Daniela Arbex - Holocausto Brasileiro
July 3, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Este livro é dedicado a milhares de homens, homens, mul- heres e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia. Ao meu marido, Marco, Marco, por tornar meus sonhos possíveis. Ao meu filho, Diego, Diego, a melhor parte parte de mim.
Agradecimentos
À minha mãe, Sônia, e meu padrasto, Francisco, fortalezas em meu caminho. A meu pai, José Arbex, meu adorável fã número um. À Isabel Salomão de Campos, por me ensin- ar que o bem e o amor ao próximo são passapor-
tes para a verdadeira felicidade. Ao jornalista Lúcio Vaz, por sua generosidade. Ao fotógrafo Roberto Fulgêncio, por quase duas décadas de parceria profissional. Ao Juracy Neves, diretor-presidente da
Tribuna de Minas, por ser um dos primeiros a me incentivar a escrever e por ter me dado a opor- tunidade de publicar no jornal esta e outras grandes histórias.
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Aos jornalistas Marise Baesso, Lilian Pace, e Paulo César Magella, pela amizade, apoio e compreensão. À Fundação Municipal de Cultura de Barba- cena (Fundac), pela cessão das fotos de Luiz Alfredo. Ao médico Ronaldo Simões e ao fotógrafo Luiz Alfredo, por terem confiado a mim suas histórias. Especialmente à Denise Gonçalves, por seu incomparável talento e dedicação a este projeto.
Prefácio
repórter luta contra o esquecimento. Transforma em palavra o que era silêncio. Faz memória. Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e iden- tidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de tal”. Eram um não ser. Pela
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narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. Ou ainda Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo
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porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava. São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, na cidade mineira de Barbacena. Como pessoas, não mais como corpos sem palavras, eles, que foram chamados de “doidos”, denun- ciam a loucura dos “normais”. As palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando ap- licada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maior- ia, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas
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cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos fun- cionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, ho- mossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais quais perderam a vir- gindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus docu- mentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças. Homens, mulheres e crianças, às vezes, co- miam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram
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atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo com- pacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs. Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezes- seis pessoas morriam a cada dia. Morriam de — tudo e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve ex- cesso de cadáveres e o mercado encolheu, os cor- pos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as
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ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida. Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os be- bês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi ad- otada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários “Uma pela menina. E repetia: mãe nunca se es- quece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, al- cançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas.
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Esta é a história que Daniela Arbex desvela, documenta e transforma em memória, neste livro-reportagem fundamental. Ao expor a anato- mia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de fun- cionários e também da sociedade. É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta. Em 1979, o psiqui- atra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e con- heceu o Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta”.
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Quando começou a apurar a série de report- agens que marcariam o nascimento deste livro, Daniela descobriu-se diante de um impasse. Seu Seu filho, Diego, tinha apenas quatro meses de vida. Ela tinha acabado de virar mãe, ainda ama- mentava e colocava-se, por vontade própria, no parapeito do horror. A repórter sabia que mergul- haria no inferno — e, de novo, aqui o inferno não é uma hipérbole. Sabia também que, no inferno, não há fim de expediente. Um repórter, quando faz bem o seu trabalho, é assinalado pelo que vive. A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo. Como repórter experiente, que, pela qualidade de suas matérias, ganhou os principais prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, Daniela sabia o que se estendia diante dela. dela. E, mesmo assim, fez a sua escolha. E o filho? Diego se orgulharia dela.
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Depois da série de reportagens publicada na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora, Daniela seguiu investigando. Viajava noventa e cinco quilômetros até Barbacena, todas as manhãs, e voltava à tarde, já exausta pelo que viu e ouviu, para iniciar a rotina no jornal. Entrevistou mais de cem pessoas, parte delas nunca tinha contado a sua história. Além de sobreviventes do holo- causto, Daniela escutou o testemunho de fun- cionários e de médicos. Um deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia denunciado o Colônia e reivin- dicado sua extinção: “O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e
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comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua for ma”. Perdeu o emprego. Umas poucas vezes, os esqueletos do Colônia subiram à superfície. Passada a comoção pública, voltavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre. Em 1961, a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro, pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco. O título da matéria era: “A sucursal do inferno”. Em 1979, o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os porões da loucura”, no Estado de Minas. O docu- mentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, tornou-se um símbolo da luta antimanicomial. No início dos anos 60, ao voltar para a redação de O Cruzeiro depois de conhecer a Colônia, “Aquilo o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: não é um acidente, mas um
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assassinato em massa”. Apesar da denúncia es- tampada na revista de maior sucesso da época, a realidade só começaria a mudar – lentamente – duas décadas mais tarde, a partir dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica ganhou força. Ho- je, restam menos de 200 sobreviventes. Parte deles morrerá internada, parte tenta inventar um cotidiano em residências terapêuticas, com os farrapos de delicadeza que lhe sobram. sobram. Como Sônia Maria da Costa, que às vezes coloca dois vestidos porque passou a vida nua. Neste livro, Daniela Arbex salvou do esque- cimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou.
Brum de 2013 São Paulo, 5 Eliane de fevereiro
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antigo Arraial da Igreja Nova de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo amanheceu especialmente especialmente
frio segunda-feira 1975. Uma pelanaquela janela azul de madeirade indicava que aespiada neblina típica dos meses de julho tomava conta da rua Demétrio Ribeiro, no bairro Santo Antônio. Lá dentro da casa rosa de oito cômodos, Marlene Laureano se preparava para sair. Filha de mãe italiana e pai descendente de índios, índios, a moça de vinte anos estava apreensiva. Antes das 5 horas da manhã, ela deixou o quarto e seguiu em direção à cozinha, onde a mãe esquentava esquentava leite no fogão à lenha. Vestida com calça de linho roxo e blusa rosa de algodão, roupa que só usava em ocasiões especiais, tomou o rápido café, despedindo-se em seguida. Já na rua, o ar gelado cortava o rosto da jovem. Fazia uns oito graus,
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mas a sensação era de temperatura negativa. O clima de temperaturas baixas para os padrões brasileiros ainda é uma das características de Barbacena, cidade encravada na serra da Mantiqueira, o maciço rochoso de Minas Gerais. O barulho que o sapato de solado de aço fazia ao tocar as ruas de pedra confirmava que Marlene tinha pressa. Trinta minutos de camin- hada, e lá estava ela de frente ao pontilhão que separava aquele lugar do resto da vila. Cruzou a estação ferroviária, vencendo o portão de ferro. Dali em diante, passou a andar pelo chão de terra batida em parte da área de mais de 8 milhões de metros quadrados.
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Carteira de trabalho de Marlene Laureano e folha de contratação.
Apesar do tamanho, o complexo não podia ser visto do lado de fora, por causa da muralha
que cercava todoespaço o terreno. Lá dentro,cinza, a di- to- mensão daquele asperamente mado por prédios com janelas amplas, porém porém gradeadas, impressionava. Marlene ainda pôde perceber no pátio alguns bancos cimentados. Ao final do trajeto, ela parou em frente ao Afonso Afonso
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Pena, um dos sete pavilhões do Departamento B, com cerca de 1.500 metros quadrados. Fechada por fora, a porta de madeira que dava acesso aos dormitórios começava a ser aberta. Um cheiro insuportável alcançou sua narina. Acostumada com o perfume das rosas do es- critório da Brasil Flowers, onde passou por sua única experiência profissional até aquele mo- mento, Marlene foi surpreendida pelo odor fétido, vindo do interior do prédio. Nem tinha se refeito de tamanho mal-estar, quando avistou montes de capim espalhados pelo chão. Junto ao mato havia seres humanos esquálidos. Duzentos e oitenta homens, a maioria nu, rastejavam pelo assoalho branco com tozetos pretos em meio à imundície do esgoto aberto que cruzava todo o pavilhão. Marlene sentiu vontade de vomitar. Não encontrava sentido em tudo aquilo, queria gritar, mas a voz desapareceu da garganta.
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Guiada por um funcionário, viu-se obrigada a entrar. Tentou evitar pisar naqueles seres des- figurados, mas eram tantos, que não havia como desviar. Só teve tempo de pensar que o mundo havia acabado, e não tinha sido avisada. Ainda com os pensamentos descoordenados, avistou num canto da ala um cadáver misturado entre os vivos. Observou quando dois homens de jaleco branco embrulharam o morto num lençol, o décimo sexto naquele dia, embora muitos outros agonizassem. Na tentativa de se aquecerem dur- ante a noite, os pacientes dormiam empilhados, sendo comum que os debaixo fossem encontra- dos mortos, como naquele dia 7. Contratada como atendente psiquiátrica, Marlene recebeu sua tarefa. Ficaria responsável pelo recolhimento diário do capim que deveria ser colocado para secar até que os guardas, nome dado aos servidores masculinos contratados pela
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FundaçãoEducacionaldeAssistência Psiquiátrica (FEAP), pudessem colocar a for- ragem vegetal de volta no pavilhão ao final do dia. — Meu Deus, eu não vou dar conta. Essas pessoas vão morrer — murmurava Marlene, ao iniciar a tarefa de recolher o capim.
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Em choque, cumpriu a rotina, embora sua mente estivesse no lugar modesto em que vivia, mas com cama limpa e quente para dormir. Pen- sou em desistir, porém não queria decepcionar os pais. Com ensino médio concluído no Colégio Tiradentes, a quinta filha de uma família de oito irmãos tinha passado em décimo lugar em con- curso do Estado, um feito para os Laureanos. A pergunta da mãe ecoava em sua cabeça. — Filha, é isso que você quer? Apesar de sentir medo do desconhecido, ela tinha certeza de que não seguiria os passos maternos. Durante trinta e dois anos, Regina trabalhou na Ferreira Guimarães. Saía de casa ainda de madrugada e caminhava quase duas horas para chegar ao serviço. A jornada exaustiva só ter- minava no final da tarde, quando a sirene da fábrica de tecidos anunciava que era hora de calar as máquinas. A lembrança dos sacrifícios
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enfrentados pela tecelã fez a filha esperar com ansiedade pelo primeiro dia do novo trabalho. O barulho da água caindo dentro do balde a despertou. Marlene iniciava agora a lavagem de toda a ala, na tentativa de desinfetar desinfetar o chão im- pregnado pelo cheiro de fezes e urina não só hu- manas, mas também dos ratos que dividiam o es- paço com os pacientes do Colônia, considerado o maior hospício do Brasil. Ao esfregar a vassoura contra o piso, a jovem viu o emprego dos sonhos transformar-se em pesadelo. Começara a trabal- har num campo de concentração travestido de hospital. Apesar de estar tomada pela indignação, sentiu – se impotente diante da instituição tradi- cional que mantinha, com o apoio da Igreja Católica, as portas abertas desde 1903. Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os
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diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sin- toma. Assim como ela, a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou – se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar. Em 1930, com a superlotação da unidade, uma história de extermínio começou a ser desenhada. Trinta anos depois, existiam 5 mil
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pacientes em lugar projetado inicialmente para 200. A substituição de camas por capim foi, en- tão, oficialmente sugerida, pelo chefe do De- partamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais, José Consenso Filho, como altern- ativa para o excesso de gente. A intenção era clara: economizar espaço nos pavilhões para caber mais e mais infelizes. O modelo do leito chão deu tão certo, que foi recomendado pelo Poder Público para outros hospitais mineiros em 1959. Somente em 1980, quando os primeiros ventos da reforma psiquiátrica no Brasil começaram a soprar por lá, é que os gemidos do desengano foram sendo substituídos por alguma esperança. Sessenta mil pessoas perderam a vida no Colônia. As cinco décadas mais dramáticas do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais dizimou, pelo menos, duas
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gerações de inocentes em 18.250 dias de horror. Restam hoje menos de 200 sobreviventes dessa tragédia silenciosa. Boa parte deles está aqui neste livro. E é pelo olhar das testemunhas, das vítimas e de alguns de seus algozes que a história do Holocausto Brasileiro começa a ser contada.
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Está chegando mais um “trem de doido” — gritou um funcionário do hospital. —
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Estação Bias Fortes, por onde chegavam os famosos “trens de o”, termo criado pelo escritor Guimarães Rosa para referir- doid o”, se ao caminho para a morte no Colônia. Foto cedida por Jairo
Toledo.
A parada na estação Bias Fortes Fortes era a última da longa viagem de trem que co cortava rtava o interior do país. Quando a locomotiva desacelerava, já
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nos fundos do Hospital Colônia, os passageiros se agitavam. Acuados e famintos, esperavam a ordem dos guardas para descer, seguindo em fila indiana na direção do desconhecido. Muitos nem sequer sabiam em que cidade tinham desembar- cado ou mesmo o motivo pelo qual foram des- pachados para aquele lugar. Os deserdados sociais chegavam a Barba- cena de vários cantos do Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mun- dial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão “trem de doido” surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época, marcava o in- ício de uma viagem sem volta ao inferno. O simbolismo da loucura nos contos de Guimarães Rosa indica que, assim como
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Marlene, um dos mais famosos escritores do país conhecia a realidade do Colônia. O romancista e contista foi médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista de 1932, ingressando, um ano depois, como oficial médico, no 9º Batalhão de Infantaria, em Barba- cena. No conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras estórias, lançado em 1962, o autor resgata a situação dos trens que chegavam apinhados de gente à capital brasileira da loucura, em busca de tratamento psiquiátrico. O escritor referia-se a Barbacena, descrevendo, por meio do personagem principal, a an- gústia de um homem na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. Sorôco jamais voltaria a ver seus afetos. As famílias dos pacientes do Colônia também não. Ao receberem o passaporte passaporte
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para o hospital, os passageiros tinham sua hu- manidade confiscada. Os recém-chegados à estação do Colônia eram levados para o setor de triagem. Lá, os novatos viam-se separados por sexo, idade e ca- racterísticas físicas. Eram obrigados a entregar seus pertences, mesmo que dispusessem do mín- imo, inclusive roupas e sapatos, um constrangi- mento que levava às lágrimas muitas mulheres que jamais haviam enfrentado a humilhação de ficar nuas em público. Todos passavam pelo banho coletivo, muitas vezes gelado. Os homens tinham ainda o cabelo raspado de maneira semel- hante à dos prisioneiros de guerra.
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“azulão”, a sessão de desinfecção, o grupo rece-te- bia Após o famoso uniforme azul de brim, cido incapaz de blindar as baixíssimas
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temperaturas da cidade. Assim, padronizado e vivi- olado em sua intimidade, seguia cada um um para o seu setor. Os homens eram encaminhados para o Departamento B, e os que tinham condição de trabalhar iam para o pavilhão Milton Campos, onde, em razão dos pequenos dormitórios, ficavam amontoados, sendo obrigados a juntar as camas para que nem todos dormissem dormissem no chão. As mulheres andavam em silêncio na direção do Departamento A, conhecido como Assistência. Daquele momento em diante, elas deixavam de ser filhas, mães, esposas, irmãs. As que não podiam pagar pela pela internação, mais de 80%, eram consideradas indigentes. Nesta condição, viam-se despidas do passado, às vezes, até mesmo da própria identidade. Sem docu- mentos, muitas pacientes do Colônia eram rebat- izadas pelos funcionários. Perdiam o nome de nascimento, sua história original e sua sua referência,
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como se tivessem aparecido no mundo sem al- guém que as parisse. Outros recebiam a alcunha “Ignorado de Tal”. Muitas ignoradas eram filhas de fazendeir- os as quais haviam perdido a virgindade ou ado- tavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa. Além do trem, muita gente era enviada para o hospital de ônibus ou em viatura policial. Vári- as requisições de internação eram assinadas por delegados. Antes da construção do Colônia, muitos dos chamados loucos em Minas tinham como
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destino as cadeias públicas ou as Santas Casas de Misericórdia, onde eram mantidos em anexos. Como a psiquiatria se constituiu no Brasil somente no início do século XIX, a assistência aos alienados ainda era algo incipiente no país, que teve o seu primeiro hospício, o Pedro II, in- stituído por decreto em 1841. Por isso, apesar de ser um hospital, o Colônia Colônia era carente de médi- cos. Até o final da década de 50, psiquiatras e clínicos ainda eram uma raridade por lá. O hospital acabou tendo a sua finalidade de- turpada desde os primeiros tempos. Já em 1914, há registros de queixas sobre as condições inad- equadas de atendimento, apesar das constantes liberações de suplementos de créditos aprovados pela Assembleia Legislativa. Considerado pela história oficial como um presente de grego para — Barbacena já que o hospício foi construído na cidade como prêmio de consolação, após perder a
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disputa com Belo Horizonte para ser a capital de Minas — , o Colônia, pelo contrário, atendeu a in- teresses políticos, impulsionando ainda a eco- nomia local. Além de produtor de flores, o mu- nicípio consolidou sua vocação para o comércio. Ganhou (e muito) fornecedores, além de mor- adores que viam no lugar a chance de um emprego bem remunerado, apesar da pouca qual- ificação dos candidatos. Mesmo com baixíssimo nível de escolaridade, os barbacenenses trocavam postos de trabalho por votos. Muitos coronéis da “nasceram” política mineira junto com o Colônia, transformando o hospital em grande curral eleitoral. O município se ressente até hoje da pecha do seu hospício, mas o comércio da loucura, que mais tarde despertou a gana das clínicas particu- lares, viabilizou o modelo de cidade que Barba- cena se tornou. Dezenove dos vinte e cinco
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hospitais psiquiátricos existentes em Minas até a década de 1980 estavam localizados no famoso corredor da loucura formado por Barbacena, Juiz de Fora e Belo Horizonte. Nesse período, as três cidades concentravam 80% dos leitos da saúde mental no Estado. Parâmetros da Organização Mundial da Saúde estabeleciam estabeleciam como referência três internações para cada mil beneficiários no país. Mas estudos do setor psiquiátrico mineiro revelaram quase sete internações para cada grupo de mil, em 1979. Em 1981, o número era superior a cinco. A cada duas consultas e meia, uma pess- oa era hospitalizada nas Gerais. Antônio Gomes da Silva, sessenta e oito anos, foi um dos pacientes encaminhados para o hospital, aos vinte e cinco anos. Há poucos regis- tros sobre o passado de Cabo, como Antônio foi apelidado. O que se conta sobre ele é que o desemprego se somou à bebedeira e ao
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“descontrole dos negócios”, como Antônio diz,
resultando em sua prisão. Hoje, passados mais de quarenta anos do episódio, o Cabo não sabe mais o motivo pelo qual foi mandado para o Colônia pela caneta de um delegado no dia 3 de janeiro de 1969.
Antônio Gomes da Silva, atualmente com sessenta e oito anos, um
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sobreviventes do hospital. Foto atual.
— Não sei por que me prenderam. Cada um
fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu
emprego, me mandaramtudo paraseo descontrolou. hospital, ondeDa eu cadeia, ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acos-
tumava. lugar. Se existe inferno, o Colônia era esse Antônio fala baixo, quase como se não quisesse lembrar. Tem o rosto apoiado às mãos, e, apesar da estatura alta, parece querer esconderesconder- se de si mesmo. Dentro da unidade, manteve-se calado durante vinte e um dos trinta e quatro anos em que ficou internado. Considerado mudo,
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soltou a voz, um dia, ao ouvir a banda de música do 9º Batalhão da Polícia Militar. — Por que você não disse que falava? — perguntou um funcionário da unidade, surpreso com a novidade. — Uai, nunca ninguém perguntou. Cabo também passou a vida assinando docu- mentos com as digitais. Até descobrirem que ele sabia escrever o próprio nome. Deixou o hospital em 2003, para morar numa residência terapêutica de Barbacena, uma das vinte e oito casas manti- das pela prefeitura da cidade em parceria com a ONG Instituto Bom Pastor. Quando se viu fora dos muros do hospital, não sabia como sobreviver sem amarras. — A que horas as luzes se apagam aqui? — perguntou na primeira noite liberto do cativeiro. Retirado do convívio social por quase meio século, ele jamais poderia imaginar que agora era
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o dono do seu tempo e que tinha ele mesmo o poder de clarear ou escurecer o ambiente com um simples toque no interruptor. Além de nunca ter visto um apagador de luz, ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de institu- cionalização. Para Antônio, no entanto, se des- vencilhar do Colônia foi tão difícil quanto mudar de endereço. O hospital estava ali, marcado não só em seu corpo, mas também impregnado em sua alma. Por isso, os pesadelos tornavam seu sono sobressaltado e se repetiam noite após noite. Acordava com o suor umedecendo o pijama e sempre com a mesma sensação de terror. Olhava ao redor para ver onde estava e descobria que os eletrochoques com os quais sonhava ainda o mantinham prisioneiro do Colônia.
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Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos pés para
que amarrado ao leito.colocada Os gritosàde medo eramfosse calados pela borracha força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cortada durante as descargas elétricas. O que acontecia após o choque Cabo não sabia. Perdia a consciência, quando o castigo
lhe era aplicado. O colega Antônio da Silva, o Toninho, lem- bra bem o que acontecia depois que o aparelho era ligado. Ele via os companheiros estrebuchar- em quase como se os olhos saltassem da face. Cabisbaixo, faz uma revelação: — Ajudei a dar choque em muitos colegas. Ficava segurando — confessa o homem que hoje tem quarenta e oito anos.
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Abandonado no Colônia aos doze anos pela família por causa de um quadro de de epilepsia, Toninho não era o único a participar disso. O eletrochoque era tão comum na unidade, que muitas vítimas se tornavam algozes depois que o efeito da descarga elétrica passava. Funcionário aposentado do hospital, Ger- aldo Magela Franco, sessenta e sete anos, admite que o tratamento de choque e o uso de medicações nem sempre tinham finalidades terapêuticas, mas de contenção e intimidação. Ele trabalhou vinte e nove anos no Colônia, onde foi contratado como vigia, em 9 de outubro de 1969. Permaneceu na unidade até 1998, e como não tinha formação adequada para lidar com os pa- cientes, aprendeu na cartilha dos funcionários mais antigos do que ele. — Não havia prescrição. A gente aprendia na prática sobre o que fazer, quando ocorria
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qualquer perturbação. No caso dos remédios, a gente dava quando o doente apresentava algum tipo de alteração. Em situações de epilepsia, ap- licávamos uma injeção. Se o cara, às vezes, se exaltava, ficava bravo, a gente dava uma injeção para ele se acalmar. Testemunha do holocausto, o médico Ron- aldo Simões Coelho, oitenta anos, garante que, de perto, o horror era ainda maior. — A coisa era muito pior do que parece. Havia um total desinteresse pela sorte. Basta dizer que os eletrochoques eram dados indiscrim- inadamente. Às vezes, a energia elétrica da cid- ade não era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, outros sofriam fraturas graves. Ronaldo foi contratado pelo Estado, em 29 de julho de 1971, como psiquiatra. Também foi secretário-geral da recém-criada Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica, substituída,
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em 77, pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais ( Fhemig ).
* A eletroconvulsoterapia existe, desde 1938,
para tratamento de doenças mentais, mas seu uso, uso, no século passado, foi muito controverso. A tecnologia do eletrochoque se modernizou há um par de décadas, sendo utilizada nos dias atuais com fins terapêuticos para alguns tipos de tran- stornos, como a depressão profunda, embora existam correntes contrárias ao seu uso. No Brasil, o método só passou a ter mais controle em 2002, quando o Conselho Federal de Medicina
estabeleceu regras específicas para a adoção da técnica, como a necessidade de aplicar anestesia geral. Além da anestesia, a utilização de relax- antes musculares ameniza as convulsões, mas
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nem sempre foi assim. No Colônia, o choque era aplicado a seco e tinha características semel- hantes à tortura. Para conseguir crescer profissionalmente dentro do hospital, os interessados precisavam passar por todas as etapas de atendimento na área da saúde, desde a aplicação de injeção até a real- ização de curativo e do temido eletrochoque.
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Francisca Moreira dos Reis, uma das principais testemunhas do holocausto, foi contratada pelo hospital como funcionária f uncionária em
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1977. Acima, foto da carteira de trabalho à época, e à esquerda, foto atual.
Francisca Moreira dos Reis, funcionária da cozinha, era uma das candidatas à vaga de atendente de enfermagem em 1979. Ela e outras vinte mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de choque nos pacientes masculinos do pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o exercício. Chiquinha, como é conhecida,
jamais havia feito nada parecido na vida, por isso, não sabia como iria reagir na hora das descargas. Decidiu que assistiria às colegas na prova prática, para, depois, iniciar o teste. A colega Maria do Carmo, que também era da cozinha, foi a primeira a tentar. Cortou um
pedaço de cobertor, encheu a boca do paciente, que a esta altura já estava amarrado na cama, molhou a testa dele e começou o procedimento.
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Contou mentalmente um, dois, três e aproximou os eletrodos das têmporas de sua cobaia, sem nenhum tipo de anestesia. Ligou a engenhoca na voltagem 110 e, após nova contagem, 120 de carga. O coração da jovem vítima não resistiu. O paciente morreu ali mesmo, de parada cardíaca, na frente de todos. Estarrecidas, as candidatas se mantiveram em silêncio. Algumas lágrimas teimaram em cair naqueles rostos assustados, mas ninguém ousou falar. Imediatamente, os atendentes do hospital embrulharam o coitado num lençol, como se aquele não fosse um cadáver. Simplesmente fizeram o pacote, colocaram no chão, e o corpo ainda quente ficou à espera de quem o recolhesse para o necrotério. “Menos um”, pensou o guarda enquanto fazia o serviço. A segunda candidata se aproximou de outra cama e, trêmula, iniciou a prova. O paciente
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escolhido era mais jovem que o primeiro. primeiro. Apar- entava ter menos de vinte anos. Com os olhos es- bugalhados de medo, ele até tentou reagir, mas não conseguia se mover preso ao leito. Suas súplicas foram abafadas pelo tecido que enchia a boca. Um, dois, três, nova contagem, e o homem recebeu a descarga. Não resistiu. Era a segunda morte da noite, e as aulas estavam estavam só começando. Chiquinha não suportou. — Não quero mais fazer esse curso — grit- ou, antes de sair correndo. Passou um bom tempo na cozinha até pedir baixa do emprego, para onde só voltaria em 1988.
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A primeira lembrança que Chiquinha tem do
Colônia é de 1965. Aos dez anos, ela ajudava a servir as pacientes no refeitório feminino. Apesar
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da pouca idade, a menina tinha entrada liberada no hospital, onde onde levava marmita para a mãe, Maria José Moreira, contratada em 1959. Nesse período, a filha da funcionária subia na mesa de cimento para distribuir café, única maneira de al- cançar as canecas de alumínio. Cresceu lidando de perto com o estigma da loucura, loucura, sem com- preender por que pessoas feitas de carne e osso como ela tinham perdido a liberdade.
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Documento de mulher internada em 1911 por tristeza. Fonte: Ar- quivo Público Mineiro.
Cansou de ouvir histórias sobre os loucos perigosos, mas as pessoas que ofereciam risco eram as mesmas que passavam a noite na porta do quarto dos plantonistas para proteger a filha da funcionária que dormiria lá. Mimada pelas pa- cientes, a menina não sentia medo. Pelo con- trário. Ficou amiga de Conceição Machado, uma das internas que mais resistiram ao encarcera- mento no Colônia. Aos quinze anos, Conceição foi mandada para o hospital, porque decidiu reivindicar do pai a mesma remuneração paga aos filhos machos. Embora trabalhasse como os irmãos na fazenda de Dores do Indaiá, município
pouco do centro-oeste dasdos Gerais, a filha dopovoado fazendeiro não desfrutava mesmos direitos. Pela atitude de rebeldia da adolescente,
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o pai aplicou o castigo. Decidiu colocar Con- ceição no famigerado “trem de doido”, único no país que fazia viagens sem sem volta. Em 10 de maio de 1942, ela deu entrada no hospital, de onde nunca mais saiu. Em trinta anos, nunca recebeu visita.
Conceição Machado é a mulher que está à esquerda da freira.
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No começo, a filha de Indaiá foi tomada pela indignação. Bonita, jovem e lúcida, não aceitava o diagnóstico de loucura. Por isso, agre- dia os guardas, desafiava com violência a ordem imposta. O peso da retaliação era maior do que a ousadia da adolescente. Como castigo, Conceição passou mais de dois anos trancada em cela inferi- or a dez metros quadrados. Só via a luz do sol vinte minutos por dia. Lutou com todas as suas forças para não se envergar diante do peso da sentença até decidir canalizar sua energia para tentar mudar o lugar que passou a ser seu mundo. Levantou a voz para exigir médicos, alimentação de qualidade, assistência digna, tornando-se líder de seu grupo. Um dia, indignada com o descaso imposto aos pacientes, ela tomou o caminho da sala do então diretor José Theobaldo Tollendal. Entrou
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gritando. Surpreso, ele levantou-se da cadeira. Fi- caram separados pela mesa. — Senhor diretor, prove este café. Se servir para o senhor tomar, tomar, também serve para as pa- cientes — desafiou Conceição. A dor de Conceição tocou a filha da fun- cionária, mas foi a garra dela que conquistou o respeito da menina. Aos catorze anos, Chiquinha arranjou namorado e prometeu à paciente que a levaria para assistir ao seu casamento. Dito e feito. Quando Chiquinha, aos quinze anos, se uniu ao cabo da Aeronáutica Pedro Vitorino dos Reis, de dezenove anos, na Igreja São José, Con- ceição estava lá para assistir à cerimônia. Estava com quarenta e três anos e, mesmo sabendo que o Colônia tinha se apropriado do seu futuro, dese- java o melhor para a amiga. Pelo menos alguém que conhecia teria a chance de ser feliz.
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O exemplo de garra de Conceição Conceição marcou a vida de Chiquinha. Assim como a amiga de Indaiá, ela também queria ser porta-voz de seu grupo, em busca de melhorias. Chiquinha tornou- se diretora do Sindicato Único da Saúde. Aos cinquenta e sete anos, representa quase 20 mil servidores mineiros. Foi Maria José quem pediu à filha para se inscrever no concurso público que daria direito a uma vaga na instituição. À época, bastava uma carta de recomendação de um político local para garantir a vaga. Havia se valido desse recurso para entrar no Colônia, permanecendo trinta anos no emprego. A mãe de Francisca Francisca começou a tra- balhar no pavilhão Crispim, que abrigava 350 mulheres, sendo responsável pela limpeza da ala e pela higiene das pacientes. Sem saber ler nem escrever, distribuía pelas cores os dois únicos comprimidos disponíveis na farmácia: Amplictil
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e Diazepam. Quando a intenção era acalmar os ânimos, ela lançava mão de dois rosas, com efeito sedativo. Para reduzir a ansiedade, usava dois azuis. Com então vinte e dois anos, Chiquinha seguiu o conselho da mãe, sendo contratada no Colônia, em 1977, como auxiliar de serviços gerais. Optou pela cozinha, pois preferia enfrent- ar as caldeiras ao cheiro dos pavilhões. — Qual é o cardápio? — perguntou Chiquinha em seu primeiro dia como funcionária. — Simples — ouviu da veterana. — Se- gunda, quarta e sexta, arroz, feijão, ovo cozido e macarrão branco. Terça, quinta, sábado e domin- go a variação é feita com carne moída. — E para as pensionistas, a mesma coisa? — Claro que não. Quem pode pagar come melhor. Em vez de ovo, omelete. A gente
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também incrementa a carne moída e faz uns bol- inhos ou hambúrguer. O macarrão vai com molho. — E o jantar? — Para as indigentes, sopa sopa de macarrão branco. Entendeu? Chiquinha fez que sim com a cabeça, mas saiu para chorar no pátio. Embora já conhecesse o Colônia havia nove anos, o que antes era apen- as brincadeira de criança se transformou em ex- periência cruel. Por dia, a cozinha gastava 120 quilos de arroz e apenas sessenta quilos de feijão para alimentar um exército de 4.800 pessoas. Como a quantidade não dava, o jeito era engross- ar a água preta com farinha de mandioca na tent- ativa de encorpar o caldo e fazer a comida render. Além de aguada, a comida era insossa, pois quase não levava tempero. À época da colheita de milho, todas as refeições eram provenientes dos
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grãos da espiga, sendo comum diarreia provo- cada pelo excesso de amido. Quando havia carne, ela era triturada e misturada às refeições, já que faca e garfo eram proibidos. Farta mesmo somente a quantidade de verduras colhidas na horta do hospital e levadas para a cozinha em um pequeno caminhão. Apesar de couve em quan- tidade, faltava funcionário para picar tudo aquilo. Por isso, boa parte das folhas tinha o lixo como destino. Chiquinha tem agora o olhar perdido, os ol- hos encharcados de lágrimas, quase a ponto de transbordar. Trinta e cinco anos depois, tem o pensamento direcionado para o ontem. — Eu não sabia o tamanho da tragédia. Hoje sei e me arrependo de não ter dado o grito mais cedo. Acho que eu podia ter evitado alguma morte. Quantas? Muitas talvez.
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A sensação de impotência diante das atro- cidades ocorridas dentro dos muros do hospital é comum a funcionários e ex-funcionários do Colônia. Muitos contam que desejaram denunciar o sistema, mas não havia quem se dispusesse a ouvir. Vinte e oito presidentes do Estado de Mi- nas Gerais, entre interventores federais e gover- nadores, revezaram – se no poder desde a criação do Colônia, entre 1903 e 1980. Outros dez diretores comandaram a instituição nesse per- íodo, alguns por mais de vinte anos, como o médico Joaquim Dutra, o primeiro dirigente. Em 1961, o presidente Jânio Quadros colocou o apar- ato governamental a serviço da instituição para para reverter “o calamitoso nível de assistência dada aos enfermos”. Deputados mineiros criaram comissões para discutir a situação da unidade dez anos depois. Nenhum deles foi capaz de fazer os abusos cessarem. Dentro do hospital, apesar de
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ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas.
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ome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água. Nem todos tinham estômago para se alimentarem de bichos, mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade. Além da alimentação racionada, no intervalo entre o almoço e o jantar, servidos ao meio-dia e às 5 horas da tarde, os pa- cientes não comiam nada. O dia começava com café, pão e manteiga distribuídos somente para os que estivessem em fila. A alimentação empobre- cida não era a única a debilitar o organismo. Apesar de o café da manhã ser fornecido às 8 horas, três horas antes os pacientes já tinham que estar de pé. Eles seguiam para o pátio de mad- rugada, inclusive nos dias de chuva. Geraldo Magela Franco, um dos guardas que cuidavam da disciplina em 1969, ano em que foi contratado, ainda lembra em detalhes a rotina
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que cumpriu por três décadas. Aos sessenta e sete anos, o aposentado demonstra estar em dia com a memória. — A gente tinha que acordar os pacientes às 5 horas para entregar o pavilhão em ordem ao próximo plantão que começava às 7 horas. Eles eram colocados no pátio houvesse o frio que fosse. Os doentes ficavam lá o dia inteiro e só voltavam aos prédios no início da noite para dormir. O frio cortava a pele exposta, exposta, fazia os mús- culos enrijecerem e a boca ressecar até ganhar feridas. Embora fosse mais fácil culpar os pa- cientes por exporem o corpo sem pudor, a nudez não era uma opção. Muitas roupas roupas eram peças únicas, por isso, no dia em que elas eram recolhi- das para a lavanderia, o interno não tinha o que vestir. Se não conseguisse recorrer à caridade
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alheia, por meio de doação, era obrigado a entregar-se à exposição indesejada. Ao seguirem pelados para o pátio, os con- siderados loucos iniciavam o mesmo ritual da madrugada anterior. Em movimentos ritmados, agrupavam-se tão próximos, que formavam uma massa humana. Vagavam juntos, com os braços unidos, para que o movimento e a proximidade ajudassem a aquecer. Os de dentro da roda, mais protegidos do vento, trocavam de lugar com os de fora. Assim, todos conseguiam receber calor, pelo menos por algum tempo. Os que ainda vestiam alguma coisa en- tregavam os trapos para acender fogueira. Nem sempre havia pano suficiente para alimentar o fogo, mas cada um procurava colaborar com com o que dispunha. Difícil imaginar que, em meio ao abandono extremo, ainda restasse forças para ajudar.
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Sônia Maria da Costa, paciente internada no Colônia por mais de quarenta quarenta anos, era temida por muitos, mas também reconhecida como tu- tora do grupo. Embora tivesse adotado o com- portamento agressivo como arma, era ela quem ajudava a curar sem remédio. Terezinha, outra esquecida, conhecia o melhor lado da da amiga. Sônia improvisava socorro nas crises de otite de Terezinha, quando não havia sequer analgésico para amenizar a dor. Aquecia remendos de cober- tor no pátio, sustentava a cabeça da protegida entre os braços e aproximava o pano do ouvido que latejava sem trégua. Sentada no chão de ci- mento, ela repetia o gesto até que a amiga ad- ormecesse em seu colo. Mantinha o cuidado pelos dias seguintes na tentativa de fazer a in- flamação ceder. Nunca mais se separaram. Quase
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cinco décadas depois, permanecem juntas, como se uma tivesse saído de dentro da outra.
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Órfã de pai e mãe, Sônia adotou a amiga dentro do hospital. Estava ao lado dela durante as crises de epilepsia que faziam a baba escorrer pela boca, atraindo mosquitos. Quando Terezinha caía sem poder dar conta de si, a paciente mais velha procurava a torneira para molhar um pano e limpar o rosto dela, na tentativa de oferecer-lhe o mínimo de dignidade. Também ensinou a amiga a tomar banho e manter a higiene pessoal. — Todo dia eu rezava para ela não ter crises, tadinha. Tinha muita pena, porque não era esperta como eu e não tinha ninguém para cuidar dela. Não podia deixar que judiassem dela. Sônia demonstra lucidez ao falar do sofri- mento do passado. Somente em 2003, quando deixou o hospital para morar com Terezinha numa residência terapêutica de Barbacena, é que ela, aos cinquenta e três anos, soube o significado da palavra respeito. Rejeitada aos onze anos por
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fazer molecagem na rua, em Belo Horizonte, foi despachada para o hospital pela polícia. Antes, porém, apanhou muito de “uma dona aleijada” com quem morava, sendo obrigada a cozinhar, mesmo sem altura suficiente para alcançar o fo- gão. Para conseguir mexer as panelas, precisava subir num banquinho. Embora tenha aprendido a preparar um bom feijão com arroz, pegou birra da cozinha. A história de Sônia foi construída dentro do Colônia. Sua verdadeira data de nascimento é desconhecida. Por isso, o dia, mês e ano de seu aniversário são estimados: 28 de julho de 1950. No documento de identidade da antiga paciente, retirado quarenta e cinco anos depois do seu provável nascimento, Barbacena aparece como local de origem, embora o município não seja seja sua cidade natal. É como se ela tivesse aparecido no mundo sem que alguém a parisse.
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Sônia cresceu sozinha no hospital. Foi ví- tima de todos os tipos de violação. Sofreu agressão física, tomava choques diários, ficou trancada em cela úmida sem um único cobertor para se aquecer e tomou as famosas injeções de “entorta”, que causavam impregnação no organ- ismo e faziam a boca encher de cuspe. Deixada sem água, muitas vezes, ela bebia a própria própria urina para matar a sede. Tomava banho de de mergulho na banheira com fezes, uma espécie de castigo im- posto a pessoas que, como Sônia, não se enquad- ravam às regras. Por diversas vezes, teve sangue retirado sem o seu consentimento por vampiros humanos que enchiam recipientes de vidro, a fim de aplicá-lo em organismos mais debilitados que o dela, principalmente nos pacientes que pas- savam pela lobotomia. A intervenção cirúrgica no cérebro para seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo era recorrente no
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Colônia. Embora tenha sido considerada uma téc- nica bárbara da psicocirurgia, a lobotomia lobotomia ainda é realizada no país. As décadas de encarceramento deixaram em Sônia marcas físicas dos maus-tratos. Para curar as feridas abertas em seu corpo, ela jogava es- malte por cima da pele, provocando infecções di- fíceis de curar. Num dia de fúria e dor, arrancou o próprio dente com um alicate, porque não aguentava mais sentir o rosto latejar. Respondeu com violência ao período mais cinza da sua sua vida. Passou a ser temida, aprendeu a odiar. Foi vítima, mas também algoz. Apanhou muito, no entanto, vangloria-se de ter revidado e agredido fun- cionários e pacientes. Assim como a interna Celita Maria da Con- ceição, ela passou as próprias fezes no corpo dur- ante o período em que esteve grávida no hospital.
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Questionada sobre o ato repugnante, Sônia justificou:
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Sônia Maria da Costa, sobrevivente do holocausto, em foto de 1961, e hoje.
— Foi a única maneira que encontrei de
nin-
guém machucar meu neném. Suja deste jeito, nenhum funcionário vai ter coragem de encostar encostar a mão em mim. Assim, protejo meu filho que es- tá na barriga. O repelente humano foi adotado no Colônia por outras gestantes. Apesar de Sônia ter tido — dois filhos biológicos dentro do hospital a menina morreu, e o menino, hoje com vinte e cinco anos, está preso — , seu coração elegeu uma paciente como filha adotiva. Em 2003, quando teve a chance de ganhar um endereço, bateu pé. Só deixaria o Colônia se pudesse levar Terezinha com ela. Saíram juntas do hospital, de mãos dadas, pelo portão principal do Colônia. Não olharam para trás. Quando se
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aproximaram da residência terapêutica onde iri- am morar com outras cinco ex-internas do hospithospit- al, entraram desconfiadas. Os serviços residenci- ais terapêuticos são locais de moradia destinados
apossibilidade pessoas comdelongas internações que não têm retornar para as famílias. As duas ainda estavam com as mãos entre- laçadas, quando passaram pela varanda. Dentro da casa, havia um cheiro bom de comida. Não tiveram que se despir, não foram foram amarradas, nem obrigadas a tomar banhos coletivos. Nada de água gelada. Precisariam se acostumar ao privilé- gio da individualidade. Ter seu próprio sabonete e toalha era uma grande novidade. Sentiram-se confusas ao descobrirem que havia um guarda- roupa para cada uma. Era a primeira vez que teri- am algo seu. Com a emissão de novos documentos, viab- ilizada pelo Ministério Público, as duas foram
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incluídas no Benefício de Prestação Continuada, concedido pela Lei Orgânica de Assistência So- cial a pessoas com necessidades especiais. Pas- saram a ter direito a um salário mínimo e mais
bolsa de“De R$ volta 240 mensais oferecida pelo programa para casa”, do Ministério da Saúde, instituído em 2003, por meio de assinatura de lei federal. A norma dispõe sobre a regulamentação do auxílio-reabilitação psicosso- cial a pacientes que tenham permanecido em lon- gas internações psiquiátricas, nas quais ficaram submetidos à privação de liberdade. Logo que a lei foi criada, 2.600 pessoas foram atendidas em todo o território nacional. Uma das justificativas do programa é consolidar o processo de desin- stitucionalização, com base na redução gradual de leitos hospitalares de longa permanência. Empoderadas financeiramente, Sônia e Terezinha passaram a consumir. O mesmo
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aconteceu com os outros 160 pacientes que ocu- pam as vinte e oito residências terapêuticas exist- entes em Barbacena. A injeção de recurso na eco- nomia seduziu o comércio local. De lá para para cá, os
loucosaque envergonharam a cidade pas- saram ser tanto disputados por vendedores e lojistas. Sônia adquiriu o hábito de comprar sapatos, um luxo para quem passou a vida inteira com os pés no chão. Os cabelos brancos ficaram negros de novo com as tinturas vendidas no mercado da beleza. Comprou vestidos — às vezes, usa mais de um ao mesmo tempo — , ganhou identidade. Também desenvolveu diabetes, resultado não só dos anos de iniquidade, mas também da descoberta do refrigerante já com meio século de vida, uma delícia da qual ela nunca mais quis ab- rir mão. Os prediletos são os de uva e o guaraná, mas, desde que não falte, ela toma qualquer um. Os doces entraram no cardápio. A glicose da ex-
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paciente do Colônia disparou. Para ela, comer ganhou novo sentido. Sônia não sabia que o al- moço e o jantar poderiam ter sabor a ponto de boa” virou despertar o paladar. A tal “comida boa”
fixação. Apesar do analfabetismo, ela criou um método próprio para lidar com o dinheiro. Apren- deu que a nota da onça-pintada, R$ 50, era a que valia mais. A do mico-leão-dourado, R$ 20, dava para comprar brincos, batom, esmalte e ainda so- brava troco. Com R$ 10, a nota da arara, ela con- seguia trazer para casa dois litros de refrigerante, biscoitos e pão. Com Com a da tartaruga marinha não fazia quase nada, afinal são poucas as coisas que se pode comprar com R$ 2. Assim, com a ajuda dos bichos da fauna brasileira impressos na moeda nacional, ela tem conseguido se virar e fazer as próprias contas.
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Em 2011, Sônia realizou sua maior ousadia. Para quem passou cinquenta anos presa nos porões da loucura, conhecer Porto Seguro, na Bahia, foi uma dádiva na vida dessa mulher. De
uma única avez, ela experimentou gostoquase da liberdade, sensação de andar de oavião, como se tivesse “ganhado asas”, e de ver o mar. Teve medo ao mirar aquele mundão de água, no qual os olhos não alcançam o fim. Conheceu, en- tão, o prazer das boas descobertas, sentindo-se inteira pela primeira vez em sessenta e um anos de vida. Começava a tomar consciência da sua humanidade, era quase feliz.
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Imagem revela o encarceramento de pacientes dentro do hospital.
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está nascendo.
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-Ô Raul.OCorre, quedeseu filhodo Colônia, Raulmestreobras Ferreira Carneiro, largou as ferramentas no chão e seguiu em direção à chácara do sogro, Adolfo Cisalpino de Carvalho, administrador do hospital em 1925. Quando chegou à casa rústica, a es- posa, Yolanda, já tinha dado à luz seu terceiro herdeiro. Luiz Felipe Cisalpino Carneiro, o filho macho, nasceu forte e chorou tão alto, que os pa- cientes do hospício puderam ouvir, já que a residência do administrador tinha sido erguida no mesmo terreno do hospital. Apesar da proximid- ade com o inferno, a moradia era considerada considerada um paraíso por seus habitantes. Rodeada por árvores frutíferas que ocupavam boa parte do jardim, tinha ainda uma horta bem cuidada. Verduras e legumes garantiam fartura no prato da família que, anos mais tarde, somava nove filhos.
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Luiz Felipe Carneiro, neto do administrad
O menino Luiz Felipe cresceu correndo por aquelas bandas, respirando o ar puro da Zona da Mata, enquanto o pai construía os novos prédios da instituição psiquiátrica. Até hoje lembra os cheiros que marcaram sua infância de encanta- mento, aquecida pela fogueira acesa nas noites de
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lua cheia, quando o som da viola animava as madrugadas dos Cisalpinos. No entanto, à me- dida que o garoto ganhava idade, seu olhar ia mudando. Ouvia tantas histórias sobre os loucos
perigosos, mas não compreender aqueles homens queconseguia ele via trabalhando semcomo trégua ofereciam tanto risco. — Mas que loucura eles têm? — perguntava a si mesmo, sem coragem de questionar os mais velhos. O menino intuía que alguma coisa estava er- rada. Da varanda da casa colonial, Luiz Felipe via os pacientes abrirem estrada na enxada. enxada. A ferramenta também era utilizada na plantação. Registros da instituição apontam que, em 1916, quase metade da receita do hospital hospital foi garantida pelo suor dos pacientes e pela venda dos alimen- tos que eles plantavam. plantavam. Com a colheita de dez alqueires de milho, cinco de batata-doce, nove de
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feijão e nove hectares de mandioca, os negócios no Colônia iam bem. O faturamento era garan- tido, ainda, pelo uso da mão de obra dos internos no conserto de vias públicas, limpeza de pastos, —
preparação de doces. A venda de roupas 4 mil peças só naquele ano — também era negócio lucrativo. De longe, Luiz Felipe observava a lida daquela gente. Não pareciam doentes, mas escra- vos, embora a escravatura no Brasil tivesse ter- minado havia quase trinta anos. Não sentia medo deles, guardando segredo sobre a afeição que nu- tria por aqueles homens diferentes e até engraça- dos que celebravam suas próprias missas, a des- peito da condenação da Igreja. Proibidos de pisar na Capela Nossa Senhora das Graças, construída dentro do Colônia, eles criaram seus próprios al- tares. Para provocar a Igreja, alguns pacientes intitulavam-se “bispos” e roubavam a audiência
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dos cônegos. As celebrações conduzidas pelos considerados privados de razão eram as mais dis- putadas da instituição. Aliás, aquelas rezas sim- plórias faziam muito mais sentido do que as bal-
buciadas doido. em latim. Aquilo, sim, era linguagem de Aos doze anos, o garoto deixou o Colônia. O dinheiro que seu pai ganhava em Barbacena já não dava mais para sustentar família tão nu- merosa. Raul Carneiro levou a família para o Rio, Rio, onde comprou casa num bairro despovoado, o Leblon, localizado na Zona Sul. Lá, o patriarca terminou a vida construindo arranha-céus. Mas foi em Belo Horizonte que Luiz Luiz Felipe se formou médico na Universidade Federal de Minas Gerais. Ao ler o primeiro livro do filósofo francês Michel Foucault, Doença mental e per- sonalidade , lançado em 1954, o médico recém- formado começou a mergulhar no enigmático
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universo da loucura. Acabou se especializando em laboratório de análise, hoje conhecido como patologia clínica. Por ironia do destino, foi tra- balhar com o irmão, chefe do laboratório do In-
stituto Raul Soares, conhecido psiquiátrico da capital mineira.hospital Adotou o socialismo como filosofia, indo a Cuba conhecer de perto um de seus hospícios. Tornou-se ateu como Fidel Castro, o revolu- cionário comunista a quem passou a admirar. Montou seu próprio laboratório, em Belo Hori- zonte, mas chegou a perder clientes por não con- cordar com o excesso de exames solicitados pelos jovens e inseguros médicos, um exagero que obrigava a furar crianças sadias para colher sangue em busca de diagnósticos mirabolantes. Talvez, por isso, não tenha enriquecido como boa parte dos proprietários de laboratório que conheceu.
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Pai de quatro filhos, Luiz Carneiro enviuvou, casou-se de novo e hoje, aos oitenta e oito anos, mantém hábitos simples. Vive numa casa localizada na Zona Leste da capital mineira,
onde faz questão de manter de o jardimdas dosatrocidtempos de criança. Só tomou conhecimento ades passadas no hospital de Barbacena décadas depois de ter saído de lá, quando descobriu que os homens que abriam caminhos do progresso es- tavam privados de ir e vir. Apesar de ter nascido no hospício, berço de uma tragédia silenciosa, seus olhos de criança pouco puderam ver. Hoje, entende por que nin- guém consegue enxergar o Colônia através do seu olhar e muito menos amá-lo como ele.
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Assim como Luiz Carneiro, Alba Watson Renault, comerciante com cinquenta e três anos, passou toda a infância em Barbacena. Não dentro do terreno do hospital como o neto do adminis-
trador, na rua Henrique Diniz,Neta localizada em frente àmas ala feminina do Colônia. de Zenon de Renault, o farmacêutico da instituição psiquiátrica, ela também cresceu vendo homens e mulheres vestidos com o famoso azulão — uni- forme de brim azul — , trabalhando nas ruas da cidade. Porém, como a maioria, Alba presenciou o lado sombrio da história, quando assistiu, por anos a fio, aos doentes capinando as ruas do município.
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Pacientes saindo do hospital para trabalhar
Os doidos passavam na porta da casa dela em silêncio, de cabeça raspada, sempre de-
scalços. A cena nunca lhe saiu da cabeça. Aqueles seres esquálidos não provocavam pavor em ninguém, nem mesmo na menina que assistia penalizada ao cortejo dos pacientes. pacientes. Na marcha diária, muitos deles seguiam em direção ao Cemitério da Paz conduzindo uma carroça de madeira de tração animal com uma cruz vermelha pintada nas laterais. Símbolo da morte no hospital, a carroça atravessava os pavilhões, di- ariamente, em busca de novos mortos. A viagem fúnebre só terminava quando os corpos eram re- colhidos e transportados.
via os internos emDe emoutras frente vezes, de casaAlba carregando caixõespassarrústicos que voltavam sempre vazios. Como a avó
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materna morava na rua Professor Pires de MorMor- aes, que dá acesso ao cemitério, a neta se escon- dia para acompanhar o estranho ritual que se re- petia mais de uma vez ao dia. Estava espiando,
quandoseus os pacientes buracos com e despe javam pares em cavavam valões, cobrindo terra preta. De longe, não conseguia ouvir o que diz- iam enquanto enterravam as pessoas que di- vidiram com eles um lugar no Colônia, mas o som se assemelhava a um lamento. Finalizada a tarefa, eles faziam o caminho de volta de cabeça baixa e, às vezes, cantando, como se a música pudesse abafar o sentimento de dor causado pelo sepultamento desumano.
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— Dona, não entra aí, tem macumba — grit-
ou André dos Santos, menino de oito anos que 108/455
mora em frente ao Cemitério da Paz. Sem portão, o que se vê hoje é uma área de 8 mil metros quadrados tomada por mato alto e detritos. Por entre as sepulturas, há preservativos usados e res-
crack. tos de latas utilizadas no consumo Essede é oalumínio local onde são mantidos os 60 de
mil mortos do Colônia. Enterradas em covas ra- sas, as vítimas de tratamento cruel não al- cançaram respeito nem na morte. Seus túmulos vêm sendo depredados ao longo do tempo, e nem mesmo os ossos revelados conseguiram reverter o descaso imposto aos excluídos sociais.
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Carrocinha ond
Construído junto com o Hospital Colônia, no início do século XX, o Cemitério da Paz, cuja
área pertence à Fundação Hospitalar do Estado 110/455
de Minas Gerais, está desativado desde o final da década de 80. A explicação do psiquiatra Jairo Toledo, que respondeu pela direção do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena até março
— Como de 2013, é que oele terreno está saturado. não absorvia abs orvia mais a demanda, nós o desativamos. desativamos. O cemitério foi criado prat- icamente junto com o hospital, por isso, a leitura que faço é que os doidos, assim como os negros, não eram enterrados junto com os normais — acredita Toledo, ao se referir à discriminação im- posta àquela população. Considerado um território de grande valor histórico, o Cemitério da Paz já poderia poderia ter seu cenário modificado. No final de 2007, a pre- feitura de Barbacena, com o apoio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), lançou um concurso nacional para criar, naquele espaço abandonado,
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um Memorial de Rosas, unindo, assim, os dois símbolos da cidade: a loucura e as flores, já que o município é um dos maiores exportadores de ros- as do país.
O objetivo do memorial, quemarco ainda da estáhistória no papel, é transformar o local em da psiquiatria mineira. O projeto vencedor criou uma passarela suspensa no terreno, preservando o passado. Além de conservar os túmulos, propõe a revitalização do espaço que é o símbolo do que se passou nos porões da loucura. Os subterrâneos da razão provocaram tantos óbitos, que os corpos somavam pilhas de cadáveres. Nem todos, porém, foram enterrados.
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O abandonado Cemitério da Paz, onde os 60 mil corpos estão en- terrados. Fotos: Roberto Fulgêncio/ Tribuna de Minas.
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sino do Instituto Granbery, em Juiz de Fora, acabara de soar anunciando o término da aula. O professor Ivanzir Vieira despediu-se dos alunos e rapidamente gan
hou a calçada rua Batistaem de Oliveira, março de 1970.daCaminhava direção à naquele Faculdade de Farmácia e Odontologia da Univer- sidade Federal de Juiz de Fora, localizada na rua Espírito Santo, a dez minutos dali. Estava a um mês de completar três anos de admissão no en-
O
sino superior, sentiaAos como se tivesse con- o quistado a vagamas ontem. trinta anos, largou emprego estável na indústria de cigarros, a Souza Cruz, em Poços de Caldas (MG), ao perceber que estava colocando todo seu conhecimento em prol de uma causa que não era a sua. Formado em farmácia pela UFJF, tinha outros ideais, como a pesquisa e o ingresso na academia, que acabou
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acontecendo em 27 de março de 1968, dois anos depois de sua saída da indústria. A aula na faculdade estava marcada para as 9h10, e o professor, então com trinta e quatro
anos, questão de pontualidade. Estava poucosfazia minutos de descobrir que aquele nãoaera um dia igual aos outros. Ao iniciar a subida da rua Espírito Santo, sentiu algo estranho no ar. Próximo à escola de farmácia e odontologia, viu duas moças que passavam em frente ao portão da
faculdade colocandodearepugnância. mão no nariz,Anuma evidente demonstração atitude das jovens chamou sua atenção. Estranhou ainda mais ao perceber que os alunos não estavam aglomerados na porta da escola como de cos- tume. Chegou a pensar que havia se equivocado de data, já que aos sábados não tinha aula. Lembrou-se, contudo, de que era sexta-feira, porque havia combinado de se encontrar com um
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amigo no clube, à noite, para colocar o papo em dia. — Uai, cadê os alunos? Será que meu reló- gio parou? — questionou-se Ivanzir, um pouco
confuso. Resolveu conferir e percebeu que os ponteir- os estavam funcionando. Lembrou-se também do sino do Granbery, sempre preciso, e concluiu que estava no horário e dia certos. Ao se aproximar do portão, um forte odor o atingiu com violência. Pareceu que, já dentro do prédio, havia centenas ratos mortos em estado de putrefação. O quede provocava isso? Seu “nariz de farmacêutico” descartou o gás sulfídrico utilizado algumas vezes por alunos em brincadeiras de mau gosto. Resolveu enfrentar o mal-estar, avançando escola adentro. Ao final do corredor, Ivanzir surpreendeu-se com o que viu. No pátio interno da faculdade havia dezenas de cadáveres
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espalhados pelo chão em grotescas posições. Parecia que um maníaco sexual havia passado por ali. Os corpos das mulheres, com as saias ou camisolas erguidas, pernas abertas, desnudando
— sujas Os — baixasua intimidade. homens, comoutras as calças e cuecas umas, imundas das. As fisionomias eram pálidas, esquálidas. Barbas crescidas, cabelos desgrenhados, pare- ciam egressos de um manicômio. O cheiro não deixava dúvida de que estavam mortos havia di-
as. O farmacêutico ficou atônito.
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Ivanzir Vieira, professor universitário que testemunhou testemunhou a chegada de um dos lotes de cadáveres adquiridos pela Universid- ade Federal de Juiz de Fora.
Ainda atordoado, o professor contemplou uma idosa de cabelos brancos aos seus pés, tam- bém com a saia erguida. A fisionomia fisionomia maternal, até agradável, parecia querer esboçar um sorriso na boca desdentada. Ivanzir sentiu-se invadido por uma tristeza profunda, imaginando por que
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não poderia ter vivido mais tempo alguém com uma simpatia que vencera a morte. O mistério, porém, continuava. Até poderia entender a presença de cadáveres numa faculdade que os
utilizava, como medicina, mas odontologia praticamente nãoa de precisava deles ema suas aulas. Por que tantos? E qual a razão das posturas chocantes? Onde estavam os professores, ser- ventes e alunos? Sua cabeça fervia. Permaneceu observando a cena sem saber
que atitudenum tomar. silêncio reinavadedecarros formaera incomum localO onde o barulho frequente. Até a cantina estava fechada. Não sabia se ficava ou fugia daquela visão perturb- adora. O professor não se deu conta de quanto tempo permaneceu ali, inerte, até que um barulho o alertou. Descendo as escadas do segundo andar, apareceu Salvador, funcionário da Faculdade de Medicina, quem o professor conhecia.
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— Olá, Ivanzir. Tudo bem? Por que veio
trabalhar hoje? Não sabe que o diretor liberou os professores e alunos? O tom despreocupado do técnico indicava
que o — mistério estava próximo fim. Que O que aconteceu aqui, do Salvador? susto levei com esses corpos! Parece até cena do inferno de Dante. E olha que falo com conheci- mento de causa, pois já folheeiA divina comé- dia e vi as gravuras — tentou brincar Ivanzir, embora ainda estivesse se refazendo do impacto que sentiu. — Rapaz, que luta! Essa madrugada uma camioneta de Barbacena chegou lotada de cadáveres. O responsável localizou o diretor da medicina e ofereceu cada corpo por 1 milhão (cerca de R$ 364 nos dias atuais). Se a universid- ade não quisesse, já tinha comprador no Rio de Janeiro. Claro que o diretor não podia perder a
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oportunidade. Estávamos apenas com seis cadáveres, e o preço estava bom. Além disso, trinta corpos suprem as necessidades do ano in- teiro. Com isso, fui tirado da cama e vim para cá.
Estou deformolizar cansaço e sem até agora, caindo tendo de todoajudante esse material antes de colocar os cadáveres nos tanques. O farmacêutico retrucou: — Por que não não foram para a medicina, Sal- vador, se a faculdade estava estava somente com seis
— Nossos tanques estavam repletos de corpos? peças prontas para o primeiro ano, com a pele re- tirada, a musculatura exposta, membros destaca- dos para estudos mais especializados. Aqui es- tava vazio, e os homens se entenderam.
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Documentos do livro de registros do Colônia confirmam a venda de peças anatômicas.
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— Eu não sabia que a universidade com-
prava corpos. Isso Isso me parece um crime. Como ela contabiliza tais gastos? Duvido que haja uma — questionou conta para “compra de defuntos” —
Ivanzir, umeu pouco irritado. — já Isso não sei. Mas se ela não comprar, está cheio de faculdade que compra — respondeu o técnico, enquanto se abaixava para introduzir, numa incisão feita na virilha do corpo da idosa, o tubo que lhe permitiria permitiria injetar o formol e paralis-
ar a Ivanzir decomposição. compreendeu, então, a causa de as roupas estarem levantadas. Nesse momento, recordou-se das histórias que diziam sobre os loucos nos sanatórios de Barbacena que, nas ge- ladas noites da cidade serrana, serrana, eram enviados para os pátios, com as vestimentas molhadas, e ali largados para morrer. Então, era verdade, pen- sou. Contemplou de novo a idosa que não teve
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valor em vida e cujo corpo era disputado por abutres humanos. Compreendeu o simbolismo daquele leve sorriso estampado no rosto de quem vencera a morte. Ela não mais estava ao alcance
deles.
*
Além daqueles trinta cadáveres, outros 1.823 corpos foram vendidos pelo Colônia para dezessete faculdades de medicina do país entre 1969 e 1980. Como a subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provo- caram mortes em massa no hospital, onde regis- tros da própria entidade apontam dezesseis faleci- mentos por dia, em média, no período de maior lotação. A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra in- dústria de venda de corpos.
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Só a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) adquiriu 543 corpos em uma década. Já a UFJF foi responsável pela compra de 67 cadáveres entre fevereiro de 1970 e maio de
1972. Documentos do hospital mostram que, na remessa feita em março de 1970, testemunhada por Ivanzir, havia pessoas procedentes de Belo Horizonte, Itambi, Sobrália e Itapecerica. Todos eles, municípios mineiros. Na entrega de 1971, os mortos eram de pelo menos quinze cidades do
Estado, como Belo Horizonte, Governador Valadares, Brasília de Minas, Leopoldina, Palmital, Raul Soares, entre outros. Nenhum dos familiares dessas vítimas autorizou a comercial- ização dos corpos. Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de cinquenta cinquenta cruzeir- os cada um. O valor atualizado, corrigido pelo Ín- dice Geral de Preços (IGP- DI) da Fundação
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Getúlio Vargas, é equivalente a R$ 200 por peça. Entre 4 e 19 de novembro de 1970, foram envia- dos para a Faculdade de Medicina de Valença quarenta e cinco cadáveres negociados por 2.250
cruzeiros lote. Corrigido IGP-DI, o lotede saiu a R$ o8.338,59. Em umapelo década, a venda cadáveres atingiu quase R$ 600 mil, fora o valor faturado com o comércio de ossos e órgãos. O fornecimento de peças anatômicas, aliás, dobrava nos meses de inverno, época em que
ocorriam falecimentos no Colônia, com-a parada aomais período de verão. Em junho dese1971, venda de corpos pela instituição atingiu 137 peças contra sessenta e quatro negociadas em janeiro daquele mesmo ano. Paulo Henrique Alves, sessenta e cinco anos, psiquiatra de Belo Horizonte, era estudante da Faculdade de Medi- cina da UFMG em 1967, quando, aos vinte e três anos, teve contato com uma das remessas do
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Colônia usadas para dissecação nas aulas de anatomia. — No primeiro ano de medicina, não tín- hamos ideia da crueldade que estava por trás daquelas peças. Às vezes, ao dissecarmos um pulmão, percebíamos a presença de tuberculose, e os professores diziam que isso era comum nos cadáveres de Barbacena. Também chamava a atenção a magreza dos corpos usados nas aulas de anatomia. No entanto, a própria questão da
loucura eraMais uma tarde, coisa distante mimconhecinaquele momento. comeceipara a tomar mento do que se passava naquele hospital. Aí passei a ser crítico de tudo aquilo — revelou Paulo Henrique, que em 2011 retornou da África para o Brasil, onde esteve em missão pela organ- ização internacional Médicos Sem Fronteiras.
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Paulo Henrique Alves, sessenta e cinco anos, foto atual e da carteira de estudante da época.
Quando os corpos corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram de- compostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio do Colônia. O objetivo era que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas. — Interrompi o fornecimento de cadáveres, conhecido por comércio da morte, na década de
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80, quando fui diretor da instituição pela primeira vez — afirmou Jairo Toledo, sessenta e quatro anos, psiquiatra e ex-diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, antigo hospital Colônia, em que1994. teve a última cela desativada somente
* O testemunho de Ivanzir Vieira era forte por si só, mas os fatos revelados por ele ganharam contorno ainda mais especial pelas condições em que tive acesso ao seu depoimento. No dia 25 de e-mail novembro de 2011, recebi um na redação da Tribuna de Minas . A mensagem estava entre as centenas enviadas para para minha caixa postal em razão da série de matérias “Holocausto Brasileiro”, veiculadas no jornal entre 20 e 27 de novembro. No contato, ele identificava-se como
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aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e nada mais. Quando comecei a ler o anexo, intitulado “Os subterrâneos de uma universid- ade”, pensei tratar-se de ficção. Custei a entender
que eram as impressões decorpos. quem presenciou horror de uma remessa de Isso porqueo Ivanzir havia colocado pseudônimos na crônica, que, à primeira vista, me pareceu vaga. Respondi, pedindo a ele mais informações. Ele enviou novo texto, informando o nome ver-
dadeiro doNão técnico trabalhava naquele dia: Salvador. disseque mais nada. Como sempre guardo os e-mails que recebo, decidi reler o de Ivanzir, quando a ideia de escrever este livro me surgiu. Assim, em maio de 2012, voltei ao texto. Quem era aquele homem? Descobri que Ivanzir era professor aposentado da UFJF, onde minis- trou aulas nos cursos de farmácia, medicina e en- fermagem, como convidado, tendo sido
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responsável, ainda, por aulas nas ciências bioló- gicas. Aí comecei a ligar os fatos e pensar que aquele homem da história pudesse ser ele. Mas e o Granbery? O que ele estaria fazendo no colégio
metodista de corpos se dirigir para a Faculdade Farmácia, antes onde os estavam? Faltavam de muitas peças para finalizar aquele quebra-cabeça. Passei a telefonar insistentemente para os dois números deixados por Ivanzir no e-mail . Os telefones fixo e móvel chamavam, mas ninguém
atendia. Só me restava ir até o endereço que havia mencionado na mensagem: rua Anhanguera, bairro Guaruá. Assim que terminei minha jornada na Tribuna , já de noite, parti para lá. Ao me aproximar do endereço, meu coração saltava. Sempre fico assim quando sou tomada pela emoção de uma história. Toquei a campainha por por diversas vezes, bati palmas à porta, porta, chamei seu
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nome. Apesar de as luzes da casa estarem acesas e o carro estar na garagem, garagem, ninguém atendeu. De- cidi tocar a campainha do vizinho, na esperança de conseguir alguma informação. Dito e feito.
Um homem de meia-idade apareceu à porta.por — Oi, sou jornalista e estou procurando Ivanzir. Sabe que horas posso encontrá-lo em casa? O interlocutor fez uma cara de surpresa. — Então, você não sabe? — — — Ele Sabefaleceu o quê?há dois perguntei, meses, aflita. em função
de
complicações no coração. Agora quem estava atônita era eu. — Não acredito — foi o que consegui responder. — Espera aí que vou te dar o telefone da es- posa dele. Desde a sua morte, a Jovânia não vem
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muito aqui, porque a casa tem muitas lembranças. Minha cabeça fervia. Eu me culpava: havia chegado tarde demais e não teria a oportunidade de entrevistar uma testemunha-chave como Ivanzir. O vizinho escreveu num papel o telefone de Jovânia. Eu estava muito desapontada. Sentei no carro e precisei ficar ali, por uns instantes, para me refazer. Quando cheguei em casa, quase
meia-noite, fuimais direto paraIvanzir. o computador. Precisava descobrir sobre Encontrei uma página dele no Facebook, ainda ativa, apesar de sua morte, com diversos comentários antigos que revelavam um pouco da sua personalidade e irre- verência. Lamentei por não tê-lo conhecido. Ainda na rede social, vi uma foto dele, um homem ainda bonito aos setenta e seis anos.
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Estava decidida a saber tudo sobre ele e, principalmente, sobre o que aconteceu naquele dia em que ele testemunhou o comércio de cor- pos. Embora o professor não tivesse mencionado datas na sua mensagem, pude reconstituí-las com base nos seus documentos pessoais e no material que recolhi no hospital. Na carteira de trabalho de Ivanzir, descobri que ele também foi professor no Granbery, dando aulas no instituto de 1º de março de 1967 a 30 de julho de 1970. A con-
tratação na UFJF em 11 de março 1968. Como uma se dasdeu remessas corpos de para a UFJF ocorreu em fevereiro de 1970, pude fechar as datas, já que em julho daquele ano ele se des- ligou do Granbery. Também confirmei que, em 1970, Salvador era técnico de anatomia da Faculdade de Medicina da UFJF. Na manhã seguinte, telefonei para Jovânia. Difícil explicar para a viúva sobre um e-mail que
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Ivanzir tinha enviado para mim em vida. Apesar do luto, Jovânia concordou em me receber um dia depois. Imprimi o e-mail do professor, para que pudesse mostrar a ela. Fui ao mesmo en- dereço indicado no contato, e, dessa vez, ao tocar a campainha, a porta se abriu. Jovânia estava meio desconcertada. Após os cumprimentos, ela disse que só me recebeu por educação, já que não poderia autorizar nada em nome do marido morto em 26 de março de 2012.
—
Jovânia, estoujá aqui sua autorização, pois não Ivanzir o fez.para Vimpedir apenas conversar. Com as mãos trêmulas, ela pegou o e-mail, desconfiada. Ao final da leitura, caiu em prantos, e eu também. Por uma felicidade do destino, Ivanzir autorizou textualmente o uso daquela in- formação, como se, inconscientemente, soubesse
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que iria morrer em breve e que não teríamos tempo de conversar.
Prezada Daniela Arbex: Creio que você sabe do quanto nos orgulhamos de seu jornalismo sério
epara de como contribuindo ajudarele os vem socialmente mudos. Parabéns! Lendo “Denúncias…” e “Ali tinha crime de lesa- humanidade”, lembrei-me de ter es- crito um pequeno artigo no qual abordava, também, o tráfico de cor- pos e que, de alguma forma, esse pudesse ser-lhe útil. Pode utilizá-lo como quiser, total ou parcialmente, sem nenhuma restrição de minha
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parte. Eu me sentirei honrado em contribuir.
Ivanzir Vieira
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Q
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uando o superintendente do serviço de psiquiatria da Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica, RonaldoSimões Coelho, pisou no terreno do Hospital
de Neuropsiquiatria Infantil, localizado no município de Oliveira, no oeste do Estado, tomou um susto. Logo ao chegar ao hospital do Estado, em 1971, avistou um menino “crucificado”. Apesar do sol inclemente, o garoto, que apar- entava idade inferior a dez anos, estava deitado
no chão, com ospela braços abertos ao e amarrados eo rosto queimado exposição calor de quase trinta graus. Voltou-se para a freira responsável pelo setor, esperando alguma explicação. — Por que esse menino está amarrado nesse solão? —
soltar, ele — arranca os olhos das outras crianças. Se Tem mania respondeu a mulher, com naturalidade.
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— E quantos olhos ele já arrancou? — Nenhum — disse a religiosa.
Situações como essa se repetiam diaria- mente em Oliveira. A instituição, criada em 1924, como hospital psiquiátrico, atendia a indigentes e mulheres, mas mudou seu perfil em 1946, quando passou a receber crianças com qualquer tipo de deficiência deficiência física e mental, a maioria rejeitada pelas famílias. O depósito de crianças já despertava tristeza por si só. Mas
Ronaldo, esteve lá para as condições de que funcionamento da conhecer unidade com capa- cidade para 300 vagas, descobriu que a realidade poderia ser pior.
*
Elza Maria do Carmo, filha de Oliveira, tinha nove anos quando foi colocada para fora da 145/455
ala feminina do hospital por uma uma menina mais velha do que ela. O ano era 1956. Joice mandou que fosse buscar comida e apontou em direção ao mato. Estava escuro, e Elzinha, como é con- hecida até hoje, tentou voltar para o quarto, garota não a deixou entrar. Esta tapou a bocamas da a pequena, para que o choro não acordasse nin- guém. Sem opção, Elza seguiu para o local indic- ado, embora não conseguisse enxergar o cam- inho. Entrou no meio da vegetação e, apesar do “ordem”.
medo, cumpriu Esperava as freir as dessem contaada sua ausência, masque o tempo passava e nada. A caminhada noite adentro foi interrompida abruptamente. Um homem velho e gordo a puxou com violência. Assim como Joice, ele impediu que a menina gritasse. Cheirava a be-
bida.cintura. Surpreendeu Elzinha por trás e a imobilizou pela Conseguiu abafar os gritos dela com as mãos, quase a sufocá-la.
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— Eu estava de blusa e saia. Ele tirou minha
calcinha e fez maldade comigo. Depois me deix- ou no mato, ensanguentada, chorando de dor. Fui encontrada pela polícia, que me levou de volta. A
dor maisfosse forte,morrer porém, sentique no coração. sei que ali.euAcho morri umPenpou- co — conta Elzinha aos sessenta e sete anos. En- quanto fala, ela mantém sobre o colo a boneca que não teve na infância, época em que foi inter- nada em virtude de crises de epilepsia. Sobre as
décadasdedeterinternação, tudo, menos brincado. ela se lembra de tudo,
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Elza Maria do Carmo hoje. Sobrevivente do Colônia, ela foi es- tuprada dentro de uma instituição psiquiátrica p siquiátrica aos nove anos.
A violência ocorrida contra a menina e, mais
tarde, outros tantos emhospital Oliveirade não foicom responsável pela internados interdição do lá, mas sim uma telha que caiu sobre a cabeça do diretor. Quando o fechamento foi anunciado, em 1976, trinta e três crianças de Oliveira foram en- viadas para o Colônia, em Barbacena. Esperavam resgatar, no novo endereço, a infância roubada.
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Logo perceberam que os tempos eram novos, mas o tratamento, não.
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Em Barbacena, elas passaram a dividir com os outros pacientes as condições degradantes do hospital. E, apesar de existir uma ala infantil, ela era tão desbotada quanto as outras. A diferença é que lá, em vez de camas de capim, havia berços onde crianças aleijadas ou com paralisia cerebral vegetavam. Ninguém os retirava de lá nem para tomar sol. Quando a temperatura aumentava, os berços eram colocados no pátio, e os meninos permaneciam encarcerados dentro deles. Hiram
Firmino, de Belo Horizonte, o segundo do país a jornalista entrar no Colônia, em 1979, ficou tão impressionado com a cena, que perguntou a uma secretária o que aconteceria com eles, caso al- cançassem a idade adulta. A resposta foi dura como um golpe de navalha. —
Ué? Eles morrem.
*
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A primeira morte que Maria Auxiliadora Sousa de Lima testemunhou no Colônia foi justa- mente a de uma criança. A jovem funcionária tinha entrado na ala, pela manhã, quando viu um pequeno cadáver, já enrijecido, caído no chão ao lado da cama. Deve ter morrido durante a noite e ficado horas ali, esquecido. Ela deu um grito: — Ele está morto, gente, corre aqui. — Dora, você vai ter que se acostumar. Isso acontece todo dia — ouviu de uma colega.
Naquele Dora começou des- encantar commomento, o emprego. Não queria ser saersecúmplice da desumanidade. Mais do que isso. Não queria desumanizar-se. Nascida em Barbacena, foi admitida para o emprego no Colônia Colônia em 1º de abril de 1978, aos vinte anos, após passar em
primeiro lugar noos concurso Começou trabalhando com meninosdoe Estado. ficou conhecida pelas crianças da unidade como a Enfermeirinha.
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Logo descobriu que não havia roupas de camas suficientes, muito menos roupas. Também con- statou que as crianças do Colônia recebiam trata- mento idêntico ao oferecido aos adultos, per-
manecendo, inclusive, no meio deles. Aqueles meninos sentiram na pele os maus-tratos das cor- rentes, dos eletrochoques, da camisa de força, do aprisionamento e do abandono. A nova concursada presenciou, ainda, mo- mentos emblemáticos no hospital, como a cirur-
gia de lobotomia um garoto de A apenas doze anosrealizada que sofriaem crises de epilepsia. cirurgia foi feita em 78, quando uma parte do cérebro do menino foi retirada. A intervenção tem a finalidade de seccionar as vias que que ligam os lobos frontais ao tálamo. O procedimento foi
utilizado no Colônia o objetivo a agressividade e fazer com surtos cessarem.deOconter paciente ficou bem, mas muitos doentes passaram a
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vegetar depois da cirurgia, como João Adão, o úl- timo lobotomizado do Colônia, em 1979. A téc- nica ainda é realizada em algumas cidades brasileiras.
Maria resistiu meses. EmAuxiliadora 13 de novembro de somente 1978, nosete mesmo ano da sua contratação, contratação, a Enfermeirinha pediu seu desligamento do emprego público. Levou na lembrança a expressão apavorada do menino de catorze anos que puxou sua saia, implorando que
ela impedisse o eletrochoque — Não deixe que façamiminente. isso comigo, Enfermeirinha. Foi em vão. Maria Auxiliadora nada pôde fazer. De longe, assistiu ao menino se debatendo, já que as descargas elétricas provocam con-
vulsão. boca Apesar do garoto a sangrar, elaQuando saiu de aperto. do começou pouco tempo na unidade, ela presenciou o suficiente para não
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esquecer. Ainda se recorda da distribuição do leite, servido apenas uma vez por semana. Por ser um alimento raro por lá, o dia da da entrega deveria ser feliz, mas não era. — O leite chegava em tambores, e nós
éramos instruídas a servir à vontade. Os meninos bebiam até vomitar. Ainda assim, sobrava. Para não sermos punidas, jogávamos o resto fora, já que os recipientes tinham que voltar vazios. Era terrível ver todo aquele leite ir para o ralo sem
podermos guardar.
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Maria Auxiliadora passou em primeiro lugar no concurso do Estado, mas pediu demissão meses depois ao testemunhar as at-
Estado, mas pediu demissão meses depois ao testemunhar as at
rocidades no hospital. Foi chamada pelas crianças de “a
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Enfermeirinha”. Foto da carteira de trabalho dela, com a folha
de contratação, à época, e hoje.
A ex-funcionária, hoje com cinquenta anos, reside em Juiz de Fora com o maridoe sete poli- cial militar e os filhos. Conviveu com Marlene Laureano e disse que ela foi a única parte boa da sua passagem por aquele lugar. — Ela foi uma mãe para aqueles meninos. Maria Auxiliadora cita algumas crianças in- ternadas, mas a imagem de Silvio Savat, à época época com onze anos, é a que está mais nítida em sua memória. Loiro e de olhos claros, o filho dos ci- ganos André Savat e Nair Ostite foi criado na ala feminina do hospital. Fotografado em 1979 por Napoleão Xavier, ele aparece na imagem de vestido, como se fosse uma menina. Na ocasião, o corpo dele estava coberto de moscas, dando ao autor da foto a impressão de estar vendo um
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cadáver. Assim como Elzinha, Silvio havia deix- ado Oliveira em direção ao Colônia, mas nenhum nenhum deles recebia visita das famílias. Roberto, o único garoto visitado por um fa- miliar, não chegou sequer a sair do hospital para passear, conforme havia sido prometido. Ele era chamado de Ted pelas funcionárias, por se assemelhar a Ted Boy Marino, o lutador de ca- belo liso e dourado contratado, em 1965, pela TV Excelsior, onde participava de um quadro de luta
livre. O crimeproblema de Roberto ter nascido comno hidrocefalia, quefoi provoca inchaço crânio, mas que tem tratamento. Possuía traços bonitos, mas não atendia aos padrões sociais, ex- perimentando a exclusão. Com doze irmãos, tinha uma mãe carinhosa; entretanto, por ser
diferente dospoderia outros, ficar a família Roberto não entredecidiu eles. Deque Goiás, Roberto foi despachado para o hospital em
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Minas. Por isso, quando o pai avisou que ia ver o filho, as funcionárias comemoraram. Finalmente Ted, um dos protegidos de Marlene Laureano, teria um momento feliz. Quem sabe até voltaria paraQuando casa? o homem chegou ao hospital, sua expressão era endurecida. A de Roberto, ao con- trário, se iluminou. Com nove anos, ele correu para abraçar o pai, que não via há quase um ano. A emoção do encontro fez o menino ter uma
pequena incontinência urinária. Quando chegou perto do pai, algumas gotas go tas de xixi molharam a calça que estava vestindo, a melhor roupa que as funcionárias encontraram. O goiano até tentou esconder o desconforto diante daquela criança desajeitada, mas não conseguiu. Constrangido
com o aspecto filho, ao comida pai disseláque sairiamais para buscar almoço.do Deixou e nunca apareceu. A indiferença paterna atingiu em cheio
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o coração do menino gordinho e sensível. Deix- ado para morrer no Colônia, ele foi definhando. Não sucumbiu de fome, nem de frio, como os outros, mas de tristeza.
Crianças mantidas em berços dentro do Colônia, de onde não saíam nem para tomar sol. Foto cedida por Jairo Toledo.
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José Machado, o Machadinho, é sobrevivente do hospital. Ele foi fotografado em 1961 e hoje. Ainda mora dentro do hospital meio século depois. Foto: Roberto Fulgêncio/ Tribuna de Minas.
Aliás, poucos conseguiram resistir a tantas adversidades. Maria Cláudia Geijo, cinquenta e um anos, é uma das exceções. Permanece inter- nada até hoje no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. Atualmente, mora em um dos mó- dulos residenciais da instituição, transformada em hospital regional. Sem Sem família, experimenta dias melhores do que aqueles da sua adolescên- cia, quando, aos vinte anos, ela foi fotografada nua e rastejando no interior da unidade. A pro- longada falta de estímulos agravou o quadro
psiquiátrico, Hoje, ela temtornando-a dificuldadeainda para mais cuidardependente. de si mesma.
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O registro de José Machado, o Machadinho, é de número 1.530. A informação que mais se aproxima da verdade é que ele deu entrada na en- tidade em 1959, conduzido pela polícia, após ser
acusado de colocar na de bebida alguém. Ele trabalhava numaveneno empresa café de e, mesmo sem ter sido julgado, foi sentenciado à pena de morte: a internação no Colônia. Inocente, passou a vida encarcerado. Hoje, aos oitenta anos, após meio século de institucionalização, precisa de
uma cadeira de rodas para se locomover, mantendo-se reticente na presença de estranhos. Fechado dentro de si mesmo, talvez tenha guardado num canto da memória tudo que passou naquele campo de concentração até conhecer um pouco de dignidade.
de Mariaasilares Cláudiaestão e Machadinho, outros Além 177 pacientes sob a guarda do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena
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(CHPB), embora a sua sobrevida seja estimada em, no máximo, mais uma década. Quando a história do “Holocausto Brasileiro” começou a ser retratada por mim em 2011, os vivos vivos eram 190.
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Cibele Aquino, internada aos catorze anos no Colônia, morreu em 2011, aos sessenta e oito anos, dentro do hospital. A foto que abre este capítulo é dela à época da internação.
Maria Cibele de Aquino, sessenta e oito anos, uma das baixas de 2011, faleceu após cin- quenta anos de internação. Despediu-se da vida na companhia das bonecas que ninou durante toda uma vida de aprisionamento. Chegou ao
hospício aos catorze anos nunca saiu Recebeu de lá. Elzinha teve mais sorte doeque Cibele. alta em 2004, após trinta e sete anos de institu- cionalização, quando foi levada para para uma residência terapêutica em Barbacena. Com cin- quenta e sete anos, foi a primeira vez que morou
em uma casa deela verdade. Filha de pai e mãe desconhecidos, já estava hospitalizada em Oliveira quando tomou consciência de si mesma, ainda na idade infantil. Por isso, ter um lugar seu
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era mais do que uma libertação. Significava um reencontro com a sua individualidade. É difícil compreender como, depois de tan- tos anos de sofrimento, Elzinha ainda consegue
sonhar. fato é que a casa vive temonde alma. É O possível sentir isso onde desdeela a entrada, a varanda desperta sensação agradável. No imóvel do bairro Belvedere, os tons pastel ficam do lado de fora. Lá dentro, o colorido impera. A colcha da cama da filha de Oliveira é amarela com detalhes em floral. Já ade cortina é igualiguna al- mente estampada. A toalha mesa verde estendida copa também tem tons fortes, mas é na sala de estar que Elzinha finalmente conseguiu material- izar um desejo antigo: ter sofás vermelhos, quase no mesmo tom do esmalte que usa. A mobília
contrasta comela o piso claro da sala, reforma custeada por e pelas outras cinco residentes
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do lugar com o benefício de quase mil reais pago pelo governo a cada uma. A tal comida boa que a ex-interna do Colônia Sônia Maria da Costa tanto se refere
também está lá. Na mesa farta, pão, bolo um riso gostoso de pessoas que broa, se sentem ver- e dadeiramente em casa. O cheiro de café impregna o ambiente. Juntas, elas conversam, assistem à novela, brigam, criam as regras do lugar e tentam reconstruir um mundo novo. Separadas, elas lutam para se reinventar e superar os próprios medos. — Aqui eu só sinto falta de uma coisa: vis- ita. Seria muito bom se eu tivesse um um irmão, al- guém que viesse me ver — afirma Elzinha. Cento e sessenta pacientes vivem hoje nas
vinte residências de BarbaBarba cena. eAoito maioria oriundaterapêuticas do antigo Hospital
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Colônia, além de internos da Casa de Saúde Xavier e do Sanatório Barbacena.
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apito da chaleira avisava que a água havia levantado fervura. Em pouco tempo, o cheiro de erva-cidreira impregnava os cômodos da Casa Amarela. Na mesa
de oito lugares, o pão repartido simbolizava o instante de celebração. Os convidados foram chegando e tomando, cada um, seu lugar na sala. Os moradores sentaram-se no chão. Todos sabiam que aquele 21 de novembro de 1998, em Belo Horizonte, era um momento único, quase
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improvável. Na que vitrola, a música contor nava o silêncio se fazia de vezclássica em quando. Ao cair da tarde, os visitantes foram embora. Era hora de apropriar-se do espaço. Uns buscaram a rede, outros o balanço, e houve quem só dese- jasse andar pelo imóvel, a fim de explorá-lo. Per-
maneceram assim porpara umostempo até que sete residentes seguiram quartos, ondeoscada um escolheu sua cama. A movimentação era
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acompanhada de perto pela oitava pessoa do grupo. Após dezoito anos de luta, Mercês Hatem Osório pôde, finalmente, realizar um sonho anti- go: oferecer aos meninos de Barbacena, agora
adultos, o lar que tiveram. Dos trinta e trêsnunca meninos e meninas envia- dos de Oliveira para o Colônia, seis vivem. Além de Elza Maria do Carmo e Maria Maria Cláudia Geijo, ambas residentes em Barbacena, sobreviveram, Silvio Savat, hoje com quarenta e quatro anos, — Antônio Martins cinquenta Ramos, o anos Tonho que em — , Wellington 2012 completou
Albino, 43, e Wanda Lucia, 41. Os quatro são moradores do Lar Abrigado, um braço do Centro Psíquico da Adolescência e Infância (CEPAI). Quando eles chegaram a Belo Horizonte, em
1980, não pareciam mas bichos assustados. Estavam sujos, meninos, não sabiam comer, nem ao menos usar o banheiro. Passaram a infância sem
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receber estímulos, e, por isso, o quadro de deficiência agravou-se. Silvio, por exemplo, o menino confundido com um cadáver em 1979, mal conseguia se sentar. Rastejava em boa parte
do tempo. — O Silvio, como os outros, chegou aqui imundo. Vieram para passar um dia e acabaram ficando a vida inteira. Quem os recebeu ficou chocado com o estado dos vinte e tantos meninos de Barbacena. Fizemos todo um trabalho de res- gate da cidadania. Nenhum dos quatro vivos fala, mas a gente entende o que eles querem, inclusive seus gritos. O bonito de verdade é que eles não têm mais o olhar perdido. As impressões são da coordenadora do Lar Abrigado, irmã Mercês, como é chamada a freira.
Aluna do Colégio Helena em BeloreliHori zonte, integrou, mais tarde,Guerra, a comunidade giosa homônima. Na instituição, aprendeu a
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ensinar sem cartilha e a preparar as aulas, com base no universo dos alunos. Com a ajuda deles, escrevia os próprios livros didáticos, cujo materi- al era retirado da vivência de cada um. um. O método
humanizado prosperou. A psicopedagoga alfabetizou crianças pobres e excluídas no bairro El- dorado. Quem sabia mais ajudava os que menos sabiam. Passou três anos trabalhando com os ín- dios no Amapá. Também atendeu a moças espe- ciais na Itália, onde se radicou em 1973 em fun- ção da perseguição promovida nos anos de chumbo contra as freiras do convento Helena Guerra. Como se recusou a adotar palavras de or- dem nas suas lições, Mercês se viu obrigada a deixar o país, para onde só retornou dez anos depois.
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Silvio Savat, ex-menino de Barbacena, fotografado em 1979, con- fundido com um cadáver. Tinha o corpo coberto de moscas. Silvio 176/455
sobreviveu e hoje reside em Belo Horizonte no Cepai. Foto de cima: Napoleão Xavier Gontijo Coelho.
Na cidadede desaúde Assis,ligadas em Roma, trabalhouitaliem cooperativas ao psiquiatra ano Franco Basaglia. Naquele ano de 1973, o Serviço Hospitalar de Trieste, dirigido por Basaglia, foi considerado pela Organização Mun- dial da Saúde (OMS) referência mundial para a reformulação da assistência à saúde mental. Num gesto de coragem, o italiano “armou” os doidos do hospício com martelo para que, juntos, destruíssem o prédio. Simbolicamente, o “ato de vandalismo” foi a ruína de um um modelo de atendi- mento centrado no isolamento. Impressionada com o trabalho de Basaglia, Basaglia, Mercês decidiu convidá-lo para conhecer as atividades que ela e outras irmãs estavam desen- volvendo com as mulheres portadoras de
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transtorno mental. Na data marcada, o autor da mais importante reforma do sistema de saúde mental italiano esteve no endereço indicado, pas- sando a tarde conversando com Mercês. Ele gostou do que viu lá, e ela, do que ouviu do médico considerado um ícone na humanização humanização da psiquiatria. No retorno ao Brasil em 1983, a freira de- cidiu que seria eremita. Mas, em vez da vida vida con- templativa, fez do coração da cidade de Belo Ho-
rizonte o seu mosteiro. Assim, Mercês foi parar na creche central dos filhos de funcionários da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig), que, na década de 70, assumiu o Hospital Colônia. Mais tarde, no Centro Psíquico da Adolescência e Infância, conheceu os meninos de
Barbacena e começou nova história de vida. a escrever com eles uma
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A irmã desafiou a incredulidade da classe médica ao propor que os sobreviventes do holo- causto brasileiro conquistassem o direito a uma casa. Quando o imóvel começou a ser montado em terreno anexo ao hosp hospital, ital, a religiosa iniciou o processo de transição. Diariamente, levava os futuros moradores até lá, para passarem passarem algumas horas. — Vocês vão morar aqui — dizia Mercês. Quando a mudança foi concretizada, a psi-
copedagoga começou ensinar seuEntão, jeito. pre- — Agora, temos auma casa do nova. cisamos aprender a não fazer xixi no chão. Durante meses, irmã Mercês levava os fil- hos de Barbacena ao banheiro, onde passava pelo menos quarenta minutos com cada um, no intuito
de fazê-los aprender usarsurpreendida o sanitário. Não des- animava nem quandoaera por urina e fezes pela casa.
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— Que pena que você fez no lugar errado.
Além de evacuarem no chão, os meninos estavam habituados a passar fezes na cabeça uns dos outros.
— No primeiro dia que cheguei ao quarto,
pedi coragem a Deus para entrar, forrar o chão e começar. Quando eles conseguiam chegar ao ban- heiro, Mercês os incentivava. — Parabéns! Você fez no lugar certo.
Parapassou ajudá-los a se alimentar sozinhos, ligiosa a colocar o prato de almoçoanare- mesa. Oferecia uma colherada a cada um e perguntava: — Está gostoso, meu filho? Seu prato está lá na mesa. Sua caneca de água também.
início, não foi fácil Nina, um porNo exemplo, demorou seisensiná-los. meses para paraAaceitar colchonete, algo bem diferente para quem dormiu
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noites a fio sobre o chão. A certa altura, Mercês ouviu a sugestão de usar um sininho para condi- cionar os meninos, como se faz com ratos de laboratório. Recusou-se.
Quarto onde os meninos de Barbacena dormem na residência terapêutica de Belo Horizonte.
— Não conheço nenhuma casa em que se
— usem sininhos para ensinar crianças retrucava.
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Mais tarde, ela pediu aos médicos que di- minuíssem as medicações que mantinham os meninos robotizados. Queria conhecer a person- alidade deles e como agiam sem os efeitos da da
medicação. — Mas não podemos fazer isso, irmã. Não vê que ela está muito agitada? Sem remédios, vai quebrar a casa inteira — ponderou um dos médicos, referindo-se a Nina, egressa da institu- ição Caminho para Jesus. — Agitada como? — questionava Mercês.
Com sensibilidade, ela acabou descobrindo que as tais crises nervosas de Nina coincidiam com o período menstrual da paciente. Como ela não tinha condições de verbalizar o momento de TPM nem as cólicas, ficava irrequieta, às vezes, vezes,
virava a cadeira, cama e na atéagenda a mesa.a Por isda so, a religiosa passou aa marcar dataisso, menstruação de cada uma. Quando a choradeira
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começava, ela consultava as datas no caderno, confirmava que as regras estavam para chegar e preventivo” com óleo de iniciava o “tratamento preventivo” prímula, uma planta originária da América do
Norte. — Olha, Nina, é chato mesmo, mas nós va- mos te ajudar — confortava a freira. Assim, com olhar holístico, Mercês fez cessar as tão temidas crises de agressividade das meninas.
— Nossa, irmã! O que aconteceu na Casa —
Amarela? Não ouço mais ninguém chorando perguntou o farmacêutico da vizinhança. Mercês apenas sorria: “benditas sejam as cápsulas de prímula”, pensava, embora tivesse re- ceio de alardear os efeitos benéficos da terapia e ferir o orgulho dos médicos e seus diagnósticos complicados.
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Assim, a coordenadora foi quebrando tabus. Mostrou que os meninos não gostavam de ficar pelados, como parecia, apenas foram acostuma- dos assim. Se não usavam roupas, era porque não tinham acesso a elas. No Lar Abrigado, eles passaram a vestir cuecas e a calçar sapatos, após mais de uma década sentindo a aspereza e o frio do chão de Oliveira e Barbacena. Ficaram tão en- cantados com a possibilidade de usar tênis e sandálias, que no início não aceitavam ficar
descalços. — No começo, a Lu não queria tirar o sap- ato nem para dormir. Eu deixava, porque sabia que era a única coisa que ela gostou e teve na vida. Na hora do banho, ela chorava porque tinha que tirar o calçado. Então, pensei: “Vamos com- banho”. prar um chinelo para a hora do
Funcionou.
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Mercês também aboliu a raspagem dos ca- belos, porque defendia que cada um precisava ter sua identidade. Assim foi feito. A motivação da coordenadora contagiou os atendentes. Mais do que bons profissionais, Mercês queria boas pessoas cuidando, ao lado dela, dos egressos de Barbacena. — Olha, o Silvio está vestido! Nossa, a Nina está calma! — ouvia dos médicos. Após convencer a comunidade terapêutica
da capacidade entendeu de os meninos se desenvolverem, coordenadora que precisava vencer o a preconceito social. Cansou de ver pessoas at- ravessando a rua para para não passarem em frente à Casa Amarela, principalmente quando os meni- nos estavam na porta. Fazia questão de convidar os moradores do entorno para conhecerem o imóvel. Desconcertados diante da atitude de gen- tileza, muitos se viam “obrigados” a entrar.
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Acabaram pegando simpatia. Alguns vizinhos começaram a visitar regularmente os meninos, aprenderam seus gostos, compraram presentes. Mercês só sossegou, quando os olhares de desprezo passaram a exibir compreensão. Nessa longa jornada, ela foi encontrando parceiros. Da cabeleireira à dentista, muitos profissionais foram seduzidos pela causa dos meninos de Barbacena. A comunidade, aos poucos, foi enxergando o ser humano por trás da deficiência
que osde fazia babar passar dia balançando corpo frente paraoutrás. Aoso poucos, a freira o conseguiu que tivessem seus direitos resgatados. — Eu tive a alegria de fazê-los mais feliz. Nós queríamos que a sociedade fosse nossa par- ceira nisso. A comunidade passou a chamar cada um pelo nome, a não atravessar mais a rua. Às vezes, traziam bolo. — Entre e coma com eles — sugeria.
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As pessoas diziam que nunca tinham visto um lar abrigado para pessoas tão deficientes, mas eles foram aprendendo a conviver. — Esse compromisso de eles terminarem juntos, aliás, é uma dívida que a Fundação Hospitalar de Minas Gerais tem com eles. Devem ficar juntos até o final, pois se consideram irmãos. Eles não vão embora daqui, porque a casa é deles. Há quatro anos, Mercês experimentou uma
emoção nova ao pegar a curatela dos moradores do Lar Abrigado. O nome dela passou a constar no documento deles. Simbolicamente, passou a ser a mãe dos meninos de Barbacena. — Eu escolhi dividir a minha vida com eles. O direito que eu tenho de ser feliz todos eles têm — explica.
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Dos seis sobreviventes de Barbacena, Tonho é o que alcançou certo nível de independência. A religiosa o ensinou a andar sozinho na rua e a pegar ônibus. Foi “adotado” pela paróquia local,
aprendeu artesanato, tomou gosto pela dança. Em 2012, quando os cinquenta anos de Tonho se aproximavam, a coordenadora do Lar Abrigado decidiu que uma grande festa seria realizada. Cel- ebraria não só o meio século de vida, mas tam- bém o renascimento do menino que sobreviveu a décadas de maus-tratos. Com a intenção de preparar a comemoração, a religiosa acionou sua rede de colaboradores. Depois que ele escolheu o circo como tema, Mercês iniciou os preparativos. Contatou a dona de uma casa de festas. O aniver- sário do ex-interno do Colônia teria bufê,
garçom, Seriasaudade uma festa de verdade, daquelasmúsica. que deixam quando acabam. A comunidade foi convidada; e o encontro,
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marcado para o dia 30 de maio. O aniversário começaria às 18 horas e teria o pátio do Pronto Atendimento do Centro Psíquico da Adolescên- cia e Infância como cenário, embora o hospital estivesse transformado pela magia circense.
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Antônio Martins Ramos, o Tonho, é outro ex-menino. Completou
cinquenta anos em 2011.
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Mercês estava quase ansiosa. Pensava em como seria decepcionante se as pessoas não aparecessem. Mas nem em suas melhores pro- jeções ela poderia imaginar que a festa de Tonho seria tão disputada. Além do padre da paróquia e das crianças da redondeza, os vizinhos mais resistentes apareceram. Nove professores de dança de salão também. O aniversariante vestia roupas novas. Ele e os outros ex-meninos de Barbacena. Era a primeira vez que os feitos irmãos pela con-
vivência seriam anfitriões. Todos, tiveram comportamento impecá impecável. vel.sem Os exceção, votos de saúde e paz vieram acompanhados de muitos presentes, tantos que Tonho ganhou em numa ún- ica noite mais do que em meio século de de vida. A certa altura da festa, a música movi-
mentou os convidados. dançaram, esquecendo-se de onde Todos estavam. As diferenças desapareceram. Não havia mais doentes, nem os
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considerados sãos. Havia apenas gente que se mostrou capaz de gostar de gente. Quando tocou samba, Tonho se levantou. Venceu a timidez e dançou por mais de meia hora com um pandeiro nas mãos. Seus passos eram ritmados, o rosto ficou transfigurado de emoção. Não havia nem sombra de sua deficiência. Roubou a cena e hipnotizou a plateia. Ganhou lucidez impression- ante. Seu coração batucava descompassado den- tro do peito. Estava inundado de felicidade. Não sabia que dor poderia sentir alguma coisa diferente de medo, e rejeição. Ele sorria. sorria. Mercês chorava.
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entada na linha do trem, Débora Aparecida Soares, vinte e um anos, esperava pela morte. Havia tomado vinte comprimidos minutos antes, mas não teve pa-
ciência de esperar a superdosagem superdosagem fazer efeito. Como queria garantir que nada sairia errado, ela partiu para a estrada de ferro, a mesma por onde havia passado o trem da solidão coletiva, com parada obrigatória no Colônia. Trinta minutos haviam transcorrido, e nada de a morte chegar.
S
Nem para se matar ela servia, pensava. Naquele 23 de dezembro de 2005, sentia-se profunda- mente só. Não conseguia se encaixar na vida, pelo menos naquela que tinha levado até agora. Foi salva por uma amiga que a encontrou nos tril- hos e a levou de volta para casa. A essa altura, os
remédios provocar A estudante começaram da faculdadea de letras jámal-estar. não conseguia mais coordenar as ideias, sentia a consciência se
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esvair. O serviço de emergência foi acionado, e Débora, levada para o hospital regional da Fundação Hospitalar de Minas Gerais, construído nas dependências do antigo pavilhão do Colônia,
o Afonso Pena. Passou a noite lá, onde foi sub- metida a uma lavagem intestinal. Mas nenhum procedimento médico foi capaz de arrancar de dentro dela o vazio que sentia. A sensação de não pertencimento ao lugar em que cresceu sempre a acompanhou. Já na in- fância, ela não reconhecia a família com quem vivia, apesar do amor que nutria pelo pai e pelo irmão cinco anos mais velho. Com Com a mãe, a re- lação era conflituosa. Sentia-se diferente dela, mas não compreendia o motivo. De fato, era uma criança triste, sem retratos, cercada de silêncio.
AtéQuando o seu ambiente brincadeiras era estranho. criança, de recorda-se de correr pelos pavilhões do Colônia, onde a mãe, Jurema Pires
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Soares, trabalhava como auxiliar de enfermagem. Aquelas mulheres nuas e de cheiro ruim eram suas “tias”. Sempre que Débora chegava, elas a chamavam de neném e queriam pegá-la no colo.
Ela também se lembra de ter crescido com horror ao tom de azul do uniforme do hospital de Barbacena. Aquilo, sim, metia medo. Aos sete anos, numa de suas incursões pelo hospício, a menina conheceu uma paciente. — Tia, por que você está aqui? — Porque não tenho casa. Mas tenho duas
filhas.
— E onde elas estão? Queria brincar com
elas. — Isso eu não sei — respondeu a mulher,
com os olhos úmidos.
menina entendeu nada. Despediu-se comAum abraçonão e continuou correndo por entre as camas da instituição. Uma funcionária, que
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assistia a tudo de longe, virou as costas para esconder o pranto. O tempo passou, e a chegada da adolescên- cia foi ainda mais difícil. Débora sentia-se con- stantemente cobrada pela mãe, como se ela não fosse filha, mas um investimento. Aos vinte anos, a angústia sufocava a jovem. Decidiu sair de casa, mudou-se para a também mineira São João del-Rei, onde prestou vestibular para a faculdade de letras. Um ano depois, voltou de férias para
casa, quando descobriu seu sem nomesua e cartões haviam sido usados por que Jurema autoriza- ção. Depois de uma uma séria discussão com a mãe, ela decidiu que não queria mais viver. Não en- contrava nada da mãe nela e nem mesmo enten- dia por que se sentia tão infeliz. Débora levou dois anosa limpo. para perceber quedecidiu precisava passaruma sua história Em 2007, procurar antiga babá em quem confiava. Queria saber o
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que havia de errado com ela. A resposta, no ent- anto, veio em forma de revelação: — Nada, minha filha. Mas já é hora de você saber a verdade. Você foi adotada. Sua mãe se chama Sueli e está lá na Fhemig. A reação de Débora foi surpreendente. — Se isso for verdade, será um grande alí- vio. Agora tudo começa a se encaixar — re- spondeu a jovem, que já desconfiava de sua origem.
Antes de sair da casa da babá, ela ainda se observou no espelho. — O que será que eu tenho da minha mãe biológica? A estudante correu para casa, para se acon- selhar com o irmão. No fundo, ele já imaginava que ela pudesse ser filha de uma paciente do Colônia, porque não viu a barriga da mãe crescer.
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Foi apresentado à menina dentro de um berço no antigo hospital. — Essa aqui é sua irmãzinha — disse Jurema ao filho mais velho. Mesmo tendo apenas cinco anos, ele guardou na lembrança aquela imagem. Mais tarde, descobriu que também era adotado, embora não fosse filho de uma paciente do hospício, como a irmã. Instintivamente, a universitária já amava a
mãe que ainda não conhecia. Estava embalada pela certeza de que a mulher que a pariu não a havia abandonado, mas foi impedida de ficar com ela. Nem o fato de ser filha da da loucura a pertur- bou. Débora não sentia vergonha da mãe. Dese- java muito estar com ela. Primeiro, Primeiro, precisava ouvir Jurema. Frente a frente, a mãe e a filha adotiva tiveram uma conversa dura. Aos vinte e três anos, a jovem ouviu que a mulher que a gerou era
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desprezível, comia ratos, deitava-se com qualquer um. Sabia que aquela versão guardava a pior parte da história e estava decidida a superar isso também.
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Débora Aparecida Soares nasceu dentro do hospital e foi doada ao nascer. Hoje tem vinte e sete anos.
— Você pode dizer o que quiser. Que Sueli
matou alguém, que ela é um monstro, mas é sobre a minha mãe que está se referindo. A noite chegou, e Débora não conseguia dormir. Tinha pressa que o dia clareasse para se encontrar com seu passado. Quando a luz do sol
entrou pelo quarto, a jovem já nãoum estava lá.de Par tiu antes, carregando na bagagem plano vida para ela e Sueli. Se não conseguisse retirar a mãe do hospital, a estudante se internaria. A rápida viagem de São João del-Rei até Barbacena, cerca de uma hora de ônibus, pareceu uma eternidade. Ao avistar o portão da sua infân- cia, o coração da jovem acelerou. Faltava ar sufi- ciente nos pulmões, a mão estava gelada. A filha de Sueli respirou fundo e seguiu. Na secretaria,
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perguntou pela paciente. Foi levada a um dos pa- vilhões femininos e apresentada à Sueli. Não de- morou muito para descobrir que aquela não era quem procurava. Nesse mesmo pavilhão, ela descobriu o sobrenome da mãe: Rezende. Agora, sim, estava muito próxima de tocar a mulher de quem foi separada nos primeiros dias de vida. — E onde a encontro? Débora sentiu a face de sua interlocutora mudar. O sorriso deu lugar a uma expressão de
lamento. — Infelizmente, ela faleceu há um ano. A frase soou como um tiro. De repente, Débora sentia-se à beira do abismo de novo. O desfecho da história não podia ser aquele. Onde estavam os finais felizes? Havia perdido, pela pela se-
gunda vez, pessoa julgavalevar ser aconsigo mais im-um portante da asua vida.que Precisava
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pouco dessa mãe, não aceitava voltar para casa de mãos vazias. Conhecer o passado de Sueli tornou-se quase uma obsessão. No hospital, a estudante conseguiu recolher fotos dela e alguns poucos pertences. O mais significativo é um terço rosa que guarda como relíquia. Depois de alguma in- sistência, a filha de Sueli ganhou um passaporte para embarcar nos mais de trinta anos em que a mãe ficou institucionalizada. Sabia que não es-
tava preparada para uma viagem ao interior do Colônia, mas a certeza maior era que precisava encontrar Sueli, nem que fosse em suas memóri- as. Quando os prontuários da paciente mais famosa do Colônia foram liberados, Débora sorveu cada informação. Passou quinze dias
trancada em uma tudo. Assim, pôde sabersala quedanoinstituição, dia do seu lendo nascimento a louca do Colônia estava plena de sanidade.
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Débora Aparecida Rezende nasceu pre- matura no dia 23 de agosto de 1984, às 17h50, mas com boas condições de vitalidade. O parto normal ocorreu pelo método Leboyer (de cócor- as) e teve excelente colaboração da paciente. Apesar do esforço, a paciente não conseguiu amamentar a recém-nascida, a mesma sugou pou- cas vezes. O doutor Bartolomeu ligou para saber do bebê e disse que, caso a mãe não consiga ali- mentar a filha, é preciso oferecer Nestogeno.
Como o hospital não tem, demos cinco gramas de glicose. Sueli não só ajudou no parto normal, como também lutou feito uma leoa para amamentar sua cria. Não conseguiu. Dez dias depois de dar à luz, ela teve a filha tirada de seus braços. Pelo menos três dezenas de bebês nascidos no Colônia foram doados logo após o nascimento sem que suas mães biológicas tivessem a chance de niná-los. É
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compreensível que, depois disso, muitas mul- heres tivessem, de fato, enlouquecido. Sueli Aparecida Rezende procurou por Débora a vida inteira. Sonhava com o dia em que poderia tocar a menina e ver de perto um pedaço seu. Os prontuários do hospital revelam que, nos vinte e dois anos seguintes ao parto, ela se lem- brou de todos os aniversários da filha, rezando por ela com o terço rosa.
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Sueli Rezende: morreu em 2011, antes de reencontrar a filha Débora. Foto cedida por Débora Soares.
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— No mês que
vem, minha filha vai fazer dezoito anos, doutora. Vim aqui dizer que eu gostaria de estar em casa nesta data. O pedido foi dirigido à assistente social da instituição em 2002, quando Sueli completava trinta e um anos de internação no Colônia. A proximidade do aniversário de Débora sempre foi acompanhada de choro e crises registradas nos prontuários. — Uma mãe nunca se esquece esquece da filha, — repetia mesmo quando não está mais com ela Sueli, por anos a fio. A mulher impedida de ser mãe também não conseguiu ser filha. Nasceu em Passos de Minas, sendo a caçula de sete irmãos. Desde pequena, no entanto, sofria de crises de epilepsia que a
afastaram do oconvívio dos pais. anos, morava com tio Raimundo, emAos Belosete Horizonte, dono de um armazém. No grupo em que
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estudava, passou a trocar favores sexuais por merenda. Aos oito anos, foi entregue ao juizado de menores e encaminhada para Oliveira, aonde chegou a receber algumas visitas da família. Em 1971, quando Sueli deu entrada no Colônia, perdeu o contato com seus parentes. De dentro do hospital de Barbacena ela só saiu morta, em 2006, aos cinquenta anos, sem realizar o único sonho que alimentou na vida: encontrar-se com Débora, a filha que teve com José Malaquias, pa- ciente de Santos Dumont levado para a instituição por causa de alcoolismo. A história de Sueli no Colônia foi pintada com cores fortes. Ela devolveu com violência toda a crueldade que sofreu. Agiu sem piedade consigo mesma e com os outros. Arrancou orelha
de muitos pacientes, Elzinha foi uma suasosvíti mas, e se mutilou. Usou grampos paradeferir pulsos, enfiou cabo de vassoura na vagina,
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arrancou o próprio dente. A cada sessão de choque que tomava, espalhava o mesmo terror que lhe havia sido imposto. O comportamento dela rendeu muita represália. Foi espancada vári- as vezes, inclusive pelas colegas de pavilhão, e colocada nua na cela, apesar do frio que cortava a pele. Para fugir das agressões impostas por fun- cionários, ela chegou a passar uma semana escondida no porão do hospital. Quando con-
seguia, Malaquias roubava alguma comida e levava para ela. Porém, como os alimentos nunca foram fartos — apesar de haver registro de com- pras generosas em nome do Colônia — , ela acabava passando muita fome. Assim, nessa con- dição subumana, alimentou-se de ratos.
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Sueli Rezende.
O prontuário do mês de setembro de 1981 indica mais um surto de Sueli. Alegando estar 212/455
faminta, ela pegou uma pomba no pátio, estraçal- hou e comeu na frente de todos, dizendo que era seu único alimento. A cena chocante foi vista por centenas de pessoas, inclusive pelos atendentes, mas ninguém conseguiu enxergar o óbvio: em que a jovem paciente havia se transformado em uma década de internação. Tratada como bicho, ela comportava-se como um. Decididos a conter a agressividade de Sueli, os médicos re- uniram – se. Depois de horas de discussão, ap- resentaram como sugestão uma medida: arrancar a arcada dentária da paciente. A ideia medieval não foi levada a termo. O psiquiatra de Belo Horizonte Wellerson Alkmim, membro da Associação Mundial de Psicanálise, conviveu com a ex-menina de Oli-
veira. O médico conta que, mesmo com a p personersonalidade deteriorada, Sueli tinha um excelente hu- mor. Conseguia ser divertida e carismática. Em
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uma das ocasiões em que foi foi flagrada fazendo sexo com um paciente, próximo ao módulo resid- encial do hospital, teve o comportamento ques- tionado pelo funcionário. — Mas o que é isso, Sueli? Por que está com a calça arriada? — Por nada, uai. Será que não posso nem rezar, gente? Parece maluco. A interna saiu andando como se nada tivesse acontecido, embora estivesse só de blusa.
Sueli cansou de cantar o psiquiatra Leonardo Tollendal, que cuidou dela nos anos finais da internação. Sem ninguém na vida, a pa- ciente havia se ligado a ele, tornando-se depend- ente não só dos seus cuidados, mas também de sua atenção. Às vezes, o chamava de pai, mas quando os hormônios afloravam, não tinha censura.
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— Um dia ainda te pego — dizia Sueli, com
malícia. Ele ria. Também é de Sueli a letra da música que se se tornou hino no hospital. As estrofes ritmadas fazem uma clara crítica ao modelo manicomial e ao isolamento que aprisionava a alma. Ô seu Manoel, tenha compaixão Tira nós tudo desta prisão Estamos todos de azulão Lavando o pátio de pé no chão
Lá vem a boia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar bolão Depois vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa
E logo vêm as funcionárias Que sãoatrás umas putas mais ordinárias.
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José Manuel de Rosa Lucinda, pessoa a quem a letra se refere, foi um dos gerentes administrativos linha-dura do hospital nos anos 70. Passadas mais de três décadas da criação da composição, a música ainda é lembrada pelos sobreviventes do campo de concentração em que o Colônia se tornou. A letra também ficou imor- talizada no documentário Em nome da razão, dirigido por Helvécio Ratton, em 1979. Na gravação, Sueli aparece cantando. Somente no fi- nal da década de 90, quando oficinas terapêuticas e atividades extramuros começaram a ser im- plantadas no hospital, é que a agressividade de Sueli perdeu força. Ela aprendeu a bordar. Descobriu novas formas de prazer, porém, nesse momento da vida, já estava tomada pela de-
pressão por problemas cardíacos. Dois anos antes deemorrer, Sueli demonstrava intenso sofrimento.
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— Me sinto sozinha, igual ao tempo em que
eu ficava na cela, pelada comendo bicho. Não consigo dormir à noite. Meu coração dói de saudade das minhas filhas. Além de Débora, Sueli deu à luz outra menina em 15 de junho de 1986. Luzia, como foi cha- mada, também foi arrancada de seus braços. Sobre o destino da menina, não há qualquer pista. Em 22 de agosto de 2005, a paciente teve uma nova crise. — Amanhã é aniversário da minha filha
morena, e não tenho nenhum retrato dela. Não sei se está viva ou morta. Gostaria de vê-la. Naquele mesmo ano, a paciente passou seu último Natal internada no hospital regional, mesmo lugar para onde Débora foi levada por causa da tentativa de suicídio. Por ironia tino, mãe e filha estavam a poucos leitos do umadesda
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outra. Em janeiro de 2006, Sueli não resistiu ao infarto. Faleceu chamando por Débora. Puxando na memória, a “filha morena” da menina de Oliveira retorna aos seus sete anos, no dia em que conversou com uma paciente do hospício de Barbacena dentro do pavilhão feminino. Lembrou-se de a mulher ter lhe dito que era mãe de duas meninas. Percebeu, então, que era uma delas. Sem saber, mãe e filha estest- iveram nos braços uma da outra por alguns se- gundos. Por isso, a funcionária havia saído do pavilhão para chorar. Todos conheciam a história delas, menos Sueli e Débora, vítimas da loucura dos normais.
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a beira do Itacambiruçu, Donana batia as roupas nas pedras do rio de areia fina e branca. Analfabeta, Ana Pereira de Oliveira, trinta e quatro anos, mantinha a família com o dinheiro que ganhava como lavadeira da pequena cidade de Grão Mogol, no norte de Minas Gerais. Tinha perdido o marido havia dois anos. Em 30 de setembro de 1933, Antônio Bispo de Melo morreu engasgado e não houve socorro capaz de evitar a asfixia que lhe
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roubara a vida. Sozinha e com dois filhos, a mul- her envelheceu no ofício que herdou da mãe. Depois de quarar a roupa nas margens do lugar que hoje é conhecido como Praia do Vau, endereço dos antigos garimpeiros de diamantes da região, ela fazia uma trouxa que carregava na cabeça pelaDonana pequena cidade. só começou a sentir o peso da existência quando Luizinho, o filho mais velho,
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passou a dar sinais de esquisitice, em 1950. Calado, o rapaz de dezesseis anos cresceu sem amigos. Não brincava descalço nas ruas de terra como os meninos da sua idade, preferindo o isol- amento na casa simples de parede de barro onde morava. Quando a notícia de tratamento médico chegou aos ouvidos da mulher, ela decidiu autor- izar o encaminhamento do filho para o hospital de neuropsiquiatria de Oliveira, o mesmo para onde haviam sido mandados Silvio, Elzinha, Tonho e tantos outros. Foi convencida de que o menino sofria de doença mental, e por isso precisava ser internado. No dia marcado, quando as crianças começaram a ser recolhidas pelos mu- nicípios vizinhos, ela arrumou Luizinho com a melhor roupa do filho. A blusa branca de manga
longa, já com tecidodeixada puído, pelo e umapai. calça reformada, única herança Passou a mão para ajeitar a camisa e os cabelos crespos do
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garoto negro e de voz excessivamente rouca para alguém da sua idade. — Deus te abençoe, fio. A mãe vai ficar aqui rezando por ocê. Logo a gente se encontra. Foi a última vez que Luiz Pereira de Melo, hoje com setenta e oito anos, anos, viu a mãe. Tratado como propriedade do Estado, o menino hospital- izado apenas por ser tímido se separou da família sem diagnóstico de loucura, embora não tenha sido difícil arranjar uma doença para ele. Qu- alquer moléstia mental serviria, afinal, o rapaz era filho da pobreza como a maioria dos depositados nos manicômios do Estado. De Oliveira, o menino seguiu para o Colônia em 24 de fevereiro de 1952, onde perdeu a noção dos anos. Sabe apenas que foi tempo demais, o suficiente para
manter o coração preso na saudade que tinha de casa e das mãos ásperas da mãe lavadeira. Quando Donana tocava seu rosto, ele se sentia o
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mais rico dos garotos, pois tinha o melhor carinho do mundo. Em Barbacena, o jovem experimentou a co- vardia e a escravidão. Recrutado por um fun- cionário do hospital que decidiu ganhar dinheiro nas costas daquela gente, Luiz passou a construir, de graça, casas populares que o tal homem ven- dia. A exploração da sua mão de obra, no ent- anto, não foi o que mais doeu, e sim as humil- hações impostas. — Por qualquer coisinha de nada, ele me
dava um coro, batendo com a mão aberta no meu rosto e orelha — relembra Luiz, enquanto come um prato de arroz e feijão entre um e outro gole d’água.
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Luiz Pereira de Melo, hoje com setenta e oito anos, sobrevivente do holocausto, foi internado aos dezesseis anos. Fotos de 1961 e de hoje.
Ele também se lembra das intermináveis noites de frio em Barbacena, quando os pacientes faziam um “mutirão de camas” para passar a noite. Juntar as camas sem lençol ou cobertor e dormir amontoado era uma tentativa de acordar vivo no dia seguinte. Em Grão Mogol, Donana sofria sem notícias do seu menino. Como não conhecia as letras, pe- dia aos vizinhos que escrevessem cartas e as en- viassem para Luizinho. Ele nunca as recebeu. Todos os dias ela estendia um pano na cama do menino, que poderia chegar a qualquer momento. Assim, quando ele voltasse encontraria tudo como antes. O retorno não aconteceu, e ela foi definhando. O pranto da lavadeira ficava mais
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forte à beira do rio. Ali, de frente para as águas escuras do Itacambiruçu, ela deixava as lágrimas lavarem o rosto encarquilhado pelo sol escaldante e pela vida miserável. — Onde estará meu fio, Deus do céu? Donana faleceu aos setenta e cinco anos sem resposta. No dia da sua morte, ela ainda deixou a cama de Luizinho arrumada, como fez nos últi- mos trinta e dois anos. Agora havia duas camas vazias. Com a morte da mãe, ocorrida em 14 de
julho de 1976, a filha, Maria Tereza de Melo, acabou indo parar na rua. Lilia, como ficou conhecida, era considerada a louca de Grão Mogol. Sem ninguém que pudesse cuidar dela, passou a arrastar seus trapos. Após oito anos de indigên- cia, a filha de Donana foi acolhida pelo asilo São Vicente de Paulo, onde mora há doze anos, sendo uma das vinte e sete assistidas. Ficou cega, hiper- tensa e com demência precoce. Há dois anos, anos,
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porém, aos oitenta e seis anos, sentiu o coração pulsar forte ao ouvir uma voz da sua infância. A visita no asilo a surpreendeu. Não se lembrava mais do rosto do irmão, mas tinha certeza de que ele estava ali. O reencontro de Luizinho e Lilia levou quase sessenta anos para acontecer, mas quando as mãos se tocaram, eles se reconheceram. Lilia passou a ponta dos dedos na sobrancelha falha de Luiz. Depois, os dedos passearam na testa do irmão, que teve o contorno dos lábios grossos e o nariz explorado. Ele, de olhos fechados, buscava num canto da memória a antiga sensação de aconchego que tinha quando Donana acariciava sua face. Choraram abraçados e permaneceram em silêncio por alguns minutos. Apesar de estar- em tão diferentes de quando crianças, época em que ainda tinham sonhos, os dois souberam que
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os anos podiam consumir quase tudo, menos o amor que guardavam um pelo outro. Na sua cidade natal, para onde viajou com a ajuda de um monitor da residência terapêutica onde mora, Luiz reconheceu o caminho da antiga casa, lugar em que ele e a irmã viveram no curto período em que foram uma família. De braços dados com Lilia, os dois caminharam até a matriz de Santo Antônio, igreja em estilo colonial con- struída pelos seus antepassados. Localizado na praça Ezequiel Pereira, o templo de paredes de de pedra foi edificado na segunda metade do século XIX com o suor de escravos cedidos, principal- mente, pelo barão de Grão Mogol, Guálter Martins Pereira. Quando era menino, Luizinho costumava caminhar pelas ruas de pedra que que cir- cundam a igreja. Depois de dois dias juntos, os irmãos tiveram que enfrentar uma nova
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despedida. Os dois sabem que aquele pode ter sido o último encontro em família. Para a diretora do abrigo, Maria da Assun- ção Passos Simões Costa, a dívida que o Estado tem para com essas pessoas é incalculável. — Eles foram privados de conviver com seus parentes. A mãe de Luiz morreu sonhando em revê-lo. Como resgatar o sofrimento imposto por uma vida inteira? É difícil devolver a eles o que lhes foi negado.
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Adelino Ferreira Rodrigues e Nilta Pires Chaves, outros ex-pacientes do Colônia, tentam, juntos, construir uma nova história. Institucional- izados por cerca de trinta anos, eles buscam recu-
perar a dignidade foi subtraída. improvável união de que um lhes epilético com umaA
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catatônica tem vencido não só o tempo, mas tam- bém o preconceito que os marcou por décadas. Órfão de pai, que morreu assassinado, o menino de São José de Caraí (MG) diz que foi in- ternado em Belo Horizonte depois de ter sido “mordido por um cachorro bravo”. Bem que tentou descobrir o motivo pelo qual foi levado para o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil da capital mineira. Mas, até hoje, ele não sabe a resposta. Tinha vinte e dois anos, quando deu entrada no Colônia, em Barbacena, em 25 de abril de 1969. Nunca se conformou com o destino que lhe impuseram. Mesmo sem saber ler e escrever, conhecia bem os números e queria prosperar. Ganhou trocados fazendo bicos na instituição e
multiplicou as moedas aproveitando o vício dos outros. Comprou rapé (tabaco em pó) para inalar ou fumar, e passou a vender para os funcionários
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do hospital. Assim, foi somando migalhas. Quando o montante cresceu, passou a emprestar dinheiro a juros e ganhou certo status na unid- ade. Era um dos poucos que tinham entrada e saída liberadas, conquistando a confiança do comércio local. Já Nilta chegou ao Colônia Colônia em 30 de março de 1976. Não sabe nada sobre seus parentes nem os motivos de sua internação. A mulher sem pas- sado não tem nenhum registro afetivo sobre sua família. Sua única referência é o hospital, onde onde viveu anos de martírio. Foi em meio ao frio, à fome e ao medo que ela encontrou Adelino, o moço considerado até bem-apanhado, dadas as condições desumanas em que vivia. Ela gostou dele “porque era bonzinho”. Ele gostou dela, “era mandada”. porque bem Nilta passou a lavar
as roupas de Adelino no hospital e a cuidar das coisas do paciente. Em troca, Adelino ofereceu
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sua proteção para alguém que considerava ser mais frágil do que ele. Em muitas ocasiões, Nilta precisou receber comida na boca para não não mor- rer. A apatia não era resultado apenas de sua doença, mas também da crescente vontade de de- sistir de si mesma. Além de Adelino, a paciente Sônia foi uma das que cuidaram dela, abrindo mão da sua própria ração em benefício da da amiga.
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Adelino Ferreira Rodrigues e Nilta Pires Chaves, Chaves, sobreviventes do Colônia, se casaram em 2005. Foto abaixo cedida por Tânia Cristina de Paiva.
A escolhida de Adelino tinha o coração pesado de mágoa. Doía não saber quem ela era e também desconhecer como o Colônia se tornou o endereço de sua vida. Ao lado de seu eleito, no entanto, a existência da paciente ganhou sentido. Ela teve vontade de se arrumar e passou a sorrir. Em 2004, quando o companheiro deixou o hos- pital, para experimentar uma rotina sem muros numa residência terapêutica, Nilta baqueou. Tinha medo de ser deixada para trás. Mesmo desospitalizado, Adelino manteve o compromisso com a paciente, indo visitá-la todos os fins de semana que se seguiram. Levava roupas, guloseimas. Em troca, ganhava a atenção que precisava para se sentir seguro. Mas a
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liberdade sem Nilta não tinha o sabor que ele imaginava. Ela fazia falta em sua vida, e isso ele começou a perceber nos primeiros dias longe do Colônia. Assim, arquitetou um plano maluco: casar-se com ela. Seu desejo era arranjar um lugar onde os dois pudessem morar. Empolgou- se com a ideia, mas a responsabilidade responsabilidade de manter um lar era desafio que Adelino nunca havia en- frentado. Teria que usar o benefício que recebia do governo, um salário mínimo, para pagar aluguel, contas, despesas com alimentação. Mas como os números eram seu forte, Adelino descobriu que somando o seu dinheiro com o dela, tudo ficaria mais fácil. Decidido a fazer o pedido de casamento, ele partiu para o endereço da namorada, namorada, transferida para uma casa protegida seis meses depois que ele deixou o hospital. Quando Adelino entrou pelo portão da residência terapêutica, a nova
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moradora o avistou e sorriu. Era a primeira vez que ela via algo diferente no olhar dele. Sentiu um arrepio. Ansioso, ele revelou seus planos, mas nem se lembrou de fazer o tal pedido de casamento, pois considerava que já estava aceito. O casório foi marcado para o dia 2 de dezembro de 2005. Havia muito a ser preparado. Com o apoio da equipe técnica, eles viveram viveram esse mo- mento especial como qualquer casal, com direito a chá de panela, enxoval e até curso de noivos, exigência da Igreja Católica. O noivo sonhava em usar terno e gravata, mas não abria mão de ter uma camisa azul igual à dos motoristas dos ônibus em que andava. Ela teve o vestido branco confeccionado por uma costureira famosa do ramo. Sem estudo, os dois fizeram questão de aprender a assinar os próprios nomes, pois não queriam passar pela humilhação de imprimir as digitais na certidão de casamento.
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Assim, por quase um ano sentaram-se nos bancos da escola do bairro onde moravam. Adelino aproveitou a ocasião do casamento para realizar um sonho antigo: colocar ouro na prótese dentária que usava, pois queria ficar pare- cido com um cigano. A dentadura dentadura de Nilta tam- bém ganhou contornos dourados, já que ela quer- ia atender ao gosto duvidoso do marido. Além do sorriso de ouro, a ex-paciente do Colônia con- seguiu alugar uma tiara prateada que usou na cel- ebração, para que ganhasse “ares de rainha”. Era a primeira vez que ela gostava do que via no es- pelho. No salão de beleza, Nilta teve o seu dia de noiva e tratamento vip . Já o noivo foi se arrumar na casa da psicóloga das residências terapêuticas de Barbacena, Tânia Cristina de Paula Paiva.
Toda a família de Tânia ficou em função d do o casamento. As filhas, com então cinco e seis anos, foram as damas de honra. O marido da
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psicóloga, o policial militar Ricardo Silveira Paiva, ajudou a vestir o noivo, sendo alçado ao posto de motorista do casal. Ela assumiu o papel de madrinha e estava tão nervosa quanto Adelino. A psicóloga também ajudou na organização organização da festa, paga com doação feita pelos ex-pa- cientes do Colônia e dos cerca de cem moradores das residências terapêuticas. A comunidade reli- giosa também colaborou com a preparação de um bolo que media mais de dois metros. A igreja do Bom Pastor, no bairro Carmo de Barbacena, recebeu ornamentação especial. Lírios e flores-do- campo estavam por toda parte. Centenas de con- vidados aguardavam os noivos, inclusive o então prefeito Célio Mazoni (PMDB), acompanhado da primeira-dama.
De fato, a união de Nilta e Adelino foi um acontecimento. O convite informava que o enlace ocorreria às 16 horas. Às 16h02, os noivos
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encontraram-se à porta da igreja e se abraçaram. Sem família, eles decidiram que seguiriam juntos para o altar, um levando o outro. Quando a “Marcha Nupcial” Nupcial” finalmente foi anunciada, os ex-pacientes do Colônia começaram o desfile pelo tapete vermelho. Em nenhum momento lembraram-se das dores impingidas a cada um. Estavam tão felizes, que não havia lugar para lá- grimas, pois elas remetiam ao longo período de clausura. Nilta, que passou a existência vestindo trapos, sentia-se tão bonita naquele vestido branco, que mal reconhecia a mulher aviltada por décadas, sem direito a pentear os cabelos e a manter a higiene pessoal. Não se se assemelhava em nada com aquela paciente diagnosticada com catatonia. Vinte e quatro anos depois de ser con- finada no Colônia, ela era uma sobrevivente do holocausto brasileiro e sentia-se mais viva do que nunca. Além de marido, Nilta conquistava com o
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casamento um lugar só seu, a casa que nunca teve. Após a missa, celebrada pelo padre Ron- aldo, os dois seguiram para a festa realizada no salão da igreja. Cortaram o bolo gigante, tiraram fotos, brindaram ao novo tempo. Recusaram-se a passar a noite de núpcias num quarto de hotel, como foi sugerido pelos amigos. Seguiram para o bairro Grogotó, onde estava a casa alugada na rua Francisco de Paula Almada. Aquele, sim, sim, era o lugar onde eles seriam seriam pela primeira vez um do outro. Em cima da cama impecavelmente ar- rumada, pétalas de flores davam as boas-vindas. Os sete anos seguintes foram de uma paz que eles desconheciam. Na casa decorada com imagens de santos, fitinhas do Senhor do Bonfim e outras mis- celâneas religiosas, os dois aprenderam a admin- istrar não só as contas no fim do mês, mas
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também a própria vida. Aprenderam, ainda, a cuidar de si e do outro. Nas consultas médicas de Nilta, Adelino es- tá ao seu lado. Nas pequenas compras de casa, Nilta acompanha o marido. Ela cozinha e cuida da casa, ele organiza as finanças. Nunca brigam. Todos os anos, desde o casamento, eles vão à Aparecida do Norte, o santuário católico nacional localizado em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba (SP). Lá, visitam a Basílica Velha e a Igreja de São Benedito. A cada viagem, retornam a Barbacena com novos penduricalhos que usam para en- feitar o imóvel e proteger seus moradores e quem os visita. Tânia, a psicóloga das residências terapêuticas, é uma das pessoas por quem eles
sempre oram. Ela acompanha o casal a cada quinze dias. Hoje, tornou-se mais do que técnica, uma amiga. Procura, com o seu trabalho,
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potencializar o melhor de cada ex-paciente do Colônia, porque mais do que ninguém ela acred- ita que eles podem superar as próprias limitações. Recebe em troca afetividade, sendo surpreendida pela capacidade que eles demonstram de se rein- ventar. O rótulo de coitados não lhes cai bem, e Tânia sabe disso. Há quatro anos, quando a téc- nica teve seu carro furtado, ela encontrou solidar- iedade onde menos esperava. Adelino, que havia juntado R$ 3 mil na poupança, quis dar a ela o dinheiro para que comprasse outro veículo. — Tânia, você não pode ficar sem olhar a gente. Dou meu dinheiro e da Nilta para você comprar outro carro. Você precisa dele para vir aqui. A demonstração de preocupação emocionou
a psicóloga. Além de Nilta e Adelino, moradores das residências terapêuticas queriam solucionar o problema da técnica. Um ofereceu vales-
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transporte, outro quis emprestar o seu próprio passe livre, que garantia o direito de andar de ônibus sem pagar. Os livros da faculdade de psicologia haviam preparado Tânia para muitos desafios, mas não previam que, no hábitat dos considerados sem normas, ela encontraria mais humanidade do que em seu próprio mundo.
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jeans e casaco, o e meias cinza, calça gigante quase não cabe no sofá da sala. Descansa, após carregar, por mais de quatro décadas, a pesada armadura que o tornava imune ao sofrimento de uma vida. Há um ano descobriu que não precisava mais dela. Apesar de ter crescido sem lágrimas, ele, agora homem feito, não consegue mais represá-las. Aos quarenta e seis anos, o chefe da banda do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, João Bosco Siqueira, experimenta algo inédito na sua tra jetória: aprender a ser filho. Ex-aluno da Febem, ele exibe com orgulho a guerreira guerreira de quem se perdeu bem no início da batalha. É Geralda Siqueira Santiago Pereira, sessenta e dois anos. Do alto de seu 1,50 metro, a ex-empregada
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doméstica envolve o tenente nos seus braços, em- bora não consiga mais pegá-lo no colo como fez na adolescência, quando, aos quinze anos, deu à
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luz João dentro do pavilhão Zoroastro Passos, no Colônia de Barbacena. O exílio no hospital foi a forma que o patrão de Virginópolis (MG) encon- trou de silenciar a menina que ele havia estupra- do no período em que ela trabalhava em sua casa. Com então cinquenta e quatro anos, ele precisava esconder a gravidez da garota a qualquer custo, nem que, para isso, confiscasse, mais uma vez, a inocência dela. Geralda nasceu em Coroaci, no Vale do Rio Doce, um ano depois de o distrito mineiro de Santana de Suassuí ser elevado a município, em 1949. Perdeu pai e mãe ainda pequena, sendo cri- ada por vizinhos. Dos parentes não tem nenhuma informação nem um rosto para recordar. Analfa- beta, foi levada para trabalhar em casa de família, longe de sua cidade natal, aos onze anos. Quando chegou ao prédio de dois andares, em Virginó- polis (MG), ainda tinha corpo de criança, mas
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chamava a atenção por seus cabelos negros, so- brancelha farta e lábios carnudos. Na casa, além de dois meninos, havia outras quatro garotas com idade próxima à sua, filhas dos donos do imóvel. Enquanto eles brincavam, ela era explorada no trabalho infantil. Mesmo pequena, fazia serviço de gente grande, sendo responsável pela comida, lavagem de roupas e limpeza. A jornada, que começava ainda de madrugada, só terminava à noite, quando ela, exausta, seguia para o quarto dos fundos, sem qualquer ventilação. O chefe da família era advogado e mantinha um escritório no andar superior. Por isso, ficava mais na residência do que na rua. A vida em casa era conturbada. Com as constantes crises nervo- sas, a esposa era frequentemente internada em clínicas psiquiátricas particulares de Divinópolis (MG). Assim, a menina acabou transformada na mulher da casa, tornando-se responsável por
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tudo. Quando sobrava tempo, brincava escondido com a boneca de pano que havia costurado com retalhos que encontrou. Era o único momento de criança. Um dia, enquanto lavava o banheiro principal do imóvel de trinta metros quadrados, mais de duas vezes o tamanho de seu quarto, foi sur- preendida pela chegada do patrão. Ele estava diferente, com o olhar enigmático e assustador. Suava depois de entrar abruptamente no cômodo. Sem falar nada, ele a agarrou. Começou a beijar beijar o pescoço da então adolescente de catorze anos, pressionando-a contra a porta. A garota franzina não reagiu. Também não emitiu qualquer som. Estava tão apavorada, que sentia medo até de gritar. Abusada sexualmente, Geralda bem que tentou pedir ajuda a uma das irmãs do advogado, mas ouviu em tom jocoso que que homem era assim mesmo e, portanto, deveria esquecer.
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Um ano depois do episódio, a adolescente estava na cozinha, no porão do prédio, pre- parando um prato de comida. Já era tarde da noite, e ainda não tinha se alimentado naquele dia. O homem apareceu na escada, batendo a porta. Ela se encolheu. Puxada pelos cabelos, foi jogada sobre a mesa. Deitado por cima dela, o patrão a estuprou. Machucada, Geralda sentiu dor na alma. Pela primeira vez na vida, desejou a morte. Quando o ato acabou, acabou, ela permaneceu deitada na mesa. Perdeu a noção das horas. Sem ninguém no mundo, só conseguia chorar. O tempo passou, mas agora quem estava diferente era ela. Havia perdido o ar ingênuo, suas feições endureceram. Seu corpo também passara por transformações. A mama havia cres- cido; o quadril, alargado. Ela vomitava quase que diariamente e, ainda assim, sentia mais fome. Logo a gravidez foi descoberta, e familiares do
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advogado começaram a articular uma saída. A mais fácil seria mandar a gestante para longe, para um local de onde ela não pudesse mais sair. Com a ajuda de duas irmãs de caridade amigas da família, o destino de Geralda foi traçado. Assim, naquele ano de 1966, a menina deixou o imóvel em Virginópolis na companhia de duas duas freiras: Helena Guerra e Tereza. Depois de uma longa viagem, elas chegaram a Barbacena. Ao avistar um dos prédios do Colônia, Geralda sen- “Que estranho!”, tiu o coração apertar. pensava. Mas somente quando entrou no pavilhão do cha- mado hospital é que ela conseguiu falar: — Meu Deus! Havia tantas mulheres caídas no chão, espalhadas pelos cantos, em meio a fezes, que a gest-
ante foi tomada pelo pânico. Inconscientemente, Inconscientemente, colocou a mão sobre a barriga na tentativa de proteger o filho. Que lugar era aquele? Por que as
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pessoas estavam ali? Os gemidos de lamento eram ensurdecedores. Mesmo grávida, ela tomou seu primeiro eletrochoque, para “amansar”, dis- seram os guardas. Foi a última coisa que ouviu no seu primeiro dia na Assistência, nome dado ao setor feminino do Colônia.
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Geralda Siqueira Santiago, mãe de João Bosco, foi estuprada aos catorze anos e levada para o Colônia grávida. Depois de dar à
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luz o menino, eles foram separados. Só se reencontraram em 2011.
Como tinha a sanidade a seu favor, Geralda foi levada para o berçário do Colônia, sendo incumbida de cuidar dos filhos de pacientes e lavar todas as roupas. Trabalhava muito e quase não comia. Sentia nojo das refeições que mais pare- ciam lavagem. O cheiro dava náuseas. Quando a
bolsa rompeu, pela em 21 de outubro de as 1966, ela estavasedebilitada fome, mas usou últimas forças que lhe restavam para trazer o filho ao mundo. O menino nasceu no pavilhão Zoroastro. Forte e saudável, ele era quase quase um milagre. Mesmo esquálida, Geralda via o leite escorrer pelo peito. Consegu Conseguiu iu amamentar por seis meses e dormir ao lado do filho nesse período. O bebê era a única coisa sua, imaginava.
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Mas a mãe não teve o direito direito de escolher o nome do bebê. Batizado de João Bosco pelas freiras, em homenagem a um santo da Igreja, o menino cresceu sob a proteção das religiosas. Quando ele completou dois anos, a jovem com então dezessete anos foi obrigada a deixar o Colônia para trabalhar. — O João Bosco fica aqui. Você vem visitá- lo nos finais de semana — Geralda ouviu da irmã Tereza.
João Bosco, bebê no Colônia.
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A separação do filho foi um golpe duro. Empregada numa casa de família, ela passava os dias da semana esperando pelo domingo, quando corria para o hospital, a fim de pegar o filho nos braços. O sorriso dele renovava a coragem dela. Geralda desejava trabalhar mais, na esperança de alugar algo para os dois. Reuniu economias nos doze meses seguintes e estava ansiosa para dar a notícia no hospital. No domingo, sairia do Colônia levando o filho. Quando chegou, no ent- anto, percebeu algo de errado. João Bosco não estava sentado na escada da porta do berçário como de costume. Angustiada, ela iniciou a pro- cura pelo menino de três anos. — João, meu filho, a mamãe chegou. Vem, querido, estou aqui. As enfermeiras procuraram demonstrar naturalidade, mas havia um clima tenso no ar.
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— Cadê meu filho? — perguntava Geralda a
cada funcionária que encontrava pelo caminho. — Não está mais aqui. Foi levado para longe — respondeu uma das freiras que acabava de chegar. Geralda perdeu o controle. Começou a gritar, debatendo-se. Não podia aceitar que a melhor parte dela lhe tivesse sido arrancada. Estava histérica. Foi detida por dois guardas que a levaram para outro pavilhão. Presa pelos braços, recebeu descargas elétricas e, depois, uma ameaça: — Se voltar aqui, não te deixaremos sair. Aos dezoito anos, a jovem deixou o hospital com passos de uma idosa. Em uma hora, havia envelhecido décadas. Não tinha forças para enter- rar um filho vivo.
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— Joãozinho, reage, meu filho.
A voz parecia vir de muito longe. O garoto de oito anos ainda abriu os olhos, mas a vista em- baçava. Com quarenta e um graus de febre, ele delirava. Passou a noite toda com arrepios pelo corpo e tremedeira que nenhum cobertor foi capaz de fazer parar. Na cabeceira da cama, a mulher fazia com- pressas com toalha. — Se não melhorar, vamos ter que que chamar o — médico dizia para a colega. Quando amanheceu, João Bosco finalmente conseguiu dormir. A temperatura do corpo havia baixado. Exausta, a guardiã seguiu na direção de casa. Precisava descansar para enfrentar a longa jornada que teria pela frente. A rotina no Pat- ronato Padre Cunha não era fácil. Para manter a instituição que abrigava cerca de cem crianças de zero a treze anos, no distrito de Pinheiro Grosso
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(MG), somente correndo atrás de doação. Em função do encontro com José Lauro, dono da ún- ica panificadora da região, irmã Rosa, filha de imigrantes poloneses, sabia que só poderia tirar um cochilo para não perder a hora. Na residência das freiras, ela escolheu a cadeira de balanço no lugar da cama. Adormeceu sentada e só desper- tou a tempo porque foi acordada pelo próprio ronco. Com baixa estatura e olhos verdes, a freira não parava, apesar do sério problema que tinha na vista. Bilíngue, ela era admirada pelos adultos, mas venerada pelos meninos que ajudava a cuid- ar. Todas as noites, pegava uma cadeira e colocava no meio da sala de TV. Espalhava ta- petes pelo chão, para que as crianças se sen- tassem ao seu redor e, juntos, pudessem assistir à novela das oito. O gesto da freira dava início à confusão. Os garotos se estapeavam para sentar o
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mais próximo dela. É que o sortudo que con- seguisse ganhava de brinde cafuné de Rosa. Como todos queriam receber o carinho, a disputa era acirrada. Na hora de dormir, os meninos ouviam histórias infantis transmitidas para todos os dormitórios em caixas de som. som. A dedicação das irmãs amenizava a precar- iedade do orfanato. Mesmo pobre de recursos, o patronato era sinônimo de lar. Apesar de racion- ada, a comida tinha sabor. Até o lanche modesto, mingau ou broa de fubá, tinha gosto bom. O melhor era a cuca preparada pelas freiras. Para manter as refeições, havia uma horta na institu- ição que fornecia quase tudo o que era consum- ido na cozinha. Como não havia fundos para con- tratar número suficiente de funcionários, os men- inos ajudavam na colheita, e desde cedo apren- diam a valorizar o pouco que tinham. Tudo era coletivo, e, por isso, havia um senso de
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comunidade muito forte entre eles. Os “irmãos do patronato” criaram um elo capaz de vencer o tempo. João Bosco cresceu nesse ambiente, rodeado de mulheres ternas. Em Maria Moraes de Jesus, o anjo negro da instituição, encontrou referência de vida. Com irmã Dita, como ainda é conhecida ho- je aos sessenta e dois anos, ele manteve os piores embates, mas recebeu os melhores conselhos. Paranaense, a franciscana da Congregação Sagrada Família tinha generosidade no olhar e um sorriso que iluminava. Apesar da juventude — estava com vinte e oito anos à época — , ela sabia se impor com energia, sem, contudo, perder a doçura. — Meu filho, a inteligência é uma arma muito poderosa. Com ela, você pode salvar o mundo ou destruir pessoas — ensinava Dita. A irmã estava sempre disponível a ouvir. ouvir.
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— Irmã, do que é feito o álcool — pergun-
tava João Bosco. — De açúcar. — Mas açúcar é doce, e álcool não. Por que o álcool queima, e o açúcar não? — Porque ele é produzido de certas mistur- as. A cana-de-açúcar é a principal matéria-prima utilizada, mas existem outras, como o milho, a mandioca e o eucalipto. — Mas por quê? Sempre que ficava sem resposta, irmã Dita saía pela tangente: — Meu filho, é melhor ir rezar. Apesar de não ficar satisfeito com a res- posta, o garoto sabia que já tinha gastado tempo demais da freira. Restava a ele obedecer. Logo que se afastava, porém, a religiosa soltava uma gargalhada gostosa, daquelas que dão vontade de rir só de escutar.
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— Êta menino danado! — dizia baixinho,
balançando a cabeça. Dita percebeu logo que a criança question- adora não gostava de trabalhar na roça como as outras. Como não podia privilegiar ninguém, ela designou Joãozinho para “cuidar” dos mais nov- os. Assim o mantinha longe da plantação, como ele queria, mas despertava nele a noção de re- sponsabilidade com o outro. No dia do aniversário de onze anos, João Bosco aprontou tanto no orfanato, que conseguiu estressar até a mais paciente das freiras. Recebeu como “castigo” a limpeza do chiqueiro, tarefa que odiava fazer. Saiu pisando duro. Preferia ficar sem ver Os trapalhões na TV, programa predileto de domingo, a ter que enfrentar aquele cheiro. Poucos dias depois, um grupo de Emaús, que visitava o patronato regularmente, esteve lá
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para realizar a festa dos aniversariantes do mês. Integrantes do movimento jovem da Igreja Católica, eles organizavam não só o lanche, mas também as atividades recreativas. Entre as tarefas daquele dia de comemorações, o grupo pediu aos homenageados que fizessem uma redação cont- ando sobre como havia sido o dia em que ficaram um ano mais velhos. João Bosco aproveitou para se vingar. Chamado ao microfone para ler sua carta, ele deitou e rolou: — O meu aniversário foi no meio dos por- cos, e a culpa é da irmã Dita… Os Emaús foram pegos de surpresa, e em conjunto olharam para a freira. Ela, por sua vez, fitava o menino com os olhos negros arregalados. De repente, todos começaram a rir, menos o de- nunciante, que, com o papel nas mãos, continuava apontando em direção à freira. Para tentar colocar um ponto-final na situação embaraçosa, o
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grupo chamou a franciscana, pedindo a ela que entregasse uma calça de tecido azul de presente ao garoto. Os dois se abraçaram, e Joãozinho fez as pazes com a sua preferida. Apesar da história divertida, aquele foi um ano difícil para ele. Todos os domingos, seus “irmãos” do patronato recebiam visita da família. O pai de Francisco Alvim de Carvalho trabalhava na roça, mas, no fim de semana aparecia pontual- mente na instituição às 11 horas e só ia embora no último ônibus, que partia às 16h30. A mãe de José Fernando Afonso também. — Por que os pais deles vêm visitá-los, e ninguém vem me ver? Revoltado, João Bosco corria até a capela. De formação católica, ele esperava uma resposta de Deus. — Por que até o senhor tem mãe, e eu não? Por que não me deu uma?
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A entrada na adolescência trouxe muitos conflitos para o garoto tido como órfão. A situ- ação se tornou ainda pior com a contratação de Roberto, funcionário magro, de estatura mediana e olhar frio. Aos vinte e cinco anos, a diversão do rapaz que abusava da bebida era aterrorizar os meninos do patronato. O monitor tomava conta dos internos, mas nos fins de semana sempre chegava bêbado ao dormitório. Quem fazia xixi na cama passava a noite toda debaixo do chu- veiro frio como castigo. Vantuil, o menino mais bonito do patronato, era uma de suas principais vítimas. O funcionário também usava um fio para ameaçar e punir quem transgredisse as ordens. Numa dessas noites, após urinar na cama, Prisco, o craque de bola do internato, teve a calça arran- cada pelo homem. Na frente de todos, Roberto pegou o pênis da criança e ameaçou cortar com
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um canivete. A tortura psicológica durou a noite inteira. De vez em quando, ele colocava dez dez meni- nos de mãos dadas. Pegava um fio de duas pontas desencapadas e mandava o primeiro garoto se- gurar uma delas. Colocava a outra ponta na tomada. A carga ia passando de um para o outro e chegava ao último menino com força ainda maior. O choque fazia os garotos pularem como pipoca até serem jogados no chão pelo impacto. João Bosco foi uma dessas vítimas, e mais do que medo, tinha raiva de Roberto. Um dia, João Bosco presenciou a agressão do monitor contra um dos amigos. Não suportou. — Deixa de ser covarde! — gritou. A reação de Roberto foi imediata. Acertou o rosto — do adolescente com uma uma vara. Seu filho da puta! — saiu João Bosco xingando, em direção à capela. Lá dentro, as
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freiras faziam a habitual oração depois do al- moço. Atrás do garoto estava o agressor. — O que está acontecendo aqui? — pergun- tou Dita. João Bosco contou tudo. — Vem comigo, Joãozinho — chamou a irmã, andando em direção à Kombi azul-clara. A religiosa precisava ir até Barbacena e le- vou o menino. Embora não estivesse convencida, aproveitaria a viagem de Kombi para conversar melhor com ele. Voltou desconfiada da versão do adulto, e na primeira oportunidade confirmou a história, demitindo o monitor. Rodrigues, recém-saído do exército, entrou no lugar dele. Filho de italianos, o novo fun- cionário era boa-pinta e gostava de se gabar. Tinha olhos azuis, cabelos compridos, lábios grossos. Simpático, conquistou a confiança das freiras e dos próprios meninos. No começo, eles
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gostaram da atenção do rapaz, mas depois começaram a desconfiar do comportamento dele. Uma das regras do patronato, instituídas pelos próprios meninos, era que homem podia ser amigo do outro, no entanto, nada de proximidade física. O ex-militar infringiu a regra e passou a acariciar os meninos. O contato chamou a atenção, levando muitos a se afastarem. Otávio, hoje na Polícia Militar, tinha onze anos, quando sofreu a primeira tentativa de abuso sexual. sexual. Esquivou-se de Rodrigues, que procurou outro. Aos doze anos, Amilton não sabia como lidar com o assédio do rapaz nem o que fazer, quando, à noite, o agressor se deitava em sua cama, pas- sando a barba cerrada em seu corpo. Para se pro- teger de Rodrigues, Paulinho, outro craque de bola do patronato, resolveu guardar o cutelo, instrumento cortante de cozinha, debaixo do traves- seiro. Assim, se fosse atacado, revidaria. Tinha
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vontade de matar o funcionário. Para isso, porém, Paulinho e os amigos precisavam de um plano. João Bosco teve a ideia de derrubar o patronato com Rodrigues dentro. Teve o apoio de Inácio e Jorge, outros dois internos. Nesse tempo, a estrada de terra que dava acesso à instituição passava por asfaltamento. Dois tratores de esteira eram usados nas obras. Os alunos decidiram decidiram que aprenderiam a dirigir para levar as máquinas até o abrigo. Como um dos tratoristas só trabalhava bêbado, eles apro- veitaram para arrancar dele informações sobre o manuseio do veículo. Na noite combinada, os três pularam a janela do dormitório para seguir com seu projeto de vingança. Porém, ao se aproximarem do lugar onde foram criados, desistiram. A molecagem dos garotos, no entanto, surtiu efeito, chamando a atenção das freiras. Rodrigues acabou sendo
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demitido. Apesar de ter sido denunciado, livrou- se da prisão, numa época em que o abuso sexual contra a população infantojuvenil era acobertado. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que es- tabelece pena para o crime, só foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990. Em 1979, ao completar treze anos, Joãozinho mudou-se novamente de endereço. Como não tinha mais idade para permanecer em Pinheiro Grosso, ele e outros sete amigos foram enviados para a Febem, em Antônio Carlos (MG), onde o destino começou a traçar novos planos para sua vida.
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Geralda tinha completado vinte e nove anos em 1979. Fazia catorze anos que estava sem notí- cias do filho. Um ano depois de João Bosco ter
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sido arrancado do seu convívio, ela conheceu o marido, morador do município mineiro de Al- fredo Vasconcelos, com quem teve outros outros três fil- hos: dois rapazes e uma menina. Nenhum deles foi capaz de abrandar a angústia que ela sentia no peito ao pensar no primogênito. Ele estaria vivo? Sentia frio à noite? Passava fome? Fazia dois anos que a doméstica havia fic- ado viúva. Sem pensão e imóvel próprio, mas com três crianças para criar, Delcio, Dirceu eElaine, ela se viu obrigada a fazer faxinas para pagar o aluguel e garantir que os seus tivessem o mínimo. Saía de casa às 6 horas horas e deixava o mais velho cuidando dos mais novos. As sobras de comida doadas pelas patroas iam direto para as crianças, ao menos elas não passariam necessidade. Nas casas de família onde trabalhou, Ger- alda só comia quando lhe era oferecido. Tinha
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vergonha de pedir qualquer coisa para aplacar sua fome, mesmo que estivesse há mais de um dia sem comer. Assim perdeu a saúde, mas pelo menos conseguiu garantir que os filhos que es- tavam ao seu lado crescessem saudáveis. Mesmo sem saber ler nem escrever, ela conseguiu que estudassem. Depois de doze horas diárias de tra- balho, era comum que Geralda chegasse em casa e encontrasse os filhos dormindo. Ela, porém, não conseguia descansar. Seus pensamentos eram ocupados por João Bosco. A ausência dele fazia o peito de Geralda doer. Por muitas vezes pensou em procurar pelo pelo menino, mas teve medo de sofrer retaliação por parte das freiras que a ameaçaram. Chegou a vis- itar João Bosco no patronato uma única vez. Em- bora quisesse voltar, Geralda não tinha dinheiro para o deslocamento. Anos mais tarde, ouviu
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falar que o filho havia sido transferido para a Fe- bem. Ela achou que o matariam lá dentro. A dúvida a fez sofrer mais.
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— Vocês querem ser homens de bem? bem?
Então me sigam, pois não estou aqui para formar bandidos. A frase, dita por Benjamin Fullin, diretor diretor da Febem Lima Duarte, impressionou João Bosco. Recém-chegado à instituição de Antônio Carlos, em Minas Gerais, em 1979, o adolescente tinha ouvido tantas histórias sobre as unidades da Fe- bem que, embora não demonstrasse, estava com medo. Mas foi em Antônio Carlos que ele teve o talento despertado. Apesar do acesso a cursos profissionalizantes de mecânico, eletricista,
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garçom e chefe de cozinha, foi o encontro com a música que o transformou. A banda da Febem, composta por por trinta meninos, era formada por alunos da da escola, mas passava por um momento de baixa, com a saída obrigatória dos jovens que completariam dezoito anos. Desfalcada, precisava de novos membros. Apaixonado por música, o jovem se interessou em participar. Sonhava em aprender a tocar saxo- fone, mas foi escolhido para a tuba. Sentiu-se o pior dos homens ao receber do maestro Nadir o instrumento musical em forma de sino. Aquilo era o fim do mundo, ele pensava. No primeiro final de semana livre na Febem, João Bosco viajou até Pinheiro Grosso, a cin- quenta quilômetros de Antônio Carlos, para ver a irmã Dita. Na verdade, ele partiu para lá com o intuito de revelar a ela o absurdo de ter sido escolhido para tocar o pior instrumento de uma
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banda. Ao chegar ao patronato, soube que Dita estava recebendo a visita de José Lauro, o pani- ficador que ajudava na manutenção da entidade. A freira, entretanto, mandou João Bosco entrar. Recebeu o adolescente com o sorriso que ele tanto amava, mas o interno da Febem tinha cara de poucos amigos. — Irmã, a senhora sabe o que que fizeram comigo na Febem? Antes de o adolescente continuar a desfiar o rosário sobre a sua história na banda, José Lauro entrou no assunto. — Você está na Febem, em Antônio Carlos? Ouvi dizer que lá tem uma banda excelente. Son- hei a minha vida inteira em tocar tuba. Por Por volta de 1800, este instrumento começou a ganhar pop- ularidade nas pequenas bandas de metais da Europa.
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João Bosco foi pego no contrapé. Com os olhosarregalados,estavavisivelmente desconcertado. — Joãozinho, você sabia que nas bandas fil- armônicas cabe à tuba o papel fundamental de suporte harmônico? O rapaz balançou a cabeça para os lados. — Mas o que queria dizer quando chegou aqui, filho? — perguntou irmã Dita. — Ah? Então. Contar que eu vou tocar tuba na banda da Febem. Estou adorando — improvis- ou o adolescente. A partir daquele momento, João Bosco assu- miu seu lugar na banda e passou a querer um es- paço também no mundo. Aprendeu o instru- mento, sem saber que ele consolidaria sua sua car- reira mais tarde. Cinco anos se passaram desde a chegada do adolescente a Antônio Carlos. A experiência o
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transformara. Sozinho na Febem Lima Duarte, ele aprendeu a lidar com suas frustrações e medos. Também foi lá que se posicionou pela primeira vez contra o conhecido funcionário que gostava de violar meninos. Responsável pelo al- moxarifado, o homem de cabelos brancos e pele marcada por pequenas feridas causadas pela ex- posição ao sol e pela idade atraía os adolescentes para o setor, onde praticava os abusos sexuais. Um dia, o aluno da banda foi surpreendido pelo servidor. Precisava de um material de escritório, mas acabou sendo agarrado. João Bosco con- seguiu se desvencilhar e correr. Não sem antes dar um recado: — Se tentar algo parecido de novo, acabo com você — gritou com a voz mais ameaçadora que conseguiu. Aos dezessete anos, o rapaz sabia que pre- cisava dar um rumo à vida. Em um um ano, teria que
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deixar a unidade e caminhar com as próprias per- nas. Sem passado ou parentes, a proximidade dos dezoito anos era motivo de apreensão. Nessa épo- ca, ele tentou concurso para para a Polícia Militar, no 9º Batalhão de Barbacena, mas apesar de ter sido aprovado, não tinha idade para ingressar. Con- seguiu ficar na Febem até os vinte anos, quando foi novamente aprovado no concurso do Estado que daria direito a uma vaga na na polícia mineira. Ele e outros cinco colegas da Febem, que tam- bém conquistaram as primeiras vagas, partiram rumo a Contagem, onde passariam pelo período de recrutamento no quartel do 2º Batalhão de Bombeiros, na avenida João César de Oliveira. Nenhum deles tinha dinheiro para se manter na cidade. Contaram com o apoio do diretor João Raymundo Couto Matta até receberem o primeiro salário. Com o dinheiro, João Bosco quis realizar um sonho: comprar, aos vinte anos, sua primeira
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calça jeans. Cobiçava uma da marca US top, ex- atamente como a que os rapazes usavam na sua época de infância. O dinheiro, porém, era curto. Adiou mais uma vez a compra da peça e resolveu doar metade do salário para Tereza, a freira que que havia abandonado o hábito e ajudou a cuidar de João Bosco, recebendo-o em sua casa nos per- íodos de férias. Dois anos depois de se formar no 2º Batal- hão de Contagem, o bombeiro soube que a banda da corporação estava acabando, pois padecia de falta de pessoal. Os músicos antigos se aposent- aram e precisavam ser substituídos. Ele e os outros ex-alunos da Febem candidataram-se a uma vaga no grupo do 1º Batalhão de Bombeiros da Afonso Pena, em Belo Horizonte. Não deix- ariam a banda morrer. Nos sete anos seguintes, João Bosco morou no quartel. Dormia no depósito onde os
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instrumentos da banda eram guardados. Lá den- tro havia dois beliches. Dividia o lugar com out- ros três colegas de trabalho nascidos em Juiz de Fora e em Mar de Espanha. Nos fins de semana, quando todos iam para casa, o instrumentista ficava na companhia de seus livros. Ao contrário dos companheiros, não tinha família para visitar. Num desses dias de solidão, conheceu o es- critor mineiro Roberto Drummond, que morava bem em frente ao quartel. Os dois se cruzaram na banca de jornal localizada na esquina da Afonso Pena com a Piauí, e o bombeiro puxou conversa. João Bosco saiu dali com a indicação de leitura de O Primeiro Homem, romance inacabado de Albert Camus, o filósofo francês nascido na Ar- gélia. Acabou matriculando-se em filosofia, na PUC, em 2005. Hoje, mais de duas décadas depois de in- gressar nos Bombeiros, João Bosco continua na
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banda como chefe, atuando agora nos bastidores. Nesse período, o subtenente casou-se aos trinta e cinco anos, separou-se aos trinta e oito e tornou- se pai de Heitor aos quarenta e cinco, mesma id- ade em que se casou com a professora Maria Madalena Pimentel Siqueira, de Água Doce do Norte, no Espírito Santo. Em 2011, os quarenta e um homens da banda resolveram preparar uma surpresa para João Bosco. Ele completaria quarenta e cinco anos. Com o apoio do comandante à época, Ed- son Alves Franco, os músicos iniciaram uma busca por Geralda. Sem saber o que estavam tramando, o chefe da banda chegou a se irritar com as saídas sem comunicação dos integrantes. Considerou insubordinação, conduta inadequada para um militar.
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— Tem alguém em casa?
Fardado, o militar que havia acabado de es- tacionar a moto na calçada da residência localiz- ada no bairro Santo Antônio, em Barbacena, ba- tia palmas. Tornou a chamar, até que uma uma sen- hora negra de óculos, cabelos crespos e vincos profundos na testa abriu a janela. — Pois não. — Estou à procura de Geralda Siqueira. — Sou eu. Sérgio Luiz, o suboficial da banda da EPCAR (Escola Preparatória de Cadetes do Ar), de Barbacena, deu um largo sorriso. Ex-aluno da Febem, ele foi acionado pelos bombeiros de Belo Horizonte para ajudar na localização de Geralda. — Posso falar com a senhora? — Espera aí — respondeu Geralda, tor- nando a fechar a janela.
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Em poucos minutos, a mulher magra, que pesa pouco mais de quarenta quilos, apareceu no quintal e caminhou em direção ao desconhecido. — Eu vim aqui falar sobre o João Bosco. Geralda estremeceu. Após quatro décadas e meia de separação, alguém batia à sua porta trazendo informações do filho. Seria mesmo verdade? — É melhor o senhor entrar, porque não es- tou conseguindo ficar de pé. Com o coração aos saltos, Geralda conduziu o militar até a varanda. O homem começou a falar. — Eu sou amigo de João Bosco, que per- tence ao Corpo de Bombeiros, em Belo Hori- zonte. Há meses, procuramos pela senhora. Em- bora ele fale pouco sobre a sua história, sabemos que não a vê há mais de quarenta anos. Como o
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aniversário dele se aproxima, gostaríamos de fazer uma surpresa e levá-la até lá. Geralda estava paralisada. Em poucos se- gundos, conseguiu obter respostas que a ator- mentaram por toda uma vida. Sabia agora que o filho do Colônia não só estava vivo, mas também trabalhava e morava em Belo Horizonte. Mais do que isso, teria a chance chance de tocá-lo mais uma vez. — Moço, eu não sei nem o que dizer. Sofro há tantos anos sem notícias do meu filho, que só mesmo são José para trazer o senhor aqui. Depois de algumas horas de conversa, Luiz despediu-se, marcando um novo encontro, a fim de combinar os detalhes da viagem. Logo que ele saiu, Geralda telefonou para o filho Décio. — Corre aqui em casa, pois tenho que te contar uma coisa. Preocupado, o rapaz atendeu ao chamado da mãe.
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— Filho, um homem saiu daqui de
casa agora, dizendo que é amigo do João Bosco. Quer me levar para Belo Horizonte. A doméstica aposentada tinha dificuldade para falar, porque o choro embargava sua voz. Décio interrompeu: — Mãe, eu vou com você. Quero muito ab- raçar meu irmão.
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João Bosco foi chamado pelo comandante do Corpo de Bombeiros, Edson Alves Franco, no salão nobre da Academia de Bombeiros da rua Piauí. Era uma sexta-feira e coincidia com seu aniversário, e o militar ficou pensando o que teria levado o coronel a acioná-lo logo pela manhã. A
banda da corporação era sucesso fazia muitos anos, principalmente depois que seu dirigente
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descobriu, nos Estados Unidos, um endereço de venda de partituras americanas para incrementar as apresentações. Se não era assunto da banda, qual seria o motivo? Quando entrou no imóvel, João Bosco descobriu que o coronel não estava sozinho. Os músicos também estavam lá, uniformizados, com máquinas fotográficas nas mãos, sorrindo. Mas o que significava tudo aquilo, pensou. Não teve tempo de perguntar. Logo, im- agens suas começaram a ser projetadas num telão. Ainda sem entender, ele ficou de pé, vendo e ouvindo a história da sua vida. Seus pensamen- tos voaram para a infância e os primeiros anos no Patronato Padre Cunha, quando apanhar fruta no terreno do famoso general Antônio Carlos de Andrada Serpa era uma grande aventura. Uma foto sua na banda da Febem, ainda na adolescên- cia, o levou para os tempos de disciplina em
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Antônio Carlos, período em que era apenas um garoto tentando se comportar como homem homem feito. Aí vieram o Corpo de Bombeiros e a chance de ser tratado com igualdade, de fazer os outros se orgulharem dele. Quando o nome da mãe foi citado, o chefe da banda sentiu a respiração de João Bosco acelerar.
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Reencontro de João Bosco e sua mãe, Geralda, promovido em 2011 pelo Corpo de Bombeiros.
— Mas o que está acontecendo aqui?
Geralda entrou na sala sob os aplausos dos colegas de farda do filho. Naquele exato mo- mento, o gigante se quedou. Envolvido pelos braços dela, ele sentiu-se novamente um menino. Não conhecia a força do amor materno. Ali mesmo, ele pensou que se pudesse escolher uma mãe, ela seria exatamente como aquela grande mulher, mesmo com todos os desencontros desencontros im- postos aos dois. Privados da companhia um do outro, eles estavam juntos de novo, como há quarenta e cinco anos. Embora o Colônia tenha se apropriado do passado do filho de Geralda, hospital não roubaria o futuro do militar. João o Bosco teve a certeza de que que nunca mais ficaria sozinho.
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Em 21 de outubro de 2011, João Bosco reconciliou-se com Deus.
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O Cruzeiro Luiz fotógrafo da revista Alfredo estava prestes a registrar as imagens mais dramáticas da sua carreira, embora não soubesse disso, quando se de- parou com o portão de ferro que daria acesso ao interior do Colônia, em Barbacena, naquele abril de 1961. Acompanhado do colega José Franco, ele viajou para a cidade dos loucos, depois que o chefe de redação, Eugênio Silva, descobriu que o então secretário de Saúde do governo Magalhães Pinto, Roberto Resende, estava preparando uma varredura na área da saúde, principalmente na in- stituição da cidade natal de José Bias Fortes, que acabara de deixar o governo mineiro. Aos vinte e oito anos, Luiz Alfredo escreveria seu nome na história. Acompanhados do secretário, ele e o repórter chegaram ao município na hora do almoço.
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— Mas o que será que existe aqui de tão grave? — perguntou Luiz Alfredo ao compan-
heiro de pauta, no momento em que eram rece- bidos por freiras que trabalhavam no hospital. Na companhia delas, ele e José Franco fo- ram convidados a entrar. Ouviram o barulho dos cadeados sendo abertos. Quando as correntes que guardavam a porta de acesso ao pátio foram destrancadas, os olhos acostumados a tantas tragédias não puderam acreditar na cena que se desenhava. Milhares de mulheres e homens sujos, de ca- belos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas. A primeira primeira imagem que veio à cabeça de José Franco foi a do inferno de Dante. Difícil disfarçar o choque. O jornalista levou um tempo para se refazer e começar a rascunhar em seu bloco suas primeiras impressões. Já Luiz Al- fredo, protegido pela sua Leica, decidiu registrar
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tudo que a lente da sua câmera fosse capaz de captar. Quase todas as imagens feitas naquela tarde foram registradas em preto e branco, em ro- los de filme 35 mm. A loucura que que desfilava di- ante dos seus olhos não o impressionava, e sim as cenas de um Brasil que reproduzia, menos de duas décadas depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o modelo dos campos de concentração nazistas. Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Mui- tos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jor- rava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele pres- enciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo
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instante. Dentro da cozinha, a ração do dia era feita em caldeirões industriais. Antes de entrar nos pavilhões, o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame. Entrou com facilidade no lugar usado como necrotério. Deparou-se com três cadáveres em avançado es- tado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata. Ao lado, uma carrocinha com uma cruz vermelha pintada chamou sua atenção.
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Dentro dos pavilhões, promiscuidade. Cri- anças e adultos misturados, mulheres nuas à mer- cê da violência sexual. Nos alojamentos, trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima dos mortos-vivos. O mau cheiro provocava náuseas. Em outro pavilhão, a surpresa: capim no lugar de camas. Feno, aliás, usado para encher colchões, abrigar baratas, at- rair roedores. Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer. A miséria hu- mana escancarada diante de sua máquina. Jamais havia flagrado nada parecido. De volta à redação, o fotógrafo desabafou com Eugênio Silva. — Aquilo não é um acidente, mas um assas- sinato em massa. Só precisei clicar a máquina, porque o horror estava ali. Impressionado, o chefe de redação queria ver o material que se transformaria, cinco
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décadas mais tarde, no maior conjunto de de im- agens feitas no interior da unidade. Uma a uma, as três centenas de fotos foram sendo reveladas por Luiz Alfredo. À medida que a química im- primia forma no papel, o fotógrafo começou a ter ideia da dimensão da tragédia que havia acabado de testemunhar. “A sucursal do inferno”, como os repórteres batizaram a reportagem sobre o Colônia, ganhou cinco páginas da revista em 13 de maio de 1961. O país se comoveu. A classe política fez barulho, os governantes fizeram promessas públicas pelo fim da desumanidade. Quando o calor da notícia abrandou, tudo con- tinuou exatamente igual no hospício. Por sorte, o fotógrafo não se desfez dos negativos.
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Luiz Alfredo tinha motivos de sobra para comemorar aquele 1º de abril de 1952. Filho de uma modesta família de três irmãos, o menino que nasceu em Nova Iguaçu (RJ) e cresceu em Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro, con- quistava, aos dezoito anos, seu primeiro emprego no prédio recém-inaugurado da rua do Liv- ramento, um arranha-céu projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. O cargo de auxiliar de arquivo na principal revista brasileira do século XX era o primeiro passo do rapaz em direção ao sonho de ser jornalista de O Cruzeiro. O periódico seman- al surgiu na cena carioca no final dos anos 20, experimentando seu período áureo no início da década de 50, época época em que mantinha corres- pondentes em sete países. Conquistar um lugar na revista era o desejo de muita gente, inclusive de seu mais recente contratado.
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Uma das cenas que mais chocaram Luiz Alfredo ao entrar no Colônia foi a dos doentes cobertos de moscas. Ele teve a nítida impressão que os pacientes tinham sido deixados ali para morrer.
E a experiência no arquivo só fez a vontade aumentar. Além do estreito contato com a redação, Luiz Alfredo convivia de perto com per- sonalidades da literatura brasileira, já que, no mesmo andar da redação do periódico funcionava A Cigarra, revista feminina do grupo Diários Associados, dirigida, à época, pelo baiano Her- berto Sales, autor do romance Cascalho, obra que o colocou ao lado de grandes escritores da safra nordestina, transformando-o em um imortal da Academia Brasileira de Letras. Nessa ocasião, o arquivista teve contato com nomes que se con- sagraram, mais tarde, no cenário nacional, como os maranhenses Ferreira Gullar e José Sarney — este último, em 1953, lançava seu primeiro
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ensaio. Luiz Alfredo jamais poderia imaginar que o homem que vestia terno cinza listrado e se diri- gia à sede da revista com textos originais debaixo do braço se tornaria, em 1985, o 31º presidente do Brasil. A primeira oportunidade de escrever na O Cruzeiro ocorreu justamente quando trabalhava no arquivo. Naquela época, a revista mantinha um acordo de permuta de material com veículos internacionais, como Time, Look e Paris Match. Além de traduzir matérias e reescrevê- las, o aspirante a jornalista preparava pequenos textos para preencher os espaços que ficavam em branco. Essa experiência, aliás, o encorajou a es- crever seu primeiro e único conto infantil, public- ado em O Guri, também do grupo Diários Asso- ciados, que tinha como diretor Fernando Sales, irmão de Herberto. Inspirado pela infância em Piedade, Luiz Alfredo preparou um conto sobre o
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gnomo malandro Restpeylauso, um herói brasileiro com nome estrangeiro. A incursão pela literatura infantil foi divertida, mas o que ele queria mesmo era entrar para o mundo dos adultos.
Carteira de trabalho de Luiz Alfredo e sua contratação na rev-
ista, em 52, como auxiliar de arquivo.
Apesar de tímido, o jovem tomou coragem para falar com Djalma Fortuna, seu chefe no
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arquivo. Queria fazer um vale para comprar uma máquina fotográfica. — E para que você precisa de uma? —
O Cruzeiro,
ser repórter de seu Djalma. Para O maranhense riu. — Ah, meu filho. Todo mundo quer isso — respondeu dando de ombros. Luiz Alfredo não se deu por vencido. Assim que recebeu o salário, juntou suas economias e foi até a Mesbla, famosa cadeia de lojas de de- partamentos naquele tempo, onde comprou sua primeira Ikoflex, câmera semiprofissional, e um
flash.
No início de 1958, com então vinte e quatro anos, o arquivista de O Cruzeiro começou a fazer frilas para o Diário Carioca , considerado uma das maiores escolas de jornalismo do país. Localizado na avenida Rio Branco, no centro do
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Rio, o jornal que lançou o primeiro manual de redação e inovou na apresentação da notícia tornou-se endereço de Luiz Alfredo no período
noturno. Pouco tempo depois, foi surpreendido com um convite do jornal: realizar uma matéria na Ilha da Trindade, o sonho de qualquer foca (iniciante no jornalismo).
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Reencontro de João Bosco e sua mãe, Geralda, promovido em 2011 pelo Corpo de Bombeiros.
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Empolgado, dirigiu-se no dia seguinte a José Amádio, o polêmico diretor de redação de O Cruzeiro, considerado um dos arquitetos do su-
cesso — da Orevista. que o senhor deseja? — perguntou o homem pitando um cigarro. Luiz Alfredo estava trêmulo, não sabia por onde começar. Considerava uma ousadia pisar na sala do gaúcho de nariz afilado e jeito esnobe. — Não sei se o senhor sabe, eu gosto muito de jornalismo. À noite, eu faço frila para o
Diário Carioca…
— Estou sabendo — cortou Amádio,
secamente. O jornalista voltou a falar. — Bom, eu falei com o sr. Fortuna e pedi a ele dispensa de vinte dias do trabalho, porque fui convidado para fazer uma matéria na Ilha da Trindade. Eu quero sua permissão para ir.
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José Amádio ficou calado por alguns segun- dos que pareceram pareceram uma eternidade para Luiz Al- fredo. Deu uma longa tragada na sua piteira e
— a Permissão soprou fumaça nanegada. direção do arquivista. Naquele momento, o sangue subiu à cabeça do repórter.
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— Então, eu peço demissão. — Sabe por que eu não permito que o sen-
hor faça essa viagem? —
—
Não respondeu Luiz Alfredo, já um tanto irritado. — Porque, a partir de hoje, o senhor passa a fazer parte da equipe de reportagem da revista O
Cruzeiro.
Luiz Alfredo quase desmaiou. — Vai até o Sebastião Cardoso e diz a ele para fazer a sua transferência de setor e o registro profissional no Ministério do Trabalho. Era a glória. Admitido no mesmo dia em que pediu demissão, Luiz Alfredo passaria a in- tegrar o famoso time de jornalistas da revista, lid- erado pelo controverso David Nasser. Finalmente estaria perto dos repórteres que admirava, entre eles Armando Nogueira, Luiz Carlos Barreto, Lu- ciano Carneiro, João Martins, Álvares da Silva,
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Henri Ballot, José Medeiros, Flávio Dan, Carlos Castelo Branco, entre outros. Mais do que isso: trabalharia ao lado deles. A viagem à Ilha da
Trindade pequena diante do querese abriu paraficou o foca. Ao ingressar na mundo equipe de portagem de O Cruzeiro, Luiz Alfredo viu a sua própria vida mudar. No dia 4 de maio de 1958, ele foi registrado como repórter fotográfico no Ministério do Tra- balho. Menos de dois meses depois, participou da sua primeira grande cobertura nacional: a da lendária chegada ao país dos jogadores da Seleção Brasileira após a vitória na Copa do Mundo da Suécia, o primeiro dos cinco títulos mundiais do Brasil. Na partida, disputada em 29 de junho de 1958, Pelé, Vavá e Zagallo golearam por 5 a 2 a seleção da casa em Estocolmo, no es- tádio Rasunda. Alçados a heróis nacionais, os jogadores deveriam seguir direto para o Palácio
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do Catete, no Rio, que naquela ocasião era a sede do Poder Executivo. O então presidente da República, Juscelino Kubitschek, estava à espera
dos ídolos da seleção, que contava ainda com o talento de Garrincha. Na chegada à cidade carioca, em 3 de julho de 58, a seleção desfilou em carro aberto do Corpo de Bombeiros, mas na avenida Brasil, ao longo do cais do porto, o cortejo foi desviado, por artimanha jornalística, para o endereço da revista, onde esposas e familiares dos jogadores já os esperavam. Luiz Alfredo foi responsável por reunir e levar as famílias de São Paulo ao Rio. O encontro aconteceu no salão nobre da rev- ista. O coquetel organizado pela direção do per- iódico contou com a presença do compositor Pixinguinha, que tocou durante a festa. A ousada articulação rendeu imagens inéditas, confirmando
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o poder de O Cruzeiro e o prestígio de seus colaboradores. Naquele mesmo ano, o repórter fotográfico
realizou uma reportagem sobre as Cor- reio Aéreo Nacional. Os aviões da linhas Força do Aérea Brasileira (FAB) eram os únicos meios de comu- nicação com comunidades isoladas, como as in- dígenas. A bordo dos velhos Douglas, aviões C-47 da Segunda Guerra Mundial, Luiz Alfredo registrou a catequização, por freiras, de índios do Xingu e do Araguaia, que viviam na Ilha do Bananal. De Catalina PBY-5, hidroavião batiz- ado de Pata Choca pelos pilotos da FAB, ele sobrevoou a Amazônia. As linhas internacionais do Correio Aéreo na Colômbia, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Peru e Chile estavam incluídas no pacote de viagens. Até hoje ele guarda sua primeira Rolleiflex 6X6, considerada por ele um troféu de guerra.
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No início de 1959, a notícia da chegada ao Brasil do comandante do Exército Rebelde Cubano, Fidel Alejandro Castro Ruz, deixou a O Cruzeiro
redação de pela revolução que baniualvoroçada. do poder o Responsável ditador Ful- gencio Batista, o líder cubano em ascensão, Fidel Castro, trinta e três anos, desembarcou no Rio de Janeiro em 6 de maio de 1959, sendo recebido pelo presidente Juscelino Kubitschek. Escalado para a pauta, Luiz Alfredo estava decidido a vol- tar para a redação com imagens exclusivas da visita. Havia acabado de completar um ano de re- gistro profissional, e um furo como esse o alçaria ao patamar do primeiro time, formado por jor- nalistas cerca de dez anos mais velhos do que ele. Sabia que não seria fácil burlar burlar a segurança para chegar perto do mítico comandante de 1,91 metro. Mas conseguiu. Na saída da União Na- cional dos Estudantes (UNE) — na praia do
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Flamengo, 132 — , área conhecida como Calabouço, ele abordou uma uma integrante da comit- iva. Alta, magra, de cabelos castanhos, apar-
entava ter do cinquenta secretária líder. anos e se apresentava como — Por Deus, per favor, soy da Cruzeiro.
Me gustaría entrar en el coche del comand- ante — arriscou Luiz Alfredo, com seu espanhol
macarrônico. O fato é que a mulher armada e vestida de uniforme da mesma cor verde do macacão militar usado pelo primeiro-ministro de Cuba colocou o foca para dentro do carro oficial. Luiz Alfredo sentou-se no banco da frente, ao lado do mo- torista que levaria Fidel em direção ao Glória, para o hotel de mesmo nome. No meio do cam- inho, o repórter fotográfico pegou sua Leica M2 35 mm e virou-se para trás, mirando o comandante.
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Nesse momento, o segurança agarrou a lente da câmera. Señor, usted no puede tomar — Señor,
imágenes.
A reação da comitiva frustrou o jovem repórter. Tentou argumentar, mas não houve tempo. Nas proximidades do hotel, o segurança abriu a porta do carro e o convidou a descer. — Mas sou periodista do Brasil…
Na calçada, coube a ele lamentar a chance perdida. — Pelo menos, estive dentro do carro com Fidel Castro — repetia, em voz alta, tentando consolar a si mesmo. Hoje, aos setenta e nove anos, ele ri da experiência que ajudou a compor sua trajetória marcada por fatos memoráveis, como o registro da obra de Alberto da Veiga Guignard, um dos maiores pintores brasileiros do século XX.
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Em março de 1962, Luiz Alfredo e o repórter José Franco — os dois sempre trabal- havam em dupla — receberam a missão de re-
tratar a vida a obra deacompanhar Guignard. Durante semana, elesepuderam o artistauma pelas ruelas de Ouro Preto. Como Guignard era apaix- onado pelas montanhas de Minas, ele escolheu a cidade histórica para viver. O encontro foi regis- trado na matéria “Guignar d: quero viver e morrer em Ouro Preto”, publicada na revista pouco tempo depois. Apesar de ser considerado um gênio, a doçura e a simplicidade do pintor de formação erudita levaram Luiz Alfredo a compará-lo ao jogador Garrincha. Numa das ruas de pedra da cidade, Guignard ficou paralisado diante da beleza de uma adoles- cente que havia chegado à janela barroca de um sobrado. Na sua imaginação, ele comparava todas as jovens bonitas à Marília de Dirceu,
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personagem criada pelo inconfidente mineiro Tomás Antônio Gonzaga. Guignard tinha descoberto mais uma. —
—
Vousessenta cortejá-la revelou pintor, do alto de seus e quatro anos, oaos jornalistas. José Franco e Luiz Alfredo entreolharam-se. Naquele momento da vida, o pintor era acompanhado por pessoas amigas, como o livreiro e colecionador de arte Samuel Koogan e sua esposa, Janete. Com a saúde fragilizada, Guignard precisava ser tutorado, porque já não respondia por seus atos com completa lucidez. Apesar da idade, o encantamento pela jovem demonstrava que a poesia na alma do artista ainda o guiava. Após o instante de encantamento, o pintor decidiu comprar um lenço branco, um carretel de linha e agulha. Daria vida a uma de suas últimas criações: um coração vermelho
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bordado no tecido. Quando terminou de alinhavar o lenço, ele quis entregar a ingênua homenagem para a moça. Os amigos tentaram, em vão,
demovê-lo da ideia. E lá foi o sua velho pintor porta do sobrado onde residia eleita. A bater es- à posa do livreiro foi ao seu lado, temendo a reação da família da menina. Após declarar suas inin- tenções, o gênio esperava uma resposta. O pai da adolescente, no entanto, não entendeu que o mo- mento exigia certo trato. — Minha filha é muito jovem e não merece um velho — esbravejou. Chocado com a brutalidade do homem, o pintor se retirou, ferido em seus sentimentos. Como nos romances, ele terminou a noite noite afogando as mágoas na varanda do Grande Hotel de Ouro Preto, na companhia dos dois jornalistas, de seus tutores e de uma garrafa de cerveja. O
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som do violão de Orlandino Seitas embalou a dor de cotovelo de Guignard. Apenas três meses depois, Luiz Alfredo
voltou Ouro Preto paraofotografar funeral do pintor. aEnquanto seguia cortejo, o ofotógrafo lembrou-se do episódio do lenço. Na despedida de Guignard, depositou uma flor no caixão e sus- surrou em seu ouvido: — Acho que aquela menina foi a última Marília dos seus sonhos, não é, meu confidente amigo? Em 1996, o Museu Guignard, de Ouro Preto, adquiriu as imagens feitas pelo fotógrafo durante o privilegiado encontro. “Regendo o Lir- ismo”, foto em que o artista aparece pintando a cidade histórica como um maestro em frente à sua orquestra, é a mais famosa do museu.
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O inédito mergulho no Parcel de Manuel Luís, em 1972, o maior banco de corais da América do Sul, foi uma das grandes aventuras
do jornalista.cuja Nãoapuração só pelo tempo realização reportagem, durou de quarenta dias,da mas também pelo tamanho do feito. Conhecido como o Triângulo das Bermudas brasileiro, o loc- al, temido pelos navegantes, é um dos maiores cemitérios de embarcações do planeta, com cerca de 200 navios naufragados. Na matéria publicada em 17 de maio de 72, o autor das imagens e do texto descreve o seu batismo nas águas transpar- entes do o cea no Atlântico, a mais de cem quilô- metros da costa do Maranhão. “A vida de um repórter é pontilhada de surpresas. Meu batismo de homem-peixe ocorreu justamente no Parcel de Manuel Luís, local-mito, monstro sagrado para os entendidos”, escreveu. A matéria foi escolhida para ser a capa de O Cruzeiro , no entanto, para
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desespero de Luiz Alfredo, foi substituída, um dia antes de chegar às bancas, pelo beijo entre a socialite Beth Klabin e o ícone da música brega,
Waldick NesseSoriano. momento da carreira, Luiz Alfredo trabalhava, havia treze anos, na sucursal aberta pela revista em Belo Horizonte. Com o repórter Fernando Brant, que compunha músicas para in- tegrantes do movimento Clube da Esquina, regis- trou imagens da ferrovia que ligava Minas ao mar. A viagem de Teófilo Otoni (MG) a Cara- velas (BA), feita pelo leito da antiga estrada de ferro Bahia-Minas, durou mais de uma semana, trabalho que inspirou a letra da canção “Ponta de Areia”, que Brant fez em parceria com Milton Nascimento. O fotógrafo também dividiu trabalhos com José Nicolau, que completou oitenta anos em 2012. Num período de grande produção na
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carreira, Luiz Alfredo cobriu a visita do ex-pres- idente JK a parentes, na capital mineira, em 1967, depois que o político, no exílio, obteve per-
missão das Luiz autoridades paranuma a viagem. Desta vez, Alfredo,militares que seguia Vemaguete com Juscelino, conseguiu capturar o momento em que JK desceu do carro, na altura da praça Sete, ao encontro dos que cercavam o veículo. Apelidado pelo povo de Nonô, o ex- presidente foi carregado no colo pela multidão, correndo o risco de ser preso. Toda a emoção da cena foi flagrada por Luiz Alfredo em sua Pentax 500. Foi ao lado dela que voou por mais de trinta horas na velha Esquadrilha da Fumaça, em aviões North-American T-6, usados na Segunda Guerra Mundial. Em 1968, ao lado do experiente fotógrafo Indalécio Wanderley, de quem Luiz Alfredo era fã, ele viajou para Miami e Nova York (EUA)
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depois de ser escolhido pela revista para fazer a cobertura do concurso Miss Universo. Naquele ano, a ganhadora do concurso, realizado em 13
de julho, da foiviagem a brasileira Martha imagens renderam trêsVasconcellos. capas de O As Cruzeiro , uma delas datada de 27 de julho de 1968. As fotos, reveladas em solo americano, eram enviadas para o Brasil com a ajuda de comandantes da Varig, extinta companhia aérea brasileira que fazia rotas internacionais. Luiz Al- fredo mal conseguia controlar a ansiedade até que as imagens chegassem sãs e salvas ao destino. Apesar das dificuldades de se trabalhar em um tempo no qual câmeras digitais e internet seriam consideradas ficção científica, esse foi um jornalismo que deixou saudades para o fotógrafo. Tanto assim que Ana Maria de Paula Amorim, sessenta e dois anos, esposa de Luiz Alfredo e
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mãe de três filhos do fotógrafo, considera o mar- ido viúvo da revista. O periódico entrou em decadência nos anos 70, encerrando as atividades
emMesmo julho demergulhada 1975. em uma crise e com o atraso dos salários, a redação de O Cruzeiro continuou unida, à espera de uma saída capaz de evitar o fim. Por isso, quando o representante do departamento comercial entrou na redação com um maço de notas na mão, resultado do paga- mento de um anúncio, todos se animaram. O din- heiro significava mais do que a chance de receber os atrasados. Os jornalistas acreditavam que a bolada era fruto de novos clientes, o que seria um fio de esperança. Luiz Alfredo aproveitou o momento para fazer graça. Pegou o maço, amarrou num barb- ante e saiu puxando pela redação. A atitude do
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jornalista provocou um acesso de riso entre os colegas. — Dinheiro, eu sempre andei atrás de você.
Agora é você quaté quem em que vai andar atrás de mim. Tudo ia bem o fotógrafo resolveu lançar o barbante pela janela. Quando puxou de volta, as notas já estavam voando do sétimo an- dar do prédio da rua Goitacazes, no centro de Belo Horizonte. Desesperado, Luiz Alfredo gritava da janela: — Gente, era só brincadeira. Não levem o dinheiro, porque ele não é meu. Sem tempo para esperar o elevador, usou as escadas, na tentativa de recuperar a quantia. quantia. Mais de 20% sumiram.
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Com o fechamento da revista, o fotógrafo fotógrafo aceitou o emprego de executivo na na empresa de serviços submarinos que pertencia a Raimundo
Silveira, o mesmo aventura realizada no Parcel de personagem Manuel Luís.daMudou-se para Fortaleza com a esposa, Ana Maria, que ele con- heceu numa campanha publicitária feita para O Cruzeiro, em 1966, transformando a modelo em sua eterna musa. Da união, nasceu Ana Cristina,
em 69; Luiz Alfredo,teve em Carla 71; e Leila, 78. Doem primeiro casamento Maria,em nascida 1959. Com o único filho homem, homem, o repórter foto- gráfico estabeleceu uma relação de cumplicidade que os tornava mais do que pai e filho. Eram, sobretudo, grandes amigos. — Papai, esta é a segunda vez que quebro o braço — disse o filho, sorrindo, na maca do
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hospital de Fortaleza (CE), ao avistar Luiz Al- fredo na entrada da emergência. O médico não entendeu nada.
Luiz Alfredo Júnior, filho de Luiz Alfredo, que morreu afogado aos dezenove anos.
— Só falta uma fratura para que eu possa
me igualar ao seu recorde — brincou o garoto, de cabelo castanho-claro liso e olhos castanhos. Luizinho, como era chamado, tinha apenas quatro anos quando Luiz Alfredo se transferiu de
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Belo Horizonte (MG) para o Ceará. Nos quinze anos seguintes, ele e as irmãs experimentaram a liberdade de crescer em uma cidade litorânea do
Nordeste, cercada do mar e foi pelosurverde dos coqueiros. Empelo 1991,azul o fotógrafo preendido por uma tragédia familiar: a morte de Luiz Alfredo Júnior. O estudante da faculdade de veterinária morreu afogado, aos dezenove anos, na piscina do BNB Clube — em Fortaleza, do
qual atleta. Campeão deem natação, o rapazera praticava apneia, nocearense momento que perdeu os sentidos dentro d’água. A dor de enterrar o filho fez com que Luiz Alfredo e Aninha, como ele chama a esposa, ficassem ainda mais unidos. Até hoje, enganam a saudade. Para eles, é como se o filho estivesse ausente em função de uma longa viagem, devendo retornar algum dia. Ao lado da esposa, o jornalista enfrentou novos tempos difíceis, como sua aposentadoria e
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a luta para sobreviver com dignidade. Hoje, o casal mora na praia de Charitas, em Niterói (RJ), numa casa construída no mesmo terreno da mãe
centenária Luiz(Aldina) Alfredo.levaram A lucidez e imponência de DonadeDidi o filho a compará-la à rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Ele a chama, carinhosamente, de rainha-mãe.
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Luiz Alfredo, com setenta e oito anos, só se rendeu à sua primeira máquina digital em 2011. Apaixonado pelos rolos de filme, ele guardou alguns negativos das mais de 500 matérias que ilustrou durante os vinte e dois anos na O Cruzeiro. As imagens do Colônia, feitas em
1961, estão entre as que permaneceram em sua companhia por mais de quatro décadas.
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Em 2006, após uma das fotos feitas na unid- ade ter sido publicada numa revista de saúde que fazia uma reportagem sobre o Museu da Loucura,
ele foi procurado pelo então Apesar diretor do de Barbacena, Jairo Toledo. de hospital ter rece- bido várias ofertas de colecionadores e bancos de imagens estrangeiros, o fotógrafo sempre quis que o material histórico ficasse no país e con- tribuísse para a memória da psiquiatria brasileira.
Assim, vendeu fotos por de preço simbólico, paraoa conjunto FundaçãodeMunicipal Cultura de Barbacena. As imagens foram impressas no livro Colônia, publicado em 2008, pelo Governo de Minas, na gestão do secretário de saúde Mar- cus Pestana. Um ano depois, durante uma entrev- ista que fiz com o psiquiatra José Laerte, à época vereador em Juiz de Fora (MG), ele tirou o livro da gaveta.
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— Antes que eu me esqueça, você precisa
ver isto. Ao folhear a primeira página, levei um
susto:
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— Não acredito! — repeti, por diversas
vezes, ainda no gabinete do vereador. Bastou o contato com aquelas imagens para
que a senha da indignação fosse acionada. Saí de lá com a certeza de que precisava ver de perto o que havia restado do pior capítulo da história da psiquiatria mineira. Senti-me na obrigação de contar às novas gerações que o Brasil também re- gistrou um extermínio. Quantos personagens
restavam próprioasLuiz teria que idade? Emvivos? 2011,Oquando fotosAlfredo dele completaram meio século, minhas perguntas começaram a ser respondidas. O autor das fotos contava, então, com setenta e sete anos, e suas memórias deram o pontapé inicial à minha in- vestigação. A tragédia provocada pelo Colônia começou a ser revelada pelo olhar dos sobre- viventes e de suas principais testemunhas.
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Toda história tem outra por trás dela. A do Holocausto Brasileiro não foge a esta regra.
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m maio de 1973, o filho do médico Paul Foucault e de Anna Malapert desembarcou pela segunda vez no Brasil, para
participar um ocircuito palestras. Aos Fouquar- enta e setede anos, filósofodefrancês Michel cault já era considerado uma das maiores estrelas da intelectualidade francesa e ainda mais ad- mirado pelos jovens brasileiros do que quando estreou em solo verde-amarelo, em 1965. Na
E
primeira das cinco de visitas feitas Letras ao país,e Ciências ele es- teve na Faculdade Filosofia, Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), onde, dez anos depois, interrompeu seu curso por ocasião do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, morto por agentes do DOI- CODI, em 25 de outubro de 1975, durante a ditadura militar, após uma sessão de tortura no bairro do Paraíso.
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— Não ensino em países onde se torturam jornalistas nas prisões — declarou, ao inter-
romper o calendário de palestras na capital
paulista. Dois anos antes do forjado episódio de sui- cídio de Vlado, como Herzog era conhecido, Foucault esteve no Rio de Janeiro, entre 21 e 25 de maio de 1973, para palestrar na PUC. Em seguida, viajou para Belo Horizonte, a fim de
realizar nos com hospitais psiquiátricos mineiros.conferências Impressionado a realidade da loucura naquele Estado, ele deixou o parlatório onde ministrava sua palestra e sentou – se no chão junto com os estudantes, a fim de ouvir os relatos sobre a forma de tratamento nas casas destinadas destinadas aos loucos. Foi durante essa breve viagem à capital mineira que o psiquiatra nascido em São João del-Rei Ronaldo Simões Coelho, à época com
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trinta e cinco anos, conheceu Foucault. Simões havia se formado na Universidade Federal de Mi- nas Gerais em 1959. Desde a faculdade, era uma
voz destoanteo entre os de colegas de classe, pois questionava modelo psiquiatria de então. Sua vontade de humanizar a assistência ganhou ainda mais força depois do episódio de “se- questro” de oitenta e quatro pacientes psiquiátri- cos do Hospital Raul Soares, localizado em Belo
Horizonte. O grupo foi enviado,sem nosque anosmédicos 70, para o Colônia, em Barbacena, e as famílias soubessem o paradeiro dos pa- cientes. A partir daquele ano, o psiquiatra re- forçou sua defesa em favor da desospitalização. Argumentava que a maioria dos pacientes poder- ia ser tratada em serviços extramuros. Além de maior eficácia na assistência, a medida evitaria a segregação.
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Supervisor de Psiquiatria do Inamps em 72, Ronaldo decidiu fazer uma visita ao Hospital Galba Veloso, na capital mineira. Estava ao lado
de um profissional daoinstituição, um dos enfermeiros abordou médico quequando o acompanhava. — Doutor, chegou um 600.2. — Como? — perguntou o homem, visivel- mente desconcertado, em razão da presença de
— É marido e mulher, doutor. Os dois fo- Simões. ram diagnosticados com histeria. Se multiplicar- mos 300.1 vezes dois, dá 600.2 — explicou o en- fermeiro, dando uma gargalhada. O deboche do funcionário em relação ao transtorno de personalidade dos novos pacientes, problema diagnosticado dentro da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), deixou Simões enfurecido.
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— Realmente, o louco não merece nenhuma
consideração. Veja este pátio cimentado. Não há sequer uma árvore ou sombra. Os pacientes não
precisam de nada, no conceito de vocês, eles não são gente.afinal, A resposta do psiquiatra psiquiatra fez o enfermeiro emudecer. Episódios como esse foram tornando Simões respeitado no meio médico. Em 1973, ele
desfrutava de prestígio na imprensa, fosse combatido entre seus pares por embora suas ideias revolucionárias. Chefe do serviço de saúde men- tal no Estado, coube a ele ciceronear Foucault durante a estada do filósofo em Minas Gerais. Fã do autor de A história da loucura, livro lançado pelo filósofo em 1961, Simões esteve ao lado do visitante em todas as suas palestras em Belo Horizonte, inclusive na realizada na Casa de Saúde Santa Clara. Além de Simões, Halley
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Bessa, um dos grandes defensores da humaniza- ção na psiquiatria brasileira, e Emilio Grinbaum, pioneiro da medicina psicossomática, estavam na plateia. — O Brasil é um dos poucos lugares do mundo onde eu encontrei, entre os estudantes, tanta seriedade e tanta paixão. O que me encanta mais do que tudo é a avidez absoluta de saber — confidenciou Foucault a Simões, repetindo o que
havia declarado, anos antes, para a imprensa da Tunísia. Durante a palestra, Simões rabiscou num num pa- pel pardo a caricatura do filósofo que se consid- erava bastante louco para estudar a razão e ainda mais sensato para pesquisar a loucura. Foucault gostou da homenagem, autografando o desenho. Como se quisesse deixar aquele momento gravado no tempo, o médico pediu que alguns presentesassinassemtambém,como
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testemunhas. Assim, no papel aparece o nome de Leila Dias, médica radicada na França, e de LúLú- cia Maria de Ferrara Barbosa.
Ronaldo Simões Coelho ciceroneando Michel Foucault em 1973.
Foto cedida por Ronaldo Simões.
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Caricatura de Foucault feita por Ronaldo Simões. Imagem auto- grafada pelo filósofo.
A capacidade de Foucault de transitar pelas diversas áreas do conhecimento impressionou Simões. Além do brilhantismo, o francês repres- entava mais do que uma companhia agradável. Ele era acessível. Por isso, ao final do ciclo de palestras, o psiquiatra teve a ideia de convidar o filósofo para conhecer as cidades históricas mineiras. Convite aceito, Foucault e Daniel De-
fert, seu companheiro por mais de vinte anos, acompanharam, na viagem de cinco dias, Simões e o professor da Faculdade de Filosofia e
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Ciências Humanas da UFMG Célio Garcia — um dos que atuaram como tradutor do filósofo. Eles embarcaram para Congonhas na caminhonete
rural disponibilizada pela Secretaria de Saúdebranca do Estado, veículo considerado a versão familiar do Jeep. Depois, seguiram para Tiradentes, São João del-Rei, Mariana e Ouro Preto. Na bagagem, Célio levou um odre, uma espécie de cantil feito de pele animal que existe
desde os tempos do Cristianismo. Nobebida século IV, o recipiente era usado para carregar produzida pela fermentação da uva. Mas, na viagem do filósofo pelas Gerais, havia cachaça, e das boas, no lugar do vinho: boisson typique du Brésil . No quarto dia de turismo com Foucault, Simões levou o escritor para visitar o Museu Ar- quidiocesano de Arte Sacra de Mariana, edifício em estilo rococó localizado na rua Frei Durão. Durão.
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Erguido no final do século XVIII, o museu é a expressão mais original do barroco mineiro, guardando importante acervo religioso. Diante
das imagens com braços cortados, o professor francês perguntou: — Como vocês interpretam essas imagens? Simões apressou-se em responder: — É que, nas regiões mineradoras brasileir- as, o ouro era contrabandeado dentro de figuras
religiosas. o Fisco. Essa também era uma forma de burlar — Na Europa, elas têm outro significado — respondeu Foucault. — Representam o castigo imposto aos santos pelas pessoas que faziam promessas. Como não alcançavam o que dese- javam, elas se vingavam dos santos arrancando pedaços. A partir desse instante, Foucault começou a dar uma aula sobre a história história da promessa.
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O encontro com o filósofo terminou no dia 5 de junho de 1973, na mesa de um restaurante da histórica cidade de Ouro Preto, declarada, anos
mais tarde, Patrimônio Históricodas e Cultural da Humanidade pela Organização Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A despedida de Foucault foi regada a cachaça, torresmo, feijão-tropeiro e lombo, bem ao gosto do francês, que se revelou um bom prato. Em
solo mineiro, o pensador disseminar suas ideias. deixou sua marca ao
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A influência foucaultiana fortaleceu ainda mais o desejo do psiquiatra Ronaldo Simões de
subverter ordemjádas coisas. Um ano antes do encontro, aSimões havia apresentado um pro jeto visando à extinção do Colônia e à
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transformação do hospital em campus avançado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF),porambas compradoras cadáveres produzidos Barbacena. Aliás, odemédico nunca escondeu o horror que sentia daquele lugar. Mas foi no final da década de 70 que o chefe do Ser- viço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) realizou o
gesto mais denunciar, no III Congresso Mineiro de ousado: Psiquiatria, as atrocidades cometidas no Colônia. — Lá, existe um psiquiatra para 400 doentes. Os alimentos são jogados em cochos, e os doidos avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade plane- jada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto
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qualquer que seja a sua forma. Seria de desejar que o Hospital Colônia morresse de velhice. Nas- cido por lei, em 16 de agosto de 1900, morreria sem glórias. E, parafraseando Dante, poderia ser escrito sobre o seu túmulo: quem aqui entrou per- deu toda a esperança.
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Ronaldo Simões Coelho, oitenta anos, um dos primeiros médicos a denunciar o Colônia. Acima, à esquerda, foto dele em 1979. À direita, sua carteira de trabalho, na década de 70. Ao lado, foto atual.
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As declarações tiveram o efeito de uma bomba no meio médico. Por causa delas, delas, ele per- deu o emprego na Fhemig. A demissão de
Simões foi aocultura primeiro de perseguição que romperam doato silêncio. Mas as estruturas esaos truturas do atual modelo já não se se sustentavam mais. Começaram a ruir.
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Apesar de Minas ter produzido a maior tragédia da loucura no país, por meio do Hospital Colônia, o Estado acolheu as primeiras manifest-
ações emInconfidência favor da reforma psiquiátrica. Assim como na Mineira, importante mo- vimento social da história do Brasil, ocorrido em 1789, a luta pela mudança de paradigma na saúde mental, deflagrada oficialmente em 1979, contou com a ajuda de insurgentes, dentre eles Simões.
Barreto, setenta anos, bémFrancisco se rebelouPaes contra a desumanidade detamBarba- cena. O atual membro da Associação de Psiquiat- ria Brasileira tinha apenas vinte e dois anos, quando manteve o primeiro contato com o Colônia. No último ano da faculdade de medicina
da UFMG,Jorge em 1965, ele foium convidado pelo psiquiatra Paprocki, dos maiores pesquisadores de psicofármacos do Brasil, para testar um novo antipsicótico injetável de ação
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prolongada: o Anatensol Depot. Indicado para tratar distúrbios psicóticos, como a esquizofrenia crônica, o medicamento havia acabado de ser sin-
tetizado peloem laboratório Bristol-Myers Squibb e ainda estava fase experimental. A pesquisa era uma exigência do Ministério da Saúde e deveria ter duração de pelo menos seis meses. O estudante teria como missão fazer os ensaios clínicos com os pacientes. O Colônia tinha o per-
fil ideal: milhares de pacientes cronificados com internação permanente. Barreto já tinha ouvido falar do hospital, mas não estava preparado para testemunhar a banalização da violência. Naquele momento, havia dois psiquiatras psiquiatras para atender a um exército
formado por milhares pacientes. No primeiro dia dedetestes, ele chegou ao Colônia na hora do almoço. — Ué! Vocês criam porcos aqui?
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— Não. Isso aqui é a comida dos pacientes — respondeu o cozinheiro, balançando a cabeça.
O aspecto repugnante da refeição deixou o
estudante com náuseas. passoupara o dia semfoi comer, tentando cumprirEle a rotina a qual designado. Horas depois, deixou um dos pavil- hões à procura de local onde não pudesse ser visto. — Isto não pode ser abrigo, nem asilo, —
— Este muito menos umlugar hospital repetia para si mesmo. é a antecâmara da morte. Sozinho, num canto do pátio, ele chorou. Indignado, não podia suportar a ideia de per- manecer naquele local nos próximos 180 dias. Um ano depois, em 1966, o jovem médico
fez a sua denúncia pública contrao Barbacena. Emprimeira 1972, nova tentativa. Escreveu artigo “Críticas do hospital psiquiátrico” para apresent- ar no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. O peso
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das suas críticas contra os hospitais psiquiátricos mineiros, no entanto, só foi sentido em 1979, quando o Conselho Regional de Medicina in- staurou uma sindicância contra ele, sob acusação de ter infringido a ética médica após o artigo ter sido publicado, na íntegra, pela grande imprensa. Apesar das retaliações, Barreto sabia que era ne- cessário fazer alguma coisa. — A tolerância mórbida dos psiquiatras se
estendeu meio médico, em cujas por faculdades os cursos deao anatomia são abastecidos generosa quota de cadáveres provenientes de Barbacena. Os hospitais de crônicos da rede pública são “in- stituições finais”, numa alusão à “solução final” do nazismo. A realidade brutal de nossos hospi-
tais psiquiátricos, enquanto permanecer restrita aos meios profissionais, mostra-se inteiramente inócua, pois há uma acomodação, na qual todo aquele horror se torna banal.
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A contundência das alegações do psiquiatra incomodou, ainda mais, o conselho da classe. Mas, quando a realidade do Colônia ganhou as
páginas dosfoijornais mineiros, a sindicância aberta contra ele arquivada por unanimidade.
Francisco Paes Barreto, setenta anos, psiquiatra que denunciou o Colônia e respondeu, por isso, a processo no CRM. Foto dele na época e hoje.
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Naquele mesmo ano, a vinda ao Brasil do psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro na luta antimanicomial, garantiu visibilidade mundi-
al ao tema da loucura e àGerais. forma como forma ela vinha sendo tratada em Minas O médico in- spirou, em 1973, a criação da Lei 180, em vigên- cia até hoje na Itália. A norma que leva seu nome estabeleceuaaboliçãodoshospitais psiquiátricos.
Em julho deanos, 1979,desembarcou o italiano, então compara cin- quenta e cinco no país uma série de visitas aos hospícios brasileiros. Ao tomar conhecimento da vinda de Basaglia, o psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone, vinte e oito anos à época, convidou o colega para visit- ar Minas, a fim de apresentar a ele as Soares, instituições psiquiátricas públicas: Instituto Raul Hospital Galba Veloso, ambos na capital, e o Hospital Colônia em Barbacena. Professor da
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residência de psiquiatria do Instituto Raul Soares, Simone conhecia a realidade do Colônia desde o período em que era acadêmico. — Não entendo como a classe classe médica
mantém silêncio sobre o extermínio desses pa- cientes. Não procuram saber onde são fabricados os cadáveres que alimentavam as salas de anato- mia das faculdades — disse Simone ao diretor do Serviço Hospitalar de Trieste.
Foi o próprio Simone levou Basaglia, de carro, a Barbacena. Dequem temperamento expans- ivo, o italiano passou a viagem de volta a Belo Horizonte em silêncio. Quando chegaram, seguiram direto para a Associação Médica Mineira, onde o estrangeiro ministraria um curso da conferência, ele de psiquiatria Ao final fez um pedidosocial. ao brasileiro. — Simone, eu quero que você acione a imprensa.
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O prestígio de Basaglia atraiu toda a mídia para o endereço da conferência na avenida João Pinheiro, a cem metros do Palácio da Praça Praça da
Liberdade. — Estive hoje num num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta. As declarações do psiquiatra repercutiram dentro e fora do país. Até o New York Times se
interessou pela tragédia da loucurapelos mineira. Si- mone, no entanto, foi processado hospitais psiquiátricos, e a cassação de seu diploma chegou a ser cogitada pelo Conselho Regional de Medi- cina (CRM). Trinta e dois anos depois do episó- dio, ele diz ter cumprido a sua sua função médica.
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Antônio Soares Simone, psiquiatra que em 1979 levou o italiano Franco Basaglia até Barbacena para conhecer o Colônia. Acima, ele com Basaglia, em 1979 e, ao lado, foto atual. Arquivo pessoal.
— O fato de as denúncias terem colocado
fim à fábrica de cadáveres e ao grande sofrimento
humano vividos em Barbacena me satisfaz. Apesar de toda a perseguição que sofri, cumpri o meu papel. O psiquiatra Alves,foi sessenta e quatroPaulo anos,Henrique confirmaResende que Basaglia
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o grande inspirador do movimento antimanicomi- al do país. Após a passagem do italiano pelo Brasil, a Associação Mineira de Saúde Mental, fundada por Ronaldo Simões Coelho e aberta para quem se interessasse pelo tema, ganhou força, abrindo as portas para os militantes “basaglianos”. O próprio Paulo Henrique tornou- se um militante dessa luta. Em 1981, foi eleito presidente da Associação Mineira de Psiquiatria.
Durante os anos em quedatrabalhou professor de psiquiatria social UFMG, como transmitiu os conceitos de humanização para seus alunos. Pressionada, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), que passou a gerir a totalidade dos hospitais públicos do es-
tado, em 1977, período em as antigas fundações de assistência deque saúde do Estado se fundiram, aprovou, em 1980, o Projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, que
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acolhia as teses do III Congresso Mineiro de Psiquiatria. As mudanças foram sentidas no Insti- tuto Raul Soares e posteriormente se estenderam
aoHospitalGalbaVeloso,Centro Psicopedagógico (ex-Hospital de Neuropsiquiat- ria Infantil) e Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (ex-Hospital Colônia de Barbacena). Os porões da da loucura, finalmente, começaram a ser abertos.
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Se Franco Basaglia foi decisivo para a im- plantação do movimento da reforma psiquiátrica
mineira, o jornalista Hiram Firmino, sessenta e um anos, foi o grande porta-voz dos pacientes de Barbacena. Ele é o autor da série de reportagens “Os porões da loucura”, publicada em 1979 no
jornal Estado de Minas, onde trabalhou por
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mais de vinte anos. Com trinta anos à época, con- seguiu entrar no subterrâneo da loucura, após quase duas décadas de esquecimento da impren-
sa. Naqueledamomento, dezoitofeitas anospelo que as Cruzeiro, denúncias revista O fazia fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco, tinham sido publicadas. De 1961 a 1979, nenhum outro jornalista havia conseguido transpor os muros do Colônia. Com o país na
ditadura militar, desde5 1964, a edição Ato Institucional número (AI-5),e dois anosdo depois, o hospital estava blindado. Hiram não só con- seguiu entrar no Colônia, Colônia, mas também despertar na sociedade a necessidade de mobilização.
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Hiram Firmino, jornalista que denunciou a situação do hospital em 1979, e hoje.
O interesse pelo tema surgiu antes da en- trada do jornalista no hospital de Barbacena. Dois anos antes, ele abrigou em sua casa, com o apoio da esposa, uma mulher conhecida como “a louca de Inhapim”. A história da professora primária de trinta e sete anos que buscava cura para a sua es-
quizofrenia tocou Hiram, que em 1978 acabou fazendo com ela uma via-crúcis, à procura de tratamento. Frequentou ao lado dela os divãs mais badalados de Minas e de São Paulo, mas os
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tratamentos foram inócuos. O primeiro espe- cialista a se ocupar da esquizofrenia de Tânia abandonou o caso. O segundo drogou-a tanto,
que ela foi transformada em umnuma zumbi. Osonde dois médicos seguintes a trancaram cela, ela foi dopada por vários dias. Tânia saiu de lá parecendo bicho. O penúltimo devolveu a mulher cadavérica. O último, além das medicações, usou de sessões de eletrochoque visando alcançar a sanidade. — Não adianta, Hiram. Estou muito cansada. Sinto-me igual a uma rosa. A cada lugar que vou, tiram uma pétala. Quando voltou para a casa dos pais, no in- terior de Minas, Tânia se matou. Depois do suicí-
Estado de Minas, dio dela, Feminino o jornalistadocontou a história no em Caderno matérias veiculadas entre os dias 10 de junho e
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15 de agosto de 79. O tema da loucura havia fis- gado Hiram. A autorização para dissecar Barbacena e os hospitais psiquiátricos mineiros veio durante uma entrevista com o então secretário de Saúde do Estado, Eduardo Levindo Coelho, médico natural de Ubá. Dias antes, o editor Rogério Peres havia pautado Hiram para uma matéria sobre a doença de Chagas. O jornalista deveria entrevistar o
presidente Associação Médica Minas no Gerais, masdaacabou indo parar, pordeequívoco, prédio da Secretaria de Estado da Saúde. Como a entrevista estava agendada com o secretário, o jeito era ouvi-lo. O momento, aliás, mostrou-se oportuno, pois a vinda de Franco Basaglia ao
Brasil tinhacondições provocado intenso debate speito das deum funcionamento dosa remanicômios.
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— Dr. Levindo, o que o senhor pensa sobre
a atual situação dos hospitais psiquiátricos? A resposta do secretário surpreendeu. Indig-
nado, ele criticou o modelo asilar de internação. Hiram aproveitou para fazer um pedido. — Se nós quiséssemos ir amanhã a Barba- cena, o senhor permitiria? Sem saída, o secretário franqueou a entrada do jornalista.
— Os nossos hospícios estão à disposição
dos jornais, das rádios e da televisão. Vocês podem entrar em qualquer um deles, até em Barba- cena, e registrar tudo o que virem. Fazendo isso, me ajudarão. Somente sensibilizando a esfera federal é que conseguiremos alguma coisa. O
ideal mais. seria que estes hospícios não existissem No dia 13 de setembro de 1979, no início da manhã, Hiram partiu em direção a Barbacena.
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Não sabia, mas ele nunca mais seria seria o mesmo. Nem a psiquiatria. Na chegada, como o motorista havia errado
oentraram caminho, o jornalista e a fotógrafa Jane Faria pela porta dos fundos, onde havia mato alto e lixo. Também puderam avistar o primeiro grupo de pacientes no chão vestidos com a tal roupa de um azul descorado. Era quase meio-dia, quando entraram na sala do então diretor José
Theobaldo — O Tollendal. que querem aqui? Vocês não se cansam? Não vejo originalidade alguma nisto, pois nenhuma reportagem adiantou — disse o homem que estava havia uma década no cargo. Hiram conseguiu driblar a irritação do dire-
tor e obter informações rotina dooferecida Colônia. Descobriu, por exemplo,sobre que aa comida aos pacientes era triturada, já que eles não po- diam usar faca nas refeições ou sequer possuíam
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dentes para mastigar. Constatou, ainda, que em cada um dos dezesseis pavilhões havia dois fun- cionários para cuidar de mais de 200 pacientes, e
aPassou maioria contratados não tinha formação.pe- pordos uma ala onde havia 400 mulheres ladas. Levantou dados sobre o alto índice de in- fecção hospitalar, apurando, ainda, que o Colônia não existia para fins terapêuticos, mas políticos. — O senhor não tem esperança alguma? — Se não tivesse, não
estaria mais aqui. Hiram passou o dia fazendo entrevistas. Ouviu pessoas que foram internadas apenas porque tinham perdido a carteira e ficado sem os documentos. Outras foram pegas usando ma- conha e levadas para lá. Constatou, ainda, a falta
de médicos paraeasa impotência internações,diante a ausênciacritérios de voz dos pacientes do sistema. Também se comoveu com o fato de os considerados doentes terem sido presos sem
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terem cometido crime algum. Tentou não julgar. Ao deixar a unidade, sentou-se à máquina de escrever.
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“Hoje nós começamos a percorrer o ‘Centro Psiquiátrico’ de Barbacena, como o governo in-
siste em rotular. Os primeiros de seus dezesseis pavilhões. Suas enfermarias, seus pátios. Não encontramos os loucos terríveis que supúnhamos. Seres humanos como nós. Pessoas que, fora das crises, vivem lúcidas o tempo todo. Sabem quem são e o que fazem ali. O que os espera no fim de mais alguns dias, alguns anos. Pessoas que pe-
dem para ser fotografadas, pedem a pub publicação licação de seus nomes. Insistem em voltar à sociedade, à família, ao afeto, à liberdade. Nem todas, porém. As alienadas, de tão drogadas, de tantos choques, tanta prisão. Crianças que não conseguem nem se locomover. Mas a maioria insiste em ter esper-
tempo.” ança de ser tratada como ser humano. Ainda há
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Quando conheceu o Hospital Colônia, em 1979, o estudante de psicologia da PUC Minas Helvécio Ratton, com trinta e um anos, havia acabado de voltar do Chile, onde se exilou em razão de sua participação no movimento estudantil brasileiro. Foi em território chileno que ele iniciou a carreira de cineasta. Por isso, quando retornou ao Brasil, estava dividido entre a sétima arte e a ciência que trata do comporta-
mento no Colônia pôs fim à dúvida:humano. o cinemaAoentrada aguardava. O desejo de fazer um documentário sobre sobre a unidade mineira surgiu no instante em que ele teve contato com fotos dos pacientes tiradas, na clandestinidade, por Júlio Bernardes, irmão de
um professor da faculdade. As imagens deixaram o aluno escandalizado, porque, embora conhecesse o funcionamento de outras instituições públicas, como o Hospital Raul Soares, em Belo
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Horizonte, jamais havia visto algo na escala do hospício de Barbacena. Viabilizar um filme da loucura parecia algo impossível, não só em razão da censura, mas também porque um projeto como aquele necessitava de verba. O súbito movimento de transparência en- cabeçado pela Secretaria de Estado da Saúde Saúde fa- cilitou o acesso ao hospital. Quando o órgão ab- riu as portas do manicômio, Ratton estava entre o
grupo que contatos conseguiu visitar a unidade. primeiros com o Colônia foramOssufi- cientes para ele perceber que, ao vivo, o inferno era bem pior. A sensação de pisar em um campo de concentração dentro do Brasil despertou nele a urgência de registrar a rotina da unidade. Nesse
momento, movimento nas escolasode medicina antimanicomial e de psicologia, crescia e o estudante fazia parte dele.
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Com medo de que as portas portas do manicômio fossem novamente fechadas e seus muros se tor- nassem ainda mais altos, Ratton resolveu impro- visar. Alugou equipamentos, pagos com dinheiro do próprio bolso, e reuniu uma equipe voluntária. Durante oito dias ele captou imagens do hospício. As filmagens começavam no início da manhã, e a câmera só era desligada quando não havia mais luz para continuar o trabalho. No terceiro dia de
filmagem, umo paciente segurou pelo braço. — Sei que vocêso estão fazendo. Tirando foto de todo mundo. Assim, quando a gente mor- rer, as pessoas vão saber que estivemos aqui. Aquela frase confirmou em Ratton a im- pressão de que ele estava fazendo algo import-
ante a história. Tinha a do sensação haviapara transposto as paredes hospitaldee que roubado as imagens de dentro dela. Só assim poderia
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mostrar o que acontecia por trás dos muros do Colônia. — Como a sociedade permite que as famíli-
as a medicina pessoasRatton neste depósito — questionava de elixo humano?despejem junto a Dileny Campos, editor de fotografia fotografia do filme. — O cheiro deste lugar é indescritível. É o cheiro de suor, de fezes, de sofrimento, de gente amon- toada, de falta de higiene.
Ratton estava convencido de queEssa o cinema podia intervir, tocando as pessoas. certeza o motivou a prosseguir. Mais do que isso. Quando o documentário ficou pronto, poucos acreditavam no que estavam vendo. Em 25 minutos, o diretor do filme exibiu relatos de pessoas que estavam a
vida internadas causa de brigas famili ares, inteira do abuso de álcoolpor e de comportamento homossexual.
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Helvécio Ratton, cineasta, autor do documentário “Em nome da razão”, filmado em 1979 no interior do Colônia, em foto da épo-
ca, e de hoje. Arquivo pessoal.
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— É uma sentença de
morte em vida — comentou um expectador, na primeira sessão do curta, realizada em Belo Horizonte. O psiquiatra
Franco Basaglia e o jornalista Hiram Firmino também estavam na plateia. Mesmo tendo acabado de chegar de Barbacena, a crueza das cenas impactou o italiano. Ratton havia optado por não usar trilha sonora. Queria que os sons do desespero, captados no interior da unidade, aju-
dassem contar a história. — a O seu filme tem um grande poder poder de rev- elação — comentou o psiquiatra. Basaglia estava certo. O filme tomou tra- jetória impressionante. Depois de passar pelas salas brasileiras, foi premiado em diversos fest-
ivais dosentimento exterior. Por passou,Odespertou o mesmo deonde indignação. curta acabou sendo o golpe de misericórdia no modelo de psiquiatria exercido até então. Com a porta porta do
psiquiatria exercido até então. Com a porta porta do
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hospício escancarada, era ainda mais difícil negar os crimes cometidos Em nome da razão, como o documentário foi batizado. Ratton tinha con- seguido derrubar os muros da indiferença. Mais de trinta anos se passaram desde que ele pisou no Colônia. De lá para cá, tornou-se o premiado cineasta brasileiro. Aos sessenta e três anos, exibe no currículo longas como O menino maluquinho (1995) e Batismo de sangue
(2006). E Colônia apesar daainda passagem de três décadas, em o cheiro do continua impregnado sua memória.
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raça da Sé, centro de São Paulo. O 25 de janeiro, aniversário da capital paulista, era a data escolhida para a realização do
primeiro grande comício da campanha por eleições diretas no Brasil. Após vinte e um anos de regime autoritário, a sociedade ansiava a con- solidação do processo de redemocratização anun- ciado anos antes no governo de Ernesto Geisel. Em um país sufocado pelo militarismo, o grito de
P
mudança estava, havia tempos, preso na garganta. Por isso, o movimento das Diretas Já de- volveu voz aos brasileiros naquele ano de 1985. Apesar de o governo governo militar tentar abafar a mani- festação, cerca de 300 mil pessoas compareceram ao comício na tentativa de pressionar as forças
políticas a aprovar a Emenda Dante Oliveira, que propunha a escolha popular paradepresidente. Com a proposta rejeitada, apesar dos 298 votos
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favoráveis, o país teve que esperar mais quatro anos para ir às urnas. Foi em meio a esse clima de transformação
social que o professor universitário Paulo Delgado, natural de Lima Duarte, se elegeu deputado federal pela primeira vez, em 1986, como o mais votado do PT em Minas Gerais. Aos trinta e seis anos, ele se licenciava do cargo de docente da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para ocupar uma cadeira na Câmara Federal.
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Paulo Delgado em 1982 (à esquerda) e hoje. Foto de 1982: Hum- berto Nicoline. Foto atual: reprodução.
Sociólogo com pós-graduação em ciências políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Paulo filiou-se ao Partido dos Trabalhadores em 1979, iniciando sua trajetória política e tornando-se um dos fundadores do PT em Juiz de Fora. Ao chegar a Brasília, o constitu- inte percebeu que precisava abraçar alguma causa que norteasse seu trabalho. Foi o irmão, o psiqui- atra Pedro Gabriel Delgado, quem sugeriu que Paulo se transformasse no “deputado dos doentes mentais”.
A ideia de ser o porta-voz de um grupo his- toricamente silenciado seduziu o político que, desde a época de estudante, demonstrava in- teresse pelo tema da reforma psiquiátrica, por in-
fluência do trabalho de Franco Basaglia. Apoiado
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por Pedro, que mais tarde assumiu o cargo de co- ordenador nacional de Saúde Mental, Álcool & Outras Drogas do Ministério da Saúde, o deputado apresentou, em 1989, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 3.657, propondo a regu- lamentação dos direitos da pessoa com tran- stornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. Até aquele momento, ainda prevalecia no país o Decreto Presidencial 24.559,
baixado por oGetúlio Vargas,deempacientes 1934. A aresolução previa recolhimento hospi- tais psiquiátricos “mediante simples atestado médico”, que poderia ser solicitado por qualquer pessoa que tivesse tivesse interesse em internar alguém. A necessidade de uma lei que regulamen-
tasse saúde mental e impusesse umencontrou novo rumo para aareforma psiquiátrica nascente terreno fértil nos movimentos sociais e de saúde
mineiros, que já haviam deflagrado a
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mobilização pela reformulação no setor. Mesmo enfrentando resistência entre a classe médica, famílias de doentes e colegas parlamentares, Del- gado conseguiu aprovar seu projeto, em 1990, na Câmara dos Deputados, por meio do acordo de lideranças, constituindo-se na primeira lei de desospitalização em discussão no parlamento latino-americano. No mesmo ano, Paulo repres- entou o país na conferência sobre a Reestrutur-
ação da Atenção Psiquiátrica na América Latina. A convite da Organização Mundial da Saúde, o delegado brasileiro viajou para Caracas, na Venezuela, para integrar as discussões sobre nov- os modelos de atendimento. Na volta, continuou a enfrentar resistências
de parte damedicina classe médica. — A brasileira tem tradição de cárcere. Por isso, a lógica da da internação faz com
queosrecursosmédicossejam
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predominantemente hospitalares, subtraindo re- cursos do tratamento ambulatorial, comunitário, aberto — defendia. As declarações do deputado acirraram ainda mais a polêmica em torno da tramitação da pro- posta. Remetido ao Senado Federal em 15 de fevereiro de 1991, como “projeto de lei da Câ- mara”, ele foi distribuído à Comissão de Assun- tos Sociais (CAS) recebendo, inicialmente, pare-
ceres de dois relatores José antesPaulo de serBisol submetido a votação: os senadores (PSB-RS) e Lúcio Alcântara (PSDB-CE). Votado pela comissão em 1995, com parecer favorável do senador Lúcio Alcântara, o Projeto Delgado foi rejeitado por 18 votos a 4, recebendo sete novas
emendas em plenário. Em 15outras de dezembro de 1998, o plenário apresentou dez emendas ao parecer do senador Sebastião Rocha (PDT-
AP). O texto foi aprovado em 20 de janeiro de
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1999 e enviado à Câmara dos Deputados com o substitutivo do Senado. Após algumas modi- ficações, o projeto final foi remetido à sanção
presidencial. Em 2011, após doze anos de tramitação e de muitas manobras políticas, a Lei Lei Feder- al 10.216 foi sancionada.
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A norma que propõe um modelo de atenção à saúde mental, aberto e de base base comunitária, completou uma década de vigência em 2011, di-
vidindo opiniões. Os críticos da proposta afirmam que ela não instituiu mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios, pro- vocando desospitalização desospitalização em massa sem a im- plantação de uma rede extra-hospitalar capaz de atender à demanda. Para os defensores da re- forma, a lei impôs um novo rumo ao processo de reestruturação do setor. — Quem encarcera, seda e isola não acred- ita na razão, nem no resto dela. A lei da reforma psiquiátrica, ao contrário, é humanista, mas baseada em fundamentos técnicos da própria
medicina, permitem a realização do — defende tratamentoosemquais liberdade seu criador. Quando a nova legislação foi implantada no
país, havia mais de 50 mil leitos em hospitais
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psiquiátricos, conforme dados do Ministério da Saúde. Dez anos depois, os leitos somavam pou- co mais de 30 mil. Nesse período, quarenta e
cinco hospitais psiquiátricos foram desativados. Restam 200. Em 2009, em seu sexto mandato, o deputado sofreu o maior ataque público desde a edição da lei, com a publicação no jornal Folha de S.Paulo de artigo assinado pelo consagrado po-
“Uma eta Ferreira Gullar. Com o título lei errada”, o texto de setenta e seis linhas, veiculado no domingo de Páscoa, trazia críticas contra a classe médica e contra Paulo Delgado, chamado pelo poeta de “cretino”, autor de uma “lei idiota” que precisa ser revogada. Na visão de Gullar, os
doentes nãocomo conseguiam internação, ter- minandopobres nas ruas mendigos. Eis um trecho: A classe média, em geral, sempre aberta a
ideias avançadas ou libertárias , quase nunca
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se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir.
Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e ap- resentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que “as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles”. E eu, que lidava com o problema de dois “Esse
filhos nesse mimo mesmo: sujeito é um estado, cretino.disse Não asabe que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não ima- gina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar salvar a família. Esse idiota tem a audácia hos do que eu”.de fingir que ama mais a meus filEsse tipo de campanha é uma forma de dem-
agogia, como outra qualquer: funda-se em dados
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falsos ou falsificados e muitas vezes no descon- hecimento do problema que dizem tentar resolv- er. No caso das internações, lançavam mão da pa- lavra “manicômio”, já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo de hospital hospital não existia mais. A ira do poeta dividiu o país ao meio e pro- vocou reação imediata entre os defensores da re- forma, sob alegação de que ela era resultado de
mais de trinta luta contra pacientes modelos de ternação asilar,anos que de transformam eminprisioneiros. O presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental à época, Walter Ferreira de Oliveira, manifestou-se:
Caro senhor Gullar, sinto muito lhe trazer uma verdade incômoda e vergonhosa para o nosso país. Os manicômios continuam existindo,
continuam sendo desumanos, tratando seres
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humanos como animais, produzindo mais doença e, com seu papel de depósito humano (temos mil- hares de pessoas internadas por 20, 30, 40 anos), continuam sangrando o dinheiro público. Caso o senhor ou qualquer outra pessoa duvide, será muito fácil mostrar alguns endereços onde se pode constatar esta vil realidade. Há, também, in- teresses no velho sistema de internações que não têm nada a ver com a intenção de melhorar a
saúde dosonde usuários, são herançae da do INPS, as internações, pormentalidade quanto mais tempo melhor, são negócios que dependem da hotelaria, dos serviços, das licitações e da medic- alização excessiva dos pacientes. (…) Pessoal- mente, manifesto minha solidariedade para com o poeta Ferreira Gullar, por seu s sofrimento ofrimento como pai, que revelou em seu artigo. Compreendo, a partir daí, sua paixão, sua agressividade para com
muitos de nós, que lutamos por um modelo de
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atenção que entendemos como melhor. Há, en- tretanto, muitos equívocos em seu artigo e um deles talvez seja não perceber que sua família po-
deria ter sofrido muito menos e tido muito mais apoio se todos nós lutássemos solidariamente pela efetivação de um sistema digno de saúde, saúde, que inclua uma rede adequada de de saúde mental, que, apenas por interesses escusos e pela ignorân- cia de muitos de nossos políticos, ainda encontra (…).
resistências ampliação e avanço Delgadopara não sua se intimidou: — A lei não desconhece a doença mental. Ela regula a forma de tratá-la. As insuficiências do tratamento não são da lei, mas da defic iê ncia na sua aplicação. A doença doença é uma coisa normal da vida. O que não é normal é não haver convivência pacífica com ela. O maior problema ainda é de aceitação da dificuldade do outro. A
reforma psiquiátrica é, de certa forma, a abolição
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da escravidão do doente doente mental, seu fim como mercadoria de lucro dos hospitais fechados, da exploração do sofrimento humano com objetivos
mercadológicos. Com o debate novamente aquecido, o tema da saúde mental voltou à baila no país. A pro- posta que privilegia a formação de rede extra- mural e os avanços conquistados no setor, como a redução de leitos psiquiátricos de baixa qualid- ade, começou a ser rediscutida. Es Especialistas pecialistas demonstraram preocupação com o fato de a questão ideológica de uma sociedade sociedade sem man- icômio ter ficado à frente da técnica e pragmát- ica, já que não é possível a sustentação de uma assistência psiquiátrica sem leitos humanizados
em para garantir o atendimento das hospitais crises e agerais alta responsável, que permita a con- tinuidade do tratamento.
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Segundo o Ministério da Saúde, 12% da população necessita de algum atendimento em saúde mental, sendo ele contínuo ou eventual,
representando um contingente de 22 milhões de pessoas. Com 1.620 Centros de Atenção Psicossocial instalados no país até 2010, o indicador de um CAPS para cada cem mil habitantes ainda não foi alcançado. Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) também são insuficientes. O Brasil conta com mais de 600 casas localizadas no espaço urbano, com a finalidade de responder às necessidades de moradia de pessoas com tran- stornos mentais graves egressas de hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia e trata- mento psiquiátrico as quais perderam os vínculos
familiares e sociais. Mais de 3 mil brasileiros vivem em residências terapêuticas. Quase meio século depois de denunciar a
falência dos hospícios brasileiros, o psiquiatra
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mineiro Francisco Paes Barreto, setenta anos, uma das vozes mais consistentes pela mudança de paradigma na saúde mental brasileira, defende
que é — tempo de um novo discurso. A reforma vive um momento de impasse. O maior risco é o de retrocesso. O discurso man- icômio versus antimanicômio está ultrapassado, porque a existência dele já não se sustenta, é in- defensável. Precisamos avançar e repensar o modelo da reforma psiquiátrica. Nunca hesitei em defender a reforma, assim como hoje não hesito em criticá-la. Ela precisa se superar. A psiquiatria biológica não pode continuar centrada num biologicismo redutivista e prioritariamente medicalizador.
ondedaalei, regua lamentação regulamentação umae lei temNum sido país metade luta entre o de velho o novo precisa se renovar.
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m dos lugares mais temidos do Colônia era o prédio localizado entre os pavilhões Arthur Bernardes e
Afonso Pena. Usado, inicialmente, como cozinha do hospital, tornou-se setor de administração, sendo, mais tarde, transformado em local de ex- perimentos, como o uso de ducha escocesa, um tipo de banho com jatos em alta pressão. A hidroterapia, feita com temperatura e volume de
U
água controlados, também teve a finalidade deturpada no hospital. Os banhos gelados, pro- movidos na calada da noite noite como forma de cas- tigo, eram mais uma maneira de debilitar organis- mos já fragilizados por doenças físicas e mentais. Quando as denúncias de tortura na instituição
provocaram mobilização social, no início dosdes- anos 80, o prédio foi sendo, paulatinamente, ativado. Dentro dele havia um torreão de difícil
acesso que acabou transformado em palco de
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conspiração. Era ali que os jovens médicos que chegaram à instituição passaram a se reunir para discutir critérios de internação e mudanças de
paradigma em relação à forma de se tratar o doente. Jairo Toledo era um deles. Residente de psiquiatria do Instituto Raul Soares em 1979, Jairo foi incumbido por seu pro- fessor César Rodrigues Campos de retomar, em Belo Horizonte, o Congresso Mineiro de Psiqui- atria, paralisado havia sete anos. Jairo contou com a ajuda dos colegas Wellerson Durães Alk- mim e Lécio Márcio Dias, para organizar o ter- ceiro encontro, do qual se tornou secretário. A pedido do docente, ele montou um painel para contar, no evento, a história da psiquiatria no
Estado. teve ideia documentos de procurar médicos tigos noJairo intuito de areunir inéditos.anCom Hélio Alkmim, tio de Wellerson, conseguiu
o ofício enviado em 1959, pelo Estado, para os
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hospitais públicos mineiros, sugerindo a im- plantação do leito chão. O modelo, criado pelo Colônia, previa a retirada de camas dos pavilhões para ganhar mais espaço e garantir novas in- ternações e, com elas, mais repasse de recursos. Ronaldo Simões também tinha um vasto arquivo, cedendo seu material. A mostra acabou atraindo um público numeroso. O congresso repercutiu fora dos limites do Estado, tornando-se marco da
reforma psiquiátrica mineira. Ao final do encontro, o então superintend- ente da Fhemig, José Ribeiro Paiva Filho, cont- atou o residente. — Jairo, sei que você está entre os que ajudaram a mostrar a cara do hospital Colônia. Colônia.
Jairo acenoupor queque sim.não vai para lá ajudar a — Então, consertar?
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O convite de trabalho do superintendente soou mais como uma intimação. Ainda assim, o médico de trinta e um anos sentiu-se desafiado. Embora tivesse outros planos — profissionais — e eles não incluíam Barbacena , a chance de mudar os rumos do Centro Hospitalar Psiquiátrico (CHPB) mexeu com ele. Como acadêmico de medicina, conheceu de perto a rotina da instituição e os desmandos
políticos que a transformaram em instrumento de barganha e de nomeações. Foi como estudante que ele se tornou plantonista do CHPB, em 1974, passando vinte e quatro horas por semana dentro do hospício. Naquela época, a ordem era que os funcionários tomassem conta da porta de cada pavilhão. Trancados, os internos eram abandonados à própria sorte. O que acontecia dentro das alas não era problema de ninguém. Foi esse tipo
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de gestão que transformou o Colônia em símbolo de covardia e morte.
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Jairo Toledo, diretor do hospital até março de 2013. Em 1979 (acima) era estudante da faculdade de medicina. Arquivo pessoal 420/455
de Jairo Toledo. Abaixo, em 2011. Foto: Roberto Fulgêncio/ Tribuna de Minas.
Como plantonista, Jairo ainda teve a chance de conhecer novas faces da loucura, como a agressividade de Sueli Rezende, a força contesta- dora de Conceição Machado e o encantamento de Flor de Liz, a paciente mais sonhadora da ala
feminina, gostava batom roupa colorida. Ignorandoque o mundo dede horror aoeseu redor, ela vivia um eterno conto de fadas. Apaixonada por médicos e acadêmicos que circulavam pela unid- ade, ela disputava com as colegas de pavilhão a atenção deles. Em dias de consulta, vestia-se como rainha, embora estivesse coberta pelos tra- pos do Colônia. Jairo não se dava conta, mas já estava ligado
ao hospital. Assim, no ano do seu casamento com a advogada Flora Lúcia Moura, ele aceitou a
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proposta de trabalho de Paiva Filho. Ainda em 1979 foi transferido do Hospital Galba Veloso, na capital, para Barbacena, começando a mudar a ordem das coisas. A primeira alteração na unid- ade foi a determinação de transferência dos trinta e três meninos de Barbacena para local mais ad- equado. Vivendo no meio de adultos, a per- manência deles no Colônia era uma violação de de direitos da infância e adolescência. Em 1980, Silvio Savat, Tonho e os outros garotos partiram para Belo Horizonte. O psiquiatra também conseguiu proibir a indiscriminada transferência de pacientes do Insti- tuto Raul Soares, também em Belo Horizonte, para o Colônia. Até então, a prática médica era
encaminhar unidade os casos solucionadospara em adez dias. Otodos resultado era não a cronificação de pacientes. Esquecidos em Barba-
cena, eles acabavam adquirindo novas patologias
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dentro da instituição. Milhares de atestados de óbito exibem o termo “enterite do alienado”, cri- ado para tentar explicar a morte em massa por diarreia aguda. Outra mudança no hospital foi a regionaliza- ção do atendimento. Apenas o sul de Minas, a Zona da Mata e as vertentes poderiam enviar pa- cientes para Barbacena. A partir desse instante, foram estabelecidos critérios para internações. “trem de doido” e do Era o fim do famigerado embarque de brasileiros de todo o país para a es- tação Bias Fortes. A proposta mais audaciosa, porém, foi a criação de um módulo experimental para os casos agudos, destinado aos pacientes em crise. Reunidos na capela, os médicos apresent-
aram a ideia aosbriga: funcionários e administradores, que compraram
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— Isso aí é fogo de palha desses moleques metidos a médicos. Não dura nada — ouviram os
médicos entre os comentários da plateia. — Vocês precisam entender que não somos tomadores de conta. Somos cuidadores. Os doentes têm o direito de retornar para para a sociedade — rebateu o médico. O módulo experimental foi criado, inicial- mente, com 120 leitos, contando com com o trabalho
de duas equipes multidisciplinares na busca pela estabilização do quadro clínico e da alta. Os pa- cientes passaram a ter no prontuário data de saída do hospital. Era o início de um novo paradigma: o do atendimento pela óptica ambulatorial. Em 1986, eleito diretor do CHPB pela primeira vez,Ronaldo Jairo participou do implantação projeto liderado pelo médico Simões de de cinco casas de acolhimento, que acabou sendo o
embrião das residências terapêuticas. A ideia era
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retirar dos pavilhões os pacientes com melhor nível de independência, permitindo que eles reto- massem o convívio social. Quando a obra ficou pronta, representantes do futuro governo de Mi- nas decidiram conhecer o espaço. Cogitaram Cogitaram dar outra destinação para as casas, afinal, não fazia sentido investir recursos no tratamento da loucura. Não tiveram tempo de desviar a finalid- ade do espaço. Em Em uma semana, Jairo promoveu uma invasão no imóvel. O processo de transição, que duraria três meses, acabou sendo atropelado na tentativa de impedir nova interferência polít- ica. Deu certo. Os módulos existem até hoje. De lá para cá, outras vinte e oito residências terapêuticas foram construídas fora do hospital. A cidade dos loucos começou a mudar…
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— Telefone para o senhor — comunicou a
secretária. — Jairo, aqui é Edson Brandão. Gostaria de conversar pessoalmente com você. Tenho uma proposta a fazer. O encontro com o diretor executivo da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena foi marcado para o dia seguinte. O ano era 1995. — Doutor, a fundação está desenvolvendo
um ambicioso plano de resgate da memória “Memória histórica da cidade. O projeto Viva”, que será financiado pela prefeitura, tem o objetobjet- ivo de reorganizar os museus do município. A nossa ideia é criar um museu sobre a loucura. Te- mos o apoio do prefeito Toninho Andrada (PSDB). O que acha? O psiquiatra demonstrou entusiasmo. — Venha, Edson, quero te mostrar uma
coisa.
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Os dois foram caminhando até o pavilhão Antônio Carlos, onde tudo começou. O edifício foi construído sobre o terreno da antiga Fazenda da Caveira, que pertenceu a Joaquim Silvério dos Reis, traidor dos inconfidentes. Ele ganhou as terras pela delação do movimento, e antes de de ser Colônia, a Caveira foi um sanatório para tuberculosos. Jairo o convidou a entrar. — Vê isso aqui?
O diretor mostrou ao membro da fundação uma sala com aparelhos de eletrochoque, docu- mentos, peças de uniforme e outros materiais que recolheu na instituição e guardou, desde 1979, quando montou o painel sobre a história da
psiquiatria III Congresso Brandãono estava surpreso. Mineiro. — Sempre tive vontade de exibir o material
que fui juntando ao longo de todos esses anos
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para que as pessoas pudessem conhecer a história da psiquiatria em Minas Gerais — revelou Jairo. O Museu da Loucura acabara de nascer. Em 16 de agosto de 1996, uma sexta-feira, o prédio que guardava quase um século de memória foi in- augurado. Nada melhor do que transformar em museu um dos mais simbólicos edifícios do Colônia, o local onde onde foram realizadas as tais duchas escocesas. Construído em 1922, o torreão do antigo Hospital Colônia foi reformado; e suas cinco salas, abertas à visitação. No andar superior, um centro cirúrgico, com instrumentos usados para a realização de loboto- mia, recriou o ambiente no qual as intervenções eram realizadas. Apesar do clima sombrio, esse
espaço guarda o episódio de amor platônico vivido por Maria José Baeta Reis, uma antiga funcionária do hospital. Apaixonada por um pa-
ciente do Colônia, não pôde viver esse amor,
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guardando, por mais de duas décadas, o crânio do interno. Ela era vista nos barzinhos de Barbacena tomando cerveja com o crânio do amado ao lado. Como estava ficando falada na cidade, foi convencida por Jairo a doar a caixa óssea para o Museu da Loucura. A peça continua lá. Já a cela vista no primeiro primeiro andar foi retirada do hospital, em 1994, durante vistoria realizada por técnicos da Secretaria de Estado da Saúde para a classificação das unidades de saúde no nível P4, considerada, à época, maior titulação de eficiência hospitalar. Ao final da visita, a respon- sável pela inspeção, Gisele Bahia, considerou as instalações adequadas, mas questionou a existên- cia do espaço de contenção.
— O problema é a permanência da cela? —
questionou Jairo, enquanto repassava instruções para um grupo de funcionários.
— É sim, doutor.
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Uma hora depois de iniciada a conversa, dois homens bateram à porta da sala da direção. — Olhe lá, Gisele. Não há mais empecilho — para a conquista do P4 disse Jairo, sorrindo. Para espanto de todos os presentes, a cela havia sido arrancada e colocada sobre a mesa de reunião. Ao final do processo de verificação, o hospital conseguiu classificar-se dentro das nor- mas técnicas, tornando-se apto a receber novas fontes de financiamento federal. A cela, finalmente, tornou-se peça de museu.
*
No começo, Barbacena rejeitou seu passado, resistindo a revisitá-lo. Duas placas instaladas na
“Visite o Museu da BR-040, com os dizeres Loucura”, também foram retiradas da estrada nos anos 90, por ordem de políticos que não
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desejavam a sua instalação. Apesar dos esforços em negar a tragédia da qual o Colônia foi palco, o museu que se destina a contá-la é o mais visit- ado por turistas. Tem dimensão educativa, desafiadora, tornando-se tributo às dezenas de milhares de vítimas da lendária instituição. Suas portas incomodamente abertas são a lembrança de que a tragédia do Colônia não vai ser, nova- mente, esquecida. Não desta vez.
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Prédio do hospital que sediaria o futuro Museu da Loucura.
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poucos metros de casa, Marlene Laur- eano olha o relógio: 19h08. Quer chegar a tempo de trocar de roupa e pegar a última sessão do Cine Plaza, no centro. Próxima ao portão, ela abre a bolsa e procura o chaveiro com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota. Sobe as escadas do sobrado amarelo, passa pela varanda e ganha a sala onde mantém, na parede, o quadro com a
A
foto dos avós avós maternos italianos, última lem- brança de família. Embora ainda more no bairro Santo Antônio, no mesmo terreno onde nasceu, o imóvel da infância foi demolido para a con- strução de outro maior e mais moderno. Ela tam- bém mudou. Os longos cabelos negros estão
agora acima dos ombros, e fios brancos teimam em aparecer. Apareceram vincos na testa e próxi- mos aos lábios e também pequenas rugas em
volta dos olhos. Sente-se mais cansada, embora
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continue firme no projeto de fazer a sua primeira viagem ao exterior. O destino é a Itália, país dos seus antepassados, mais precisamente Parma, cidade de origem romana famosa por seus monu- mentos. Talvez ela compre apenas a passagem passagem de ida, sem data para voltar a Barbacena. Quase quatro décadas depois de entrar no Colônia pela primeira vez, quando tinha apenas vinte anos, Marlene tirou o primeiro dos oito
meses de férias-prêmio acumuladas no antigo hospital, onde ainda trabalha nos módulos residenciais. Aos cinquenta e oito anos e com tempo de serviço para se aposentar, ela não conseguiu se desligar do lugar onde viveu a maior parte de sua vida. Testemunha do holocausto brasileiro, a funcionária resistiu aos piores anos do hospício sem dizer uma palavra do que viu. O silêncio foi
a maneira que encontrou de tentar esquecer o so frimento imposto a homens, mulheres e crianças
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que, ao cruzarem o portão da unidade, se torn- aram propriedade do Estado. Assim como os pa- cientes, ela também teve a história construída dentro dos muros da instituição. Ao conhecer o pavilhão Afonso Pena, em 1975, ela jamais po- deria supor que permaneceria no emprego por tanto tempo. Ao final do primeiro dia de trabalho, quando recebeu a tarefa de lavar o pavilhão e colocar
para secar o capim onde os internos dormiam, Marlene teve a certeza de que não ficaria lá. Chegou à casa da rua Demétrio Ribeiro assustada com o que tinha acabado de presenciar. Quando Regina perguntou sobre a estreia da filha no hos- pital, Marlene respondeu, vagamente, sem cor- agem de contar para a mãe que a ro rotina tina na unidade não era nada do que imaginava. Passou a
noite acordada dizendo para si mesma que nunca mais pisaria lá. No dia seguinte, porém, voltou.
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Em pouco tempo, começou a dar sinais de tristeza. Ficou introspectiva, a ponto de as amigas do Colégio Tiradentes estranharem seu jeito. A mãe de Marlene também não entendia o emagre- cimento da filha nem o motivo pelo qual com- prava, mensalmente, dezenas de latas de leite em pó, que sumiam da despensa sem explicação. Ao sair de casa, ela levava o alimento na bolsa, dis- tribuindo o leite na ala infantil do hospital para
minimizar a fome dos meninos. Decidida a não contar a ninguém o que se passava na instituição, começou a buscar soluções caseiras para alterar a realidade, acreditando que, assim, poderia suaviz- ar a existência dos que que estivessem mais próximos dela. A funcionária não ficou no Colônia só por piedade, mas também pela carreira no serviço público. Denunciar o sistema, definitivamente,
não estava nos seus planos, ainda mais depois de ter perdido os pais com vinte e três anos,
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passando a contar com o salário do hospital para sobreviver. — Menina, vem cá — chamou a paciente, em voz baixa. Marlene atendeu. — Pois não, dona Izabel. — Tenho te observado há dias e percebo que é diferente das outras funcionárias. Você é um anjo que Deus colocou aqui para me ajudar. — Mas o que eu posso fazer pela senhora?
— perguntou, receosa de que alguém a visse con-
versando com a mulher. — Meu filho não sabe que estou aqui. Por favor, procure ele para mim e conte tudo. Tenho certeza de que, ao descobrir, descobrir, ele virá me buscar. — Não posso fazer isso — respondeu,
afastando-se.
Marlene tinha medo de ser descoberta in fringindo as normas do Colônia, embora as
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súplicas de Izabel a tivessem comovido. No dia seguinte, quando a funcionária foi buscar as roupas no pavilhão em que a paciente estava, esta a chamou: — Você deixou essa peça para trás. Ao abrir a roupa, havia h avia uma carta escrita por Izabel Teixeira de Magalhães para o filho José Maria, que residia em Montes Claros, norte de Minas. Tremendo, Marlene andava de um lado para o outro sem saber onde esconder o papel. À noite, quando chegou em casa, leu o conteúdo da correspondência e se sensibilizou com o pedido de socorro feito pela mulher. No dia seguinte, colocou a carta no correio. Sabia que o gesto po- deria lhe custar o emprego, mas sentia-se na na
obrigação de junho fazer algo por aquela senhora. Em 17 de de 1984, domingo, Marlene
estava de folga do trabalho. Havia saído de casa para fazer compras e, ao retornar, encontrou um
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bilhete: “Ligar para José Maria no Hotel Palace”. O filho de criação de Izabel havia chegado a Bar- bacena e ido até o hospital procurar pela re- metente da carta. Descobriu que Marlene trabalhava no pavilhão Crispim, mas não a encontrou por lá. Ainda no ônibus que o levara até a cidade, ele obteve informações de como encontrar o bairro dela. Sem sucesso na procura, deixou o re- cado com um parente da funcionária. Quando soube da visita do rapaz, a funcionária sentiu-se feliz apesar do medo de sofrer sofrer retaliação. Ela tinha sido útil para alguém que não sofria de doença mental. Izabel havia sido internada com- pulsoriamente pelo marido. A presença de José Maria colocaria fim ao pesadelo da mãe. Marlene
telefonou para ele no hotel e o convidou para jantar em sua casa. Conversaram sobre o destino
de Izabel, tida como desaparecida pela sua família. Marlene acabou descobrindo que uma
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briga por herança foi um dos motivos por que en- caminharam Izabel para lá. Ainda de casa, a fun- cionária telefonou para o hospital e pediu para falar com a paciente, que ouviu a voz do filho pela primeira vez, após quase um ano longe de casa. Os dois choraram. O reencontro familiar aconteceu no dia seguinte e foi selado por um longo abraço. Na saída do hospital, a agora ex-paciente do Colônia
aproximou-se Marlene e a beijou: — Nuncade mais vou me esquecer de você. Obrigada por tudo o que fez por mim. As duas trocaram cartas por três anos. Marlene soube que a amiga estava morando com o filho e a nora no endereço de Montes Claros.
Conseguiu, em agosto de 1987, visitá-la uma vez, passando o dia com ela na casa do interior de Mi-
nas. Caminharam pela cidade de braços dados. Nessa época, a mãe de José Maria estava
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enfraquecida e começava a dar sinais de adoeciadoeci- mento. Pouco tempo depois, Izabel morreu em casa, vítima de câncer, ao lado do filho.
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Acima, Marlene Laureano com a Sra. Izabel Teixeira. Abaixo, Marlene Laureano hoje, quarenta anos depois de pisar no hospit- al pela primeira vez. Ela continua trabalhando lá. 446/455
Marlene seguiu desconstruindo regras, vendo humanidade onde a maioria só enxergava escória. Acolheu em vez de segregar. Incomodou por acreditar que a recuperação caminha lado a lado com cuidado. Em 2008, foi eleita Fun- cionária Lição de Amor entre os colegas que hoje integram a estrutura composta pelo Centro Hos- pitalar Psiquiátrico de Barbacena e o hospital hospital re- gional, ambos geridos pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). O prêmio é concedido pela instituição com base na votação realizada pelos colaboradores e internos. O re- conhecimento da comunidade tocou a mulher que fez da assistência aos pacientes a sua vida. Nunca se casou, e por presenciar o sofrimento das cri- anças da unidade, decidiu não ter filhos. Seu maior receio era dar à luz criança com doença
mental. Não queria que um filho seu tivesse que passar pelos mesmos preconceitos impostos aos
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meninos de Barbacena. Só então se deu conta de que tinha visto mais do que julgou ser capaz de suportar. Mas o título de mãe lhe foi dado por dezenas de pacientes que encontraram nela tratamento digno. Apesar de ter tentado fazer a difer- ença, ela partilha com outros funcionários o arre- pendimento por ter compactuado com os abusos. — A tristeza que sinto ao olhar para trás é não ter conseguido achar saída. Como eu não tinha formação superior, sempre soube que não seria ouvida, fiquei porque tinha esperança de que, um dia, as coisas mudariam. Hoje penso que cada um passa pelo que tem que passar. Acho que estava escrito. Esta é a primeira vez que con- segui contar esta história. Foi bom ter dividido com alguém. Consegui falar sem chorar.
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Dez anos. Essa é a expectativa de sobrevida dos 170 pacientes que seguem internados, como crônicos, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). É também a estimativa de tempo para que o ciclo dos porões da loucura se encerre. Com a futura transferência de 120 pa- cientes para os módulos residenciais, apenas ses- senta internos permanecerão no Departamento A. Em 2005, época em que o hospital regional foi implantado nos antigos pavilhões Afonso Pena e Arthur Bernardes, um projeto iniciado em 1992, a intenção era unir a psiquiatria e a clínica médica, garantindo a extinção do velho Colônia, o que ainda está em processo de consolidação. O resultado é que todo o complexo, formado pelo
regional e pelo Centro Psiquiátrico Hospitalar, emprega hoje cerca de mil funcionários para 300
leitos. Embora a Fundação Hospitalar de Minas Gerais, responsável pelas duas unidades, tenha a
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formação de novos profissionais como sua vo- cação, enxugar essa estrutura cara e inchada e promover a fusão dos dois hospitais está entre os desafios do Estado. Do total de vagas disponíveis hoje, 170 são destinadas aos doentes mentais cronificados pela instituição; trinta, ao atendi- mento de casos agudos da psiquiatria; e cem, a outras especialidades médicas. Outras vinte fazem parte do projeto de dependência química. química. Quando o Colônia for finalmente desativado com a saída de todos os pacientes asilares, os pré- dios do lendário manicômio poderão ganhar nova destinação em uma cidade carente de espaços públicos. Uma das ideias é a transformação da área em centro de convivência. É a chance de os
moradores que sempre deram as costas p para ara seu hospício encararem-no e o revisitarem, a partir da
implantação de projetos culturais e de inclusão. Mas o fim dos pacientes não será o último
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capítulo da história que apenas começa a ser rev- elada. Se o Colônia foi o que fez mais vítimas no país, cerca de 60 mil brasileiros entre 1930 e 1980, a tragédia que ele produziu está longe de ser superada. Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiqu iá tricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades. Considerada uma das maiores vistorias feitas no país, o trabalho alcançou dezesseis esta- dos e revelou que, de norte a sul do país, ainda prevalecem métodos que reproduzem a exclusão,
apesar dos avanços conquistados com a aprovação de leis em favor da humanização das
instituições de atenção à saúde mental e da con- solidação de instrumentos legais comprometidos
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com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos. Nessas unidades foram encontrados celas fortes, instrumentos de contenção e muitos, muitos ca- deados, além de registros de mortes por suicídio, afogamento, agressão ou a constatação de que, para muitos óbitos, simplesmente, não houve in- teresse em definir as causas. O alerta para o risco de reprodução “bruta e silenciosa do modelo manicomial” foi então dado pelos presidentes dos dois conselhos, à época, Marcos Vinícius de Oliveira Silva e José Edísio Simões Couto. De lá para cá, os discursos ganharam novo viés, como a necessidade de extinção dos leitos de baixa qualidade, com a garantia garantia de contratação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. E apesar dos equívocos e acertos na construção de um novo paradigma para a saúde pública, a
loucura ainda é usada como justificativa para a manutenção da violência e da medicalização da
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vida. É como se a existência pudesse ser reduzida à sua dimensão biológica e para todos os senti- mentos existisse um remédio capaz de aliviar sin- tomas e de transformar realidade em fuga.
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Compartilhar o sofrimento de Conceição Machado, Sueli Rezende, Silvio Savat, Sônia Maria da Costa, Luiz Pereira de Melo, Elza Maria do Carmo, Antônio Gomes da Silva e out- ros tantos brasileiros que resistiram ao nosso
holocausto é umacomo maneira manternos o passado pass ado vivo. Tragédias a do de Colônia colocam frente a frente com a intolerância social que con-
tinua a produzir massacres: Carandiru, Can- delária, Vigário Geral, Favela da Chatuba são apenas novos nomes para velhas formas de ex- termínio. Ontem foram os judeus e os loucos,
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hoje os indesejáveis são os pobres, os negros, os dependentes químicos, e, com eles, temos o re- torno das internações compulsórias temporárias. Será a reedição dos abusos sob a forma de política de saúde pública? O país está novamente di- vidido. Os parentes dos pacientes também. Pouco instrumentalizadas para lidar com as mazelas im- postas pelas drogas e pelo avanço do crack , as famílias continuam se sentido abandonadas pelo Poder Público, reproduzindo, muitas vezes involuntariamente, a exclusão que as atinge. O fato é que a história do Colônia é a nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil. Os campos de concentração vão além de Barba- cena. Estão de volta nos hospitais públicos lotados que continuam continuam a funcionar precariamente em
muitas outras cidades brasileiras. Multiplicam se nas prisões, nos centros de socioeducação para
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adolescentes em conflito com a lei, nas comunid- ades à mercê do tráfico. O descaso descaso diante da real- idade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos ol- hos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final.
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