January 3, 2017 | Author: Camila Saraiva | Category: N/A
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CDU 341.9
A Deus, Criador de Todos os Mundos; A Jesus Cristo, o Divino Mestre; Pela vida, pela saúde, pelas inspirações. À Minha Família, Aos Meus Alunos, Aos Meus Amigos, Por tudo o mais. O autor
Ao atingir sua décima edição, o Curso de Direito Internacional Privado busca complementar e aprimorar as sucessivas revisões e atualizações das edições anteriores, sempre com o intuito de torná-lo cada vez mais apropriado e completo para o estudioso do Direito. Procedeu-se a uma releitura atenta e abrangente de todos os capítulos, atualizando-os de acordo com a legislação vigente e as doutrinas clássica e contemporânea, bem como procurou-se sanar eventuais lacunas sobre a matéria. Em alguns capítulos, como os que abordam a nacionalidade, o direito de família, a adoção internacional, a concorrência internacional e o Mercosul, o aporte oferecido nesta edição foi mais expressivo, devido a aspectos diversos e ao dinamismo vivenciado, ultimamente, por esses temas no que tange ao Direito Internacional Privado. Procuramos elaborar um manual voltado especialmente para o estudante universitário, com uma linguagem acessível e objetiva, tornando a obra mais dinâmica. Em alguns capítulos, elaboramos tabelas para sintetizar determinados assuntos, com vistas a facilitar a aprendizagem do aluno, atentos, ademais, aos principais temas cobrados em concursos públicos, sempre concorridos, nos quais o Direito Internacional Privado tem sido uma matéria cada vez mais presente. Os resumos e as questões propostas, no final de cada capítulo, permitem ao leitor revisar brevemente e avaliar seus conhecimentos sobre o que aprendeu. Buscando novas ementas sobre conflitos que envolvem leis interespaciais, houve não apenas substituição de casos apresentados na edição anterior, como o aporte de jurisprudência em mais alguns capítulos, de forma a permitir que o aluno e o jurista conheçam o posicionamento mais atual dos Tribunais do País. Exemplos clássicos da doutrina nacional e estrangeira também foram lembrados e explicados pertinentemente no decorrer dos capítulos, visualizando-se a aplicação das normas do DIPr em diversos países. No acervo das normas brasileiras pertinentes ao Direito Internacional Privado, em anexo no final da obra, a par das atualizações legislativas, incluímos outros dispositivos, como artigos e parágrafos da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Registramos, a exemplo de edições anteriores, a valiosa participação, com pertinentes sugestões e comentários sempre enriquecedores e oportunos, dos professores Augusto Jaeger Junior, José Russo e Silvio Battello, que tanto contribuíram para o aprimoramento desta obra. Acresçam-se, nesta edição, pertinentes subsídios dos professores doutores Guilherme Camargo Massaú, Liliana Locatelli e Mara Darcanchy. O auxílio da Especialista em Direito e oficial de chancelaria Elisa Cerioli Del’Olmo Kämpf também se constituiu em aporte inestimável, possibilitando, com sua percuciente leitura e oportunas críticas em cada um dos capítulos, alcançar o objetivo principal da obra – torná-la um instrumento acessível e objetivo, de maneira a propiciar um aprendizado mais fácil dos temas em estudo. A sua enriquecedora experiência laboral no Ministério das Relações Exteriores contribuiu para selecionar casos envolvendo os elementos de conexão do DIPr. Reiteramos a nossa permanente disposição de mantermos e aperfeiçoarmos o Curso de Direito Internacional Privado como uma fonte válida e eficaz no aprendizado de nossa matéria, permitindo ao estudioso um adequado conhecimento e domínio desse ramo, a cada dia mais presente, no universo das disciplinas jurídicas.
Janeiro de 2014
É com a disposição de ser útil aos estudiosos de Direito de todo o Brasil – professores, magistrados, procuradores, advogados e candidatos a concursos públicos na área jurídica –, que apresentamos este Curso de Direito Internacional Privado. Lançada em 1999, como Direito Internacional Privado: Abordagens Fundamentais, Legislação, Jurisprudência, a obra mereceu acolhida, com tiragens significativas. Embora sempre atualizada, sentimos que chegara o momento de uma releitura mais abrangente, demorada e atenta e de inserção de novos capítulos, abordando segmentos do DIPr, não contemplados especificamente. Colocamos nessa tarefa todo o nosso esforço e experiência acumulada. Admitido para estágio pósdoutoral no Curso de Pós-Graduação em Direito (CPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação do Professor Dr. Luiz Otávio Pimentel, centramos essa instigante fase de nossa vida acadêmica na elaboração de uma obra que, a par de se constituir em preito de gratidão aos que – professores e alunos – a haviam conduzido a aceitação tão ampla, trouxesse contribuição maior no campo do DIPr. A eleição dos temas para reflexão tem origem acadêmica diversa. Provém de troca de experiências com expoentes da disciplina e de áreas correlatas, da releitura de clássicos nacionais e estrangeiros e das aulas ministradas em cursos de graduação e pós-graduação, de modo especial nas Universidades Federais de Santa Catarina (UFSC), do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Amazonas (UFAM) e de Uberlândia, MG (UFU), bem como na instituição em que trabalhamos desde 1996, a Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), campus de Santo Ângelo, RS, e da Escola Superior de Direito de Mato Grosso (ESUD), de Cuiabá, MT. Nossa visita à Polônia, durante o estágio pós-doutoral, em maio de 2007, proferindo palestras na Universidade de Varsóvia, na Escola Superior de Economia de Varsóvia e na Universidade Marie Curie, de Lublin, com o aporte trazido por essa experiência e troca de conhecimentos transnacional, conscientizou-nos da missão. Questões levantadas pelos alunos, em sua ânsia de resposta imediata e de ampliação de saberes, nesses encontros, trouxe motivação especial. Encetado e bem elaborado, esse trabalho teve a gratificação maior do conhecimento de novos vieses e peculiaridades do Direito Internacional Privado. Ao optarmos por um objeto abrangente da disciplina, incluindo conflito de leis interespacial, nacionalidade, condição jurídica do estrangeiro, direitos adquiridos, conflito de jurisdições, competência internacional e reconhecimento de sentenças estrangeiras, surgiu a necessidade de abordar cada um deles. Reside aí a fonte dos capítulos adicionados, resultando agora em número total de vinte e cinco. A nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro, as pessoas e a adoção internacional passam a constituir capítulos próprios. O consumidor, a concorrência, a propriedade intelectual, as relações jurídicas no trabalho e a competência, todos analisados sob o viés do Direito Internacional Privado, enriquecem a obra e permitem ao leitor economia de meios e buscas. Por óbvio, a consulta a outros autores é necessária e recomendável, pois o Curso de Direito Internacional Privado, como toda obra dessa natureza, não pode ter a pretensão de esgotar os temas abordados. Mantiveram-se, no final dos capítulos, os resumos e as questões propostas, estas agora voltadas para respostas de formulação própria, que permitam ao leitor explicitar o que aprendeu, refletir sobre o aprendido e dominar o conteúdo estudado. O destaque de termos, expressões ou conceitos agora está em itálico, por assim entendermos mais adequado.
Continuam presentes legislação e jurisprudência. A primeira permeia toda a obra, com acervo mais trabalhado no capítulo XI, optando-se apenas por não inserir, como anexo, o Estatuto do Estrangeiro (facilmente acessível no site http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6815.htm) e o Código Bustamante (site ccji.pgr.mpf.gov.br.ccji/legislacao). Houve, assim, substancial espaço para os novos capítulos e o conteúdo ampliado dos demais. Quanto à jurisprudência, referem-se decisões das cortes nacionais embasando e exemplificando conteúdos ao longo da obra, entendendose, contudo, desnecessário apresentar um rol mais amplo de ementas, hoje postas à disposição de todos nos endereços eletrônicos dos respectivos tribunais. Um trabalho como este só é possível pela convergência de fatores e conjuntura, o que implica gratidão a colegas e amigos, mestres e alunos. Impõe-se, nessa tessitura, referir o aporte trazido pelos professores Cláudia Lima Marques, Luiz Otávio Pimentel, Augusto Jaeger Junior, José Russo, Adriane Cláudia Melo Lorentz, Sílvio Javier Battello, Amador Paes de Almeida, Astrid Heringer, Diego Pereira Machado, Alessandro Freitas de Faria e Marília Zanchet. Uma referência especial cabe à professora Salete Oro Boff, colega de estágio pós-doutoral na UFSC, com contribuições oportunas. A participação dos mestres Jorge Mário Fensterseifer – ao longo da história da obra – e Artur Hamerski trouxe méritos para a linguagem e a correção do vernáculo. Membros do nosso Grupo de Pesquisas CNPq – Tutela dos Direitos e sua Efetividade, como Beatrice Guimarães Nóbrega, Fernanda Savian Rodrigues, Geferson Deutner da Silva, Vinicius Batista Morais, Paulo Grzeca, Patrick Fachim e Pablo Miguel Mucha, foram profundamente valiosos. Por fim, refiro Elisa Cerioli Del´Olmo, também do Grupo de Pesquisas, filha e fonte de todas as inspirações na vida, na academia e nos sonhos. Sua vivência e estudos nos Estados Unidos e na Alemanha, seu envolvimento no Direito Ambiental e áreas jurídicas voltadas ao ser humano, não obstante sua juventude, trouxeram à obra contribuições inestimáveis, fruto de seu juízo crítico apurado e honestidade intelectual, direcionados a nos manter ativos, percucientes, insaciáveis na busca do saber e saudáveis em uma existência já longa. Nosso objetivo maior é que o Curso de Direito Internacional Privado continue a merecer acolhida e, mais do que isso, a cumprir sua missão de tornar o estudo da matéria mais acessível, agradável e eficaz e a ocupar o espaço que esse ramo merece no âmbito geral das disciplinas jurídicas.
Outono de 2009 O autor
O livro sobre o direito internacional privado do Professor Doutor Florisbal de Souza Del’Olmo chega a sua décima edição, sempre pela Editora Forense, do Rio de Janeiro, e a exemplo do que se viu ao longo dos anos, também esta edição contém atualizações importantes para o operador e para o estudante dessa matéria. O autor é um ser humano vivido e um experiente jurista. Eu já contei esta história em outro escrito, mas como me orgulho muito dessa amizade, eu me permito repeti-la neste prefácio. Conheci o professor Del’Olmo num encontro proposital na escadaria do prédio da Justiça do Trabalho, então sediada na Rua 3 de Outubro, em Santo Ângelo, cidade em que morávamos, no Rio Grande do Sul. Na época, no começo do ano de 1997, ele, após exitosa carreira profissional em outra área, desempenhava funções naquele órgão, e eu era um especializando em Direito, e nós dois pretendentes a vagas de Mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina. Mesmo ainda sem uma vaga, de forma pretensiosa, pois, pus-me à procura de futuros colegas para dividir as despesas das viagens que passaríamos a fazer após a eventual aprovação para o curso. Informado sobre outros conterrâneos inscritos no processo seletivo, o primeiro listado que eu descobri e a quem eu acorri imediatamente foi o professor Florisbal Del’Olmo. Desde aquele momento, viajamos, semanalmente, durante um ano, para frequentar as aulas do Mestrado, quando, então, ocorreram trocas de informações sobre a vida e a experiência jurídica que até hoje me são proveitosas. Ele também me acolheu por muitas vezes em sua casa, para os estudos em grupo, durante o Mestrado na UFSC. A amizade que ali se iniciou me deu segurança para passos mais arrojados na vida acadêmica. É oportuno mais uma vez reconhecer que foi através de um convite seu, que me tornei professor universitário. Em um determinado momento, em maio de 1998, o professor Del’Olmo necessitou afastarse por curto período da atividade docente diária, e me convidou para substituí-lo como professor da disciplina de direito internacional privado, que foi lecionada na nossa Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, em Santo Ângelo. Veja-se que a nossa proximidade com o direito internacional privado vem já daquela época. Certo é que foi pelo convite do professor Del’Olmo, tendo sido conduzido pelas suas mãos até a turma, que eu dei as minhas primeiras aulas em uma universidade. É pelos motivos acima confessados, não exclusivamente, que eu aceito com grande prazer o convite para apresentar mais uma de suas consagradas obras, que chega a sua décima edição. Aquele afastamento antes referido do professor Del’Olmo das aulas não representou, de forma alguma, um descanso. Pois não é que já no começo do ano de 1999 surgia, para o mercado nacional, a primeira edição desta obra! Naquela época, ela se chamou Direito Internacional Privado: Abordagens Fundamentais, Legislação e Jurisprudência e veio a suprir uma lacuna entre os operadores do Direito, uma vez que continha, ademais dos temas clássicos da matéria, um capítulo sobre a União Europeia e outro sobre o Mercosul. Eu acompanhei, com muita proximidade, uma vez que o substituía nas aulas na universidade, o trabalho e o esforço do professor Del’Olmo na construção daquela primeira versão. Até contribuí com um capítulo, qual seja, aquele que se dedicou ao Mercosul. De forma que hoje, assim como honrado, também me sinto bem à vontade com esse convite para prefaciar esta décima edição que temos em nossas mãos. Desde o lançamento da primeira edição, em 1999, esse então primeiro livro do professor Del’Olmo alcançou grandes mestres da matéria, de renome internacional. Passados pouco mais de dois meses do
lançamento, em 20 de julho de 1999, o autor recebeu uma carta em papel timbrado da já centenária Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Assunção. Ela vinha assinada pelo Decano da Faculdade, o Professor Doutor Ramón Silva Alonso. Eu guardei uma cópia dessa carta, porque foi expressiva também para mim, um professor em início de carreira, mestrando ainda na época. Agora com o convite para prefaciar esta décima edição, eu a recuperei em meus arquivos pessoais. Naquela época, assim escreveu o professor Ramón Silva Alonso ao seu colega, professor Del’Olmo: “Quisiera expresarle al mismo tiempo cuánto agradezco el obsequio de su valiosa obra ‘Derecho Internacional Privado’, en la que en breve volumen, reúne Ud. ló que yo llamaría lo más valioso de nuestra materia. (…) me persuadí de que estamos en presencia de un trabajo excepcional. (…) Coincido con Ud. en que Teixeira de Freitas es sin duda una de las mayores glorias del derecho de su tiempo en América. También creo que Freitas no ha sido aún suficientemente estudiado ni valorado aún en el propio Brasil, considerando el tiempo en que le tocó vivir. Salvo la Argentina y quizás el Paraguay, no es suficientemente conocido en el Continente, teniendo en cuenta la grandeza de su figura”. A carta seguia com referências à amizade comum que nutriam com outro professor paraguaio brilhante, o Dr. Roberto Ruiz Díaz Labrano, agora em 2013 festejado com um livro em sua homenagem pela ASADIP – Associação Americana de Direito Internacional Privado, lançado durante o Congresso Anual dessa entidade, realizado em novembro passado, em Assunção.1 Veja-se que a carta datava de 1999, e que o Brasil, por exemplo, apenas em 2002 passaria a ter um novo Código Civil, que reconheceu em sua organização algumas das brilhantes inovações jurídicas ofertadas por Teixeira de Freitas mais de um século e meio antes, em especial, a unificação das obrigações civis e comerciais.2 Mais tarde, movido por aquelas palavras do professor Ramón Silva Alonso, me atrevo a sugerir e o professor Del’Olmo viria a se dedicar com mais força ao estudo da obra de Augusto Teixeira de Freitas, de cujas pesquisas resultou o artigo Augusto Teixeira de Freitas: o protojurista do Mercosul,3 que, incorporado ao livro em edição seguinte, o completou e o engrandeceu. De fato, a ideia da unificação das obrigações civis e comerciais não é recente. A aspiração de condensar as normas jurídicas em um único corpo de direito esteve presente desde as mais antigas civilizações.4 No Brasil do Império, o incremento comercial experimentado fez ser necessária uma legislação comercial. Assim, em 1850 surgiu o Código Comercial brasileiro, ordenamento que recebeu forte influência do Código Francês de 1807. Esta Lei ficou em discussão na Câmara dos Deputados por 16 anos, até ser promulgada pelo imperador constitucional Dom Pedro II. Como o Código Comercial veio antes de um ordenamento civil, foi tido como natural que incluísse muitas disciplinas de matérias que não constavam da desordenada legislação civil de então. O surgimento de um Código que regulasse o direito civil não tinha a mesma sorte.5 Neste sentido, em 1854 o jurista brasileiro Augusto Teixeira de Freitas, ao propor um Código Civil para o Brasil, já insistia fortemente na unificação do direito obrigacional, cujo entendimento seria mais consentâneo para o ordenamento jurídico brasileiro. Afirmava o renomado estudioso que o direito civil e o comercial não eram distintos. A divisão era uma falsificação e uma frivolidade, pois a separação escondia o rompimento da igualdade entre as pessoas (dava só ao comerciante o direito de falir, por exemplo). Sobre a personalidade marcante de Teixeira de Freitas, é possível ser dito que ele pensava em descompasso com o seu tempo.6 Vale ainda lembrar que se tratava de um perfeccionista.7 Segundo depoimentos colhidos, em sua vida Teixeira de Freitas produziu uma obra perfeita. Também como pessoa humana foi uma referência: certa feita se recusou a acolher as normas escravistas em seu documento, pois acreditava que logo fossem cair, como a morte civil e a restrição aos direitos civis aos nacionais.8
E não somente em seu país o seu trabalho foi destacado, como lembrou o professor Ramón Silva Alonso, mas a sua obra serviu como um ponto de convergência na legislação civil entre os povos da América.9 Por tal é que o professor Del’Olmo o chamou de o protojurista do Mercosul. O ordenamento civil da Argentina, por exemplo, com o esforço de Vélez Sarsfield,10 tomou 1.200 artigos do seu Esboço. Igual influência foi reproduzida no Uruguai, com o estudo de Tristán Narvaja. Já no Paraguai, foi adotado o Código Argentino que, como visto acima, recebeu influência de Teixeira de Freitas.11 Além-mar, pensamento semelhante às suas ideias Vivante, na Itália, só foi ter cinquenta anos depois, quando também se opunha a um Código Comercial separado do Civil. Em que pese os relevantes estudos desencadeados, o governo federal não foi receptivo a essas novas ideias e o trabalho foi interrompido ainda incompleto. Para nova empreitada legislativa, concluída em 1865, fora novamente convidado Teixeira de Freitas, tendo se fixado em classificar as matérias e unificar o direito privado. O Esboço final desta compilação reuniu cinco milheiros de artigos. Então em 1916 o ordenamento jurídico brasileiro recebeu a aprovação do Código Civil, após longa e tumultuada tramitação, especialmente devido à contestação veemente de Ruy Barbosa, que costumava se referir a ele como um produto do século anterior, já que oriundo de elaboração iniciada em 1896. Uma manifestação sobre o Código Civil de 1916 que se faz necessária para o seguimento deste prefácio é que ele não consagrou essa ideia de unificação das obrigações civis e comerciais em um único documento, o que era a proposta de Teixeira de Freitas. A ideia de unificação de matérias de direito privado, neste caso em especial a de obrigações civis e comerciais, já tinha sido aplicada em outros ordenamentos pelo mundo afora. Os países que a adotaram podem ser classificados segundo os sistemas de unificação que foram utilizados. Assim, há sistemas radicais e moderados. Um exemplo do processo de unificação segundo o sistema moderado ocorreu no direito suíço, que tem um Código próprio para o direito das obrigações, fora do direito civil. E um exemplo de unificação segundo o sistema radical se deu no direito italiano, onde o Código Civil de 1942 unificou não só as obrigações, mas o direito privado, acabando com a diferença entre atos civis e comerciais e trabalhistas, mas mantendo normas especiais referentes à agricultura. Lá, diferentemente, e mais radical que a ideia original brasileira, o documento também comporta o direito do trabalho. Mas a grande diferença do documento italiano referido acima com o sistema aprovado pelo Brasil por influência de Beviláqua e agora de Reale é que aquele não tem uma Parte Geral (outra elaboração de Teixeira de Freitas) e os nossos Códigos têm, motivo pelo qual eles não se confundem com os documentos italiano e suíço. Coincidentemente, no mesmo ano de 1942, a Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro também era alterada, em função da Segunda Guerra Mundial, estabelecendo um novo elemento de conexão, o domicílio. Este já havia sido indicado como o elemento mais apropriado por Teixeira de Freitas em sua Proposta.12 Essa modificação, talvez a principal da nova Lei de Introdução, pode ser entendida como um ajuste histórico, já que deu razão, cem anos após, ao iluminado pensador, alterando o mecanismo de Pimenta Bueno e Clóvis Beviláqua positivado em 1916, que estabelecera a nacionalidade como elemento de conexão para as questões de direito internacional privado. O surgimento de um Código Civil em 1916 que não contemplou a unificação do direito privado, nem mesmo do ramo das obrigações, não conseguiu, todavia, sepultar a ideia de unificação. Novamente a ideia da unificação das obrigações teve ressurgimento em 1940, com o Projeto do Código de Obrigações
e especialmente em 1965 com outro Projeto, que chegou a ser enviado ao Congresso Nacional, sendo depois igualmente arquivado. O professor Ramón Silva Alonso, tendo escrito aquelas palavras, e com o debate estabelecido, foi durante a última década de sua vida um dos grandes impulsionadores do seguimento desta obra, hoje em décima edição. Ele veio a falecer passados pouco mais de dez anos de quando escreveu a carta aqui parcialmente reproduzida, em 8 de outubro de 2009. O seu passamento enlutou os profissionais do direito internacional privado do continente. Era o criador, o iniciador e o presidente da Academia Paraguaya de Derecho y Ciencias Sociales. Em seu enterro, as seguintes palavras de despedidas foram pronunciadas pelo Professor Doutor José A. Moreno Ruffinelli, que, assim como eu, foi iniciado em uma cátedra universitária por um grande mestre: “lo que nadie puede dudar, ni por un instante, es que sólo había una persona en nuestro país que podía hacerlo, pues nadie más tenía ese rasgo que lo diferenciaba netamente del resto de nuestros juristas: el de ser, sencillamente, indiscutible. Ese era el maestro Silva Alonso. (…) Tan pronto ingresó a la Facultad de Derecho, tuvo ese raro encantamiento con esta disciplina, que lo acompañó hasta los últimos instantes de su vida. (…) Ocupó y prestigió todos los grados de la carrera, del cursus honorarium: Juez de Primera Instancia en lo Civil, Miembro del Tribunal de Apelaciones en lo civil y comercial y miembro de la Corte Suprema de Justicia”. Da mesma forma que aquele professor em relação ao seu mestre teve a honra de prefaciar a sua clássica obra paraguaia de direito internacional privado, aqui quem me a dá hoje é o meu mestre, o professor Del’Olmo. Ainda no âmbito de questões pessoais que unem alunos e mestres, sobretudo, foi ele que me honrou desde muito jovem com uma amizade sincera e construtiva. Outro eminente professor que logo se impactou com o seu estudo foi o catedrático Luis Ivani de Amorim Araujo, do Rio de Janeiro. Em uma cartinha datilografada à máquina, de 15 de junho de 1999, que eu pela mesma importância guardei, afirma ele que “O grande mérito do Prof. Florisbal, na publicação de ‘Direito Internacional Privado’ repousa no amparo incalculável que representa o texto do Docente aos epígonos e em estimular o interesse dos mesmos ao conhecimento do Direito que norteia o conflito das leis no espaço. (…) O jurista Florisbal é um exemplo a ser imitado pelos professores de nosso Brasil, escrevendo os seus cursos para adestrar o estudo dos discentes e atalhar a invasão de compêndios forâneos, nem sempre amoldados, e que, na realidade constituem autêntica invasão do nosso território cultural”. Com o professor Ivani, Florisbal de Souza Del’Olmo também estabeleceu um debate acadêmico proveitoso, do qual resultou um livro com ele escrito,13 um livro com ele organizado,14 e um livro organizado em sua homenagem.15 O professor Luis Ivani de Amorim Araujo foi outro querido mestre que passou à imortalidade, recentemente, em 2007. Pois bem, em sua primeira edição, publicada no começo do ano de 1999, a obra surgiu com dezoito capítulos. Ali já se via a opção metodológica de fazer com que cada capítulo fosse concluído com resumo e questionário, que a acompanha até a edição de agora, por terem sempre se mostrado úteis ao aprendizado. Na atualidade, a obra é apresentada em vinte e quatro interessantes capítulos. Apenas de longe lembra aquele tratamento clássico dado na primeira edição. Nos anos de 2008 e 2009, as edições correspondentes apresentaram novos capítulos, contendo os modernos temas de direito internacional privado, como Adoção Internacional, Direito Internacional da Concorrência, para cujo capítulo eu tive a oportunidade de contribuir, Direito Internacional do Consumidor e Direito Internacional do Trabalho. O capítulo dedicado à União Europeia desta edição destaca a entrada em vigor, em 1º de dezembro de 2009, das modificações trazidas ao Direito da União pelo Tratado de Lisboa. Outro tema importante
tratado na obra do professor Del’Olmo refere-se ao processo, como eu o chamo em obra assinada no ano passado e nas minhas aulas de graduação e de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de Europeização do Direito Internacional Privado. Europeização do direito internacional privado significa que as normas de colisão autônomas dos Estados-membros da União Europeia (UE) restarão obsoletas. Isso é assim porque o processo de unificação da matéria no nível comunitário é levado a efeito através de regulamentos comunitários, os quais, segundo o artigo 288, n. 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) possuem aplicabilidade direta nos Estados-membros. A primazia de aplicação do direito comunitário atinge as normas de colisão dos direitos internos – sempre que o âmbito de aplicação de um determinado regulamento de direito internacional privado esteja envolvido – e isso tem como consequência, por causa do fundamental caráter universal das normas de colisão comunitárias, o fato de que as disposições de direito internacional privado dos Estados-membros da UE sejam afastadas da aplicação. De fato, o processo de integração comunitário abrange, desde muito tempo, a matéria de direito internacional privado, em especial o direito processual civil internacional. A criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça sem fronteiras internas, que de acordo com o ex-artigo 2º, n. 2, do Tratado da União Europeia (TUE), segundo a nova redação que lhe é dada pelo Tratado de Lisboa, deve ser ofertado aos cidadãos da UE, apresenta particulares exigências ao direito internacional privado. Como um objetivo a longo prazo do processo de harmonização vislumbra-se o alcance de uma codificação de direito internacional privado com uma parte geral no nível da organização internacional. Um último ponto a ser destacado no que se refere à atualização da obra está sediado no capítulo sobre o Direito da Concorrência. Refiro-me aqui à incorporação ao mesmo das inovações trazidas pela nova lei brasileira de defesa da concorrência, a Lei número 12.529, de 30 de novembro de 2011. Essa lei reestruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Cabe também referir as atualizações que o capítulo necessitou ter com a aprovação do novo texto do Acordo de Defesa da Concorrência do Mercosul, advindo com a Decisão número 43/10, do Conselho Mercado Comum. Vale mencionar ainda o recente surgimento da Lei número 12.874, de 29 de outubro de 2013, que alterou o artigo 18 do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942, para possibilitar às autoridades consulares brasileiras celebrarem a separação e o divórcio consensuais de brasileiros no exterior. Além dessa modificação, já ocorrida na LINDB, outras alterações são previstas para um futuro breve. A principal delas vem com a iminente reforma atualizadora do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nos últimos dias, graças à atuação da Professora Cláudia Lima Marques, passou-se a esperar uma modificação no artigo 9º da LINDB. A mudança foi incluída dentro das modificações do CDC. O relatório foi apresentado e o projeto reuniu vários projetos, passando a tramitar conjuntamente, e hoje se encontram na Comissão Temporária de Modernização do CDC do Senado Federal. Espera-se que o projeto seja votado no Parlamento em breve e que, com isso, o País tenha de volta uma norma que permita a autonomia da vontade para a determinação do direito aplicável a certas obrigações plurilocalizadas, cassada com a reforma da LICC de 1942. A nova redação do artigo 9º, para aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais comerciais e de consumo e dispor sobre as obrigações extracontratuais, começaria assim: “O contrato internacional entre profissionais, empresários e comerciantes rege-se pela lei escolhida pelas partes, sendo que o acordo das partes sobre esta escolha deve ser expresso”. Bem, como também já escrevi em outro local, não são apenas os fatos de termos sido colegas de
Mestrado na UFSC, de termos realizado Doutorado na mesma instituição, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a mesma orientadora, a Professora Doutora Cláudia Lima Marques, e o fato de eu ter iniciado a minha carreira acadêmica a convite do professor Del’Olmo e de ter sido por ele conduzido até a classe, que nos unem: nós dois há muito tempo trabalhamos academicamente as mesmas áreas do Direito. Além dessas que constituem o objeto do presente livro, o professor Del’Olmo leciona com primazia e autoridade o Direito Internacional Público, o Direito da Integração e o Direito da União Europeia. Basta ver que ele, em conjunto com o colega professor Diego Pereira Machado, publicou em 2011, o livro Direito da Integração, Direito Comunitário, Mercosul e União Europeia, pela Editora JusPodivm, de Salvador. Essa comunhão de áreas nos colocou, nos quinze anos que computamos de amizade pessoal e acadêmica, em estreito e diário contato. O Professor Florisbal de Souza Del’Olmo é um homem de bem. E como tal criou com a sua esposa, Neide, a filha Elisa, sendo que, juntos com o genro Martin, passaram neste ano de 2013 a transmitir amor e valores ao netinho Arthur. Eu renovo os meus cumprimentos ao amigo e colega de profissão e à Editora Forense pelo surgimento da décima edição deste consagrado livro e pelo esforço continuado do professor Del’Olmo de ensinar aos jovens estudantes de Direito o apaixonante sistema de solução dos conflitos de leis no espaço. A todos os interessados, deseja-lhes uma boa leitura o
Prof. Dr. Augusto Jaeger Junior Professor da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Doutor em Direito Comunitário pela UFRGS.
______________ 1 DERECHO internacional privado y derecho de la integración: Libro homenaje a Roberto Ruiz Díaz Labrano. Asunción: Centro de Estudios de Derecho, Economía y Política – CEDEP, 2013. 2 JAEGER JUNIOR, Augusto. O novo Código Civil Brasileiro e a reorganização de empresas. Boletín Latinoamericano de Competencia. Bruxelas, out. 2002, n. 15, p. 53-77. 3 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Augusto Teixeira de Freitas: o protojurista do Mercosul. In: PIMENTEL, Luiz Otávio (Coord.). Mercosul, Alca e Integração Euro-Latino-Americana. v. 1. Curitiba: Juruá, 2001. p. 239-247. Ver também em espanhol em DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Augusto Teixeira de Freitas – El Protojurista del Mercosur. Cadernos do Programa de PósGraduação em Direito (UFRGS). Porto Alegre: PPGDir-UFRGS, v. II, n. IV, 2004. p. 111-117. 4 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 29. p. 95-112, p. 95. 5 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 29. p. 95-112, p. 97. 6 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Idem, ibidem. 7 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 29. p. 95-112, p. 100. 8 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Idem, ibidem. 9 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Augusto Teixeira de Freitas: o protojurista do Mercosul. In: PIMENTEL, Luiz Otávio (Coord.). Mercosul, Alca e Integração Euro-Latino-Americana. v. 1. Curitiba: Juruá, 2001. p. 239-247, p. 239. 10 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Augusto Teixeira de Freitas: o protojurista do Mercosul. In: PIMENTEL, Luiz Otávio (Coord.). Mercosul, Alca e Integração Euro-Latino-Americana. v. 1. Curitiba: Juruá, 2001. p. 239-247, p. 240. 11 KARAM, Munir. Teixeira de Freitas e o processo de codificação do Direito Civil Brasileiro. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 29. p. 95-112, p. 107. 12 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Augusto Teixeira de Freitas: o protojurista do Mercosul. In: PIMENTEL, Luiz Otávio (Coord.). Mercosul, Alca e Integração Euro-Latino-Americana. v. 1. Curitiba: Juruá, 2001. p. 239-247, p. 244. 13 DEL’OLMO, Florisbal de Souza; ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. v. 1. p. 207. 14 DEL’OLMO, Florisbal de Souza; ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim (Orgs.). Direito de Família Contemporâneo e os Novos Direitos: Estudos em Homenagem ao Professor José Russo. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. v. 1. p. 353. 15 DEL’OLMO, Florisbal de Souza (Org.). Curso de Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Luís Ivani de Amorim Araújo pelo seu 80º aniversário. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. v. 1. p. 700.
a.C.
Antes de Cristo
AC
Apelação Cível
ADCT
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
AgR
Agravo Regimental
ALADI
Associação Latino-Americana de Integração
ALALC
Associação Latino-Americana de Livre Comércio
ALCA
Área de Livre Comércio das Américas
APEC
Associação de Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico
Art.
Artigo
c/c
Combinado com
CADE
Conselho Administrativo de Defesa Econômica
cap.
Capítulo
CC
Código Civil/Conflito de Competência
CDC
Código de Defesa do Consumidor
CE
Comissão Europeia
CEE
Comunidade Econômica Europeia
CEEA
Comunidade Europeia de Energia Atômica
CECA
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
CF
Constituição Federal
CIDIP
Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado
CIG
Conferência Intergovernamental
CLT
Consolidação das Leis do Trabalho
CMC
Conselho do Mercado Comum
CNPJ
Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
CP
Código Penal
CPC
Código de Processo Civil
CPGD
Curso de Pós-Graduação em Direito
CPF
Cadastro de Pessoas Físicas
CPP
Código de Processo Penal
DIPr
Direito Internacional Privado
DJU
Diário de Justiça da União
DL
Decreto-lei
DOE
Diário Oficial do Estado
DPI
Direito Processual Internacional
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
EE
Estatuto do Estrangeiro
EIDAS
Encontros Internacionais de Direito da América do Sul
ESUD
Escola Superior de Direito de Mato Grosso
EUA
Estados Unidos da América
GATT
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
HC
Habeas Corpus
inc.
Inciso
INCOBRASA
Industrial e Comercial Brasileira S/A
IPTU
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
JSTJ-CD
Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
JTRFS-CD
Jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais – CD
LICC
Lei de Introdução ao Código Civil
LIN
Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro
Mercosul
Mercado Comum do Sul
Min.
Ministro
MS
Mandado de Segurança
NAFTA
Tratado Norte-Americano de Livre Comércio
OCDE
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA
Organização dos Estados Americanos
OIT
Organização Internacional do Trabalho
ONU
Organização das Nações Unidas
p.
Página/páginas
PDCM
Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul
PESTRAF
Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial
PUCRJ
Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro
RE
Recurso Extraordinário
ReCrim.
Revisão Criminal
Rel.
Relator
REO
Recurso Ex Officio
REsp
Recurso Especial
RESP.
Recurso Especial
RHC
Recurso Habeas Corpus
RISTF
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
RO
Recurso Ordinário
SAE
Secretaria de Acompanhamento Econômico
SBDC
Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
SDE
Secretaria de Direito Econômico
séc.
Século
segs./ss.
Seguintes
SGT
Subgrupo de Trabalho
STJ
Superior Tribunal de Justiça
TJGB
Tribunal de Justiça da Guanabara
TJPE
Tribunal de Justiça de Pernambuco
TJSP
Tribunal de Justiça de São Paulo
TRF
Tribunal Regional Federal
TRIPs
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
TST
Tribunal Superior do Trabalho
TUE
Tratado da União Europeia
UE
União Europeia
UFAM
Universidade Federal do Amazonas
UFRGS
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina
UFU
Universidade Federal de Uberlândia
UNIDROIT
Estatuto Orgânico do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado
UNOESC
Universidade do Oeste de Santa Catarina
URI
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
v.g.
Verbi gratia
v.
Volume
vers.
Versículo
Capítulo I – Noções Fundamentais e Objeto do Direito Internacional Privado 1.1 Considerações iniciais 1.2 Conceito 1.3 Objeto 1.4 Normas de DIPr na Constituição Federal de 1988 1.5 Direitos adquiridos 1.6 Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público 1.7 Direito Internacional Privado e Direito Comparado Resumo Questões Propostas Capítulo II – Esboço Histórico do Direito Internacional Privado 2.1 Considerações iniciais 2.2 Grécia 2.3 Roma 2.4 Feudalismo 2.5 Glosadores e escolas estatutárias 2.6 Codificação 2.7 Doutrinas modernas Resumo Questões Propostas Capítulo III – Denominação e Método de Direito Internacional Privado e a Disciplina no Brasil 3.1 Considerações iniciais 3.2 Denominação 3.3 Autonomia do DIPr 3.4 Método 3.5 Direito Internacional Privado no Brasil 3.5.1 Primeiros tempos 3.5.2 Augusto Teixeira de Freitas 3.5.3 José Antônio Pimenta Bueno 3.5.4 Notáveis tratadistas 3.5.5 Atualidade do DIPr brasileiro 3.6 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo IV – Fontes do Direito Internacional Privado 4.1 Considerações iniciais 4.2 Lei 4.3 Tratados 4.4 Doutrina
4.5 Jurisprudência 4.6 Costumes Resumo Questões Propostas Capítulo V – Teoria das Qualificações 5.1 Considerações iniciais 5.2 Teorias existentes 5.3 Qualificações no Brasil 5.4 Casos clássicos 5.5 Questões prévias Resumo Questões Propostas Capítulo VI – Elementos de Conexão 6.1 Considerações iniciais 6.2 Classes de elementos de conexão 6.3 Conexões pessoais 6.3.1 Domicílio 6.3.2 Nacionalidade 6.4 Conexões reais 6.4.1 Lex rei sitae 6.5 Conexões voluntárias 6.5.1 Autonomia da vontade Resumo Questões Propostas Capítulo VII – Aplicação do Direito Estrangeiro 7.1 Considerações iniciais 7.2 Aplicação direta da lei estrangeira 7.3 Retorno 7.3.1 Caso Forgo 7.4 Limites à aplicação da lei estrangeira 7.4.1 Ordem pública 7.4.2 Fraude à lei 7.4.3 Favor negotii 7.4.4 Prélèvement 7.4.5 Instituições desconhecidas 7.4.6 Instituições abomináveis Resumo Questões Propostas Capítulo VIII – Homologação de Sentença Estrangeira 8.1 Considerações iniciais 8.2 Fundamentos 8.3 Documentos estrangeiros: cartas rogatórias
8.4 Sentenças estrangeiras homologáveis 8.4.1 Conceituação 8.4.2 Decisões passíveis de homologação 8.4.3 Sistemas de homologação 8.4.4 Delibação 8.4.5 Órgãos homologadores, pressupostos e rito na Justiça brasileira 8.4.6 Sentença homologanda versus lide na Justiça brasileira 8.5 Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro 8.6 Legislação brasileira 8.7 Jurisprudência brasileira 8.8 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo IX – Nacionalidade 9.1 Considerações iniciais 9.2 Interdisciplinaridade 9.3 Nacionalidade originária 9.3.1 Jus sanguinis 9.3.2 Jus soli 9.4 Naturalização 9.5 Conflitos de nacionalidade 9.5.1 Plurinacionalidade 9.5.2 Anacionalidade 9.6 Nacionalidade no ordenamento jurídico brasileiro 9.7 Perda da nacionalidade Resumo Questões Propostas Capítulo X – Condição Jurídica do Estrangeiro 10.1 Considerações iniciais 10.2 Ingresso e permanência 10.2.1 Passaporte 10.2.2 Visto 10.3 Afastamento compulsório 10.3.1 Institutos em desuso 10.3.2 Expulsão 10.3.3 Deportação 10.3.4 Diferenças entre expulsão e deportação 10.3.5 Extradição: conceito e classificação 10.3.6 Extradição de nacionais 10.3.7 Requisitos e limites da extradição 10.3.8 Caso Pinochet 10.3.9 Extradição na ordem jurídica brasileira 10.3.10 Tratados de extradição firmados pelo Brasil
10.3.11 Diferenças dos demais institutos 10.4 Jurisprudência brasileira 10.5 Projeto de novo Estatuto do Estrangeiro Resumo Questões Propostas Capítulo XI – Pessoas no Direito Internacional Privado 11.1 Considerações iniciais 11.2 Personalidade 11.2.1 Começo da personalidade 11.2.2 Término da personalidade 11.3 Comoriência 11.4 Ausência 11.5 Poder familiar 11.6 Tutela 11.7 Curatela 11.8 Ação de alimentos Resumo Questões Propostas Capítulo XII – Direito de Família e Direito Internacional Privado 12.1 Direito de Família 12.2 Casamento e conflito de leis no espaço 12.3 Normas brasileiras sobre casamento 12.3.1 Capacidade 12.3.2 Impedimentos e formalidades 12.3.3 Casamento por procuração 12.3.4 Casamento no consulado 12.3.5 Nulidade do casamento 12.3.6 Regime de bens 12.4 Divórcio 12.5 Casamento entre pessoas do mesmo sexo 12.6 Jurisprudência brasileira Resumo Questões Propostas Capítulo XIII – Adoção Internacional 13.1 Considerações iniciais 13.2 Conceituação 13.3 Importância e atualidade 13.4 Adoção como resgate de crianças sem assistência 13.5 Adoção internacional 13.6 Documentos sobre adoção internacional e a Convenção de 1993 13.7 Adoção no ordenamento jurídico brasileiro e a adesão à Convenção de 1993 13.8 Noções básicas sobre adoção
13.9 Brasil como país de origem do menor adotado 13.10 Organismos credenciados 13.11 Brasil como país de acolhida do menor adotado 13.12 Adoção internacional e nacionalidade 13.13 Caso João Herbert 13.14 Caso das meninas da Guiné-Bissau 13.15 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo XIV – Direito das Sucessões e Direito Internacional Privado 14.1 Considerações iniciais 14.2 Sucessão e conflito de leis no espaço 14.3 Elementos de conexão 14.4 Sucessão legítima 14.5 Sucessão testamentária Resumo Questões Propostas Capítulo XV – Direito das Obrigações e Direito Internacional Privado 15.1 Considerações iniciais 15.2 Obrigações na esfera internacional 15.3 Autonomia da vontade 15.4 Novos elementos de conexão 15.5 Normas brasileiras Resumo Questões Propostas Capítulo XVI – Direito do Consumidor e Direito Internacional Privado 16.1 Considerações iniciais 16.2 Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro 16.3 Consumidor no DIPr 16.4 Proteção do consumidor nas Américas 16.4.1 Projeto de CIDIP de proteção do consumidor 16.5 Consumidor à luz da LINDB 16.5.1 Proposta de adequação da LINDB ao consumidor 16.6 Caso Panasonic 16.6.1 Ementa do caso 16.7 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo XVII – Direito Empresarial e Direito Internacional Privado 17.1 Considerações iniciais 17.2 Sociedade estrangeira e direito brasileiro 17.3 Sociedade binacional
17.4 Estabelecimento 17.5 Capacidade para exercer a atividade empresarial 17.6 Legislação brasileira e direito empresarial internacional 17.7 Falência e recuperação empresarial 17.8 Falência internacional Resumo Questões Propostas Capítulo XVIII – Direito da Concorrência e Direito Internacional Privado 18.1 Considerações iniciais 18.2 Concorrência e Direito da Concorrência 18.3 Defesa da concorrência no Brasil 18.4 Abuso do poder econômico em um mercado relevante 18.5 Concorrência internacional: algumas reflexões 18.6 Concorrência no Mercosul e na União Europeia 18.7 Liberdades econômicas fundamentais 18.8 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo XIX – Direito das Coisas e Direito Internacional Privado 19.1 Considerações iniciais 19.2 Qualificação dos bens móveis e imóveis 19.3 Direito das coisas no ordenamento jurídico brasileiro 19.4 Direitos reais e conflito de leis no espaço 19.5 Referências especiais sobre alguns direitos reais 19.6 Regras de DIPr em outras ordens jurídicas Resumo Questões Propostas Capítulo XX – Propriedade Intelectual e Direito Internacional Privado 20.1 Considerações iniciais 20.2 Propriedade intelectual 20.2.1 Histórico 20.2.2 Importância na atualidade 20.3 Propriedade intelectual no Brasil 20.3.1 Medicamentos 20.3.2 Caso Efavirenz 20.4 Organização Mundial da Propriedade Intelectual 20.5 Convenções internacionais 20.5.1 TRIPs 20.6 Direito Internacional Privado e Propriedade Intelectual 20.7 DIPr brasileiro da Propriedade Intelectual 20.8 Considerações finais Resumo
Questões Propostas Capítulo XXI – Direito do Trabalho e Direito Internacional Privado 21.1 Considerações iniciais 21.2 Direito Internacional Privado do Trabalho 21.3 Justiça competente 21.4 Contrato individual de trabalho e conflito interespacial 21.5 Emprego da lex loci executionis 21.6 Mercosul e harmonização das normas trabalhistas entre os países 21.7 Casos de conflitos trabalhistas interespaciais 21.8 Ementas de lides interespaciais Resumo Questões Propostas Capítulo XXII – Competência Internacional 22.1 Considerações iniciais 22.2 Conceito e objeto 22.3 Princípios e fontes do DPI 22.4 Competência internacional na legislação brasileira 22.5 Imunidade de jurisdição 22.5.1 Imunidade absoluta 22.5.2 Imunidade relativa 22.6 Jurisprudência brasileira 22.7 Considerações finais Resumo Questões Propostas Capítulo XXIII – União Europeia 23.1 Globalização da economia e formação de blocos continentais 23.2 Processo de integração dos Estados europeus 23.3 Instituições da União Europeia 23.3.1 Conselho Europeu 23.3.2 Comissão 23.3.3 Conselho da União Europeia 23.3.4 Parlamento Europeu 23.3.5 Tribunal de Contas 23.3.6 Tribunal de Justiça da União Europeia 23.3.7 Comitê Econômico e Social 23.3.8 Comitê das Regiões 23.3.9 Banco Central Europeu 23.4 Ordenamento jurídico comunitário 23.5 Supranacionalidade na União Europeia 23.6 Cidadania europeia 23.7 Livre circulação dos trabalhadores 23.8 Considerações finais
Resumo Questões Propostas Capítulo XXIV – Mercosul 24.1 Antecedentes históricos 24.2 ALALC e ALADI 24.3 Conceitos básicos 24.4 Mercado Comum do Sul – Mercosul 24.5 Tratado de Assunção 24.6 Protocolo de Ouro Preto 24.7 Relacionamento com o exterior 24.8 Período do sucesso 24.9 Crise do Mercosul 24.10 Venezuela como membro pleno 24.11 Solução de controvérsias no Mercosul 24.12 Fragilidade institucional 24.13 Direito processual civil internacional do Mercosul 24.14 Harmonização das regras materiais 24.15 Parlamento do Mercosul 24.16 Considerações finais Resumo Questões Propostas ANEXO – Normas Brasileiras Pertinentes ao Direito Internacional Privado 1. Constituição da República Federativa do Brasil (1988) 2. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657/1942) (Redação determinada pela Lei n. 12, de 30.12.2010) 3. Código Civil (Lei n. 10.406/2002) 4. Código de Processo Civil (Lei n. 5.869/1973) 5. Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/1966) 6. Código Penal (Decreto-lei n. 2.848/1940) (Parte Geral com redação determinada pela Lei n. 7.209, de 11.07.1984) 7. Código de Processo Penal (Decreto-lei n. 3.689/1941) 8. Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei n. 3.688/1941) 9. Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/1973) 10. Lei Antidrogas (Lei n. 11.343/2006) 11. Letra de Câmbio e Nota Promissória (Decreto n. 2.044/1908) 12. Lei de Recuperação de Falências (Lei n. 11.101/2005) 13. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) 14. Direitos Autorais (Lei n. 9.610/1998) 15. Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei n. 5.452/1943) 16. Técnicos Estrangeiros (Decreto-lei n. 691/1969) 17. Serviços no Exterior (Lei n. 7.064/1982) 18. Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n. 7.565/1986) 19. Lei da Arbitragem (Lei n. 9.307/1996)
Bibliografia
Nota da Editora: o Acordo Ortográfico foi aplicado integralmente nesta obra.
NOÇÕES FUNDAMENTAIS E OBJETO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“A definição é, portanto, meio para um fim que não consiste somente em indicar a significação de um nome, mas em precisá-lo para determinação de seu conceito” (Irineu Strenger).
1.1 Considerações iniciais O ser humano sempre buscou, desde tempos imemoriais, a proximidade com seu semelhante. No começo, a família, ou o que se entendia como tal; depois a tribo: grupos maiores foram se formando, até se constituírem em povo ou nação, pessoas com identidades próprias e aspirações comuns. Só muito mais tarde aparece o Estado, como o conhecemos hoje, formado por três elementos essenciais: povo, território e governo, amalgamados em uma unidade jurídica. Convém lembrar, como observou Amílcar de Castro,1 que governo não deve ser confundido com força; território, com extensão geográfica; e povo, com aglomeração de pessoas. Governo, símbolo do poder, deve ser visto como competência; território, como limite dessa competência; e povo, como conjunto de interações humanas. Assim, o Estado é a sociedade maior e, como sociedade, deve estar intimamente ligado ao ser humano, em um conjunto harmônico. Esse Estado tem sua ordem jurídica, que regula o modus vivendi e a interação de seus habitantes, sendo essa ordem jurídica soberana nos limites de seu território. A lei não estende seu comando além-fronteiras. Não existe um poder supranacional capaz de determinar, juridicamente, o que deve ser feito por determinado Estado. Em realidade, nas relações internacionais impera um tipo de justiça privada: bloqueio econômico, retaliações, extorsão nos preços de produtos essenciais, entre outros. A humanidade busca incessantemente o convívio fraternal e proveitoso entre os povos. Tratados e convenções são acertados e firmados com a finalidade de aproximar os Estados e tornar mais agradável a vida dos cidadãos. Deve-se considerar que vivemos tempos de globalização econômica e de extraordinários avanços tecnológicos, que intensificam a dinâmica e a fluidez do intercâmbio entre os povos, em razão da necessidade econômica, da busca de conhecimentos, das atividades de lazer, do espírito de aventura e de outros fatores sociais e até religiosos. O desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte só vem aumentar as relações entre pessoas de diferentes lugares, regidas por legislações diferentes. Desse intercâmbio muitas vezes decorrem problemas, que precisam ser dirimidos pela justiça. Daí perguntar-se: que justiça? À luz de qual legislação? O conflito de leis pode ser no tempo ou no espaço. Do concurso de leis no tempo, vai preocupar-se o Direito Intertemporal, positivado na ordem jurídica brasileira nos primeiros artigos da LINDB. O conflito de leis no espaço é tema do Direito Internacional Privado, que, mais do que um direito verdadeiro, tem sido entendido como uma técnica de aplicação do Direito.
1.2 Conceito Para Clóvis Beviláqua, Direito Internacional Privado é o conjunto de preceitos que regulam as relações de ordem privada da sociedade internacional,2 enquanto Luís Ivani Araújo vê esse ramo das
ciências jurídicas como o conjunto de regras de direito interno, cujo objetivo é a solução de conflitos envolvendo leis originárias de Estados diferentes, indicando, em cada caso, a lei competente a ser aplicada.3 Essas definições, das quais não se afasta o entendimento de autores nacionais e estrangeiros dos últimos cem anos, nos aproximam de uma conceituação aceitável e compreensível da disciplina. Nessa tessitura, visualizamos o Direito Internacional Privado como o conjunto de normas de direito público interno que busca, por meio dos elementos de conexão, encontrar o direito aplicável, nacional ou estrangeiro, quando a lide comporta opção entre mais de uma ordem jurídica para solucionar o caso. Cabe salientar a presença implícita de um elemento externo, que faça a conexão entre o direito interno e o estrangeiro. Não hesitamos em colocar essas regras no âmbito do direito público, embora reconhecendo que importantes estudiosos as veem integradas no direito privado. Destinadas a compor litígios em relações privadas transnacionais, essas normas estão perfeitamente inseridas na ordem jurídica interna dos Estados, mas vêm gradativamente ocupando espaço em tratados e convenções internacionais, bem como em regulamentos da União Europeia. Em verdade, ocorre a presença na relação sub judice de mais de um direito em condições de dirimir a lide. Essa peculiaridade pode ser referida como concurso de leis, simultaneidade de leis, concorrência de leis, pluralidade de leis, contato de leis e opção entre leis, qualquer delas por certo mais adequada do que a expressão consagrada: conflito de leis. O que deve ser enfatizado é que não há disputa, inexiste conflito, animosidade ou colisão, não há embate entre a legislação do foro e qualquer outra que possa dirimir o conflito – esse, sim – entre as partes. Coerente com nosso entendimento, Amorim enfatiza que aplicamos a norma jurídica estrangeira seguindo determinações de uma lei local, não se tratando de conflitos, mas do reconhecimento de um direito adquirido no exterior: “Conflitos, realmente, há quando aquela lei ferir nossa soberania ou a ordem pública local.”4 Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que o Direito Internacional Privado promove, na realidade, um diálogo entre ordenamentos jurídicos diversos. Por fim, mencionemos mais dois conceitos para a disciplina. Segundo Strenger, é “um complexo de normas e princípios de regulação que, atuando nos diversos ordenamentos legais ou convencionais, estabelece qual o direito aplicável para resolver conflitos de leis ou sistemas, envolvendo relações jurídicas de natureza privada ou pública, com referências internacionais ou locais”.5 Para Cláudia Lima Marques, em entendimento sintético e avançado, o Direito Internacional Privado é “o ramo do direito interno que regula direta ou indiretamente as relações privadas internacionais”.6 A composição direta da lide, não se limitando a indicar o direito aplicável, pretende dar resposta eficiente e justa aos numerosos processos dessa natureza submetidos ao DIPr.
1.3 Objeto O objeto central do Direito Internacional Privado é o conflito de leis no espaço, visto esse espaço como o de ordenamentos jurídicos diversos. Nessas leis se incluem temas de direito civil, comercial, trabalhista, industrial, fiscal, administrativo, penal e processual. Enfatizando ser único o objeto de estudo do DIPr, Amílcar de Castro assim o sintetiza: “organizar direito adequado à apreciação de fatos anormais, ou fatos com duas ou mais jurisdições, sejam pertinentes ao fórum, ou ocorridos no estrangeiro.”7 Essa visão se ampara nas teorias italiana e alemã, as quais nos dois últimos séculos restringiram o campo do Direito Internacional Privado ao conflito de leis, tendo sido observada por outros autores brasileiros, como Eduardo Espínola e João Grandino Rodas.
As doutrinas francesa e norte-americana ampliam o objeto de nossa disciplina. Para Jean Paul Niboyet, nele se incluem o conflito de leis, a nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro e os direitos adquiridos.8 Henri Batiffol, de forma análoga, apenas coloca o conflito de jurisdições ao invés dos direitos adquiridos.9 Essa corrente francesa se ocupa da situação do ser humano nas relações privadas internacionais, identificando sujeitos de direitos (nacionalidade e condição jurídica do estrangeiro), exercício desses direitos (conflito de leis) e sanção dos direitos (conflito de jurisdições). Atentos aos objetivos desta obra e alicerçados na releitura dos diversos autores, sentimo-nos autorizados a enunciar o objeto de Direito Internacional Privado mais adequado ao nosso tempo, quando limites não devem ser colocados na busca do conhecimento e na harmonia e coerência de conteúdos e métodos. Esse objeto que pode parecer amplo, à primeira vista, inclui o conflito de leis interespacial, a nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro, os direitos adquiridos, o conflito de jurisdições, a competência internacional e o reconhecimento de sentenças estrangeiras. Não vemos, contudo, razão para restringi-lo. Poderíamos entender, para exemplificar, que os direitos adquiridos estão inseridos na condição jurídica do estrangeiro; que a nacionalidade se integra no Direito Constitucional, limitando-se – como pensam vários autores – no DIPr à condição de elemento de conexão; que a sentença estrangeira é estudada na competência internacional, a qual, por sua vez, poderia ser analisada ao lado do conflito de jurisdições. Nossa obra tem-se caracterizado pela simplicidade e objetividade. Nesse viés, cada um dos aludidos objetos do Direito Internacional Privado nela será estudado.
1.4 Normas de DIPr na Constituição Federal de 1988 A Carta Magna vigente, no caput do artigo 5º, garante aos estrangeiros residentes no país “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” nos termos legais, equiparando-os, nesses aspectos, aos brasileiros. Exceto os direitos políticos, tais como votar e ser votado, o estrangeiro, regularmente residindo no Brasil, não sofre qualquer discriminação. Em segmento próprio desta obra, o Capítulo X, é analisada a condição jurídica do estrangeiro em nosso país. Outros parâmetros emanados pelo Estatuto Maior brasileiro (art. 12) se referem à nacionalidade e à naturalização, que estudaremos no capítulo nono. O inciso XV do artigo 22 dá competência privativa à União para legislar sobre emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros.
1.5 Direitos adquiridos O respeito aos direitos adquiridos é considerado basilar para a segurança jurídica, fazendo parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos – no Brasil, ele está inserido na Carta Magna (art. 5º, inc. XXXVI). Verificar a prevalência desses direitos quando invocada em outro país interessa ao Direito Internacional Privado. Muitos autores têm-se ocupado do tema, considerando-o objeto da disciplina, enquanto outros adotam posição diversa, entendendo que os direitos adquiridos alegados, nesse contexto, não se afastam dos conflitos de leis, por estarem neles integrados. Como antes referido, julgamos mais adequada a primeira posição. Seria um contrassenso imaginar que o ser humano, ao ultrapassar as fronteiras de seu país, nele deixasse os direitos adquiridos, especialmente os que constituem seu estatuto pessoal. Trata-se de direitos privados, que foram reconhecidos por ordenamento jurídico competente. Nessa esfera, são repelidos, por óbvio, os que ofendem a ordem pública, os bons costumes e a soberania nacional. Assim,
não se permitirão novas núpcias de cidadão (v.g., árabe) que aqui aportar já casado e alegar o direito de poligamia existente na legislação de seu país, bem como alguém que trouxesse seus escravos seria impedido de mantê-los nessa condição. Feitas as ressalvas acima, todos os direitos, plenamente incorporados ao patrimônio jurídico do cidadão, nacional ou estrangeiro, devem acompanhá-lo extraterritorialmente. Há casos em que tais direitos, se buscados em nosso foro – pela aplicação direta da norma estrangeira que os reconhece – não seriam aceitos por contrariarem nossa ordem pública, mas serão admitidos por terem legalmente ocorrido no seu ordenamento jurídico. Assim, sentenças de cobrança de dívidas de jogos de azar, em países onde essa atividade é legalizada, têm sido reconhecidas pelo Superior Tribunal de Justiça. Eduardo Espínola acentua que os direitos adquiridos pelo estrangeiro, conforme as leis internas e as decisões proferidas pelos tribunais de seu país, são reconhecidos no exterior, assim como o reconhecimento de sua personalidade e capacidade civil.10 Cabe ao Direito Internacional Privado de cada país verificar as circunstâncias de aquisição de direitos no estrangeiro e indicar as condições para o seu reconhecimento no ordenamento jurídico interno.11 Nesse contexto, atos jurídicos referentes ao estado civil, como casamento, adoção e divórcio, quando realizados no estrangeiro são normalmente reconhecidos pelos Estados em razão da segurança jurídica. Seria, por exemplo, o caso de brasileiro solteiro ou viúvo que casa no exterior com estrangeira divorciada: o assento no registro público no Brasil não depende de homologação do divórcio pelo STJ, desde que a estrangeira não fosse casada com brasileiro. Porém, se a celebração ocorrer no Brasil, se faz necessário apresentar a Carta de Sentença do Superior Tribunal de Justiça homologando o divórcio. Por fim, observemos que mera expectativa de direito em uma ordem jurídica não deve ser tida como direito adquirido, enquanto conquistas reconhecidas na esfera do direito público, como aposentadorias e pensões, somente são invocadas perante o ordenamento que as concedeu.
1.6 Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público O DIPr tem profunda afinidade com o Direito Internacional Público, trabalhando ambos com fontes e institutos comuns – tratados, nacionalidade, extradição – e com o mesmo objetivo – a convivência pacífica e harmônica entre os povos. Jacob Dolinger refere julgamento, de 1984, da Corte de Cassação francesa sobre causa relacionada a Acordo de Cooperação Científica entre a França e o Irã, em que se afirma: “As partes envolvidas nestes acordos estavam situadas no mais alto nível. Estavam na encruzilhada do Direito Internacional Privado com o Direito Internacional Público, havendo motivos para se questionar sob qual dos dois os acordos estavam cobertos.”12 A identificação entre esses dois ramos jurídicos fica evidenciada na Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, instituída em 1956 pela ONU, estando inserida no Direito Internacional Público, mas se destinando a concertar relações essencialmente privadas, o que a integra plenamente no Direito Internacional Privado.
1.7 Direito Internacional Privado e Direito Comparado Enfatize-se, inicialmente, que boa parte da doutrina entende que, a rigor, não existe Direito Comparado, mas estudos comparativos entre sistemas jurídicos diversos, até porque tal ramo seria uma criteriosa comparação entre institutos jurídicos presentes no ordenamento legal de diferentes países, buscando estabelecer pontos comuns e divergentes que neles existem. Para Valladão, ele é “apenas
ciência, é a comparação dos direitos no espaço, é geografia jurídica, ao lado da história do direito cuja dimensão é o tempo”.13 Por sua parte, Oscar Tenório considera que o Direito Comparado não constitui um ramo do Direito, mas um campo científico para apreciar semelhanças, afinidades e diferenças entre sistemas jurídicos de mais de um país.14 De maneira diversa entende o professor de Direito Comparado português Ferreira de Almeida, para quem esse ramo das ciências jurídicas pode ser definido como “a disciplina que tem por objetivo estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre sistemas jurídicos considerados na sua globalidade (macrocomparação) e entre institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes (microcomparação)”.15 Esses estudos comparativos são sumamente importantes em Direito Internacional Privado. Quando da aplicação de Direito estrangeiro, o operador jurídico nacional deve analisar tal direito à luz do método comparativo, e não seguindo os preceitos jurídicos do foro. Assim, em caso jusprivatista internacional que deva ser resolvido por norma jurídica estrangeira (por exemplo, direito francês), a leitura desse direito não pode ser feita tendo em consideração as formas de interpretação e de aplicação do direito local: esse operador (juiz ou advogado) deverá analisar as normas do direito francês utilizando a sua hermenêutica.
RESUMO 1.1 Considerações iniciais A intensificação do intercâmbio de pessoas vinculadas a Estados regidos por legislações diversas oportuniza a ocorrência, cada vez mais frequente, de conflitos, criando dificuldade para estabelecer qual ordenamento jurídico e qual legislação são competentes para a solução da lide. É desse conflito de leis no espaço que se ocupa o Direito Internacional Privado.
1.2 Conceito É o ramo do direito interno que regula direta ou indiretamente as relações privadas internacionais (Cláudia Marques). É o conjunto de regras de direito interno que objetiva solucionar os conflitos de leis originárias de Estados diversos, indicando, em cada caso que se apresente, a lei competente a ser aplicada (Araújo). É um complexo de normas e princípios de regulação que, atuando nos diversos ordenamentos legais ou convencionais, estabelece qual o direito aplicável para resolver conflitos de leis ou sistemas, envolvendo relações jurídicas de natureza privada ou pública, com referências internacionais ou locais (Strenger). O Direito Internacional Privado consiste no conjunto de normas de direito público interno que busca, por meio dos elementos de conexão, encontrar o direito aplicável, nacional ou estrangeiro, quando a lide comporta opção entre mais de uma ordem jurídica para solucionar o caso (Del’Olmo).
1.3 Objeto Organizar direito adequado à apreciação de fatos anormais ou fatos com duas ou mais jurisdições, sejam pertinentes ao fórum ou ocorridos no estrangeiro (Amílcar).
Conflito de leis, nacionalidade, condição jurídica do estrangeiro e direitos adquiridos (Niboyet). Conflito de leis interespacial, nacionalidade, condição jurídica do estrangeiro, direitos adquiridos, conflito de jurisdições, competência internacional e homologação de sentenças estrangeiras (Del’Olmo).
1.4 Normas de DIPr na Constituição Federal de 1988 Reconhece ao estrangeiro os direitos fundamentais. Disciplina a nacionalidade e dá competência privativa à União para legislar sobre emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros.
1.5 Direitos adquiridos Todos os direitos, plenamente incorporados ao patrimônio jurídico do cidadão, nacional ou estrangeiro, devem acompanhá-lo extraterritorialmente. Mesmo casos em que tais direitos, se buscados em nosso foro, pela aplicação direta da norma estrangeira, não seriam aceitos por contrariarem a ordem pública, podem ser admitidos. São repelidos, no entanto, aqueles que ofendem a ordem pública local.
1.6 Direito Internacional Privado e Direito Internacional Público Possuem fontes e institutos comuns: tratados, nacionalidade, extradição.
1.7 Direito Internacional Privado e Direito Comparado Para o DIPr, o Direito Comparado é uma ferramenta indispensável na aplicação do Direito estrangeiro, assim como na criação e na adaptação de institutos.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar Direito Internacional Privado. 2. Indicar o objeto do DIPr mais adequado na atualidade. 3. Tecer considerações sobre os cinco direitos fundamentais, na CF/88, extensivos aos estrangeiros. 4. Os direitos adquiridos pelo cidadão estrangeiro que se estabelece legalmente no Brasil são reconhecidos pelo nosso Direito? Justificar sua resposta. 5. Citar institutos e fontes comuns ao DIPr e ao Direito Internacional Público. 6. Dissertar sobre a importância do Direito Comparado para o DIPr.
______________ 1 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 7. 2 BAVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 11. 3 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Curso de direito dos conflitos interespaciais. p. 8. 4 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 6. 5 STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 44. 6 MARQUES, Cláudia Lima. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. p. 325. 7 CASTRO, A. Op. cit. p. 50. 8 NIBOYET, J. P. Principios de derecho internacional privado. p. 1. 9 BATIFFOL, Henri e LAGARDE, Paul. Traité de droit international privé. p. 17. 10 ESPINOLA, Eduardo; ESPINOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. p. 294. 11 RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. p. 204-209. 12 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 30. 13 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I, p. 30. 14 TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. v. I, p. 47. 15 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao direito comparado. p. 9.
ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“A história é a soma dos acontecimentos passados, experiência vivida que acaba nos dando uma visão completa do pretérito com projeções no presente e no futuro” (Edgar Carlos de Amorim).
2.1 Considerações iniciais O Direito Internacional Privado (DIPr) pode ser definido, em linhas gerais, como o marco jurídico de um país que indica qual o direito a ser aplicado nas questões que contêm um elemento estrangeiro. A partir dessa definição pode-se entender o motivo de essa disciplina ser chamada, na língua inglesa, de “conflito de leis” (conflict of laws). Em casos que envolvem um elemento estrangeiro, torna-se necessário definir questões como a lei e a jurisdição aplicáveis. Nesse sentido, o Direito Internacional Privado promove um diálogo entre culturas legais diferentes, pois pode estipular a aplicação da lei de um país em outro. É consenso entre os estudiosos que na Antiguidade não existiram regras de Direito Internacional Privado, uma vez que o estrangeiro era considerado hostil, não inspirava confiança e não praticava a mesma religião, o que o transformava em potencial inimigo. As relações eram difíceis, como relata o exemplo bíblico – Gênesis, cap. 43, vers. 32 –, no qual um egípcio não podia comer pão com um estrangeiro. O estrangeiro, nem em Roma, nem em Atenas, tinha direito algum, não podendo ser proprietário nem casar, herdar, contratar ou praticar o comércio. Algumas legislações, como a chinesa, permitiam até o sacrifício e a destruição do estrangeiro.1 Contudo, várias circunstâncias ensejavam relações entre os povos, como as expedições militares, os embates guerreiros e, especialmente, o intercâmbio comercial. Isso impunha o surgimento de algum tipo de justiça para os estrangeiros, já que o interesse econômico assim o exigia.
2.2 Grécia O meteco, estrangeiro em Atenas, não tinha o status de cidadão, mas pagava uma taxa especial a fim de poder exercer atividades comerciais. Dispunha de uma judicatura especial, a polemarca, protegendo sua família e seus bens. Surgiu, aí, o próxeno, cidadão encarregado de orientar o estrangeiro em suas relações comerciais e zelar por seus interesses. A consequência dessas relações ensejou o surgimento de tratados entre as cidades, chamados asília, que seriam a origem dos tratados de DIPr,2 com o fim de proteger os súditos e resguardá-los contra violências. O meteco chegou a gozar de certos direitos políticos e civis, sendo então chamado isótele.
2.3 Roma Em Roma, o estrangeiro, a princípio vendido como escravo e tendo seus bens sequestrados, evoluiu para peregrino, com certos direitos, baseados no jus gentium. Em 242 a.C., surge o pretor peregrino, para solucionar as questões entre romanos e estrangeiros ou entre somente estes, desde que residentes em
Roma. O pretor exercia o antigo poder jurisdicional dos reis, sendo a autoridade suprema na administração da justiça e encarnando, na esfera de suas atribuições, a soberania do povo romano, podendo “também criar, ou transformar o direito (critérios de apreciação), se tal exigissem as necessidades da prática”.3 Também no Egito, no tempo de Amenófis III (1500 a.C.), firmaram-se alguns tratados de comércio com os babilônios e com os hititas. Na Bíblia, outrossim, há passagens simpáticas ao estrangeiro, como “não afligirás o forasteiro nem o oprimirás, pois forasteiro foste na terra do Egito” (Êxodo, cap. 22, vers. 20) e “se o estrangeiro peregrinar na vossa terra não o oprimireis” (Levítico, cap. 19, vers. 33). Inobstante tais legislações e preceitos, não há que se falar em DIPr nesses tempos. Como destaca Jacob Dolinger, os estrangeiros não participavam da vida jurídica, não admitindo os direitos locais cotejo com direitos estrangeiros, o que afastava qualquer possibilidade de conflito: existia apenas um complexo de normas de direito material,4 sendo absoluta a territorialidade das leis. A invasão dos bárbaros no Império Romano, em 476 de nossa era, vai alterar essa situação. A partir de então passam a conviver, no mesmo contexto, pessoas de diferentes línguas, raças e condições econômicas e sociais. Nesse ínterim, surge a personalidade das leis, por meio da qual cada ser humano será julgado pelas leis de sua tribo, seu povo, sua nação. O romano, mais interessado no fator econômico, respeitava a lei e os costumes nativos já quando de suas conquistas, como o atesta o próprio julgamento de Cristo, conduzido pelos hebreus e seguindo as leis hebraicas. Após a invasão dos bárbaros, suas normas jurídicas vão vigorar nos lugares dominados, com o que o caráter territorial das leis cede ao direito de sangue, o jus sanguinis. Acresça-se que os bárbaros, não conseguindo absorver as leis romanas, permitiam que cada um se regesse por suas próprias leis. Apenas em caso de conflito imperava a lei dos vencedores. Assim, vigiam lado a lado no mesmo espaço leis romanas, visigóticas, lombardas e bávaras, entre outras. O julgador devia perguntar “sub qua lege vivis?” e só então aplicar a lei. É sempre referido o depoimento de Agobardo, presbítero de Lyon, ao rei francês Luís, o Pio: “Podia acontecer de cinco pessoas que se agrupassem em uma reunião estarem sujeitos a cinco ordenamentos distintos”.5 A miscigenação vai fazendo desaparecer esse regime jurídico da personalidade do direito, que se extingue na Espanha, no século VIII, quando surge o Codex Wisigothorum, o qual unifica o conjunto de leis, suprimindo todas as legislações ali existentes, inclusive a romana. A morte de Carlos Magno, no século IX, com a dissolução do Império carolíngio, vai ocasionar o restabelecimento da territorialidade das leis.
2.4 Feudalismo A pouca força dos sucessores de Carlos Magno resultou no surgimento do feudalismo. Passa-se a ter necessidade de proteção contra invasores e malfeitores, sendo que a própria realeza reforça o poder do senhor feudal, que agia como rei em seu território, construindo muralhas e fortificações, e determinando o modus vivendi de seus súditos. Dentro de seus domínios, o senhor feudal admitia apenas a sua lei. É a territorialidade da lei, o jus soli. Mas o feudalismo, dominante na Europa, não se firmou no norte da Itália, onde era grande o intercâmbio comercial e industrial entre as cidades de Florença, Veneza, Pisa, Perúgia, Milão, Bolonha e Módena, entre outras. Elas eram verdadeiras repúblicas autônomas, com direito próprio, o statuta,
resumo do antigo direito costumeiro das cidades e dos comerciantes, em oposição à Lex, direito romano, que era o direito comum, geral, aplicável quando omisso o direito particular da cidade.6 O Estatuto de Gênova surgiu em 1145, o de Pisa em 1161, o de Ferrara em 1208, o de Milão em 1216, o de Módena em 1218, o de Verona em 1228 e o de Veneza em 1242.7 Os estatutos continham prescrições administrativas, penais, civis e comerciais. Esse intercâmbio entre as cidades começou a defrontar-se com fatos que requeriam soluções jurídicas, não dirimidas da mesma forma em seus estatutos. Note-se que não havia até esse momento normas de DIPr para disciplinar tais relações.
2.5 Glosadores e escolas estatutárias Em 1100, Irnerius instituiu o ensino do Direito Romano na Escola de Bolonha, por ele fundada. Estudando o Digesto, foi escrevendo breves notas marginais ou interlineares explicativas do conteúdo, as glosas, nas quais confrontava textos, desfazia contradições e buscava um entendimento harmonioso e o mais completo possível do conjunto. Esse centro de estudos jurídicos passou a ser denominado escola de glosadores, nele se destacando Accursius, Bulgarus e Iacobus, ao lado de Irnerius. Lembra Edgar Amorim que o trabalho dos glosadores “nada mais foi do que uma espécie de colheita de tudo aquilo existente no Direito Romano relacionado ao convívio de Roma com os estrangeiros”.8 Segundo diversos autores, o mais antigo vestígio de Direito Internacional Privado é o parecer encontrado por Karl Neumeyer, do qual se destaca esta passagem: “Mas, pergunta-se: se homens de diversas províncias, as quais têm diversos costumes, litigam perante um mesmo juiz, qual desses costumes deve seguir o juiz que recebeu o feito para ser julgado? Respondo: deve seguir o costume que lhe parecer mais preferível e mais útil, porque deve julgar conforme aquilo que a ele, juiz, for visto como melhor. De acordo com Aldricus”.9 Os séculos XIII e XIV vão encontrar a escola dos pós-glosadores, comentaristas ou bartolistas, em Perúgia, Pádua, Pisa e Pávia. Surge então Bartolo (1314-1357), de Saxoferrato, considerado o pai do DIPr. Os pós-glosadores não se limitavam a notas explicativas, pois redigiam, sobre as glosas, comentários próprios, buscando e criando um direito novo, comum, de possível aplicação às situações de seu tempo. Ainda se destacam Cino de Pistoia e Baldo de Ubaldis, mas Bartolo foi o maior de todos, já tendo sido considerado “o maior jurista da Idade Média”, “pai do direito” e “lampião do direito”. Ele foi o fundador da escola estatutária italiana e dividiu os estatutos em reais (lei da situação da coisa) e pessoais (ligados à pessoa). Em resumo, conforme síntese apresentada por Luís Ivani de Amorim Araújo,10 a solução dos conflitos, preconizada pelo sistema estatutário italiano que vem sendo adotada até nossos dias, era esta: a) Bens imóveis: regido pela localização da coisa; b) Sucessão: de acordo com o domicilio do falecido, sendo que a formalidade na sucessão era regida pelo lugar da elaboração do ato; c) Contratos e seus efeitos: conforme o lugar da celebração (para as obrigações) e da execução (para negligência e mora); d) Delitos: segundo a lei do lugar do ato. Além da italiana, tais escolas ou sistemas estatutários compreendem mais três: a francesa, a holandesa e a alemã. A escola estatutária francesa, no século XVI, foi criada por Bertrand D’Argentré (l519-1590) e distinguiu os estatutos reais (coisas) e os pessoais, mais tarde admitindo os mistos. O estatuto pessoal,
que era exceção, devia acompanhar o ser humano, sendo que a regra era o estatuto real. Assim, a extraterritorialidade seria muito limitada. Já no século XVIII, Boulenois, Bouthier e Froland reestruturam a escola, ampliando a aplicação extraterritorial dos estatutos, o que deixou de ser exceção. Merece referência Charles Dumoulin (1500-1566), criador da teoria da autonomia da vontade, faculdade de as partes estabelecerem a lei que deve reger a validade de um contrato. Se não indicada a lei, a escolha do local para a realização do contrato indica a vontade dos contratantes. Dumoulin é referido por muitos tratadistas como integrante da escola francesa, mas Haroldo Valladão o coloca na escola italiana, como seu “último e grande continuador, mas também reformador”.11 Cabe lembrar que alguns autores estudam os dois sistemas estatutários como um só: a escola ítalo-francesa. A escola estatutária holandesa, do século XVII, tem como expoentes Bulgarus, Chistian Rodenburg – seu criador, e Ulrich Huber – o mais famoso, adotando o critério absoluto da territorialidade de todos os estatutos (reais e pessoais). Mais tarde, a escola passou a aceitar, em casos excepcionais, a aplicação de estatutos pessoais, em razão da cortesia internacional (comitas gentium). Ulrich assim sintetizou os parâmetros de sua escola: as leis só vigoram no território do Estado e obrigam todos os seus súditos, sendo estes os que se encontram nos limites do Estado de forma permanente ou não, e os governantes, por cortesia, podem admitir que o direito objetivo de cada povo conserve seus efeitos em toda parte, contanto que não prejudique o Estado estrangeiro nem seus súditos. Os autores divergem sobre consideração da comitas dos holandeses como cortesia ou necessidade de fato relativa aos interesses particulares. Para Amílcar de Castro, era necessidade de fato, nada tendo a ver com cortesia, enquanto Edgar Amorim entende que a comitas visava a ambos. Apesar de muitos tratadistas não a referirem como sistema autônomo, a escola alemã, do século XVIII, destaca Nikolas Hert e Henrich von Cocceji. Amílcar de Castro indica que “como doutrina, ou escola, a alemã só pode ser considerada atípica, eclética, não saliente por qualquer traço original, senão pela maior precisão de conceitos”,12 mas reconhece que, ao repetir as demais doutrinas, ela as melhorou. Os estatutos são os reais, pessoais e mistos. Sintetizando, deve-se lembrar que as escolas estatutárias não eram práticas, não alcançando o êxito almejado.
2.6 Codificação O século XIX vai assistir ao surgimento de normas de Direito Internacional Privado em códigos civis de vários países, como França (1804), Itália (1865) e Alemanha (1896). Em 1855, com Andrés Bello, primeiro autor de obra autônoma sobre Direito Internacional Privado na América, aparece o Código Civil do Chile, que estabelece, em seu artigo 57, que “a lei não reconhece diferença entre o chileno e o estrangeiro quanto à aquisição e gozo dos direitos civis que regra este código”. Era um princípio novo, ainda não estabelecido em nenhuma codificação civil do mundo, nem mesmo na francesa, que exigia, rigorosamente, reciprocidade diplomática e legislativa para reconhecimento desses direitos. Haroldo Valladão exalta nesse legado chileno o espírito inovador, que, tendo o territorialismo como princípio básico, quanto às pessoas, aos atos e aos bens situados no território, e a nacionalidade em casos restritos – para o chileno que no estrangeiro pratica atos que viessem produzir efeitos no Chile, e em suas relações de família com chilenos – se constituiu em combinação equilibrada e sensata de regras de DIPr.13 No que tange ao nosso país, é oportuno destacar que a Carta Magna de 1891 assegurou, no artigo 72, aos estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança
individual e à propriedade, associando-se a esse nascente espírito de aceitação das pessoas oriundas de outros países.
2.7 Doutrinas modernas Ainda no século XIX vão despontar os grandes precursores da doutrina de Direito Internacional Privado, Story, Savigny e Mancini, cujas contribuições para nossa disciplina influenciarão as legislações, as decisões judiciais, as convenções e os tratados a partir de então. É prudente afirmar que os ensinamentos desses mestres continuam indicando caminhos, em pleno século XXI, para legisladores e estudiosos de DIPr em todo o mundo. Joseph Story, professor da Universidade de Harvard e membro da Suprema Corte americana, publicou em 1834 seu Conflict of Laws, que, segundo Valladão, se tornou “quase uma bíblia para os julgados e a doutrina não só nos Estados Unidos como na Inglaterra”. Tenório acentua que Story, cuja influência continua a exercer-se, ensinou à Europa uma concepção baseada na equidade dos conflitos de leis, sem os limites da divisão estatutária.14 Story alicerçou-se em princípios das escolas estatutárias, como D’Argentré e Huber, naquilo que considerou importante, mas versou os temas separadamente, nem mesmo aceitando a divisão em estatutos pessoais, reais e mistos. Ele substituiu a gentileza internacional, a cortesia, pelo princípio da busca da boa justiça, na aplicação do direito estrangeiro. Em resumo, sua doutrina estabelece: a) Capacidade das pessoas: lei do domicílio; b) Capacidade para contratar: lei do local do contrato; c) Bens imóveis: lei da sua situação; d) Casamento: lei do lugar da celebração; e) Divórcio e relações dos cônjuges: lei do domicílio atual. Friedrich Carl von Savigny, professor de Berlim, escreveu Sistema de Direito Romano Atual (1849). Com ele surge a ideia de um universalismo, de um direito aplicável universal, pois entende que o interesse das pessoas requer e merece igualdade de trato das questões jurídicas, em caso de conflito de leis, preconizando que a solução seja a mesma, onde quer que ocorra o julgamento. Imagina a comunidade de direitos entre os diferentes povos, o que significa buscar para cada relação jurídica surgida o direito mais de acordo com a natureza e essencialidade dessa relação. Isso se faz pela localização da sede da relação em causa, que é o domicílio das pessoas quanto ao seu estado e capacidade, e a localização da coisa para qualificá-la ou regê-la. Na verdade, o domicílio é o elemento de conexão por excelência, acentuando Cláudia Lima Marques que Savigny procurou a harmonia das decisões, aplicando a lei nacional ou a estrangeira mais conectada com a relação jurídica, quando essa relação envolve mais de um ordenamento jurídico.15 Savigny já alerta para quatro institutos que são inaplicáveis nos foros que não os admitem, tornando-se, portanto, não abarcáveis pelas normas de DIPr: poligamia, morte civil, escravidão e proibição de aquisição de propriedade imobiliária por judeus. Pasquale Stanislao Mancini, italiano, foi fundador e presidente do Instituto de Direito Internacional. A rigor, não deixou uma obra escrita, mas suas palestras e aulas, especialmente na Universidade de Turim (1851) e de Roma, foram publicadas em 1874, sob supervisão sua, enfocando os fundamentos e os princípios do Direito Internacional Privado. Sua doutrina se embasa na nacionalidade, mas com restrições, tendo grande influência na Europa, onde a nacionalidade, contrariamente ao domicílio de Savigny, é o elemento de conexão comum na legislação dos diversos países.
RESUMO 2.1 Considerações iniciais Na Antiguidade, não existiram normas de DIPr, porque o estrangeiro era considerado inimigo, não possuindo direitos e não podendo, o mais das vezes, casar, herdar, contratar ou praticar o comércio.
2.2 Grécia Chamado meteco, o estrangeiro pagava uma taxa especial e podia exercer atividades comerciais, inclusive com judicatura própria, a polemarca, para proteger sua família e seus bens. Surgem o próxeno, que orienta o estrangeiro em negócios e interesses, e a asília, tratado entre as cidades, origem dos atuais tratados de DIPr.
2.3 Roma O peregrino, com certos direitos no jus gentium, passa a contar com seu pretor peregrino. Com a invasão dos bárbaros, passam a viver no mesmo território pessoas de diferentes línguas e origens, surgindo a personalidade das leis: na solução da lide, o julgador aplica a lei de cada um (visigodo, lombardo, romano etc.).
2.4 Feudalismo Retorna a territorialidade das leis, que no feudo é absoluta, mas o feudalismo não se firma nas cidades do norte da Itália.
2.5 Glosadores e escolas estatutárias Irnerius (1100) estuda Direito Romano na Escola de Bolonha e coloca notas lineares ou marginais (glosas) no Digesto. Surge a escola dos glosadores, que busca nas leis romanas o que existia sobre estrangeiros. No século XIV, surge Bartolo, o pai do DIPr: é a escola dos pós-glosadores, com comentários próprios sobre as glosas, criando um direito novo. Solução para os conflitos: Bens imóveis: lei da localização da coisa. Sucessão: domicílio do falecido. Contratos: lugar da celebração. Delitos: lei do lugar do ato. Escolas estatutárias: Francesa: estatutos reais e pessoais – D’Argentré. Holandesa: critério absoluto de territorialidade de todos os estatutos. Alemã: pequena contribuição – estatutos reais, pessoais e mistos.
2.6 Codificação No século XIX, surgem os grandes códigos: Código Civil da França (1804) e Código Civil do Chile (1855), com regras sobre o estrangeiro.
2.7 Doutrinas modernas
Joseph Story: EUA, 1834. Escreveu Conflict of Laws, defendeu a equidade dos conflitos de leis e o critério da busca da boa justiça na aplicação do direito estrangeiro. Friedrich Carl von Savigny: Alemanha, 1849. Autor de Sistema de Direito Romano Atual, aventou a mesma solução para o conflito de leis entre os diferentes povos e defendeu o domicílio como o principal elemento de conexão. Pasquale Stanislao Mancini: Itália, 1851. Fez notáveis palestras em Turim e Roma, propondo a nacionalidade como elemento de conexão.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Dissertar sobre o tratamento dispensado ao estrangeiro na Antiguidade, detendo-se nas regras em seu favor que surgiram em Roma e na Grécia. 2. Estabelecer um paralelo entre a territorialidade e a personalidade das leis, conceituando-as e acentuando sua presença na trajetória do Direito Internacional Privado e na atualidade. 3. Tecer comentários sobre a escola dos pós-glosadores, analisando o trabalho de Bartolo e sua contribuição ao DIPr moderno. 4. Fazer um estudo das escolas estatutária francesa e holandesa, enfatizando a importância de cada uma delas para o estudo atual de nossa disciplina. 5. Analisar as contribuições trazidas ao Direito Internacional Privado pelos códigos civis do século XIX, especialmente o Código de Napoleão e o de Andrés Bello. 6. Dissertar sobre os grandes mestres do século XIX (Story, Savigny e Mancini), destacando a importância de suas doutrinas ao estudioso de Direito Internacional Privado do século XXI.
______________ 1 Ver, entre outros, AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 63. 2 TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. v. I, p. 64. 3 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 130. 4 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 180. 5 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Introdução ao direito internacional privado. p. 15. 6 Ver, entre outros, FOELIX, M. Traité du droit international privé. v. I, p. 36-37. 7 CONTUZZI, Francesco Paolo. Diritto internazionale privato. p. 54. 8 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 66. 9 Ver, entre outros, CASTRO, A. Op. cit. p. 127. 10 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Curso de direito dos conflitos interespaciais. p. 19. 11 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I, p. 111. 12 CASTRO, A. Op. cit. p. 154. 13 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 155. 14 TENÓRIO, O. Op. cit. p. 184. 15 MARQUES, Cláudia Lima. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. p. 328-329.
DENOMINAÇÃO E MÉTODO DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E A DISCIPLINA NO BRASIL
“O DIP atua quase exclusivamente através de regras de conflitos, e o objeto imediato destas, não se duvida, são as regras materiais dos Estados” (Rui Manuel Gens de Moura Ramos).
3.1 Considerações iniciais Os tratados sobre nossa disciplina costumam identificá-la como Direito Internacional Privado, denominação que prevalece, embora outros nomes sejam empregados. Entendemos válido referir essas formas, assim como analisar a autonomia, por vezes contestada, e o método empregado no estudo do DIPr. Este capítulo se ocupará desses aspectos da matéria, completando-se com breve histórico da disciplina no Brasil. Nesse ponto, enfatizaremos os seus primórdios no ordenamento jurídico do País, ocupando-se das primeiras normas adotadas e da figura exponencial de Teixeira de Freitas. Referiremos os estudiosos de DIPr, aludindo suas contribuições para a consolidação da disciplina em nosso meio.
3.2 Denominação A denominação Direito Internacional Privado, consagrada há mais de século para identificar nossa disciplina, teria sido usada pela primeira vez por Jean Etiene Portalis, um dos autores do Código de Napoleão, na sua dissertação de mestrado, em 1803, em Paris. Joseph Story empregou-a em sua obra Conflict of Laws, em 1834, e Jean Jacques Gaspar Foelix, advogado alemão radicado em Paris, utilizou a expressão no título de seu livro Traité de Droit International Privé, em 1843.1 Verifica-se que até se fixar essa denominação, foram empregadas muitas outras, por diversos autores, como Direito Privado Internacional, Direito dos Limites, Direito Interprivado, Direito dos Estrangeiros, Direito Intersistemático, Direito Privado Humano, Direito Extraterritorial, Direito Polarizado e Direito dos Conflitos Interespaciais. Embora ressalvando o pouco uso, lembramos outras denominações que têm sido referidas pela doutrina: Direito Interestatal Privado ou Direito Interespacial, Direito Universal dos Estrangeiros, Direito Privado Externo ou Interdireito, Direito de Delimitação, Direito Civil Internacional e Direito Interjurisdicional. Haroldo Valladão amplia a lista, citando Direito Translatício, Jus Gentium Privatum, Teoria dos Estatutos e Direito Transnacional, mas enfatiza que Direito Internacional Privado e Conflito de Leis são as mais usadas, e justifica sua opção por Direito Internacional Privado por ser essa “a mais usada na Europa continental, na América Latina e no Brasil”, ressalvando que preferiria Conflito de Leis.2 A disciplina – que nos seus primórdios, desde os estatutários holandeses e alemães, foi chamada de Conflito, Concurso ou Colisão de Estatutos ou de Leis – também já foi conhecida como Normas de Colisão e Nomantologia, denominação esta dada pelo brasileiro Raul Pederneiras, em atenção às raízes etimológicas gregas: nomos (lei), ante (confronto) e logos (estudo).
De tudo depreende-se que o nome Direito Internacional Privado é admitido universalmente, e como tal é a disciplina conhecida e comumente identificada.
3.3 Autonomia do DIPr Não há unanimidade entre os estudiosos quanto a esse tema. Entre os discordantes está Oscar Tenório, que afirma ser controvertida tal autonomia, embora reconheça que as particularidades das regras de conflitos justificam o estudo particularizado do Direito Internacional Privado, pois há necessidade de “conhecimento e solução das chamadas questões prévias (conexão, qualificação etc.) e da subordinação do direito estrangeiro a ser aplicado ao princípio da ordem pública”.3 No entanto, a maioria dos tratadistas preconiza a maioridade do DIPr, como Edgar Carlos de Amorim, para quem a autonomia de uma ciência ou de um ramo do Direito ocorre quando existem objeto, método, institutos e fundamentos próprios.4 Exemplifica seu objeto (conflito de leis, reconhecimento de direitos adquiridos) e institutos (extradição, deportação, expulsão, nacionalidade). De nossa parte, consideramos plenamente justificada a autonomia da disciplina.
3.4 Método Tema de ingente atualidade é o método a ser seguido pelo estudioso de Direito Internacional Privado. Basicamente, trata-se do equacionamento das seguintes questões básicas: jurisdição e lei aplicável. Inicialmente, a solução dos casos de DIPr era encontrada pelo método territorial: aplicava-se a lei do juiz. Por exemplo, quando existiam controvérsias na execução de contrato entre pessoas de duas cidades italianas, a questão era dirimida pelo juiz da causa, sem importar onde o contrato fora celebrado ou qual o Direito que o regulamentava. Embora superada essa fase, registra Cláudia Lima Marques forte tendência de seu emprego, especialmente na doutrina norte-americana, caracterizando um novo lex forismo.5 Nadia de Araújo lembra o universalismo – o mesmo DIPr em todos os países –, que imperou no século XIX, método que daria lugar ao particularismo – a diversidade cultural dos Estados conduz a sistemas internos diferentes.6 A regulamentação do estatuto pessoal, com os critérios da nacionalidade e do domicílio, seria uma consequência desse último. Classicamente o DIPr utiliza o método conflitual, que conduz a uma das ordens jurídicas envolvidas, à qual caberá dirimir a lide. Esse método é o mais usado, inclusive no Brasil, postura que tende a prevalecer por mais tempo. Como afirmado, o método conflitual não soluciona a lide interespacial, indicando apenas a legislação, do foro ou estrangeira, que dirimirá o feito. Seguindo o exemplo anterior, perante divergências suscitadas na execução de contrato (agora entre pessoas de países diferentes) o direito aplicável deve ser indicado pelas normas de conflito. Essas normas não dão a solução material do litígio, simplesmente indicam qual é o direito que deve solucionar o caso, que poderá ser o direito local ou o estrangeiro. As regras que determinam a lei aplicável podem ser classificadas pela fonte (legislativa, doutrinária e jurisprudencial), pela natureza (indireta, indicando qual o direito interno a ser apreciado) e pela sua estrutura.7 No entanto, existem outros caminhos para a solução do caso interespacial, como o emprego do método material, pelo qual o próprio Direito Internacional Privado decidirá a relação sub judice. Por
esse método não é indicado o direito aplicável, nacional ou estrangeiro, mas a própria solução da lide. Essa é a tendência do DIPr, com a ocorrência de soluções para as lides interespaciais em tratados ou convenções internacionais. Pode ocorrer, ainda, o denominado método imperativo ou de aplicação imediata: a legislação interna do Estado dirime a lide de forma unilateral, priorizando a solução pelo direito nacional, em detrimento das demais legislações (seja estrangeira ou fruto de tratado ou convenção). Desse modo, verifica-se a pluralidade de métodos e de normas indiretas e diretas, que entendemos adequada e coerente com nosso tempo.
3.5 Direito Internacional Privado no Brasil Falar em DIPr em nosso país é recordar o maior jurista brasileiro do século XIX e precursor da disciplina, Augusto Teixeira de Freitas, considerado um dos maiores expoentes do direito de seu tempo em toda a América.8 3.5.1 Primeiros tempos Antes da Independência, vigiam no Brasil as leis portuguesas em todos os campos do Direito. As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e, por período mais longo, as Filipinas, eram a legislação que regulava a vida jurídica em nosso território. Essas normas estavam impregnadas, no que se refere ao campo do Direito Internacional Privado, da inspiração estatutária oriunda da Europa, tendo como base o princípio do locus regit actum para os contratos e a necessidade de prova do direito estrangeiro. 3.5.2 Augusto Teixeira de Freitas O Regulamento n. 737, de 25 de novembro de 1850, complementava o princípio acima, determinando a lei do lugar da execução para os contratos comerciais. O artigo 406 da Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, de 1857, estabelecia que “as leis e usos de países estrangeiros regem a forma dos atos neles ajustados”.9 Essa obra foi publicada no Rio de Janeiro e nela Augusto Teixeira de Freitas, após pouco mais de dois anos de trabalho, ordenou, classificou e atualizou o direito legislado, esparso, confuso e impreciso, então vigente no Brasil. Tratava-se de leis, decretos, assentos, alvarás, resoluções, regulamentos e demais preceitos jurídicos, desde as ordenações portuguesas, muitas delas já revogadas na terra lusa, até as normas jurídicas brasileiras das três primeiras décadas após a Independência. Haroldo Valladão considerou tal obra como a Carta magna da independência jurídica brasileira.10 Três anos depois, Freitas publica o Esboço do Código Civil do Império. Disciplinado, inteligente, estudioso, humanista e dotado de profundo senso de justiça, Teixeira de Freitas deixou uma obra que imortalizou seu nome, honrou o Brasil e enobreceu sua época, servindo ainda de ponto de convergência na legislação civil entre os povos irmãos que, um século após sua morte, se integrariam no Mercado Comum do Sul, o Mercosul. O insigne jurista teve notável influência na codificação do Direito Civil sul-americano, tendo o Código Civil da Argentina e o do Paraguai, que foi adaptação daquele, sido inspirados no seu Esboço. Outros países do continente, como o Uruguai e o Peru, buscaram luzes jurídicas no seu trabalho. A originalidade e completude do Esboço deram organicidade às normas de DIPr. Acentua Valladão o admirável método de Freitas na solução das questões dos conflitos de leis, no espaço ou no tempo,
inspirando-se na teoria de Savigny, mas a aperfeiçoando com ideias próprias.11 Teixeira de Freitas adotou o domicílio como principal elemento de conexão. Assim: “A capacidade ou incapacidade das pessoas não domiciliadas no Império devem ser julgadas pelas leis dos países de seus respectivos domicílios”.12 O domicílio, ausente no Código Civil de 1916, que optou pela nacionalidade, seria integrado ao ordenamento jurídico brasileiro com a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), de 1942, sendo até hoje a conexão adotada. Acentue-se que a LICC teve sua denominação alterada para “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” (LINDB), pela Lei n. 12.376, de 31 de dezembro de 2010. 3.5.3 José Antônio Pimenta Bueno Outro notável estudioso lança, em 1863, a obra Direito internacional privado e aplicação de seus princípios com referência às leis particulares do Brasil. Trata-se de José Antônio Pimenta Bueno, paulista de Santos e magistrado nessa cidade e no Maranhão, que é tido por muitos autores como o primeiro tratadista brasileiro de DIPr. Inspirado pela obra de Foelix e pelo Código Napoleônico, fez uma exposição sistematizada da matéria, tendo sido intransigente defensor da nacionalidade como principal elemento de conexão. Considerando-se a contemporaneidade dos trabalhos de Teixeira de Freitas e de Pimenta Bueno, incontestáveis precursores do DIPr no Brasil, defrontou-se o nosso Direito com duas correntes doutrinárias quanto ao elemento de conexão: uma defendendo o domicílio e outra a nacionalidade. 3.5.4 Notáveis tratadistas Segue-se, já no século XX, a prevalência da figura de Clóvis Beviláqua no estudo dos postulados de DIPr. Em 1906, publicou Princípios de direito internacional privado, no qual defendeu o princípio da nacionalidade por entender mais duradoura e de mais fácil determinação do que o domicílio. Foi o principal autor do Código Civil brasileiro de 1916, em cuja Introdução consagrou-se a nacionalidade como o motivo de ligação mais importante no conflito de leis no espaço. A LICC, agora LINDB, como afirmado, adotou o domicílio como principal elemento de conexão, dando assim razão à tese historicamente defendida por Teixeira de Freitas. Deve-se ressaltar que a mudança ocorreu em plena II Guerra Mundial, período em que o número de alemães, italianos e japoneses residentes no Brasil era expressivo, podendo, pela legislação então vigente, verem-se aplicadas em nosso país leis de nações tornadas inimigas. Embora essa situação não impeça, por si só, o emprego de lei estrangeira no direito interno – até porque o jurídico não se deve submeter ao político –, a comprovação do conteúdo e da vigência das normas desses Estados quando invocadas pelas partes ficava extremamente prejudicada pela ausência de órgãos desses países no Brasil. Lugar especial no estudo, no magistério e na doutrina de DIPr no Brasil cabe a Haroldo Teixeira Valladão, por vezes referido como o maior internacionalista do continente americano no século XX. Com dedicação à nossa disciplina, participação em eventos em diversos países, cursos e palestras proferidos, ao lado de sua obra clássica Direito Internacional Privado, em três volumes, e do anteprojeto de Código de Aplicação das Normas Jurídicas, conquistou merecido respeito e admiração no mundo jurídico. Essa iniciativa, a exemplo do Projeto de Código de Direito Internacional Privado, de Lafayette Rodrigues Pereira, apresentado várias décadas antes, infelizmente não logrou se transformar em lei. Queremos destacar dois outros nomes de tratadistas brasileiros de DIPr: Oscar Tenório e Amílcar
de Castro, reconhecidos internacionalmente como expoentes da matéria, sendo a consulta aos seus trabalhos uma imposição e uma necessidade. Na história do Direito Internacional Privado, devemos referir ainda Rodrigo Otávio, Eduardo Espínola, Pontes de Miranda e Carvalho Santos, este com notável estudo sobre a Introdução ao Código Civil de 1916, em seu clássico Código Civil brasileiro interpretado. Espínola é autor, com Eduardo Espínola Filho, de magistral trabalho em três volumes, A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, publicado em 1943, sendo reeditado, a partir de 1995, constituindo-se em verdadeiro clássico no gênero. 3.5.5 Atualidade do DIPr brasileiro Nas últimas décadas, uma gama de autores esmera-se na busca de conhecimentos e de maiores contribuições ao DIPr, publicando-se a cada ano novos trabalhos ou reedições de obras que se firmam como essenciais. Agenor Pereira de Andrade e Osíris Rocha, laboriosos e acatados mestres de Minas Gerais, são exemplos de especialistas que enriquecem a matéria, constituindo, com Amílcar de Castro, o importante Grupo Mineiro da disciplina. Jacob Dolinger, Luís Ivani de Amorim Araújo, Irineu Strenger, João Grandino Rodas, Carmem Tibúrcio, Marilda Rosado de Sá Ribeiro e Edgar Carlos de Amorim têm enriquecido nossa disciplina no Brasil e contribuído para manter o alto conceito conquistado no contexto doutrinário sul-americano e mundial. Confirmando a maturidade do Direito Internacional Privado brasileiro, queremos destacar a participação dos professores Cláudia Lima Marques, Nadia de Araújo e Luiz Otávio Pimentel, nas Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado (CIDIPs) e nos Encontros Internacionais de Direito da América do Sul (EIDAS), que tanto contribuíram para o enriquecimento do DIPr e disciplinas afins como Direito do Comércio Internacional e Direito da Integração. Augusto Jaeger Junior e Sílvio Javier Battello, cujos doutoramentos se centraram em temas correlatos (concorrência e falência internacionais), também merecem referência.
3.6 Considerações finais O ensino de Direito Internacional Privado no Brasil teve início em 1907 com a implantação de cadeira autônoma na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (hoje Faculdade de Direito da UFRJ), primeiro curso superior do Brasil a ministrar a matéria. O professor Rodrigo Otávio, com renome na área e autor de diversos trabalhos, inclusive em revistas estrangeiras, foi encarregado de lecionar a disciplina, sendo substituído em 1929 pelo professor Haroldo Valladão. Em 1933, Rodrigo Otávio publicaria Dicionário de direito internacional privado, obra pioneira. Em 1911, com denominação Direito internacional, a cadeira foi criada na Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, atual Faculdade de Direito da UFRGS. Convém lembrar que a cátedra de DIPr foi criada em Paris (França) em 1880, tendo sido Lainé o seu primeiro professor, e a matéria a ser versada correspondia ao conflito de leis. Três anos depois, foram incluídas, na grade curricular, duas grandes questões prévias: nacionalidade e condição civil dos estrangeiros.13 Nesse contexto, o primeiro país a instituir a cadeira autônoma de DIPr foi a Holanda (em 1877, em Utrecht, com o professor Hamaker). No continente americano, nossa disciplina foi implantada nos cursos jurídicos na Argentina (1878), em Buenos Aires, desdobrada da cadeira de Direito Internacional Público, e como cátedra autônoma, em 1883; no Uruguai (1887); em Cuba (1893), com Bustamante; e nos Estados Unidos, desde o século XIX, em Harvard, com Beale, cadeira de Conflict of
Laws.14 O estudo de DIPr era realizado no Brasil, até o advento da disciplina, antes referido, de maneira fragmentária, compreendido no âmbito do Curso de Direito Civil. A Reforma do Ensino de 1915 criou oficialmente a cadeira de Direito Internacional Privado, como matéria obrigatória do quinto ano do curso de bacharelado. Atualmente, o Direito Internacional Privado faz parte do currículo de quase todos os cursos de Direito do Brasil, como disciplina autônoma, sendo exigido em inúmeros concursos para ingresso em profissões da área jurídica. Quanto à literatura do Direito Internacional Privado, é cada vez mais rica em todas as partes do mundo. A proximidade entre os povos e o intenso intercâmbio propiciado pela modernidade ampliam a necessidade de parâmetros jurídicos para dirimir os conflitos daí emergentes. A exemplo do Brasil, França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha e Estados Unidos, entre outros países, contam hoje com dedicados estudiosos de DIPr.
RESUMO 3.1 Considerações iniciais Este capítulo estuda a denominação, a autonomia e o método do DIPr, bem como o desenvolvimento da disciplina no Brasil.
3.2 Denominação Diversas designações foram utilizadas para designar nossa disciplina, como Direito Privado Internacional, Direito Privado Humano, Direito Extraterritorial, Direito Interespacial, Direito Universal dos Estrangeiros, Direito Civil Internacional, Direito Translatício, Nomantologia e Conflito de Leis. No entanto, a denominação Direito Internacional Privado fixou-se e é hoje universalmente aceita.
3.3 Autonomia A autonomia do DIPr é aceita pela maioria dos doutrinadores, até porque esse ramo do direito dispõe de objeto, institutos, fundamentos e método próprios. Mesmo as vozes discordantes reconhecem que os conflitos de leis possuem características que justificam o estudo específico.
3.4 Método Entendemos que vige no Direito Internacional Privado a pluralidade de métodos, assim sintetizada: territorial (apenas a lei do foro), conflitual (o método clássico, ainda dominante, que opta entre o direito nacional do foro ou o estrangeiro, que dirimirá a lide), material (solução da relação jurídica interespacial pelo DIPr) e imperativo (aplicação direta de norma obrigatória).
3.5 Direito Internacional Privado no Brasil Augusto Teixeira de Freitas tem sido considerado o maior jurista brasileiro do século XIX e foi o precursor da disciplina.
3.5.1 Primeiros tempos As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas vigoraram no Brasil, do descobrimento à Independência, e privilegiavam, em matéria de conflito de leis no espaço, o locus regit actum. 3.5.2 Augusto Teixeira de Freitas Teve notável influência na codificação do direito sul-americano (Código Civil argentino). Seguidor de Savigny, escreveu Esboço do Código Civil do império, em 1860, e defendeu o domicílio como o principal elemento de conexão. 3.5.3 José Antônio Pimenta Bueno Autor da primeira obra específica de Direito Internacional Privado publicada no Brasil, defendeu a nacionalidade como elemento de conexão. 3.5.4 Notáveis tratadistas Clóvis Beviláqua (Princípios de direito internacional privado e principal autor do Código Civil brasileiro de 1916), Lafayette Rodrigues Pereira, Haroldo Valladão, Oscar Tenório, Amílcar de Castro, Rodrigo Otávio e Eduardo Espinola. 3.5.5 Atualidade do DIPr brasileiro Agenor Pereira de Andrade, Osíris Rocha, Jacob Dolinger, Luís Ivani de Amorim Araújo, Irineu Strenger, João Grandino Rodas, Carmem Tibúrcio, Marilda Rosado de Sá Ribeiro e Edgar Carlos de Amorim. Cláudia Lima Marques (UFRGS), Nádia de Araújo (PUCRJ) e Luiz Otávio Pimentel (UFSC): eventos para o aprimoramento do DIPr, do Direito do Comércio Internacional e do Direito da Integração (CIDIPs e EIDAS).
3.6 Considerações finais O ensino de DIPr no Brasil, como cadeira autônoma, surgiu na atual Faculdade de Direito da UFRJ (1907), com Rodrigo Otávio, sucedido vinte anos depois por Haroldo Valladão. Em 1911, foi introduzido na atual Faculdade de Direito da UFRGS. O conteúdo (conflito de leis no espaço) era ministrado no curso de Direito Civil. Hoje, o DIPr está presente em quase todos os currículos jurídicos e em concursos da área jurídica. A Holanda foi o primeiro país do mundo (Utrecht, 1877) a instituir a cadeira de DIPr, sendo a Argentina (Buenos Aires, 1878) o primeiro Estado em nosso continente. A literatura de DIPr é hoje vasta e rica. França, Itália, Alemanha, Brasil, Portugal, Espanha e Estados Unidos, entre outros países, possuem notáveis trabalhos de estudiosos e pesquisadores da disciplina.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Analisar três denominações para o Direito Internacional Privado que você considera adequadas,
justificando-as. 2. No contexto atual, em que as ciências jurídicas tendem à especialização, por vezes exagerada, defender ou criticar a autonomia do Direito Internacional Privado. 3. Tecer considerações sobre o método usado no estudo do DIPr, sugerindo aquele que lhe parecer mais compatível para o aprendizado da disciplina na contemporaneidade. 4. Dissertar sobre os estudos de Augusto Teixeira de Freitas e sua contribuição ao Direito brasileiro e latino-americano, detendo-se na presença desses estudos na codificação civil argentina. 5. Tecer considerações sobre os elementos de conexão defendidos por Teixeira de Freitas e por Pimenta Bueno, enfatizando a posição atual do DIPr brasileiro nesse tema. 6. Comentar a principal modificação, em relação à conexão, na Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, contextualizando-a e a justificando.
______________ 1 Ver, entre outros, CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 100; SILVA ALONSO, Ramón. Derecho internacional privado. p. 37. 2 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I, p. 47. 3 TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. v. I, p. 20. 4 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 15. 5 MARQUES, Cláudia Lima. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. p. 337. 6 ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática. p. 34-35. 7 ARAUJO, N. Idem, p. 36. 8 SILVA ALONSO, Ramón. Carta ao autor desta obra em 20 de julho de 1999. 9 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis. v. I, p. 278. 10 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 168. 11 VALLADÃO, H. Idem. p. 173. 12 TEIXEIRA DE FREITAS, A. Op. cit. p. 280. 13 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 44. 14 VALLADÃO, H. Idem. p. 62-63.
FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“A complexidade dos problemas versados pelo Direito Internacional Privado conduz a uma variedade de fontes produtoras de regras que visam indicar soluções, umas mais, outras menos eficazes” (Jacob Dolinger).
4.1 Considerações iniciais Lembremos, inicialmente, que as fontes do Direito podem ser materiais – fatores sociológicos, econômicos e culturais, entre outros, que conduzem à instituição da norma jurídica – e formais – as regras jurídicas elaboradas por processo legislativo, os costumes, a analogia e os princípios gerais do Direito. As primeiras são fontes de inspiração e as segundas, de vigência do Direito. Neste estudo, interessa referir as fontes formais do Direito Internacional Privado, que não se afastam substancialmente das dos demais ramos das ciências jurídicas. Os estudiosos divergem quanto às fontes, mas em essência as classificam em fontes internas – as leis de cada país – e fontes externas – os tratados. Nos dois polos encontramos os costumes, a doutrina e a jurisprudência. Cada tratadista dispõe as fontes da maneira que lhe parece adequada, enfatizando a maior importância desta ou daquela. No entanto, existe um consenso, verificado na leitura de autores brasileiros e estrangeiros: o de que é a lei a fonte principal do DIPr. Haroldo Valladão, ao se referir aos sistemas de produção jurídica, em DIPr e nos demais ramos do Direito, observou que ela varia conforme a necessidade de emprego em cada espécie: em matérias clássicas, codificadas, predomina a lei; nas modernas e contemporâneas, os tratados; nas menos legisladas cresce a influência da jurisprudência e da doutrina; enquanto nas que acatam a autonomia da vontade os acordos e convenções são as fontes mais importantes.1 Após estudar diversas classificações de fontes, Strenger as hierarquiza desta forma: lei interna, tratados normativos, costume interno, jurisprudência e doutrina.2 De nossa parte, preferimos classificar as fontes do DIPr na seguinte ordem: lei, tratados, doutrina, jurisprudência e costumes.
4.2 Lei Como referido, a lei é a principal fonte do Direito Internacional Privado na maioria dos países, encontrada em seus Códigos Civis ou em leis especiais. No Brasil, ela detém essa primazia como fonte de DIPr, contida em várias normas jurídicas. Na Lei Magna de 1988, temos postulados referentes aos estrangeiros nos arts. 5º, 12, 14 e 22, bem como sobre extradição (art. 102, I, g) e sobre homologação de sentença estrangeira (art. 105, I, i). No Código Tributário Nacional (arts. 98 e 100), Código de Processo Civil (arts. 88 e 337), Código Civil de 1916 e Código Civil de 2002 existem dispositivos de Direito Internacional Privado. Contudo, a maioria das normas sobre o conflito de leis no espaço se encontra na Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, em seus arts. 7º a 19. Como é sabido, essa lei teve sua denominação alterada para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), pela Lei n. 12.376, de 31 de dezembro de 2010. O Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, atualizada pela Lei n. 6.964/81) segue-se à LINDB
em importância no ordenamento jurídico brasileiro, com amplo e rico conjunto de normas de DIPr.
4.3 Tratados Na impossibilidade de uma lei supranacional com poder de coerção sobre os países, os tratados assumem excepcional importância, que tende a crescer com o aumento das relações internacionais. Uma vez aprovado pelas partes signatárias e promulgado, passa o tratado a ter força de lei. A sua natureza jurídica, a partir de então, é dupla, pois obriga tanto internamente quanto no plano internacional. No Brasil, de modo geral, o tratado deve ser aprovado pelo Legislativo e promulgado pelo Presidente da República, necessitando, ainda, para sua vigência, de troca de cartas de ratificação. A forma escrita é obrigatória nos tratados, os quais ocorrem entre dois ou mais Estados soberanos e visam a um fim específico ou ao estabelecimento de normas para conduzir assuntos que implicam relações jurídicas entre seus respectivos cidadãos. Seu objeto deve ser lícito e possível e os agentes signatários são chamados de plenipotenciários. Os tratados recebem denominações diversas, nem sempre com uma razão jurídica: Convenção (institui normas gerais), Declaração (cria princípios gerais), Pacto (ato solene), Acordo (fins econômico-financeiros ou culturais), Concordata (envolve a Santa Sé), Modus vivendi (acordo temporário), Protocolo (ata de conferência ou complemento de tratado já existente) e Acordo por Troca de notas (quando encobre matéria administrativa). O tratado tem várias fases: negociação, entendimentos, assinatura, ratificação, promulgação, publicação e registro. A extinção ocorre por perda do objeto, denúncia unilateral, comum acordo, caducidade e guerra. Todo tratado deve estar ajustado aos preceitos constitucionais do país, situando-se, hierarquicamente, no caso do Brasil, no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as nossas leis internas ordinárias.3 Assim, o Supremo Tribunal Federal já consagrou a teoria da paridade entre o tratado e a lei nacional, de modo que o tratado prevalece sobre as leis internas anteriores à sua promulgação. Com a promulgação da EC n. 45/2004, a qual inseriu o § 3º no artigo 5º, determinou-se que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos quando forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. No entanto, resta a dúvida sobre qual status teriam os tratados internacionais sobre direitos humanos anteriores à referida emenda e os que não foram aprovados pelo quórum especial. Nesse contexto, segundo Gilmar Mendes, há discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, em razão do disposto no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, havia quatro principais correntes: a) Natureza supraconstitucional: defendida por Celso de Albuquerque Mello, prega que normas internacionais ratificadas pelo Brasil acerca de direitos humanos não podem ser revogadas nem mesmo por emenda constitucional. No entanto, é uma teoria difícil de ser aceita em um Estado cujo sistema é regido pelo princípio da supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento
jurídico; b) Natureza constitucional: essa teoria entende que o § 2º do artigo 5º da Constituição seria uma cláusula aberta de recepção de outros direitos em tratados internacionais relativos a direitos humanos, os quais também teriam status constitucional ao serem incorporados pelo nosso ordenamento. Assim, eventuais conflitos deveriam ser resolvidos pela aplicação da norma mais favorável à vítima. O principal defensor dessa tese é Antonio Augusto Cançado Trindade. No entanto, poder-se-ia depreender do § 3º do artigo 5º que os tratados já ratificados pelo Brasil e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação, bem como os tratados anteriores à EC n. 45/2004 não podem ser comparados às normas constitucionais; c) Status de lei ordinária: após a EC n. 45/2004, essa tese perdeu sua força, pois prega que os tratados sobre direitos humanos são equivalentes às leis ordinárias, como os demais tratados internacionais; d) Natureza supralegal: tese defendida por Gilmar Mendes, a qual afirma que os instrumentos convencionais sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, mas, diante de sua natureza especial em relação aos demais atos normativos internacionais, seriam dotados de caráter de supralegalidade, ou seja, não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor.4 O chamado Código de Direito Internacional Privado, mais conhecido por Código Bustamante, está internalizado em nossa ordem jurídica, constituindo-se, portanto, em fonte formal do DIPr brasileiro. Trata-se de bem elaborado projeto do diplomata e mestre internacionalista cubano Antonio Sanchez de Bustamante y Sirvén, aprovado, em 28 de fevereiro de 1928, por quinze Estados americanos,5 na Conferência Pan-Americana de Havana, e promulgado no Brasil em 13 de agosto de 1929 pelo Decreto n. 18.871. São também fontes de DIPr no Brasil, entre outros tratados, o Estatuto Orgânico do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), de 1940; a Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, de 1956; e as Convenções Interamericanas de Direito Internacional Privado (CIDIPs), da Organização dos Estados Americanos (OEA), como as que se ocupam das Cartas Rogatórias e da Arbitragem Internacional (ambas de 1975), das Normas Gerais de DIPr (1979) e da Obrigação Alimentar (1989).
4.4 Doutrina Afora a discussão sobre serem doutrina e jurisprudência fontes de direito, deve-se reconhecer a notável importância da doutrina na solução de conflitos de leis no espaço, quando há omissão da lei e inexiste tratado. Mesmo convenções assinadas, mas não ratificadas ou promulgadas, oferecem subsídios para os doutrinadores, em cuja obra o magistrado poderá encontrar a solução do conflito em julgamento. As conclusões dos especialistas, por serem fruto de estudo e reflexões elaboradas, sinalizam muitas vezes o futuro em qualquer área do conhecimento humano. Nas ciências jurídicas como um todo, e na área do DIPr em particular, a doutrina indica caminhos que conduzem a soluções adequadas e justas. Ademais, no caso do Direito Internacional Privado, a doutrina influenciou ao longo do tempo a evolução da disciplina em todas as partes do mundo. Dolinger chega a afirmar que “em nenhum campo do direito a Doutrina tem tanta desenvoltura como no DIPr, em razão da parcimônia do legislador”, complementando: “Daí o amplo campo de ação e a relevância da obra do jurisconsulto, que tem liberdade de criar onde o legislador silenciou.”6 Acentue-se que a doutrina brasileira de DIPr é rica e
erudita, oferecendo valiosa contribuição ao julgador.
4.5 Jurisprudência Vem-se constituindo em verdadeira fonte de Direito Internacional Privado. Embora no sistema jurídico do Brasil caiba ao magistrado interpretar o Direito na lei existente, ele pode, por vezes, ante as lacunas dessa norma e ausência de outras fontes, socorrer-se de julgados reiterados das Cortes maiores do País. Com isso, a jurisprudência nacional de DIPr assume gradativamente importância, bastando observar as decisões de nossos tribunais, muitas delas inseridas em alguns capítulos desta obra. O intenso intercâmbio entre pessoas de diferentes países, firmando negócios, unindo-se por meio de casamentos, contratando pacotes turísticos e interagindo com pessoas das mais diversas nacionalidades, tem ocasionado o surgimento de litígios entre pessoas regidas por legislações diversas. As decisões a respeito de tais litígios, até pela natural semelhança decisória em casos análogos, já que muitos conflitos se repetem, acabam ensejando valiosos precedentes para o julgador. A jurisprudência da Corte de Cassação, mais alto tribunal recursal da França, constitui-se na fonte essencial de DIPr7 desse país, havendo também na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos primazia da jurisprudência sobre as demais fontes de DIPr.
4.6 Costumes Embora com emprego reduzido se comparados com as fontes anteriormente estudadas, os costumes oferecem solução para lides de DIPr quando nelas persistem lacunas. Tanto costumes internos quanto internacionais podem ser usados. Recorde-se que uma regra de direito costumeiro se forma, em qualquer desses planos, pelo uso prolongado e geral de prática considerada conveniente, justa, útil e adequada ao contexto social. A reiteração desse comportamento culmina, muitas vezes, com a convicção jurídica de se tratar de uma norma de direito. O valor como fonte atribuído aos costumes varia de um país para outro. No Brasil, o direito costumeiro só se aplica na falta ou na omissão da lei, segundo reza a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
RESUMO 4.1 Considerações iniciais As fontes são internas (leis de cada Estado) e externas (tratados). Em ambas as esferas a doutrina, a jurisprudência e os costumes.
4.2 Lei A lei é a principal fonte do Direito Internacional Privado na maioria dos países e também no Brasil. A Constituição Federal de 1988, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (a mais importante fonte), vários Códigos (Tributário, Civil, Processo Civil, Penal, Processo Penal) e o Estatuto do Estrangeiro.
4.3 Tratados
Os tratados têm grande importância ante a ausência de leis supranacionais, possuindo natureza jurídica dupla: obrigam nos planos interno e internacional. Hierarquicamente, no caso do Brasil, o tratado está no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as nossas leis internas ordinárias. O tratado é aprovado pelo Legislativo e promulgado pelo Presidente da República. A forma escrita é obrigatória. Recebem várias denominações: Convenção, Declaração, Pacto, Protocolo etc. O Código Bustamante, o UNIDROIT e as Convenções Interamericanas de Direito Internacional Privado (CIDIPs) são fontes de DIPr no Brasil.
4.4 Doutrina Apresenta notável importância, especialmente quando há omissão da lei e inexiste tratado. A doutrina brasileira de DIPr é rica e erudita, contribuindo para a solução de inúmeras contendas.
4.5 Jurisprudência Vem-se constituindo em verdadeira fonte de Direito Internacional Privado, assumindo, no Brasil, crescente relevância e possibilitando frequentes decisões de nossos tribunais. Trata-se da fonte mais importante na Grã-Bretanha, Estados Unidos e França.
4.6 Costumes Reconhecidos como fonte de DIPr, os costumes podem ser no plano interno ou internacional. No Brasil, são empregados na falta ou na omissão da lei, conforme estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Fazer um paralelo entre as fontes do DIPr e as dos demais ramos do Direito interno. 2. Tecer considerações sobre a fonte principal de Direito Internacional Privado no Brasil. 3. Apresentar a sua classificação das fontes de DIPr, justificando-a. 4. Por que os tratados são tão importantes como fonte de DIPr? 5. Defender o emprego da doutrina e da jurisprudência como fontes de DIPr. 6. Comentar sobre os costumes como fonte de Direito Internacional Privado no Brasil.
______________ 1 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I, p. 91. 2 STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 70. 3 STF. ADI n. 1.480-3DF – 04.09.1997 – rel. Min. Celso de Mello – site do STF. Ainda: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. p. 305. 4 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. p. 654-671. 5 Aprovaram o Código Bustamante: Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, Salvador e Venezuela. 6 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 221. 7 BATIFFOL, Henri e LAGARDE, Paul. Traité de droit international privé. p. 32.
TEORIA DAS QUALIFICAÇÕES
“As atividades humanas são as mesmas em toda parte: o que varia é o modo de apreciá-las” (Amílcar de Castro).
5.1 Considerações iniciais Qualificar é atribuir existência jurídica a um ente, coisa ou fato, incluindo-o em uma categoria legal: é conceituá-lo segundo a técnica de uma legislação.1 Trata-se da operação pela qual o magistrado verifica, antes de decidir, à qual instituição jurídica pertencem os fatos trazidos a seu julgamento. A qualificação deve anteceder a escolha da lei aplicável, sendo sempre processual. Ademais, se qualificam apenas questões jurídicas, nunca simples fatos, que não têm qualificação jurídica em si mesmos. Observe-se o caso do aborto, fato que no Brasil é tipificado como crime, ao contrário do Japão, onde não há essa tipificação penal. Embora seja um ato preliminar, a qualificação não deve ser confundida com a questão prévia, que será analisada mais adiante. Mas por que qualificar? A doutrina lembra um número imenso de institutos que apresentam controvérsias. Início da personalidade: a partir da concepção ou do nascimento? Vítima de trapaceiro: ilícito civil ou penal? Roubo, furto ou extorsão? Prazo de prescrição ou decadência? Prescrição extintiva: direito material ou direito processual? Doação causa mortis: direito das obrigações ou das sucessões? Arrendamento: direito real ou pessoal? Casamento ou união estável? Herança jacente para o Estado: herança ou ocupação? Cônjuge supérstite: meeiro e/ou herdeiro? Divisão de bens no divórcio: direito das sucessões ou direito de família? Contrato de trabalho ou parceria? A qualificação, como verificado nesses questionamentos, não é exclusividade do Direito Internacional Privado, ocorrendo, rotineiramente, em todos os ramos do Direito. No entanto, em nossa disciplina ela é excepcionalmente necessária, pois estamos diante de conflitos de leis no espaço e de legislações de Estados diferentes. Impõe-se a necessidade de qualificar, ou seja, colocar o instituto ou a relação de direito na categoria jurídica que lhe corresponde. Para Jacob Dolinger, essa tarefa do julgador pode ser sintetizada em uma equação: Conceituar + Classificar = Qualificar.2
5.2 Teorias existentes Uma vez efetuada a qualificação, o julgador buscará o objeto de conexão, para então determinar a regra, elemento de conexão, que lhe permitirá encontrar o direito a ser aplicado. Essa matéria tem sido denominada Doutrina das Qualificações, Problema das Qualificações e Questão das Qualificações. Foi para solucionar esse impasse que surgiu a dita Teoria das Qualificações, desenvolvida por Franz Kahn, em 1891, e Etienne Bartin, em 1897. Para eles, a solução está em se aplicar a lei do foro, lex fori: o julgador devia preocupar-se apenas em qualificar o instituto com base em sua própria lei. Em 1898, Franz Despagnet defendia, com boas razões, a qualificação pela lei estrangeira, lex causae, argumentando que deixar de aplicá-la seria violar a norma de Direito Internacional Privado que a ordenara. Ele encontrou muitos seguidores, especialmente Martin Wolff, segundo o qual se deve buscar
no direito estrangeiro, supostamente aplicável, a qualificação da relação jurídica em conflito.3 Refere-se uma terceira teoria, a da qualificação por referência a conceitos autônomos e universais, buscados no estudo comparativo dos direitos e nos princípios gerais de sua aplicação.4 Devida a Ernst Rabel, justifica-se sua pouca aceitação pela dificuldade prática de o juiz detectar elementos objetivos para essa forma de qualificação, irrealista e utópica, embora justa. Convém enfatizar a notória prevalência da lex fori como critério de qualificação. As justificativas para essa postura da legislação e da doutrina são variadas e consistentes: a) ausência de linguagem jurídica comum entre os países; b) presunção de coesão interna nos ordenamentos jurídicos; c) dificuldade de o sistema do foro compreender e empregar autenticamente as qualificações estrangeiras; d) caráter interno das normas de conflito, que torna mais adequada a qualificação por esse Direito; e e) incongruência de utilizar a lex causae para qualificar norma de conflito eventualmente aplicável quando ainda é desconhecida a própria lei estrangeira a ser aplicada.5 Tantas razões em favor da lex fori não a eximem de limites, abrindo espaço para a lex causae. Essas dificuldades na qualificação pela lei do foro ocorrem, por exemplo, com os imóveis e com instituições desconhecidas, caso do trust, do direito inglês. Há, ainda, institutos que, embora presentes em uma ordem jurídica, possuem forma e conteúdo diverso no Direito estrangeiro – caso de adoção com características de tutela no foro do julgador. Martin Wolff, adepto da lex causae, entende que examinar a aplicação do direito estrangeiro sem referência às suas qualificações é deixar de considerá-lo como ele é. Reconhece, contudo, que a lex causae também pode conduzir a resultado inconsistente com princípios fundamentais do foro. Conclui o autor que os problemas suscitados pelas diferenças de qualificação não são insolúveis, necessitando apenas de ajuste nos sistemas jurídicos internos, de adequada interpretação dessas regras.6 Nesse contexto, Haroldo Valladão preconiza uma qualificação inicial, provisória, aproximativa, pela lei do foro; e uma definitiva, pela lei da causa, a qual prevalecerá em caso de divergência entre as duas.7
5.3 Qualificações no Brasil Na doutrina brasileira, predomina a qualificação pela lei do foro, entendimento ao qual nos alinhamos. Considerado o direito positivo brasileiro, também impera a lei do foro, com exceção dos arts. 8º (“para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados”) e 9º, caput (“para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”) da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O Código Bustamante optou pela lex fori, estabelecendo em seu artigo 6º que “em todos os casos não previstos por este Código, cada um dos Estados contratantes aplicará a sua própria definição às instituições ou relações jurídicas que tiverem de corresponder aos grupos de leis mencionadas no art. 3º”. Assim, adota “no silêncio de suas regras, a qualificação pela lex fori, deixando, pois, toda a liberdade ao juiz nacional para resolver a questão”.8
5.4 Casos clássicos Três casos são considerados clássicos no estudo da Teoria das Qualificações: a sucessão do maltês,
o testamento hológrafo do holandês e o casamento do grego ortodoxo. A sucessão do maltês refere-se a casamento ocorrido na ilha de Malta, sem pacto antenupcial, onde os noivos se estabeleceram. O casal emigrou para a Argélia, então sob legislação francesa, onde o marido faleceu, em 1889, sem descendentes, mas deixando muitos bens imóveis e outros herdeiros. A viúva maltesa nada herdaria pela lei francesa, mas seria contemplada com a quarta parte dos bens se fosse aplicada a legislação vigente em Malta. Bartin, seu advogado, defendeu perante o Tribunal de Argel a tese de que a solução se encontrava no direito de família, devendo ser buscada no regime matrimonial de bens (para o qual ao casamento de estrangeiros, celebrado no estrangeiro, se aplicava a lei do primeiro domicílio conjugal). Portanto, a lei maltesa. Se o tribunal colocasse a lide no direito sucessório, a legislação aplicável seria a francesa, pois a sucessão de bens imóveis era regulada pela lei da situação dos mesmos e estes se encontravam na Argélia. Tratava-se, pois, de um caso de qualificação: direito de família ou direito sucessório. Venceu a tese de Bartin, recebendo a viúva a sua parte.9 O testamento hológrafo do holandês, que protagonizou interessante lide envolvendo a qualificação, diz respeito a cidadão dos Países Baixos que faleceu na França, onde viveu a maior parte de sua vida, deixando testamento hológrafo (testamento particular, proibido no ordenamento jurídico holandês, mas admitido pela legislação francesa). A validade do testamento pelo tribunal francês dependia da qualificação: estatuto pessoal ou forma dos atos jurídicos. No primeiro caso, o testamento seria nulo, pois o holandês não teria capacidade para assiná-lo, mesmo fora de seu país. Na última hipótese, o documento teria plena validade, já que em matéria de forma a lei aplicável é a do local da realização do ato jurídico. A Justiça francesa entendeu que prevalecia a forma do ato, tendo o testamento produzido seus efeitos quanto ao patrimônio situado na França. Ressalte-se que eventuais bens situados na Holanda não seriam contemplados pelo testamento.10 O casamento de grego ortodoxo, realizado civilmente na França, com mulher francesa, sem a cerimônia religiosa obrigatória pela legislação grega (revogada somente em 1982), ensejou um problema de qualificação: condição de fundo ou condição de forma. Se a exigência da celebração religiosa se enquadrasse no primeiro caso, o casamento seria nulo, pois a lei francesa submete a validade das núpcias à lei nacional dos cônjuges. No último caso, condição de forma, a lei francesa seria aplicável e o casamento seria válido. Prevaleceu a forma, tendo a Justiça francesa reconhecido a validade do matrimônio, lembrando-se de que o casal tinha seu domicílio nesse país. Quanto aos tratados internacionais, ultimamente procura-se definir com precisão o objeto de conexão de suas normas, evitando-se assim a necessidade de qualificação.
5.5 Questões prévias As questões prévias ou incidentais são situações que surgem após a qualificação – embora possam aparecer anteriormente ou mesmo durante o processo de qualificação –, mas que precisam ser resolvidas antes da solução concreta do caso. Assim, ações em que o cônjuge invoca a nulidade do casamento em defesa na ação de alimentos ou que alguém postula parte de herança sem ter qualquer laço familiar com o falecido implicam a análise da questão prévia para a solução da lide principal.11 Um exemplo formulado pelo professor Silvio Battello12 elucida o tema: imagine-se um casal homoafetivo, legalmente casado na Holanda (possível na legislação desse país, mas ainda não incorporado na lei brasileira, embora já aceito pelos nossos tribunais maiores), que se estabelece na Bahia, comprando um luxuoso hotel à beira-mar. Meses depois, efetivados seus domicílios no Brasil, um
deles falece, configurando-se um caso de DIPr. Pela qualificação legal, o direito aplicável é o brasileiro, último domicílio do de cujus. O foro competente também é o brasileiro, uma vez que os imóveis estão localizados no território brasileiro. O cônjuge supérstite inicia ação de inventário e surge então a questão prévia: o casamento realizado na Holanda é válido no Brasil? Deve o magistrado brasileiro reconhecer ao cônjuge sobrevivente os direitos hereditários? Quais seriam esses direitos? Os do cônjuge em sentido estrito ou os direitos do companheiro na união estável? No âmbito doutrinário, existem três alternativas possíveis: a) a solução pelo DIPr do foro; b) a solução pela aplicação da lei que rege a questão principal; c) a solução conforme os interesses do DIPr no caso concreto. No direito positivo brasileiro, não há previsão para as questões prévias, que costumam surgir após a qualificação. Contudo, o artigo 8º da Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado (CIDIP II), assinada em Montevidéu, em 08 de maio de 1979, em vigor no Brasil desde 27 de dezembro de 1995 determina claramente: “As questões prévias, preliminares ou incidentes que surjam em decorrência de uma questão principal não devem necessariamente ser resolvidas de acordo com a lei que regula esta última.” Dessa forma, o juiz brasileiro deverá ponderar qual é a melhor solução e optar entre a aplicação do direito brasileiro (que ainda desconhece o matrimônio homoafetivo) ou a aplicação do direito holandês (que admite essa união). Ignorar o casamento, nesse caso, seria afastar da sucessão a pessoa diretamente envolvida na formação do acervo de bens.
RESUMO 5.1 Considerações iniciais Qualificação: operação pela qual o juiz, antes de decidir, verifica a que instituição jurídica correspondem os fatos realmente provados. Diferenças de entendimento entre legislações de países distintos impõem a necessidade de qualificar. Exemplos de institutos controversos: Início da personalidade: a partir da concepção ou do nascimento? Vítima de trapaceiro: ilícito civil ou penal? Prazo de prescrição ou decadência? Conceituar + Classificar = Qualificar (equação proposta por Jacob Dolinger).
5.2 Teorias existentes Existem dois critérios para a qualificação: Lex fori: proposta por Kahn (1891) e defendida por Bartin (1897) – a solução está em se aplicar a lei do foro, devendo o julgador qualificar o instituto com base em sua própria lei. Lex causae: proposta por Despagnet (1898) e defendida por Wolff – opção pela lei estrangeira aventada, lei material, lei da causa.
5.3 Qualificações no Brasil Na doutrina brasileira predomina a qualificação pela lex fori. A legislação também optou pela lei do foro, com exceção dos bens e das obrigações, que são qualificados pela lex causae (arts. 8º e 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
5.4 Casos clássicos São considerados clássicos no estudo da Teoria das Qualificações: a sucessão do maltês, o testamento hológrafo do holandês e o casamento do grego ortodoxo.
5.5 Questões prévias As questões prévias são situações que surgem, em tese, após a qualificação, mas que devem ser resolvidas antes da solução concreta do caso. Ocorrem em processo sucessório, quando se contesta a validade de casamento, entre outros exemplos.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar qualificação e justificar sua importância na solução de lides de Direito Internacional Privado. 2. Dissertar sobre cinco institutos jurídicos que necessitam de qualificação para um perfeito julgamento da lide. 3. Apresentar e defender a teoria de Etienne Bartin sobre as qualificações. 4. Explicar e justificar a posição da legislação e da doutrina sobre as qualificações adotadas no Brasil. 5. Tecer considerações sobre os casos clássicos de qualificação e sua importância no estudo atual do tema.
______________ 1 ARMINJON, Pierre. Précis de droit international privé. p. 309. 2 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 364. 3 Sobre ambas as teorias, ver, entre outros, TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. v. I. p. 294-298. BOGGIANO, Antonio. Curso de derecho internacional privado. p. 184-185. MONROY CABRA, Marco Gerardo. Tratado de derecho internacional privado. p. 320-322. 4 BOGGIANO, A. Op. cit. p. 185. 5 FERNÁNDEZ ROZAS, José Carlos e SÁNCHEZ LORENZO, Sixto. Derecho internacional privado. p. 190. 6 WOLFF, Martin. Derecho internacional privado. p. 149-160. 7 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I. p. 258. 8 STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 341. 9 Ver, entre outros, STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 338-339. GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado (derecho de la tolerancia). p. 90-91. MONROY CABRA, M. G. Op. cit. p. 319. 10 Ver, entre outros, STRENGER, I. Op. cit. p. 339-340. GOLDSCHMIDT, W. Op. cit. p. 91. MONROY CABRA, M. G. Op. cit. p. 319-320. 11 RIGAUX, François. Derecho internacional privado: parte general. p. 95-96. 12 BATTELLO, Silvio Javier. Palestra proferida na 39a Semana Acadêmica de Estudos Jurídicos e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas em Pelotas, RS, no dia 30 de setembro de 2004.
ELEMENTOS DE CONEXÃO
“O fato interjurisdicional não tem direito próprio que lhe seja automática e previamente aplicável” (Osíris Rocha).
6.1 Considerações iniciais Conexão significa ligação, união, ponte, encontro, vínculo, entroncamento, nexo, ponto comum. Podemos entender elemento de conexão como a parte da norma de Direito Internacional Privado que determina o direito aplicável, seja o nacional (do julgador), seja o estrangeiro. De vital importância na solução dos conflitos de leis no espaço, os elementos de conexão são estudados nos manuais de Direito Internacional Privado, sob esse título ou como circunstâncias de conexão, pontos de contato, pontos de conexão, regras de conexão ou simplesmente conexões. As obras em espanhol empregam puntos de conexión; em francês, points de rattachement; em italiano, momenti di collegamento; e em inglês usa-se points of contact ou connecting factor. Preliminarmente, cabe distinguir que a norma de DIPr contém três partes: objeto, elemento e consequência jurídica. O objeto de conexão é a matéria a que se refere uma norma indicativa ou indireta de Direito Internacional Privado, ocupando-se de questões jurídicas vinculadas a fatos ou elementos de fatores sociais com conexão internacional – como capacidade jurídica, nome de uma pessoa ou pretensões jurídicas decorrentes, por exemplo, de acidente de carro. O elemento de conexão é a parte que torna possível a determinação do direito aplicável – nacionalidade, domicílio e lex fori.1 Por fim, a consequência jurídica, que nem sempre é escrita, podendo ser subentendida, é a aplicação de um direito material. Nesse contexto, o objeto de conexão pode ser comparado ao tipo da norma penal (matar alguém), o elemento com o resultado imediato desse ato ilícito (levar seu agente a julgamento) e a consequência à aplicação de uma regra (pena: reclusão de seis a vinte anos). A busca de composição de uma lide com conexão internacional se inicia com o julgador enquadrando os fatos controversos, alegados e provados, no objeto de conexão da norma adequada ao caso concreto, ou seja, qualificando-os, conforme estudado no capítulo anterior. Conhecida essa norma, o elemento de conexão indicará o direito aplicável: o jus fori ou o direito estrangeiro. A consequência será a aplicação dessa legislação. Exemplo: “A sucessão por morte ou por ausência [objeto de conexão – requer qualificação] obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido [elemento de conexão – domicílio], qualquer que seja a natureza e a situação dos bens” (art. 10, caput, da LINDB). Ainda: “Para qualificar e reger as obrigações [objeto de conexão – qualificação], aplicarse-á a lei do país em que se constituírem [elemento de conexão – lex loci celebrationis]” (art. 9º, caput, da LINDB). Em ambos os casos, a consequência jurídica será a aplicação do direito assim indicado.
6.2 Classes de elementos de conexão A rigor, a escolha do elemento de conexão está condicionada ao interesse do legislador, razão pela qual não há um número preciso desses fatores indicativos nem de sua natureza. De qualquer forma, analisando-se as conexões presentes nas ordens jurídicas e na doutrina dos vários países, é possível
apresentar uma classificação. Optamos por agrupá-los por características comuns, entendendo ser essa a forma mais adequada ao aprendizado: a) Pessoais: nacionalidade, domicílio, residência (habitual e simples), origem e religião; b) Reais: lei da situação da coisa (lex rei sitae ou lex situs, obrigatória para os bens imóveis), lugar da aquisição e domicílio ou nacionalidade do proprietário (mobilia sequuntur personam); c) Reais de natureza especial: lei do pavilhão (navios ou aeronaves), lugar em que se encontra, lei do destino, lugar da partida, local do registro e domicílio ou nacionalidade do proprietário; d) Delituais ou penais: lugar do ilícito (lex delicti commissi), domicílio ou nacionalidade do infrator ou da vítima, natureza da infração e lei do dano (lex damni); e) Voluntários: lei do lugar da celebração (lex loci celebrationis), do lugar da execução (lex loci executionis) e autonomia da vontade (lex voluntatis); f) Normativos: lex fori, lex causae (que abarca todas as normas de conexão que não são lex fori) e lei mais favorável. Essa última compreende pelo menos cinco tipos: favor infans (lei mais favorável ao menor), favor negotii (valida ato ou contrato), favor matrimonii (manutenção do vínculo conjugal), favor laesi (pessoa que sofreu dano) e lei favorável ao consumidor; g) Processuais: forum rei sitae, forum conexitatis (juiz do principal se estende ao acessório), forum reciprocitatis, forum efectitatis e forum voluntatis (autonomia da vontade). Poder-se-ia acrescentar, ainda, outras formas de conexão, presentes em alguns sistemas jurídicos, como no Common Law, que utiliza, por exemplo, the proper law of contract – sistema jurídico com o qual o contrato tem conexão mais próxima. Também se verifica a presença de conexões alternativas, subsidiárias, cumulativas ou múltiplas, propiciando a aplicação de mais de uma ordem jurídica à determinada questão, principalmente em benefício das partes.2 – Subsidiária: é a conexão empregada quando a anterior é impraticável (aplica-se no contrato a lei do lugar em que ele deve ser cumprido, mas se esse lugar não pode ser determinado usa-se o da celebração). – Alternativa: ocorre quando os pontos possíveis são da mesma hierarquia e podem ser usados indistintamente (estrangeiro fora de sua pátria pode testar pela lei do lugar onde outorga o testamento ou pela lei da sua nacionalidade). – Cumulativa: requer coincidência entre ambas as leis indicadas (a hipoteca legal permitida aos incapazes só terá efeito quando a lei do Estado no qual se exerce o cargo de tutor ou curador coincida com a do lugar em que estão situados os bens afetados por essa hipoteca). – Múltipla: caso de um contrato que pode comportar vários pontos de ligação em uma mesma relação jurídica (autonomia da vontade, lugar da celebração, lugar da execução etc.).
6.3 Conexões pessoais As conexões centradas na pessoa geram a primazia de dois fatores, o domicílio e a nacionalidade, os quais solucionam a ampla maioria dos problemas de Direito Internacional Privado. Os ordenamentos jurídicos costumam adotar um ou outro desses elementos de conexão, substituindo o domicílio, quando não identificado, pela residência. Entre os elementos de conexão de caráter pessoal encontramos, ainda, a religião, a origem e os costumes tribais, especialmente em matéria de estatuto pessoal e direitos de casamento e de sucessões. A
religião é elemento de conexão aplicável em diversos países, de modo especial nos Estados islâmicos, como o Irã; a origem é usada em determinados cantões suíços; e o costume tribal, em alguns países da África. 6.3.1 Domicílio Trata-se do elemento de conexão adotado pelo Brasil, com a vigente Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Defendido por Teixeira de Freitas, seguindo o pensamento de Savigny, é a conexão predominante na maioria dos ordenamentos jurídicos, inclusive na América Latina. Concordamos com essa opção por ser o domicílio adequado ao encontro da melhor justiça, objetivo norteador do Direito Internacional Privado. O conceito de domicílio é variável. No Brasil, considera-se domicílio o local em que a pessoa se estabelece com ânimo definitivo (elementos objetivo e subjetivo), podendo ser domicílio voluntário ou necessário (CC/2002, arts. 70 a 78). Outros ordenamentos jurídicos definem o domicílio como simples residência, como residência habitual, sede principal dos negócios e interesses, lugar do principal estabelecimento (comércio), domicílio de origem (o dos pais quando a pessoa nasceu) e home (onde se localiza o lar), no direito inglês. Quanto à pluralidade de domicílios, situação hoje bastante comum, deve-se dar preferência sucessivamente ao domicílio: a) nacional; b) legal (em detrimento do voluntário); c) que coincida com a residência. O art. 26 do Código Bustamante estabelece que o domicílio da pessoa que não o tem é o lugar de sua residência ou aquele em que ela se encontra. A esse adômide aplica-se a lex fori. 6.3.2 Nacionalidade Recordemos, preambularmente, que nacionalidade é o vínculo jurídico que une a pessoa ao Estado, cidadania, o vínculo político (gozo desse direito pelo nacional) e naturalidade é o simples vínculo territorial pelo nascimento. Não poderá, por óbvio, existir cidadania sem nacionalidade, já que esta, mais abrangente, engloba aquela. Por outro lado, a perda da cidadania não retira a nacionalidade. Neste momento do nosso estudo, interessa considerar a nacionalidade como elemento de conexão, não sendo tão relevantes os postulados do direito constitucional (direitos e obrigações), e sim tomá-la como referência, a exemplo do domicílio, da situação da coisa ou do lugar do delito. Como circunstância de conexão, a nacionalidade é definida pela lex fori, que se pode basear no direito constitucional do estrangeiro, no do foro, no do lugar do nascimento da parte interessada ou de seu pai, ou, ainda, o critério que parecer lógico, contanto que se proceda à qualificação. Daí por que mesmo o anacional ou apátrida poderá utilizar-se desse elemento de conexão, por sua última nacionalidade, seu domicílio, residência habitual ou lex fori. Já quanto ao plurinacional, cada vez mais frequente nestes tempos de intercâmbio, dá-se preferência momentânea a uma das nacionalidades: a local, a do nascimento, a última nacionalidade que ele adquiriu ou aquela em que o interessado tem relações mais estreitas. A nacionalidade é elemento de conexão de grande evidência em virtude de ser adotado pelos países da Europa e de outros continentes. Historicamente, também era imposta pelas grandes potências imperialistas às nações periféricas, por meio dos chamados “tratados desiguais”. No Brasil, a nacionalidade foi a conexão usada na Introdução ao Código Civil de 1916, sendo substituída pelo domicílio com o advento da Lei de Introdução ao Código Civil, no ano de 1942, em
plena Segunda Guerra Mundial. Os defensores da nacionalidade, como conexão, acentuam a maior dificuldade de sua mudança do que a do domicílio, prestando-se, portanto, esse último elemento muitas vezes para alterações fraudulentas.
6.4 Conexões reais 6.4.1 Lex rei sitae O local da situação da coisa é o elemento de conexão aplicado aos imóveis, sendo aceito quase universalmente, inclusive no direito positivo interno. Assim, no artigo 8º da LINDB temos: “Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.” Seu objeto de conexão é o regime jurídico geral dos bens (aquisição, posse, disposição, direitos reais).
6.5 Conexões voluntárias O lugar da execução do contrato é um elemento de conexão adotado em quase todas as legislações. Seu emprego é muito antigo, retroagindo a Bartolo, principalmente para os casos de negligência e mora. O lugar da constituição das obrigações está inserido em nosso direito positivo (art. 9º da LINDB). Também foi empregado desde os pós-glosadores, encontrando-se, no século XIV, nos postulados do pai do DIPr. Ademais, sua aplicação é ampla no direito das obrigações. 6.5.1 Autonomia da vontade Embora os ordenamentos jurídicos anteponham limites à vontade humana, na esfera do Direito Internacional Privado vem se acentuando o reconhecimento da autonomia da vontade, formulada por Charles Dumoulin no século XVI, como elemento de conexão. Adotada já nos primórdios da disciplina e presente em convenções internacionais e normas internas, a faculdade de opção pela lei competente é uma realidade, de modo especial no conteúdo e efeitos de obrigações contratuais e no regime de bens no casamento.3 A doutrina e a jurisprudência admitem que contratos realizados no estrangeiro, com indicação da lei brasileira a ser observada, são plenamente válidos. A Introdução ao Código Civil de 1916 permitia entender-se aceita a autonomia da vontade, pois prescrevia, no caput do artigo 13, a regulação das obrigações, quanto à substância e aos seus efeitos, pela lei do lugar em que fossem contraídas, salvo estipulação em contrário. A supressão dessa expressão pela LICC, em 1942, significa para alguns autores que os contratantes não podem dispor de sua vontade, enquanto outros afirmam que o silêncio da nova norma mantém o princípio jurídico até então admitido. Nadia de Araújo, defensora da autonomia da vontade, reconhece que a não menção do princípio pela Lei de 1942 torna-o proibido. Recomenda, então, cautela na redação dessa cláusula em contrato internacional, porque os tribunais brasileiros não tratam diretamente da questão nem aceitam o entendimento doutrinário favorável à autonomia da vontade.4 Agenor Andrade lembra as vantagens do instituto no DIPr: existência de uma lei competente para reger o ato jurídico (a escolhida pelas partes) e aplicação ao contrato todo (disposições imperativas e supletivas) do direito escolhido pelos contratantes.5 Sentimos a tendência de aceitação da autonomia da vontade nos ordenamentos jurídicos, inclusive brasileiro, com reais proveitos para os contratos e como
elemento de conexão. Reconhecemos, contudo, que persistirão limites à liberdade absoluta, especialmente em relação às normas coativas.
RESUMO 6.1 Considerações iniciais Elemento de conexão pode ser entendido como a parte da norma de Direito Internacional Privado que torna possível a determinação do direito aplicável, seja o nacional (do julgador), seja o estrangeiro. É referido, ainda, como circunstância de conexão ou regra de conexão.
6.2 Classes de elementos de conexão Pessoais: nacionalidade, domicílio, residência, origem e religião. Reais: lei da situação da coisa (imóveis), lugar da aquisição, domicílio do proprietário, lei do pavilhão (navios ou aeronaves), lugar em que se encontra, lei do destino, lugar da partida, local do registro e domicílio ou nacionalidade do proprietário. Delituais ou penais: lugar do ilícito, domicílio do infrator ou da vítima. Voluntários: lugar da celebração ou da execução e autonomia da vontade. Normativos: lex fori, lex causae (que não são lex fori) e lei mais favorável. Outros: the proper law of contract (lei em que o contrato tem conexão mais próxima).
6.3 Conexões pessoais As conexões centradas na pessoa geram a primazia de dois fatores – o domicílio e a nacionalidade, que solucionam a ampla maioria dos problemas de DIPr. 6.3.1 Domicílio É o elemento de conexão predominante no Direito Internacional Privado, sendo adotado pelo Brasil e pelos países da América Latina. Foi defendido por Teixeira de Freitas no século XIX. O conceito é variável, podendo haver pluralidade de domicílios ou, mesmo, a sua ausência (adômide). 6.3.2 Nacionalidade Como conexão, a nacionalidade é definida pela lex fori. Mesmo o anacional poderá utilizar-se dela (pela última nacionalidade, domicílio ou lex fori). No DIPr, não são tão relevantes os postulados do direito constitucional. A nacionalidade é elemento de conexão de profunda importância, adotado pela maioria dos países europeus e muitos de outros continentes.
6.4 Conexões reais 6.4.1 Lex rei sitae
É a conexão aplicada aos imóveis: aceita universalmente e determinada no artigo 8º da LINDB.
6.5 Conexões voluntárias Lugar da execução do contrato: conexão adotada pela maioria das legislações. Seu emprego é muito antigo, retroagindo a Bartolo (séc. XIV), especialmente para os casos de negligência e mora. 6.5.1 Autonomia da vontade Embora limites antepostos (normas imperativas), o DIPr reconhece a autonomia da vontade, formulada por Dumoulin, no século XVI, como elemento de conexão. Presente em convenções internacionais e normas internas, é especialmente usada no conteúdo e nos efeitos das obrigações contratuais, bem como no regime de bens no casamento. Essa cláusula requer cautela em contrato internacional no Brasil, uma vez que os tribunais brasileiros não tratam diretamente da questão nem aceitam o entendimento doutrinário favorável à autonomia da vontade.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar a conexão no Direito Internacional Privado, identificando seu objeto e elemento, e os analisando em um caso concreto (lei ou relação jurídica). 2. Apresentar cinco elementos de conexão, destacando sua importância e aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. 3. Analisar a nacionalidade, acentuando as conotações do instituto para o estudioso de Direito Constitucional e de DIPr, e a sua aplicação como elemento de conexão nas ordens jurídicas dos diversos países. 4. Fazer um paralelo entre o domicílio e a nacionalidade como ponto de conexão e a presença de ambos, nesse aspecto, no Direito brasileiro. 5. Tecer considerações sobre a peculiaridade dos bens imóveis e dos atos ilícitos quanto às circunstâncias de conexão. 6. Dissertar sobre o emprego da autonomia da vontade como elemento de conexão no Direito brasileiro, analisando-a na doutrina e na legislação.
______________ 1 RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado (teoria e prática). p. 80-81. 2 Ver, entre outros, GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado (derecho de la tolerancia). p. 171-213. ARMINJON, Pierre. Précis de droit international privé. p. 191-200. DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 295-298. MONROY CABRA, Marco Gerardo. Tratado de derecho internacional privado. p. 65-68. SILVA ALONSO, Ramón. Derecho internacional privado. p. 127-130. 3 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I, p. 359. 4 ARAÚJO, Nadia de. Direito internacional privado (teoria e prática brasileira). p. 323. 5 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 111.
APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO
“Les libertés de pensée, d’opinion et de religion ne comportent pas pour les étrangers plus de restrictions que pour les nationaux” (Henri Batiffol).
7.1 Considerações iniciais Não existindo um organismo jurídico supranacional, não poderá um juiz declarar-se incompetente para o julgamento de determinado processo e remetê-lo ao magistrado do país a cuja justiça caberia julgar a causa. Desse modo, não pode o juiz brasileiro, na sua decisão, afirmar que a competência é do juiz chileno ou argentino, até porque se o fizesse, sua decisão não produziria efeitos. Poderá, isto sim, declarar-se incompetente ou utilizar no seu julgamento a lei estrangeira quando, qualificada a questão jurídica, o elemento de conexão indicar a lei estrangeira. Em outras palavras: no uso de sua competência jurisdicional, a Justiça brasileira, dentro das condições admitidas pelo exercício pleno da soberania do país, decide aplicar o direito estrangeiro. A lei estrangeira pode regular questões jurídicas nacionais de duas formas: por meio de sua aplicação direta pelo juiz brasileiro equiparada à lei do foro, e pela aplicação indireta, por meio de sentenças prolatadas no estrangeiro e que gerem efeitos no território nacional. Veremos agora essa primeira forma de aplicação, ocupando-nos das sentenças de outros países no capítulo oitavo.
7.2 Aplicação direta da lei estrangeira Está pacificada na doutrina a questão de ser a lei estrangeira recepcionada como tal e não como fato. Isto traz consequências benéficas para os interessados (ficam livres do ônus da prova) e torna o direito estrangeiro equiparado ao nacional, sem a antipatia de considerá-lo inferior. Poderá a lei estrangeira ser aplicada, ex officio, entendimento também admitido pelo Código Bustamante (art. 408). São exemplos de casos em que se aplica a legislação de outro Estado: capacidade de pessoa física domiciliada em outro país, contrato firmado no estrangeiro ou sobre bem lá situado, e demanda sobre moeda do país considerado.1 A norma estrangeira poderá ser invocada, como direito que é, em qualquer instância, mesmo em recurso extraordinário ou em ação rescisória. Como não seria razoável esperar que os magistrados tenham ciência prévia das leis estrangeiras, o artigo 14 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preceitua que “não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência”. O Código de Processo Civil, artigo 337, dispõe que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz” (grifo acrescido). O conhecimento da lei estrangeira pelo magistrado poderá ocorrer de várias formas: pessoal, judicial, extrajudicial, documental, pericial e até testemunhal (salvo o simples juramento). Ainda pode ser conhecida pela apresentação de cópia autêntica de publicação oficial, pela citação de obra jurídica
conceituada, por parecer ou depoimento de juristas especializados, de advogados militantes e de consulta a associações dedicadas à matéria, inclusive por meio de carta rogatória.2 Normalmente se faz prova com códigos, certidões, revistas, livros ou jornais. Toda e qualquer lei estrangeira poderá ser invocada – Constituição, leis ordinárias, decretos, regulamentos e costumes. O Código Bustamante, no artigo 409, admite a justificação do direito estrangeiro por certidão de dois advogados em exercício no país de cuja legislação se trate. Na total impossibilidade de inteirar-se do teor da lei estrangeira, busca-se outra regra de DIPr do foro, subsidiária, da conexão mais próxima, ou aplicação da própria lei do foro.3 Nesse contexto, Jacob Dolinger refere casos interessantes, relatados por autores franceses, nos quais foi impossível o conhecimento da lei estrangeira, e o tribunal parisiense aplicou a lei francesa: acidente automobilístico em Andorra; litígio entre americano e polonês na Mandchúria, território sob ocupação soviética; e tunisino contratado por empresa francesa para trabalhar na Líbia, lá morrendo em acidente de serviço.4 Trata-se de processos em que, ante a dúvida, deu-se preferência à lei interna, caso do in dubio pro lege fori.5 Esse princípio não deixa de ser paradoxal, pois seria, de certa forma, uma exceção, facultada ao magistrado, ao que estipula o art. 3.º da LINDB: Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Quanto à interpretação da lei estrangeira, não difere das formas usadas no ordenamento jurídico brasileiro, como a sociológica, a sistemática, a lógica, a analógica, a declarativa, a restritiva e a extensiva. Lembra Dolinger a adaptação ou aproximação, interpretação do direito estrangeiro adequado às circunstâncias locais (como desquites de nipo-brasileiros no anterior direito brasileiro, já que o Japão admitia o divórcio).6 Refere-se, ainda, a chamada interpretação construtiva ou aproximação excepcional: pedidos de divórcio extrajudicial deferidos em nome do Rei da Dinamarca e dos prefeitos do Japão, em cujos países essas autoridades do executivo têm competência para concedê-lo. Salienta-se que o processo segue a lex fori, ou seja, as regras processuais do juízo, sendo que a lei estrangeira observada é apenas a lei material, substancial. Conforme o artigo 13 da LINDB, os meios de prova são os da legislação estrangeira quanto ao ônus e aos meios de produzi-los, desde que não sejam desconhecidos pela lei brasileira.
7.3 Retorno Retorno é a operação pela qual o juiz do foro volta ao seu próprio direito ou vai a um terceiro direito, seguindo a indicação feita pelo Direito Internacional Privado da jurisdição cuja legislação consultara de acordo com a norma de DIPr de seu país,7 segundo Osíris Rocha. De início, cumpre esclarecer que a expressão direito estrangeiro pode significar apenas as normas substantivas ou materiais, ou incluir as regras de Direito Internacional Privado estrangeiro. Quando adotado esse último significado, surge a possibilidade do retorno, chamado de primeiro grau, e o reenvio, de segundo grau. A regra de DIPr desse segundo país, por seu turno, poderia direcioná-lo para um terceiro ordenamento jurídico, no qual nova indicação o conduziria a um quarto e assim sucessivamente, com prejuízos para a solução da lide e para a segurança jurídica. Caso ocorrido na Justiça francesa ilustra essa teia indesejável: para determinar a capacidade de um inglês domiciliado nos Estados Unidos, que celebrara contrato na Bélgica, o juiz francês deveria aplicar a lei inglesa (nacionalidade da pessoa), mas essa o remeteu ao direito norte-americano (seu domicílio),
que, por sua vez, encaminhou-o ao direito belga (lugar da celebração do ato), o qual, por fim, reenviou-o ao direito inglês (lei nacional, por indicação do Código Civil belga).8 Segundo Beat Rechsteiner, em muitos países, caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, o direito estrangeiro abrange apenas o direito substantivo ou material; para outros, como Alemanha e Áustria, o direito estrangeiro abrange normas materiais e normas de Direito Internacional Privado estrangeiro; e alguns terceiros, como a Suíça, cuja lei aceita o reenvio em matéria de estado civil, adotam posição intermediária ou mista.9 Os termos retorno, devolução, reenvio e remissão, entre outros, têm sido usados como sinônimos pelos autores, com prevalência de retorno e reenvio. Na doutrina francesa é renvoi, e para os ingleses, remission. Entendemos mais racional o emprego de retorno para o chamado retorno de primeiro grau (devolução da lide à ordem jurídica da qual proveio) e reenvio para os demais (segundo ou terceiro graus). O direito positivo brasileiro, que era silente sobre o retorno, em 1942, com o advento da Lei de Introdução ao Código Civil, excluiu-o explicitamente, pois o artigo 16 prescreve que “quando, nos termos dos artigos precedentes, se houver de aplicar a lei estrangeira, ter-se-á em vista a disposição desta, sem considerar-se qualquer remissão por ela feita a outra lei” (grifo acrescido). É interessante registrar que Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, Lafayette Pereira e, mais enfaticamente, Haroldo Valladão, são favoráveis ao retorno. Já Oscar Tenório e o Grupo Mineiro (Amílcar de Castro, Osíris Rocha e Agenor Pereira de Andrade) sempre se colocaram contra, sob alegações teóricas e práticas, estando seus posicionamentos de acordo com a vigente legislação brasileira sobre o retorno. Nosso entendimento é pela recusa ao retorno. 7.3.1 Caso Forgo Tornou-se clássico, na doutrina de Direito Internacional Privado, e foi um marco na jurisprudência sobre o retorno, o chamado caso Forgo, ocorrido na França do final do século XIX. Um cidadão nascido na Baviera, François-Xavier Forgo, filho natural, migrou com a mãe, aos cinco anos de idade, para a França, onde fez fortuna, especialmente em bens móveis, vindo a falecer aos 68 anos de idade, na cidade de Pau, sem descendentes e sem testamento. Um casal, parentes colaterais de sua mãe, reivindicou a sucessão, alegando a lei bávara, pela qual eles seriam os herdeiros. Pela lei francesa, apenas irmãos herdavam em caso de filiação natural, com o que o patrimônio de Forgo passaria ao Tesouro francês, como herança vacante. Como Forgo nunca oficializara o seu domicílio na França, pela norma de Direito Internacional Privado francês, sua sucessão seria baseada no direito da Baviera, uma vez que nesse Estado alemão era seu domicílio (elemento de conexão). Ocorre que o DIPr bávaro não distinguia domicílio de fato de domicílio de direito. Para a lei da Baviera, em matéria de estatuto pessoal dever-se-ia aplicar a lei do domicílio ou da residência habitual, e em matéria de estatuto real, a lei da situação dos bens, móveis ou imóveis. Aceitando essa norma do Direito Internacional Privado bávaro, Forgo tinha domicílio na França, e pela legislação francesa deveria ser processada a sucessão. A justiça francesa voltou-se, então, para a lei do foro, e por suas instâncias superiores confirmou finalmente a decisão, em 1878, sendo a herança atribuída ao Tesouro francês.
7.4 Limites à aplicação da lei estrangeira
A lei estrangeira a ser aplicada – em tese apenas direito material ou substancial – não o será necessariamente na sua amplitude. Isso ocorre porque cada ordenamento jurídico tem o seu critério de aplicação do direito estrangeiro, preservando a ordem pública. Essa limitação foi chamada por Edgar Amorim de salvaguarda imunológica.10 Entre as limitações mais usadas, brevemente analisadas a seguir, estão a ordem púbica, a soberania nacional, os bons costumes, a fraude à lei, o favor negotii, o prélèvement, as instituições desconhecidas e as instituições abomináveis. 7.4.1 Ordem pública Nenhum país aplica a lei estrangeira quando esta viola a ordem pública interna, mesmo nos casos em que a norma estrangeira fosse a aplicável à relação jurídica. No direito positivo brasileiro, o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, preceitua que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. Em realidade, ordem pública é de difícil e controversa definição, variando ao sabor de interesses e ideologias no tempo e no espaço, uma vez que a lei não a define. Amorim considera-a como sendo “a soma dos valores morais e políticos de um povo”.11 Haroldo Valladão observa, com propriedade, que a noção de ordem pública “é fluida, relativíssima, que se amolda a cada sistema jurídico, em cada época, e fica entregue à jurisprudência em cada caso”.12 Para Jacob Dolinger, o princípio de ordem pública reflete a filosofia sociopolítica-jurídica de toda legislação, representando “a moral básica de uma nação e que atende às necessidades econômicas de cada Estado”.13 Muitos autores, como Irineu Strenger14 e João Baptista Machado,15 distinguem ordem pública interna (nacional, doméstica) de ordem pública externa (internacional, global), dicotomia que é rejeitada por outros estudiosos, como Oscar Tenório e Amílcar de Castro. A doutrina, o mais das vezes, engloba na ordem pública a soberania nacional e os bons costumes. Esses últimos, em oportunas palavras de Clóvis Beviláqua, são “os que estabelecem as regras de proceder, nas relações domésticas e sociais, em harmonia com os elevados fins da vida humana”16 (grifo acrescido). Conceituamos soberania como o poder que, no plano interno, está legalmente acima de todos os outros e, na esfera internacional, se encontra em condições de igualdade com os dos demais Estados, não se subordinando a nenhum deles. Em outras palavras, soberania deve ser entendida como o poder que paira sobre todos os demais, o poder supremo, não admitindo outro nem mesmo igual. Inúmeros casos na jurisprudência exemplificam o princípio de ordem pública, limitando a aplicação da lei estrangeira, como o da sentença argelina que condenou mulher ao divórcio e à perda da posse e guarda do filho por não querer acompanhar o marido para fora da França, decisão inadmitida pela Corte de Poitiers; o da lei tunisina que não admite fixação de filiação não decorrente de casamento, resultando que o filho natural não pode nem pleitear alimentos; e o da lei mexicana que veda a cidadãos americanos o controle de negócios e de terras no México.17 Albergado no preceito da ordem pública, o Supremo Tribunal Federal brasileiro negou homologação a diversas sentenças de divórcio alicerçadas no repúdio islâmico. Tribunal de Nova Iorque rejeitou, por contrariar sua ordem pública, lei de Massachusetts que arbitrava em cento e cinquenta mil dólares indenização de nova-iorquino que lá morrera em acidente, por ser essa indenização em quinze
mil dólares em sua própria lei. No que tange a esse último exemplo, convém acentuar que os Estados norte-americanos dispõem de legislações próprias, com o que situação como essa aplica, excepcionalmente, postulados de Direito Internacional Privado. Recordemos, finalmente, que o princípio de ordem pública é o mais empregado para limitar a aplicação de lei estrangeira. 7.4.2 Fraude à lei A fraude à lei é a prática, pelo ser humano, de um ato legal na forma e na aparência, mas que esconde a intenção de burlar a lei aplicável in casu a qual lhe seria desfavorável. A vítima na fraude à lei é a própria coletividade. Caso frequente de fraude à lei é o do cidadão que transfere domicílio para outro país, onde exerce a sua capacidade civil, assegurando o exercício de um direito que ainda não detinha em seu domicílio nacional, em razão da lei ali vigente, retornando após. Era o caso, na vigência do Código Civil de 1916, de brasileiro de dezenove anos, relativamente incapaz em seu ordenamento jurídico, que transferia domicílio para o Uruguai, onde a capacidade plena ocorre aos dezoito anos de idade, o que lhe permitia praticar determinados atos da vida civil que no Brasil não lhe seriam possíveis. Muitas vezes os casos de fraude não são questionados ou, mesmo o sendo, consegue o fraudador vêla reconhecida como legal. Ocorrendo a mudança intencional, em tema de estatuto pessoal, da nacionalidade ou do domicílio da pessoa, que busca colocar-se sob a influência de ordem jurídica diversa da que lhe seria originalmente aplicável, com o fim de fugir a um limite dessa lei, estará caracterizada a fraude à lei. Dessa forma, trata-se de mudança ardilosa, esquiva, artificial, evasiva, odiosa, escusa, condenável e maldosa de uma situação jurídica. Werner Goldschmidt afirma que “a fraude à lei consiste em um duplo abuso de direito: a pessoa fraudadora abusa de um direito para burlar a finalidade de outra norma jurídica”.18 Entre os exemplos de fraude à lei cabe mencionar a conversão ao islamismo para sustar a obrigação de alimentos à ex-esposa e o proprietário que leva bens móveis para país onde o prazo para aquisição por usucapião é menor do que o de seu domicílio. Comprovar a fraude à lei é difícil, pois implica analisar a intenção do pretenso fraudador e isso, para alguns autores, envolve uma intromissão indevida do Judiciário no campo da consciência humana. Por outro lado, é oportuno referir a possibilidade legal de avaliar a intenção das pessoas, como na tipificação penal do crime tentado. 7.4.3 Favor negotii Segundo De Plácido e Silva, trata-se do “princípio de prevalência do negócio em favor daqueles que intervieram de boa-fé, quando uma das partes, sendo estrangeira, não tinha capacidade para fazê-lo, segundo sua lei nacional, desde que a lei local admita sua capacidade, se pertencesse ao país em que se encontra”.19 Assim, o contrato é válido, e o incapaz se obriga pelo cumprimento do ajustado, ainda que em desacordo com seu estatuto pessoal. O favor negotii tem sua aplicação na área do Direito Comercial. 7.4.4 Prélèvement
Palavra francesa que significa literalmente “tirar antes”, sendo usada para indicar a primeira parte de uma peça teatral. No campo do DIPr representa um instituto que visa, em certas situações, beneficiar o nacional em detrimento do estrangeiro. Embora visto como justo por alguns autores, consideramos inadequado em nosso tempo esse princípio de aplicar a lei mais favorável ao nacional, pois qualquer resquício de xenofobia deve ser prontamente rejeitado. O artigo 10, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em sua redação atualizada pela Lei n. 9.047, de 18.05.1995, indica um caso de prélèvement, pois limita a aplicação da lei estrangeira, como se vê: “A sucessão de bens de estrangeiro, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus” (grifo acrescido). É o que chamamos lei imperfeita, norma que privilegia uma parte em detrimento de outra, visando beneficiar o cidadão nacional, amparada no próprio texto constitucional (art. 5º, XXXI, da Carta Magna de 1988). Na verdade, a palavra francesa prélèvement e a expressão latina favor negotii significam a mesma coisa, ou seja, favorecer o nacional em detrimento do estrangeiro. Interessa-nos distinguir que o prélèvement é mais abrangente, pois tem aplicação também no Direito Civil. 7.4.5 Instituições desconhecidas A diversidade de raças, origens, costumes, tradições, idiomas e religiões, entre os povos faz surgir, em certas ocasiões, institutos jurídicos peculiares a determinados ordenamentos jurídicos. Essas instituições dividem-se entre as simplesmente desconhecidas pela lex fori e as incompatíveis com a ordem internacional. As primeiras são ignoradas por força de elementos históricos na formação do direito interno e não representam limites para o DIPr. Por outro lado, as incompatíveis com a ordem internacional (embora compatíveis com a sua ordem jurídica interna) devem ser afastadas e serão estudadas no item seguinte. Cabe referir, no primeiro caso, o noivado no direito italiano, o bem de família no Brasil, o trust do direito inglês e o desquite no antigo direito brasileiro, lembrando, ainda, institutos como o dote, os esponsais e a hipoteca de bens móveis, que fazem parte de alguns ordenamentos jurídicos, inexistindo na maioria das legislações. Sugere Dolinger que a instituição desconhecida seja contornada por meio de adaptação a outra existente no foro, cujos efeitos sejam correspondentes ou semelhantes à instituição estrangeira desconhecida. Esse autor lembra que o desquite brasileiro era aceito na Europa como separação de corpos – instituto menos radical – e no Japão, que admitia o divórcio, cujos efeitos eram mais amplos. Ainda menciona juízo de Francisco Rezek, então Ministro do Supremo Tribunal Federal: “O só fato de não conhecermos determinado instituto jurídico não impede a homologação de uma sentença estrangeira.”20 No mesmo sentido, afirma Beat Rechsteiner que as instituições jurídicas desconhecidas são frequentemente detectadas quando se trata de reconhecer, no direito interno, atos jurídicos ocorridos no estrangeiro, em especial no direito de família e das sucessões, situação em que pode haver necessidade de adaptar esses institutos ao direito do foro.21 Muitos autores, por outro lado, consideram que “admitir uma instituição desconhecida equivale a conferir aos forasteiros mais direito que aos nacionais, e por isso deve a mesma ser repelida”, como assevera Luís Ivani Araújo.22
Salienta-se que não constitui limite à aplicação da lei estrangeira a falta de reconhecimento ou não existência de relações diplomáticas entre o país do foro e o Estado de cujo ordenamento faz parte a lei aplicável ao caso. Nesse sentido, o juiz brasileiro poderia aplicar a lei taiwanesa quando invocada por cidadão de Taiwan, embora esse país não seja reconhecido pelo Brasil. Seria um contrassenso aplicar ao caso a legislação da China continental (já que o Brasil reconhece apenas uma China), pois esse cidadão não está submetido ao ordenamento jurídico chinês. Concluindo, pode-se afirmar que a instituição desconhecida merece um estudo apurado dos aplicadores do direito, buscando a efetiva intenção do autor por meio da interpretação teleológica, sistemática, sociológica e analógica do postulado, com o que se poderá encontrar motivo para adotá-la no julgamento da lide. 7.4.6 Instituições abomináveis Entre as instituições incompatíveis com o espírito do direito brasileiro, e que devem ser repelidas, as mais citadas são a poligamia, a escravidão e a morte civil. Para a maior parte da doutrina, na qual nos incluímos convictamente, a pena de morte se integra no rol das instituições abomináveis. Ainda convém referir a chamada morte religiosa, em que a pessoa que realizava votos em uma congregação renunciava aos bens mundanos. Também é repelido pelos tribunais de muitos povos o repúdio, adotado no direito corânico, pelo qual o marido obtém a separação religiosa sem que a esposa seja consultada; a discriminação racial, de que foi lamentável exemplo o “apartheid” que vigorou na África do Sul durante muitos anos; a separação das pessoas em castas e a condenação de alguém à indigência. Todas essas instituições repugnam a consciência média dos povos civilizados. A retorsão – ato pelo qual o Estado prejudicado por medida de outro utiliza em relação a ele atitude idêntica à que foi vítima –, forma egoísta e perversa da reciprocidade, não é admitida no Brasil, sendo lembrada a solicitação do Imperador D. Pedro II, que presidia a comissão que elaborava o Código Civil brasileiro, em 1889, de que “no Código se consignasse o que fosse mais justo, independentemente da reciprocidade”.23 A maioria dos países repele a retorsão. Quanto à reciprocidade propriamente dita, mesmo legislações contemporâneas a admitem para determinadas questões jurídicas, como na sucessão, emancipação, direitos de família, entre outros, conforme explicita Haroldo Valladão, para quem a reciprocidade e a retorsão são anticristãs, constituindo a forma jurídica do egoísmo.24
RESUMO 7.1 Considerações iniciais Não pode o magistrado brasileiro, julgando-se incompetente, remeter o feito ao juiz estrangeiro a quem competisse julgá-lo. Contudo, pode utilizar a lei estrangeira se indicada pelo elemento de conexão.
7.2 Aplicação direta da lei estrangeira A lei estrangeira é recepcionada como lei e não como fato, o que elimina o ônus da prova e evita a antipatia de uma pretensa superioridade da lei do foro. Pode ser invocada inclusive no recurso extraordinário e na ação rescisória.
A parte que alega direito estrangeiro deverá provar a existência, o texto e a vigência da lei, se solicitada. A prova se faz com códigos, revistas, livros, certidões e se refere a qualquer lei estrangeira (constituição, lei ordinária, decreto, costumes). A norma estrangeira aplicada é apenas a lei material, substancial, e os meios de prova são também da lei estrangeira.
7.3 Retorno É a operação pela qual o juiz nacional volta ao direito do foro ou vai a um terceiro, seguindo a indicação do DIPr da jurisdição consultada, que seria aplicável ao caso. O direito positivo brasileiro não admite o retorno, conforme o artigo 16 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Muitos autores de DIPr no Brasil admitem, em tese, o retorno, como Beviláqua, Espínola e Valladão. Tenório e o Grupo Mineiro combatem-no, estando seu posicionamento conforme nossa legislação atual. 7.3.1 Caso Forgo Na doutrina de Direito Internacional Privado, é clássico o caso Forgo, ocorrido na França, no final do século XIX. Trata-se de um marco no estudo do retorno.
7.4 Limites à aplicação da lei estrangeira A lei estrangeira não é sempre e necessariamente aplicada in totum. Cada Estado tem o seu critério para aplicá-la, preservando especialmente a ordem pública. 7.4.1 Ordem pública Motivo mais empregado para limitar a aplicação da lei estrangeira. Nenhum Estado aplica lei estrangeira que ofenda a sua ordem pública. No Brasil, o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, preceitua que não terão eficácia leis, atos e sentenças de outro país que ofendam nossa ordem pública. 7.4.2 Fraude à lei Prática de um ato legal na forma e na aparência, mas com a intenção de burlar a lei aplicável. Mudança ardilosa e intencional de uma situação jurídica, por meio da troca, por exemplo, do domicílio ou mesmo da nacionalidade. Sua vítima é a própria coletividade. Caso frequente é a pessoa transferir domicílio para outro país, onde exerce sua capacidade, assegurando o exercício de um direito que não detinha. 7.4.3 Favor negotii Prevalência de negócio em favor daquele que interveio de boa-fé, quando uma das partes não tinha capacidade pela sua lei nacional, mas a possuía pela lei do foro. Aplica-se na área do Direito Comercial. 7.4.4 Prélèvement Instituto que visa beneficiar o nacional, em certas situações, em desfavor do estrangeiro. O artigo 10, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, indica um caso de prélèvement: sucessão
em favor do cônjuge ou de filhos brasileiros. Semelhante ao favor negotii, o prélèvement é mais abrangente, por se aplicar também ao Direito Civil. 7.4.5 Instituições desconhecidas Trata-se de institutos restritos a determinados Estados: noivado na Itália, bem de família no Brasil, trust na Inglaterra, desquite no antigo direito brasileiro. Há institutos com tais características inseridos nos ordenamentos jurídicos de alguns Estados: dote, esponsais, hipoteca de bens móveis. 7.4.6 Instituições abomináveis São institutos incompatíveis com o espírito da Justiça: poligamia, escravidão, morte civil, discriminação racial e morte religiosa. Também, embora muito aceitos em certos Estados, a pena de morte, o repúdio e a retorsão.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Analisar o procedimento do juiz brasileiro quando se evidencia ser da justiça de outro país a competência para a lide. 2. Dissertar sobre as fontes de direito estrangeiro que podem ser empregadas no foro brasileiro, detendo-se na forma como a parte deve provar a sua vigência e conteúdo. 3. Tecer considerações sobre o retorno, posicionando-se sobre ele e justificando sua opção. Fazer, por fim, um estudo do caso Forgo, à luz dos conhecimentos atuais de Direito Internacional Privado. 4. Apresentar cinco limites à aplicação da lei estrangeira no ordenamento jurídico brasileiro, justificando-os exaustivamente. 5. Conceituar o princípio da ordem pública. 6. Proceder a um estudo de instituições desconhecidas na ordem jurídica brasileira, preconizando comportamentos da justiça brasileira diante de casos concretos.
______________ 1 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 275-276. 2 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I. p. 470-471. 3 BOGGIANO, Antonio. Curso de derecho internacional privado. p. 291. 4 DOLINGER, J. Op. cit. p. 287-288. 5 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. p. 264. 6 DOLINGER, J. Op. cit. p. 292. 7 ROCHA, Osíris. Curso de direito internacional privado. p. 57. 8 SILVA ALONSO, Ramón. Derecho internacional privado. p. 140. 9 RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado (teoria e prática). p. 220-221. 10 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 57. 11 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 57. 12 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 496. 13 DOLINGER, J. Op. cit. p. 386. 14 STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 373-383. 15 MACHADO, João Baptista. Lições de direito internacional privado. p. 253-272. 16 BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 84. 17 DOLINGER, J. Op. cit. p. 410-411. 18 GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado (derecho de la tolerancia). p. 109. 19 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. p. 277. 20 DOLINGER, J. Op. cit. p. 455-456. 21 RECHSTEINER, B.W. Op. cit. p. 172. 22 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Introdução ao Direito internacional privado. p. 71. 23 OTÁVIO, Rodrigo. Direito internacional privado. p. 125. 24 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 515.
HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
“É conveniente que a sentença ditada por um Tribunal possua uma eficácia internacional” (Jean Paul Niboyet).
8.1 Considerações iniciais Como visto no capítulo anterior, a aplicação do direito estrangeiro pode apresentar-se de duas maneiras: emprego pelo juiz do foro, na composição da lide, de lei de outro país (aplicação direta) e execução de sentença proferida pela justiça estrangeira (aplicação indireta). Acentue-se, de início, que toda decisão judicial tem seus efeitos e validade restritos ao ordenamento jurídico que a prolatou. A execução de sentença em outro país ocorrerá pela aceitação da legislação desse Estado por meio de lei, convenção ou reciprocidade, sendo normalmente necessário passar por procedimento específico, no qual se analisará a existência de determinados requisitos. Nesse sentido, nenhum Estado está obrigado a reconhecer a validade e a eficácia de decisão de juiz ou tribunal estrangeiro. A relevância da execução de decisão estrangeira levou Lima Pinheiro a afirmar que o reconhecimento dos seus efeitos implica a aceitação da proposição de que o Direito do Estado de origem da sentença é aplicável na condição de caso julgado.1 Em época de intensa especialização em todos os setores da atividade humana e nas relações entre as pessoas – paradoxal contraponto à globalização – alguns autores, como o mestre português, já vislumbram um Direito de Reconhecimento, ainda integrado ao Direito Internacional Privado. Para Wolff, o reconhecimento de sentença estrangeira e sua execução em outros países é possivelmente o problema mais importante no intercâmbio entre os Estados.2 Por seu turno, Rigaux enfatiza que o não reconhecimento mútuo dos atos de estado civil oriundos de outro Estado ou a sistemática negativa de eficácia às decisões estrangeiras nessa área paralisaria toda circulação de pessoas.3 Outrossim, lembra Amílcar de Castro que nenhum país admite diretamente a execução de sentenças estrangeiras, o que permite inclusive resolver preliminarmente algumas questões delicadas, não as deixando para o processo de execução.4
8.2 Fundamentos A recepção pela ordem jurídica interna da eficácia de sentença estrangeira deu origem a uma dezena de teorias que buscam fundamentar essa prática. Merecem referência a comitas gentium, ou cortesia internacional, que retroage aos estatutários holandeses do século XVIII; a comunidade de direito, de Savigny; e a dos direitos adquiridos. Reputamos sem maior relevância, neste momento, nos estender nas justificativas, bastante teóricas, da aceitação da decisão estrangeira, acentuando que o ideal de justiça e o espírito de solidariedade e de interdependência entre os povos devem ser vistos como a razão central para o reconhecimento e a execução, cada vez mais frequente, da sentença de um país em outro. Por outro lado, enfatizamos que a eficácia extraterritorial da sentença tende a ser admitida pelas
ordens jurídicas de praticamente todos os países, em contraposição à rejeição antes existente, uma vez que os próprios tribunais tendem a analisar melhor que o legislador as necessidades concretas da vida.5
8.3 Documentos estrangeiros: cartas rogatórias As decisões interlocutórias (citações, avaliações, exames de livros, vistorias, oitivas de testemunhas, interrogatórios) não são homologáveis. Tais atos, contudo, não são indiferentes ao Direito brasileiro, sendo objeto de carta rogatória. A carta rogatória poderá ser ativa – quando expedida por juiz ou tribunal brasileiro a fim de ser cumprida por autoridade judiciária estrangeira – e passiva – quando emanada por juiz estrangeiro a autoridade brasileira. O artigo 210 do nosso Código de Processo Civil estabelece que “a carta rogatória obedecerá, quanto à sua admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao disposto na convenção internacional; à falta desta, será remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via diplomática, depois de traduzida para a língua do país em que há de praticar-se o ato”. Trata-se, como se vê, de carta rogatória oriunda da justiça brasileira para ser cumprida em outro país. Carta rogatória a ser cumprida no Brasil – único meio admitido para citação de parte domiciliada no País nesses casos – necessita de exequatur do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme estabelece a alínea i do inciso l do artigo 105 da Carta Magna, inserida pela Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004. A concessão do exequatur, bem como a sua denegação, não faz coisa julgada, podendo vir a ser solicitada em novas situações.6 O ritual seguido pela carta rogatória é o seguinte: o Ministério das Relações Exteriores a encaminha ao Ministério da Justiça, que a remete ao Presidente do STJ. Essa autoridade a envia, por sua vez, à Justiça Federal, cabendo a juiz de primeiro grau seu cumprimento. Retorna, então, pelo mesmo caminho, quando o Ministério das Relações Exteriores a devolve finalmente à autoridade judiciária estrangeira, de onde a carta proveio. A carta rogatória pode ser identificada como comissão rogatória. Em ordens jurídicas estrangeiras também é denominada exhorto, comisión rogatoria, lettre rogatoire ou letter of request, entre outros.
8.4 Sentenças estrangeiras homologáveis 8.4.1 Conceituação Entendemos homologação como o ato que torna sentença estrangeira exequível na ordem jurídica interna. Portanto, é a homologação que vai permitir a execução, em um país, de decisão proveniente de órgão judiciário de outro. Recorde-se que a palavra exequatur, expressão latina, forma verbal, que significa execute-se, cumpra-se, é empregada no Brasil para a admissão de carta rogatória. Muitos autores, especialmente de outros países, usam-na para a aceitação de sentença, o que, em princípio, não ocorre entre os doutrinadores e legisladores brasileiros, que preferem referir-se à homologação ou reconhecimento como o caminho para a exequibilidade da sentença estrangeira. Quatro termos – homologação, exequatur, reconhecimento e delibação, nessa ordem – são usados para indicar a aceitação pelo sistema jurídico brasileiro da sentença estrangeira, ressaltando-se ser mais técnica e mais empregada a palavra homologação.
É oportuno destacar que a homologação em si não dá eficácia no âmbito interno à sentença estrangeira, mas permite que ela produza efeitos no país. A decisão em processo de homologação é portadora de eficácia, ainda que essa eficácia se restrinja, rotineiramente, aos limites territoriais de sua ordem jurídica. Ademais, a homologação tem duplo objetivo no âmbito interno: atribuir força executiva à sentença estrangeira e assegurar-lhe a autoridade de coisa julgada. O reconhecimento de sentença estrangeira é uma prerrogativa do Estado, não havendo, em princípio, obrigatoriedade dessa aceitação. O que deve ser enfatizado é que, sem homologação, a decisão estrangeira não pode ser executada no Brasil, ao passo que, homologada, a sentença condenatória se torna exequível. Nesse sentido, nos termos do inciso VI do art. 475-N do Código de Processo Civil (de acordo com a redação dada pela Lei n. 11.232/2005), a sentença estrangeira devidamente homologada pelo STJ constitui título executivo judicial, efetuando-se sua execução por carta de sentença extraída dos autos da homologação. Competirá à Justiça Federal de primeiro grau efetuar a execução da sentença (art. 109, X, da Constituição Federal). Recorde-se, como observou Goldschmidt, que as sentenças declaratórias podem ser reconhecidas, mas jamais executadas, enquanto as constitutivas, após sua homologação, não são executadas pela simples razão de que se autoexecutam por seu mero pronunciamento.7 8.4.2 Decisões passíveis de homologação Embora no passado fossem homologadas apenas sentenças oriundas do poder judiciário, como referiu Beviláqua há quase um século,8 o entendimento majoritário da doutrina atualmente é de que a decisão estrangeira homologável o será em sentido lato, não se restringindo à sentença propriamente dita. Assim, são passíveis de homologação no ordenamento jurídico nacional acórdãos, sentenças cíveis, comerciais, penais e trabalhistas, bem como decisões de órgãos judicantes de outros poderes, a exemplo de divórcios concedidos por autoridades do Poder Executivo, como prefeitos de cidades japonesas e o rei da Dinamarca. Decisões oriundas do Poder Legislativo, como o Parlamento do Canadá, ou a Câmara dos Lordes do Reino Unido, ou de autoridades religiosas, sempre que constituam sentença no sentido material, podem ser homologadas.9 O amplo espectro de decisões estrangeiras que poderão prevalecer em território brasileiro inclui as provenientes de processos cautelares, sentenças arbitrais e, eventualmente, sentenças declaratórias. Sentenças proferidas em processos administrativos ou tributários estrangeiros podem ser consideradas, por seu conteúdo, como não passíveis de homologação. 8.4.3 Sistemas de homologação Os métodos empregados pelas ordens jurídicas para o reconhecimento da sentença estrangeira têm ocupado estudiosos de vários ramos das ciências jurídicas, especialmente de Direito Internacional Privado e de Processual Civil. Salienta-se que mestres brasileiros desses segmentos do Direito têm oferecido sua contribuição com relevantes reflexões sobre o tema. A doutrina apresenta cinco formas de solução: a revisão de mérito, a revisão parcial de mérito, a reciprocidade diplomática, a reciprocidade de fato e a delibação.10 Entendem outros autores que a homologação ocorre, nos diversos países, sob quatro sistemas: novo processo; nova ação, mas oferecendo valor de prova à decisão forasteira; reciprocidade e delibação.11 Amorim Araújo estuda as teorias sob um viés triplo: nova ação, reciprocidade e delibação.12 Outrossim, para alguns tratadistas, os sistemas de homologação podem ser sintetizados em dois métodos: a sentença estrangeira não dispõe
de eficácia, admitindo-se presunção em favor do que foi por ela decidido, e homologação mediante pressupostos.13 Assim, verifica-se que a decisão judiciária prolatada pelos tribunais de um país é admitida nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, ainda que em alguns deles apenas como prova no processo que instauram em âmbito interno. 8.4.4 Delibação O método mais usado para o reconhecimento de sentença estrangeira é a delibação. Nele, a homologação ocorre mediante pressupostos estabelecidos pela ordem jurídica na qual a sentença deve ser executada. Teceremos algumas considerações sobre esse instituto. O sistema de delibação surgiu, em 1865, no Código de Processo Civil da Itália como giudizio de delibazione e a designação tem origem em delibatio, palavra latina que significa colher um pouco, tocar de leve, examinar. Destina-se a analisar a sentença estrangeira apenas em sua forma, sem entrar no mérito. São examinados os requisitos externos, as formalidades da decisão e seus pressupostos, que devem estar coerentes com os parâmetros do Direito do país em que a decisão deverá ser cumprida. Em estudo de quase um século atrás, Gustavo Braga observou que “o giudizio de delibazione é o único que pode atender às necessidades da justiça internacional privada, sem ofender a susceptibilidade e os melindres da ordem pública e da soberania de cada país”.14 Concordamos com esse juízo e entendemos que a delibação é o sistema mais consentâneo com a diplomacia e a solidariedade entre os povos, uma vez que não analisa o mérito da decisão da justiça estrangeira. Trata-se do método adotado pelo Brasil. Por meio dele, segundo Greco Filho, a força e os efeitos da decisão estrangeira não são modificados ou acrescidos pela homologação, e a sentença é obrigatoriamente reconhecida, desde que preencha “os requisitos compatíveis com a delibação, não cabendo juízo de oportunidade ou conveniência”.15 Contudo, deve ser ressaltado que esse método tem sofrido modificações via doutrina e jurisprudência, fruto de seu amplo emprego nos diversos ordenamentos jurídicos. Nesse aspecto, é oportuno observar que o Brasil se situa entre os países que mantêm a delibação na sua essência originária. A própria Itália, berço do sistema, apresenta-o atenuado, admitindo, em determinadas situações, ser revisto o mérito da causa: o sistema brasileiro é mais fiel ao juízo de delibação, proibindo o reexame do mérito.16 Outrossim, não pode ser entendido que haja na delibação pleno alheamento do sistema jurídico no qual a sentença vai ser executada no que tange ao seu conteúdo material: sua consonância com a ordem pública local, sempre verificada, passa, por óbvio, por análise da substância da decisão estrangeira. 8.4.5 Órgãos homologadores, pressupostos e rito na Justiça brasileira Quanto aos entes homologadores, muitos Estados submetem a sentença estrangeira a mais de uma instância, ocorrendo pluralidade de órgãos. Outros países, como o Brasil, adotam apenas um órgão, no caso o Superior Tribunal de Justiça. O artigo 15 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro apresenta os requisitos que devem ser exigidos na sentença estrangeira para sua exequibilidade no Brasil, quais sejam: a) decisão proferida por juiz competente; b) partes citadas ou se verificado regularmente a revelia; c) sentença passada em julgado e revestida das formalidades necessárias para execução no lugar
em que foi proferida; d) traduzida por intérprete autorizado; e e) homologada pelo Superior Tribunal de Justiça. Cada um desses itens comporta reflexões que fogem dos limites desta obra. Assim, se uma sentença estrangeira de prestação de alimentos foi proferida por juiz de vara de família, não se vai questionar, por exemplo, se esse julgador era competente apenas para determinada região. No entanto, se o juiz que prolatou a sentença tivesse apenas competência penal ou trabalhista, estar-se-ia diante de caso de incompetência, o que poderia impedir a homologação da sentença pela nossa Justiça. Para Agenor Andrade, deve ser examinada, no processo de homologação, se a competência era efetivamente do país do juízo prolator da sentença, a competência internacional}.17 Questionamentos também podem surgir quanto à tradução da sentença. O artigo 15 da LINDB fala em intérprete autorizado, enquanto o artigo 216 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal exigia que ela fosse autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução oficial. Trata-se de expressões diferentes, mas que, a rigor, não se contradizem, devendo-se enfatizar que esse requisito será adequadamente cumprido com a conversão ao português da sentença por tradutor público juramentado no Brasil. Isso evitará tradução que apresente termos que tenham, em nosso Direito, outro significado: menciona-se caso em que palavra dinamarquesa que indicava divórcio foi traduzida para o português por anulação, quando se referia à dissolução. Acresça-se que o rei da Dinamarca tem competência para decretar divórcio, sendo a anulação de casamento, naquele país, de competência do Poder Judiciário. Enfatize-se que, apesar de o Superior Tribunal de Justiça não analisar o mérito da decisão estrangeira, será avaliada eventual ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes. Assim, de acordo com o art. 17 da LINDB, uma vez detectado um desses vícios, a sentença ou decisão estrangeira não será homologada. O ritual observado para a homologação de uma sentença exarada pela Justiça de outro país pode iniciar-se, no ordenamento jurídico brasileiro, por duas vias: por meio de requisição diplomática, independentemente da presença do interessado, e a requerimento de qualquer dos interessados, ou de todos eles, junto ao Superior Tribunal de Justiça. Ocorre, então, a citação da parte interessada, com prazo para ela opor suas razões, deferindo-se, a seguir, igual prazo para impugnação. A contestação somente poderá versar sobre autenticidade dos documentos, inteligência da sentença e observância dos requisitos legais. Concedida a homologação, é emitida a carta de sentença para execução da decisão estrangeira, que é competência de juiz federal de primeiro grau. Embora não seja a regra, pode a decisão da Justiça de outro Estado ser homologada parcialmente. Nesses casos, a corte reconhece como executável apenas a condenação ou as custas, ou mesmo os honorários advocatícios, ou qualquer deles. Na Argentina, o reconhecimento de sentença estrangeira é feito pelo magistrado de primeira instância, adotando-se o sistema de delibação, não ocorrendo, portanto, por meio de órgão único como no Brasil. O Código Processual Civil e Comercial argentino preconiza, ainda, a existência de tratado com o Estado originário da decisão, quando a força executória da sentença seguirá os termos desse acordo. O rito paraguaio se assemelha ao argentino, enquanto o uruguaio está mais próximo do brasileiro (execução de sentença estrangeira pela Suprema Corte de Justiça). Refere Hee Moon Jo que a Arábia Saudita adota unicamente o reconhecimento e execução de sentença de outro país mediante convenção.18
8.4.6 Sentença homologanda versus lide na Justiça brasileira A coexistência de sentença estrangeira em fase de homologação no Brasil e lide na Justiça brasileira sobre o mesmo objeto conduz a questionamentos. Deve ser destacado que o fato de haver processo na Justiça estrangeira não produz, em si, litispendência no Brasil, conforme explicitado no artigo 90 do Código de Processo Civil: “A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas.” Por igual razão, a existência de sentença proferida em outro país, em fase de homologação, não produz litispendência, podendo prosseguir ambos os processos. Caso a ação estrangeira e a ação de homologação tramitassem concomitantemente, não se cogitaria em litispendência, mas, sim, na análise dos pressupostos processuais objetivos. De qualquer maneira, tão logo ocorra homologação de decisão forasteira, a lide na Justiça nacional será extinta, pois passa a haver coisa julgada. A homologação pelo Superior Tribunal de Justiça terá tornado executável a decisão sobre a lide, não mais havendo, perante nossa ordem jurídica, o que ser submetido a julgamento.
8.5 Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro Considerando-se o expressivo número de sentenças proferidas em um país para execução em outro referentes à prestação de alimentos, cabe aludir a importante documento sobre o tema. Trata-se da Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, assinada em Nova Iorque (EUA) no dia 20 de junho de 1956 e promulgada no Brasil pelo Decreto n. 56.826, de 02 de setembro de 1965. Entre as razões invocadas para a Convenção estão “a urgência de uma solução para o problema humanitário surgido pela situação das pessoas sem recursos que dependem, para o seu sustento, de pessoas no estrangeiro” e o fato de a execução, no estrangeiro, de “ações sobre prestação de alimentos ou cumprimento de decisões relativas ao assunto suscitarem sérias dificuldades legais e práticas”. A Convenção determina que cada Estado designe uma autoridade administrativa ou judiciária para nele exercer as funções de Autoridade Remetente, bem como um organismo público ou privado para as funções de Instituição Intermediária. São órgãos encarregados, respectivamente, do envio da sentença sobre prestação de alimentos exarada no país e da recepção de sentença oriunda de outro Estado. Ambas as tarefas, no Brasil, incumbem à Procuradoria-Geral da República (Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968). Essa Convenção permite que a Instituição Intermediária inicie ação de alimentos, prossiga com ela, transija e execute qualquer ato para a consecução do objetivo da ação. É digno de registro ter a vigência da Convenção ocorrido a partir da adesão de três países, sabendose que, na maioria dos casos, tratado dessa natureza requer aprovação de dezenas de Estados. Isso evidencia a importância e a urgência que os países emprestaram à Convenção.
8.6 Legislação brasileira Além do Código de Processo Civil e da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, outras normas jurídicas brasileiras tratam do tema em estudo. Assim, a Carta Magna, por força da Emenda Constitucional n. 45, estabelece, no artigo 105, I, i, a competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, enquanto o artigo 109, X, dá competência aos juízes federais para processar e julgar a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação.
Também o Código Bustamante se ocupa das cartas rogatórias nos artigos 388 a 393 e da execução de sentenças proferidas por tribunais estrangeiros nos artigos 423 a 433.
8.7 Jurisprudência brasileira Ação Ajuizada no Exterior e Ação Proposta no Brasil. Sentença estrangeira ainda não homologada pelo STJ. Litispendência e coisa julgada. Inexistência. Nos termos do art. 90 do CPC, “A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas.” Portanto, é indiferente à justiça brasileira que a ação ajuizada no exterior e a demanda proposta no Brasil tenham as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, não induzindo a litispendência e tampouco a coisa julgada, uma vez que a decisão proferida por Tribunal estrangeiro somente terá eficácia no Brasil após a sua homologação pelo Superior Tribunal de Justiça, a quem compete, originariamente, tal processamento e julgamento (art. 105, I, i, da CF/88) (TRT/3ª R. – RO n. 00404-2006-111-03-00-2, j. 22.02.2010).19 Homologação de Sentença Estrangeira. Fixação do Dever de Prestar Alimentos. Custeio em Parte das Despesas Médicas da Menor. Citação. Nulidade Afastada. Trânsito em Julgado Comprovado. Ilegitimidade Ativa Rejeitada. Requisitos Legais da Res. nº 09/2005 do STJ Preenchidos. 1. Sentença estrangeira fixando a obrigação de prestação de alimentos à filha menor e custeio parcial das despesas médicas. Requisitos dos arts. 5º e 6º da Res. n. 09/2005 do STJ preenchidos. 2. O Tribunal estrangeiro considerou sanada a irregularidade em torno da citação por ter o requerido atendido ao chamado, constituindo defensor e apresentado defesa. 3. Na esteira do entendimento do STJ, revela-se incabível impor as regras da legislação brasileira ao ato de citação praticado fora do país. 4. O pedido de homologação pode ser deduzido por qualquer pessoa interessada nos efeitos da sentença estrangeira. Precedentes. 5. Homologação deferida (STJ – SEC 8303/EX – 2012/0187824-4 – j. 20.02.2013).20 Direito Internacional. Processual Civil. Sentença Estrangeira Contestada. Divórcio. Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto 56.826, de 02.12.1965). Chancela Consular. Desnecessidade. Precedente do STF. Debate sobre Mérito. Inviabilidade. Precedentes do STJ. Violação ao Art. 89 do CPC. Não Verificada. Requisitos de Homologação Presentes. 1. Cuida-se de pedido de homologação de sentença estrangeira de divórcio, encaminhada sob o rito da Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto n. 56.826, de 02.12.1965). A contestação traz três objeções ao pleito: a necessidade de autenticação consular da sentença original, alegações de mérito referidas ao cumprimento das obrigações de prestação de alimentos e a alegação de que a homologação violaria a competência da justiça brasileira, nos termos do art. 89 do CPC. 2. É dispensada a chancela consular na sentença alienígena no caso de prestação de alimentos, por força da atuação do Ministério Público Federal, como autoridade intermediária na transmissão oficial dos documentos, nos termos da Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto n. 56.826, de 02.12.1965), conforme reconhecido pela jurisprudência do STF: SE 3016, Relator Min. Décio Miranda, Tribunal Pleno, publicado no DJ em 17.12.1982, p. 13.202 e no Ementário vol. 1280-01, p. 148. 3. Não é possível efetuar o debate acerca do mérito da sentença homologanda, exceto nos limites estritos da aferição de potencial violação à soberania nacional ou à ordem pública pátria. Nesse sentido: SEC 7.478/EX, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Corte Especial, DJe 04.03.2013; SEC 5.121/EX, Rel. Ministro Ari Pargendler, Corte Especial, DJe 28.02.2013; e SEC 7.987/EX, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, DJe 29.10.2012. 4. Da leitura da sentença homologanda, infere-se que nada foi consignado acerca de patrimônio ou de imóveis existentes no Brasil. O que se tratou foi da guarda do menor, da
venda de um imóvel no México e da atenção aos alimentos e, portanto, não subsiste a presença de quaisquer elementos que atraiam a aplicação do art. 89 do Código de Processo Civil. Além do mais, o divórcio foi consensual e a jurisprudência do STJ já definiu que “É válida a disposição quanto a partilha de bens imóveis situados no Brasil na sentença estrangeira de divórcio, quando as partes dispõem sobre a divisão” (SEC 5.822/EX, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, DJe 28.02.2013). 5. Estando presentes os requisitos formais, previstos na Resolução STJ n. 09/2005, é de ser homologada a sentença de divórcio proferida no estrangeiro. Pedido de homologação deferido (STJ – SEC 2011/0311424-0 – j. 07.08.2013).21 Sentença Estrangeira Contestada. Execução de Alimentos Fixados a Ação de Divórcio em Favor de Filho Menor. Cessação do Pagamento. Validade da Citação por Edital para a Resposta ao Presente Pedido. Preenchimento dos Requisitos da Res. 09/2005-STJ. Homologação Deferida. 1. Tendo sido tentada por duas vezes a citação por carta de ordem, em dois endereços conhecidos, sem sucesso, e não tendo sido possível a localização do requerido, deve ser reconhecida a validade da citação feita por edital. 2. Considerando o tempo de separação das partes (7 anos), não sendo conhecido o paradeiro do requerido, não eram exigíveis outras providências, que, na hipótese, seriam dispendiosas e somente contribuiriam para retardar e frustrar ainda mais uma difícil execução de alimentos, sendo caso de aplicação dos arts. 231, II, e 232 do CPC. Precedentes do STJ. 3. O pedido está em conformidade com os arts. 5º e 6º da Res. 09/STJ e art. 15 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, pois a sentença de dissolução de casamento e fixação de alimentos foi proferida por autoridade competente, as partes eram domiciliadas no estrangeiro, ambas foram citadas e compareceram aos atos necessários e ocorreu o trânsito em julgado, da decisão, não havendo que se cogitar em ofensa à soberania nacional ou à ordem pública. 4. Dispensável a chancela consular, como tem entendido esta Corte, quando os documentos foram enviados diretamente pela Autoridade Estrangeira, tendo sido traduzidos por tradutor juramentado no Brasil (SEC 2.772/FR, Rel. Min. Castro Meira, DJe 05.02.2009). 5. Questões meritórias referentes aos termos do acordo, sua eventual revisão, bem como a ocorrência de prescrição podem ser alegadas em ação revisional de alimentos. 6. Homologação de sentença estrangeira deferida (STJ – SEC 7526/EX – 2013/0145538-1 – j. 19.06.2013).22
8.8 Considerações finais A homologação de sentença proferida no estrangeiro ocupa, cada vez mais, os organismos judiciários dos diversos Estados da sociedade internacional. Há tendência em aceitar essas decisões, mediante a verificação de pressupostos consentâneos com a ordem jurídica em que elas vão ser executadas. Daí a importância do juízo de delibação, sistema adotado na Itália em fins do século XIX, que examina apenas requisitos formais da sentença, não analisando o seu mérito. Mesmo os países que recusam exequibilidade a esse instituto, veem nele uma presunção de certeza, utilizando-o como meio de prova. A Justiça brasileira dá guarida às cartas rogatórias, mediante exequatur do Superior Tribunal de Justiça e homologa sentenças estrangeiras por meio do sistema de delibação, analisando essa Corte as formalidades do julgado estrangeiro, sem examinar o mérito. Cabem, por fim, as seguintes observações sobre o tema: a) O processo de homologação é uma ação autônoma, não subordinada à que deu origem, no exterior, à sentença em fase de reconhecimento para execução no país; b) Os sujeitos da sentença estrangeira e os do processo de homologação não são, necessariamente, os mesmos, ampliando-se, em número, os sujeitos possíveis em relação à última (credor de uma
das partes, que tenha interesse jurídico na sentença, por exemplo, pode requerer a homologação); c) Não coincidem os objetos da ação estrangeira (lide entre as partes) e da ação de homologação (verificação de pressupostos); d) Coisa julgada no Brasil impede homologação de sentença estrangeira sobre a mesma lide; e) Ação iniciada no Brasil após trânsito em julgado da sentença estrangeira não interfere no processo de homologação, extinguindo-se essa ação no caso de homologação da decisão forasteira; f) Pode ser homologada ação rescisória estrangeira, mesmo que a sentença por ela rescindida não o tenha sido; g) No caso de rescisão no estrangeiro de sentença já homologada no Brasil, essa sentença perde totalmente sua eficácia, independentemente de homologação da rescisão; h) A ação estrangeira tem conteúdo material, enquanto a de homologação é processual; i) A sentença homologatória é constitutiva (entendimento dominante); j) É amplamente majoritário o entendimento de que o processo de homologação é de jurisdição contenciosa (as partes litigam pela homologação e pela não homologação); k) Homologada no Brasil sentença estrangeira, seus efeitos retroagem ao momento em que ela se tornou eficaz no ordenamento jurídico que a prolatou; l) Não é passível de homologação sentença estrangeira que verse sobre imóveis situados no Brasil.
RESUMO 8.1 Considerações iniciais A importância e atualidade da exequibilidade da sentença de uma ordem jurídica em outra têm levado alguns autores a vislumbrarem o nascimento de um sub-ramo do Direito Internacional Privado, o Direito de Reconhecimento.
8.2 Fundamentos Diversas teorias têm sido formuladas para fundamentar a eficácia no estrangeiro da sentença prolatada em um país, como a da comitas gentium, ou cortesia internacional, a da comunidade de direito e a dos direitos adquiridos. O ideal de justiça e o espírito de solidariedade e de interdependência entre os povos podem ser apresentados como as razões para essa prática.
8.3 Documentos estrangeiros: cartas rogatórias As decisões interlocutórias (citação, vistoria, oitiva de testemunha), que não são homologáveis, são cumpridas por meio de carta rogatória, após exequatur do Superior Tribunal de Justiça, na Justiça Federal de primeiro grau.
8.4 Sentenças estrangeiras homologáveis 8.4.1 Conceituação
Entendemos homologação como o ato que torna exequível sentença estrangeira na ordem jurídica interna. Portanto, é a homologação que vai permitir a execução, em um país, de decisão proveniente de órgão judiciário de outro. 8.4.2 Decisões passíveis de homologação São passíveis de homologação acórdãos, sentenças cíveis, comerciais, penais e trabalhistas e decisões de órgãos judicantes de outros poderes (divórcio concedido por prefeito de cidade japonesa e pelo rei da Dinamarca). Ainda o são sentenças de processos cautelares e arbitrais. 8.4.3 Sistemas de homologação A doutrina apresenta cinco formas de homologação de sentença estrangeira: revisão de mérito, revisão parcial de mérito, reciprocidade diplomática e de fato e delibação. 8.4.4 Delibação Método mais usado, inclusive no Brasil, é a delibação, homologação da sentença mediante atendimento de pressupostos, sem entrar no mérito da mesma. Surgiu na Itália no século XIX. 8.4.5 Órgãos homologadores, pressupostos e rito na Justiça brasileira No Brasil, há apenas um órgão encarregado da homologação: o Superior Tribunal de Justiça. Os pressupostos são que a sentença provenha de juízo competente, tenham sido as partes citadas, ou se tenha regularmente verificado a revelia, tenha a sentença passado em julgado e esteja revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida, esteja traduzida por intérprete autorizado e se proceda à homologação pelo STJ. O ritual se inicia pela requisição diplomática ou por requerimento do interessado. 8.4.6 Sentença homologanda versus lide na Justiça brasileira Sentença em fase de homologação e lide na Justiça brasileira podem tramitar, ao mesmo tempo, não se caracterizando litispendência. Tão logo ocorra a homologação de decisão estrangeira, a lide na Justiça nacional deverá ser extinta, porque passa a haver coisa julgada: ter-se-á tornado executável a decisão sobre a lide, não mais havendo, perante nossa ordem jurídica, o que ser submetido a julgamento.
8.5 Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro O elevado número de sentenças sobre alimentos, proferidas em um país para serem executadas em outro, levou ao surgimento da Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, da ONU, assinada em 1956 e promulgada no Brasil em 1965. Cada Estado designa uma autoridade administrativa ou judiciária para nele exercer as funções de Autoridade Remetente, bem como um organismo público ou privado para as funções de Instituição Intermediária: encarregam-se estes, respectivamente, do envio da sentença exarada no país e da recepção da oriunda de outro Estado. Ambas as tarefas, no Brasil, são incumbência da Procuradoria-Geral da República.
8.6. Legislação brasileira
O Código de Processo Civil, a Constituição Federal, entre outras normas jurídicas no Brasil, como o Código Bustamante, tratam do reconhecimento de sentenças estrangeiras.
8.7 Jurisprudência brasileira O Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe desde 2004 homologar sentenças estrangeiras no Brasil, já conta com expressivo número de decisões de outros países tornadas exequíveis no nosso ordenamento jurídico, especialmente sobre ações de alimentos e de divórcio.
8.8 Considerações finais A sentença prolatada em um ordenamento jurídico para ser executada em outro se tornou prática rotineira, ocupando juristas e legisladores na busca da melhor justiça. O Brasil, como a maior parte dos países com sistemas jurídicos avançados, adota a delibação, método que homologa a decisão estrangeira, por meio do exame de pressupostos formais, sem adentrar o mérito.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Tecer considerações sobre a importância da execução, no Brasil, de sentença estrangeira. 2. Defender a criação de um Direito de Reconhecimento. 3. Apresentar as teorias que melhor fundamentam a homologação de sentença estrangeira. 4. Dissertar sobre a homologação de sentença de outro país no Superior Tribunal de Justiça, explicitando os requisitos para essa homologação. 5. Tecer considerações sobre a Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, estabelecida no âmbito da ONU, e sua importância na ordem jurídica brasileira.
______________ 1 LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito internacional privado. p. 30. 2 WOLFF, Martin. Derecho internacional privado. p. 237. 3 RIGAUX, François. Derecho internacional privado (parte general). p. 192. 4 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 552. 5 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. p. 55. 6 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 2o v. p. 401. 7 GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado. p. 481. 8 BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 326. 9 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I. p. 470-471. 10 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 51-53. 11 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. v. 3o. p. 294-299. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. p. 325-327. 12 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Curso de direito dos conflitos interespaciais. p. 155-156. 13 CASTRO, A. Op. cit. p. 552. BARBOSA MOREIRA, J. C. Op. cit. p. 56-57. 14 BRAGA, Gustavo Augusto da Frota. Homologação de sentenças estrangeiras. p. 30. 15 GRECO FILHO, V. Op. cit. p. 394. 16 BARBOSA MOREIRA, J. C. Op. cit. p. 64. 17 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 332. 18 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. p. 350. 19 Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2010. 20 Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013. 21 Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013. 22 Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2013.
NACIONALIDADE
“La nacionalidad aparece en el Derecho Constitucional como medio técnico de constituir la propia población, delimitándola simultáneamente con respecto a los extranjeros” (Werner Goldschmidt).
9.1 Considerações iniciais Vamos nos ocupar da nacionalidade, detendo-nos na presença desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro, à luz do Direito Internacional Privado. A nacionalidade identifica o liame jurídico fundamental entre o ser humano e o Estado, constituindose no elo que cria para ambos direitos e obrigações recíprocas. Esse elo os manterá unidos, mesmo na eventualidade de afastamento da pessoa do espaço geográfico do país, onde continuará recebendo proteção estatal e respeitando as diretrizes emanantes da sua soberania. Trata-se de vínculo jurídicopolítico, social e moral que segue princípios instituídos pelo Estado, mas admitidos pelo Direito Internacional. Pela nacionalidade a pessoa passa a pertencer juridicamente à população constitutiva de um Estado.1 Cumpre observar que o direito à nacionalidade está consagrado em relevantes instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos2 (art. 15), aprovada pela Assembleia-Geral da ONU, em 1948, e o Pacto de São José da Costa Rica3 (art. 20), elaborado no âmbito da OEA, em 1969. Ambos possuem dispositivo sobre o direito de todas as pessoas a uma nacionalidade, bem como ao de mudar de nacionalidade, se assim desejarem. Nesse mesmo sentido dispõe o artigo 19 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,4 aprovada na 9ª Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em 1948. Abordaremos os critérios norteadores da nacionalidade nata – jus soli e jus sanguinis –, a naturalização, os conflitos ou acumulações de nacionalidades (positivo e negativo), o instituto na ordem jurídica brasileira e a perda da nacionalidade.
9.2 Interdisciplinaridade Objeto de DIPr, a nacionalidade tem sua institucionalização na ordem jurídica de cada Estado, sendo ainda estudada em outras áreas das ciências jurídicas, notadamente no Direito Constitucional, no Direito Internacional Público e no Direito Civil. O regime jurídico da nacionalidade (aquisição, perda e reaquisição) versa sobre direito material interno de um país, consistindo em tema essencialmente do Direito Constitucional, razão pela qual notórios internacionalistas não se aprofundarem sobre esse tópico, em seus manuais.5 Não obstante, tendo em conta influência que regras de aquisição e de perda de nacionalidade podem exercer em terceiros países, bem como o importante papel da nacionalidade como elemento de ligação, verifica-se que o tema está fortemente relacionado com o escopo do DIPr, razão pela qual optamos por discorrer sobre ele, a exemplo de outros internacionalistas.6 A competência do Estado para indicar quem são seus nacionais não coincide nas legislações internas, pois costumam ser considerados fatores locais, históricos e culturais. Porém, devem ser evitados critérios raciais ou religiosos, por contrariarem os direitos
humanos. A nacionalidade participa e contribui na distribuição da população pelos países, o que implica engajamento do Direito Internacional a fim de impedir uma regulamentação anárquica, na qual cada Estado atuasse unilateralmente, não considerando os interesses derivados da cooperação internacional, tão importante na atualidade.7 Nesse sentido, houve cobrança de maior engajamento do Direito Internacional, buscando diminuir a tendência de excessiva legislação da nacionalidade pelos ordenamentos internos, que, na primeira metade do século passado, defendiam a competência exclusiva do instituto pelo Estado. Assim, verifica-se que o Direito Internacional reconhece, em princípio, a competência dos Estados na normatização da aquisição e perda da sua nacionalidade, prescrevendo as necessárias limitações nesses casos, com o que impede, por exemplo, a supressão da categoria de estrangeiros pela concessão irrestrita e indiscriminada da nacionalidade.
9.3 Nacionalidade originária Trata-se da nacionalidade atribuída ao ser humano, por ocasião de seu nascimento, pela ordem jurídica na qual ocorre esse evento inicial da existência da pessoa. Dois são os critérios empregados pelos Estados para essa concessão, um privilegiando o vínculo familiar – jus sanguinis – e o outro dando primazia ao local do parto – jus soli. 9.3.1 Jus sanguinis Esse método de atribuição da nacionalidade reinou quase absoluto na maior parte da História, sendo o critério que predomina em muitos países. Sua prevalência ocorre entre os Estados mais populosos, como os europeus. Nesses países, a tendência era de saída de parcelas da população, em busca de oportunidades de realização pessoal e crescimento no campo material, em outras terras, condições inexistentes em seu Estado, assolado por guerras e miséria. Tal fato, ocorrido com frequência nos séculos XIX e XX, trouxe expressivo número de italianos, alemães e japoneses para o continente americano, inclusive para o Brasil. Embora não mais persista essa situação, devido ao período de prosperidade vivido pelos Estados de onde provieram esses imigrantes, o jus sanguinis permanece nos seus ordenamentos jurídicos como o critério de atribuição da nacionalidade. Com a emigração, tende a diminuir o número dos nacionais residentes no país, e o emprego do jus sanguinis nesses Estados vai propiciar que os descendentes, nascidos nas novas terras, continuem ligados pela nacionalidade à pátria de seus genitores, aonde, ao chegarem, estarão capacitados para uma integração mais fácil. Nesse contexto, existem países, como a Itália, que não limitam as gerações dos descendentes que podem continuar sendo nacionais. No entanto, as ordens jurídicas internas, em sua maioria, restringem a uma ou duas gerações os descendentes aptos ao reconhecimento da nacionalidade originária pelo jus sanguinis. É o que ocorre com Alemanha, França e Portugal, por exemplo, em cujas legislações não se reconhece, diretamente, como nacional o neto da pessoa que emigrou. A prudente limitação de gerações hábeis a requererem a nacionalidade do Estado de seus ancestrais tem também o sentido de evitar que continuem sendo admitidas como nacionais desse país pessoas que com ele perderam o vínculo, desconhecendo muitas vezes a própria língua e estando afastadas dos seus costumes e suas tradições.
9.3.2 Jus soli O sistema do jus soli – atribuição da nacionalidade do país de nascimento – surgiu, ou pelo menos se consagrou, no período feudal, no qual a ideia dominante era manter o ser humano preso à terra. Apesar de sua origem, é visto hoje como critério democrático, uma vez que não discrimina parcelas da população que seriam consideradas estrangeiras pelo simples fato de seus genitores não serem oriundos do país em que elas nasceram. É o método de eleição dos Estados novos ou em fase de desenvolvimento, onde impera a necessidade de formação de uma população nacional; daí ser adotado pelos países do continente americano. Na fase inicial da vida de um Estado, seria inconcebível a adoção do jus sanguinis, por ser reduzido o número de nacionais e necessárias várias gerações para seu crescimento adequado, sempre desejável. Os países que recebem muitos imigrantes também costumam adotar o jus soli, a fim de propiciar a integração dos descendentes na vida nacional. Em princípio, não ocorre o emprego absoluto de apenas um dos critérios pelos países. Na América do Sul, o Uruguai e o Paraguai admitem o jus soli a todos os seres humanos nascidos no país, sem exceção, mas recepcionam também o jus sanguinis. Entendemos que o mais adequado seria a combinação do jus sanguinis e do jus soli, com atribuição da nacionalidade ao recém-nascido por um deles, facultando-se a opção pelo outro critério ao atingir a maioridade.
9.4 Naturalização Consiste no ato pelo qual o estrangeiro ou o anacional se investe juridicamente da condição de nacional de país que adotou para viver e que agora o admite como tal. Trata-se de nacionalidade derivada ou secundária, uma vez que adquirida após o nascimento. Não implica necessariamente a perda da nacionalidade originária, dependendo das regras internas de cada ordenamento jurídico. É ato gracioso, faculdade do Poder Executivo, uma vez que nenhum Estado está obrigado a naturalizar qualquer pessoa. A naturalização está albergada em quase todas as legislações. Assim, na Argentina, o estrangeiro pode obtê-la após dois anos de residência no país; no Paraguai, depois de três anos; e na Venezuela, em dez anos, prazos que podem ser reduzidos em determinadas condições. Nesse rol de países, o Uruguai constitui exceção, não admitindo a naturalização; no entanto, possui instituto com alguma semelhança: o estrangeiro com residência, negócio ou propriedade no país pode ser cidadão uruguaio, sem ser nacional. Trata-se do cidadão legal – algo parecido com o estatuto de igualdade entre brasileiros e portugueses, embora, no caso uruguaio, sem reciprocidade –, que inclui direitos políticos, como os de votar e ser votado.8 A naturalização não extingue a responsabilidade civil ou penal a que o estrangeiro estava sujeito no seu país de origem. Como ato personalíssimo, não abrange atualmente os familiares do naturalizado, conferindo-lhe o gozo dos direitos civis e políticos, com as exceções legais em cada Estado. No passado, em muitos ordenamentos jurídicos, a naturalização do marido implicava a da esposa e filhos menores: “A mulher passa com ele ao império da nova pátria escolhida pelo marido.”9 Hoje, no Brasil, qualquer filho do naturalizado, que não nasceu em nosso país – caso em que seria brasileiro nato pelo jus soli – terá que buscar sua própria naturalização, caso tenha interesse. O instituto da naturalização comporta duas formas: a tácita e a expressa. O direito positivo brasileiro atual admite apenas a naturalização expressa, concedida mediante petição escrita, observados os requisitos necessários, entre os quais o mais importante se refere à residência no Brasil.
A naturalização tácita existiu no Brasil em duas ocasiões, ambas inseridas na Lei Maior. A primeira, na Constituição do Império, de 1824, considerou brasileiros os portugueses e os nascidos nas Colônias portuguesas que estivessem residindo no Brasil quando da Independência e a ela aderissem, expressa ou tacitamente, pela continuidade da residência no País. Com o advento da República, a Constituição de 1891 declarou brasileiros todos os estrangeiros que residissem no Brasil em 15.11.1889 e não declarassem, no prazo de seis meses, seu desejo de conservar a nacionalidade de origem. Também concedeu a condição de brasileiros aos estrangeiros que tivessem imóveis no Brasil e fossem casados com brasileiras, ou tivessem filhos brasileiros, desde que residissem no País e não manifestassem sua intenção de manter a nacionalidade originária. A Carta Magna de 1988 traz as normas gerais a respeito da naturalização, que são complementadas pela Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, a partir do artigo 111, que rege o instituto. Assim, os requisitos para o estrangeiro se tornar brasileiro são capacidade civil por nossa lei; registro como permanente no País; residência permanente de, pelo menos, quatro anos no Brasil; que ele leia e escreva em língua portuguesa; tenha profissão ou bens no País; bom comportamento e não tenha contra si denúncia, pronúncia ou condenação por crime doloso, no Brasil ou no exterior. A concessão da naturalização se fará mediante portaria do Ministério da Justiça, conforme o referido artigo 111 do Estatuto do Estrangeiro. Preenchendo os requisitos legais, o estrangeiro deve requerê-la ao referido Ministério, apresentando todos os documentos exigidos por lei. O processo está disciplinado nesse Estatuto (artigos 116 e segs.), bem como no Decreto n. 86.715, de 10.12.1981 (artigos 119 a 134). Ao final do processo, o certificado de naturalização será solenemente entregue pelo juiz federal do domicílio do novo brasileiro ou, na sua ausência, pelo juiz estadual. A Constituição de 1988 prevê (art. 12, inc. II, b) apenas uma hipótese em que a naturalização será um direito: o estrangeiro, sem condenação penal, que resida por quinze anos ininterruptos no Brasil adquire a nacionalidade brasileira desde que a requeira. Nesse caso, a naturalização deixa de ser ato discricionário do Estado para se constituir em direito subjetivo do estrangeiro. O processo para essa concessão – requerimento ao Ministro – não difere da forma anteriormente estudada.
9.5 Conflitos de nacionalidade O emprego pelos Estados dos critérios de atribuição da nacionalidade originária estudados gera, por vezes, os conflitos conhecidos na doutrina por plurinacionalidade e apatridia, analisados a seguir. 9.5.1 Plurinacionalidade São bastante comuns os casos de dupla nacionalidade, que ocorrem quando uma criança nascida em país que adota o jus soli é filha de estrangeiros, nacionais de Estado que admite o jus sanguinis. Evidencia-se abrandamento da repulsa, acentuada em outros tempos, ao instituto da múltipla nacionalidade ou plurinacionalidade, também referida como polipatridia. A adoção dos sistemas mencionados pelos países pode suscitar essas anomalias, permitindo que uma pessoa nasça legalmente investida de mais de uma nacionalidade. Assim, na hipótese de nascer no Brasil filho de casal francês em visita ao País, ter-se-á um caso de dupla nacionalidade: a criança será francesa (jus sanguinis) e brasileira (jus soli). Se qualquer dos genitores dessa criança for italiano ou espanhol, ela poderá ter tripla nacionalidade, também pelo jus sanguinis.
Podem advir dificuldades na vida civil dessas pessoas quando elas necessitarem invocar apenas uma das nacionalidades. Tem-se observado que cada Estado reconhece, nesses casos, como o Brasil, a sua própria nacionalidade, desde que o binacional a possua. Quanto à proteção diplomática em cortes internacionais, a solução encontrada tem sido a da nacionalidade efetiva, que coincide normalmente com aquela do Estado em que o cidadão em questão se encontra efetivamente vinculado, de que é exemplo, bastante citado na doutrina, o caso Canevaro.10 Refere-se a Rafael Canevaro, peruano pelo jus soli e italiano pelo jus sanguinis, que, ante um processo na área tributária no Peru, e na iminência de expropriações em seus bens, invocou proteção diplomática da Itália. Sentença arbitral, em 1912, não recepcionou seu pleito por não se admitir ação de um dos Estados de que a pessoa é nacional contra o outro, podendo, entretanto, qualquer deles agir contra terceiro país em seu favor. A condição de multinacional, a par de trazer benefícios, como gozar facilmente de direitos civis e sentir-se protegido contra o instituto da extradição em mais de um Estado, pode criar embaraços em determinadas situações. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao serviço militar e à proteção diplomática, que não poderiam ser utilizados indistintamente pelo binacional, ao seu alvedrio. Também diante de problema entre os países de que é nacional, poderá enfrentar constrangimentos e dificuldades. Mecanismos legais reconhecidos por meio de tratados que o Direito Internacional põe à disposição encaminham soluções para esses casos, e a dupla nacionalidade vai-se consolidando e prestando benefícios aos próprios Estados, que nela encontram forma de aproximação entre si e de ampliação da convivência internacional. 9.5.2 Annacionalidade Os seres humanos que nascem privados de nacionalidade, ou que a perdem em qualquer momento da vida, conhecidos por apátridas, são pessoas internacionalmente desprotegidas. O termo apatridia tem sido empregado para identificar essa situação pela doutrina e pelos tratados internacionais que regem a matéria. Ilmar Penna Marinho lembra as dificuldades dessas pessoas, cuja situação excepcionalmente precária é mais difícil do que a dos estrangeiros, pois estes últimos, quando expulsos, poderão dirigir-se ao país de que são nacionais.11 Permitimo-nos enfatizar que seria mais adequada a utilização do termo anacionalidade, pelo acréscimo do prefixo grego a, an, indicativo de negação, privação, ausência (sem) à palavra nacionalidade. Justifica-se esse termo por opor-se a nacionalidade, designativo do instituto, ao passo que apatridia contraria, na verdade, a ideia de patridia, termo que não se emprega em lugar de nacionalidade. Ao sugerir o emprego de anacionalidade para designar o instituto, pensa-se estar sendo coerente com o entendimento esposado por Penna Marinho, quando, em sua obra clássica sobre a nacionalidade, ao abordar a apatridia – que prefere chamar de apatrídia – lembra que “todo homem nasceu em algum lugar, ou sofreu influência direta de algum fenômeno sociológico, como a religião, o meio geográfico, a língua etc.”, tendo em consequência uma pátria: “O que há são indivíduos sem nacionalidade, sem uma subordinação política”,12 acentua o autor. A palavra apatridia, embora muito usada, é politicamente incorreta e porta forte viés estigmatizante, dando ideia de supressão do vínculo do ser humano com sua pátria, o que traz à lembrança a tragédia vivida nos Estados totalitários que privaram da nacionalidade seus cidadãos, como a Alemanha nazista, especialmente quanto aos judeus, e a Rússia comunista, aos dissidentes políticos durante a longa e sanguinária ditadura de Stalin. Designar esse cidadão por anacional, termo menos contundente e mais brando do que apátrida, dá
conotação de transitoriedade a sua situação e leva ao entendimento de que a condição de anacional será passageira, pela inserção da pessoa entre os nacionais de um Estado, na esteira de movimentos humanitários, doutrinários e convencionais que buscam a extinção da anacionalidade ou pelo menos a gradativa diminuição do número de pessoas por ela atingidas. A principal fonte da anacionalidade está na existência dos dois sistemas utilizados pelos Estados na atribuição originária da nacionalidade. Assim, criança nascida em país que adota o jus sanguinis, de pais oriundos de Estado que privilegia o jus soli, não teria nacionalidade. Outra fonte é a legislação de países totalitários permitindo a supressão da nacionalidade por motivos políticos ou raciais. Normalmente, o anacional é considerado como estrangeiro pelo Estado em que se encontra, sem direito à proteção diplomática. Assim, depende de leis locais que o amparem, o que já ocorre em alguns países, como Portugal, cuja Constituição (1976), em seu artigo 15 prescreve: “Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem, ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.” O fim da anacionalidade tem sido buscado pelas organizações internacionais e pelos Estados, contribuindo para diminuir o número de pessoas nessa situação. Uma política adequada pelos países sobre perda da nacionalidade evidencia preocupação na solução do problema.13 Contudo, o próprio homem pode ser, por vezes, o causador de sua apatridia quando renuncia de forma espontânea à nacionalidade e não demonstra interesse em adquirir outra, o que não é frequente. Como já referido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura, no artigo 15, que “toda pessoa tem direito a uma nacionalidade”. O mais importante documento internacional sobre o tema é a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, assinada em Nova Iorque, no dia 30 de agosto de 1961. Ela preconiza que cada Estado contratante conceda sua nacionalidade à pessoa nele nascida que, de outra forma, seria anacional (art. 1º). Essa concessão ocorrerá, de pleno direito, por ocasião do nascimento, ou mediante requerimento à autoridade competente apresentado posteriormente pelo interessado ou em seu nome. Apenas quarenta países fazem parte da Convenção, entre os quais o Brasil, acentuando-se que o número de apátridas é estimado em doze milhões em todo o mundo.14 Por outro lado, verifica-se que o nefasto instituto da aligeância perpétua, resquício e triste contribuição do sistema feudal, desapareceu do mundo jurídico. Por essa prática medieval, havia uma subordinação perpétua do homem, obrigado a permanecer toda a vida ligado à terra, impedido de perder ou mudar de nacionalidade, liberando-se dessa fidelidade apenas com autorização do soberano. Tal sujeição perdurou na Grã-Bretanha até 1870 e na Rússia durante o período czarista.15 Não havia liberdade de substituição de uma nacionalidade por outra, ainda que essa fosse a vontade da pessoa.
9.6 Nacionalidade no ordenamento jurídico brasileiro Os parâmetros norteadores da concessão da nacionalidade no Brasil emanam do artigo 12 do texto constitucional, que passaremos a analisar: Art. 12. São brasileiros: I – natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; Esta alínea consagra o critério do jus soli, que historicamente sempre foi um princípio adotado pelas constituições pátrias para a aquisição da nacionalidade brasileira, embora nunca de forma absoluta.
A Constituição do Império,16 de 1824, já afirmava que eram brasileiros “os que tiverem nascido no Brasil, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação”. “Ingênuos” referia-se aos filhos de escravos libertos. Em que pese o texto constitucional dispor “pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país”, basta que um dos genitores esteja a serviço do seu país para que o filho nascido em território nacional não seja considerado brasileiro nato. Corroborando esse entendimento, o artigo 15 da Resolução n. 155 do Conselho Nacional de Justiça, de 16 de julho de 2012,17 dispõe que “os registros de nascimento de nascidos no território nacional em que ambos os genitores sejam estrangeiros e em que pelo menos um esteja a serviço de seu país no Brasil deverão ser efetuados no Livro ‘E’ do 1º Ofício do Registro Civil da Comarca, devendo constar do assento e da respectiva certidão a seguinte observação: ‘O registrando não possui a nacionalidade brasileira, conforme o art. 12, inciso I, alínea ‘a’, in fine, da Constituição Federal’”. Entende-se por território brasileiro o espaço terrestre, marítimo, lacustre e aéreo no qual o Estado exerce, de forma soberana, seu domínio e jurisdição. Portanto, solo, subsolo, ar e água (rios, lagos, baías e ilhas), incluindo-se a plataforma marítima e o mar territorial, os navios e as aeronaves brasileiras de guerra (em qualquer parte do mundo) e de outra ordem (quando em operação ou ancorados em território brasileiro, alto-mar ou área que não pertença a nenhum outro Estado). b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; Trata-se de dispositivo também presente em todas as Constituições brasileiras. A expressão “a serviço da República Federativa do Brasil” não abrange apenas atividade diplomática, consular e militar, mas inclui pessoas em missão dos governos federal, estadual ou municipal, bem como servidores que desempenhem atividades em autarquias federais, estaduais, distritais, territoriais e municipais, empresa pública ou sociedade de economia mista. c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; A primazia do local de nascimento não é absoluta como critério de concessão da nacionalidade brasileira, pois já na Constituição de 1824 (art. 6º) eram considerados nacionais os filhos de brasileiro (e ilegítimos de brasileira) nascidos no exterior, desde que estabelecessem domicílio no Império. Contudo, a Constituição de 1934, acompanhando a evolução da sociedade humana no reconhecimento da igualdade entre os sexos, adotou a dicção atual (pai brasileiro ou mãe brasileira). Essa concessão ao jus sanguinis se mantém, em relação a todo filho, condicionada à presença de outros fatores: pai ou mãe a serviço do Brasil (inc. I, b) e registro em repartição brasileira (consulado ou embaixada) ou residência no Brasil e opção, em qualquer tempo, atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira (inc. I, c). Cabe acentuar que a redação da alínea c do inciso I do artigo 12 da Constituição Federal de 1988, antes mencionado, provém da Emenda Constitucional n. 54, de 20 de setembro de 2007. Essa medida corrigiu anomalia, bastante perversa: crianças, muitas registradas em repartições brasileiras competentes no exterior, não adimpliam – apesar do registro, que então lhes assegurava apenas efeitos de identificação civil – a condição de brasileiras, a menos que viessem residir no País e optassem pela nossa nacionalidade. Isso se explica, porque a previsão de nacionalidade por registro consular estava ausente de nosso Direito desde a Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 07 de junho de 1994, que alterou a redação original da Constituição Federal de 1988. Como elas haviam nascido em Estados como Japão, Alemanha, Suíça e Itália, que adotam o jus sanguinis, permaneciam anacionais, referidas na
imprensa como “brasileirinhos apátridas”. Os quadros a seguir identificam as linhas de diferenciação entre a nacionalidade originária e a nacionalidade adquirida com as disposições do ordenamento jurídico brasileiro atual.
Jus soli
Nacionalidade primária (originária)
Jus sanguinis + critério laboral
Jus sanguinis
⇒ nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que não estejam a serviço de seu país de origem. ⇒ nascidos no exterior, de pai ou mãe brasileiro, desde que qualquer um deles esteja a serviço do País. ⇒ nascidos no exterior, desde que de pai ou mãe brasileiro e: a) sejam registrados em repartição brasileira competente; ou b) venham residir no Brasil e depois de atingir a maioridade optem pela nacionalidade brasileira.
⇒ Carta Imperial de 1824: portugueses e pessoas de colônias lusas.
Tácita
⇒ Constituição de 1891: estrangeiro que estivesse no País em 15.11.1889 e não declarasse em seis meses o desejo de manter a nacionalidade de origem; bem como estrangeiros que tivessem imóveis no Brasil e fossem casados com brasileiras, ou tivessem filhos brasileiros, desde que residissem no País e não manifestassem sua intenção de manter a nacionalidade originária. Critérios: Extraordinária
• residir 15 anos ininterruptos no Brasil; • não ter condenação penal.
Estrangeiros de países que não sejam de língua portuguesa
Nacionalidade secundária (naturalização) Ordinária Expressa
Estrangeiros de países de língua portuguesa, exceto portugueses
Critérios: • residência no Brasil por 4 anos; • capacidade civil; • demais requisitos da Lei n. 6.815/1980. Critérios: • residência no Brasil por 1 ano ininterrupto; • idoneidade moral.
Portugueses
Hipóteses legais
Direitos inerentes a brasileiros se houver reciprocidade.
Residência precoce: quem se radicou no Brasil antes dos cinco anos de idade, podendo requerêla quando alcançar a maioridade. Graduação universitária: desde que a residência tenha ocorrido antes de atingida a maioridade, e o estrangeiro a tenha cursado em estabelecimento de ensino superior no Brasil.
9.7 Perda da nacionalidade Essa situação está consagrada na ordem jurídica internacional e nas legislações como manifestação da vontade individual, superadas suas origens na Antiguidade, em que a perda desse direito fundamental do cidadão era imposta como castigo. Atualmente são raros os países que não admitem a perda da nacionalidade, entre eles a Argentina e o Uruguai.18 Admitida em muitos países hoje na forma voluntária, a perda da nacionalidade ocorre por renúncia ou abdicação, excepcionalmente, e – caso mais frequente – pela naturalização em outro país. Em alguns casos pode ser imposta como exercício de atividades para governo estrangeiro, sem autorização do “governo” de seu país e condenação por deslealdade, especialmente do naturalizado. A renúncia da nacionalidade jamais foi admitida na ordem jurídica brasileira e é condenada pela doutrina. Entende Francisco Guimarães que renúncia sem que ocorra aquisição voluntária de outra nacionalidade, ou seja, não imposta pela legislação estrangeira, não é reconhecida em nossa lei, uma vez que dela não derivam apenas direitos, mas também obrigações: “Seria o mesmo que admitir a expatriação voluntária.”19 Valladão menciona outras formas indesejáveis de perda da nacionalidade, abolidas das ordens jurídicas contemporâneas: o banimento, a indignidade e a residência ou o estabelecimento por dez anos no estrangeiro, essa última muito utilizada no século XIX.20 A cessão ou anexação de território pode também determinar a perda da nacionalidade. Conforme o § 4º do artigo 12 da Constituição Federal de 1988, o qual traz rol taxativo de hipóteses de perda de nacionalidade, não admitindo ampliação, perderá a nacionalidade o brasileiro que: a) Tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional; b) Adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos de reconhecimento de nacionalidade originária por lei estrangeira e de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis (conforme redação dada pela EC n. 3, de 07 de junho de 1994). A Lei n. 818, de 18 de setembro de 1949, em seus artigos 22 a 34, ainda em vigor no Brasil no que tange à perda e à reaquisição da nacionalidade brasileira, elenca essas causas constitucionais de perda de nacionalidade, regulamentando-as. Destaca-se que não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio, sendo tema revogado, a hipótese elencada no artigo 22, inciso II, da referida lei: “Perderá a nacionalidade o brasileiro que, sem licença do Presidente da República, aceitar, de governo estrangeiro, comissão, emprego”.
A primeira hipótese é denominada perda-punição e alcançará tão somente o brasileiro naturalizado – que adquiriu a nacionalidade secundária –, o qual poderá ter a sua naturalização cancelada por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional. Este último conceito, vago e aberto, gera muitas críticas por parte da doutrina, uma vez que dá margens a injustiças e possíveis perseguições, até mesmo políticas.21 A Justiça Federal será competente para conhecer e julgar o processo de perda de nacionalidade (art. 109, X, da CF/88). Nesse caso, após representação do Ministro da Justiça ou solicitação de qualquer cidadão, instaurar-se-á inquérito para apurar a eventual prática de atividade nociva ao interesse nacional, e, após dar vistas, o Ministério Público Federal poderá oferecer denúncia, instaurando o processo judicial de cancelamento de naturalização. Somente a partir do trânsito em julgado da sentença, a qual terá efeitos ex nunc, a pessoa perderá a naturalização.22 A perda de nacionalidade decorrerá de decreto do Presidente da República, que terá caráter declaratório, uma vez que o fato que constituiu a perda da nacionalidade brasileira foi o cancelamento da naturalização por meio de sentença judicial. Cabe salientar que no Decreto n. 3.453, de 09 de maio de 2000, o Presidente da República delegou ao Ministro da Justiça a competência para declarar a perda e a reaquisição da nacionalidade brasileira, na forma do artigo 12, § 4º, inciso II, da Constituição e artigos 22, incisos I e II, e 36 da Lei n. 818/1949. Assim, atualmente quem efetivamente declara a perda e a reaquisição da nacionalidade é o Ministro da Justiça, por meio de portaria publicada no Diário Oficial da União. Na segunda hipótese, que pode atingir tanto o brasileiro nato quanto o naturalizado, a perda da nacionalidade só ocorrerá nos casos em que a vontade do cidadão for de efetivamente mudar de nacionalidade, cabendo ao Presidente da República ou ao Ministro da Justiça meramente declarar a perda da nacionalidade. Assim, esse ato não será de natureza constitutiva, pois não é dele que deriva a perda, mas, sim, da própria naturalização, que antecede o decreto presidencial ou a portaria, e por força da qual se rompe o vínculo da nacionalidade brasileira.23 O procedimento administrativo, que assegurará ampla defesa, se dará perante o Ministério da Justiça. O interessado deverá apresentar, entre os documentos necessários, o certificado de naturalização e o requerimento dirigido ao Ministro da Justiça, solicitando a perda da nacionalidade brasileira devido à aquisição voluntária de outra nacionalidade. Como visto, a Constituição Federal prevê duas hipóteses de aquisição de outra nacionalidade (e, portanto, a pessoa terá dupla nacionalidade) que não acarretarão a perda da nacionalidade brasileira: a) O reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira: trata-se daquela adquirida com o nascimento – nacionalidade primária. Exemplo: pessoa que nasceu no Brasil, filha de cidadãos alemães que trabalhavam em empresa privada no País; b) A imposição de naturalização pela lei estrangeira, como condição para sua permanência naquele país ou para o exercício de direitos civis: tais direitos podem ser relacionados ao trabalho, à concessão da qualidade de herdeiro, entre outros. Citaremos o exemplo de Rezek sobre o caso de brasileira que contrai matrimônio com cidadão francês e é informada que adquirirá a nacionalidade francesa, a menos que compareça ante o juízo competente para, de modo expresso, recusar o benefício. Nesse caso, a inércia da brasileira não importa em naturalização voluntária, pois de sua parte não houve conduta específica visando à obtenção de outra nacionalidade.24 Outro exemplo é o caso do menor impúbere naturalizado alemão por intermédio de um dos seus genitores e que pretendeu estabelecer-se no Brasil após atingir a maioridade.25 O brasileiro naturalizado, que teve cancelada a sua naturalização por sentença judicial transitada em julgado, não poderá readquiri-la, a não ser mediante ação rescisória. Nesse contexto, não poderá fazê-lo
por meio de novo processo de naturalização, sob pena de contrariedade ao texto constitucional, que restaria incongruente caso isso fosse possível.26 Por outro lado, depois de decretada a perda da nacionalidade pelo Presidente, no caso de aquisição de outra nacionalidade, caso a pessoa tenha interesse em reaver a nacionalidade brasileira, poderá readquiri-la, mediante decreto presidencial ou portaria do Ministro da Justiça, caso esteja domiciliado no Brasil (art. 36 da Lei n. 818). Dessa maneira, o interessado deverá requerer, junto ao Ministro da Justiça, a revogação do decreto ou da portaria que declarou a perda da sua nacionalidade brasileira, bem como anexar os demais documentos exigidos. Por fim, Rezek lembra que caberá ao Presidente da República anular, por decreto, a aquisição fraudulenta da nacionalidade brasileira por estrangeiro, a qual será considerada nula. Nessa hipótese, não se dá a perda da nacionalidade, uma vez que não se pode perder o que era inexistente desde o início.27
RESUMO 9.1 Considerações iniciais A nacionalidade identifica o liame jurídico fundamental entre o ser humano e o Estado, constituindose no elo que cria para ambos direitos e obrigações recíprocas. Trata-se de vínculo jurídico-político, social e moral que segue princípios instituídos pelo Estado, mas admitidos pelo Direito Internacional.
9.2 Interdisciplinaridade Objeto de DIPr, a nacionalidade tem sua institucionalização na ordem jurídica de cada Estado, sendo estudada ainda em outras áreas das ciências jurídicas, como Direito Constitucional, Direito Internacional Público e Direito Civil.
9.3 Nacionalidade originária Dois são os critérios usados pelos Estados para a concessão da nacionalidade originária ou primária: um privilegiando o vínculo familiar (jus sanguinis), e o outro dando primazia ao local do parto (jus soli). 9.3.1 Jus sanguinis Reinou quase absoluto ao longo da História, estando presente em muitos países, especialmente os mais populosos, como os europeus. Com a emigração diminuem os nacionais residentes no país, e o uso do jus sanguinis vai propiciar que os descendentes, nascidos nas novas terras, continuem ligados à pátria de seus genitores, aonde, ao chegarem, estarão capacitados para uma integração mais fácil. 9.3.2 Jus soli Adotado nos Estados novos ou em fase de desenvolvimento, pela necessidade de formação de uma população nacional, reduzida nesse período, é o critério mais comum nos países do continente americano. Normalmente, Estados que recebem muitos imigrantes adotam o jus soli, a fim de propiciar a
integração dos descendentes na vida nacional.
9.4 Naturalização É o ato pelo qual o estrangeiro adquire a nacionalidade do país que o acolhe. Pode ser tácita ou expressa, admitindo o direito brasileiro apenas essa última. Trata-se de nacionalidade derivada e é faculdade exclusiva do Poder Executivo feita mediante portaria do Ministério da Justiça. A naturalização é ato personalíssimo, não abrangendo os familiares do novo nacional.
9.5 Conflitos de nacionalidade Decorrem dos critérios geradores da nacionalidade: plurinacionalidade e apatridia ou anacionalidade. 9.5.1 Plurinacionalidade É caso de dupla nacionalidade quando uma criança nasce em Estado que adota o jus soli sendo filha de estrangeiros, nacionais de país que admite o jus sanguinis. Assim, na hipótese de nascer no Brasil filho de casal francês em visita ao País, essa criança será francesa (jus sanguinis) e brasileira (jus soli). 9.5.2 Anacionalidade Os seres humanos sem nacionalidade ou apátridas são pessoas internacionalmente desprotegidas. A palavra apatridia, embora muito usada, é politicamente incorreta e porta forte viés estigmatizante, dando ideia de supressão do vínculo do ser humano com sua pátria. Sugerimos, por considerarmos mais adequado, o emprego de anacionalidade, pelo acréscimo do prefixo grego a, an, indicativo de negação, privação, ausência (sem), à palavra nacionalidade. Justificase esse termo por opor-se a nacionalidade, designativo do instituto, ao invés de apatridia, que contraria, na verdade, a ideia de patridia. Designar esse cidadão por anacional, termo menos contundente e mais brando do que apátrida, dá conotação de transitoriedade a sua situação e leva ao entendimento de que essa condição será passageira, pela inserção da pessoa entre os nacionais de um Estado.
9.6 Nacionalidade no ordenamento jurídico brasileiro Emana da Constituição (art. 12) e centra-se no jus soli (inc. I, a). Essa primazia do local de nascimento não é absoluta, com concessão ao jus sanguinis, condicionada a outros fatores: pai ou mãe a serviço do Brasil (inc. I, b) e registro em repartição brasileira (consulado ou embaixada) ou residência no Brasil e opção, em qualquer tempo, atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira (inc. I, c).
9.7 Perda da nacionalidade Admitida hoje na forma voluntária: renúncia ou abdicação e naturalização. Pode ser imposta em certos casos: atividades para governo estrangeiro (sem autorização do seu) e condenação por deslealdade, especialmente de naturalizado.
QUESTÕES PROPOSTAS
1. Tecer considerações sobre a nacionalidade como objeto do DIPr. 2. Conceituar jus sanguinis e jus soli e indicar qual seria hoje mais adequado na ordem jurídica brasileira. 3. Dissertar sobre o processo de naturalização no Direito brasileiro atual. 4. Manifestar seu juízo sobre a renúncia da nacionalidade, na época atual. 5. Comentar o instituto da apatridia e manifestar seu juízo sobre a posição do autor em relação ao tema. 6. Fazer uma análise da Emenda Constitucional n. 54 e sua importância na supressão da anacionalidade de filhos de brasileiros nascidos no estrangeiro.
______________ 1 Ver, entre outros, BATIFFOL, Henri e LAGARDE, Paul. Traité de droit international privé. p. 95. 2 Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. 3 Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. 4 Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. 5 Nesse sentido: RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado – teoria e prática. GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado. BOGGIANO, Antonio. Curso de derecho internacional privado. 6 Nesse sentido: DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 41-87. STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. p. 149-163. ESPINOLA, Eduardo. Elementos de direito internacional privado. p. 155-225. MONROY CABRA, Marco Gerardo. Tratado de derecho internacional privado. p. 133-222. 7 FERNANDEZ ROZAS, José Carlos. Derecho español de la nacionalidad. p. 40. 8 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. O Mercosul e a nacionalidade: estudo à luz do direito internacional. p. 132-133. 9 FOELIX, M. Droit international privé. v. I, p. 104 (tradução livre). 10 Ver, entre outros, DOLINGER, J. Op. cit. p. 82. 11 PENNA MARINHO, Ilmar. Tratado sobre a nacionalidade. v. I. p. 33. 12 PENNA MARINHO, I. Op. cit. p. 246. 13 BATIFFOL, H.; LAGARDE, P. Op. cit. p. 127. 14 Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2013. 15 FARO JÚNIOR, Luiz P. F. Direito internacional público. p. 169. 16 Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2013. 17 Inteiro teor da Resolução n. 155 do Conselho Nacional de Justiça poderá ser obtido no site . Acesso em: 22 out. 2013. 18 DEL’OLMO, F. S. Op. cit. p. 121-134. 19 GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Nacionalidade – aquisição, perda e reaquisição. p. 104. 20 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I. p. 300. 21 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. p. 583. 22 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. p. 779. 23 REZEK, Francisco. Direito internacional público – curso elementar. p. 189. 24 REZEK, F. Op. cit. p. 189. 25 MAZZUOLI, V. O. Op. cit. p. 582. 26 LENZA, P. Op. cit. p. 780. 27 REZEK, F. Op. cit. p. 190.
CONDIÇÃO JURÍDICA DO ESTRANGEIRO
“O Direito Internacional Privado é o anjo da guarda do ser humano em suas viagens através do espaço, e sua esplendente missão é assegurar a continuidade espacial, e, pois, também, temporal, da personalidade humana” (Haroldo Valladão).
10.1 Considerações iniciais Centraremos nossas reflexões sobre a condição jurídica do estrangeiro, objeto do Direito Internacional Privado, detendo-nos no seu tratamento no Brasil, alicerçados na Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, conhecida como Estatuto do Estrangeiro (EE), com as alterações introduzidas pela Lei n. 6.964, de 09 de dezembro de 1981. A noção de estrangeiro emerge naturalmente: todo ser humano que se ausenta do Estado do qual é nacional assume o status de estrangeiro. A condição jurídica dessa pessoa depende de cada Estado, pois os países gozam de autonomia para oferecer a ela o tratamento que lhes parece mais adequado. Serão analisados os mecanismos usados pelos Estados para ingresso, permanência e afastamento de estrangeiros, bem como a concessão de visto, a expulsão e a deportação. A extradição, cuja importância na cooperação internacional contra o crime é cada vez mais acentuada, merecerá especial atenção. Breves referências serão tecidas sobre o anteprojeto de Estatuto do Estrangeiro atualmente no Congresso Nacional.
10.2 Ingresso e permanência Rotineiramente o ser humano goza de plena liberdade para residir e deslocar-se na expansão territorial de seu Estado. Nesse espaço, ele não encontra qualquer obstáculo à locomoção e à fixação de residência. Quando desejar afastar-se de seu país, contudo, vai necessitar, em regra, de documento especial – o passaporte – e, quando exigida, autorização nele inserida pelo Estado para o qual se está deslocando – o visto de entrada. No âmbito do Mercosul e dos países associados, há o “Acordo sobre Documentos de Viagem dos Estados-Partes do MERCOSUL e Estados Associados”, o qual reconhece a validade dos documentos de identificação pessoal de cada Estado como documento de viagem hábil para o trânsito de nacionais e/ou residentes regulares em seus territórios. Os documentos aceitos por cada país estão listados no anexo do referido acordo. Monroy Cabra classifica os Estados, quanto ao tratamento que dispensam aos estrangeiros – os direitos que reconhecem a essas pessoas – em três tipos de legislação, acentuando que essa inserção varia no tempo:1 a) igualitários: assimilam o estrangeiro aos nacionais; b) hostis: negam direitos, especialmente na aquisição de propriedade; c) de reciprocidade diplomática e legislativa: buscam o adequado equilíbrio. 10.2.1 Passaporte
O passaporte é um documento oficial de identidade, de validade internacional, fornecido a quem pretende sair do País. Ele é aceito pelos Estados que reconhecem o País, garantindo o acolhimento desse ser humano no estrangeiro. Normalmente é concedido mediante a apresentação de outros documentos e o pagamento de taxas, indicando, por si só, a idoneidade do seu portador. A simples apresentação do passaporte, contudo, nem sempre assegura o ingresso do estrangeiro no país, havendo necessidade de nele constar visto de entrada, quando a legislação do país assim o exigir. Trata-se de exigência que decorre da prerrogativa natural dos Estados de exercer controle sobre a entrada e a permanência de cidadãos de outros países. Via de regra, o visto é concedido pela repartição consular ou diplomática do anfitrião. Cabe observar que nacionais de Estado não reconhecido pelo País necessitarão de um terceiro tipo de documento (Laisser-Passer), que se reveste do duplo papel de documento de viagem e visto de entrada. Esse é o caso de cidadão nascido em Taiwan que objetive ingressar no Brasil. 10.2.2 Visto O visto não é um direito, e sim uma cortesia. Sua concessão ocorre quando as autoridades consulares do país anfitrião entendem que a conduta do estrangeiro é adequada à sua ordem pública e o autorizam a nele ingressar. Assim, conforme o artigo 7º do Estatuto do Estrangeiro, o Brasil não concederá visto ao estrangeiro: a) menor de dezoito anos, desacompanhado; b) considerado nocivo à ordem ou aos interesses nacionais; c) anteriormente expulso; d) condenado por crime doloso passível de extradição; e) que não apresente condições de saúde (sem entrar no mérito sobre a constitucionalidade desse dispositivo). Os sete tipos de visto, previstos no artigo 4º da Lei n. 6.815/1980, são conhecidos pelo objetivo pretendido: I) Visto de trânsito: normalmente com validade de dez dias, destina-se ao estrangeiro que necessite passar pelo território brasileiro, ao dirigir-se a outro país. A simples permanência em portos ou aeroportos, se for de algumas horas, não exige tal visto. Para recebê-lo, devem ser apresentados apenas o passaporte, o certificado de imunização e o bilhete de passagem. II) Visto de turista: concedido ao estrangeiro que venha ao Brasil em caráter recreativo ou de visita, ou seja, sem finalidade imigratória. Tem validade máxima de cinco anos, permitindo estadas de noventa dias, prazo que pode ser reduzido a critério do Ministro da Justiça, bem como ser prorrogado por mais noventa dias. O visto permitirá ao estrangeiro adentrar em território nacional múltiplas vezes, dentro dos limites acima citados e desde que não exceda 180 dias por ano. Seu detentor não pode extrapolar o prazo de permanência que lhe foi concedido nem exercer atividade remunerada no Brasil. A exigência desse visto poderá ser dispensada ao turista nacional de país que dispense ao brasileiro igual tratamento, ou seja, vale a reciprocidade. Entre países limítrofes e que mantêm boas relações diplomáticas é comum a dispensa desse visto, admitindo-se o ingresso do turista apenas com a prova de identidade, quando há prévio acordo entre esses Estados (EE, art. 21). III) Visto temporário: é concedido ao estrangeiro que vem em missão de estudos, de negócios, como artista, desportista, cientista, professor, correspondente de periódico ou como ministro religioso.
Exige-se prova de meios de subsistência e atestado de antecedentes penais, tendo validade entre noventa dias e quatro anos, conforme a finalidade da permanência do forasteiro no Brasil. IV) Visto permanente: objetiva regular a situação do estrangeiro que deseja morar no Brasil. Para isso, ele deve produzir o necessário para o sustento próprio e o de seus dependentes, fazendo do País sua segunda pátria ou mesmo adotá-la, mediante futura naturalização. Esse visto se limita a determinados tipos de atividades, com o fim de aumentar a mão de obra especializada e o desenvolvimento nacional. Exige-se, para a sua concessão, além dos documentos antes referidos, prova de residência, certidão de nascimento ou casamento e contrato de trabalho visado pelo Ministério do Trabalho quando for o caso. Sua concessão poderá ficar condicionada, por prazo não superior a cinco anos, ao exercício de atividade certa e à fixação em região determinada do território nacional (art. 18 do EE). É esse visto que assegura ao estrangeiro os direitos individuais, comparando-o aos nacionais, conforme o caput do artigo 5º do texto constitucional vigente. V) Visto de cortesia: é concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, mediante convite feito pelas autoridades brasileiras a pessoas amigas e de reconhecido valor. VI) Visto oficial: será também concedido pelo Ministério das Relações Exteriores e se destina ao estrangeiro que vem ao Brasil em missão oficial e aos funcionários de órgãos internacionais portadores de salvo-conduto. VII) Visto diplomático: como os dois anteriores, terá seus casos de concessão, prorrogação ou dispensa definidos pelo Ministério das Relações Exteriores (art. 19 da Lei 6.815/1980). É concedido especificamente para as autoridades diplomáticas estrangeiras, acreditadas junto ao Governo brasileiro. O Ministério da Justiça poderá obstar a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro – inclusive nos casos dos vistos de cortesia, oficial e diplomático – se entender inconveniente a sua presença no território brasileiro (art. 26 do EE). Alguns vistos poderão ser transformados em outros, como no caso de cientista, que poderá ter seu visto temporário convertido em permanente. Inclusive o visto oficial e o diplomático poderão ser permutados para visto permanente, ouvido o Ministério das Relações Exteriores, e mediante a cessação das prerrogativas, privilégios e imunidades até então concedidas ao seu detentor (parágrafo único do art. 39 da Lei n. 6.815/1980). Contudo, não poderão ser substituídos por visto permanente os vistos de trânsito, de turista e de cortesia. Os estrangeiros com visto permanente e na condição de asilados, bem como os que têm visto temporário, excluídos nesse grupo aqueles em viagem a negócios e os artistas e desportistas, têm de registrar seu visto, obrigatoriamente, junto ao Ministério da Justiça, no prazo de trinta dias, contados da entrada no Brasil ou da concessão do asilo. Os titulares de visto diplomático, oficial ou de cortesia também devem registrá-lo, no Ministério das Relações Exteriores, quando sua estada no Brasil ultrapassar noventa dias (art. 32 da Lei). Em qualquer dessas situações, o estrangeiro receberá um documento de identidade brasileiro. Para obtê-lo, o asilado e os detentores de vistos diplomático, de cortesia e oficial estão isentos de emolumentos e taxas.
10.3 Afastamento compulsório Está plenamente consolidada na sociedade internacional a repulsa à coação para saída de nacionais do território de seu próprio Estado. Essa postura é fruto da caminhada humana em favor da pessoa e dos
valores democráticos, que repugnam o afastamento forçado de parcelas de suas populações, como os empregados por Hitler e Stalin, em meados do século passado. Nesse viés, os institutos jurídicos de saída compulsória de pessoas limitam-se aos estrangeiros, disciplinando as situações em que é lícita essa conduta. 10.3.1 Institutos em desuso Jacob Dolinger estuda2 as formas coercitivas de saída de pessoas, citando algumas não mais admitidas nas ordens jurídicas modernas. Refere ao repatriamento, termo em desuso na doutrina e no direito positivo, e que corresponde à deportação ou à expulsão. Outro instituto é o banimento, que consiste na expulsão de um nacional do país. Repelido pelas legislações mais avançadas e humanizadas, foi abolido do direito brasileiro pela Constituição de 1891. No entanto, em períodos de conturbação da vida nacional, como na ditadura de Vargas e no regime militar de 1964, praticou-se o banimento de brasileiros. Embora pouco referido pelos estudiosos, o banimento mais importante em nossa História foi o da Família Imperial, após a implantação da República. Assim, em 1903, foi impetrado por Olímpio Lima (e outros) habeas corpus em favor do Conde d’Eu, da Princesa Isabel e de seus filhos, banidos por Decreto de 21.12.1889. Alegava-se, além da revogação explícita desse Decreto pela Constituição, que os banidos estavam desviados da comunhão brasileira e privados do direito de ir e vir, concedido aos nacionais e estrangeiros. Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal negou o habeas corpus. Está também ausente das legislações modernas outro instituto indesejável: o desterro. Consiste no confinamento de nacional em determinado lugar do próprio país. O último caso a que se refere, no Brasil, foi do ex-presidente Jânio Quadros, desterrado em 1968 para Corumbá, no atual estado de Mato Grosso do Sul, onde permaneceu por quatro meses residindo em um hotel.3 Poderíamos ainda mencionar a deportação coletiva, confinamento em massa de pessoas, o mais das vezes no território do próprio País, e o degredo – pena nas Ordenações do Reino, que consistia em enviar o condenado para fora de Portugal, especialmente para a África ou para o Brasil colonial –, de triste lembrança na História brasileira, imposto aos inconfidentes mineiros de 1789. Integram as ordens jurídicas atuais, consentâneas com os princípios de justiça e liberdade de nossa época, a expulsão, a deportação e a extradição, que serão estudadas a seguir. Ainda dois outros institutos convêm ser referidos: a) mandado de captura europeu: instituído em 2004 na União Europeia, visando substituir, entre os países do bloco, o procedimento tradicional de extradição, oferecendo maior eficácia repressiva ao crime; b) entrega: mecanismo por meio do qual o Estado coloca à disposição para julgamento do Tribunal Penal Internacional, que entrou em funcionamento em 2002, pessoa acusada de delito internacional, em tese nacional desse país. 10.3.2 Expulsão A expulsão é o ato pelo qual o estrangeiro, com entrada ou permanência regular no Brasil, é obrigado a abandonar o País. Isso ocorre quando ele atenta contra a segurança nacional, a ordem pública ou social, a tranquilidade ou a moralidade pública e a economia popular, ou quando seu procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais. Os artigos 65 e segs. do Estatuto do Estrangeiro tratam do instituto da expulsão, assim como o
Decreto n. 86.715/1981, que o regulamenta, em seus artigos 100 a 109. Entendia Grotius que “todo Estado possui o direito soberano de expulsar os estrangeiros que desafiam sua ordem pública e que se dedicam a atividades sediciosas”.4 Por sua vez, a jurisprudência americana afirma ser um direito inerente e inalienável de qualquer Estado soberano e independente a expulsão de estrangeiro, quando essencial para sua segurança, independência e paz. Também a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem, de 1984, dispõe que essa pessoa pode ser expulsa sem direito de defesa, se a expulsão for necessária no interesse da ordem pública ou da segurança nacional. A expulsão não é uma pena, mas, sim, uma medida administrativa, tomada pelo Estado, no uso de sua soberania. Trata-se de ato discricionário, de competência do Presidente da República. Pelo Decreto n. 3.447, de 05 de maio de 2000, o Presidente delegou essa competência, bem como a de revogar a expulsão, ao Ministro da Justiça, vedada a subdelegação. Somente são expulsos estrangeiros com permanência regular no País. Assim, se o brasileiro naturalizado tiver anulada sua naturalização, poderá ser expulso, já que voltará à condição de estrangeiro. Segundo o artigo 75 da Lei n. 6.815/1980, não será expulso o estrangeiro quando tal ato implicar extradição inadmitida pela lei brasileira (caso de crime político) e quando ele tiver cônjuge brasileiro ou filho brasileiro que dependa de sua economia. Uma vez cessadas tais situações, poderá proceder-se à expulsão. 10.3.3 Deportação Trata-se do processo de devolução de estrangeiro com permanência irregular no Brasil, ou que incorra nos casos do artigo 57 do Estatuto do Estrangeiro. Ele deverá retornar compulsoriamente para o seu Estado ou para aquele de onde proveio. É deportado o estrangeiro que se encontra com visto de permanência vencido, ou que entra no País sem visto válido, quando este for necessário. Também conduz à deportação o exercício de atividade remunerada no Brasil por estrangeiro com visto de trânsito, de turista ou temporário como estudante. Ainda, enseja essa saída compulsória o trabalho remunerado por fonte brasileira do correspondente de jornal, revista ou agência de notícias estrangeira que aqui se encontra com visto temporário. Normalmente, a deportação é precedida de notificação para que o estrangeiro abandone o País no prazo estabelecido pela lei. Entretanto, a critério do Departamento de Polícia Federal, em benefício da conveniência e dos interesses nacionais, a deportação poderá ocorrer sem a observância desse prazo. O artigo 57 da Lei n. 6.815/1980, como vimos, define os casos de deportação. A mesma norma jurídica prescreve os preceitos a serem seguidos no processo de deportação, sendo de oito dias o prazo concedido ao estrangeiro para sua saída do País. No caso de ingresso irregular, esse prazo é de três dias, improrrogáveis. Alguns autores referem que, embora não prevista no Estatuto, existe na prática a deportação de fato, que ocorre na fronteira, quando o estrangeiro tenta ingressar no território nacional irregularmente e é imediatamente repelido.5 Em contrapartida, Mazzuoli defende que a deportação só teria lugar após a entrada do estrangeiro no Brasil, ou seja, não se confunde com o impedimento na entrada, caso em que o estrangeiro, barrado na fronteira (como aeroporto ou porto), é mandado de volta ao país de origem, geralmente às expensas da própria empresa que o transportou, a qual não se certificou da regularidade da sua documentação.6 A deportação é de iniciativa do Departamento de Polícia Federal, devendo ser lavrado o termo
competente quando de sua ocorrência. Eventual habeas corpus em favor do deportando deverá ser impetrado perante a Justiça Federal de primeiro grau. O artigo 62 do Estatuto permite a expulsão quando a deportação não for exequível, ou quando houver indícios de periculosidade do estrangeiro. Nesse caso, o habeas será contra ato do Presidente da República, perante o Supremo Tribunal Federal. Conforme regra o artigo 63 da mesma Lei, “não se procederá à deportação se implicar extradição inadmitida pela lei brasileira”. O Supremo definirá os casos de extradição não admitida, mas o estrangeiro indesejado poderá ser deportado para terceiro país, se o retorno ao país de origem corresponder a risco de pena a que não estaria ele sujeito no Brasil. A entrega (“deportação”) dos atletas Guillermo Rigondeaux Ortiz e Erislandy Lara Zantaya a Cuba, em agosto de 2007, identifica adequadamente caso de extradição inadmitida – situação em que a deportação ou expulsão implica riscos para a liberdade ou a vida do estrangeiro, quando a acusação que lhe é imputada no destino não pode ser tipificada fora do ilícito político. Evadidos da Vila Olímpica, no Rio de Janeiro, durante os Jogos Pan-Americanos, os indigitados jovens foram considerados traidores pelo então ditador Fidel Castro. Detidos pelas autoridades policiais brasileiras, foram deportados em 48 horas, por estarem sem passaporte, alegando nosso Ministro da Justiça que eles queriam retornar a Cuba e que não haviam solicitado asilo. O ato provocou indignação nos defensores dos direitos humanos, tendo a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovado, por unanimidade, em 05.09.2007, o envio de Comissão de Deputados a Cuba para entrevistar os atletas. O embaixador cubano no Brasil, alegando tratar-se de assunto interno de seu Estado, e já encerrado, informou a negativa de visto aos parlamentares brasileiros. Está permitido na própria Lei, artigo 64, o reingresso do estrangeiro deportado, bastando o pagamento de despesas e multas emergentes de sua deportação. Contudo, isso só ocorrerá se e quando o estrangeiro preencher os requisitos para sua entrada regular no Brasil. 10.3.4 Diferenças entre expulsão e deportação O quadro a seguir identifica as linhas de diferenciação entre os institutos da deportação e da expulsão. DIFERENÇAS ENTRE DEPORTAÇÃO E EXPULSÃO
Deportação
Quanto à causa
Quanto ao processo
Expulsão
O estrangeiro penetra no país de forma irregular, ou a sua permanência se torna irregular pelo vencimento do prazo de seu visto.
O estrangeiro tem permanência regular, mas esta se torna inconveniente ao país anfitrião, por crime ou atitude cometida por ele.
Não existe.
Sempre haverá instrução sumária, com observância de regras processuais rigorosas e decisão final pelo Presidente da República. O expulso só voltará se revogado o decreto de expulsão.
Quanto aos efeitos
O deportado poderá voltar ao Brasil, desde que regularizada a causa que impedira sua permanência.
Eventual ingresso fora dessa situação poderá submetê-lo a julgamento, segundo o Código Penal, artigo 338: “Reingressar no território nacional o estrangeiro que dele foi expulso: Pena – reclusão de um a quatro anos, sem prejuízo de nova expulsão após o cumprimento da pena.”
10.3.5 Extradição: conceito e classificação Foelix entendia, há quase século e meio, tratar-se a extradição do ato “pelo qual um governo libera pessoa acusada de crime ou de delito a outro governo, que o reclama a fim de julgá-lo e puni-lo em razão dessa infração”.7 Giulio Catelani, por seu turno, vê hoje a extradição como um instrumento típico de cooperação internacional em matéria penal, por meio do qual um país entrega a outro pessoa “refugiada em seu território, contra a qual tenha sido iniciado procedimento penal, ou tenha sido emitida sentença penal de condenação definitiva, pela qual seja exigida pena restritiva de liberdade pessoal do sujeito”.8 Entendemos a extradição como o processo pelo qual um Estado entrega, mediante solicitação do Estado interessado, pessoa condenada ou indiciada nesse país requerente, cuja legislação é competente para julgá-la pelo crime que lhe é imputado. Destina-se a julgar autores de ilícitos penais, não sendo, em tese, admitida para processos de natureza puramente administrativa, civil ou fiscal. O instituto da extradição visa repelir o crime, sendo aceito pela maioria dos Estados, como manifestação da solidariedade e da paz social entre os povos. Conhecida desde a Antiguidade, a extradição visava, nos seus primórdios, aos presos políticos e não aos criminosos comuns, uso totalmente contrário, portanto, àquele que se dá ao instituto em nossos dias, quando não se o admite nas situações que envolvam crimes políticos. Foi o Tratado de Paz de Amiens, entre França, Inglaterra e Espanha, de 1802, que deu à extradição seu rumo quase definitivo, já que nela não foi cogitada a extradição de criminosos políticos. A consagração da orientação de sua inaplicabilidade nos casos de crimes políticos veio com a Lei Belga de 1833, que excluiu de seu alcance, em termos definitivos, os criminosos políticos. Em nome da liberdade individual, alguns autores se opõem à extradição, alegando que a busca de outro país pelo acusado não pode ser invalidada pela sua entrega ao país cuja lei penal ele infringiu. Porém, a maioria da doutrina aprova a extradição, como Luís Ivani Araújo que defende sua legitimidade, em virtude de os Estados deverem manter entre si a cooperação indispensável, a qual se manifesta inclusive no combate ao crime, evitando que o delinquente encontre – fora do alcance da justiça do país cuja lei violou – a almejada impunidade.9 José Frederico Marques, que considera a extradição o mais eficaz dos institutos de cooperação internacional na luta contra o crime, destaca que, sem ela, tanto o jus puniendi como o jus persequendi do Estado competente para julgar o delinquente ficariam anulados.10 A extradição pode ser vista conforme o quadro abaixo: CLASSIFICAÇÃO DA EXTRADIÇÃO passiva
Estado requerido
ativa
Estado que requer
Quanto ao pedido
instrutória
Para julgamento
executória
Para cumprimento da pena já imposta
Quanto à finalidade
Outras classificações, por vezes referidas, não apresentam maior relevância: espontânea e requerida; imposta e voluntária; administrativa e judicial; extradição em trânsito (passagem do extraditado pelo território de outro país); reextradição (entrega do criminoso, extraditado, a terceiro país, mediante autorização do Estado do qual ele proveio) e extradição de fato (entrega sem formalidade de pessoa indiciada). Essa última seria uma forma de deportação. 10.3.6 Extradição de nacionais Quase todos os Estados negam a extradição de seus nacionais, inclusive o Brasil. Constituem honrosas exceções o Reino Unido e os Estados Unidos. A Colômbia, pela reforma constitucional de 1997 (art. 35), admite extraditar colombianos natos por delitos cometidos no estrangeiro, desde que considerados como tais na legislação penal colombiana. A Itália, mediante reciprocidade, admite a extradição de cidadãos italianos. Os países da União Europeia dispõem agora do mandado de captura europeu. Baseado no reconhecimento mútuo das decisões judiciais, o instituto, essencialmente judiciário, suprime a fase política e administrativa dos processos de extradição e é empregado entre os países da União, que entregam seus nacionais quando indiciados ou condenados ao Estado-membro solicitante. Quando o extraditando é nacional do Estado requerente, ocorre a concessão, salvo motivo especial. Já se o extraditando é nacional de terceiro país, ela também é, em tese, admitida, entendendo alguns juristas que o Estado do qual ele é nacional deve ser comunicado, apenas por uma questão de cortesia internacional. Quanto à extradição de nacionais, inadmitida em nossa legislação, como referido, é amplamente dominante a opinião contrária, tanto na doutrina estrangeira como na brasileira. Assim, defendem convictamente a extradição de nacionais, entre outros, Clóvis Beviláqua, Gilda Maciel Correa Meyer Russomano, Rodrigo Otávio e Luís Ivani de Amorim Araújo, posicionamento que partilhamos. Deve-se considerar que nosso Direito não torna impunes os brasileiros que cometem delitos em outro país. Assim, quando se tratar de brasileiro nato, ele estará sujeito às sanções do Código Penal brasileiro, conforme preceitua o artigo 7º, II, b. Se for naturalizado, poderá ser extraditado em caso de crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 5º, LI, da Carta Magna vigente). 10.3.7 Requisitos e limites da extradição Dois requisitos se antepõem à extradição: a) especialidade: julgamento ou cumprimento de pena pelo delito considerado, tão somente; b) identidade ou dupla incriminação: o crime deve fazer parte da legislação de ambos os Estados considerados. A extradição depende da existência de tratado entre os países considerados ou de promessa de reciprocidade, embora o Estado não esteja impedido de conceder a extradição, mesmo não havendo
tratado. Nesse caso, concedê-la-á por um dever moral, nunca por um dever jurídico. No direito positivo brasileiro a extradição, segundo o artigo 76 do Estatuto do Estrangeiro, “poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado, ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade”. Os delitos militares (deserção, insubordinação, abandono de posto) e os delitos de opinião também não ensejam a extradição. Os agentes dos crimes de terrorismo estão sujeitos à extradição na maioria dos países, uma vez que o terrorismo, pela sua violência e pelo menosprezo à vida humana, repugna a consciência da maioria das pessoas. Impõe-se analisar a distinção entre os delitos políticos e os de terrorismo, bastante difícil por impregnar-se muitas vezes de forte viés ideológico, o que relativiza essa delimitação. O terrorista visa à destruição de todo e qualquer governo, enquanto o criminoso político quer destruir apenas a forma de governo. O Comitê Jurídico Interamericano, em 1959, concluiu que “não são delitos políticos os crimes de barbárie e vandalismo, e em geral todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataque e da defesa”.11 Segundo Edgar Amorim, o que distingue esses delitos são os meios empregados: o terrorismo se oculta na desídia, na emboscada, atacando inclusive pessoas que nenhuma relação têm com o governo ou com a situação política; ao passo que o crime político, mesmo que às escondidas, procura atingir a autoridade constituída.12 A extradição, medida severa, deve destinar-se, em tese, a crimes graves. Como esse conceito é vago, defendem alguns autores que constem nos tratados a relação dos delitos passíveis de extradição, ou que se delimite a pena mínima de tais crimes. O caso de condenado à pena de morte, residindo em país que não admite essa pena, pode dificultar a extradição, que costuma ser concedida mediante compromisso do Estado solicitante de não aplicar tão severa penalidade. Nesse contexto, tendo presente a Súmula 497 do STF,13 Ney Fayet Júnior sugere que o Brasil, ao conceder a extradição, imponha a utilização do instituto do crime continuado em termos da aplicação da pena. Assim, o Estado requerente se comprometeria a aplicar as regras do nosso ordenamento jurídico-penal, em detrimento do cúmulo material de penas, priorizando a norma de índole mais benéfica “do crime continuado, que encerra, exatamente, em linguagem honêtte, não apenas uma maior racionalidade, mas de modo fundamental, uma noção humanista de limitação do poder punitivo estatal”.14 10.3.8 Caso Pinochet Fato ocorrido em 1998 e amplamente divulgado na imprensa internacional, envolvendo o General Augusto Pinochet, teve notável importância para o instituto da extradição.15 Em 16 de outubro daquele ano, hospitalizado em Londres para procedimento cirúrgico, com passaporte diplomático, na condição de senador vitalício, o ex-ditador chileno foi detido, na própria clínica, pela polícia britânica. A prisão atendia a pedido de extradição do juiz espanhol Baltasar Garzón, que já havia emitido um mandado de detenção internacional contra o antigo Chefe de Estado andino. A intenção era levar Pinochet a julgamento na Espanha por delitos de genocídio, torturas e desaparições contra cidadãos espanhóis durante seu governo, de 1973 a 1990, embasando a petição em documentos internacionais em favor dos direitos humanos. No citado período de exceção, registraram-se no Chile mais de três mil mortes de perseguidos políticos, incluindo os delitos que agora se procurava julgar. A Câmara dos Lordes, instância máxima jurisdicional britânica, cassou por dois votos contra um, em
novembro de 1998, a imunidade de Pinochet, abrindo caminho para sua extradição para a Espanha. Essa decisão foi anulada no mês seguinte pela mesma Câmara dos Lordes, já que fora alegada pela defesa do antigo ditador a suspeição de um dos magistrados por ligação com a Anistia Internacional. Nova sentença da mesma Corte londrina, em 24.03.1999, assegura imunidade a Pinochet no Reino Unido somente para os crimes cometidos até a entrada em vigor no País da Convenção da ONU contra a Tortura de 1984. Assim, embora o ditador não pudesse ser julgado pelos delitos cometidos desde o início de seu regime em 1973 até a internalização da Convenção no Reino Unido, poderia ser extraditado pelos que lhe fossem imputados a partir de 11 de dezembro de 1988, quando se iniciou a vigência da Convenção. Posteriormente, razões de ordem humanitária foram admitidas pelas autoridades britânicas para não dar andamento ao processo, entendendo que o octogenário não teria condições de saúde para se submeter a julgamento na Espanha. O pedido espanhol de extradição de Pinochet, como se depreende, estava em flagrante desacordo com os parâmetros do instituto, pois partia de terceiro país, por meio de magistrado de primeira instância e se destinava a julgar um antigo Chefe de Estado. No caso, o país do qual o acusado era nacional, o Chile, de onde deveria partir o pedido de extradição, era contrário à concessão e, inclusive, defendia o extraditando perante a Justiça inglesa. A solução dada ao caso, que provocou protestos de ativistas de direitos humanos em vários países, inclusive no Chile, redundou em abertura de processo contra Pinochet em seu país, inadmissível antes da petição espanhola. O antigo ditador faleceu em 10 de dezembro de 2006, aos 91 anos de idade, em Santiago. Entendemos que o caso Pinochet representa um divisor de águas na história da extradição, que comporta três fases: precursora, desde os primeiros indícios do instituto, na Antiguidade, até a Lei Belga de 1833; clássica, daí até o final do século XX; e contemporânea, após o julgamento do pedido espanhol contra Pinochet. Essa última fase se caracteriza por abrir caminho para que terceiros Estados solicitem extradição, fugindo do paradigma do instituto, pelo qual apenas ao país onde foi cometido o delito cabe reclamar o agente que se encontra no exterior. 10.3.9 Extradição na ordem jurídica brasileira A concessão da extradição em nosso país tem tratamento constitucional, cabendo ao Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro”, segundo o art. 102, I, g, da Carta Magna vigente. Tal determinação visa ao estudo, no mais alto tribunal brasileiro, do caráter da infração, uma vez que crimes políticos não ensejarão o deferimento da extradição. A decisão será tomada pelo Plenário, após examinada a legalidade e a procedência do pedido, não cabendo, por óbvio, qualquer recurso. Análise especial deve ser dada aos crimes conexos, quando coexistem duas infrações, uma política e outra comum, concedendo-se a extradição apenas quando o ato violador do direito comum for mais relevante. Segundo o artigo 77, § 3º, da Lei n. 6.815/1980, o Supremo pode deixar de considerar crime político o atentado contra Chefe de Estado ou outras autoridades, bem como atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, sequestro de pessoa ou propaganda de guerra. A extradição será requerida pela via diplomática ou de Governo a Governo. O pedido será instruído com cópia autêntica da certidão da sentença condenatória, da pronúncia ou da que decretar a prisão. O Ministério das Relações Exteriores remeterá a petição ao Ministro da Justiça, que a
encaminhará ao Supremo Tribunal Federal. Caberá ao relator do processo no STF expedir a ordem de prisão do extraditando. Caso esse estrangeiro já se encontre preso, o pedido será encaminhado diretamente ao Supremo Tribunal Federal. A extradição e seu processamento estão regulados no Estatuto do Estrangeiro, artigos 76 a 94. 10.3.10 Tratados de extradição firmados pelo Brasil O quadro a seguir indica os países com os quais o Brasil firmou tratado de extradição, bem como a data da assinatura de cada um desses acordos, o decreto que o promulgou e a data da vigência. TRATADOS DE EXTRADIÇÃO FIRMADOS PELO BRASIL País/Bloco acordante
Assinatura do Tratado
Promulgação do Decreto no Brasil
Entrada em vigor
Argentina
15.11.1961
Decreto n. 62.979, de 11.07.1968
07.06.1968
Austrália
22.08.1994
Decreto n. 2.010, de 23.09.1996
01.09.1996
Bélgica
06.05.1953
Decreto n. 41.909, de 29.07.1957
14.07.1957
Bolívia
25.02.1938
Decreto n. 9.920, de 08.07.1942
26.07.1942
Chile
08.11.1935
Decreto n. 1.888, de 17.08.1937
09.08.1937
Colômbia
28.12.1938
Decreto n. 6.330, de 25.09.1940
02.10.1940
Coreia do Sul
01.09.1995
Decreto n. 4.152, de 07.03.2002
01.02.2002
CPLP16
23.11.2005
Decreto n. 7.935, de 19.02.2013
01.06.2009
Equador
04.03.1937
Decreto n. 2.950, de 08.08.1938
03.06.1938
Espanha
02.02.1988
Decreto n. 99.340, de 22.06.1990
30.06.1990
Estados Unidos
13.01.1961
Decreto n. 55.750, de 11.02.1965
18.12.1964
França
28.05.1996
Decreto n. 5.258, de 27.10.2004
01.09.2004
Itália
17.10.1989
Decreto n. 863, de 09.07.1993
01.08.1993
Lituânia
28.09.1937
Decreto n. 4.528, de 16.08.1939
19.07.1939
Mercosul
10.12.1998
Decreto n. 4.975, de 30.01.2004
01.01.2004
Mercosul, Bolívia e Chile
10.12.1998
Decreto n. 5.867, de 03.08.2006
11.04.2005
México
28.12.1933
Decreto n. 2.535, de 22.03.1938
23.03.1938
Paraguai
24.02.1922
Decreto n. 16.925, de 27.05.1925
22.05.1925
Peru (revogado)
13.02.1919
Decreto n. 15.506, de 31.05.1922
22.05.1922
Peru
25.08.2003
Decreto n. 5.853, de 19.07.2006
30.06.2006
Portugal
07.05.1991
Decreto n. 1.325, de 02.12.1994
01.12.1994
Reino Unido e Irlanda do Norte
18.07.1995
Decreto n. 2.347, de 10.10.1997
13.08.1997
República Dominicana
17.11.2003
Decreto n. 6.738, de 12.01.2009
25.12.2008
Romênia
12.08.2003
Decreto n. 6.512, de 21.07.2008
10.07.2008
Rússia
14.01.2002
Decreto n. 6.056 em 06.03.2007
01.01.2007
Suíça
23.07.1932
Decreto n. 23.997, de 13.03.1934
24.02.1934
Suriname
21.12.2004
Decreto n. 7.902, de 04.02.2013
02.02.2011
Ucrânia
21.10.2003
Decreto n. 5.938, de 19.10.2006
27.08.2006
Uruguai
27.12.1916
Decreto n. 13.414, de 15.01.1919
21.01.1919
Venezuela
07.12.1938
Decreto n. 5.362, de 12.03.1940
14.03.1940
10.3.11 Diferenças dos demais institutos Procuramos identificar, no quadro a seguir, as diferenças entre a extradição e os demais institutos estudados, a deportação e a expulsão. FORMAS DE AFASTAMENTO COMPULSÓRIO DO ESTRANGEIRO
Extradição
Deportação
Expulsão
Causa
Solicitação do país, no qual a pessoa foi condenada ou indiciada, cuja legislação é competente para julgá-la pelo crime que lhe é imputado.
O estrangeiro está no país de forma irregular (não cumpre as condições necessárias para o ingresso ou permanência regular no país).
O estrangeiro está no país de forma regular, mas sua permanência se torna inconveniente ao país anfitrião, devido a crime ou atitude por ele cometida.
Natureza
Ato político-judicial.
Medida administrativa (não é pena).
Medida político-administrativa (não é pena).
Iniciativa
Ato bilateral, depende da solicitação de outro país.
Iniciativa do Estado em que se encontra o estrangeiro – no Brasil, do Departamento da Polícia Federal.
Iniciativa do Estado em que se encontra o estrangeiro – é ato discricionário do Presidente da República (decreto).
Requisitos
Existência de tratado ou promessa de reciprocidade.
Não há.
Não há.
Procedimen to
Quando não há recusa sumária do Executivo, o pedido é analisado pelo STF.
Em regra, é concedido ao estrangeiro prazo para que se retire voluntariamente do país.
Há inquérito (instrução sumária), com observação de regras processuais, perante o Ministério da Justiça.
Destino do estrangeiro
Deferida a extradição, o país requerente retirará o estrangeiro do território nacional.
O estrangeiro é enviado para o país de sua nacionalidade, de sua procedência ou outro que consinta em recebê-lo.
O estrangeiro é encaminhado para qualquer país que o aceite.
Possibilidade de retorno ao Brasil
Depende de cumprimento de sua pena no Estado em que foi condenado e da aceitação pelas autoridades brasileiras.
Sim, desde que sanadas as irregularidades que impediam sua permanência no país.
Em princípio, não poderá retornar, a menos que o decreto de expulsão seja revogado.
Artigo 91 do Estatuto do
Situações impeditivas
Estrangeiro elenca requisitos para que se efetue a extradição.
Quando implicar em extradição inadmitida.
Quando implicar extradição inadmitida.
Impossibilidade quando há cônjuge/filho brasileiro
A lei não prevê.
A lei não prevê.
Sim, quando é casado há mais de 5 anos, ou tenha filho que dependa de sua economia.
Possibilidade de brasileiro sofrer a medida
Somente poderá ser extraditado brasileiro naturalizado, por crime comum anterior à naturalização ou por tráfico de drogas.
Não se aplica.
Não se aplica.
10.4 Jurisprudência brasileira Habeas Corpus. Decreto de Expulsão de Estrangeira. Condenação Anterior por Tráfico de Entorpecentes. Nascimento de Prole Nacional. Mudança para o Exterior Antes da Efetivação da Medida. Comprovação de Dependência Econômica e do Vínculo Socioafetivo. Ordem Concedida. 1. Cuida-se de habeas corpus contra ato praticado pelo Ministro de Estado da Justiça que determinou a expulsão da alienígena do território nacional, após o cumprimento de pena por tráfico internacional de drogas. Almeja a anulação do ato impugnado, a fim de inviabilizar sua expulsão, fundamentando o pedido no direito à convivência familiar e no princípio da máxima prioridade da criança, nascida em território nacional. 2. Caracteriza-se situação excludente de expulsabilidade, mesmo na hipótese em que o nascimento da prole nacional ocorre após a condenação criminal ou a edição do decreto de expulsão, quando há comprovação inequívoca da relação de dependência econômica e do vínculo socioafetivo entre estrangeiro e prole nacional, resguardando-se a proteção à unidade familiar e aos interesses da criança. Precedentes. 3. O habeas corpus é ação constitucional que deve ser instruída com todas as provas necessárias à constatação de plano da ilegalidade praticada pela autoridade impetrada, não se admitindo dilação probatória. 4. A proibição de expulsar estrangeiro que tenha prole brasileira objetiva não somente proteger os interesses da criança no que se refere à assistência material, mas também resguardar os direitos à identidade, à convivência familiar e à assistência pelos pais. 5. Ainda que não haja prova explícita da dependência econômica, essa se presume da situação fática, qual seja, uma criança com três anos incompletos, sem indicação de paternidade no registro de nascimento ou informação de outros parentes, além de sua mãe, ora impetrante e paciente. 6. Ordem concedida (STJ – HC 182.834/DF – 2010/0154483-7 – j. 27.04.2011).17 Processo Civil. Constitucional. Habeas Corpus. Estrangeiro. Nulidades não Comprovadas. Impossibilidade de Dilação Probatória. Decreto de Expulsão Emitido pelo Ministro de Estado da Justiça. Possibilidade. Delegação Legal. Reingresso de Estrangeiro Expulso. Impossibilidade. 1. Em razão dos princípios da economia processual e da fungibilidade recursal, nesta oportunidade, recebo a petição apresentada como agravo regimental. 2. O agravante não trouxe aos autos os documentos que comprovam a veracidade de seu descontentamento, tendo em vista a impossibilidade de dilação probatória ampla em sede de habeas corpus. 3. No que tange à alegação de que o Ministro da Justiça não é competente para decidir sobre a expulsão de estrangeiro, tal incompetência não subsiste, tendo em vista que, conforme orientação firmada nesta Corte Superior, é válida a delegação para o exercício de tal
função, do presidente da república para a autoridade acima mencionada, conforme dispõe o art. 1º do Decreto n. 3.447/2000. Precedente: HC 184.415/DF, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Primeira Seção, julgado em 22.6.2011, DJe 5.8.2011. Agravo regimental improvido (STJ – PET no HC 269.976/RJ – 2013/0137972-5 – j. 28.08.2013).18 Extradição. Crime de Tráfico de Pessoas. Correspondência com o Crime de Tráfico Interno de Pessoa para Fim de Exploração Sexual. Dupla Incriminação Configurada. Prescrição: Não ocorrência. Inexistência de Óbices Legais à Extradição. Entrega Condicionada à Assunção de Compromisso Quanto à Detração da Pena. 1. Pedido de extradição formulado pela República da Colômbia que atende aos requisitos da Lei nº 6.815/1980 e do Tratado de Extradição específico. 2. Crime de tráfico de pessoas que corresponde ao crime de tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual, do art. 231-A do Código Penal. Dupla incriminação atendida. 3. Não ocorrência de prescrição e inexistência de óbices legais. 4. O compromisso de detração da pena, considerando o período de prisão decorrente da extradição, deve ser assumido antes da entrega do preso, não obstando a concessão da extradição. O mesmo é válido para os demais compromissos previstos no art. 91 da Lei nº 6.815/1980. 5. Extradição deferida (STF – Ext. 1290/DF – j. 25.06.2013).19 Habeas Corpus Substitutivo de Recurso Especial. Descabimento. Recente Orientação do Supremo Tribunal Federal. Alegação de Constrangimento Ilegal. Execução Penal. Progressão de Regime. Estrangeiro em Situação Irregular. Possibilidade. 1. Com o propósito de dar maior efetividade às normas previstas no art. 102, II, a, da Constituição Federal, bem como aos artigos 30 a 32 da Lei nº 8.038/90, recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir o manejo de habeas corpus substitutivo de recursos ordinários (apelação, agravo em execução, recurso especial), tampouco como sucedâneo de revisão criminal. 2. O Superior Tribunal de Justiça alinhou-se a esta nova jurisprudência do Pretório Excelso e passou, igualmente, a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não mais o admitindo em substituição aos recursos cabíveis. 3. O Superior Tribunal de Justiça entende que a situação irregular do estrangeiro, quando não acompanhado de processo de expulsão em andamento ou decreto com o mesmo propósito, não é suficiente para impedir o acesso ao benefício pretendido. 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para, cassado o acórdão impugnado, restabelecer a decisão do Juízo das Execuções Criminais, que determinou a progressão ao regime semiaberto (STJ – HC 272.176/SP – 2013/0190348-1 – j. 20.08.2013).20
10.5 Projeto de novo Estatuto do Estrangeiro A Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, teve sua principal reforma por meio da Lei n. 6.964, de 09 de dezembro de 1981, antes, portanto, da Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, há vozes na doutrina sustentando que ela está divorciada das percepções humanistas contemporâneas, necessitando de reparos urgentes.21 Atento a esses clamores, em julho de 2009, o então Ministro da Justiça apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.655/2009, conhecido como Novo Estatuto do Estrangeiro, dispondo sobre o ingresso, a permanência e a saída de estrangeiros do território nacional, a concessão da naturalização, a criação do Conselho Nacional de Migração, além da definição de crimes e outras providências. Entre os diversos dispositivos do projeto que merecem destaque, a questão do ingresso de estrangeiros, mediante concessão de vistos, sofrerá consideráveis alterações na eventualidade de sua aprovação. O visto de trânsito será suprimido enquanto surgirá nova espécie, qual seja, o visto de turismo e negócios, concedido ao estrangeiro que venha ao Brasil em caráter recreativo, de visita ou de negócios. Também surgirá o visto de estudo, destinado ao estrangeiro que vem ao Brasil com finalidade
acadêmica, bem como o visto temporário para tratamento de saúde, concedido ao estrangeiro que venha se tratar no País em caráter privado (sem a utilização de recursos do Sistema Único de Saúde). O visto temporário e suas hipóteses de concessão são minuciosamente detalhados, com a modificação de alguns prazos previstos na lei atual. Na vigência de casamento ou união estável em que um dos cônjuges (ou companheiros) tenha a nacionalidade brasileira, o outro terá direito a visto temporário por três anos, permitindo o trabalho remunerado e podendo ser transformado em permanente após o transcurso desse prazo, desde que ainda existentes as condições que autorizaram a concessão. Com relação ao visto de trabalho, o qual ganhou uma disciplina mais detalhada no projeto, haverá a possibilidade de sua transformação em visto permanente, pelo Ministério da Justiça, mediante justificativa da necessidade de permanência do estrangeiro no país, avaliada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. No caso de professor, técnico ou cientista aprovado em concurso público em instituição pública de ensino ou de pesquisa científica e tecnológica no Brasil, esse visto permanece até a aquisição da estabilidade, quando poderá ser transformado em permanente. Os estrangeiros que vivem em situação irregular no Brasil também foram lembrados, de maneira expressa, pelos redatores do projeto. A esses não nacionais, o Ministério da Justiça poderá autorizar a concessão de visto permanente ou autorização de residência, observadas as normas disciplinadoras da questão e condicionando o recebimento do pedido ao pagamento de multa. É conveniente referir as limitações relativas à atuação de estrangeiros em regiões nacionais consideradas estratégicas, como é o caso das áreas indígenas e daquelas ocupadas por quilombolas ou por comunidades tradicionais. Visando à proteção dos interesses nacionais, essas áreas somente poderão ser exploradas mediante prévia autorização dos órgãos competentes. Por fim, da leitura do projeto verifica-se a preocupação no sentido de que o novo Estatuto perfilhe a atual acepção humanista da imigração, desvencilhando-se da antiga concepção de segurança nacional. Ele se voltará para o estabelecimento de uma política nacional de migração, norteando-se pela garantia dos direitos humanos, interesses socioeconômicos e culturais do Brasil, defesa do trabalhador nacional, preservação das instituições democráticas e segurança da sociedade, bem como das relações internacionais. Dessa forma, em virtude da cristalina importância e progresso que o projeto tende a proporcionar para o Brasil nas suas relações internacionais, ressalta-se que há por parte das autoridades e estudiosos do Direito Internacional evidente interesse na aceleração do trâmite legislativo para sua aprovação22 com vistas a equiparar o atual cenário brasileiro às perspectivas de integração mundial.
RESUMO 10.1 Considerações iniciais Será estudada a condição jurídica do estrangeiro, detendo-se no caso brasileiro, com base na Lei n. 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro). Serão vistos os meios usados pelos Estados para ingresso, permanência e afastamento de seres humanos de outros países, como passaporte e visto, expulsão, deportação e extradição.
10.2 Ingresso e permanência Quando deseja afastar-se de seu país, por qualquer motivo, o cidadão necessita de documento
especial, o passaporte, com autorização inserida pelo Estado para o qual se está deslocando, o visto de entrada. 10.2.1 Passaporte É um documento oficial de identidade fornecido a quem precisa sair do País. Ele é aceito pelos demais Estados, garantindo o acolhimento desse ser humano no estrangeiro. Sua concessão requer apresentação de outros documentos e pagamento de taxas e indica, por si só, a idoneidade do seu portador. 10.2.2 Visto O viajante necessita de visto concedido pelo Estado que o receberá. Entre países vizinhos e amigos, mediante tratado, basta o documento de identidade usual no Estado de origem, como ocorre entre os países do Mercosul. O visto não é um direito, mas uma cortesia. Classifica-se em visto de trânsito, de turista, temporário, permanente, de cortesia, oficial e diplomático. Alguns tipos de visto podem ser transformados em outros, atendidas determinadas condições.
10.3 Afastamento compulsório O Direito moderno não admite afastamento coercitivo de nacionais do Estado. Assim, os institutos jurídicos de saída compulsória de seres humanos destinam-se a estrangeiros, disciplinando as situações em que é lícita essa conduta. 10.3.1 Institutos em desuso Estão atualmente ausentes das ordens jurídicas institutos como degredo, desterro, banimento e deportação coletiva. São admitidos a expulsão, a deportação, a extradição, o mandado de captura europeu e a entrega. 10.3.2 Expulsão É o ato pelo qual o estrangeiro, com entrada regular no Brasil, é obrigado a abandonar o país, por razões de segurança nacional, ordem pública ou social, moralidade pública ou economia popular. Tratase de direito inerente à soberania dos Estados. A expulsão não é uma pena, mas medida administrativa. É ato discricionário, de competência do Presidente da República, não se admitindo a expulsão quando implicar extradição inadmitida pela lei brasileira. 10.3.3 Deportação É o processo de afastamento do estrangeiro com permanência irregular no Brasil ou incurso nos casos do art. 57 da Lei n. 6.815/1980. Estrangeiro com visto de permanência vencido ou sem visto válido, ou, ainda, com visto de trânsito, de turista ou temporário como estudante ou correspondente de notícias e exercendo atividade remunerada no Brasil são passíveis de deportação. A deportação é de iniciativa do Departamento de Polícia Federal, sendo lavrado o termo
competente na ocasião. 10.3.4 Diferenças entre expulsão e deportação Quanto à causa: deportação (estrangeiro irregular) e expulsão (regular, mas inconveniente ao país anfitrião). Quanto ao processo: deportação (sem processo) e expulsão (instrução sumária, com regras processuais rigorosas e decisão final do Presidente da República). Quanto aos efeitos: deportado poderá voltar ao País (regularização) e expulso (só voltará se revogado o decreto de expulsão). 10.3.5 Extradição: conceito e classificação Processo pelo qual um Estado entrega, mediante solicitação do país interessado, pessoa condenada ou indiciada no país requerente, cuja legislação é competente para julgá-la pelo crime que lhe é imputado. O instituto da extradição visa repelir o crime, sendo aceito pela maioria dos Estados, como manifestação da solidariedade e da paz social entre os povos. Classificação: ativa (em relação ao Estado que a requer) e passiva (ao Estado requerido), instrutória (julgamento) e executória (cumprimento de pena já imposta). 10.3.6 Extradição de nacionais Quase todos os Estados negam a extradição de seus nacionais, inclusive o Brasil. Exceção: Reino Unido, Estados Unidos, Colômbia (reforma de 1997) e Itália (mediante reciprocidade). Doutrina estrangeira e brasileira: amplamente favorável à extradição de nacionais. 10.3.7 Requisitos e limites da extradição Dois requisitos: especialidade (julgamento pelo delito considerado, tão somente) e identidade ou dupla incriminação (crime em ambos os Estados). Deve haver tratado entre os países ou promessa de reciprocidade. Extradição: crimes graves. Excluídos: crimes políticos, militares e de opinião. Terroristas: sujeitos à extradição (pela violência e menosprezo à vida humana). 10.3.8 Caso Pinochet Pedido espanhol (juiz Garzón, 1998): julgar genocídio, torturas e desaparições de espanhóis no Chile (1973-1990). Tratava-se de ex-chefe de Estado, que estava hospitalizado e partia de terceiro país. Divisor de águas na história da extradição (três fases): precursora, desde os primeiros indícios, na Antiguidade, até a Lei Belga de 1833; clássica, daí até o final do século XX; e contemporânea, após o caso Pinochet. 10.3.9 Extradição na ordem jurídica brasileira Processada e julgada pelo STF (plenário), após verificar a legalidade e procedência. Não caberá
recurso. Requerida via diplomática ou de Governo a Governo, o pedido é instruído com cópia da sentença condenatória, pronúncia, ou que decretar a prisão. O Ministério das Relações Exteriores remete petição ao Ministro da Justiça, que a envia ao STF, cabendo ao relator no STF expedir ordem de prisão. Se o extraditando já estiver preso, o pedido vai diretamente ao STF. 10.3.10 Tratados de extradição firmados pelo Brasil Argentina, Austrália, Bélgica, Bolívia, Chile, Colômbia, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Coreia do Sul, Equador, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Lituânia, México, Paraguai, Peru, Portugal, Reino Unido, República Dominicana, Rússia, Suíça, Suriname, Ucrânia, Uruguai e Venezuela. Mercosul. 10.3.11 Diferenças dos demais institutos Expulsão: iniciativa do Estado, ato jurídico-político (competência do Presidente). Extradição: solicitada pelo país interessado, para onde irá o estrangeiro (STF). Deportado: pode retornar, após regularização. Iniciativa de cada Estado. Extraditado: após cumprimento de pena no país em que foi condenado e aceitação pelo Brasil. Ato bilateral: existência de tratado ou de promessa de reciprocidade.
10.4 Jurisprudência brasileira O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm julgado muitos processos envolvendo estrangeiros, como habeas corpus contra ato de expulsão (STJ) e pedidos de extradição de acusados ou condenados de outros países homiziados no Brasil (STF).
10.5 Projeto de novo Estatuto do Estrangeiro Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.655/2009. Pontos principais: humanismo da imigração, norteando-se pela garantia dos direitos humanos, interesses socioeconômicos e culturais do Brasil, defesa do trabalhador nacional, preservação das instituições democráticas e segurança da sociedade e das relações internacionais.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Fazer um estudo sobre o ingresso de estrangeiro nos Estados, detendo-se sobre os tipos de visto adotados no ordenamento jurídico brasileiro. 2. Dissertar sobre institutos jurídicos para coagir o estrangeiro a se afastar do País. 3. Apresentar uma comparação entre a expulsão e a deportação no Direito brasileiro. 4. Tecer reflexões sobre o instituto da extradição sob o viés dos direitos humanos. 5. Manifestar seu posicionamento sobre a extradição de nacionais, justificando-a. 6. Elaborar um estudo sobre a extradição de terroristas. 7. Realizar uma investigação sobre o caso Pinochet e apresentar os ensinamentos que o mesmo lhe trouxe. 8. Pesquisar sobre casos notórios de extradição no Brasil.
______________ 1 MONROY CABRA, Marco Gerardo. Tratado de derecho internacional privado. p. 229-231. 2 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 126-155. 3 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. p. 602-603. 4 DOLINGER, J. Op. cit. p. 130. 5 AMORIM, Edgar Carlos de. Curso de direito internacional privado. p. 88. 6 MAZZUOLI, V. O. Op. cit. p. 598. 7 FOELIX, M. Droit international privé. v. II. p. 327 (tradução livre). 8 CATELANI, Giulio. I rapporti internazionali in materia penale: estradizione, rogatorie, effetti delle sentenze penali stranieri. p. 13 (tradução livre). 9 ARAÚJO, Luís Ivani de Amorim. Curso de direito dos conflitos interespaciais. p. 98. 10 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v. I. p. 318. 11 ZANOTTI, Isidoro. La Extradición. p. 238. 12 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 92-93. 13 “Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação”. 14 FAYET JÚNIOR, Ney. Do crime continuado. p. 327-328. 15 Ver DEL’OLMO, Florisbal de Souza. A extradição no alvorecer do século XXI. p. 215-224. 16 Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. 17 Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2013. 18 Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013. 19 Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013. 20 Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013. 21 CHAPARRO, Verônica Zarate. Condição jurídica do estrangeiro. p. 178. 22 Em novembro de 2013 o Projeto de Lei permanecia em tramitação na Câmara dos Deputados. Para acompanhamento, acessar www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102.
PESSOAS NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“A pessoa humana é o ponto de partida e o ponto de chegada do Direito Internacional Privado. Ponto de partida, porque historicamente as normas de conflito são aplicadas quando os seres humanos ou suas relações jurídicas transpõem as fronteiras nacionais. Ponto de chegada, porque os novos rumos de nossa disciplina são traçados pela proteção dos direitos humanos e a identidade cultural dos Povos” (Sílvio Battello).
11.1 Considerações iniciais Consideramos oportuno inserir nesta obra capítulo dedicado especificamente ao ser humano no Direito Internacional Privado. Embora alguns temas, como a tutela e a curatela, costumem ser estudados em outros segmentos – no caso, no Direito de Família – vamos abordar agora a personalidade e institutos correlatos, dada a relevância que merecem na atualidade. A denominação do ser humano na seara jurídica é variada, sendo identificado como pessoa humana, pessoa natural, pessoa física, pessoa individual, pessoa de existência visível, pessoa, indivíduo e homem.1 Algumas dessas designações são mais usadas, de acordo com a preferência de quem se ocupa do tema. Nosso Código Civil (CC/2002) emprega pessoa, pessoa natural e indivíduo (arts. 1º a 9º). Usaremos, o mais das vezes, pessoa, pessoa física ou ser humano.
11.2 Personalidade Em um primeiro momento, pode-se entender a personalidade como a prerrogativa de adquirir e exercer direitos, portanto ser sujeito desses direitos. Além de direitos, também lhe é inerente a obrigação de cumprir deveres que a ordem jurídica impõe. Nessa tessitura, personalidade e capacidade têm conceitos muito próximos.2 Personalidade não se confunde necessariamente com ser humano, bastando lembrar as denominadas pessoas jurídicas, que podem ser de direito público, interno e externo, e de direito privado (CC/2002, arts. 40 a 69). Assim, entes como organizações, sociedades e fundações, cada um observando as disposições exigidas por lei, podem adquirir direitos e cumprir obrigações, merecendo tratamento semelhante ao atribuído à pessoa física. No sentido oposto, quanto à pessoa física, vem à tona a lembrança sempre lamentada da escravidão, nefanda instituição que permeou a história universal, pela qual seres humanos eram degradados à condição de coisa, não gozando, por conseguinte, de personalidade. Sobre a proximidade conceitual entre capacidade e estado, Osíris Rocha acentua que estado é o conjunto de direitos que uma pessoa tem por possuir determinada posição no grupo social, como estado de casado, de filho, de menoridade e de nacional, enquanto personalidade é o pressuposto para adquirir esse estado.3 No caso brasileiro, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preconiza que a legislação do país em que a pessoa tem seu domicílio determina o começo, bem como o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família (art. 7º).
11.2.1 Começo da personalidade O início da personalidade é tema importante e atual na esteira do avanço científico e do surgimento de novas formas de concepção humana. Para a teoria natalista, o início da personalidade se dá com o nascimento com vida, ao passo que para a teoria concepcionista, defendida por familiaristas e humanistas em geral, a concepção determina o começo da personalidade. A postura natalista ainda predomina nos ordenamentos jurídicos, exigindo por vezes a chamada viabilidade do recém-nascido, esperando que ele complete, por exemplo, vinte e quatro horas de vida, ou que disponha de figura ou forma humana (como dispunha o Código Civil espanhol, em seu art. 30, até a reforma que atualizou esse dispositivo a partir de 23.07.2011). No Brasil, que adota a teoria natalista, o Código Civil de 2002 (art. 2º), a exemplo do anterior, determina que esse início ocorra no momento do nascimento com vida, assegurando, desde a concepção, os direitos do nascituro. No Chile, a personalidade também começa ao nascer, ao separar-se completamente de sua mãe (art. 74 do CC). A teoria concepcionista está presente no Código Civil argentino, artigo 70, que atribui o começo da personalidade ao momento da concepção, a exemplo do Paraguai (art. 28 do Código Civil do País). A teoria adotada para o começo da personalidade tem relevância para o Direito Internacional Privado, especialmente no direito sucessório, uma vez que pode gerar substancial alteração no destino de patrimônios. Assim, a perda de gestação por mulher domiciliada em país que adota a teoria concepcionista permite que ela receba bens pertencentes ao pai do nascituro, falecido anteriormente a esse even-to, o que não ocorreria se seu domicílio ocorresse em país que reconhece a teoria natalista. 11.2.2 Término da personalidade Como visto no item anterior, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece o fim da personalidade por intermédio da lei do domicílio da pessoa. Em tese, isso ocorre com a morte natural do ser humano, única forma em nosso Direito que põe termo à personalidade. O momento exato do falecimento pode apresentar divergências nas legislações, presentes os avanços científicos no campo médico. Institutos como morte civil (óbito jurídico de pessoa viva), certas condenações penais e morte religiosa (renúncia voluntária ou forçada a todos os direitos, inclusive sucessórios, pela pessoa que ingressa em ordem religiosa), ainda presentes em algumas legislações, são contrários à nossa ordem pública. A personalidade também cessava pela escravidão, hoje formalmente extinta em todos os países.
11.3 Comoriência As situações em que várias pessoas falecem ao mesmo tempo, sem possibilidade de identificação da precedência do fato, podem gerar lides no campo do DIPr. As tragédias aéreas, nas quais morrem centenas de pessoas, caracterizam a comoriência, que também ocorre em catástrofes naturais com falecimentos concomitantes. Nesses acidentes, o número de vítimas com domicílio, herdeiros e bens em mais de um país acaba gerando processos que podem ser de difícil solução. A aplicação da lei do foro, solução que acaba prevalecendo quando ineficazes as conexões aventadas – domicílio, nacionalidade ou lugar do acidente, por exemplo – depende do local em que se procede à sucessão e da existência de bens em países diversos, recordando-se que os imóveis sempre são tratados pela legislação de sua situação. Há, como se observa, dificuldade prática de solução da lide por uma única lei. Nesse contexto, caso emblemático foi a morte de duas alemãs – a mãe de sobrenome Oppenheimer e
sua filha, Cohn – refugiadas em Londres, em bombardeio durante a II Guerra Mundial. O viúvo da filha buscou parte da herança da sogra, alegando a presunção de morte da pessoa mais velha (direito inglês), contrário às ponderações do outro filho da senhora Oppenheimer, de que nesses casos os óbitos ocorrem ao mesmo tempo (direito alemão). O magistrado inglês decidiu que houve comoriência, não restando o que ser provado: o problema deixava de ser processual, afastando a lex fori, e no direito material a lei aplicável era a do domicílio das pessoas falecidas, portanto a lei alemã. Perdeu o genro seu pleito, já que a senhora Cohn, morrendo ao mesmo tempo em que a mãe, não chegou a ser herdeira dela.4 O Código Bustamante estabelece que as presunções de sobrevivência ou de morte simultânea devem ser reguladas pela lei pessoal do falecido em relação à sua sucessão, sempre que as provas sejam insuficientes (art. 29). O Código Civil brasileiro vigente (art. 8º) estabelece que, falecendo duas ou mais pessoas na mesma ocasião, sem possibilidade de averiguação se “algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”. As codificações civis da Espanha (art. 33) e do Chile (art. 79) também admitem que tais óbitos ocorreram no mesmo instante.
11.4 Ausência Caracteriza a ausência o afastamento da pessoa do seu domicílio, sem notícia do local em que se encontra. Trata-se de situação originada por fatores distintos e que vem causar grande insegurança nos familiares e nos amigos. Cabe ao ordenamento jurídico garantir a preservação dos bens dessa pessoa em benefício dela própria, de seus herdeiros e de seus credores. Ao mesmo tempo deve ser formalizada a ausência, o que gera, por vezes, lide de Direito Internacional Privado. No direito brasileiro, após um ano da arrecadação dos bens do ausente (realizada por curador nomeado pelo juiz), será declarada a ausência e aberta provisoriamente a sucessão (art. 26 do CC/2002). Transitada em julgado essa sentença de abertura, o testamento, se houver, será aberto cento e oitenta dias após a publicação pela imprensa e se procederá ao inventário e à partilha dos bens, como se o ausente fosse falecido (art. 28). Dez anos depois do trânsito em julgado dessa sentença, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas (art. 37 do CC/2002). A preservação dos bens se dará com base na lei do foro, até pela necessidade de garantir esse patrimônio do ausente. Repita-se que os bens imóveis seguem a lei de sua localização.
11.5 Poder familiar O chamado pátrio poder, denotativo da ascendência paterna sobre os filhos, vem cedendo lugar, há várias décadas, à maior participação da mãe, consagrando-se agora no direito brasileiro a figura do poder familiar (arts. 1.630 a 1.638 do CC/2002), pelo qual a gerência das tarefas e encargos sobre a prole é partilhada por ambos os genitores. Decorre desse benfazejo avanço que os direitos, como os deveres, não mais competem apenas a uma pessoa, sendo que o pai ou a mãe exercerá esse poder com exclusividade apenas na falta ou impedimento do outro (art. 1.631). O instituto visa proteger o incapaz e não conferir direitos ao detentor desse poder, tal como ocorria no tempo dos romanos, razão pela qual a lei pessoal do filho ou a que lhe é mais favorável deve ser aplicada.5 No que tange ao DIPr, as conexões aventadas – domicílio ou nacionalidade dos pais ou do menor – não oferecem uma solução definitiva. Entendemos que a lei mais favorável ao menor deve ser a escolhida. Nessa tessitura, o Código Bustamante submete à lei pessoal do filho a existência e o alcance geral desse poder a respeito da pessoa e bens da criança, como as causas da extinção e recuperação do
mesmo poder (art. 69).
11.6 Tutela Antes de estudar a tutela e a curatela no DIPr, cabe lembrar, com Werner Goldschmidt, os três problemas surgidos para a proteção dos incapazes: a lei que nos indica que pessoas podem ser consideradas incapazes; que país tem jurisdição internacional para protegê-las; e a lei que disciplina tal proteção, distinguindo os casos de tutela dos de curatela.6 Lafayette Pereira define tutela como “o poder conferido a alguém, em virtude de lei, para proteger a pessoa e reger os bens dos menores que estão fora do pátrio poder”.7 O tutor substitui os pais falecidos ou destituídos do poder familiar, o que pode ocorrer, por exemplo, em casos de condenação penal ou interdição por perda das faculdades mentais. A tutela constitui-se em encargo civil atribuído a alguém por lei, por testamento ou pelo juiz, para que proteja o menor e administre seus bens. Poder-se-á deixar de nomear tutor quem, passível dessa investidura por sua lei pessoal, esteja condenado penalmente ou tenha conduta inaceitável, contrariando a lex fori. Esclarece Clóvis Beviláqua que os tutores nomeados em um Estado, seguindo a lei pessoal do incapaz, devem ser reconhecidos em toda parte e podem exercer sua autoridade sobre os bens do tutelado, onde quer que se encontrem esses bens.8 Segundo o caput do artigo 36 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/1990 – com redação da Lei n. 12.010/2009 –, “a tutela será deferida, nos termos da lei civil, a pessoa de até dezoito anos incompletos”. Trata-se da dicção do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil para dezoito anos. Apresenta-se a tutela sob três espécies: a) testamentária: atribuída por testamento; b) legítima: determinada por lei aos parentes consanguíneos do menor – ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto, e colaterais até o terceiro grau (art. 1.731 do CC/2002); c) dativa: também decidida pela justiça, com nomeação de tutor, na ausência das anteriores. Caracteriza-se sempre a tutela pela obrigatoriedade, gratuidade, generalidade e indivisibilidade com relação aos bens, não devendo o menor ter mais de um tutor. Deve ainda haver assídua vigilância das autoridades nas atividades do tutor.9 O Código Civil vigente disciplina pormenorizadamente o instituto da tutela nos artigos 1.728 a 1.766. A norma brasileira de Direito Internacional Privado está contida no artigo 7º, § 7º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual o domicílio do tutor ou do curador se estende aos incapazes sob sua guarda. Assim, os direitos e deveres do tutor são regidos pela lei domiciliar deste, a qual também regula os direitos do tutelado.
11.7 Curatela A curatela é um encargo conferido a alguém, o curador, para que cuide, seguindo normas legais, dos interesses de pessoa que se encontra juridicamente impossibilitada de fazê-lo. Ainda, a curatela protege o interesse público da sociedade. Não coincidem as legislações quanto ao grau de incapacidade que sujeita a pessoa à curatela, com o que um ser humano, sob a proteção do instituto em uma ordem jurídica, pode não ser passível desse amparo em outro país. No Direito brasileiro, onde a curatela tem regulamentação completa no Código Civil (CC/2002), estão sujeitos ao instituto o enfermo e o deficiente mental sem discernimento suficiente para a vida civil;
o que não pode exprimir a sua vontade por causa duradoura; o ébrio habitual e o viciado em tóxicos; e o pródigo (art. 1. 767). Também o nascituro, ser humano gerado enquanto se encontra no ventre materno, cujo pai falece e a mãe não detém o poder familiar, tem amparo curatelar (art. 1.779). A nomeação de curador, a exemplo do instituto da tutela, rege-se pela lei do domicílio da pessoa a ser investida. No caso do nascituro, será a lei pessoal da mãe (local de seu domicílio). Tal como a tutela, nossa norma de Direito Internacional Privado relativa à curatela está inserida na LINDB (art. 7º, § 7º), regendo-se pela lei do país onde o curador tem seu domicílio.
11.8 Ação de alimentos Essa ação envolve direitos indispensáveis à própria sobrevivência de ser humano incapaz de provêla, seja por idade – menor ou idoso –, enfermidade ou outro fator. Relações familiares menos harmônicas, como separação de cônjuges e abandono de filhos, são a principal fonte dessas lides. Ainda, as obrigações alimentícias podem originar-se de contrato, legado sucessório, responsabilidade extracontratual, nulidade de casamento e tutela, entre outros. A pessoa que, por parentesco ou vínculo similar, deve fornecê-las por vezes tem domicílio em território sob outro ordenamento jurídico. Clóvis Beviláqua preconizava solução pela lei pessoal do alimentando ou pela lex fori, quando da sua impossibilidade.10 A proteção do credor alimentício deve ser o princípio básico que direciona as normas de direito aplicável. A causa da obrigação, porém, determina o alcance da solução e a própria delimitação das normas conflituais.11 Assim, obrigação alimentícia que tenha causa exclusiva em um contrato ou em uma norma sucessória será regida pelas disposições aplicáveis a essas relações jurídicas. Reportamos o leitor ao capítulo oitavo desta obra, o qual se ocupa da homologação de sentenças estrangeiras, em que encontrará mais subsídios sobre o tema, incluindo Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro, assinada em Nova Iorque em 1956.
RESUMO 11.1 Considerações iniciais Este capítulo se ocupa da pessoa ou ser humano, abordando a personalidade, a comoriência, a ausência, o poder familiar, a tutela, a curatela e a ação de alimentos, temas com especial relevância na atualidade.
11.2 Personalidade Cotejando capacidade e estado, Osíris Rocha acentua que estado é o conjunto de direitos que uma pessoa tem por possuir determinada posição no grupo social, como estado de casado, enquanto personalidade é pressuposto para adquirir esse estado. 11.2.1 Começo da personalidade Em tese, é estabelecido pelo nascimento com vida da criança, teoria natalista, tal como ocorre no Direito brasileiro, exigindo alguns Estados outros requisitos, como a viabilidade do recém-nascido. A teoria concepcionista, defendida por humanistas, vê na concepção o início da personalidade e está presente em muitos países.
11.2.2 Término da personalidade Ocorre com a morte natural do ser humano, cujo momento exato pode apresentar algumas divergências nas legislações presentes os avanços médicos. No Brasil, o fim da personalidade é regido pela lei do domicílio da pessoa.
11.3 Comoriência Trata-se da morte de muitas pessoas ao mesmo tempo, sem possibilidade de identificação da precedência do fato, podendo gerar lides no campo do DIPr. A aplicação da lei do foro prevalece quando ineficazes outras conexões, como domicílio, nacionalidade ou lugar do acidente, por exemplo.
11.4 Ausência A ordem jurídica deve assegurar a preservação dos bens do ausente em benefício dele, seus herdeiros e credores. A formalização da ausência gera, por vezes, lides de Direito Internacional Privado, com a presunção ou a declaração de sua morte. Em tese, a segurança dos bens é feita com base na lei do foro.
11.5 Poder familiar Entendemos que a lei mais favorável ao menor deve ser observada. O Código Bustamante submete à lei pessoal do filho a existência e o alcance geral desse poder a respeito da pessoa e bens da criança, como às causas da extinção e recuperação do mesmo poder (art. 69).
11.6 Tutela Tutela é o poder conferido pela lei à pessoa capaz para proteger a pessoa e reger os bens de menores que estão fora do poder familiar. O tutelado tem de ter menos de dezoito anos de idade. Pode ser testamentária, legítima e dativa. O domicílio do tutor se estende aos menores sob sua guarda.
11.7 Curatela É o encargo conferido a uma pessoa (curador) para que cuide, dentro dos limites estabelecidos por lei, dos interesses de alguém que não possa, legalmente, administrá-los. A legislação que rege a curatela é a mesma da tutela.
11.8 Ação de alimentos Envolve direitos indispensáveis à própria sobrevivência de ser humano incapaz de provê-la, seja por idade, enfermidade ou outro fator. Relações familiares menos harmônicas, como separação de cônjuges e abandono de filhos, são a principal fonte dessas lides. A solução é pela lei pessoal do alimentando, ou, na impossibilidade dessa, pela lex fori.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar personalidade, capacidade e estado e fazer um cotejo entre eles no contexto do Direito
Internacional Privado. 2. Comentar a relevância jurídica de morte do feto, cuja mãe tem domicílio no Brasil, no caso de que esse domicílio fosse em Estado no qual a personalidade ocorre no momento da concepção. 3. Analisar a importância para o DIPr das divergências de legislação sobre o término da personalidade do ser humano. 4. Tecer considerações sobre a ressonância na área do DIPr de mortes de pessoas da mesma família ocorridas em acidentes aéreos, como o de 17.07.2007, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. 5. Dissertar sobre o poder familiar em caso de pessoas domiciliadas em países diferentes. 6. Explicitar a regulação da tutela no Direito brasileiro. 7. Proceder a um estudo sobre os institutos da tutela e da curatela nos ordenamentos jurídicos, detectando sobre eles simetrias e divergências nas legislações.
______________ 1 SILVA ALONSO, Ramón. Derecho internacional privado. p. 165-166. 2 Para Espínola “personalidade e capacidade jurídica são expressões idênticas”. ESPINOLA, Eduardo. Elementos de direito internacional privado. p. 404. 3 ROCHA, Osíris. Curso de direito internacional privado. p. 98. 4 Ver, entre outros, ROCHA, O. Op. cit. p. 101-102. 5 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 232. 6 GOLDSCHMIDT, Werner. Derecho internacional privado (derecho de la tolerancia). p. 226. 7 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. p. 285. 8 BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 246. 9 CASTRO, Amílcar. Direito internacional privado. p. 414. 10 BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 244-245. 11 FERNÁNDEZ ROZAS, José Carlos; SÁNCHEZ LORENZO, Sixto. Derecho internacional privado. p. 473.
DIREITO DE FAMÍLIA E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“Na estrutura do Estado, a família é o núcleo social primário mais importante. Antecede nas suas origens ao próprio Estado, pois é uma sociedade natural decorrente de uma profunda e transcendente exigência do ser humano” (José Russo).
12.1 Direito de Família Para Pontes de Miranda, “o direito de família tem por objeto a exposição dos princípios jurídicos que regem as relações de família, quer quanto à influência dessas relações sobre as pessoas, quer sobre os bens”.1 O Direito de Família se ocupa do casamento, fundamento legítimo da família; da união estável entre um homem e uma mulher, formadora de uma entidade familiar, conforme previsão da Constituição Federal de 1988; do reconhecimento dos filhos; do pátrio poder, que passou a se denominar poder familiar pelo Código Civil de 2002; do estado civil das pessoas; da tutela, da curatela e da adoção, que são estudadas em outros segmentos desta obra. Do casamento emergem relações pessoais e matrimoniais entre os cônjuges, relações entre pais e filhos, e, em alguns casos, separação e divórcio e prestação de alimentos. Até o século XVI toda a matéria relativa ao casamento era disciplinada pelo Direito Canônico, havendo praticamente um direito uniforme sobre o instituto,2 comum a todos os povos ocidentais, os quais se encontravam submetidos ao Corpus Juris Canonici. Apenas o regime matrimonial dos bens e o contrato de dote eram regidos pela lei laica do lugar da celebração do ato. Foi também nesse século que surgiu o casamento civil sob a forma legal, tendo a Holanda sido, provavelmente, o primeiro país a adotá-lo.3 Acentuou-se a tendência de legislar sobre essa forma de contrato, ainda que enfrentando, no começo, a oposição da Igreja Católica. Ademais, conforme a doutrina contemporânea, Enrique Varsi Rospigliosi conceitua o casamento como um fato jurídico familiar celebrado por duas pessoas de sexos complementares com a finalidade básica de constituir vida em comum, procriar e educar seus filhos.4 Entende Rodrigo Pereira que a união estável é a família formada, sem o vínculo do casamento civil, pela relação afetivo-amorosa, estável e duradoura, entre um homem e uma mulher, não adulterina e não incestuosa, vivendo ambos sob o mesmo teto ou não.5 Instituto bastante informal, a convivência duradoura é essencial para comprovar sua existência: “O relacionamento more uxorio continuado e sua ostensibilidade são requisitos objetivos, caracterizadores, fundamentalmente, dessa situação fática”,6 como esclarece José Russo.
12.2 Casamento e conflito de leis no espaço Desde o século XVIII, o lugar de celebração do ato foi estabelecido como critério para a forma e a substância do casamento. Com esse emprego do locus regit actum, o casamento realizado em um país, em princípio, é reconhecido nos demais. Story optou pela lei do domicílio conjugal para as relações pessoais entre os cônjuges, inclusive
para o divórcio e para a destinação dos bens móveis, elegendo a lei da situação da coisa para os bens imóveis, como já se definira nos demais ramos do direito privado, desde Bartolo. Trata-se do sistema analítico (ou plural) para dirimir os conflitos de leis no Direito de Família. Oposto a esse critério, surgiu o sistema sintético (ou unitário), preconizando um só princípio para as relações de família, nas quais o elemento de conexão é o domicílio, para Savigny, ou a nacionalidade, para Mancini. De qualquer forma, estar-se-ia regendo o casamento pela lei pessoal (domicílio ou nacionalidade). No entanto, o sistema sintético não resolve algumas questões, tal como qual será o regime de bens (o do homem ou o da mulher), quando são eles cidadãos de países diferentes. Como se depreende, o emprego do sistema unitário se mostra inviável. O direito brasileiro adota, em essência, o sistema analítico, já que aplica o domicílio para os direitos de família (art. 7º, caput, da LINDB) e a lex rei sitae para o conhecimento de ações relativas a imóveis situados no País (art. 12, § 1º, da LINDB).
12.3 Normas brasileiras sobre casamento 12.3.1 Capacidade A capacidade para o casamento é regida pela lei pessoal de cada um dos noivos. Se domiciliado em país estrangeiro, o nubente deve ter a capacidade para casar segundo a legislação de seu Estado, ou seja, capacidade para, por si, exercer direitos e contrair obrigações. No Chile, a maioridade civil ocorre aos 18 anos (art. 26 do CC). Portanto, o chileno com essa idade tem plena capacidade para se casar (art. 106 do seu código). A maioridade na Venezuela também se dá aos 18 anos (art. 18 do Código Civil venezuelano), adquirindo-se, a partir dessa idade, a capacidade para casar sem necessitar de consentimento dos pais, segundo o art. 59 do mesmo diploma legal. O artigo 126 do Código Civil da Argentina estabelece o início da capacidade civil plena aos 21 anos. O Código Civil do Paraguai (art. 36) prescreve que a capacidade civil somente é atingida aos 20 anos. A Espanha, no artigo 315 de seu Código Civil, prevê a aquisição da maioridade aos 18 anos. O Código Civil da Itália, no artigo 2º, fixa a maioridade aos 18 anos cumpridos. Em Portugal, a capacidade civil plena é atingida também aos 18 anos, na forma estatuída por seu Código Civil (art. 130). O Código Civil brasileiro de 1916 (art. 9º) previa a maioridade aos 21 anos. Em 2002, o novo Código Civil diminuiu para 18 anos o momento da aquisição da capacidade civil plena (art. 5º), ou seja, quando a pessoa passa a poder exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. Outrossim, há previsão de antecipar a capacidade do menor relativamente incapaz pelo casamento, pelo exercício de emprego público efetivo e pela colação de grau em curso superior, entre outros dispositivos do parágrafo único desse artigo. Historicamente, antes do surgimento do Decreto n. 181, em 1890, menores do sexo feminino poderiam se casar aos 12 anos, enquanto varões poderiam ligar-se matrimonialmente aos 14 anos, tal como pregavam as disposições canônicas. Esse Decreto estabeleceu a idade núbil aos 14 anos para as mulheres e aos 16 anos para os homens. O Código Civil de 1916 elevou a idade núbil para 16 e 18 anos e, atualmente, o Código de 2002 estabelece a idade nupcial aos 16 anos de idade para ambos os sexos.7 No que tange especificamente à capacidade para o casamento, o artigo 1.517 do Código Civil de 2002 estabelece que os menores relativamente incapazes, entre 16 e 18 anos, embora incapazes para os
atos da vida civil em geral, podem se casar mediante autorização de ambos os pais ou de seu representante legal. Tal consentimento será igualmente necessário nos casos de tutela e curatela. Salientase que essa assistência é exigida para todos os atos da vida civil dessas pessoas. Segundo o Código Civil de 1916, quando as vontades dos pais não convergiam, prevalecia a vontade paterna, dispositivo que foi corrigido com o advento do atual Código, no qual, havendo divergência entre os pais, a questão deverá ser resolvida judicialmente mediante provocação de quaisquer das partes (art. 1.517, parágrafo único, c/c art. 1.631, parágrafo único). O artigo 1.518 do Código estabelece que a autorização pode ser revogada até a data da celebração do casamento e o artigo 1.519 afirma que “a denegação do consentimento, quando injusta, pode ser suprida pelo juiz”. Sem entrar no mérito das eventuais justificativas para esse dispositivo legal, o Código Civil dispõe que, não alcançada a idade núbil, o casamento será permitido em duas situações excepcionais: a fim de evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez. No caso de desvirginamento de menor, o autor do crime pode desposar a vítima, estando esta de acordo, evitando-se, assim, a imposição da pena. Para tanto, ter-se-á de obter em juízo o suprimento da idade da menor. Salienta-se que o Código Civil de 1916 previa que o juiz poderia, conforme o caso, ordenar a separação de corpos entre os cônjuges, até que se atingisse a idade legal (art. 214, parágrafo único). No entanto, o Código atual não repetiu tal dispositivo. 12.3.2 Impedimentos e formalidades Segundo o § 1º do artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades de celebração”. Os chamados impedimentos dirimentes estavam elencados nos doze primeiros incisos do artigo 183 do Código Civil brasileiro de 1916. Nos incisos I a VIII estavam inseridos os impedimentos dirimentes públicos ou absolutos, como o casamento entre irmãos ou de pessoas casadas. Era nulo de pleno direito o casamento celebrado com infração a qualquer desses obstáculos jurídicos, os quais eram de ordem pública. Os impedimentos dirimentes privados ou relativos, como o casamento de pessoas incapazes de consentir, contidos nos incisos IX a XII do referido artigo, provocavam a condição de anulável ao casamento que violasse uma daquelas proibições legais, as quais apenas prejudicavam os interesses dos contraentes. Existiam ainda nesse art. 183 mais quatro incisos, XIII a XVI, chamados de impedimentos impedientes ou proibitivos, caso de pessoa viúva com filho do cônjuge falecido enquanto não fizesse inventário dos bens do casal. A infração a esses dispositivos não invalidava o casamento, mas ocasionava sanções patrimoniais aos cônjuges, como obrigatoriedade do regime de separação parcial de bens (Súmula n. 377 do STF)8 e a perda do usufruto dos bens dos filhos menores do leito anterior. O Código Civil de 2002 modificou o sistema de impedimentos matrimoniais, criando tão somente sete impedimentos dirimentes em seu art. 1.521, incs. I a VII,9 os quais, quando violados, inquinam o casamento de nulidade absoluta. No artigo 1.523, incisos I a IV,10 surgiram as denominadas causas suspensivas, impondo ao casamento a condição de anulável quando descumpridas. Além dos impedimentos de nosso direito positivo, seria conveniente observarem-se as limitações impostas pela legislação do país de origem dos nubentes. Isso poderia facilitar o reconhecimento do casamento realizado no Brasil, em eventual retorno à sua pátria.
Quanto à celebração do casamento, deverá ser observada a legislação do país em que ele se realiza. Trata-se do princípio locus regit actum, a lei local rege o ato aí ocorrido, em toda a sua plenitude. Portanto, os noivos, para se casarem no Brasil, qualquer que seja sua nacionalidade ou domicílio, devem preencher os requisitos dos artigos 1.525 a 1.52711 do Código Civil de 2002 e artigos 67 a 6912 da Lei n. 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos). Os proclamas, publicados nos distritos dos nubentes, apresentam dificuldade quando um dos noivos é domiciliado no exterior. A rigor, dever-se-ia publicar em lugar ostensivo do cartório do ofício do domicílio dos nubentes e na imprensa do mesmo local, se houver. Na prática, a publicação ocorre, no caso de estrangeiro habilitando-se para casar em nosso país, nos locais de domicílio dos noivos apenas no Brasil. Considerando-se a existência de embaixadas e consulados brasileiros no exterior, uma alternativa seria a fixação dos proclamas nessas repartições. 12.3.3 Casamento por procuração O casamento, no direito brasileiro, pode ser realizado por procuração com poderes especiais. O Código Civil de 1916 (art. 201) admitia que a procuração fosse, inclusive, elaborada por instrumento particular, contanto que fosse reconhecida a firma do nubente mandatário. O Código Civil de 2002 (art. 1.542) exige que a procuração seja lavrada por escritura pública. Contudo, muitos ordenamentos jurídicos não admitem o casamento por procuração. Tendo o noivo seu estatuto pessoal (domicílio ou nacionalidade) em país que não aceita o instrumento procuratório para a realização do casamento, seria conveniente que o juiz brasileiro observasse essa limitação, a qual não fere nossa ordem pública, evitando dificuldade ao nubente quando retornar a seu Estado. Segundo o Regulamento Consular brasileiro, não é possível a realização de casamento por procuração em embaixadas e consulados no exterior. Tal proibição faz sentido na medida em que tais repartições prestam serviços consulares referentes a atos de registro civil a cidadãos brasileiros residentes na sua jurisdição. Assim, se desejarem casar por procuração, poderiam simplesmente fazê-lo no Brasil. O Chile, por exemplo, admite o casamento por procuração, desde que lavrada por escritura pública (art. 103 do seu CC). Assim, um chileno, com domicílio em seu país, que casasse no Brasil por procuração, na vigência do Código Civil brasileiro de 1916, deveria utilizar-se do instrumento procuratório dessa natureza para evitar nulidade quando de seu retorno à pátria. 12.3.4 Casamento no consulado Poderá o casamento ser celebrado em consulado brasileiro ou no setor consular de uma embaixada brasileira no exterior, conforme dispõe o artigo 1.544 do Código Civil de 2002, e o artigo 18 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Para tanto, requer-se que ambos os nubentes sejam brasileiros e que a legislação do país em que se situa o consulado não coíba tal tipo de celebração em seu território. A autoridade consular, que deverá ser de carreira, expedirá a certidão do casamento, após tê-lo registrado em livro próprio. As formalidades e os impedimentos para esse casamento serão, obviamente, os da legislação brasileira. Caso um ou ambos os nubentes voltem ao Brasil, essa certidão deverá ser registrada no cartório do respectivo domicílio, no prazo de cento e oitenta dias (art. 1.544 do CC). Assim, a autoridade consular deverá orientar os interessados a promover o traslado de certidões de casamento expedidas em repartições consulares no Cartório do 1º Ofício do Registro Civil no local de
seu domicílio no Brasil ou do Distrito Federal, na falta de domicílio conhecido. Convém acentuar que casamento de brasileiros realizado em Embaixada ou Consulado brasileiro com sede em país que não admita em seu território esse ato não será realizado. O regulamento consular brasileiro só permite à autoridade consular realizar casamentos quando não contrariar a legislação local, por força da Convenção de Viena de Relações Consulares (art. 5º, f). Quanto a casamento de brasileiro com estrangeiro no exterior, portanto, perante as autoridades locais competentes desse país, esclarece José Russo: “A autoridade consular tem poderes para certificar esse casamento, após fazer o seu assento, extraindo a respectiva certidão, para um possível traslado em território brasileiro, na oportunidade do retorno de um ou de ambos os contraentes.”13 Por outro lado, , segundo o § 2º do artigo 7º da Lei de Introdução, antes referida, “o casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes”, caso em que as formalidades e impedimentos serão os de sua legislação. 12.3.5 Nulidade do casamento Segundo o § 3º do artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal”. Edgar Amorim considera uma incongruência tal dispositivo, pois o casamento é realizado com base na lei do local de sua celebração e a discussão de possível anulação poderá ocorrer já sob outro ordenamento jurídico, uma vez que os recém-casados podem estabelecer-se, e isso muitas vezes acontece, em outro Estado.14 Válida a observação, entende-se que seria mais adequado a anulabilidade submeter-se à legislação sob a qual se deu a celebração do matrimônio. 12.3.6 Regime de bens O Código Civil de 1916 admitia os seguintes regimes de bens no casamento: – Comunhão parcial: contém três patrimônios, ou seja, o próprio da mulher, bens que possuía até o casamento, o próprio do marido, bens que lhe pertenciam antes de casar, e o comum, também denominado de aquestos, ou seja, os bens adquiridos durante o casamento, a título oneroso. Após a lei do divórcio, Lei n. 6.515, de 26.12.1977, esse regime passou a ser o regime legal de bens, que vigorará não havendo convenção ou sendo esta nula, quanto aos bens entre os cônjuges (art. 258, caput, do Código revogado). – Comunhão universal: há apenas um patrimônio comum entre os cônjuges; necessita de pacto antenupcial e era o regime legal de bens no período anterior à lei do divórcio. – Separação total: portador de tão somente dois patrimônios, o próprio da mulher e o próprio do marido, inexistindo patrimônio comum e exigindo a elaboração de convenção antenupcial para a sua constituição. – Dotal: a ser instituído por pacto antenupcial, quando um determinado patrimônio seria transferido ao marido, que o administraria e auferiria recursos para a subsistência da família. No entanto, está há muito fora de uso no Direito de Família brasileiro, mesmo na vigência do Código revogado. O Código Civil de 2002 extinguiu o regime dotal e oferece à escolha dos contraentes os seguintes regimes de bens no casamento: – Comunhão parcial (arts. 1.658 a 1.666): com as mesmas características existentes no Código
anterior, inclusive a condição de regime legal de bens (art. 1.640). – Comunhão universal (arts. 1.667 a 1.671): normatizado de forma idêntica ao mesmo regime de bens do Código de 1916. – Participação final nos aquestos (arts. 1.672 a 1.686): desponta como uma inovação do Código de 2002. Trata-se de um regime de separação total de bens, podendo cada cônjuge administrar livremente o patrimônio próprio, dispondo dele quando for bem móvel e necessitando da vênia conjugal quando imóvel. Na ocorrência da dissolução da sociedade conjugal, pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial ou pelo divórcio direto, serão apurados os aquestos (bens adquiridos na constância do casamento a título oneroso), atribuindo-se a cada um, ou a seus herdeiros, se for o caso, a respectiva meação, como se o regime fosse o da comunhão parcial de bens. – Separação de bens: é o regime da separação total ou absoluta de bens (arts. 1.687 e 1.688), com os mesmos requisitos previstos no Código de 1916. O ideal quanto ao regime de bens, segundo Osíris Rocha, seria que, uma vez fixado, fosse único, abrangendo todos os bens do casal, onde quer que estivessem situados,15 e que fosse imutável. No Código Civil de 1916, o regime de bens tinha o caráter de irrevogável como previa o mandamento do art. 230. Nesse aspecto, houve inovação no Código Civil de 2002 com a quebra do princípio básico da imutabilidade do regime de bens. De acordo com o art. 1.639, § 2º, “é admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. Essa revogabilidade do regime de bens, admitida pelo Código de 2002, poderá trazer o risco de um dos cônjuges ser objeto de coação por parte do outro, para que consinta na modificação do regime adotado no casamento. A permissão para que qualquer dos cônjuges possa dispor livremente de seus bens móveis ou imóveis, alienando-os ou gravando-os de ônus real, independentemente da vênia conjugal, no casamento pelo regime da separação absoluta de bens, contida no art. 1.687, merece registro. Nesse caso, poderá estar sendo diminuída a segurança do futuro dos filhos. Para a união estável, o art. 1.725 prescreve que vigorará o regime da comunhão parcial de bens, no que couber, “salvo contrato escrito entre os companheiros”. No Direito Internacional Privado brasileiro, segundo o § 4º do artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à lei do primeiro domicílio conjugal” (grifo acrescido). Também quanto a esse aspecto discorda Edgar Amorim, que lembra ocorrer a definição do primeiro domicílio conjugal posteriormente ao casamento, quando a escolha do regime de bens deve preceder à celebração do matrimônio.16 Estaria aberta uma porta para a fraude, o que não ocorreria se o regime de bens seguisse a lei da celebração do casamento. Diametralmente oposto a esse é o entendimento de Osíris Rocha, que justifica a opção do legislador brasileiro pelo primeiro domicílio conjugal na falta do domicílio dos nubentes, por haver uma indicação positiva de adaptação, na lei comum, ou naquela do meio social a que os nubentes se terão integrado pelo primeiro domicílio conjugal.17 Deve-se ressaltar que o § 5º do artigo antes referido permite que o estrangeiro casado que se naturalize brasileiro requeira ao juiz que seja apostilada a adoção do regime de comunhão parcial de bens, respeitados os direitos de terceiros.
Convém recordar que, além das normatizações referidas na Lei de Introdução, várias outras opções têm sido aventadas na doutrina para o regime de bens: lei nacional de cada um dos cônjuges, cumulação das leis nacionais dos cônjuges, lei do domicílio do marido, lei do foro, lei do autor da demanda e princípio da autonomia da vontade. Durante a vigência da Introdução ao Código Civil de 1916, que tinha a nacionalidade como elemento de conexão para o regime de bens do casamento, muitas vezes o juiz brasileiro viu-se diante de situações inusitadas. Por exemplo, no caso de italianos casados que chegavam pobres ao Brasil e aqui faziam fortuna. Como na Itália o regime de casamento, na ausência de pacto antenupcial, era de separação de bens, o patrimônio pertencia ao marido, sendo herdado por colaterais quando de sua morte. Assim, esse patrimônio, formado com esforço conjunto e sacrifício do casal, se aplicada a lei italiana, fugiria para parentes afastados do marido, domiciliados na Itália, muitas vezes sem vinculação afetiva com ele, deixando a mulher na miséria. Com a admissão do domicílio como elemento de conexão, pela Lei de Introdução ao Código Civil, em 1942 – que em 2010 teve seu nome alterado para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro –, casos dessa natureza deixaram de ocorrer.
12.4 Divórcio O direito dos romanos, assim como o dos povos germânicos, admitia a dissolução do casamento, com o rompimento pleno do vínculo conjugal. O crescimento e consolidação do cristianismo, com poder moral, social e até temporal sobre muitos povos, ocasionou o desenvolvimento de sua própria legislação, o Direito Canônico, para o qual o matrimônio é indissolúvel, com raríssimas exceções. Isso se dá porque para a Igreja Católica o casamento é um sacramento. Atualmente, o divórcio integra o direito positivo de quase todos os povos, tendo sido o Chile, que o incorporou ao seu ordenamento jurídico em 2004, um dos últimos países a admiti-lo. No Brasil, sua implantação ocorreu somente em 1977, por meio da Emenda Constitucional n. 09, de 28.06.1977, vencida a tradicional oposição da Igreja. Nesse contexto, a Lei n. 11.441, de 04 de janeiro de 2007, veio desburocratizar o divórcio direto consensual, permitindo que os casais que não possuam filhos menores ou incapazes possam optar pela ruptura do vínculo matrimonial por intermédio de escritura pública lavrada em Tabelião de Notas, ou seja, por via administrativa, também denominada extrajudicial. Nesse caso, as partes devem ser assistidas por advogado, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 66, de 13 de julho de 2010, deu nova redação ao § 6º do artigo 226 da Constituição Federal, nos seguintes termos: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Dessa forma, ficaram suprimidos os requisitos de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos, para a vigência do divórcio no Brasil. Outrossim, de acordo com a Lei n. 12.874, de 29.10.2013, que alterou o art. 18 da LINDB, as autoridades consulares brasileiras podem celebrar a separação e o divórcio consensuais de brasileiros no exterior. Princípio estabelecido pelo Instituto de Direito Internacional, em Bruxelas, em 1948, determina que “a aceitação ou não do divórcio fica na dependência da lei nacional dos cônjuges”. Por tal princípio, deixa-se de observar a lei do domicílio. Essa regra, observa Edgar Amorim, foi aceita por quase todos os países, prevalecendo apenas a lei do domicílio se o requerente do divórcio é anacional.18 Quanto às causas que embasam o pedido de divórcio, serão as da lei do lugar onde tramitará a
ação. O Instituto de Direito Internacional, na mesma norma, estabeleceu que “a admissibilidade do divórcio rege-se pela lei do lugar onde intentada a ação, a menos que a lei nacional dos cônjuges se oponha à instituição do divórcio” e que “a determinação das causas do divórcio depende da lei do foro”. O estrangeiro divorciado que vier para o Brasil verá reconhecidos os efeitos pessoais e patrimoniais de tal sentença, salvo de bens imóveis que eventualmente tenha no Brasil. Já o brasileiro que retornar do estrangeiro divorciado só terá homologada a respectiva sentença, pelo Superior Tribunal de Justiça, após o cumprimento das exigências nacionais. Como veremos em item próprio, a jurisprudência brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras, no que tange ao direito de família, tem sido intensa ultimamente, de modo especial sobre divórcio de brasileiros em outros países. A separação de corpos (afastamento do lar de um dos cônjuges e fim dos deveres de fidelidade conjugal) também se rege pela lex fori. Se concedida no estrangeiro, poderá ser homologada no Brasil, pois não contraria nossa ordem pública.
12.5 Casamento entre pessoas do mesmo sexo O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, acabaram por tornar mais abrangente a interpretação do art. 1.723 do Código Civil de 2002, admitindo o reconhecimento legal, como entidade familiar, da união homoafetiva. Nessa linha principiológica, a decisão proferida não apenas reconheceu a legalidade da união estável homoafetiva, como ratificou a regra do caput do art. 5º da Carta Magna: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.19 Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, durante sua 169ª Sessão Plenária, a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, determinando que os cartórios de todo o País não poderão recusar a celebração de casamentos civis de pessoas do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento união estável homoafetiva. A Resolução teve sua vigência a partir de 16 de maio do mesmo ano.20 Reconheceu-se, assim, como entidade familiar a união de casais do mesmo sexo sob o aspecto de que as famílias patriarcal e monoparental se fundavam no afeto. Pela mesma razão, parte-se do princípio de que qualquer união, pautada no respeito e na comunhão de vida, preenche os requisitos constitucionais em vigor quanto ao reconhecimento de entidade familiar, consagrando-se, então, as uniões homoafetivas como entidade familiar. Tal reconhecimento significa dar direitos iguais a todos os casais, consagrando o princípio da isonomia do Estado.
12.6 Jurisprudência brasileira Direito Internacional. Processual Civil. Sentença Estrangeira Contestada. Divórcio. Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto n. 56.826, de 02.12.1965). Chancela Consular. Desnecessidade. Precedente do STF. Debate sobre Mérito. Inviabilidade. Precedentes do STJ. Violação ao art. 89 do CPC. Não Verificada. Requisitos de Homologação Presentes. 1. Cuida-se de pedido de homologação de sentença estrangeira de divórcio, encaminhada sob o rito da Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto n. 56.826, de 2.12.1965). A contestação traz três objeções ao pleito: a necessidade de autenticação consular da sentença original, alegações de mérito referidas ao cumprimento das obrigações de prestação de alimentos e a alegação de que a homologação
violaria a competência da justiça brasileira, nos termos do art. 89 do CPC. 2. É dispensada a chancela consular na sentença alienígena no caso de prestação de alimentos, por força da atuação do Ministério Público Federal, como autoridade intermediária na transmissão oficial dos documentos, nos termos da Convenção sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro (Decreto n. 56.826, de 02.12.1965), conforme reconhecido pela jurisprudência do STF: SE 3016, Rel. Min. Décio Miranda, Tribunal Pleno, publicado no DJ em 17.12.1982, p. 13.202 e no Ementário v. 1280-01, p. 148. 3. Não é possível efetuar o debate acerca do mérito da sentença homologanda, exceto nos limites estritos da aferição de potencial violação à soberania nacional ou a ordem pública pátria. Neste sentido: SEC 7.478/EX, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Corte Especial, DJe 04.03.2013; SEC 5.121/EX, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, DJe 28.02.2013; e SEC 7.987/EX, Rel. Min. Castro Meira, Corte Especial, DJe 29.10.2012. 4. Da leitura da sentença homologanda, infere-se que nada foi consignado acerca de patrimônio ou de imóveis existentes no Brasil. O que se tratou foi da guarda do menor, da venda de um imóvel no México e da atenção aos alimentos e, portanto, não subsiste a presença de quaisquer elementos que atraiam a aplicação do artigo 89 do Código de Processo Civil. Além do mais, o divórcio foi consensual e a jurisprudência do STJ já definiu que “é válida a disposição quanto à partilha de bens imóveis situados no Brasil na sentença estrangeira de divórcio, quando as parte dispõem sobre a divisão” (SEC 5.822/EX, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, DJe 28.02.2013). 5. Estando presentes os requisitos formais, previstos na Resolução STJ n. 09/2005, é de ser homologada a sentença de divórcio proferida no estrangeiro. Pedido de homologação deferido. (STJ – SEC 7173/EX – 2011/0311424-0, j. 07.08.2013).21 Sentença Estrangeira Contestada. Acordo de Divórcio e Guarda dos Filhos Menores. Sentença Proferida pela Justiça Brasileira em Relação à Guarda. Impossibilidade de Homologação nesse Ponto. Pedido Deferido em Parte. 1. De acordo com o art. 35 do ECA, a guarda poderá ser revogada a qualquer tempo por meio de decisão judicial fundamentada, ouvido o Ministério Público. 2. A existência de sentença da Justiça brasileira sobre a guarda dos filhos menores impossibilita a homologação do provimento judicial estrangeiro que lhe contrarie, mesmo que seja prolatada após o trânsito em julgado da decisão a qual se pretende homologar. Nesses casos, deve-se preservar a soberania nacional. Precedentes. 3. Devidamente apresentada a documentação exigida e inexistindo óbices na ordem jurídica interna, é possível a homologação da sentença estrangeira apenas quanto à dissolução da sociedade conjugal. 4. Pedido de homologação de sentença estrangeira deferido em parte (STJ – SEC 4830/EX – 2011/0037363-4, j. 16.09.2013).22 Processual Civil. Sentença Estrangeira Contestada. Divórcio. Ausência de Interesse. Improcedente. Necessidade de Firma Pessoal na Entrega Postal. Inaplicabilidade da Lei Processual Nacional aos Feitos por Carta Rogatória no Estrangeiro. Precedentes. Requisitos de Homologação Presentes. 1. Cuida-se de requerimento contestado em prol da homologação de sentença estrangeira de divórcio. São trazidos dois óbices à homologação: o primeiro, refere-se à alegada ausência de interesse ou necessidade de homologação, já que não houve registro prévio do casamento dissolvido no Brasil; o segundo, é no sentido de que a citação por carta rogatória deveria observar o princípio da pessoalidade, insculpido no art. 215 do Código de Processo Civil. 2. “Não é condição para a homologação da sentença estrangeira de divórcio que o casamento tenha sido realizado no Brasil ou registrado no consulado brasileiro; ademais, o fato de a requerida ser cidadã brasileira caracteriza o interesse necessário ao deferimento do pedido” (SE 4708/CH, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, decisão publicada no DJe em 29.04.2010). 3. A jurisprudência do STJ é clara no sentido de que os atos de citação efetivados no estrangeiro devem seguir os ditames da lei local; logo, o requisito da pessoalidade, existente no artigo 215 do Código de Processo Civil, não pode ser utilizado como empecilho formal para inviabilizar o reconhecimento na regular citação feita por meio de cooperação jurídica internacional. Precedentes: SEC
3.341/EX, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, DJe 29.06.2012; e SEC 3897/EX, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 1º.07.2011. Pedido de homologação deferido (STJ – SEC 5835/EX – 2012/0029068-0, j. 20.02.2013).23 Sentença Estrangeira Contestada. Divórcio. Regime de Bens. Regularidade Formal. Preenchimento dos Requisitos. Homologação Deferida. 1. Observados os pressupostos indispensáveis ao deferimento do pleito previstos nos artigos 5º e 6º da Resolução nº 9/05 do STJ, é defeso no âmbito do procedimento homologatório discutir o próprio mérito do título judicial estrangeiro e supervenientes alterações de estado de fato. 2. Homologação de sentença estrangeira deferida (STJ – SEC 3743/EX – 2012/0027069-8, j. 20.02.2013).24
RESUMO 12.1 Direito de Família O Direito de Família tem por objeto a exposição dos princípios jurídicos que regem as relações de família. Ocupa-se, por exemplo, com casamento, união estável, pátrio poder ou poder familiar, entre outros. O casamento civil surgiu no século XVI (até então o casamento era regido pelo Direito Canônico e considerado sacramento).
12.2 Casamento e conflito de leis no espaço Casamento é o contrato de direito de família que regula a união entre homem e mulher, com a finalidade de gerar, criar e educar os filhos e de mútua assistência. Para as relações pessoais entre os cônjuges, inclusive divórcio e destinação dos bens móveis, historicamente se aplicou a lei do domicílio conjugal, e para os imóveis, a lei da situação da coisa.
12.3 Normas brasileiras sobre casamento 12.3.1 Capacidade Rege-se pela lei pessoal de cada cônjuge, sendo regulada no Direito brasileiro pelo domicílio. 12.3.2 Impedimentos e formalidades “Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades de celebração” (art. 7º da LINDB). Quanto à celebração, portanto, prevalece o princípio locus regit actum. 12.3.3 Casamento por procuração A legislação brasileira admite casamento por procuração, embora outras ordens jurídicas não o façam. Assim, tendo o nubente seu estatuto pessoal em país que não admite a procuração, seria desejável que o juiz brasileiro observasse essa limitação, evitando problemas no eventual retorno ao país de origem.
12.3.4 Casamento no consulado Nossa lei admite o casamento no consulado ou embaixada do Brasil em outros países, desde que sejam brasileiros ambos os nubentes. As formalidades e impedimentos serão os do ordenamento jurídico brasileiro. 12.3.5 Nulidade do casamento “Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal” (§ 3º do art. 7º da LINDB). 12.3.6 Regime de bens Nosso direito admite quatro regimes de bens no casamento: comunhão parcial (de ofício, na ausência de pacto antenupcial), comunhão universal, separação de bens e participação final nos aquestos. O regime pode ser modificado pelos cônjuges. “O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à lei do primeiro domicílio conjugal” (§ 4º do art. 7º da LINDB). O estrangeiro casado que se naturalize brasileiro pode solicitar que se apostile a adoção do regime de comunhão parcial de bens (§ 5º do mesmo artigo).
12.4 Divórcio Existe desde os romanos e, embora condenado pelo cristianismo, foi implantado no Brasil em 1977. Quanto às causas que embasam o pedido de divórcio, serão elas as da lei onde tramitará a ação. A separação de corpos é regida pela lex fori.
12.5 Casamento entre pessoas do mesmo sexo O julgamento pelo STF, por unanimidade, da ADI 4.277 e da ADPF 132, tornou mais abrangente a interpretação do artigo 1.723 do Código Civil, admitindo o reconhecimento legal, como entidade familiar, da união homoafetiva. Nesse contexto, a Resolução n. 175 do CNJ, de 14 de maio de 2013, determinou que os cartórios de registros públicos brasileiros não poderão recusar a celebração de casamentos civis de pessoas do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento união estável homoafetiva.
12.6 Jurisprudência brasileira A homologação de sentenças estrangeiras relacionadas ao Direito de Família, pelo Superior Tribunal de Justiça, tem sido intensa nos últimos anos, especialmente sobre divórcio, guarda de filhos e ações de alimentos.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar direito de família e comentar sua importância e atualidade para o Direito Internacional Privado. 2. Diante do que se entende por lei pessoal ou estatuto pessoal, identificar a legislação aplicável para
reger as relações pessoais entre os cônjuges e a capacidade para o casamento. 3. No casamento de um americano com uma boliviana, a se realizar no Brasil, que legislação será observada quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades de celebração? 4. Pode o cônsul brasileiro em Miami celebrar o casamento de um brasileiro lá domiciliado com uma cubana, naturalizada norte-americana? Justificar a resposta. 5. Brasileiro domiciliado em Porto Alegre casa em Montevidéu com uruguaia aí domiciliada, fixando-se logo o casal em La Paz, Bolívia. Qual legislação regerá o processo de anulação do casamento proposto pela nubente seis meses após o enlace? 6. Um peruano casado, ao se naturalizar brasileiro, solicita se apostile a adoção do regime de comunhão universal de bens. Pode ser atendida tal petição? Por quê? 7. Como deveria proceder autoridade consular brasileira nos Estados Unidos se lhe fosse solicitado que registrasse casamento de brasileira com norte-americano e qual seria a eficácia de eventual certidão então fornecida? 8. Fazer breve histórico do divórcio no direito brasileiro.
______________ 1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. VII. p. 188. 2 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 121. 3 PONTES DE MIRANDA. Op. cit. p. 206. 4 VARSI ROSPIGLIOSI, Enrique. Divorcio, filiación y patria potestad. p. 6. 5 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. p. 29. 6 RUSSO, José. O direito de família e das sucessões. p. 464. 7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família. p. 38-40. 8 Súmula n. 377: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” 9 “Art. 1.521. Não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.” 10 “Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.” 11 “Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: I – certidão de nascimento ou documento equivalente; II – autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra; III – declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar; IV – declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V – certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.” “Art. 1.526. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a audiência do Ministério Público (Redação dada pela Lei n. 12.133, de 2009). Parágrafo único. Caso haja impugnação do oficial, do Ministério Público ou de terceiro, a habilitação será submetida ao juiz (Incluído pela Lei n. 12.133, de 2009).” “Art. 1.527. Estando em ordem a documentação, o oficial extrairá o edital, que se afixará durante quinze dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver. Parágrafo único. A autoridade competente, havendo urgência, poderá dispensar a publicação.” 12 “Art. 67. Na habilitação para o casamento, os interessados, apresentando os documentos exigidos pela lei civil, requererão ao oficial do registro do distrito de residência de um dos nubentes, que lhes expeça certidão de que se acham habilitados para se casarem.” “Art. 68. Se o interessado quiser justificar fato necessário à habilitação para o casamento, deduzirá sua intenção perante o Juiz competente, em petição circunstanciada indicando testemunhas e apresentando documentos que comprovem as alegações.” “Art. 69. Para a dispensa de proclamas, nos casos previstos em lei, os contraentes, em petição dirigida ao Juiz, deduzirão os motivos de urgência do casamento, provando-a, desde logo, com documentos ou indicando outras provas para demonstração do alegado.” 13 RUSSO, J. Op. cit. p. 452. 14 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 124. 15 ROCHA, Osíris. Curso de direito internacional privado. p. 123. 16 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 125. 17 ROCHA, O. Op. cit. p. 124. 18 AMORIM, E. C. Op. cit. p. 127-128. 19 RABELO, Cesar Leandro de Almeida; VIEGAS, Cláudia Maria de Almeida Rabelo. A inclusão dos excluídos: a
Regulamentação Jurisdicional para a Família Homoafetiva e o Ativismo Judicial. p. 106-125. 20 Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2013. 21 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 19 out. 2013. 22 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 19 out. 2013. 23 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 19 out. 2013. 24 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 19 out. 2013.
ADOÇÃO INTERNACIONAL
“A adoção estatutária, ao exigir o registro novo, cortando os vínculos do adotado com a família biológica o faz com o sentido de dar nova origem ao adotando, uma origem indistinta dos demais eventuais filhos” (Cláudia Lima Marques).
13.1 Considerações iniciais Vamos estudar a adoção internacional, nesta obra, tendo em vista não somente a importância do tema como sua relevância, abrangência e atualidade. Após conceituá-la, será analisada a adoção como resgate da cidadania de pessoas desassistidas já na primeira fase de sua existência, embora possa vir a ocorrer em qualquer momento da vida. Nessa tessitura, a extensão do instituto a pessoas domiciliadas em outros países deve ser admitida, especialmente com o advento da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29 de maio de 1993, entre outros documentos internacionais dedicados à proteção da criança e do adolescente.
13.2 Conceituação Para Maria Helena Diniz, a adoção é “o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”.1 A adoção é, para Enrique Varsi Rospigliosi, instituto tutelar do direito de família mediante o qual uma pessoa adquire de outra a qualidade de filho, apesar da ausência de vínculos consanguíneos entre elas.2 De forma sucinta, Luiz Edson Fachin afirma que ela “estabelece a relação de ascendência e descendência independente de consanguinidade”.3 Com viés poético, Jason Albergaria entende que a paternidade adotiva é eletiva e espiritual, porque busca dar um lar a um menor sem-família, visto como membro do gênero humano e filho de Deus.4 A adoção é o processo pelo qual um ser humano, em tese menor e desassistido, encontra novo lar, nele se integrando jurídica e afetivamente. Entendemos a adoção como um instituto no qual o jurídico necessita harmonizar-se com o humano, gerando bem-estar no meio social.
13.3 Importância e atualidade Tema de ingente atualidade, a adoção é um instituto intrinsecamente voltado para o bem, embora por vezes empregada por criminosos para objetivos espúrios. Referimo-nos a atos de barbárie realizados sob a forma de adoção, nefanda prática, recordando-se que a maioria das crianças traficadas é do sexo feminino. Investigação procedida em 2003/2004 pelo Ministério da Justiça e pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes no Brasil, intitulada “Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (PESTRAF)”, um dos estudos mais completos sobre o assunto, evidenciou a importância da ação de juristas e autoridades em geral no combate a esses crimes.
Cláudia Lima Marques define tráfico de crianças com finalidade de adoção como o processo destinado a transferir definitivamente criança de um país para outro, no qual os envolvidos recebem contraprestação financeira pela participação nessa adoção. Os agentes desse crime internacional podem ser os pais biológicos, pessoas que detêm a guarda da criança, terceiros ajudantes ou facilitadores, bem como autoridades ou intermediários.5 A inexistência de uma regulamentação supraestatal da adoção fez florescer, na esfera mundial, o tráfico de crianças, o que levou ao surgimento da Convenção sobre Adoção Internacional de 1993. Denuncia Thanh-Dam Truong que provas recentes sugerem destinar-se agora o tráfico de seres humanos também para outras atividades lucrativas, como a mutilação de crianças sequestradas para emprego como mendigos, ou a extirpação de seus órgãos para serem comercializados. Lamenta o catedrático do Instituto de Estudos Sociais de Haia: “Estas novas formas de exploração, seja no sexo ou na saúde, refletem a natureza cruel da ganância humana e a incoerência dos sistemas morais nesta etapa do patriarcado capitalista.”6 Maria Lúcia Leal lembra que as transformações operadas no seio da família pela crise social gerada pela globalização criam situações de difícil resolução para crianças e adolescentes, como troca de parceiros entre os pais, conflitos interpessoais gerados pelo alcoolismo, drogadição, práticas sexuais precoces e insalubres, ao lado da violência sexual e tantas outras relações que tornam vulneráveis sociopedagogicamente esse segmento.7 Essa violência aos direitos fundamentais da criança, ao lado da desconstrução da harmonia familiar, pode ser muito negativa em caso de internacionalização da família, com os conhecidos sequestros de menores por um dos cônjuges e tráfico de menores, por meio de intermediários ou pelos próprios pais, lucrando com a transferência internacional do menor. Ainda, deve-se ter em conta as guerras constantes, distúrbios internos, ódios raciais, desastres naturais, crises econômicas e problemas sociais, que tornam muitos menores órfãos, refugiados ou abandonados, sendo transferidos a outros países para sua proteção, surgindo o fenômeno do ‘abandono’ internacional, ainda que esse abandono seja momentâneo.8 A menção a práticas deletérias que vitimam crianças e adolescentes, quando vamos estudar a sublimidade da adoção, destina-se a acentuar a importância do instituto e a enfatizar quão necessário se torna, em nosso tempo, o engajamento de todos na busca de procedimentos jurídicos seguros que impossibilitem que a adoção internacional seja utilizada para esses fins.
13.4 Adoção como resgate de crianças sem assistência Verifica-se de forma auspiciosa uma nova postura em relação ao instituto da adoção, antes em geral visto como uma oportunidade de dar filhos a quem não podia ou não queria tê-los consanguineamente. Teixeira de Freitas, no século XIX, observava ser a adoção “remédio consolatório dos que não têm filhos”.9 Privilegia-se hoje a solidariedade social e o amparo à criança e ao adolescente que não têm família ou quando esta não dispõe de recursos para dar-lhes uma vida digna. A imprensa divulgou, em janeiro de 2006, o caso de uma menina afrodescendente, no início da adolescência, que aguardava adoção em orfanato de uma cidade gaúcha. Cansada de esperar um lar – e assistir à adoção de crianças menores e brancas –, ela desabafou para um repórter sua experiência e sua tristeza, enfatizando quanto sonhava com uma família. A divulgação do apelo sensibilizou várias pessoas, resultando na adoção da jovem, que permanecera muitos anos à espera dessa oportunidade. A adoção deve justificar-se por vantagens concretas para a criança ou o adolescente e estar fundamentada em motivos legítimos. É irrevogável e leva à constituição, para o adotando, de uma nova
família, definitiva, mantendo-se o vínculo com a família originária apenas em relação aos impedimentos matrimoniais. Frisa-se que eventual nulidade da concessão não caracteriza revogação da adoção e é procedida à luz do interesse prevalente do menor, com o que a nulidade existente nem sempre será decretada pela Justiça.10
13.5 Adoção internacional A adoção internacional ocorre quando o instituto da adoção é aplicado entre pessoas residentes em diferentes países signatários da Convenção sobre a Adoção Internacional de Haia. Ela permite que menores em situação de abandono encontrem um lar no estrangeiro, que não foi possível em seu país, lar esse que lhe proporcione o desejável bem-estar e crescimento adequado a todo ser humano. Em sentido amplo, trata-se, pois, de instituto pelo qual pessoas radicadas em um país adotam menores abandonados ou sem lar residentes em outro país. Acentua Dolinger que a Segunda Guerra Mundial pode ser considerada um dos primeiros marcos que estimulou a adoção internacional, na medida em que resultou em milhares de órfãos, muitos dos quais vieram a ser adotados por casais que viviam em países não afetados (ou menos afetados) pela Guerra. Ademais, o massivo ingresso da mulher no mercado de trabalho, o controle da natalidade, o uso de anticoncepcionais e a legalização do aborto em algumas legislações contribuíram para o decréscimo da natalidade em países industrializados, diminuindo também o número de crianças disponíveis para adoção e, consequentemente, estimulando a adoção de menores em outros países, normalmente mais pobres e sem controle de natalidade. O autor salienta que tal fenômeno ocorreu principalmente com a Coreia e o Vietnã, entre 1955 e 1975, e posteriormente com países da América Latina. Calcula-se que na década de 1980 houve cerca de 180.000 adoções internacionais de crianças oriundas de 68 países, adotadas por famílias de 20 países receptores. Com o crescente número de adoções internacionais multiplicaram-se também as dificuldades e os impasses enfrentados pelos interessados em vista, principalmente, das eventuais incongruências e das diferenças entre as legislações dos Estados dos adotantes e dos adotados, fazendo-se necessário elaborar regulamentação mínima, no âmbito do direito internacional privado, sobre o tema. Dessa maneira, visa-se garantir que a adoção internacional seja feita segundo o interesse superior da criança ou adolescente, uniformizando a cooperação entre os Estados, respeitados os direitos fundamentais do menor adotado e coibindo o tráfico de menores.11
13.6 Documentos sobre adoção internacional e a Convenção de 1993 Na década de 1960, a adoção internacional passou a ser debatida mais enfaticamente no âmbito da ONU, culminando com seminário em Leysin, na Suíça, denominado “Fundamental Principles for Intercountry Adoption”, no qual se concluiu que a adoção internacional deve ser apenas subsidiária, preferindo-se a adoção realizada no Estado de origem do menor, a fim de preservar seus vínculos culturais, e que o fim específico da adoção deve ser a proteção integral do adotado.12 Cumpre lembrar que antes da bem-sucedida Convenção de 1993 sobre o tema, a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado já havia envidado esforços para regulamentar a adoção internacional, notadamente no âmbito europeu. Segundo Liberati, naquela época não se previa o grande movimento de adoções que viriam a se realizar entre os cones Norte-Sul.13 Nesse sentido, em 1965, a Convenção sobre Jurisdição, Lei Aplicável e Reconhecimento de Adoções tentou regular, como o próprio nome já sugere, o conflito de leis nas adoções realizadas entre
adotante(s)/adotando oriundos dos Estados-Membros. O referido tratado, no entanto, foi ratificado por apenas três países (Áustria, Reino Unido e Suíça), número mínimo para que entrasse em vigor (art. 19), que vieram a denunciá-lo nos anos de 2003 e 2004, deixando de produzir efeitos em 2008. Nos termos dessa Convenção, a lei aplicável está vinculada à competência jurisdicional, ou seja, uma vez determinada a competência aplicar-se-ia a lei do Estado respectivo.14 Dois anos mais tarde, em 1967, países-membros do Conselho da Europa se reuniram a fim de elaborar a Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças, com vistas a ajustar possíveis divergências entre as legislações internas dos países, regulamentando e padronizando as regras de adoção. No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi celebrada na cidade de La Paz, em 24 de maio de 1984, a Convenção Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matéria de Adoção de Menores, discutida e finalizada na 3ª Conferência Interamericana de Direito Internacional Privado (CIDIP-III), entrando em vigor internacionalmente em 26 de maio de 1988. Também permitindo a adesão de países não membros da OEA, este tratado internacional foi ratificado por nove países (outubro de 2013), inclusive o Brasil. Em seu texto, é estabelecida a lei a ser aplicada nos casos em que adotante(s) e adotado tiverem sua residência habitual em diferentes Estados-Partes da Convenção. Nos termos dos artigos 3º e 4º, a lei da residência habitual do menor regulará questões relativas à capacidade, consentimento, demais requisitos da adoção e formalidades extrínsecas para a constituição do vínculo, enquanto a lei do domicílio do(s) adotante(s) regerá, como regra, a capacidade do(s) adotante(s) e demais requisitos para ser adotante. Ademais, o tratado estabelece que a competência para outorgar adoções é das autoridades do Estado da residência habitual do adotado – dispositivo louvável, já que a autoridade do país de origem do adotado, geralmente menos desenvolvido, poderá melhor controlar o procedimento a ser realizado. No Brasil, a referida Convenção foi aprovada no ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo n. 60, de 19 de junho de 1996, sendo promulgada por meio do Decreto n. 2.429, de 17 de dezembro de 1997.15 A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989 – ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, tornando-se exigível por meio do Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990 –, apesar de não tratar especificamente sobre o assunto, constitui-se em documento basilar sobre a proteção e os direitos das crianças e adolescentes. Estabelece que a adoção sempre deverá coincidir com o interesse maior da criança, devendo ser considerada a adoção internacional apenas quando não for possível encontrar um lar para a criança no seu país de origem, e não devendo significar benefícios financeiros indevidos aos que dela participarem. Já a Declaração das Nações Unidas sobre os Princípios Sociais e Legais Relativos ao Bem-Estar das Crianças, de 1986, dedica sete artigos para a adoção internacional, estabelecendo alguns princípios, como a necessidade de estabelecer políticas e supervisão eficaz para a proteção das crianças adotadas em outros países e a garantia de que a criança poderá migrar para se juntar aos pais adotivos, podendo obter a nacionalidade deles.16 Ao encontro de tantos esforços da comunidade internacional em estabelecer princípios e regras básicas sobre a adoção internacional, advém, após anos de estudos, a Convenção Sobre Cooperação Internacional e Proteção de Crianças e Adolescentes em Matéria de Adoção Internacional, aprovada em 29 de maio de 1993, e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 3.087, de 21 de junho de 1999. Cláudia Lima Marques questiona, em estudo sobre a Conferência de Direito Internacional Privado, realizada em Haia – evento que redundou na aludida Convenção –, se é possível restabelecer-se a
confiança entre as autoridades públicas dos países chocadas com reiteradas denúncias de maus-tratos, venda, tráfico e sequestro de crianças. Haverá meios de convencer essas autoridades a um engajamento que enseje cooperação, mútuas informações e conhecimento recíproco das legislações dos demais países, “de forma a proteger a criança adotada e assegurar-lhe um status jurídico não discriminatório em seu novo domicílio?”17 Analisando os esforços empreendidos e os resultados alcançados pelo magno evento, reafirma-se a convicção de ser a regulamentação das adoções internacionais o único meio eficiente para proteger os direitos das crianças envolvidas e coibir o tráfico. Isso porque a Convenção institui e obriga a colaboração entre autoridades, controlando adequadamente a legalidade do processo e oferecendo meio legal e seguro para as pessoas que desejam ou necessitam adotar uma criança em outro país. A Convenção estabelece regras basilares a serem observadas pelas autoridades dos países engajados em cada processo. Trata-se de princípios que, cumpridos, “darão a ambos os Estados envolvidos, a garantia de que não houve ‘venda’, ‘tráfico’, ‘coação’, ‘sequestro’ ou ‘indução’ ao abandono e que os pais adotivos estão aptos, tanto jurídica como psicologicamente, a receber a criança adotada”.18 Acentuemos que os Estados de origem da maioria das crianças são Coreia do Sul, Vietnã, Índia, Filipinas, China, Romênia, Albânia, México, Colômbia e Brasil, mencionando-se entre os países de acolhida desses menores, Estados Unidos, Itália, França, Israel, Suécia, Alemanha, Canadá, Suíça e Bélgica, todos eles participantes da Conferência. João Gatelli enfatiza, outrossim, que a adoção por estrangeiro não residente necessita de adequada avaliação pelos países de origem do adotando, tornando o processo ágil e seguro.19
13.7 Adoção no ordenamento jurídico brasileiro e a adesão à Convenção de 1993 O Código Civil de 191620 previa que a adoção, tanto de maiores como de menores, seria efetuada por meio de escritura pública e o vínculo de parentesco se limitava tão somente entre o adotado e o adotante, que não podia ter filhos legítimos por ocasião da adoção. Ademais, essa adoção poderia ser revogada em determinadas situações e não envolvia sucessão hereditária quando o adotante viesse a ter filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos. Essa adoção era chamada de adoção simples. A Lei 4.655/196521 previu a legitimação adotiva, irrevogável, constituída por sentença judicial, a qual determinava a lavratura de novo registro de nascimento para o menor adotado com os nomes dos pais adotivos, sem que houvesse qualquer observação a respeito da origem do ato. O vínculo adotivo se estendia aos ascendentes dos adotantes desde que houvesse o seu consentimento. A referida lei foi revogada posteriormente pelo Código de Menores – Lei 6.697/197922 –, o qual se remetia à adoção simples e à adoção plena, que atribuía a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais. Na adoção plena, os nomes dos ascendentes dos adotantes eram incluídos no assento de nascimento do adotado sem que fosse necessária a sua autorização. Observa-se hoje, na ordem jurídica brasileira, um pluralismo de fontes sobre a adoção: Lei n. 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – alterada pela Lei n. 12.010, de 03 de agosto de 2009 – e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.23 Os principais tratados internacionais são a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança de 1990, a Conferência Interamericana de 1984 (CIDIP) e a Convenção de Haia de 1993. Acentua-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente continua a reger, como lex specialis, a adoção internacional no Brasil, por expressa
menção do Código Civil de 2002.24 Para João Batista Saraiva, esse Estatuto representa um “marco divisório extraordinário no trato da questão da infância e da juventude no Brasil”.25 O pluralismo referido tem-se mostrado bastante protetivo dos direitos humanos das crianças e adolescente e meio eficaz de combate ao tráfico de menores e outras mazelas brasileiras na década de 70-80 do século passado que, por vezes, utilizavam a adoção internacional para seu acobertamento.26 Rui Manuel de Moura Ramos, em estudo sobre a legislação portuguesa em matéria de adoção, aprova o corte de vínculos com a família natural, consentâneo, portanto, com as normas brasileiras e internacionais. Entende que o vínculo dificulta uma relação estável, podendo gerar conflitos de pretensões, pois a lei da família consanguínea do adotado pode desconhecer a adoção e prever direitos dos pais naturais em relação ao menor incompatíveis com os da adoção.27 No ordenamento jurídico brasileiro, a adoção estatutária corta os vínculos do adotado com a família biológica, buscando dar nova origem ao adotando, idêntica à de outros filhos porventura existentes, para isso exigindo novo registro.28 Os benfazejos efeitos da Convenção da Adoção Internacional no Brasil também se evidenciam no relatório PESTRAF. A pesquisa apurou que crianças eram alvo fácil dos criminosos até meados da década de noventa do século XX, mencionando que isso ocorria por falta de rigor nos processos de adoção internacional, prática corrigida com a efetivação das Comissões Judiciárias de Adoção Internacional, criadas pelos Tribunais de Justiça nos estados, sob inspiração do Estatuto da Criança e do Adolescente.29 É oportuno acrescentar que expressões como melhor interesse, bem-estar e vantagem para a criança devem ser interpretadas à luz dos direitos básicos assegurados no ECA e implementados pela Convenção de 1993. Enfatiza Lima Marques que a expressão “vantagem para a criança” ganha um sentido duplo: bem-estar econômico e afetivo e direito à identidade cultural.30 Depreende-se então que o necessário conforto econômico-afetivo estará ausente, criando dificuldades para o futuro da criança, sempre que seus direitos humanos culturais forem desrespeitados. Porém, a conjunção desses fatores conduz ao objetivo do melhor interesse ou vantagem, fundamentos da nova adoção internacional de crianças e adolescentes. Lamentavelmente, persistem indícios de tráfico de adolescentes, especialmente do sexo feminino, para fins de exploração sexual no Brasil. A PESTRAF mapeou mais de uma centena de rotas de tráfico nacional e internacional que “comercializam” crianças, adolescentes e mulheres brasileiras. Cabe acentuar que o tráfico de pessoas dentro do território brasileiro foi inserido na nossa legislação penal pela Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, que acrescentou novo artigo ao Decreto-lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), conforme se segue. Tráfico interno de pessoas Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
13.8 Noções básicas sobre adoção A adoção de crianças e adolescentes rege-se, no ordenamento jurídico pátrio, como visto, pelas disposições da Lei n. 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual foi alterado pela Lei n. 12.010/2009. Já a adoção de maiores continua sendo prevista no Código Civil, segundo o qual “a adoção de maiores de 18 anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei n. 8.069 (...)”. Ou seja, a adoção de maiores também
deverá ser decretada pela via judicial, revestindo-se de formalidades semelhantes às da adoção de menores. Conforme dispõe o § 1º do artigo 39 do referido Estatuto, a adoção só deve ser aplicada quando se mostrar impossível a manutenção do menor na sua família natural ou extensa (parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade). Trata-se, ademais, de medida excepcional, irrevogável e vedada por procuração. A fim de melhor contextualizar a adoção internacional oportunamente, vale recordar brevemente as regras basilares do instituto no Brasil. A adoção apenas será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando, fundar-se em motivos legítimos (art. 43) e ficar comprovado que a colocação em família substituta é a solução adequada para o caso concreto. Ademais, devem ser envidados esforços para que o menor seja adotado por família brasileira, ou seja, somente ocorrerá a adoção internacional quando não houver pessoa ou casal brasileiro habilitado nos cadastros estadual e federal. Como principal efeito, a adoção atribuirá a condição de filho ao adotado, com todos os direitos e deveres que possui o filho biológico, inclusive os sucessórios. Assim, cessam quaisquer vínculos com os pais e parentes biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais (art. 41). No Brasil, podem adotar os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil (art. 42), e o adotante deve ser pelo menos dezesseis anos mais velho que o adotando (art. 42, § 3º). Não é permitido adotar os ascendentes e os irmãos do adotando (art. 42, § 1º). Como regra, o adotando deve contar com no máximo 18 anos na data do pedido de adoção, exceto quando já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes (art. 40). Quando for adoção conjunta, os adotantes devem ser casados civilmente ou manter união estável, comprovada a estabilidade da família (art. 42, § 2º). Já os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência. Ainda, ambos devem acordar sobre a guarda e o regime de visitas, bem como deve ser comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda (art. 42, § 4º). Após inequívoca manifestação de vontade, se o adotante vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença, a adoção ainda assim poderá ser deferida (art. 42, § 6º). Nesse caso, a sentença produzirá efeitos e terá força retroativa à data do óbito. Vale lembrar que a morte dos adotantes não restabelece o poder familiar dos pais naturais (art. 49). A adoção dependerá do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando, que será dispensado em relação ao menor cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar. Se o adotando tiver mais de 12 anos, também deverá ser ouvido e consentir com a adoção (art. 45). Será a adoção sempre precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades de cada caso em concreto. No entanto, o estágio pode ser dispensado quando o adotando tiver menos de um ano de idade ou, qualquer que seja sua idade, já estiver em companhia da família durante tempo suficiente para poder avaliar a conveniência da constituição do vínculo (art. 46). Segundo o artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão”, exceto para a salvaguarda de direitos, a critério da autoridade judicial. A inscrição no registro civil consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes (art. 47, § 1º). A
sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome (art. 47, § 5º). Ainda, nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro (art. 47, § 4º). O mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotado (art. 47, § 2º) e, a pedido do adotante, o novo registro poderá ser lavrado no Cartório do Registro Civil do município de sua residência (art. 47, § 3º). Salienta-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 48, garante ao adotado, após completar 18 anos, o direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes.
13.9 Brasil como país de origem do menor adotado Primeiramente cabe tecer alguns comentários sobre o que caracteriza a adoção internacional. Segundo o artigo 2o da Convenção de 1993: “A Convenção será aplicada quando uma criança com residência habitual em um Estado Contratante (“o Estado de origem”) tiver sido, for, ou deva ser deslocada para outro Estado Contratante (“o Estado de acolhida”), quer após sua adoção no Estado de origem por cônjuges ou por uma pessoa residente habitualmente no Estado de acolhida, quer para que essa adoção seja realizada, no Estado de acolhida ou no Estado de origem”. Nesse sentido, o que caracterizaria uma adoção nos termos do referido tratado internacional não é a nacionalidade das partes, mas, sim, o domicílio do adotado e do(s) adotante(s) que são em diferentes Estados-Partes. Acreditamos que o ECA não deixa clara essa diferença, causando confusão em um leitor menos atento. Segundo o artigo 31 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “a colocação em família substituta estrangeira constitui medida excepcional, somente admissível na modalidade de adoção”. No caso de adoção por estrangeiro domiciliado fora do Brasil, é obrigatório o estágio de convivência, cumprido no território nacional, com duração de no mínimo 30 dias (§ 3º do art. 46 do ECA, com alteração da Lei n. 12.010/2009). Já o § 8º do artigo 52 do Estatuto determina que “antes de transitada em julgado a decisão que concedeu a adoção internacional, não será permitida a saída do adotando do território nacional”. A antiga redação do Estatuto da Criança e do Adolescente já previa que a autoridade judiciária deverá manter um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção (art. 50). Ademais, a Lei n. 12.010/2009 acrescentou o § 5º ao referido artigo, o qual dispõe que “serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção”. Em seguida, o § 6º complementa que haverá cadastro distinto para pessoas ou casais residentes fora do País, os quais apenas serão consultados na inexistência de postulantes nacionais habilitados. Competirá à Autoridade Central Estadual zelar pela manutenção dos cadastros, comunicando posteriormente à Autoridade Central Federal Brasileira (art. 50, § 9º, do ECA). É importante salientar que a adoção internacional terá a participação de ambas as autoridades centrais: a do país de origem do adotado e a do país dos adotantes. Sendo o Brasil uma das partes, haverá a intervenção das Autoridades Centrais Federal e Estadual (art. 51, § 3º, do ECA). Em seu artigo 51, o Estatuto prevê que a adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro somente será deferida quando restar comprovado que: 1) a colocação em família substituta é a solução adequada para o caso concreto;
2) foram esgotadas as possibilidades de colocação do menor em família substituta brasileira, após a consulta dos cadastros estaduais e nacional; e 3) o menor seja consultado, pelos meios adequados ao seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão, mediante parecer elaborado por equipe interprofissional. Ademais, quando se tratar de maior de 12 anos, será necessário o seu consentimento, exteriorizado em audiência (art. 28, § 2º, do ECA). Complementa o artigo, em seu § 2º, que “os brasileiros residentes no exterior terão preferência aos estrangeiros, nos casos de adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro”. Assim, como já foi referido, se um brasileiro residente no exterior pretende adotar menor brasileiro, o fato de o adotante ser brasileiro não deixará de caracterizar a adoção como internacional. Os estrangeiros interessados em adotar criança ou adolescente brasileiro deverão formular pedido de habilitação à adoção perante a Autoridade Central em matéria de adoção internacional no país de acolhida, ou seja, aquele onde está situada a sua residência habitual (art. 52, I). Ao considerar os solicitantes aptos para adotar, a Autoridade Central emitirá relatório contendo informações sobre a identidade, a capacidade jurídica, a adequação dos solicitantes para adotar, sua situação pessoal, familiar e médica, seu meio social e a sua aptidão para assumir uma adoção internacional (art. 52, II). Tal relatório será enviado à Autoridade Central Estadual, com cópia para a Autoridade Central Federal Brasileira (art. 52, III) e será instruído com toda a documentação necessária, incluindo estudo psicossocial elaborado por equipe interprofissional habilitada e cópia autenticada da legislação pertinente, acompanhada da respectiva prova de vigência (art. 52, IV). Ainda, a critério da Autoridade Central Estadual, poderão ser solicitados outros documentos e complementação sobre o estudo psicossocial do postulante estrangeiro (art. 52, VI). O Estatuto exige documentação do adotante estrangeiro, expedida por autoridade de seu país, inclusive com estudo psicossocial elaborado por agência especializada e para tanto credenciada. Tais documentos deverão estar autenticados pela autoridade consular ou diplomática brasileira naquele Estado. Nesse aspecto, a Lei n. 12.010/2009 acrescentou normas detalhadas a respeito dos procedimentos a serem observados pelo adotante estrangeiro. Como já mencionado em outros segmentos desta obra, todos os documentos em língua estrangeira serão devidamente legalizados (ou consularizados) pela Autoridade Consular brasileira e, posteriormente, traduzidos por tradutor público juramentado no Brasil (art. 52, V), sempre observando os tratados e convenções internacionais. Uma vez verificada a compatibilidade da legislação estrangeira com a nacional e preenchendo os adotantes os requisitos objetivos e subjetivos necessários ao deferimento da adoção – tanto à luz do que dispõe o ECA, como da legislação do país de acolhida –, será expedido laudo de habilitação à adoção internacional, o qual terá validade por, no máximo, um ano (art. 52, VII). Assim, de posse do referido laudo, o interessado poderá formalizar o pedido de adoção perante o Juízo da Infância e da Juventude do local em que se encontra a criança ou adolescente, conforme indicação da Autoridade Central Estadual (art. 52, VIII). Depois de transitada em julgado a decisão, a autoridade judiciária determinará a expedição de alvará com autorização de viagem do menor, bem como para a obtenção do passaporte. Em tal documento constarão as características físicas do menor adotado, tais como idade, cor, sexo, traços peculiares, entre outros, bem como foto recente e aposição da impressão digital do polegar direito. Em anexo, estará cópia autenticada da decisão e certidão de trânsito em julgado (art. 52, § 9º). A Autoridade Central Federal Brasileira poderá solicitar informações sobre a situação das crianças
e adolescentes adotados a qualquer momento que julgar necessário (art. 52, § 10). A capacidade para o estrangeiro adotar menor brasileiro será a lei do domicílio do adotante. A capacidade para ser adotado é prescrita pela lei do domicílio do adotando, enquanto que a forma é a da lei do lugar do ato, lex locus actum. Quanto aos efeitos, serão regidos pela lei do domicílio do adotante. Exemplificando: Se um casal francês pretender adotar uma criança brasileira de quatro anos de idade, deverá fazer o estágio de convivência de no mínimo trinta dias, e a adotada só o acompanhará até a França após o trânsito em julgado da sentença que homologa a adoção. A capacidade do adotante será regida pela lei francesa, e a da criança adotada pela lei brasileira. A forma é prescrita pela lei brasileira. Finalmente, qualquer litígio sobre os efeitos da adoção será dirimido segundo a lei francesa. Vale salientar que o artigo 52-B prevê que a adoção por brasileiro residente no exterior em país ratificante da Convenção de Haia, cujo processo de adoção tenha sido processado em conformidade com a legislação vigente no país de residência e se Autoridades Centrais de ambos os Estados estiverem de acordo com a adoção, será automaticamente recepcionada com o reingresso no Brasil. Caso as Autoridades Centrais de ambos os Estados não estiverem de acordo com a adoção, a sentença deverá ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça. Já o “pretendente brasileiro residente no exterior em país não ratificante da Convenção de Haia, uma vez reingressado no Brasil, deverá requerer a homologação da sentença estrangeira pelo Superior Tribunal de Justiça” (art. 52-B, § 2º).
13.10 Organismos credenciados Caso a legislação do país de acolhida autorize, admite-se que os pedidos de habilitação à adoção internacional sejam intermediados por organismos credenciados (art. 52, § 1º). Salienta-se que incumbe à Autoridade Central Federal Brasileira credenciar esses organismos encarregados de intermediar pedidos de habilitação à adoção internacional, sejam eles nacionais ou estrangeiros. As Autoridades Centrais Estaduais serão comunicadas sobre o credenciamento, bem como será publicado nos órgãos oficiais de imprensa e em sítio próprio da internet (art. 52, § 2º). Tais organismos serão credenciados por um período de dois anos (art. 52, § 6º), o qual poderá ser renovado mediante requerimento protocolado junto à Autoridade Central Federal Brasileira nos 60 dias anteriores ao término do prazo de validade (art. 52, § 7º). Sobre o credenciamento desses organismos intermediadores, o ECA prevê uma série de requisitos para efetivar esse procedimento, tais como (art. 52, §§ 3º e 4º): 1) devem ser oriundos de países ratificantes da Convenção de Haia e estar credenciados perante a Autoridade Central do seu país de origem e do país de acolhida do adotando, a fim de poderem atuar em adoção internacional no Brasil (art. 53, § 3º); 2) devem satisfazer condições de integridade moral, competência profissional, experiência e responsabilidade exigidas pelos respectivos países e pela Autoridade Central Federal Brasileira; 3) devem ser qualificados por seus padrões éticos, bem como formação e experiência para atuar na área de adoção internacional; 4) devem cumprir os requisitos exigidos no ordenamento jurídico pátrio e pelas normas estabelecidas pela Autoridade Central Federal Brasileira; 5) não devem ter fins lucrativos, nas condições fixadas pelas autoridades competentes de seu país de origem, do país de acolhida e pela Autoridade Central Federal Brasileira; 6) devem ter administradores qualificados e de reconhecida idoneidade moral, com comprovada
formação ou experiência para atuar na área de adoção internacional, devendo estar cadastrados pelo Departamento de Polícia Federal e aprovados pela Autoridade Central Federal Brasileira, mediante publicação de portaria do órgão federal competente; 7) estar submetidos à supervisão das autoridades competentes do país onde estiverem sediados e no país de acolhida, inclusive quanto à sua composição, funcionamento e situação financeira; 8) devem apresentar à Autoridade Central Brasileira, anualmente, relatório geral das atividades realizadas, assim como relatório de acompanhamento das adoções internacionais efetuadas no período, com cópia encaminhada ao Departamento de Polícia Federal; 9) devem enviar relatório pós-adotivo semestral para a Autoridade Central Estadual (com cópia para a Autoridade Central Federal Brasileira) pelo período mínimo de 2 anos, até a juntada de cópia autenticada do registro civil que reconhece a cidadania do país de acolhida ao adotado; e 10) deve garantir que os adotantes encaminhem à Autoridade Central Federal Brasileira cópia da certidão de registro de nascimento estrangeira e certificado de nacionalidade tão logo lhes sejam concedidos. Se os relatórios mencionados não forem apresentados, o organismo credenciado poderá ter seu credenciamento suspenso (art. 52, § 5º). Ainda, poderá ser causa de descredenciamento a cobrança de valores que sejam considerados abusivos pela Autoridade Central Federal Brasileira, ou que não estejam devidamente comprovados (art. 52, § 11). Da mesma forma, é vedado o repasse de recursos provenientes de organismos estrangeiros encarregados de intermediar pedidos de adoção internacional a organismos nacionais ou a pessoas físicas (art. 52-A). Uma mesma pessoa ou casal não podem ser representados por mais de uma entidade credenciada a fim de atuar na cooperação em adoção internacional (art. 52, § 12). Ademais, a habilitação do postulante estrangeiro ou domiciliado fora do Brasil terá validade máxima de um ano, podendo ser renovada (art. 52, § 13). Não é permitido o contato direto de representantes de organismos credenciados com dirigentes de programas de acolhimento institucional ou familiar, assim como com crianças e adolescentes em condições de serem adotados, sem a devida autorização judicial (art. 52, § 14). A Autoridade Central Federal Brasileira poderá, a seu critério, limitar ou suspender a concessão de novos credenciamentos sempre que julgar necessário, mediante ato administrativo fundamentado (art. 52, § 15).
13.11 Brasil como país de acolhida do menor adotado O Estatuto da Criança e Adolescente ainda dispõe, mesmo que em poucas cláusulas, sobre a adoção de criança ou adolescente estrangeiro por cidadão ou casal brasileiro. Assim, em seu artigo 52-C estabelece que quando o Brasil for o país de acolhida, a decisão da autoridade competente no país de origem do menor será conhecida pela Autoridade Central Estadual que tiver processado o pedido de habilitação dos pais adotivos. Posteriormente, esta Autoridade comunicará o fato à Autoridade Central Federal e determinará as providências necessárias à expedição do Certificado de Naturalização Provisório. A Autoridade Central Estadual reconhecerá os efeitos da decisão, exceto quando, ouvido o Ministério Público, ficar demonstrado que a adoção é manifestamente contrária à ordem pública ou não atende ao interesse superior da criança ou do adolescente (art. 52-C, § 1º). Assim, caso não reconhecida a adoção, o Ministério Público deverá requerer de imediato o que for de direito para resguardar os
interesses do menor, comunicando-se com a Autoridade Central Estadual, que fará a comunicação à Autoridade Central Federal Brasileira e à Autoridade Central do país de origem (art. 52-C, § 2º). Nas adoções internacionais em que o Brasil for o país de acolhida e a adoção não tenha sido deferida no país de origem porque sua legislação a atribui ao país de acolhida ou quando o menor for oriundo de país que não tenha aderido à Convenção de Haia, o processo de adoção seguirá os trâmites da adoção nacional (art. 52-D). Em norma que consideramos equivocada e inconstitucional, menor estrangeiro adotado por brasileiro no exterior não adquire automaticamente a nacionalidade brasileira, não lhe podendo ser expedido passaporte brasileiro. Em caso de viagem ao Brasil, a Autoridade Consular deverá conceder visto de turista, se for o caso, de modo a permitir ao adotante providências para a adoção de acordo com a legislação brasileira. Analisaremos essa situação no item seguinte.
13.12 Adoção internacional e nacionalidade O artigo 23 da Convenção sobre Adoção Internacional dispõe que os países signatários atribuem plena eficácia à sentença de adoção prolatada por juiz do Estado de origem do adotando. Assim, consideramos razoável afirmar que, ao ter eficácia e produzir efeitos jurídicos, essa sentença terá o condão de conceder a nacionalidade do país de acolhida caso este adote o critério de atribuição de nacionalidade pelo jus sanguinis. Nesse sentido, se um casal francês adota uma criança no Brasil, a sentença do magistrado brasileiro concessiva da adoção atribui ao adotado, por si mesma, a nacionalidade francesa. Esse menor adquire, automaticamente, dupla nacionalidade: brasileira, por ter nascido no Brasil (jus soli), e francesa, por ser filho de franceses (jus sanguinis – critério de atribuição de nacionalidade que se estende aos filhos adotados).31 Nesse contexto, recordemos que no apogeu do jus sanguinis, em Roma e na Grécia, o adotado estava plenamente integrado na família, base da nacionalidade, pois adquiria a nacionalidade de seus genitores. Contudo, muitos autores entendem que a adoção não é fonte de nacionalidade. Para Wilba Bernardes, seria impossível o adotado adquirir a nacionalidade originária, inclusive pelas consequências e efeitos da adoção no seu país (dele, adotado), ante os termos do texto constitucional brasileiro vigente.32 Por seu turno, afirma Miguel Ferrante que filho adotivo de brasileiro, nascido em outro país, não pode optar pela nossa nacionalidade, permanecendo estrangeiro e só podendo adquirir a nacionalidade brasileira por meio de naturalização.33 Pontes de Miranda também entendia que a adoção não tinha consequência sobre a nacionalidade, o que evitava influências das relações de direito privado nos laços de direito público: “Se a regra de um Estado que confere a nacionalidade em virtude da adoção pelo nacional é criticável, mais ainda o é a que dá à adoção pelo estrangeiro a consequência da perda da nacionalidade do adotado.”34 Acentue-se que esse texto, publicado antes das obras mencionadas, é anterior à atual legislação brasileira e ao posicionamento do instituto da adoção no contexto internacional. Salientemos, outrossim, que o pensamento exposto por esse autor ocorreu sob a égide de outra Constituição e de outra época. O direito de família é um dos ramos do Direito que mais sofre modificações diante dos desdobramentos dos institutos e das próprias relações na sociedade que se desenvolvem com o tempo. Não obstante esses respeitáveis posicionamentos, entendemos convictamente que a filiação por adoção deve ser fonte de nacionalidade primária, especialmente no Brasil, à luz do § 6º 35 do art. 227 da Constituição Federal de 1988, que proíbe distinção entre filhos biológicos e adotivos. Convém lembrar, contudo, que o art. 52-C do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990),
acrescentado pela Lei n. 12.010, de 03 de agosto de 2009, preceitua: “Nas adoções internacionais, quando o Brasil for o país de acolhida, a decisão da autoridade competente do país de origem da criança ou do adolescente será conhecida pela Autoridade Central Estadual que tiver processado o pedido de habilitação dos pais adotivos, que comunicará o fato à Autoridade Central Federal e determinará as providências necessárias à expedição do Certificado de Naturalização Provisório” (grifo acrescido). Trata-se, em nossa opinião, de dispositivo inconstitucional. Embora a atribuição da nacionalidade originária brasileira ocorra, em princípio, pelo jus soli, ela é também recepcionada pelo jus sanguinis, como analisado em segmento próprio desta obra. Nosso ordenamento jurídico, por força da Emenda Constitucional n. 54, de 20 de setembro de 2007, reintegrou na legislação do País o registro consular como suficiente para atribuir a condição de brasileiro nato. A Emenda deu nova redação à alínea c do inciso I do artigo 12 da Constituição Federal, com o que são brasileiros natos “os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira”. Assim, uma vez registrado em consulado ou embaixada brasileira no exterior, o filho, nascido no exterior, adotado por cidadão(s) brasileiro(s), teria assegurada a nacionalidade brasileira nata. O não reconhecimento da nacionalidade brasileira originária a estrangeiro adotado por brasileiro – possibilitando-lhe acesso apenas à condição de brasileiro naturalizado – colocaria essa criança em situação de inferioridade em relação aos irmãos consanguíneos: ela não poderá ser reconhecida como brasileira nata, direito fundamental acessível aos irmãos, ainda que todos eles (adotado e filhos naturais) tenham nascido no mesmo país estrangeiro. Isso configuraria, em nosso entendimento, flagrante inconstitucionalidade, por contrariar o § 6º do artigo 227 da Carta Magna vigente, discriminando filhos de brasileiros. Em consonância com nosso entendimento, já exposto em edições anteriores deste livro, desde março de 2013, as Embaixadas e Consulados brasileiros no exterior foram autorizados a lavrar o registro de nascimento de filho adotado, nascido no exterior, de cidadão brasileiro, uma vez preenchidos os requisitos legais. Assim, nos termos do Manual do Serviço Consular e Jurídico, que consiste no Regulamento Consular brasileiro (Portaria n. 457, de 02.08.2010), a autoridade consular deverá lavrar o registro consular de nascimento de filhos adotados no exterior por cidadão(s) brasileiro(s), desde que seja apresentada a carta de sentença de homologação, pelo STJ, da sentença estrangeira de adoção, bem como os demais documentos necessários para a lavratura de registro consular de nascimento. Das reflexões aportadas, infere-se que adoção e nacionalidade têm forte ponto de convergência, podendo-se afirmar que a primeira conduz irreversivelmente à segunda: a adoção torna a criança ou adolescente nacional do Estado dos seus adotantes. Ademais, ambas têm seus fundamentos em uma solidariedade de interesses e de sentimentos. Nesse contexto, o Brasil, ao acolher o menor adotado como filho sem qualquer distinção dos nascidos da relação de casamento ou análoga, reconhece a aquisição da nacionalidade brasileira aos adotados por brasileiro, incluindo-se menores estrangeiros. Por fim, cabe enfatizar que, segundo a legislação brasileira, a criança posta em adoção internacional jamais perde, por esse ato, a nacionalidade decorrente do fato de haver nascido no Brasil. Embora seja cancelado o assento original, no novo registro que se lavra em nome dos adotantes, os dados objetivos do antigo registro são mantidos, tais como local, data e horário de nascimento. Trata-se de prerrogativa benéfica para o adotando, pois no futuro poderá, se lhe aprouver, retornar ao Brasil e aqui gozar plenamente dos direitos assegurados aos nacionais do País. Assim, os pais adotivos deverão ser orientados quanto à conveniência, para o interesse do menor adotado, de que seja efetuada sua matrícula
consular. A autoridade consular deverá, ainda, orientá-los no sentido de pleitear para o menor adotado a aquisição da nacionalidade dos pais.
13.13 Caso João Herbert Fato ocorrido nos Estados Unidos em 2000 contradiz, em parte, o reconhecimento da nacionalidade pela adoção. O menino João Herbert, nascido no Brasil, foi adotado por família norte-americana aos sete anos de idade. Já com vinte anos completos, foi condenado pela justiça do estado de Ohio, acusado de venda de pequena quantidade de maconha a informante da polícia. Por tal motivo, seu processo de naturalização nos EUA foi suspenso em virtude dessa detenção. Deportado pelos Estados Unidos, sem falar português e sem vínculos familiares ou afetivos no Brasil, enfrentou resistência inicial na concessão de passaporte brasileiro, por ser a adoção irrevogável em nossa legislação, documento posteriormente fornecido. Recorde-se que a atribuição da nacionalidade é prerrogativa de cada país e os EUA não a estendiam, na ocasião, à pessoa adotada por seus nacionais, procedimento inserido na ordem jurídica desse país em 2001. Quanto à condição de brasileiro, João Herbert a mantinha. Ele retornou ao Brasil e trabalhou em cidade do interior paulista, onde também lecionou inglês. Sua história teve desfecho lamentável: foi assassinado em 2004, fato não totalmente esclarecido.
13.14 Caso das meninas da Guiné-Bissau Acompanhamos o caso das gêmeas Meri e Mirian, nascidas em 2005, na Guiné-Bissau. Órfãs de pai e mãe aos dezoito meses e sem qualquer assistência, essas crianças eram vítimas de um mito em sua região, segundo o qual a menina que perde a mãe durante o período de amamentação será feiticeira, costume que as condenava ao isolamento e abandono, que poderia ser fatal. Elas foram acolhidas por um casal gaúcho, então lá residente, debilitadas e subnutridas, tendo uma delas feridas pelo corpo e a cabeça machucada.36 A adoção foi concedida, após processo regular, conforme a legislação da Guiné-Bissau. O domicílio no país africano havia vários anos e a comprovada idoneidade dos adotantes facilitaram o procedimento e legaram às meninas um lar definitivo.37 Por óbvio, não se trata de adoção internacional albergada pela Convenção de Haia de 1993. Paradoxalmente, as meninas necessitaram de visto brasileiro em seus passaportes da Guiné-Bissau para poderem vir ao Brasil visitar os familiares de seus pais adotivos, embora já fossem filhas de brasileiros.38 Sua condição de brasileiras natas ocorreu pela homologação das sentenças estrangeiras, prolatadas pela Justiça da Guiné-Bissau, pelo nosso Superior Tribunal de Justiça. O reconhecimento dessas decisões pelo STJ tornou-as exequíveis no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando a lavratura do registro de nascimento das meninas, assegurando-lhes o exercício pleno da nacionalidade brasileira originária.39
13.15 Considerações finais Com o Código Civil de 2002, a adoção passou a ser totalmente regida pelo Código, artigos 1.618 a 1.629, ficando abolida a adoção por escritura pública em nosso Direito de Família. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, regula, mediante sentença judicial, a adoção de crianças e adolescentes de 0 a 18 anos no Brasil, disciplinando inclusive a adoção de menores brasileiros por estrangeiros. A adoção de maiores de 18 anos, portanto, é regulada pelo Código.
Na esteira de um sentimento de valorização da pessoa humana, de conscientização de que a realização pessoal e a felicidade se fortalecem com uma mudança interior, esforços devem ser envidados para que a adoção se volte integralmente para o espírito fraterno e solidário. Assim, ela estará oferecendo à criança e ao adolescente, abandonado ou desassistido, um lar e uma família, nos quais o afeto e o amor sejam, ao mesmo tempo, o ponto de partida, o caminho e o porto seguro para uma existência digna, voltada para o bem-estar geral e para a realização pessoal de cada um, seja no país que ele nasceu ou em qualquer outro.
RESUMO 13.1 Considerações iniciais Serão estudadas a importância e atualidade do instituto da adoção, visto como resgate da cidadania a seres humanos desassistidos no começo da existência; a extensão da adoção a pessoas domiciliadas em outros países e a Convenção sobre Adoção Internacional da ONU.
13.2 Conceituação A adoção é o processo pelo qual um ser humano, em tese menor e desassistido, encontra um novo lar, nele se integrando jurídica e afetivamente. Entendemos a adoção como um instituto no qual o jurídico, o humano e o divino interagem, gerando harmonia e bem-estar no meio social.
13.3 Importância e atualidade O estudo da adoção torna-se hoje ainda mais importante dado o trágico paradoxo de seu uso criminoso. Por ganância e com requintes inescrupulosos, crianças são usadas como objeto: é o tráfico de seres humanos, destinando-as à prostituição, ao uso como mendigos após mutilação e à extirpação de órgãos para serem comercializados.
13.4 Adoção como resgate de crianças sem assistência A solidariedade social e o amparo à criança e ao adolescente que não têm família, ou que esta não dispõe de recursos para lhes proporcionar uma vida digna, deve ser o motivo da adoção. Ela deve justificar-se por vantagens concretas para o adotando e ter por fundamento motivos legítimos. É irrevogável e leva à constituição, para o menor, de uma nova família, definitiva, mantendo-se o vínculo com a família originária apenas em relação aos impedimentos matrimoniais.
13.5 Adoção internacional A adoção internacional ocorre quando o instituto da adoção é aplicado entre pessoas residentes em diferentes países signatários da Convenção sobre a Adoção Internacional de Haia. Ela permite que menores em situação de abandono encontrem um lar no estrangeiro, que não foi possível em seu país, lar esse que lhe proporcione o desejável bem-estar e crescimento adequado a todo ser humano. Em sentido amplo, trata-se, pois, de instituto pelo qual pessoas radicadas em um país adotam menores abandonados ou sem lar residentes em outro país.
13.6 Documentos sobre adoção internacional e a Convenção de 1993 A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989 – ratificada pelo Brasil em 1990 –, apesar de não tratar especificamente sobre o assunto, constitui-se em documento basilar sobre a proteção e os direitos das crianças e adolescentes. Estabelece que haverá adoção internacional apenas quando não for possível encontrar um lar para a criança no seu país de origem. Já a Declaração das Nações Unidas sobre os Princípios Sociais e Legais Relativos ao Bem-Estar das Crianças, de 1986, dedica sete artigos para a adoção internacional, estabelecendo alguns princípios, como a necessidade de estabelecer políticas e supervisão eficaz para a proteção das crianças adotadas em outros países. A Convenção sobre Cooperação Internacional e Proteção de Crianças e Adolescentes em Matéria de Adoção Internacional, aprovada em 29 de maio de 1993, em Haia, está incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 3.087, de 21 de junho de 1999. Estabelece regras básicas a serem observadas pelos Estados em cada processo de adoção. São princípios que oferecem aos Estados envolvidos garantia de que não houve tráfico, sequestro ou indução ao abandono e que os pais adotivos estão jurídica e psicologicamente aptos para esse ato.
13.7 Adoção no ordenamento jurídico brasileiro e a adesão à Convenção de 1993 Há hoje no Brasil um pluralismo de fontes sobre a adoção: Lei n. 8.069/90 (ECA), e tratados internacionais ratificados pelo país (Convenção da ONU sobre Direitos da Criança de 1990, Conferência Interamericana de 1984-CIDIP e Convenção de Haia de 1993). O Estatuto da Criança e do Adolescente continua a reger, como lex specialis, a adoção internacional no Brasil, por expressa menção do Código Civil de 2002.
13.8 Noções básicas sobre adoção A adoção de criança e de adolescente rege-se, no ordenamento jurídico pátrio pelas disposições da Lei n. 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual foi alterado Lei n. 12.010/2009. Conforme dispõe o § 1º do artigo 39 do ECA, a adoção só deve ser aplicada quando se mostrar impossível a manutenção do menor na sua família natural ou extensa (parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade). Trata-se, ademais, de medida excepcional, irrevogável e vedada por procuração.
13.9 Brasil como país de origem do menor adotado Estrangeiro domiciliado fora do Brasil: estágio de convivência, cumprido no território nacional, com duração de no mínimo trinta dias (§ 3º do art. 46 do ECA, com alteração da Lei n. 12.010/2009). Saída do adotando do Brasil somente depois de consumada a adoção (art. 52, § 8º). Exige-se documentação do adotante estrangeiro, inclusive estudo psicossocial por agência especializada credenciada, ambos autenticados pela autoridade consular brasileira no Estado do adotante. A adoção é irrevogável e constitui nova família, definitiva.
13.10 Organismos credenciados Caso a legislação do país de acolhida autorize, admite-se pedidos de habilitação à adoção internacional intermediados por organismos credenciados (art. 52, § 1º). Cabe à Autoridade Central
Federal Brasileira o credenciamento de organismos nacionais e estrangeiros encarregados de intermediar pedidos de habilitação à adoção internacional. As Autoridades Centrais Estaduais serão comunicadas sobre o credenciamento, bem como será publicado nos órgãos oficiais de imprensa e em sítio próprio da internet (art. 52, § 2º).
13.11 Brasil como país de acolhida do menor adotado O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre a adoção de criança ou adolescente estrangeiro por cidadão ou casal brasileiro. Assim, quando o Brasil for o país de acolhida, a decisão da autoridade competente no país de origem do menor será conhecida pela Autoridade Central Estadual que tiver processado o pedido de habilitação dos pais adotivos, a qual comunicará o fato à Autoridade Central Federal, que determinará as providências necessárias à expedição do Certificado de Naturalização Provisório (art. 52-C).
13.12 Adoção internacional e nacionalidade Os dois institutos têm forte ponto de convergência, levando-nos a afirmar que a adoção conduz irreversivelmente à nacionalidade: ela torna a criança ou adolescente nacional do Estado dos seus adotantes. Convenção sobre Adoção Internacional: países signatários atribuem plena eficácia à sentença de adoção prolatada por juiz do Estado de origem do adotando (art. 23). Concluímos que sentença de juiz brasileiro concessiva de adoção a casal francês atribui ao adotado dupla nacionalidade: brasileira (jus soli) e francesa (jus sanguinis). Embora posicionamentos doutrinários contrários e a dicção da Lei n. 12.010/2009, entendemos convictamente que a filiação por adoção deveria ser fonte de nacionalidade primária, especialmente no Brasil, à luz da Constituição Federal de 1988 (art. 227, § 6º), que proíbe distinção entre filhos. Em consonância com nosso entendimento, desde março de 2013, as Embaixadas e Consulados brasileiros no exterior foram autorizados a lavrar o registro de nascimento de filho adotado, nascido no exterior, de cidadão brasileiro, uma vez preenchidos os requisitos legais. Assim, nos termos do Manual do Serviço Consular e Jurídico, que consiste no Regulamento Consular brasileiro (Portaria n. 457, de 02.08.2010), a autoridade consular deverá lavrar o registro consular de nascimento de filhos adotados no exterior por cidadão(s) brasileiro(s), desde que seja apresentada a carta de sentença de homologação, pelo STJ, da sentença estrangeira de adoção, bem como os demais documentos necessários para a lavratura de registro consular de nascimento.
13.13 Caso João Herbert Trata-se de menino brasileiro (sete anos), adotado por casal norte-americano. Em 2000, aos 20 anos, foi condenado nos EUA (venda de maconha) e teve seu processo de naturalização naquele país suspenso. Deportado, retornou ao Brasil, sendo morto em 2004.
13.14 Caso das meninas da Guiné-Bissau Meri e Mirian, nascidas em 2005, na Guiné-Bissau ficaram órfãs de pai e mãe e sem qualquer assistência, aos dezoito meses de vida, sendo acolhidas por um casal gaúcho, então lá residente. A adoção foi concedida, após processo regular, conforme a legislação da Guiné-Bissau. Por óbvio, não se
trata de adoção internacional albergada pela Convenção de Haia de 1993. A condição de brasileiras natas pelas meninas ocorreu pela homologação das sentenças oriundas da Guiné-Bissau, pelo nosso Superior Tribunal de Justiça. Esse reconhecimento tornou-as exequíveis no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando a lavratura do registro de nascimento das meninas, assegurando-lhes o exercício pleno da nacionalidade brasileira originária.
13.15 Considerações finais Adoção é o instituto do direito de família por meio do qual uma pessoa adquire de outra a qualidade de filho, embora ausentes vínculos consanguíneos entre elas. Volta-se na atualidade ao viés solidário: oferecer ao menor abandonado ou carente um lar e uma família, privilegiando as suas necessidades e buscando sua integração na sociedade e no exercício da cidadania.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Dissertar sobre a adoção internacional e sua importância na humanização do planeta. 2. Apresentar sugestões para maior eficácia, no Brasil, da luta contra o tráfico de crianças e adolescentes. 3. Fazer uma sucinta análise dos documentos da ONU sobre a adoção internacional. 4. Tecer considerações a respeito da Convenção sobre a Adoção Internacional e suas consequências positivas para o Brasil. 5. Analisar o pluralismo de fontes sobre a adoção no ordenamento jurídico brasileiro. 6. Comentar o procedimento para a adoção de criança brasileira por estrangeiro domiciliado no seu próprio país. 7. Posicionar-se sobre o entendimento de que a adoção atribui a nacionalidade do adotante ao adotado.
______________ 1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p. 280. 2 VARSI ROSPIGLIOSI, Enrique. Divorcio, filiación y patria potestad. p. 205. 3 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo Código Civil. v. XVIII, p. 150. 4 ALBERGARIA, Jason. Adoção plena. p. 15. 5 MARQUES, Cláudia Lima. A Convenção de Haia de 1993 e o regime da adoção internacional no Brasil após a aprovação do novo Código Civil brasileiro em 2002. p. 485. 6 TRUONG, Thanh-Dam. A nova escravidão é pior. Site: http://www.tierramerica.net/2001. Acessado em: 13 jun. 2004. 7 LEAL, Maria Lúcia (org.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial. p. 49. 8 FERNÁNDEZ ARROYO, Diego Pedro; MARQUES, Cláudia Lima. Protección de menores en general. p. 584. 9 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis. p. 188. 10 FELIPE, J. Franklin Alves. Adoção, guarda, investigação de paternidade e concubinato. p. 87. 11 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A Criança no Direito Internacional. p. 401-405. 12 LIBERATI, Wilson Donizeti. Manual de adoção internacional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 25. 13 LIBERATI, W. D. Op. cit. p. 26. 14 Disponível em: Acesso em: 31 out. 2013. 15 Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2013. 16 Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2013. 17 MARQUES, Cláudia Lima. Notícia sobre a nova Convenção de Haia Sobre Adoção Internacional: perspectiva de cooperação internacional e proteção dos direitos das crianças. p. 1. 18 MARQUES, C. L. Idem. p. 13. 19 GATELLI, João Delciomar. Adoção internacional: procedimentos legais utilizados pelos países do Mercosul. p. 25. 20 Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2013. 21 Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2013. 22 Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2013. 23 MARQUES, C. L. A Convenção de Haia de 1993... p. 473. 24 MARQUES, C. L. Idem. p. 496. 25 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato infracional. p. 17. 26 MARQUES, C. L. A Convenção de Haia de 1993... p. 473. 27 MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de. Das relações privadas internacionais: estudos de direito internacional privado. p. 68. 28 MARQUES, Cláudia Lima. Igualdade entre filhos no direito brasileiro atual – direito pós-moderno? p. 36. 29 TRÁFICO de Seres Humanos no Brasil. CD-ROM. 30 MARQUES, Cláudia Lima. A Convenção de Haia de 1993... p. 499. 31 Ver nosso O Mercosul e a nacionalidade: estudo à luz do direito internacional. p. 58-60. Nesse sentido, Henri Batiffol esclarece: “Si les deux adoptants ou l’adoptant unique sont français, l’enfant est français définitivement. Si l’un des adoptants est français et l’autre étranger, l’enfant est français, sauf faculté de répudiation, à moins qu’il ne soit né en France ou que l’adoptant étranger n’acquière la nacionalité française avant que l’enfant ait exercé sa faculté de répudiation” (BATIFFOL, Henri; LAGARDE, Paul. Traité de droit international privé. p. 149). 32 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Da nacionalidade: brasileiros natos e naturalizados. p. 167. 33 FERRANTE, Miguel Jeronymo. Nacionalidade: brasileiros natos e naturalizados. p. 51. 34 PONTES DE MIRANDA. Nacionalidade de origem e naturalização no direito brasileiro. p. 99. 35 Art. 227, § 6o, da CF/1988: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. 36 Relato ao autor pelos adotantes, Valter e Justina, no dia 24 de julho de 2009, em Caxias do Sul, RS. 37 Certidão n. 46/2008 da Seção de Família, Menores e Trabalho do Tribunal Regional de Bissau, de 02.04.2008. Cópia em poder do autor. 38 Passaportes n. AAINO 5524 e n. AAINO 5525, da República da Guiné-Bissau, de Meri dos Santos Cavalheiro e Mirian dos Santos Cavalheiro, respectivamente, com visto de turista fornecido pela Embaixada do Brasil em Bissau. Cópias em poder do autor. 39 Certidões de Nascimento do Cartório de Registro Civil da 1a Zona de Caxias do Sul, RS, de 19.11.2010. Cópias em poder do autor.
DIREITO DAS SUCESSÕES E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“Os argumentos em que se apoia a doutrina que adota a lei nacional para regular o direito sucessório nas relações internacionais de direito privado são concludentes e satisfatórios” (Clóvis Beviláqua).
14.1 Considerações iniciais O estudo do instituto da sucessão, em si, comporta dois fatores essenciais: um pessoal, representado pelo falecido e seus herdeiros, e o outro material, pelo patrimônio tornado objeto da sucessão. No que tange ao Direito Internacional Privado, evidenciam-se duas leis possíveis para a solução da lide, conforme o elemento considerado: a lei pessoal do de cujus e a lei da situação dos bens. Segundo Clóvis Beviláqua, sucessão, em sentido amplo, é a sequência de fenômenos ou fatos que surgem uns após outros, vinculados por uma relação de causa ou por outras relações, enquanto na tecnologia jurídica o termo significa a transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa a outra.1 A sucessão causa mortis ocorre em virtude do falecimento de pessoa, cujos bens – a herança – podem ser recolhidos por sobreviventes, considerados herdeiros ou legatários. É a herança, em sentido estrito, o que passa do morto a outra pessoa, ou outras pessoas, como patrimônio ou parte de patrimônio. Beviláqua desfaz a confusão que ocorre entre os termos herança e sucessão, os quais são empregados muitas vezes como equivalentes, enfatizando que sucessão corresponde ao direito e herança ao acervo de bens.2 Ademais, a sucessão não tem relação com a personalidade jurídica do morto, já que os herdeiros sucedem nos bens, não na pessoa do de cujus. Tendo em vista o exposto, a sucessão consiste no ato de substituição da pessoa detentora de direitos, seja a título singular, de determinado bem, seja a título universal, de todo o acervo, até então pertencente ao titular. Pode ser entre vivos – venda, doação, prescrição aquisitiva, cedência – ou causa mortis – por vontade do titular, por meio de testamento ou sem manifestação de vontade, ab intestato, também chamada sucessão legítima ou legal. Dispõe o Código Civil brasileiro de 2002: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários” (art. 1.784). Trata-se do droit de saisine, pelo qual os bens terão necessariamente um proprietário, ainda que não identificado, sendo transmitidos no momento da morte ao patrimônio dos herdeiros, uma vez extinta a personalidade civil do titular.
14.2 Sucessão e conflito de leis no espaço Os problemas que vão interessar ao Direito Internacional Privado provêm de várias situações, como no caso de o de cujus e seu sucessor terem diferentes nacionalidades, domicílios diversos, ou se os bens estão situados em locais sob ordenamentos jurídicos diferentes. Lembra Amílcar de Castro que já no século XIV o predomínio do jus rei sitae era admitido como princípio geral em matéria de sucessão causa mortis, o que ocasionava a diversidade de partilha quando havia bens do espólio sob jurisdições diversas.3
O emprego do direito da situação da coisa, consolidado quando se trata de bens imóveis, ocasiona, desde há muito, grandes dificuldades. É que o herdeiro pode renunciar à herança em um Estado e aceitála em outro. Assim, podem ocorrer situações inusitadas, tais como: alguém ser herdeiro no Brasil e não no Uruguai; o primogênito ter direito a toda a herança em um país e apenas à determinada parcela em outro; e um testamento válido no ordenamento jurídico brasileiro ser nulo na Holanda.
14.3 Elementos de conexão No Direito Internacional Privado, quatro elementos de conexão se apresentam na sucessão causa mortis: situação dos bens, nacionalidade, domicílio e lugar de falecimento do de cujus. A situação dos bens é a circunstância de conexão de escolha para os bens imóveis e é reconhecida em todos os ordenamentos jurídicos. Quanto aos bens móveis, o elemento de conexão é o domicílio do proprietário. A nacionalidade do falecido é conexão muito usada no DIPr sucessório, em especial nos países europeus, nos quais se emprega o jus patriae, direito nacional do transmitente da herança. O domicílio, empregado no Brasil, é fator de conexão no qual o direito que vai apreciar a sucessão é o do último domicílio do falecido. É mais lógico e racional, pois se utiliza o direito mantido pelo meio social onde o de cujus viveu, e onde provavelmente constituiu e consolidou o seu patrimônio. Como observa Amílcar de Castro, a legislação sucessória de um país liga-se estreitamente ao temperamento do povo, às suas tradições, às suas concepções políticas, sociais, morais e até religiosas. Portanto, a integração do falecido ao meio jurídico e econômico em que viveu, de forma permanente e por sua vontade, torna-se decisiva para que se proceda a sucessão por esse ordenamento jurídico, não importando que, pelo lado político, ele estivesse ligado a outro Estado, no qual não vivia.4 O lugar do falecimento como regra de conexão está superado. Não teria sentido aplicar a legislação de um Estado simplesmente por ter ali ocorrido a morte da pessoa, o que pode ter sido por acaso. Em tempo de deslocamentos constantes de pessoas de um país para outro, com acidentes aéreos, marítimos e sísmicos, além de crimes, gerando vítimas fatais fora do país de seu domicílio, seria um contrassenso apreciar a sucessão pelo direito do local do óbito do transmitente da herança.
14.4 Sucessão legítima A sucessão legítima, sem testamento, ab intestato ou legal, é a mais comum no Brasil. O destino da herança é imposto por lei, sem a vontade do falecido, que deixou de exercer seu direito de direcioná-la a alguém. Os herdeiros são classificados em legítimos (todos os que se encontram na ordem de vocação hereditária) e necessários (apenas os que têm direito, obrigatoriamente, a uma parte dos bens). Pelas normas brasileiras no campo do conflito interespacial de leis, o direito do domicílio do de cujus apreciará a determinação das pessoas sucessoras, a ordem em que herdam, a cota de cada herdeiro necessário, as restrições, as causas de deserdação e as colações. Os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, conforme o Código Civil de 2002, artigo 1.845, são herdeiros legítimos e necessários. Já os colaterais, de acordo com o artigo 1.829, IV, apesar de serem herdeiros legítimos, não são herdeiros necessários. O Município (ou o Distrito Federal ou a União, em caso de território federal) perdeu a condição de herdeiro na nova codificação brasileira, embora a ele seja devolvido o acervo de bens, segundo o artigo 1.844, em caso de ausência de herdeiros legítimos.
Na área do DIPr, interessa saber a que título os bens particulares agregam-se ao patrimônio público. Se este fosse considerado herdeiro legal, como dispunha o Código Civil brasileiro de 1916, a aquisição seria de modo derivado, pois havia um proprietário anterior. Já se o poder público – no caso brasileiro o Município – não for herdeiro e receber os bens a título de ocupação, como passou a dispor o Código Civil de 2002, haverá uma aquisição originária. O fato de esses bens serem herdados ou ocupados poderia gerar lide quando o falecido for estrangeiro, pois seu Estado – por adotar a nacionalidade como elemento de conexão – poderia reivindicá-los, quando se tratar de herança. Coerente com essa última posição, Amílcar de Castro afirma que se o Fisco “fosse sucessor do falecido, não pertenceria a herança à nação onde estivessem os bens, mas àquela a que pertencesse o de cujus”,5 recordando que em nosso direito sempre se entendeu que o Fisco devia recolher o espólio do estrangeiro, ainda que fosse ele domiciliado fora do Brasil.
14.5 Sucessão testamentária A sucessão testamentária (ou voluntária) é feita de acordo com a vontade do de cujus, por meio de testamento. Nela devem ser consideradas a lei reguladora da forma de testamento, a da capacidade de testar e a da capacidade para receber por testamento.6 Para Clóvis Beviláqua, testamento é “o ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, segundo as prescrições da lei, dispõe, total ou parcialmente, do seu patrimônio para depois de sua morte; ou nomeia tutores para seus filhos menores, ou reconhece filhos naturais, ou faz outras declarações de última vontade”.7 O Código Civil brasileiro admite, além dos testamentos especiais – marítimo, aeronáutico e militar –, os seguintes testamentos: – Público: escrito por tabelião, em livro próprio, com duas testemunhas (art. 1.864); – Cerrado: feito pelo testador ou a seu rogo, devendo ser aprovado pelo tabelião (art. 1.868); – Particular ou hológrafo: escrito de próprio punho ou por processo mecânico (art. 1.876). Contudo, nosso direito positivo não aceita o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo. Tal proibição é justificada por contrariar o testamento conjuntivo a unilateralidade, a unipessoalidade, a liberdade e a revogabilidade, princípios essenciais da manifestação de última vontade. O testamento público deverá ser redigido no vernáculo. Os testamentos cerrado e particular poderão ser redigidos em língua estrangeira, desde que as testemunhas entendam plenamente seus exatos termos e conteúdo. O testamento marítimo é feito em viagem de alto-mar e lavrado pelo comandante do navio ou pelo escrivão de bordo (art. 1.888 do CC/2002). O testamento aeronáutico (art. 1.889) tem regulação análoga ao anterior. Qualquer desses testamentos caducará caso o testador não morra na viagem nem faça novo testamento dentro de noventa dias do desembarque em terra (art. 1.891). Se o navio estava atracado em um porto, não tem validade o testamento marítimo, uma vez que o testador poderia desembarcar e testar na forma ordinária (art. 1.892). Ademais, qualquer deles ficará sob a guarda do comandante, que o entregará às autoridades administrativas do primeiro porto ou aeroporto nacional, contra recibo averbado no diário de bordo (art. 1.890). O testamento militar é feito em situação de guerra, perante duas ou três testemunhas, o respectivo comandante ou oficial de saúde, e deverá ser substituído pelo testamento ordinário, nas mesmas situações do testamento marítimo (art. 1.893). Em circunstâncias especiais, como no caso de o militar estar em
combate ou ferido, este pode testar oralmente, confiando a sua última vontade a duas testemunhas, conforme prescreve o artigo 1.896 do Código Civil de 2002. Caduca esse testamento se, depois dele, o testador permanecer noventa dias seguidos em lugar onde possa testar na forma ordinária (art. 1.895). Os cônsules podem lavrar testamentos de seus nacionais, agindo como tabeliães. Segundo o artigo 18 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, as autoridades consulares brasileiras são competentes para celebrar atos de registro civil e de tabelionato, quando se tratar de interesses de cidadãos brasileiros. A decisão de lavrar testamentos por escritura pública perante a repartição consular é de conveniência do testador, já que sujeitará seu testamento à lei brasileira e não à estrangeira (locus regit actum). A capacidade para testar é regida pela lei pessoal do de cujus (Código Bustamante, art. 146), sendo no caso brasileiro o do seu domicílio, ao tempo da lavratura do testamento, ao passo que a capacidade para suceder, receber a herança, é estabelecida pela lei do domicílio do herdeiro ou legatário, segundo o § 2º do artigo 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Se o domicílio do testador, ao morrer, for diferente daquele da ocasião da feitura do testamento, prevalece a lei sob a qual o testamento foi escrito quanto à capacidade para testar. Contudo, o direito da época do falecimento é o aplicado quanto às disposições testamentárias e seu conteúdo. Suponhamos que um cidadão brasileiro, com um filho biológico, testou em 1987, no Brasil, em favor de filho adotivo, instituindo este como seu herdeiro. Após, domicilia-se nos Estados Unidos, onde falece em 1995. Sua capacidade para testar será a prescrita pela lei brasileira de 1987, que não foi alterada nesse aspecto. Quanto à legislação aplicável às disposições testamentárias, será o atual direito brasileiro, artigo 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, que assegura a todos os filhos os mesmos direitos e qualificações, proibindo qualquer discriminação relativa à filiação. Dessa forma, o testamento perde parte de sua eficácia, pois o adotado herda agora por direito próprio. Quanto à forma, o direito brasileiro admite a regra do lugar do ato (locus regit actum), portanto, testamento feito no Brasil deve seguir as determinações de nosso Direito. No campo da universalidade das sucessões surgem conflitos e a dualidade de inventários, ou mesmo sua pluralidade, ocorre com frequência, em especial quando há bens do de cujus em Estados diversos, como no caso de imóveis. No nosso Direito, será inevitável a realização de dois inventários sempre que o falecido tiver deixado bens imóveis no Brasil, sendo domiciliado em outro país: um inventário aqui e outro no local do domicílio.
RESUMO 14.1 Considerações iniciais O instituto da sucessão comporta dois fatores essenciais: um pessoal (o falecido e seus herdeiros) e o outro material (o patrimônio objeto da sucessão). Sucessão causa mortis é toda sucessão em que há o pré-falecido e o sobrevivente que recolhe a herança. Sucessão corresponde ao direito e herança se refere ao acervo de bens.
14.2 Sucessão e conflito de leis no espaço
A lex rei sitae é aplicada desde o século XIV. Para os imóveis é universalmente aceita, embora crie situações inusitadas: uma pessoa pode ser herdeira no Brasil e não, na Holanda.
14.3 Elementos de conexão Lei da situação dos bens (imóveis), lei da nacionalidade (países europeus), lei do domicílio (último domicílio do falecido – a empregada no Brasil) e lei do lugar do falecimento do de cujus (princípio já superado).
14.4 Sucessão legítima Também conhecida como ab intestato e legal é a que ocorre quando o falecido não deixou testamento, sendo a forma de sucessão mais comum no Brasil. A lei do domicílio do de cujus apreciará a determinação das pessoas sucessoras e a ordem em que herdam.
14.5 Sucessão testamentária Testamento é o ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável pelo qual alguém dispõe de seu patrimônio para depois de sua morte. A legislação brasileira admite os testamentos público, cerrado e particular ou hológrafo, além dos especiais (marítimo, aeronáutico e militar), não aceitando o testamento conjuntivo, em qualquer de suas modalidades (simultâneo, recíproco ou correspectivo). Os cônsules de nosso país no exterior podem lavrar testamentos de brasileiros. A capacidade para testar é regida pela lei do lugar do domicílio do testador (§ 2º do art. 10 da LINDB) e a forma é pelo locus regit actum. O testamento público deve ser redigido em português, enquanto o cerrado e o particular podem ser em idioma estrangeiro, desde que as testemunhas entendam plenamente o seu conteúdo.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar sucessão e herança, acentuando as particularidades de cada uma delas. 2. Comentar a situação dos bens imóveis quanto ao conflito de leis, no âmbito das sucessões. 3. Identificar os elementos de conexão aplicáveis na sucessão causa mortis, destacando a importância e atualidade de cada um deles, especialmente da conexão empregada no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Quando não existirem familiares do falecido a quem deverá ser legalmente entregue o seu patrimônio? E o ente do poder público, eventualmente contemplado, recebê-lo-á como herança ou ocupação? Explicar e justificar a resposta. 5. Conceituar testamento e classificar esse instituto na esfera do Direito Internacional Privado. 6. Comentar a legislação brasileira sobre testamento lavrado por cônsul. 7. Pode ocorrer a existência de três inventários? Justificar a resposta. 1 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sucessões. p. 17.
______________ 1 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sucessões. p. 17. 2 BEVILÁQUA, C. Op. cit. p. 19. 3 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 449-465. 4 CASTRO, A. Op. cit. 454. 5 CASTRO, A. Op.cit. p. 464. 6 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 271. 7 BEVILÁQUA, C. Op. cit. p. 184-185.
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“Os mais importantes autores brasileiros de Direito Internacional Privado nem sempre seguem os mesmos caminhos na exegese da legislação vigente acerca da substância dos contratos” (João Grandino Rodas).
15.1 Considerações iniciais Ao estudar as obrigações no DIPr, daremos ênfase à autonomia da vontade, que, segundo Marília Zanchet, marca a transição entre o Direito Internacional Privado de caráter moderno e o DIPr hipermoderno, valorizando a vontade das partes e favorecendo o ser humano como tal, em suas diferenças e especificidades, na determinação do direito indicado para reger suas relações privadas.1 Segundo Osíris Rocha, uma obrigação se torna fato interjurisdicional quando, por qualquer de seus elementos, entra em contato com mais de uma ordem jurídica.2 Esse contato decorre de inúmeras situações, tais como: nacionalidade ou domicílio internacional das partes, lugar onde a obrigação é assumida, local da execução ou lugar do imóvel objeto do contrato. Pontes de Miranda, de maneira sintética, conceitua obrigação, em sentido estrito, como “a relação jurídica entre duas (ou mais) pessoas, de que decorre a uma delas, ao debitor, ou a algumas, poder ser exigida, pela outra, creditor, ou outras, prestação”.3 Assim, o credor tem a pretensão, e o devedor, a obrigação. O Direito das Obrigações trata de direitos, deveres, pretensões, obrigações e ações, como os demais ramos das ciências jurídicas. Complemente-se que a prestação objeto da obrigação deve ser possível, lícita, determinada ou determinável, e traduzível em dinheiro (monetizável). O vínculo obrigacional tem sua origem em contratos, declarações unilaterais da vontade, atos ilícitos e responsabilidade por atos de terceiros. Maria Helena Diniz observa que “as obrigações decorrem de lei e da vontade humana, e em ambas atua o ordenamento jurídico, pois de nada valeria a vontade sem a lei, e a lei sem um ato volitivo, para a criação do vínculo obrigacional”.4
15.2 Obrigações na esfera internacional No âmbito do Direito Internacional Privado, as obrigações assumem aspectos peculiares e de solução nem sempre uniforme. Isso ocorre porque diferentes fatores contribuem para transformar as obrigações envolvendo agentes de nacionalidades diversas em relações complexas. Ressalte-se que tais situações são cada vez mais corriqueiras, tendo em vista a proliferação de serviços oferecidos pela Internet. Trata-se, por exemplo, de sujeitos que podem ter domicílios diferentes, nacionalidades distintas, local de constituição do contrato que não coincide com o da execução, lugar do imóvel objeto do contrato diferente do domicílio dos sujeitos, língua em que é redigido o acordo não é a mesma falada pelos contratantes, entre outras situações. Amílcar de Castro lembra que, para propor direito único no julgamento das obrigações convencionais em direito internacional, os doutrinadores se dividem em oito grupos, cada um dos quais propondo um conceito foco: nacionalidade ou domicílio do credor ou do devedor, lugar da execução,
direito de escolha de cada parte e direito do foro.5 Outros critérios podem determinar a legislação aplicável aos contratos – o principal dentre os vínculos obrigacionais –, tais como a língua na qual o contrato está redigido, a escolha do foro ou tribunal arbitral, a aplicação de conceitos jurídicos de uma determinada ordem jurídica, as negociações das partes no período de formação do contrato e a lei escolhida para reger contratos anteriormente celebrados.6 O próprio lugar de cumprimento ou da execução do contrato, o mais adotado, pode apresentar incertezas. Contudo, observe-se inicialmente a principal virtude do critério do lugar da execução do contrato: estar a lex loci executionis materialmente conectada com os interesses das partes. Com efeito, há uma tendência secular no DIPr em localizar as relações jurídicas pelo elemento que manifestam exteriormente ou, também dito, materialmente:7 daí a preponderância, por exemplo, do estatuto real ou forum rei sitae, em relação aos bens, ou da lex loci delicti, em relação aos atos ilícitos. Na América Latina, em especial nos países do Mercosul, o critério da lei do lugar da execução é adotado na Argentina (arts. 1.205 a 1.216 do CC), no Uruguai (art. 2.399 do CC) e no Paraguai (art. 297 do CC). Segundo Pocar, a lei do lugar da execução do contrato é bastante frequente na prática legislativa e jurisprudencial, constituindo-se o critério decisivo para a determinação da lei aplicável.8 Por outro lado, a caracterização do lugar da execução do contrato como critério geral resta afastado quando se verificam situações nas quais o contrato é executado em diversos lugares, ou quando tal lugar se apresenta indeterminado. Imaginem-se as dificuldades para dirimir controvérsias decorrentes do contrato de um piloto de Fórmula 1 brasileiro contratado por equipe italiana para trabalhar nos Estados Unidos, França, Austrália, Japão e Argentina. Disso decorre a construção do conceito do lugar da execução principal (lieu d’exécution principal), que, no caso da venda de bens móveis, pode ser o lugar do pagamento do preço, por exemplo. Dessa forma, a previsibilidade e a segurança dessa solução acabam igualmente mitigadas. Assim, excetuando-se as hipóteses nas quais a jurisprudência acaba desenvolvendo corretivos para os critérios rígidos, o contrato será submetido a legislações diversas, cuja harmonização pode ser um processo difícil. Batiffol refere uma decisão da Corte Federal suíça, datada de 10 de junho de 1952, na qual foi estabelecida como lei aplicável ao contrato aquela do local da execução da prestação característica da obrigação, a fim de solucionar o impasse ocasionado pela diversidade de leis passíveis de aplicação, em virtude da lex loci executionis.9 De fato, dos vários ramos das relações jurídicas internacionais, talvez o Direito das Obrigações seja o que mais facilmente demonstre as fragilidades do método clássico de indicação da lei aplicável. Ainda que a ideia subjacente às regras aplicáveis a determinada situação jurídica seja a de aplicar uma – e apenas uma – lei ao caso concreto, sob pena de introduzir um desequilíbrio não desejado entre as partes interessadas na causa, podem as regras de conflito, inclusive as mais afinadas, provocar um dépeçage (despedaçamento) das situações jurídicas conectadas a mais de um ordenamento jurídico. Assim, as próprias regras de DIPr podem eventualmente criar incoerências.10
15.3 Autonomia da vontade Tema polêmico no Direito das Obrigações e, com igual razão, na área do Direito Internacional Privado, é a autonomia da vontade. Em um primeiro momento é conveniente verificar a existência de duas liberdades essenciais na contratação internacional: a de escolher a lei aplicável ao contrato e a de eleger o foro ao qual as partes se submeterão para dirimir os litígios que possam eventualmente surgir. A
primeira tem conteúdo de direito material e permite que as partes indiquem, com intensidade variável, a legislação aplicável entre as ordens jurídicas com as quais o contrato estiver conectado. A segunda tem conotação nitidamente processual e se traduz em compromisso das partes de se submeterem a determinado órgão jurisdicional para exame das lides emergentes do contrato, baseando-se na previsibilidade do resultado e no prestígio da corte escolhida.11 A autonomia da vontade é defendida ou simplesmente aceita por muitos autores e igualmente rejeitada por outros tantos. Amílcar de Castro não a aceita, distinguindo preliminarmente autonomia da vontade de submissão voluntária (esta seria o caso do naturalizado, que tem de adotar os direitos e deveres impostos à sua nova condição). Afirma que Dumoulin, cuidando do regime matrimonial de bens, acabou “responsável pelo erro cometido” por autores dos séculos XVIII e XIX, que introduziram a ideia de autonomia da vontade na esfera do Direito Internacional Privado. Na verdade, para Dumoulin a vontade das partes, em matéria de contrato, seria soberana, o que não corresponderia à realidade, já que “em direito não existe a suposta autonomia da vontade, pois o que há sempre é liberdade concedida pelo direito, e por este limitada”.12 Na mesma linha, soma-se Oscar Tenório, para quem a sustentação dos adeptos da doutrina da autonomia da vontade de que “se aplica a lei que as partes tacitamente escolheram ou a que preferiram presumidamente”,13 pode conduzir o intérprete a erros e equívocos. Referindo-se à classificação das leis em imperativas ou proibitivas e facultativas, lembra o limitado campo para a autonomia da vontade nas primeiras, sem falar nas restrições impostas pela ordem pública. Também Osíris Rocha se opõe à autonomia da vontade, considerando-a “uma impropriedade jurídica”.14 Há, entretanto, vasta doutrina posicionando-se em favor dessa teoria. A principal virtude apontada à autonomia da vontade está em atender aos reais interesses das partes envolvidas na relação,15 o que, muitas vezes, as conexões objetivas, tais como a da lei do lugar da formação ou a do lugar de execução do contrato, podem não realizar. Contudo, o real interesse das partes pode ser desvirtuado, na hipótese de envolver sujeitos vulneráveis, dando origem a abusos.16 Edgar Amorim vê a autonomia da vontade como princípio de escolha legalmente admitido.17 Acentuando que atualmente o Direito Público invade a área do Direito Privado, diminuindo o espaço para aplicação da autonomia da vontade, recorda o apogeu do instituto no começo do século XIX, com o liberalismo, e o seu posterior descrédito. Ainda observa que é cada vez menos intensa a aplicação da autonomia da vontade, tanto no âmbito do direito interno quanto no do direito internacional, sendo hoje limitada a presença desse instituto na legislação da maioria dos Estados. No direito positivo brasileiro, a Introdução ao Código Civil de 1916 facultava às partes, em seu artigo 13, o direito de escolha da lei que regeria as suas obrigações. Em oportuno comentário sobre esse dispositivo, Carvalho Santos complementa que “em doutrina, pois, não se erra quando se diz que as partes têm inteira autonomia, sendo elas seu próprio legislador”.18 Haroldo Valladão admite a autonomia da vontade, em especial para as matérias referentes ao fundo dos contratos e ao regime de bens do casamento. Esclarece que a autonomia da vontade se submete à lei escolhida pelas partes, por intermédio de convenção expressa ou presumida (do pacto tácito), decorrente de certas circunstâncias, como o estatuto do lugar onde contraíram e o domicílio desses contraentes.19 Reafirmando que a vontade individual é hábil para escolher a lei competente em virtude de uma autorização ou delegação legislativa dada pela lei do DIPr, Valladão é enfático na defesa do instituto, lamentando que pensamentos estanques não compreendam que o DIPr tenha horizontes próprios, mais amplos e livres, adotando, quando razoável e justa, a vontade individual como elemento de conexão.20
Assim, não há como negar que a vontade das partes como determinante da lei aplicável ao contrato proporciona confiança, certeza, segurança e previsibilidade nas relações entre particulares. Evidentemente, tal pensamento tem como premissas básicas a boa-fé e a relativa simetria de entendimento, entre as partes, sobre a lei competente. Ao mencionar a distinção entre autonomia da vontade e submissão voluntária, Amílcar de Castro afirma que Savigny se referia à segunda entendendo que a pessoa humana tem, por exemplo, a liberdade de fixar ou não domicílio em determinado Estado, mas, desde que o estabelece, submete-se voluntariamente ao direito aplicável aos domiciliados. Outro exemplo: a pessoa pode, ou não, adquirir imóveis em determinado país, mas se os adquirir submeter-se-á voluntariamente ao direito de propriedade desse Estado. Ademais, qualquer pessoa, em vez de contratar no próprio lugar de seu domicílio, pode preferir realizar o contrato em país estrangeiro, submetendo-se voluntariamente ao direito desse país. Mas, em qualquer desses exemplos, a pessoa não escolhe o direito, somente pratica o ato do qual depende a aplicação do direito. Segundo o autor mineiro, na lição de Savigny, é nesse sentido de submissão voluntária que se fala de autonomia da vontade na esfera do DIPr.21 Para Savigny, um dos pandectistas que operacionalizou a autonomia da vontade, o lugar do cumprimento do contrato é sempre determinado diretamente pela vontade das partes, de forma expressa ou tácita, e esse lugar determina a jurisdição especial da obrigação, que decorre sempre de uma submissão livre. Nesse sentido, ao desenvolver o estudo do DIPr, nele enfatiza a importância do ser humano na sua sistematização, pois a pessoa é o objetivo próximo e imediato sobre o qual impera a regra jurídica. Ela deve ser colocada acima de tudo na sua existência geral, como sujeito de todos os direitos, pois produz e concorre para produzir todas as relações jurídicas. Ademais, essa produção ocorre, na maior parte dos casos e nos mais importantes, graças à liberdade do ser humano.22 A jurista Nadia de Araújo,23 ao enquadrar a autonomia da vontade no DIPr como expressão de direitos de cunho subjetivo, estabelece relação entre o papel da vontade no âmbito das relações internacionais e o papel desempenhado nas relações de direito civil. Segundo a autora, no período em que não se encontrava positivada nas legislações jusprivatistas internacionais, a autonomia à vontade – escolha da lei aplicável pelas partes contratantes – foi entendida como expressão dos seus direitos subjetivos. Dessa forma, a vontade das partes permitia conferir força obrigatória às disposições legais de determinado ordenamento jurídico. Tal função da vontade é a mesma apresentada pela teoria da vontade na formação dos contratos civis.24 Enquanto para a teoria da vontade no plano da formação dos contratos é a vontade que dá força obrigatória aos contratos, no plano das relações internacionais é a força obrigatória da vontade que faz valer as disposições legislativas de determinado ordenamento. Contudo, o desenvolvimento da indústria e a urbanização, dentre outros fatores, permitiram observar que a desigualdade econômica entre as partes contratantes levava à opressão do mais forte sobre o mais fraco, acarretando a necessidade de intervenção do legislador para corrigir e regular essas diferenças. Assim, concluiu-se pela necessidade de diminuição da liberdade contratual. A partir desse entendimento, surgem as concepções objetivistas, que defendem a primazia da lei, cabendo-lhe delimitar o império da vontade ao estabelecer os seus limites. Por isso, Batiffol, ao filiar-se aos objetivistas, refere que a aceitação da autonomia da vontade decorreu da escolha do direito positivo em valorizá-la.25 Nadia de Araújo refere que, na atualidade, há igualmente duas posições quanto ao enquadramento da autonomia da vontade: para os partidários da tese subjetivista, a vontade tem por finalidade descartar certas disposições imperativas da lei normalmente aplicável; enquanto que para os objetivistas, a vontade teria uma função de conexão, constituindo, na verdade, indicação da localização da lei escolhida pelas partes para reger o contrato. De qualquer maneira, lembra que atualmente a discussão sobre a
legitimação da autonomia da vontade perdeu muito de seu atrativo, na medida em que convenções internacionais permitiram expressamente essa faculdade às partes na escolha da lei contratual.26 No que tange ao caminho percorrido até a positivação do princípio da autonomia da vontade, nos países de tradição romano-germânica, ressalta-se a importância da posição adotada pela jurisprudência para a afirmação do princípio como regra de conexão aos contratos internacionais. O marco encontra-se no caso American Trading Co., julgado pela Corte de Cassação francesa em 1910, cuja decisão afirmou que a lei aplicável aos contratos seria aquela que as partes haviam adotado. Enquanto isso, o princípio começava a ser aceito por outros tribunais europeus, até ser positivado, com inegável auxílio da doutrina, na Convenção de Roma de 1980.27 A admissão da autonomia da vontade nas relações contratuais internacionais deu-se também nos países do common law, a exemplo dos Estados Unidos, que adotaram o princípio a partir do Restatement Second. Assim, o sistema passou a ter duas regras: a) as partes podiam eleger a lei aplicável ao contrato; e b) na falta de escolha, dever-se-ia aplicar a lei do Estado com o qual o contrato e as partes possuíssem a relação mais significativa. Contudo, essa escolha da lei aplicável não estava de todo privada de limites, uma vez que o Restatement Second estabeleceu que as partes não poderiam escolher uma lei que não tivesse alguma relação com o contrato.28 No continente americano, onde é ausente o princípio da autonomia da vontade nos países do Mercosul, Nadia de Araújo entende que a codificação do DIPr se constitui em um dos fatores imprescindíveis para se atingir a integração econômica: sem uma uniformização jurídica não se pode fazer uma integração econômica ou política, sendo necessário garantir uma base normativa comum, o que ocorrerá por meio da CIDIP V,29 que estabelece a autonomia da vontade como principal elemento de conexão da lei, não colocando qualquer limitação ao seu uso em contratos realizados com consumidores. No âmbito das Convenções Internacionais, de maneira geral, a aceitação do princípio é ampla: Convenções de Roma e de Viena, de 1980; Convenções sobre a lei aplicável às vendas de caráter internacional de objetos móveis corporais, de 1955, e lei aplicável aos contratos de vendas internacionais de mercadorias, de 1986, ambas realizadas sob os auspícios da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado; e CIDIP V. Essa última Convenção, além do Brasil, foi assinada pela Bolívia, Uruguai e Venezuela na data de sua conclusão, em 17.03.1994, sendo firmada pelo México, paíssede da conferência, em 27.11.1995.30 Se houver um desequilíbrio de poder negocial entre os contratantes, a autonomia da vontade na escolha da lei que deve regular o contrato nem sempre assegurará ao contratante mais fraco uma verdadeira liberdade de escolha. Em geral, a doutrina aponta como necessária a limitação da autonomia da vontade em contratos internacionais que envolvam partes tipicamente fracas.31 Além disso, conforme Bernard Audit, quando a regra de conflito faz da vontade das partes a conexão, ela não realiza uma função unicamente localizadora: a adoção da autonomia procede da ideia de se tornar mais de acordo com os interesses das partes, em todas as áreas, inclusive no comércio internacional em matéria puramente contratual. Assim, embora não se trate de justiça substancial pura, deixa-se aos contraentes a tarefa de escolher qual a lei mais apropriada para reger a relação.32 Portanto, pode-se afirmar que a autonomia da vontade no DIPr também representa a afirmação do ser humano perante o Estado.33 Seu reconhecimento foi o primeiro passo no sentido de valorizar a pessoa no DIPr, e não simplesmente a lógica dos países. Se o individualismo não tivesse se desenvolvido na órbita internacional não teria sido possível reconhecer que entre os seres humanos há conflitos e que os Estados nada mais são do que um conjunto de pessoas: não pode haver tanta diferença entre os países e os cidadãos. Se os Estados são conjuntos de pessoas agindo, os valores pessoais, individuais, de
dignidade de todos os seres humanos, devem ser reafirmados. A discussão acerca da autonomia da vontade na nossa disciplina permite retomar uma discussão que permeia o DIPr contratual desde seus primórdios. Ocorre que as dificuldades da aplicação da lex loci executionis fizeram com que a jurisprudência desenvolvesse a ideia da “prestação característica” para corrigir a possibilidade de dépeçage (fracionamento, mecanismo pelo qual um contrato ou uma instituição é dividido em diferentes partes, que serão, cada uma delas, submetidas a leis diversas).34 Assim, um dos argumentos favoráveis à adoção da autonomia da vontade em DIPr, segundo já ressaltado, foi exatamente que as partes pudessem escolher a prestação característica; em outras palavras, que elas determinassem a lei que estivesse mais conectada a seus interesses. Daí o surgimento das conexões alternativas, como a dos vínculos mais estreitos, adiante analisada, a fim de determinar a lei aplicável na falta de escolha.
15.4 Novos elementos de conexão Percebe-se principalmente na legislação internacional que as normas conflituais passam a ser orientadas na busca de determinados objetivos materiais. A proteção do consumidor ou do trabalhador, por exemplo – ambos partes hipossuficientes na relação obrigacional – baseia-se nessa linha. Em geral, as denominadas normas de conexão aberta têm sido usadas como corretivo das normas de conexão clássica.35 Embora indiretas, exigem um caráter material e tópico para sua concretização. Assim, refletem a disposição de tentar encontrar uma ligação entre um critério rígido e a solução flexível, isto é, aquela que toma em consideração as particularidades do caso e que, segundo Pocar,36 representa uma novidade nos sistemas continentais. Cita-se como exemplo de norma de conexão aberta o inciso 1º do artigo 4º da Convenção de Roma de 1980, o qual determina a aplicação da lei do país com o qual apresente conexão mais estreita, quando a lei não houver sido escolhida nos termos do artigo anterior, admitindo-se excepcionalmente o dépeçage do contrato, nos casos em que as partes desse contrato possam dispor de conexões mais próximas com leis de Estados diferentes. Assim, a Convenção visivelmente adere ao princípio da proximidade, mediante o qual uma relação jurídica deve ser regida pela lei do país com o qual ela mantém os vínculos mais estreitos. O conceito de conexão mais estreita é, por si só, muito amplo e passível de diversas concretizações, o que dificilmente se adapta às necessidades de certeza, previsibilidade e uniformidade das decisões judiciais. Assim, procurando estabelecer um critério orientador, sem restringir a flexibilidade da norma, o legislador da Convenção de Roma estabeleceu, nos incisos 2º, 3º e 4º do artigo 4º, presunções sobre a conexão mais estreita, sendo aquela prevista no inciso 2º a regra geral e as previstas nos incisos 3º e 4º as presunções aplicáveis a contratos específicos, referentes a imóveis e transportes de mercadorias. Apesar de o legislador comunitário se socorrer com uma frequência cada vez maior da noção de relação estreita ou de outras noções sinônimas, ainda não existe consenso, nem nos ordenamentos jurídicos nacionais quando procedem à transposição das diretivas para o direito interno nem na doutrina, de qual seja a verdadeira concretização que deva ser dada a esse conceito, por enquanto ainda muito vago.37 Outra regra de conexão de caráter aberto é a da prestação característica. Afirma-se que essa prestação característica foi a solução que se impôs, por sua simplicidade ou por motivos socioeconômicos, uma vez que, na economia monetária, uma das prestações contratuais consiste no pagamento de uma determinada quantia em dinheiro, que em nada se distingue de outras prestações
monetárias similares cumpridas em outros contratos, ainda que sejam de tipo diferente. Batiffol refere outra decisão da Corte suíça, de 1952, que estabelece como lei aplicável ao contrato a do local de execução da prestação característica da obrigação, a fim de solucionar a diversidade de leis passíveis de aplicação, em virtude da lex loci executionis.38 Ora, sendo a outra prestação não monetária a que permite distinguir os contratos entre si e a que exprime a sua função econômica, entende-se que será essa prestação – a que caracteriza o contrato – que determinará qual a lei que lhe será aplicável. Contudo, esse critério de conexão não deixa de sofrer críticas, como de ausência de segurança jurídica, pois em alguns casos torna-se extremamente difícil determinar a prestação característica de um contrato.39 Refere-se que tais conexões abertas são também denominadas de cláusulas escapatórias ou de exceção, no sentido de que funcionam para corrigir eventuais falhas dos resultados práticos. Assim, deve ser salientado o caráter excepcional de tal solução, revelando a existência de conexões muito fracas com o ordenamento jurídico designado pela norma de conflito clássica. Dessa forma, a atuação da cláusula de exceção somente ocorre ao verificar-se, em concreto, as circunstâncias da causa, o que implica ao intérprete levar em consideração todas as particularidades de cada caso.40 Com relação ao desenvolvimento das cláusulas de conexão aberta nos países do common law, devese referir que, a partir do século XIX e em decorrência do desenvolvimento do comércio internacional, os tribunais ingleses passaram a permitir a utilização do princípio da autonomia da vontade na escolha da lei aplicável. Assim, desenvolveram um princípio que ficou conhecido como proper law, no sentido de que, na ausência de definição da vontade das partes para indicar a lei aplicável, deveria o juiz presumi-la. Para a doutrina inglesa, as partes contratavam sempre com uma lei em mente, cabendo aos tribunais descobri-la, diante do caso concreto.41 Portanto, acentue-se essa tendência recente de admitir como último remédio, em caso de iniquidade flagrante, que provocaria a aplicação da regra de conflito ordinária, a intervenção de uma cláusula de exceção permitindo ao juiz retificar a falha (art. 4º, inc. 5º, da Convenção de Roma). Essa rigidez do método bilateral demonstra que se tem partido de uma concepção classificada como automática e mecânica das leis a uma concepção regulatória das relações jurídicas internacionais.42 Quanto à aplicação da lei mais favorável, Haroldo Valladão afirma tratar-se de regra muito antiga e restrita no âmbito do DIPr, mas que tem tomado vulto e amplitude na atualidade. Constitui um elemento de conexão bastante original, pois parte de uma comparação substancial entre a lei do país onde se levanta a questão, habitualmente a lei do foro, a lei nacional e a lei ou leis estrangeiras que a impregnaram. Conclui-se pela aplicação da lei que for mais favorável, seja à validade do ato, ao menor, ao incapaz, ao filho, ao pupilo, ao alimentado, ao devedor ou ao herdeiro legítimo. Refere, ainda, ter tido o princípio ampla aceitação no Direito Internacional Privado de Família.43 No entanto, a busca da conexão que se evidencie mais favorável ao consumidor em uma pluralidade de opções é, por vezes, difícil tarefa ao magistrado. Com efeito, não se consegue, in abstracto, definir qual deve ser essa lei, sendo possível fazê-lo apenas perante o caso concreto.44 Elsa Dias de Oliveira reforça o argumento sobre a complexidade da escolha da lei mais favorável, em virtude do método de comparação a ser seguido. A autora questiona se a escolha deve ser feita a partir de uma comparação entre normas isoladas, mas relacionadas com a situação em análise, ou se a comparação deve assumir um aspecto mais amplo ou global. Pondera que o método global apresenta o risco de ser compreendido como uma desnecessária comparação entre a totalidade dos dois ordenamentos jurídicos envolvidos. Além disso, o método de comparação global pode significar a renúncia a uma ponderação abstrata das normas envolvidas, o que também é importante. Porém, a comparação regra a regra pode levar o intérprete a perder o enquadramento da estrutura ampla na qual
essas normas se inserem, podendo levar a conclusões distintas da realidade jurídica em discussão.45 Nesse contexto, Alfred Overbeck refere que as soluções inspiradas em preocupações materiais são de três ordens: a) as regras de conflito podem ser formuladas de maneira a aplicar a lei mais familiar à pessoa que querem proteger; b) pode ser aplicada a lei que determine o resultado almejado, como a manutenção de um contrato, o estabelecimento de uma filiação ou a validade de um testamento; ou c) pode-se deixar maior amplitude para as próprias partes envolvidas determinarem, elas mesmas, a lei aplicável.46 Ancel e Lequette, por outro lado, analisando a validade do reconhecimento de paternidade ou maternidade, apresentam outra classificação tripartite sobre normas conflituais de caráter material, tendo como ponto de partida, respectivamente, a opção do legislador, a atuação do magistrado ante uma pluralidade de legislações, ou uma regra que leve em consideração outras normas.47 Portanto, a regra é diretamente substancial quando visa à proteção de uma categoria de pessoas reputadas em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, a dicção do Código Civil francês sobre alimentos, em que a lei que rege a obrigação de prestá-los pode ser tanto a da residência do alimentando como a da residência do devedor, à escolha do primeiro. Os trabalhadores e os consumidores são igualmente beneficiados por essa técnica subsidiária. Na Convenção de Roma, por exemplo, isso é feito pela combinação de uma conexão imperativa – residência habitual do consumidor – e de uma possibilidade de derrogação, pela autonomia da vontade, em favor da pessoa a ser protegida.48 Dessa forma, uma possibilidade evidencia-se por intermédio de um elenco de critérios objetivos de conexão, alternativamente dispostos. Segundo Overbeck, a conexão alternativa mais difundida apresentase com relação à forma dos atos jurídicos.49 O princípio locus regit actum50 encontra-se geralmente admitido de forma facultativa, isto é, pode-se observar a lei local ou a lei que rege a substância do ato. Assim, pode ser aplicável, por exemplo, a lei do lugar de conclusão do ato, ou, ainda, em matéria contratual, a lei escolhida pelas partes. Outro exemplo trazido pela doutrina refere-se à Convenção de Haia, de 1961, sobre o conflito de lei em matéria da forma das disposições testamentárias, prevendo numerosas alternativas no espaço e no tempo. Por fim, refere-se à técnica das conexões alternativas, nas quais é indicada mais de uma lei na norma de conflito, sendo dada preferência àquela que assegura determinado resultado material que se pretende obter, sem dúvida de especial interesse na defesa da parte mais fraca na relação obrigacional. Nesse sentido, defendendo as conexões alternativas para a defesa do consumidor na relação contratual, Javier Toniollo posiciona-se no sentido de que é preciso partir sempre da residência habitual do consumidor. Deve ainda ser oferecida ao consumidor a possibilidade de optar pela lei do estabelecimento principal ou residência do provedor.51
15.5 Normas brasileiras Hoje, sob a égide da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 9º, temos que, “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que (estas) se constituírem”. Trata-se da lex loci contractus, ou seja, quanto à forma e à substância aplica-se a lei brasileira para todas as obrigações constituídas em nosso país. Analogamente, quando a obrigação for contraída no estrangeiro, adotar-se-á, por igual razão, a lei do lugar quanto à forma e à substância. É oportuno mencionar os dois principais argumentos apontados por Henri Batiffol em favor da
utilização da lex loci contractus, um de fundo teórico e outro de caráter prático. Por um lado, apresentase bastante coerente e lógico indicar a lei do local onde as partes dão origem ao contrato como a competente para regê-lo. Por outro, ao favorecer a segurança jurídica, a lex loci contractus também se mostra bastante eficiente, pois o lugar de nascimento do contrato é de fácil determinação. Dessa forma, a lei que está em vigor ou que se aplica ao caso será mais facilmente consultada pelas partes.52 Contudo, essas supostas vantagens são fortemente refutadas.53 Ocorre que é difícil qualificar o lugar da conclusão do contrato quando os contratos são concluídos a distância, dependendo se se trata da lex fori ou da lex causae. Também se refere ao papel do acaso na contratação internacional como argumento contrário à lex loci contractus. Isso porque, muitas vezes, o lugar de nascimento do contrato apresenta-se fortuito ou acidental para constituir um critério que atenda aos interesses das partes envolvidas. Amílcar de Castro traz o exemplo de um brasileiro de passagem pelos Estados Unidos, onde se depara com um amigo argentino, também a passeio, e nesse encontro fortuito fazem um contrato, que ficará então sendo regulado pelo direito norte-americano.54 Apesar de a regra geral brasileira ser a lex loci contractus, a lei relativa à execução tem tido preponderância na jurisprudência pátria, a partir da interpretação de que à lei do local da constituição somam-se as exigências da lei do local de sua execução. Como efetivamente é mais comum ocorrerem litígios em razão do contrato no local de sua execução – por ser este quase sempre o lugar onde o devedor tem seu domicílio, bens e estabelecimentos comerciais, podendo mais facilmente honrar seus compromissos –, a lei brasileira é invariavelmente a lei aplicável por ser o Brasil o local da execução.55 Cabe ainda destacar o entendimento de Dolinger e Tibúrcio sobre a escassez jurisprudencial em casos de conflito de leis, a qual é creditada principalmente à mudança do elemento de conexão relativo ao estatuto pessoal, introduzido pela LINDB, que passou da regra da nacionalidade para a regra do domicílio.56 Assim, o Brasil, país de imigrantes, visando a uma integração plena entre os seus habitantes e uma maior praticidade, viu diminuírem sensivelmente as hipóteses de aplicação de lei estrangeira pelo Judiciário. Ainda, nesse contexto, lembra-se que a experiência jurisprudencial demonstra que, na maioria dos contratos internacionais, o local onde são concluídos os negócios corresponde a grandes centros, apesar de neles os contratantes não apresentarem interesse permanente. Trata-se apenas de locais de encontro, onde as partes têm algum interesse, porém, comumente, os objetivos que as levam a esses lugares são diferentes daqueles decorrentes dos pactos que lá realizam. Quanto à facilidade de se obter informações acerca da lei aplicável ao contrato, Batiffol não a considera relevante.57 De fato, na maioria dos casos, os contratantes não costumam questionar a legalidade dos pactos, nem sequer consultam qualquer legislação a respeito. Dessa forma, caso algum conflito venha a se verificar, será bem mais adequado aplicar a legislação que corresponda aos reais interesses das partes. Ademais, caso estiverem realmente interessadas em verificar a legalidade de sua convenção, não se importarão em verificar qualquer lei. Por fim, refere-se que tal argumento acaba se tornando válido apenas para hipóteses muito raras. Critica-se, também, a conexão do lugar da celebração do contrato por não favorecer a segurança jurídica. Ocorre que são grandes as dificuldades de qualificação do lugar de conclusão dos contratos entre ausentes, maioria nos contratos internacionais. Essa dificuldade parece aumentar ao se considerar a crescente complexidade dos contratos eletrônicos, firmados por meio da Internet entre agentes em diferentes partes do globo. Não há homogeneidade entre os sistemas jurídicos de direito material quanto ao local de conclusão entre ausentes: se a qualificação decorrer da lex fori, será o juiz do conflito que a determinará; já se decorrer da lex causae, há dificuldade de se determinar a lei que rege o contrato, pois ele depende justamente da determinação do lugar de conclusão.
Contudo, as partes poderão escolher a lei brasileira para reger a relação que entre elas se estabelece, uma vez que não há proibição legal para sua execução no Brasil. Se a obrigação tiver sua origem em ato ilícito, será disciplinada pela lei do lugar de sua ocorrência, pois seria difícil e complicada a apuração de um fato ocorrido em um local aplicando-se a lei de outro. Ademais, mesmo o delito, tema penal, acaba trazendo consequências cíveis que serão dirimidas na esfera do direito privado, devendo a ação competente ser intentada no juízo da ocorrência do fato gerador. Convém ressaltar que, conforme preceitua o § 1º do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato”. Os contratos envolvendo imóveis, locação ou venda, dependem de normas imperativas, que devem necessariamente ser observadas. Não tendo a legislação atual cogitado do lugar da execução das obrigações, este será o que as partes houverem designado e, na ausência dessa definição, será identificado pela natureza da obrigação. Ainda conforme o § 2º do artigo 9º da citada Lei de Introdução, a obrigação resultante de contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente. Com razão, parte da doutrina critica esse dispositivo, enfatizando Andrade que melhor seria aplicar-se a lei “do lugar da execução do contrato, do domicílio do proponente, da sua nacionalidade ou do lugar onde o proponente tem seu estabelecimento comercial”,58 ao invés da residência do proponente, que pode acidentalmente estar localizada no exterior. Situação especial pode-se encontrar no contrato de trabalho quanto à aplicação do direito mais favorável ao trabalhador em caso de conflito de leis. Esclarece Délio Maranhão que a primazia desse direito não deve afastar-se do mesmo ordenamento jurídico, não se estendendo ao terreno internacional, porque poderia criar dificuldades praticamente insuperáveis para o julgador, de determinar qual o ordenamento jurídico, entre os envolvidos, o mais favorável, uma vez que seria impossível submeter uma só relação jurídica a direitos distintos.59 Entendendo-se que a inteira atividade do trabalhador deve ser considerada como uma unidade, a lei do lugar da execução do contrato deve ser a observada.
RESUMO 15.1 Considerações iniciais Obrigação é a relação jurídica entre duas ou mais pessoas, pela qual uma delas pode exigir da outra uma prestação. O credor tem a pretensão e o devedor a obrigação. Decorre de contratos, declarações unilaterais da vontade, atos ilícitos e responsabilidade por atos de terceiros.
15.2 Obrigações na esfera internacional Assumem aspectos peculiares e de solução nem sempre uniforme, devido a vários fatores: domicílios diferentes, nacionalidades diversas, local de constituição do contrato que não coincide com o da execução, lugar do imóvel objeto do contrato diferente do domicílio dos sujeitos, língua em que é redigido o acordo diferente da falada pelos contratantes, entre outros. O lugar da execução do contrato é o elemento de conexão mais adotado. Verifica-se uma tendência secular no DIPr em localizar as relações jurídicas pelo elemento que
manifestam exteriormente, materialmente: daí a preponderância, por exemplo, do estatuto real, ou forum rei sitae, em relação aos bens, ou do lex loci delicti em relação aos atos ilícitos.
15.3 Autonomia da vontade Trata-se de instituto polêmico, defendido por alguns autores (Valladão e Amorim) e condenado por outros (Amílcar, Osíris e Tenório). Em matérias referentes ao fundo dos contratos (sua essência, seu móvel) e ao regime de bens do casamento sua aplicação é importante. A principal virtude da autonomia da vontade está em atender aos reais interesses das partes envolvidas na relação, o que muitas vezes as conexões objetivas, tais como a da lei do lugar da formação ou a do lugar de execução do contrato, podem não realizar. Contudo, o real interesse das partes pode ser desvirtuado quando envolve sujeitos vulneráveis, dando origem a abusos. No continente americano, onde é ausente o princípio da autonomia da vontade nos países do Mercosul, Nadia de Araújo entende que a codificação do DIPr se constitui em um dos fatores imprescindíveis para se atingir a integração econômica: sem uma uniformização jurídica não se pode fazer uma integração econômica ou política, sendo necessário garantir uma base normativa comum, o que ocorrerá por meio da CIDIP V, que estabelece a autonomia da vontade como principal elemento de conexão da lei, não colocando qualquer limitação ao seu uso em contratos realizados com consumidores.
15.4 Novos elementos de conexão Buscam-se na esfera internacional normas conflituais orientadas a determinados objetivos materiais. A proteção do consumidor e do trabalhador, partes hipossuficientes, baseia-se nessa linha. Assim, as denominadas normas de conexão aberta têm sido usadas como corretivo das normas de conexão clássica. São indiretas, mas exigem um caráter material e tópico para concretização. Representam a disposição de tentar encontrar uma ligação entre um critério rígido e a solução flexível, ou seja, aquela que toma em consideração as particularidades do caso. São normas de conexão aberta, entre outras, a conexão mais estreita (adere-se ao princípio da proximidade, lei do país com mais vínculos com a relação) e a prestação característica (pela simplicidade ou por motivos socioeconômicos, inclusive prestação não monetária poderá indicar a lei aplicável). São também denominadas de cláusulas escapatórias ou de exceção.
15.5 Normas brasileiras “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que (estas) se constituírem”, preceitua o artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. É a lex loci contractus. Quanto à forma e à substância, aplica-se, portanto, a lei brasileira para as obrigações constituídas no Brasil. Ressalve-se que a lei relativa à execução tem tido preponderância na jurisprudência pátria, a partir da interpretação de que à lei do local da constituição somam-se as exigências da lei do local de sua execução. Para a obrigação resultante de ato ilícito adota-se a lei do lugar do ato e a oriunda de contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente (art. 9º, § 2º, da LINDB). No caso do contrato de trabalho, ao aplicar o direito mais favorável, deve o julgador limitar-se a um ordenamento jurídico, pois não seria possível submeter uma só relação jurídica a direitos distintos.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar obrigação interjurisdicional, destacando as peculiaridades das obrigações no DIPr. 2. Analisar o critério da lei do lugar da execução, detendo-se na sua aplicação nas ordens jurídicas dos países do Mercosul. 3. Dissertar sobre o princípio da autonomia da vontade, posicionando-se sobre esse elemento de conexão no Direito brasileiro. 4. Fazer um estudo sobre a autonomia da vontade no ordenamento jurídico brasileiro, aventando perspectivas com base na posição atual da doutrina nacional. 5. Tecer considerações sobre as normas de conexão aberta, especialmente a conexão mais estreita e a prestação característica. 6. Estudar a lei aplicável para obrigações originadas de ato ilícito, contrato entre ausentes e relações envolvendo bens imóveis. 7. Explicitar as peculiaridades do contrato de trabalho no DIPr no que tange ao princípio da lei mais favorável.
______________ 1 ZANCHET, Marília. A proteção dos consumidores no direito internacional privado brasileiro. p. 214. A dissertação e a contribuição pessoal dessa professora enriquecem este capítulo, consignando-se, por direito, essa participação. 2 ROCHA, Osíris. Curso de direito internacional privado. p. 139. 3 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. XXII. p. 12. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 2o v. p. 42. 5 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 433. 6 OLIVEIRA, Elsa Dias. A protecção dos consumidores nos contratos celebrados através da internet. p. 187. 7 BATIFFOL, Henri. Traité élémentaire de droit international privé. p. 638. 8 Ver SOUZA JÚNIOR, Lauro da Gama e. Os princípios do unidroit relativos aos contratos comerciais internacionais e sua aplicação nos países do Mercosul. p. 436-439; POCAR, Fausto. La protection de la partie faible en droit international privé. p. 386-387. 9 BATIFFOL, H. Op. cit. p. 638-639. 10 AUDIT, Bernard. Le droit international privé a fin du XXe siècle: progrès ou recul. p. 421-422. 11 Ver, entre outros, NARDI, Marcelo de. Eleição de foro em contratos internacionais: uma visão brasileira. p. 122-194. 12 CASTRO, A. Op. cit. p. 437. 13 TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. p. 175. 14 ROCHA, O. Op. cit. p. 140. 15 RAMOS, Rui Manuel Gens de Moura. La protection de la partie contractuelle la plus faible en DIPr portugais. p. 211. 16 Ver ZANCHET, M. Op. cit. p. 184-217. 17 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 141. 18 CAVALHO SANTOS, João Manoel de. Código Civil brasileiro interpretado. v. I. p. 161. 19 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. v. I. p. 346-357. 20 VALLADÃO, H. Op. cit. p. 351. 21 CASTRO, A. Op. cit. p. 437-438. 22 SAVIGNY, Friederich Carl von. Sistema del Diritto Romano Attuale. p. 17-18 e 207-208. 23 ARAÚJO, Nadia de. Contratos internacionais: autonomia da vontade, Mercosul e convenções internacionais. p. 48-50. 24 Ver AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. p. 11-12 25 BATIFFOL, H. Op. cit. p. 663. 26 ARAÚJO, N. Op. cit. p. 48-50. 27 ANCEL, Bertrand e LEQUETTE, Yves. Les grands arrets de la jurisprudence française de droit international privé. p. 97-105; ARAÚJO, N. Op. cit. p. 64. 28 ARAÚJO, N. Op. cit. p. 69-75. 29 ARAÚJO, N. Op. cit. p. 8. 30 ARAÚJO, N. Idem. p. 48-49. 31 BOGGIANO, Antonio. The contribution of the Hague conference to the development of private international law in Latin America. p. 138. 32 AUDIT, B. Op. cit. p. 424-425. 33 JAYME, Erik. Identité cultural et integration: le droit international privé postmoderne. p. 54. 34 BATIFFOL, H. Op. cit. p. 638-639. 35 ZANCHET, M. Op. cit. p. 201. 36 POCAR, F. Op. cit. p. 365-366. 37 OLIVEIRA, E. D. Op. cit. p. 192-253. 38 BATIFFOL, H. Op. cit. p. 638-639. 39 POCAR, F. Op. cit. p. 388-390. 40 Ver JAYME, E. Op. cit. p. 44-47; MARQUES, Cláudia Lima. A insuficiente proteção do consumidor nas normas de direito internacional privado. p. 184-185. 41 ARAÚJO, N. Op. cit. p. 64-65. 42 DROZ, G.A. L. Regards sur le droit international privé comparé. p. 39. 43 VALLADÃO, Haroldo. O princípio da lei mais favorável no direito internacional privado. p. 522-526. 44 OVERBECK, Alfred E. von. Les questions générales du droit international privé à la lumière des codifications récents. p. 86-87. 45 OLIVEIRA, E. D. Op. cit. p. 251-252. 46 OVERBECK, A. E. Op. cit. p. 75. 47 ANCEL, B. e LEQUETTE, Y. Op. cit. p. 195. 48 Ver AUDIT, B. Op. cit. p. 429-430. 49 OVERBECK, A. E. Op. cit. p. 82. 50 Ver BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios elementares de direito internacional privado. p. 170-172; GOLDSCHMIDT, Werner. Sistema y filosofía del derecho internacional privado. p. 189-190. 51 TONIOLLO, Javier Alberto. La protección internacional del consumidor: reflexiones desde la perspectiva del derecho
internacional privado argentino. p. 100-102. 52 Ver BATIFFOL, H. Op. cit. p. 636; CASTRO, A. Op. cit. p. 444. 53 Ver ARAÚJO, N. Op. cit. p. 121-122; BOGGIANO, A. Op. cit. p. 134; OLIVEIRA, E. D. Op. cit. p. 185; LOUIS-LUCAS, P. La distinction du fond et de la forme dans le règlement des conflits de lois. p. 175-205. 54 CASTRO, A. Op. cit. p. 445. 55 ARAÚJO, N. Op. cit. p. 123-127. 56 DOLINGER, Jacob et al. O DIP no Brasil no século XXI. p. 79. 57 BATIFFOL, H. Op. cit. p. 637-638. 58 ANDRADE, Agenor Pereira. Manual de direito internacional privado. p. 267. 59 SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de direito do trabalho. v. 1, p. 173.
DIREITO DO CONSUMIDOR E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“Em matéria de contratos concluídos pela internet, a questão que se coloca é a de saber se as empresas que oferecem esses serviços, assim como os provedores, podem ser atraídos para o tribunal de domicílio de cada um dos usuários” (Erik Jayme).
16.1 Considerações iniciais A proteção do consumidor avança e se consolida atualmente no Direito Comercial, no Direito Civil, no Direito Econômico e no Direito Internacional Privado, além de outros segmentos das ciências jurídicas. A abertura do mercado interno dos países a produtos e serviços estrangeiros tem gerado a necessidade de proteção dos destinatários desses benefícios. A integração econômica, a regionalização dos negócios, o desenvolvimento dos meios de transportes e de comunicação, por seu turno, alavancam o turismo, hoje massificado, impondo a defesa das pessoas que consomem bens e serviços provenientes de outros Estados ou que adquirem produtos em suas viagens ao exterior. O consumidor, entendido como todo ser humano ou pessoa jurídica que adquire bem ou contrata serviço para uso ou proveito próprio, como destinatário final, tem merecido atenção das ordens jurídicas dos Estados e, a cada dia mais, da sociedade internacional como um todo. O mencionado contexto internacional, acentua Cláudia Lima Marques, amplia o desequilíbrio das relações de consumo, tornando vulnerável a posição de sua parte mais fraca, o consumidor, que necessita de “efetiva tutela e positiva intervenção dos Estados e dos Organismos Internacionais legitimados para tal”.1 Essa teia global ocasiona desafios para o Direito Internacional Privado, que deve regular novas modalidades de conflitos, e para as ordens jurídicas dos Estados, às quais compete oferecer segurança nas transações entre consumidores e empresas que operam nessa esfera transnacional.
16.2 Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro A Constituição Federal de 1988 estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (art. 5º, XXXII), considerado um dos princípios da ordem econômica (art. 170, V). Ainda, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabeleceu a promulgação pelo Congresso Nacional de um código para essa finalidade (art. 48). Assim, está nessa Carta a origem da codificação tutelar dos consumidores no Brasil.2 O comando constitucional foi cumprido com o advento da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), um dos mais avançados diplomas normativos de proteção dessa parcela da população. Após definir consumidor (toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final) e fornecedor (toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos
ou prestação de serviços), nosso Código de Defesa do Consumidor, em 119 artigos, disciplina a defesa e proteção do consumidor brasileiro com uma clareza e uma profundidade que têm servido de modelo para as legislações de outros países.
16.3 Consumidor no DIPr Acentua Erik Jayme que a ideia tradicional de desequilíbrio econômico e social entre a grande empresa e o pequeno consumidor, que ainda perdura como base das regras especiais de conflito de leis, não encontra na proteção da parte mais vulnerável correspondência adequada no comércio eletrônico.3 No que tange à qualidade e segurança de produto ou serviço, e o acesso à justiça na busca dessa garantia, consolida-se o entendimento de que o consumidor não pode ser prejudicado pela elementar razão de que esse bem proveio de outro país, foi fornecido por empresa situada no exterior ou foi adquirido em viagem ao estrangeiro. Em tese, ele deve poder contar com proteção mínima aos seus interesses quando optar por um contrato à distância ou por meios eletrônicos: normas sobre seus direitos interessam tanto à competitividade do mercado interno quanto à competitividade internacional, assim como contribuem para a criação de um mercado interno com concorrência leal.4 Ocorre que as regras dos ordenamentos jurídicos dos Estados não mais oferecem a suficiente proteção ao consumidor do mercado transnacional, nem podem ser usadas pelos países como novas barreiras à livre circulação de produtos e serviços oriundos do estrangeiro. Demandar em outro país ou aplicar o direito estrangeiro já inibe, por vezes, o consumidor que necessita ou se dispõe a buscar na Justiça seus direitos. Torna-se alentadora nesse contexto a presença de normas protetivas no continente europeu, como a resolução de 1973 relacionada à Carta do Conselho da Europa sobre consumidor. Ela aludia direito desse segmento à proteção e assistência contra danos físicos oriundos de produtos perigosos, aos interesses econômicos do consumidor e assegurava indenização por prejuízos daí gerados e resguardava o direito à informação e educação por essas pessoas. Depois da pioneira Convenção de Bruxelas de 1968 – hoje Regulamento n. 44/2000 –, que incluiu um artigo especial sobre a jurisdição de litígios com o consumidor (art. 13) na União Europeia, a Convenção de Roma de 1980 regulou com norma especial os conflitos de leis envolvendo consumidores. O famoso artigo 5º da Convenção de Roma de 1980, sobre a lei aplicável aos contratos internacionais, protege o consumidor passivo (aquele que compra à distância), impondo a comparação entre a proteção concedida pelas normas imperativas do foro e a da lei escolhida pelas partes e determinando a aplicação da mais favorável ao consumidor. Hoje a Convenção de Roma está sendo substituída por um Regulamento interno europeu, mas preserva sua famosa formulação: “A escolha pelas partes da lei aplicável não pode ter como consequência privar o consumidor privado da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei do país em que tenha a sua residência habitual.” Vamos tecer considerações sobre a Diretiva n. 97/7/CE, de 20 de maio de 1997, do Parlamento Europeu e do Conselho (da União Europeia), no âmbito da União, tida como a mais importante para os direitos materiais do consumidor europeu no comércio à distância, hoje tão massificado com o comércio eletrônico.5 O artigo 4º desse diploma assegura o direito de informação sobre a identidade e o endereço do fornecedor, as características básicas do produto ou serviço oferecido, seu preço e impostos incidentes, bem como custo de envio e eventuais taxas extraordinárias (como embalagem, empacotamento e postagem). Deve o consumidor ser informado, pelo dispositivo citado, do direito de arrependimento, prazo de validade da oferta ou do preço especial, duração mínima do contrato, forma de renovação desse
contrato, prazo de entrega do bem ou execução do serviço, detalhes da prestação e regularidade dos serviços a serem prestados. O artigo 6º da Diretiva n. 97/7/CE garante prazo de sete dias úteis para arrependimento sem causa do consumidor, que pode ser ampliado para três meses. Diretiva posterior (Diretiva n. 2.002/65/CE, de 23.09.2002) regula os contratos à distância em matéria financeira, como os de seguro de vida e de serviços bancários, preenchendo lacuna da Diretiva n. 97/7. Nesse caso, o prazo para retratação é de quatorze dias, ampliando-se para trinta dias em determinadas situações. Outro dispositivo da Diretiva n. 97/7/CE, artigo 9º, proíbe que seja considerado como aceitação tácita o silêncio ou a omissão do consumidor ante produto enviado ou serviço fornecido, por ele não solicitado, quando exigido qualquer pagamento para isso. Convém salientar que essa Diretiva é minimal, ou seja, estabelece regras mínimas em favor do consumidor no espaço comunitário europeu, assim como a posterior Diretiva n. 2.000/31/CE sobre comércio eletrônico.
16.4 Proteção do consumidor nas Américas A proteção do consumidor ganha espaço nos ordenamentos jurídicos dos Estados americanos. No âmbito dos países integrados no Mercosul, a exemplo do Brasil, todos já dispõem de legislação em favor do consumidor. A Argentina conta com a Lei n. 24.240, de 15 de outubro de 1993 (Lei de Defesa do Consumidor), com alterações da Lei n. 24.999, de 24.07.1998, e novamente em 2008; no Paraguai há a Lei n. 1.134, de 27 de outubro de 1998 (Lei de Defesa do Consumidor e do Usuário); e o Uruguai dispõe da Lei n. 17.189, de 20 de setembro de 1999 (Normas Relativas às Relações de Consumo). As normas consumeristas desses países caminham na mesma direção. A relação entre fornecedor e consumidor, em tese favorável ao primeiro, tem sido a razão do surgimento e consolidação das regras protetivas do consumidor, pois nascem como “ramo jurídico objetivando diminuir a diferença de exercício de autonomia privada de uma das partes com normas compensatórias em prol da outra: é o princípio da vulnerabilidade, no Brasil, e o princípio favor debilis, na Argentina”.6 Acentue-se que o conceito de fornecedor em ambos os Estados está dissociado da noção de empresário ou comerciante dos códigos civis e comerciais. No Canadá francês, o Código Civil de Quebec, de 1991, porta regras de Direito Internacional Privado em favor do consumidor, no artigo 3.117, inspirado no artigo 5º da Convenção de Roma de 1980; e do lesado, permitindo escolha entre a lei do país em que o fabricante do produto tem sua sede ou residência e a do Estado no qual foi o bem adquirido (art. 3.129). 16.4.1 Projeto de CIDIP de proteção do consumidor Importante projeto de Convenção Interamericana de Direito Internacional Privado (CIDIP) sobre diversos contratos e transações com consumidores7 foi elaborado por Cláudia Lima Marques e encampado pelo governo brasileiro para inclusão no temário dos próximos eventos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a proteção do consumidor, o que vem ocorrendo. Entre os dispositivos sugeridos, vamos destacar a proteção em situações especiais, no que pertine aos contratos de viagem e turismo (art. 6º), que propõe: “1. Os contratos de viagem individual acordados em pacote ou com serviços combinados, como grupo turístico, ou conjuntamente com outros serviços de hotelaria e/ou turísticos, serão regulados pela lei do lugar do domicílio do consumidor, se este coincidir com a sede ou filial da agência de viagens que vender o contrato de viagem ou onde for feita a oferta, publicidade ou qualquer ato negocial prévio pelo
comerciante, transportador, agência ou seus representantes autônomos. 2. Nos demais casos, aos contratos de viagem individual contratados em pacotes ou combinados como grupo turístico ou conjuntamente com outros serviços de hotelaria e/ou turísticos será aplicável a lei do lugar onde o consumidor declara a sua aceitação ao contrato. 3. Aos contratos de viagem não regulados por convenções internacionais, concluídos mediante contratos de adesão ou condições gerais contratuais, será aplicável a lei do lugar onde o consumidor declara a sua aceitação ao contrato.” Ademais, o artigo 7º do projeto CIDIP sugere, no seu inciso primeiro, esta regra: “As normas imperativas de proteção dos consumidores do país de localização física dos empreendimentos de lazer e de hotelaria que se utilizem do método de venda, de uso ou de habitação em multipropriedade ou time-sharing, localizados nos Estados-partes, aplicam-se cumulativamente a estes contratos, a favor dos consumidores.”
16.5 Consumidor à luz da LINDB As regras brasileiras de DIPr, inseridas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), são anteriores ao CDC, nada dispondo especificamente sobre o consumidor. Disciplina, isso sim, o artigo 17 dessa Lei que as sentenças ou declarações da vontade provenientes de outro país não terão eficácia no Brasil quando ofenderem nossa ordem pública. A mesma norma jurídica dificulta, em matéria contratual, uma defesa consistente da autonomia da vontade, privilegiando a lei do local da celebração: “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” (art. 9º, caput). 16.5.1 Proposta de adequação da LINDB ao consumidor Nesse contexto, endossamos, com ênfase, a proposta de Cláudia Lima Marques de inserção de novos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro8, consignados a seguir. “Art. 9º bis [Proteção contratual dos consumidores]. Os contratos e transações envolvendo consumidores, especialmente os contratados à distância, por meios eletrônicos, de telecomunicações ou por telefone, estando o consumidor em seu país de domicílio, serão regidos pela lei deste país ou pela lei mais favorável ao consumidor, escolhida pelas partes entre a lei do lugar da celebração do contrato, a lei do lugar da execução do contrato, a da prestação característica ou a lei do domicílio ou sede do fornecedor de produtos ou serviços. § 1º Aos contratos celebrados pelo consumidor estando fora de seu país de domicílio será aplicada a lei escolhida pelas partes, dentre a lei do lugar de celebração do contrato, a lei do lugar da execução e a lei do domicílio do consumidor. § 2º Em todos os casos, aplicar-se-ão necessariamente as normas do país do foro que tenham caráter imperativo, na proteção do consumidor. § 3º Tendo sido a contratação precedida de qualquer atividade negocial, de marketing, do fornecedor ou de seus representantes, em especial de envio de publicidade, correspondências, e-mails, prêmios, convites, manutenção de filial ou representantes e demais atividades voltadas para o fornecimento de produtos e serviços e atração de clientela no país de domicílio do consumidor, aplicarse-ão, necessariamente, as normas imperativas deste país, na proteção do consumidor, cumulativamente àquelas do foro e à lei aplicável ao contrato ou relação de consumo.”
16.6 Caso Panasonic Ação civil ajuizada na capital paulista buscando reparação por produto adquirido no estrangeiro, que apresentou defeito, sinaliza a importância que o consumidor passa a merecer no campo do Direito Internacional Privado em nosso país. É o chamado caso Panasonic. Trata-se de filmadora dessa marca comprada em Miami, EUA, tendo sido extintos o processo de primeira instância e o recurso interposto no Tribunal de Justiça de São Paulo, por ilegitimidade da parte, alegada pela Panasonic do Brasil Ltda., por ter o produto sido adquirido na Panasonic Company, empresa norte-americana formalmente distinta da brasileira. Como se percebe, foi aceita uma visão jurídica positivista. O caso chegou, em Recurso Especial, ao Superior Tribunal de Justiça, solicitado a apreciar se pessoa jurídica brasileira, subsidiária de transnacional, poderia ser obrigada a reparar produto fabricado e comercializado no estrangeiro. Deveria a Corte dirimir a controvérsia sobre aplicabilidade e eficácia do Código de Defesa do Consumidor na prestação de garantia em situações como essa. Adotando matriz hermenêutica, a Quarta Turma do STJ, por maioria, admitiu a responsabilidade da empresa brasileira, como se deduz do acórdão, cuja ementa é apresentada no item a seguir. Posterior ação rescisória da empresa brasileira foi também rejeitada, em 2005, pela Segunda Seção do STJ, com o que a decisão da Turma foi mantida. Prevaleceu o entendimento de que o nosso Código de Defesa do Consumidor se aplica de forma imediata a relações de consumo ocorridas em outros países, obrigando empresa brasileira da mesma marca a reparar danos provenientes de defeito de fabricação do produto. A solução do STJ ao caso Panasonic indica uma postura em favor do consumidor, embora ainda não se constitua em jurisprudência consolidada. 16.6.1 Ementa do caso Direito do consumidor – Filmadora adquirida no exterior – Defeito da mercadoria – Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (“Panasonic”) – Economia globalizada – Propaganda – Proteção ao consumidor – Peculiaridades da espécie – Situações a ponderar nos casos concretos – Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente fundamentado – Recurso conhecido e provido no mérito por maioria. I – Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se inclusive o fator risco, inerente à competitividade no comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País. II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado´ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a responsabilidade da marca. III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos. IV – Impõem-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes. V – Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos (REsp. n. 63.981/SP – 4ª T. – j. em 11.04.2000 – rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – STJ – RSTJ n. 137, p. 387, jan. 2001).
16.7 Considerações finais O desejável e necessário viés humanista de todo o arcabouço jurídico, interno ou do conjunto dos Estados, amplia e cobra do Direito Internacional Privado soluções pertinentes e adequadas em favor do consumidor. A sucessão de condutas e práticas geradas pelo extraordinário avanço científico e tecnológico, que logo chega a todos os recantos do planeta, tem encontrado respostas no mundo do Direito, no que tange ao consumidor, embora essas regras ainda se mostrem tênues e nem sempre acessíveis. No contexto comunitário europeu existem regras obrigatórias, como a Diretiva n. 97/7/CE, que permitem, a par da eficácia já comprovada, vislumbrar proteção à parte mais fraca do sujeito da relação jurídica em tempos de globalização. No continente americano, a sugestão de CIDIP sobre contratos e transações com consumidores sinaliza importante passo de nossa disciplina na busca de soluções em favor do ser humano.
RESUMO 16.1 Considerações iniciais A abertura do mercado interno dos países a produtos e serviços estrangeiros gera a necessidade de proteção dos consumidores. Integração econômica, regionalização dos negócios, desenvolvimento dos meios de transportes e comunicação de massa alavancam o turismo, impondo a defesa das pessoas que consomem bens e serviços provenientes de outros Estados.
16.2 Proteção do consumidor no ordenamento jurídico brasileiro A Constituição Federal/1988 estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, considerado um dos princípios da ordem econômica. Com tal finalidade o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determina a promulgação pelo Congresso Nacional de um código normatizando o assunto. Essa ordem foi cumprida com a Lei n. 8.078, de 11.09.1990, o Código de Defesa do Consumidor, um dos mais avançados diplomas normativos de proteção dessa parcela da população.
16.3 Consumidor no DIPr No que tange à qualidade e segurança de produto ou serviço, e o acesso à justiça na busca dessa garantia, consolida-se o entendimento de que o consumidor não pode ser prejudicado pela elementar razão de que esse bem proveio de outro país, foi fornecido por empresa situada no exterior ou foi adquirido em viagem ao estrangeiro. Em tese, ele deve poder contar com proteção mínima aos seus interesses quando optar por contrato à distância ou por meios eletrônicos: normas sobre seus direitos interessam tanto à competitividade do mercado interno quanto à competitividade internacional, assim como contribuem para a criação de um mercado interno com concorrência leal.
16.4 Proteção do consumidor nas Américas Ganha espaço nos ordenamentos jurídicos dos Estados americanos a proteção do consumidor. No âmbito dos países integrados no Mercosul, a exemplo do Brasil, todos já dispõem de legislação em favor dessa importante parcela da população. A Argentina conta com a Lei n. 24.240, de 15 de outubro de 1993
(Lei de Defesa do Consumidor), com alterações da Lei n. 24.999, de 24.07.1998, e em 2008; no Paraguai há a Lei n. 1.134, de 27 de outubro de 1998 (Lei de Defesa do Consumidor e do Usuário); e o Uruguai dispõe da Lei n. 17.189, de 20 de setembro de 1999 (Normas Relativas às Relações de Consumo). 16.4.1 Projeto de CIDIP de proteção do consumidor Cláudia Lima Marques elaborou projeto de Convenção Interamericana de Direito Internacional Privado (CIDIP) sobre diversos contratos e transações com consumidores, encampado pelo governo brasileiro para inclusão no temário dos próximos eventos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre defesa do consumidor. Entre os dispositivos sugeridos de proteção em casos especiais, estão os contratos de viagem e turismo (art. 6º) e os de multipropriedade ou time-sharing (art. 7º).
16.5 Consumidor à luz da LINDB As regras brasileiras de DIPr inseridas na LINDB, são anteriores ao Código de Defesa do Consumidor, nada dispondo especificamente sobre consumidor. Disciplina apenas o artigo 17 da Lei de Introdução que as sentenças ou declarações da vontade provenientes de outro país não terão eficácia no Brasil quando ofenderem nossa ordem pública. A mesma norma jurídica dificulta, em matéria contratual, uma defesa consistente da autonomia da vontade. 16.5.1 Proposta de adequação da LINDB ao consumidor Proposta de adequação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro à proteção contratual do consumidor sugere, entre outros itens, um artigo 9º bis: “Os contratos e transações envolvendo consumidores, especialmente os contratados à distância, por meios eletrônicos, de telecomunicações ou por telefone, estando o consumidor em seu país de domicílio, serão regidos pela lei deste país ou pela lei mais favorável ao consumidor, escolhida pelas partes entre a lei do lugar da celebração do contrato, a lei do lugar da execução do contrato, a da prestação característica ou a lei do domicílio ou sede do fornecedor de produtos ou serviços.”
16.6 Caso Panasonic Ação civil ajuizada na capital paulista buscando reparação por produto adquirido no estrangeiro, que apresentou defeito, sinaliza a importância que o consumidor passa a merecer no DIPr em nosso país. É o caso Panasonic. Trata-se de filmadora comprada em Miami, tendo sido extintos o processo de primeira instância e o recurso interposto no Tribunal de Justiça de São Paulo, por ilegitimidade da parte, alegada pela Panasonic do Brasil Ltda., por ter o produto sido adquirido na Panasonic Company, empresa norte-americana formalmente distinta da brasileira. A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, admitiu a responsabilidade da pessoa jurídica brasileira. Prevaleceu o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor se aplica de forma imediata a relações de consumo ocorridas em outros países, obrigando empresa brasileira da mesma marca a reparar danos provenientes de defeito de fabricação do produto. 16.6.1 Ementa do caso Parte da ementa do acórdão delimita: “III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam
e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos. IV – Impõem-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.”
16.7 Considerações finais A sucessão de condutas e práticas geradas pelo extraordinário avanço científico e tecnológico, que logo chega a todos os recantos do planeta, tem encontrado respostas no mundo do Direito, no que tange ao consumidor, embora essas regras ainda se mostrem tênues e nem sempre acessíveis.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar consumidor e dissertar sobre a missão do DIPr na sua proteção. 2. Fazer uma pesquisa sobre a legislação do consumidor nos quatro Estados fundadores do Mercosul. 3. Analisar a Diretiva n. 97/7/CE e sua eficácia em defesa do consumidor nos países da União Europeia. 4. Tecer considerações sobre o projeto de CIDIP de contratos com consumidores. 5. Apresentar sugestões para adequação da legislação brasileira sobre contratos internacionais que envolvam consumidores. 6. Estudar o caso Panasonic e analisar e sugerir possíveis avanços do judiciário brasileiro sobre consumidores após a decisão do Superior Tribunal de Justiça.
______________ 1 MARQUES, Cláudia Lima. A proteção do consumidor: aspectos de direito privado regional e geral. p. 1.505. 2 MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. p. 50. 3 JAYME, Erik. O direito internacional privado no novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. p. 138. 4 MARQUES, C. L. A proteção do consumidor: Aspectos de... p. 1.507. 5 MARQUES, C. L. Op. cit. p. 1.557-1.558. 6 BARCELLOS, Daniela Silva Fontoura de. O consumidor em sentido próprio no Brasil e na Argentina. p. 126. 7 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. p. 475-476. 8 MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit. p. 470-471.
DIREITO EMPRESARIAL E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“O século XXI tende a ser a era do comércio mundial de mercadorias e de serviços liberalizados e sem travas” (Luiz Otávio Pimentel).
17.1 Considerações iniciais Com a consagração da empresa como polo da economia moderna, o Direito Comercial brasileiro se desprende da teoria dos atos de comércio, consagrada pelo Código Napoleônico, assimilando os princípios gerais do sistema italiano (Codice Civile de 1942), que unificou o direito privado peninsular. Acentue-se que decisões judiciais já vinham desconsiderando os atos de comércio, como concordata a pecuaristas e falência de imobiliárias, afirmando Fábio Ulhoa Coelho que a entrada em vigor do Código Civil de 2002 veio concluir a demorada transição.1 O novo Código Civil brasileiro (CC/2002), como seu similar italiano, unificou parcialmente o nosso Direito Privado,2 no seu Livro II, Do Direito de Empresa, artigos 966 a 1.195, denominado Direito de Empresa. A legislação civil e a comercial são unificadas parcialmente, embora subsistam leis especiais, de nítida natureza mercantil, como as que dispõem sobre falência, recuperação judicial e extrajudicial – que substituíram a concordata, com a Lei n. 11.101/2005 –, cambial, sociedade anônima e comandita por ações, entre outras. A nova postura da norma brasileira representa um avanço, pois o conceito de empresário é bem mais abrangente do que o de comerciante, como consigna o próprio texto codificado, no art. 966: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Empresa, por outro lado, é “a organização econômica destinada à produção ou circulação de bens ou serviços, conceituados juridicamente como a atividade econômica organizada”.3 Com o CC/2002, empresas que não eram reguladas pelo Código Comercial, como as prestadoras de serviços e as imobiliárias, passaram a ser regidas pelas mesmas normas que as essencialmente comerciais.
17.2 Sociedade estrangeira e direito brasileiro A nacionalidade da pessoa jurídica apresenta vieses distintos quando cotejados com o da pessoa física. Em tese, nacionalidade e domicílio desse ente fictício se confundem, sendo-lhe atribuída a nacionalidade do Estado em que está domiciliada. Três critérios costumam ser empregados para a determinação da nacionalidade da pessoa jurídica: da incorporação (país em que se constitui), da sede social (local dos órgãos diretivos) e do controle (adoção da nacionalidade dos detentores do capital da sociedade).4 O uso da autonomia da vontade, escolha da nacionalidade livremente pelos fundadores da pessoa jurídica, está amplamente rejeitado. No caso brasileiro, o Código Civil de 2002 dispõe: “É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração” (art. 1.126). Embora não identificada pela legislação, será estrangeira, por exclusão, a pessoa jurídica que não apresente esses pressupostos.
A sociedade estrangeira que venha operar no Brasil será uma extensão da pessoa jurídica estabelecida no exterior, ainda que essa filial brasileira seja considerada autônoma para certos efeitos, como nos casos de falência e arrecadação de bens. Entende Adriane Lorentz que a constituição da sociedade pela lei estrangeira e sua sede no exterior são os elementos distintivos da sociedade estrangeira, complementando que, embora todos os sócios e o capital sejam estrangeiros, mas a sociedade se constitua sob a legislação brasileira e tenha sua sede no Brasil, ela será uma sociedade nacional. Com igual razão, se todos os sócios de uma sociedade constituída em outro país forem brasileiros e o capital advier do Brasil, mas não for organizada sob as leis brasileiras e não tiver a sua sede em nosso país ela será uma sociedade estrangeira.5 Para uma sociedade estrangeira funcionar no Brasil, qualquer que seja o seu objeto, ela depende de autorização do Poder Executivo Federal. Deve ainda sujeitar-se às leis e aos tribunais brasileiros, com uso do nome empresarial e representação permanente no País, bem como efetuar o depósito do capital declarado em estabelecimento bancário oficial.6 O cuidado da legislação brasileira com a atividade dessas empresas em nosso território coloca-as em consonância com suas congêneres nacionais, de modo que elas acabam atuando como empresas brasileiras, embora sua sede principal se localize em outro país e seu capital seja estrangeiro. Vale destacar que a regra geral de direito das empresas é a mesma, embora o direito tributário seja diferenciado em relação às de capital estrangeiro, quanto à remessa de lucros, regida em legislação especial. Ressalta-se que a legislação nacional prevê restrições ou impedimentos à atuação ou à participação de empresas estrangeiras em determinados segmentos, como meios de comunicação (CF/1988, art. 222) e navegação de cabotagem (Lei n. 9.432/1997).
17.3 Sociedade binacional De perfil distinto das sociedades estritamente estrangeiras ou nacionais, a sociedade binacional consiste em uma forma de parceria entre dois Estados. Nesse sentido, a concepção de empresas binacionais pode ser percebida tanto em um contexto de cooperação internacional quanto de integração regional, com vistas a desenvolver conjuntamente projetos de interesse comum, com a criação de sinergias. A constituição de uma sociedade binacional, de modo geral, está embasada por um tratado, que deverá determinar questões como condições de implantação e atividades permitidas. Devido à peculiaridade em relação ao seu vínculo nacional, por vezes as sociedades binacionais podem gozar de benefícios não concedidos às empresas estrangeiras ou, até mesmo, às nacionais, como privilégios alfandegários e isenções tributárias. No Brasil, pode-se citar o Tratado para o Estabelecimento de um Estatuto das Empresas Binacionais Brasileiro-Argentinas como exemplo de instrumento que regula as empresas de caráter binacional. Firmado em 06 de julho de 1990, pelos presidentes Fernando Collor e Carlos Saúl Menem, com vistas a reforçar o processo bilateral de integração e cooperação econômica, o tratado em tela define “empresa binacional brasileiro-argentina” como aquela que cumpra simultaneamente as seguintes três condições (art. 1º, 2): a) que ao menos 80% do capital social e dos votos pertençam a investidores nacionais da República Federativa do Brasil e da República Argentina, assegurando-lhes o controle real e efetivo da Empresa Binacional; b) que a participação do conjunto dos investidores nacionais de cada um dos dois países seja de, no mínimo, 30% do capital social da empresa; e c) que o conjunto dos investidores nacionais de cada um dos dois países tenha direito de eleger, no mínimo, um membro em cada um dos órgãos de administração e um membro do órgão de fiscalização interna da empresa.
Apesar da denominação binacional, o tratado determina, em seu artigo terceiro, que as empresas terão sede, necessariamente, na República Federativa do Brasil ou na República Argentina, e revestirão uma das formas jurídicas admitidas pela legislação do país escolhido para a sede social, devendo agregar à sua denominação ou razão social as palavras “Empresa Binacional Brasileiro-Argentina” ou as iniciais “E.B.B.A.” ou “E.B.A.B.”. Cabe frisar que as Empresas Binacionais terão, no país de sua atuação, o mesmo tratamento estabelecido ou que se venha a estabelecer para as empresas de capital nacional desse País, ainda que a maioria do capital social pertença aos investidores do outro país (art. 5º), o que às atribui certas vantagens em relação às empresas estrangeiras. Verifica-se, portanto, que as Empresas Binacionais Brasileiro-Argentinas consistem em empresas reguladas pelo direito interno argentino ou brasileiro, ainda que acrescido de vantagens concedidas pelo Estatuto. Esse tratamento mais favorável não implica na formação de um novo tipo societário. Quanto à sua natureza jurídica, “as empresas binacionais não podem ser consideradas pessoas jurídicas de direito internacional ou um tipo societário novo, na medida em que tais empresas sempre serão constituídas segundo o direito interno de um dos dois países”.7 Em prisma diferente, encontram-se os casos da Itaipu Binacional e da Alcântara Cyclone Space. Essas duas entidades binacionais, criadas por tratados específicos, apresentam natureza distinta das Empresas Binacionais Brasileiro-Argentinas, pois, diferentemente delas, configuram empresa juridicamente internacional, consistente em uma pessoa jurídica emergente no campo do direito internacional público. A constituição dessas empresas ocorreu no plano internacional, como resultado de tratados entre o Brasil e o Paraguai, no caso de Itaipu, e o Brasil e a Ucrânia, no caso da Alcântara Cyclone Space.8 Desse modo, o instrumento constitutivo de cada empresa (o tratado bilateral) disciplina sua dinâmica, bem como a sua subordinação à legislação doméstica. O parecer da Consultoria-Geral da República sobre a natureza jurídica de Itaipu é claro sobre esse ponto: A sua existência e forma têm fonte no âmbito internacional, enquanto resultado da vontade expressa e concorde de sujeitos de direito público internacional, agindo como tais. Logo, é uma pessoa jurídica emergente no campo do direito internacional público, primeira significação da locução entidade binacional, em que binacional é qualificativo da dualidade de vontades originantes, mas ao mesmo tempo espécie do gênero internacional. Nessa condição jurídica, a entidade é recebida e reconhecida no ordenamento interno, como automática decorrência de ratificação do Tratado, autorizada a, nele, atuar, nos limites da sua aptidão e finalidades, independente de submissão às normas da lei nacional conferidoras de existência e personalidade jurídicas.9
Em que pese seu surgimento estar vinculado à vontade do Estado, como entidades submetidas ao regime de direito internacional essas empresas não poderão ter sua administração submetida à ingerência direta do Estado ou dos seus órgãos, como o TCU, conforme esclarece o supracitado parecer da Consultoria-Geral da República: [...] sob o regime correspondente à sua origem e constituição, a entidade binacional, como empresa juridicamente internacional delimitada por sua natureza e âmbito de atuação, não é redutível, lógica ou juridicamente, a qualquer tipo de entidade, estatal ou paraestatal, de administração direta ou indireta, pertinente ao direito interno. Itaipu não está sujeita, de conseguinte, às normas aplicáveis a agentes públicos e entidades públicas nacionais, sob formas de inspeção administrativa ou supervisão hierárquicas, e de controle interno ou externo, constantes do direito constitucional ou administrativo brasileiro, mesmo que os seus agentes não possam, de modo algum, ser considerados funcionários internacionais.10
17.4 Estabelecimento O novo sistema mundial gerador e circulador de riquezas fez diminuir a importância do ato de comércio como eixo do Direito Comercial, passando a vigorar a universalidade das relações de natureza
econômica para teoria da atividade empresarial. Assim, se a qualificação dos atos de comércio era indispensável para disciplinar a atividade mercantil, com a teoria da empresa ela cede lugar a quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada. Nesse âmbito, o fundo de comércio ou aviamento – complexo de bens materiais e imateriais organizados para o exercício da empresa – passa a ter regulamentação específica nos artigos 1.142 e seguintes do novo Código Civil, sob a denominação de estabelecimento. No campo internacional, são estabelecimentos tanto a matriz da empresa como a sucursal, filial ou outros complexos de bens que a empresa possuir em outros Estados. Será qualificado pela lex fori, considerando-se cada filial submetida isoladamente à lei do Estado em que se situa. É esse o entendimento do artigo 11 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”) e do artigo 1.143 do Código Civil de 2002, que reza: “Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza” (grifo acrescido).
17.5 Capacidade para exercer a atividade empresarial A capacidade para comerciar é regulada pela lei pessoal, no caso brasileiro, pela lei do domicílio. Assim, a incapacidade – idade mínima, impossibilidade por servidores públicos, magistrados, militares – será regida pela lei local. A norma territorial regulará as incompatibilidades para o comércio, com as disposições especiais aí vigentes, como aos condenados por crime de falência ou as relativas aos notários públicos. Agenor Pereira de Andrade observa que as incompatibilidades para o exercício da atividade comercial pelos funcionários diplomáticos e agentes consulares será regulada pela lei do país que os nomeou, cabendo também ao Estado de sua residência o direito de proibi-las.11 Ao disciplinar o Direito de Empresa, dispõe o Código Civil brasileiro, no art. 972, que “podem exercer a atividade de empresário os que estiverem em pleno gozo da capacidade civil e não forem legalmente impedidos”. Relativamente ao DIPr, lembramos que o estrangeiro só poderá exercer atividade empresarial no Brasil, como sócio ou gerente, desde que tenha visto permanente. Quanto aos documentos exigidos para esse exercício, segundo o Decreto-lei n. 341, de 17.03.1938, que continua a regular a matéria, estão, além do passaporte estrangeiro, no qual a autoridade imigratória brasileira fará constar a declaração “Está autorizado a trabalhar no Brasil (comércio e indústria)” (art. 4º), a carteira de identidade civil e o atestado de tempo de residência e de bom procedimento no País (art. 2º). O passaporte, na impossibilidade devidamente comprovada, de sua exibição, poderá ser substituído por certidão fornecida pela autoridade imigratória competente, atestando a regularidade da entrada do estrangeiro no território brasileiro, conforme o artigo 6º do decreto-lei mencionado. A legislação deve ser a pertinente à espécie, não sendo possível o exercício do comércio pelo estrangeiro que tenha qualquer outro tipo de visto. As mesmas ressalvas se estendem, agora, por óbvio, ao exercício da atividade empresarial.12 O empresário (pessoa física), ou a denominada sociedade empresária (pessoa jurídica), deve inscrever-se no Registro Público de Empresas Mercantis. Quando se tratar de sociedade simples a inscrição será no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Convém salientar a promulgação da Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011, que criou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), como nova espécie de pessoa jurídica, de
titularidade unipessoal. No que tange ao DIPr, a lei não veda ou restringe a sua utilização por estrangeiros (desde que observados os requisitos legais). Pelo contrário, a nova lei será um desestímulo à criação de sociedades limitadas simuladas constituídas entre estrangeiros e brasileiros, nas quais estes últimos somente possuem uma participação societária mínima, para burlar a exigência de pluralidade de sócios.
17.6 Legislação brasileira e direito empresarial internacional Como no Brasil as empresas têm tratamento tributário diferente das pessoas físicas, elas são registradas no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ), que substituiu o antigo cadastro das pessoas jurídicas do Ministério da Fazenda, bem como as inscrições estaduais e municipais de uma empresa, a qual passou a ter cadastro único, apenas um número de inscrição nas três esferas. Assim, toda empresa jurídica domiciliada no exterior que possua bens e direitos sujeitos a registro no Brasil, como imóveis, aeronaves, contas correntes bancárias e aplicações no mercado financeiro, é obrigada a se inscrever no CNPJ (art. 12 da Instrução Normativa n. 200, de 13.09.2002, da Secretaria da Receita Federal). Quanto às pessoas físicas, esse registro é feito no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). O Direito Comercial, modernamente Direito Empresarial, mantém característica eminentemente cosmopolita, ampliando-se a cada dia os contratos internacionais, cuja peculiaridade, “em matéria de prestações é, precisamente, a extraterritorialidade de seu exercício, levando os contratantes a enfrentar problemas os mais diversificados”.13 Nesse contexto, o conflito de leis no espaço ocupa lugar de destaque, pondo em relevo a observação de Silva Alonso de que o Direito Comercial é essencialmente internacional por suas origens, suas fontes e por seu desenvolvimento.14 Convém lembrar que na solução de litígios emergentes de relações mercantis internacionais é cada vez maior a presença da arbitragem comercial internacional. Ferrer Correia estima que noventa por cento das lides nessa esfera são confiadas a árbitros, não chegando aos tribunais integrados nos ordenamentos jurídicos dos países.15
17.7 Falência e recuperação empresarial A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que “disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária”, está sendo referida como Nova Lei de Recuperação e Falências. Ela substitui o Decreto-lei n. 7.661/1945, conhecido como Lei de Falências, e trouxe importantes inovações. No sistema até então vigente, a regra era a falência, e a concordata, preventiva ou suspensiva, a exceção. Em analogia com o corpo humano, quando um paciente estava doente, o procedimento para a reversão do quadro era matá-lo (decretando sua falência). Só excepcionalmente o remédio empregado buscava sua melhora (a concordata). A nova Lei mudou o rumo: agora o que se quer é o paciente vivo, para o que o legislador brasileiro criou dois mecanismos jurídicos, a recuperação judicial (art. 47) e a recuperação extrajudicial (art. 161). Somente quando nenhum desses remédios legais surte efeito é que se procede à liquidação da empresa: a falência passou a ser a exceção à regra nas situações de crises econômico-financeiras das empresas. Entretanto, os avanços da nova legislação para abrandar as dificuldades das empresas no âmbito interno não ocorreram em relação ao Direito Internacional Privado. O ordenamento jurídico brasileiro perdeu a oportunidade de adaptar sua legislação de insolvência empresarial à realidade da economia globalizada. Assim, no novo diploma não existe qualquer menção aos efeitos dos procedimentos concursais estrangeiros no Brasil, nem a eventuais efeitos do procedimento nacional no exterior. Em
momento algum, levou-se em conta que as empresas podem ter patrimônio internacionalmente disperso, caracterizando a insolvência internacional. Limitou-se o legislador a repetir, no artigo 3º, uma simples regra de competência inspirada no artigo 7º do Decreto-lei n. 7.661/1945: “É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou de filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.” A recuperação extrajudicial constitui nova figura no ordenamento jurídico pátrio e nada mais é do que um pacto entre os credores, ou parte deles, com o devedor, tendo por fim a superação das dificuldades transitórias da empresa, buscando a sua manutenção, com as consequentes vantagens sociais (empregos e tributos, entre outros). Trata-se de procedimento negocial típico, no qual o julgador simplesmente homologa o acordo, conferindo-lhe eficácia. Destaca Silvio Battello que a falência, de modo especial, e a recuperação judicial são os procedimentos de insolvência internacional que poderão ter efeitos extraterritoriais no Brasil.16
17.8 Falência internacional Sempre que o processo falimentar – execução coletiva dos bens do devedor para pagamento, de forma proporcional, dos credores, sob controle judicial – atinge empresa com filiais, bens ou credores em mais de um país, cabe ao Direito Internacional Privado determinar a lei aplicável à falência e os efeitos a serem produzidos no exterior. O Código Bustamante estabelece que sociedade com estabelecimentos, economicamente separados, em mais de um Estado, pode submeter-se a tantos juízos de processos preventivos e falências quantos forem os estabelecimentos mercantis (art. 415). Quando o estabelecimento principal estiver localizado, por exemplo, no território brasileiro, a sentença estrangeira declaratória de falência não poderá ser homologada no Brasil, por não cumprir o requisito do juiz competente, ocasionando pluralidade de procedimentos, que ocorrerão de forma paralela, caso haja decretação de falência também no Brasil. Ademais, seria conveniente a ampliação da cooperação judiciária internacional, no Direito falimentar, limitando a competência internacional da Justiça brasileira: essas “ações possibilitariam uma maior segurança jurídica internacional, dando um tratamento menos discriminatório aos credores estrangeiros e viabilizando maiores aportes de capitais estrangeiros”.17 Caso emblemático de falência internacional foi o do BCCI (Bank of Credit and Commerce International S.A.), estabelecimento de origem inglesa, com filiais em mais de vinte países e credores em mais de trinta. Em 1991, seus bens foram bloqueados por órgãos judiciais em uma dezena de ordenamentos jurídicos, com a natural complexidade e dificuldades inerentes para uma solução. A liquidação dessa insolvência só ocorreria em 11.11.2009, pelo Tribunal de Circunscrição de Luxemburgo, em conformidade com a Diretiva n. 2001/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (da União Europeia) relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito, abrindo-se prazo para manifestação dos credores, requerendo suas cotas, até 31.03.2010.18 Dada a relevância do tema, expressivo número de casos de falência internacional, altas somas envolvidas, aspecto processual e facilidade de comunicação na atualidade, Hee Moon Jo preconiza a instituição de uma corte internacional de falência como opção adequada e eficiente para o futuro.19
RESUMO 17.1 Considerações iniciais
Direito Empresarial é o ramo das ciências jurídicas que disciplina as atividades empresariais destinadas à produção e circulação de bens, ou prestação de serviços. O Código Civil de 2002 unificou parcialmente a legislação civil e a comercial no Brasil, embora subsistam leis especiais, de nítida natureza mercantil.
17.2 Sociedade estrangeira e direito brasileiro A nacionalidade da pessoa jurídica apresenta vieses distintos quando cotejado com o da pessoa física. Três critérios são empregados para determinar essa nacionalidade: da incorporação (país em que se constitui), da sede social (local dos órgãos diretivos) e do controle (adoção da nacionalidade dos detentores do capital da sociedade). No caso brasileiro: “É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração” (art. 1.126). Embora não identificada pela legislação, será estrangeira, por exclusão, a pessoa jurídica que não porte esses pressupostos.
17.3 Sociedade binacional De perfil distinto das sociedades estritamente estrangeiras ou nacionais, a sociedade binacional consiste em uma forma de parceria entre dois Estados. Nesse sentido, a concepção de empresas binacionais pode ser percebida tanto em um contexto de cooperação internacional quanto de integração regional, com vistas a desenvolver conjuntamente projetos de interesse comum, com a criação de sinergias. A constituição de uma sociedade binacional, de modo geral, está embasada por um tratado, que deverá determinar questões como condições de implantação e atividades permitidas. Devido à peculiaridade em relação ao seu vínculo nacional, por vezes as sociedades binacionais podem gozar de benefícios não concedidos às empresas estrangeiras ou, até mesmo, às nacionais, como privilégios alfandegários e isenções tributárias.
17.4 Estabelecimento A expressão fundo de comércio cede lugar à expressão estabelecimento, que é o complexo de bens materiais e imateriais organizados para o exercício da empresa. No campo internacional sua regulamentação obedece à lei do Estado em que se constitui.
17.5 Capacidade para exercer a atividade empresarial É regulada pela lei pessoal (domicílio, no caso brasileiro). A incompatibilidade dos agentes diplomáticos para comerciar será definida pela legislação do Estado que os nomeou, podendo a do Estado da residência igualmente os proibir de comerciar.
17.6 Legislação brasileira e direito empresarial internacional Para estrangeiro exercer atividade empresarial no Brasil, deverá provar sua entrada e permanência regular (visto permanente), além da autorização específica para tal. Não se admite qualquer outro visto. Toda empresa deve estar registrada no Registro Público de Empresas Mercantis.
17.7 Falência e recuperação empresarial Pela Lei n. 11.101, de 09.02.2005, Nova Lei de Recuperação e Falências, o direito brasileiro criou novos mecanismos para empresas em dificuldades: a recuperação judicial (art. 47) e a recuperação extrajudicial (art. 161). Quando nenhum desses remédios legais surtir efeito, procede-se à liquidação da empresa: a falência passou a ser a exceção à regra nas situações de crises econômico-financeiras das empresas. No âmbito do DIPr (art. 3º): “É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou de filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.” Lembra Silvio Battello que a falência e a recuperação judicial são procedimentos de insolvência internacional que poderão ter efeitos extraterritoriais no Brasil.
17.8 Falência internacional Quando o processo falimentar atinge empresa com filiais, bens ou credores em países diversos, cabe ao DIPr determinar a lei aplicável à falência e os efeitos a serem produzidos no exterior. Silvio Battello entende que a ampliação da cooperação judiciária internacional, no Direito falimentar, limitando a competência internacional da Justiça brasileira ofereceria maior segurança jurídica internacional, dando um tratamento menos discriminatório aos credores transnacionais e viabilizando maiores aportes de capitais estrangeiros.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar Direito Empresarial. 2. Indicar a legislação a ser consultada quando agente diplomático pretender comerciar. 3. Explicitar as condições que cidadão estrangeiro deve preencher para o exercício da atividade empresarial no Brasil. 4. Dissertar sobre a evolução do Direito Empresarial no contexto internacional. 5. Conceituar o instituto da falência, detendo-se no seu funcionamento na ordem jurídica brasileira. 6. Analisar o caso de falência de empresa transnacional, com sucursais em mais de cinco países, bens na maioria deles e credores pelo mundo inteiro, indicando qual o tribunal competente para a sua decretação.
______________ 1 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. p. 10-11. 2 Ver, sobre o tema, Amador Paes de Almeida, especialmente Direito de Empresa no Código Civil. 3 ALMEIDA, A. P. Op. cit. p. 23. 4 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado (parte geral). p. 483-488; BATIFFOL, Henri e LAGARDE, Paul. Droit international privé. p. 333-345. 5 LORENTZ, Adriane Cláudia Melo. A sociedade estrangeira e o desenvolvimento da atividade empresarial no Brasil. p. 52-53. 6 ALMEIDA, A. P. Op. cit. p. 66-68. 7 BATTELLO CALDERON, Silvio Javier. Falência Internacional no Mercosul. Proposta para uma Solução Regional. p. 59. 8 A Alcântara Cyclone Space foi constituída pelo Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara, firmado em 21 de outubro de 2003, entre Brasil e Ucrânia. 9 BRASIL, Consultoria-Geral da República. Parecer L-208. 10 Idem. 11 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 277. 12 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 164. 13 STRENGER, Irineu. Os contratos internacionais do comércio. p. 146. 14 SILVA ALONSO, Ramón. Derecho internacional privado. p. 409. 15 FERRER CORREIA, A. Temas de direito comercial e direito internacional privado. p. 173-174. 16 BATTELLO, Silvio Javier. A eficácia jurídica da sentença falimentar e de recuperação empresarial estrangeira no direito brasileiro. p. 316. 17 BATTELLO, S. J. Op. cit. p. 318-321. 18 Ver Site: www.eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2009:307...PT... Acesso em: 14 mar. 2010. 19 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. p. 538-540.
DIREITO DA CONCORRÊNCIA E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“É chegado o momento da internacionalização do direito da concorrência. Basta ver que tribunais nacionais estão se tornando juízos naturais para conflitos internacionais da concorrência pós-modernos” (Augusto Jaeger Junior).
18.1 Considerações iniciais O atual contexto internacional, com dinâmica circulação de capital, intensa ampliação de mercados de produção e consumo, novos aportes tecnológicos e integração produtiva em escala global, requer expressivo esforço conjugado para manutenção do equilíbrio da economia de mercado. Isso se pode alcançar com a concorrência, que consiste em ponto central para o funcionamento eficiente dos mercados. Por viabilizar o aprimoramento permanente da oferta de bens e serviços, possibilitando vantagens aos consumidores, como a redução de preços, a concorrência tem papel imprescindível para maximizar o bem-estar social, evitando abusos ou práticas restritivas ao comércio, seja no âmbito interno dos países ou na esfera internacional. Antes de avançar no estudo da concorrência, não basta tratá-la unicamente sob viés axiológico ou valorativo, sendo necessário recorrermos a noções basilares para melhor compreensão dos itens seguintes. Para tanto, poder-se-ia recorrer a um conceito padrão de concorrência: “Disputa ou rivalidade entre produtores, negociantes, industriais, etc., pela oferta de mercadorias ou serviços iguais ou semelhantes.”1 Essa conceituação, contudo, apresenta-se demasiadamente restritiva, pois a concorrência não se limita à disputa ou rivalidade. Ela é mais ampla, dizendo respeito a “interesses, mercados, países, populações, conquistas e os meios para atingir os seus resultados”.2 Para Jaeger Junior, concorrência é “a disputa de agentes econômicos para a satisfação da escolha de um cliente ou adquirente de produtos”.3 A concorrência, que ocupa um lugar especial no mundo das ciências jurídicas, o do Direito da Concorrência, interessa a outros segmentos do arcabouço jurídico, sendo estudada no Direito Administrativo, no Direito Econômico, no Direito Comunitário, no Direito Internacional Público e no Direito Internacional Privado, entre outros. Os benefícios trazidos por um mercado calcado em tendências concorrenciais podem ser maiores ou menores. Cria-se um ambiente que possibilita o aprimoramento dos agentes econômicos e de suas ofertas, favorecendo a sociedade como um todo, sem deixar de atingir o consumidor individualmente considerado. A concorrência em nível nacional obriga empresários e sociedades empresárias a aperfeiçoarem suas estratégias mercadológicas com o fim de conquistar mais consumidores e incutir seu nome empresarial em um número cada vez maior de áreas de atuação comercial. A meta do fornecedor de bens ou serviços é conquistar o consumidor, buscar a fidelidade do cliente, avançando em terrenos que gerem majoração de lucros. Em âmbito internacional, a concorrência apresenta peculiaridades promissoras. A incursão em
mercados internacionais aumenta a competitividade do Estado, tornando-o mais atrativo para investidores externos. Esses aspectos da concorrência ganharam especial relevo com a formação de blocos econômicos, os quais também passaram a ditar regras específicas sobre liberdade de concorrência dentro de suas respectivas regiões, sob o manto do Direito Comunitário. As situações específicas de Mercosul e União Europeia serão analisadas.
18.2 Concorrência e Direito da Concorrência As regras do Direito da Concorrência, que regulam as relações econômicas de concorrências entre os diferentes atores econômicos, constituem instrumentos de política econômica a serviço das entidades estatais que supervisionam o mercado, com o objetivo final de contribuir para a manutenção da concorrência. Deve-se ter em conta que a complexidade inerente ao conceito de concorrência, do ponto de vista econômico, é tratada de maneira simplificada nos textos jurídicos. Nesse sentido, cabe citar a exposição do Conselheiro Delorme Prado, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em seu voto no caso TBA/Microsoft (PA nº 08012008024/1998-49): O conceito jurídico de concorrência não se confunde com o conceito econômico. A maneira sintética em que o texto legal dispõe sobre a manutenção da concorrência trata esse conceito complexo de forma simplificada. O conceito jurídico de direito da concorrência é finalista. Este pode ser definido como o conjunto de regras de direito cuja finalidade é contribuir para a “concorrência”.4
O Direito da Concorrência se justifica pela conjuntura da economia globalizada. Não há mais fronteiras para a circulação de riquezas, pessoas e informações. Os Estados estão interligados de tal forma que acontecimentos no sudoeste asiático se refletem nos países latino-americanos de forma quase instantânea, em especial quando se trata do mercado financeiro e da volatilidade das bolsas de valores. Como exemplo de crises com repercussão sistêmica, pode-se citar os problemas que conturbaram a década de noventa, como a crise asiática. Mais recentemente, em 2007/2008, a crise imobiliária norteamericana, que fez recuarem os índices de inúmeras bolsas de valores de países ricos e de emergentes, resultando em período de instabilidade e recessão econômica global. A liberdade para concorrer está intrinsecamente relacionada com a forma de regulamentação da economia pelo Estado. Entre as duas Grandes Guerras, presenciou-se um liberalismo financeiro descomedido, que levou à grande crise da década de trinta. Perpassando a II Guerra Mundial, foi identificada a necessidade de elaborar um sistema de regras que regulasse a política econômica internacional. Nesse sentido, seria forçosa uma maior intervenção nos rumos da economia para garantir a estabilidade econômico-financeira. A intervenção na economia ocorre de diferentes formas, direta ou indiretamente. No entanto, como observa Celli Junior, o envolvimento governamental pode criar mais problemas que soluções efetivas, até porque os funcionários a quem se outorgam prerrogativas podem usá-las para fins não relacionados à proteção da concorrência.5 Um dos caminhos da intervenção na economia é a defesa da concorrência por meio de leis antitruste ou anticoncorrenciais. É o caso do Brasil, que possui legislação própria para a defesa da concorrência e a repressão a comportamentos que atentem contra a ordem econômica. O Direito da Concorrência é expressão da atuação do Estado na defesa da livre concorrência. O Estado deve primar por uma concorrência entre os agentes econômicos com base em preceitos éticos e
leais, por uma atuação no mercado sem fins espúrios ou monopolizadores. A concorrência deve ser preservada como meio de tutela do consumidor e como instrumento de concretização da eficiência econômica, permitindo que haja progresso e desenvolvimento da economia. Por fim, cabe acentuar o conceito de Direito da Concorrência, de Augusto Jaeger Junior: “Conjunto de leis que têm por escopo a proteção do mercado contra restrições à concorrência, imputáveis a comportamentos isolados dos sujeitos econômicos ou coligados de grupos de empresas, independentemente de sua forma jurídica.”6
18.3 Defesa da concorrência no Brasil O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) tem sua disciplina básica na Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011, que dispõe sobre prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (ilícitos civis objetivos, independentemente de culpa) e os órgãos envolvidos na defesa da concorrência. Também a Lei n. 9.019, de 30 de março de 1995, e o Decreto n. 8.058, de 26 de julho de 2013, se ocupam da defesa comercial. A organização administrativa disciplinada pela Lei n. 12.529/2011 apresenta-se assim: • Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE), do Ministério da Fazenda, encarregada da instrução dos processos; e • Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia com natureza decisória e judicante, vinculada ao Ministério da Justiça. Os órgãos citados têm como principal finalidade a defesa da concorrência, pela análise de operações de concentração e da fiscalização sobre o exercício do poder econômico, verificando se alguma operação ou ação dos agentes econômicos será ou não prejudicial à livre concorrência. Ao dispor sobre prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, a Lei n. 12.529/2011 teve como fundamentos constitucionais a liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, função social da propriedade e repressão ao abuso do poder econômico. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por essa norma jurídica. Estruturalmente, a referida lei apresenta nove títulos. O primeiro deles (arts. 1º e 2º) trata da finalidade da lei e do território em que se aplica. Versa o Título II sobre a constituição do SBDC (art. 3º), sobre o CADE, sua natureza, composição e competência, tanto do plenário como do presidente e conselheiros (arts. 4º a 18) e da Secretaria de Acompanhamento Econômico (art. 19). O Título III (art. 20) normatiza a atuação do Ministério Público Federal (MPF) perante o CADE, enquanto o Título IV (arts. 21 a 30) se ocupa com patrimônio e receitas, bem como da gestão administrativa, orçamentária e financeira do CADE. As infrações contra a ordem econômica, tema imprescindível para a compreensão do sistema de defesa da concorrência no Brasil, são tratadas no Título V (arts. 31 a 47), com a definição e penalidades desses ilícitos, bem como da prescrição e do direito de ação. O título seguinte, o VI (48 a 87), disciplina as diversas espécies de processo administrativo, sua instauração, instrução e julgamento, que compete ao CADE, ocupando-se ainda de medidas preventivas e possibilidade de cessação da lide, mediante compromisso do representado. O Título VII (arts. 88 a 91) se ocupa da concentração econômica – formas de controle de atos e contratos eventualmente prejudiciais à livre concorrência ou que possam redundar em dominação do mercado, proibindo os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante. Dispõe o Título VIII (arts. 93 a 111) da forma de execução judicial das
decisões do CADE e do instituto da intervenção judicial na empresa, quando necessária para permitir a intervenção específica. Por fim, o Título IX (arts. 113 a 128) se ocupa das disposições finais e transitórias. É importante ressaltar, mesmo de forma sucinta, que a Lei n. 12.529/2011 regula a prevenção aos atos e contratos tidos como abusivos do poder econômico, controlando-os. Assim, dispõe seu artigo 88, § 5º: “Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6º deste artigo”. Verifica-se na leitura desse dispositivo que cabe ao CADE exarar opinião com o fim de definir quais atos são prejudiciais ou não à livre concorrência ou que resultarão em dominação de mercados relevantes de bens ou serviços. O CADE poderá autorizar os atos que atendam as condições elencadas nos incisos do § 6º do artigo 88, como os que tenham por objetivo aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços ou propiciar eficiência e desenvolvimento tecnológico ou econômico. O artigo 88, caput, da Lei 12.529/2011 traz critérios objetivos para definir se uma operação deverá ser submetida ou não à apreciação do CADE por atos de concentração econômica. Isso ocorre quando o faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no último balanço, foi, cumulativamente: de quatrocentos milhões de reais (por pelo menos um dos grupos envolvidos na operação) e de trinta milhões de reais (pelo menos um outro grupo envolvido), no ano anterior à operação. O controle de atos ou contratos pelo CADE pode ser de natureza preventiva ou repressiva, dependendo do prazo para apresentação perante a autarquia: • Preventivo: quando a análise for anterior a eventual ato de fusão; • Repressivo: quando submetida após sua realização. Além do aspecto preventivo, o SBDC possui importantes regras de índole repressiva que visam punir as infrações contra a ordem econômica. São tidas como infrações à ordem econômica todas as condutas descritas nos incisos do § 3º do artigo 36 da Lei 12.529/2011. Na linha do preceituado no § 1º do artigo 36, a conquista natural de mercados – angariação honesta de consumidores em razão da eficiência de um agente econômico –, não configura ilícito concorrencial. Mas é oportuno enfatizar que pode haver caracterização de posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controlar parcela substancial de mercado relevante, o que, para o artigo 36, § 2º, é de vinte por cento ou outro percentual estipulado pelo CADE para setores específicos da economia. Acentua Ulhoa Coelho que qualquer prática empresarial, mesmo não elencada na legislação em estudo, configurará infração contra a ordem econômica quando seus objetivos ou efeitos forem os referidos legalmente.7 Justifica-se essa repressão no próprio espírito da Carta Magna vigente. O autor de infração contra a ordem econômica estará sujeito às penalidades do artigo 37 da Lei n. 12.529/2011, que atingem a empresa, com multa de um décimo por cento a vinte por cento do faturamento bruto (não podendo ser inferior à vantagem auferida), e o administrador, com multa de um por cento a vinte por cento daquela aplicada à empresa. Por fim, cabe destacar que as infrações contra a ordem econômica, regidas pela Lei n. 12.529/2011, área do Direito Econômico, não se confundem com os crimes contra a ordem econômica da Lei n. 8.137/1990, objeto de estudo do Direito Penal.
18.4 Abuso do poder econômico em um mercado relevante
Após analisar a proteção à liberdade de concorrência na ordem jurídica brasileira, surgem algumas expressões, como mercado relevante e poder econômico. É oportuno conceituar mercado relevante – mencionado, embora não definido, na Lei n. 12.529/2011, artigos 36 e 61 –, que serve de paradigma para análise de abuso do poder econômico. Na realidade, trata-se do espaço efetivo em que vai ocorrer a concorrência. Esse espaço caracteriza o menor mercado possível sub judice e comporta duas dimensões: geográfica (área delimitada, como países ou regiões) e de produtos (bens agregados, que seriam intercambiáveis ou substituíveis). As aspirações por um mercado perfeita e corretamente competitivo são utópicas. Para Hilário de Oliveira, empresa competitiva é “toda aquela que sabe comprar bem, localizando novos e bons fornecedores, dentro e fora do país e, proativamente, consegue reduzir os seus custos operacionais”.8 Seja por imposição legal, seja pela ordem natural do mercado, a concorrência perfeita, com agentes econômicos agindo rigorosamente dentro da lei, é quase inatingível. São rotineiros os casos de oligopólio – grupo de empresas que dominam um mercado – ou monopólio – empresa que domina sozinha um mercado determinado. Ambos os casos podem ser resultados de sucesso legítimo da atuação nos negócios ou consequência do abuso de posição dominante, bem como do abuso do poder econômico. Convém, ainda, definir a expressão posição dominante de poder econômico. Para Vicente Bagnoli, ela consiste na participação de uma empresa em um determinado mercado. Essa posição pode resultar de sua competência concorrencial.9 Passa a ser abusiva a posição dominante de um agente econômico a partir do momento em que este começa a elevar preços demasiadamente, impor condições descabidas aos seus compradores, limitar-se à oferta de produtos e serviços dentre outras formas de atitudes anticoncorrenciais. A empresa nessa situação busca lucros pessoais sem legitimidade e extrapola os limites legais em desfavor de consumidores e concorrentes, merecendo, por óbvio, repressão das autoridades protetoras da concorrência. O poder econômico, conforme o autor citado, diz respeito à condição econômica de uma empresa e à possibilidade de essa empresa intervir no mercado. Ao abusar do poder econômico, a empresa impõe preços ou condições que não poderiam ser suportados pelos demais concorrentes do ramo. Qualquer dessas formas de atuação abusiva no mercado requer regulamentação e fiscalização do Estado. Como salientado, o Poder Público passou de agente inerte a agente proativo e definidor das políticas econômicas. A mão invisível de Adam Smith deu lugar a um Estado visivelmente interessado em atuar, regular e fiscalizar os agentes econômicos, com o fim de permitir o exercício da livre concorrência dentro dos limites estatutários. O Estado tem o dever de proteger a concorrência legítima, baseada em valores éticos. Assim, o artigo 170, inciso IV, da Carta Magna vigente insere a livre concorrência entre os princípios da ordem econômica – a qual, por sua vez, deve fundar-se na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, visando assegurar a todos uma existência digna. Garantir a defesa da livre concorrência é assegurar o correto e saudável funcionamento do mercado.
18.5 Concorrência internacional: algumas reflexões A doutrina que prega a liberação absoluta da economia, sem a mínima intervenção estatal (laissez faire, laissez passer), encontra-se completamente superada. Para manter a concorrência em padrões aceitáveis de competitividade, impõe-se a regulamentação estatal. Antes de regular e fiscalizar a atuação dos agentes econômicos, incumbe ao Poder Público garantir o exercício do direito expressamente
previsto na Carta Magna: a liberdade de concorrência. O desenrolar histórico do funcionamento do mercado demonstra que a mão invisível de Smith realmente merecia essa qualificação. Caberia adjetivá-la, também, de intocável ou imperceptível, pois não foi capaz de guiar os rumos da economia como outrora desejado, a exemplo do que sentiram Estados Unidos e Europa após o crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. A demanda por ações interventivas do Estado é antiga, mas ganha uma roupagem contemporânea. Não se trata de ente governamental liberalizante ou apenas de bem-estar social, mas um interventor que visa garantir a soberania econômica, a propriedade privada e a livre concorrência. A nova ordem mundial é marcada pela volatilidade dos acontecimentos, instantaneidade das informações, instabilidade dos mercados e por crises internacionais com reflexos devastadores internamente. Eis aí algumas das facetas da globalização em uma sociedade de risco, uma sociedade pósindustrial, que “carrega consigo riscos incalculáveis, potencialmente ilimitados, dificilmente evitáveis e que desconhecem fronteiras, raças, culturas ou religiões”,10 uma sociedade do medo e da insegurança. Acentua Odete Maria de Oliveira as extraordinárias proporções do intercâmbio gerado pela globalização das relações comerciais, o qual vincula de modo singular a mobilidade de livre circulação de bens, direcionada a mercados em todos os continentes, desconhecendo distâncias e nacionalidades, mas se valendo das novas tecnologias, como a informatização em rede, e revolucionando setores industriais e a própria troca de bens e serviços locais, nacionais e internacionais.11 Percebe-se que a globalização econômica conduziu os agentes para além das fronteiras dos países, pois ela gerou a internacionalização da oferta e da demanda de produtos e serviços. As operações econômicas são marcadas pela transnacionalidade, com os investidores buscando melhor preço, qualidade e lucratividade, bem como condições mais vantajosas para investir e preservar o capital. Em um mundo globalizado, competir internacionalmente passou a ser uma necessidade das empresas, não mais confinadas ou protegidas pelo mercado interno. Com vistas à ampliação dos lucros, cada vez mais as empresas buscam a conquista de novos mercados e a exploração de facilidades econômicas que viabilizem a competição internacional e a garantia do lucro. Essa necessidade dos investidores, ditada pelo mercado, levou muitos Estados a oferecerem condições que fossem ao encontro dos anseios do capital, gerando, por essa razão, uma forma de concorrência fiscal internacional desenfreada e abusiva, a qual resultou, conforme a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no surgimento dos denominados paraísos fiscais – países que oferecem vantagens fiscais, como isenção de impostos, para pessoa ou empresa que neles depositam seu dinheiro. Presume-se que a metade dos capitais em circulação no planeta transite por esses locais.12 A opção pelos paraísos fiscais seria um meio de fugir de infernos fiscais. Com o processo de globalização ainda em ascensão, a competitividade em nível internacional ganhou proporções que nenhuma futurologia poderia prever. Mas a concorrência, além de um entendimento individualizado e sob um viés internacional, necessita também ser compreendida com fulcro nas bases doutrinárias do Direito Comunitário, daí a importância de seu tratamento pelo Mercosul e pela União Europeia.
18.6 Concorrência no Mercosul e na União Europeia O Mercosul visa criar um mercado comum, com livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos. Atualmente, consideradas as fases do processo integracionista, está em processo de transição de zona de livre comércio para união aduaneira.
Ao falar-se em integração econômica, importantes preceitos vêm à mente, os quais podem também ser denominados liberdades econômicas: livre circulação de bens, pessoas e capital; livre prestação de serviços; livre estabelecimento; e liberdade de concorrência. Embora se trate de modelos de integração com bases conjunturais distintas, quando se diz respeito à concorrência no Mercosul, é indissociável uma análise da experiência europeia, que se encontra em uma fase integracionista mais desenvolvida e, por consequência, com um Direito Comunitário da Concorrência já inserido nos ditames normativos do bloco. Na União Europeia, o Direito Concorrencial está instalado no arcabouço normativo comunitário e ultrapassou as fronteiras nacionais. Possui regras próprias, aplicáveis a toda a comunidade, com o fim de proteger os consumidores e de impedir a prática de comportamentos lesivos à livre concorrência, tal como o dumping. O Direito Comunitário europeu dispõe de ampla legislação e farta jurisprudência sobre concorrência. No que concerne à legislação, destacamos as Comunicações e Regulamentos da Comissão Europeia, os Regulamentos do Conselho, além dos dispositivos do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) (arts. 101 a 109, e o art. 3º, c, o qual dispõe sobre a competência da União para estabelecer as regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno). Os artigos 101 a 109 foram renumerados do antigo Tratado da Comunidade Europeia, extinto pelo Tratado de Lisboa, de 13 de dezembro de 2007. Por seu turno, o Tribunal de Justiça da União Europeia possui jurisprudência consolidada em várias matérias envolvendo o Direito Comunitário da Concorrência. Em se tratando de abuso de poder dominante (art. 102) salientamos o caso Chiquita e sobre o controle de concentração de empresas, o caso Nestlé/Perrier. No primeiro caso, de 14 de fevereiro de 1978, a United Brands comercializava bananas, da marca Chiquita, a preços excessivamente diferenciados, com o que os clientes dinamarqueses chegavam a pagar, por exemplo, mais do que o dobro do valor cobrado dos irlandeses. A prática foi condenada pelo então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. O caso Nestlé/Perrier, de 22 de julho de 1992, refere-se à compra pela Nestlé da empresa Perrier, com o que o mercado francês de água mineral ficava mais de oitenta por cento com a nova empresa. Entendeu-se que não havia mercado relevante e se permitiu a fusão, mas exigindo que a Nestlé vendesse, a terceiros, algumas de suas marcas. Convém recordar que o Tratado da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço, de 1951 – não mais em vigor –, já regulamentava a liberdade de concorrência nos artigos 60 a 67; e o agora extinto Tratado da Comunidade Econômica Europeia, de 1957, em seus artigos 81 a 89, contemplava as principais diretrizes do direito da concorrência comunitário. A União Europeia possui um Direito da Concorrência consolidado, de efetiva aplicabilidade, com o que as normas derivadas dos órgãos comunitários têm precedência sobre as nacionais, vinculam cidadãos, órgãos e Estados-membros. A supranacionalidade permite uma harmônica regulamentação da concorrência, vantagem essa ainda inexistente no bloco mercosulista. A não existência da supranacionalidade no Mercosul vem a ser um dos óbices à aplicação de qualquer norma antitruste. Hoje os quatro países fundadores do Mercosul dispõem de regras próprias sobre concorrência. Esses quatro países assinaram o Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul (PDCM), instrumento jurídico considerado importante para que fosse garantido o exercício da concorrência entre as empresas situadas nos países integrantes do bloco regional. O Protocolo foi elaborado na cidade de Fortaleza, em 17 de dezembro de 1996, e foi revogado, em 16 de dezembro de 2010, pelo Acordo de Defesa da Concorrência do Mercosul (ADCM), em seu art. 32. Esse Acordo foi aprovado pelo Conselho do Mercado Comum, nessa data, em Foz do Iguaçu.
A base ideológica do Acordo de Defesa da Concorrência do Mercosul, à semelhança do Tratado de Assunção, é a livre circulação de bens e serviços entre os Estados-Partes, com o fim de assegurar condições adequadas de concorrência, capazes de contribuir para a real consolidação da União Aduaneira. O Acordo tem por base o entendimento por esses Estados de ser a firme e efetiva aplicação de suas leis nacionais de concorrência matéria de fundamental importância para o funcionamento eficiente dos mercados e para o bem-estar econômico dos seus cidadãos. O objetivo do ADCM, expressado em seu artigo 1º, é promover a cooperação e a coordenação entre os Estados-Partes na aplicação das leis nacionais de concorrência no âmbito do Mercosul, bem como eliminar práticas anticompetitivas com a aplicação das leis de concorrência desses países. O Acordo dá competência exclusiva para cada Estado-Parte regular os atos praticados, total ou parcialmente, em seu território ou daqueles que sejam originados em outros Estados-Partes e que naquele produzam ou possam produzir efeitos sobre a concorrência (art. 3º). O artigo 6º assegura a qualquer autoridade de concorrência o direito de solicitar consultas a respeito de matéria relacionada ao Acordo, independentemente de notificação prévia. A consulta não prejudica qualquer ação praticada ao abrigo das leis de concorrência e a plena liberdade de decisão final da autoridade de concorrência consultada (art. 8º).
18.7 Liberdades econômicas fundamentais Cabem agora algumas palavras sobre as liberdades econômicas fundamentais, em especial por possuírem estreita relação com as fases do processo de integração de blocos regionais. Como será visto no Capítulo XXIV desta obra, a doutrina costuma distinguir cinco fases em um processo de integração: zona de livre comércio, união aduaneira, mercado comum, união econômica e monetária e união política. O Mercosul, como mencionado, ainda não complementou a união aduaneira, enquanto a União Europeia já se encontra na fase de união monetária. A análise dos tratados comunitários fundamentais permite perceber que há um nítido caráter evolutivo-progressivo. Em regra, o principal objetivo dos processos de integração é atingir, no mínimo, a fase de mercado comum, já ultrapassada pela União Europeia e ainda incompleta no Mercosul. Dessa distinção pode-se verificar a relação da evolução do Direito Comunitário com as liberdades econômicas fundamentais. A doutrina tradicionalmente classifica as liberdades econômicas fundamentais em bens, pessoas, serviços e capitais. Nesse contexto, convém acentuar que é no estágio de mercado comum que se fazem presentes, como metas a serem atingidas, essas liberdades econômicas fundamentais. Ocorre que esse rol pende à ampliação para a inclusão de uma quinta liberdade. Segundo Augusto Jaeger Junior: “(...) o conceito de mercado comum, como um espaço econômico integrado, incluía o trato de questões referentes à liberdade de concorrência, que era fruto de um esforço de aproximação, com vistas ao controle dos fatores que intervêm no mercado”.13 Da análise do aparato jurídico europeu, conclui-se que a liberdade de concorrência é instituto jurídico cada vez mais consolidado, vindo a servir de exemplo para o bloco regional mercosulista. Conforme aponta Jaeger Júnior, em sua tese de doutorado, a liberdade de concorrência pode ser compreendida como a quinta liberdade fundamental, que assume importância para os países que tenham como meta alcançar a fase de mercado comum. Portanto, seria inadiável sua conformação para a evolução do Mercosul. Convém enfatizar que um mercado comum terá mais dificuldade de ser estabelecido sem essa plena liberdade de concorrência, o que prioriza sua inserção no rol das liberdades
econômicas fundamentais.14
18.8 Considerações finais É alentador verificar que está se desenvolvendo, no contexto global, uma série de iniciativas para a criação de mecanismos de tutela da concorrência. Independentemente da maior ou menor flexibilidade, muitos desses projetos são frequentemente bloqueados por países, atendendo a seus próprios interesses. Nesse viés, concordamos com Dal Ri Junior, que lamenta ter a sociedade internacional chegado ao século XXI sem conseguir estabelecer acordo sobre elemento tão importante para o futuro dos países industrializados e, mais ainda, dos em fase de industrialização.15 Enquanto o direito da concorrência não for reconhecido como liberdade econômica fundamental, no âmbito interno dos Estados e internacionalmente, devem ser intensificados os esforços e a cooperação entre os organismos nacionais atualmente encarregados da tutela da livre concorrência.
RESUMO 18.1 Considerações iniciais A concorrência tem papel imprescindível no funcionamento dos mercados, no âmbito dos países e na esfera internacional, e viabiliza o aprimoramento permanente da oferta de bens e serviços, possibilitando benefícios aos consumidores, como a eventual redução de preços. Além de proteger o consumidor, dispersa o poder e redistribui riqueza, promovendo a justiça econômica em vez da eficiência econômica.
18.2 Concorrência e Direito da Concorrência A concorrência deve ser preservada como meio de tutela do consumidor e como instrumento de concretização da eficiência econômica, permitindo que haja progresso e desenvolvimento da economia. O Direito da Concorrência é expressão da atuação do Estado na defesa da livre concorrência. O Estado deve primar por uma concorrência entre os agentes econômicos com base em preceitos éticos e leais, por uma atuação no mercado sem-fins espúrios ou monopolizadores.
18.3 Defesa da concorrência no Brasil O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência tem sua disciplina na Lei n. 12.529, de 30.11.2011, que dispõe sobre prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (ilícitos civis objetivos) e os órgãos envolvidos na defesa da concorrência. Constituem o SBDC a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Ministério da Fazenda) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça.
18.4 Abuso do poder econômico em um mercado relevante É abusiva a posição dominante de um agente econômico que começa a elevar preços demasiadamente, impor condições descabidas aos seus compradores, limitar a oferta de certos produtos e serviços dentre outras formas de atitudes anti-concorrenciais. Essa empresa busca lucros pessoais ilegítimos, extrapolando limites legais em prejuízo de consumidores e concorrentes, necessitando de
repressão pelas autoridades protetoras da concorrência.
18.5 Concorrência internacional: algumas reflexões A doutrina da liberação absoluta da economia está superada. Para manter a concorrência em padrões aceitáveis de competitividade, impõe-se a regulamentação estatal, regulando e fiscalizando a ação dos agentes econômicos em defesa da liberdade de concorrência.
18.6 Concorrência no Mercosul e na União Europeia Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai firmaram o Acordo de Defesa da Concorrência do Mercosul, instrumento jurídico para garantir exercício da concorrência entre empresas situadas nos países do bloco. O Acordo foi aprovado pelo Conselho do Mercado Comum em Foz do Iguaçu, em 16.12.2010. Na União Europeia, o Direito Concorrencial está presente no arcabouço normativo comunitário, sem fronteiras nacionais. Possui regras próprias, aplicáveis a toda a comunidade, para proteger os consumidores e impedir comportamentos lesivos à livre concorrência, como o dumping.
18.7 Liberdades econômicas fundamentais São: em bens, pessoas, serviços e capitais. A análise do aparato jurídico europeu permite concluir que a liberdade de concorrência, instituto jurídico consolidado, serve de exemplo para o bloco regional mercosulista.
18.8 Considerações finais Enquanto o direito da concorrência não for reconhecido, no âmbito interno dos Estados e internacionalmente, como liberdade econômica fundamental, devem continuar e, além disso, se intensificar os esforços e a cooperação entre os organismos nacionais atualmente encarregados da tutela da livre concorrência.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Comentar as situações em que um mercado se encontra em concorrência. 2. Dissertar sobre as características da legislação brasileira de defesa da concorrência. 3. Analisar as competências dos órgãos destinados a regular a concorrência no Brasil. 4. Caracterizar o abuso por uma empresa detentora de posição dominante em um mercado relevante. 5. Tecer considerações sobre situações em que a legislação brasileira de defesa da concorrência possui jurisdição extraterritorial. 6. Quais os primórdios da teoria dos efeitos? 7. Indicar e analisar a quem compete a aplicação, no âmbito da União Europeia, do direito comunitário da concorrência. 8. Dissertar sobre as instituições multilaterais que estão desenvolvendo estudos com vistas a um direito internacional da concorrência.
______________ 1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário básico da língua portuguesa. p. 167. 2 BAGNOLI, Vicente. Direito econômico. p. 113. 3 JAEGER JUNIOR, Augusto. Liberdade de concorrência na União Europeia e no Mercosul. p. 42. 4 PRADO, Luiz Carlos Delorme. Disponível em: Acesso em: 10 out 2013. 5 CELLI JUNIOR, Umberto. Regras de concorrência no direito internacional moderno. p. 59. 6 JAEGER JUNIOR, A. Op. cit. p. 43. 7 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. p. 28. Ver, ainda, FRONTINI, Paulo Salvador. Caracterização de conduta contrária à ordem econômica. 8 OLIVEIRA, Hilário de. Direito e negócios internacionais. p. 324. 9 BAGNOLI, V. Op. cit. p. 121-128. 10 PEREIRA, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. p. 108. 11 OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações comerciais globais e o império dos mercados mundiais. p. 844. 12 DREIFUSS, René Armand. A época das perplexidades: mundialização, globalização e planetarização: novos desafios. p. 259. 13 JAEGER JUNIOR, A. Op. cit. p. 303. 14 JAEGER JUNIOR, A. Op. cit. p. 304-305. 15 DAL RI JUNIOR, Arno. Perspectivas do antitrust no sistema econômico internacional. p. 656.
DIREITO DAS COISAS E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“Entendemos que a corrente doutrinária que defende a antiga classificação dos bens em móveis e imóveis pela moderna, que os distingue entre registráveis e não registáveis, está mais consentânea com os novos tempos” (Luís Ivani de Amorim Araújo).
19.1 Considerações iniciais Amílcar de Castro entende que bens não são coisas: a palavra bem expressa uma abstração, a ideia do valor representado pela coisa.1 As coisas se encontram no plano material, concreto, enquanto os bens estão situados no mundo jurídico, abstrato. Verifica-se, contudo, que esse conceito não é absoluto, sendo os termos empregados muitas vezes como sinônimos. Na Idade Média, em boa parte da Europa, a força e o domínio dos senhores feudais firmaram-se a partir do princípio da extensão de seu direito de propriedade sobre os bens imóveis, o que lhes concedia prestígio político e reafirmava seu foro de nobreza, geração após geração. Quanto aos bens móveis, pouca importância lhes era dedicada, sendo praticamente desprezados, uma vez que constituíam a única possessão dos vassalos. Por tal razão, o primeiro sistema para o ordenamento dos conflitos de leis sobre o direito das coisas foi elaborado com visível influência do sistema feudal, fortalecendo, em forma de lei, o princípio da lex rei sitae, o que garantia a permanência da organização feudalista, uma vez que assim se protegiam os bens imóveis locais com leis bastante específicas. Os bens móveis seriam regidos pela lei do domicílio do proprietário.2 Para Clóvis Beviláqua, o direito das coisas “é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem”.3 Portanto, o direito das coisas tem como escopo regular as relações entre o homem e as coisas, formulando normas de aquisição, exercício, conservação ou perda do poder do proprietário sobre esses bens, assim como para os meios de sua utilização econômica.
19.2 Qualificação dos bens móveis e imóveis A questão da diferenciação dos bens entre móveis e imóveis, tão importante no mundo jurídico, transcende do fato de poderem esses bens ser movidos de um lugar a outro e se torna relevante em nossa disciplina. Nesse contexto, os tratados oriundos dos Congressos Sul-Americanos de Direito Internacional Privado, realizados em Montevidéu, em 1889 e em 1940, decidiram que os bens de qualquer natureza são regidos com exclusividade pela lei do lugar em que estão situados quanto à sua qualificação (art. 32 das Reformas Introduzidas, em 1940, ao Tratado de Direito Civil Internacional de 1889). Pelo artigo 34 a mudança da situação da coisa móvel, após ação real sobre ela, não altera as regras originariamente aplicáveis de competência legislativa ou judiciária. Contudo, os direitos adquiridos por terceiros sobre esses bens, de acordo com a lei da sua nova situação, depois da mudança e antes de se completarem os requisitos, prevalecem sobre os do primeiro adquirente (art. 35).
Lamenta Martin Wolff que a distinção entre bens móveis e imóveis não seja igual em toda parte. O entendimento da doutrina e dos tribunais na maioria dos países é que ela seja feita pela lei da situação do bem, enquanto para as coisas intangíveis, sem situação real, a diferença ocorre pela legislação do local que apresenta estreita analogia com o lugar de uma coisa tangível. De qualquer forma, a dificuldade ou impossibilidade de mudança de lugar dos bens imóveis, inerente à sua verdadeira natureza, acaba por impor a aplicação da lei do lugar em que estão situados: os imóveis são parte do Estado, estando tão estreitamente com ele relacionados, que todos os direitos sobre esses bens têm aí seu centro natural de gravidade.4 Para Jean Paul Niboyet, a classificação dos bens em móveis e imóveis cabe à lei do foro. Admite exceções: capacidade das pessoas que contratam sobre imóveis (estatuto pessoal) e forma extrínseca dos atos referentes à venda de imóveis no estrangeiro (lei do lugar do ato).5 No ordenamento jurídico brasileiro, segundo o artigo 80 do Código Civil, são considerados imóveis para efeitos legais: a) os direitos reais sobre imóveis (como propriedade e usufruto) e as ações que os asseguram; b) o direito à sucessão aberta. De forma diversa, o Código Civil dá caráter de bens móveis, para efeitos legais, à energia elétrica e à energia térmica, bem como aos direitos pessoais patrimoniais e às ações respectivas (art. 83).
19.3 Direito das coisas no ordenamento jurídico brasileiro No que concerne ao tema, o direito positivo brasileiro é objetivo: “Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados” (LINDB, art. 8º). Fica expresso o princípio da lex rei sitae, ou lei do lugar da situação da coisa, como o elemento de conexão que qualifica os bens e disciplina as relações que lhes são pertinentes. Os bens móveis são regulados pelo § 1º do artigo 8º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário quanto aos bens móveis que ele trouxer, ou se destinarem a transporte para outros lugares” (grifo acrescido). Convém acentuar que muitos desses bens mudam constantemente de lugar, justificando-se a exceção. Edgar Amorim registra haver forte tendência para que se crie um direito uniforme para proteger em nível internacional obras artísticas, científicas e literárias, consideradas bens móveis no Brasil, apesar de existirem divergências de âmbito internacional quanto ao direito do autor. Nesse sentido, nosso país adota o sistema de proteção a todas as obras aqui produzidas.6 Exceção também ocorre em relação ao penhor, o qual é regulado pela legislação do domicílio da pessoa que detém a posse da coisa posta em penhor (LINDB, art. 8º, § 2º). Verifica-se que o direito brasileiro adota o sistema unitário, não distinguindo os bens móveis e imóveis quanto à aplicação da lex rei sitae. No Brasil, são direitos reais (arts. 1.225 a 1.227 do Código Civil de 2002): – propriedade (arts. 1.228 a 1.368-A); – posse (arts. 1.196 a 1.224); e – direitos reais sobre coisas alheias, os quais compreendem: a) uso e gozo: superfície (arts. 1.369 a 1.377) e usufruto (arts. 1.390 a 1.411); b) uso: servidão (arts. 1.378 a 1.389), uso (arts. 1.412 e 1.413) e habitação (arts. 1.414 a 1.416); c) garantia (arts. 1.419 a 1.430: penhor – arts. 1.431 a 1.472, hipoteca – arts. 1.473 a 1.505,
anticrese – arts. 1.506 a 1.510 e alienação fiduciária em garantia – arts. 1.361 a 1.368-A); e d) direito do promitente comprador do imóvel (arts. 1.417 e 1.418), todos do Código Civil de 2002. O exercício de ações possessórias ou qualquer outra pertinente a imóveis está regido pelo mesmo princípio. Dessa enumeração, observa-se que a nova codificação do País, em cotejo com o Código Civil de 1916, extinguiu a enfiteuse e a renda constituída sobre imóvel alheio, e integrou dois novos direitos reais: o de superfície e o do promitente comprador.
19.4 Direitos reais e conflito de leis no espaço A classificação dos direitos reais varia nas diferentes legislações, aumentando a importância de uma qualificação precisa. Segundo a boa doutrina, cabe à lex rei sitae determinar se um direito é ou não de caráter real. Sobre o tema, valem as considerações que se seguem. – Posse: cabe à lei da situação do bem regular a posse e seus efeitos. Qualquer pessoa pode utilizar-se dos meios jurídicos oferecidos pela lex rei sitae para defender a posse. Esse é o regramento na ordem jurídica brasileira, em que pese discussão acadêmica de se tratar de um direito real ou não. – Propriedade: nenhum Estado permite que sistema normativo estrangeiro interfira sobre o que as leis internas estabelecem para a garantia do regime de propriedade. Cada país possui um modo próprio pelo qual ocorre a aquisição da propriedade, sendo sua lei a única competente para determinar como isso ocorrerá. – Usucapião (arts. 1.238 a 1.244 do CC de 2002): sem ser um direito real, mas consequência, de certa forma, do exercício da posse, é um dos modos de aquisição da propriedade (forma simultaneamente criadora e extintiva de direitos). Para a maioria dos autores, seria regido pela lex rei sitae. O nosso ordenamento jurídico não apresenta solução expressa para as questões ligadas ao usucapião, concluindose, pelo artigo 8º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que a lei aplicável para os bens móveis ou imóveis é a lex rei sitae. Ora, se tem na posse um de seus elementos essenciais (somada ao decurso do tempo e a lei), para caracterizar a aquisição da propriedade, o tratamento não poderia ser diverso do que é dado à dita propriedade. No DIPr, quando se tratar de usucapião de bens móveis, costuma ser usada a lei do domicílio do proprietário, somando-se o tempo anterior, decorrido sob outra legislação. – Enfiteuse: antiga forma de direito real sobre coisa alheia, esse instituto caiu em desuso, acabando revogado pela dessuetude, sendo inclusive proibido esse tipo de relação jurídica (art. 2.038 do CC de 2002). Ocorria quando, por ato entre vivos ou de última vontade, o proprietário atribuía a outrem o domínio útil sobre um imóvel mediante o pagamento ao senhorio direto de uma pensão anual prefixada. Era regulado pela lei da situação do imóvel. Esse direito real tem como sucedâneo o Direito de Superfície, introduzido pela nova codificação civil brasileira (arts. 1.369 a 1.377), com algumas similitudes e essenciais diferenças (estas quanto à temporariedade e gratuidade, pois a enfiteuse era perene e onerosa). Receberá o mesmo tratamento na ordem internacional, diante da constatação da existência de institutos análogos no direito comparado. – Servidão: também espécie de direito real sobre coisa alheia, regulado pela lex rei sitae, que, uma vez constituído, adere ao imóvel e o acompanha em todas as suas transmissões, pois a este beneficia ou prejudica, se dominante ou serviente, não a quem seja o proprietário. – Usufruto, Uso e Habitação: pertencem ao grupo das servidões pessoais, regendo-se também pela lex rei sitae, a qual determina quais tipos dessas servidões poderão ser constituídas.
– Renda Constituída sobre Imóvel Alheio: também pertencia a esse último grupo, desaparecendo do ordenamento jurídico brasileiro pelo desuso, não tendo sido objeto de regulação no novo Código. Consistia em se transferir a propriedade a alguém, por ato inter vivos ou causa mortis, condicionada à prestação de uma renda periódica em favor de outro, que poderia ser até mesmo o próprio transmitente. – Direitos Reais de Garantia: são aqueles conferidos a certos credores para que obtenham a importância de seus créditos com a execução de determinados bens do devedor. São eles: a) o penhor (o devedor entrega ao credor coisa móvel para garantir seu débito); b) a anticrese (a entrega ao credor é de bem imóvel para que com os frutos deste ele seja pago, devolvendo-o ao devedor após a quitação da dívida); c) a hipoteca (gravação de coisa imóvel do devedor, sem transmissão de posse ao credor, mas com o direito de este alienar judicialmente o bem para cobrar seu crédito do valor da venda); d) a alienação fiduciária em garantia (transferência do devedor ao credor da propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem, como garantia do crédito, resolvendo-se com o pagamento do débito). Esse último direito recebe, no novo Código Civil, o tratamento de propriedade especial (propriedade fiduciária – arts. 1.361 a 1.368-A), sem perder, no entanto, suas características de propriedade resolúvel e de garantia real. Nesse contexto, depreende-se que a competência territorial – a lex rei sitae – prevalece na regulação dos direitos relativos ao regime da posse, da propriedade e dos direitos reais sobre coisa alheia.
19.5 Referências especiais sobre alguns direitos reais Quanto aos direitos reais de garantia no DIPr cabem mais algumas palavras. O penhor, regulado no Brasil pela lei do domicílio da pessoa que detenha a posse do bem, é regido no Código Bustamante pela lei territorial, a lex rei sitae (art. 216). Ademais, o direito de detenção da posse do bem colocado em penhor pelo credor, que é obrigatória no direito brasileiro, é proibida em algumas legislações.7 Acentuese que o bem sob penhor rural, industrial, mercantil ou de veículos é mantido em poder do devedor (CC/2002, art. 1.431, parágrafo único). A hipoteca de bem imóvel situado em outro país requer adequação a ambas as legislações. Imaginese apartamento hipotecado em praia catarinense ou cearense, por devedor argentino, para garantir dívida contraída na Argentina com cidadão desse país. Nesse caso, a hipoteca deverá ser registrada no cartório do registro de imóveis do município brasileiro correspondente (art. 1.492 do CC de 2002). Recorde-se que a espécie de hipoteca deve ser admitida na ordem jurídica em que ela será estabelecida. Ainda sobre a legislação que rege os bens móveis, João Grandino Rodas acentua que, como esses bens não têm localização fixa no território, não podem ser submetidos ao direito permanente do lugar, o que os submete à lei pessoal do proprietário.8 Excepcionalmente ficarão sujeitos à lei da situação: a) quando a lei da situação atual os anexa a imóveis para efeitos legais; b) quando os fixa sob sua jurisdição especial, ou como penhores, embargos, penhoras, privilégios, preferências ou título legal, como na proibição de exportação; c) quando a lei local estabelece alguma determinação positiva ou proíbe a aplicação da lei pessoal do proprietário. Amílcar de Castro destaca que, quando não se puder observar o direito do lugar onde a coisa esteja situada, como no caso do viajante com sua bagagem, que se desloca de um país para outro se utilizando do transporte ferroviário, ou no caso de mercadorias transportadas por via terrestre ou marítima, convém procurar mentalmente o ponto em que essas coisas deveriam ficar por mais tempo. Se o tempo de permanência for indeterminado, pode resultar da vontade manifestada pelo proprietário ou coincidir com
seu domicílio.9 Para as mercadorias em trânsito, não é prudente o uso da lei da situação, dadas as constantes mudanças possíveis de lugar desses bens. É o caso de produtos brasileiros sendo transportados para o Chile, com passagem por território argentino, cuja legislação deveria regê-los em determinados momentos. Recomenda-se que sejam regidas pelo direito do país de destino, mais adequado do que o da origem dessa carga. No entanto, o legislador brasileiro optou, como se viu, pela lei do país em que for domiciliado o proprietário da mercadoria. Hee Moon Jo excepciona uma situação: direito real sobre bem móvel guardado em depósito in transitu será regulado pela lei do lugar da guarda.10 A doutrina e a jurisprudência costumam considerar os navios e as aeronaves como bens de natureza especial, a que não se adapta o ius rei sitae, em razão do deslocamento por vários países. Essa instabilidade de localização contraindica ainda o emprego da lei do domicílio do proprietário, lugar no qual esses bens não permanecem necessariamente por mais tempo. Por isso, devem ser apreciados pelo direito do Estado de matrícula do navio ou aeronave – a lei do pavilhão. Prescreve o Código Bustamante que se prova a nacionalidade de navios e aeronaves pela patente de navegação e certidão de registro, tendo a bandeira como sinal distintivo aparente (arts. 274 e 282). No direito brasileiro, os navios e aeronaves podem ser objeto de hipoteca (art. 1.473, VI e VII, do CC de 2002). Os trens e outros veículos que realizam rotineiramente viagens internacionais, nas quais percorrem por vezes diversos países, são regidos pela lei do Estado de origem, no qual têm sua matrícula e o mais das vezes a administração da empresa proprietária.
19.6 Regras de DIPr em outras ordens jurídicas No que tange à qualificação dos bens em móveis e imóveis, vejamos sua regência nas codificações de países ibero-americanos, com tradução livre para nosso idioma. O Código Civil da Espanha (de 24.07.1889) estatui: “São bens imóveis: Os viveiros de animais, pombais, colmeias, tanques de peixes ou criadouros análogos, quando o proprietário os tenha colocado ou os conserve com propósito de mantê-los unidos à chácara e formando parte dela de modo permanente” (art. 334, 6º). O Código Civil da Argentina (de 01.01.1871) dispõe: “As coisas são móveis e imóveis por sua natureza ou por acessão ou por seu caráter representativo” (art. 2.313). “São imóveis por sua natureza as coisas que se encontram por si mesmas imobilizadas, como o solo e todas as partes sólidas ou fluídas que formam sua superfície e profundidade: tudo o que está incorporado ao solo de uma maneira orgânica e tudo o que se encontra sob o solo sem a ação do homem” (art. 2.314). O Código Civil do Chile (de 14.12.1855), em seu art. 567, reza: “Móveis são as coisas que se podem transportar de um lugar a outro, movimentando-se por si mesmas, como os animais (por isso chamados semoventes), ou as que só se movimentem por uma força externa, como as coisas inanimadas. Excetuam-se as que sendo móveis por natureza se reputem imóveis por seu destino, segundo o artigo 570.” Nos móveis de uma casa não estão compreendidos o dinheiro, os papéis, as coleções artísticas e científicas, os livros e suas estantes, entre outros. O Código Civil da Venezuela (de 26.07.1982) preceitua em seu art. 10: “Os bens móveis ou imóveis, situados na Venezuela, serão regidos pelas leis venezuelanas, mesmo que sobre eles tenham, ou pretendam ter direitos pessoas estrangeiras.” E o artigo 11 dispõe: “A forma e solenidades dos atos jurídicos que se outorguem no estrangeiro, mesmo as essenciais à sua existência, para que surtam efeitos na Venezuela serão regidas pela lei do lugar onde se realizam. Se a lei venezuelana exigir instrumento
público ou privado para a sua prova, tal requisito deverá ser cumprido. Quando o ato se outorga perante funcionário competente da República, deverá submeter-se às leis venezuelanas.”
RESUMO 19.1 Considerações iniciais O direito das coisas é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. O primeiro sistema sobre conflito de leis no espaço, no direito das coisas, teve influência feudal, priorizando a lex rei sitae. Protegia os bens imóveis locais com leis específicas. Os bens móveis seriam regidos pela lei do domicílio do proprietário.
19.2 Qualificação dos bens móveis e imóveis A diferenciação dos bens entre móveis e imóveis, importante no mundo jurídico, transcende o fato de poderem esses bens ser movidos de um lugar a outro e se torna relevante em nossa disciplina. Para Niboyet, essa classificação submete-se à lei do foro. No direito brasileiro, são considerados imóveis para efeitos legais os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram, assim como o direito à sucessão aberta.
19.3 Direito das coisas no ordenamento jurídico brasileiro Os bens no Brasil seguem o artigo 8º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.” É o princípio da lex rei sitae. São direitos reais no Brasil a propriedade, a posse e os direitos reais sobre coisas alheias, tanto os de uso e gozo (superfície e usufruto), os de uso (servidão, uso e habitação) quanto os de garantia (penhor, hipoteca, anticrese e alienação fiduciária em garantia) e o direito do promitente comprador do imóvel, todos previstos no Código Civil de 2002.
19.4 Direitos reais e conflito de leis no espaço A classificação dos direitos reais varia nas legislações, aumentando a importância de uma qualificação precisa. Segundo a boa doutrina, cabe à lex rei sitae determinar se um direito é ou não de caráter real, bem como regular os direitos relativos ao regime da posse, da propriedade e dos direitos reais sobre coisa alheia.
19.5 Referências especiais sobre alguns direitos reais O penhor, regulado no Brasil pela lei do domicílio da pessoa que detenha a posse do bem, é regido no Código Bustamante pela lei territorial (art. 216). A hipoteca de bem imóvel situado em outro país requer adequação a ambas as legislações. Navios e aeronaves, bens de natureza especial, não se regem pela ius rei sitae, em razão do deslocamento por vários países, nem pela lei do domicílio do proprietário. São apreciados pelo direito do Estado de matrícula, a lei do pavilhão.
19.6 Regras de DIPr em outras ordens jurídicas A qualificação dos bens em móveis e imóveis apresenta semelhança, embora pequenas distinções nos vigentes Códigos Civis de Espanha, Argentina, Chile e Venezuela.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Comentar as regras jurídicas sobre bens que vigoravam na Europa durante o período feudal. 2. Dissertar sobre o conceito de coisas e de bens nas ciências jurídicas e a importância dessa diferenciação para o Direito Internacional Privado. 3. Após discorrer sobre bens móveis e imóveis, analisar a legislação aplicável sobre os bens móveis conduzidos pelo proprietário nas viagens internacionais. 4. Analisar a distinção entre móveis e imóveis inserida nos Códigos Civis brasileiro, chileno, argentino e espanhol. 5. Tecer considerações sobre as mercadorias em trânsito e sobre navios e aeronaves no Direito Internacional Privado. 1 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 420.
______________ 1 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 420. 2 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 237. 3 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das coisas. v. I, p. 11. 4 WOLFF, Martin. Derecho internacional privado. p. 478-482. 5 NIBOYET, Jean Paul. Princípios de derecho internacional privado. p. 489-490. 6 AMORIM, Edgar Carlos de. Direito internacional privado. p. 146-147. 7 ESPINOLA, Eduardo; ESPINOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro. p. 378. 8 RODAS, João Grandino. Direito internacional privado brasileiro. p. 22. 9 CASTRO, A. Op. cit. p. 428. 10 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. p. 483.
PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“O direito de propriedade intelectual tem caráter internacional e a construção da regulamentação – Tratados e Acordos Internacionais – atende às necessidades e aos interesses convergentes de vários Estados nas suas relações de comércio internacional e desenvolvimento sustentável” (Salete Oro Boff).
20.1 Considerações iniciais Serão abordados neste capítulo os liames entre o Direito da Propriedade Intelectual e o DIPr. Verifica-se serem campos bastante interligados, ampliando-se seus elos com as transações internacionais que envolvem cada vez mais os direitos imateriais. A propriedade intelectual diz respeito à apropriação do intelecto, do imaterial, ou mesmo das ideias. Trata-se da proteção do investimento, recordando-se que a expressão propriedade intelectual, internacionalmente aceita a partir da Conferência de Estocolmo, em 1967, engloba basicamente a tutela das obras advindas do esforço intelectual humano com duas grandes divisões: de um lado, os direitos autorais, atinentes às obras de natureza estética ou artística, e de outro, o direito da propriedade industrial, tendo o direito do inventor como base (criações de natureza técnica ou industrial). Oscar Tenório incluía na propriedade industrial a comercial, a agrícola (vinho, grãos, frutas e gado) e a extrativa (minerais propriamente ditos e águas minerais).1 A esses grandes ramos acrescentam-se as cultivares, a proteção de dados, o sigilo e a topografia de circuitos integrados. Tais direitos eram estudados em outros segmentos jurídicos, como o Direito das Coisas (direito do autor) e o Direito Comercial (o das marcas). O valor de um conhecimento está intimamente ligado à capacidade de auferir dele proveitos, pois o valor das coisas ditas de conteúdo imaterial tem sua fonte no monopólio desse conhecimento, na exclusividade das qualidades que ele confere às mercadorias que o incorporam. Como os frutos da propriedade intelectual não se restringem hoje ao país de origem, alcançando facilmente os demais Estados, caberá ao DIPr buscar solução às lides daí surgidas.
20.2 Propriedade intelectual Um sistema de propriedade intelectual permite incentivar a geração de novas tecnologias, produtos, processos e oportunidades comerciais, promove um ambiente legal que aumenta a segurança e a confiança das empresas, incentivando as transações comerciais. Dessa forma, “um regime eficiente de Propriedade Intelectual é um fator primordial para atrair tecnologia, levando ao crescimento econômico nacional”,2 a par de representar uma fonte de informações sobre o estágio da técnica e de servir de instrumento de planejamento e estratégia para a indústria e o comércio. Depreende-se, então, que a proteção à Propriedade Intelectual (PI) é um meio de promover inovação, transferência e disseminação de tecnologia, sendo fundamental no processo de desenvolvimento de um país, “no sentido de promover a disseminação de informações, o estímulo e a diversificação da produção e o surgimento de novas tecnologias, (...) gera riquezas e garante empregos,
favorecendo a criação de novos bens e serviços, que contribuem para melhorar as condições de vida dos povos”.3 Por isso, não pode ser considerada um fim, mas um meio para obtenção de benefícios. Para Tito Fulgêncio esses direitos se distinguiam pelas seguintes características: absoluto (oponível a todos), exclusivo (afasta uso privado em detrimento do titular), resolúvel (pois a obra pode cair no domínio público) e de natureza cosmopolita.4 20.2.1 Histórico Recorda Bruno Hammes que a normatização dessa propriedade, a partir de seu núcleo fundamental, o direito do inventor, tem raízes em Veneza (1474) e na Inglaterra (1624) com as primeiras codificações sobre patentes. Até então corporações e senhores feudais concediam tal privilégio, de forma arbitrária, mais impedindo do que promovendo o progresso técnico. Com elas, acentua o mestre, que apenas o primeiro inventor recebia a carta patente, proibindo-se os monopólios por contrariarem a lei ou o bem comum. Essa proteção, cujo tempo era limitado normalmente a quatorze anos, caracterizou praticamente todas as leis modernas de patentes.5 Quanto às marcas, teriam origem na época romana, quando eram utilizadas pelos proprietários nos animais de seus rebanhos. É oportuno mencionar que o Código Civil do Chile, de 14.12.1855, consigna em seu art. 584: “Las producciones del talento o del ingenio son una propiedad de sus autores. Esta especie de propiedad se regirá por leyes especiales”. Já o Código Civil espanhol, de 24.07.1889, estabelece: “El autor de una obra literaria, científica o artística, tiene el derecho de explotarla y disponer de ella a su voluntad” (art. 428). Ainda: “La ley sobre propiedad intelectual determina las personas a quienes pertenece el derecho, la forma de su ejercicio y el tiempo de su duración. En casos no previstos ni resueltos por dicha ley especial se aplicarán las reglas generales establecidas en este Código sobre la propiedad” (art. 429). A exemplo das mencionadas codificações internas do século XIX, verifica-se que os ordenamentos jurídicos vêm disciplinando a propriedade intelectual, merecendo hoje o tema regência na maioria das legislações dos Estados da sociedade internacional. 20.2.2 Importância na atualidade Mais do que em qualquer época, atribui-se hoje enorme importância ao capital oriundo do conhecimento, tornando-se necessária a conscientização de que “na sociedade da inteligência, a plena satisfação das faculdades de cada um é o objetivo de todos”.6 Nessa sociedade, a produção é posta a serviço do desenvolvimento humano, e não o contrário, de forma que contribua para o crescimento dos países, enriquecidos pela ampliação e pelo conjunto de conhecimentos agregados pela propriedade intelectual. Na realidade, percebe-se que praticamente tudo que se usa, observa ou mesmo o que se ingere, está direta ou indiretamente associado e protegido pelo que se convencionou chamar de propriedade intelectual. Desde as músicas, os livros, os remédios, os alimentos, os softwares dos computadores, bem como os fertilizantes e agrotóxicos utilizados na agricultura, tudo está protegido. Parece interminável a lista do que vai sendo apropriado pelo conhecimento humano. O desenvolvimento e a importância dos estudos das criações humanas, segundo Salete Oro Boff, transformaram a propriedade intelectual em nova categoria, afastando-se da propriedade real e pessoal. Trata-se da categoria dos direitos intelectuais, que se apresenta de forma distinta da classe dos direitos reais, embora ambas se assemelhem em muitos aspectos, constituindo-se em direitos próprios, de
natureza especial, os quais se desenvolvem para proteger a exclusividade da execução de ideias novas e originais.7 Cumpre observar, ainda, que tal categoria de direitos protege além da inovação, também a cultura e tradição, como ocorre com as indicações geográficas. Em ambos os casos – inovação ou tradição –, os benefícios advindos dessa proteção podem ultrapassar a esfera dos seus titulares, tanto no que diz respeito ao desenvolvimento científico e tecnológico como à preservação da cultura e à ampliação das oportunidades econômicas. No campo da propriedade industrial, uma das medidas do progresso de um país é o grau de proteção assegurado aos inventores. O instituto de patentes desse Estado é o local em que a informação mais completa e atualizada poderá ser encontrada. Em realidade, a patente transforma o fato científico em fato econômico.8 A identidade cultural de um país fica comprometida quando nele obras não são protegidas, permitindo-se livremente reprodução de obras estrangeiras. Assevera Hammes: “O enriquecimento e a variedade da cultura, refletida nas obras literárias, musicais e artísticas são estimuladas e preservadas pelo sistema de direito autoral no interesse do bem público.”9
20.3 Propriedade intelectual no Brasil A Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, atualiza e consolida os direitos autorais no Brasil, ocupando-se, no que tange às obras intelectuais, das obras protegidas e sua autoria. Sobre os direitos do autor, regula os seus direitos morais e patrimoniais, sua duração, limitações e transferência. Ademais, disciplina a edição de obras intelectuais e sua comunicação ao público, bem como a utilização de obras de arte plástica, fonográfica, audiovisual, base de dados e obra coletiva. Como direitos conexos, as normas se destinam às obras dos artistas, intérpretes e executantes, dos produtores e empresas de radiodifusão, bem como a sua duração. Por fim, normatiza as associações de titulares de todos esses direitos e sanciona as violações aos direitos autorais. Essa norma jurídica (Lei n. 9610/1998) assegura aos estrangeiros, incluindo-se os domiciliados no exterior, o gozo, no País, da proteção dos direitos autorais e conexos, inserida em acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil (art. 2º). Acentue-se que os direitos autorais são aqui considerados, para efeitos legais, bens móveis (art. 3º). Os direitos patrimoniais do autor ficam assegurados aos seus herdeiros legais por setenta anos, contados do primeiro dia do ano subsequente à morte do mesmo (art. 41). Os direitos e as obrigações relativos à propriedade industrial, por seu turno, são regulados pela Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996, que, em seu artigo 2º, assegura essa proteção, considerando o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Tal proteção ocorre pela concessão de patentes de invenção e de modelos de utilidade, de registro de desenho industrial e de marcas, bem como pela repressão à concorrência desleal e às falsas indicações geográficas. Acentua Liliana Locatelli a relevância de proteção jurídica que assegure os direitos dos titulares dessas indicações e os interesses dos consumidores.10 Os direitos de propriedade industrial também são considerados bens móveis (art. 5º). A partir da data de depósito, a patente de invenção vigora por vinte anos e a de modelo de utilidade por quinze anos (art. 40). 20.3.1 Medicamentos Deve haver uma natural moderação na concessão de patentes de medicamentos, levando-se em conta o que esses produtos representam para a saúde e a vida dos seres humanos. Entre outras razões, tal
preocupação busca proteger a sociedade na preservação desses valores, evitando a produção e a comercialização de substâncias que lhes sejam nocivas. Evidencia-se, de pronto, a importância do respaldo jurídico, via patenteamento, de novos produtos no alívio de dores e cura de moléstias. Há inclusive uma incessante cobrança, partida de todos os segmentos sociais, pela descoberta de vacina contra males, alguns antigos, que flagelam a humanidade, como o câncer e a AIDS. A descoberta de substâncias com capacidade curativa e preventiva requer estudos e pesquisas que implicam investimentos elevados. Assim, impõe-se o incentivo a órgãos privados, que venham se somar ao poder público nessa busca. Os recursos provêm, o mais das vezes, de grandes empresas transnacionais, que deverão, no uso do privilégio da patente adquirida, recuperar o capital investido e auferir lucros. Esse contexto, como se vê, porta também matizes ideológicos, dados os valores materiais empregados. Aludindo ao interesse da sociedade, Astrid Heringer lembra que o “mercado, por si só, não oferece incentivos adequados para que se invente, é preciso assegurar ao inventor garantias de que seus interesses econômicos serão protegidos”.11 Essa garantia se alcança pelo sistema de patentes. A indústria farmacêutica, em seu conjunto, gasta dezenas de bilhões de dólares por ano para desenvolver novos medicamentos. Para isso, mobiliza uma crescente parcela de cientistas experientes e a mais sofisticada tecnologia médica. Não obstante esse investimento maciço e os resultados obtidos, persiste a necessidade de descobertas mais substanciais, considerando-se o surgimento de novas enfermidades e seus agentes causadores, com lamentáveis danos para a humanidade. O estímulo da pesquisa em cada país, por meio da patente nacional, acaba favorecendo a própria indústria desse Estado. Acentua Bruno Hammes que os medicamentos de outros países devem ser usados enquanto não existirem remédios nacionais, uma vez que “nossas doenças têm características próprias que melhor se curariam com medicamentos aqui pesquisados e desenvolvidos”.12 20.3.2 Caso Efavirenz Em maio de 2007, o Brasil decretou o licenciamento compulsório do antirretroviral Efavirenz, produto usado em medicamento de amplo emprego no País no combate à AIDS. O detentor da patente é o laboratório Merck. A razão para tal atitude foi a recusa dessa empresa transnacional em aceitar o preço proposto pelo Brasil, coerente com o que teria sido concedido por ela à Tailândia. A medida se amparou no artigo 71 da Lei n. 9.279/1996: “Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Nacional, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.” Acresça-se que laboratórios da Índia dispunham de produto similar com preço equivalente a um terço do que estava sendo cobrado pela empresa detentora da patente. O Brasil é grande consumidor do produto licenciado, usado por quase a metade das pessoas portadoras do vírus HIV, atualmente cerca de duzentas mil. A diferença entre o preço admitido pelo laboratório – sensivelmente reduzido ante a proposta brasileira – ainda era em muito superior ao objetivo nacional e onerava excessivamente o nosso sistema de saúde pública. Nesse contexto, visou-se assegurar a manutenção do programa de combate às doenças sexualmente transmissíveis e à AIDS do Ministério da Saúde, o qual há mais de uma década vem sendo considerado um dos mais avançados do mundo. Com o licenciamento, o Brasil fabrica medicamento genérico com custo que permitiu economia de cerca de trinta milhões de dólares em seis anos, desonerando o programa e proporcionando atendimento a número maior de vítimas da AIDS. O ato tem amparo constitucional e do acordo TRIPs, que prevê
medida dessa natureza, licença compulsória da patente, em caso de interesse público, para uso não comercial e de forma temporária, com remuneração do detentor da patente, negociados no âmbito das Nações Unidas, no caso, o laboratório Merck Sharp & Dohme, que imprescindivelmente recebe 1,5% em royalties. Em maio de 2012, o Brasil renovou o licenciamento compulsório do medicamento por mais cinco anos.
20.4 Organização Mundial da Propriedade Intelectual Instituída pela Convenção de Estocolmo, de 14 de julho de 1967, integrada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 75.541, de 31 de março de 1975, que a promulgou, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) tem por objetivo disciplinar e proteger os direitos intelectuais. Com sede em Genebra, esse organismo especializado das Nações Unidas (ONU) originou-se das Convenções da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (1883) e de Berna para Proteção das Obras Literárias e Artísticas (1886), marcos na instituição de convenções internacionais no mundo jurídico. A relevância desses tratados do século XIX para o Direito Internacional Privado é significativa, pois eles preveem a regulamentação de conflitos de leis e de jurisdição, a condição jurídica do estrangeiro e o gozo de seus direitos, o princípio do tratamento nacional, a harmonização do direito privado material e o princípio do tratamento unionista.13 O artigo 2º, inciso VIII, da Convenção de Estocolmo, considera propriedade intelectual os direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas; às invenções em todos os domínios da atividade humana; às descobertas científicas; aos desenhos e modelos industriais; às marcas industriais, comerciais e de serviços; e à proteção contra a concorrência desleal, entre outros. Os fins da OMPI estão preconizados no artigo 3º da Convenção, assim sintetizados: promover a proteção da propriedade intelectual em todos os países, contando para tal com a cooperação desses Estados e de qualquer outro organismo internacional e assegurar a cooperação administrativa entre as entidades engajadas no tema (União de Paris e de Berna). São medidas preconizadas pela OMPI, entre outras: melhorar a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo, harmonizar as legislações dos diferentes países, estimular a assinatura de acordos internacionais, prestar assistência técnica e jurídica no campo da propriedade intelectual e difundir informações e estudos sobre a matéria.14
20.5 Convenções internacionais O reconhecimento da propriedade intelectual está presente na emblemática Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que dispõe no artigo 27: “1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da humanidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.” A evolução dos direitos de Propriedade Intelectual, tão acentuada neste início do século XXI, tem um rico retrospecto nos séculos anteriores, devendo-se destacar, além da mencionada Convenção de Berna (1886), pioneira no campo dos direitos autorais, as seguintes: – Convenção de Roma de Direitos Conexos (1961): protege intérpretes, produtores de fonogramas e organizações de radiodifusão, articulando os direitos de autor àqueles que lhes são conexos; – Convenção para Proteção de Produtores de Fonogramas contra Duplicação Não Autorizada de Seus Fonogramas (1971), prevenindo a pirataria;
– Convenção Relacionada à Distribuição de Programas Transmitidos por Satélite (1974), que visa defender e proteger as organizações transmissoras contra a pirataria; e – Tratado da OMPI sobre Copyright, que resultou da Conferência Diplomática sobre Questões Relativas aos Direitos de Autor e Direitos Conexos (1996). 20.5.1 TRIPs Não obstante o papel desempenhado pela OMPI, os países industrializados sentiram a necessidade de revisão dos tratados a fim de dotá-los de mecanismos para impor deveres e sanções aos Estadosmembros, bem como criar mecanismos para solucionar controvérsias. Após demoradas negociações e discussões, no Acordo GATT da Rodada Uruguai foi criado o TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – Acordo sobre Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), havendo consenso sobre vários temas, entre outros: aplicação dos princípios básicos do GATT 1994 e dos acordos e convenções internacionais relevantes em matéria de Propriedade Intelectual; instituição de padrões e princípios relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de PI relacionados ao comércio; estabelecimento de meios eficazes e apropriados para a aplicação de normas de proteção de direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao comércio, levando em consideração as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos nacionais; e de procedimentos eficazes e expeditos para prevenção e solução multilaterais de controvérsias entre Governos. O acordo, que aproxima propriedade intelectual e comércio internacional, reconhece os direitos de PI como direitos privados e contém os objetivos básicos de política pública dos sistemas jurídicos nacionais de proteção da Propriedade Intelectual, incluindo os de desenvolvimento e tecnologia. Reconhece, ainda, as necessidades especiais dos países de menor desenvolvimento relativo, no que tange à implementação interna de leis e regulamentos, com a máxima flexibilidade, de forma a habilitá-los a criar uma base tecnológica sólida e viável. Verifica-se que o acordo TRIPs permite à comunidade internacional reduzir tensões e buscar solução para controvérsias entre os Estados-partes a respeito do comércio, por meio de compromisso em procedimentos multilaterais, tendo por base a cooperação mútua, o consenso, a prudência e a lealdade. Cada membro poderá ampliar a sua legislação interna, mas não pode reduzir o acordado, sendo as controvérsias submetidas ao processo de solução da OMC. As tratativas multilaterais no contexto da OMC ainda prosseguem em vários temas ligados à propriedade intelectual, como na discussão acerca de um Registro Multilateral de Indicações Geográficas. Um mecanismo internacional para o registro deste e outros signos distintivos na OMC propiciaria maior transparência e publicidade na sua proteção, minimizando conflitos entre países, os quais ainda buscam solucionar tais impasses por meio de acordos bilaterais. Tal mecanismo esbarra, no entanto, nas assimetrias legislativas na matéria, o que acaba repercutindo no DIPr, uma vez que suas normas são evocadas para dirimir conflitos privados que envolvem os diferentes ordenamentos jurídicos nacionais.
20.6 Direito Internacional Privado e Propriedade Intelectual No campo do Direito Internacional Privado, o sistema de propriedade intelectual é territorial, uma vez que o registro é mantido individualmente pelos Estados. Daí o efeito desse registro se limitar ao país no qual é procedido. Portanto, a lei aplicável ao direito da propriedade intelectual propriamente dito –
sua constituição, conteúdo, efeito e extinção – é nacional, cabendo verificar o direito brasileiro, argentino ou espanhol, por exemplo. Trata-se do princípio da lex loci protectionis, adotado pela doutrina e pelas legislações. Os avanços da informática impõem o surgimento de critérios internacionais sobre jurisdição e lei aplicável, pois os direitos da propriedade intelectual tornam-se facilmente negociáveis e sua violação pode ocorrer simultaneamente em jurisdições internacionais distintas.15 Atendo-se ao direito do autor, o artigo 9.2 da Convenção de Berna estabelece: “Fica reservada às legislações dos países da União a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras, em certos casos especiais, desde que tal reprodução não prejudique a exploração normal da obra nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor.” No âmbito latino-americano, cabe lembrar o Código Bustamante, autodenominado Código de Direito Internacional Privado (Havana, 1928), que dispõe: “A propriedade industrial e intelectual e os demais direitos análogos, de natureza econômica, que autorizam o exercício de certas atividades concedidas pela lei, consideram-se situados onde se tiverem registrado oficialmente” (art. 108); e “A propriedade intelectual e a industrial regular-se-ão pelo estabelecido nos convênios internacionais especiais, ora existentes, ou que no futuro se venham a celebrar. Na falta deles, sua obtenção, registro e gozo ficarão submetidos ao direito local que as outorgue” (art. 115). Quanto à duração dos direitos do autor após o seu falecimento – que é de setenta anos no Brasil, como visto anteriormente – a tendência nos diversos países é a adoção do prazo exigido pela Convenção de Berna: cinquenta anos. É o caso do Chile (art. 10 da Lei n. 17.336/1970, que regula a Propriedade Intelectual). Contudo, na Alemanha o prazo é de setenta anos, a exemplo da União Europeia. Esse direito era protegido, nos Estados Unidos, por um lapso de vinte e oito anos, renovável uma vez.16 Ocorre que a Convenção Universal sobre o Direito do Autor, revista em Paris, de 24 de julho de 1971, assegura prazo mínimo de vinte e cinco anos após o falecimento do autor, o que vinha embasando a lei norte-americana. Com a adesão, em 1989, dos Estados Unidos à Convenção de Berna, houve a adequação desse país ao seu lapso. Convém mencionar que os EUA aplicam regras diferenciadas para os casos de “autoria corporativa”. Nesse contexto, em 1998 foi aprovado o “Copyright Term Extension Act”, também chamado de “Mickey Mouse Protection Act”, que estendeu os direitos autorais, nos casos de autoria corporativa, para 120 anos da criação ou 95 anos da publicação. A lei contou com forte lobby da Disney, que temia a entrada em domínio público das primeiras obras da empresa. No que tange às obrigações contratuais de propriedade intelectual, em tese elas seguem as regras gerais dos contratos. Verifica-se a tendência de adoção do princípio da autonomia da vontade na maioria das legislações, o que ainda não ocorre no Brasil.
20.7 DIPr brasileiro da Propriedade Intelectual Todo contrato celebrado pela Administração Pública brasileira com pessoas físicas ou jurídicas, incluindo as domiciliadas no estrangeiro, deverá ter cláusula reconhecendo competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual. Contudo, nas licitações internacionais para aquisição de bens e serviços, cujo pagamento ocorra com produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça parte ou por agência estrangeira de cooperação, é dispensável essa cláusula (Lei n. 8.666, de 21.06.1993, art. 55, § 2º). O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), criado pela Lei n. 5.648, de 11 de dezembro de 1970, é uma autarquia federal destinada a executar, em todo o Brasil, as normas que regulam a
propriedade industrial, tendo em vista sua função social, econômica, jurídica e técnica. Cabe-lhe, ainda, pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura e ratificação de convenções, tratados e acordos sobre o tema. Observa-se no Brasil a não inclusão da autonomia da vontade nas obrigações contratuais. Existem hoje duas posições quanto ao enquadramento dessa autonomia: para os partidários da tese subjetivista, a vontade tem por finalidade descartar certas disposições imperativas da lei normalmente aplicável; enquanto para os objetivistas, a vontade teria uma função de conexão, constituindo, na verdade, um indício da localização da lei escolhida pelas partes para reger o contrato. De qualquer maneira, a discussão sobre a legitimação da autonomia da vontade perdeu parte de seu atrativo, na medida em que convenções internacionais permitiram expressamente essa faculdade às partes na escolha da lei contratual.17 Um dos argumentos favoráveis à adoção da autonomia da vontade em DIPr tem sido a possibilidade de as partes escolherem a prestação mais adequada, in casu, ou seja, que elas determinem a lei que esteja mais conectada a seus interesses. Enquanto persiste a restrição a essa opção das partes, a legislação brasileira sobre obrigações contratuais continua regida pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que estabelece: “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que (estas) se constituírem” (art. 9º). É a lex loci contractus. Portanto, quanto à forma e à substância, aplicase a lei brasileira para os contratos constituídos no Brasil.
20.8 Considerações finais São intensos os liames entre o Direito da Propriedade Intelectual e o DIPr. Tais elos surgiram há vários séculos, mas a importância da propriedade intelectual hoje, com os avanços da tecnologia e das comunicações, que aproximam pessoas e negócios, ao tempo em que trazem novas formas de lides jurídicas, ampliou-os significativamente. Das reflexões, infere-se que as normas integradoras de propriedade intelectual e dos conflitos de lei interespaciais entre ordenamentos jurídicos ainda têm pela frente uma longa caminhada a fim de poderem, ambas as disciplinas, contribuir de forma mais eficaz para a harmonia e a solidariedade entre os povos, desiderato maior de cada uma delas e do próprio espírito da Justiça.
RESUMO 20.1 Considerações iniciais O Direito da Propriedade Intelectual e o DIPr têm pontos de convergência, os quais se ampliam com as transações internacionais que envolvem direitos imateriais. A propriedade intelectual compreende, genericamente, os direitos autorais e a propriedade industrial, que eram estudados em outros segmentos jurídicos, como o Direito das Coisas (direito do autor) e o Direito Comercial (o das marcas).
20.2 Propriedade intelectual Proteger a Propriedade Intelectual é um meio de promover inovação, transferência e disseminação de tecnologia, fundamental no processo de desenvolvimento de um país. O direito da propriedade intelectual é absoluto (oponível a todos), exclusivo (afasta uso privado em detrimento do titular), resolúvel (pois a obra pode cair no domínio público) e tem natureza cosmopolita.
20.2.1 Histórico O direito do inventor tem raízes em Veneza (1474) e na Inglaterra (1624) com as primeiras codificações de patente. Quanto às marcas, elas têm origem na época romana, quando eram utilizadas pelos proprietários nos animais de seus rebanhos. 20.2.2 Importância na atualidade Mais do que em qualquer época, atribui-se hoje enorme relevo ao capital oriundo do conhecimento. Praticamente tudo que se usa, observa ou ingere está direta ou indiretamente associado e protegido pela propriedade intelectual.
20.3 Propriedade intelectual no Brasil Duas normas jurídicas disciplinam a propriedade intelectual no País. A Lei n. 9.610, de 19.02.1998, trata dos direitos autorais, incluindo os direitos morais, patrimoniais e sua duração, limitações e transferência. Ela assegura aos estrangeiros, incluindo-se os domiciliados no exterior, a proteção, no Brasil, dos direitos autorais e conexos, inserida em acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil (art. 2º). A Lei n. 9.279, de 14.05.1996, regula os direitos e obrigações da propriedade industrial, considerando o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País (art. 2º). A proteção ocorre pela concessão de patentes de invenção e de modelos de utilidade, de registro de desenho industrial e de marcas, bem como pela repressão à concorrência desleal e às falsas indicações geográficas. 20.3.1 Medicamentos A descoberta de substâncias curativas e preventivas requer estudos e pesquisas que implicam investimentos elevados. Impõe-se o incentivo a órgãos privados, que se somem ao poder público nessa busca. Os recursos provêm, o mais das vezes, de grandes empresas transnacionais, as quais deverão, no uso do privilégio da patente conseguida, recuperar o capital investido e auferir lucros. O estímulo da pesquisa em cada país, por meio da patente nacional, acaba favorecendo a própria indústria desse Estado. 20.3.2 Caso Efavirenz Com amparo na Lei n. 9.279/1996 (art. 71) e no acordo TRIPs, o Brasil decretou, em 2007, o licenciamento compulsório do antirretroviral Efavirenz, cuja patente é do laboratório Merck, e que é utilizado em medicamento contra a AIDS. Foi invocado interesse público e o uso seria não comercial e de forma temporária, com remuneração ao detentor da patente. Essa medida permitiu ao Brasil fabricar medicamento genérico a baixo custo, economizando trinta milhões de dólares em seis anos e atendendo maior número de vítimas da AIDS. Em maio de 2012, o Brasil renovou o licenciamento compulsório do medicamento por mais cinco anos.
20.4 Organização Mundial da Propriedade Intelectual Instituída pela Convenção de Estocolmo (1967), a OMPI disciplina e protege os direitos intelectuais na esfera internacional. Tem sede em Genebra e se originou das Convenções da União de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial (1883) e de Berna para Proteção das Obras Literárias e Artísticas (1886). A relevância desses tratados para o Direito Internacional Privado é significativa, prevendo a regulamentação de conflitos de leis e de jurisdição, a condição jurídica do estrangeiro e o gozo de seus direitos.
20.5 Convenções internacionais Além dos tratados referidos, dos direitos de Propriedade Intelectual ocupam-se as Convenções de Roma de Direitos Conexos (1961), Proteção de Produtores de Fonogramas contra Duplicação Não Autorizada (1971), a Relacionada à Distribuição de Programas Transmitidos por Satélite (1974) e o Tratado da OMPI sobre Copyright, que resultou da Conferência Diplomática sobre Questões Relativas aos Direitos de Autor e Conexos (1996). 20.5.1 TRIPs Aproximando propriedade intelectual e comércio internacional, o acordo TRIPs contém os objetivos básicos de política pública dos sistemas jurídicos nacionais de proteção da PI, incluindo os de desenvolvimento e tecnologia. Reconhece as necessidades especiais dos países de menor desenvolvimento relativo, no que tange à implementação interna de leis e regulamentos, com a máxima flexibilidade, de forma a habilitá-los a criar uma base tecnológica sólida e viável. O TRIPs permite à comunidade internacional reduzir tensões e buscar solução para controvérsias entre os Estados-partes a respeito do comércio, por meio de compromisso em procedimentos multilaterais, tendo por base a cooperação mútua, o consenso, a prudência e a lealdade.
20.6 Direito Internacional Privado e Propriedade Intelectual No campo do DIPr, a propriedade intelectual é territorial, sendo o registro mantido individualmente pelos Estados, com efeito limitado a esse país. A lei aplicável ao direito da propriedade intelectual propriamente dito – sua constituição, conteúdo, efeito e extinção – é nacional, cabendo verificar o direito brasileiro, argentino ou espanhol, por exemplo. Trata-se do princípio da lex loci protectionis, adotado pela doutrina e pelas legislações. Os avanços da informática impõem o surgimento de critérios internacionais sobre jurisdição e lei aplicável, pois os direitos da propriedade intelectual tornam-se facilmente negociáveis e sua violação pode ocorrer em jurisdições internacionais distintas.
20.7 DIPr brasileiro da Propriedade Intelectual Contrato celebrado pela Administração Pública brasileira com pessoas físicas ou jurídicas, incluindo as domiciliadas no estrangeiro, deverá ter cláusula reconhecendo competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual. Contudo, nas licitações internacionais para aquisição de bens e serviços, cujo pagamento ocorra com produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça parte ou por agência estrangeira de cooperação, essa cláusula pode ser dispensada (Lei n. 8.666/1993, art. 55, § 2º). O Instituto Nacional da Propriedade Industrial, criado pela Lei n. 5.648/1970, é uma autarquia federal destinada a executar, no Brasil, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista sua função social, econômica, jurídica e técnica. Cabe-lhe, ainda, pronunciar-se quanto à conveniência de
assinatura e ratificação de convenções, tratados e acordos sobre o tema.
20.8 Considerações finais São intensos os vínculos entre Direito da Propriedade Intelectual e DIPr. Tais elos surgiram há séculos, mas a importância da propriedade intelectual hoje, com os avanços da tecnologia e das comunicações, que aproximam pessoas e negócios, trazendo novas formas de lides jurídicas, amplia significativamente essa convergência.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Tecer considerações sobre as ligações da Propriedade Intelectual com o DIPr. 2. Dissertar sobre a importância da propriedade intelectual na esfera internacional hoje. 3. Analisar brevemente a legislação brasileira sobre propriedade intelectual, detendo-se nos pontos em que essas normas convergem com o Direito Internacional Privado. 4. Estudar o caso Efavirenz, posicionando-se sobre os aspectos conflitantes dessa medida e suas consequências para a propriedade intelectual no Brasil. 5. Dissertar sobre o acordo TRIPs e sua importância na aproximação entre a propriedade intelectual e o Direito Internacional Privado. 6. Explicitar a legislação brasileira sobre contratos da Administração Pública com pessoas internacionais, apresentando casos concretos encontrados na jurisprudência. 7. Tecer considerações sobre o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual, enfatizando os pontos que interessam ao DIPr.
______________ 1 TENÓRIO, Oscar. Direito internacional privado. p. 315. 2 PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito de propriedade intelectual e desenvolvimento. p. 26. 3 BOFF, Salete Oro. Patentes na biotecnologia e desenvolvimento. p. 279. 4 FULGÊNCIO, Tito. Direito internacional privado. p. 51. 5 HAMMES, Bruno Jorge. O direito da propriedade intelectual. p. 23. 6 GORZ, André. O imaterial. p. 60. 7 BOFF, S. O. Op. cit. p. 254. 8 IACOMINI, Vanessa. Os direitos de propriedade intelectual e a biotecnologia. p. 27. 9 HAMMES, B. J. Op. cit. p. 126. 10 LOCATELLI, Liliana. Indicações geográficas: da proteção jurídica ao desenvolvimento econômico. p. 222. 11 HERINGER, Astrid. Patentes de medicamentos: aspectos jurídicos e sociais. p. 310-311. 12 HAMMES, B. J. Op. cit. p. 251. 13 BOFF, S. O. Op. cit. p. 258. 14 ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional privado. p. 247-249. 15 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. p. 473-474. 16 HAMMES, B. J. Op. cit. p. 101-102. 17 ARAÚJO, Nadia de. Contratos internacionais: autonomia da vontade, Mercosul e convenções internacionais. p. 48-50.
DIREITO DO TRABALHO E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
“O lugar da prestação de serviço, além de ser o campo comum dos interesses do empregado e do empregador, é o cenário em que se desenvolve a vida profissional do trabalhador e aí surgem ou crescem os problemas que resultam da execução do contrato” (Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).
21.1 Considerações iniciais A interconexão entre Direito do Trabalho e Direito Internacional comporta mais de um viés. Restringindo-se ao direito laboral, em seu aspecto substantivo, sem alusão ao âmbito processual, cabe verificar inicialmente qual ramo da ciência jurídica prevalece, o Direito do Trabalho ou o Direito Internacional. O encontro da ordem jurídica trabalhista com o Direito Internacional Público conduz a importante sub-ramo desse último, o chamado Direito Internacional do Trabalho. Nele avulta a presença da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com sede em Genebra, aprovada pela Conferência de Paz e criada pelo Tratado de Versalhes,1 em 1919, como consectário da I Guerra Mundial, visando à melhoria das condições do trabalhador, cuja participação como soldado e como operário durante o conflito salientara a necessidade de proteção na esfera internacional. A emblemática associação, que inovou com a representação tripartite, na qual representantes governamentais, empregados e empregadores têm igualdade de voto na assembleia-geral, sobreviveu à segunda Guerra Mundial e foi inserida na nova estrutura internacional, como a primeira instituição a filiar-se à Organização das Nações Unidas (ONU), ampliando sua atuação em prol de um Direito do Trabalho mais consentâneo com os novos tempos, em que as regras jurídicas no âmbito global passaram a contar com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nessa tessitura, o artigo 23 da Declaração preceitua: “1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus interesses.” A Organização Internacional do Trabalho, criada para estabelecer normas universais que tornem mais justas e humanas as relações trabalhistas, tem-se caracterizado por intensa atividade normativa, na qual se inserem centenas de convenções e de recomendações,2 destinadas a regular as condições de trabalho e promover a justiça social na esfera internacional. Valerio Mazzuoli explica a distinção entre elas, que é formal, uma vez que ambas se ocupam da mesma matéria: as convenções devem ser ratificadas pelos Estados-membros da OIT para ter eficácia e aplicabilidade no Direito interno desses países, enquanto as recomendações – que não são tratados – visam apenas sugerir, aos legislativos dos Estados, mudanças no Direito interno nas questões que disciplinam.3 Existem ainda as resoluções da OIT, que apenas traçam diretrizes complementares às suas convenções.4
Neste momento, interessa analisar a convergência do Direito do Trabalho com o Direito Internacional Privado. A participação, cada vez maior, de estrangeiros no mercado de trabalho dos países redunda em inúmeras ações na Justiça desses Estados. Surge, então, o Direito Internacional Privado do Trabalho, expressão preferível, considerando-se que as normas e princípios, nessas lides, são da nossa disciplina, embora envolvam conflitos laborais. Outra denominação seria Direito do Trabalho Internacional, privilegiando-se o viés jurídico laboral.
21.2 Direito Internacional Privado do Trabalho Pensamos estar caracterizado no mundo das ciências jurídicas o Direito Internacional Privado do Trabalho, conjunto de normas de direito público interno dos Estados que busca, por meio dos elementos de conexão, encontrar o direito aplicável, nacional ou estrangeiro, nos casos em que a lide trabalhista envolve ordenamentos jurídicos igualmente possíveis para a solução do caso. Duas questões se anteparam ao magistrado na solução de lide trabalhista que envolva mais de uma ordem jurídica: a Justiça competente e a lei aplicável. Casos dessa natureza surgem quando há um elemento estrangeiro na relação laboral, tal como quando uma das partes é estrangeira, tem domicílio no exterior, aí houve a celebração do contrato ou a sua execução, ou quando a remuneração do trabalhador foi fixada em moeda estrangeira. A globalização da economia, com a intensificação do comércio internacional e a atuação de empresas fora de seu país, incluídas as grandes sociedades transnacionais, determina o surgimento de conflitos trabalhistas interespaciais. Diversos fatores contribuem para o surgimento desses dissídios: o deslocamento de mão de obra, a necessidade de técnicos estrangeiros, o desenvolvimento do transporte entre os Estados, a internacionalização do comércio e as atividades transnacionais das empresas com filiais em diversas partes do mundo.
21.3 Justiça competente A competência da Justiça laboral brasileira, conforme o artigo 114 da Carta Magna vigente, com redação da Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, alcança as ações oriundas das relações de trabalho em que seja parte ente de direito público externo. Assim, litígios envolvendo Estado estrangeiro, caso de empregado brasileiro contratado por Embaixada estrangeira em nosso país, são julgados pela Justiça trabalhista brasileira. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “o Estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista”, uma vez que as prerrogativas diplomáticas não podem ser invocadas, em processo dessa natureza, para contestar enriquecimento sem causa de Estado estrangeiro, em “injusto detrimento de trabalhadores residentes em território brasileiro, sob pena de essa prática consagrar inaceitável desvio ético-jurídico, incompatível com o princípio da boa-fé e com os grandes postulados do direito internacional” (RE n. 222.368-4/PE – 28.02.2002 – rel. Ministro Celso de Mello – site do STF). Situação análoga ocorre quando se trata de trabalhador brasileiro ou de qualquer outra nacionalidade domiciliado em outro país no qual venha a prestar serviços à nossa embaixada. Ser-lhe-á aplicada a lei desse Estado, uma vez que a contratação e o exercício laboral ocorreram nesse contexto. O artigo 651 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por seu turno, preceitua que a competência das Varas do Trabalho é determinada pelo local em que o empregado, seja reclamante ou reclamado, presta serviço ao empregador, mesmo que o contrato tenha sido celebrado em outro local ou no estrangeiro. O § 2º desse artigo estende essa competência aos dissídios ocorridos em agência ou filial
no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário.
21.4 Contrato individual de trabalho e conflito interespacial A legislação aplicável ao contrato de trabalho merece algumas considerações. Quanto à capacidade das partes, a legislação brasileira indica a lei pessoal, o domicílio. O conteúdo do contrato será regido pelo ordenamento jurídico sob o qual ele é realizado, a lex loci contractus. Os efeitos contratuais, por seu turno, serão regulados pela legislação vigente no domicílio do empregador, sob a qual também ocorre a interpretação do contrato, desde que coerentes com as normas imperativas. Por fim, na rescisão do contrato será observada a lei do local em que esse foi executado ou a do lugar em que se realizou.
21.5 Emprego da lex loci executionis No tocante à lei a ser aplicada na solução da lide interespacial trabalhista, o emprego da legislação do país no qual o trabalho é prestado, a lex loci executionis, ganha espaço nos ordenamentos jurídicos, tanto brasileiro como de outros países. Nessa tessitura, determinava a Súmula n. 207 do Tribunal Superior do Trabalho: “A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação.” Fugiria dessa regra o trabalho prestado a título esporádico, no contexto de uma relação laboral continuada, desenvolvido em outro país ou mais de um deles, mas subordinado habitualmente à matriz no estrangeiro. Seria o caso de funcionário que vai a outro país instalar determinado equipamento ou prestar assistência ante um problema sanável no mesmo. De qualquer forma, essa súmula foi cancelada em abril de 2012, pois o entendimento predominante é de que a regência da lei do país da prestação do serviço não é absoluta, cedendo espaço para a lei mais favorável ao trabalhador. A Lei n. 7.064, de 06 de dezembro de 1982, alterada pela Lei n. 11.962, de 03.07.2009, disciplina a situação dos trabalhadores contratados no Brasil e dos transferidos do País para prestar serviço no exterior. Ademais, permite a aplicação da lei brasileira nos casos em que essa se revelar mais favorável ao empregado do que a legislação territorial (art. 3º). Essas empresas devem fazer seguro de vida e acidentes pessoais em favor do trabalhador transferido, desde seu embarque até o retorno ao Brasil. Ao empregado, será assegurada, ainda, assistência médica, próxima ao local de trabalho e de forma gratuita. No que tange à prova dos fatos ocorridos no estrangeiro, quanto ao ônus e aos meios de se produzirem, será regida pela lei vigente nesse país, conforme o artigo 13 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Nas regiões fronteiriças, o trabalho no estrangeiro assume características especiais. Inúmeros são os casos de cidades gêmeas, nas quais até os lados da mesma rua estão situados em países diferentes. É exemplo dessa natureza Santana do Livramento (RS) e Rivera, no Uruguai. Nesse contexto, muitos brasileiros, mesmo domiciliados no Brasil, exercem suas atividades profissionais na cidade uruguaia, enquanto uruguaios, lá residentes, trabalham no lado brasileiro. Evidencia-se, por óbvio, que a lei aplicável em eventual lide trabalhista será a do local da execução laboral. Lembra Gilda Russomano que, mesmo sendo temporária, periódica ou eventual essa migração, retornando o trabalhador do local da prestação do serviço (território estrangeiro) para sua residência (território nacional) diariamente, o foro da execução do contrato individual de trabalho é o estrangeiro (lex loci executionis).5 A aplicação da lei do local da execução do trabalho deixa de ser solução óbvia no caso dos marítimos e aeronautas, para os quais se tem empregado a legislação do pavilhão. Há, ainda, a situação
do trabalhador que exerce sua atividade em diversos países, tornando difícil a identificação do local da execução da mesma. Nesse caso, o ideal parece ser a legislação da parte que executa o trabalho, no caso a lei do trabalhador.6
21.6 Mercosul e harmonização das normas trabalhistas entre os países Convém lembrar que o Mercosul, ainda no primeiro ano de sua instituição, criou Subgrupo de Trabalho, o SGT 11, por meio da Resolução n. 11/91 do Grupo Mercado Comum. Assim, sobre o tema Assuntos Trabalhistas, Emprego e Seguridade Social, deverá analisar as questões laborais no âmbito do bloco, tendo em vista “a necessidade de que os aspectos trabalhistas sejam adequadamente tratados de modo a assegurar que o processo de integração seja acompanhado de uma efetiva melhora nas condições de trabalho nos países da sub-região”. O objetivo a alcançar são estudos visando à atualização das legislações no bloco e a realização de estudos sobre institutos e práticas na esfera trabalhista entre os Estados-membros.
21.7 Casos de conflitos trabalhistas interespaciais Vamos referir alguns casos submetidos à Justiça do Trabalho brasileira envolvendo lides oriundas de exercício profissional em território sob outra ordem jurídica. O mais das vezes, nossa Justiça laboral tem declarado sua competência territorial para o julgamento desses litígios. Cabe acentuar que, até pela natureza desses dissídios, a competência assumida não exclui a da Justiça estrangeira. Uma ação tramitou na Vara trabalhista de Bagé (RS), em cuja cidade haviam sido contratados dois trabalhadores brasileiros para laborarem integralmente em lavoura de arroz situada no Uruguai, cujo proprietário era também brasileiro. Nossa justiça laboral declarou-se competente para julgar o feito, reconhecendo ser aplicável para dirimir a lide a legislação material trabalhista uruguaia. Situação análoga, em que doméstica brasileira foi contratada, no Brasil, no município em que residia, fronteiriço ao território uruguaio, para trabalhar no país vizinho, teve reconhecida a competência laboral da Justiça brasileira e a legislação trabalhista uruguaia para dirimir o conflito. Há o caso de espanhol contratado em seu país para trabalhar em empresa também espanhola. Em dado momento, ele foi designado para exercer a atividade profissional no Brasil, em vista de cooperação técnica de sua empregadora com empresa brasileira. Em ação que aqui tramitou, nossa Justiça laboral julgou-se competente para o lapso em que o exercício profissional ocorreu em nosso país, a cujo período também se aplicou a lei brasileira. Em ação, na Justiça do Trabalho brasileira, estrangeiro com contrato firmado no exterior, que teve a atividade laboral exercida sucessivamente na Argentina, no Brasil e na República Dominicana, viu reconhecida a competência de nossa Justiça e a aplicação de nossa legislação para o tempo – cerca de sete anos – em que trabalhou no Brasil. Em todos esses casos, as decisões se alicerçaram no artigo 651 da CLT, na Súmula n. 207 do TST – que agora está cancelada – e, ainda, no artigo 198 do Código Bustamante. Cabe lembrar que esse Código faz parte do ordenamento jurídico brasileiro e o dispositivo aludido consigna que “também é territorial a legislação sobre acidentes de trabalho e proteção social do trabalhador”.
21.8 Ementas de lides interespaciais Competência Territorial. A competência em razão do lugar no processo do trabalho não é definida
em benefício da empresa, e sim do empregado, levando-se em conta a hipossuficiência deste último. A regra geral de competência tem residência no art. 651 da CLT e se estabelece prioritariamente em razão do lugar da prestação de serviços e não necessariamente da sede da empresa. Evidenciado nos autos que o autor prestou serviços em vários lugares, a competência na hipótese é a do local da celebração do contrato ou de uma das localidades em que o empregado trabalhou (inteligência do § 3º do art. 651 da CLT). (TRT/10ª R. – RO 00398-2010-111-10-00-1, j. em 11.05.2011).7 Conflito da Lei no Espaço. Lex Loci Executionis. Trabalho no Exterior. Lei n. 7.064/1982. A par da “Lex Loci Executionis”, em caso de conflito entre a legislação do Brasil, onde se deu a contratação, e a do país em que ocorreu a prestação de serviço, a Lei n. 7.064, de 06.12.1982, que dispõe sobre a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior assegura a aplicação da legislação brasileira naquilo em que for mais favorável ao empregado, inclusive fazendo uma exceção ao princípio do conglobamento. (TRT/3ª R. – RO n. 0001756-50.2010.5.03.0110, j. 27.07.2012).8 Estado Estrangeiro. Reclamação Trabalhista. Imunidade de Execução que não se Confunde com Imunidade de Jurisdição. O Estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição, que tem caráter relativo, em causa de natureza trabalhista. Entretanto, a não aplicação da imunidade nas causas de natureza trabalhista refere-se apenas ao processo de conhecimento (imunidade judiciária), pois na fase de execução incide imunidade, a denominada imunidade de execução, que constitui categoria autônoma e juridicamente inconfundível com a primeira (TRT 2ª R. – RO n. 20120063010, j. 30.11.2012).9 Cruzeiro Marítimo. Trabalhador Embarcado. Navio Estrangeiro. Competência e Legislação Aplicável. Há que se diferenciar entre a competência da jurisdição brasileira sobre o contrato mantido pelo autor e a legislação aplicável a este mesmo contrato. São questões que não se comunicam: a primeira, de ordem processual, relativa à competência territorial; a segunda, de direito material, atinente ao conflito de lei no espaço. Tanto assim é, que em determinadas circunstâncias pode o juiz brasileiro aplicar legislação estrangeira, competindo à parte que a invoca a prova do texto e da vigência (art. 14, LINDB). Feita a diferenciação, temos que a competência territorial encontra-se regrada nos arts. 12 da LINDB e 88 do CPC. E especificamente em matéria trabalhista, o § 2º do art. 651 da CLT adota regra que amplifica o disposto no inciso I do art. 88 do CPC (“Art. 651. (...). § 2º – A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário”). E no caso, é incontroverso que a empresa estrangeira com a qual o autor firmou o contrato de trabalho (MSC Crociere SA) seja socioproprietária da primeira reclamada, a MSC Cruzeiros do Brasil Ltda., esta estabelecida em território nacional, pelo que é tida como sua agência ou filial, atraindo a incidência do § 2º do art. 651 da CLT. Assim, a presente lide se submete à jurisdição nacional, merecendo reforma a sentença, neste ponto. Já no que concerne à legislação trabalhista aplicável, como regra, nosso país consagra o critério da territorialidade, enfatizado na Súmula nº 207/TST, que preconiza a adoção da lex loci executiones. Todavia, consoante entendimento do TST em demanda idêntica (RR127/2006-446-02-00.1, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi), há espaço para interpretação que atenda às peculiaridades de cada caso. Além de pré-contratado no Brasil, em aproximadamente metade do tempo do contrato o reclamante prestou serviços em águas nacionais. E ainda, a ré não trouxe a legislação italiana, que sustentou aplicável. Incide, pois, a legislação pátria. Apelo obreiro provido (TRT 2ª R. – RO n. 0001039-30.2010.5.02.0445, j. 06.09.2013).10 Imunidade de Jurisdição. Estado Estrangeiro. Relação de Trabalho. Inexistência. A evolução do Direito das Gentes vem originando uma dinâmica conducente a atrelar os atos de mera gestão à tutela da
Justiça da nação em que foram praticados. Relativizar a imunidade de jurisdição conferida a entes públicos estrangeiros e às organizações internacionais, afastando o privilégio quando a atuação é de índole privada, é dar prioridade à administração da justiça, poder fundamental do Estado, que se constitui, no dizer de Bustamante – um direito e um dever –, e a renúncia, na hipótese, afronta o princípio da inafastabilidade da jurisdição e, aí sim, violada ficaria a literalidade que emoldura garantia insuscetível de ser afrontada por convenção internacional, que no plano interno ocupa patamar equivalente ao da lei ordinária (TRT/1ª R. – RO n. 0175800-58.1998.5.01.0002, j. 04.09.2013).11 Agravo de Instrumento. Recurso de Revista. Contrato Firmado e Realizado Integralmente no Exterior. Aplicação da Legislação Norte-Americana para Reconhecimento da Prescrição. Decisão Denegatória. Manutenção. É incontroverso nos autos que a Reclamante foi contratada nos Estados Unidos, onde residia, e sempre lá prestou serviços. Não houve contratação ou proposta no Brasil, nem trabalho neste País. Consoante o disposto na Lei de Introdução ao Código Civil, art. 9º – Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. Portanto, é plenamente aplicável a legislação norte-americana à hipótese dos autos. Ademais, segundo o critério da “lex loci executionis”, é aplicável a lei do lugar da prestação de serviços, caso não se trate de trabalhador transferido do Brasil para o exterior ou aqui contratado para trabalhar em território estrangeiro. Esse critério é previsto pelo artigo 198 do Código de Bustamante, ratificado no Brasil pelo Decreto 18.871, de 13 de agosto de 1929, segundo o qual também é territorial a legislação sobre acidentes do trabalho e proteção social do trabalhador. Inviável o reconhecimento de violação dos arts. 2º, 3º, III, da Lei n. 7.064/1982, pretendida pela Recorrente, pois o mencionado diploma legal, alterado pela Lei n. 11.962/2009, dispõe sobre a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior – o que não retrata a realidade fática vivida pela Reclamante. Assim, não há como assegurar o processamento do recurso de revista quando o agravo de instrumento interposto não desconstitui os fundamentos da decisão denegatória, que subsiste por seus próprios fundamentos. Agravo de instrumento desprovido (TST – AgI/RRev 206500-49.2004.5.02.0076, j. 09.10.2013).12 Recurso Ordinário. Ação Rescisória. Decadência. Súmula n. 100, III, do TST. Recurso Intempestivo. Dúvida Razoável. 1. Nos termos da Súmula nº 100, I, do TST, “o prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do dia imediatamente subsequente ao trânsito em julgado da última decisão proferida na causa, seja de mérito ou não”. 2. A regra do item I da Súmula 100 do TST é excepcionada pelo inciso III do mesmo verbete, pelo qual, “salvo se houver dúvida razoável, a interposição de recurso intempestivo ou a interposição de recurso incabível não protrai o termo inicial do prazo decadencial”. 3. Na hipótese, não obstante a declaração de intempestividade do recurso ordinário interposto pela Unesco no processo matriz, ao fundamento de que o organismo internacional não faz jus ao prazo em dobro, forçoso concluir que a hipótese se insere na exceção do item III da Súmula n. 100 do TST, uma vez que o entendimento da Corte Regional, na ação matriz, além de minoritário, não guarda sintonia com a jurisprudência desta Corte Superior. Com efeito, a representação da Unesco pela União está calcada no Decreto n. 59.308/1966, razão pela qual é aplicável a regra de prazo em dobro. Configurada a dúvida razoável, hábil a protrair o termo inicial do prazo decadencial do artigo 495 do CPC, infere-se que o trânsito em julgado da decisão rescindenda, na hipótese, ocorreu apenas após o trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. Recurso ordinário conhecido e desprovido (TST-RO-500068.2010.5.23.0000, j. 01.10.2013).13 Da Suspensão do Contrato de Trabalho. Período laborado no exterior. É uno o contrato de trabalho do empregado admitido em 1971 no Brasil, que, transferido para o exterior de 1987 a 2000, continuou a prestar serviços ao Banco reclamado em outro país, atuando em unidades do mesmo grupo
empresarial, ainda que com diversa nomenclatura (ABN AMRO BANK), sem solução de continuidade, mantendo vigente o contrato até 2009. Não é aplicável ao caso a hipótese da Súmula n. 207/TST, já cancelada, ainda que ao tempo da vigência do contrato estivesse em vigor (TRT/4ª R. – RO n. 010280086.2009.5.04.0024, j. 25.09.2013).14
RESUMO 21.1 Considerações iniciais A participação, cada vez maior, de estrangeiros no mercado de trabalho dos países redunda em inúmeros casos de ações na Justiça desses Estados. Então surge o Direito Internacional Privado do Trabalho, expressão preferível, considerando-se que as normas e princípios, nessas lides, são da nossa disciplina, embora envolvam conflitos laborais. Outra denominação ao sub-ramo seria Direito do Trabalho Internacional, privilegiando-se o viés jurídico laboral.
21.2 Direito internacional privado do trabalho O Direito Internacional Privado do Trabalho é o conjunto de normas de direito público interno dos Estados que busca, por meio dos elementos de conexão, encontrar o direito aplicável, nacional ou estrangeiro, quando a lide trabalhista envolve ordenamentos jurídicos igualmente possíveis para a solução do caso.
21.3 Justiça competente Duas questões se anteparam ao magistrado na solução de lide trabalhista que envolva mais de uma ordem jurídica: a Justiça competente e a Lei aplicável. O artigo 651 da CLT preceitua que a competência das Varas do Trabalho é determinada pelo local em que o empregado, seja reclamante ou reclamado, presta o serviço, mesmo que o contrato tenha ocorrido em outro local ou no estrangeiro.
21.4 Contrato individual de trabalho e conflito interespacial Capacidade das partes: lei pessoal (domicílio, no caso brasileiro). Conteúdo do contrato: lex loci contractus. Efeitos contratuais e interpretação do contrato: domicílio do empregador. Rescisão do contrato: lex loci executionis ou lex loci contractus.
21.5 Emprego da lex loci executionis A Súmula n. 207 do TST, cancelada em abril de 2012, preconizava: “A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação.” Agora a lei do local da prestação do serviço pode ceder lugar à lei mais favorável ao trabalhador. Em cidades fronteiriças, ocorre de a pessoa, domiciliada em um Estado, trabalhar no país vizinho, caso em que a lei aplicável poderá ser a deste último, mantendo-se a norma.
21.6 Mercosul e harmonização das normas trabalhistas entre os países Os temas Assuntos Trabalhistas, Emprego e Seguridade Social possuem estudos no Mercosul
visando adequá-los para que contribuam para o processo de integração, com efetiva melhora nas condições de trabalho nos países do bloco.
21.7 Casos de conflitos trabalhistas interespaciais Em casos mencionados, as decisões se alicerçam no artigo 651 da CLT e no artigo 198 do Código Bustamante: “Também é territorial a legislação sobre acidentes de trabalho e proteção social do trabalhador.”
21.8 Ementas de lides interespaciais Alguns exemplos apresentados indicam o caminho que vem sendo seguido pela Justiça laboral brasileira em casos que envolvem, ao lado da nacional, outra ordem jurídica.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Tecer considerações sobre a ligação do Direito do Trabalho com o Direito Internacional Privado. 2. Comentar a aplicação dos direitos humanos na esfera da legislação laboral internacional. 3. Dissertar sobre a importância e atualidade das Convenções da OIT. 4. Analisar a competência trabalhista brasileira ante ações em que seja parte Estado estrangeiro. 5. Indicar a legislação aplicável quando da realização de contrato de trabalho destinado a exercício laboral em outro país. 6. Estudar a situação de brasileiro, domiciliado em cidade fronteiriça brasileira, o qual exerce sua atividade profissional no país vizinho, retornando ao lar após o trabalho. Indicar, então, a justiça competente e a lei aplicável, nesse caso. 7. Explicar as peculiaridades do contrato de trabalho ante o princípio da lei mais favorável.
______________ 1 Parte XIII, arts. 387 a 399 do Tratado de Versalhes. 2 Até o momento (novembro de 2013), a OIT aprovou 189 Convenções e 202 Recomendações. 3 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. p. 608. 4 Em 1998, a OIT designou oito Convenções como fundamentais, a saber: n. 29 – Convenção sobre o trabalho forçado, de 1930; n. 87 – Convenção sobre a liberdade de associação e proteção do direito sindical, de 1948 (Obs.: O Brasil não a ratificou); n. 98 – Convenção sobre o direito de organização e de negociação coletiva, de 1949; n. 100 – Convenção relativa à igualdade de remuneração, de 1951; n. 105 – Convenção sobre a abolição do trabalho forçado, de 1957; n. 111 – Convenção sobre a discriminação (emprego e profissão), de 1958; n. 138 – Convenção sobre a idade mínima de admissão ao emprego, de 1973; e n. 182 – Convenção sobre as piores formas de trabalho das crianças, de 1999. 5 RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Direito internacional privao do trabalho. p. 97. 6 RUSSOMANO, G. M. C. M. Op. cit. p. 159. 7 Disponível em: http://www.trt10.jus.br/. Acesso em: 07 ago. 2011. 8 Disponível em: http://as1.trt3.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 9 Disponível em: http://www.trtsp.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 10 Disponível em: http://www.trtsp.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 11 Disponível em: http://bd1.trt1.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 12 Disponível em: http://www.tst.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 13 Disponível em: http://www.tst.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 14 Disponível em: http://gsa3.trt4.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013.
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
“Responder à questão relativa à competência internacional é o primeiro passo para abordar uma hipótese multiconectada” (Nadia de Araújo).
22.1 Considerações iniciais A competência internacional não está, em sentido estrito, inserida no Direito Internacional Privado, constituindo-se adequadamente em sub-ramo jurídico próprio, o Direito Processual Internacional (DPI). Isso justifica a ausência do tema em obras consagradas de nossa disciplina, das quais são exemplos as de Eduardo Espínola, Haroldo Valladão e Amílcar de Castro. No entanto, rendemo-nos ao entendimento, que tende a ser dominante, de colocar as normas processuais no conteúdo de DIPr, com as vantagens práticas para o estudante, liberado de buscar outros manuais para a solução do mesmo caso. Como visto em segmento próprio desta obra, nosso objeto lato sensu de DIPr inclui a competência internacional. Ademais, embora o DPI – que comporta dois vieses, o Direito Processual Civil Internacional e o Direito Processual Penal Internacional – seja ramo do Direito público, a aplicação de suas normas afeta os direitos privados, e de forma especial o Direito Internacional Privado. No juízo de Hee Moon Jo, o tratamento das normas processuais internacionais por nossa disciplina, ou pelo menos parte dessas normas, é essencial para o bom funcionamento do processo internacional.1 Este capítulo busca complementar o que temos estudado em edições anteriores sobre aplicação do direito estrangeiro e homologação de sentenças prolatadas nas ordens jurídicas de outros países. Se toda a atividade processual consiste, em si mesma, no caminho pelo qual a parte busca dar efetividade a seu direito substancial, o Direito Processual Internacional é o meio que assegura a realização das normas de DIPr. É a norma jurídica interna que determina a extensão da jurisdição internacional. Lembra Amílcar de Castro que, dada a autonomia jurisdicional dos Estados, cada um deles tem inteira independência para indicar em sua legislação quais causas podem ser julgadas em sua jurisdição, embora os países não devam abusar dessa autonomia, impondo aos litigantes foro único – o desse país –, mas estabelecendo regras justas e práticas, adequadas no âmbito internacional.2 Nesse viés, Orlando Silva Neto acentua que, embora a previsão de jurisdição ilimitada de cada Estado não possa ser impedida, ela não costuma ser cogitada, sendo o seu exercício contido no âmbito do território, não apenas em razão da soberania, mas à preocupação com a efetividade das sentenças e demais determinações judiciais emitidas pelas autoridades judiciárias nacionais.3 O Tratado de Direito Processual Internacional de Montevidéu, de 1889, com a reforma ocorrida em 1940, na mesma cidade, estabelece no seu primeiro artigo este princípio geral: “Os julgamentos e seus incidentes, qualquer que seja a natureza dos mesmos, tramitarão conforme a lei procedimental do Estado em que são promovidos.” Por outro lado, a Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado (CIDIP II), de 1979, estabelece que os juízes e as autoridades dos Estados participantes ficarão
obrigados a aplicar o direito estrangeiro tal como o fariam os magistrados do Estado, cujo direito seja aplicável, sem prejuízo de que as partes possam alegar e provar a existência e o conteúdo da lei estrangeira invocada (art. 2º). Conclui-se que podem surgir conflitos de competência, positivo ou negativo, nas situações em que os Estados adotam a chamada competência concorrente. A doutrina refere casos do que se passou a denominar forum shopping: a possibilidade de escolha pelo autor do foro mais favorável.4
22.2 Conceito e objeto A expressão competência internacional é a rigor inadequada, uma vez que não existe um Estado universal e o pertinente Tribunal. Inicialmente, é oportuno referir a imprecisão dos termos competência e jurisdição, tomados por vezes como sinônimos. Essa confusão se explica em parte por ser a palavra jurisdição em inglês – jurisdiction – um termo muito abrangente, o que faz com que obras nesse idioma também usem o termo quando se referem à competência. Vicente Greco Filho conceitua jurisdição como “o poder, a função e a atividade de fazer atuar o direito, de forma cogente e com a força da imutabilidade, aplicável a uma lide, substituindo-se aos titulares dos interesses em conflito”.5 Para alguns autores, jurisdição é o poder de julgar observado entre o governo e as partes litigantes, e competência é o poder de julgar entre os juízes e os tribunais, uns com os outros. Para Agenor Pereira de Andrade, competência é o poder que os tribunais têm de conhecer um litígio, enquanto jurisdição é a área ou circunscrição em que esse poder se aplica.6 A competência que interessa à nossa disciplina é a competência geral ou internacional, poder do Estado de conhecer de um litígio, e não a competência especial, referente à distribuição interna dessa tarefa de julgar (ratione materiae, ratione persone e ratione loci). Entendemos competência internacional como a aptidão que um ordenamento jurídico reconhece como sua para processar e julgar demandas. Nesse sentido, jurisdição (faculdade de dizer o direito) é o poder de julgar como um todo, e competência é a parcela dessa jurisdição assumida pelo Estado. Assim, competência nada mais é do que um limite da jurisdição e a sua outorga pode ser invocada por outra ordem jurídica, acentuando Madruga Filho que a competência internacional pressupõe a possibilidade de um conflito entre jurisdições de países diferentes.7 A competência pode ser absoluta (exclusiva), quando a ordem jurídica do Estado mantém para si a exclusividade do julgamento; e concorrente (relativa, alternativa ou cumulativa), situação em que o poder de dirimir o feito por esse Estado não impede que a Justiça de outro país o exerça. Nesse caso, a decisão estrangeira deverá, para produzir efeitos jurídicos no Brasil, ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça. Cabe enfatizar que tanto a competência absoluta como a concorrente se sujeitam aos princípios gerais do processo civil. Assim, a imparcialidade do juízo, a igualdade entre as partes, o contraditório e a ampla defesa, a disponibilidade, a livre investigação das provas, o impulso oficial, a oralidade, a persuasão racional do julgador, a motivação das decisões processuais, a publicidade, a lealdade processual, a economia e o duplo grau de jurisdição, entre outros, devem ser observados de forma criteriosa. O objeto do Direito Processual Internacional pode ser sintetizado no estudo dos aspetos processuais que envolvem relações jurídicas entre elementos de mais de uma ordem jurídica, como os direitos do estrangeiro em matéria processual e a identificação do tribunal adequado para dirimir essas contendas.
22.3 Princípios e fontes do DPI Concordamos com Nadia de Araújo que o Processo Civil Internacional necessita ser analisado “por uma ótica que dê prevalência à proteção da pessoa humana e sua dignidade, como objetivo maior do sistema”.8 Se a busca da melhor justiça deve ser um norte para todo o arcabouço jurídico, inclusive para o Direito Internacional Privado, impõe-se a cooperação dos Estados para que as normas processuais possibilitem esse desiderato. No que tange aos princípios básicos do Direito Processual Internacional, cinco costumam ser referidos, conforme veremos a seguir. O primeiro é o princípio da jurisdição razoável, o qual determina que o juízo não pode estar desvinculado do objeto do litígio. O efetivo direito da prestação jurisdicional pelo Estado caracteriza o princípio do acesso à justiça. A igualdade entre nacionais e estrangeiros, por seu turno, precisa ser observada, com o que fica assegurado o princípio da não discriminação do litigante. O princípio da cooperação interjurisdicional, cuja ausência pode dificultar o Direito e a Justiça, contribui para o cumprimento dos atos no curso do processo, de que são exemplo as cartas rogatórias. Por fim, temos o princípio da circulação internacional das decisões, pois a interação entre as ordens jurídicas vai permitir o encontro do sempre desejável ideal de Justiça. Agenor Andrade sintetiza esses princípios em dois: o da efetividade (não cabe prolatar sentença sem possibilidade de ser executada) e o da submissão (possibilidade de a pessoa submeter-se, por vontade própria, à jurisdição a que não estava sujeita).9 Entendemos adequado inserir como princípios do DPI os dispositivos pertinentes do Código Bustamante. A par de ser norma jurídica positiva no Brasil, ainda que seu uso seja limitado, os postulados do artigo 314 do emblemático estatuto asseguram à legislação do foro a determinação da competência dos tribunais, bem como as formas do processo, a execução das sentenças e os recursos contra suas decisões. Coíbe, outrossim, a existência de tribunais especiais para estrangeiros (art. 315), preconizando que a competência em razão de matéria e de pessoa não deve ter como fundamento a condição de nacional ou estrangeira da pessoa interessada, sempre que essa distinção possa representar prejuízo para ela (art. 317). Quanto às fontes do Direito Processual Internacional, reportemo-nos às indicadas para o DIPr, no quarto capítulo desta obra, na mesma ordem: lei, tratados, doutrina, jurisprudência e costumes. No Brasil, há regras sobre competência internacional na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e nos vigentes Códigos Processuais Civil (CPC) e Penal (CPP), entre outras leis. Nos diversos ordenamentos jurídicos, ocorre com frequência a inserção dessas normas nos códigos processuais e em leis próprias.10 No que concerne a tratados, basta referir a Convenção sobre a Prestação de Alimentos, da ONU, de 1956, e o Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, de 1994, no âmbito do Mercosul.
22.4 Competência internacional na legislação brasileira Das fontes legisladas mencionadas, interessa neste momento a LINDB e o CPC. Sendo posterior à Lei de Introdução, o estatuto processual civil contém postulados da competência internacional de forma mais abrangente, devendo-se enfatizar a harmonia entre as duas normas. O artigo 88 do CPC dispõe que a autoridade judiciária brasileira será competente quando: a) o réu for domiciliado no Brasil, seja ele brasileiro ou não; b) a obrigação sub judice tiver de ser cumprida no Brasil; e c) o fato que originou a ação tiver sido praticado no Brasil. Trata-se de casos que, pela sua
natureza, podem ter competência para julgamento invocada pela Justiça de outro país, situação em que eventual sentença daí resultante merecerá análise do Superior Tribunal de Justiça para execução no Brasil. Acentue-se que o domicílio da pessoa jurídica estrangeira se formaliza com a existência de agência, filial ou sucursal no Brasil. Por outro lado, o artigo 89 de nosso Código de Processo Civil assegura a competência absoluta da autoridade judiciária brasileira quando: a) a ação for relativa a imóvel situado no Brasil; e b) tratar-se de inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e resida fora do Brasil. A lei não distingue a natureza desses bens, com o que os móveis são incluídos. Outro caso de competência exclusiva é encontrado no artigo 651, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): a Vara do Trabalho da localidade em que o empregado presta seus serviços ao empregador é a competente, ainda que o contrato tenha ocorrido no estrangeiro. Trata-se de ações que não podem ser decididas pelo Judiciário de outro Estado. Questiona-se se tal determinação alcança processos que envolvam obrigações sobre imóveis, como locação ou promessa de venda, ou se restringe às lides reais. Entendemos que há essa restrição, ou seja, tais ações podem submeter-se a outros ordenamentos jurídicos. Como estudamos no oitavo capítulo desta obra, a ação que tramita em outra ordem jurídica não gera litispendência no Brasil (art. 90). Considerando que cabe ao juiz de primeiro grau declarar a litispendência, muitos entendem que ele não poderia afirmar que a sentença resultante de processo no estrangeiro seria homologável no Brasil, por tratar-se de competência constitucional do Superior Tribunal de Justiça. O artigo 94 do Código de Processo Civil estabelece que ação fundada em direito pessoal e em direito real sobre bens móveis deve, em regra, ser proposta no domicílio do réu. Caso ele não tenha domicílio nem resida no Brasil, a ação será proposta no foro do autor. Quando ambos residirem fora do Brasil, o processo será proposto em qualquer foro. Por fim, no que interessa a nosso estudo, o foro do domicílio do autor da herança no Brasil é o competente para o inventário, a partilha e demais ações em que o espólio for réu, mesmo quando o óbito tenha ocorrido em outro país (art. 96).
22.5 Imunidade de jurisdição Como as ações privadas internacionais não se restringem, necessariamente, aos particulares, podendo envolver órgãos públicos, a começar pelos Estados, cabe estudar a imunidade de jurisdição, que beneficia tais entes. Essa imunidade, quando existente, vai preservar bens situados no Estado em que tramita a ação, pertencentes ao país inserido em um dos polos da relação jurídica. O princípio da imunidade de jurisdição estrangeira foi reconhecido por Bartolo de Saxoferrato, o pai do DIPr, como princípio válido no direito internacional, utilizando-se do princípio par in paren non habet imperium, o qual significa que as partes iguais ou soberanas não podem submeter seus iguais. A imunidade de jurisdição de um Estado perante a justiça de outro era absoluta até o começo do século passado, tornando-se desde então relativa ou limitada.11 Assim, quando país estrangeiro ou organismo internacional litiga com pessoa domiciliada no Brasil – ação que deve tramitar na Justiça Federal, com exceção de causas trabalhistas que são privativas da Justiça do Trabalho – somente gozará de imunidade quando a relação sub judice tiver origem em ato de império, aquele com caráter oficial, em que o Estado estará em igualdade de condições com o país do foro. Nesse contexto, a imunidade de jurisdição se refere à prerrogativa de um ente estatal não se submeter à jurisdição de outro Estado, com fundamento no princípio da soberania. Isso significa que os
representantes oficiais de um país que estejam em território estrangeiro não se submetem à jurisdição do Estado em que exercem sua missão em relação a todos os atos nele praticados. Conceituada a competência absoluta e a relativa, em item anterior, impõe-se a sua análise na própria imunidade de jurisdição, como veremos a seguir. 22.5.1 Imunidade absoluta Ocorre quando o funcionário age iure imperii, ou seja, em nome do seu Estado. São atos próprios da atividade estatal, que, por possuírem natureza pública, possuem imunidade jurisdicional perante outros países. Enfatize-se que o Estado sub judice não gozará automaticamente do privilégio de país soberano. 22.5.2 Imunidade relativa Trata-se de iuri gestionis, ou seja, atos negociais próprios das relações privadas, nos quais o Estado atua em situação jurídica de igualdade aos demais participantes. No Brasil, o estabelecimento da regra teve origem tipicamente jurisprudencial, como veremos no próximo item. Quando Estado estrangeiro age iure gestionis ficará submetido ao rito processual normal. Por exemplo, no caso de aluguel de imóvel para uso de funcionário ou repartição desse país, eventual ação do proprietário do bem, para ressarcimento de dívida oriunda do contrato, tramitará sem qualquer privilégio jurídico em desfavor do locador.
22.6 Jurisprudência brasileira Decisões das cortes superiores brasileiras estão consolidando o juízo exposto nos itens anteriores. Nessa tessitura, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a absoluta imunidade do Estado estrangeiro à jurisdição executória, sempre que não tenha havido renúncia dessa imunidade. Trata-se de julgamento de agravo regimental em ação civil, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em execução fiscal movida pela União contra a República da Coreia (ACO-AgR 543/SP, julgado em 30.08.2006).12 Tem-se posicionado o STF quanto à imunidade de jurisdição de governo estrangeiro, pela teoria da imunidade de jurisdição relativa, ou seja, esse Estado somente gozará da imunidade absoluta quanto praticar atos oficiais. Outro ponto importante, que se evidencia notório e lógico, é a jurisprudência que entende como incompetente a nossa justiça para processar e julgar ação de fato ocorrido fora do território brasileiro: é a aplicação do próprio princípio da soberania, integrada à imunidade de jurisdição. Pela pertinência, inserem-se ementas do Superior Tribunal de Justiça a seguir. Agravo Regimental. Recurso Ordinário. Apelação Cível. Aplicação do Princípio da Fungibilidade. Impossibilidade. Erro Grosseiro. Ato de Império. Imunidade de Jurisdição Absoluta. Agravo Regimental a que se Nega Provimento. 1. Contra sentença que julga ação promovida contra organismo internacional, o recurso próprio é o ordinário, de competência do Superior Tribunal de Justiça, a teor do disposto nos arts. 105, II, “c”, da CF c/c 539, II, “b”, do CPC. 2. Constitui erro grosseiro a interposição de apelação cível quando se trata de hipótese de cabimento de recurso ordinário. Precedentes. 3. Ato de império – ofensiva militar durante período de guerra – é acobertado por imunidade de jurisdição absoluta, não implicando renúncia à imunidade o silêncio do Estado estrangeiro, que se abstém de compor a relação processual. 4. Agravo regimental a que se nega provimento (STJ – AgRg no RO 59/RJ – 2007/0220206-9, j. 21.08.2012).13
Direito Internacional. Ação de Indenização. Barco Afundado em Período de Guerra. Estado Estrangeiro. Imunidade Absoluta. 1. A questão relativa à imunidade de jurisdição, atualmente, não é vista de forma absoluta, sendo excepcionada, principalmente, nas hipóteses em que o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente civil, comercial ou trabalhista. 2. Contudo, em se tratando de atos praticados numa ofensiva militar em período de guerra, a imunidade acta jure imperii é absoluta e não comporta exceção. 3. Não há como submeter a República Federal da Alemanha à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais por ter afundado barco pesqueiro no litoral de Cabo Frio durante a Segunda Guerra Mundial. 4. Recurso ordinário desprovido (STJ – RO 134/RJ – 2012/0093440-8, j. 13.08.2013).14 Direito Processual Civil e Internacional. Ação Indenizatória Ajuizada contra Estado Estrangeiro. Autoridade Judiciária Brasileira. Competência. Limites. Resposta do Estado Estrangeiro. Procedimento. 1. A imunidade de jurisdição não representa uma regra que automaticamente deva ser aplicada aos processos judiciais movidos contra um Estado estrangeiro. Trata-se de um direito que pode, ou não, ser exercido por esse Estado, que deve ser comunicado para, querendo, alegar sua intenção de não se submeter à jurisdição brasileira, suscitando a existência, na espécie, de atos de império a justificar a invocação do referido princípio. Precedentes. 2. Tendo o Estado estrangeiro, no exercício de sua soberania, declarado que os fatos descritos na petição inicial decorreram de atos de império, bem como apresentado recusa em se submeter à jurisdição nacional, fica inviabilizado o processamento, perante autoridade judiciária brasileira, de ação indenizatória que objetiva ressarcimento pelos danos materiais e morais decorrentes de perseguições e humilhações supostamente sofridas durante a ocupação da França por tropas nazistas. 3. A comunicação ao Estado estrangeiro para que manifeste a sua intenção de se submeter ou não à jurisdição brasileira não possui a natureza jurídica da citação prevista no artigo 213 do CPC. Primeiro se oportuniza, via comunicação encaminhada por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, ao Estado estrangeiro que aceite ou não a jurisdição nacional. Só aí, então, se ele concordar, é que se promove a citação para os efeitos da lei processual. 4. A nota verbal, por meio da qual o Estado estrangeiro informa não aceitar a jurisdição nacional, direcionada ao Ministério das Relações Exteriores e trazida por esse aos autos, deve ser aceita como manifestação legítima daquele Estado no processo. 5. Recurso ordinário a que se nega provimento (STJ – RO 99/SP – 2009/0195038-1, j. 04.12.2012).15 Internacional, Civil e Processual. Ação de indenização movida contra os Estados Unidos da América do Norte. Intervenção de caráter político e militar em apoio à deposição do Presidente da República do Brasil. Danos morais e materiais. Demanda movida perante a Justiça Federal do estado do Rio de Janeiro. Ato de império. Imunidade de jurisdição. Possibilidade de relativização, por vontade soberana do Estado alienígena. Prematura extinção do processo ab initio. Descabimento. Retorno dos autos à vara de origem para que, previamente, se oportunize ao Estado suplicado a eventual renúncia à imunidade de jurisdição. I – Enquadrada a situação na hipótese do artigo 88, I, e parágrafo único, do CPC, é de se ter como possivelmente competente a Justiça brasileira para a ação de indenização em virtude de danos morais e materiais alegadamente causados a cidadãos nacionais por Estado estrangeiro em seu território, decorrentes de ato de império, desde que o réu voluntariamente renuncie à imunidade de jurisdição que lhe é reconhecida. II – Caso em que se verifica precipitada a extinção do processo de pronto decretada pelo juízo singular, sem que antes se oportunize ao Estado alienígena a manifestação sobre o eventual desejo de abrir mão de tal prerrogativa e ser demandado perante a Justiça Federal brasileira, nos termos do artigo 109, II, da Carta Política. III – Precedentes do STJ. IV – Recurso ordinário parcialmente provido, determinado o retorno dos autos à Vara de origem, para os fins acima (STJ – RO n. 200700816394, j. em 14.09.2009).16
Processo Civil Internacional. Recurso Especial. Salvatagem marítima. Art. 88 do Código de Processo Civil. Competência concorrente da autoridade judiciária brasileira. Art. 7º da Lei n. 7.203/1984. Ausência de antinomia. Não configuração de seus requisitos que implica apenas a ausência de exclusividade e não a incompetência da justiça brasileira. 1. Verificada qualquer das hipóteses do art. 88 do Código de Processo Civil, é competente a autoridade judiciária brasileira para o processamento e o julgamento de ação que envolva conflito internacional de direito privado. 2. Ausência de antinomia entre o art. 88 do Código de Processo Civil e o art. 7º da Lei n. 7.203/1984, uma vez que não se extrai contradição lógica ou axiológica entre tais dispositivos. Enquanto aquele prevê competência internacional concorrente da autoridade judiciária nacional, este estabelece situação específica de competência internacional exclusiva. 3. Não configuração dos requisitos necessários à aplicação do art. 7º da Lei n. 7.203/1984 que implica apenas a ausência de exclusividade na competência da Justiça brasileira, e não a sua incompetência, ao contrário do que restou concluído pelo acórdão recorrido. 4. Competência concorrente da Justiça brasileira para analisar cautelar proposta por sociedade de salvatagem marítima visando a impedir a retirada da carga recuperada pelos seus proprietários sem que antes se efetue o pagamento do prêmio a que faz jus em razão do salvamento. 5. Reconhecimento da violação ao art. 88 do Código de Processo Civil e ao art. 7º da Lei n. 7.203/1984. Recurso Especial a que se dá provimento. (STJ – REsp 772.661/SC – j. em 01.03.2011).17 Habeas Corpus. Descaminho e falsidade ideológica. Delitos supostamente praticados pelo CônsulGeral de El Salvador. Imunidade de jurisdição. Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963. Renúncia pelo Estado estrangeiro. Procedimento regular. Ausência de constrangimento ilegal. 1. Tendo o paciente, na condição de Cônsul-Geral de El Salvador, praticado supostamente os delitos de falsidade ideológica e descaminho no exercício de suas funções, o artigo 43 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 lhe assegura a imunidade à jurisdição brasileira. 2. No entanto, é possível que o Estado estrangeiro renuncie a imunidade de jurisdição de qualquer membro da repartição consular, nos termos do artigo 45 da referida Convenção. 3. Instado a se manifestar, o Estado de El Salvador, no exercício de sua soberania, retirou os privilégios e imunidades do paciente, não havendo, portanto, qualquer óbice ao prosseguimento da ação penal. 4. A imunidade de jurisdição não se verifica de plano, isto é, não se aplica de forma automática, notadamente pelo fato de que há a possibilidade de renúncia pelo Estado estrangeiro. Deste modo, não era o caso de se impedir de pronto a persecução penal contra o paciente, mas, sim, de indagar o Estado de El Salvador acerca do interesse em se submeter ou não à jurisdição brasileira, conforme se deu na espécie. 5. Habeas corpus denegado. (STJ – HC 149.481/DF – j. em 19.10.2010).18 Imunidade de Jurisdição. Organização Internacional. A imunidade de jurisdição da Organização das Nações Unidas e de seus organismos está prevista na Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 4, de 13.02.1948, ratificada em 11.11.1949 e promulgada pelo Decreto n. 27.784, de 16.02.50. Recurso a que se nega provimento (TRT/1ª R. – RO n. 0139200-25.2009.5.01.0011, j. 15.08.2012).19 Imunidade de Jurisdição. Organismos Internacionais. Diferentemente do que ocorre com os Estados estrangeiros, em se tratando de organismo internacional, como é o caso da ONU e suas agências, a imunidade decorre de tratados internacionais firmados pelo Presidente da República e ratificados pelo Congresso Nacional. Assim, o não reconhecimento à imunidade absoluta de jurisdição garantida à reclamada implicaria violação ao disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. Recurso ordinário a que se nega provimento (TRT 2ª R. – RO n. 0268100-27.2008.5.02.0013, j. 12.07.2013).20
22.7 Considerações finais Ao contrário do que ocorre nas ordens jurídicas internas dos países, verifica-se que no plano internacional não há hierarquia na competência que os Estados se outorgam, mas igualdade dos sistemas. Isso provém da inexistência de organismo supraestatal, com atribuição para essa determinação.
RESUMO 22.1 Considerações iniciais A competência internacional, em tese, não inserida no DIPr, constitui segmento jurídico próprio, o Direito Processual Internacional. No juízo de Moon Jo, o tratamento das normas processuais internacionais por nossa disciplina, ou parte dessas normas, é essencial para o bom funcionamento do processo internacional. Na realidade, surge conflito de competência, positivo ou negativo, em situações nas quais os Estados adotam a chamada competência concorrente. A doutrina refere casos de forum shopping: a possibilidade de escolha pelo autor do foro mais favorável.
22.2 Conceito e objeto Para alguns autores, jurisdição é o poder de julgar visto entre o governo e as partes litigantes, e competência é o poder de julgar entre os juízes e os tribunais, uns com os outros. Para Agenor Andrade, competência é o poder que os tribunais têm de conhecer um litígio, enquanto jurisdição é a área ou circunscrição em que esse poder se aplica. Entendemos competência internacional como a aptidão que um ordenamento jurídico reconhece como sua para processar e julgar feitos. Jurisdição (faculdade de dizer o direito) é o poder de julgar como um todo, e competência é a parcela dessa jurisdição assumida pelo Estado. Assim, competência é um limite da jurisdição. O objeto do DPI pode ser sintetizado no estudo dos aspetos processuais que envolvem relações jurídicas entre elementos de ordens jurídicas diversas, como direitos do estrangeiro em matéria processual e identificação da corte adequada para dirimi-los.
22.3 Princípios e fontes do DPI O Processo Civil Internacional deve ser visto pela óptica da prevalência da dignidade da pessoa humana e segue cinco princípios básicos: jurisdição razoável, acesso à justiça, não discriminação do litigante, cooperação jurisdicional e circulação internacional das decisões. Em síntese: da efetividade (não cabe prolatar sentença sem possibilidade de ser executada) e da submissão (possibilidade de a pessoa submeter-se, por vontade própria, a jurisdição a que não estava sujeita). Quanto às fontes do DPI: lei, tratados, doutrina, jurisprudência e costumes. No Brasil: LINDB e Códigos (CPC e CPP), entre outras.
22.4 Competência internacional na legislação brasileira O artigo 88 do CPC dispõe sobre a competência concorrente, que ocorre quando: a) o réu for domiciliado no Brasil, seja ele brasileiro ou não; b) a obrigação sub judice tiver de ser cumprida no
Brasil; c) o fato que originou a ação tiver sido praticado no Brasil. São casos de competência exclusiva (art. 89, CPC, e art. 651, caput, CLT): ações sobre imóveis situados no Brasil e inventário ou partilha de bens situados no Brasil, mesmo quando o autor da herança é estrangeiro e tenha residência no exterior, incluindo móveis.
22.5 Imunidade de jurisdição Visa preservar bens situados no país em que tramita ação privada, da qual participa Estado estrangeiro, pertencentes a esse Estado. A imunidade de jurisdição era absoluta até o começo do século XX, podendo hoje também ser relativa ou limitada. 22.5.1 Imunidade absoluta Quando a ação provém de ato de império, aquele com caráter oficial, em que o Estado estará em igualdade de condições com o país do foro haverá imunidade absoluta. 22.5.2 Imunidade relativa Ocorre quando Estado estrangeiro age iure gestionis: submete-se ao rito normal. Caso de aluguel de imóvel, por exemplo, para uso de funcionário ou repartição desse país.
22.6 Jurisprudência brasileira Decisões recentes das cortes brasileiras estão consolidando os juízos expostos. Assim, o STF reconheceu a absoluta imunidade do Estado estrangeiro à jurisdição executória, sempre que não tenha havido renúncia dessa imunidade, em execução fiscal movida pela União contra a República da Coreia.
22.7 Considerações finais Verifica-se que no plano internacional não há hierarquia na competência que os Estados se outorgam, mas igualdade dos sistemas.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Conceituar competência internacional e justificar sua inserção nos manuais de Direito Internacional Privado. 2. Dissertar sobre o objeto do Direito Processual Internacional. 3. Tecer considerações sobre os princípios do Direito Processual Internacional, detendo-se nos da efetividade e da submissão. 4. Referir as principais fontes do DPI, destacando as fontes brasileiras. 5. Indicar e analisar a competência concorrente e a competência absoluta na ordem jurídica brasileira. 6. Dissertar sobre a imunidade de jurisdição, analisando os atos de império e os atos de gestão, e apresentar exemplos de cada um deles. 7. Fazer um estudo da jurisprudência brasileira sobre competência internacional e imunidade de jurisdição.
______________ 1 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. p. 208. 2 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. p. 536. 3 SILVA NETO, Orlando Celso da. Direito processual civil internacional brasileiro. p. 109. 4 FERREIRA JUNIOR, Lier Pires. A competência internacional. p. 245. 5 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. p. 52. 6 ANDRADE, Agenor Pereira de. Direito internacional privado. p. 318. 7 MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A renúncia à imunidade de jurisdição pelo Estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição. p. 85. 8 ARAÚJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. p. 196. 9 ANDRADE, A. P. Op. cit. p. 319. 10 RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. p. 225. 11 RECHSTEINER, B. W. Op. cit. p. 239. 12 Site: www.stf.gov.br. Acesso em: 11 jun. 2007. 13 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 17 out. 2013. 14 Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 17 out. 2013. 15 Site: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 17 out. 2013. 16 Site: www.stj.gov.br. Acesso em: 15 mar. 2010. 17 Sítio: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 08 ago. 2011. 18 Sítio: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 08 ago. 2011. 19 Disponível em: http://bd1.trt1.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013. 20 Disponível em: http://www.trtsp.jus.br. Acesso em: 16 out. 2013.
UNIÃO EUROPEIA
“Tudo está a indicar, se não ocorrerem anomalias oriundas de nacionalismos exasperados, que a vida jurídica internacional do futuro compreenderá as relações entre os Estados e entre os indivíduos dos diversos Estados” (Oscar Tenório).
23.1 Globalização da economia e formação de blocos continentais As últimas décadas vêm assistindo à globalização da economia, processo que acontece com espantosa rapidez e que vem se refletindo na vida das pessoas em todos os quadrantes do planeta. A interdependência tornou-se uma constante, afetando as comunidades dos mais longínquos rincões em todos os continentes. Gradativamente os dirigentes dos Estados vêm procurando acompanhar essa evolução, com o fim de se adaptarem à globalização, evitando seus malefícios e buscando torná-la útil e portadora de conquistas para seus cidadãos. Com a derrocada do modelo comunista soviético e a percepção de aparente supremacia do modelo econômico de cunho liberal, intensificaram-se as iniciativas de aproximação econômica. Esse movimento pode ser visto tanto como uma forma de aglutinar países para unir esforços de modo a melhor enfrentar as rápidas transformações da intensificação do processo de globalização, quanto como uma gradual transição para um modelo de superação das fronteiras nacionais. Nesse contexto está inserido o surgimento de grandes blocos continentais, de que são expressivos exemplos a União Europeia, o Mercosul e o NAFTA (North American Free Trade Agreement), entre outros. Falaremos neste e no próximo capítulo sobre dois desses blocos: a União Europeia e o Mercosul.
23.2 Processo de integração dos Estados europeus Em meados da década de 50 do século XX, após duas sangrentas guerras mundiais, de consequências marcantes e conhecidas, os países da Europa iniciaram um processo de integração, tendo como objetivo, sobretudo, a manutenção da paz entre os seus povos. O marco inicial dessa integração ocorreu em 9 de maio de 1950, quando França e Alemanha acordaram o controle comum nos domínios do carvão e do aço. Surgiu, assim, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA),1 por meio do Tratado de Paris, assinado em 18 de abril de 1951, com a adesão da França, Alemanha, Itália e países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Trata-se do primeiro projeto de união entre os países europeus, após séculos de desencontros políticos e guerras fratricidas. A assinatura do Tratado Institutivo da Comunidade Econômica Europeia (CEE)2 e do Tratado Institutivo da Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA), ambos em 25 de março de 1957 – o primeiro visando à criação de um mercado comum, e o segundo objetivando promover a utilização da energia nuclear – desperta o interesse de outros países em ingressarem no bloco. Posteriormente, a CEE recebeu novos integrantes. Em 1972, juntou-se ao grupo o Reino Unido, a
Irlanda e a Dinamarca; a Grécia incorporou-se em 1982, seguida de Portugal e Espanha, ambos em 1986. Ainda em 1986, ocorre a primeira revisão do Tratado da CEE, por meio do Ato Único Europeu. Houve a constituição de um mercado comum, compreendendo a livre circulação de bens, pessoas, capitais e serviços entre os países-membros. Com o funcionamento do mercado comum se busca dar outro passo importante no processo integracionista, qual seja a União Econômica e Monetária. Para tanto, entra em vigor em 1º de novembro de 1993 o Tratado da União Europeia (TUE) ou Tratado de Maastricht, que, além dos objetivos de natureza econômica, procurou estabelecer a união social e política, instituir a cidadania da União e uma política comum de defesa. Em 1º de janeiro de 1995, Áustria, Suécia e Finlândia aderiram ao projeto integracionista. O avanço mais evidente do Tratado de Maastricht foi a instauração da união monetária, alcançada com a criação da moeda única, o Euro, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1999. A moeda europeia passou a circular três anos depois, em janeiro de 2002, em onze países do bloco. No dia 1º de janeiro de 2014, a Letônia integrou-se à Zona do Euro, passando a moeda única a ser utilizada por dezoito países europeus.3 Em 1º de maio de 2004, dez novos Estados ingressam na União: Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e Republica Tcheca. Por fim, Bulgária e Romênia são admitidas em 1º de janeiro de 2007, elevando ao expressivo número de vinte e sete membros. Em 1º de julho de 2013, a Croácia se tornou Estado-Parte, tornando-se o 28º país da União4. Vários países são candidatos à adesão na União Europeia, como a antiga República Iugoslava da Macedônia, Islândia, Montenegro, Albânia e Turquia. Em 26 de fevereiro de 2001, foi assinado, pelos quinze países então integrados na União, o Tratado de Nice, que alterou os tratados anteriores, especialmente o Tratado da CE (TCE) e o de Maastricht (TUE), trazendo significativas mudanças na organização interna e na repartição de poderes entre os órgãos da Comunidade e os dos Estados-membros, visando ao alargamento do bloco. A União Europeia, o primeiro e ainda o único organismo supranacional, baseia-se nos princípios da igualdade, da solidariedade, do equilíbrio institucional, da uniformidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade. A Conferência Intergovernamental de 2004 elaborou um Tratado, chamado de Tratado Constitucional, que previa a reunião dos tratados europeus – TUE e TCE – em um só, com diversas alterações. Essa tentativa fracassou com a negativa de ratificação da França e dos Países Baixos, no final de maio e início de junho de 2005, respectivamente.5 Na busca das reformas almejadas, o Conselho Europeu institui uma Conferência Intergovernamental (CIG), em junho de 2007, com a tarefa de produzir um projeto de Tratado que pudesse realizar as alterações nos Tratados da CE, da UE e da CEEA. Em 13 de dezembro de 2007, os vinte e sete Estados-membros assinaram, na capital portuguesa, o Tratado de Lisboa, que, diferentemente do Tratado Constitucional, não reúne os tratados europeus em um só tratado. Ele tem por intuito modificar os Tratados da UE e da CE, sem suprimi-los: altera o nome do Tratado da CE para Tratado sobre o Funcionamento da União (TFUE). Ainda, o Tratado de Lisboa substitui, nos anteriores, a expressão “Comunidade Europeia” por “UE” e atribui uma personalidade jurídica única à União Europeia. O Tratado de Lisboa entrou em vigor no dia 1º de dezembro de 2009, podendo-se afirmar que, com ele, a União Europeia alcança sua maioridade plena.
23.3 Instituições da União Europeia Antes da reforma produzida pelo Tratado de Lisboa, os artigos 7º a 9º do Tratado da CE apresentavam as seguintes instituições da União Europeia: Parlamento Europeu, Conselho da União Europeia (ou Conselho de Ministros, ou Conselho), Comissão Europeia, Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas. Como instituições auxiliares, destacavam-se o Comitê Econômico e Social, o Comitê das Regiões, o Banco Central Europeu e o Banco Europeu de Investimentos. Com o Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu é acrescentado no rol das instituições europeias. 23.3.1 Conselho Europeu O Conselho Europeu, que não deve ser confundido com o Conselho da Europa (organização internacional constituída por quarenta e sete países europeus, com sede em Estrasburgo, na França), nem com o Conselho da União Europeia (ou Conselho de Ministros, ou Conselho, abordado adiante), é o órgão supremo da União Europeia, sendo constituído pela reunião dos Chefes de Governo ou Chefes de Estado dos membros da Comunidade, assistidos pelos Ministros das Relações Exteriores. O Conselho Europeu tem por missão dar os impulsos necessários ao desenvolvimento da União, definindo suas orientações e prioridades políticas gerais. Ele não exerce função legislativa e se reúne duas vezes por semestre, pronunciando-se, como regra, por consenso. Até o advento do Tratado de Lisboa, esse Conselho não era considerado como uma instituição da UE, mas com esse tratado ele passa a ser uma instituição europeia. Nos Tratados da UE e da CE, a expressão “Conselho, reunido no âmbito de Chefes de Estado ou de Governo” é substituída por “Conselho Europeu”. Outra importante inovação apresentada pelo Tratado de Lisboa em relação ao Conselho Europeu foi a de criar uma presidência permanente com mandato de dois anos e meio, renovável uma vez, deixando de lado a presidência rotativa e semestral adotada até então. Com a vigência do Tratado de Lisboa, em 1º de dezembro de 2009, inicia seu mandato de primeiro Presidente da União Europeia o belga Herman Van Rompuy, que foi reeleito em 2012, devendo seu mandato encerrar em dezembro de 2014. Segundo o Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu é composto pelos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros, assim como por seu Presidente e pelo Presidente da Comissão. O Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (cargo criado pelo Tratado de Lisboa) também participa dos trabalhos. 23.3.2 Comissão A Comissão é composta atualmente por vinte e oito membros. Cada Estado-membro possui um comissário, os quais são escolhidos para um mandato de cinco anos, podendo ser reconduzidos. O seu Presidente representa a União Europeia internacionalmente. Desde 1958, essa função foi desempenhada sucessivamente por onze líderes europeus. Em 2009 o português José Manuel Durão Barroso, que exerce a Presidência da Comissão desde 2004, foi reeleito para o período 2009-2014. A Comissão formula recomendações ou pareceres sobre matérias objeto dos tratados constitutivos da União Europeia e dispõe de poder de decisão próprio. Tem sua sede em Bruxelas. As principais modificações trazidas pelo Tratado de Lisboa à Comissão Europeia encontram-se na sua composição e na sua presidência. Assim, estabelece que até 31 de outubro de 2014 a Comissão será constituída por um nacional de cada Estado-membro, incluindo o seu Presidente (da Comissão) e o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança. A partir de 1º de
novembro de 2014, a Comissão Europeia deve ser composta por um número de membros, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, correspondente a dois terços do número de Estados-membros. Assim, se a União continuar formada, em 2014, pelos mesmos vinte e oito países o número de comissários será de dezoito. Em relação à presidência da Comissão, Adriane Lorentz acentua que, com o Tratado de Lisboa, a escolha desse Presidente deve levar em consideração o resultado das eleições parlamentares e passar por uma eleição do Parlamento Europeu, o que não existia até então.6 23.3.3 Conselho da União Europeia Trata-se do principal órgão legislativo e executivo da União, sendo referido nos tratados simplesmente por Conselho. É formado por um representante ministerial de cada país, com poderes para vincular o governo que representa. Até o advento do Tratado de Lisboa, a Presidência sempre foi exercida sucessivamente por cada Estado-membro do Conselho, durante um período de seis meses. Com o Tratado de Lisboa, essa instituição teve mudanças no que concerne à criação de novas Pastas, ao sistema de cálculo de votação no seu seio e à sua presidência.7 O Conselho ganhou, então, duas pastas: uma encarregada dos Assuntos Gerais e a outra dos Assuntos Exteriores. O voto pela maioria qualificada torna-se regra geral na adoção dos atos jurídicos no seio do Conselho. A unanimidade permanece, mas somente é aplicada nos casos bem definidos pelo Tratado de Lisboa, constituindo-se em exceção à regra da maioria qualificada. Ainda nessa esteira, pelo Tratado de Lisboa, a partir de 2014, a maioria qualificada será calculada por um sistema de dupla maioria: pelo menos 55% dos membros do Conselho (Estados-membros), representando, no mínimo, 65% da população da União serão necessários para adotar um ato legislativo europeu. Com o Tratado de Lisboa, a presidência do Conselho, com exceção da formação de Negócios Estrangeiros, é assegurada por grupos predeterminados de três Estados-membros durante um período de 18 meses. Estes grupos são formados com base em um sistema de rotação igualitária dos Estadosmembros, tendo em conta a sua diversidade e o equilíbrio geográfico na União. Cada membro do grupo preside sucessivamente, durante seis meses, todas as formações do Conselho, com exceção da formação de Negócios Estrangeiros. A sede do Conselho está em Bruxelas, embora realize algumas de suas reuniões em Luxemburgo. 23.3.4 Parlamento Europeu É composto por representantes dos povos dos Estados integrados na Comunidade. A eleição se dá por sufrágio universal direto dos cidadãos desses países. Atualmente são 766 deputados, em quantidade proporcional a cada um dos vinte e oito Estados, destacando-se a Alemanha, com noventa e nove representantes, e Malta, com apenas seis eurodeputados. A partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a composição do Parlamento Europeu terá o número desses representantes limitado a 750 (mais o Presidente), não podendo ultrapassá-lo mesmo que haja ingresso de novos Estados na União. A representação dos cidadãos europeus deve ser proporcional com, no mínimo, seis parlamentares, e, no máximo, noventa e seis por Estado-membro.8 Trata-se da única instituição eleita diretamente pela população, tendo os parlamentares mandato de cinco anos. O Parlamento não exerce o Poder Legislativo da União, sendo sua principal função a discussão e aprovação do orçamento da União, ao lado de funções consultivas e de supervisão, além de
outras atribuições que lhe vêm sendo cometidas paulatinamente. O Tratado de Lisboa tornou ainda mais importante o papel do Parlamento Europeu. O procedimento legislativo de codecisão se torna agora o procedimento legislativo ordinário, no qual o Parlamento Europeu e o Conselho são, conjuntamente, implicados no processo legislativo possuindo iguais poderes. O Tratado de Lisboa ampliou o número de matérias que são decididas pelo sistema da codecisão, aumentando, em consequência, o número de áreas em que o Parlamento Europeu participa.9 O Parlamento tem sua sede em Estrasburgo, na França, mas o seu Secreta-riado-Geral se encontra em Luxemburgo e as comissões se reúnem em Bruxelas. 23.3.5 Tribunal de Contas O Tribunal de Contas é composto por um representante de cada Estado-membro, sendo esses nomeados para um período de seis anos. A escolha é feita pelo Conselho, após consulta ao Parlamento Europeu. Suas funções são verificar a legalidade e a regularidade das receitas e despesas da União Europeia e garantir uma boa gestão financeira. A fiscalização é feita com base em documentos e in loco nas próprias instalações das outras instituições da União. Esse Tribunal tem sua sede em Luxemburgo. 23.3.6 Tribunal de Justiça da União Europeia O Tribunal de Justiça da União Europeia detém a competência jurisdicional para as questões de direito comunitário, cabendo a ele garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação dos Tratados europeus. É composto por um juiz de cada Estado-membro, os quais, assim como os advogados-gerais que dão assistência ao Tribunal, são escolhidos de comum acordo pelos Governos dos Estados. Trata-se de personalidades com garantia de independência e que reúnem as condições exigidas para o exercício das mais altas funções jurisdicionais em seus países, sendo nomeados para um período de seis anos, com possibilidade de recondução. Os juízes designam entre si o Presidente do Tribunal, com mandato de três anos e possibilidade de reeleição. O Tribunal de Justiça da União Europeia fiscaliza a legalidade dos atos adotados em conjunto pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, dos atos do Conselho, da Comissão e do Banco Central Europeu, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos atos do Parlamento Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. A ele compete conhecer dos recursos com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação do Tratado da União Europeia ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio do poder, interpostos por um Estadomembro, pelo Conselho ou pela Comissão. Ainda, o Tribunal tem competência, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos interpostos pelo Parlamento Europeu, pelo Tribunal de Contas e pelo Banco Central Europeu, com o objetivo de salvaguardar as respectivas prerrogativas. Convém ressaltar que o Tribunal de Justiça da União Europeia não é instância recursal para os tribunais nacionais dos Estados-membros, não lhe cabendo, por conseguinte, reformar decisões desses tribunais, ainda que se trate de matéria de direito comunitário. O Tribunal de Primeira Instância (a ser chamado de Tribunal com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa), também conhecido como Tribunal Geral, é competente para conhecer em primeira instância de recursos que especifica. A essa Corte são aplicáveis, no que couberem, as disposições do Tribunal de Justiça, inclusive podendo contar com advogados-gerais, se assim dispuser seu regimento interno.
O Tribunal de Justiça da União Europeia, assim como o Tribunal de Primeira Instância, tem sua sede em Luxemburgo. O Tratado de Lisboa substitui a expressão “Tribunal de Justiça” constante nos Tratados europeus por “Tribunal de Justiça da União Europeia”; bem como “Estatuto do Tribunal de Justiça” por “Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia”; e “Tribunal de Primeira Instância” por “Tribunal”. Também as expressões “câmara jurisdicional” e “câmaras jurisdicionais” são substituídas, respectivamente, por “tribunal especializado” e “tribunais especializados”.10 O Tratado de Lisboa criou um Comitê com a função de opinar sobre a adequação dos candidatos ao exercício das funções de juiz ou de advogado-geral do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral, antes de os governos dos Estados-membros procederem às suas nomeações.11 23.3.7 Comitê Econômico e Social Essa instituição tem função consultiva, aconselhando as instituições europeias, como o Conselho, a Comissão e o Parlamento. Os representantes dos meios socioeconômicos europeus podem, diante dela, exprimir seus pontos de vista, de maneira formal, a respeito das políticas comunitárias. O Comitê Econômico e Social tem sua sede em Bruxelas. 23.3.8 Comitê das Regiões Instalado em 1994, com sede em Bruxelas, o Comitê das Regiões permite a expressão do poder local e regional na União Europeia. Os Tratados europeus obrigam a Comissão e o Conselho a consultarem o Comitê das Regiões sempre que são feitas novas propostas em domínios com repercussões no plano regional ou local. O Tratado de Maastricht estabeleceu cinco desses domínios (coesão econômica e social, redes de infraestruturas transeuropeias, saúde, educação e cultura). O Tratado de Amsterdã acrescentou à lista cinco outros domínios (política de emprego, política social, ambiente, formação profissional e transportes), passando, assim, a abranger grande parte da atividade da UE. A Comissão, o Conselho e o Parlamento podem consultar o Comitê das Regiões se entenderem que uma proposta tem importantes implicações regionais e locais. 23.3.9 Banco Central Europeu Criado em 1998, o Banco Central Europeu entrou em funcionamento no dia 1º de janeiro de 1999. Ele define e executa a política econômica e monetária da União Europeia, competindo-lhe gerir a moeda única, o euro. Trabalhando em conjunto com o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), o Banco Central Europeu mantém, como o SEBC, total independência da União e dos Estados-membros. Controla a massa monetária e a estabilidade dos preços na Zona do Euro, evitando que o poder de compra seja afetado pela inflação e que o aumento anual de preços ao consumidor chegue a 2%. Ainda, acompanha a evolução dos preços, fixa as taxas de juros, administra as reservas de divisas nele depositadas pelos Estados e emite as notas de euro. Sua sede está situada em Frankfurt, na Alemanha, e seu primeiro Presidente foi o holandês Wim Duisenberg (1998-2003), sucedido pelo francês Jean-Claude Trichet (2003-2011). Em junho de 2011 o italiano Mario Draghi foi eleito para a presidência do Banco Central Europeu, iniciando seu mandato em novembro do mesmo ano. O Banco Europeu de Investimentos, por sua vez, é uma instituição destinada a favorecer a realização dos objetivos da União Europeia na medida em que fornece financiamentos de longo prazo em favor de
projetos que fomentem a integração europeia e a coesão social.12 Sua sede está localizada em Luxemburgo.
23.4 Ordenamento jurídico comunitário As normas fundamentais, as fontes primárias do direito comunitário da União Europeia são os tratados europeus – da CE, da UE e da CEEA –, assim como os protocolos e anexos a esses. O ordenamento jurídico comunitário é composto, além do mencionado direito primário ou originário, pelo direito derivado, que são os regulamentos, as diretivas, as decisões, as recomendações e os pareceres. O Tratado de Lisboa também propõe esses mesmos atos jurídicos. O Regulamento tem caráter geral, nele se fixando as regras para os diversos setores de atividades comunitárias, como normas alfandegárias para a agricultura e os transportes. Possui caráter comunitário (cria um direito igual para toda a Comunidade, não se limitando às fronteiras nacionais, integralmente válido em todos os Estados-membros) e está dotado de aplicabilidade direta (sem a necessidade de transposição para o direito nacional). A Diretiva se destina a prescrever aos destinatários um objetivo que tem que ser alcançado em determinado prazo, e é dirigida a um ou mais Estados-membros. A Decisão consiste em uma notificação e vincula o destinatário individualmente. Esse pode ser um Estado-membro ou, eventualmente, um particular, que é notificado para um determinado fim (por exemplo, multa a empresa que contrarie as regras de concorrência). As Recomendações e os Pareceres, como se deduz, apenas sugerem aos destinatários um determinado comportamento, não sendo vinculativos. Se não obrigam, também não impõem obrigação.
23.5 Supranacionalidade na União Europeia O conceito tradicional de soberania, em que o Estado era todo poderoso, não admitindo limites ou intromissões em suas ações, vem sendo modificado pela globalização da economia e seus consequentes desdobramentos. Na União Europeia, por exemplo, surge um novo conceito de soberania, em razão do qual os Estados aceitam delegar atribuições às instituições europeias, e passam a respeitar as decisões emanadas desse poder superior, dessa instituição supranacional.13 Os Tratados europeus não mencionam o termo “supranacionalidade” em nenhuma parte. Os seus efeitos, no entanto, são subentendidos e estão bem presentes. O Tratado CECA introduziu esta noção.
23.6 Cidadania europeia Foi instituída a cidadania da União Europeia, extensível a todo nacional de qualquer dos países integrantes, e que é complementar à cidadania nacional, não a substituindo. Qualquer cidadão da União goza do direito de circular livremente no território dos Estados-membros e pode ser candidato nas eleições municipais do Estado de sua residência, bem como nas eleições para o Parlamento Europeu, nas mesmas condições que os nacionais desse país. Outrossim, goza do direito de petição ao Parlamento Europeu e de se dirigir por escrito, em uma língua oficial da União, a qualquer das suas instituições e obter resposta redigida no mesmo idioma.
23.7 Livre circulação dos trabalhadores Também está assegurada na União Europeia a livre circulação dos trabalhadores, o que implica a
abolição de toda e qualquer discriminação em razão de nacionalidade, entre eles, sejam de que Estadomembro forem, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e às demais condições de trabalho, com exceção apenas aos empregos na administração pública dos Estados-membros.14
23.8 Considerações finais O que vem ocorrendo na Europa, em matéria de integração, é quase um exemplo único. O próprio Império Romano, sempre lembrado, “tinha-se formado por conquista, enquanto que a Europa é o fruto da livre vontade de seus habitantes, resolvidos a unir-se sem se tornarem súditos uns dos outros”, como destaca Joseph Rovan.15 Os vinte e oito Estados-membros da União Europeia (Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Inglaterra, Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Suécia, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, Republica Tcheca, Bulgária, Romênia e Croácia) formam hoje um corpo único, mas preservam suas raízes históricas, suas tradições culturais, seus territórios e seus respectivos idiomas.
RESUMO 23.1 Globalização da economia e a formação de blocos continentais A globalização da economia tem impulsionado, entre outras consequências, a formação de blocos continentais, como o NAFTA, a União Europeia e o Mercosul.
23.2 Processo de integração dos Estados europeus Começou com o Tratado de Paris (18.04.1951), que criou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, CECA, instituída por seis países, por iniciativa da Alemanha e da França. Seguiram-se os Tratados de Roma (25.03.1957), que instituíram a Comunidade Econômica Europeia, CEE, e a Comunidade Europeia de Energia Atômica, CEEA. A União Europeia vem recebendo novas adesões, contando com vinte e oito países, desde julho de 2013, e vários Estados candidatos à adesão. Revisões desses tratados ocorrem com o Ato Único Europeu (1986), o Tratado de Maastricht (1993), o Tratado de Amsterdã (1997), o Tratado de Nice (2001) e o Tratado de Lisboa (13.12.2007). Esse último foi ratificado por todos os vinte e sete Estados-membros, tendo entrado em vigor no dia 1º de dezembro de 2009.
23.3 Instituições da União Europeia As instituições da União Europeia são: Parlamento Europeu, Conselho da União Europeia (ou Conselho de Ministros, ou Conselho), Tribunal de Justiça da União Europeia, Conselho Europeu (com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa) e Tribunal de Contas. As instituições auxiliares são: Comitê Econômico e Social, Comitê das Regiões, Banco Central Europeu e Banco Europeu de Investimentos. 23.3.1 Conselho Europeu É o órgão supremo da União Europeia, sendo constituído pela reunião dos Chefes de Governo ou
Chefes de Estado dos países-membros da Comunidade. Torna-se uma instituição da UE com o Tratado de Lisboa e seu presidente, agora com mandato de dois anos e meio, passa a ser o Presidente da União Europeia, cargo assumido pelo belga Herman Van Rompuy em 01.12.2009. 23.3.2 Comissão A Comissão, composta de vinte e oito membros, é uma espécie de governo da União Europeia. Formula recomendações ou pareceres sobre matérias objeto dos tratados e tem sede em Bruxelas. Sofrerá modificações na sua composição e em relação à sua presidência com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. 23.3.3 Conselho da União Europeia É o principal órgão legislativo e executivo da UE. Formado por um representante de cada Estadomembro, em âmbito ministerial, com poderes para vincular o Governo desse país. Sua presidência é exercida sucessivamente pelos Estados, por períodos de seis meses. Tem sede em Bruxelas. Com o Tratado de Lisboa, essa instituição teve mudanças no que concerne à criação de novas Pastas, ao sistema de cálculo de votação e à sua presidência. 23.3.4 Parlamento Europeu Composto por representantes do povo dos Estados, por sufrágio universal direto. São atualmente 766 eurodeputados, com mandato de cinco anos. Trata-se da única instituição da União que é eleita diretamente pela população. Funções: discussão e aprovação do orçamento da UE, além de outras, consultivas e de supervisão, sendo que suas atribuições vêm sendo ampliadas gradativamente. O Parlamento Europeu, que tem sua sede em Estrasburgo, na França, se fortalece com esse novo tratado e sofre modificações na sua composição. 23.3.5 Tribunal de Contas Constituído por um representante de cada país, com mandato de seis anos. Funções: verificar legalidade e regularidade das receitas e despesas da União e garantir a boa gestão financeira. Sede em Luxemburgo. 23.3.6 Tribunal de Justiça da União Europeia Detém a competência jurisdicional para as questões de direito comunitário. Composto por um juiz de cada país, assistido por advogados-gerais, todos escolhidos pelos Governos dos Estados. Mandato de seis anos para ambas as categorias. Os juízes escolhem o presidente, para mandato de três anos, permitida a reeleição. Tribunal de Justiça da União Europeia: competência para assegurar a aplicação do Direito Comunitário. Não é instância recursal para os tribunais nacionais. Tribunal de Primeira Instância (“Tribunal” no Tratado de Lisboa): competência limitada a certas categorias de ações. Já em funcionamento. Ambos os tribunais têm sede em Luxemburgo.
23.3.7 Comitê Econômico e Social Função consultiva. Aconselha as instituições europeias (Conselho, Comissão e Parlamento). Representantes dos meios socioeconômicos europeus podem, diante dele, exprimirem seus pontos de vista, de maneira formal, sobre políticas comunitárias. O Comitê Econômico e Social tem sede em Bruxelas. 23.3.8 Comitê das Regiões O Comitê das Regiões tem sua sede em Bruxelas e foi instalado em 1994. Permite expressão do poder local e regional na UE. Os Tratados europeus obrigam a Comissão e o Conselho a consultarem o Comitê das Regiões sempre que são feitas novas propostas em domínios com repercussões no plano regional ou local. O Tratado de Maastricht estabeleceu cinco desses domínios (coesão econômica e social, redes de infraestruturas transeuropeias, saúde, educação e cultura). 23.3.9 Banco Central Europeu Define e executa a política econômica e monetária da União, competindo-lhe gerir a moeda única, controlar a massa monetária e a estabilidade dos preços, bem como fixar as taxas de juros e emitir as notas de euro. Tem sua sede em Frankfurt. O Banco Europeu de Investimentos favorece a realização dos objetivos da União Europeia, por meio de operações de financiamento de longo prazo. Tem sede em Luxemburgo.
23.4 Ordenamento jurídico comunitário Os tratados da CE, da UE e da CEEA (o Tratado da CECA foi extinto em 2002), com seus protocolos e anexos, são a fonte primária do direito comunitário. É o direito primário ou originário. O direito derivado consta nos regulamentos, nas diretivas, nas decisões e nas recomendações e pareceres.
23.5 Supranacionalidade na União Europeia Presente nos fundamentos da UE o conceito de supranacionalidade, em que os Estados aceitam decisões emanadas de um organismo superior dirigidas diretamente a seus nacionais. A instituição supranacional recebeu atribuições que lhe foram delegadas pelos Estados-membros, em um abrandamento da noção de soberania clássica em benefício de todos.
23.6 Cidadania europeia Foi instituída a cidadania europeia, extensível a todo nacional dos Estados que a compõem, e que é complementar à cidadania nacional.
23.7 Livre circulação dos trabalhadores Está assegurada na União a livre circulação de trabalhadores e abolida qualquer discriminação quanto ao emprego, à remuneração e às demais condições de trabalho entre os nacionais do Estadomembro e o cidadão europeu nele residente.
23.8 Considerações finais O exemplo de integração da União Europeia é modelar, servindo de paradigma para os demais blocos de Estados. São atualmente vinte e oito países (Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Inglaterra, Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Suécia, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, Republica Tcheca, Bulgária, Romênia e Croácia), formando uma instituição homogênea, mas preservando suas origens, tradições e idiomas nacionais.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Fazer um histórico do movimento que resultou na integração da Europa. 2. Dissertar sobre a importância dos Tratados da União Europeia a partir de Maastricht. 3. O que é o Conselho Europeu? Diferenciá-lo do Conselho da Europa e do Conselho da União Europeia. 4. Comentar as atribuições da Comissão. 5. Identificar analogias e diferenças do Parlamento Europeu com as demais instituições da União Europeia, detendo-se no seu papel em relação ao poder legislativo da União. 6. Analisar as principais fontes (primária e derivada) do direito comunitário da União Europeia. 7. Dissertar sobre as cortes judiciárias e sobre o Tribunal de Contas da União Europeia. 8. Proceder a um estudo sobre o Tratado de Lisboa, explicitando as principais inovações por ele trazidas no que concerne às instituições europeias.
______________ 1 A CECA foi extinta em 2002. 2 Em 1992, o Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht) modificou o nome do Tratado da CEE para Tratado da Comunidade Europeia (CE). 3 Esses dezoito países são: Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Irlanda, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Grécia, Eslovênia, Chipre, Malta, Eslováquia, Estônia e Letônia. 4 Os Estados-membros são: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Romênia e Suécia. 5 Ver LORENTZ, Adriane Cláudia Melo. Do tratado constitucional ao futuro “tratado modificativo” da União Europeia. p. 35-46. 6 Ver, de Adriane Lorentz, as obras citadas: Do tratado constitucional ao futuro “tratado modificativo” da União Europeia e O tratado de Lisboa e as novas reformas nos tratados da União Europeia. 7 LORENTZ, A. C. M. Op. cit. 8 LORENTZ, A. C. M. Op. cit. 9 Idem. 10 LORENTZ, A. C. M. Op. cit. 11 LORENTZ, A. C. M. Op. cit. 12 EUROPEAN INVESTMENT BANK. What is the EIB? Disponível em: . Acesso em: 16 out. 2013. 13 Ver, entre outros, LORENTZ, Adriane Cláudia Melo. Supranacionalidade no Mercosul; KERBER, Gilberto. Mercosul e a supranacionalidade. 14 Ver, entre outros, JAEGER JUNIOR, Augusto. Mercosul e a livre circulação de pessoas. 15 ROVAN, Joseph. Como tornar-se cidadão da europa. p. 39.
MERCOSUL1
“A verdadeira integração dos povos da América Latina apenas será atingida quando se operar o estado de integração em seu sentido mais amplo e em todos os níveis, inclusive o cultural” (Odete Maria de Oliveira).
24.1 Antecedentes históricos Durante um período de aproximadamente sessenta anos, os territórios que hoje compõem os Estados-partes do Mercado Comum do Sul (Mercosul), assim como os demais territórios sul-americanos, faziam parte de uma só nação. Tal fato ocorreu entre 1580 e 1640, quando os reinos de Portugal e Espanha constituíram a União Ibérica, sob o domínio do monarca espanhol. Seria forçoso, no entanto, identificar na ausência formal de fronteiras entre os domínios luso e espanhol na América do Sul uma forma embrionária de integração regional. Conforme esclarece o Embaixador Synesio Sampaio Goes, o fato de estarem ligados ao mesmo monarca não cerceou a independência das nações ibéricas, de modo que, mesmo nesse período, as colônias americanas teriam permanecido tão separadas quanto o eram antes.2 Pode-se afirmar que o primeiro ímpeto integracionista na região adveio do tumultuado processo de independência das ex-colônias espanholas. Principalmente Simón Bolívar (1783-1830) e José de San Martin (1775-1850) trabalham no que vai redundar no primeiro tratado de união latino-americana, qual seja, o Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua entre as Repúblicas da Colômbia, Centro América, Peru e Estados Unidos Mexicanos, e na organização da Grã-Colômbia, unindo Colômbia (da qual fazia parte o atual Panamá), Venezuela, Bolívia, Equador e Peru. Bolívar foi escolhido presidente dessa federação, renunciando, contudo, ao poder diante do insucesso da mesma. A fragmentação do antigo domínio colonial espanhol acabou por gerar diversas nações independentes, com sua própria dinâmica político-econômica. A antiga e possível integração desses territórios se esfuma, enterrada em antagonismos cada vez mais acentuados. Dos antigos laços comuns, permaneceu a desconfiança frente ao Império brasileiro, visto como expansionista. Ao longo do século XIX, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai estiveram envolvidos em conflitos bélicos entre si. Cabe recordar que a constituição do Uruguai como país independente, oficialmente reconhecida em 1828, decorreu de sua separação do território brasileiro, após uma guerra na qual contou com o apoio da Argentina. De modo geral, ao longo do século XIX as relações entre os dois maiores países sul-americanos, Brasil e Argentina, foram marcadas por movimentos de aproximação e distanciamento, estes provocados por ressentimentos e desconfianças. Verifica-se, então, que o rio Uruguai não é a única barreira que separa o Brasil da Argentina, uma vez que a história registra várias disputas, muitas delas veladas, que sempre afastaram um país de outro. O advento da República no Brasil amenizou, mas não extinguiu, em ambos os lados da fronteira, a mútua desconfiança. Os dois países chegaram ao ponto de restringir o desenvolvimento industrial nas regiões de fronteira, a fim de que, em caso de guerra, os respectivos parques industriais não ficassem vulneráveis. Ambas as diplomacias se empenhavam em estabelecer uma hegemonia regional. Uma
desconfiança viciosa restringia as relações comerciais e culturais entre os dois Estados.
24.2 ALALC e ALADI Na segunda metade do século passado, começaram a surgir diversas formas de união comunitária, destacando-se a ALALC e a ALADI. Criada em 1960, pelo Tratado de Montevidéu, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) visou implantar um mercado comum regional a partir da conformação de uma zona de livre comércio, integrando Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile, México e Peru. Essa foi a primeira tentativa de criação de uma zona de livre comércio na América Latina. Devido, entre outros fatores, à falta de complementaridade entre as economias da região, seu funcionamento se mostrou insatisfatório, insuficiente, desequilibrado e dinamicamente decrescente, não conseguindo alcançar os objetivos estipulados no Tratado. As duas crises do petróleo, na década de setenta, com efeitos no mundo inteiro, colocaram em xeque o desenvolvimento econômico dos países latino-americanos, acrescendo-se a isso o ultranacionalismo dos regimes ditatoriais que proliferaram em diversos países da região nesse período. Visando reestruturar a ALALC, os Estados-partes criaram, mediante o Tratado de Montevidéu, em 1980, a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI). O novo Tratado manteve o objetivo de estabelecer, a longo prazo, um mercado comum latino-americano. No entanto, reconhecendo a profunda heterogeneidade da região, introduziu profundas mudanças na orientação do processo, bem como na concepção de sua operação.3 Nesse sentido, o ambicioso programa de liberalização comercial da ALALC foi substituído por um sistema mais pragmático e flexível de preferência tarifária, que possibilita aos países-membros firmar acordos de alcance regional (entre todos os membros) ou de alcance parcial (entre dois ou mais membros). Com perfil mais abrangente, além da função comercial a ALADI se propôs a promover a complementação econômica e o desenvolvimento de ações de cooperação econômica que levem à ampliação dos mercados. O novo Tratado estabeleceu, ainda, cinco princípios gerais: pluralismo econômico e político; convergência progressiva para a formação de um mercado comum latinoamericano; flexibilidade; tratamento diferenciado para países de menor desenvolvimento econômico relativo; e multiplicidade nas formas de concertação.4 O Tratado da ALADI permite a adesão de novos membros, de modo que aos 11 Estados fundadores (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela) uniram-se Cuba (1999) e o Panamá (2012). Atualmente, a Nicarágua está em processo de adesão. De forma sintética, pode-se caracterizar a ALADI como um mecanismo de concertação de instrumentos comerciais, que busca conjugar institucionalmente, em um marco flexível, os esforços, ainda que assíncronos, de seus países-membros com vistas à integração econômica.
24.3 Conceitos básicos Costuma a doutrina distinguir cinco fases nos processos de integração econômica, quais sejam, a zona de livre comércio, a união aduaneira, o mercado comum, a união econômica e monetária e a união política. As duas primeiras são as formas clássicas conceituadas no artigo XXIV do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio); a terceira surgiu com o Tratado de Roma, em 1957, que instituiu a Comunidade Europeia, que tinha como objetivo a constituição de um mercado comum; e as últimas duas foram conhecidas com a assinatura do Tratado da União Europeia, em 1992, e com o surgimento da ideia
de um Tratado para uma Constituição para a Europa, em 2004. Para Estrela Faria, “uma zona de livre comércio compreende o espaço de dois ou mais países em que se eliminaram substancialmente todos os direitos alfandegários e outras formas de restrição comercial para a circulação dos produtos originários da mesma região”.5 Ferreira e Olivera completam, afirmando que o livre comércio se refere aos produtos de origem regional, ou seja, que tenham alta proporção de matéria-prima e valor agregado dentro da zona.6 Essa distinção sobre a origem se faz necessária para evitar eventual triangulação comercial, com a reexportação para uma das partes da zona de livre comércio de produtos oriundos de terceiros países. Já a união aduaneira, ainda acompanhando o entendimento de Estrela Faria, compreenderia também a aplicação, pelos Estados-partes, das mesmas tarifas e igual política comercial para o comércio de produtos oriundos de fora do bloco, isto é, uma tarifa comum frente a terceiros países. Outrossim, mercado comum pressupõe as duas fases clássicas de integração e mais “a liberdade de circulação de serviços e fatores produtivos (capital e trabalho), com a eliminação de toda forma de discriminação”. Traz consigo a ideia de livre circulação de pessoas, de trabalhadores e de mercadorias. Conforme Ferreira e Olivera, ainda ocorre o seguinte: a) os trabalhadores têm livre acesso aos postos de trabalho existentes na região, o que conduz à liberdade de instalar-se com sua família em qualquer dos países que integram o Mercado Comum; b) os empresários, em um regime de livre concorrência, podem competir e vender seus produtos ou serviços onde lhes seja mais vantajoso; e c) os Estados se veem compelidos a dar um tratamento preferencial a seus nacionais frente aos demais estrangeiros comunitários.7 A união econômica e monetária, segundo Elizabeth Accioly,8 constitui-se em mais um estágio da fase integracionista e tem sua origem no Tratado da União Europeia, que criou a moeda única, no caso o euro, emitida por um banco central independente, o Banco Central Europeu.
24.4 Mercado Comum do Sul – Mercosul O fenômeno da integração econômica foi sentido também no Cone Sul, onde quatro países formaram um bloco regional, o Mercosul, em 1991, por meio do Tratado de Assunção. A cooperação econômica entre Brasil e Argentina da década de oitenta foi vista como precursora desse processo. Destaque-se a inauguração da Ponte Presidente Tancredo Neves, unindo Puerto Iguazu, na Argentina, a Foz do Iguaçu, no Brasil, momento em que os Presidentes Raul Alfonsín e José Sarney firmaram a Declaração de Iguaçu, proclamando suas vontades de aproximação política e comercial e de superar a tradicional rivalidade entre os dois países. Outros acontecimentos integracionistas sobrevieram, entre eles a assinatura, em julho de 1986, da Ata para a Integração Brasil-Argentina e a assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, em novembro de 1988. Porém, o auge desse processo de integração foi atingido com a assinatura da Ata de Buenos Aires, pelos presidentes então recém-eleitos da Argentina e do Brasil, Carlos Menem e Fernando Collor de Mello, em julho de 1990, documento em que se estipulou a criação de um mercado comum até o ano de 1994. Devido às articulações argentina e brasileira para a criação de um bloco regional, a elas logo aderiu o Uruguai e, pouco depois, o Paraguai, preocupados com o movimento que ameaçava deixá-los economicamente isolados. O principal objetivo do Mercosul é a conformação de um mercado comum, de acordo com o exposto no artigo 1º do Tratado. Essa é a fase que enseja a presença das liberdades fundamentais e a
regulamentação de uma série de outros assuntos. Para o seu alcance, o artigo 5o do Tratado previu uma série de instrumentos. O prazo, desmesuradamente ambicioso, estabelecido para a implementação do Mercado Comum, refletia o contexto global então vigente de liberalização econômica. Não é de surpreender, portanto, que o objetivo não tenha sido atingido durante o período provisório, que tinha término previsto para 1994.9
24.5 Tratado de Assunção A nova proposta integracionista teve início com a assinatura, em 1991, do Tratado de Assunção, instituidor do Mercado Comum do Sul (Mercosul) entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Esse Tratado pode ser considerado um tratado marco, uma vez que fixa objetivos comuns a serem concretizados de forma evolutiva e mediante programas conjuntos, possui escassas normas básicas obrigatórias e seu texto contém, sobretudo, enunciações programáticas e princípios genéricos não desenvolvidos.10 Com efeito, a assinatura desse tratado representou o estabelecimento de uma nova era na busca pela integração. Ele, em si, permitiu a vinculação contratual à luz do Direito Internacional Público11 entre países para a fundação de um mercado comum e é a pedra fundamental para o processo de integração. Mas, como ele mesmo expressa, é um tratado para a constituição do mercado comum, isto é, um evento futuro, que não começaria com a entrada em vigor dele próprio. O Tratado é apenas o ponto de partida. Do exposto no artigo 1º do Tratado de Assunção, observa-se que o objetivo desse processo de integração é constituir um mercado comum entre os quatro Estados signatários, sendo esse, inclusive, o porquê do próprio nome do processo sul-americano, o qual deveria estar estabelecido após um período provisório que se estenderia até 31 de dezembro de 1994, e que se denominaria Mercado Comum do Sul. Entre tantas assimetrias entre a União Europeia e o Mercosul, Deisy Ventura vê nesse propósito comum um esboço de simetria.12 Os objetivos particulares que o conceito de mercado comum abrange e que deveriam estar efetivados até o final do período provisório foram definidos pelo próprio Tratado. Devido a diversos percalços, o progresso esperado para acontecer no prazo previsto de 1994 ainda não foi plenamente alcançado.
24.6 Protocolo de Ouro Preto O Protocolo de Ouro Preto, firmado em dezembro de 1994, disciplinou as regras sobre a tarifa externa comum, etapa fundamental para a implementação da união aduaneira. A partir da vigência do Protocolo, o Mercosul passou a ter personalidade jurídica. Esse documento do direito primário sublinhou uma vez mais a opção por um caráter intergovernamental do processo, em que as decisões são tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes. Tal caráter é o que representa a maior assimetria entre esse processo e o da União Europeia, sendo apontado como o principal impedimento à necessária execução do direito da integração nos Estados-partes.13 Por outro lado, a necessidade de consenso pode ser interpretada como uma forma engenhosa de evitar eventuais obrigações contrárias ao interesse do Brasil, o Estado com a maior economia, população e território do bloco. O Protocolo assinala o término do período provisório,14 que foi relativamente curto se comparado com os doze anos previstos para a então Comunidade Econômica Europeia, fase em que se pretendia passar das negociações à implantação,15 e instaurador da fase de união aduaneira,16 uma vez que disciplinou as regras sobre a tarifa externa comum. Todavia, o mero estabelecimento de uma tarifa não determina a remoção do sistema de controle de origem. Ademais, é necessária a unificação das regras de
aduana, da política de comércio exterior e a harmonização das legislações nacionais relativas a impostos indiretos e normas técnicas. O surgimento do Protocolo, portanto, não significou que um mercado comum tivesse sido realizado. O artigo 2º do Protocolo consolidou a ausência da supranacionalidade, uma vez que estabeleceu que os órgãos com capacidade decisória têm natureza inter-governamental. Ademais, disciplina o artigo 37 que as decisões serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes. O Protocolo manteve e concretizou, como órgãos com poder de decisão, o Conselho do Mercado Comum, o Grupo Mercado Comum e a Comissão de Comércio do Mercosul. O Conselho é o mais alto órgão hierárquico, encarregado de conduzir o processo de integração, e tendo a responsabilidade de observar os prazos e objetivos contidos no Tratado. O Grupo é o órgão executivo do bloco. O Conselho e o Grupo do Mercosul, com a estrutura organizacional trazida pelo Protocolo, assemelham-se com o Conselho e a Comissão da União Europeia, nos quais a instituição superior (em ambos os processos, o Conselho) é controlada pelos Estados-partes e tem o poder de criar regras, ao passo que a outra instituição (no caso, o Grupo) tem o poder de propor e implementar as regras. A Comissão de Comércio do Mercosul, o mais novo órgão com poder de decisão, foi reconhecida como órgão apenas pelo Protocolo de Ouro Preto, embora já tivesse realizado trabalhos anteriores. A ela está confiado o apoio aos trabalhos do Grupo em sua função executiva e deve ainda executar a política comercial comum dos sócios tanto em relação com terceiros Estados como em caráter intrarregional. Como órgãos de apoio ao Conselho, sem poder de decisão, prevê o Protocolo a Comissão Parlamentar Conjunta e o Foro Consultivo Econômico e Social. A Comissão Parlamentar representou o ponto de partida para a instituição do Parlamento do Mercosul, criado em 2007. O Foro tem competência para os assuntos econômicos e sociais dos Estados-partes. Nessa instância deverão ser discutidas as políticas sociais do processo de integração. Uma estrutura administrativa não havia sido criada durante o período provisório. Por intermédio do Protocolo, a Secretaria Administrativa, com sede em Montevidéu, foi elevada a órgão permanente do Mercosul e é o único que possui um corpo de funcionários.
24.7 Relacionamento com o exterior A partir de 1995, na condição de união aduaneira, a problemática do Mercosul esteve centrada quase exclusivamente em definir o alcance e a mecânica do seu relacionamento externo. Em 1996, o processo recebeu, por meio de acordos de associação, dois novos parceiros na condição de Estados associados, o Chile e a Bolívia. O crescimento econômico e as associações ocorridas fortaleceram a posição do Mercosul perante outros significativos parceiros.17 Na mesma época da aceitação daqueles Estados associados, o bloco estabeleceu uma forte relação de cooperação com a União Europeia, além de numerosas outras organizações e países. As relações com a União Europeia remontam quase ao tempo da sua fundação, pelo que ela foi considerada a “madrinha” do Mercosul,18 quando foi celebrado o Acordo de Cooperação Institucional entre a Comissão Europeia e o Conselho do Mercosul.19 Desde então, o Mercosul recebe da organização assistência técnica e financeira fundamental para ser usada no desenvolvimento de suas instituições,20 por meio do Comitê Consultivo Conjunto de Assistência Técnica e Institucional. Posteriormente, em 15 de dezembro de 1995, em Madri, foi celebrado o Acordo-quadro Interregional de Cooperação entre a Comunidade Europeia e seus Estados-membros por um lado, e o
Mercado Comum do Sul e seus Estados-partes por outro. Tal acordo tinha como objetivo primordial a preparação da associação inter-regional e como principais tarefas liberar gradual e progressivamente o comércio, ampliar a cooperação econômica e inaugurar um diálogo político regular, entre outras constantes dos seus 37 artigos. Também, como objetivo primaz, se encontrava a condução ao fortalecimento do potencial competitivo internacional de ambas as regiões. O instrumento escolhido para o alcance desses objetivos foi o diálogo político, a ser levado a efeito por meio de instituições como o Conselho de Cooperação e a Comissão Mista de Cooperação, organismos aos quais, em 1999, foi acrescentado um Comitê Birregional de Negociações como órgão de supervisão e gestão geral das negociações. A bem da verdade, o acordo, que entrou em vigor em 1o de julho de 1999, não tem um prazo definido para a sua completa implantação. O resultado esperado da relação estabelecida era a formação de uma zona de livre comércio entre os dois blocos de diferentes níveis de desenvolvimento e distantes geograficamente, com a progressiva remoção de barreiras à importação e exportação de produtos que tenham origem em seus territórios.
24.8 Período do sucesso Em seus primeiros anos, o Mercosul gerou mais ganhos que qualquer organização anterior da qual fossem integrantes os seus Estados-partes. As relações de cooperação e de comércio foram expandidas, dispondo-se de uma condizente estrutura institucional21 e se tornando um mercado interessante para os investidores estrangeiros.22 A ideia de uma moeda única chegou a ser aventada e foi considerado um potencial competidor para a União Europeia e para o Nafta. Naquele momento, passou a ser visualizado um ordenamento jurídico no bloco, que conta com um direito processual civil internacional. Apesar do sucesso, o bloco enfrentou problemas. Até 1997, o comércio entre os Estados-partes cresceu de forma espantosa.23 Com tais resultados, tornou-se o terceiro mais importante bloco econômico no mundo. O comércio e os investimentos entre Brasil e Argentina, por exemplo, quadruplicaram, atingindo assim um grande sucesso econômico com aumento de vinte e dois por cento, comparáveis aos sete por cento do comércio extrazona. Cerca de noventa por cento dos produtos comercializados no bloco podiam circular livres de tarifas, enquanto para oitenta e cinco por cento dos bens importados valia uma tarifa externa comum. Regras especiais existiam apenas para produtos sensíveis e os setores protegidos. Apesar do sucesso inicial, o bloco passou a enfrentar nítidos problemas. Alguns foram vinculados à abertura econômica, redução do aparato do Estado e à evolução de problemas sociais como desemprego e miséria. Como lembra Salomão Filho, “processos de integração regional são dinâmicos – ou se desenvolvem de forma permanente ou tendem a uma involução. Os motivos para isso residem na dinâmica do comércio internacional (...). Tão logo o processo de integração se paralise, há a tendência do predomínio dos interesses particulares dos Estados e se opõem, em função disso, contra o comércio”.24 Por isso é dito que a estagnação representa um retrocesso. Ainda que não seja tão visível um retrocesso no caso do Mercosul, seguiu-se ao período de sucesso uma forte mercoesclerosis.25
24.9 Crise do Mercosul Em 1999, os Estados-partes começaram a enfrentar crises econômicas que, naturalmente, tiveram reflexos no Mercosul.26 Logo em janeiro desse ano, o Brasil precisou desvalorizar a sua moeda em trinta por cento frente ao dólar, passando de um sistema de câmbio fixo para uma regra de livre oscilação. A Argentina, que adotava política cambial de paridade com o dólar, demonstrava não ter se adequado, no
prazo previsto, às metas instituídas pelo bloco. Tal inadequação e a desvalorização do real frente ao dólar, decisão política e econômica unilateral, fez com que ela se visse obrigada a instituir cláusulas de salvaguarda frente ao Brasil, especialmente para os setores de calçados, frangos, têxteis e regime automotivo, como forma de proteger a indústria doméstica, que subitamente perdera sua competitividade. O impacto dessa medida quase desencadeou o rompimento do Acordo Mercosul. Nos anos seguintes, o Brasil passou a ser superavitário no comércio com a Argentina, que passou a considerar a participação no Mercosul como problemática para a sua economia e se tornou não cooperativa em matérias que envolvessem o bloco.27 Houve vozes que até questionavam a manutenção da integração. Paralelamente a esse contexto, foi reforçada pelos Estados Unidos a iniciativa de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA),28 cuja proposta de eliminar as barreiras alfandegárias entre todos os países americanos (exceto Cuba) representava uma forte ameaça aos projetos de desenvolvimento do Mercosul. Em dezembro de 2001, agravou-se drasticamente a situação econômica e política da Argentina29 e as reações do governo do país para com essa nova realidade foram extremas, envolvendo a imposição de limites para saques e transferências bancárias, o abandono da paridade cambial, forte desvalorização da moeda e o fechamento dos bancos. Havia previsões concretas de que tal crise se estendesse ao Brasil. Os retrocessos do ano de 1999 já haviam levado os céticos a questionar que futuro teria o Mercosul. Com tudo isso, diminuíram as expectativas de que o bloco viesse a se tornar o mercado comum do século XXI.30 Diante dessas crises, o processo conheceu ideias de relançamento, fundadas no fortalecimento institucional, na incorporação das normas emanadas dos órgãos do Mercosul pelos Estados-partes e na efetivação do sistema de solução de controvérsias. Em 2002, Brasil e Argentina restabeleceram relações amistosas e cooperativas um com o outro no contexto do Mercosul, para que os inúmeros ganhos adquiridos desde a sua fundação não fossem desperdiçados. Em 2004, novas desavenças comerciais se tornaram conhecidas sob o nome de guerra das geladeiras e, em 2006, o pedido de ingresso da Venezuela no bloco reativou os debates.
24.10 Venezuela como membro pleno O Tratado de Assunção, já em 1991, previu a possibilidade de ingresso de novos membros no bloco. Assim, em 2006, o tema da agenda do Mercosul foi a eventual passagem da Venezuela de Estado associado para Estado-parte do bloco econômico, isto é, assumir a característica de membro pleno do processo. Com isso, o Mercosul passaria a ter dez países entre essas duas modalidades de participação. Por ser parte da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), fundada pelo Tratado de Montevidéu em 1980, a Venezuela preenchia uma condição importante para tanto. Em verdade, o ingresso de um novo país vem ao encontro do termo integração, além de promover um significativo ganho econômico, expandindo o bloco da Patagônia ao Caribe. Acresça-se que o eventual ingresso da Venezuela poderia representar, quando da sua proposta, um freio à tentativa norteamericana de criação da Área de Livre Comércio das Américas, pois, imagina-se, dificultaria ainda mais as negociações em curso entre o bloco e os Estados Unidos. Contudo, as tratativas em torno da ALCA foram abortadas anos antes de a Venezuela se tornar um membro pleno do Mercosul. Diversos questionamentos foram levantados quanto à entrada da Venezuela no bloco. Em uma associação direta do país com a polêmica figura do seu então mandatário, uma das mais frequentes
preocupações decorria das posições políticas do Presidente Hugo Chávez contra os Estados Unidos da América, maior economia do planeta e país com o qual o Mercosul tem interesse em manter profícuo intercâmbio. Chegou-se a cogitar, também, a hipótese de a Venezuela não atender os requisitos para a entrada no bloco. Como se sabe, o Mercosul possui uma cláusula democrática, estabelecida em Ushuaia, na Argentina, em 1992, que impede o ingresso de país sob regime ditatorial. Apesar do cumprimento dos ritos democráticos, a situação venezuelana, com atos considerados arbitrários do Presidente Chávez, que determinou, em 2009, o fechamento de dezenas de emissoras de rádio e de outros veículos de comunicação, reformando ainda a Constituição do país, que agora permite reeleições sucessivas do Presidente, gerou questionamentos sobre o atendimento dessa cláusula pelo país andino. O Poder Executivo brasileiro submeteu à consideração do Congresso Nacional o texto do Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao Mercosul, por meio da Mensagem n. 82, de 2007. Em 15 de dezembro de 2009, o Congresso Nacional brasileiro aprovou o ingresso desse país no bloco e, assim, referendou a frágil democracia que ainda persiste nesse país. Ironicamente, foi justa a aplicação da cláusula democrática do Mercosul que viabilizou o ingresso da Venezuela no bloco. Como os parlamentos da Argentina e do Uruguai já haviam aprovado o ingresso do país andino, o último entrave residia no parlamento do Paraguai, que dava sinais de resistir à ideia. No contexto de uma crise político-institucional, em 22 de junho de 2012 o Presidente paraguaio, Fernando Lugo, teve seu mandato cassado, após um processo conduzido e consumado por opositores em pouco mais de 24 horas. Brasil, Argentina e Uruguai, em posicionamento comum aos demais países sulamericanos, condenaram o rito sumário de destituição do mandatário do Paraguai, alegando que não fora adequadamente assegurado o amplo direito de defesa. Em decorrência do que foi considerado como uma ruptura da ordem democrática, o Paraguai foi suspenso do Mercosul, em aplicação ao Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático, até a realização de novas eleições presidenciais no país, em 2013. Paralelamente, lideranças do bloco viram na aplicação dessa sanção política de alta gravidade uma oportunidade para acelerar a incorporação da Venezuela ao Mercosul. A posição brasileira teve como base um polêmico parecer da Advocacia-Geral da União, que, em malabarismo jurídico, buscou justificar a tese de que um Estado-Parte suspenso estaria vedado de participar do processo decisório das instituições do bloco, apesar da disposição do art. 37 do Protocolo de Ouro Preto, que expressa que as decisões dos órgãos do Mercosul serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes.31 A suspensão tornou desnecessária a manifestação do Congresso paraguaio sobre a questão. Desse modo, como o ingresso da Venezuela já havia sido aprovado pelos Parlamentos brasileiro, argentino e uruguaio, não haveria mais entraves para que o país se tornasse membro pleno do Mercosul. Nesse sentido, em 31 de julho de 2012, a Venezuela foi oficialmente incorporada ao bloco. O ingresso da Venezuela alterou a geografia e o peso político-econômico do Mercosul. O bloco passou a contar com uma população de 270 milhões de habitantes (70% da população da América do Sul), um PIB, a preços correntes, de US$ 3,3 trilhões (83,2% do PIB sul-americano) e um território de 12,7 milhões de km2 (72% da área da América do Sul).32
24.11 Solução de controvérsias no Mercosul Em função de obstáculos constitucionais e da opção pela intergovernamentalidade, o mecanismo de solução de controvérsias assumiu características diferentes do existente na União Europeia. O primeiro
documento que o regulou foi o Protocolo de Brasília, de 1991, de caráter transitório, que implantou um sistema arbitral. As iniciativas tendentes a dar impulso à integração envolveram a superação das deficiências derivadas da carência de um órgão que garantisse a interpretação uniforme do Tratado e tivesse capacidade para sancionar as violações às normas do Mercosul, a adaptação do sistema ao estágio atual da integração e a necessidade de fortalecer a estrutura institucional. Para tanto, em 2002 foi aprovado o Protocolo de Olivos, o qual entrou em vigor em 2004, derrogando o de Brasília. Em 2007, foi emitida a primeira opinião consultiva, umas das novidades com ele surgidas. Em outubro de 2009, pela primeira vez a Argentina formulou uma questão ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, sendo também a primeira vez que uma questão partiu diretamente de um tribunal superior de um dos Estados-partes do processo de integração, sobre um assunto originado dentro do órgão judiciário superior. Tal acontecimento demonstra que o mecanismo possui funcionalidade e vitalidade. O sistema de solução de controvérsias atingiu um relativo significado. As quatro primeiras controvérsias aceitas para ir ao tribunal arbitral ad hoc e que não resultaram em um acordo intermediário33 foram entre Brasil e Argentina. A primeira decisão do Tribunal Arbitral surgiu apenas em abril de 1999,34 tendo o segundo laudo arbitral35 ocorrido cinco meses após, e já no começo de 2000 surgiu o terceiro laudo.36 No ano de 2001, foram emitidos dois laudos arbitrais sobre conflitos em negociações comerciais,37 seguindo-se a esses sete outros laudos. Segundo o artigo 17, a possibilidade de recurso ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, instalado solenemente em 13 de agosto de 2004, com sede em Assunção, é o principal avanço do Protocolo de Olivos em relação ao sistema anteriormente estabelecido.38 A solução de controvérsias não dispunha de instância recursal até então.
24.12 Fragilidade institucional Desde o surgimento do processo de integração, a doutrina tem indicado que o bloco poderia adotar um regime supranacional, submetendo a vontade individual dos Estados-partes aos ditames do bloco. Sob a óptica integracionista, essa perspectiva, imagina-se, proveria a solução de inúmeros problemas e um melhor enfrentamento dos períodos de crise. Por outro lado, ao se analisar a composição do Mercosul, a visível assimetria entre seus membros possibilita compreender, em parte, a resistência à instituição da supranacionalidade. O Brasil, que em 2008 correspondia a cerca de 80% da população e 82% do PIB do bloco,39 teria de se sujeitar a eventualmente ser posição minoritária entre seus parceiros. Em que pese o significativo gesto de confiança inerente à aceitação de tal cenário, realisticamente não se vislumbra, na atual conjuntura, a possibilidade de o Brasil cogitar tamanha abdicação de sua soberania. O Governo brasileiro dificilmente deixará de se pautar pela basilar aplicação do princípio de buscar resguardar a liberdade de ação do País no plano internacional. Mantida a opção atual, basta que um país discorde dos demais para que uma medida não seja adotada. A instauração de tal regime supranacional resolveria esse problema. Contudo, a ideia da supranacionalidade não tem encontrado aceitação nos governos nem em outros círculos, ciosos da possibilidade de abrir mão da soberania nacional. Sacrifica-se, assim, a eficiência pela garantia de não vir a ser subordinado à vontade dos demais membros do bloco. Em verdade, a ordem jurídica do Mercosul é tida, invariavelmente, como frágil,40, visão essa que seria quase incontestável.41 Essa estrutura frágil é ainda elemento de um dos paradoxos atuais do
processo. Ainda que não tenha uma base jurídica sólida, o Mercosul já atua e mesmo legisla um modelo novo de direito.42 Ocorre que da leitura do direito primário não fica claro se o Mercosul está ou não legitimado a impor essas leis nas ordens jurídicas internas e a controlar a sua execução, embora as normas sejam obrigatórias para os Estados-partes. Caberia questionar, portanto, como se legitimam os atos emanados dos órgãos do Mercosul. A aplicação das normas do bloco depende da Constituição de cada Estado-parte,43 e nem todas elas autorizam a transferência de competências às instituições. Existe uma verdadeira aversão histórica a isso e as normas do bloco não dispõem de princípios como o da primazia do direito da integração. Alguns estudiosos observam que pelo fato de as normas do Mercosul necessitarem de concordância unânime dos Estados-partes, a elas deveria ser reconhecido efeito direto e imediato. Outros entendem que se o bloco pode praticar todos os atos necessários à realização de seus objetivos, segundo o artigo 35 do Protocolo de Ouro Preto, ele dispõe de alguma supranacionalidade. Na prática, porém, verifica-se que uma norma do Mercosul só tem efeito depois que todas as partes tiverem adotado as medidas necessárias, segundo as leis nacionais, para a sua incorporação aos respectivos ordenamentos jurídicos. As normativas do bloco não são, portanto, autoexecutáveis. Qualquer perspectiva em contrário implicaria, efetivamente, na instituição de uma espécie de federação dos Estados-partes do Mercosul. Naturalmente, existe uma ampla tendência nos países de dar preferência à Constituição nos casos de conflitos entre normas de Direito Internacional Público e de Direito interno. No caso dos Estados-partes do Mercosul, não seria diferente.44 Ademais, a incorporação de normas não tem prazos definidos, lacuna que aparenta ser o maior inimigo da normativa Mercosul, ainda que a Decisão n. 20/02 CMC busque prevenir o atraso da incorporação das normas do Mercosul. Resumindo, a validade interna das normas do Mercosul depende da necessária concordância parlamentar e da publicação dos documentos. Com isso, tornam-se direito nacional e diretamente aplicável. Em eventual caso de conflito com as leis internas, as constituições dos países são sempre supremas.
24.13 Direito processual civil internacional do Mercosul Durante o período tido como de sucesso do Mercosul,45 situado entre 1995 e a eclosão da crise econômica argentina, em 2001, já era possível afirmar que o bloco possuía um ordenamento jurídico; hoje a doutrina já fala acerca de uma constituição material.46 O Tratado de Assunção, os protocolos de Ouro Preto e de Brasília, as decisões, as resoluções e as diretrizes formavam uma ordem jurídica organizada e estruturada que possuía fontes próprias, dotada de órgãos e procedimentos aptos para emitilas, interpretá-las, bem como para constatar e sancionar os casos de não cumprimento e violações. Para esse ordenamento jurídico, é de grande relevância o que se pode considerar de processo civil internacional do Mercosul.47 Mais de treze acordos principais e complementares já foram firmados no âmbito do bloco nesse sentido,48 em sua maioria tratados de direito processual internacional e de cooperação judiciária. O Protocolo de Las Leñas sobre cooperação e assistência jurisdicional em matéria civil, comercial, laboral e administrativa, de 1992, trata do reconhecimento e execução de decisões e cooperação judicial internacional. É considerado o documento fundamental para o tema entre os países do Mercosul.49 Na doutrina estrangeira, esse documento recebeu comparações com normas europeias.50 Para Tellechea Bergman, representa um terceiro nível de cooperação jurídica internacional, qual seja o do
reconhecimento da eficácia extraterritorial das sentenças.51 Um passo importante na busca da uniformização do direito processual civil internacional do Mercosul ocorreu com o Protocolo de Buenos Aires sobre jurisdição internacional em matéria contratual, de 1994. Ele é aplicado à jurisdição contenciosa internacional com relação a contratos internacionais de natureza civil e comercial celebrados entre particulares, pessoas físicas ou jurídicas. O Protocolo de Ouro Preto de Medidas Cautelares, de 1994, supôs a finalização do processo codificador do auxílio jurisdicional internacional entre os Estados-partes do Mercosul e determinou um nível de especial relevância para a cooperação cautelar. Conforme o documento, não será mais necessária a homologação de medidas cautelares pelo Superior Tribunal de Justiça, no caso brasileiro, quando proferidas dentro de um Estado-parte do Mercosul.52 Contudo, a autoridade jurisdicional requerida poderá recusar cumprimento de uma carta rogatória referente a medidas cautelares quando entender que ela é manifestamente contrária à sua ordem pública.53 Em 1996, surge o Protocolo de São Luis em matéria de responsabilidade civil emergente de acidentes de trânsito, que regula o foro e a lei aplicável à responsabilidade civil por acidentes desse tipo. Ele estabelece o direito aplicável e a jurisdição internacionalmente competente em casos dessa natureza ocorridos no território de um Estado-parte, nos quais participem, ou dos quais resultem atingidas, pessoas domiciliadas em outro Estado-parte.54 Por fim, o Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em matéria de relações de consumo, de 1996, é um protocolo específico que objetiva preencher as lacunas deixadas pelo Protocolo de Buenos Aires, de 1994. Para tanto, tem como objeto determinar a jurisdição internacional em matéria de relações de consumo derivadas de contratos em que um dos contratantes seja um consumidor.55 Ele ainda não está em vigor nos Estados-partes.56
24.14 Harmonização das regras materiais No Mercosul, a efetivação das políticas de integração ocorre por meio de harmonização das legislações nacionais envolvidas. Esse processo não tem se apresentado fácil, verificando-se que algumas matérias contam com estudos e mesmo avanços, ao contrário de outras tantas. Com efeito, harmonizações legislativas passaram a ser exigidas também com o crescimento das relações transfronteiriças. O Mercosul adotou duas medidas de harmonização relativas a investimentos estrangeiros, quais sejam o Protocolo de Colônia para a promoção e recíproca proteção de investimentos no bloco (Decisão n. 11/1993) e o Protocolo de Buenos Aires relativo à promoção e proteção de investimentos provenientes de países não participantes do Mercosul (Decisão n. 11/1994). Pelo Protocolo de Colônia, os Estados-partes se obrigam a tratar os investidores dos outros parceiros pela forma que tratam os seus nacionais. Esse Protocolo segue em estrutura e conteúdo o modelo dos mais modernos acordos de proteção a investidores.57 Por meio do Protocolo de Buenos Aires, são protegidos os investidores de países não pertencentes ao bloco.58 No âmbito da política de proteção da propriedade industrial, em agosto de 1995, os quatro países firmaram um Protocolo de harmonização de normas sobre propriedade intelectual em matéria de marcas, certificados de procedência e denominações de origem (Decisão n. 8/1995). Nesse aspecto, deve referirse que os quatro países são signatários das mais importantes convenções internacionais, enfatizando-se que as legislações nacionais têm se aproximado das normas do Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPs) e entre si. Devido ao seu caráter de documento de Direito Internacional Público, não estão em vigor os 28 artigos do Protocolo para todos os Estados-membros. Da
mesma forma, se encontra o Protocolo de harmonização de normas sobre desenho (Decisão n. 16/1998).59 Existem também doutrinas sobre harmonização no direito dos contratos internacionais.60 Convém referir a discussão havida com a tentativa de harmonização da proteção dos consumidores.61 Outras áreas com possibilidades de êxito em termos de harmonização seriam a fiscal, o direito do trabalho, a liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços62 e o direito de sociedades.63
24.15 Parlamento do Mercosul No dia 07 de maio de 2007, foi instalado na capital uruguaia, Montevidéu, o Parlamento do Mercosul. Essa instalação do órgão atendeu à Decisão n. 49/2004 CMC e também ao protocolo constitutivo firmado pelos chefes de Estado dos países em dezembro de 2005, a Decisão n. 23/2005 CMC. A primeira sessão do Parlamento aconteceu no plenário da Assembleia Nacional do Uruguai, participando da reunião parlamentares do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, como membros plenos, e da Venezuela. A instituição terá sessões mensais, com presença dos parlamentares dos Estadospartes. O novo parlamento regional terá o papel de absorver os anseios e preocupações dos diversos setores da sociedade civil dos Estados-partes. Entre as competências do Parlamento do Mercosul também estão a recomendação de normas para o bloco, o envio de anteprojetos de normas nacionais que tratem da harmonização das legislações dos Estados-partes e a solicitação de relatórios sobre questões vinculadas ao processo de integração. Ainda caberá ao órgão realizar reuniões públicas sobre questões relativas à integração, com a participação de entidades da sociedade civil e dos setores produtivos. Todos os projetos de normas do Mercosul que necessitem de aprovação legislativa serão analisados e terão parecer do Parlamento. O próximo passo é a adequação da atual Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul aos dispositivos do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul. O Parlamento vem aumentar a estrutura organizacional do processo de integração, possibilitar que ele tenha um caráter mais democrático e permitir uma melhor inclusão da sociedade civil. Para tanto, a implantação do Parlamento teve uma etapa de transição, entre 2007 e 2010, e uma segunda etapa, originalmente prevista para o período entre 2011 e 2014. Na primeira delas, o novel organismo é integrado por dezoito parlamentares de cada Estado-parte, indicados pelos respectivos Parlamentos nacionais, de acordo com os critérios particulares de cada país. Antes da conclusão dessa etapa de transição, cada Estado-parte deveria efetuar eleições por sufrágio direto, universal e secreto para indicar seus parlamentares, cuja realização se daria de acordo com a agenda eleitoral nacional desse Estado-parte. A partir da segunda etapa, todos os representantes deverão ser eleitos por meio de sufrágio direto, universal e secreto e não poderão acumular a função no bloco com a de parlamentar nacional. Ao final dessas fases de transição, por proposta do Parlamento, o Conselho do Mercado Comum estabelecerá o Dia do Mercosul Cidadão para realização de eleições de forma simultânea em todos os Estados-partes, sempre por sufrágio direto, universal e secreto dos cidadãos. O Paraguai realizou, em 2008, eleições diretas para parlamentares do Mercosul. Os demais países, no entanto, têm alegado dificuldades internas para implementar eleições diretas, o que acarretou no adiamento da segunda etapa de transição. Caso permaneçam essas complicações, é provável que novo adiamento venha a ser necessário, o que levaria as eleições diretas a serem realizadas apenas em 2018.
24.16 Considerações finais O Mercosul tem desafios complexos pela frente, precipuamente por ter inerentes aspirações integracionistas. Há uma longa jornada para alcançá-las; porém a vontade política dos Estados-partes, somada à credibilidade econômica, leva a crer que se está no caminho certo. A chegada de novos sócios nesse projeto integracionista dá ao Mercosul um novo status aos olhos da comunidade internacional. Só o futuro revelará se o Mercosul ficará restrito a uma união aduaneira, ou se será capaz de transformar-se em uma verdadeira comunidade, com todas as instituições que lhe são inerentes, permitindo-se chegar a um mercado comum ou a alguma etapa intermediária de integração. O ponto central dos interesses dos cidadãos dos países mercosulistas não se restringe a um espaço de consumo dos produtos de livre circulação, como ocorre com o NAFTA, mas sim à melhoria da qualidade de vida que o processo poderá proporcionar, com mais adequadas condições de habitação, de saúde, de educação e de trabalho, e com o integral respeito aos direitos humanos, por meio de uma ordem jurídica coerente e justa. As populações desses Estados almejam, por certo, a constituição de um espaço econômico único, com o surgimento de políticas comuns em setores como a atividade agrícola, industrial, de transportes, de comunicações e proteção ao consumidor e ao meio ambiente.
RESUMO 24.1 Antecedentes históricos Bolívar e San Martin foram os precursores dos movimentos de integração na América Latina. Durante décadas, já no século XX, Brasil e Argentina disputaram a hegemonia regional, com desconfianças recíprocas que dificultavam as relações comerciais e culturais entre os países, os mais importantes e ricos da América do Sul.
24.2 ALALC e ALADI A Associação Latino-Americana de Livre Comércio, ALALC, foi criada em 1960 pelo Tratado de Montevidéu e visava implantar um mercado comum regional a partir de uma zona de livre comércio. Era formada pelos quatro países que depois fundariam o Mercosul, mais Chile, México e Peru. A Associação Latino-Americana de Integração, ALADI, surgiu em Montevidéu, em 1980, para reestruturar a ALALC e busca o desenvolvimento econômico e o comércio intrarregional na América Latina.
24.3 Conceitos básicos A doutrina define cinco fases para a integração entre os Estados: zona de livre comércio (dois ou mais países eliminam os direitos alfandegários e as restrições comerciais para a circulação de produtos entre si), união aduaneira (aplicação das mesmas tarifas para os produtos oriundos de fora do bloco), mercado comum (liberação de circulação de serviços e fatores de produção), união econômica e monetária (busca a instituição de moeda única) e união política (há o reconhecimento de uma autoridade supranacional).
24.4 Mercado Comum do Sul – Mercosul Surgiu com a Declaração de Iguaçu, em 1985, assinada pelos Presidentes Alfonsín e Sarney, proclamando a vontade de aproximação política e comercial e de superar as rivalidades entre Brasil e
Argentina. Documentos importantes: Ata para Integração Brasil-Argentina; Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento; e Ata de Buenos Aires. O Uruguai, e logo o Paraguai, solicitaram a sua integração ao Mercosul, assinando-se, em 26 de março de 1991, o Tratado de Assunção (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai).
24.5 Tratado de Assunção Pode ser considerado um tratado marco, uma vez que fixa objetivos comuns a serem concretizados de forma evolutiva e mediante programas conjuntos, possui escassas normas básicas obrigatórias e seu texto contém, sobretudo, enunciações programáticas e princípios genéricos não desenvolvidos. O Tratado de Assunção expressa que é um tratado para a constituição do mercado comum, isto é, um evento futuro, que não começaria com a entrada em vigor dele próprio. O Tratado é apenas o ponto de partida.
24.6 Protocolo de Ouro Preto Encerrou o período provisório do Mercosul, que passou a ter personalidade jurídica. Reiterou-se a opção por um caráter intergovernamental do processo, em que as decisões são tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes. O Protocolo alterou a estrutura institucional do bloco, ampliando as atribuições e as funções do Conselho do Mercado Comum (órgão superior do Mercosul) e do Grupo Mercado Comum (órgão executivo). Ainda, criou a Comissão de Comércio do Mercosul, a Comissão Parlamentar Conjunta e o Foro Consultivo Econômico-Social, além de transformar a Secretaria Administrativa em órgão auxiliar do bloco.
24.7 Relacionamento com o exterior A partir de 1996, o Mercosul estabeleceu uma forte relação de cooperação com a União Europeia, além de numerosas outras organizações e países. As relações com a União Europeia remontam quase ao tempo da sua fundação, quando foi celebrado o Acordo de Cooperação Institucional entre a Comissão Europeia e o Conselho do Mercosul. O bloco recebe desde então da organização assistência técnica e financeira fundamental para ser usada no desenvolvimento de suas instituições, por meio do Comitê Consultivo Conjunto de Assistência Técnica e Institucional.
24.8 Período do sucesso Até 1997, o comércio entre seus países cresceu de forma espantosa, tornando o Mercosul o terceiro mais importante bloco econômico no mundo. O comércio e os investimentos entre Brasil e Argentina quadruplicaram, atingindo enorme sucesso econômico com aumento de vinte e dois por cento, comparáveis aos sete por cento do comércio extrazona. Cerca de noventa por cento dos produtos podiam circular livres de tarifas. Para oitenta e cinco por cento dos bens importados, valia uma tarifa externa comum. Regras especiais existiam apenas para produtos sensíveis e os setores protegidos.
24.9 Crise do Mercosul Em 1999 os Estados-partes do bloco começaram a enfrentar crises econômicas que tiveram reflexos no Mercosul. Nesse ano, o Brasil precisou desvalorizar sua moeda em trinta por cento frente ao dólar,
passando de um sistema de câmbio fixo para uma regra de livre oscilação. A Argentina não se havia adequado, no prazo previsto, às metas instituídas pelo Mercosul, o que a obrigou a instituir cláusulas de salvaguarda frente ao Brasil, especialmente para os setores de calçados, frangos, têxteis e regime automotivo. Essas medidas quase desencadearam o rompimento do Acordo Mercosul.
24.10 Venezuela como membro pleno Em 2006, a Venezuela solicitou a elevação da condição de associado a membro pleno. Esse ingresso, realizado em 2012, representa um alento ao Mercosul, pois incorpora ao bloco um país dotado de vastos recursos naturais, PIB PPP de US$ 402 bilhões (2012) e população de 29,5 milhões,64 auxiliando, assim, a ampliar a projeção do bloco no cenário internacional. Diversos foram os argumentos temerosos quanto à entrada venezuelana. Avaliava-se que as posições do então presidente Hugo Chávez contra os Estados Unidos e as empresas estrangeiras poderiam criar constrangimentos e dificuldades para o bloco nas relações com esse país e a União Europeia.
24.11 Solução de controvérsias no Mercosul A necessidade de dar impulso à integração envolve a superação da carência de um órgão que garanta a interpretação uniforme do Tratado de Assunção e possa sancionar as violações às normas do Mercosul, adaptar o sistema ao estágio atual da integração e a necessidade de fortalecer a estrutura institucional. Para tanto, em 2002 foi aprovado o Protocolo de Olivos, que entrou em vigor em 2004, derrogando o de Brasília. Em 2007, surgiu a primeira opinião consultiva. A possibilidade de recurso ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, instalado em 13.08.2004 em Assunção, é o principal avanço do Protocolo de Olivos, pois a solução de controvérsias não dispunha de instância recursal até então.
24.12 Fragilidade institucional O regime supranacional no Mercosul continua apenas um sonho. Ele poderia ajudar na solução de inúmeros problemas e um melhor enfrentamento dos períodos de crise. Hoje basta um país discordar dos demais para a rejeição de qualquer medida. A ordem jurídica do Mercosul é tida invariavelmente como frágil: tanto o sistema de solução de controvérsias, como a ordem jurídica como um todo.
24.13 Direito processual civil internacional do Mercosul Seria importante a existência de um processo civil internacional do Mercosul. Muitos dos acordos já firmados no âmbito do bloco tratam de direito processual internacional e de cooperação judiciária. O Protocolo de São Luis, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidentes de trânsito (1996), regula o foro e a lei aplicável à responsabilidade civil nesses casos. Estabelece direito aplicável e jurisdição internacionalmente competente. O Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em relações de consumo (1996) objetiva complementar o Protocolo de Buenos Aires (1994), mas ainda não está em vigor.
24.14 Harmonização das regras materiais A efetivação das políticas de integração no Mercosul ocorre pela harmonização das legislações nacionais envolvidas. Verifica-se que apenas algumas matérias contam com estudos e avanços nesse
sentido. Há duas medidas de harmonização para investimentos estrangeiros: o Protocolo de Colônia (promoção e recíproca proteção de investimentos no bloco, tratando os investidores dos outros membros como os nacionais) e o Protocolo de Buenos Aires (para investimentos provenientes de terceiros Estados). Ainda: harmonização no direito dos contratos internacionais; discussão para harmonização da proteção dos consumidores; setor fiscal, direito do trabalho, liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços e direito de sociedades.
24.15 Parlamento do Mercosul Instalado em 07.05.2007 em Montevidéu, visa absorver anseios e preocupações dos diversos setores da sociedade civil. Competências atuais: recomendar normas para o bloco, enviar anteprojetos de normas nacionais sobre harmonização das legislações dos países e solicitar relatórios sobre questões ligadas ao processo de integração. Dezoito parlamentares por Estado-parte na primeira fase de transição. Após: representantes eleitos por sufrágio direto, universal e secreto, não cumulativo com a função de parlamentar nacional. Deverá ser criado o Dia do Mercosul Cidadão para realização de eleições de forma simultânea em todos os Estados-partes.
24.16 Considerações finais O Mercosul tem desafios complexos pela frente, precipuamente por ter aspirações integracionistas. Há uma longa jornada para alcançá-las; porém, a vontade política dos Estados-partes, somada à credibilidade econômica, leva a crer que se está no caminho certo. A chegada de novos sócios nesse projeto integracionista dá ao Mercosul um novo status aos olhos da comunidade internacional. As populações desses Estados almejam, por certo, a constituição de um espaço econômico único, com políticas comuns na atividade agrícola, industrial, de transportes e de comunicações.
QUESTÕES PROPOSTAS 1. Fazer um retrospecto das disputas entre Brasil e Argentina pela hegemonia regional. 2. Explicitar as fases da integração atualmente aceitas pela doutrina. 3. Dissertar sobre a importância da implantação e consolidação do mercado comum para os trabalhadores. 4. Proceder a uma síntese histórica do Mercosul, indicando os caminhos mais prováveis para o bloco. 5. Comentar os princípios inseridos no Tratado de Assunção. 6. Tecer considerações sobre a suspensão do Paraguai do Mercosul em 2012 e a forma como ocorreu a integração plena da Venezuela ao bloco. 7. Analisar as principais mudanças trazidas pelo Protocolo de Ouro Preto na estrutura do Mercosul e na eficácia para a integração. 8. Fazer um estudo sobre a Secretaria Administrativa do Mercosul, posicionando-se sobre a importância de suas atividades e funções. 9. Indicar e justificar o que se espera do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul e a possibilidade de recurso ao mesmo.
10. Comentar o papel do Parlamento do Mercosul, buscando possíveis analogias, atuais e futuras, com o Parlamento Europeu.
______________ 1 Capítulo escrito com a colaboração de Augusto Jaeger Junior, Doutor em Direito Comunitário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor da Faculdade de Direito da mesma Universidade. 2 GOES, Synesio Sampaio. Navegantes bandeirantes diplomatas. p. 57. 3 ALADI. Perguntas frequentes. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2013. 4 Idem. 5 ESTRELLA FARIA, José Ângelo. O Mercosul: princípios, finalidade e alcance do tratado de Assunção. p. XII. 6 FERREIRA, María Carmen e OLIVERA, Julio Ramos. Mercosur: enfoque laboral. p. 11. 7 FERREIRA, M. C. e OLIVERA, J. R. Op. cit. p. 11. 8 ACCIOLY, Elizabeth. Mercosul e União Europeia: estrutura jurídico-institucional. p. 30. 9 DROMI SAN MARTINO, Laura. Derecho constitucional de la integración. p. 244. 10 DARTAYETE, María Cristina. Armonización de normas en el mercosur. p. 64. 11 O bloco como fenômeno do direito internacional público clássico é apresentado em VENTURA, Deisy. As assimetrias entre o Mercosul e a União Europeia: os desafios de uma associação inter-regional, p. 127 e ss. 12 VENTURA, D. Op. cit. p. XXVIII. 13 VENTURA, D. Op. cit. p. 694. 14 SAMTLEBEN, Jürgen. Der Südamerikanische Gemeinsame Markt (MERCOSUR) und seine neue Verfassung. p. 20002003. 15 CASELLA, Paulo Borba. Soberania e aplicação do direito da concorrência na CE e no Mercosul. p. 117. 16 GRATIUS, Susanne. Der Mercosur im Brennpunkt der Integration. p. 304. 17 SAMTLEBEN, J. Das Recht des Mercosur: wichtig für Europa? p. 65. 18 A expressão é de Deisy Ventura. VENTURA, D. Op. cit. p. 413. 19 WEHNER, Ulrich. Nuevo dinamismo o estancamiento: el futuro de las relaciones entre el Mercosur y la UE. p. 64. 20 WEHNER, U. Der Mercosur: Rechtsfragen und Funktionsfähigkeit eines neuartigen Integrationsprojektes und die Erfolgsaussichten der interregionalen Kooperation mit der Europäischen Union. p. 188-190; VENTURA, D. Op. cit. p. 416-418 e 452. 21 SALOMÃO FILHO, Calixto; SAMTLEBEN, Jürgen. Der Südamerikanische Gemeinsame Markt: eine rechtilche Analyse des Mercosur (Teil II). p. 1390. 22 SAMTLEBEN, J. Der Südamerikanische Gemeinsame Markt (Mercosur) und seine neue Verfassung. p. 2005. 23 Para um resumo do sucesso econômico do bloco no período anterior às crises, ver MARTINS, Renata. Mercosur: Der Südamerikanische Gemeinsame Markt im Überblick. p. 851-852. 24 SALOMÃO FILHO, C. Der Mercosul als Marktregelung. p. 29-30. 25 Em adaptação do termo euroesclerosis, relacionado às crises enfrentadas pela Comunidade Europeia, utilizado em BIANCHI, Patrizio. Construir el Mercado: Lecciones de la Unión Europea – el Desarrollo de las Instituciones y de las Políticas de Competitividad. p. 25. 26 BARRAL, Welber. O protocolo de Olivos e as controvérsias no MERCOSUL. p. 85. 27 PORRATA-DORIA JUNIOR, Rafael A. Mercosur: the common market of the twenty-first century? p. 4. 28 Sobre o tema ver GARCIA JÚNIOR, Armando Álvares. Alca: a Área de Livre Comércio das Américas. 29 Um diagnóstico dos acontecimentos desse ano pode ser visto em ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Mercosul em crise: que fazer? p. 111-122. 30 PORRATA-DORIA JUNIOR, R. A. Op. cit. p. 5-48. 31 BRASIL, AGU. Parecer AGU/CGU/AG/06/2012. 32 BRASIL, MRE. Nota a Imprensa: Reunião Informal de Chanceleres do MERCOSUL. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2013. 33 Cerca de 450 consultas à Comissão de Comércio do Mercosul atingiram resultados satisfatórios e vieram a evitar o recurso ao procedimento arbitral. VENTURA, D. Op. cit. p. 240. 34 O texto pode ser consultado em www.mercosul.org.uy/pagina1esp.htm. 35 O texto pode ser consultado em www.mercosul.org.uy/pagina1esp.htm. 36 O texto pode ser consultado em www.mercosul.org.uy/pagina1esp.htm. 37 Os textos podem ser consultados em www.mercosul.org.uy/pagina1esp.htm. 38 PISCITELLO, Daniel Pavón; SCHMIDT, Jan Peter. Der EuGH als Vorbild: Erste Entscheidung des ständigen MercosurGerichts. p. 301-304; SCHMIDT, Jan Peter. Neue Impulse durch institutionelle Reformen – der Mercosur ist wieder auf Kurs. p. 139-142. 39 BRASIL, MRE. Principais Indicadores Econômicos e Comerciais do Mercosul. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2013. 40 Visões da fragilidade institucional podem ser vistas em MARQUES, Cláudia Lima. O “Direito do Mercosul”: direito oriundo do Mercosul, entre direito internacional clássico e novos caminhos de integração. p. 83-87; VENTURA, D. Op. cit. p. 108 e
589-601. 41 Ver uma contestação doutrinária estrangeira a essa constatação em JAEGER JUNIOR, Augusto. Liberdade de concorrência na União Europeia e no Mercosul. p. 589. 42 DREYZIN DE KLOR, Adriana. El Mercosur: generador de una nueva fuente de derecho internacional privado. 43 A questão da hierarquia das normas emanadas dos órgãos do Mercosul na órbita interna é estudada em VENTURA, D. Op. cit. p. 167-223. 44 SILVA, Elaine Ramos da. Rechtsangleichung im Mercosul: Perspektiven für das Niederlassungsrecht von Gesellschaften anhand von Erfahrungen in der Europäischen Union. p. 48-49. 45 Caracterizado em JAEGER JUNIOR, A. Op. cit. p. 560-564. 46 DROMI SAN MARTINO, L. Op. cit. p. 219-307. 47 Também chamado na doutrina argentina de direito internacional privado do Mercosul ou direito internacional privado institucional da integração. DREYZIN DE KLOR, A. Op. cit. p. 246. 48 Ver as menções em TELLECHEA BERGMAN, Eduardo. La dimensión judicial del caso privado internacional en el ámbito regional. p. 22. 49 MARQUES, Cláudia Lima. Conflitos de convenções de processo civil internacional: por um diálogo das fontes universais e regionais nos países do Mercosul. p. 45. 50 SAMTLEBEN, J. Ein Gerichtsstandsübereinkommen für den Südamerikanischen Gemeinsamen Markt (Mercosur). p. 129 e ss. 51 TELLECHEA BERGMAN, E. Op. cit. p. 23. 52 Ver como está a discussão sobre essa problemática em TELLECHEA BERGMAN, Eduardo. La cooperación jurisdiccional internacional con especial referencia al ámbito del Mercosur y al derecho uruguayo. p. 367. 53 Para a definição desse conceito no Mercosul ver DREYZIN DE KLOR, A. Op. cit. p. 323 e ss.; e DREYZIN DE KLOR, Adriana. Temas de derecho de la integración: derecho internacional privado. p. 127-129. 54 SAMTLEBEN, J. Die entwicklung des internationalen privat – und prozessrechts im Mercosur. p. 377-379; RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. p. 382 e ss.; e TELLECHEA BERGMAN, Eduardo. La dimensión judicial del caso privado internacional en el ámbito regional. p. 88 e ss. 55 SAMTLEBEN, J. Das Internationale Prozeβ – und Privatrecht des Mercosur: ein Überblick. p. 50-56; RICHTER, Thomas. Die rügelose Einlassung des Verbrauchers im Europäischen Zivilprozessrecht. p. 582-583; e TELLECHEA BERGMAN, E. Op. cit. p. 91-93. 56 RICHTER, Th. Die rügelose Einlassung des Verbrauchers im Europäischen Zivilprozessrecht. p. 582. 57 SAMTLEBEN, J. Der Südamerikanische Gemeinsame Markt (Mercosur) und seine neue Verfassung. p. 1.998. 58 Para mais detalhes, ver ROWAT, Malcolm; LUBRANO, Michele; PORRATA JUNIOR, Rafael. Competition policy and Mercosur. p. 98-100; e DROMI SAN MARTINO, L. Op. cit. p. 282-283. 59 HASSEMER, Michael. Gewerbliche Schutzrechte im MERCOSUR. In: BASEDOW, Jürgen; SAMTLEBEN, Jürgen (Hrsg.). Wirtschaftsrecht des Mercosur: Horizont 2000. p. 121-141. 60 ARAUJO, Nadia de. Contratos Internacionais: autonomia da vontade, Mercosul e convenções internacionais. p. 12-14 e 204. 61 MARQUES, Cláudia Lima. Regulamento Comum de Defesa do Consumidor do Mercosul: primeiras observações sobre o Mercosul como legislador da proteção do consumidor. p. 79-103; JAEGER JUNIOR, A. Op. cit. p. 596-598. 62 MARQUES, C. L. Liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços no Mercosul: instrumentos legislativos sobre formação de recursos humanos. p. 38-46. 63 SILVA, E. R. Op. cit. p. 87-98; FARIA, Guiomar T. Estrella. As sociedades comerciais e a formação dos Blocos Econômicos de Nações. p. 211-241. 64 BRASIL, MRE. Dados Básicos e Principais Indicadores Econômico-Comerciais: Venezuela. Disponível em: . Acesso em: 13 de out. 2013.
NORMAS BRASILEIRAS PERTINENTES AO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
Apresentamos, a seguir, as normas que consideramos essenciais no direito positivo brasileiro relacionadas ao Direito Internacional Privado. O objetivo é facilitar ao estudante o acesso ao conteúdo básico que regula as relações jurídicas dos conflitos de leis no espaço com conexão internacional, sem intenção de substituir a pesquisa na legislação, hoje extremamente facilitada pela Internet. Há pouco mais de uma década, Irineu Strenger referia as inúmeras dificuldades enfrentadas por quem buscasse no Direito Positivo, em nossa área, respostas em termos de literatura escrita.1 Outrossim, optamos por não inserir, neste anexo, o Estatuto do Estrangeiro2e o Código Bustamante,3 para não ampliar demasiadamente este rol.
1. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1988) Artigos que tratam de temas ligados ao Direito Internacional Privado e ao Direito Internacional Público: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXI – a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus; XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião; § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). Art. 12. São brasileiros: I – natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 54, de 20.09.2007). II – naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira (Redação determinada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 07.06.1994). § 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição (Redação determinada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 07.06.1994). § 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição. § 4º Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que: I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional; II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos: a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado
estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis (Inciso com redação da Emenda de Constitucional de Revisão n. 3, de 07.06.1994). Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I – cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado. Art. 21. Compete à União: I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais; II – declarar a guerra e celebrar a paz; III – assegurar a defesa nacional; IV – permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XIII – nacionalidade, cidadania e naturalização; XV – emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros. Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. II – autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar. Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: IV – aprovar previamente, por voto secreto, após arguição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente; V – autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; VII – dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; VIII – dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno. Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VII – manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; XIX – declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional; XX – celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional; XXII – permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente. Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe:
I – processar e julgar, originariamente: g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro. Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo (Inciso incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização. § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004). Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 6, de 15.08.1995). Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Art. 172. A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros.
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 6, de 15.08.1995). Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 7, de 15.08.1995). Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras (Incluído pela Emenda Constitucional n. 7, de 15.08.1995). Art. 190. A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional. Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram (Redação determinada pela Emenda Constitucional n. 40, de 29.05.2003). Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. § 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei (Incluído pela Emenda Constitucional n. 11, de 30.04.1996). Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (redação determinada pela Emenda Constitucional n. 65, de 13.07.2010). § 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Art. 95. Os nascidos no estrangeiro entre 07 de junho de 1994 e a data da promulgação desta Emenda Constitucional, filhos de pai brasileiro ou mãe brasileira, poderão ser registrados em repartição diplomática ou consular competente ou em ofício de registro, se vierem a residir na República Federativa
do Brasil (Incluído pela Emenda Constitucional n. 54, de 20.09.2007).
2. LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (DECRETO-LEI N. 4.657/1942) (REDAÇÃO DETERMINADA PELA LEI N. 12, DE 30.12.2010) Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada. § 1º Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia 3 (três meses) depois de oficialmente publicada. § 2º (Revogado pela Lei n. 12.036, de 01.10.2009). § 3º Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada à correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação. § 4º As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova. Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova, que estabelece disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. § 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. Art. 3º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (Redação determinada pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou (Incluído pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem (Incluído pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso (Incluído pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). Art. 7º A lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 1º Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades da celebração. § 2º O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes (Redação determinada pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). § 3º Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do
primeiro domicílio conjugal. § 4º O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal. § 5º O estrangeiro casado, que se naturalizar brasileiro, pode, mediante expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile ao mesmo a adoção do regime de comunhão parcial de bens, respeitados os direitos de terceiros e dada esta adoção ao competente registro (Redação determinada pela Lei n. 6.515, de 26.12.1977). § 6º O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de 1 (um) ano da data da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produzirá efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. O Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, poderá reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem a produzir todos os efeitos legais (Redação determinada pela Lei n. 12.036, de 01.10.2009). § 7º Salvo o caso de abandono, o domicílio do chefe da família estende-se ao outro cônjuge e aos filhos não emancipados, e o do tutor ou curador aos incapazes sob sua guarda. § 8º Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre. Art. 8º Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-à a lei do país em que estiverem situados. § 1º Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares. § 2º O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a coisa apenhada. Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato. § 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente. Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens. § 1º A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus (Redação determinada pela Lei n. 9.047, de 18.05.1995). § 2º A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder. Art. 11. As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem. § 1º Não poderão, entretanto, ter no Brasil filiais, agências ou estabelecimentos antes de serem os atos constitutivos aprovados pelo Governo brasileiro, ficando sujeitas à lei brasileira. § 2º Os Governos estrangeiros, bem como as organizações de qualquer natureza, que eles tenham constituído, dirijam ou hajam investido de funções públicas, não poderão adquirir no Brasil bens imóveis ou suscetíveis de desapropriação. § 3º Os Governos estrangeiros podem adquirir a propriedade dos prédios necessários à sede dos
representantes diplomáticos ou dos agentes consulares. Art. 12. É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação. § 1º Só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil. § 2º A autoridade judiciária brasileira cumprirá, concedido o exequatur e segundo a forma estabelecida pela lei brasileira, as diligências deprecadas por autoridade estrangeira competente, observando a lei desta, quanto ao objeto das diligências. Art. 13. A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça. Art. 14. Não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência. Art. 15. Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos: a) haver sido proferida por juiz competente; b) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida; d) estar traduzida por intérprete autorizado; e) ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Parágrafo único (Revogado pela Lei n. 12.036, de 01.10.2009). Art. 16. Quando, nos termos dos artigos precedentes, se houver de aplicar a lei estrangeira, ter-se-á em vista a disposição desta, sem considerar-se qualquer remissão por ela feita a outra lei. Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Art. 18. Tratando-se de brasileiros, são competentes as autoridades consulares brasileiras para lhes celebrar o casamento e os mais atos de Registro Civil e de tabelionato, inclusive o registro de nascimento e de óbito dos filhos de brasileiro ou brasileira nascidos no país da sede do Consulado (Redação determinada pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957). § 1º As autoridades consulares brasileiras também poderão celebrar a separação consensual e o divórcio consensual de brasileiros, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, devendo constar da respectiva escritura pública as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento (Parágrafo acrescentado pela Lei n. 12.874, de 29.10.2013). § 2º É indispensável a assistência de advogado, devidamente constituído, que se dará mediante a subscrição de petição, juntamente com ambas as partes, ou com apenas uma delas, caso a outra constitua advogado próprio, não se fazendo necessário que a assinatura do advogado conste da escritura pública (Parágrafo acrescentado pela Lei n. 12.874, de 29.10.2013). Art. 19. Reputam-se válidos todos os atos indicados no artigo anterior e celebrados pelos cônsules
brasileiros na vigência do Decreto-lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942, desde que satisfaçam todos os requisitos legais. Parágrafo único. No caso em que a celebração desses atos tiver sido recusada pelas autoridades consulares, com fundamento no artigo 18 do mesmo Decreto-lei, ao interessado é facultado renovar o pedido dentro de 90 (noventa) dias contados da data da publicação desta Lei (Art. acrescentado pela Lei n. 3.238, de 01.08.1957).
3. CÓDIGO CIVIL (LEI N. 10.406/2002) Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Art. 5º A menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Art. 42. São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público. Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Art. 75. Quanto às pessoas jurídicas, o domicílio é: IV – das demais pessoas jurídicas, o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias ou administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos. § 2º Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder. Art. 77. O agente diplomático do Brasil, que, citado no estrangeiro, alegar extraterritorialidade sem designar onde tem, no país, o seu domicílio, poderá ser demandado no Distrito Federal ou no último ponto do território brasileiro onde o teve. Art. 198. Também não corre a prescrição: II – contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios; III – contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra. Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena. § 3º A escritura será redigida na língua nacional. § 4º Se qualquer dos comparecentes não souber a língua nacional e o tabelião não entender o idioma em que se expressa, deverá comparecer tradutor público para servir de intérprete, ou, não o havendo na localidade, outra pessoa capaz que, a juízo do tabelião, tenha idoneidade e conhecimento bastantes. Art. 224. Os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no País. Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial. Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto. Art. 732. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não
contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais. Art. 1.125. Ao Poder Executivo é facultado, a qualquer tempo, cassar a autorização concedida a sociedade nacional ou estrangeira que infringir disposição de ordem pública ou praticar atos contrários aos fins declarados no seu estatuto. Art. 1.126. É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração. Art. 1.127. Não haverá mudança de nacionalidade de sociedade brasileira sem o consentimento unânime dos sócios ou acionistas. Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira. § 1º Ao requerimento de autorização devem juntar-se: I – prova de se achar a sociedade constituída conforme a lei de seu país; IV – cópia do ato que autorizou o funcionamento no Brasil e fixou o capital destinado às operações no território nacional; V – prova de nomeação do representante no Brasil, com poderes expressos para aceitar as condições exigidas para a autorização. § 2º Os documentos serão autenticados, de conformidade com a lei nacional da sociedade requerente, legalizados no consulado brasileiro da respectiva sede e acompanhados de tradução em vernáculo. Art. 1.135. É facultado ao Poder Executivo, para conceder a autorização, estabelecer condições convenientes à defesa dos interesses nacionais. Parágrafo único. Aceitas as condições, expedirá o Poder Executivo decreto de autorização, do qual constará o montante de capital destinado às operações no País, cabendo à sociedade promover a publicação dos atos referidos no art. 1.131 e no § 1o do art. 1.134. Art. 1.136. A sociedade autorizada não pode iniciar sua atividade antes de inscrita no registro próprio do lugar em que se deva estabelecer. § 1º O requerimento de inscrição será instruído com exemplar da publicação exigida no parágrafo único do artigo antecedente, acompanhado de documento do depósito em dinheiro, em estabelecimento bancário oficial, do capital ali mencionado. § 2º Arquivados esses documentos, a inscrição será feita por termo em livro especial para as sociedades estrangeiras, com número de ordem contínuo para todas as sociedades inscritas; no termo constarão: I – nome, objeto, duração e sede da sociedade no estrangeiro; II – lugar da sucursal, filial ou agência, no País; III – data e número do decreto de autorização; IV – capital destinado às operações no País; V – individuação do seu representante permanente. Art. 1.137. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar ficará sujeita às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou operações praticados no Brasil.
Parágrafo único. A sociedade estrangeira funcionará no território nacional com o nome que tiver em seu país de origem, podendo acrescentar as palavras “do Brasil” ou “para o Brasil”. Art. 1.138. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade. Art. 1.140. A sociedade estrangeira deve, sob pena de lhe ser cassada a autorização, reproduzir no órgão oficial da União, e do Estado, se for o caso, as publicações que, segundo a sua lei nacional, seja obrigada a fazer relativamente ao balanço patrimonial e ao de resultado econômico, bem como aos atos de sua administração. Parágrafo único. Sob pena, também, de lhe ser cassada a autorização, a sociedade estrangeira deverá publicar o balanço patrimonial e o de resultado econômico das sucursais, filiais ou agências existentes no País. Art. 1.141. Mediante autorização do Poder Executivo, a sociedade estrangeira admitida a funcionar no País pode nacionalizar-se, transferindo sua sede para o Brasil. § 2º O Poder Executivo poderá impor as condições que julgar convenientes à defesa dos interesses nacionais. Art. 1.152. Cabe ao órgão incumbido do registro verificar a regularidade das publicações determinadas em lei, de acordo com o disposto nos parágrafos deste artigo. § 2º As publicações das sociedades estrangeiras serão feitas nos órgãos oficiais da União e do Estado onde tiverem sucursais, filiais ou agências. Art. 1.517. O homem e a mulher com 16 (dezesseis) anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em 180 (cento e oitenta) dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir. Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros. Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos (Redação determinada pela Lei n. 12.344, de 09.12.2010). Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse 1/3 (um terço) do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família. Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as
que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio. Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. Art. 1.779. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro. Art. 1.785. A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido. Art. 1.787. Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela. Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados. Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais. Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Art. 1.862. São testamentos ordinários: I – o público; II – o cerrado; III – o particular. Art. 1.863. É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo. Art. 1.871. O testamento pode ser escrito em língua nacional ou estrangeira, pelo próprio testador, ou por outrem, a seu rogo. Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as testemunhas a compreendam. Art. 1.886. São testamentos especiais: I – o marítimo; II – o aeronáutico; III – o militar. Art. 1.887. Não se admitem outros testamentos especiais além dos contemplados neste Código. Art. 1.888. Quem estiver em viagem, a bordo de navio nacional, de guerra ou mercante, pode testar perante o comandante, em presença de duas testemunhas, por forma que corresponda ao testamento público ou ao cerrado.
Parágrafo único. O registro do testamento será feito no diário de bordo. Art. 1.889. Quem estiver em viagem, a bordo de aeronave militar ou comercial, pode testar perante pessoa designada pelo comandante, observado o disposto no artigo antecedente. Art. 1.890. O testamento marítimo ou aeronáutico ficará sob a guarda do comandante, que o entregará às autoridades administrativas do primeiro porto ou aeroporto nacional, contra recibo averbado no diário de bordo. Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, e leis posteriores.
4. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI N. 5.869/1973) Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: VIII – a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único); § 3º O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial. Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando: I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil; II – no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação; III – a ação se originar de fato ocorrido ou de fato praticado no Brasil. Parágrafo único. Para o fim do disposto no n. I, reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal. Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I – conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil; II – proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional. Art. 90. A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas. Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu. § 3º Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer foro. Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova. Art. 96. O foro do domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade e todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro. Art. 151. O juiz nomeará intérprete toda vez que o repute necessário para: I – analisar documento de entendimento duvidoso, redigido em língua estrangeira; II – verter em português as declarações das partes e das testemunhas que não conhecerem o idioma
nacional. Art. 157. Só poderá ser junto aos autos documento redigido em língua estrangeira, quando acompanhado de versão em vernáculo, firmada por tradutor juramentado. Art. 201. Expedir-se-á carta de ordem se o juiz for subordinado ao tribunal de que ela emanar; carta rogatória, quando dirigida à autoridade judiciária estrangeira; e carta precatória, nos demais casos. Art. 210. A carta rogatória obedecerá, quanto à sua admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao disposto na convenção internacional; à falta desta, será remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via diplomática, depois de traduzida para a língua do país em que há de praticar-se o ato. Art. 211. A concessão de exequibilidade às cartas rogatórias das justiças estrangeiras obedecerá ao disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 231. Far-se-á a citação por edital: I – quando desconhecido ou incerto o réu; II – quando ignorado, incerto ou inacessível o lugar em que se encontrar; III – nos casos expressos em Lei. § 1º Considera-se inacessível, para efeito de citação por edital, o país que recusar o cumprimento de carta rogatória. Art. 337. A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lheá o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz. Art. 338. A carta precatória e a carta rogatória suspenderão o processo, no caso previsto na alínea b do inciso IV do artigo 265 desta Lei, quando, tendo sido requeridas antes da decisão de saneamento, a prova nelas solicitada apresentar-se imprescindível (Redação determinada pela Lei n. 11.280, de 16.02.2006). Parágrafo único. A carta precatória e a carta rogatória, não devolvidas dentro do prazo ou concedidas sem efeito suspensivo, poderão ser juntas aos autos até o julgamento final. Art. 411. São inquiridos em sua residência, ou onde exercem sua função: X – o embaixador de país que, por lei ou tratado, concede idêntica prerrogativa ao agente diplomático do Brasil. Art. 483. A sentença proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada pelo Supremo Tribunal Federal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 484. A execução far-se-á por carta de sentença extraída dos autos da homologação e obedecerá às regras estabelecidas para a execução da sentença nacional da mesma espécie. Art. 835. O autor, nacional ou estrangeiro, que residir fora do Brasil ou dele se ausentar na pendência da demanda, prestará nas ações que intentar, caução suficiente às custas e honorários de advogado da parte contrária, se não tiver no Brasil bens imóveis que lhe assegurem o pagamento.
5. CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (LEI N. 5.172/1966) Livro Primeiro – Sistema Tributário Nacional – Títulos – Impostos Capítulo II – Impostos Sobre o Comércio Exterior Seção I – Imposto sobre a Importação
Art. 19. O imposto, de competência da União, sobre a importação de produtos estrangeiros tem como fato gerador a entrada destes no território nacional. Art. 21. O Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior. Seção II – Imposto sobre Exportação Art. 23. O imposto, de competência da União, sobre a exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados tem como fato gerador a saída destes do território nacional. Art. 26. O Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior. Livro Segundo – Normas Gerais de Direito Tributário Título I – Legislação Tributária Capítulo I – Disposições Gerais Seção II – Leis, tratados e convenções internacionais e decretos Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha. Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
6. CÓDIGO PENAL (DECRETO-LEI N. 2.848/1940) (Parte Geral com redação determinada pela Lei n. 7.209, de 11.07.1984) Territorialidade Art. 5º Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. § 1º Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. § 2º É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil. Extraterritorialidade Art. 7º Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I – os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil; II – os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. § 1º Nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro. § 2º Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. § 3º A lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no parágrafo anterior: a) não foi pedida ou foi negada a extradição; b) houve requisição do Ministro da Justiça. Pena cumprida no estrangeiro Art. 8º A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas. Eficácia de sentença estrangeira Art. 9º A sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie as mesmas consequências, pode ser homologada no Brasil para: I – obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis; II – sujeitá-lo a medida de segurança. Parágrafo único. A homologação depende: a) para os efeitos previstos no inciso I, de pedido da parte interessada; b) para os outros efeitos, da existência de tratado de extradição com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, de requisição do Ministro da Justiça. Superveniência de doença mental Art. 41. O condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido ao hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado. Detração
Art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior. Reincidência Art. 63. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. Aliciamento para o fim de emigração Art. 206. Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro: (Redação determinada pela Lei n. 8.683, 15.07.1993). Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa (Redação determinada pela Lei n. 8.683, 15.07.1993). Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro (Redação determinada pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos (Redação determinada pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la (Redação determinada pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). § 2º A pena é aumentada da metade se: (Redação determinada pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07.08.2009). Fraude de lei sobre estrangeiros Art. 309. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome que não é o seu: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Atribuir a estrangeiro falsa qualidade, para promover-lhe a entrada em território nacional: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Art. 310. Prestar-se a figurar como proprietário ou possuidor de ação, título ou valor pertencente a estrangeiro, nos casos em que a este é vedada por lei a propriedade ou a posse de tais bens: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa. Contrabando ou descaminho
Art. 334. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem: a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; b) pratica fato assemelhado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. § 2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. § 3º A pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou descaminho é praticado em transporte aéreo. Corrupção ativa em transação comercial internacional Art. 337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional: (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Pena – reclusão, de 1(um) a 8 (oito) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço), se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite o ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Tráfico de influência em transação comercial internacional Art. 337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de ½ (metade), se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Funcionário público estrangeiro Art. 337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais (Incluído pela Lei n. 10.467, de 11.06.2002). Reingresso de estrangeiro expulso
Art. 338. Reingressar no território nacional o estrangeiro que dele foi expulso: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, sem prejuízo de nova expulsão após o cumprimento da pena.
7. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (DECRETO-LEI N. 3.689/1941) Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados: I – os tratados, as convenções e regras de direito internacional. Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. § 1º Se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução. § 2º Quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado. Art. 88. No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República. Art. 89. Os crimes cometidos em qualquer embarcação nas águas territoriais da República, ou nos rios ou lagos fronteiriços, bem como a bordo de embarcações nacionais, em alto-mar, serão processados e julgados pela justiça do primeiro porto brasileiro em que tocar a embarcação, após o crime, ou, quando se afastar do País, pela do último em que houver tocado. Art. 90. Os crimes praticados a bordo de aeronave nacional, dentro do espaço aéreo correspondente ao território brasileiro, ou ao alto-mar, ou a bordo de aeronave estrangeira, dentro do espaço aéreo correspondente ao território nacional, serão processados e julgados pela justiça da comarca em cujo território se verificar o pouso após o crime, ou pela comarca de onde houver partido a aeronave. Art. 236. Os documentos em língua estrangeira, sem prejuízo de sua juntada imediata, serão, se necessário, traduzidos por tradutor público, ou, na falta, por pessoa idônea nomeada pela autoridade. Art. 368. Estando o acusado no estrangeiro, em lugar sabido, será citado mediante carta rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento. Art. 369. As citações que houverem de ser feitas em legações estrangeiras serão efetuadas mediante carta rogatória. Art. 672. Computar-se-á na pena privativa de liberdade o tempo: I – de prisão preventiva no Brasil ou no estrangeiro; II – de prisão provisória no Brasil ou no estrangeiro. Livro V – Das Relações Jurisdicionais com Autoridade Estrangeira Título Único – Capítulo I – Disposições Gerais Art. 780. Sem prejuízo de convenções ou tratados, aplicar-se-á o disposto neste Título à homologação de sentenças penais estrangeiras e à expedição e ao cumprimento de cartas rogatórias para citações, inquirições e outras diligências necessárias à instrução de processo penal. Art. 781. As sentenças estrangeiras não serão homologadas nem as cartas rogatórias cumpridas, se contrárias à ordem pública e aos bons costumes. Art. 782. O trânsito, por via diplomática, dos documentos apresentados, constituirá prova bastante
de sua autenticidade. Capítulo II – Das Cartas Rogatórias Art. 783. As cartas rogatórias serão, pelo respectivo juiz, remetidas ao Ministro da Justiça, a fim de ser pedido o seu cumprimento, por via diplomática, às autoridades estrangeiras competentes. Art. 784. As cartas rogatórias emanadas de autoridades estrangeiras competentes não dependem de homologação e serão atendidas se encaminhadas por via diplomática e desde que o crime, segundo a lei brasileira, não exclua a extradição. § 1º As rogatórias, acompanhadas de tradução em língua nacional, feita por tradutor oficial ou juramentado, serão, após exequatur do presidente do Supremo Tribunal Federal, cumpridas pelo juiz criminal do lugar onde as diligências tenham de efetuar-se, observadas as formalidades prescritas neste Código (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). § 2º A carta rogatória será pelo presidente do Supremo Tribunal Federal remetida ao presidente do Tribunal de Apelação do Estado, do Distrito Federal, ou do Território, a fim de ser encaminhada ao juiz competente (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). § 3º Versando sobre crime de ação privada, segundo a lei brasileira, o andamento, após o exequatur, dependerá do interessado, a quem incumbirá o pagamento das despesas. § 4º Ficará sempre na secretaria do Supremo Tribunal Federal cópia da carta rogatória (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 785. Concluídas as diligências, a carta rogatória será devolvida ao presidente do Supremo Tribunal Federal, por intermédio do presidente do Tribunal de Apelação, o qual, antes de devolvê-la, mandará completar qualquer diligência ou sanar qualquer nulidade (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 786. O despacho que conceder o exequatur marcará, para o cumprimento da diligência, prazo razoável, que poderá ser excedido, havendo justa causa, ficando esta consignada em ofício dirigido ao presidente do Supremo Tribunal Federal, juntamente com a carta rogatória (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Capítulo III – Da Homologação das Sentenças Estrangeiras Art. 787. As sentenças estrangeiras deverão ser previamente homologadas pelo Supremo Tribunal Federal para que produzam os efeitos do artigo 7º do Código Penal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competênciapassou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 788. A sentença penal estrangeira será homologada quando a aplicação da lei brasileira produzir na espécie as mesmas consequências e concorrem os seguintes requisitos: I – estar revestida das formalidades externas necessárias, segundo a legislação do país de origem; II – haver sido proferida por juiz competente, mediante citação regular, segundo a mesma legislação; III – ter passado em julgado; IV – estar devidamente autenticada por cônsul brasileiro; V – estar acompanhada de tradução, feita por tradutor público. Art. 789. O Procurador-Geral da República, sempre que tiver conhecimento da existência de sentença penal estrangeira, emanada de Estado que tenha com o Brasil tratado de extradição e que haja
imposto medida de segurança pessoal ou pena acessória que deva ser cumprida no Brasil, pedirá ao Ministro da Justiça providências para a obtenção de elementos que o habilitem a requerer a homologação da sentença. § 1º A homologação de sentença emanada de autoridade judiciária de Estado, que não tiver tratado de extradição com o Brasil, dependerá de requisição do Ministro da Justiça. § 2º Distribuído o requerimento de homologação, o relator mandará citar o interessado para deduzir embargos, dentro de 10 (dez) dias, se residir no Distrito Federal, ou 30 (trinta) dias, no caso contrário. § 3º Se nesse prazo o interessado não deduzir os embargos, ser-lhe-á pelo relator nomeado defensor, o qual dentro de 10 (dez) dias produzirá a defesa. § 4º Os embargos somente poderão fundar-se em dúvida sobre a autenticidade do documento, sobre a inteligência da sentença, ou sobre a falta de qualquer dos requisitos enumerados nos artigos 781 e 788. § 5º Contestados os embargos dentro de 10 (dez) dias, pelo Procurador-Geral, irá o processo ao relator e ao revisor, observando-se no seu julgamento o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). § 6º Homologada a sentença, a respectiva carta será remetida ao presidente do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, do Estado, ou do Território. § 7º Recebida a carta de sentença, o presidente do Tribunal de Apelação a remeterá ao juiz do lugar de residência do condenado, para a aplicação da medida de segurança ou da pena acessória, observadas as disposições do Título II, Capítulo III, e Título V do Livro IV deste Código. Art. 790. O interessado na execução de sentença penal estrangeira, para a reparação do dano, restituição e outros efeitos civis, poderá requerer ao Supremo Tribunal Federal a sua homologação, observando-se o que a respeito prescreve o Código de Processo Civil (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça).
8. LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS (DECRETO-LEI N. 3.688/1941) Territorialidade Art. 2º A lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada no território nacional. Reincidência Art. 7º Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.
9. LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS (LEI N. 6.015/1973) Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou, quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular. § 1º Os assentos de que trata este artigo serão, porém, trasladados nos cartórios do 1º Ofício do domicílio do registrado ou no 1º Ofício do Distrito Federal, em falta de domicílio conhecido, quando tiverem de produzir efeito no País, ou, antes, por meio de segunda via que os cônsules serão obrigados a remeter por intermédio do Ministério das Relações Exteriores (Ver art. 1.544 do Código Civil de 2002). Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em
relação a terceiros: § 6º Todos os documentos de procedência estrangeira, acompanhados da respectivas traduções, para produzirem efeitos em repartições da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios ou em qualquer instância, juízo ou tribunal.
10. LEI ANTIDROGAS (LEI N. 11.343/2006) Título IV – Da Repressão à Produção Não Autorizada e ao Tráfico Ilícito de Drogas Capítulo II – Dos Crimes Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), se: I – a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito. Título V – Da Cooperação Internacional Art. 65. De conformidade com os princípios da não intervenção em assuntos internos, da igualdade jurídica e do respeito à integridade territorial dos Estados e às leis e aos regulamentos nacionais em vigor, e observado o espírito das Convenções das Nações Unidas e outros instrumentos jurídicos internacionais relacionados à questão das drogas, de que o Brasil é parte, o governo brasileiro prestará, quando solicitado, cooperação a outros países e organismos internacionais e, quando necessário, deles solicitará a colaboração nas áreas de: I – intercâmbio de informações sobre legislações, experiências, projetos e programas voltados para atividades de prevenção do uso indevido, de atenção e de reinserção social de usuários e dependentes de drogas; II – intercâmbio de inteligência policial sobre produção e tráfico de drogas e delitos conexos, em especial o tráfico de armas, a lavagem de dinheiro e o desvio de precursores químicos; III – intercâmbio de informações policiais e judiciais sobre produtores e traficantes de drogas e seus precursores químicos. Título VI – Disposições Finais e Transitórias Art. 70. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal.
11. LETRA DE CÂMBIO E NOTA PROMISSÓRIA (DECRETO N. 2.044/1908) Título I – Da Letra de Câmbio Capítulo XII – Dos Direitos e das Obrigações Cambiais Seção II – Das Obrigações Art. 42. Pode obrigar-se, por letra de câmbio, quem tem a capacidade civil ou comercial. Parágrafo único. Tendo a capacidade pela lei brasileira, o estrangeiro fica obrigado pela declaração que firmar, sem embargo de sua incapacidade pela lei do Estado a que pertencer.
12. LEI DE RECUPERAÇÃO DE FALÊNCIAS (LEI N. 11.101/2005) Art. 3º É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou de filial de
empresa que tenha sede fora do Brasil.
13 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI N. 8.069/1990) Art. 31. A colocação em família substituta estrangeira constitui medida excepcional, somente admitida na modalidade de adoção. Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso. § 3º Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do País, o estágio de convivência, cumprido no território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). Art. 51. Considera-se adoção internacional aquela na qual a pessoa ou casal postulante é residente ou domiciliado fora do Brasil, conforme previsto no artigo 2º da Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto n. 3.087, de 21 de junho de 1999 (Redação determinada pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). § 1º A adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro ou domiciliado no Brasil somente terá lugar quando restar comprovado: (Redação determinada pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). I – que a colocação em família substituta é a solução adequada ao caso concreto; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). II – que foram esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança ou adolescente em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros mencionados no artigo 50 desta Lei; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). § 2º Os brasileiros residentes no exterior terão preferência aos estrangeiros, nos casos de adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro (Redação determinada pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). Art. 52. A adoção internacional observará o procedimento previsto nos arts. 165 a 170 desta Lei, com as seguintes adaptações: (Redação determinada pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). I – a pessoa ou casal estrangeiro, interessado em adotar criança ou adolescente brasileiro, deverá formular pedido de habilitação à adoção perante a Autoridade Central em matéria de adoção internacional no país de acolhida, assim entendido aquele onde está situada sua residência habitual; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). II – se a Autoridade Central do país de acolhida considerar que os solicitantes estão habilitados e aptos para adotar, emitirá um relatório que contenha informações sobre a identidade, a capacidade jurídica e adequação dos solicitantes para adotar, sua situação pessoal, familiar e médica, seu meio social, os motivos que os animam e sua aptidão para assumir uma adoção internacional; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). III – a Autoridade Central do país de acolhida enviará o relatório à Autoridade Central Estadual, com cópia para a Autoridade Central Federal Brasileira; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). IV – o relatório será instruído com toda a documentação necessária, incluindo estudo psicossocial elaborado por equipe interprofissional habilitada e cópia autenticada da legislação pertinente, acompanhada da respectiva prova de vigência; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). V – os documentos em língua estrangeira serão devidamente autenticados pela autoridade consular,
observados os tratados e convenções internacionais, e acompanhados da respectiva tradução, por tradutor público juramentado; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). VI – a Autoridade Central Estadual poderá fazer exigências e solicitar complementação sobre o estudo psicossocial do postulante estrangeiro à adoção, já realizado no país de acolhida; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). VII – verificada, após estudo realizado pela Autoridade Central Estadual, a compatibilidade da legislação estrangeira com a nacional, além do preenchimento por parte dos postulantes à medida dos requisitos objetivos e subjetivos necessários ao seu deferimento, tanto à luz do que dispõe esta Lei como da legislação do país de acolhida, será expedido laudo de habilitação à adoção internacional, que terá validade por, no máximo, 1 (um) ano; (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). VIII – de posse do laudo de habilitação, o interessado será autorizado a formalizar pedido de adoção perante o Juízo da Infância e da Juventude do local em que se encontra a criança ou adolescente, conforme indicação efetuada pela Autoridade Central Estadual. (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). § 1º Se a legislação do país de acolhida assim o autorizar, admite-se que os pedidos de habilitação à adoção internacional sejam intermediados por organismos credenciados. (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). § 10. A Autoridade Central Federal Brasileira poderá, a qualquer momento, solicitar informações sobre a situação das crianças e adolescentes adotados. (Incluído pela Lei n. 12.010, de 03.08.2009). Art. 84. Quando se tratar de viagem ao exterior, a autorização é dispensável, se a criança ou adolescente: I – estiver acompanhado de ambos os pais ou responsável; II – viajar na companhia de um dos pais, autorizado expressamente pelo outro através de documento com firma reconhecida. Art. 85. Sem prévia e expressa autorização judicial, nenhuma criança ou adolescente nascido em território nacional poderá sair do País em companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior.
14. DIREITOS AUTORAIS (LEI N. 9.610/1998) Art. 1º Esta Lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e direitos que lhe são conexos. Art. 2º Os estrangeiros domiciliados no exterior gozarão da proteção assegurada nos acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil. Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei aos nacionais ou pessoas domiciliadas em país que assegure aos brasileiros ou pessoas domiciliadas no Brasil a reciprocidade na proteção aos direitos autorais ou equivalentes. Art. 3º Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis.
15. CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (DECRETO-LEI N. 5.452/1943) Art. 359. Nenhuma empresa poderá admitir a seu serviço empregado estrangeiro sem que este exiba a carteira de identidade de estrangeiro devidamente anotada. Parágrafo único. A empresa é obrigada a assentar no registro de empregados os dados referentes à nacionalidade de qualquer empregado estrangeiro e o número da respectiva carteira de identidade.
Art. 651. A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. § 2º A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário (Pela Emenda Constitucional n. 24, de 09.12.1999, as Juntas de Conciliação e Julgamento foram substituídas pelas Varas do Trabalho – juiz singular).
16. TÉCNICOS ESTRANGEIROS (DECRETO-LEI N. 691/1969) Art. 1º Os contratos de técnicos estrangeiros domiciliados ou residentes no exterior, para execução, no Brasil, de serviços especializados, em caráter provisório, com estipulação de salários em moeda estrangeira, serão, obrigatoriamente, celebrados por prazo determinado e prorrogáveis sempre a termo certo, ficando excluídos da aplicação do disposto nos artigos 451, 452 e 453, no Capítulo VII do Título IV da Consolidação das Leis do Trabalho e na Lei n. 5.107, de 13 de setembro de 1966, com as alterações do Decreto-lei n. 20, de 14 de setembro de 1966, e legislação subsequente. Art. 2º Aos técnicos estrangeiros contratados nos termos deste Decreto-lei serão asseguradas, além das vantagens previstas no contrato, apenas as garantias relativas a salário-mínimo, repouso semanal remunerado, férias anuais, duração, higiene e segurança do trabalho, seguro contra acidente do trabalho e previdência social deferidas ao trabalhador que perceba salário exclusivamente em moeda nacional. Art. 3º A taxa de conversão da moeda estrangeira será, para todos os efeitos, a da data do vencimento da obrigação. Art. 4º A competência para dirimir as controvérsias oriundas das relações estabelecidas sob o regime deste Decreto-lei será da Justiça do Trabalho.
17. SERVIÇOS NO EXTERIOR (LEI N. 7.064/1982) Art. 1º Esta Lei regula a situação de trabalhadores contratados no Brasil ou transferidos por seus empregadores para prestar serviço no exterior (Redação determinada pela Lei n. 11.962, de 03.07.2009). Art. 3º A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: I – os direitos previstos nesta Lei; II – a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria. Art. 4º Mediante ajuste escrito, empregador e empregado fixarão os valores do salário-base e do adicional de transferência. § 1º O salário-base ajustado na forma deste artigo fica sujeito aos reajustes e aumentos compulsórios previstos na legislação brasileira. § 2º O valor do salário-base não poderá ser inferior ao mínimo estabelecido para categoria profissional do empregado. § 3º Os reajustes e aumentos compulsórios previstos no § 1º incidirão exclusivamente sobre os valores ajustados em moeda nacional.
Art. 5º O salário-base do contrato será obrigatoriamente estipulado em moeda nacional, mas a remuneração devida durante a transferência do empregado, computado o adicional de que trata o artigo anterior, poderá, no todo ou em parte, ser paga no exterior, em moeda estrangeira. Art. 6º Após 2 (dois) anos de permanência no exterior, será facultado ao empregado gozar anualmente férias no Brasil, correndo por conta da empresa empregadora, ou para a qual tenha sido cedido o custeio da viagem. § 1º O custeio de que trata este artigo se estende ao cônjuge e aos demais dependentes do empregado com ele residentes. § 2º O disposto neste artigo não se aplicará ao caso de retorno definitivo do empregado antes da época do gozo das férias. Art. 8º Cabe à empresa o custeio do retorno do empregado. Art. 10. O adicional de transferência, as prestações in natura, bem como quaisquer outras vantagens a que fizer jus o empregado em função de sua permanência no exterior, não serão devidas após seu retorno ao Brasil. Art. 11. Durante a prestação de serviços no exterior não serão devidas, em relação aos empregados transferidos, as contribuições referentes a: Salário-Educação, Serviço Social da Indústria, Serviço Social do Comércio, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial e Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária. Art. 12. A contratação de trabalhador, por empresa estrangeira, para trabalhar no exterior está condicionada à prévia autorização do Ministério do Trabalho. Art. 15. Correrão obrigatoriamente por conta da empresa estrangeira as despesas de viagem de ida e volta do trabalhador ao exterior, inclusive a dos dependentes com ele residentes. Art. 16. A permanência do trabalhador no exterior não poderá ser ajustada por período superior a 3 (três) anos, salvo quando for assegurado a ele e a seus dependentes o direito de gozar férias anuais no Brasil, com despesas de viagem pagas pela empresa estrangeira. Art. 18. A empresa estrangeira manterá no Brasil procurador bastante, com poderes especiais de representação, inclusive o de receber citação. Art. 20. O aliciamento de trabalhador domiciliado no Brasil, para trabalhar no exterior, fora do regime desta Lei, configurará o crime previsto no artigo 206 do Código Penal Brasileiro. Art. 21. As empresas de que trata esta Lei farão, obrigatoriamente, seguro de vida e acidentes pessoais a favor do trabalhador, cobrindo o período a partir do embarque para o exterior, até o retorno ao Brasil. Art. 22. As empresas a que se refere esta Lei garantirão ao empregado, no local de trabalho no exterior ou próximo a ele, serviços gratuitos e adequados de assistência médica e social.
18. CÓDIGO BRASILEIRO DE AERONÁUTICA (LEI N. 7.565/1986) Art. 1º O Direito Aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e pela legislação complementar. Art. 4º Os atos que, originados de aeronave, produzirem efeito no Brasil, regem-se por suas leis, ainda que iniciados no território estrangeiro. Art. 5º Os atos que, provenientes da aeronave, tiverem início no Território Nacional, regem-se pelas leis brasileiras, respeitadas as leis do Estado em que produzirem efeito.
Art. 6º Os direitos reais e os privilégios de ordem privada sobre aeronaves regem-se pela lei de sua nacionalidade. Art. 7º As medidas assecuratórias de direito regulam-se pela lei do país onde se encontrar a aeronave. Art. 8º As avarias regulam-se pela lei brasileira quando a carga se destinar ao Brasil ou for transportada sob o regime de trânsito aduaneiro (art. 244, § 6º). Art. 9º A assistência, o salvamento e o abalroamento regem-se pela lei do lugar em que ocorrerem (arts. 23, § 2º, 49 a 65). Parágrafo único. Quando pelo menos uma das aeronaves envolvidas for brasileira, aplica-se a lei do Brasil à assistência, salvamento e abalroamento ocorridos em região não submetida a qualquer Estado. Art. 10. Não terão eficácia no Brasil, em matéria de transporte aéreo, quaisquer disposições de direito estrangeiro, cláusulas constantes de contrato, bilhete de passagem, conhecimento e outros documentos que: I – excluam a competência de foro do lugar de destino; II – visem à exoneração de responsabilidade do transportador, quando este Código não a admite; III – estabeleçam limites de responsabilidade inferiores aos estabelecidos neste Código (arts. 246, 257, 260, 262, 269 e 277).
19. LEI DA ARBITRAGEM (LEI N. 9.307/1996) Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. Capítulo VI – Do Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras Art. 34. A sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento jurídico interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos desta lei. Parágrafo único. Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional. Art. 35. Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do Supremo Tribunal Federal (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça). Art. 36. Aplica-se à homologação para reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, no que couber, o disposto nos arts. 483 e 484 do Código de Processo Civil.
Art. 37. A homologação de sentença arbitral estrangeira será requerida pela parte interessada, devendo a petição inicial conter as indicações da lei processual, conforme oartigo 282 do Código de Processo Civil, e ser instruída, necessariamente, com: I – o original da sentença arbitral ou uma cópia devidamente certificada, autenticada pelo consulado brasileiro e acompanhada de tradução oficial; II – o original da convenção de arbitragem ou cópia devidamente certificada, acompanhada de tradução oficial. Art. 38. Somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que: I – as partes na convenção de arbitragem eram incapazes; II – a convenção de arbitragem não era válida segundo a lei à qual as partes a submeteram, ou, na falta de indicação, em virtude de lei do país onde a sentença arbitral foi proferida; III – não foi notificado da designação do árbitro ou do procedimento de arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando a ampla defesa; IV – a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, e não foi possível separar a parte excedente daquela submetida à arbitragem; V – a instituição da arbitragem não está de acordo com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória; VI – a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada. Art. 39. Também será denegada a homologação para o reconhecimento ou execução da sentença arbitral estrangeira, se o Supremo Tribunal Federal constatar que (Pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, a competência passou a ser do Superior Tribunal de Justiça): I – segundo a lei brasileira, o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem; II – a decisão ofende a ordem pública nacional. Parágrafo único. Não será considerada ofensa à ordem pública nacional, a efetivação da citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da convenção de arbitragem ou da lei processual do país onde ser realizou a arbitragem, admitindo-se, inclusive, a citação postal com prova inequívoca de recebimento, desde que assegure à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de defesa. Art. 40. A denegação da homologação para reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira por vícios formais, não obsta que a parte interessada renove o pedido, uma vez sanados os vícios apresentados.
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1 STRENGER, Irineu. Direitos e obrigações dos estrangeiros no Brasil. p. 5. 2 Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. 3 Disponível em: