° II - A Noção de Identidade Étnica - Renato Athias

February 7, 2017 | Author: Natália Regina | Category: N/A
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A Noção de Identidade Étnica - Renato Athias...

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A Noção de Identidade Étnica na Antropologia Brasileira De Roquette Pinto à Roberto Cardoso de Oliveira

Participantes da III Reunião Brasileira de Antropologia, organizada pelo Prof. René Ribeiro e realizada no Recife, em 1958. Fotografia do Acervo particular do Prof. René Ribeiro, gentilmente cedida pela Professora Celina Hutzler. Esta fotografia faz parte da Exposição Fotográfica: Memórias: III Reunião Brasileira de Antropologia-Recife, 1958, exposta em Goiânia junho de 2006, para a comemoração dos 50 anos da ABA, organizada pelos professores Renato Athias, Antônio Motta, Russell Parry Scott, e Celina Hutzler, atualmente exposta no Hall do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.

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Renato Athias

A Noção de Identidade Étnica Na Antropologia Brasileira De Roquette Pinto à Roberto Cardoso de Oliveira

Editora Universitária

UFP E

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Universidade Federal de Pernambuco 2007 3

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Reitor: Prof. Amaro Henrique Pessoa Lins Vice-Reitor: Prof. Gilson Edmar Gonçalves e Silva Diretora da Editora: Profª Gilda Maria Lins de Araujo COMISSÃO EDITORIAL Presidente: Profª Gilda Maria Lins de Araujo Titulares: Anco Márcio Tenório Vieira, Aurélio Agostinho da Boaviagem, Carlos Alberto Cunha Miranda, Cláudio Cuevas, José Augusto Cabral de Barros, José Dias dos Santos, Gilda Lisboa Guimarães, Jairo Simião Dornelas, José Zanon de Oliveira Passavante, Leonor Costa Maia. Suplentes: Izaltina Azevedo Gomes de Mello, Aldemar Araújo Santos, Anamaria Campos Torres, Christine Paulette Yves Rufino Dabat, Elba Lúcia Cavalcanti de Amorim, Gorki Mariano, José Policarpo Júnior, Patrícia Cabral de Azevedo Restelli Tedesco, Rita Maria Zorzenon dos Santos, Vera Lúcia Menezes Lima.

EDITORA EXECUTIVA Maria José de Matos Luna Editora associada à

Associação Brasileira de Editoras Universitárias

Athias, Renato A noção de identidade étnica na Antropologia brasileira : de Roquette Pinto a Roberto Cardoso de Oliveira / Renato Athias; apresentação Edvânia Torres. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2207. 134 p. : il., tab. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de Pernambuco. Acompanha CD-Rom. Inclui bibliografia ISBN 1. Etnologia – Identidade étnica, Brasil. 2. Etnia brasileira – Fusão étnica – Aculturação e transfiguração. I. Torres, Edvânia. II. Título. 397 305.8

CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)

UFPE BC2007-035

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.

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SÉRIE LIVRO-TEXTO

A Série Livro-Texto faz parte do Programa de Melhoria de Ensino da Graduação da UFPE. Em parceria com a Editora Universitária, oferecemos à sociedade e, em particular, à comunidade universitária, uma coleção, criteriosamente elaborada, cujo alvo é o estudante de graduação. Cada obra foi escrita e organizada por um ou mais professores da UFPE, que atenderam a uma chamada pública em forma de Edital, cujos termos expressam os critérios estabelecidos pela comunidade acadêmica para orientar a confecção de cada livro. Dessa forma, concretizamos mais um projeto da UFPE, participativa e transparente, reiterando o nosso compromisso com a democratização desta instituição. Gostaria de ressaltar que esta iniciativa se alia a outras ações da UFPE, que visam a garantir a qualidade da formação do estudante de graduação, através do apoio aos docentes e à melhoria das condições materiais de funcionamento dos cursos. Esta Série que ora disponibilizamos à nossa comunidade acadêmica, e aos leitores interessados nas questões colocadas nessas obras, reflete a importância dos temas para a formação em cada área do conhecimento, cuja importância foi apontada e referendada por cada Centro Acadêmico da UFPE, aliando relevância à institucionalização das iniciativas docentes. 5

É, então, com imensa alegria que, juntamente com a Editora da UFPE, disponibilizamos neste momento seis títulos didáticos que compõem esta Série Livro-Texto: A Mesagem e a Imagem, Ermelinda Ferreira - CAC; Saúde da criança: para entender o normal, Marília Lima, Maria Eugênia Motta e Gisélia Alves (Orgs.) - CCS; El Español para brasileños: con atractivo agrado y asuntos de interes, Antonio Torre Medina - CCSA; Organização financiamento e gestão escolar para a formação do professor, Alice Happ Botler (Org.) - CE; A Noção de identidade étnica na antropologia brasileira, Renato Athias - CFCH; Tecnologia do açúcar, Sebastião Castro e Samara Andrade – CTG. Outros títulos surgirão, com vistas à ampliação do acervo didático para o estudante de graduação e à criação de oportunidades de publicação para o professor de nossa Universidade, em mais uma ação de fortalecimento e melhoria da formação acadêmica da UFPE.

Lícia de Souza Leão Maia Pró-reitora para Assuntos Acadêmicos

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Ao Antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira *1927 - †2006

In Memoriam

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................

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INTRODUÇÃO.................................................................

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1. A QUESTÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA................

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1. O Índio na Consciência Nacional ....................................

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2. Identidade Étnica e Etnologia Brasileira .........................

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3. Principais Teorias - Plano de Leitura ..............................

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2. TIPOS ÉTNICOS E FUSÃO DAS RAÇAS ...............

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1. O Mito das Três Raças ....................................................

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2. Mestiçagem: a Resposta ...................................................

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3. ACULTURAÇÃO E TRANSFIGURAÇÃO ÉTNICA ..........................................................................

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1. Tipologia dos Estudos sobre a Aculturação .....................

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2. Herbert Baldus e a Mudança Cultural ............................

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3. Eduardo Galvão e a Aculturação .....................................

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4. Darcy Ribeiro e a Transfiguração Étnica ........................

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4. IDENTIDADE ÉTNICA: PERSPECTIVAS ESTRUTURALISTAS ...............................................................

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1. O Contato como Ficção Interétnica .................................

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2. Frentes de Expansão e Colonialismo Interno ..................

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3. A Identidade Étnica e Ideologia ......................................

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS..............................

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APRESENTAÇÃO

Este texto fez parte da a minha Dissertação de Mestrado, defendida no Departamento de Etnologia e Sociologia da Universidade de Paris X (Nanterre), em outubro de 1982, perante a banca de examinadores composta pelos professores Patrick Menget, Jacques Gallinier e pelo Prof. Julian Pitt-Rivers, meu saudoso orientador. Neste trabalho busco, sobretudo, levantar questões pertinentes à noção de identidade étnica tendo como pano de fundo a produção antropológica brasileira. Espero que este estudo possa suscitar debates entre os alunos do curso de Ciências Sociais. O texto original estava em francês, e tinha o subtítulo de “De Roquette Pinto aos nossos dias”, ao realizar a tradução fiz também uma revisão do mesmo incluindo as principais referências aos trabalhos que surgiram após 1982, deixando o essencial do texto original. Devo agradecer aos professores Roque Laraia e Roberto Cardoso de Oliveira, que em ocasiões diferentes tiveram oportunidade de ler o texto original, e, sobretudo, pelo incentivo que ambos deram para que eu realizasse a tradução e colocasse à disposição dos alunos da graduação.

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Transcrevo aqui um trecho do último e-mail que recebi do Prof. Roberto Cardoso de Oliveira, em fevereiro de 2006, que foi fundamental para que eu iniciasse a tradução e revisão do atual texto: “Estou em falta com você, desde quando me pediu que desse minha opinião sobre a sua dissertação de mestrado. Finalmente pude lê-la aproveitando este Carnaval que termina hoje, terça-feira gorda. Numa leitura de sobrevôo - mas absolutamente não desinteressada - meu primeiro comentário é de que ela é publicável em português, desde que seja atualizada. Afinal de contas ela é de 1982 e estamos em 2006. Porém, não creio que você deva incluir tudo o que se produziu sobre a temática da identidade étnica. Bastaria acrescentar o que foi publicado a partir da década de 80, porém seletivamente. Não apenas trabalhos meus, minha conferência, aí em Recife já dá algumas pistas, mas a de exalunos como João Pacheco de Oliveira, (cuja a dissertação de mestrado eu orientei na UnB, e examinei a de doutorado no Museu Nacional), incluindo uma resposta minha a críticas dele, como a que pude fazer na 4ª edição (Editora da Unicamp,1996) de meu ‚O Índio e o Mundo dos Brancos‛, no meu Posfácio. (...) Porém, essas minhas ponderações, não empobrecem em nada o seu texto que, afirmo, pode e deve ser reaproveitado para uma publicação revista e atualizada, algo que você mesmo, por sua própria conta, poderá realizar. Receba o meu mais fraterno abraço. RCO‛. Ao mudar o subtítulo deste texto quero fazer uma homenagem ao professor Roberto Cardoso de Oliveira e dedicar-lhe esse trabalho. Nesses últimos 40 anos ele se dedicou aos estudos da identidade étnica, dando pistas e enriquecendo o debate acadêmico sobre essa temática na

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antropologia brasileira. Ele, contra o pensamento dominante na época, defendeu que a perspectiva dos povos indígenas não era a assimilação pela sociedade nacional. Ele foi também responsável pela formação de um número significativo de antropólogos, que hoje estão atuando nas diversas universidades brasileiras. Por fim gostaria de agradecer aos colegas Vânia Fialho, Peter Schröder, Marcelo Medeiros e Cynthia Hamlin pela leitura e sugestões; bem como a Nicolette van der Linden pelo seu apoio na tradução, a Karina Leão Rodrigues e a Albertina Farias pela revisão do manuscrito.

Renato Athias Paris, novembro de 2006

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INTRODUÇÃO

‚Vou fazer-lhes conhecer as palavras de meus irmãos, aqueles que chamam "índios". Não sei se é por ignorância, por desprezo, ou para dar um nome às coisas, mas para muita gente, somos apenas uma coisa. Estas palavras contarão o último ato do drama que vivemos desde que os homens da outra raça, da outra cultura, do outro mundo puseram os pés nas nossas terras. O homem branco, aquele que se diz civilizado, pisoteou não somente a terra, mas a alma de meu povo e os rios incharam, e o mar tornou-se mais salgado porque meu povo derramou muitas lágrimas‛. (Txibae Ewororo, 1976)

Estas palavras são de Txibae, Bororo de Meruri no Mato Grosso, fazem parte da introdução resumida das três primeiras assembléias indígenas, publicada pela revista Vozes em 1976. Nas numerosas assembléias realizadas no Brasil nestes últimos anos, a questão da identidade étnica foi sempre um dos principais temas debatido e a identidade indígena foi sempre reafirmada. E é, sem dúvida, a partir dessas reuniões interétnicas que surge, para muitos, a motivação de resistir e lutar para o fortalecimento de uma identidade indígena organizacionalmente distinta e diferenciada do restante da população brasileira.

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Roberto Da Matta, no prefácio da segunda edição de seu livro sobre os Gaviões, publicado em 1979, diz: "nunca fiquei tão feliz por estar enganado. E nunca tamanho erro foi tão importante para pesquisar fora de uma antropologia da integração uma antropologia que pensasse realmente menos em decretar a morte dos índios que em procurar melhor compreendê-los enquanto sociedades concretas e específicas". Esta frase faz com que a antropologia se torne um objeto de investigação. É com este sentimento — da antropologia como objeto — que apresentamos este trabalho. O objetivo principal é o de apresentar como os antropólogos e cientistas sociais produziram conhecimento a respeito da idéia da identidade étnica. Não se trata de fazer um desenvolvimento histórico, amplo e minucioso do desenvolvimento dessa noção na Antropologia brasileira, e sim mostrar como foi construído nas ciências sociais no Brasil, e tentar aproximar com o discurso político das populações indígenas. Pretendemos também identificar elementos para uma pergunta que nos parece fundamental na construção desse conceito, e por vezes, deixada de lado. Podemos resumi-la da seguinte maneira: Sobre que base um povo etnicamente distinto (e minoritário) da sociedade nacional pode manter sua identidade étnica e cultural? Gostaria de enfatizar que a sobrevivência e resistência dos povos indígenas do Brasil e das Américas constituem, sem dúvida, um dos fatos mais significativos da história das relações interétnicas da humanidade. No decorrer de todos os anos de colonização e de dominação às quais os povos indígenas foram submetidos, e o desenvolvimento das diversas formas de relação que essas populações mantiveram, e continuam 15

mantendo com os estados nacionais, sempre existiram possibilidades de criar posturas antagonistas entre o Estado e os povos indígenas. E, hoje, o grande desafio para os povos indígenas das Américas tem sido o de buscar novas estratégias de negociação com os governos dominantes e criar modelos de resistência étnica a partir dos processos de contato com sociedades ainda coloniais. As relações entre o estado nacional e os povos indígenas foram se definindo em diferentes contextos sociopolíticos tendo como pano de fundo as três dimensões presentes nos processos de formação dos estados nacionais na América Latina: a primeira, a busca para uma concentração econômica dos recursos, um modelo de desenvolvimento de fronteiras; a segunda, um poder centralizador em todos os níveis; e a terceira, uma fictícia “unidade étnica” nacional. Os estudos sobre a identidade étnica tem sido um tema importante nas ciências sociais, pois trata especificamente da relação indivíduo/sociedade. No entanto, o pensamento social sobre as questões étnicas e raciais compartilhou uma perspectiva eurocêntrica resultado de um “evolucionismo social1” onde a história é concebida a partir de uma linearidade sem levar em consideração os diversos contextos políticos e condições sociais na relação que se estabelece entre indivíduo e sociedade. Em muitas esferas do conhecimento e das atividades humanas, no Brasil e também 1

“...a história pode ser concebida em termos de „enredo‟ que impõe uma imagem ordenada sobre uma mixórdia de acontecimentos. A história começa com culturas pequenas, isoladas, de caçadores e coletores, se movimentam através do desenvolvimento de comunidades agrícolas e pastoris daí para formação de estados agrários, culminando na emergência de sociedades modernas no ocidente.” GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Unesp, São Paulo, 1991 p.15)

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em outros países, será necessário mais do que a reformulação de conceitos. Sente-se a necessidade da transformação radical de muitos deles e a criação de novas referências, abordagens, teorias, códigos e comportamentos. Muitas áreas exigem nova ética e mesmo novas teorias2. Buscam-se abordagens teóricas que espelhem as práticas sociais e que possibilitem apresentar a produção de identidades étnicas para além do eixo norteador de equivalência que incorpora excluindo. ‚O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais é de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais3‛. A produção de conhecimento sobre “classe” e “gênero” como categorias conceituais ampliou a necessidade de ver a posição do sujeito, de gênero, do local institucional, do lugar geopolítico, da orientação sexual dando maior sentido as questões relacionadas à identidade. É necessário, portanto, compreender a identidade étnica dentro de um campo que articula diferentes elementos e subjetividades o qual possibilita a permanente re-escrita da história em decorrência de seu movimento relacionado ao um tempo e um espaço. Procura-se hoje perceber novas articulações e a produção de outros sujeitos até então ignorados e a criação de novas fronteiras de negociação que possibilitem emergência de identidades negligenciadas na atual estrutura de poder.

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Veja Hall, Stuart Identidades Culturais na Pós-Modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro, 1996 3 Cf. BABHA, H. O Local da Cultura. Ed. UFMG, Belo Horizonte,1998 p.20

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A partir da Constituição Federal de 1988 os povos indígenas recuperam seus direitos originários e podem constituir-se como cidadãos etnicamente diferenciados, mostrando assim a possibilidade de existência de um Estado pluriétnico. Porém a letra da constituição não garantiu, ainda, a inclusão das comunidades étnicas a uma participação plena nas políticas públicas de desenvolvimento, em que estas, possam exercer plenamente seus direitos. Apesar de um “crescimento econômico” anunciado pelo governo, as comunidades étnicas constituem-se em grupos vulneráveis que buscam soluções para seus problemas que tendem a agravar-se devido à política do Estado mínimo, onde não há espaço para políticas sociais que incluem as minorias étnicas. De acordo com os levantamentos populacionais existentes, vivem hoje no Brasil cerca de 210 povos indígenas falando cerca de 170 línguas diferentes, dos quais 60% da população têm seus territórios situados nos estados da Amazônia Legal, totalizando cerca de 97.342.896 hectares, representando 98,7% da área total das terras indígenas. Observa-se que os índios se encontram em um processo de empobrecimento devido a situação de contato e a forma de desenvolvimento implantada até então em suas áreas provocando situações de marginalidade econômica. Um levantamento preliminar no banco de dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) indica que existência de cerca de 310 organizações indígenas em diversos estágios de desenvolvimento institucional na Amazônia indicando um movimento em direção a uma mobilização com relação ao fortalecimento de suas identidades étnicas. 18

Os grupos étnicos estão relacionados ao processo de territorialização, no sentido que as constituições de seus territórios estão intimamente relacionadas às suas identidades étnicas e ao exercício da cidadania plena. Atualmente, de acordo com as informações da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) existem 371 terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação representando 98% da extensão dos territórios indígenas do Brasil dos quais 19% das terras da Amazônia Legal. Esses territórios estão situados em ecossistemas frágeis e ameaçados por interesses econômicos e geopolíticos das frentes de expansão da sociedade nacional. Essas terras4 são negociadas dentro de um quadro político preciso cujos parâmetros estão estabelecidos pelo Estado. As áreas indígenas situadas na Amazônia Legal, nestes últimos anos, receberam um apoio significativo nos processos de identificação, demarcação e homologação, através do Projeto de Proteção as Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), com recursos provenientes do PPG-7 enquadradas no argumento de proteção das florestas tropicais. Quase as totalidades dessas terras já foram identificadas e muitas delas já se encontram demarcadas, inclusive com a participação efetiva das comunidades indígenas. A mobilização política, dos povos indígenas no Nordeste como também entre as comunidades quilombolas, 4

“...a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um pontochave para apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais” OLIVEIRA, João Pacheco Uma Etnologia dos Índios “Misturados”? Situação Colonial, Territorialização e Fluxos Culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco A Viagem da Volta. ContraCapa, Rio de Janeiro, 1999 p. 20.

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proporcionam elementos para a afirmação de suas identidades e está alicerçada no processo de reconquista territorial. Nas últimas décadas os grupos indígenas no Nordeste vêm reivindicando seu reconhecimento oficial 5. Esse fenômeno vem sendo denominado por alguns antropólogos de “etnogênese”, abrangendo tanto a emergência de novas identidades como a “ressurgimento” de etnias tidas como desaparecidas historicamente. No que se refere às terras indígenas do Nordeste a situação é bem diferente, justamente por não haver recursos alocados por parte do governo, para executar as demarcações. A maioria delas encontra-se em processo de identificação e de desentrusamento de posseiros. Neste sentido, tanto para os grupos indígenas quanto para as terras quilombolas, hoje já em processo de identificação e demarcação relacionada à política existente de reconhecimento oficial das “terras de negros”, a identidade étnica está associada à noção de territorialização é definida como um “processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante ao estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii)a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a 5

Na década de 20 do século passado, havia apenas um grupo indígena reconhecido pelo Estado no Nordeste; na década de 30, três grupos são reconhecidos; na década de 40, sete grupos foram reconhecidos. Entre as décadas de 50 e 60, não houve o reconhecimento de nenhuma etnia, porém, a partir dos anos 70 existe um aumento significativo de reconhecimento de povos indígenas no Nordeste: quatro nos anos 70; quatorze na década de 80 e até o ano de 1998 observamos o acréscimo de dez grupos indígenas oficializados pela FUNAI. Com uma população total de mais de 60.000 indivíduos, as terras referentes a esses povos totalizam 247.888,7 hectares da região Nordeste.(Cf. Vânia Fialho de Paiva e Souza. Desenvolvimento e Associativismo Indígena no Nordeste Brasileiro: Mobilizações e Negociações na Configuração de uma Sociedade Plural.. 2003. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco).

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redefinição do controle social sobre os recursos ambientais e iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado” 6. As agências multilaterais e bilaterais de desenvolvimento deveriam incorporar estratégias para o fortalecimento das identidades étnicas e garantir a participação dos povos indígenas em espaços onde eles possam buscar mecanismos de discussão sobre o seu próprio desenvolvimento levando em consideração suas especificidades culturais. Nestes últimos anos, os povos indígenas, aliados ao argumento da preservação ambiental, têm conseguido espaços significativos em programas de desenvolvimento voltados para a Amazônia. No entanto, estes programas ainda carecem de maior apoio por parte de setores do governo. Os índios localizados em outras regiões, representam cerca de 40% da população indígena, ainda sem um argumento de apelo a nível internacional, se encontram talvez em outra situação, sobretudo por não terem ainda suas terras demarcadas e garantidas. Nesse sentido, vale mencionar que o desenvolvimento dos estudos sobre identidade étnica e a produção acadêmica sobre essa temática tem subsidiado iniciativas, por exemplo, para reduzir a pobreza das comunidades etnicamente diferenciadas. Ver o caso dos governos europeus que têm a Resolução7 N.30 do Conselho da União Européia, de 30 de 6

OLIVEIRA, João Pacheco, Uma Etnologia dos Índios “Misturados”? Situação Colonial, Territorialização e Fluxos Culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco A Viagem da Volta. ContraCapa, Rio de Janeiro, 1999 p.18. 7 O Conselho de Resolução da União Európeia afirma ainda que “the development cooperation should contribute to enhancing the right and capacity of indigenous peoples to their “self-development” . This implies integrating the concern for indigenous peoples as a cross-cutting aspect at all levels of development cooperation, including policy dialogue with partner countries and enhancing the capacities of indigenous peoples‟

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novembro de 1998, que baseando-se no Working Document8 of the Comission of May 1998, reconhece que muitos povos indígenas encontram-se em situação de marginalidade econômica indo em contra os direitos humanos. O Conselho da UE afirma a necessidade de possibilitar o desenvolvimento denominado de “Self-developement” de acordo suas tradições culturais e suas identidades. O Conselho também conclama os Estados membros a elaborarem políticas e estratégias para promover o desenvolvimento para os povos indígenas e aumentar apoio adequado e efetivo para estas populações. Portanto, as agências de cooperação internacional já incluem em seus discursos e em suas estratégias a participação social como mecanismo que permita às organizações da sociedade civil debater os seus programas e projetos de desenvolvimento. No entanto, esta participação ainda não está internalizada como estratégia de desenvolvimento para a redução da pobreza em outros níveis onde as políticas públicas são debatidas. Portanto, falar em etnodesenvolvimento é falar em autonomia política das comunidades étnicas. Esse conceito está longe de ser discutido no âmbito dos Estados Nacionais, que em sua maioria ainda é centralizador, baseado em uma política social nos moldes do neoliberalismo. No entanto, o movimento indígena vem através de suas manifestações políticas reivindicando maior autonomia. E o governo vem organisations to take effective part in the planning and implementation of development programmes”. 8 Conferir também um guia de desenvolvimento produzido pelo Departement for International Development do Governo Britânico (DFID): Ethnicity, Ethnie Minorities and Indigenous Peoples (1995).

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dando indicativos de uma maior participação. Ou seja, ampliar a participação dos índios nos processos decisórios. E isso pode representar um passo para pensar a autonomia econômica das populações indígenas e, portanto, em um desenvolvimento que leva em consideração as identidades étnicas. Acredito que essa discussão está sendo realizada na América Latina. O processo de busca da autonomia representa, em última análise, um pacto entre a sociedade nacional (cuja representação assume o Estado Nacional) e os grupos étnicos, que reclamam o reconhecimento de seus direitos históricos. Esse acordo será o resultado de um grande processo de discussão envolvendo os dois lados. E esse processo não acabará simplesmente com o estabelecimento de uma legislação para governos autônomos, mas será consolidado aos poucos em ajustes administrativos. O processo de constituição de autonomias é fruto de discussões e acordos entre partes iguais e livres. É aqui que se situa o elemento central desse processo: autonomia não pode ser resultado de uma decisão unilateral. Esse debate não é novo e iniciou-se ainda na década de setenta, na reunião de Barbados I (1971), na reunião do Parlamento do Cone Sul (1974), Asunción-Paraguai, novamente em Barbados II (1976), na reunião de San José, na Costa Rica, patrocinada pela UNESCO. E esse debate vem sendo colocado através dos trabalhos de Rodolfo Stavenhagen9 (1984, 1988, 1992), atual Relator Especial das 9

STAVENHAGEN, Rodolfo. Derecho indígena y derechos humanos en América Latina, El Colegio de México/Instituto Latinoamericano de Derechos Humanos, 1988; “Comunidades étnicas y Estados Modernos”, América Indígena, México, vol. XLIX,

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Nações Unidas sobre os Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, e que tem participado de importantes reuniões em Genebra no âmbito da OIT e de outros organismos internacionais. Nesses espaços, têm sido discutidas as teorias sobre identidade étnica que dão sustentação aos princípios do etnodesenvolvimento, colocando-se como uma crítica às teorias de desenvolvimento hegemônicas praticadas pela maioria dos países da América Latina. O etnodesenvolvimento se coloca como uma possibilidade de desenvolvimento econômico, proporcionando o aumento da qualidade de vida e o fortalecimento das identidades étnicas das populações indígenas. Os analistas10 das políticas indigenistas na América Latina dizem que o Estado Moderno nasce quando se dá o reconhecimento oficial da autonomia das populações indígenas, e o reconhecimento dos outros (dos diferentes) como sujeitos. E isso inclui o respeito à vida do outro, a aceitação de sua autonomia em todos os sentidos e, sobretudo, a aceitação de uma igualdade de condições no diálogo sem coação de nenhum dos lados. As definições até então apresentadas, seja em trabalhos científicos ou mesmo através das ações dos estados americanos em relação aos povos indígenas, indicam alguns caminhos que precisam ser

1989; “Los derechos indígenas: algunos problemas conceptuales”, Nueva Antropología, México, vol. XIII, núm. 43, noviembre, 1992; “Los derechos indígenas: nuevo enfoque del sistema internacional”, in Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas 3. Antropología Jurídica, Instituto de Investigaciones Jurídicas/UNAM, pp. 87-119, 1995. 10 Villoro, Luis. Los grandes momentos del indigenismo en México, México, CIESAS, SEP, Lecturas mexicanos, 1987; e “Los pueblos indios y el derecho de autonomía”, Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas, a) Derecho Indígena, núm. 4, México, UNAM, pp. 123-140, 1996

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trilhados para implementar um processo de desenvolvimento que leve em consideração as identidade étnicas. Gostaríamos de elencar os principais pontos de uma pauta reivindicatória que deveria estar presente em uma política de Estado, tendo em vista as questões que envolvem as identidades étnicas11. Essas proposições, abaixo descritas, foram retiradas a partir de documentos divulgados pelas organizações e movimento indígena nestes últimos anos: 1. A clareza nos direitos de propriedade da terra. Aqui se verifica tudo que diz respeito aos territórios indígenas: as questões sobre a utilização do solo e do subsolo e a plena utilização das terras, tendo a Constituição de 1988 já avançado nessas questões, porém sem uma legislação complementar; 2. O reconhecimento e a garantia da voz política dos povos indígenas, não só como cidadãos individuais, mas sobretudo como povo, como grupo, como culturas distintas. Isso significa aceitar as relações interculturais. Esse reconhecimento proporciona aos grupos étnicos agentes ativos de seu próprio desenvolvimento; 3. O respeito à identidade cultural indígena, tendo em conta que qualquer modelo de desenvolvimento econômico deveria fortalecer as diversas identidades; 4. O reconhecimento formal das organizações existentes entre os povos indígenas, assegurando as suas formas próprias de gestão e representação política em projetos apoiados pelos governos; 5. Apoios a iniciativas indígenas que visem à ampliação dos recursos naturais existentes nas áreas indígenas, buscando 11

Conferir por exemplo Miguel Bartolomé e Alicia Barradas. Autonomías étnicas y Estados nacionales, México, INAH 1998

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fortalecer seus modelos de gestão dos recursos naturais em suas terras; 6. Apoios concretos à manutenção da segurança alimentar nos territórios indígenas, respeitando as práticas tradicionais de exploração dos recursos naturais; 7. A responsabilidade social do Estado em apoiar serviços de saúde dignos e de qualidade nas áreas indígenas; uma educação intercultural bilíngüe e atividades que possam promover a geração de renda respeitando as tradições culturais dos povos indígenas. Esses pontos acima mencionados não estão isolados. Para colocar em andamento uma política de etnodesenvolvimento clara, com respeito às identidades étnicas, deveriam ser interconectados e deverão ser visto como formas internas de discussão sobre questões de desenvolvimento entre os povos indígenas. Antes de começar a escrever a "história" da produção do conhecimento sobre a identidade étnica através da Antropologia brasileira12, partindo da noção de Fusão das Raças, passando pela Teoria da Aculturação, da Transfiguração Étnica, e de Fricção Interétnica, para chegar à idéia das relações interétnicas, procuramos nos dicionários e enciclopédias as palavras etnia, étnica e identidade. Para nossa grande surpresa, foi interessante constatar que os termos: etnia e étnica têm uma utilização recente nas 12

Antropologia Brasileira em seu sentido amplo, tendo em vista, pricipalmente a produção no campo disciplinar da etnologia indígena. Sobre isso acho importante a leitura do trabalho de Julio César Mellati intitulado: Antropologia no Brasil: um Roteiro, publicado originalmente na Série Antropologia da UNB, 38, 1984, republicado em O que se Deve Ler em Ciências Sociais no Brasil, vol. 3, pp. 123-211, São Paulo: Cortez e ANPOCS, 1990. Outro trabalho importante para entender antropologia no Brasil ler: PEIRANO, Mariza Gomes e Souza. 1980. The Antropology of Anthropology: the Brazilian case. Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Harvard, Cambridge.

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Ciências Sociais. Em geral, o termo étnico sempre foi utilizado como adjetivo qualificativo de outros termos como: grupo, relações etc. O termo etnia inseriu-se no glossário técnico das Ciências Sociais em oposição ao termo "raça" no intuito de limpá-lo de tudo o que pudesse ser identificado como fruto das teorias racistas. Estamos surpresos com a abundante literatura produzida a respeito da identidade étnica13, e também com o fato de que a questão da identidade está inserida em quase todas as disciplinas que estavam na ordem do dia, na última metade do século passado. A compilação da etnologia brasileira feita por Baldus (1954-1968) assim como seus comentários nos foram preciosos. No primeiro capítulo, pareceu-nos importante mostrar o que pensa a sociedade nacional hoje da população indígena que agrupa cerca de 210 povos diferentes que sobreviveram ao massacre de quase três milhões indivíduos — segundo a hipótese mais conservadora — que existiam antes da invasão portuguesa. Elaboramos em seguida um quadro tipológico onde aparecem as principais teorias que possibilitaram um debate e que se referem à questão da identidade étnica. É a partir desta tipologia que elaboramos os capítulos seguintes, os quais são desenvolvidos tendo em conta a produção antropológica e o desenvolvimento dessas teorias, sem, no entanto aprofundar, mas com o intuito de propor pistas para futuros estudos.

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Conferir: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne (Orgs). Teorias da Etnicidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.

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No segundo capítulo, "Tipos Étnicos e Fusão das Raças" tentamos mostrar como esta teoria foi aceita pelos meios intelectuais brasileiros e como a mesma impregnou-se em na intelectualidade brasileira. Em última instância, tal teoria lançou as bases do que chamamos hoje de “racismo brasileiro”. Consideramos Gilberto Freyre como um dos representantes desta corrente de pensamento, veste o caráter significativo de suas obras e a influência que teve na formação do pensamento brasileiro. Nos capítulos seguintes, elaboramos um histórico do desenvolvimento das teorias da Aculturação nos trabalhos de Eduardo Galvão; da noção de Transfiguração Étnica nas obras de Darcy Ribeiro. E finalmente, na última parte discutimos a perspectiva de Fricção Interétnica sob a ótica das investigações do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, pois certamente este pesquisador é o que mais influenciou os estudos mais recentes sobre a identidade étnica.

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1. A QUESTÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA

A historiografia oficial sempre mostrou os povos indígenas como se eles tivessem desaparecido desde os primeiros contatos ocorridos na costa brasileira. Ainda hoje, os manuais escolares evitam falar dos povos indígenas, ou quando falam, usam uma conotação racista e se referindo a um passado longínquo. Em 1975, Roberto Cortez fez uma pesquisa na cidade do Rio de Janeiro para “detectar” a imagem que uma população urbana tinha do índio. A pesquisa revelou que o indígena é considerado como um animal, ou 'quase um animal', feroz, perverso, maldoso, selvagem, antropófago, mas é também muitas vezes comparado potencialmente ao homem branco: "o índio não é necessariamente maldoso, isto depende das circunstâncias, há brancos mais maldosos que os índios..." Há também a idéia de que o índio não é violento ou de que a violência do índio seria a conseqüência do mal que lhe fizeram. Às vezes, o índio é percebido como sendo trabalhador, mas em contrapartida, ele é visto como indolente inútil para a sociedade "civilizada" (CORTEZ 1975, p. 10-11)14. 14

Ver também “O que os brasileiros pensam dos índios?” resultado da pesquisa que o IBOPE realizou de âmbito nacional, encomendada pelo ISA (Instituto Socioambiental), sobre o que os brasileiros pensam dos índios.

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1.1 - O Índio na “Consciência” Nacional Esta imagem atribuída ao índio se generalizou em todos os setores da sociedade brasileira. Para aqueles que detêm o poder, esta idéia torna-se perigosa à medida que eles decidem o destino das populações indígenas. A guisa de ilustração, reproduzimos aqui as palavras do Brigadeiro Protásio Lopes de Oliveira, que esteve muitos anos na chefia do Comando Aéreo da Amazônia e visitou numerosas aldeias indígenas da região, através do serviço do Correio Aéreo Nacional - CAN mantido pela Força Aérea Brasileira FAB em apoio às missões religiosas das regiões Norte e Nordeste. Ele diz que indígena exprime: “somente uma condição social inferior, um modo de vida primitivo como o dos favelados do Rio de Janeiro, os habitantes dos mocambos em Recife, os alagados de Belém e outros semelhantes no nosso Brasil; que vivem num submundo de miséria, de doença, de imundície e de mortalidade infantil, tendo necessidade de uma educação e de cuidados especiais, a começar pelo índio, pelo ensino da língua pátria, que os outros, de certa maneira, já conhecem" (ALVES DA SILVA 1979:5). Tal coleção de clichês representa, antes de tudo, uma atitude muito difundida entre os brasileiros, e que se caracteriza por um paternalismo muito forte, mesmo as instituições oficiais encarregadas de executar a política indigenista do governo, não fogem a estes estereótipos. Atualmente, no Brasil, a Fundação Nacional do Índio http://www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/quepens/index.shtm Ver também o livro de Márcio Santilli, Brasileiro e os Índios, São Paulo, SENAC, 2000.

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FUNAI - é a instituição federal encarregada de formular e executar a política indigenista do Estado brasileiro. Foi criada em 1967, após a extinção do Serviço de Proteção ao Índio15 (SPI) acusado e denunciado internacionalmente, em sua última fase, de irregularidades administrativas e de colaborar com a exterminação dos índios, em vez de defendê-los. O trabalho de vários antropólogos no Brasil relata essa fase da política indigenista, entre os quais o de Antônio Carlos de Souza Lima16. A política indigenista oficial aplicada depois da criação do SPI em 1910, nunca enfocou de fato a diversidade cultural dos índios do Brasil. O índio sempre foi considerado uma categoria genérica devendo ser integrado à sociedade nacional. E o próprio órgão oficial colabora na difusão desta imagem do índio genérico. Tal integração pressupõe, desde o começo, que uma só política de aproximação e atração é utilizada para todos os grupos indígenas em qualquer grau de contato com a sociedade nacional. Esta política indigenista na sua prática confirma a "redução" das etnias indígenas a uma só categoria abstrata chamada: índio, inventada pelo “civilizado” outra categoria abstrata (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978 p. 14). No entanto, atribuir às populações indígenas uma identidade única, genérica, leva a mistificar uma realidade altamente complexa de maneira muitas vezes inoportuna.

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Sobre a criação do Serviço de Proteção aos Índios ver: Darcy Ribeiro (1977) "Os índios e a civilização" parte II "A intervenção protecionista", p. 127- 207 . 16 LIMA, Antonio Carlos de Souza . Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil, Petrópolis: VOZES, 1995.

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Do ponto de vista legal, a FUNAI foi o órgão "tutor" dos índios, visto que o índio foi considerado juridicamente como "relativamente incapaz". Parece que o legislador quis oferecer às comunidades indígenas a proteção do Estado contra a voracidade do capital e das empresas. Entretanto, hoje, este aspecto da legislação é interpretado com uma conotação assistencialista e paternalista. O índio no Brasil foi também considerado como menor e juridicamente com o mesmo estatuto de deficiente mental pelo antigo Código Civil. Assim, esta medida, que deveria levar em princípio o Estado brasileiro a assegurar proteção aos índios, foi de fato interpretada de maneira diferente (Estatuto do Índio, Lei 6001/73, cap. II). Porém, com a constituição de 1988, esse “poder tutelar” deixa de existir. E o referido estatuto caducou. No entanto, apesar de existirem três versões do projeto de lei do novo estatuto tramitando no Congresso Nacional, tal regimento nunca foi posto em votação nesses últimos doze anos. Somente a partir de um reconhecimento claro do fato que existe no Brasil vários grupos étnicos diferenciados, e consequentemente problemas diversos, que se pode chegar a uma política indigenista mais adequada para esses grupos. É admitindo a existência de etnias e sua especificidade que se pode tentar estabelecer uma política mais racional e reparar os desgastes já causados pela insistência secular em considerar o índio como igual em todos os lugares. É importante mencionar aqui os avanços na política indigenista brasileira advindos com a Constituição de 1988. O modelo jurídico-institucional da política para os povos indígenas, a partir da atual Constituição foi ampliado 32

consideravelmente. Com relação às terras indígenas a Constituição reconhece não apenas a ocupação física das áreas habitadas pelos índios, mas sim a ocupação de acordo as tradições culturais. Neste sentido, o Artigo 20 amplia o conceito de território indígena a toda extensão de terra necessária à manutenção e preservação das tradições imemoriais e culturais dos povos indígenas. O Artigo 22 mantém a competência do Estado para legislar sobre as populações indígenas e reconhece assim o direito dos índios de preservar sua identidade étnica e suas formas de organização abandonando assim o caráter de transitoriedade da condição de indígena que cessaria com a chamada “integração dos índios à comunhão nacional”. O Artigo 215 garante a educação bilíngüe assegurando-lhes a utilização de suas línguas e processos próprios de aprendizagem. O atual texto constitucional abandona explicitamente a ações integracionistas e direciona as ações indigenistas para a valorização da identidade étnica e do patrimônio cultural (tangíveis e intangíveis) dos povos indígenas. Os parágrafos dos Artigos 231 e 232 contêm as bases sobre os direitos indígenas e ressaltam o reconhecimento da identidade própria e diferenciada, os direitos originários, determinam a demarcação das terras indígenas, e reconhece as formas de organização social como partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Cardoso de Oliveira (1978, p. 70-72), na intenção de determinar as atitudes tomadas em relação aos povos indígenas, elaborou quatro tipos de mentalidades existentes no Brasil, às quais chama de "Obstáculos ideológicos a um indigenismo racional". Para ele, existe uma mentalidade 33

estatística que se preocupa com números: "Por que se preocupar com alguns milhares de índios, se o grande problema do país é o destino de milhões de brasileiros?". Neste caso, só a quantidade importa. Esta mentalidade pode ainda se exprimir na seguinte questão: "Que significa a morte de algumas dezenas de índios se no Brasil milhares de crianças morrem diariamente?". Quanto à mentalidade romântica, desenvolve, sobretudo entre os intelectuais, e não tem a possibilidade de influir sobre os meios de decisão; exprime-se através de uma imagem estereotipada do índio adquirida na literatura, como por exemplo, os textos de José de Alencar, Gonçalves Dias entre outros, até os autores contemporâneos. O índio aí é visto como: puro, ingênuo e o sistema sócio-político deste “bom selvagem” são apresentados como um paraíso ideal, um modelo a ser imitado. O terceiro obstáculo é o de mentalidade burocrática e trata-se da imagem existente na administração oficial, impregnada de um paternalismo exagerado e influenciada por certa dose de "romantismo"; esta visão era dominante entre os primeiros funcionários do SPI que não tinham nenhuma preparação técnica ou científica e substituíam esta falta por esta perspectiva. É preciso assinalar que esta mentalidade não é mais dominante em nossos dias. Finalmente, a quarta mentalidade, a capitalista, seria aquela que existe, sobretudo nos principais meios de decisão. Aqui os índios são vistos como improdutivos. Para ilustrar esta mentalidade, que hoje é mais observada no caso brasileiro, seria preciso relembrar a célebre frase do exministro do Interior, Costa Cavalcanti, à imprensa brasileira: "Daremos toda nossa assistência ao índio, mas ele não poderá ser 34

um obstáculo ao desenvolvimento do país" (O Estado de São Paulo, 21.2.71), depoimento pronunciado no momento em que o Parque Nacional do Xingu era cortado por uma estrada (a BR 080). Nesta mesma ocasião, um representante da Associação das empresas de agropecuária da Amazônia declarou igualmente à imprensa: "As grandes planícies que constituem uma parte do território do Parque poderiam ser utilizadas de maneira racional com a implantação de fazendas experimentais nas quais os próprios índios poderiam ser empregados nos trabalhos agrícolas". Este pensamento ganha aos poucos os setores oficiais a ponto de integrar em programa de partido político de governos anteriores. Seria possível dizer que este olhar sobre os povos indígenas sempre esteve presente no desenvolvimento de uma política indigenista no Brasil, desde a colonização até nossos dias. Os índios representam apenas mão-de-obra para os grandes investimentos, e ainda, eles não são reconhecidos como um grupo social etnicamente diferenciado. Medidas oficiais tentaram, na verdade, reduzir até mesmo negar a identidade indígena. A FUNAI chegou a propor os "critérios sangüíneos" entre certos grupos indígenas do nordeste brasileiro, pretendendo com isso identificar a indianidade dessas populações. Em 1981 foi constituída uma comissão encabeçada pelo Coronel Ivan Zanoni, para elaborar os critérios de indianidade a ser aplicado no Brasil a partir critérios sangüíneos. Os critérios foram criados com a recomendação de que tais indicadores não precisavam ser justificados, mas simplesmente listados. Vale esclarecer que o documento apresentado faz menção à comunidade científica, mas esta jamais foi sequer consultada. 35

Sobre essa questão merecem ser consultado os trabalhos de Manuela Carneiro da Cunha, Legislação indigenista no século XIX. São Paulo: EDUSP/COMISSÃO PRÓ-INDIO, 1992; Os direitos do índio : ensaios e documentos. São Paulo : Brasiliense, 1987 e Definições de índio e de comunidades indígenas, In: SANTOS, Sílvio Coelho (Org.). Sociedades indígenas e o direito: uma questão de direitos humanos. Florianópolis: Editora da UFSC, 1985. A esta série de mentalidades enumeradas por Cardoso de Oliveira, poderíamos acrescentar muitas outras. Contentaremos-nos em assinalar a mentalidade salvacionista existente num setor que são os religiosos missionários, e que consiste em querer salvar os índios pela submissão ao cristianismo. Na prática, esta visão levou os povos indígenas a um processo de “desaldeamento", e é sem dúvida, a que não aceita a identidade indígena como especifica e diferenciada. Com efeito, os missionários, católicos e protestantes, estão praticamente em todas as áreas indígenas. Até 1978, segundo os dados do Centro Ecumênico de Documentação e de Informação, havia no Brasil cerca de 50 centros de missões implantados em território indígena. Finalizando estas considerações, chegamos à conclusão que, de modo geral, a sociedade nacional continuará a ter uma visão deformada enquanto não existir consciência da existência de povos etnicamente distintos em todo o território nacional.

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1.2 - Identidade Étnica e Etnologia Brasileira A questão da identidade é um tema que interessa praticamente a todas as disciplinas das Ciências Sociais. A identidade é o centro de interesse dos etnólogos que estudam uma determinada sociedade. É o ponto central de toda investigação etnológica. A questão da identidade está na ordem do dia, dizia Claude Lévi-Strauss em 1977, (p. 9) chega mesmo a afirmar que a "crise de identidade seria o novo mal do século" e continua dizendo que a questão da diferença percorre o nosso tempo. A diferença da cultura e da natureza, a diferença entre as culturas e os códigos nacionais ou regionais é reafirmada, bem como a relação com o território. A diferença torna-se um tema e se coloca ao lado da identidade. Não se trata mais de generalizar a idéia da natureza para explicar as diferenças e nem proclamar a unidade do homem e de seus valores. Vejam a ênfase na declaração dos direitos individuais e o movimento contra os etnocentrismos. Como já mencionamos acima, este trabalho pretende abordar a questão da identidade étnica, sobretudo como esse conceito foi construído na etnologia indígena que, não obstante, os mais de 500 anos de "conquista" e de redução demográfica, os índios resistem enquanto grupos étnicos em praticamente todo o território nacional. Este estudo pretende mostrar o desenvolvimento desse conceito na Antropologia brasileira, ou seja, como os etnólogos concebem a identidade étnica na produção antropológica sobre os grupos indígenas. Depois dos anos sessenta surgiram estudos sobre a questão da identidade étnica, não somente na América 37

Latina, mas praticamente em todos os espaços acadêmicos onde a questão da identidade surge como um problema. Não seria exagerado afirmar que o debate sobre a identidade étnica levou à criação de Estados nacionais, principalmente no continente africano onde os grupos étnicos, buscam a criação de um Estado que os represente. A literatura etnográfica fala de minorias, mas há casos que não são "minorias", e sim maiorias nacionais que reclamam por uma representação política; referimo-nos, por exemplo, à questão dos Curdos, que são mais de vinte e seis milhões, e que continuam a reivindicar pela sua autodeterminação e pela formação de um Estado nacional. Em seguida apresentaremos alguns trabalhos que merecem ser levados em consideração e que deram inicio ao debate sobre a temática da etnicidade na pauta de discussão mais contextualizada e regionalizada. No que se refere à América Latina, importantes trabalhos abordaram a questão da identidade e merecem ser destacados: no Peru, por exemplo, uma obra coletiva de um grupo de antropólogos intitulada: "Problema nacional, Cultura y Clases Sociales" (1945) do Centro de Estudos e de Promoção do Desenvolvimento – Lima – e "Clase, Estado y Nación" de Julio Cotler (1978) abriu o debate recente sobre a temática da identidade peruana levando em conta os seus diversos contextos étnicos. José Carlos Mariátegui influenciou mais de uma geração no debate sobre a identidade peruana. Sua obra, os “Sete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana‛ será leitura obrigatória, não só para os ativistas, mas também entre os pensadores sociais sobre a identidade peruana.

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O XLI Congresso Internacional dos Americanistas realizado no México em 1974 foi um marco importante nos estudos sobre a identidade étnica, sobretudo com a realização do simpósio cujo título foi: "Etnicidade e Identidade Étnica na América Latina", organizado por Roberto Cardoso de Oliveira onde estiveram presentes especialistas de numerosos países. Os estudos sobre o pluralismo étnico ilustram sua existência nos atuais Estados africanos onde há uma diversidade de etnias divididas por fronteiras políticas, foi muito bem abordado no volume "Pluralismo na África" editado por Leo Kupper e M. G. Smith (1969). Esta mesma problemática aplicada na América Latina foi analisada no estudo de Rodolfo Stavenhagen "The Plural Society in Latin América" produzido pelo "Meeting of Experts on the Concept of Race, Identity and Dignity" patrocinado pela UNESCO e realizado em Paris (1972). O volume organizado por Nathan Glaser e Daniel P. Moynihan "Ethnicity Theory and Experience" oferece uma dimensão abrangente da questão da identidade étnica. Compõe-se de 16 ensaios que tratam de vários temas, desde a identidade do grupo de base até as questões mais nacionais como por exemplo no artigo: "China: Éthnic Minorities and National Security" de Lucian W. Pye. Estes estudos foram resultados de um encontro, em 1972, patrocinado pela Fundação Ford e pela Academia Americana de Artes e de Ciências, realizado em Massachusetts. Estas publicações abordam uma linha comum aos estudos sobre a identidade, voltadas em sua maior parte para: a) as relações interétnicas enquanto manifestações fenomenológicas da etnicidade; b) a etnicidade como identidade e como 39

estratégia na concorrência para obtenção de recursos; c) a etnicidade como caráter cultural e, d) a etnicidade em relação com a estrutura e organização social. Também merece ser mencionado os estudos sobre identidade desenvolvida num contexto urbano, como nos apresenta um trabalho pioneiro de Abner Cohen no volume intitulado: "Urban Ethnicity". Este volume foi organizado após o encontro da Associação dos Antropólogos Sociais da Comunidade Britânica em 1971. Na introdução, Abner Cohen explica o que ele entende por grupo étnico: a) é uma coletividade que partilha certos modelos normativos de comportamento; b) fazem parte de um grupo populacional e relacionam-se com povos pertencentes a outras coletividades na estrutura do sistema social. A identidade étnica, de acordo com Max Weber, tal como foi desenvolvido no capítulo sobre Comunidades Étnicas em sua obra de 1922, mais conhecida, “Economia e Sociedade‛ publicada pela Editora da UNB, em 1991, consiste no sentimento de pertencimento a um determinado grupo social, apoiando-se numa crença de origem comum e na construção de um repertório de elementos diacríticos. Isso permite a comunidade étnica se definir, se organizar e se diferenciar diante dos outros. As comunidades étnicas estando inseridas em sociedades politicamente organizadas de maneira mais ampla vêm se impondo e se tornando suficientemente fortes para mobilizar setores da sua comunidade para a redescoberta da história e da cultura que vão sendo recriadas de acordo com as novas situações de um espaço intercultural. Os conteúdos não devem ser entendidos como algo essencializado ou naturalizado, mas como uma 40

cultura adaptada às condições sociais e políticas proporcionando armas para uma competição num mundo cada vez mais plural. Max Weber assinalava como os censos realizados na Índia, pela administração inglesa, ao incluir um quesito sobre o pertencimento de casta contribuíram para a reprodução da mesma. Existem exemplos, na atualidade, que mostram como essas situações são as principais agências promotoras e revitalizadoras de etnicidades tanto nas questões administrativas como em países que desenvolvem uma política multiculcural, e, sobretudo onde o voto étnico ocupa o primeiro plano da uma agenda política17. No Brasil, os estudos sobre a identidade étnica começaram, mais sistematicamente, por uma reorientação dos estudos sobre aculturação, e foram fortemente marcados pela tradição antropológica norte-americana. Tais estudos dão continuidade a toda uma reflexão sobre a questão nacional em que a classe brasileira dominante orienta para a questão da identidade étnica, sobretudo a partir de conflitos "raciais" existentes no Brasil entre negros e a população de origem européia. A etnologia brasileira está intimamente ligada, em seu desenvolvimento, a iniciativa de etnólogos estrangeiros que fizeram numerosas expedições ao Brasil, com o objetivo de 17

Veja por ejemplo: HOBSBAWN, E. (2000) «La izquierda y la política de la identidad», New Left Review (ed. esp.), n.º 0, pp. 114-125. Sobre as emergencias étnicas consultar ROOSENS, E. (1989): Creating Etnicity. The Process of Ethnogenesis, California, Sage, e sobre “paisagem multicultural conferir CARABAÑA, J. (1995): « A favor del individuo y contra las ideologías multiculturalistas», Revista de Educación, n.º 30, pp. 61-88.

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coletar objetos de arte indígena para as coleções de museus da Europa e para responder as questões formuladas pelos europeus à época, como por exemplo, o estado dos "povos naturais" e a tese da "degenerescência das raças". Etnólogos e naturalistas alemães estiveram no Brasil entre 1884 e 1914: Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Carl Friedrich Philipp von Martius, Theodor Koch-Grünberg e Max Schmidt são os mais importantes deste período. Martius explorou o país de 1817 a 1920 ao longo de diversas expedições e grande parte sobre o conhecimento da fauna e flora brasileira se deve ao trabalho desses naturalistas que obtiveram por parte dos governos um interesse e manter e financiar expedições no interior do Brasil. Não se pode deixar de mencionar os outros estudiosos europeus que estiveram também no Brasil como, por exemplo, Henri Coudreau, Alfred Métraux. Suas obras compõem hoje verbetes importantes na Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira editada por Herbert Baldus (1954). O Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822 passando para um regime de monarquia parlamentarista e posteriormente a República em 1889. De 1808 a 1882 estimase que 24 projetos de fundação de universidades passaram pelo parlamento brasileiro, mas todos foram rejeitados (AZEVEDO 1958, p. 215). A única oportunidade que os brasileiros tinham para os estudos universitários era viajar para Coimbra ou Paris. Entenda-se que se trata da elite de uma sociedade escravagista cujos "Mazombos"18, iam estudar

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Ver: Vianna Moog "Defricheurs et pionniers" p. 122: descreve a vida dos estudantes brasileiros no estrangeiro, mais especialmente a dos Mazombos e a questão de identidade.

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no estrangeiro. E é justamente na Europa que os brasileiros tomam consciência de sua pertença a um "novo mundo" buscando uma identidade. O ensino universitário na época do Império do Brasil era ministrado nos seminários religiosos ou nas escolas de Direito ou de Medicina. O governo orientava seus esforços para a criação de escolas militares durante todo o século que precedeu a República. No século XIX, o pensamento dominante baseava-se no Positivismo de Augusto Comte. O romantismo na Literatura glorificava o índio como ancestral, o símbolo nacional, e a língua Tupi foi mesmo proposta para substituir o português como língua nacional (Nesse sentido, ver o debate proposto por Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma). Os poetas e escritores do movimento nativista desconheciam a realidade social e política dos índios e geralmente representavam de maneira idealizada, como se eles não existissem, mas que dava a base da identidade nacional. Gonçalves Dias é um dos representantes deste movimento. Embora sensível às questões indígenas, como demonstra no "Vocabulário da Língua Geral" (Nheengatu) e no "Canto dos Timbiras". Isso não o impediu de apoiar o ponto de vista da classe dominante quando afirma: ‚A vantagem de freqüentar as escolas seria essencialmente (para os índios) perder o hábito da Língua Geral que sempre falam entre eles, nas ruas e em qualquer lugar‛. E ainda com relação a língua portuguesa afirmou que seria uma grande vantagem e, mesmo se as crianças não fossem para a escola por outra coisa, seria razão suficiente para que o ‚governo criasse escolas primárias no Solimões" (DIAS 1861, p. 5-6).

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Neste século XIX inicia-se uma busca pela identidade nacional, sobretudo na literatura, e o índio aparece como um representante dessa identidade. Na mesma época, surgem as teorias deterministas enfatizando o clima e a raça que afirmam a superioridade branca, criando desta maneira questões embaraçosas para a classe dominante em relação à sua identificação com o índio. Além do mais, em um país como o Brasil era impossível - segundo os adeptos da doutrina racista de Joseph-Arthur Gobineau, conhecido como Conde de Gobineau, diplomata, escritor e pensador francês, nasceu em Ville-d'Avray em 1816 e morreu em Turim em 1882 - fazer parte de uma civilização em que a mistura de raças era a causa de sua degenerescência 19 (VIANNA MOOG 1963, p. 12). No Brasil, este pensamento é reforçado durante o período entre a República e o fim da primeira guerra mundial, quando alguns intelectuais brasileiros apresentam a tese do "branqueamento"20. No início do século XX, as escolas de ensino superior que predominavam no Brasil eram as de Direito, de Medicina e as escolas de Engenharia. Essas escolas eram na maioria iniciantes e recebiam a influência européia através de livros, sobretudo alemães e franceses. Haviam três 19

Ver sobre essa questão o trabalho de Georges Readers (1954) sobre o Conde de Gobineau no Brasil, e mais recentemente conferir: SANTOS, R. V.; MAIO, Marcos Chor. Antropologia, raça e os dilemas das identidades na era da genômica . História, Ciência e Saúde - Manguinhos, v. 12, p. 447-468, 2005 e MAIO, Marcos Chor (Org.); SANTOS, R. V. (Org.) . Dossiê Raça, Genética, Identidades e Saúde. Rio de Janeiro: Periódico História, Ciências, Saúde - Manguinhos, volume 12(2), 2005. v. 1. 20 Por exemplo, as obras de Silvio Romero "Etnologia selvagem" (1872) ou "Ensaios de sociologia e literatura" (1901), conferir também, o artigo de Petrônio José Domingues, Negros de Almas Brancas? A Ideologia do Branqueamento no Interior da Comunidade Negra em São Paulo, 1915-1930, in Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 3, 2002, pp. 563-599

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correntes, nos meios intelectuais, para explicar a formação da nacionalidade brasileira. A primeira corrente, chauvinista e ufanista reagia contra as posições européias dizendo que o Brasil era destinado a ser um grande país sendo dado que sua grande riqueza eram os recursos naturais. Um representante desse pensamento poderia ser o escritor Afonso Celso que perguntou "Por que me ufano do meu País?" (1901). A segunda orientação de pensamento baseava-se nas doutrinas européias do determinismo racial e climático. Quanto ao terceiro grupo, reagia violentamente contra todo tipo de teoria que viesse do estrangeiro. Seus adeptos pensavam que a solução dos problemas brasileiros deveria aparecer após uma análise profunda do processo histórico brasileiro. Alguns entre eles tinham por argumento o fato de que as teorias racistas foram elaboradas em países pequenos e que em virtude disto não tinham nada a ver com um país grande como o Brasil. Com isto, ressaltava-se a criação de uma nova mentalidade que "devia procurar soluções brasileiras para um problema brasileiro". Esta perspectiva nacionalista vai eclodir na Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922, por ocasião do centenário da Independência do Brasil. O movimento que nasceu desta semana é conhecido como Modernismo, e se inspirou nas vanguardas francesas e italianas21. Procurava promover a literatura e as artes integradas aos fundamentos dos temas considerados nacionais. Na base do Modernismo, 21

Conferir: KORFMANN, M. ; NOGUEIRA, Marcelo . Avant-Garde in Brazil. Dialectical Antrophology, New York, USA, v. 28, p. 125-145, 2004.

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podia-se perceber uma ruptura com as tradições acadêmicas que caracterizavam as produções intelectuais. Este movimento propunha novas concepções orientadas para tudo o que pudesse ser identificado como puramente nacional. "Tupi or not Tupi, that's the question" proclamava o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade que ilustrava a maneira de conceber o índio por este movimento, que tinha também por objetivo a procura de uma identidade nacional22. A preferência por temas brasileiros levou os intelectuais modernistas às origens, ao retorno à realidade brasileira, que transparecem nas produções literárias da época. O espaço criado por este movimento colocou o "índio brasileiro" — concebido como uma categoria genérica — no cenário destas produções. Macunaíma, (1928) a obra prima de Mário de Andrade mostra todos os problemas que se colocam no momento do contato do índio com a sociedade nacional. Nasce a idéia dos hibridismos, e todas as conseqüências para os povos indígenas transformando suas identidades a partir do contato com a sociedade nacional. As monografias sobre as populações indígenas da época, quase todas escritas em língua alemã, foram traduzidas para português e utilizadas por aqueles que se interessavam por temas brasileiros e que viam no índio a expressão do que é "puramente brasileiro". O Modernismo 22

Conferir Ferreira de Almeida, Maria Candida. "Só a antropofagia nos une", capítulo do livro Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas de Daniel Mato. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005. pp. 83-106

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foi uma época de transição de uma fase diríamos: “negativa” para uma fase que poderia ser vista como “construtiva” dos ideais nacionais. Desta maneira, o Modernismo influenciou as Ciências Sociais no Brasil na medida em que um espaço de debate se abriu para jovens pesquisadores, que se propunham a encontrar uma explicação da realidade brasileira, com o maior rigor científico. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, entre outros, produziram ensaios sobre o processo da formação sociocultural do Brasil. É verdade que no período do Romantismo, havia-se procurado caminhos similares, e o índio fora utilizado nas Artes e Literatura. Mas era representado como ingênuo, puro, forte, etc. O que não correspondia à realidade. Na época do Modernismo, certos clichês foram retomados, mas ao mesmo tempo, as campanhas visando denunciar, esclarecer sobre a situação dos índios eram conduzidas pelo Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 pelo Marechal Rondon, e que exprimia as idéias do Apostolado Positivista do Brasil23. No início, esses pensamentos orientaram a política indigenista brasileira.

1.3 - Principais Teorias - Plano de Leitura Fernando Azevedo, em seu livro: "A antropologia e a sociologia no Brasil", estabelece as etapas do que se poderia 23

O Apostolado Positivista do Brasil foi um grupo de intelectuais brasileiros que seguiu as idéias de Augusto Comte. Ver, por exemplo, "O cientismo e a defesa dos indígenas brasileiros" nas publicações do Apostolado Positivista do Brasil, n. 276, 1909.

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chamar de etnologia brasileira até 1955. Para o autor existiram as seguintes fases: a) a fase pré-científica com a contribuição etnográfica dos cronistas (séculos XVI–XVIII); b) a pesquisa científica sobre as culturas indígenas: as grandes expedições (1818–1910); c) a Antropologia física e cultural: os primeiros trabalhos sobre as culturas africanas (2º quarto do século XIX); d) duas correntes de estudos: indígena e afro-brasileira (AZEVEDO, 1955, p. 353-397). O autor assinala o fato de que o desenvolvimento das Ciências Sociais no Brasil é devido, em grande parte, à revolução de 1930 com a implantação do Estado Novo e suas reformas políticas e sociais. "A revolução, diz Azevedo, provocada pelas mudanças que se repercutiram rapidamente na esfera cultural, enfraqueceu a antiga influência das oligarquias dominantes, para dar lugar a um espírito liberal socialista ou a uma combinação de aspirações à liberdade política e à justiça social" (1955, p. 375). As reformas favoreceram a criação de centros de ensino especializados nos principais centros urbanos. O ensino da Etnologia, deixando de lado as instituições como os museus nacionais: o do Pará, o do Rio e o de São Paulo que se tornou depois o lugar institucional da Escola de Sociologia e Política em 1933, da Universidade de São Paulo (1934) e da Universidade do Rio de Janeiro (1935). Florestan Fernandes afirma que a criação destes centros de ensino especializado favoreceu o caráter científico da etnologia brasileira, e que os focos de interesse das pesquisas no campo da etnologia indígena após os anos 30 foram os seguintes: a) a mudança cultural, b) as pesquisas sobre a mitologia, a religião e o xamanismo e, c) a organização social (1975, p. 140). 48

As pesquisas da etnologia brasileira sobre os povos indígenas, portanto, datam dos anos 40 no Brasil como assinala Júlio César Melatti (1982)24 . Elas sucedem as críticas, aos conceitos de aculturação e a uma reformulação teórica dos estudos sobre o contato interétnico. O problema da identidade indígena (étnica), assim como o da "identidade nacional" foram colocados no Brasil, após as lutas pela independência do país e a organização político-administrativa do Império25, e ocorre o mesmo com a questão dos negros, intimamente associada às conseqüências econômicas e sociais de um regime escravagista como o que estava em voga no Brasil. Estes problemas sempre fizeram parte dos centros de interesse da elite brasileira que os concebia como contradições étnicas no seio da sociedade brasileira. A questão étnica (racial) do negro e do índio sempre foi resolvida nos últimos anos em termos de classe social. Cremos que isto seria simplificá-la de maneira excessiva, com o risco de ocultar a compreensão das relações entre negros e brancos, ou entre índios e brancos. Esta visão em termos de classes sociais dispensa a consideração comparativa de outros casos de relações étnicas, e empobrece o quadro de referência empírica que teria como conseqüências as possibilidades de construir modelos mais completos e elaborar teorias de porte científico maior.

24

Segundo Melatti (1982) os centros de interesse da etnologia brasileira após os anos 60 são os seguintes: Antropologia social e política, mitologia e rituais; Relações com o meio ambiente; Arte e tecnologia; Contato interétnico; Antropologia de ação. 25 Cf. José Bonifácio de Andrada e Silva "Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos no Brasil" Publicação do Serviço de Proteção aos Índios, n. 1, 1910 (primeira edição: 1824).

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Este trabalho não tem a pretensão de fazer uma historiografia exaustiva do conceito de identidade étnica na etnologia brasileira em sua totalidade, mas simplesmente apresentar a noção da identidade étnica através das pesquisas antropológicas realizadas junto aos povos indígenas do Brasil. Por razões metodológicas, escolhemos observar esta noção sob o ângulo dessas investigações durante o século XX, desde as pesquisas sobre o “tipo étnico” brasileiro realizado por Roquette Pinto até as pesquisas iniciadas por Cardoso de Oliveira. Decidimos, pois elaborar um quadro apresentando os principais conceitos aos quais, de uma maneira ou de outra, a questão da identidade étnica está relacionada na antropologia brasileira. Neste sentido, apresentaremos estas pesquisas em três correntes de pensamento bem delimitadas pelos conceitos que são desenvolvidos nas Ciências Sociais. A primeira se diferencia totalmente das outras duas. Nota-se uma ruptura metodológica e teórica que não existe entre as duas correntes posteriores. Essa diferença se faz sentir na perspectiva com relação ao índio.

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METODOLOGIA

PRIMEIRA CORRENTE

SEGUNDA CORRENTE

ERCEIRA CORRENTE

Histórico-Regressiva

Objetivo Científico Pesquisas de campo

Objetivo Científico Pesquisas de campo

Mudança cultural PRINCIPAIS TEORIAS:

Aculturação Fusão das Raças

Transfiguração

Étnica Fricção Interétnica

Arthur Ramos AUTORES PRINCIPAIS:

Gilberto Freyre

Herbert Baklus Florestan Fernandes Egon Schaden

Darcy

Ribeiro Roberto C. Oliveira

INFLUÊNCIAS RECEBIDAS:

Indiscriminadas

PERSPECTIVAS:

Mestiçagem

Escola Americana Escola Alemã

Assimilação

Marxismo Escola Francesa Escola Britânica Integração

A primeira corrente está ligada à teoria da fusão das raças, muito difundida no século XIX e princípios do XX. Esta abordagem nasceu da crítica das teorias "racistas" de pensadores europeus como Gobineau, cuja doutrina serviu para justificar a superioridade da "raça branca" e legitimar o imperialismo europeu no fim do século XIX. Em seguida, foi importada pela América Latina como uma teoria acabada e foi assim que ela obteve seu lugar no cenário intelectual brasileiro da época. A teoria da "Fusão das Raças", que veio desmistificar a superioridade branca entre os intelectuais brasileiros, propôs a mistura das raças em resposta às

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abordagens racistas segundo as quais isto seria impossível por causa da "degenerescência das raças". A reação aos postulados sobre a pureza étnica e a superioridade branca deve-se, em grande parte, aos trabalhos de Nina Rodrigues, Roquette Pinto, Gilberto Freyre, que abandonaram a explicação das teorias deterministas raciais para pesquisar as explicações dos fenômenos através da "cultura". Escolhemos mostrar o desenvolvimento da teoria da fusão das raças através dos trabalhos de Gilberto Freyre, o mais representativo, assim nos parece, desta corrente de pensamento. A segunda corrente liga-se aos estudos sobre a aculturação e a mudança cultural que surgiram após os anos trinta sob a influência da Antropologia americana. Uma grande parte dos etnólogos brasileiros serviu-se dos trabalhos da escola americana sobre aculturação para explicar o fenômeno do contato entre índios e brancos. Depois disso, no Brasil, a etnologia tomou um caráter oficial e foram instituídos cursos especializados de Sociologia e de Etnologia. A pesquisa de campo toma um novo impulso, criando as condições para a elaboração de um corpo teórico a partir de observações mais rigorosas. A análise da “Teoria da Aculturação” dos etnólogos brasileiros será apresentada no capítulo III com um enfoque particular, das obras de Eduardo Galvão. Nesse mesmo capítulo, apresentaremos os trabalhos de Darcy Ribeiro que propõe, a partir de críticas da teoria da aculturação, uma nova formulação através da noção que ele próprio denomina de "Transfiguração Étnica" desenvolvida através da investigação antropológica do autor. Em nosso quadro esquemático, a teoria da transfiguração étnica situa-se entre a segunda e a terceira correntes de 52

pensamento para mostrar que não há ruptura metodológica definitiva na proposta da transfiguração étnica, entre as duas correntes de pensamento. A proposição de Darcy Ribeiro certamente foi influenciada pelos trabalhos de Leslie White, sobretudo no que concerne ao esquema evolucionista. As idéias de White exerceram uma verdadeira fascinação nos meios intelectuais brasileiros principalmente pela simplicidade e capacidade de apresentar um esquema único, totalizanzante mostrando toda a aventura humana sobre um leque evolutivo linear. Em seu livro: "The Science of Culture" (1949), White apresenta a sociedade como uma totalidade feita de três subsistemas: tecnológico, sociológico e ideológico. Darcy Ribeiro, em seu livro "Processo Civilizatório", fala em termos de sistemas: "adaptativo, associativo e ideológico" (RIBEIRO, 1981, p. 43). A terceira corrente, que examinaremos no capítulo IV através dos trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, parte de uma crítica radical ao conceito de aculturação e considera que a noção de transfiguração étnica pouco operacional e propõe substituí-la pela noção de Fricção Interétnica. O autor propõe uma abordagem sociológica do fenômeno de contato interétnico e considera a noção de identidade étnica enquanto uma construção ideológica. Os antropólogos que seguem essa direção, principalmente aqueles, que participaram do projeto de pesquisa coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira, partem da proposição inovativa de Fredrik Barth (1969) de considerar a noção de grupo étnico como um "tipo organizacional". Para estes antropólogos, a identidade étnica é o que vai ser determinante para o desenvolvimento do grupo, do ponto de 53

vista organizacional e ideológico, identificando-se com uma identidade, e que se preserva enquanto grupo étnico desde que sejam visíveis as condições organizacionais coletivas. Enfim, Cardoso de Oliveira dará ênfase na noção de identidade contrastiva e Roberto Da Matta a utiliza como identidade paradoxal26. Outros antropólogos, entre outros o João Pacheco de Oliveira Filho, desenvolverá para a antropologia brasileira importante trabalhos nessa direção, o que ele vai denominar de “relações intersocietárias”. Conferir principalmente sua obra: “Ensaios em Antropologia Histórica‛. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1999. Este livro contém oito capítulos e busca enfocar a noção de identidade étnica à partir da dimensão histórica escolhida, como o próprio autor diz, como estratégia para refletir sobre as sociedades e culturas indígenas em seus contextos e nas relações intersocietárias. Nessa abordagem, os índios são vistos como “sujeitos históricos plenos”. "É preciso, assinala o autor, retirar as coletividades indígenas de um amplo esquema dos estágios evolutivos da humanidade e passar a situá-las na contemporaneidade e em um tempo histórico múltiplo e diferenciado" (1999:9). O autor busca trilhar sua produção no através da noção de “situação” como idéia chave para situar as identidades étnicas. Cada uma dessas correntes de pensamento deixa transparecer perspectivas determinadas em relação aos povos indígenas. A primeira estima que a Mestiçagem é uma solução viável e compatível com os valores e os ideais da

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Infelizmente o prof. Roberto Da Matta não desenvolveu mais essa possibilidade nos estudos sobre identidade.

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sociedade brasileira. A mestiçagem está presente como um processo positivo, enriquecedor para o conjunto da sociedade, como bem demonstram os trabalhos de Gilberto Freyre. A segunda corrente tem como perspectiva a Assimilação no sentido utilizado por Cardoso, visto como "um processo pelo qual um grupo étnico incorpora-se a um outro, perdendo suas particularidades culturais e sua identificação étnica anterior" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 103). Para os representantes da terceira corrente do pensamento antropológico brasileiro, é colocada a Integração como possibilidade para os povos indígenas. Estes deverão integrar-se à sociedade nacional sem perder, contudo sua particularidade cultural e étnica, tendo suficiente autonomia para dispor de sua própria organização política e cultural. Em outros termos, são os próprios povos indígenas que decidirão seu próprio destino.

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2.

TIPOS ÉTNICOS E FUSÃO DAS RAÇAS

Apresentaremos neste capítulo a teoria da fusão das raças tal qual foi desenvolvida no Brasil modernista. Gilberto Freyre foi um dos principais representantes desta corrente de pensamento entre os pesquisadores nas ciências sociais. Começaremos fazendo uma análise das doutrinas racistas e como estas foram adotadas e aceitas pela elite intelectual brasileira. As teorias eruditas das raças humanas apareceram na Europa durante a crise da Revolução Francesa do século XVIII, mas só tomaram forma no século seguinte quando conseguiram dominar o mundo intelectual. Continham formulações evolucionistas "cientificamente respeitadas" que justificavam a superioridade branca. Não obstante a diversidade dessas teorias que vários especialistas brasileiros (OLIVEIRA VIANNA 1911) se apoiaram para explicar a situação nacional, não eram simples o bastante para penetrar facilmente nos meios intelectuais e políticos. Um dos pressupostos principais dessas teorias era de que cada “raça” ocupa um lugar determinado na história da humanidade. Não dão conta da diversidade étnica, nem de saber se elas tinham uma origem comum (não se interessavam, por exemplo, pelas hipóteses monogenistas ou

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poligenistas), essas teorias eram deterministas na medida em que consideravam as diferenças biológicas entre as raças como características fixas que determinavam a mentalidade e o comportamento humano.

2.1 - O Mito das Três Raças O Conde de Gobineau foi o principal inspirador na elaboração das doutrinas "racistas", todo seu esquema teórico coloca em evidência a diversidade das raças ao justificar a superioridade da raça branca pela posição que sempre haviam ocupado na história, dando transparecer assim duas tendências fundamentais no desenvolvimento de seu pensamento. Em primeiro lugar pode ser observado o seu pessimismo, talvez inspirado na leitura de Byron e de Schopenhauer, que não deixa possibilidade de uma reforma política nos contextos de desigualdades sociais. Sua argumentação encontrou eco em muitos pensadores brasileiros, sobretudo o que foi desenvolvido nos quatro volumes dos Ensaios, não é uma demonstração cientifica, mas uma longa e incansável discussão sobre a decadência da humanidade. Esse pessimismo está presente em toda sua obra e mostra a sua personalidade que vai jogar um papel importante nos debates políticos entre os pensadores nacionais. O que a história, segundo Gobineau27, podia confirmar amplamente através de uma espécie de divisão do trabalho: os fenícios eram comerciantes, os gregos professores das

27

Veja os trabalhos de Conde de Gobineau "L'Essai sur l'inégalité des races humaines" Firmim-Didot, 1853 e 1855.

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gerações futuras, os romanos elaboravam as leis. Para deixar mais precisa sua teoria, ele dizia que os poderes, os instintos, as aspirações não mudam tanto quando a raça permanece pura, ou seja, que as raças progridem e se desenvolvem, mas não mudam jamais sua natureza. Esta abordagem teórica pretendia tudo resolver, e não somente o contraste entre o Brasil e os Estados Unidos, ou entre os Estados Unidos e a Argentina etc. O conceito de raça vem da biologia e é usado como sinônimo de subespécie. No entanto, este termo foi utilizado para identificar categorias humanas socialmente definidas. Para as ciências sociais o termo raça foi utilizado para construir identidades culturais. O conceito de raças humanas foi usado pelos regimes coloniais e pelo apartheid (nos EUA e África do Sul), para perpetuar a submissão dos colonizados (ou da maioria negra, mas sem recursos) atualmente, só nos Estados Unidos se usa uma classificação da sua população em raças, alegando que é para proteger os direitos das minorias. A definição de raças humanas é principalmente uma classificação de ordem social, onde a cor da pele e origem social ganha, graças a uma cultura racista, sentidos, valores e significados distintos. As diferenças mais comuns referem-se à cor de pele, tipo de cabelo, conformação facial e cranial, ancestralidade e, em algumas culturas, genética. O conceito de raça humana não se confunde com o de subespécie e com o de variedade, aplicados a outros seres vivos que não o homem. Por seu caráter controverso (seu impacto na identidade social e política), o conceito de raça é questionado pelos antropólogos como construto social; entre

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os biólogos, é um conceito com certo descrédito por não se conformar a normas taxonômicas Gobineau e muitos dos seus seguidores avançavam na tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, de índios, e de negros. Gobineau não pôde exprimir seu pessimismo, no Brasil, diante da evidência da mestiçagem, com sua profusão de "mulatos" (negro+branco), "cafusos" (branco+índio) e "mamelucos" (índio+negro). (READER, 1934, p. 75). Neste país, os brancos estavam perdendo suas qualidades por causa dos índios e, sobretudo pela mistura com os negros assinalava SKIDMORE (1976, p. 46-47). Esta perspectiva dominava os estudos dos estrangeiros sobre o Brasil como mostra o trabalho de Paul Le Cointe: "L'Amazonie Brésilienne", onde o autor refere-se à mestiçagem como "um poderoso fator de rebaixamento do nível geral de moralidade e de civilização" (1922, p. 220, Tomo I,). A doutrina da igualdade das raças é a origem do racismo "à brasileira" camuflado na teoria da fusão das raças. Foi, na época, aclamada por certos intelectuais, pois correspondia a uma mentalidade dominante e hegemônica, cuja influência percebe-se ainda hoje no discurso de políticos sobre a “democracia racial” brasileira. A ênfase nas três matrizes étnicas no discurso, e, sobretudo na construção de uma identidade nacional: Índio, Europeu (branco), Negro, tem, no Brasil, outro significado, diferente daquele que existe nos Estados Unidos, onde, por exemplo, não há graus intermediários entre as três matrizes como normalmente fazemos aqui com relação a cor da pele. 59

É importante salientar que a Antropologia física28 constituía o centro de interesse no início do século XX, e não se diferenciava da Etnologia propriamente dita. A separação entre esses dois campos disciplinares se fará, no Brasil, após a primeira guerra mundial (SCHADEN, 1955, p. 301). O primeiro curso de Antropologia Física foi criado por Batista Lacerda no Museu Nacional em 1877 que tinha publicado um ano antes "Contribuições para o estudo antropológico das raças indígenas", escrito em colaboração com Rodrigues Peixoto. Este livro era constituído de estudos baseados em observações craneológicas de seis índios botocudos. Na mesma época, Raimundo Nina Rodrigues inicia na Bahia um estudo sobre a cultura afro-brasileira. Em 1894, publica seu livro: "As raças humanas – sua responsabilidade penal" que vai ser o ponto de partida dos estudos sobre os Negros e os Mestiços no Brasil. O autor analisa o tráfico dos africanos e mostra a diversidade das "Nações" de origem desses povos que foram exilados à força para tornarem-se escravos. Aborda embora influenciado pelas doutrinas racistas da época, o problema das raças humanas e particularmente dos negros. Não havia, nesta época no Brasil, senão dois centros de pesquisa em antropologia física: um se encontrava na Bahia sob a orientação de Nina Rodrigues e o outro no Rio de Janeiro no Museu Nacional, sob a direção de Batista Lacerda. Nina Rodrigues se debruçava sobre o estudo do que chamaríamos hoje aculturação e os estudos de 28

Nesta parte, visamos mostrar o começo da Antropologia Física no Brasil. Sobre a noção de 'raça' na Antropologia física, Ver: Julian Pitt-Rivers "Race in Latin America: the concept of 'race'" In: Archive European Sociologie XIV, 1973, p. 5. Veja também Luiz Gonzaga de Melo, Antropologia Cultural, Temas e Teorias, Editora Vozes, Petrópolis, 2002.

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psicopatologia social, com a ajuda dos quais estudava o fenômeno da guerra de Canudos que ele chamava de "Psicose coletiva de Canudos". Batista Lacerda continuava com as medidas de crânios e seus estudos a propósito do "Homem dos Sambaquis". Ele, na condição de médico legista e professor de medicina legal na Universidade da Bahia, no final do século XIX e começo do século XX, dificilmente escaparia ao pensamento deste tipo; pois estava em um ambiente institucional e intelectual, influenciado pelas teorias e idéias racistas, nacionalistas, evolutivo-positivistas, de oriundas de pensadores como Darwin, Augusto Comte, Heckel, Cesari Lombroso, Enrico Ferri e R. Garofollo, e Alexandre Lacassagne, que permeiam as páginas de ‚As Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil‛. Desta forma, não fica difícil entender por que Nina Rodrigues assume, e comunica na sua obra, um discurso sobre o negro pautado na determinação biológica e cultural da superioridade branca, na medida em que ele recebe influências dos ideólogos e teóricos do mesmo. Roquette Pinto é o inovador da Antropologia Física no Brasil. Em 1906, publica sua primeira obra intitulada "O exercício da medicina entre os indígenas da América". Este livro foi escrito na seqüência de uma expedição de Cândido Mariano Rondon da qual havia participado ao longo do ano. Em 1909, ele participou do quarto Congresso Médico da América Latina no Rio de Janeiro para o qual escreveu um ilustrativo ensaio: "Etnografia indígena do Brasil — estado atual de nossos conhecimentos". Tratava-se de uma síntese na qual Roquette Pinto faz a história das tentativas de classificação realizadas por Martius, Steinen e Ehrenreich enfatizando as 61

tarefas de ordem taxonômica e a necessidade de "dar uma denominação adequada aos grupos de nomes diferentes, mas que apresentem uma evidente afinidade lingüística e cultural" (FARIA, 1958). "Rondônia" será uma das principais obras de Roquette Pinto, publicada em 1916, na qual o autor trata de uma forma mais sistemática os aspectos da cultura Nambiquara e Pareci. Este será durante muito tempo o modelo de monografia a ser seguido pelos etnólogos brasileiros. Os trabalhos de Roquete Pinto estão entre os primeiros estudos de etnologia brasileira a fazer observações rigorosas sobre o campo. Suas obras sobre os povos indígenas não se limitam à antropologia física, e à pesquisa dos "tipos étnicos" dos grupos indígenas com os quais estivera em contato no momento de suas pesquisas sobre as mensurações cranianas, mas alargam o campo das investigações antropométricas com a criação de novos critérios. Recorre ao "retrato falado" para determinar o tipo étnico dos índios Pareci, faz observações com base nos estudos de Ehrenreich e organiza as primeiras fichas datiloscópicas dos Nambiquara. Em um trabalho coletivo, "Contribuição à anatomia comparada das raças humanas" (1926), Roquette Pinto apresenta uma classificação para a população brasileira baseando-se nos elementos antropométricas que se dividem em quatro grupos: a) Leucodermes (Brancos), b) Faiodermes (brancos+negros), c) Xantodermes (brancos+índios), Melanodermes (negros). Roquette Pinto assinala que esta classificação é o fruto de 20 anos de trabalhos antropométricos para determinar o tipo físico brasileiro. (1933, p. 127).

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2.2 - Mestiçagem: a Resposta As interpretações da formação sócio-cultural e da evolução da sociedade brasileira colidem com a ausência de classificação rigorosa dos dados sobre os povos indígenas do Brasil. As pesquisas etnológicas tentaram preencher este vazio, auxiliadas pelo estabelecimento oficial do ensino das Ciências Sociais no Brasil após os anos 30. O ensino da etnologia, da sociologia e da economia adquirira um caráter oficial após a implantação de centros de ensino especializado (FERNANDES, 1975, p. 113). Os trabalhos que começaram em perspectiva de compreensão global do processo social sob seus múltiplos aspectos: histórico, étnico, econômico, tiveram uma grande repercussão no Brasil. Entre estes, pode-se mencionar as obras de Couto Magalhães, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Estevão Pinto, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre entre outros29 . Entretanto, uma grande parte dos trabalhos aborda de maneira superficial o delicado problema das "raças" e das culturas no Brasil. Trata-se efetivamente de um "problema" — afirma Florestan Fernandes — devido as condições sociais nas quais se deram os contatos raciais e culturais, que deixaram algumas tensões em estado latente, e outras em efervescência, sejam porque num povo heterogêneo do ponto

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Arthur Ramos "Introdução à Antropologia Brasileira" v.2, 1943 e 1947. Estevão Pinto "Os indígenas do Nordeste", 1935. Euclides da Cunha "Os Sertões", 1916. F. José de Oliveira Viana "Formation de la Nationalité Brésilienne", 1911, ou "Formação Étnica do Brasil Colonial", Paris 1932.

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de vista racial e cultural, “questões deste gênero criam confusões e incertezas quanto ao futuro" (FERNANDES 1975, p. 125). Se, de um lado, as inovações nas descobertas destes autores permitiram explicar aspectos da situação étnica do Brasil, abrindo novos caminhos para as pesquisas etnológicas, por outro deixaram transparecer lacunas nas análises de aspectos complexos do fenômeno. Estas lacunas são resultantes do método utilizado por grande parte dos autores, como explica Gilberto Freyre no prefácio de "Casa Grande e Senzala": "para interpretar os documentos, o autor preferiu seguir o método objetivo; mas em certos pontos, utilizou o método introspectivo..." (1954, p. 34). Interessa-nos aqui neste trabalho, mostrar como a teoria que denominamos de Fusão das Raças foi utilizada para explicar a diversidade étnica e a formação sócio-cultural brasileira. Esta abordagem foi importante na medida em que rompeu com as doutrinas que afirmavam a superioridade da "raça branca" e, de certa maneira, trazia respostas às numerosas questões que formulavam os intelectuais a propósito da identidade nacional (VIANNA MOOG, 1963, p. 12). Em"Casa Grande e Senzala", cuja primeira edição data de 1933, o autor, analisa a formação social brasileira "sob o regime da economia patriarcal". Este livro contém um capítulo no qual o autor, para sustentar a teoria da mestiçagem, atribui ao índio o papel de simples reprodutor. "O ambiente no qual começou a vida no Brasil foi de quase intoxicação sexual. O europeu desembarcava em terra firme esbarrando em índias nuas; os próprios jesuítas deviam prestar atenção saltando ou se arriscavam em se inficar na carne.

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Outros membros do clero contaminaram-se pela devassidão. As mulheres foram as primeiras a se oferecer aos brancos, as mais ardentes esfregando-se nas pernas dos que elas supunham ser deuses. Elas se deram ao europeu por um pente ou um pedaço de espelho" (FREYRE, 1954, p. 219).

Nessa obra os indígenas são tratados como categoria geral e homogênea, tornando difícil a análise do contato com os portugueses durante o período colonial. Freyre situa os índios diante do impacto do regime colonial da seguinte maneira: "Mas entre os indígenas das terras de madeira e de tinta, as condições de resistência ao europeu foram outras: resistência não mineral mas vegetal. A reação à dominação européia na região de cultura ameríndia invadida pelos portugueses, quase foi a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal (sic), o índio se retraindo ou se esfregando no contato civilizador do europeu por causa de sua incapacidade de acomodar-se à nova técnica econômica e ao novo regime social e moral. (...) Durante o tempo que o esforço exigido pelo colono do escravo índio fora o de derrubar árvores, transportar troncos para os navios, enceleirar, de pescar, de caçar, de defender os senhores contra os inimigos selvagens e os corsários estrangeiros, de guiar os exploradores através da floresta virgem — o indígena garantiu o trabalho servil. Já não era mais o selvagem livre de antes da colonização portuguesa; mas não havia como desenraizar o índio de seu meio físico, de seu ambiente moral sem os quais a vida lhe teria parecido vazia de todos os gostos estimulantes e bons: a caça, a pesca, a guerra, o contato místico e quase esportivo com as águas, a floresta, os animais. Este desenraizamento viria com a colonização agrária, isto é, latifundiária; com a monocultura representada sobretudo pelo açúcar. O açúcar matou o índio‛ (FREYRE, 1954, p. 214-215 e 316).

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A teoria da fusão das raças apresenta a população brasileira sem preconceitos raciais e criou as bases do racismo "à brasileira" não considerando o sistema hierárquico implantado no país. Este sistema30, como já vimos, fundamenta sua representação ideológica nas leis da Igreja. Segundo este sistema, foi o próprio Deus que construiu a "pirâmide social", isto é, no ápice da pirâmide, o Imperador e o Papa, depois os nobres etc. Este sistema foi transportado para o Brasil com toda a ideologia implícita em si, o que justifica as classificações sociais, técnicas, jurídicas e administrativas do Brasil. Mesmo se pudéssemos sustentar a idéia, amplamente utilizada pelos defensores da mestiçagem, que houve uma "mistura de sangue" entre negros, índios e portugueses, o fato mais importante para a análise é que Portugal, através de suas instituições, dominava e implantava no Brasil seu sistema social. Com outras palavras, a colônia brasileira, nunca foi o campo de experiências sociais ou políticas inovadoras, onde se poderiam exprimir diferenças radicais e individualizadas. Ao contrário, não obstante as diferenças regionais de clima, de desenvolvimento econômico, o território brasileiro, foram fortemente centralizadas através de um governo com uma legislação consistente a partir dos interesses da Coroa Portuguesa. É impossível determinar, no caso do Brasil, a origem do "credo racial" que substituiu enquanto ideologia a rigidez hierárquica que se manteve desde a descoberta até às lutas

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Sobre o sistema hierárquico, estrutura social e sobre nacionalismo brasileiro, ver a interessante análise de E. Bradford Burns "Nationalisme in Brazil", 1968

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pela Independência, quando este modelo começou a ser questionado. O movimento para a Independência procurou uma reorientação concreta do sistema social em vigor atuando de maneira que a estrutura do poder estivesse ligada ao Rio de Janeiro e não mais a Portugal. Com a independência de Portugal apareceram novas ideologias e novas formas de conceber as diferenças étnicas existentes no território brasileiro. Era preciso procurar uma identidade nacional que unificasse a população. A doutrina racial brasileira construída nesse período permite conciliar uma série de movimentos contraditórios sem que sejam criadas as bases de uma transformação profunda nas relações de poder. O período que precede a Abolição da Escravatura (1888) conheceu uma crise muito forte, que modificou a organização social brasileira. A abolição da escravatura constituiu sem dúvida uma ameaça para a estrutura econômica do país31. O catolicismo e o sistema jurídico implantados com a colonização portuguesa não mais correspondiam à estrutura social e novas ideologias vieram pouco-a-pouco substituí-los e exprimindo em dois movimentos contraditórios na época da Abolição da Escravatura. Um deles era manter o status quo, libertando juridicamente o escravo sem, contudo dar-lhe as condições de se libertar socialmente das engrenagens imposto pelo modelo econômico político e social. O outro movimento, e esse, está inserido particularmente na doutrina das três raças, concebia uma estrutura social que permitisse a integração do negro na 31

Conferir interessantes análises em Richard Grahan "Escravidão, reforma e imperialismo", 1979 e SKIDMORE, T. E. Preto no Branco: Raça, Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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sociedade em seu conjunto, mas sem permitir que eles expressassem a especificidade de sua cultura. Esta visão ainda tem nos dias de hoje a força e o status de ideologia dominante: um sistema que interpreta a maioria dos domínios da cultura. Estas idéias têm por base a tese do "branqueamento" como projeto político e social a alcançar. O racismo brasileiro proclama de maneira paradoxal — como o mostra Freyre — uma unificação harmoniosa em termos biológicos das três matrizes étnicas que constituem a sociedade (ela própria fortemente hierárquica), unificação que se exprimiria na "cordialidade" brasileira ou nos costumes tais quais os ritos afro-brasileiros expressos no carnaval32. Uma outra abordagem usada por Freyre para explicar a democracia racial brasileira que aparece entre as teses desenvolvidas em "Casa Grande e Senzala" e em "Sobrados e Mocambos", está relacionada com os “Mouros” que teriam predisposto os portugueses a relações abertas e igualitárias com índios e negros. Essas afirmações são dificilmente defensáveis. É preciso lembrar que os portugueses, ao chegarem ao Brasil, não estavam libertados da tutela centralizadora de Portugal da época, o que lhes impedia — caso quisessem — fazer inovações no sistema de relações sociais em vigor. Os defensores da mestiçagem consideravam os indígenas como vulgares na formação do tipo brasileiro. O índio deveria morrer, não por causa do açúcar, mas em nome de uma identidade nacional. O índio como o negro deveria desaparecer enquanto tais. Esta doutrina não permitia a expressão identidade étnica. 32

Conferir a análise sobre estes temas na obra de Roberto Da Mata "Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro", Rio de Janeiro, Zahar, 4ª Edição, 1983

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3. ACULTURAÇÃO E TRANSFIGURAÇÃO ÉTNICA

Este capítulo tem por objetivo a apresentação dos conceitos de aculturação e de transfiguração étnica. O primeiro foi amplamente utilizado no Brasil da maneira como foi concebido pelos inspiradores do "Memorandum for the Study of Culture Contact" elaborado por Redfield, Linton e Herskovits (1936), que teve como berço a Antropologia cultural americana. O conceito de transfiguração étnica foi elaborado por Darcy Ribeiro a partir da crítica ao conceito de aculturação movida pela Antropologia desenvolvida na América Latina. Tendo em vista a produção acadêmica com relação aos povos indígenas, a etnologia brasileira desenvolvida a partir dos anos trinta pôde ser considerada como fazendo parte de uma fase "integracionista", onde os estudos enfatizavam que índios deveriam de uma maneira ou de outra, integrar-se à sociedade nacional. A confusão na utilização do conceito de integração engendrou uma polêmica que não foi resolvida senão em 1960, quando pela primeira vez, é definido o que se entendia por integração. É importante insistir no fato de que durante este período a idéia de integração, e mesmo a de aculturação, com todos os esforços de compreensão, era

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interpretado como assimilação, como bem assinala Eduardo Galvão: "Devemos esquecer um pouco a aculturação e pensar mais em termos de assimilação" (GALVÃO, 1979, p. 131). Antes da definição clássica de aculturação elaborada no "Memorandum de 1936‛, este termo já estava sendo utilizado para designar o resultado dos contatos culturais entre duas sociedades (EHRENREICH, 1906, p. 672)33. Não foi senão a partir do Memorandum, que esta noção foi amplamente utilizada, sobretudo pela escola americana, não obstante as críticas como, por exemplo, aquela que Malinowski fez nos anos quarenta: "Consideremos, por exemplo, o termo aculturação que, depois de algum tempo, começou a se propagar e ameaça tomar o terreno, sobretudo nos escritos sociológicos dos autores norteamericanos. Além de sua fonética ingrata, o termo aculturação contém todo um conjunto determinado de implicações etimológicas inadaptadas. É um termo etnocêntrico com uma significação moral. O imigrante deve se aculturar (to acculturate) assim como os indígenas, pagãos e os infiéis, os bárbaros e os selvagens,Que gozam do "benefício" de ser submisso à nossa grande cultura ocidental" (1940, p. xi).

Na antropologia brasileira, a aceitação do termo aculturação foi lenta. Herbert Baldus, que escreve a propósito da mudança cultural dos índios (1937), não faz uso uma só vez deste conceito. Somente a partir dos anos cinqüenta que a noção de aculturação será amplamente utilizada pelos etnólogos que investigam os povos indígenas. 33

Veja também R.-H.-C. Teske et B.-H. Nelson, " Acculturation and Assimilation: a Clarification ", in : American Ethnologist, 1 (2), 1974, pp. 351-367

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Neste caso, estamos nos referindo às pesquisas de Eduardo Galvão, Charles Wagley, Fernando Altenfelder da Silva, James Watson e outros que estão nos primórdios da introdução deste conceito e seu uso posterior na produção antropológica brasileira. Fora a noção de aculturação, nesse mesmo período, a antropologia brasileira se utilizou de outro conceito: o de integração, usado, sobretudo no jargão da política indigenista oficial. Trata-se de uma manipulação do conceito de interação social, através das quais as comunidades indígenas são vistas como fazendo parte de um sistema no qual devem integrar-se. Tanto o conceito de integração como o de assimilação será foco dos debates na produção etnológica e muitas vezes serão utilizados indistintamente, o que aparece, por exemplo, nos trabalhos de Wagley e Galvão (1949). A definição mais apropriada destas noções surgiu durante o IV Congresso Indigenista Interamericano realizado na Guatemala em 1960, onde Darcy Ribeiro, bem como Carlos Mejia Pivaral, Gregorio Hernandes de Alva e Joaquim Noval elaboram uma definição mais apropriada ao conceito de integração social voltado para os povos indígenas. Daí em diante, a "integração social de um país não parece mais exigir que todos seus habitantes sejam culturalmente iguais"; o que não significa que todos os habitantes de um território nacional se converteriam em índios ou não-indios. Na realidade, a definição é proposta dessa forma: "a integração social pode significar a unidade de todos os habitantes de um país, mas não sua identidade, nem mesmo uma semelhança fundamental" (RIBEIRO, 1960, p. 10).

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Numa época em que o problema do contato entre índios e "brancos" no Brasil estava ainda circunscrito aos limites estreitos das teorias da aculturação proveniente da Antropologia norte-americana, os estudos de Darcy Ribeiro e de Roberto Cardoso de Oliveira conseguiram desviar de forma proveitosa de uma ortodoxia quase estéril para dois novos pólos de orientação teórica metodológica: um em direção das teorias de mudança social proveniente da Antropologia social britânica, e o outro para a crítica dos modos de colonização mercantil e capitalista nas sociedades colonizadas, estabelecida a partir de casos africanos por sociólogos e etnólogos franceses. Nossa pretensão é de apresentar uma visão dos princípios essenciais da teoria da aculturação utilizada na etnologia indígena no Brasil e seu desenvolvimento na produção antropológica, no que refere principalmente ao conceito de identidade étnica. Estamos conscientes de não poder discorrer sobre o conjunto dos trabalhos, mas tentaremos, contudo apresentar as principais obras que influenciam a etnologia brasileira como uma maneira oferecer pistas para possíveis estudos nessa linha de investigação. Apresentaremos em primeiro lugar três tipos de orientações teóricos metodológicas nas abordagens utilizadas pelos antropólogos para elaborar suas monografias, depois passaremos aos trabalhos de Hebert Baldus, Eduardo Galvão e Charles Wagley, que situamos na segunda corrente, anteriormente referida, e enfim serão situados os trabalhos de Darcy Ribeiro relacionados principalmente à teoria da Transfiguração Étnica.

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3.1- Tipologia dos Estudos sobre Aculturação Antes de apresentar a produção antropológica de Hebert Baldus, Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro selecionada aqui como referências sobre as teorias da aculturação, examinaremos três tipos de orientações, referidas anteriormente, utilizados pelos antropólogos brasileiros. Um quarto tipo de orientação compõe-se dos estudos sobre a personalidade indígena, e não será desenvolvida aqui neste trabalho. Nesta tipo de abordagem, situamos os trabalhos de Hebert Baldus e de Florestan Fernandes sobre o Bororo Tiago Aipobureu, que obteve a atenção da mídia nos anos quarenta. Esse caso teve repercussão devido ao fato de que este índio viveu na Europa, e estudou Teologia em Roma, depois retornou à aldeia de seu povo34. No seu retorno, rompe com a cultura ocidental na medida em que insiste em voltar aos costumes e tradições Bororos. O caso de Tiago foi estudado por Herbert Baldus em seus "Ensaios de Etnologia Brasileira" (1937) e por Florestan Fernandes em "Tiago Marques: um Bororo Marginal" (1946). Neste estudo, Fernandes parte do conceito de marginalidade fazendo a seguinte reserva: "é preciso colocar-se no preâmbulo a seguinte questão: até que ponto o estudo de um caso único se justifica do ponto de vista científico?‛ (FERNANDES, 1975, p. 86). Neste trabalho, é enfocada as questões da integração de Tiago na cultura bororo, os conflitos com os brancos, com os próprios Bororo, e enfim da readaptação de Tiago em terras

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Darcy Ribeiro o colocará como um dos personagens em seu romance intitulado: Máira.

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bororo, etc. Este caso permite ilustrar o quarto tipo de orientação de estudos a respeito da aculturação já assinalado. Um primeiro tipo de orientação monográfica utilizado pelos etnólogos consistia em escolher um grupo indígena cuja organização interna revele os resultados da acomodação com a sociedade nacional, principalmente nas regiões onde os contatos com os brancos tornaram-se de certa maneira permanentes, e no quais as influências (freqüentemente mútuas) não foram seriamente atingidas pelas transformações regionais bruscas. Constatamos que os trabalhos de Herbert Baldus, Charles Wagley e Eduardo Galvão entram no quadro desta orientação, sobretudo no que diz respeito às investigações realizadas entre os Tenetéhara (Guajajara). Neste tipo de orientação impõe-se o interesse pela descrição etnográfica sistemática do povo indígena que fornece um critério positivo para a análise dos pontos de mudança e de reelaboração culturais. Num segundo tipo de orientação, o investigador escolhe um grupo indígena cujas “tendências aculturativas” possam ser descritas através de caracterização da sua configuração interna em situações extremas de um continuo históricocultural. Isto significa uma manipulação total na interpretação dos dados históricos e culturais no intuito de caracterizar a cultura indígena nos diferentes períodos de contato com a sociedade nacional. Os trabalhos de James Watson, "Historic influence and change in the economy of a Southern Mato Grosso Tribe" (1945) e "Cayua Culture Change: A Study in Acculturation Methodology" (1952) situam-se nesta perspectiva que enquadramos os 74

estudos nesse tipo de abordagem. Aí reunem-se igualmente os primeiros trabalhos de Cardoso de Oliveira (1960) sobre Terena no Mato Grosso do Sul. As conclusões de Cardoso são completamente diferentes daquelas de Watson, e de outros que seguiram este caminho para efetuar suas investigações. A diferença fundamental entre os trabalhos de Cardoso de Oliveira (1960) e os outros, se situa no ponto de partida teórico. Cardoso de Oliveira parte de uma crítica da teoria da aculturação que era representada na época pelos estudos de Siegel, Watson, Broom e Vogt (1954), enquanto que os outros não assumem essa postura critica e utilizam esse conceito operacionalmente. O terceiro tipo de orientação, nas investigações etnológicas realizadas por antropólogos no Brasil sobre a aculturação foi aquela através da qual se seleciona um grupo indígena, cujas relações com a sociedade nacional pudessem ser descritas e interpretadas graças a observações de situações intermitentes de contato com os brancos. Apresentando ainda a correlação entre as condições sociais de existência e o desenvolvimento da cultura como um todo. Neste sentido, o centro de interesse da análise se desloca para as influências nos mecanismos internos da cultura que determinam o modo e o ritmo da mudança cultural. Os trabalhos de Egon Schaden, "Aculturação Indígena" (1969) faz parte desta orientação. O autor dá grande ênfase na análise dos traços culturais e nos aspectos difusionistas dos mesmos, que os etnólogos brasileiros desenvolvem, e que por ocorrência, Egon Schaden, nomeia "aculturação no plano tecnológico e da cultura material" (SCHADEN, 1969, p. 179). O autor também faz uma apresentação dos principais 75

estudos sobre aculturação realizados pela etnologia brasileira. O autor não chega exatamente a fazer uma crítica à teoria da aculturação o qual ainda se pode perceber em seus textos como uma defesa da teoria de contatos culturais, sendo um expoente na antropologia brasileira, por mais de três décadas. Nesse sentido, precisa-se ver o debate aculturação e estruturalismo, sobretudo, a intermediação sobre o conceito de cultura nessa discussão35. Após termos apresentado essa tipologia com as diversas orientações utilizadas na seleção dos grupos indígenas, para as investigações sobre o contato com a sociedade nacional, passaremos agora à análise das orientações metodológicas provenientes de diversas tradições, que consideramos como as mais importantes para o conhecimento do fenômeno de contato interétnico produzida pela antropologia brasileira. A primeira é a escola norte-americana, conhecida sob o nome de "Acculturation Studies" cuja influência foi muito grande no Brasil como se pode notar nos trabalhos de Eduardo Galvão, em particular. O que nos interessa agora é mostrar o essencial da tradição americana nos estudos sobre aculturação. Dois documentos (já assinalados anteriormente) revelam de modo particularmente característico a influência desta tradição: um deles intitula-se: "Memorandum for the Study of Culture Contact", publicado em 1936 e assinado por Redfield, Lint e Herskovits, e outro, publicado em 1954 35

Veja interessante comentário sobre isso em: PEREIRA, João Baptista Borges. Emilio Willems e Egon Schaden na história da Antropologia. Estudos Avançados., São Paulo, v. 8, n. 22, 1994.

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sob o título de "Acculturation: an Exploratory Formulation" foi elaborado por outros três antropólogos: Siegel, Vogt, Watson e o sociólogo Broom. O Memorando de 1936 é em grande parte voltado para o aspecto sociológico do contato. Sobretudo na parte III intitulada "Analyses of Acculturation". Os diferentes tipos de contato que podem se produzir são revistos, colocando em evidência a dimensão e a composição das populações que se encontram numa situação de contato, definidas como hostis ou pacíficas. A desigualdade social e política dos grupos são realçadas, bem como a estrutura do poder. Nas outras partes do Memorando, o processo de aculturação é descrito ressaltando os tratos culturais e não as entidades sociais individuais ou coletivas. Entretanto, o Memorandum constitui um documento útil fornecendo indicadores sensíveis à investigação etnológica, sem, todavia dissociar os aspectos sociológicos da situação de contato. O documento de 1954 é o resultado de 20 anos de pesquisas sobre a aculturação, o que permitiu os seus autores avaliar com precisão as experiências nesse domínio. Nota-se, entretanto a ausência de um sumário sistemático dos termos utilizados em Antropologia para designar o fenômeno de aculturação. O ponto de interesse principal, do ponto de vista sociológico, neste estudo, é a análise dos "papéis interculturais" e a referência à "comunicação intercultural" (SIEGEL 1954, p. 980).

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Com relação aos "Intercultural Roles", as idéias de Malinowski contidas principalmente em sua obra "Dynamics of Cultural Change" (1945) são retomadas36. A segunda orientação é aquela que provém da Antropologia social britânica representada pelas teorias desenvolvidas por Bronislaw Malinowski (1945) onde a noção de "mudança social" adquire uma importância fundamental neste tipo de abordagem teórica, assim como a noção de "instituição social". A preocupação em compreender a realidade resultante do contato entre duas sociedades apoiando-se na análise das instituições correspondentes, isto é, pela aceitação de princípios que as instituições agem uma sobre a outra (segundo suas "naturezas"), leva de certo modo o investigador a minimizar a influência dos agentes alógenos — Malinowski os chama "agentes culturais". Com efeito, a ação destes se estende também além de suas esferas institucionais respectivas. Esta orientação desenvolve uma crítica dos efeitos nefastos da colonização em geral. A explicação do contato segundo esta visão teórica é mais uma não-explicação, pois a descrição é centrada sobre uma terceira sociedade resultante da conjunção das duas outras; segundo os termos de Malinowski, existe uma sociedade tribal (de ocorrência africana), uma sociedade

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Mais adiante na parte sobre a Transfiguração Étnica, desenvolvida por Darcy Ribeiro voltaremos a falar deste documento (1954). Existe uma crítica significativa feita por DOHRENWEND, BRUCE and ROBERT J. SMITH, A suggested framework for the study of acculturation. In Cultural stability and cultural change, Verne F. Ray ed. Seattle, Proceedings of the 1957 Annual Spring meeting of the American Ethnological Society, 1957, pp. 76-84

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ocidental e transacional (a terceira sociedade resultante do contato). A explicação do contato é uma lacuna na Antropologia social britânica. Como se poderia explicar este fenômeno, contato propriamente dito, se a situação (o contato) fraciona-se em três ordens diferentes? Pouco importa que Malinowski tenha feito apreciações justas a respeito da verdadeira natureza do contato cultural que "consiste na interação de dois mundos culturais diferentes" distanciado pelo "preconceito racial e políticas diferenciadas". E mesmo que ele tenha avaliado objetivamente os aspectos conflituosos e tirânicos deste contato, é certo que este tipo de atitude teórica não permite uma avaliação da situação de contato camuflado na teoria das mudanças sociais (MALINOWSKI, 1938, p. 14). Os pesquisadores franceses que estudaram as sociedades africanas já propunham uma outra perspectiva em seus estudos sobre o contato. Este tipo de orientação, desses investigadores, que para nós, está situado no terceiro tipo de orientação terá grande influência nos estudos realizados no Brasil, principalmente, a partir dos trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, que se apóia em Georges Balandier, quando este desenvolve suas observações sobre a "Sociologia Atual da África Negra". Cardoso de Oliveira, um dos representantes deste tipo de orientação, esboça uma teoria do contato manipulando uma noção de "situação colonial”. Este conceito, para Balandier, se bem que fundada nos fatos comumente descritos pelos autores anglo-saxões, tais como os choques raciais ou os conflitos entre civilizações, não é examinada por estes últimos sob o ângulo das condições 79

particulares que a produzem. A mais completa definição de situação colonial continua a ser essa precisada por via dos seguintes operadores: ‚ a dominação imposta por uma minoria estrangeira, racial e culturalmente diferente, apelando a uma superioridade racial (ou étnica) e cultural dogma-ticamente afirmadas, sobre uma maioria autóctone materialmente inferior; o confrontar de civilizações heterogêneas: uma civilização industrializada, com uma economia poderosa, com um ritmo rápido e de origem cristã impondo-se a civilizações sem técnicas complexas, de economia retardada, com um ritmo lento e radicalmente nãocristãs; o antagonismo nas relações estabelecidas entre as duas sociedades que se justifica pela instrumentação a que é condenada a sociedade dominada; a necessidade, para manter a dominação, em recorrer não apenas à força mas também a um conjunto de pseudo-justificações e de comportamentos estereotipados‛ (Georges Balandier «The Colonial Situation: a theorical approach», in Pierre L. van der Berghe (ed.), Africa: Social Problems of Change and Conflit, San Francisco, 1951)

Em resumo, a "situação colonial" que adquire as proporções de uma totalidade nos estudos de Balandier, é definida da seguinte forma: "a dominação imposta por uma minoria estrangeira, de etnia e de cultura diferentes, em nome de uma superioridade racial e cultural afirmada de maneira dogmatica sobre uma minoria autóctone, materialmente inferior" (BALANDIER, 1950, p. 33). Mais do que pelos seus limites, a definição de situação colonial acima transcrita (Georges Balandier, 1955, Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire, Paris) vale pelas suas implicações, isto é, a possibilidade de

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considerar o colonialismo como uma totalidade e não um conjunto de processos independentes, resultantes de experiências sociais únicas e exclusivas. Como escreveu Balandier: «nous avons préféré, à la faveur des ‚vues‛ particulières prises par chacun des spécialistes, saisir la situation coloniale dans son ensemble et entant que système». Mas, este conceito operativo revela a questão de se saber se houve “bons” ou “maus” colonialismos, sendo certo, contudo, que não se poderão negar as especificidades de cada situação colonial. De resto, mais recentemente, George Stocking Jr., a propósito da emergência do pensamento antropológico em contexto colonial37, chamou a atenção para a necessidade de entender o fenômeno nas suas diversas concepções no campo da pluralização da situação colonial. Continuaremos nossa análise abordando agora as teorias do contato na etnologia indígena, levando-se em conta esta perspectiva e a influência que estes estudos receberam das teorias norte-americana da aculturação, como pode perceber através da literatura antropológica apontada aqui sobre essa temática.

3.2 - Herbert Baldus e a Mudança Cultural Antes da publicação do livro de Herbert Baldus "Ensaios de Etnologia Brasileira" (1937), poucos etnólogos haviam estudado a mudança cultural entre os índios, e se

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George Stocking Jr (editor) Colonial Situations: Essays on the Contextualization of Ethnographic Knowledge (History of Anthropology Ser., Vol. 7) Paperback, 1992

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tratavam, o faziam de maneira superficial, na margem de outros assuntos que consideravam mais importantes. Em "Ensaios de Etnologia Brasileira", Baldus dedica uma parte de seu trabalho à "Mudança de cultura dos índios do Brasil" (1937, p. 276-321). Suas investigações são feitas entre os Tapirapé, Karaja, Terena, Bororo e Kaingang, grupos indígenas, que de uma certa maneira, tiveram experiências diferentes em seu contato com a sociedade nacional em distintos contextos históricos. Um dos objetivos do trabalho de Baldus, como ele mesmo declara, é fornecer elementos para uma melhor compreensão do papel desempenhado pelos índios na formação cultural do Brasil, por que "a maior parte do caráter do povo brasileiro é o caráter tupi" (1937, p. 26). Nesta perspectiva, e, sobretudo a partir do que ele definiu como cultura, que "nasce de uma combinação de fatores hereditários, físicos e psíquicos, e de fatores coletivos morais", toda a teoria da mudança de cultura devia levar em conta estes fatores. Evitando empregar o temo aculturação (o que ele vai fazer bem mais tarde a partir de 1949), Baldus explica o que entende por mudança social: "Entendemos por mudança de cultura a alteração da expressão harmoniosa global de todo o sentir, pensar e querer, poder e agir de uma unidade social, expressão que nasce de uma combinação de fatores hereditários, físicos e psíquicos, e de fatores coletivos morais, e que, unida ao equipamento civilizatório, como por exemplo, os instrumentos, as armas etc., dá à unidade social a capacidade e a independência necessárias à luta material e espiritual para a vida" (1937, p. 279).

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Falando desta alteração, Baldus expõe a alternativa que se oferece aos povos indígenas: uma das possibilidades é a “assimilação recíproca do novo à cultura existente e desta ao novo da outra cultura" conservando, entretanto a identidade do grupo. A segunda é definida como "assimilação unilateral". Em seguida, Baldus distingue as duas faces de um mesmo processo, a saber: "a mudança parcial da cultura", que se faz no interior do sistema e a "mudança total de cultura" que acontece de um sistema para o outro, unilateralmente. Estas duas faces não são as etapas de um mesmo processo, mas a alternativa do processo de contato. Para determinar que tipo de mudança se opera no seio do grupo indígena, é preciso esperar que a mudança seja realizada de fato. Todavia o autor já pronunciou seu veredicto com relação às populações indígenas com as quais ficou em contato ao dizer que "já estamos habilitados para concluir que as tribos perderão também completamente sua cultura, se a relação com os brancos tornar-se permanente". As obras que apareceram depois daquelas produzidas por Baldus(1937)38 sobre a aculturação esforçaram-se para mostrar em termos científicos uma preocupação em preservar as culturas indígenas. As observações ou a constatação de aculturação estão concentradas, nestes trabalhos, em torno de certos elementos da cultura material como objetos metálicos, vestimentas, utensílios domésticos ou idéias religiosas, uma de suas preocupações sendo também reconstruir a cultura 38

Conferir por exemplo: SAMPAIO-SILVA, Orlando. O antropólogo Herbert Baldus. Rev. Antropol. 2000, vol. 43, no. 2 pp. 23-79

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tradicional. Pode-se igualmente revelar certa preocupação, que diremos de ordem prática, de traçar programas de orientação para os administradores encarregados da política indigenista39 . Até 1949, a etnologia brasileira não dispunha de obra que apresentasse uma cultura indígena em seu conjunto, um trabalho monográfico, tendo em vista as diferentes reações provocadas pelo contato social, ou seja, com setores dessa sociedade apresentando aspectos diferentes: caboclos (mêstiços), sertanejos, caipiras, que mantinham contato permanente com as comunidades indígenas. A etnologia brasileira não dispunha de monografias sistemáticas e bem elaboradas sobre as populações indígenas que pudesse permitir um trabalho comparativo. Curt Nimuendaju, etnólogo com amplo trabalho de campo, da primeira metade do século XX, tendo conhecimento profundo das sociedades indígenas de várias regiões do Brasil, tinha por preocupação imediata produzir uma etnografia procurando dar conta das diversas situações em que se encontravam os povos indígenas com os quais ele manteve contato em alguns casos ele denunciava a presença indesejável do "branco" que nomeava neobrasileiro. Três monografias surgiram em 1949 visando tratar especificamente sobre mudança cultural: são os trabalhos de Charles Wagley e de Eduardo Galvão: "The Tenetehara Indians of Brasil. A Culture in Transition" (Columbia University Contributions to Anthropology, no 35, New York), os 39

Alguns trabalhos de Baldus, Galvão, Ribeiro e Cardoso de Oliveira têm claros objetivos como subsídios para o Serviço de Proteção aos Índios. Schaden (1969, p.13) escreve sobre os conselhos de Baldus para o SPI

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trabalhos de Altenfelder Silva: "Mudança Cultural dos Terena" (Revista do Museu Paulista, N.S. v. III, p. 271-379, São Paulo), e a de Kalervo Oberg: "The Terena and Caduveo of Southern Mato Grosso-Brazil" (1949). Fernando Altenfelder Silva efetua suas investigações em um dos núcleos Terena, a aldeia de Bananal, utilizando a definição de aculturação proposta por Redfield, Linton e Herskovits no Memorandum de 1936. Altenfelder tenta caracterizar sua investigação, apoiando-se nas fontes bibliográficas, as diferentes fases do contato entre os Terena e a sociedade nacional. As últimas páginas de seu trabalho apresentam um sumário da história dos Terena, cuja intenção é dar uma idéia do processo de mudança cultural sofrido pela comunidade de Bananal. Nesse sumário, o autor mostra como a Igreja Evangélica (Inland South America Missionary Union) desempenhou um papel essencial nas transformações recentes sofridas pelos índios. Esta constatação não pode ser generalizada às outras aldeias Terena da região, pois muitas delas jamais receberam visitas de missionários. Uma das conclusões à qual chega Altenfelder, é a que ele denomina de “recuperação da consciência étnica”. O autor situa-se no fato de que os Terena, após ter atingido um estado de “destribalização quase total”. Essa situação é devida principalmente às frentes de expansão de agropecuária, estes conseguiram "graças ao Serviço de Proteção aos Índios", reorganizar certo número de grupos locais, revitalizando assim a consciência étnica primordialmente sua dependência total do mercado regional e do trabalho assalariado nas fazendas vizinhas (ALTENFELDER DA SILVA, 1949, p. 376).

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As pesquisas de Kalervo Oberg não aportam dados etnográficos que vão além daqueles apresentados por Altenfelder. A novidade é que o autor tenta fazer uma comparação com os Kadiwéu. No fim dos anos 50, Roberto Cardoso de Oliveira retoma as pesquisas sobre esses grupos indígenas com outra perspectiva dos estudos sobre aculturação.

3.3 - Eduardo Galvão e a Aculturação Eduardo Galvão e Charles Wagley escolheram os Tenetehara (Guajajara)40 para efetuar suas pesquisas sobre "cultura em transição" pelo fato de que estes, ao contrário dos Tapirapé (outro grupo indígena estudado por Wagley), mostram “capacidade de adaptação excepcional” em seu meio e entre a população branca do Estado do Maranhão. Por outro lado, não houve redução da população dos Tenetehara como aquela que existiu entre os Tapiraré; mesmo que aquele grupo tenha estado em contato permanente há mais de três séculos, permanece "essencialmente indígena" (WAGLEY & GALVÃO, 1949, p. 29). Em seu primeiro capítulo, este estudo apresenta uma reconstituição da história dos Tenetehara colocando em evidência as relações deste grupo com os brancos. Em seguida, são tratados os seguintes temas: organização social, "vida econômica", "vida pessoal" (na qual se descrevem 40

A tradução de "Tenetehara Indians of Brazil. A culture in Transition" Galvão e Wagley de 1949) só foi para o português em 1961. Paul Ehrenreich (1906) já havia utilizado o termo aculturação (Akkulturation) para designar os contatos entre dois grupos que trocam elementos da cultura material.

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nascimento, infância, puberdade e casamento), vida religiosa, mitos. A obra termina com um capítulo sobre "cultura em transição". A reconstrução da história da cultura Tenetehara, apresentada pelos autores e os estudos sobre a organização social, serviu para fazer uma análise minuciosa do processo aculturativo destes índios, amplamente desenvolvido no capítulo sobre "cultura em transição". Os autores chegam à conclusão de que estes índios conseguiram realizar de maneira coerente uma "integração cultural" e que puderam sobreviver enquanto grupo étnico. Não que tenham sido mais "conservadores" que outros grupos indígenas ou que tenham em sua cultura qualquer elemento que lhes permitisse resistir às mudanças, mas, ao contrário, porque se prenderam menos aos costumes tradicionais e que estiveram relativamente mais dispostos a aceitar outras técnicas, idéias novas. Como dizem os autores, a suavidade e a disposição deles em aceitar as mudanças foram provavelmente os fatores importantes para sua sobrevivência (WAGLEY & GALVÃO, 1949, p. 178). Os autores acrescentam ainda que em duas ou três gerações, se os novos fatores não vierem a modificar o curso deste processo, os Tenetehara serão transformados em "caboclos" por sua completa assimilação aos tipos regionais (p. 185). Sendo assim, dizem que o ritmo acelerado das mudanças será inevitável. Sem, no entanto, entrar nos detalhes é preciso acrescentar aqui, que a população branca que mantém contato com estes índios é resultado das "integrações culturais" entre portugueses, índios e africanos, e há seguramente heranças da cultura indígena. 87

Através do discurso extremamente contraditório destes autores, não se pode compreender por que o desaparecimento dos Tenethara, enquanto grupo étnico, no espaço de duas gerações se, como concluem os autores, estes permaneceram essencialmente indígenas durante esses séculos. Referindo-se a este tipo de crítica, Galvão, no prefácio da edição portuguesa de 1961, admite que estas "dúvidas têm um fundamento" e acrescenta: "Há muitas tribos indígenas que resistem até hoje e nada indica que não resistirão no processo futuro de integração à sociedade brasileira" (WAGLEY & GALVÃO, 1949, p. 10). Alhures, Galvão escreve: "Em nossa monografia sobre os índios Tenetehara, nos deixamos seduzir pelo ritmo relativamente acelerado com o qual é operada a transição desta cultura indígena para as normas brasileiras. Se bem que o grupo mantenha sua unidade tribal e possa ser distinguida da população cabocla por sua configuração cultural diferente, os sinais de degradação da cultura tradicional e de substituição dos valores tribais por outros, brasileiros, são evidentes e resultam do impacto de 300 anos de vida comum, geralmente pacífica, com nossa sociedade rural. Concluímos que não precisa mais que uma ou duas gerações para que os Tenetehara se transformem em caboclos. É a experiência que adquirimos no Serviço de Proteção dos Índios, onde nos familiarizamos com uma série de situações de contato e de assimilação dos grupos indígenas, que nos permitiu ter uma perspectiva mais correta. Pode-se dizer que os Tenetehara, a um momento dado de sua transição, escolhesse (sic), em lugar de adquirir a cultura cabocla, tomar a alternativa dos indígenas do Nordeste ou do Sul do Brasil pela aquela, uma vez atingida uma certa estabilidade da população e da relação com os

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"brancos", e a consciência da impossibilidade de integração na sociedade rural, o índio, exceto em seu estado mais inferior, decida permanecer índio, categoria sócio-cultural que lhe garante as condições de sobrevivência e de status social nas comunidades da região" (1979, p. 131).

Atualmente os Tenetehara (Guajajara) estão estimados em mais de 13.000 indivíduos e resistem enquanto grupo étnico mantendo o contato com a sociedade nacional. De 1978 a 1980, este povo, como se pode ver na imprensa brasileira, tem lutado pela reintegração de seu território invadido pelos colonos e missionários. Um trabalho importante sobre essa sociedade é de Mércio Pereira Gomes "The Ethnic Survival of the Tenetehara Indians of Maranhão" (Tese de Ph.D, University of Florida, 1977)41. Eduardo Galvão foi um dos principais etnólogos responsáveis pela introdução do conceito de aculturação na etnologia indígena e sua preocupação se manifesta em todas as pesquisas que realizou, sobretudo na Amazônia, por exemplo, em: "Estudos sobre a Aculturação dos Grupos Indígenas do Brasil" (1953); "Mudança Cultural na Região do Rio Negro" (1957); "Aculturação Indígena no Rio Negro" (1959). Galvão ressalta certas dificuldades encontradas nos estudos sobre a "Acculturation", visto como um fenômeno que 41

E ainda do próprio Mércio Pereira, ver O índio na história: o povo Tenetehara em busca da liberdade. Petrópolis : Vozes, 2002. As teses de Elisabeth Coelho (Territórios em conflito: a dinâmica da disputa pela terra entre índios e brancos no Maranhão. (Ciências Sociais, 46) São Paulo: Hucitec, 2002) e de Claudio Zannoni (Mito e sociedade Tenetehara. Araraquara : Unesp, 2002), e também a dissertação de Cláudio Zanoni (Conflito e coesão: o dinamismo tenetehara. (Antropologia, 2) Brasília: CIMI, 1999), e a tese de doutorado de Peter Schröder: União e Organização- Zur Entstehung modernen indigenen Widerstands in Brasilien. Eine vergleichende Untersuchung anhand von Fallbeispielen. (Mundus Ethnologie, 68) Bonn: Holos, 1993.

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aparece quando grupos de indivíduos de culturas diferentes entram em contato direto e permanente, com suas conseqüências sobre as normas culturais destes grupos (GALVÃO, 1979, p. 129). Distingue aculturação e mudança cultural que é um aspecto do mesmo processo, e assimilação que é uma fase do processo de aculturação. As dificuldades apresentadas por Galvão são as seguintes: a) A utilização destes conceitos não caracteriza mais a "natureza" do fenômeno e torna-se difícil o estabelecimento de um critério para definir a situação de contato. Como a situação de grupos em contato com a sociedade nacional, e grupos, que estão também em contato permanente, porém com setores específicos. Como aqueles que estão em contrato com os missionários e os agentes do organismo oficial de proteção; b) E como estabelecer os limites entre "aculturação" e "mudança cultural"? O problema não reside na terminologia, mas na atitude teórica face a este fenômeno, posto que em numerosos casos, o “empréstimo ou a adoção de um traço cultural, e as modificações que derivam das forças internas da cultura receptiva, são simultâneas", (GALVÃO, 1979a, p. 129). Os trabalhos de Wagley42 e Galvão alargaram o campo das observações sobre a aculturação, pois os dois autores ressaltaram de uma maneira original, traços essenciais do sistema cultural e da organização social e econômica das comunidades "caboclas", que se estabeleceram perto das comunidades indígenas e com as quais os índios mantêm

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Confeir também: Wagley sobre os caboclos: "Cultural Populations: a Comparison of Two Tupi Tribes" Revista do Museu Paulista n.s., 1951.

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muitas vezes relações de troca. É através destas comunidades que os índios obtêm os produtos manufaturados dos quais têm necessidade. Galvão estima que as comunidades amazonenses (ditas caboclas) são as depositárias da cultura indígena e ibérica. Para ele, "nestas comunidades, o cruzamento entre portugueses e índios foi intenso. Contudo, se a cultura ibérica pôde implantar um sistema de comércio e uma economia, forma de organização, instrumentos de trabalho, absorveu alhures elementos culturais inumeráveis destes povos dominados. Em certos casos, a mudança foi tal que se tornou extremamente difícil, senão impossível, identificar ou retraçar a origem de uma crença ou de uma prática determinada. Em outros casos, tal identificação é relativamente fácil mesmo pela análise superficial. Vêm daí as crenças em seres da floresta ou de rios como Curupira, Matinta-pereira, Anhanga, Boto ou Uiara, "mães", onde a origem ameríndia, e especialmente tupi, está fortemente presente. Qualquer uma destas crenças tem sua origem no Mundo Antigo, patrimônio Ibérico ou africano, e outros provenientes de culturas indígenas. Umas e outras, no processo de fusão e de incorporação do "caboclo" à cultura moderna, perderam sua forma original e se transformaram e se mestiçaram em um corpo de idéias que já não é mais português ou ameríndio, mas algo novo, o "caboclo" (GALVÃO, 1979b, p. :57-58). "Caboclo" designa, pois o mestiço, uma categoria sócio-cultural para localizar setores da população amazonense. Hoje, a sociedade nacional chama os índios "caboclos" e a língua indígena classifica-se como um patois, mas por trás disto se desenha com evidência uma política que quer 91

antecipar verbalmente a aculturação. Em certas regiões, os próprios índios se dizem caboclos para poder sobreviver (Terri Vale Aquino: "Kaxinawa: de seringueiro 'caboclo' a peão acreano", Universidade de Brasília, 1977)43. Eduardo Galvão realizou outros trabalhos significativos sobre as comunidades caboclas; "Santos e visagens — um estudo da vida religiosa de Itá", 1955; "Encontro de Sociedades Tribal Nacional", 1966; "Índios e brancos na Amazônia", 1970. Estes dois últimos estão incluídos no volume: "Índios e brancos no Brasil — Encontros de Sociedades", 1979. Estudando as comunidades "caboclas", Galvão e Wagley insistem na necessidade de alargar a perspectiva considerando a bilateridade do fenômeno de aculturação, ou seja, os efeitos recíprocos deste processo tanto para as comunidades caboclas como para as comunidades indígenas. A elaboração das Zonas Culturais feitas por Galvão leva também em consideração as diferentes situações de contato nas comunidades indígenas. A idéia de determinar as causas da aculturação, de saber por que certos grupos indígenas "se deixam" aculturar mais facilmente que outros, motivou as pesquisas de Galvão. Ele procura uma resposta na "distância cultural". Tomando o exemplo dos Karajá e dos Timbira, diz ainda que os grupos Tupi são mais facilmente levados a ser aculturados, e a cultura cabocla tendo se identificado mais com a cultura tupi,

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Referências importantes sobre a identidade Cabocla conferir os trabalhos de Déborah de Magalhães Lima: A construção histórica do termo caboclo. Sobre estruturas e representações sociais no meio rural Amazônico. Novos Cadernos do Naea, v. 2, n. 2, p. 5-32, 1999 e o trabalho de Stephen Nugent: Amazonian Society Caboclo – An Essay on Invisibility and Peasant Economy, Berg, 1993

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de onde a "resistência dos Karajá" a se "assimilar" à cultura cabocla. Para finalizar esta parte de nosso trabalho, transcreveremos uma citação de Galvão na qual estão claramente indicadas as perspectivas colocadas com relação aos povos indígenas que caracterizam estes estudos sobre a aculturação e a política indigenista oficial da época, assim como as preocupações da etnologia brasileira: "Os fatores de resistência e de ligação às normas tribais parecem-nos residir mais em causas como a expansão da população sertaneja [cabocla] (24) brasileira. Um fato que muitas vezes não tem sido relevado é que os grupos mais resistentes ocupam em geral zonas menos devastadas porém mais inóspitas do platô central, onde não se registrou tentativas de assimilação do índio e de fixação do caboclo, ou seja, aquele ainda não encontrou um lugar permanente na economia regional. A resistência destes grupos é uma condição de sobrevivência. Em outros casos, a expansão súbita da população não permite o lapso de tempo necessário à acomodação. O índio se retira ou é enviado para longe. O fato de que os índios são pouco numerosos os coloca numa situação de inferioridade, de minoria étnica, sem outra alternativa senão a de perecer. É o caso, por exemplo, dos índios do Xingu, que, à despeito do grande número de tribos, estão em via de extinção. A maior deles comporta mais de 140 indivíduos. Ao sair de um período de isolamento, têm se confrontado há cerca de 10 anos com aviões e máquinas, e um tipo de colonização que não precisa dos seus braços. Se não encontram lugar nesta economia, e se sua densidade demográfica não resiste aos desgastes causados pelo contato, principalmente pela diminuição de seus membros devido a doenças contagiosas, tenderão a desaparecer, salvo se uma política indigenista bem eficaz para lhes fornecer os meios

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de acomodação e 1979c, p. 132).

de assimilação se desenvolva" (GALVÃO,

3.4 - Darcy Ribeiro e a Transfiguração Étnica A teoria da aculturação foi criticada pelos próprios autores do Memorandum de 1936, por Beals (1953) e finalmente por Siegel, Broom, Vogt e Watson que elaboram um documento que redefine o conceito de aculturação. Ralph Beals assinala que o conceito de aculturação, tal como foi apresentado pela literatura etnológica da época, denotava certa ambigüidade e sta reside, segundo o autor, na própria definição da aculturação, a saber: se é um processo ou uma condição nas relações entre índios e brancos. No documento de 1954: "Acculturation: Explanatory Formulation", elaborado por Siegel e outros, a aculturação é definida como "mudança cultural nascida da conjunção de dois sistemas culturais ou mais". Em termos de causalidade, "A mudança cultural pode ser a conseqüência da transmissão cultural direta; pode derivar de causas não-culturais, como as modificações ecológicas e demográficas introduzidas por um choque cultural; pode ser retardada por ajustamentos internos, aceitando tratos ou normas alógenas; ou pode ser uma adaptação em reação aos modos de vida tradicionais" (SIEGEL, 1954, p. 974). (Barnett, H. G., Broom, L., Siegel, B. J., Vogt, E. Z.,& Watson, J. B. (1954). Acculturation: An exploratory formulation. American Anthropologist, 56, 973-1002.) Os autores do documento analisam então o fenômeno de aculturação sob 4 ângulos principais:

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   

A caracterização das propriedades de dois ou mais sistemas culturais que entram em contato; O estudo da natureza da situação de contato; A análise das relações de conjunção estabelecidas pelos sistemas culturais em contato; O estudo do processo cultural que decorre dos sistemas em conjunção (p. 975).

Assinalamos este documento para mostrar que a teoria da aculturação, tal como fora elaborada, não mais correspondia às novas questões que se apresentam com relação ao contato, por isto esta teoria será questionada. Deixaremos de lado os diferentes ângulos do problema da aculturação vistos pelos autores de "Acculturation: an exploratory formulation". É, todavia importante assinalar que na etnologia brasileira, a teoria da aculturação se opõe a uma série de críticas, entre outras as de Darcy Ribeiro, que propomos apresentar nesse trabalho, como aquela desenvolvida, por Roberto Cardoso de Oliveira, esses dois antropólogos contemporâneos, mas, com diferentes abordagens sobre a questão do contato entre índios e brancos. Darcy Ribeiro começou suas pesquisas sobre os povos indígenas acreditando que, para certos autores é o "mito da identidade nacional"; para ele, a sociedade nacional é um todo uniforme, "uma etnia nacional em expansão" que, através de "um movimento exógeno de expansão étnica", entra em contato com as outras etnias. Sendo dado o caráter "inevitável" deste contato as outras etnias, que não estão em expansão, devem resolver os problemas criados pelos contatos (RIBEIRO, 1977, p. 220). 95

Em seu livro: "Línguas e culturas indígenas no Brasil", Ribeiro diz quem é índio no Brasil: O indígena é, no Brasil de hoje, essencialmente esta parcela da população que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira em suas diversas variantes, devidos à preservação dos costumes, hábito ou simples fidelidade a uma tradição pré-colombiana, ou mais amplamente: é índio todo indivíduo reconhecido como membro de uma comunidade pré-colombiana, que se diferencia etnicamente da sociedade nacional, considerado como indígena pela população brasileira com quem está em contato (RIBEIRO, 1957, p. 33). Em 1947, Darcy Ribeiro é contratado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão indigenista criado no início do século por Cândido Rondon. O marechal seria uma das principais figuras a inspirar Darcy no trabalho de assistência às populações indígenas. Ele realizou no SPI suas primeiras pesquisas etnológicas, a maior parte delas em períodos prolongados junto aos índios. Nos dez anos visitando os povos do Pantanal, o antropólogo escreveu um trabalho importante, Religião e Mitologia Kadiwéu (1950), livro com o qual ganhou o importante prêmio Fábio Prado e, com ele, certa notoriedade que em alguns momentos compartilhou com a ex-esposa a antropóloga Berta Ribeiro, que o acompanhava em viagens e pesquisas de campo, além de aparecer como co-autora em várias obras. A partir de 1953, Darcy Ribeiro organiza o Museu do Índio no Rio de Janeiro e os primeiros cursos de especialização em Antropologia realizados no Museu. Durante este período, Ribeiro defende as diferentes políticas de integração e de assimilação do índio à sociedade nacional; 96

em 1954, fala de integração gradual do índio, uma vez que o contato com a sociedade nacional é inevitável; propõe a criação de reservas indígenas como um meio de preservar a cultura indígena. A partir de 1957, a preocupação principal de Ribeiro é pesquisar os meios de salvar as vidas indígenas terrivelmente ameaçadas pelos contatos. Em 1962, é a favor de uma incorporação gradual dos grupos indígenas em um programa amplo de educação, e mostra certa oposição ao isolamento dos índios em reservas (MARASH JR, 1978). Darcy Ribeiro propõe examinar as etapas da evolução sócio-cultural dos povos em uma sucessão de revoluções tecnológicas que são classificadas, em sua obra como agrícola, urbana, de irrigação, metalúrgica, pastoril, mercantil, industrial e finalmente termonuclear, em seu livro "O Processo Civilizatório" (1968). Essas investigações no campo da antropologia da civilização seráum deseus grande projeto: Explicar o Brasil. É nesta série de estudos que vai desenvolver todo um corpo de fundamentos teóricos que tornaram possíveis o maior desafio a que já se propôs de desenvolver: O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil (1996). Nesse trabalho o autor retoma os conceitos de Povo Novo, transfiguração étnica, revoluções tecnológicas, configurações socioculturais típicas de cada período e as propostas de teorias para a América Latina, entre outros, vão se concatenar num todo coeso. Nessa perspectiva ou autor discute as questões ecológicas e econômicas tais como já apresentadas através da antropologia americana desenvolvida por Julian Steward e Leslie White que auxiliam na explicação das formações culturais rústicas de cada região

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brasileira e a sua unificação numa identidade étnico-nacional (ou macroetnia) que perpassasse cada uma delas. Em outras obras como, por exemplo: "As Américas e a Civilização" e o "Dilema da América Latina", analisa o processo de formação, as causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos e as estruturas de poder e as forças rebeldes na América Latina. Em "O Processo Civilizatório", Darcy Ribeiro analisa certos aspectos da Transfiguração Étnica quando examina as formas de transição de uma etapa evolutiva para uma outra utilizando o conceito de "aceleração evolutiva". Este conceito é utilizado “para descrever os procedimentos”, intencionais ou não, de indução do progresso preservando a autonomia da sociedade que faz a experiência e, por esta razão, conservando seu tipo étnico, às vezes com a expansão daquela como uma macro-etnia assimilativa de outros povos (RIBEIRO, 1961, p. 56). Darcy Ribeiro denomina este processo de "Atualização ou incorporação histórica". Em "As Américas e a Civilização", analisa o conceito de aculturação quando examina o processo de formação e de diferenciação dos povos americanos e do desenvolvimento desigual. Ribeiro utiliza também a noção de Transfiguração Étnica. Em relação à evolução sóciocultural dos povos, distingue os povos "prósperos e poderosos" e os povos subdesenvolvidos. Estes também são divididos em duas categorias, de um lado os povos préagrícolas que se encontram de certa maneira à margem e que não foram atingidos pelas revoluções tecnológicas, e de outro lado, os povos subdesenvolvidos que, de uma forma ou de outra, foram incluídos no sistema econômico mundial.

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Ribeiro44 define para estes quatro grandes configurações histórico-culturais, a saber: os povos emergentes; os povos novos; os povos-testemunha e os povos transplantados (RIBEIRO 1981, p. 160). A teoria da Transfiguração Étnica surgiu como uma crítica à teoria da aculturação. Segundo Ribeiro, "em sua formulação original, estes estudos se limitaram ao exame dos contatos diretos e contínuos, este processo sendo necessariamente concebido como bilateral e explicado em termos de adoção seletiva de elementos culturais estrangeiros. Muito rápido, entretanto, a necessidade impõe-se de incluir na análise todos os tipos de contato interétnico, e de levar em conta as situações nas quais o processo era unilateral ou, pelo menos, não afetava necessariamente as duas etnias presentes" (RIBEIRO, 1977a, p. 12). Ou, como ele mesmo afirma, essa teoria foi desenvolvida para explicar as situações de desigualdades relacionadas a partir de questões postas através da cultura. Em suas próprias palavras: ‚Tendo escrito esses livros, escrevi mais um que é "Os Índios e a Civilização", que eu vinha fazendo há anos, por encomenda da Unesco. Este livro me ensinou muito porque me fez desenvolver um conceito de "transfiguração étnica", que é o processo pelo qual os povos se fazem e se transformam ou se desfazem. Nenhum índio vira civilizado, o que há é que um povo indígena, mantendo sua indianidade, vai morrendo e, ao lado dele, surge um núcleo humano que cresce à custa dele e que cresce contra ele, que é o núcleo civilizado. Então, assim como não há conversão, não há assimilação. O que há é uma 44

Novos-emergentes: os novos Estados africanos e asiáticos. Povos-testemunhas: Índia, China, Japão, Coréia e os países árabes. Povos-novos: Brasil, Venezuela, Colômbia etc. e Antilhas. O Sul dos Estados Unidos e outros países da América Central. Povostransplantados: Austrália, Nova Zelândia, Israel. (RIBEIRO, 1981, p. 160-162).

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integração inevitável. Se o índio é cada vez mais cercado de um contexto civilizado ou comercializado, se ele próprio se converte em mão de obra, se ele próprio tem que produzir mercadoria, é claro que ele tem uma integração cada vez maior com a sociedade nacional. Mas esta integração não quebra nele a identidade, que é como a do judeu, como a do cigano. Ele mantém a sua identidade como indígena. Apesar de transformados os costumes, apesar de mudar o modo de se vestir. Apesar de todas essas mudanças, ele permanece indígena‛.45

É nesta perspectiva que Ribeiro orienta suas investigações. Critica igualmente duas posições que, segundo ele, são insuficientes para analisar o contato entre índios e brancos. Para a primeira, de Galvão e Schaden, Ribeiro diz que eles abandonam a formulação geral de uma teoria para cair num círculo vicioso no qual cada fator poderia ser por sua vez causa e efeito, e que a tentativa de explicar a aculturação com as análises histórico-etnológicas limita ao excesso a amplitude do fenômeno (SCHADEN, 1969). O outro ponto de vista criticado é o de Roberto Cardoso de Oliveira. Segundo Darcy Ribeiro, este último, analisando o fenômeno de aculturação através de uma ótica sociológica das situações de conjunção e ressaltando os aspectos sociais do conflito interétnico, subestima de certa maneira os fatores importantes, os de ordem cultural, por

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Conferir entrevista de Darcy Ribeiro, publicada no boletim da ABA, concedida a Luís Donisete B. Grupioni e Denise Fajardo Grupioni: http://www.unicamp.br/aba/boletins/b27/08.htm. Consultar também recente trabalho de André Luís Lopes Borges de Mattos, autor de “Darcy Ribeiro: uma trajetória (19441982)”, tese de doutorado e apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

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exemplo. Quanto às formulações de Cardoso de Oliveira a propósito dos estudos sobre o contato, Ribeiro diz: "Tais conceitos (Fricção interétnica, Tribalismo, Potencial de Integração, Cf. Cardoso de Oliveira, 1962, 1964, 1967) embora úteis para descrever situações gerais de interação entre representantes da sociedade nacional e os grupos tribais, também para assinalar certas potencialidades de conflito ou de acomodação que lhes são inerentes, não fornecem corpo metodológico que permita explorar metodicamente o valor explicativo das situações de interação entre sociedades nacionais e etnias tribais, que são em abundância na realidade brasileira" (RIBEIRO, 1977b, p. 11).

Ribeiro diz ainda que a teoria da Transfiguração Étnica procura ultrapassar as abordagens anteriores propondo um campo metodologicamente apropriado para analisar as relações de contato. Este modelo explicativo das relações entre índios e não-índios provém da análise do contato, através da qual o autor examina as transformações sofridas pelo patrimônio cultural dos povos indígenas e o resultado dos contatos. Esses se apresentam sob as múltiplas formas que tomou no Brasil, a saber: a fronteira de penetração agrícola, pastoril, no Nordeste e centro do Brasil, e a fronteira extrativistivista com relação à Amazônia. A situação de fronteira de expansão é apresentada em sua análise como um conjunto uniforme dando lugar a três reações possíveis entre os povos indígenas: a fuga, uma reação hostil aos invasores ou a aceitação do contato "porque representa, efetivamente, uma fatalidade inevitável"

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(RIBEIRO, 1977c, p. 220). A transfiguração étnica é, pois definida como: "...um processo através do qual as populações tribais confrontam-se com as sociedades nacionais e preenchem as condições necessárias à sua sobrevivência enquanto entidades étnicas, pelas alterações sucessivas de seu substrato ideológico, de sua cultura e das formas de relações com a sociedade circundante". E Ribeiro acrescenta: "Esta acepção — da Transfiguração Étnica — é na realidade uma aplicação particular e restrita de um processo mais geral que compreende os modos de formação e de transformação das etnias" (RIBEIRO, 1977d, p. 13 e 217-227).

A elaboração da teoria da Transfiguração Étnica exige que Darcy Ribeiro re-examine algumas noções como as de assimilação e integração. Utiliza o termo assimilação "para designar a perspectiva de fusão de novos contingentes no seio das etnias nacionais sendo parte integrante desta; por integração, designamos os modos de acomodação recíproca e de coexistência entre as populações diferentes do ponto de vista étnico" (RIBEIRO, 1977e, p. 14). Analisando a situação de contato entre índios e brancos, Ribeiro estabelece quatro categorias que denomina "Graus de integração":  Índios isolados: são os grupos indígenas que vivem nas regiões atingidas pela sociedade brasileira, tendo apenas contatos esporádicos com a sociedade nacional;  Índios em contato intermitente: são os grupos indígenas cujos territórios estão, de uma maneira ou de outra, ocupados pela sociedade nacional, 102





mas cujos valores culturais estão intactos e que gozam de certa autonomia; Índios em contato permanente: estão incluídos nesta categoria todos os grupos indígenas que estão em contato contínuo com a sociedade nacional sendo incorporados à economia regional da qual são dependentes. Sua cultura é profundamente modificada em relação à cultura indígena tradicional; Índios integrados: são os grupos indígenas que, após ter suportado todas as pressões (ecológicas, econômicas e culturais) conseguiram sobreviver, estando hoje isolados no seio da população nacional, da qual se incorpora à vida econômica enquanto reserva de mão-de-obra..." (RIBEIRO, 1977f, p. 229-232 e 432-433).

Observando as populações indígenas de 1900 a 1957 segundo o processo de transfiguração étnica, Ribeiro elabora algumas previsões. Prevê uma redução demográfica dos povos indígenas se os grupos passam da condição de isolados à de integrados. No caso onde as ações de proteção asseguram aos povos indígenas condições de vida adequada, não desaparecerão e terão a possibilidade de se reconstruir. Prevê também certa modificação das línguas indígenas por causa do contato e das novas experiências nos graus de integração. "As culturas indígenas não podem sobreviver de maneira autônoma senão nas regiões inexploradas ou à fraca e

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recente penetração, ou enfim em condições artificiais de intervenção protecionista, constituem espécimes em via de desaparição destinados a perder suas características na medida em que a sociedade nacional cresce e se desenvolve de forma homogênea" (RIBEIRO, 1977g, p. 445). O plano de classificação proposto por Ribeiro é evolutivo e não considera situações como, por exemplo, regiões onde existem ao mesmo tempo várias "frentes de expansão" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1964, p. 13 e HANLEY, 1978). Insiste sobre os princípios explicativos e os exemplos particulares, o que torna mais difícil uma análise mais compreensível do contato entre índios e não-índios. Na teoria desenvolvida por Ribeiro às vezes, torna-se difícil de distinguir a diferença entre os índios que ele considera como "assimilados" e os que ele chama de "extintos" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 15 nota 5). A diferença das pesquisas sobre a aculturação e a abordagem de Ribeiro, com seu modelo explicativo, a transfiguração étnica, limita-se praticamente ao que se refere à sobrevivência dos povos indígenas. Para os pesquisadores que se apóiam nas teorias da aculturação, o intenso e permanente contato entre índios e brancos, levaria uma perspectiva futura do desaparecimento dos grupos indígenas enquanto grupos étnicos, o que equivale à assimilação à sociedade nacional. De acordo a teoria de Darcy Ribeiro, estes grupos não desapareceriam totalmente, mas se tornariam povos transfigurados do ponto de vista étnico, ou seja, enquanto etnias minoritárias em um novo contexto 104

étnico nacional, porém capazes de assegurar a liberdade e o bem-estar de seus componentes (RIBEIRO, 1977, p. 446).

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4. IDENTIDADE ÉTNICA: PERSPECTIVAS ESTRUTURALISTAS

Ao decorrer destas últimas décadas, e particularmente após 1960, a teoria da aculturação foi criticada pelos etnólogos brasileiros, porque não mais respondia às questões relativas ao contato com a sociedade nacional, sobretudo no que se refere a resistência dos povos indígenas na manutenção de suas identidades étnicas e as relações entre índios e não-índios nas sociedades contemporâneas. As tentativas de Hebert Baldus, com a introdução de estudos sobre a mudança cultural, a produção teórica de Darcy Ribeiro sobre a transfiguração étnica não mais deram conta do conjunto das relações entre grupos indígenas e sociedade brasileira. Estas abordagens deixavam de lado toda uma série de fenômenos passíveis de ser encontrados em outros contextos, onde as populações e mesmo as "culturas" em conjunção não se caracterizam somente pelos componentes do tipo étnico e a construção de uma etnicidade. As perspectivas para os povos indígenas apresentados por Baldus, Galvão, Schaden e Ribeiro, para citar apenas os etnólogos que nos referimos nesse trabalho, e que, pela natureza de suas obras se interessaram pelo destino das

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populações indígenas, foram apontadas como a incorporação dos "contingentes" indígenas na sociedade nacional, ocasionando a perda de sua identidade étnica. Muito destes prognósticos não aconteceram, visto que, mesmo demograficamente reduzidos, os índios do Brasil continuam "índios", mantendo sua identidade étnica, e o que parece, não são de modo algum “assimilados” na sociedade nacional. É interessante notar que alguns etnólogos têm feito sua "autocrítica" neste sentido. Um deles, Roberto Da Matta, exprime-se nestes termos no prefácio da segunda edição de "Índios e Castanheiros": “Eu intitulo o parágrafo 7 deste livro (...) Epílogo. Desde a primeira frase, afirmo com pessimismo: o parágrafo precedente põe um ponto final na história dos Gaviões. Jamais estive tão feliz de estar enganado. E jamais um erro foi tão importante para resolver pesquisar fora de uma "antropologia da integração", uma antropologia que pensasse realmente menos em decretar a morte dos índios que em procurar melhor compreendê-los enquanto sociedade concreta e específica. Pois é necessário não esquecer que os índios morrem depois de decênios na etnologia brasileira, embora a realidade seja outra; apesar dos decretos (do Governo como dos etnólogos), apesar de todas as tragédias, todas as crises, as doenças e as espoliações, as perdas de terras, em suma, de tudo o que pode acontecer de pior a um grupo humano, os índios estão lá” (DA MATTA, 1979, p. 36).

Nossa intenção é apresentar a teoria da Fricção Interétnica, desenvolvida por Cardoso de Oliveira no decorrer desses últimos anos, através da qual um grupo de

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etnólogos se uniu ao estudo das teorias do contato cultural e por conseqüência ao estudo da identidade étnica. Achamos importante apresentar das obras de Cardoso de Oliveira, o inspirador desta noção e que se dedicou nesses últimos anos ao estudo da identidade étnica. Foi inicialmente, em 1962 denominada de "fricção interétnica" baseada no trabalho de campo desenvolvido pelo autor entre os Tükuna durante os anos de 1964. Essa teoria foi publicada pela primeira vez em 1967 ele foi republicado em 1968, na revista América Indígena (vol. XXVIII, n° 2, México), e incluído posteriormente na coleção de ensaios A Sociologia do Brasil Indígena (Edições Tempo Brasileiro Ltda., Rio de Janeiro, 1972).

4.1 - O Contato enquanto Fricção Interétnica Ao contrário dos estudos sobre aculturação, aqueles voltados essencialmente para a descrição dos processos de difusão, transmissão e assimilação de "traços culturais", os estudos sobre a fricção interétnica têm por base o exame de relações sociais entre os grupos tribais e os segmentos regionais da sociedade brasileira aos quais estão ligadas; passa-se assim de uma orientação "culturalista" a uma orientação teórica de caráter sociológico. Esta teoria também é resultado igualmente da crítica da teoria da Aculturação, o contato como "Fricção Interétnica", como oposição. Parte do principio e esse estudo deve ser visto como uma concepção e totalidade sistêmica. Sendo assim, o contato é concebido como relação processual no interior de um sistema inte-

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rétnico. A ênfase não se dá no patrimônio cultural, mas "nas relações que existem entre as populações ou sociedades a que se relacionam" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 85)46. Neste sentido, os componentes mais importantes do contato interétnico estão integrados em um sistema único constituído de duas sociedades. O sistema compreende grupos étnicos quando um contato é contínuo ou mesmo permanente, forçado a uma existência co-participativa ao nível das relações e da mudança da economia, de ordem política, e de organização social. Este sistema único é produzido por um contato; as relações no seio deste sistema são necessariamente relações de oposição. Cardoso o define como: duas populações dialeticamente unificadas através de interesses diametralmente opostos, embora interdependentes, por paradoxal que isto pareça. Para este autor, a sociedade nacional é: "Um sistema social susceptível de ser analisado através de sua estrutura de classe. A situação de contato, graças ao sistema de relações que lhe é inerente, pode ser analisada graças ao que chamarei Fricção Interétnica o que será o equivalente lógico, (mas não ontológico) do que os sociólogos chamam "Luta de classes". Convém ao analista decifrar a estrutura deste sistema e sua dinâmica para fornecer um diagnóstico e tentar estabelecer um prognóstico da situação de contato" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978a, p. 85).

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Veja a entrevista de Mariza Corrêa, Roberto Cardoso de Oliveira e Roque de Barros Laraia com DAVID MAYBURY-LEWIS, publicada na Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.17 N.50, São Paulo Oct. 2002, onde os autores se referem a esse período.

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Por conseqüência, as transformações sofridas pelas sociedades em contato interétnico não são os resultados da influência da cultura de uma sobre a outra, nem o produto de uma criação comum determinada pelos fatores postos em interação pelos grupos étnicos47. Estas transformações exprimem a maneira como cada sociedade reorganiza o complexo estrutural, de suas relações econômicas, políticas e sociais, de maneira a manter no curso do contato e no seio do sistema determinado por este um nível ao menos razoável de relações com o sistema interétnico. É nesta perspectiva que se elabora o projeto de estudo das "Regiões de fricção interétnica do Brasil" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1962, p. 5-90) organizado por Cardoso de Oliveira com outros etnólogos como Roberto Da Matta, Roque B. Laraia e Julio César Melatti. O primeiro caso estudado foi o de Tükuna da região do Alto Solimões, população atrelada a um sistema servil caracterizado pelo regime do Barracão48. Em sua maioria, estes índios são seringueiros. Ainda, segundo o projeto original outros povos serão estudados como os povos Assurini e Gavião, dois grupos de organizações sociais diferentes que estão em contato em situação das fronteiras de expansão da extração no Estado do Pará. O terceiro caso estudado se situa no Brasil Central com os índios Xerentes e Krahô, grupos cuja 47

Há uma grande variedade na definição, certos etnólogos utilizam os sentidos desejados pela "tradição cultural" como por exemplo a definição existente no "Modern dictionary of sociology" de Georges A. e Achilles Theodorson, Nova York, 1969. Outros colocam mais evidência no sentido organizacional como por exemplo Fredrick Barth (1969). 48 O regime do Barracão é aquele em que o indivíduo paga os bens de consumo que compra na loja (Barracão) do patrão, com seu trabalho. É um regime de não circulação da moeda.

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organização social é semelhante e que habitam regiões onde predomina a expansão das fronteiras pastoris. Os resultados desses estudos encontram-se nos livros de Cardoso de Oliveira "O Índio no mundo dos brancos" (1964), de Roberto Da Matta e Roque Laraia "Índios e castanheiros" (1967) e de Melatti J. C. em "Índios e criadores" (1967). Outros etnólogos utilizaram este instrumento metodológico para suas pesquisas em outras regiões 49. Cardoso de Oliveira apresenta o projeto da seguinte forma: "O estudo das zonas de fricção interétnica transformou a noção de situação (colonial ou de fricção) em um instrumento de compreensão e de explicação da realidade tribal visto não mais em si mas em relação com a sociedade que lhe rodeia‛. O estudo da fricção interétnica pode ser visto dentro do âmbito dos estudos de mudança sócio-cultural; entretanto, para a ênfase dada à compreensão do índio em situação, ela alarga o campo de observação do pesquisador — que passa o quanto antes a estudar igualmente a sociedade inclusive nacional, ou colonial, rejeitando a abordagem “culturalista” julgada inadequado à compreensão de um comportamento interétnico (DA MATTA, 1979, p. 38). Para tornar operacional a análise deste sistema (interétnico) devem-se distinguir três níveis determinantes das relações entre as sociedades: o nível econômico, o social e o político. A análise destes níveis dará ao pesquisador os meios para analisar os mecanismos de integração que 49

Ver também Paulo Amorim "Os Índios Camponeses – os Potiguares da Baía da Traição "Revista do Museu Paulista”, n.s. v. 19, 1971, p. 7-99 e Terri Valle Aquino "Kaxinawa: de seringueiro 'caboclo' a peão 'acreano'". Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 1977.

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Cardoso de Oliveira designa pela expressão "potencial de integração”. Nesta teoria, a integração social é visualizada como o processo responsável pela constituição do sistema interétnico. Neste sentido, o nível econômico determina o grau de dependência do índio dos recursos (econômicos) postos a seu alcance pelo não-índio e vice-versa. O nível social avalia a capacidade dos grupos em contato (índios e grupos da sociedade nacional) para manter um mínimo de organização e orientar os membros para os fins. Mas, pela própria natureza do sistema interétnico, estes fins serão antagônicos. É a persistência a orientar para um fim que tem feito com que muitos grupos indígenas sobrevivam. Quanto ao terceiro nível, o político, é preciso estudar a natureza do poder ou da autoridade de um grupo sobre outro, considerados como as partes constituintes de um sistema de dominação. A manipulação do poder pelos brancos e as reações dos grupos indígenas a esta dominação serão os elementos da situação de contato que se encontrará freqüentemente (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 87-93).

4.2 - Frentes de Expansão e Colonialismo Interno A noção de fricção interétnica parte do princípio de que o contato com a sociedade nacional realiza-se através das "fronteiras de expansão", mostrando assim o caráter dinâmico do fenômeno. Pois a noção de fronteira (o que para Ribeiro seria as fronteiras de civilização) acrescentada à de expansão econômica, permite que as investigações sobre o contato interétnico sejam consideradas em seu conjunto. No caso do Brasil, existe uma variedade de fronteiras de 112

expansão, o que deve tornar a pesquisa atenta ao desenvolvimento e ao subdesenvolvimento regional. Em 1955, Leo Waibel, em "As zonas pioneiras do Brasil", apresentava para o país, ã exceção da Amazônia, cinco zonas que considerava como pioneiras, e que procuravam se estender, com novos habitantes de nível de vida mais elevado. As cinco zonas caracterizadas por Waibel são as seguintes: 1) a região de Xapecó-Pato Branco no nordeste do Estado de Santa Catarina e o sudeste do Estado do Paraná; 2) o norte do Estado do Paraná; 3) o oeste do Estado de São Paulo; 4) o Estado de Mato Grosso e de Goiás; 5) a região do norte do Rio Doce no Estado de Espírito Santo e Minas Gerais (WAIBEL, 1955 apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 97). Estas zonas estabelecidas por Waibel e outros, acrescentadas à região amazonense, mostram que o desenvolvimento no Brasil é, às vezes, feito de maneira espontânea, mas que em geral, sempre foi conduzido por uma política brasileira de desenvolvimento. Cardoso de Oliveira emprega a noção de fronteira de expansão conjuntamente à de colonialismo interno, com base no pensamento do sociólogo mexicano Pablo Casanova50 que escreve: "no seio das sociedades plurais, as formas internas do colonialismo subsistem após a independência política e as mudanças sociais (reforma agrária, industrialização, urbanização)”. O colonialismo interno é percebido como um continuum da estrutura social das "nações jovens". Neste sentido, a noção de colonialismo interno

50

Pablo Casanova "Sociedad Plural, Colonialismo Interno y Desarrollo" In: Revista América Latina v. 3, 1962.

113

explica em parte o desenvolvimento desigual dos países subdesenvolvidos (CARDOSO DE OLIVEIRA 1966). A noção de colonialismo interno utilizada por Cardoso de Oliveira, acrescentada a de "segmentos étnicos" da sociedade brasileira dão consistência metodológica à teoria da Fricção Interétnica. Em vez de se restringir ao estudo das zonas de fricção interétnicas tidas como totalidades sincréticas e concretas tendo sua própria universalidade e particularidade, sua necessidade e sua contingência, o etnólogo é levado a se orientar para o exame da sociedade nacional em suas manifestações regionais. Para a análise, a questão indígena, cuja amplidão se subestima, geralmente sob pretexto de que concerne um pequeno número de indivíduos, será um meio de conhecer, em escala microscópica, o Brasil colonizado, o Brasil subdesenvolvido, "A dialética das relações entre as classes (trabalhadores e patrões) e os grupos tribais (...) constituiria o núcleo central das pesquisas sobre este terceiro Brasil" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1966a)51. Cardoso de Oliveira, com a teoria do contato interétnico, tenta: 1) fornecer uma estrutura teórica para a explicação e a compreensão da situação de contato; 2) chamar a atenção para os aspectos dinâmicos desta situação; 3) confrontar a natureza dialética do fenômeno. Ele vê o fenômeno do contato como uma totalidade unificada por interesses opostos. É sobre este ponto que ele tem divergências com os outros etnólogos que fizeram pesquisas sobre a situação de contato. Darcy Ribeiro explica, por

51

Cardoso critica a idéia apresentada por J. Lambert em seu livro "Os dois Brasis". Para Cardoso existe um terceiro Brasil: o Brasil indígena (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1966).

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exemplo, a situação de contato como a confrontação mútua de duas totalidades. A segunda divergência nos trabalhos de Ribeiro e Cardoso é a não-aceitação, da parte de Ribeiro, da "preponderância das relações sociais" na aculturação. Como diz o próprio Cardoso, "mais que um estudo da mudança cultural, queremos estudar a mudança social, sobretudo com o estudo da mudança de situação“(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1979, p. 37).

4.3 - A Identidade Étnica como Ideologia Mais tarde, Cardoso de Oliveira desenvolveu o conceito de identidade étnica enquanto identidade contrastativa com base em trabalhos de Fredrick Barth (1969). Segundo Cardoso, "a especificidade da identidade étnica, em particular suas manifestações mais primitivas, reside em seu conteúdo mais etnocêntrico inerente à negação da ‘outra’ identidade em contraste" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 45). A identidade étnica assim definida seria a expressão do sistema de relações entre os índios e a sociedade regional52 da qual já evidenciamos o caráter contraditório quando apresen-tamos a noção de Fricção Interétnica. Os quatro principais ensaios de Cardoso de Oliveira sobre a identidade étnica estão reunidos em um volume intitulado: "Identidade, etnia e estrutura social" (1976) onde o autor retoma justamente a especificidade do étnico e do 52

Cardoso sempre evita falar de sociedade nacional. Em seu lugar emprega o termo "regional" ainda que outros autores falem de sociedade nacional. Darcy Ribeiro emprega o termo "nacionais" como sinônimo de "brancos".

115

ideológico, formulando-a nos seguintes termos: 1) a articulação social como processo de relações que, no caso particular da confrontação entre índios e brancos (fricção) toma a forma de articulação étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 55-71); 2) o grupo social tomado como um modo de organização que, no caso do índio, recobre a noção de grupo étnico; e 3) a identidade social como uma ideologia que, no caso indígena, aparece como identidade étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA 1976b, p. 43). Tendo em conta a reorientação dos valores ideológicos, a sociedade tribal se reorganiza a partir dos modos pelos quais se identifica como unidade diferenciada e consegue se opor ativamente à sociedade regional. Assim, Cardoso de Oliveira em "Identidade étnica, identificação e manipulação" e em "Um conceito antropológico de identidade" tenta mostrar fatores sobre esse processo: o primeiro é a necessidade de estabelecer uma dimensão propriamente antropológica para a identidade social e mais particularmente a identidade étnica53. Para recolocar a identidade étnica sobre bases sociais, o autor utiliza as proposições de Barth, como a forma que o próprio grupo étnico tem de se representar,54 que se preserva enquanto grupo enquanto preserva sua identidade, sobre os 53

Em "O processo de assimilação dos Terena" Cardoso de Oliveira (1960) editado posteriormente (1976) sob o título de "Do Índio ao Bugre" Cardoso reconhece que a identidade étnica "exibiu um conteúdo claramente psicológico” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. XV). 54 Cardoso de Oliveira escreve: "A pista mais segura foi-nos traçada pelo conjunto de estudos publicados em Ethnic groups and Bundaries de F. Barth, 1969” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. XV).

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planos ideológicos e organizacionais, e se preserva como identidade étnica enquanto mantém as condições organizacionais de se conservar enquanto grupo (BARTH, 1969, p. 10-14). Considerando o esquema das relações interétnicas que tem lugar entre os indivíduos e grupos de origem "nacional", "racial", ou mesmo "cultural" diferentes, e a noção de grupo étnico como "organizational type", o autor mostra que a identidade contém duas dimensões, a primeira é a social e a segunda aquela que se situa no individual. Considerando a alteridade dos grupos, o autor estabelece a noção de identidade contrastativa que "parece constituir-se na essência da identidade étnica, isto é, sobre a base de qual identidade se define. Isto implica na afirmação do eu frente aos outros (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976d, p. 5). Apresentamos as modalidades da identificação étnica utilizando o modelo proposto por Lehman (1969) que diz:

"Quando as pessoas se identificam como membros de uma categoria étnica, (...) situam-se no seio de relações intergrupais (...). Estes sistemas de relações intergrupais compreendem as categorias complementares totalmente interdependentes. Afirmo que na realidade, as categorias étnicas são formalmente papéis e que, neste sentido, não são senão indiretamente descritivas as características empíricas de grupos compostos de pessoas" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 8).

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TIPOLOGIA DAS SITUAÇÕES DE CONTATO "INTERTRIBAIS"

INTERÉTNICAS

SIMETRIA

RELAÇÕES IGUALITÁRIAS (1)

RELAÇÕES IGUALITÁRIAS (4)

ASSIMETRIA

RELAÇÕES HIERÁRQUICAS (2)

RELAÇÕES DE SUJEIÇAO-DOMINAÇÃO (3)

Cardoso define a identidade étnica em contextos tribais mostrando-a em confronto com a sociedade nacional. Estabelece então uma tipologia partindo das situações de contato, isto é, das relações interétnicas que podem acontecer em "sistemas de interação tribal" e de relações conflituosas de contato entre sociedade tribal e sociedade nacional55. A tipologia estabelecida pelo autor apresenta-se da seguinte forma: 

55

Relações implicando unidades tribais em relações simétricas, como o caso Xingu e as relações intertribais do Rio Negro, Amazonas56;

Carlos Rodrigues Brandão afirma que as relações interétnicas marcadas pela desigualdade e pela dominação não podem ser compreendidas através de aspectos particulares e desconectadas da totalidade. Coferir: BRANDAO, C. R. Identidade e Etnia: A Construção da Pessoa e A Resistência Cultural. Sao Paulo: Brasiliense, 1986. 56 Paul Ehrenreich (1906) para este tipo de situação fala de "Akkulturationzentren" onde estabelece para a América do Sul três centros de aculturação, a saber: o Rio Negro, Guyanna Orenoco, Alto Xingu. Existe sobre as relações intertribais no Alto Xingu, o trabalho de P. Menget "Alliance and violence in the Upper Xingu", 1982.

118







Relações implicando unidades assimétricas e justapostas hierarquicamente como as que aconteceram no Chaco durante a conquista e da qual persistem hoje algumas formas no sul do Mato Grosso; Relações implicando unidades étnicas assimétricamente em relação mas prisioneiras de um sistema de dominação e de sujeição. Estes tipos se encontram nas regiões chamadas "Área de Fricção Interétnica"; Um quarto tipo no sistema interétnico, que seria constituído de relações igualitárias, é, apenas, para Cardoso uma "possibilidade teórica posto que empiricamente, não se pode dizer que ela existe" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 58).

A identidade étnica é, enquanto forma ideológica das representações coletivas de uma sociedade, concebida como um caso particular de identidade social e como uma forma ideológica das representações coletivas de um grupo étnico determinado. A definição da identidade étnica se faz, portanto de maneira dialética observando as relações entre o nós e os outros. Isto implica bem entendido que duas entidades estejam em relação, pois nenhum grupo social pode se conceber ideologicamente se não percebe a existência de outro grupo. Cardoso de Oliveira utiliza os termos de Goodenough57 que parte da noção de "identidades complementares" para concluir que a identidade de cada grupo em contato não é inteligível senão na medida em que 57

Ver: Ward Goodenough "Rethinking 'status' and 'role ': toward a general model of culture organization of social relationships". In: The relevance of models for social anthropology. Editado pela Michael Banton Tavistock, publicado em 1965.

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estes estão em relação entre eles (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 42-45). O caráter contrastivo destas identidades constitui, portanto um atributo essencial da identidade étnica. Assim, a identidade étnica produzida pela identidade contrastiva aparece como uma identidade que surgiu de uma oposição. Para tentar delimitar a identidade étnica, é necessário conhecer os "mecanismos de identificação" que contêm a identidade em processo. Através do desenvolvimento histórico do contato, os grupos étnicos em relação (em conjunção) desenvolvem uma "consciência de si na situação", o que significa que a identidade étnica variará de acordo com as diferentes "histórias do contato". No processo de identificação58, a identidade étnica pode ser assumida como uma identidade negativa (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 18). Com efeito, os índios interiorizam a ideologia discriminatória dos membros da sociedade regional, o que os coloca em posição de inferioridade e enfraquece sua capacidade de resistência à opressão que suportam. Darcy Ribeiro (1977) denomina este tipo de identidade de "consciência em alienação crescente e bastarda” por causa da absorção fatal de imagens depreciativas de si e justificando a dominação e a exploração. Se a consciência étnica pode chegar a ser negativa, ela se manifestada em outros casos pela afirmação extrema do grupo, ao inverso dos outros. Esta auto-afirmação poderia levar a um outro tipo de identidade que Cardoso de Oliveira define como: “Ideologia igualmente étnica”, absolutamente 58

A noção desenvolvida por Cardoso sobre o processo de identificação leva à noção de identidade étnica como atualização em um dado momento histórico (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p.14-15).

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totalizadora, capaz de fornecer a base dos movimentos sociais de qualquer tipo: separatistas, reformistas, revolucionários e também messiânicos (CARDOSO DE OLIVEIRA In: Introdução ao Simpósio do XLI Congresso Internacional dos Americanistas, México, 1974). Em "Os índios e a civilização", Darcy Ribeiro (1977) analisa este aspecto da identidade como sendo uma "consciência alienada", mas que não altera seus próprios fins59. Uma outra manifestação da identidade étnica é a que Cardoso de Oliveira chama “identidade histórica” e que seria comparável em certos casos que chama "identidade renunciada", à qual se pode eventualmente renunciar em situações muitas vezes conflituosas ou discriminatórias, mas que pode ser invocada de novo e reafirmada quando a situação muda (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 12). Roberto Da Matta introduzirá a idéia de "custos" na discussão sobre a identidade étnica, tomando por ponto de partida as pesquisas de Cardoso de Oliveira e os estudos de Ward Goodenoug (1965) sobre os "papéis sociais", e se opondo à noção proposta por este último de "pares de identidades superpostas"ou "gramaticais", Da Matta diz: "Em outros termos, tenho a intenção de insistir no fato de que a seleção de identidades — ao contrário do que explica Goodenough —, nem sempre seguem as regras da 59

Sobre esta abordagem ver: Miguel A. Bartolomé "Consciencia étnica y autogestión indígena". In: Indianidade y descolonización en América Latina” (Documentos de la segunda reunión de Barbados) Editorial Nueva Imagen, 1979, Mexico. Ver também trabalhos mais reentes como por exemplo: Gente De Costumbre y Gente de Razon: Las Iidentidades Étnicas en México, Siglo XXI, México, 2004, ou do mesmo autor: Procesos Interculturales Antropologia Politica del Pluralismo Cultural en América Latina, Siglo XXI, Mexico, 2005.

121

identidade atribuída, ou a do contexto adequado, nem a da "identidade superposta" (DA MATTA, 1976, p. 35). Da Matta propõe a noção de "identidades paradoxais" que teria por particularidade os "custos sociais" elevados necessários à sua execução. E mais, as identidades paradoxais se definem pelo fato de que elas articulam universos sócio-culturais e subuniversos de significação inteiramente diferente (1976a, p. 36). Quanto mais as identidades se afastam, mais os custos sociais necessários à sua implantação são importantes. "Desta maneira, escreve Da Matta, as situações que chamamos de contato interétnico ou intercultural não seriam mais que casos particulares de encontros entre dois subuniversos de significação ou mais. Seriam particulares não porque possuem um princípio oculto ou intrinsecamente diferente mas porque evidenciam de maneira clara as dificuldades de integração nos contextos onde se realiza o encontro entre domínios muito distantes uns dos outros" (1976, p. 40).

A identidade étnica seria assim uma modalidade da identidade social, através da sociedade regional. Os trabalhos sobre a identidade étnica no Brasil ainda têm desdobramentos importantes e foram fortemente influenciados, a nosso ver, pelas pesquisas de Roberto Cardoso de Oliveira60. Estão, sobretudo, centrados na situação de contato, isto é, nas relações entre índios e brancos nas representações ideológicas de cada grupo étnico. A título de 60

Conferir: Cardoso de Oliveira. Identidade étnica, reconhecimento e o mundo moral, in: Revista Anthropológicas, vol 16(2),2005

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ilustração, mencionaremos aqui duas obras, entre outras, que merecem atenção e que confirmam que a questão da identidade étnica está na ordem do dia nas pesquisas etnológicas do Brasil. No que refere os estudos sobre a identidade étnica e as relações em contexto indígena, o livro organizado por Alcida Ramos (1980) "Hierarquia e simbiose" é importante na medida em que ilustra situações particulares como a que existe entre os Hupdah-Maku e os "índios do rio" no Alto Rio Negro, entre os Mayongong e os Sanuma no Estado de Roraima e entre os Guarani e os Kaingang no Estado do Paraná. Nos dois primeiros casos, o contato entre estes grupos indígenas aconteceu antes do contato com a sociedade nacional. No caso dos Kaingang, as relações entre os grupos são posteriores ao contato com a sociedade nacional. Outro estudo importante é o de Terri Aquino (1976) "Kaxinawa: do seringueiro "caboclo" ao peão acreano" que desenvolve a noção de identidade étnica numa tentativa de compreensão do relacionamento entre identidade e estrutura social. Mostra como as mudanças sociais e econômicas provindas da implantação das empresas de agropecuária nas zonas que exploravam tradicionalmente a borracha, são absorvidas no sistema de representação indígena, dando origem a uma ideologia onde se polarizam as identidades branca (de São Paulo ou do Acre) e indígena "caboclo". Estas pesquisas e muitas outras (MELATTI, 1982, p. 264) mostram um aspecto das pesquisas etnológicas nas sociedades tribais brasileiras onde o índio não é o sujeito de sua própria cultura, mas é obrigado a se confrontar ou a se integrar na sociedade de classes.

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A mais recente obra de Roberto Cardoso de Oliveira, “Caminhos da identidade – ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo”, São Paulo, Editora Unesp; Brasília, Paralelo15; 2006, representa a reedição dos ensaios sobre identidade étnica e etnicidade produzidos nesses últimos 40 anos, além de apresentar um panorama de seu trabalho sobre o desenvolvimento do conceito de identidade através de suas pesquisas, os quatro capítulos trazem diferentes aspectos que compõem a questão identitária ainda fortemente baseada nos pressupostos weberiano sobre identidade étnica, e em todos estão presentes o debate entre identidade e cultura. A reedição de seus ensaios proporciona uma possibilidade de discussão, bem como a introdução das questões do multicuralismo abrindo assim uma porta nas possibilidades atuais do debate antropológico sobre a identidade étnica.

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Capa Vanessa Macedo Diagramação Gilberto José Revisão Albertina Farias

INFORMAÇÕES GRÁFICAS FORMATO

15,5 x 22 cm

TIPOLOGIA

Arial Monotype Corsiva Palatino Linotype Trebuchet MS

PAPEL

MIOLO: Off-set - 75g/m2 CAPA: TP - 250g/m2

Montado e impresso na oficina gráfica da

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