September 3, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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FONTE.
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
L853c Lopes, José Reinaldo de Lima Curso de Filosofia do Direito – o direito como prática / José Reinaldo de Lima Lopes. – São Paulo: Atlas, 2021. Inclui ISBN 978-85-97-02625-2
bibliografia
1. Direito – Filosofia. I. Título. 20-66520
Camila Donis Hartmann – Bibliotecária – CRB-7/6472
e
índice
CDU: 340.12
AGRADECIMENTOS Os agradecimentos vão em primeiro lugar ao povo do estado de São Paulo, que financiou meus estudos em escolas públicas, desde o ensino médio (no Instituto Estadual de Educação Conde José Vicente de Azevedo), até os dois cursos de graduação que completei (direito e letras modernas), pós-graduação (mestrado e doutorado), todos na Universidade de São (USP), seguidos de aum estágio de pesquisa pós-doutoral na Universidade da Califórnia (SanPaulo Diego) com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), assim como, mais tarde, com bolsa de excelência acadêmica da própria USP para pesquisa junto à Universidade de Roma “La Sapienza”. Este livro é fruto desse investimento incessante que se fez em mim e que, espero mostrar, não foi totalmente em vão. Em tempos de bravatas altissonantes, vulgares e ignorantes contra o papel do Estado na manutenção da pesquisa no país, é bom apresentar alguma evidência do contrário e reconhecer publicamente os benefícios recebidos de quem paga impostos sobre o consumo, os mais indiretos e regressivos. Alguns colegas foram interlocutores importantes para o desenvolvimento e esclarecimento de algumas ideias ou ouviram versões preliminares de argumentos aqui desenvolvidos, entre eles principalmente Alejandro Alvarez, Alfredo Storck, Guilherme Boff, João Vergílio Cuter, José Giacomuzzi, Luis Fernando Zingano Barreto Lisboa. Dedicadosdea outras disciplinas, gostaria Barzotto, de lembrarMarco os nomes dose Wladimir amigos Mauricio García Villegas, Bogotá, Italo Birocchi, de Roma, e Karlfriedrich Herb, de Ratisbona, que, no âmbito respectivamente da sociologia, da história e da filosofia política, forneceram estímulo para minhas pesquisas e matéria para discussão. Agradeço particularmente a Luiz Felipe Roque, meu aluno e orientando, que leu os originais e fez a primeira revisão integral do texto, com observações que ajudaram a melhorá-lo muito, além de ser constante incentivador do trabalho. Compartilhou, portanto, um pouco do cansaço e dos aborrecimentos que o momento de redação impõe. Em forma de agradecimento, gostaria também de dedicar o trabalho aos alunos e alunas da Faculdade de Direito da USP, e à turma de 2010-2015 da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), cujo interesse e entusiasmo sempre me acompanharam nesses últimos anos. Muitos e muitas passaram pelas minhas aulas, alguns permaneceram como monitores, outros vieram ainda a seguir o mestrado e o doutorado comigo ou com outros, no direito ou na filosofia, na USP ou fora dela. Alguns se tornaram jovens amigos pessoais. Como sinal de sua presença, gostaria de lembrar os que, na qualidade de monitores, seguiram mais de perto as lições agora transformadas em livro: Almir Teubl Sanches, André Jorgetto de Almeida, Ariel Engel Pesso, Arthur Cristóvão Prado, Carlos Magno de Abreu Neiva, Carolina Martins Marinho, Da Danilo nilo Panzeri Carlotti, Felipe Augusto Gato Dutra, Gabriel Salles Maia, Guilherme Gudin, Gustavo Angelelli, João Carlos Pinter, João Felippe de Oliveira, João Henrique Dias, Lucas Martinez Faria, Luiz Felipe Roque, Maike Wile dos Santos, Mariana Barbieri, Marina S. Barreto, Natan G. Carvalho, Osny da Silva Filho, Pedro Camargos, Rafael Barros de Oliveira, Rafael Parisi Abdouch, Ravi Campos, Rubens Eduardo Glezer, Stephanie Pedreiro, Thales Coimbra, Thiago Acca, Tiago Megale, Vinicius Novo Soares de Araújo, Vinicius Vieira e Wilson Souto Maior Barroso.
SOBRE O AUTOR É professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde ensina filosofia do direito e história do pensamento jurídico nos cursos de graduação e pós-graduação. Foi professor fundador fu ndador da Es Escola cola de Direito ddaa FGV em São S ão Paulo (2003 (2003-2014) -2014) e professor pro fessor visitante em diversas universidades de estrangeiras, elas a Universidade da Califórnia em de SanBogotá Diego (EUA), a Universidade Munique entre (Alemanha), a Universidade Nacional (Colômbia), e as Universidades de Toulouse e Bordéus (França). É autor de O Direito na História (2000), História (2000), As As palavras e a lei – direito, direito, ordem e justiça no pensamento jurídico moderno moderno Direitos sociais – teoria teoria e prática (2006), prática (2006), Curso de história do direito (2006, direito (2006, com Rafael (2004), Direitos (2004), Conselho de Estado e direito no Brasil M. R. Queiroz e Thiago S. Acca), O Oráculo de Delfos – Conselho Império (2010), Supremo Tribunal de Justiça do Império Império Império (2010, com Andrea Slemian, Paulo Macedo Garcia Neto e a colaboração de André Javier Payar), Naturalismo jurídico no pensamento brasileiro brasileiro (2014) e História da justiça e do processo no Brasil do século XIX (2017), além de inúmeros artigos em periódicos no Brasil e no exterior. Venceu o Prêmio Jabuti de 2007 (na categoria de Melhor Livro Jurídico) e a Medalha do Mérito Científico da Academia Brasileira de Ciências (2010).
ABREVIAÇÕES E TRADUÇÕES Ao longo deste livro, foram utilizadas em referências e citações as abreviações abaixo para indicar as seguintes obras: EN = Ética teológica , a Nicômaco , Nicômaco Ética Nicomaqueia ==Suma , ou , de ARISTÓTELES ST teológica Suma de Nicomaqueia , teologia , de Tomás teologia , = , ou de AQUINO IF = Investigações filosóficas , de Ludwig WITTGENSTEIN = Investigações filosóficas , Usei diversas traduções das obras de Aristóteles: The complete works of Aristotle – the revised Oxford translation, editada por Jonathan B ARNES , em dois volumes (Princeton: Princeton University Press, 1995); as traduções contidas no volume Aristóteles volume Aristóteles , , da coleção Os pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973); Ethica Nicomachea V 1-15 – Tratado Tratado da Justiça, traduzida por Marco ZINGANO (São Paulo: Odysseu, 2017). Para os textos de PLATÃO , vali-me das traduções de Carlos Alberto NUNES , publicadas por Benedito NUNES pela Editora da Universidade Federal do Pará (UFPA, Belém, PA) a partir de 2001, 3ª edição. teológica foi preferencialmente citada na tradução publicada pelas Edições Loyola A Suma teológica foi (São Paulo, 2001) em nove volumes, coordenada por Carlos Josaphat Pinto de O LIVEIRA , edição bilíngue (2001-2006). Os textos do direito romano foram extraídos de Corpus Juris Civilis Academicum Parisense (ed. Parisense (ed. por G. M. Galisset. Paris: A. Cotelle, 1881). As traduções mais utilizadas foram as Primus . São Paulo: Unifeo/RT, 2002) e a de de Hélcio Madeira ( Digesto ( Digesto de Justiniano Liber Primus Justiniano . Manoel da Cunha Lopes e Vasconcellos ( Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano . São Paulo: YK Editora). Sempre que não houver indicação de tradutor ou da edição específica, as traduções são de minha responsabilidade. Deixei de traduzir nas notas de rodapé os textos em inglês, porque essa língua tornou-se uma espécie de língua franca na academia.
SUMÁRIO Introdução Introdução ilosofia, ciência e direito 1 FFilosofia, direito Introdução geral à filosofia do direito ciência Filosofia e ciência moderno O direito não é ciência no sentido estrito e moderno A filosofia também não é uma ciência ciência A filosofia esclarece e põe ordem no pensamento pensamento filosófica A discussão filosófica inteligibilidade Princípio de inteligibilidade Os diferentes objetos do pensamento: universais e particulares, necessários e contingentes contingentes Filosofia do direito direito A ciência moderna e a filosofia do direito direito limitação A concepção moderna de razão: a limitação
ruptura Concepção limitada de razão: momentos de ruptura Primeiro momento: o século XVII e três aspectos da mudança mudança Segundo momento: do iluminismo para o positivismo positivismo Ciência do direito direito iferentes teorias do direito Diferentes 2 D A metafísica do direito direito O legado positivista positivista O positivismo naturalista naturalista normativismo) O positivismo da lei (o normativismo) positivismo Tentativas de abandono do positivismo
A tradicional teoria das normas normas As questões colocadas colocadas normas – – uma uma teoria especulativa especulativa A teoria das normas Limites da teoria das normas normas sanção Nem toda norma é um mandamento seguido de sanção Não se cumprem as normas por causa caus a de um soberano em particular Conhecer as normas não consiste em falar das normas, mas em usá-las usá-las A dimensão prática do direito direito decisão A teoria da ação e da decisão Ação e ética do discurso (especialmente Karl-Otto A PEL ) ) Ação e hermenêutica (especialmente Paul R ICOEUR ICOEUR ) ) Ação, normas e a tradição analítica analítica
Compreender as regras pela perspectiva do agente (Herbert H ART ) ) 3 O direito como ação, prática e instituição A renovação geral da filosofia de interesse para o direito direito decisão Uma analogia produtiva: língua e discurso, ordenamento e decisão Das ciências da ação à filosofia da ação ação fato Ação e fato A ação não é um fato como outros outros Ação, finalidade e sentido sentido Ações, práticas, seguimento de regras regras prática O que é uma prática ações Práticas e ações Ações contingentes dentro de práticas permanentes permanentes Práticas e jogos jogos O que é um jogo? De H UIZINGA a WITTGENSTEIN WITTGENSTEIN e os jogos de linguagem linguagem direito Um conceito de jogo e prática para uso no direito
prática O direito como prática regulativas Práticas, regras constitutivas e regulativas Seguir regras e compreender sentidos (palavras, frases e discursos) discursos) aberta Direito: uma prática aberta Institutos, instituições e natureza institucional institucional funcionais Fatos brutos, fatos institucionais, conceitos funcionais empirismo Individualismo, realismo, empirismo Natureza institucional do direito direito 4 O uso prático da razão: compreender, interpretar e aplicar prática O objeto da razão prática
Pensar, agir, produzir Virtudes intelectuais: pensar também se aprende aprende discurso Pensar, articular, falar: razão, linguagem e discurso prática Os limites da razão prática Uma visão restrita da racionalidade racionalidade Uma alternativa? alternativa? A retórica de PERELMAN A diferença da retórica aristotélica aristotélica Retórica, lógica, tópica: diferentes objetos objetos retórica Falácias e retórica histórico O uso da razão prática no direito: excurso histórico A perspectiva pré-moderna pré-moderna
A perspectiva moderna: direito positivo e concepção restrita de razão razão romântica A hermenêutica romântica A questão contemporânea contemporânea nterpretação, hermenêutica e analítica 5 IInterpretação, Interpretação e aplicação do direito direito O que é interpretação: conhecer, reproduzir, aplicar, traduzir, parafrasear? parafrasear? Traduzir: do passado ao presente, do universal ao particular Tarefa hermenêutica: trazer o passado para o presente presente Tarefa hermenêutica: relacionar o universal e o particular direito A interpretação na história do direito Os medievais medievais Modernidade Modernidade Brasil A hermenêutica romântica e sua longevidade no Brasil A hermenêutica contemporânea contemporânea A virada hermenêutica (GADAMER ) ) O direito como discurso (Paul R ICOEUR ICOEUR ) )
A objetividade do discurso discurso O texto texto Compreensão precede interpretação (WITTGENSTEIN ) ) O ponto de vista do agente (H ART ) ) Compreender Círculo hermenêutico e formas de vida vida Ações inteligíveis e sentidos sentidos Interpretação ou compreensão? compreensão? objetividade A objetividade Os métodos revisitados: gramatical, lógico, sistemático, histórico e teleológico teleológico O desafio revisitado de SAVIGNY SAVIGNY revisitado O antissubjetivismo contemporâneo e a intencionalidade intencionalidade 6 A justiça é o sentido do direito fundamental A questão fundamental Resposta cética cética princípio de A justiça como como princípio de inteligibilidade do direito direito O conceito de justiça justiça igualdade A igualdade igualdade A teoria clássica da justiça como igualdade A virtude da justiça justiça injustiça A justiça como resposta à injustiça
Uma virtude para os outros, não para si si O justo e o conceito de justiça justiça justiça As formas da justiça geral A justiça geral fairness , a justiça do legislador e o bem político Rawls: Justice as fairness , John Rawls: Justice político particular – – comutativa comutativa e distributiva: trocas e partilhas partilhas A justiça particular distribuição Critérios de distribuição A justiça do juiz e a justiça do legislador juiz A justiça do juiz Caso singular e passado passado Submissão à lei e imparcialidade imparcialidade Equidade Equidade Entre a justiça do juiz e a do legislador: a justiça constitucional constitucional A justiça do legislador A justiça limita e determina os atos de legislação legislação legislativo Voluntarismo e gerencialismo legislativo justiça? Legislar: declarar ou instituir a justiça? sociais Estrutura das relações sociais campo Conceitos elementares do campo Visão prospectiva, generalidade das leis, consequências consequências moral A teoria dos bens e a teoria da justiça: direito, economia e filosofia moral direito A teoria dos bens no direito preço Bens, coisas apropriáveis e preço Classificação dos bens no direito civil civil juristas Bens comuns: tema tradicional para os juristas coletivos – – confronto confronto com a economia economia Bens comuns, públicos e coletivos produzimos Bens comuns que não produzimos predadores Bens comuns que produzimos: cooperação e predadores A racionalidade individual estratégica x cooperação cooperação Direitos individuais e bens comuns comuns rule of law ) law ) Justiça e Estado de direito ((rule institucionais Justiça formal: o direito cria igualdades institucionais substantiva A justiça material ou substantiva Bens públicos, coletivos, bens intrinsecamente comuns comuns Conclusão Conclusão justiça O percurso: do direito como prática à teoria da justiça Implicação Implicação
direito Implicações para o ensino do direito Referências Referências Índice de quadros Índice onomástico
INTRODUÇÃO Este livro é fruto de uma década de lições de filosofia do direito na Universidade de São Paulo (USP). Obedece, portanto, principalmente a um objetivo didático. Ao iniciar o curso, pretendia trazer para os alunos uma disciplina que não fosse apenas um desfile de nomes e autores em história ordem cronológica, como se fosse históriaoutra da filosofia do direito. Para uma verdadeira da filosofia do direito, seriauma necessária metodologia com os aportes recentes da história intelectual, incluindo as contribuições da história dos discursos e dos conceitos, e outra pesquisa; seria preciso levar mais a sério a história mesma e não confundi-la com um enfileiramento cronológico de autores e livros. Existem algumas boas, embora poucas, histórias do pensamento jurídico que bem podem servir a esse propósito. Os autores aqui, independentemente da história, comparecem como interlocutores e representantes de certas concepções. Não se trata, pois, de história. Eles pertencem à história, mas deles tomamos ideias e intuições valiosas. “Somos anões nos ombros de gigantes...” Não pensamos a partir do nada, a partir do ponto zero, mas a partir de certa altura a que nos elevaram nossos predecessores, os gigantes de que falava Bernardo de C HARTRES 1 . Queria também que os alunos fossem expostos aos próprios temas da filosofia do direito, ou questões relativas natureza operação doaosistema Não deveria ser umaseja, repetição dosteóricas cursos de teoria àgeral, nem edeà introdução estudo jurídico. do direito, muito menos de qualquer outra disciplina da fase “propedêutica” do curso. Para isso, escolhi então enfrentar as as três grandes questões propriamente filosóficas. Primeira: o que é, qual a natureza, ou, metafísica do provocativamente, qual a metafísica do direito? Segunda: que espécie de objetividade é possível no conhecimento jurídico e como ela é possível, se sua aplicação, uso e operação é sempre dependente de um agente? Terceira: que relação existe entre direito e justiça, ou, amplamente, entre direito e moral? Embora seja elaborado como um manual, reproduzindo o curso de filosofia do direito da graduação, este livro não deixa de ter sua própria teoria explicitada no título: o direito é uma prática social, e como tal deve ser compreendido. Identificar imediatamente o direito como uma prática implica diversas consequências relevantes. Em primeiro lugar, afeta o método de hermenêutico. Em hermenêutico. conhecimento dessacom realidade, não pode senão que Em segundo lugar, exige que se compreenda clarezaque o sentido dessaserprática, não pode ser senão a justiça . a justiça . Nesses termos, a teoria pressuposta no curso vai contra ideias muito populares, divulgadas e dominantes avant-garde do pensamento no Brasil, mesmo algumas mais recentes que se identificam como avant-garde jurídico. Parece-me que se equivocam os que negam as relações logicamente necessárias entre direito e justiça e, portanto, todos os que imaginam que podem dominar adequadamente o direito sem terem esclarecido o conceito e a teoria da justiça. Também se equivocam aqueles que tomam o método das ciências sociais em geral como o método próprio do direito e supõem poder compreendê-lo sem dominar seu ponto de vista interno, a doutrina jurídica. O curso tem, portanto, alguns adversários intelectuais polêmicos: certas formas de positivismo naturalista e o relativismo e ceticismo morais mais ou menos generalizados entre nós. Isso justifica o encadeamento dos capítulos: de uma introdução geral, que distingue filosofia e ciência – ciência – a a fim de que não esperemos de uma o que só pode nos ser dado pela outra,
passa-se à determinação do objeto da filosofia do direito propriamente dita, a rigor uma disciplina moderna. Em seguida, como o curso tem lá sua tese e sua teoria, pareceu necessário discutir filosoficamente a ação humana e a razão que lhe corresponde, a razão prática. O tema, cuja nomenclatura parece tão tradicional, ganhou proeminência ao longo do século XX, seja por sua especial retomada na filosofia política e moral (BERTI , 1997), seja pela nova relevância da filosofia da (inteligência mente, hojeartificial), em diálogo disciplinas tão ,diferentes quanto ciência computação ou a com neurociência (K ENNY 1993). Aqui já se aaponta paradao ENNY tema da objetividade: se cada ação é singular, como podemos falar de objetividade? Como podemos pensar que “fazemos sempre a mesma coisa”, ou que “fulano fez a mesma coisa que beltrano”, ou que “fulano fez hoje o mesmo que q ue fez fez ontem e o mesmo que fará amanhã”? amanhã”? Da concepção de racionalidade deriva um dos elementos centrais e definidores do curso: o conceito do direito como prática social, ou, para não ser pleonástico, prática simplesmente. De fato, da maneira como usada aqui, “prática” só pode ser social, visto não se confundir com hábitos pessoais, nem modos de fazer o que podemos fazer sozinhos. Segue-se uma reflexão sobre hermenêutica e aplicação do direito, tema que recebeu inúmeras e significativas contribuições teóricas nas últimas décadas, nem sempre bem incorporadas entre nós, como diz S TRECK (2007). O assunto é diretamente dependente da concepção de direito que se tem: as formas idealistas, dualistas e positivistas valem-se de distinções e termos progressivamente abandonados durante o século XX. Tanto a filosofia hermenêutica quanto a filosofia analítica postulam que o entendimento e a compreensão sentido : : para uma o sentido é o objeto típico da percepção racional (linguística) da dependem do sentido vida humana; para a outra, o elemento básico da enunciação – enunciação – e, e, portanto, da lógica. O que isso nos revela a respeito do direito? Nos dois casos, se o direito é concebido como prática – prática – campo de significações ou “jogo de linguagem” – , ele deve ter algum sentido para ser inteligível. O capítulo final explica que esse sentido é a justiça. Como o tema é hoje alheio aos juristas e às faculdades de direito, sofrendo sob uma “decisão liminar” de exílio intelectual que q ue lhe foi imposta no século XIX e vivendo no esquecimento e abandono como aqueles presos provisórios de nossas cadeias, era preciso reabilitá-lo, para que não se confundisse com a misericórdia, a caridade, ou outras virtudes, nem fosse, sob a ignorância dos soberbos, forçadamente esquecido, quando afirmam, do alto de rematada estultice, estu ltice, “as faculdades de direito não são faculdades de justiça”. justiça”. Apesar da extensão do volume, o curso é concentrado e apresenta a teoria e a visão dos assuntos unificadas. Pretende mostrar que esta disciplina – a filosofia do direito – não é dispensável se quisermos viver segundo as leis. Se não o quisermos, nada disso tem muito valor, pois nesse caso realmente não importam o certo, o errado, o pensamento rigoroso e consequente: República de basta a vontade do mais forte, como sugeria Trasímaco a Sócrates, na na República de P LATÃO – – de de “servos da lei”, convertemoconvertemo-nos em “servos de homens”, mesmo de homens que ostentem vaidosamente posições burocráticas ou cargos com nomes pomposos. Estaremos sujeitos ao arbítrio do mais forte. Não é de admirar que sejam os mais fortes os que mais cinicamente desprezam o rigor do pensamento e da consequência. Sofistas ou chicaneiros, interessa-lhes a situação de emaranhado intelectual e confusão em que podem torcer e distorcer fatos, verdades e sentidos.
Em função dessa concentração de temas e da articulação do curso em torno dos que parecem mais fundamentais, ficaram de fora algumas questões que bem poderiam ter seus capítulos especiais, ou que talvez fizessem parte de uma história contemporânea da filosofia do direito. Aparecem aqui e ali referidas indiretamente, mas não aprofundadas. É o que se dá com algumas indicações de temas como teoria crítica, teoria dos sistemas ou direito e economia: tais escolas têm suas respectivas “metafísicas” e por elas poderiam ser avaliadas e criticadas. Não obstante, trata-se de concepções da natureza do direito muito diferentes da que é apresentada aqui. Não pareceu adequado abrir atalhos sobre o assunto, pois corria-se o risco de fazer com autores e escolas contemporâneas o que havia me recusado a fazer com autores e escolas históricas: um desfile de ideias sem aprofundamento. São assuntos levantados frequentemente nas faculdades de direito hoje em dia, muito mais frequentemente do que a filosofia da ação, a discussão da natureza da razão prática, ou a teoria da justiça. Isso não obstante, a discussão nem sempre satisfaz de um ponto de vista propriamente filosófico, ou, mais especificamente, da filosofia do direito, ou, ainda mais restritamente, da filosofia do direito concebido como prática. Na economia, por exemplo, a racionalidade pode ser facilmente tomada como razão estratégica e restringir o campo de visão do jurista, muito embora seja claro que o diálogo entre as disciplinas seja importante importante 2 . Isso fica demonstrado no capítulo sobre a justiça, particularmente a respeito da teoria dos bens, em que se percebe a falta que faz aos juristas reelaborar suas categorias em função de conceitos como os de bens públicos ou coletivos desenvolvidos na economia, para ficar apenas em um exemplo. Um dos defeitos que afetam o ensino da disciplina nos atuais cursos de direito, segundo penso, está no caráter pseudo-histórico dos programas. Não é raro encontrarmos cursos cuja pretensão em um semestre ou às vezes em um ano é expor toda a filosofia ocidental, dos présocráticos à teoria crítica do século XX. Tais programas não podem deixar de sugerir o tratamento meramente superficial, ou de propor aos futuros bacharéis a anacrônica ideia da perenidade do direito e da filosofia do direito nos termos em que nós os compreendemos hoje. Cursos assim não podem deixar de reforçar certos evolucionismos históricos, em geral suprimindo as grandes rupturas dentro da tradição ocidental. Frequentemente, também, tais cursos dão saltos de séculos passando por alto, com afirmações simplistas e equivocadas, exatamente sobre o período de nascimento das escolas de direito, ou seja, os séculos XII a XV de nossa era. A filosofia do direito aparece como massa errática e inútil de erudição nos cursos de direito quando não é tratada adequadamente. Reflexo desse profundo equívoco, intelectual e pedagógico, tem sido a introdução da matéria como objeto de umas duas questões pontuais nos exames de admissão à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ou a cargos públicos. De que me serve saber o que disseram A RISTÓTELES ou K ANT ANT a esmo? Essa forma de tratar a filosofia leva a sua trivialização, exigindo memória mais do que entendimento. Este curso pretende ser diferente disso, mostrando aos alunos como o pensamento filosófico é a forma mais própria de pensar dos juristas e como o cerne ddessa essa forma de pensar está em ser rigoroso, rigoro so, analítico, an alítico, consequente. Para isso serve a filosofia do direito numa escola profissional. Serve também para desmascarar os mistificadores, os sofistas, que pululam entre nós, os prestidigitadores de termos e palavras. O curso está montado sobre a base de correntes filosóficas pouco exploradas entre nós, combinando perspectiva analítica e a hermenêutica, aportes trazidos XX vista pela linguística e apelas filosofias do discurso, e pondo em diálogo visõesno àséculo primeira
contrastantes. Quanto às grandes filosofias da segunda metade do século XX, este manual pretende abrir ab rir uma janela nas faculdades de direito. E o faz não listando nomes e etiquetas, etique tas, mas mostrando a discussão propriamente teórico-jurídica dos temas e – por meio de notas ou referências no curso do próprio texto – texto – quem quem contribuiu para ela. Nesses termos, comparecem as contribuições e os autores: na vertente analítica, fazem-se presentes A RISTÓTELES e Tomás de AQUINO , ao lado de WITTGENSTEIN , HART , WINCH e FINNIS; e na vertente hermenêutica, vêm ADAMER não apenascomo G APEL ,, kantiana,
ICOEUR mas também eR O’NEILL. , coadjuvados pordentro autoresdoprocedentes da tradição K ORSGAARD Trazendo para direito a discussão da ORSGAARD
filosofia da justiça, o curso tem a intenção de dialogar com as contribuições não apenas clássicas, mas também com alguns dos nomes mais relevantes na segunda metade do século XX. Muitos dos temas tratados neste curso já haviam sido objeto de aulas, textos, conferências, publicados sob outra forma em diferentes lugares, entre eles “Hermenêutica e completude do ordenamento” (LOPES , 1989); “Raciocínio jurídico e economia” (LOPES , 2004 b); “Entre a teoria da norma e a teoria da ação” (LOPES , 2009); “A justiça é o sentido do direito” (L OPES , 2013); “Filosofia analítica e hermenêutica: preliminares a uma teoria do direito como prática” (L OPES , interpretatio à interpretação: um percurso histórico e teórico” 2016); e “Da interpretatio teóri co” (LOPES , 2018). O livro ordena, sistematiza e refina as ideias, mas não as inova nem as abandona.
_______ 1 “Dicebat Bernardus Carnotensis nos esse quasi nanos gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remotiora videre, no utisque proprii visus acumine aut eminentia
corporis, sed quia in altum subvenhimur et extollimur magnitudine gigantea” [“Dizia Bernardo de C HARTRES que somos como anões nos ombros de gigantes, de modo
que podemos ver mais e mais longe não por causa da acuidade de nossa própria visão ou de nossa altura, mas porque somos erguidos e levantados por sua grandeza gigantesca”] (apud Paolo GROSSI , L’ordine
giuridico medievale [Roma/Bari: Laterza, 1995], p. 161).
2 Tratei do assunto em pelo menos dois textos: José Reinaldo de Lima L OPES , “Raciocínio jurídico e economia”,
Revista de Direito Público da Economia , v. 8 (out.-dez. 2004), p. 137-170; José Reinaldo de Lima LOPES , “Direito e economia: os caminhos do debate”, em Direito e economia : 30 anos de Brasil, ed. M. L. P. Lima (São Paulo: Saraiva, 2012, v. 1), p. 231-260.
Capítulo 1
FILOSOFIA, CIÊNCIA E DIREITO “Quia studium philosophiae non est ad hoc, quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas r erum.” erum.” [“O estudo da filosofia não visa saber o que os homens pensaram, mas como se apresenta a verdade das coisas.”] coisas.”] Mundo , (TOMÁS DE AQUINO , Comentários ao De Caelo et Mundo , Livro I, Cap. X, Lição XXII, 8)
“A filosofia chega sempre muito tarde. Como pensamento pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efetuou e completou o processo de sua formação. (...) Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta o voo o pássaro de Minerva.” Minerva.” direito ) (G. F. HEGEL , Princípios da filosofia do direito )
“Die Philosophie ist keine Lehre, sondern eine Tätigkeit.” [“A filosofia n ão é uma doutrina, mas uma atividade.”] atividade.”] logico-philosophicus, 4.112) 1 (L. WITTGENSTEIN , Tractatus logico-philosophicus, 4.112)
INTRODUÇÃO GERAL À FILOSOFIA DO DIREITO Filosofia e ciência A filosofia não é uma ciência, mas as ciências têm uma filosofia. O que significa isso? Significa que a filosofia ocupa-se de questões às quais não se respondem da mesma maneira que se responde às perguntas das ciências particulares. Ao longo do livro, vou usar a palavra “ciência” delas em dois sentidos.ciências Primeir exatas), o, num sentido o, que ditas incluiformais as ciências modernas da natureza (algumas chamadas as ciências (como a matemática) e as chamadas ciências sociais. Este é o sentido estrito e moderno. Num segundo sentido, falo de ciência como qualquer saber organizado, metódico (conceitual e procedimentalmente definido), ou “gramaticado”. É ciência no sentido amplo, e aqui pode ser incluída a ciência do direito direito 2 . HEMPEL , por exemplo, filósofo da ciência do século XX, divide as ciências em empíricas e não empíricas (HEMPEL , 1966). Para ele, e para muitos, as empíricas são ou naturais (biologia, química, física) ou sociais (antropologia, economia, ciência política, ciências sociais). As ciências não empíricas seriam a lógica e a matemática. As afirmações das ciências naturais, diz ele, só podem ser aceitas se forem apoiadas por evidências empíricas, obtidas pela experimentação, observação sistemática, entrevistas ou pesquisas (surveys ( surveys ), ), testes psicológicos ou clínicos, exame de vestígios arqueológicos e assim por diante (H EMPEL , 1966, p. 1). É duvidoso que a definição H EMPEL se eaplique completamente às ciências sociais, sobretudo levando em conta o caráterde interpretativo não preditivo de tais disciplinas, como sugerido tanto
por WINCH (2008) quanto por MAC I NTYRE (1984) 3 . Mas pode bem ser que seja adequada às ciências naturais. Quadro 1
Divisão das ciências segundo H EMPEL Ciências empíricas Ciências naturais
Ciências não empíricas Lógica, matemática
Ciências sociais
O debate filosófico em torno da natureza das ciências, de métodos e de sua diferença com pseudociências continua importante, na medida em que distinguir ciências de não relação às pseudociências ciências ainda interessa a vários campos intelectuais intelectuais 4 . Sabemos que na universidade contemporânea existem muitas áreas cujo modelo de conhecimento não equivale ao das ciências no sentido estrito apontado por H EMPEL , como se dá nas assim chamadas humanidades. Entre as características atribuídas à ciência, no sentido estrito e moderno do termo, estão: a) A existência de um programa articulado de pesquisa que leva à descoberta de fatos antes desconhecidos , ou fatos que antes eram considerados contrários aos resultados esperados (L
AKATOS , 1998).
b) O direcionamento de sua atenção para o mundo empírico para ali procurar estabelecer leis , ou seja, regularidades naturais e sem exceção, pois quando a exceção aparece, a lei precisa ser modificada.
c) A explicação e previsão de eventos futuros com o uso dessas leis, mas não a previsão geral e trivial, senão a previsão precisa. Uma previsão trivial seria, por exemplo, de que os preços de certo produto podem subir. Uma previsão científica seria que tal preço subirá em tal valor e em tal data e em tal lugar, como fazem os que preveem a passagem de um cometa. E test es (R d) A possibilidade de confirmar ou refutar a explicação por testes USE , 1998).
amplo , não se reduzem, porém, a essas ciências empíricas, que As ciências, no sentido amplo procedem com método próprio e fazem afirmações sobre leis necessárias entre os elementos existentes na natureza, nem às ciências formais como a matemática e a lógica. Temos então um sentido amplo e geral de ciência que bem poderia ser o de saber ou disciplina disciplina , e um sentido estrito, limitado às ciências naturais ou formais. No sentido amplo, ciências são campos do saber , cada qual com sua própria “gramática”, isto é, com suas regras de formação de discursos sensatos. E cada qual com objetos muito distintos. Em outras palavras, nas “ciências” (ou amplo também existem regras a seguir. A ciência nestes termos indica “saberes”) em sentido amplo uma atividade regrada de discussão ou discurso. Tomemos o exemplo de disciplina regrada, mas não científica no sentido estrito: a crítica literária. Não se trata de simples manifestação pessoal de gosto: trata-se de análise regrada e controlada de obras literárias. Existe, portanto, um padrão ou critério a ser aprendido, desenvolvido e transmitido. Isto se faz hoje em escolas dentro da universidade. A indagação ou investigação não procede livremente, não se trata de uma livre associação de ideias nem de intuições. Assim, tanto na matemática, uma ciência formal, quanto na crítica literária, uma disciplina não científica no sentido estrito, existem padrões de
pensamento aceitos para ssee “entrar na convers conversa” a” – isto isto é, num campo de entendimento e diálogo – ou ou para nela prosseguir. Em cada uma existem também os conceitos fundamentais, os pontos de partida. Assim, o conceito de força ou de energia na física, e o conceito de obrigação no direito. Cada campo, saber ou ciência se organiza a partir de conceitos, princípios, pontos de partida que se devem saber e que se pressupõem, pres supõem, e formas de d e encadeamento encadeamen to ou sintaxes de d e seus argumentos. A própria definição ciência,não contudo, não é científica: não é uma conclusão que os cientistas tiram usando seudemétodo, é o resultado de experimentos, de verificação ou do método hipotético-dedutivo. Fosse assim, cada ciência em particular teria uma definição sua. Não é isso que acontece. São filósofos da ciência os que, tomando por base a ciência que se faz, exploram a definição e esclarecem o conceito de ciência mesma. São cientistas cientistas mesmos que refletem sobre o que fazem e oferecem explicações filosóficas de sua própria prática. Também acontece de alguns cientistas fazerem tal revolução nos métodos, nas pesquisas e na concepção de um campo do saber, que seu trabalho se torna o ponto de partida de outros trabalhos. Nesses casos, eles passam a ser os definidores da ciência em questão. Seus trabalhos tornam-se filosóficos, pois redefinem e reconceituam não alguns fatos ou fenômenos, mas o campo inteiro. A novidade de seu trabalho passa a ser propriamente filosófica. Exemplo disso foram Galileu GALILEI e Charles DARWIN . Galileu matematizou as relações dos corpos,apenas. de modo que suas descriçõesa dos fenômenos poderiam ser feitas emespécies termos sensoriais DARWIN transformou história natural não de seu tempo mais ao propor que as evoluíam, de modo que o trabalho do cientista não poderia mais ser apenas o de classificar os seres vivos, mas também o de explicar como as espécies mudavam naturalmente (seleção natural, dirá ele). Eles fizeram mais do que dar sequência ao que faziam outros antes deles: eles reformularam nossa maneira de pensar sobre seus respectivos campos (a astronomia, a biologia). E assim fazendo, apresentaram uma concepção diferente do que é o mundo. Ora, uma concepção geral do mundo dá um fundamento propriamente filosófico à maneira de fazer ciência, ou de desenvolver conhecimento num certo setor. Trata-se da inovação teórica a que se refere Thomas K UHN científicas 5 . UHN ao falar das revoluções científicas
O DIREITO NÃO É CIÊNCIA NO SENTIDO ESTRITO E MODERNO É óbvio, portanto, que no sentido estrito o direito (e muitas outras disciplinas sociais, inclusive a economia) não é uma ciência ciência 6 . É bastante compreensível que HEMPEL , citado acima, não o inclua entre as ciências (nem mesmo as sociais) propriamente ditas, pois o direito não visa prever eventos futuros, nem refutar por meio de testes uma explicação ou justificação de um agente (um contratante, um réu, um juiz), nem pretende ou pode explicar o mundo empírico por meio de leis sem exceção. Nada disso se faz com o instrumental teórico e conceitual do direito. O “direito” – enquanto enquanto objeto de estudo entendido como ordenamento ordenamento , , sistema sistema , , conjunto de normas normas , ou enquanto disciplina disciplina , ciência ciência , campo do saber – não tem a pretensão de descrever fenômenos, nem prever ocorrências futuras. Uma norma jurídica ou uma doutrina não prevê ação alguma. Nem uma nem outra são verificáveis, ou testáveis no sentido usado nas sensu . Com o direito pretendemos qualificar ações, não prevê-las. O direito e os ciências stricto sensu . juristas não se desinteressam pelas explicações nem pelas previsões, mas seu aparato conceitual e a “gramática” de seu saber não lhes permitem isso. Quando alguém se dirige a um jurista
pedindo alguma ideia de como os tribunais podem considerar certo caso, ele não consulta uma tabela estatística de probabilidades. Consulta, sim, o direito vigente, a lei (na maioria dos casos do direito moderno), a boa doutrina e a prática reiterada dos tribunais. Sua resposta resulta de uma interpretação do direito vigente (lei, doutrina, jurisprudência) e das circunstâncias específicas do caso. De certo modo, todos eles são “dados” que ele recolhe porque não são produzidos por ele pessoalmente. Mas ele não prevê uma decisão decisão,, nem prevê que q ue seu cliente fará far á desefazer umaocontrato negócio. Sua(aresposta será maispela ou menos assim: “se o juize ou odeixará tribunal ativer que é oou direito vigente lei, interpretada jur isprudência jur isprudência ‘mansa pacífica’ e pela ‘boa doutrina’), decidirá em tal ou qual sentido”. “Se você quiser realizar um negócio válido, deverá fazê-lo fazê-lo da seguinte maneira.” Pode ser que as circunstâncias do caso permitam que um juiz decida diferentemente, pois po is a lei refere-se a tipos, não a casos concretos. E no caso concreto pode ser que se descubram elementos que permitem uma decisão diferente. Também as partes podem introduzir cláusulas novas no contrato de modo que se alterem as condições dele. O direito como objeto, o direito objetivo de objetivo de que se fala, tem naturalmente certo caráter de “dado”. É, em primeiro lugar, como disse, a lei. Mas a lei nunca está sozinha. Para que ela entre na prática, precisa da doutrina, a qual equivale a um primeiro nível de abstração, em cuja esfera encontramos os termos operacionais dos muitos ramos do direito: os contratos, os negócios, os bens, as pessoas, e assimdeporesforço diante. filosófico, Trata-se de porque conceitos, de modo O queestudo a doutrina já exigepara ou pressupõe um mínimo conceitual. do jurista responder a um caso concreto, como juiz ou advogado, convoca esse direito objetivo e junto com ele o aparato conceitual da doutrina. Mas qualquer resposta se subordina às circunstâncias particulares do caso, as quais necessariamente tornam a resposta e o direito objetivo invocado paribus . A ciência, ou saber, que conhece esse conjunto de sujeitos a uma cláusula coeteris paribus objetivo , não o trata como um objeto a descrever: a descrição que se pretende é dados, o direito objetivo , para orientar uma ação. Nesses termos, o conhecimento do objeto difere muito da simples observação das ciências naturais. Como veremos mais adiante, podemos observar a natureza “de fora”, mas não é possível observar o direito “de fora” da mesma maneira. Quadro 2
“derrotabilidade” da lei. A expressão Derrotabilidade: exceções casousada concreto Hoje, ouvee foi por .Herbert Hartsenum artigo de 1948, “The ascriptionvem of do inglês, defeasibility defeasibility , do responsibility and rights”. Significa que circunstâ ncias especiais podem impedir a aplicação da norma a um caso que à primeira vista ( prima prima facie facie ) ) se enquadraria na sua previsão. A norma ou o conceito (contrato válido válido , por exemplo) deixam de ser aplicados, são “derrotados” pelas circunstâncias. Também se usa o termo em lógica para indicar raciocínios convincentes e aceitáveis, mas não dedutivamente válidos (K OONS OONS , 2017). HART escreveu seu artigo com a intenção de mostrar que a linguagem não deve deve ser exclusivamente descritiva, m mas as o ponto que nos interessa é sua afirmação de que a expressão “exceto se...” é um componente essencial do juízo de aplicação da lei. O problema do juízo jurídico de aplicação não está apenas em que os conceitos (“contrato”, “ocupação”) sejam vagos, mas principalmente em que as no rmas são aplicadas sempre com a cláusula “exceto se...” (H ART , 1948-
1949, p. 174). Ela equivale ao et caetera quando caetera quando damos exemplos. Deve-se, contudo, notar que o tema é
conhecido dos juristas há muitos séculos. Encontra-se já em A RISTÓTELES , quando diz que os legisladores nunca podem prever todos os casos (v. Arte (v. Arte retórica , retórica , Livro I, 13, 1374a, 25-32, 35, 1374b, 1-5): “É impossível introduzir numa discussão as próprias coisas discutidas: em lugar delas usamos os seus nomes como símbolos e, por conseguinte, supomos que as consequências que decorrem dos nomes também decorram das próprias coisas, assim como aqueles que fazem cálculos supõem o mesmo em relação às pedrinhas que usam esse fim. doisdas casos (nomesenquanto e coisas) as nãocoisas são semelhantes, pois os nomes são finitos, comopara também o é aMas somaostotal fórmulas, são infinitas em número. É inevitável, portanto, que a mesma fórmula e um nome só tenham diferentes significados” (ARISTÓTELES , Dos argumentos sofísticos sofísticos , trad. L. Vallandro e G. Bornheim [São Paulo: Abril Cultural, 1973], p. 161). O jurista romano J ULIANO disse: “Neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus, qui quandoque inciderint, comprehendantur; sed sufficit [et] ea quae plerumque accidunt contineri” [“Nem as leis e nem os senátus -consultos podem ser concebidos de modo a compreender todos os casos possíveis; basta que contenham o que possa acontecer mais frequentemente” (D 1, 3, 10, conforme tradução de V ASCONCELLOS , 2017)]. Em resumo, não se pode redigir leis senão referindo-se genericamente ao que acontece na maioria das vezes, não a casos que ocorrem vez ou outra: assim, por vezes pode-se constatar que a regra geral não é aplicável, é afastada ou “derrotada”. Indicar casos ou tipos na lei é s emelhante a dar exemplos: quem entendeu o exemplo estende-o aos novos casos.
Quem quiser começar em qualquer campo precisa dominar seus conceitos elementares. O fundamentais , como os de obrigação, validade, fontes de direito também tem seus conceitos fundamentais direito, por exemplo, e suas formas suas formas de encadear e argumentar , , nas quais a hierarquia das fontes e sua autoridade têm um papel essencial. Juridicamente, não posso ignorar que certas “fontes” podem ser invocadas e outras não, que algumas têm autoridade e outras não, e que entre as muitas fontes algumas precedem as outras numa hierarquia de leis (constituição, lei complementar, lei ordinária). Admite-se em direito o uso da analogia em lugar do pensamento exclusivamente dedutivo, em alguns casos pode-se invocar costumes, em outros o sentido uniforme das decisões dos tribunais (jurisprudência), e assim por diante. É nesse sentido muito amplo que o 7 direito faz parte das ciências, ou seja, do campo dos saberes organizados ou gramaticados . Mas certamente não do campo das ciências no sentido estrito, ou moderno. gramaticados Alguém poderia objetar que hoje dispomos já de dados acumulados ou acumuláveis sobre as decisões anteriores de juízes e tribunais, ou mesmo do que fizeram ou fazem regularmente certos sujeitos, inclusive os membros do Congresso Nacional. Disso querem concl concluir uir que a função da ciência do direito seria prover análises sobre tais dados, proferindo juízos probabilísticos sobre o comportamento futuro de certos agentes no meio jurídico. Devemos notar que a coleta de tais dados, seu processamento e sua interpretação estatística e probabilística não são exatamente jurídicos. São uma forma possível de conhecimento sobre comportamentos, mas não uma qualificação, um juízo sobre a correção do comportamento. Naturalmente, na coleta e na interpretação dos dados, o jurista tem e terá um papel importante, pois ele detém os princípios do campo dentro do qual os sujeitos expressam decisões e agem. Ele, e não um engenheiro de sentido entre os diversos elementos sistemas ou um programador, é quem conhece a relação de sentido entre