Darkness (Os Neófitos)

December 3, 2017 | Author: Samyz Carvalho | Category: Time, Death, Lilith, Life, Hades
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OS NEÓFITOS 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Algumas escolhas que fazemos podem nos levar a um caminho permeado por dificuldades que nos tolhem a visão impedindo-nos de divisar as nuanças coloridas que engalanam a criação. Que dizer então da possibilidade de se permitir alcançar o sucesso? Vez ou outra ocorre de sermos brindados com um encontro casual, nem sempre passível de explicação lógica, mas que nos envolve de modo tão intenso que se torna impossível ignorá-lo. Talvez uma fantasia pueril ou mesmo uma viagem psicodélica, definiriam os céticos. E ainda assim a certeza de estar vivendo a maior aventura de nossas vidas nos faz ver a realidade onde todos os outros enxergam apenas sonhos. Reunir esta tendência inata ao devaneio e a busca frenética por um mundo menos insensível gera, na maioria das vezes, uma sensação de completa insatisfação. Não encontrar eco, às aspirações que nos são tão caras, pode tornar-nos amargos e descrentes. Se juntarmos a estas contrariedades tão comuns traumas pessoais experimentados ainda quando em formação, o resultado será ainda mais problemático. Uma bomba ambulante preste a explodir espalhando seus efeitos devastadores por um maior ou menor número de indivíduos. Onde encontrar a tábua salvadora que possa servir de apoio para que não se cometa desatinos irreparáveis? Filosofias nos parecem palavras vãs desprovidas de sentido; conselhos soam como sons disformes e distantes, nada faz sentido. O eu anula o grupo e nada mais importa. Ainda assim a vida nos sorri. Podemos negar qualquer fator que não nos revele nossas próprias amarguras, mas ainda assim eles se perpetuam ante nosso torpor. Negar o nascer do sol ou o cair da noite, olvidar a sonoridade nascente do sorriso espontâneo ou desdenhar o olhar terno que nos lança a vida é um modo destrutivo de enfrentar as vicissitudes que nos golpeiam. Não que intente vestir-me de erudição e posar de doutrinador, mas será mesmo que nos encontramos totalmente isolados de qualquer emoção mais venturosa? Devemos nos entregar a toda sorte de aflições e flagelar nossa existência com sucessivos acessos de desespero?

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Uma pessoa. Não importa quem seja ou onde se encontre. Uma única pessoa pode ser o diferencial entre o abismo e as estrelas. Onde encontrá-la? Como reconhecê-la? Podemos confiar em suas manifestações? Seria fácil poder encontrar alguém em quem pudéssemos depositar tanta confiança a ponto de nortear nossa existência seguindo as orientações que ela nos desse. Mas estaríamos, desta forma, realmente vivendo? Talvez jamais venhamos a encontrar-nos com um ser etéreo e evoluído como Darkness, mas se o achamos tão sublime por que não tentar imitá-lo? Tornar nossas as potencialidades que ele demonstra possuir? Difícil? Sim, sempre é difícil vencer nossas limitações. Só não devemos esquecer que estas limitações nos são impostas por nossas convicções revestidas de comodismo doentio. Só colhemos aquilo que plantamos. Antes de sairmos procurando por Darkness no âmago de fulano ou sicrano, por que não torná-lo vivo em nós? Abraçar conceitos doutrinários oriundos de uma mente alheia é o maior sinal de que não estamos indo para lugar algum. Conhecer este ou aquele sistema filosófico religioso pode e deve servir como parâmetro para nossas reflexões. Mas apenas isto. Parâmetros não devem ser tomados em conta de leis indiscutíveis ou inquestionáveis. A opção pelo modo como experimentaremos nossa existência não deve se prender a conceitos que não nos sejam inerentes, ou corremos o risco de deixarmos este mundo plenos de insatisfação. Neste sentido, somos tão normais quanto qualquer outro viajante desta imensa nave material. As angústias são concretas assim como o são todos os fatores que nos cercam. Se cada um procurasse tornar-se uma estação de recepção, filtração, transformação e retransmissão das energias que grassam por toda criação, o mundo em que vivemos tornar-se-ia, ao menos, diferente. Talvez menos insensível e injusto. Antes que nuvens turbulentas consigam fender os olhos que anseiam por um panorama menos insensível, apresento o relato de uma vivência incomum, tenha acontecido ou não, mostra que quando a hora é chegada nada pode nos deter e, talvez mais capital que tudo, quando respeitamos nossa própria maturidade nunca incorremos em deslizes. Todas nossas experiências se tornam lições imprescindíveis a nosso crescimento. Darkness pode ser um conceito ainda distante para muitos, mas Fobos, Lilith, Deimos, Pandora, Mefisto, Set, Eve e Hades podem ser encontrados em muitas ruas das muitas cidades deste nosso mundo. Pessoas que conhecem as mazelas do mundo tendem a incorporar apenas as dores e lamentações, mas quando não se acomodam ou se acovardam o efeito é outro. Rebelam-se diante do revés e alimentam-

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se de energias supremas lutando aguerridamente até superar sua condição infeliz. Convido aqueles que tiveram suas vidas corroídas por acontecimentos embalados por infortúnios ou que tenham experimentado situações que aflitivas que silenciem suas decepções e procurem ouvir a força que ainda habita, latente, seus âmagos. Utilizem-na para reverter as expectativas que criaram. Rebelem-se contra a insensibilidade do mundo e mostrem o quanto são sensíveis. Não agrilhoem seus sonhos e suas liberdades apenas por receio de serem vistos como estranhos. Somos únicos e apenas a nós nos cabe a responsabilidade pela condução que damos a nossas vidas. Libertem-se da mesmice e vivam! Hades

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A sombra da noite, para a maioria, se tornou o habitat ideal para acobertar muitos delitos e delinqüentes. Muitos, também, nos consideram tão delinqüentes quanto aqueles que praticam o mal. Tudo isto não tinha significado algum para mim e para um grupo de colegas. Mas, em determinada noite, tudo mudou. A cidade se encontrava envolta pelas trevas. A lua havia desaparecido no escuro do espaço insensível. Após alguns dias de intenso calor, a chuva parecia corroborar nosso estado de ânimo. Nossas almas clamavam pela angústia e pela dor. Éramos oito. Cinco rapazes e três garotas. Todos com um único destino, o suicídio. -- Então, ainda em pé nosso passeio? Set perguntou olhando o céu banhado em lágrimas espectrais. -- Por que a dúvida? Interpelou-o Fobos, nosso líder. -- A chuva... tentou argumentar, Set. -- A chuva é como nossas lágrimas a verterem sobre a Terra, ou talvez nosso sangue a gotejar por nossos corpos. Quem sabe se não haverá, enfim, um fim em tudo... filosofou Fobos. Naquela época orbitávamos entre os dezesseis e os vinte anos. Pela ordem etária estaríamos assim: Fobos, Lilith, Deimos, Set, Mefisto, Hades, Pandora e Eve. Logicamente que não se tratavam de nossos verdadeiros nomes, mas se tudo quanto abominávamos estava estreitamente relacionado ao mundo exterior, por que prolongá-lo entre nós? Não, éramos quem éramos. Nossos verdadeiros nomes não significavam nada. Fobos era o líder. Seus vinte anos lhe conferiam a supremacia que o mantinha na liderança. Filho de um rico empresário, aderira à cultura e ao meio de vida gótico por sentir-se um estranho no complicado e hipócrita mundo em que os pais viviam. Não era nenhum rebelde, apenas procurava seu próprio caminho. Seu jeito seguro de nos liderar fazia com que se tornasse natural respeitá-lo. O fator mais intrínseco de sua personalidade era mantido oculto sob as muitas camadas de conceitos que haviam aderido a seu caráter. Nenhum de nós, embora enfrentando situação semelhante, imaginávamos o quanto ele era discriminado pelos seus. Não podíamos sequer supor que ele já não tinha mais o amparo de qualquer um dos seus familiares. Estava só. Lilith era uma moça linda, mas um tanto afetada. Somente quem a conhecia mais profundamente sabia que esta afetação era uma das armas que utilizava para se defender das agressões do mundo externo. Sua índole contestadora a tornara um peso para a família.

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Aderiu ao grupo ao travar conhecimento com Fobos. O jeito indolente e plangente que ele demonstrava possuir a cativara. Da mesma idade que ele, ela se enamorou e acabou aderindo ao seu estilo de vida. Com o passar do tempo, sentiu que sua alma vibrava tal qual as manifestações de vida dos góticos. Desde então, sentia-se cada vez mais irmanada com todos os aspectos que caracterizavam o grupo. Deimos. Este era uma incógnita. Alguns meses mais novo que Fobos e Lilith, ainda na casa dos dezenove, entrara para o grupo vindo de uma família onde todos eram góticos. Não os acompanhou por julgar faltar espaço para ele. Dizia que se sentia mais integrado ao grupo que a família. Embora não aparentasse possuir nenhum traço angustiante, também trazia as marcas que abatem aqueles que sofrem os tormentos da dor. Set. o mais irritado de todos. Sempre pronto a atacar quem quer que fosse, só mantinha sua raiva controlada quando Fobos o enquadrava. Não sabíamos muito a seu respeito. O pouco que ele nos havia confidenciado demonstrava que em seus dezenove anos de vida, enfrentara a barra de haver vivido em um lar destruído pela violência e pelas drogas. Talvez por este detalhe, nos o aturávamos e relevávamos suas explosões. Mefisto. Este era o retrato da adolescência. Mal havia completado dezoito anos quando viu seu restrito mundo desabar. Não era o mais novo do grupo, mas era aquele que há menos tempo fazia parte dele. Não era muito ligado ao estilo que seguíamos, só decidiu nos acompanhar por falta de opção melhor. Pandora. O que poderia se esperar de uma menina de quinze anos que passara os últimos cinco sofrendo abusos dentro da própria casa? Não era oriunda de nenhuma família desprovida de posses, pelo contrário. Porém, sua história fazia coro àquelas tantas que se desenrolam nos meios menos abastados. Encontramo-la pronta para se jogar de uma ponte. Ao lhe falarmos sobre as angústias tão características que nos permeavam os âmagos, ela se convenceu a desistir de por um fim a vida. Desde então, isto já se dera há cerca de dois anos, vivia com Fobos e Lilith numa casa que haviam alugado. Eve. Quem a encontrasse andando pelas ruas jamais imaginaria que aquela criatura doce de ar angelical fosse uma de nós. Embora estivesse dominada por uma dor muito forte, não deixava transparecer a tortura que a consumia. Filha caçula de um engenheiro e uma professora universitária tinha uma vida confortável e tranqüila. Mas tudo ruiu logo que completou três anos. Naquela época, descobriu-se que ela era portadora de uma doença degenerativa muito grave. Os médicos lhe prognosticaram, no mais auspicioso ensejo, cinco anos de sobrevida.

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Desde então, viveu rondada pela presença constante da morte. Não era de se estranhar que se sentisse tão fascinada por ela. Apesar desta provação, ou talvez motivada por ela, nunca pensou em abreviar sua existência. Estava imbuída da determinação de aproveitar cada momento que ainda tinha para viver. Ah, em tempo, em breve ela completará dezessete anos. Por fim, eu, Hades. Dezessete anos de uma vida sem graça. Vitima, será que é certo definir assim? Bem, considerava-me uma vitima da timidez causada pela má formação de meu porte físico. Em outras palavras, me achava feio. Sem a menor chance de conseguir conquistar a atenção de alguma garota. Tentei sufocar minha timidez entregando-me aos estudos. Tornei-me, quer dizer, acabei me destacando dentre os demais. Iria dizer que havia me tornado inteligente, mas creio que isto seja algo que já trazemos em nós desde o momento da concepção. Chegou um momento em que estava estafado. Já não conseguia mais me concentrar em nada. Foi quando os “amigos” surgiram com a “solução” para tudo; as drogas. Embarquei nesta de cabeça. Estava com treze anos. Minha primeira “viagem” foi além de minhas forças e ali mesmo terminei com os embalos das drogas. Havia experimentado uma overdose. Meses internados em um hospital e depois o caos. Minha família simplesmente me virou as costas. Porque iam perder seu precioso tempo e desperdiçar suas energias com um derrotado? Que eu me virasse. Rodei por muitos cantos até ser acolhido por um velho meio lelé. Que de louco não tinha absolutamente nada. Ele me abriu os olhos e evitou que me perdesse de vez. Antes de morrer, sugeriu que eu procurasse um tal de Antenor. Foi no estabelecimento que este Antenor dirigia que encontrei o grupo. -- Está pensando em que, Hades? Perguntou-me Fobos. -- Heim? -- Parece alienado. -- Não sei se devemos ir. Algo me diz que não deveríamos. -- Hei, pessoal! Nosso caçula está com medo! O riso, embora não fosse debochado entre nós, vazou a ironia de todos. Não era por medo que desejava evitar aquele passeio, afinal já havíamos realizado tantos outros. Mas naquela noite... bem, a verdade era que minha sensibilidade estava aguçada. -- Não é medo. Retruquei. -- Se não é medo, desafiou-me Fobos, então deixe de não me toque e vamos.

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Muitas foram as vezes em que me perguntei porque aceitara participar daquele grupo. Aos dezessete anos tudo que mais queria era fazer parte de uma tribo. A mais próxima de meus anseios e objetivos era aquela. Fazer o que? Nossos trajes, tão escuros quanto a noite que nos acolhia, fazia-nos parecer quais camaleões a transitarem por ruas e vielas pouco movimentadas. Fobos seguia sempre à frente. A seu lado Lilith, sua namorada. Os demais iam seguindo aleatoriamente. Não tínhamos uma posição ou um posto. Apenas Fobos e Lilith estavam além de nossas frágeis participações. À medida que caminhávamos sentíamos o odor nauseabundo que pairava no ar. A data havia sido especialmente escolhida por todos. A noite que antecedia o dia das bruxas estava povoada por criaturas sinistras. As energias que se cruzavam não prognosticavam nada de bom para a noite. Tudo conspirava para que meus temores se tornassem mais e mais gritantes. Quando finalmente chegamos a nosso destino, Fobos detevenos e, como um líder inquestionável, ordenou: -- Silêncio! Precisamos manter a discrição. Se alguém nos flagra, adeus reunião. Enquanto aguardávamos que Fobos nos ordenasse a ação, ele permanecia impassível ante o portão de nosso objetivo. Nenhuma alma viva podia ser vista nas proximidades e ainda assim Fobos nos mantinha ocultos nas sombras. De repente, ele nos mirou e bradou: -- Agora! Como se houvéssemos sido atingidos por descarga elétrica, saltamos e corremos. Sem mesmo calcular a distância e a altura, saltamos o muro que nos separava de nosso intento. Com ágeis movimentos e em poucos segundo, estávamos no interior do mortiço cemitério. As lápides reluzentes não nos atraiam. Procurávamos por aquela que já nos havia servido de altar. A história do corpo que jazia em seu interior era tão assombrosa quanto o fato de estarmos ali. Os restos mortais de um cruel coronel que cometeu os mais insanos crimes, era o despojo que compunha nosso espólio. -- Sejam bem vindos ao templo da morte. A voz de Fobos soava cavernosa toda vez que desejava nos impressionar. -- Esqueçam os medos que tentam dominar suas almas. Olvidem os receios que tumultuam suas razões. Acolham a dor, a angústia o desprezo pela vida. A hora é de reverenciar a morte! Se ainda faltava um único fator que nos conduzisse ao pandemônio de incertezas que grassavam em nossos íntimos, o estrondoso

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trovão que se seguiu ao término da invocação feita por Lilith, serviu como complemento. Por instantes, apenas o silêncio se fazia ouvir. Antes que Fobos pudesse prosseguir com os ritos inerentes as nossas reuniões, um riso estridente e funesto cortou a noite. Imediatamente nos colocamos em alerta procurando pela origem de tal riso. Não precisamos procurar muito. Postado de cócoras sobre um dos túmulos, uma figura lúgubre e esquálida dardejava correntes de sensações inéditas. -- Então encontro um bando de adoradores da morte! O riso e a voz que se misturavam no ar era tão espectral que senti meu sangue gelar. O semblante alucinado daquele que nos interpelava sugeria que estávamos diante de alguém cuja razão esvaíra-se como areia em uma ampulheta. -- Quem é você? Soou a pergunta de Fobos. Mesmo sentindo o mesmo medo que nos dominava, Fobos tentava se mostrar confiante. -- Darkness! Foi a resposta lacônica que ouvimos. -- Ninguém se chama Darkness. Redargüiu Fobos. -- Eric Draven soa melhor? Ironizou o estranho. -- Também não acredito que tenha o mesmo nome de um personagem de cinema. Fobos insistiu em sua intenção de não se deixar intimidar. -- Conhece a história? Zombou o estranho. -- O que acha? Acaso pensa estar diante de um grupo de mauricinhos? Como resposta apenas o riso ecoando na noite. -- Não tem o direito de se intrometer em nossa reunião. Desafiou Fobos. -- Pelo que consta, não detêm o título de posse deste local. O estranho devolveu o desafio. -- Quem é você afinal? -- Lhe forneci duas identidades. Escolha aquela que mais lhe agrada. -- Impossível! Quase gritou Fobos. Como ousa... -- Hei, vai com calma! Adiantou-se o estranho, dessa vez com um tom tão suave que parecia ser um velho conhecido. Não quero tumultuar a festinha de vocês. -- O que deseja, Darkness? Lilith enfatizou o nome pretendido pelo estranho. -- Nada. -- Como nada? Vociferou Fobos. Se não fosse por sua inoportuna presença estaríamos realizando nossos ritos.

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-- Ritos? Chama uma reunião enfadonha onde prevalece o monólogo de rito? -- O que entende de nossos ritos? Nem mesmo conhece nossas finalidades. -- Como se autoproclamam? Góticos? Darks? -- O que tem com isto? -- Gostam de rituais, não? -- Nossos rituais. -- Talvez possa contribuir para que deixem de lado este encontro banal. -- Não se atreva... a zanga de Fobos perdeu-se no vazio. Em um segundo o estranho abandonou a postura na qual se mantivera até então, estendeu seus braços para o alto e conclamando as energias do cosmo, lançou palavras desconhecidas para o ar. Repentinamente o céu pareceu encher-se de raios. Clarões ardentes pareciam precipitar-se das mãos do estranho. Seus olhos brilhavam com tanta intensidade que mal podíamos encará-lo. Ao observálo mais atentamente, notamos que ele levitava. -- Pelos chifres de belzebu! Exclamou Pandora. -- Que diabos está acontecendo? Balbuciou Deimos. -- Ele é um bruxo! Bradou Lilith amedrontada. Boquiabertos ficamos contemplando aquele inusitado espetáculo. Fobos não conseguia disfarçar o espanto. Todos os demais, incluindo eu, estávamos pasmos. Darkness, ou quem quer que fosse, nos surpreendeu além de qualquer expectativa. -- Mas como ele consegue? Sussurrou Eve. -- Isto é impossível! Comentou Deimos. Após algo em torno de dois minutos, Darkness voltou a tocar o solo. Como se nada de extraordinário houvesse acontecido, lançou seu olhar inquiridor sobre nós e pronunciou-se: -- Será que foi suficiente? -- E... e... Fobos só conseguiu gaguejar essas monossilábicas letras. -- Bem, vejo que agradei. Se quiserem, poderão me encontrar por aí. -- Espere! Até hoje, nem mesmo eu sei de onde veio a força que me inspirou pronunciar esta frase. O certo é que Darkness parecia estar esperando por ela. -- Ora, ora. Vejo que não me decepcionou, “Hades”. Talvez fosse melhor escolher um outro nome. Este não combina muito com sua índole.

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-- Eu... eu penso que podemos conversar um pouco mais. -- O que pensam seus amigos? -- Não sei... Embora Fobos não gostasse que tomássemos qualquer decisão sem antes consultá-lo, não manifestou nenhuma contrariedade. De bom grado sentou-se, não sem antes solicitar que formássemos um círculo. Darkness posicionou-se no centro do círculo e nos incitou a expressar nossas dúvidas. O que se viu foi uma explosão de indagações. Cravamos dezenas de perguntas nos ouvidos de Darkness. Ele parecia se divertir muito com nossa atitude. Era como se estivesse brincando com nossas emoções. -- Bem, começou ao notar que já não tínhamos mais perguntas a fazer, pretendo responder a todas indagações levantadas, mas primeiro quero que exercitem suas mentes. -- Como? Suspirou Lilith. -- Fechem os olhos. Agora tentem espantar qualquer tipo de pensamento que possam ter. Deixem que o vazio se aposse de suas mentes. Aquilo não era bem a nossa praia. Gostávamos de recitar poesias, falar sobre nossas angústias, dores, sobre a morte, cantar nossos hinos de repúdio a tudo que era alheio a nosso mundo, enfim, éramos mais pragmáticos. -- Não, não! Não precisam diluir o mundo em que vivem. Apenas o olvidem por um momento. Não sou nenhum canibal, não pretendo devorar-lhes o cérebro ou mesmo sugar-lhes a alma. Aquela incipiente manifestação de humor nos fez relaxar. Pela primeira vez desde que aceitara entrar para o grupo, sentia que estávamos todos num mesmo degrau. Até Fobos não ousava questionar a condução que Darkness nos impunha. -- Quando o vazio se instalar em suas mentes, comecem a sentir o ambiente em que se encontram. O vento, a chuva, o ruído do trovão... lentamente sintam toda energia que flui nesta hora. Em alguns momentos, chego a pensar que tudo aquilo não demorou mais que uns dois ou três minutos, em outro acredito que ficamos a noite toda naquela contemplação profunda. A única certeza que temos, desde então, é que ao abrirmos os olhos Darkness havia evaporado. Era como se ele jamais tivesse estado ali. -- Que diabos aconteceu aqui? Esbravejou Fobos ao recobrar o controle. -- Ainda estou meio zonza. Adiantou Lilith. -- Onde esta aquele cara? Questionou Eve.

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Eu, por meu lado, sentia que todo receio que me dominava havia se exaurido como por encanto. Pela primeira vez na vida sentia uma paz tão reconfortante tomar meu âmago que tudo o mais parecia ter perdido qualquer significado. -- Hei, estou falando com você! A intervenção mais contundente de Fobos, tirou-me de meus devaneios. -- Heim? -- O cara que estava aqui, viu para onde ele foi? -- Não. -- Mas que sujeito mais estranho. Comentou Pandora. De onde será que veio? -- Não sei, mas ele era tão... tão... Eve deixou que profundo suspiro escapasse de seu peito. -- Considerando que a noite foi tumultuada, sugiro irmos até o Coven Club. Fobos mais ordenou do que sugeriu. Resignados, deixamos as dependências do cemitério e fomos para nosso tradicional ponto de encontro. Um fator que naquele instante nenhum de nós poderia supor que havia surgido, era o fato de que daquela noite em diante, nada mais seria como antes. O Coven Club estava igual aos demais dias. Uma banda tocando músicas típicas de nossos costumes, alguns grupos se divertindo, mais do que o recomendado, com bebidas. Nada de anormal não ser... -- Pelos cornos do chifrudo! Bradou Fobos. Confortavelmente instalado em uma das poltronas do salão, Darkness se entretia com alguns aperitivos. -- Filho da mãe, está nos seguindo! Esbravejou Fobos. -- Vai com calma, amor. Aparteou Lilith. -- Uma ova. Este cara vai ter que se explicar. Totalmente descontrolado, Fobos aproximou-se do local onde Drakness saboreava seus petiscos. -- Muito bem, seu fantasma ou seja lá o que for, acho que tem uma explicação a nos dar. -- Explicação? Por que? Já não tiveram emoções demais para uma noite? -- Não venha querendo bancar o espertinho. Pode ter nos confundido lá no cemitério, mas aqui o esquema é outro. -- Melhor se acalmar. Por que não se senta? A tranqüilidade com que Darkness se expressava exasperou ainda mais nosso líder. Embora ele aparentasse ser tão gótico quanto nós, suas atitudes nos deixavam atônitos. Ou ele estava se divertindo a nossas

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custas, ou então suas intenções eram totalmente desconhecidas por qualquer um de nós. Enquanto apenas observávamos o desenrolar do diálogo, Eve parecia participar de cada gesto. Discretamente a puxei para um canto e segredei-lhe: -- O que está fazendo? -- Heim? -- Parece perdida no encanto do estranho. -- Com ciúmes? Ironizou. -- Não. Apenas lembre-se que Fobos pode não gostar. -- E por que deveria me importar com isto? -- Ele não gosta que tomemos atitudes independentes. -- Ele é um babaca! -- Eve! Apesar de minha aparente indignação, confesso que sempre tive vontade de expressar o mesmo. Fobos era um manipulador. Conduzianos como se fossemos crianças brincando com um jogo perigoso. Não levava a sério nenhuma de nossas indagações. -- Reparou como ele está inseguro? Perguntou-me Eve. -- O que? -- Fobos. Darkness parece tê-lo encostado na parede. -- Não sei não. Até saber o que este cara pretende, penso que seja melhor não avançarmos o sinal. -- Tem tanto medo, assim, do Fobos? -- Só não quero ser a origem de desavenças entre nós. Já me bastam às implicâncias que sofremos das demais pessoas. -- Está certo. Embora Fobos seja um ditador, ele sempre nos deu respaldo. Em consideração a isto, esperarei até termos certeza de quem realmente é este Darkness. -- Obrigado. Este pequeno colóquio acabou por desviar nossa atenção dos fatos que se desenrolavam entre Darkness e Fobos. Ao retornarmos para juntos dos demais, Fobos estava só. -- O que houve? Perguntei para Lilith. -- O cara se mandou. -- Como? -- Sei lá. Num momento eles estavam ali conversando, no outro... -- O que Fobos disse a respeito? Quis saber Eve. -- Nada. Ainda estamos esperando que ele nos chame.

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Os próximos dias foram absorvidos por uma lassidão sem igual. Nossos já angustiados ânimos foram solapados por uma avalanche de fatos rotineiros e enfadonhos. Desde a aparição de Darkness, já não havia mais muito afinco de nenhum de nós, para encontros ou reuniões. -- Isto tem que mudar! Afirmou Fobos. Não podemos ficar prostrados apenas porque um estranho se mostrou arrogante e tripudiou sobre nós. -- O que pretende fazer? Lilith era sempre a primeira a se manifestar. -- Temos que planejar algo grandioso. Algo que ainda não ousamos. -- Um baile no mausoléu de algum ricaço? Sugeriu Deimos. -- Não, não. É preciso que seja algo inédito. Algo que nenhum outro grupo tentou. -- Assim fica difícil. Comentou Pandora. Nosso grupo sempre copiou os passos de outros mais experientes. -- Pois está na hora de sermos originais! Quase gritou Fobos. Chega de nos inspirarmos nos outros. Temos que construir nossa própria identidade. -- Posso intervir? Timidamente atrevi a me manifestar. -- O que tem para nos dizer? -- Este ânimo todo não contradiz nossas expectativas? -- Como assim? -- Sei lá, só me pareceu ser festivo demais. -- E parvo! Não é porque somos quem somos que não podemos brindar a vida. Quantas vezes já não participamos de festas no Coven Club? -- Desculpe-me. -- Hei, pessoal! Manifestou-se Eve. Esta é uma ótima ocasião para entregarmo-nos a lamentação. -- Quieta pirralha! O rancor traduzido na fala de Fobos fez todos se interiorizarem. Não havia clima para mais nenhuma celeuma. Encobertos pela angústia, permanecemos sussurrando poesias ou cantarolando músicas que expressavam nossa tristeza e nossa dor. -- Dor! Acham que esta lamentável covardia é resultado da dor! O som sinistro que tanto gelara nosso sangue ressoou na noite. Outra vez nos víamos diante do enigmático Darkness. -- O que deseja aqui? Não percebe que não é bem vindo?

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-- Afirmam serem vítimas da dor. O que sabem sobre dor? Um revés rasteiro que lhes tolheu o desejo de viver? Um olhar mais debochado que lhes impingiu humilhação? O que sabem sobre a dor? -- Não ironize nosso modo de viver. O que tem a ver com nossa escolha? -- Nada. O tom lacônico utilizado por Darkness nos deixou assombrados. Num átimo pareceu-nos que todo ser de Darkness emanava dor e angústia. Seus olhos frios derramaram lágrimas furtivas. Em suas mãos filetes de sangue corriam em direção ao ar. -- Por que negam a oportunidade que têm? Não bastam os percalços que tão tenazmente se impõem a vossa frente? Por que teimar em obstruir mais e mais o clarão da lua? O tom lamentoso sugeria uma dor até então desconhecida a todos nós. Dos olhos de Drakness já não eram mais lágrimas a perderem-se pelo rosto, mas sim fios rubros de um sangue rutilante. -- Você está... está... Eve tentou expressar aquilo que todos sentíamos e testemunhávamos. Não conseguiu. -- Se desejam, tanto assim a dor, posso lhes dar uma pequena demonstração do que significa estar realmente ferido. -- O que está propondo? Inquiriu Fobos. -- Não são admiradores da dor, da angústia, da morte? Pois então, posso levá-los até os domínios desta irascível senhora. -- Quer nos levar até o outro mundo! Admirou-se Pandora. -- Exato. Por alguns segundos poderei colocá-los em contato com os campos para onde vão aquelas almas que se deixam dominar pela depressão. Um pequeno quadro é evidente, mas garanto que não se arrependerão daquilo que irão experimentar. -- Como saber se tudo não passará de mera ilusão? Interrogou Fobos. -- Não saberão. Obedecendo a orientação de Darkness, nos colocamos em um círculo. Ao centro o próprio se encarregou de conjurar seus poderes. -- Estendam suas mãos de modo que elas fiquem postadas sobre a daqueles que lhes ladeiam. A mão esquerda deve, sempre, sobrepor-se a direita. Porém, um não deve tocar a mão do outro, apenas a mantenha sobre a outra. Depois fechem os olhos e se concentrem. Mal havíamos cerrado os olhos, sentimos nossos corpos formigarem. Inicialmente nossas mãos foram sendo tomadas por algo que nos pareceu pequenas descargas, depois estas descargas foram se espalhando até tomarem conta de todo nosso ser.

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-- Eu, na condição de Senhor das vicissitudes, conclamo as forças que regem as dimensões e torno-me portal para aqueles que anseiam adentrar os domínios da morte. Por momentos eu lhes concedo o dom da visão e da vidência! Trovões e relâmpagos fenderam o manto escuro da noite. Um caudal aquoso principiou um violento bailado por sobre a abóbada noturna. De repente o chão nos faltou. Éramos como folhas soltas no ar. Uma força incomensurável nos conduzia para um mundo além de nossas imaginações. Quando tudo voltou a ser silêncio e a ficar imóvel, tentamos abrir nossos olhos mas foi em vão. A escuridão reinante era tamanha que mal conseguíamos divisar nossos próprios corpos. Por segundos intermináveis permanecemos quais cegos diante de um ambiente desconhecido. -- Estão sentindo? A voz de Darkness soou mais sinistra que nunca. Embora tentássemos assimilar algo, não éramos capazes de entender o que se passava. O medo começava a tomar conta de nós. Intimamente sentíamos que havíamos entrado em um jogo, ou algo parecido, no qual éramos meros figurantes. -- Ainda estão no círculo mágico da energia. O ambiente que os acolhe e mais denso e lúgubre. Aos poucos irão se adaptando a ele. Soltem suas mentes e apreciem. O tom sarcástico empregado por Darkness gelou nosso sangue. Eu, intimamente, não estava gostando nem um pouco de tudo aquilo. Sentia meu corpo tremer como nunca havia antes. Não sabia se era por medo ou qualquer outro sentimento, mas o certo era que estava apavorado. -- Agora já estão se tornando mais semelhantes ao local onde estão. Lentamente abram seus olhos. Mas bem lentamente. Sintam que ele vai se acostumando com a escuridão. Ao terminarem de abri-lo, poderão admirar todo esplendor da dor. Após ser atingido pelo impacto de um breu sem igual, fui exercitando a mansidão que se exige dos monges enclausurados. Demorei uma eternidade para descerrar meus olhos. Talvez tenha sido o último a fazê-lo por completo, e este pode ter sido o fator que me levou a prostrarme sem fala ante o quadro que se descortinava a nossa frente. A visão de um vale totalmente estéril e frio já seria suficiente para encher-nos de pavor. Porém, as criaturas que... que... rastejavam sobre o chão... Não, não poderia ser verdade! Aquela cena deveria ser resultado de uma alucinação muito forte. Nem mesmo em meus piores

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pesadelos poderia imaginar quadro mais dantesco. Se aquilo fosse o inferno, então era pior do que minha mente o imaginara. -- Aproveitem bem o tempo que lhes foi concedido. Compartilhem a dor e a agonia que domina estes miseráveis! Olhando meus companheiros, percebi que estes se curvavam sobre o próprio corpo. Num primeiro momento não soube o motivo, mas assim que fui atingido pela energia pungente que irradiava por todos os lados, foi como se estivesse sendo lacerado. Dor! Uma dor tão forte que nos obrigava a dobrar nossos corpos. Uma dor tão forte que nos impedia de respirar normalmente. Uma dor tão forte que nossas almas pareciam estar sendo consumidas por uma chama mista de fogo e ácida. Uma dor tão forte que nossos sentidos se perderam na contingência do fim. -- Estes são apenas aqueles que se entregaram a uma vida de lamentações, inveja, submissão, negativismo. Este plano não retrata a dor que consome aqueles que se deixaram levar pela angústia e abreviaram a própria vida. Este é um plano mais leve diante daqueles que acolhem os desvairados mais aguerridos. Tremendo e gritando mais que podíamos, sentimos nossos corpos serem banhados por algo viscoso e tépido. Um olhar mais concentrado e testemunhamos a ocorrência mais horripilante que um ser humano é capaz de suportar. Chagas abertas expeliam uma mistura de sangue e líquido putrefato. -- Não! Não tentem fechar os olhos. Suas pálpebras estão presas. Não teria valor uma experiência desprovida da visão. Admirem e desfrutem de todo glamour que a entrega ao nefando habito de se autoflagelar origina. Darkness havia prometido uma experiência curta. Não era o que estávamos tendo. Ao menos não nos parecia ser assim. À medida que tentávamos caminhar pelo vale, sentíamos que nossas forças exauriam-se e éramos obrigados a locomovermos igual a todos os outros. Em instantes rastejávamos sobre aquele solo arenoso e insuportavelmente quente. O flagelo ao qual aqueles seres eram submetidos nos encheu de revolta. Bradando o mais alto que podíamos, esconjurávamos Darkness por nos fazer passar por aquela situação. Maldizíamos a conduta sádica que ele assumira. -- Não! Não se martirizem por eles. Apenas aqueles que escolheram estar aqui, estão aqui. Reflitam sobre as decisões que vocês tomarão ao se verem livres daqui. Serão elas que lhes conduzirão para este ou outro plano qualquer. Ninguém é trazido a força para cá. Cada um escolhe o lugar onde quer passar seus momentos no “além”.

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Esforçando-me o mais que pude, levantei meu tronco e consegui lançar um olhar furtivo para Darkness. Pasmo notei que já não era mais aquele homem esguio trajando o manto sombrio da noite quem nos fitava. Em seu lugar um ser alado envolto por uma luz dourada cujos olhos pareciam dois faróis, pairava sobre o vale e todos seus elementos. -- Então conseguiu me ver! Sempre achei que não se coadunava com o grupo que escolheu para seguir. Hades, definitivamente, não combina com sua índole. -- Me... me... me... ajude... foi o máximo que consegui balbuciar. -- A ajuda que procura está onde menos imagina. Do mesmo modo abrupto como tudo se iniciara, tudo teve um fim. As imagens e as dores que sentimos ainda nos dominou por mais algum tempo. Um tempo que durante muitos dias não saberíamos avaliar o quanto demorara a passar, mas que nos deixou marcas indeléveis. Ao recobrarmos os sentidos, encontramos Darkness acocorado sobre um dos túmulos a nos observar em silêncio. Seu semblante impávido e sereno contrastava com a fúria que dominava a noite e nossos íntimos. Os rugidos dos trovões ecoavam em nós. -- Então? Como se sentem? Mesmo que achássemos que havíamos permanecido por horas naquele mundo sufocante, a noite ainda reinava na esfera terrestre. Enquanto a noção de tempo não nos voltava, era impossível determinar sequer o dia em que nos encontrávamos. -- Espero que tenham aproveitado a experiência. -- Que diabos aconteceu com a gente? Perguntou um indignado Fobos. -- Não queriam conhecer o mundo da dor? -- Onde você nos levou? A voz de Lilith soou insegura. -- Apenas lhes dei uma pequena amostra daquilo que compõem o mundo para o qual vão as almas torturadas pela angústia e pela dor. -- Mas isto é uma injustiça! Bradou Fobos. Depois de tanto sofrimento vivido na terra ainda teremos que enfrentar mais ao morrermos? -- Sofrimento? Acham que suas penúrias lamuriosas revestemse de sofrimento apenas por negarem a ver além de suas limitadas paredes de egoísmo? -- Por que? Por que está sendo tão cruel conosco? Perguntou entre lágrimas, Eve.

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-- Não, minha doce criança. Não estou sendo cruel, apenas tento abrir-lhes os olhos. Apenas tento evitar que se percam e acabem chegando àquele local de dor e provação. -- Mas apenas somos diferentes. Será que somos tão errados por admirarmos a noite, a escuridão, a... a... Eve não foi capaz de completar seu pensamento. -- A morte! Completou Darkness. Em absoluto, não há nada de desabonador em ser diferente. Pode-se admirar o negror da noite, sem contudo se deixar contaminar pela melancolia que se julga habitar seu seio. Pode-se afeiçoar ao brilho ebúrneo e opaco da lua, sem contudo entregar-se a tristeza doentia da qual se acredita que ela se revista. Pode-se, enfim, até mesmo reconhecer na morte um momento de paz, porém não se deve mortificar-se a ponto da depressão escravizar sua alma, tungando a liberdade a qual ela necessita para evoluir. -- Mas o que fazer, então? Eve conseguiu ser menos aflita, desta vez. -- Olhem a natureza que os cerca. Admirem a miríade de exemplos que fervilham em seu seio. Percebam que em tudo há lugar para o germinar, viver e fenecer. E mesmo no fenecer, há o brilho radioso da vida a definir um novo recomeço. -- Somos góticos! Rugiu Fobos. -- Podem continuar sendo o que bem entenderem. Não há qualquer imposição de minha parte, apenas mostrei-lhes algumas peculiaridades de um dos mundos que podem se tornar o local onde terão que permanecer. -- O que ganha tentando nos amedrontar? Irritou-se Fobos. -- Não tenho intenção de amedrontar ninguém. Cada um colheu aquilo que seu espírito foi capaz de assimilar. -- Quem é você, afinal? Perguntou Fobos de modo arrogante. -- Ninguém e alguém. -- Chega de charadas! Se quer nosso reconhecimento, terá que ser direto em suas colocações. Esbravejou Fobos. -- O que não conseguiu entender? -- O que pretende com tudo isto? -- Impedir que se furtem as responsabilidades que lhes cabem. -- Responsabilidades! Estamos nos lixando para elas! -- Será mesmo? O que pensam seus colegas? O olhar inquiridor de Darkness caiu sobre cada um de nós. Assim como das outras vezes, pude sentir o quão fundo ele conseguia penetrar e nosso íntimos. No mesmo instante em que nossos olhares se

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cruzaram, senti que minha alma era devassada por completo. Esconder-lhe algo era impossível. Um vento insistente principiou seu bailado pelo cemitério. A chuva havia dado um tempo e apenas o odor característico de terra molhada indicava sua existência ainda próxima. Os relâmpagos já não faiscavam mais no infinito, porém os trovões ainda se faziam ouvir em intervalos cada vez mais espaçados. -- Quando o olhar de Fobos cruzou e fixou-se no de Darkness, seus joelhos se curvaram, sua respiração tornou-se ofegante e de sua boca um sussurro indecifrável ganhou o espaço. Seu semblante transmitia a sensação de estar sendo consumido por dor atroz. -- O que está fazendo? Bradou Lilith quase aos prantos. -- Nada! Seu namorado está em renhida batalha. -- Pare com isto! Implorou Lilith. -- Não depende de mim. -- Pare! Uma vez mais Lilith bradou. Todos permanecíamos em silenciosa expectativa. O que estaria se passando com Fobos? Que poderes Darkness possuía para impingir tamanha dor a nosso líder? De onde provinha tamanho controle? E a principal das perguntas, que até então me corroia a alma, quem seria aquele misterioso ser? -- Por favor! Eve foi tão suave em seu rogo que mal se notavam as lágrimas que banhavam suas faces. Assim que Darkness a fitou, seu rosto ganhou um brilho que ainda não havíamos visto. -- O que deseja, pequena flor? -- Liberte-o da dor. -- Não posso. A dor que o consome está nascendo de sua alma. Apenas ele pode por um fim a sua manifestação. -- Então lhe diga como fazer. -- Está bem. Num movimento tão brusco que mal notamos seu deslocamento, Darkness colocou-se à frente de Fobos. Ajoelhou-se e tocou sua fronte com ambas as mãos. Ao ter a cabeça tocada, Fobos emitiu um grito tão estridente que assustou a todos. Logo a seguir, seu corpo foi tomado por espasmos e um choro convulsivo o fez quedar-se. Durante muito tempo eles permaneceram naquela posição. Darkness com as mãos coladas a cabeça de Fobos e ele entregue a um pranto que parecia não terminar jamais. -- O que está acontecendo? Deimos perguntou para Lilith. -- Sei tanto quanto vocês.

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incrédulo.

-- Ele está absorvendo a dor que corroí Fobos. Anunciou Eve. -- Como pode saber o que ele faz? Indagou um Deimos

-- Ele me tocou e eu o sinto em mim. -- Como? Não sei se Lilith, Pandora ou Deimos foi quem pronunciou em primeiro lugar o espanto, mas o certo é que o fizeram quase ao mesmo tempo. -- Eu o sinto em mim. Ele está libertando Fobos do rancor e da ira que o dominava. -- Isto é loucura! Exasperou-se Lilith. -- Não! Devemos confiar na condução que ele nos oferece. -- Desde quando damos voz a um membro mais novo? Desafiou Set. -- Não têm que me dar voz alguma. Apenas abram-se para algo que está além de nossa compreensão. Darkness que nos presentear com o mais precioso dos tesouros, a sabedoria. -- Mas que bobagens está a pronunciar! Voltou a se manifestar Set. -- Não são bobagens. Interferi no diálogo. Também sinto a presença dele em mim. -- Seus bananas! Set perdeu a calma. Como podem dar ouvidos as considerações de um estranho? -- Esperemos pela recuperação de Fobos. Só ele pode nos dizer como agir! Sentenciou Lilith encerrando a incipiente discussão. A aurora começava a se mostrar no horizonte quando Darkness quebrou a união entre ele e Fobos. Aparentando uma exaustão sem precedentes, ele apenas lançou-nos um olhar cansado e se foi. -- Para onde ele foi? Perguntou um incrédulo Set. -- Ele estava aqui ainda há pouco. Comentou Deimos. -- Este cara parece um fantasma! Certificou Lilith. -- Pessoal! Eve chamou-nos a atenção. Fobos! Ao voltarmos nossos olhos na direção do líder, notamos que ele jazia inconsciente sobre a lapide escura e fria de uma das sepulturas. Prestativos, apressamo-nos em socorrê-lo. Seu pulso estava muito fraco, sua respiração inconstante e seu corpo tão frio quanto a laje que lhe servia de leito. -- Ele está morto? Perguntou Pandora tomada de pavor. -- Não. Sinto sua respiração. Pronunciou-se Set. -- E agora, o que faremos? Pandora estava realmente assustada. -- Temos que levá-lo para casa. Anunciei.

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-- Mas como, se chegarmos com ele neste estado, seus pais irão nos recriminar mais do que já fazem. -- Não, não. Eu falei para levá-lo para minha casa. A esta hora, meu pai e minha mãe já saíram para o trabalho. -- Tem certeza? Perguntou-me Deimos. -- Sim. O cortejo que deixou as dependências do cemitério transmitia a impressão do mais tétrico acontecimento que se podia testemunhar. Improvisamos uma maca e, colocados na lateral, transportamos o inconsciente líder para minha casa. Acobertados pelas cortinas que cerravam os cômodos de minha residência, ficamos mais a vontade para ocupar-nos com o estado de Fobos. Seu estado era preocupante. Vez ou outra seu corpo era acometido por espasmos inquietantes. Sem saber como proceder, nossa angústia crescia na mesma proporção que o tempo avançava. Fato que desconhecíamos, e só muito mais tarde ficaríamos sabendo, é que naqueles momentos tão delicados, Darkness agia. A partir do momento em que contatara Fobos, através do elo que mantivera com ele, seus espíritos se ligaram de modo tão estreito que passaram a dividir as mesmas experiências. Enquanto ficávamos apreensivos com a situação, Fobos e Darkness percorriam os campos dimensionais em uma jornada que objetivava o encontro de Fobos com ele mesmo. Drakness conduzia Fobos a uma viagem de autodescobrimento. -- Onde estamos. Fobos experimentava, talvez pela primeira vez na vida, um sentimento envolvente de paz e serenidade. -- Em uma dimensão entre a vida e a morte. -- O que fazemos aqui? -- Tentamos resgatar os sonhos que um menino já teve. -- Não está falando... -- Sim. -- Como pode saber? -- Ainda não compreendeu o mistério de minha existência, não é? -- Não. -- Quando o encontrei digladiava-se intimamente com a incerteza, a dor, a angústia. -- Tenho meus motivos. -- Todos nós temos. -- Mas então... -- Consegue sentir a paz que domina este plano?

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-- Plano? -- Plano, dimensão, setor, cada um dá o nome que lhe parece mais adequado. -- Ainda sinto o peso que minha angústia causa. -- Sendo assim, feche os olhos. Não se preocupe com nada. As preocupações são inerentes à matéria e aqui, bem aqui, não há lugar para elas. -- Não sei se consigo. -- Tente. Fobos cerrou os olhos e tentou manter-se tranqüilo. Sua alma agitada experimentou um vazio tão gigante que ele sentiu-se sufocado pelo nada. Vacilante, desabou sobre o elemento que lhe servia de piso. -- O que foi isto? -- A regressão. -- Para que serve? -- Para tentar resgatá-lo. -- Por que? -- Porque muito embora você acredite que não tem importância alguma para o mundo, sua existência tornou-se essencial para muitos que o conhecem. -- Não entendo. -- Deseja saber o que seus amigos estão fazendo? -- Podemos? Um simples acenar de Darkness e ambos testemunhavam nosso descontrole com a situação. -- O que estão fazendo? -- Velando-o. -- Por que? -- Você está desfalecido. Veja! -- Eu morri? -- Não. Apenas desfaleceu. Seu espírito precisa recuperar as energias que tem desperdiçado. -- Nunca imaginei que... que... -- Tudo bem. Não se envergonhe de assumir sua ignorância quanto aos mistérios da vida. A maioria das pessoas nem mesmo se dão ao trabalho de se questionarem. -- Quem é você, afinal? -- Um amigo. -- Anjo ou demônio? -- Nem anjo, nem demônio.

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chorando.

-- Lilith! Fobos desesperou-se ao observar sua namorada

-- Ela não pode nos ouvir ou nos ver. -- Ela não deveria estar assim. -- Ela o ama. Não por serem parecidos, mas por serem unos. -- Como assim? -- Seus caminhos já se cruzaram muitas e muitas vezes. A união dos dois sempre os atrai. -- Lilith! Desta vez a voz de Fobos era pautada pela ausência que sentia. -- Consegue entender porque não deve mortificar-se por ser como é? -- E o que faço com a dor, a angústia que sinto? -- Derrote-as! -- Como? -- Libertando-se. -- Não posso! A dor é mais forte que eu! -- Dor! Darkness foi enérgico ao pronunciar a palavra e continuou sendo enquanto expressava seu comentário. Julga ser dor o incômodo que lhe embala os dias? Que sabe você sobre a dor? Acaso já experimentou o abraço lancinante que a morte produz? Pois saiba que já vivi mil mortes e ainda assim não me entrego. -- Mas você é diferente. Soou a voz tímida de Fobos. -- Não! A diferença está na postura que assumimos ante ao infortúnio. -- Não tenho forças para reagir. -- Engana-se. Possui mais força que imagina. Sua força seria capaz de modificar o sentido do girar do mundo. -- Está exagerando. -- Quem está exagerando é você ao maximizar suas angústias. Se observar bem, verá que tem muito mais que eu para erguer vivas de satisfação. -- Por quais motivos? -- Poderia citar inúmeros, mas um único é o suficiente: Lilith. -- O que ela tem a ver com isto? -- Tudo. -- Não compreendo. -- Pare de se lamuriar e permita que o sol brilhe em sua vida. Não rejeite a ventura que lhe é ofertada.

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Fobos sentiu-se tão tocado pelo pranto de Lilith que lhe tocou as faces. O sentimento que o embalava era tão intenso que ela sentiu-lhe o toque. -- Ela sentiu meu afago! Surpreendeu-se. -- Sim. Todos nós conseguimos nos fazer notar quando aniquilamos o eu e deixamos nossa essência transbordar. -- Queria estar ao lado dela. -- Só depende de você. -- O que devo fazer? -- Escolher! -- Escolher? Mas escolher o que? -- O caminho que trilhará. O fim que determinará os rumos que irão tomar. -- Mas somos o que somos, não podemos mudar. -- Não! Não desejam mudar! Muito embora a mudança seja possível, ela não se faz necessária. -- Mas se nos entregamos a dor e a angústia... -- Não se entreguem. -- Devemos abandonar nosso estilo de vida? -- Fobos, Fobos! Tão seguro de si e tão inseguro de tudo. A voz de Darkness soou de modo paternal. -- Espere! Gritou Fobos ao notar que Darkness esvaecia-se. Durante um tempo que lhe pareceu interminável, Fobos permaneceu só. Sem ter com quem falar, sem saber como agir, ele entregou-se a um cismar sem nexo. Rodou, rosou e rodou sem encontrar uma lógica em tudo aquilo que vivenciava. Estava transtornado. Se a principio imaginara que Darkness fosse apenas mais um rapaz a procura de acolhida em seu grupo, alguém tão gótico quanto ele, enganara-se. Se em algum momento desconfiou que aquele rapaz esguio e sombrio almejava substituí-lo na liderança do grupo, errara. Darkness não era nada daquilo que imaginara. Por mais que tentasse elucidar o mistério que envolvia aquele estranho, sempre acabava por ser derrotado pela mais profunda obscuridade. -- Ainda cismando? Fobos foi tolhido em seus pensamentos. Assim como desaparecera, Darkness surgia ante o desavisado Fobos. -- Mas de onde surgiu? -- Sempre estive aqui. Não o deixei um segundo sequer. -- Mas... mas... -- Está na hora de voltar. -- Ainda não tenho as respostas que procuro.

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-- Terá muito tempo para encontrá-las. Um suspiro mais enérgico nos chamou a atenção. Ao voltarmos nossos olhares para Fobos, percebemos que ele se agitava no leito. -- O que ele tem? Desesperou-se Lilith. -- Não sabemos. Foi a resposta lacônica de Set. -- Maldito Darkness! Gritou Lilith. -- Não! Soou, ainda fraca, a voz de Fobos. -- Fobos! Quase em uníssono nos manifestamos. -- Não maldiga nosso amigo. Solicitou Fobos. -- Mas ele é o responsável por estar assim. Tornou a falar Lilith. -- Dêem um tempo. Mais tarde explico o que aconteceu. Durante quinze dias não vimos nem soubemos qualquer fato a respeito de Darkness. Este era um de seus mistérios. Para onde iria ao nos deixar? Onde moraria? Tudo estava voltando a normalidade quando fomos visitados novamente. Estávamos reunidos no cemitério de sempre, no túmulo de sempre, fazendo tudo como sempre, quando ele chegou. -- Boa noite, gente! Por mais que achássemos que estivéssemos acostumados, sempre que ele surgia, éramos pegos de surpresa. Fosse pelo surgir repentino ou pelo tom sinistro de sua voz, não tinha como disfarçar o impacto que sua chegada nos causava. -- Finalmente! Fobos pronunciou-se ao mesmo tempo em que o abraçava. -- Creio que a data seja oportuna. -- Como assim? Perguntamos. -- O dia das bruxas se aproxima. -- Não somos bruxos. Somos góticos. – Asseverou Set. -- No entanto, nada os impede de comemorarem, a sua maneira é claro, uma noite tão auspiciosa. -- O que tem em mente? Quis saber Fobos. -- Uma celebração em minha casa. -- O que! Está nos convidando para conhecer sua casa? O assombro de Eve era maior que sua indagação. -- Sim. -- Não acredito! Exclamou Deimos. -- Que tipo de celebração, será? Perguntou Pandora. -- Deixo que vocês organizem. -- Está brincando! Mefisto estava pasmo.

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-- De modo algum. Deixo tudo para vocês. Escolham tudo. -- Podemos convidar mais alguém? Lilith era a que se mostrava menos empolgada. -- Devem combinar entre vocês. Eu apenas ofereço minha casa para que celebremos. -- Acho que devemos manter isto entre nós. Manifestou-se Fobos. Sendo a primeira vez que vamos até a casa de nosso amigo, talvez devêssemos restringir as pessoas que o conhecem. -- Quanto a mim, não vejo inconveniente algum em receber mais alguém. Mas quero que tenham liberdade para decidirem como melhor considerarem. -- Vamos pensar e discutir o assunto, depois decidimos. Anunciou Fobos. Desde o dia em que fomos confrontados com a experiência assombrosa pela qual Fobos passou, ele se mostrava menos arrogante. Ainda era nosso líder, mas sua presença já não nos oprimia como antes. Era como se a presença, talvez ausência, de Darkness o houvesse transformado. Desta vez, antes que Darkness evaporasse, Eve o interpelou: -- Podemos conversar? -- Claro. -- A sós! -- Hum, de segredinhos com a gente! Zombou Pandora. Eve não se importou ou fez que não se importava. Segurando o braço de Darkness o arrastou para longe. Nunca ficamos sabendo a respeito de que conversaram. Somente compreendemos que o assunto havia sido sério pelo semblante fechado que ela trazia ao retornar, sozinha. -- Algum problema, Eve? Sondou Deimos. -- Não. Por mais que tentasse mostrar-se firme, Eve quase não conseguiu segurar o choro. Enquanto as conversas e leituras habituais se prolongavam, aproximei-me silenciosamente e indaguei-lhe: -- Quer conversar? -- Heim? -- Perguntei se... -- Eu entendi. -- Então? -- Não posso. -- Por que? -- Vai pensar que é atitude de criança. -- Hei, nem pense nisso. Sei que é a mais nova de nós, mas não penso que seja alguma criança.

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-- É... Não. Eve não era mais uma criança. Em poucos dias estaria completando dezessete anos, mas seu temperamento fazia-nos, muitas vezes, olvidar este detalhe. Suas atitudes concisas e sérias lhe conferiam uma aura mística. Sem que ela opusesse resistência, abracei-a afagando-lhe os cabelos. Sempre a admirei pelo caráter, muito embora não houvesse paixão em minha admiração, sentia que de um modo especial, eu a amava. -- Vamos. Acho que deve se abrir. -- Não sei se consigo. -- É preciso. A firmeza com que lhe falei não admitia recusa. Enxuguei as furtivas lágrimas que ganhavam seu rosto, alinhei sua cabeleira e ao vê-la mais calma, nos viramos para os demais e nos despedimos. -- Precisamos ir. Anunciei. -- Já? -- Tenho prova amanhã. Desculpei-me. -- Eu também. Informou Eve. Apesar de fazermos parte do grupo, éramos livres quanto a participação neste ou naquele evento. Assim, nenhum dos presentes estranhou o fato de ir antes do término da reunião. Silenciosamente conduzi Eve até um barzinho próximo ao cemitério. Como o dono era conhecido, solicitei um local onde pudéssemos ficar sossegados. Uma pequena sala nos foi oferecida e agradecidos nos acomodamos em seu interior. Durante cerca de duas horas permanecemos conversando. Iniciamos com amenidades e assuntos sem muita importância, depois passamos para o real sentido de estarmos ali. Eve era de uma singeleza impar. Sem rodeios ela explanou suas angústias. Sapiente de que era seu amigo, não se esquivou de nenhum detalhe. Ao terminar de falar, lágrimas rolavam de seus lindos olhos. -- Talvez não tenha motivos para estar derramando estas lágrimas. Falei tentando serenar-lhe os ânimos. -- Não. Sinto que minha dor está se tornando insuportável. -- Darkness não cortou a via de ligação. Apenas intercalou alguns fatores que os mantêm um pouco distantes. -- Viver a seu lado e separada dele, será um martírio muito maior do que eu posso suportar. -- Não diga isso. Ele nos tocou, lembra-se. -- O contato? -- Sim. Sei que você também foi tocada por ele.

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-- Mas é diferente. Ele nos tocou enquanto pessoas. -- Acha isto pouco? -- Eu o vejo como homem. -- E se, por acaso, ele não for um homem? -- O que? -- É. E se descobrisse que Darkness não é um ser normal, assim como nós? -- Do que está falando? -- Talvez ele seja uma espécie de anjo, ou quem sabe um ser de outro mundo, sei lá. -- Ainda assim eu continuaria a amá-lo. -- Eu sei. Mas pelo menos teria o consolo de saber que ele não a rejeita, apenas não podem se unir. -- E isto faria alguma diferença? -- Não? -- Mesmo que ele se revelasse na figura do próprio demônio, o sentimento que me domina não desvaneceria nem um pouco. -- Mas se não houve uma negativa da parte dele... -- Eu sei. No entanto, ele foi tão paternal ao conversarmos... -- Darkness sabe como nos tocar. Ele não deixaria uma fresta aberta caso uma união entre vocês estivesse descartada. -- Mas... -- Vamos combinar o seguinte. Se durante a celebração do dia das bruxas não acontecer nada, eu mesmo falo com ele. -- Não! Está maluco! Se agir assim, ele vai pensar que sou mais infantil do que imagina. -- Darkness sabe que não é infantil. Ele é capaz de enxergarnos na alma. -- Nisto você está certo. Toda vez que ele me fita, sinto que meu corpo se arrepia. É como se uma corrente gélida atravessasse minha alma. -- Então. Não sofra antecipadamente. -- Você é um amigo e tanto. -- Não gosto de vê-la sofrendo. -- Hei, somos góticos, lembra-se! O tom de gracejo empregado por Eve mostrou que ela já se refizera. Por alguns instantes só conseguimos rir. Ali, naquele espaço exíguo, mal iluminado, pude comprovar o quanto ela era sublime. Seu riso angelical a tornava quase translúcida, um ser etéreo. Os dias seguintes foram quase que totalmente preenchidos pela azafama de organizar a celebração. Todos dávamos palpites sobre o

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que deveríamos fazer. Nem mesmo Lilith, que a princípio se mostrara apática, escusou-se em participar do corre-corre. Na véspera do grande dia um outro fato gerou um certo alvoroço entre nós. Ao nos reunirmos para ultimar os preparativos da celebração, uma pessoa estranha ao grupo surgiu inesperadamente no cemitério. Seus traços bem como sua indumentária deixava claro que ela não pertencia ao meio. -- Olá. -- Oi. Foi a recepção fria que ela teve. -- Sou prima da Eve. -- Aconteceu algo com ela? A presença de uma estranha trazendo informação a respeito de um de nós, causou-nos mal estar. -- Ela se encontra acamada. -- Algo sério. Fobos tomou às vezes de porta voz. -- Não sabemos. Até agora não foi possível fazer um diagnostico mais preciso. -- Como ocorreu dela adoecer? -- Ela acordou bem disposta, disse que tinham que concluir os preparativos para uma espécie de celebração; bem, o pai dela, não concordou com nada. Eles acabaram discutindo e ele a proibiu de sair. -- Essa não. Pensávamos que este detalhe houvesse sido superado. -- Acontece que não foi. Eve tem fugido todas as noite sem que o pai soubesse. -- Nós não sabíamos disto. -- Eu sei. Ela sempre me conta tudo. -- E agora? -- Posso interromper? Perguntei meio indeciso. -- O que tem a dizer? Perguntou-me Fobos. -- Apenas um lembrete. Ao chegar em casa diga para sua prima... -- Ela está inconsciente. Interrompeu Letícia, a prima de Eve. -- Então sussurre em seus ouvidos: Darkness. -- O que? -- Apenas isto. Sussurre este nome em seu ouvido. -- Para que? -- Ela saberá porque. A incredulidade da moça era flagrante. Para ela aquele nome não significava nada. Mesmo para os outros membros do grupo talvez não

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significasse, mas eu sabia muito bem que teria um efeito significante no estado de ânimo de Eve. Despedimo-nos da moça e voltamos a nos concentrar nos preparativos da celebração. O clima ficou meio pesado. O mal que acometeu Eve podia ser desconhecido para os seus, mas para nós era muito claro. Ela se apaixonara por Darkness. Até então, nenhum dos demais integrantes do grupo havia se dado conta disto, mas com o passar das horas, era inevitável que chegassem a tal conclusão. Logo os cochichos começaram e em pouco tempo me crivavam de perguntas. -- É verdade ou não? Inquiriu-me Deimos. -- Ela está mesmo apaixonada pelo abissal? Questionou-me Set. -- O que Darkness pensa a respeito? Quis saber Mefisto. -- Por que não me perguntam diretamente? Soou a voz inconfundível de Darkness. De onde viera e quando chegara... bem isto não tinha explicação. -- Bem... não é que... Mefisto mal conseguia articular sua fala. -- Você e Eve estão tendo um caso? Disparou Pandora. -- Não. -- Mas ela está... Tentou argumentar Pandora. -- Ela está se libertando. -- Mas... mas... Ainda tentou argumentar Pandora. -- Basta. Embora firme, Fobos não foi rude em sua ordem. Se Darkness falou que ela está se libertando, isto basta. Fomos surpreendidos pela reação de Fobos. Sua postura cordata com a atitude de Darkness nos deixou pasmos. Onde estava aquele líder arrogante que não se deixava convencer por ninguém? -- Obrigado. Não tenho nenhum segredo a ocultar, mas o assunto é de interesse de Eve e, portanto, ela deve considerar se deseja ou não compartilhá-lo. Pronunciou-se Darkness de modo solene. -- Está certo assim. Corroborou Fobos. Deixemos que Eve se recupere e decida o que for melhor. -- Se todos estão de acordo, podemos tratar do assunto que me trouxe até vocês. -- O que deseja? Perguntou Lilith. -- Saber se já decidiram como será nossa celebração. -- Já temos tudo preparado. Anunciou Deimos. -- Ótimo! Podemos ir até minha casa? -- Agora? Perguntamos ao mesmo tempo. -- Sim.

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pensamento.

-- Mas pensávamos que... Deimos não conseguiu terminar seu

Assim como Darkness surgia e desaparecia num átimo, também se deu quando a van que nos levaria até a casa de Darkness surgiu. -- Vamos nisto aí? Indagou Mefisto. -- Sim. -- Pensei que não utilizasse meios comuns para se locomover. Comentou Fobos. -- Não utilizo, mas vocês sim. -- Mas quando nos levou para o plano... -- Desta vez a viagem será real. Não usarei a visão. -- Quando partimos? Pandora demonstrava todo contentamento que sentia. -- Assim que entrarem. A van era muito confortável. Seu espaço interno era invejável. Mal havíamos nos acomodado, Darkness deu partida e seguimos para sua propriedade. Devido ao fato dos vidros serem enegrecidos, não podíamos ver o caminho que a van percorria. Em determinado momento estranhamos o fato de não sentirmos qualquer solavanco ou freada mais brusca. -- Nossa, Darkness dirige muito bem! Comentou Pandora. -- Bem demais. Ironizou Lilith. -- O que está pensando? Inquiriu Fobos. -- Não sei. Mas sinto algo muito estranho no ar. Depois do comentário feito por Lilith, passamos a observar mais detalhadamente o deslocamento do veículo. Não notamos nada de anormal, mas também não podíamos dizer que o andamento fosse regular. Quando íamos iniciar uma nova rodada de discussão, Darkness abriu a porta da van e anunciou: -- Chegamos! -- Nossa! Nossa reação não poderia ser outra. Diante de nossos olhos um casarão estilo vitoriano, semi-encoberto por uma diáfana névoa, deixava transparecer todo clima fantasmagórico que se exigiria de uma celebração tal qual aquela que iríamos realizar. -- Cara, você mora aqui? Perguntou Set. -- Não gostaram? -- Adoramos! O eco que se seguiu a nossa asseveração nos incutiu um certo temor. -- Mas que lugar é este? Não conheço nada assim nas cercanias da cidade. Ponderou Fobos.

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Lilith.

-- Não estamos nas cercanias da cidade. Estamos no interior. -- Como? Não demorou tanto assim para chegarmos. Avaliou

-- Bem, vamos ficar aqui de papo furado ou entrar e apreciar o local. Darkness não tinha muito jeito quando queria mudar os rumos de uma conversa. Nem precisava ter. sua sinistralidade era tanta que não ousávamos opor-nos a suas determinações. Mentalmente fui compondo o quadro que visualizava. As enormes gárgulas postadas no alto do edifício davam a impressão de estarem guardando o território. As janelas imensas decoradas por vitrais opacos passavam a idéia do quão pouca claridade deveria haver no interior da construção. No mais, os detalhes acabaram por se diluírem. Se já havíamos ficado embasbacados com o exterior da casa, mal pudemos respirar ao nos vermos parados no imenso salão que servia como uma espécie de hall. A decoração toda em estilo vitoriano era de encher os olhos. O predomínio da cor vermelha, respaldado pelo fundo escuro do ambiente, deixava a atmosfera quase que sufocante. -- Então, o que acharam? -- Isto é incrível! A admiração expressa por Pandora refletia o estado de todos nós. -- Tem certeza que poderemos realizar nossa celebração aqui? Um desconfiado Fobos se mostrava por trás de tal pergunta. -- É claro! Não acham que este ambiente é adequado? -- Este lugar é o mais fantástico em que já pisei! Exultou Deimos. -- Não que tenha muita importância, mas você deve ser muito rico! Comentou Mefisto. -- O suficiente para poder viver com certo conforto. -- Chama este luxo todo de certo conforto? Indignou-se Set. -- Não se ofenda, mas tive que suar muito para conseguir aquilo que possuo. -- Tudo bem, cara. Não estamos contestando sua riqueza, afinal se ela lhe pertence, que a use como bem desejar. Interveio Fobos. -- Creio que devam estar um pouco curiosos. Não se acanhem. Podem conhecer o local. -- Está dizendo que podemos... Pandora delirava ao se manifestar. -- Sim. Façam de conta que estão em casa. Enquanto meus amigos pareciam iguais crianças após ganharem o brinquedo predileto, eu me contentava em trocar algumas idéias com Darkness.

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-- Como é possível possuir uma casa desta e nunca ninguém ter ouvido falar? -- A casa não é o que importa, mas sim a ocasião. -- Nunca responde as perguntas que lhe fazem? -- Acredito que cada um seja capaz de chegar as suas próprias respostas. Caso não o faça, é porque ainda não possui maturidade para tal. -- Aquelas gárgulas... -- Gostou? -- Sim. Mas elas destoam do... -- Eu sei. Elas são obras minhas. -- O que? -- Achei que dariam um ar mais sisudo a casa. -- Você mesmo as fez? -- Sim. Por que o espanto? -- Não sabia que esculpia. -- Tenho muito s outros dons que desconhece. -- Ilusionismo é um deles? -- Ilusionismo? -- Estou tentado a desconfiar de que tudo não passa de ilusão. -- Há, há, há, há! Pela primeira vez testemunhava uma gargalhada de Darkness. Ela soou diferente daquilo que imaginei. Não havia nada de sinistro nela. -- Então? -- Ainda é cedo para obter a resposta. Um dia encontrará a explicação de tudo. -- E quanto a Eve? -- O que tem? -- Ela está adoentada. -- Eve apenas se prepara para o maior vôo que um ser humano é capaz de encetar. -- Refere-se a... -- Está vendo como é fácil encontrar as respostas? Nunca se esqueça, temos que estar preparado para poder entendê-las. -- Então é verdade! -- Não se preocupe com sua amiga. Ela estará segura. O deslumbramento inicial foi sendo mesclado com um sentimento indefinível. Preocupava-me as intenções que Darkness pudesse ter com relação a Eve. Sabia que a amava como se fosse uma irmã, jamais poderia vê-la com um homem vê uma mulher, mas talvez por este detalhe, não conseguia afugentar as cismas que me invadiam.

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Já era muito tarde quando finalmente deixamos a mansão, sim pois aquela casa era isto mesmo, e voltamos para nossas humildes moradias. Naquela noite não consegui pregar os olhos. Em minha mente uma luta titânica havia sido deflagrada. Ao mesmo tempo em que me afligia, Eve recebia a visita de seu amado. Não fisicamente, mas em sua mente. Como fiquei sabendo o que se passou? Bem, até hoje ainda tenho dúvidas quanto a este detalhe, o certo é que desde o primeiro momento em que Darkness se manifestou, senti-me ligado a ele. Não uma ligação banal, mas sim uma união simbiótica. Algo que extrapolava todas as barreiras de nosso limitado conhecimento. Velada pela mãe, Eve permanecia em estado de completo alienamento. Não dava indícios algum de que pudesse estar em contato com nosso mundo. O desespero da família era muito maior por Eve haver sido desenganada pelos médicos. Não naquele momento mas ainda muito nova. Portadora de uma deficiência congênita, os médicos preconizaram uma vida curta. Afirmavam que ela não viveria mais que sete ou oito anos. Bem, em poucos dias estaria completando dezessete. O alento veio através de alguém a quem eles nem mesmo imaginavam existir. Tarde da noite Darkness tocou a campainha da residência de Eve. -- Boa noite! -- Pois não? O que deseja? O ar taciturno do pai de Eve não era uma mera expressão causada pela preocupação pela saúde da filha. Ele realmente era sisudo. Quando se deparava com um dos “amigos” da filha, então... -- Gostaria de conversar sobre Eve. -- De onde a conhece? -- Somos amigos. -- Ah, também faz parte daquele grupelho! Já devia ter imaginado, estas vestes são inconfundíveis. -- Posso entrar? -- Olha rapaz, mesmo que o momento não fosse tão inoportuno, dificilmente o receberia, portanto, faça um favor a todos nós, evapore! -- Como quiser. Para o assombro do pai de Eve, foi exatamente o que aconteceu. Darkness desapareceu diante de seu incrédulo olhar. Boquiaberto, fechou a porta e desabou sobre a poltrona.

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Darkness sabia que não conseguiria visitar Eve. Mesmo assim tentou fazer com que seus pais o ouvissem, como não conseguiu, resolveu entrar em contato com minha amiga. No exato momento em que ele estabeleceu o contato, me senti tomado por formigamento inédito. De repente foi como se estivesse entrando em um transe hipnótico. Mesmo de olhos abertos, parecia estar sonhando. Apenas por este detalhe é que sei exatamente o que se passou durante o tempo em que Darkness se manteve conectado a mente de Eve. Mesmo sem saber como ou porque, eu estava compartilhando cada detalhe daquela ligação mental. Mansamente Eve descerrou os olhos. Com um sorriso meigo ela sussurrou: -- Dark! -- Olá. -- O que faz aqui? -- Precisamos encontrar a saída. -- Para onde? -- Para sua liberdade. -- Como assim? -- Desde criança tem-se mantido aprisionada em uma cela escura, fria e solitária, está na hora de deixar este ambiente horrível e alçar vôo. -- Eu morri? -- Não. Aquilo que esta vivenciando é quase o mesmo que a lagarta experimenta dentro de seu casulo antes de transformar-se em uma linda borboleta, só que de modo mais acelerado. -- Estranho. Não entendo muito bem o que diz, mas sinto que compreendo o sentido de suas palavras. -- É porque estamos conversando em espírito. Não precisamos raciocinar as palavras, apenas senti-las e conferir-lhes formas. -- O que fazemos aqui? -- É hora de fecharmos a cicatriz que fere seu peito. -- A dor! -- Sim. Vamos acabar com ela. -- Como? Os médicos disseram que irei morrer com ela. -- Os médicos muitas vezes erram. Eles são humanos, esqueceu-se? -- É. Eles disseram que eu iria morrer antes dos dez. -- Então? -- Por que tenho que sofrer tanto?

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-- Porque em algum momento fez as escolhas erradas. Em determinado ponto de sua jornada foi para a esquerda quando deveria ter ido para a direita. -- Mas como poderia saber a direção correta? -- Ouvindo a voz de sua intuição. A maioria de nós amordaçou a consciência e sufocou o anseio pelo que é certo. -- Pensei que minha angústia era resultado de minha adesão ao grupo. -- Não. Sua adesão ao grupo é resultado de sua angústia. Você não se tornou angustiada por escolher ser gótica, mas sim se tornou gótica por sentir-se angustiada. É o caminho natural para todos nós, desejarmos estar onde estão nosso iguais. -- Procurei o grupo porque estava mal. Quando fiquei sabendo que minha doença era incurável, desesperei-me. Só pensava na morte, na dor... fiquei deprimida. -- Eu sei. Mas já deve ter percebido que, embora todos tenham suas angústias, o grupo não é depressivo. Experimentou muitas horas alegres junto a ele. -- É. Para falar a verdade, sempre me senti bem ao lado de meus amigos. -- Isto porque a propensão pelo modo de ser gótico não tem nada a ver com a ilusão que andam disseminando por aí. O fato de sentir-se atraída por este ou aquele modo de vida não a torna melhor ou pior que ninguém. -- Meus pais me abominam por ter me juntado ao grupo. -- Não. Seus pais não aceitam sua escolha por não compreenderem que você é livre. Que jamais poderão viver sua vida por você. Mas não deve condená-los por isto, todos os pais são assim. Sempre vivem preocupando-se com o destino dos filhos. -- Você parece não sentir raiva de nada. -- Não sinto. Quando atingimos a maturidade requerida para compreender a vida, não temos mais ligação com nada que seja negativo. A raiva, a dor, a tristeza, a inveja, a revolta, enfim, tudo isto se torna distante. -- Será que chegarei lá? -- Estou aqui para auxiliá-la. -- Estive lhe esperando por muito tempo. -- Eu sei. Mas não podia aparecer antes que estivesse pronta. -- Pronta? -- Sim. O desejo que mantém vivo em seu coração. Como atendê-lo se a tivesse encontrado antes do tempo? -- Dark!

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-- Não se assuste. Podemos esquecer tudo e continuarmos como se nada tivesse havido. -- Sinto muito frio! -- Permaneceu muito tempo neste plano. é hora de voltar. -- Quando nos encontrarmos novamente, poderei realizar meu desejo? -- Só depende de você. -- Mas me sinto tão fraca. -- Fornecerei as energias de que necessita. Será como se estivesse recebendo sangue através de uma transfusão. -- Dark! Enquanto nossas mentes, tornadas uma, se mantinham conectadas pude testemunhar todo o diálogo que se desenrolou. Eve manifestava-se através de um fio tão fino de voz que me assustei. Só não deixei o desespero tomar conta de mim porque sentia que Drakness também evitava elevar a voz. Voz? Eles nem mesmo abriam a boca ao falarem! Agitando-se convulsivamente em seu leito, Eve finalmente se mostrava de volta ao mundo real: -- Dark! -- Filha! É a mamãe. Agora está tudo bem. Entre lágrimas de dor e alivio, a mãe de Eve abraçava a filha. -- Dark! -- Logo estará melhor, não pense em nada. -- Dark! -- O que deseja, filha? Por que repete sempre esta palavra? -- Dark! Aflita, a mãe de Eve tocou a sineta e aguardou a presença do marido. Este não demorou a aparecer. -- O que foi querida? -- Ela recobrou os sentidos. -- Graças aos céus! -- Mas parece estar delirando. -- Por que acha isto? -- Desde que se manifestou, só fica repetindo sempre a mesma palavra. Não tanto aflito quanto sua esposa, o pai de Eve a observou mais de perto. -- Dark! -- Ouviu? -- Sim. O que quer dizer isto?

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-- Não sei. Talvez um lugar, um destes malditos lugares que ela freqüenta! -- Ou talvez o nome de um de seus “amigos”. -- Por que nossa filhinha teve que se juntar a estas pessoas tão estranhas? -- Ah, bem que eu gostaria de saber, querida! -- Ela sempre foi tão amada. É um doce de criatura. Por que se envolveu com eles? -- Acalme-se, querida. Eve precisará de nosso auxilio ao despertar. -- Percebeu que mesmo nós já a tratamos por este nome esdrúxulo? -- Darkness! Desta vez Eve não sussurrou, gritou o mais alto que conseguiu. -- Pelos céus! O que foi isto? A mãe de Eve não suportou aquela explosão de dor da filha. Recostou a cabeça no ombro do marido e abandonou-se em um pranto incontrolável. -- Não se desespere, é uma reação natural. Ela está delirando. -- Darkness, onde está? -- Ela está chamando alguém. A mãe de Eve não conseguia controlar-se. -- Venha, querida. Vamos até a sala. -- Não! Não vou deixar minha filha sozinha! -- Não fará bem a ela se continuar nervosa deste jeito. Vamos, Sarah poderá fazer companhia a ela. Mesmo contrariada, a mãe de Eve teve que deixar o quarto. Ao passarem pelo quarto da irmã de Eve, o pai pediu que ela ficasse ao lado da irmã. Mais temerosa que por má vontade, Sarah demorou a obedecer. Desde que Eve se juntará ao nosso grupo, Sarah tinha medo da irmã. Achava que ela havia enlouquecido por causa da doença que tinha. Mesmo assim, penalizava-se pelo estado em que a irmã se encontrava. O pai de Eve havia convencido sua esposa a deitar-se um pouco e administrara-lhe um calmante. Já se preparava para voltar ao quarto quando a campainha soou. -- Espero que a situação esteja um pouco melhor. Darkness tinha um modo muito especial quando desejava atingir determinado fim. -- Você de novo! -- Desculpe-me a insistência, mas é muito importante que conversemos.

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-- Olha aqui, mocinho, não apoio minha filha na escolha que ela fez pelos amigos que tem, muito menos concordo com as loucura que ela vem fazendo, portanto... -- Portanto creio que já está na hora de deixar de lado esta empáfia toda e dar ouvidos a quem pode revelar-lhe um aspecto da vida de sua filha que ainda não deu chance de enxergar. O pai de Eve sentiu-se invadido pela determinação expressa por Darkness. Ele havia mesclado sua voz doce com o tom sinistro que utilizava quando desejava atingir-nos bem fundo. Sem ter como reagir àquela situação, o pai de Eve se viu obrigado a recebê-lo. Inseguro, conduziu Darkness até uma pequena sala que fazia às vezes de escritório. Depois de acomodados, Darkness começou: -- Bem, peço-lhe que mantenha a mente aberta para tudo que tenho para dizer. A lucidez de sua filha depende do quão disposto esteja em auxiliá-la. A madrugada cedeu lugar à manhã. A manhã cedeu lugar à tarde e Darkness mantinha o pai de Eve refém de sua conversa. Somente quando julgou ter colocado tudo às claras, foi que resolveu despedir-se. -- Creio que já disse tudo que tinha para dizer. Tenho que ir. -- Espere um pouco. Acha que pode vir até minha casa, falar o que bem entender e ir assim? -- Não tenho mais nada a acrescentar. -- Mas tenho muitas perguntas a fazer. -- Quando a hora para isto chegar, terei imenso prazer em voltar a nos encontrar. -- Mas, mas... Darkness não deu tempo para que o pai de Eve redargüisse. Como uma sombra que se perde com a chegada da luz, ele se foi. Demorou alguns minutos até que o pai de Eve recuperasse seu controle e decidisse ir para o quarto da filha. Ao aproximar-se do local, ouviu uma acalorada discussão: -- Você está louca! Mamãe e papai deviam interná-la num hospício! Esbravejava Sarah. -- Cale-se! Você não tem nada com minha vida! -- Pensa que pode agir assim como bem entende? Até parece que papai vai deixar você sair. -- Eu tenho que ir. Ninguém pode me impedir de procurar minha felicidade! -- Ah, sei! Chama de felicidade ficar errando feito um zumbi pelos corredores de um cemitério!

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-- Chega! Não tenho que ficar aqui ouvindo seus desaforos! Neste ponto o pai de Eve decidiu entrar. Mal havia aberto a porta e ela saia esbaforida. -- Eve! Chamou o pai. -- Não tente me impedir! Eve gritou. -- Não tenho intenção de impedi-la, apenas desejo um pouco de seu tempo. A reação amistosa do pai a derrubou. Esperava reprimenda, bronca, ordem para que não saísse. Mas aquela tranqüilidade toda não esperava. -- Como é? -- Podemos conversar um pouco, antes que saia? -- Está brincando? -- Não! A firmeza com que o pai falara não deixou dúvidas para Eve. Algo muito sério deveria estar ocorrendo. Seu pai nunca havia agido daquela forma. Um tanto incerta, acedeu ao desejo do pai. -- Está bem. Onde podemos conversar? -- Ótimo! Bradou Sarah ainda no interior do quarto. Agora também vão passar a mão na cabecinha da neurótica! -- Sarah! Zangou-se o pai. Vá para seu quarto. Depois converso com você. Sarah pensou em responder, mas ao observar o semblante austero do pai, desistiu. Cabisbaixa recolheu-se sem mais palavras. Eve estava confusa. O que o pai poderia querer? Aquele jeito carinhoso que ele usara não era normal. -- Posso saber aonde vai? A voz do pai demonstrava que ele desejava conversar em paz. -- A uma festa. -- Ainda há pouco estava desfalecida. -- Mas já melhorei. -- Vai se encontrar com aqueles “amigos”? -- São os único que tenho! -- Engana-se, filha. Filha! Aquilo foi demais. Eve já nem se lembrava mais a última vez que o pai a chamara assim. -- O que está havendo? -- Nada. -- Então por que este modo afetuoso de falar-me? -- Porque é assim que um pai deve falar com seus filhos. -- Ah, e concluiu isto assim, de repente!

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-- Não. Precisei que um estranho viesse até minha casa e me dissesse um monte de verdades que eu mesmo deveria ter enxergado, mas que por ser limitado em minha compreensão, não fui capaz de ver. -- Quem o visitou? -- Darkness! Conhece? -- Ele esteve aqui! A empolgação de Eve deu a entender que Darkness era muito mais que um simples amigo. -- Sim. Conversamos por um longo tempo. -- Não acredito! -- Nem eu mesmo acredito. Devo assumir que estava errado quanto ao tipo de pessoas com quem convive. Ele me pareceu tão centrado. Além de possuir um conhecimento muito vasto. -- Darkness é maravilhoso! -- Está apaixonada por ele? -- O que? -- Seus olhos brilham quando fala dele. -- Não sei é paixão, só sei que ele representa algo muito forte. -- Entendo. -- Não vai começar o sermão? -- Ah, ainda dura com o pai! Gostaria que soubesse e acreditasse que nunca agi premeditando lhe causar aflição. Agia do único modo que era capaz. Nós pais temos a ilusão que poderemos sempre proteger nossas crianças. -- Conversou mesmo com ele, não é? -- É. Eve deixou que algumas lágrimas ganhassem o contorno de seu rosto. Silenciosamente abraçou o pai e lhe deu enternecido beijo. -- Não se preocupe, estarei bem. -- Eu sei que sim. Através da vidraça o pai de Eve a viu sumir no prolongamento da rua. Sem perder mais tempo, voltou sobre o próprio corpo e seguiu para o quarto. Sua esposa ainda repousava sob efeito do sedativo. Sentou-se ao seu lado, acariciou-lhe os cabelos e deixando um profundo suspiro escaparlhe, cerrou os olhos. Aos poucos os membros do grupo foram chegando ao cemitério. Quando cheguei Eve ainda não se encontrava. Fobos e Lilith trajavam seus habituais modelos negros. Deimos e Set tinham uma capa preta sobreposta a blusas brancas. Pandora, vaidosa como sempre, abusava do tamanho diminuto de sua saia, se bem que a meia que usava quase que cobria as partes que a outra peça não ocultava. Mefisto também ainda não se encontrava.

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Nossos aspectos não eram, de modo algum, desprovidos de charme. Embora predominasse o preto, estávamos em trajes de gala. Somente quando Eve chegou foi que nos sentimos alijados desta impressão. Boquiabertos tivemos que admirar a graça e elegância de suas vestes. Utilizando um modelo que colava a seu corpo, todo negro, calça e blusa pareciam uma única peça. Sua bota, um pouco acima do tornozelo, fechava de forma tão hermética que não dava para perceber onde a perna da calça entrava. Sobreposto a tudo, uma capa com a parte externa tão negra quanto o resto da roupa e a parte interna de um vermelho vivo. Decorando seu lindo rosto, pintura carregada de preto e um batom de um roxo tremeluzente. -- Nossa! Quem é esta gata? Galanteou Set. -- Menina, arrasou! Reverenciou Pandora. -- Não estava acamada? Perguntei cheio de preocupação. -- Já melhorei. -- Ainda bem. Não estaríamos completos com sua ausência. Assentiu Fobos. -- Quem ainda não chegou? Eve emanava um ar tão enigmático quanto Darkness. -- Mefisto. Respondi. -- Hei, hei, já estou aqui! Não que Mefisto fosse atrapalhado, mas sua entrada causounos intensos risos. Embaraçado com um dos muitos penduricalhos que compunham sua vestimenta, quase que desaba ao surgir de uma das laterais do mausoléu. -- Penso que seria melhor esperarmos no portão. Sugeriu Fobos. -- Por que? Inquiriu Set. -- Assim Darkness não precisa vir até aqui. -- Está bem. Vamos, então. A noite ainda estava no início. Como o cemitério que utilizávamos para nossas reuniões era bem localizado, muitas pessoas transitavam pela região. Salvo alguns engraçadinhos, não sofremos qualquer constrangimento, até alguns elogios foram feitos. Estávamos entretidos com conversas sem muita importância quando a van estacionou do nosso lado. -- Miserável! Esbravejou Set. quando vai aprender a surgir sem espalhafato! -- Alguém esperando transporte para uma celebração? A voz que ouvimos não pertencia a Darkness. Intrigados, olhamos pela janela.

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-- Quem é você? Perguntou Fobos. -- O motorista. Entrem. Mais aquela agora. Darkness havia nos mandado um motorista. Onde será que ele havia se metido? Por que não viera pessoalmente? Dentre todos, a única que mantinha a serenidade era Eve. Como se houvesse lido nossos pensamentos, ela nos informou: -- Darkness está muito esgotado. Precisa de um tempo para se recuperar para a celebração. -- Esteve com ele? Indagou Lilith. -- Não como estamos agora. -- Heim? Além de Eve apenas eu e Fobos sabíamos o que se passava. -- Vamos embora. A noite nos reserva momentos contagiantes. Declarou Eve. Desta vez o trajeto pareceu-nos mais longo que anteriormente. Os solavancos ocasionais também foram sentidos. Será que o caminho utilizado pelo motorista era o correto? Mal havia me perguntado isto e a van parou. Abrindo a porta, o chofer anunciou: -- Chegamos! Ao deixarmos o interior da van, fomos brindados por um espetáculo sem igual. A lua nos pareceu muito maior que nunca. Sua face iluminada conferia a noite um aspecto sobrenatural. -- Este local me dá arrepios! Falou Pandora. -- Não sentem a energia que emana de tudo? Perguntou Eve com uma voz enigmática que nos lembrou Darkness. -- Não sei se é esta energia, mas que meu corpo está todo arrepiado, isto está. Tornou a falar Pandora. -- Onde está... Fobos cortou sua frase ao meio. Virando-se para onde a van estacionara, ele ia perguntar por Darkness, mas nada de van por perto. Alguém viu a van partir? -- Eu não. Adiantou-se Mefisto. -- Muito menos eu. Manifestou-se Deimos. -- Nenhum de nós viu. Anunciei evitando que o assunto se estendesse mais do que devia. -- Diabos! Este cara ainda nos mata de susto! Mefisto se mostrava inconformado com o modo como os acontecimentos se processavam. -- Vamos. Convidou Eve. Diferentemente da primeira vez que havíamos entrado naquele ambiente, desta vez sentimos uma atmosfera formal. Talvez a iluminação

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estivesse contribuindo para isto. Talvez nossas expectativas estivessem criando um clima de ansiedade além do normal, ou quem sabe a música que ecoava pelo ambiente. -- The mass. Informou Eve. Eric Levi. Grupo Era. -- O que? Perguntou Set. -- A música que ouvem. Ficamos espantados por aquela manifestação de Eve. Como ela fora capaz de responder a dúvida que tínhamos? A ligação com Darkness parecia muito mais forte nela. Já havíamos transposto o hall de entrada quando nos demos conta da ausência de nosso anfitrião. -- Onde está o sinistro? Quis saber Set. -- Sei lá. Estão sentindo um friozinho percorrer suas espinhas? Pronunciou-se Pandora. -- Agora que falou... Deimos assentiu a impressão de Pandora. -- Onde está Darkness? Fobos perguntou olhando para Eve. -- Se recuperando. -- Quanto tempo teremos que esperar? Indagou Lilith um pouco contrariada. -- Devemos começar sem ele. -- Como assim? Questionou Fobos. -- Darkness deixou tudo preparado. Comecemos nosso ritual. Eve decididamente estava transformada. -- Como faremos? Mefisto expressou a dúvida de todos. -- Para o salão; indicou-nos Eve. Seguindo-a fomos penetrando em uma parte do casarão que não havíamos visitado no dia anterior. Nem sequer tínhamos notado que ela existia. Aquele lugar era mesmo assombroso. Em nada se parecia com uma residência normal. -- Entrem. Um salão ricamente decorado nos aguardava. As paredes pareciam revestidas em ouro. Os mais estranhos símbolos estavam representados por todos os cantos, inclusive no teto. Alguns eram conhecidos, outros nem fazíamos idéia do que poderiam representar. No centro da sala uma enorme mesa no formato de um imenso círculo. A seu redor, assentos confortáveis e extraordinariamente decorados com requinte. -- O que é isto? A távola redonda? Ironizou Set. -- Esta é sala onde os iniciados se reúnem. Darkness quer que tomemos assentos ao seu redor. Anunciou Eve.

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-- Está bem. Depois vamos todos reverenciar a excalibur e seu real senhor. Set realmente se sentia o máximo quando podia expressar toda ironia que lhe preenchia o íntimo. Por cortesia ou respeito ao momento, Eve não repreendeu Set. indicou o local reservado a cada um e então iniciou a reunião. -- Nesta noite, neste recinto secular, nos reunimos. Não para exaltar os feitos de batalha ou aventuras, mas honrar nossas tradições. Solicito a todos que estendam suas mãos e formemos o círculo mágico. Como havíamos feito com Darkness, distendemos nossos braços e sobrepomos nossa mão direita sobre a esquerda do companheiro ao lado, sem contudo tocá-la. Quando o círculo estava formado, Eve retomou seu pronunciamento. -- Oh, ser que tudo abrange, nos conclamamos sua presença. Vinde a nós e nos brinde com sua sabedoria e erudição. O silêncio que se fez após estas palavras encheu-nos de expectativas. Nossos corações mostravam-se acelerados. Mesmo Set não foi capaz de ironizar o momento. De repente, uma névoa espectral se espalhou por todo salão. O frio que apenas Pandora e Deimos haviam acusado sentir, penetrou o corpo de todos nós. Com a dissipação da névoa, presenciamos um dos mais espetaculares feitos de Darkness. Serenamente ele pairava sobre a mesa. Trajando uma veste semelhante a de Eve, olhava-nos com ternura. -- Sejam bem vindos, prezados amigos! Sua voz soava entre o sobrenatural e o angelical. De qualquer modo nos dava sensação de paz absoluta. -- É você o ser que Eve invocou? Set não possuía nenhum traço irônico ao fazer esta pergunta. -- Sim, eu sou! -- E o que deseja de nós? -- Libertá-los! -- De que? -- De seus medos, de suas angústias, de suas dores! -- Como isto é possível? Lilith interveio no diálogo entre Set e Darkness. -- Tudo é possível! Se possuem alguma dúvida, perguntem a Fobos, Eve ou Hades. -- Ele fala a verdade. Pronunciou-se Fobos antes mesmo que lhe perguntássemos algo. -- Sentem-se! É chegada a hora de iniciarmos a celebração! Como questionar alguém que expressava tamanha autoridade? Aliás, uma autoridade que emanava com naturalidade. Darkness não

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necessitava ser autoritário. Sua firmeza e serenidade conferia-lhe uma aura além do entendimento humano. -- Posso lhe perguntar algo? Fobos mostrava-se respeitoso como nunca havíamos visto. -- Todos podem perguntar o que quiserem. -- Por que a távola? -- Porque entre nós não deve haver distinção. Não há um alfa ou um ômega. O círculo é infinito em sua construção. Somos todos parte de um acontecimento que não conhece início, meio ou fim. -- Que espécie de celebração é esta, afinal? Set, como sempre, se expressava com certa arrogância. -- Podemos pautar nosso encontro em assuntos costumeiros. Música! Sentem as notas vibrarem em suas almas? Nunca houve um só ser que não se deixasse tocar pelo som. Poesias! O que é a poesia a não ser a voz que traduz a magia e o encanto da música? Dança! Mesmo os corações mais empedernidos tremem ao timbre da mais singela nota. Por que não utilizar este tremor em manifestações rítmicas? Ou talvez estejam cansados da mesmice rotineira das reuniões e desejem tocar suas almas com algo mais elevado. -- Como o que? Perguntou Lilith. -- Podemos falar sobre os fantasmas que tanto aterrorizam seus âmagos. -- Fantasmas! Que sabe a respeito de nossas dores para denominá-las fantasmas? Set estava indignado. -- Tudo! -- Espere um pouco aí. Tudo bem que nos surpreendemos com muito daquilo que tem nos mostrado, mas dizer que conhece tudo... Pandora usava sua voz para expressar o sentimento da maioria. -- Não disse saber tudo. Afirmei que conheço tudo a respeito das dores que sentem. -- O que dá no mesmo! Reagiu Set. -- Não. Conheço as dores que sentem porque já as senti por milênios. Nenhuma dor que possam afirmar sentir me é desconhecida. -- Milênios? Ninguém pode viver por milênios! Set estava cada vez mais consternado. -- Nenhum ser humano pode furtar-se ao seu destino. Mesmo quando este destino está sob sua regência. -- O que quis dizer com isto? Deimos e todos nós estávamos intrigados com a última fala de Darkness. Não é humano? -- Ainda é cedo para chegarmos a este ponto. Precisam encontrar algumas respostas por si próprios.

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-- Ora, como pode atrever-se a nos confundir desta forma e negar-se a nos explicar de onde vem seu conhecimento! -- Set, Set! porque é tão difícil evitar ceder a tentação de se fazer indignado quando na verdade o que teme é ver-se exposto diante de seus amigos? Não é minha intenção revelar aquilo que ocultam. -- Não oculto nada! -- Esperem! Fobos foi enérgico ao falar. Não foi com este objetivo que viemos aqui. Se não conseguimos assunto mais agradável, que continuemos com nossa tediosa rotina. -- Mas por que, se o motivo que me fez convida-los é justamente expor-nos? -- Darkness, não conhece estas pessoas como eu. Podem parecer tolas ou imaturas, mas têm sentimentos. -- Não pretendo ferir os sentimentos de nenhum de vocês. Pelo contrário, desejo liberta-los de falsas ilusões que corroem seus âmagos. -- Não é você mesmo quem afirma que não estamos maduros para encontrar determinadas respostas? Então, talvez alguns não estejam maduros para se libertarem de suas ilusões. Por alguns minutos ninguém ousou falar mais nada. Fobos não se intimidava com a segurança irradiante de Darkness. Sua fala fora pautada por uma compreensão que nem imaginávamos que ele possuía. -- Então, doutor verdade, nosso líder parece ter mais senso que você! Set desafiava a tranqüilidade de Darkness. -- Sim! Fobos mostra possuir maturidade para compreender os fatos que norteiam nossa existência. Por ser este meu objetivo, é que lhes permiti que se manifestassem livremente. Não sou o alfa nem o ômega. Assim como nenhum de nós o é. -- Não se zanga com o modo como Set se porta? Mefisto parecia incrédulo. -- Não. Há muito que não permito que reações negativas se apossem de meu íntimo. Set só expressa aquilo que sua maturidade lhe permite. Entre amigos, não existem mágoas. Pois amigos sabem enxergar o outro com os mesmos olhos que ele nos olha. -- Podemos ler algumas obras? Pandora parecia ansiosa para que a conversa se tornasse mais agradável. -- O que prefere? -- Sei lá. Que tipo de leitura possui? -- Todas. Podem escolher. -- Uma que retrate a dor que nos consome. Sugeriu Deimos. -- Que seja.

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Sem sabermos de onde tirara, Darkness nos apresentou uma espécie de pergaminho. -- Alguém se habilita? -- Eu. Pandora sempre adorou ler os escritos nas reuniões. Posso começar? “Sofro, autoria de... Darkness!”. -- Sim. -- Bem... “Sofro Não por sentir a dor Não por sentir a morte Mas por não sentir a vida Não viver o amor. Sofro. Não por ter minha alma dilacerada pelo caos Não por ter meu ser vazado pelo terror Mas por sentir que dentro de mim padece Um ser sem vida, esperança, amor. Sofro. Na incerteza de todos momentos Na ausência de melhores sentimentos. Sofro. No instante do gerar... brotar... nascer Na certeza de jamais poder morrer!” Nenhum de nós ousou expressar qualquer comentário. Nossas respirações se mostravam entremeadas por suspiros e vacilos. A primeira a quebrar o silêncio foi Eve: -- Alguém quer dizer algo? -- Tem certeza de que é o autor? Pandora estava sensibilizada pela poesia. -- Sim. -- Por que afirma jamais poder morrer? Lilith ofegava. -- Todos já sentiram, alguns ainda sentem, a dor que nos toca quando uma pessoa que nos é cara deixa este mundo. Pois bem, esta dor não morre nunca. Se vivermos dois anos a mais que aquele que nos deixou, dois anos será o tempo de nossa amargura. Se vivermos cem anos, cem anos nos torturaremos pela ausência daquele que partiu. -- Mas mesmo que demore cem anos, ela acabará quando partirmos também. Afirmou Mefisto.

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-- Não! Mesmo a morte não é capaz de aplacar a dor que corrói a alma. -- Mas então não há alívio para aquilo que sentimos! Sentenciou Deimos. -- Alívio existe. Mas como todo remédio, pode ser amargo e indigesto. -- Não. Por mais indigesto que fosse, preferiria mil vezes ingeri-lo que permanecer eternamente padecendo. Reagiu Set. -- Pode ser que sim. -- Sei que descreve a dor como infinita. Mas meu entendimento foi outro. Eve mostrava-se tão calada que nos surpreendemos com sua intervenção. -- Deseja nos contar sua interpretação? -- Para mim ficou bem claro que afirmou ser imortal. -- Isto mesmo! Corroborou Set. O texto é muito claro a este respeito. A imortalidade ali descrita refere-se a você. -- Também. -- Como assim? Fobos estava tão intrigado quanto nós. Está afirmando que é imortal? -- De certo modo, sim. -- Ah, não! Esta não dá para aceitar! Mefisto parecia Set falando. -- Do modo como coloco a existência, todos somos imortais. -- Quando descobrimos que fazemos parte de um todo infinito, passamos a ver que nossa existência jamais terá fim. Afinal, não somos o alfa ou o ômega. Declarou Eve. -- Exatamente! -- Alfa, ômega! Que papo é este afinal? Inquiriu Set. -- O alfa é o começo de tudo. Nós não somos o começo pois tudo já existia antes de nós. O ômega é o final de tudo. Isto também não somos, pois depois de nós ainda existirá tudo que está aí. -- E isto nos torna imortais! Ironizou Set. -- De certo modo, sim. -- Em que isto nos serve? Perguntou Pandora. -- No momento pode parecer algo desprovido de sentido, mas quando a maturidade chegar, verá a robusta árvore que germinou em seu jardim. -- Bem, se a celebração era isto, melhor seria ter ficado em casa. Ajuizou Set. -- Não posso obrigá-lo a participar da celebração. E não, a celebração não é só isto. Para que possa enxergar além, precisa abrir-se.

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Não pode querer sentir a chuva se não abandonar o abrigo que o protege. Assim também não pode experimentar a força da energia que perflui a criação se não se harmonizar com ela. -- Set. Chamou Eve. -- O que deseja? -- Talvez queira nos mostrar aquela sua obra. -- Agora? -- Sim. -- Não sei. -- Hei, o Set também escreve? O comentário de Mefisto fez-no externar sonora gargalhada. -- Vamos. Insistiu Eve. -- Posso? Set fez a pergunta olhando na direção de Darkness. -- Ouviremos com a máxima atenção. -- Sendo assim... “Lógica do ilógico. Afugento de mim aquilo que sou Pois o que sou se mostra daninho Faz o dia tornar-se noite Oculta nas sombras o caminho. Olvido as vozes que me exortam Elas ferem minha raiva incontida Desejam que esqueça a dor... a solidão Querem que ame minha insigne vida. Se o sol se mostra altaneiro Morro por sentir que não é para mim Sou um estorvo... um espinho fincado em casa Quiseram minha morte... meu fim. Assim, desejo que a morte possa me sorrir Esqueço a angústia que me faz sofrer Sei que com o beijo da morte a sentir Escaparei da dor, do mal, do fenecer.” Novamente o silêncio brindou o final da exposição. As impressões eram retidas para que se tornassem nítidas. Não desejávamos expor algum comentário superficial. A espera exasperou Set. -- Então, não vão dizer nada? -- Sua alma me parece tomada por incerteza e mágoa. Manifestou Deimos.

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-- É. Parece que você se ressente por algo que sua família fez. Afirmou Mefisto. -- Isto porque meu nascimento foi um erro. -- Nenhum nascimento é um erro. Afirmou Darkness. Erro comete aqueles que não sabem reconhecer a dádiva advinda com o germinar da vida. -- Meus pais não me desejaram. -- Pode ser. Mas alguém, em algum lugar desejou. -- O que? Quem mais poderia desejar meu nascimento além de meus pais? -- Assim que uma mulher engravida, muitos daqueles que aguardam o momento de nascer se aproximam. Quando o pai ou a mãe, ou ambos, são fortes o suficiente, espiritualmente falando, atraem aquele que lhes são mais próximos. No entanto, existem casos em que os pais são espiritualmente fracos e aí, outros podem atrair algum espírito que lhe seja mais próximo. -- Quer dizer que alguém, que não meus pais, atraíram-me até a este mundo. -- Sim. -- Nunca sentiu que alguém lhe dedicava mais atenção que o normal? Perguntou Fobos. -- Bem, tem uma tia minha que sempre me tratou com mais paciência. -- Então? -- Mas isto não quer dizer que ela me ame. -- Talvez não do modo como deseja, mas da única forma que ela consegue expressar. Pode parecer pouco, mas já se perguntou o quanto ela deve sofrer por não poder lhe demonstrar todo amor que sente? -- Por que, então, não nasci filho de minha tia? -- Sua tia é casada? -- Não. -- Pelo que sei, a família de sua mãe é muito tradicional. Estou certo? -- Está. -- Considere o fato de uma moça solteira aparecer grávida numa situação desta. É capaz de imaginar os transtornos que ela teria que enfrentar? -- Mas e eu? Não estou enfrentando transtorno maior? -- Talvez. Mas considerando o fato que sua tia sozinha não poderia atraí-lo, deve reconhecer que sua vontade de estar próximo a ela, alimentou o anseio de ambos e acabou por trazê-lo até aqui.

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-- Tudo isto é muito complexo. Afirmou Pandora. Além do que foge dos assuntos habituais que estamos acostumados a discutir. -- Desejam voltar aos temas comuns? Darkness sempre permitia que escolhêssemos nossas atividades. -- É melhor. Lilith apontou o desejo da maioria. -- Então voltemos a normalidade. A celebração prosseguiu com mais leituras e comentários a respeito dos textos lidos. Alguns gracejos a parte, todos se sentiram mais aliviados quando o tema voltou a ser as corriqueiras atividades do grupo. Fobos, eu, Eve e Darkness nos resignamos. O grupo ainda não estava maduro para ir além. Nós ansiávamos para que pudéssemos discutir assuntos mais elevados, porém Darkness nos fez ver que não avançaríamos em tal propósito. A determinada altura da celebração, o grupo se dispersou e cada um foi se entreter com aquilo que lhe agradava. Eve e Darkness retiraram-se sem que ninguém se desse conta. Minha ligação com eles fezme perceber o momento em que deixavam o grupo e iam para a parte de cima do casarão. Deixando a sala, eles seguiram até o aposento onde ele costumava passar os momentos mais reservados. Sentindo o clima que os conduzira até lá, Darkness adiantou-se a Eve e perguntou: -- Tem certeza de que deseja realmente fazer isto? -- Nunca tive tanta certeza a respeito de algo que desejasse fazer. -- Depois de tudo consumado, não terá como voltar atrás. Vendo-me a sós, aproveitei para esmiuçar as biblioteca de Darkness. Para meu deleite ele possuía uma vasta coleção de escritos antigos. Alguns em línguas que eu nem conhecia. Devo ter permanecido por muito tempo entretido com os livros e pergaminhos pois quando fui tirado de meus devaneios, foi por um agitado Mefisto. -- Onde estão Darkness e Eve? -- Em cima. -- Temos que ir! -- Já? -- Já! São quase sete horas! -- Tudo isto? -- Precisamos ir. -- Vou chamá-los. Um pouco inseguro subi a escadaria que conduzia ao andar superior. Como não havia recebido nenhum convite para ir ter com eles e

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supondo saber o que faziam, senti-me meio constrangido em prosseguir. Só o fiz porque Mefisto estava certo. Já era muito tarde. Ao chegar em frente a porta de acesso a sala, preparei-me para anunciar minha presença, mas uma fresta permitiu-me ter a visão mais fantástica até então presenciada. Planando bem no meio da sala Darkness, ou quem quer que fosse, abraçado a Eve. Ambos desnudos e parecendo estarem em transe. A visão da verdadeira forma de Darkness, era a segunda vez que tinha esta visão, encheu-me de sentimentos contraditórios. Naquela cena, que não abandonaria minha mente jamais, com Darkness envolto por uma luminosidade dourada com um par de asas a cobrir seu corpo e o de Eve, presenciei algo que muitos gostariam de ter vivido. Silenciosamente como havia me aproximado, retrocedi. Não tinha como interromper o ato que realizavam. O que não sabia era que eles haviam sentido minha presença. Já estava próximo ao patamar quando ouvi Darkness anunciar: -- Avise-os que já estamos descendo. Ao retornar para o andar inferior, encontrei todos reunidos a espera para irmos. -- Então? Perguntou-me Lilith. -- Estão descendo. -- O que fazem lá em cima? Indagou Set. -- Assuntos particulares. -- Agora estão com segredo para o resto do grupo? -- Não temos segredo algum. Só que não interessa a ninguém o fato de estarmos vivendo uma experiência além das formalidades. Anunciou Eve. -- Realmente você está mudada. Concluiu Pandora. -- Eve amadureceu. Anunciou Fobos. -- Vamos! Convidou Darkness. Naquele exato momento não tinha como sabermos as opiniões pessoais de cada um. Não houve tempo para trocarmos qualquer impressão. Darkness nos deixou no local combinado e seguiu com Eve. -- Está rolando algo que não estamos sabendo? Perguntou Set. -- Melhor esperarmos que eles decidam nos contar. Enfatizou Fobos. -- Ultimamente você tem se mostrado muito dócil para com o sinistro. Set tinha imenso prazer em se mostrar sarcástico. -- Está colocando em dúvida minha liderança? -- Não é que o esteja desafiando, apenas estranho o fato de você estar sempre defendendo o sinistro.

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-- Darkness tem se mostrado nosso amigo. Está abrindo-nos portas que jamais pensaríamos existirem. -- Diga isto por você. Para mim ele não passa de um embusteiro. -- Ora, mas você é muito... -- Não. Intervi na discussão. Darkness não gostaria de ser motivo de desentendimentos entre nós. -- Melhor irmos para casa. Amanhã nos reunimos no Club. Falou Fobos. Set estava irritado além do normal. Já estávamos acostumados a suas rabugices, mas senti, ao observar-lhe o semblante contraído, que sua zanga não se resumia a uma desavença banal. Ele parecia estar com ódio de Darkness. Naquele dia e nos que se seguiram não tivemos contato mais estreito. O grupo havia se dado um tempo. Isto para que tudo fosse se encaixando e pudéssemos compor um quadro mais exato a respeito de tudo que estávamos vivendo desde que Darkness surgira. Neste meio tempo, Set recebeu a visita dele. Não em sua casa ou em qualquer outro lugar comum. Darkness penetrou em sua mente e o tocou. Já havia realizado esta mesma experiência com Fobos e Eve. Embora existisse uma ligação muito forte entre nós, ainda não havia experimentado esta ligação. Em meu quarto. Numa noite em que as forças da natureza pareciam digladiar produzindo faíscas reluzente, senti o contato que Darkness estabelecia com Set. Ali, no silêncio aterrador da noite, envolto apenas por meus receios, parecia participar do encontro entre meu amigo e seu libertador. O local do encontro, embora tudo se passasse dentro de nossas mentes, retratava um campo árido e pedregoso. Não se via nem um vestígio de qualquer elemento o qual se pudesse identificar vida. Tudo era disforme e tétrico. -- Bem vindo, Set. Soou a voz característica de Darkness. -- O que faz em minha casa? Set deixou claro sua contrariedade. -- Ainda não observou o local onde nos encontramos. Melhor que se familiarize com ele. -- Mas que diabos... Set lançou um olhar superficial em redor. Ao verificar o quão estéril era o ambiente, observou-o com mais atenção. Onde estamos? -- Esta é a porta de entrada para o vale que acolhe aqueles que ousam por um fim a sua existência.

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-- O que? -- Aqui começa o vale dos suicidas. -- O que estamos fazendo aqui? -- É chegada a hora de sua libertação. -- Ah, sei! Acontece que não acredito em milagres. Ninguém pode extirpar a dor que nos golpeia apenas por imposição. -- Não o trouxe aqui para realizar milagres. Tem razão em não acreditar que a dor possa ser extirpada pela imposição, mas pode transmutar-se através do conhecimento. Se permitir, é este conhecimento que desejo lhe ofertar. -- De onde provém este seu tão eloqüente conhecimento? -- Uma vez já revelei a vocês que já vivi todas as dores do mundo. Deseja que lhe mostre como? -- O que vai fazer? -- Deixe-me dar uma pequena amostra do quão profunda é a dor que dilacera meu ser. Darkness aproximou-se de Set e colocou suas mãos sobre sua fronte. Não demorou muito e ele começou a ser sacudido por espasmos violentos. Tudo não passou de alguns segundos, mas o resultado perduraria para sempre. -- Consegue avaliar o quão pungente é meu existir? Darkness tinha os olhos cerrados pela dor. -- Eu não fazia idéia. Sussurrou Set. -- Deseja viver este tormento por toda eternidade? -- Não. Eu não suportaria tanta dor. -- Então me permita que o liberte. -- Como? -- Sente-se. Set, ainda trêmulo, sentou-se e aguardou. -- Feche os olhos e procure afastar qualquer pensamento de sua mente. Quando sentir que o vazio tomou conta dela, pense na dor. Apenas na dor. Set seguia as orientações de Darkness com empenho. Aos poucos seu semblante foi se transfigurando e seu corpo sendo acometido por convulsões. O limite para tudo pareceu chegar quando Set explodiu em um grito lancinante. Sem sentidos, pendeu e desabou. O elo havia sido rompido. Estava em casa novamente. Fobos, Eve e eu havíamos partilhado cada segundo daquela vivência. Ao nos encontrarmos, dias mais tarde, não precisamos de muitas palavras para entender o relato que Set apresentava. Os demais se assombravam com tudo.

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-- Sente-se livre após a experiência? Quis saber Deimos. -- Não sei. Talvez mais leve. -- Agora, talvez, não sinta mais tanta animosidade com relação a Darkness. Comentou Fobos. -- Acredito que não. Mas ele ainda me parece sinistro e também me assusta um bocado. -- Darkness não nos encontrou por acaso. Informou Eve. -- O que? Lilith estava mesmo espantada com aquela revelação. -- Ele percorre os mundos atrás das irradiações que desprendem dos espíritos daqueles que vivem. Quando estas vibrações se harmonizam ou entram em sintonia com as dele, ocorre o encontro. -- Quem é ele, afinal? Perguntou um intrigado Mefisto. -- Um ser que se propôs a auxiliar aqueles que se encontram na escuridão. -- Talvez seja por isto que se apresenta com este nome ridículo. Gracejou Set. -- O nome é este mesmo. Ele reflete o estado de sua alma atormentada. -- Mas se é tão atormentado assim, como consegue libertarnos? Indagou Set, agora sem qualquer resquício de zombaria. -- O fato de sentir as mesmas dores que nos consomem, faz com que ele saiba exatamente aquilo que pode nos aliviar o sofrimento. -- Por que não se liberta das suas, então? Inquiriu Pandora. -- Isto eu não sei. Eve respondeu resignada. -- Não sei se me apiedo ou irrito com ele. Desabafou Lilith. -- Darkness está além de nossas possibilidades. Seu tormento, talvez, jamais tenha um fim. -- Mesmo assim ele se dispõe a auxiliar aqueles que sofrem? Deimos parecia inconformado com a situação. -- Esta é a saga que ele vive. -- Ele não é humano, é? Perguntou Pandora. -- É tão humano quanto qualquer um de nós. -- Mas isto é impossível! Exasperou-se Pandora. Nenhum ser humano suportaria tanto ou se disporia a tal sofrendo o quanto dizem que ele sofre. Além do mais, quem poderia viver por tanto tempo assim? -- Talvez a estas perguntas jamais tenhamos respostas. Lembram-se do que ele nos falou: “as respostas devem ser encontradas por cada um de vocês. Somente quando estiverem maduros as encontrarão.”

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-- Isto soa mais como uma desculpa esfarrapada. Para mim ele não quer que saibamos que ele não passa de um doutrinador barato, ou mesmo um grande farsante. Mefisto nos lembrou Set ao acusar Darkness. -- Posso assegurar que ele não é nada do que acabou de afirmar. Apressou-se Set em defender Darkness. -- Sei. Se ele é assim tão especial, por que ainda não ofereceu esta liberdade a mim? Será que minha dor ainda não o tocou? -- Tocou mais que a dos demais, Mefisto. Novamente Darkness se manifestava sem que pudéssemos saber como ou quando chegara. -- Dark! Exultou Eve. -- Boa noite, amigos. -- Não o vimos chegar. Falou Pandora. -- Estava observando o diálogo. -- Por que tem que se mostrar sempre assim? Não pode chegar como qualquer um de nós? Esbravejou Lilith. -- Não pensei que isto os incomodava. -- Pois agora já sabe que sim. -- Sendo assim, da próxima vez não vou mais me materializar instantaneamente. Chegarei igual a todos. -- Acho bom. -- Quanto ao assunto que estavam discutindo, sempre deixei claro que poderiam perguntar-me o que desejassem. Não tenho a intenção de ocultar qualquer detalhe de vocês. No entanto, devem compreender que algumas respostas só poderão ser apresentadas quando estiverem prontos para entendê-las. -- Por que não abrandamos os ânimos e conversamos sobre assuntos mais agradáveis. Sugeriu Eve. -- É, melhor falarmos sobre a mansão do terror. Zombou Mefisto. -- Como é? Darkness fingiu uma zanga que não possuía. -- Desculpe a indelicadeza, falei no bom sentido. A gargalhada foi geral. Desde que surgira em nossas vidas, era a primeira vez que víamos Darkness expressar-se de modo mais informal. Eve sorriu para ele como se a brincadeira a tivesse tocado mais que a nós. -- Agora falando sério, quando podemos ir até sua mansão, outra vez. Perguntou Mefisto já refeito da onda de riso. -- Quando desejarem. -- Oba, tô nessa! Vibrou com satisfação. -- Por que iríamos até lá? Indagou Lilith. -- Sei lá. Para passar o tempo. Respondeu Mefisto.

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que nunca.

-- Então será pura perda de tempo. Lilith estava mais amarga

-- Dark. Eve agora só o tratava assim. -- Sim. -- Tem certeza que ainda não é hora? -- Ainda não. -- Hora para que? Interpelou Pandora toda assanhada. -- Hora para levá-los em outra viagem. -- Mais um daqueles lugares medonhos? Lilith realmente não estava em seus melhores dias. -- Os locais que lhes mostrei eram como eram por vontade de vocês. Poderia mostrar-lhes lugares cuja beleza supera qualquer idéia que já tenham tido a respeito da beleza. -- Sinto-me linda como sou. Afirmou Pandora. -- Você é linda! Confirmou Darkness. Falava de um outro tipo de beleza. -- Além da nossa? Continuou Pandora. -- A beleza natural de regiões paradisíacas. -- Não tenho vontade de conhecer o paraíso. Adiantou-se Lilith. -- Por isto não os levei até ele. Sei que o conceito de beleza que apreciam difere da normalidade. -- Ah, agora deu para nos condenar por sermos como somos. Zangou-se ainda mais Lilith. -- Engana-se. Jamais os julgaria por serem como são. Antes que pudessem supor que fossem góticos, eu já exercia minha angústia. Não os julgo da mesma forma como não julgo ninguém. Não me cabe a toga de magistrado. -- O dia hoje não está sendo muito agradável para Lilith. Informou Fobos. -- Ora, me deixem em paz! Subitamente ela disparou por entre os túmulos e sumiu na penumbra da noite. -- Vou ver o que se passa. Disse Fobos indo atrás dela. -- Parece que nosso grou está passada. Comentou Set. -- Podemos começar a reunião? Quis saber Pandora. -- Acho que sim. Respondi. Darkness parecia alheio a tudo. Seus olhos apresentavam um vazio impenetrável. Lentamente ele foi se abaixando até ficar na posição que mais lhe agradava, de cócoras. -- O que ele faz? Perguntou Mefisto.

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-- Segue-os. Respondeu Eve. Realmente Darkness estava seguindo os passos de Lilith e Fobos. Mesmo estando ali, sua visão chegava até o local onde ambos conversavam. A ausência de tantos nos fez aguardar antes de iniciar a reunião. -- O que está havendo? Fobos não entendia a irritação de sua namorada. -- Nada. -- Tudo bem que nunca foi muito afável com Darkness, mas também nunca o havia agredido. -- Não o estava agredindo. Apenas não considero uma boa mantê-lo ligado ao grupo. -- Por que? -- Ele me amedronta. -- Mas não tem motivo para temê-lo. -- Talvez não, mas o que posso fazer se ao saber que ele está próximo, sinto meu corpo tremer. -- Será que é medo mesmo o que sente? -- O que mais poderia ser? -- Talvez... fobos foi impedido por Darkness de formular sua frase. Mentalmente sentiu a observação que ele lhe fez: “—Não. Não vale a pena arriscar tudo por tão pouco.” -- O que foi? Perguntou Lilith notando a indecisão de Fobos. -- Nada. Acho que minha pressão caiu. -- Está vendo? Mesmo você parece sentir a presença dele. -- Sim, eu sinto. Mas ela não me causa nenhuma vibração ruim. -- Então por que a tontura? -- Não sei. Mas não é por causa da presença dele. -- Será que não sente o quanto ele nos vigia? Mesmo estando com os outros, posso senti-lo aqui. -- Ele está aqui. -- Heim? -- Darkness estabeleceu uma ligação incomum com todos nós. Para alguns esta ligação é mais forte. -- Então ele está ligado a você! -- Também. -- Por isto se tornou tão dócil com ele. -- Não. Por favor. Não entenda tudo de modo errado.

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-- Oh, não, não sou eu quem está entendendo tudo errado. Vocês parecem que não percebem que ele os está dominando. -- Isto não é verdade. Darkness liberta, não aprisiona. -- Liberta de que? Acaso eu estou em alguma prisão? -- De certa forma sim. Mesmo que não consigamos ver, todos estamos presos em alguma espécie de corrente que nos agrilhoa em um campo estéril e funesto. -- Até o discurso dele você assumiu! -- Lilith, por favor! Exasperou-se Fobos. Como se estivesse a recriar o estado tempestuoso que dominava a alma de Lilith, a natureza começou a mostrar-se irada. Raios e trovões começaram a decorar o firmamento. Em breve uma torrencial precipitação pluvial irrompia sobre a região. -- Vamos para casa. Solicitou Lilith, -- Vou me despedir dos outros e já volto. -- Não. Vamos agora! Ao sentirmos os primeiros contatos do pranto noturno, nos abrigamos no interior do mausoléu mais próximo. Darkness permaneceu imóvel em seu lugar. Somente quando já havíamos entrado foi que notamos sua ausência. -- Onde está Darkness? Perguntou Pandora. -- Ficou lá fora. Respondi. -- O que faremos? Quis saber Deimos. -- Vamos esperar. Sentenciou Eve. -- Mas ele... tentou argumentar Deimos. -- Ele ficará bem. Eve cortou seu pensamento. Os raios que cortavam o manto escuro da noite permitiam que nossos olhos divisassem a figura espectral de Darkness. A conformação noturna conferia um aspecto ainda mais sombrio a sua figura. Algum desavisado julgaria que ele não passava de mais uma das estatuas que compunham a decoração do cemitério. -- Eles se foram. Anunciou Darkness já dentro do mausoléu. Espero que não se importem com minha entrada repentina. -- Tudo bem. Já estamos ficando acostumados. Falou Deimos. -- Para onde eles foram? Inquiriu Pandora. -- Para casa. -- E me deixaram aqui? -- Não se preocupe, nós a levamos para lá. Informou Mefisto. -- Deixemo-los por agora. Lilith está atravessando momentos de instabilidade. -- O que se passa com ela? Indagou Set.

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-- Minha presença tornou-se incômoda para ela. -- Por que? Perguntou Pandora. -- Posso libertá-los de seus limites, caso assim o desejem. Mas também causo tempestades dentro de seus âmagos. Mesmo vocês já sentiram isto, estou certo? -- Já que perguntou, as vezes sinto como se estivesse sendo sondado por você. Respondeu Pandora. -- Eu também. Confirmou Mefisto. -- Se os repentes que sinto forem ocasionados por sua presença, então também já senti. Corroborou Deimos. -- Mas nunca reagimos de modo tão agressivo. Aparteou Pandora. -- A não ser o esquentadinho do Set. Disparou Mefisto. -- Mas já não reajo mais assim. Falou Set meio constrangido. -- Não se cobrem demais. Cada um fornece aquilo que está pronto a dar. Talvez minha presença sirva para acelerar um pouco a maturidade que está latente em vocês, mas mesmo eu não posso quebrar o ritmo que cada um possui. -- Ainda não compreendo de que pretende nos libertar. Falou em limites, mas agora diz que não podemos dar além do que estamos preparados. Parece incoerente. Manifestou-se Pandora. -- Seus limites impedem que alcancem a maturidade necessária. Imaginem que são um veículo. Qualquer espécie de veículo. Estão parados bem no alto de uma ladeira, aguardando o momento para avançar. Só que bem sob suas rodas uma trave enorme impede-os de se colocarem em movimento. Estou aqui para retirar esta trave. -- Mas se retira a trave, o veículo despenca ladeira a baixo. Observou Mefisto. -- Não se o condutor estiver preparado. -- Ah, quer dizer que somos o condutor! Exclamou Pandora. Mas não havia dito para imaginarmos sermos o veículo? Pandora foi tão natural em seu argumento que não houve como reprimir o riso que nasceu em nossos íntimos. A gargalhada não a ofendeu em nada pois ela havia percebido que Darkness não rira. -- Quando seu veículo estiver harmonizado com o condutor a ponto de você perceber que são um só, então terá chegado o tempo de libertá-la. -- Não faz referência a opção que fizemos pelo modo como vivemos. Analisou Set. -- Não. Cada um é livre para escolher o modo como deseja viver.

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-- Mas se nos liberta de nossa dor, deixamos de ser góticos. Afirmou Pandora. -- De modo algum. São góticos por opção, não pela dor que carregam. Ainda percorrerão um longo caminho até assimilarem as nuanças que compõem o intricado desenvolver. -- Estranho. Jamais poderia imaginar que você fosse uma espécie de guru. Mefisto parecia incomodado com a postura de Darkness. -- Não sou nenhum guru. -- Já lhe perguntamos muitas vezes quem é. Por que não nos revela sua verdadeira identidade? Set mirava o fundo dos olhos de Darkness. -- Por hora me tenham como uma alma peregrina que vagueia pelo mundo a procura de uma paz que sei jamais alcançar. -- Por que? Como alguém que se mostra tão benevolente pode ser obrigado a carregar tamanho peso? Indagou Pandora. -- Tudo tem a ver com as escolhas que fazemos. As vezes uma escolha pode nos marcar para o resto de nossas existências. -- Foi tão grave assim, o erro que cometeu? Quis saber Deimos. -- Sim. Eve e eu não costumávamos nos manifestar nestes momentos em que Darkness dialogava com o grupo. O elo que nos unia fazia com que o sentíssemos dentro de nós. Isto funcionava de modo tão veemente que não sentíamos necessidade de questionar as explanações que ele fazia. Os dias seguintes se mostraram tediosos. Lilith permaneceu irritada por semanas. Neste meio tempo o grupo não voltou a se reunir. Apenas uns encontros esporádicos entre um e outro acabou acontecendo. Um deles foi entre Eve e eu. -- Oi. Como tem passado. Perguntei ao encontrá-la em uma loja de artigos góticos. -- Bem. -- Tem se encontrado com Darkness? -- Não. -- Parece-me um pouco triste. -- Estou. -- Posso saber por que? -- Sinto falta dele. -- Está apaixonada, não está? -- Acho que sim. -- Já parou para pensar que assim como ele surgiu, um dia poderá ir?

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minha alma.

-- Já. -- Como vê esta possibilidade? -- Como uma faca que penetra o mais fundo possível em

-- Mas ainda assim o tem em seu coração. -- Não tem como evitar. -- Eu sei. -- Mamãe tem me ajudado a levar a situação. Muitas vezes ela entra em meu quarto e me encontra chorando. -- O relacionamento de vocês parece ter melhorado. -- Sim. Mesmo papai já não fica mais me enchendo. Até nisto tem a presença de Dark. -- Foi ele quem interveio junto a seus pais? -- Lembra quando fiquei acamada? Pois é, ele foi até em casa e conversou com meu pai. -- Sei que ele deve estar ocupado com alguma outra atividade, mas também sei que o elo que nos une é forte o bastante para que possa solicitar sua presença. -- Como? -- Deixe que seu coração a conduza. Sei que se agir assim, ele virá até você. -- Vou tentar. Naquele dia quando chegou em casa, Eve foi direto para o quarto. Sua mãe pressentiu que algo de ruim estava para acontecer. Temeu que o dia, tão funestamente prenunciado pelos médicos, tivesse chegado. Desesperada, trancou-se em seu quarto e começou a rezar entre lágrimas. Contudo, Eve não estava acompanhada pela fatalidade. Seu coração chorava a ausência de seu amor, apenas isto. Ao se ver protegida pelo sigilo de seu quarto, escolheu um dos cds que Darkness lhe havia dado, colocou-o no aparelho, jogou-se sobre a cama, luz apagada, fechou os olhos e aguardou. Colocado no modo repetição, não se deu conta de quantas vezes o cd havia tocado quando, de repente, sentiu-se invadida por uma paz tão avassaladora que sentir qualquer dor se tornou impossível. Automaticamente sussurrou: -- Dark! -- Por que a amargura, princesa? -- Senti sua falta. -- Sabe que mesmo distante sempre estarei com você. -- As vezes não é o suficiente. -- Eu sei.

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-- Onde esteve? -- Outros precisam de minha ajuda. Uns mais, outros menos, mas precisam. -- Eu também preciso. -- Você possui algo que a maioria não faz a menor idéia que possa conseguir. -- O que? -- Meu eu. -- Heim? -- Já não sou mais capaz de abandonar estas paragens. Sinto que me deixei cativar por sua essência. -- Mesmo? -- Sei que não posso desfrutar das benesses que o amor propicia, mas ainda assim não resisti e acabei me unindo mais fortemente a você do que deveria. -- Por que? Se é tão livre quanto nós, por que não pode sentir a plenitude do amor? -- Não sou merecedor. Há muito cometi o desvario de afrontar a mais pura manifestação do amor. Desde então vago em busca de paz. -- Um erro há tanto cometido não pode condená-lo por toda eternidade. -- Meu erro pode. -- O que de tão grave cometeu? -- Deseja mesmo saber? -- Mais que tudo. -- Então se liberte por completo. Eve foi a primeira a ter conhecimento da verdadeira face de Darkness. Em sua companhia percorreu o labirinto escuro que o passado dele havia se tornado. A seu lado pôde contemplar o visgo trevoso que gotejava de suas experiências passadas. Ao fim da jornada, um alquebrado ser se prostrava diante dela. -- Lamento desapontá-la. Não sou aquilo que pensava que fosse. -- Não! Não me desapontou. Eve tinha a mais doce das vozes. Ao falar para Darkness, tornou-a ainda mais suave. Sei que seu erro é abominável, mas ainda assim meu coração o ama. -- Mas não sou digno de possuir o amor de alguém tão sublime. -- Sabe que não sou assim tão especial. Também tenho meus pecados. -- Pequenos deslizes se comparados ao meu.

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-- E no entanto, minha alma clama pela tua. -- Por que? -- Porque ainda tem o amparo do amor! Ainda não está irremediavelmente perdido. -- Não. Sei que já não posso mais auferir a benevolência do perdão. -- Talvez esteja enganado. -- Não estou. Minha condição não permite que eu me iluda. -- Sua quase imortalidade o tornou muito duro consigo mesmo. -- Minha quase imortalidade é a maldição que se abateu sobre mim. Não passo um dia sem que anseie pelo abraço da morte e no entanto, sei que ele jamais acontecerá. -- Dark! Olhe-me com atenção. Mesmo não se sentindo no direito de olhar para sua interlocutora, Darkness timidamente a olhou. -- Não sente a energia que se desprende de meu ser? Não é capaz de haurir do carinho que emana de meu olhar? A união que se seguiu entre ambos parece ter durado toda eternidade. Por momentos que não tiveram fim, seus seres se uniram num encontro que supera qualquer experiência material. Não há como comparar o que se passou. A conjunção que se processa quando do ato sexual não é nem sombra daquela que ocorreu naquele momento. Eve se uniu de forma indelével a Darkness. O que ela nem imaginava era que aquele ato acarretaria uma dor ainda maior a ele. Os amaldiçoados não têm a benevolência dos juízes. Darkness poderia passar toda eternidade perpetrando o bem que jamais extinguiria sua culpa. A paz que tanto ansiava dominou a alma de Eve. Ao despertar em seu leito, sentiu que nunca mais estaria distante de seu amor. Ainda uma vez mais deixou o cd rodar e, depois de um bom banho, desceu para o desjejum. Em sua morada intramaterial, Darkness sentia os efeitos daquela união. Seu ser era tangido por agruras sem fim. Sua alma dilacerada sentia o vergastar da agonia ferir ainda mais seu já debilitado âmago. Lágrimas de profunda aflição banhavam-lhe o rosto enquanto filetes rubros cobriam seu corpo. -- Por que? Por que me impõem tamanho sofrer? Será que meu erro foi tão cruel assim? Prateava sem obter respostas.

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O penar de Darkness estendeu-se até seu ser beirar a morte. Suas forças foram tão drasticamente sugadas que ele chegou a pensar que finalmente se libertaria. Estava enganado. Mal o dia avançava sobre o domínio da noite, seus olhos tornaram a se abrir e sua dor a intimá-lo a prosseguir. Outro dia, outras tantas horas de sofrimento. Assim era o viver de Darkness e assim continuaria sendo até que a hora do resgate houvesse chegado. Demorou quase um mês até que o grupo voltasse a se reunir. Lilith já se mostrava menos sensível a presença de Darkness. Não que ele se fizesse presente no primeiro encontro, mas o sentíamos mesmo em sua ausência. -- Finalmente a reclusão acabou. Sorriu Pandora. -- Não precisavam terem se privado das reuniões. Falou Fobos. -- Não nos sentíamos bem com o grupo incompleto. Pronunciou-se Mefisto. -- Onde anda nosso mentor? Embora já mais amena, Lilith ainda se mostrava mordaz. -- Deu um tempo. Informou Set. -- Não tiveram mais notícias dele? Perguntou Fobos. -- Não. Assegurou Deimos. -- Ele está compromissado em outro lugar. Participou Eve. -- Como sabe? Indagou Lilith. -- Nos encontramos dias destes. -- Parece que nossa amiguinha pretende tornar-se rainha. Ironizou Lilith. -- Pensei que ela tivesse melhorado. Comentou Eve para Fobos. -- Estou melhor. Mas ainda não engulo a interferência deste estranho. -- Darkness não estará mais entre nós. Anunciei. -- Como? Perguntaram-me. -- Ele sente a ressalva causada a alguns. Em respeito a nossa liberdade, decidiu ausentar-se. -- Mas logo agora? Lamentou Pandora. -- Por que logo agora! Clamou Lilith. -- Lembram-se daqueles caras que encontramos no festival de Curitiba? -- Os da “Tumba Faraônica”? -- Eles mesmo. -- O que tem?

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-- Estão vindo para nossa cidade. -- Fazer o que? -- Participar da turnê do Every Today. -- Mas é uma banda pop. Reclamou Deimos. -- Cada um curte o som que lhe agrada. -- Mesmo que estejam por aqui, o que tem Darkness a ver com isto? Inquiriu Fobos. -- Poderíamos levá-los até a mansão do terror! Pandora gracejou. -- Uma festa? Entusiasmou-se Mefisto. -- Talvez. Anuiu Pandora. -- Por que Eve não pergunta para ele? Sugeriu Deimos. -- Não será preciso. Eve foi lacônica em sua fala. -- E por que não? Questionou Set. -- Darkness não virá até nós, a menos que desejemos isto. -- Ah, agora somos os malvados! Bradou Lilith. -- Não foi isto que disse. -- Está bem! Cortou Fobos. Alguém mais concorda que averigüemos se Darkness receberia nossos amigos? Excluindo Lilith, todos nós concordamos. Uns por julgarem que era uma ótima forma de mostrar a um outro grupo o quanto éramos bem relacionados. Outros porque adoravam uma festa e também porque seria uma oportunidade de desfrutarmos da presença de Darkness. -- Poderia contatá-lo? Fobos perguntou para Eve. -- Posso tentar. -- Irá trazê-lo aqui? Criticou Lilith. -- Lilith, por favor. Pediu Fobos. -- Se vamos contatá-lo, precisamos fazer do modo correto. Informei. -- Qual é este modo correto? Deimos tentou ser engraçado. -- O círculo. Avisou Eve. -- Hei, somos góticos, não feiticeiros! Advertiu Mefisto. -- O círculo. Insistiu Eve. -- Vamos fazer como Eve indica. Admoestou Fobos. Assim fizemos. Formamos um círculo e colocamos nossas mãos na posição indicada por Darkness. Mentalmente tentamos estabelecer contato com ele. No começo pensei que falharíamos mas, mesmo inexperientes, sentimos que nossas energias fluíam de um para outro. Permanecemos em transe por alguns minutos. Era como se não sentíssemos nada do meio que nos cercava. Estávamos ali e ao mesmo tempo longe dali. Nossos corpos estáticos pareciam deslocados para dentro

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de uma dimensão desconhecida. Quando a ligação se rompeu fomos atingidos por uma onda gigantesca de energia. -- Falhamos! Lamentou Pandora. -- Não! Anunciou Eve. -- Mas não senti nada. -- Eu também fiquei na minha. Falou Deimos. -- Ele concorda. Quer que marquemos uma data. Informou Eve. -- Mas por que não vem, pessoalmente, combinar os detalhes? Questionou Pandora. -- É desejo de Darkness que o grupo permaneça unido. Ele consentiu que utilizemos sua casa para o fim que desejarmos. -- Ele não estará presente? Admirou-se Set. -- Não. -- Por que? Perguntamos. -- Prefere que tudo seja realizado com a mais absoluta harmonia. -- Isto é uma indireta para mim? Indignou-se Lilith. -- Não! Não é indireta para ninguém. Zanguei-me. -- Hei, vamos para com as provocações. Intimou Fobos. Se Darkness acha melhor não estar presente à festa, temos que respeitar sua decisão. -- Como faremos? Quis saber Pandora. Em poucas palavras Fobos expôs seu plano. assim que o grupo amigo chegasse, seguiríamos até a mansão de Darkness e realizaríamos nossa celebração. A mansão era tão assustadora que qualquer decoração era desnecessária. Apesar da ausência de Darkness, não senti nenhuma manifestação de pesar da parte de Eve. Aquela sua aparente frieza me incomodou. No momento de irmos para casa, perguntei-lhe se poderia acompanhá-la. Pressentindo minhas intenções, ela concordou. -- Não parece triste por Darkness não estar presente. -- Não estou. -- Pensei que... -- Eu o amo! Eve cortou meu pensamento adianto-me a resposta que seria formulada. -- Mas então... -- Darkness jamais estará longe de mim. -- Como assim?

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Naquele momento fiquei sabendo sobre a ligação que Eve e Darkness haviam estabelecido. Ela só omitiu a parte onde ele lhe revelará quem realmente era. Isto cabia exclusivamente a ele revelar. -- Então estão ligados para sempre! -- Sim. Jamais me separarei dele. -- Irão morar juntos? -- Para que? -- Ora, todos que se amam vivem juntos. -- Não somos iguais aos outros. -- Isto eu sei. -- Ainda assim espera um comportamento tradicional de nossa parte. -- Não. Para ser sincero, nem sei porque fiz tal afirmação. -- Darkness o tem em alta consideração. A ligação que ele estabeleceu com você é muito forte. -- Eu sei. -- Então porque esta ponta de lamentação que brilha em seu olhar? -- Fobos estava agitado, Darkness o libertou. Set se mostrava arredio, Darkness o libertou. Você encontrava-se transida de medo, Darkness a libertou. Mas quanto a mim, parece ignorar meu penar. -- Engana-se. Darkness sente toda dor que o consome. Mas não espere que ele se manifeste quando achar que lhe é conveniente. Darkness sabe o momento mais apropriado para agir. -- Está querendo dizer que não estou maduro? -- Talvez. -- O que mais devo fazer para provar que mereço a intervenção dele? -- Já pensou que é justamente este seu modo de pensar que impede que ele aja? Ninguém precisa provar nada para ninguém. Muito menos para ele. -- Então... -- Então procure acalmar seu íntimo e aguarde pela hora certa. Darkness jamais olvidaria alguém que lhe é caro. -- Tentarei me conformar com isto. -- Não tente se conformar, procure entender. Somente o verdadeiro aprendizado traz o progresso. -- Irá à festa? -- Sim. -- Darkness está evitando encontrar-se com Lilith?

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-- Não. Darkness está ocupado com assuntos mais importantes para ficar se importando com os desvarios de quem quer que seja. -- Tem certeza que não é por causa de Lilith? -- Absoluta. Os preparativos para a festa foram todos concluídos com muita antecedência. A mansão estava a nosso dispor. O único senão era o modo como chegaríamos até lá. Com Darkness a nosso lado era fácil, mas sozinhos... Nossas preocupações foram diluídas com a chegada inesperada da mesma van que nos conduzira até lá. Mais uma vez não era Darkness a conduzi-la. O mesmo motorista se apresentou e nos informou que permaneceria com o grupo até a noite da festa. A noite da grande festa nos revelaria uma surpresa fenomenal. Já havíamos arrumado todos os detalhes na mansão e apenas aguardávamos a chegada do grupo convidado. Estávamos jogando conversa fora quando ouvimos a van estacionar no pátio. Ainda era um pouco cedo para os convidados. Apreensivos fomos ver quem chegara. Mal pudemos acreditar no que vimos. Parados diante de nossos olhos esbugalhados, os integrantes da banda que era o motivo da vinda de nossos amigos até nossa cidade. -- Olá! Saudou-nos o líder da banda. -- Olá. Fobos retribuiu o cumprimento. -- Será que viemos ao lugar certo? -- Se estão procurando a mansão do horror... gracejou Mefisto. -- Fomos convidados a conhecer esta maravilha. -- Se é assim, entrem. Convidou Fobos. -- Hei, pessoal, tragam os equipamentos! -- Que equipamentos? Perguntamos. -- Não podemos fazer um som sem nossos instrumentos. -- Fazer um som? Nosso espanto parece ter alertado o líder da banda para o fato de ignorarmos o motivo pelo qual estavam ali. -- Creio que não estão sabendo o motivo de nossa vinda. -- Bem, afirmou que foram convidados a conhecerem a mansão. Fobos assumira a função de interlocutor do grupo. -- Também, mas queremos retribuir a gentileza do anfitrião. -- Quem os convidou? -- Darkness! -- conhecem-no? -- Se o conhecemos? Ele foi nosso maior incentivador. Se não fosse pela força que nos deu, talvez ainda estivéssemos tocando nos porões de nossa cidade.

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-- Mas se vieram visitar, parece sem propósito que toquem. -- De modo algum. Adoramos tocar e além disto, não desperdiçaríamos a oportunidade de descobrir como nossos instrumentos soarão neste ambiente. -- Já que é assim, vamos entrando. -- Darkness, sempre Darkness. Sussurrou Lilith quando Fobos chegou ao seu lado. O sucesso da festa realizada na mansão de Darkness foi tamanho que tanto o grupo de Curitiba quanto a banda decidiram apadrinhar nosso grupo. Não tínhamos idéia formada sobre o que este apadrinhamento significaria. Somente quando começamos a receber convites de outros grupos foi que entendemos o alcance daquela atitude. Mas isto se passou alguns meses mais tarde. A situação ficou um tanto esquisita. Nossas reuniões começaram a parecer meio sem tempero desde que Darkness se afastara. Porém Lilith se mostrava irredutível em sua desavença. Ninguém, nem mesmo Fobos, sabia o motivo daquela cisma. Enquanto procurávamos uma forma de contornar aquela situação íamos prosseguindo com nossos afazeres. Em determinado dia, estávamos relaxadamente declamando algumas poesias quando um estranho interrompeu nosso sarau. -- Paola! Chamou olhando Pandora. -- Acho que está no lugar errado. Não há nenhuma Paola aqui. Falou Fobos. -- Tudo bem, ele é meu tio. Informou Pandora. -- Estar aqui é tão constrangedor para mim quanto deva ser para você, mas o assunto é muito delicado. -- Do que se trata? -- Sua mãe. -- O que tem? -- Ela está morrendo. -- Sei. -- Por favor. Sei que as diferenças existentes entre ambas são profundas, mas compreenda, ela também sofreu muito durante estes anos. -- Vamos pular esta parte e diga logo por que está aqui. -- Ela deseja vê-la uma última vez. -- Remorso? -- Chame como quiser. -- Não irei. -- Paola, por favor. Insistiu o tio. -- Não tenho mais nada a ver com aquela família.

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ouvido.

-- É sua última palavra? -- É. -- Entendo. Ainda assim, agradeço por ao menos ter me

Silenciosamente o tio de Pandora abandonou o cemitério. A ausência de comentários fez Pandora compreender que o grupo não questionaria sua decisão. Nenhum de nós tinha motivos para agir de tal forma. Como se nada houvesse ocorrido, ela retomou a leitura da poesia que havia encetado. O que quase nenhum de nós sabia era que Pandora se afligia intimamente. Apesar da omissão da mãe quanto aos abusos que sofrera, ela não a odiava. Lastimava a covardia materna de se calar diante de tamanha monstruosidade, porém entendia os motivos dela. Sua recusa em atender o pedido feito, fundamenta-se em seu temor em encontrar-se uma vez mais com o autor dos abusos. Alta hora da noite ela se viu privada do sono. Furtivamente dirigiu-se até a sala e deixou que a dor que a consumia vazasse em profundo choro. Agarrando-se a uma almofada, enfiou o rosto como se tentando abafar a angústia. Neste exercitar acabou sendo vencida pelo cansaço. Seu sono era tenso e repleto de confusão. Via-se sozinha em um lugar mais escuro que a noite. Não era capaz de ver nada. Porém sabia que alguém ou algo a espreitava na escuridão. Sentiu o medo gelar-lhe o sangue e impedir seus movimentos. Estava dominada pelo pavor. Como único meio de manifestar sua revolta, lançou grito lancinante que se perdeu no vazio do negrume. Sem mais ter onde se apoiar, sentiu brotar em seu âmago um apelo incondicional, seus lábios sussurraram: -- Darkness, por favor! As palavras ainda ecoavam no escuro quando uma cintilante luz dourada a envolveu. Ao sentir o toque suave de mão delicada a acariciar-lhe os cabelos, uma paz gigante assomou em sua alma. -- Estou aqui, frágil pétala da aurora. -- Darkness! -- Venha. Há um lugar mais aconchegante para conversarmos. Darkness levou Pandora para um outro ambiente. Este mais parecia a tela elaborada pela mente fértil de um gênio do renascimento. Cores em profusão vicejavam em todos elementos da paisagem. Pandora nunca vira flores e animais tão maravilhosos. -- Onde estamos?

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-- Alguns acham que este é o paraíso. Mas não, estão enganados. Este é o local onde almas torturadas, mas que anseiam por libertação, vêm quando a hora é chegada. -- Hora para que? -- Hora para ver e aprender. -- Ver e aprender o que? -- Ver e aprender as vibrações que fluem de seu agir, pensar e desejar. -- Não estou entendendo! -- Não se preocupe. Temos muito tempo para isto. -- Logo amanhecerá. -- Logo é um conceito que não existe aqui. Assim como muito tarde ou antes ou depois. -- Não consigo seguir seus passos, mas me sinto bem em estar aqui. -- Se deixar a harmonia impregnar-se em seu âmago, este bem estar a acompanhará por toda sua existência. -- Por que me trouxe até aqui? -- Está na hora de começar sua escalada. Se decidir pelo cume, verá que muitos obstáculo se colocarão a sua frente, se optar pelo sopé, poderá sentir que o caminho se aplaina. Porém, no primeiro caso, a cada obstáculo sentira a aura refrescante da ventura tocar-lhe a fronte amenizando seu penar, já no segundo, bem... neste caso somente ilusão e dor serão sua colheita. -- Mostre-me como ser forte para escolher o caminho certo. -- Para isto estou aqui. Pandora mostrou-se uma ouvinte atenciosa. Acolhia as informações que Darkness apresentava como se fosse uma criança a receber os ensinamentos de seu mestre. Não soube avaliar quanto tempo durou a preleção, mas quando Darkness silenciou-se, sentiu que suas dúvidas haviam se transformado em degraus. -- Então, o que vai escolher? -- Quero chegar ao cume! -- Ótimo! Sabe qual o primeiro passo a ser dado? -- Sei. Só não me sinto forte o bastante para dá-lo. -- O primeiro passo é sempre o mais difícil. Lembra-se quando começou a andar? -- Nossa! De repente me lembrei nitidamente disso. Como é possível? -- Estamos num plano onde as experiências gravitam ao redor de seu autor. Aqui pode se lembrar daquilo que desejar.

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-- Muitos fatos gostaria que nunca houvessem acontecido. -- Estes você pode afastar de sua mente. -- Ainda não sou capaz. -- Mas se se esforçar, um dia será. -- E quanto a Eve? -- O que tem Eve? -- Ela e você estão... -- O que une sua amiga a mim está além de qualquer manifestação sentimental. -- Não sei se conseguirei prosseguir sozinha. -- Não estará só. -- Mas devo visitar minha mãe. -- Eu sei. Mesmo lá não estará só. -- Virá comigo? -- Não em pessoa, mas estarei em você. -- Como assim? -- Abra-me seu coração e saberá. Mesmo executando sua tarefa, Darkness nunca se repetia. Agiu de um modo com Fobos, de outro com Set, outro ainda com Eve e agora de outro ainda mais diverso com Pandora. As ligações que estabelecia com cada um de nós nunca eram iguais. Cada um percebia de um modo diferente. Ao amanhecer, Pandora sabia que devia ir até a mãe. Subiu sem pressa e arrumou-se com a mesma despreocupação. Lilith estranhou o fato dela estar se arrumando tão cedo. -- Vai sair? -- Vou. -- Posso saber onde? -- Vou visitar minha mãe. -- Mas ontem... -- Ontem não possuía o discernimento que tenho agora. -- O que foi? Um passarinho verde a visitou durante a noite! -- Não. A visita foi de... -- Já sei! Não precisa falar, Darkness! -- Ele mesmo. -- Por que será que vocês são tão submissos a ele? -- Não é submissão. É união. -- Bobagem! Este estranho está nos envenenando com suas artimanhas. -- Um dia compreenderá que não é nada disso. Só espero que, para seu bem, este dia não esteja longe demais.

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Sempre que Darkness se unia a um de nós, aqueles que já haviam passado pela mesma experiência, sentiam os efeitos das ligações. Mesmo não acompanhando o desenrolar do encontro entre Pandora e Darkness, senti cada minuto que tiveram para acertarem a situação. No exato momento em que Pandora parou diante da porta do quarto onde sua mãe se encontrava, Darkness estabeleceu o contato. Também nós participamos desta união. -- Mamãe. A voz de Pandora soou baixa. -- Quem é? Pelo tom de voz da mãe, Pandora percebeu que ela estava muito próxima de deixar este mundo. -- Eu. Pando... quer dizer Paola. -- Filha! Exclamou sua mãe. Você veio! O choro explodiu em ambas. Mãe e filha após dois longos anos se reencontravam. Aproximando-se mais, Pandora debruçou-se sobre o leito e estreitou o corpo enfraquecido da mãe num terno e demorado abraço. -- Mamãe! -- Oh, filha, pensei que jamais tornaria a vê-la! -- Estou aqui. -- Seu tio havia dito que não viria. -- Eu disse. -- O que a fez mudar de idéia? -- O auxílio de um amigo. -- Mesmo não o conhecendo, posso deduzir que se trata de uma ótima pessoa. -- Sim. O melhor que poderia ter encontrado. -- Um namorado? A mãe de Pandora tentou ser vivaz. -- Não. Apenas um amigo. -- Entendo. -- O tio disse que a senhora está muito mal. -- É. É o peso da culpa. -- Esqueça esta visão errada de culpa. Aproveite o tempo que ainda tem para tentar tirar alguma lição de tudo que viveu. -- O que? -- Não a culpo pelo que me aconteceu. Também não deve se culpar. Tudo está certo como está. Eu encontrei meu caminho, ou melhor, eu me encontrei e estou feliz com isto. -- Nem parece minha filha. Aquela menina amedrontada que fugiu de casa com medo de ter que... -- Mãe, já passou! Eu aprendi com isto. Hoje sei que a vida nos ensina, mesmo quando parece que apenas nos castiga.

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-- Seu amigo é o responsável por esta mudança? -- Um pouco. Também tenho outros amigos. Não muitos, mas amigos de verdade. -- Fico feliz por encontrá-la tão centrada. Achei que pudesse estar amargurada, desiludida da vida. -- Cheguei a ficar. Durante muito tempo estive perdida em um campo escuro onde a dor me sufocava. Agora não mais. -- O que mudou? -- Tudo. -- Não quer falar sobre isto? -- Pode ser. Nem mãe nem filha tinham tempo ou espaço em seus íntimos para notarem que estranhamente ninguém as interrompia. A conversa prolongou-se por horas e nem mesmo a enfermeira penetrou no quarto. Nós, os outros que partilhávamos do momento, sabíamos que Darkness estava por trás daquela estranha ausência de cuidados. Somente quando a noite já lançava seus primeiros fios sobre a orbe, foi que o diálogo foi interrompido. Uma enfermeira entrou trazendo o jantar da enferma. -- Com licença, está na hora da janta. -- Já é tão tarde! Assustou-se Pandora. -- Não. Aqui nós jantamos muito cedo. Falou a mãe. -- Sente-se melhor hoje, Dona Neusa? -- Este é o melhor dia de minha vida. -- Ora, que bom. Posso saber o motivo de tanta alegria? -- Minha filha está aqui. -- Esta linda jovem? -- Eu mesma. -- Nossa, nem fazia idéia que a senhora tivesse uma filha tão formosa. -- Ela é um tesouro. Aquela afetação toda começava a incomodar Pandora. Sabia que a mãe estava realmente arrependida por tudo, mas não lhe agradava ter que participar de um quadro tão superficial. O encanto que sentia até então, começou a esvaecer-se. A chegada de outros membros da família a fez retrair-se. Quieta em seu canto, sentiu quando uma mão delicada a tocava. -- Darkness! -- Psiu! Fez colocando o dedo sobre os lábios. Sem que os outros notassem, a tirou do quarto. -- O que ouve?

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-- A hora de sua mãe chegou. -- Ela... ela... -- Sim. Apenas a determinação em vê-la uma última vez a manteve neste mundo. Agora não há mais porque prolongar sua estada. -- Pensei que nunca iria lamentar sua morte, mas meu peito está tomado por uma dor muito forte. -- Isto é natural. Mesmo que as rusgas que as separaram ainda se façam notar nesta ou naquela oportunidade, sabe que ela estava sendo sincera ao dizer que se arrependeu pelo erro cometido. -- Terei que comparecer ao enterro? -- Somente se desejar. -- Não sei. Tenho medo de encontrar com ele. -- Estaremos ao seu lado. -- Estarão? -- Sim. O grupo a acompanhará. -- Também estará presente? -- Sim. Pandora decidiu ficar a margem dos preparativos do enterro. Não desejava reatar com a família. Rever a mãe e demonstrar que a perdoara era o máximo que se permitia. Os demais teriam que conviver com as conseqüências de seus atos e escolhas. Após haver comunicado o restante do grupo sobre a morte da mãe, Pandora perguntou quem a acompanharia ao enterro. Antes de ouvirnos, adiantou que Darkness também estaria presente. -- Todos nós iremos. Anunciou Fobos. -- Mesmo? Insistiu Pandora. -- O que? Está pensando que iria abandoná-la num momento assim? Perguntou Lilith mostrando-se indignada. -- Pensei que não gostaria de se encontrar com Darkness. -- Em momento tão crucial, as diferenças ficam em segundo plano. Afirmou Lilith. -- Obrigada amiga, não gostaria de passar por esta experiência sem a sua companhia. -- Iremos todos! Anunciou Fobos encerrando o assunto. O cemitério estava repleto de pessoas. Além do sepultamento da mãe de Pandora outros três ocorreriam no mesmo local. O vai e vem das pessoas nos causava repugnância. Gostávamos do ambiente dos cemitérios justamente pela paz que eles transmitiam e aquelas pessoas com suas frivolidades profanavam a aura solene que aprendemos a respeitar. Darkness amparava Pandora mesmo com a presença de Eve. Ela parecia não se importar com o fato pois se mostrava serena. Seus olhos

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fitavam Pandora com docilidade como se estivesse querendo lhe transmitir a mais sincera e confortante paz. Os escândalos que alguns membros proporcionaram aumentou nossa aversão aquele espetáculo deprimente. Pandora parecia estar tão compenetrada em suas recordações que tudo a atingia minimamente. Porém quando seus olhos cruzaram os de seu pai... Chispas de ódio dardejaram de seu olhar. Somente a postura firme de Darkness a impediu de reagir destemperadamente. Com muito custo conseguiu se segurar e evitar uma discussão que não levaria a nada. -- Maldito! Esbravejou entre os dentes. -- Acalme-se! Não vale a pena abrir velhas feridas. O tempo cuidará de mostrar a todos seus enganos. -- Veja como o hipócrita ludibria a todos fazendo-se passar por coitado. Mal sabem que tipo de animal ele é. -- Lembre-se daquilo que conversamos. As pessoas só podem nos dar aquilo que estão preparadas a dar. -- Devo perdoar o que aquele porco fez comigo? -- Um dia terá esta capacidade, por ora basta que esqueça. -- Impossível! -- Hoje ainda o é, mas amanhã será outro dia. A segurança e doçura com que Darkness pronunciou aquelas palavras, surtiram efeito em Pandora. Desviando seu olhar da figura do pai, procurou evitar que voltassem a se fitar. Já na casa onde morava com Fobos e Lilith, Pandora procurou pelo abrigo de seu quarto. Sabia que gostaríamos de demonstrar-lhe nossa solidariedade, mas também desejava manter um diálogo com seu eu interior. Repassar as experiências de sua vida e depois decidir-se sobre o que fazer dela. Darkness mal chegou e se despediu. Antes que chegasse a porta, Lilith o deteve. -- Não precisa ir. Precisamos ouvir o que tem a dizer a respeito do ocorrido. -- Creio não haver muito que dizer. -- Engana-se. Sabe que temos uma certa predileção pela morte. Excluindo talvez dois de nós, os demais correm o sério risco de acabar seus dias através do suicídio. Mesmo sua queridinha corre este risco. -- Antes que eu tenha partido, todos estarão libertados. -- Acredita que pode mesmo libertar-nos? De que nos libertará, afinal? -- De vocês mesmo. De seus medos, de suas angústias, de suas ilusões.

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-- Ilusões! Somente porque não agimos segundo o modelo de normalidade do mundo, quer nos fazer crer que nos iludimos? -- Não. -- Mas acabou de afirmar que... -- Apenas disse que os libertaria de suas ilusões. -- O que dá no mesmo. -- Não. Pois aqueles que vivem segundo as normas tradicionais, vivem tão enredados pela ilusão quanto vocês. -- Ah, sei, o único que vive a realidade é você. -- Minha realidade é algo que jamais poderiam abarcar. Ela é muito complexa. -- Talvez queira nos elucidar a respeito de tamanha complexidade. -- Cada um tem seu próprio tempo. -- Ou seja, não irá nos revelar nada. -- Quando a hora houver chegado. Nem um segundo antes. Apesar do embate que travavam, nenhum de nós ousou intervir. Lilith exercia seu direito de questionar e além disso, o tom utilizado por ela demonstrava que já não havia tanta aversão por Darkness. A conversa seguia um curso, se não amistoso, pelo menos não conflitante. -- Está bem, já que insiste em calar-se a respeito disto, fale-nos a respeito da morte. -- O que desejam saber? -- Tudo. -- Está sendo meio vaga. -- Eu tenho uma pergunta. Manifestou-se Set. -- Pois faça-a. -- O que nos acontece quando morremos? -- Depende. Cada um tem que enfrentar, ou melhor, colher aquilo que semeou. Se sua vida foi exemplar, o local onde irá despertar também o será. -- Taí, exemplar e despertar. O que quer dizer com isto? Perguntou Mefisto. -- Exemplar quer dizer que viveu segundo as orientações que regem a criação. Despertar porque o morrer neste mundo representa o despertar, ou renascer, no outro. -- A morte não é o fim? Admirou-se Pandora olvidando um pouco a dor que sentia. -- Não. Para muitos isto será uma grande aflição e para poucos uma amostra do quão justas são as normas naturais. -- Se me matam, o que ocorre? Quis saber Deimos.

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-- Bem, o fato não é simples como parece. Ante os olhos cegos da justiça humana, pode ser tratado como igual a outros tantos, mas ante a balança da justiça eterna não. -- Não falou sobre... Deimos ia retomar a fala. -- Espere. Se seu espírito estiver maduro o suficiente para assimilar o fato de haver morrido de modo violento, e se mostrar aberto ao auxílio que é prestado, será conduzido para um luar onde poderá recuperarse para depois prosseguir em seu aprendizado. Pois cada nova chance que tem de viver neste mundo, faz parte de um aprendizado que só termina quando estiverem totalmente desenvolvidos. -- E se não estiver maduro ainda? -- Então corre o sério risco de perambular feito um fantasma entre este mundo e o outro. Passará um longo tempo buscando uma vingança que só aumentará a ilusão em que se encontra aderido. Dificilmente encontrará o caminho que conduz ao amadurecimento. -- Mas isto é injusto! Sou assassinado e ainda corro o risco de sofrer ainda mais! Irritou-se Deimos. -- Não há injustiças na ação das leis. Sua escolha é que as fazem parecer injustas. Assim que se modificar e adaptar-se a elas, poderá beneficiar-se de seus efeitos. -- Espera aí! Agora você está parecendo um pregador! Exclamou Set. -- Isto porque mesmo os pregadores conhecem os efeitos das leis. Apenas as distorcem para que possam obter vantagens com a ignorância de todos. -- Aqueles lugares que nos mostrou, podemos ir para lá? Perguntou Set. -- Sim. Tudo depende de suas escolhas. -- Lembro-me da angústia que dominava um daqueles lugares, se tiver que viver ali, serei esmagado por ela. -- Isto por que o suicídio é uma das mais graves violações que o espírito pode cometer. A maioria daqueles que chegam ali, jamais encontram a Luz. -- Está querendo nos amedrontar? Indagou Lilith. -- Não. O medo nasce da ignorância. Se possuírem o conhecimento, mesmo que venham a cometer os mais crassos dos erros, não se deixarão abater pelo medo. -- Mesmo tendo que enfrentar nosso castigo. Pandora demonstrou contrariedade ao se expressar. -- Não existe castigo ou premiação. Somente efeito retroativo. -- Como assim? Questionou Fobos.

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tudo.

-- Alguém ainda se lembra das leis de Newton? -- Hei, vamos ter aula de física, agora! Zombou Mefisto. -- A que lei se refere? “-- A toda ação corresponde uma reação.” -- Ah, esta! Esta é moleza! Mefisto realmente achava graça em

-- Assim como esta lei explica o equilíbrio entre os corpos, ocorre com o equilíbrio de nossos atos. Cada ação, desejo ou pensamento que executamos acarreta uma reação. E são os efeitos desta reação que nos atingem um dia. Como podem ver sem castigos ou prêmios. -- Ainda assim, estamos sujeitos a uma existência amargurada. Resignou-se Set. -- Isto se assim você desejar. -- Não se lembram da energia que sentimos quando formamos o círculo? Eve mais comentou que perguntou. -- O que tem esta energia? Lilith parecia estar muito interessada. -- Ela é apenas uma das inúmeras formas de energia que traspassam o nosso mundo. Se vibrarmos na mesma intensidade das energias positivas, seremos atingidos por elas, se vibramos de outra forma, seremos atingidos pelas negativas. Também aí se dá o mesmo. Explanou Eve. A preleção estendeu-se até que Darkness sentiu não haver mais condição em prosseguir. Sabia que os espíritos precisavam de um tempo para assimilar as lições. Caso insistisse em ir além, não obteria nada de produtivo. Cada um de nós recebeu as informações de um modo pessoal. Na minha compreensão resumida, repensei as agruras que havia experimentado. Minha timidez mórbida, meu descontentamento com minha forma física, a solidão auto-imposta... as drogas... minha família fechando as portas e virando-me as costas, enfim, repassei minhas dores. Neste exercício plangente, cheguei a crer que Darkness manifestaria sua ânsia de libertação e me auxiliaria na penosa caminhada. Nada aconteceu. Senti-me abandonado pela segunda vez. Só que desta vez a dor foi maior. Confiava cegamente na condução de Darkness e mesmo assim ele me faltava. Antes que a raiva me dominasse, pareceu-me ouvi-lo em minha mente: -- Cada um tem sua hora. Nem um segundo antes disto. Será que minha hora ainda não havia chegado? O que estaria faltando para que isto ocorresse? Onde estava minha falha?

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Perguntas. Somente perguntas flutuavam em minha mente. Nem mesmo uma nesga de revelação. Estava aturdido com minha pequenez. Cheguei a chorar a limitada visão que tinha da vida. Foi neste ponto que presenciei o eclodir da Luz. Trêmula e difusa no início, foi se tornando mais e mais nítida. Ao vê-la toda incandescente, fui obrigado a cerrar os olhos. Ao tornar a abri-los, nada havia a não ser eu e minhas eternas dúvidas. Só que para minha surpresa também já não havia a angústia e o sentimento de abandono. Sentia-me leve. Intimamente ecoavam-me as exortações de Darkness: -- Tem que procurar suas próprias respostas. Caminhar com suas pernas. Só então poderei ajudá-lo. Dias depois recebemos a primeira correspondência dos amigos de Curitiba. Todos ficamos efusivos. Eles nos tratavam com deferência. Sentimo-nos prestigiados e isto nos deixou orgulhosos. -- Olha só, eles estão divulgando nossos nomes para outros grupos. Deimos não cabia em si de empolgação. -- Talvez devêssemos nominar o grupo. Sugeriu Mefisto. -- Não. Não podemos ceder as tentações correntes. Asseverou Fobos. Desde o começo deixamos bem claro que não agiríamos igual aos demais grupos. Não nos convém estes convencionalismos frugais. -- Fobos tem razão. Anuiu Eve. Temos que manter nossa identidade. Não precisamos de títulos. -- Também penso desta maneira. Anunciou Lilith. -- Por mim, manifestei-me, creio que um nome não nos faz falta. -- Então? Inquiriu Fobos. Como ninguém manifestasse oposição alguma, decidimos que o grupo permaneceria sem nome. -- Eles também nos convidam para uma reunião que será realizada em outubro. Informou Fobos. -- Como faremos para ir? Questionou Mefisto. O pouco dinheiro que temos não daria para todos. -- Darkness. Falou Lilith. -- O que? Perguntamos. -- Darkness poderá nos ajudar. -- Como? Indaguei mesmo já sabendo a resposta. -- Ele pode nos ceder a van. -- Será? Set parecia não acreditar muito nesta possibilidade. -- Bem, o convite se estende a ele, também. Revelou Fobos.

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-- Mais um motivo para não nos preocuparmos com o transporte. Falou Deimos. -- Quem falará com ele? Quis saber Pandora. -- Nós todos. Disse Lilith. -- Como iremos encontrá-lo? Perguntou Deimos. -- Não será preciso. Ao mesmo tempo em que falava, Lilith apontava para o corredor de túmulos. Mansamente Darkness avançava por entre as sepulturas. Sua silhueta esguia era inconfundível. -- Desta vez não surgi do nada. Anunciou Darkness. -- Já não era sem tempo. Mefisto acompanhou seu comentário de sonora gargalhada. -- Parece-me estarem com alguma dificuldade. Posso saber do que se trata? -- Fomos convidados para uma reunião em Curitiba. Informou Set. -- E onde está o problema? -- Não temos como ir até lá. Lamentou Pandora. -- Agora já têm. Posso arrumar isto. -- Fala da van? Perguntou Deimos. -- Exatamente! Quando irão precisar dela? -- Em outubro. -- Ainda temos um bom tempo até lá. Por que não aproveitamos para um passeio mais breve? -- Quando? Onde? Entusiasmou-se Pandora. -- Podem escolher. -- Gostaria de conhecer um lugar que já me falaram, mas que fica muito longe. Falou Lilith. -- Onde fica e que lugar é este? -- Machu Picchu. -- Um ótimo lugar para se visitar. -- Podemos ir? -- Basta me dizerem quando. -- Que tal a semana que vem? Sugeriu Fobos. -- Então fica marcado para a semana que vem. Os preparativos para a viagem foram intensos. Procuramos informações em todos os livros especializados que encontramos. Até mesmo a internet foi utilizada. Não desejávamos parecer marinheiros de primeira viagem, fato muito difícil devido a excitação que sentíamos. Mal sentimos os dias que antecederam nossa partida. Quando Darkness chegou com o veículo, levamos o maior susto. Já estávamos tão

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acostumados a van que o trailer no qual Darkness chegou causou-nos frisson. -- Cara, este treco e bem maneiro! Mefisto havia aderido a algumas gírias meio ultrapassadas. -- Vamos viajar nisto aí? Admirou-se Pandora. -- A viagem é longa. Precisamos de conforto. -- Conforto é comigo mesmo. Adiantou-se Deimos. Correndo para o veículo. -- Hei, não precisa correr. Ralhou Lilith. Nunca havia desfrutado de dias tão maravilhosos. A viagem toda foi algo que nenhum de nós irá esquecer. Darkness aproveitou cada momento para nos elucidar varias dúvidas. Estávamos ficando eruditos. A visita a cidade, ou melhor ruínas da cidade, foi quase que mais empolgante que as visitas que fazíamos aos cemitérios. Havia uma energia tão forte no ar que foi impossível não senti-la. Não sabemos se Darkness conhecia as autoridades locais, ou se empregou algum outro meio que desconhecemos, mas passamos a noite dentro das ruínas. A vigília foi emocionante. O círculo que formamos ali, pareceu-nos provido de uma força sem igual. O formigamento causado pela energia que trocávamos era tão intenso que foi muito difícil resistir a seus efeitos. Mesmo Eve teve dificuldades em manter-se ereta. O vento que soprou durante a madrugada fez-nos encolher e procurar abrigo numa das construções que resistiram ao tempo. Estranhamente, Darkness permaneceu ao relento. Eve tentou sair e ficar a seu lado, mas o vento era tão forte que a impediu de realizar seu intento. Integrado ao elo que formávamos, pudemos sentir a dor que traspassava seu eu interior. Darkness estava sendo assolado por uma onda furiosa de emanações plangentes. Parecia que ele recebia toda a carga existente naquele local. Em determinado momento, ele fraquejou, arqueou o corpo, lutou o mais que pôde, mas foi vencido. Aparentando desfalecer, tombou sobre a relva gélida. Embora caído, estava consciente e registrava cada nuança de dor que grassava o ambiente. Naquele instante, soubemos o que ele queria dizer quando afirmava sentir todas as dores do mundo. Darkness era uma espécie de estação receptora de vibrações. Seu âmago parecia dilacerado pela força com que elas penetravam em seu ser. -- Dark! Eve tremia e chorava ao nosso lado. -- O que fazemos? Indagou Pandora preocupada com a integridade de Eve.

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-- Não sei. Respondeu Fobos. -- O círculo. Lembrei-os. -- O que? Lilith parecia não ter entendido. -- Vamos formar o círculo. Insisti. Silenciosamente, nos dirigimos até o centro da construção e formamos o círculo que Darkness havia nos ensinado. Sem saber direito o que fazer, olhamos suplicantes para Eve. -- O que fazemos? Perguntei-lhe. -- Vamos enviar vibrações positivas para Dark. Ele precisa sentir nossas energias vibrando em seu auxilio. Mentalmente formamos uma corrente que procurava interagir com a situação enfrentada por Darkness. As vibrações eram mais fortes daqueles que já haviam estabelecido o contato com ele. Senti-me um pouco impotente. Durante as horas que antecederam o raiar do dia, permanecemos firmes em nossos lugares. Apesar de não termos certeza de nada, sentíamos que Darkness recebia nossas energias. Mesmo assim, ele padeceu indefinidamente. Somente quando a manhã raiou e um grupo de turistas se manifestou nas proximidades, foi que notamos uma débil reação por parte de Darkness. Lentamente ele colocou-se em pé, lançou as mãos para o alto e em uma língua estranha bradou: -- Ouq tez, ouq tez! Óri edliuq aotor ouq tirtezus irso eiçivetz! Novamente ele desabou sobre o próprio corpo. Agora, já sob a redentora força do dia, sem a presença do vento incremente, conseguimos deixar o interior da construção e nos aproximar de Darkness. -- Como ele está? Eve mostrava-se preocupada, mas não desesperada. -- Acho que está bem. Informou Fobos. -- Vamos levá-lo até aquele abrigo. Sugeriu Lilith. A intenção foi das melhores, mas transportar aquele corpo foi impossível. Darkness parecia pesar toneladas. Tentamos de todas as formas movê-lo, mas foi inútil. Não conseguimos arrastá-lo um centímetro sequer. Já começávamos a nos deixar invadir por sentimentos pessimistas quando ele esboçou uma frágil reação. Seus olhos elevaram-se numa suplica muda. Eve interpretou seu rogo. -- Formemos o círculo, agora! O eclodir dos raios solares forneceu a energia que nos faltara durante a noite. Por imposição de nossas mãos, que estavam direcionadas para o corpo de Darkness, sentimos que ele se recuperava lentamente.

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Um dos guias, do grupo de turistas que chegara as ruínas, aproximou-se de nós para certificar-se do que se passava. -- O que houve? -- Ele teve um mal súbito. Falta de oxigênio. Falou Eve. -- Subiram rápido demais, não foi? Indagou o guia. -- Foi. -- Melhor dar-lhe um pouco de chá. O guia gentilmente ofereceu-nos seu cantil. Talvez para não afronta-lo recusando a oferta, decidimos aceitar. Colocamos o cantil na boca de Darkness e o forçamos a engolir seu conteúdo. -- Obrigado. Eve agradeceu devolvendo o cantil. -- Não por isto. Onde está o guia de seu grupo? -- Desceu para pegar nossos equipamentos. -- Deixou-os sós? -- Estamos acampados próximo daqui. -- O trailer é de vocês? -- Sim. -- Está um pouco longe daqui. -- Nossas barracas estão mais próximas. -- Precisam levá-lo a um hospital. Pode estar com algum problema mais sério. -- Tudo bem. Já me sinto melhor. Quem olhasse para o rosto de Darkness, não seria capaz de fazer a menor idéia da experiência pela qual ele passou. Seu semblante transparecia uma serenidade sem igual. Seu sorriso, algo difícil de se observar, dissipava qualquer dúvida quanto a seu bem estar. -- O moço deve tomar mais cuidado quando se encontrar em altitudes elevadas. O ar é mais rarefeito e pode faltar aos pulmões. -- Obrigado pelo aviso. Vou me lembrar dele sempre que tiver que ir tão alto. Com a recuperação de Darkness, o guia se afastou e foi ocupar-se com seu grupo. Ficamos esperando por uma explicação e nada. -- É... bem... gostaríamos... começou Fobos. -- Sim! -- Sobre ontem a noite... -- Ontem a noite é passado. O que se foi, se foi. -- Só isto? Insistiu Fobos. -- Só! Em algumas ocasiões Darkness usava sua voz sinistra. Aquela foi uma delas. Ao ouvi-lo, perdemos a vontade de questionar os

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acontecimentos que havíamos presenciado. Em silêncio, nos dirigimos até o trailer. Cada qual tinha sua própria impressão a respeito dos fatos. Eve, Set, Pandora e Fobos mostravam-se mais cordatos com o silêncio de Darkness. Lilith, Deimos e Mefisto pareciam um tanto incomodados. Eu, bem, eu tentava juntar as peças para montar o quebra cabeça que Darkness representava. -- Vamos embora? Perguntou Pandora. -- Se for o desejo do grupo. Respondeu Darkness. -- Podemos ficar mais um pouco? A pergunta de Pandora foi dirigida a todos nós. Olhamo-nos e decidimos permanecer por mais um tempo. Intimamente sentíamos que talvez Darkness não desejasse aquele prolongamento, mas como ele nada objetou, ficamos. A tarde foi desenrolando seu tempo com monótona disposição. Já se aproximava o momento da dama noturna assumir seu posto quando nos acercamos de Darkness. -- Deseja partir? Perguntamos. -- Façamos como desejarem. -- Mas a noite está chegando. Falou Deimos. -- Temos motivos para temer a noite? -- Pensamos que você não gostaria de passar por tudo aquilo novamente. Eve foi firme em sua fala. -- Talvez me acostume com aquilo. -- Não será preciso. Já estamos satisfeitos com o que vimos. Fobos assumira o papel de porta voz do grupo. -- Têm certeza? -- Absoluta. -- Sendo assim, vamos. Não posso imaginar a fonte da força que alimentava o íntimo de Darkness, mas não se podia vislumbrar o menor vestígio de que algo tão grave lhe tivesse sucedido durante a noite. A calma com que realizava as tarefas que lhe competiam ajudava-nos a manter os ânimos elevados. Se mesmo após passar por aquela provação imensurável, ele se mostrava tão solicito e tranqüilo, por que nós, que nada havíamos experimentado, haveríamos de agir de modo contrário? Incitados por Mefisto, cantarolamos as canções que nos eram habituais. O trajeto de retorno foi tão deslumbrante quanto o da ida. Não querendo nos enfadar, Darkness escolheu uma outra rota. Prolongou em dois dias a viagem, mas agradou-nos em cheio.

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A chegada foi tranqüila. Estávamos cansados demais para experimentarmos qualquer atividade. Fomos para nossos lares recuperarnos. Apenas Darkness e Eve diferiram de nós. Ela queria saber o que se passara com ele nos altiplanos peruanos. Sensível como era, havia sentido a dor que abatera seu amado. -- O que aconteceu em Machu Picchu? -- Uma concentração de energias. -- Sabia que aquilo iria acontecer? -- Sim. Existem lugares neste mundo onde as energias se concentram. -- Mesmo assim nos levou para lá. -- Não posso esquivar-me de sentir as vibrações. Está integrada a minha essência. -- Que outros lugares mais causam-lhe esta dominação? -- Não é o lugar. São as energias que ficam concentradas. Seu mundo possui centros de recepção. Em todos eles as vibrações se condensam tornando-se mais fortes até que se espalhem pela orbe. -- Quais os outros lugares? -- Stonehenge, a Ilha da Páscoa, o Vale de Gizé, Nazca, o Triângulo das Bermudas, o Planalto Central do Brasil, a Antártida, o Coração das Terras Nórdicas, o Tibet, a Península do Yucatã e Jerusalém. -- Tantos assim! -- Existem outros onde a força é um pouco menor. Mas os principais são estes. -- Por que? -- Lembra-se do mundo ao qual pertenço? -- Sim. -- Nestes lugares que citei, mais naquele que visitamos, estão localizados os portais de acesso de meu mundo ao seu. A conjunção astral forma uma via que se concentra nestes locais. -- Por que não os evita? -- Nem toda energia me causa sofrimento. Mesmo em Machu Picchu, já senti muitas vibrações positivas. Tudo depende da época em que os visito. -- Por que decidiu visita-lo justamente nesta época? -- Quis dar-lhes uma pequena amostra do quão intensa é minha dor. -- Arriscou-se por nossa causa? -- Muito embora sofra agruras horríveis, não corri risco de maior gravidade. Minha constituição suporta vibrações muito mais violentas.

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-- Talvez, nem todos tenham compreendido seu gesto. -- Talvez. Mas mesmo que não tenham assimilado meu gesto, carregam a semente que, um dia, possibilitará que cheguem a compreensão de tudo. -- Não está entre nós por acaso, não é? -- Não. Sempre deixei isto muito claro. -- Quem é você? -- Mesmo você, para quem já expus toda minha essência, tem dificuldade em reter as explanações que faço. -- O que quer dizer? -- Quando nos unimos mais intrinsecamente, nada mais restou para revelar-lhe. Mesmo que mantenha adormecido em sua lembrança, o “segredo” de minha existência está latente em seu âmago. -- Por que não consigo me lembrar? -- Porque não é prioritário que se lembre. Pode avançar em seu desenvolvimento independente de lembrar-se ou não meu “segredo”. As informações, que seu cérebro recebe, são armazenadas e acessadas apenas quando surge algum fato que assim exija. -- Somos meio falhos, não? -- De modo algum. Se todas as informações que recebem ficassem pululando seus cérebros, não suportariam a carga que isto acarretaria. -- O de sua espécie conseguem retê-las? -- Sim. Nossas mentes não funcionam igual a de vocês. Nossos “cérebros” são diferentes. -- Por isto sente tão intensamente nossas dores? -- Não. A dor que me consome tem origem em outro fator. -- Não me contou a respeito disso. -- Ainda não é chegada a hora para isto. -- Terei a oportunidade para tal? -- Se você não tiver, mais ninguém terá. -- Por que? -- Nunca havia encontrado alguém que pudesse unir-se tão estreitamente a mim. -- Devo me considerar uma bem aventurada. -- Sua simplicidade é o maior tesouro que possui. Todas as vezes que se encontravam a sós, Eve e Darkness acabavam por viverem toda plenitude da união que havia sido estabelecida entre seus seres. Nestas ocasiões Darkness se despia de sua veste humana e mostrava-se como realmente era. Mesmo já tendo presenciado por duas oportunidades a verdadeira face de Darkness, Eve experimentava algo que

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nenhum de nós teria a possibilidade de sentir. A proximidade e a intimidade que existia entre eles, os tornavam unos. Antes que outubro chegasse um fato inesperado criou um clima de extrema angústia para o grupo. Lilith adoeceu e seu estado era tão grave que precisou permanecer muito tempo internada. Não fosse a presença de Darkness, Fobos teria enlouquecido. Os médicos não chegavam a um consenso a respeito da enfermidade que acometera nossa amiga. Os exames, segundo eles, eram inconcludentes. Sendo assim, não tinham como tratar os efeitos da doença que a consumia. Foi em meio a esta aflitiva situação que o contato entre Lilith e Darkness se estabeleceu. Em uma determinada noite, quando o mal que a dominava tornou-se tão evidente que foi preciso transferi-la para o setor de tratamento intensivo, Darkness sentiu que a hora havia chegado. -- Olá, amiga! -- Darkness? -- Sim. -- O que faz aqui? Onde estão os outros? -- Estão a sua espera. -- Onde? -- Em suas casas. -- Onde estamos? -- Em um lugar de paz. -- Foi para cá que trouxe os outros? -- Foi. -- Devo entender que minha hora é chegada. -- É. -- O que vem a seguir? -- O entendimento. -- Assim, como mágica? -- Não. Mágica é algo maravilhoso de se praticar, mas excetuando-se as que a natureza realiza, as demais são meras ilusões. -- Pensei que inspirava o conhecimento através da imposição de suas mãos. -- Não. As mãos servem apenas como instrumentos para estabelecer o contato. O conhecimento vem através da informação. -- Leva tempo para assimilar as informações. -- Temos todo tempo de que necessita. -- Tanto assim? -- Alguma vez já ouviu alguém dizer que tudo é relativo? -- Muitas.

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-- Pois digo que não. Mas o tempo, este sim é muito relativo. -- Como assim? -- Podemos permanecer aqui por tanto tempo que pensará terem se passado muitos dias. Enquanto que para os demais poucas horas haverão transcorrido. -- Como consegue isto? -- Não sou eu, esta é uma característica do local onde nos encontramos. -- Neste caso, posso aprender tudo que tiver para me revelar. -- Então vamos começar. Durante o tempo que durou o contato entre Lilith e Darkness as muitas vivências que ela havia experimentado foram sendo revistas. Darkness tocava o cerne de nossas emoções. Sua influência provocava o eclodir de nossos verdadeiros eu. Não havia como esconder ou disfarçar. Lilith sentiu toda angústia que a consumia explodir como um vulcão. Chegou a pensar que não resistiria a investida de Darkness, mas tudo passou e um doce e afável sopro de redenção a tocou. Em prantos, abraçou-se a Darkness e se entregou a um carinho que há muito não sentia. -- Como consegue nos tocar tão fundo? -- Por que vocês estão maduros. Não conseguiria se agisse quando desejassem. Tenho que esperar que a hora haja se manifestado. -- Quando revivia minha dor, cheguei a pensar que não suportaria tanto peso. -- Lembra-se do motivo que originou tudo? -- Sim. -- Gostaria de mais alguma explicação? -- Não sei. Entendo que tenho minha parcela de responsabilidade em tudo, mas ainda não consigo perdoar os envolvidos. -- Entende que para atingir a liberdade precisa estender seu amor a todos? -- Sim. -- Por hora é o que basta. -- Mas ainda não... -- Não exija muito de si mesma. Cada um está pronto para dar apenas aquilo que é capaz. Não dá para ir além. -- Pode demorar muito até que seja capaz de perdoá-los. -- A partir do momento em que assume a possibilidade de vir a perdoar, o tempo deixa de ter importância. -- Por que me sentia tão incomodada com sua presença? -- Não era minha presença, mas a vibração que ela desencadeava em seu íntimo.

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-- As energias! -- Sim. -- Minha mãe... -- Terá tempo e oportunidade para reatarem. -- As vezes sinto-me tão irmanada a Pandora. Será por causa de nossas experiências serem tão similares? -- Também. Mas suas experiências só são similares nos acontecimentos exteriores. Intimamente são tão díspares quanto todas as outras. -- Sei que não sofri nenhuma violência por parte de meu pai, mas também fui violentada no que diz respeito a minha individualidade. -- Muitos o são. Mas nem todos reagem com a mesma determinação. -- Fui errada em agir como fiz? -- Não. Agiu de acordo com a maturidade de todos que estavam envolvidos nos fatos. -- Gostaria que minha mãe tivesse a oportunidade de conversar com você. -- Isto já aconteceu. -- Mesmo! -- Sim. Só depois que a encontrei foi que ela tornou-se mais paciente. Ela sabe que o dia do resgate chegará. Não lhe importa mais quanto tempo demore pois ela sabe que ele chegará. -- Também tenho esta certeza. -- Por isso se sente mais serena. Quando voltar experimentará que a união entre você e Fobos se fará mais viva. -- Fobos tem sido o meu porto seguro. -- Isto porque ele tem o elemento que lhe falta. A serenidade. -- E os outros que estão envolvidos? Sinto que minha mãe é o centro de tudo, mas e quanto aos outros? -- Cada passo a seu tempo. Tem que subir um degrau por vez. -- Não sei como retribuir tudo que está fazendo. -- Não precisa, esta é minha função. Antes que me pergunte, sou um andarilho neste mundo. Não pertenço a ele. -- Não sei o que realmente é, mas a partir de hoje o terei como um anjo. Mesmo que não concorde com isto, nada mudará meu modo de vê-lo. -- Não sou nenhum anjo, mas se é seu desejo me ver dessa forma, não me oporei. Os dias se sucederam de modo moroso. Nossas aflições iam se avolumando até não sermos mais capazes de sufocá-las. Os únicos que se

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mantinham mais confiantes eram Eve e Fobos. Eu tentava manter-me menos angustiado, mas muitas vezes deixava que a dor me vencesse. Somente quando o médico surgiu afirmando que Lilith reagira foi que nos mostramos mais esperançosos. Não nos entregamos a festejos ou euforia desmedida, mas sentimos que o pior já havia sido superado. Lentamente Lilith foi se recuperando. Fobos estava ao seu lado sempre que era possível. Na maior parte do dia Pandora fazia-lhe companhia. A noite Fobos a substituía. Outubro se avizinhava e Lilith ainda convalescia, mesmo assim afirmava que estaria junto de nós na viagem para Curitiba. Não desejava perder aquela oportunidade por nada deste mundo. -- Talvez seja melhor ficarmos. Sugeriu Fobos. -- De modo algum. Quero estar lá e curtir o encontro. -- Mas ainda não está totalmente restabelecida. -- Não se preocupe. Outubro ainda demora. -- Dentro de cinco dias estaremos em outubro. -- Em cinco dias estarei dançando sobre a lápide dos esquecidos. -- Lilith! -- Não seria demais? Cinco dias não foram suficientes para que Lilith pudesse realizar seu intento. Mas seu estado melhorou o suficiente para que seguisse com o grupo para Curitiba. Não estávamos muito convencidos, mas a intervenção de Darkness nos fez anuir com a vontade que Lilith demonstrava estar sentindo. O encontro foi mais agradável que imaginávamos. O “Tumba Faraônica” nos colocou no centro das atenções. Sentimo-nos os verdadeiros pop star do encontro. Tudo por causa da recepção que havíamos oferecido quando eles nos visitaram. O momento mais especial do encontro ficou reservado para uma reunião particular que realizamos. Se já imaginávamos ter presenciado tudo que Darkness podia fazer, ficamos aturdidos. Antes que iniciássemos os debates e leituras comuns a nossas reuniões, ele sugeriu um show com os integrantes da banda Every Today. Quando partimos para o encontro, nem mesmo fazíamos idéia da presença da banda. Poder curtir um show só para nós era o máximo. Colocamo-nos a vontade para sentir os acordes quando fomos surpreendidos por algo que não esperávamos. No lugar do vocalista titular da banda, exibiu-se Darkness.

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Nem mesmo Eve sabia algo sobre isto. Seus olhos brilharam ao ouvi-lo interpretando o hit da banda; “Som da Alma”, que mais tarde viemos a ficar sabendo que era uma composição dele. Empolgados, curtimos cada número. Se ainda tínhamos alguma dúvida sobre Darkness ser um ente totalmente alheio a nosso mundo, ela já não existia mais após o encontro. Nenhum ser humano seria capaz de entoar uma canção de modo tão plangente. Sua voz penetrava no âmago de todos que o ouviam. Passado o show, nos reunimos para o ponto principal; a reunião. -- Boa noite! Soou a voz um tanto sinistra de Darkness. -- Muito bem, mestre! Rony, o líder do “Tumba Faraônica”, dirigiu-se a Darkness com reverência. -- É sempre bom estar entre amigos. Mais ainda quando o motivo é enaltecedor. Sabemos que muitos não aprovam nosso modo de viver, mas não passam de pessoas ressentidas. Olham-nos com desdém ou mesmo preconceito sem, contudo, fazerem a menor idéia daquilo que somos ou desejamos ser. Um intervalo foi propositadamente colocado. Darkness sabia que não iríamos nos manifestar, mas desejava que refletíssemos sobre suas palavras. Ele pretendia que cada um de nós sentisse a corrente que se formava. Devíamos nos tornar os elos que iriam coroar a união de nossos anseios. -- Enquanto o mundo vive o caos da discórdia nós buscamos os fraternos laços do entendimento. Somos plangentes? Talvez. Adoramos os lugares sombrios? Que mal há nisso? Devotamos grande parte de nossas vidas a cultuar a morte? Outros cultuam entes muito mais nefandos. Alguns de nós se tornam tão entristecidos que abraçam o fim antes que ele se faça natural? Entre os chamados normais isto também se sucede. Observando estes e outros aspectos de nossa predileção pelo goticismo, temos a certeza de que devemos manter nossas cabeças eretas e nos cobrir de orgulho, pois, antes de tudo, somos autênticos. Os integrantes do “Tumba Faraônica” e da banda Every Today tinham uma maneira muito ruidosa de se manifestarem. Não que demonstrassem alguma forma de desrespeito pelo momento, mas sim por acharem natural expressarem-se de tal modo. Darkness aguardou que o silêncio voltasse a se impor e só então tornou a fazer uso da palavra. -- Está na hora! Darkness foi formal ao anunciar o início do ritual. Aproximem-se e formem o círculo.

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Ninguém sabia o que ele havia preparado para a ocasião. Embora fossemos na maioria góticos, alguns integrantes da banda eram apenas roqueiros. Bruxos então... mas senti que o ritual tinha todos ingredientes ligados à bruxaria. -- Antes que concretizemos a união de nossas energias, cerrem os olhos e permaneçam em silêncio. Durante alguns minutos foi esta a atitude do grupo. Iniciem a mentalização apagando todos indícios de frivolidades que possam intervir em nosso congraçamento. Darkness sabia que nem todos seriam capazes de atender aos requisitos para a efetivação do ritual. Mas não era sua intenção que todos interagissem de forma análoga. Aqueles que conseguissem libertar-se de sua superficialidade entrariam em sintonia com ondas de energias de teor etéreo. -- Abrandem seus corações e revistam seus espíritos de serenidade. As emoções negativas devem ser afastadas, apenas o que é da Luz deve aflorar. Interiorizem seus egos e deixem que o todo se eleve. Agora já não deve existir mais o eu em seu lugar sintam a existência dos nós. Concentrem suas energias fixando o todo até que tudo se esvaia em um único elemento. O eu deu lugar aos nós que agora dá lugar ao uno. Não sei se o que senti pode ser chamado de magia, mas seja o que for, me vi transportado para uma dimensão onde o tudo se tornava nada e o nada se fundia com o tudo. Sentia ondas energizantes fluírem por todo espaço e meu espírito harmonizava-se com elas. Eu era uno com o grupo. -- Toquem levemente a mão do companheiro ao seu lado. Não aproximem muito seus corpos físicos pois a energia é concentrada. O uno se faz vivo e a vida nos fornece a força que precisamos para prosseguir em nossa jornada. Observem o cosmo agindo concomitantemente com nosso vibrar. Ao abrir meus olhos tive a mais maravilhosa visão que um ser humano pode desejar. Vias multicores fluíam de todos os cantos vagando para todos os lados. Já não me via mais como ser humano mas sim como fonte de energia a comungar as energias dos outros ao mesmo tempo em que os outros comungavam as minhas. Verdadeiramente éramos uno. Naquela dimensão estranha a nosso psiquismo, Darkness falou-nos diretamente a mente. Não possuíamos corpos portanto não podíamos ver, ouvir ou falar e, no entanto, sentíamos todos os sentidos que nos era inerentes. Embora confusos, conseguíamos compreender o processo pelo qual tudo se desenvolvia. -- Não estranhem. Soou a voz de Darkness. Apesar de se sentirem diferentes, ainda são o que são. -- Onde estão nossos corpos? Perguntou Eve.

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-- Estão onde estão. Suas percepções estão alteradas, mas a constituição permanece a mesma. -- Que lugar é este? Rony estava assombrado. -- Estamos em uma dimensão intermediária entre o meu mundo e o de vocês. -- Por que nos trouxe até aqui? Indagou Lilith. -- Sempre me perguntam quem sou, de onde vim. Não posso levá-los além deste ponto, espero que possam ter uma idéia do lugar de onde venho. -- Seu mundo é assim? Fobos parecia alucinado. -- Fixem os olhos em um único ponto. Não tentem acompanhar as correntes de energia que fluem pelo ar. Obedecendo a orientação de Darkness, procuramos concentrar nosso olhar em apenas um único elemento daquele psicodélico mundo. À medida que eliminávamos os elementos secundários, íamos divisando o real contorno de um mundo surreal. -- É fantástico! Exclamou Rony. -- Nunca pensei que um lugar assim pudesse existir! Lilith estava pasma. -- Este ainda não é o meu mundo. Alguns elementos não fazem parte dele. Outros estão difusos. -- As construções são tão complexas! Observou Fobos. -- Isto se deve a gravidade ser menos densa em meu mundo. -- Parecem diáfanas! Comentou Eve. -- Quase. Se observadas através de seus conceitos. -- Jamais esquecerei esta visão. Falei. -- Por que não estamos registrando as vibrações de todos? Quis saber Pandora. -- Somente aqueles que conseguiram se libertar das influencias externas puderam fazer o contato. Os outros permanecem presos à outra dimensão. -- Quanto tempo podemos permanecer aqui? A pergunta de Eve era do interesse de todos. -- Apenas por alguns breves momentos. Seus corpos necessitam do amparo de suas mentes. -- Como consegue permanecer em nosso mundo? Rony gostava de formular perguntas diretas. -- Quando deixei meu mundo, utilizei um veículo dimensional. Com o auxilio dele, posso deslocar-me entre as dimensões. -- Mas não utilizamos nenhum veículo. Observou Eve.

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-- Não. Estamos em contato mental com as imagens que trago em minha mente. -- Não podemos fazer uma visita a seu mundo? Sondou Fobos. -- Precisariam passar por um período de adaptação que extrapola o tempo concedido a seus corpos. -- Mas você conseguiu vir até o nosso! Rony mostrou-se indignado. -- Como pertenço a uma outra dimensão, possuo constituição diversa da de vocês. -- Sei, é melhor que nós. Rony realmente estava contrariado. -- Não. Apenas diferente. Repentinamente, fomos interrompidos em nosso passeio pela dimensão intermediária. Algo havia quebrado a ligação. Fomos atraídos de forma violenta a nossos corpos. Este fato causou-nos alguns danos temporários. Uns mais outros menos, sentimos que nossos corpos reagiam dolorosamente ao retorno. O impacto originado pelo regresso involuntário iria acarretar efeitos que perdurariam por alguns dias. Dores inexplicáveis, confusão temporal, falhas de memória, desequilíbrio transitório. -- O que houve? Rony suava frio ao retornar. -- Cansamos de ficar fazendo de conta que entravamos em transe. Revelou Deimos. -- Fazer de conta! Zangou-se Rony. -- Por que a indignação? Se gostam de ficar brincando de usar a imaginação, liberem aqueles que preferem outro tipo de passatempo. Mefisto também estava um pouco irado. -- Não sentiram nada? Espantou-se Lilith. -- Não sentimos o que? Set se mostrou tão espantado quanto Lilith. -- Mas como pode? Lilith inquiriu Darkness. -- Para que o contato seja estabelecido é necessário esvaziar a mente. Aqueles que não conseguem não estabelecem a conexão. -- Sobre o que estão falando? Set não conseguia atinar o sentido das palavras de Darkness. -- Viajamos para uma dimensão extraordinária. Informou Fobos. -- O que? Ninguém saiu daqui! Afirmou Deimos. -- Não foi preciso. Acrescentou Lilith. -- Estão de gozação com a gente! Ironizou Mefisto. -- Não mesmo. Asseverou Fobos.

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A experiência foi o assunto da semana. Sempre que estávamos meio à-toa, o assunto voltava à tona. Os participantes do círculo que não conseguiram estabelecer o contato não admitiam que havíamos realmente estado em outra dimensão. Não adiantava explicar que foi uma viagem mental. Ao voltarmos para nossa cidade, o clima estava meio azedo. Mesmo Set já tendo estabelecido contato com Darkness, ele não havia conseguido partilhar do momento que vivemos na dimensão intermediária. Quanto a Deimos e Mefisto, eles encaravam nossas declarações como sendo efeito de alguma droga que Darkness pudesse ter nos dado. Custou muita conversa e paciência para convencê-los de que Darkness não era adepto do uso de drogas. Seu modo de atuar não permitiria fazer uso de substâncias ilegais ou que oferecessem riscos a nós. -- Vocês não estão brincando, não é? Deimos foi o primeiro a se mostrar mais propenso a dar crédito a nossas palavras. -- Não. Darkness afirmou que um dia talvez consigam vivenciar a mesma experiência pela qual passamos. Eve era a concórdia em pessoa. -- Por que não conseguimos nos conectar? Mefisto despiu-se de seu jeito zombeteiro. -- Faltou libertarem-se do excesso de pensamentos comuns. Para conectar-se é necessário manter a mente vazia. -- Isto não é fácil de se conseguir. Falou Deimos. -- Não. Por isto têm que exercitar seus dons. Fortalecerem as áreas de influência do cérebro. -- Parece muito complicado. Resignou-se Mefisto. -- Tudo que é essencial requer nosso empenho. Não podemos progredir a não ser por esforço próprio. -- Darkness invade nossas mentes sob pretexto de libertar-nos, mas que adianta se ainda continuamos presos a mesmice de pensamentos tão fúteis? Inquiriu Set. -- Darkness não tem o poder para criar ou direcionar os pensamentos que invadem sua mente. Quando ele o contatou foi porque estava pronto para enfrentar os desdobramentos de tal fato. O que acontecer deste ponto em diante, é de sua responsabilidade. -- Por que não fomos contatados, ainda? Perguntou Deimos. -- Tudo em sua hora. -- Ah, é claro. Agora está falando igualzinho ao sinistro. Manifestou-se Set. A chegada de Fobos e Lilith pôs fim a conversação. Não que estivéssemos conversando em segredo, mas eles trouxeram assunto novo

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para o grupo. Rony ficou tão fascinado com a experiência realizada que pensava em convidar Darkness para se juntar a banda. Eve achou esta proposta muito engraçada. -- Darkness percorrendo a estrada atrás da banda! Seria, no mínimo, esdrúxulo. -- Não sei não. Para mim até que ele leva jeito. Aparteou Mefisto. -- Um dia ele terá que nos deixar, não terá? Deimos estava muito contrariado. -- Por que a zanga? Quis saber Fobos. -- Ele ainda não se conforma de ter perdido o contato. Informou Eve. -- Mas outras oportunidades irão ocorrer. Lembrou Lilith. -- E quem disse que também não irei perder a próxima, a próxima e a próxima? Exasperou-se Deimos. -- Só depende de você. Alertou Eve. Ninguém pode entrar em sua mente e espantar os pensamentos que a povoam. -- Como não? Não é isto que Darkness fez com as suas mentes? -- Não. O contato não tem nada a ver com dominação. Quando Darkness penetra em nossa mente é para ilustrar-nos a respeito das angústias que sentimos. Só assim, entendendo os motivos de estar passando por tal situação, podemos enxergar tudo com clareza e afastar as ilusões de nossas vidas. Lilith nunca havia se prolongado tanto em uma explanação. -- Angústia! Quem mais se sente dominado pela angústia que não eu? Se foi a angústia que abriu as portas de suas mentes para ele, por que a minha se mantém fechada? -- Não se trata de dor ou angústia. Darkness pareceu materializar-se do nada. Para que possa estabelecer contato é preciso que esteja maduro. -- Darkness! Advertiu Lilith. -- Desculpe-me princesa, mas não quis interromper a conversa. Já devia estar habituada com minhas entradas. -- Até estou, mas estava concentrada demais para sentir sua presença. -- Hei, seu namorado é o Fobos. Eve sorriu maliciosamente para Lilith. -- Tudo bem, maninha. Não precisa ficar com ciúmes! A descontração de ambas serviu para amenizar o clima. -- Vim avisar que estarão livres de mim por um período considerável.

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Eve.

-- Vai nos abandonar? Pandora demonstrou mais tristeza que

-- Não. Apenas devo viajar por alguns dias. -- Para onde vai? Quis saber Fobos. -- Europa. -- Nossa, quem pode, pode! Brincou Lilith. -- Tenho um compromisso inadiável. -- Não pode nos levar? Indaguei. -- Bem que gostaria, mas desta vez isto não será possível. -- Algum segredinho? Ironizou Mefisto. -- Tenho que me encontrar com representantes de meu povo. -- O que? Perguntamos ao mesmo tempo. -- Não sabia que existiam outros de sua raça entre nós. Fobos expressava nossa surpresa. -- Existem muitos. Cada um tem suas responsabilidades. Darkness deixou transparecer uma ponta de angústia ao pronunciar estas palavras. -- O que foi? Eve perguntou-lhe mentalmente. -- A diferença é que o único amaldiçoado sou eu! Respondeulhe Darkness também mentalmente. Aquela afirmação ecoou por muito tempo em minha cabeça. Por que Darkness afirmara ser o único amaldiçoado? Que motivo teria para considerar-se tão desafortunado? Mais ainda, o que teria cometido para merecer a danação eterna? Perguntas, perguntas e mais perguntas. Até quando iria tatear feito cego em busca de respostas que me pareciam cada vez mais distantes? Depois de muito tempo sentia-me angustiado. A torpeza que me dominava fazia com que passagens desastrosas de minha vida voltassem a ocupar minha mente. O desencantamento com meu eu exterior aflorou com violência. De repente senti o temor de fraquejar e voltar a cometer os mesmos disparates que me jogaram na rua da amargura. Recriminava minha família por haverem me voltado as costas quando mais precisava, mas pela primeira vez, fui capaz de me colocar no lugar de meus pais. Quanto desapontamento não devem ter sentido ao constatar o quão fraco o filho era. Haviam me coberto de amor e como retribuição receberam minha traição. Lágrimas escorriam de meus olhos ao pensar no sofrimento que havia lhes causado. O turbilhão violento do remorso dominou minha alma. Permaneci horas e horas entregue ao pranto. A dor me sufocava e fazia minha cabeça rodopiar feito bailarina. Só! Outra vez ao

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enfrentar uma crise existencial estava só! Por que só a mim não era concedido o privilégio de poder contar com o apoio de um amigo? Maldisse minha condição física e bradei impropérios a esmo. Nada. Nem mesmo o eco para repetir minha revolta. Abatido, desabei e voltei a chorar. Era um fraco, nada poderia modificar aquele estado mórbido que me dominava. Insano como me sentia vaguei a esmo. Por que a solidão parece mais acentuada quando estamos em conflito? Ruas, avenidas, becos, praças, cinemas, bares, boates, lanchonetes... táxi, ônibus, carros, velocidade vertiginosa! -- Chega! Gritei o mais alto que consegui. Creio que devo ter perdido os sentidos. A escuridão que me cercava era tão grande que não fazia idéia de onde me encontrava. A dor sufocava qualquer manifestação que minha razão pudesse encetar. Somente o silêncio e a solidão me faziam companhia. -- Amigo! A voz doce soou inconsistente em meus ouvidos. -- Hades! Desta vez ousei lançar um olhar de soslaio para meu interlocutor. -- Eve! -- O que faz aqui? -- Não sei. -- Não temos reunião alguma marcada para hoje. -- Eu... eu... -- Tudo bem. Desabafe! Naquela hora foi exatamente o que fiz. Abracei-me a minha amiga e chorei. Eve me amparou e aguardou que minha comoção fosse se exaurindo. Suas mãos acariciavam-me os cabelos enquanto seus lábios cantarolavam uma suave melodia. Aos poucos fui serenando minha aflição. -- Como vim parar aqui? -- Não sabe como veio para cá? -- Não. E você, o que faz aqui? -- Senti sua aflição e deixei-me conduzir pela vibração que seu espírito emanava. -- Encontrou-me seguindo minhas vibrações? -- Sim. -- Darkness a transformou em uma bruxa! -- Estaria rindo se você não estivesse tão angustiado. Sabe que isto não é verdade.

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-- Tem razão. Não falei por mal. -- Eu sei. -- Por que ele tinha que se ausentar logo agora? -- Não podemos nos tornar dependentes da presença dele. -- Eu sei, mas não consigo afastar minha dor. -- Darkness não teria viajado se suspeitasse que não somos capazes de superar nossas fraquezas. -- Mas ele os amparou quando precisavam. -- Por que a hora era chegada. -- E o que falta para minha hora chegar? -- Não sei. -- Parece que sempre estou sendo preterido. -- Não é verdade! Todos nós gostamos realmente de você. -- Quando Darkness surgiu em nosso caminho, pensei que houvesse encontrado a resposta para minhas dúvidas. Parece que estava enganado. -- Por que acha que se enganou? Darkness nos mostrou muito mais do que havíamos imaginado. -- Mas e minhas perguntas? Por que não encontro respostas para elas? -- Lembra-se do básico que Darkness nos ensinou? -- Temos que encontrar nossas próprias respostas. -- Então? Se sabe o segredo para avançar, por que insiste em permanecer atado a um estágio que está aquém de suas possibilidades? -- Não consigo enxergar o caminho! -- Ah, amigo, como gostaria que tivesse a felicidade de experimentar os benefícios do transmutar! -- Será que ainda há tempo para mim? -- Vamos para casa. Se desejar posso ficar um pouco mais com você. -- Nunca me senti tão só. Acho que sua presença me fará olvidar o pesadelo que minha existência se tornou. -- Não diga isto! Nenhuma existência é um pesadelo. O fato de não conseguirmos assimilar os percalços pelos quais passamos, não desqualifica nossas vidas. Temos que manter a sobriedade, caso contrário corremos o risco de chafurdarmos totalmente. -- Quisera poder contar com esta sua clareza de espírito. -- Depende somente de você. -- Esta é a parte mais complicada. -- Por que? -- Sempre me senti um inútil. Um pobre coitado.

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-- Ah, a autopiedade. -- Não se trata disto. É que é muito difícil sobressair-se em um mundo tão agressivo. Ainda mais sendo desprovido de atrativos físicos como sou. -- Como é? Entendi bem? Acha que seu infortúnio tem a ver com o fato de não se sentir bem com seu físico? -- Não se trata de sentir-se bem. O fato é que sou feio! -- Há, há, há, há! Desculpe-me, mas não pude resistir. -- Por que zomba de minha aflição? -- Não estou zombando de sua aflição, é que achei engraçado o que falou. -- Não vejo nada de engraçado em ser feio. -- Oh, não, realmente não há nada de engraçado nisto. -- Então por que ri? -- Porque a última, talvez nem esta, impressão que possa ter de você é que seja feio. -- Isto porque é minha amiga. -- Não. Isto porque sou verdadeira. De onde tirou a idéia de que é feio? -- Foi o que sempre me disseram. -- Não! Passou a vida inteira se achando feio por que alguém, um dia, lhe disse isto? -- Não foi simplesmente alguém. -- Quem? -- Uma pessoa. -- Uma única pessoa? -- É. Quer dizer, não uma, algumas. -- Hades, Hades. Não percebe que esta sua postura mostra o quanto ainda precisa amadurecer? -- O que tem a ver minha condição física desfavorável com meu amadurecimento? -- Nada! A não ser o fato de que pessoas maduras não se deixam influenciar pelas opiniões alheias. -- Diz isto por que é linda! -- Acha mesmo isto? -- Não! -- Por que disse isto, então? -- Sei lá! -- Vamos considerar o fato de que pudesse ser realmente feio. Veja bem, eu disse se pudesse ser. -- O que tem?

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-- Já parou para pensar que não somos levianos? Que os conceitos que seguimos diferem daqueles que as pessoas que o chamaram de feio seguem? -- Já. -- Então? -- Então o que? -- Mas como o que? Esta é a diferença primordial! -- Não entendi. -- Mesmo que fosse feio, o que de modo algum é, sabe que os valores que procuramos não se expressam através da beleza exterior. Tanto tempo ao nosso lado é ainda se deixa influenciar por conceitos tão mesquinhos? -- É muito difícil superar certas limitações. -- Pode ser, mas precisa ter em mente que por mais difícil que seja, é necessário que as supere. Aproveitando a ausência de Darkness, se bem que não foi este o motivo determinante, algumas arestas foram sendo aparadas. É certo que o grupo continuou se reunindo afinal já existia antes de Darkness, mas o fato é que nada mais seria igual. Em uma das reuniões, antes mesmo que chegássemos a entrar no cemitério, fomos abordados por uns indivíduos estranhos, ao menos para quase todos. Ao se identificarem, ficamos sabendo tratar-se de parentes de Pandora. -- Então, Paola, virá conosco? O mais falante deles era irmão de nossa amiga. -- Para vocês meu nome é Pandora e não, não irei com vocês. -- Entendo. Ainda está ressentida conosco. -- O que esperavam? Acaso esqueceram-se de tudo que passei? -- Pensamos que depois que mamãe se foi... -- Mais um motivo para não desejar acompanhá-los. Se quando mamãe era viva não os procurei, por que o faria agora? -- Pan. Eve jamais havia se dirigido a Pandora desta forma. Podemos conversar? -- O que deseja? Pandora pareceu pressentir as intenções de Eve. -- Por favor. Insistiu Eve com serenidade. -- Está bem. Consentiu Pandora. Afastadas dos demais, Eve tentou convencer Pandora a reunirse com seus irmãos. Ela precisou de muito empenho para conseguir seu intento. -- Por que devo aceder ao desejo deles?

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irmãos?

-- Não assimilou nada do que Darkness nos legou? -- O que tudo que experimentamos tem a ver com meus

-- Eles também fazem parte do processo de libertação. Não percebe que o ódio que alimenta, os mantém agrilhoados? -- Se depender de mim, jamais se libertarão do peso de suas consciências -- Tudo bem se deseja vingar-se deles, mas será que estará disposta a pagar o preço que isto acarreta? -- De que preço está falando? -- Se insistir em alimentar esta revolta, também estará nutrindo os liames que os mantém ligados. -- Ah, não, de modo algum! Não desejo manter laço algum com aqueles crápulas! -- Se realmente deseja romper estes laços, deve libertar-se deles e isto só conseguirá atingir se o s perdoar. -- Este sim é um preço alto demais para se pagar. -- Não posso obrigá-la a aceitar que os acompanhe, mas garanto-lhe que é a única maneira de libertar-se de seu passado. Não conseguindo convencer Pandora a acompanhar os irmãos, elas voltaram para o local onde nos encontrávamos. Informados a respeito da decisão da irmã, não restou alternativa a não ser partirem. Alguns dias mais tarde Eve teve outra crise. Não tão forte quanto as anteriores, mas o suficiente para impedi-la de reunir-se com o grupo. Na intenção de saber como estava, fui até sua casa. -- Oi, posso falar com Eve? -- Quem gostaria? -- Hades. O pai de Eve me mediu dos pés a cabeça. Ao tratá-la por aquele nome, ele soube de quem se tratava. Cenho cerrado, suspirou fundo e convidou-me a entrar. -- Aguarde um pouco. Vou verificar se ela está acordada. Após uma ausência breve, ele retornou e me conduziu até o quarto de Eve. Não chegou a entrar apenas mostrou-me a porta. -- Olá! Saudei minha amiga. -- Hades! Que bom que veio me ver! -- Não tinha nada mais interessante para fazer. Zombei. -- Ah, é, seu amigo da onça! A disposição de Eve em manter-se animada tornou o encontro agradável. A vigilância que sua mãe mantinha não chegou a incomodarnos. Vez ou outra ela surgia para observar-nos.

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-- Teve alguma noticia de Darkness? Perguntei. -- Não. Mesmo tendo tentado estabelecer contato, não consegui obter sucesso. -- Será que ele se “desligou”? -- Não creio. -- Bem, espero que ele não demore muito a se manifestar. -- Também desejo isto. Mas mudando de assunto, como estão se saindo? -- Meio desanimados. -- O que? Não digam que perderam o pique. -- Oh, não! Mas Fobos e Lilith também viajaram. -- Para onde? -- Foram visitar a família de Lilith. -- Algum problema? -- Não. Um dia chegamos a casa deles e Pandora informou que eles haviam viajado. -- Estranho, Fobos não é de agir assim. -- Também estranhamos, mas não pudemos fazer nada. -- E Pan? -- Set está fazendo companhia. -- Só os dois? -- Hei, Set não é mais tão irresponsável. -- E quanto a Deimos e Mefisto? -- As vezes eles aparecem por lá. -- Ninguém mais tem ido ao Coven? -- Não. -- O Antenor deve estar uma fera. -- Nem tanto. Os outros grupos ainda freqüentam o Club normalmente. -- Já conseguiu superar aquela última crise? -- É. Aos poucos vou voltando ao normal. E você? -- Não sei. Amanhã terei que fazer alguns exames. -- Para que? -- Os médicos querem estudar a evolução de minha doença. -- Com que finalidade? Será que já não a exploraram demais? -- Eu concordei com eles. -- Mas... mas... -- Pense um pouco. Eles não sabem como estou resistindo tanto tempo. Através dos exames pode identificar algum gene ou sei lá que elemento que possa estar influenciando minha sobrevida. -- E o que você lucra com isto?

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-- Talvez nada, mas outras pessoas poderão se beneficiar. Se os médicos conseguirem identificar ou isolar algum fator determinante, terão um ponto de partida para novas descobertas. -- Darkness ficaria orgulhoso ouvindo-a falar. -- Não faço isto por Darkness, mas por mim mesma. Após a visita, pus-me a refletir sobre as dificuldades que vinha enfrentando. Analisei os vários ângulos de minha vida, lancei luz sobre os prismas que compunham o intricado sólido que havia erigido em torno dela, nada se comparava ao drama que minha amiga enfrentava. Senti-me pequeno diante de seu gesto. Eve era uma criatura especial. Tinha tudo que necessitava para uma vida tranqüila, menos saúde. E ainda assim, conseguia relevar suas angústias e pensar no beneficio de outrem. Se já era difícil sacrificar-se por alguém a quem conhecíamos, o que pensar de pessoas que jamais chegaríamos a sequer encontrar? Quase sem querer cheguei a casa de Fobos. Estava tão habituado com aquele lugar que já não havia necessidade de avisar que chegara. Simplesmente empurrei a porta e entrei. Pandora estava sentada sobre as almofadas assistindo o dvd de um grupo enquanto Set preparava algo para lancharem. -- Oi. Cumprimentei-a. -- Oi. -- Alguma notícia de Fobos ou LIlith? -- Não. E nossa amiga, como está? -- Bem. -- Não me parece muito animado para alguém que tenha visitado um enfermo e o tenha encontrado em boas condições. -- Não, não. Eve está realmente bem. Eu é que estou meio passado. -- Ora, isto não é nenhuma novidade, quase sempre estamos passados. -- Mas é que agora o motivo está aqui. Falei apontando minha cabeça. -- O que, está ficando de miolo mole? Zombou Pandora. -- Quem dera fosse este o problema. -- O que há? Resumidamente expus a conversa que havia tido com Eve. Aproveitando o ensejo, apresentei minhas próprias dúvidas a respeito de algumas situações que antes me pareciam tão profundas mas que, diante da atitude de Eve, perdiam toda perspectiva nebulosa. -- Eve não é igual a nós. Ela sempre foi diferente.

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não?

-- Pode ser, mas o que me intriga é por que ela consegue e nós

-- Porque ela libertou-se das amaras ilusórias que ainda nos prende. Afirmou Set entrando na conversa. -- O que sabe sobre isto? Perguntou-lhe pandora. -- Muito e nada. As vezes sinto que todo enigma é tão pueril que qualquer criança poderia decifrá-lo brincando, outras fico horas matutando e rodeando sem ir a lugar algum. -- pois foi isto que falei. Eve é diferente. -- Não, o problema não está em Eve ser diferente, mas em nós. -- Como assim? -- Você já experimentou o contato com Darkness, não? -- Mas que pergunta, todos sabem que sim. -- Não tem a impressão que a resposta que tanto procuramos parece estar bem a frente de nossos narizes? Ali, passivamente esperando que tiremos a venda que cobre nossa visão impedindo que a divisemos? -- É, as vezes tenho esta impressão. -- Então? -- Então nada. Sempre acabo com uma baita dor de cabeça quando tento enxergar além. -- Isto por que ainda não estamos maduros. Ainda não é nossa hora. -- Hei, agora você está falando tal qual Darkness. Intrometime na conversa. -- E não foi ele quem nos apontou o caminho? -- Foi. Respondi. -- A chave para a evolução é algo muito simples. Nós, em nossa arrogância, ficamos imaginando algo fenomenal, que exija um esforço desmedido e acabamos esquecendo que tudo na vida é muito simples. -- Ah, não! Nem tudo é assim tão simples. Discordou Pandora. -- É claro que é! Todos nós deveríamos deixar de lado nossas ilusões e voltar a ser criança. Assim, quem sabe, pudéssemos decifrar o código. -- Sei não, este papo está parecendo assunto de doido. Pandora não se dava por convencida. -- Mas se queremos evoluir, como podemos pensar em voltar a ser crianças? Perguntei. -- Eu sei que parece um paradoxo, mas isto porque estamos pensando com nossas mentes adultas. Você Pandora, consegue lembrar-se de como se sentia quando Darkness a contatou?

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-- Não claramente. -- Pois eu me lembro muito bem. Havia passado uma noite horrível. Meu peito estava tomado por uma dor lacerante. Fiquei tão oprimido que minha razão esvaeceu-se. Não consegui mais atinar em nada, fui tomado por um enorme vazio. -- O que está querendo dizer com isto? -- Que quando estamos com a mente livre de conceitos confusos, podemos estabelecer contato com energias superiores. -- Sem a ajuda de Darkness? Estranhei. -- Darkness nos apontou o caminho, mas se quisermos progredir, precisamos percorrê-lo com nossas próprias pernas. -- O que isso tem a ver com ser criança? -- Isto é um modo de dizer. Ser criança é permitir que nossas mentes se tornem límpidas, abertas ao fluir de energias positivas. -- Não sabia que Darkness havia lhe revelado tanto. Falei surpreso. -- E não revelou. Mas sei que é assim que se processa o contato. -- Por que acha que está certo? Também já estabeleci o contato e não sinto nada disto. Afirmou Pandora. -- Talvez por que estamos em estágios diferentes. Sugeriu Set. -- Mas... Pandora ia replicar quando o telefone tocou. Set adiantou-se a nós e o atendeu. Pelos monossílabos que ele pronunciava não dava para sabermos que era ou de que se tratava. Tivemos que aguardar o final da ligação. -- Quem era? Perguntou Pandora mal Set havia tirado o fone da orelha. -- Fobos. -- O que ele disse? Pandora não conseguia conter sua curiosidade. -- Avisou que estarão chegando depois de amanhã. -- Finalmente! -- Lilith quer passar mais alguns dias com sua família. -- Eles se entenderam? -- Aparentemente, sim. -- Que bom! -- Fobos disse que tem novidades, mas não quis adiantar nada pelo telefone. -- Novidades! O que será? Empolgou-se Pandora. -- Talvez um adeus. Set disse isto apenas para provocá-la.

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-- Ora, seu desnaturado! A noite foi avançando lentamente. Estar ali me deixava menos angustiado. Se tivesse voltado para o quarto que ocupava no Club, estaria me martirizando. A conversa que havia tido com Eve ainda martelava em minha mente. Ao deixar a residência de meus amigos, fui direto para meu serviço. Lá pelo menos, manteria minha cabeça distante do conturbado emaranhado que havia se instalado em meu eu. Concentrado em minhas tarefas, não teria tempo para mais nada. O que não imaginava era que as palavras de Eve tivessem tanta força. Mal consegui dar conta de alguns contratos. Estava mal. Meu chefe percebeu minha desconcentração e me chamou para uma conversa. -- O que está acontecendo? -- Não tive uma boa noite. -- Bem, você sempre se mostrou atencioso, consegue atender mais clientes que a maioria, não quero vê-lo parecer desleixado. Melhor que tire o dia de folga. Amanhã estará melhor. -- Posso mesmo ir? -- Pode, mas não vá se acostumar. -- Obrigado, senhor Rogério. Amanhã com certeza estarei bem melhor. Enquanto me entregava as minhas lamentações, Eve prosseguia em sua titânica jornada de desprendimento. Até mesmo seus pais não entendiam de onde ela tirava tanta determinação para se oferecer para os testes. -- Filha, estes exames são uma tortura. Observava a mãe. -- Tudo bem, os resultados compensam. -- Mas se não há a menor chance de que possa obter algum beneficio com eles, por que insiste em continuar com eles? -- Já pensou em quantas pessoas posso estar ajudando? Quantos pais não precisarão passar pela angústia que enfrentaram? Ou as crianças que serão poupadas de uma vida angustiante? -- Nós compreendemos sua atitude, filha, mas o que sua mãe está querendo dizer é que se desejar desistir... -- Não. Eu vou continuar até que os médicos digam que já não há mais motivo para tanto. -- Ah, filha, quisera ter sua força. Suspirou a mãe. Fosse há algum tempo, Eve poderia até estar tão empenhada em ajudar quanto naquele momento, mas os motivos eram muito diferentes. Antes, inspirada pela sua doença, estaria disposta a correr qualquer risco que ou a curasse ou a matasse de vez. Muito havia mudado desde então.

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Eve não esperava nem a cura nem a morte ao se entregar a bateria de exames que lhe eram solicitadas. Não importava mais se obteria ou não algum proveito, somente a inspirava o desejo de sentir-se útil. Acontecesse de morrer neste meio tempo, deixaria este mundo plena de felicidade pois, mesmo tendo experimentado breve lapso aqui, saberia que sua efêmera existência fora útil. Ainda sentada na sala de espera, ela olhava para o imenso jardim que se descortinava no terreno do hospital. Sentiu grande paz ao aspirar o aroma que penetrava pela janela. Recordou-se de já haver sentido aquele odor em outra ocasião. No mesmo instante, um sorriso singelo ganhou-lhe os lábios. Pressentiu a presença de Darkness a seu lado. Estava tão absorta que não notou os médicos que haviam entrado. -- Senhorita! Um dos médicos precisou ser mais incisivo para chamar-lhe a atenção. -- Pois não! -- Está na hora. A sala de exames já foi preparada. -- Vamos para lá, então. -- Este exame é um pouco mais complicado que os outros. Informou-lhe o chefe da equipe médica. -- Não tem problema. -- Também é um pouco mais desconfortável. -- Vai doer? -- Não. Estará sedada. Mas poderá sentir alguns efeitos colaterais por alguns dias. -- Não se preocupe. Tiro de letra. -- De onde tira tanto otimismo, assim? -- De mim mesma. O sorriso faceiro de Eve não permitiu brecha para mais nenhum comentário. A equipe que realizava os exames sentia o quanto aquela menina havia se modificado. Desde quando seus pais haviam recebido o diagnostico sobre sua doença, ela era tratada naquele hospital. No início, ela se mostrara indolente, desprovida de qualquer emoção que denotasse estar consciente de sua situação. Nunca reclamava dos tratamentos ou exames, mas também nunca reagia de outra forma qualquer. Era o retrato vivo da apatia. A menina que estava diante deles não lembrava em nada aquela mortificada criatura. Mesmo nos momentos mais críticos, Eve sempre tinha um comentário espirituoso para expressar sua tranqüilidade. Filipe, um dos médicos que a acompanhava, encantara-se com ela. Em seu peito uma chama muito forte começava a arder mais do que

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desejava. Entendia que não podia alimentar aquele sentimento, mesmo o considerando o mais puro que já sentira. Ela era ainda uma criança e ele um jovem médico ainda iniciando sua carreira. -- Já levaram minha filha para os exames? Estava envolvido pelos pensamentos que não percebeu a presença da mãe de Eve a lhe questionar sobre o paradeiro da filha. -- Minha filha, onde está? Insistiu a mãe de Eve. -- Heim? -- Perguntei onde está minha filha! -- Na sala de exames. Acabaram de levá-la para lá. -- Não deveria estar lá, também? -- Estava indo para lá. -- Pareceu-me meio alienado. -- Oh, estava trocando idéias com meus botões. -- Ah! O final de semana trouxe muitos momentos de alegria para todos nós. Eve se recuperou e já podia deixar sua casa. Lilith e Fobos haviam chegado na tarde de sábado. Apenas o cansaço que eles manifestaram estar sentindo impediu-nos de realizar uma reunião. Cheio de curiosidade, tivemos que aguardar mais dois dias até que eles decidissem nos contar os detalhes da viagem. Através do relato que eles nos fizeram, pudemos perceber o quanto Lilith havia amadurecido. Ao chegarem a cidade onde os familiares de Lilith moravam, procuraram por um hotel pois não desejavam aparecer repentinamente, afinal há anos haviam perdido contato. Após Fobos se familiarizar com a cidade, decidiram ligar para a mãe de lilith. -- Alô! Lilith reconheceu a voz de seu pai. -- Gostaria de Falar com Dona Lucia. Fobos tomou-lhe o telefone e assumiu o papel de interlocutor. -- Quem gostaria? -- É da parte de sua filha. Ao ouvir aquela informação, o pai de Lilith permaneceu por algum tempo em completo silêncio. Apreensivo, tentou acalmar-se antes de chamar pela esposa. A relação entre ambos havia azedado logo após a fuga da filha. Ansiosa, a mãe de Lilith pegou o telefone e desatou a chorar: -- Filha, filha! -- Um momento só, minha senhora, ela está aqui. Informou Fobos. -- Oi, mãe! -- Filha! Onde você está?

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-- Aqui. Estamos hospedados no Hotel Salvatore. -- Por que? Por que não vieram para cá? -- Precisamos conversar reservadamente. -- Ainda sente muito ódio de seu pai? -- Não mais. -- Quando podemos nos encontrar? -- Se a senhora quiser, estamos esperando no hall do hotel. -- Esperem apenas me arrumar e logo estarei aí. Sem dar explicação alguma sobre o teor da conversa, Dona Lucia arrumou-se e deixou a casa. Antes que partisse foi detida pelo marido: -- Aonde vai? -- A cidade. -- Por que a pressa? -- Se notou que estou com pressa, por que fica me atrasando? -- Está cada dia mais arredia, não? -- Com licença! A distância entre a chácara onde a família de Lilith morava e a cidade podia ser percorrida em cerca de meia hora. Mas devido a ansiedade, antes que este tempo houvesse passado, o carro parava diante do hotel. -- Boa tarde. O manobrista aproximou-se solicito. A senhora pretende se hospedar? -- Não. Vim apenas visitar um hospede. -- Ah, neste caso peça para que eles assinem o ticket do estacionamento quando for partir. -- Obrigada. Os anos, ou talvez as dificuldades, mais ainda, resultado de ambos, Lilith espantou-se com o aspecto da mãe. Lembrava-se dela como uma senhora fina, de pele lisa, olhos serenos, não aquela mulher quase senil que se apresentava a sua frente. -- Mãe! -- Filha! O abraço que trocaram foi acompanhado por lágrimas e suspiros. Fobos permanecera no quarto uma vez que Lilith pretendia conversar a sós com a mãe. -- Parece que está muito bem, filha! -- Gostaria de poder dizer o mesmo da senhora, mas percebo que não tem tido dias muitos fáceis. -- Não. Desde que...

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-- Por favor, agora não. Não vamos iniciar nosso reencontro rememorando fatos infelizes. -- Você está certa. Me diga como tem vivido, o que faz? Aos poucos Lilith e a mãe foram repassando os fatos acontecidos, em suas vidas, nos últimos anos. À medida que a mãe lhe relatava as provações que se impusera depois de sua partida, lamentava não ter lhe procurado antes. Resignada lembrou-se da frase predileta de Darkness: “Tudo a seu tempo, garota!” -- Ao telefone expressou-se no plural, não está sozinha? -- Não. Meu namorado veio comigo. -- Onde ele está? -- Ficou no quarto. Queria conversar a sós. -- Bem, acho que já pode chamá-lo, não? -- Espere mais um pouco. -- O que deseja saber? -- Não falou nada a respeito de papai. -- Aquele traste! -- Não estão se entendendo muito bem. -- Não estamos nos entendendo nem um pouco. -- Onde encontrou Darkness? -- Quem? -- Darkness? -- Não conheço ninguém com este nome? -- Não! -- Não. Não teria como me esquecer de alguém com um nome tão estranho. -- Mas ele me falou que a senhora havia se mostrado mais paciente depois que se conheceram. -- Ah, não vai dizer-me que também conhece aquele anjo? -- Darkness, um anjo! -- Modo de falar. -- Então a senhora o conheceu? -- Sim. Só não sabia que este era seu nome. -- Para ser sincera, nem nós sabemos se este é seu verdadeiro nome. Mas então, como o conheceu? -- Se contar vai pensar que fiquei maluca. -- Com Darkness? Nada que esteja relacionado a ele pode ser tido como normal. -- você parece conhecê-lo muito bem. -- Nem tanto, mas talvez um pouco mais que a senhora.

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Lilith lembrava-se muito bem da importância que a mãe dava as determinações que a igreja impunha a seus fiéis. Muitas vezes haviam se desentendido justamente por causa dela não se adaptar a estas exigências. Assim, entendeu perfeitamente o receio da mãe em lhe revelar o contato com Darkness. Mas, depois de algum tempo, acabou lhe contando tudo. Lilith reconhecia Drakness em cada palavra que a mãe pronunciava. Seu sorriso ia deixando a mãe mais e mais descontraída e ela ia se soltando ao notar que a filha não a censurava. Depois que o relato terminou, Lilith abraçou-se a mãe e a fez compreender que acreditava em tudo que ela lhe relatara. De modo algum a deixou embaraçada. -- Fico feliz por haver encontrado Darkness. -- Pode imaginar meu susto quando ele veio a primeira vez? Achei que estava sendo tentada pelo demo. -- Não se preocupe, esta também foi uma das primeiras impressões que tivemos. -- Ele me pareceu tão estranho. Mas à medida que nos encontrávamos, se é que se pode chamar nossos contatos de encontro, ele ia se mostrando um verdadeiro mestre. Suas preleções tinham o dom de me acalmar. -- Creio que este seja o grande segredo que ele traz em si. -- Melhorei muito desde que ele me contatou, mas ainda sinto que não sou capaz de agir como ele gostaria. -- Engana-se. Darkness não espera nenhuma atitude diferente daquela que expressamos. Sua frase predileta é... -- Tudo a seu tempo, garota! -- É, é esta mesmo! Descontraidamente estenderam a conversa até que a noite estendeu seu manto sobre a região. Não desejando despedir-se tão cedo da filha, agradeceu quando ela a convidou para jantarem juntas. Foi durante o jantar que ficou conhecendo Fobos. Somente quando o viu foi que reparou no estilo diferente de se vestirem. Fobos se apresentou trajando seu modelito negro com adornos prateados e sua inseparável bota. -- Boa noite, é um prazer conhecê-la. -- Também sinto o mesmo. Apesar de desejar realmente isto, deixou transparecer uma certa insegurança em sua fala. -- Fobos é o meu tesouro! Afirmou Lilith. -- É um belo rapaz. -- Mais ainda em seu interior. -- Isto muito me alegra.

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-- A senhora pode ficar tranqüila, Lilith é tudo em minha vida. -- Vocês jovens, sempre exagerando. Os dias foram passando com uma rapidez assustadora. Nem todo tempo do mundo parecia ser suficiente para que as duas compartilhassem a companhia da outra. As arestas que haviam sido deixadas foram aparadas por completo. Chegou o momento em que o assunto que tanto adiavam teria que ser tratado. Lilith não poderia voltar sem que tudo houvesse sido esclarecido. -- Tem certeza que quer falar sobre isto? -- Não posso voltar sem que esclareçamos tudo. -- Para mim seu pai não representa mais nada. -- Pode até ser que já não o ame mais, mas não precisa odiá-lo por isto. -- Sempre que me recordo do quanto ele a fez sofrer... -- Também me revoltei muito por tudo, mas agora compreendo que, embora ele tenha sua responsabilidade, não tenho porque odiá-lo. -- Não o odeia? -- Não. -- Como é possível? -- Darkness! -- O que ele tem a ver com isto? -- Ele também me contatou. No começo sentia-me incomodada com a presença dele, mas quando a hora chegou, ele me contatou e desde então, uma paz muito grande tem me alimentado. -- Gostaria de poder sentir esta paz. -- Só depende da senhora. Mas antes que diga que não é capaz, lembre-se de que sempre haverá tempo para o resgate. -- É, eu sei. -- Não quero ensinar-lhe algo que já deve estar cansada de saber, mas penso que o melhor seria se separarem. Se ao menos fosse capaz de não sentir ódio, tudo bem continuarem juntos, mas como parece não ser este o caso... -- Talvez tenha razão. As vezes me pergunto por que ainda não tomei esta decisão. -- Por que ainda não se sente segura o suficiente. -- Minha filha está mesmo mudada. -- Todos precisamos progredir. Esta é nossa maior missão neste mundo. -- No entanto este seu progresso será o motivo de sua despedida.

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-- Preciso caminhar com minhas próprias pernas. -- Mas tão longe! -- Quando deixei nossa casa não fazia a menor idéia para onde ir. Durante algum tempo vaguei sem destino até encontrar Fobos. -- Ele parece gostar muito de você. -- Fobos e eu nos amamos. -- Está muito certa disto, não? -- Já passei por muitas experiências ruins, sei diferenciar as emoções. -- Não duvido do sentimento que os une, apenas comentei sua firmeza. -- O tempo nos mostra o quanto ainda é firme o laço que nos une. Se um dia ele se afrouxar, não terá mais por que manter a união. -- Mesmo que isto acarrete em contrariedades difíceis de se enfrentar? -- Nunca mais vou me escusar de tomar as atitudes que forem necessárias, mesmo que possa sofrer com os efeitos. -- É, você está certa. Omitir-se sempre acarreta mais danos que enfrentar os problemas. Dona Lucia acreditava que a filha estava fazendo aquela visita para que pudessem se acertar, quando ficou sabendo que Lilith também desejava encontrar-se com o pai, ficou pasma: -- O que? -- Procure entender, não me sentiria livre sabendo que existem pendências entre nós. -- Mas a responsabilidade é só dele! -- Não, mamãe. Também tenho minha parcela. Somente ao saudá-la poderei me sentir totalmente livre. -- Vai encher a bola daquele... -- Mãe! Por favor não deixe a raiva turvar-lhe a razão! -- Ah, filha, não sabe como tem sido difícil conviver com ele! -- Bem, avise-o que estarei aguardando uma visita amanhã na parte da tarde. Ao ser informado sobre a intenção da filha de vê-lo, o pai de Lilith sentiu-se orgulhoso. Passara os últimos anos ouvindo as reprovações da mulher e agora aquilo. Mesmo não sabendo o motivo que havia levado a filha a solicitar-lhe um encontro, achou que estava por cima. Diferentemente do que fizera com a mãe, Lilith solicitou a presença de Fobos. Não desejava encontrar-se a sós com o pai. Não que temesse algo mas não queria que ele se sentisse muito confiante. Ao chegar ao hotel, Seu André foi direto para a recepção.

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-- Gostaria de falar com a senhorita Lidiane. -- Um momento. Falou a atendente. Depois de verificar os registros, anunciou: não há nenhuma hospede com este nome. -- Como não? Exaltou-se Seu André. Pois se foi minha própria filha quem me chamou até aqui. -- Talvez esteja registrada com outro nome. Sugeriu a atendente. -- Minha filha tem muito orgulho do nome que lhe dei, não o trocaria por nada. -- Então deve haver algum engano. Antes que a discussão se prolongasse, Fobos apareceu e informou a respeito do local onde estavam aguardando Seu André. -- Lilith o aguarda na varanda. -- Lilith? Quem é Lilith? -- Sua filha. -- Está enganado, minha filha se chama Lidiane. -- Venha por aqui, por favor. Mesmo não estando convencido de que aquele jovem pudesse estar falando de sua filha, Seu André decidiu acompanhá-lo. Não ficava bem começar uma confusão por quase nada. Mal haviam deixado o saguão quando ele viu a filha através da janela. Como ela estava linda! Os anos haviam sido generosos com ela. -- Filha! Seu André mostrou-se muito entusiasmado. -- Sente-se. Foi o tratamento formal e frio que recebeu da filha. -- Pensei... -- Sente-se. -- Está bem. -- Em primeiro lugar, quero que fique bem claro que a conversa que teremos será a única. -- Como assim? -- Não pretendo estabelecer mais nenhum contato com o senhor. -- Está desprezando seu pai? -- Estou evitando que minha vida se torne confusa por manter laços com alguém por quem não nutro nenhuma consideração. -- Está me ofendendo! -- Deixe de hipocrisia, não desperdice o pouco tempo que tem para ouvir as razões que me levam a não odiá-lo! -- Não me odeia! Surpreendeu-se Seu André.

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-- Não. Na verdade, você não representa mais nada para mim. E esta talvez seja a maior afronta que pôde cometer comigo. -- Como assim? -- Pensa que foi fácil para mim assistir as trocas de carinhos entre minhas amigas e seu pais e saber que eu jamais teria aquilo? -- Não tinha por que não queria. -- Não, não tinha por que não permitia que um sentimento que deveria ser o mais puro se emporcalhasse por causa da falta de honra de um desqualificado. Embora estivesse tomada por asco, Lilith não deixava que a raiva a dominasse, sua fala era serena o suficiente para constranger ainda mais seu pai. -- Nunca desrespeitei você. -- Em atos não, mas pensa que seus olhares furtivos passaram despercebidos? Não faz idéia de quantas noites fiquei sem dormir com receio que pudesse tentar algo enquanto estava adormecida. Isto foi mais que qualquer ato que tivesse cometido. -- Nunca seria capaz de cometer qualquer desatino. -- Mas foi capaz de matar a figura de pai que tanto ansiava por poder afagar. Minha infância foi uma seqüência de desencantos. Mesmo que jamais tenha me tocado, acabou cravando uma lamina tão profunda em meu peito, que foi muito difícil extraí-la. -- Por que tanto rancor? Sabe que nunca lhe quis mal. -- Não, pode-se dizer que quis até bem demais! Ou acha que nunca percebi as vezes em que me espiava enquanto me banhava? Ou do empenho que tinha para que eu percebesse quando fazia sexo com minha mãe? Não, teria sido preferido que um de nós houvesse morrido. -- Já não sou mais assim. Era uma doença, já me curei! -- Não estou aqui para julgá-lo por nada. Desejei este encontro apenas para informar-lhe que nunca mais me deixarei abater por suas fantasias imundas. Sou livre e assim desejo permanecer para sempre. Não o condeno por nada que fez ou desejou fazer, só quero que, assim como eu, esqueça que um dia já convivemos sob o mesmo teto. -- Não foi tão dura assim com sua mãe. -- Minha mãe teve seus motivos para se calar. Mesmo não concordando com sua covardia, sei muito bem o que a motivou a se portar assim. Quanto ao senhor, não digo que morri, mas afirmo que nunca mais me terei como sua filha. Para mim não haverá nem mesmo a mais insignificante lembrança de sua pessoa. -- Isto não se faz! Sou seu pai! -- É muito tarde para assenhorear-se deste papel.

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-- Ainda se arrependerá de tudo que me fala. -- Não. Se lhe serve de consolo, aprendi a não me arrepender mais de nada que faço. -- Um dia... -- Não há mais nada para falarmos. Desejo que possa conviver com sua vergonha pelo resto de sua vida. Quanto a mim, vou cuidar de viver a minha. Passar bem! Antes que o pai tivesse oportunidade de retrucar, Lilith deixou a sacada. Fobos a seguiu deixando Seu André a sós. Ali, naquele momento, ele não percebeu o grande abismo no qual se lançara. Seu espírito ainda dormia o sono dos indolentes. Aquela era a hora do resgate de Lilith, não a de seu pai. Ao terminar seu relato, Lilith tinha os olhos rasos de água. A emoção era tamanha que chegamos a pensar que ela ainda nutria muita raiva pelo pai, mas ela logo tratou de nos mostrar o contrário. -- Não se preocupem com minhas lágrimas. Elas são como um bálsamo que alivia o peso de minhas recordações. São como a brisa que sopra aliviando-nos o calor. -- Não sei o que lhe dizer. Foi o comentário de Pandora. -- Não precisa dizer nada. Ninguém precisa. -- Mas penso que foi mais corajosa que eu. Insistiu Pandora. -- Não, minha irmãzinha. Você ainda tem muito tempo para encontrar-se com sua hora. Não tente apressar o tempo. -- Lilith tem razão. Asseverou Eve. Mesmo não considerando sua idade física, a maturidade necessária para uma atitude semelhante, só virá com o tempo. -- Sinto-me uma fraca. Choramingou Pandora. -- Não. Jamais deixe que este pensamento a domine. Todos nós somos o que somos. Não podemos dar além de nossas possibilidades. -- Isto é típico de Darkness! Pandora misturava o riso com algumas lágrimas que tentava conter. -- Isto mesmo, irmãzinha, o riso é o melhor que podemos dar quando a sombra da angústia tenta nos dominar. Lilith estreitou Pandora em seus braços e assim permaneceram por muito tempo. Intimamente sentia a ausência de Darkness começar a ficar muito prolongada. Meus amigos pareciam estar encaminhando seus temores e eu ainda permanecia atado as minhas fraquezas. Quando deixaria de ser tão covarde? Talvez a necessidade de amparar aqueles que amamos seja muita mais que uma bênção. Talvez não passe de uma manifestação tardia

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de compaixão. Quem sabe não exista lógica alguma em sermos solidários quando aquilo que mais desejamos é um ombro amigo para poder afundar nossas mágoas. No entanto, apesar de ainda sentir o gosto agridoce da derrota a travar-me os sentidos, foi exatamente o que fiz. Em um determinado fim de tarde de sábado, antes que a hora de nossa reunião houvesse chegado, recebi um telefonema nada comum de Pandora. -- Oi. -- Oi, -- Podemos nos encontrar? -- Estou no Coven. -- Tudo bem! Espere-me perto da saída. -- Algum problema? -- Não. Quando chegar aí, conversamos. Meia hora que mais pareceram uma eternidade, este foi o tempo que tive que aguardar. Pandora não queria a intervenção de Lilith ou Fobos, por isso não os procurou. Quando ela finalmente chegou, pude saber que assunto era tão importante para que ela me procurasse. -- O que deseja? Perguntei ao vê-la chegar. -- Poderia me acompanhar em uma viajem? -- Para onde? Por quanto tempo? -- Estou pensando em ir até a cidade onde minha família mora. -- Mas pensei que não queria... -- Também achava que não, mas a atitude de Lilith me fez pensar. -- Ah, sei! -- Então? -- Por que eu? -- Por que não? -- Fobos e Lilith poderiam fornecer... -- Não. Não quero atrapalhar os planos deles. -- Planos? -- É. Sem querer ouvi-os combinando em dar uma esticada até o litoral. Não quero cortar o barato deles. -- Mas se eles estão pensando em ir para a praia, irão nos convidar. Não iriam para lá sem a galera. -- Eu sei. Mas se não aproveitar a oportunidade talvez desista de ir ver minha família. -- Pretende, ao menos, contar aos outros? -- Sim. Só não queria chegar com algo vago. Se ao comunicar minha decisão ficarem sabendo que não irei só, não colocaram empecilhos.

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-- Não sei se é uma boa idéia, mas se está sentindo que deve ir, eu a acompanho. -- Obrigada, sei que não iria me negar ajuda. O comunicado pegou a todos de surpresa. Não que se opusessem a vontade expressa por Pandora, mas preocupavam-se com as conseqüências daquela empreitada. Todos nós conhecíamos a trágica história de nossa amiga. -- Tem certeza de que deve mesmo ir? Perguntou Lilith ao ser informada. -- Não sei. Mas sinto que preciso. -- Aí, irmãzinha, podemos ir todos nós. Ofereceu-se Fobos em nosso nome. -- Não, não será preciso. Hades me fará companhia. -- Hades? Fobos olhou-me de modo inquiridor. -- Não tenho muito para fazer por aqui, mesmo. Resumi minha aceitação. -- Não sei, não! Resmungou Set. só os dois andando por aí! -- Não se preocupem! Adiantou-se Eve antes que mais alguma objeção fosse apresentada. Eles irão e voltarão muito bem. -- Como pode saber? Inquiriu Deimos. -- Eu sei, apenas isto! -- Mas eles nem mesmo... Deimos tentou insistir em seus receios. -- Penso que não devemos nos preocupar. Assegurou Fobos modificando seu ponto de vista. -- Como? Perguntaram Lilith e Deimos. -- Podemos ficar tranqüilos. -- Mas antes não pensava assim. Certificou Lilith. -- Mas agora penso. -- Perdemos algo? Questionou Mefisto. -- Talvez Eve queira explicar. -- Fobos sentiu o mesmo que eu. Darkness os protegerá. -- Darkness! Desta vez a surpresa foi geral. -- De onde tiraram tal conclusão? -- Não sei. Respondeu Fobos. Só sei que é assim. A simples menção da pessoa de Darkness encheu-nos de sentimentos confusos. A saudade doía mais em uns que em outros, mas todos estávamos sentindo sua falta. Mesmo não conferindo muito crédito as palavras de Eve e Fobos, Pandora se mostrou animada. -- Melhor assim, dessa forma estaremos muito bem acompanhados!

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Em uma terça feira chuvosa deixamos nossa cidade. Como ainda não havíamos completado a maioridade, nossos amigos nos forçaram a ir de ônibus. Com olhos chorosos nos despedimos no terminal rodoviário. Durante todo o trajeto quase não conversamos. Em meu íntimo sentia a batalha que Pandora travava com suas dúvidas. Não sei se a manifestação de Darkness ou se por sentir a mesma batalha acontecer em meu âmago, o certo era que sabia aquilo que ia dentro do coração de minha amiga. A cidade onde a família de Pandora morava era como uma jóia incrustada em um tórrido grotão. A escassa vegetação local mantinha a temperatura num estado de semi-ebulição. Acostumados ao frescor da capital, acusamos os efeitos causados pelo calor, tão logo chegamos. -- Nossa, como aqui é quente! Exclamei. -- É, havia me esquecido deste detalhe. -- Vamos direto para a casa de sua família? -- Não. Temos que procurar um canto para ficar. Não quero estreitar nenhum vínculo com eles. -- Como faremos para encontrá-los? -- Amanhã iremos até a propriedade de meu tio. -- Fica muito longe? -- Não. Chegaremos lá antes do almoço. Isto é, se sairmos logo depois do café. -- Já que falou em comida, precisamos achar logo este canto. Procurar um hotel naquele esboço de cidade seria o mesmo que tentar encontrar uma arena de tourada em nossa cidade. Após alguns contatos, ficamos sabendo sobre a existência de uma pequena pousada localizada a margem da rodovia que cruzava o município. Contando com a ajuda dos moradores, conseguimos chegar até a pousada. O aspecto da construção não possibilitava nenhuma boa perspectiva a cerca de nossa estada naquela cidade. -- Muito me engano, ou fez questão de se mostrar ao maior número pessoas possíveis? -- Não se enganou. -- Por que? -- Porque assim não será nenhuma surpresa quando chegarmos a casa de meus irmãos. -- Ah! Mal acomodados, parcamente alimentados e ansiando por uma higiene mais adequada, nos acomodamos como pudemos e cuidamos de dormir. Ao menos tentamos. Ou talvez deveria dizer lutamos para conseguir uma hora de sono.

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A manhã nunca nos pareceu tão mágica quanto naquele local. Olhos demonstrando muito bem a falta de descanso que nos dominava, bocejando mais que um guarda noturno, nos sentamos a mesa para o café. -- Bom dia. Conseguiu dormir um pouco? Perguntou-me Pandora. -- Nem sei se consegui ou se passei a noite toda em claro. Fiquei tão desconfortável que se dormi vivi o pior pesadelo de minha vida. -- Eu também. -- Não vejo a hora de chegarmos em casa. -- Hei, ainda temos muito a fazer aqui. -- Eu sei. Só expressei minha vontade. -- Não vai me abandonar, não é? -- Jamais. Pandora acertara em cheio ao acreditar que a presença deles logo seria do conhecimento de sua família. Antes mesmo de sairmos para procurar uma maneira de chegar ao local onde seus irmãos moravam, um deles veio buscar-nos. -- Olá, irmã! -- Tim! O entusiasmo de Pandora causou-me certa estranheza. Não imaginava que podia sentir carinho por algum de seus irmãos. Ao perceber minha expressão de pasmo, adiantou-me: -- Este é meu irmão caçula. Quando deixei a casa de meus pais ele ainda era muito novo para entender tudo que se passou. -- Ah! Bela escolha seus irmãos fizeram. -- Não foi escolha deles. Informou Tim. Eu é que me ofereci para vir buscá-los. -- Tim sempre me “protegeu”. -- Como poderia, era apenas uma criança. -- Mesmo assim, sua presença me livrou de muitas situações constrangedoras. -- Mas não de todas. -- Tudo bem, isto é passado. -- Ele é seu namorado? -- Não. Hades é um amigo. -- Somos como irmãos. -- Se aceitam um conselho, é melhor que digam que são namorados. -- Algum motivo especial? Perguntei. -- Acreditem, será melhor assim.

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Aceitamos o conselho de Tim. Ao chegarmos a propriedade onde a família de Pandora morava, nos apresentamos como namorados. -- Sejam bem vindos. Saudou-nos Rogério, o irmão mais velho. -- Obrigada, não nos demoraremos mais que o necessário para que algumas arestas sejam aparadas. -- Se foi por este motivo, não precisava se dar a tanto trabalho. Grunhiu José, o irmão do meio. -- Onde está o pai? Perguntou Pandora. -- No campo. -- Por que nenhum de vocês foi ajudá-lo? -- Ora, ora, nossa exemplar irmã vestiu-se de compaixão por nosso pai! Ironizou José. -- Não se trata disso. Apenas pensei que trabalhassem por lá. -- Quando voltamos de nossos afazeres na cidade. Informou Rogério. -- Ele sabe que eu viria? -- Sabe. -- Por que não esperou? -- Para que? Para ouvir suas acusações? José realmente deixava claro o incomodo que a presença da irmã lhe causava. -- Não vim até aqui para expressar nenhuma acusação! -- A que veio, então? -- Preciso por um fim a tudo que aconteceu. -- Como assim? Tim interveio pela primeira vez. -- Até bem pouco tempo, não queria aceitar que para me sentir livre de toda sujeira que despejaram sobre mim, era necessário perdoar-lhes a fraqueza. Mas agora compreendo que enquanto cultivar o ódio por vocês, estarei intimamente ligada a suas existências. -- O que é isso? Que papo mais estranho é esse? Indagou Rogério preenchido por uma surpresa sincera. -- Não é assunto que possa interessar a vocês. Basta que saibam que já não alimento mais o ódio ou qualquer outro sentimento em relação a vocês. -- Mas ainda é nossa irmã. Tim parecia ser o único a sentir o quanto Pandora estava sendo dura com todos. -- Nunca deixarei de ser sua irmã. Quanto aos outros, prefiro apagar de minha mente que um dia os conheci. -- Bravo, agora se julga mais que nós! José demonstrava mais rancor que ironia ao falar.

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pertenço.

-- Não sou mais ou menos, apenas escolhi o caminho ao qual

-- Por que voltou, então? -- Para romper os grilhões que nos mantinham em união. Até aquele momento não havíamos adentrado a casa, conversávamos no jardim. O pai, que pensávamos estar no eito, ouvia o diálogo sem interromper. Sabia muito bem o quão ignóbeis foram seus ataques a integridade da filha. Sem que tivesse controle sobre suas emoções, sentiu o peito arder e uma dor pungente o tocar. O grito fraco que se ouviu chamou a atenção de todos. Imediatamente corremos até o interior da casa e encontramos o pai de Pandora caído próximo a porta de entrada. -- Pai! Pai! Bradou José. -- O que ele tem? Perguntou Tim, meio choroso. -- Ele está morto! Gritou José. Aproximando-me do corpo do homem, verifiquei que seu pulso, embora fraco, ainda mantinha-se em atividade. -- Precisamos levá-lo imediatamente ao hospital! Penso que ele deve ter sofrido um infarto. -- Você é médico? Vociferou José. -- Não. Mas se querem salvar seu pai, precisam fazer o que falei. -- Ele tem razão! Interveio Rogério. Vamos para o hospital. Aquele mal súbito não estava em nossos planos. Pelo olhar de Pandora, percebi que ela sabia o motivo do pai haver sofrido o colapso. Em silêncio acompanhamos o empenho de todos em atender ao desfalecido. Tarde da noite conseguimos voltar a pensão. -- Vamos ter que ficar mais tempo que o previsto. Anunciou Pandora. -- Pretende aguardar pelo restabelecimento de seu pai? -- Não. Ele não se restabelecerá. Seu espírito já está quase que totalmente desprendido. -- Vai contar a seus irmãos? -- Não. Talvez ao Tim, aos outros não! -- Eles sofrerão um grande choque. Penso até que chegarão a lhe imputar a causa do ocorrido. -- Também sinto isso. -- Por que não partimos, então? -- Tim vai precisar de minha presença. -- Teme que os outros o destratem? -- Não sei. Só sei que sinto uma sensação muito estranha.

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-- Ficaremos até que tenha certeza de já não ser mais necessária sua presença. -- Obrigada. Não sei o que faria sem sua companhia. -- Tanto tempo juntos e quase não nos conhecemos, não é? -- O que? -- Disse que... -- Desculpe-me, entendi o que disse, mas sinceramente não estou em condições de estender um papo muito prolongado. -- Entendo. -- Quem sabe amanhã, ou depois. -- Tudo bem. Acho melhor tentarmos dormir um pouco. Amanhã será um dia corrido. -- Gostaria que nada disso estivesse acontecendo. -- Sabe que é preciso. -- Sei. Mas não sei se estou preparada para aquilo que virá. -- Lembra-se do que nos ensinou Darkness? -- Tudo tem sua hora? -- Exatamente! Caso não estivesse preparada, não estaria aqui. -- Gostaria de ter esta sua certeza. -- Confie em si mesma. -- Vou tentar. Igual a outra noite, esta também custou a passar. As acomodações inapropriadas e o estado emocional que nos dominava impedia um relaxamento. Recostado sobre o tosco leito que me servia de cama, fechei os olhos e implorei pelo auxilio das energias que Darkness tanto nos falava. Não solicitava ajuda pessoal, mas sim amparo para minha amiga. Apesar de tentar fazer se passar por forte, eu sabia que ela estava a beira de um ataque. Conhecendo os fatos inerentes a sua provação, antevia a dor que a tiranizava. Mesmo sem nada dizermos, sentimos as mesmas angústias. Enquanto rogava por auxílio, Pandora também recorria ao mesmo expediente. Dominada por dolentes suspiros, pedia aos céus por um amparo que pudesse lhe aliviar o sofrimento. Seu sono era agitado e seu corpo registrava com tremores as emoções que o dominavam. Em determinado instante pareceu-me que abandonava meu corpo e compartilhava com minha amiga o mesmo campo astral. -- Hades, o que faz aqui? -- Não sei! Estava tentando dormir quando...

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“-- Sejam uno!” Soou uma voz que embora conhecida não nos revelava quem a pronunciara. -- Quem foi este? Perguntou-me. -- Não sei. Já ouvi esta voz em algum lugar, mas não me lembro. -- Sejam uno! O que quer dizer? -- Uno. Um só! -- Como assim? -- Compartilhar as energias. -- Darkness? -- Sim. Lembra-se. Ele nos falou a respeito. -- Como pode saber o que enfrentamos mesmo estando tão distante? -- Não sei, mas seja como for, precisamos ser uno. -- Como? -- O círculo! -- Estamos só nós dois! -- Tudo bem. Estenda sua mão. -- Assim? -- Isto. Apesar de sermos apenas dois, a imposição das mãos irradiava energias múltiplas. Nossos corpos foram tomados por vibrações tão fortes que o sentido do eu se apagou. Estávamos vivendo uma transmutação astral. Ao recobrarmos aquilo que chamávamos de razão ou consciência, percebemos um mundo diverso do qual estávamos acostumados. Já não éramos mais homem e mulher, corpo físico ou indivíduos. Apenas nossas energias se manifestavam. -- Onde estamos! A voz de Pandora ecoou por toda abobada que nos cobria. -- O que foi isso? A voz de Pandora voltou a ecoar pelo ambiente. -- Não sei onde estamos, mas sinto que fazemos parte de algo gigantesco. Sussurrei em seu ouvido. “-- Não precisa temer o dom da palavra!” Uma voz firme mas serena soou dentro de nós. -- Quem é? Perguntei. “-- Somos o nós! A unidade!” -- Não entendemos? Falou Pandora. “-- Fazemos parte da mente coletiva. O eu é um conceito que inexiste nesta dimensão!”

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-- Por que viemos até aqui? Voltei a perguntar. “-- A hora é chegada!” -- Hora para que? Pandora parecia assombrada. “-- A hora de despertarem!” Nem mesmo o mais psicodélico dos pesadelos seria capaz de retratar as nuances coloridas que nos cercavam. Não possuindo corpos, sentíamos e registrávamos cada alteração que se processava a nosso redor. Pela primeira vez vivíamos a experiência de sermos uno. Sem pronunciar mais nenhuma palavra, fomos sendo conduzidos pelas energias que fluíam pela dimensão. Sonhos, medos, anseios, receios, angústias, tormentos... emoções. Tudo era experimentado com uma intensidade tão forte que os conceitos terrenos evaporaram-se. Ali, nenhuma lei física se aplicava. A partir de nossa união ao uno, perdemos qualquer referencial que pudesse nos ligar ao mundo material. Assim, não fazíamos a menor idéia de quanto tempo já nos encontrávamos naquele local, quando sentimos o elo se romper. Retornávamos. Ao amanhecer nos sentimos tão descansados que nos surpreendemos. Como poderíamos ter relaxado num ambiente como aquele? Olhos esbugalhados, nos fitamos como se a tentar entender o que havia se passado. Sem nada dizer, deixamos o local e fomos para o hospital. A recepção não foi nada agradável. O desfecho da ocorrência do dia anterior havia sido o esperado. O pai de Pandora falecera. -- O que faz aqui? Rosnou José entre lágrimas. -- O mesmo que você! -- Mentirosa! Veio saborear seu triunfo! -- Não há triunfo algum em constatar o desenlace de alguém. -- Alguém! Exasperou-se José. É nosso pai quem está sendo autopsiado! -- Creio ser melhor irmos até lá fora para conversarmos. Interveio Rogério. -- Também acho. Concordou Pandora. -- Isto mesmo, vão seus traidores! Sem mais esperar saímos. Tim, que não nutria qualquer simpatia pelo irmão, nos acompanhou. Procuramos por um local tranqüilo onde pudéssemos conversar em paz. -- Aqui teremos mais privacidade. Indicou Rogério ao chegarmos a uma sala localizada próxima a capela do hospital. -- Talvez não seja necessário prolongarmos nossa estada aqui. -- Não sei o motivo, mas sinto que precisamos conversar.

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-- Como assim? -- Hoje pela manhã, mesmo não estando dormindo, senti como se estivesse deixando meu corpo. Confesso que isto me deixou muito assustado, pensei que morria. Apenas a presença de uma moça muito simpática foi que me acalmou. -- Sabe de quem se trata? -- Não. Além do mais, tudo não passou de alguns segundos. Ela olhou-me fixamente, porém com doçura, e falou: “-- Converse com sua irmã!” -- O que tem para nos contar? Manifestou-se Tim. -- Posso revelar-lhes o que me aconteceu ontem, só não tenho certeza de que irão entender. -- O assunto tem a ver com papai? Indagou Tim. -- De certo modo sim. De um modo mais amplo, tem a ver com todos nós. -- Então nos conte. Solicitou Rogério. Resumidamente Pandora relatou os fatos pelos quais havia passado. A reação dos irmãos era, como ela previra, de espanto. Suas palavras soavam estranhas a eles. Estavam tão empedernidos em suas tarefas corriqueiras que não manifestavam o menor interesse por assuntos mais etéreos. -- Nossa! Foi o máximo que Tim conseguiu expressar. -- Desculpe-me, mas sem querer ofendê-la, não dou crédito algum a seu relato. -- Não me ofende com sua recusa em aceitar os fatos. Isto só mostra o quanto ainda precisa evoluir. -- Este negócio todo soa como uma fantasia maluca. -- Mas não é! Tudo isso é a pura verdade. -- Energias? -- Sim. No final é o que realmente somos. Entes constituídos de energia. -- Bem, a mim, o meu corpo parece sólido o bastante para contrariá-la. -- Isto porque nos encontramos aqui, neste mundo. Mas você mesmo sentiu o toque do outro mundo. Não lhe pareceu estranha a experiência que teve? -- É. Muito estranha! -- Então? Isto não o leva a pensar? -- Até que quando recuperei a razão, tentei encontrar uma resposta ou explicação razoável para tudo, mas depois decidi que mais tarde procuro o reverendo e ele há de me explicar tudo.

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-- Prefere caminhar com as pernas de outros. É típico das pessoas que estão em seu grau de maturidade. -- Também não consigo atinar o sentido de suas palavras, mas sei que diz a verdade. Gostaria de poder compreendê-la. Falou Tim. -- Podemos ficar mais um tempo conversando. -- Não. Eu tenho que ir cuidar dos assuntos relativos ao enterro. Informou Rogério. -- Posso ficar? Pediu Tim. -- Está bem. Quando tudo estiver resolvido venho avisá-los. Com a saída de Rogério, o ambiente ficou menos carregado. Embora não houvéssemos registrado qualquer indício de animosidade da parte dele, havia o antecedente que o incriminava pelo erro cometido. -- O que gostaria de saber? Pandora indagou ao irmão. -- Como funciona isso que nos contou? -- Bem, como exatamente não sei, mas quando a hora chega, todos partilhamos de suas manifestações. -- Chegou a ver mamãe? -- Ver, assim como estávamos acostumados a vê-la quando ela ainda se encontrava entre nós, não. Mas pude sentir a energia que o espírito dela gera. Para ser mais exata, senti a energia de todos vocês. -- Mas ainda não morremos! Estranhou Tim. -- Eu sei. Pandora não conseguiu controlar um leve sorriso. Mas mesmo ainda possuindo nossos corpos físicos vivos, nossos espíritos geram energia e a espalham pela criação. -- Isto tudo parece muito complicado. -- Apenas porque ainda é muito novo. -- Mas se não a tenho por perto, como vou ficar sabendo sobre isto? Pandora sentiu que o irmão desejava sinceramente saber mais sobre o que falavam. Esta certeza a fez tomar uma decisão que, a princípio, me deixou temeroso. -- Venha comigo para minha cidade. -- O que? Sem atinar com o convite, acompanhei Tim no espanto. -- Isto mesmo. Venha comigo! -- Mas e os nossos irmãos? -- Deixe que desta parte eu cuido. Se disser que aceita, tento convencê-los. -- Talvez não concordem. -- Isto só saberemos se os consultarmos. -- O que farei em sua cidade?

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-- O mesmo que aqui. Vai estudar e, quando for mais velho, utilizar o que aprendeu para ganhar a vida. -- Será que eles deixam? Os olhos de Tim encheram-se de brilho ao sentir a possibilidade de desfrutar da companhia da irmã. Mais que isto, lhe agradou a possibilidade de vir a conquistar um futuro muito diferente daquele que estava fadado a ter se permanecesse ali. -- Espere que os assuntos relativos ao falecimento do pai tenham sido resolvidos e falo com eles. -- Rogério não colocará empecilho, mas José... -- José pode ser turrão, mas não é nenhum cabeça dura. Com certeza compreenderá que será melhor você nos acompanhar. -- Mesmo não gostando muito de você? -- José é muito imaturo. Em seu estado atual, só é capaz de amar a si mesmo. Ainda chegará a encontrar sua verdade, mas não nesta ocasião. -- Caso seu irmão se mostre muito teimoso, intervi no diálogo, podemos pedir ajuda a um conhecido. -- Hades! Ralhou Pandora. Acredita mesmo que caso precisássemos do auxilio dele, ele teria se ausentado? -- Sobre quem estão falando? -- Um amigo. -- Sua irmã tem razão. Seus irmãos acabarão concordando com nossos desejos. -- Vamos deixar este assunto para mais tarde. Rogério está voltando. Em respeito ao momento, deixamos o assunto para mais tarde. Se bem que intimamente duvidava da lucidez de Pandora ao propor aquela mudança. Criar um irmão, mesmo este já não sendo mais muito novo, traria complicações que talvez ela não estivesse a altura de assumir. Após aguardarmos por três dias, fomos para a propriedade dor irmãos de Pandora. O clima pareceu-nos mais intranqüilo que antes. Nuvens de rancor pairavam sobre os semblantes dos irmãos. -- Podemos conversar? Perguntou Pandora. -- O que quer saber? Que parte lhe cabe na partilha? Disparou José. -- Não me interessa o legado do pai. Quero conversar a respeito de Tim. -- O que tem aquele guri? Rosnou José. -- Estava pensando em levá-lo comigo. -- O que? Ficou maluca? José se mostrava transtornado.

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-- Por que? Foi a pergunta lacônica de Rogério. -- Penso que assim ele poderá ter a oportunidade que falta se permanecer aqui. -- Ele não está habituado a rotina da cidade grande. -- Não tem problema. Estarei sempre com ele. -- O que pensa a respeito? Rogério foi direto ao inquirir o irmão. -- Se não se opuserem, gostaria de ir. -- Temos que avaliar bem a situação. Precisamos de uns dias para decidir. Concluiu Rogério. -- Estarei esperando. Depois de nossa partida, os irmãos começaram uma discussão ferrenha. O que se passou só nos chegou ao conhecimento dias mais tarde. -- Não está pensando em atender ao desvario desta maluca, está? -- Tim. -- O que é? -- Pode nos deixar a sós! -- Está bem. Mesmo contrariado, Tim afastou-se. Não tinha o habito de questionar as determinações dos mais velhos. Apesar do ocorrido com Pandora, a educação que recebiam era das mais tradicionais. -- Então? -- Talvez você não esteja sendo prático. -- Como assim? -- Paola está nos prestando uma ajuda inesperada. -- Como pode proferir tamanha asneira? -- Pense bem, Tim é um menino delicado. Desde que mamãe morreu ele tem se tornado mais e mais fechado. Logo estaremos casados e não teremos tempo ou paciência para cuidar dele. -- O que tem isso haver? -- Se Paola se ofereceu para assumir a guarda dele, melhor para nós. Não vamos ter que nos preocupar com assuntos enfadonhos. Além de que teremos todo o tempo livre para aventuras e algo mais. -- Hum, não sei não! -- Hoje está aí todo preocupado, mas é quando arrumar uma namorada? Será capaz de cancelar um encontro com ela para ficar tomando conta do Tim? -- Mas não podemos abandoná-lo! -- Não o estamos abandonando, ele é tão irmão dela quanto nosso.

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-- Papai não iria gostar. -- Papai nunca se preocupou com nós. Ele só tinha tempo para os assuntos relacionados a terra. -- Que era de onde nos sustentava! -- Não estou recriminando a atitude de papai, apenas fiz uma constatação. -- Não sei se poderia conviver com a idéia de ter faltado quando nosso irmão mais precisava. -- Tudo bem. Vou até a cidade informar nossa irmã que Tim ficará. -- Espere! Não disse que ele não podia ir. -- Então decida-se de uma vez por todas! -- Espere até amanhã. Vou pensar um pouco mais. A atitude do irmão deixava claro o quanto ele era mesquinho. No fundo José não se importava nem um pouco com o bem estar de Tim. O que não queria era admitir que preferia vê-lo longe a ter que arcar com a responsabilidade de criá-lo. Na manhã seguinte apresentou-se todo indignado ao irmão: -- Andei pensando muito durante a noite. -- E então? -- Ainda contínuo não achando certo deixar Tim ir com aquela doida. -- Demorou todo este tempo para me dar uma resposta que já era conhecida? -- Ainda não terminei. -- Pois então faça-o! -- Sei que Tim sentirá nossa falta mas, embora contrariando minha própria vontade, penso que seja melhor ele ir. -- Tanta frescura para isso? -- Não pense que estou feliz por permitir esta sandice. Sei que ainda vou me arrepender da decisão que tomei. -- Este é um assunto que só o tempo vai nos poder revelar. Agora preciso cuidar para que tudo esteja pronto quando nossa irmã decidir partir. Enquanto Rogério arrumava os poucos pertences de Tim, este entrou e ficou observando o irmão em silêncio. -- O que está olhando? -- Nada! -- Qual é, pensa que nasci ontem? Conheço você o suficiente para saber que tem algo pegando. Desembucha logo! -- Aquilo tudo que falou para o Zé, é verdade?

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-- Andou ouvindo nossa conversa? -- Não queria, mas já que o assunto era eu... -- Muito bem seu pirralho, não que esteja de acordo com sua atitude, mas já que ouviu tudo, tem o direito de saber. -- Pode falar, não ficarei com raiva sabendo que sou um peso para vocês. -- Não é este o motivo que me leva a decidir por deixá-lo ir. -- O que é, então? -- Não no sentido que usei ao falar com nosso irmão, mas sim, chegaria o dia em que sua presença poderia ser incômoda. -- Eu não disse! -- Espere, não tire conclusões apressadas. Eu gosto muito de você. Mas um dia terei uma esposa e, bem, talvez não seja um exemplo de mulher e isto pode trazer algumas complicações. -- Gosta tanto de mim quanto de nossa irmã? -- O que está querendo dizer? -- Era muito novo quando tudo aconteceu, mas sei muito bem o que fizeram. -- Sente-se! Ordenou Rogério. -- Não venha querendo me... -- Sente-se! Quando a conversa chegou neste ponto estávamos para abrir a porta. Interrompi os passos de Pandora afirmando que deveríamos ouvir antes de agir. -- Não faz idéia do quanto me custa ter que tocar neste assunto. -- Não menos que custa a nossa irmã viver com o resultado de seus erros. -- Desde o dia em que tudo aconteceu, e digo isso porque só participei uma única vez, vivo atormentado pela dor. Se pudesse voltar no tempo... -- Mas não pode! -- Eu sei! A cada amanhecer amaldiçôo aqueles instantes de estupidez. Longe de me satisfazer com o que fizemos, enchi-me de asco e sofrimento. Muitas noites sou atormentado pelo espírito de nossa irmã. Vejo-o vagando sem destino me acusando de ter lhe impedido a chance de se desenvolver. Acredito que nunca mais poderei tocar uma mulher sem que o peso da vergonha me abata. -- Não sabia que havia se arrependido. -- Se pudesse daria minha vida para que nada daquilo tivesse acontecido.

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-- Isto não será necessário! Anunciou Pandora enquanto entrávamos. Sinto que seu arrependimento é sincero. O abraço que trocaram foi coroado pelas lágrimas cristalinas que lhes banhavam os rostos. Por longo tempo permaneceram abraçados. Um sentindo a energia que emanava do outro. Um sendo o archote que o outro tanto necessitava. Um tornando-se o sustentáculo dos percalços do outro. -- Eu... eu... eu... sinto muito, irmãzinha! Sussurrou Rogério. -- Tudo bem! O que foi, foi. Não alimente esta angústia. Sou feliz com o que tenho vivido. Se torne um bom marido, um companheiro para sua esposa, um ótimo pai pra seus filhos. -- Não sei se poderei estar com outra mulher. -- Poderá e estará. Não permita que um erro, do qual se arrependeu com sinceridade, mate os anseios bons que tem adormecido em seu âmago. -- Não faz idéia do quão bom está sendo poder viver este momento. -- Engana-se. Também estava precisando deste momento. É sempre bom poder mostrar que não alimentamos o rancor, melhor ainda se pudermos demonstrar que cultivamos o perdão. -- Não sei de onde tira forças para tanto, mas agradeço, mesmo sem conhecer a fonte, de todo meu coração. -- Um dia terá acesso a esta fonte. Até lá, cuide para que o alimento que emana dela, não lhe seja retirado. -- Tim! -- O que foi? Tim ficara emocionado ao testemunhar aqueles fatos. Nunca imaginara que a irmã pudesse ser tão magnânima. -- Prometa-me que não irá causar confusão a nossa irmã! -- É claro que prometo! -- Sentirei muito sua falta, seu moleque! -- Eu também! Tim juntou-se aos irmãos no abraço que trocavam. Silenciosamente fiquei observando o congraçamento. Sem perceber quando, senti que energias multicores fluíam de nossos corpos. Por momentos a experiência noturna voltou a se manifestar. Naquele instante éramos uno, o eu deixava de existir. Quebrando a magia que nos envolvia, o brado revoltado de José nos pegou desprevenidos. Tão intenso era o elo que se formara que a manifestação de José pareceu-nos como uma lâmina a fender nossos corações. -- Mas que tocante! Jamais assisti a cena tão patética!

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-- Se não tem vontade de comungar de nossa fraternidade, mantenha-se afastado. Falou Rogério. -- É muito comovente esta despedida. Papai iria adorar! José se mostrava irônico. -- Pare com isto! Exigiu Tim. -- Ora, ora, nosso gatinho está pensando que já é um leão. -- Deixe nosso irmão fora disso! Se deseja despejar sua revolta que seja sobre nós! Advertiu Rogério. -- Vocês me dão asco! -- Melhor seria se aproveitasse o tempo que lhe foi concedido e procurasse modificar essa sua postura radical. -- Ah, sei! Agora vão querer me dar lição de moral! -- Não mesmo! Só pedimos que não atrapalhe-nos. Se desejar pode participar de nossa confraternização, mas se não deseja compactuar com ela, não se manifeste em contrário. -- Por mim podem morrer de tanto afeto. Suas hienas! Assim como chegou, José saiu. O rancor que dominava seu íntimo era tão forte que mesmo ele já não estando presente, podíamos sentir-lhe a manifestação. O restante do dia foi empregado nos preparativos para partirmos. Tim não cabia em si de contentamento e, embora ainda um pouco cismado, também me deixei contagiar pelo entusiasmo do pequeno. Nosso retorno foi recebido com festa. O tempo que havíamos permanecido fora extrapolou as expectativas de todos, inclusive a nossa. Nem mesmo a presença de Tim pareceu causar algum espanto. Somente quando os festejos cessaram foi que se ocuparam com esse detalhe. -- Como pretende cuidar do menino? Indagou Fobos. -- Precisarei da ajuda de todos. -- É óbvio que colaboraremos, mas precisa estabelecer um plano. advertiu Lilith. -- Bem, a primeira providência a ser tomada é encontrar uma escola. Manifestei-me. -- Quanto a isso estamos tranqüilos. Existem três excelentes na região. Informou Fobos. -- Minha preocupação tem a ver com a parte financeira. Lembrou Lilith. -- Não tem problema. Vou arranjar um emprego. Anunciou Pandora. -- É o mais acertado, mas emprego não se consegue da noite para o dia. Admoestou Set. -- Posso tentar conseguir algo com meu pai. Ofereceu-se Eve.

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-- Por favor, seja o que for, farei com prazer. Nenhum de nós duvidava da competência e do empenho de Pandora em proporcionar o melhor ao irmão, mas sabíamos que a situação não estava fácil para ninguém. Se ao menos Darkness estivesse presente... A semana atropelou-nos e seu final começou a originar algumas nuvens de pessimismo. Deimos e Set eram os mais apreensivos. A ajuda que Eve conseguira foi razoável, mas não suficiente. Começávamos a nos preocupar em como resolveríamos o problema quando Antenor hasteou a bandeira da paz. -- A guria poderia dar expediente aqui. Sem entender bem a intenção do gaúcho, fitei-o com assombro. -- Quer dizer, se ela não se importar em atender os clientes. Não poderei pagar muito, mas penso que seja melhor que nada. -- Está oferecendo uma vaga de que, para ela? -- Garçonete, oras, o que mais poderia ser? -- Vou falar com ela. Se ela aceitar trago-a até aqui. Sai do club e fui para a casa de Fobos. Em momento algum deixei transparecer meu entusiasmo. Não queria que Antenor se sentisse dono da situação. Quando acabei de expor a proposta do gaúcho, aguardamos que Pandora se manifestasse. -- Então? Perguntou Lilith não conseguindo mais agüentar a demora. -- Tá. Acho que pode ser uma boa. -- É isso aí garota! Se não é o paraíso, pelo menos é um começo. Rejubilou Fobos. -- Ele falou quantas horas terei que trabalhar? -- Não. Fiquei de irmos até lá para conversar com ele. Mas não preocupe, ele não é de explorar ninguém. -- Não percamos mais tempo, então. Vamos até lá, enfrentar a fera. Chegamos ao club como se fossemos um bando de adolescentes. Mais falávamos que ouvíamos. Antenor ficou meio doido com tanta gente buzinando em seus ouvidos. Chegou um momento em que não agüentou: -- Chega! Se continuar esta zona toda, como posso pensar em empregar a guria? -- Ele está certo. Concordou Fobos. Vamos dar um tempo. -- Melhor assim. Então, guria, está a fim de trabalhar aqui? -- Bem, não sei nem mesmo o horário de trabalho. -- Digamos das oito as quatro, que tal?

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-- Parece muito bom. -- Assim sobra tempo para levar seu irmão a escola e ainda tem algumas horas para ficarem juntos quando terminar o serviço. -- É. Parece mesmo muito bom. -- Estão esquecendo um detalhe, apenas. Lembrou Set. Quem pega o moleque na saída da escola e com quem ele fica? -- Pode deixar que pegar eu pego. Ofereceu-se Lilith. -- Se o danado não for de fazer arte, pode ficar por aqui. Falou Antenor. -- Mesmo! Pandora sentiu-se mais que satisfeita. -- Mas nada de ficar zanzando pelo club. Vai ficar lá nos fundos. Apesar da tentativa de se fazer passar por rabugento, Antenor não tinha nada disso. A maior prova estava em minha presença ali. Sem usar do expediente afetado de dizer que ele era como um pai, posso afirmar que ele era, antes de tudo, um ser humano em sua essência mais nobre. A noite, deitado sobre o leito que me cabia, fiquei a observar o contorno semi apagado da lua. Olhava, olhava e sentia que minha vista ia se apagando até não registrar mais nada do quadro que decorava a noite. -- Oi. Saudou-me uma voz muito conhecida. -- Quem? -- Demorou a chegar! Prosseguiu a voz. -- Onde? -- Já esteve aqui uma outra vez. Acompanhado, é bem verdade, mas ainda assim o lugar é o mesmo. -- Eve? Balbuciei. -- Por que a surpresa? -- Estava em meu quarto... -- Ainda está. Apenas sua mente se encontra aqui. -- O que fazemos aqui? -- Lembra-se de quando se fez uno com a criação? -- Sim. -- Suas dúvidas ficaram cristalizadas em sua aura energética. É hora de descerrar as vendas e lançar luz em seu caminho. -- Pensei que seria Darkness a fazê-lo. -- Importa tanto assim quem lhe ilumine a jornada? -- Não. Apenas surpreende-me ao se colocar em tal posição. -- Sente-se diminuído? -- Em absoluto, apenas surpreso. -- Ótimo! Venha, temos um longo percurso a vencer. -- Aonde vamos?

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-- Para casa! -- Sua casa? -- Não! Nossa casa! -- Mas... -- Feche os olhos. E siga-me! Aos poucos as sensações físicas foram desaparecendo e logo a vibração mais forte do espírito se manifestou em mim. Novamente o eu morria para dar lugar ao uno. As múltiplas cores que cintilavam inspiravam-me emoções sublimes. “-- Sou a essência, o âmago, o fogo!” De onde vinham aquelas palavras? Quem as havia pronunciado? “-- Sou a essência, o âmago, o fogo!” Repetiu-se a voz. Minha cabeça, melhor dizer minha mente, rodopiava. Apesar de recordar-me claramente de tudo que vivenciara naquele local, nada ocorria como antes. Era como se estivesse em um ambiente completamente estranho e novo. “-- Assim é!” A voz que ecoava parecia antever minhas dúvidas. “-- Olhai e escutai!” Aquilo soou mais como advertência que como um convite. “-- Olhai e escutai!” Até que minha mente conseguisse assimilar os fenômenos que se sucediam, senti-me um cego a tatear por um mundo totalmente adverso. Mas, para meu próprio assombro, não sentia qualquer manifestação de receio ou dúvida. “-- Venha!” Desta vez a voz era de Eve. Como seguir uma voz se nem mesmo corpo possuía? Imediato a meu questionamento, veio a resposta em forma de pergunta: “-- Como ouvir se não possui um corpo?” Sim! Como podia estar ouvindo e vendo aquela profusão de cores? Como se não tinha um corpo? “-- O físico é para o físico!” A voz que soava como um trovão me enchia de anseio pelo desvendar do grande mistério que se processava ante minha existência. “-- Abra os olhos para a essência da vida!” Mentalmente fui avançando, avançando, avançando até que o desconhecido se revelou. O vazio preenchia-se de vida e o mistério já não existia mais. A unidade absorvia o eu e o eu absorvia a unidade. Novamente uno.

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-- Seja bem vindo Augustus! -- Onde estou? -- Em casa! -- É você Eve? -- Eva! -- Eva? -- Nossos nomes, lembra-se? -- Onde está... -- Ele não pertence a esta dimensão. -- Mas foi ele quem nos abriu os portais! -- Não! Ele foi o instrumento que serviu de farol. -- Nunca pertencerá a esta dimensão? -- Não! -- Por que? -- Por que assim é! -- Mas não é justo! -- O que sabe sobre a justiça? -- Ele nos despertou! -- Ele tem suas próprias dívidas a saldar! -- Não me parece justo! -- Ele está ciente de tudo. Nada do que acontece é desconhecido por ele. -- E ainda assim ele segue auxiliando? -- Ele não tem escolha. -- Está dizendo que se pudesse, ele nos voltaria as costas? -- Não! Apenas disse que ele não tem escolha. Quando teve não soube o que fazer com ela e agora colhe os efeitos de seu errar. -- Até quando? -- Até que o resgate seja feito. -- Mas... -- Não o trouxemos até aqui para falarmos dele. Vamos tratar do assunto que o trouxe aqui. -- Eva! -- Não se sinta indignado, ele sabe o que se passa. -- Não se sente mal por isto? -- Não. Ele deseja que prossigamos. -- Mesmo sem poder desfrutar de tudo isso? -- O que lhe parece tudo isso? -- O paraíso! -- Engana-se. Isso não é nem o mais pálido dos reflexos do paraíso!

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-- Mas então? -- Então tem muito a aprender. -- O sol já se pôs! Anunciou uma outra voz. -- Sol? Estranhei, uma vez que não sentia ou via o astro solar. -- O sol a que ele se refere não é aquela estrela distante. Venha, olhe e escute, depois poderá concluir o certo. Eu, que andava na senda da dor e da morte, abri meu âmago e descerrei a venda que mantinha selando meus olhos. Eu, que insisti em travar minha identidade ocultando-a sob o manto covarde da timidez, despi o eu e vesti o nós. Eu, que vagava perdido no silêncio de meu egoísmo, libertei meu ser e ouvi o eco proveniente dos séculos. Eu, que me sentia um nada, senti meu ser tocar a amplidão da unidade e congraçar sua eternidade. Eu, morrer do eu, nós, triunfar do nós, uno! Minha cabeça estava dominada por um redemoinho incontrolável. Sabia que já não me encontrava mais na dimensão do uno, mas mesmo assim não conseguia atinar as idéias. Era como se ainda vivesse a amplidão do cosmo. -- Hades! Levante-se! O ar autoritário de Antenor conseguiu ligar-me outra vez ao mundo material. -- O que foi? -- Está querendo perder o emprego? -- Já é tão tarde, assim? -- Mais que o adequado. Terá que correr para conseguir chegar a tempo. -- Não sei o que aconteceu, estava me sentindo estranho. -- Não acha que estas reuniões estão se tornando muito arriscadas? -- Não temos uma reunião há semanas. -- Onde esteve ontem, então? -- Ontem? Ontem não sai. Chegamos muito cansados, lembrase? -- Chegaram? -- Sim. Pandora, Tim e eu. -- Isto foi há duas semanas. -- Não foi ontem? -- Rapaz, o que está havendo? Não andou se metendo com aquelas porcarias de novo, não é? -- Não! Sabe que não. -- Sei. Mas se não consegue se lembrar das últimas duas semanas...

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-- Não sei o que se passa, ainda. Mas sei de alguém que pode me ajudar. Talvez chegue um pouco tarde, hoje. O vácuo que se apoderara de minha memória assustou-me. Por que não era capaz de lembrar-me das últimas duas semanas? Onde e o que andara fazendo? E meu trabalho? Teria faltado tanto tempo? Ao chegar no escritório ninguém demonstrou ter sentido minha falta. Nenhum vestígio de que me ausentara por quinze dias. O que estava acontecendo? Começava a imaginar que enlouquecera quando uma das moças, que trabalhavam na empresa, me abordou: -- Onde estão os documentos da licitação? -- Que documentos? -- Aqueles que lhe entreguei ontem a tarde. -- Ontem? Minha surpresa deve tê-la atingido muito mais forte que a mim mesmo. Sem nada mais falar, se afastou. Somente quando me sentei a mesa, foi que soube do que ela falava. Uma pasta vermelha se encontrava entre os outros papéis. Sem lembrar de nada, abri-a e passei um rápido olhar por seu conteúdo. Tudo estava em ordem. A data aposta a minha assinatura deixava claro que havia trabalhado normalmente no dia anterior. Levante-me e levei a pasta para a moça que a solicitara. O dia todo me surpreendi com os fatos que foram se sucedendo. Tudo estava em ordem e eu não fazia a menor idéia de como isto era possível. Não via a hora de o expediente encerrar-se e poder ir até a casa de Eve... como pude ser tão imbecil? Em minha superficialidade, não me lembrara de entrar em contato. Sem mais demora peguei o telefone e disquei o número com urgência. -- Alô! -- Alô. Sou eu. -- O que deseja? -- Precisamos nos encontrar. -- O que houve? -- Ainda não sei. Só sei que precisamos conversar. -- Venha até minha casa. -- Não quero causar constrangimentos. -- Tudo bem. Meus pais estão mais maleáveis. -- Sendo assim... O resto do dia se arrastou numa lentidão sufocante. Minha ansiedade corria muito mais rápido que os ponteiros do relógio. Cheguei a ofegar. Em momento algum me lembrei de exercitar a mentalização das

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energias. Fiquei tão envolto pela dúvida que me esquecei completamente de tudo o mais. -- Nossa, você parece possuído por um demônio tresloucado! Zombou Eve ao me ver chegar todo afoito. -- Estou muito confuso. -- O que está acontecendo? Em poucas palavras relatei o que se passava. Eve não me interrompeu em momento algum. Com passividade me ouviu e apenas, vez ou outra, suspirava um pouco mais intensamente. Ao concluir meu relato, fitei-a e inquiri: -- Então? -- Então, tudo bem. -- Como assim, tudo bem? -- Você está sofrendo os efeitos de sua última viajem. -- Heim? -- Nosso contato com o uno. -- Sei. Lembro-me, mesmo que vagamente, algo sobre isto. Mas e as panes em minha mente? -- É um efeito normal. Você recebeu muitas informações do plano energético. Precisa de algum tempo para ordenar tudo em sua mente racional. Este processo causa algumas panes mentais. Nada que impeça de levar sua vida normalmente. -- Mas não consigo me lembrar de quase nada que fiz nestas duas semanas! -- E provavelmente não se lembrará desta conversa. Isto acontece. -- Fala isso com esta calma toda! -- Por que o espanto? -- Minha vida está um caos! -- Não! Sua mente pode estar confusa, um pouco sobrecarregada, mas sua vida está perfeitamente normal. -- As vezes fico atordoado com aquilo que as pessoas exigem de mim. -- Em primeiro lugar elas não exigem nada de você, apenas dão continuidade ao ritmo de suas vidas. Em segundo lugar mesmo atordoado acaba constatando que tudo está no seu devido lugar. -- É, mas antes fico com cara de bobo! A reação de Eve me pegou de surpresa. Sem nada dizer, ela deixou que sonora gargalhada enchesse o ambiente. Sua atitude foi tão espontânea que não tive como zangar-me. Sem poder controlar, deixei me

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contagiar pela reação dela. Em poucos minutos, estávamos, os dois, entregues a um gargalhar sem controle. -- Por que ri? Perguntei ao voltar a me controlar. -- Você realmente fez uma cara de bobo. -- Zomba por que não é com você. -- Não. Não estou zombando de você. Só deixo o riso extravasar minha emoção porque sei que é meu amigo. -- Amigos também se zangam. -- Não. Amigos não se zangam pois sabem compreender as reações dos amigos. Eles não se deixam levar pela aparência superficial de suas ações. Analisam e filtram os fatos tentando encontrar uma explicação que lhe mostre o motivo existente por trás de tudo. -- Agora você viajou! -- Ah, Hades, quanto tempo levará até tudo que recebeu possa aflorar em sua mente? -- Por que não me revela parte do que aprendi? Talvez assim possa dar continuidade ao processo. -- Não. O processo já está em andamento. Assim como não deve querer apressá-lo, deve manter-se alerta para que não o retarde. -- Mas como? Nem mesmo sei que atitude é esperada de mim! -- Tudo em sua hora, Hades! -- Ah, você me enerva com esta postura de Darkness! -- Também ele o irritaria? -- Ele? Ele se foi há tanto tempo... -- Ah, então é isto! -- Não! É claro que sinto muito a falta que ele faz, mas não é por isto. -- E por que é então? -- Por que o que? -- Por que se deixa levar pela confusão? Não percebe que ela só dificulta seu despertar? -- Mas como evitá-la? -- Apague o eu e deixe o uno se manifestar. -- Até parece que é fácil! -- Mais do que possa imaginar. -- Então me mostre como! Implorei. Meu rogo tocou o íntimo de Eve. Suavemente ela se aproximou, tocou minha fronte e falou: -- Abra-se para a unidade. Mantenha sua mente em contato com o uno. Sinta as vibrações que emanam do éter. Elas lhe apontarão o caminho.

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Nada mais foi dito. Abraçamo-nos intensamente e nada mais. Deixei a casa de Eve com a cabeça tão envolta pelo turbilhão quanto quando havia chegado. Sentia que minha testa vibrava devido ao impacto de tantas perguntas que povoavam meu cérebro. Chegando ao club fui direto para meu quarto. Antenor estava acostumado a meu jeito recluso e não se importava que eu me enclausurasse. Naquela noite foi diferente. Assim que cheguei, ele veio até mim. -- O que foi? -- Nada. -- Parece confuso. -- Está dando para notar? -- Nunca o havia visto tão para baixo. -- Só estou meio atrapalhado. -- Não quer conversar? -- O que poderia... Sim. O que alguém de fora poderia dizer a respeito de tudo que vinha experimentando? De repente aquela possibilidade deixou de ser tão absurda e decidi me abrir com Antenor. -- Tem tempo para ouvir-me? -- Todo tempo que necessitar. -- A história é bem longa. -- A noite também. -- Neste caso, vamos para um local mais confortável. -- Hum, está querendo abusar, não é seu malandro! -- Ora, como pensa que posso contar-lhe toda história estando mal acomodado? Descontraídos, dirigimo-nos até um local mais adequado. Antenor iria ouvir uma parte de minha vida que ele nem imaginava eu estivesse vivendo. O ar maroto que ele estava habituado a contemplar escondia uma alma em constante conflito. Achando que o surpreenderia, iniciei meu relato. Diferentemente de Eve, ele me interrompia com freqüência. As vezes chegava a me fazer perder o ponto. Mas logo depois ajudava-me a encontrá-lo e postava silente a ouvir-me. Como havia previsto, o relato demorou horas para ser completado. A frágil luz da manhã descortinava seu espectro quando me dei por satisfeito. É bem verdade que o relato não estava por inteiro. Algumas lacunas haviam se interposto durante minha fala, mas o que fazer se minha memória andava me traindo? Ainda mais com tanto aparte a interromper-me?

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-- Cara, se esta não é a história mais fantástica que já ouvi, que eu seja fulminado! -- Pode ser, quer dizer, é mesmo fantástica, mas é a pura verdade. -- Então quer dizer que o sinistro, como seu amigo adora falar, é o capeta! -- Não! Darkness é um ser diferente de nós, mas não é nenhum demônio. -- Mas pelo que me contou... -- Concluiu errado. Darkness é... é... é... inexplicável! -- Uma ova! Para mim isso tudo é assunto do demo! -- Não deixe Eve ouvi-lo falar assim. -- Por que? -- Eles estão... estão... -- Não! A pequena está enamorada dele? -- É. Mas o que tem isto? -- Ela é um doce! Como pode se misturar a alguém tão suspeito? -- Darkness não é suspeito. Ele é um amigo como nenhum outro. -- Não sei não, esse negócio de aparecer e desaparecer assim de repente... -- Talvez devesse conhecê-lo melhor. -- Cruz credo! Não quero parte nenhuma com o... Você sabe o que. -- Você fica muito engraçado tentando demonstrar um medo que está longe de sentir. -- Medo, medo, não sinto, mas não quero me envolver com nada disso! -- Neste caso, não deveria ter lhe contado nada. -- Hei, também não é assim! Com este aí, não quero papo, mas quanto ao resto... -- Tudo está relacionado a ele. Não poderá ajudar-me mantendo-se alheio a figura dele. -- Quem sabe se você se afastasse de vez dele, heim? -- Impossível! Depois de feito o contato é impossível voltar. -- Mas que diabos! Isto é pior que a droga! -- Não fale assim. Darkness é libertação a droga é danação! -- Você está mesmo muito apegado a ele, não está? -- Nós todos estamos. -- O que? O grupo todo?

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estéreis. colhem!

-- Sim. -- Mas Lilith e Fobos sempre me pareceram tão equilibrados. -- Mas não eram. -- Como assim não eram? -- Darkness nos mostrou que nossas vidas eram vazias, -- Ah, sei. É agora já podem admirar-se dos frutos que

-- Ainda não. Embora estejamos progredindo, sinto que há muito a ser conquistado. -- Olha rapaz, se serve um conselho, afaste-se desta criatura infernal. -- Um dia me dará razão. Darkness é como um portal para a liberdade. Ao voltar para meu quarto sentia-me mais confuso que nunca. Conversar com Antenor não adiantou nada a não ser para certificar-me do quão preconceituoso ele era. Mas que poderia esperar de alguém que não possui o menor anseio pelo espiritual? Antenor era o arquétipo do homem moderno; prático e calculista arraigado até o último fio de cabelo aos conceitos materiais e desprovido de qualquer anelo pelo mundo espiritual. Deitei-me sem a menor perspectiva de vir a conciliar o sono. Sentia-me agitado ainda dominado pelo turbilhão de incertezas que me consumia. Já estava conformado em passar mais uma noite a ver estrelas quando batidas insistentes me tiraram de meus devaneios. -- Quem é? -- Eu, Deimos. Meio contrariado abri a porta para ele. -- Ainda bem que está aqui. Seu aspecto assustado me alarmou. O que poderia ter acontecido para que ele se mostrasse assim tão alterado? -- O que houve? -- Acho que matei um cara! -- O que? -- Não foi minha intenção, mas aconteceu. -- Conte-me tudo. Intercalando frases desconexas com pensamentos mal acabados, Deimos me relatou os acontecimentos. Estava observando a noite postado sobre a lápide do túmulo que usávamos como “altar”, quando o segurança do local apareceu: -- O que faz aqui? -- Nada.

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-- Sei. Deve ser um desses malditos profanadores de túmulos. O que procura, algum objeto valioso? -- Não é nada disso! Já disse que não fazia nada. -- Sei. Vou chamar a polícia e veremos o que ela nos diz. -- Mas por que tanto barulho por nada? Só estava apreciando a noite! -- Diga isso para os policiais quando eles chegarem. -- Não, por favor. Mesmo de forma inconsciente, Deimos utilizou o pouco que aprendera com Darkness. Empregando o vibrar enérgico da voz, alterou-a de modo tão intenso que ao pronunciar aquele rogo, o vigia assustou-se e voltando-se para Deimos soltou transtornado grito e desfaleceu. -- Depois disso, sai correndo feito louco! Deimos concluiu seu relato. -- Melhor chamar os outros. -- Não quero incomodar ninguém. -- Não seja bobo! Somos uma família. Em pouco tempo estávamos reunidos em frente ao club. Excluindo Pandora, que teve que ficar cuidando de Tim e Eve, que não pode deixar sua casa, tentávamos encontrar uma saída para o acontecido. -- Tem certeza que o homem morreu? Perguntou Set. -- Como poderia? Queria que aguardasse ele se levantar? -- Hei, vamos com calma! Advertiu Fobos. Vamos até o cemitério para tirar isto a limpo. -- Não tem outra maneira? Insistiu Deimos em sua tentativa de não voltar ao local. -- Não. Vamos logo! Aparentemente tudo estava calmo do lado de fora do cemitério. Nada de anormal parecia estar ocorrendo. Pé ante pé, fomos avançando até chegarmos ao túmulo em questão. -- Vejam! Bradou Mefisto apontando o corpo de um homem caído sobre uma das lápides. -- Vou ver se está vivo. Anunciou Fobos. Fobos aproximou-se vagarosamente do homem. Abaixou-se ao seu lado e tomou-lhe o pulso. -- Ele vive! -- Graças aos céus! Exultou Deimos. -- Está muito ferido? Perguntou Mefisto. -- Não. -- O que ele tem, então? Inquiriu Deimos. -- Deve ter sofrido alguma espécie de sincope.

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-- Como faremos para reanimá-lo? Perguntei. -- Peguem um pouco de água. Solicitou Fobos. Por cerca de meia hora ficamos tentando reanimar o vigia. Após muito esforço,logramos êxito em nossas tentativas. Antes que ele recobrasse totalmente os sentidos, encobrimos nossas cabeças com as toucas que nossos sobretudos possuíam. Assim, dificultaríamos nossa identificação. -- Quem são vocês? Balbuciou o vigia. -- Amigos. -- O que fazem aqui? -- Estamos socorrendo-o. -- Onde está aquele salteadorzinho barato? -- Não vimos ninguém quando chegamos. -- Mas que diabos vieram fazer aqui? -- Somos góticos. Gostamos de nos reunir em locais assim. -- Durante a noite? -- Especialmente durante a noite. -- Têm autorização para isto? -- Não. -- Então terão que sair. -- Talvez possamos fazer um acordo. -- Que espécie de acordo? -- Considerando que não desejamos estragar nenhum bem do cemitério e que você deve se cansar muito tendo que vigiar tudo isto sozinho, podemos lhe auxiliar nesta tarefa. O que acha? -- Hum, não sei não! -- Que mal há nisso? Só estamos a fim de compartilhar da paz deste lugar. Prometemos não danificar nada, nem retirar nada do lugar. -- Como posso saber se estão falando a verdade? -- Terá que confiar em nós. -- Se aprontam, perco meu emprego. -- Não temos a intenção de prejudicar ninguém. -- Está bem. Vou fazer um teste com vocês. Se pisarem na bola, chamo a polícia. Nunca havíamos encontrado o vigia do cemitério. Em todas oportunidades em que tínhamos ido até lá, sempre nos pareceu desprovido de qualquer segurança. Mas já que o encontramos, melhor que ele soubesse sobre nosso meio de viver. Embora causássemos uma primeira impressão muito forte, as pessoas acabavam se acostumando, afinal não éramos nenhum bando de desordeiros. -- Então? Fobos perguntou diretamente para Deimos.

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-- Então o que? -- O que veio fazer aqui? -- Nada demais. Apenas curtir a solidão e a paz. -- Tem que tomar mais cuidado. -- Nem imaginava que pudesse ter um vigia. -- Nós também não sabíamos disso. Interveio Mefisto. -- É. Deimos estava tão alheio quanto nós. Ajuntou Set. -- Eu sei. Não estou criticando ninguém. Apenas quero que evitem atritos. Já nos bastam as implicações preconceituosas de algumas pessoas, não precisamos de mais entraves a nos aborrecer. -- Está bem. Fobos tem razão. Eu fui meio displicente. -- Bem, já que o pior não se concretizou, por que não aproveitamos que estamos todos aqui e realizamos uma reuniãozinha básica? Perguntei. -- Não estamos todos aqui. Lembrou Mefisto. -- Não. Mas Hades nos deu uma ótima idéia. Falou Lilith. Após as trocas normais de opiniões, decidimos não realizar a reunião. Resolvemos formar o círculo e energizarmos nossas mentes. Também aproveitaríamos a oportunidade para mentalizar os outros. Não precisaríamos mais que alguns minutos para isto, ao menos foi o que pensávamos. Mal havíamos estabelecido o círculo, sentimos nossos corpos formigarem. Nossas mentes pareciam desprender-se de nossos corpos. Não tínhamos idéia do que ocorria. Em pouco tempo estávamos em um local tão estranho que nos assustamos por não saber como conseguíramos chegar até lá. As luzes refletidas eram de uma nitidez tão intensa que parecia não existir mais nada além de sua manifestação. -- Que lugar é este? Set estava encantado. -- Não sei. Mas sentem a paz que ele emana? Manifestou-se Lilith. -- Como poderíamos ignorá-la? É tão viva! Exclamou Fobos. -- Esta é a dimensão da sementeira. Ainda distante do plano ao qual pertencemos, mas próxima o suficiente para que possam aprender. A voz que soou encheu-nos de bem aventurança. -- Onde estamos? A pergunta de Mefisto, embora já respondida com antecedência, expressava nossa ignorância quanto ao real sentido de tudo aquilo. -- Nesta dimensão encontram-se as muitas escolas que recebem aqueles que ainda procuram pelos esclarecimentos que podem elucidar as dúvidas que ainda permeiam seus espíritos.

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-- Mesmo que já tenhamos experimentado a ligação com o plano da unidade? Perguntei. -- Mesmo aqueles que já se sentiram uno, ainda trazem algumas dúvidas em seus âmagos. -- Mas nossas dúvidas não são as mesmas. Apontou Lilith. -- Nem a maturidade que possuem. Exatamente por estes motivos é que serão conduzidos cada qual a sua unidade. Mal havíamos ouvido a voz se pronunciar e sentimos que éramos separados. Cada um foi levado a um ambiente diverso. Não possuíamos a mesma maturidade e, portanto, não podíamos estar no mesmo centro de estudos. Já com relação a minha pessoa, senti que permaneci no mesmo local. Não senti nenhum deslocamento me envolver. -- Por que ainda permaneço aqui? -- Porque aqui é seu lugar. -- Mas também ainda tenho muitas dúvidas. -- E elas o trazem para cá. -- Não estou entendendo? -- O que espera encontrar aqui? -- Como assim? -- Em seu íntimo constrói a imagem de um prédio grande e cheio de janelas e portas. -- Não é esta a imagem normal de uma escola? -- Sim. No mundo da matéria, sim. -- Onde está, então? -- Em sua mente! -- Mas... Antes que pudesse expressar qualquer opinião, o ambiente começou a se conformar de acordo com minhas expectativas. Em segundos me vi em um imenso edifício rodeado por um amplo e florido jardim. Dezenas de pessoas iam e vinham pelas alamedas que circundavam e cortavam o local. A minha frente a figura impassível de um ancião esperando que seu jovem discípulo lhe fizesse uma pergunta. -- Assim está melhor para você? -- Mas como? -- Tudo está em sua mente, meu rapaz. Se assim lhe parece mais apropriado, que seja. -- Não havia nada aqui ainda há pouco. -- Mas tudo está aí, bem em suas memórias. -- Elas andam me deixando em situações curiosas ultimamente.

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-- Ainda não se adaptou aos experimentos que experimentou em sua última visita. -- Sabe algo a respeito disso? -- Eu estava lá. -- Não me lembro de... é claro, lá não havia nada! -- Pelo contrário, caro Augustus. Lá é onde se encontra tudo. Somente não do modo como está habituado a perceber. -- A voz que me falava enquanto permaneci ali! -- Uma das vozes. Haviam centenas. -- Centenas! -- Muitas são as energias que lhe tocam. Cada uma possui sua fonte geradora. Não acredita que assim seja o lógico? -- Se me fala... -- Não é capaz de racionalizar por si só? -- Quando penso que sim, sempre me vem algo novo, algo que me mostra o quanto desconheço. -- Isto é a evolução! Ou pensa que há um fim para o progresso? -- Não? -- Mesmo que chegue a galgar o mais alto ponto destinado a nós, ainda haverá um mais alto a ser atingido. A evolução é permanente. Jamais se encerra! -- Mesmo os mais sábios? -- Quanto mais sábio, mais sabedoria verá que há para se adquirir. -- E quando chegar ao ápice? -- Saberá que o fim não existe. -- Isto ainda é muito confuso para mim. -- Eu sei. Mas por algum lugar temos que começar, não? O humor demonstrado por meu interlocutor deixou-me a vontade para expressar minha dúvidas. As preleções iam se estendendo por horas e horas. Já nem mesmo tinha idéia de serem horas ou dias. Para espanto ainda maior, não sentia qualquer sensação de cansaço ou estafa. Estava absorto em meu aprendizado. O término da experiência foi um ponto muito difícil de ser vivenciado. Saber que voltaria ao ritmo normal de minha vida me fez desejar que as lições se prolongassem por mais tempo. -- Já recebeu aquilo que seu espírito é capaz de assimilar. Mais só lhe iria causar confusão. -- Não posso permanecer mais um pouco por aqui?

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-- Não. Se lhe servir de consolo, espero que não, seus amigos já partiram há muito tempo. -- Voltaram antes de mim? -- Sim. -- Quanto tempo fiquei? -- O que é o tempo além de uma ilusão material? -- Não sei. -- Vá. Por ora já bebeu o suficiente. O despertar pegou-me ainda envolvido pelas últimas palavras de... de... na falta de uma designação mais apropriada, creio não ser nenhuma infração chamá-lo por mestre. “-- O que é o tempo, além de uma ilusão material?” Ecoou a pergunta em minha mente. -- Ilusão! Pois sim. Se fosse ilusão não teria que me levantar tão cedo para ir ao trabalho. Sabia que meu desabafo retratava mais minha contrariedade por ainda desconhecer as respostas para os mistérios da vida que por descordar da asseveração de meu mestre. Ainda assim, senti uma angústia travar minhas reflexões. Com a cabeça pesada e tomada por um dor muito forte, preparei-me para mais um dia tedioso e estafante. Depois de um longo período onde o grupo esteve meio afastado, um fato inusitado veio nos reunir mais uma vez. A família de Deimos desejava nos conhecer. Ele havia falado tanto a nosso respeito que a curiosidade atingiu aquele ponto onde ou a satisfazemos ou vivemos com a sensação de insatisfação causada pela ausência de amparo. -- Onde será o encontro? Sondou Fobos. -- Num sítio de minha família. -- Só a sua família vai participar? Quis saber Mefisto. -- Não. O grupo ao qual ela pertence estará lá. -- Assim vai ser complicado. Pronunciou-se Set. -- Por que? -- Como se comportar em uma situação dessa? Set estava realmente preocupado. -- Hei, são todos góticos. -- Eu sei, mas somos um grupo novo. Alguns nem mesmo têm certeza de o serem. -- Hei, diga isto por você. Ralhou Pandora. -- Isto mesmo. Sou tão gótico quanto qualquer um de vocês. Acrescentou Mefisto.

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-- Esperem! Embora não concorde totalmente com Set, entendo o que ele quer dizer. Creio que devemos estudar o convite com mais cuidado. Fobos sempre tinha um modo especial de ver as situações. -- O que teme? Inquiriu Lilith. -- Nada. Ser gótico está além de rótulos ou conceitos padronizados. Sabemos que o somos e isto ninguém poderá contestar. O que me preocupa é como devemos nos portar no encontro. -- As pessoas que irão, são muito legais. -- Podem ser. Mas não nos conhecem. -- O que você acha Eve? A pergunta de Pandora soou tão inesperada que todos a olhamos. -- Acredito que estamos fazendo tempestade a toa. Se Deimos afirma que a família só quer nos conhecer, não vejo porque tantos cuidados. -- Se ao menos Darkness estivesse aqui. Suspirou Pandora. -- Nos somos o que somos, independente de Darkness! Asseverou Eve. -- Pensei que estavam se entendendo. Pandora tentou se desculpar. -- Nosso grupo já existia antes do surgimento de Darkness. Ele nos tem auxiliado em muitos assuntos, mas não dependemos dele. Podemos e devemos agir como grupo. -- Eve tem razão. Sentenciou Fobos. Não podemos nos manter atrelado a quem quer que seja. Somos gratos a Darkness, mas temos que seguir nosso caminho. -- Então, iremos? Indagou Deimos. -- Sim! Que assim seja o nosso debute. Já está na hora de nos mostrarmos para o mundo! A empolgação de Fobos nos contagiou. Exultantes festejamos nossa emancipação. O encontro serviria como uma espécie de iniciação. Estaríamos diante de um fato inédito. Até então nos reuníamos independente de qualquer contato com outros grupos góticos. A única exceção ocorrerá com nossos amigos de Curitiba. A princípio senti uma ponta de traição. Mantinha-me muito ligado a Darkness para encarar com naturalidade aquele ato de rebeldia do grupo. Como podiam expressar tamanho desapego por alguém que nos trouxera tanto conhecimento? Eve parece ter lido meus pensamentos. Enquanto os outros se entretinham com as leituras e cantorias habituais em nossos encontros, ela aproximou-se e me abordou sobre minha apatia: -- Parece que não gostou do convite ou da decisão que tomamos.

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-- Não é isso. -- O que é, então? -- Sinto como se estivéssemos traindo Darkness. -- De onde tirou esta idéia? -- Ele sempre nos apoiou e nos elucidou nossas dúvidas. -- O que isto tem haver? -- Como podemos relegá-lo a uma posição sem importância? -- Não estamos fazendo isto. Apenas tomamos uma decisão baseada em nossas opiniões. O fato de respeitarmos Darkness não nos obriga a solicitar sua autorização para tudo que formos fazer. Nem ele deseja isto. -- Como pode estar certa disto? -- Esquece-se do contato que fizemos? -- Vocês fizeram, você quer dizer! -- O que há com você, Hades? -- Nada. -- Se Darkness não o contatou ainda é porque tem seus motivos. Além disto, já estivemos em contato. -- Então por que sinto este vazio imenso a consumir minha alma? -- Não sei. Mas não pode associá-la a ausência de Darkness. -- Por que não? -- Porque estaria colocando um peso enorme sobre ele. Estaria lhe transmitindo uma responsabilidade que cabe exclusivamente a você assumir. -- Não é assim que vejo a situação. -- Então, talvez, devesse rever seu ponto de vista. -- E se estiver certo? -- Desconhece o fardo que nosso amigo carrega. -- Por que não me conta? -- Não posso. -- Estes segredos não deveriam existir no grupo. -- Não é um segredo. É uma maldição. -- Maldição! Maldição é viver assim sem rumo. -- Sinto muito se não consegue direcionar sua existência. Mas não é por falta de ajuda. Estive presente em muitas das preleções que lhe foram apresentadas. Todo conhecimento que podia assimilar lhe foi dado. -- Eu sei! Até aquele momento, nem mesmo eu sabia porque me comportava tão infantilmente. Se sabia que tudo que Eve falava era verdade, por que insistia em me fazer de vítima? Onde estava falhando?

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Esperando pela censura que ouviria de minha amiga, surpreendi-me ao sentir o abraço carinhoso que ela me dava. Sem nada dizer, ela me afagou os cabelos, beijou-os e se afastou deixando-me entregue as minhas cismas. Era muito tarde e todos queriam voltar para suas casas. Eu também tinha que ir afinal amanhã seria um novo dia e eu precisava assumir minhas responsabilidades. Cabisbaixo, despedi-me de todos e segui meu caminho. A noite ainda era espetacular, mas, fechado em minha mesquinhez, não desfrutava de tão sereno fenômeno. Os dias que antecederam o encontro foram tumultuados. Por mais que afirmássemos não ter nada a temer, sentíamos um frio na barriga ao falarmos sobre o encontro. O clima só amenizou quando Tim entrou na conversa. -- Também quero ir a esta festa! -- Não é nenhuma festa, garoto. Advertiu Set. -- Não importa. Eu também vou. -- Onde já se viu! Agora vai começar a colocar as garras de fora! Zangou-se Pandora. -- Por que não posso ir? -- Você não entende nada do assunto. Proclamou Set. -- Como sabe? -- Ora, como sei. Você é ainda uma criança. -- E crianças não podem ser góticas? Quer dizer que o são desde há pouco tempo, então. -- Heim? Nosso espanto foi geral. -- É isto mesmo. Se crianças não podem ser góticas e vocês não são tão velhos assim, então é porque são góticos há pouco tempo. -- E quem disse que criança não pode ser gótica? A doçura de Eve contrastava com a sisudez do grupo. -- O que está dizendo? Pandora manifestou seu espanto. -- Podemos levar o pequeno, sim. -- Mas o encontro é para adultos. Repreendeu Mefisto. -- Neste caso, alguns de nós não poderão ir. -- Hei, nem vem que não tem. Eu não perco este encontro por nada. Zangou-se Pandora. -- Se você pode ir, por que o pequeno tem que ficar? -- Eu sou mais velha! -- Mais velha, nem por isto adulta! -- Vamos por um fim a discussão! Exigiu Fobos. Deimos, sua tarefa é perguntar a sua família se existe algum inconveniente em levarmos Tim conosco. Caso não apresentem nenhuma objeção, o levamos.

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-- É isso aí! Vibrou Tim. -- Pode deixar. Amanhã mesmo trago a resposta de meus pais. A resposta acabou por agradar a todos. Mesmo Pandora, que se mostrara contraria a ida do pequeno, se contentou ao sermos informados de que Tim seria muito bem vindo. O traje escolhido pelo grupo foi o tradicional. Apenas Eve decidiu usar o mesmo que usará na celebração em casa de Darkness. Elegante e bonito como era, ele não causaria desconforto algum a ele. Ainda mais porque ele ressaltava as qualidade que ela possuía. A noite escolhida para o encontro se cobriu de nuvens pluviais. Não demorou muito e o manto aquoso se lançou sobre a cidade. A chuva era como uma jóia a mais em nossa festa. Ao contrário da maioria das pessoas, não víamos nenhum inconveniente na manifestação pranteosa da natureza. Ao chegarmos ao sitio fomos muito bem recebidos pela família de Deimos. O pai trajava um modelo a lá vampiro. Sua mãe optara por um modelo anjo negro e os irmãos de Deimos abusavam do preto. -- Sejam bem vindos! Desejamos que sintam-se em casa! Saudou-nos o pai de Deimos. -- Espero que tudo esteja do gosto de vocês. A mãe de Deimos emanava simpatia que era impossível de empostar. -- Agradecemos a acolhida e desde já expressamos nosso profundo respeito por seu lar. Fobos, como sempre, era o porta voz do grupo. -- Bem, deixemos de cerimônias e vamos nos divertir. Sugeriu o pai de Deimos. Não que nossas festas sejam barulhentas em excesso e acompanhadas de expressões além do recomendado, mas em determinado momento Tim nos segredou sua impressão a respeito de tudo que via. -- Isto é ser gótico? -- Também. Respondeu Set. -- Pensei que gótico só sabia lamentar e chorar. -- Não. Gostamos de festas também. Afirmou Lilith. É certo que as vezes nos deixamos contagiar por uma tristeza e angústia indefinidas, mas somos tão normais quanto qualquer pessoa. -- Isto mesmo. Curtimos músicas agitadas, festas legais, shows de bandas cabeças. Mefisto enumerou algumas de nossas predileções. -- Legal! Também quero ser gótico! Tim era a pureza em pessoa. -- Ninguém se torna gótico! Eve era suave em sua colocação. Nascemos góticos ou não. Se alguém, depois de adulto, passa a se

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comportar igual a nós é porque sempre foi gótico e nunca assumiu ou então não passa de um ignorante. -- Quer dizer que não posso ser gótico? -- Não. Não foi isto que disse. Só afirmei que se em sua veia correr o sangue gótico, mais cedo ou mais tarde ele vai se manifestar. -- Por que não pode ser já? -- Quando isto acontecerá só você poderá dizer. -- Sei. Antes de chegarmos ao encontro, não imaginávamos que iríamos passar momentos tão agradáveis. É certo que entre nós sempre rola um clima de cordialidade que não se vê em outros grupos, mas como não tínhamos nenhum contato com a turma que se encontrava ali, chegamos a nos imaginar colocados meio de lado. Para nosso deleite, isto não ocorreu. Todos se mostraram cordiais nos tratando como iguais. Mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos nos manter próximos. Hora e meia éramos arrastados para este ou aquele canto para participarmos desta ou daquela atividade. Nem sempre todos estávamos presentes ao mesmo acontecimento. Em determinado instante, notei que o semblante de Eve se mostrava meio sorumbático. Preocupado com o que pudesse estar lhe incomodando, aproximei-me para saber o que se passava. -- Algum problema? -- Meu corpo está entrando em crise. -- Um ataque? -- Uma crise! -- Quer ir embora? -- Não. Só preciso de um local mais sossegado. Apoiando Eve para que ela conseguisse chegar até o interior da casa, passei por um grupo de garotas que notando minha aflição ofereceram-se para ajudar. Conhecedoras do local conduziram-nos até um dos aposentos. -- Obrigada. A voz de Eve mal se fazia ouvir. -- O que ela tem? Perguntou uma das moças. -- Um mal estar. Informei não desejando estender-me em maiores explicações. -- Desejam que solicitemos um médico? -- Não será preciso. Logo ela estará melhor. -- Quer que avisemos seus amigos? -- Oh, não! Suplicou Eve. Deixe-os divertirem-se. -- Bem, qualquer problema e só nos procurar. -- Obrigada.

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Depois que as moças se retiraram, voltei a questionar Eve sobre nossa permanência ali. -- Sabe que estas crises custam a passar. -- Justamente por este motivo não precisamos ir. -- Mas corre o risco de ficar inconsciente. -- Não se preocupe. Estou acostumada. -- Algo precisa ser feito. -- Se não for pedir muito, fique ao meu lado. -- Com certeza ficarei. -- Ótimo! Isto basta. -- Como se sente? -- Um pouco cansada. Se importa se não conversarmos? -- De modo algum. -- Obrigada, falar me fatiga ainda mais. Eve cerrou os olhos e assim permaneceu por todo o tempo em que ficamos ali. Intimamente me perguntava o que se passava com ela naqueles momentos de crise. Onde seu espírito encontrava forças para encarar aquela provação com tamanha serenidade? Não sei se sonhava ou se era tomada por alguma espécie de espasmos, mas as vezes podia flagrar-lhe fulgidos sorrisos a ganharem o rosto. Era tão encantadora que mais parecia uma fada. Darkness fora muito afortunado por haver lhe conquistado o coração. De repente a lembrança em meu amigo me deixou triste. Por onde andaria? O que estaria lhe tomando tanto tempo assim? Será que não voltaria a nos procurar? Por que sua ausência me causava tanto desconforto? Um suspiro mais forte de Eve me tirou de minhas considerações pessoais. Voltei a fitar seu rosto angelical e tentei absorverlhe os sinais que transmitia. Como ser tão doce podia ser dominado por sofrimento tão injusto? Ali, desfalecida, sem a menor possibilidade de se sentir confortada, ela testemunhava o quão frágeis éramos. Lágrimas tépidas começaram a rolar por minha face. A sensação de impotência que sempre me acompanhava se fez imensa. Num átimo senti-me como o mais inútil das criaturas. Se ao menos tivesse o mesmo dom de Darkness... Inaudita dor se abateu sobre meu ânimo. O incipiente e tranqüilo pranto que extravasava transformou-se em uma explosão de desespero e agonia. Meu peito pareceu ser atingido pela fria lâmina da morte. Em segundos meus sentido se apagaram e nada mais parecia fazer sentido. -- Darkness! Gritei o mais alto que pude.

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A madrugada chuvosa precipitou o epílogo da festa. Não que nos importássemos com as precipitações celestes, mas o frio que ela trouxe causava-nos desconforto. Assim, quase sem querer, os agitos foram cedendo lugar à silenciosa meditação. Somente quando os ânimos começaram a se enredar pela senda da reflexão foi que nossos amigos perceberam que não nos encontrávamos entre os demais. Sem se preocuparem muito com nosso sumiço, procuraram se informar a respeito de nosso paradeiro. Quando entraram no quarto onde nos encontrávamos, depararam com uma cena ao menos desconcertante. Eve planava sobre o leito em posição de decúbito. Eu estava estendido sobre o chão e nada percebia do que se passava. -- Eve! Pandora bradou sem conseguir se controlar. -- O que ele a tem? Perguntou um temeroso Tim. -- O que está acontecendo? O pai de Deimos mal teve tempo de completar a frase antes de observar o fenômeno. -- Saiam! Exigiu Fobos. -- O que? Questionaram todos. -- Saiam. Mesmo que quisessem opor resistência, não conseguiriam tal a determinação demonstrada por Fobos. Seus olhos possuíam um brilho que não permitia contestação. Seu semblante parecia envolto por uma aura espectral. Depois que todos se retiraram, ele calmamente se sentou ao meu lado, em princípio pareceu ignorar minha presença, mas apenas registrava a inexistência de maiores cuidados para comigo. Sua atenção estava toda concentrada em Eve. Mesmo estando alheio as manifestações físicas que se processavam naquele momento, podia sentir, se esta é a maneira mais correta de expressar o que experimentava, tudo que acontecia. Fobos, sentado e de olhos fechados, contatava a entidade chamada Eva. Como ele a conhecia não sabia, mas sentia que os elos se ligavam e o contato era estabelecido. A corrente formou-se entre eles e, sem saber por que, eu estava conectado a eles. -- Está consciente do processo pelo qual seu corpo físico está passando? A voz de Fobos soava estranha. -- Sim. -- Sabe que seu tempo está se aproximando. -- Sei. -- A energia que a vivifica está cada vez mais límpida. A cristalização de seu ser a torna mais e mais diáfana.

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-- Sinto que o contato com os planos etéreos estão mais fortes. -- Cada um tem seu tempo. Muitos ainda não conseguem compreender a efetivação deste fenômeno. Precisa colocá-los a par dos acontecimentos que estão por vir. -- Será muito difícil compreenderem. -- Sabemos disto, mas precisa fazer sua parte. -- Farei. -- Seu anjo ainda demorará a voltar, enquanto isto terá que assumir todo ônus que a tarefa exige. -- Estou preparada. -- Serei o canal que a manterá vigilante, ao menos até que ele volte. -- Agradeço sua colaboração. -- Deve voltar, agora. Os outros a esperam. -- Ainda seremos muito felizes, amigo! -- Sim. Ainda seremos. Aquele diálogo pareceu totalmente cifrado para mim. Mal podia compreender-lhes as falas o sentido, então... -- Hades! O toque firme de algo em meu corpo acabou despertando-me. Ao voltar minha cabeça na direção de onde, pressupus, havia partido a pressão, dei de encontro com o olhar espantado de Fobos: -- O que houve? -- Fobos! -- Por que está deitado neste chão frio? -- Eve... -- Eve está bem. Ela acabou de despertar. -- Onde... Antes que Fobos me respondesse, levante-me e olhei na direção do leito onde Eve estava deitada. -- Bom dia, Hades. Ela me cumprimentou. -- Sente-se bem? -- Sim. Por que pergunta? -- Ontem a noite... -- Já estou melhor. -- Não acredito que deixaram se abater pelo cansaço! Zombou Fobos. -- É, creio que a viagem deve ter nos cansado além de nossas forças. Eve não parecia disposta a revelar a crise que tivera. -- Sendo assim, melhor descerem e partilharem do café da manhã. A mesa está uma fartura.

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-- Todos estão presente? -- Sim. -- Já desceremos. Nós dê apenas uns minutos para nos prepararmos. -- Está bem. Mal Fobos saiu e eu olhei para Eve com ar de quem não estava entendendo nada do que acontecia. -- Fobos é muito discreto. Assim como os demais. Ninguém comentará o ocorrido. -- Mas afinal, o que aconteceu de tão extraordinário? -- Nada de mais. Foi apenas mais uma crise. -- No entanto, parece como se algo de muito extraordinário houvesse ocorrido. -- Não se preocupe com nada, já estou melhor. Não entendi porque Eve ocultava-me os fatos ocorridos. Sabia que participará do estranho diálogo que havia mantido com Fobos. Por que aquela recusa em me revelar os outros detalhes? Seu silêncio me deixou intrigado por muitos dias. Já haviam se passado quinze dias desde a festa quando, em uma de nossas reuniões, Eve pediu para nos revelar parte do intrigante diálogo que mantivera com Fobos. Fitando-me com ternura, fez-me saber que este era o motivo de ter-me mantido em suspense. A revelação deveria ser feita a todos. -- Sei que somos vistos como excêntricos. Começou. -- Isto para não dizer aberrações. Observou Set interrompendo-a. -- Não nos importamos com os pensamentos preconceituosos daqueles que nos são distantes, ao menos não deveríamos nos importar. Mas como dizia, nosso modo de ser não tem nada de excêntrico. O que muitos não sabem, inclusive a maioria que assume nosso modo de vida, é que apenas externamos o estado de nossas almas. -- Somos doentes? Indagou Pandora. -- Não, de modo algum! Por um motivo ou por outro, nossas almas registram as dores de um modo mais plangente. É como se sentíssemos, de modo mais acentuado, as faltas cometidas pela humanidade. -- Não me sinto responsável pelos erros de nossa raça. Aparteou Lilith. -- Não disse que nos sentíamos responsáveis. Além de que afirmei que muitos de nós não têm consciência do porque adotamos este estilo de vida. Nossa sensibilidade é, por assim dizer, mais viva.

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-- O que isto tem a ver com o que tem a nos revelar? Interrompeu Mefisto. -- Tudo. Precisam compreender a escolha que fizeram. Não podem mais continuar vivendo um compromisso sem que tenham ciência do motivo que os levou a tal escolha. -- Pensei que éramos assim por vontade própria. Deimos parecia não dar importância ao falar de Eve. -- Pois saiba que por trás de cada vontade se encontra enraizada uma razão que nos é muito preciosa. O fato de não a considerarmos, quando idealizamos um desejo, apenas diminui a força que ela possui sem, contudo, anulá-la. -- Se é assim, por que somos tão “depre”? Questionou Set. -- Será que somos assim tão depressivos? Já parou para pensar que muitas outras pessoas, mesmo não adotando nosso modo de vida, são tão ou mais depressivas que nós? -- Isto nos leva a concluir que eles é que são anormais! Zombou Set. -- Não. Isto nos leva a pensar que nosso modo sensível de registrar os fatos nos torna mais propensos a certas atitudes hostis as normas regentes. -- E desde quando nos importamos com as normas vigentes? Ajuizou Lilith. -- Não me referia as normas criadas pelos homens. -- E existem outras? Pandora era a menos alienada, embora sua juventude ou talvez justamente por ela. -- Ainda estão dormentes em seus âmagos, mas elas foram apresentadas por Darkness. É claro que nem todos ainda foram contatados, porém aqueles que já o foram, sentem que digo a verdade. -- O que Darkness tem a ver com tudo isso? Quis saber Mefisto. -- Darkness é um agente difusor. Ele vaga pelo mundo a procura de pessoas como nós. -- Góticos? Manifestou-se Set. -- Não. Nem todos góticos são como nós. Mesmo entre nós existem diferenças. Elas só não são mais evidentes por não serem reforçadas por comportamentos conflitantes. Um dos fatores que mais nos mantém unidos é que não possuímos a índole rancorosa das outras pessoas. -- Neste caso... adiantou-se Set. -- Neste caso, somos mais afortunados que a maioria. Mesmo que alguns sejam subjugados por sua angústia e venham a perecer, sabemos o quanto a vida nós é cara e radiosa. Vivemos a intensidade de nossos

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sonhos, anseios, desejos, frustrações e paixões. Não procuramos nos esconder atrás de máscaras ou meia verdades. -- Onde você quer chegar? Indagou Fobos. -- Onde muitos não desejam ir. Ao instante da morte! -- Vai se matar? Somente depois de haver cometido o deslize de caçoar das palavras de Eve, foi que Mefisto compreendeu que abrirá a boca em momento inoportuno. Desculpe-me. -- Tudo bem, amigos sabem compreender os limites de seu amigos. Não estou pensando em me matar, jamais me portaria de modo tão vil. -- Então por que não para de rodeios e vai logo ao assunto? Exigiu Set. -- Porque cada um tem seu próprio ritmo. Aquilo que para você pode parecer simples, para outro pode soar como um verdadeiro emaranhado de vias. -- Se não está pretendendo se matar e também não estamos o que... Mefisto interrompeu seu comentário neste ponto. Aquele que o fitasse, iria perceber o brilho assombrado que assomou em seus olhos. Boquiaberto, pareceu compreender o motivo de tantas palavras. -- Sei que compreendeu. Agora permita que os outros também o façam. Solicitou Eve. -- Compreendeu o que? Perguntou Pandora. -- A hora está próxima! Anunciou Eve. -- Hora? Que hora? Voltou a perguntar Pandora. -- A hora de evoluir. -- Vamos mudar? Estranhou Set. -- Eu irei. -- Não sabia que pretendia se mudar. Observou Lilith. -- Não pretendia. A hora chegou assim como sempre chega independente de nossas pretensões. -- Para onde vai? Quis saber Pandora. -- Para casa. -- Mas vai para lá sempre que as reuniões acabam. Pandora se mostrava confusa com as palavras de Eve. -- Não me refiro a esta casa. Estou falando da casa a qual todos nós pertencemos. Aquela a qual um dia todos estaremos ocupando. -- O mundo de Darkness! Exclamou Pandora. -- O mundo cujo lampejo exterior Darkness nos mostrou, mas de modo algum é o mundo de Darkness. Talvez seja mais nosso do que dele.

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-- Ele não estará lá? Pandora mostrou-se triste ao constatar esta possibilidade. -- Um dia quem sabe, mas por ora não. -- Por que? -- Porque ele ainda tem muito a resgatar. -- E quando tiver resgatado tudo? -- Então poderá escolher o caminho a seguir. -- Como nós? -- Sim. Como cada um de nós. -- Se podemos optar, por que temos que permanecer neste mundo cruel? Desabafou Set. -- Não temos. Permanecer aqui ou em outro plano qualquer sempre é uma opção de cada um. -- Sendo assim, por que é errado abreviarmos nossas existências? -- Por que antes de começá-las, nos propomos a cumprir o tempo que nos foi concedido. -- Como saber que tempo foi este? -- Não sabemos. Mas qualquer que seja ele chega a um fim sem que exerçamos a função de parca. -- Função de quem? Mefisto reagiu com tanta afobação que atropelou as indagações dos demais. -- Parcas. Entidades que, segundo a mitologia, regiam o destino humano. Uma urdia o fio, a outra tecia seu comprimento enquanto a terceira cortava-o quando o tempo para isto houvesse chegado. Informou Fobos. -- Ah! Foi comentário lacônico de Mefisto. -- Bem, se entendi direito, o seu fio está chegando ao fim. Comentou Pandora. -- Sim. -- Vai nos abandonar! Choramingou Pandora. -- Não. Jamais abandonarei meus amigos. -- Mas acabou de nos revelar que... tentou argumentar Pandora. -- Antes que minha hora seja decretada, muitas outras ainda irão ocorrer. Algumas novidades haverão de se descortinar ante nossos olhos. -- Enigmática como se tornou, depois de Darkness, não irá nos revelar nenhuma, não é? Set mantinha seu característico ar de reprovação a tudo que lhe fosse externo. -- Não foi esta minha intenção ao solicitar este encontro.

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-- Qual foi então? Set quase vociferou a pergunta. -- Colocá-los em contato com a passagem. -- Com o que? Mefisto parecia ter perdido o fio da meada. -- A passagem. O único rito que todos têm como certo desde o primeiro dia de suas existências. -- Quer dizer a morte? Indagou Pandora. -- Sim. Mas prefiro designá-la passagem, pois é isto que ela é na verdade! -- Passagem para onde? Indaguei. -- Esquece-se dos planos que Darkness nos mostrou? -- Não. -- Pois então já conhecemos alguns dos possíveis destinos que nos estão reservados. Precisamos somente decidir por qual deles desejaremos caminhar. -- Se Darkness já nos deu uma prévia de como é o mundo do lado de lá por que insistir em nos lembrar? Já não basta este nosso doentio apego pelo lúgubre? Exasperou-se Set. -- Por que considera lúgubre este apego? -- Porque ele já nos meteu em muitas situações constrangedoras. -- Engana-se. Não foi nossa opção por este modo de viver quem nos colocou em situações delicadas, mas sim o preconceito de certas pessoas. Muitos ainda não compreendem que não podemos ser aquilo que elas desejam. -- Isto alivia em que nossa situação? -- Em nada. O alivio que procura está dentro de você e não na expressão de aceitação de quem quer que seja. O lenitivo para nosso sofrer só pode ser ministrado por nós mesmo. -- Ah, sei. Agora somos doutorados em medicina. ironizou Set. -- Set, Set, por que é tão difícil assim aceitar sua parcela de responsabilidade? Acaso já olvidou a vivência que Darkness lhe propiciou? -- Darkness! Darkness! O que ele tem de tão especial? Mal o conhecemos! Uma noite ele surge do nada, nos faz acreditar que seja um ente fantástico e pronto; a maioria de nós o endeusa. -- Não vemos Darkness com os mesmos olhos. Para alguns ele pode até ser este deus a que se refere, para outros um ser enigmático que usa de poderes sobrenaturais para dominar os desprevenidos, ou então um anjo que surgiu para aliviar a dor de alguns afortunados. Cada um o vê como bem lhe aprovem.

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-- E você, nossa cândida bonequinha, como o vê? O olhar desafiador de Set fitava Eve com ira. -- Como ele realmente é. Um ser sofrido que se encontra despojado de qualquer possibilidade de encontrar a paz que tanto deseja. -- Um amaldiçoado! Lembrei a todos. -- Sim. Assim é como ele próprio se vê. Mas nem mesmo ele está totalmente certo. -- Como assim? Minha percepção espiritual se aguçou. -- Darkness lembra-se apenas de uma parte de sua história. Quando a hora chegar tudo lhe será revelado. -- Assim como a nós! Completei meio incerto. -- Exatamente. Assim como nós temos nossa hora, Darkness tem a dele. -- Darkness não é imortal? Pandora parecia ter sido atingida por uma revelação irracional. -- Não. Ele não é imortal! Afirmou Eve. -- Mas... a tentativa de Pandora perdeu-se em seu próprio mutismo. -- Bem, já nos revelou que sua hora é próxima. Já nos lembrou a existência de planos imateriais. Apresentou-nos o fato de nosso fantasma não ser imortal. Falta nos apontar o porque de tudo isto. Salientou Lilith. -- O motivo é simples. Todos nós estamos unidos por um acontecimento comum. Enquanto este fato não for resgatado, haveremos de voltar e voltar e voltar a este plano. Para que tudo tenha um fim, precisamos conhecer a origem de tudo. -- E você a conhece! Set foi sarcástico em seu comentário. -- Sim. -- E por que não o revela de uma vez! Zangou-se Set. -- Porque ainda não é chegada a hora de todos. -- Já estou farto deste negócio de não ser a hora disto, não ser a hora daquilo, o que pensam que são? Juízes? -- Não. Mas nem precisamos de um. Seu comportamento demonstra claramente o quanto ainda se encontra imaturo. Qualquer revelação que fizesse só iria travar seu desenvolvimento. -- Bem, acho que já prolongamos o assunto por tempo demais. Melhor darmos um tempo para que cada um possa refletir a respeito e tirar suas conclusões. Interveio Fobos. Como sempre, a liderança de Fobos era incontestável. Nenhum de nós ousava colocar qualquer objeção ante uma de suas ponderações. Não que nos intimidássemos ou demonstrássemos temor por ele, mas porque ele sempre se manifestava no momento certo.

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-- Fobos tem razão. Anuiu Eve. Precisam refletir sobre tudo e analisarem os entendimentos que tiverem. Quanto a você, falou olhando para Set, precisa deixar de lado seu egoísmo e voltar-se para seu interior e repensar o contato que teve. Não jogue fora a oportunidade que está sendo lhe ofertada. Set nada retrucou. No íntimo sabia que Eve tinha razão. Naquele momento, nem mesmo ele sabia por que reagira de modo tão contraditório. Sua real intenção era reforçar tudo o que ela havia dito, mas uma força maior o levara a se comportar como um garotinho mimado. Nenhum de nós imaginava a batalha titânica que era travada no âmago daquele nosso tão rebelde amigo. Seus sentimentos se agitavam com tamanha violência que se tornava impossível, a ele mesmo, ouvir o brado desesperado por socorro. Lágrimas banhavam-lhe o rosto ao se afastar. Apenas Eve notou o exteriorizar de sua angústia. -- Ainda está confuso? -- Heim? A pergunta de Eve me pegou distraído. -- Sua mente já está funcionando normalmente? -- É. Já estou me sentindo menos confuso. -- Tenho que lhe solicitar um favor. -- Pode falar. -- Precisa contatar Set. -- O que? -- Não se faça de parvo. Sabe que somos os únicos capazes de tocar a razão dele. -- Mas eu... eu... droga, como posso ajudá-lo quando não sou capaz de nem mesmo me ajudar? -- Tudo bem. Verei o que posso fazer. -- Espere! Não disse que não faria. -- Vai tentar? -- Vou. -- Quando chegar em casa eu o contato. -- Está bem. Chegando ao club, fui direto para meu quarto. Antenor estava tão ocupado que não notou minha entrada. Desfiz-me de minhas vestes e fui para o banheiro. Estava há cinco minutos imerso na tépida água da banheira quando senti a presença de mais alguém. -- Quem é? Nem um suspiro como resposta. -- Quem está aí? O silêncio me deixou invocado. Mesmo contrariado, deixei a banheira, me enrolei na toalha e fui procurar o possível invasor. Mal havia

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dado alguns passos e senti-me jogado para o ar. O que ocasionou meu grotesco vôo só muito mais tarde fui saber. -- Demorou! -- Eve? -- Por que o assombro? -- o que faz no banheiro do club? -- Onde? -- No banheiro... Minha mente rodopiou e por pouco não perco os sentidos. -- Pensei que havia se disposto a me ajudar. -- É claro que sim. -- Por que não o fez, então? -- Achei que tinha tempo para um banho. -- Não tem. Vamos. -- Hei, espere! Sempre que penetrava na dimensão imaterial levava algum tempo para me adaptar. Enquanto Eve seguia célere a frente, tinha alguma dificuldade para acompanhá-la. Meu corpo estava desfalecido no chão do banheiro e minha mente ainda sentia os efeitos do tombo. -- Mais devagar! Bradei. -- Set precisa de nosso auxilio. -- Eu sei. A paisagem foi se alterando de modo instantâneo. O vazio foi sendo preenchido por uma densa névoa de cor pardacenta. O ar foi tomado por odores irritantes; um misto de enxofre e amônia. Onde estávamos? -- Este é o portal de entrada para o vale dos suicidas. -- Set não... -- Ainda não. Temos que ser rápidos se quisermos detê-lo. -- Droga! Sabendo do motivo de nossa presença naquele ambiente tão sufocante, acelerei minha adaptação. Sem perder mais tempo, segui Eve com toda minha destreza. Set podia ser meio rabugento e nervoso, mas era nosso amigo. -- Onde ele está? -- Na beira do precipício. -- Como faremos para impedi-lo? -- Não sei. -- Set é duro na queda. -- Eu também sou. -- Veja! Meu alerta era dispensável. Assim como eu, Eve vira Set parado na borda do precipício.

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Enquanto nos aproximávamos, percebíamos as enormes e disformes formas que pairavam acima do espectro de Set. ele não notava suas presenças, mas sentia os efeitos de suas energias. Aprisionado que estava em seu rancor, não registrava nossas correntes de amor que tentavam atingi-lo. Somente quando estávamos ao seu lado foi que nos percebeu. -- O que fazem aqui? -- Viemos ajudá-lo. Falei. -- Não preciso de ajuda. -- O que está para fazer pode comprometer toda sua existência. Observou Eve. -- O que importa? Nada do que vivi vale continuar preso a este mundo injusto. -- Por que a revolta? Pensei que houvesse superado a dor. Eve estava determinada a impedir aquela loucura. -- Revolta! Por que insiste em afirmar que estou revoltado? -- Porque é esta a energia que emana de seu ser. -- Se é capaz de ver qual o tipo de energia desprende de meu ser, por que não consegue definir-lhe a origem? -- Não disse que não era capaz de definir a origem. -- Por que não o faz, então? -- Porque isto impediria você de enxergar o abismo que está prestes de conhecer. -- Deixem-me! O grito de Set ecoou por todo o ambiente. Já me preparava para manifestar minha opinião quando Eve deteve-me e fez com que voltasse a olhar na direção de Set. sem entender bem o que se passava, vi quando ele se dobrou e caiu. Parecendo estar sendo consumido por dores atrozes, percebi o brilho implorante de seus olhos a suplicar auxilio. -- Por favor, socorram-me! Imediatamente aquela suplica, fomos atraídos de encontro a nosso amigo. Nem percebi como nos deslocamos. Ao perceber, já nos encontrávamos junto a ele. -- Venha, temos que levá-lo para recuperação. A doçura de Eve sempre cativava os corações dos que permitiam seu toque. A brisa suave que senti soprar a nossa volta deixou-me mais leve. O odor nauseabundo que dominava o ambiente foi sendo gradualmente substituído por um doce perfume de rosas. O negror que enclausurava os sentidos foi cedendo espaço para uma luminosidade estonteante. Em momento algum fiquei ciente do porque minha presença ser tão importante. Já nos preparávamos para voltar quando Eve me abordou:

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-- Por que a surpresa? -- Pediu-me que a ajudasse, mas nada fiz. -- Engana-se. Só porque não utilizou o dom da voz não quer dizer que não tenha auxiliado. A energia que emanava de seu ser fortaleceu aquela que desprendia do meu. Sozinha não teria força suficiente para atingir o cerne do ser de nosso amigo. -- Set ficará bem? -- Isto só tempo poderá dizer. Por hora ele não tentará mais nenhuma bobagem. -- Ele vai permanecer muito tempo por aqui? -- Somente o suficiente. -- Onde seu corpo repousa? -- Em um hospital. -- Por que? -- Overdose. -- Droga! -- Sim, foi um coquetel de drogas! Entende porque suas energias eram importantes? -- Sim. Temos que ir. Quero estar com ele no hospital. -- Os outros já estão. -- Você também vem? -- Sim. O ambiente no hospital era de total desconsolo. Não fazíamos a menor idéia de que Set pudesse estar envolvido com este tipo de problema. Quando Mefisto o encontrou desfalecido no local de nossas reuniões alarmou-se, mas não perdeu a razão. Solicitou auxílio ao vigia do cemitério e juntos conseguiram socorro para ele. Na atual circunstância nossa ajuda estava restrita as orações e pensamentos positivos que podíamos direcionar em beneficio de nosso amigo. Os médicos haviam nos dado perspectivas sombrias com relação ao estado de Set, porém não duvidávamos que ele escaparia daquela. Cada um tem sua hora e a dele ainda não havia chegado. -- O que faziam no cemitério? Perguntei a Mefisto. -- Não sei o que ele fazia lá. Quanto a mim, senti que algo me empurrava para lá. Não sei explicar o que, mas uma força estranha me dizia que deveria ir até lá. -- Estamos unidos, não estamos? Foi a consideração feita por Lilith. -- Mas eu ainda não fui contatado. Observou Mefisto. -- Ainda assim já participou de nossas vivências com Darkness. Lembrei.

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Set?

-- Acha que só isso foi suficiente para que sentisse a agonia de

-- Tenho certeza. Afirmei. -- Quanto tempo ficaremos aqui? Quis saber Pandora. -- Bem, devido às condições dele, melhor que nos revezemos. Considerou Fobos. Lilith e eu ficaremos até amanhã. Depois um de vocês pode nos substituir. -- Eu venho. Ofereci-me. -- Eu também. Pandora olhou-me esperando minha anuência. -- Certo. Pandora e Hades virão amanhã. Confirmou Fobos. -- Você pode vir depois de amanhã? Perguntei a Deimos. -- Tudo bem. -- Eu venho com ele. Mefisto se ofereceu antes que perguntássemos. -- Quanto a Eve... começou Lilith. -- Eu venho todos os dias. Eve declarou. -- Mas vai ficar muito comprometida. Pandora expressou sua preocupação. -- Não. Já há um tempo que venho fazendo alguns exames aqui perto. Não custa nada passar por aqui depois deles. -- Tem certeza que não ficará muito cansativo para você? Perguntou Fobos. -- De modo algum. A clínica é quase aqui ao lado. Depois, meu pai me traz e me leva. -- Bem, sendo assim, melhor irem, então. Todos nós demos razão a Fobos. Não tínhamos mais nada a fazer ali. Set estava sedado e recebendo os cuidados necessários, Lilith e Fobos ficariam ali naquela noite, melhor era mesmo irmos para nossas casas. Já estava me dirigindo até o ponto de ônibus quando Eve me deteve: -- Não quer uma carona? -- O club não fica na direção de sua casa. -- Precisamos conversar. -- Então está bem. Sempre que Eve tinha algo a dizer eu ficava atento. Desde o primeiro instante em que nos encontramos, senti como se a conhecesse desde sempre. Minha disposição em estar sempre pronto para atendê-la até rendeu algumas pilherias, mas por mais estranho que possa parecer, e isso até para mim, jamais tive qualquer sentimento de desejo por ela. -- O que foi?

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-- Set ficou assim depois que se encontrou com os pais. -- Depois de tanto tempo? -- Aconteceu uma tragédia. Um dos irmãos dele se envolveu em negócios ilícitos e os comparsas resolveram cobrar uma dívida antiga. -- Se vingaram na família! -- Sim. Set foi informado a respeito e decidiu ir visitá-los. Apesar de tudo que houve, eram seus pais. -- Mas então? -- Quando chegou ao hospital, seu irmão o destratou. Set não deu importância, afinal ele era mesmo um mau caráter. Porém, não estava preparado para o tratamento que os pais lhe dispensaram. -- Eles o trataram mal? -- Mais que isto. Repudiaram-no. Ofenderam-no naquilo que ainda tinha de mais sublime, o amor pelos pais. Isto foi mais que ele podia suportar. -- Por isto as drogas! -- Sim. Ao deixar o hospital, ficou desnorteado. Sabia que se nos procurasse encontraria apoio, mas decidiu que deveria sair daquela sozinho. Foi uma péssima escolha. -- Pobre Set! -- Hei, não estou contando tudo isso para despertar sua piedade. Set não é nenhum pobre coitado, ninguém é. -- Desculpe-me. -- O que ele precisa é de pensamentos positivos. Energia pura e de consistência férrea. -- Orações? -- Manifeste-a como bem entender, só não deixe de exercer sua habilidade. -- Não se preocupe. Assim que chegar a meu quarto concentrarei minhas energias em prol dele. -- Aconteça o que acontecer permaneça com ele. -- O que? Algo mais está para acontecer? -- Sim. Mas não diz respeito a você. -- Como assim? -- Será um fato traumático, mas precisa manter-se concentrado em nosso amigo. Sua experiência o qualifica para o mister. -- Minha experiência... embora Eve não tivesse segundas intenções ao fazer tal menção, aquilo ainda mexia muito comigo. Está bem. Não desgrudarei do “coitado”! -- Obrigada.

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Eve possuía um discernimento muito além daquele que era comum as pessoas de sua idade. Sabia que era o único capaz de dar o apoio que Set iria precisar. O fato de já haver passado pela mesma experiência, me colocava em igualdade com o sofrimento que ele viva. Eu que em meus momentos de solidão deixava que a angústia tomasse conta de meu íntimo, tinha que servir de suporte ao sofrimento de outro. Ironicamente minha condição de fraco me colocava na posição de auxiliador. Como a vida era estranha. Enquanto me preparava para minha tarefa, o outro acontecimento que Eve previra estava se desenrolando bem próximo. No mesmo instante em que estávamos no hospital acompanhando o drama de nosso amigo, Tim protagonizava fato que iria abalar a segurança que Pandora vinha demonstrando haver conquistado. Com os ânimos já combalidos pela situação de Set, meus amigos chegaram em silêncio a casa de Fobos. Nossas índoles sofredoras nos condicionava a sentir tudo com muito mais intensidade que as demais pessoas. Todos estavam abalados em demasia para observar certos detalhes que não passariam desapercebidos em outras ocasiões. Um destes detalhes referia-se ao silêncio opressor que dominava o local. -- Este lugar fica muito sombrio sem os outros. Observou Mefisto. -- Por falar em outros, onde está seu irmão? Perguntou Deimos. -- Tim! Pandora, ao invés de responder, chamou pelo irmão. -- Ele já deve estar dormindo. Opinou Mefisto. -- Vou verificar. Falou Pandora. -- Que mancada do Set se meter nesta enrascada. Comentou Mefisto após a saída de Pandora. -- Não sei, não. Para mim há algo muito sério por trás da atitude dele. Não combina com a personalidade de Set tomar uma atitude tão insensata. -- Todos estamos sujeitos a... -- Gente, o Tim não está em casa! Pandora voltou correndo e em desespero. -- Calma, amiga. Quem sabe a Tel o levou para casa. Sugeriu Deimos. -- Mas se levou por que não me avisou? -- Sei lá. Só indo até lá. Mefisto se mostrou alheio ao desespero de Pandora. -- Fariam isto por mim?

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-- Pode deixar. Em alguns minutos estamos lá. Assim que soubermos algo, ligamos. Falou Deimos já saindo e arrastando Mefisto com ele. -- Por que a afobação? -- Se tivesse que se preocupar com algum irmão, saberia o que nossa amiga está passando. -- Para que fazer tempestade a toa. Com certeza o moleque está na casa da Tel. -- Veremos. Antes que Deimos e Mefisto voltassem com notícias a respeito de Tim, o telefone tocou. Pandora raciocinou que não poderia ser nenhum dos amigos, pois não teriam tido tempo para ter chegado a casa de Tel. Angustiada apanhou o aparelho e atendeu: -- Alô! -- Alô. Dona Paola? Atender um telefonema sendo chamada por Paola já soava estranho, ouvir aquele nome acompanhado pelo dona então... Alô, Dona Paola? -- Sim. Pode falar. -- Aqui é a Tel. -- Oi. Algum problema? -- Bem, aconteceu um pequeno acidente. -- Tim! Gritou Pandora quase fora de si. -- Acalme-se, Dona Paola. Não foi nada grave. -- Onde está meu irmão? O que aconteceu? -- Estamos no hospital da vila. -- Hospital! O choque foi muito forte para Pandora. Lentamente o fone deslizou de sua mão atingindo o chão ao mesmo tempo em que seu corpo. -- Alô! Alô! Alô! Sem saberem o que se passava na casa de Fobos, Deimos e Mefisto chegavam a casa de Tel. Após insistirem por longos minutos tocando a campainha, desistiram. Já estavam fechando o portão quando uma mulher os chamou: -- Hei, hei, moços! -- É com a gente? Perguntou Mefisto. -- São amigos da professora? -- Sim. -- Ela não está. Foi ao hospital. -- Hospital? Ela está doente? Indagou Deimos. -- Não. O menino que fica com ela sofreu um acidente. -- Tim! Exclamou Deimos.

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-- Eu vi tudo! Aquele menino é muito danado, ela não teve culpa alguma! -- Tudo bem, senhora. Sabe para que hospital ela foi? -- O hospital aqui da vila. -- Aquele prédio azul da avenida? Procurou se informar Mefisto. -- Este mesmo. -- E perto daqui. Dá para ir a pé. Falou Deimos. -- Vamos. -- Obrigado pela informação. Deimos agradeceu a mulher. -- Ora, vizinhos são para estas ocasiões. Antes que ela tivesse oportunidade de começar a declamar um rosário de comentários inoportunos, ambos dispararam pela rua. A proximidade do hospital fez com que a corrida não se estendesse por mais de cinco minutos. Um tanto arfantes, eles chegaram ao hospital. -- Onde procuramos? -- No pronto socorro! -- Certo! Deimos se mostrava mais preocupado que Mefisto, nem por isto deixava que a razão fosse agrilhoada pela emoção. Dirigiu-se ao balcão e aguardava o momento de ser atendido quando viu Tel surgir por um dos corredores. -- Deimos! Ela gritou antes mesmo de se aproximar. -- Tel! -- Foi horrível! Eu não tive culpa! Ao pronunciar-se a respeito, Tel já estava próxima o suficiente para que Deimos a enlaçasse com seus braços. Apertando-a contra o peito, deixou que ela extravasasse sua dor. -- Onde está o Tim? Perguntou Mefisto ao vê-los abraçados no meio do corredor. -- Espere até que ela recobre o controle. -- O que houve? -- Ainda não sei. -- Será que Pan já sabe do ocorrido? -- Não sei. -- Vou ligar para ela. -- Não diga nada a respeito do acidente. Precisamos saber o que aconteceu antes de alarmá-la. -- Está bem. Mefisto saiu a procura de um orelhão. Na pressa, mais certo dizer no pouco interesse que demonstrara ao saírem para ir até a casa de

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Tel, não se lembrara de pegar o celular que havia deixado sobre a mesa da sala na casa de Fobos. Chegando ao orelhão tentou cinco vezes e sempre obteve o sinal de telefone ocupado. Ou Pan já soubera do acidente e tentava se comunicar com um deles, ou então estava de papo com alguma outra pessoa. Desistiu de telefonar e resolveu voltar ao hospital. Chegou no exato momento em que Deimos colocava Tel sentada em um banco e esperava que ela lhe relatasse os fatos. -- Consegue contar o que houve? -- Acho que sim. -- Fique calma. O que quer que tenha acontecido, sabemos que tem uma explicação. -- Eu estava preparando um lanche para o Tim quando ouvi um barulho assustador. -- Onde? Mefisto mais parecia um inquisidor. -- Na parte dos fundos. -- Então! Insistiu Mefisto. -- Deixe-a contar como tudo ocorreu! -- Fui verificar o que havia acontecido e me deparei com Tim caído sobre um monte de entulhos. O relato foi interrompido por nova crise de choro. -- Mas que... Mefisto ia se manifestar quando Deimos o interrompeu. -- Por favor! Não vê que ela está em frangalhos! Afinal, avisou Pandora, ou não? -- Não consegui. O telefone só dá ocupado. -- Mais esta agora! -- Melhor irem até lá. Tel tentava se controlar. -- Por que? -- Eu estava falando com ela quando a ligação ficou muda. -- O que chegou a lhe contar? -- Sobre o acidente. -- Pan! Exclamou Mefisto. -- Vá. Corra até a casa de Fobos. Eu fico por aqui. Falou Deimos. -- O que faço se ela estiver passando mal? -- Deve ter sofrido algum desmaio. Aplique-lhe uma massagem no peito. Se não resolver dê-lhe algo forte para cheirar. -- E se não adiantar? -- Chame uma ambulância. -- Ta! Eu vou!

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Deimos notou o nervosismo que ser apossou de Mefisto. Como não havia alternativa, teve aceitar e torcer para que ele fizesse tudo direito. Enquanto isto, ele cuidava de Tel e tentava saber mais algum detalhe. -- Está pronta para prosseguir? -- Tudo bem. -- Vá com calma. -- Não sei ao certo o que aconteceu, mas imagino que ele deve ter caído do telhado. -- Também penso que seja o mais provável. -- E agora! Paola vai ficar uma fera! -- Não se preocupe. Pandora vai sofrer um pouco, mas depois vai entender. Além disto, não sabemos ainda como o menino está. -- O médico não quis adiantar nada, porém falou que o quadro é muito grave. -- Mesmo? -- Sim. Aquela constatação fez Tel entregar-se a nova crise. Deimos fechou os olhos mentalizando bons fluídos. Em silêncio elevou seus pensamentos em auxílio de Tim e Pandora. Constritamente sussurrava uma velha oração que havia aprendido com a mãe. Mefisto correu feito doido. Em poucos minutos entrava todo estabanado na casa de Fobos. Não precisou avançar muito para encontrar o corpo de Pandora caído no chão. Temendo que ela estivesse morta, abaixou-se e colocou seu ouvido sobre o peito. Ela ainda respirava. Não se lembrando direito de como agir, procurou por algo que pudesse ter um cheiro bem forte. Encontrou uma garrafa de álcool na prateleira da cozinha. Ensopou um pedaço de pano e correu para esfregar no nariz de Pandora. -- Acorda, menina! Está me deixando nervoso! Precisou insistir muito até que Pandora começasse a reagir. Lentamente ela foi recobrando a consciência. Quando já estava mais desperta, berrou: -- Tim! -- Acalme-se. Ele está bem. -- Onde? O que aconteceu? -- O que aconteceu ainda não sei, mas ele está no hospital. Deimos está lá com a Tel. -- Leve-me para lá! -- Foi para isto que vim. -- Rápido!

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Não havia sido exatamente para isto que Mefisto havia ido até lá, mas como não tinha meios para impedi-la de ir para o hospital, teve que concordar. Mal teve tempo para fechar a porta e sair disparado atrás dela que já ia bem a frente. Entrando no hospital, Pandora tentou localizar Deimos e Tel. Após alguns segundo conseguiu vê-los sentados no fundo do corredor. Sem importar-se com ninguém, disparou até eles. -- Onde está o Tim? O que aconteceu com ele? -- Acalme-se, está tudo bem! Tentou apaziguar Deimos. -- Bem? Como pode tudo estar bem? Se estivesse bem não estaríamos aqui! -- Ele já foi medicado. Logo o doutor virá para nos informar a respeito de seu estado. -- Eu quero vê-lo! -- Não podemos! -- Ele está morto! -- Não! Só que não podemos interromper o trabalho dos médicos! -- Levem-me até ele! O estado descontrolado de Pandora fez Mefisto solicitar ajuda de uma enfermeira. Com um pouco de empenho, conseguiram aplicar um sedativo em Pandora. Como ela não era paciente do hospital, teve que permanecer na enfermaria. -- Já avisou os outros? Perguntou Deimos. -- Ainda não. Na pressa nem trouxe o celular. -- Ligue para Eve. Ela tem mais jeito para lidar com este tipo de situação. -- Não será preciso! Eve surgiu do nada, assim como Darkness. -- Que susto! Já não chega o assombrado do Darkness! Ralhou Mefisto. -- Como ela está? -- Pan? -- Sim. -- Agora está sedada. -- E Tel? -- Estou melhorando. -- Já contou o que aconteceu? -- Espera ai, não vai perguntar pelo Tim? Zangou-se Mefisto. -- Não precisa. Sei que ele está bem! -- Como assim? Mal acabou de chegar.

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nos cercam.

por Deimos.

-- Os contatos são nossas vias de acesso aos muitos planos que -- O que faremos? Perguntou Deimos. -- Levem Tel para casa. Eu fico com Pandora. -- Mas precisamos... Mefisto ia retrucar mas foi interrompido

-- Vamos. Eve é muito mais útil a Pandora que nós. Relutante, Mefisto acompanhou Deimos e Tel. Eve ficou aguardando pelo médico que lhe daria informações a respeito de Tim. Não pretendendo desperdiçar o tempo que dispunha, entrou na sala onde Pandora estava e iniciou o processo de contato. Estendendo os braços posicionou as mãos sobre o corpo de Pandora. Lentamente foi descrevendo um caminho imaginário afastando as mãos em direções opostas. Parecia querer cobrir o corpo de Pandora com uma coberta invisível. Todos sabíamos que coberta era esta, a energia cósmica. -- Tim! Escapou o brado pelos lábios cerrados de Pandora. -- Tranqüilize-se! Tudo está bem. Sussurrou Eve. Quem a visse naquele instante impondo suas mãos sobre o corpo desfalecido de Pandora, teria duas impressões: ou tratava-se de um espírita em transe dando um passe em alguém ou uma louca achando que estava em algum espetáculo de mágica. Porém, olhos bisbilhoteiros não teriam esta oportunidade, Eve sabia que não corria o risco de ser flagrada em sua ação. À medida que suas energias comungavam com as de Pandora, sentia que ela reagia de modo positivo. Mesmo estando inconsciente, ela registrava o empenho de Eve em aliviar-lhe a angústia. Isto soava como contraditório, dado a nossa opção de vida, mas este detalhe só serve para reforçar o quanto as pessoas estavam erradas sobre nós e nossas predileções. Por cerca de uma hora Eve permaneceu ao lado de Pandora energizando seu corpo. Precisava ter certeza de que ela conseguiria superar as provações que se colocariam ante sua vida. Um leve sorriso assomou-lhe ao notar que a amiga recobrava os sentidos. -- Pan! -- Olá! -- Tim! -- Está tudo bem. -- O médico já informou sobre sue estado? -- Ainda não. -- Mas então...

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-- Então devemos manter a calma e aguardar. -- Tenho medo que ele esteja... -- Morto? -- Parece tão fria quando fala sobre a morte. -- Esqueceu-se do contato? -- Que contato? -- Darkness! Mentalmente Pandora esforçou-se para recordar do contato que mantivera com Darkness. Flashes esporádicos e sem sentido iam espocando em sua mente. Morte! Darkness havia lhe mostrado algo a respeito. -- Não consigo lembrar-me daquilo que ele me falou. -- Não tem problema. Quando a hora chegar, irá recordar. -- Mesmo que me recorde, não entendo esta sua frieza. -- Esquece-se que a morte tem sido minha fiel companheira? Nasci condenada, esqueceu-se? Olhando para Eve e observando o brilho sereno que desprendia de seu olhar, Pandora não conseguiu deter o sorriso que se desenhou em seu rosto. -- Só mesmo você para conseguir me fazer sorrir em hora tão desfavorável. -- Prepare-se, o médico já vem. -- Como sabe? Nem bem acabou de perguntar e Pandora testemunhou a entrada do médico. -- Olá, como se sente? -- Agora me sinto melhor. -- Ótimo! As novidades não são as melhores, mas também não são um desastre. -- O que houve com meu irmão? -- Devido a posição em que ele caiu... -- Caiu? -- Ainda não soube sobre o acidente? -- Não. Não tive tempo de conversar com minha a... -- Amiga, Pandora! Tel é nossa amiga! -- Depois do que houve não sei se terei esta certeza. -- Terá que ter se não quiser passar a ser uma pessoa injusta. Tel não tem nenhuma responsabilidade no que aconteceu. -- Talvez... -- Bem, não é minha função julgar a responsabilidade das pessoas, se desejar posso relatar o que me foi contado.

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-- Por favor. Solicitou Eve. -- Segundo o relato da amiga de vocês, o menino deve ter subido no telhado atrás de algum desses pipas, na euforia da brincadeira, deve ter se desequilibrado e caído. -- Comportamento normal de uma criança. Observou Eve. -- Muito perigoso, mas sim, é uma atitude comum as crianças. -- Mas é o estado dele? Falou Pandora demonstrando toda sua ansiedade. -- Bem, o menino sofreu algumas fraturas graves. Nenhuma que tenha atingido algum órgão vital, ou seja, não corre risco de morte, mas o traumatismo pode deixar algumas seqüelas. -- Que tipos de seqüelas? Quis saber Pandora. -- Ainda não temos condições de afirmar com precisão, mas a mais crítica diz respeitos aos movimentos dos membros inferiores. -- Como? A voz de Pandora soou num fio deixando claro sua incredulidade. -- Veja bem, é muito prematuro afirmar com toda certeza, mas acreditamos que o menino não voltará a andar. -- Não! O desabafo de Pandora foi acompanhado por brados de revolta mesclados ao choro convulsivo que a dominou. -- Pode nos deixar a sós por alguns instantes? Pediu Eve. -- Claro. Por hora não tenho mais nada a acrescentar. -- Obrigada. Educadamente o médico deixou-as a sós. Acostumado a rotina dos misteres da profissão, gostaria de ter como evitar o sofrimento de seus pacientes, mas o que podia fazer? Era apenas um médico, não um santo milagreiro. A tarefa de tentar consolar pandora cabia a Eve. Conhecendo-a como a conhecíamos e sabendo os antecedentes que a acompanhavam desde os três anos, bem como sabedores de sua ligação com Darkness, era difícil imaginar que Eve tivesse palavras confortadoras. O certo seria imaginá-la exortando Pandora a compreender os desdobramentos intrínsecos aos fatos. Esta era a postura adotada por Eve. Quando Pandora voltou a recobrar os sentidos, encontrou Eve a observá-la. Intimamente antevia quais seriam as palavras que ela iria pronunciar. Não querendo admitir que ela estaria certa, solicitou: -- Por favor Eve, agora não! -- Está bem. Mas sabe que precisa ouvir-me. -- Sei. Só não quero que seja agora. -- Então venha.

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Eve estreitou Pandora em seus braços acolhendo-a com carinho. Aquele abraço era tudo que Pandora desejava. Sentindo-se protegida pelo gesto da amiga, deixou que toda sua dor vazasse em profundo pranto. Entrementes, alheio aos fatos que ocorriam, uma vez que só muito mais tarde fiquei a par de tudo, permanecia em meu quarto direcionando meus pensamentos para o estabelecimento de Set. Não esperava notícias antes do amanhecer. Estava em vigília quando senti que desprendia de meu corpo físico. Embora este fato estivesse se tornando rotineiro, sempre me espantava com a sensação que me envolvia antes da passagem se efetivar. A dormência que tomava conta de mim chegava a me amedrontar. -- Se bem vindo, prezado Augustus. Saudou-me a voz agora já conhecida. -- Não posso permanecer aqui, tenho que zelar por um amigo. -- Está aqui justamente por isto. -- Mas ele está... -- Aqui! -- Onde? -- Venha. Como das outras vezes, o ambiente só começou a ganhar contornos definidos após minha conscientização de já não estar mais no plano físico. Lentamente fui reconhecendo os disformes aspectos do local. Estava no vale dos suicidas. -- O que Set faz aqui? -- Este é o local para onde vêm àqueles que atentam contra própria vida. -- Mas ele ainda vive! -- O que não o isenta da responsabilidade de ter afrontado o dom maior de nosso Criador. -- Onde posso encontrá-lo? -- Levarei onde ele se encontra. Desde a primeira vez que Darkness nos levou até aquele local, senti a mais intensa repulsa. Nada que havia naquele vale me atraía. Se por um mísero instante houvesse, alguma vez, pensado em por um fim a minha existência, a visão daquele local diluiu qualquer possibilidade de vir a cometer tamanha bobagem. -- Veja! A visão que tive encheu-me de terror. Em meio a milhares de cabeças semi descobertas, reconheci o semblante angustiado de Set. Nem mesmo o menor indício do resto de seu corpo.

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vivificavam.

-- Os suicidas encontram-se sepultados. -- Como? -- Seus corpos são cobertos por este solo viscoso. -- Por que? -- Porque sua covardia escondeu a sublime luz que os

-- Set ainda não cometeu suicídio! -- Ainda não! -- Se depender de mim, jamais cometerá! -- Não depende. -- Então o que estou fazendo aqui? -- Precisam conversar. -- Como? -- Vá até aquela saliência e espere. Sem compreender direito como o diálogo poderia ser estabelecido, dirigi-me até o local indicado. Em silêncio aguardei pelo encontro. Pela primeira vez senti um enorme desejo de rezar. Automaticamente comecei a sussurrar uma velha prece. -- Hades! -- Set! -- O que faz aqui? -- Vim para vê-lo. -- Não deveria ter vindo. -- Sabe que não abandonamos nossos amigos. -- Sei. -- Então? Sobre o que falaremos? -- Não sei. Não tenho vontade de falar sobre nada. -- Podemos falar sobre o grupo. -- O que tem o grupo? -- Estamos sentindo sua falta. -- Também sinto falta de todos. -- Então? -- O que? -- Por que não volta? -- Ainda não consigo. -- Mas sabe que precisa voltar. -- Sei. Só não sei como? -- Não somos seus parentes. Somos sua família, mas não parentes. -- Eu sei.

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-- Não há cobranças entre nós. Sempre respeitamos a individualidade de todos. -- Não sabe o bem que tudo isto me faz. -- Se lhe faz tanto bem, por que insiste em permanecer prisioneiro neste vale medonho? -- Talvez se Darkness... -- Darkness lhe deu as diretrizes, deve usá-las se quiser realmente deixar este inferno! -- Sinto-me tão fraco. -- Mas não é! Lembra-se de todas vezes que formamos o círculo? -- Sim. -- Pois então, não se lembra da força que gerávamos? -- Mas estávamos juntos. -- Ainda estamos. O limiar da compreensão de Set brotou como se fosse um clarão a surgir daquele solo lodoso. A luminosidade foi tamanha que cheguei a perder, momentaneamente, a visão. Ao recobrá-la, Set me olhava com ar suplicante. -- Ajude-me! Sem saber o que falar, abracei-o. Assim ficamos por longo tempo. Novamente irmanados. Eve amparando Pandora, eu a amparar Set, Deimos e Mefisto acompanhando Tel e Lilith e Fobos velando pelo corpo desfalecido de Set. Intimamente senti a energia pulsante de Darkness a nos unir. O sol brilhava com todo seu esplendor quando despertei. Arrumei-me como sempre e desci para tomar o desjejum. Antenor me recebeu com euforia. -- Rapaz, pensei que fosse dormir mais que a cama! -- Por que a euforia? -- Seus amigos ligaram. Set recobrou a consciência. -- Quando? -- Hoje pela manhã. -- Não poderia receber notícia mais auspiciosa. -- Vai passar por lá antes do serviço? -- Não dá. Mas passo por lá na hora do almoço. -- Está bem. Vou avisar seus amigos. -- Obrigado. Estou indo. -- Até mais. A manhã custou a passar. A ansiedade é um enervante freio emocional. Cheguei a roer as unhas em alguns instantes. Não estava

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nervoso, apenas ansioso. Já me preparava para ir almoçar quando o telefone tocou. -- Alô! -- Hades! A voz de Deimos soou inconfundível do outro lado. -- Sim. -- Pode vir até a casa de Fobos? -- Agora? -- Se puder. -- Estava indo ao hospital visitar Set. Ele despertou. -- Estamos sabendo. Lilith nos avisou. -- Por que deseja que eu vá até aí? -- Melhor que venha. Não desejo falar pelo telefone. -- Está bem. Estou indo. Muito embora estivesse louco para ir até o hospital, senti que o assunto que Deimos tinha para me falar era sério. Alterando meus planos, segui para a casa de Fobos. O silêncio que me recebeu mostrou que algo muito sério havia acontecido. Sem esperar que alguém abrisse a porta, entrei. Deimos não se encontrava na sala. Vozes abafadas vinham do interior de um dos quartos. Pressenti a tragédia ocorrida. -- Deimos! Chamei ainda da sala. -- Estamos no quarto de Pandora. Deimos respondeu-me com uma voz cansada. Segui até o quarto e entrei. -- Olá! -- Entre. -- O que tem para me contar? -- É melhor se sentar. Sem questionar a sugestão dele, sentei-me e esperei que ele me contasse o que se passara. Em poucas palavras fiquei sabendo sobre o acidente com Tim. O que não disseram, pois nem eles ainda sabiam, foi sobre as complicações oriundas da queda. -- Como está Pandora? -- Eve está com ela. -- E Tel? -- Dormindo. -- Vou até o hospital! -- Não se esqueça de telefonar nos dando informações mais recentes. -- Pode deixar, assim que as tiver eu ligo.

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Mesmo acreditando que minha presença seria desnecessária, uma vez que Eve se encontrava por lá, segui meus instintos. Passei por uma padaria e comprei algumas guloseimas. A distância não era grande e tinha ainda algum tempo para gastar. Cheguei ao hospital e procurei por informações a respeito da localização de minhas amigas. Com a colaboração de uma atendente, consegui encontrá-las. -- Boa tarde. Saudei anunciando minha entrada. -- Hades! -- Como estão? -- Um tanto passadas. -- Trouxe algumas guloseimas. -- Não estou com fome. Pandora se manifestava pela primeira vez. -- Eu sei, mas precisa comer algo. -- Hades tem razão. Não comemos nada desde ontem. -- Não quero. -- Não seja infantil. Sabe que precisa ser forte. -- Não seja tão dura comigo. Falou Pandora em tom choroso. -- Não estou sendo dura, apenas procuro trazê-la a realidade. -- Está bem. Dê-me qualquer pedaço. -- E quanto a Set? Eve perguntou virando-se para mim. -- Ele recobrou a consciência. -- Ótimo! -- Ainda não o vi, mas Lilith ligou bem cedo informando sobre isto. -- Por que o olhar indefinido? -- Pensei que encontraria Darkness por aqui. -- E por que haveria de encontrá-lo aqui? -- Sei que ele está próximo. Pude sentir que ele me acompanhava quando fui até Set. -- Foi até Set? Resumi os fatos ocorridos durante a noite. Eve sorriu quando terminei. Não fora a toa que ela havia me solicitado que permanecesse em contato com Set. Ela sabia muito bem o que iria ocorrer. -- Agora Set vai precisar muito mais de sua companhia. -- Eu sei. -- Só que antes de cuidar de Set, precisa fazer um contato. -- Mais um! -- Quem mandou ser tão especial! Há muito que não via Eve se mostrar tão descontraída.

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-- Tudo bem, ama, quem tenho que contatar? -- Tim. -- Algum problema com o menino? -- Temos que sondar o lugar onde sua mente se encontra. -- Tem alguma pista? -- Não. Teremos que sentir sua vibração. -- Quando? -- Esta noite. -- Tudo bem. Vou me preparar para o contato. -- Não se atrapalhará no serviço? -- Não. Engraçado, depois que minha mente ficou meio embaralhada, com panes momentâneas, sinto que ela ficou mais lúcida. -- Efeito retardo. Todos que se conectam as energias superiores passam por isto. -- No começo tive medo de não voltar mais ao normal. -- Mas aí é que estava seu erro. Agora você está normal, antes faltava a conexão. -- Eu sei. -- Bem, tenho uma amiga para auxiliar. Eve falou apontando para Pandora que parecia alienada de tudo. Este contato será mais trabalhoso. -- Não se eu conseguir trazer Tim de volta. -- Não queira assumir tarefa que não lhe cabe. Deve apenas localiza-lo. A tarefa de trazê-lo de volta pertence a outro. -- Conhece-o? -- Sim. A resposta de Eve foi dada envolta em um tom sofrido. Talvez a pessoa a quem ela se referira houvesse lhe causado algum desconforto. Muito embora ela não fosse uma pessoa que guardasse rancor, às vezes é difícil afastar as sensações que algumas lembranças despertam em nós. -- A hora é esta! Anunciei. Tenho que ir. -- Vai visitar Set? -- Antes de ir para o club dou uma passada por lá. -- Peça para Fobos e Lilith terem um pouco de paciência. A situação ficou um pouco complicada. -- Pode deixar. Eles entenderão. O dia seguiu seu curso normal. As ocupações com os assuntos da empresa não conseguiram afastar-me de minhas obrigações mais importantes, decidi não ocupar minha mente com nenhum assunto mais grave. Precisava manter-me sóbrio.

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A noite fui para o hospital colocar Lilith e Fobos a par dos últimos acontecimentos. Já sabendo que Set se restabelecia, deixei o hospital e fui para casa. Ao chegar ao club, quis ir direto para meu quarto, porém Antenor tinha outros planos. -- Hei, tá pensando que aqui é a casa da mãe Joana? -- Oi? -- Vai entrando assim em surdina, nem um olá ou boa noite? -- O que está pegando? Sempre entro sem anunciar. Não quero atrapalhá-lo no atendimento aos clientes. -- Oh, muito louvável sua atitude. O olhar debochado de Antenor era o único indício de que ele não estava cobrando atitude alguma. Venha até aqui seu pirralho! -- O que quer? -- Por que não me contou sobre o acidente com o menino? -- Como soube? -- Seus amigos ligaram procurando por você. -- Estava muito envolvido. Nem me passou pela cabeça ocultar o acidente, só não tive tempo para contar-lhe. -- Sei. Como ele está? -- Não sei. Deixei o hospital antes que o médico houvesse informado a respeito. -- E a menina? -- Pandora? -- Quem mais? -- Ela está inconformada. Eve terá muito trabalho para confortá-la. -- Esta outra guria é meio estranha, não? -- Eve é um amor de pessoa. A mais equilibrada de nós. -- Isto não deve ser muito difícil. Vocês são um bando de desajustados! Zombou Antenor. -- Desajustados! Bela imagem você faz de nós. Apesar dos fatos, deixamo-nos contagiar por uma sonora gargalhada. Antenor não tinha qualquer tipo de preconceito. Aceitará o grupo como uma extensão de sua família, elemento que, na verdade, faltava em sua totalidade uma vez que era só. Deixei-o entretido com o movimento dos clientes e subi. Ainda tinha que me preparar para o contato. Não sabendo onde e em que estágio Tim se encontrava, seria complicado estabelecer o contato. Como um archote a iluminar-me a razão, a confiança que Eve demonstrara. Depois das informações que o médico forneceu, Eve decidiu que era melhor Pandora voltar para casa. Não via nenhum motivo para que

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ela permanecesse ali. Mas a determinação da amiga a fez recuar. Como condição para que ela ficasse ali, exigiu que ela se controlasse. -- Não pode ficar aqui se começar a ter um ataque a cada minuto. As pessoas que trabalham aqui têm mais o que fazer do que ficar dando atenção aos seus chiliques. -- Chiliques! Indignou-se Pandora. Como ousa chamar de chiliques minha angústia? -- Tudo bem que esteja angustiada, todos estamos, mas não é por este motivo que vai ficar se comportando como uma garotinha mimada. Não é desse tipo de amparo que Tim irá precisar. -- Ah, a dona sabe tudo. De que apoio ele vai precisar, então? -- De maturidade. De perseverança e, principalmente, serenidade. -- Para que? Para poder suportar a idéia de que jamais voltará a andar? Para poder agüentar a dor de saber que nunca mais será uma criança normal? -- Onde está a normalidade que tanto alardeia? -- Onde! Em poder correr pela rua, em poder correr atrás de uma bola, subir em uma árvore... -- Exato! Em ser moleque. Que é aquilo que ele fazia quando se acidentou. -- O que está querendo dizer? -- Estou tentando lhe mostrar que Tel não teve culpa alguma no que aconteceu. Ninguém teve. -- Não estou preocupada com Tel. -- Mas deveria estar. Ela é nossa amiga e está se sentindo muito mal com tudo isto. -- Se ela não houvesse deixado meu irmão largado. -- Sabe que ela não fez isto. Não faz muito tempo que deixou de ser criança. Sabe muito bem o quanto é difícil segurar uma criança, ainda mais sendo um menino. -- Pode até ser, mas ela tinha a obrigação... -- Não! Tel não tinha obrigação alguma! Ela se ofereceu para cuidar do Tim porque gosta dele. -- Gosta tanto que o deixou se arrebentar. -- Pandora, não seja tão injusta! Espero que não deixe a dor sufocar sua razão. -- Espere aí! Gritou Pandora ao perceber que Eve deixava o quarto. Pensa que pode soltar todo seu repertório de acusações e sair assim?

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-- Não acusei ninguém, ao contrário de você, só estava tentando lhe abrir os olhos. O que aconteceu com Tim, aconteceria se fosse você a vigiá-lo ou mesmo se ele ainda estivesse junto a seus irmãos. -- Como pode saber? -- Eu o sei! A voz de Eve assumiu tom tão sobrenatural que Pandora não se manifestou. Por um momento pareceu-lhe que Darkness havia se comunicado através de Eve. Sentiu seu corpo ser dominado por arrepiante sensação. -- Agora quero ficar a sós com meu irmão. -- Ótimo! Espero que aproveite o silêncio e a solidão para refletir sobre sua atitude. Lembre-se do quão injustiçada já foi é se coloque no luar de Tel. Ela não merece sofrer tudo aquilo que repudia com tanto vigor. Eve deixou a amiga sozinha. Sentia que ela se entregava a uma luta muito ferrenha. Mesmo não querendo admitir, Pandora sabia que Eve tinha razão. O único obstáculo para que ela se conscientizasse disto era a dor profunda que não abrandava. Enquanto ela se dirigia para casa, eu me concentrava e tentava estabelecer contato com Tim. Havia uma energia destoante que estava atrapalhando minha tarefa. Sem conseguir identifica-la, prolonguei ao máximo minha tentativa de mentalização. Exausto, fui obrigado a desistir. Sem compreender o que se passava e sentindo-me impotente, liguei para Eve. Seu pai atendeu informando que a filha ainda não havia voltado. Solicitei que ela entrasse em contato tão logo chegasse. Era muito importante falar com ela o mais rápido possível. Inconformado com meu fracasso fiquei tentando compreender porque falhara. Repassei as lições que Darkness nos havia dado e analisei todas as fases. Não havia negligenciado nenhuma delas. Por que o contato havia falhado? Indiferente a tudo que enfrentávamos, o ser etéreo que habitava nosso meio utilizando-se da entidade Tim, vagava por um plano estranho. Sem a companhia de mais ninguém, ele andava a esmo. Não fazia a menor idéia de quanto tempo já se encontrava ali, nem mesmo que lugar podia ser aquele. Sua última lembrança reportava o momento em que sentiu a telha romper-se sob seu peso e seu corpo desabar sobre o chão. Como um fantasma ele avançava por entre a paisagem. Se não podia dizer que era um ambiente bonito, ao menos hostil ele não era. Estéril, mas ao menos seguro, foi o pensamento que nasceu em seu íntimo.

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Andando pelo local, lembrou-se dos desertos que tanto o encantavam. De todas as aulas que assistira, a que mais lhe empolgou foi aquela quando sua professora lhe falou a respeito das regiões desérticas. Sentiu-se tão atraído por elas que pediu a irmã que lhe comprasse um livro sobre o assunto. -- Por que quer um livro sobre os desertos? Havia lhe perguntado Pandora. -- Eles são mágicos! -- Como assim? -- Nunca sentiu a paz que emana dos desertos? Onde mais seria possível encontrar ambiente mais tranqüilo? -- Bem, nós nos acostumamos a procurar os cemitérios. -- Não, não! Ali se encontram muitas energias concentradas. Não pode ser tranqüilo o suficiente. -- O que sabe sobre as energias? -- Nada. -- Mas acabou de falar... -- Acabei de falar que prefiro os desertos. -- Não temos desertos por aqui. O local mais solitário são os cemitérios. Especificamente a noite. -- Para mim não serve. -- Pois trate de se contentar com o que temos. Não posso lhe dar tudo que pede. -- Não lhe pedi nada, quer dizer, só lhe pedi que comprasse um livro sobre desertos. -- Desertos! Está bem. Amanhã irei até a livraria ver se encontro algum livro sobre desertos! Tim havia se entusiasmado com decisão da irmã. Poder ler mais sobre seu ambiente predileto era tudo que desejava. Conhecer as características comuns ao selvagem ambiente seria o máximo. No entanto, agora que estava perambulando por um deserto lembrou-se de que não havia tido tempo de receber o livro. Nem mesmo sabia se a irmã havia encontrado o que pedira. A queda do telhado devia ter mexido com sua cabeça, esta era a única explicação para estar ali. Não encontrava outra que lhe fizesse entender como podia estar vagando sem que encontrasse viva alma. E nem estava se referindo a humanos. Depois de algum tempo, estranhou o fato de não poder encontrar um único espécime vivo. Nem animal nem vegetal. Sua vista começava a se cansar e seu corpo sentia os esforços de se locomover naquele ambiente seco e rude. Estava prestes a perder a consciência quando um estalo soou em sua mente. Sono! Muito sono!

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Agora começava a entender tudo. O tombo o havia feito dormir. Só podia ser isto, estava dormindo. Ao constatar aquela realidade, perguntou-se se alguém o havia encontrado ou se ainda se encontrava caído entre os restos do telhado que desabara com ele. Procurou por algum ferimento que lhe mostrasse a gravidade de seu estado, mas nada. “É claro! Onde já se viu se machucar em um sonho!” Pensou. Sentiu-se mais aliviado ao concluir que estava sonhando. Chegou a sorrir de sua limitada capacidade de compreensão. Começava a se sentir mais calmo com tudo quando pareceu ter visto um brilho dourado a cintilar não muito longe do local onde se encontrava. Lentamente seguiu na direção do brilho. À medida que ia se aproximando, foi se admirando do contorno que o brilho assumia. A silhueta bruxuleante de um homem parecia tornar-se cada vez mais nítida. Quem poderia ser? Já havia se aproximado o suficiente para ver com mais clareza e o que conseguiu ver lhe deixou pasmo de assombro. O que lhe parecera um homem, a princípio, se mostrava portador de um par de asas imponente. -- Olá! Tentou chamar a atenção do estranho. O silêncio não se alterou. Nem mesmo um único movimento. O estranho parecia não tê-lo ouvido. -- Olá! Voltou a chamá-lo. Desta vez o estranho voltou-se em sua direção, contudo sem nada dizer. O brilho que emanava dos olhos do estranho o atingiu em cheio. Uma paz inefável foi se fazendo sentir em seu íntimo. Começou com um pequeno tremor depois foi se avolumando até não deixar mais espaço algum para ponderações. -- Oi. -- Oi. Ao ouvir a voz do estranho ecoar por todo espaço, Tim sentiu que estava diante de um ser maravilhoso. O timbre que ressoava, muito depois do monossílabo haver sido pronunciado, deixou-o encantado. -- Quem é você? -- Um amigo. -- Um anjo? -- Não. Não sou um anjo. -- Mas essas asas... -- Deseja que as faça sumir? -- Não. Elas não me incomodam, apenas pensava que apenas os anjos as tivessem. -- Pois agora já sabe que não.

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sozinho.

-- Como se chama? -- Darkness! -- Nossa, o amigo de minha irmã! -- Pois é, como havia falado sou um amigo. -- O que faz aqui? -- Talvez fosse melhor perguntar-se o que você faz aqui. -- Como assim? -- Não acha estranho estar em um lugar tão esquisito? -- Não é um lugar esquisito. É um deserto. -- Oh, sim! Mas o que um garotinho faz aqui? Ainda por cima,

-- Sei lá. Estava andando. -- Para onde ia? -- Também não sei. -- Como veio parar aqui? -- Não acha que já fez perguntas demais? -- Está certo. Não vou mais fazer qualquer pergunta. Durante algum tempo apenas o silêncio dominou a paisagem. Neste meio tempo Tim ficou observando o estranho tentando sondar-lhe os mais recônditos segredos. Era um desafio e tanto. Todos nós do grupo já havíamos tentado. -- Sei lá, mas você me parece ser muito estranho! -- Não faz idéia do quanto já ouvi esta frase. -- Por que entrou em meu sonho? -- Acredita mesmo que está sonhando? Darkness lembrou-se da palavra dada. Desculpe-me, foi sem querer. -- Tudo bem. Acho que não tem como conversarmos sem que alguma pergunta seja feita, não é? -- Talvez. -- Sei que estou sonhando porque moro muito longe de qualquer deserto. Assim, se estou andando por um, só posso estar sonhando. -- Muito lógico. -- É. Lógico demais, não acha? -- Talvez. -- Quer saber por que estou dormindo? -- Eu já sei. -- Como? -- Você estava caminhando sobre um telhado e caiu. -- Como pode saber? -- Eu sei de muitos fatos que acontecem aqui e ali.

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-- Você é um bruxo? -- Também já fui chamado assim. Mas não, não sou um bruxo. -- Assim você me confunde. -- Então me faça uma pergunta que possa elucidar sua dúvida. -- Que lugar é este? -- Esta é fácil. Posso lhe fazer uma pergunta? -- Outra né, pois esta você já fez. Darkness não teve como não rir da espontaneidade de Tim. -- O que sabe sobre a vida? -- O que? Não pensa que seja uma pergunta muito difícil para um garoto como eu? -- Não. Independente da idade, todos têm uma maneira de ver a vida. -- Está bem. Para mim a vida era uma chatice. Um amontoado de dias que não significavam nada. -- Se era, isto quer dizer que já não é mais. -- Não. Agora tenho a companhia de minha irmã. Ela me ensina muito. -- Pandora é uma moça muito fechada. Tem um segredo muito grave que não deseja compartilhar com ninguém. -- Eu sei sobre ele. Era apenas uma criança quando ele aconteceu, mas sei de tudo. -- O que pensa a respeito? -- Que meu pai e meus irmãos foram uns animais. -- Para seu governo, posso falar assim, não? -- Pode. -- Pois é, para seu governo, nunca vi animais agirem dessa forma. -- Não quis ofender os animais. -- Eu sei. Só queria chamar sua atenção para este detalhe. Não somos animais. Embora o corpo que nos sirva de instrumento para podermos viver na matéria tenha origem animal, somos muito mais que isto. -- Como assim? -- Nunca se perguntou o que nos mantêm vivos? -- Já. Muitas vezes. -- Qual a resposta que obteve? -- Nosso espírito. -- Muito bem! Mas o que é o espírito? -- Hum... esta é difícil! -- Não. Esta é mais fácil que a anterior.

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morre.

modo.

-- Pode ser, mas não sei a resposta. -- Sabe sim, só não se lembra. Quer vir comigo? -- Para onde? -- Para o local aonde os espíritos vão quando seu corpo físico -- Eu morri? -- Não. Sua hora ainda vai demorar a chegar. -- O que vamos fazer lá, então? -- Se deseja lembrar-se do que seja o espírito, não tem outro

-- E se eu não quiser? -- Então o deixo só. -- Está bem, vamos lá. Enquanto Tim e Darkness iniciavam uma viagem de revelações, eu continuava tentando entender o porque de haver falhado. Estava tão concentrado que quando o telefone tocou fui tomado por sobressalto. -- Alô! Soou a voz inconfundível de Eve. -- Oi. Ainda bem que ligou. -- O que houve? -- Tentei contatar Tim, mas falhei. -- Hades, Hades! Por que é tão precipitado? -- Não fui precipitado. Fiquei horas tentando, só desisti quando me senti cansado. -- E o que fez então? -- Fiquei tentando descobrir porque falhara. -- Melhor seria se tivesse ido dormir. -- O que? -- Já pensou que estando tão estafado por tentar contatar Tim, não demoraria muito em pegar no sono? -- Mas não desejava dormir. -- E, no entanto, este seria o caminho mais fácil para contatálo. -- Como assim? -- Nossas energias se condensam quando as alimentamos. Se tivesse adormecido, o primeiro local que seu corpo astral iria percorrer é exatamente onde Tim se encontra. -- Não havia pensado nisto. -- Pois então, aproveite a noite e durma. -- Estará lá? -- Não. Tenho que cuidar de outra pessoa.

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-- Pandora? -- Sim. -- Então está bem. Vou para a cama. -- Ótimo! Tenha bons sonhos! Eve sorriu ao terminar a frase. -- Engraçadinha! Assim que Eve desligou, me pus a perguntar por que havia sido tão burro? Como fui me esquecer o detalhe da condensação da energia? Tim poderia estar necessitando de minha ajuda e eu me deixava levar por uma cisma ridícula. Sem querer perder mais tempo, deitei-me e esperei que o sono viesse. -- Veja! Falou Tim apontando para um imenso lago. Como vamos atravessá-lo? -- Sabe nadar? -- Sei. -- Podemos nadar, esperar pelo barco ou... -- Ou? -- Passarmos sobre ele. -- Você está querendo dizer voar? Disse Tim incrédulo. -- Mais ou menos. -- Não tenho asas como você. -- Não precisa delas. -- Como posso voar, então? -- Aqui tudo acontece de acordo com aquilo que está em sua mente. Vê o lago? -- É claro! -- Pois foi sua mente quem o criou. -- Espera aí, está querendo dizer que eu criei tudo que estamos vendo? -- De certo modo, sim. -- Essa não! -- Por que o espanto? -- Como posso ter criado tudo isso? Acaso está dizendo que sou algum deus? -- Não. Mas enquanto estiver aqui, tudo que sua mente imagina, torna-se visível. -- Real? -- Eu disse visível! -- Não dá no mesmo?

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-- Não. Caso estivéssemos acompanhados por outras entidades, cada uma delas poderia estar percebendo o ambiente de um modo particular. -- Como assim? -- Cada um só pode ver aquilo que está em sua mente. Não poderia compartilhar o mesmo cenário que outrem. -- Sei não, está ficando cada vez mais confuso. -- Descreva-me o lago que vê. -- Hum, ele é enorme. Tem as águas um pouco turvas, acredito por que deva ser muito fundo. Não apresenta movimentos. Deve ser habitado por muitos peixes, pois existe uma quantidade muito grande de aves ao seu redor. -- Não havia notado a presença delas antes, não é? -- Não. O que isto tem haver? -- Disse que são muitas. -- Sim. -- Como poderia não ter notado a presença delas? -- Sei lá! -- Só notou a presença das aves quando passou a imaginar como era o ambiente ao redor do lago. Antes havia imaginado apenas o lago. -- Isto é loucura! -- Não. Isto é o que as pessoas costumam erroneamente chamar de mágica. -- Ah, sim, agora sou um mágico! -- Tanto quanto sou um anjo. -- Mas... -- Vejamos. Como disse que poderíamos atravessá-lo? -- Nadando, esperando o barco ou voando. -- Certo. Agora me diga se é capaz de ver algum barco nas águas do lago. -- Não. -- Muito bem. Dê-me suas mãos. -- O que? -- Suas mãos. -- O que pretende? -- Espere e verá. Assim que Tim estendeu seus braços, Darkness assumiu a posição que adotávamos quando formávamos o círculo. Mão direita sobrepondo-se a mão esquerda. Tim Olhou-o espantado. -- O que faz?

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muito longe.

-- Psiu! Feche os olhos. Mal fechara os olhos e Tim pensou ter ouvido um longo silvar

-- O que foi isso? -- Continue com os olhos fechados. Sinta a brisa que sopra do lago. Consegue distinguir o aroma que ela carrega? -- Rosas! São rosas. -- Apenas o odor. Agora respire o mais fundo que conseguir e depois abras os olhos. Tim inspirou o adocicado aroma das rosas que dominava o ambiente. Sentiu como se estivesse num imenso jardim todo tomado por inúmeras roseiras. Sentiu que seria capaz de ver todo esplendor das rosas em suas múltiplas espécies assim que abrisse os olhos. Para seu assombro, foi justamente o que viu. -- Mas... mas... onde está o lago? -- Ficou para trás. -- Como o atravessamos? -- Esqueci de lhe dizer que havia um outro modo de transpôlo. -- Outro? -- Sim. Não precisamos nos locomover como se estivéssemos na Terra. Aqui podemos... vamos dizer... nos teletransportar. -- Uau! Não acredito! -- Controle o entusiasmo, garoto. Se não souber como utilizar as energias, corre o sério risco de jamais voltar. -- Como? Posso ficar preso aqui? -- Quase isso. -- Não me importaria em não voltar mais. -- Mesmo? -- Mas sem a menor dúvida! -- Pensei que demoraria mais para esquecer-se de sua irmã. -- Minha... Pao... Pandora! -- Ah, ainda se lembra! -- Como pude esquecê-la? -- Ainda não a esqueceu. -- De repente era como se nada mais existisse. -- Eu sei. Este é o risco que correm aqueles que vêm para cá inadvertidamente. -- São muitos? -- Felizmente não. -- O que acontece com eles?

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-- Seus corpos físicos acabam morrendo e eles são obrigados a irem para um local onde terão que aprender que aquilo que fizeram não é correto. -- E se não aprenderem? -- Não se preocupe. Aqui terão muito tempo para isso. -- Ainda não entendi o motivo de estarmos aqui. -- Não quer saber o que são os espíritos? -- Ah, eles! -- Quer ou não? -- Até agora não vimos mais ninguém. -- Feche os olhos. -- De novo! -- Feche! Ao voltar a abrir seus olhos, o que Tim pôde contemplar deixou-o ainda mais admirado. Estavam em uma espécie de vila. Ao menos foi o que pensou ao ver uma dezena de casebres espalhados por um verdejante vale. -- Onde estamos? -- Aqui é uma vila de transição. -- Para que serve? -- É um dos muitos locais para onde uma alma vai quando seu corpo morre. -- Aqui vamos encontrar os espíritos? -- Não. Mesmo os mais evoluídos precisam de corpos auxiliares. -- Por que estamos aqui, então? -- Porque aqui se encontra uma alma que pode lhe mostrar com mais clareza, a verdadeira essência de um espírito. -- Pensei que fosse o sabe tudo. -- Eu! Ainda tenho muito que aprender. -- Onde a encontramos? -- Aqui. -- Eu sei que ela está na vila, mas onde... -- Aqui. Soou uma voz maviosa ao lado deles. -- Quem é você? De onde veio? -- Pode me chamar por Lia. Sou a orientadora do local. -- Você vai me explicar o que é um espírito? -- Melhor que isto. Vou lhe mostrar um. -- Mas Darkness havia dito que... -- Darkness não sabia que estamos para vivenciar um momento muito especial.

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-- Poucos já assistiram ao que veremos. Completou Darkness. -- O que veremos? -- O momento em que uma alma morre. -- As almas morrem? -- Sim. Assim como o corpo físico, a alma também é um corpo auxiliar. Ela serve para que o espírito possa manifestar-se neste plano. -- O que acontece depois? -- Quando um espírito se desenvolve plenamente, ele está pronto para retornar a origem. Para isto deve abandonar seu corpo auxiliar e elevar-se para outro plano. -- Ai já é o espírito! -- Ainda não. Mas no momento em que a alma fenece e o outro corpo auxiliar se desprende, podemos vislumbrar o brilho do espírito manifestando a energia que o envolve. -- Quando veremos isto acontecer? -- Agora mesmo. Venham! O fenômeno assistido por Tim foi um acontecimento que jamais o abandonaria. A chama azulada que ele viu brilhar pouco antes do espectro etéreo sumir no éter, o encheu de profunda reverência. -- O que foi aquela chama azul? -- Aquele é o reflexo do espírito que se desenvolveu plenamente. -- Somos uma luz azul? -- Uma chama. -- Darkness! -- Sim. -- Acho que está na hora de irmos. -- Concordo. -- Vamos. -- Não vai agradecer a hospitalidade de nossa amiga? -- Ah, obrigado. -- Não por isto. Ainda estarei aqui quando sua hora houver chegado. -- Heim? -- Lia é um espírito evoluído que tem como tarefa auxiliar na passagem. -- Ah! -- Obrigado pela ajuda, amiga. -- Sempre que desejar é só aparecer. Durante a caminhada que encetaram depois daquele acontecimento extraordinário, nem uma palavra foi proferida. Tim desejava

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rever tudo que havia experimentado desde o momento em que se viu em pleno deserto até aquele singular fato. Estavam caminhando há algum tempo quando ele parou e virando-se para Darkness, disparou: -- Por que me foi mostrado tudo isso? -- Para que possa compreender que a vida é muito mais que o frágil momento que vive na matéria. -- Já sei. O tombo que sofri foi mais grave que podia suportar. Está me preparando para revelar que morri. -- Já falei que não morreu. Ainda tem um longo percurso a vencer na matéria. -- Mas então... -- Então que precisará de muita determinação para enfrentar aquilo que o espera quando retornar. -- É algo muito grave? -- Depende de como você reagir. -- Pode me revelar de que se trata? -- Terá que passar um longo tempo sem poder caminhar. -- Longo? -- Sim. -- Longo o quanto? -- Esta informação não posso fornecer. -- Por que? -- Porque também não sei a resposta. -- Vou ficar paralítico? -- Por um período. -- Voltarei a andar? -- Sim. -- Então não me importo em ficar um pouco sem me mexer. -- Nada é tão simples assim. -- Por que? -- Lembre-se de que ainda é um menino. -- O que tem? -- Meninos têm muita energia. Sentirá vontade de correr, jogar bola, passear... enfim, desejará fazer tudo aquilo que um menino normal faz. -- Posso superar tudo isto. -- Pode, mas corre o risco de não conseguir. -- Por que?

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-- Porque a cada recusa que a vida nos impõem, nossa primeira reação e a revolta. Antes mesmo que a dor se instale em nossos âmagos, nos revoltamos. -- Não deixarei isto acontecer comigo. -- Diz isso aqui. Mas quando despertar, muito do que experimenta ficará adormecido em sua mente. -- Não me lembrarei de tudo? -- Não. -- De que adiantou tudo isto, então? -- Tudo que lhe foi mostrado, mesmo que permaneça adormecido em seu inconsciente, servirá como apoio para que possa superar os obstáculo que encontrará em sua jornada. -- Mas como, se não me lembrarei de nada? -- Toda vez que se sentir revoltado, uma voz gritará em seu íntimo. Se for capaz de permitir que ela chegue até seu coração, sentirá que há muito mais do que um instante de vida. Então, transformará a revolta em oração e poderá haurir das energias que concedem força para que possa prosseguir sempre. -- Se não conseguir? -- Então será admoestado pelas pessoas que lhe querem bem. -- Minha irmã? -- Creio que sua irmã, a princípio, não tenha condições de ajudar muito. Quem sabe com o passar do tempo. -- Mas então, quem? -- Acredita que estejamos fadados a depender de uma única pessoa? -- Não sei. -- Não. A vida é muito diversificada para colocar tanta responsabilidade sobre um único ser. Ninguém está sozinho. Por mais que possa parecer o contrário, sempre há um exército de auxiliadores a nos amparar. Só precisamos abrir-lhes as portas. -- Que portas? -- As portas que conduzem a nosso âmago. Somente abrindolhes as portas estaremos permitindo que energias benfazejas nos abençoem. -- Como reconhecerei estes auxiliadores? -- Deixe que a sua intuição guie seus passos. -- Intuição? Pensei que isto fosse pertinente às mulheres. -- Elas a tem muito mais desenvolvida que os homens, mas não são as únicas. Todo ser humano é dotado de intuição. -- Vou tentar. -- Eu sei que vai.

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você é!

-- Está chegando a hora, não é? -- Está. -- Antes de irmos, posso lhe fazer uma última pergunta? -- Faça quantas ainda achar necessário. -- Quem é você? -- Um amigo! -- Eu sei, você já disse. O que quero saber é quem realmente

-- Por hora basta saber que sou um amigo. -- Não vai revelar sua verdadeira identidade? -- Quando a hora houver chegado saberá quem sou. Durante todo o tempo que Tim e Darkness mantiveram contato, permaneci a distância. Sabia que ele havia notado minha energia em união com as deles. Mesmo a distância, recebi o retorno do contato. Ao amanhecer, decidi passar pelo hospital antes de ir para o trabalho. Sabendo que Set já se encontrava em processo de restabelecimento, fui para onde Tim estava. Ao encontrar Eve a velar por Pandora, observei que ela estava no limite de suas forças. -- Olá, amiga! -- Olá, Hades. -- Como estão? -- Pandora ainda está muito ressentida. -- E Tim? -- Ainda na mesma. -- Darkness está de volta. -- Como? -- Ele esteve com Tim, esta noite. -- Não senti a presença dele. -- Está tão absorvida pela energia de Pandora que deve ter se desligado. -- Pode ser. -- Tim logo irá despertar. -- Ele lhe disse isto? -- Não. Não cheguei a participar do encontro entre eles. Apenas comunguei suas energias. -- Ah! Sabe quando ele irá despertar? -- Não. Mas penso que seja em breve. -- E Set? -- Vou passar por lá antes do serviço. -- Lilith e Fobos devem estar esgotados.

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expediente.

-- Hoje irei ficar no lugar deles. Amanhã não haverá

-- Deve estar tão cansado quanto nós. Tem partilhado suas energias todas essas noites. -- Tudo bem. Agora estou começando a compreender aquele lance do é dando que se recebe. Quanto mais energia eu compartilho, mais energia eu consigo assimilar. -- Ora, ora, quem diria, meu amigo Hades está amadurecendo! -- Só você para fazer comentário semelhante. -- Sabe que estou brincando. Você é muito especial para mim. -- Eu sei. -- Agora vá. Precisa avisar Lilith e Fobos sobre hoje a noite. -- Está certo. Depois eu ligo. -- Tchau! Ao deixar o prédio senti um vento roçar meu corpo. Instantaneamente, soube que Darkness havia chegado. Eve ficaria radiante. -- Olá, princesa! -- Dark! A ausência prolongada de Darkness havia deixado um vazio dentro do coração de Eve. Assim que o viu, correu e se jogou em seus braços. -- Senti tanto sua falta. -- Também estava louco de saudades. Apesar de se encontrarem em um hospital, as emoções falaram mais alto. Sem pensarem em nada, entregaram-se a prolongado beijo. Finalmente Eve sentia que tinha sua luz de volta. -- Hei, dá para pararem com esta sem vergonhice! Esbravejou Pandora mais de brincadeira do que a sério. -- E aí, garota, como vai? -- Emburrada! Eve adiantou-se a Pandora. -- Uma ova, sua bandida! Só estou meio por baixo. -- Porque quer. -- Hei, parem com a briga. Deste jeito vou achar que não fiz muita falta. -- Não fez mesmo! Zombou Pandora. -- Neste caso, já vou indo. -- Não. Eu estava brincando. -- Eu sei. Adoro me fazer de difícil. O riso foi geral. Quando o médico entrou no quarto, admirouse duplamente. Primeiro por encontrar Pandora sorrindo e segundo pela presença daquele estranho.

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entrar.

-- Parece que o ambiente está melhorando! Comentou ao

-- Finalmente nosso guru voltou. Pilheriou Pandora. -- Ah, então este é o status do senhor... -- Darkness! -- Darkness? -- Isso. Os olhos do médico mediram Darkness de cima em baixo. Sua surpresa atingiu o ápice ao ouvir seu nome. Intimamente perguntou-se como alguém poderia ter um nome destes? -- Vai entender as mães. Falou Darkness. -- Como disse? -- Meu nome. As mães as vezes nos pregam cada peça. -- Como sabia que... -- Faz parte de minhas atribuições. -- Guru, você disse! Falou para Pandora. -- É. Mas não se preocupe ele não morde nem faz bruxarias. Quer dizer, nem sempre. -- Já me parece bem mais disposta. Se mantiver este humor durante o dia, poderei lhe dar alta amanhã. -- Só amanhã? -- Tenho que ter certeza de que não está tentando disfarçar sua frustração. -- Não mesmo. Já estou cansada desta prisão! -- Assim você me ofende. -- É minha maneira de me vingar das cutucadas que levei. -- As medicações eram para seu benefício. -- Sei. Já escutava essa desculpa desde que era pequenina. Aquela reação bem humorada dissipou qualquer dúvida que o médico pudesse ter. Pandora havia se livrado da depressão. Liberá-la seria uma questão de tempo. O suficiente para que estivesse totalmente convencido. -- Veio só me visitar ou fazer contato? Perguntou para Darkness assim que o médico deixou o quarto. -- Sabe que o contato não pode ser realizado assim, muito menos aqui. -- Quando? -- Amanhã, quando já estiver em casa. -- Já soube o motivo de eu estar aqui? -- Sim. Seu irmão irá precisar de todo apoio que puder lhe dar. -- O médico disse que ele não vai poder mais andar.

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oito.

-- Os médicos também disseram que Eve não iria passar dos

-- Isto mesmo! As vezes eles podem errar! Animou-se Eve. -- Espero que seja o caso. -- Vamos dar tempo ao tempo. Nada de querer adiantar os acontecimentos. -- Já sei. Tudo tem sua hora! Pandora debochou da lição que Darkness havia dado. -- Esta menina ficou muito abusada. -- Má influência da sua menininha de ouro. -- Pandora! -- Tudo bem, só estou exercitando meu humor. Ao passar pelo outro hospital, informei Lilith e Fobos a respeito de minha intenção de substituí-los à noite. Eles agradeceram e quiseram notícias sobre a situação de Tim e Pandora. -- Ainda está tudo meio conturbado, mas começa a melhorar. -- O que, Tim reagiu? Perguntou Lilith empolgada. -- Não, mas Darkness está de volta. -- Sério? Lilith e Fobos perguntaram ao mesmo tempo. -- Sério. Ele chegou ao hospital quando eu estava saindo. -- Já não era sem tempo. Pensei que ele havia nos deixado para sempre. Comentou Lilith. -- Talvez estivesse querendo nos testar. Supôs Fobos. -- Será? Indaguei. -- Pensem bem. Ele se foi de repente. Sabia que iríamos enfrentar situações cruciais, mesmo assim partiu. -- Mas ele só partiu porque era necessário. Lembra-se que ele falou sobre uma reunião com outros de sua raça? -- Pode ser, mas quem pode comprovar que isto é verdade? -- Será que minha palavra ainda tem algum valor para vocês? Como sempre, não notamos quando ou como Darkness chegara. Só fomos dar conta de sua presença quando ele se manifestou. -- Darkness! Ralhou Lilith. Passa tanto tempo longe e quando aparece tem que ser assim? -- Desculpe-me, majestade. Mas um susto de vez em quando não faz mal a ninguém. -- Pelos céus, finalmente! Clamou Fobos. Emocionados, abraçaram-se comemorando o reencontro. As rusgas que havia entre Lilith e Darkness há muito haviam sido superadas. Quanto a Fobos, ele sempre estimara nosso amigo. -- O que tanto fez enquanto esteve fora? Perguntou Fobos.

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-- Um pouco de tudo. -- Não imagina o sufoco que foi enfrentar algumas situações. -- Sei o quanto andaram ocupados. -- Então estava certo. Você nos testava! -- Não. Pelo menos não foi minha intenção. Realmente tive que deixá-los. Mas só o fiz por saber que seriam capazes de superar as dificuldades. -- Confia tanto, assim, em nós? Espantou-se Lilith. -- Talvez mais que vocês mesmo. -- Já soube sobre os últimos acontecimentos? -- Sim. Ao menos quanto ao fato de saber que andaram até viajando. -- Mas até isto! Exclamou Lilith. -- Embora não saiba detalhes a respeito, sei dos encontros entre você e seus familiares e o mesmo de Pandora. -- Depois diz que não é bruxo! Ironizou Lilith. -- Quanto a Set... Indagou Fobos. -- Este rapaz é um caso a parte. -- O que! Está dizendo que ele é um caso perdido? Questionou Lilith. -- Ainda não. Mas têm que concordar que ele sempre demonstrou uma certa queda para a dramaticidade. -- Set nunca foi dado a agrados. Isto nunca nos aborreceu, pois nenhum de nós sabe o que lhe aconteceu. Informou Lilith. -- Já lhe perguntaram algo a respeito? -- Não! Isto seria invadirmos sua privacidade! Indignou-se Lilith. -- Porém talvez isto servisse para salvar-lhe a vida. -- Como assim? -- Set está vivendo no limite entre a vida e a morte. Qualquer fator desestabilizante pode levá-lo ao suicídio. -- Foi isto que aconteceu. Ele foi visitar a família e deu no que deu. Garantiu Fobos. -- Enquanto vocês, mesmo estando sob pressão, são capazes de superar a angústia que os domina, Set é menos resistente. Ele acredita que o suicídio é uma saída para os problemas que cria. -- Cria? Acha mesmo que criamos nossos problemas? Zangouse Lilith. -- Se quiser observar o cerne de toda situação conflituosa, desde que com a finalidade de resolvê-las, será obrigada a admitir que a origem de tudo está em cada um de nós.

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-- Set originou suas aflições? Perguntou Fobos impedindo que Lilith expressasse sua zanga. -- Lembram-se de quando os levei para a dimensão imaterial? -- Sim. -- Naquela oportunidade mostrei-lhes alguns planos além da matéria. Quem os habitam? -- Nós! Respondeu Fobos. -- Por quanto tempo? -- Muitos anos? Lilith mais perguntou que respondeu. -- Em quantas ocasiões? -- Como assim? -- Já nasceram e morreram, neste mundo, tantas vezes que levaria dias relatando suas experiências. -- Já ouvimos este papo de reencarnação. Informou Lilith. -- Não deram crédito, não é? -- Mais ou menos. Avaliou Fobos. -- Façamos o seguinte, marcarei uma outra reunião em minha casa e poderemos tratar deste assunto. -- Por que não agora? Questionou Lilith. -- Porque suas dúvidas têm a mesma importância que a de seus amigos. -- Darkness está certo. Anuiu Fobos. Podemos esperar. -- Que tal daqui a uma semana? -- Mas Tim e Set... -- É o tempo necessário para que eles também possam participar. -- Sendo assim, creio que esteja bom. -- Ótimo. Informarei aos demais. Ofereci-me. -- Hades! Darkness expressou-se como se realmente estivesse surpreso de minha presença. -- Por que a surpresa? Viu-me ao chegar. -- Então por que insiste em se manter a margem da conversação? -- Sinto que terei mais tempo que todos para conversar com você. -- Está certo. Aceito seu argumento. -- Preciso ir. Se não correr, chego atrasado. -- Hades! Chamou-me Darkness. -- O que? -- Por que não exercita suas potencialidades? -- Como?

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-- Pode estar em seu serviço num piscar de olhos. -- Pode ser, mas não acho aconselhável. -- Neste caso, é melhor mesmo correr. A volta de Darkness nos deixou mais animados. Do trabalho liguei para Deimos e Mefisto informando sobre o ocorrido. Deimos vibrou com a notícia, mas Mefisto mostrou-se um tanto apático. Ultimamente este era seu comportamento mais constante. Assim que entrou em casa, Eve expressou todo seu contentamento pelo retorno de Darkness. -- Ele voltou! Anunciou aos pais. -- O que? Quem voltou, menina? Perguntou-lhe o pai. -- Dark! -- Quem? -- O amigo de nossa filha! Lembrou a mãe. -- Ah! -- Ele não é um simples amigo. -- O que? A mãe e o pai de Eve ficaram pasmados. -- Eu e ele... nós... bem... -- Não! Manifestou-se seu pai perplexo. -- Eve! A mãe se mostrou incrédula. -- Por que o espanto? Sabiam que temos uma afinidade muito grande. -- Sim, isto era de nosso conhecimento, mas daí a... o pai não conseguiu terminar a frase. -- Ah, não! Não vão me dizer que se colocarão contra! -- Filha, começou o pai, tente entender. Não é que não aprovemos um relacionamento, afinal mais dia menos dia isto iria acabar acontecendo, mas por que justo com ele? -- O que tem ele? Perguntou exasperada. -- Nós mal o conhecemos. Mesmo você e seus amigos, que lhe são íntimos, nada sabem a seu respeito. -- E, no entanto ele é muito mais confiável que muitos de seus tão propalados amigos. -- Filha! -- Isto mesmo! Acham que seus amigos os respeitam como pessoas, mas isto é mentira. Eles apenas os adulam pela posição que possuí. Se encheriam de asco caso eles se mostrassem como realmente são. -- Não. Isto já é demais! Bradou o pai. -- Filha, tente compreender... começou a mãe no que foi interrompida.

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-- Não! Tentem compreender vocês. Não têm o direito de colocarem-se entre minha felicidade e eu. Isto não é justo! -- Deixe-nos, ao menos, conhecê-lo melhor. Solicitou a mãe. -- Heim? Surpreendeu-se o pai. -- Isto mesmo! Reforçou a mãe. Traga-o para uma visita. Vamos marcar um jantar ou um almoço. Assim poderemos avaliar melhor seu caráter. -- Não que julgue necessário uma sessão formal para que se conheçam, mas sim, com isto posso concordar. Com uma condição! -- Que condição? Indagou-lhe a mãe. -- Não quero nenhum dos dois travestidos de preconceitos ou hipócritas observações de cunho social. -- Mas que linguajar... o pai ia se manifestando. -- Tudo bem, querida. Pode convidá-lo. Não provocaremos nenhum constrangimento a você ou a ele. -- Então é só dizerem quando. -- No sábado. Que tal? -- Vou conversar com ele. -- Ótimo! Desanimada com a atitude dos pais, Eve subiu para o quarto. Com sua saída, os pais começaram um sisudo diálogo. -- O que deu em você? Como pode abrir nossa casa a um estranho? -- Ele pode nos ser estranho, mas passa a maior parte do tempo ao lado de nossa filha. -- Onde já se viu! Onde foi que falhei? -- Deixe de ser tão trágico. Não há nada de errado em nossa filha se apaixonar. Acaso queria que ela fosse eternamente uma garotinha? -- Mas pelo que ela fala, ele deve ser muito mais velho que ela. -- Mais velho sim, mas quanto não sabemos. -- Ainda assim isto é temerário. Ele pode ser um aproveitador. -- Isto eu sei que ele não é. -- Já conversou com ele? -- Ainda não. Para ser sincera, jamais o vi. -- Então como pode dizer que ele não é nenhum aproveitador? -- Pense o que quiser. Mas eu sei que ele não é assim. -- Você está se mostrando muito cordata com as vontades da menina. Quando vai entender que os médicos estavam errados. Nossa filha é saudável.

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-- Não é isto que está em discussão. Mas sim o fato dela desejar ser feliz do jeito dela. -- Quando o pior acontecer... -- Por que se posiciona tão radicalmente contra algo que não tem como saber se dará ou não certo? Não compreende que se posicionando assim afasta nossa filha e a faz optar por abandonar-nos! Sem esperar pela argumentação que o marido faria, a mãe de Eve abandonou a sala indo chorar em seu quarto. Seu último pensamento acabou abalando a certeza do marido. E se sua filha decidisse partir com o estranho? Podia até impedi-la, uma vez que ainda era menor, mas será que estaria disposto a pagar o preço que esta atitude acarretaria? De onde estava Eve ouviu todo diálogo. Fosse antes teria descido e gritado todos desaforos que conhecia e afrontado o pai com todas suas forças. Porém, a união com Darkness a tornara mais madura. Já não via mais as pessoas como antes. De repente fechou os olhos e viu Darkness repetindo sua frase predileta: “-- Não podemos exigir mais do que as pessoas estão preparadas para dar!” Tranqüilamente fechou a porta do quarto e entregou-se aos devaneios comuns a uma menina apaixonada. Mal fechou os olhos e viu Darkness se aproximando. Sua presença era tão viva que quase se iludiu acreditando ser real. Com carinho abriu o caderno e retirou a foto que tinha guardado entre suas folhas. Agarrada a ela, acabou adormecendo. Naquela noite muito seria experimentado. Lilith e Fobos mal conseguiram chegar em casa. Estavam estafados pelos dias e noites passados no hospital. Sem se importarem com mais nada, entregaram-se a merecido repouso. Tel permanecia acompanhada por Deimos. Embora não participasse dos encontros do grupo, passou a fazer parte do dia-a-dia de todos. A única célula destoante parecia ser Mefisto. Sua apatia era visível, porém inexplicável, para nós. Podíamos sentir que toda vitalidade que ele demonstrava de repente evaporara-se. Suas energias estavam em conflito tão intenso que ele não chegava a experimentar noites onde pudesse afirmar que repousara. Seu corpo imaterial vagava por ambientes enevoados. O retorno de Darkness foi uma bênção para ele. Mesmo tendo um sono agitado, naquela noite, o contato foi estabelecido. -- Para onde vai? Mefisto ouviu a pergunta mas não assimilou o fato em si. -- Perguntei para onde vai? Insistiu aquela voz etérea. -- Quem é?

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-- Não sabia que tinha o hábito de olvidar os amigos. -- Não o vejo. Como posso saber quem é? -- Por que não se abre? -- O que? -- Seus amigos estão preocupados com sua apatia. -- O que eles sabem sobre minha vida? Mefisto chegou a ser agressivo em sua fala. -- Deve estar com um grande problema. -- O que pode fazer a respeito? -- Se não se abrir e demonstrar confiança, nada! -- Mostre-se! -- Estenda as mãos. -- Como? -- Vamos, confie! Receoso com aquele fato inusitado, Mefisto demorou-se em atender o pedido da voz. Quando o fez, sentiu seu ser tomado por energia poderosa. Mesmo que tentasse, não seria capaz de resistir aos efeitos magnéticos que ela possuía. Mansamente sentiu ser atraído para um plano além de suas expectativas. -- Sente-se melhor? -- Darkness! -- Por que o espanto? -- Não havia reconhecido sua voz. -- Como se sente? -- Como se houvesse retirado uma montanha de cima de mim. -- Sabe que não existe nenhum problema que não possa ser solucionado. -- Isto pode parecer simples para você, mas nós não temos suas habilidades. -- Engana-se ao deixar tal pensamento dominá-lo. É tão capaz quanto qualquer outro. -- Se fosse assim, não estaria me sentindo tão desamparado. -- Sentir! Não percebe que na grande maioria das vezes seus sentidos o enganam? -- Não possuo o discernimento necessário para separar os enganos dos acertos. -- Neste ponto está absolutamente certo. Este é o motivo de estarmos aqui. -- Aqui onde?

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O assombro de Mefisto se fez muito maior. Ao observar o local onde estavam, verificou se tratar de um imenso campo ermo dominado pelo brilho de um róseo frio e estéril. -- Que lugar é este? -- O quase nada. -- Quase? -- O nada absoluto é um conceito que só pode ser atingido segundos antes de um espírito ser consumido pelas chamas do resgate. Difícil de constatar sua existência. -- Por que estamos aqui? -- Segundo as vibrações que emanam de sua mente, este é o local que criou para você. -- Não! Não criei nada disso! -- Então, vejamos. Tem um grupo de amigos que se importam com sua integridade, estou certo? -- Sabe muito bem que sim. -- Mesmo assim, recusa-se a participar do grupo. -- Nunca me recusei a estar com o grupo. -- Não! Nunca se recusou em estar ao lado do grupo, mas jamais se deixou contagiar pelas energias que eles externam. -- Não posso agir em contrário àquilo que acredito. -- É evidente que não. O que se esquece, é de que também não pode omitir-se e vestir uma máscara apenas para não ficar de fora. -- Não sou assim! -- Ah, é! Sente que os outros o preterem sempre que surge algum fato que considera mais relevante, porém esquece-se de que eles apenas refletem sua disposição em permanecer alheio a estes mesmos assuntos. -- Mas eu tento... -- Uma vez! Uma vez tentou se enquadrar no esquema, mas com que objetivo? -- Eu... eu... eu... -- Sim? -- Eu queria que Pandora gostasse de mim. -- Bravos! Agora sim sei que chegaremos a um lugar! -- Não posso abandonar o grupo. Tenho necessidade de pertencer a algo maior. -- Então por que se recusa a aceitar o grupo? -- Mas eu...

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-- Não! Se não pode admitir para mais ninguém, admita para você mesmo, embora tenha sido adotado pelo grupo, nunca o adotou. Convive com ele, mas não vive o grupo. -- Gosto de todos, mas não me sinto gótico! -- Então por que não se mostra como é? -- Eles não iriam me aceitar. -- Como sabe? -- Eu sinto. -- Deseja permanecer nessa noção infantil ou almeja amadurecer? -- Sei que preciso amadurecer, mas tenho medo. -- Todos nós temos! Amadurecer não é fácil. Muitos podem encarar como um fato banal, mas quando a vida impõe suas lições, acabam balançando e falhando consigo mesmo. -- Ajude-me! -- Venha. Mefisto aproximou-se de Darkness e soube que ele iria libertar sua mente. Sentiu o toque suave das mãos dele apoiar-se em sua cabeça. Num instante, começou a sentir a energia que fluía das mãos a invadir seu íntimo. Darkness o contatava. Durante um tempo que lhe pareceu ao mesmo tempo infinito e ínfimo, Mefisto absorveu as energias que quebravam os grilhões de sua mente. Dor! Dor profunda o dominou. Uma dor tão lacerante que chegou a perder os sentidos. -- Agora está pronto para alçar o vôo que o levará ao conhecimento. Segredou-lhe Darkness. -- Está tudo tão claro! Constatou Mefisto ao recobrar a consciência. -- Já não tateia mais na escuridão. -- Sinto-me leve. Acredito que seria capaz de voar. -- Por que não voa? -- Sério? -- Tente! Atitude típica de adolescentes, Mefisto berrou o mais alto que pode e lançou-se em aleatório planar. Do alto continuava a gritar: -- Estou voando! Estou voando! Darkness observava a reação daquele que era o mais imaturo do grupo. Seu semblante deixou-se decorar por suave sorrir. Apesar das dores que o dominavam, ainda podia experimentar alguns instantes de pura magia. Darkness postou-se genuflexo e proferiu silenciosa prece de gratidão.

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A semana avançou com extrema lentidão. Os fatos se sucedendo enredados em uma rotina abafadora. O único fator que nos deixou um tanto preocupados foi o repentino sumiço de Mefisto. Só não nos desesperamos porque Darkness nos afirmou que ele estava bem. O sábado e domingo serviria para quebrar qualquer sensação de tédio que pudesse estar nos enfadando. A reunião em casa de Darkness estava nos deixando ansiosos. Para surpresa de alguns, ele havia convidado Tel e Tim. Além deste compromisso, havia o jantar em casa de Eve. É certo que não participaríamos, mas sentíamo-nos irmanados aos desdobramentos que adviessem deste fato. Como antecedesse a reunião, o jantar tornou-se o mais ansiosamente aguardado. As dúvidas eram tantas que nem mesmo Pandora conseguiu manter-se alheia ao assunto. Na quinta-feira, quando fomos visitar Tim, ela comentou: -- O que pensam que irá acontecer neste jantar? -- Pode ser que aconteça de tudo ou mesmo não aconteça nada. Sentenciou Fobos. -- Pelo que sei, tomei a palavra, a mãe está mais receptiva que o pai. -- Ele nunca suportou a idéia de Eve pertencer ao grupo. -- Hei, estão se preocupando a toa! Afirmou Lilith. -- De onde tirou tal pensamento? Questionou Pandora. -- Estamos falando em Darkness. -- Heim? Ficamos sem entender o ponto de vista de Lilith. -- Darkness! Entendem? -- Não! Falamos em coro. -- Quem mais seria capaz de meter um pouco de juízo na cabeça daquele turrão? -- Ah! Foi nossa resposta. -- Eu, heim, até parece que falei alguma bobagem. Resmungou Lilith. -- Não é isso, Fobos tentou contornar o assunto, acontece que o pai de Eve não nos engole. Sendo assim, dificilmente dará oportunidade para Darkness demonstrar aquilo que somos. -- Vocês estão se esquecendo que sempre fomos contatados quando estávamos em crise? Que outro fator poderia desencadear crise maior no pai de Eve, do que ter que receber um de nós para jantar? Ainda mais em se tratando do namorado da filha! -- Vendo por esse lado, você pode estar certa. Comentei. -- Que assim seja! Exclamou Deimos expressando toda nossa torcida.

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A mãe de Eve esmerou-se em deixar tudo na mais perfeita ordem. Não desejava que o namorado da filha pudesse ter a menor má impressão que fosse. Já o pai se trancou na pequena biblioteca da casa e se recusou a ver quem quer que fosse. Estava se sentindo derrotado. -- Mãe. Chamou Eve. Papai não vai fazer a desfeita de não jantar conosco, vai? -- Nunca! Nem que eu tenha que arrastá-lo e prendê-lo a mesa. -- Não entendo porque ele se mostra tão contrário a este encontro. -- Filha, tente compreendê-lo. Até antes de você completar dez anos vivíamos dominados pela angústia de pode perdê-la a qualquer momento. Não que já tenhamos nos acostumados com o mal que a aflige, mas agora nossa esperança é mais concreta. -- Mais um motivo para não se oporem. -- Acontece que desde que aventamos a possibilidade de você ter uma vida normal, seu pai começou a estabelecer planos. -- Planos para minha vida! Revoltou-se Eve. -- Filha! Seu pai não difere em nada de outros pais. Todos sonham o melhor para seus filhos. Alguns demoram mais que outros para perceberem que não podemos nem temos o direito de querer viver suas vidas. -- Papai parece que não vai perceber nunca. -- Isto não é verdade! -- A senhora sabe tanto quanto eu o verdadeiro motivo dele estar tão contrariado. -- É, eu sei! -- Por acaso me julgam alguma aberração? -- Não. Jamais a vimos como alguém anormal. -- Pois meus amigos são tão normais quanto eu. Só porque temos preferências diversas da maioria, não quer dizer que sejamos alienados ou monstros. -- É evidente que não. -- Mas então... -- Dê um tempo para seu pai. Algo me diz que ele ainda vai aceitar seu namorado e ficar muito amigo dele. -- Queria ter esta certeza. Enquanto Eve enfrentava a recusa do pai em aceitar a presença de Darkness na vida da família, nos reunimos na casa de Fobos para tratarmos dos assuntos relacionados à reunião do domingo.

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-- Alguém poderia me dizer por que Darkness convidou Tel para a reunião? A pergunta de Pandora mesclava interesse com uma ponta incômoda de descontentamento. -- Não. Só sabemos que ele a quer na reunião. Informei. -- Ele deveria ter consultado o grupo antes de tê-la convidado. -- Ele consultou. Falou Lilith. -- Eu não fui consultada. -- Darkness não queria incomodá-la com assuntos alheios ao restabelecimento de seu irmão. -- Este é outro que não sei o que vai fazer na reunião. -- Pan, advertiu Deimos, precisa por um fim a essa cisma. Precisa compreender que tudo que aconteceu não é culpa de ninguém. -- É isso mesmo Pandora. Concordou Fobos. Mesmo Tim não guarda a menor mágoa por Tel. Ele compreende que não há um culpado para o que ocorreu. -- Tim ainda é muito jovem. -- Mesmo jovem, ele consegue ser mais maduro que você. Afirmou Lilith. -- Sabe do que mais? Talvez nem vá a esta reunião. -- Por favor, Pandora! Fobos falou em tom tão grave que todos nos viramos em sua direção. Não querer aceitar que Tel não tem culpa alguma ainda podemos relevar, mas escusar-se de ir a um encontro apenas por que ela estará presente, francamente! -- Hei, vamos mudar de assunto. Sugeriu Lilith ao perceber que a situação começava a ficar tensa demais. Pontualmente na hora marcada, Darkness se apresentou na casa de Eve. Trajava o habitual preto, porém combinando alguns detalhes dourados que pareciam refletir sua verdadeira aparência. -- Boa noite! Saudou ao entrar. -- Boa noite. Cumprimentou a mãe de Eve. Entre e sinta-se à vontade. -- Desculpe-me a ousadia, mas mesmo desconhecendo sua preferência, tomei a liberdade de trazer-lhe essas rosas. -- Oh, são lindas! -- Eve? -- Está terminando de se arrumar, sabe como é. -- Sei. Ao se ver no interior da sala, Darkness deu de cara com o pai de Eve. Mesmo que não possuísse os dons que lhe eram pertinentes, teria percebido o quanto sua presença era abominada pelo homem. -- Boa noite! Cumprimentou.

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-- Boa noite. A voz ríspida do pai de Eve erigiu um gigantesco muro entre ambos. -- Sente-se. Solicitou a mãe de Eve. -- Obrigado. -- Espero que não repare na simplicidade do cardápio. -- Confesso que nunca me dei muito bem com pratos sofisticados. -- É um alívio saber disso. -- Estou mais para comidas caseiras. -- Neste caso, posso afirmar que irá saborear ótimos pratos. -- Acredito. A conversa foi interrompida pela entrada de Eve. Se antes seu pai já estava contrariado com a situação, ao vê-la descendo a escadaria que levava ao andar superior, quase sofreu uma sincope. Trajando veste tão negra quanto a de Darkness, Eve ainda produzira-se com esmero. Seus lindos olhos estavam circundados por acentuadas porções de um creme negro, suas unhas pintadas com esmalte de mesma cor e seu lábio cintilando num negror sem igual. -- Mas o que é isto? Balbuciou seu pai. -- Você está linda! Exclamou a mãe ao mesmo tempo em que dava um cutucão no marido, que mesmo tendo sido discreto, não escapou ao olhar atento de Darkness. -- E meu namorado, não tem nada a dizer? -- Como poderia? Deixou-me aturdido! -- Sei. O sorriso de Eve cintilou de modo especial. A felicidade que ela sentia era tamanha que mesmo seu pai foi obrigado a admitir que aquele estranho representava mais que uma aventura para sua filha. -- Vamos para a sala de jantar? Convidou a mãe de Eve. -- Por favor. Darkness fez mesura indicando que o precedessem. Durante o jantar pouco se falou. Um ou outro comentário lacônico, nada mais. Tradicionalmente não se tinha o hábito de realizar refeições barulhentas. Finda a refeição, foram para a sala de estar. -- Aceita um licor? Perguntou a mãe de Eve. -- Não querendo parecer descortês, tenho que declinar da oferta, não estou habituado a bebidas que contenham álcool. -- Ora, um abstêmio! Comentou o pai de Eve. -- Não é tanto por abstinência, apenas o desejo de manter a mente lúcida.

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humano.

-- Parece dar muita importância ao lado racional do ser

-- Não mais do que ele deva receber. Quando falo de mente, não me refiro ao lado racional do homem, mas ao seu lado sensorial. -- Sensorial? Repetiu o pai de Eve. -- Se quisesse resumir as explicações para tudo que ocorre, poderia fazê-lo, sem medo de errar, que tudo se restringe às sensações e ao modo de como as registramos. -- Como podemos registrar algo insubstancial? -- As sensações, talvez deva referir-me a elas como sendo manifestações das energias que geramos enquanto vivos, são mais substanciais que possa imaginar. -- Não sabia que seus amigos se importavam com assuntos tão inusitados. O pai de Eve estava mesmo admirado. -- Há muito mais que ignora que meu amigos tenham por interesse. Afirmou Eve. -- O senhor se interessa pelo assunto? -- Não. A vida para mim é algo mais prático. Nascemos e morremos. Fim. -- E onde entra a prática neste meio termo? -- Como? -- Bem, não podemos esquecer de considerar que entre o nascer e o morrer há todo o desenrolar de uma vida. O que existe de prático neste espaço de tempo? -- Não havia nos dito que seu namorado era chegado em filosofia. Desta vez o tom foi de ironia. -- Dark é mais que um estudioso de nossas filosofias. Ele possui a gnose intrínseca a seu ser. -- Também é adepto desta seita? -- A gnose não é uma seita, papai. Gnose é conhecimento. -- Seu pai não está totalmente errado. Muitas pessoas usam esta designação para nominar diversos grupos. -- São uns aproveitadores. -- Nem todos. Embora poucos, existem alguns grupos sérios. -- Além do interesse por estes assuntos menos importantes, sobre o que mais vocês costumam tratar? -- Costumam? Questionou Eve. -- Sim. Esse grupo tão empolgante. Apesar de ainda contrariado, o pai de Eve parecia estar interessado. -- Nunca se preocupou sobre quais assuntos discutíamos ou mesmo que tipo de atividades praticávamos.

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-- Agora a situação é outra. Se estamos prestes a unir nossa família ao grupo, temos que saber tudo que for possível. -- Por que não nos acompanha em nossa reunião amanhã? Indagou Darkness. -- Dark! -- O que? -- É uma reunião do grupo. -- Não. Será uma reunião com o grupo. Considerando que será realizada em minha casa, posso convidar quem bem entender. -- Eles não irão aprovar. -- Quando explicar o motivo, entenderão. -- Será um prazer participar desta reunião. Anunciou o pai de Eve. Darkness sentiu que a disposição dele estava focada na oportunidade de incomodar o grupo. Ainda assim, sabia que esta ilusória vantagem se transformaria em uma grande surpresa. Saindo da casa de Eve, Darkness foi direto para a casa de Fobos. Ao anunciar sua intenção de admitir a presença dos pais de Eve na reunião, causou um tremendo rebuliço. -- O que? Não pode abrir o grupo a pessoas estranhas sem que concordemos com isto! Esbravejou Pandora. -- Não estou abrindo o grupo. A reunião de amanhã será aberta. Não será um encontro onde trataremos de assuntos de interesse apenas do grupo. -- Gente, gente! Fobos chamou a atenção de todos. Acho que estamos criando uma tempestade sem sentido. Darkness está abrindo sua casa para uma reunião e decidiu convidar o grupo, isto não quer dizer que não possa convidar outras pessoas. Como ele mesmo falou, a reunião não terá caráter de encontro. -- Não vejo desta forma. Gritou Pandora. Estaremos compartilhando o grupo com os pais da Eve, com a ... a Tel, isto não é para nós. -- Esqueceu-se de mencionar seu irmão. Provocou Deimos. -- Se ele é assim tão incômodo, deixo-o em casa. -- Não queremos que deixe Tim fora da reunião. Darkness deixou claro que é importante que ele participe. Falou Lilith. -- Posso dar minha opinião? Perguntei. -- Desde quando precisa de autorização para dar sua opinião. Fobos falava ao mesmo tempo em que raspava a mão fechada pelos meus cabelos. Todos sabiam que este era um sinal de que ele estava de acordo com a intenção demonstrada.

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-- Muito embora concorde que não devemos abrir o grupo sem antes consultar todos nós, entendo que esta reunião não se enquadra neste caso. Mesmo que não vejam dessa forma, penso que não seria muito podermos retribuir um pouco do que nos foi ofertado. -- Como assim? Questionou Pandora. -- Darkness nos deu, mesmo não esperando nada em troca, muito. Podemos retribuir um pouco admitindo os pais de Eve nesta reunião. Sabem que ele está tentando conquistá-los. -- Não devemos misturar assuntos pessoais com assuntos de interesse do grupo. Advertiu Pandora. A discussão tornou-se tão acalorada que nem mesmo percebemos o momento em que Darkness havia deixado nossa companhia. Quando nos demos conta do ocorrido, o clima ficou ainda mais pesado. -- Talvez seja o caso de cancelarmos a reunião. Sugeriu Lilith. -- Não. Não podemos restringir as relações pessoais a ponderações estritas de um ou outro. Observou Fobos. -- O que quer dizer? Perguntou Deimos. -- Já que a reunião não é um encontro do grupo, devemos estabelecer a livre escolha de cada um. Aquele que quiser, irá a reunião, aquele que não estiver a fim, que não vá. -- Está querendo dividir o grupo? Assustou-se Pandora. -- Não. O grupo está acima de fatos isolados. Considero esta reunião um fato isolado. -- Sendo assim, quem gostaria de ir? Questionou Lilith. -- Eu irei. Falei antes de todos. -- Também estarei lá. Afirmou Deimos. -- Não vejo porque não deva ir. Falou Lilith. -- Neste caso, só falta consultarmos Mefisto. -- Desde nosso último encontro, ele desapareceu. Informei. -- Como? Perguntou Fobos. -- Já tentei localizá-lo em todos lugares possíveis, mas nada. -- Onde ele estará? Indagou Deimos. -- Aconteceu algo que não estejamos sabendo? Quis saber Fobos. -- Não. Estivemos o tempo todo ao lado da Tel e, embora tenha se mostrado um tanto apático, ele não deu sinal algum de que estivesse se sentindo irritado ou algo parecido. -- Estranho, muito estranho. Comentou Fobos. -- Apesar do sumiço, Darkness me disse que ele está bem. Avisei a todos. -- Darkness sabe onde ele se encontra? Perguntou Lilith.

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daqui. deixou...

-- Não tenho certeza, mas penso que sim. -- Por que ele não nos falou nada? -- Não sei se repararam, mas nós quase que o expulsamos -- Ninguém pediu para que ele saísse. Asseverou Lilith. -- Diretamente, não. Mas nossa reação ao seu comunicado o

-- Descontente? Tentou completar Deimos. -- Não, não exatamente isso. Darkness não pretende ser nenhum ponto de discórdia entre nós. Ele não deseja que nos desentendamos por causa dele. -- Muito tarde para isso. Proclamou Pandora ainda zangada. -- Bem, o melhor é que cada um faça aquilo que sentir vontade de fazer. Alguém sabe como faremos para ir até a casa de Darkness? -- A van passará pela casa de Eve e depois nos pegará no club. -- Certo. Vamos procurar nos preparar para a reunião. Não queremos que o pai de Eve tenha uma má impressão a nosso respeito. Falou Fobos. Nenhum de nós suspeitava do desdobramento daquele debate. Somente quando nossos corpos se encontravam em repouso foi que pudemos sentir os efeitos da animosidade que havia se instalado entre nós. Sabendo que cada um vive uma realidade distinta, não posso afirmar categoricamente que a descrição de minha experiência coadune-se com as dos demais, mas como é a que me tocou, relato assim como a percebi. De repente um vento frio gelou todo meu ser. Sem compreender o que se passava, procurei instintivamente um abrigo que pudesse me proteger daquela sensação desconfortável. Ao virar-me deparei com todos a mirarem um ponto fixo a frente. Voltei a olhar na direção de onde o vento parecia vir e fiquei tão espantado quanto os outros. Totalmente absorto em pensamentos próprios, Darkness permanecia inabalável de costas voltada para onde nos encontrávamos, em posição ereta, o pé direito apoiado em uma espécie de montículo. Seus cabelos, o sobretudo negro que lhe cobria a veste, também negra e um outro elemento, que não consegui identificar de início, esvoaçavam-se ao sabor da ferocidade da corrente de ar. -- O que ele faz ali? Perguntei. -- O que nós fazemos aqui? Fobos devolveu a pergunta. A intensidade do vento era tanta que mal conseguíamos ouvir nossas vozes. Olhei em redor e não vislumbrei o menor indício de algum abrigo. O frio que acompanhava o tresloucado deslocamento da massa de ar

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feria nossos corpos. Sabíamos que as sensações estavam em nossas mentes, mas sentíamo-nos incapazes de vencer as circunstâncias. Repentinamente Darkness elevou as mãos e proclamando palavras ininteligíveis para nós, começou a rodopiar em velocidade espantosa. Boquiabertos assistíamos aquela demonstração de força. Quando ele cessou seu movimento, percebemos que já não soprava a menor brisa e o ambiente mostrava-se dominado por um ar tépido. -- Aproximem-se! Soou a voz sobrenatural de Darkness. Temerosos, fomos seguindo lentamente na direção onde ele se encontrava. Nossas mentes registravam correntes energéticas poderosas, porém não conseguíamos identificar-lhe a origem ou o caráter. -- Sintam! O laconismo empregado por ele era um tanto incômodo, mas não tínhamos do que reclamar. As energias estavam concentradas naquele ambiente. Qualquer que fosse as sensações que nos dominasse, estaríamos sentindo o fluir das energias que Darkness irradiava. -- Sorvam! Olhos cerrados, permaneci concentrado no calor que tomou conta de meu ser. Num momento parecia estar queimando em um forno potentíssimo, em outro sentia um leve calor a afagar-me. -- Questionem! Questões! Sim, as questões pululavam em nossos íntimos. Quem seria o primeiro a se manifestar? Olhávamo-nos silenciosamente. As pulsações intercaladas por vibrações céleres e morosas, o descompasso entre aquilo que sentíamos e o que pensávamos era assombroso. O que Darkness estaria pretendendo com tudo aquilo? -- O que fazemos aqui? Fobos assumiu seu papel de líder e se manifestou por primeiro. -- Escolhendo. -- O que? Insistiu Fobos. -- O caminho. -- Que caminho? -- Todos estão maduros. Precisam fazer suas opções. -- Não entendemos. Falou Deimos. -- Quais, dentre vós, acreditam não terem sido contatados? -- Eu. Respondi apressado. -- Eu também. Reforçou Deimos. -- Mais alguém? -- Por que pergunta? Sabe que já contatou os demais. Respondeu Lilith.

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-- Talvez não. O olhar de Darkness fixou-se sobre o semblante sério de Pandora. -- O que? Ela reagiu de modo evasivo. -- As vezes as pessoas não permitem que o contato se estabeleça. Posso estar com ela, mas ela se mantém distante. -- Não estou distante. Afirmou Pandora. -- Já observou como seu irmão reage a impossibilidade de se locomover? -- Mas ele é uma criança! -- Ele é o maior afetado pela situação. -- Se não fosse... -- Não! Aqui não! Não há espaço para injúrias neste plano. -- Não posso desabafar minha insatisfação? -- Pode. Só não pode proferir palavras que ofendam a harmonia do lugar. -- Por que? Por que teve que acontecer esta desgraça? -- Julga mesmo que tenha sido uma desgraça? -- O que mais poderia ser? -- Set! -- Sim. -- Acredita que aquilo que se passou com você foi alguma desgraça? -- Não. -- O que tem haver? -- Venham, formemos o círculo. Desta vez as energias feriam nossas almas. O conflito que se estabelecera golpeava a harmonia originando farpas que insistiam em se cravar em nós. Estávamos enfrentando nossa primeira crise de grupo. Darkness afirmava, a nossas mentes, que amadurecíamos. O vento que havia nos acolhido voltou a soprar. Desta vez, porém, envolveu-nos num rodopio descontrolado. Nossas mentes vagavam sob o açoite férreo do elemento ar. Aonde chegaríamos? Passado o turbilhão, nos vimos em um lugar totalmente vazio. Nada, nem mesmo a sombra de nossos... corpos? Que corpos? Já não sentíamos mais nenhuma manifestação da matéria. Planávamos na imensidão do nada. -- Vejam! Experimentem! Sorvam! Exortava uma voz que julguei pertencer a Darkness. Muito depois de nossa experiência, quando trocávamos nossas impressões a respeito do ocorrido, concluímos que Darkness havia nos levado ao encontro de fatos inerentes a varias de nossas existências.

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Tivemos uma amostra dos efeitos das muitas encarnações que havíamos tido. A manhã de domingo se mostrou chuvosa. Assim como não houve um momento específico para o início do contato, também não houve um para o fim dele. Quando acordamos, cada um em sua casa, tínhamos apenas uma vaga lembrança do ocorrido. Estas lembranças seriam as impressões que trocaríamos mais tarde. Até a metade do dia o céu mostrou-se coberto por nuvens carregadas. Não havia manifestação eletromagnética na atmosfera, apenas uma tênue chuva que persistia impedindo que o sol se mostrasse. Aos poucos todos foram chegando ao club. Os últimos foram Deimos e Tel. Devido ao clima antagônico exposto por Pandora, evitamos que as duas permanecessem próximas. Sempre que estava para acontecer um encontro mais direto, intervínhamos afastando-as. De todos, o único ausente era Mefisto. Mesmo Eve já havia chegado ao club. Deixara os pais se preparando para a reunião. Formal como era seu pai, sabia que iria querer comparecer vestido em gala. Não admitia um traje menos tradicional. -- Quando Darkness virá nos buscar? Perguntou Set. -- Ainda não sabemos. Informei. -- Se bem conheço nosso anfitrião, a van deverá chegar próximo das três. Falou Fobos. -- Tão tarde! Expressou-se Tim. -- Hei, a dimensão de Darkness é intangível ao tempo. Falou Deimos. -- Como assim? -- Para onde vamos, o tempo não existe. Informei. -- Ah, essa eu quero ver. Tim falou em tom de desafio. Apesar da frieza com que Pandora encarava Tel, o ambiente se manteve calmo. A experiência noturna havia servido para serenar os ânimos de nossa amiga. Não sabíamos, ainda, que sensações ela experimentara, mas com certeza ela estava sob efeito das mesmas. Na casa de Eve os preparativos iam além da escolha da veste mais adequada. O pai de Eve ensaiava como iria se portar na reunião. Estava determinado a causar o maior embaraço possível. Não desperdiçaria aquela oportunidade para tumultuar o grupo que tanto abominava. Só deixou os exercícios quando sua esposa o chamou avisando que estava na hora. Mal ele deixou o quarto e foi para a sala e a campainha soou. -- Boa tarde. Cumprimentou a mãe de Eve ao abrir a porta. -- Boa tarde. Esta é a casa dos pais de Eve?

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-- Sim. A mãe de Eve ficou um pouco decepcionada ao constatar que não seria Darkness a transportá-los. -- Creio que estejam me esperando. -- Claro. Já estamos prontos. -- Ótimo! Queiram, por obséquio, entrar no veículo. -- Vamos, querido! Um tanto aparvalhado, o pai de Eve deixou-se conduzir até a van. Não desgrudou os olhos um minuto sequer do chofer do automóvel. Considerando as características físicas do homem, achou-o um tanto esquisito. -- Observou que motorista mais esquisito! Comentou com a esposa. -- Psiu! Não seja descortês. -- Não estou sendo descortês, apenas fiz-lhe um comentário. Aposto que ele nem ouviu. -- Mesmo assim, controle seu gênio. Sem que tivessem sentido qualquer movimento do veículo, surpreenderam-se quando a porta voltou a ser aberta. Admirados viram Eve e seus amigos entrarem. -- O que? -- Oi. Saudamos os pais de Eve. -- Como pode? O pai de Eve estava atônito. -- O que houve? Eve perguntou. -- O carro não se moveu e vocês estão aqui! -- Ainda vai testemunhar muitos outros acontecimentos estranhos. Eve advertiu o pai. -- Como assim? -- Espere e verá. Sem nos importarmos muito com o assombro do pai de Eve, nos acomodamos enquanto o motorista fechava a porta da van. Descontraidamente conversávamos sobre os mais variados assuntos. Por nenhum instante nos preocupamos com o mover do veículo. Afinal, já havíamos feito aquela viagem mais de uma vez. O espaço de tempo transcorrido entre nossa entrada e o momento quando o motorista voltou a abrir a porta da van foi tão exíguo quanto aquele decorrido da casa de Eve ao club. O assombro do pai de Eve só não foi maior porque ainda não havia olhado para a casa de Darkness. Ao descer e contemplar a construção, foi tomado por espasmos de estupefação. -- Mas... mas... mas... tentou aglutinar alguma palavra que expressasse sua total admiração.

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-- Vamos. Eve convidou os pais a seguirem adiante. -- Filha, que lugar é este? Indagou a mãe de Eve, mesmo não se comportando qual o pai, também estava atônita. -- Esta é a casa de Dark. -- Casa! Isto é uma mansão! -- Mal assombrada. Complementou o pai. -- Fred! A mãe de Eve ralhou com o marido. -- Tudo bem, mãe. A intenção é esta mesma. Criar um clima tenebroso. -- Seu namorado é doente! Comentou Fred. -- Quem não é? Eve não deu maior importância ao pai. Enquanto dialogavam, havíamos percorrido a pequena distância entre o portão e a imensa porta de entrada da mansão. Assim que nos encontramos ao lado dela, um ranger, característico de construções antigas, soou a nossa frente. A porta se abria. -- Quem? Indagou Fred. -- Não se preocupe com nada, pai. Vamos. A admiração dos pais de Eve só aumentava. Ao notarem a riqueza de detalhes que compunha a decoração da mansão, deixaram-se contagiar pelo mesmo espanto que havia nos dominado quando estivemos ali pela primeira vez. Não havia como não se sentir arrebatado por tanto primor. -- Sejam bem vindos! A voz de Darkness retumbou como um trovão dissipando o silêncio reinante. -- Dark! Eve não se continha quando ele se apresentava travestido com toda sua imponente gala. -- Rapaz, quem é seu decorador? Emendou Fred sem nem avaliar o alcance de sua indagação. -- Fred! A mãe de Eve chamou-lhe a atenção. -- Não se preocupe com os comentários. A decoração foi escolhida para causar impacto mesmo. -- Pois receba meus parabéns. Jamais encontrei ambiente mais exótico. Completou Fred. -- Desejam conhecer a construção toda ou preferem ir direto a sala de reunião? -- Importa-se se olharmos por aí? Sondou Fred. -- De modo algum. Eve! -- Tudo bem, eu os acompanho. -- Hei, também quero ir. Falou Tim. -- Sendo assim, também vou. Acrescentou Tel. -- Mais alguém? Perguntou Eve.

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-- Eu vou para dar uma força. Ofereci-me já que Tim precisaria de braços fortes para conduzi-lo. -- Mais alguém? Insistiu Eve. Já que não, vamos. Enquanto Eve e eu levávamos os “novatos” para um tour pelas dependências da mansão, os demais ficaram esperando que Darkness indicasse alguma atividade. Como não houve nenhuma sugestão, Pandora indagou: -- Vamos ficar só esperando? -- Tem algo em mente? Darkness adorava tocar em nossos pontos fracos. -- Bem, pensei que pudéssemos tratar de algum assunto de interesse específico do grupo. -- Seria bom que fizéssemos isto. Adiantou Set. -- Muito bem, estamos ouvindo. Assentiu Darkness. -- O que representou nossa última experiência? Quis saber Deimos. -- Uma viagem por tempos há muito esquecidos em suas mentes. -- Com que finalidade? Questionou Pandora. -- Aparar algumas arestas. -- Que arestas? Voltou a perguntar Pandora. -- Cada qual com sua emoção. Respondeu Darkness. Nenhum de nós tem o poder de viver as experiências de outrem. -- Como assim? Indagou Deimos. -- Embora estivéssemos todos juntos, cada um reviveu se próprio rosário. As vivências que tiveram foram únicas. -- Mas lembro-me de todos em algumas ocasiões. Aparteou Lilith. -- Exato. Durante suas varias existências, já compartilharam o mesmo tempo e espaço. Mas nem sempre. -- Por que? Perguntou Fobos. Todas as cenas que testemunhei mostravam-me ao lado de Lilith. -- Isto porque são aquilo que os homens costumam chamar de alma gêmea. Seus caminhos são um só. -- Não sei quanto aos outros, mas não o vi em nenhuma de minhas imagens. Afirmou Set. -- Isto porque não estava lá. -- Por que? Indagou Fobos. -- Está pergunta terá que ficar sem resposta. -- Como? Perguntaram todos. -- É simples. Eu não tenho a resposta.

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-- O que tudo isto tem a ver com o grupo. Inquiriu Pandora. -- Lembram-se da primeira vez que formamos o círculo? -- Sim. -- Não são todas as pessoas que conseguem estabelecer um vínculo tão firme a ponto de moldar um círculo. É preciso empatia. -- Está afirmando que já possuíamos o elo de união antes mesmo que você surgisse? Fobos parecia atordoado com a própria conclusão. -- Exato! Durante muitas das vivências que experimentaram, mantiveram contato tão estreito que isto os uniu. Para muitos de vocês, está é a ocasião do resgate. Pelo menos quatro de vocês não voltarão a encarnar neste mundo. -- Quatro? Indagou Lilith. -- Sim. E antes que perguntem quem, adianto-lhes que não saberia dizer com certeza. -- Foi por isto que convidou Tel para a reunião? Quis saber Pandora. -- Também. O momento é propício para que algumas diferenças sejam resgatadas. Espero que após nosso encontro, as energias negativas estejam alijadas de seus âmagos. Um novo horizonte se descortina a frentes de seus espíritos. Não percam a oportunidade que se faz presente. A voz de Darkness nunca soou tão solene. Mesmo não estando presente, Eve e eu sentimos a força que emanava do íntimo de Darkness. Num momento sentimos como se estivéssemos sendo marcados a fogo. Um fogo imaterial que ardia na alma. Depois de cerca de meia hora, voltamos a nos encontrar com os outros. Sem mais demora, dirigimo-nos a sala de reunião. Propositadamente não havíamos levados os novatos até lá. Pretendíamos guardar esta parte para o final. A reação que esperávamos ver acabou sendo ainda maior. Boquiabertos contemplaram a imensa sala e sua decoração austera. Contrastando com os demais cômodos, naquela sala havia uma única mesa circundada por varias cadeiras, algumas armas disposta em formato circular nas paredes e mais nada. O que não esperávamos era que também fossemos surpreendidos. Decorando a imensa mesa, colocado bem ao centro, um enorme cálice rubro parecia arder em chamas etéreas. Por que Darkness havia acrescentado aquele objeto ao local? -- Mas o que é isto, irrompeu Fred, O Santo Graal?

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-- Longe de mim, ser possuidor de relíquia tão divina! Esta taça representa a fonte de todas energias, mas nem de longe se compara a fonte original. -- De qualquer forma, mesmo sendo apenas uma representação simbólica, estamos diante de um Graal. Afirmou Fred. -- Conhece a história do famoso cálice? -- Várias. Talvez uma ou outra valha a pena ser discutida, a maioria não passa de fantasias doentias. Respondeu Fred. -- Não a tinha colocado sobre a mesa nas outras oportunidades. Lembrou Eve. -- Porque aguardava uma ocasião especial para isto. -- Bem, onde nos sentamos? Perguntou Pandora. -- Encontrarão seus nomes indicando o lugar que lhes cabe. -- Parece ter pensado em tudo. Observou Set. -- Tive uma excelente consultora. Falou Darkness dando uma rápida piscadela para Eve. -- Vamos ao que interessa, então? Convidou Fobos. Antes que Darkness desse início a reunião, o ranger da porta voltou a invadir o ambiente. Todos olhamos na direção da porta. -- Eis que chega o último dos moicanos. Gracejou Deimos. -- Nossa! Exclamou Mefisto que acabara de entrar. Não sei se estou testemunhando a última ceia ou uma reunião da távola redonda. -- Talvez a união das duas situações. Adiantou Darkness. -- O que quer dizer com isto? Indagou Eve. -- Talvez estejamos vivendo a última ceia da távola redonda. -- Então graças aos céus que não faltei a este encontro. Exultou Mefisto. Detestaria perder acontecimento tão significativo. -- Agora que estão todos presentes, vamos dar início ao encontro. Anunciou Darkness. -- Permaneçam em pé. Solicitou Eve. -- Em primeiro lugar, formemos o círculo de nossas energias. Convidou Darkness. Habituados a formação do círculo, não estranhamos o convite. Fred, Tel, Tim e a mãe de Eve nos acompanharam, embora não corretamente e sem fazer a menor idéia do que acontecia. -- Cerrem os olhos, concentrem-se apenas no movimento cadenciado de suas respirações. Nada mais deve ocupar espaço em suas mentes. A voz de Darkness soava como se fosse uma melodia ecoando em algum lugar longínquo.

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-- Tentem diminuir o ritmo de suas pulsações. Abaixem-na vagarosamente até sentirem-na o mais pausadamente possível. Agora era Eve a proferir os passos da mentalização. Se a princípio achei que os novatos iriam estranhar todo aquele ritual, todos nos sentimos espantados. A energia vibrante que correu pelo círculo superou todas as noções que tínhamos a respeito do processo de mentalização. Meu corpo, assim como os dos demais, formigavam. -- Observem! Soou a voz de Darkness. Ao abrirmos nossos olhos, deparamos com algo que nem mesmo nós do grupo esperávamos. A sala havia sido substituída por uma imensa clareira. Árvores gigantescas circundavam a távola. A exuberância de flores multicoloridas não nos deixava qualquer dúvida, estávamos em uma floresta. -- Não tentem raciocinar o ambiente, apenas sintam-no. Solicitou Eve. -- Sejam uno! Ouvimos Darkness pronunciar com ênfase. -- Olhem para o cálice! Pediu Eve. Ao atendermos seu pedido, fomos cegados pelo rubor fluorescente que emanava do cálice. De onde provinha aquela luz? Por que ela havia pedido para olharmos na direção do cálice se sabia que nos tornaríamos cegos? -- Não tenham medo. Fecho seus olhos grosseiros para que possam abrir os olhos do espírito. Anunciou Darkness. -- Mantenham-se firmes. Exortou Eve. A hora é agora! Num átimo fomos engolidos pela luz que emanava do cálice. Sons harmônicos ecoavam por todo espaço. Com a mesma intensidade que a luz havia nos cegado, sentimos as dores, tristezas, mágoas, angústias, raiva, medos, dúvidas e egoísmos serem engolfados por uma espécie de redemoinho celeste. A imagem de um gigantesco buraco negro se formou sobre nós. Antes que as energias negativas desprendem-se de nossos seres, sentimos seus efeitos dilacerando nossos eus. O fogo fluente que irradiava do cálice consumiu qualquer manifestação de individualidade. Novamente nos tornávamos uno. -- Congracem! O som de uma voz sobrenatural ecoou pelo espaço. -- Aqui é a dimensão do uno. Retumbou uma outra voz. -- Não há eu ou nós, apenas uno. -- Somos o que somos! As vozes se alternavam na locução das frases. -- Onde estão as mesquinharias do mundo?

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-- Onde estão as grandiloqüências dos desejos? -- Onde estão os menores? -- Onde estão os maiores? -- Completem-se! -- Unam-se! -- Vivam! Desta vez ambas as vozes ecoaram com estrondo. Depois o silêncio. Como sói acontecer nestas experiências, não atinamos no modo ou tempo em que se processou nosso retorno. Lentamente voltávamos a recobrar a consciência. Cada qual possuído por suas próprias impressões. Nenhuma palavra rompia o silêncio de conformação sublime que dominava o ambiente. -- Levantem-se, por favor. A solicitação de Darkness foi o primeiro som a soar na sala. Sem questionamentos, nos colocamos na posição solicitada. -- Diante de vocês estão colocados os cálices da união. Tomeios e celebreis a união de nossos espíritos. Doravante concebam a existência do uno. Já não somos mais um, apenas uno. Eve fazia as vezes de sacerdotisa. -- Triunfantes sorvam do cálice da imortalidade! Evocou Darkness segurando seu cálice e o elevando diante do peito. Todos imitamos seu gesto e aguardamos que ele se servisse do líquido. Quando o fizemos, sentimos que nossas gargantas eram queimadas por uma onda que fluía varrendo tudo a sua frente. -- Este é o líquido que torna límpida a morada do uno. Se doravante mantiverem a determinação de serem Luz, jamais voltaram a turvar seus espíritos. Darkness parecia um hierofante. O ardor inicial foi sendo substituído gradativamente por uma sensação de frescor. Nossos íntimos foram se tornando mais leve. Nossas percepções assumiam conformação tão cristalina que parecia ser possível ver e ouvir muito além das palavras e das formas. -- Não se espantem com aquilo que começava a despertar em seus âmagos. Estes são os primeiros acordes de um novo amanhecer. Eve decididamente havia assumido o posto de uma sacerdotisa. -- Projetemos o círculo. Pronunciou-se Darkness. Sem esperar outro comando, levantamo-nos e nos preparamos para a formação esperada. -- Não! Já não necessitam de expressões externas. Projetem o círculo em suas mentes. Exortou Eve. Mesmo incertos de sermos capazes, cerramos os olhos e visualizamos o círculo. Os menos preparados para o ato, sentiram-se

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atraídos pela energia que emanava dos demais. Ninguém conseguiu manterse alheio ao fluir das energias. -- Sejam bem vindos! Soou uma voz que até então não havíamos ouvido. -- Não desfaçam o círculo. Apenas recebam nossas dádivas. Uma outra voz se fez ouvir. O tom solene das vozes comungado a sublimidade que se fazia presente, nos deixou estáticos. Sentíamos que qualquer movimento era travado pela força descomunal das energias que gravitavam a nosso redor. -- Vejam! Soou novamente uma das vozes. Ao abrirmos os olhos, os novatos se deixaram dominar pelo mesmo assombro que havia nos dominado quando da primeira vez que experimentamos o planar de nossos corpos. Darkness, com as mãos elevadas sobre a cabeça, parecia manter-nos em suspensão física. -- Não se espantem. As energias fluem e elevam! -- Seus âmagos precisam captar as energias que fluem pela criação. Elas são o alimento que os mantêm vivos! -- Recebam-nas e condense-nas. Transforme-nas de acordo com suas conformações! -- Após tê-las transmutado, distribuam-nas! -- Compartilhem! -- Abandonem a carga que o eu impinge a seus espíritos! -- Congracem! -- Sejam uno! -- Somos uno! Por instantes um solene silêncio se fez presente. Nem mesmo o pulsar de nossa respiração era manifesto. Sustínhamos qualquer manifestação que pudesse conspurcar aquele momento. A singeleza daquele fato nos tocou com tamanha intensidade que mal conseguimos pronunciar nossas impressões, após o término da experiência. Sentíamo-nos irmanados com uma força tão superior que nossas individualidades foram reduzidas a quase nada. -- Fim! Anunciou Eve. -- Heim? Perguntamos voltando a recobrar a consciência. -- A reunião está encerada. Confirmou Darkness. -- Mas ainda temos muitas dúvidas. Falou Fred. -- Se desejarem, podem ocupar os quartos reservados aos hóspedes. Antes que manifestem suas dúvidas, precisam fixar tudo que vivenciaram. Informou Darkness. -- Mas já é tão tarde! Voltou a se manifestar o pai de Eve. -- Nem tanto.

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cinqüenta!

Fred voltou a olhar o relógio e se espantou. -- Mas ainda há pouco eram quase três e ainda são duas e

-- Desejam refletir antes de questionarem? Eve parecia ainda estar dominada pela energia que havíamos recebido. -- Vamos. Convidou a mãe de Eve segurando o braço de Fred. Os outros percebendo que eles subiam os seguiram. Eve e Darkness também se foram. O último a deixar a sala fui eu. Indeciso, não sabia o que faria ao chegar ao quarto. Para meu espanto, não sentia existirem dúvidas a serem esclarecidas. Embora sentisse que não argüiria Darkness a respeito de nada, retirei-me. A sós, entregue a reflexões desconexas, senti que aos poucos as idéias iam se encaixando e montando um quadro que, a princípio, não dera conta que havia se formado em meu âmago. Não sei quanto tempo cada um julgou que seria necessário permanecer afastado, mas quando vislumbrei o enorme quadro que se descortinou ante meu espírito, deixei o quarto e segui até a sala de estar. Ainda não havia ninguém alí. Permaneci aguardando que os demais retornassem. Aos poucos eles foram descendo e se juntando a mim. Depois de alguns minutos, apenas Eve e Darkness ainda se encontravam recolhidos. Se já conhecia o suficiente a respeito de tudo que ele havia me revelado, sabia que eles não estavam refletindo sobre os fatos. Era mais provável que estivessem se amando. Mas isto não era algo para se comentar com os demais. -- Onde estão Eve e Darkness? Perguntou Fred. -- Ainda lá em cima. Respondeu Lilith. -- Tanto tempo assim! Fred parecia contrariado. -- Aqui o tempo não obedece as regras da matéria. Lembrou Fobos. -- Parecem muito bem adaptados a esta anomalia. Observou Fred. -- Não se trata de uma anomalia. Ocorre que estamos em outra dimensão. Informei. -- Outra dimensão? O ar assombrado de Fred fez-nos rir. -- Por que o assombro? Pensei que já houvesse percebido a mudança. Falou a mãe de Eve. -- Você percebeu? -- Sim. -- Como isto é possível? A incredulidade de Fred só não era maior que seu desapontamento.

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-- Darkness é o veículo. Afirmou Fobos. -- Como assim? -- Ele é uma espécie de viajante dimensional. Sei lá o que quer dizer isto, mas ele possui a chave que abrem as portas de outras dimensões. À medida que ouvia minha explicação, Fred deixava mais evidente seu assombro. -- Então ele é um extraterrestre! -- Não é bem isto. Falou Fobos. -- Mas seu amigo acabou de dizer... -- Para sermos sinceros, nem mesmo nós sabemos direito o que ele é. Lilith desejava colocar um fim a especulação. -- Como deixam ele controlar seus passos se nem mesmo sabem quem ele é? Fred julgava irracional a atitude do grupo. -- Não sentiu o contato? Perguntou a mãe de Eve. -- Que contato? -- A experiência! Asseverou-lhe a esposa. -- Até agora não sei o que aconteceu. Parece que fui hipnotizado e conduzido a um lugar irreal. -- Não foi hipnotizado. Afirmou Lilith. E o lugar onde estivemos, seja lá que lugar for, é muito real. -- Não percebem que tudo isto foge completamente aos conhecimentos que possuímos? -- Não sei muito sobre que conhecimentos se refere, mas sei muito bem os efeitos das experiências em minha vida. Set parecia revestido de toga. Darkness nos mostrou que este mundo não passa de um minúsculo grão de areia em meio ao oceano que é a criação. -- Este cara é assustador! Confidenciou Fred. -- Sinistro! Muito sinistro! Ajuizou Set. Não sei se por estarmos concentrados na discussão que Fred originara, ou se Darkness era mesmo tão sinistro assim, mas o certo é que mais uma vez ele se apresentou sem que nenhum de nós houvesse notado sua chegada. Como fato inédito, para alguns, a companhia de Eve. -- Ainda tentando entender o incompreensível? Indagou Eve. -- Mas que droga! Esbravejou Pandora. Se já não bastasse um, agora são dois a chegar assim como se fossem dois fantasmas! -- Desejam maiores esclarecimentos. Darkness pareceu não ter se importado com a explosão de Pandora. -- Eu quero algumas. Solicitou Deimos. -- Eu tenho um monte. Manifestou-se Fred. -- Podemos conversar aqui ou na sala maior. O que preferem? -- Você diz a távola? Perguntou Mefisto.

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-- Sim. -- Vamos a távola! Entusiasmou-se Mefisto. Talvez contagiados pelo entusiasmo de Mefisto, não aguardamos que Darkness se pronunciasse. Sem perder mais tempo, seguimos nosso amigo em direção a sala da távola redonda. Todos assentados, cada qual borbulhando com suas próprias indagações, esperamos que Darkness e Eve tomassem lugar à mesa. Somente quando eles se encontravam assentados, foi que notei algo que poderia não querer dizer nada, mas mesmo assim quis saber se outros haviam notado. -- Estranhas combinações ocorrem esta noite. -- Sobre o que fala, hades? Perguntou Fobos. -- Bem, Mefisto chega trajando uma roupa tão branca que contrasta com quase tudo desta casa, depois observa que parecíamos ou os comensais da última ceia ou os participantes da távola redonda. Agora, observando melhor, me dou conta de que somos em número de treze. -- Ora, ora, um supersticioso! Zombou Mefisto. -- Não se trata de superstição. Assegurei. Apenas fiz uma constatação. -- Em primeiro lugar, soou a voz firme de Darkness, não são tão estranhas assim estas ditas combinações. E antes que possam imaginar, também não se trata de coincidências. Todos os fatores inerentes a esta reunião foram determinados por planos superiores. -- Está dizendo que tudo foi previsto como está? Indagou Fred. -- Sim. -- Mas como poderia saber que estaríamos aqui? -- Eu sabia. -- Mas Isto é impossível! -- Nada é impossível quando atendermos as diretrizes da vida. Afirmou Eve. -- Desde quando sabia que estaríamos todos aqui? Perguntou a mãe de Eve. -- Desde o momento em que me foi permitido retornar. Respondeu Darkness. -- Qual a finalidade de tudo isto? Agora mesmo Fobos se mostrava intrigado. -- Quando um grupo seleto de espíritos se unem, assim como ocorre entre vocês, se faz necessária a construção de uma ponte entre este mundo e os planos superiores. -- Com que objetivo? Lilith também estava surpresa.

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-- As energias precisam fluir. Não podemos detê-las ou sequer represá-las. Este fenômeno não é um acontecimento aleatório, ele possui um fim específico. Alguns espíritos se oferecem como voluntários para servirem de ponte. Eve estava tão inteirada quanto Darkness. -- Somos estas pontes? Quis saber Set. -- Não. Darkness é a ponte. Continuou Eve. Só que apenas as pontes não são suficientes. Para que as energias possam ser aproveitadas em todos os planos é preciso que hajam estações receptoras e redistribuidoras destas energias. -- Somos isto? Indagou incrédulo Deimos. -- Sim. Nós somos. Foi a resposta lacônica de Eve. -- Mas que negócio é este? Fred estava muito mais tenso agora. -- O que deveria perguntar é como deve agir para não se tornar uma estação inoperante. -- Como assim? -- Embora tenhamos nos oferecido para a tarefa, muitos de nós acabam se desviando no caminho. Este desvio sobrecarrega alguns. -- Não me lembro de ter me oferecido para algo assim. Aparteou Pandora. -- Nenhum de nós se lembra. Pelo menos não até agora. -- Por que devemos dar crédito a suas palavras? A pergunta de Set não tinha conotação de arrogância, apenas expressava sua incompreensão. -- Não devem! Só considerem minhas palavras quando elas encontrarem eco em seus âmagos. Caso contrário, sigam suas vidas como se nada disso houvesse sido revelado. -- Darkness! Meu rogo soou sem que eu pudesse impedi-lo. -- Não se aflija, amigo. Aquela admoestação tocou-me fundo. Não por haver sido distinguido ante os demais, mas porque me sentia perdido. Como poderia ser uma estação destinada a receber e transformar energias tão poderosas, se nem ao menos conseguia me expressar diante de pessoas estranhas? -- Não temam. Falou Darkness para todos. Cada um de vocês tem seu próprio meio. Nada será exigido de ninguém. Se permitirem que as energias se manifestem e utilizem-se de seus seres como canal de irradiação, realizarão maravilhas. Basta que não se oponham a suas manifestações. -- Me sinto como se estivesse em um sonho muito louco. Fred suava de tão tenso.

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-- Não se deixe prender por posições temporárias. Não deve orientar-se pela vida atual. Somos mais que um simples corpo estabelecido em um determinado espaço de tempo. Somos eternos! Eve olhou fixamente o pai quando expressou-se. -- Já que todos estão tão surpresos, acho que devo revelar algo que tenho tentado ocultar. Falou Mefisto. -- Abra-se. Não tema a incompreensão. Incentivou Darkness. -- Sabem que adoro todos vocês, não é? -- Sabemos. Respondemos a pergunta formulada por Mefisto. -- Pois é, sempre que estou com vocês, me sinto muito bem. O carinho que encontro no grupo é muito mais que já havia recebido. -- Não enrola. Atropelou Pandora. -- O caso é que não me sinto igual a vocês. -- Dá para ser mais claro? Pandora começava a ficar invocada. -- Bem, acho que não me sinto gótico o suficiente para continuar acompanhando todos encontros do grupo. -- Ah, é isto! Pandora parecia não ter dado importância a revelação feita por Mefisto. -- Quer dizer, não é que não goste de estar com vocês, apenas algumas vezes preferiria não estar presente. -- Um aparte, se me permite. Solicitou Lilith. -- Claro. -- Não tem como se sentir gótico. Ou se é ou não se é. Independente de você se considerar ou não um gótico, amamos você como você é. -- Isto mesmo! Concordou Fobos. -- É. Nenhum de nós se preocupa com suas preferências. Gostamos de você, e pronto. Afirmou Set. -- Sei lá, este cara sempre me pareceu meio... hum, sei não... Todos olhamos para Deimos com ar de contrariedade. -- Brincadeirinha, pessoal! É claro que Mefisto sempre será um de nós, mesmo que não seja adepto de nosso estilo. Passado o susto, nos juntamos em um abraço fraterno. Mefisto deixou que a emoção dominasse seu ser. Sem conter-se mais, entregou-se a um pranto sentido no que foi acompanhado por quase todos. -- Bem, creio que podemos considerar a reunião terminada. Falou Darkness. -- Mas ainda tenho muitas perguntas. Fred tentou prolongar o diálogo. -- Teremos outras oportunidades, pai.

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cansada.

-- É, querido, vamos para casa. A mãe de Eve estava realmente

-- Pandora! Darkness chamou a atenção de nossa amiga. Não está se esquecendo de nada? -- Isto é uma cobrança? -- Não. Apenas um lembrete. -- Não esqueci, só desejo fazer isto em outro lugar e em outro momento. -- Está bem. Tem o direito de escolher o momento que lhe aprouver. -- Sobre o que falam? Perguntou Deimos. -- Assunto particular. Adiantou Pandora, Antes que deixássemos a mansão, solicitei uma conversa com Darkness. -- Vamos até a sala da távola. Ele sugeriu. Caminhamos sem trocar qualquer palavra. Intimamente sentia como se ele soubesse o motivo de minha solicitação. Mesmo assim, quando chegamos a sala, ele aguardou que eu começasse a conversa. -- Gostaria que visse isto aqui. Falei entregando-lhe uma folha amassada. -- O que é? -- Uma carta. Darkness apanhou o papel e leu as poucas linhas da carta. Seu semblante não indicava nenhuma reação ao conteúdo da mesma. Procurei estudar suas feições, mas elas se mostraram herméticas. -- Então? Perguntei ao notar que ele terminara de ler. -- O que deseja que diga? -- Sei lá. Qualquer coisa. -- Deseja que lhe diga como agir? -- Pensei que pudesse... -- Não. Não posso! -- Mas pensei... -- Hades, não posso tomar uma decisão que lhe cabe. Sei como está se sentindo. Sei até mesmo que pode não gostar de minha atitude, mas não posso assumir este papel. -- Sabe que eles foram cruéis. -- Sei que eles são limitados quanto ao entendimento que têm da vida. -- Os defende? -- Não. Apenas devo lembrá-lo que não se deve exigir... -- Mais do que as pessoas estão preparadas para dar. Eu sei.

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-- Então, por que a revolta? -- Não estou revoltado. -- O que o atormenta, então? -- Não saberia como reagir se atendesse o pedido. -- Ah, acha que não deve perdoá-los pelo que lhe fizeram. -- Não! Sei que devo, quer dizer, sei que preciso, mas não sei se serei capaz. -- Hades, Hades, acredita que não deve exigir mais do que as pessoas estão preparadas para dar? -- Sim. -- Então, por que se cobra algo que está além de suas possibilidades? Acredita que quando lhes digo isto, estou me referindo apenas as outras pessoas? -- Pensei que... -- São tão humanos quanto os demais. Não exija mais do que é capaz de dar. -- Caso não atenda, não achará que estou sendo mesquinho? -- De modo algum. -- Detestaria saber que me vê como alguém arrogante ou vingativo. -- Está mais preocupado com o que possa pensar sobre você do que em estudar a possibilidade de atender ou não o pedido que lhe fizeram. -- Estou! -- Sempre o admirei pelo que é. Não importa o quão limitado seja o conceito que tem de si mesmo, sei que pode muito mais que demonstra. Vá para casa e reflita sobre tudo que vivenciou. Sei que encontrará a melhor resposta. -- Talvez demore um pouco. -- Alguém colocou um prazo para que apresente sua resposta? -- Não. -- Então não se preocupe com o tempo. Atenha-se ao fato de que quando decidir, seja uma decisão pautada em uma reflexão destituída de quaisquer resquício de vingança. -- Ponderarei muito até conseguir uma resposta adequada. -- Faça isto. Após a conversa deixamos a sala e voltamos para onde os outros aguardavam. Todos demonstravam o cansaço que os dominavam. Não dava para continuar aquele encontro. Precisávamos repor as energias gastas e reordenar aquelas recebidas.

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O trajeto de retorno ao club foi realizado com a mesma presteza que na ida. Mal havíamos nos acomodado em nossos lugares e a van chegou ao seu destino. Ao abrir a porta, o motorista nos olhou sem a menor emoção. -- Chegamos. -- Vai levar os pais de Eve em casa? Perguntou Fobos. -- São as recomendações de Darkness. -- Boa noite e até outro encontro. Fobos se despediu. -- Espero que não demore muito. Respondeu a mãe de Eve. -- Boa noite. O pai de Eve parecia alheio a tudo o mais que não fosse seus próprios pensamentos. -- Boa noite. Saudamos os dois à medida que descíamos. Mal tínhamos deixado a van e ela já seguia para a casa de Eve. Por alguns minutos ficamos olhando na direção em que ela seguiu e depois entramos. Todos estavam ansiosos por um bom descanso assim, ninguém se demorou no club. Após todos terem ido, subi para meu quarto e me deitei como estava. Os pais de Eve entraram em sua residência e se deixaram desabar sobre os imensos sofás. Fred mantinha seus pensamentos entretidos com as experiências vividas na reunião. A mãe demorou-se um pouco para refazer-se, quando sentiu-se mais descansada, dirigiu-se para a escada. -- Para onde vai? -- Para a cama. Estou moída! -- Onde está Elizabeth? -- Ficou com o namorado. -- Ela o que? -- Ela ficou com o namorado. Repetiu a mãe bem lentamente. -- Vai passar a noite com ele? -- Ora, até parece que é a primeira vez que ela passa a noite fora. -- Mas das outras vezes... -- Esquece. Nossa filha já não é mais uma garotinha. -- Eu não admito que... -- Querido, vamos deitar, ok? Percebendo que a mulher não tinha a menor intenção de prolongar a conversa, amuou e continuou onde estava. Ela notando que ele se recusava a subir, deu de ombros e seguiu para o quarto. Estava cansada demais para se preocupar com os chiliques do marido. Alheios a qualquer manifestação que estivéssemos tendo, Eve e Darkness permaneciam na mansão. Os olhos de Eve brilhavam com

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intensidade além da normal. Darkness a fitava embevecido. Ambos desfrutavam de uma união que estava além das convenções terrenas. -- Acredita que eles tenham compreendido o alcance de tudo que viveram? -- De modo algum. -- Mas então... -- Conhece-os melhor que eu. Sabe que ainda estão tentando entender o que aconteceu e o que lhe revelamos. Vai demorar um tempo até que possam assimilar tudo. Talvez até exerçam o papel que lhe cabe, mas de modo inconsciente. -- Será suficiente? -- Será. Mesmo que não tenham consciência de estarem agindo como o esperado, os resultados serão alcançados. -- Meus pais com certeza não o farão de modo consciente. -- Talvez esteja enganada. -- Por que? O que sabe que ainda não me revelou? -- Nada. Estou apenas conjeturando. -- Dark! -- Sério. Não estou escondendo nada. Em pouco mais de dois meses a situação havia voltado a sua normalidade costumas. Mesmo Pandora já ensaiava as primeiras conversas com Tel. Servindo como elo a determinação de Tim. Quem o visse preso aquela cadeira sem poder se locomover livremente, perderia qualquer sentimento de piedade ao observar o brilho vivaz que desprendia de seus olhos. Assim como Darkness havia confidenciado a Eve, estávamos cumprindo nossa tarefa independente de estarmos agindo conscientemente ou não. Aos poucos sentíamos que o ambiente a nossa volta ia tornando-se mais tênue, menos grosseiro. As pessoas que nos cercavam se mostravam mais cordatas. Darkness passou a freqüentar a casa de Eve com certa freqüência. Sempre que ele aparecia, seus pais desmarcavam qualquer compromisso. Eve os descrevia como iguais a crianças diante do superherói predileto. Darkness os havia cativado quase que como fizera com Eve. Passado o tempo das considerações, voltamos a nos reunir em nosso local predileto. O vigia que estava trabalhando não era o mesmo. Antes que surgisse qualquer indisposição entre nós, Fobos tratou de alertálo sobre nossas atividades. Não precisou de muito empenho uma vez que o vigia anterior havia alertado o atual sobre nosso respeito.

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palavra:

Estávamos quase terminando o encontro quando Lilith pediu a

-- Tenho uma novidade para vocês. -- Todos nós? Indagou Set. -- Todos! Confirmou Lilith. -- Hei, Fobos, parece que o parceiro sempre fica para o final. Zombou Deimos. -- Ele já sabe, seu tolinho! Lilith entrou na onda do grupo. -- Assim não vale. Deimos fingiu uma zanga que estava longe de sentir. -- Lilith. Chamou Eve. -- Sim. -- Podemos conversar antes que anuncie sua novidade? -- Claro. Eve levou Lilith até um local onde sabia que não iríamos ouvir o que conversavam. Intrigados ficamos aguardando o retorno de ambas. Nossa curiosidade aumentou ainda mais quando ouvimos os risos entusiasmados de Lilith ecoarem pela noite. -- O que aquelas duas estão tramando? Perguntei sem indicar a quem. -- Sei lá. Mulheres! Fobos pareceu contrariado, mas por dentro estava feliz com a novidade que Lilith iria apresentar. -- Elas estão voltando. Anunciou Set. -- Silêncio. Pediu Fobos. -- Oi. Lilith tinha um ar de deboche ao voltar. -- O que é, estão de conluio? Indagou Deimos. -- Mais ou menos. Respondeu Lilith. -- Anda logo com isso. Desembucha de uma vez! Intimou Set. -- Bem, o que gostaria de anunciar anteriormente era pessoal, mas agora terei que dividir a notícia com nossa amiga. -- E, lá vem bomba! Desabafou Deimos. -- Podemos? Lilith falou mirando para Eve. -- Sim. -- Então tá. -- Vai demorar muito? Insistiu Deimos. -- Estamos grávidas! Anunciaram ambas ao mesmo tempo. -- Como é! Reagimos com surpresa. -- Estamos grávidas. Fobos vai ser papai. -- E Darkness também. -- Espera aí, quer dizer que... Deimos interrompeu seu pensamento neste ponto.

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-- Darkness já sabe? Perguntei a Eve. -- Ainda não por mim. -- Heim? -- Sabe de algo que Dark não tenha conhecimento? Perguntoume Eve com um olhar provocador. -- Não. Respondi resignado. -- Quando ele voltar terei imenso prazer em comunicar. Complementou Eve. -- Agora ele deu para estas escapadas freqüentes. Observou Set sem emoção. -- Sabemos onde ele foi. Não sei porque a contrariedade. Disse Eve. -- Não estou contrariado, apenas sentindo falta de ambos. Explicou-se Set. -- Também estamos. Anuiu Fobos. Mas Mefisto fez questão que Darkness o acompanhasse. -- Até eu iria querer isto. Proclamei. -- Por que? Também está pensando em nos abandonar? Perguntou-me Fobos. -- Não. -- Então? Fobos inquiriu-me mais com os olhos que com a frase pronunciada. -- Há três meses, mais ou menos, quando participamos da última reunião em casa de Darkness. -- O que houve? Deimos não esperou que retomasse o fôlego que havia me faltado. -- Uns dias antes recebi uma carta de minha família. -- Não! Deimos ironizou o fato. -- Eles querem que eu vá vê-los. -- Algum motivo especial? Fobos mostrou-se mais apreensivo. -- Não deixaram nada claro. A carta era sucinta. -- Está pensando em atender o pedido? Pandora sabia muito bem o que eu estava sentindo. -- Ainda não sei. -- Posso dar minha opinião? Pandora observou a reação do grupo antes de prosseguir. -- Pode. -- Acho que deve ir. -- Hei, eles abandonaram o cara na hora que mais precisava! Proclamou Set.

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-- Eu sei. Mas não podemos cumprir a tarefa que nos cabe se mantivermos nossos âmagos agrilhoados a sentimentos negativos. Lembrou-nos Pandora. -- Fácil falar, difícil fazer. Comentou Deimos. -- O que está querendo dizer? Pandora fuzilou Deimos com o olhar. -- Tel, lembra-se dela? -- Estamos nos entendendo. -- Mesmo! -- Hei, pessoal! Cortei o diálogo dos dois. A questão aqui é se devo ou não ir ao encontro de minha família. Tel e Pandora estão se entendendo, de verdade. -- Desculpem-me. Não queria criar uma situação ruim. Foi mal. Deimos estava mesmo arrependido. -- Tudo bem. Só não faça mais isto. Pediu Pandora. -- Com certeza. -- Está vendo só, Eve. Nós aqui participando uma novidade especial e eles nem ligam. -- Tudo bem. Também não vamos nos importar se eles decidirem partir para o confronto. A descontração acabou superando a incipiente rusga. A partir da anunciação da gravidez, não tínhamos mais assunto algum que pudesse competir. Cada um passou a manifestar sua opinião a respeito dos futuros góticos. -- Seus pais já sabem? Perguntei aproximando-me de Eve. -- Ainda não. Estou esperando o melhor momento. -- Acredita que irão criar algum problema? -- Não. Mesmo meu pai está muito diferente. Creio que aceitarão numa boa. -- Vai esperar Darkness voltar para contar em algum jantar especial? -- Não. Não faço a menor idéia de quanto tempo ele irá permanecer afastado. -- Mefisto não vai voltar? -- Ainda não sei. Acho que nem ele mesmo sabe. -- Darkness o ajudará a escolher o melhor. -- Dark pode apenas orientá-lo. A escolha cabe a ele. -- Eu sei. -- E você? -- O que tem eu? -- Vai encontrar-se com sua família?

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-- Não sei. Quanto mais penso no assunto, mais indeciso fico. -- Nunca mais os viu? -- Apenas duas vezes. Em um encontro a que comparecemos no ano passado, ao irmos até o terminal, cruzamos com um de meus irmãos. Acho que ele nem me viu. A outra vez foi quando estava indo para o serviço. Desta vez meu outro irmão me viu e fez questão de fazer de conta que não me conhecia. -- É uma barra não ter o apoio da família! -- Não tenho do que reclamar. A vida cuidou de colocar pessoas valiosas em meu caminho. -- Antenor? -- Todos. Venâncio, um andarilho que me indicou Antenor. E finalmente vocês. Está vendo como sou um afortunado. -- Todos nós somos. O elo que nos une nos torna uno. Eve esperou mais alguns dias antes de contara a novidade para os pais. Precisou aguardar o momento que julgou fosse o melhor para tal. Seu pai andava muito excitado com os últimos acontecimentos. Somente quando sentiu que ele havia diminuído a tensão foi que decidiu anunciar a gravidez. -- Está um tanto calada hoje, filha. Não está se sentindo bem? Comentou a mãe enquanto tomavam um lanche. -- Tenho uma novidade para lhes contar. -- Uma nova crise? Perguntou o pai alarmado. -- Não. -- Se não é nenhuma nova crise, qualquer novidade é bem vinda. Anunciou o pai já mais aliviado. -- Estou grávida! -- O que? É claro que Eve não esperava que seus pais recebessem a notícia com passividade, mas a reação de ambos a deixou sem saber se haviam assimilado direito a novidade. Por alguns minutos eles permaneceram boquiabertos sem conseguirem articular qualquer comentário. Passado o impacto inicial, sua mãe olhou-a no fundo dos olhos e perguntou o mais serena que conseguiu: -- Ele já sabe? -- Não. Ainda não voltou da viagem que faz com Mefisto. -- O que andaram aprontando? Perguntou o pai ainda sob efeito do torpor que o acometera. -- Nada. -- Como nada? Acha que estar grávida é nada?

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-- Pai, já não sou mais criança! -- Ah, sei! Agora acha que já é dona de seu nariz. -- Por favor. Darkness e eu estamos conscientes de tudo. -- Pensei que ele ainda não soubesse. Interveio a mãe. -- Diretamente, não. Mas não há nada que Darkness não tenha conhecimento. -- O que pretendem fazer? Esbravejou o pai. -- Esperar a criança nascer e criá-la com muito amor. -- De acordo com a escolha que fez, estou certo? -- Está. -- Não percebe que uma criança precisa de um lar estruturado? Um ambiente que lhe propicie condições favoráveis para um bom desenvolvimento? -- Acha que sua filha não tem condições de criar o filho? Eve estava indignada. -- O que se pode esperar de uma criança que cresça entre pessoas tão malucas! -- Não nos achou malucos quando participou de nossa reunião. -- Aquele foi um momento isolado. Vocês mesmo deixaram bem claro que aquilo não era nenhum encontro do grupo. -- Se acha mesmo que não tenho condições de criar o filho que espero, talvez seja porque não soube me educar corretamente! Não eram estas palavras que Eve desejava falar, mas naquele momento foram as únicas que conseguiu externar. Sem desejar prolongar ainda mais a discussão, subiu e trancou-se em seu quarto. -- E agora mais esta! Exasperou Fred. -- Não seja tão radical, querido. -- Como não ser radical num momento deste? Já parou para pensar no absurdo da situação? -- Não vejo nenhum absurdo. -- Como não? Nossa filha tem apenas dezessete anos! Ainda é uma... uma... -- Criança? Não, isto ela não é mais mesmo! Também acho que seja muito nova para assumir a responsabilidade que ser mãe acarreta, mas confio que ela não teria permitido que isto acontecesse se não estivesse pronta para assumir tal responsabilidade. -- Então apóia o comportamento destrambelhado dela! -- A relação dela com Darkness é muito mais séria que a de muitos casais constituídos.

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-- Darkness! Como confiar em alguém que nem mesmo o verdadeiro nome nos revela? Acredita mesmo que este seja o nome daquele esquisito? -- Não importa que nome ele tenha. Importa é o caráter e isto ele tem muito elevado. -- Oh, sim! Estamos diante de uma santidade! -- Pensei que já houvesse superado seus preconceitos. -- Preconceito! Querer que a filha siga os caminhos corretos é sinal de preconceito? -- Não. Mas a carga que lança sobre o fato é. Tudo bem que se sinta contrariado por nossa filha não ter agido como acredita ser o certo, mas não pode associar esta atitude a falta de preparo ou a uma inconseqüência qualquer. Eve já é madura o suficiente para saber o que fez. -- Eve! Até você já a trata assim? -- Eve, Elizabeth, ou qual seja o nome que ela preferir, que diferença faz? Ela é nossa filha! -- Isto não tem cabimento! Percebendo que o marido preparava-se para sair, a mãe de Eve o interpelou: -- Para onde vai? -- Não sei! Preciso arejar as idéias. -- Ótimo! Espero que quando voltar esteja menos obtuso! De seu quarto Eve ouviu toda discussão. Sentiu-se bem ao saber que a mãe a apoiava. A reação do pai não chegou a afetar-lhe além do esperado. Sabia que ele reagiria com indignação. Mas fazer o que? Não podia atrelar seu destino aos sonhos e às fantasias que ele havia criado em sua expectativa de pai. Enquanto a situação na casa de Eve permanecia tensa, na casa de Fobos a alegria dominava a todos. -- Mãe! Exclamou Tel. Menina, agora estou passada. -- Hei, já não sou mais nenhuma menininha! -- Não estou admirada por você. -- Ah, está se referindo a Eve. -- Os pais já sabem? -- A estas horas ela já deve ter contado. -- Não queria estar na pele dela. -- Acredita que eles irão reagir mal? -- A mãe, nem tanto, mas o pai... -- Eve saberá como contar. Adiantou Fobos. -- Não duvido disso. Ainda assim acho que ele vai criar caso. -- Até que Darkness volte. Falou Fobos.

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-- Como assim? Tel não compreendeu a declaração de Fobos. -- Quando Darkness voltar vai poder colocar tudo nos trilhos. -- Ainda não entendi. -- Darkness sabe como ser persuasivo. -- Ah! Tel ainda não era capaz de entender até que ponto a intervenção de Darkness podia alcançar. Depois de mais quinze dias Darkness finalmente retornou. Para nosso espanto vinha sem Mefisto. -- Por que voltou sozinho? Quis saber Deimos. -- Mefisto tem outro caminho para seguir. -- Encontrou a família dele? Perguntou Fobos. -- Sim. -- Estavam mesmo tão ruim quanto ele havia dito? Pandora estava mais serena nos últimos dias. -- Para começar, não havia família. -- Como? Espantou-se Lilith. -- Os parentes, isto é os irmãos, estão vivendo em locais muito distantes uns dos outros. Não fazem idéia do paradeiro dos demais. Apenas aquele que permaneceu na cidade conhecia seus endereços. A traição da mãe acabou originando uma fissura ainda maior que Mefisto imaginou. -- Pretende nos contar tudo? Indagou Set. -- Estão com tempo para isto? -- Pode começar. Afirmou Fobos. Novamente em casa de Fobos, apenas Eve e Mefisto ausentes, o grupo se preparava para se colocar a par dos infortúnios que permeavam a vida de um de nós. À medida que Darkness nos informava dos fatos, sentíamos a ausência de Mefisto se tornar cada vez maior. Intimamente desejávamos que ele estivesse presente para podermos confortá-lo. -- Quando chegamos a cidade onde Mefisto havia morado, seguimos para o endereço onde ficava a casa de seus pais. -- Tinha alguém lá? Interrompeu Set. -- Se você deixar, ele nos conta. Ralhou Pandora. -- As pessoas que estavam morando na casa não eram parentes de Mefisto. Mas sabiam onde podíamos encontrar um de seus irmãos. Saindo de lá, fomos direto ao endereço que nos deram. O local indicado era muito afastado do centro e, portanto, deveria ser um lugar muito paupérrimo. Seguimos por mais de uma hora até localizarmos o sítio indicado. Do alto da estrada confirmamos a hipótese de se tratar de um local muito pobre. A pequena casa existente no local era tão acanhada e rústica que seria impossível a um de nós habitá-la.

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Quando nos viram chegar, duas meninas saíram correndo em direção a casa. Logo depois uma senhora trajando um vestido muito surrado surgiu a porta. Olhou-nos com desconfiança e perguntou: -- O que os moços desejam? -- Procuramos por Benedict Singer. -- Ele não está. -- Poderia nos informar onde podemos encontrá-lo? -- Está na roça. -- E demora a voltar? -- Só mais tarde. -- Poderíamos aguardá-lo? -- O que desejam? -- Este é Michelangelo, um irmão dele. -- Bene nunca me falou de seus irmãos. -- Há muito que não nos vemos. Pela primeira vez Mefisto se manifestava. -- Se desejar, podemos aguardá-lo além da cerca. -- Ele vai demorar um pouco. -- Tudo bem. Podemos esperá-lo? -- Da cerca para fora podem fazer o que bem entenderem. A falta de cordialidade expressa pelo tom de voz da mulher quase fez Mefisto desistir, mas o fiz ver que não deveríamos sair dali sem ter falado com seu irmão. As horas foram passando e nada do homem aparecer. Somente quando a noite já havia começado a surgir foi que ele se mostrou. Ficamos aguardando que ele ou algum outro da casa viesse nos chamar. Enquanto esperávamos, Mefisto ia murmurando algumas frases que não conseguia entender de que se tratavam. Senti que ele estava preste a me pedir para irmos quando uma das meninas veio nos chamar. -- Meu pai pediu para entrarem. -- Obrigado. O interior da casa era tão pobre quanto tudo o mais. Apenas umas estopas jogadas pelo chão servindo como colchão, uns toscos troncos de árvore serviam de assento e nada que pudesse ser identificado a uma mesa. -- Se acheguem. Soou a voz gutural do homem. -- Boa noite! Desculpe-nos aparecer sem avisar, mas não tínhamos como. -- O moço falou que é meu irmão. Pode provar? -- O que preciso fazer para tanto? -- Sei lá. Diga-me algo que apenas nós poderíamos saber.

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-- O primeiro presente que ganhei foi quando tinha cinco anos. Era um cavalinho que papai havia feito com um galho de árvore. -- É. Acho que é quem diz ser. -- Sou. Por instantes ambos ficaram se mirando como a se medirem. Mefisto cerrou os olhos e deixou que lágrimas banhassem-lhe o rosto. Seu irmão não demonstrou a mesma emotividade, apenas o fitava sem nada dizer. -- Digamos que seja. O que veio fazer aqui? -- Estava procurando por minha família. -- Então perdeu seu tempo. Sua família não existe há muito. Sabe muito bem porque. -- Estou procurando por nosso pai. -- Não sei onde aquele traste anda. -- Pensei que não guardasse rancor por ele. -- Por que não? Se não fosse a falta de fibra dele, nada teria acontecido. -- Acredita mesmo, nisso? -- Mamãe não teria que ter procurado amparo em outros braços, caso ele se mostrasse mais decidido. -- Entendo. Sabe, ao menos, onde posso encontrar nossos outros irmãos? -- O Fredo está morando em São Paulo. Não sei onde. O Miguel já morreu e o Giuseppe foi para o sul. Já a cade... a mãe não sei por onde anda. -- Não tem nenhuma pista de onde estão morando? -- Não. Nunca me fizeram falta. Assim como você também não fez. -- Sei. -- Bem, é melhor irmos. Sentindo que a situação estava se tornando constrangedora demais, convidei Mefisto a ir. -- Mas eles... -- Confie em mim. Nos despedimos da família e seguimos em direção a estrada que levava até o sítio. Mefisto estava inconformado com a situação do irmão. Balançando a cabeça ele seguia em completo silêncio. Já estávamos prontos para deixar a propriedade quando uma das meninas nos abordou. Pelo tom avermelhado de seu rosto, percebemos que ela havia corrido um bocado para nos alcançar. -- Mamãe pediu para lhes entregar isto. Estendi a mão e segurei o papel que ela portava.

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agradecer. teor.

-- Obrigado. Ainda voltaremos para vê-los. Sorri ao lhe -- Espero que sim. Assim que a menina se foi, abri o papel e tomei ciência de seu

-- O que tem aí? -- Dois nomes e dois endereços. -- Como? -- Alfredo Singer, Rua Alfeu de Coli, 234. Jardim Ângela. São Paulo. E Giuseppe Singer, Avenida Lisboa, 456, apartamento 54, bloco 25. Jardim dos Oliveiras, Joinvile. -- São os endereços de meus outros irmãos. -- Sim. Deseja procurá-los? -- Temos tempo? -- Todo que precisarmos. -- Só tem mais uma pessoa que precisamos encontrar. -- Dona Ivone. -- Como sabe? Ah, sei! Voltamos a cidade e fomos atrás da mulher que havia sido íntima da mãe de Mefisto. Não precisamos procurar muito. Antes das nove já estávamos batendo palmas a frente de um suntuoso sobrado. -- Quem é? Soou uma voz rouca no portão. -- Procuramos por Dona Ivone. -- O que desejam? -- Falar sobre uma velha conhecida dela. -- Minha mãe está ocupada. -- Quem está aí, menino! A voz ecoou com tanta força que duvidamos que pudesse pertencer a alguém de muita idade. -- São dois rapazes procurando pela senhora. -- Mande-os entrarem. -- Ouviram minha mãe, entrem. -- Obrigado. Seguimos o menino até o interior da casa. Como ele não encontrou a mãe na sala, pediu que o seguíssemos até a cozinha. Segundo ele, era o lugar predileto da mãe. Ao vê-la, compreendemos que ele estava certo em pensar assim. Uma senhora obesa e de ar bonachão estava entretida com o preparo de algo que nos pareceu ser uma espécie de doce. Quando ela se virou em nossa direção, soltou um gritinho estridente e levantando as mãos e se benzendo, disse: -- Pelos céus! Você é o filho da Alva e do Vito!

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-- Reconheceu-me? -- Mas é claro! Não faz tanto tempo assim que... -- Para mim é como se já tivessem passado séculos. -- Não sabia que havia voltado. -- Não voltei. Quer dizer, vim apenas para tentar localizar minha família. -- Já conseguiu? -- Acabamos de deixar o sítio onde Benedict mora. -- Aquele traste! É igual a... -- Os outros dois que ainda estão vivos sei que não moram mais aqui. -- Tem os endereços? -- Sim. O Fredo está em São Paulo e o Pepe em Santa Catarina. -- É. Eles se foram logo depois que você desapareceu. -- Não tive escolha. -- Nenhum de vocês teve. O único que decidiu ficar acabou morrendo em pouco tempo. -- Miguel? -- Sim. Pobre garoto. Ficou tão triste com tudo que definhou até morrer. -- Sabe onde andam minha mãe ou meu pai? -- Talvez não goste de saber do paradeiro deles. -- Seja qual for, preciso saber. -- Não ficou para assistir ao desenrolar dos fatos. Foi uma tragédia! -- Seja como for, preciso saber. -- Bem, seu pai está na prisão do estado. Alguns dias depois de ter descoberto a traição de sua mãe, emboscou o fulano e acabou com a vida dele. Devia estar possuído por algum demônio, pois não se importou nem um pouco em disfarçar. Muitas pessoas viram o que ele fez. -- Tem o nome e endereço da prisão? -- Tenho. As vezes, quando tenho tempo, vou visitá-lo. -- Obrigado. Também irei quando estiver informado a respeito do restante da história. -- Não tenho muito mais a acrescentar. -- Ainda não me disse onde posso encontrar minha mãe. -- Talvez seja melhor deixar este detalhe de lado. -- Não. Em absoluto! Quero ir até o final de tudo. -- Tem certeza? -- Total!

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-- Sua mãe mora em um bordel aqui perto. -- Ela... ela... ela... balbuciou Mefisto. -- Eu disse que era melhor deixar como estava. -- Sempre a verdade é melhor que a falsidade. Mesmo que ele sofra um pouco, acabará crescendo. Falei para a senhora. -- Minha mãe uma prostituta! Falou Mefisto entre lágrimas. -- Não deve condená-la. As pessoas não perdoam os erros alheios. Ela não teve outra saída. -- Não a condeno pela escolha que fez. Apenas lamento que tenha escolhido o caminho mais fácil. -- Não. Este jamais seria o caminho mais fácil para sua mãe. Não a conheceu tão bem para fazer tal juízo. -- Qualquer outro caminho seria mais digno. -- Sim. Mas não menos penoso. Sua mãe sempre foi vaidosa, sem ser orgulhosa. Ela adorava poder mostrar o quanto sabia manter tudo na mais perfeita ordem e harmonia. O local onde ela vive atualmente... -- Não me entenda mal. Não vim até aqui para julgá-la. Apenas desejo me reencontrar com meu passado. Resgatar as faltas cometidas. -- Sinto que está sendo sincero. Mas não posso revelar onde sua mãe está. -- Mas... -- Façamos assim. Eu a procuro, informo que você está aqui para vê-la e marcamos um dia para que possam se encontrar. -- Aqui? -- Não vejo lugar melhor. -- Ela aceitará? -- Isto já não posso garantir, -- Está bem. Poderia nos indicar um lugar para nos hospedarmos? -- Podem ficar na pensão do Nicolau. O menino leva vocês até lá. A pensão indicada não era lá estas coisas, mas pelo semblante anuviado de Mefisto, senti que qualquer lugar um pouco melhor que o casebre em que seu irmão vivia, seria um luxo. Naquela noite ocorreu o segundo contato entre nós. A amiga da mãe de Mefisto só consegui convencê-la depois de muita conversa. Tivemos que aguardar por dois dias até que ela decidisse encontrar-nos. Neste meio tempo, procuramos uma forma de atenuar o sofrimento do irmão de Mefisto.

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Agora, depois de tudo resolvido, posso assegurar que esta foi a parte mais difícil. O irmão de Mefisto era muito orgulhoso, ao menos quanto ao tocante de receber qualquer tipo de ajuda vinda de algum parente. Somente quando estabeleci um rude encontro com ele, foi que conseguimos doar alguns víveres para a família. Mais que abrir espaço para que ele aceitasse a ajuda, plantei uma pequena semente em seu coração. Espero que ela floresça e dê bons frutos. Afinal, seus filhos não podem assumir os erros de outrem. No momento indicado pela mãe de Mefisto chegamos a casa de Dona Ivone. Não desejando encabulara a mãe, Mefisto vestiu-se de preto. Era a única combinação que não denotaria nem luxo extremo nem desleixo. -- Boa tarde. Saudou-nos Dona Ivone ao chegarmos. Sua mãe está na sala. -- Obrigado por tê-la convencido. -- Deu um pouco de trabalho, mas consegui. -- Vamos. Mefisto desejava que estivesse presente. -- Acho melhor entrar sozinho. Adiantou-nos Dona Ivone. -- Darkness é meu amigo. -- Bem, você é quem sabe. Agradecemos a preocupação da mulher e entramos. Ao ver a mãe sentada distraída em uma das poltronas, Mefisto não conteve as lágrimas. Aquela mulher estática postada sobre o assento rústico em nada lembrava sua austera mãe. O que havia acontecido? -- Mãe! Ele chamou com a voz embargada pelas lágrimas. -- Filho! A mulher reagiu levantando-se de imediato. Sabendo que aquele momento era especial para ambos, elevei minhas mãos e utilizando meus conhecimentos sobre as portas dimensionais, os levei para um lugar onde o tempo não poderia intervir. Por uma infinidade de minutos permaneceram em silêncio, apenas seus olhos travavam um delicado diálogo. -- Mãe! Voltou a falar Mefisto indo de encontro a trêmula mulher. O que se viu foi um verter de lágrimas a muito reprimidas. Braços se enlaçando com força como se quisessem impedir qualquer chance de fuga. Novamente uma conversa onde as palavras eram desnecessárias. Os gestos e os olhos falam mais que qualquer palavra. -- Mãe. Voltou a falar Mefisto afastando-se um pouco. -- Oh, filho! -- Sente-se, temos muito que conversar.

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isto.

-- Não sei como encará-lo. -- Sabe sim. Sou seu filho! -- Não imagina o quanto me faz sentir aliviada ao poder ouvir

-- Sente-se. Quero que conheça um amigo. -- Quem? Ao se dar conta de minha presença, ela também notou que já não estávamos mais na casa de sua amiga. Onde estamos? -- darkness? -- Estamos em uma dimensão intermediária. Achei que não gostariam de ser interrompidos. -- Quem é o rapaz? -- Um amigo. Ele me acompanhou até aqui. -- Onde estamos? -- É um pouco complicado para explicar. Falou Mefisto. Vamos conversar, deixe o resto para lá. -- Está bem. O assunto a ser tratado era muito pessoal. Deixei-os a sós e fui até o sítio do irmão. Sabia que Mefisto não sossegaria sabendo que o irmão vivia tamanha provação. Para não causar interferência na realidade que procurava desvendar, preferi deslocar-me sem que eles percebessem minha presença. Acobertado por minha conformação dimensional, pude verificar que a vida do irmão de Mefisto era caótica por sua própria vontade. A propriedade onde vivia fora herdada do pai. Não se podia dizer que fosse um latifúndio nem tanto que se tratava de um sítio reduzido. Aquelas terras nas mãos de alguém de valor, produziria riquezas capazes de satisfazer as necessidades de uma família bem maior que a do irmão de Mefisto. O que ocorria era que ele era um verdadeiro “bon vivant.” Não queria nada com nada. Enquanto a mulher e as filhas se entregavam com afinco ao serviço de preparar a terra para plantarem as poucas sementes que possuíam, ou empenhavam-se em cuidar dos poucos animais que tinham, ele saia pela redondeza se envolvendo com atividades pouco lícitas. Aproveitando que ele se encontrava ausente, aproximei-me da mulher e a contatei. Antes que ela percebesse o que se passava, já estávamos diante um do outro. Ela tremia ao me encarar. -- O que faz aqui? Meu marido pode chegar a qualquer momento. -- Não aqui. Ele não pode chegar onde não é bem vindo. -- O que faço aqui? -- Precisa decidir-se.

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-- Decidir o que? -- Não percebe que sua covardia alija suas filhas da possibilidade de terem uma vida melhor que a sua? -- Mas o que posso fazer? -- Liberte-se! E liberte-as, também! -- Como? -- Não viemos até aqui apenas para encontrar os parentes de meu amigo. Viemos para oferecer nossa ajuda. -- Mas meu marido... -- Seu marido é um naco de nada. Desperdiça a vida que lhe foi concedida para que pudesse resgatar alguns atos falhos cometidos em outras vidas. -- Fala-me sobre assuntos que não conheço. -- Então, falemos sobre algo que você conhece muito bem. Falemos sobre suas filhas. -- O que tem elas? -- Deseja que elas tenham a mesma vida miserável que você? -- Não temos como evitar. -- Têm sim! -- Como? -- Venha! Algo que ainda não contei a vocês, é que possuo uma propriedade localizada em uma das regiões deste país. Devido ao seu caráter especial, eu a denominei de colônia. Sempre que encontro pessoas que enfrentam situações difíceis e se mostram merecedoras de auxílio, eu as levo para lá. Foi exatamente o que fiz. Quando retornei a casa de Dona Ivone, Mefisto já havia encerado a conversa com a mãe. Não lhe perguntei como haviam resolvido as pendências existentes. Sabia que ele tocaria no assunto quando achasse oportuno. Para que ele não se sentisse traído, relatei-lhe tudo que havia feito. -- Você as levou embora? -- Sim. -- Mas meu irmão... -- Seu irmão está metido em uma atividade muito perigosa. Em breve irá arcar com o ônus que ela traz. Não podia permitir que suas sobrinhas sofressem o mesmo. -- Está querendo dizer que meu irmão vai... vai... -- Sim. -- Como?

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-- Como disse, ele se meteu com pessoas muito perigosas. Pessoas que não se importam com nada a não ser preservar seus investimentos. -- Para onde as levou? -- Para o mesmo lugar que pretendo levar sua mãe se ela assim o merecer. -- Ela está arrependida de ter feito o que fez. -- Eu sei. -- Se sabe, sabe também que ela merece nossa consideração. -- Sei. -- Então por que... -- Preciso saber se ela deseja ser ajudada. -- Mas é claro que sim! -- Isto não lhe cabe determinar, está fora de sua capacidade. Ela mesma terá que mostrar o que lhe vai no íntimo. -- Mas pode contatá-la! -- Posso. -- Fará isto? -- Depende. -- Depende? -- Ela precisa abrir as portas para o contato. Este é o motivo pelo qual não tive acesso ao âmago de seu irmão. Ele não se abriu. -- Minha mãe é diferente. -- Vamos esperar que ela se mostre diferente. -- Não acredita em mim? -- Acredito. Mas seu envolvimento o faz ver uma realidade um tanto distorcida. Quando nos envolvemos emocionalmente, afastamos a razão e caímos no erro de não enxergar o óbvio. -- Até quando esperaremos? -- Até quando for necessário. -- Sendo assim, podemos fazer a última visita. -- Podemos. Deixando a cidade para trás, nos dirigimos a prisão estadual. Não sabia se o dia e o horário eram os habitualmente destinados a visitas, mas utilizando minhas habilidades, poderia contornar qualquer imprevisto. Ao chegarmos ao presídio verifiquei não ser necessário fazer uso de meus artifícios. A prisão estava aberta a visitação. O dia e a hora eram aqueles. Nos identificamos e declaramos o preso que fomos visitar. Os guardas anotaram nossos dados, nos revistaram e indicaram onde deveríamos aguardar. Não demorou muito para que o pai de Mefisto fosse trazido até nós.

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-- Pai! A expressão no rosto do homem deixou claro que aquela visita não seria tão amena quanto a com a mãe. -- O que faz aqui? O tom de voz deixou claro a contrariedade do homem. -- Vim visitá-lo. -- Depois de tanto tempo! -- Não tinha como ter vindo antes. -- O que deseja? -- Saber como está. -- Como acha que posso estar? Meu mundo desintegrou-se, estou feito um pássaro em uma gaiola, como posso estar? -- Existem muitas pessoas fora desta prisão que são mais prisioneiras que algumas que se encontram aqui. Falei interrompendo o diálogo. -- Quem é o esquisito? -- Um amigo. -- Sei. Já me viram, podem ir. -- Quero conversar. -- Sobre o que falaríamos? Sobre a desgraça que me jogou neste antro? -- Estive com mamãe. -- Esteve... A emoção que o pai de Mefisto sentiu ao ouvir aquela declaração o deixou sem condições de expressar seus pensamentos. Naquele gesto de incapacidade senti que o coração dele ainda era ocupado pela mulher que havia escolhido para esposa. -- Estou pensando em levá-la embora daqui. -- Está tão bem de vida assim? -- Não. Mas conheço um lugar onde podemos recomeçar tudo do zero. -- Só se for no céu ou no inferno! -- Por que não expulsa esta mágoa que insiste me alimentar? Teria muito a ganhar com isto. Afirmei. -- O que sabe sobre mágoas? Acaso já foi traído? -- Posso lhe contar mais que seria capaz de suportar se fosse revelar minhas feridas. Gostaria de conhecê-las? -- Durão, não? Me mostre! Aproximando-me do pai de Mefisto, preparei-me para levá-lo a uma prisão que faria aquela parecer um hotel cinco estrelas. Estendi minhas mãos e toquei-lhe a fronte. Imediatamente fomos conduzidos a uma dimensão que gostaria de nunca haver sabido que existia.

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Ao interromper o contato, os olhos do pai de Mefisto estavam cheios de lágrimas. Seu pulso acelerado e sua respiração ofegante. Toda dureza que ele demonstrava sentir havia ruído ante a intensidade de minha danação. -- O que fez de tão grave, meu rapaz? -- Algo que não irá me abandonar nunca. -- Agora compreendo porque afirmou existirem pessoas que estão presas mesmo estando em liberdade. -- O que mostrou a ele? Perguntou-me Mefisto. -- Algo que sua alma sensível não suportaria ver. -- Seu amigo está certo. Nem mesmo eu estava preparado para ver o que vi. -- É tão grave assim? -- Muito. Com o desenrolar da conversa ficamos sabendo que o pai de Mefisto tinha mais oito anos a cumprir. Ele não aceitou muito bem o fato de Mefisto haver relevado a falha da mãe. Ainda alimentava um ressentimento muito forte. Talvez mais forte por ainda amá-la. Durante dias ficamos nos encontrando com ambos. Aos poucos fomos abrandando a fúria que dominava o íntimo do pai de Mefisto do mesmo modo que conseguíamos aliviar o peso que sua mãe havia se imposto. Sabia perfeitamente qual era a intenção de Mefisto. Porém, como ele não a explicitara, não comentei nada. Seria muito difícil que ele conseguisse obter o resultado esperado, mas que mérito teria se se entregasse apenas as tarefas fáceis? Sem saber, ele estava exercitando sua capacidade de receber e distribuir as energias superiores. Por alguns dias tive que deixá-lo a sós. Ele pediu-me para que fosse procurar pelos outros irmãos. Queria saber como estavam vivendo e se precisavam de alguma ajuda. Caso ele tivesse me acompanhado, demoraríamos muito mais para completar a missão. Diferentemente do irmão que ficara na cidade natal, os outros haviam se estabelecido de modo adequado e conseguiam levar uma vida mais tranqüila. Alfredo trabalhava em um mercado na capital paulista e Giuseppe montara uma oficina na cidade de Joinvile. Ambos permaneciam solteiros e não estudavam. As novidades deixaram Mefisto mais livre para continuar se empenhando em seu propósito. Não arrefeceu nem mesmo quando o pai se mostrou irredutível quanto ao desejo de nunca mais se encontrar com a mulher que havia desgraçado sua vida.

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Com jeito e muita persistência foi ganhando a alma do pai. Sentimos que a índole do homem era respeitável. A dor da traição o havia cegado fazendo-o cometer o crime, mas não havia maldade em seu íntimo. Um pouco de indolência, mas só. Em determinado dia, Mefisto foi categórico: -- Estou voltando para minha cidade. -- Já? -- Penso que já desperdicei muito do tempo que me cabe. Como senhor mesmo afirmou, estou perdendo tempo tentando conciliá-lo com minha mãe. Sendo assim, não me resta mais nada a fazer por aqui. -- Não precisa ser tão drástico. É claro que ainda estou muito revoltado com aquilo que ela me fez, mas sei lá, talvez possa... -- Se disser que deseja vê-la, precisa prometer que não será para despejar um caudal de acusações e ofensas. Terá que ser uma visita... digamos, cordial. -- Ser cordial com alguém que me apunhalou é algo muito difícil. Mas se é o preço para mantê-lo por aqui... -- Não tem que ver a situação por este prisma. Nem quero que seja assim. Não devo ser visto como um objeto que o senhor pode colocar entre os dois. -- Não, não é está minha posição. Talvez não tenha me expressado corretamente. Quando o vi naquele dia, senti algo muito desconfortável. Não sei lhe dizer o que, mas me incomodei com sua presença, afinal era a primeira visita que recebia desde que... bem, o que ocorre é que iria me sentir privado de tudo caso deixasse de vir me ver. Agora que está aqui, sinto que ainda me resta uma esperança. -- Não pretendo abandoná-lo, mas não quero que coloque uma condição para isto. Ver minha mãe deve ser um desejo seu, não algo que possa usar como troca por minhas visitas. -- Está certo. Você tem razão. Dê-me mais um tempo e vou me esforçar para poder receber sua mãe despojado de qualquer indício de raiva. Mefisto sentiu-se aliviado quando o pai lhe fez tal afirmação. Durante o tempo em que se manteve afastado, compartilhando a companhia do grupo, havia experimentado vivências que o atingiram no fundo da alma. A cordialidade que testemunhou, o carinho que pode experimentar, a compreensão, enfim, emoções e sensações que jamais havia lhe tocado. -- Não sei como lhe agradecer. Ele me falou uma certa noite enquanto esperávamos seu pai se decidir. -- Agradecer-me? De que? -- Por tudo.

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-- Não tem que me agradecer. Lembra-se que lhe mostrei que sua tarefa é ser a estação receptora, transformadora e distribuidora de energias? -- Mas não sei se estou preparado para isto! -- E o que acha que tem feito estes últimos dias? -- Tentado ajudar meu pai e minha mãe... -- Escolheu os elementos mais difíceis para iniciar seu trabalho. -- Como assim? -- É sempre mais difícil quando estamos envolvidos emocionalmente com as pessoas que necessitam de nosso auxílio. -- Está querendo dizer que... -- Isto mesmo. -- Mas nem por um momento pensei que... -- Só não pense que esta é a única maneira de cumprir sua tarefa. Encontrará situações em que as pessoas precisarão mais de um puxão de orelhas do que de um afago. Tem que saber identificar qual a melhor maneira de exercer sua habilidade. -- Foi por isto que muitas vezes chegou a nos torturar com atitudes incompreensíveis? -- Não sabia que os tinha torturado. -- Foi só modo de falar. -- Quando me calei ou deixei de afagar-lhes o íntimo, queria que compreendessem as lições, apresentadas, com clareza, sem se apoiarem em minhas próprias idéias. -- As vezes cheguei a pensar que nos testava. -- Não. Nunca foi minha intenção testar nenhum de vocês. Não precisava utilizar este expediente. -- Por que? -- Porque confiava que seriam capazes de cumprir com as incumbências que lhes cabiam. -- Só você, mesmo! O dia marcado pelo pai de Mefisto para o encontro com a mãe começou crítico. Mefisto acordou, ou melhor, nem chegou a dormir direito, sentindo dores por todo o corpo. Bem que tentou se fazer de forte e ir até o presídio, mas não conseguiu. Apliquei-lhe uma infusão que iria fazê-lo dormir por algumas horas e sai para levar a mãe ao encontro do pai. Não desejava ficar bisbilhotando o encontro dos dois, mas antes que os deixassem a sós, solicitaram que eu permanecesse com eles. Intimamente senti um alívio muito grande, pois sabia que Mefisto ficaria decepcionado se não pudesse lhe contar tudo que se passou entre os pais.

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noite. par de tudo.

-- Onde está o moleque? O pai quis saber. -- Não se sente bem. Creio que foi algo que comeu ontem a -- Bem, não seria o caso de adiarmos o encontro? -- De modo algum. Assim que estiver com ele, o colocarei a

-- Ele confia muito em você, não é? -- Muito. -- Tudo bem. Vamos ao encontro. A mãe de Mefisto aguardava ansiosa a chegada do ex-marido. Seu coração enchia-se de ansiedade e voltava a se esvaziar. Esse inconstante estado de ânimo a estava deixando impaciente. Mil situações passavam por sua mente. Como seria a reação de ambos ao se verem frentea-frente depois de tudo? Minha preocupação também era enorme. Apesar da concordância do pai de Mefisto, temia que ao ver sua ex-esposa a sua frente, recuasse e se deixasse dominar pela fúria que tentava controlar. Assumindo posição em que poderia intervir a qualquer sinal de conflito, esperei que ele entrasse na exígua sala reservada para o encontro. Ao se verem diante um do outro após tanto tempo, seus corações bateram descompassados. Seus olhares ficaram se estudando durante um interminável espaço de tempo. Aproveitei a situação para fazê-los chegarem à dimensão intermediária. Assim teríamos mais privacidade. Já na dimensão escolhida, eles permaneceram como estavam. Nada diziam, nada encetavam. Apenas se olhavam. Só compreendi o que se passava em seus âmagos ao observar que lágrimas banhavam-lhes as faces. Sem nada dizerem, deixaram-se envolver por um abraço que selou o fim de uma dor que os consumia há anos. -- Alva! Por que? -- Não sei, meu Vito! Não sei porque! Por um longo período nada mais foi pronunciado. Mãos nervosas se entregavam ao exercício agradável de carícias há muito esquecidas. Sapiente do que viria, deixei-os a sós. É certo que teria que relatar os resultados a Mefisto, mas isto não incluía relações mais íntimas. Após um tempo que considerei suficiente, voltei a encontrálos. Estavam parcialmente vestidos, nada, porém que pudesse ser considerado obsceno. Ao me verem entrando procuraram se recompor. -- Está aí há muito tempo? Perguntou-me a mãe ainda dominada por algumas lágrimas mais reticentes. -- Não. Acabei de chegar.

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-- Não sei se você tem algo a ver com tudo isto, mas seja como for, não temos como saldar a divida que adquirimos com você. -- Não me devem nada. Agradeçam tudo a determinação do filho que têm. -- Michelangelo! Onde o encontrou? -- Vivendo com um grupo de amigos. -- Nunca vou me perdoar... -- Hei, não quer jogar todo empenho de seu filho num sentimento de autopiedade, quer? -- Não! Mas me sinto tão envergonhada e má. -- Não espere que as outras pessoas relevem seu erro se você mesmo fica se condenando por ele. O que passou, passou. Tudo que nos acontece deve ser visto como uma lição que nos leva a repensar nossos valores. Se acredita que tudo que aconteceu foi um erro, a hora é de aprender e voltar a caminhar para frente. -- Não me admira meu filho ter vindo até aqui para tentar nos reunir. O pai de Mefisto estava dominado pela emoção. -- Seu filho é muito mais que um simples rapaz tentando se tornar adulto. Ele possui um dom muito especial. Vocês são o primeiro passo que ele dá na realização da tarefa que lhe foi confiada. Mais uma semana e alguns encontros e as arestas existentes entre os pais de Mefisto haviam sido desbastadas o suficiente para que pudéssemos vislumbrar uma nesga de reconciliação. Faltava apenas sabermos se a mãe estaria disposta a mudar-se para a colônia. Neste sentido, Mefisto decidiu ter uma conversa muito séria com ela. Estava na hora de fazer a escolha. -- Está querendo que eu deixe tudo e me mude para um local desconhecido? -- A mulher e as filhas de Benedict foram para lá. Não estará tão só. -- Mas tem seu pai. -- Ele não colocará empecilho. -- É muito longe esta tal colônia? -- Algumas horas de viagem. -- Mas então... -- Toda vez que desejar, posso trazê-la até aqui. Papai não ficará abandonado. -- Não sei. -- Vamos falar com ele. Verá como ele irá concordar.

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Durante os últimos fatos, mantive-me afastado. Mefisto estava se saindo muito bem em sua tarefa, não precisava ficar ao seu lado. Esperei até que ele surgisse trazendo a resposta definitiva dos pais. Finalmente eles decidiram. Vito mostrou-se totalmente favorável a idéia da ex-mulher ir morar em um local afastado daquela cidade. Considerando o fato dela ter decidido passar uma borracha sobre o passado e ele haver relevado sua falha, não via porque ela continuar morando em um lugar onde sempre estaria sendo lembrada de tudo que ocorrera. -- Vai sim. Lá poderá começar uma vida nova. -- Mas eu ainda o amo. -- Eu sei. Este é mais um motivo para que vá. Quando minha pena acabar, vou me juntar a vocês. -- Além de que, posso trazê-la sempre que quiserem se ver. Adiantou Mefisto. -- Tem certeza de que não vai se sentir abandonado? -- De modo algum. Sabendo que vocês estão bem e em um lugar bom, posso cumprir o resto do tempo que tenho, mais tranqüilo. -- Ficarei esperando com ansiedade por este dia. -- Eu também. Tudo decidido, nos preparamos para voltar. Mefisto fez a mãe compreender que para onde iam, não precisava levar nada. Apenas documentos ou um ou outro bem mais pessoal. O mais já encontrariam na colônia. A viagem até a propriedade foi percorrida com tranqüilidade. Alva se encantava com tudo que via. Seus olhos ganharam um brilho tão terno que Mefisto compreendeu o quanto significava poder servir de fonte para saciar a sede de outrem. Sua disposição em restabelecer a harmonia entre os pais deixou claro o quanto ele estava preparado para a tarefa. -- Bem, resumidamente foi isto. Podem entender o motivo que fez Mefisto não voltar para cá. -- É claro! Qualquer um de nós teria agido da mesma forma. Afirmou Fobos. -- A decisão dele é definitiva? Perguntou Deimos. -- Até onde sei, será. Mefisto assumiu a incumbência que todos vocês ainda estão trabalhando em seus íntimos. -- Nunca mais o veremos? Perguntou Pandora. -- Nunca mais é muito tempo. Não há nada que impeça que o visitemos, ou que ele nos visite. -- Como funciona esta colônia? Fobos mostrou-se muito interessado.

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-- Mais tarde conversamos sobre isto. Explicar em detalhes levará muito tempo. -- Combinado. Assim que julgar adequado, quero ouvir mais sobre o assunto. -- Hei, acho que todos nós queremos, não é? Lilith tentou incentivar os outros, mas o entusiasmo não foi o mesmo. -- Não se preocupe com isto. Darkness fitou Lilith bem fundo. Cada um tem o seu próprio caminho. -- Vamos sentir muita falta daquele aluado. Falou Deimos. -- Ele também sentirá, mas é inevitável que o amadurecimento traga separações. Se permanecessem juntos, os efeitos de suas potencialidades ficariam restritos a área em que estivessem atuando. -- Está querendo dizer que ainda vai acontecer mais separações? Indagou Pandora. -- Separações podem se manifestar no plano físico, mas sempre estarão unidos pelo etéreo. -- Eu sei que não pretendo deixar esta cidade. Afirmou Set. -- Talvez. Foi o comentário lacônico de Darkness. -- Bem, a conversa está muito boa, mas tenho que ir. Tim já ficou tempo demais com sua adoradinha. Falou Pandora se levantando. -- Eu a acompanho. Ofereceu-se Deimos. -- Não está mais morando aqui? Darkness sabia que não, mas desejava sentir a energia desprender-se de Pandora com espontaneidade. -- Não. Tim ficou tão apegado a Tel que não tive outra saída a não ser mudar-me para a casa dela. -- Devo entender que estão se relacionando bem. -- Muito bem. -- Fico muito feliz em saber disso. Talvez seja a próxima a se lançar ao trabalho. -- Essa não! Já é tão tarde e tenho que trabalhar daqui a pouco! Exclamei. -- Hades! Chamou-me Darkness. -- Sim. -- Ainda evitando utilizar seus dons? -- Estou tentando não utilizá-los para cobrir meus deslizes. -- Está absolutamente certo em agir assim, mas não o vi cometer nenhum deslize. -- Deveria estar dormindo. Tenho que ser responsável. -- Não se cobre demais, rapaz. -- Não. Ainda nem comecei a me cobrar.

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Saímos e cada um tomou seu rumo. Apenas Darkness permaneceu em casa de Fobos. Sentiu que algo havia ficado suspenso na mente de Fobos. Assim que constatou estarem a sós, o questionou: -- Algum problema, Fobos? -- Bem, não sei se você sabe... é claro que sabe. Desde que Lilith confirmou estar grávida, estou pensando se não seria o caso de irmos para um lugar mais tranqüilo. Você sabe, o estado dela... -- Já conversaram a respeito? -- Já. Ela não se sente muito a vontade para deixar o grupo, mas também concorda que precisamos de um lugar mais tranqüilo para cuidarmos do bebê. -- Sabe que não é sua responsabilidade cuidar do grupo. -- Foi o primeiro pensamento que me ocorreu, mas cheguei a conclusão que era uma maneira de fugir de minhas responsabilidades. Devo confessar que mesmo eu, até há pouco, não passava de uma criança brincando de adulto. O que não dizer dos outros? -- Todos precisam crescer. -- Eu sei. Porém, eles criaram uma confiança tão grande em mim. -- Nunca deve permitir que a confiança se transforme em dependência. Isto seria pernicioso. -- Não sinto que sejam dependentes. É claro que em algumas ocasiões eles se mostram frágeis e carentes, mas quem não tem destes momentos? -- O que Lilith pensa de tudo isso? -- Fobos tem meu apoio. Antes que Lilith houvesse se manifestado, Darkness sentira sua presença. -- Então como pretendem resolver este impasse? -- Estivemos pensando em esperar um pouco mais e depois abrir o jogo para o grupo. Não queremos partir de uma hora para outra. Afirmou Fobos. -- Entendo. Como são os mais... vamos dizer... decanos do grupo, posso adiantar-lhes alguns fatos que estão por vir. -- Algo sério? Assustou-se Lilith. -- Não. Podemos conversar agora? -- Claro. Aquela conversa particular entre os três nunca foi totalmente compartilhada por todos nós. Os fatos que Darkness apresentou para eles se desenrolariam com uma brevidade que iria nos balançar. O que nem Lilith nem Fobos souberam, naquele momento, foi que Darkness ocultou-lhes

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alguns outros fatos. Por não julgar relevante ou importantes demais ou simplesmente porque nem mesmo ele sabia que iriam ocorrer. Em sua casa, Eve estava ansiosa. Sentia a presença de Darkness e desejava ardentemente estar com ele. Controlou-se somente com muito esforço. Sabia que ele precisava conversar com seus amigos. Ela tinha experimentado um desdobramento recente no qual fora colocada a par de alguns fatos que estavam para acontecer. Apenas no dia seguinte foi que pôde encontrar-se com Darkness. Na hora do almoço seguiu para o centro na intenção de sondar algumas livrarias a procura de algum artigo que valesse a pena ser adquirido. Estava entretida examinando alguns exemplares da seção de esotéricos quando a voz de Darkness se fez ouvir ao seu lado: -- Penso que este não seja muito apropriado. Quem sabe um título mais leve. -- Dark! Depois do abraço apertado e do beijo demorado, Eve o repreendeu: -- Não perde mesmo a mania de chegar de repente! -- Estava tão compenetrada na leitura que mesmo que houvesse me anunciado, teria se espantado. -- Bobo! -- Podemos ir até um lugar mais apropriado? -- Bem, não sei quanto a você, mas estou com uma fome. -- Um restaurante por favor! Brincou Darkness. Já sentados a mesa de um dos restaurantes do centro, Eve se preparou para comunicar sua gravidez. Estava claro que ele já sabia sobre o fato, mas tinha que oficializar seu estado. -- Está preparado para encarar uma tarefa mais séria? Perguntou iniciando a conversa. -- Hum, o que está preparando para mim? -- Que tal o papel de pai? -- Sério? -- Hum, hum! -- Quando soube? -- Faz alguns dias. Desejei tanto que estivesse por perto. -- Sabe que sempre estou por perto. -- Eu sei, mas queria que fosse fisicamente. -- Bem, não foi só para me comunicar minha nova condição que desejou que estivesse por perto. -- Não. Papai está uma pilha. Ele não recebeu a notícia com muita, quer dizer, com nenhuma satisfação.

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-- Devo ter uma conversa com ele. -- Deve, mas não será fácil. Talvez nem queira recebê-lo. -- Deixe comigo. Sei como convencê-lo. -- Não duvido. Só que... -- Diga! -- Não gostaria que ele aceitasse o fato apenas por interceder. Gostaria tanto que ele aceitasse por mim. -- Já conversou a respeito com ele? -- Ele está mais radical que nunca. Desde que anunciei minha gravidez, ele se recusa a falar comigo. -- O caso é mais grave do que pensei. -- Muito mais. -- E sua mãe? -- Ela ficou um pouco chocada, no começo, mas agora está me apoiando. -- Como dizem sempre, mãe é mãe. -- Sabe que gosto de meu pai tanto quanto de minha mãe. Não quero que seu modo enviesado de ver a vida acabe nos separando. -- Nenhum espírito se separa de outro a não ser que seja necessário. Se seu pai tiver que permanecer um tempo afastado, nada do que fizer poderá evitar isto. Somente ele pode agir em concordância com os ditames. -- Estou com medo. -- Por que? -- Não sei. Quando senti que uma vida se desenvolvia em mim, mesmo antes de ter a confirmação médica, fui acometida por um temor sem igual. Não consigo controlar e nem saber o motivo deste temor. -- Talvez a sensibilidade tenha aumentado e cruzado com alguma energia em crise. -- Mas se assim for, então é porque ainda estou distante do objetivo de nossa missão. -- Não. Muitos são os fatores que podem tê-la levado a este estado de temor. O mais provável seja que tema que nosso filho nasça com o mesmo problema que você. -- A minha doença? -- Exato! Em seu subconsciente estão registradas todas as vivências que seu estado desencadeou. As horas de angústias, as crises, os surtos, enfim, tudo isto pode estar lhe influenciando e fazendo com que tema a repetição de tudo. -- Oh, Dark! Como reagir a isto? -- Pode me acompanhar até em casa?

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-- Agora? -- Sim. -- Está bem. Mamãe pode cuidar de tudo. Eve estava realmente assustada. Aquela situação a havia pegado de um modo tão inesperado que ela sentia o quão despreparada para a vida estava. Sua constante dança com a morte a tinha deixado distante das manifestações que a vida oferecia. Mesmo quando ultrapassou o limite estabelecido pelos médicos, não abandonou seu lado melancólico e mórbido. Só havia realmente despertado para a vida ao conhecer Darkness. Ali, na imensa mansão, entregue ao abraço seguro que ele lhe conferia, sentia toda sua fragilidade se manifestar de modo sufocante. Seus olhos teimavam em não permitir que as lágrimas rolassem, mas mesmo ela tinha um limite. Soluços fermentes deixavam seu peito e finalmente o pranto vazou. Darkness a mantinha sob sua guarda como se a proteger de qualquer ataque, embora soubesse que o ataque vinha do interior dela. Afagando-lhe os cabelos e beijando-lhe as faces, entreteve-se em estreitá-la o mais que podia. Assim, Eve serenou e acabou adormecendo. -- Dark! Chamou ao se ver em um ambiente desconhecido. -- Onde está seu queridinho? Soou uma voz fria e zombeteira que ela não soube identificar. -- Quem é? Onde estou? -- Seu queridinho a deixou? -- O que quer? -- Fazê-la sofrer! -- Por que? -- Por que? Acaso já se esqueceu o quanto me fez penar? Esqueceu-se que por sua causa tenho a eternidade para viver minha danação! -- Não o conheço! Deve ter me confundido com alguém. -- Se é assim, vamos refrescar sua memória. Um turbilhão originou-se diante dos olhos de Eve. Imediatamente ela se viu em um lugar familiar, mas que não soube identificar. Subitamente surgiu a figura de uma linda moça a correr pelo campo com as vestes esvoaçando ao sabor do vento. -- Espere, Lia! Ouviu uma voz masculina soando ofegante em seu encalço. -- Vamos, Tito. Parece um velho! -- Talvez porque eu seja! -- Ora, não seja tão fraco. Não é capaz de pegar uma frágil donzela?

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-- Espere, Lia, cuidado! O aviso chegou um pouco tarde aos ouvidos da moça. Sem poder deter o inevitável, ela se precipitou no abismo localizado no final do caminho. Estarrecido, Tito ficou parado ante o precipício. O coração acelerado e a dor tomando conta dele. Sem mais poder conter a angústia, saltou. -- Lembra-se, agora? -- Mas não tive culpa! Você não tinha que se jogar! -- Não! Não tinha. Mas que escolha me deixou? Viver o resto de meus dias sofrendo a dor de sua perda? -- Teria auferido muito mais com isto! -- Não! Está tentando me imputar a culpa pelo acontecido! -- Não. Mas também não quero que a impute a mim! -- Ora, se não sou o responsável e você também não, de quem é a culpa, afinal? -- Ninguém tem culpa alguma. Sua atitude é uma temeridade ante as leis, mas ela só demonstra o quanto estava despreparado para viver a situação que escolheu viver. -- Despreparado! O que pensa que sou, algum ignorante? -- Não, apenas imaturo! -- Pois onde estou vivendo, tenho aprendido muito. Principalmente com relação a sua culpa. Eve sentia-se sufocar pelo ambiente e pelas palavras daquele estranho. Sabia que as cenas observadas tinham a ver com seu passado, mas também havia ficado claro que ela não tinha participação alguma na decisão dele. Sentiu-se abandonada e impotente. Estava para entregar-se quando sentiu uma brisa refrescante acariciar-lhe a fronte. Imediatamente elevou o olhar e viu a luz que brilhava sobre seu ser. Uma música suave entoava ao seu redor. Antes de perder os sentidos só teve forças para balbuciar: -- Dark! Ao tornar a abrir os olhos, percebeu encontrar-se em um ambiente totalmente diverso daquele anterior. Sentia uma paz reconfortante a amenizar-lhe as impressões que haviam-na atingido bem no âmago. -- Sente-se melhor? -- Dark! -- Estou aqui. Sempre estive ao seu lado! -- O que aconteceu? Por que tive esta visão tão cruel? -- Isto faz parte de seu futuro. -- Como assim? -- Reconheceu o homem, melhor dizer espírito, que a acusava?

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-- Um pouco. Lembro-me da cena, mas não consigo me lembrar da pessoa. -- Isto porque a pessoa não é importante. O espírito é. O que sente em relação a ele? -- Medo! Tristeza! Angústia! Talvez piedade. -- Precisa mais que isso para que tome ciência dos porque. -- Mais? O que mais devo ofertar? -- Nada mais vem a sua mente? -- Só se estivesse querendo que lhe ofertasse meu amor! -- Não sou eu quem deve querer isto, mas você. E deve ser um sentimento autêntico, espontâneo. -- Mas como? Ele me acusou de tê-lo impelido ao suicídio! Isto é mentira! -- Nós sabemos disto, mas ele tropeça nas trevas. Não é capaz de ver além de sua limitada conformação. -- Por que devo amá-lo? -- Não deve nada! Se vier a amá-lo, terá que ser de modo incondicional, sem exigências ou vãs esperanças de que seu gesto possa resultar em bênçãos. -- O que está omitindo? -- Ainda não está pronta para receber esta informação. Somente quando se mostrar madura poderá ouvir o que lhe aguarda. -- Mas... mas... -- Sabe que assim deve ser! -- Eu sei! -- Não se deixe abater. Lembre-se que sempre estarei ao seu lado. -- Oh, Dark! O resto da noite Eve teve sono tumultuado. Seu corpo era dominado por espasmos repetitivos que a faziam delirar. Darkness acompanhava-a atentamente. Sabia que a batalha que ela travava era decisiva para seu total despertar em espírito. À medida que o tempo avançava ele se preparava para a etapa final de sua tarefa. O contato com Eve era o mais forte entre todos. Suas almas almejavam um fim comum e ansiavam por partilharem o mesmo caminho, mas isto só seria possível se... se... Darkness maldisse sua arrogância. -- Dark! O balbucio de Eve o fez retornar e assumir a tarefa que lhe cabia. Com lágrimas a rolarem pelo rosto, cerrou os olhos e imergiu em

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profunda meditação. Precisava alienar-se de sua própria condição e estabelecer contato com o espírito daquela que tanto amava. -- Dark! -- Estou aqui. -- Sinto que estou pronta para ouvir o resto da história. -- Tem certeza? -- Sim. Não sei porque, mas sinto que posso dar o amor que aquele espírito necessita. -- Não está tentando apaziguar seu próprio tormento? -- Não! Estou disposta a ser a fonte que o alimentará! -- Está certo. Em primeiro lugar é preciso que saiba que não tem culpa alguma no que aconteceu a ele. A decisão em auxiliá-lo tem que brotar do amor eterno. -- Eu sei. Não sinto culpa alguma com relação ao infortúnio que se abateu sobre ele. -- Ótimo! Aquele que alimenta tanto rancor por você será o espírito que encarnará no seio do feto que habita seu útero. -- Meu filho! -- Sim. Apenas o amor de mãe poderá auxiliá-los! -- Ele irá me detestar! -- Talvez! Depende de você poder lhe mostrar o erro que cometem aqueles que se deixam conduzir por vibrações negativas. -- Por isto sentia tanto medo? -- Também. -- O que mais tem a ser revelado? -- Seu filho não será uma criança normal. O fato de haver atentado contra a própria vida, produziu marcas profundas em seu espírito. Estas marcas se manifestaram nesta existência. -- Será um retardado? -- Não sei que espécie de deficiência ele terá, mas seja qual for, será sua responsabilidade administrá-la. -- E se não conseguir cumprir minha tarefa? -- Isto está fora de nossas limitadas compreensões abranger. -- Estou pronta! Farei tudo que estiver ao meu alcance! Darei o melhor de mim! -- Não esperava ouvir outro compromisso que não este. Venha! Ao voltarem a matéria o tempo havia avançado por morosos três dias. Neste meio tempo a irritação de Fred só aumentara. Se já não bastasse o fato da filha estar grávida, agora vinha este sumiço. Com muito custo, sua esposa conseguiu com que ele se acalmasse e esperasse que a

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filha retornasse. Sua ira estava a ponto de explodir como um vulcão quando ele viu a cena que iria tocar-lhe o fundo do coração marcando-o de modo indelével. Ao perceber o choro da mulher, deixou a clausura da biblioteca e desceu. Chegando a sala, encontrou a esposa jogada sobre o sofá derramando-se em lágrimas enquanto Darkness, com o corpo desfalecido de Eve nos braços, aguardava que lhe indicassem onde colocála. -- O que houve? Ela teve mais uma crise? Bradou ao cair em si. -- Não. Ela está recobrando-se de uma vivência muito difícil. -- Vocês e esta maldita mania de se meter em assuntos arriscados! -- Eve precisava ver o que viu. -- Deixe-me levá-la para o quarto. Sem opor qualquer resistência, Darkness entregou Eve ao pai. Ainda abalado, Fred subiu a escadaria e levou a filha para o quarto. Darkness permaneceu na sala observando o desespero da mãe de Eve. Aproximou-se dela e tocou-lhe a fronte. Imediatamente a mãe de Eve sentiu-se tocada por uma paz muito forte. Seu pranto cessou e ela olhou firme para darkness. Sem nada dizer, abraçou-o e deixou a sala. A sós, Darkness ajoelhou-se e proferiu profunda prece de agradecimento por tudo que acontecia. Mesmo que ainda não soubessem, as experiências pelas quais estavam passando, seria o elo condutor para que todos atingissem o objetivo comum que tanto ansiavam. Após alguns minutos o pai de Eve retornou a sala. Darkness notou o semblante carregado que o dominava. Indiferente a ele, disse com tranqüilidade: -- Precisamos conversar. -- Agora não, mocinho! -- Precisa entender aquilo que está vivenciando. -- Preciso! Quem pensa que é para vir me dizendo o que preciso ou não? -- Não sou ninguém! a não ser para aqueles que me vêm como um amigo. Para estes sou aquilo que eles necessitam. -- Por acaso sabe o que necessito neste momento? -- Acredita que necessita ver sua filha recobrar a força. -- Acredito! Ousa insinuar que não desejo que ela se restabeleça? -- Não. Não foi esta minha intenção. Só tentava mostrar-lhe o fato de que Eve nunca esteve tão forte quanto agora.

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-- Forte, e a trás desfalecida! -- Ela deve se recuperar da última vivência, mas assim que despertar estará muito bem disposta. -- Acontece que já vimos muitas crises para dar crédito a suas palavras. -- Sente-se! Dificilmente Darkness fazia uso de frases imperativas, mas naquela oportunidade não teve alternativa. -- O que? Balbuciou Fred já obedecendo a ordem recebida. Darkness aproximou-se e tocou-lhe a fronte. A mente de Fred sentiu como se houvesse dado um salto. De repente já não se encontrava mais no aconchego de sua casa. O ambiente que o cercava parecia como um amplo salão onde não se via móvel algum. -- Que lugar é este? -- Um abrigo. -- O que estou fazendo aqui? -- Não se sente mais calmo? -- É. Agora que você falou... -- Precisa permitir que sua filha experimente todas vivências necessárias para desenvolver suas potencialidades. A dor não a afastará do caminho que deve seguir. -- Não temo a dor que possa me consumir, mas quando a vejo sofrendo... -- Nenhum sofrimento é em vão. Se ela traz pendências anteriores, precisa que elas se consumam antes de progredir. Não há progresso sem resgate. -- Tenho medo! -- Todos temos. Mas o medo não pode servir de escusas para justificar nosso imobilismo. Precisamos seguir adiante. -- E se meu neto tiver o mesmo problema de minha filha? -- Ele terá muitos problemas. Alguns semelhantes ao de sua filha, outros totalmente diferentes. Isto diminuiria o amor que viesse a ter por ele? -- De modo algum. Só não sei se suportaria passar por tanta provação uma segunda vez. -- Não seria colocado ante esta realidade caso não tivesse condições de superá-la. Precisa acreditar mais em você mesmo. -- Como? -- Permitindo que sua filha viva! Ela é o raio de luz que iluminará o caminho de muitos. -- Quem é você, afinal? -- Um amigo.

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-- Sei. As últimas frases soaram como ecos longínquos na mente de Fred. A palavra amigo ainda ecoou em seu íntimo por muito tempo. Inesperadamente foi despertado pela esposa que o sacudia: -- Vamos homem, vamos para o quarto. -- Onde está ele? -- Ele quem? -- Darkness, o namorado de nossa filha! Quem mais poderia ser? -- Ele já foi há horas. -- Horas? Não é possível, ainda há pouco estávamos conversando! -- Só se fosse em seu sonho. -- Onde está nossa filha? -- Em seu quarto. Ela acordou, pediu um lanche, tomou-o e voltou a dormir. -- Por que não me chamou? -- Para que? -- Queria falar com ela. -- Nada que não possa esperar que amanheça, não? -- Está bem. Que horas são? -- Duas e meia. -- Já! Preciso dormir um pouco, amanhã terei um dia cheio. -- Vamos. Deixe as preocupações para amanhã. Durante o resto da semana Darkness manteve-se afastado. Era curioso observar que bastava uma nova situação conflituosa surgir e ele evaporava. Naqueles dias ficávamos muito loucos com esta atitude, só muito depois fomos entender seus motivos. Quando ele voltou a se mostrar foi com sua habitual aparição instantânea. Estávamos reunidos no nosso canto preferido, fazendo a leitura de alguns trecho de escritores românticos quando ele surgiu. O sopro gélido que acompanhou sua chegada nos fez arrepiar. -- Boa noite! Sua voz retumbou pelo cemitério silencioso. -- Vai assustar a sua vovozinha! Berrou Pandora. -- Que é isto? Um sustozinho de vez em quando ajuda manter o coração em alerta. -- Poderia se lembrar que estamos em estado delicado. Advertiu Lilith. -- Não se preocupem, as crianças têm sangue frio. Elas não se assustam com qualquer bobeira.

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-- Foi bom ter aparecido. Pronunciou-se Fobos. Temos algumas propostas para serem discutidas. -- Antes de tudo, acho que mereço uma atenção diferenciada, não? Eve não se conseguia evitar a força que a atraía para Darkness. -- Hei, vão com calma! Ralhou Pandora. Estamos acompanhados por pessoas de pouca idade. -- Podem continuar, já vi muito disso. Assegurou Tim. -- O que este pirralho faz aqui? Darkness impostou a voz querendo fazer-se de zangado. -- Estamos cuidando da iniciação do fedelho! Deimos entrou na zombaria. -- Hum, talvez ele não consiga passar pelas provas. Prosseguiu Darkness. -- Será que ele agüenta uma noite na câmara oculta? Agora era Set a entrar no jogo. -- Parem com isto! Esbravejou Pandora. Não percebem que estão deixando o menino assustado? -- Não mesmo! Afirmou Tim. Tudo isto parece ser muito divertido. -- Acontece que não temos nenhum ritual de iniciação. Anunciou Fobos. Estes aí estão só curtindo com sua cara. -- Vamos deixar de gracejos e tratar do que importa? Observou Lilith. -- É claro. Concordou Darkness. Só estávamos querendo deixar o menino mais a vontade. Mas já que estão tão ansiosos assim... -- Não se trata de ansiedade, mas de desejo. Eve lançou um olhar de conluio para Darkness. -- Ah, sim, neste caso, podem dizer o que os está deixando tão desejosos. -- Estamos pensando em nos unir em uma celebração. -- Casarem! -- É, mais ou menos isso. Não estamos pensando em nenhum rito religioso, se é que está entendendo. Adiantou Lilith. -- Não. Se der para ser mais precisa. -- Bem, queremos saber se pode oficiar nossa união. Fobos despejou sem mais meios termos. -- Mas não somos nenhum grupo religioso ou místico ou seita ou sei lá o que mais. Sequer sou sacerdote de algum rito. -- Sabemos disto. Porém, se nos abençoar vamos nos sentir muito mais ligados ao etéreo que se nos colocássemos diante de qualquer representante religioso.

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responder.

-- Sinto-me honrado com tal deferência, mas não sei o que

-- Ora, Dark, o que custa? -- Nada, mas o que os outros vão pensar? -- Bem, não tem que se preocupar com isto. Adiantou Lilith. Já consultamos todos e temos até algumas idéias que deram. -- Idéias! -- Sim. Veja bem, podemos realizar o ritual em sua mansão. Convidamos os parentes e pessoas mais chegadas a família de Deimos, já que são todos góticos, a família da Eve, o anfitrião de Hades, enfim a lista é um pouco extensa. -- E pensaram em tudo isso sozinhos! -- É! -- Começo a pensar que estou sendo demais. -- Ora, ora, nosso mentor está se fazendo de coitado. Zombou Set. -- Vamos, o que acha? Insistiu Lilith. -- Considerando o desejo de ambos e o consentimento de todos, está bem, vamos realizar este ritual. -- Legal! Reagimos com euforia. -- Mas tem um porém. -- O que? Indagamos surpresos. -- Não posso organizar tudo sozinho. Preciso de ajuda. -- Não precisará de muito esforço. A parte complicada já está esquematizada. Você cuida de elaborar o ritual. -- Têm alguma preferência? -- Queríamos algo meio dark. Entende? Falou Fobos. -- Sei. Deixem comigo. O frisson que tomou conta de nós foi muito maior que imaginávamos. Todos se empenharam ao máximo para que nada fosse negligenciado. Os convites preparados e distribuídos, os arranjos confeccionados com esmero, a decoração estudada e realizada com empenho e sugestão de todos. Achávamos que tudo estava pronto quando Darkness surgiu com sua, vamos dizer, sugestão: -- Vejo que está quase tudo arranjado. -- Por que quase tudo? Inquiriu Pandora. -- Falta definir as vestes. -- Pensei que usaríamos nossas roupas tradicionais. Comentou Deimos. -- Não. De modo algum! Fobos deixou bem claro que deseja uma cerimônia Dark. E será assim que acontecerá.

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-- Está bem, sabichão, o que tem em mente? Perguntou Lilith. -- Vejam. Darkness nos apresentou o desenho de alguns modelitos que ele havia criado. -- O que são estas roupas estranhas? Quis saber Pandora. -- Os trajes para a cerimônia. -- Meio sombrias, não? -- De acordo com o desejo dos nubentes. -- Achei fantásticas! Exultou Lilith. -- As totalmente pretas serão usadas pelos convidados. As com faixas douradas sobre os ombros pelos padrinhos, as decoradas com motivos florais prateados pelos noivos e a púrpura pelo celebrante. -- Fenomenal! Fobos aprovou tudo logo de cara. -- E estes capuzes? Indagou Deimos. -- São o ponto chave. Todos deverão se cobrir com eles. Seremos integrantes de uma antiga fraternidade. -- Está nos comparando aos druidas? Questionou Set. -- E quem disse que eles foram os primeiros a fazerem uso desse tipo de vestimenta? Para seu governo, bem antes dos antigos sacerdotes egípcios usarem tais vestes, elas já faziam parte da tradição sacerdotal de muitos outros povos, mesmo entre os semitas. -- Ficaremos parecendo aqueles adoradores do... Pandora foi interrompida por Darkness. -- Psiu! Podemos ser mal interpretados por algumas pessoas. Não fica bem a um bando de pessoas esclarecidas ficarem estimulando estas atividades perigosas. -- Ham? Nenhum de nós entendeu nada do que Darkness falara. -- Mas são todos parvos, mesmo. Zombou Eve. Não estão percebendo que ele está tirando uma com vocês! -- Tem trajes para todos? Perguntou Set. -- Depende de quantas pessoas irão. -- Fechamos a lista ontem. Contando os mortos e os vivos, seremos em número de sessenta. -- Cinco vezes doze! Nada mal! Comentou Darkness. -- O que isto tem haver? Inquiriu Lilith intrigada. -- Nada, apenas uma observação fortuita. -- Nenhum comentário feito por você pode ser tido por fortuito. -- Digamos que segundo alguns simbologistas, este número represente auspicio incondicional.

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-- Esse papo de simbolismo não nos interessa, queremos é saber se podemos atender a tanta gente. Observou Pandora. -- Com certeza. Precisam me mostrar o local onde deverei buscá-lo. Gostaria de poder oferecer transporte de porta em porta, mas minha frota é limitada. -- Uma van! Terá que realizar diversas viagens. Lembrou Deimos. -- Não se preocupe, tenho alguns trunfos guardados. -- Outras vans? -- Aguardem. Para que tudo estivesse em perfeita harmonia só restava comprovar que Fred havia compreendido e aceitado o estado da filha. Darkness havia solicitado um encontro que gentilmente havia sido transformado em um jantar. Pela disposição do pai de Eve, ele julgou que as engrenagens estavam se encaixando. -- Seja bem vindo. Foi o cumprimento que recebeu de Fred ao chegar. -- Espero que esteja mais cordato. -- Embora ainda sinta um pouco de contrariedade, já sou capaz de aceitar o fato. Só não me acostumei ainda com a idéia de ser chamado de vovô. -- Ora, pai. Todos se acostumam. Eve, como sempre, estava radiante. Ola Dark! -- Oi. -- E eu, não mereço consideração? -- Como poderia não merecer! Darkness beijou-lhe a mão e ofertou-lhe um delicado estojo. -- O que é isto? -- Um afago. Espero que goste. Ao abrir a caixa, a mãe de Eve sentiu suas pernas bambearem. Sua admiração foi tanta que não conseguiu falar nada. Com muito custo virou a caixa na direção de Eve e Fred para que eles vissem o presente dado por Darkness. -- Mas é lindo! Exclamou Eve. -- Pelos céus, isto é extraordinário! -- Gostaria que o usasse na cerimônia do enlace de Lilith e Fobos. -- Mas não seria muita ostentação? -- De maneira alguma. Esta gema é um reflexo do fio que unirá a ambos. Como pretendemos abordar o tema em breve, pensei que seria oportuno apresentá-la aos demais.

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-- Mas ela parece ser muito valiosa. -- E o é! -- Mas então... -- Então que não há mais ninguém que possa portá-la a não ser a mãe da mulher a quem amo. -- E Eve? -- Desculpe-me se pareço redundante, mas o brilho que emana de sua filha é incomparável! -- Hei, assim me deixa encabulada! -- Vamos jantar? Convidou Fred. Após a refeição, reuniram-se na sala para uma conversa descontraída. Darkness mostrava-se tão solicito que Fred esqueceu-se de quem ele era. Subitamente soltou uma anedota meio picante. Ao perceber a gafe, desculpou-se: -- Lamento, mas escapou. -- Tudo bem. Não me toca estas manifestações grotescas de humor, mas deve se ater a não proferi-las. As vibrações originadas de tal riso não se coadunam com as energias positivas. -- O que, uma piadinha a toa! -- As palavras possuem uma força descomunal. Ao proferirmos uma sentença, colocamos em ação correntezas as quais vão se adensando até explodirem em resultados nem sempre benéficos. -- Não imaginava que podia desencadear tanta celeuma com uma simples piada. -- A maioria das pessoas se portam de maneira irresponsável diante deste fato. Não fazem idéia do quão levianas se tornam por não conferirem maiores cuidados as palavras que proferem. -- Bem, já que me fez conhecer as conseqüências de minha atitude irrefletida, posso ao menos assegurar que daqui para frente irei dosar mais minhas palavras. -- Podemos mudar o rumo da conversa? Interveio a mãe de Eve. -- Sobre o que deseja falar? Perguntou-lhe Fred. -- Sobre o bebê. -- O que tem o bebê? Indagou Eve. -- Tem que pensar em um nome para ele. -- Já pensei. -- E não nos informou! A mãe de Eve mostrou-se contrariada. -- Ainda estou analisando. Não queria ser precipitada. -- Ao menos podemos saber que nome está analisando?

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-- Bem, no caso de ser homem, acho que será Daniel. E no caso de ser mulher, Alice. -- Alice! Por que o nome de sua avó e não o de sua mãe? Perguntou Fred um tanto zangado. -- Pensei que mamãe iria se sentir mais feliz se homenageasse vovó. -- É claro, filha! Minha mãe ficaria muito feliz sabendo que sua netinha teria seu nome. -- Ainda acho que Lorena é muito mais bonito. -- Assim como para mim sua filha é muito mais encantadora! Interpôs-se Darkness. -- Francamente! Fred pensou em ralhar com Darkness, mas após refletir sobre o que ele falara, deixou-se dominar por intenso riso. Era evidente que a mulher mais maravilhosa seria sempre aquela a qual se ama. Ele a sua, Darkness sua filha, seu pai ainda amava sua saudosa mãe e assim ia pela genealogia a fora. -- Está certo! Vamos deixar como está, afinal você disse que ainda está analisando os nomes, não foi? -- Foi. Pode ser que venha a pensar em outros. -- Não convém consultar o pai? Indagou sua mãe. -- Dark ajudou na escolha. Não tomaria decisão tão importante baseada apenas em minha vontade. -- Por que não escolheu o nome da mãe de seu noivo, então? Fred manifestou-se dominado mais pela curiosidade de saber algo mais a respeito da família de Darkness do que por algum senso de igualdade. -- Dark não tem parentes entre nós. -- Ora, sua avó também já não está entre nós! -- O senhor não entendeu. A família de Darkness pertence a outro mundo. -- Ah, havia me esquecido. Todos os preparativos foram finalizados com alguns dias de antecedência para a data marcada. Lilith desejou que a cerimônia se realizasse na noite que antecedia o dia das bruxas. Toda simbologia inerente aos mitos da época mexia com seu inconsciente. -- Justamente nesta noite! Espantou-se Deimos. -- O que tem de mais? É apenas mais uma noite, como tantas outras. -- Não sei não. Mas as histórias que contam... -- Mitos! Pura fantasia de mentes mórbidas.

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Brincou Set.

-- Hei, Deimos, talvez sobre algum poltergeist para você.

-- Para com isto. Tudo bem que não somos um grupo ligado a manifestações místicas ou mágicas, mas sabemos que muito se esconde de nossos olhos. -- Deimos está certo. Anuiu Fobos. A noite que antecede o dia das bruxas é permeada por energias muito fortes. Mas nem por isto, são somente energias negativas. As positivas continuam a fluir como sempre. -- O que pensa, Eve? Perguntei. -- Não devemos nos ater a considerações supersticiosas. As manifestações negativas que são observadas nesta noite decorrem do maior número de pessoas que estão abertas as energias negativas. Como é uma época em que toda energia se encontra mais concentrada, é evidente que alguns casos possam desencadear reações não muito auspiciosas. -- Mas estaremos reunidos para celebrar o amor! Lembrou Pandora. -- Exatamente! Este fator em si já é determinante para que não nos preocupemos com ocorrências nefandas. Afirmou Eve. -- No entanto, advertiu Darkness, precisamos conscientizar todos que estarão presentes para que vibrem na mesma onda que nós. Qualquer manifestação contrária pode romper a harmonia e gerar um campo favorável a adesão de energias não tão benéficas. -- Como podemos fazer isto? Quis saber Set. -- Os convidados são todos conhecidos, certo? Pois cada um deve se encarregar de conversar com um determinado número deles e explicar os mecanismos que regem as correntes energéticas. -- Mas alguns não fazem a menor idéia de que possam existir tais elementos. Lembrou Pandora. -- Não fazer idéia não quer dizer que não possam corresponder a nosso apelo. Se se portarem dignamente, já estarão colaborando para que apenas energias positivas nos toquem. -- Um aparte, se me permitem. Interveio Deimos. -- O que foi? Perguntou Lilith. -- Não sei se estão sabendo, mas aquele grupo de Curitiba está na cidade. Estão acompanhando a banda Every Today que tem quatro apresentações agendadas para a semana que vem. -- E? Indagou Lilith. -- Sei lá, de repente poderíamos convidá-los para a celebração. -- O que acha, Darkness? Perguntou Fobos. -- Eles estão sabendo algo a respeito da celebração?

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-- Bem, eles são muito ligados ao grupo ao qual minha família pertence. Quando chegaram, desejaram um encontro especial na noite em questão e como já tínhamos este compromisso... -- A decisão deve ficar a critério dos noivos. Asseverou Darkness. Mesmo havendo a participação do grupo, eles são o centro do ritual. -- Podemos confiar neles? Perguntou Lilith. -- Talvez a banda tenha algum show neste dia. Aventou Set. -- Já nos informaram que não. Consideram uma noite agourenta demais. Informou Deimos. -- Eles entenderiam, caso não os convidássemos? Indagou Pandora. -- Provavelmente, afinal tudo estava definido bem antes deles agendarem os shows. Falou Deimos. -- Então não os convidamos. Foi a opinião dada por pandora. -- Também acho que não devemos convidá-los. Opinou Set. -- Hades? Inquiriu Lilith. -- Não tenho nada contra a participação deles na celebração, mas se não desejam a presença de convidados de última hora, tudo bem, acho que devemos mantê-los de fora. -- Não sei se será certo, mas também penso que não devemos convidá-los. Pronunciou-se Deimos. -- De acordo com a vontade do grupo, não os convidaremos. Proclamou Eve. -- Se alguém estiver se sentindo um pouco constrangido pela negativa, posso oferecer uma recepção para eles antes de deixarem a cidade. -- É uma ótima idéia! Vibrou Deimos. Eles ficarão muito contentes, afinal ainda não se esqueceram da última visita a mansão dos horrores. -- Deimos! Ralhou Lilith. -- Tudo bem, talvez desta vez considerem a mansão ainda mais terrível! Na véspera da noite marcada para a cerimônia, Darkness reuniu-nos em nosso ponto habitual. Seu aspecto era solene e mesmo Eve admirou-se quando ele surgiu materializando-se do meio de um espesso manto de névoa que repentinamente encobrira o cemitério. -- Sejam acolhidos pelas bênçãos provenientes do éter! -- Dark!

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-- Devem preparar seus espíritos para aquilo que testemunharão. Não participem apenas com seus invólucros físicos. Aspirem as benesses sublimes que permeiam o ato. -- O que ele está dizendo? Cochichou Deimos para mim. -- Sei lá. Respondi também cochichando. Darkness, mesmo tendo notado nossos cochichos, ignorou-os e prosseguiu em sua manifestação solene. Elevou o semblante e as mãos para o céu e proferiu algo que nos pareceu uma prece. Não entendemos palavra alguma, mas sentimos os efeitos do palavrório. Nossos corpos foram sendo dominados por uma sensação de completo abandono. Num momento estávamos ali, no cemitério de sempre, e no outro já nem sabíamos mais onde nos encontrávamos. Viajávamos por dimensões desconhecidas. Darkness parecia fundir-se com as vertentes energéticas que nos conduzia ao infinito. Luzes e sons múltiplos nos envolviam impedindo que a razão pudesse assimilar as torrentes que avançavam sobre nossos âmagos. Repentinamente tudo cessou. As luzes foram tornando-se opacas até quase nos envolver numa escuridão cerrada, os sons diminuíam a intensidade e os acordes tornavam-se monos até que apenas um sussurro permanecia a ocultar o silêncio. -- Sabem por que estão aqui? Ecoou uma retumbante voz. -- Quem é? Nossas vozes soavam tão retumbante quanto aquela que nos interpelou. -- Seus destinos estão para se cumprirem. A hora soou para vocês. Cada qual tem sua realidade. Cerrem as portas para o físico e deixem falar o espírito. Antes que pudéssemos expor qualquer comentário, tudo cessou. Já não havia mais luzes ou sons. Apenas o vazio sufocante da escuridão. Nada podia ser visto ou ouvido. Nem mesmo nossa respiração era percebida. Naquela dimensão amorfa e silenciosa sentimos nossos eus se manifestarem além do limitado conceito de ser humano. Na noite que se estabeleceu como regente da razão, sentimos morrer o último resquício de individualidade. O ego foi se diluindo e quando nada mais restou de sua existência, a luz voltou a imperar. Pouco a pouco fomos recobrando os sentidos e percebendo o ambiente. Já não eram mais os mesmos sentidos que nos guiavam no mundo físico. Audição, tato, visão e olfato estavam mortos. Tudo se processava com um imediatismo que fugia a qualquer compreensão racional.

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Mal formulávamos, em pensamentos, uma pergunta ou afirmação, ela se espalhava por todos os cantos e retornava de todos os lados nos inspirando noções que fluíam como se fossem correntes há muito represadas em nossas mentes. -- Uno! Retumbou um som pleno de vida. Em minha admiração pessoal, procurei pelos outros e, não sei se me maravilhei ou se me assustei, mas aquilo que testemunhei era algo que jamais imaginara existir. Fogo. Sim, miríades de chamas vivas bruxuleavam por todo espaço. Não havia homem, mulher, jovem ou idoso, apenas chamas a tremularem com intensidade estonteante. -- Uno! Voltou a ecoar o mesmo som. Desta vez pude notar que o manifestar daquela palavra ocasionava vibrações intensas em todas as chamas. Intimamente me senti agitar e então compreendi o que se passava. Aquelas chamas éramos nós! A constatação deste fato mexeu de uma forma tão profunda com meu lado pessoal que o choque desencadeado por ela me fez retornar ao plano físico. Ao despertar todo meu corpo estava formigando. Sentia como se tivesse sido atingido por uma corrente de alta voltagem. -- O que houve? Consegui balbuciar. -- Psiu! Notei Darkness me indicando que deveria permanecer imóvel. Longos minutos se passaram até que todos recobrassem a consciência. Somente quando o último de nós havia retornado, Darkness nos permitiu manifestações orais e de mobilidade. -- O que houve? Voltei a perguntar. -- Não posso colocá-los em contato com o Uno numa única ação. Precisam de tempo para assimilarem cada etapa do processo. Esta foi a última. Da próxima vez que se unirem ao Uno, o farão por seus próprios meios. -- Como! Admirou-se Pandora. -- Já são capazes de trilhar a senda que conduz ao Uno. Poucos espíritos atingem este grau de madureza. Vocês são a exceção, infelizmente. -- Aquilo que vimos, o que são? Perguntou Fobos. -- A essência de todo ser humano. -- Sei que nos considera prontos para caminharmos por nossas próprias pernas, mas não sinto qualquer diferença entre aquilo que sentia antes e o que sinto agora. Comentou Lilith. -- Não há diferença no sentir, apenas no viver. -- Qual a finalidade de tudo isto? Indagou Set. -- Sentem alguma atração pelo mundo em que vivem?

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-- Não! -- Muitos outros também não. E, no entanto é neste mundo que todos têm a oportunidade de romperem com seus erros e avançarem rumo à eternidade. -- Devemos agir em que sentido? Questionou Deimos. -- No sentido de servirem de reflexo de tudo que puderam testemunhar. Não, não precisam me olhar desta forma temerosa. Não desejo que se transformem em pregadores ou algo que o valha. O que precisam fazer é apenas viver. -- Mas isto já fazemos desde que nascemos. Comentou Set, em tom de pilheria. -- Será mesmo? Reflitam bem sobre aquilo que chamavam de viver e exponham seus conceitos sob a nova luz que arde em seus íntimos. Será que poderiam chamar aquelas experiências de viver? -- Onde está querendo nos levar? Perguntou Pandora. -- Aonde todos espíritos deveriam ir. Ao paraíso! -- Cara, agora você foi fundo! Voltou a brincar Set. -- Muito mais do que possa imaginar. Mesmo esta sua atitude de fanfarrão já não se manifesta como antes. Sente que ela se faz mais centrada em uma dúvida que alimenta esta sua incerteza de ser a pessoa ideal ou não. -- Não precisa ser tão explícito assim! -- Não temos segredo dentro do grupo, não tem sido sempre assim? -- Tem. -- Sua maior dúvida seria facilmente afastada se compreendesse que os elos que os une encontram-se ancorados em terreno seguro. Nada pode abalar a confiança que sentem um pelo outro. A hora já avançara quase que pela aurora. Darkness observou o cansaço que começava a tomar conta de nós e decidiu encerar o encontro. Mesmo sem a presença de Mefisto, sentimos o grupo como uma entidade supramaterial. Nossos espíritos ansiavam pelo tesouro que havíamos vislumbrado naquela noite. Embora sentíssemos as vibrações harmônicas congraçando nossos âmagos, uma pequena oscilação nos deixava uns tanto confusos. De onde estaria vindo aquela névoa que ameaçava o equilíbrio conquistado? Darkness, como sempre, sabia muito bem a origem da inconstante vibração e para que nada pudesse ofuscar a cerimônia que se aproximava, contatou a fonte das flutuações. -- Olá, Set! -- Sabia que iria me procurar.

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o grupo?

-- Seu íntimo vibra de modo inconstante. -- Não creio que esteja pronto para aquilo que nos aguarda. -- Sabe que não é obrigado a assumir nenhum encargo. -- Sei, mas se não assumir minha parte, como poderei encarar

-- Não haverá cobranças. -- Sei. A não ser aquela que eu mesmo estabeleço. -- Exato! Não está errado em se cobrar uma atitude mais concreta, mas não pode exigir que desempenhe um papel que não sinta vibrar em seu âmago. -- Mas eu sinto! -- Mas não está disposto a abrir mão de sua dor. -- Ela é mais antiga e mais forte que eu. -- Mais forte, talvez. Mais antiga? Não, não há dor que tenha se originado antes de nosso germinar. -- As vezes sinto que uma força imensurável me atraí para os campos da morte. Acho que não tem como evitar que assim seja. -- Está abrindo mão de seu livre arbítrio? -- Estou abrindo mão de tudo. -- Que assim seja, se é este seu desejo, mas não pode escurecer o céu sobre os demais. -- Como? -- O que espera que aconteça se colocar em prática o que tem em mente? Já refletiu sobre a reação do grupo? -- Já conversei com eles a respeito. Todos tentaram me demover desta “loucura”, mas nenhum me condenou por acalentá-la. -- Não somos juízes! -- Não, não somos. -- Espero que reflita mais um pouco antes de tomar qualquer decisão. -- Se já houvesse me decidido, não estaríamos tendo esta conversa. -- Eu sei. A inconsistente nuvem que se fazia incipiente foi se adensando cada vez mais. Embora Set não houvesse admitido, Darkness sabia que ele já havia tomado sua decisão. Seu ser enlutou-se e foi fustigado por dores lancinantes. Totalmente solitário, seu rosto foi sendo banhado pelas lágrimas rubras que fluíam de seu ser. Se ao menos pudesse obrigar aquele jovem a curvar-se ante sua vontade... mas sua vontade foi a origem de sua perdição. Não fosse por sua escolha, não estaria penando neste mundo estranho.

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Dominado por sua angústia, Darkness reviveu os fatos que resultaram em sua condenação eterna. Mais e mais seu ser era castigado pelas lembranças. Um grito desesperado ecoou e perdeu-se no vazio da noite. O que Darkness não sabia era que em um outro ponto da Terra, ele encontrou seu eco. -- Dark! Eve despertou gritando e suando. A pulsação acelerada e os olhos brilhando como nunca, ela sentou-se e procurou pelo espírito de Darkness. Nada. Não conseguiu encontrá-lo em lugar algum. Sabia que ele estava enfrentando mais uma crise e não podia fazer nada. Mal amanheceu, ela deixou a casa dos pais e saiu a procurar por Darkness. Sem saber ao certo onde ele poderia estar, guiou-se pelas vibrações que sentia. Essas vibrações a conduziram ao nosso canto de encontro. Chegando próximo ao mausoléu que nos abrigava, ela deparou com a cena que tanto temia. Darkness jazia sobre o túmulo. Seu corpo banhado pela característica poça rubra de sangue. Mansamente ele se aproximou, levantou sua cabeça, sentou-se e a apoiou no colo. Docemente ficou alisando-lhe a fronte ao mesmo tempo em que cantarolava uma triste melodia acompanhada pelo pranto que não tinha a menor vontade de impedir que vertesse de sua alma. Uma volumosa precipitação começou a lavar a abóbada celeste encharcando-os. Mas nem mesmo a força da queda do líquido celeste a incomodou. Sua dor mantinha-na solidária com seu amado. Seu ser já não conseguia mais se separar do dele. Somente pela metade do dia foi que ele se recuperou. Ergueu os olhos com dificuldade e vislumbrou o rosto contraído de sua amada. Por uma fração de segundos julgou haver morrido e estar sendo recebido por um anjo travestido da mais formosa criatura que conhecia. -- Eve! Sussurrou ao reconhecê-la. -- Dark! -- O que faz aqui? -- Senti que não estava bem. O que houve? -- Nuvens negras encobrem o céu da manhã. -- Eu sei. Chove há bastante tempo. -- Não. Não se trata deste céu, nem destas nuvens. -- O que se passa? Não por querer compartilhar sua dor ou aliviar a angústia que sentia, mas sim por amar aquela alma acima de tudo, darkness relatou aquilo que estava por vir. Eve ouviu com serenidade, mas assim que o relato acabou, sugeriu:

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-- Seria o caso de cancelarmos a cerimônia? -- Também havia pensado nesta possibilidade, mas o que alegaria? Set não confirmaria minha suspeita. -- Não tem como evitar que aconteça como previu? -- Não! -- Não sei o que dizer. -- Não sei o que fazer! -- Poderia alegar que não se sentiu bem. Não estaria faltando com a verdade. -- Poderia, mas mesmo quando estivemos no Peru, minha recuperação não demorou tanto assim. Iriam suspeitar que algo mais grave está sendo mantido em segredo. -- Compreendo. Devemos levar adiante o planejado. -- Devemos. -- Neste caso, precisamos correr. Já são quase duas horas. -- Acompanha-me? -- Tenho que voltar em tempo de me arrumar. -- Não irei demorar. -- Sendo assim, vamos. Alheios a tudo que se passara, continuávamos seguindo com o roteiro previamente estabelecido. Cada qual assumindo a parte que lhe cabia. Quando a tarde começava a expirar, nos reunimos diante do club. Devido ao número de convidados, todos estavam lá. A exceção, é claro, eram os noivos e os padrinhos. Se algum grupo de freqüentadores do local aparecesse naquele instante, na certa iria se sentir entrando em uma convenção de bruxos e afins. Os trajes escolhidos por darkness nos conferia um aspecto sombrio, porém sisudo o bastante para impor mais respeito que temor. -- Será que já foram para a mansão? Perguntou Pandora. -- Já. Darkness os recebeu pelas quatro horas. Informou Eve. -- Pensei que eles a tivessem convidado para madrinha. Comentou Deimos. -- Foi a primeira opção, mas como haviam solicitado a darkness que oficiasse a cerimônia, decidiram optar por outra pessoa. -- Bem, não vejo mais ninguém, do grupo, ausente. Afirmou Pandora. -- Isto porque eles não desejavam que alguém pudesse ficar ressentido. Não escolhendo ninguém do grupo, não teria porque um de nós se melindrar. -- Isto soa como idealizado por Darkness. Declarou Set.

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-- É evidente que ele deu sua sugestão. Mas a decisão coube a Lilith e Fobos. Avisou Eve. -- Bem, quanto tempo mais teremos que esperar? Pandora estava impaciente. -- Vejam! Gritou Tim ao perceber um veículo se aproximando. -- Desta vez Darkness se superou! Exclamou Set ao identificar o veículo. Um possante helicóptero pousou no espaço existente atrás do club. Geralmente utilizado como estacionamento, as dimensões eram suficientes para que aquele gigante se acomodasse e ficasse a espera de que todos ocupassem seus lugares. O frisson foi geral. Mesmo nós deixamos que nossas emoções vazassem descontroladamente. Naquele momento não nos lembrávamos do ar solene que Darkness havia conferido a cerimônia. Quando o helicóptero elevou-se ruidosamente, sentimos a barriga gelar. Fosse pela potência do aparelho ou pela ansiedade, o certo é que fomos dominados por uma estranha sensação de dormência. A estranha sonolência só nos abandonou quando o aparelho aterrissava. -- Chegamos! Anunciou o piloto da aeronave. A mansão nunca pareceu tão sombria. A névoa densa que a envolvia fazia a lua tremeluzir de modo bruxuleante. Os sons noturnos remetia-nos ao clima tenso das fitas de terror. Tremores espontâneos ganhavam nossos corpos. -- O mestre pediu que todos estejam devidamente trajados quando ele chegar. Anunciou o piloto. Ouvir Darkness ser denominado mestre nos deixou intrigados. Ele nunca havia feito qualquer referencia ao modo como devíamos tratá-lo. Poderíamos muito bem tê-lo chamado de guru, guia, ou qualquer outra denominação, mas mestre? Bem que fosse assim. As poucas pessoas que não haviam se sentido a vontade para vestir o traje longe da mansão, o faziam agora. Em pouco tempo todos estávamos vestidos segundo a indicação de Darkness. Excetuando-se o traje de Eve, que era semelhante ao de Darkness, os demais eram todos exatamente iguais. -- Sejam bem vindos a celebração do amor. Soou a voz imponente de Darkness. Seu tom solene nos deixou claro que ele se apresentava como celebrante e não apenas como nosso conhecido. -- Formemos o círculo! Convidou Eve. Lentamente fomos nos colocando na posição solicitada. Logo a formação foi se solidificando até que a figura mística estivesse formada. Eve e Darkness colocaram-se no centro e conduziam nossos passos.

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-- Fechem os olhos e procurem olvidar tudo que esteja aderido a suas mentes. Transformem o espaço delas em um imenso vazio. Iniciou Darkness. -- No vazio que se fizer, criem a imagem de uma semente. Ao divisarem a semente com nitidez, formem a figura do seio que irá recebê-la. Não tentem prender-se a convenções ou conceitos que estejam arraigados em seus âmagos. Deixem que a figura se forme espontaneamente. Prosseguiu Eve. -- Neste seio lancem a semente. Como adubo e alimento, despejem as energias que fluem da fonte da vida. Elas irão fortalecer os votos que houverem segredado as sementes. -- Observem as sementes crescendo e tomando forma. Não procurem estabelecer limites ou contornos. Deixem que elas evoluam com liberdade. Apreciem a dádiva que elas lhes transmitem. -- Contemplem as flores que germinam adornando a sebe que vingou. Robusteçam-na com as energias que correm em seus íntimos. Fortaleçam os vínculos estreitando as vibrações de amor. -- Agora já podem admirar os frutos da pequena semente que ocultaram no seio da mente. O suco da vida corre pela derme e pela polpa do mesmo. Colham-nos e sorvam da seiva que sacia os ensejos mais sublimes. Sintam a energia da vida tomar conta de seus âmagos e transformá-los em seres eternos! -- Lentamente voltem para o agora. Descerrem os olhos e apenas deixem fluir a energia. Mantenham a respiração pausada e procurem reter ao máximo as impressões percebidas no âmbito etéreo. Seus espíritos comungam com a harmonia do cosmo. O silêncio que se seguiu foi altamente benéfico a todos. Mentalmente havíamos nos unido com a unidade e assim deveríamos permanecer até que a cerimônia chegasse a seu fim. Darkness ajoelhou-se e proferiu uma fórmula esotérica ainda desconhecida para nós. -- Mantendo a mesma serenidade e concentração, não permitindo que qualquer som quebre o elo que se formou, sigam-nos. As mulheres na companhia de Eve, os homens na minha. O cortejo seguiu solene pelas cercanias da mansão. Diferentemente do que havíamos imaginado, a cerimônia não seria realizada no seu interior, mas sim em uma clareira localizada além das árvores que circundavam a construção. Árvores estas que não havia percebido serem tantas, das outras vezes que estivemos ali. Ao chegarmos a clareira, um círculo de pedras a rodeava formando uma replica do grande templo de stonehenge. No cento um altar rústico, porém sobreposto por uma violácea manta decorada em tons

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dourados e prateados. No mais uma pequena chama que tremulava no interior de um vaso colocado no centro do altar. Enquanto chegávamos por um caminho situado ao sul da clareira, as mulheres vinham por um outro localizado ao norte. À medida que entrávamos no grande círculo, íamos tomando posição em redor do mesmo. Assim, formávamos um outro círculo no interior do maior. Eve deixou a companhia das mulheres, dirigiu-se para o centro do círculo e com sua voz maviosa entoou o hino que Darkness havia escrito e composto tempos atrás. O som da alma interpretado pela sensibilidade de Eve nos tocou tão profundamente que só conseguimos concentrar nossas atenções em sua performance. Terminado o canto, Eve permaneceu em seu lugar parecendo esperar por algo. Com a delicadeza que lhe era peculiar, elevou os braços e ao voltá-los a posição inicial uma densa nuvem formou-se sobre o altar. Quando a névoa se dissipou Darkness estava postado atrás da pedra cerimonial. O som de citaras acompanhadas por flautas soou proveniente do caminho a leste do círculo. Não demorou muito é pudemos ver do que se tratava. Precedendo e seguindo o noivo e seus padrinhos, uma dúzia de meninos trinava seus instrumentos com harmônicos acordes. Logo que o noivo se colocou a esquerda do altar, novos sons se fizeram ouvir. Desta vez eram mais delicados e, ao que nos pareceu, vinham de harpas. Mas quando o cortejo formado pela noiva e suas madrinhas entrou seguido por uma dúzia de meninas, nos colocamos boquiabertos. As meninas tocavam um instrumento que nunca havíamos visto. Lilith estava irreconhecível em seu traje nupcial. Fobos, apesar de quase que totalmente oculto pelo traje, tinha uma expressão séria em seu rosto. Quebrando a sisudez apenas um leve sorriso que dedicava unicamente a noiva. Seus olhos não a perdiam um único instante. -- Vocês, que ante o secular espectro dos guardiões da eterna união se apresentam para ratificarem os votos há muito pronunciados, estão cientes do ato que estão por efetivar? Soou a voz solene e potente de Darkness. -- Sim! Lilith e Fobos uniam-se até mesmo pela voz. -- Conheceram algumas ínfimas vivências que eram permitidas, através delas confirmaram aquilo que seus corações acalentavam desde o momento em que se reencontraram. São espíritos unidos por laços etéreos. Esta união já se consumou há muito tempo, hoje se apresentam diante dos elementos para reforçá-la. -- Sim!

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-- Coloquem suas mãos sobre as do outro. Mirrem-se por um momento e fechem seus olhos. Obedecendo ao rito formal, Lilith colocou sua mão direita sobre a esquerda de Fobos enquanto à direita dele sobrepunha-se a sua esquerda. Seus olhares fixaram-se pelo tempo solicitado e depois apagaram-se para o mundo que os rodeava. -- Aos que testemunham este reencontro solicito que elevem suas mãos direcionando-as sobre os nubentes. Ampliem a intensidade de suas energias e vibrem harmonicamente com as correntes que fluem dos espíritos que agora reafirmam seus votos de eterno amor. Imediatamente, todos nós movemo-nos no sentido solicitado e enviamos nossas energias para os noivos. Este nosso gesto desencadeou uma verdadeira correnteza de energias que fluíam por todos os lados. Seria impossível a qualquer um de nós não se sentir tocado pelo fluir da correnteza que permeava aquele ambiente. Os infinitos minutos aos quais nos entregamos nos deixaram com a sensação de completo alienamento temporal. Em determinados instantes parecia-nos que tudo não passara de uma fração de segundos e em outros, era como se séculos houvessem passados diante de nossos olhos. Só voltamos a nos inteirar do momento que vivíamos quando Eve assumiu o comando da cerimônia e anunciou a jura que cabia a Lilith proferir: -- Você, mulher consciente de sua origem sublime, consagra seu ser aquele que escolheu por companheiro. -- Eu, plena de solene determinação, confio meu caminho aquele que se uniu a meu espírito. Que nossos passos possam conduzir-nos de volta ao paraíso. -- Você, homem sabedor de seu mister, sacramenta sua existência em nome do sentimento que soergue seu espírito. Conclamou Darkness. -- Eu, senhor do veio que me cabe, entrego minha nave aquela a quem uno meu espírito. Que nossos passos nos levem ao recôndito da casa eterna. -- Santidade é um estado que cabe apenas ao Criador, mas ao doarem-se tão integralmente, comungam com as radiações provenientes desta augusta manifestação. Seus espíritos se robustecem e se tornam um. Não há força capaz de alterar o compromisso que assumiram, apenas a decisão de ambos é determinante para um novo direcionamento de seus passos. Sigam em harmonia e se tornem como a unidade, não cultuem o eu, o você ou o nós, sejam apenas um.

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Com o silêncio que se seguiu ao pronunciamento feito por Darkness, Eve reassumiu o comando da consagração. -- Nós, aqui reunidos para comungar deste momento especial, ofertamos nossas energias e nossos seres para que se manifestem as benesses excelsas. Em adoração nos curvamos e agradecemos a possibilidade que nos foi concedida de podermos partilhar de momento tão sublime. Ao se calar, Eve colocou-se em posição genuflexa no que foi acompanhada por todos. Cada um procurava represar o máximo possível de tudo que havia se passado. Mesmo aqueles que nada entendiam, pressentiam o quão elevada fora aquela celebração. As energias ainda fluíam pelo ar nos tocando quando Darkness levantou-se e voltou a pronunciar-se: -- Celebremos a união de nossos amigos e consagremos nossos esforços no sentido de lhes desejarem a mais duradoura felicidade. Levantem-se! Quando todos estávamos em pé, Eve tornou a elevar os braços e, conjuntamente com Darkness, proclamaram fórmulas misteriosas. Aos poucos fomos sentindo que o ar ia se tornando mais pesado, mais denso, menos iluminado até que pareceu-nos estarmos entrando em processo de sono. Quando voltamos a firmar nossos estados mentais, Darkness estava postado ao lado de Eve e olhando para Lilith e Fobos anunciou: -- Eu os declaro espíritos ungidos pelo fluir do amor. Doravante sereis um e nada que se origine fora do vibrar harmônico que os une poderá atingi-los. -- É hora de desfazermos o círculo. As mulheres me acompanhem. Anunciou Eve. -- Os homens aguardem que as mulheres tenham deixado o recinto. Invertendo a direção de entrada, as mulheres deixaram o templo pelo lado esquerdo, como se estivessem prosseguindo com o trajeto original, assim também agiram os homens e os noivos e padrinhos. Quando todos já estávamos reunidos diante da mansão, Darkness solicitou a atenção e informou: -- A parte solene está encerrada. Agora podem comemorar. Só não exagerem para que o momento possa ser eternizado em suas mentes. -- aqueles que desejarem, podem aguardar no salão principal, quem preferir pode fazer um tour pelo edifício. Avisou Eve. Com o fim do ato solene, cada qual se agrupou segundo suas afinidades. Nosso grupo não pôde fazer o mesmo uma vez que estávamos

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encarregados de atender aos outros. Eve e Darkness se retiraram para o claustro. Diferentemente de outras ocasiões semelhantes, mesmo contando com a existências de vários tipos de bebidas e farta mesa, a atitude geral foi de respeitoso entrelaçamento. Não se viu uma única expressão mais alardeante. O que a maioria nem sequer imaginava, e neste grupo eu estava incluído, era o motivo de Darkness ter se ausentado justamente quando todos se refestelavam. Somente Eve e Set sabiam o que se passava. Como Eve acompanhara Darkness e Set não se mostrava disposto a tocar em assunto que pudesse conturbar o momento, ficamos sem saber o que estava acontecendo no espaço reservado da mansão. A sós com sua amada, Darkness recostou o corpo sobre uma confortável espreguiçadeira e deixou que as energias fluíssem por todo seu ser. Neste momento de veemente sofrimento, Darkness não era capaz de manter a aparência humana e tomava a forma real que os de sua espécie possuía. Eve já se acostumara a ela e não se abalou por isto. -- Como pôde sufocar todo este acesso enquanto celebrava a união de nossos amigos? -- Era preciso. Eles não mereciam ter este momento adiado por minha causa. -- Ainda acredita que o pior irá acontecer? -- Sim. Tudo converge para que a tragédia se instale. -- Ele me pareceu muito bem. -- Isto porque ele julga estar agindo de modo natural. -- Mas ele sabe que não é natural atentarmos contra nossas vidas! -- Sim. Mas seu espírito encontra-se fendido. Suas metades se digladiam dia e noite pelo controle de sua mente. Mesmo sabendo aquilo que o aguarda, não tem forças para evitar. -- O que podemos fazer? -- Nada. Apenas aguardar que o momento chegue e então, tentar contornar o caos que se instalará. -- Por que está decisão o aflige tanto? -- Não tem como evitar. As dores do mundo se manifestam com toda sua energia, em meu ser. Faz parte de minha maldição. -- Ainda não me contou o motivo de ter sido condenado tão tenazmente. -- Preciso evitar que se sobrecarregue com um sofrer que não lhe pertence.

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-- Mas se vamos viver como um e além do que carrego um filho nosso, por que me manter a margem de sua história? -- Para te poupar. -- Teme que não suporte o sofrimento? -- Não! Por tudo que enfrentou nesta vida, sei que seria capaz de suportar qualquer prova que lhe fosse imposta, mas o peso de minha danação pode conspurcar sua singeleza. Por um fim em sua inocência. -- Não sou tão inocente assim. -- Não me refiro ao conceito superficial que os homens criaram para esta condição tão sublime. Refiro-me a inocência característica de seu espírito imortal. -- É tão grave assim? -- Mais que possa imaginar. -- Pode ao menos me contar algumas partes? -- Digamos que meio por cima. -- Já me sentirei mais confortada. -- Só peço que deixe para um outro momento. Já nos demoramos demais isolados dos demais. Devemos congraçar com todos. -- Consegue ignorar a dor? -- Tendo você ao meu lado, tudo se torna mais fácil. -- Hum, será que devo acreditar! -- Sabe que não minto. -- Sei. Com o retorno de Eve e Darkness, todos se sentiram mais soltos. Estranhávamos a ausência do anfitrião. Enquanto percorriam os espaços do prédio, saudando todos com a mesma deferência, Eve e Darkness se esforçavam para parecerem descontraídos, apenas o grupo percebeu que algo não estava bem. Pandora reuniu-se a Deimos e me procuraram para obter maiores informações. -- O que Darkness tem? Indagou Pandora. -- Não sei. -- Notou que ele parece esforçar-se para parecer tranqüilo? Observou Deimos. -- É, já tinha notado. -- O que será que aconteceu? -- Talvez Eve tenha tido uma outra crise e ele teve que utilizar suas energias para poder reanimá-la. Sugeri sem muita convicção. -- Será! Duvidou Pandora. -- Seja o que for, acho que devemos perguntar a ele. Sugeriu Deimos.

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-- Não, de modo algum! Enfatizei. Se fosse algo muito grave, Eve nos teria avisado. -- É. Neste ponto sou obrigada a concordar com você. Ela não nos deixaria na expectativa. -- Parece que pelo menos um de nós não percebeu nada de estranho. Deimos falou direcionando seu olhar para Set que caminhava em nossa direção. -- E aí, pessoa! Festa maneira, não acham? -- Demos duro para isto, não foi? Comentou Pandora secamente. -- Hei, a gata tá enfezada! Zombou Set. -- Não. Procurei remediar a situação. Ela apenas sentiu um pouco de dor de cabeça, mas já está passando. -- Neste caso talvez queiram me acompanhar pelo castelo mal assombrado! -- Não. Ainda temos muito que fazer. -- Hei, o pessoal está se arranjando numa boa. -- Mesmo assim, não custa ficarmos de sobreaviso. -- Está certo! Se não querem minha companhia, me vou! Assim que Set nos deixou, Deimos olhou-me com preocupação e indagou: -- Ele andou bebendo? -- Creio que sim. -- O que ele pretende? -- Não sei. De repente senti uma angústia tão forte. -- Eu também. Corroborou Pandora. -- Não senti nada, mas já que dizem, acho melhor ficar de olhos naquele maluco. -- Faça isto. Caso precise, todas dependências da mansão possuem um comunicador. Basta pegar o fone e um de nós poderá atendêlo. -- Eu sei, já vi como eles funcionam. Pode deixar que a qualquer sinal de perigo eu dou o alarme. -- Obrigado. -- Imagina, somos ou não somos uma família! -- É somos. Confesso que o oferecimento de Deimos para ficar de olho em Set me deixou um pouco mais aliviado, mas ainda assim a sensação de que algo ruim estava para acontecer não me abandonou totalmente. Não bastasse saber que Darkness não estava bem, ainda mais esta.

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Estava para ocupar-me com o preparo de mais pratos quando Fred veio me perguntar sobre Eve e Darkness. -- Não os vi nos últimos cinco minutos. Devem estar atendendo algum convidado. -- Minha mulher deseja saber se poderia subir. -- Fred! A mãe de Eve advertiu-o talvez para mostrar quem realmente desejava fazer uma visitinha ao andar proibido. -- Talvez os encontrem na parte de fora. Quando os vi, eles estavam indo naquela direção. -- Não pode nos deixar subir? Fred também parecia um pouco alterado. -- Não. Apenas Darkness pode liberar a parte superior da mansão. -- O que será que ele esconde por lá? -- Algum problema? Soou a voz inconfundível de Darkness. -- Não. Adiantou-se Fred. Só estávamos confabulando. -- Ele queria visitar a parte superior da mansão. Informei. -- Ora, é porque não disse que desejava conhecer o restante da mansão? Darkness pareceu misterioso demais ao expressar-se. -- Seu amigo disse que é uma parte proibida. -- Nenhuma parte da mansão está proibida ao meu futuro sogro. -- Mesmo! -- Podem subir e explorarem o quanto desejarem. -- Mas isto é ótimo! Vamos, querida! Lorena e Fred subiram os degraus excitados. Mais Fred que ela, mas também a mãe de Eve não podia esconder que uma curiosidade muito forte a consumia desde que haviam visitado a mansão pela primeira vez. -- Tem certeza de que não foi longe demais? Eve estava tão surpresa quanto eu. -- Por que não teria? -- Sabe como meu pai é. -- Ele não verá nada além do que sua mente lhe mostrar. -- Como consegue? Indaguei. -- Consigo o que? -- Fazer-nos ver apenas aquilo que deseja que vejamos! -- Não sou eu quem consegue tal ocorrência. São suas mentes que constroem as barreiras e as rompe, assim como são elas que criam suas ilusões e as destroem, geram seus limites e os superam, e tudo o mais.

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-- Gostaria de ver a expressão que meu pai fará ao descobrir que o “mistério” não é assim tão espetacular. -- Talvez seja. Comentou Darkness ainda mais misterioso. -- Mas talvez... ia fazer um comentário quando Lilith e Fobos surgiram. -- Finalmente conseguimos encontrá-los! Lilith despejou a exclamação ao mesmo tempo em que abraçava e beijava Eve. Obrigada amiga, seu noivo nos propiciou a melhor cerimônia que poderíamos desejar. -- Realmente sua celebração superou qualquer expectativa que tínhamos. Afirmou Fobos. -- Achei que não desejariam um rito qualquer. -- Acertou em cheio. Garanto que ninguém esquecerá o que assistiu esta noite. Fobos estava deslumbrado com tudo. -- Dark só transformou em realidade aquilo que desejavam. -- Bem, suponho que quando for a sua vez, ele irá superar tudo com muito mais glamour. Falou Lilith. -- Não poderia superar tanto assim, afinal se estiver ocupando o papel de noivo, não poderei assumir a função de celebrante. -- Tem razão! Fobos pareceu despertar de um sono profundo. Quando forem celebrar suas núpcias, quem irá oficializar o rito? -- Não pretendemos oficializar nossa união. Anunciou Eve. -- Como? Lilith e Fobos mostraram-se mais que espantados, talvez até mesmo um pouco chocados. -- Não sentimos necessidade ou vontade em fazer isto. Resumiu Eve. -- Mas pensamos... Lilith interrompeu seu comentário ao observar o brilho enigmático nos olhos de Eve. -- Não disse que nunca iremos oficializar, apenas não é chegada a hora, ainda. Eve procurou diminuir o impacto que sua afirmação desencadeara na amiga. -- É claro. Como poderia esquecer que darkness adora esta construção lingüística. Lilith riu da própria ironia. Notando a descontração de Lilith, todos a acompanhamos no gargalhar. Somente eu, acredito que sim, notei a troca de olhares mais séria entre Eve e Darkness. Mesmo não compreendendo alguns significados das mensagens subentendida que eles trocavam, eu as percebia nitidamente. Enquanto experimentávamos a descontração da alegria que nos dominava, Deimos mantinha-se no encalço de Set. o comportamento um tanto alienado de nosso amigo havia assustado a mim e a Deimos. Não

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tínhamos idéia do que se passava na cabeça dele, mas algo havia feito uma luz de alerta acender em nossas mentes. Indiferente a nossas preocupações, Set perambulou pela mansão sem ater-se a qualquer cômodo ou convidado. Seus olhos pareciam vazios como se não registrassem nada do que se passava a seu redor. O copo que trazia em sua mão há muito ficara vazio e ele não parecia ter notado nem mesmo este detalhe. Talvez entediado pela mesmice do ambiente interno, repentinamente dirigiu-se para o exterior da mansão. A névoa, que circundava o edifício e suas imediações, havia densificado ainda mais. Qualquer um que atrevesse a se afastar um pouco mais corria o sério risco de se perder. Mesmo nós que já havíamos visitado a mansão em várias ocasiões, não tínhamos explorado o terreno onde ela se localizava. Sempre que íamos até lá, descíamos da van e entrávamos quase que imediatamente. Nunca nos havia ocorrido a intenção de percorrer o terreno em redor da mesma. Naquela noite, porém, Set parece ter decidido avançar além. Seus passos descompromissados o estavam levando para um passeio inédito. Deimos sentiu uma ponta de temor em acompanhá-lo, mas pior seria deixá-lo vagar solitariamente. Apesar do receio que o dominava, prosseguiu em sua perseguição. Já havia se passado um pouco mais de meia hora quando Deimos entrou todo afobado procurando por Darkness. Não conseguindo localizá-lo, veio até mim. Não por me julgar mais que os outros, mas porque foi o primeiro que ele conseguiu encontrar. -- Onde estão Eve e Darkness? -- Não sei. -- Precisamos encontrá-los com urgência! -- O que houve? -- Set! -- O que ele fez? -- Por enquanto nada, mas não desejo esperar que ele faça o que suponho que ele esteja por fazer. -- O que imagina que ele esteja planejando fazer? -- Não quero ser alarmista, mas acho que ele vai tentar se matar. -- O que? O sinal de alerta que havia disparado em minha mente indicava que algo muito sério estará para acontecer, mas aquilo! Deimos tinha que estar equivocado. Não podia estar certo em sua suposição. Set

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havia enfrentado duas tentativas anteriores, mas Darkness o havia contatado. Sem perda de tempo, saímos percorrendo todos os cantos da mansão atrás de Eve e Darkness. Já havíamos encontrado Pandora, Lilith e Fobos que mal ouviram nossas ponderações foram para onde Set se encontrava. Antes que o desespero tomasse conta de mim, lembrei-me de que os pais de Eve haviam subido para conhecerem a parte superior da mansão. Deduzindo que Eve e Darkness poderiam estar com eles, dirigi-me para o andar de cima. Tive que procurar em uma dezena de cômodos antes de obter sucesso em minha busca. Somente quando cheguei a última porta foi que os encontrei. Estavam tão animados com o assunto que minha entrada tempestiva os deixou assombrados. -- O que houve? Eve foi a primeira que conseguiu expressar algo. -- Set! Foi a única palavra que consegui pronunciar devido ao meu estado ofegante. -- Acalme-se rapaz. Exortou Fred. -- Dark! Eve sentiu a gravidade da situação. -- Onde? Foi sua lacônica pergunta. -- Lá fora. Deimos e os outros estão com ele. -- Vão para lá. Preciso verificar se os outros convidados perceberam algo. -- Vamos. Deixamos a sala e fomos para onde Set estava. Darkness percorria as dependências da mansão para certificar-se de que ninguém mais havia percebido o que se passava. Aquele era um assunto que dizia respeito somente ao grupo. Quando deixamos o interior da mansão não fazíamos idéia para onde irmos. Somente ao localizarmos Deimos foi que soubemos o local onde Set estava. Seguindo Deimos, chegamos até uma elevação do terreno, deste ponto pudemos ver a silhueta disforme de Set parado no beiral que sustentava uma das gárgulas que decoravam o telhado da mansão. -- Por que nos trouxe até aqui? Esbravejou Pandora. -- Porque não sei como chegar até lá. -- Eu sei. Falou Eve. -- Vamos até lá, então. Intimou Fobos. Agora seguindo Eve, disparamos por uma porta lateral que nos levou direto para um dos salões inferiores. Atravessamos quatro outras

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salas e chegamos a uma escadaria circular que nos levaria até o local onde Set estava. Já havíamos vencidos os degraus que conduziam ao alto da escadaria quando Fobos, ao tentar abrir a porta, gritou: -- Maldição, está trancada! -- Afastem-se! Ordenou Eve. Nenhum de nós acreditou naquilo que vimos. Mesmo agora, custa conciliar os fatos com a realidade. Eve, olhos brilhantes, elevou as mãos e pronunciando palavras desconhecidas, igual Darkness estava acostumado a fazer, direcionou suas mãos para a porta e raios partiram delas derrubando a imensa tábua. -- Jesus! Exclamou Fred. -- Sigam-na! Bradou Lilith. Mal havíamos nos colocado na parte externa, Set nos lançou um olhar de completo desvario. Ao observá-lo mais detalhadamente, percebia-se que a razão não lhe tocava. Sua mente pairava entre uma realidade que o fustigava e um sonho que tentava lançá-lo para um mundo ainda mais aflitivo. -- Set! Chamou Fobos. -- O que fazem aqui? Vieram assistir minha consagração? -- O que faz aqui? -- Já disse. Estou esperando a hora para me consagrar para sempre. -- Sabe que não precisa fazer isto. -- Não! Muito ao contrário, vocês não sabem de nada! Minha vitória está me aguardando. -- Set! Eve bradou interrompendo o diálogo que Fobos mantinha com Set. -- Ora, ora, a noivinha do sinistro também está aqui. Não devia se expor a um tempo tão frio. Pode colocar em risco o futuro sinistrinho. -- Por que insiste em cometer esta sandice? Já não lhe foi dado conhecer muito bem o que o aguarda caso consuma sua intenção? -- Oh, o abismo profundo do desespero! Zombou Set. Estou desesperado! Há, há, há, há! -- Set! O desconsolo que se apossou da alma de Eve foi tão forte que acabou por nos contagiar. Numa eclosão instantânea, compreendemos que não tínhamos como evitar a loucura que Set estava prestes a praticar. Nossas energias se concentraram em Darkness. Apenas ele poderia evitar o pior.

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Impacientes olhamos para a direção da porta que havíamos utilizado para chegara ali. Nada! Não se ouvia passo algum. Onde estaria Darkness? Por que ele não aparecia de uma vez e colocava um fim aquilo tudo? Em sua sandice, Set parecia brincar com os elementos. Como se estivesse bailando com uma parceira invisível, movimentava o corpo para lá e para cá com os barcos em posição como se abraçasse alguém. Complementando o patético quadro, seus lábios murmuravam uma melodia plangente. Não conhecíamos a letra, mas imaginamos que fosse algum lamento que ele mesmo criara. -- O que ele está fazendo? Indagou Pandora. -- Variando. Afirmou Eve. -- Por que ninguém vai até lá? Voltou a questionar Pandora. -- Eu vou! Adiantei-me a todos já saindo em direção a Set. Muito devagar aproximei-me dele. Sentia que seu estado alterado poderia colocar em risco a nossa integridade. Apesar de parecer alienado, Set percebeu minha aproximação. Olhou-me com firmeza a voltou a entreter-se com seu bailado fantasmagórico. O brilho que pude notar em seu olhar deixou-me atônito. Set não estava variando ou sequer embriagado. Sua mente funcionava na mais perfeita lucidez. Suas atitudes não estavam sendo fruto de uma carga psíquica ou algo parecido, ele estava consciente de tudo que fazia. Quando me vi ao seu lado, quase que despenco. Aquela parte do telhado ficava localizada no fundo da mansão, uma área que não podíamos ver com clareza do chão, uma vez que ela era rodeada por arbusto que impediam uma maior aproximação. Ali de cima, olhando para aquele conjunto arbústeo, senti minhas pernas bambearem. Por trás dos pequenos arvoredos escondia-se um precipício gigantesco. Set registrou meu temor. Olhou-me com toda naturalidade e comentou: -- Aterrador, não acha? Parece com a boca do inferno. -- O que está fazendo? -- Divertindo-me. -- Aqui? -- Ora, cada um se diverte como gosta. -- Deixou-nos preocupado. -- Não deveriam ficar. Sabem que este é meu destino. -- Não. Não existe destino, nós o construímos minuto a minuto. -- Neste caso, considere que estou abreviando o meu. -- Por que?

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-- Darkness irá revelar os motivos. -- Ainda sente mágoa por ele. -- Oh, não! Sinto a mais profunda admiração e o mais enlevado respeito. -- Mas então... -- Mas então que não me sinto mais na obrigação de suportar este fardo fustigante que me atormenta. -- Podemos ajudá-lo a superar este momento. -- Ainda não compreendeu, não é, Hades! -- Compreendeu o que? -- Não estou desistindo da vida, apenas desejo vivê-la em outro mundo. -- Isto é loucura! -- Não. Isto é o exercício do livre arbítrio. -- Pelo menos espere Darkness chegar. Converse com ele. -- Darkness me aguarda em outro local. Ele, como vocês, acredita que pode convencer-me a mudar de opinião. -- Como sabe onde ele está e o que pretende? -- Eu o sinto. -- Espere-o! -- Não dá! A atração é irresistível! -- Não faça isto! -- Adeus, amigo! Sem pensar em nada, lancei-me de encontro ao corpo de Set. Tarde demais. Quase que não consigo evitar minha própria queda. Com muito custo agarrei-me ao beiral do telhado. Foi o suficiente para evitar que acompanhasse Set em seu mergulho para a morte. Ainda pendurado no beiral, ouvi os gritos de desespero dos outros. Após os gritos, brados de lamento e choro convulsivo. Curiosamente as comemorações continuavam na parte inferior da mansão. Nenhum dos convidados percebia nada do que se passava ali. De repente o extraordinário se manifestou. Uma mão tépida e potente agarrou meus punhos içando-me para o telhado. Ao olhar para meu salvador, o espanto. Darkness em sua verdadeira imagem me contemplava com brandura. Após deixar-me com os pés firmes sobre o telhado, elevou as mãos sobre a cabeça e bradou uma de suas fórmulas mágicas. No mesmo instante tudo pareceu parar. Nem o vento desafiava o comando dado por Darkness. Tudo estava imóvel. Antes que a imobilidade se apoderasse de meu corpo, lancei um último olhar para o corpo de Set. Meu assombro aumentou. Assim

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como tudo o mais, ele se encontrava parado sobre um manto de ar. Como aquilo era possível? No minuto seguinte tudo se esfacelou. A realidade deixou de existir e minha mente fragmentou-se em incontáveis micro-cosmos. A junção de cada partícula originava um novo mundo e então compreendi o que se passava. O Uno se manifestava. Como se fossemos meros expectadores, vimos quando Darkness aproximou-se de Set, tocou-o na fronte e desapareceram. O que veio a seguir foi como um transladar de sensações que não se pode registrar em idioma algum. As imagens se sucediam expondo toda sua simplicidade. O Uno nos fazia parte de tudo. Caminhando por uma estrada permeada pelo vazio, Darkness e Set pareciam se estudar. Cada qual procurava interpretar as vibrações do outro. Nada se ouvia mas o diálogo que travavam era o mais vivo possível. Suas mentes comungavam o limite entre o físico e o etéreo. -- Por que deteve minha queda? -- Para podermos conversar. -- Nada do que diga poderá alterar os fatos. -- Talvez, mas não pode me recriminar por tentar. -- Não, isto não posso. Mas sabe que será inútil. -- O que pretende com esta atitude? -- Exercer a função que me cabe. -- Agindo em contrário as leis? -- Digamos que estou apenas adiantando os fatos. -- Ninguém pode torcer as leis. Qualquer tentativa neste sentido é um erro. -- Pois será mais um em minha extensa lista. -- Set, Set! Sabe que, embora sempre tente reforçar a imagem de rebelde, as leis estão fundidas a seu âmago. Não pode extirpá-la de seu íntimo. -- Eu sei. -- E mesmo assim quer refutá-las. -- Não! Pretendo cumpri-las com propriedade. -- Como? Se age aviltando-a! -- Não vejo desta forma. -- Como vê sua maneira de agir? -- Não nos revelou que devemos ser como estações receptoras, transformadoras e retransmissoras das energias provenientes de cima? -- Sim, mas o que isto tem a ver? -- Onde mais poderia ser tão útil se não entre os desesperados que habitam o vale dos suicidas?

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-- Acredita mesmo que continuará sendo tal estação? -- Por que não? -- Toda vez que agimos de modo contrário aos ditames da lei, cortamos a ligação com as paragens superiores. Tudo que advir de tal ocorrência, não pode representar algo positivo. -- Mas como os desesperados podem ter alguma chance se lhes são cortados todos os meios para um despertar? -- Nenhum espírito que almeja a redenção se encontra abandonado. Guias diligentes operam por toda Criação. -- Mas eles estão distantes da realidade vividas por aqueles que penam nos campos do desespero. -- Este seu modo de ver a situação mostra o quanto ainda desconhece da atuação dos guias. Apenas espíritos preparados são encarregados de assumir esta ou aquela tarefa. -- Mas eles não vivenciaram a dor daqueles que penam no vale. -- Acredita, mesmo, que para poder auxiliar precisar passar pelo mesmo tormento daqueles a quem deseja servir? -- Sim! -- Infelizmente não posso impedir que utilize seu livre arbítrio. Terá que enfrentar um longo percurso até compreender o verdadeiro modo de atuar como auxiliador. -- Não irá me impedir? -- Não posso. -- Parece sofrer com isto. -- Muito mais do que possa imaginar. -- Por que? -- Porque faz parte de minha maldição. Sentir intensamente todo sofrer daqueles a quem cativo. -- Isto não o faz desejar morrer? -- Não. Mesmo porque, não poderia simplesmente morrer. -- Como assim? -- Fui amaldiçoado muito mais severamente do que faz idéia. -- Está querendo dizer que não pode morrer? -- Não enquanto não houver resgatado minha falta. -- Que falta pode ser assim tão grave? -- Está preparado para enfrentar o sofrimento de toda uma raça? -- Alguém mais sabe? -- Eve. -- Como ela reagiu?

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-- Eve é um espírito evoluído. Não está mais sujeita a certos tipos de vibrações. Ela se encontra vibrando em uma faixa muito além da dor. -- Não sei se posso suportar aquilo que devora seu âmago. -- Sei que não está pronto para suportar. -- Ainda assim, me revelaria. -- Se for o seu desejo. -- Faça! O elo que nos unia até aquele momento foi rompido. O toque das mãos de Darkness na fronte de Set fendeu a harmonia reinante e nos alijou do contato. O que decorreu deste rompimento não nos foi revelado nem por Eve muito menos por Darkness. Um véu de obscuridade foi colocado ante nossos olhos. A interrupção do contato nos fez voltar a realidade. Um vento gélido soprava com intensidade. A névoa havia se espalhado por todo o local. Já não conseguíamos mais divisar o aterrador abismo que tangenciava o lado norte da mansão. -- Set! Bradou Pandora quando recobrou a consciência. -- Ele se foi. Anunciou Eve. -- Não! Pandora entregou-se a profundo choro. -- Por que? Balbuciou Lilith. -- Todos testemunhamos a tentativa de Dark de fazê-lo desistir. Afirmou Eve. -- Ninguém está culpando Darkness de não haver conseguido convencer Set a abandonar sua idéia. Falou Fobos. -- Sei. Eve também estava muito triste com o acontecido, mas não podia deixar que percebêssemos sua dor. Sabia que precisava manterse firme para que não desabássemos. -- Para onde foram? Indaguei. -- Dark está confrontando Set com a origem de sua maldição. Eve conhecia muito bem a história de Darkness. -- Por que ele não nos revela tudo de uma vez? Perguntou Pandora. -- Não estão preparados para conhecer a tragédia que se oculta na alma dele. Poderiam colocar tudo a perder caso viessem a saber o que se passou. -- Tudo isto foi muito forte. Falou Fred. Ainda estou abalado. -- Vai superar esta fase. Seu espírito se fortalecerá quando houver assimilado todas nuances daquilo que testemunhou. -- Seu namorado ainda não voltou. Observou a mãe de Eve. Talvez ainda consiga voltar com o amigo de vocês.

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-- Não. Dark não romperia o contato se este fosse o caso. Ele só quis evitar que fossemos atingidos pelo concretizar da falta cometida por Set. -- O que faremos? Perguntou Fred. -- Descemos e esperamos. -- O que diremos aos outros? Novamente foi Fred a perguntar. -- Nada. Este é um assunto do grupo e não interessa a mais ninguém. -- Mas... Fred tentou argumentar. -- Eve está certa! Cortou Fobos. Vamos descer e prosseguir como se nada houvesse acontecido. Depois que todos se forem, cuidaremos do assunto. Lenta e silenciosamente voltamos para o interior da mansão. Embora nos esforçássemos em manter uma aparência cordial e alegre, estava sendo muito difícil segurar a barra. Pandora retirou-se para um dos cômodos do andar superior enquanto nós cuidávamos de entreter os convidados. Eve assumira os encargos que cabiam a Darkness. Sua postura altiva foi como um incentivo a permanecermos serenos. Alguns poucos notaram que algo não estava bem, mas mesmo estes pensaram que tínhamos discutido ou algo semelhante. Ninguém fazia a menor idéia do que realmente havia ocorrido. Enquanto cuidávamos de dar continuidade nas formalidades inerentes ao momento, Darkness ainda estava envolvido com Set e sua atitude tresloucada. A partir do momento em que romperam o contato com o grupo, eles seguiram por um caminho tortuoso. Set sentia como se um pavoroso abismo tentasse sufocá-lo causando-lhe tremores sem igual. Sentia o frio do medo a subir por seu corpo atingindo-o em cheio na mente. Num átimo percebeu o que Darkness desejava manter oculto de todos. Chegando a este ponto, sentiu-se sugado por um turbilhão voraz. Quando parou de sentir a mente rodopiar, estava caminhando ao lado de Darkness pela mesma estrada de antes. -- Como consegue suportar tanta dor? -- Porque muitos sofreram por minha imaturidade. Suas dores tornaram-se minhas e como a lei determina, igual espécie atrai igual espécie e portanto, toda dor reflete em mim. -- Não imaginava que algo assim pudesse existir. -- O que pretende fazer agora que experimentou mais que seria capaz de supor existir?

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-- Não posso evitar que meu intento se concretize. Sei que não estou agindo de acordo com a lei, sei também que pouco ou nada lucrarei com minha atitude, mas não posso evitar. -- Tudo bem. Posso compreender sua decisão. -- Achei que iria me condenar, me julgar um covarde, um fraco! -- Não! Ninguém, mais que eu, se encontra desprovido da prerrogativa de poder julgar alguém. Embora agindo contra a lei, sei o quanto seu ato tem de denodo. -- Talvez se o tivesse encontrado há mais tempo... -- Nos encontramos na época certa. Não se entregue totalmente, ainda tem uma possibilidade de resgatar seu erro. -- Eu sei. Como último ato antes da passagem, Set abraçou Darkness com vigor. Lágrimas corriam por seu rosto deixando evidente o quanto ele estava dominado pela sensação de vazio que tanto o atormentou enquanto vivo. Pela primeira vez sentiu que o vazio se tornaria ainda maior no lugar para onde iria. -- Bobagem dizer que compreendo a burrice que fiz, não? -- Não. Nunca é bobagem reconhecer o próprio erro. Acolha esta certeza em seu espírito e nutra-a. Concentre suas energias nesta certeza e poderá vislumbrar o sol que brilha além das nuvens. Se assim agir, receberá o auxílio que imaginou fosse levar aqueles que sofrem no vale. -- Ainda vamos nos encontrar mais vezes? -- Talvez. Não controlo todas os portais dimensionais. Alguns permanecem fechados por muito tempo. -- Espero que não seja o caso do lugar que me aguarda. Sentiria-me mais confortado por saber que aparecerá a qualquer momento. -- Tudo depende de sua determinação. -- Será difícil mantê-la naquele lugar. -- Sabia disto antes de sacrificar-se. -- Sabia. -- Se conseguir manter a serenidade, mesmo que por alguns momentos, lembre-se que todos estaremos dirigindo nossas energias para você. Nunca o abandonaremos. -- Isto já será um conforto. -- A hora é chegada. -- É. Sinto que não posso mais permanecer aqui. Estou sendo atraído para meu destino. -- Tente ficar em paz. -- Tentarei.

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Lentamente a imagem de Set foi sumindo na penumbra que se impôs. Darkness preparou-se para o eclodir de mais uma avassaladora onda de energia. Seu corpo foi sacudido por intensas descargas que o fizeram dobrar-se. De seus olhos lágrimas de um rubro cristalino cintilavam como se fossem as pontas de pequenas gemas a ferirem-lhe as almas. Os convidados já haviam se retirado e conduzidos de volta ao ponto de encontro. Enfim a comemoração havia chegado ao fim. Estávamos todos passados. Além do grupo permaneceram, junto a nós, Tim, Tel, a mãe e o pai de Eve. Ninguém se mostrava disposto a manifestar-se. O silêncio tornou-se tão opressor que cada um desejava que o outro falasse algo, mesmo que fosse a bobagem mais imbecil que fosse. O não falar estava torturando nossas fragilizadas mentes. -- Temos que informar as autoridades sobre o que ocorreu. Fred finalmente quebrou o silêncio. -- O que? Fobos pareceu despertar de um profundo sono. -- Não podemos ocultar o fato das autoridades. -- Nenhuma autoridade tem jurisdição neste lugar. Afirmou Eve. -- Como? Fred, assim como nós, não entendemos o posicionamento de Eve. -- Este lugar não está sujeito as leis terrenas. -- O que está dizendo! Espantou-se Pandora. -- Não lhes ocorreu que sempre que vínhamos para cá, o tempo parecia deixar de correr como estávamos acostumados a pressentir? -- Achávamos que Darkness o mantinha suspenso. Pandora expressou sua impressão. -- Não. Este local não está contido no plano que vivemos. -- Está dizendo que não estamos na Terra! Admirou-se Fred. -- Isto mesmo! -- Onde estamos, então? Indagou Pandora. -- Numa dimensão paralela. -- Como sabe sobre isto? Questionou Fred. -- Dark não me esconde nada. -- Mas o helicóptero... iniciou Fred sendo cortado por Deimos. -- A van... -- Sim. Interveio Fobos. Como pode ser se sempre utilizamos veículos normais? -- Todos eram veículos dimensionais adaptados para não despertarem suspeitas.

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-- Era por isto que as janelas estavam sempre cobertas por um fundo negro! Exclamou Lilith. -- Exato. -- Mas se Set não saltou de um lugar real... Deimos tentou animar-se. -- Está enganado. Apesar de não estarmos na dimensão que conhecemos como física, esta é tão real quanto ela. Set se jogou em um abismo e seu corpo não estava preparado para o choque. -- Então, ele está morto! Balbuciou Deimos. -- Sim. -- Mas e o corpo? Indagou Fred. -- Dark cuidará desta parte. -- Como assim? -- Ele tem meios para recuperar o corpo de Set. Assim que voltarmos, providenciaremos um enterro digno para ele. -- Quanto tempo até voltarmos? Quis saber Lilith. -- Dark está voltando. -- Como sabe? Perguntou-lhe o pai. -- Eu sei! Não demorou muito mais, pelo menos nos pareceu não haver demorado, e Darkness realmente estava de volta. Seu semblante carregado nos indicava que ele ainda estava sob influencia do ocorrido. O que não supúnhamos era a intensidade da dor que o consumia. -- Infelizmente não consegui demover Set de seu intento. -- Onde ele está? Perguntou Deimos. -- No vale dos suicidas. -- Mas e o corpo? Fred sempre preocupado com o aspecto legal do fato. -- Já está no hospital esperando liberação médica. -- O que alegou para levá-lo até lá? Pandora ansiava que ele não houvesse revelado o ato extremo que o amigo cometera. -- Disse que estávamos escalando e ele caiu. -- Mas isto é mentira! Esbravejou Fred. -- Queria que ele dissesse que Set se suicidou! Pandora mostrou-se mais zangada ainda. Darkness fez o que era certo. Somente ao grupo interessa saber o que realmente aconteceu. -- Dark agiu certo, pai. Set não tinha o apoio de seus familiares. Não precisava de mais uma carga a acompanhá-lo. -- Está certo. Só pensei que seria mais correto informarmos a verdade.

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-- Todos grupos associados mantêm segredos entre os seus. Não somos diferentes. Falou Fobos. -- Tem razão. Anuiu Fred. -- Precisamos voltar. Devido ao estado do corpo, o enterro terá que ser apressado. -- Ele está muito mal? Perguntou Pandora. -- Não gostariam de saber. Mantenham viva a imagem pueril do amigo que se foi. Assim não terão que conviver com algo que só lhes trariam lembranças funestas. -- Quando partimos? Perguntou Fobos. -- Agora. Mal nos demos conta de como voltamos, mas num segundo estávamos todos em um salão gigantesco ladeados por dezenas de pessoas. A julgar pelo comportamento de todos, concluímos que Darkness nos havia levado diretamente para o hospital. -- Onde estamos? Fred ainda não assimilara o deslocamento. -- No hospital. Informou-lhe Eve. -- Como? -- Depois explico. -- Seu namorado é muito estranho. -- Pensei que já estivesse acostumado. -- Ainda não. -- Pois é melhor se acostumar. -- Vou tentar. -- Psiu! Interveio Lilith. Ele vem vindo. Ao mesmo tempo em que falava, indicava para o corredor por onde Darkness vinha caminhando. -- Não vejo nenhum médico com ele. Comentou Pandora. -- E por que deveria estar acompanhado por um? Estranhou Deimos. -- Sei lá. Mas precisamos de uma explicação, não? -- Darkness nos dará. Asseverou Deimos. -- Olá! Darkness nos saudou ao aproximar-se mais. -- Tudo acertado? Indagou Eve. -- Sim. -- Quando poderemos enterrá-lo? -- Amanhã pela manhã. -- Onde o corpo ficará? -- Solicitei que o coloquem na capela do hospital. -- Vou para casa. Avisou Deimos. Tenho que avisar ao grupo de minha família.

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-- Também estou indo. Avisei. Antenor fará questão de acompanhar o enterro. -- Certo. Acredito que cada um tenha algo para fazer. Darkness parecia extremamente esgotado. -- Não vai com a gente? Perguntou Lilith. -- Não. Vou ficar e preparar a capela para o velório. -- Assim que concluir minhas tarefas, venho lhe fazer companhia. Assegurou Eve. -- Nos também viremos. Falou Lilith. -- Certo. Podem ir. -- Posso dar uma opinião? Pandora parecia ter feito alguma descoberta incrível tal o brilho de seus olhos. -- Diga. Anuiu Fobos. -- Penso que Set iria adorar se o velássemos na mansão e depois o enterrássemos por lá. -- Eu sei, mas isto é impossível! Adiantou Darkness. -- Por que? -- Não posso transportar o corpo de Set para outra dimensão. -- Mas o seu... -- Minha constituição é diferente da de vocês. Não tem como conciliar as particularidades. -- Tudo bem, Dark, nos entendemos, não é Pandora? -- É claro! O tom de pandora mostrava o quão contrariada ela estava. -- Ficará bem? Sondou Fobos. -- Não se preocupe. -- Não demoraremos. Darkness ocupou um banco existente num dos cantos do salão e recostou a cabeça na parede. Antes de deixar o local, lancei-lhe um olhar de soslaio. Ele pressentiu meu gesto e devolveu-me o olhar acompanhado por um sorriso debilitado. Antenor não conseguia acreditar na notícia que lhe transmitia. Sua reação me fez imaginar se a família de Deimos reagiria da mesma forma. O impacto causado pela notícia da morte de alguém tão jovem é sempre maior do que se tratasse de alguém de mais idade. -- Como aconteceu? -- Uma queda. -- Como assim, uma queda? -- Foi uma queda muito alta. -- Mas não faz mais que algumas horas que deixamos a mansão de seu amigo. E lá Set me pareceu muito bem.

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-- E estava. -- Mas então? -- Só poderei lhe contar se prometer que jamais tocará no assunto com quem quer que seja. -- Está colocando em dúvida minha discrição? -- Em absoluto. Resumidamente relatei o ocorrido. Talvez incentivado pela confiança que tinha em Antenor, ou mesmo por sentir necessidade de desabafar, o certo é que não conseguiria ocultar-lhe a verdade. Quando terminei de falar, ele falou: -- Então desta vez ele conseguiu. -- É. Nem mesmo Darkness pôde evitar. -- É muito triste quando isto acontece. Era um rapaz tão cheio de vida. -- Set tinha uma índole muito negativa. Parecia carregar todo peso do mundo nas costas. Não sei se o fato de haver sido renegado pela família teve tanta influência assim em sua atitude. -- É claro que teve! Onde já se viu ser rejeitado pela própria família. -- Eu sei como isto é duro, mas existem as compensações. -- Nem todos conseguem superar a perda do lar. -- Não estou recriminando meu amigo, apenas tento compreender porque tinha que ser assim. -- Cada um tem seu destino. -- Darkness nos fez acreditar que nós escolhemos nosso destino. -- E ele está certo. -- Mas acabou de dizer que... -- Não deve ver o destino como algo taxativo. É claro que quando nascemos trazemos uma bagagem muito grande a nos ditar esta ou aquela reação, mas não podemos esquecer que temo a arma mais poderosa para nos libertar do peso que esta bagagem pode representar. -- Que arma é esta? -- Nosso livre arbítrio. Ele nos confere a responsabilidade por tudo que fazemos, mas também nos propicia a liberdade de escolher o caminho que desejamos seguir. -- Quer dizer que Set tinha toda uma carga que fazia com que pendesse para o suicídio, mas que se tivesse desejado, podia ter evitado tal fim? -- Exatamente. -- O que lhe faltou, então?

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-- Isto eu não sei. Talvez nem ele mesmo soubesse. -- De repente é como se o grupo estivesse se desfazendo. -- Por que acha isto? -- Primeiro foi Mefisto, agora Set. -- Mefisto não morreu, apenas foi cuidar da mãe. -- O que resulta no mesmo, ou seja, teve que deixar o grupo. -- Isto não quer dizer que mais alguém o faça. -- Não, não quer. -- Suba e tome um bom banho, deite-se um pouco e tente relaxar. Não alimente as correntes negativas. -- Andou conversando com Darkness? -- Não. Por que? -- Por um momento pensei estar conversando com ele. -- Isto porque seu amigo não é o único que conhece os ensinamentos do espírito. -- Nunca me falou sobre o que acreditava. -- Nunca me perguntou. -- Depois que tudo se acalmar, será exatamente o que farei. -- Pois vou ficar aguardando por tal momento. O amanhecer foi brindado por uma leve, porém constante precipitação pluvial. A capela onde o corpo de Set estava sendo velado foi, aos poucos, sendo ocupada pelas mesmas pessoas que haviam comparecido a cerimônia de núpcias de Lilith e Fobos. Os únicos que não haviam participado e que alise encontrava, eram os integrantes do grupo ed Curitiba e os componentes da banda. Eve e Darkness, trajados com as vestes especiais que haviam criado para ocasiões especiais, destoavam um pouco dos demais. É evidente que, fora um ou outro acessório, as vestes eram todas negras, mas não eram apenas as vestes deles que os deixavam diferentes, a seriedade mesclada com o ar solene que estavam estampadas em seus semblantes, convocava a todos para um refletir mais profundo. Diferente de outros velórios, não se ouvia qualquer murmúrio ou comentário. Estávamos em completo silêncio. Todos aguardávamos o momento de baixar o esquife no túmulo e concluir aquela tragédia. Enquanto aguardávamos o término da vigília, surgiu um jovem que se aproximando de Pandora, sussurrou-lhe algo ao ouvido. Logo em seguida, ela deixou o local acompanhando-o. Apesar de surpresos, permanecemos em nossos lugares. Não esperávamos que o irmão de Pandora fosse aparecer justamente em momento tão inoportuno, mas como ele não tinha como ter ficado sabendo sobre o ocorrido, relevamos sua presença.

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-- O que faz aqui? Pandora, embora surpresa, não se mostrava contrariada pela presença do irmão. -- Temos que conversar. -- Agora não dá. Pode esperar até depois do enterro? -- Tudo bem. Vou ficar esperando no carro. -- Está certo. A presença inesperada do irmão originou as mais diversas considerações em Pandora. Mesmo não querendo ocupar seus pensamentos com aquele assunto, não conseguiu afastá-lo. O que ele poderia querer? A um sinal de Darkness, o caixão foi fechado e nos preparamos para o momento final. Como éramos os mais próximos de Set, seguimos seu caixão bem de perto. Não chorávamos, apenas tentávamos agastar a tristeza mentalizando energias positivas para seu espírito. Sob a insistente chuva, chegamos ao túmulo. Antes de depositar o caixão no interior do mesmo, Darkness assumiu posição de quem iria se manifestar. -- Amigos, não permitam que a tristeza domine seus íntimos. Sentiremos saudades de nosso jovem amigo, mas inspirados pelo amor que sentimos por ele, devemos enviar-lhe energias que possam servir de luz para seu espírito. Aos mais íntimos peço que formemos o círculo da unidade, aos demais conclamo que se esforcem para que seus pensamentos unam-se aos nossos nesta prece silenciosa que faremos. O grupo acompanhado por Tel, Tim, Antenor e os pais de Eve, formou o círculo ao redor do caixão e elevando nossas mãos, proferimos a silenciosa prece que Darkness havia solicitado. Os outros respeitosamente permaneceram em silêncio. Nada mais foi dito por ninguém. Finda a oração, desfizemos o círculo e aguardamos até que o túmulo tivesse sido lacrado. Assim que tudo estava ultimado, fomos deixando o local. Nada mais havia para fazer. Dirigimo-nos para a casa de Fobos para podermos manter nossos pensamentos alertas. Não podíamos nos entregar a pueris lamentações. Set precisava de pensamentos positivos para poder reagir e superar as manifestações de retorno que lhe atingiriam. A única exceção foi dada a Pandora. Ela precisava saber o motivo que levara seu irmão até alí. Enquanto nos ocupávamos com as atividades rotineiras, ela conversava com o irmão. -- O que aconteceu de tão importante para ter vindo até aqui? -- Vim para pedir que você e o Tim venham morar comigo. -- Como? -- Bem, não sei como reagirá ao que tenho para lhe contar, mas o caso é que José morreu.

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-- Quando foi isso? -- Há cerca de um mês. -- Por que só agora me avisa? -- Cheguei a escrever-lhe uma carta contando sobre o fato, mas desisti de mandá-la. Precisei de um tempo para decidir-me sobre o que fazer. -- Entendo. Agradeço seu convite, mas não posso deixar o grupo, agora. -- Eu sei. Se soubesse o que se passava, não teria nem me atrevido a vir. -- O momento é delicado. Sinto-me muito frágil para poder começar o que quer que seja, principalmente uma nova etapa em minha vida. Não posso acompanhá-lo. -- Bem, o convite não precisa ser aceito de imediato. Quando quiser, mesmo que seja apenas para me visitar, é só avisar. Ficarei muito feliz em recebê-la. -- Obrigada. Sei que é sincero. Talvez o visite no final do ano. -- Ficarei aguardando por notícias sua. -- Podemos entrar? -- Desculpe-me, não é que não admire seus amigos, mas penso que o momento é particular demais. Acredito que queiram compartilhá-lo mais intimamente. -- Tem razão. Estamos um pouco passados com tudo. -- Neste caso, já vou indo. Com um pouco de sorte, chego em casa antes que anoiteça. -- Mais uma vez, obrigada. -- Não tem por que. Até outro dia. -- Até. Fosse em outra ocasião e Pandora teria prontamente recusado o convite que o irmão lhe fizera. Na atual situação, porém, considerou a possibilidade daquele convite não ser tão absurdo assim. Por um instante sentiu como se o grupo estivesse se desfazendo. Primeiro fora Mefisto que partira para cuidar da mãe e agora Set. Ao entrar, encontrou o grupo absorto em comentários que procuravam não evidenciar os fatos recém vivenciados. Estávamos muito abalados e não queríamos que este abalo se tornasse maior. -- O que ele queria? Perguntou Deimos assim que a viu. -- Veio me convidar para ir morar com ele. -- O que! Como teve coragem de... Deimos ia replicar, mas foi interrompido. -- Meu outro irmão, morreu.

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-- Aquele que a destratou? Deimos modificou seu tom. -- Sim. -- Tem que avisar o Tim. Sentenciou Lilith. -- Mais tarde. Agora quero descansar um pouco. -- Todos queremos. Falei. -- Neste caso, procurem um canto e aproveitem. Fobos ofereceu a casa para que permanecêssemos juntos. -- Acho que vou para casa. Informou Deimos. -- Melhor ficarmos juntos. Observou Eve. -- Algum motivo especial? Quis saber Deimos. -- Dark pode aparecer. -- Pode? Indagou Deimos. -- Não posso afirmar com toda certeza, mas é bem provável. -- Fique, Deimos. Fobos mais intimou que convidou. -- Também acredita que ele virá? -- Mesmo que não venha, acredito que a hora é de união. Ainda somos um grupo, não? -- Sim. Nosso descanso não foi tão tranqüilo como desejávamos. De um modo ou de outro, fomos fustigados pelas cenas testemunhadas desde o momento em que Set se colocara no telhado da mansão até a consumação do fato. Repentinamente, no meu caso, senti uma brisa suave a soprar vinda de um local desconhecido. Acompanhando a brisa um som inebriante que tocava fundo propiciava um pouco de alívio aplacando a dor que consumia meu ser. Eve estava certa, Darkness viera. -- Sabem onde nos encontramos? Perguntou num sopro de voz. -- Sim. Somente ao ouvir o troar de todas as vozes foi que me dei conta de que todos estavam alí. -- Sintam a energia que emana do âmago de nosso amigo. Sem ter certeza de conseguir atingir o objetivo da proposta de Darkness, fechei meu olhos e fiquei tentando localizar alguma vibração que pudesse pertencer a Set. Mais cedo do que pensava, fui obrigado a reconhecer a precisão da condução de Darkness. -- Vamos seguir a indicação das vibrações. Silentes seguimos atrás de Darkness. Por onde passávamos sentíamos o som torturante de lamentações preencher os espaços que nos circundavam. Os lamentos iam num crescente que logo se transformaram em brados selvagens.

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-- Não se deixem prender por tais manifestações. Soou a admoestação de Darkness. Os semblantes espectrais que víamos agrilhoados a suas falhas pareciam atingidos por dores tão fortes que observávamos os contornos desfigurados que delimitavam seus rostos. Tudo era deprimente demais para que não nos deixássemos tocar. -- Aquele que deseja ser um auxiliador não deve permitir que a compaixão o domine. Tem que procurar pela justificativa para aquilo que presencia. Em manifestação alguma da lei encontrarão um traço sequer de injustiça. Aos poucos fomos controlando nossa emotividade. À medida que superávamos nossos limites conseguíamos avançar na direção da origem das vibrações que nos conduzia. Sabíamos que elas pertenciam ao espírito atormentado de Set e isto nos deixava apreensivos. Como reagiríamos ao vê-lo? Como ele estaria? Conseguiríamos suportar a visão que nos aguardava? Muitas eram as perguntas que nos consumiam. Darkness estava ciente de todas elas e por isto não permitia que chegássemos logo ao local onde Set estava. -- Lembrem-se da missão para qual se ofereceram. Set precisa de nossas vibrações positivas. Afastem as dúvidas e os anseios que estão acalentando. Eles só estorvam impedindo que vibrem harmonicamente. Com muito custo conseguimos serenar nossos íntimos. Quando finalmente todos se mostravam mais tranqüilos, Darkness nos fez formar o círculo e, tomando lugar no centro, anunciou que havíamos chegado. -- Posicionem suas mãos em contato com a de quem estiver ao seu lado. Formem a imagem mental de nosso amigo. Enquanto seguíamos a orientação recebida, Darkness iniciou um dolente cântico. As ondas que ele originou começaram a se concentrar ao nosso redor. Em pouco tempo uma claridade de cores múltiplas nos envolvia. Mal conseguíamos manter o olhar na direção do centro do círculo. Lentamente a claridade foi abrandando de modo que pudemos novamente mirar o local onde Darkness estava. Assombrados constatamos que ele não estava só. Ao seu lado um fantasmagórico ser tentava manterse em equilíbrio. Ao fitá-lo com mais atenção, não acreditamos em nossos olhos. -- Set! Sussurramos ao mesmo tempo. -- Olá, amigos. A voz de Set era quase inaudível. -- Sentem-se! Solicitou Darkness. Sem deixar a posição que ocupávamos, nos sentamos.

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-- O elo que os une, bem como a força de suas vibrações propiciaram este momento. Elevemos nossos espíritos em agradecimento a graça que nos foi concedida. Aquele era um desses momentos especiais em que não há nada que se diga que consiga traduzir aquilo que nos domina. Fato entendido por todos, permanecemos enviando energias positivas para Set. Darkness servia como fortalecedor de nossas vibrações. Aos poucos fomos notando o semblante de Set ir se robustecendo até ganhar contornos bem definidos. Uma alegria sem igual tomou conta de todos ao testemunharmos e participarmos do despertar de Set. Suas vibrações começaram a se unir as nossas e logo tudo se tornou uma confusão de ondas. Choro e riso se misturavam alternando nossas manifestações de pleno regozijo. Em segundos tudo se apagou. A escuridão dominou nossas mentes e nem mesmo o som de nossas respirações podia ser ouvido. Estávamos suspensos em uma dimensão desconhecida. -- Não se deixem levar pela ilusão. Nosso amigo ainda encontra-se perdido entre os desesperados do vale. Aquilo que tivemos a oportunidade de vivenciar foram nossas energias manifestando nossos desejos. Agora que elas se encontraram, irão se adensar até tornarem-se tão fortes que nada poderá rompê-las. Quando chegar até o espírito de Set, estará tão revigorada que ele irá senti-la com o mesmo impacto que sentiríamos. No entanto, isto não quer dizer que ele a registrará de modo correto. Precisamos mentalizar com clareza para que ele possa compreender nosso gesto. -- Julguei que estávamos com ele. Falou Lilith. -- Não. Set se entregou a ilusão. Sua falta é muito grave. Não poderá encontrar o caminho que conduz até nós a menos que assuma seu erro e procure entender que somente agindo de acordo com a lei poderá auxiliar. -- Por que vivenciamos isto? Indagou Pandora. -- Sempre que nossos pensamentos se unirem para mentalizar o bem de estar de Set, eles originarão ondas iguais a estas. Quanto mais direcionarmos nossas energias para ele, mais ele receberá. -- Mas não temos como saber quando este ou aquele está sintonizado nesta atividade. Lembrou Deimos. -- Não precisa ser simultâneo. Nossas energias tomam forma e ocupam lugar na dimensão imaterial onde Set se encontra. Quando ela recebe alimento ela se avoluma e fortalece. Evolui até que encontre a direção desejada.

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-- Então, mesmo que não estejamos unidos no mesmo instante, podemos auxiliar. Arriscou Pandora. -- Sim. -- E se estivermos distantes? Ainda indagou Pandora. -- Mesmo assim, se mentalizarem com clareza, conseguirão atingir o objetivo desejado. A reunião ainda se estendeu por algumas horas, porém chegou o momento em que cada um tinha que assumir suas responsabilidades. Então, cada um se foi deixando viva a certeza de que onde quer que estivéssemos, estaríamos unidos. Assim que cheguei ao club, Antenor veio me procurar: -- Ainda bem que chegou. -- Algum problema? -- Não. Só desejo saber as novidades. -- Estamos bem. -- Assim, sem mais? -- Darkness nos conduz, com segurança, pelo caminho da evolução. -- Este rapaz me parece meio estranho. -- Bem, ele não nem tão rapaz assim, nem você é o único a pensar assim. -- Ele não parece ter mais que vinte e pouco anos. -- Iria se surpreender se soubesse a verdade. -- Por que não me conta? -- Ainda não é chegada a hora de lhe revelar tudo. Tenha mais um pouco de paciência. -- Ah, ia me esquecendo, chegou mais está correspondência. -- De quem? -- Creio que de sua família. -- Outra! -- Não sei bem o que eles possam estar querendo, nem pretendo julgar suas atitudes, mas penso que talvez devesse atendê-los. -- Ir até lá? -- Sim. -- Já estudei esta possibilidade. -- E... -- Ainda não estou certo de nada. -- Já perguntou a seu amigo? -- Já. -- O que ele acha? -- Como sempre, falou que apenas eu posso decidir.

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-- Ele está certo. -- Eu sei. -- Talvez se procurasse ouvir a voz de sua consciência. -- Já tentei. Mas ponderar, quando se está envolvido, é um pouco difícil. -- Eu sei, mas tem que insistir. -- Farei isto. -- Acredito que fará. -- Agora vou subir. Estou precisando de repouso. -- Quando estiver se sentindo mais disposto, tenho um assunto importante para tratar. -- Pode esperar? -- Sem problema. É sério, mas não tão urgente. -- Obrigado por compreender a situação. -- Vá, vá descansar. Depois conversamos. Durante três semanas continuamos nos encontrando para mentalizar o despertar de Set. Depois Darkness nos informou que poderíamos realizar as mentalizações sem estarmos reunidos. De certo modo, talvez quisesse analisar nosso desempenho quando sozinhos. Neste intervalo de tempo não realizamos mais nenhuma reunião com a finalidade de apenas nos deleitarmos com as prazerosas leituras ou contemplação dos manifestos artísticos que tanto apreciávamos. Deimos foi o que mais se ressentiu desta ausência de ligação com nossas tendências. -- Até quando vamos ficar enlutados? -- Não estamos de luto. Respondeu Fobos. -- Muito embora desejemos este estado como realidade. Observou Pandora. -- Se não estamos de luto, por que não realizamos mais nossas reuniões? -- Mas estamos realizando-as. Afirmou Fobos. -- Não como antigamente. -- Não percebeu a mudança que se processou em nós? Questionou Lilith. Nós crescemos, não somos mais o mesmo grupo que vivia descompromissadamente. -- Não iremos mais debater as obras ou os conceitos de nosso modo de vida? E os festivais? Os Shows? Os encontros? -- Continuaremos realizando tudo como sempre. Adiantou Fobos. Apenas nossa postura será mais madura. -- Como assim?

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-- Tem convivido sempre com o grupo ao qual seus pais pertencem, não? -- Sim. E daí? -- Bem, mesmo entre eles, deve ter notado algumas mudanças ocasionais. Estou certo? -- Está. -- Isto porque todos precisam progredir. Não podemos permanecer eternamente estacionados em determinado degrau. Faz parte da vida, o progresso. E quando progredimos, deixamos de ver os fatos com os olhos pueris de antes. Todos se adaptam as novas condições. -- Compreendo esta necessidade, mas isto não que dizer que não possamos celebrar nossas sensações. -- De modo algum. Por isto mesmo já estamos combinando uma noitada para breve. -- Como não estou sabendo? -- Por que andou um pouco afastado nestes dias. -- Precisei ficar em casa. -- Entendemos. Mas agora já está por dentro. -- E quando será? -- Temos que combinar. -- Darkness irá participar? -- Não sabemos. -- De qualquer modo estaremos lá. Afirmou Lilith. Tudo estava seguindo o curso natural da vida. A saudade que Set nos legara ia, aos poucos, mesclando-se com nossas outras emoções. Não que o estivéssemos relevando a uma figura apagada, mas tínhamos que continuar vivendo. Apenas um único senão estava me aborrecendo. Não sabia como agir com relação ao convite que minha família havia feito. Refleti muito a respeito e não havia chegado a conclusão alguma. Foi durante a reunião que realizamos no nosso velho cantinho que acabei fazendo minha escolha. Pela primeira vez, após um longo período, o grupo se reunia sem a presença de alguém de fora. Nem mesmo Darkness estava presente. Em lembrança aos ausentes, iniciamos a reunião com a leitura de um dos poemas que Set escrevera. Pandora não resistiu e chorou. O habitual ritmo de nossas reuniões seguia normalmente até Eve solicitar a palavra. Quando ela começou a proferir seus pensamentos, notamos uma certa contrariedade por parte de Deimos. Ele ainda mantinhase ferrenhamente agarrado a sua condição de eterno adolescente.

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-- Por que não continuamos com os assuntos de sempre? Indagou interrompendo Eve. -- Estamos tratando dos assuntos de sempre. Só que com outra roupagem. -- Este papo não me parece com nada que tenhamos tratado até hoje. -- Então vejamos: já não falamos a respeito de nossa queda acentuada por assuntos que dizem respeito a dor, a morte ao sofrimento? -- Já. -- E também já não estamos acostumados a efetuar a leitura de obras dos diversos autores góticos? -- Também já. -- Então? -- Então ainda não vejo o ponto de ligação. -- O que estava apresentando é o resumo de um dos livros mais recentes a respeito do mundo que nos cerca. -- Uma obra gótica? -- Exatamente. -- Pensei que falava sobre as idéias de Darkness. -- Também. -- Mas... -- Darkness escreveu a história que apresentava. Seu livro deverá ser editado em poucos meses. -- O que! O sinistro virou escritor! Brincou Pandora. -- Tem mais. Anunciou Eve. -- O que mais? Perguntamos ao mesmo tempo. -- Somos personagens da história. -- Está brincando! Exclamou Fobos. -- Não. Tudo bem que ele alterou alguns detalhes, mas ele não esqueceu de nenhum de nós. -- O que ele pretende com isto? Quis saber Pandora. -- Mostrar que apesar de nossa escolha, somos tão normais quanto qualquer outro. Temos os mesmos sonhos, as mesmas necessidades. Talvez o único fator que nos diferencie mais significantemente seja nossa sensibilidade mais exacerbada. -- Poderemos ler antes que seja publicado? Indagou Lilith. -- É claro que sim. Darkness não permitiria que fosse diferente. Se um de nós não concordar com a publicação, ele desiste de editar o livro. -- O que ele reservou para meu personagem? Perguntei. -- Quer mesmo saber?

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-- Sim. -- Seu personagem é o de um jovem muito sincero e bom, mas que vive emperrando seu progresso devido a sua enervante indecisão. -- Eu, indeciso! -- Oh, não! Zombou Deimos. -- Quando poderemos lê-lo? Pandora se mostrou ansiosa. -- Talvez até o final da semana. Como a data definida por Eve estava próxima, não quisemos mais ouvir sobre o livro. Neste ponto a reunião retomou sua argumentação usual. Os assuntos foram sendo apresentados e recebidos com entusiasmo. Durante uma pausa, aproximei-me de Eve e indaguei: -- O que falou é mesmo real? -- Sobre o que? -- Meu personagem. -- Sim. -- Por que alguém tão indeciso, assim? -- Não é exatamente como se sente? -- É. Mas... -- Mas enquanto não perceber o quanto isto lhe atrapalha, não assumirá o compromisso pelo qual empenhou sua palavra. -- Sabe que não sou assim porque quero. Já tentei lutar contra esta minha timidez mórbida, mas não consigo superar meus temores. -- Esqueça a timidez. Concentre-se em sua insegurança. Ela é o ventre de todo obstáculo que edifica em seu caminho. -- Tentarei! -- Hei, que segredos os dois têm para ficarem de cochichos? Deimos caçoou de nosso afastamento. -- Esperávamos por vocês. Respondi meio contrariado. Chegando ao club não consegui sossegar pois meus pensamentos ficavam repetindo a fala de Eve: “-- Indeciso!” Sim era esta minha sina. Viver eternamente sem ter coragem para ousar. Mortificando-me bradei com raiva e avancei contra a parede. Ao sentir a dor causada pelo impacto, tombei e experimentei o sabor nauseante provocado pelo sangue que escorria por meus lábios. Dor mesclada com revolta me fizeram penar e prantear minha covardia. Inconsolável me prostrei ante a janela e fiquei maldizendo minha condição servil. Em momento algum lembrei em me concentrar mentalizando um ambiente aprazível. Era o que Darkness chamava de resignação indolente. Um estado onde olvidamos nossa condição de seres

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livres e nos entregamos a ilusão doentia de estarmos sendo manipulados por nossas fraquezas. Em meu desespero fui abraçado por vibrações negativas que afastavam minha mente da fonte da serenidade. Qual um fanático, entreguei-me as considerações mais rasteiras. Fui de uma sandice medonha ao bradar contra minha posição. Somente quando o cansaço me venceu foi que comecei a sentir todo turbilhão ir se acalmando até nada mais restar. Estava deitado no chão de meu quarto. Olhos inchados e corpo dolorido, não tinha noção do adiantado das horas. Repentinamente senti a presença de uma entidade poderosa ao meu lado. Sem sequer levantar meus olhos, disparei: -- Veio assistir meu fracasso? -- Hector! Por que se diminui tanto! -- Darkness! A constatação de quem se tratava encheu-me de vergonha. Podia me mostrar inútil e medroso diante de quem quer que fosse, mas nunca ante a presença dele. Sem saber como reagir, mantive-me na posição em que ele havia me encontrado. -- Por que não se levanta? -- Não... não... -- Acredita mesmo que iria tripudiar em cima de sua limitação? Não aprendeu nada durante o tempo que temos convivido? -- Estou envergonhado. -- Ótimo! Por que não faz uso desta vergonha e reage? -- Como? -- Sabe o que tem que fazer. -- Não consigo me decidir. -- Já se decidiu. Precisa apenas executar sua vontade. -- Como sabe? -- Não tenho o habito de abandonar aqueles que confiam em mim. -- Onde esteve? -- Esperando que viesse até mim. Como sempre, os contatos com darkness acabaram me levando para um horizonte muito diferente daquele que almejava trilhar. Sua visão pura dos fatos servia de archote indicando o caminho que deveria ser percorrido. Sem desejar adiar mais minha decisão, só esperaria até a próxima reunião do grupo para comunicá-la a todos. Antes de poder efetivar minha decisão, adiantei-a a Antenor. Ele concordou comigo e reforçou a decisão tomada. Estava tão absorvido

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pela situação que não notei o sinal de cansaço estampado no semblante de meu protetor. Duas semanas mais tarde pude comunicar meu breve afastamento do grupo. Cheguei a pensar que seria muito difícil concretizar meu intento, mas a postura de todos acabou facilitando tudo. -- Pessoal! Chamei a atenção sobre mim. -- Ora, ora, nosso espartano amigo pede a palavra! Deimos parecia haver incorporado o espírito debochado de Set. -- Tenho um comunicado a fazer. -- Estamos ouvindo. Anuiu Fobos. -- Terei que deixar o grupo por algum tempo. -- Está doente? Perguntou Pandora preocupada. -- Não. Só resolvi atender ao pedido de minha família e ir até eles. -- Muito bem! Exultou Pandora. Quando tiver colocado tudo as claras, verá que é a melhor atitude a ser efetuada. -- Concordo com Pan. Falou Lilith. Precisamos resgatar as faltas aderidas em nós. Enfrentar nossos erros pode servir para esclarecer alguns fatos que ficaram mal entendidos. -- Não creio que tenha algum em meu passado, mas mesmo assim conclui que não posso prosseguir sem uma última conversa com minha família. -- Isto prova que amadureceu. Observou Eve. Não importa que motivo o toca, pois ao se voltar para seu passado, muito poderá haurir. -- Não tenho pretensão alguma de poder ganhar algo com isto. Sei que preciso romper os grilhões que nos une, apenas isto. -- Não estou discordando de sua postura, porém deve manter a mente aberta. Não se vestir de preconceitos que só atrapalhariam seu sucesso. Advertiu Eve. -- Estarei seguindo despojado de qualquer idéia preconcebida. Não desejo aumentar ainda mais minha carga com relação aqueles que foram minha família. -- Vai precisar de companhia? Sondou Deimos. -- Não. Não que a companhia de qualquer um de vocês não seja agradável, mas tenho que encarar esta missão sozinho. Preciso estar consciente de que apenas minha opinião irá orientar meus passos. -- Sendo assim, só nos resta desejar que tenha sucesso. De nossa parte saiba que ficaremos mentalizando energias positivas para você. Afirmou Fobos. -- Sei que estarão comigo em todos os momentos. Também por este motivo é que irei só.

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-- Darkness sabe de sua decisão? Indagou Pandora. -- Sim. -- Quando pretende partir? Perguntou Fobos. -- Amanhã bem cedo. Solicitei alguns dias de afastamento, como tenho algumas férias vencidas, não recusaram meu pedido. -- Nada como ser um funcionário exemplar. Zombou Deimos. -- É. Ser certinho tens suas compensações. Retribui a zombaria. Apesar de determinado, em meu íntimo soprava um certo temor. Devido a tudo que havia ocorrido, a dúvida de como seria recebido e como tudo iria se processar me deixava ansioso. O trajeto até minha cidade natal foi demorado. Mais devido a meu estado que pela distância. A ansiedade sempre nos faz perceber o tempo com mais lentidão. Aproveitei o lapso temporal para ler e reler inúmeras vezes a carta onde minha família expressava seu desejo de nos encontrarmos. O desembarque foi tão solitário quanto a viagem. Não que esperasse por uma recepção calorosa ou que meus irmãos viessem me receber, ainda mais considerando que os havia informado de minha ida apenas quando já havia comprado a passagem. Sem perder muito tempo, procurei por um táxi e informei o destino. Enquanto seguíamos pelas ruas ia rememorando algumas passagens do tempo em que morava naquela cidade. Vez ou outra surpreendia-me com a lembrança de algum fato mais agradável e deixava um breve sorriso ganhar meu semblante. -- Chegamos! Anunciou o motorista. -- Obrigado. Paguei-o e desci. Não havia levado nenhuma mala, apenas uma mochila. Olhei demoradamente para a velha construção que já fora meu lar. O tempo contribuíra para o aspecto desolado que ela trazia registrado em sua fachada, porém o descaso tinha um peso muito maior. Outras construções tão antigas quanto ela não traziam mostras tão evidentes da passagem dos anos. Aproximei-me lentamente e ainda indeciso toquei a campainha. Os segundos que antecederam o surgir de alguém para me atender, me fizeram suspirar e mentalizar um estado que estava longe de sentir. Sabia que precisava manter-me o mais sereno possível, muito embora não soubesse se seria capaz de manter este estado até que tudo houvesse terminado. -- Bom dia! Uma bela jovem veio me atender. -- É esta a casa da família Steiner?

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-- Sim. Quem é o senhor? -- Um parente. Alguém da família se encontra? -- Meu marido ainda não saiu. -- Poderia falar-lhe? -- É claro. Entre! Minhas pernas tremiam. Meu coração refletia a intensidade das pulsações que me dominavam. A boca chegava a secar e as mãos acumulavam toda umidade de meu corpo. Em poucos segundo estaria frente a frente com meu passado. -- Por favor, aguarde aqui enquanto o chamo. A educação formal da mulher tinha uma conotação tão espontânea que deixou-me mais a vontade. -- Claro. Obrigado. Um diálogo abafado proveniente do interior da residência mostraram-me que o homem com quem ela falava já aguardava pela visita que lhe era anunciada. Através do pouco que conseguia entender, não pude distinguir se o tom soava conformado ou contrariado. Logo a seguir um de meus irmãos surgiu na sala onde havia ficado. -- Bom dia. Saudou-me com frieza. -- Bom dia. -- Obrigado por haver atendido nosso pedido. -- Não tem porque, além do que, me demorei um pouco antes de decidir vir. -- Precisamos conversar a respeito de assuntos legais. -- Que espécie de assuntos? -- Bem, mesmo que fizesse parte de nosso dia-a-dia, não saberia como lhe informar a respeito do que houve, muito menos tendo-o tão distante de tudo. -- Pois seja direto. -- Há seis meses nossos pais sofreram um acidente e faleceram no mesmo. -- Sei. Aquela notícia me deixou passado. Nunca mais havia dedicado qualquer pensamento a meus pais. Ao saber que haviam morrido senti como se algo muito caro me houvesse sido tirado. Não soube precisar aquela sensação, uma vez que já não os tinha mais em consideração, porém não fui capaz de furtar-me a experimentá-la. -- O caso é que somos seus herdeiros. -- Não estou interessado em nada que eles tenham deixado. -- Pode ser, mas legalmente não é assim que se resolve a situação.

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-- Não pretendo colocar empecilho algum para que possam usufruir a herança de... Embora sentindo um amargor indefinido por haver tomado conhecimento do falecimento de meus pais, era-me muito difícil pronunciar esta palavra. De repente me vi participando de uma incoerente experiência. Se por um lado sentia a perda de meus pais, por outro era incapaz de denominá-los assim. -- Precisa nos acompanhar até o testamenteiro para que ele possa fazer a leitura do documento. -- Não se preocupe. Basta me dizer quando será feita a leitura. -- Como não tínhamos certeza de que viria, não marquei nenhuma data. Terei que agendar um horário com o advogado. -- Por mim tudo bem. Posso aguardar uns dias. -- Ficará aqui? A pergunta soou tão cheia de cuidados que mesmo que fosse minha intenção hospedar-me ali, teria desistido de imediato. -- Como disse? -- Quer dizer, tem lugar para ficar? -- Não se preocupe. Posso arrumar um hotel. -- O melhor que tem na cidade é o Comodoro. Não é grande mas é bem limpo e tem um atendimento muito bom. -- Sei onde fica e qual é. Talvez fique nele. -- Avisarei os outros para que possamos resolver tudo rapidamente. -- Ficarei aguardando. Assim que houver escolhido o hotel, eu aviso. -- Tem meu telefone? -- Trouxe-o anotado em minha agenda. -- Ótimo. -- Se é só, vou ver se me arranjo por aí. -- Está certo. Espero que o advogado possa nos receber em breve. -- Também espero que sim. A cordialidade era um tratamento que não aguardava receber. Agradecei a frieza com que me tratara, assim não tive que agüentar recriminações ou palavras mais diretas a respeito de tudo que havia passado. Talvez por opção íntima ou para contrariar a dica recebida, decidi não hospedar-me no hotel indicado. Segui até mais além do lugar onde ele ficava e encontrei uma pensão mais modesta. Tudo bem que poderia ter escolhido o hotel, mas me senti bem naquela pensão.

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Para minha provação fui informado que o advogado havia deixado a cidade estando de retorno apenas na semana seguinte. Permanecer naquele lugar esquecido por todos não seria o pior. O fato de não haver com que me entreter neste período era que me chateava. Antes que deixasse a contrariedade me dominar, ouvi a exortação de Darkness a ecoar em minha mente. “-- Não desperdice o tempo que tem a seu favor. Utiliza-o proveitosamente!” Mesmo não me sentindo muito animado, tirei os livros que havia levado e comecei a folheá-los. Não me ative em nenhuma das páginas. Meus pensamentos estavam muito distantes. Mais precisamente voltados para as pessoas de meus pais. Saber que não me confrontaria com eles havia originado um vazio indefinido em meu âmago. Por que aquilo? Julgava já haver superado qualquer manifestação de consideração por eles, mas então por que não sossegava? Por que ficava sendo incomodado por suas presenças? Mecanicamente meu dedo passeou por uma das folhas de um dos livros que mantinha aberto sobre a cama. De repente meus olhos pousaram na palavra que estava sobreposta por ele. Num átimo foi como se um raio me atingisse. Bem destacado do restante do texto a palavra parecia pulsar ante meu olhar. “RESGATE!” Uma simples palavra me fez ver o que talvez toda uma enciclopédia não seria capaz. Erros, muitos erros haviam sido perpetrados e todos clamavam por resgate. Apesar de haver relegado as figuras paternas a um espectro insigne, os laços se mantiveram inquebrantáveis. Despertado para a realidade que me acompanhava, voltei algumas páginas e iniciei a leitura daquela dissertação. Aos poucos fui compreendendo a complexidade da trama que permeava a relação estabelecida entre meu espírito e os espíritos de minha mãe e de meu pai. Mais uma vez as lições recebidas de Darkness estavam me conduzindo para um entendimento muito diverso daquele que me ocorreria caso nunca o houvesse encontrado. Perplexo, compreendi o alcance dos fatos. Pela primeira vez deixava de me ver como vítima indefesa da arbitrariedade de meus pais. Enfim começava a ver que os fios que nos atavam partiam de mim. Não havia sofrido qualquer ato injusto, apenas recebera o retorno originado na covarde atitude que praticara. O silêncio se mostrava um grande mestre. Caso não estivesse alí, sozinho, a refletir sobre tudo, com toda certeza não teria chegado a vislumbrar o gigantesco mover que estava por trás dos fatos que

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protagonizara. Sem poder controlar, senti que o espaço que me cercava tornava-se tênue e era coberto por densa névoa. Precisei me esforçar para retomar a consciência. Quando o consegui, notei que o ambiente era diferente daquele me abrigava. Já não me encontrava na pensão, mas em um plano não físico. A lugubridade do local me tocou profundamente. De todos os planos ou dimensões que Darkness nos havia mostrado, nenhum se coadunava com aquele. Nem mesmo o vale dos suicidas me pareceu tão escuro. -- Muito triste, não? Soou uma voz imaterial. -- Que lugar é este? -- Muitos nomes foram dados, o mais conhecido por você talvez seja purgatório. -- Pensei que o purgatório fosse constituído por vários planos. -- Tem alto senso de percepção. Realmente o purgatório se divide em vários planos. Este é apenas um deles. Por sinal, um dos mais inferiores. -- Que espécie de espíritos habitam estas paragens? -- Espíritos que se deixaram enredar pelas ilusões criadas pela sociedade constituída. Seu limitado estagio de maturidade os levou a cometerem erros crassos. Erros que poderiam, facilmente, serem evitados. Deixaram se levar por conceitos que sabiam não corresponder a verdadeira essência, mas que propiciava-lhes o conforto material que tanto lhes aprazia. -- Renderam-se as benesses da matéria? -- Sim. -- Qual o motivo de me encontrar aqui? -- Espíritos muito próximos e com ligações fortes com o seu vieram para cá. Estão sob cuidados de guias adequados, mas precisam de sua presença para que possam superar algumas vivências. -- Quem são? -- Melhor que você mesmo os reconheça. Silencioso segui pelo caminho que parecia ser o indicado. Minha intuição era o único sentido que se mostrava adaptado aquele plano. Aos poucos o ambiente foi se tornando menos escuro e a caminhada ficou menos truncada. Chegando a uma espécie de clareira, pelo menos este é o cenário que mais se assemelha ao lugar aonde cheguei, vislumbrei os vultos de dois anciões sentados sobre um tosco banco. Como estavam de costas para o caminho por onde andava, não pude identificá-los.

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Prossegui em direção aos dois, mesmo porque não havia mais ninguém a vista. À medida que me aproximava, sentia meu coração acelerar. O que estaria acontecendo com minhas emoções? Antevendo o que estava por acontecer, balbuciei quase que inconscientemente: -- Mãe! Pai! Aquelas simples palavras foram suficientes para que ambos se virassem e me olhassem indecisos. Seus semblantes estavam tão envelhecidos que não consegui perceber neles os mesmos rostos de minha mãe e de meu pai. Fiquei em dúvida quanto a verdadeira identidade de ambos. -- Hector! Sussurrou o homem. -- Mãe! Pai! Voltei a falar. Agora com a voz mais firme. -- Você veio! A voz da mulher soou mais débil ainda. -- Não sabia que os encontraria aqui. -- Mesmo assim veio. Tornou a falar a mulher. -- O que desejam? -- Precisamos que nos perdoe! Declarou o homem. -- Perdoá-los? De que? -- Sabemos que o prejudicamos, mas não era nossa intenção. Começou o homem. Queríamos que você fosse um homem de valor, não percebemos que agíamos justamente em contrário a nossos desejos. -- Não precisam se preocupar. Não sou nenhum delinqüente. -- Sabemos. Fomos informados que recebeu boa condução. Adiantou a mulher. -- Mas não foi nossa ação que o conduziu. Falhamos em nossa tarefa. O homem estava perto de deixar o pranto tomar conta de suas emoções. -- Ainda assim me tornei uma boa pessoa. Não têm porque se prenderem a este detalhe. -- Precisamos acreditar que nos perdoa. Sabemos que seu perdão não nos eximirá de assumir as conseqüências de nosso falhar, mas se o tivermos, poderemos enfrentá-las com mais serenidade. Soluçou a mulher. -- Pois saibam que não os culpo por nada. Já vivi os dias em que maldisse todas suas mesquinhas atitudes, mas já não ajo mais assim. Compreendi que tudo refletiu situações que eu mesmo havia ensejado. -- Também fomos instruídos a respeito dos efeitos retroativos de nossas ações e desejos, mas não nos sentimos mais aliviados por isto. Só seu perdão nos apascentará. A angústia dominava o ser daquele ancião alquebrado.

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-- Estejam certos que já os perdoei. Não guardo mais nenhuma recriminação em mim. -- Está sendo sincero? A mulher parecia mais angustiada que o homem. -- Não poderia ser mais sincero que estou sendo. -- Tira um pesado fardo de nossas costas. Estamos conscientes do quanto teremos que obrar para superar este falhar, mas já não temos mais dúvidas de que conseguiremos. Afirmou o homem. -- De minha parte, podem ter certeza de que somente mentalizações positivas lhes serão direcionadas. -- Precisa saber de mais um último detalhe. O homem tremia ao pronunciar tal frase. -- Não precisam falar mais nada. Tudo o mais é desnecessário. -- Por favor, deixe-me contar sobre aquilo que tanto oprime meu peito. Rogou o homem. -- Está bem. Se lhe fará bem, que fale. -- Quando ainda preso a meu corpo físico, tomei a decisão mais radical que poderia ter tomado. Sinto muito, mas só agora me ocorre o quão errado estava. -- Já disse que não guardo rancor algum. Não precisa martirizar-se ainda mais. -- Precisa saber que minha mesquinhez ainda teve tempo para praticar mais uma afronta contra você. Em meus últimos instantes de lucidez, solicitei os préstimos de um advogado e o exclui de meu testamento. Não lhe leguei sequer um tostão. -- Bens materiais não me farão falta. Tenho o suficiente para viver bem. -- Não duvido, mas sei que minha atitude foi errada. Não tinha o direito de lhe negar a posse de sua parte. -- Longe de mim querer posar de entendido, mas este talvez seja o menor dos erros que cometeu. Por mais amor que tenha por seus filhos, nenhum pai ou mãe tem a obrigação de aplainar-lhes os caminhos. A missão de uma mãe e de um pai resume-se a proteção que devem dar aquele espírito que receberam por filho enquanto este não for capaz de assumir suas responsabilidades, no mais, qualquer acréscimo será uma concessão de coração. -- Impedimos que soubesse o que é ser amado. Não atentamos para o fato de sentir-se tão temeroso. Falou a mulher. -- Sim. Sempre me senti muito temeroso. Meu medo tornoume angustiado, taciturno e inseguro, mas estas particularidades já eram inerentes a meu espírito, não tem nada a ver com a atuação de vocês.

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-- Sabemos disso, mas poderíamos ter lhe amenizado estes temores. Colaborado para que vencesse seus limites. Afirmou o homem. -- Como devem saber, nenhum espírito depende de um único meio para poder realizar suas tarefas. Não foram vocês, mas encontrei quem pudesse me ajudar. Hoje já não sou mais aquele menino medroso de outrora. -- Ainda assim contínua sendo tímido. -- Minha timidez reflete algumas lacunas que ainda não fui capaz de preencher. Logo vencerei esta etapa. -- Não sei se lhe diz algo, mas sentimo-nos orgulhosos pelo que se tornou. Falou a mulher. -- Poder contar com a aprovação de vocês me faz muito bem. Assim como vocês, também necessito que me perdoem. -- Perdoá-lo! Mas fomos nós que erramos. Falou o homem. -- Não existe apenas um culpado, nesta história. O fato de falharem em sua missão, não me concedia o direito de falhar na minha. Também tenho minha parcela de culpa. -- Nunca o culpamos pelo que aconteceu. Na época apenas procurávamos dar o melhor de nós, porém não sabíamos como. A mulher mostrava-se dorida em demasia. -- Poderíamos ficar por toda eternidade declarando que já não nos consideramos mais responsáveis pelo fracasso ou sucesso do outro, mas muito ainda precisaremos caminhar para que os erros sejam resgatados. Por hora desejo que possam se recuperar e despertar para um novo alvorecer. -- É tudo que almejamos neste momento. Proclamou a mulher. -- Sendo assim, penso que já seja hora de ir. Preciso prosseguir com minha jornada. -- Agradecemos por ter vindo. Agora podemos continuar nossa provação mais aliviados. Disse o homem. -- Os auxiliares que lhes acompanham são preparados para prestarem toda assistência de que necessitam. Nunca estarão sozinhos. -- Mais uma vez obrigado. -- Não seja por isso. Uma suave brisa principiou a soprar sobre o local. O adocicado aroma de flores silvestres invadiu minhas narinas causando-me torpor. De repente tudo escureceu e minha mente rodopiou sem parar. Quando despertei estava deitado sobre o chão do quarto. A noite se fora e um novo dia reinava absoluto sobre a orbe. Mais cinco dias tive que esperar para que o testamento fosse lido. Neste meio tempo aproveitei para avançar em meus estudos. Com

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dedicação ia me aprofundando nas lições que Darkness havia preparado. A cada nova etapa, sentia que me tornava mais desprendido das manifestações materiais. Quando finalmente o testamento foi apresentado, estava tranqüilo e cordato. Não pretendia contestar a decisão que meu pai tomara. Não dependia deste expediente para sobreviver. As posses que tinha não eram muitas, afinal meu emprego era apenas razoável, mas me mantinha com dignidade. Ao chegar no escritório do advogado, fui varado pelos olhares dardejantes de meus irmãos. Sem a menor cerimônia, observaram-me de cima em baixo como se a procurarem por algum sinal que demonstrasse estar revoltado com o que aconteceria. -- De onde tirou este visual esdrúxulo? Perguntou-me Helio, o meu irmão mais novo. -- Todos góticos se vestem assim. -- Góticos! Exclamou meu irmão mais velho. Bem sabia que havia pirado. -- Hei, vamos parar! Exigiu Hugo, o irmão que havia me recebido. -- Não se preocupe, estou acostumado a ouvir comentários bem mais contundentes. -- O que esperava ouvir? Doidões, são o que são! Voltou a se manifestar meu irmão mais velho. -- Melhor pararmos com as agressões e entrarmos. Asseverou Hugo. -- É. É melhor mesmo acabarmos com esta lengalenga de uma vez por todas. A leitura do testamento foi mais rápida que supúnhamos. Os bens deixados não eram tantos assim. Os contemplados com o testamento ficaram insatisfeitos com a partilha. Nenhum deles sequer importou-se com o fato de meu nome haver sido omitido. Pouco ou não, pareciam alheios aquele que ficou sem nada. Terminado o ato, despedi-me de todos e preparava-me para deixar o escritório quando o advogado me deteve solicitando falar-me em particular. Imaginei qual seria o assunto e tentei adiantar-lhe minha posição, mas ele insistiu para que conversássemos. Assim que meus irmãos se foram, aguardei que o advogado me chamasse. -- Desculpe-me a insistência, mas é minha obrigação alertá-lo que pode contestar o teor do testamento. -- Sei que tenho esta prerrogativa, mas não pretendo contestar a decisão que meu pai tomou, afinal foi sua última vontade.

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-- A vida, as vezes, se mostra surpreendente! -- Por que a observação? -- Seus irmãos receberam cada qual seu quinhão e mesmo assim se mostraram insatisfeitos. Você, pelo contrário, nada recebeu e se mostra conformado com a situação. Não é sempre que se testemunha uma atitude tão desprendida. -- A parte material não me faz falta. Tenho o suficiente para viver com conforto. Aquilo que me faltou a vida toda, não seriam os bens deixados que poderiam repor. Como pode ver, não sou assim tão conformado. -- É. Pode ser, mas ainda assim me parece ter mais valor que seus irmãos. -- Se me permite uma observação. -- É claro. Pode falar. -- Não podemos exigir mais do que aquilo que as pessoas estão preparadas para dar. Querer mais é iludir-se. -- De onde tirou tal pensamento? -- Um amigo me mostrou que ele é o mais certo que se possa crer. -- Deve ser muito sábio este seu amigo. -- E é! Possui conhecimento puro, sem as armações criadas pelos homens. -- Conhecimentos secretos? -- Como? -- Seu amigo pertence a alguma sociedade secreta? -- Não! Ele é... bem... ele é especial. Apenas isto. -- Talvez eu possa encontrá-lo. -- Pode ser. Vou falar sobre você, se ele achar que deve, irá procurá-lo. -- Dará meu endereço a ele? -- Não será preciso. Ele o encontra. Sentia-me aliviado ao deixar o escritório. Nada mais me prendia a meus irmãos. Porém, não tinha a mesma certeza com relação a meus pais. O fato de tê-los perdoados não me fazia sentir menos preso a seus espíritos. Isto me incomodava, mas não seria este detalhe que iria me atrapalhar. Confiante em meu futuro, decidi que iria adiar meu retorno. Não permaneceria mais naquela cidade. Tinha necessidade de respirar outros ares. Uma volta mais demorada não era má idéia. Podia conhecer as diversas cidades que existiam pelo trajeto.

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Em minha sede de aventura, gastei todo o tempo que havia sido concedido para meu afastamento. Só voltei a grande cidade na noite anterior ao dia de me apresentar ao serviço. Desta forma, não pude comentar nada com ninguém, nem mesmo com Antenor pois quando cheguei, ele já havia se recolhido. O dia seguinte a minha volta contrariava meu estado interior. Enquanto me sentia pleno de contentamento, a manhã se mostrou cinzenta e fria. Uma fina garoa quedava sobre a cidade deixando o tempo ainda mais fechado. Indiferente a esta manifestação de pesar, me vesti e saí para o trabalho. Soubesse o que me aguardava e teria me juntado ao ar carrancudo do tempo. Nem bem havia entrado na empresa e fui informado que deveria me apresentar ao chefe de minha seção. Estranhei a exigência, mas atendi-a prontamente. O cenho carregado de meu chefe deu-me a impressão de que o motivo de estar ali não era muito auspicioso. Sentei-me na ante-sala e aguardei que ele me chamasse. Depois de cinco minutos me apresentava a sua frente. -- Sente-se! Ordenou-me. -- Obrigado. -- Sabe que todos apreciam seu trabalho. -- Sei. -- Então compreenderá que a decisão que foi tomada não reflete nenhum descontentamento que possa existir com relação a seu desempenho. -- Não entendi. -- A empresa está passando por uma fase crítica. O mercado anda muito nervoso. Alguns sacrifícios são necessários. As frases curtas e evasivas que ele pronunciava me deram a certeza do que se passava. Sem muita conversa, estava demitido. Esta constatação me fez balançar e suspirar profundamente. Tive que me esforçar para manter minha tranqüilidade. -- Sendo assim, não restou-nos alternativa a não ser efetuarmos algumas demissões e, infelizmente, tivemos que incluí-lo no rol dos demitidos. -- Como disse? -- Lamento, rapaz, mas está demitido. Não sei se a resistência que tentava alimentar se esvaíra ou se a verbalização do incontornável foi mais forte que imaginava, o certo é que a sala rodopiou e me fez perder a noção de onde me encontrava. Sem nada dizer, levantei-me e deixei a sala.

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Cabisbaixo cheguei ao departamento onde trabalhava. Dirigime ao armário onde estavam meus pertences e esvaziando-o, coloquei um fim aquele ciclo. Um último olhar, um derradeiro suspiro e só. Apesar da vontade enorme de chorar, não verti uma única lágrima. Silenciosamente abandonei as dependências da empresa. Antenor estranhou minha volta repentina e prematura. Só não me abordou quando entrei por haver percebido meu semblante dorido. Sabia que aquela não seria uma boa hora para conversar. Imaginou o que se passara e decidiu dar um tempo. Mais tarde poderia ficar sabendo de tudo. O tumulto que me dominava era enervante. Não por achar que tivesse sofrido qualquer espécie de injustiça ou por achar-me perdido sem o emprego, mas sim por não compreender a razão de minha contrariedade. Se não me sentia injustiçado ou perdido, por que aquela sensação de inquietação? Leves batidas a porta me tiraram de meus pensamentos. Pensando se tratar de Antenor, solicitei que entrasse. Surpreso verifiquei ser Darkness quem entrava. -- Que surpresa! Exclamei. -- Um amigo não pode visitar outro? -- Oh, não! Não estou surpreso por estar aqui, mas pelo modo como entrou. -- Ah! Preciso evitar entradas repentinas. Eve não pode sofrer abalos. -- Eve está mais que acostumada com suas entradas. -- Eu sei, mas as pessoas que estão com ela não. -- O que deseja? -- Saber como está. -- Bem. -- Senti uma pequena distorção em sua vibração. -- É que acabei de ser despedido. Nada demais. -- Não se sentiu abalado por isto? -- Não. Sei que posso encontrar um outro emprego. -- Neste caso, não se furtaria em me acompanhar. -- Algum assunto sério. -- Vamos nos reunir para decidir alguns fatos de interesse do grupo. -- Deixe-me trocar a roupa e já vamos. O fato de Darkness saber que estaria em casa não era nenhuma surpresa, mas uma reunião tão fora de hora... em poucos minutos chegamos a casa de Fobos. O grupo já estava reunido. -- Viva! Exclamou Pandora ao me ver chegar com Darkness.

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-- Qual o motivo da euforia? Perguntei. -- Pensei que também fosse nos abandonar. -- Não. Diferente de Mefisto, não tenho uma família para preocupar-me. -- O que seus irmãos queriam? Quis saber Deimos. -- Assuntos jurídicos. Precisavam que estivesse presente na leitura do testamento de meu pai. -- Seu pai morreu? Pandora sempre se deixava tocar pela notícia da passagem de quem quer que fosse. -- Meus pais. Eles sofreram um acidente. -- Sinto muito. -- Mas por que esta reunião tão fora de hora? Perguntei. -- Temos que expor um assunto delicado. Anunciou Fobos. -- Do que se trata? Inquiriu Pandora. -- Sabem que em breve Lilith conceberá. -- É lógico que sabemos. Expressou Deimos com certa ansiedade. -- Estivemos pensando que esta cidade já não oferece muitas condições favoráveis para que uma criança possa desenvolver-se de modo adequado. -- Como é! Deimos parecia não acreditar no que ouvíramos. -- Estamos pensando em nos mudar. Informou Lilith. -- Essa não! Daqui a pouco não seremos mais nada! Lamentou Deimos. -- É uma idéia ainda sem data definida, mas não gostaríamos que fossem pegos de surpresa. Falou Fobos. -- O que nosso guru pensa a respeito? Indagou Pandora. -- Sei o quanto estão unidos e justamente por esta ligação ser tão forte, viva e espontânea, sei que a distância nunca se colocará como empecilho para que possam estar juntos. -- Mas eles vão nos deixar. Choramingou Pandora. -- Apenas fisicamente. Ainda não sentiram a energia de Mefisto presente nesta reunião? E Set. mesmo estando em um plano negativo, podemos sentir como se ele estivesse nos desejando serenidade. -- O que faremos sem nosso líder? Perguntou Deimos. -- Já não precisam mais de um líder. As potencialidades inerentes a seus íntimos os capacitam a tornarem-se líderes de outros. Proclamou Darkness. -- Nós, líderes! Pandora duvidava da afirmação feita por Darkness.

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-- Sim! Todo processo de maturidade que necessitavam lhes foi apresentado. O desempenho de todos foi louvável. As arestas que ainda faltam serem aparadas, irão se tornando cada vez mais raras à medida que começarem a instruir aqueles que ainda tateiam feitos cegos. -- Está dizendo que devemos nos separar? Questionou Deimos. -- Não! Apenas quero que fiquem cientes que podem muito bem caminhar com as próprias pernas. Não dependem de mais ninguém. -- Procurem entender. Interveio Eve. Não se trata da dissolução do grupo, mas sim de nosso progresso. -- Considerem o fato de que mesmo que houvessem crescido em uma família estável, chegaria o dia em que abandonariam a posição de conduzidos para passarem a conduzir. A etapa que está começando é justamente esta. -- O que isto tem a ver com a ida de Lilith e Fobos para outra cidade? Questionou Pandora. -- Nada. É uma decisão pessoal. Depois de conversarmos muito e amadurecermos a idéia, decidimos que seria melhor poder criar nosso filho em um ambiente mais adequado. Falou Lilith. -- Não os censuro por tomarem esta decisão. Também não me agrada a realidade que vivemos nesta cidade. Expressei minha concordância com a atitude de meus amigos. -- Mas em todo lugar a situação é a mesma! Comentou Pandora. -- Nem todos. Darkness nos apontou a solução. Informou Lilith. -- Que solução? Perguntou Deimos. -- Vamos para a colônia onde Mefisto se refugiou com a mãe. -- Não! Se continuar assim, logo todos estaremos morando lá! Deimos tentou fazer graça, mas não foi feliz em sua observação. -- Se dependesse apenas de meu desejo... Comentei. -- Você também deseja ir para lá? Deimos mostrou-se contrariado. -- Desejo, mas não irei. -- Por que? -- Meu lugar é aqui. -- Eve? -- Não pretendemos nos mudar. Dark e eu ficaremos por aqui. -- Bem, neste caso, espero que sejam felizes nesta colônia. Deimos mostrou-se mais conformado. -- Seremos. Afirmou Lilith.

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-- Quando pretendem partir? Perguntou Pandora. -- Se tudo estiver acertado, creio que dentro de um mês. Informou Fobos. -- Podemos, pelo menos, realizar um último encontro antes de partirem? Sondou Deimos. -- Não vejo porque não realizarmos. Será muito bom poder nos despedirmos com gala. Falou Fobos. -- O que pensa a respeito, Guru? -- Se acha tão engraçadinho quanto Set, não é? Darkness abriu um sorriso que muito raramente se permitia. Sei que só estão interessados em que ofereça a mansão para que possam se divertir, mas tudo bem, ela está a disposição. -- Eu sabia! Exultou Deimos. Vamos botar para quebrar! Uma sensação de vazio brotou em meu íntimo. Darkness tinha razão ao afirmar que precisávamos progredir, mas a decisão de Lilith e Fobos em mudarem-se havia sido uma notícia muito séria. Dificilmente o grupo se manteria sem a presença de nosso líder. Aquele decididamente estava sendo um dia nada auspicioso. Como que para comprovar meu ponto de vista, a garoa transformou-se me velada chuva. O tempo arrefeceu ainda mais. As nuvens se tornaram mais densas e o parco brilho dourado se perdeu por trás do manto negro dos nimbos. Sem ânimo para mais nada, fui para o club. Lá pelo menos poderia recostar a cabeça em meu travesseiro e aliviar um pouco minhas apreensões. Devido aos últimos acontecimentos, havia me esquecido de que ainda não era a hora usual de estar no club. Antenor desta vez não me poupou. Mal me viu, veio me interpelar. -- O que houve, rapaz? -- Nada! -- Como nada? Isto lá é hora para estar por aqui? -- Ah, isto? Fui despedido. -- Despedido! -- Hei, isto não é o fim do mundo. -- Por que? -- Como por que? -- Oras, despediram assim sem mais nem menos? -- Segundo meu chefe a empresa está passando por dificuldades financeiras. -- E agora, o que pretende fazer? -- Arranjar outro emprego. -- Já tem algo em vista?

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-- Não. -- Neste caso, por que não trabalha comigo? -- O que? -- É claro que não quero que fique atendendo os fregueses. Pensei que talvez pudesse cuidar da administração do club. -- Está falando sério? -- É claro que estou! -- Administrar o club! -- Então? -- Tem certeza de que não se arrependerá? Sei o quanto o club significa para você. -- Vai aceitar ou não? -- Está bem. Aceito. -- Só tem uma condição. -- E, lá vem bomba! -- Tem que voltar a estudar. Precisa completar seus estudos. -- Mas como? Além dos cursos serem caros, o club tem seu maior movimento na parte da noite. -- Pode muito bem estudar na parte da manhã e quanto aos custos, posso dar uma força. -- Sério! Vai pagar minha faculdade? -- Nem pensar! Vou lhe adiantar uns meses. À medida que for recebendo, vou descontando um pouco por mês. -- Legal! Quem diria, poder continuar meus estudos... Afinal o dia que começara encoberto parecia que acabaria ensolarado. Sempre acreditei que Antenor fosse um desses espíritos benfazejos que perambulam pelo plano físico sempre disposto a auxiliar os necessitados, mas aquela altura e depois de já haver me ajudado tanto, ele simplesmente se mostrava muito mais que um auxiliador. Os sinais de que uma nova etapa estava começando eram evidentes. Mesmo não querendo admitir, o grupo estava se esfacelando. Primeiro Mefisto, depois Set e ainda vivíamos a iminência da partida de Lilith e Fobos. Quem seria o próximo a deixar o convívio do grupo? Mentalmente sentíamos que nossa união havia se condensando muito além das conveniências mundanas, mas se assim era, por que a ruptura? Por que não podíamos continuar unidos como sempre fôramos? Eve tinha a resposta, mas nem mesmo ela conseguia amenizar as angústias que me fustigavam. Assistir a separação do grupo era como sentir minha própria alma se dividindo em várias partes. A dor lacerante que me consumia abria

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um imenso abismo entre minha compreensão das lições recebidas e as sensações que me dominavam. Num segundo parecia que todos esforços empregados por Darkness em nos elucidar esvaíssem como areia por entre as conjeturas ilusórias que tanto nos atormentavam. Talvez nossa natureza plangente, afinal, fosse a veste mais apropriada para nossos espíritos. A reunião seguinte foi acompanhada por uma atmosfera de intranqüilidade. Mesmo a natureza mostrou-se coberta por um ar sombrio. Começou pela ausência de Darkness e Eve. Prosseguiu pelo alienamento de nossos pensamentos. E passeou por um ar melancólico que dominava a todos. -- O que esta havendo com nós? Perguntei. -- Nada. Respondeu Fobos de modo evasivo. -- Como nada? A frieza de todos está latente em nosso comportamento! -- Bobagem, só estamos curtindo a ressaca depois de tudo que aconteceu. Comentou Deimos. -- Não sei, não. Acho que precisamos colocar nossas dúvidas na mesa. -- Onde está querendo chegar? Inquiriu-me Lilith. -- Desde que Mefisto nos deixou, sinto um clima de cisão entre nós. Não sei explicar bem o que se passa, mas é como se estivéssemos prestes a nos separar. -- Faz parte do amadurecimento, não se lembra do que Darkness nos disse? Observou Pandora. -- Mas por que não podemos permanecer juntos? Que mal há em preservarmos a continuidade do grupo? O que nosso amadurecimento tem a ver com o fim do grupo? -- O grupo não vai acabar! Proclamou Fobos. -- Como não? -- Não importa onde estejamos, sempre estaremos próximos. Não existe separação para aqueles que viveram a experiência do uno. -- Fobos tem razão. Anuiu Lilith. Nosso contato com o uno nos tornou mais que amigos ou irmãos. Somos uma unidade. Não será a distância ou o tempo que irá nos separar. -- Devemos nos contentar com as lembranças daquilo tudo que vivemos? Não poderemos mais partilhar nossos instantes? -- É claro que poderemos. Embora possamos estar vivendo longe, nada nos impede de nos encontrarmos, de vez em quando.

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-- Você está muito sensível, amigo. Fobos aproximou-se me abraçando. Não será o fato de irmos viver em outro local que diminuirá o sentimento que nos une. Precisamos espalhar aquilo que recebemos. -- Não sei se sou capaz de assimilar tudo isto. Penso que ainda preciso de um tempo para poder entender a necessidade de nos separarmos. -- Não existe necessidade. Apenas o concretizar de nossos desejos. É claro que não queremos deixar o grupo, mas agora temos algo mais urgente que nos toma a preocupação. Não podemos, ou não queremos, expor nosso filho a esta vida tão próxima desta violência que nos cerca. Agora era Lilith a me abraçar juntamente com Fobos. -- Não saberei viver sem vocês. -- Saberá sim. Você é um dos mais preparados para isto. Darkness sabe que seu potencial é muito mais sólido que o nosso. Afirmou Fobos. -- Como sabem? Ele nem mesmo me contatou como fez com vocês. -- Isto porque não era necessário. Seu espírito já estava pronto para experimentar tudo que ele tinha para nos trazer. Enquanto os nossos ainda precisavam de um empurrão. Fobos estava tão sereno como se não fosse sua a voz que ouvia. -- Hei, Hades, antes de se deixar entristecer, não se esqueça que minha irritante companhia será seu castigo. Deimos interveio de modo zombeteiro na tentativa de atenuar a agonia que me consumia. -- Hei, melhor seria viver na solidão. Pandora acompanhou Deimos em sua zombaria. Por instantes, consegui que um tímido sorriso aflorasse em meus lábios. Não desejava sobrecarregar meus amigos com minhas angústias. Não desejando ser a origem de preocupações, entrei no clima e sufocando minha tristeza, passei a zombar das pilherias que Pandora e Deimos faziam. Somente quando me vi a sós, em meu quarto, foi que a melancolia voltou a dominar meu espírito. Sabia que tudo que ouvira era verdade, mas não me sentia capaz de aceitar a iminente desagregação do grupo. Um vazio sufocante crescia dentro de mim parecendo fender minha alma provocando um sofrimento insuportável. Nesta aflição desesperadora acabei caindo no sono. Talvez pela exaustão mental e emotiva, talvez pela depressão que me dominava, o certo é que meu repouso não foi tranqüilo. Meu ser peregrinou por paragens sombrias. Sons apavorantes preenchiam o espaço onde me encontrava. Silhuetas fantasmagóricas surgiam de todos os lados. A escuridão que se

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impunha, em determinados instantes, era tamanha que apenas seus olhos vermelhos eram visíveis. Em meio ao caos uma brisa suave principiou a soprar. Um turbilhão ígneo se formou consumindo tudo que se colocasse em seu caminho. Tentei fugir, mas foi inútil. Sem ter como evitar, fui engolido pela bocarra na qual havia se transformado o centro do redemoinho. Após a turbulência a calmaria. Nada mais se manifestava a meu redor. Nem mesmo a brisa que havia soprado era sentida. Tudo estava imóvel, silencioso, vazio, sem vida. Não entendi nada até que uma voz potente bradou como se estivesse ressoando dentro de meu cérebro: -- Onde está a fonte que alimenta a criação? Onde o olho que se abre ante o brilho da vida? Onde a mente que se manifesta no germinar do fruto? Onde o eu? O tu? O nós? Onde? A intensidade da voz era tão forte que minha cabeça pareceu rachar devido ao timbre altissonante. Perguntas! Eu que tanto ansiava por respostas era crivado por perguntas tão, ou mais, difíceis que aquelas que me atormentavam. Se estava vivendo um pesadelo, desejei despertar o mais antes possível. -- Você faz de sua vida um pesadelo! Soou a mesma voz com autoridade inquestionável. Você transforma as bênçãos em peso! Você colabora para que seu caminho se torne árduo! Você cobre os olhos impedindo que a luz penetre em seu âmago! Só você concorre para sua perdição! Silêncio! Por um intervalo de tempo que me pareceu durar uma eternidade, o silêncio se fez senhor absoluto da realidade que me prendia aquela vivência impar. Roguei pela presença de Darkness. Mal havia alimentado este ensejo e a voz tornou a soar: -- Por que aniquila seu eu alijando a responsabilidade que lhe cabe? Por que invalida seu livre arbítrio defenestrando sua vontade? Por que recusa a liberdade exaltando a escravidão? Por que se mantém servo quando podia ser senhor? Por que o apego à morte quando pode ter a vida? Como deveria entender aquelas perguntas? Exortações ou acusações? Estaria sendo julgado por minha incapacidade de vencer minha indecisão? Seria minha última oportunidade para mostrar meu valor? Onde está minha certeza? Lágrimas começaram a banhar minhas faces. Sentia que muitos sentimentos volitavam em meu íntimo, mas em momento algum identifiquei quaisquer nuances de medo. Apesar de tudo, minha confiança se mostrava sólida. Sentia-me como o rochedo que é constantemente solapado pelas águas furiosas e ainda assim resiste e permanece firme.

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viva?

-- Se pode compreender sua condição, por que não a torna

-- Como? Pela primeira vez deixei minha tímida voz escapar de minhas entranhas. Não sabia se agia certo ou não ao inquirir a voz que me falava, mas já não agüentava mais a pressão que premia meu peito. -- Liberte-se! Nada mais pude observar ou ouvir. Minha mente desfez-se num manto tênue de névoa. Outra vez era concedida a benção de poder tornar-me parte do uno. Naquela esfera sublime meu espírito congraçou com anseios semelhantes aqueles que tanto me incomodavam. Senti vibrações similares e compreendi suas emanações. Mesmo não raciocinando qualquer teoria, sabia a fonte das angústias que tanto atormentavam aqueles seres. -- Esta é sua missão! Deve levar consolo e esperança aqueles que se encontram perdidos entre as trevas do medo. Descortine o lábaro da lucidez para que eles possam encontrar-se. Incite-os a agir. -- Sim! -- Seja a luz que aqueles que tateiam na indecisão tanto almejam! -- Serei! -- Vá! Pela primeira vez, desde que pude vivenciar os fatos que se passam no plano extramaterial, as vozes me acompanharam por um longo tempo. Não desapareceram quando despertei, ao contrário, pareciam ecoar cada vez mais forte em minha mente. Estavam vivas em mim. Radiante, fui para a casa de Fobos. Queria dividir meu êxtase com todos. Como sempre, cheguei e fui entrando sem me fazer avisar. A casa estava deserta. Não havia ninguém por alí. Alarmado, corri para a parte dos fundos e nada. Onde estariam? Peguei o aparelho telefônico e disquei o número da casa de Deimos. Depois de alguns minutos uma voz me atendeu: -- Alô! -- Por favor gostaria de falar com o Deimos. -- Ele não está. Saiu para encontrar-se com os amigos. -- Sabe onde se encontrariam? -- Não. Mas acredito que seja no local de sempre. -- Obrigado. Sem esperar mais, sai em disparada para o cemitério. Nem atentei para o fato da hora ser imprópria para um encontro naquele lugar. A

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luz solar ainda se manifestava com toda sua intensidade. O que estariam fazendo por lá? Após uma breve corrida cheguei ao meu destino. Como ainda era dia, não precisei usar do artifício de ter que pular o muro. Entrei pelo portão e segui até o túmulo que estávamos acostumados a usar como ponto de encontro. Nada. Começava a desesperar-me quando lembrei-me de telefonar para Eve. Deixei o cemitério e procurei por um orelhão. Os primeiros estavam ocupados e assim tive que caminhar mais que minha ansiedade gostaria que fosse necessário. Quando consegui um aparelho desocupado e funcionando, coloquei o cartão e disquei. A espera, quando ansiosos, nos parece um tempo longo demais. -- Alô! -- Por favor a Eve. -- Sinto muito mas ela não está. Saiu com o namorado. -- Sabe para onde foram? -- Foram ao consultório do doutor Faruck. -- Irão demorar? -- Não sei dizer. -- Obrigado. Tudo parecia estar conspirando contra mim. Quando pensava estar totalmente transbordando de contentamento, me via privado da companhia de meus amigos. Onde eles poderiam estar? Cansado de perambular a esmo, decidi voltar para o club. Estava tão transtornado que nem mesmo fui para o bar. Subi direto para meu quarto. Caso houvesse dominado minha ansiedade, poderia ter notado que meus amigos encontravam-se no bar do club. Com minha euforia havia eliminado as referencias ao compromisso que fora marcado. -- Hei Antenor, seu protegido não vai chegar? Deimos era o mais impaciente do grupo. -- Para ser sincero, já deveria ter chegado. -- Onde será que ele se enfiou? Deimos perguntou mais para si mesmo que para os outros. -- Talvez tenha subido sem que percebêssemos. Observou Pandora. -- Pode ser. Concordou Antenor. Se entrou pelos fundos, não teríamos como notar. -- Vou até o quarto para verificar. Anunciou Deimos. -- Espere! Vamos todos. Adiantou-se Fobos já seguindo para a parte de cima do club.

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Meu desanimo era tanto que impediu-me de pressentir a aproximação do grupo. Quando percebi a porta sendo aberta, fui tomado por ondas de surpresa. -- Hei seu furão, esqueceu-se de nosso encontro? Inquiriu-me Deimos. -- Heim? -- Tínhamos combinado nos encontrar para irmos até o shopping, esqueceu-se? Manifestou-se Pandora. -- É hoje que Eve e Darkness marcaram para ir ao médico. Combinamos de nos encontrar depois para sabermos as novidades. Lembrou-me Lilith. -- Droga! Estava tão cheio de mim que acabei esquecendo. -- Pois vai tratando de se preparar que já estamos atrasados. Advertiu Deimos. Depois de meia hora deixávamos o club. Outra vez era surpreendido pela armadilha que minha ansiedade me pregava. Caso não tivesse deixado que ela me dominasse, teria me lembrado do encontro. Enquanto nos víamos envolvidos com minha falta de controle, Eve e Darkness dirigiam-se para o local combinado. Seus semblantes deixavam transparecer toda felicidade que os dominava. Os exames haviam confirmado o bom andamento da gravidez. Lorena e Fred já aguardavam nossa chegada. Como mãe, Lorena estava mais ansiosa que qualquer um de nós. Fred também demonstrava um certo nervosismo, mas seu motivo era outro. A doença da filha o deixava angustiado. Temia que o bebe também fosse atingido pela mesma anomalia genética. -- Será que ainda vão demorar muito para chegarem? -- Acalme-se, querida. Marcamos para as seis e ainda são cinco e meia. -- Esta ansiedade está me deixando louca. -- Hei, está tudo bem como nossa garotinha! Não tem por que se preocupar. -- Gostaria de ter esta sua certeza. Fred estava longe de se sentir seguro ou calmo, mas não podia deixar que sua esposa percebesse o quanto estava temeroso. Precisava manter-se calmo para que ela não sucumbisse a ansiedade. -- Veja, estão chegando. Anunciou ao ver Eve e Darkness surgindo entre as pessoas que transitavam pelo corredor. -- Já não era sem tempo. Mal haviam se aproximado e Lorena abraçava a filha com impetuosidade.

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-- Filha! Ainda bem que chegou. -- O que é isto mamãe? Só fui ao obstetra. -- Eu sei, mas sou sua mãe. Ainda vai compreender o que estou sentindo. -- Posso compreender, mas tem que se acalmar. -- Estou tentando isto há horas, mas sua mãe parece que foi tomada por uma avalanche de ansiedade. -- Os outros ainda não chegaram? Perguntou Darkness interrompendo a conversa. -- Ainda não. Ao menos não vieram até aqui. Informou Fred. -- Sendo assim, o que acha melhor? Contamos para seus pais ou esperamos que todos estejam presentes? -- Ah, não! Não farão isto comigo! -- Está bem, mamãe. Podemos contar como foi. -- Antes, vamos procurar uma mesa para nos acomodar. Falou Fred. -- É claro. Já reservei nossos lugares com o gerente. Darkness os fez acompanharem-no até um dos estabelecimentos da praça de alimentação do shopping. -- Não sabia que tinha reservado nossos lugares. -- Pensei que seria difícil encontrar lugar para todos. -- Sempre pensando em tudo. -- Faz parte de minha natureza. Totalmente tomados por uma alegria incontida, seguíamos despreocupadamente para o shopping. No estacionamento a demora foi prolongada devido a falta de vagas. Mas nada nos tiraria do estado de contentamento que nos encontrávamos. -- Hei, Hades, vamos deixá-lo por aqui até que encontre uma vaga. Enquanto isto vamos nos divertindo. Brincou Deimos. -- Nem pensar. Além de que, sou de menor e por isto não tenho habilitação. -- Taí, gostei da saída. Pandora apoiou-me deixando Deimos numa sinuca. -- Por que não deixamos os manobristas estacionarem? Sugeriu Lilith. -- E quem disse que aqui tem manobrista? Fobos era o único que se mostrava sério. -- Não tem? Deimos ria tanto que era difícil entender o porque de tanta euforia. -- Agora tem! Afirmou Fobos parando o carro. Desçam! Ordenou.

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Sem discutir fomos descendo. Depois que todos saímos, Fobos desceu e virando-se para Deimos disse: -- Entre! -- O que? -- Entre! Sem compreender bem o que se passava, Deimos obedeceu. -- O que está pretendendo? -- Está bem instalado? -- Estou. -- Ótimo! Pode estacionar, manobrista! -- O que? A expressão que se desenhou no semblante de Deimos nos fez gargalhar sem controle. Quem passasse por perto não seria capaz de fazer a menor idéia do que ocorria, mas com certeza se deixaria contagiar por nossa descontração. -- Desça. -- Cara, pensei que estivesse falando sério. -- Deveria ter visto sua cara... Comentou Pandora. -- Não vi graça alguma. -- Não mesmo! Retrucamos. Passada a brincadeira, a dificuldade em conseguir uma vaga arrastou-se por longos minutos. Quando, finalmente, Fobos conseguiu estacionar nosso atraso já havia extrapolado qualquer medida de consideração. Eve, Darkness e os pais de Eve deveriam estar contrariados por terem que nos esperar por tanto tempo. -- Vamos logo pessoal. Já estamos mais que atrasados. Advertiu Lilith. Não querendo passar por mal educados, apressamos os passos, mas não em demasia. Os corredores estavam cheios e qualquer correria provocaria inevitáveis choques. À medida que avançávamos, íamos chamando a atenção. Quer fosse pela descontração que nos dominava, quer fosse por nosso visual, o certo era que nosso avanço ia sendo facilitado uma vez que clarões se abriam quando de nossa aproximação. -- Devemos estar parecendo um bando de ensandecidos. Observou Pandora. -- Não mais que muitos daqueles que nos olham. Frisou Lilith. -- Também, o que esperavam? Cinco urubus caminhando lado a lado. Zombou Deimos.

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Outra vez deixamos nos contagiar pela alegria. Minha ansiedade evaporara-se e agora me sentia tomado pela mesma euforia que minha experiência astral havia despertado. Na praça de alimentação, o clima era de tranqüilidade. Eve havia colocado seus pais a par das notícias dadas pelo médico e ambos sentiram-se aliviados por saberem que o neto não corria o risco de nascer portando a mesma deficiência da filha. -- Então em breve teremos um capetinha nos atormentando. -- Fred! -- Tudo bem, mamãe. Se depender de nós pode deixar que vamos incentivá-lo a não dar sossego ao avô. -- Hei, não tenho mais idade para aventuras perigosas! Ali também imperava o riso. Não me lembro de sentir o grupo tão efusivo antes daquela data. Apesar de toda contrariedade que havíamos enfrentado, ou talvez justamente devido a elas, o fato era que estávamos felizes. Já estávamos próximos da praça de alimentação quando o pesadelo tomou conta da realidade. Sentados onde estavam, os quatro podiam observar o corredor por onde chegaríamos. Começamos a acenar na direção deles quando vimos Darkness levantar-se seguido por Eve. Pensando que eles haviam nos visto, aumentamos nossos movimentos. Deimos chegou a pular como se quisesse sair voando em direção a mesa. As pessoas ao nosso redor franziam o cenho, talvez nos julgando um bando de desajustados. Pouco antes de nossa entrada no corredor que levava a praça de alimentação, Darkness havia interrompido a descontraída conversa para, de semblante sério, chamar a atenção de seus acompanhantes. -- O que foi, Dark? -- Não estou certo, mas algo não está direito. Sinto uma vibração ruim no ar. -- Credo! Exclamou Lorena. De onde tirou tal idéia? Falou ao mesmo tempo em que dava suaves pancadas sobre o tampo da mesa. -- Fiquem sentados. Darkness pediu ao mesmo tempo em que se levantava. Eve acompanhou Darkness em seu movimento. Neste exato momento a tragédia se consumou. O inconfundível som de disparos encheu o ar. De onde estávamos vimos quando Darkness recuou como se tivesse sido atingido por violento soco ao mesmo tempo em que Eve deixava profundo grito escapar por sua boca. -- Dark!

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Darkness voltou-se no exato momento em que Eve começava a desabar. Empregando toda sua habilidade, ele amparou-a evitando a queda. Ao primeiro contato de suas mãos com o corpo de Eve, sentiu o contato tépido de algo viscoso a escorre pelas costas dela. -- Eve! Não houve tempo para mais nada. Apenas um último olhar é o fim. Sem pronunciar mais nenhuma palavra, Eve cerrou os olhos como se estivesse se entregando a um profundo sono. A reluzente veste negra impediu que se vislumbrasse o líquido rubro a verter do orifício aberto na parte superior do corpo de Eve, mas Darkness pode sentir a umidade tomar conta do tecido. -- Não! Bradou com tanta intensidade que as taças mais delicadas trincaram. O que se viu depois do grito lancinante foi algo que nenhuma das testemunhas jamais esquecerá. Ainda abraçado ao corpo de Eve, Darkness vibrou em uma freqüência tão elevada que seu corpo transmutouse revelando a todos sua verdadeira conformação. Atônitos, detivemos nossos passos e ficamos contemplando o desenrolar do drama. Darkness elevou-se e, com a energia que emanava de seu ser, paralisou os responsáveis pelos disparos. Sua mente estava tão intricada ao processo que sentiu a onda que fluía dos bandidos. Por momentos chegamos a pensar que ele os mataria com sua ira. Mas para nosso assombro, ele desabou sobre os joelhos e sucumbiu a dor que o dominava. Prostrado como estava, verteu toda agonia que consumia sua alma em um pranto tão abundante quanto rubro. O sangue descia por seus olhos ensopando sua pele, ou seja lá o que fosse o elemento que lhe cobria o corpo. Os seguranças do shopping surgiram e, sem entender o que se passava, esperaram que alguém informasse sobre o acontecido. Um dos presentes indicou-lhes os bandidos e informou sobre a existência de feridos. Neste ponto o tempo pareceu sofrer um colapso total. Os movimentos cessaram, as vozes se calaram, as razões foram suplantas e conflitadas com uma realidade nunca testemunhada. Darkness acomodou Eve em seus braços e a conduziu para além da dimensão que ocupávamos. Somente quando o relógio voltou a seguir seu curso natural foi que as reações foram sendo expressas. Fred tentava reanimar Lorena que desmaiara. Os seguranças acercavam-se dos bandidos no intuito de detê-los até que a policia chegasse. As pessoas que haviam testemunhado as cenas demonstravam um assombro tão grande que lhes custava expressar qualquer reação.

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Até nós, tão habituados às manifestações da sobrenaturalidade de Darkness, não conseguíamos reagir ao choque que nos dominou. Ainda incrédulos nos aproximamos do local onde Lorena e Fred se encontravam. -- Querida! Querida! Fred chorava enquanto tentava reanimar a esposa. -- Vamos. Comandou-nos Fobos. Novo choque temporal abateu-se sobre nós. Um vento cortante soprou sobre a praça e assim que ele se dissipou, o corpo desfalecido de Eve ocupava o local onde deveria estar. Quanto a Darkness, nem sinal. -- Eve! Gritou Pandora. Deixando Lorena aos cuidados de Fred, fomos todos para onde o corpo de Eve estava. A visão que colhemos nos deixou petrificados. O pequeno furo em sua veste por onde ainda corria um pequeno filete avermelhado, era a única marca a evidenciar a ausência de vida no corpo de nossa amiga. -- Saiam! Bradou um dos seguranças. -- Não! Gritou Fobos mais alto. Ela é nossa amiga. -- Não podem tocá-la. A polícia tem que fazer a perícia. -- Deixem-nos em paz! Exaltei-me. Em minha exaltação havia feito uso da mesma entonação tão usual a Darkness. O segurança titubeou por um segundo e, como se estivesse amedrontado, ocupou-se com os bandidos. -- Isto não pode estar acontecendo! Falou Pandora. -- Como? Por que? Indagou Deimos em pranto. -- Filha! Lorena havia recobrado a consciência e se aproximava do local. -- Senhora Lorena... Fobos não conseguiu concluir seu pensamento. Lorena mal havia chegado e se jogou sobre o corpo da filha. Seu pranto superava qualquer outra manifestação de dor externada por nós. Fred, sem saber como agir, abraçou-a e a seguiu no choro dorido que embalava seus sentimentos. Em pouco tempo o local era tomado por policiais e paramédicos que haviam atendido a solicitação dos seguranças. Infelizmente, para Eve, nenhum esforço poderia reverter seu estado. O tiro certeiro havia traspassado seu coração e sua morte havia sido instantânea. -- Afastem-se! Deixem-nos trabalhar! Ordenava o chefe da equipe médica. -- Minha filha! Gritava Lorena aos prantos. -- Senhor! Chamou o paramédico que auscultava Eve. -- Sim!

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-- A vítima está grávida! -- O que? Ouvir nossa amiga ser denominada vítima nos deixou indignados, mas não reagimos. Que outra designação aquele rapaz poderia usar? A atenção do médico foi focada no aviso dado pelo enfermeiro. Na tentativa de salvar a vida do feto, eles urgenciaram o atendimento e acomodaram o corpo inanimado de Eve em uma maca removendo-o a seguir. -- Para onde estão levando minha filha! Gritou Lorena. -- Cuide de sua esposa. Adiantou Fobos. Nós vamos com os médicos. -- Mas ela não vai querer ficar aqui. -- Será só até sabermos para onde a levarão. -- Está bem. Não demorem a nos dar notícias. Enquanto todos se ocupavam em atender as necessidades decorrentes do fato, eu me ocupava em questionar a respeito do paradeiro de Darkness. Para onde ele teria ido? Por que não permanecera junto a Eve? Aproveitei a confusão estabelecida e deixei o shopping. Não sabia como encontrar nosso amigo, mas me coloquei a vagar pelas cercanias. Andei durante muito tempo. A noite já avançara pela quinta hora quando desisti e voltei para o club. Antenor estava ocupado atendendo um cliente, mas percebeu meu estado alterado. Assim que se viu desimpedido, subiu para inteirar-se sobre o motivo de minha tresloucada chegada. Ao entrar, encontrou-me chorando. -- O que houve, rapaz? -- uma desgraça. -- Acalme-se e me conte tudo. -- Não sei se vou conseguir. -- Procure se acalmar. Por mais que tentasse, acalmar-me era algo que parecia estar muito além de minha capacidade. Com os olhos cerrados ou abertos, não conseguia afastar a visão das cenas que testemunhara. Ainda era capaz de ver a trajetória da bala atingindo os corpos de Eve e Darkness. Darkness! Sim, ele também havia sido atingido. Ainda em estado de choque, notei que Antenor deixava o quarto. Não demorou muito e ele retornou. Seu semblante evidenciava que havia tomado conhecimento do que se passara. Tentando controlar suas emoções, ele sentou-se ao meu lado e entrecortando palavras a soluços, tentou relatar as notícias.

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a...

-- Seus amigos ligaram. Queriam saber como estava. Meu silêncio foi a única resposta que obteve. -- Pediram para informar que já está tudo acertado e que a...

Neste ponto nem mesmo ele suportou o impacto da notícia. Abraçando-me com firmeza, entregou-se ao choro que tanto se esforçava por reter. Foi somente quando o senti estreitando-me num fraternal abraço que tive a certeza de que tudo fora real. Devido ao impacto causado a minha alma, não fui capaz de registrar mais nada. Simplesmente apaguei. Diferentemente do que era habitual, meu desfalecer não encerou minhas agruras. Mal havia perdido contato com o físico, me vi levado a um lugar lúgubre dominado por uma atmosfera tão opressora que me custava até mesmo sorver o ar. Perambulei feito cego sem saber para onde caminhava. As sombras dominavam tiranicamente o ambiente. Não conseguia divisar a menor réstia de luz. Apenas trevas. Naquela imensidão vazia percebi o débil manifestar de uma quase imperceptível respiração. Aproximei-me do local que julgava ser a fonte do abafado suspiro. Sem ter como enxergar com clareza, tateava em busca da origem do chiado. Ao sentir o contato de algo sólido com meu pé, detive-me. Lancei meus braços a frente e não esbarrei em nada. Fui abaixando lentamente até sentir a existência de um corpo prostrado a minha frente. -- Quem é? Um abafado gemido chegou a meus ouvidos. Quem quer que fosse, parecia estar muito debilitado. Apalpei toda extensão do corpo e senti que minhas mãos se umedeciam. O moribundo sangrava. -- Quem é? Tornei a perguntar. -- Hector! Embora sua voz soasse muito fraca, tive certeza de se tratar de Darkness. -- Darkness! A constatação de tratar-se de nosso amigo encheu-me de temor. O que poderia fazer naquelas circunstâncias? Lembrei-me de que a mansão localizava-se em dimensão diversa daquela que continha nosso planeta, mas como chegar até lá? Coloquei-me em posição genuflexa e sussurrei para Darkness: -- Como posso levá-lo até a mansão? -- A mente! Lembre-se da mente. Balbuciou-me. A mente! Como usá-la para chegar até a mansão? Em vão tentei nos transportar até lá. Por mais que me esforçasse, não conseguia mentalizar com exatidão o plano onde ela se localizava.

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Extenuado devido ao esforço e as fortes emoções experimentadas, apoiei meus joelhos sobre o solo e reclinei meu corpo tomado por completo desalento. Outra vez a verve da derrota consumia-me. Pranteei minha limitação e o sofrimento que afligia meu amigo. Em meu desespero supliquei para que forças etéreas nos conduzissem até o recanto acolhedor da mansão. Num misto de angústia e esperança, senti que uma energia sobrenatural sobrepujou tudo o mais. Transmutado de modo alheio a minha razão, senti que o chão havia se modificado. Abrindo meus olhos, espantei-me ao verificar estar postado no imenso salão da mansão. Sob o manifestar da claridade, constatei a precária condição de Darkness. Seu corpo estava coberto por uma compacta manta viscosa de tom escarlate. As asas alquebradas dando a impressão de haverem sido quebradas, os olhos nevoados como se cobertos por uma cortina de morte, a cor áurea superada pela rubra matiz do sangue. Apressadamente procurei por algo que pudesse utilizar na limpeza de seu corpo. Depois de algum esforço, consegui deixá-lo com uma aparência menos moribunda. Seu semblante denotava a intensidade da dor que, voraz, ia ascendendo em seu âmago. Neste mesmo espaço de tempo, em nosso plano material os médicos travavam uma árdua batalha pela vida. Eve havia sido levada para o hospital na tentativa de salvar o filho que esperava. O grupo e os pais de Eve aguardavam por notícias. A sala de espera estava quase deserta. Espalhados por ela, ninguém se atrevia a pronunciar qualquer comentário. Envolvidos pela emotividade, procuravam mentalizar energias que propiciassem sucesso no esforço dos médicos. Estavam cabisbaixos, cada qual procurando utilizar suas potencialidades quando sentiram o inconfundível odor da fragrância tão apreciada por Eve. Lilith foi a única que abandonou sua postura reflexiva e ergueu a cabeça para verificar de onde vinha aquele aroma. Mesmo estando acostumada com as manifestações astrais, acusou choque violento ao constatar a presença de um diáfano ser que a olhava com doçura. -- Eve! Sua voz era apenas um fio débil a cortar o silêncio. -- Ola amiga. -- Eve! Desta vez sua voz soou potente despertando todos da letargia que os dominava. -- Não se deixem abater pela dor. A morte não é o fim apenas uma passagem para outro plano. Deviam estar prontos para isto. -- Filha! Lorena não acreditava no que seus olhos viam.

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viva.

-- Sim, mamãe. Embora meu corpo esteja morto, continuo

-- Mas... mas... Lorena se mostrava tão incrédula quanto Fred. -- Não posso me demorar. Ainda preciso adaptar-me ao novo ambiente e a nova conformação do corpo que me serve. -- Por que isto teve que acontecer? Lorena perguntou aos prantos. -- Mamãe! Quando estiver mais calma, verá que não tem do que reclamar. Lembre-se que de acordo com o prognostico dos médicos, vivi muito mais do que deveria. -- Nenhum filho vive tanto assim. Fred se mostrava mais controlado embora também sentisse a dor sufocá-lo. -- Bem, espero que esta minha visita possa confortá-los até que possamos nos encontrar uma outra vez. -- Confortar-nos? Como podemos nos sentir confortados? Exasperou-se Lorena. -- Mãe! Não basta minha aparição para lhe certificar que nada acaba com a morte? Para onde vou vocês também poderão ir, para tanto não cerrem as portas que conduzem até lá. -- Darkness está com você? Perguntou Lilith. -- Não! Dark ainda vive. Muito frágil, mas ainda vive. -- Mas ele também foi atingido. Afirmou Deimos. -- No entanto, sua conformação diversa da nossa impediu que o projétil causasse maior estrago a seu corpo. -- Mas acabou de dizer que ele está fragilizado. Lembrou Pandora. -- Não devido ao ferimento, mas porque compartilha a dor de todos nós. Imagine uma pessoa sentindo, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, todas nossas dores. -- Onde ele está? Quis saber Fobos. -- Em casa. -- Podemos ajudá-lo? Deimos demonstrou prontidão em auxiliar. -- Hades está com ele. -- Por isto ele sumiu? -- Sim. Além de todas as nossas dores reunidas, Darkness ainda sente a sua própria agrura. Não se esqueçam que estávamos prestes a nos casar e mais, iríamos ter um filho. -- Iriam? Lilith demonstrou o impacto que aquela revelação lhe causou.

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-- Sim. Infelizmente, para ele, nosso filho não nascerá. Não era para acontecer. Um dia todos compreenderão. -- Filha! Lorena gemeu ao perceber que a figura de Eve desvanecia. -- Preciso ir. Já adiei demais minha partida. Fiquem em paz. Aos poucos a imagem de Eve foi se apagando até que nada mais restou. Lorena abraçou-se a Fred e entregou-se mais ainda a sua dor. Seu pranto contagiou aos outros e nenhum se furtou a manifestação de pesar que sentiam. Se no velório de Set já havia uma aura de completa agonia, quando o corpo de Eve foi colocado no centro da capela, até mesmo a natureza pareceu lamentar seu desenlace. Trovões romperam o silêncio noturno, raios faiscaram fendendo o negror do manto noturno, uma dolente chuva principiou sobre a região. Em vida Eve havia traduzido, em seus traços e em suas atitudes, toda graciosidade que a feminilidade possui. Morta, inerte no ataúde sombrio, parecia refletir uma serenidade imaterial. Seu semblante estava tão singelamente ornado pela candura que dava a impressão que iria sorrir a qualquer instante. A presença do pequeno caixão ao lado do maior intimidava ainda mais os presentes. Apesar de inconformados, não ousavam expressar qualquer comentário. Intimamente tentavam entender o porque de um pequeno ser haver sido gerado para que fosse negado seu nascimento. As primeiras luzes da aurora irrompiam tristemente pela abóbada celeste quando Darkness e eu penetramos na capela. Ainda enfraquecido pelas aflições que açoitavam seu íntimo, temi que não suportasse a visão de seu amor presa aquela mortalha de madeira. Silenciosamente ele se aproximou do esquife e tocou levemente o rosto do corpo de Eve. Lágrimas rubras rolavam por suas faces. Seu pranto não produzia som, pois se se permitisse expressar seu lamento, ouvido humano algum suportaria o timbre de sua agonia. Somente Darkness podia avaliar o quanto seus esforços eram titânicos. Sua mortificação atingia grau inimaginável para qualquer um de nós. Nem mesmo todo seu saber, toda sua ligação com o uno servia de lenitivo. Seu ser vibrava angustiadamente. -- Parece que ele está agüentando o baque. Comentou Pandora. -- Não faz idéia do quanto ele está tendo que se esforçar para manter o controle. Informei. -- Onde o encontrou? -- Num lugar que jamais desejo ter que visitar outra vez.

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Pandora.

-- As pessoas ficaram assustadas com aquilo que ele fez. Falou

-- Isto porque desconhecem sua essência. Darkness não reagiu daquela maneira por vontade própria. Naquele momento a dor que o atingiu foi mais forte que sua vontade. -- Ele me parece tão... tão... envelhecido. Ajuizou Lilith. -- Isso mesmo! Tem razão. Anuiu Deimos. -- Efeito do sofrimento. Quando o encontrei ele estava banhado em sangue. -- Como? Espantou-se Pandora. -- Não havia um único espaço de seu corpo que não estivesse coberto por uma densa camada de sangue. Saindo da proximidade do corpo de Eve, Darkness dirigiu-se ao pequeno caixão. Mesmo de longe, percebemos como seu corpo era dominado por frêmito incontrolável. Ali, tão próximo e tão distante daquele que poderia ter sido seu filho, ele não suportou o peso da dor e desabou. Mal seus joelhos tocaram o chão e seus braços elevavam-se em suplicante rogo de piedade. Cheguei a pensar que ele se manifestaria tal como era, mas não. Sua súplica era muda e solitária. Permaneceu na posição por alguns minutos e então voltou a levantar-se. -- O que ele fará? Indagou Pandora. -- Nada. Vai aguardar o momento do enterro, assim como nós. -- Podemos nos aproximar? Quis saber Deimos. -- Podem. Ele é nosso amigo, não? Um tanto tímidos, fomos nos aproximando do lugar onde Darkness se encontrava. Ao nos vermos ao seu lado, nada falamos apenas nos colocamos ali, talvez servindo de anteparo ao fustigar que o atormentava. Uma hora depois Fred surgiu amparando Lorena. Se Darkness nos pareceu envelhecido, Lorena lembrava um cadáver. Sua fisionomia sofrida transparecia uma angústia tão grande que seu corpo parecia haver minguado. Lágrimas eram divididas com seu esposo. A presença de Darkness serviu para alentar nossos corações, mas o mesmo não se passou com Lorena e Fred. Eles permaneceram o tempo todo enclausurado em seu sofrimento. Parecia como se não houvesse mais ninguém alí. -- Ainda falta muito para o enterro? Perguntou Tim. -- Não. Respondeu Pandora. -- Não agüento mais ver tanta tristeza. -- Também estamos tristes, falei me colocando na altura de sua cadeira de rodas, mas a tristeza é inerente a nossas índoles.

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tristeza.

-- São loucos! Onde já se viu desperdiçar a vida cultuando a

-- Não cultuamos a tristeza, apenas externamos a sensibilidade que nos domina. -- Eve não era triste. -- Não, ela não era. Eve foi um espírito iluminado que viveu entre nós. -- Por que não a reverenciam deixando de lado esta morbidez sem nexo? -- Eve nos aceitava como somos. Nunca fez qualquer menção de que nosso modo de ser a incomodava. -- Ela respeitava a todos. -- Isto mesmo. Assim como nós também respeitamos aqueles que discordam de nossas escolhas. -- Até quando permaneceram aderidos a este modo de vida? -- Para sempre. -- Mas... -- Antes que possa concluir que somos doentes, devo lembrálo que Eve também compartilhava de nossas idéias. Ela também era uma de nós. -- Eu sei! Falou Tim resignado. -- Viver como escolhemos, não é apenas uma opção que se possa ou queira mudar de uma hora para outra. Já nascemos com esta índole. Ela está aderida a nossos espíritos. -- Sei que são legais, mas esta mania de ficarem enlutados o tempo todo me deixa enervado. -- Quando tiver maturidade para fazer sua escolha, compreenderá que não somos assim tão diferentes das demais pessoas. O momento mais doloroso se aproximava. A hora para que o ataúde fosse baixado na sepultura estava para ser consumada. Darkness aproximou-se de Lorena e Fred e indagou: -- Desejam que seja feita alguma prece ou outra forma qualquer de despedida? -- Acha necessário? Perguntou Fred. -- Apenas se desejarem. -- O que acha querida? -- Minha filha estará sempre em meu coração, não vejo porque tenha que me despedir dela. -- Sendo assim, solicitarei que não prolonguem mais a dor que estamos sentindo.

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Os presentes entenderam a motivação de Lorena e não questionaram sua vontade. Com o mesmo respeitoso silencio que havíamos velado os corpos, seguimos até o túmulo. Antes que o caixão fosse depositado no fundo do mausoléu, Lorena jogou-se sobre ele em desespero. -- Filha! Filha! Por que teve que nos deixar tão cedo! Fred a amparou liberando o caixão. Darkness e nós não permitimos que o trabalho fosse realizado pelos funcionários do cemitério. Com cuidado colocamos os dois caixões na cripta. Enquanto todos se retiravam expressando votos de pesares, permanecíamos a velar os restos colocados no nicho. Não fazíamos idéia de quanto tempo Darkness permaneceria ali, mas não arredamos o pé até que ele virou-se em nossa direção e nos convidou a irmos. A noite avançara sobre o período vespertino e há muito a lua pairava sobre o firmamento. Lorena, amparada por Fred, foi conduzida até o carro e, mecanicamente, deixou-se acomodar em sue interior. Lilith, Fobos, Pandora e Tim foram para o veículo que haviam utilizado para chegar ao cemitério. Tel, Darkness e eu ficamos parados como se esperássemos por um transporte ainda ausente. Deimos seguiu até o veículo da família para informar que não retornaria com eles. A chuva que caíra durante todo o dia tornou o ar noturno gélido. Uma tênue névoa desceu sobre o local fazendo-nos tremer ao contato do frio. Mesmo incomodados pelo toque da neblina, permanecemos esperando pela atitude de Darkness. -- Não vão com a gente? Indagou Lilith. -- Seguiremos daqui a pouco. Informei. -- O que esperam? Voltou a perguntar Lilith. -- Darkness. Avisei. -- Ficaremos esperando lá em casa. -- Está bem. Os minutos foram se sucedendo e nada de Darkness dar sinal de que iríamos para algum lugar. Olhando mais detalhadamente, percebiase que ele estava totalmente ausente do momento presente. Por onde vagaria sua alma? -- Darkness. Chamei-o interrompendo sua alienação. -- Heim? -- Não irá nos acompanhar? -- Depois. -- O que espera? -- Nada.

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-- Então? -- Podem ir. Logo mais estarei com vocês. -- Tem certeza? -- Sim. Ainda que um pouco contrariado, uni-me a Tel e deixamos Darkness entregue as suas aflições. Não entendia o que ele poderia estar querendo permanecendo estático naquele lugar, mas há muito havia assimilado que Darkness estava além de nossa compreensão. Ao chegarmos a casa de Fobos, todos estavam compenetrados em suas reflexões. Apenas Tim havia se recolhido. A aura pungente que dominava o ambiente contrastava um pouco com a habitual melancolia que nos era inerente. Uma vibração incomum alterou nosso entendimento quanto a intensidade da angústia. -- Onde está Darkness? Perguntou Fobos. -- Ficou. -- Fazendo o que? -- Não sei. -- Deveria ter ficado com ele. Considerou Fobos. -- Também cheguei a pensar assim, mas ele estava tão distante. --Como assim? Indagou Lilith. -- Pareceu-me como se apenas seu espectro estivesse em nossa companhia. Não dava para sentir qualquer sinal de vida nele. -- Muito estranho. Comentou Deimos. -- Também achei, mas considerando a particularidade com a qual ele se reveste, julguei que seria melhor deixá-lo a sós. -- Talvez tenha feito o certo. Anuiu Lilith. Durante o resto da noite permanecemos em vigília. O sol já se impunha como regente diurno e nem sinal de Darkness. Intimamente comecei a temer que ele tivesse sido vitimado por alguma espécie de sincope e nos deixado. Então me lembrei de sua asseveração quanto a sua imortal maldição. O que ainda não sabíamos, e que somente muito mais tarde tomaríamos ciência, era que Darkness acompanhava o tramite normal que se seguia ao sepultamento de qualquer ser humano. Sua ligação com ela era tão forte que seu corpo permaneceu estático até que o corpo astral de Eve atingiu plano onde ele não podia penetrar. Enquanto nós apenas testemunhávamos os caixões serem depositados na fria cripta, ele acompanhava o trabalho diligente dos incontáveis entes que assistiam ao desenlace de nossa amiga.

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Seus olhos espirituais conseguiam ver aquilo que para os demais permanecia oculto na bruma da materialidade. Passo a passo, ele acompanhou cada ato perpetrado pelos agentes astrais. Seu coração tornava-se pesado à medida que os fios materiais eram rompidos. -- Bem, Darkness deve ter se esquecido de que prometeu nos visitar, assim sendo vou indo. Avisou Deimos. -- Darkness não se esquivaria da palavra empenhada. Algo muito importante deve ter acontecido. Falei em defesa de Darkness. “-- O sol se pôs!” A voz de Lilith em nada lembrava aquela que estávamos acostumados a ouvir. -- O que? Perguntou Fobos intrigado. “-- Não percebem que o dia perdeu seu astro mais brilhante? Onde foram parar as estrelas?” Novamente a voz de Lilith se mostrou alterada. -- O que está havendo com ela. Assustou-se Pandora. -- Não faço a menor idéia. Asseverou Fobos. “-- Por que ainda ocupam-se com detalhes tão insignificantes? Olhem ao redor e amem com ardor. Quando o ocaso se instala, não há como voltar atrás, e lamentar não alivia em nada a dor.” Atônitos ficamos encarando Lilith. Nada mais se ouviu até que ela, parecendo despertar de um profundo sono, manifestou-se tão admirada quanto nós: -- Por que estão me olhando desta maneira? -- O que esperava depois do show que deu? Falou Pandora. -- Que show? -- Ficou ai falando um monte de palavras sem nexo. Continuou Pandora. -- Eu! Mas não falei nada. -- Esperem! Pedi. Alguém tentou se manifestar através dela. -- Como? -- Não perceberam a dor que estava expressa no tom que foi utilizado? -- Darkness? Indagou Deimos. -- Não sei. Mas seja quem for, encontrou um canal em nossa amiga. -- Hei, não quero saber desse negócio de canal! Afirmou Lilith. -- Vamos esperar mais um pouco. Solicitei. Durante todo o dia esperamos e nada. Nem um lacônico comunicado. Darkness parecia ter sido enterrado com Eve. Já nos

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dispúnhamos a encerrar nossa espera quando Lilith voltou a se manifestar com a estranha voz de antes: “-- Onde o leito se faz eterno a alma que antes vivia sombra da augusta felicidade ora apenas espectro de dor... insanidade. Mas a morada fria que abriga o cerne guarda o sopro que anima o coração peregrino sem destino a lamentar a derrota do amanhecer... tirania do penar. E sempre a sofrer a agonia inaudita irrompe do eu o vazar da perdição sombra do sol que já foi rei... secular. Mortifica o todo esta cruel maldição fazendo sangrar infinitamente, o coração fomentando a dor que consome a alma... agonizar. Onde estás, Amor meu!” Finda a declamação, o silêncio. -- O que foi isto? Falou Pandora. -- Darkness? Inquiriu Deimos. -- Não! Darkness conhece o processo natural da vida. É certo que deve estar sendo fustigado pela dor que a morte de Eve fez nascer em seu âmago, mas jamais se colocaria tão em contrário as leis. -- Quem, então? Perguntou-me Fobos. -- Dê-me um tempo. Estou pensando. Precisei de alguns minutos para poder intuir corretamente. À medida que deixava minha mente sobrepujar os conceitos alheios a natureza de nossas existências, o quadro foi se tornando mais e mais nítido. Ao divisar o rosto que nos olhava entristecido, pronunciei uma única palavra: -- Set! -- O que? Reagiu Pandora. -- Tem certeza? Perguntou Deimos. -- Set recebeu as vibrações originadas com o desencarne de Eve. Ele está tão triste quanto nós. -- Onde ele está? -- No vale. A mensagem veio através da irradiação de seus pensamentos.

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-- Mesmo preso aquele lugar insano, foi capaz de se fazer notar! Admitou-se Lilith. -- Lembram-se do que Darkness nos disse, somos uno! Tentei refrescar a memória de meus amigos. -- Exato! Set está tão amalgamado com os fatos quanto qualquer um de nós. -- Se foi Set quem se manifestou, por onde andará Darkness? Pandora quase que sussurrou sua indagação. -- Aqui! Soou a voz troante de nosso amigo. -- Darkn... Lilith ia manifestar sua zanga pela entrada repentina de Darkness, mas conteve-se ao notar seu semblante transfigurado. -- Lamento tê-la assustado, mas ainda estou um tanto quanto alterado. -- Onde esteve? Disparou Deimos. -- Testemunhando o desligamento de Eve desta parte da criação. -- Como assim? Indagou Pandora. -- Nossos corpos, e não estou me referindo a todos nós, mas sim a cada um individualmente, estão interligados por brilhantes fios que servem de liame e fazem a ligação entre os diversos tipos de matéria. Quando o corpo mais grosso fenece, é preciso que os fios ligados a ele sejam rompidos para que os demais possam seguir sua jornada. -- Quem os cortam? Perguntou Lilith. -- Os entes responsáveis pelos fatos ligados ao nascer e ao morrer de cada criatura que habita os mundos materiais. -- Nunca ouvimos falar sobre eles. Falou Deimos. -- Todos nós já os conhecíamos, apenas não nos recordamos de nossas infâncias. -- Ah, está se referindo aos amigos invisíveis que toda criança tem! Comentou Pandora. -- Não me referia a esta etapa da curta duração de uma existência. Referia-me ao estágio intermediário que antecedeu o despertar do espiritual. Um tempo há muito aprisionado na esteira do tempo. -- Tudo bem, outra hora poderá nos falar sobre eles, mas nos conte como tudo aconteceu. Pediu Deimos. Resumidamente Darkness nos contou como havia se processado o desligamento dos fios do corpo físico de Eve. A constatação da existência de seres aos quais nem em sonho poderíamos imaginar nos fez desejar poder conhecê-los.

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No exercício vigilante que nos encontrávamos, não notamos o avanço seguro do tempo. Conversamos por um período tão longo e ao mesmo tempo tão ínfimo que a realidade nos pegou de surpresa. Assim que nos conscientizamos de que o diálogo se prolongava por um tempo considerável, despertamos abismados. Há exatos três dias que nos encontrávamos reunidos. As semanas seguintes foram tomadas por uma apatia muito acentuada. Não sentíamos disposição para encetar qualquer atividade. Darkness manteve-se afastado sem nos informar o motivo de sua ausência. O grupo parecia fadado ao desmantelamento. Aos poucos a rotina foi retomando seu fluxo normal e, como sempre, apenas a tristeza causada pela saudade nos dominava. Compenetrado na administração dos negócios de Antenor, deixei que o tempo cuidasse de fechar as feridas abertas pelos trágicos acontecimentos. Ao final de mais um mês, três já haviam se passado desde o fatídico dia, preparava-me para ajudar Antenor com os preparativos para colocar o club em ordem quando recebemos a visita de Fobos. Seu ar dorido nos deixou certo de que o motivo de sua presença não deveria ser nada agradável. -- Olá! -- Oi. -- Vamos nos reunir neste final de semana. -- Tudo bem. -- Precisamos ter uma conversa muito séria. -- Ultimamente só temos nos encontrado para tratar de assuntos sérios. -- É. -- Onde será o encontro? -- Estamos pensando em nos reunir no mausoléu da família de Eve. Darkness está tentando obter o consentimento dos pais. -- Podem contar com minha presença. -- Ótimo! -- Avise-me assim que tiver certeza do local. -- Pode deixar. A laconidade havia se tornado característica intrínseca a nossos últimos contatos. Fobos ainda permaneceu algum instante nos observando. -- Bem, já vou indo. -- Tá! Antenor nos lançou um olhar melancólico. Desde que Eve se fora, ele notou nosso esmorecer. Mais que a falta que nossa alegria lhe

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fazia, o fato de não saber o que fazer para atenuar nosso sofrimento o deixava muito aborrecido. Sua consideração, por todos nós, ia além da bondade que lhe era inerente. Embora ainda enlutados, os pais de Eve consentiram que nos reuníssemos no mausoléu da família. Como condição exigiram estar presente. Sob protestos, acabamos concordando com o desejo de ambos. Na noite marcada, senti um incômodo persistente a alimentar minhas emoções. Não fazia a menor idéia do que poderia estar ocasionando minha aflição. Era como se pressentisse fatos que me deixariam mais sorumbático do que já me encontrava. Aos pares, solitariamente ou em grupo de três, fomos chegando ao mausoléu. Uma névoa fina adornava a noite corroborando nossas vibrações. No infinito nem mesmo a mais débil manifestação de luzir de astro algum. A escuridão era total. -- Bem vindos amigos! Saudou-nos a cavernosa voz de Darkness. -- Olá! Saudamos nosso amigo. -- Acomodem-se, pois a noite será longa. Cada qual escolheu o local que melhor lhe aproveu e ficamos aguardando que o silêncio fosse quebrado. Depois de um tempo Darkness tomou a palavra. -- Sei que temos assuntos pessoais para tratarmos, mas gostaria de sugerir que manifestássemos nosso pesar por aqueles que estão ausentes. -- O que tem em mente? Perguntou Fobos em nome do grupo. -- Um contato com o uno. -- É. Também penso que estamos precisando de algo assim. Anuiu Fobos sondando os demais com o olhar. Não havendo manifestação em contrário, Darkness assumiu o papel de condutor do rito. -- Formem o círculo. Solicitou. A formação tão conhecida foi realizada e, para nosso espanto, Darkness não se colocou ao centro. Como se não desejasse chamar a atenção para sua pessoa, havia se posicionado na linha do círculo. -- Sobreponham suas mãos e cerrem os olhos. Cada etapa necessária ao estabelecimento do contato era seguida por um breve silêncio. Darkness aguardava que todos estivessem em sintonia até que o próximo passo fosse dado. -- Eliminem todos pensamentos que preenchem suas mentes, esvaziem-nas!

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Esta era a parte mais difícil do processo. Esvaziar nossas mentes exigia uma concentração concisa. Devido as emoções que nos dominavam, naqueles dias, este exercício tornou-se ainda mais difícil. -- Não se preocupem em afastar as emoções, apenas libertem suas mentes das noções lingüísticas. Emudeçam suas mentes. Um a um fomos sentindo a lassidão dominar nossos sentidos. A realidade ia, aos poucos, sendo substituída pela sensação de estarmos sendo conduzido a um mundo intangível pela razão. As vibrações tornavam-se mais vivas. -- Absorvam as energias que fluem do éter. Alimentem seus espíritos e robusteçam seus ânimos. Labaredas ardentes grassavam por nossos seres. O fogo queimava a individualidade trazendo o uno a tona. Tornávamos quais fênix renascendo das próprias cinzas, mas não mais como indivíduos e sim integrantes de um todo único. -- Abram os olhos do espírito! Mais uma vez nos maravilhamos com o cenário que se descortinava antes nós. As luzes fulgentes que vivazes cintilavam por todo ambiente, preenchia-nos com uma paz absorvente. Ainda inebriados com tão fantástico fenômeno, mal nos demos conta do deslocamento que se processava. Sem que participássemos da transposição, fomos conduzidos a um outro ambiente. Este menos iluminado, mas não menos maravilhoso, guardava a presença de um outro ser. -- Sejam bem vindos! -- Eve? Pronuncie incrédulo. -- Filha! Lorena quase gritou. -- Permaneçam serenos. Qualquer elemento que quebrar a harmonia será repelido. Esforçamo-nos ao máximo para que a emoção não nos fizesse destoar da paz reinante. Estar ali, em uma dimensão ainda não identificada por nós, diante daquela que foi nossa amiga, filha, companheira, mexia com nossas sensibilidades. -- Estão aqui para poderem assimilar as últimas lições que faltam para poderem escolher. Escolher? O que precisaríamos escolher? Vagamente lembrava-me de uma das vezes que havia conversado mais demoradamente com Darkness e ele tinha advertido a respeito de algo semelhante, mas naquele momento não entendido a premência de optar por algo que me era desconhecido.

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-- Seus corações ainda estão tomados pela paixão. Precisam aplacar a febre material substituindo-a pelo saber espiritual. Suas mentes clamam por compreensão e para tanto é necessário olvidar os instintos. Deixem a intuição fluir por seus seres. Lentamente me senti tocado por uma onda energética transformadora. A ebulição incontida que dominava meus sentidos foi gradativamente se acalmando até que uma paz muito prazerosa assomou em mim me propiciando uma leveza sem igual. -- Sintam a serenidade penetrar em suas partículas mais diminutas. Fomente-as para que possam reproduzir a sensação de bem estar que estão sentindo. Tornem-nas elementos vivos em suas constituições. Devem tornar a serenidade uma manifestação natural inerente a suas ações. As admoestações que recebíamos iam calando fundo em nossos âmagos e se tornavam vivas em nós. Talvez não chegássemos a compreendê-las totalmente, mas o fato de estarem aderidas a nossos espíritos nos fazia crer que não falharíamos em nossas tarefas. -- Uma última advertência: abstenham-se de se rogarem no direito de interferir na escolha deste ou daquele caminho de quem quer que seja. Devem elucidar as dúvidas, apontar as falhas, indicar as vias, mas a escolha sempre caberá a cada um daqueles que os procurarem. Lamentações por estes ou aqueles não devem ser alimentadas. Cada um é livre para fazer sua própria escolha. Uma força impossível de ser vencida controlava nossos anseios impedindo-nos de manifestar qualquer ponderação. Intimamente sentia as perguntas que eclodiam na mente de Lorena, mas em nenhum momento nos foi permitido expressar nossos pensamentos. Ao menos não diretamente. -- As indagações que teimam em gerar em suas mentes devem ser ceifadas da seara dos auxiliadores. O caminhar pela senda da verdade os libertará de todas ilusões e os fará enxergarem a translúcida realidade espiritual. Ela sabia as indagações que guardávamos em nós! O espanto que me dominou diluiu-se ao perceber que ondas esclarecedoras invadiam minha mente. Assim como havia sentido as dúvidas que vibravam no íntimo de Lorena, todos absorvíamos as impressões de todos. Por isto Eve não nos permitia emitir palavras, elas eram desnecessárias. Finalmente entendi o significado de ser uno. -- Por agora foi o suficiente. Devem retornar a seus corpos e fazerem valer a força que anima suas existências. O mais será apresentado a cada na medida em que se fizer preciso.

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Finda a última sentença, Eve foi esvaecendo até não mais ser possível divisar-lhe o menor traço. Estávamos sós. Ao menos desacompanhado de uma entidade superior. Antes que nos sentíssemos perdidos, Darkness voltou a assumir o controle e cuidou para que encontrássemos o caminho que nos conduziu ao encontro de nossos corpos. Uma dormência potente ia aos poucos se tornando menos intensa à medida que retomávamos o controle da parte sensorial de nossas mentes. Mesmo já conscientes, permanecemos em contrito silêncio. Uns por estarem reforçando as imagens que havíamos visto, outros por desejarem reter ao máximo as falas ouvidas, enfim cada qual procurava tornar a vivência um fato imortal em suas almas. -- O que foi tudo isto? Indagou Lorena ao perceber que todos estavam conscientes. -- O começo de nosso agir. A partir de agora devemos fazer nossa opção. Informou Darkness. -- Mas que opção é essa afinal? Perguntou Deimos. -- Receberam toda instrução que um espírito pode abarcar. Devem transformá-las em atos. Não são obrigados a expor esse saber, mas devem ponderar sobre a inutilidade de conservá-lo como algo íntimo. Está é a opção que devem fazer. O silêncio voltou a dominar o ambiente. Antes de bombardearmos Darkness com indagações que parecessem infantis, desejávamos refletir e procurar explicações pessoais para todas vivências experimentadas. Sem que nem todos tivéssemos consciência, amadurecíamos. Após o encontro, as situações começaram a ficar mais nítidas. Nos dias que se seguiram sentia como se estivesse vivendo uma descoberta a cada momento. Já não me incomodava mais com as pequenas contrariedades ou com as manifestações de pouco apreço das pessoas. Era como se estivesse acima desse comportamento tão mesquinho. Os tempos ruins pareciam haver passados e nada prognosticava novo período de turbulências. Somente a saudade havia aderido de modo indelével em nossos corações. Sempre que nos reuníamos, dedicávamos um tempo em memória de nossos amigos ausentes. Em uma das reuniões o horizonte voltou a se tingir de cores funestas. Estávamos descontraidamente fazendo a leitura de um escrito que Darkness nos havia trazido de sua biblioteca quando Fobos resolveu nos interromper. -- Gostaria de comunicar-lhes algo. -- Espero que seja algo bom. Desejou Pandora.

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-- Depois de muito refletirmos, Lilith e eu chegamos a conclusão de que não podemos mais adiar nossa ida para a colônia. Estamos preparando tudo para nossa partida. -- O que? Exclamamos tomados de contrariedade. -- Sei que pode parecer egoísmo, mas não queremos que nosso filho cresça aqui. Desejamos oferecer uma alternativa para ele. Declarou Lilith. -- Mas e o grupo? Inquiriu Deimos. -- Lamentamos o fato de abandoná-lo, mas não podemos comprometer o futuro de nosso filho. Ademais, estaremos sempre em contato. Afirmou Fobos. -- Quando pretendem partir? Perguntei. -- Em duas semanas. -- Tão já? -- Darkness já cuidou de tudo. A casa que iremos ocupar foi preparada para nos receber no prazo estabelecido. Anunciou Lilith. -- Sei que esta decisão foi muito bem pensada, mas ponderaram sobre o quanto ela interferirá em nossas vidas? Questionou Pandora. -- Sim. Atravessamos noites e noites analisando todos os fatores inerentes ao caso. Por mais que sejamos tocados por suas emoções, não podemos comprometer o bem estar de nosso filho. -- Todos nós vivemos muito bem aqui! Asseverou Deimos. -- Sabemos disso. Concordou Fobos. Mas se em determinado momento de sua vida, conseguisse vislumbrar a possibilidade de um ambiente mais harmônico, não desejaria poder desfrutá-lo? -- É claro que sim! -- Nós também! -- Creio que estamos sendo um pouco egoístas. Intervi na conversa. Fobos nos lembrou o fato de que sempre estaremos em contato e isso não tem nada que ver com o plano físico. Nossa ligação com o uno nos tornou um. Como podemos imaginar que a distância ou o tempo seriam capazes de nos manter afastados? -- Exatamente! Manifestou-se Lilith. Mesmo estando longe daqui, sempre estaremos com vocês e vocês estarão conosco. -- Jamais pensaria que nosso grupo se despedaçaria! Lamentou Deimos. -- O grupo não está se desintegrando. Muitos outros teimam em continuar navegando por um único leito, mas olvidam elementos imprescindíveis para o progresso. As vezes é uma rusga que os impede de serem sinceros, outras uma ansiedade pessoal que os contrapõem

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originando desavenças, talvez a mesmice deixando-os sufocados e colocando em risco uma verdadeira relação de fraternidade, enfim, muitos são os riscos e no entanto eles resistem. Mas o grande e mais importante aspecto a ser considerado é: será que são realmente um grupo? Ou apenas se mantém juntos por conveniência, falta de perspectivas, comodismo? Reflitam sobre a realidade que os abarcam. Darkness havia se omitido até então. -- Você pode se manter passivo, afinal não faz parte do grupo! Deimos estava agressivo. -- Deimos! Repreendeu Fobos. -- Não, não se indisponham. Nosso amigo tem uma dose de razão em sua afirmação. Não participei da organização do grupo e, mesmo depois de tudo que vivenciaram, alguns continuam me achando muito estranho. Se não um completo estranho. -- Não foi esta minha intenção. Desculpou-se Deimos. -- Eu sei. No entanto, o que ignora é o fato de não ser esta a primeira vez que podemos conviver num mesmo espaço de tempo. A existência é eterna! -- Sei disso! Deimos mostrava-se envergonhado. -- Não precisa se envergonhar por haver reagido de modo tão inflamado. Muito ainda tem que conhecer até estar pronto para ver o mundo de modo imparcial. As vibrações passionais são muito fortes em você. -- Como evitar essa falha? -- Oh, não! Isto não é uma falha. É apenas reflexo de sua maturidade. Quando puder sentir a energia que anima o lado racional coma mesma intensidade que sente seu lado instintivo, terá chegado o momento de despir-se do manto mundano que nos protege durante a fase préespiritualizada. -- Por que sou o mais imaturo de todos? -- Não é o mais imaturo. Seu temperamento passional pode ser mais forte que nos demais, mas também tem outras energias fluindo por seu ser. -- Como poderei vencer minha passionalidade se o grupo se desfaz? -- Será justamente na ausência do grupo que poderá desenvolver suas outras potencialidades. Terá que se esforçar para conquistar seu lugar junto ao grupo de sua família. Não aceite que aplainem seu caminho. O esforço conduz ao progresso. -- Está bem! Não os decepcionarei.

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-- Procure, antes de tudo, não se decepcionar. Sabe que estamos unidos além da temporariedade do plano material. Sempre poderá haurir da presença de todos ou de outros. -- Está vendo, Deimos, não estaremos separados. Falou Pandora. -- Mas sentirei saudades. --Todos sentiremos. -- Já que estamos de acordo, precisamos marcar uma festa de despedidas. Sugeriu Pandora. -- Não sei se os ânimos comportam alguma festividade. Falei. -- Está se sentindo tão mal, assim? Perguntou-me Pandora. -- Um pouco além de minha vontade. -- Precisa reagir, amigo. -- Vou conseguir. -- Bem, vamos fazer esta festa ou não? Deimos já se mostrava menos contrariado. -- Penso que sim. Concordou Fobos. Quem nos visse tão cordatos e tentando demonstrar uma euforia desmedida pensaria se tratar do grupo mais animado que já houvessem visto, mas apesar de exteriorizarmos muito de nossas emoções, algumas permaneciam represadas em nosso âmagos. Estas somente o tempo cuidaria de fazer eclodirem. Uma das muitas emoções represadas estava deixando Pandora agitada. Desde o enterro de Set vinha sendo afligida pela dúvida em aceitar o convite feito pelo irmão ou permanecer na cidade. A atitude de Lilith e Fobos havia fortalecido ainda mais seu conflito. A iminente desarticulação do grupo a deixava em dúvidas quanto a decisão mais adequada a seu caso. Pela primeira vez via-se tendo que avaliar uma situação sem ter que se preocupar apenas com ela mesma. Havia Tim. Sua agitação era tão evidente que enquanto cuidávamos dos preparativos para a festa de despedida de Lilith e Fobos, ela mantinha-se alheia ao burburinho comum aos afazeres de cada um. Tel, que havia se juntado ao grupo para auxiliar nos preparativos, percebeu o modo arredio dela e procurou sondar o motivo de tal comportamento: -- Aconteceu algo, Paola. Tel nunca conseguia tratar Pandora pelo nome que ela havia escolhido como identidade pessoal. -- Nada. -- Anda um pouco alheia ao corre-corre dos preparativos. -- Está dando para perceber? -- Um pouco.

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-- Não é proposital. Só que... -- Não confia mais em mim? -- Não é isso. Acontece que não consigo me decidir sobre um assunto muito sério. -- Posso ajudá-la? -- Não sei. -- Talvez consiga ver com mais clareza se desabafar. -- Depois conversamos. -- Promete? -- Prometo. Deixa o movimento diminuir um pouco. Envolvidos como estávamos, não percebemos a agitação de nossa amiga. Apenas Darkness pressentia a batalha que ela travava. Não que se tratasse de um caso complicado ou capital, mas Pandora ainda era acometida por pesadelos que refletiam todo drama que vivera na casa dos pais. -- Quer me ajudar com um objeto lá em cima? Darkness havia se aproximado sem que ela percebesse. -- Darkness! Zangou-se. Já não chega ficar assustando a Lilith agora quer substituí-la por mim? -- Sabe que é uma opção tentadora. A descontração demonstrada por Darkness a dobrou. O ar sisudo que ele sempre trazia em seu semblante sempre a intimidara. Aquela manifestação de informalidade a deixou sem jeito de recusar o pedido. -- Tá legal! O que tenho que fazer? -- Quase nada. Venha comigo que eu mostro. A mansão de Darkness já não se constituía mais nenhum segredo para nós. Apesar disto, Pandora admirou-se ao entrarem no cômodo indicado por ele. -- Nossa, que lugar é este! -- Minha sala particular. -- Hei, não vem que não tem! -- Está na hora de termos uma conversa mais séria. -- Cuidado com o que pretende, posso gritar. -- Não será preciso. O assunto é de seu interesse. -- Vamos ver. -- Anda brigando com você mesma ultimamente, não? -- Não tem como esconder algo de você? -- Somente se desejar com todas suas forças. -- Convencido. -- Então, não quer me contar? -- Para que? Já sabe de tudo mesmo.

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-- Ainda se mantém arredia. -- Não é que seja arredia, mas me incomoda saber que não se pode ocultar nada de você. -- Pois então vou lhe revelar um segredo. Nem tudo é de meu conhecimento. -- O que! A admiração de Pandora era autêntica. Ela sempre acreditou que Darkness era capaz de prever e saber tudo aquilo que pensávamos ou fazíamos. -- É claro que muito do que ocorre eu posso antever, mas nem tudo. Acredita que deixaria Eve ser atingida por aquele tiro caso soubesse que aquilo iria ocorrer? -- Não! -- Pois então? -- Pensei que... -- Quer conversar sobre aquilo que tanto lhe aflige? -- Lembra-se do dia do enterro de Set? -- Sim. Pandora sentia-se mais segura diante de Darkness. Saber que ele não era capaz de conhecer tudo que nos acontecia mudou o modo como ela o via. Antes ele havia assumido uma posição quase que de um deus, agora observando-o mais detalhadamente, ela concluiu que ele era tão humano quanto ela ou qualquer outro de nós. Quando voltaram a se unir a nossos esforços o semblante de Pandora já se mostrava mais sereno. Sem importar-se com as possíveis indagações que povoavam nossas mentes, ela integrou-se ao grupo e assumiu as tarefas que lhe cabiam. Tel ainda se acercou dela para sondar se ainda estava tão agitada, mas desistiu ao perceber que ela demonstrava haver readquirido o controle de suas emoções. Só notamos um outro momento de agitação quando ela e Deimos sumiram por alguns minutos. Como não demorou muito para que voltassem, não demos maior importância ao fato. A proximidade da festa de despedida fez-nos ficar excitados. Não porque estariam todos reunidos, mas porque sabíamos que seria a última oportunidade dos remanescentes do grupo estarem reunidos num mesmo local. Depois daquela noite nossos encontros teriam lugar em planos e dimensões diversas. Mesmo sabendo que Pandora havia deixado de lado sua agitação, Tel decidiu que deveriam conversar. Aproveitando que Fobos e Lilith encontravam-se na mansão, foi até a casa deles e não deixou que Pandora se esquivasse do diálogo:

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-- Sei que já está mais tranqüila, mas gostaria de saber o motivo que a deixou tão agitada nos últimos dias. -- Oh, desculpe-me, mas o corre-corre me deixou tão compenetrada que havia me esquecido. -- Tudo bem conversarmos? -- Está. Tem tempo? -- Todo que for necessário. -- Então tá. Agora que já passou, me parece tão tolo que nem consigo acreditar que me deixei abalar por assunto tão banal. -- De que se trata? -- Quando Set morreu, no dia do enterro, meu irmão me procurou. Convidou-me para ir morar com ele uma vez que meu outro irmão havia morrido. -- E você? -- Naquele dia recusei o convite. O grupo ainda estava firme e não tinha porque deixar a cidade. -- Mas agora? -- Agora decidi aceitar o convite. -- Irá nos deixar? -- Sim. Já me comuniquei com meu irmão e ele deve estar vindo me buscar na semana que vem. -- Então a festa será de despedida para você também. -- Sim. -- Já conversou com o Tim? -- Já. Ele ficou meio triste no começo, mas depois consegui convencê-lo de que era o melhor que tínhamos a fazer. -- Mas e o tratamento dele? -- Este era um ponto que me deixava angustiada. Não queria atrapalhar o progresso que ele vem apresentando, mas Darkness me tranqüilizou. -- O que aquele bruxo tem a ver com isto? -- Darkness me mostrou que não preciso interromper o tratamento de Tim. Ultimamente a terapia se resume a sessões de exercícios e fisioterapia. Posso cuidar disso lá na cidade para onde vamos. -- Por que? -- Porque o que? -- Por que decidiu se mudar? -- Lilith e eu conversamos a respeito da segurança que uma cidade pequena oferece. É lógico que também analisei o fato de Tim precisar de estudos mais adequados, mas quando a hora chegar ele já estará mais adaptado a sua nova realidade.

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-- Não acredita que ele volte a andar? -- Oh, não, muito pelo contrário! Tenho certeza de que voltará a ser uma pessoa normal. -- Mas então? -- Então que embora acredite em sua recuperação, não faço a menor idéia de quando isto vá ocorrer. -- Ainda penso que seja uma temeridade vocês se afastarem justamente agora. -- Darkness aproveitou a viajem que fez até a colônia e tratou de acertar alguns detalhes com meu irmão. Quando chegarmos ao sítio, tudo estará adequado as condições de Tim. -- Quando ele viajou? -- Um dia desses. -- Vocês confiam demais neste bruxo. -- Confiamos. Ele nos fez ver o quanto podíamos ser valiosos. Antes dele aparecer pensava que tudo que havia acontecido comigo era resultado de minha nulidade. Darkness me fez ver que ninguém tem o direito de ultrajar a outrem mesmo quando não se identifica quaisquer sinais de mérito na pessoa. -- Por que se fecharam tanto em volta dele? -- Não foi nada arquitetado. Um dia ele surgiu, ofertou-nos a possibilidade de ver o mundo de um modo novo e aceitamos. Só isso. -- Mas não adiantou para o coitado do Set. -- Set não era nenhum coitado, ninguém é. Darkness conversou diversas vezes com ele. Os contatos que estabeleceu foram longos e diversos, mas ele não tem o poder ou o direito de alijar ninguém de seu livre arbítrio. -- Aceitaram o fato com muita rapidez. -- Não! Está totalmente enganada! Até hoje realizamos encontros onde mentalizamos energias positivas para Set. sabemos que a luta que ele trava é muito difícil de ser vencida, mas em momento algum deixamos de enviar-lhe ondas fortalecedoras. -- Não seria mais fácil oferecerem orações? -- De certo modo, é isso que fazemos, só que do nosso jeito. -- Ainda acho que este cara dominou vocês. Os temores de Tel não deviam ser ridicularizados. Por mais que nos sentíssemos unidos a Darkness, às vezes também éramos tomados por um desconfortável pressentimento de dúvida. Embora ele nos tivesse aberto portas para mundos inimagináveis, excetuando eu, nenhum dos outros lhe conhecia a verdadeira essência vital.

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A manifestação ocorrida no momento em que Eve era atingida e caia em seus braços sem vida havia sido registrada por muitos olhares incrédulos, mas como não haviam meios técnicos que pudessem reter a imagem astral de Darkness, nada ficou estabelecido como real. No muito, levantaram a hipótese de auto sugestão causada pela dramaticidade dos fatos. -- Sonhando acordado! Observou Antenor ao me ver parado próximo a entrada do club. -- Pensando na vida. -- Já era hora. -- Hei, o que está querendo dizer com isto? -- Que já estava na hora de descer das nuvens e colocar os pés no chão. -- Sabe que não sou assim. -- Não era. Ultimamente anda alheio aos compromissos assumidos. -- Refere-se a administração do club? Ela está em dia, só não permaneço mais tempo por aqui porque estamos preparando uma celebração de despedida para nossos amigos. -- Eles vão mesmo embora? -- Sim. -- Mas que loucura! Pensei que jamais se separariam. -- E não vamos nos separar mesmo. -- Mas acabou de afirmar que eles estão de partida. -- Deveria conversar mais com Darkness. Ele elucidaria qualquer dúvida que tenha. -- Não sei, não. Sempre achei aquele sujeito meio estranho. -- Nós também! -- E por que lhe dão tanta confiança. -- Porque ele merece. -- Espero que não estejam embarcando em uma canoa furada. -- Canoa furada! Admirei-me. Esta você foi desenterrar lá do jurássico. -- Ora, não me venha com essa de dizer que sou antiquado. Minha zombaria colocou um ponto final na incipiente divergência de opiniões. Naquele momento não sabia que Antenor não teria a mesma ventura de poder conviver por muito mais tempo com Darkness. Se soubesse, talvez tivesse insistido para que eles se encontrassem. Agora isto já é passado. A noite da despedida chegou! Os convidados se vestiam a caráter. O visual dark nos conferia uma aura de mistério e melancolia.

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Antes dos festejos propriamente dito, Darkness nos reuniu, o grupo mais Lorena, Tel, Tim e Fred, na sala da távola. -- Obrigado por terem aceitado minha solicitação. -- Mais alguma de suas bruxarias? Zombou Deimos. -- Talvez! -- Vamos nos encontrar com nossa filha? Indagou Lorena. -- Não será necessário, ela está presente. -- O que? Proclamamos incrédulos. -- Observem. Uma tênue silhueta foi se adensando pouco a pouco até permitir uma visão nítida, embora diáfana, de nossa saudosa amiga. -- Que as energias positivas encontrem morada nos espíritos de todos. Foi a saudação expressa por Eve. -- Filha! Clamou Lorena. -- Não pode me tocar. Nossos corpos não são similares. -- Está certo. Resignou-se Lorena. -- Também temos outros convidados. Anunciou Darkness. Outro espectro começou a se mostrar na sala. Diferente de Eve que possuía uma forma translúcida e serena, aquele que se formava era denso e um tanto impreciso. Somente quando se formou por completo foi que conseguimos identificá-lo. -- Set! Bradamos ao mesmo tempo. -- Olá, amigos! -- Que surpresa mais nos reserva? Perguntou Fobos. -- Apenas mais uma. Antes que pudéssemos reagir ao tom misterioso empregado por Darkness, a porta abriu-se e ficamos aguardando quem entraria por ela. Ao reconhecermos quem era a última surpresa de Darkness, deixamos nossos lugares e corremos a seu encontro: -- Mefisto! -- Pensaram que deixaria de participar da última ceia? -- Sempre com suas zombarias! Fobos ralhou em tom de amistosidade. -- Novamente o rei e seus cavaleiros reunidos ao redor da távola! Desta vez sua observação soou sem nuances de zombaria. -- Seu lugar, assim como o dos demais, sempre estará esperando por sua pessoa. Afirmou Darkness. -- É bom mesmo, me deixariam muito irritado caso colocassem outro no lugar.

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A confraternização não afastou Darkness do objetivo daquele encontro. Assim que a celeuma cessou, assumiu seu lugar e mirando-nos com firmeza, convidou a todos que se sentassem e fizessem silêncio. -- Amigos! Estamos reunidos mais uma vez para que possam reforçar os conhecimentos que ainda se mostram inconstantes em seus íntimos. Eve se encontra em processo de finalizar suas vivências. Em breve atingirá aquele estágio que deve ser o objetivo final de todos os espíritos humanos. Set está se recuperando. Já foi capaz de admitir o erro que sua visão parcial originou. Em breve estará pronto para nova oportunidade de se posicionar ante a vida. Enquanto buscávamos assimilar as informações fornecidas, Darkness se calou. Apesar de mostrar-se sereno, seu âmago se encontrava em plena ebulição. A presença de Eve o tornava passional em demasia. -- O grupo já atingiu o estágio exigido daqueles que se dispõe a servir de ponto de ancoragem para as energias provenientes do éter. Aos demais, falta a decisão de se colocarem a serviço da mesma força que alimenta nossas existências. Novamente o silêncio. Darkness sabia que precisávamos de um tempo até que todas palavras encontrassem eco em nossos íntimos. Não que fosse muito complicado assimilar suas preleções, mas era necessário que cada um buscasse seu próprio entendimento. -- Como estamos celebrando o eclodir de uma nova etapa na existência de todos, deixem valer suas intuições e manifestem suas impressões. Aproveitem, a hora é esta! Acomodem as dúvidas, libertem as ponderações e se preparem. Alguns minutos nos foram concedidos para que nos preparássemos para o contato. Já não era mais segredo que quando Darkness assumia a postura de hierofante, realizaríamos mais um contato com o uno. A expectativa de poder experimentar, mais uma vez, as sensações que nos envolviam tão plenamente, nos deixava tensos. -- Coloquem-se em pé. Sintam a respiração e a pulsação de sues corpos procurando torná-las mais e mais moderada. Formem o círculo. O círculo! Nunca mais esta figura seria apenas mais uma figura para nós. Através da união de nossas energias o círculo que formávamos tornou-se sustentáculo de vibrações concentradas de energias que iam e vinham através de nossos seres. Darkness nos deixava livres para que todo potencial represado em nossos âmagos, eclodisse e gerasse o campo necessário ao contato. -- Eliminem as dúvidas e angústias que tanto tormento tem causado a seus corações. Afugentem as imprecisões dos pensamentos grosseiros que tanto empecilhos criam para suas mentes. Libertem-se!

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Energia. Energia pura fluiu por todo ambiente. Nossos seres foram tomados pela manifestação suprema das correntes que emanam do cerne da criação espiritual. Sentimo-nos revigorados em nossos âmagos. As vibrações tornavam-se parte de nós e cada um tornava-se parte das vibrações. O uno se manifestava mais uma vez. -- Despertem! Ecoou a trovejante voz que nos acolhia em nossa visitação. -- Alimentem a chama que arde e mantém viva a centelha do Amor. Soou uma segunda voz tão potente quanto a primeira. Afirmo ouvir vozes, mas isso para que se possa ter uma idéia das mensagens que nos eram transmitidas. Tudo que se processa no uno se faz por meio de vibrações. Algo parecido como se as vozes se fizessem ouvir em nossas mentes. Não poderia ser de outra forma, pois não se podia observar a existência de corpos físicos naquela dimensão, sendo assim, era impossível que as mensagens fossem transmitidas verbalmente do modo como a concebemos em nosso mundo físico. -- As sementes germinaram e produziram frutos de valor inestimável. -- As sementes... mentes... sementes... mentes! -- São frutos os atos. São frutos os pensamentos. São frutos as atitudes. -- São vossos os frutos. São nossos os frutos. -- Vejam! Imediatamente nos foi permitido visualizar imagens seqüenciais de vivências há muito experimentadas. Intuitivamente sentimos que estávamos no limiar de nos tornar conscientes da união com o uno. Diferentemente das outras ocasiões quando a união era estabelecida, e sempre havia o esquecimento quando retornávamos, desta vez era possível pressentir que as imagens se gravavam indelevelmente em nossas mentes. Desta vez não haveria esquecimento. O uno nos acompanharia pelo resto do caminho que tínhamos a trilhar. O som harmônico de hinos traduzia lições que a razão não seria capaz de assimilar, mas que o espírito registrava com facilidade espantosa. As sensações se mesclavam definindo uma só tela, uma só visão, uma só experiência. Em determinado momento sentimos que não havia mais nada para ser assimilado então, o vazio se fez. A sensação de nos encontrarmos envolvidos por uma escuridão profunda tomou-nos de assalto. O que se passava? -- Não se assustem! No início tudo é escuridão. A voz que soava em nossas mentes se fazia suave.

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-- Em breve a luz se fará e a escuridão irá se tornar apenas um manto com o qual se cobrirão em busca de descanso. -- Seus espíritos estão prontos. Nada têm a temer. Confiem! -- Confiem! Repetiu a voz. -- Confiem. Ressoou mais uma vez a voz. -- Confiança... entendimento... saber... confiança! Lentamente tudo foi voltando ao normal. A sala que até então encontrava-se tomada por um silêncio absoluto começou a ser invadida pelo som de nossas respirações. Não havia espaço para movimentos bruscos e desordenados. A harmonia que pairava perene na dimensão do uno se unira tão fortemente a nossas essências eternas que manifestá-la no ambiente mais denso tornou-se natural a todos. -- Agradeço a benção de haver compartilhado desta experiência única. Agora devo retornar a minha realidade. Falou Eve. -- Também já se faz presente minha hora. Com profunda admiração seguirei minha jornada. Acompanhou-a Set. -- Sempre que desejarem e puderem serão bem vindos entre nós. Proclamou Darkness. -- Até outra ocasião em que nossos espíritos se unam. Despediu-se Eve. -- Fiquem com a paz que habita nossos âmagos. Set parecia tocado de modo especial por tudo que vivenciamos. A partida de ambos se fez tão naturalmente que mesmo depois de já não estarem mais presentes, podíamos sentir suas vibrações irmanadas as nossas. De acordo com Darkness, jamais deixaríamos de sentir a energia um do outro. -- Conseguem compreender a grandiosidade de tudo que experimentaram? Sondou-nos nosso amigo. -- Sim. Estejamos onde estivermos, seremos sempre um farol para aqueles que procuram pela verdade. Proclamou Fobos. -- Mesmo na morte, encontraremos a vida, pois a eternidade nos foi assegurada. Prosseguiu Lilith. -- Jamais nos encontraremos sozinhos. Muitos são aqueles que nos amparam em todos os momentos. Falei a seguir. -- Nossos passos nos conduzirão ao encontro daqueles que se encontram perdidos no caminho para a elevação. Pandora foi a próxima. -- Somos um e somos todos. Somos uno. Nada poderá romper a união que nos tornou parte do todo. Manifestou-se Deimos. -- A montanha, o mar, o deserto ou qualquer outro elemento não representará hiato em nossa jornada. Serão sempre estágios que

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devemos utilizar para o aprimoramento de nossas vibrações. Asseverou Mefisto. -- Na certeza de nossa vitória depositaremos os esforços de nossas ações. Os frutos já produzem novas sementes. Tel espantou-se com as próprias palavras. -- Manteremos nossos espíritos em alerta e sempre solícitos as tarefas que nos cabem. Afirmou Lorena. -- Manifestaremos nossos empenhos sempre que se fizer necessário. Nunca nos omitiremos quaisquer que forem as ocasiões. Fred confirmou a determinação de todos. -- Mesmo que a fadiga nos atinja, não recusaremos auxilio aos necessitados. Concluiu Tim. -- Louvor e gloria cingem seus semblantes. Doravante serão archotes em meio à escuridão. Os votos que acabaram de proclamar devem orientar suas ações de hoje em diante. Nunca se esqueçam da palavra empenhada com tanto ardor. Advertiu Darkness. Novamente a sala foi dominada pelo silêncio. Olhos cerrados, pulsações controladas, as últimas nuances do contato estabelecido iam se perdendo na latência de nossas mentes. Ainda absortos em nossas vibrações, permanecemos a sorver da energia que acompanhava o fluir da vida. Um após o outro, voltamos a despertar para o mundo físico. Os fatos percebidos e experimentados na dimensão imaterial não romperam o círculo. Somente quando o último de nós manifestou-se conscientemente, foi que Darkness assumiu seu papel de condutor da cerimônia. -- Lentamente voltem a seus lugares. O círculo se fechou e nunca mais será desfeito. Nossos espíritos são pontos formadores e onde quer que estejamos, sempre seremos parte deste círculo sem fim. -- Acabou? Indagou Pandora. -- Não. A jornada de todos está apenas começando. Nunca mais serão os mesmos. A transmutação filosofal os tornou plenos. -- Transmutação filosofal! Admirou-se Tim. -- Sim. Esqueçam aquele papo maluco de transformar metal em ouro, isto não existe. A transmutação filosofal nada mais é que a conscientização de serem eternos e espíritos. Deixaram de ser matéria e passaram a ser uno. -- Simples assim? Perguntou Mefisto. -- Considera simples uma mudança que demorou séculos para se processar? Muitas vidas foram necessárias para que estivessem prontos para este momento. Suas ações permanecerão indelevelmente aderidas as suas consciências. Elas são a base de todo agir que lhes será solicitado.

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-- Quanto mais existem? Quis saber Lilith. -- Poucos. A maioria se perdeu e encontra-se afastada de tudo que esteja ligado ao sagrado. -- Por que? Questionou Fobos. -- Porque o apego as ilusões é muito forte. Não tanto quanto a força verdadeira, mas o suficiente para que a maioria se deixasse corromper e desviar-se do caminho. -- O que acontece com elas? Indagou Deimos. -- Fenecem! -- Para sempre! Mefisto expressou mais um lamento que uma dúvida. -- Isto depende. Enquanto não ultrapassarem o ponto onde as energias positivas podem agir, existirá uma esperança. Débil, mas uma esperança. -- Por que não se libertam de suas ilusões? Pandora mostravase aflita. -- Porque alimentaram suas ilusões em demasia. Seus sentidos encontram-se entorpecidos pelo desejo de desfrutarem de sensações pueris. Não se interessam pelas lições que a vida lhes oferece. -- Afirmou que somos poucos. Como poderemos executar nossa tarefa? Perguntou Fobos. -- Aquele que permanece fiel aos ditames da Verdade nunca se encontra só. Sempre haverá espíritos auxiliadores a acompanhá-lo. -- Vejam só como é a vida! Manifestou-se Mefisto. Pensávamos que éramos as aberrações do mundo e agora nos vemos elevados a condição de auxiliadores! Só mesmo nosso sinistro amigo para nos colocar no caminho certo. -- Por que considera que eram as aberrações do mundo? Questionou Darkness. -- Ora, o que mais dá para pensar de um bando que se veste de preto, adora a melancolia, detesta a alegria, se encanta com a morte, prefere os cemitérios as casas de baladas, enfim, um tanto estranho, não concorda? -- Será mesmo? Fobos? Fobos sempre foi nosso líder, mas a solicitação de Darkness para que se manifestasse naquele instante o deixou indeciso. O que ele gostaria que falasse? Não querendo permitir que sua oportunidade se perdesse no mutismo, respirou fundo, fechou os olhos por alguns instantes e depois falou: -- Acredito que nunca fomos nenhuma espécie de aberração. Os fatos relatados por Mefisto são verdadeiros, mas refletem, não uma tendência aberrante, mas sim uma posição dolente ante a insensibilidade do

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mundo. Sei que estamos unidos ao uno e que deveremos espelhar a força que nos alimenta, mesmo assim sinto que sou tão gótico quanto antes. Ainda aprecio tudo que foi relatado, só que já não possuo mais a tendência para dramatizar os fatos. Pela primeira vez partilhávamos de um discurso tão demorado de nosso líder. Fobos sempre fora o mais sucinto possível. Não era dado a frases muito longas. Devido ao silêncio que se fez, Mefisto se viu na obrigação de retomar a palavra: -- Muito bem, Fobos! Não esperaria outra atitude vinda de você. Não disse o que disse para provocar ou afrontar. Desejava apenas expressar minha admiração por minha própria conduta. Pode não parecer importante para vocês, mas considerem o fato de que os acompanhava por me sentir amado pelo grupo, não porque fosse igual a vocês. Minha ligação é tão mais especial justamente por isto. Sei que me aceitavam como era e isto sempre me propiciou mais que ousava desejar. Devido ao caráter zombeteiro que Mefisto sempre fez questão de demonstrar, não esperávamos por aquele discurso. Inesperado como foi, só tivemos uma reação. Aproximamo-nos dele e o abraçamos ao mesmo tempo. Emocionados como estávamos, foi difícil conter algumas lágrimas. Darkness permaneceu afastado assistindo nossa manifestação de amizade. Intimamente sentia-se recompensado. Seu empenho em nos trazer à Luz havia resultado em sucesso. Enquanto comemorávamos nossa vitória, ele sentia o amargo de sua maldição corroer os frutos de seu empenho. Mais uma vez lamentou sua sina desafortunada. -- Hei, vamos deixar de sentimentalismos e voltar ao normal! Conclamou Mefisto. Temos uma festa para curtir. -- A festa! Deimos expressou um espanto autêntico. Estávamos tão envolvidos pela cerimônia que olvidamos que uma festa estava rolando no andar inferior da mansão. A confraternização prolongou-se pela madrugada. Todos pareciam pressentir que dificilmente algo semelhante aconteceria com brevidade. Uma aura plangente permeava toda atmosfera. Todos se deixaram envolver pelo ar festivo e acabaram mantendo-se a margem da brisa dolente que soprava. Somente Darkness se manteve impassível. Ao notá-lo tão compenetrado, aproximei-me. -- Não lhe agrada a comemoração? -- Oh, não! Sempre sinto uma satisfação sem igual ao notar o quanto são tocado por esta índole festiva. -- Não parece estar muito feliz.

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pleitear.

-- Sabe que a felicidade é algo que não tenho direito de

-- Nunca entendi muito bem esta sua condição de amaldiçoado. O que de tão grave cometeu? -- Um dia poderei lhe contar. Hoje ainda não é o momento para isto. -- Não está confundindo um pouco as emoções que agitam seu íntimo? -- O que? -- Notei o quanto se abalou com a presença de Eve. Registrei a distensão que se apoderou de suas vibrações. -- Sempre certifica minha certeza. Desde que me aproximei do grupo senti que era um dos mais preparados para o amadurecimento. -- Eu? -- Já não pode mais ocultar o dom que possui. Ele é decorrente do processo de desenvolvimento que experimentou em suas muitas encarnações. O fato de manter-se tímido por tanto tempo não atrapalhou em nada. -- Ainda me sinto um pouco temeroso quanto àquilo que me aguarda. Tenho receio de não corresponder à expectativa que deposita em mim. -- Não tem que se preocupar com isto. Não se fie em nada que não nasça em seu próprio íntimo. Além do que, não tenho expectativa alguma com relação a nada. Minha participação resume-se em apontar-lhes o caminho, despertá-los para suas verdadeiras essências. -- Por que não pode nos acompanhar em nossa vitória? -- Porque minha essência se faz trágica. Um dia entenderá porque. -- Também nos julgávamos trágicos. A melancolia que nos consumia impedia-nos de admirar muito daquilo que a vida oferece. Não que esteja renegando minha aura gótica, mas o pendor para a dor sempre se mostrou maior que o anseio pela ventura. -- Sabe por que aqueles que lhes são semelhantes se comportam de modo tão pungente? -- Acho que por sermos tristes em excesso. Talvez nossa natureza seja um tanto trágica. -- Não, meu amigo. O comportamento dolente tão característico a todos que se deixam tocar pela conduta que escolheram, reflete a sensibilidade que habita suas almas. É como se seus espíritos estivessem bradando por um espaço que já não existisse, mas que intimamente sentem que os aguarda em algum lugar.

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-- Por isto somos tão tendenciosos ao suicídio? -- Não. O suicídio não é característico daqueles que seguem modo de vida gótico. Quantas vezes avaliou as estatísticas a respeito das pessoas que cometem suicídio? -- Nunca. -- Pois se fizer isto, irá verificar que a quantidade de indivíduos que tentam o suicídio é muito maior entre aqueles que se dizem normais do que entre os góticos. Atentar contra a própria vida é resultado de um estado tão debilitado do espírito que a pessoa já não tem mais condições de enfrentar as vicissitudes que a vida lhe impõe. -- Set sucumbiu a elas. -- Set é um exemplo à parte. Ele estava consciente do erro que cometia. Sabia que sua força era suficiente para evitar um ato tão contrário as leis, mas deixou-se iludir pela perspectiva de se tornar um apoio àqueles que penam no vale. Somente experimentando as agruras dos desesperados, poderia encontrar a verdade. -- O que nos reserva o futuro? -- Quem sabe? Têm um caminho todo para percorrerem. Tudo vai depender das escolhas que fizerem. -- Quanto aqueles que nos causaram tanto mal? -- Será que os atos que praticaram resultou em algo tão maléfico, assim? Acredita que poderia encontrar o grupo se nada daquilo que lhe aconteceu houvesse se passado? -- Quero crer que quando estamos preparados para o encontro, ele se realiza independente de qualquer fator externo. -- É claro que sim. -- Mas então? -- Esquece-se dos laços estabelecidos em outras vidas? Eles precisam ser fortalecidos ou rompidos. Não pode avançar se um deles, apenas um seria o bastante, o impede de agir com liberdade. -- Refere-se ao resgate que se impõe a cada novo nascer? -- Também. O estreitamento ou rompimento dos laços vai além do resgate de possíveis falhas cometidas em outras vidas. Há todo um processo de atração de igual espécie que o torna ainda mais capital. Se nos deixamos conduzir por pendores negativos, não podemos acreditar que energias positivas nos abraçarão. Na Criação não existe arbitrariedade. -- Mas rompi com meus familiares e ainda assim sinto como se permanecesse preso a eles. -- Romper relações em uma vida não é o mesmo que romper os laços que os unem. Precisa mais para que a liberdade possa atingi-lo. -- O que ainda me resta fazer?

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-- Permanecer firme no caminho que escolheu. -- Não pretendo deixá-lo. -- As vezes não basta nosso desejo. Precisamos demonstrar com atitudes e pensamentos o quanto estamos comprometidos com nosso juramento. -- Pensa que ainda corro risco de falhar? -- Todos corremos. Mesmo aqueles que já se encontram além das encarnações que são necessárias para o desenvolvimento pleno, podem vir a sucumbir ante as exigências da criação. -- Mas já não atingiram o desenvolvimento pleno? -- Quem é aquele que os humanos mais abominam por estar associado a todo mal que se espalha pela Terra? -- O diabo? -- Diabo! Está é uma designação imprecisa. -- Está certo. Lúcifer! -- Exato. Sabe quem é Lúcifer? -- Um anjo? -- Um arcanjo. Um integrante da mais alta falange da criação. Tão desenvolvido que coexistia junto ao plano divino. O que fez ao ter a possibilidade de optar por servir ou ser servido? -- Falhou! -- Então não espere que um espírito que atingiu a perfeição depois de peregrinar por vidas e vidas, encontre-se afastado de incorrer no mesmo risco. -- Como evitar cometer tal erro? -- Permanecendo sempre em alerta. Mantendo a intuição desperta. Analisando os pequenos detalhes de tudo que se passa em sua existência. Lembre-se: o importante se encontra aderido aos detalhes. -- Como assim? -- Pense um pouco. Uma pessoa muito erudita, qualquer que seja seu campo de atuação, quando solicitada a expressar seus conhecimentos, prepara-se com antecedência e estuda o modo pelo qual apresentará suas idéias. -- Mas este é o comportamento que se espera de alguém em tal posição. -- Exatamente. Esta expectativa faz a pessoa travestir-se de uma personalidade que muitas vezes pode ser fictícia. Existir apenas naquele momento. -- Ainda não entendi onde quer chegar. -- Simplificarei. Digamos que a pessoa que esteja assim tão em evidência, utilize-se de máscaras. Para cada situação uma máscara

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diferente. Mas quando distante dos holofotes, em seu recanto particular, sem a necessidade de se mostrar tão eloqüente, despe-se de todas as máscaras e se mostra tal como realmente é. Então quem o observar nestes momentos, encontrará o verdadeiro ser por trás das máscaras. -- Ou seja, ao realizarmos aquelas tarefas mais rotineiras é que nos mostramos na intimidade? -- Percebe o alcance de tal visão? -- É muito difícil poder observar alguém nas condições que citou. -- Mesmo quando requisitados pelos compromissos mais exigentes, sempre sobra espaço para pequenos gestos. Elimine tudo que possa ser resultado de uma aprendizagem formal e o que sobra? Manifestações da índole, reflexos da maturidade espiritual do ser observado. -- Com que propósito devemos realizar tal observação? -- Para que não se surpreenda com associações equivocadas. Ao observar as pessoas com os olhos do espírito, poderá conhecê-las mais profundamente e assim optar por alianças que produzam bons frutos. -- Quando a pessoa não for confiável? -- Evite-as! Não tente modificar seus modos ou suas aspirações. Uma das leis inexoráveis nos alerta para o fato que é sempre mais certo que aquele que se encontra abaixo acabe carregando quem está acima para o abismo do que o inverso. -- Mas como poderemos auxiliar alguém, então? -- Ser auxiliador não quer dizer que deve se ocupar com a salvação de ninguém. Sua função resume-se em apontar o caminho, levar a verdadeira mensagem que conduz ao alto, nunca levantar e empurrar o indivíduo para esta ou aquela direção. O conhecimento adquirido por vocês os fez auxiliadores não condutores. -- Não será fácil ver alguém a quem tentamos auxiliar se perder e acabar despencando no abismo. -- Sempre será mais fácil se não permitir que a paixão o cegue. Eliminar a passionalidade é fundamental para que consigam cumprir suas tarefas com êxito. -- Manter-se à parte de certas pessoas é muito difícil. -- Eu sei! A paixão nos fere mais que qualquer derrota! O tom lamentoso utilizado por Darkness deixou claro que ele ainda se sentia muito ferido pelo acontecido. A morte de Eve ainda o deixava muito triste. Ao observá-lo, notei que seus olhos estavam tomados por lágrimas. -- Está supondo que lamento a morte de minha amada.

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-- E não? -- Não faz idéia do quanto é difícil não poder sentir o frescor de uma nova vida. O quanto é cruel ter que suportar o peso de seus erros sem vislumbrar qualquer chance de remissão. -- Não vai me dizer que nos inveja? -- Não! A inveja é um sentimento negativo e não é inerente a minha raça ser possuído por tais energias. Apenas lamento a danação que me consome. -- Não podemos fazer nada para atenuar sua consumação? -- Infelizmente não. À medida que forem evoluindo, compreenderão que em alguns casos não dá para intervir. Os efeitos retroativos de alguns atos são mais fortes que qualquer auxílio. -- Faz-me sentir um pouco incapaz. -- Oh, não! De modo algum deve se sentir assim. Casos iguais ao meu são uma raridade. Talvez até seja exclusividade minha. -- Como pode servir de ponte para muitos e não ter o direito de transitar por esta mesma ponte? -- Não há impedimento quanto ao transito, só não posso ocupar os planos superiores. Conduzi-los até lá, estabelecer a união com o uno ou mesmo despertá-los do longo sono em que se encontram é minha tarefa. O mais é apenas conseqüência das leis. -- Se conforma com sua situação? -- Nunca! Mas minha disposição em aceitar ou não meu estado não conta. Não pense que sofro a pressão originada de alguma injustiça. Sei que sou responsável por tudo que me toca. -- Você é mesmo muito misterioso! -- Nem tanto. Eve costumava dizer que eu era como uma ave a construir um ninho o qual jamais poderia habitar. -- Ela estava certa? -- Em parte, sim. Durante muito tempo acreditei que minha maldição seria eterna, mas as vezes, mesmo sendo muito raras estas ocasiões, sinto uma brisa suave a soprar em meu rosto, então parece como se ainda houvesse esperança. -- Então não é um caso perdido! -- Acho que não. Poderia prolongar aquele diálogo por dias a fio. Talvez por ser a primeira oportunidade que tinha para me entender mais profundamente com meu amigo, talvez porque me sentia irmanado com sua dor, ou mesmo por não estar muito descontraído. -- Hei, o que fazem aí? Interrompeu-nos Mefisto. -- Assuntos que não agradariam seus ouvidos. Respondi.

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-- Oh, conversa séria, não? -- Muito séria! Afirmei. -- Neste caso, vou saindo de mansinho. -- Espere. Solicitou Darkness. -- Sabia, quem me mandou vir até aqui! Lamentou Mefisto ironicamente. -- Como está a colônia? -- Ah, é sobre isto que deseja falar! Mefisto deu a entender que se colocava mais aliviado. -- Por que demonstra tanto receio que aborde assunto mais sério? Também não foi recrutado como auxiliador? -- É que... é que... -- Sim? -- Não sei como me portar diante de você. Seu olhar me intimida. -- Ah, então é isto! -- Sei que não tem motivo, mas não posso evitar. -- Talvez alguma palavra que tenha dito, heim? -- Não, acho que não. Talvez porque não sou de levar as situações muito a sério. -- E? -- Acreditava que iria me repreender por ser tão... tão... -- Infantil? -- É! -- Bem, vamos colocar as ponderações as claras. Nunca o vi como alguém infantil. Seu jeito zombeteiro era o ponto de contraste com a seriedade do momento. Sua descontração atenuava a sisudez necessária ao desenvolvimento de nossas preleções. Não que admiro atitudes zombeteiras, mas sempre soube que sua postura era superficial. Sua índole humorística nos propiciou muitos momentos alegres. -- Não se zangava com minhas brincadeiras? -- Nunca! -- Se soubesse disto tinha abusado mais. Mefisto talvez jamais viesse a perder seu temperamento zombeteiro. Naquele momento de descontração, percebi que ele sempre fora o ponto de equilíbrio em nossas discussões. Mesmo quando Fobos exercia sua liderança, ele sempre encontrava uma brecha para expressar seu lado humorístico. -- Não me falou como está a colônia. -- Tudo bem. Seu Geraldo sabe como levar as pessoas. -- Quanto a casa que solicitei?

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-- Tudo pronto. Antes que me esqueça, pode me contar quem é o casal que vai se mudar para lá? -- Surpresa! -- Devo considerar que sejam pessoas que eu conheça. -- Certamente. -- Você é sinistro, mesmo! -- Esta reunião é particular? Perguntou Deimos chegando com o resto do grupo. -- De modo algum. Respondeu Darkness. Sempre haverá espaço para todos. -- Os comensais já estão indo. Avisou Fobos. -- Tem transporte para todos. Basta que digam onde desejam descer. -- O que pensariam se soubessem que este local encontra-se em uma outra dimensão? Quis saber Pandora. -- Certamente pensariam que enlouquecemos. Zombou Mefisto. -- Ou quem sabe, que eles enlouqueceram. Falou Deimos. -- E vocês? Disparou darkness. -- Nós! Expressamos a surpresa pela pergunta. -- Sim. O que pensam a respeito? Um profundo silêncio se estabeleceu. Por instantes nossos olhares se cruzavam como se procurando sondar o que os outros pensavam a respeito. Depois de muito pensarmos, Fobos adiantou-se a todos e deu sua resposta: -- Penso que somos privilegiados por podermos estar aqui de forma consciente. Agradeço a confiança que nos deposita. -- Não tem porque agradecer. Vocês a conquistaram com determinação. E não se trata de privilégio algum poderem estar de modo consciente aqui. A maturidade que expressam é que possibilita este estado consciente. Mesmo que os considerasse mais que qualquer outra criatura, se não estivessem maduros, jamais poderia torná-los conscientes do plano que nos encontramos. -- Neste caso, um viva para nós! Bradou Mefisto. Percebendo que ninguém acompanhou seu raciocínio, explicou-se: -- Oras, se tudo é resultado de nossos esforços, merecemos uma ovação. -- Está totalmente certo. Anuiu Darkness. Merecem mais que uma simples ovação, merecem colher os frutos que nascem de seus

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esforços. Eles são mais que qualquer tesouro que pudessem acumular na matéria. -- Quando poderemos consumi-los? Aquela zombaria foi demais. Todos seguramos Mefisto e passamos a “castigá-lo” com abraços amistosos. Apesar de ser uma festa de despedidas, o ambiente havia se transmutado. Já não sentíamos mais a aura plangente que nos dominava quando chegáramos. A alegria mostrava incipiente em nossos íntimos. Duas semanas após a festa, Lilith e Fobos tinham tudo pronto para a partida. Não teriam que levar nada além de suas vestes e documentos. A casa para onde iriam já estava mobiliada e dotada de todos instrumentos necessários para uma vida confortável. Uma insistente garoa caia na noite que antecedia a manhã do adeus. Só mesmo a certeza de que era nossa última reunião nos levou até o cemitério. Ensopados e dominados pela emoção, quase que não conseguíamos realizar nossos ritos rotineiros. -- Bem, quem gostaria de começar? Perguntou-nos Fobos. -- Alguém tem algo preparado? Sondou Pandora. -- Eu tenho. Anunciei. -- Você! Surpreendeu-se Deimos. -- Sim. -- Pois fique a vontade para nos apresentar o que preparou. Consentiu Fobos. -- É uma poesia de despedida. -- Oh! Ouviu-se em uníssono. -- O título é Lágrimas. Esperei um minuto antes de começar a leitura. “-- Derramei lágrimas de sangue quando da morte do nós se antes do contato frio da lâmina cruel e insana verti a seiva que alimenta nossos sentimentos... vidas que farei quando a carne for varada pela foice mortal? Vísceras malfadas que gotejam o fluir do suspiro final. Derramei lágrimas de agonia quando do morrer do dia O manto negro da noite cobrindo a lucidez... loucura Minha alma vazando fel em leito de dor e trevas Capaz de sorrir a maldição do eu... bravura? Derramei lágrimas cristalinas quando se fez noite O vazio imperial da veste enlutada... só morte Que será do sonho que outrora embalava a alma Mísera vida... malogro do dia... funesta sorte.

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Derramei lágrimas de desalento quando me vi só Onde estão meus galhos, as ramas da união Quebrados e mortos jazem no manto da noite Já não se fazem faceiros... vivazes rompentes em risos Dobram-se ao inevitável... sombras que cobrem a razão. Derramei lágrimas... rios de lamentos sem fim Angústia cortante que lacera as veias da vida Mais que mortais, sempre a ferir sem perdão Zomba do sofrer, mortifica o coração. Somente quando verti lágrimas silentes Descobri que a vida é mais que um momento Não se perde a união na despedida Não se vai, a felicidade, soprada pelo vento!” Finda a leitura, silêncio! A garoa intensificou-se embalada por um vento um pouco mais revolto. As respirações mantinham-se inalteradas, mas o reflexo das sensações que nos dominavam era evidente em cada olhar. Unidos vibrávamos num único tom. -- Belo! Belíssimo! Entusiasmou-se Deimos. -- É bravo, bravíssimo! Corrigiu Pandora. -- Não, não! É belo mesmo! Insistiu Deimos. -- Belo, bravo, que importa? Interveio Lilith. Hades registrou aquilo que todos estamos sentindo. Por suas palavras, este momento ficará para sempre em minha memória. -- Também não esquecerei a emoção que fez desabrochar nesta hora. Suas palavras se tornarão indeléveis em minha alma. Afirmou Fobos. -- Hei, vamos parar com a rasgação de seda! Deste jeito vou desabar em lágrimas. Manifestou-se Deimos. -- Afinal, seu triunfo. Segredou-me Darkness. Devido a insistente garoa, que por hora havia se intensificado e tornado uma considerável precipitação pluvial, decidimos encerrar a reunião. Como Lilith e Fobos pretendiam partir logo pela manhã, fomos para sua casa. Embora não desse para acomodar todos com conforto, ninguém se sentiria incomodado. Estava tão absorto que não cheguei a pregar os olhos. Sentia como se devesse permanecer em vigília. Meus sentidos mantinham-se em alerta e eu nem sabia o porque. Solitário e silencioso, assisti ao mais triste amanhecer de minha vida.

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A garoa noturna havia se transformado em chuva e não dava sinais de que fosse arrefecer. Olhos cansados, fitei as densas nuvens que cobriam o céu. Verdadeiramente aquele seria um dia desprovido de sol. -- Hei, já desperto? Indagou-me Lilith. -- Para ser sincero, nem dormi. -- Está se sentindo bem? -- Difícil sentir-se bem em ocasião como esta, não acha? -- Está referindo-se a nossa partida? -- Ao que mais? -- Sabe que não é um adeus. -- Sei. -- Então? -- Demora um pouco para se acostumar com a idéia de que não poderemos estar juntos na hora que bem entendermos. -- No entanto, poderemos estar juntos em momentos muito mais especiais. -- Nossos encontros dimensionais? -- Exato. Já pensou no que significa a mudança pela qual passamos? -- Já. -- Não acha bárbaro? -- Muito. -- Não parece muito animado com isso. -- Sabia que Pandora também deve partir em breve? -- Sim. -- Primeiro Mefisto, depois Set, Eve, Você e Fobos e por fim Pandora. O que aconteceu com o grupo? -- Evoluiu! -- Precisava desintegrar-se também? -- Hades, Hades! Esqueceu-se das lições dadas por Darkness? Quantas e quantas vezes ele deixou claro que a distância, o tempo ou a condição em que nos encontramos não pode afastar os espíritos que estão irmanados? -- As vezes gostaria de que nada disso tivesse ocorrido. -- O que? E permanecer estacionado sem objetivos? -- Ao menos estaríamos juntos. -- Estamos mais juntos que nunca. Caso teimássemos em não aceitar o amadurecimento, chegaríamos a um ponto em que nossas diferenças falariam mais alto e, aí sim, o grupo estaria perdido. -- Pode ser.

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egoísta!

-- Sabe o que mais? Acho que você está sendo extremamente

-- O que? -- Pense bem, recebemos um tesouro muito valioso que, quando dividido, pode gerar benefícios a inúmeras pessoas. Por que desejar mantê-lo restrito entre nós? Que direito temos de negar a tantos a oportunidade de conhecer aquilo que nos foi ofertado de modo tão sublime? A admoestação de Lilith mexeu com minha covardia. Sim pois somente a covardia poderia estar comandando minhas emoções. Deixando que um sentido pranto vazasse por meus olhos, abracei-a com ternura e agradeci sua reprimenda. -- Obrigado pela dura. Acredito que esta maldita timidez, que mantém minha liberdade atada, seja o maior óbice que tenho a enfrentar. -- Não precisa mais se sentir tolhido pela inatividade. Seus receios são risíveis. A força que flui em seu ser é tão mais concentrada que em nós que fica difícil imaginá-lo atado a temores tão senis. -- Compreendo e concordo com você. Prometo que nunca mais permitirei que a timidez impeça-me de agir. -- Isso mesmo, amigo! Temos que compartilhar tudo que sabemos. O fato de nos separarmos reflete a necessidade de espalharmos o saber para tantos quantos pudermos. -- Hei, esta festinha é particular? Fobos chegou na sala no justo instante em que nos abraçávamos fraternalmente. -- De modo algum, seja bem vindo a nossa confraternização. Respondeu Lilith. -- Não, melhor não me confraternizar tão intimamente. -- Heim! Nos surpreendemos com a reação de Fobos. -- Vocês sabem, despedidas nos tornam sensíveis. Não estou a fim de me derramar em lágrimas. -- Ah! Demonstramos haver entendido o comportamento de Fobos. Aos poucos todos foram despertando. A chuva deu um intervalo, mas o céu permaneceu coberto pelas densas nuvens escuras. O pouco que Lilith e Fobos tinham para levar foi colocado na van. -- Bem, chegou à hora. Anunciou Fobos. -- Não precisam desabar em lágrimas. A distância só é grande neste plano. Afirmou Lilith. -- Sabemos disto. Não iremos chorar. Falou Pandora. -- Manteremos contato constante e sempre que possível podemos vir visitá-los ou vocês poderão nos visitar. Concluiu Fobos.

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-- Mefisto seguirá com vocês? Perguntei. -- Não. Antes de voltar à colônia tenho que resolver alguns assuntos na cidade onde minha família morava. -- Darkness nos acompanhará. Informou Lilith. -- Mesmo! Exclamou Deimos. -- Só para não ficar tendo que agüentar o choro de vocês. Zombou Darkness. -- E quem disse que ficaremos chorando? Desafiou Deimos. -- Basta observá-los. Fobos devolveu o desafio. Mesmo que só por brincadeira, a conversa estava muito perto da verdade. Somente a certeza de que nossos espíritos encontravam-se unidos de modo indissolúvel garantia-nos força para não permitir que fossemos tomados pelo mais sentido pranto. Sem perderem mais tempo acomodaram-se na van e aguardaram que Darkness os acompanhasse. O semblante de Darkness se mostrava sombrio. Longe de estar sentindo-se confortável, ele desejava ardentemente poder estar com Eve. Em silêncio acompanhamos a van desaparecer ao longe. Uma etapa havia se encerrado e outra apenas começava. Não havia tempo para intervalos ociosos. Precisávamos coordenar nossos esforços para que todo saber nos confiado pudesse ganhar espaço entre aqueles que nos cercavam. Os dias que se seguiram foram tranqüilos. Mefisto havia permanecido ainda mais alguns dias e com muita relutância partiu. Do grupo quase nada mais restava. Deimos decidiu que era hora de aderir ao grupo que sua família freqüentava. Não queria que a saudade invadisse seu íntimo. Estranhamente sentia-me indiferente ao caos que parecia ter se abatido sobre nós. Finalmente começava a ver as ocorrências com outros olhos. A cisão não representava um fim, mas o início de uma nova jornada. Agora que me via a sós, sentia que a responsabilidade havia aumentado. -- Sonhando acordado, rapaz. Antenor interrompeu minhas reflexões. -- Pensando no grupo. -- Vai demorar muito para me acostumar que aquelas pestes não irão mais aparecer por aqui. -- Também sinto falta deles, mas nada que um reencontro não resolva. -- Está referindo-se ao maluco do escuro? -- Como é! Maluco do escuro? Minha descontração deixou claro que minha admiração estava longe de abrigar qualquer rusga. -- Bem, sei que ele é boa pessoa, mas que é estranho isto ele é.

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-- Darkness acompanhou Lilith e Fobos e ainda não retornou. -- Deve estar perdido por aí. -- Não. Sinto que ele está ocupado com algo muito importante. -- O que seria? -- Ainda não sei, mas sinto que em breve ficarei sabendo. -- Está certo, mas não foi por isto que vim lhe procurar. -- O que foi? -- O pessoal anda se queixando que o club está meio caído. Precisando de umas reformas, entende? -- Eles têm razão. Há quanto tempo não realiza uma boa faxina no local? -- Uns oito anos. -- Está na hora de cuidarmos deste detalhe. -- Acontece que andei matutando um pouco e bolei algumas idéias. -- Vamos a elas! A intenção de Antenor em melhorar o aspecto do club acabou me contagiando e sem perceber me entreguei por inteiro naquela tarefa. Discutimos as idéias que ele me apresentou e estudamos a viabilidade de colocá-las em prática. Sentia-me satisfeito em poder retribuir um pouco de tudo que ele havia me dado. Fiquei tão envolvido com as reformas que cheguei a esquecer que Pandora também estava para mudar-se. Só me lembrei disto quando ela veio até o club acompanhada pelo irmão. -- Olá Hades! -- Pandora, que surpresa! -- Vim para me despedir. -- O que? Surpreendi-me de verdade. -- Sabia que estava de partida. Só aguardava que meu irmão pudesse vir nos buscar. -- Desculpe-me, é que fiquei tão envolvido com o trabalho que acabei me esquecendo. -- José deixou tudo acertado com Darkness. Ele irá providenciar a venda da casa e cuidará do valor arrecadado. -- Darkness está aqui? -- Não sabia? -- Não. Desde que ele acompanhou Lilith e Fobos não mais o vi. -- Ele retornou há dois dias. -- Também os acompanhará?

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-- Não. José veio de carro. Não temos nada para levar a não ser nossas roupas. -- Já estão indo? -- Já. Tim está se despedindo de Tel. -- Estão aí? -- Sim. -- Vamos até lá. Quero me despedir do menino. -- Vamos. Ao me despedir de Tim senti toda intensidade da união que nos envolvia. Em momento algum a tristeza abateu-se sobre meu ânimo. O brilho que pude observar nos olhos dele me deu a certeza de que aquela separação era apenas momentânea. -- Irá nos visitar, não é? -- Assim que for possível. -- Tel irá. -- Se Tel vai, eu também vou. -- Podem ir juntos. -- Podemos. -- Legal! -- O que estão tramando? Perguntou Tel que acabara de se aproximar. -- Tim sugeriu que fossemos visitá-lo, juntos. -- É uma ótima idéia. -- Posso ficar esperando? -- É claro que sim. -- Vejam quem chega! Falei apontando na direção do estacionamento. -- O que foi, pensaram que não viria me despedir? Deimos chegou apressado. -- Por pouco não nos perde. Já estávamos para ir. Falou Pandora. -- O que? Iriam sem se despedir? -- Quem manda ficar dormindo até tão tarde! Antes que partissem, Darkness surgiu. -- Contatei um amigo e ele cuidará do tratamento do menino. Informou. -- Sério! Tim mostrou-se muito contente com a novidade. -- Assim que chegarem e se acomodarem, procurem-no. Ele é muito bom em casos como este. Darkness entregou o endereço do médico para Pandora. -- Obrigada.

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-- Se cuidem. -- Pode deixar. Outra despedida. Outra jornada se iniciando. Outros caminhos a serem percorridos. Perdidos em nossos pensamentos, permanecemos ainda por um bom tempo a olhar na direção em que o carro sumiu. -- O que será de nós? Lamentou-se Deimos. -- Estou sentindo uma ponta de tristeza em seu âmago? Indaguei-o. -- É óbvio que sim! Até bem pouco éramos um grupo, agora... -- Ainda o somos! Mesmo distantes, ainda o somos. -- É, nosso amigo parece haver amadurecido. Comentou Darkness. -- Espero que sim. Vou precisar muito da ajuda dele. -- Como é? Espantei-me. -- O pessoal do grupo ao qual minha família pertence mostrouse muito interessado em conhecer os ensinamentos que recebemos. -- Mesmo? -- Considerando que são muitos, não poderei me ocupar com todos de modo satisfatório. Posso contar com sua colaboração? -- Mas é claro que sim. Darkness fitou-nos em silêncio. Seu olhar nos atingiu transmitindo força. Ele sabia que sua missão junto a nós estava encerrada. O grupo que apenas reunia-se para proclamar pensamentos lúgubres e realizar leituras sentimentalistas, tornara-se uma referência bendita para aqueles que procuravam pela Luz. Intimamente se sentiu menos amaldiçoado do que se julgava ser. Durante dias não foi possível pensar em nada que não estivesse relacionado à reforma do club ou as atividades ligadas ao grupo de Deimos. Em momento algum me dei conta da ausência de Darkness. Vez ou outra, duas para ser mais preciso, mantive breves contatos com os pais de Eve. Começava a me sentir totalmente independente quando ele surgiu no club. Seu aspecto era de uma pessoa cansada, angustiada e envelhecida. Se o êxito de suas ações haviam me inspirado pensamentos positivos com relação a força que ele pudesse haurir do sucesso, ao vê-lo quase me assustei: -- Darkness! -- Por que o espanto? -- Seu aspecto é horrível! -- Lamento, mas não tem como evitar. -- O que houve?

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-- As energias que empreguei nos últimos meses consumiram muito de minhas forças. Preciso ficar um tempo afastado. -- Está dizendo que também vai partir? -- É preciso. -- Mas e nós? -- Durante um tempo não haverá contato. Nem mesmo na outra dimensão. Tudo que tinha para lhe revelar já o fiz. Não há mais nada que possa acrescentar. -- Mas ainda tenho muitas dúvidas! -- É natural que tenha. Mesmo os mais evoluídos as têm. As perguntas que surgirem serão respondidas à medida que avançar em suas atividades. O portal para o entendimento foi aberto e somente sua decisão pode afastá-lo do plano original. -- E os outros? -- Sei que Fobos era o líder do grupo, mas em se tratando de assuntos espirituais, prefiro que você assuma a liderança. -- Eu? -- Minha escolha seria Eve, mas como ela não está presente, você é o mais indicado. -- Será que me aceitarão? -- Não se preocupe com eles. Sua maior preocupação deve ser enfrentar e superar sua própria limitação. Uma limitação que, aliás, só existe em sua mente. -- Tenho procurado superar minhas falhas, muitas vezes chego a pensar que já as superei, mas sempre surge um fator novo para me fazer ver que não. -- Toda vez que superar um bloqueio, outro surgirá a sua frente. Isto faz parte do processo de amadurecimento. Achou que ao progredir teria o caminho aplainado? -- Não havia refletido sobre isto, ainda. -- Eve me fez ver que sua timidez era resultado de escolhas equivocadas que havia feito em outras vidas. O fato de haver experimentado um poder quase ilimitado e cometido muitas falhas ao utilizá-lo, o deixou meio travado. Agora é o momento para revelar-lhe a profundidade de minha maldição. -- Vai me contar sobre seu erro? -- Tem tempo para isto? A história é longa. -- Claro. Vamos para meu quarto. Mais que me revelar seu erro, Darkness me mostrou os fatos que se desenrolaram há muito tempo em uma dimensão diversa da nossa.

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Imbuído de intenção nobre, olvidou os avisos que os mais velhos lhe deram e perpetrou a maior tragédia de sua vida. Cena a cena fui testemunhando todo drama que envolvia aquele a quem havia aprendido a respeitar como sendo o mais sublime dos seres. Sua tragédia o transformava em um ser tão normal quanto todos nós. Excetuando-se sua forma física, no mais éramos muito parecidos. A exibição de sua falta ajudou-me a relevar muito daquilo que constituía fator de retenção de minha potencialidade. Progressivamente fui sentindo que a timidez me abandonava. Tornava-me consciente dos erros que havia praticado no passado, mas ao contrário de me atar, a revelação me libertou. -- Entende minha condição? -- Sim. -- Se seus erros foram suficientes para mantê-lo preso a uma quase imobilidade, pode imaginar o que o meu tem ocasionado em minha existência. -- Mas quem eram aqueles que o condenaram? -- Os anciões de minha raça. -- Eles têm poder para isto? -- Minha raça foi criada muito antes do espírito humano ser enviado a matéria. Tínhamos a missão de preparar-lhes os planos inferiores. Todos fizeram sua parte. Eu falhei. -- Eve sabia disso? -- Sim. Logo que senti meu espírito unir-se ao dela, revelei-lhe tudo. -- E ela? -- Ignorou minha falta. Eve é um espírito evoluído que só estava entre nós por livre escolha. Ela queria servir de ponte para o momento que vivemos. -- Pensei que a ponte fosse você. -- Toda vez que um grupo de espíritos humanos acha-se próximo ao momento de evoluir, muitos espíritos se voluntariam para que eles tenham o apoio necessário para a passagem. -- Quer dizer que além de Eve e você, existiram outros? -- Lembra-se das primeiras vezes que contatamos a dimensão superior? -- Sim. -- Ouviram vozes sem divisar quem as pronunciava, certo? -- Certo. -- Eram os auxiliadores. -- Por que não os víamos?

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-- Acredita que vê-los poderia interferir na aceitação de tudo que lhes foi ofertado? -- Não. -- Nos planos etéreos não existe futilidades. Só se processa aquilo que é extremamente necessário ao desenvolvimento da criação. Conhecer seus auxiliadores não é uma delas. -- Mas as doutrinas existentes sempre afirmam que os parentes mortos estão a espera para nos receber quando partimos. -- Agora já sabe que não é assim. Os auxiliadores não possuem laços mais íntimos com seus auxiliados. Aliás, intimidade é algo que não existe em tais planos. Tudo é reflexo da maturidade de cada um. -- Mas certa vez pude ver meus pais no plano para onde foram levados após a passagem. -- Mas eles não são auxiliadores. A visão que teve foi permitida para que possa libertar-se dos elos que o prendem ao passado. -- O resgate! -- Sim. Existe algo que talvez ainda não tenha compreendido a respeito do resgate. -- O que seria? -- Na maioria das vezes, é necessária mais que uma vida para poder efetivá-lo. O enfraquecimento ocorre de modo tão lento quanto o recrudescer. Não existe saltos na evolução. -- Ainda voltarei a cruzar os caminhos deles? -- Certamente. -- Então os laços estarão mais tênues. -- Romper os laços não condiciona viver o resgate. É preciso que transforme as energias que fluem em seu interior. Ninguém consegue enganar seu próprio eu. -- Mas então o que é preciso fazer? -- Transmutar! Modificar a vibração da energia que os une. Tornar positiva a experiência negativa. -- Entendo. -- Sei que poderá cuidar disso. Depende de você. -- Quanto aos momentos de indecisão? -- Insista. Reflita com serenidade e insista. -- Pode me explicar mais um detalhe? -- Fale. -- Por que vivíamos de modo tão dolente? -- Sensibilidade. A sensibilidade que possuem os deixava suscetíveis as energias que perfluem a criação. Como não compreendiam a origem da pungente vibração, estigmatizavam-se agindo de modo mórbido.

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-- Deixamos de ser góticos? -- Não. O fato de haverem optado por este estilo de vida não comprometeu a evolução de nenhum de vocês, não foi? -- Set? -- Set se enredou por uma senda diferente. Não foi o fato de haver optado por externar sua aura plangente que o levou ao suicídio. Ele realmente acreditava que poderia auxiliar os deserdados do vale. -- Quer dizer que ainda podemos ser góticos? -- É claro que sim. O preconceito é exclusividade da matéria. -- Não faz idéia do peso que tirou de meus ombros. -- Agora tenho que ir. -- Obrigado! Por tudo. -- Agradeça aos auxiliadores. Eles e você têm todo crédito por aquilo que vivenciou e vivenciará. -- Pode ser, mas mesmo assim, obrigado. Este foi o último diálogo que pude ter com Darkness. Desde então, muitos contatos foram feitos e muito mais nos foi ofertado. Também estendemos nosso saber a muitos. A evolução, assim como o resgate, não se processa de imediato. Depois de muito tempo, isto vibrava em minha alma. Há exatos seis meses que não temos notícia alguma de nosso amigo. Intimamente sei que ainda o encontrarei outras vezes, mas mesmo assim, sinto que em certos momentos a saudade me oprime com mais intensidade. Nestas ocasiões, deixo-me levar pelas lembranças de tudo que vivenciamos e, com satisfação, noto o quanto ainda tenho para evoluir.

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O SOM DA ALMA Ouça! Não são palavras que soam Não são vernáculos vazios São sopros de vida São ventos em expansão. Escute! Não são minhas lamúrias senis Não são meus tormentos sem fim São ecos da eternidade conjunta São hinos do infinito plangente. Olhe! Não são fantasmas diáfanos Não são miragens confusas São entes que luzem imortais São luzes ígneas, espectrais. Veja!

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Não são momentos fugazes Não são sentimentos pueris São instantes de encanto supremo São emoções vindas da alma imortal. Brisa dolente soprando sobre o eu Mais que a solidão do agora insano Ruge a loucura atroz que consome e fulmina Brada o momento final ... a morte. E ainda assim resiste ao embate fatal Não se entrega ao abraço do fim Ergue-se e mira a lamina da derrota Zomba da dor ... sacrifício ... não mais sofrer assim. Mas antecede, ao fenecer, a chama da vida Assoma no âmago, do insistir, o clamor Pira onde arde a energia há tanto reprimida Verte, entre as achas ardentes, o Amor. Agora já não se faz mais imprescindível o vencer Já não tem importância a turbulência ou a calma Tudo se acaba no momento sublime em que Minha alma se entrega a sua e ambas se põem a ouvir O singelo verso que viaja ao som da alma.

DARKNESS IN MEMORIAM DE EVE

Eric Draven

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