De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego Estar Morto Ou Ser Genio

July 1, 2019 | Author: Mara Seragiotto Do Amaral | Category: Estado, Pensamento, Brasil, Historiografia, Faculdade
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http://opensadordaaldeia.blogspot.com/2008/09/de-como-fazer-filosofia-sem-ser-grego.html Quinta-feira, 18 de Setembro de 2008

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio entrevista com Gonçalo Armijos Palácios

(Publicado na revista Discutindo filosofia, número 6, 2007, e republicada em Discutindo filosofia - Extra, 2008)

por Paulo Jonas de Lima Piva O texto que segue abaixo é uma entrevista que fiz com o filósofo Gonçalo Armijos Palácios, autor do instigante De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (Editora UFG, 1997)), em 2007. Ela foi publicada na revista Discutindo Filosofia, número 6 - portanto, antes da decadência na qual se encontra - e republicada recentemente numa edição extra da revista. Dada a sua extensão, a entrevista não foi publicada na íntegra na revista. Aqui ele vai completa ********************** ********************************** ************************ *********************** *********** Ele não é grego, é equatoriano, está muito vivo e intelectualmente ativo aos cinqüenta e um anos de idade, e não tem nenhuma pretensão de ser gênio só porque é doutor em filosofia pela Indiana University ― com o tema "Marxismo e pragmatismo" ― e tem livros publicados sobre o assunto. Ele quer somente pensar com base na sua própria razão e no seu próprio juízo, sem a intromissão de especialistas, isto é, filosofar, como faziam Sócrates e os seus contemporâneos. Em outras palavras, ele deseja apenas ser filósofo. Estamos falando de Gonçalo Armijos Palácios, professor de filosofia da Universidade Federal de Goiás e autor do polêmico livrete De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, lançado em 1997, pela Editora UFG, e relançado recentemente com novos capítulos ao lado de outra obra explosiva, Alheio olhar, na qual Gonçalo comenta, critica e procura estabelecer um diálogo com os principais personagens da elite filosófica brasileira. Por e-mail Gonçalo conversou com a revista Discutindo Filosofia sobre o destaque dado à filosofia pela mídia, o retorno obrigatório da disciplina ao ensino médio, filosofia universitária, filosofia clínica, entre outros assuntos. R: Professor, como o senhor explica esse aumento do interesse das pessoas pela filosofia? É um fenômeno ocidental ou apenas uma moda brasileira? G: Não penso que querer saber sobre determinados assuntos cujas respostas só nos dá a reflexão filosófica possa ser uma moda. Já vivi em três países diferentes e em todos eles vi que as pessoas, dos mais diversos estratos sociais, têm questões que, saibam elas ou não, são questões filosóficas. O desejo por se aprofundar em certos problemas, assim como o de escrever, ou pintar, compor, esculpir, é conseqüência de uma necessidade das pessoas intelectualmente inquietas, não penso que tenha isso a ver com modas. R: Poderíamos dizer então que estamos vivendo um momento de popularização da filosofia, em particular no Brasil? G:Não vejo isso. A luta pela volta do ensino de filosofia no ensino médio é uma reivindicação, não só dos estudantes do ensino médio e seus professores, mas dos próprios pais desses estudantes. O ser humano não pode deixar de sentir a necessidade de ter um espaço, e a oportunidade, para refletir sobre o que ocorre com o ser humano, enquanto ser humano, com a sociedade, com os rumos da história, com as questões de gênero, com o problema da discriminação, e, portanto, dos direitos humanos, entre muitas outras questões. Penso que, num momento de suas vidas, as pessoas sentem a necessidade de refletir filosoficamente sobre certos assuntos, mesmo sem saber que são questões filosóficas.

R: A propósito, como o senhor avalia best-sellers filosóficos como “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, e “Quando Nietzsche chorou?”. E filmes como “Matrix”, também considerado “filosófico” por muitos? G: Não pensemos nos best-sellers, pensemos em obras literárias clássicas ou em clássicos do cinema. Não penso que uma obra prima da literatura, ou um filme que seja considerado uma obra de arte, leve necessariamente alguém para fazer literatura ou a querer ser cineasta. O que nos leva a filosofar são problemas, situações de perplexidade em que nos encontramos. Podemos ser motivados para refletir filosoficamente por diversas coisas, incluídos filmes e livros, tenham ou não a intenção de nos fazer filosofar. Basta que provoquem em nós o desejo de refletir sobre algum problema e tentar resolvê-lo com nossos próprios meios; basta que nos deixem pasmos, perplexos, que nos mostrem que estamos perdidos sobre algo de fundamental importância para nós ou os outros. Pois só fazemos filosofia quando estamos perdidos, não quando sabemos onde estamos. Quem sabe onde está não precisa procurar. R: A filosofia chegou até à televisão, e o fez dando picos de audiência para o programa “Fantástico” da Rede Globo, com o quadro “Ser ou não ser”, protagonizado pela professora Viviane Mosé, em horário nobre, o que gerou muita controvérsia entre os filósofos acadêmicos. “Café filosófico” e “Balanço do século XX”, ambos da TV Cultura de São Paulo e da Rede Educativa, e “Saia Justa”, da CNT, também de São Paulo, são outros programas de televisão em que a filosofia aparece com destaque. Qual é a avaliação do senhor a respeito desses programas televisivos? O senhor acha que o filósofo ou o profissional de filosofia deve ocupar os espaços oferecidos pela tevê, freqüentando inclusive programas de auditórios com apelo popular? Não haveria nisso um perigo de banalização da filosofia e de perda de credibilidade para o filósofo que se expõe diante da câmera falando para leigos sobre um assunto tão complexo e que exige tanto rigor? G: Eu assisti com interesse o Ser ou não ser, mas fiquei desapontado. A palavra ‘superficial’ não serve para descrever esse programa. Precisaria de um termo que denote algo mais superficial que a própria superficialidade. Era uma mistura de questões que confundia o linguajar da psicologia (área principal, parece, da apresentadora) e da filosofia. Um programa que não ficou perto de apresentar com o mínimo de seriedade e clareza as questões que se propunha apresentar. O perigo de programas com apoio comercial é esse: tudo pode ser banalizado. O fato é que é possível apresentar, para um público interessado, um programa, na televisão, que trate questões filosóficas e consiga aprofundá-las. O formato, contudo, tem de ser completamente diferente. Eu já vi isso, por exemplo, na televisão pública norte-americana. Em geral são discussões em que filósofos são convidados, não há cortes comerciais, e é um debate moderado pelo apresentador — alguém, naturalmente, muito bem preparado e que fez um curso de filosofia ou exerce a cátedra filosófica. Aqui no Brasil, numa rede não comercial, já vi faz poucos meses vários episódios de um programa espanhol (legendado) em que o entrevistador tinha uma hora para conversar com o convidado. Vi entrevistas com intelectuais como o colombiano García Márquez, o argentino Julio Cortázar, o mexicano Octavio Paz, o cubano Guillermo Cabrera Infante, e o pintor colombiano Fernando Botero. Se isso fosse feito com um filósofo, o resultado não poderia ser diferente outro: excelente. Refiro-me, claro, a programas sem apelo comercial. Quando entra o lado comercial e o ‘apelo popular’, a coisa começa a desandar, que é o que aconteceu com, pelo menos, aquele do Fantástico.

R: O senhor tem um programa numa emissora de rádio de Goiânia, não é isso? Por favor, fale-nos sobre essa sua experiência. G: O programa tem quinze minutos. Pode parecer pouco tempo, mas em quinze minutos só tenho tempo de introduzir um problema, mostrar por que é um problema e quais as possíveis linhas de solução. Em geral procuro tratar questões que interessam a todos os seres humanos, não a especialistas. Contudo, faço isso sem banalizar ou ficar em superfluidades. Por exemplo, trato sobre o direito ao aborto, sobre poder e enriquecimento, sobre valores, sejam éticos ou estéticos. Numa ocasião, motivado pela pergunta de uma menina de sete anos sobre a existência do mal, mostrei as questões que surgem quando pensamos nos conflitos entre a existência de Deus e a do mal, entre a onisciência divina e a liberdade humana etc. Naturalmente, não esgoto o assunto num programa, e nem poderia, continuo nos programas subseqüentes, apesar de muitas questões serem inesgotáveis. Aproveito, também, para refletir sobre o momento político brasileiro do ponto de vista filosófico. Mas há muitas questões que é possível trazer para um programa de rádio. Aliás, na Europa e nos Estados Unidos isso não é incomum. E há filósofos mundialmente famosos, como Karl R. Popper, Bochenki e Karl Jaspers que leram artigos pelo rádio ou que tiveram também um programa de rádio. E os textos lidos por eles não eram nada triviais, o que não deixa de surpreender quem acha que o rádio ou a televisão só estão para coisas banais e comerciais. A emissora em que tenho o programa, claro, é pública, é a Rádio Universitária, da UFG, e é ouvida dentro e fora de Goiânia. Fiquei surpreso quando comecei a receber cartas e e-mails dos ouvintes. Isso é muito estimulante. O programa vai ao ar segundas e quartas, ao vivo, em dois horários, das 7:15 às 7:30h e das 1845 às 19:00h. O programa também é transmitido pela internet: http://www.radio.ufg.br/. Poucas semanas atrás foi ao ar o centésimo programa (considerando o programa da segunda-feira, um, e o da quarta, outro). O programa já está no ar, ininterruptamente, mais de um ano. Penso que o jornal também é um veículo para levantarmos e discutirmos questões filosóficas. Tenho uma coluna num semanário de Goiânia (que também está na internet faz alguns anos: http://www.jornalopcao.com.br/), a coluna chama-se “Idéias”. Nele tenho desenvolvido muitas questões filosóficas do meu interesse e do interesse de muita gente. Digo isto pelo retorno que tenho por meio de e-mails. Voltando ao programa de rádio. Fiquei muito motivado e feliz quando, certo dia, um aposentado escreveu uma carta em que me congratulava pelo programa. Mas, apesar de morar longe, fez questão de levar a carta pessoalmente à emissora. Considero a experiência muito gratificante e positiva. Quando vêm a Goiânia professores de outras cidades, os convido para uma entrevista, o que ocorreu com a professora Maria das Graças de Souza, do Departamento de Filosofia da USP. R: O que o senhor teria a dizer de iniciativas como “Casa do saber”, em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde a procura pelas palestras e cursos oferecidos é enorme sobretudo por pessoas de alto poder aquisitivo? G: Não tenho informações sobre isso, mas suponho que fiquem nisso, em palestras bem pagas para pessoas interessadas em ter um tipo de entretenimento sofisticado. Algo assim como ir ao teatro e ter depois de que conversar com os amigos num restaurante caro.

R: Muitos expoentes da filosofia universitária brasileira afirmam nos bastidores que a filosofia clínica seria uma tremenda picaretagem. O senhor compartilha desse julgamento? O senhor concorda que a função essencial da filosofia é criar problemas e não tentar resolvê-los? G: A última frase é esquisita. Nem na matemática nem na física se entra para criar problemas. Ninguém pode entrar na filosofia com esse propósito esdrúxulo: “a partir de agora vou criar problemas”! Por outro lado, não há ingresso na filosofia, porque ‘a’ filosofia não existe. Se começa, ou não, a filosofar, que é diferente. E isso ocorre quando se tem um problema. Naturalmente, se temos um problema, o humanamente natural é procurar uma solução, que podemos ou não achála. E a filosofia ocorre ao se encontrar um problema e na tentativa de resolvê-lo. A palavra ‘clínica’ tem a ver com pacientes. É um termo da medicina, e é nas faculdades de medicina que ‘clinica’ aparece como parte da grade curricular que prepara as pessoas para tratar de doenças específicas. Assim como os estudantes têm ‘laboratório’ de isto e de aquilo, tem ‘clínica’. O mesmo ocorre com psiquiatras e com psicólogos. Nenhum curso de filosofia tem a menor relação com tratar pacientes, tratar doenças, nem suas grades curriculares estão para isso. Portanto, quem quer tratar alguém se esta fosse um paciente e cobrando pela consulta, como faria um clínico, por ter o título de filosofia, deve ser denunciado e ir preso. Não é picaretagem, é crime! R: E o retorno da filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio? Trata-se de um avanço ou de um projeto educacional fadado ao fracasso? G: Eu participei da luta, no Centro-Oeste, pela volta da filosofia ao ensino médio. E estive no Foro Sul de Filosofia, organizado pela professora Adriana Mattar Maamari, na Universidade Estadual de Londrina, pouco antes da aprovação em Brasília da resolução que tornava obrigatória a disciplina no Brasil. Em Goiás ela foi aprovada no final de 2005. Pouco depois da aprovação, uma professora de filosofia disse, numa entrevista a um jornal de Goiânia, “a volta da filosofia não vai resolver os problemas da educação”. Eu fiquei perplexo. Acaso alguém defendeu o disparate de que a inclusão desta ou daquela disciplina represente uma solução dos problemas da educação? De onde ela tirou essa idéia, não consigo imaginar. O ensino do português está nos currículos, suponho, desde que há escolas no Brasil. E não é pelo fato de muitas pessoas usarem “tu vai”, “tu fica” (incluída aquela professora, que assim fala quando conversa com as pessoas) que a disciplina deve ser retirada das escolas. Que significa “fadado ao fracasso”? Se meus colegas brasileiros, mestres ou doutores, não falam como se supõe que uma pessoa culta deveria falar, significa que o ensino do português nas escolas fracassou? Que a maioria das pessoas tenha ojeriza das matemáticas, significa que ela é um rotundo fracasso como disciplina e deveria ser retirada do ensino nas escolas? Que devemos entender por “sucesso”? Que disciplinas são, ou foram, um sucesso na escola e quais não? E qual é o critério que nos permitiria decidir isso? Acho que o problema está mal colocado. Está posto em termos econômicos, utilitaristas, quase que mercadológicos. Cada vez que uma disciplina é bem ministrada por alguém, tem sucesso com esse alguém, e se é mal ministrada por outro professor, fracassa com esse professor. Pois há pessoas, não disciplinas. Não podemos falar delas como se elas pairassem no ar, como substâncias misteriosas, como realidades platônicas. O que devemos perguntar é: um colégio deve ou não abrir um espaço para a discussão, para a reflexão, um espaço em que não se julgue a capacidade de memorização do estudante e que se estimule a própria reflexão, a criatividade, se aproveitando do entusiasmo e senso crítico próprio dos jovens. R: O senhor é favorável a que a filosofia se torne uma disciplina de vestibular? G: A questão não é simples. Porque se ela é incluída no vestibular, as comissões do vestibular, nem sempre compostas por pessoas da área, podem terminar forçando os colégios a modificar (desvirtuar, na verdade) seus programas de filosofia em virtude do que se pergunta no vestibular, como sucede com outras disciplinas. O vestibular pauta os conteúdos dos programas nos colégios e nos cursinhos. E como tais comissões têm uma espécie de autonomia inquestionável, podem terminar pondo questões de múltipla escolha no que deveriam ser perguntas filosóficas. E questões de múltipla escolha na filosofia... é de arrepiar.

R: Como o senhor acha que a filosofia deva ser ensinada no ensino médio? Na forma de história da filosofia ou de temas filosóficos? G: Eu elaborei e entreguei o programa de filosofia para o ensino médio à Superintendência de Educação do Estado de Goiás. E proponho que a filosofia exista na escola para se discutirem problemas atuais, em primeiro lugar. Assim, penso que o estudo não deve ser temático, e sim problemático. A partir dos problemas, proponho, os professores entram nos vários temas e, a partir daí, trazem para a discussão o que os filósofos clássicos, do passado ou do presente, têm defendido sobre os assuntos em questão. Por exemplo, podemos entrar no problema da igualdade. A igualdade de direitos, por exemplo, entre homens e mulheres. Uma vez introduzida a questão e debatida com os estudantes, podem ser trazidas à tona as idéias e argumentos que Platão ofereceu sobre isso. No programa abro a possibilidade para que o professor discuta com cada turma o que interessa a essa turma. E a partir da discussão, mostrar o que este ou aquele filósofo disse sobre aquilo, pedindo que, de novo, e com base no que os filósofos disseram, depois de os alunos terem tomado suas posições, sem a leitura dos filósofos, ou seja, os estudantes escrevam redações curtas se posicionando sobre o que estes propuseram. Se isso ocorrer, pouco a pouco definhará aquela tradição que pensa que filosofia é fazer meros comentários sobre os que intocáveis gênios da filosofia propuseram, e mostrará aos estudantes que sempre podemos discutir criticamente com a tradição. R: A maneira de se ensinar filosofia num colégio particular de classe média deve ser a mesma numa escola pública de periferia? Na sua opinião, como deve proceder um professor de ensino médio em sala de aula? G: A pergunta, parcialmente, já foi respondida na questão anterior. Mas gostaria de me pronunciar sobre a distinção colégio particular/colégio público. Comecei a dar aula no Brasil quase 20 anos atrás. Naquela época, em Goiânia, ao menos, a diferença na formação dos estudantes procedentes do ensino privado e público era muito grande. Nos últimos anos, contudo, essa diferença praticamente desapareceu. Apesar de não ter sido disciplina obrigatória, a filosofia era ministrada em muitos estabelecimentos públicos e privados. E o nosso departamento de filosofia, na Universidade Federal de Goiás, assim como o da Universidade Católica, continuou formando licenciados em filosofia. Esses estudantes foram dar aula na rede pública e privada e, penso, estamos colhendo os frutos. Por experiência própria devo dizer que nos últimos anos tenho recebido calouros melhor formados, tanto os que vieram da rede privada como os que estudaram na rede pública. Por último, é óbvio que uma escola com mais recursos vai estar em melhores condições que outra em que até carteiras podem faltar. Mas, no fundo, a filosofia pelo menos pode ser feita quando há mentes reflexivas, mesmo com poucas condições materiais — pois até a falta de condições pode nos levar a refletir sobre a desigualdade entre os homens, o que é uma oportunidade para se filosofar. R: Qual é a sua opinião sobre o método de se ensinar filosofia para crianças? Não seria algo prematuro demais? G: Não sei qual seria o método. Não tenho pensado sobre o assunto pois sinceramente não sei como isso seria possível.

R: O senhor acredita que as faculdades de filosofia estão ofertando ao mercado bons profissionais? Aliás, no seu livro De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, o senhor ataca implacavelmente a figura do especialista em filosofia. O senhor fala em “peste do comentador” e também em “comentariologia”. O que exatamente quer dizer com essas expressões? G: Vou responder com sinceridade. E não me leve a mal. Mas jamais agi na minha vida tendo em vista o mercado, ou o dinheiro. Nunca mesmo. Até abri mão, no meu país, de levar uma vida acomodada. Meu pai era dono de uma empresa de publicidade, a mais antiga da cidade, a capital do meu país, e não se cansava de me dizer como era possível fazer muito dinheiro trabalhando nela. Sou filho único e teria ficado com a empresa. Mas nunca me passou pela cabeça trabalhar para fazer dinheiro ou ajudar a que outras pessoas façam. Sou sincero, meu mundo foi outro, desde criança. Entrei na graduação para filosofar, e quando me formei, sempre pensei em formar filósofos, nunca alguém preparado para seja lá o que signifique ‘mercado’. Ao formar pessoas capazes de filosofar, pensei sempre, eles poderiam achar um lugar que lhes permita continuar filosofando. Porque ‘bons profissionais para o mercado’ brasileiro, na filosofia, muitos departamentos formam. Mas, cuidado, se entendemos que ‘bom profissional’ é um termo valorativo, e os valores são decididos por esses mesmos departamentos que pensam que um professor de filosofia se deve limitar a comentar e nunca discutir ou questionar ou rebater o que já foi feito por algum gênio intocável da tradição filosófica. Para um departamento que pensa que o que interessa é formar profissionais que se curvem ante a superioridade intelectual européia ou norte-americana, limitando-se a louvar e comentar o que por lá se fez ou se faz, isso é um ‘bom profissional’. Nesse sentido, eu formei e quis formar, maus profissionais: mentes abertas, críticas, criativas, problematizantes. Ninguém que faz isso é considerado bom em meios em que impera a mentalidade escolástica. R: No Equador, seu país natal, qual é a situação da filosofia e do seu ensino? G: Minha entrada no Departamento de Filosofia, em Quito, em 1974, coincidiu com um dos períodos mais terríveis na América Latina. Em setembro de 1973 houve o golpe no Chile, orquestrado pela CIA e dirigido pelo assassino e — hoje sabemos, ladrão — general Augusto Pinochet. Uruguai estava sob uma ditadura, Paraguai há muito tempo, Bolívia e Peru também e, pouco depois, Argentina. Isso fez que muitos intelectuais fugissem dessas ditaduras sanguinárias. Um dos primeiros países que lhes deu abrigo foi o Equador. Que tinha uma ditadura, mas uma ditadura não repressiva nem de direita. Para mim foi uma sorte porque o departamento em que estudei chegou, por esses anos, a receber muitos professores de filosofia do Cone Sul e a ser uma referência internacional. Nossa faculdade tinha muitos exilados chilenos, argentinos e uruguaios. Começava uma tradição de discussão filosófica e nela eu me formei. E foi esse o espírito da minha formação filosófica e intelectual. Eu defendi meu primeiro doutorado naquela universidade em 1982, frente a uma banca de estrangeiros, todos exilados, chilenos e argentinos. Mas já tinha decidido começar um outro doutorado nos Estados Unidos, para onde fui depois de defender minha dissertação. Naquela época, a ultradireita tomou o poder no Equador e a Sagrada Congregação para a Educação Católica deu um golpe na nossa faculdade. Converteu o Departamento de Filosofia, que fazia parte da Faculdade de Ciências Humanas, em Faculdade Eclesiástica de Filosofia. O Departamento de Sociologia passou a ter o próprio reitor como chefe de departamento, e o Departamento de Antropologia foi fazer parte do Departamento de História. Aí terminou, penso, o processo que começava uma tradição filosófica no meu país. Penso que até agora não conseguimos recuperar o que tínhamos naqueles anos.

R: E essa história de “complexo de inferioridade” daqueles que fazem filosofia no Brasil? É possível falarmos numa “filosofia brasileira” assim como falamos numa “filosofia latino-americana” ou numa “filosofia anglo-saxã”? G: Em Alheio olhar teço uma série de reflexões sobre as declarações de 16 importantes professores de filosofia brasileiros que apareceram em Conversas com filósofos brasileiros, de Marcos Nobre e José Marcio Rego (São Paulo : Editora 34, 2000.) Ante a pergunta sobre se existe uma filosofia brasileira, no sentido em que se fala de filosofia anglo-saxã ou européia, a resposta de todos eles, se minha memória não me engana, é “não, não existe”. Muitos entrevistados afirmam que existe trabalho historiográfico de qualidade, mas que não podemos falar, ainda, de filosofia brasileira como, por exemplo, falamos de filosofia alemã. Penso que as razões para isso encontremos na própria história do Brasil, incluído o passado recente, uma história de colonialismo e dependência. Em outras áreas da atividade intelectual e espiritual, contudo, o Brasil conseguiu sair dessa dependência, como na pintura, na música e, sem dúvida, na literatura. Podemos falar de pintura, música e literatura brasileiras que conseguiram projeção e reconhecimento universais. Na filosofia, pelo que já tenho visto ocorrer, parece que, finalmente, as coisas vão mudar. Um fato importante são as declarações de uma das mais destacadas personalidades na nossa área: Oswaldo Porchat. Nas novas gerações já temos a sementes que produzirão filosofia, de qualidade, como se faz em outras partes do mundo. Pelo que tenho visto nos últimos anos, parece que os  jovens que se doutoraram há pouco tempo e estão se formando não vão aceitar mais o papel de subalternos da filosofia: o de ficar como meros comentadores que devem esperar que se faça lá fora o que não se faz aqui para poder publicar comentários e justificar seus salários, sem produzir, isto é, eles próprios, filosofia. Estou convencido que na mente dos mais novos há esta palavra: “chega!” R: Num determinado momento do seu livro De como fazer filosofia o senhor afirma de maneira contundente que a Capes, o CNPq e o Ministério da Educação deveriam não só deixar de financiar mestrados e doutorados baseados em comentários das obras de filósofos clássicos, mas proibir esse tipo de pesquisa, já que seria em última instância um desperdício de dinheiro público. Não haveria um certo exagero nessa sua posição? O que então essas instituições públicas de fomento à pesquisa deveriam financiar? G: Esta é uma questão extremamente delicada. Poder-se-ia pensar que sou absolutamente contra a pesquisa historiográfica ou contra qualquer tipo de comentário. Não sou. Gosto que as coisas se conheçam pelos seus nomes. Devemos reconhecer que fazer história da pintura não é fazer pintura assim publicar como um comentário sobre as composições de Heitor Villa-Lobos não é fazer música. O trabalho, a pesquisa filosófica, mantenho, requer, precisa e se auxilia dos dois tipos de atividade. O grave é que se tenha feito o que o professor Porchat reconhece: se desestimular, pior ainda, proibir, a produção de idéias próprias por se considerar isso uma veleidade. Não há nenhum problema em se desenvolver uma pesquisa historiográfica ou se escrever um comentário. O grave é se obrigar os estudantes a só fazer uma coisa ou outra, pois é inaceitável que se proíba a produção de pensamento filosófico original, de teses e teorias próprias, se identificando ‘trabalho filosófico’ com ‘trabalho sobre as idéias de determinado filósofo clássico’. Desse modo, penso ser grave que agências de fomento à pesquisa considerem que está muito bem financiar, quase que exclusivamente, pesquisas sobre o que se pensa em outros lugares do mundo e, de entrada, não se dê um centavo a quem quer fazer pesquisa original, pensar um assunto que não tenha sido pensado por nenhum grande filósofo europeu ou norte-americano, vivo ou morto. Imagine: uma agência de fomento concede uma bolsa de pós-graduação para que um brasileiro faça um doutorado sobre neurocirurgia na Europa. O estudante se forma e volta ao Brasil. Você consideraria apropriado que este novo doutor se limite a dizer em artigos o que se faz por lá em lugar de ele mesmo pôr as mãos à obra? No esperaríamos que opere aqui e, a partir disso, publique os resultados das suas próprias experiências ao ele mesmo desenvolver técnicas não conhecidas por lá? E, o que é pior, poder-se-ia considerar apropriado que todos os novos doutores que se formem em física, biologia e qualquer outra ciência, na Europa ou nos Estados Unidos, não publiquem, quando voltam, artigos que não sejam exclusivamente sobre o que se faz na Europa e nos Estados Unidos?

R: Em sua coluna semanal sobre filosofia num jornal de grande circulação em Goiânia o senhor já disparou contra a filósofa Marilena Chauí, muito conhecida pelo seu pensamento combativo e muito criticada ou admirada pelo seu engajamento político-partidário. Como o senhor entende que deva ser a postura de um filósofo brasileiro diante dos fatos políticos nacionais? O filósofo deve se comprometer com algum projeto político-patidário e com alguma bandeira ideológica? G: Eu não disparei contra a professora Chauí. A afirmação já pressupõe um ataque pessoal da minha parte. Eu fiz uma avaliação de um texto dela em que há trechos que considerei e continuo considerando equivocados. Isso é ‘disparar’? Isso é ‘injuriar’, ‘atacar’, ‘ofender pessoalmente’? Pois quando você levanta críticas sobre as idéias de alguém, aqui no Brasil, como pude perceber depois, você é lido como se atacasse a pessoa ou, pior ainda, a ultrajasse. Como parece ser proibido criticar alguém, pois toda crítica, por mais correta ou bem-intencionada que seja, sempre é tida como agressão, ninguém se atreve a dize nada sobre os trabalhos dos colegas. E se alguém o faz, então ‘ultraja’, ‘ataca’ ou, como você diz na sua pergunta, ‘dispara’. Em segundo lugar, que eu tenha tido a ousadia inaceitável — agora vejo — de criticar o texto de alguém considerado um ícone da esquerda no Brasil, levou muitos a dizer: só pode ser por razões escusas, ideológicas, pessoais. Não tenho trato pessoal com a professora Chauí, não formo parte de nenhum grupo regional aqui no Brasil, não me formei aqui, não faço parte de clubes ou turmas. Portanto, não posso ter razões pessoais se nunca tratei a pessoa que supostamente ataquei nem formo parte de um grupo de desafetos. Penso que posso criticar o texto de um amigo querido e respeitado, dizer que o texto está completamente equivocado, e continuar querendo e respeitando meu amigo. Posso fazer isso em outro lugar, claro, porque aqui parece que isso é como uma declaração de guerra. Presenciei nos Estados Unidos esta cena. O filósofo, já falecido, Héctor-Neri Castañeda, conversava com Jay Rosenberg num almoço. (Eu estava sentado ao lado do professor Castañeda.) E um dizia ao outro a que periódico iria enviar o artigo em que criticava um outro artigo do colega. E o que iria ser criticado se sentiu satisfeito de que o outro tivesse considerado seu artigo digno de reflexão e análise, sem se sentir ofendido. Quando apareceu o Festschrift do professor Castañeda, num dos artigos, o mesmo Jay Rosenberg disse o seguinte sobre o homenageado: “Aprecio muito meu amigo Héctor-Neri Castañeda, mas penso que sua teoria ontológica está completamente equivocada”! Por que não podemos dizer algo assim e continuar respeitando a pessoa? Parece que só aqui no Brasil há essa idéia esdrúxula segundo a qual criticar é agredir ou desrespeitar. Perceba que pela forma como foi feita a pergunta se insinua, ou se deixa pairando no ar, a idéia de que meus artigos sobre a professora Chauí teriam motivações, se não pessoais, ideológicas. Se você tiver tempo, poderia ler todos os artigos que escrevi pouco antes da última eleição presidencial no Jornal Opção — os textos estão na internet ainda, na seção “Edições Anteriores”. Lula então foi eleito presidente. Penso que fui um dos poucos, se não o único intelectual da região Centro-Oeste, o do Brasil, que sistematicamente escreveu artigos apoiando a candidatura do PT, mesmo contra a linha política escolhida pelo Jornal Opção — que, devo dizer, nunca me impediu de publicar o que eu pensava. Apoiei o PT para presidente naquela oportunidade, e tenho apoiado, aqui em Goiânia, as candidaturas da esquerda para outras dignidades. Como ocorreu com Darci Accorsi, quando como militante do PT chegou a se eleger prefeito de Goiânia, e quando apoiei Pedro Wilson, do PT, que também se chegou a eleger para o mesmo cargo. Não sou um intelectual de direita, nunca fui, e não mudei de posição pelo aparente triunfo do capitalismo nos últimos anos. Mantenho minha posição de esquerda e é por isso que me solidarizei com a então senadora Heloísa Helena quando, num ato vergonhoso, foi expulsa do PT. Por ser de esquerda, novamente, fiquei feliz de vê-la obter a votação que obteve nestas eleições, impedindo que o novo centrão chegue a uma nova presidência no primeiro turno. Quem foi para a direita, penso, foi o próprio PT. Por isso, mais uma vez, fui um dos poucos intelectuais a reagir, pela imprensa, quando estourou o escândalo do mensalão. Não me omiti. Pois não por ter apoiado o PT vou ter que apoiá-lo sempre e sob quaisquer condições. E não vou apoiá-lo, certamente, quando vejo que perdeu o rumo histórico. Quando vejo que seus mais notáveis representantes vestiram terno e gravata, o que não é grave, pondo, no entanto, dentro dos bolsos internos desses ternos talões de cheques cujos canhotos, num único mês, devem ter um saldo de movimentação maior do que a movimentação de vários operários juntos durante um ano. (O filho do presidente Lula que o diga.) Sempre estive na esquerda e continuo na esquerda.

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