posição que visa a produzir uma economia determinada do laço político e do laço de sociedade por uma intencionalidade inconsciente. A tese nega a idéia corrente segundo a qual a criatura angustiada se limitaria a divinizar espontaneamente as forças naturais que a dominam. Não é difícil mostrar que a idéia é absurda. A religião é, no sentido mais forte do termo, um fato de instituição, um partido tomado humano-social da heteronomia. Não posso entrar aqui nos detalhes do porquê dessa instituição e dos motivos aos quais ela responde. Mesmo supondo que concordem comigo, há um ponto que precisa ser esclarecido, e é verdade que eu não o fiz. É preciso esclarecer a proveniência dos elementos com os quais esse ato de instituição opera. Essa lacuna de minha análise deve-se à perspectiva essencialmente descritiva na qual me situei. Quis, com prioridade, dar conta do conteúdo das religiões, tais como as podemos seguir por meio da história e das metamorfoses num longo período. Tentei mostrar que havia uma fórmula coerente dessas transformações a partir daquilo
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que podemos entrever a respeito das mais antigas religiões e talvez do início da religião - as transformações que têm por nome o nascimento dos deuses, a emergência das religiões de salvação, o aparecimento do monoteísmo e, por fim, a saída da religião do interior de uma religião. Não somente essas transformações são coerentes, mas congruentes com as grandes mudanças das formas políticas e sociais - o nascimento do Estado, a dinâmica das formas estatais, o nascimento do Estado moderno. Entretanto, essa escolha me levou a deixar uma questão no escuro. Não ignoro isso. Uma análise completa e inteiramente coerente deve, além disso, responder à questão: em qual disposição da humanidade se funda essa instituição que, de outro ponto de vista, responde a motivos políticos e sociais bem determinados? É a ocasião de dar ao menos algumas indicações quanto à resposta possível. Mesmo que se rejeite a idéia de uma natureza religiosa do homem, ou de uma disposição natural para a metafísica, é preciso que haja algo como um substrato antropológico a partir do qual a experiência humana é suscetível de se instituir e de se definir sob o signo da religião. Nenhuma lógica política dá conta disso com que a religião vai se desdobrar, a saber, o investimento humano sobre o invisível. O que é que, no homem, dá sentido a essa passagem pelo outro? Pois é nisso que consiste o fenômeno cardinal: ele reside nessas dimensões de invisibilidade e de alteridade que nos habitam constitutivamente. O homem é um ser que, em todos os casos, é convocado pelo invisível ou requisita-
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do pela alteridade. Esses são os eixos dos quais ele tem originária e irredutivelmente a experiência. O homem não é levado a eles pela necessidade de conhecimento ou de compreensão racional dos fenômenos da natureza, como queria certa explicação esclarecida da religião. Não há aí o efeito de uma busca de causalidade que engajaria o espírito a remontar às causas primeiras para além das causas visíveis. É um "dado" imediato da consciência, se posso dizer assim. O homem fala, e encontra o invisível em suas palavras. Ele experimenta a si mesmo, irredutivelmente, sob o signo do invisível. Ele não pode deixar de pensar que há em si outra coisa além daquilo que ele vê, toca e sente. Ele imagina, e imediatamente seu pensamento se projeta além daquilo que lhe é acessível - e se apresenta ao pensamento. Além disso, ele se reporta a si mesmo e é para descobrir que pode dispor de si mesmo com vistas a outra coisa que não a si mesmo. É com esse material primordial que se edificam as religiões. Elas não decorrem daí de forma automática e linear. É preciso outra coisa completamente diferente para defini-las. Mas esse material as torna possíveis. Em outras palavras, há uma estrutura antropológica que faz com que o homem possa ser um ser de religião. Ele não o é necessariamente. Ele pôde sê-lo historicamente, durante a maior duração de seu percurso. Pode deixar de sê-lo, mas, nesse caso, esse potencial de religiosidade estará destinado a continuar. O que quer dizer, na prática, que haverá sempre mais ou menos espíritos para se reconhecer no passado religioso da
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humanidade - e que os espíritos não religiosos encontrarão outros empregos para essas dimensões constituintes. É a verdadeira questão diante da qual nos encontramos historicamente. Tendo terminado, ao que parece, a era das religiões constituídas, o que ocorre com esse núcleo antropológico sobre o qual elas fizeram fundo? Uma vez desfeita a organização coletiva segundo a heteronomia, que tinha sido a alma das teligiões estabelecidas até há dois séculos, o que pode oferecer essa organização do humano que durante tanto tempo suportou o religioso? Não somente ela subsiste, mas a vemos se destacar cada vez mais claramente por si mesma. Tentei mostrar isso a respeito do inconsciente e de suas redefinições.9 Ela continua a informar nossa experiência. Em relação a isso, por maior que seja a descontinuidade, permanecemos em continuidade com a humanidade da era das religiões. Mas o estatuto e o papel desse núcleo antropológico do religioso estão completamente mudados com o desvelamento de seu caráter extra-religioso. É nesse ponto que divirjo de Luc Ferry. Estamos de acordo a respeito da constatação, mas não a compreendemos da mesma maneira e, sobretudo, avaliamos diferentemente as conseqüências. Só posso recusar as categorias de que se serve Luc para dar conta dessa experiência de além da religiosidade heteronômica.
Vide "Essa! de psychologle conternporalne", agora no livro La démocratie contre elle-méme. Paris: Gallirnard, 2002. Coleção "Te!".
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O QUE É O SAGRADO? Essas ancoragens primeiras do religioso existem e persistem. Mas será que é legítimo falar de religião a seu respeito? Não acredito nisso. Só posso ver um abuso de palavra nesse emprego da noção. Acredito que Luc Ferry se entregue a um transporte indevido de categorias do passado religioso para a ultramodernidade, para estabelecer uma continuidade que me parece amplamente fictícia. Retomo os três termos chaves de sua demonstração: sagrado, humanização do divino e divinização do humano. 1) Não existe palavra mais propícia ao erro que esta de sagrado. É preciso repetir, contra o abuso metafórico permanente do qual é objeto, que não temos a liberdade de usá-la de qualquer maneira, contando com a aura da qual é carregada para fazer sentido. Trata-se de uma categoria que remete a um enraizamento histórico preciso. Sagrado, no rigor do termo, designa uma experiência fundamental na ordem das religiões, que é a conjunção tangível do visível e do invisível, do aqui embaixo e do além. Para ser inteiramente rigoroso, o sagrado deve ser tratado, no meu entender, como uma noção histórica. Ele nasce com a virada capital da história religiosa da humanidade que marca o surgimento do Estado. As reli-
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giões "selvagens", para dizer rapidamente, são aquelas da disjunção entre o fundamento ancestral e o presente. O sagrado emerge com a conjunção do fundamento (que se torna divino na operação) e do poder que será, desde então, poder separado. Há o sagrado quando há um encontro material entre a natureza e a sobrenaturalidade. Um ser sagrado- um rei sagrado, para tomar o exemplo por excelência - é um personagem que em seu corpo físico, semelhante a qualquer outro, é habitado pela alteridade invisível e por forças sobrenaturais. Há nele uma materialização do outro que o separa de todos os seus semelhantes. Para tomar um símbolo que nos é familiar: a hóstia do catolicismo é a presença real de Deus num objeto físico devido ao mistério da transubstanciação, conversão de um signo visível em suporte do corpo de Cristo, repetição da encarnação. É a essa categoria bem determinada de fenômenos religiosos que se aplica propriamente o conceito de sagrado: a atestação do além nos lugares, nas coisas ou nos seres daqui debaixo. Ora, se há uma categoria que o desencantamento do mundo deixa pouco à vontade, é bem essa. A "desmagificação" do mundo, que reteve prioritariamente a atenção, é inseparável de um processo de dessacralização, do qual se pode seguir historicamente a trajetória com grande precisão. Se há uma dimensão do religioso da qual saímos, é essa do sagrado, inclusive para as consciências mais crentes. No máximo subsiste uma memória daquilo que outrora pôde ser o sagrado, assim como das espécies de substitutos que nos enganam. É verdade
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que o homem comum, ao dar de cara com uma estrela das mídias, tem a impressão de que ela "vem de um outro mundo", ou até mesmo se surpreende ao constatar que ela "existe realmente". Mas não lhe fica um segundo sequer a impressão de que viu um ser sobrenatural! Ele reconhece imediatamente o semelhante, demasiado semelhante. Tomando com rigor a noção, não vejo como se possa falar de sagrado no mundo atual, a não ser por uma derivação metafórica mais enganosa que esclarecedora. Quando dizemos que a vida humana é "sagrada", afirmamos que ela encarna o invisível, que materializa o sobrenatural, que é habitada por uma transcendência, no sentido religioso do termo - voltarei a esse ponto - , que ela tira de um outro lugar o valor que exige seu respeito absoluto? Não creio. Trata-se apenas de uma imagem, que a reflexão deve nos poupar de tomar ao pé da letra. Esse fato não retira a realidade da interdição protetora da qual a vida é objeto. Mas compreenderemos mal a natureza dessa interdição se a tomarmos à luz da categoria do sagrado. É preciso sair da alternativa pseudotrágica: ou "nada é sagrado" (dito de outra forma: tudo desmorona, nada mais vale alguma coisa), ou nada mudou (o sagrado não se encontra mais no mesmo lugar, mas continua a existir, graças a Deus, igual ao que sempre foi). Há uma superioridade da humanidade em relação a si mesma que não merece o nome de sagrado sem que isso retire algo da força das prescrições que a ele se ligam. Não estamos presos numa escolha binária entre sagrado e profano. No interior do dito profano há ordens de con-
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siderações absolutas e ordens de considerações relativas. A profanação não impede a existência de absolutos sem garantia sacra. Entre nós trata-se, portanto, de questões de palavras, como dizia Luc Ferry. Mas essas questões de palavras engajam a compreensão do tema. 2) Na religião que você fundou há pouco - mas da qual já havia lançado as bases antes - há uma noção que me coloca um sério problema. Lamento que não tenha se estendido sobre ela, no quadro da versão exotérica que você nos apresentou. Para uma boa religião, no mundo em que estamos, é preciso um Deus- ou, em rigor, deuses. E você não foi muito eloqüente sobre esse Deus. É claro que compreendi que você não fala de Deus, mas de divino. Ora, é justamente isso que me preocupa. Compreendo o divino quando há um Deus. Mas, na circunstância, não percebo de onde vem esse divino. E não o vejo aparecer, em particular, a partir das diferentes coisas que você descreveu. Compreendo o que as religiões tradicionais entendem por Deus, entendimento do qual somos herdeiros. É uma noção que tem uma longa história muito complicada, supercomplicada pela apropriação da idéia de Deus efetuada pela filosofia racionalista moderna, de Descartes ao idealismo alemão - a partir de então, os filósofos não são mais loquazes a respeito de Deus. Mas, enfim, tão complicada quanto possa ser, nós nos encontramos nela. Nós ao menos adivinhamos de que se trata.
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Ora, em relação a essa acepção corrente, em relação ao Deus identificável para cada um de nós, em nossa cultura, ou mesmo em relação ao Deus por vezes absconso dos filósofos, não percebo o que a humanização do divino de que você fala pode recobrir. Tudo mostra, a meu ver, que somos testemunhas do movimento contrário. Deus não nos é mais pensável, seja no abstrato da filosofia, seja no concreto existencial da crença, senão num trabalho para separá-lo ou afastá-lo da humanidade. Movimento muito interessante, diga-se de passagem, dado que toma inteiramente ao reverso as análises "supersticiológicas", se ouso dizer, da religião. Estas, de Feuerbach a Freud, passando por Durkheim, propõem variações sobre um tema único: a religião consiste fundamentalmente numa projeção antropomórfica. Projeção glorificante da essência humana para uns, da sociedade para outros, do pai para outros mais. Pouco importa, a tese de base é a mesma: o homem adora a si mesmo, ignorando que é à sua própria idéia que ele devota um culto. É falso: nós temos a clara atestação disso com o movimento contemporâneo que busca desantropomorfizar o divino. Isso não quer dizer que não havia elementos antropomórficos que entrassem na representação de Deus, mas eles eram, no fim de contas, secundários, como estabelece a dissociação em curso. É um acontecimento de importância capital na evolução da religiosidade contemporânea. Deus- o Deus dos crentes, assim como o dos incrédulos, insisto nesse ponto - desantropomorfiza-se, em primeiro lugar, no terreno político-social. Ele é contrá-
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rio à sua idéia de crer que Deus intervém nos assuntos humanos e na organização das comunidades políticas. É isso que faz com que não haja mais nenhum problema de integração dos cristãos nas democracias. Aos olhos do fiel mais devoto, não há ordem divina. Deus não se ocupa em nos entregar leis. Há muitos valores cristãos que pesarão nas escolhas dentro do debate coletivo, mas este obedece às suas razões internas. Não há mais sentido na perspectiva de uma sociedade cristã. O fato de ser crente não é determinante na maneira de se situar na cena pública; ele se traduz em posições que podem ser muito diferentes e que são admitidas como tais do ponto de vista das consciências crentes. Deus desantropomorfiza-se, em seguida, no terreno moral. Deixa de ser um prescritorlo e um retribuidor que leva em conta com exatidão as condutas. Ele tem mais o que fazer além de castigar e recompensar as boas e as más ações. As investigações sobre a evolução das crenças religiosas registram bem esse deslocamento. O inferno não faz mais sucesso, o paraíso não é mais plausível como um lugar de delícias prometido aos justos. A crença na sobrevida pessoal, que permanece forte, desconecta-se da passagem por um tribunal de virtudes e vícios. A imagem de Deus e a esfera do divino, que a morte permite reintegrar, se impessoaliza. É aqui, aliás, que se opera o encontro com o budismo.
IO Neologismo para indicar aquele que prescreve, que ordena com precisão aquilo que se impõe. (N.T.)
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Paralelamente, a idéia do Deus de amor, tão importante na tradição cristã, esvazia-se de sentido. É um traço que toca no âmago do propósito de Luc Ferry. O princípio último que se supõe abraçar todas as coisas é certamente fonte de uma benevolência que justifica nossa presença no mundo. Todavia, não tem mais relação com o criador preocupado com a redenção e a salvação de sua criatura. É o aspecto do processo de desantropomorfização que coloca o cristianismo numa situação instável, ambígua, aparentemen te, em relação ao estado espontâneo da espiritualidad e contemporâne a. O Deus filosófico divorcia-se decididamen te, aqui, do Deus teológico. Mas o ponto crucial a ser sublinhado é que, no meio dessas transformaçõ es, a idéia de Deus conserva um sentido. A tese de Luc Ferry deve sua plausibilidad e e sua sedução ao fato de que capta com justeza uma parte dessas evoluções. Ela recorta as transformaçõ es do crível hoje em dia. De fato, a figura do Deus vingador e superegóico, inumano de tanto poder e rigor, está fora de época. À primeira vista, nesse sentido, somos levados a falar de uma humanização do divino, mas isso é só uma primeira vista. Pois quando se olha a fundo o que se esconde por trás dessa atenuação de superfície, descobre-se um estranhament o. A humanização aparente é introduzida por uma desantropomorfização que só permite pensar Deus sob o signo do absolutament e outro que não o homem. O inimaginável separado (que não é o insondável ou o inefável das teologias negativas) está
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nos antípodas de um divino humanizado, mesmo que ele possa, sob certos aspectos, se parecer com isso. 3) Chego à tese simétrica da divinização do humano. É a peça-mestra do dispositivo, dado que é ela que pode fundar a religiosidade racional e autônoma atual. A humanização do divino junta-se ao movimento do crível contemporâne o; a divinização do humano explora os recursos clássicos da filosofia para alçar o humano a esse divino que, pretensament e, se torna mais próximo. Já mostrei em que a análise a respeito do sagrado não me convence. Ela comporta um núcleo plausível que também não penso contestar. Há, no homem, o absoluto dado que não há outra palavra para designar o inderivável, o irredutível, o intransigível que encontramos em nossa experiência da verdade, do outro, de valores que nos fazem sair de nós mesmos. Mas por tal motivo mereceria esse absoluto o nome de divino? Não penso assim e estou mesmo convencido do contrário. Ele é humano, não demasiadamente humano, mas nada além de humano. Acredito precisamente que é esta a originalidade de nossa situação: deixando completamente de nos olharmos no espelho de Deus, podemos enfim ver o homem. Graças à dissociação do absoluto celeste, estamos inteiramente em condição de pensar o absoluto terrestre por si mesmo, escapando à falsa alternativa entre o absoluto religioso ou a relatividade demasiadamente humana. De fato, você retoma essa noção do divino com as metamorfoses da crença em uso que a tornam maleável. Desse ponto você a transporta para a esfera do humano,
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fazendo parecer que ela sai daí. É um jogo de prestidigitação verbal. Seu "divino" não emerge da análise racional dos dados do humano: está colado sobre ele. Dito de outra forma, o Deus da nova revelação nada mais é que o Deus daquela antiga, disfarçado para a circunstância e alojado num emprego que não pode ser o seu.
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A transcendência na imanência husserliana, que designa uma ordem de coisas extremamente precisas ...
Luc Ferry .. .mas amplamente múltiplas ...
Mareei Gauchet O ABSOLUTO TERRESTRE É SAGRADO? 4) Gostaria de fazer uma última observação a respeito de outra noção estratégica, marcada pelo mesmo abuso: a de transcendência. A análise que você faz opera um deslizamento insensível de uma transcendência filosófica para uma transcendência religiosa que me parece inaceitável. A passagem é habilmente conduzida, mas não deixa de ser um engodo. A transcendência de Deus é uma coisa; a transcendência tal como a filosofia moderna nos ensinou a reconhecê-la - transcendência das idealidades, transcendência de algumas categorias em relação com a experiência, transcendência de certas normas- é outra coisa. Você toma suas precauções. Trata-se, bem entendido, de uma "transcendência na imanência". Permanece o fato de que você introduz, por esse canal, uma "transcendência transcendente", se posso me expressar assim, aquela de um divino novamente concebido, mas um divino, apesar de tudo.
... mas, de toda forma, bastante convergentes. Teria ela vocação para nos fazer encontrar uma transcendência à qual poderíamos legitimamente dar o nome de absoluto no sentido metafísico? Não creio nisso. Há o absoluto na experiência humana, nisso concordamos. Esse absoluto seria o absoluto metafísico? Aqui, divergimos. Parece-me que seu método consiste em nos vender um a partir do outro, com muita habilidade. Resisto a me deixar levar. Insisto firmemente a respeito do absoluto terrestre. Não percebo claramente a necessidade de fazer dele um absoluto metafísico e substancial. Ao contrário, não vejo esse passo suplementar senão como uma analogia inconsistente e enganadora, que nos proíbe pensar essa transcendência em seu verdadeiro mistério de autotranscendência sem exterioridade metafísica nem doação sobrenatural. Estou de acordo, também, com o movimento que você propõe: a religião não está mais a montante da moral. Mas segue daí que a religião reapareça a jusante
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da moral? Não vejo razão para isso. A moral, em seus novos limites, torna-se um absoluto por si mesma: em que isso quer dizer que há o divino orientado para o futuro? Pois, se compreendi corretamente o que você sugere, há o divino orientado para o futuro. Mas de onde ele sai? Não vejo a fonte em lugar algum, salvo num lance de prestidigitação e na base de um deslizamento encantatório.
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cas e que requerem uma espiritualidade aos olhos de muitos de nós atualmente. Vou contentar-me com uma observação a esse respeito. Podemos fazer apelo a uma espiritualidade- a existência de um apelo, mesmo que vigoroso, não significa que haverá uma resposta. Parece-me que você conclui, rapidamente demais, do fato que há uma necessidade ao fato de que ela será preenchida. É uma tese funcionalista, cujos limites preditivos não demandam maiores demonstrações.
Luc Ferry Bem, vou responder-lhe. Mas, peço-lhe, termine antes seu raciocínio ... A DISCUSSÃO
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Creio que já disse o essencial. A discussão progrediu, dado que chegamos a circunscrever exatamente o ponto de desacordo. O debate entre nós é um debate de interpretação a respeito de fatos sobre os quais estamos de acordo. A questão é saber quais são as categorias apropriadas para descrever e compreender esses fatos. Não é uma pequena questão, dado que tudo muda, na interpretação, dependendo da ótica que usamos para abordá-la. Uma última palavra. Deixei de lado uma das dimensões importantes que você evocou, ao falar das interrogações existenciais que só podem escapar às morais lai-
Sobre este último ponto, não sendo crente, não tenho nenhuma dificuldade em responder-lhe e lembrá-lo do que disse e escrevi tão freqüentemente sobre o assunto: não somente a existência de uma necessidade não implica sua resposta, mas, em geral, a desqualifica. Há grandes chances, de fato, de que o objeto da necessidade seja pura e simplesmente engendrado. Dessa forma, sou tão pouco funcionalista na matéria que esse objeto me parece, ao contrário, ser a principal objeção contra a crença religiosa. É esse o motivo pelo qual o religioso me parece, menos que a você, diferente em suas figuras tradicionais e em suas faces novas, pois, na falta de ter a fé,
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não vejo esse Deus - ou esse sentido de Deus de que você falava há pouco- mais entre os antigos que entre os modernos. É esse o motivo pelo qual a comparação entre os dois me incomoda profundamente menos do que você parece pensar, quando me imputa não sei qual "lance de prestidigitação". No fundo, não desejo comparar uma religião com um "verdadeiro Deus" e uma religião estranhamente reduzida ao divino, dado que, nos dois casos, tenho o pressentimento de que "o verdadeiro Deus" falta. Em contrapartida, nos dois casos, é a questão da relação com o absoluto, terrestre ou não, que para mim é central. Por um lado, não vejo como você mesmo possa escapar disso; por outro, não compreendo direito, devo confessar, em que seu absoluto "filosófico" difere do absoluto religioso: ao contrário, para mim ele só é - e isso em função de uma longa tradição (basta ler Hegel para se convencer) -um outro nome do divino. De resto, todas as "desconstruções" pós-hegelianas, de Nietzsche a Heidegger, passando por Marx, porão esses dois absolutos no mesmo cesto. É, a meu ver, o ponto essencial, e aquele que me parece o menos convincente em suas objeções. Voltarei a isso. Queria dizer, inicialmente, que estamos ao menos de acordo sobre o ponto de divergência: temos o direito, por assim dizer, de enxertar categorias, que são as da religião, da espiritualidade, do sagrado, do divino- e, de fato, não falo de Deus (pelo menos você notou isso) - , mas, apesar de tudo, do divino- numa filosofia laica ...
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Mareei Gauehet Mas qual é a relação entre o divino e Deus?
Lue Feny É uma boa pergunta. Assinalo simplesmente que ela é antiga, e que já entre os gregos Deus não existe, mas o divino existe.
Mareei Gauehet Os deuses existem!
Luc Feny Mas o divino não se reduz a eles de forma alguma ...
Mareei Gauehet Porque há um sindicato: eles são vários.
Luc Feny Não, esse não é o problema. O divino é, entre os estóicos, por exemplo, a própria harmonia cósmica
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enquanto tal, uma forma de transcendência na imanência do mundo, e é ela, e não uma ou várias pessoas supostas divinas, que nos libera, se a compreendemos adequadamente, da finitude e dos temores que esta suscita. De resto, no Livro VI de A república, é do divino que fala Platão, e não dos deuses no plural, nem de quem quer que seja que se assemelhe ao seu sindicato ... Como testemunha a etimologia da palavra "teoria", os gregos já têm do divino uma concepção que remete, sob alguns aspectos, ao que entendo por transcendência na imanência: pois o divino, no fundo, é a ordem do mundo enquanto tal, a harmonia cósmica, que é ao mesmo tempo transcendente em relação aos humanos (exterior e superior a eles) e, entretanto, perfeitamente imanente ao real. É o análogo da idéia do divino à qual tentei fazer justiça em O homem-Deus. Mas, permita-me voltar à pergunta central, aquela que você me faz e que eu também me fiz: qual é a legitimidade do emprego desse vocabulário religioso para designar o que você chama adequadamente de "o absoluto terrestre"? O que eu começaria por dizer é que não compreendo o que você quer dizer com sua noção de absoluto terrestre ...
Mareei Gauchet Ela é puramente descritiva.
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Luc Feny Compreendo perfeitamente que você queira se restringir prudentemente ao descritivo, mas não creio que isso seja possível, a menos que se seja rigorosamente materialista, e olhe lá, pois sua fórmula, de resto excelente e, num modo menor, rigorosamente análoga à minha, quando falo do "homem-Deus", não pode deixar de designar, além das simples constatações, o problema filosófico em torno do qual não cesso de girar: se admitimos a noção de absoluto, de fato, o que queremos dizer com isso? Queremos dizer, por exemplo, que, partindo das considerações morais mais elementares, nos apercebemos de que há, para certo número de pessoas entre nós e talvez mesmo para todo mundo, certo número de valores, de princípios morais que não são negociáveis? Que esses princípios são tão pouco negociáveis que nós os apercebemos eventualmente como podendo envolver o risco de nossa própria vida (mesmo que, a esse respeito, reconheço sem constrangimento, raramente estejamos à altura)? Em linhas gerais, é essa a descrição? Se a resposta for sim- como creio que você concordará - , ela irá trazer-lhe muitos problemas para os quais não bastará, temo, limitar-se à esquivança ... Efetivamente, quando se quer agora passar do descritivo ao explicativo - e como evitá-lo? - , quando, por conseguinte, nos perguntamos de onde vem essa espécie de absoluto terrestre que ambos reconhecemos, entramos em dificuldades. É por isso que nem todo mundo aceita, mesmo no nível descritivo, essa estranha
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noção de absoluto terrestre: o próprio fundo do materialismo, marxista, nietzschiano, biologista etc., é justamente contestar qualquer legitimidade a esse absoluto terrestre, declará-lo radicalmente ilusório. Se a noção possui um alcance descritivo, é somente no sentido em que designa, para o materialismo, o nó de todos os delírios. Insisto, portanto, sobre o fato de que nem todo mundo reconhece essa idéia de absoluto terrestre, mas que a rejeita de bom grado em nome da infra-estrutura, das pulsões, do gene altruísta ou de qualquer outra instância material que se queira considerar...
Mareei Gauchet Quero fazer somente uma observação: os defensores do gene altruísta pensam que ele age sobre nós por meio da ilusão, mas nem por isso recusam essa ação como sendo um absoluto.
Luc Ferry É exatamente aonde quero chegar: se deixamos a
esfera da descrição, sobre a qual todo mundo está de acordo, dado que podemos descrever uma ilusão ou uma verdade em termos idênticos- mesmo o biologista mais reducionista ou o marxista mais radical admitem de bom grado que temos o sentimento, mesmo que só no nível da ideologia, de algo como valores "absolutos"-,
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quando passamos, então, da descrição à explicação desse sentimento da relação com o absoluto, é claro, e você concorda comigo também, que inúmeros de nossos contemporâneos farão uma genealogia que concluirá sobre seu caráter totalmente ilusório. Questão de passagem: é esse o seu caso? A escolha é sua, claro, mas ela não é inocente, nem deixa de ter conseqüências ... Se, ao contrário, conferirmos a esse absoluto terrestre certa legitimidade e tentarmos então ir além da descrição, se nos dissermos que talvez não seja uma pura ilusão, mas que isso nos parece conter, de qualquer forma que se entenda, a verdade, e que talvez se tenha razão de pensar assim, então reatamos, inevitavelmente, com uma problemática neo-religiosa ou "espiritualista" para a qual, falando com franqueza, nenhum vocabulário convém inteiramente (basta, para o convencimento, lembrar os embaraços de Habermas, com sua noção de "quase-transcendental"). De resto - é exatamente o que os materialistas vão reprovar em tal atitude, a saber, que ela é "religiosa" ou "espiritualista"-, todo o problema, a meu ver, é justamente aquele do estatuto desse religioso que vem, em suma, "depois da religião". Insisto nisso ainda, pois é o ponto crucial em nossa discussão. Talvez seja um erro conferir alguma legitimidade, qualquer que seja ela, à idéia de absoluto, mesmo que terrestre. Mas vamos nos colocar na hipótese em que se escolhe, como faço, perceber esse absoluto como absoluto, isto é, perceber algo, que chamo de sagrado, porque ele pode, eventualmente, legitimar o sacrifício. É aí que Mareei me diz: mas não, não temos o direito de
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dizer sagrado, porque sagrado é a encarnação de um Deus, do qual sabemos bem o que quer dizer: uma relação com o invisível encarnado no visível, uma transcendência bem real, um além que enerva e irradia aqui embaixo etc. E, de fato, não se o encontra em mim. Vejam então que eu também não facilito minha tarefa e que tomo a objeção lá onde ela se encontra. O que gostaria que se compreendesse bem, antes de falar de "lance de prestidigitação", é que, quando se vai da descrição à explicação, não se pode fazer a economia de uma problemática que é, de alguma forma, religiosa. No limite extremo, não se pode fazer sequer a economia sendo materialista, porque se dizemos que é ilusório, somos obrigados a encontrar um fundamento da ilusão, e, como bem viu Heidegger, todos os materialismos acabam por desviar para uma ontoteologia na qual a infraestrutura, as pulsões ou os genes têm o papel do fundamento supremo antigamente encarnado em Deus. Mas, se dizemos que não é ilusório, a questão é então saber: de onde provém esse estranho sentimento de absolutez? Será que ele não é justamente algo como o sentimento de uma encarnação no visível de um princípio que não o é? Então Mareei dirá: mas não vejo Deus em tudo isso, então pare de falar em religioso, em divino e em sagrado, senão você roçará a impostura. Objeção que supõe, revestindo-se de bom-senso, que a experiência disso que as pessoas chamam Deus é bem clara, que ela é aquela da fé num ser invisível, transcendente, que apesar disso se encarna etc. Mas, perdoe-me: para mim, e toda nossa divergência talvez se deva a isso, essa expe-
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riência não é de modo algum clara. Não sei o que os cristãos chamam de Deus e, para dizer a verdade, nunca soube. O ponto em que há um conflito maior entre nós na descrição do fenômeno é que, exceto quando falo com crianças, que me descrevem Deus quase como um avô escondido entre as nuvens, não sei o que é o Deus dos cristãos. E tenho, por trás de mim, para não saber o que é o Deus dos cristãos, toda a filosofia moderna, que faz Dele uma representação e não uma realidade, que faz Dele um corpo de valores transcendentes que fundam esse absoluto terrestre ou que têm afinidade com ele, ou do qual esse absoluto terrestre é a encarnação: encarnação de quê? Eu não sei. Em todo caso, não de um avô barbudo, nem de um personagem simpático e benevolente que toma a forma que se quiser imaginar. A questão dos filósofos é, apesar disso, essencial naquilo que nos interessa particularmente: o que é Deus? Como não sei rigorosamente nada, falo do divino, isto é, desse sentimento de absoluto com faces múltiplas que descubro no contato com valores dos quais devo lhes dizer e redizer que não os inventei nem fabriquei, seja na ordem da verdade, da moral, da cultura ou do amor. Teologia negativa, se quiserem, de valores encarnados cuja origem me escapa, mas cujas explicações materialistas não me parecem, na mesma medida, satisfatórias, dado que são mais teológicas ainda! * * *
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Para retomar as coisas na ordem e responder de maneira mais sistemática: também me coloquei várias vezes essa objeção que Mareei me faz, é claro. Por que eu teria dado esse passo - que, aliás, me custou uma série de zombarias- dado que ele tem algo de ridículo no contexto intelectuallaicisistall que é o nosso ainda hoje em dia? É o que eu gostaria de explicar, porque penso encontrar aí algo que merece uma reflexão e que deveria sensibilizar Mareei Gauchet, ele que percebe os fenômenos de recomposição ligados a essa "formidável reviravolta" histórica: das sociedades organizadas a partir da heteronomia, para sociedades organizadas a partir do princípio de autonomia, ilusória ou não. De fato, há uma reviravolta e seria muito surpreendente se ela deixasse intactos os termos do problema. Eis por que falo do divino e não de Deus. Retomo as coisas na ordem, indo ao essencial para mostrar por que o reinvestimento do vocabulário religioso me parece ser inevitável. Primeiro ponto: para mim- e aí concordo com Mareei Gauchet - , o debate sobre o "retorno do religioso" é superficial e falso. Com freqüência lhe fizeram objeções, pretendendo fazer valer uma pretensa "revanche de Deus", que sempre tomei como ridículas e às quais você respondeu mil vezes. Está claro, por exem-
11 Em francês, laii:ard, termo pejorativo para designar aquele que defende em demasia a laicidade, freqüentemente motivado por uma tomada de
posição anti-religiosa. (N.T.)
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pio, que a escalada do islamismo radical não se inscreve na lógica das sociedades democráticas e que ela possui razões exógenas (ligadas principalmente à descolonização, às lutas contra o imperialismo em nome da identidade nacional etc.). Meu discurso não se inscreve nesse movimento de balança no qual não acredito: morte de Deus, retorno da espiritualidade. Não é esse o meu propósito. Segundo ponto: o campo em que reflito, como indiquei há pouco, é a questão central do "a montante e a jusante". Para dizer de modo simples: até a aparição das morais laicas, no século XVIII, nos vemos às voltas com uma figura bem conhecida do teológico-ético, aquela na qual a religião vem a montante da moral para fundá-la; é essa figura da teologia moral que o papa tenta reabilitar atualmente, apontando como, a partir de uma revelação, que é a da verdade crística, se deduz certa ética. O que me parece crucial na Crítica da razão prática, de Kant, é justamente a constituição de uma fundação puramente humana da moral e, a despeito disso, impossibilitada de fazer a economia do religioso. Creio que não é por concessão à atmosfera da época, nem por fidelidade a uma sobrevivência tradicional que Kant reintroduz o religioso na última parte da Crítica da razão prática, mas porque ele é levado por uma convicção que me parece às vezes muito interessante: aquela segundo a qual não é porque o religioso perdeu seu lugar de fundação da lei a montante que ele não é "convocado" a jusante pela lei. Compreendo claramente que esse apelo permaneça sem resposta no sentido tradicional, porque
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sou sensível aos efeitos que essa reviravolta induz, como ao mistério insondável da fundação dos valores que Kant chama de "transcendentais". Mas o que me interessa - e me parece que você também deveria ser sensível a isso- é que essa reviravolta em relação à lei, essa reviravolta da montante para a jusante, desenha um lugar situado além da moral: aquele do religioso. Mesmo que os termos mudem de sentido, os problemas serão os mesmos. A relação com a moral vai se reinstaurar a partir do futuro, e não mais em função do passado. Portanto, como um "horizonte", para usar as palavras de Husserl, e não mais como "fundamento", para usar aquelas dos defensores do teológico-ético. A meu ver, esse é o ponto central. Aí está, no fundo, a pergunta que faço a Mareei: a partir do momento em que a religião passou para o lado da jusante de uma lei doravante vivida como puramente humana e que diz respeito à autonomia, o religioso é por esse motivo menos religioso? Aliás, o que quer dizer esse "menos" religioso? Não temos aí o aparecimento de uma configuração de problemas que são, traço por traço, análogos àqueles das religiões tradicionais, com todos os coeficientes de corretivos que a analogia implica realizar, a partir do momento em que eles se situam além da moral e, a despeito disso, são enraizados, se não fundados por ela? No fundo, no dispositivo de Gauchet, o religioso deveria desaparecer: é isso que me incomoda. Senão, ele só deve permanecer como uma sobrevivência ou como crença pessoal (e não em relação com a lei). No dispositivo que Kant mal começa a esboçar na Crítica da razão
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prática, o religioso permanece na relação com a lei. Ele permanece estruturalmente ligado à própria organização do jurídico e da lei moral, ou até mesmo à descoberta do caráter universal da beleza ou da verdade: ele não é redutível a uma sobrevivência de crenças individuais e pessoais, que permitiriam falar, entretanto, de fim do religioso, como você faz. Não creio que haja um fim do religioso, mas uma reinterpretação do religioso nessa relação com a lei. Insisto no ponto, pois é por essa razão que meu discurso não se inscreve no famoso debate tradicional entre morte de Deus e revanche de Deus. Terceiro ponto: por que falar de sagrado? Nisso concordo com Gauchet sobre a necessidade de uma definição rigorosa. Porque esse absoluto terrestre de que falávamos- e que percebemos por meio da experiência moral, mas também por meio da experiência estética, da experiência do amor, da experiência da verdade (isso porque a noção de transcendência na imanência é múltipla)-, essa noção de absoluto terrestre remete a uma transcendência, a partir do momento em que não se a considere como puramente ilusória. Por isso não podemos ficar no descritivo: se você disser que as pessoas têm razão de pensar que existe o absoluto, que existe algo que ultrapassa suas próprias vidas; se, ao invés de não tomar partido como historiador, você o fizer como filósofo ou cidadão, e que você não conseguir apreender esse absoluto terrestre como uma pura ilusão, então você será obrigado, de fato, a imaginar algo como um lugar, provavelmente vazio- por isso falo do divino, e não de Deus-, mas que é um lugar religioso, dado que
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esses valores encarnados nesse absoluto terrestre: 1) nos ligam entre nós (podemos contestar a etimologia, mas pouco importa aqui: eles modelam um mundo comum); 2) têm uma origem que, de algum modo, permane ce misteriosa, não "fundada ": ninguém jamais consegui u resolver nem a questão do fundamento da moral, nem a do fundame nto da verdade. Há algo aqui que é uma transcend ência encadean te e infundáv el, a menos que se recaia nos erros da ontoteologia, mesmo que ela seja "materialista"; e 3) são sagrados, ao menos no sentido de que esse "não-ent e" invisível que se encarna no absoluto terrestre nos ordena ultrapassar nossa individualidade ou, se for o caso, pôr em jogo nossa própria existência - por aí mesmo não creio que seja somente um jogo de palavras transitar do sagrado ao sacrifício. Eis aqui, parece-me, uma configura ção de pensamento religioso que se situa além da moral. Porém, ao mesmo tempo - e muito mais paradoxa lmente que o materialismo - , se situa além das aporias tradicionais da metafísica da subjetividade. Acrescentarei ainda duas coisas: Qual é a origem dessa percepção de um absoluto terrestre, desse sentimento de uma figura inédita do sagrado? Pois se não vamos ao fundo das coisas o discurso permanece metafórico. Esse absoluto terrestre - se não o interpret amos como uma ilusão dos genes, das pulsões, da sociedade, da história etc.- obriga-nos, uma vez mais, a ir além da simples descrição histórica. Quando falo de "diviniza ção do humano" , não quero dizer, como havia sugerido André Comte-Sponville de maneira
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irônica, que os homens sejam tão "formidá veis" e tão amáveis que vão enfim tomar o lugar dos deuses: basta olhar-se num espelho, observar as misérias que nos habitam e que nos cercam para saber que não é esse o caso. A divinização do humano não significa que a vida humana seja enquanto tal sagrada, o que, aliás, eu não penso: não é isso que julgo sagrado, dado que o sagrado de que falo pode exigir, às vezes, o sacrifício da vida. Por outro lado, falo do fato que está em questão nas discussõ es com os verdadei ros materiali stas, isto é, dessa transcendência que está no âmago da humanid ade, desse "sobre-n atural", falando propriam ente, que me parece ser de fato o próprio do homem e que o torna capaz de certa "disposição meta-física". Cito em todos os meus livros a pequena passagem do Discurso sobre a desigualdade, de Rousseau, sobre a diferença entre o homem e o animal. Sou obrigado a lembrá-lo toda vez, pois, a meu ver, essa própria diferença é o divino no homem. Por que digo o divino no homem? Porque se admitirmos a idéia de que o ser humano tem a faculdade de se livrar ou de se emancipar de todos os códigos, se admitirmos que a natureza não é nosso código e que a história também não o é (mesmo que, isso é óbvio, elas o sejam também muito amplame nte, mas não inteiramente), se admitirmos então que há uma sobrenaturalidade e uma transistoricidade no ser humano, então talvez nos encontremos diante da origem última do divino. É por isso que algo como a idéia de um absoluto terrestre pode nos aparecer : quando falo do divino no homem, é a isso que viso. E que não me digam que é
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inteiramente trivial, dado que, precisamente, é isso que é sem cessar contestado hoje em dia, sobretudo por esse novo materialismo muito invasivo constituído pela sociobiologia, agora que o marxismo está relativamente em má situação. Quando falo aqui de "disposição para a metafísica", não penso no fato de que os seres humanos seriam criaturas divinas. Penso nessa sobrenaturalidade no ser humano, que se traduz por dois fenômenos observáveis, que são a cruz e o estandarte para os materialistas: - O fenômeno do mal, do demoníaco, a capacidade de estar no que os teólogos chamavam antigamente de maldade, e sobre a qual expliquei em outro lugar por que ela me parecia não redutível à lógica natural. Eu não vejo maldade nos animais. - O fenômeno do amor desinteressado, que os gregos chamavam de philia, isto é, o fato de se alegrar com a simples existência de outrem. Esses dois fenômenos de desinteresse, que são prémorais (e é isto que me interessa neles: não se confundem com o imperativo kantiano), que constituem por assim dizer duas experiências pré-morais de sobrenaturalidade no homem, parecem-me estar na origem dessa relação com a transcendência de um absoluto terrestre que, se não é imediatamente denegado como ilusório, nos obriga a rearrumar o espaço do religioso. Termino com uma última idéia à qual é preciso fazer justiça neste debate: a idéia que prevalece habitualmente, sobretudo entre os leitores de Mareei Gauchet e, de
Depois da Religião
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modo mais geral, entre aqueles que vêem no nascimento do universo democrático a passagem de um mundo heterônomo para um mundo da autonomia, é que depois do tempo dos valores herdados do passado, transmitidos pela tradição e recebidos de fora pelos indivíduos, teríamos entrado numa nova época, na qual os seres humanos "inventariam", por assim dizer, seus valores. Digamos claramente que essa visão das coisas é não somente simplista, mas radicalmente falsa: os seres humanos jamais fabricaram os valores, tanto hoje em dia quanto no passado. A autonomia não tem nada a ver com a fabricação de valores. Em outras palavras, que poderão surpreender algumas pessoas, os valores são hoje em dia tão exteriores e superiores à humanidade quanto numa perspectiva tradicional. Eu não invento a verdade, eu a descubro: não fui eu quem decidiu que 2 + 2 são 4 e, em relação a essa asserção, minha margem de liberdade individual é igual a zero! Mas também não invento os v
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