Cultura Política Memória e Historiografia- Cecilia Azevedo

July 19, 2018 | Author: evertonknapik | Category: Ethnicity, Race & Gender, Feminism, Sociology, Brazil, Politics
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cultura política, memória e histor i o g r a f i a ss Paulo Knau ollemberg | Quadrat o | Denise R Ce cí l i a A ze v e d a Ba pti s ta B ic a lho | Sa ma ntha Viz nd Maria Ferna

O rg an iz ad or

es

TEXTOS DE:

Ana Maria Mauad • Andréa Telo da Corte • Antônio Carlos Jucá

de Sampaio • Cecília Azevedo • Denis Rolland • Denise Rollemberg • Eliane Cantarino O’Dwyer • Hebe Mattos • Ismênia de Lima Martins • Jean-François Sirinelli • João Fragoso • João Pacheco de Oliveira • Jorge Ferreira • Juan Suriano • Maria Fernanda Baptista Bicalho • María Inés Mudrovcic • Maria Regina Celestino de Almeida • Marta Zambrano • Norberto Ferreras • Paulo Knauss • Philippe Joutard • Pierre Laborie • Rachel Soihet • Samantha Viz Quadrat • Serge Berstein • Tarsila Pimentel • Ulpiano T. Bezerra de Meneses

cultura política, memória e histor i o g r a f i a ss Paulo Knau ollemberg | Quadrat o | Denise R Ce cí l i a A ze v e d a Ba pti s ta B ic a lho | Sa ma ntha Viz nd Maria Ferna

O rg an iz ad or

es

Copyright © 2009 Cecília Azevedo, Denise Rollemberg, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Paulo Knauss e Samantha Viz Quadrat Todos os direitos reservados à Editora FGV. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que vigora no Brasil desde setembro de 2008.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

1a edição — 2009

P reParação d e o riginais : Luiz Alberto Monjardim r evisão : Fatima Caroni e Luciana Figueiredo d iagramação : FA Editoração C A PA : André Castro

EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 E-mail: [email protected] | [email protected] www.fgv.br/editora

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

Cultura política, memória e historiografia al.]. — Rio de Janeiro : Editora FGV , 2009. 544 p.

/ Orgs. Cecília Azevedo.. . [et

Resultado do Seminário Internacional Culturas Políticas, Memória e Historiografia, realizado em 2008, na Universidade Federal Fluminense. ISBN: 978-85-225-1117-4 1. Cultura política. 2. Getulio Vargas.

Historiografia. I. Aze

vedo, Cecília. II. Fundação

CDD - 907.2

À nossa colega Maria de Fátima Silva Gouvêa, porque a conservamos na memória



Sumário

11 Apresentação 15 Introdução PARTE I Cultura, política e identidade

29 1. Culturas políticas e historiografia | Serge Berstein 47 2. Os intelectuais do final do século XX: abordagens históricas e configurações historiográficas | Jean-François Sirinelli 59 3. Memória e identidade nacional: o exemplo dos Estados Unidos e da França | Philippe Joutard 79 4. Memória e opinião | Pierre Laborie PARTE II Memória e historiograa

101 5. Por que Clio retornou a Mnemosine? | María Inés Mudrovcic 117 6. Imigração, cidade e memória | Ismênia de Lima Martins e Andréa Telo da Corte 133 7. Memória e historiografia no Oitocentos: a escravidão como história do tempo presente | Hebe Mattos

PARTE III Culturas políticas e

lutas sociais

155 8. Cultura e política anarquista em Buenos Aires no começo do século XX | Juan Suriano 173 9. Entre o comício e a mensagem: o presidente Goulart, as esquerdas e a crise política de março de 1964 | Jorge Ferreira Mulheres |em luta Soihet contra a violência: forjando uma cultura política 189 10. feminista Rachel PARTE IV Identidade e política

211 11. Cultura política indígena e política indigenista: reflexões sobre etnicidade e classificações étnicas de índios e mestiços (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX) |Maria Regina Celestino de Almeida

229 12. As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos |

João Pacheco de Oliveira 269 13. Terras de quilombo: identidade étnica e os caminhos do reconhecimento | Eliane Cantarino O’Dwyer 287 14. Entre a reivindicação e a exotização: mobilidade étnica, agentes estatais e políticas multiculturais na Colômbia | Marta Zambrano PARTE V Culturas políticas no Antigo Regime

315 15. A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista: notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa (séculos XVII e XVIII) | João Fragoso

343 16. Do bem comum dos povos e de Sua Majestade: a criação da Mesa do Bem Comum do Comércio do Rio de Janeiro (1753) | Antônio Carlos Jucá de Sampaio

357 17. Cultura política, governo e jurisdição no Antigo Regime e na América portuguesa: uma releitura do ofício de vice-rei do Estado do Brasil | Maria Fernanda Baptista Bicalho

PARTE VI Cultura e memória no tempo

presente

377 18. Ditadura, intelectuais e sociedade:O Bem-Amado de Dias Gomes | Denise Rollemberg 399 19. “Para Tata, com carinho!”: a boa memória do pinochetismo | Samantha Viz Quadrat do Rio a Paris, históriacomparada e memória: registros de sentido 419 20. e1968 amnésias locais da história | Denis Rolland PARTE VII Culturas políticas e lugares de memória

445 21. Cultura política e lugares de memória | Ulpiano T. Bezerra de Meneses 465 22. Culturas políticas e lugares de memória: batalhas identitárias nos EUA | Cecília Azevedo 493 23. A fotógrafa, a cantora e as imagens da boa vizinhança |Ana Maria Mauad e Tarsila Pimentel 515 24. A memória mutante do peronismo: arte e ideias na Argentina contemporânea | Norberto Ferreras 537 Sobre os autores



Apresentação

O projeto Pronex Culturas Políticas e Usos do Passado — Memória, Historiografia e Ensino da História reúne um conjunto de grupos, núcleos de pesquisa e professores brasileiros, quase todos sediados no Rio de Janeiro, atuantes em várias universidades (UFF, UFRJ, Uerj, UFRRJ, PUC, Ucam, Unicamp, Iuperj), tendo como objetivo estabelecer intercâmbios e trabalhos de diversas naturezas numa perspectiva interdisciplinar e interinstitucional. O projeto, desde 2007, tem sido apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), no âmbito do Programa Nacional de Núcleos de Excelência (Pronex). A partir de então, temos desenvolvido atividades de pesquisa; apoiado a participação de professores e pós-graduandos em encontros nacionais e internacionais; realizado oficinas e cursos de extensão; promovido concursos e premiações para as melhores teses e dissertações produzidas sob orientação dos professores participantes do projeto; financiado publicações e adquirido equipamentos necessários à melhoria da infraestrutura de que dispomos para o trabalho acadêmico. Faltaria acrescentar, para que o enunciado dos propósitos fosse completo, um de nossos principais objetivos: estabelecer e desenvolver intercâmbios com pesquisadores nacionais e estrangeiros. Nessa perspectiva, organizamos dois seminários em 2008, voltados respectivamente para o estudo e o debate doEnsino

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da História, de âmbito nacional, em junho, e deCulturas Políticas, Memória e Historiografia, de caráter internacional, em agosto. No ano de 2009 realizamos um terceiro seminário, também internacional, dedicado aos projetos deModernidades Alternativas aos modelos liberais (séculos XIX e XX). Os textos então debatidos serão publicados até o fim do primeiro semestre de 2010. Tanto os encontros realizados em 2008 quanto o que se realizou em 2009 foram e organizados comodeplataformas um trabalho conjunto a longopensados prazo, como bases seguras um diálogopara — necessariamente plural, ena boa tradição acadêmica — que desejamos se estenda e se construa no tempo, enriquecendo as referências e as possibilidades da produção (em pesquisa, docência e extensão) de todos(as) que deles têm participado e participarão. O presente livro apresenta os textos (conferências e comunicações) elaborados e debatidos no segundo seminário: Culturas Políticas, Memória e Historiografia, realizado entre 26 e 29 de agosto de 2008 no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Área de História, Niterói, Rio de Janeiro. Do seminário constaram três conferências e seis mesas-redondas, reunindo 24 pesquisadores — 15 brasileiros e nove de outros países (França, Argentina e Colômbia) —, que em quatro dias de intensos debates produziram, estamos seguros, contribuições que enriquecerão a reflexão sobre os temas considerados. A todos, nosso reconhecimento e nossa gratidão. Não poderíamos concluir a apresentação sem formular outros merecidos agradecimentos. No plano institucional, ao CNPq e à Faperj. Ao ConsuladoGeral da França no Rio de Janeiro, na pessoa de Jean-Claude Reith, adido cultural. Na UFF, ao ICHF e ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), pelo incentivo e apoio; ao Núcleo de Tecnologia e Informação (NTI)/Comissão de Desenvolvimento de Novas Tecnologias e ao Canal Universitário de Niterói, da Pró-Reitoria de Extensão, que viabilizaram filmagens e transmissão dos debates pelo canal universitário e pela internet, ampliando o alcance do evento, acessado por usuários do Brasil e do exterior. Inauguramos esse sistema no ICHF graças aos esforços de Augusto Fernandes Carneiro, José Luiz Sanz de Oliveira e Thiago Ribeiro, dos órgãos citados, e de Gilciano Menezes, que continua a trabalhar para colocar à disposição de todos os interessados uma edição do evento em vídeo. Entre os(as) professores(as) do projeto, além de todos os que participaram do seminário, cabe ressaltar de maneira enfática o trabalho excelente da comis-

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são de organização do evento, constituída pelos(as) professores(as) Cecília Azevedo (coordenadora), Denise Rollemberg, Samantha Viz Quadrat, Paulo Knauss e Maria Fernanda Baptista Bicalho, responsáveis também pela organização deste volume. E a fidalguia da professora Ismênia Martins, generosa, como sempre, na recepção aos convidados(as). Devemos igualmente um especial agradecimento à doutoranda Janaina Martins Cordeiro, sem cujo senso de organização, decisivo, ocionar seminário não dos teriaseguintes alcançadograduandos os objetivosem a que se propôs. CabeBianca ainda meno apoio história da UFF: Jagger, Bianca Rihan, Breno Bresot, Daiana Andrade, DeniseVieira Demétrio, Elizabeth Castelano, Emilly Feitosa, Erika Cardoso, Giordano Bruno dos Reis Santos, Juliana Conceição, Marcela Fogagnoli, Marco Mazzillo, Mariana Bruce, Natália Scheiner, Paula Rollo, Renata Santos, Silvana Santamarina e Suane Felippe Soares. Gentis, eficientes, indispensáveis. Nos dias do seminário, a contribuição de todos(as) eles(as) garantiu o bom andamento do encontro. O seminário internacional Culturas Políticas, Memória e Historiografiafoi um êxito. Cabe agora a todos nós, integrantes do projeto, manter e aprofundar o diálogo construído: que ele seja permanente, para se tornar fecundo.

Daniel Aarão Reis Coordenador do projeto Pronex Culturas Políticas e Usos do Passado — Memória, Historiografia e Ensino da História. Dezembro de 2009



Introdução

Este livro é resultado do seminário Culturas Políticas, Memória e Historiografia, que reuniu em torno do tema geral contribuições de colegas brasileiros e estrangeiros. Nosso seminário teve o privilégio de contar com conferências de historiadores com trabalhos consagrados internacionalmente: Jean-François Sirinelli, Philippe Joutard e Pierre Laborie. Seus textos integram a primeira parte desta coletânea, juntamente com o de Serge Berstein que, convidado, não pôde estar entre nós, por motivo de força maior. Entretanto,autorizou a publicação do texto que seria apresentado como conferência, sob o título “Culturas políticas e historiografia”, temática tão cara à historiografia francesa como à nossa. Ampliam-se então as possibilidades de leitura do pesquisador brasileiro, com a tradução, pela primeira vez no Brasil, desse celebrado historiador contemporâneo. Aqui, como em suas obras, os conceitos de cultura política e memória evidenciam-se como instrumentos preciosos na pesquisa histórica. Sob a ótica de Berstein, o conceito de cultura política tem sido uma referência de pesquisadores ligados a núcleos e laboratórios da Área de História da UFF, assim como de outros pesquisadores integrantes do projetoCulturas Políticas e Usos do Passado — Memória, Historiografia e Ensino da História, apoiado pelo programa Pronex (CNPq/Faperj). Pensado na interseção da história política com a história cultural, enriquecendo-se de uma e outra, revela-se essencial para

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a compreensão dos comportamentos políticos individuais e coletivos, uma vez que respondem a um sistema complexo de representações pleno de normas e valores, como desenvolve o autor em seu artigo. “Os intelectuais do final do século XX: abordagens históricas e configurações historiográficas”, de Jean-François Sirinelli, propõe o debate sobre a crise política e ideológica dos intelectuais franceses, desde os anos 1970. O autor problematiza a transformação do intelectual — e da própria sociedade: onde antes se instalara o pensador, chamado a posicionar-se acerca dos grandes temas, agora são os personagens da mídia que surgem como líderes de opinião, muito longe do universo do filósofo celebrado em décadas passadas. Atualíssimas, as reflexões de Sirinelli nos levam do pessimismo que previra o desaparecimento do intelectual francês juntamente com o fim do século XX ao realismo de uma mutação sinalizada no novo século, fechando um ciclo inaugurado com o Caso Dreyfus. Em seu texto, Philippe Joutard tece os estreitos laços entre memória e identidade nacional, num esforço comparativo entre as realidades diferentes: os EUA e a França. Ambos os países, cada um à sua maneira, criaram essa relação ao elaborar seus romances nacionais, narrativas sobre seus passados, algo imaginário e real ao mesmo tempo, a convencer e empolgar seus povos. Analisa como a cidade de Washington materializa no espaço físico os símbolos de uma nação a construir. Se os EUA desprezaram em sua formação a história como passado, ao contrário dos franceses, que a cultivaram, os norte-americanos escreveram seu presente como história, concretizando-a na capital como memória do futuro. Ainda assinalando as contribuições que certamente esta publicação dará, vale chamar atenção para o texto de Pierre Laborie — “Memória e opinião” —, autor até então inédito em português. Laborie tem importantes trabalhos sobre a história do tempo presente da França, explorando memória e opinião como formas de representações coletivas. Particularmente em relação à opinião, a abordagem do historiador é inusual: não associa o conceito a sondagens por institutos de opinião e imprensa, o que amplia significativamente as possibilidades do uso das fontes; aceita o desafio de desenvolver uma abordagem teórica e metodológica no campo da história de um conceito que, em princípio, lhe é estranho. O resultado nada tem a ver com os estudos que acabam por se revelar como opinião da opinião. No texto aqui publicado, reflete de maneira inédita sobre as articulações entre os dois conceitos — memória e opinião —, abrindo perspectivas inovadoras e valiosas.

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A segunda parte do livro — “Memória e historiografia” — enfatiza como o presente informa as representações do passado, estabelecendo uma conexão entre história do tempo presente e historiografia. Assim, María Inés Mudrovcic com o texto “Por que Clio retornou a Mnemosine?”, numa abordagem teórica pontuada por exemplos contemporâneos, propõe uma definição da história do tempo presente marcada pelo questionamento das relações entre história e memória. autora considera que a história edofenômenos tempo presente a historiografia que temA por objeto os acontecimentos sociais éque constituem as memórias das gerações que compartilham o mesmo presente histórico. Isso significa que a história do tempo presente põe abaixo o pressuposto da separação entre sujeito e objeto como condição da construção do conhecimento. Contudo, a autora observa também que as histórias do tempo presente geram políticas que envolvem o “dever de memória”, como demanda de justiça, demanda jurídica e demanda moral. Decorrem, portanto, da aproximação entre ruptura histórica e ruptura política. A atualidade do processo histórico estimula as reflexões de Ismênia de Lima Martins e Andréa Telo da Corte no texto “Imigração, cidade e memória”. O tema ganha sentido diante do fato de que não há como deixar de reconhecer que o Brasil deixou de ser somente um país de recepção de imigrantes para assumir também sua face emig rantista nas últimas décadas. Desse modo, o presente provoca a pesquisa histórica. Ao tratar a questão da territorialização de diferentes grupos de imigrantes que se inscrevem no espaço urbano, tomando por base o estudo de caso da comunidade de portugueses na cidade de Niterói, o artigo demonstra que a cidade não é um cenár io do estabelecimento de grupos étnicos, mas se define como agente disciplinador, por estabelecer limites para obrigar os grupos étnicos a negociarem sua inserção social, mas também desagregador, ao estimular conflitos entre diferentes grupos. A pesquisa sobre a i migração demonstra que múltiplas memórias povoam as cidades, sobrepondo diferentes representações do passado que se projetam sobre a história do tempo presente. O texto de Hebe Mattos — “Memória e historiografia no Oitocentos: a escravidão como história do tempo presente” —, por sua vez, trata da abordagem da escravidão na historiografia brasileira, tomando como exemplo duas obras clássicas: História geral do Brasil (1854-57), de Francisco Adolfo de Varnhagen; e Capítulos de história colonial (1907), de Capistrano de Abreu. Sua análise mostra como cada autor tratou a questão da escravidão no contexto de sua

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época. Varnhagen procurou encontrar na história elementos para legitimar a escravidão no Brasil do século XIX, enquanto Capistrano de Abreu, que produziu num contexto abolicionista e pós-abolicionista, terminou encontrando no passado os elementos do mito das três raças como base da formação do povo brasileiro. O que se destaca, portanto, do argumento geral do texto é que a escravidão assumiu uma dimensão política que não se restringiu à historiografia, eestudo que aressalta questãocomo histórica se localizava na história do tempo presente.hisO memória e históriaassim dialogam na produção do discurso toriográfico; assim, procura tratar historicamente um fenômeno disputado pela historiografia com a memória coletiva e o testemunho individual. “Culturas políticas e lutas sociais”, a terceira parte do livro, reúne três estudos que nos dão acesso a programas e linguagens concebidos e empregados pelos movimentos sociais e políticos estudados, permitindo visualizar culturas políticas em seu processo de construção e desconstrução. Juan Suriano, em “Cultura e política anarquista em Buenos Aires no começo do século XX”, analisa a ascensão e o declínio da influência das ideias anarquistas no movimento operário argentino. Para o autor, o anarquismo foi a principal referência na organização e mobilização dos trabalhadores desde a virada do século XIX até as primeiras décadas do século XX. No caso argentino, para Suriano, a perda de influência dessas ideias, que tanto marcaram a cultura operária, se deve às mudanças no próprio mundo do trabalho e nas formas de organização social, bem como na ação do Estado, que a partir de 1912, com a ampliação do sistema político, modificou as relações com a sociedade daquele país. Em “Entre o comício e a mensagem: o presidente Goulart, as esquerdas e a crise política de março de 1964”, Jorge Ferreira analisa detidamente o processo de radicalização política que teve lugar no Brasil em 1964. O autor configura as pautas e estratégias dos diferentes campos e atores políticos que se enfrentavam naquele momento: as esquerdas, representadas pela Frente de Mobilização Popular, liderada por Brizola, e a direita, integrada por políticos, empresários, religiosos e militares conservadores. Mas, ao contrário de muitas narrativas que apresentam esse quadro de radicalização como um dado, e o golpe de 1964 como desfecho inelutável, Jorge Ferreira traça um panorama muito mais complexo, onde alternativas se colocavam. O texto traz à tona, por exemplo, a tendência anterior de Jango de manter a coligação PSD-PTB e a tentativa de San Thiago Dantas de construir uma coalizão de centro-esquerda. O autor analisa o conteúdo e a repercussão de acontecimentos-chave — o comício de 13 de

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março e a posterior mensagem de Jango ao Congresso propondo reformas na constituição — como a culminação de um processo ao longo do qual as decisões foram tomadas, inclusive pelo próprio Jango, em função da mobilização e pressão dos diversos atores. Rachel Soihet, no texto “Mulheres em luta contra a violência: forjando uma cultura política feminista”, recupera os percalços do movimento feminista no temática da violência contra aamulher fins da década de enfrentamento 1970, no Brasil.daEm um primeiro momento, ausênciadesde de questões ligadas à sexualidade e à violência doméstica em associações e encontros feministas surpreendeu ex-exiladas que viveram ou acompanharam esses movimentos nos EUA e na Europa ocidental e regressavam ao país com a anistia. Voltadas para problemas ligados, sobretudo, ao mundo do trabalho e dirigindo-se às mulheres pobres, as associações e as militantes acreditavam serem essas as questões da luta feminista num país como o Brasil. Por um lado, porque mantinham-se presas a referências de uma cultura política da qual muitas eram herdeiras: o fim da opressão à mulher viria com a revolução. Por outro, como bem demonstra Soihet, porque compartilhavam com a sociedade brasileira da época a ideia da separação nítida entre o “público” e o “privado”. Por meio de farta documentação, acompanha os debates sobre o assunto entre as militantes, bem como na esfera pública, com a criação de órgãos de defesa da mulher. Esses embates — e a realidade das histórias de agressões que as mulheres começaram a denunciar publicamente — acabaram por evidenciar a impossibilidade da separação entre público e privado. Na experiência estudada, o trajeto percorrido pelas militantes feministas e suas associações foi essencial na modelação, como diz Soihet, de uma cultura política feminista. Tratando da questão da etnicidade, os quatro trabalhos que compõem a quarta parte do livro relacionam identidade e política ao avaliar e cruzar as classificações atribuídas aos indígenas pelo poder público e por representantes das artes e da cultura acadêmica e as classificações reivindicadas pelos próprios indígenas no Brasil e na Colômbia. Os textos permitem compreender a construção de imaginários e culturas políticas como produto, mas também como causa das tensões entre diferentes atores sociais. Em “Cultura política indígena e política indigenista: reflexões sobre etnicidade e classificações étnicas de índios e mestiços (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX)”, Maria Regina Celestino de Almeida analisa as políticas indigenistas da Coroa portuguesa e do Império brasileiro. Demonstra como tais políticas,

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que visavam à extinção das aldeias coloniais, justificadas pelo estado de mestiçagem dos índios, esbarraram, no Rio de Janeiro de meados do século XVIII ao século XIX, em ações políticas indígenas que, fundamentadas nos direitos étnicos garantidos pela legislação colonial, reafirmavam a identidade indígena dos aldeados. Tais embates refletiam as contradições entre as classificações étnicas, vistas pela autora como construções históricas relacionadas às disputas políticas e sociais pelas terras dasdensa aldeias. Partindo de uma discussão a respeito dos dispositivos de construção simbólica da nação, no capítulo “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, João Pacheco de Oliveira ressalta sua face sombria, de apagamento de diferenças, de esquecimento de atores sociais e processos históricos dissonantes em relação à identidade nacional que se pretende difundir e naturalizar. O caso analisado é o das representações dos índios na poesia e no romance indianistas e na pintura acadêmica no século XIX. Procurando avaliar seus efeitos políticos e sociais e historicizar esse imaginário que a arte é capaz de captar com maior sutileza, o autor constata que a onipresença do tema da morte — nas suas mais distintas configurações — anuncia a extinção como destino inelutável do índio. Da “morte gloriosa” à “morte vegetal”, o índio, mesmo no registro positivo da tradição romântica, é sempre associado a um passado perdido. Prevalece a ideia de passividade, que justificaria sua derrota ou assimilação. A força desse imaginário, construído sobre o esquecimento, explicaria, segundo o autor, a dificuldade de uma aproximação dos índios do presente que os reconheça como sujeitos e os reincorpore à história. Eliane Cantarino O’Dwyer, no texto “Terras de quilombo: identidade étnica e os caminhos do reconhecimento”, desafia as construções teóricas que insistem em associar identidades étnicas a sinais culturais discerníveis empiricamente e a uma suposta srcem e continuidade históricas. Na contramão dessa corrente, a autora se ampara na ideia de que a etnicidade é fruto de uma elaboração simbólica interna do grupo que a reivindica e elege os traços pelos quais pretende ser reconhecido. A partir daí, questiona paralelos entre quilombolas no Brasil e na América Latina e examina o caso das comunidades negras rurais remanescentes de quilombo de Oriximiná, no Pará, para demonstrar que suas formas de identificação não são exclusivas e fixas justamente porque estão submetidas à dinâmica da interação social. A identidade de quilombola serve, desse modo, como gancho para reconhecimento e afirmação de direitos e tem,

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portanto, uma dimensão eminentemente política, assim como o envolvimento de antropólogos e historiadores em ações judiciais com vistas a sustentar medidas governamentais amparadas neste paradigma. No capítulo intitulado “Entre a reivindicação e a exotização: mobilidade étnica, agentes estatais e políticas multiculturais na Colômbia”, Marta Zambrano analisa, por meio do estudo de caso docabildo de Suba, Bogotá, os processos de “reindigenização” como desigualdades uma arena onde se revelamcolombiana. as tensões entre direitos culturais e as crescentes da sociedade Alémos disso, aborda as contradições e disputas políticas entre diferentes estratos governamentais colombianos, assim como as contradições presentes nos próprios movimentos multiculturais que retomam o caminho da “indianização” e que algumas vezes acabam por replicar a autoexotização. Na quinta parte do livro, “Culturas políticas no Antigo Regime”, os autores contribuem para os debates historiográficos acerca da noção de absolutismo nas dinâmicas de poder das monarquias europeias. Resgatam a cultura política do Antigo Regime ibérico, assentada na tradição da segunda escolástica, de acordo com a qual a sociedade se organizava como um corpo cuja hierarquia entre os diferentes órgãos era vista como natural. Refletem sobre a relativa autonomia e capacidade de pressão e de negociação de indivíduos, grupos sociais e comunidades, como os senhorios, as corporações e as câmaras. Discutem como a representação corporativa norteou o processo de constituição dos impérios ultramarinos, marcando profundamente as sociedades ditas coloniais, sua administração, estratégias políticas, formas de organização econômica e, sobretudo, as alianças, disputas e negociações entre seus membros, e entre estes e o centro da monarquia. João Fragoso, em “A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista: notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa (séculos XVII e XVIII)”, aprofunda o conceito de monarquia pluricontinental, sugerido por Nuno Gonçalo Monteiro, e argumenta ser ele mais apropriado do que a noção de monarquia compósita para caracterizar o Império português. Ao identificar o pacto de vassalagem e a relação de reciprocidade entre o rei e as elites locais americanas, analisa as hierarquias constitutivas do estatuto social e político da nobreza da terra no Rio de Janeiro seiscentista. Discute as formas de estratificação dos vassalos, derivadas do poder central, e mostra as estratégias de distinção ligadas aos poderes e aos costumes locais no ultramar, traduzidas em alianças políticas entre agentes provenientes da Europa,

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da África e da América, como o comando de escravos armados e o compadrio com pretos. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, no capítulo intitulado “Do bem comum dos povos e de Sua Majestade: a criação da Mesa do Bem Comum do Comércio do Rio de Janeiro (1753)”, analisa a noção de bem comum e sua função primordial na cultura política do Antigo Regime e nas relações de reciprocidade entreDebruça-se os diversos sobre gruposumsociais, e entre estespor e omudanças rei, nos dois lados do Atlântico. período marcado na dinâmica imperial e revela as for mas de representação política da comunidade mercantil no Rio de Janeiro, cidade que desde a década de 1730 havia se tornado a principal encruzilhada do império . Mostra o progressivo enfraquecimento do papel da câmara como guardiã do bem comum , o surgimento dos homens de negócios como gr upo social autônomo, as estratégias adotadas na defesa de seus interesses e sua importância fundamental para o serviço do monarca e a sobrevivência do império. Encerrando a quinta parte, o texto de Maria Fernanda Baptista Bicalho — “Cultura política, governo e jurisdição no Antigo Regime e na América portuguesa: uma releitura do ofício de vice-rei do Estado do Brasil” — focaliza o ofício de vice-rei do Estado do Brasil, abordando a administração colonial a partir da cultura política do Antigo Regime ibérico. Ao dialogar, em uma visão comparativa, com estudos sobre o governo do Estado da Índia, reflete sobre as atribuições e prerrogativas desses oficiais régios nos diferentes quadrantes do império. Elege o governo e a correspondência entre o marquês de Angeja (1714-18) e o centro da monarquia, no intuito de compreender a atribuição de poderes e os limites de jurisdição dos vice-reis no Brasil. Contribui, assim, para a compreensão de um dos canais de comunicação política entre o centro e as periferias imperiais, bem como do papel desempenhado pelo Conselho Ultramarino e a Secretaria de Estado em Portugal. Na sexta parte do livro — “Cultura e memória no tempo presente” — apresentamos a discussão de casos relacionados às ditaduras e aos movimentos sociais na América Latina desde meados da década de 1960 até os dias atuais, recuperando as representações desses processos na historiografia e o sentido eminentemente político das batalhas pela memória. Denise Rollemberg, no texto “Ditadura, intelectuais e sociedade:O BemAmado de Dias Gomes”, discute uma questão candente, muito própria da história do tempo presente: a sacralização de uma memória sensível e a vigilância

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ou mesmo censura da história por seus guardiães, em geral personagens ou testemunhas desse passado recente. A autora trata do período da ditadura civilmilitar brasileira, temática que vem sendo trabalhada desde os anos 1970 sob o signo da “resistência”, de maneira bastante similar à abordagem da França sob Vichy até determinado período. Em função disso, Rollemberg dialoga com a historiografia francesa, que tem tentado enxergar, para além da superfície plana de acrítica e aos apaziguadora, as “ambivalências” e “zonas cinzen-A tas”,uma as narrativa tensões inerentes processos históricos e às vivências humanas. autora problematiza a ideia da resistência ao discutir as relações entre ditadura, intelectuais e sociedade a partir de O Bem-Amado de Dias Gomes, importante dramaturgo que, durante o regime civil-militar, escreveu para a TV Globo essa e outras novelas de sucesso,provocando controvérsias no meio artístico de esquerda. Por fim, questiona o entendimento das mudanças nas formas de expressão artística em meio aos processos de modernização tecnológica e massificação dos meios de comunicação durante a ditadura e a transição para a democracia pela chave simplificadora do paradoxo. Samantha Viz Quadrat, em “‘Para Tata, com carinho!’: a boa memória do pinochetismo”, analisa a construção de uma memória favorável do período ditatorial chileno (1973-90) e do próprio ditador Augusto Pinochet. A autora analisa três aspectos diferentes, a saber: a construção da liderança de Augusto Pinochet após o golpe de 11 de setembro de 1973, a sua prisão em Londres, no ano de 1998, e a sua morte em 2006. Quadrat revela a presença de simpatizantes do pinochetismo em diferentes setores da sociedade chilena e questiona a visão de uma sociedade totalmente contrária aos anos ditatoriais. O texto de Denis Rolland — “1968 do Rio a Paris, história e memória: registros de sentido e amnésias locais da história comparada” — focaliza o debate sobre as interpretações dos movimentos sociais de 1968, chamando a atenção para o lugar da experiência latino-americana na historiografia. O autor parte da constatação de que o caso mexicano é bastante enfatizado, eclipsando outros contextos latino-americanos relevantes, como o do Brasil. Há, portanto, um desequilíbrio na historiografia internacional que anda a par com a necessidade de afirmar a multiplicidade de tempos e espaços de 1968. A situação brasileira se insere num quadro de traços comuns do Ocidente naquele contexto: ambiente das tensões da Guerra Fria, crescimento econômico, manifestações estudantis e vitória da repressão e dos elementos da ordem. Mesmo assim, o caso particular do Brasil é pouco conhecido na Europa atual e se mantém excluído da biblio-

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grafia francesa sobre 1968. O autor salienta, ainda, que a análise de 1968 no mundo, especialmente fora da França, contribui para interrogar a sincronia dos fatos e das dinâmicas sociais, o que impõe um questionamento metodológico sobre as possibilidades de uma história comparada e uma história de transferências culturais. Por fim, na última parte,“Culturas políticas e lugares de memória”, quatro estudos procuram discutir O a articulação desses conceitos, tendo em vista realidades históricas específicas. texto de Ulpiano T. Bezerra de Meneses abre esse segmento com uma discussão conceitual valiosíssima, partindo da constatação de que o que tem atraído recentemente a atenção dos estudiosos da memória, especialmente os historiadores, não são seus mecanismos intrínsecos e seus conteúdos, mas sua expressão pragmática, reveladora de uma economia política da memória na contemporaneidade. O autor trabalha tanto com a ideia de memória cultural — tratando,entre outras coisas, de uma memória comunicativa —, quanto com a noção de cultura da memória, que aponta para os modos pelos quais as sociedades procuram garantir a inteligibilidade do passado, incluindo as formas de produção retrospectiva da memória. Os lugares de memória — que podem ser pensados simplesmente como vetores de comunicação — são analisados, no contexto presente, a partir de três casos: a memória protética, portátil, que se adquire no mercado, independentemente de qualquer experiência direta ou vivência geracional, e de cujo potencial político o autor desconfia; a memória virtual, cibernética, aberta e democrática em termos de acesso, mas incapaz de armazenamento, de sentido diacrônico e de concretude em termos de experiência; e os monumentos. A despeito do processo de desterritorialização, que prejudica as formas de simbolização do espaço, o surgimento de contra-monumentos representaria a possibilidade de ressemantização e dessacralização, expressando sensibilidades reprimidas e revelando, nessa área, o peso cada vez menor do Estado em termos de ação disciplinadora ou pedagógica. Ao contrário de Pierre Nora, o autor conclui que a memória discernível nesses novos lugares não deve ser considerada vicária, merecendo, portanto, ser historicizada. Retomando a discussão sobre os lugares de memória, Cecília Azevedo, com o texto também intitulado “Culturas políticas e lugares da memória”, procura mostrar como alguns desses lugares foram criados e disputados por grupos diversos, num embate entre culturas políticas e históricas distintas nos EUA. Para tanto, demonstra que, ao longo da história norte-americana, o passado, os

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mitos de srcem e os símbolos nacionais foram apropriados de modo diverso nos rituais e celebrações públicas, na construção de monumentos e centros de memória, na identificação e culto de diferentes mártires ou heróis e no uso político diferenciado de determinados símbolos e ícones, como as bandeiras. Usos inusitados e muitas vezes questionados judicialmente, modificações no desenho da bandeira nacional, a adoção de bandeiras alternativas, tudo isso revela acirradas batalhas culturaisonde e políticas num paísseria percebido geralmentedecomo uma planície conservadora, o patriotismo apenas sinônimo arrogância e intolerância. Ana Maria Mauad e Tarsila Pimentel, no capítulo “A fotógrafa, a cantora e as imagens da boa vizinhança”, buscam compreender os elementos e a tradução visual do que chamam de cultura política da boa vizinhança. Mostram que, embora a estratégia política e comercial dos EUA, especialmente durante a II Guerra Mundial, exigisse a construção de uma cartografia cultural do continente americano, certos agentes culturais norte-americanos encarregados desse empreendimento conseguiram fugir aos protocolos de representação estabelecidos pelas agências governamentais. Assim, analisam as imagens do Brasil produzidas pela fotógrafa Genevieve Naylor, demonstrando como, através de recursos artísticos diversos, foi possível a construção de uma visualidade alternativa, reflexo de uma heterodoxia em termos da cultura política do período. Em “A memória mutante do peronismo: arte e ideias na Argentina contemporânea” Norberto Ferreras também envereda pela análise iconográfica para tratar do peronismo, compreendido não como partido ou movimento,mas como uma cultura política que abriga grupos políticos distintos que, no entanto, compartilham um folclore, uma simbologia, uma racionalidade e uma afetividade próprias, uma ética e também uma estética. Mais do que na literatura, no cinema ou em outras mídias, essa cultura política teria encontrado nos espaços íntimos dos blogs da internet sua possibilidade de expressão, de reafirmação de um sentido político crítico e de atualização estética mais livre, associando figuras arquetípicas do peronismo dos anos 1940 e 1950 a referências contemporâneas de srcens diversas. Na obra do pintor Daniel Santoro, Ferreras vê também o diálogo entre a iconografia do peronismo clássico e outros elementos culturais e artísticos, buscando uma recriação da mística peronista e sua afirmação como lugar de memória do povo argentino. Esse conjunto de artigos, além de contribuições substantivas para a compreensão de processos históricos específicos, traduz o investimento na discussão

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de questões epistemológicas centrais para as ciências sociais e para a história em particular. Questões que nos obrigam a refletir não apenas sobre o nosso estatuto disciplinar, mas sobre os efeitos sociais e políticos dosusos que fazemos do passado. Relacionar cultura política, memória e historiografia torna-se, portanto, quase indispensável para aqueles que prezam e pensam seu ofício pelo valor e sentido que possa ter para o presente. Esperamos que essa coletânea venha contribuir para oem avanço a aproximação história política bases eteóricas sólidas. ainda maior da história cultural e da

PARTE



I

Cultura, política e identidade

1 ❚

Culturas políticas e historiograa* Serge Berstein

É no início dos anos 1990 que a noção de cultura política aparece pela primeira vez na historiografia francesa.1 Seu surgimento se inscreve na vasta corrente de renovação e métodos daRémond história política na França a partir do final dos dos objetos anos 1960 por René e seus promovida discípulos, especialmente na 2 Universidade de Paris-X-Nanterre e no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Tratava-se então de tirar a história política do impasse em que se achava boa parte da produção histórica referente a esse campo da história, entre crônica factual erudita, nomenclatura de homens e organizações ou história militante autojustificativa, centrada principalmente nos movimentos extremistas de esquerda ou de direita, para substituí-la por uma história portadora de sentido em que o político constituísse um elemento indissociável da evolução das sociedades humanas tomadas em seu conjunto. O móvel principal dessa renovação consistia em aplicar à história política os enfoques e questionamentos das ciências humanas e sociais, da ciência política, e os novos horizontes abertos pela voga da história

* Tradução de Luiz Alberto Monjardim. 1 As primeiras publicações históricas sobre o tema são: Berstein (1992b) e Sirinelli (1992). O tema foi desenvolvido posteriormente em várias obras, entre as quais podemos citar Berstein (1996 e 1999) e Berstein, Rioux e Sirinelli (1994). 2 Um primeiro balanço dos elementos dessa renovação foi feito pelos historiadores reunidos em torno de Rémond (1988) e teve prosseguimento em Berstein e Milza (1998).

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cultural, em particular no campo das representações. Neste capítulo indagaremos primeiramente sobre a natureza e o conteúdo da noção de cultura política tal como concebida pelos historiadores franceses, para, em seguida, examinarmos sucessivamente suas características e suas funções historiográficas. ❚

Quais as razões do recurso à noção de cultura políticae qual o seu conteúdo? Como explicar os comportamentos políticos?

Se a descrição das forças e dos comportamentos políticos é prática largamente difundida na história, e desde os tempos mais recuados, o historiador cujo papel não se limita a descrever, mas cujo ofício consiste em compreender e explicar, esbarra desde sempre com o problema de buscar-lhes o significado no seio das sociedades nas quais se pode observá-los. O que faz com que um grupo de pessoas se sinta mais próximo de uma força política do que de outra, vote a favor ou contra determinado partido, aprove uma medida ou proteste contra ela, adote quase espontaneamente a mesma atitude diante de fatos passados ou presentes, considerando-os de modo positivo ou negativo? Para isso existem certamente explicações tradicionais, mas o pesquisador, às voltas com suas fontes documentais e buscando nelas respostas para as questões que ele se coloca, tem a impressão de que elas são válidas em parte, mas nunca dão conta inteiramente das realidades cuja existência ele constata. Nem a tese idealista da adesão racional a uma doutrina ou a um corpus constituído que apresentasse conotação positiva, nem o determinismo sociológico do marxismo ou de seu avatares contemporâneos, nem as proposições dos sociólogos do comportamento ou dos psicanalistas que recorrem a noções como interesse, busca de segurança, senso do dever, dedicação cívica, fidelidade ao grupo, até mesmo o ódio ou a inveja, nada disso parece, ainda que somemos uns aos outros, fornecer uma explicação convincente para os comportamentos políticos. Sem dúvida, eles têm o seu papel, mas nada permite demonstrar que sejam a explicação unívoca de atos e comportamentos políticos que sempre parecem mais complexos que as explicações fornecidas e que sempre podem ser facilmente interpretados erroneamente. Por outro lado, as abordagens empíricas dos fenômenos políticos mostram claramente que os atos e comportamentos de atores políticos como os cidadãos

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se explicam mais frequentemente em função de um complexo sistema de representações, partilhado por um grupo suficientemente expressivo dentro da sociedade. Esse sistema de representações, a que os historiadores deram o nome de cultura política, é que lhes permite tornar mais inteligíveis os fatos que, não podendo ser esclarecidos por essa chave interpretativa, permanecem pouco compreensíveis. Como dar conta, por exemplo, da permanência de comportamentos eleitorais século XIX e da primeira metade do em século XX emeleitocertas regiões da França,do fenômeno constatado pelos especialistas sociologia ral, mas dificilmente explicável? Como explicar que a Alemanha, industrializada e com uma burguesia evoluída e culta, tenha mergulhado no nazismo, enquanto o Reino Unido, conhecendo igualmente tensões econômicas e sociais, permaneceu fiel à democracia liberal? Por que o fascismo se estabeleceu na Itália e na Alemanha, mas permaneceu marginal na França, apesar das semelhanças estruturais que se podem constatar entre esses países? Para todos esses problemas, que são fundamentais na historiografia contemporânea, as múltiplas chaves explicativas tradicionais permanecem amplamente insatisfatórias. Em que medida a cultura política permitiria uma abordagem mais fecunda? Como denir a cultura política?

Os historiadores entendem por cultura política um grupo de representações, portadoras de normas e valores, que constituem a identidade das grandes famílias políticas e que vão muito além da noção reducionista de partido político. Pode-se concebê-la como uma visão global do mundo e de sua evolução, do lugar que aí ocupa o homem e, também, da própria natureza dos problemas relativos ao poder, visão que é partilhada por um grupo importante da sociedade num dado país e num dado momento de sua história. 3 Jean-François Sirinelli (1992) propôs considerá-la “uma espécie de código e (...) um conjunto de referências, formalizados no seio de um partido ou mais largamente difundidos no seio de uma família ou de uma tradição política”. A essa altura, cabe lembrar que a noção de cultura política conheceu seu momento de glória nos anos 1960, quando os politicólogos norte-americanos

3

Berstein, 1999.

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lhe conferiram uma acepção bem diferente. Para a chamada escola “desenvolvimentista” tratava-se de encontrar uma regra de comparação entre sistemas políticos diferentes,4 mas considerados de valor desigual, com relação a critérios de desenvolvimento estabelecendo como modelo da modernidade as normas e os valores das democracias liberais do Ocidente.5 Além disso, e no âmbito dessa comparação de sistemas, os autores postulavam a existência de culturas políticas nacionais homogêneas,suscitou descrevendo-lhes as principais uma características. Tal abordagem entre os politicólogos série de críticas de variado alcance. Alguns contestavam uma teoria segundo a qual todas as sociedades deveriam percorrer as etapas cumpridas pelos Estados ocidentais, marchando assim para o sistema político da democracia liberal, tida como modelo perfeito a ser seguido. Outros, por sua vez, questionavam a própria noção de cultura política, indagando sobre sua autonomia em relação à cultura global de uma sociedade, sobre a pertinência de se organizar numa teoria global aquilo que não passava talvez de uma justaposição de componentes pragmáticos, sobre a validade de considerar normas e valores como determinantes do ato político, e assim por diante.6 Poderíamos aí acrescentar a dúvida quanto à existência de culturas políticas nacionais homogêneas produzidas por cada uma das civilizações do globo. Para os historiadores, a noção de cultura política tem acepção bem diversa. Por meio de seus estudos empíricos, eles constatam a existência, num dado momento da história, de vários sistemas de representações coerentes, rivais entre si, que determinam a visão que os homens que deles participam têm da sociedade, de sua organização, do lugar que aí eles ocupam, dos problemas de transmissão do poder, sistemas que motivam e explicam seus comportamentos políticos. Existe, é claro, uma estreita relação entre esses sistemas e a cultura global de uma sociedade, seus comportamentos coletivos, suas normas e valores. A cultura política é, pois, um elemento integrante da cultura global de uma sociedade, ainda que reúna prioritariamente os elementos que pertencem à esfera do político. Assim, ela varia em função dos lugares, das épocas, dos tipos de civilização; é claro, por exemplo, que a religião faz parte dela, se levarmos em conta as culturas políticas do Ocidente medieval ou do islã contemporâneo, mas ela não está Almond, 1956. Pye e Verba, 1969. 6 Badie, 1986a. 4 5

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presente como tal em várias culturas políticas do Ocidente contemporâneo, salvo em culturas minoritárias como o tradicionalismo. 7 O mesmo se poderia dizer de outros elementos que, conforme o caso, integram ou não as culturas políticas, como as estruturas de sociabilidade, as regras éticas, os modos da vida privada etc. Mas o essencial reside no fato de que, num dado momento da história, uma cultura política constitui um todo perceber homogêneo cujos elementos são interdependentes e cuja apreensão permite o sentido dos acontecimentos em sua complexidade, graças à visão de mundo das pessoas que compartilham essa cultura. Sem pretender uma descrição exaustiva de seus elementos constitutivos, pode-se dizer que existe aí certo número de abordagens estreitamente imbricadas, de modo a formar um sistema coerente de visão de mundo. O primeiro desses elementos é o substrato filosófico da cultura política que se encontra mais ou menos explicitamente formulado em cada uma de suas variantes. Nas sociedades antigas e medievais, esse substrato é religioso e traduz a presença da ordem divina nas sociedades humanas. Porém, mesmo nas sociedades laicizadas da época contemporânea, o fundamento filosófico da cultura política conserva um caráter transcendente que faz com que uma cultura política sempre ultrapasse a mera condição de realidades prosaicas para se inscrever num projeto global. Esse fundamento filosófico pode ser uma doutrina expressa de maneira cabal e coerente, como é o caso do marxismo; pode consistir num conjunto de comportamentos e regras suscetíveis de múltiplas interpretações, mas baseados em princípios comuns, como é o caso do liberalismo; enfim, pode manifestar-se como uma série de reflexões inspiradas num princípio único, à semelhança da inspiração racionalista que fundou na França a cultura republicana a partir da filosofia das Luzes, do positivismo e do cientificismo. Enfim, cabe esclarecer que se as elites cultas se referem diretamente às obras fundadoras, na massa da sociedade essas mesmas ideias penetram sob forma de uma vulgata que exprime, a partir de posições concretas, os princípios de cada uma das culturas políticas. Considerar que é de alguma forma natural que o operário deva lutar contra o patrão se refere claramente ao princípio marxista da luta de classes; sustentar que toda regulamentação proveniente do Estado é nociva e liberticida é uma maneira de exprimir o liberalismo; julgar que o ensino do ca-

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Sobre essa questão, ver as interessantes reflexões de Badie (1986b).

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tecismo é um vetor de propagação do obscurantismo e um obstáculo à difusão do progresso nas sociedades traduz a visão do racionalismo positivista, sem que aqueles que formulam tais julgamentos tenham necessariamente consciência de que são portadores das concepções globais da sociedade reclamadas por essas doutrinas.8 Juntamente com esses substratos filosóficos, uma cultura política compre9 ende série de referências históricas ou, mais precisamente, de gravuras de Epinaluma instrumentalizadas de modo a se revestirem de caráter exemplar. Assim, cada cultura política encontra no passado uma provisão quase inesgotável de dados-chave, textos seminais, fatos simbólicos e galerias de grandes personagens que são apresentados como modelos a seus fiéis. Pode até acontecer que culturas políticas opostas disputem um mesmo personagem histórico, proclamado paladino de valores contraditórios, como é o caso de Joana d’Arc, apresentada pelas culturas políticas republicanas e até comunista como exemplo de uma filha do povo que salva seu país apesar da traição dos grupos dirigentes e da passividade da monarquia, e considerada pelas culturas tradicionalistas a defensora dos valores cristãos da nação francesa.10 Portanto, basta buscar no passado valores normativos capazes de mobilizar energias e de transformá-las em armas para o presente. Assim, apesar dos julgamentos mais nuançados dos historiadores, uma operação alquímica faz dos primórdios da revolução francesa que pretende instalar na monarquia constitucional o berço da cultura republicana, transforma a Comuna de Paris em revolta proletária contra o Estado burguês para satisfazer a cultura marxista, transmuta as inegáveis violências dos exércitos da rebelião da Vandeia 11 num “genocídio vandeano” para proveito das culturas tradicionalistas. Se as raízes filosóficas e as referências históricas desempenham papel importante nos fundamentos das culturas políticas, é evidente que estas se inscrevem no presente e que as grades de leitura que elas propõem conduzem a aspirações concretas. Naturalmente, cada uma delas tem sua própria visão da organização de um sistema político de acordo com seus princípios fundamentais.

Isso é particular mente notável na França do século XX e início do século XXI, cujas políticas sociais não cessaram de traduzir em fatos as ideias do solidarismo expressas por diversos sociólogos, juristas e políticos de fins do século XIX, sem se fazer a menor referência explícita a essa doutrina. 9 Tipo de gravura popular francesa; em sentido figurado, a expressão designa uma visão enfática, tradicional e ingênua que só mostra o lado bom das coisas. (N. do T.) 10 Krumeich, 1993. 11 Ver, por exemplo, Martin (1989). 8

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É evidente que, nessa perspectiva, um sistema institucional jamais é um simples agenciamento de poderes, mas traduz no plano da organização do Estado a visão global do mundo e da sociedade peculiar à cultura política em questão.12 O liberalismo tem por ideal um regime representativo de tipo parlamentar governado pelas elites; o comunismo aspira a uma revolução que instauraria a ditadura do proletariado, prelúdio de uma sociedade sem classes; e o tradicionalismo visa ao estabelecimento de um regime que restabeleceria a ordem natural existente sob o Antigo R egime. Não há cultura política coerente que não compreenda precisamente uma representação da sociedade ideal de acordo com sua imagem da sociedade e do lugar que nela ocupa o indivíduo. Entre essa cidade ideal e as realidades o fosso é evidente, e é para transpô-lo que se aplica a ação política empreendida pelos possuidores de uma determinada cultura política. Nesse sentido, ao oferecer uma grade de leitura do social esclarecida pelo conjunto dos dados que contribuem para sua definição, a cultura política fornece uma chave de inteligibilidade que permite conciliar o debate entre a visão marxista segundo a qual tudo o que é essencial numa sociedade se explica exclusivamente pelas causas materiais manifestadas nas relações econômicas e sociais e a reação exagerada daqueles para quem o econômico e o social nada contam nas motivações do político. O simples bom senso indica que a organização e o funcionamento das sociedades, na medida em que concernem à vida cotidiana dos homens, são um importante fator explicativo dos comportamentos políticos, ainda que outras considerações intervenham ao mesmo tempo. Não cabe insistir aqui no poder de atração que o futuro radioso prometido pelo comunismo exerceu sobre as gerações dos anos 1930-70, tampouco no interesse das elites por um liberalismo que vê a sociedade constituída por um conjunto de indivíduos empenhados numa disputa selvagem para vencer a luta pelo sucesso que os opõe uns aos outros, tendo como único árbitro a implacável lei do mercado e como vencedores os mais talentosos (os “melhores”). Mas convém examinar mais detidamente as visões sociais por muito tempo ignoradas e ocultas que certamente explicam a força e a longevidade da cultura republicana na França. Evidentemente, não se pode limitar a acepção de culturas políticas aos elementos fundamentais aqui apontados nessa breve exposição. No sistema de

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Essa é a perspectiva adotada por Berstein (1992a) e por Duverger e Sirinelli (1997).

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representações que define cada uma delas podem entrar, dependendo do lugar ou do momento, os fatores religiosos, a organização do ensino, as questões militares, as regras morais, a criação estética etc., estando sua presença caracterizada por sua conformidade com os elementos já mencionados, de modo a manter a coerência do todo. Enfim, não se pode desprezar a maneira pela qual se exprimem as culturas políticas. Deve-se levar em contamais o discurso de cada delas, onde as palavras, em igualmente geral codificadas, dizem que aquilo que uma significam correntemente, onde o não dito encobre ricos segundos planos, onde cada um 13 compreende por meias palavras porque conhece as chaves de interpretação. Também é necessário levar em conta as redes de sociabilidade que explicam a coesão do grupo: a diversidade de sua natureza, a frequência de suas reuniões, os temas de seu interesse e as modalidades de seu funcionamento revelam o nível de engajamento que elas exigem. Não menos ricos em ensinamentos são os símbolos, que são a expressão resumida, porém eloquente, das culturas políticas subjacentes. O barrete frígio, símbolo republicano por excelência, a cruz de Lorena dos gaullistas, a foice e o martelo dos comunistas falam por si mesmos e significam, para quem os vê, um longo discurso em que se misturam as lembranças, o imaginário, as emoções, a adesão ou a recusa.14 Enfim, deve-se dar toda a atenção aos rituais, formas de adaptação das fontes sagradas do político à laicização de que ele é portador e que muito nos dizem a respeito do desejo de incluir, ao lado da razão ou do discurso, o sentimento e a psicologia coletiva nos processos de expressão das culturas políticas.15 ❚

Características da cultura política Um fenômeno plural

Se na sua abordagem comparativa os politicólogos norte-americanos chegaram à conclusão de que havia culturas políticas nacionais baseadas na existência de uma língua comum ou majoritária, em práticas sociais similares e em modos de vida e valores compartilhados pelo grupo nacional como um todo, o Prost, 1988. Burrin, 1986. 15 Berstein, 1995. 13 14

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historiador, trabalhando com dados diferentes e em escalas mais reduzidas, não poderia conferir o mesmo significado à noção de cultura política. Por experiência própria ele sabe que, em seu campo de pesquisa, num dado momento existem culturas políticas plurais, com raízes filosóficas ou históricas distintas, com concepções opostas de poder, considerando a sociedade e sua evolução de maneira antitética, invocando valores antagônicos. É possível apreendê-las através das tomadas de posição das grandes famílias políticas de que elas são a expressão, as quais não se resumem aos partidos, que são apenas a sua forma organizada para a conquista e o exercício do poder, mas geralmente consistem num conjunto de associações, grupos de intelectuais, periódicos, livros, comparáveis a forças políticas que assumem forma par tidária quando essa cultura política chega à maturidade, mas podendo igualmente dar lugar a atitudes, tomadas de posição, ações induzidas por formas protopartidárias. 16 Contudo, cumpre observar que, se num dado momento da história existe uma pluralidade de culturas partidárias, nem todas têm o mesmo estatuto ou a mesma audiência. Algumas são apenas remanescentes residuais que só interessam a grupos minoritários, enquanto outras estão em vias de emergir e tendem a perenizar-se. Além disso, é evidente que existem culturas políticas dominantes, porque suas concepções atendem diretamente às aspirações majoritárias da sociedade, porque elas parecem traduzir os anseios da maioria e porque elas oferecem respostas aparentemente pertinentes para os problemas do momento. Ademais, seu poder de atração é tal que elas chegam a influenciar culturas políticas vizinhas. E, por menos que o regime político se organize em torno delas, vemos surgir um modelo político no qual se estabelece uma correspondência entre o sistema institucional, a política adotada, as estruturas sociais, as normas e os valores, por um lado, e os anseios majoritários da sociedade, por outro, criando assim um verdadeiro ecossistema sociopolítico em torno da cultura política majoritária. Tal é o caso, por exemplo, na França de fins do século XIX e começos do século XX, da cultura republicana, que, após ter sido uma cultura de combate às instituições monárquicas e imperiais durante o século XIX, surge como cultura política dominante e quase consensual, moldando segundo seus Fondation Nationale des Sciences Politiques; Ecole Française de Rome; Université de Bologne, 1997 e 2000. 16

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princípios o Estado e a sociedade, e influenciando culturas políticas de princípios no entanto antagônicos, como as culturas socialista ou democrata-cristã.17 Assim, as culturas políticas, longe de constituírem conjuntos fixos e imutáveis, conhecem evoluções ligadas às constantes modificações da conjuntura histórica e às mutações da sociedade. Um fenômeno evolutivo

O nascimento das culturas políticas não se deve ao acaso nem à contingência. Elas surgem em resposta aos problemas fundamentais enfrentados pela sociedade em que elas emergem e para os quais apresentam soluções globais. Assim é que as vemos surgir durante as grandes crises que afetam o grupo. Para tomar o exemplo francês, é claro que a grande crise de legitimidade em que se constitui essencialmente a Revolução Francesa faz surgirem ao mesmo tempo a cultura tradicionalista, que em sua acepção srcinal é antes de tudo cultura contrarrevolucionária, a cultura liberal, identificada à expressão majoritária do acontecimento, e a cultura democrática, que pretende superá-lo. O fenômeno industrial surgido em meados do século XIX dá nova forma à cultura política liberal, que a partir daí se afirma como defensora da iniciativa individual e do repúdio à regulamentação, enquanto a cultura política socialista nasce da vontade de organização da sociedade, sob formas aliás variáveis, até que o marxismo aí apareça em posição dominante em fins do século XIX. É o choque provocado pela humilhação nacional com a derrota para a Prússia em 1870/71 que faz surgir, num contragolpe, a cultura política nacionalista. Ora, essas culturas se influenciam e entram por vezes em sincretismo umas com as outras. A cultura política republicana nasce em fins do século XIX da síntese entre as culturas liberal e democrática, último avatar das culturas políticas nascidas do legado revolucionário. O gaullismo surge logo após a II Guerra Mundial por osmose entre as culturas políticas nacionalista e republicana. Em outras palavras, uma cultura política surge em resposta a um problema da sociedade e vai-se tornando mais complexa ao longo de um processo por vezes muito lento que lhe permite transformar-se, adaptar-se à evolução da própria sociedade. Ela só se torna verdadeiramente operacional quando suscita a adesão

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Berstein e Rudelle, 1992.

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de grupos importantes da sociedade, após ter progredido nas mentes que pouco a pouco se vão habituando ao seu discurso, às soluções por ela propostas, e que acabam por interiorizá-la. É então, somente então, que ela se torna um dos móveis do comportamento político. O processo de difusão de uma cultura política na sociedade permanece um problema difícil de resolver. É provável que isso se dê através dos canais numerosos e difusos da de socialização A família, o sistema de ensino,e o serviço militar, os locais trabalho epolítica. sociabilidade, os grupos ou associações as mídias vão aos poucos incutindo temáticas, modelos, argumentações, criando assim um clima cultural que prepara para aceitar como natural a recepção de uma mensagem de conteúdo político. A força de uma cultura política está em difundir seu conteúdo por meios que, sem serem claramente políticos, conduzem no entanto a uma impregnação política. Foi a eficácia desse processo que levou a “nova direita” francesa dos anos 1970 a tentar conquistar a área cultural por meio de uma ação qualificada de “metapolítica”, tida como estratégia mais indicada para uma reconquista política da sociedade francesa.18 É claro que essa difusão de uma cultura política, em virtude dos canais por ela empregados, é um fenômeno de longa duração que opera globalmente numa escala geracional. Assim como ela surge num dado momento da história, uma cultura política evolui ao longo da história. De fato, ela tem de se adaptar às mutações da sociedade, sem o que está condenada a entrar em decadência por inadequação às expectativas dos cidadãos. Compete-lhe integrar permanentemente em suas análises os novos fatos que surgem, alterar suas grades de leitura em função das evoluções da conjuntura, adaptar seus princípios srcinais aos problemas do presente. Como, por exemplo, poderia a cultura republicana, que tinha por modelo social uma sociedade de pequenos pr oprietár ios donos de seus instrumentos de trabalho, manter-se aferrada a esse ideal numa sociedade onde se afir mam a grande empresa e a generalização do assalar iado? Do mesmo modo, a cultura socialista de fins do século XX teve de renunciar ao seu jacobinismo para aderir a uma concepção descentralizadora do Estado que era desejada pela sociedade francesa, mas que tradicionalmente era apanágio da direita tradicionalista e católica.

18

Duranton-Cabrol, 1988.

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Para essas evoluções necessárias contribui também a influência das culturas políticas dominantes, portadoras de temáticas que ganham ampla adesão da população, influência à qual é difícil se opor sem perder toda a credibilidade. Essa é a aventura que marca a cultura política socialista de inspiração marxista em fins do século XIX e começos do século XX, quando ela se vê obrigada a aceitar, no plano das referências fundamentais e das concepções institucionais, uma cultura política republicana reformista cujas práticas ela iria adotar sem jamais aceitar integrá-las em seus preceitos doutrinais. Porquanto a recusa à evolução é o caminho da decadência e da marginalização. O exemplo mais notável é o declínio do comunismo francês, que por tanto tempo se manteve fiel ao modelo da União Soviética e jamais aceitou renunciar ao seu “operarismo”, numa sociedade em crescimento que apresenta elevados níveis de consumo e onde o trabalho assalariado está cada vez mais distante da imagem da classe operária tradicional. Assim como uma cultura política nasce em circunstâncias históricas precisas, transforma-se e evolui com o surgimento de novos problemas e com a mutação das estruturas da sociedade, ela começa a envelhecer quando suas referências, sua visão do Estado e da organização social, suas proposições e seus meios de expressão se mostram totalmente inadequados às representações majoritárias dos membros da sociedade. Mas a história nos mostra que uma cultura política se marginaliza, mas não morre. Ela pode se tornar menos marcante, interessar a um número cada vez menor de indivíduos, pode sofrer grandes transformações a ponto de perder algumas de suas características, pode combinar-se com outras culturas políticas para dar srcem a um novo conjunto, mas ela jamais desaparece totalmente. Na França contemporânea, nem o tradicionalismo, nem o nacionalismo, nem o anarquismo, nem a democracia cristã — mesmo que seus adeptos tenham-se tornado minoria — representam culturas mortas, podendo-se encontrar seus vestígios em muitas estruturas políticas das quais elas representam apenas uma corrente. É que o conjunto de representações que constitui uma cultura política sempre reage a alguma exigência profunda, permanentemente presente no corpo social, e o conjunto de elementos interdependentes de que ela é formada oferece uma grade de leitura correlacionada com tais exigências. Certamente ela está em descompasso com a evolução das sociedades e os anseios da maioria, mas nem por isso deixa de congregar alguns adeptos convencidos de que são donos da verdade e ainda mais inclinados a se convencerem disso porque se

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sentem em ruptura com um tempo que em nada lhes agrada. Tanto é assim que os tempos da história são múltiplos, e as culturas políticas pertencem simultaneamente ao tempo longo da tradição e ao tempo curto do fato presente. ❚

Funções das culturas políticas

O objetivo historiográfico do estudo das culturas valedolembrar, fornecer uma resposta para o problema fundamental daspolíticas, motivações político.é Indagando sobre os fenômenos de participação ou engajamento político num contexto contemporâneo, os politicólogos propõem esquemas de interpretação válidos para a época contemporânea baseando-se em sondagens de opinião. 19 Não dispondo desse meio de investigação para períodos mais remotos, os historiadores não têm alternativa senão buscar nas suas fontes habituais indícios que lhes permitam apreender as culturas políticas da época anterior às sondagens. Tal pesquisa permite fornecer uma resposta para o paradoxo do ato político,que é, ao mesmo tempo, o fato de um indivíduo que age e o de um grupo inteiro que compartilha a mesma visão de mundo, age no mesmo sentido e, portanto, constitui um elemento coletivo e eficaz na vida da cidade. Cultura política: um fenômeno individual profundamente interiorizado.

Que o ato político seja em grande parte um fenômeno individual é um fato que se constata pela observação mais elementar. Quer se trate da filiação a uma associação ou a um partido político, de uma ação militante ou do voto, é sempre o homem que age individualmente. E é justamente a relação existente entre a cultura política do indivíduo e os atos acima mencionados que desperta o interesse dos historiadores pela cultura política. Esta, sendo resultante do banho cultural em que o indivíduo está imerso, constituiria o núcleo duro da explicação dos comportamentos políticos, muito mais que o determinismo social, a adoção de um programa ou os comportamentos psicológicos. Mas é sobretudo a cultura política — fruto de uma longa elaboração empreendida pelo indivíduo durante sua formação intelectual, consolidada pelas

19

Mayer e Perrineau, 1992.

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experiências da vida, arraigada pelo hábito de analisar os fatos à luz da grade de leitura que ela propõe — que estrutura a personalidade de um indivíduo durante boa parte de sua existência. Acaso isso significa que, se ela pode evoluir ao longo do tempo, como vimos, ela seria fixa ou inalterável no nível do indivíduo? Não obstante a dificuldade de se generalizar a partir de casos individuais, parece que a resposta émetade amplamente positiva. Existe, exemplo, na história da França da primeira do século XX, toda umapor geração fortemente marcada pela experiência do caso Dreyfus, oficial judeu injustamente acusado de ter transmitido informações militares aos alemães e condenado à deportação na Guiana, fato que srcinou, a partir de 1898, uma ardorosa campanha para que fosse reconhecido o erro judiciário que servira de base à sua condenação. Parte da opinião pública colocou-se então contra o Estado que se recusava a rever tal condenação, defendendo os princípios dos direitos humanos, a justiça, a laicidade, e rejeitando o nacionalismo, o antissemitismo, os valores do establishment, a Igreja, o exército, o aparelho judiciário. Os principais líderes da esquerda francesa, muitos dos quais eram dreyfusistas, deixaram-se imbuir de uma cultura republicana impregnada desses princípios. Tal é o caso de Edouard Herriot, importante figura política, líder do partido radical, várias vezes ministro e presidente do Conselho, fortemente marcado pelas ideias do modelo republicano inspirado pelo caso Dreyfus, que influenciou sua visão política a ponto de levá-lo a analisar pela ótica de fins do século XIX os acontecimentos do século seguinte, acentuando sua defasagem em relação às novas realidades a ponto de parecer congelado no passado, enquanto o mundo à sua volta evoluía.20 Como explicar essa forte permanência, essa profunda pregnância da cultura política de um indivíduo? Essencialmente pelo fato de que, se em sua srcem ela é resultado de uma aprendizagem e de múltiplas experiências, ela tira sua força, uma vez adquirida, de um fenômeno de interiorização. Isso não significa absolutamente que ela seja fruto da sensibilidade ou do imaginário, nem que se situe no nível de um reflexo instintivo. Simplesmente, uma vez feitas as escolhas iniciais, o indivíduo se vale de suas experiências anteriores para julgar os fatos novos, sem precisar refazer as etapas de sua trajetória, analisando pela ótica adquirida as situações novas. Nesse estágio, a cultura política se acha interiorizada, passa a fazer parte do ser, advém de uma

20

Berstein, 1985.

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profunda adesão e reage a um acontecimento de maneira quase automática. Portanto, ela não é mais passível de discussão, e os argumentos são impotentes para contestar uma ótica de análise que se tornou um elemento constitutivo da identidade. Sem dúvida, um trauma profundo pode abalar as certezas por ela geradas. Assim, a derrocada da França em 1940, a ocupação do país pela Alemanha nazista e o advento ditadura delevando Vichy vieram políticas francesasdadominantes, a um abalar triunfoprofundamente momentâneo as daculturas cultura tradicionalista. Em tal circunstância, um intelectual como o dirigente socialista Leon Blum, impregnado de uma cultura republicana inspirada pelo caso Dreyfus e convencido da predominância do parlamento nas instituições, viu-se obrigado a refletir sobre os efeitos nocivos da fragilidade do Poder Executivo e a deplorar as falhas do regime parlamentar.21 Seria essa uma modificação permanente de sua cultura política causada pelo choque? De modo algum. Quando, após a guerra, em junho de 1946, o general De Gaulle propôs em seu discurso de Bayeux uma modificação fundamental das instituições mediante o reforço do Poder Executivo confiado a um presidente da República, pedra angular das instituições, Leon Blum se fez porta-voz dos adversários da proposta invocando a tradição parlamentar da República. O efeito do trauma fora apenas provisório, e a cultura republicana adquirida recupera seus direitos, uma vez passado o choque do acontecimento. Um fenômeno coletivo, cimento da identidade de um grupo

Ao mesmo tempo em que estrutura os comportamentos políticos individuais, a cultura política é um fenômeno coletivo. Ela diz respeito, simultaneamente, a todos os grupos que comungam de seus postulados, grades de leitura, interpretações e proposições, que utilizam os mesmos discursos, se colocam atrás dos mesmos símbolos, participam dos mesmos ritos. Não se trata necessariamente de pessoas da mesma geração que viveram o mesmo tipo de experiências responsáveis por sua adesão a uma cultura política comum, ainda que esse dado não seja desprezível.22 De fato, uma cultura política vê coabitarem em torno de seus principais temas gerações diferentes, para as quais as palavras 21 22

Blum, 1955. Sobre essa questão, ver Azéma e Winock (1989); Sirinelli (1988).

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não têm necessariamente o mesmo significado, o que explica as inflexões antes mencionadas. Mas, apesar das nuanças que separam as pessoas que se reconhecem numa mesma cultura política e das diferentes formas de expressão dessa cultura, é nela que se baseia a identidade de um grupo. Ou seja, vista de fora, ela funciona como um marcador que a torna compreensível aos olhos dos contemporâneos, que permite compreender (e não raro prever) as reações de seus membros a um dado acontecimento e, consequentemente, evidenciar as razões de seu comportamento. Porém, vista de dentro, a função da cultura política é ainda mais decisiva. Muito mais que a adesão a um partido, o pagamento de uma contribuição ou a ação militante, é ela que constitui a base do pertencimento político. É ela que leva o cidadão a se identificar quase instintivamente a um grupo, a compreender facilmente seu discurso, a adotar sua ótica de análise, a partilhar de seus objetivos e esperanças, a aderir às múltiplas associações de todo tipo por meio das quais se difunde sua mensagem, a votar nos candidatos do partido político que a representa no âmbito eleitoral. Além disso, dado o caráter emocional que acabam assumindo as representações, os discursos, os símbolos e os ritos, a cultura política leva a uma verdadeira comunhão criadora de profundas solidariedades. E assim encontramos, por intermédio da cultura política, num processo desde há muito secularizado, a referência ao sagrado já constatada na or igem do político. Podemos então constatar que a consideração da chave de leitura representada pela cultura política nos permite aprofundar a compreensão de comportamentos políticos sumamente complexos, situando-os no próprio cerne das representações e realidades sociais. Eis por que sua importância historiográfica é evidente, e suas contribuições heurísticas, fecundas. Por isso muitos trabalhos históricos passaram a adotar sua abordagem. Mas não se trata de uma chave universal e única de compreensão do político que substitua as grandes explicações unívocas difundidas no passado e às quais se opõem atualmente as principais tendências da historiografia, por considerarem-nas parciais e ao mesmo tempo insuficientes. Ela é apenas um elemento de explicação entre outros. Não se pode reduzi-la às ideias políticas que dela fazem parte, mas que são apenas um dos elementos que carecem de inserção no tempo e nas realidades sociais. Tampouco ela se reduz ao programa de um partido, que pode certamente exprimir alguns de seus pontos de vista para os eleitores, mas ao qual não se limita sua audiência, que se difunde por múltiplos canais.

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Enfim, se a abordagem por meio das culturas políticas parece funcional para a explicação histórica nos períodos e países em que as representações políticas são fortemente estruturadas e diversificadas, convém questionar sua pertinência para o período mais contemporâneo, a partir do momento em que o desaparecimento dos grandes projetos alternativos de sociedade tende a confundir as fronteiras entre as grandes famílias políticas, a provocar uma crise da representação democrática a fazer emergirem movimentos sociais não não diretamente partidários em tornoe de questões setoriais cuja justaposição resulta claramente num todo coerente, capaz de constituir o germe de culturas políticas em gestação, quer se trate da ecologia, do feminismo ou do antiglobalismo. ❚

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2 ❚

Os intelectuais do nal do século

XX: abordagens históricas e

congurações historiográcas* Jean-François Sirinelli

O assunto que me compete examinar aqui coincide bem com os dois temas que constituem o cerne desta coletânea: as culturas políticas e a memória. De fato, os intelectuais são, por seu ofício, os detentores do sentido eles as forjam e as transmitem, e por isso mesmo se encontram nosdas doispalavras: lugares-chave da expressão cultural: a formulação e a transmissão. Seu papel na gênese e na circulação tanto das culturas políticas quanto de certos processos de memória constitui, pois, uma realidade histórica inegável. Por outro lado, realmente parece difícil tratar aqui, dentro dos limites impostos, do conjunto dessa realidade. Para dar conta de pelo menos um de seus aspectos, escolhi um ângulo de enfoque particularmente significativo: a crise que recentemente atingiu os intelectuais franceses. De fato, há no centro dessa crise um profundo abalo das culturas políticas. Ao escolher esse ângulo, deixo um pouco de lado um dos temas centrais desta coletânea, isto é, a memória, mas posso me deter em outro, seu título:franceses a historiografia. pretendodiferentes, refletir aquiporém sobre aanunciado crise dos em intelectuais insistindoPara emtanto, dois aspectos intrinsecamente ligados. Por um lado, qual a natureza dessa crise ocorrida no último quartel do século XX? Por outro, até mesmo em virtude dessa proximi-

* Tradução de Luiz Alberto Monjardim.

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dade cronológica, quais as implicações historiográficas e epistemológicas dessa tendência da história do tempo presente? ❚

Crise ideológica e crise identitária

É inegável a ligação entre os intelectuais e as culturas políticas. Num dado momento, existem num determinado meio intelectual campos de forças ideológicas sempre que determinam fenômenos de polarização e induzem a grandes magnetizações ideológicas e os fenômenos de atração daí decorrentes. Esses campos de forças contribuem, pois, para traçar os caminhos possíveis, naquele momento, para o engajamento dos intelectuais. Além dos fatores pessoais que tornam cada um deles mais ou menos sensível à atração exercida por esses campos de forças, e independentemente da via das correlações sociológicas tão caras aos seguidores da escola bourdieusiana que aí veem a chave para a explicação desses engajamentos, o fato é que estes se determinam em função das contingências de uma época e das respostas ideológicas que se apresentam a eles. Assim, os grandes embates dos intelectuais ao longo do século XX simultaneamente refletiram e nutriram as grandes tendências ideológicas que foram se perpetuando e, ao mesmo tempo, se modificando ao longo de todo aquele século. Já no século XIX, a grande interrogação que percorreu o país inteiro — sobre qual regime político deveria ser adotado após o abalo sísmico de 1789 — até a consolidação da Terceira República contribuiu para que surgissem sistemas de pensamento bastante coerentes e antagônicos, que se tornaram polaridades ideológicas em torno das quais se organizaram as grandes correntes de engajamento. Do mesmo modo, no entreguerras, e mais precisamente durante os anos 1930, foram as questões dos fascismos e do comunismo que contribuíram para estruturar os debates e os posicionamentos com relação às lutas antifascista, à esquerda, e anticomunista, à direita. Após a II Guerra Mundial e a derrota dos fascismos, o centro de gravidade ideológico dos debates modificouse novamente, ganhando uma configuração marcada pela atração ideológica do comunismo e a influência do Partido Comunista Francês. Foi somente na segunda metade dos anos 1950 que essa forte polarização começou a perder intensidade, seja diretamente, com os dois abalos do ano de 1956 — o relatório de Kruchov e depois os acontecimentos na Hungria —, seja indiretamente, com o reposicionamento dos intelectuais de esquerda em relação à luta anticolonislista, instigados pela guerra da Argélia.

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Esses intelectuais de esquerda continuaram predominando até a segunda metade dos anos 1970. Foi então que sobreveio para esses intelectuais franceses uma crise profunda, cujo momento de maior intensidade foi essa segunda metade da década de 1970.De fato, foram três grandes choques sucessivos que deram tamanha intensidade a essa crise. O primeiro foi o “efeito Soljenítsin”, a partir de 1974. Pode-se denominar assim a repercussão multiforme que tiveram então na França o livro Arquipélago Gulag e o processo de questionamento ideológico do marxismo por ele desencadeado, não mais somente à direita, onde há muito já existia a corrente antimarxista, mas também agora à esquerda. A forma mais palpável desse questionamento foi o desenvolvimento de uma reflexão antitotalitarista, o que se deu ainda mais rapidamente porque nesse meio-tempo haviam ocorrido outros abalos. De fato, um segundo choque havia abalado os intelectuais de esquerda após a morte de Mao Tsé-Tung. Na China, essa morte provocou rapidamente uma reavaliação que, sem atingir diretamente a imagem do Grande Timoneiro, veio a desgastar a imagem do país no exterior. Até então essa imagem era bastante positiva entre muitos intelectuais franceses, e o choque causado por tal desgaste enfraqueceu ainda mais a posição das grandes ideologias globalizantes para as quais Pequim, depois de Moscou, representara um dos epicentros de sua concretização política. E foi também da Ásia que veio, logo em seguida, o terceiro abalo a atingir a intelectualidade de esquerda. Esta, com efeito, por ocasião da queda de Phnom Penh e, depois, de Saigon na primavera de 1975, havia proclamado que o “imperialismo americano” fora vencido e que as lutas pela libertação nacional tinham tido assim um justo desfecho. Tal era, em todo caso, a análise comumente feita pela esquerda em meados daquela década. Logo, porém, veio a época dos boat people, refugiados que deixavam por mar o Vietnã comunista em circunstâncias não raro dramáticas, enfrentando todos os riscos para chegarem ao seu destino, caso sobrevivessem, em deploráveis condições físicas e de saúde. A constatação da dura situação desses refugiados, que eram muitos, suscitou questionamentos ideológicos entre os intelectuais que julgaram ver despontar no Vietnã, em 1975, uma era de liberdade e justiça. Isso estimulou também um sentimento de urgência humanitária que por vezes se tornou o substituto ou a saída de emergência para os grandes engajamentos ideológicos que agora pareciam inúteis. E a perplexidade de muitos intelectuais franceses em breve aumentou ainda mais com a descoberta da tragédia cambojana: entre

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1975 e 1978, cerca de um quarto da população cambojana foi exterminada pelo Khmer Vermelho em nome da construção de um mundo novo. Após esses choques sucessivos, que foram como os três golpes anunciando o ato da crise, o final daquela década representou, para muitos intelectuais franceses, uma série de “anos órfãos”. 1 De fato, esses intelectuais estavam viúvos das grandes causas políticas que os haviam mobilizado nas décadas precedentes e, mais recentemente, dos grandes modelos políticos que tinham entusiasmado muitos deles, bem como de ideologias, como o marxismo-leninismo e suas diversas variantes, que haviam sustentado essas causas e inspirado tais modelos. Naquele momento, na virada de duas décadas e, portanto, cerca de 10 anos antes da reação em cadeia que acarretou a implosão dos regimes comunistas na Europa central e depois na Rússia, desencadeou-se na França uma crise multiforme, intelectual e política, levando a uma clara modificação da configuração ideológica que prevalecera por várias décadas entre os meios intelectuais de esquerda. Os sintomas dessa crise eram muitos e convergentes: recuo do marxismo; corrosão dos modelos revolucionários substitutivos que, como Cuba ou a China, haviam sucedido à União Soviética quando a imagem desta começara a desgastar-se; e reavaliação do fenômeno totalitarista. Essa crise política dos intelectuais contribuiu, ao longo da década seguinte, para a erosão de sua imagem e de sua influência no seio da sociedade francesa. E tal erosão foi tanto mais visível porque a essa espécie de depressão ideológica dos intelectuais de esquerda — até então estatisticamente dominantes na França e cuja crise só poderia mesmo ter grandes consequências — veio somar-se, ao longo dos anos 1980, uma crise identitária ainda maior porquanto dizia respeito à categoria como um todo. Tal crise é especialmente evidente numa obra publicada em 1987 e que imediatamente teve grande repercussão:A derrota do pensamento, de Alain Finkielkraut. Nela o autor constata um “mal-estar na cultura”, devido principalmente ao alargamento do campo “pretensamente cultural”. Tal relativismo cultural certamente já vinha manifestando-se há algum tempo, mas agora seus efeitos eram ainda mais perceptíveis porque os intelectuais sentiam diretamente suas consequências sobre o seu status e a sua influência: esse relativismo cultural e a concomitante escalada de uma cultura midiática que progressivamente introduzia novos formadores de opinião diluíam os contornos do movimento cultural até então essencialmente constituído de homens Lês années orphelines, 1968-78(Os anos órfãos) é o título de um livro de Jean-Claude Guillebaud, publicado em 1978. 1

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e mulheres provindos da esfera do impresso. A seu ver, o “vale-tudo cultural” acarretava um fenômeno de diluição da cultura e de seus atores, com o espectro cultural incluindo agora desde as chamadas artes maiores até o videoclipe, passando pelos quadrinhos, a publicidade e orock. Assim, o diagnóstico interno era de um risco de perda de identidade. A esse sentimento de perda se somava a profunda crise ideológica já mencionada, no, Bernard-Henri outro livro-sintoma ano dea1987. De fato,em seu Elogiobem Lévydaquele acrescentava essa constatação dos refletida intelectuais de um relativismo cultural e do surgimento de novos formadores de opinião trazidos pela mídia o seu diagnóstico de uma grave distorção ideológica: além de ultrapassados pela mídia, os intelectuais corriam então o risco de perder a sua condição de arautos das grandes controvérsias nacionais. Assim, de acordo com o diagnóstico formulado internamente, a crise era também ideológica. Além disso, no cruzamento dessas duas crises, o prognóstico vital estava lançado: no mesmo livro,Bernard-Henri Lévy dizia estar realmente preocupado com a espécie dos intelectuais, que corria o risco de haver desaparecido “no final do século XX”. O risco era, pois,uma espécie de desastre ecológico ameaçando uma espécie cujo ecossistema estaria desestabilizado dentro de alguns anos. Assim, o diagnóstico e o prognóstico misturavam-se numa sombria constatação que colocava o historiador diante de duas questões essenciais, porém de natureza diversa. No plano da abordagem histórica dos intelectuais franceses, caberia falar de uma crise com relação a eles a partir dos anos 1970/80? E, em caso afirmativo, seria a amplitude dessa crise tão grande que se possa falar, na França em fins do século XX, de desaparecimento dos intelectuais? ❚

Crise ou mutação?

Se a crise é inegável e, portanto, o historiador pode com razão utilizar esse termo para caracterizar a situação dos intelectuais nesse momento, é necessário ao mesmo tempo especificar e relativizar. Especificar é mostrar que essa crise foi tão profunda que ganhou a aparência de uma reação em cadeia. Relativizar é, como veremos, constatar que essa reação em cadeia não representa no entanto um desastre ecológico. De fato, após os grandes abalos ideológicos e identitários ocorridos mais ou menos à mesma época, os intelectuais à antiga foram perdendo progressivamente suas prerrogativas, depois de sofrerem uma dupla erosão. Erosão de sua

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influência, acima de tudo: tomar por princípio que esses intelectuais eram, em essência, clarividentes e portanto capazes de prescrever e orientar era algo que não mais passava pela cabeça de ninguém, a começar pelos próprios interessados. Erosão de sua credibilidade, de modo mais geral: como se haviam enganado, por vezes, com relação a fatos que diziam respeito ao destino de povos inteiros, eles não podiam se apresentar como os sacerdotes da razão. Deintelectuais resto, váriosno indícios momento essanovembro/dezemespécie de deflação dos seio darefletiam sociedadenaquele francesa. Assim, em bro de 1986, durante as grandes manifestações contra uma proposta de aumento das taxas de matrícula nas universidades, uma pesquisa feita entre os estudantes sobre as personalidades culturais de sua preferência registrou como nomes mais citados os de três cantores (Daniel Balavoine, Renaud e Jean-Jacques Goldman) e um cômico (Coluche). Três décadas antes, em 1957, quando o jornal L’Express, numa pesquisa sobre a “nouvelle vague”, interrogara os jovens sobre suas figuras culturais de referência, os nomes que encabeçavam a lista eram os de Jean-Paul Sartre, André Gide e François Mauriac. Na França dos anos 1980, prestes a passar do reino da escrita para o da imagem e do som, os homens cujas palavras tinham mais apelo para os jovens não eram necessariamente os homens de ideias admirados como tais. O colapso das grandes ideologias globalizantes — e não mais apenas a sua crise — e a consequente extinção de seu papel estruturante, bem como a ausência, cada vez mais patente, da confrontação intelectual binária contribuindo, como no passado, para polarizar o debate cívico foram provavelmente fatores decisivos para que homens e mulheres provindos da esfera da imagem e do som fossem alçados à condição de formadores de opinião. Foi o que se viu também por ocasião da eleição presidencial de 1988. Uma comparação entre esta e a eleição anterior é bastante esclarecedora no que diz respeito ao papel dos intelectuais. Sobretudo se examinarmos mais particularmente a plataforma eleitoral do principal candidato de esquerda, François Mitterrand. Se em 1981 o apoio dos intelectuais tivera aí um papel considerável, sete anos mais tarde esse apoio, mesmo sem deixar de existir, já não era mais um elemento central dessa plataforma, mesmo em sua vertente cultural. Nesta destacaram-se sobretudo os posicionamentos do ator Gérard Depardieu e do cantor Renaud. Ora, no passado, já tínhamos visto homens e mulheres de cultura se manifestarem com maior densidade intelectual, maior teor ideológico e maior capacidade de explicitar e enriquecer o debate cívico!

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Portanto, houve uma crise, inegavelmente. Mas, teria a espécie dos intelectuais desaparecido num tipo de desastre ecológico? O processo, na verdade, foi singularmente mais complexo. Certamente, como vimos, em 1987, em seu Elogio dos intelectuais, Bernard-Henri Lévy mostrara-se temeroso de tal desastre ecológico: os intelectuais corriam o risco de terem desaparecido “no final do século XX”. Mais prosaicamente, alguns anos antes, em 1983, o escritor Max Gallo, lamentando silêncio dos os intelectuais de esquerda, havia perguntado: “onde estão os Gide,o os Malraux, Alain, os Langevin de hoje?”. Treze anos mais tarde, em todo caso, parte da resposta parece ter sido dada pela atualidade comemorativa:“os Malraux ingressam no Panteão”. De fato, em 1996, a liturgia republicana acolheu entre seus grandes homens o autor de A esperança, associando-o simbolicamente a outros escritores já homenageados e propondo uma genealogia implícita dos intelectuais engajados: os grandes ancestrais, Voltaire, Rousseau e Hugo, Zola, o pai fundador do ciclo dreyfusiano, e Malraux, o arquétipo do intelectual engajado, companheiro de jornada do PCF no tempo do antifascismo dos anos 1930 e também aliado do general De Gaulle após a guerra. Seria assim o complemento trazido a esse círculo de escritores desaparecidos o reflexo de um ciclo que se encerrava quase um século após ter se iniciado com o caso Dreyfus? E essa beatificação laica de Malraux não seria na verdade o anúncio do fim de certo tipo de engajamento dos homens de letras na vida cívica? Da ágora ao Panteão, estaria assim fechado o ciclo? A espécie, na verdade, não havia desaparecido: as convulsões e as tragédias na ex-Iugoslávia ao longo dos anos 1990 deram ensejo a engajamentos, enquanto no plano interno os movimentos sociais de novembro/dezembro de 1995 serviram igualmente de motivo para manifestações. Porém, mesmo assim reativada, a figura do intelectual engajado conservou da crise ideológica e identitária das décadas anteriores uma aparência crepuscular, com contornos mais vagos e repercussão indistinta. Contornos mais vagos? Esse fenômeno de desrealização foi particularmente perceptível em fevereiro de 1997, por ocasião da acirrada polêmica em torno dos comprovantes de hospedagem previstos pela “Lei Debré”. Se foram, de fato, os jovens cineastas que tomaram as primeiras iniciativas de oposição ao projeto, também foram eles a quem a imprensa e os observadores repetidamente chamaram de intelectuais. Além disso, mais que a imprensa, foram o rádio e sobretudo a televisão os agentes da repercussão-amplificação da contestação. A identidade cultural dos primeiros atores e os veículos que conferiram densidade ao movimento eram reveladores das lentas porém profundas

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mutações socioculturais em curso nessa França de fim de século. Apenas três meses depois que a República, através de Malraux, havia homenageado — mas também, de certo modo, embalsamado — os heróis de um ciclo iniciado com o caso Dreyfus, a mídia batizava de intelectuais homens e mulheres provindos de novos veículos culturais, arautos, portanto, da imagem e do som numa sociedade cada vez mais por eles impregnada. Assim, foi um verdadeiro efeito de abismo que os então se produziu: foi a esfera da comunicação queAqualificou de intelectuais atores da cena cívica provindos daquela esfera. “videoesfera” (Régis Debray) passava a concorrer com o impresso nos domínios onde os atores prediletos tinham sido por muito tempo os intelectuais clássicos, cujas raízes mergulhavam no adubo cultural da palavra escrita. A influência destes últimos tornou-se então menos distinta, com seus posicionamentos tendo doravante de competir na ágora com outros discursos públicos tornados mais audíveis e proferidos por atores doravante mais visíveis que esses intelectuais clássicos. A tal ponto, aliás, que, a partir do momento em que a sociedade reteve a seu respeito a denominação de intelectual, forçoso é constatar que eles se constituíram de facto em intelectuais do terceiro tipo, surgidos, como já vimos, por volta de 1986, após os intelectuais da linha dreyfusiana e aqueles de rupturas revolucionárias, duas categorias cuja função social e cujas formas de expressão eram sustentadas sobretudo pelo impresso. Assim como na globalização socioeconômica, a França havia ingressado na “videoesfera” cultural e, também nesse domínio, agora nada mais seria como antes. ❚

Fazer a história do tempo presente dos intelectuais

Se até aqui examinamos em linhas gerais esse processo complexo de crise-mutação, seria necessário um estudo mais aprofundado para analisar detidamente todos os seus aspectos. Mas esse estudo implica necessariamente duas dificuldades principais para o historiador no tocante a dois registros diferentes, o historiográfico e o epistemológico. De fato, por um lado, compete-lhe explicar essa mutação ou, em outras palavras, fazer a história do tempo presente do meio intelectual. Por outro, tal mutação complica bastante a sua tarefa porque, como é seu próprio objeto de estudo que muda de natureza, ele tem de realizar um verdadeiro trabalho de acomodação, no sentido óptico do termo, para manter o objeto em seu campo de investigação. São esses dois pontos que pretendemos abordar aqui, chegando assim à vertente historiográfica do tema em questão.

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Fazer a história do tempo presente dos intelectuais acarreta dificuldades específicas. Se quisermos, por exemplo, identificar as tendências mais importantes no campo ideológico, campo obviamente essencial para a história dos intelectuais, teremos dificuldade para percebê-las se não pudermos colocá-las em perspectiva, tomando para tanto certa distância. Caso contrário o historiador corre o risco de confundi-las com as modas intelectuais, que são um objeto de natureza estudo igualmente interessante, mas não fundamentalmente nem a mesma nem o mesmo metabolismo quetêm aquelas tendências realmente importantes. E essa necessidade de tomar um mínimo de distância é ainda mais justificada do ponto de vista histórico porque precisamente o advento da era da mídia favoreceu o breve e o efêmero em detrimento do estável e do consolidado. A história do tempo presente, que representou um avanço considerável para a escola histórica francesa, chegaria assim a um impasse, em se tratando da história dos intelectuais, caso se limitasse a uma crônica pouco ou mal hierarquizada desses episódios da “videoesfera” que guardam maior ou menor relação com a vida intelectual. Em compensação, uma articulação benfeita entre a instalação do historiador nessas praias cronológicas vizinhas deixadas à mostra pelo escoamento do tempo — as quais chamaremos aqui de “pôlder” em referência aos terrenos cultiváveis subtraídos ao mar pelos camponeses holandeses — e sua preocupação de colocar os problemas estudados numa perspectiva mais longa podem resultar numa historiografia renovada dos intelectuais, vistos ao mesmo tempo por meio das tendências mais marcantes de sua história e dos aspectos mais recentes de suas mutações. Isso, certamente, desde que ele consiga superar igualmente outras dificuldades inerentes a essa história do tempo presente, as quais, no caso da história dos intelectuais, ganham ainda maiores proporções. Na verdade, a história do tempo tem por objeto esse intervalo criado na escala humana do historiador pelos fenômenos de contemporaneidade e as reverberações de memória e que se situa, pois, entre passado abolido e tempo imediato. Ora, esses fenômenos de contemporaneidade e essas reverberações de memória são particularmente sensíveis para quem lida com a história dos intelectuais. Sem dúvida, qualquer que seja o tema tratado, todo historiador do tempo presente está sempre conectado diretamente e por múltiplos fios com a história que ele estuda, encontrando-se portanto ameaçado pelos perniciosos jogos de espelhos que podem comprometer, se ele não tomar cuidado, a serenidade indispensável a todo procedimento científico rigoroso. Porém, tais jogos de espelhos são muito mais perigosos para

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o historiador dos intelectuais, porque ele próprio, por função social, é também um intelectual e deve administrar essa situação que compete unicamente à classe dos historiadores conhecer. Se somarmos a isso o fato de que a história recente que ele procura explicar é uma história tornada radioativa, tanto assim que os debates ideológicos do passado continuam contaminando tanto as consciências individuais quanto as representações coletivas, teremos uma noção da dificuldade intrínseca, ou pelo menos história do tempo presente dosparcialmente intelectuais. específica, ao ato de produzir uma Assim sendo, como já ressaltado, o outro aspecto epistemológico dessa crise dos intelectuais é que convém, àquele interessado em fazer a sua análise, levar em conta a mutação que acompanhou essa crise e, portanto, estudar um objeto não invariável, e sim prestes a mudar de natureza. Aliás, tal problema de abordagem se apresenta já na primeira etapa da operação historiográfica, isto é, a definição do objeto. Este, de fato, é muito complexo para ser determinado com precisão. Sempre foi assim, é claro, e uma das questões que primeiro se colocam para a disciplina histórica, quando ela começou a se interessar pelos intelectuais, foi encontrar uma definição operacional e, além do mais, consensual entre os estudiosos. Assim, sempre se colocou em especial a questão de integrar ou não nessa categoria os homens e mulheres provindos das artes dos espetáculos e do mundo da mídia. Agora, uma vez conquistada a supremacia desse mundo, o que antes era apenas um problema de regulagem tornou-se uma questão estrutural: o objeto “intelectual” está mais do que nunca mal definido, de modo que nos escapa por extensão. E um campo disciplinar — a história dos intelectuais —, que, no entanto, já existe há pelo menos um quarto de século e no qual trabalham agora duas gerações, continua assim a carregar esse fardo conceitual que é uma relativa indeterminação de seu objeto. No mais, essa escalada dos meios de comunicação de massa teve outra consequência para a história dos intelectuais. De fato, que vem a ser, afinal de contas, o engajamento do intelectual senão a expressão pública de uma opinião privada? Ora, uma expressão pública pressupõe a passagem e a difusão por um veículo cultural, de modo que a história dos intelectuais é indissociável da história cultural, que é a história da circulação do sentido no seio de uma sociedade. Se essa história dos intelectuais engajados foi também, desde o início, essencialmente uma história política, já que estudar seu engajamento é estudar sua irrupção e sua presença na ágora, e se essa história deve ser também social, já que esses intelectuais povoam os lugares e constituem os meios, lugares e meios

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que naturalmente convém analisar, então ela deve ser também cultural. Existem, aliás, vínculos estreitos entre essas três dimensões. Por exemplo, se a sociologia do meio intelectual modificou-se profundamente nas três últimas décadas é porque suas formas políticas e culturais de intervenção em parte também mudaram. E são precisamente essas interações entre os três registros que explicam igualmente a amplitude da crise enfrentada pelos intelectuais, bem como a modificação, emcontribuíam, intensidade como e natureza, suadelinear influência na ágora. Esses intelectuais franceses vimos,depara os horizontes das expectativas de seus contemporâneos. Já os novos formadores de opinião encontram sua legitimidade em sua contribuição para a “comunicação”, na qual infundem seus estados de espírito, tornando-se assim negociantes de emoção. De certo modo, como se pode ver, opathos levou a melhor sobre o logos, discurso elaborado e análise fundamentada dos problemas de uma sociedade. Nesse sentido, a crise dos intelectuais é ao mesmo tempo um reflexo e um acelerador da crise das democracias representativas, cuja base eram a análise racional e a concorrência razoável das possibilidades e cujo funcionamento corre o risco de ser prejudicado pelas palpitações sucessivas de opiniões públicas dominadas por emoções ligadas aos sons e à fúria da cultura midiática, a qual, por sua vez, está se tornando cada vez mais uma cultura-mundo.2

Sobre as três noções que procurei desenvolver aqui — a definição de história cultural, o trabalho do historiador sobre o “pôlder” e a cultura-mundo como objeto para o historiador —, ver: Sirinelli, JeanFrançois. La France du siècle dernier. In: _____.Comprendre le XXe siècle français. Paris: Fayard, 2005, esp. p. 22-23 e 39 e segs. 2

3 ❚

Memória e identidade nacional: o exemplo dos Estados Unidos e da França* Philippe Joutard

A relação entre memória e identidade nacional é uma evidência que dispensa demonstração, tantos são os seus exemplos. Em compensação, compreender como se estabelece relação é infinitamente mais complexo. Para tanto, tomarei dois casos em essa que ela é particularmente patente, apesar das situações bem diferentes. De um lado, uma antiga nação, a França, que bem cedo,desde o século XIII, fundou sua identidade numa memória histórica bastante elaborada, que a partir daí só fez se fortalecer, em especial durante as crises, a Guerra dos Cem Anos, e, sobretudo, durante as guerras religiosas. De outro lado, uma nação recente, de história mais curta: os Estados Unidos. Some-se a isso a oposição entre um Estado que desenvolveu um forte centralismo e uma unidade que desconfia dos particularismos, e um poder federal que delega o máximo de funções aos estados, como indica o próprio nome do país, respeitando todas as diferenças. Outra oposição, mais aparente do que real, é a relação com a história. A históriavista, é uma jamais Nãorelação é o caso, primeira dospaixão Estadosfrancesa Unidos,que já que parafoi os desmentida. americanos essa comà o passado é frágil. Como diz o escritor Jérôme Charyn: “na América, o que conta é a cultura do instante. O que aconteceu há cinco minutos já não tem

* Tradução de Luiz Alberto Monjardim.

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mais importância”. Ele repete o que disseram no século anterior Aléxis de Tocqueville e Michel Chevalier: os americanos rejeitam a tirania do passado. Vale lembrar aqui a frase atribuída a Henry Ford: “a história é conversa fiada”. Já para Michael Kammen (1984) a memória americana só começa depois da Guerra de Secessão e sobretudo entre os sulistas der rotados. Ele afir ma, com razão, que na pr imeira metade do século XIX os escr itores americanos não se interessavam tradição, enquanto romance grande popularidade pela na França. Lembra que oo culto dos histórico heróis se gozava opunha de à “ética igualitária do espírito republicano” e assinala que, em 1812, não se hesitou em destruir a casa de Benjamin Franklin na Filadélfia e que, quatro anos depois, quase se destruiu o Independence Hall, o prédio onde fora assinada em 1776 a Declaração da Independência. Cita até mesmo um editorial do New York Herald, que em 1876 afir mava serem os amer icanos “mais propensos a ag ir do que a comemorar”. No entanto essa indiferença pelo passado tem a ver, sobretudo, com o passado europeu violentamente rejeitado, o que não impede o desenvolvimento de um sistema de história-memória tão ou mais desenvolvido que o da França e criado nos primórdios da República de maneira consciente, racional, sistemática e a longo prazo. Assim é que, nos dois casos, encontramos um mesmo instrumento, a construção de um romance nacional ou, em outras palavras, de um relato histórico mais ou menos lendário que justifica a legitimidade da existência nacional e lhe promete um futuro triunfante. Embora no caso francês seja fácil valorizar uma primeira fase de elaboração do romance nacional, 1 a ruptura revolucionária e uma primeira forma de democracia justificam a comparação entre as duas experiências no mesmo período, podendo-se perceber então vários pontos em comum. Acresce que as interações entre os dois sistemas de memória são mais numerosas do que se pensa. Numa exposição como esta, é natural que eu prefira me ater às linhas gerais. O primeiro ponto em comum é o papel decisivo do poder público: sem ele não há articulação entre memória e identidade nacional. Isso é lógico no caso da França, que desde a época medieval atribui ao Estado essa função, a qual pode ser encontrada em todos os períodos, em particular nos discursos e nas decisões tomadas. E mais surpreendente no caso dos Estados Unidos, onde

1

Ver Joutard (2000).

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é notória a desconfiança dos cidadãos em relação ao poder público: como eles estão sempre temerosos dos abusos de poder, tudo se faz para proteger o cidadão contra o Estado federal. Nesse ponto, porém, assim como na França, essa é uma de suas funções perfeitamente reconhecidas por todos. A melhor prova disso é a leitura dos diferentes discursos de posse dos presidentes americanos, do primeiro deles, George Washington, ao mais recente, George Bush. Raros são os quediscursos. não fazemEvidentemente, referência ao romance Citareiseaqui desses nos dois nacional. casos, o Estado apoiavários numatrechos opinião pública atenta, valendo-se em particular do trabalho dos historiadores, muitas vezes próximos do poder político. Nos dois países, o Estado administra o tempo memorial estabelecendo um calendário de festas que marcam o ano e evocam principais eventos ou personagens. Assim, nos Estados Unidos, a partir do primeiro ano do mandato de Washington criou-se um primeiro feriado nacional que faz referência às origens das colônias americanas, o Thanksgiving. Gesto significativo que inaugura a construção de um calendário muito mais fornido e sistemático do que o francês. São nada menos que outros quatro feriados: a festa nacional que comemora o 4 de julho, dia da declaração de independência de 1776, o Washington’s Birthday (1870), ao qual se acrescentaram Lincoln e depois o conjunto dos presidentes e que passou a chamar-se Presidents’ Day (1880), na terceira segunda-feira de fevereiro, o Memorial Day, na última segunda-feira de maio em homenagem a todos os combatentes dos Estados Unidos, criado após a Guerra de Secessão e oficializado em 1888, e o mais recente, o Martin Luther King’s Day, criado em 1986, na terceira segunda-feira de janeiro. O calendário francês tem somente três feriados: o 14 de julho, festa nacional que evoca ao mesmo tempo a queda da Bastilha em 1789 e a celebração da federação no Campo de Marte, no ano seguinte, símbolo da união do povo francês em torno do evento fundador do novo regime, mais o 11 de novembro e o 8 de maio, fim das duas guerras mundiais do século XX. Deve-se igualmente levar em conta o antigo calendário católico; aliás, paradoxalmente, esse país na vanguarda da laicidade tem mais festas de srcem católica que patriótica, ao contrário dos Estados Unidos. Mas recupera-se pela multiplicação de comemorações ocasionais que lhe permitem valorizar melhor a longa duração do romance nacional. A mesma observação vale para inscrição no espaço, onde os Estados Unidos foram bem mais longe que a França. Falo da verdadeira memória nacional que é a cidade de Washington em si mesma, a partir de um projeto

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pedagógico que se afirma ao longo de mais de dois séculos. 2 Sua própria localização entre os estados do Norte e os estados do Sul é um primeiro indício. O nome que l he deram, o do primei ro presidente e fundado r da República, é outro símbolo for te: é o primeiro caso e o úni co antes da revolução soviética com Leningrado (mas Leningrado tornou-se São Petersburgo). Os revolucionários americanos tiveram êxito onde os franceses fracassaram. A criação a prova espacial de que um novodo havia começado.deÉWashington bem verdadeé que a tarefa foi facilitada pelamundo imensidão espaço americano e sua pouca densidade. Dito isso, o povoado levou muito tempo para crescer, e foi preciso esperar até o fi m da guer ra civil e o início dos anos 1870 para que ele se tornasse, com Alexander Shephard e a presidência do general Grant, uma verdadeira cidade e para que sua vocação memorial se desenvolvesse plenamente. O plano da cidade traduz perfeitamente a dupla preocupação de ensinar ao mesmo tempo a memória de uma nação e suas instituições fundamentais: de um lado, o eixo do Mall , que parte da colina do Capitólio onde se instalou o Congresso “Nós, o Povo”, tendo em segundo plano a Suprema Corte (Poder Judiciário) e a pr imeira instituição de memória, a Bib lioteca do Congresso, simultaneamente arquivo e biblioteca. Esse Mall termina, do outro lado do rio Potomac, no cemitério de Arlington, ao qual se tem acesso pela Arlington Memorial Bridge, com duas etapas em perfeita lineraridade, o Washington Memorial (1876) e o Lincoln Memorial (1922). De modo bastante lógico, o Washington Memor ial situa-se na junção com o segundo eixo, perpendicular ao primeiro, que conduz, por um lado, à Casa Branca, antes do Lafayette Park, e por outro, ao último e mais recente dos três grandes memoriais, o Jefferson Memorial, inaugurado em 1943 por Roosevelt para o bicentenário do nascimento do autor da Declaração da Independência: também aí a linearidade é perfeitamente respeitada. Qualquer que seja a época de sua construção, a unidade arquitetônica dos principais monumentos é preservada pelo recurso aos modelos antigos, greco-romanos, a não ser pelo Memorial de Washington, cuja forma de obelisco egípcio tem a vantagem de mostrar a preeminência do fundador, no centro da cruz. Obviamente, os visitantes podem nele entrar e apreciar de seu topo a unidade har moniosa do conjunto. O uso do modelo

2

Wiencek, 1981; e Carrier, 1999.

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greco-romano sugere evidentemente uma filiação que se quer afirmar. Nada é deixado ao acaso: o Mall é margeado de um lado pela Constitution Avenue e de outro pela Independence Avenue, perto do Memorial de Jackson. Ao longo da “grande avenida” se situam as outras instituições de memória que são os museus; estes são administrados pela Smithsonian Institution, fundada em 1846, e se desenvolvem à medida que a memória dos Estados Unidos se diversifica e se enriquece. Até mesmonumerosos a Union Station, fer roviária de nome simbólico onde desembarcam visitantes,estação faz parte igualmente do percurso memorial por sua arquitetura e sua decoração. No caso da França, a inscrição no espaço é menos sistemática, mas permanece forte. Há um eixo privilegiado, onde tradicionalmente se realiza o desfile do 14 de julho: partindo do Arco do Triunfo, ele conduz ao antigo Palácio Real do Louvre, passando pela praça da Concórdia, tendo à direita o Palácio do Eliseu, residência do presidente da República, e mais ao longe, à esquerda, o Palácio Bourbon, a Assembleia Nacional, sem uma simetria comparável à de Washington. Mas esse eixo não é o único. Ele faz concorrência, por assim dizer, com a praça da Bastilha e sua coluna comemorativa da revolução de julho de 1830, prolongando-se pelos grandes bulevares até a praça da República. Aí se realizam as grandes manifestações populares da esquerda. Cabe mencionar também os Inválidos, ao mesmo tempo napoleônicos e propriamente militares, e Versalhes, que não se confunde meramente com a monarquia, pois lá ocorreram importantes eventos revolucionários, como o juramento dojeu de paume, a abolição dos privilégios, a noite do 4 de agosto e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Além disso, até hoje a República relembra esse passado, pois nas revisões constitucionais, quando elas se fazem pela via parlamentar, as duas câmaras se reúnem em congresso em Versalhes.Vale dizer que a história da França é infinitamente mais complexa e longa, e que seria impossível criar uma cidade inteiramente nova. A semelhança está igualmente na visão que estrutura o romance nacional, uma visão universalista na qual o passado responde pelo futuro com base no mesmo tema da cruzada pela liberdade. De ambos os lados encontramos formulações bem semelhantes. Turgot, em 1778, via no regime político americano “a esperança do gênero humano”, afirmando que “ele pode se tornar um modelo (...) ele deve dar o exemplo da liberdade política, da liberdade religiosa, da liberdade do comércio e da indústria”. Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, o evocou em seu discurso de posse, em 1801, ao definir

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o governo dos Estados Unidos como “a melhor esperança do mundo”. 3 Um século depois, em 1905,Theodore Roosevelt disse o mesmo: “jamais no passado os homens tentaram uma experiência tão grande e formidável quanto administrar um continente sob a forma de uma democracia (...) Do sucesso de nossa experiência depende não apenas o nosso bem-estar, mas o de toda a humanidade”.4 O atual presidente George Bush seguiu essa mesma inspiração em seu recente discurso posse:os“Por nossos esforços, acendemos fogocombatem no espírito dos homens. Ele de aquece que sentem o seu calor e queima um os que o seu progresso, e um dia esse fogo indômito da liberdade chegará aos cantos mais sombrios de nosso mundo”. Esse fogo,ou seja,“a conquista da liberdade para todos, à imagem do Criador”, é por excelência a“missão histórica da América”.5 Do lado francês, começarei por uma citação de Michelet, o historiador romântico que melhor encarna esse universalismo: “Esse espírito democrático da França não surgiu de ontem para hoje. Ele aparece confuso e obscuro, mas não menos real desde os primórdios de nossa história. A inocente heroína [Joana D’Arc], sem disso suspeitar, fez bem mais do que libertar a França; ela libertou o futuro ao propor um tipo novo, contrário à passividade cristã. O herói moderno é o herói da ação”. Eis por que “sob sua forma mística se entrevê a Revolução”. Um século mais tarde, essa missão providencial da França foi reafirmada por Ferdinand Buisson, inspetor do ensino primário e um dos grandes pedagogos republicanos: A França de todos os tempos, mesmo nos tempos bárbaros, no tempo das guerras feudais, de castelo em castelo, concebera um ideal que ultrapassava a barbárie reinante (...) A França dessas eras distantes se fez conhecer no mundo como uma espécie de personificação da fé no direito. Chamavam-na o soldado de Deus, isto é, o soldado da justiça absoluta (...) E quando ela chegou enfim ao regime da democracia republicana e viu ao seu redor velhas monarquias coligadas, não foi somente em causa própria que ela pegou em armas, e sim pela liberdade de todos.

O próprio general De Gaulle, apesar de suas srcens realistas, situa-se na mesma linha de continuidade. Na cruz de Lorena que domina Colombe-lesApud Kaspi, 1976:198. Apud Calvet, 2004:297. 5 Libération, 21 jan. 2005. 3 4

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Deux Eglises, lugar altamente simbólico, figura uma máxima tirada de seus escritos: “há um pacto muitas vezes secular entre a grandeza da França e a liberdade do mundo”.6 Último ponto em comum é a cronologia com duas fases importantes. A primeira delas é o segundo quartel do século XIX, período que corresponde ao desaparecimento dos pais fundadores nos Estados Unidos e dos últimos revolucionários França, bem comoParadoxalmente, ao surgimento de geração quedenão conheceu essesnamomentos decisivos. é a uma viagem triunfal Lafayette aos Estados Unidos em 1824/25, a convite do presidente, que reaviva a memória da guerra da independência e o desejo de construir o romance nacional. Por ocasião de uma das primeiras comemorações da revolução americana, em 1825, no cinquentenário da batalha de Bunker Hill, Daniel Webster, orador ilustre e futuro senador de Massachusetts e secretário de Estado, na presença de Lafayette, qualificou a revolução americana de “prodígio dos tempos modernos e de bênção”, explicando que a história dos Estados Unidos demonstra que “um governo popular é tão permanente e duradouro quanto outros sistemas”. Em contraponto, ele citou a frase atribuída a Luís XIV, “o Estado sou eu”, como exemplo de um poder sem limites, com um povo subjugado, e que estava ultrapassado.7 Dois anos depois, em 1827, Massachusetts criou um ensino do patriotismo graças à história dos Estados Unidos, no que foi seguido por outros estados. George Bancroft iniciou a publicação de sua grande História dos Estados Unidos, que desde logo conheceu um sucesso extraordinário, sendo o primeiro volume reeditado 10 vezes em 10 anos. Trata-se de uma primeira versão historiográfica do romance nacional americano comparável a Michelet, seu contemporâneo. Numa visão messiânica, ela apresenta os Estados Unidos como o resultado feliz da história da humanidade, aproveitando-se das melhores qualidades de cada povo europeu. Por exemplo, a propósito dos franceses, Bancroft ressalta o papel da emigração huguenote e refere-se ao projeto da Flórida huguenote do século XVI como marco fundador, por ser a primeira tentativa de estabelecimento permanente de europeus protestantes na América do Norte. Ele celebra incansavelmente “os 60 anos da epopeia triunfal da primeira democracia e de seus heróis”. Como último indício de uma memória histórica já então dinâmica, temos o famoso artigo de John O’Sullivan, que, para justificar 6 7

Apud Agulhon, 2000:12. Apud Kennedy, 2003:45-47.

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a anexação do Texas, evoca em 1845 “nosso destino manifesto de reconquistar a totalidade do continente doado pela Providência”.8 Do outro lado do Atlântico, a escola histórica francesa, com Augustin Thierry e Michelet, entre outros, fornecia a argumentação histórica que emprestava sua forma acabada ao romance nacional francês. Além dos historiadores, o próprio Estado, à época de Luís Filipe e da monarquia de julho, criou a partir umainstalado série deem instituições memória,doincluindo da históriadeda1830 França Versalhes,deo primeiro gênero eum ummuseu dos mais sistemáticos.9 A segunda fase corresponde às duas últimas décadas do mesmo século, quando então os dois países conheceram profundas divisões, que nos Estados Unidos acabaram por levar inclusive à guerra civil. A gestão da memória é, pois, um meio de superar essas oposições. Nos Estados Unidos, as comemorações da promulgação da Constituição em 1887 e do primeiro mandato de Washington mobilizam a opinião. O Memorial Day, consagrado ao sacrifício de todos os mártires da nação americana, torna-se feriado nacional em 1888. Quatro anos depois, em 1892, o quarto centenário da descoberta da América por Cristóvão Colombo é outra data marcante. Institui-se então o juramento à bandeira; no ano seguinte, a exposição organizada em Chicago para esse aniversário exibe numerosos objetos de interesse histórico, diferentemente daquela do centenário da declaração da Independência em 1876. 10 É também durante essa exposição que o historiador Turner lança sua teoria sobre o significado da fronteira na história americana no momento em que a colonização chega à costa do Pacífico. Para ele, o avanço contínuo para o Oeste durante um século influenciou profundamente a cultura dos Estados Unidos, encarnando o espírito de inovação e o sonho americano de emancipação. A virtude dos pioneiros transmitira-se às gerações seguintes. A fronteira, pelas condições sociais que ela implica, atenua as diferenças sociais e desenvolve o igualitarismo. Ela reforça o otimismo americano e o apego ao Estado federal que, por meio do exército, garante a segurança. Essa tese foi debatida no plano histórico.11 Porém, mais que uma avaliação de sua Para as duas citações, ver Royot, Bourget e Martin (1993:54). Essa obra contém uma série de outras referências reforçando a ideia de uma primeira fase de construção do romance nacional. 9 Constans e Gervereau, 2001. 10 Kammen, 1984:114. 11 Royot, Bourget e Martin, 1993:175-183. 8

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pertinência, ela merece atenção por sua produção de imagens e de uma nova mitologia histórica, completando assim o romance nacional. Essa mitologia encontra sua encarnação num gênero artístico surgido um quarto de século após o fim da fronteira, o western, frequentemente identificado ao cinema americano de modo geral. Aí se encontram todos os mitos, o primado do desenvolvimento agrícola, longe do comércio e da indústria do Leste, a solidão dos heróis, o 12

igualitarismo agrário. Aí se não descobre a continuidade com ele a mitologia da época colonial. O western acrescenta nem substitui, prolonga:religiosa o herói aspira sempre à Terra Prometida e ao novo Éden.A prova da existência de Deus e da missão confiada ao homem americano está na grandiosidade e beleza dessas paisagens desérticas. Na França, esse decênio corresponde ao triunfo dos republicanos, que instaura definitivamente o 14 de julho como feriado nacional e confere à escola a missão de difundir sistematicamente o romance nacional, não apenas através dos compêndios de história, mas também do livro intitulado Le tour de France par deux enfants.



Afora umprofundamente messianismo comum, os romances nacionais diferem

O romance nacional francês se estrutura em torno das noções de antiguidade, de continuidade sem falhas e, talvez ainda mais importante, de autoctonia: três textos de srcens diferentes ilustram essa afirmação. O mais antigo, de um autor de compêndios de história do ensino primário do início do século passado, Foncin, não hesita em fazer dos primeiros franceses homens pré-históricos, esquecendo-se de que os alemães também poderiam, com razão, invocar a proteção do imperador: Quanto reconhecimento não devemos a nossos ancestrais! Foi por nós que, em tempos pré-históricos, obscuros benfeitores descobriram o uso do fogo, domesticaram os animais, trabalharam os metais, cultivaram o trigo etc. Foi por nós, franceses, que Vercingétorix se sacrificou e morreu, que Carlos Magno determinou as invasões, que os cavaleiros fizeram as cruzadas, que os troveiros criaram a língua

12

Mauduy e Henriet, 1989.

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francesa, que as comunas inauguraram a liberdade municipal, que Joana d’Arc na fogueira encarnou a pátria francesa, que grandes reis e grandes ministros a engrandeceram e fortaleceram. E que seria de nós sem a Revolução Francesa?

O segundo é o grande contista e homem do rádio e da televisão da França da segunda metade do século XX, Alain Decaux, que assim se refere à sua vocação de historiador, herdada de seu avô professor: Como tal, ele passara a sua vida ensinando alguns milhares de meninos a amarem a França. Essa França era bela, ia buscar suas srcens muito longe, nas florestas habitadas por druidas. Fora vítima de tantas ambições, ataques e violências que é espantoso que, graças à firme vontade de alguns e à coragem de todos, tenha conseguido crescer, subsistir e tornar-se o que é. Meu avô, professor republicano, não temia evocar esses reis que pacientemente haviam aumentado esse patrimônio. Sobre o mapa pendurado ao lado do quadro-negro, ele evocava esse que era o primeiro reino da França, alguns quilômetros quadrados em torno de Paris. Aumentado pelas conquistas, o reino tornou-se a França que os jacobinos de 1793, herdeiros paradoxais do rei que haviam guilhotinado, defendiam com a mesma tenacidade dos capetos. Por tantas vezes abalada ao longo dos séculos, invadida, humilhada, essa França descrita por meu avô sempre conseguira recobrar-se. Como não amá-la?13

O terceiro é talvez o mais surpreendente.Trata-se da carta que o candidato Mitterrand enviou a todos os franceses em sua última campanha presidencial de 1988: mais de um quarto dos nomes citados pertence à memória nacional, e o autor não hesita em incluir-se na continuidade de uma história da França sem ruptura verdadeira, retomando o tema mais antigo do romance nacional: “eu não condeno a afirmação do Estado em todos os tempos e em todos os lugares, longe disso. Eu teria feito o mesmo para forjar a estrutura que, de Filipe Augusto a Colbert, dos jacobinos a Bonaparte e Gambetta, Clemenceau e De Gaulle, permitiu à mais antiga nação da Europa erigir-se e depois durar e reunir nela mesma até nós as virtudes do passado e as promessas do futuro”. Enumeração impressionante: parte dos heróis da escola primária desfila em torno do

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Decaux, 1979.

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tema da construção contínua do Estado, da Monarquia à República, passando pelo Império, linhagem na qual se insere o presidente da República em final de mandato. O que há de mais significativo em todos esses textos é o desejo comum de suprimir as rupturas — particularmente a maior delas, a Revolução Francesa —, projeto que não é novo. Podem-se ver suas primícias desde o Império, mas édoo Museu própriodeLuís FilipedenaVersalhes década deque 1830 através precisamente História ele que criouo erealiza acompanhou pessoalmente. Com as milhares de pinturas históricas por ele reunidas ou encomendadas ele quer demonstrar, pela iconografia, a grande unidade da história da França. Lá estão tanto o batismo de Clóvis e São Luís ministrando justiça sob o carvalho de Vincennes quanto a descoberta do rio São Lourenço por Jacques Cartier, a morte de Marat e Napoleão na ponte de Arcole. A galeria mais conhecida e mais bem-conservada é a das batalhas, onde estão os quadros das vitórias da Monarquia, da Revolução e do Império, de Tolbiac a Wagram, passando por Marignan, Fontenoy e Fleurus, sem esquecerYorktown. Nada é deixado ao acaso, e as cenas mais importantes do romance nacional são valorizadas por suas grandes dimensões e sua localização central, como a batalha de Bouvines, a entrada de Joana d’Arc em Orléans e a entrada de Henrique IV em Paris. O quase oficial Journal des Debats explicita-lhes o sentido: Todas as grandes famílias da França, aquelas que datam gloriosamente de nossa Revolução de 1789 e aquelas cuja origem se perde na noite dos tempos (...) será que elas não têm todos os seus representantes, suas insígnias, seus títulos e suas 14 proezas e de todos os heróis da pátria? Não, o rei não se esqueceu de ninguém.

Luís Filipe criou assim “galerias de mortos lembrados na memória dos vivos”, segundo Guizot, e “instalou o presente no passado”, no dizer de Victor Hugo. Mas a principal contribuição do século XIX foi dar aos franceses os gauleses como ancestrais, em vez dos francos. Por trás dessa mudança de srcem está a ideia de uma autoctonia do povo francês, o que evidentemente não corresponde à realidade histórica, pois tanto os celtas quanto os francos vieram do

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Apud Gaehtgens, 1997:165.

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Leste. Essa reconstrução da história francesa já estava presente no famoso livro do revolucionário Sieyès, Que é o terceiro estado? Este apresenta como terceiro estado os descendentes dos gauleses, enquanto a nobreza provinha dos francos, sendo a Revolução uma desforra dos gauleses contra os invasores francos. De certo modo, trata-se de uma “descolonização” ou, para usar um termo menos anacrônico, uma guerra de independência. Augustin Thierry e seu irmão Amédée dãopublicado uma roupagem histórica a essa tese ascendência tendo este último em 1828 uma História dos da gauleses desde os gaulesa, tempos mais remotos até a total submissão da Gália à dominação romana. Amédée valoriza aí a figura de Vercingétorix, que por suas qualidades e defeitos — inteligente, vivo, porém individualista e indisciplinado — prefigura o caráter nacional. Logo de saída, deixa claro o seu intuito: “foi com zelo religioso que ele [o autor] recolheu essas velhas relíquias dispersas, indo buscar nos anais de uma vintena de povos os títulos de uma família que é a nossa”. 15 À época do Segundo Império, Napoleão III reforça essa epopeia fundadora. A última expressão dessa mitologia, num tom graciosamente irônico, consiste evidentemente na famosa série de histórias em quadrinhos sobre o herói gaulês Asterix e a última aldeia gaulesa a resistir aos romanos. É grande o contraste com o romance nacional americano, baseado na ruptura com o Velho Mundo e na criação de um novo após uma perigosa travessia. Assim, o emigrante é a imagem por excelência do fundador da cidade, e não o autóctone. Isso é enfaticamente afirmado na primeira seleção memorial. Aqui o evento fundador é a chegada dos Pilgrim Fathers, os Pais Peregrinos, dissidentes puritanos, a Cap Cod, em Plymouth, em 1620. No entanto, essa não é a colônia mais antiga nem a mais importante. Jamestown, mais ao sul, na futura Virginia, fora fundada em 1607, dando início à brilhante trajetória econômica daquela região. Essa aventura é relembrada a cada ano, não diretamente, mas indiretamente pela grande festa de Thanksgiving, a quarta quinta-feira de novembro, Dia de Ação de Graças, que comemora a primeira colheita dos Pilgrim Fathers onze meses após sua chegada: os índios trazem-lhes perus selvagens, mirtilo, milho e abóboras.16 Esse primeiro evento é complementado pelo sermão de John Winthrop, Um modelo de caridade cristã, com sua expressão indefinidamente repetida, tirada de um dos textos mais conhecidos do Evangelho de São Mateus (5-13), 15 16

Nos ancêtres les Gaulois, p. 208. Bellah, 1984.

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o Sermão da montanha: “vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte”. Winthrop havia liderado em 1630 um grupo de puritanos na Nova Inglaterra e se tornaria o primeiro governador de Massachusetts. Assim, a referência ao passado está muito mais ligada à história bíblica do que ao passado real dos colonos. A dimensão religiosa é, pois, predominante e marca outra grande diferença em relação à França. Em seguida,Day, o segundo evento fundador, a revolução, com o dia 4 Esse de julho, o Independence a comemoração da declaração de independência. outro evento também guarda indiretamente uma conotação religiosa, pois o texto comemorado faz menção a Deus quatro vezes. Desde a primeira frase célebre: “todos os homens foram criados iguais; foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis”. Colocando a luta pela independência sob o mesmo signo providencial em seu primeiro discurso de posse,Washington vê na memória dos acontecimentos mais recentes “a mão invisível que conduz as questões humanas. Cada passo de nosso país rumo à independência parece ter sido marcado por sinais de intervenção da Providência”. A ligação com Deus não é somente a dos deístas da época das Luzes, mas a de Israel. Mais ainda do que os franceses, os americanos se veem como os sucessores do povo eleito da Bíblia. É o que diz explicitamente um pastor de Massachusetts num sermão de ação de graças em 1799, examinando os traços em comum entre o povo dos Estados Unidos e o Israel antigo: “muitas vezes já se disse que o povo dos Estados Unidos está mais próximo do Israel antigo do que qualquer outra nação do mundo. Daí o uso frequente da expressão ‘nosso Israel americano’”. Mais tarde, em 1856, outro pastor da Filadélfia, Joseph F. Berg, demonstraria emA pedra e a imagem que os Estados Unidos são a Terra Prometida bíblica.17 Eis por que tantos grupos dissidentes, em geral messiânicos, se estabeleceram nos Estados Unidos ao longo de todo o século XIX. O primeiro evento fundador dos americanos, os Pilgrim Fathers que deixam a velha Europa cruzando o Atlântico, retoma aquele que funda Israel: a fuga do Egito e a travessia do mar Vermelho. Não se trata aqui absolutamente de uma suposição pessoal. Jefferson, tido como o menos religioso dos pais fundadores e mais deísta do que cristão, torna explícita essa referência no discurso inaugural de seu primeiro mandato: “eu deveria render graças a este Ser em cujas mãos estamos, que guiou nossos pais, tal como o Israel

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Royot, Bourget e Martin, 1993:52.

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antigo, desde o seu país natal até uma terra onde abundam riquezas e deleites”. É o que está implícito nas palavras do presidente Johnson, 156 anos mais tarde: “Eles aqui aportaram, exilados e estrangeiros, corajosos porém assustados por encontrarem uma terra onde o homem podia ser dono de si mesmo. Eles selaram um pacto com esta terra”.18 Daí a importância da paisagem aberta, de amplos horizontes e abundante vegetação, sendo o papel dos pintores decisivo para representar a Terra Prometida e o novo Éden.dos séculos XIX e XX não Da emigração srcinal à emigração em massa há solução de continuidade. Tal emigração é o sinal permanente da eleição divina e do laço entre o Israel antigo e os Estados Unidos. Mas aqui se acrescenta, em fins do século XIX, um novo instrumento memorial, a Estátua da Liberdade, com sua mudança de significado simbólico.19 É bem conhecido o projeto inicial dos liberais franceses reunidos em torno de Laboulaye de oferecer à República americana, por ocasião do primeiro centenário de sua fundação, um presente de sua homóloga francesa. A estátua deveria assim encarnar os benefícios da expansão da liberdade pelo mundo graças à aliança entre as duas Repúblicas e à amizade entre seus povos. Esse foi o teor dos diferentes discursos de sua inauguração, em 1886, que representavam a visão universalista comum às duas nações. Nenhuma referência à chegada dos imigrantes, já então numerosos, à baía de Nova York. No entanto, desde 1883,The new colossus, poema de Emma Lazarus, judia secularizada e proveniente da Europa central, já oferecia uma outra interpretação: fazer da Estátua da Liberdade a “mãe dos exilados”, a acolher os miseráveis e oprimidos. Até mesmo em função da experiência de sua comunidade de srcem, para Emma Lazarus a Estátua da Liberdade não acolhia apenas os emigrantes vindos de toda parte por questões econômicas, contudo, mais particularmente aqueles que fugiam da opressão e da perseguição. Foi preciso esperar mais de meio século para que o tema se tornasse relevante, embora tenha sido colocada uma placa no interior do pedestal em 1903. Por ocasião do cinquentenário da estátua, em 1936, Roosevelt não fez nenhuma alusão a respeito. A II Guerra Mundial e a chegada dos judeus que fugiam do extermínio deram enfim ao poema de Emma Lazarus toda a sua atualidade e sua força. Após a guerra, a placa com o poema de Emma Lazarus saiu da obscuridade para ser colocada na entrada principal. Em 1965, o presidente Lyndon Johnson assinou 18 19

Apud Bellah, 1984:101. Skerry, 2006.

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uma nova lei sobre imigração ao pé da estátua, citando o poema de Emma Lazarus. Não saímos da fuga do Egito. Não teria a estátua se naturalizado com essa mudança simbólica? A Guerra de Secessão é o terceiro evento fundador. Surge uma memória religiosa complementar, mas não deixamos a Bíblia, e, sim, acrescentamos o Novo Testamento ao Antigo. O próprio Lincoln, no discurso inaugural de seu segundo mandato, via naem provação da guerraa ira civilde“oDeus justocontra castigoseudaqueles para quem o castigo chega”; outras palavras, povo infiel. É ainda o Israel antigo. No entanto, por ocasião do discurso de Gettysburg em homenagem à memória das vítimas da guerra civil, ele invoca uma memória cristã: “os que aqui deram sua vida para que esta nação pudesse viver”. Em breve sua morte trágica evocaria a imagem do Cristo, como disse um de seus antigos aliados: “por 50 anos a fio Deus submeteu Abraão ao seu fogo ardente. Fê-lo para pôr à prova Abraão e purificá-lo (...) sua personalidade (...) fez dele o mais nobre e o mais digno de ser estimado desde Jesus Cristo... Creio que Lincoln foi um eleito de Deus”.20 Em torno dessa memória crística da guerra civil e de seus mártires criaram-se novos memoriais, em particular os cemitérios nacionais destinados a abrigar os “combatentes mártires”. O mais famoso deles é o de Arlington, à entrada de Washington, transformado em símbolo da unidade nacional após acolher os confederados sulistas mortos, depois todos os mortos das guerras seguintes e, de modo geral, os antigos combatentes, sem falar de um outro presidente assassinado e de seu irmão Robert, que teve o mesmo fim. Cabe notar, a esse respeito, que os homens públicos assassinados que se tornaram mártires, como Lincoln, são também fundadores da nação americana, o último dos quais é Martin Luther King. Essa memória religiosa não se confunde com uma memória confessional. Em outras palavras, ela não faz distinção entre as várias igrejas cristãs.Tanto mais que, desde a srcem, as colônias da América acolheram indistintamente as diversas confissões protestantes, inclusive, na região de Baltimore, as católicas. Isso é natural, pois a cultura protestante baseia-se na interpretação pessoal da Bíblia e compreende perfeitamente as diferenças teológicas e institucionais. Além disso, como vimos, essa memória religiosa se estabelece a partir do relato bíblico,

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Apud Bellah, 1984:104.

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e não da história particular de cada uma das comunidades que emigraram ou mesmo dos dissidentes que se opuseram ao anglicanismo real. Nessa óptica dos Pilgrim Fathers, a memória dos Estados Unidos não guarda seu particularismo religioso nem mesmo suas divergências com o rei Jorge I, e, sim, a imagem bíblica dos hebreus escravos do faraó que tiveram a coragem de deixar o Egito e atravessar o mar Vermelho. Robertuma Bellah, essa ligação entre nacional e memória ligiosaPara constitui verdadeira religião civil,memória muito viva à época em que reele escreveu o seu artigo, logo após o assassinato de Kennedy. A expressãounder God foi acrescentada ao juramento de fidelidade em 14 de junho de 1954. A seu ver, a nova fronteira de Kennedy é de expressões renovadas do Israel americano. Tudo indica que essa religião civil não perdeu nada de sua força no início do século XXI, e que o movimento dos Born again, longe de enfraquecê-la, somente a reforçou. A força do romance nacional americano está em combinar uma memória religiosa com a memória nacional sem esquecer a mediação da memória familiar, bem como em inscrever-se resolutamente nos vastos espaços a conquistar, e isso desde o primeiro evento fundador. Graças precisamente a essa noção de ruptura e de Terra Prometida, esse romance nacional tem uma plasticidade grande o bastante para recuperar seus “esquecidos” ou, mais exatamente, seus ocultados. O indício mais forte é evidentemente a instauração do Martin Luther King’s Day à época da presidência de Ronald Reagan, apesar de suas reservas. O gesto é tanto mais significativo porque, com a extensão do Washington’s Day ao conjunto dos presidentes, esse é o único personagem histórico comemorado todo ano. Cabe dizer que o militante da igualdade racial já dera a sua própria contribuição ao romance nacional em seu célebre discurso de 28 de março de 1963, “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”), proferido no lugar de memória altamente simbólico do Lincoln Memorial e no qual evocara precisamente os Pilgrim Fathers e a Terra Prometida da igualdade e liberdade para todos. Assim, pode-se fazer uma demonstração precisa e documentada dessa plasticidade do romance nacional a partir do novo catálogo de apresentação do museu de retratos da capital federal. 21 A exemplo do anterior, sua vocação não é meramente artística, mas cívica, reforçando a memória nacional, como o demonstram seu título — Retrato de uma nação —, seu

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Portrait of a nation...

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plano cronológico, as escolha das personalidades representadas e os comentários sobre as imagens. Aí vemos em ação o trabalho de recomposição da memória pela maior integração das minorias, numa espécie de discriminação positiva. Se na capa aparece uma típica família “wasp” w( hite anglo-saxon-protestant) de Massachusetts, o pintor Hart Benton e sua mulher, por ele mesmo retratados, e no frontispício, uma fotogravura de Lincoln, também ganham destaque o músico afro-americano Lionel e, sobretudo, os autóctones as mulheres: ordem, a princesa índiaHampton Pocahontas, “que salvou a vida do ecolono inglês pela John Smith (...) exemplo de uma heroína americana dos primeiros tempos”, o chefe moicano Etow Oh Koam, que visitou a corte da rainha Ana em 1710, e Philis Whitley, “a primeira mulher afro-americana a publicar um livro”. Somente depois aparecem os pais fundadores. Quanto ao fôlder com apenas seis retratos, os responsáveis pelo museu aí puseram, sob o título “coragem”, a militante negra Rosa Park, que se recusou a ceder o seu lugar num ônibus em Montgomery, Alabama, desencadeando a resistência não violenta. A partir dessa oposição principal, podem-se apontar outras diferenças marcantes. Mencionarei apenas duas, para não prolongar uma exposição já tão longa. A primeira tem a ver com a própria estruturação dos dois romances, o lugar do espaço “natural” e das paisagens. A França inscreve também sua memória histórica numa geografia. Michelet e Lavisse iniciam sua grande história traçando um panorama da França, assim como G. Bruno em seu Le tour de France par deux enfants. Mas a relação com a natureza não é a mesma que nos Estados Unidos. A paisagem que identifica a França tem a medida do equilíbrio, é uma paisagem já largamente humanizada desde gerações, tendo por modelo as regiões do Loire e de Île de France. Em seu livro, G. Bruno compara a França a um “jardim”, servindo as montanhas agrestes para protegê-lo. Estas já fazem parte das margens. Já a natureza americana é uma natureza anterior à chegada dos homens, quando mais não seja porque o símbolo da eleição do povo americano e de sua missão providencial é a Terra Prometida que lhe foi concedida: evidentemente, com um lapso de memória nada desprezível: os índios. As pinturas de paisagens, tão numerosas entre os artistas americanos, exprimem assim o romance nacional tanto quanto as pinturas com temas propriamente históricos, estas mais raras. A segunda nos remete ao tema inicial, a relação entre memória e identidade nacional. De saída, os Estados Unidos assumem plenamente sua dimensão memorial com o Memorial Day e os diversos memoriais — Washington, Jefferson, Lincoln —, mas também pela maneira de teatralizar a história e de

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encená-la, colocando por toda parte figurantes em trajes de época. A França esconde essa dimensão memorial atrás de uma rica roupagem histórica à base de datas e cronologias abundantes, multiplicando desde cedo asHistórias da França como prolongamento das Grandes crônicas. Por que essa desconfiança em relação à memória só desapareceu recentemente, no tempo em que reina a memória generalizada? Talvez porque em primeiro lugar vem o Estado, bem antes da nação. temano merece discussão. Obriga-nos, em todo caso, introduzir um terceiroOtermo binômio memória/identidade nacional, qual aseja, a história, e a analisar o seu papel na consciência nacional. ❚

Referências

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Memória e opinião* Pierre Laborie

Todo mundo pode falar longamente sobre a memória, todo mundo tem sua opinião a respeito da opinião. Nem uma nem outra pertencem propriamente ao campo do historiador, por mais aberto e flexível que ele seja.“Potemkin”, Elas se inserem no 1 bem amplo espaço do saber imediato e de suas paisagens artificiais como do senso comum e de suas intuições, mas também de suas pré-concepções, mal-entendidos, aproximações e confusões. Também, antes de mais nada, cabe lembrar o risco de render-se à facilidade ilusória desse tipo de noções conceituais. A despeito do que seu uso frequentemente dá a entender, é lícito duvidar de sua capacidade de apreender em sua generalidade fenômenos de natureza fundamentalmente complexa, seja porque dizemrespeito ao mental coletivo,seja porque se caracterizam por uma extraordinária diversidade de expressão e de sentido. Vamos repetir: a opinião não é uma categoria universal, e sim uma construção que resulta de sua própria história e que contribuiu para produzi-la. Por sua vez, antes de poder ser identificada a uma de suas múltiplas manifestações, é antes de tudo no plural que a palavra memória deve ser empregada. Essa exposição preliminar visa a tão somente situar o espírito com que me proponho abordar tais questões. Se minhas pesquisas de historiador me le* Tradução de Luiz Alberto Monjardim. 1 Alusão ao favorito de Catarina II que, por ocasião da viagem da imperatriz à Crimeia, em 1787, fez erigir ao longo da estrada aldeias de fachada povoadas de figurantes.

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varam a trabalhar com a memória e a opinião como formas de representações coletivas, o tema desta coletânea me permitiu considerá-las de outra forma e descobrir, sob um ângulo diferente, possibilidades que eu supunha erroneamente estarem esgotadas.2 Esforço intelectual salutar, portanto, uma vez que não me havia ocorrido refletir sobre os dois conceitos conjuntamente e descobrir o que poderia ser tirado dessa relação.3 Vale dizer, no entanto, que, se a ideia era boa, as coisas nãode se reflexão revelaramé simples. Issomim, porque, serasfranco, devo edizer que esse exercício novo para compara todas limitações insuficiências que lhe são inerentes. Como abordar tais questões do ponto de vista da história e do historiador? Como apreender ao mesmo tempo e num mesmo movimento dois objetos vistos geralmente como não constituídos, de contornos maldefinidos, a tal ponto que, no caso da opinião, considerada “inapreensível”? À diferença de outros temas mais tradicionalmente associados à memória, não se percebem de imediato os vínculos e relações existentes entre as duas noções, e sim que elas remetem evidentemente ao mental-emocional coletivo, ao universo dos imaginários sociais. Voltaremos a esse ponto, mas, nos dois casos, tanto na natureza quanto no funcionamento da memória e da opinião, aqui entendidas exclusivamente em sua dimensão coletiva, o papel da relação com o tempo e dos sistemas de representações parece central. Sem buscar definições aliás inacessíveis, tentando dizê-lo em poucas palavras, uma primeira tentativa de esclarecimento de algumas características principais da memória e da opinião deveria ajudar a ressaltar a importância desses dois traços, de um lado e de outro. Através da rememoração de fragmentos do passado, cada memória social transmite ao presente uma das múltiplas representações do passado que ela quer testemunhar.Entre diversos outros atores, f ela se constrói sob nfluência i dos códigos e das preocupações do presente, por vezes mesmo em função dos fins do presente. Os fenômenos de opinião refletem representações do presente que, apesar das aparências, não exprimem unicamente a relação dos atores sociais com esse mesmo presente. Eles traduzem as reações cambiantes do sentimento coletivo diante das interrogações ou dos acontecimentos do presente, mas também diante de questões atemporais reformuladas ao presente. Nas hierarquias de imMeu duplo e caloroso agradecimento a Denise Rollemberg, que me propôs esse tema e me convidou para participar do seminário. 3 A não ser for tuitamente, ao estudar casos particulares. 2

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portância ligadas ao contexto, eles remetem, pois, ao mesmo tempo, à visão do presente, às interpretações do passado e às expectativas do futuro. Nessas duas percepções esquemáticas, vê-se, o modo de relação com o tempo, especialmente o presente, tem papel primordial, inclusive quando se trata de memória e de passado. Esse traço comum é apenas um elemento de um conjunto de semelhanças e diferenças cujo inventário é de interesse apenas limitado. Pordas outro lado,há emuito que aprender com a observação dasfenômenos. interferências de fato, interações das influências recíprocas entre os dois Em suma, como vimos e tornaremos a ver, a memória intervém na fabricação da opinião pela influência das representações dominantes do passado. Por sua vez, a opinião tem papel decisivo na validação social e na legitimação da memória ao dar credibilidade a seu discurso por meio de sua divulgação, processo que pode ser amplificado pela mídia. No que nos concerne aqui, evidentemente são as encruzilhadas e as passarelas entre opinião e memória que merecem especial atenção. Que tipos de ligações, que relações e influências recíprocas existem entre memória e opinião? Quais os seus efeitos sobre os dois fenômenos, e com que consequências? Assim formulado, o problema que atravessa esta exposição parece relativamente simples de se colocar. Mas, de início, ver com clareza, não basta para dissipar a bruma que envolve as zonas de interferências. Teoricamente, é fácil estabelecer distinções entre opinião e memória, mas o mesmo não ocorre quando os dois fenômenos se entrelaçam. Daí novas interrogações: até que ponto a opinião depende das interpretações do passado que as disputas de memórias podem tentar lhe impor, por exemplo,ocupando metodicamente o espaço midiático? Até que ponto, por outro lado, o papel da memória como ator social depende da recepção e da visibilidade por ela adquiridas graças ao eco e à caixa de ressonância que a opinião lhe propicia? Como se efetuam a apropriação coletiva de um discurso da memória e sua transformação em vulgata difundida pela opinião? Que acontece quando os usos sociais transformam a memória em objeto de opinião? Que sucede com essa memória e seu estatuto histórico quando ela se torna uma questão de opinião? Como se vê, são muitas questões interligadas, interrogações e cruzamentos complexos, dificuldades diante das quais quase todos os argumentos são reversíveis. Muitas questões impossíveis de apreender em sua totalidade, ainda mais em tempo limitado. Sem perder de vista a inevitável superposição dos questionamentos, darei aqui prioridade àquilo que julguei ter percebido como

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intenções no tema proposto.A saber, procurar refletir sobre os dois processos de construção, suas interações e seus efeitos; depois, mais além, no campo que diz respeito ao trabalho de elucidação da história, sobre suas exigências. Nessa perspectiva, três eixos principais — porém tratados de maneira desigual — marcam a articulação desta exposição: ❚





diante da imprecisão que reina nos espaços comuns à memória e à opinião, e diante dos usos que geram a confusão e que a exploram, por vezes, é necessário rever alguns dados básicos sobre a memória e a opinião para um breve trabalho de esclarecimento, mesmo que sumário; em seguida, é preciso tentar estabelecer um inventário comparativo das características mais significativas dos dois fenômenos, notando que são as mesmas ferramentas conceituais que servem, nos dois casos, para empreender o esforço de esclarecimento; a última parte será dedicada à problemática transversal. Focalizará os cruzamentos, interferências e interações entre memória e opinião. Daí uma série de problemas criados pelo estatuto histórico das duas noções e pelos efeitos das disputas de memórias, com seus riscos de derivas, de deturpação de sen-

tido, chegando muitas vezes à impostura. Por último, cabe observar que o tema — e essa é uma de suas dificuldades — remete permanentemente a abstrações e questões epistemológicas referentes à ideia e à escrita da história. Sempre que possível, faremos referência a situações históricas ligadas sobretudo à memória do segundo conflito mundial na França e mais precisamente à vulgata memorial-midiática que supostamente reflete as atitudes coletivas dos franceses sob Vichy e a Ocupação alemã. Sua construção e sua condição atual de verdade dominante na opinião revelam de modo significativo os problemas da relação estreita porém difusa, raramente explicitada, entre memória e opinião. ❚

Breves lembretes

Algumas referências básicas são aqui indispensáveis. Referem-se elas à opinião e à memória, incluindo uma rápida revisão daquilo que diz respeito à história e marca seu território. Tais dados elementares visam tão somente fazer compreender melhor de que estão falando os historiadores quando se referem à opinião e à memória.

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Sobre a opinião

Não voltaremos aqui aos questionamentos habituais, espécie de exercícios obrigatórios que geralmente precedem as tentativas de reflexão sobre a opinião. Não abordaremos os problemas recorrentes da natureza e da realidade social da opinião pública, nem da escolha do termo mais apropriado,4 muito menos do valor, do papel ou do sentido a serem atribuídos às sondagens de opinião. Mas, queiramos ou não, a afirmação incessante de uma equivalência entre sondagens e opinião tornou-se um fato sociocultural que não pode ser ignorado. Por sua repetição pluricotidiana, mecânica, a frequência do uso desempenha, atualmente, a função de prova da existência da opinião. Essa função admitida sem ressalvas não prova nada e, de modo algum, resolve o problema. Isto posto, podemos destacar alguns dados sobre o funcionamento e a percepção da opinião: 1. As manifestações explícitas e visíveis dão apenas uma legibilidade parcial à opinião. Cumpre igualmente evitar três grandes armadilhas ligadas às aparências: as da proximidade, do sentido e da linguagem. A familiaridade do uso da opinião é uma ilusão. Leva a crer que tudo é uma questão de bom senso, de lógica, de uma opinião sobre a opinião... Essa falsa ideia é corroborada pelo uso de sondagens que levam a crer que a opinião é não só uma realidade mensurável, mas também acessível, fácil de perceber, compreender e interpretar. Na verdade, para além dos estremecimentos emocionais e das agitações espetaculares superficiais, trata-se de um fenômeno coletivo complexo, opaco, de legibilidade imediata enganosa. Os fenômenos de opinião fazem lembrar as fachadas em trompe-l’oeil [ilusão de ótica]. O que se vê nem sempre é o que é. A realidade da opinião não depende de sua expressão manifesta. Não só ela existe externamente explícita, também, ao contrário do que geralmenteàsesua diz,manifestação suas manifestações maiscomo visíveis, mais espetaculares, não são obrigatoriamente as mais significativas. Chega-se assim a uma Em vez de f alar de expressão da opinião pública, rigorosamente enquadrada pelas ciências sociais, mas objeto de debate permanente, no que diz respeito ao campo da história, falaremos simplesmente de opinião ou, ainda, de fenômenos, fatos, acontecimentos de opinião. A ideia de movimento e a escolha do plural evidentemente não se devem ao acaso. 4

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ideia primordial para a compreensão do fenômeno: a opinião que se manifesta abertamente não é necessariamente a opinião que se tem. Essa ilusão ou essa falsa percepção concerne, ao mesmo tempo, ao sentido das reações e ao modo de funcionamento da opinião. Para alguns, como se sabe, não só a expressão da opinião resulta do trompe l’oeil, como também ela própria não passa de uma ilusão, de um artefato. Na aparência, e isso é reforçado pelas perguntas das sondagens (sim/não, a favor/contra), a opinião exterioriza seus pontos de vista numa linguagem binária que mascara um funcionamento complexo. Na realidade, sua expressão é bem mais opaca, especialmente em situações de crise. A fabricação da opinião é um lugar de tensões e contradições que se traduzem por atitudes aparentemente contrárias à lógica — mas que têm sua “lógica”, diferente —, por ambivalências, pelo pensamento duplo e suas zonas cinzentas. Linguagem difícil de traduzir, em que as incoerências não são percebidas como tais, em que nem tudo se reduz à razão. 2. A opinião é um processo, um movimento em evolução permanente influenciado por múltiplos fatores, o qual exprime uma relação com o tempo e dele decorre. Depende, obviamente, do contexto e das categorias utilizadas, mas também dos regimes de temporalidades, das representações cruzadas entre passado, presente e futuro. O sentido que a memória dominante — ou as diversas memórias sociais — dá ao passado intervém de maneira decisiva nas representações que a opinião faz do presente. 3. Em história, os fenômenos de opinião, para serem compreendidos, não podem ser isolados e considerados separadamente. O sentido que se possa dar às reações da opinião ou ao seu movimento depende estreitamente das relações com o tempo e das interações com o contexto. Eis por que nenhum fato de opinião poderá ser corretamente apreendido, elucidado, se for tomado por si só, artificialmente destacado da espessura do tempo e de seu ambiente mentalemocional. No entanto, é isso que frequentemente se observa nos estudos de opinião, segmentados e focados em função dos problemas sobre os quais ela se pronuncia. Cada expressão de opinião, cada fato de opinião é uma parte de um todo imbricado, que deve ser apreendido em sua totalidade para não ser descaracterizado.

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Sobre a memória

Reduzir a memória a alguns dados elementares é um exercício ainda mais perigoso que no caso da opinião, um sobrevoo inevitavelmente lacunar. 1. A memória é a base da identidade, e sua dimensão identitária é evidentemente fundamental. Pessoas e sociedades são feitos de memória — e de lacunas de memória... Ela torna a dar existência àquilo que existiu mas não existe mais, ela é uma “representação presente de uma coisa ausente” (Paul Ricoeur). 2. As memórias são plurais, a palavra e a ideia são multiformes. O termo memória comporta múltiplos usos e empregos, acarretando por vezes confusão e deslocamento de sentido. O mais importante, ao menos na França, o mais frequente na linguagem memorial-midiática, é a perniciosa equivalência disseminada entre memória e história, a falta de distanciamento crítico entre a memória e seus usos. Além disso, o termo remete a diferentes expressões de rememoração do passado: memória coletiva, social, familiar, memória histórica, memória de testemunhas, de propagadores de memória... Poder-se-ia esboçar uma tipologia das formas de memória a partir da natureza de seus modos de expressão. A título de exemplo, e inspirando-nos naquela que foi proposta por Paul Ricoeur, poderíamos fazer distinção entre memória enunciada, afirmada, memória significada, memória bloqueada, sufocada, memória imposta, memória manipulada, memória fundadora etc. Cada uma dessas qualificações mereceria uma exposição e uma explicitação. Apenas três especificações: ❚



A memória bloqueada faz referência ao recalcamento, aos tabus, às “memórias interditas”, às memórias contidas e tornadas inaudíveis, à impossibilidade ou às insuficiências do trabalho de luto... Na França, tal foi o caso, até os anos 1970, para os raros judeus sobreviventes retornados da deportação e, por mais tempo, para as vítimas dos bombardeios aliados de 1943 e 1944, e mais ainda para as mulheres que tiveram as cabeças raspadas após a Libertação. A memória imposta diz respeito à injunção, ao imperativo, ao dever de memória, aos seus mal-entendidos, com todos os problemas criados pela projeção da rememoração no futuro.

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A memória fundadora (que também se poderia denominar instauradora, estruturante) põe em evidência eventos selecionados e carregados de significação particular. Essa operação seletiva pode referir-se a eventos que, à diferença do 11 de novembro de 1918, da Libertação de 1944, de Hiroxima ou do colapso do sistema comunista soviético em 1989, não deixaram lembranças diretas para seus contemporâneos. Conhecidos e pensados somente depois em sua dimensão singular, serviram no entanto para construir uma memória coletiva e para lhe dar sentido.Auschwitz ou, na França, em menor medida, o resistente Jean Moulin são dois exemplos.

3. A memória é uma encenação do passado. Assim como para a opinião, as aparências e as intenções afirmadas podem ser enganosas. A apreensão imediata da memória faz surgir uma série de afastamentos entre o que ela diz ser, entre a visão comum do fenômeno e seu modo de funcionamento real. Nos fatos, a memória é menos presença do passado do que escolha do passado,5 do que uma reconstrução do passado para servir aos fins do presente. Ela é ao mesmo tempo uma luta contra o esquecimento, a recusa ao esquecimento, e uma forma de organização do esquecimento. Por sua vez, ela fabrica lacunas de memória. 4. A memória é do âmbito do prêt à penser. Ela congela o tempo, congela a “verdade”. Pode modificar seu discurso, alterar-lhe o conteúdo, mas funciona por imagens fixas, irrefutáveis quando são enunciadas. Ela traduz uma relação com o tempo definitivo, como que parado. Pode-se então falar das prisões ou confinamentos da memória, e seu pensamento binário vai no mesmo sentido. O discurso da memória dá pouco lugar à complexidade, à reflexão crítica. Ela se acomoda com o passado. 5. A memória e seu campo afetivo prestam-se, enfim, aos processos de sacralização, ponto de partida de cegueiras, das derivas, das usurpações anacrônicas do presente na compreensão do passado. 6. A memória tem uma função militante. Ela sacode a indiferença, luta pelas causas que considera justas, denuncia o que lhe parece intolerável, celebra o que lhe parece admirável, exprime convicções de cidadão.

5

Ver Lavabre (1994).

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Sobre as exigências da história

O historiador é também cidadão... daí serem frequentes as contradições difíceis de superar, os problemas conhecidos e sem dúvida impossíveis de resolver no absoluto. Se não se trata de opor de maneira estéril a história à memória, sabe-se que a natureza, o sentido e as funções dessas duas noções marcam diferenças notórias na restituição e retranscrição do passado. Os usos que a memória às vezes faz do passado obrigam-nos a relembrar aqui um mínimo de exigências elementares para a prática da história como disciplina: ❚



a escrita do passado, os relatos sobre o passado que se valem do anacronismo mental e da teleologia não são história. Servem-se dela, o que é completamente diferente. Se a instrumentalização e a ideologização da história são problemas banais, não deixam de estar bastante presentes na relação entre memória e opinião; a história deve acima de tudo respeitar o pacto de probidade e verdade. Seu papel é tentar compreender, apresentar explicações, dar sentido e inteligibilidade à desordem do passado. O historiador não é um juiz, não está ali para dizer quem é Esse inocente ou culpado, para pode absolver ou condenar, inculpare ou desculpar. trabalho é necessário, ser reclamado pelapara memória, compete à justiça realizá-lo. Daí as ambiguidades e os problemas criados pela relação entre justiça e história, pelos processos considerados lições de história que “ficam na memória”, que elaboram precisamente o entrelaçamento entre memória e opinião.

Porém, uma vez mais, as coisas são simples apenas na teoria. Na realidade sabemos quão difícil é respeitar de maneira intransigente essas exigências e esses limites. As fronteiras são porosas. Onde, no entanto, se faz necessário manter o rigor, o emprego das palavras deveria suscitar uma vigilância particular dos historiadores. Com todo o respeito e amizade que tenho por Philippe Joutard, pergunto-me se noções como “memória histórica” podem nos trazer maior clareza. ❚

Semelhanças e diferenças

Relacionar a memória com a opinião faz surgir uma série de semelhanças, diferenças, interferências e influências recíprocas. Trataremos por alto das pri-

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meiras, pois são a amplitude e a importância das interações o aspecto que aqui mais nos interessa e que será examinado na terceira e última parte deste texto. Semelhanças

Vistos de fora, os pontos de semelhança entre memória e opinião remetem principalmente à inconsistência dos objetos. Como já indicado na parte introdutória, estamos diante de noções “moles”: fluidez,definição impossível ou aproximativa, plasticidade, acesso e compreensão fáceis, na aparência, no senso comum. Em segundo lugar, pode-se apenas destacar o papel central das representações mentais, presentes em todos os níveis e fases da construção ou da recepção. Representação do passado condicionada ou não pela memória dominante na construção da opinião, representações do passado visto do presente na fabricação da memória, representação que fazemos da opinião dos outros etc. Enfim, para ser breve, sem nos alongarmos no assunto, vê-se que, tanto para falar da opinião quanto da memória, os historiadores trabalham com as mesmas ferr amentas conceituais, especialmente no que concerne à s condições de recepção e aos processos de captação e apropriação, identificáveis por toda parte. A transformação de um discurso da memória em vulgata pelo efeito de leg itimação exerc ido pela opinião obscurece a distinção entre os dois fenômenos. A mensagem da memória e, mais além, a interpretação do passado de que ela é portadora entram assim no domínio flexível das questões de opinião. Diferenças

Para simplificar, as principais diferenças podem ser listadas segundo uma classificação temática, em função da natureza das duas noções, de seu estatuto, de seu modo de relacionamento com o real, de funcionamento e de expressão. Diferença de natureza

Pode haver interrogações sobre as figuras e os contornos da memória, mas não sobre sua realidade, ao contrário da opinião. No mesmo registro, a memória é um elemento estruturante da representação do mundo nas sociedades humanas, da relação dos homens com o mundo.

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Já a opinião e suas reações são apenas um dos reflexos passageiros dessa relação com o mundo. Elas não a constroem, são um de seus reflexos fragmentados. Diferença de estatuto

A memória exprime certezas, prendendo-as, fixando-as; ela é depositária de uma verdade que pode adquirir um caráter sagrado. O imperativo do “dever de memória” pertence a essa configuração. Evidentemente, não existe “dever de opinião”! Ela não transmite qualquer injunção, permanecendo — em princípio — um espaço de debate, de reflexão crítica, de evolução constante, de mudança, de viradas, de retornos... É o lugar das ambivalências, das contradições, das lógicas de pensamento que não são lógicas da razão, mas que têm sua razão de ser. Diferenças no modo de relação com o real, nos modos de funcionamento e de expressão

Apesar de reconstruir representações do passado, a memória se baseia na experiência vivido. Elaressentimento, transmite oreal,àselavezes rememora, ela testemunha quentementedosofrimento, felicidade... Essa funçãofrede testemunho tem um papel estruturante, podendo levar a memória a colocar no centro de sua razão de ser um real de vestígios aniquilados (Auschwitz). Já a opinião funciona sobre percepções e representações do mundo, do acontecimento ou dos fatos da sociedade. As emoções não estão ausentes dessas percepções e de seus efeitos, mas, mesmo quando seu papel é importante, elas não duram como as marcas. Assemelham-se mais a variáveis de duração limitada do que a longas permanências.Tais diferenças remetem mais amplamente àquela da relação com o tempo, já mencionada. Lembremos, enfim, que o discurso da opinião é ao mesmo tempo binário e complexo, explícito e implícito, segundo os níveis e as formas de expressão, ao passo que o da memória procura transmitir certezas, declara o bem e o mal, o justo e o injusto. ❚

Interações e usos

Se tais diferenças entre opinião e memória devem estar sempre presentes em nossa mente, são as interferências, as interações e seus efeitos que aqui nos

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interessam prioritariamente, pois suscitam indagações a respeito do problema do sentido. Como já foi dito, a nebulosidade se instala quando os dois fenômenos se juntam para se nutrir um do outro e se diluírem em parte, formando um binômio opinião/memória de práticas ao mesmo tempo antropofágicas e inventivas. A memória coletiva não necessita da opinião para existir. Existe sem ela, ator social invisível, subterrâneo, presente e arraigado nas estruturas mentais das sociedades humanas. só se torna coletiva e dominante, e portanto um fato Mas social,elaquando contaverdadeiramente com a intermediação, a recepção e o apoio da opinião. A memória como ator social é, pois, em parte dependente de sua recepção na opinião.Os processos de validação, apropriação e legitimação parecem remeter os problemas de memória a questões de opinião. Se, como veremos, tal deslocamento não é contestável, poder-se-ia então dizer que a memória se torna dependente da visibilidade que ela encontra em sua recepção na opinião? Uma vez mais, isso seria simplificar, pois tudo se passa numa relação interativa, e a opinião, por sua vez, é dependente do discurso sobre o passado do qual a memória é portadora. Três grandes questões permitem dizê-lo de outra forma: que acontece com a memória quando ela se torna ao mesmo tempo questão de opinião e disputa de opinião para o presente? Como e por que a opinião, espelho da sensibilidade coletiva, se reconhece num discurso da memória? Como se dá o processo de apropriação que transforma um discurso da memóriaem vulgata tornada verdade evidente na e para a opinião? Como e por que, por exemplo, na França, a partir dos anos 1970, os franceses se apropriaram da vulgata sobre as atitudes coletivas durante a guerra e aparentemente aderiram a essa visão do passado? Não é possível apreender o conjunto das questões levantadas, muito menos fornecer resposta para todas elas. A reflexão se limitará aqui a evidenciar os efeitos marcantes das comparações entre opinião e memória e a tentar separar os problemas mais significativos. Interações

A opinião não encontra com a memória somente através de suas injunções eventuais. Desnecessário é lembrar que, conscientemente ou não, ela se fabrica com as imagens do passado. Na França, por exemplo, é impossível explicar a adesão ao marechal Pétain em junho e julho de 1940 sem levar em conta a representação do passado de que ele então se tornara símbolo, a do “vencedor

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de Verdun” (1916). Símbolo do passado a que os acontecimentos do presente — derrocada do país, inimaginável para os contemporâneos — emprestavam um significado particular. Nem que fosse apenas no tocante às relações entre a opinião e esse mesmo velho marechal, poderíamos multiplicar as explicações do mesmo tipo: o acontecimento presente reinveste o sentido do passado, dandolhe um “acréscimo de sentido” carregado de influência.6 Essa reintrodução do passado assim repensado na leitura que a opinião faz do presente põe em relevo, aliás, o papel mais geral das temporalidades — ao mesmo tempo superpostas e cruzadas — no funcionamento da opinião. Assim, é uma opinião fabricada ela mesma com a memória que se exprime sobre a memória dando sua aprovação ou não a uma interpretação do passado formulada precisamente por uma das diversas memórias. A opinião é feita de memória, mas por sua vez também a fabrica pela adesão a um relato, através de suas funções de validação, autenticação e legitimação, e por seu poder de difusão. Num país ou num grupo social, esse reconhecimento que a opinião confere ou nega a esta ou aquela visão do passado,assim como seus ajustes ou suas contestações eventuais em função das circunstâncias7 são, evidentemente,para o historiador espelhos reveladores da evolução da sensibilidade e do mental coletivos. As vicissitudes da memória dos anos de guerra na França abundam em exemplos. Durante cerca de 30 anos após o fim da II Guerra Mundial os franceses reconheceram-se numa visão do passado que identificava seu país àqueles que haviam resistido ao regime de Vichy e à ocupação alemã. Identificação simbólica, e não, como frequentemente se ouve dizer, de modo caricatural, se afirmando e se vendo, coletivamente, como “resistentes”, por usurpação. A partir de meados dos anos 1970, essa percepção foi denunciada como uma fábula mentirosa e substituídapor outra visão que hoje se tornou dominante. Largamente difundida pelos veículos de opinião, ela vê na representação anterior apenas um souvenir-écran (“recordação encobridora”), uma honra inventada para mascarar a realidade de um país que teria sido covarde, pusilânime e cúmplice dos Tomei emprestada a expressão de Hannah Arendt. Exemplo de adesão ou negação, quando da libertação em 1944, a atitude da opinião diante das mulheres com as cabeças raspadas. Aprovada no momento dos fatos, a tosa das mulheres acusadas de terem tido relações amorosas com os ocupantes será denunciada, alguns anos mais tarde, como prática vergonhosa e atribuída à responsabilidade da Resistência. 6 7

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ocupantes.Ela associa a Resistência a uma minoria marginalizada, de importância equivalente em número à daquela outra minoria engajada na colaboração.8 A opinião fabrica a memória de que ela também é feita, mas suas funções de validação e legitimação podem advir de uma intervenção da própria memória, de uma solicitação que tanto pode resultar das imposições das leis memoriais como de outros tipos de coerção. Mas a intimidação, a obrigação de se lembrar ou a injunção só de sãodever eficazes quandoé sesuatornam de opinião. Na França, a noção forma um maismovimento comum, mecanicamente de memória retomada pelo discurso politicamente correto e pela mídia, onde ela é afirmada quanto uma evidência. No entanto, ela cria problema — e não apenas para os historiadores críticos, suspeitos de defenderem ciosamente seu território — precisamente porque está em via de se tornar uma questão de opinião.9 Deslocamento de estatuto e de sentido

Entre os problemas ligados aos efeitos do vaivém entre memória e opinião — sem dúvida mais importantes que tão somente a questão das injunções da memória — estão aqueles decorrentes de suas mudanças de estatuto. Ao ajudar o discurso da memória a sair de sua visibilidade limitada, a opinião aumenta a sua força, sua recepção e sua influência. Mas, e isso é importante, ela transforma sua natureza fazendo da verdade sobre o passado uma questão de opinião, conferindo às representações da memória um estatuto de verdade. Faz-se da autenticidade, justamente atribuída à memória, uma espécie de garantia e de certeza de verdade. Por deslocamentos sucessivos, passa-se da memória portadora de uma verdade à memória lugar e expressão da verdade sobre o passado. O que era uma narrativa, uma representação ou um ponto de vista sobre o passado torna-se a história desse passado. Os usos políticos, identitários e outros da memória a arrastam para o terreno instável da opinião e se aproveitam da confusão entre memória e história. A linguagem dos meios de comunicação já não importa, e a simplicidade do discurso binário, justiceiro e passional da Não se trata de julgar como historiador o fundamento de visões divergentes, e sim de ilustrar as variações da vulgata e de sua recepção na opinião. 9 Sobre esses problemas, remeto o leitor ao livro de Ricoeur (2000) e ao debate por ele suscitado. O tom de um artigo publicado no jornal Le Monde (22-8-2008) sobre as posições nuançadas desse filósofo (já falecido) sobre o “dever de memória” do Shoah é revelador das tensões ligadas às questões memoriais. 8

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memória convém perfeitamente ao modo de funcionamento deles, alérgico à expressão da complexidade. A validação e a legitimação da memória pela opinião facilitam objetivamente a mudança para enunciados do tipo “a memória é a história verdadeira, diferentemente daquela dos historiadores, abstrata, distante e fria” — cuja repetição ainda acaba servindo como demonstração.10 Sacralização

Talvez esteja aí o problema principal. Quando a opinião se apropria da memória, e de certo modo apodera-se desta colocando-a em posição dominante, com todos os seus meios de persuasão a seu serviço, ela transforma uma questão de opinião referente à interpretação do passado numa verdade evidente sobre o passado. A legitimação pelo suporte da opinião vem a reforçar um dos traços característicos do funcionamento da memória, que é a afirmação irrevogável de sua verdade. Sem ser seu único fator, a sacralização da memória se apresenta como um dos produtos do binômio memória/opinião. Ela pode chegar a instituir tabus, a pôr no índex trabalhos de historiadores que não estejam conformes.11 Acrescente-se que essa espécie de religião da memória, com seus dogmas e interdições, empenhada em lutar contra a amnésia, cria necessariamente, por sua vez, lacunas de memória. Derivas e riscos de descaminhos

O funcionamento do binômio memória/opinião e seus efeitos, assim como aqueles ligados aos usos sociais de uma memória que se tornou uma questão de opinião, suscita inevitavelmente questionamentos sobre o papel da história, sobre o que dela resta, sobre o que ela se torna e sobre qual pode ser o seu lugar nesse dispositivo. Observando-se o que aconteceu com Le chagrin et la pitié, filme de Marcel Ophuls (1969) sobre a memória dos anos de guerra numa cidade provinciana da França, e fazendo-se uma análise rigorosa das fases que marcam a evolução de seu estatuto memorial na opinião, é possível ver como se dão esses deslocamentos sucessivos. 11 A propósito de acontecimentos dolorosos deresponsabilidades controv ersas, ou de questões ligadas aos excessos da Depuração na França pós-libertação, muitos são os historiadores da Resistência suspeitos de intenções malévolas por terem se recusado a retomar por conta própria reconstruções arranjadas previamente. Sobre os problemas colocados pela história e a memória do Holocausto, são bem conhecidas as dificuldades encontradas por Hannah Arendt, Raul Hilberg e Peter Novick em suas respectivas épocas. 10

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As transformações da memória numa questão de sociedade e em problema de opinião acabou por generalizar modos de análise do passado suscetíveis de contestação. Eles indicam um nítido abrandamento das exigências de método que caracterizam a especificidade da história como disciplina intelectual. A natureza justiceira e militante da memória — perfeitamente legítima de seu próprio ponto de vista — acentuada ainda mais quando ela se faz portadora questõesemoufunção mesmo de reivindicações identitárias, levaa abanalização raciocinar sobre de o passado unicamente dos fins do presente. Daí quase sistemática do emprego do anacronismo, especialmente do anacronismo mental, o mais propício às manipulações e cuja importância é fundamental na construção de sentido. Banalização que se estende igualmente à argumentação pelo erro do raciocínio teleológico e pela falsidade de suas lógicas invertidas, quase caricatas. Não apenas se julga o passado através de encadeamentos artificialmente reconstruídos, com categorias estranhas aos modos de pensar ou às possibilidades de conhecimento do período estudado, mas também se raciocina como se os homens se comportassem com uma presciência de um futuro que no entanto desconhecem e que em grande parte é imprevisível. O binômio memória/opinião propicia estranhas leituras do passado nas quais se analisam os comportamentos em função do que deveriam ter sido, a partir de um sistema de valores ou de hierarquias pertencentes ao presente, artificialmente decalcadas sobre o passado e instauradas como exemplares, absolutas e eternas. Tudo isso sob o julgamento da opinião cujas flutuações, por vezes sob influência, tão bem conhecemos. A essa abordagem enviesada do passado, que é quase uma negação ou uma espécie de naufrágio da história, somam-se ainda ambiguidades sobre as funções atribuídas à memór ia. Assim como não ocor reria a alguém a ideia de contestar o ato de fidelidade que representa o desejo de preservar a lembrança e de salvá-la do esquecimento, também pode causar per plexidade o f ato de se justificar a importância da memória por seu suposto papel de medicina preventiva dos riscos do futuro.Todos conhecem o enunciado famoso que afirma a necessidade de se conhecer o passado para não vê-lo repetir-se. Poderíamos citar uma centena de exemplos mostrando que são usos simplificadores que beiram o embuste.12 Um dos exemplos trágicos nos é dado pela memória onipresente da Grande Guerra e seu pacifismo militante dos anos 1930 na França, terminando com um novo conflito com a Alemanha. 12

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Impostura da fidelidade à memória que passa a existir quando a autoridade moral inerente à memór ia do sofr imento, reforçada pela força e o apoio de uma opinião majoritária, serve para justificar o pior. Apenas um exemplo. Na França, em 1949, escritores 13 que denunciaram a existência do Gulag na União Soviética foram violentamente caluniados por Les lettres françaises , prestigioso semanár io do Partido Comunista fundado na clandestinidade dos anos da Ocupação e dir igido pelo escritor Louis Aragon. Durante processosinsuspor difamação, resistentes e deportados opuseram a verdade de suaos memória peita às declarações dos querelantes que afir mavam a existência de um sistema concentracionista na União Soviética. Valendo-se da legitimidade que lhes conferia sua experiência nos campos de concentração nazistas e invocando a fidelidade à memóri a das vítimas, personalidades ilustres acusaram duramente de mentirosos aqueles que denunciavam os campos e o sistema de repressão na União Soviética. 14 Os escritores difamados venceram os processos, mas a opinião per maneceu sensível à verdade transmitida pela memória. Evidentemente, os caminhos da memória por sua vez não devem nos cegar. Não há aqui um processo contra a memória movido pela história, um falso processo do falso contra o verdadeiro. Não há guerra ou confronto entre memória e história, nem defesa exclusiva de um território que os historiadores queiram reservar somente para si. Não apenas não há história sem memória, como também os recursos insubstituíveis desta última são uma matriz da história. Com a condição de que — e os problemas começam aí — sejam submetidos ao crivo e ao rigor das exigências de método, como todos os objetos da história e como deve ser a escrita da própria história. O papel e a legitimidade da memória não estão, portanto, em causa, e quanto a isso não deve haver qualquer ambiguidade. O que está em questão aqui evidentemente é a alquimia das relações entre memória e opinião, as transformações causadas pelos modos como elas são usadas, as interferências confusas que criam situações de concorrência, de conflito ou mesmo de “guerra das memórias”. Os Casos Kravchenko e David Rousset. Este último, tendo sobrevivido à deportação, escreveu em 1946 o livro L’univers concentrationaire(ver Rousset, 1981). 14 O comunista Pierre Daix (próximo a Aragon e jornalista de Les lettres françaises) declarou sua matrícula n o 59.807 de deportado para Mauthausen, e Marie-Claude Vaillant-Couturier, deportada para Auschwitz e depois Ravensbrück, personalidade comunista emblemática, denunciou o depoimento de Margarete Buber-Neuman, que conhecera tanto os campos soviéticos quanto os nazistas, dizendo considerar o sistema penitenciário soviético “o mais desejável para o mundo inteiro”. 13

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A memória pode se tornar um material explosivo quando não transmite senão ideologia e, além disso, disfarçada de elemento suplementar. Ela se presta a várias deturpações quando é tratada de maneira ingênua, unicamente pelo prisma da compaixão, do sofrimento, do ressentimento e das reivindicações identitárias. A memória é ensinada há pouco tempo na França, no secundário, através do exemplo da II Guerra Mundial. Sem falar dos conteúdos, às vezes discutíveis porquanto reflexos tendências vigentes da vulgata atual, é preciso reconhecer meros com pesar que adas maioria dos manuais nãoetoma nenhuma precaução metodológica para alertar sobre um tema que não é história, mas que em nada se apresenta como diferente, como outro, como necessariamente distinto. Conclusões

Que deduzir desse percurso incompleto, simplificado, e no entanto difícil, em que tudo permanentemente se sobrepõe? Ao conduzi-la sobre a areia instável e movediça da opinião, ao transformála num problema de opinião, os usos sociais, políticos e identitários da memória alteram sua natureza e modificam suas funções. Eles lembram que a memória tem a ver também com a ideologia, que ela pode derivar a ponto de por vezes não ter a ver senão com a ideologia. Estreitamente ligada a seus usos, a apreensão da memória depende igualmente do modo como ela se exprime. Entre as escaladas de denúncias contra uma memória tirânica e os silêncios da memória, memórias silenciosas porquanto sufocadas ou inaudíveis, existe um espaço considerável, um mundo de diferenças. Na análise dos diversos níveis de expressão,tudo revela a importância primordial da relação com o tempo, dos cruzamentos de temporalidades e das aparências enganosas. Diante das questões apresentadas, as respostas não raro parecem frágeis. Por que razão uma sociedade num dado momento de sua história se reconhece numa representação do passado transmitida pela memória é uma questão que permanece em aberto. Ela fica no plano da interpretação, com os riscos de uma sobreinterpretação. Estas modestas observações a respeito do binômio memória/opinião reformulam o problema fundamental do sentido a ser atribuído à relação dos homens com seu passado. Como ao mesmo tempo ser fiel ao passado e libertar-se dele? Uma determinada concepção da memória abre caminho para uma espé-

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cie de sujeição ao passado ou de fechamento no passado. Já a história diz que a compreensão do passado deve fornecer a chave para libertar-se de um fardo às vezes pesado demais e para tornar possível o viver juntos. Em 20 de julho de 1949, aqui, no Rio de Janeiro, Lucien Febvre não falou sobre a memória, mas enfatizou justamente a necessidade de não se deixar esmagar pelo passado pelo acúmulo desumano de fatos herdados, pela pressão irresistível mortosassassino aniquilando os vivos. impor Falou da parainviolável se viver, de se opordos ao sonho que pretendia aosnecessidade, vivos uma lei porquanto ditada pelos mortos. Disse ele então, e deixo-lhe a última palavra, mais atual do que nunca: “a história é um meio de organizar o passado para que ele não pese demais sobre os ombros dos homens. É em função da vida que ela interroga a morte”.15 ❚

Referências

Combats pour l’histoire. Paris: ArFEBVRE, Lucien. Vers une autre histoire. In: _____. mand Colin, 1992. LAVABRE, Marie-Claire.Le fil rouge. Sociologie de la mémoire communiste. Paris: FNSP, 1994. RICOEUR, Paul.La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. ROUSSET, David.L’univers concentrationnaire.Paris: Minuit, 1981.

15

Febvre, 1992.

PARTE



II

Memória e historiograa

5 ❚

Por que Clio retornou a Mnemosine?* María Inés Mudrovcic

O que uma vez foi alegria e miséria deve ser agora transformado em conhecimento. Jacob Burckhardt

Por que Mnemosine volta a Clio? Ou, melhor ainda, por que Clio, depois da ruptura instaurada por Voltaire emL´Enciclopedie, retornou a Mnemosine?1 Porque foi a história que voltou à memória: é sob a direção de F. Bédarida que se cria o Instituto de História do Tempo Presente em 1978; é a Associação de História Contemporânea que começa a publicar a revista Ayer ; é o historiador P. Nora quem “inventa” os famososlieux de mémoire. Por que,então, os historiadores, a partir dos anos 1970, começam a deliciar-se com os manjares da memória?2 Até esse então, eram os psicólogos, os neurobiólogos, os sociólogos, os filósofos, entre outros, que tinham como um de seus focos a memória. E, nesse contexto, boa parte da literatura proveniente das ciências sociais enfatizava a natureza socialmente construída da memória, seus usos políticos e culturais. Em suma, e para voltar à pergunta inicial, que condições foram necessárias para que uma história do presente fosse possível? Quer dizer, uma historiografia que se entrecruza com as memórias dos acontecimentos que tenta reconstruir? Por que alguns historiadores, a partir de meados do século XX, abandonaram essa

* Tradução de Ronald Polito. 1 Mudrovcic, 2005b. 2 Parafraseando Hobsbawm (1998).

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tranquila parcela do passado que só a eles interessava investigar e começaram a arriscar-se na arena política, jurídica e moral da memória? As perguntas não são ociosas. Nos anos 1970, a depuração teórico-metodológica por que passara a história parecia garantir, ao menos para um grupo importante de bons historiadores, a impossibilidade de cair na ingenuidade teórica de deixar-se tentar pelos debates políticos para ir buscar no passado um aval 3

que ajude a legitimar presente. aAgora não seassim trataodisso. O título (Memória e Historiografia) que dáoexistência esta mesa, interpreto, busca dar conta da complexa e necessariamente conflitiva relação que as reconstruções historiográficas de passados recentes entabulam com as memórias individuais e sociais que estendem pontes de sentido entre o passado e o presente. Sendo assim, a própria existência de uma história do presente questiona uma ideia básica que compartilho e que foi expressada muito claramente por dois historiadores muito díspares. Em 1978, Michel de Certeau (1993:117), referindo-se à operação historiográfica, afirmou: “a escrita da história […] faz mortos para que em outra parte haja vivos”. Quase 10 anos depois, num contexto diferente, Eric Hobsbawm (1998:270) escreveu: “todos os seres humanos, todas as coletividades e todas as instituições necessitam de um passado, mas só de vez em quando esse passado é o que a investigação histórica revela”.Creio que a história do presente, ou o retorno de Clio a Mnemosine, é um sintoma das sociedades contemporâneas, sintoma que pode ser lido mais facilmente em circunstâncias como a do famoso debate dos historiadores ocorrido na Alemanha entre 1989 e 1991 ou na conflituosidade do “presente-passado”4 político que estão atravessando os argentinos.5 Minha tese é que os mortos — ou, o que dá no mesmo, a existência de um passado que não nos importe socialmente — só são possíveis quando o autoentendimento político do presente deixa decompreender-se em termos das lutas de outrora. Só então se torna possível ver o passado em seus próprios termos, ter um passado, desligando-se o presente de divisões a partir das quais a sociedade já não mais entende a si mesma. Esta dá a si mesma um presente (ou seja, um lugar para viver e um tempo para projetar) quando consegue transformar Dongui, 2005. A propósito, inverto a “relação passado-presente” de Huyssen (2007) para referir-me a esses tipos de presentes, social e politicamente patológicos, que vivem no passado. 5 Escrevo estas linhas quando já se passaram mais de 100 dias desde o chamado “conflito entre o campo e a cidade” na Argentina. 3 4

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seu passado doloroso tão somente num passado. Creio que um sintoma de que se está próximo dessa situação é quando o historiador recupera, no dizer sobre o passado, a dimensão fundamentalmente cognitiva da história, e isso porque a própria sociedade na qual está imerso o permite.6 Talvez seja essa uma das razões por que, na Argentina, a maioria dos intelectuais que se ocupa de nosso passado conflituoso não provém das fileiras dos historiadores.7 A partir do contexto assim exposto, responder a três preguntas: quehistória falamosdoquando falamos memória tentarei social? Por que a memória respira emdeuma presente? Comode se pode ter um passado? — ou quando se podem enterrar os mortos? ❚

De que falamos quando falamos de memória social?8

É 2 de janeiro de 1994 em Las Margaritas, a leste de San Cristóbal de las Casas, México. Segundo dia da ocupação do município pelas forças do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Um de seus comandantes responde ao jornalista que lhe perguntou por que se rebelou: “Ainda hoje, faz mais de 500 anos, nunca se resolveu nenhum problema das terras, das produções, da moradia, da educação e saúde, da independência, da paz, da democracia”. Há meio milênio por trás da decisão de pegar em armas.9 Em 24 de julho de 2003, durante sua visita à ilha de Lifou, o presidente Chirac diz que se encontra ali “para cumprir um dever da memória de todos aqueles que foram vítimas dos acontecimentos violentos que golpearam cruelmente Nueva Caledonia”, referindo-se à tragédia de Ouveá ocorrida 15 anos antes.10 O dever para com a memória das vítimas do terrorismo de Estado durante a última ditadura militar argentina se traduz no questionamento do valor jurídico das leis de Ponto Final e Obediência Devida. Esses casos constituem exemplos de atos políticos presentes legitimados pelo que se denomina memórias coletivas. A memória é um desses temas fecundos que oferecem a oportunidade de serem tratados a partir de diferentes disciplinas. Encontramos estudos no âmbito

Essa intuição se vê refletida na interrogação que propõe o historiador argentino Carlos Altamirano (2007:33). 7 Ver, por exemplo,Vezzetti (2002). 8 Uma versão desta seção se encontra em Mudrovcic (2005a). 9 Página 12, Buenos Aires, 16 ene. 1994. 10 Le Monde, Paris, 24 juil. 2003. 6

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da biologia, da neurobiologia, das ciências cognitivas, da psicologia, da sociologia, da antropologia e da história, entre outras. Ao olharmos mais de perto para essas disciplinas, constatamos que, se existem teorias solidamente formuladas no âmbito da memória individual, quando se passa à escala dos grupos ou das sociedades, os fundamentos teóricos da noção de “memória coletiva” parecem pouco sólidos ou se mostram totalmente inválidos. Se uma teoria é um enunciado tem teoria certo valor explicativo da realidade, não se pode falar propriamenteque de uma da memória coletiva. No contexto das ciências sociais, as divergências em torno do conceito de “memória coletiva” cobrem um amplo espectro. Num de seus extremos estão os que afirmam que “não existe uma memória individual, toda memória é social”,11 e no outro, aqueles que consideram a noção de memória coletiva uma retórica holística de duvidosa implicação ontológica, uma simples flatus vocis.12 A dispersão semântica que se observa no âmbito das ciências sociais e humanas não raro se reflete no uso indistinto de noções tais como memória social, memória cultural, memória coletiva, memória histórica. Embora esse conceito tenha despertado numerosas objeções, numerosa é a literatura que apela direta ou indiretamente paraclara. uma noção memória coletiva que permanece, em quero seus fundamentos, pouco Dentrodeda vasta literatura dedicada ao tema, referir-me a um sentido que resulta epistemicamente problemático,pois é o que tenta dar conta de expressões tais como “a nação relembra seus soldados caídos”, “os alunos relembram a figura do general San Martín, Pai da Pátria”, ou “prestou-se homenagem à memória das vítimas mortas na tragédia”. Essas frases se remetem a um grupo social como sujeito da recordação ou da memória. A esse respeito, adiantarei uma definição. A memória coletiva é uma representação narrativa, ou seja, um relato que um grupo possui de um passado que, para alguns dos membros que o integram, se estende mais além do horizonte da memória individual. O que se acha mais além da memória individual inclui não só acontecimentos ocorreram antes do nascimento de alguns e que, portanto, não podem serque propriamente recordados, mas também acontecimentos que foram contemporâneos para outros, mas que estiveram fora de sua experiência individual. Essa representação narrativa do passado do grupo se 11 12

Schacter, 1995:346. Candeau, 2001:26.

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refere a acontecimentos socialmente significativos e, ao mesmo tempo, possui uma dimensão fundamentalmente prática que dá conta de sua derivação éticopolítica. Em suma, o que denominamos memória coletiva de um grupo é um discurso narrativo que tem como sujeito esse mesmo grupo e que tenta dar sentido a eventos ou experiências relevantes de seu passado. Para que a soma de recordações individuais de uma expêriencia compartilhada se transforme em memória coletiva recordações ela deveQuer poderdizer, integrar-se num relato aceito comoou relato genuíno partilhadas, “do que ocorreu”. as lembranças adquirem sentido como partes de uma trama que lhes dá coerência e as estrutura. Entendemos, então, que a memória coletiva é a narrativização social de lembranças comuns.A história deve ser compartilhada pelos membros do grupo de tal modo que cada um possa dizer “nós” vivemos este acontecimento, ainda que somente alguns — ou nenhum deles — o tenham experimentado diretamente. O acontecimento pode não constituir propriamente uma lembrança dos membros atuais do grupo, mas deve ter sido uma lembrança comum de seus predecessores. A memória das Mães da Praça de Maio é um caso em que o relato integra as recordações das próprias mães. O caso do exército zapatista referido anteriormente é um exemplo de relato que integra a recordação de seus predecessores. A recordação se relaciona com o interesse de tal modo que gera mandatos éticos entre os membros do grupo. A ética guia as relações estreitas daqueles que, por estarem vinculados a uma comunidade de recordações, possuem um interesse mútuo.13 Pois bem, neste ponto quero estabelecer uma relação entre o enlace ético e político que a memória coletiva de um grupo estabelece com seu passado e o interesse cognitivo que, além disso, possui uma história do presente. ❚

Por que a memória respira em uma história do presente?

Corresponderia a centralizar uma discussão epistêmica acerca das condições de possibilidade de uma história do presente na reformulação do alcance de suas dimensões cognitiva e pragmática. Dado que o passado recente se transforma em objeto de uma história do presente, este mesmo deveria reverter-

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Margalit, 2002:22 e segs.

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se em uma reconsideração do alcance pragmático do conhecimento histórico, atendendo não só a suas implicações ético-políticas, como também a sua qualidade de produto de uma instituição social. Entendo por história do passado recente ou história do presente aquela historiografia que tem por objeto acontecimentos ou fenômenos sociais que constituem memórias14 de pelo menos uma das três gerações que compartilham um mesmo presente histórico. As vantagens que proposta a meu ver de uma caracterização da história do presente como a aqui sãoresultam as seguintes: ❚ ❚





delimita um lapso temporal mais ou menos fechado; recoloca a relação sujeito/objeto ao definir este último como recordação (individual ou social) cujo suporte biológico é uma geração contemporânea à qual pode ou não pertencer o historiador; discrimina com relação à história oral, isto é, nem toda história oral é história do presente, mas só aquela em que o objeto (ou seja, a recordação) e o sujeito (no caso, o historiador) pertencem ao mesmo presente histórico; delimita como presente histórico aquele marco temporal de sentido determinado pela interseção dos espaços de experiência das gerações que se

sobrepõem. O recurso heurístico às gerações na definição de história do presente permite despojar o historiador da assepsia epistêmica do “observador analítico” — tal como o caracterizou Habermas — para ressituá-lo na imediatez do tecido social histórico. Com efeito, em todo presente coexistem, articuladas, várias gerações, e as relações que entre elas se estabelecem constituem a realidade desse presente histórico. Numerosos são os autores que têm destacado o valor do conceito de geração para a compreensão da temporalidade histórica. Ricoeur (1996) resgata de Dilthey a noção de “pertencimento a uma mesma geração”, a qual acrescenta ao fenômeno biológico da “mesma idade” a dimensão qualitativa de terem sido os indivíduos expostos às mesmas experiências e influenciados pelos mesmos acontecimentos. Nesse sentido, quero assinalar que é mais apropriado falar de sobreposição sucessiva de gerações que de sucessão de gerações para indicar a especificidade de um encadeamento de transmissão de experiências, visto que sempre há duas gerações atuando no mesmo presente. Ricoeur

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Dando a “memórias” o alcance semântico definido anteriormente.

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incorpora de Mannheim a noção de “agrupamento por localização”, que confere ao conceito de geração um suporte temporoespacial concreto na dinâmica social. Por último, vê na ideia de “reino dos contemporâneos, dos predecessores e dos sucessores” de A. Schutz o “complemento sociológico da sucessão de gerações” que proporciona a articulação última entre o tempo privado e o tempo universal através do conceito do anônimo. Nessa tripla mediação — sobreposição sucessiva de gerações localizadas temporalmente e orientadas anonimamente através da simples contemporaneidade — se reconhece a articulação própria entre o tempo privado do individuo e o tempo público da história. Se o objeto da história do presente são as memórias cujo suporte biológico é constituído por uma das gerações que compartilham um mesmo presente histórico, o lapso temporal retrospectivo abarca, aproximadamente, entre 80 e 90 anos.15 Definido como recordação, o fenômeno histórico se imbrica diretamente na trama social, podendo-se reconhecê-lo como fator de poder na ressignificação do passado recente de acordo com o papel que desempenhe a geração portadora. Igualmente, visto que o acontecimento que se recorda foi qualificado de histórico, ele constitui, por isso mesmo, um ponto de inflexão no tempo social que reestrutura as gerações, despojando-as de uma organização meramente quantitativa (Ortega Mannheim). O significado ou impacto social do acontecimento inverte a relação tradicional de referência, já que é o próprio acontecimento que ressignifica, designando-a, a geração atuante. Assim é que falamos da “geração de 68” na França ou da “geração dos 80” ou da “militância dos 70” na Argentina. Ao redor desse tipo de acontecimentos que funcionam como “núcleos de sentido” se estruturam as relações dos espaços de experiência dos atores sociais. Como muito bem reconheceu Hobsbawm (1998:235), não existe nenhum país em que, ao desaparecer a geração que teve experiência direta nos fenômenos estudados, não se tenha produzido uma mudança importante na política e na perspectiva histórica dos mesmos. Por outro lado, a definição Há 60 anos, em 27 de janeiro de 1945,YakovVincenko (que ainda vive) foi o primeiro soldado soviético a transpor os limites de Auschwitz; seu relato do que ali encontrou ainda faz estremecer. O jovem soldado não sabia então que ali também haviam morrido 150 mil soldados soviéticos feitos prisioneiros nos combates de 1941, quando a Alemanha, sem declaração de guerra, invadira a URSS. Sabia-o o general Yakov Dimitri Volkogonov, também historiador da Academia de História de Moscou, morto recentemente e testemunha da reação de Stalin quando este foi informado de que a aviação alemã violara o espaço aéreo soviético. O relato anterior nos permite afirmar que transcorre o tempo em que os testemunhos dos sobreviventes do genocídio mais documentado e estudado do século XX estão se transformando em fontes históricas, só acessíveis a partir dos arquivos. 15

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proposta situa a recordação (relato da experiência vivida) como parte dos interesses antagônicos dos conflitos entre gerações que atuam contemporaneamente e resgata a profunda diferença entre as pessoas — historiadores, algumas delas — que relembram a ação de Churchill em 1940 e as que sabem disso através do relato de seus avós ou pais, por exemplo. Uns e outros compartilham o mesmo presente histórico, na medida em que seus espaços de experiência — para usar a 16

categoria meta-histórica de Koselleck — sevital entrecruzam, poismarco nem histórico. todo contemporâneo insere sua própria experiência num mesmo O presente histórico está constituído por aquelas gerações que se sobrepõem sucessivamente, gerando uma cadeia de transmissão de acontecimentos que são reconhecidos como “seu” passado, ainda que nem todos os tenham experimentado diretamente.17 O grau de anonimato na apropiação desse passado está em relação direta com a localização sociopolítica das gerações comprometidas: o Holocausto é o passado recente em que estão diretamente implicadas as gerações atuais de alemães, mas, como “crime contra a humanidade”, também envolve todas as gerações presentes que compartilham ao menos a tradição ocidental. A História do século XIX de Hobsbawm é um exemplo de história do presente na qual o historiador pertence à geração portadora das recordações. Já os Carrascos voluntários de Hitler, de Goldhagen, ou Os vizinhos, de T. Gross, são obras em que o sujeito-historiador pertence a uma geração distinta da que porta a lembrança, mas que no entanto compartilha o mesmo presente histórico. Assim definida, a história do presente lançaria por terra um dos pressupostos epistêmicos que caracterizam a visão standard do conhecimento histórico: a separação entre sujeito e objeto para garantir uma reconstrução expurgada de interesses práticos. Dessa separação foram efetuadas duas leituras: como distância temporal real entre o historiador e seu objeto de estudo; e como distância entendida como epojé18 dos interesses ético-políticos do historiador, se o fenôme16

Para Koselleck (1993), espaço de experiência é uma que indica umde passado estratificado que não pode seromedido cronologicamente, mascategoria que podeformal ser fechado a partir indicadores temporais de acontecimentos passados em torno dos quais se organiza o resto. 17 Nesse sentido, creio ser mais apropriado utilizar a expressão “presente histórico” para indicar a densidade temporal desse novo objeto da história, visto que separa a noção de presente do imediato e do instantâneo que identificariam a história com técnicas jornalísticas. Assim como nem todo passado é histórico, nem todo presente é “presente histórico”. Mesmo assim, creio que a expressão discrimina com relação a “passado histórico”, isto é, como o passado constituído pelas vivências de meus predecessores que não são meus contemporâneos e sobre o qual já não se pode influir. 18 Suspensão do juízo (N. do T.).

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no era muito próximo. Este último pressuposto fica claramente exemplificado com a caracterização habermasiana do historiador como “observador analítico” enquanto “cientista íntegro que insiste na diferença entre a perspectiva assumida por aqueles que participam de um discurso de autocompreensão coletiva” e a ciência histórica.19 Mesmo quando está discutindo as consequências públicas de uma história do presente, Habermas não considera necessário repensar suas bases epistemológicas. historiador como “observador deveria constituir-se em ideia que O regula — à maneira kantiana — aanalítico” prática historiográfica do passado recente,mas jamais num pressuposto que garantisse epistemicamente esta prática. A neutralidade valorativa que está na base da intencionalidade da ciência histórica deveria servir como plataforma crítica para pôr em cena os interesses e valores que operam como marcos de sentido da geração à qual pertence o historiador e que funciona como locus sócio-histórico de autoentendimento ético-político de onde se reconstrói o fenômeno, e não como garantia inquestionável de uma suposta reconstrução objetiva. Levado por seu entusiasmo, Habermas (1999:18) conclui: as mudanças evidentes na cultura política alemã que tiveram lugar nos 50 anos transcorridos desde o fim da II Guerra Mundial são dignas de aplauso [...] os indivíduos alemães se converteram em autênticos democratas [...] [e] seu componente antissemita tem variado, pois perdeu os elementos centrais, assombrosos.

Se realmente as mudanças tivessem sido tão decisivas, o livro de Goldhagen não teria despertado semelhante debate público. E, como tampouco ocorreram mudanças dessa natureza na Polônia, um ano depois da publicação do livro do historiador T. Gross o presidente polaco Aleksander Kwasniewski pediu perdão publicamente pelo massacre de 1.600 judeus cometido em Jedwabne em 1941. ❚

Como pode oster um passado? — ou quando se podese enterrar mortos?

Em Sublime historical experience, F. Ankersmit distingue quatro tipos de esquecimentos, dois dos quais ele denomina “trauma 1” e “trauma 2”.20 As duas 19 20

Haber mas, 1999:18. Ankersmit, 2005:321-327.

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décadas de silêncio acerca do período nazista que se verificaram na Alemanha logo após a II Guerra Mundial constituem, para Ankersmit, o caso paradigmático de esquecimento do que ele denomina “trauma 1”. Nesse tipo de trauma, apesar da experiência vivida, a identidade, diz Ankersmit, fica intacta (mas reprimida no passado), e pode ser reestabelecida a condição de que esse passado doloroso seja incorporado numa narração que ofereça uma reconciliação entre 21

alocausto experiência e a identidade. sua leitura (esquecido) psicoanalítica, Hocomotraumática acontecimento traumático Em foi reprimido nosoanos seguintes à II Guerra Mundial. Contudo, uma história correta (right story) pode reestabelecer a identidade que estava destruída incorporando esse passado catastrófico. Esses tipos de mecanismos, diz Ankersmit, “podem ser considerados mudanças em — e não mudanças de — nossas identidades”22 ou, para dizê-lo metaforicamente, “a construção de novas cidades ou autoestradas são mudanças dentro das fronteiras de nosso país, mudanças que deixam inalterados os próprios limites”. Contudo, Ankersmit reconhece outro tipo de acontecimento histórico que provocou o que ele denomina uma quarta forma de esquecimento ou “trauma 2”. A Revolução Francesa exemplificaria esse tipo de acontecimento que, à diferença de eventos como o Holocausto, provoca uma ruptura definitiva, constituindo-se na passagem de uma identidade anterior a outra totalmente nova e diferente. Para Ankersmit, a Revolução Francesa cria uma “barreira intransponível” entre um mundo pré-revolucionário e outro mundo pós-revolucionário: “o mundo teria irrevogável e inexoravelmente adquirido “uma nova identidade”.23 A diferença fundamental entre esse tipo de trauma e o trauma 1 é que o passado está completamente separado do presente, é tão totalmente “outro” que nenhum relato poderia integrá-lo como fazendo parte de uma mesma identidade. Esse passado só pode ser objeto de conhecimento histórico. Nos termos de Ankersmit, o “desejo de passado pode ser só um desejo de conhecer, não um desejo de ser” (de chegar a ser novamente o que se foi no passado)24. A ruptura é completa: “fomos ejetados, expelidos ou exilados do passado, ou melhor, por causa de um terrível evento (a Revolução Francesa), um mundo no qual Ankersmit, 2005:328. Ibid., p. 330. 23 Ibid., p. 326. 24 Ibid., p. 327. 21 22

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costumávamos viver ingenuamente e sem problemas se separou em um passado e um presente”.25 Se se pode alcançar uma reconciliação com o trauma 1, isso é impossível com o trauma 2, “pois o desejo de conhecer (o passado) nunca pode satisfazer o desejo de ser”. Essa ruptura entre passado (uma identidade anterior) e presente (uma nova identidade) é também exemplificada por Ankersmit com a análise hegeliana do conflito entre Sócrates e o Estado ateniense. A condenação de Sócrates tem sentido na medida em que constitui a morte do mundo de tradições em que viviam os atenienses e a entrada num mundo moral regido por princípios universais. Até aqui, Ankersmit. A pergunta que surge é: o que faz que certos acontecimentos gerem passados como mundos diferentes? Por que alguns acontecimentos — como a Revolução Francesa —, e não outros — como o Holocausto —, produzem tamanha ruptura com o presente que criam passados que só podem ser objeto de conhecimento, mas não de desejo? Como surgem esses passados nos quais os historiadores podem beber sem risco de que seus textos inundem as arenas morais, políticas ou jurídicas, como ocorre com a história do presente? Por que Hobsbawm pode afirmar, decorrido tão pouco tempo, que “muito poucas pessoas negariam que uma época do mundo terminou com o desmoronamento do bloco soviético e da União Soviética, independentemente de como interpretemos os acontecimentos de 1989-91”?26 Quando um acontecimento pode “virar uma página da história”? Por que muito poucos — ou quase ninguém — diriam o mesmo do Holocausto ou dos terrorismos de Estados latino-americanos? Por que o nunca más argentino é normativo, a meu ver, ou seja, é antes expressão de um desejo que a constatação de uma ruptura? Em suma, o que faz que certos acontecimentos gerem uma historiografía tão somente, e não uma história do presente? A explicação à qual mais se tem recorrido, ao menos no âmbito da teoria e da epistemología, é a da distância. A distância, entendida de diferentes maneiras, é que faria passados mais ou menos “objetivos”, quase sem implicações morais ou políticas. M. Salber Phillips (2004), em livro publicado recentemente, reconhece que, em história, a questão da distância tem sido pouco teorizada, com o

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Ankersmit, 2005:328. Hobsbawm, 1998:236.

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que concordo plenamente. Seu diagnóstico é que esse “silêncio” sobre o tema é um indício de pressupostos disciplinares tácitos.27 Considera que um bom lugar para começar sua análise é o campo no qual a representação histórica conflui com a memória. Cita autores que, como P. Nora, D. Lowenthal ou P. Novick, demarcam uma divisão profunda entre a memória (visto que nega a distância em relação ao passado recente) e a história (visto que geraria essa distância a partir de sua análise bém coincido neste crítica). ponto). Julga que esse quadro é demasiado simplista (tamPhillips considera que a distância em relação ao acontecimento é não só recebida (como no caso do Holocausto, que já conta mais de duas gerações desde sua ocorrência), mas também construída. 28 Em primeiro lugar, não se poderia negar a distância temporal, sempre crescente e que, segundo a distância em relação ao acontecimento, imporia maior ou menor objetividade na reconstrução pela maior ou menor implicação do autor e da audiência. “A distância deveria referir-se a uma dimensão de nossa relação com o passado.”29 Para tanto, Phillips reconhece diferentes tipos de distância. Uma distância “retórica”, que tem a ver com todas as estratégias (textuais ou não) de que se vale a representação histórica para “distanciar” ou “aproximar” seu objeto. Uma descrição densa aproximaria mais empaticamente o leitor, ou seja, aquela que retrate mais minuciosamente as experiências. Contudo, haveria outro tipo de recurso que, mesmo referindo-se a acontecimentos dramáticos, facilitaria o acesso cognitivo, construindo uma distância que impeça uma identificação moral ou política. Em ambos os casos mencionados anteriormente prevalece, para Phillips, a atividade construtiva por parte do historiador, que pode gerar distância, assim como o faria naturalmente a distância temporal. Contudo, o estudo de Phillips é insuficiente para entender por que a queda do mundo soviético ou a Revolução Francesa se convertem em passados, se convertem no outro. Nem a proximidade de um nem a distância do outro o explicam, e com isso fica invalidada a tese de que a distância é “construída” pelo historiador (ao menos nesses casos). Minha intuição é que esse Phillips, 2004:87. “Cada história — na realidade, cada representação do passado — tem a ver com o problema de posicionar sua audiência (a do historiador) em relação de proximidade ou distância dos eventos e experiências que estão sendo representados” (Ibid., p. 92). 29 Ibid., p. 96. 27 28

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tipo de acontecimento gera suas pró prias rupturas sem mediação nem de distâncias temporais retrospectivas nem de distâncias construídas retoricamente pelo historiador. Mas, como? Por que Ankersmit, por exemplo, supõe que um relato correto poder ia reconstituir a identidade entre esse passado doloroso e o presente alemão? Por que para alguns setores de argentinos o terrorismo de Estado é ainda uma possibilidade? 30 Porque, sejamos claros, e para dar só um 31

exemplo e dos visíveis. desapareceu em plena democracia, seu corpo ainda nãomais apareceu. EleLópez é, “simbolicamente falando”, um “desaparecido” mais duro para nosso presente. López desapareceu (e seu nome merece estar no museu da memória) num momento político em que as estruturas institucionais (nossa democracia) pareciam ser “o outro” desse passado infame. Mas não se trata, e essa é minha tese, de que o passado viva ainda no presente, e, sim, de algo pior, que o presente se entende e atua em termos do passado (é um presente-passado, e não um passado-presente). Tal como indiquei na introdução, o autoentendimento político do presente se entende em termos das lutas do passado. E o que isso tem a ver com a “outridade” que geram certos acontecimentos dos quais vimos falando? Aqui minha tese é que acontecimentos como a Revolução Francesa ou a queda da União Soviética geram, por si sós, esses passados aos quais “nunca mais” se pode voltar, nem sequer parcialmente ressuscitar, porque são acontecimentos que provocam rupturas de estruturas políticas e, portanto, institucionais; essa é, a meu ver, a barreira intransponível criada por esses eventos. Por isso Hobsbawm vê na derrocada da União Soviética uma virada de página da histór ia. As instituições da Rússia atual são diferentes das do passado soviético. E, embora o revisionismo histórico seja muito ativo, seus debates se desenvolvem dentro da academia e não têm quase nenhum impacto nos debates públicos, nem consequências jurídicas ou morais para o povo da Rússia contemporânea. Não se trata de “histórias do presente”, por mais que seu passado seja recente, mas de histór ias que contam o que já não se faz. As memórias compartilhadas pelos distintos setores da sociedade podem ser mais ou menos nostálgicas desse passado, mas não entram em disputa com os debates políticos do presente.

Se não fosse possível, nem sequer teria sido usado como estratégia retórica de discursos inflamados no fragor das lutas políticas do presente. 31 López desapareceu em 2006, logo após depor no julgamento levado a cabo contra o genocida Etchecolatz. 30

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A Argentina, país herdeiro de um passado violento, iniciou um período “democrático” em 1983. Desde então, para C. Altamirano, o poder político fixou três esquemas de interpretações do passado recente, três esquemas para a memória. O primeiro, durante o governo de Alfonsín, que haveria de batizar-se “a teoria dos dois demônios”. O segundo, durante o governo de Carlos Menen, com os indultos e os apelos à pacificação política, impôs um silêncio que, para 32 Altamirano, colocoucompor em evidência quepúblico”. “para nenhum setoro governo do peronismo era complicado um relato E, poroutro último, de Kirchner “fez sua a versão mais elementar e que sobrevoa toda complicação sobre o passado […] a que estiliza a militância dos anos 1970 e apaga, por meio dessa estilização, não só os partidos armados da época, como a guerra intestina do peronismo”.33 A política se meteu com a memória (entendida como se especificou anteriomente), tratando de gerar “m emórias oficiais”. As memór ias dos militantes se meteram no debate político. As histór ias do presente geram políticas. Clama-se pelo “dever da memória”. Essa frase tem sofrido uma sacralização tal que se esvaziou de sentido. Mas tratemos de restituí-lo. O dever da memória é uma demanda de justiça, uma demanda jurídica, uma demanda moral. Uma “avó para o governo, um desaparecido para o campo”.34 Se muitos como Ankersmit não leem o Holocausto (nem os terrorismos de Estado, poder-seia acrescentar) como r upturas de identidades, com o se ainda fosse possível um relato conciliador desses passados com nossos presentes, torna-se evidente que esses acontecimentos, por mais terríveis que tenham sido, não conseguiram calar no mais profundo da história, em seu coração político. Nenhum desses acontecimentos conseguiu derrubar instituições e criar espaços políticos novos. Daí ser ainda possível, na Argentina, um “relato conciliador” entre a violência política de outrora e nosso presente cindido. Daí serem ainda possíveis um relato do antissemitismo nazi e o presente político atual da Alemanha. Rupturas históricas e rupturas políticas se acham inexoravelmente ligadas; só nesses casos as memór ias já não podem ser lutas políticas, e nenhum a “históri a do presente” é possível.

Altamirano, 2007:25. Ibid., p. 33. 34 “Governo-campo”, termos confrontativos nos quais também se tem lido esse conflito político atual e nos quais os usos do passado em chave de terrorismo têm abundado em ambas as partes. 32 33

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Imigração, cidade e memória Ismênia de Lima Martins Andréa Telo da Corte

Nas palavras de Ítalo Calvino (1986:15), “a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras , cada segmento riscado por arra nhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. Dessa forma o escritor ítalo-cubano remete-nos à questão das camadas de memórias subjacentes ao espaço urbano, muitas vezes mergulhadas nas querelas atraso/progresso, antigo/moderno, ou confrontadas com a diversidade de grupos étnicos e discursos identitários territorializados no seu espaço. A historiografia das últimas décadas do século XX foi pródiga ao refletir a memória e o espaço urbano sob o signo das transformações geradas pelos discursos de modernidade, dentro da perspectiva referida, que contrapõe passado e presente, o primeiro entendido como atraso, e o segundo, como progresso. O Rio de Janeiro, protagonista de aceleradas transformações urbanas nos primeiros anos do século XX, foi alvo preferencial dessa discussão. O presente, porém, marcado por novas ondas migratórias, traz à tona questões relativas à territorialização de diferentes grupos de imigrantes que se inscreveram no espaço urbano em outras temporalidades. A própria entrada do Brasil no rol dos países emigrantistas impõe à historiografia uma reflexão sobre tal processo. As questões atuais, uma vez mais, motivam os historiadores

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a redimensionar suas perguntas e a atribuir ao tempo presente e ao passado da cidade novos problemas, a fim de compreender antigos e recentes processos de territorialização e expressão identitárias. Logo, imigração, cidade e memória surgem como questões entrelaçadas, merecedoras de uma reflexão teórica mais elaborada, e o desenvolvimento de estudos de caso é da maior importância para o refinamento da discussão. O tema da cidade, inter-relacionado ao estudo da memór ia e da identidade, revela-se no estudo dos grupos étnicos. Processos de reivindicações identitárias e expressões de etnicidade se desenvolvem sempre em relação ao território onde eles se encontram, mesmo que espelhem referências a outros espaços terr itor iais, reais ou imag inár ios. Aqueles que se apresentam como grupo definem-se em relação a algum lugar e em relação a alguém. Dessa forma, falar das identidades e memórias de grupos étnicos é também refletir o espaço em que elas se constituem, se reconfiguram e, finalmente, se movem. O estudo das identidades, portanto, está diretamente relacionado às formas pelas quais os supostos grupos se territorializam e às marcas que imprimem na cena local, como, por exemplo, os nichos econômicos que escavam; as formas de morar que constituem; a expressão de fronteiras étnicas através das organizações associativas que engendram, da elaboração de discursos particulares de diferenciação ou, ainda, de rejeição da etnicidade, incorporando-se à identidade predominante. No caso da cidade, todas essas práticas relacionam-se, em última instância, às condições objetivas e subjetivas vivenciadas no espaço urbano onde esses grupos se forjam: sociedade de acolhimento para os imigrantes, berço para os grupos locais, que esboçam diferentes discursos de pertencimento. Nesse sentido, a cidade e toda a complexidade que envolve a questão urbana não podem ser vistas como mero cenário para o estabelecimento dos grupos étnicos, mas, simultaneamente, como um agente, ora disciplinador, ora desagregador. Disciplinador ao estabelecer regras e limites com os quais os grupos étnicos precisam negociar para garantir sua inserção social e a construção de seus próprios lugares de memória na cena urbana. Desagregador, ao estimular conflitos intergrupos e extragrupos. Para cada uma das facetas da cidade, múltiplas identidades, múltiplas memórias.

Imigração, cidade e memória





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Entender a cidade

Ímã que atrai a diversidade humana, a cidade é “um imenso quebra-cabeças, feito de peças diferenciadas, onde cada qual conhece seu lugar e se sente estrangeiro nos demais”.1 Compreender essa lógica possibilitará decifrar,ao menos parcialmente, as formas de territorialização dos diversos grupos étnicos no espaço estudado. No entanto, compreender/apreender a cidade não é tarefa fácil. “Continente de experiências humanas, a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história.”2 Como registro, carrega em si uma escrita antiga, que narra a experiência histórica de outros tempos e grupos; e, como organismo vivo, é o lócus onde “os símbolos do passado se interceptam com os do presente, construindo uma rede designificados móveis”.3 Em outras palavras, a cidade comporta camadas de memórias em permanente interseção, onde cada nova marca leva ao rearranjo das camadas anteriores, resultando numa nova cidade. De outra forma, a cidade é lócus político, na medida em que se imbui do poder público que sedia. Comporta, também, a dimensão econômica, por consubstanciar a ação de produzir e circular a mercadoria. É, ainda, o lugar da segregação, ao encerrar em si as diferenças sociais entre ricos e pobres, público e privado, visíveis e invisíveis. Finalmente, é o palco da cidadania.4 Em suas múltiplas faces, a cidade é um personagem a ser desvendado. Em meio a essa complexidade de sentidos, os grupos étnicos, em especial os compostos por imigrantes, são obrigados, pela necessidade objetiva da sobrevivência, a conviver, se mover e produzir suas próprias marcas, que se traduzem em âncoras de uma nova memória, tanto para o grupo quanto para a cidade. Os processos de reconfiguração de identidades dependem, portanto, das condições objetivas e subjetivas facultadas pela cidade de acolhimento, interpenetradas pelas camadas de história. Desvendar as “camadas” de memórias abraçadas pela cidade é, pois, uma das tarefas principais a serem empreendidas, tanto na análise do fenômeno urbano quanto nos estudos das identidades étnicas. À luz dessas reflexões, vimos trabalhando o caso de Niterói, a cidade e seus imigrantes.

Rolnik, 2004:40. Ibid., p. 9. 3 Ibid., p.17. 4 Ibid., p. 40. 1 2

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Niterói, cidade múltipla

A cidade de Niterói, capital da antiga província fluminense desde 1834 e do estado do Rio de Janeiro entre 1889 e 1974, recebeu imigrantes ingleses, alemães, espanhóis, italianos, “sírio-libaneses” e judeus de diversas nacionalidades desde fins do século XIX, além dos portugueses, grupo major itário que sempre esteve presente em sua vida. Em meio a um conjunto expressivo de diferenças, disputaram, palmo a palmo, um lugar no mercado de trabalho local, competindo também com os brasileiros, muitos dos quais ex-escravos da região ou egressos das decadentes fazendas de café do vale do Paraíba, então em crise econômica, ou, ainda, oriundos de cidades do interior do estado, em especial da região nor te, como Bom Jesus de Itabapoana, Itap eruna e Campos, todos ansiosos por desfrutar as melhores condições de vida da capital. Separada da cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, pelas águas da Guanabara, Niterói, no início do século XX, ainda era um lugar na contramão da moder nidade, onde calçar uma r ua “era uma tarefa ciclópica” 5 e reformas urbanas eram iniciadas e reiniciadas a cada novo governo, demandando, em alguns casos, o espaço de um século para se realizarem integ ralmente. Lócus político, a cidade de Niterói, apesar de seu status de capital, não conseguiu se constituir em modelo para as cidades do inter ior, nem sequer em referência para a construção das identidades regi onais. Assombrada pelas contínuas intervenções federais nos assuntos estaduais e pela proximidade com o Rio de Janeiro, “ímã” que atraía todas as elites, a capital fluminense acabou por cultivar, ao longo do século passado, um exacerbado sentimento de inferior idade em relação à metrópole vizinha. 6 No âmbito municipal a situação era similar, e o poder público local sofreu a inter venção contínua da esfera pública estadual nas suas ações. Ofuscada pelo Rio de Janeiro, a cidade de Niterói, nas primeiras décadas do século XX, viu sua reduzida s malhas provincianismo. Naidentidade prática, a política capital do estado àdo Rio dedoJaneiro, até a segunda metade do século XX, se constituía em cinco bairros: Praia Grande, São Domingos, Icaraí, Fonseca e Barreto, e em sua economia destacavam-se os setores 5 6

Soares, 1992:41. Azevedo,1997:55.

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industrial, sobretudo a indústria naval do entorno da baía de Guanabara, e comercial. O comércio, estabelecido predominantemente no bairro de Praia Grande e caracterizado pela maioria dos autores como tosco e limitado, foi a principal atividade da cidade e espaço no qual os diversos “migrantes” se enfrentaram, marcando as ruas com sua presença e com seus equipamentos sociais, erigidos como lugares de memória. Praia Grande, onde ainda hoje se encontra localizado o centro de Niterói, foi a referência principal da cidade na primeira metade do século XX. Independentemente das mudanças ocorridas, essa região sempre concentrou o principal do comércio a retalho na cidade, composto por inúmeras alfaiatarias, armazéns de tecidos, casas de roupas prontas, bazares, chapelarias, ourivesarias, movelarias, padarias e botequins, em grande parte pertencentes a portugueses, que de 1910 a 1950 estiveram à frente da Associação Comercial. S. Rosa

S. Francisco Charitas

Fonseca

Barreto Fátima Icaraí

Jurujuba Centro Ingá

S. Domingos

Ponte Rio-Niterói



Mapa dos bairros de Niterói voltados para a baía de Guanabara Fonte: Mizubuti, 1996.

Ao lado deles, judeus das mais diversas srcens e um número elevado de imigrantes “sírio-libaneses” fincaram suas bases na cidade, disputando conjuntamente, ora como mascates e/ou prestamistas, ora como lojistas, espaço e freguesia no reduzido mercado de trabalho da capital fluminense.

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Em torno do corredor comercial, a antiga Praia Grande concentrava os principais edifícios públicos do município e do Estado — a Diretoria Regional dos Correios e Telégrafos, a Prefeitura, a Câmara Municipal, a Biblioteca Universitária, o Fórum, a Assembleia Legislativa Estadual, a Repartição de Polícia, o Edifício das Secretarias de Estado, o Instituto de Educação (atual Liceu Nilo Peçanha), o Tesouro do Estado, a Casa de Detenção, o Teatro João Caetano (atual Teatro Municipal), a Força Militar, o Corpo de Bombeiros e, sobretudo, a estação das barcas, meio de transporte cuja denominação acabou tornando-se metaforicamente sinônimo do centro da cidade. Na região central encontravam-se também importantes templos religiosos, como a catedral do arcebispado e as igrejas de São João Batista e de Nossa Senhora da Conceição, agências bancárias, hospitais, as faculdades de Farmácia e Odontologia, e a Policlínica da Faculdade Fluminense de Medicina. As ruas do centro abrigavam, ainda, a sede das associações de imigrantes: cinco de portugueses, duas de judeus, uma de italianos e uma de “sírio-libaneses”, além dos consulados de Espanha e Portugal. Os pequenos sobrados e escritórios do antigo distrito da Praia Grande acolheram pelo menos 26 associações de trabalhadores, entre caixas de socorro, funerais e mútua de operários. Nessa região, as instâncias públicas e privadas se cruzavam, e o espaço não se apresentava hierarquizado socialmente de forma expressiva. Imóveis residenciais imponentes, pertencentes a banqueiros e empresários, compartilhavam o território com os mais diversos tipos de trabalhadores, imigrantes ou não, segregados em vilas e cortiços, e também com estabelecimentos comerciais, repartições públicas, cabarés e cafés. Foi, igualmente, o principal espaço de manifestação social de seus habitantes. Palco dos desfiles cívicos, dos confrontos entre integralistas e comunistas na década de 1930, e de grande revolta urbana em 1959. Simultaneamente lócus político, de circulação de mercadorias e do consumo, da segregação, da mistura e da cidadania, Praia Grande assistiu aos enfrentamentos entre os trabalhadores nacionais e estrangeiros, muitos dos quais recortados por profundas diferenças identitárias e ideológicas. O tabuleiro de xadrez formado pelas ruas do centro de Niterói7 forneceu, portanto, a matéria-prima com a qual esses diversos atores sociais dialogaram

7

Campos, 1998.

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com a cidade e entre si, ressignificando suas vidas, mergulhando em criativos processos de construção/reconstrução identitárias, renovando o espaço urbano com suas marcas. Nos limites deste texto, destacamos o caso dos portugueses por sua relevância, inclusive quantitativa, no conjunto de imigrantes da cidade. ❚

Portugueses

Os portugueses se destacam no cenário urbano de Niterói desde o período anterior a 26 de março de 1835, quando a Vila Real da Praia Grande foi elevada à categoria de cidade, com o nome de Nictherói, e escolhida capital da província.8 Já nessa época, eles podiam ser aí encontrados, seja no comércio e na agricultura, seja no trabalho braçal. Contudo, as referências mais precisas datam de 1845, quando Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, deu início ao seu empreendimento no ramo da construção naval, na região conhecida como Ponta d’Areia. A grande afluência de portugueses que, à época de Mauá, eram ferreiros, torneiros, carpinteiros, calafates e, mais tarde, no período republicano, operários da indústria naval promoveu o desenvolvimento da localidade, imprimindo-lhe um perfil lusitano. Paralelamente a esse núcleo, a presença portuguesa no comércio local, quase como um prolongamento da colonização,9 resultou numa extensa lista de empresários que alcançaram riqueza e reconhecimento, angariando títulos e prestígio dos dois lados do Atlântico, dando srcem à famosa geração de comendadores da cidade. A atuação dos empresários portugueses em Niterói estendeu-se a todos os campos da atividade econômica. Muitos deles se destacaram, inclusive, como banqueiros e industriais. Note-se que esses portugueses, que acabaram por constituir a elite da cidade, atuaram até certo ponto como grupo, promovendo fusões de empresas ou pequenas participações nos negócios dos patrícios. Da mesma forma, fizeram da Associação Comercial um revérbero dos seus interesses.

8 9

Whers, 2 002:68. Medeiros, 2000.

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Além deles, pequenos proprietários portugueses, continentais ou ilhéus, dominavam o comércio local, com seus cafés, bares, confeitarias, armazéns de secos e molhados e cortiços, embora dividindo sua clientela, sobretudo no centro, com os comerciantes judeus e “sírio-libaneses”. Não obstante pequenos episódios de xenofobia contra os lusitanos, de modo geral, a cidade ofereceu um bom ambiente ao enraizamento desses imigrantes. Aosocial contrário de seusdapatrícios pobres, lusa de destacava-se no noticiário dos jornais cidade emais quase nuncaa elite era alvo comentários xenófobos. Seu prestígio era grande, e eles se constituíam nos principais beneméritos das associações assistenciais locais. Foram identificadas, no período, cerca de cinco associações lusitanas, todas com grande visibilidade. A mais destacada, porém, foi a Sociedade Portuguesa de Beneficência, fundada em 1920 e cujo hospital, inaugurado em 1930, se transformou no principal lugar de memória dos portugueses em Niterói. ❚

A Sociedade Portuguesa de Benecência de Niterói

Suas srcens remontam à criação do Centro da Colônia Portuguesa de Niterói, em 1904, fato que se inscreve no quadro mais amplo da formação de diversas associações mutualistas no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Tais iniciativas objetivavam o atendimento das necessidades das populações urbanas, sobretudo em relação aos serviços de saúde, que somente iniciariam a sua expansão nos anos 1920, com a reforma Carlos Chagas e a Lei Eloy Chaves, que instituiu, sob obrigatoriedade governamental, o sistema de seguros sociais no setor privado. Os registros documentais hoje existentes sobre o Centro da Colônia Portuguesa de Niterói autorizam a sua caracterização como sociedade beneficente assistencial mutualista. Composta por elementos de origem portuguesa, possuía em sua direção poucos nomes representativos das atividades comerciais e financeiras da cidade. As beneficências eram distribuídas sob a forma de ajuda financeira aos associados desempregados ou enfermos, depois que uma sindicância atestava-lhes a idoneidade, segundo o vigente sistema de valores. Em Niterói, os projetos de reforma urbana da década de 1920 vão coincidir com o enriquecimento dos portugueses enquanto grupo. Muitos expandiram seus negócios de forma vertiginosa ao transformar pequenos armazéns em firmas de exportação e importação e, sobretudo, ao estenderem sua esfera

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de atuação ao setor bancário e agroindustrial, aproveitando-se da insolvência financeira das antigas elites rurais. Entre as estratégias utilizadas pelo grupo para conquistar a visibilidade social que coroaria tal processo de enriquecimento destaca-se sua interferência na criação da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Niterói. Os portugueses mais distinguidos comercialmente, que até então mantinham uma relação apenas formalrealizada com o Centro da julho Colônia, compareceram assembleia-geral extraordinária em 20 de de 1919. A ata queàregistra sua participação detalha o encaminhamento das discussões no sentido de autorizar a diretoria a modificar a lei social, elaborar novos estatutos e, finalmente, iniciar os trabalhos para a construção de sua sede, assim como de um hospital. A elaboração do novo regimento tomou mais de um ano, e a comissão responsável teve seu trabalho apreciado nas assembleias-gerais de 8 e 15 de agosto de 1920, quando se aprovou o estatuto que em seu art. 1o constituía a Sociedade Portuguesa de Beneficência de Niterói, atribuindo-lhe todas as obrigações e haveres sociais contraídos em nome do antigo Centro da Colônia Portuguesa, enquanto suas finalidades permaneciam fundamentalmente assistenciais. É importante ressaltar que os novos estatutos abriram as portas da entidade a cidadãos de outras nacionalidades, vetando, no entanto, sua elegibilidade para os cargos de direção. A ação pragmática dos lusitanos pretendia, de um lado, reforçar o caixa e canalizar apoio para a construção do hospital; de outro, manter o controle da organização.10 A construção do hospital constituiu-se numa estratégia perfeita em relação aos objetivos pretendidos. A cidade de Niterói contava apenas com o Hospital São João Batista, criado em meados do século XIX e inteiramente defasado em relação às demandas da população, que desde então crescera aproximadamente 100%.11 A escolha do dr. Hernani Pires de Mello, jovem, porém reputado médico oriundo de ilustre família local, para acompanhar o projeto de edificação, atendendo às exigências mais modernas da época, granjeou inúmeros apoios para a iniciativa. A campanha para a construção do hospital extrapolou os limites da colônia e contou com o apoio da população e da imprensa, que regularmente 10 11

Martins, 1980. Martins, 2004.

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incentivava a contribuição para as obras. A própria primeira-dama do Estado, d. Hortência Sodré, colaborou publicamente com o projeto ao abrir o Palácio do Ingá, sede do Executivo, à campanha de doação de fundos empreendida pelas Damas da Cruz de Malta, entidade feminina que congregava senhoras da sociedade lusitana local.12 Dessa forma, o empreendimento dos portugueses angar iou enor me simpatia população emà criação geral, aumentando, de fato, o prestígio do grupo na cidade,davinculando-o do Hospital Santa Cruz, que, até 1980, constituiu-se no mais importante equipamento social da área de saúde a serviço da população local. 13 A localização do referido hospital fornece elementos para outra leitura. Embora já houvesse um terreno doado para sua construção, a diretoria decidiuse pela compra de uma chácara à rua dr. Celestino. A intenção era claramente inserir o maior símbolo material da colônia portuguesa de Niterói no espaço monumentalizado pela reforma urbana da década de 1920: a praça da República, logradouro circundado pelo Palácio da Justiça, pela Assembleia Legislativa e pela futura sede do Poder Executivo estadual, que para lá deveria ser transferido, e ornada por um imponente conjunto de estátuas alegóricas da República. O local escolhido, portanto, materializava de forma cabal a relevância da inserção portuguesa em Niterói, e as estratégias adotadas contribuíram para marcar definitivamente os símbolos portugueses na paisagem local. O prédio majestoso, em estilo gótico manuelino, dotado de torreões e ogivas, evidenciava o ânimo de seus idealizadores, atualizando a altivez daqueles construídos pelos antepassados navegadores. Também a denominação Santa Cruz se reportava àquela dada por Cabral à terra descoberta. No salão nobre destacava-se um gigantesco retrato de d. Afonso Henriques, e na decoração das paredes os retratos dos benfeitores misturavam-se às cordas entrelaçadas, às velas e às cruzes de malta. Concluídas as obras, o Hospital Santa Cruz e a nova sede da Sociedade Portuguesa de Beneficência passaram a destacar-se naquele que viria ser o principal marco de poder da cidade, a praça da República, conferindo-lhe visibilidade extraordinária e reforçando seu prestígio social.

12 13

Martins, 1980. Ibid., p. 7.

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Vista da praça da República, com o Hospital Santa Cruz ao fundo, em fase nal de construção Fonte: Arquivo da Sociedade de Benecência de Niterói.

Porém, a obra, devido à sua grande relevância, em poucas décadas deixou de ser identificada como uma criação dos portugueses, tornando-se um patrimônio comum. Nesse sentido, os registros de novos associados são eloquentes, pois, já no ano subsequente à inauguração do hospital, o número de brasileiros era muito superior ao de portugueses, chegando ao triplo em 1937. É importante observar que muitos associados não eram filhos de portugueses, mas integravam os setores mais favorecidos da população. Vale igualmente mencionar que outros grupos de imigrantes,sobretudo“síriolibaneses” e espanhóis,cujas entidades não tinham condições demanter um hospital, como o faziam na cidade do Rio de Janeiro, tornaram-se também associados. ❚

Os portugueses daPonta D’Areia e da ilha da Conceição

Entre os portugueses de Niterói, pode-se afirmar que a territorialização foi uma das formas pelas quais as distinções de classe se expressaram. Enquanto a

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elite habitava os palacetes em áreas nobres da cidade, sobretudo o centro e algumas áreas dos bairros do Fonseca e do Ingá, até os anos 1950 os trabalhadores e operários localizavam-se preferencialmente na Ponta d’Areia, os pescadores, na ilha da Conceição, e os pequenos comerciantes, em bairros como Santa Rosa, Icaraí e, muito mais tarde, São Francisco. Os trabalhadores lusitanos da localidade conhecida como Ponta d’Areia procuraram dosparticular”. demais portugueses da colônia em Niterói por constituir-sediferenciar-se em um “mundo A região, que concentrava portugueses desde a época de Mauá, mantevese atrativa para imigrantes de todas as origens, enquanto a indústria naval esteve aquecida no estado. No caso dos lusitanos, dizia-se que “os imigrantes eram empacotados em Portugal com a etiqueta Ponta d’Areia para desembarcarem diretamente aqui”.14 Concomitantemente à colaboração prestada na obrado Hospital Santa Cruz, dirigida pelos principais da colônia, os portugueses da Ponta d’Areia edificaram no “seu território” a Igreja de Nossa Senhora deFátima e fundaram a Banda Portuguesa, em 1929, e o Centro Musical da Colônia Portuguesa, em 1930. Outros grupos portugueses cuja territorialidade é visivelmente demarcada na cidade são os pescadores e os operários da ilha da Conceição, situada em frente à enseada de São Lourenço e que, desde 1958, está ligada ao continente, constituindo uma península. A ilha, que em seus primórdios foi propriedade particular dedicada à agricultura e à criação de gado, teve sua história no século XX relacionada ao desenvolvimento da indústria naval, com a presença do estaleiro do Loyd Brasileiro e da firma inglesa Wilson Sons, que, nas décadas de 1920 e 1930, promoveu a ocupação do local por imigrantes italianos, espanhóis e, sobretudo, portugueses trabalhadores da carvoaria da empresa. A vocação natural da ilha e a experiência portuguesa na pesca fizeram daquela localidade um importante centro pesqueiro da região. A insularidade favoreceu o reforço das tradições culturais dos imigrantes portugueses. Em 1935, criaram o Esporte Clube Lusitano, espaço atualmente ocupado por uma escola estadual.15 Por um lado, a festa de Nossa Senhora da Conceição pode ser considerada uma expressão da religiosidade portuguesa, mas, por outro, ultrapassa o seu ca14 15

Nogueira, 1998:37. Encontro com Portugal-Brasil...

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ráter meramente étnico e religioso para alcançar a dimensão de principal festa popular do bairro. Já os imigrantes da ilha da Madeira cumpriram outra trajetória no espaço da cidade, territorializando-se de uma forma ainda mais particular. Submetido à pressão de um mercado de trabalho pouco desenvolvido e bastante disputado, seja por continentais, seja pelos diversos grupos de imigrantes que fizeram da cidade paradeiro, umvalendo-se grupo de madeirenses freguesia Ribeira Bravaseu atuou em rede, de vínculosoriundos e valores da comuns paradaconquistar um espaço próprio e constituir verdadeiros monopólios madeirenses na cidade, como leiteiros e carroceiros, nas décadas de 1930 e 1940, ou como quitandeiros, a partir dos anos 1950 até os anos 1990, além do bordado, ofício exclusivo das mulheres do grupo.16 Tais “lugares”, além de econômicos, foram sobretudo “espaços identitários” desses indivíduos que, em Niterói, nunca constituíram uma associação formal, isto é, um clube ou casa da ilha da Madeira, e pouco participaram dos diversos centros culturais e associações lusitanas da cidade, permanecendo todo o tempo como um grupo invisível no seio da colônia lusitana local. Além disso, para o conjunto da população local e a própria freguesia, tratava-se apenas de mais um estabelecimento português como tantos outros. Além das diferentes formas de territorialização e de expressão da etnicidade, o espaço urbano local também foi marcado por fortes distinções de classe entre os imigrantes portugueses, inclusive aquelas entre os novos lusitanos, recém-chegados de Portugal, e os antigos, enraizados e bem-sucedidos proprietários na cidade.17 ❚

Memórias

Ao decompormos algumas das camadas de memória, verificamos que o processo de territorialização portuguesa, ao adotar diferentes estratégias, repercutiu em questões que se fazem presentes na vida de Niterói para além das diferenças internas, embaladas por regionalismos característicos da imigração lusitana. Nesse aspecto, a construção da sede da Beneficência Portuguesa e do Hospital Santa Cruz em terreno sobranceiro à praça da República, sede do po16 17

Corte, 2002. Corte, 2008:159.

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der, é bastante simbólica, pois revela a estratégia de inserção naquele espaço em busca da visibilidade social almejada. Entretanto, naturalizados pela cidade, os imigrantes dessa nacionalidade tiveram suas particularidades internas ignoradas: continentais ou ilhéus, proprietários ou simples trabalhadores e até ricos ou pobres, todos eram reconhecidos genericamente como portugueses. Nota-se, também,emque a parceria entre osdediversos grupos portugueses e a cidade traduziu-se formas diferenciadas apropriação dode espaço urbano por esses imigrantes e na construção de lugares de memória diversamente percebidos pela população local. Se, de um lado, cada grupo português marcou com sinais particulares determinados bairros de Niterói, como o centro, a Ponta d’Areia e a ilha da Conceição, de outro, a cidade se apropriou das obras que eles construíram, incorporando-as ao patrimônio comum, como é o caso do Hospital Santa Cruz. Tal situação diz respeito não apenas ao patrimônio material, mas também cultural. As festas de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora de Fátima, celebradas anualmente na ilha da Conceição e na Ponta d’Areia, também apresentam as mesmas características: transcendem o grupo étnico que as criou e as próprias comunidades locais, passando a integrar o calendário niteroiense. ❚

Capa de publicação da Prefeitura Municipal de Niterói por ocasião do Encontro com Portugal-Brasil 500 anos (1999), com destaque, na parte inferior, para Portugal Pequeno Fonte: Prefeitura Municipal de Niterói.

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Aliás, a Ponta d’Areia, por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, foi incluída no projeto de obras e melhorias urbanas da prefeitura municipal e mereceu destaque especial durante os festejos, recebendo em todos os veículos de divulgação locais, municipais ou privados a denominação Portugal Pequeno. A força da propaganda foi tão intensa que o local assim denominado passou a Aserhistória um dosdelugares memórias oficiais de Niterói. uma de cidade, portanto, contém um conjunto de memórias que ao serem decompostas revelam a trajetória dos grupos que a ocuparam, ou como metaforicamente foi descrito por Ítalo Calvino, os arranhões, serradelas, entalhes e esfoladuras, que a marcaram. Tais sinais são indicativos dos arranjos sociais que envolveram imigrantes, nacionais, minorias ou maiorias em diferentes conjunturas temporais, e das formas como o poder público envolveu-se nesse processo. ❚

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7 ❚

Memória e historiograa no

Oitocentos: a escravidão como história do tempo presente*

Hebe Mattos

Como exercício para pensar as relações entre memória e historiografia, proponho uma releitura da abordagem da escravidão na historiografia brasileira oitocentista de princípios XX, tomando comoposterior: exemplo História dois dos trabalhos de emaior influênciadonaséculo historiografia acadêmica geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, publicado srcinalmente em 1854 (primeiro volume) e 1857 (segundo volume),e Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, de 1907, influente síntese da história do Brasil redigida por Capistrano ao mesmo tempo em que produzia as notas críticas do primeiro volume da História geral do Brasil. Como bem reconheceu Capistrano, Varnhagen foi o mais erudito e bemformado dos historiadores brasileiros, nos termos propostos pela cultura histórica oitocentista.1 Seu gosto pelos arquivos o fez descobrir inúmeros documentos e textos inéditos. Ao procurá-los, tinha por objetivo formar uma base erudita para a memória pátria, o que de certa forma conseguiu. Pode-se afirmar que * A pesquisa e a reflexão que deram or igem a este texto desenvolveram-se durante estágio de pós-doutorado no exterior, com apoio do CNPq, no Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atlantique Sud, afiliado ao Centre Roland Mousnier, da Universidade de Paris IV — Sorbonne, a convite de Luiz Felipe de Alencastro e em colaboração com o Centre International du Recherches sur les Esclavages — Acteurs, systèmes, representations (Ciresc) do Centre Nacional de Recherches Scientifique (CNRS)/ École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS). 1 Abreu, [s.d.], v. 1

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a História geral do Brasil tornou-se um dos textos de maior influência para a consolidação de uma narrativa canônica da história nacional, como o atestam o manual do Colégio Pedro II escrito por Joaquim Manoel de Macedo e intitulado Lições de história do Brasil,2 que teve na obra de Varnhagen sua base historiográfica, e a republicação da mesma, na primeira metade do século XX, com notas e comentários de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia.3 Suaera questão de resto, histórica de quasebaseada toda a em historiografia oitocentista, comocentral, construircomo, uma narrativa documentos e 4 textos de época, conferindo suporte à identidade nacional. História-memória, mas que devia se apoiar em fatos bem-documentados e por isso competia com outras narrativas e formas de apropriação do passado. Apesar de sua reconhecida superioridade, em termos de aparato erudito, em relação a outros textos produzidos por autores brasileiros, a obra de Varnhagen esteve longe de ser consensual entre os contemporâneos. Não foram poucos os que criticaram seu continuísmo, que tornava quase indistinta a fronteira entre a história do Brasil e a da colonização portuguesa na América.5 Na narrativa de Varnhagen, até mesmo a linha divisória entre a América portuguesa e o Império do Brasil mostrava-se imprecisa. Na primeira edição da obra (1854, 1857), começou o primeiro volume com a expansão portuguesa no Atlântico e terminou o segundo com a carta de abdicação de Pedro I, em 1831. Na segunda edição, preparada ainda em vida pelo autor, cedeu parcialmente às críticas de alguns contemporâneos,6 iniciando o livro com a descrição da terra e os capítulos sobre as populações indígenas (caps. 7 a 10 da primeira edição), e concluindo o segundo volume com o capítulo sobre os escritores e viajantes do período joanino.7 Para Varnhagen, a nacionalidade brasileira era filha direta da presença portuguesa enraizada na América.

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Macedo, 1865. Sobre o tema, ver Mattos (2000).

Varnhagen, [19-]. Sobre o tema, ver Wehling (1999). 5 Sobre as críticas então feitas a Varnhagen, ver Leite (1982:15); Wehling (1999, cap. 8); e Gontijo (2006, esp. caps. 1 e 6). 6 Abreu, [s.d.], v. 3. Originalmente publicado naGazeta de Notícias, dos dias 21, 22, 23-11-1882; Rodrigues (1957:75). 7 Varnhagen retirou do segundo volume as narrativas referentes aos eventos posteriores à revolução pernambucana de 1817, que foram posteriormente incorporados à História da Independência do Brasil, publicada postumamente.Ver Varnhagen (1981). 3 4

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Do ponto de vista historiográfico, a História da América portuguesa,8 publicada em 1730 pelo erudito baiano Sebastião da Rocha Pitta, apresentou-se como principal texto de interlocução da História geral. O historiador brasileiro citou pouco e não poupou críticas a History of Brazil, de Robert Southey, texto publicado em três volumes na Inglaterra, entre 1810 e 1819,e única obra comparável à de Varnhagen, do ponto de vista da erudição.9 da publicação além dos trêshistória volumes Históriaoutros geral, títulos History of de Southey, já haviadaalguns sobre dode Brasil publiBrazilAntes cados no exterior. Entre os mais conhecidos no país estavaHistoire du Brésil, de Alphonse Beauchamps (1815), que teria de fato plagiado o primeiro volume do poeta inglês. Nela se baseara em grande parte o Compêndio de história do Brasil publicado pelo general Abreu e Lima em 1843. Tal compêndiofoi acusado de plágio por Varnhagen, com o que se estabeleceu intensa polêmica entre os dois historiadores. Também em francês, o Resumé de l´histoire du Brésil, de Ferdinand Denis (1825),10 era bastante conhecido dos letrados brasileiros e inspirou o manual escolar de Henrique N. Bellegarde (1831). Os textos franceses, bem como os três volumes de Southey, dedicavam muito mais espaço à escravidão e aos costumes dos grupos indígenas e africanos escravizados do que os compêndios e manuais brasileiros neles inspirados. Para o olhar estrangeiro, a escravidão africana e a presença indígena marcavam o exotismo e a peculiaridade do país. É bem conhecida dos historiadores brasileiros a tese do naturalista alemão Von Martius, ganhadora do concurso sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”, proposto pelo então recém-criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1844.11 Para mais de um comentarista, ela prefigurava a construção que Gilberto Freyre (1933) formularia cerca de 100 anos depois, ao propor que a história do Brasil deveria ser escrita levando-se em conta o encontro de três raças: a portuguesa, a ameríndia e a africana. 12 A perspectiva de Martius não esteve, entretanto, ausente da produção brasileira oitocentista. O Compêndio de história do Brasil do general Abreu e Lima (1843), ao veicular o nativismo pernambucano em sua leitura da guerra colonial Pitta, 1880. Southey, 1810, 1817 e 1819. Sobre essa obra, ver Dias (1974). 10 Ver também Denis (1846). 11 Martius, 1845.Ver também Guimarães (1988); e Guimarães (1995). 12 Ver também Rodrigues (1957, cap. 5); e Schwartz (1997:xviii-xix). 8 9

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contra a presença holandesa em Pernambuco, incorporava, ainda que de forma tímida, heróis de srcem negra e indígena à história pátria. 13 E, segundo diversos comentadores, apesar das críticas a ele dirigidas, Varnhagen teria se esforçado para seguir a receita de Martius ao redigir a sua História geral.14 Dedicou três capítulos aos povos indígenas, seus usos e costumes, e muitos outros às guerras travadas contra eles. E não se furtou a analisar a contribuição do que chamou, em trechos, deos“colonização” africana, cujoevigoroso braço deve Brasilalguns principalmente trabalhos do fabrico do “a açúcar, modernamente os da o cultura do café”.15 Que tipo de conhecimento produziu o livro de Varnhagen sobre aquela colonização? Segundo a História geral, a colonização africana tinha sua srcem em toda a antiga Nigrícia (Costa Atlântica, Contra Costa e Sertões da África), e os africanos chegados ao Brasil srcinavam-se de diferentes nações, algumas de mulçumanos ou cristãos, a maioria de gentios e idólatras.16 As primeiras levas teriam vindo como escravos diretamente de Portugal, com seus amos. Depois, passaram a ser diretamente vendidos para as plantações de açúcar das Américas, aprisionados nas guerras internas ou vendidos pelas próprias famílias em caso de fome. De maneira geral (pelo menos no Brasil), considerava quemelhoravam eles de sorte.17 O livro reconhecia bens e males provindos da África e do cativeiroestrangeiro. Entre os bens, a influência africana na agricultura e nas formas de beneficiamento dos metais, na culinária e na língua portuguesa. Entre os“males, os hábitos menos decorosos, seu pouco pudor, e sua tenaz ousadia”, mas, principalmente, a própria experiência degradante do cativeiro hereditário, só atenuada, segundo Varnhagen, pela presença de um “bom senhor”, sem o qual “o africano boçal pereceria à míngua e o mesmo sucederia ainda hoje a muitos deles se momentaneamente os libertássemos antes de os ir preparando para com o tempo fazer a seus descen18 dentes o bem que seja compatível, em relação ao Estado e à família”.

Sobre o tema, ver H. Mattos (2007); e S. R. de Mattos (2007). Essa é a opinião de Capistrano de Abreu e José Honório Rodrigues. Arno Wheling (1999:200) afirma que o próprio Varnhagen negava essa assertiva. 15 Varnhagen, 1854:182-183. 16 Ibid., p. 183-184. 17 Ibid., p. 184. 18 Ibid., p. 185. 13 14

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Vale a longa citação para enfatizar o que tentei sugerir com o título deste capítulo. A noção de história do tempo presente,como a entendemos hoje, traz para o centro da reflexão a possibilidade de pensar historicamente fenômenos ainda disputados pela historiografiacom a memória coletiva e o testemunho individual. Passados presentes na vida política dos contemporâneos, em que memória e história dialogam diretamente na produção do discurso historiográfico. muitos aspectos, é o caso da escravidão como tema histórico séculoEm XIX. Se suas srcensesse remotas a tornavam matéria obrigatória da histo-no riografia, seu caráter contemporâneo a transformava em questão política, e não propriamente historiográfica nos termos da cultura histórica oitocentista. A obra de Varnhagen é paradigmática nesse sentido. Nela, muitas vezes o historiador e o publicista se confundem. A escravidão africana é questão histórica, mas também problema político contemporâneo diante do qual o autor se posiciona. O mesmo vale para sua polêmica abordagem dos povos srcinários. Ao tratá-los historicamente, o autor nunca deixava de ter em mente o desafio político imposto pela presença de povos indígenas, considerados por ele como não civilizados, nas áreas de fronteira do país. Entre os opositores da abordagem de Varnhagen, o indianismo romântico configurou-se como movimento de dimensões políticas e culturais importantes à época da publicação do primeiro volume da obra. Uma leitura atenta do mesmo evidencia a construção do texto em disputa direta com tais opositores, chamados por ele de adeptos do “incoerente sistema do patriotismo caboclo”.19 Foram tantas as críticas ao enfoque nele adotado em relação aos indígenas que, ainda em 1857, quando da publicação do segundo volume, Varnhagen se sentiu obrigado a escrever toda uma nova introdução para respondê-las.20 Já no prefácio do volume, afirmou a legitimidade de seu ponto de vista, que caracterizou como cristão e monarquista, defendendo-se das acusações de parcialidade em relação às contribuições de negros e índios à nacionalidade brasileira. No afã da polêmica, no texto de Varnhagen os africanos perdiam a condição de colonizadores, a qual ficava reservada apenas aos portugueses.21 Combinando elementos presentes desde o século XVIII no pensamento católico ilustrado, incluindo citações do filósofo francês Buffont, precursor do Varnhagen, 1857:211. Ibid., p. xiv-xxviii. 21 Ibid., p. ix. 19 20

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racismo científico, Varnhagen dizia-se pessimista em relação às possibilidades morais e civilizacionais dos índios, sem que fossem coagidos pelo uso da força, e fazia o elogio do papel civilizador da escravidão e da expansão imperial europeia. Apesar de geralmente descartar explicações racialistas (“lembremonos que são homens como nós”)22 e preferir pensar sua narrativa histórica em termos civilizacionais, nos textos introdutórios considerou os índios selvagens, 23

verdadeiros “homens menosafricanos”, evoluídos24 no plano civilizacional do que aqueles a quemcaídos”, chamavamuito de “nossos considerados bárbaros, mas não selvagens. ParaVarnhagen, autoidentificadocomo “um sócio do Instituto Histórico do Brasil nascido em Sorocaba”, a escolha de determinado ponto de vista era algo imprescindível à escrita da história do Brasil no contexto político oitocentista: Um índio que escrevesse a história da conquista não teria que cansar-se muito para nos dizer que para ele tudo quanto haviam feito os europeus fora violência, ilegitimidade, usurpação; e inscrever estas três palavras no frontispício de um livro em branco satisfaria a sua missão, sem rebuscar documentos nos arquivosinimigos; pois que lhe faltaria tempo para contar-nos a miséria, degradação e antropofagia dos seus. Eis a histórianacional se os índios do mato conquistassem todo o Brasil, e se tivesse por chefe um Ambiré e por armas uma frecha índia espetando a caveira de um cristão. Um infeliz africano, que escrevesse a história do cativeiro hereditário, poderia também compendiar a sua obra exclamando: engano, crueldade e escravidão! E nestas três palavras se deveria resumir a história da república do Haiti, anterior ao atual domínio nela da raça africana, se a sua forma de governo, os seus códigos, e a sua língua permitissem ao historiador haitiense renegar de todo da civilização francesa.25

Partindo do ponto de vista do colonizador português e de uma perspectiva racializada, apresentava sem meias-palavras o branqueamento como horizonte da nação: Varnhagen, 1857, p. xvii. Ibid., p. xvii. 24 Ibid., p. xxi. 25 Ibid., p. xxv-xxvi. 22 23

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Se quereis saber que elemento de povoação predomina atualmente no Brasil, percorrei as cidades e as vilas.Vereis brancos de tipo europeu, vereis alguns negros, vereis gente procedente destes dois sangues, e raramente, numa ou noutra figura, encontrareis rasgos fisionômicos do tipo índio, aliás por si bem distinto. E isto não porque se exterminasse esta raça, e sim porque eram os índios em tão pequeno número no país que foram absorvidos fisicamente pelos outros dois elementos, como foram moralmente. pelo que respeita ao presente. Quando ao futuro meditaio no desejo que tendesIsto de promover a colonização europeia, na necessidade reconhecida de a favorecer, e nas providências que já estamos para isso tomando, e dizei se a nação futura poderá ser índia ou conga.26

Mais do que confirmar a perspectiva elitista e de fundo racista do autor, tais parágrafos revelam a existência de divergências políticas entre os homens daquele tempo quanto à forma de escrever a história do Brasil e quanto ao lugar a ser ocupado nessa narrativa por indígenas e africanos escravizados. Varnhagen escrevia na defensiva e, na segunda edição da obra, como já foi assinalado, cedeu a algumas críticas, passando a iniciar o volume com a descrição da terra e dos usos e costumes dos povos srcinários, em vez da expansão ibérica no Atlântico. Além disso, do ponto de vista da história institucional, a escravatura — indígena ou africana — aparece como questão importante na obra. Era difícil ignorá-la num país onde a escravidão era reconhecida por lei e onde se tolerava de maneira escandalosa o comércio ilegal de cativos africanos enquanto Varnhagen redigia a sua História geral. Coerente com o texto do historiador de uma nação que se queria moderna, apesar de ainda escravista, o livro defende um ponto de vista francamente favorável à legitimidade da escravidão em algumas condições; ainda que crítico quanto à maneira como se estruturou a escravidão africana, baseada no tráfico transatlântico, ao qual se opunha. O autor mostra algum apreço pelas novas teorias racialistas, como se pode ver nos textos referentes aos indígenas e aos africanos, mas considerava que precisavam “ainda ser submetidas a novas observações para dar resultados seguros e simples, capazes de serem aproveitados em uma história civil”.27 E não precisava delas para legitimar a escravidão historicamente e para advogar a impossibilidade de uma liberdade imediata para os escravizados 26 27

Varnhagen, 1857, p. xxiv. Ibid., p. 183.

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no país. Segundo ele, a escravidão era “princípio antigamente admitido por todos os povos (...) ainda hoje [reconhecido por] algumas nações da Europa, e até o tolera o Evangelho”.28 Seu elogio à colonização portuguesa e sua defesa do escravismo em determinadas circunstâncias históricas foram alvo de intensas críticas. Em 1869, o livro de Southey foi finalmente traduzido para o português e apresentado como alternativa à História geral por seu abolicionista antiportuguês. era o também anticatólico, o livro foi tom anotado por um epadre, a fim de Como diminuir impacto do ponto de vista protestante presente na obra.29 Apesar das polêmicas, o conhecimento produzido por Varnhagen sobre a história institucional da escravidão no Brasil ainda guarda atualidade e merece ser revisto. No primeiro volume da História geral, os conflitos entre colonos, representantes da Coroa portuguesa e jesuítas em relação à escravidão indígena e seus desdobramentos legais são elementos privilegiados na narrativa empreendida. Tal abordagem, tomada cronologicamente, leva o autor a desenvolver uma espécie de tese — não enunciada como tal em função do estilo narrativo da obra — sobre a gênese da dependência brasileira em relação ao tráfico atlântico de escravos, então um problema político candente no país. Segundo a História geral, a escravidão hereditária com direito à compra e venda do escravizado vinha da tradição romana, e Lisboa era um dos principais portos negreiros da Europa nos séculos XV e XVI.30 A mesma base jurídica legitimava a possibilidade da escravidão africana ou indígena, que podia se fazer por guerra justa ou por resgate de pessoas escravizadas legalmente dentro da lei dos gentios. Ainda que obviamente não utilizasse o conceito de cultura política, podemos dizer que Varnhagen associava a legitimação da escravidão indígena ou africana à cultura jurídico-política vigente no império português à época da conquista e colonização do Brasil. Da mesma forma que os jesuítas denunciaram os excessos da escravização indígena por cristãos nas Américas, outros religiosos fizeram denúncias semelhantes em relação às práticas de escravização na África, como é destacado no Varnhagen, 1854:181. Southey, 1862. 30 Como texto legais, Varnhagen (1854:181-182) cita as Ordenações Manuelinas (“como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos”) e as Ordenações Filipinas (“quando os que compram escravos, ou bestas os poderão enjeitar por doenças, ou manqueiras”). 28 29

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texto. Ao narrar os conflitos entre jesuítas e colonos ao tempo do governo de Mem de Sá,Varnhagen transcreve integralmente o famoso texto de frei Thomas de Mercado (1569) sobre os abusos do tráfico de escravos na África. 31 Nele se denunciam o caráter negreiro das guerras travadas no continente africano, a prática dos batismos em massa, os horrores cometidos nos portos de embarque e continuados nos navios. Propunha como solução proibir aos cristãos de participar do comércio de escravos no continente africano. Varnhagen dá destaque ao texto de Mercado para enfatizar o envolvimento de algumas ordens religiosas, em especial a dos jesuítas, na remessa de escravos africanos para a América. Segundo a História geral, as repetidas proibições da escravidão indígena se deveram à influência das Antilhas, onde se teria comprovado a melhor resistência dos africanos ao extenuante trabalho do cultivo da cana-de-açúcar, e aos interesses negreiros dos jesuítas, assim literalmente referidos.32 A preponderância de tais interesses teria levado à proibição da escravidão indígena na América e à generalização do tráfico negreiro no Atlântico, comnefastas consequências para o Brasil, ainda às voltas com medidas repressivas que concretizassem sua extinção definitiva três décadas depois da Independência. Ainda guarda interesse e atualidade a interpretação da institucionalização da escravidão africana no país a partir desenvolvimento das plantações de cana-de-açúcar nas Antilhas e da adesãodojesuítica ao tráfico africano como forma de evangelizar os africanos e proteger os povos srcinários da América da ação escravizadora dos colonos. O argumento foi parcialmente retomado (especialmente a importância da tese de concentrar a ação evangelizadora num só continente para a legitimação do tráfico atlântico) por Luís Felipe de Alencastro (2000) em texto que se tornou referência para o estudo da formação do Brasil no contexto do Atlântico Sul. As informações e análises contidas na História geral referentes à presença da instituição da escravidão na legislação e nas práticas tradicionais portuguesas, ao papel de Lisboa como porto negreiro antes da consolidação do sistema de plantation nas Américas, bem como a abordagem institucional interligada entre a escravidão indígena e a africana constituíram a base de um primeiro saber histórico sobre a escravidão no Brasil, fortemente ancorado no que hoje podemos conceituar como cultura política do antigo regime português, a qual teria importantes desdobramentos nas abordagens historiográficas posteriores. 31 32

Tratos y contratos de mercadores(apud Varnhagen, 1854:262). Ibid., p. 178-182.

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Mas, do ponto de vista político, a análise teria vida curta. A dependência do tráfico atlântico, que o país ainda se esforçava por extinguir, era apresentada como consequência indesejável da vitória jesuíta sobre os colonos, impedindo a continuidade da escravidão indígena no país. Também a existência de povos indígenas ainda selvagens nos sertões seria consequência daquela derrota. Segundo o polêmico ponto de vista, tais índios poderiam ter sido e ainda deveriam ser

civilizados a partir de formas variadas de trabalho compulsório. Na década de 1870, uma defesa tão explícita da escravidão já era considerada intolerável por muitos críticos. Sem falar na falta de estilo e de organização narrativa do texto da História geral, característica que, para alguns, a aproximaria da crônica, e não da história.33 Caberia a Capistrano de Abreu reabilitar Varnhagen como historiador através de uma série de apreciações críticas sobre a sua obra que culminariam com as notas críticas ao primeiro volume da História Geral, redigidas ao mesmo tempo em que escrevia os Capítulos de história colonial. Em fins do século XIX, Capistrano não estava dissociado da concepção de história-memória ainda predominante, mas buscava fazer para o Brasil “uma história íntima, que deveria mostrar como aos poucos foi se formando a população, devassando o interior, ligando entre si as diferentes partes do território, fundando indústrias, adquirindo hábitos, adaptando-se ao meio e constituindo por fim a nação”.34 Para ele, o desbravamento das vastas extensões de terra da América, com a adaptação do português ao novo meio, misturando-se com os povos nativos e incorporando muitas de suas técnicas e conhecimentos, seria o principal elemento da transformação da colônia portuguesa num novo tipo de sociedade. Nessa história íntima do país, a escravidão e o tráfico atlântico ocupavam lugar secundário, seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista étnico-cultural. Em polêmica pública com Silvio Romero, intérprete que enfatizava a importância da escravidão africana na formação do povo brasileiro, Capistrano atribuía o que havia de diverso entre “o brasileiro e o europeu (...) em máxima parte ao clima e ao indígena”.35 Textualmente, considerava que o Ao estudar a questão da narrativa na historiografia oitocentista e na obra de Varnhagen, em particular, Schapotchnik (1992) recupera o debate sobre crônica e história. 34 Abreu, 1976a:106. 35 Ibid., p. 106. 33

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caráter nacional brasileiro, em sua diferenciação esentimento de superioridade em relação ao português, teria se formado, mesmo que imperfeitamente, na conquista e desbravamento do sertão, ao longo do século XVII. Manteria essa tese na sua principal obra, Capítulos de história colonial, publicada em 1907: Por outra parte transparece o segredo do brasileiro: a diferenciação paulatina do reinol, inconsciente tímida a princípio, resoluta e irresistível mais tarde, pela integraçãoe com a natureza, comconsciente, suas árvores, seus bichos e o próprio indígena.36

Vale acompanhar o diálogo entre aHistória geral e os Capítulos, no que se refere ao lugar ocupado em ambas as obras pela temática da escravidão. Como na segunda edição do livro de Varnhagen, o de Capistrano se inicia com um capítulo descrevendo a terra e seus habitantes srcinários, entendidos como parte integrante daquela mesma natureza, antes da chegada de portugueses e africanos, tratados no segundo capítulo como fatores exóticos. Para Capistrano, o Brasil se define primordialmente pelo território, e os habitantes srcinários são partes constitutivas dessa paisagem srcinal. Paisagem que seria transformada e transformaria o colonizador português (e secundariamente o africano), dando origem ao brasileiro.Também no texto de Capistrano, a escravidão, do ponto de vista institucional, é vista como simples continuidade da estratificação sociojurídica portuguesa transplantada para a América. Escrevendo poucos anos depois da abolição, com base numa cultura histórica em que a noção de história do tempo presente era simplesmente inexistente, Capistrano não faz da instituição um problema historiográfico. Trata-a como um fato demográfico, jurídico e também econômico. Apesar da perspectiva processual, que faz do livro e do autor precursores da historiografia moderna, do ponto de vista da instituição escravista predomina uma quase naturalização da temática, apesar de sua presença constante na narrativa. A palavratráfico aparece diversas vezes sem qualquer qualificativo (negreiro, africano, de escravos). O texto pressupõe da parte do leitor um conhecimento prévio do seu uso com referência ao comércio atlântico de escravos, como se havia generalizado no Brasil ao longo do século XIX.

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Abreu, 1988:206.

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No terceiro capitulo (sobre os descobridores), o papel dos portugueses no comércio de escravos, fossem eles indígenas ou africanos, entre a Europa e a África é registrado sem espanto. A nauBretoa, armada por Fernando de Noronha e outros cristãos novos em 1511 para Cabo Frio, podia “resgatar papagaios, gatos, e, com licença dos armadores, também escravos; vedado era o comércio de armas de guerra”. Segundo esse capítulo, “pau-brasil, papagaios, escravos, 37

mestiços, condensam a obra, entendido das primeiras décadas”. O fato de que o Brasil como o território srcinal que daria origem à futura nação, atuara como espaço vendedor de escravos, antes de tornarse comprador, sempre chamou a atenção de Capistrano. A constatação aparece com destaque em sua tese sobre o Descobrimento do Brasil.38 Somente com o estabelecimento da colonização efetiva o território deixaria de ser fornecedor de cativos para tornar-se comprador. Acompanhando Varnhagen, deu destaque à prática da escravidão indígena e identificou sua srcem jurídico-institucional na legislação portuguesa, ainda que não conferisse a mesma ênfase ao papel jesuíta na consolidação do tráfico atlântico. Preferiu destacar seu papel positivo na repressão à escravização dos povos srcinários. Segundo Capistrano, os escravos indígenas “auxiliavam extraordinariamente aos que começaram a vida nestas terras”. 39 Os Capítulos contêm uma narrativa vívida da escravização indígena pelos chamados bandeirantes, caçadores de gente cujos comboios de escravos amarrados uns aos outros serviam também como carregadores. Descrição em tudo semelhante à organização interna do tráfico de escravos no continente africano, ainda que essa informação não seja assinalada pelo autor. Em claro diálogo com Varnhagem, mas sem abordar a margem africana, perguntava: “compensará tais horrores a consideração de que por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”.40 Capistrano não atribuiu à atuação jesuíta o declínio da escravidão indígena e o crescimento da importação de africanos. Em vez disso, pioneiramente pôs em destaque o desastre demográfico que se seguiu ao contato, assinalado como fato “misterioso e até agora inexplicável, que condena ao desaparecimenAbreu, 1988:69-71. Abreu, 1976b. 39 Ibid., p. 98. 40 Ibid., p. 146. 37 38

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to os povos naturais postos em contato com povos civilizados”. Na narrativa, o desaparecimento demográfico dos índios teria trazido como consequência “o aumento da importação africana”.41 A psicologia dos diferentes povos formadores da nação,como sugerido por Martius, agora em diálogo com o cientificismo cada vez mais em voga no final do século XIX, ocupa lugar de destaque na análise, com maior ênfase para o papel de portugueses indígenas. todo modo, Capítulos odeafricano se fará presente. E, enuma novaDe perspectiva emtambém relação ànos abordagem Varnhagen, a mestiçagem aparecerá como especificidade nacional — a ser valorizada como característica diferenciadora da experiência portuguesa metropolitana, e não como forma de branqueamento. O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito Antonil.42

O texto de Capistrano contribuiu também para estabelecer alguns estereótipos largamente difundidos nos livros didáticos a partir de então, como o da maior resistência do africano em relação ao trabalho, comparativamente ao indígena.43 Nos Capítulos de história colonial, as referências à escravidão são quase sempre narrativas laterais, sem maior ênfase interpretativa. Mesmo assim organizaram um efetivo saber sobre a história da escravidão como prática e instituição, o qual dialogava com aquele antes produzido por Varnhagen. Ao interpretar o declínio da escravidão indígena e o crescimento da escravidão africana, relacionando-os ao desastre demográfico dos povos srcinários que se seguiu à colonização efetiva do Abreu, 1976b:96-98. Ibid., p. 60. 43 Ibid., p. 60: “os primeiros negros vieram da costa ocidental, e pertencem geralmente ao grupo banto; mais tarde vieram de Moçambique. Sua organização robusta, sua resistência ao trabalho indicaramnos para as rudes labutas que o indígena não tolerava. Destinados para a lavoura, penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama de leite e pela mucama, e tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa.” 41 42

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litoral, Capistrano inaugurou uma vertente interpretativa duradoura no discurso historiográfico.44 De fato, como tem sido ressaltado por muitos comentadores, Capistrano seria reivindicado como antecessor por quase toda a historiografia que se lhe seguiu, seja ela considerada tradicional ou revisionista.45 Nos Capítulos, a abordagem sobre a guerra holandesa, ainda que ocupe apenas uma pequena parte do livro, em flagrante contraste com os vários que lhe dedicou (1951), Varnhagen na História Buarque geral, comoumbem de Holanda construiu, por exemplo, novoressaltou cânone Sérgio da historiografia nacional que seria exaustivamente repetido em quase todos os livros didáticos de história do Brasil até os anos 60 do século XX. Segundo ele, Holanda e Olinda representavam o mercantilismo e o nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como Henrique Dias, mamelucos, mulatos caribocas, mestiços de todos os matizes combateram unidos pela liberdade divina.46

De fato, Capistrano, juntamente com outros autores da chamada Primeira República, está na srcem da celebração do mito das três raças, em geral unilateralmente atribuído a Gilberto Freyre e seu clássico Casa grande e senzala.47 Examinando superficialmente o povo, discriminam-se logo três raças irredutíveis, oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproximação nada favorecia (...). Só muito devagar foi cedendo esta dispersão geral, pelos meados do século XVII. Reinóis e mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamelucos, mulatos, caboclos, caribocas, todas as denominações, enfim, sentiram-se mais próximos uns dos outros, apesar de todas as diferenças flagrantes e irredutíveis, do que do invasor holandês: daí uma guerra. (...) Em São Vicente, no Rio, na Bahia, e em outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.48 Entre outros, Schwartz (1988, cap. 2); e Cardoso (1975). Novais, 1997; Gontijo, 2006, cap. 7. 46 Abreu, 1988:139. Sobre a citação dessa passagem em manuais didáticos publicados entre 1930 e 1960, ver Hebe Mattos (2007:223). 47 Sobre as abordagens positivas da mestiçagem e da herança africana na produção intelectual da Primeira República, ver, entre outros, Dantas (2007). 48 Abreu, 1988:139. 44 45

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Ainda assim, apenas indiretamente a escravidão se apresenta como elemento importante na interpretação formulada. O caráter quase naturalizado da abordagem sobre o tema dá bem a dimensão de história do tempo presente de que ainda se revestia a questão,mesmo que tal aspecto não pudesse ser teorizado no contexto historiográfico em que o autor produzia. As abordagens de Capistrano sobre a escravidão no século XIX se estruturam quaseabordagens sempre como crônica e posteriores. opinião política, aindaem quedestaque muitas para vezes prefigurem historiográficas Coloco-as concluir este capítulo. Na cronologia por ele proposta para a história do Brasil em 1882, considerou o ano da extinção do tráfico negreiro, 1850, como marco cronológico do início da história contemporânea do país: “É o período que atravessamos, em que o vapor nos põe em comunicação pronta com a Europa e com as províncias; em que o tráfico terminou e a escravidão agoniza (...); em que há muita coisa que ainda durará longo tempo e que só o historiador do futuro poderá dizer”. 49 Em outro breve artigo sobre o Brasil no século XIX, exercício de história o

imediata, publicado em 1dade janeirocuja de 1900, escreveu umretomada pequenoquase parágrafo de interpretação política abolição, ideia central seria 100 anos depois pela pesquisa histórica: “Entraram, então, em cena os escravos, por êxodos consideráveis das fazendas, e tal eficácia alcançou sua atitude resoluta que aboliram a escravidão em menos de uma semana, sem resistência, e, o que mais é, mesmo sem obstrução, como quem se alivia de um pesadelo (13 de maio de 1888)”.50 O diálogo historiográfico entre a História geral e os Capítulos produziu uma sólida base empírica para a história institucional da escravidão — esta, no entanto, permaneceria por longo tempo naturalizada nas narrativas historiográficas. Lançou, também, as bases da obsessão racial nas interpretações da história do Brasil.metade Essa segunda questão prevaleceria discussão interpretativa na primeira do século XX, seja na vertentecomo do branqueamento propugnada por Varnhagen, seja na formulação do mito das três raças como fundamento da nacionalidade, presente no texto de Capistrano. 49 50

Abreu, [s.d.], v. 3. Abreu, 1977.

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Do ponto de vista das narrativas canônicas da história pátria, ela teria sua srcem na exuberância natural do território, de que eram parte integrante os povos srcinários. Desbravada (a natureza) e civilizados (os índios) pelos portugueses (com a ajuda dos africanos), segundoVarnhagen, transformando-os todos em brasileiros, na versão de Capistrano. Nesse sentido, em ambos os casosdescobrimento o do Brasil manter-se-ia como marco zero da história nacional.Ao longo do século XIX, uma identidade nacional conceito brasileira desenvolvido foi construída por apartir da estruturação um romance Phillippe Joutard edeque nacional, conforme teve na produção historiográfica uma de suas principais vertentes. Varnhagen e Capistrano foram figuras-chave na construção desse enredo. Por outro lado, pelo menos até Gilberto Freyre, quaisquer tentativas de interpretação da cultura política que naturalizava a escravidão, descrita nas duas obras, permaneceram de fora das narrativas canônicas da história nacional. Nos livros didáticos, o ciclo da caça ao índio, naturalizando a escravidão indígena, e os estereótipos racistas em relação ao africano permaneceram sem maiores questionamentos, pelo menos até os anos 1950. Comprovando a modernidade da obra de Capistrano, o contexto pós-escravista se estendeu por muitas décadas. Numa sociedade de ex-escravos e ex-senhores, a escravidão permanecia como história do tempo presente. ❚

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PARTE III



Culturas políticas e lutas sociais

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Cultura e política anarquista em Buenos Aires no começo do século XX* Juan Suriano

Seria difícil negar a importância que as ideias e práticas do campo socialista, seja em sua vertente anarquista, sindicalista, marxista ou socialdemocrata, tiveram para 1

asetores formação de uma cultura operária geraldeecoesão na Argentina em particular. Esses contribuíram ativamente paraem dotar e identidade os trabalhadores através da construção de suas instituições, da provisão de símbolos e rituais, e da organização de suas mobilizações. Sem esquecer a centralidade que adquiriu o peronismo no mundo do trabalho a partir dos anos 1940, a esquerda conseguiu influir sem rivais no movimento operário durante o meio século anterior e con2 servar com maior ou menor êxito alguns nichos ao menos até a década de 1970. Contudo, o anarquismo, principal artífice da organização e mobilização dos trabalhadores entre 1890 e 1910, foi um ator fugaz que decaiu rapidamente

de amplo, Ronaldentendo Polito. por campo socialista o conjunto das forças integrantes do espectro da *1 Tradução Em sentido esquerda argentina do começo do século XX. Misturam-se nesse campo todas aquelas tendências que compartilhavam a noção hegeliana e materialista de que são os homens que com suação a fazem a história. Assim, sustentavam a necessidade de ativar um núcleo político eideológico com o objetivo de orientar e definir o rumo do movimento operário como elemento central da transformação da sociedade. 2 O momento culminante da revitalização das correntes de esquerda no seio do movimento operário se situou em fins dos anos 1960 e começos dos anos 1970 em torno do “Cordobazo”, quando distintas vertentes da esquerda conseguiram se converter, ainda que de modo efêmero, num ator de primeiro plano nas lutas operárias. Ver Brennan (1994); e Gordillo (1996).

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e, por volta dos anos 1930, já havia desaparecido do mapa das ideologias influentes no mundo do trabalho. Claro que qualquer observador desprevenido dos movimentos sociais produzidos na Argentina a partir da grande crise irrompida em fins de 2001 e que se estendeu por boa parte do ano seguinte poderia ter suposto, diante da contundência com que se instalou a frase emblemática dos protestos “que se vayan ”, que estava assistindo a uma ressurreição, se nãolibertárias da estrutura clássica todos anarquismo, ao menos de algo parecido com as ideias inspiradas emdo Bakunin, Kropotkin e outros pais fundadores da doutrina ácrata. Esse clima social antiestatal e antipolítico tinha sido provocado pela aplicação das políticas neoliberais durante os anos 1990, que facilitaram a reconversão industrial e a racionalização administrativa. O resultado mais evidente desse processo foi o crescimento inusitado do desemprego e o empobrecimento acelerado de amplas camadas da população, especialmente a classe operária, que perderam em boa medida os direitos sociais adquiridos ao longo do século XX. Os governantes dos anos 1990 puseram o Estado a serviço das reformas neoliberais, desarticulando o Estado social e deixando desprotegida boa parte dos setores populares. Consequentemente, tanto o Estado quanto o sistema político se viram colocados no olho do furacão e questionados em suas próprias bases. Governo, parlamento, partidos e dirigentes políticos e instituições estatais passavam discretamente a segundo plano e mostravam uma forte perda de sua representatividade. Em consequência, as formas de organização política e de protesto social mudaram, e pareciam inaugurar uma nova época, dando a impressão do ressurgimento de ideias e formas libertárias de protesto. Essa sensação era abonada pelas palavras de ordem condenatórias do sistema estatal e político, pela mobilização espontânea de amplos setores da sociedade, pela horizontalidade e os métodos de ação direta postos em prática nas assembleias de bairro, pelo afã de recuperar empresas e autogeri-las, pelas associações de troca ou pelas formas de organização do movimento piqueteiro.3 Não obstante, hoje sabemos que não se produziu tal ressurgimento libertár io e que a grande maior ia dessas iniciativas, à margem do papel desem-

Embora as práticas piqueteiras possam ter alguma relação com as libertárias, a essência de suas reivindicações vai em outra direção, pois tem a ver com o direito ao trabalho e à proteção estatal, e esta última, como sabemos, marcha em sentido contrário às aspirações libertárias. Sobre as experiências de piqueteiros, ver Svampa e Pereira (2003). 3

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penhado pelas organizações não governamentais, terminaram absorvi das pelas ações do Estado, das organizações políticas ou das instituições assistenciais. Na realidade, a convicção de que era possível o funcionamento de uma sociedade sem Estado e sem sistema político parlamentar foi precisamente uma das causas centrais da decadência e da perda de influência do anarquismo argentino entre os trabalhadores. façamos adendo asituar essa entre afirmação. Houve momento na história Mas, argentina, que um poderíamos o começo do um processo agroexportador e meados da década de 1910, em que o antipoliticismo e o antiestatismo foram traços da prédica anarquista que contribuíram para seu enraizamento entre alguns trabalhadores que se mostravam indiferentes a um sistema político que não os incluía e a um Estado que os ignorava em boa medida, pois não havia assumido a formação de um novo ator social. E este é o tema deste capítulo: tentar explicar e compreender os traços da cultura política anarquista que tornaram possível sua influência entre os trabalhadores e a direção do movimento operário argentino até o momento em que se produz a reforma do sistema eleitoral e uma intervenção mais ativa do Estado nas relações sociais. Para compreender o enraizamento libertário é necessário descrever brevemente os traços notáveis da sociedade argentina do começo do século XX. O processo de modernização econômica iniciado na década de 1870 deu ensejo à criação de cidades como Buenos Aires ou Rosario, que cresciam acelerada e desordenadamente ao ritmo do crescimento da economia e do fluxo imigratório. Nessas grandes urbes se instalaram os serviços e as indústrias. Nesse contexto, configurou-se um mundo do trabalho composto principalmente por mão de obra imigrante e por uma incipiente classe operária concentrada em algumas poucas fábricas de grande porte (frigoríficos, cervejarias, moinhos), na construção, em uma infinidade de estabelecimentos comerciais e, principalmente, no setor de serviços (transporte, portos). A sociedade urbana apresentava certas peculiaridades favoráveis ao desenvolvimento de tendências contestatórias. Entre elas, a mais importante foi talvez a constante mobilidade horizontal e vertical (ascendente e descendente) de um corpo social que tardava a adquirir uma fisionomia definitiva e que, embora permitisse a ascensão e o bem-estar de uma parte importante dos trabalhadores, excluía outra porção significativa que não lograva inserir-se plenamente no mercado de trabalho e via frustradas suas aspirações de progresso. Em correspondência com esse estado de mobilidade permanente e de insatisfação

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operária, os setores patronais relutavam em negociar com as organizações sindicais e assumiam, geralmente, posições irredutíveis diante de demandas como a redução da jornada de trabalho ou a melhoria das condições de trabalho. Por sua vez, os partidos políticos, com exceção do socialismo, faziam parte de um sistema eleitoral fraudulento e excludente, controlado por uma minoria de notáveis, que nem interpelava os trabalhadores nem se preocupava em resolver sua situação. importante era ados escassa presença docomo Estado para ajudar a as resolver osMais problemas maisainda urgentes trabalhadores, o desemprego, más condições de trabalho, a arbitrariedade patronal, a superpopulação no local de trabalho ou a dificuldade de acesso à casa própria. Às vésperas dos festejos do centenário, em 1910, o cônsul italiano em Buenos Aires assinalava a indiferença absoluta do governo diante dos problemas operários, “sem sequer ter em conta 4 que, às vezes, trata-se apenas de questões de equidade e de justiça”. Esses traços alimentaram o descontentamento dos setores menos favorecidos e foram modelando uma zona da sociedade onde era habitual a confrontação social e o enfrentamento. As tensões entre a incipiente classe operária argentina, guiada por suas lideranças ideológicas, e os setores patronais e o Estado não raro adquiriram matizes de extremada violência. Nesse clima de confrontação e crispação, quem atraía em maior medida os trabalhadores insatisfeitos eram os anarquistas, com sua tendência à rebelião permanente, e não os socialistas, que propunham o melhoramento da condição operária através de uma sólida legislação trabalhista — empresa certamente impossível num sistema político como o que imperava no começo do século. O movimento libertário, cuja marca dominante era a ação, e não a reflexão, converteu-se em um ingrediente principal da cultura do conflito e ocupou aquelas zonas de que estavam ausentes o Estado e outras instituições. Enquanto perduraram esses fatores, aos quais devemos somar o fechamento político, as propostas libertárias se mantiveram vigentes e relativamente atraentes para os trabalhadores. Podemos entender melhor essa atração se levarmos em conta a condição de desenraizamento, exploração e marginalização de uma parcela importante dos trabalhadores nessa época. A grande maioria deles eram imigrantes ou provinham do interior do país e eram novos na cidade; viviam num lugar estranho entre estranhos. Esses indivíduos chegavam às cidades com a ilusão de melhorar Nota ao Ministero dell’Interno de Italia, 8-5-1910 (Archivo Centrale dello Statu, MI-PS, AA-GGRR, 1910). 4

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sua situação econômica, o que muitas vezes demorava mais tempo que o desejado para concretizar-se. Cortados os laços diretos com sua terra natal, suas famílias, suas tradições e, em consequência, perdida a contenção comunitária e inclusive familiar, viam-se numa sociedade hostil onde nem o Estado nem a igreja podiam desempenhar esse papel. Porém, essa visão deve ser matizada a partir do importante papel desempenhado pelas instituições étnicas nacionais e regionais no nível associativo que e mutual. Mesmo reconhecendo a ascensão social foi na Argentina um traço saliente que conduziu a médio prazo a um alto nivel de integração, deve-se sublinhar que, durante um bom tempo de suas vidas, os trabalhadores contavam somente com sua capacidade de trabalho, suas ilusões e sua vontade de superação. A necessidade de um espaço de contenção se tornava mais evidente quando se frustravam suas aspirações de ascensão social. Era nessa circunstância que a agremiação (a sociedade de resistência) podia oferecer aos trabalhadores a possibilidade de estabelecer suas reivindicações econômicas mais urgentes. No entanto, os grupos políticos ideológicos contestatórios ofereciam também espaços institucionais, como os centros sociais ou círculos culturais que atuavam como lugares de encontro e sociabilidade, mas também como escola de formação ideológica e política. Embora o primeiro contato entre militantes e trabalhadores se forjasse na experiência cotidiana no local de trabalho (e nas moradias coletivas), era nessas instituições que se criavam laços de pertencimento e participação, que se diluía o individualismo e se constituía a ação coletiva. Nesses lugares se estabelecia a conexão entre os anarquistas e os trabalhadores, e o discurso daqueles podia parecer verossímil para estes. Claro que a adesão dos trabalhadores ao projeto de mudança social libertária era outra questão, pois o anarquismo teve grandes dificuldades para incluílos organicamente na trama de uma cultura política alternativa, devido principalmente ao problemas encontrados na construção de um sistema eficiente de intercâmbios simbólicos com os trabalhadores. O objetivo dos anarquistas era educá-los e concientizá-los para alcançar uma pouco clara emancipação individual e viverem numa sociedade futura onde desapareceriam os fatores de poder e os homens viveriam igualitária e harmonicamente. Contudo, depararam-se com milhares de operários que, antes de apoiar uma incerta emancipação social e política, estavam dispostos a segui-los e a lutar por melhorias que facilitassem seus desejos e esforços de bem-estar econômico e ascensão social. Tampouco contribuiu para essa aproximação o sectarismo demostrado pelos anarquistas

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na militância desenvolvida no movimento operário, ao aprovarem em 1905 a adesão da Federación Obrera Regional Argentina (Fora) aos princípios do “comunismo anárquico” e a obrigatória aceitação desses princípios pelos seus membros. Essa decisão finalista, da qual nunca se retrataram, tornou-se um dos principais obstáculos para alcançarem a unidade do movimento operário e, além disso, com o tempo contribuiu para isolá-los dos trabalhadores. Assim, embora não tenham conseguido convencer os eficazes trabalhadores acompanharem seu projeto emancipador, os anarquistas foram para ar-a ticular suas demandas e interesses de maneira conjuntural e oferecer respostas imediatas para essas necessidades. E ainda adotaram um perfil de defensores a qualquer preço dos direitos individuais de todos os oprimidos, desde os inquilinos até as prostitutas, desde os soldados até os policiais. Mas a defesa desses direitos se relacionava de maneira essencial com as demandas dos trabalhadores para solucionar suas carências básicas, pois dentro do conglomerado dos oprimidos eles eram os atores centrais. A heterodoxia ideológica, a dinâmica de sua ação prática e a “categórica frontalidade” demostrada diante de seus inimigos permitiram ao anarquismo adaptar-se facilmente a uma sociedade de carater aluvial, excessivamente cosmopolita, heterogênea laboralmente e em contínua transformação. As práticas libertárias adquiriram características de uma militância de urgência incentivadas por dois processos diferentes. Por um lado, tratava-se de uma resposta a um processo de mudanças bruscas e aceleradas da sociedade urbana argentina de então, a qual mostrava altos níveis de mobilidade horizontal e vertical que, sem dúvida, geravam enormes dificuldades na hora de articular uma identidade comum dos trabalhadores. Creio que esse tipo de estrutura social tão cambiante contribuiu para incentivar no interior do movimento libertário a escassa reflexão sobre as peculiaridades do caso argentino e a busca de respostas rápidas e contundentes. É como se os ativistas anarquistas fossem compelidos a organizar sua ação com o objetivo de golpear sistematicamente o sistema capitalista e transformá-lo radicalmente. Por outro lado, e mais importante, a militância de urgência encontra sua explicação nas próprias raízes da concepção libertária da ação política. Significava subordinar o pensamento à ação, e o planejamento a longo prazo do processo de mudança ao imediatismo e ao espontaneísmo, clara manifestação de um individualismo a qualquer preço que resistia a qualquer forma de planificação e organização. A urgência, o imediatismo e o aceleramento dos tempos políticos

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constituíam a marca dominante do movimento anarquista local e se justificavam numa concepção, em parte utópica, que dava ênfase a objetivos situados mais além do presente, como a destruição total do Estado, sem etapas intermediárias, como propunha o gradualismo socialista, e sem mediações ao estilo da ditadura do proletariado, tal como sucederia com o partido bolchevique. Estavam convencidos de que era o movimento espontâneo que criava as condições para o progresso ideal anarquista; essa espécie de “movimentismo” privilegiava ação por sidomesma, apontando para a realização repentina de um fim abstrato a 5 que os levava constantemente a impulsionar novas ações espontâneas. Essa forma de perceber a mudança social desembocava numa necessidade de mobilização permanente e de golpear sistematicamente o conjunto das instituições e pilares do Estado burguês (o parlamento, o Poder Executivo, a justiça, 6 Não o exército, a nação), gerando uma espécie de impaciência revolucionária. esqueçamos que um dos lemas preferidos dos anarquistas era “destruir e edificar”, que significava destruir a velha sociedade e edificar a nova. Bakunin era claro a esse respeito: “ponhamos nossa confiança no espírito eterno que destrói e aniquila só porque é a fonte insondável e eternamente criadora da vida. O impulso de destruição é também impulso criador”.7 Era esse impulso destruidor que dava ao discurso e à gestualidade anarquista sua marca violenta: “odiamos!” — clamava um periódico libertário — “O ódio engendra a luta, e o que luta odeia, e quão nobre e humano é lutar por um ideal que sintetiza a verdade!”. 8 Essa marca violenta se achava onipresente nas formas de mobilização; é por isso que, nas numerosas ações de rua de que participavam, os anarquistas extremavam suas posições e tensionavam a situação, procurando sempre superar a mera reivindicação sindical de melhorias de trabalho e dar um passo a mais no sentido de atacar as instituições do Estado. Foi o que sucedeu em vários conflitos durante os primeiros anos do século XX (greves gerais, atos do Primeiro de Maio e, inclusive, no movimento de inquilinos de 1907). Nessas ocasiões, tendiam a privilegiar a concepção do “tudo ou nada” para alcançar seus objetivos de ma-

Sobre o componente espontâneo e insurrecional no anarquismo, ver Bravo (1994). Para Wolfang Harich (1988), os anarquistas são tão impacientes que não podem e não sabem esperar as conjunturas revolucionárias adequadas, pensando a revolução como um acontecimento presente e sempre possível. 7 Apud Woodcock, 1970:141. 8 La Protesta Humana, 1 mayo 1902. 5 6

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neira imediata: “os homens devem ir direto à conquista do pão e não se deterem para recolher migalhas”.9 A militância de urgência praticada pelos anarquistas privilegiava a ação e a propaganda, relegando a teoria à descrição sistemática e reiterada dos problemas sociais de uma perspectiva moralista. Predominava uma interpretação não classista do conflito social que reforçava a ideia, onipresente na obra de Kropotkin, de importância da economia e concentrar atençãodar na menos condenação moral.à10 análise Assim,crítica os males da sociedade capitalista sua residiam na perversão do Estado, na hipocrisia e na ambição da Igreja, na cobiça e no caráter explorador da burguesia ou no sofrimento do proletariado. No contexto de um discurso marcadamente binário,11 esses problemas eram abordados com um alto nível de abstração e intemporalidade que, de alguma maneira, ocultava a especificidade e as características particulares da sociedade na qual os anarquistas estavam operando. Predominava uma tendência a analisar a sociedade concreta e real a partir de vagas postulações gerais, com um elevado grau de abstração que tornava difícil elaborar interpretações medianamente certeiras da realidade. Como transformar uma sociedade se não se prestava atenção a suas peculiaridades? Embora tenham demostrado notável adaptação e pragmatismo diante do conflito social, não conseguiam elaborar diagnósticos certeiros, enquanto repetiam mecanicamente fórmulas nas quais as conotações negativas ou positivas dos atores sociais se diferenciavam pouco da de outros lugares do mundo. Os propagandistas libertários locais eram pouco sutis na hora de definir os diversos grupos sociais, e a crítica era essencialmente moral. Assim, os burgueses, os trabalhadores, os sacerdotes, os militares ou os funcionários estatais apareciam despojados dos matizes locais. Enquanto predominava a denúncia moralista, a observação e a análise da realidade econômica e social estavam quase ausentes de seu discurso. Diego Abad de Santillán (1925), dirigente e historiador do movimento anarquista, censurava em meados da década de 1920 o escasso interesse de seus camaradas em analisar os “problemas do presente”: “vivemos demasiaEl Rebelde, Buenos Aires,12 ene. 1902. Ver nota 14. 11 O mundo que mostravam era de caráter binário (explorados e exploradores, bons e maus) sem demasiados matizes ou srcinalidade na relação opressor-oprimido. A binaridade é uma característica da enunciação anarquista, “um sistema que o estrutura todo, que opera em todos os níveis da oração”. Salain (1995:330). 9

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damente à margem da vida econômica, política e espiritual da época; temos nos retraído demais, desinteressando-nos de tudo o que não tem relação imediata e bem visível com nossas ideias. Isso nos condena mais e mais ao isolamento”. Essa foi uma marca determinante do anarquismo argentino que, contudo, não prejudicou durante esses anos sua relação básica com os trabalhadores. Uma explicação para essa situação de empatia seria que não existe uma relação necessária e mecânica entre a intensidade do conflito social e a crítico intensidade da produção teórica. A coerência e a profundidade do pensamento não são requisitos indispensáveis para atrair as massas para um movimento político cuja base é o protesto social e/ou político. Na Argentina, tanto o radicalismo quanto o peronismo bem poderiam ser exemplos nesse sentido. Tal como sustenta Xavier Paniagua (1992:39), “uma ideologia não é um todo acabado; responde, em todo caso, às necessidades da sociedade, e, não sendo assim, sua capacidade de mobilização desaparece. O importante não é seu grau de coerência teórica, mas sua força de aglutinação e credibilidade”. E o anarquismo era verossímil precisamente porque acentuava esses traços: a escassa predisposição à análise teórica, o predomínio de um discurso ético-moral e a militância de urgência. Sem dúvida, essas características faziam-no, como já foi dito, privilegiar a ação e a prática e estar à disposição ad hoc de qualquer reivindicação popular. Além disso, a postura vagamente policlassista e a oposição a qualquer adesão política parlamentar lhes outorgava certa liberdade e comodidade e lhes permitia concentrar seu discurso (e sua ação) na defesa dos oprimidos e na impugnação em bloco de todo o sistema.12 Assim, nesse curto lapso que começa em meados da década de 1890 e se estende até aproximadamente o início da I Guerra Mundial, o anarquismo plasmou sua influência e certo predomínio entre os trabalhadores organizados:

Ao relegar a análise econômica e priorizar a questão moral, o anarquismo elaborou um esquema de conflito mais flexível que o marxista, pois a causa da divisão social não se achava só no regime de propriedade e salários, mas fundamentalmente no enorme abismo cultural entre os setores sociais, de modo que somente os setores dominantes podiam alcançar o saber. Essa questão ultrapassava, nos termos de Kropotkin, a contradição classe burguesa/classe operária para estabelecer uma dualidade entre pobres e ricos, explorados e exploradores, excluídos e privilegiados, em suma: opressores e oprimidos. Segundo Álvarez Junco (1976:182), “ao introduzir-se o elemento ético-cultural entre os fatores de opressão ou privação, se acrescentam, no mínimo, duas variantes com relação ao enfoque socialista clássico: por um lado, se amplia o grupo de despossuídos (…) por outro, não se considera que a situação se caracteriza pela progressiva polarização das classes, e sim pela crescente possibilidade de superação da tensão graças à inevitável ilustração dos oprimidos”. 12

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liderou numerosas agremiações, controlou a Fora, criou e articulou com sorte diversa uma importante rede de instituições culturais compostas por círculos culturais, centros de estudos sociais, bibliotecas, escolas, teatros e uma profusa oferta editorial que abarcava desde a imprensa periódica até a edição de livros e folhetos. Além disso, construiu um aparato simbólico e ritual com uma identidade bem-definida e vinculada claramente ao mundo do trabalho. Interessa-me deter-me brevemente último tema. Aqui também anarquistas demostraram sua adaptação ao neste processo de formação da classe ope-os rária. Como todo o campo socialista, entendiam que os indivíduos, no dizer de Baczko (1991:44), precisam de “roupagens, signos e imagens, gestos e figuras” para comunicarem-se com os outros e reconhecerem a si mesmos como atores políticos e sociais. Em pouco tempo conseguiram articular um sistema de símbolos e rituais que contribuiu para dotar os trabalhadores de identidade. Esse espaço simbólico se construiu sobretudo a partir da recepção e ressignificação de elementos provenientes do movimento político e social europeu, facilitado pelo cosmopolitismo do mundo do trabalho urbano, cujos trabalhadores eram majoritariamente estrangeiros.13 Esses imigrantes eram portadores de diversas tradições culturais, políticas e ideológicas que contribuíram para a invenção de uma tradição operária vermelha no rio da Prata.14 O anarquismo se adaptou facilmente ao caráter cosmopolita da classe operária, rechaçou a peculiaridade nacional15 e reivindicou a marca internacionalista do movimento operário. Assim, durante as décadas de 1890 e 1900 constituiu-se um espaço simbólico relacionado aos trabalhadores urbanos e à identidade operária cujos símbolos principais (heróis, mártires, bandeiras, estandartes, formas e ritos mobilizatórios) se diferenciavam pouco daqueles que circulavam pela Europa. Contudo, cabe assinalar que a recepção e a adoção dessa simbologia não estiveram isentas de tensões, já que a necessidade de interpelar os setores populares nacionais (especialmente trabalhadores rurais e soldados) impregnou de elementos locais uma parte do discurso e do aparato simbólico libertário. Isso é evidente em particular na produção literária e jornalística de alguns publicistas Por exemplo, segundo o censo de 1895, na cidade de Buenos Aires, os estrangeiros empregados no setor secundario eram 4,5 vezes mais numerosos que os nacionais e o triplo deles em 1914. 14 Sobre as invenções de tradições, ver Hobsbawm (1984). 15 Os anarquistas se opuseram tenazmente às campanhas de naturalização que os socialistas propunham aos trabalhadores para poderem participar nas eleições. 13

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e intelectuais que resgataram a figura do gaúcho e a linguagem do pampa. Para tanto eliminaram aquelas características do gaúcho que consideravam negativas e valorizaram e ressignificaram, por exemplo na figura de Martín Fierro, as conotações positivas, como a luta por justiça e liberdade. Em todo caso, vale sublinhar que o resgate das particularidades locais, como a linguagem gauchesca, não chegou então, apesar dos esforços de publicistas Alberto Ghiraldo, no campo simbólicocomo do movimento libertário,a aocupar julgar um pela lugar trama proeminente de símbolos utilizados em greves, atos públicos, atividades culturais, na imprensa ou na literatura. No contexto de conflito social existente no mundo do trabalho urbano argentino de começos do século XX, foi o espaço simbólico internacionalista e cosmopolita, onde uma classe operária em boa parte imigrante se sentia mais confortável, que contribuiu para dotar o movimento operário local de seu caráter contestatório e confrontador. Os anarquistas apelavam para uma simbologia e rituais que eram considerados armas de luta e gritos de combate para repelir os símbolos e os ritos nacionais incentivados pelo Estado. Pretendiam dotar os trabalhadores portenhos de emblemas e celebrações que contribuíssem, por um lado, para nutri-los de um espírito de rebeldia e de luta, e por outro, de um senso de pertencimento à classe explorada e de uma identidade própria a partir da elaboração (invenção) e afirmação de valores considerados próprios, em contraposição aos valores do sistema capitalista. Esse arsenal simbólico e ritual era amplo e não remetia somente à bandeira vermelha e à comemoração do Primeiro de Maio. Muito mais extenso e complexo, abarcava uma grande e heterodoxa galeria de heróis (próprios e nem tanto), um panteão de mártires da causa revolucionária, ritos fúnebres, a elaboração de calendários onde se substituía o hagiológio católico por comemorações de caráter laico e revolucionário, hinos e cancioneiros populares. Dessa forma buscava-se conferir aos trabalhadores um sentido de pertencimento e fidelidade aos valores universais do proletariado: a bandeira vermelha (ou vermelha e negra), o Primeiro de Maio e os heróis e mártires do panteão revolucionário que tinham se imolado ou dado sua vida pelos oprimidos. A criação-invenção desse aparato simbólico devia efetuar-se num campo contaminado por uma multidão de símbolos e rituais públicos de caráter nacional ou ligados a instituições estrangeiras, quer fossem de srcem laica ou religiosa. Muitas imagens da tradição republicana francesa usadas pelos anarquistas, como a liberdade, a lança, a tocha, o sol ou o barrete frígio, tinham forte peso

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simbólico na iconografía nacional adotada durante o processo de construção da nação argentina. Os anarquistas tinham a seu favor, para ganhar a adesão dos trabalhadores estrangeiros, o fato de que estes davam pouca atenção à simbologia nacional. Mas tinham fidelidades para com simbologias religiosas, regionais ou nacionais de sua srcem, que eram abonadas pelas instituições religiosas ou de residentes estrangeiros. Era nesse espaço o anarquismo, assim como o socialismo e mais tarde o comunismo, tentava que alcançar a adesão dos trabalhadores a seu campo simbólico. Esse esforço visava conformar uma imagem alternativa para os trabalhadores. Essa operação era essencial para dotar de uma identidade coletiva essa massa de indivíduos dispersos que eram os trabalhadores argentinos no começo do século XX. Embora eu fale de imagem alternativa, muitos desses símbolos e rituais adotados não eram mais que apropriações e ressignificações de uma simbologia preexistente. Segundo Castoriadis (1989:39), “todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes e utiliza os materiais destes (…)”. Tratava-se de dotá-los de significados novos e de ampliar seu alcance. Dessa forma adotaram a bandeira vermelha como um dos símbolos emblemáticos da luta dos trabalhadores, e estes marchavam atrás dela nas manifestações. Criaram seu panteão de heróis e mártires composto pelos que tombaram na luta revolucionária e pelas balas da repressão policial, bem como pelos pais fundadores (Bakunin, Kropotkin etc.), pelos grandes escritores comprometidos com as causas sociais (Ibsen, Zola), pelos terroristas redentores (Angiollillo, Pallás, Ravachol) ou pelos mártires de Chicago. Estes é que eram elevados ao panteão de heróis e cultuados em contraposição aos heróis “oficiais”. Também criaram calendários e almanaques revolucionários sem modificar-lhes a estrutura formal, mas fazendo a substituição do hagiológio cristão por efemérides de caráter civil e revolucionário (o Dia dos Trabalhadores, a Revolução Francesa, a execução de um tirano, a morte de um camarada etc.). Finalmente, cabe mencionar o mais importante dos ritos vinculados ao campo socialista: o Primeiro de Maio. A data se converteu no ato emblemático de representação da classe trabalhadora que torna manifesto o lado voluntário da construção da classe a partir das diretrizes emanadas da Segunda Internacional em 1889. Assim, a data se tornou sinônimo da luta universal do proletariado universal, articulando um ritual onde se combinavam manifestação operária e caráter festivo. A data significava — como sustenta Hobsbawm (1987:109) — a autorrepresentação “regular e pública de uma classe, uma afirmação de poder e, de fato, em sua invasão do espaço social

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do sistema, uma conquista simbólica”. Na Argentina, o Primeiro de Maio foi celebrado desde 1890 e, pouco a pouco, os anarquistas imprimiram seu selo à comemoração. À diferença da celebração socialista, pacífica e de tom festivo, o anarquismo conferiu-lhe um caráter eminentemente combativo, trágico e antifestivo, referindo-se à data com conceitos como dor, pranto, rebelião, luta, martírio ou sacrifício. Esse sentido trágico da comemoração os levou a comemorar Primeiro Maiomultitudinários, sempre de maneira combativapara e tumultuada. atos, naomaioria dasdevezes convertiam-se os militantesEsses libertários em verdadeiras manifestações contra o sistema e não raro terminavam em verdadeiros combates contra as forças policiais. O mais importante foi sem dúvida o realizado em 1909, que terminou com uma dezena de manifestantes mortos pela repressão policial e uma greve de repúdio que durou uma semana. Seis meses depois, diante da falta de punição aos responsáveis pelo massacre, produziu-se a sua sequela mais dramática, quando um jovem anarquista russo assassinou o chefe da polícia de Buenos Aires. Mais além do impacto provocado pelo mortal atentado, em janeiro de 1910 se levantou o estado de sítio, e o anarquismo voltou a ganhar as ruas. No início do mês seguinte, promoveu uma manifestação exigindo a liberdade dos presos sociais e que foi uma das manifestações operárias mais imponentes já realizadas até hoje. Contudo, parece ter sido o canto do cisne libertário. Às vésperas da celebração do centenário da revolução de maio, em 1910, o governo decidiu desativar o movimento anarquista para evitar a possibilidade de manifestações e atentados durante os festejos a que compareceriam altas personalidades estrangeiras. Para tanto empregou uma série de instrumentos (estado de sítio, lei de residência) que lhe per mitiram expulsar e deter centenas de dir igentes, proibir as reuniões públicas, fechar os per iódicos e interditar os locais partidários. O alcance e a firmeza da repressão não tinham antecedentes e surpreenderam os próprios anarquistas. Mais inédita ainda foi a participação de grupos civis, perseguindo militantes de esquerda e estrangeiros (particularmente os membros da comunidade judaica). O governo e os civis nacionalistas iniciaram uma guerra contra um adversário que, apesar de suas ostensivas manifestações contra o sistema, não estava preparado para ela nem a esperava. A magnitude da repressão não tinha correspondência nem com a envergadura real do movimento anarquista nem com a própria percepção de perigo social dos que a desencadearam.

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A repressão golpeou duramente o movimento libertário, e, por volta de 1913, quando seus efeitos se atenuaram, e se eliminaram as restrições à liberdade de reunião e de palavra, o anarquismo era outro, pois se tornara uma sombra da tendência potente e dinâmica de outrora. Submergiu num estado de confusão, ao mesmo tempo em que se desarticularam seus pontos de contato com os trabalhadores e desapareceram as redes de sociabilidade tecidas nos círculos e sociedades de resistência. Grande parte de seus dirigentes e ativistas maispolíticas. destacados deixaram a militância ativa ou emigraram para outras tendências Acaso podemos atribuir a causa da decadência anarquista à intensidade da repressão? Sem subestimar o peso que esta possa ter sobre os movimentos políticos contestatórios, creio que as causas profundas dessa decadência devem ser buscadas em motivos mais profundos, relacionados a certas transformações conjunturais e estruturais que, embora imperceptíveis para os contemporâneos, tiveram papel preponderante na decadência do anarquismo. Em primeiro lugar, houve uma perda de influência no movimento operário nas mãos do sindicalismo revolucionário. Surgida em 1905, essa tendência era muito mais pragmática e menos intransigente, dando maior prioridade à luta econômica reivindicativa do que aos objetivos mais amplos perseguidos pelos anarquistas, e isso parece ter-se adequado melhor ao tipo de reivindicações dos operários argentinos de então. A estrutura laboral começara a transitar para um incipiente processo de estratificação e concentração do trabalho, e ampliara-se o segmento de trabalhadores que havia adquirido estabilidade de trabalho e contraído dívidas para pagar prestações de terrenos ou de construção da casa própria, num momento de descentralização urbana e de separação dos lugares de trabalho e de moradia. Nesse contexto, as reivindicações por melhorias pareciam mais adequadas que as táticas que induziam à rebelião social. Aos anarquistas não interessavam as aspirações de trabalhadores só preocupados com a regularidade de seu trabalho ou com o poder aquisitivo de seu salário; certamente, eles se adaptavam melhor a uma cultura operária conformada no âmbito apinhado dos bairros fabris e do centro, onde os cortiços e outras formas de moradia popular transitória eram lugares propícios para sua propaganda. O sindicalismo também entendeu melhor o lento processo de nacionalização dos trabalhadores iniciado após a guerra e levou vantagem na cooptação dos operários nacionais. Além disso, modernizaram as formas de organização sindical, recorrendo às federações por ofício de caráter nacional e concebendo uma estrutura organizativa sindical vertical com a qual os anarquistas não esta-

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vam de acordo e à qual não podiam adaptar-se por sua adesão ao basismo e ao espontaneísmo. Embora o discurso dos sindicalistas também se opusesse ao parlamentarismo e ao Estado, eles se diferenciavam radicalmente por suas práticas: repudiavam o confrontacionismo permanente dos anarquistas, adotavam uma perspectiva classista que não aspirava à tomada do poder e, portanto, priorizavam o sindicato como ferramenta tática fundamental (gradualista) e resistiam a recorrer à greve geral. A sólida e disciplinada de alguns sindicatos (marítimos) e o resultado favorável em algumasorganização greves lhes conferiram um forte prestígio no mundo do trabalho e também entre alguns militantes libertários que emigraram para o sindicalismo. O predomínio obtido pelo sindicalismo no movimento operário cortou a principal fonte de recrutamento do anarquismo, e este foi desbancado como ator principal do conflito social. No processo de decadência libertária não foram menores as transformações produzidas no sistema eleitoral e no campo das políticas sociais estatais. No primeiro caso, a sanção da Lei Sáenz Peña, em 1912, que impôs o voto universal masculino, secreto e obrigatório, veio transformar a relação dos trabalhadores com o sistema político, pois agora a maioria dos partidos necessitava, com maior ou menor convicção, interpelá-los. Ainda que um segmento importante de operários estrangeiros ficasse fora do sistema político, o mesmo não ocorria com os trabalhadores nacionais, a quem os radicais e os socialistas buscavam seduzir com propostas que hipoteticamente melhorariam sua situação. À margem dos resultados mais ou menos positivos dessa política para os trabalhadores, é indubitável que adquiriram direitos que os converteram em cidadãos políticos. Os anarquistas se aferraram a sua concepção negadora da política parlamentar com os mesmos argumentos de sempre, mas uma coisa era fazer isso durante a persistência do regime fraudulento e outra na vigência do sistema ampliado. Quanto às políticas sociais, o Estado começou a envolver-se nas relações de trabalho induzido pelo próprio conflito laboral, pela irrupção e o desenvolvimento das ideologias de contestação, e pela conformação de um discurso reformista num setor das elites. Foram aprovadas as primeiras leis trabalhistas; em 1907, criou-se o Departamento Nacional do Trabalho e deram-se os primeiros passos em matéria de políticas de seguridade social. Ainda que o balanço da intervenção estatal não seja deslumbrante, fica claro que o Estado começava a tornar-se um ator importante na regulação do conflito social. O anarquismo se oporia sistematicamente a essa intervenção e à sanção de uma legislação protetora dos trabalhadores, de acordo com sua visão negativa (e negadora) do Esta-

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do. Certamente, aqui se apresentava um grave problema para o anarquismo, pois negar o Estado quando este era omisso não era o mesmo que negá-lo quando sancionava leis que favoreciam os trabalhadores. Durante a onda de greves em 1917-21, o presidente Hipólito Yrigoyen decidiu mediar diretamente os conflitos e muitas vezes decidiu favoravelmente aos trabalhadores. Também nesse ponto o anarquismo perdeu espaço para o sindicalismo, que foi o interlocutor privilegiado Estado. A ação do direta, a violência nas ruas, a urgência revolucionária e a constante predisposição à rebelião eram características distintivas do anarquismo. Tiveram certo prestígio no começo do século XX, pelos traços particulares de uma sociedade aluvial e porque o Estado e os grupos governantes não haviam conseguido ajustar certos mecanismos de controle político e social. O anarquismo se adaptou bem a essa situação e representou uma reação aos efeitos do acelerado e tumultuado processo de modernização. Contribuiu para organizar os trabalhadores e tentou arrastá-los, mediante uma tática do conflito permanente, para uma incerta rebelião social. Em todo caso, ofereceram certas alternativas parciais nos âmbitos político, social e cultural, as quais, antes ou depois, se mostraram inviáveis. As mudanças no mundo do trabalho e nas formas de organização sindical, os primeiros passos dados pelo Estado em matéria de política social e a ampliação do sistema político em 1912 modificaram as relações entre o Estado e a sociedade e influíram no papel das vanguardas políticas. Depois do centenário, o anarquismo já não podia articular uma proposta atraente para os trabalhadores. ❚

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Entre o comício e a mensagem: o presidente Goulart, as esquerdas e a crise política de março de 1964 Jorge Ferreira

No dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, organizações sindicais e de esquerda patrocinaram um grande comício. No palanque discursaram representantes de movimentos sociais, e estudantis, de líderes como Leonel Brizola e políticos, Miguel Arraes. O sindicais evento culminou com além o discurso do presidente da República, João Goulart. No comício, o presidente firmou sua aliança com as esquerdas organizadas na Frente de Mobilização Popular. O processo que os levou ao entendimento foi muito difícil. Goulart havia alcançado a presidência da República com o país dividido e sob gravíssima crise militar e política.1 Sua estratégia de governo foi desarmar seus opositores da direita civil e militar, esforçando-se para ampliar sua base política no Congresso Nacional com o apoio do centro, sobretudo do PSD. Seu objetivo era unir o centro pessedista e a esquerda trabalhista, reforçando a aliança entre o PSD e o PTB. De acordo com seus planos, as reformas de base, sobretudo a reforma agrária, seriam negociadas e Jango pactuadas pela via parlamentar os dois partidos da base governamental. esforçava-se para manter entre a aliança partidária que no Congresso Nacional dera estabilidade política ao governo de Juscelino Kubitschek e, no mesmo movimento, aprovar as reformas. Para o presidente, o

Sobre o governo Goulart, ver Ferreira e Delgado (2003, esp. o cap. “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964”). Ver também Gomes e Ferreira (2007). 1

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campo da direita golpista não era o PSD, mas a UDN — em particular, a ala de extrema direita liderada por Carlos Lacerda. Jango se esforçava para manter suas bases de apoio à esquerda, mas queria aprovar as reformas por meio de acordos, pactos e compromissos entre trabalhistas e pessedistas. O presidente, no entanto, assumiu o governo em processo de crescente radicalização política entre direitas e esquerdas. No campo conservador, muitos políticos, empresários, religiosos e militaresIpes-Ibad de direita teve passaram a conspirar tra o governo e o regime. O complexo atuação decisivaconnesse sentido. As esquerdas, por sua vez, também se organizaram. Enquanto o Partido Comunista Brasileiro (PCB) manteve uma linha própria, de apoio a João Goulart, diversos grupos e movimentos de esquerda se organizaram na Frente de Mobilização Popular (FMP), fundada no início de 1963 por Leonel Brizola.2 Na FMP estavam reunidas as principais organizações de esquerda que lutavam pelas reformas de base. A Frente esforçava-se para que João Goulart assumisse imediatamente o programa reformista, sobretudo a reforma agrária, mesmo à custa de uma política de confronto com a direita e os conservadores, incluindo o PSD. Ao mesmo tempo, procurava se impor como força viável para as reformas, diante das posições do PCB, interpretadas como moderadas. A frente liderada por Brizola procurava convencer Goulart a implementar as reformas de base unicamente com o seu apoio político, desconhecendo outras organizações do quadro partidário brasileiro, inclusive as de centro. Na FMP estavam representados os estudantes, por meio da UNE; os operários urbanos, com o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), o Pacto de Unidade e Ação (PUA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec); os subalternos das Forças Armadas, como sargentos, marinheiros e fuzileiros navais com suas associações; facções das Ligas Camponesas; grupos de esquerda revolucionária, como a Ação Popular (AP), a Organização Revolucionária Marxista (ORM-Polop), o Partido Operário Revolucionário (Trotskista) (POR-T) e segmentos de extrema esquerda do PCB; políticos do Grupo Compacto do PTB e da Frente Parlamentar Nacionalista; militantes nacional-revolucionários que, dentro do PTB, seguiam a liderança de Leonel Sobre a FMP, ver Ferreira e Reis (2007, esp. o cap. “Leonel Brizola, os nacional-revolucionários e a Frente de Mobilização Popular”). 2

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Brizola; por fim, setores mais à esquerda do Partido Socialista Brasileiro e o grupo político de Miguel Arraes. Para as esquerdas organizadas na Frente de Mobilização Popular, a estratégia presidencial de estabelecer alianças e compromissos entre o PTB e o PSD no Congresso Nacional era recusada e condenada: acordos e negociações com os pessedistas não passavam de “política de conciliação”. Certas de sua superioridade sobre e, sobretudo, acreditando necessidade deoum confronto com elas,asasdireitas esquerdas cobravam de Jango seu na rompimen to com PSD e a formação de um governo nacionalista e popular apoiado exclusivamente nas forças políticas reunidas na FMP. Como é comum em organizações de esquerda, o grupo nacional-revolucionário brizolista tinha o seu jornal: Panfleto, o jornal do homem da rua. Mas Panfleto também era porta-voz da FMP. Por meio de um veículo próprio de comunicação, as esquerdas que reconheciam a liderança de Brizola expressavam suas ideias, projetos e estratégias. Quero,neste capítulo, analisar as ideias defendidas pelas esquerdas que atuavam na FMP em duas edições de Panfleto (16 e 23 de março de 1964). Os dois números foram escolhidos porque, durante aquelas semanas, Jango passou a governar com o apoio exclusivo da FMP. Nos dois exemplares encontramos projetos e demandas das esquerdas em período de crescente radicalização das forças políticas do país. Além disso, as duas edições dePanfleto tratam de dois temas centrais para a compreensão da crise política do governo Jango: o comício de 13 de março e a mensagem presidencial enviada dois dias depois ao Congresso Nacional. ❚

O comício e suas repercussões

No início de 1964, o processo de radicalização política alcançava níveis que ameaçavam a estabilidade política do país. As esquerdas lideradas por Leonel Brizola atacavam duramente João Goulart, enquanto as direitas avançavam no processo conspiratório, dispostas ao rompimento institucional. No contexto externo, a intransigência do governo dos Estados Unidos de não renegociar a dívida externa levava o país à falência. A política externa norte-americana era a de estrangular financeiramente o Brasil, comprometendo a governabilidade. Jango não obteve sucesso na sua política de unir o centro pessedista com a esquerda trabalhista e, com maioria no Congresso, viabilizar as reformas. Du-

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rante todo o seu governo, PTB e PSD negaram-se ao entendimento. Sobretudo a ala radical dos trabalhistas, bem como o conjunto das esquerdas, apostava na política do confronto. O PSD, temeroso do processo de radicalização, aproximava-se cada vez mais da UDN.Todas as iniciativas de Goulart para manter a coligação que sustentara o regime democrático desde 1946 resultaram em fracasso. Alternativas à crescente radicalização existiam, e Jango poderia dispor delas. Empartidos, janeiro propôs de 1964, San Thiago Dantas,Progressista liderando de políticos doReformas PTB e de outros a formação da Frente Apoio às de Base.3 Dantas estava particularmente preocupado com o isolamento político do governo, com a oposição agressiva das esquerdas, a hostilidade crescente do PSD e o avanço da conspiração das direitas. Ele acreditava que o processo de radicalização resultaria no pior dos mundos: nem as reformas seriam implementadas, nem o regime democrático resistiria à polarização política. A Frente Progressista, qualificada pelo próprio Dantas de “esquerda positiva”, para diferenciá-la da “esquerda negativa”, referindo-se à Frente de Mobilização Popular de Leonel Brizola, teria como objetivo impedir o crescimento da conspiração da direita civil-militar reagrupando as forças de centro esquerda para apoiarem o governo. Os objetivos maiores da Frente Progressista eram retirar o presidente do isolamento político, sustar o processo de radicalização das direitas e das esquerdas, e aprovar as reformas de base. Na formação da Frente Progressista, Dantas buscou o apoio do PSD, do PCB, do PTB que não seguia a liderança de Brizola, do governador de Pernambuco Miguel Arraes e dos sindicalistas “não contagiados pelo anarquismo”.4 Goulart, no entanto, escolheu a política ofensiva da FMP, descartando a alternativa moderada proposta por San Thiago Dantas. A realização do comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, selou seu compromisso definitivo com as esquerdas. Com alternativas políticas muito reduzidas, o processo de crescente radicalização empurrou o presidente para as suas bases históricas: as esquerdas e o movimento sindical. Escolher a Frente Progressista de San Thiago Dantas negaria todo o seu passado de líder reformista e nacionalista e o tornaria refém político do PSD. A realização do comício significou o estabelecimento da aliança do presidente da República com o movimento sindical e as esquerdas que integravam 3 4

Ver Figueiredo (1993); Gomes (1994). Figueiredo, 1993:143-144.

Entre o comício e a mensagem



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a FMP. No dia seguinte ao comício, havia entre os diversos grupos de esquerda a sensação de que acabara a “política de conciliação” e que, finalmente, o PSD não mais faria parte dos planos de Goulart. O presidente governaria exclusivamente com as forças da FMP, desconhecendo outras representações políticas. Para compensar a falta de base parlamentar no Congresso Nacional, a FMP incentivaria ações de rua em ritmo crescente, com greves, manifestações e comícios. Em comum acordocomícios com Goulart, os representantes da FMP fecharam a programação dos novos para abril: dia 3, em Santos; 10, em Santo André; 11, em Salvador; 17, em Ribeirão Preto; 19, homenageando Vargas em Belo Horizonte; 21, em Brasília. O último comício seria realizado em o1 de maio na cidade de São Paulo. Esperava-se, para esse evento, 1 milhão de pessoas. Nesse dia, seria deflagrada uma greve geral dos trabalhadores. Com tamanha mobilização, a FMP esperava pressionar o Congresso Nacional para que aprovasse as reformas de base. Caso contrário, estaria comprovado que se tratava de instituição reacionária e conservadora, distante dos anseios do povo. ❚

Notícias em

Panfeto :

de 13 a 15 de março

Na edição de Panfleto do dia 16 de março de 1964, Neiva Moreira, secretário-geral da FMP, escreveu artigo intitulado “A conciliação sepultada”, comentando o comício da Central. “Perante cerca de 200 mil pessoas, foi sepultada, na praça pública, a política de conciliação”,5 dizia no início do texto. O balanço era positivo, afirmava, considerando as medidas anunciadas pelo presidente da República, como o decreto da Supra e a encampação das refinarias particulares. E destacava: “quando Brizola pediu à massa que manifestasse sua posição sobre o governo popular, democrático e nacionalista, pondo fim à conciliação, explodiu aquela gigantesca resposta plebiscitária, no momento mais afirmativo e empolgante do comício e marco do processo revolucionário brasileiro”. Mas Neiva Moreira chamava a atenção para algo que considerava importante: Por mais meritórios e patrióticos que sejam os atos do governo e por mais radicais que tenham sido as palavras dos oradores, o fato é que tudo isso só terá desdobramento eficaz e consequências decisivas se o presidente marchar rapidamente

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Panfleto. Rio de Janeiro, 16 mar. 1964, p. 4.

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para a total recomposição do seu governo. O próximo passo será varrer a máquina política da espúria infiltração, barrar os caminhos do imperialismo e consolidar as conquistas da revolução, através de um poder doutrinariamente coerente e funcionalmente homogêneo e integrado.

Neiva Moreira terminava o artigo afirmando que o comício do dia 13 foi “um histórico divisor de águas”. A expressão tornou-se comum na linguagem das esquerdas. Com o mesmo otimismo, Sérgio Magalhães, presidente da Frente Parlamentar Nacionalista, organização que integrava a Frente de Mobilização Popular, também escreveu artigo analisando o comício. “A unidade das forças populares e progressistas é imanente ao processo de libertação nacional”, afirmava ele.6 Em sua análise, a união das esquerdas não fora construída casualmente, mas era resultado de um longo processo de lutas contra a espoliação do país que começara ainda no período colonial e tinha como objetivo dar soluções a problemas “da política global, ideologicamente definida em termos de emancipação nacional”. Assim, todas as organizações reunidas na FMP concordavam, por exemplo, com a necessidade de fortalecimento das empresas estatais — como a Petrobras, a Eletrobrás, a Companhia Siderurgia Nacional e a Vale do Rio Doce; mas, também, do estabelecimento do monopólio estatal do câmbio; da realização da reforma agrária; da mudança no artigo da Constituição que exige o pagamento de indenização prévia em dinheiro no caso de expropriação de terras para fins da reforma agrária; da nacionalização das empresas de crédito; da reforma bancária e da limitação da remessa de lucros ao exterior. A plataforma das forças populares resultou da experiência secular da luta contra a espoliação das nossas riquezas. E essa plataforma é o cimento da nossa unidade. É o divisor de águas entre os que lutam pela libertação do povo e os que defendem a continuação do atual estado de coisas.

Ainda na mesma edição de Panfleto foi publicado editorial intitulado “Constituinte sem golpe”. Segundo o texto, o comício da Central do Brasil revelou à nação “um impasse irrecusável: o desencontro entre a realidade dinâ-

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Panfleto. Rio de Janeiro, 16 mar. 1964, p. 6.

Entre o comício e a mensagem



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mica e a estrutura de instituições envelhecidas ou totalmente superadas”.7 Uma dessas instituições envelhecidas e superadas era o PSD. Nesse caso, continuava o editorial, “o presidente da República não quis entender que é impossível conciliar um PSD decadente e esclerosado com as impetuosas forças de vanguarda que surgem no cenário do país”. Outra instituição também tratada como envelhecida e superada era o Congresso Nacional: “o Congresso é o grande mudo, enrolado no varejo das têm pequenas legislações jogo das aparências e farisaísmos que nada de comum comou as fazendo angústiaso do povo. É como se vivesse na belle époque, surdo ao clamor de um mundo tumultuário e reivindicatório”. A crise brasileira, portanto, tinha srcens em “um Executivo amarrado, um Congresso inativo e um Judiciário preso às filigranas de leis confusas ou interpretadas sempre contra o povo”. Uma das alternativas, prosseguia o editorial, era o golpe de direita patrocinado pelas “minorias privilegiadas”. Contra essa solução estavam unidas as forças populares e nacionalistas. Desse modo,“devemos reconhecer e proclamar que chegamos a um impasse e só através de uma nova consulta ao povo ou da convocação de uma Constituinte, eleita com a participação das forças renovadoras que compõem o novo poder em nosso país, será possível sair da crise e abrir caminho à emancipação econômica nacional”. Fora isso, as outras alternativas seriam o golpe de direita ou a guerra civil. Daí as palavras de ordem que encerram o editorial: “Constituinte para evitar o golpe. Plebiscito para abrir caminho à revolução pacífica. Transformação sem continuísmo, eis o grande desafio que se lança à nação brasileira”. Desde fins de 1963, a FMP passou a defender a convocação de uma assembleia nacional constituinte que, substituindo o Congresso Nacional, redigiria uma nova Constituição, ao mesmo tempo em que aprovaria as reformas de base. Formada por trabalhadores urbanos e rurais, junto com sargentos e oficiais nacionalistas das Forças Armadas eleitos sem a influência do poder econômico e da imprensa reacionária, a constituinte expressaria a vontade do povo, e não das classes dominantes. No comício da Central do Brasil, Brizola, discursando em nome da FMP, avaliou a crise política no Brasil. Seu discurso foi publicado na mesma edição de Panfleto. O país, segundo ele, chegara a um impasse:

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Panfleto. Rio de Janeiro, 16 mar. 1964, p. 8.

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Não podemos continuar nessa situação. O povo está a exigir uma saída. Mas o povo olha para um dos poderes da República, que é o Congresso Nacional, e ele diz NÃO porque é um poder controlado por uma maioria de latifundiários, reacionários, privilegiados e de ibadianos. É um Congresso que não dará mais nada ao povo brasileiro. O atual Congresso não mais se identifica com as aspirações de nosso povo. (...) E o Executivo? Os poderes da República, até agora, com suas 8

perplexidades, sua inoperância e seus antagonismos, não decidem.

A alternativa defendida para a superação do impasse entre o povo e os poderes da República era a Assembleia Nacional Constituinte: Por que não conferir a decisão ao povo brasileiro? O povo é a fonte de todo o poder. Portanto, a única saída pacífica é fazer com que a decisão volte ao povo através de uma constituinte, com a eleição de um congresso popular, de que participem os trabalhadores, os camponeses, os sargentos e oficiais nacionalistas, homens públicos autênticos, e do qual sejam eliminadas as velhas raposas tradicionais.

Continuando, Brizola afirmava: “Dirão que isto é ilegal. Dirão que isto é subversivo. Dirão que isto é inconstitucional. Por que, então, não resolvem a dúvida através de um plebiscito? Verão que o povo votará pela derrogação do atual Congresso”. A Constituição de 1946 estaria superada historicamente, e o Congresso Nacional se distanciara dos anseios do povo. Era necessária outra Constituição, mas também um novo parlamento que expressasse a vontade popular. Este era o sentido da convocação do plebiscito. ❚

Notícias em

Panfeto :

de 16 a 22 de março

Com essa estratégia, veio a público a edição seguinte dePanfleto, em 23 de março de 1964. Na manchete de primeira página lia-se: “forças populares vão enfrentar o Congresso”. Tratava-se de chamada para o editorial. Com o título de “Governo popular, plebiscito e constituinte” o texto começava afirmando que “o Brasil está vivendo um clima de Espanha, 1936”.9 Acusando a reação 8 9

Panfleto. Rio de Janeiro, 16 mar. 1964, p. 2-3. Panfleto. Rio de Janeiro, 23 mar. 1964, p. 1.

Entre o comício e a mensagem



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de preparar o golpe, dizia haver um movimento para mobilizar elementos infiltrados no governo, envenenar os militares com propaganda conservadora e empregar a mistificação religiosa. Segundo o editorial, “o centro dessa tenebrosa conspiração imperialista e reacionária é São Paulo”. O perigo era imenso porque, enquanto as direitas preparam “abertamente a guerra civil”, existe a “perplexidade na área das esquerdas que, embora unidas nos objetivos, ainda não encontraram um estilo tático adequado, que lhe permita abrir caminho para o poder”. Apesar das dificuldades, era necessário continuar lutando pelo plebiscito e pela Assembleia Nacional Constituinte: Quando o povo luta pela revisão constitucional está certo. O fetichismo da ordem jurídica intocável é absurdo. O nosso compromisso é o da democracia verdadeira, que é o regime do povo. Uma Constituição pode ou não ser popular e, se não for, deixará, necessariamente, de ser democrática. Nessa linha de ação, o plebiscito que defendemos para consultar o povo sobre a Constituição que fará as reformas pode não ser rigorosamente constitucional, mas é inequivocamente democrático. É, ainda, uma saída contra a guerra civil, que a reação elabora nos subterrâneos do crime político e da traição nacional. Todos os patriotas devem se lançar a essa luta, certos de que, se a democracia é intocável, a Constituição não pode ser uma camisa de força.

Novamente era reiterada a necessidade de Jango formar imediatamente um governo popular e nacionalista, “homogêneo em sua composição, corajoso, firme e nítido no seu programa de ação” para libertar o povo dos sofrimentos que vivia. Era preciso, no entanto, superar a contradição entre os interesses do povo e o Congresso Nacional: O povojustas quer as reformas. Congressodevem as recusa. do impasse, as palavras dedas ordem para as forçasOpopulares ser:Diante 1. manutenção intransigente liberdades democráticas; 2. unidade das forças autenticamente populares; 3.formação de um governo popular nacionalista; 4. plebiscito sobre a convocação de uma constituinte; 5. democratização do voto para a sucessão. Esta é a hora de definição e de luta. O povo deve vigiar e agir. (...) O processo de libertação nacional seguirá seu curso, mesmo à custa de todos os sacrifícios.

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Ainda na edição do dia 23 de março,Neiva Moreira, em sua coluna, escrev eu artigo intitulado “O que fazer”.10 Começava ressaltando o clima de euforia no campo popular após o comício do dia 13 de março. Estava claro que o governo escolhera um “novo caminho”, uma “nova política”, identificado com as forças populares para “a luta comum”. Mas, passado o entusiasmo, vinha a pergunta: “o que fazer?” O caminho mais imediato para Jango era constituir um novo ministério de “caráter homogêneo” identificado “a nova política”. O que seo impunha para o presidente era ae“ação rápida ecom ofensiva”. Para Neiva Moreira, programa da “Frente de Mobilização Popular tem tudo ou quase tudo o que se quer e precisa fazer. É só nomear os ministros do governo popular e começar a ofensiva geral em todas as frentes”.O programa reformista já fora esboçado várias vezes, debatido e reformulado, tendo sido levado “em caravanas, ao país inteiro, para a mobilização do povo”.Faltava“executá-lo num clima de entusiasmo renovador e de coragem cívica para enfrentar a reação e o seu avô paterno, o imperialismo”.Assim, perguntava Neiva Moreira, “por que esperar?” Para ele, o risco de contrarrevolução é imenso, mas esse perigo desaparecerá rapidamente, se o presidente, com a visão do apoio nacional a um programa novo e dinâmico, marchar para o governo popular e nacionalista e para um programa dinâmico, claro e coerente que comece no 10o andar do Ministério da Fazenda e vá até os gabinetes mais escondidos e misteriosos de bancos, sumocs, cacexs, institutos, enfim, da máquina do poder, onde a reação está apojando nas tetas da República e sugando o sangue do povo.

Portanto, Jango deveria constituir um ministério e preencher os cargos de escalões inferiores somente com representantes da FMP, excluindo do governo todas as outras forças políticas. O programa de governo também seria o da Frente, desconsiderando quaisquer outras contribuições. ❚

A mensagem do presidente

Dois dias após o comício da Central do Brasil, o presidente João Goulart enviou mensagem ao Congresso Nacional.Tratava-se de uma prestação de con-

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Panfleto. Rio de Janeiro, 23 mar. 1964, p. 6.

Entre o comício e a mensagem



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tas do governo, mas também solicitava providências aos parlamentares. O texto foi elaborado em comum acordo com as lideranças da Frente de Mobilização Popular e redigido por Darcy Ribeiro. Na mensagem, o presidente referiu-se ao plebiscito que restituiu seus poderes presidencialistas.11 Era sabido que sua plataforma política eram as reformas de base.Assim, convocou o Congresso Nacional para a “adoção de uma reforma constitucional” capaz permitirdo o desenvolvimento econômico, a democratização da sociedade e adefelicidade povo. A reforma mais importante era a da estrutura agrária. Segundo o presidente, era preciso atender antigas e justasreivindicações de cerca de 40 milhões debrasileiros sem acesso à terra, evitando convulsões sociais. Para isso, propunha reformas na Constituição. No caso da questão da terra, ficaria estabelecido que “a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propr iedade”. Portanto, poderiam ser expropriadas as propriedades não exploradas ou asparcelas não produtivas. Entre outras medidas, o presidente também indicava que a prioridade da produção de gêneros alimentícios era para o mercado interno.O que viabilizaria a reforma agrária eram as alterações propostas nos arts. 141 e 147 da Constituição, modificações reivindicadas pelas esquerdas. O § 16 do art. 141 estabelecia que “é garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro”. Na mensagem, Jango propunha suprimir do texto a palavra “prévia” e a expressão “em dinheiro”.Tratava-se,na verdade,da mais importante reivindicação das esquerdas e do movimento camponês: reforma agrária sem indenização prévia em dinheiro. O art. 147, por sua vez, garantia a justa distribuição de terras, mas submetido ao § 16 do art. 141.A nova redação proposta por Goulart desvinculava um do outro. Outra proposta de alteração da Constituição era voltada para a reforma eleitoral. Na mensagem, Jango alegava que a “Constituição de 1946, entre outros privilégios, consagrou, no campo eleitoral, normas discriminatórias que já não podem ser mantidas”. Era o caso dos praças e sargentos das Forças Armadas e dos analfabetos, impedidos de votar. Ainda segundo a Constituição, eram inelegíveis parentes consanguíneos e afins até o segundo grau de personalidades que exercessem cargos no Poder Executivo e alguns no Poder Legislativo

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Panfleto. Rio de Janeiro, 23 mar. 1964, p. 10-11.

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— dispositivo que impedia, por exemplo, Leonel Brizola, cunhado de Jango, de concorrer nas eleições presidenciais de 1965. Assim, pela proposta contida na mensagem, seriam alistáveis para exercer o direito do voto todos os brasileiros que soubessem se exprimir em língua nacional, excetuando os casos incorridos no art. 135 da Constituição (incapacidade civil absoluta e condenados por crimes). Além disso, seria acrescentada a expressão: “são elegíveis os alistáveis”. Com essa redação, os praças, os sargentos e os analfabetos direitodeaoJango voto,naenquanto Leonel Brizola se tornaria elegível para concorrerteriam na sucessão presidência da República. Outra consequência da proposta era que, na prática, estaria instituída a reeleição no Poder Executivo, beneficiando o próprio Goulart. O presidente também propunha a reforma do ensino superior, extinguindo a “cátedra” e sua vitaliciedade, assegurando aos professores universitários a plena liberdade docente e a autonomia das universidades. Questão delicada em termos políticos é a que tratava das relações entre Executivo e Legislativo. Segundo a mensagem, “o cumprimento dos deveres do Estado moderno não se concilia com uma ação legislativa morosa e tarda”. A crise social e a necessidade da presença atuante do Estado não admitiam“as normas anacrônicas de uma ação legislativa que são frutode um sistema econômico ultrapassado”. Jango referia-se aos princípios do Estado liberal. Assim, a sugestão era “suprimir o princípio da indelegabilidade dos poderes,cuja presença no texto constitucional só se deve aos arroubos de fidelidade dos ilustres constituintes de 1946 a preceitos liberais do século XVIII”. Jango propunha revogar o §o do 2 artigo 36 da Constituição, que dizia: “é vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições”. Na prática, o Executivo poderia exercer atribuições do Legislativo. Por fim, Jango propunha a convocação de um plebiscito para conhecer o pronunciamento do povo a respeito das reformas de base. O presidente terminou sua mensagem convocando os parlamentares a cumprirem a missão de renovar as instituições jurídicas do país, de modo a ampliar as estruturas socioeconômicas,com o objetivo de “preservar a paz da família brasileira e abrir à nação novas perspectivas de progresso e de integração de milhões de patrícios nossos numa vida mais compatível com a dignidade humana”. A mensagem de Jango foi recebida no Congresso Nacional de maneira muito negativa entre parlamentares de oposição e entre os pessedistas. Algumas medidas não causaram surpresas. No caso da reforma do ensino superior, a supressão dos privilégios dos professores catedráticos era medida interpretada pelos próprios políticos conservadores como necessária à modernização da uni-

Entre o comício e a mensagem



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versidade. A proposta de reforma agrária também não surpreendeu. Não só os parlamentares sabiam que as expropriações sem indenizações faziam parte do programa reformista do presidente e das esquerdas, como se sabia, também, que o Congresso Nacional recusaria a iniciativa presidencial. No entanto, a repercussão mais negativa e verdadeiramente impactante da mensagem foi causada por sua parte política, geradora de receios, suspeitas e desconfianças. extensãoque do direito de beneficiaria voto aos analfabetos, era odo conhecimento No dos caso meiosdapolíticos a medida diretamente PTB, partido muito popular naquele momento.Tudo indicava que os analfabetos, contingente mais pobre da população, votariam nos trabalhistas. Na questão da sucessão presidencial, a proposta de reforma eleitoral também vinha ao encontro das necessidades políticas do PTB. Enquanto o PSD e a UDN tinham fortes nomes para a eleição de 1965 (Juscelino Kubitschek,entre os pessedistas, e Carlos Lacerda e Magalhães Pinto,entre os udenistas), os trabalhistas não tinham um candidato de peso.A proposta de reforma eleitoral, no entanto, permitiria ao PTB dispor de dois fortes nomes: Leonel Brizola e o próprio Jango. Ainda mais impactante foi a proposta de delegação de poderes, que assustou diversos setores políticos. Afinal, muitos líderes parlamentares no Congresso Nacional passaram a se perguntar: o que queria Jango ao dispor ao mesmo tempo de poderes executivos e legislativos? O plebiscito, por sua vez, daria ao presidente uma vitória muito expressiva — pesquisas já apontavam a grande popularidade das reformas de base entre a população. Uma votação esmagadora a favor dessas reformas tornaria o Congresso Nacional fragilizado diante do presidente da República. Para as direitas, sempre alarmadas e apavoradas com a ameaça do comunismo, não havia mais dúvidas de que um golpe estava sendo planejado por Jango e Brizola. Para os liberais e políticos de centro, sobretudo do PSD e de outros pequenos partidos, dúvidas, receios e temores surgiram com as propostas de Goulart. A mensagem presidencial gerou desconfianças generalizadas, favorecendo assim os líderes de direita e diversos grupos de conspiradores civis e militares que necessitavam de aliados para desferir um golpe de Estado. ❚

Leonel Brizola e a semana nal

Leonel Brizola percebeu o perigo criado para as esquerdas depois do comício da Central do Brasil e da mensagem presidencial ao Congresso Nacional. Em editorial publicado em Panfleto no dia 23 de março, ele abandonou seu

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usual estilo de confrontação e redigiu texto defensivo. Para ele, o comício do dia 13 fora um divisor de águas na política brasileira porque de então para cá desencadeou-se, no país, a mais tremenda campanha política e publicitária, visando claramente a mobilização de todos os recursos, de que dispõem as minorias privilegiadas, para a manutenção destes mesmos privilégios através do momento, esmagamento dasserforças populares e dadasdestruição do governo que, 12 num dado soube sensível ao clamor multidões.

Brizola denunciou as atividades golpistas de membros do Poder Legislativo, de governadores de estados e da imprensa. Em nome da“democracia”, da “ordem social cristã” e da “defesa da Constituição”, negavam as liberdades ao povo. Em nome do combate ao comunismo, impediam “todas as aspirações populares”. Naquele momento, João Goulart e as esquerdas reunidas na FMP tiveram que enfrentar críticas vindas da imprensa e de políticos liberais e de direita, que alegavam ser a Constituição intocável. Quase a uma só voz, passaram a defender a integridade da Constituição. Tratava-se de estratégia política que visava desqualificar as esquerdas, mas que surtia efeito. Sobretudo porque a mensagem do presidente ao Congresso Nacional propunha a delegação de poderes, a convocação do plebiscito sobre as reformas de base e a mudança na lei das elegibilidades, a qual permitiria não só que Brizola concorresse nas eleições presidenciais de 1965, mas também a reeleição para cargos no Poder Executivo — beneficiando o próprio Jango. Nesse momento, a questão era delicada para as esquerdas: afirmavam estar a Constituição de 1946 ultrapassada e que era necessário substituí-la, adequando-a às novas necessidades do país. O presidente propunha delegação de poderes e alteração na legislação eleitoral, beneficiando seu próprio partido com o voto dos analfabetos e a si mesmo com a reeleição. Além disso, a coalizão de esquerda negava a representatividade do Congresso Nacional, recorrendo a consultas plebiscitárias e a mobilizações populares com base na ação direta. Nesse contexto de questionamento das instituições da democracia liberal, quem passou a defender a legalidade e a Constituição não foram apenas os liberais, mas também as direitas. Brizola se esforçou para esclarecer o que estava acontecendo:

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Panfleto. Rio de Janeiro, 23 mar. 1964, p. 2-3.

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Pode falar em democracia um homem como Lacerda, cuja vida foi toda dedicada à pregação de regimes de exceção (...)? Poderão falar em liberdade estas minorias dominantes que sempre se bateram contra ela, apoiando todo o projeto de regime de força que já ameaçou este país? Caberá a defesa da Constituição precisamente àqueles que tão diretamente a agrediram, em agosto de 1961 (...)? Usam a bandeira da democracia apenas como pretexto — pois o que buscam é anular as liberdades já conquistadas por nosso povo de aperfeiçoar, ainda mais, a democracia que já alcançamos. Usame aimpedi-lo Constituição como um assaltante usa a máscara.

As denúncias de Brizola foram ignoradas. No Congresso Nacional, parlamentares conservadores continuaram a questionar as medidas contidas na mensagem, interpretando-as como um plano golpista patrocinado pelo governo. Tratava-se de uma situação inversa em relação à crise política de agosto e setembro de 1961, quando as direitas tentaram golpear as instituições democráticas, e as esquerdas defenderam a legalidade e o cumprimento da Constituição. Em março de 1964, o movimento era ao contrário: líderes de direita — hipocritamente, como dizia Brizola, com razão — defendiam a integridade da Constituição; enquanto a Frente de Mobilização Popular manifestava desprezo pelas instituições liberais democráticas da Constituição de 1946. Nos discursos das lideranças de esquerda e do próprio governo, sobretudo na mensagem presidencial, o regime político era descrito com imagens bastante negativas: a Constituição estava ultrapassada, o Congresso Nacional era formado por latifundiários, e novas formas de governabilidade deveriam ser implementadas — por exemplo, plebiscitos, delegação de poderes e uma Constituinte formada por operários, camponeses, sargentos e oficiais militares nacionalistas. As mudanças nas regras eleitorais, beneficiando a candidatura de Brizola à presidência da República, permitindo a reeleição de Jango e privilegiando o PTB, somente contribuíam para criar mais suspeitas e desconfianças. Além disso, a Frente de Mobilização Popular não escondia que seu projeto era governar o país com exclusividade, impondo seu programa de governo e desconsiderando outras tendências políticas do quadro nacional — vistas como conservadoras, decadentes, reacionárias e entreguistas. Com a mobilização popular cada vez mais próxima do Estado, o projeto reformista, segundo Maria Celina D’Araújo (1996:146), incluía a tomada do poder pelos setores mais radicais do PTB.

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Palavras nais

A partir do comício da Central do Brasil, e logo após a mensagem presidencial, o conflito político entre esquerdas e direitas se redimensionou. Não se tratava mais de medir forças com o objetivo de executar, limitar ou impedir as reformas, e sim da imposição de projetos. As direitas tentariam impedir as alterações econômicas, sociais e políticas, excluindo, se possível, seus adversários da vida política do país, sem a preocupação de respeitar as instituições democráticas — como aconteceu dias depois. O PTB, por sua vez, cresceu e se confundiu com as esquerdas e com os movimentos sociais que defendiam as reformas. Seus dois maiores líderes, Goulart e Brizola, estavam unidos depois do comício da Central. A coalizão das esquerdas exigia as reformas, mas não valorizou as instituições da democracia liberal. O clima de desconfiança generalizada e de radicalização aberta foi agravado ainda mais com a revolta dos marinheiros, episódio que provocou gravíssima crise militar, atingindo e desestabilizando o governo de Goulart. ❚

Referências

D’ARAÚJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder. O PTB de 1945-65. Rio de Janeiro: FGV, 1996. FERREIRA, Jorge.O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. _____; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 3. _____; REIS, Daniel Aarão. Nacionalismo e reformismo radical, 1945-1964: As esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 2. FIGUEIREDO, Argelina. ou1993. reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-64. São Paulo: Democracia Paz e Terra, GOMES, Angela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: _____ (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. _____; FERREIRA, Jorge. Jango, as múltiplas faces. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

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Mulheres em luta contra a violência: forjando uma cultura política feminista Rachel Soihet*

Minha situação é desesperadora, pois estou praticamente sendo mantida em cárcere privado. Moro com um homem, há 17 anos, e temos dois filhos menores. Logo após ir morar com ele, descobri que sofria(...). de neurose guerra e semprepiorou, tentei me ele mede ameaçava de tirar as crianças A partirdedaí, a situação poisseparar, ele memas proibiu receber visitas, inclusive dos meus parentes; não posso ir nem no portão, além de receber ameaças de morte constantemente. Até aqui tenho me defendido com facas, martelos, e até água quente já ameacei jogar em cima dele. Já fiz uma queixa por escrito ao delegado da 39a DP, que mandou chamá-lo, mas disse que não pode fazer nada em virtude da idade dele. Este homem tem 70 anos, mas não pensem que ele é um pobre velhinho indefeso, pelo contrário, ele é forte, violento e está sempre brigando com os vizinhos. (...). Na segunda-feira (19/4), estive no Centro da Mulher Brasileira e fui muito bem recebida pela Sandra, que me colocou em contato pelo telefone com dra. Lígia, que me tranquilizou e aconselhou a procurar o SOS Mulher. (...) Estou ciente das dificuldades que vocês também enfrentam nessa luta que é de todas nós mulheres, mas gostaria que me orientassem de como devo proceder. Ele já falou que, se eu for embora dessa vez, ele não vai mais nos procurar, mas, como posso ir, se não posso sair de casa para trabalhar? Sou costureira e também tenho prática de balconista e sei que posso 1 cuidar sozinha de meus filhos. Desde já agradeço tudo o que puderem fazer por mim. * Destaco a colaboração das bolsistas Nataraj Trinta Cardoso, do CNPq, e Maria Mostafa, Fernanda Pires Rubião e Joyce Ribeiro Leal,do Pibic, na realização da pesquisa e reflexão sobre o material coletado. 1 Carta de Nelma Bezerra Casemiro ao SOS (22 abr. 1983).

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O trecho acima é de uma das inúmeras cartas de mulheres recebidas pelo SOS Mulher-RJ, denunciando ameaças e/ou violências por parte de seus companheiros e solicitando ajuda para se separarem deles. Trata-se de uma situação que algumas estudiosas comparam ao terrorismo político, reconceitualizado como “terrorismo em casa”, pois a violência perpetrada contra mulheres em suas relações íntimas apresentaria efeitos similares aos enfrentados pelas vítimas de terrorismo.2 Pode-se constatar também, por meio do relato acima, uma mudança de comportamento das mulheres, que não mais se envergonham de tornar públicas mazelas que até há pouco eram ocultadas, por serem consideradas do âmbito da intimidade. Legitima-se assim a máxima “o privado é político”, ressaltando o caráter estrutural da dominação e tornando evidentes as modalidades de poder que também se expressam na vida cotidiana, nos diversos aspectos das relações sociais e pessoais, e que, frequentemente, significavam a inferiorização das mulheres.3 Assim, parece-nos distante um episódio ocorrido no Centro da Mulher Brasileira (CMB), no início de 1979, quando da organização do “Encontro Nacional de Mulheres”, a ser realizado nos dias 8, 9 e 10 de março do mesmo ano. Recém-chegada da França, a física Lígia Maria Coelho Rodrigues, que militara no feminismo naquele país, buscou engajar-se no CMB e manifestouse surpresa com a ausência, na pauta das discussões do encontro, de questões como sexualidade e violência contra a mulher. Ao sugerir a inclusão deste último tema, obteve como resposta: “aqui no Brasil é diferente da França. Aqui no Brasil, mulher que apanha do marido é por que gosta”.4 Àquela época, as questões prioritárias eram as ligadas aos direitos civis, ao trabalho, especialmente das mulheres pobres, e às creches, entendendo as feministas que deveriam se assumir como vanguarda revolucionária do movimento das mulheres, necessária para orientar as trabalhadoras em sua missão histórica. Buscavam legitimização articulando-se com os outros movimentos de luta pela redemocratização do país, então mergulhado na ditadura militar. 5 Assim, estava-se muito longe de discutir temas como a violência contra as mulheres, a sexualidade, o aborto, sem falar na assimetria de poder nas relações entre homens e mulheres, ou nas questões ligadas à subjetividade, as quais se constituíam em Almeida, 1998:54. Varikas, 1997:67. 4 Entrevista concedida por Lígia Maria Coelho Rodr igues a Rachel Soihet e equipe (1 o fev. 2005). 5 Rago, 1995:35. 2 3

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aspectos privilegiados nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Esses eram temas que deviam ser evitados, não se descartando atitudes autoritárias para tanto.6 Apesar de toda essa oposição, das oito comissões em que se repartiram 400 mulheres, duas voltaram-se para os temas que muitos queriam ver proscritos, quais sejam, a sexualidade e a violência. A situação no CMB, porém, revelava-se extremamente difícil para as mulheres desejosas de levar à frente a discussão daqueles problemas, de modo que elas de lá se retiraram, surgindo, em abril de 1979, o Coletivo de Mulheres, do qual se desprendeu em fins de 1981 o SOS Mulher, organização voltada para as questões ligadas à violência contra as mulheres. Por outro lado, constatou-se que o CMB, após a cisão, passou a incorporar tais reivindicações, e algumas de suas integrantes também se engajaram na campanha em favor daqueles temas. Com a aprovação da Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979, e a volta das exiladas, sob viva influência dos feminismos, especialmente europeus, somada à experiência daquelas que aqui permaneceram, esses movimentos assumiram nova configuração, e os feminismos na década de 1980 se tornaram uma força política e social consolidada, em que as relações de gênero passaram ao primeiro plano. Inclusive, na minha percepção, a partir daí foi se forjando entre as feministas uma cultura política. Chego a tal conclusão considerando O fato de o conceito de cultura política permitir explicações/interpretações sobre o comportamento político de atores individuais e coletivos, privilegiando suas 7 percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades.

E, ainda, valendo-me das colocações de Daniel Cefaï (2001) acerca da noção de “contextos de experiência e atividade dos atores”, possibilitando-lhes “novas formas de compreensão e de representação do mundo”, e sua contribuição decisiva no alargamento dos horizontes de análise das culturas políticas, no que me contraponho à opinião de consagrado historiador, para quem o feminismo não possui uma cultura política.8 Dessa forma, acompanhamos as sucessivas intervenções das organizações feministas, como aquela ocorrida em 9 de março de 1980, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, durante a comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Goldberg, 1987:111-112. Gomes, 2005:30. 8 Trata-se de Serge Berstein (1998:352). 6 7

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Dela participaram o Centro da Mulher Brasileira, o Coletivo de Mulheres, a Sociedade Brasil Mulher e os departamentos femininos dos sindicatos dos metalúrgicos e dos bancários. Na ocasião, houve discordância entre a professora Hildésia Alves de Medeiros, vice-presidente do Centro Estadual de Professores, e a economista e professora Hildete Pereira de Melo.Segundo Hildésia, as questões específicas deveriam ser debatidas e assumidas pelas mulheres das diversas categorias profissionais, à medida que a luta pela libertação da mulher estava “intimamente ligada à luta mais geral do movimento dos trabalhadores contra a exploração”. Ao que rebateu Hildete, salientando que, embora reconhecesse a existência de uma luta mais ampla a ser travada, havia pontos específicos que o socialismo não resolvera. E afirmou: “a opressão da mulher é anterior ao capitalismo”. Observa-se nessa discussão o embate entre a perspectiva de que as demandas feministas deveriam estar atreladas à luta mais geral, posição há muito defendida pelo grupo que liderava o Centro da Mulher Brasileira, e a posição de uma militante que, reiterando posturas anteriores, argumentava que se deveriam considerar prioritariamente as demandas próprias das mulheres. Contrapunhase, assim, à posição comumente assumida pelas esquerdas, cujas representantes por largo predominaram de deste transferir a discussão tuação dastempo mulheres para “depoisno da CMB, libertação ou daquele povo,sobre depoisa sido fim do racismo, depois da liberação dos proletários, depois da revolução — enfim, depois de tudo”.9 Mediando o debate, a física Lígia Maria Coelho Rodrigues — à época membro do Coletivo de Mulheres, após ter deixado o CMB —, diante da intolerância para com suas posições, afirmou que a riqueza do movimento feminino estaria nessa diversidade, concluindo: O que queremos é transformar os problemas do dia a dia numa discussão política. Esse é o caso da sexualidade, que sempre foi considerada um assunto particular, mas que, na medida em que é discutida coletivamente, se transforma numa discussão política.10

Já na primeira reunião da Coordenação do Coletivo de Mulheres, Lígia, como coordenadora da Comissão de Violência, mostrara-se interessada em examinar o Código Penal, a fim de verificar o que estava e o que não estava nele 9

Delphy, 1994:193. Mulheres discutem...

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incluído. Outra proposta sua foi documentar os casos de violência e elaborar um dossiê, ou mesmo uma teoria da violência.11 Mais adiante, em 8 de junho de 1979, Lígia sugeriu publicar uma brochura com depoimentos de mulheres vítimas da violência. Propôs, igualmente, o projeto de organizar uma assistência jurídica às mulheres. Para tanto, estabeleceu contato com a juíza Anna Acker, com o objetivo de formar uma equipe de advogadas dispostas a colaborar com 12

a Comissão de Violência. E, assim, foram obtidas conquistas, quer no caso da violência física, quer no da violência simbólica.13 Episódio emblemático foi o julgamento de Doca Street, como era chamado Raul Fernando do Amaral Street, que assassinou Ângela Diniz alegando infidelidade da mesma. No primeiro julgamento ele merecera aplausos do público com seu argumento de legítima defesa da honra, recebendo então uma pena ínfima.14 O caso mereceu a atenção das feministas, que se mobilizaram para obter revisão da pena, destacando o perigo que acarretaria essa impunidade para a sociedade brasileira. Suas atitudes de enfrentamento dos preconceitos então existentes com relação às mulheres contribuíram decisivamente para uma mudança de mentalidade na sociedade brasileira e para a tomada de consciência de gênero no Rio de Janeiro, culminando com a condenação do acusado.15 Mas a luta continuou, e um episódio ocorrido em 1981 veio abalar as feministas envolvidas nessas questões, a ponto de nossa entrevistada Lígia Rodrigues afirmar: “eu nunca consigo falar disso sem chorar; até hoje”. Trata-se do caso de Christel Arvid Johnston, que, segundo o depoimento de Lígia Rodrigues, era brasileira, de família escandinava, estava separada, tinha um filho e

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Ata da primeira reunião da Coordenação do Coletivo de Mulheres (28 maio 1979). Ata da reunião da Coordenação do Coletivo de Mulheres (22 jun. 1979).

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A violência simbólica pressupõe pelas a adesão dos dominados às categorias embasam sua masculinos. dominação, correspondendo a interiorização, mulheres, das normas enunciadasque pelos discursos Assim, definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda a perceber como a relação de dominação — que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída — é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal. Ver Chartier (1995). 14 Foi condenado a apenas dois anos e dois meses de detenção, permanecendo em liberdade por força de sursis. 15 Doca Street... Ver também Thompson (1984:37). A expressão “tomada de consciência de gênero” é utilizada por Perrot (1994), parafraseando E. P. Thompson, para quem no processo de luta é que ocorre a tomada de consciência de classe pelos trabalhadores.

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tinha ouvido falar que existia essa comissão antiviolência em alguma entrevista que alguma de nós deu para algum jornal, para alguma televisão, sei lá... Porque a gente volta e meia estava sendo entrevistada, né? A gente vivia criando confusão. Nossa especialidade era fazer confusão, e então ela conseguiu. Não sei mais como ela conseguiu o telefone da gente, entrou em contato com uma de nós e pediu para vir numa reunião.16

Eduardo Alberto Arvid Johnston, ex-marido de Christel, vivia perseguindo-a. Ficava todo o tempo à sua espreita, diante da casa dela ou do Consulado Alemão, onde ela trabalhava. Christel dera queixa na delegacia inúmeras vezes, sem qualquer resultado, daí sua decisão de buscar apoio junto àquele grupo de mulheres. Pela carta que enviou ao juiz da 6a Vara de Família pode-se ter uma ideia de suas providências infrutíferas junto à polícia para se livrar das perseguições do ex-marido.Trata-se de uma verdadeira crônica da “morte anunciada”.17 Eis um trecho da carta: Apesar de várias vezes advertido pelo delegado Short, da 15a Delegacia (onde fiz meu pedido de garantias de vida em 4-1-1980), à qual tive que recorrer várias vezes porque meu ex-marido insiste em permanecer buzinando ou me cercando e impedindo-me de chegar à minha residência, sem falar na tentativa de arrombamento da portaria do prédio em que moro e das várias vezes em que me ameaça pelo telefone e insulta vizinhos, ele insiste no mesmo comportamento. O delegado advertiu-o (...) que ele se abstivesse dessas importunações diárias, o que não aconteceu. Durante todo esse tempo da nossa separação tenho sido alvo de suas ameaças e insultos, bem como qualquer pessoa que se coloque em minha defesa. Meus pais foram alvo de suas ameaças telefônicas constantemente, o que originou a DP). Em até uma queixa de ameaça de morte na delegacia de Santa Teresa (7 meu local de trabalho, no Consulado da República Federal da Alemanha, onde sou funcionária há 13 anos e atualmente exerço a função de telefonista, sou diariamente alvo de insultos e ameaças, assim como qualquer outra pessoa que interfira. Já houve dias em que meu ex-marido chegou a telefonar mais de 60 vezes. Cada vez que grita um insulto ou ameaça, eu imediatamente desligo o telefone. Essas cenas estenderam-se já a outros funcionários do consulado, culminando com 16 17

Ver nota 4. Vítima pressentiu crime...

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telefonemas ao cônsul-geral, com insultos a ele e à sua esposa em altas horas da noite. Isso motivou o consulado a ajudar-me, procurando a delegacia do Catete (9a DP) e dando ciência do fato mediante testemunhas. Em minha residência tive de mandar retirar o telefone, porque a situação era a mesma, e a qualquer hora do dia ou da noite meu ex-marido ligava aterrorizando. O mesmo aconteceu em relação ao telefone dos meus pais e do cônsul-geral, que foram retirados pelo mesmo motivo.

Continuando, dessa vez com Lígia: “e num belo dia ele a matou. Matoua numa esquina de Ipanema. Acho que foi na Nascimento Silva com a Garcia D’Ávila. Fechou o carro dela, desceu, atirou e matou. Isso foi um horror. A gente ficou muito mal”. Deixava de ser, como ela nos confessa, algo distante, de que se fica sabendo através dos jornais. Era uma pessoa com quem se tinha laços de afetividade. “E a gente entrou em parafuso.” As integrantes do grupo decidiram que deveriam fazer alguma coisa mais concreta. Sabedoras de que havia um grupo organizando um SOS em São Paulo,entraram em contato com alguns de seus membros que tinham vindo ao Rio para uma reunião e decidiram criar um SOS Mulher também no Rio, o que viria a ocorrer em 1982. Para tanto, em fins de 1981, organizaram uma festa para angariar recursos, entrando em contato com “todo mundo que tinha condições de dar algum dinheiro, de ajudar de alguma maneira para tentar obter recursos materiais para fazer isso”. Finalmente, alugaram sua primeira sala na Evaristo da Veiga, passaram a divulgar a existência do SOS Mulher e estabeleceram uma escala de plantões, para receber as mulheres que as procuravam.Também conseguiram um convênio com os escritórios-modelo da Cândido Mendes e da Bennet, para onde encaminhavam as mulheres para o atendimento jurídico.18 O SOS Mulher-RJ tem atuado em diversas situações relacionadas à vio19 seja lência contra as mulheres, seja promovendo manifestações de protesto, Ver nota 4. Por exemplo: convocatória para manifestação na 15ª Delegacia de Polícia, para protestar contra a agressão feita por Carlos Roberto Saba a Francisca Célia (O Globo, 12-6-1982); carta à TV Mulher, pedindo divulgação para uma vigília a ser realizada em 6-10-1983, durante o segundo julgamento de José Wellington Damasco da Conceição, que assassinara sua namorada Maria de Fátima Avelino de Carvalho em 11-4-1980; convocação para vigília durante o julgamento de Édson Riquetti, suposto assassino de Angela Armond, em 16-12-1986; carta ao dr. Nilo Batista, datada de 1-9-1986, solicitando apoio policial para uma manifestação em que seriam abordadas temáticas ligadas à violência contra as mulheres. 18 19

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reclamando do atendimento realizado nas delegacias, em casos de agressões e estupros. Assim, após uma pesquisa feita em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, João Pessoa, Recife e Goiás com 1.500 mulheres que haviam dado queixa, elaboraram um documento registrando que, ao procurarem as delegacias, “os atendentes não dão a mínima importância às mulheres; não raras vezes as destratam e se recusam a registrar queixa, apoiados em argumentos como ‘não se faz essas isso contra o próprio marido’, ou ‘você deve fazer coisas erradas para merecer surras’”. No caso de estupro, o problema assume proporções maiores: a vítima torna-se ré, pois vasculham sem pudor os detalhes mais íntimos de sua vida, fazendo comentários céticos (“no fundo você deve ter provocado”) ou insinuações (“deve ter feito isso com o namorado e agora quer arranjar desculpas”). Segundo o SOS Mulher, isso evidencia que a violência exercida contra a mulher é considerada secundária, “um assunto doméstico”. No entanto, as pesquisas provaram que, após os pedidos de ajuda à polícia, muitas dessas agressões acabaram se transformando em assassinatos. O modo como era tratado o assunto contribuía também para que muitas mulheres nem ousassem queixar-se. O grupo SOS Mulher reivindicava, no seu manifesto, que a polícia cumprisse seu papel, registrando as queixas e oferecendo proteção a mulheres ameaçadas, e não agindo como juiz, pois isso não lhe competiria. 20 Assim, temos um repertório de ações que nos permite detectar a presença de uma cultura política nesse movimento. Para tal conclusão, volto a Daniel Cefaï (2001:22), para quem “os estudos de repertórios de ação têm alargado consideravelmente o campo de análise das culturas políticas”. Menciona, nesse particular, entre outros trabalhos de historiadores, os de E. P. Thompson e Michelle Perrot, que lidam com o que se poderia chamar de “repertório”, embora estejam menos preocupados com sua categorização analítica e mais com a historicidade das formas de ação — greves, motins, insurreições etc. —, sua linguagem política, seus substratos culturais, sua relação com a tradição. Entretanto, continuava a escalada da violência, dando lugar às manifestações das mulheres. Assim, em junho de 1985, cinco mulheres morreram de maneira trágica.

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Mulheres protestam...

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No dia 3, Nícia Abreu e Silva foi assassinada com seis tiros a queima roupa pelo ex-marido, o médico Aníbal Maciel de Abreu. No dia seguinte, a estudante Vera Helena da Silva Neves, de 14 anos, foi assassinada por Carlos Magno da Silva Rodrigues, no município fluminense de Cordeiro. Filho de um rico fazendeiro, Carlos Magno fugiu, mas a população, nesta semana, destruiu a fazenda de seu pai. No dia 16, Mônica Granuzzo Pereira, de 14 anos, caiu de um apartamento na Lagoa,pública. depois Além de ser delas, espancada seusmulheres agressores, provocando da opinião outrasporduas morreram em indignação circunstâncias misteriosas, neste mesmo período. No mesmo dia do assassinato de Nícia, a francesa Marion Blefemes caiu do 10o andar de seu apartamento em Ipanema. O marido, o francês Jean Moriaux, limitou-se a dizer à empregada: “ela pulou”. Depois arrumou as malas e fugiu, sem sequer levar o filho do casal. No dia 12, a técnica em educação Mariza Bastos Duarte levou um tiro na cabeça em seu apartamento na rua Sá Ferreira, em Copacabana. O marido, o advogado Joar Duarte, alegou suicídio. Os vizinhos, entretanto, ouviram gritos, uma forte discussão e ameaças de morte antes do tiro. Pouco antes, Joar havia humilhado Mariza, beijando outra mulher em um bar.21

Por causa disso, o secretário de Justiça Vivaldo Barbosa criou a Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (CEDDM), ao mesmo tempo em que grupos feministas tomavam providências para impedir a impunidade dos assassinos. Assim, o SOS Mulher divulgou o “Dossiê da impunidade”, reunindo 14 casos ocorridos no Rio de Janeiro entre dezembro de 1979 e junho de 1985: 13 mortes e um caso de agressão sexual a menores, estando soltos seus responsáveis. O SOS Mulher tornou a reunir-se para protesto durante o julgamento do assassino de Christel A. Johnston, quando o réu foi condenado a 15 anos, tendo o júri aceitado um laudo médico que o considerava um “psicopata leve”, fato que determinou a redução da pena para 10 anos. Como já havia cumprido quatro anos e quatro meses, a título de prisão preventiva, em breve o réu ganharia a liberdade condicional. Por outro lado, as integrantes do SOS Mulher e dos demais movimentos feministas esperavam medidas práticas da Comissão Especial criada pelo secretário de Justiça. Com representantes dos movimentos feministas, do SOS Mulher, da OAB, da Secretaria de Saúde e Educação e de

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À violência e impunidade...

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sindicatos, a Comissão propunha a revisão processual de crimes praticados contra mulheres nos últimos meses — tarefa nada fácil. Mas, como explicar tanta violência? Esta, segundo a filósofa Marilena Chauí (1984:35), se apresenta como uma relação determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Decorre da conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade fins de dominação, exploração e opressão. Em última instância, completacom a antropóloga Maria Filomena Gregori (1992:192), é a violação da liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história. Por outro lado, inúmeras são as entrevistadas envolvidas com essa problemática, como a advogada criminalista Kátia Araújo, que colaborava com o SOS Mulher. A seu ver, a violência contra a mulher começava em casa, com surras e humilhações, passava pelos numerosos casos de estupro, terminando com o assassinato. Para a advogada, ela inclui também os numerosos crimes sexuais, quase nunca registrados e que não fazem parte das estatísticas. A vergonha da mulher garante a impunidade do agressor, o mesmo acontecendo no caso das surras. Não há como estimar o número de mulheres que são espancadas pelos maridos simplesmente porque a grande maioria contorna o problema dentro de casa. A mulher pode até dar queixa num momento de raiva, mas depois desiste e faz as pazes. Até apanhar novamente. As próprias feministas reconhecem que, além do medo de apanhar, há o medo de perder a condição de casada. Segundo relatório do SOS Mulher, o que conta, em primeiro lugar, é a dependência econômica, principalmente quando a mulher tem filhos, está afastada do mercado de trabalho ou não tem profissão. Em segundo lugar, estão os filhos; por último, o medo das ameaças, o sentimento de culpa e vergonha. Geralmente, a mulher de classe média desiste no meio do caminho — continua Kátia Araújo. Segundo ela, a mulher preferiria apanhar a romper o casamento e ir à luta. Sua experiência demonstra que a mulher pobre reage mais. Se ela apanha, bate. É mais corajosa pela própria condição de vida, não tem medo de enfrentar a realidade, que já é dura. Então, reage e dá queixa. A mulher de classe média tem vergonha de entrar na delegacia e apanha calada porque os vizinhos não podem ouvir. Com que cara ela vai entrar no elevador no dia seguinte? Se está com olho roxo, ela mente, dizendo que caiu.

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Verifica-se, pois, que as contradições de gênero atravessam a questão da classe social, embora apresentem especificidades decorrentes das diversidades culturais. De qualquer forma, a violência física seria uma realidade presente em todas as classes sociais. Em obra da década de 1980, período próximo ao que estamos abordando, cientistas sociais, referindo-se aos Estados Unidos, chegam a afirmar: A classe média não somente apresenta a mesma tendência que outras classes de se envolver em agressões físicas, como também tem feito isso frequentemente. Se existe alguma diferença, esta reside no fato de a classe média ter maior propensão à agressão física do que as classes mais pobres.22

Ante a contradição de tais asserções com as estatísticas policiais que mostram os pobres cometendo maior número de agressões, respondem que as altercações entre os pobres são simplesmente mais prováveis de se tornar uma questãode polícia. Rita de Cássia Andréa, do SOS Mulher, considera que existem outros fatores que contribuem para a violência. A seu ver, se a mulher apanha e vai à polícia, ela é novamente humilhada. O delegado quer saber se ela chegou tarde, se estava de saia curta, enfim, ele a interroga para saber se ela não mereceu a surra. Em caso de estupro, a vítima não vai à delegacia geralmente por vergonha. Fazer um exame de corpo delito é reviver a experiência traumatizante por que passou. Então, a mulher desiste. Em quatro anos de SOS foram atendidos 300 casos, a maioria espancamentos, apresentados geralmente por mulheres carentes, como empregadas e faxineiras. Um dos pontos a serem discutidos pela Comissão Especial era a criação de um local apropriado, nas delegacias, para o atendimento de mulheres espancadas e estupradas, além da instituição do sigilo. A situação parecia difícil, mas a experiência vinha demonstrando à advogada Kátia Araújo que a “luz no final do túnel” existia: A mulher tem dificuldades com a polícia, mas eu começo a ver que os policiais mudaram a atitude diante dos casos de estupro, passando a encarar o assunto mais seriamente. Precisamos também entender que quem garante a impunidade não é

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Apud Langley e Levy, 1980:74.

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a Justiça, mas a própria sociedade. Nossa sociedade é machista, suas leis são machistas, e o Legislativo é composto em sua grande maioria por homens. Além disso, as pessoas ficam buscando sempre uma culpa na mulher.

A também deputada Lúcia Arruda conta que, em dois anos e meio de mandato, recebeu numerosos pedidos de ajuda e denúncias de violência contra acita mulher. Ela“quem acha que de 1980 uma reavaliação emno todo o país ee o slogan amaa partir não mata”, quehouve viu pichado em paredes Nordeste no Sul. Lembra ainda que Doca Street fora aplaudido no julgamento e que essa situação nunca mais se repetiu. Cerca de um mês depois, voltava o mesmo jornal à questão, diante do recrudescimento dos crimes passionais, cujo índice preocupava mulheres e criminalistas. E as razões para isso, segundo as líderes feministas, seriam a libertação feminina e a transformação que vinha ocorrendo na sociedade, bem como a educação conservadora e machista do homem brasileiro.23 Enquanto isso, o secretário de Justiça Vivaldo Barbosa aguardava um relatório da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Mulher para poder encaminhar ao governo do estado a proposta de instalação de uma delegacia para mulheres no Rio, a exemplo do que fora feito em São Paulo. De acordo com a feminista Rose Marie Muraro, a implementação da delegacia para mulheres seria dos “maiores serviços que se prestarão na história da cidade”. A advogada Comba Marques garantia que a delegacia permitiria às mulheres tornar públicas as agressões de que eram vítimas. É um dos principais caminhos contra a violência à mulher, porque, até hoje, esse tipo de crime era considerado de ação privada. Isso tem que vir a público, porque o homem vai pensar duas vezes antes de agredir, espancar a mulher, principalmente se tem um cargo ou uma posição a preservar perante a sociedade.

Sobre a delegacia da mulher, Lígia Rodrigues, nossa entrevistada, informa que o debate sobre o tema criou uma situação de conflito no SOS. Isso porque algumas militantes achavam que se devia investir na pressão sobre o Estado para criar uma delegacia da mulher, enquanto outras, entre as quais ela se incluía,

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Aumentam os crimes...

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consideravam que se deveria manter autonomia e deixar que o Estado fizesse a sua parte.Tal postura não impediria que prestassem apoio quando necessário.“E isso acabou com o SOS. Porque elas foram saindo”. E confessa: “a verdade é que era um trabalho muito difícil, muito frustrante”. As mulheres vinham com problemas que não havia como resolver. Quando eram muito espancadas, era preciso achar um lugar onde colocá-las, para que pudessem sair de casa, pois não tinham aonde Esse era o casobebia, típico ele da mulher que dependia financeiramente do marido. Emir.regra, quando chegava em casa e batia nela; quando não bebia, ele ficava bom. É o caso típico de mulher de classe mais baixa. Também vinham as de classe média, que tinham condições de sair de casa e não o faziam por causa de problemas psicológicos. “Então, a gente fazia aquelas reflexões com ela e muitas vezes se dava conta de que a coisa era muito mais complicada.” Na verdade, tais mulheres precisavam de psicanálise, de psicoterapia. “Porque tinha raízes muito profundas aquela dependência, e a gente não conseguia quebrá-la só com o nosso discurso, meio ideológico, meio político, e com a nossa solidariedade”. Havia também os casos bem-sucedidos: Nós tivemos casos de mulheres que conseguiram se separar, que conseguiram ir à luta. Que foram para nossas advogadas e conseguiram (...) obter o que era de direito delas. Mas a imensa maioria dos casos era muito frustrante. E aí, foi-se desmilinguindo, e sobrou meia dúzia. Com a saída da maioria, o dinheiro era insuficiente para pagar o aluguel, para o qual se cotizavam.Tínhamos iniciado o grupo com 25, 30 mulheres e,à medida que diminuía o número,passamos a ocupar uma sala de favor. Então, quando essa história da delegacia entrou para valer no meio do SOS, rachou. (...) e a gente decidiu fechar.24

Deve datar desse período uma carta comunicando a suspensão temporária dos plantões para atendimento às mulheres vítimas de violência, por estarem sem uma sede ou local apropriado para essa finalidade. Informavam que, a partir de janeiro de 1986, o SOS Mulher-RJ não mais participaria da Comissão Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher da Secretaria de Justiça do Estado do

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Ver nota 4.

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Rio de Janeiro, por entenderem que a representação em organismos do Estado feria o seu caráter de grupo autônomo. Comunicavam sua decisão de dedicar-se a um projeto de pesquisa visando avaliar os resultados do trabalho empreendido pelo grupo durante seus quatro anos de existência. Estava, pois, suspenso o ingresso de novos membros, dada a necessidade de se dedicarem ao referido projeto. Solicitavam, ainda, a não divulgação de seus endereços ou telefones 25

particulares para finsmuito de atendimento, enquanto militantes SOS. Não demorou para que outra parte do grupo sedomanifestasse contrária a essa proposta. Em outra carta, Rita Andréa, Ângela Mendes e Zelma Rabello discordaram da decisão tomada.26 Reconheciam as dificuldades enfrentadas pelo grupo, quase que sozinho, durante a maior parte do tempo, na luta contra a violência doméstica, tida como “assunto de família”, sofrendo o duplo descaso da sociedade como um todo e dos poderes públicos em particular. Os plantões de atendimento às mulheres vítimas de violência, embora constituíssem árdua tarefa, eram o eixo fundamental de ação do grupo. Seu objetivo era esclarecer as mulheres sobre a dimensão social da violência, possibilitando assim o emergir de uma consciência que lhes permitisse lutar com suas próprias forças para não mais aceitar a submissão. Mas, enumeravam as dificuldades: “como refletir com uma mulher toda machucada, ameaçada de nova surra, ou de morte, sem emprego, nem dinheiro, nem qualificação profissional?”. Reconheciam que essas mulheres buscavam coisas prontas, habituadas ao assistencialismo, o que não fazia parte de suas propostas. Outra dificuldade era integrar profissionais — advogadas, psicólogas, assistentes sociais — ao trabalho.As poucas que se dispunham a trabalhar o faziam sem qualquer retorno. Daí ter o SOS começado em novembro de 1981 com 35 mulheres e estar reduzido a sete em fins de 1985. Enfatizavam a importância do trabalho desenvolvido, embora a avaliação de resultados práticos com relação às mulheres atendidas pelos plantões fosse tarefa ainda a ser cumprida. Reconheciam-lhe a complexidade, dado que cada mulher possui seu próprio universo, havendo que relativizar o que seja “resultado”. O relevante, porém, era a solidariedade com que cada mulher no Rio de Janeiro sabia que podia contar: uma ou duas vezes por semana, outras mulheres estavam dispostas a ouvi-las e ajudá-las. 25 26

SOS Mulher-RJ. Carta aberta (arquivo Lígia Rodrigues, 28-4-1986). SOS Mulher-RJ. Carta sobre discordâncias internas (arquivo Lígia Rodrigues, 2-5-1986).

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Além disso, teria sido esse trabalho incansável um dos responsáveis pela popularização do tema da violência contra a mulher. Lembram, inclusive, o caso de uma emissora de TV que a ele dedicara um programa inteiro em horário nobre. Trata-se do Globo Repórter que foi ao ar no dia 29 de abril, quando aproximadamente 10 milhões de pessoas assistiram durante 50 minutos a uma matéria sobre estupro, espancamento e crimes passionais. Citavam também como consequência sua atuação o estabelecimento, emomeados de 1985, do Conselho Estadual dadeCondição Feminina de São Paulo, qual reivindicava a criação de uma delegacia especializada em crimes contra as mulheres. Lembravam, igualmente, a criação do Conselho Nacional da Mulher, em Brasília. No Rio de Janeiro, depois de uma onda de assassinatos, e devido à pressão que o grupo vinha exercendo, criou-se a Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Mulher, na qual o tema da violência foi colocado como prioritário. Mencionavam também a criação da Central Policial de Atendimento à Mulher (Cepam), degrau intermediário entre a absoluta falta de estrutura e as reivindicadas delegacias. Aludiam ao pouco interesse do governo estadual, reforçado pelo secretário Campana, o que teria levado à situação de marasmo vigente. De qualquer forma, deveriam pressionar pela criação de delegacias, fazendo o Estado cumprir o seu dever de dotar a população de uma digna infraestrutura de atendimento, ligada à prática do movimento feminista. Discordavam, pois, da posição assumida pelas outras quatro integrantes do SOS de não participar do fórum da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Mulher. Desejavam continuar a luta contra a violência para com a mulher, ocupando todo e qualquer espaço, inclusive os institucionais, para conseguir o máximo em favor das mulheres. E este último grupo parece ter preponderado nas decisões. A esse respeito, cabe citar o comparecimento de entidades feministas, entre as quais o SOS, a um encontro com o dr. Nilo Batista, secretário de Polícia Civil, quando reivindicaram o plantão de médicas legistas no IML e abrigos para as mulheres ameaçadas e seus filhos.27 Há também uma carta do secretário a Lígia Rodrigues, encaminhando a proposta de um curso “Mulher e violência no Rio de Janeiro”, a ser ministrado na Academia Estadual de Polícia Silvio Terra. Tal seminário propunha não só reciclar efetivos já em atividade ou que futuramente seriam lotados

27

Apelo de feministas...

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em delegacias de atendimento à mulher, mas também a troca de experiências entre esses efetivos e os distintos grupos que compõem o movimento feminista no Estado. Na carta, o secretário solicitava a indicação de outros conteúdos para o debate e de pessoas capacitadas a colaborar no curso.28 Vale citar, igualmente, uma carta de várias entidades, entre as quais o SOS Mulher, ao secretário Nilo Batista, solicitando que nas delegacias de mulheres 29

omação quadro fossedototalmente feminino. Além pediam que a fore ofuncional treinamento corpo policial do Estado se disso, fizessem sob orientação de feministas, e que o Estado propiciasse alojamento provisório para mulheres (e seus filhos) que estivessem correndo risco de vida. Mas, logo em seguida vem a tempestade: em carta ao secretário de Justiça do estado do Rio de Janeiro, Eduardo Seabra Fagundes, e ao secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Nilo Batista, datada de 11 de dezembro de 1986, várias entidades feministas, inclusive o SOS Mulher, repudiavam a decisão de que as delegacias de Apoio às Mulheres (Deams) de Caxias e Niterói fossem dirigidas por um delegado, e não uma delegada. Aludiam, igualmente,à realização em Brasília, por iniciativa do Conselho dos Direitos da Mulher (CNDM), do o1 Congresso Nacional das Delegadas de Polícia, para o qual foram convidadas representantes feministas de vários estados, entre as quais membros do SOS Mulher-RJ, da OAB-Mulher-RJ e do gabinete da deputada Lúcia Arruda. Nesse congresso, decidira-se por unanimidade que o corpo funcional das Deams seria exclusivamente feminino, a exemplo do que já vinha ocorrendo em todo país. Assim, manifestavam a sua surpresa com relação à decisão tomada numa reunião realizada em 24 de outubro, na sede da OAB, entre feministas, juristas, dois representantes do secretário de Polícia Civil, a presidenta do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher (CEDDM) e representantes das comunidades de Caxias e Niterói. Para espanto dos grupos feministas, a presidenta da CEDDM, Diva Múcio Teixeira, manifestara-se favoravelmente às delegacias dirigidas por delegados homens. Além disso, outra reunião, para a qual não fora convocado o movimento feminista, organizada pela CEDDM e realizada na Secretaria de Justiça em 27 de novembro, contando com a presença maciça de mulheres até então estranhas Carta de Nilo Batista à sra. Lígia Rodrigues, do SOS Mulher (Rio de Janeiro. 24-11-1986). OAB-Mulher, SOS-Mulher, Grupo Nós Mulheres, Federação das Mulheres, Ceres, Casa da Mulher (26-8-1986). 28 29

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àquela discussão e apresentadas como integrantes das comunidades de Caxias e Niterói, acabou por precipitar a implantação das referidas Deams sob a chefia de delegados. Aproveitavam, pois, para denunciar que a referida reunião tivera por objetivo legitimar, através de um pretenso voto dos movimentos feministas, uma solução que o movimento repudiava, unânime e veementemente. Para tal intento, não haviam hesitado nem mesmo em manipular uma situação de real carência comunidades Mas,dasafinal, acabaramenvolvidas. estabelecendo-se as Deams sob a direção de delegadas mulheres no Rio de Janeiro, como vinha sendo reivindicado. Nesse sentido, as feministas, mais uma vez, longe de se colocarem de maneira passiva, uniramse em torno de “parâmetros previamente articulados por uma rede de sentidos e de conceitos”, configurando assim a presença de uma cultura política. 30 Hoje, perguntada a respeito da importância do feminismo para a sociedade brasileira em geral, Lígia enfatiza: Embora ainda haja muita coisa pra fazer (...), muita coisa foi feita. Vejam essas meninas, hoje. Trinta anos atrás, estavam pensando só em casar. Hoje, estão todas estudando. O número de mulheres estudando é cada vez maior. A performance das mulheres é melhor do que a dos homens em muitíssimas áreas. A participação feminina não para de crescer. Hoje há um número grande de mulheres absolutamente independentes. (...) Algumas até radicalmente independentes. As mulheres até adquiriram muito dos vícios masculinos, o que é um lado ruim da coisa (...). E essa questão da violência (...) eu acho que tive uma contribuição bem importante. Hoje, essa questão da violência contra a mulher é tema de jornal, revista, livro, televisão, cinema. Toda a sociedade brasileira sabe que esse problema existe; sabe que mulher apanha em qualquer classe social; sabe que estupro existe em qualquer classe social (...). E, quando falamos isso pela primeira vez, éramos olhadas como um bando de malucas.

Assim, constata-se que, mesmo havendo dissensões entre as feministas, isso não as impediu de contribuir decisivamente na elevação da consciência de gênero e na modelação de uma cultura política. E esta, embora integrada por elementos diversos e até conflitantes, pode guardar coerência, possibilitando a

30

Cefäi, 2001.

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produção de interpretações da realidade e sendo fundamental para a construção de identidades.31 Assim, num período relativamente curto, atos reiterados de mulheres acabaram por conformar repertórios de ação, alargando consideravelmente o espectro no que tange às formas de expressão dessa cultura política. ❚

Referências

À violência e impunidade dos homens, as mulheres dizem não.O Globo, Rio de Janeiro, 13 jul. 1985. Apelo de feministas — alojamento para mulheres e crianças que correm perigo. O Dia, Rio de Janeiro, 27 ago. 1986. Aumentam os crimes passionais: quatro mulheres mortas.O Globo. Rio de Janeiro, 19 ago. 1985. Doca Street: a condenação do assassino.Movimento, 9 nov. 1981. Mulheres discutem sexualidade e aborto no Dia Internacional. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 mar. 1980. Mulheres protestam na polícia.O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 dez. 1982. Vítima pressentiu crime em outubro e pediu ajuda a juiz.O Globo, Rio de Janeiro, 12 set. 1981. ALMEIDA, Suely Souza de.Femicídio: algemas invisíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. ALVAREZ, Glória.Em briga de marido e mulher, bicudo nenhum mete a colher. Fundo/Coleção Comba Marques Porto.Arquivo Nacional. BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, J. P.; SIRINELLI, J. F. (Orgs.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.

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PARTE IV

Identidade e política

11 ❚

Cultura política indígena e política indigenista: reexões sobre etnicidade e classicações étnicas

de índios e mestiços (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX) Maria Regina Celestino de Almeida

De meados do século XVIII ao XIX, as políticas indigenistas da Coroa portuguesa e do Império brasileiro apresentam continuidade quanto à proposta de promover assimilaçãoEmbora dos índios seus respectivos impérios e extinguir antigas aldeiasa coloniais. comaosprocedimentos diversos, ambas visavam essencialmente civilizar os índios e incorporá-los como súditos e cidadãos de suas sociedades, sem quaisquer distinções em relação aos demais. No Rio de Janeiro, o processo de extinção de antigas aldeias coloniais foi lento e gradual. Incluiu negociações e conflitos entre índios, autoridades, colonos e missionários, e retardou-se, em grande parte, pela ação dos próprios índios.1 A ação política desses índios pautava-se por uma cultura política por eles construída numa longa trajetória de alianças e conflitos com os demais agentes interessados nas aldeias. Fundamentava-se basicamente em direitos étnicos assegurados pela legislação do Antigo Regime, que dera aos índios condição distinta cristãos da dos demais vassalos do rei. Ao ingressarem nas aldeias, tornavam-se súditos do monarca português e tinham obrigações e direitos específicos, próprios de sua categoria de índios aldeados. Acredito que, ao chegarem ao século XIX, esses índios continuavam agindo em defesa de suas terras e aldeias de acordo com essa cultura política, pouco condizente com a do Estado 1

A esse respeito, ver Almeida (2007).

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nacional em construção, cujos valores se assentavam nos ideais de igualdade e liberdade, com as limitações próprias do liberalismo brasileiro. Esses novos valores, que já se manifestavam desde o tempo da Ilustração, traduziam-se para os índios no fim de uma situação jurídica específica que, apesar dos imensos prejuízos, tais como sujeição ao trabalho compulsório e discriminação social, lhes garantia alguns direitos, entre os quais a vida comunitária e adoterra Pela manutenção índios das aldeias coloniais Riocoletiva. de Janeiro iriam se manter desses unidosdireitos, até bem os avançado o século XIX, desafiando a política assimilacionista que, desde meados do XVIII, pretendia extingui-los como categoria, acabando com as distinções entre índios e não índios. Enquanto políticos e intelectuais afirmavam a condição de mistura, dispersão e desaparecimento dos índios das aldeias do Rio de Janeiro, estes últimos reivindicavam, com base na identidade indígena, antigos direitos que lhes haviam sido dados pela Coroa portuguesa.2 Embora misturados e transformados, num longo processo de contato e experiência compartilhada no interior das aldeias com diferentes grupos étnicos e sociais, vários índios aldeados chegaram ao século XIX afirmando-se como tais. Mestiços ou índios, os aldeados agiam com base numa cultura política que, srcinária de um processo de mestiçagem, fundamentava-se nos direitos adquiridos por eles por meio da legislação do Antigo Regime que lhes dera condição distinta da dos demais vassalos do rei, com obrigações e direitos específicos.3 Este capítulo visa refletir sobre política indigenista e cultura política indígena de meados do século XVIII ao século XIX, relacionando-as com a problemática da etnicidade. A documentação analisada — basicamente petições dos índios, relatórios de presidente de província, correspondência entre autoridades, relatos dos viajantes e memorialistas, e alguns mapas estatísticos do século XVIII — revela contradições na classificação das populações indígenas nas categorias de índios e mestiços, e aponta o papel central das discussões e controvérsias sobre etnicidade nos embates sobre política indigenista e extinção das aldeias. Essas questões devem ser pensadas levando-se em conta o acentuado processo de mestiçagem e as intensas relações interétnicas vivenciadas por esses índios 2 3

Almeida, 2005. Almeida, 2003a.

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aldeados, que contribuíam para alimentar as disputas e contradições sobre as formas de classificá-los. A imprecisão dos registros, nos mais variados tipos de fontes, sobre as identidades étnicas de índios, negros e mestiços, incluindo a imensa variedade de nomes para designar estes últimos, tem levado os pesquisadores a levantar instigantes questões sobre as razões dos aparentes equívocos. A problematização das contradições presentes nos documentos permite possíveis usos e apropriações dessas identificações que podem ter sidopensar feitosnos tanto por interesse dos registradores quanto dos registrados. 4 Na verdade, esses equívocos devem refletir a fluidez e pluralidade das próprias identidades que continuamente se reconstruíam nas sociedades coloniais e pós-coloniais. As novas proposições teóricas e conceituais da história e da antropologia complexificam os processos de mestiçagem e as relações interétnicas, conduzindo à ideia de identidades plurais e à percepção de que as categorias étnicas são historicamente construídas e adquirem significados distintos conforme os tempos, os espaços e os agentes sociais em contato.5 Nessa perspectiva, pretende-se refletir sobre esses significados enfocando especialmente os interesses dos índios aldeados do Rio de Janeiro, considerando suas relações com os demais grupos étnicos e sociais com os quais interagiam. Prioriza-se o período que se estende das reformas pombalinas ao século XIX, quando as disputas em torno dessas classificações tornaram-se mais visíveis na documentação. As controvérsias sobre a classificação das populações indígenas nascategorias de índios ou mestiços são vistas, conforme ressaltou Boccara (2009), como disputas políticas e sociais. Tais disputas não se dissociam dos embates relacionados às terras das aldeias que, desde a segunda metade do século XVIII, eram, no Rio de Janeiro, objeto de intensas contendas.6 As categorias de índios e mestiços são vistas, pois, como construções históricas que adquirem significados específicos conforme os agentes sociais e os momentos históricos por eles vivenciados. A reflexão sobre os significados de “ser índio” e “ser mestiço” para os diferentes agentes sociais em contato no Rio de Janeiro implica tecer algumas conEssas questões têm sido mais trabalhadas no caso de negros e afrodescendentes. Ver Mattos (1995); Lima (2003); Vianna (2007); Soares (2000). Sobre os índios, ver Boccara (2000); Oliveira (1997); Sirtori (2008). 5 Ver Gruzinski (2001); Boccara (2000); De Jong (2005); Mattos (2000); Lima (2003);Vianna (2007). 6 Almeida, 2003b. 4

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siderações também sobre a categoria dos negros e seus descendentes, à medida que as identidades e classificações étnicas se constroem de forma referencial entre os sujeitos e os grupos que interagem em contextos sociais e históricos específicos.7 ❚

Índios mestiços nas aldeias do Rio de Janeiro: a cultura política do Antigo Regime

Quem eram os índios aldeados do Rio de Janeiro de meados do século XVIII ao século XIX? Índios ou mestiços? Do século XVI ao século XIX, os índios nas aldeias coloniais tinham situação jurídica especifica que lhes determinava o lugar político, econômico e social ocupado na hierarquia da colônia. Se, por um lado, encontravam-se em posição subalterna, entre os estratos mais inferiores da sociedade, sendo inclusive obrigados ao trabalho compulsório em benefício dos colonos, por outro, tinham também algumas vantagens que se esforçaram por garantir. Identificavam-se a partir da aldeia na qual habitavam, reivindicando os direitos que lhes haviam sido dados por sua condição de aliados da Coroa portuguesa. Essa identidade — de índios aldeados, súditos cristãos do rei português, para o qual prestavam serviços, sobretudo militares — lhes garantia direitos e, sem dúvida, se construía com referência aos demais grupos com os quais interagiam, sobretudo negros e índios escravos.8 De acordo com Schwartz (1987), a colônia era um mundo em construção, onde outras identidades também se formavam interagindo num contexto hierárquico, escravocrata e desigual que, junto com as condições econômicosociais, tinham forte influência na definição dos referenciais de identificação entre os grupos sociais. A escravidão e a consequente existência de um grupo social numa categoria hierarquicamente inferior, incluindo a dos índios escravos, constituiram, me parece, elemento referencial importante para os índios aldeados. Apesar das perdas, a condição de aldeados lhes dava alguns privilégios em relação aos que ocupavam posição inferior na escala social. Tinham direito à terra, embora uma terra bem mais reduzida que a sua original; tinham direito a não se tornarem escravos, embora fossem obrigados ao trabalho compulsório; tinham direito a se tornarem súditos cristãos, embora tivessem que se batizar e, 7 8

Schwartz, 1996. Almeida, 2003a.

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em princípio, abdicar de suas crenças e costumes. As lideranças tinham direito a títulos, cargos, salários e prestígio social. Dentro de condições limitadas, restritas e, sem dúvida, opressivas, os índios aldeados encontraram possibilidades de agir para fazer valer esse mínimo de direitos que a lei, apesar de oscilante, lhes garantia, e fizeram isso até o século XIX, conforme várias petições que apresentavam a autoridades coloniais e metropolitanas.9 Convém ressaltar essa ação política era do processo mesti-das çagem. Apoiados pelosque jesuítas, responsáveis pelafruto administração dede quatro principais aldeias do Rio de Janeiro que se mantiveram por três séculos, os índios aldeados, mais particularmente suas lideranças, aprenderam a valorizar acordos e negociações com autoridades e com o próprio rei, reivindicando mercês em troca de serviços prestados. Desenvolveram suas próprias formas de compreensão da nova realidade na qual se inseriam, dos direitos que lhes haviam sido concedidos e das suas possibilidades de ação para obtê-los. Agiam politicamente de acordo com uma cultura política construída através da experiência de relações de alianças e conflitos com colonos, missionários e autoridades políticas. Suas reivindicações demonstram a apropriação dos códigos portugueses e da própria cultura política do Antigo Regime. As demandas fundamentavam-se basicamente em direitos assegurados pela legislação da Coroa portuguesa por sua condição distinta da dos demais vassalos do rei. Direitos, portanto, que se ancoravam na distinção étnica em relação aos demais vassalos. Assim, a afirmação da identidade indígena construída no interior das aldeias missionárias iria se tornar importante instrumento de reivindicação política por parte desses índios, razão pela qual, me parece, ela continuaria sendo acionada até meados do século XIX, quase 100 anos depois de Pombal ter lançado a proposta assimilacionista, que seria encampada e incentivada pela política indigenista do Império brasileiro. Assim, uma cultura política indígena ou mestiça baseada na própria cultura política do Antigo Regime orientava as reivindicações dos índios nas aldeias coloniais e suas formas de identificação perante as autoridades. Os argumentos utilizados pelos índios para a obtenção dos favores pretendidos seguiam o estilo usual das petições dirigidas à Coroa, o que pode revelar simples reprodução de fórmula padronizada dos requerimentos encaminhados

9

Almeida, 2003a.

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ao rei. Afinal, todas as petições encaminhadas ao monarca tinham o mesmo estilo: dos súditos mais simples às mais poderosas autoridades, todos indubitavelmente ressaltavam os serviços prestados para receber as mercês de Sua Alteza, cuja função, como cabeça do Império, incluía zelar pela distribuição de paz, justiça e harmonia a seus súditos.10 Inúmeras reivindicações de lideranças indígenas das aldeias do Rio de Janeiro ilustram Em se 1650, por exemplo, Lisboa, Manoel Afonsoessas de práticas. Souza, que apresentava comoencontrando-se descendente deem Arariboia (fundador da aldeia de São Lourenço e seu primeiro capitão-mor),no curto espaço de alguns meses encaminhou ao rei dois requerimentos solicitando benefícios, exatamente pela sua condição de súdito indígena, filho de personagem notório, e pela mercê que lhe fora feita, evidenciando consciência do valor de seu papel para os interesses da Coroa portuguesa.11 Foi atendido nas duas petições. A argumentação construída reflete a cultura política do Antigo Regime, evidenciando a apropriação dos códigos lusitanos por parte do índio. Manuel Afonso parecia saber, por exemplo, que as mercês se faziam para beneficiar aqueles que haviam prestado ou poderiam prestar algum serviço ao rei e pela imensa piedade de Sua Majestade para acudir à pobreza dos seus súditos necessitados. Esses dois aspectos (a pobreza e os serviços prestados) foram devidamente enfatizados nas duas consultas. Na primeira, os serviços do pai foram ressaltados como mérito já adquirido, uma vez que os herdeiros dos valorosos servidores também eram dignos de benefícios; na segunda, o apelo justificou-se mais em função da necessidade do suplicante de regressar à colônia para dar cumprimento às ordens do rei e exercer o importante cargo de sargento-mor de todo o gentio da repartição sul do Rio de Janeiro. Além disso, Manuel Afonso fez também menção aos demais índios seus parentes, que poderiam igualmente participar dessa mercê, aludindo talvez à liderança exercida junto aos seus e que, provavelmente, reconhecia como importante fator de barganha junto à administração lusa. Cabe ainda atentar para o fato de Manuel ter ido a Lisboa para solicitar a mercê considerada justa, caso não isolado que permite perceber sua ideia de pertencimento não apenas à aldeia, mas ao Império, que, embora distante, era acessível. Os índios eram súditos do rei com reconhecimento de sua Hespanha e Xavier, 1998. Consulta do Conselho Utramarino de 13 de janeiro de 1650 (Ms.AHU.RJCA., cx.4, doc.685); consulta do Conselho Ultramarino de 9 de abril de 1650 (Ms.AHU.RJA, cx.3, doc.1). 10 11

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condição específica de aldeados. Entre suas prerrogativas incluía-se a de solicitar mercês a Sua Majestade, e eles o faziam dentro das regras estabelecidas. O rei se colocava para os índios como para os demais súditos da Colônia: figura distante, símbolo da justiça e da benevolência, a qual podiam recorrer os que se sentiam injustiçados pelo poder local. Diante do exposto, convém retomar e complexificar a questão anteriormente colocada: os assumida aldeados índios ounos mestiços? Afirmar a condição indianidade dessesseriam índios, por eles processos de disputas por de seus direitos,não significa, absolutamente,negar a condição de intensa mistura e mestiçagem que caracterizava sua trajetória nas aldeias. Apesar da imprecisão das fontes, é possível afirmar que, além da mistura de diferentes grupos étnicos numa mesma aldeia, era frequente aí a presença de não índios, contrariando os esforços dos jesuítas para mantê-los afastados. Dentro das aldeias coloniais e fora delas, os índios aldeados conviviam e se misturavam com negros, brancos pobres e mestiços. Assim, se as aldeias indígenas na colônia podem ser vistas como espaços de reconstrução cultural e identitária para inúmeros grupos étnicos e sociais que nelas se misturaram, é necessário reconhecê-las também como espaços de intensos processos de mestiçagem, do ponto de vista biológico e cultural. As aldeias indígenas e seus habitantes se inseriam no mundo colonial. A própria repartição dos índios para prestação de trabalho compulsório aos colonos, missionários e à Coroa colocava-os em contato direto com outros grupos étnicos e sociais nas fazendas, obras públicas, serviços militares etc. Evidências esparsas sobre essas interações podem ser encontradas em diferentes tipos de fontes que informam sobre vendas e arrendamentos de terras nas aldeias para não índios e sobre a presença de escravos negros nas aldeias, sem contar com as reclamações dos padres sobre a circulação dos índios entre aldeias e fazendas de moradores, nas quais muitas vezes permaneciam por vontade própria. 12 Em meados do XVIII, ao prestar informações sobre as quatro aldeias do Rio de Janeiro,o reitor do Colégio dos Jesuítas dizia que todas iam bem, com boa administração, e as igrejas, bem cuidadas, porém, cada uma delas mais ou menos padece grande decadência no número de seus habitantes, por serem frequentes os desertores que, perdendo o amor à pátria,

12

Na aldeia de São Barnabé, os índios também circulavam entre os engenhos e a aldeia.

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aos pais, às mulheres e aos filhos, se recolhem nas casas dos brancos a título de os servir; mas, verdadeiramente,para viver a sua vontade e sem coação darem-se mais livremente aos seus costumados vícios. Aqui vivem ordinariamente como gentios, sem missa, nem doutrina cristã.13

Informava, ainda, serem os índios fugitivos frequentemente casados com escravos para impossibilitar seudoregresso às aldeias, que, não obstante, tornaramse mais povoadas após ordens governador obrigando os índios a elas retornarem. Casamentos mistos deviam ser bastante frequentes, embora haja poucos estudos a esse respeito. O próprio Arariboia, segundo informações, deve ter se casado com uma mestiça.14 Diante dessas considerações, é lícito supor que, muito provavelmente, na segunda metade do século XVIII (ou mesmo antes), os índios das aldeias vivenciavam intenso processo de miscigenação, sendo talvez impossível distingui-los por sinais diacríticos, laços consanguíneos e/ou caracteres físicos distintos dos demais grupos com os quais se relacionavam. Unificavam-nos a ideia de pertencer à aldeia e o compartilhamento de um passado comum que remontava à fundação da mesma e à aliança com os portugueses, bem como a ação política coletiva em busca dos direitos que lhes tinham sido dados.15 Apesar das misturas, mantinham, como informam os documentos, a identidade indígena que, naquele mundo conturbado, garantia-lhes a vida comunitária e a terra coletiva. Creio, portanto, ser possível afirmar que os índios aldeados no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII e no decorrer do XIX, eram provavelmente “mestiços”, porém“índios”. Em outras palavras, haviam vivenciado um longo processo de misturas e metamorfoses, mantendo, porém, o sentimento de comunhão étnica, desenvolvido na experiência comum do processo de territorialização nas aldeias coloniais, no sentido dado por Pacheco de Oliveira (1999), e podendo, assim, identificarem-se ou serem identificados como índios ou como mestiços, conforme as circunstâncias e os interesses. Carta do reitor do Colégio do Rio de Janeiro, 19 de maio de 1755 (anexo ao Ms.AHU.RJCA doc.18291-18298). 14 Serafim (1937:143-144). Segundo o padre, Arariboia casou-se com uma mameluca filha de branco, havendo dúvidas quanto à possibilidade de tratar-se de um segundo casamento ou de confirmação católica de situação conjugal já vivida anteriormente, visto que em 1568 ele havia feito menção de trazer sua mulher do Espírito Santo. 15 Weber, 1994. 13

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De meados do século XVIII ao século XIX — disputas por classicações étnicas: as propostas de extinção

das aldeias e as ações indígenas Essas questões tornaram-se mais evidentes após a legislação pombalina que introduziu a proposta assimilacionista. Com o objetivo de integrar os índios à sociedade colonial e transformar as aldeias em vilas e lugares portugueses, a legislação pombalina passou a incentivar a miscigenação entre índios e brancos, proibindo as discriminações sociais contra os índios. A escravização indígena sob quaisquer circunstâncias foi proibida pela Lei da Liberdade, de 1755. A mestiçagem era estimulada por meio da Lei de Casamentos, que dava benefícios aos que se casassem com índios. A legislação incluía vários itens que procuravam acabar com as diferenças culturais entre os índios e os demais vassalos. 16 Percebe-se também a preocupação de distanciá-los da categoria dos negros, cujo estigma se mantinha. Um dos artigos do Diretório falava sobre a infâmia de se “chamar negros aos índios”.17 Estudos recentes, principalmente sobre afrodescendentes, têm procurado refletir sobre as possíveis compreensões que os próprios grupos étnicos e sociais tinham a respeito dessas categorias utilizadas para classificá-los. 18 Apesar das lacunas, alguns indícios em diferentes tipos de fontes levam a crer que os índios, fossem eles aldeados ou não, também se preocupavam com as classificações nessas categorias. Afinal, elas lhes davam um lugar na hierarquia social daquela sociedade, podendo trazer-lhes prejuízos ou ganhos. Em 1771, o índio capitão-mor de São Barnabé denunciou seu colega, um índio capitão-mor da aldeia de Ipuca, por ter se casado com uma preta, “manchando com este casamento o seu sangue e fazendo-se por esta causa indigno de exercer o posto de capitão-mor”.19 Sem entrar nas razões dessa denúncia, que podia ter sido motivada por simples desafeto, cabe reconhecer o fato da consciência dos índios quanto a sua posição de superioridade em relação aos negros diante da legislação pombalina. É instigante como constatar também os índios destribalizados, em grande parte identificados mestiços, nas que variadas cate-

Almeida, 1997; Domingues, 2000. Diretório que se deve observar... 18 Mattos, 1995; Vianna, 2007. 19 Baixa que deu el rei... 16 17

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gorias de pardos, caboclos etc., igualmente fizeram uso da legislação pombalina para evitar a escravização. Maria Leônia Rezende (2003) demonstrou que os índios das vilas de Minas Gerais se recusavam a casar com negros escravos, afirmando sua condição de índios livres.Recusavam a condição de mestiçagem e se afirmavam índios para escapar da escravização ilegítima. A autora trabalhou com processos de petição de liberdades em que essas situações se evidenciam. Elisa Garcia (2003) também percebeu situação semelhante no Rio Grande do Sul. Na segunda metade do século XVIII, já se percebe o discurso de autoridades e moradores afirmando a condição de mistura dos índios que habitavam as aldeias do Rio de Janeiro, com a clara intenção de extingui-las e apoderarem-se de suas terras. As aldeias foram transformadas em vilas e freguesias, e incentivou-se a presença nelas de não índios para acelerar o processo de mestiçagem. Paralelamente a isso, no entanto, alguns índios mantinham as reivindicações pela manutenção das terras e dos direitos coletivos. Convém lembrar que, apesar das mudanças introduzidas, o Diretório garantiu a manutenção das terras coletivas para os índios, e creio que foi principalmente em função desse direito que eles se mantiveram como índios por mais um século após essas reformas. Afinal, como afirmou Cohen (1978), quando às diferenças étnicas se somam distinções econômico-sociais, é mais provavel que elas se mantenham. Foi principalmente em função da ação política comum pela manutenção desses direitos que, a meu ver, essas identidades resistiram às pressões que se faziam para reconhecê-los como mestiços. A política indigenista do século XIX manteve e acentuou a perspectiva assimilacionista lançada por Pombal. O discurso da mestiçagem ganhou força entre as autoridades políticas e intelectuais. Predominavam, então, concepções evolucionistas que afirmavam a hierarquia das raças e a inferioridade dos índios, 20 considerados, no entanto, redimíveis por meio da catequese e da civilização. A proposta em relação aos índios estava bem de acordo com a política indigenista do Império e com o interesse de câmaras municipais e moradores interessados em apoderarem-se das terras das aldeias. Convém lembrar que a legislação do Oitocentos, apesar de prever a extinção das aldeias quando os índios atingissem o estado de civilização, garantia-lhes o direito à terra coletiva, enquanto eles fossem considerados como tais. Assim é

20

Schwarcz, 2001.

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que razões políticas, econômico-sociais e ideológicas somavam-se para incentivar autoridades, moradores e intelectuais a proclamarem o estado de mistura e mestiçagem dos índios, contribuindo, assim, para o seu desaparecimento enquanto categoria, o que justificaria a extinção das aldeias.21 A intensa correspondência entre o presidente da província e as autoridades municipais (câmaras e juízes de órfãos) tratando dessas questões é reveladora da preocupação o máximo de informações os aldeamentos edoos Estado índios, em comobter o objetivo de darpossível cumprimento à políticasobre assimilacionista a ser implementada conforme as situações específicas de cada aldeia.22 A tônica dos documentos insistia na decadência, miserabilidade e diminuição dos índios e suas aldeias. Entre esses documentos encontram-se algumas petições dos índios, demonstrando que souberam também valer-se da proteção da lei para continuar reivindicando direitos e, com isso, retardar o processo de extinção de suas aldeias.23 O discurso da decadência, no entanto, não se restringia aos políticos. Intelectuais e viajantes, simpáticos ou não aos índios, também consideravam necessário integrá-los, e alguns defendiam isso não apenas em benefício da nação, mas também dos próprios índios. A seu ver, as condições de miserabilidade e exploração em que viviam os índios das aldeias só podiam trazer-lhes prejuízos. A terra coletiva e a possibilidade de vida comunitária por ela garantida, tão caras aos grupos indígenas, não eram, absolutamente, valorizadas por intelectuais que comungavam com a lógica do progresso e da civilização. 21 O Regulamento das Missões, de 1845, manteve os direitos dos índios nas aldeias, decretando ser obrigação do diretor-geral destinar terras para plantações comuns, para plantações particulares dos índios e para os arrendamentos. No entanto, de acordo com as orientações assimilacionistas predominantes, ao referir-se às aldeias, determinava, em seu art. 1, §2 o, que se informasse ao “governo imperial sobre a conveniência de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só” (ver Decreto n 426...). A Lei de Terras, de 1850, explicitava ainda mais nitidamente a política assimilacionista do Império: reservava as terras para os índios em usufruto, afirmando que “não poderão ser alienadas, enquanto o

o

oestado governo imperial, por(ver atoWolney, especial, 1983:371; não lhes conceder o plenoAgozo por assim o permitir o seu de civilização” Motta, 1998). partirdelas, de 1861, o encargo da catequese e civilização dos índios passou ao Ministério dos Negócios, Agricultura, Comércio e Obras Públicas, evidenciando que, no século XIX, a questão dos índios tornara-se, em algumas regiões, essencialmente uma questão de terras, como afirma Carneiro da Cunha (1992). 22 Grande parte dessa documentação encontra-se no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), no fundo Presidência da Província; e no Arquivo Nacional, na Série Interior: Negócios de Províncias e Estados e Negócios Políticos; na Série Agricultura: Terras Públicas e Colonização; e na Série Justiça, Magistratura e Justiça Federal. 23 Almeida, 2007,

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As descrições dos viajantes na primeira metade do século XIX eram influenciadas por essas concepções e ao mesmo tempo contribuíam para reforçálas. Não obstante, um olhar atento para algumas dessas descrições nos permite ver o estado de fluidez das classificações étnicas de índios e mestiços, bem como daquelas que se referem a estágios evolutivos, tais como selvagens e civilizados. A esse respeito é instigante observar a obra de Debret, cujas imagens e textos analisados de forma conjunta revelam não só as intensas interações entre os grupos étnicos, como também a porosidade entre suas fronteiras e entre as diferentes formas de classificar grupos e indivíduos que por elas circulavam. A título de ilustração, destaco alguns termos utilizados pelo pintor que apontam essas ambiguidades classificatórias. Ao tratar dos índios da região Sul do Brasil, por exemplo,diz que ali se encontram “algumas nações selvagens cujo caráter dominante é a doçura; dia a dia mais próximas dos brancos, elas vivem num verdadeiro estado de civilização”.24 Noutro trecho, refere-se aos “selvagens civilizados” que falam um pouco de português. 25 Coroados são chamados de “tribos selvagens mestiçadas”.26 Particularmente instigante é sua representação dos índios mestiços da aldeia de São Lourenço. Na prancha 5, intitulada “Caboclos ou índios civilizados”, o pintor retrata um índio flecheiro nu, no centro, ladeado por outros dois. O texto se refere à aldeia mais antiga do Rio de Janeiro e trata de índios em intenso contato com a civilização, ressaltando, no entanto, a permanênia de alguns costumes indígenas, como a incrível habilidade dos flecheiros, que tanto impressionou o artista.27 Índios e mestiços, selvagens e civilizados circulavam e se confundiam nas sociedades coloniais oitocentistas e também nas classificações de Debret.28 Cabe ainda uma reflexão sobre a discussão em torno da autenticidade de ser índio, tão presente nas disputas políticas da atualidade. Guardadas as devidas diferenças e distâncias temporais, tal problemática se aplica também aos índios aldeados no século XIX. Com frequência, observam-se, nos discursos dos moradores e autoridades favoráveis à extinção das aldeias, acusações contra os índios, Debret, 1978:41-42 Ibid., p.43-44. 26 Ibid., p.52-54. 27 Ibid., p.47 28 Ver Almeida (2009). 24 25

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no sentido de não serem índios “primordiais” e de estarem usufruindo de privilégios econômicos que só contribuíam para incentivar sua indolência nata. Sobre isso, dois exemplos significativos merecem ser citados. O primeiro é o texto de um memorialista do século XIX que, ao tratar das origens da aldeia de Mangaratiba, afirmou ter ela se formado com os índios vindos de Porto Seguro e outros do rio de São Francisco do Sul, de Itaguaí e de várias outras aldeias que o capitão-mor fazia reconhecer como se fossem da mesma linhagem e da mesma aldeia, e como tais ficaram considerados: também de alguns homens de cor, que ou perseguidos nos lugares onde habitavam ou por outros motivos buscavam a proteção da aldeia.29

Para defender a ideia de extinção da aldeia, o autor argumentava que o número de “índios puritanos” era diminuto em Mangaratiba, e a aldeia, podiase dizer, estava quase extinta, pois os representantes dos “índios primordiais” não excediam a 20 ou 30, e os demais, que ainda se intitulavam índios, já eram mestiços em sexta ou sétima geração, ou descendentes de índios vindos de fora, como de Itaguaí, aldeia de São Pedro, São Barnabé e até do rio São Francisco, segundo ele. A afirmação evidencia,além da mistura étnica e da mestiçagem no interior das aldeias, a identificação dos índios aldeados de Mangaratiba entre si, identificação construída pelos casamentos mistos e pela vivência em comum. Chegavam à aldeia em busca de proteção e ali ficavam compartilhando espaço e problemas comuns. Não eram índios, diz o memorialista, mas sentiam-se como tais, e essa me parece ser a questão básica,pois era em torno desse sentimento de grupo que a ação coletiva se fazia. Além dos índios, outros grupos étnicos e sociais foram atraídos à aldeia pela proteção que ela proporcionava; ali reunidos, eram, enquanto grupo, senhores de um patrimônio comum que lutavam para garantir. Outro instigante exemplo é o caso da aldeia de São Lourenço, declarada extinta em 1866 sob a alegação de “que os poucos índios ali existentes com esta denominação se acham nas circunstâncias de entrarem no gozo dos direitos comuns a todos os brasileiros”.30 No ano seguinte, um documento, provavelmente 29 30

Memória de Jacyntho AlvesTeixeira..., p. 415. Ms. AN, Série Agricultura, IA7-1, fl 70v.

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da Câmara Municipal, negava a pretensão de “intitulados índios, que solicitam a continuação de mensalidades outrora arbitradas”, afirmando que “não há que deferir-lhes, desde que o Aviso de 31 de outubro do ano próximo findo, extinguindo o mencionado aldeamento, fez desaparecer a entidade índios e proveu ao bem-estar dos que com essa denominação ainda ali existiam”.31 Do exposto percebe-se que,para as autoridades políticas do Rio de Janeiro oitocentista,transformar os índios em mestiços significava a possibilidade de extinguir as aldeias oficialmente e incorporar suas terras às câmaras municipais. Para os índios, a condição de mestiçagem implicav a a perda da condição jurídicaespecial que lhes dava direitos, sobretudo à terra, aos rendimentos das aldeias e à vida comunitária. ❚

Considerações nais

Cabe ressaltar a complexidade das questões aqui abordadas, que estão longe de terem sido esgotadas. Neste capítulo, procurei relacionar a problemática da etnicidade com a cultura política indígena e a política indigenista do período que vai das reformas pombalinas ao Império brasileiro. Procurei demonstrar que os significados de ser índio ou ser mestiço, além de históricos, revestemse de conteúdos políticos, como o demonstram os argumentos diferentes agentes em disputa, que frequentemente os acionavam. A política dos indigenista da Coroa portuguesa e, posteriormente, do Império brasileiro, com suas propostas assimilacionistas, contribuía para estimular discursos sobre o estado de mistura e decadência dos índios e aldeias, o que justificaria sua extinção e a incorporação de suas terras ao patrimônio das câmaras municipais. Por outro lado, enfoquei prioritariamente o interesse dos índios, nos séculos XVIII e XIX, em afirmar sua identidade indígena, desafiando discursos que os consideravam mestiços. Relacionei essa postura com uma cultura política ancorada nas distinções étnicas que, desde o período colonial, os colocavam numa condição ímpar em relação aos demais vassalos do rei, garantindo-lhes alguns direitos. Essa postura, no entanto, não deve ser vista como unívoca no caso de populações indígenas aldeadas, embora comportamentos semelhantes 32 tenham sido observados em várias outras regiões, sobretudo no Nordeste. Nas situações aqui abordadas, a identidade indígena garantia ganhos para os índios, mas deve-se considerar a possibilidade de opções diversas para outros aldeados, 31 32

Ms. AN, Série Agricultura, IA7-1, fl.78v. Silva, 1996.

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ou para os mesmos em situações posteriores, que podem tê-los levado a assumir a condição de cidadãos do novo Estado. Convém considerar ainda, como tem sido ressaltado por vários estudos, sobretudo na América espanhola, que certos grupos e/ou indivíduos podem ter assumido a dupla identidade de “índios mestiços”, ou terem sido assim identificados, da mesma forma que podem também ter priorizado uma ou outra identidade, conforme a especificidade das situações e dos agentes os quais lidavam. Se os significados dessas categor ias se alteravam com ocom tempo, convém lembrar que os interesses das populações igualmente mudavam, podendo levá-las, portanto, a assumir ou valorizar mais uma ou outra. Finalmente, cabe lembrar que, ao assumirem a condição de mestiços, os índios não necessariamente abdicavam de suas identidades indígenas. Essa situação tem sido revelada por trabalhos recentes, principalmente na América espanhola, 33 e nos ajuda a compreender os incontáveis movimentos de etnogênese que, nos séculos XX e XXI, se multiplicam no continente americano. No Nordeste do Brasil, vários grupos indígenas considerados extintos reaparecem afirmando suas ori gens nos aldeamentos missionários, o que e videncia o importante papel das aldeias nos processos de reconstrução identitári a e de mestiçagem. Tais processos caminharam juntos no interi or das aldeias e não devem ser considerados de forma separada, muito menos excludente. Afinal, a mestiçagem cultural, em vez de apagar as identidades indígenas, contribuiu para reconstruí-las e, em parte, reforçá-las. ❚

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12 ❚

As mortes do indígena no Império

do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos

João Pacheco de Oliveira

O esquecimento e, eu diria mesmo, o erro histórico são um fator essencial para a criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos é frequentemente um perigo para a nacionalidade. A investigação compolíticas, efeito, lança luzdaquelas sobre oscujas fatos consede violência que estão na srcem de todas ashistórica, formações mesmo quências foram as mais benévolas. A unidade se faz sempre brutalmente (...). Renan, 1992

Falando a partir de um contexto histórico preciso, distante de nós por mais de um século, Renan nos lembra que um país não se define apenas por suas memórias, mas também por seus esquecimentos. Suas palavras parecem fazer eco mais de 60 anos depois em outro autor, Walter Benjamin (1986:225), com posições políticas surpreendentemente opostas.1 Todos os bens culturais que ele [o historiador] vê têm uma srcem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. Benjamin escreve em meio a uma Alemanha dominada pelo nazismo, logo após a assinatura de um tratado de paz com a União Soviética, quando estava em marcha o Holocausto. 1

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A unidade de análise social que chamamos de nação, com todos os bens culturais que a exaltam e dignificam, está assentada em processos violentos de submissão das diferenças e na erradicação, sistemática e rotineira, de heterogeneidades e autonomias. Os fatos e personagens desses processos são objeto de um forte controle social e apresentam-se para as gerações seguintes de forma quase ritualizada, sempre institucionalizados em certas formas de percepção e narratividade. A variabilidade de seus usos em contextos sucessivos e diversos não chega a abalar a espessa rede de esquecimentos sobre a qual tais acontecimentos estão assentados. A finalidade deste capítulo é abordar as representações sobre os índios no século XIX, no período da Independência, e mais especialmente no segundo reinado. Vamos focalizar aqui uma modalidade específica de esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade e que é tanto expressão da esfera política (via princípios de política indigenista e de um projeto civilizatório para o país) quanto engendrada por manifestações de natureza artística (como o indianismo literário e a pintura acadêmica). À diferença de atos puramente cívicos e políticos, as manifestações estéticas expressam com mais vigor a diversidade e a ambiguidade contidas em sentimentos, usos e expectativas sociais. Refletem, pois, em seus personagens, tramas e símbolos as contradições e desejos que marcam o cotidiano de uma época. O que move nossa atenção aqui não é o fenômeno estético em si mesmo, mas suas possíveis e reiteradas utilizações sociais, sua adaptabilidade para hospedar mensagens políticas (e não puramente individuais), explicitando o significado e o horizonte possível para categorias sociais que lhes são contemporâneas. ❚

O esquecimento e seu modo de existência

Para que a multiplicidade de situações, cenários e tempos que integram uma nação possa referir-se a uma mesma unidade, virtual e onipresente, é necessário um 2canal de intercomunicação que circulam institua uma imaginada”. Alémativo das informações regulares que nessa“comunidade rede, criando uma convergência de preocupações e apontando para uma agenda comum, é preciso dispor de alguns ícones no que concerne ao passado e à reconstrução simbólica da origem comum dessa coletividade. É fundamental celebrar os he2

Anderson, 1983.

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róis nacionais e os episódios marcantes, consolidando uma história que é de todos conhecida e supostamente partilhada. Isso implica a criação de “lugares de memória”,3 os quais são pontos de convergência de um amplo leque de discursos, bem como elementos de ritualização das condutas cívicas e fator de inculcação de símbolos e valores. Neste capítulo não vamos falar dessa rica noção formulada por Pierre Nora, mas, sim, recuperando e desenvolvendo as citações iniciais, de algo que seria o seu antípoda, ou a sua área de sombra. Embora pouco visível e destacada, ela é fundamental para garantir a unidade e os modos de operação de uma coletividade, assegurando a legitimidade de suas instituições mais centrais e permanentes. Não se trata exatamente do lugar (ou lugares) do esquecimento, mas dos efeitos múltiplos que o esquecimento, a partir de um conjunto heterogêneo de narrativas e imagens, acaba por produzir. Seu modo de existência é totalmente distinto daquele das memórias públicas e oficiais. Ao contrário dos lugares de memória, não possuem monumentalidade, não celebram, não operam com superlativos, mas diminuem, apequenam os fatos e personagens envolvidos. Tampouco os tornam sagrados, mas se apresentam mais frequentemente como lúdicos, curiosos, espontâneos. Não são tidos como essenciais à nacionalidade, mas como periféricos, secundários, quase anedóticos e casuais. Em vez de enormes estátuas de pedra, só muito lenta e superficialmente marcadas pela força dos elementos da natureza, os efeitos do esquecimento são como esvoaçantes borboletas, que sussurram coisas que nos divertem e encantam. O esquecimento, longe de ser um ato único e explícito, de evidente materialidade, é algo cujos efeitos se encontram dispersos numa multiplicidade de narrativas, lendas e imagens. O “índio genérico”, noção frequentemente usada pelos antropólogos para referir-se a algo distinto das experiências concretas e singulares que resgatam através de suas etnografias, não deve de maneira alguma ser tomado como algo monolítico, e, sim, como um repositório de inúmeras imagens significados, engendrados por diferentes formaçõesa discursivas e acionados eme contextos históricos variados. É preciso substituir noção simplificadora de erro pela de apreensão da multiplicidade de usos sociais, pois é por meio dessas representações que os agentes sociais e as épocas irão registrar (ou não) a presença de indígenas, bem como se relacionar com eles. Por isso mesmo sua 3

Nora, 1984.

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identificação e análise são imprescindíveis para a antropologia e para uma abordagem historiográfica dos múltiplos usos da história, com o estabelecimento de uma postura mais vigilante quanto aos saberes constituídos. É necessário um esforço crítico antes de lidar com uma categoria que remete à psicologia individual. Nesse plano, o esquecimento, como um ato falho, não é imediatamente perceptível para o seu autor. A consciência dele deriva de uma função reflexiva, geralmente escutaorais atenta outrem. Em sua análise da experiência comresultante a memóriadeeuma os relatos de por pessoas de origem judaica que estiveram presas em campos de concentração alemães, Pollak (1986) nos mostra que o que ocorre não é o esquecimento (com a perda efetiva da memória), mas, sim, a opção pelo silêncio sobre si mesmo enquanto estratégia de convivência, visando evitar novas situações constrangedoras e garantir as condições de comunicação das vítimas com o meio ambiente em que passaram a viver.4 Mesmo num contexto histórico modificado, os que sofreram os efeitos devastadores da dominação podem sentir grande desconforto em explicitar suas memórias e acabam por lidar com elas como se fossem fatos indizíveis. No plano da vida coletiva, o que para o observador externo poderia ser assimilado a um esquecimento ou erro histórico pode vir a transformar-se, por meio de escolhas estratégicas e circuitos organizados de interação social, em algo tido como consensual, progressivamente naturalizado e internalizado como um pressuposto discursivo. Os atos jurídicos e as classificações legais assumem um caráter performativo e tendem a transformar-se em fatos sociais a serem descritos como verdades históricas.5 Quando aumentamos a distância temporal entre os fatos ocorridos e o registro atual do relato, os entrevistados já não estarão falando de eventos nos quais de algum modo participaram, mas de memórias que lhes foram integralmente transmitidas. Aí o silêncio pode efetivamente transformar-se em esquecimento ou em narrativas que não se constroem com a história individual. Exemplo dessa segunda possibilidade nos é fornecido por Rappaport (2000), ao mostrar que a perspectiva histórica dos dominados precisa ser compreendida como abrangendo diferentes formas de tradição (como os usos da geografia, os ritos, as biografias dos caciques, inclusive as interpretações nativas de documentos legais de criação de “resguardos”). 4 5

Para uma análise mais detida, ver também Pollak (1990). Bourdieu, 1996.

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A história é sempre uma narrativa produzida a partir de uma contemporaneidade e de uma perspectiva específica. O que outros viram e registraram do passado não é o mesmo que veríamos hoje se lá estivéssemos e fossemos contemporâneos deles. O que para nós é um registro marcado pelo esquecimento pode corresponder à interpretação mais estrita e rigorosa proveniente de algumas fontes. A função crítica, como nos lembra Benjamin (1986:225), visa implodir a pseudocontinuidade história, interromper o cortejo os vencedores de diferentes temposdatransmitem entre si os seus troféuseme que se identificam mutuamente. É importante marcar as diferenças entre a modalidade de esquecimento que vai acompanhar a formação do Estado brasileiro e outras que foram hegemônicas em contextos políticos diversos, seja no período colonial, na República ou nas duas últimas décadas.6 Ainda que os regimes discursivos frequentemente busquem apropriar-se de formas do passado, pretendendo investir-se de continuidade e permanência, nossa preocupação aqui é explorar analiticamente e em sua especificidade apenas uma dessas modalidades. As hipóteses que delineamos a seguir visam muito mais à compreensão dos jogos políticos e identitários propiciados por narrativas e imagens produzidas ao longo do século XIX do que ao exame dos fatos históricos em seu encadeamento e interconexão. ❚

Rupturas com o regime discursivo colonial

Na Carta Régia de 25 de julho de 1798,de revogação do sistema do Diretório dos Índios, d. Maria I estabelecia que aos recém-amansados e que fossem postos a serviço de particulares devia ser dispensado o tratamento de órfãos. Ou seja, caberia ao juiz de órfãos zelar para que fossem educados, batizados e pagos pelos serviços prestados, evitando assim que se viesse a escravizar gente que deveria ser livre. O artifício de que podiam lançar mão os moradores para evitar que tal norma da Coroa viesse a prejudicar os seus negócios era obter uma declaração de “guerra justa” contra alguma “horda selvagem”, cujos membros poderiam ser capturados e, como forma de castigo e reeducação, submetidos a uma escravidão temporária (em geral, não inferior a 15 anos). Isso de fato veio a suceder logo nos anos seguintes. Em 1808, o príncipe regente d. João, já no

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Oliveira, 2008.

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Brasil, assinava uma declaração de guerra aos botocudos do norte de Minas e Espírito Santo, e que nos anos seguintes viria a abranger também os índios de Guarapuava (Paraná) e os coroados (norte do Rio de Janeiro). No final do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX, como durante todo o período colonial, o problema de como tratar os “índios bravos” era uma constante preocupação para as autoridades e a elite dirigente. O documento que estabeleceu as diretrizes básicas para a política indigenista a ser adotada no pós-Independência foi o famoso texto “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, escrito por José Bonifácio de Andrade e Silva. Uma versão preliminar havia sido apresentada às Cortes portuguesas, juntamente com cinco outros projetos similares de deputados brasileiros (o que atesta o interesse que o assunto merecia). Na primeira Assembleia Constituinte convocada no Brasil, o documento recebeu parecer favorável e foi aprovado em 18 de junho de 1823. Apesar de não ter sido votado nem incorporado ao texto constitucional, transformou-se em referencial absolutamente essencial tanto para o entendimento da legislação no período imperial quanto do próprio pensamento político e do imaginário nacional em formação. Trata-se de leitura indispensável não só para a compreensão das estruturas administrativas e dos valores subjacentes à atuação do Império na questão indígena, mas também para o entendimento da própria sociedade e da nação brasileira em seu período de formação. Nesse texto, José Bonifácio deixa clara sua discordância quanto à aplicação da “guerra justa” no relacionamento do Estado com as populações autóctones: “foi ignorância crassa, para não dizer brutalidade, querer domesticar e civilizar índios à força d’armas, e com soldados e oficiais pela maior parte sem juízo, prudência e moralidade”. Expressa seu desagrado em ver “nestes últimos tempos, em século tão alumiado como o nosso, na corte do Brasil, (...) os botocudos, puris e os bugres de Guarapuava convertidos outra vez de prisioneiros de guerra em miseráveis escravos”.7 No contexto da Independência, a significação, inclusive demográfica, dos “índios bravos” não podia ser subestimada. Um levantamento de paróquias realizado pelo conselheiro Veloso em 1816 estimava a população do país em 3,2

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Silva, 1992.

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milhões de pessoas, sem aí contar os “índios bravos”, por ele avaliados em cerca de 800 mil. Ou seja, um quarto da população pesquisada! Para José Bonifácio, o chamado “Patriarca da Independência”, a estratégia de construção do país exigia que se atraíssem os índios com justiça e brandura, pois ele acreditava serem em tudo “capazes de civilização”.8 À diferença dos relatos de diversos missionários e cronistas do século XVI, José Bonifácio não via os indígenasdenem habitantes de um paraíso terrenal, nem como portadores umacomo natural propensão parapossível o pecado e o mal. Na sua visão, “o homem primitivo nem é bom, nem é mau naturalmente, é um mero autômato,cujas molas podem ser postas em ação pelo exemplo, educação e benefícios”. E arremata:“Newton se nascera entre os guaranis não seria mais que um bípede, que pesaria sobre a superfície do planeta; mas um guarani criado por Newton talvez que ocupasse o seu lugar (...). Não falta aos índios bravos o lume natural da razão”.9 O modo de incorporação dos indígenas à nação em formação parecia exigir o instituto da tutela sobre os “índios bravos” (isto é, aquela parcela da população autóctone que ainda se mantinha apartada da civilização). Os missionários seriam os mais credenciados para agir com justiça e brandura, mas a abertura de comércio seria igualmente um importante instrumento de civilização. Embora José Bonif ácio falasse em “imitar e aperfeiçoar o método dos jesuítas”, não havia qualquer intenção de sugerir um isolamento dos indígenas em relação aos moradores. Ao contrário, ele incentivava os casamentos de indígenas com brancos e mulatos (art. 5 o) e que “se procure introduzir como caciques das nações ainda não aldeadas alguns brasileiros de bons juízos e comportamento” (art. 6o). Descrevia minuciosamente as formas pelas quais os indígenas deviam ser adaptados ao trabalho, indo progressivamente das tarefas mais simples (braçais, tropeiros, pescadores, vaqueiros) até o manejo das lavouras permanentes (arts. 21, 24-27, 30-32). Ao cabo, as aldeias de índios e as povoações de brancos deviam manter relações de colaboração e complementariedade (art. 36), estabelecendo-se feiras e circuitos de troca (art. 37), os indígenas vindo a constituir-se em mão de obra tanto para empreendimentos privados quanto públicos (arts. 38 e 41). Em casos de crimes e desordens, os índios não deveriam ficar impunes (art. 40), para isso sendo essencial a insta8 9

Silva, 1992:352. Ibid., p. 350.

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lação de pequenos presídios militares em distância adequada dos aldeamentos (arts. 10 e 11). Enfatizando a função civilizatór ia dos aldeamentos, ele observava que os cargos de maiorais deviam ser reservados aos índios “que pro curem vestir-se melhor e ter suas casas mais cômodas e asseadas” (art. 33). ❚

O índio colonial enquanto um renascido

O regime discursivo quanto aos indígenas na colônia girava em torno da oposição entre “índios mansos” (considerados, sem distinção legal, “vassalos d’El Rey”) e “índios bravos” (considerados inimigos, contra os quais se fazia guerra justa e se promoviam descimentos com o intuito de vir a reduzi-los e catequizá-los). A “guerra justa” era um procedimento que integrava esse complexo de atitudes e nunca foi seriamente questionada em sua essência, apenas nos seus excessos e ilegalidades. Os fatos históricos e literários que se tornaram memoráveis e dignos de registro colocavam a ênfase no batismo e na aliança com os portugueses, celebrando o nascimento de um novo homem, um fiel súdito do rei de Portugal. Assim foi com Tibiraçá em São Paulo, Arariboia no Rio de Janeiro, o cacique Arcoverde dos tabajaras em Pernambuco e, mais tarde, com Antônio Felipe Camarão, potiguara. Os líderes indígenas associados aos franceses e holandeses foram, ao contrário, qualificados como “traidores” e receberam os castigos previstos nessa condição, sem que os narradores minimamente se apiedassem deles. O destino da população autóctone, tal como concebido pelo marquês de Pombal, era fundir-se com os portugueses e dar srcem ao povo que habitaria a colônia. O fim do indígena era o abandono da sua condição de pagão e infiel; não uma morte, mas um renascimento, não importando quanto outros fatos, julgados menores, pudessem turvar a cena. A Independência desencadeou um conjunto complexo de processos, associados sobretudo ao Segundo Reinado, que acarretaram a alteração do regime discursivo quanto aos indígenas. A atenção de políticos, legisladores e autoridades se deslocou para os “índios bravos”, ou seja, aqueles que impunham limites à expansão da colonização, enquanto os “mansos”, os índios coloniais, já estariam de alguma forma integrados na vida econômica e social da antiga colônia. Na mesma direção iriam encaminhar-se as manifestações artísticas e expressões populares quanto aos indígenas que, para efeitos de exposição e análise, agrupamos em seis feixes geradores de sentido.

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O nativismo

A emancipação política trazia um novo olhar sobre as populações autóctones, não mais enquanto pagãos que se converteriam em possíveis súditos da Coroa portuguesa, mas, sim, como os srcinais e legítimos donos daquela terra, aqueles que precederam os portugueses. De certo modo, poderiam ser considerados os primeiros brasileiros. Com o retorno a Lisboa de d. João VI e sua Corte, a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser a capital do império português, registrando-se nos anos seguintes uma crescente pressão de deputados e políticos da metrópole para que o Brasil retornasse à condição colonial. Antes, e mesmo depois, da declaração da Independência, eclodiram no Brasil movimentos populares e de âmbito regional voltados para o questionamento do poder central. Um forte sentimento antiportuguês manifestava-se em algumas províncias, onde uma elite comercial portuguesa recusava-se a aceitar a separação política da antiga metrópole. Isso foi mais pronunciado na Bahia, onde as autoridades locais e os grandes comerciantes ignoraram por quase um ano a declaração da Independência. O movimento nacionalista, iniciado na cidade de Cachoeira, expandiu-se ao recôncavo baiano e, após alguns embates com tropas portuguesas, chegou a Salvador no dia 2 de julho de 1823. Após a capitulação dos portugueses, uma multidão composta por soldados, populares e escravos alforriados, num ato de desafio aos comerciantes lusitanos, desfilou e cantou pelas ruas da cidade, puxando uma carroça (que antes havia transportado peças de artilharia) sobre a qual haviam colocado um velho indígena. No ano seguinte, a celebração voltou a ocorrer, sendo o velho substituído por uma escultura em ferro, chamada popularmente de “o caboclo”, representando um indígena que com sua lança atingia uma figura portando elmo e armadura, colocada num plano inferior, numa evidente alusão à derrota dos portugueses.10 A manifestação teve durante algumas décadas um acentuado caráter lusófobo, sendo a figura do caboclo estampada na primeira página de notando alguns jornais baianos antiportugueses. Na década de 1840, um governador, o desconforto dos comerciantes lusos e pretendendo supostamente dar uma autenticidade histórica ao personagem, mandou construir uma imagem feminina, em

Para uma informação mais detalhada, ver Querino (1923); e Campos (1937). Para uma interpretação histórica recente, ver Kraay (1999). 10

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homenagem à índia Paraguaçu. Esta seria uma “princesa indígena”, filha de um importante cacique, que viera a contrair matrimônio com o náufrago português Fernão Álvares, o Caramuru, constituindo um legendário casal que remetia à fundação da colônia.11 A pretendida substituição da figura do caboclo pela de Paraguaçu quase acarretou uma sublevação popular, tendo o governador que providenciar às pressas o retorno do primeiro ao desfile.12 Em do termos populares, nova imagem foi denominada “cabocla”, ou seja, a mulher “caboclo”. Este acontinuou a centralizar as atenções e foi ganhando uma importância mágico-religiosa: tornou-se também objeto de culto, recebendo oferendas e pedidos variados. A data de 2 de julho até hoje continua a ser comemorada com um grande cortejo cívico, associada ao contexto da Independência e à celebração religiosa do “caboclo” (identificado pelos seguidores do candomblé como uma poderosa entidade sobrenatural, o “dono da terra)”. 13 Em manifestações eruditas, como na poesia e na literatura, também se expressava um forte sentimento nativista, e os indígenas frequentemente eram utilizados como símbolos da nação jovem e não puramente europeia. Em 1836, Gonçalves de Magalhães, que quase duas décadas depois viria a publicar o poema épico “A Confederação dos Tamoios” (1857),lançou as bases do movimento romântico no Brasil.14 Alguns anos depois, ainda em Coimbra, Antônio Gonçalves Dias escreveu a “Canção do exílio” (1843), onde cantava a beleza ímpar de sua terra e terminava pedindo: “não permita Deus que eu morra, sem que eu volte para lá”.15 A temática indígena, porém, já estava presente em fragmentos inicialmente por ele esboçados em 1842, depois retomados em 1846 em São Luís do Maranhão, e que deram srcem ao “Canto do piaga”. 16 Chegando ao Rio de É interessante lembrar que, em alguns momentos, a narrativa dessa união parece haver funcionado como um mito legitimador da fundação da colônia e do domínio português. Após a abdicação de d. Pedro I, os membros do Partido Restaurador, que preconizavam o seu retorno, eram chamados de 11

“caramurus” (ver Amado, 2000). 12 Ver Querino (1923); e Campos (1937). 13 Para uma análise da figura do “caboclo”, ver Santos (1995); e Serra (2000). Para uma descrição etnográfica, ver Sampaio (1988). 14 Ensaio sobre... 15 Dias (1969:11-12). Segundo seu biógrafo e amigo Antônio Henriques Leal, esse pequeno poema figurava num dos capítulos do romance intitulado Memórias de Agapito Goiaba, escrito pelo autor um ano antes e por ele mesmo destruído. 16 Dias, 1969:45.

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Janeiro, ele publicou em três livros sucessivos os seus poemas.17 No último deles, algumas poesias, como “Marabá”,“Leito de folhas verdes” e, sobretudo,“I-Juca Pirama”, delineavam com enorme vigor o indianismo. Os timbiras, que no dizer do próprio autor correspondiam a uma epopeia similar à Ilíada (“uma Ilíada americana”), foram objeto de um trabalho contínuo que teve início em 1847 (quando teria mostrado a Antônio Henriques Leal seis cantos), prosseguiu em Paris (em 1853, escreveu que tinha prontos 12 cantos) e só foi concluído em 1861. Como os srcinais foram perdidos no naufrágio que vitimou o poeta na costa do Maranhão em seu retorno em 1864, só conhecemos dessa obra a versão publicada em Dresden, que se limitava aos quatro cantos iniciais e era dedicada ao imperador Pedro II.18 Assim, o ano de 1857, com a edição, igualmente, do poema épico de Gonçalves de Magalhães, marcou a plenitude da poesia indianista. Tal como em José Bonifácio, a colonização é fortemente criticada por seus efeitos nefastos sobre os indígenas: “América infeliz, já tão ditosa / antes que o mar e os ventos não trouxessem / a nós os ferros e os cascavéis da Europa. /Velho 19 tutor e avaro cobiçou-te, desvalida pupila (...)”. Para pensar a relação colonial, o autor utiliza a figura jurídica da tutela; a Europa é masculina, velha e sagaz; a América, mulher, jovem e indefesa; e a colonização, equiparada a um estupro. Gonçalves Dias questiona com muita firmeza os valores da colonização: “chame-lhe progresso / Quando do extermínio secular se ufana / Eu modesto cantor do povo extinto / Chorarei nos vastíssimos sepulcros que vão dos Andes, e do Prata / Ao largo e doce mar das Amazonas”.20 Aponta, também, as deformações que a jovem nação há de purgar pelas srcens que possui, arrematando: “aos crimes das nações Deus não perdoa”.21 Ao falar das lutas entre os europeus para apossarem-se da América, não estabelecia diferenças entre holandeses, espanhóis, franceses e portugueses, acusando-os de estar “retalhando entre si vosso domínio / Qual se vosso não fora?”. 22 Dias, 1847, 1848 e 1851. Dias, 1857. 19 Dias, 1997:63. 20 Ibid., p. 62. 21 Ibid. 22 Ibid. 17 18

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A própria descoberta, com a chegada das caravelas portuguesas, é repensada em termos candentes de revolta e de uma anunciada tragédia: Brancas asas abrindo ao tufão, como um bando de cândidas garças / que nos ares pairando — lá vão (...) Nossas terras demanda, fareja... / esse monstro — o que vem cá buscar? / Não sabeis o que o monstro procura? / Não sabeis a que vem, omulher! que quer? / Vem matar vossos bravos guerreiros / vem roubar-vos a filha, a 23

A identificação do poeta e de seu leitor com os indígenas passava por uma postura nativista, de valorização das coisas brasileiras em contraposição àquelas vistas como estranhas, artificiais e importadas: “não me deslumbra a luz da velha Europa / Há de apagar-se, mas que a inunde agora / E nós... sugamos leite mau na infância / foi corrompido o ar que respiramos”. O autor se representa como um filho da terra, com novos temas e uma nova linguagem (em que incorpora extensamente vocábulos e expressões da língua tupi e detalhadas descrições da natureza tropical). Cantor modesto e humilde / a fronte não cingi de mirta e louro / antes de verde rama engrinaldei-a / d’agrestes flores enfeitando a lira (...) cantor das selvas, entre bravas matas / áspero tronco de palmeira escolho / unido a ele soltarei meu canto / enquanto o vento nos palmares zune / rugindo oslongos encontrados leques.24

Mas, se a inspiração poética deveria surgir de “um sítio em que meus olhos não descubram, triste arremedo de longínquas terras”,25 a avaliação sobre os 26 indígenas não deixa dúvidas — trata-se do “povo americano, agora extinto”. A lírica indianista se reportava exclusivamente ao passado mais remoto, como veremos a seguir,seja com o relato da nobre vida dos indígenas antes da chegada dos portugueses, seja com a morte gloriosa dos guerreiros tupis. É importante destacar desde já que tal modo de pensar terá consequências sociais muito negativas para os índios reais, funcionando como uma espécie de Dias, 1969:48. Dias, 1997:30. 25 Ibid., p. 62-63. 26 Ibid., p. 29. 23 24

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atestado poético da inexistência ouirrelevância dos indígenas contemporâneos27 e permitindo justificar políticas que acarretaram grandes prejuízos para essa população. Na sequência da Lei de Terras de 1850, as posses indígenas em áreas de antigos aldeamentos foram questionadas pelas autoridades das províncias do Norte. No Ceará, em 1863,foi decretada a inexistência de índios, e suas terras, destinadas à colonização. Em Pernambuco e naParaíba, na década de 1870, comissões de engenheiros fizeram demarcação de lotes destinados a particulares em aldeamentos então considerados extintos.Entre estes foram relacionadas terras hoje pertencen28 tes aos atuais índios fulniôs, pancararus e potiguaras, entre outros. ❚

A nobreza pretérita dos indígenas

No mesmo ano de 1857, com a publicação em livro deO guarani, o indianismo deixava de ser unicamente uma manifestação poética para expressar-se também no domínio romance, o que ampliou bastante o seu círculo de influência. Os romances atingiam um número de leitores muito maior que o de suas tiragens, pois tinham circulação prévia em periódicos diversos e mesmo nos suplementos de jornais. O guarani se passava num lugar distante e num período nebuloso, em que “a civilização não tivera tempo de penetrar o interior”, quando d. Antônio Mariz, fidalgo português que assistira à derrota de d. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, decidiu se transplantar para as selvas do Brasil.29 A microssociedade que tentaria fazer Portugal ressurgir das próprias cinzas naquelas paragens longínquas compunha-se de sua filha Cecília, um prometido genro (o fidalgo Álvaro) e um ex-frei carmelita que perdera a fé (Loredano), além de trabalhadores e artesãos. Como oponentes, a natureza indomada e os ferozes índios aimorés. Num primeiro momento, tratava-se de erguer as casas e decorá-las, de fazer funcionar uma sesmaria. É quando ocorre o encontro de d. Antônio com

O pr imeiro censo nacional, realizado em 1872 pelas autoridades imperiais, indicava que os indígenas ou “caboclos” representavam 6% da população do país e que sua concentração não ocorria apenas no extremo Norte, ou no que hoje chamaríamos de Amazônia, mas também no Nordeste e no Leste. Havia contingentes significativos de indígenas no Ceará, Bahia e em Minas Gerais, registrando-se sua presença em todos os estados do Nordeste e chegando em certos casos a corresponder a quase 10% da população (ver Oliveira, 1999). 28 Ver Oliveira, 2004. 29 Alencar, 1857. 27

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Peri, índio guarani que usava uma túnica de algodão e falava o português. Peri curva-se diante do fidalgo e beija-lhe a mão. Como num romance de cavalaria, Peri, guerreiro livre, torna-se escravo de um sonho, primeiro com uma imagem de Nossa Senhora, depois pelo amor de Cecília (a quem chama de Ceci, pois em sua língua isso indicava sofrimento, e para ele o amor era indissociável do dever e do sofrimento). Num segundo os ataques aimorés, mostrando inviabilidade daquela momento, experiênciaocorrem civilizatória. A força,dos coragem e fidelidade de a Peri ao senhor feudal reproduziam os valores medievais pelos quais d. Antônio se pautava. Álvaro, ao contrário, sucumbe aos encantos de Isabel, mestiça sedutora, vindo a morrer em combate.30 Num terceiro momento, vendo que somente Peri podia salvar-lhe a filha, d. Antônio o batiza e atribui-lhe seu próprio nome. Seria a vitória do amor casto e puro sobre a conduta licenciosa e afastada da virtude, com o surgimento de um outro Brasil, fruto da união entre um indígena e uma mulher branca. Mas, uma grande enchente do rio Paquequer, como que operando uma lavagem das impurezas, sepulta os índios aimorés e acaba por tragar em sua correnteza também o jovem casal. Alfredo Bosi (1992) observa que a preocupação de Alencar com o enobrecimento dos personagens centrais é tal que leva muitas vezes ao rompimento de uma cadeia narrativa verossímil. Em sua análise desse romance, chama a atenção para uma ordem de fatos que o autor aponta de forma marginal, mas que ao longo da trama condena a uma zona de invisibilidade. Por trás do solar dos Mariz havia dois grandes armazéns ou senzalas, habitados por 40 “aventureiros e acostados”, os quais viviam da exploração dos recursos do sertão que levavam para vender no Rio de Janeiro, dividindo os lucros com o fidalgo. A busca de riquezas minerais e extrativas não esteve historicamente dissociada da captura e escravização de indígenas. O próprio Bosi destaca que “os usos e costumes dos mercenários” não podiam ser idênticos ao do “castelão”, não vindo a colônia a “repetir a Idade Média”, e sim abraçar “uma sociedade já aberta”. 31

30 Em sua análise desse romance, Renato Ortiz (1988) destaca o papel negativo aí atribuído aos mestiços através da personagem Isabel. Em poema anterior (1849), intitulado “Marabá”, Gonçalves Dias (1969:53-56) já falara de uma mestiça integrando uma categoria de pessoas estigmatizada entre os próprios indígenas. 31 Bosi, 1992:190-191.

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Nessa linha, Bosi anota que o contexto político em que vicejou o indianismo correspondia a uma sólida hegemonia dos conservadores, bloqueando a discussão sobre a questão servil. Uma comparação entre as diferentes modalidades de indianismo e de nacionalismo encontradas em Gonçalves Dias e em José de Alencar mostraria que o primeiro nasceu sob o signo de fortes conflitos nas províncias do Norte entre “brasileiros” e “marinheiros” e tensões locais antilusitanas, enquanto o segundo se formou nofora período que vai da maturidade precoce de Pedro II (da qual inclusive seu pai um hábil articulador) à conciliação conservadora dos anos 1850.32 A construção de uma galeria de personagens indígenas (reais ou ficcionais) descritos sempre positivamente, remetendo apenas ao passado e nunca à contemporaneidade, teria um correlato em processos sociais em curso, especialmente durante o Segundo Reinado. Formava-se, paralelamente, uma nobreza brasileira cujos títulos e nomes (familiares e individuais) não remontavam a casas dinásticas, linhagens e honrarias ancestrais outorgadas pelos monarcas europeus, mas, sim, a distinções concedidas pelo imperador que frequentemente recuperavam a toponímia do país, bem como palavras e nomes de nações indígenas. ❚

A morte gloriosa dos guerreiros

Um dos mais famosos poemas indianistas de Gonçalves Dias tem como espinha dorsal da criação artística o tema da morte gloriosa e edificante. É a cena de um bravo guerreiro tupi que, tendo caído prisioneiro dos timbiras, deve passar pelo ritual antropofágico no qual desafia os seus matadores e os ameaça com a vingança futura de seus parentes. “Sou bravo, sou forte / Sou filho do Norte / Meu canto de morte, guerreiros, ouvi. / Já vi cruas brigas / de tribos inimigas / e as duras fadigas / da guerra provei. / Andei longes terras / lidei cruas guerras / Vaguei pelas serras / dos vis aimorés. / Vi lutas de bravos / vi fortes — escravos! / de estranhos ignavos / calcados aos pés”.33 O cenário é a América antes da chegada dos europeus. Toda a trama tem por finalidade mostrar como, entre os indígenas, a coragem, enquanto valor social e marca da honra, deve predominar sobre os sentimentos familiares e a piedade. A morte em combate ou no ritual antropofágico, segundo 32 33

Bosi, 1992:176-185. Dias, 1997:13-14.

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as tradições de povos guerreiros, não é o fim, mas a expressão natural de um ciclo de vida social, com a antecipação da vingança e a reafirmação da honra individual e coletiva. O próprio título do poema já apontava para isso: “I-Juca-Pirama”, que em língua tupi significaria “o que há de ser morto, o que é digno de ser morto”. 34 Ao lembrar, porém, de seu velho pai, cego e sem arrimo, a quem deixara na aldeia, o guerreiro chorou. O chefe timbira 35mandou-o de volta: “parte, não queremos com carne vil enfraquecer os fortes”. Retornando o filho à aldeia, o pai, ao saber do ocorrido, leva-o de volta aos timbiras, dizendo-lhes para prosseguir com o rito de morte. O chefe timbira recusa: “só de heróis fazemos pasto”.36 O pai reage com uma terrível imprecação, amaldiçoando o filho antes tão querido: Não descende o covarde do forte / Pois choraste, meu filho não és! / Possas tu, descendente maldito / De uma tribo de nobres guerreiros / Implorando cruéis forasteiros / Seres presa de vis aimorés / Sê maldito e sozinho na ter ra / Pois que a tanta vileza 37 és! chegaste / Que em presença da morte choraste / tu, covarde, meu filho não

Afinal, o filho se rebela, lutando e demonstrando seu valor no combate aos guerreiros timbiras. O chefe manda então prosseguir com o rito de morte, cuja história um velho timbira irá guardar, relatando para os mais jovens: “meninos, eu vi”. Em 1874, numa de suas últimas obras, por ele classificada não como “romance”, mas como “lenda tupi”, José de Alencar dedicou-se a pensar os indígenas num contexto puramente pré-colonial. Ubirajara era um jovem guerreiro araguaia, intensamente amado por Jandira. Numa incursão às terras dos tocantins, conheceu a virgem Araci. Pela coragem e destreza com que se comportou nas guerras realizadas pelos araguaias, Ubirajara foi escolhido como chefe. Voltou, aldeia dostornou-se tocantins e“odisputou com outros de Araci.contudo, Ao final,à Ubirajara chefe dos chefes e oguerreiros senhor dasa mão flo-

Dias, 1997:7. Ibid., p. 18. 36 Ibid., p. 22. 37 Ibid., p. 23-24. 34 35

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restas”, unindo araguaias e tocantins numa poderosa nação que ainda dominava os sertões quando ali chegaram “os caramurus, guerreiros do mar”.38 Contrariamente à ferocidade e primitivismo com que foram antes descritos nas fontes coloniais, José de Alencar pretendia com essa narrativa fazer o leitor compartilhar seu orgulho de ser descendente desses povos. Por isso, como observa Cavalcanti Proença, ele mostra os índios como “guerreiros valentes, amigos leais, esposas dedicadas até o sacrifício”, de tal modo que a nacionalidade pudesse aí encontrar as suas srcens. 39 Em nota de advertência, Alencar afirmava que historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa. (...) duas classes de homens forneciam informações acerca dos indígenas: a dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto, de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios.40

Os europeus frequentemente esqueciam-se de que “eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os selvagens americanos, omitindo assim as coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavalheirescos do caráter dos selvagens”.41 Para modificar tal imagem, o autor empreendeu extensa pesquisa bibliográfica que se traduziu em alentadas e numerosas notas (ocupando quase um terço da obra). É importante perceber como o tema da antropofagia, tão nevrálgico para as avaliações ocidentais sobre os indígenas, recebeu um tratamento inteiramente diferenciado nos autores indianistas e nos cronistas coloniais. À diferença de tais fontes, que sempre expressaram sua profunda repulsa e indignação diante da antropofagia, Gonçalves Dias a via meramente como parte de um complexo cultural às sociedades a coragem e a virtude a individualpróprio dos personagens queguerreiras, delineara. destacando Alencar, por sua vez, considerava

Alencar, s.d., p.142-143. Proença, s.d., p. 21. 40 Alencar, s.d., p. 145-147. 41 Ibid., p. 146. 38 39

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antropofagia uma instituição característica de certas sociedades indígenas, relacionando-a diretamente à distribuição interna da honra e do prestígio, numa interpretação muito semelhante àquela que Florestan Fernandes (1970) nos daria no século seguinte.42 ❚

O índio como exterior à fundação do país

Se, no domínio da poesia e da literatura, o indianismo, dada a importância que assumiu, é frequentemente considerado um movimento que se integra à doutrina estética da escola romântica, embora com identidade própria, 43 na pintura predominam outros critérios para marcar semelhanças e descontinuidades. Nesse domínio, seria bem mais arbitrário isolar alguns autores e obras e classificá-los como “indianistas”. Assim, focalizaremos a seguir algumas representações visuais acerca dos indígenas, seja como parte de uma atividade de tradução artística da nacionalidade, seja como releituras de personagens e eventos delineados por produções literárias de algum modo vinculadas ao indianismo. O rompimento com a tradição do barroco colonial não deve ser relacionado de modo direto e simplista à chegada da missão francesa e à criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios.44 De 1816 a 1818, o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850), o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e o escultor Auguste-Marie Taunay (1768-1824) ocuparam-se com a construção, no largo do Paço, no centro do Rio de Janeiro, de um templo, um arco do triunfo e um obelisco, obras destinadas aos festejos de 45 aclamação do príncipe regente d. João como rei de Portugal, Brasil e Algarve. Ambos estão muito distantes da postura do modernismo, que se propõe inverter a avaliação dos cronistas, transformando a antropofagia em instrumento da nacionalidade, mas sem questionar em sua natureza as representações coloniais (ver Rouanet, 1999). 43 Os autores em geral classificados como “indianistas” não se caracterizam apenas pela remissão aos temas indígenas, mas também pela busca de novas soluções técnicas, que propiciem uma narrativa mais con42

forme seus objetivos. Fazem investimento nopretenderia estudo da m língua tupi,traduzir utilizando-se de um amplo aos conjunto de palavras, expreum ssõesgrande e formas sintáticas que melhor tais culturas. Existem também fortes divergências entre eles,debatidas nas numerosas notas,prólogos e posfácios de José de Alencar em Iracema e Ubirajara. Embora não seja essa a direção da análise proposta neste texto, cabe recomendar aos interessados em tais aspectos a leitura de Afrânio Peixoto(Noções de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931), Antonio Cândido A formação ( da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1959), Cavalcanti Proença (Estudos literários. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1974), e Alfredo Bosi (História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995). 44 Naves, 1996. 45 O templo, consagrado a Minerva, deusa da sabedoria, era composto por 32 colunas dóricas, e o busto de d. João VI ficava sobre um pedestal, como os dos imperadores romanos, para ser cultuado pelos súdi-

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A suntuosidade não deixava dúvidas quanto à ambição: a aclamação do rei deveria evidenciar sua importância e apresentá-lo como herdeiro de três grandes tradições da humanidade: Grécia, Roma e o Egito antigo.46 A monarquia portuguesa, que tivera em 1646, com d. João V, a Imaculada Conceição como sua padroeira, agora destinava a Minerva o lugar de destaque na aclamação do soberano, preferindo aproximar-se da retórica iluminista (levada a seu extremo no período napoleônico) e inserindo-se igualmente no processo de laicização do Estado iniciado pelo marquês de Pombal.47 As atividades dos artistas franceses prosseguiram sob o signo do mecenato joanino até 1826,48 quando foi instituída a Academia Imperial de Belas-Artes. Debret foi nomeado para a sua direção e, com a colaboração de Grandjean de Montigny e dos irmãos Ferrez, delineou seu primeiro estatuto. Naquele ano, foi também inaugurado o prédio desenhado por Grandjean de Montigny, em cuja fachada apareciam as figuras de Minerva e de Apolo, o deus da música e da poesia. Com o retorno de Debret à França em 1831,49 iniciou-se uma segunda fase da Academia Imperial,50 com destaque para Felix Émile Taunay, que esteve à sua frente durante a maior parte desse período (1834-51). Em sua gestão criaram-se

tos. No arco do triunfo figuravam outra vez Minerva,ao lado de Ceres, deusa da agricultura, os escudos dos três reinos e uma inscrição: “ao Libertador do Comércio” (ver Taunay, 1956). 46 De tais construções não ficaram quaisquer vestígios, exceto um busto de Minerva (hoje no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e uma moeda comemorativa de 1818; tampouco figuram nas duas litografias que Debret fez da cerimônia da aclamação (ver Souza, 1997). 47 O Iluminismo adentrou Portugal no bojo de um processo de fortalecimento do poder estatal, mas com características bastante peculiares. Não tinha um espírito revolucionário nem antirreligioso, como o Iluminismo francês, mas era essencialmente reformista, humanista e cristão (ver Carvalho, 1996:57). 48 Há registros também sobre a atuação desses artistas em outras obras de celebração do monarca e de sua família. Grandjean de Montigny projetara seis arcos triunfais para comemorar a chegada ao Rio de Janeiro de d. Pedro I, em 12 de outubro de 1822, e sua sagração como imperador do Brasil. Debret também pintara uma cortina para o teatro real, onde d. João VI aparece ladeado por deuses greco-romanos e pelos três continentes (ver Souza, 1997:63). 49 Como pintor, Debret estava nitidamente vinculado à escola neoclássica francesa, caracterizada pela busca de temas exemplares e edificantes, pelo menosprezo ao paisagismo e às posturas contemplativas. Seus expoentes eram Winckelmann (para quem a perfeição das formas só poderia ser atingida através de modelos gregos), De Quincy (que recuperava permanentemente temas e personagens romanos) e sobretudo Louis David. Segundo Naves (1996), um contexto políticomuito diferente (aí destacando-se a escravidão) impediu que Debret fosse um simples executor dessa estéticamoralizadora.Ao contrário, veio a modificá-la em suas obras no Brasil, pautando-se por uma ênfase nos detalhes,estabelecendo contornos frágeis,fazendo composições fragmentárias e dando às cores um papel mais suave e decorativo.Sua extensa produção foi difundida no Brasil através de seu livro Voyage pitoresque et historique au Brésil (1816-31). 50 Uma reforma introduzida no final de 1831 definiu quatro áreas básicas de formação: Pintura Histórica, Pintura de Paisagens, Arquitetura e Escultura, além de uma longa lista de disciplinas julgadas como pré-requisitos.Ver Cybele Fernandes (1997).

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prêmios de incentivo aos melhores trabalhos anuais: medalha de ouro (instituída em 1834),medalha de prata (1836),exposições gerais (1840) e prêmios de viagem e treinamento no exterior (1845). Uma terceira fase (1854-90) teve início com a nomeação de Manuel de Araújo Porto-Alegre, a reforma de seu estatuto e a implantação da chamada reforma Pedreira (ampliando o leque de disciplinas e fomentando as aplicações práticas). Nesse período diminuiu a ascendência de professores estrangeir s, e a ainstituição fortaleceu-se com a organização e da pinacoteca, eocom incorporação do conservatório de música. da biblioteca A Academia Imperial, sobretudo a partir da gestão de Felix Taunay, partilhava com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, outra instituição fortemente apoiada por d. Pedro II, a preocupação de contribuir para a formação de uma identidade nacional. Mas as duas instituições tinham dinâmicas diferenciadas: enquanto o IHGB era um centro de debate das grandes questões nacionais e, através da sua revista, de divulgação de textos e documentos julgados importantes para a história do país, a Academia Imperial visava formar uma nova geração de artistas brasileiros. Congregando pessoas de diferentes profissões, o IHGB atuava como um foro de articulação da elite, contribuindo para a formação de um projeto nacional.51 Assim, no tocante à produção literária, servia antes como caixa de ressonância e lugar de eventual consagração (como ocorreu com alguns autores indianistas, notadamente Gonçalves Dias), e não para a definição e transmissão de procedimentos técnicos (como era o caso da Academia Imperial). Felix Taunay, em diversas ocasiões, explicitou como entendia a formação do artista brasileiro, função precípua da Academia Imperial: o artistadeveria contribuir para a educação dos povos e o enaltecimento das virtudes cívicas.52 A ênfase em temas históricos não foi de maneira alguma dirigida para os indígenas, e sim para os momentos e personagens gloriosos da formação do país.53 Isso transparece numa simples listagem das obras realizadas de 1840 a 1890 por autores vinculados à Academia: “Desembarque em Porto Seguro de Pedro Álvares Cabral” (1842), Há extensa bibliografia sobre o tema, destacando-se, entre outros, Guimarães (1988); Domingues (1989); Guimarães (1995); e Kadama (2005). 52 “Será preciso que a pátria vigie cuidadosamente sobre a educação dos mesmos artistas; porque se lhes inculcar somente a prática e a mecânica de sua profissão, serão somente obreiros minuciosos; se neles pelo exercício acordar o sentimento do belo físico e a capacidade de sua expressão, serão excelentes produtores de poesia muda; mas se a boa morigeração e o amor da virtude com suficiente instrução vivificarem os seus poderes, serão membros utilíssimos da associação política” (abertura da sessão pública de distribuição anual dos prêmios, em 1839; apud Santos, 1997:129). 53 A grande era da pintura histórica foi o século XIX, especialmente em sua segunda metad e, quando serviu como instrumento auxiliar na construção da nação e na nacionalização do passado (ver Burke, 2005). 51

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de Rafael Mendes de Carvalho; “Nóbrega e seus companheiros” (1843), de Manuel Joaquim Corte Real; “A primeira missa no Brasil” (1860), “Combate naval do Riachuelo” (1872), “Passagem de Humaitá” (1872), “Juramento da princesa Isabel” (1875) e “Batalhade Guararapes” (1879), deVictor Meirelles;“Batalha do Avaí” (1879) e “Grito do Ipiranga” (1885), de PedroAmérico. Em comparação com outras obras do período, há relativamente muitos escritos “primeira missa no do Brasil”. sido, geral, sua conexãosobre com aa carta de achamento Brasil,Tem escrita porem Pero Vaz apontada de Caminha e que não apresenta os indígenas de forma desfavorável, nem registra aspectos conflituosos destes com os portugueses. A carta de Caminha esteve por séculos guardada na Torre do Tombo, tornando-se conhecida no Brasil através de sua reprodução parcial por Aires de Casal (1817) e, posteriormente, pelos livros de Ferdinand Denis (1821 e 1822) e Robert Southey (1822). Manuel PortoAlegre, em carta ao seu pupilo Victor Meirelles, versejando, o aconselha: “lê Caminha, ó artista, marcha à glória / Já que o céu te chamou Victor na terra / Lê Caminha, pinta e então caminha”.54



54

“A primeira missa no Brasil” (1860) de Victor Meirelles. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Minc., RJ.

Apud Mello Jr., 1982:60.

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Em sua permanência em Paris, Victor Meirelles deve ter tomado conhecimento do quadro de Horace Vernet intitulado “Première messe en Kabilie”, apresentado no Salon em 1855.55 As similitudes se limitam a mostrar o lugar da celebração religiosa na expansão dos europeus em regiões ocupadas por povos pagãos. Jorge Coli mostra como Meirelles dá ao tema um tratamento radicalmente diverso daquele realizado por Vernet: tomando distância em relação à cenaservindo-se principal (enquanto Vernet busca marcarque comfavorecia precisãoaainclusão celebração religiosa); de um formato horizontal, da paisagem e do próprio olhar do espectador (em oposição ao formato vertical da tela e, supostamente, ao olhar hierárquico e ordenador que o mesmo induziria); e operando com uma passagem de tons de grande suavidade (em contraste com os uniformes e baionetas dos soldados).56 A incorporação de populações não cristãs pela expansão comercial e militar do Ocidente, tal como vista nas pinturas de Vernet e Meirelles, remete a visões antagônicas. No primeiro caso, as diferenças culturais são evidentes e apenas remetem a sobreposições; no segundo, a composição da tela aponta para uma possível fusão, em que o encontro de civilizações transparece, na expressão de Coli, como uma espécie de “útero fecundador”57 da nacionalidade. Tais aspectos sem dúvida foram importantes para o grande sucesso da obra de Meirelles, exposta inicialmente em Paris, em 1861, e ainda no mesmo ano no Rio de Janeiro,valendo a seu autor o cargo de professor honorário da Academia Imperial e o grau de cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa.58 A calorosa acolhida obtida no contexto cultural que acima delineamos não deve excluir leituras que apontam em outras direções. Destacando que o foco da pintura é colocado no altar, Cadorin observa que os indígenas seriam “meros espectadores de um ritual que não compreendem e revelam assim um total desconhecimento do que está acontecendo”.59 Em trabalho comparativo entre Brasil e Estados Unidos sobre a construção de ícones da nacionalidade, Guimaraens (1998) observa que, na pintura de MeiTrata-se de um momento final pelo qual o poder colonial francês veio a submeter a uma população autóctone que lhe resistiu militarmente. Vernet foi de fato uma testemunha ocular do episódio, tendo presença destacada inclusive no seu ordenamento espacial. 56 Coli, 2000:114. 57 Ibid. 58 Cadorin, 1997:168. 59 Ibid. 55

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reles, os indígenas são apresentados como seres da natureza que permanecem na contraluz e se integram à paisagem, assistindo passivamente à celebração do episódio inicial da história do Brasil. Inteiramente alheios ao significado dos atos históricos que ali se realizavam, os indígenas seriam assim figurados apenas como eventuais testemunhas da formação da nação, e não como seus protagonistas. É fundamental perceber como a retórica da casualidade e da surpresa está associada das narrativas sobreque o descobrimento, fazendo parte de um dosà grande efeitos maioria ideológicos fundamentais contribuem para o encobrimento da presença indígena na história da colônia.60 A tela de Victor Meirelles, que seria doravante seguidamente reproduzida nos manuais históricos e livros escolares, foi a tradução visual do espírito da carta de Caminha, fornecendo ao contexto intelectual e político do Segundo Império a certidão de batismo e antiguidade que ele tanto desejara.61 Da pretendida e aclamada fundação da nação, engendrada no Segundo Império e no momento de consolidação de instituições centrais de cultura e de administração pública, os indígenas não são atores efetivos, nem testemunhas por si mesmas válidas ou fidedignas. Se não estão inteiramente ausentes, nem são tratados como oponentes, isso não lhes dá a condição de partícipes desse processo — investidos, portanto, de obrigações e direitos.62 É essa ambiguidade fundadora, sob a capa de uma aparente harmonia e de uma integração mais profunda, quase vegetal, com o meio ambiente, que põe em marcha a produção de um efeito de esquecimento. ❚

A morte como o destino trágico dos indígenas

Além dos grandes momentos da história nacional, a produção de imagens sobre o índio nas décadas de 1870 e 1880 teve como fonte de inspiração o indianismo, aí incluindo obras bem anteriores ao movimento, mas que poderiam

Ver Oliveira (2009). Capistrano de Abreu, em sua famosa tese de concurso para o Colégio Pedro II, em 1883, saudava a carta de Caminha como “o diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura”. 62 O estabelecimento da colonização e a incor poração do indígena na aventura colonial estão realçados no quadro “A elevação do cruzeiro em Porto Seguro” (1879), de Pedro Peres. Embora este tenha tomado como objeto o mesmo contexto da descoberta, as soluções técnicas (iluminação, cores, planos) que adotou contrastam fortemente com as de Meirelles e são evocadas para justificar por que tal obra não teve a mesma repercussão nem recebeu avaliações tão entusiásticas. 60 61

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ser consideradas precursoras dessa temática. Na perspectiva da época, o artista estaria em ambos os casos lidando com um passado remoto, relativo a episódios iniciais da colonização. A reelaboração imagética das produções indianistas acabou por priorizar um tema em especial, a morte dos indígenas, que seria predominante nas obras mais famosas. No período colonial, os mecanismos violentos de mobilização dos indígenas, como os “descimentos”, as “tropas de resgate” e as “guerras justas”, não eram questionados em sua natureza, mas apenas em algumas modalidades de aplicação, avaliadas como distorcidas ou excessivas. A disputa que os missionários travaram com os moradores tinha por objeto a regulação dessas atividades, e não a sua supressão, pois através delas eram abastecidas não somente as fazendas, os serviços de particulares e as obras públicas, mas também as próprias aldeias. O objetivo mais nobre da colonização, ademais de ganhos materiais, era a transformação do indígena em cristão, a salvação da sua alma, o que implicava um renascimento espiritual. Foi com o Iluminismo e com a supressão da guerra justa que o indígena passou a ser visto não mais apenas como pagão, mas como homem suscetível de dor e sofrimento. É nesse contexto que, no século XIX, se dá a descoberta da influenciada morte do indígena comopelo fenômeno estético pelamas pintura acadêmica brasileira, não apenas estilo neoclássico, também pelas adaptações introduzidas por Debret e, mais tarde, pelo romantismo acadêmico (pompierismo) que imperava nos ateliês de Paris, onde estagiavam alunos premiados pela Academia Imperial. O pendor do romantismo para abordar a existência humana em sua dimensão trágica, destacando aspectos por vezes lúgubres, decerto contribuiu para tal escolha.63 O primeiro movimento nessa direção foi de Victor Meirelles, que se inspirou em poema épico pautado no arcadismo e escrito ainda no século XVIII por Frei José de Santa Rita Durão, frade agostiniano nascido no Brasil, mas educado e residente em Portugal. Publicada pela primeira vez em 1781, em Lisboa, a obra foi reimpressa no contexto do Segundo Reinado.64 O tema desse 65 épico, por alguns identificado como “o mais brasileiro de nossos livros”, éa existência aventurosa do náufrago português Diogo Álvares, o Caramuru, que, tendo desposado Paraguaçu, princesa indígena (depois batizada como Catarina), Sá, 1997:163. Durão, 1845. 65 Romero e Ribeiro, 1906. 63 64

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torna-se senhor daquelas terras, contribuindo com sua extensa prole para a criação da primeira capital colonial dos portugueses na América.



“Moema” (1866) de Victor Meirelles (Florianópolis, SC, 1832 - Rio de Janeiro, RJ, 1903). Óleo sobre tela, 129 x 190 cm. Coleção Masp (Museu de Ar te de São Paulo Assis Chateaubriand). Fotograa: João L. Musa.

A recuperação que Meirelles faz dessa narrativa é filtrada, porém, através de uma outra personagem, que no poema tinha papel secundário: Moema — cujo nome serve de título a essa bela tela — era a índia que, ao ver Caramuru seguir para a Europa levando Paraguaçu como sua única esposa, lançou-se ao mar e nadou junto à caravela, até perecer afogada. O quadro, um dos mais valorizados do autor, recria uma atmosfera lírica. O corpo da índia, atirado à praia, mantém sua inteireza e dignidade, enquanto uma primorosa recomposição da paisagem, com 66

uma praia deserta e enevoada, sugere o mundo etéreo e ilusório da alma dela. O poema épicoO Uruguai, de Basílio de Magalhães, também teve utilização similar, tendo sido concebido srcinalmente como uma ode à atuação de Gomes Freire de Andrade, conde de Oeiras, comandante das tropas portuguesas que no século XVIII levaram de vencida os indígenas tapes, liderados por Sepé Tiaraju. 66

Cadorin, 1997:167.

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O que o pintor José Maria de Medeiros retrata, porém, é o episódio da morte de Lindoia, esposa de Cacambo, um dos líderes indígenas mais próximos de Sepé Tiaraju. Após a morte deste em batalha, Cacambo é aprisionado e depois envenenado.Sua formosa e altiva mulher,que o visitara no cárcere, ao saber da terrível notícia, busca voluntariamente a morte, dirigindo-se a um bosque escuro e negro, “onde ao pé de uma lapa cavernosa/ cobre uma rouca fonte, que murmura/ curva latada de jasmins e rosas./Este lugar delicioso e triste/ cansada de viver, tinha escolhido/ para morrer a mísera Lindoia”. Uma perigosa serpente vem passear sobre o corpo dela. Seu irmão, que a seguira, com uma flecha certeira atinge o animal, cravando-o contra uma árvore. Mas a serpente já havia deixado no seio de Lindoia as marcas de seu veneno.



“Lindoia” (1882) de José Maria de Medeiros. Acervo Instituto Ricardo Brennand, Recife, PE.

O pintor retratou essa cena com grande lirismo, mas também com bastante fidelidade à narrativa de Basílio de Magalhães. Um trecho do poema sintetiza a intenção do quadro e, a meu ver, explicita a escolha estética que conduzia os pintores acadêmicos a um permanente interesse no tema da morte: “Inda conserva o pálido semblante / Um não sei quê de magoado e triste, /Que os corações mais duros enternece / Tanto era bela no seu rosto a morte”.67 67

Magalhães, s.d., p.27-28.

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O tema da morte, com o seu séquito de sensações e sentimentos coligados, sua aparente espontaneidade e pureza, sua apregoada beleza e expressão de sublime humanidade, aparece nesse período histórico sistematicamente associado aos indígenas. Além dos exemplos acima destacados, podemos citar ainda “Moema”, de Rodolfo Amoedo,“Moema”, de Décio Vilares,68 e “As exéquias de Atala” (1878), de Augusto Rodrigues Duarte.69 Para encerrar as menções a esse tamoio” tema, devemos rapidamente pela conhecida tela intitulada “O último (1883),passar de Rodolfo Amoedo. Como os exemplos anteriores, trata-se da transposição de um poema épico para uma pintura marcada pelo romantismo. A inspiração é a “A Confederação dos tamoios”, poema publicado por Domingos José Gonçalves de Magalhães em 1857. Em vez de imagens de combates e atos de heroísmo, o que o pintor retrata é o cruento final da conquista da Guanabara pelos portugueses, com um indígena agonizante e um missionário que busca ampará-lo.



“O último tamoio” (1883) de Rodolfo Amoedo. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Minc, RJ.

No acervo do Museu Nacional de Belas Artes existem dois estudos de R. Amoedo sobre “Moema”, mas o ano mencionado corresponde à data de entrada da peça, e não de sua feitura. Dá-se o mesmo com a “Moema” de Décio Vilares. 69 Nesse caso, a inspiração não é o indianismo brasileiro, mas o romance Atala ou Les amours de deux sauvages au desert, de Chateaubriand, publicado em 1801 e ambientado entre indígenas da América do Norte. 68

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O extermínio dos tamoios á apresentado numa dimensão puramente individual. Não há sinais de escaramuças ou refregas, não se veem armas de vencedores ou vencidos, nem bandeiras e troféus. A nudez do corpo do índio atesta sua plena humanidade, e a morte é a expressão bruta de um destino comum. O manto negro do jesuíta, esforçando-se por ampará-lo, talvez ministrando-lhe os sacramentos, mas impotente para impedir sua morte, nos escancara uma outra conclusão: desaparecimento indígenas é inevitável, uma fatalidade, que nem o maisoelevado ideal cristãodos consegue deter. ❚

A morte “quase vegetal” do indígena

A criação literária do indianismo que mais profundamente se entranhou na vida brasileira no final do século XIX foi Iracema. Seu autor, José de Alencar, a fez preceder de um “argumento histórico”, onde deixava claro que as ações nela relatadas se referiam aos primeiros episódios da conquista do Ceará. Não a classificava como romance histórico, mas como “lenda do Ceará”. Antecipava assim as características básicas da obra, passíveis de crítica num romance: o forte esquematismo de seus poucos personagens.70 A edição srcinal é de 1865, e a segunda, com o acréscimo de um prólogo, data de 1870. A narrativa é bastante simples. Iracema, a jovem filha do pajé dos tabajaras, a virgem possuidora dos segredos da preparação da jurema, apaixona-se por Martim, guerreiro português que se perdera naquelas terras. Embora todo o relato apenas exalte suas qualidades (a beleza, a destreza no uso do arco, o amor filial e fraterno, sua devoção e fidelidade ao esposo), Iracema é duplamente pecadora, seja por sua pureza destinar-se apenas aos espíritos, seja por tentar seduzir o seu amado. O enlace de ambos apenas reforça o tema cristão da culpa feminina, sendo Iracema uma espécie de Eva nativa, enquanto Martim, sempre preocupado em preservar a honra de seus hospedeiros, apenas teria cedido aos encantos dela sob o efeito da jurema (que lhe fora ministrada por Iracema). O casal vai viver na aldeia dos potiguaras, inimigos dos tabajaras e aliados dos portugueses, onde vivia Poti, fiel amigo de Martim. Ao anúncio de que Iracema esperava um filho, Martim é pintado e adornado como um indígena, Alguns criticam a falta de densidade psicológica dos romances indianistas de Alencar, considerando que isso os desumanizaria. É importante notar que Alencar caminhava em outra direção, aproximandose das narrativas míticas e da produção de alegorias (ver Santiago, 1965). 70

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numa representação de sua incorporação pelo mundo dos autóctones. Mas a tristeza se apodera de Iracema, por viver entre os inimigos de seu povo e, sobretudo, por ver Martim seguidamente partir para campanhas militares. Os silêncios do marido, atribuídos a saudades de uma virgem loura que deixara longe, também a enchiam de ciúmes. Iracema definha e, logo após dar à luz um filho, tal como anunciara, vem a falecer nos braços de Martim. A criança recebe dela o nome de Moacir, “aquele queenasceu meuretorna sofrimento”. A cena que abre o livro, que aodofinal invertida, é emblemática: um branco, uma criança e um rafeiro nativo estão sobre uma jangada que se afasta do litoral cearense. Dos olhos do guerreiro português rolam lágrimas, enquanto o vento nos coqueirais e a jandaia parecem sussurrar o nome de Iracema. Na última cena, Martim retorna com muitos guerreiros e um sacerdote, que vem plantar sua cruz naquela terra. Poti é o primeiro a ser batizado, nada mais tendo que o separe de Martim. Este muitas vezes vai sentar-se naquelas doces areias e acalentar sua saudade. A jandaia continua a cantar no alto do coqueiro, mas já não repete o nome de Iracema. A narrativa tem um caráter trágico, que Alfredo Bosi explorou analiticamente sua abordagem do indianismo. Trata-se do que denominou complexoem sacrificial, em que ocorre uma imolação voluntária dosele protagonistas: “a entrega do índio ao branco é incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à tribo de srcem. Uma partida sem retorno”.71 Se de fato a limitação dessa narrativa é traduzir exclusivamente o ponto de vista da sociedade branca, omitindo a visão indígena, é importante atentar para a sua singularidade. Não se trata aqui do discurso colonial em que o nativo desaparece para dar lugar ao vassalo cristão, ocorrendo um renascimento individual. Também não é a morte abrupta, dramática e definitiva das pinturas acadêmicas que examinamos anteriormente. Iracema convive há muito com a ideia de O suaconhecimento morte e prepara cuidadosamente chegada, encarando-a natural. prévio, a aceitação ae sua os preparativos são parte como de uma modalidade de morte inteiramente contrastante com aquela que imperava no século XIX.72 71 72

Bosi, 1995:178-179. Ariès, 1975:22-27.

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A forma com que ela encara a morte se opõe à do século de Alencar e de seus leitores, que também a projetam em Martim, sublinhando a alteridade de Iracema e a diferença cultural que caracteriza essa personagem. Seus leitores, mesmo sem compreender verdadeiramente a atitude de Iracema diante da morte, percebem que há um consentimento e entrega, não uma revolta, o que é fundamental para aliviar o efeito negativo e trágico da narrativa. Iracema não remete ao esquecimento, mas à lembrança amorosa e à saudade, pois representa a beleza, a pujança e o espírito da terra. Não deve causar surpresa que suas representações na pintura, no desenho e na escultura sempre a figurem como viva. Sua morte, assim como a submissão e a destruição de muitos povos indígenas, é tão indizível para os brasileiros quanto o são os relatos sobre o extermínio para os que a ele sobreviveram, apenas ouvidos pelo etnógrafo Pollak, mas ausentes de suas posteriores interações sociais cotidianas. A Iracema de José de Alencar abandonou o terreno das imagens trágicas da morte, e isso se traduz na pintura de José Maria de Medeiros, como se pode ver na ilustração abaixo.



“Iracema” (1881) de José Maria de Medeiros. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Minc., RJ.

O nome Iracema corresponde a um anagrama de América, criado por José de Alencar. Com o tempo tornou-se um nome comum para crianças brasileiras do sexo feminino. As muitas reedições do livro, em formatos populares, recon-

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tadas em cordéis ou legitimadas em livros didáticos, contribuíram para que a personagem e a narrativa, fortemente idealizadas e valorizadas, se tornassem amplamente conhecidas no país. O efeito literário buscado por Alencar não é o desaparecimento. Iracema foi consumida pela gestação de seu filho; ela é uma ponte para ele. É nele, no primeiro cearense, que ela irá sobreviver, como numa metamorfose. Iracema não é a celebração nostálgica dedeum passado Dias, indígena, comodo extinto e pretérito, como no indianismo Gonçalves mas avisto afirmação mestiço, resultado da conjunção entre colonizador e colonizado. Ou seja, sua herança é o surgimento de uma categoria que é a síntese de experiências contrastantes. Enquanto em Gonçalves Dias o poema “Marabá” coloca o mestiço como um pária entre os indígenas, sem poder constituir família e procriar, em José de Alencar os personagens indígenas (com exceção do romance Ubirajara) se movem por uma espécie de heliotropismo, construindo-se através de suas aproximações e fusões com o colonizador.Assim ocorre com Poti, e torna a acontecer com Iracema, num final em que o trágico é atenuado. O indígena transfigura-se na terra natal, sobrevivendo na memória e na afetividade de seus descendentes, os brasileiros e cearenses contemporâneos, herdeiros daqueles personagens, tal como o próprio autor e seus presumíveis leitores. Por essa via, o regime discursivo inaugurado pela Independência, apartado inicialmente das categorias coloniais, vai de certo modo absorvê-las, modificadas, no imaginário do Segundo Reinado. Não se celebrava mais a morte trágica do indígena, nem puramente o seu renascimento colonial, mas sim o seu mimetismo e identificação com a paisagem tropical, a sua transformação em memória afetiva e o seu renascimento no mestiço tropical. “Ninguém excedeu José de Alencar no gosto e na eloquência de associar ao drama dos homens a exuberância de paisagens brasileiras”,73 escreveu Gilberto Freyre, ele mesmo um defensor das virtudes do mestiço e propugnador de uma ciência tropical. Há outro importante efeito a considerar em Iracema — a paisagem brasileira é pensada em termos de uma herança feminina. Raciocinando nos termos colocados por Alencar, Gilberto Freyre observou que, na composição social do Brasil, a “raça indígena (...) foi raça principalmente maternal”.74 Esposas, mães, Freyre, s.d., p. 10. Ibid., p. 14. Uma estimulante aplicação, numa perspectiva psicanalítica, desse argumento,embora sem qualquer referência ou conexão com o romance de Alencar, pode ser encontrada em Gambini (1999). 73 74

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avós e bisavós — é pela linha feminina quea maioria dos brasileiros atualizou seus vínculos genealógicos com os indígenas. Tal como as mulheres dentro de uma sociedade patriarcal e conservadora, nessa perspectiva, os índios, “quase vegetais”, sempre à margem da história, se fundiriam suavemente com o cenário local. ❚

Considerações nais

O objetivo deste capítulo foi refletir sobre as narrativas e imagens relativas aos indígenas produzidas no processo de formação da nacionalidade, o qual é aqui entendido como a construção de estruturas estatais, intelectuais, estéticas e afetivas levada a efeito no século XIX. Os esforços de constituição de uma história, uma identidade e uma cultura próprias, logo denominadas nacionais, levaram a uma sacralização cívica de personagens, obras e situações, erigidas numa memorabilia que seria o âmago institucional e simbólico da jovem nação. Os indígenas não estão sob o foco desses holofotes, mas limitados a sons quase inaudíveis, perdidos nas veredas do curioso, do exótico e do acidental. Inversamente, precisam ser capturados à contraluz, como sombras, ruídos e o não dito. As imagens e narrativas produzidas sobre os indígenas não são uniformes, nem remetem a uma representação única. Nunca fabricadas por eles, mas por um seu duplo — um outro (sempre mutável e distinto) —, elas propiciam discursos bastante diferenciados e até antagônicos entre si, bem como servem a finalidades que podem contradizer-se.75 As narrativas e imagens são postas a circular socialmente e tornam-se hegemônicas quando dão significado a experiências intelectuais e afetivas não apenas de seu autor,quando atingem um campo mais amplo de atores e instituições, saindo do circuito de criadores e especialistas, chegando ao público virtual de uma sociedade ou de uma época, transformando em capilaridade aquilo que Benjamin chamou de “corveia anônima”. A transmissão de um saber para outro contexto histórico, no entanto, não é um fato mecânico, nem produto exclusivo de estruturas inertes e inconscientes, mas passa pelo crivo de criadores, críticos e públicos que seguramente irão lhes imprimir novos significados. E estes, por vezes, são opostos aos anteriores, 75 Tal como observou Said (1990) no caso do orientalismo, os sentidos de que se supõe o índio ser portador lhe foram atribuídos por outrem, refletindo primordialmente as formas de pensar e os interesses (variáveis) destes últimos.

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embora frequentemente sejam reapresentados sob o signo de uma pura continuidade pelos que pretendem assim conferir às suas próprias interpretações uma sugestão de permanência e de naturalidade. Num primeiro momento, para se pensar a singularidade da nação, os indígenas vieram a ocupar um lugar saliente em representações engendradas nas camadas populares e depois nos círculos eruditos. Logo, porém, aí se penduraram ganchos que, por meio feixes de significados, operamo os efeitos de esquecimento. Vimos assim, nasdepáginas anteriores, não apenas nativismo extremado que acompanhou as lutas da Independência, mas também a nobreza idealizada atribuída aos indígenas, entrelaçada com os interesses e ambiguidades do Segundo Reinado. Se o índio chega a ser um extravagante símbolo da nacionalidade, como na escultura de Francisco Manuel Chaves Pinheiro intitulada “Alegoria do Império do Brasil” (1872), nas produções em que a memória coletiva começa a ser efetivamente institucionalizada e publicizada, o indígena passa a ser visto como testemunha eventual e passiva da história, como ocorreu no quadro da primeira missa. A morte, tema tão frequente e importante para o romantismo e para o século XIX, torna-se igualmente um tropos fundamental para se pensar o indígena. Na forma de apresentar a morte do índio se manifestam também diferenças nos modos de se conceber a morte de outros num mesmo período histórico.



“Alegoria do Império do Brasil” (1872) de Francisco Manuel Chaves Pinheiro. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Minc., RJ.

A primeira é a morte gloriosa, que esteve associada à lírica do nativismo e ao indianismo de Gonçalves Dias. Os mais corajosos guerreiros a têm como o mais elevado fim, pois reafirmam os valores individuais e grupais, assegurando a continuidade da vida social. É uma morte sempre a imitar, exemplar, ritualizada, plena de sentido, antecipada, sabida e pública, enquadrando-se na modalidade que Ariès (1975:28) chama de apprivoisé. Se na visão colonial o destino do indígena é o seu renascimento como cristão, um ato perpetrado pelo braço

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colonizador, aqui tudo se inverte, e é o indígena por si mesmo e por sua cultura que irá alcançar a imortalidade, sendo a intervenção externa apenas logro e rapina. Quando esteve associada ao nativismo, o relato da morte do indígena assume um tom fortemente apocalíptico e maniqueísta (“aos crimes das nações Deus não perdoa”). O discurso do indigenismo militante da segunda metade do século XX, embora muito raramente se reporte ao indianismo, é caudatário das narrativas e imagens a essa que primeira modalidade morte.esmero na A segunda é a associadas morte trágica, se expressou comdemuito pintura acadêmica, mas também na narrativa sobre Peri, musicada, encenada e levada ao teatro pela ópera O guarani, de Carlos Gomes. Tal é, sem dúvida, a modalidade de morte que se inicia no XVIII e acompanha o longo século XIX, e que Ariès denominou, por seus componentes de estupor, sofrimento e dramaticidade, “a morte do outro”. Aqui não entram elementos de continuidade, é a morte em seu aspecto final, derradeiro. A utilização do nu é um meio de exibir a visceralidade desse sofrimento. Nas personagens femininas, como Moema e Lindoia, isso é relativamente atenuado por soluções estéticas, mas exacerbado ao extremo na personagem masculina. O vencido e moribundo tamoio de Rodolfo Amoedo, explicitamente intitulado “o último”, é a exibição crua da incompatibilidade do indígena com a colonização, bem como da inocuidade dos esforços humanitários para salvá-lo de um inevitável desaparecimento. A tragédia indígena ou é recuperada apenas para falar de sofrimentos universais, ou é particularizada como um destino inexorável, que não acarreta culpas nem evoca fortes lembranças, numa representação muito disseminada no senso comum. A terceira, cujo emblema indiscutivelmente é Iracema, é uma morte quase vegetal, que em certos aspectos mais lembra uma adaptação simbiótica ou o fototropismo, pois não implica ruptura violenta nem constrangimentos reais ou rituais. Dela resulta um ser novo, não um híbrido (como o “Marabá” de Gonçalves Dias), nem o puro espelho indígena do colonizador (o “índio cristianizado” do antigo mundo colonial, que era levado a esquecer e rejeitar suas srcens pagãs). O que daí brota é o senhor e amante daquela natureza, herdeiro de direitos e de títulos por linha paterna, de obrigações e sentimentos pelo lado materno. A singularidade desse personagem irá decorrer do reconhecimento dessa dupla herança, pautada pelos cânones europeus em seu projeto civilizatório, mas carregada de nostalgia pela paisagem de sua terra-mãe. Joaquim Nabuco (1966:87) apontava um sofrido paradoxo vivido pela elite brasileira (no Império e depois na República Velha), pelo qual “o sentimento em nós é

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brasileiro, a imaginação é europeia”. Para “uma ilha de letrados” que governava “um mar de analfabetos,”76 Iracema era a imagem que tornava indizível a morte do indígena, enquanto acionava uma operação metonímica que permitia falar da importância e da beleza das origens autóctones. As muitas e celebradas mortes dos indígenas, através dos seis feixes de significados aqui analisados, engendraram efeitos sociais que implicaram uma modalidade peculiar de esquecimento, subjacente ao processo de formação de uma identidade nacional. Elas constituem o substrato de uma crença comum e muito arraigada de que o índio é objeto de uma história que antecedeu o Brasil e lhe é visceralmente estranha. É por isso que as narrativas e imagens de indígenas que não se enquadraram diretamente no estereótipo colonial do “índio bravo” foram condenadas a um regime de invisibilidade e tiveram sua existência questionada ou sua legitimidade rechaçada. Com exceção de antropólogos, indigenistas ou dos próprios indígenas, que formam suas convicções a partir de uma experiência direta (a qual tomam como base para as suas generalizações), todos os demais atores sociais concebem o indígena através das ferramentas narrativas e visuais que consideramos anteriormente. Somente os fatos históricos da atualidade, com o ressurgimento de reivindicações étnicas e mobilizações indígenas em muitas regiões de colonização antiga, no Nordeste, no Centro-Oeste e na Amazônia, é que estão colocando em xeque tais discursos e as certezas que os sustentam.77 As próprias estratégias indígenas terão que necessariamente lidar com aqueles modos de pensar, construindo argumentos contra os preconceitos que destilam e explorando as suas mútuas contradições. Com a República e a implantação do indigenismo rondoniano, pautado pela doutrina do positivismo comtiano, os índios não mais seriam representados unicamente da forma que acima consideramos,mas como testemunhas de etapas rudimentares da humanidade que necessitam de proteção e tutela. A partir de então eles habitariam apenas nos limites extremos do país, nas lonjuras agrestes das chapadas e florestas.Com eles se iria igualmente reviver o mito do descobrimento. Sem cruzes, mas sob a tutela estatal, o Brasil caminharia para a conquista e incorporação do interior. Novas tecnologias e meios de comunicação seriam acionados: as imagens não correspondem mais a registros em telas, mas a filmes

76 77

Carvalho, 1996:55. Oliveira, 2004.

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78 e fotos; as narrativas não fluem de romances, mas de reportagens e entrevistas. Somente nessas fronteiras, assim como no passado mais distante, o índio ainda poderia ser encontrado, segundo tal perspectiva. A tutela jurídica e administrativa, associada a feixes de significados antigos e novos, viria a configurar um outro regime discursivo — o que deve ser objeto de outro exercício analítico.



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13 ❚

Terras de quilombo: identidade étnica e os caminhos do

reconhecimento Eliane Cantarino O’Dwyer

No Brasil, a autoatribuição de identidades étnicas é uma questão que ganhou importância nos últimos anos com a organização política de grupos que reivindicam o reconhecimento dos territórios por eles ocupados, como é caso dos povos indígenas e das chamadas comunidades remanescentes de quilombos. A partir da Constituição Brasileira de 1988, o termo quilombo, antes de uso quase restrito a historiadores e referido ao nosso passado como nação, adquire uma significação atualizada, ao ser inscrito no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para conferir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro. Quilombo ou remanescente de quilombo, termos usados para conferir direitos territoriais, permitem,“através de várias aproximações, desenhar uma cartografia inédita na atualidade, reinventando novas figuras do social”.1 Assim, a construção de uma identidade srcinária dos quilombos torna-se uma referência atualizada em diferentes situações sociais nas quais os grupos se mobilizam e orientam suas ações pela aplicação do art. 68 do ADCT. Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), fundada em 1955, tiveram papel decisivo no questionamento de noções baseadas em julgamentos arbitrár ios, como a de remanescente de quilombo , 1

Revel, 1989.

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ao mostrarem a necessidade de os fatos serem percebidos a partir de outra dimensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que pretendem, em suas ações, a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal. Para tanto, usaram os materiais de pesquisa etnográfica e as reflexões antropológicas sobre etnicidade, grupos étnicos e construção das diferenças culturais como temas de debate nesse campo de aplicação dos direitos constitucionais. As definições podem servir de instrumento de legitimação das posições assumidas no campo propriamente político, mas, como numa via de mão dupla, a emergência de uma identidade étnica “remanescente de quilombo”, referida a uma srcem comum presumida de grupos que orientam suas ações pela aplicação do preceito constitucional (art. 68 do ADCT), tem igualmente fomentado debates de natureza teórica e metodológica no campo da antropologia praticada não apenas no Brasil. Na perspectiva dos antropólogos reunidos no grupo de trabalho Terra de Quilombo,da ABA, a etnicidade refere-se aos aspectos das relações entre grupos que consideram a si próprios e são também por outros considerados com o distintos. Do ponto de vista da interação, o processo de identificação étnica se constrói de modo contrastivo,isto é, pela afirmação do nós diante dos outros.2 Assim, a partir de Barth (1969), as diferenças culturais adquirem um elemento étnico não como modo de vida exclusivo e tipicamente característico de um grupo, mas quando as diferenças culturais são percebidas como importantes e socialmente relevantes para os próprios atores sociais. No caso das chamadas comunidades negras rurais no Brasil, tais diferenças culturais costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos, que por sua vez podem ser relacionados com racismo e discriminação. Usado analiticamente pela antropologia, o conceito de estereótipo se refere à criação e aplicação de noções padronizadas de distintividade cultural de um grupo e também de diferenças de poder.3 ❚

Da “pouca” contrastividad de quilombos no Brasil e cultural das comunidades

Há uma outra visão que reúne alguns antropólogos e historiadores que usam como modelo as pesquisas sobre o Suriname e as comunidades quilombo2 3

Oliveira, 1976. Er iksen, 1998.

Terras de quilombo



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las caribenhas. O antropólogo Richard Price (2000:260) destaca que “os remanescentes de quilombos de Rio das Rãs são caracterizados com retórica que parece mais apropriada a quilombolas do Suriname ou da Jamaica tanto enquanto ‘marrons’ quanto como ‘guerreiros da liberdade’” e distingue tal abordagem daquela que reúne igualmente antropólogos brasileiros em torno do “processo de ressemantização da palavra quilombo para designar os segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil (...) [e que têm um] sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico”. Ao concordarmos com esse autor que “a situação dos remanescentes de quilombos e dos quilombolas surinameses sejam diferentes em muitos aspectos” para que estes últimos possam ser usados como “modelos explícitos ou implícitos” de análise, e deixando de levar em conta argumentos importantes apontados no texto citado, gostaríamos de destacar certas passagens nas quais é abordada a “pouca” contrastividade cultural das comunidades de quilombos no Brasil. Segundo uma abordagem mais geral da historiografia, apesar da existência de centenas de comunidades quilombolas [formadas] durante o período da escravidão, incluindo, é claro, o grande Quilombo dos Palmares, século XVII, o Brasil de hoje não abriga os tipos de sociedades quilombolas — com evidente continuidade histórica das comunidades rebeldes do tempo da escravidão, e com profunda consciência histórica e organização política semi-independente — que ainda florescem em outras partes das Américas (Jamaica, Suriname, Guiana Francesa e Colômbia).4

Desse modo, os quilombos foram destruídos bem antes da abolição da escravatura, e as classes dominantes do Brasil tiveram especial sucesso na destruição das centenas ou, mais possivelmente,milhares de quilombos históricos. Por ocasião da abolição, a grande maioria dos quilombos que ainda existiam eram recém-formados e muitos deles 5 se mesclaram, posteriormente, às populações de seu entorno.

4 5

Price, 2000:248. Ibid., p. 248-249.

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De acordo com tal perspectiva, as chamadas comunidades negras rurais e/ou as “terras de preto” do estado do Maranhão foram formadas anteriormente à abolição, com a decadência das fazendas e plantações de algodão, algumas como resultado de doações de terra por senhores a ex-escravos, outras compradas por escravos doações de terras6 a escravos que serviram no Exército em tempo delibertos, guerra, ou como a do Paraguai.

Segundo os argumentos desse autor, “um caso contrastante ocorre na área conhecida como ‘Guiana Brasileira’, entre a fronteira do Suriname e o Amazonas, que foi outrora abrigo para um grande número de quilombos, em geral chamados de mocambos nesta região”.7 Nesse caso, as comunidades quilombolas do Baixo Amazonas se parecem, então, com as do Suriname tanto histórica quanto geograficamente — por volta de 1800, por exemplo, eles podem ter compartilhado muitas características —, mas, ao mesmo tempo, em termos do que se tornaram hoje, diferem delas claramente, (...) tendo vivido as da “Guiana Brasileira” rupturas e deslocamentos bastante frequentes para que sua “continuidade” enquanto comunidades date apenas dasegunda metade do séculopassado.8

Por conseguinte, mesmo nessas “comunidades de quilombo” da fronteira amazônica, definidas como formadas por escravos fugidos, de acordo com a documentação histórica disponível, “as semelhanças principais — em tudo, da organização religiosa à social — com outras comunidades rurais brasileiras” são então explicadas por uma ausência de continuidade, de longa duração, do tipo de passado quilombola vivido pelos Saramaka do Suriname. O autor se declara ainda chocado com a falta de tradições orais profundas, como no caso do “quilombo” Rio das Rãs (Bahia), e faz referência a uma vasta gama de continuidades culturais com outras comunidades rurais brasileiras, o que contrasta com os exemplos de quilombos que sustentam sua “diferença” em relação às comunidades não quilombolas, como no Suriname. Enfim, essa visão aponta para a pouca Price, 2000:249. Ibid., p. 259. 8 Ibid., p. 257. 6 7

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contrastividade cultural e pouca “continuidade” no tempo das comunidades de quilombo no Brasil. Desse modo, no Suriname é evidente uma notável “diferença” cultural, social e política, até mesmo para o olhar mais desavisado. Nessa perspectiva, poucos dos afro-brasileiros classificados como “remanescentes de quilombos” seriam vistos como quilombolas, como é o caso dos Saramaka, Ndyuka e Aluku do Suriname, dos Mooretown e Accompong da Jamaica, e dos Palenqueros de San Basilio, na Colômbia. Tal visão a respeito da pouca contrastividade cultural e pouca continuidade no tempo dos quilombos no Brasil, em contraposição à América Latina, pode ser relacionada ao paradigma africano das etnias. Contudo, também no caso do continente africano, os pesquisadores têm demonstrado que a definição clássica de etnia como universo fechado, igual à concepção historiográfica e de continuidade cultural dos quilombos, não pode se aplicar a vários povos, como no caso dos Somba do norte de Benim. Desse modo, também no caso africano, ao contrário de conceber as etnias como universos fechados, situados uns ao lado dos outros (como bolas numa mesa de bilhar), os sistemas políticos précoloniais como entidades claramente separadas, as concepções religiosas como mundos bem delimitados, as novas pesquisas têm enfocado as inter-relações e os entrelaçamentos, acentuando as relações e a fronteira enquanto matriz das formações políticas africanas. Se as populações anteriormente sem Estado responderam favoravelmente à imagem que os colonizadores tinham delas é sem dúvida porque tais populações já se inscreviam em um quadro de relações que incluem o Estado como um dos seus elementos próximos ou distantes. O denominador comum de todas essas definições de etnia na África corresponde em definitivo a um Estado-nação de caráter territorial. Distinguir (...) era bem a preocupação do pensamento colonial, assim como encontrar um “chefe”, no seio do amálgama de populações residentes no país conquistado, encontrar entidades específicas (necessárias à governabilidade). No entanto, constata-se que as realidades étnicas africanas, como o bizâncio negro, estão imbricadas em conjuntos mais vastos, e que a unidade cultural é também mais vasta que a tribal.9

9

Amselle, 1999.

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As etnias na África, como afirma Amselle, procedem da ação do colonizador que, no seu intento de territorializar o continente africano, discriminou entidades étnicas que foram em seguida reapropriadas pelas populações. Desse modo, a etnia, como numerosas instituições pretensamente primitivas, constitui mais um falso arcaísmo.10 O próprio uso de etnônimos (termos de autodesignação dos grupos) remete submissão das do populações dessas regiões aos franceses — por exemplo, termoà Beté , da Costa Marfim (Dozon), que significa “perdão” e foi aplicadoo pela administração colonial a um território arbitrariamente dividido por ela no seio de um contínuo cultural. Os etnônimos podem ser considerados como uma gama de elementos que os atores sociais hoje utilizam para enfrentar as diferentes situações políticas que se lhes apresentam, servindo assim como signos de reconhecimento. Além disso, um etnônimo pode receber uma multiplicidade de sentidos em função das épocas; portanto, não se deve considerar que tal modo de identificação exista eternamente, e sim que sua utilização é de natureza performativa, para, assim, estabelecer os usos sociais do termo.11

O mesmo se pode dizer de “quilombo”, no caso brasileiro. Na África, a utilização recorrente de taxionomias étnicas marca bem a continuidade existente entre a política do Estado pré-colonial e do Estado colonial. Nos dois casos, um mesmo projeto preside o processo de territorialização: reagrupar as populações e designá-las por categorias comuns, a fim de melhor controlá-las. A colonização instaurou novas divisões territoriais, isto é, promoveu o fracionamento dessa economia-mundo que constituía a África pré-colonial em uma miríade de pequenos espaços sociais que são erigidos em raças, tribos, etnias. Enquanto, antes da colonização, esses espaços estavam imbricados no interior de encadeamentos de sociedades, com a conquista assistimos a uma empresa de desarticulação das relações entre as sociedades locais. Chamadas a se situarem em relação a espaços novos, isto é, um espaço estatal colonial e pós-colonial, as diferentes regiões reivindicarão como signos distintivos os nomes inventados ou transpostos pela 10 11

Amselle, 1999:29. Ibid., p. 36-37.

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colonização colonial. A vontade de afirmação étnica aparecerá como um meio de resistência à pressão de regiões concorrentes, e a luta dentro do aparelho de Estado tomará a forma de tribalismo.12

Esse debate delineado em linhas gerais “esquenta” questões teóricas e metodológicas da prática da pesquisa antropológica no Brasil junto às comunidades afrodescendentes. Contudo, não é preciso “identificar etnicidade como propriedade de grupos culturais”,13 como parecem fazer os defensores da tese que aponta para a pouca contrastividade cultural dos quilombos no Brasil.As abordagens de Barth, Eidheim e outros, ao conceituarem “etnicidade como um tipo de processo social no qual as noções de diferença cultural são comunicadas”,14 têm informado nossas reflexões sobre os grupos que orientam suas ações pelo reconhecimento territorial das áreas por eles ocupadas e que fazem uso do termo remanescente de quilombo, inscrito na legislação, como gancho no qual penduram os signos étnicos carregados de metáforas, inclusive biológicas, e referidos a uma afirmação positiva dos estereótipos de uma identidade racial, para reivindicar ao Estado brasileiro os direitos de uma cidadania diferenciada. ❚

Critérios de pertencimento territorial e a produção das

diferenças culturais Gostaria, ainda, de confrontar os modelos utilizados pelos pesquisadores com os critérios de pertencimento territorial e a produção das diferenças culturais pelos próprios atores sociais, a partir da minha experiência de pesquisa. As comunidades remanescentes de quilombos têm realizado, por meio da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO), a titulação coletiva das suas áreas de ocupação, seguindo a prática de uso comum do território para atividades extrativistas e produção familiar de subsistência. Esse procedimento passou a servir de modelo para a ação coletiva das comunidades de “ribeirinhos” que não se definem pela procedência comum Amselle, 1999:38-39. Er iksen, 1991:61. 14 Ibid. p. 62. 12 13

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dos quilombos e encontram-se organizados no Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Oriximiná. Apesar das semelhanças que as identificam com as formas de territorialização coletiva das comunidades negras rurais e com a defesa de interesses comuns relativamente ao reconhecimento dos seus territórios, as populações tradicionais ribeirinhas de Oriximiná (Pará), por meio de seus representantes eosalguns de seus membros, consideram-se muitopor diferentes. Nesse chamados “remanescentes” são reconhecidos eles como um contexto, “povo da floresta”. Esse tipo de atribuição de “traços e emblemas diagnósticos”, 15 por parte daqueles com quem interagem, se por um lado expressa julgamentos etnocêntricos, por outro representa uma forma positiva de identificação. Costumam comentar, os chamados “colonos ribeirinhos”, que “esses negros são todos preguiçosos; com esse monte de terra, e eles não plantam nada”. Para os trabalhadores ribeirinhos, os “negros”, como dizem, não têm uma produção fixa, a não ser a castanha: “são mais extrativistas mesmo; você chega à casa de um negro, praticamente é dentro da mata”. Contudo, a partir da história da preservação da Amazônia, segundo suas próprias explicações, passaram a reconhecer que os negros fizeram o papel deles, preservando melhor do que ninguém essa floresta. Estabelecem, ainda, outra distinção entre eles quanto ao comportamento em contexto urbano, dizendo que na sociedade moderna de Oriximiná — leia-se a vida que levam na cidade — os “negros” são discr iminados; diferentemente dos “colonos r ibeirinhos”, que preferem se aglomerar e misturar, os “negros” continuam unidos e preferem morar mais isolados, no alto dos rios. Trata-se, portanto, de “unidades em contraste” que se consideram diferentes em ter mos de subsistência e das interações que promov em no núcleo urbano. Os direitos constitucionais não são os mesmos para as comunidades “remanescentes de quilombo”, que reivindicam a aplicação do art. 68 do ADCT, e as comunidades de “colonos ribeirinhos”, que buscam formas alternativas para o reconhecimento de suas terras, e as distinções emergem nesse contexto de luta pela titulação coletiva. Pois não é só pela procedência comum, pelo uso da terra e dos recursos ambientais e pela ancianidade da ocupação de um território co-

15

Nagata, 1973.

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mum que as comunidades negras rurais “remanescentes de quilombo” diferenciam-se e invocam seus direitos constitucionais. Na chamada “região interior” desse universo social, o domínio que exercem sobre o território é simbolizado por meio dos relatos sobre os dois mais famosos e reconhecidos curadores ou “sacacas”, conforme o termo usado, ambos do rio Erepecuru: o primeiro, de nome Balduíno, viveu até os anos 1970, e o segundo, Chico Melo, que o sucedeu nestes últimos 20 anos, também falecido.— relatos de curas, possessões Balduíno é citado por seus feitosjánotáveis e previsões desconcertantes sobre o futuro, como o surg imento de uma grande cidade iluminada dentro da floresta, que é hoje Porto Trombetas, cidade industrial construída pela Mineração Rio do Norte, empresa de extração mineral da bauxita. Os “sacacas” aprenderam a curar com a natureza, com as ervas que descobriam ficando dias e dias embrenhados na floresta, ou nas viagens ao fundo dos rios. Chico Melo era famoso também por descobrir o paradeiro das pessoas e agir para que mudassem seus destinos e voltassem para o convívio das famílias. Esse “imbricado complexo de terras e direitos” 16 é simbolicamente construído como um território unificado sob o controle de uma população, por meio dos seus “sacacas”. Pode-se dizer que esse tipo de conhecimento que eles têm do território, dos seus bens e seres naturais, atribuído pelos membros dos grupos “remanescentes de quilombo”, assim como os grandes deslocamentos espaciais dos “sacacas” (Balduíno era visto deslizando os pés nas águas do rio à velocidade das chamadas lanchas “voadeiras”) e sua prática itinerante permitem, ao mesmo tempo, a produção de um único território, pertencente às comunidades remanescentes de quilombo do Trombetas e Erepecuru-Cuminá, e da legitimidade do domínio que sobre eles reivindicam e, de fato, exercem. A crença em mundos paralelos habitados por seres sobrenaturais e o domínio desse espaço adquirido pelos “sacacas”, inclusive no uso dos recursos naturais e das potências que os ultrapassam em suas práticas terapêuticas, permitem a construção do território como uma totalidade simbólica que define as fronteiras do grupo. Assim, os “aspectos fundiários” são igualmente transpostos na delimitação de um território por “códigos culturais específicos”.17 16 17

Revel, 1989. Oliveira, 1998.

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Diferenças que fazem toda a diferença?

É possível aplicar o termo etnicidade com referência ao processo de construção de fronteiras territoriais anteriormente descrito, com base em crenças e sentimentos religiosos compartilhados pelas “comunidades remanescentes de quilombo” dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá. Afinal, a etnicidade definida hoje pela disciplina antropologia faz referência à reprodução social de diferenças classificatórias entre categorias autodefinidas de pessoas e grupos na interação social e que envolve a comunicação entre elas de distintividade cultural. “A etnicidade é considerada, ainda,fundamentalmente dual e abrange ambos aspectos, tanto de significado quanto de política.”18 Na situação etnográfica das chamadas comunidades negras rurais do município de Oriximiná, a etnicidade está associada ao fenótipo, ao modo de vida ou habitus, à origem comum presumida do tempo da escravidão e das fugas para os quilombos, e também ao aspecto da religiosidade. Assim, no caso das crenças e práticas religiosas dos “sacacas” que participam na construção das diferenças culturais entre os chamados “colonos ribeirinhos” e os “remanescentes de quilombo”, é possível constituí-las como uma dimensão significativa e estratégica da etnicidade, signo da identidade étnica desses grupos que reivindicam o reconhecimento de uma cidadania diferenciada. Tais símbolos, contudo, podem ser contestados pelos defensores de uma abordagem que invoque como marca da etnicidade as diferenças que podem fazer a diferença como exclusivas e tipicamente características de um grupo, pois as diferenças culturais consideradas a partir do domínio religioso são igualmente compartilhadas pela população ribeirinha e fazem parte, como diz o antropólogo Eduardo Galvão (1976), de uma “cultura regional” que distingue o “habitante rural da Amazônia” de outras regiões brasileiras. A concepção do universo pelo chamado “caboclo” de Itá, como da Amazônia em geral, está relacionada ao processo de fusão dos elementos representados porameríndio. “duas tradições”: a “ibérica” e as “ideias e crenças derivam do ancestral Ambas supriram o material básico de que que evolveu a forma 19 contemporânea da religião do caboclo amazônico”. De acordo com Galvão (1976:3), “o catolicismo do caboclo amazônico é marcado pela acentuada de18 19

Er iksen, 1998. Galvão, 1976:3.

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voção aos santos padroeiros da localidade e a um pequeno número de santos de devoção identificados à comunidade”, em honra dos quais são organizados cultos e festividades. Essa ênfase no culto dos santos não constitui uma “característica exclusiva da religião do caboclo da Amazônia”, segundo aquele autor, “dada a difusão dessas instituições em outras áreas brasileiras”.20 Nesse caso, “uma característica regional é a forte influência ameríndia, que se revela em crenças e práticas religiosas dessa srcem”, entre as quais Galvão registra os seres que habitam a mata: currupiras, anhangás, “visagens”, na fala regional, que ora surgem sob a forma de um pássaro, ora como simples aparição sem aspecto definido; à cobra grande, que aparece como sucuriju de grande porte (...) ao matintaperera e aos botos que se acredita serem encantados e possam se transformar em seres humanos.21

Dessa extensa lista fazem parte os “companheiros de fundo”, “encantados” que habitam o fundo dos rios e igarapés, as “mães de bicho”, entidades protetoras da vida animal e vegetal. Além disso, “muitos outros sobrenaturais a que o caboclo denomina genericamente bichos visagentos, em geral associados a um acidente natural, o rio, o igarapé, ou um trecho da mata”.22 As descrições de Galvão ao longo do livro, referentes aos pajés sacacas que possuem poderes especiais e viajam pelo fundo da água, às “práticas mágicas” usadas no tratamento de enfermos ou, ainda, ao poder de adivinhar ou prever dos sacacas , correspondem ao tipo de dados etnográficos coligidos na realização de trabalho de campo nas comunidades remanescentes de quilombo de Oriximiná desde 1992. Também a iniciação de Chico Melo pelo sacaca mais poderoso dos rios Trombetas e Erepecuru, de nome Balduíno, assim como as crenças em feitiçaria e o uso do espelho nas práticas divinatórias f azem parte do sistema religioso como um aspecto da cultura e tradição amazônicas. Galvão adverte que, apesar de justificável a preocupação com as srcens, “igualmente, se não mais, o é compreendê-las no seu papel na vida religiosa

Galvão, 1976:4. Ibid. 22 Ibid. 20 21

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contemporânea”.23 Assim, ele critica a busca incessante de srcens, como no caso do conceito de encantado, que “entremeia as descrições de sobrenaturais de srcem indígena e é, em muitos casos, um empréstimo europeu”.24 O mesmo ocorre com o conceito de mãe, em que se acredita que “cada espécie possui a sua mãe, a mãe do bicho, entidade protetora que castiga àqueles que matam muitos animais. (...) Também os acidentes geográficos têmmãe, os rios, os igarapés, 25

as lagoas, osapoços e até osque portos onde atracam as canoas” , e poderíamos aí acrescentar mãe cachoeira é cantada em prosa e verso pelos membros das comunidades remanescentes de quilombo de Oriximiná. Sobre a crença em mães de “bichos” ou de “coisas”, Galvão (1976:77) considera que o conceito de mães poderia ser atribuído à influência dos escravos africanos que trouxeram para o Brasil a crença em um número de entidades femininas, como Iemanjá, as quais no processo de sincretismo foram identificadas a entidades cristãs, (...) em que pesou a influência do africano e do português, sobre crenças do indígena.

O autor constata ainda a influência recente sobre a pajelança e as manifestações religiosas comuns nas cidades da Amazônia, os chamados cultos caboclos ou dos terreiros de minas, segundo ele de influência sobretudo africana, que se espalham pela zona rural e são igualmente influenciados pelos pajés sacacas, or iginários da zona rural, que migram e mantêm network com as cidades de Belém, Santarém e Manaus. A situação etnográfica da pesquisa que desenvolvo nas chamadas comunidades negras rurais remanescentes de quilombo de Oriximiná, em tudo comparável aos dados e argumentos do referido estudo sobre a vida religiosa de uma comunidade amazônica, não permite empreender,tomando por base a religiosidade compartilhada por esses grupos sociais, nenhuma análise antropológica que aponte as diferenças religiosas que durante a pesquisa de campo foram invocadas na construção do território comum e das fronteiras étnicas dos remanescentes de quilombo dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá como uma característica que faz toda a diferença, isto é, uma especificidade cultural desses grupos. Galvão, 1976:66 Ibid. 25 Ibid., p. 77 23 24

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África no Brasil?

Tal visão a respeito da pouca contrastividade cultural e pouca continuidade no tempo dos quilombos no Brasil, em contraposição à América Latina, pode estar relacionada ao paradigma africano das etnias, como já dito, e também da herança de culturas negras srcinárias no Novo Mundo, representada pelos “africanismos sobreviventes no Brasil”.26 Do ponto de vista dos estudos empreendidos por Nina Rodrigues e Roger Bastide, a persistência das culturas africanas no Brasil, no caso das chamadas comunidades negras rurais, tem sido contestada inclusive no domínio religioso, pois, segundo esses autores, “os quilombos não apresentavam qualquer elemento sociocultural que evocasse as sociedades africanas, nem mesmo um eco dos seus sistemas religiosos, diferentemente do que era observado nos cultos de possessão”.27 Assim, enquanto “os membros de cultos de possessão urbanos ditos afro-brasileiros tendem a reivindicar uma continuidade simbólica e espiritual com os sistemas religiosos africanos, os grupos de descendentes de quilombos (...) se afirmam como herdeiros da resistência ao sistema escravagista”.28 No artigo intitulado “Quilombolas e evangélicos: uma incompatibilidade identitária?”, Véronique Boyer, ao se referir à etnicidade dascomunidades negras rurais, constata que as análises contemporâneas de antropólogos e historiadores brasileiros têm se mostrado “incapazes de estabelecer as bases da especificidade siciocultural das populações negras rurais”.29 Essa questão é levantada pela autora para enfocar o domínio da religiosidade das “comunidades negras no médio Amazonas”, como no caso de Silêncio do Mata, no município de Óbidos, que sustenta uma ação política e constrói uma identidade positiva de “quilombola”, informada pelo discurso militante, valendo-se da tradição católica do culto dos santos, como São Benedito,santo negro e patrono do lugar,cuja festa é também “designada pelo vocábulo Aiuê, evocando para alguns uma srcem africana”. 30 Alguns membros dessa comunidade, rompendo com a tradição católica, converteram-se ao movimento evangélico e deixaram de participar das reuniões da Ramos, 2005. Boyer, 2002. 28 Ibid., p. 162. 29 Ibid., p. 164. 30 Ibid., p. 170. 26 27

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associação quilombola do Silêncio do Mata. De acordo com o artigo citado, “a existência de uma congregação evangélica, ao introduzir novas crenças e criar novas fidelidades, constitui assim o tendão de Aquiles de um grupo que deve se afirmar como comunidade negra rural, uma categoria essencial do discurso político (...) referindo-se aos interesses coletivos a defender”.31 Desse modo,“o exemplo do Silêncio mostra como pessoas têm recorrido a um sistema religioso exterior exprimir elementos seu desacordo comreligião uma ação que toma(dos de evangélicos) empréstimo, para ela também, de uma (o política catolicismo) para construir sua legitimidade”. Na continuação do argumento, a antropóloga constata que tal incompatibilidade, que parece no momento insuperável, não representa uma recusa dos crentes de serem quilombolas. “Simplesmente eles não aceitam as modalidades de sua atual definição”.32 ❚

Nova conguração étnica e política na relação com o

Estado brasileiro Dos debates sobre a conceituação de quilombo e a aplicação do preceito constitucional (art. 68 do ADCT) participam igualmente procuradores, advogados, juristas e representantes do Legislativo. Em 20 de novembro de 2003, o governo brasileiro promulgou o Decreto no 4.887, que não prevê a elaboração de estudos antropológicos no processo de identificação territorial das comunidades remanescentes de quilombos pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Incra.33 Como o decreto está fundamentado na Convenção no 169 da OIT, segundo a qual é a consciência da identidade que deve ser considerada critério fundamental para a identificação dos povos indígenas e tribais, a participação de antropólogos no processo foi descartada porque não mais seriam necessários relatórios antropológicos “atestando” a identidade quilombola dos grupos que reivindicam a aplicação do art. 68 da Constituição Federal. A ABA, presente na audiência pública antes da promulgação do decreto, defendeu que a autodefinição utilizada pelos próprios atores sociais não presBoyer, 2002:172-173. Ibid., p. 173. 33 Oficialmente, o governo brasileiro tem mapeadas 743 comunidades remanescentes de quilombos, segundo dados de 2003. Atualmente, dizem que são mais de 2 mil. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma população estimada em 2 milhões de pessoas. Em 15 anos, porém, somente 71 dessas áreas foram tituladas (ver Almeida, 2005:17). 31 32

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cinde da realização de estudos técnicos especializados que venham a descrever e interpretar a formação de identidades étnicas no bojo do processo de reconhecimento das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, desde que esses estudos tragam subsídios para uma decisão governamental e forneçam elementos para que o próprio grupo possa se defender de eventuais formas de intervenção estatal que possibilitem apenas a reprodução das categorias sociais, sem garantir as condições para a reprodução de padrões culturais,modos de vida e territorialidades específicas. No documento encaminhado pela ABA à Casa Civil da Presidência da República, após a audiência pública sobre o decreto, dizíamos que deixar por conta de uma futura ação judicial a defesa do ato de reconhecimento dos direitos constitucionais pelo Estado, como considerado por alguns representantes dos quilombolas e de agências governamentais, poderia representar uma enxurrada de questionamentos na esfera judicial, o que terminaria por impedir o cumprimento dos direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988. Após a promulgação do Decreto no 4.887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, o Partido da Frente Liberal (PFL),entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin no 3.239-9/600-DF) em face do referido decreto. Os pareceres sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria Geral da República e pela Advocacia Geral da União utilizam os argumentos contidos em livro da ABA34 na defesa daquele decreto, principalmente no que tange ao critério de autoatribuição, que tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação ou os também chamados laudos antropológicos no contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes de quilombos. Assim, a perspectiva antropológica adotada pela ABA torna-se um elemento fundamental na defesa do Decreto n o 4.887 e, por extensão, do próprio art. 68 do ADCT. Após a Adin impetrada pelo PFL, o MDA e o Incra contataram a ABA para novamente contarem com a participação de antropólogos nos processos de reconhecimento territorial das comunidades remanescentes

34

O’Dwyer, 2002.

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de quilombos e editaram a Portaria no 20, que prevê a elaboração de estudos e relatórios antropológicos. É preciso reconhecer que o conceito de grupo étnico usado nesse contexto de aplicação dos direitos constitucionais às comunidades remanescentes de quilombos tem levado a uma reificação das fronteiras e à substantivação desses grupos como totalidades bem-delimitadas, autônomas e autossuficientes, apesar de uma enchentea definição de dados etnográficos Contudo, prevalente érenitentes. que os grupos étnicos são entidades autodefinidas: as etnicidades demandam uma visão construída de dentro e não têm relações imperativas com qualquer critério objetivo.35



Considerações nais

O debate sobre a conceituação de quilombo tem alcançado foros mais amplos na mídia, se tomarmos como referência as matérias publicadas nas revistas História e Veja e em páginas da internet.36 Pode-se identificar nos diversos argumentos uma crítica aos novos significados que o termo quilombo tem assumido na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações, conforme já assinalado em documento elaborado pelo Grupo de Trabalho da ABA: Terra de Quilombo, em outubro de 1994. Observa-se também um consenso crítico entre os vários articulistas, que citam a opinião de “especialistas’’— historiadores, ambientalistas e outros — sobre os significados literais e empíricos de quilombo e remanescente de quilombo como lugar de escravo fugido. Mas, como diz Victor Turner (1974), quando aplicadas a fenômenos sociais e culturais, essas palavras não têm significado literal, e, sim, metafórico. No trabalho de campo para a elaboração dos relatórios antropológicos de identificação territorial das comunidades remanescentes de quilombo, os pesquisadores têm se deparado com situações sociais nas quais a identidade quilombola associada à autoidentificação étnica e racial de negro é utilizada como uma afirmação positiva no reconhecimento de si mesmo como ser social. Assim, Er iksen, 1991. Ver o site de Marcos Sá Corrêa e a matéria intitulada “Vitória de Pirro na Marambaia”. (). 35 36

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além do reconhecimento jurídico, há o reconhecimento como “ente moral”, e nesse caso, ainda segundo Roberto Cardoso de Oliveira (2006), a manifestação mais geral desse reconhecimento seria o respeito. Trata-se, pois, de uma luta dessas populações não apenas por ganhos materiais, mas também pela cidadania, traduzida como busca de respeitabilidade para si próprio, para seus valores e formas de ver o mundo. O movimento quilombola tem reivindicado, mais do que nunca, como imprescindível o reconhecimento, a demarcação e a titulação das chamadas comunidades remanescentes de quilombos. Assim, o chamado “destino rebelde” dos Saramakas do Suriname, dos Palenques da Colômbia e, por que não, dos quilombolas no Brasil pode representar novas fronteiras territoriais e políticas, construídas pela prática do pluralismo étnico, social e cultural e pelo reconhecimento de direitos diferenciados de cidadania. Por fim, a questão principal é saber se os grupos étnicos e sociais conseguirão, graças ao direito, à história e à antropologia, reproduzir e recriar formas organizacionais e padrões culturais que possam serpor eles vivenciados na prática. ❚

Referências

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14 ❚

Entre a reivindicação e a exotização: mobilidade étnica, agentes estatais e

políticas multiculturais na Colômbia* Marta Zambrano

A ostensiva mudança de rumos no projeto de nação proclamado pela Constituição de 1991 e sua colocação em prática têm provocado os elog ios de alguns estudiosos postularameque a Colômbia estariaLatina, na vanguarda adventoa do modeloque multicultural pluralista na América o qual do sepultaria emblemática nação mestiça e unitária que durante cerca de um século identificou a região. 1 A crescente visibilidade dos assuntos étnicos na América Latina parece ao mesmo tempo se encaixar num panorama de transformações mais amplas que comprometem a redefinição transnacional do campo político, expressas na guinada dos movimentos e reivindicações sociais, baseados em filiações e interesses de classe, para aqueles centrados nas identidades.2 Este capítulo entrelaça a guinada multicultural com a política, a fim de interrogar o conflitivo contexto social e econômico no qual opera a mobilidade étnica e identitária na Colômbia.tensões Examino reindigenização comodesigualdades uma arena onde revelam as entreososprocessos direitos de culturais e as crescentes que se abalam a sociedade colombiana. Em seguida, focalizarei os voláteis cenários da etnicidade

* Tradução de Ronald Polito. 1 Ver Assies (1999); e Gros (2000). 2 Ver Alvarez (1998); Benhabib (1999); e Fraser (1997).

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urbana, em particular o caso do cabildo (conselho) de Suba, em Bogotá, para verificar como as demandas por reconhecimento étnico e pelos direitos que o acompanham se debatem entre a reivindicação e a exotização. ❚

Colômbia e América Latina para o pluralismo

neoliberal Desde o final da década de 1980 e, sobretudo, na de 1990, a América Latina vem passando por um período de mudanças nas orientações dos Estados nacionais. Assim, tem-se destacado, por exemplo, a erosão do duradouro e poderoso projeto unitário da nação mestiça iniciado no século XIX e sua substituição por um modelo pluralista e includente.3 Nessa direção, mais de uma dezena de países reformaram ou sancionaram novas constituições que reconhecem a pluralidade dos componentes étnicos, linguísticos e, por vezes, religiosos de suas nações. A ruptura com o modelo de nação que a igualava à conjunção de um povo, uma língua e uma religião se inseriu por sua vez num conjunto de decisivas transformações. Não só se tornaram Estados-nação para acolher os pluralismos étnicos e para redimensionar a mestiçagem, mascirculação também se quando não cederam, aos renovados imperativos de doacomodaram, capital transnacional e às pressões dos bancos e dos organismos supranacionais. Combinadas, as pressões econômicas e as demandas sociais e étnicas promoveram conflitivos processos de descentralização e privatização, bem como renovadas modalidades de internacionalização. Em particular, as políticas de reconhecimento étnico têm sido sancionadas num momento de crescentes desigualdades sociais, crise econômica e conflitos políticos, de modo que é necessário examinar seu impacto tanto sobre os coletivos beneficiados quanto sobre aqueles agrupamentos que não foram favorecidos pelas políticas multiculturais, mas que sofreram os rigores da economia neoliberal: camponeses, classes subalternas e moradores de rua, outros. socioeconômica Sobretudo, cabe e,examinar a articulação entre odiferença cultural e entre desigualdade ao mesmo tempo,explorar problemático caráter do reconhecimento das diferenças culturais quando estas não são acompanhadas de uma ampliação da justiça distributiva.4 3 4

Gros, 2000. Fraser, 1997.

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A etnicidade e os direitos sociais na Colômbia

Na Colômbia, como em outros lugares, a guinada multicultural e a reorientação para as políticas que fortalecem as expressões da identidade dão conta do impacto dos novos movimentos sociais, em particular dos movimentos indígenas das décadas passadas, na cultura política e nas políticas públicas. 5 Em conjunção com outras mobilizações, baseadas em adscr ições a um lugar (o bairro, o distrito, o rio, a reserva) ou à filiação a grupos definidos sob categorias heterogêneas e díspares (indígenas, mulheres, afros, familiares de desaparecidos, plantadores de coca, entre outros), suas ações têm revelado o papel crucial de agentes coletivos antes ignorados. Mediante reivindicações outrora situadas em domínios excluídos do político e relegadas ao pr ivado ou ao marginal (a cultura, a família, a sexualidade, as relações de gênero, as atividades proscritas), têm contribuído para a redefinição do público, ampliando o conceito de cidadania, que transbordou da perspectiva liberal, fechada sobre os direitos políticos do indivíduo, para a inclusão de direitos sociais, culturais e coletivos. Contudo, quase não se tem examinado a relação entre produção e reconhecimento da diferença, formações de classe, desigualdades econômicas e os assuntos de justiça social. Aqui explorarei alguns desses aspectos, referentes, sobretudo, aos direitos étnicos. De uma parte, o reconhecimento multicultural tem caminhado para a justiça social. Desde a aprovação da Constituição de 1991, a legitimação dos direitos territoriais indígenas iniciada na década de 1980 se consolidou. Um pouco mais da quarta parte do território nacional (31,3 milhões de hectares) foi titulada e entregue como terras de reservas indígenas, enquanto 3,4 milhões de hectares foram outorgados e legalizados como territórios coletivos para comunidades negras na bacia do Pacífico colombiano. 6 Além da legitimação de territórios coletivos, em sua imensa maioria situados em áreas de floresta pluvial Amazôniadee do litoralcoletivos do Pacífico, as populações índiasrelacionada e negras obtiveram adaratificação direitos específicos: à educação com suas culturas e a eleger seus representantes para órgãos legislativos, sob uma circunscrição eleitoral especial. Os coletivos indígenas obtiveram igualmente o direito 5 6

Pineda Camacho, 1997. Castillo, 2007;Agudelo, 2003.

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de governar e legislar em seus territórios, de receber transferências econômicas do Estado e de usar e promover suas práticas médicas, entre outros.7 Não há acordo sobre os motivos que impulsionaram tão generosa dotação de direitos e recursos. Enquanto algumas abordagens acadêmicas propõem que assim se teria saldado a antiga dívida histórica de discriminação e exclusão que tem pesado sobre essas populações, 8 outras propõem que as concessões territoriais seriam um meio conveniente de assegurar controle estatal sobre territórios de fronteira dominados por grupos armados oinsurgentes, permitindo, ao mesmo tempo, a entrada de capitais transnacionais nessas regiões, ricas em recursos florestais e minerais.9 Os que têm estudado esse assunto parecem coincidir, contudo, num ponto pouco examinado: a dotação de terras e serviços, quer dizer, a operação dessa forma de justiça distributiva tem-se destinado a minorias. Isso acaba sendo óbvio no caso dos indígenas, que não ultrapassam 4% da população geral, mas também se verifica no caso das coletividades negras, muito maiores em propor10 ção (entre 10,6% e 26% do total populacional, segundo diferentes estimativas). Não obstante, o número de beneficiários tem sido pequeno, pois somente os coletivos reconhecidos como étnicos pelo Estado, ou seja, as populações negras rurais do Pacífico, obtiveram direitos diferenciais, deixando-se de lado as maiorias negras que habitam espaços urbanos.11 Quanto aos recursos reservados para as maiorias mestiças, aquelas que conformam as camadas sociais subalternas majoritárias que não recebem o distintivo étnico, o panorama é menos animador. Em 1991, o Estado colombiano foi redefinido como Estado Social de Direito, orientado para a solução das desigualdades sociais e econômicas e para a consagração de direitos fundamentais para todos os colombianos: à vida, à integridade física, à saúde e à seguridade social; à educação; à liberdade deculto, de consciência, de expressão;ao trabalho e à participação, entre outros, com ênfase na proteção das populações mais vul12 neráveis. Não obstante, a materialização desses direitos tem sido mais incerta. Sánchez, 2002. Van Cott, 1999. 9 Jackson, 1995; Escobar e Pedrosa, 1996;Villa, 2002. 10 Ver por exemplo, Dane (2005). 11Agudelo, 2004. 12 Gallón et al., 2002. 7 8

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Enquanto sobressai a operação efetiva de novos mecanismos de participação, como a ação de tutela mediante a qual tanto indivíduos quanto coletivos podem reclamar de maneira rápida a proteção imediata de seus direitos fundamentais, a proteção social (educação e saúde gratuitas) tem-se orientado de maneira seletiva e coincidente com as políticas étnicas de novo para grupos restritos, definidos como vulneráveis — por exemplo, em situação de pobreza extrema. a saúde das que àsnão requisitos Entretanto, para alcançara oseducação sistemas esubsidiados são maiorias abandonadas leisreúnem do mer-os cado, em proveito da empresa privada. Por outro lado, e em contraste com a ampla titulação de territórios para os coletivos étnicos, ainda não se pactuou uma reforma agrária integral para transformar o duradouro e iníquo regime de propriedade das terras de vocação agrícola na Colômbia. E, o que é mais grave, os tímidos avanços de redistribução promovidos pelo Instituto da Reforma Agrária (criado em 1961, extinto e fundido com outras duas entidades em 2003) têm sido neutralizados pelo avanço do latifúndio. Preocupa igualmente a transformação observada no seio da classe latifundiária. Em suas fileiras têm ingressado novos integrantes, provenientes dos grupos paramilitares organizados a partir da década de 1980 em aliança com as elites rurais que buscavam deter o avanço dos movimentos e das demandas camponesas e a coação dos grupos guerrilheiros.13 A gravidade do assunto é tal que surgiu o conceito de contrarreforma agrária encabeçada por agrupamentos paramilitares, que, por sua vez, lideraram os alarmantes processos de deslocamento forçado que resultaram na morte, na espoliação e no êxodo de milhões de habitantes das regiões rurais do país. Nesse plano convergem os dois polos das transformações em curso, o social e o cultural. Entre as populações mais afetadas pelos processos de deslocamento forçado se encontram precisamente aquelas recentemente definidas como étnicas: as comunidades negras do Pacífico, cujos direitos territoriais por sua vez têm sido ameaçados, se não diminuídos, por concessões a grandes empresas e pela migração dos cultivos ilegais de coca.14 Vale acrescentar que, desde a assinatura da Constitução, tem havido um aumento constante e sem precedentes da desigualdade econômica.15 Talvez seja Romero, 2003. Bravo, 2007. 15 Livingstone, 2004. 13 14

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proveitoso, então, situar e relacionar os direitos de cidadania universais e os benefícios diferenciais outorgados às minorias no contexto das crescentes desigualdades econômicas e sociais reservadas para minorias étnicas e maiorias subalternas, para não falar do prolongado conflito armado e das persistentes violações de direitos humanos que permeiam o panorama colombiano na atualidade e que afetam as duas. Parae iniciar a análisesociais, dos complexos cruzamentos entre ometropolitano reconhecimento cultural as hierarquias concentrar-me-ei no âmbito da capital da Colômbia, cenário até há pouco não muito favorável para as filiações étnicas, com o propósito de examinar os paradoxos da guinada multicultural no centro da nação. Mediante o exame dos processos de ressurgimento indígena em Bogotá, refletirei igualmente sobre as ambiguidades que regem as classificações e algumas das tensões e imbricamentos locais e nacionais que se expressam no governo da diferença étnica. ❚

Rumo à cidade multicultural

Desde o início da década de 1990, a capital da Colômbia tem vivido a mais recente transfiguração de seu entorno demográfico e deseus imaginários urbanos, desandando assim da até então louvável rota rumo à mestiçagem e à igualdade jurídica individual. Encaminhou-se, em vez disso, para o reconhecimento da pluralidade, a valorização da diversidade étnica e cultural, e a solução das tensões geradas pela interculturalidade.16 Tal mutação se manifestou inicialmente por uma enxurrada de petições e subsequentes reconhecimentos por parte do governo central dos direitos coletivos de um grupo de antigos habitantes ouraizales de Suba, municipalidade devorada pela cidade 40 anos antes, e de uma organização de vendedores ambulantes ingás provenientes de Putumayo. Posteriormente, também a presença indígena em Bogotá se fez sentir com força mediante novas reivindicações étnicas de habitantes urbanos e suburbanos, imigrantes e sem-teto, assim como pelas controvérsias sobre seu reconhecimento estatal. A transição para a cidade multicultural parece seguir por sua vez o compasso da ignorada, mas persistente dinâmica de aparição, desaparição e reaparição de indígenas e, portanto, da alteridade étnica e racial na cidade que tem

16

Borja, 1997.

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marcado o devir da face identitária desse centro de governo desde a sua própria fundação por invasores ibéricos, em 1538, em territórios arrebatados a seus antigos donos indígenas.17 A expansão territorial da cidade na década de 1950, que suprimiu a autonomia jurisdicional dos povoados circundantes de Bosa, Suba e Usaquén, entre outros, operou como antecedente do atual ressurgimento étnico em algumas dessas localidades. Nessa mesma década, enquadrada num período histórico conhecido “a Violência”, porcolombiano, alguns acadêmicos uma guerra civil não como declarada que assoloudefinida o campo Bogotá,como como outras cidades latino-americanas, se converteu em poderoso ímã para a torrencial migração procedente de todos os rincões rurais e urbanos do país. Pouco visíveis na copiosa afluência de então para a cidade, chegaram para assentar-se ali alguns indígenas para os quais a mobilidade espacial não só não tem sido excepcional, como tem fundamentado suas práticas comerciais e culturais: ingás procedentes do Putumayo, na Amazônia, colombiana e quíchuas do vale de Otavalo, no Equador. Como cadinho de processos sociais regidos por lógicas culturais e mobilidades territoriais diversas, orquestradas ao som de ritmos temporais díspares, o centro metropolitano maior da nação colombiana congrega atualmente agrupamentos indígenas que chegaram à cidade assim como aqueles que a cidade juntou, que em coro polifônico reclamam sua distintiva presença ali. Todos se definem a partir da perspectiva das filiações étnicas: dos grupos raizales muíscas de Suba e Bosa, das gerações de ingás e quíchuas, assim como várias organizações de sem-teto, entre eles os pijaos de Tolima na região central andina e os kankuamos da Sierra Nevada de Santa Marta na costa do Caribe. Os habitantes indígenas de diferentes localidades da cidade se integraram aos eventos promovidos pelas administrações recentes da cidade. Têm participado nos desfiles de multidões e nos propalados festivais no quadro dos eventos comemorativos e de lazer que promovem a patrimonialização da diversidade cultural e a imagem pluralista do governo da cidade (o aniversário de Bogotá, o carnaval, o festival das culturas). Também têm acudido com numerosa e ativa presença à sucessão de reuniões públicas convocadas por órgãos de governo local com o objetivo de apresentar e negociar as políticas destinadas ao conjunto dos grupos étnicos urbanos (indígenas, afros e ciganos- rom).18 17 18

Zambrano, 2004 e 2008. Zambrano, 2005.

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De outra parte, a presença indígena se fez sentir nas lutas políticas e no governo da cidade. Alguns grupos engrossaram as fileiras das marchas de protesto convocadas por organizações sociais e pela guarda indígena do Cauca em Bogotá; além disso, começaram a intervir no governo da capital. Desde 1992 e durante dois períodos de três anos, Bogotá teve um representante indígena no Conselho, órgão legislativo da cidade: Francisco Rojas Birry, advogadoem-

bera nascido no Alto Baudó, na bacia do Pacífico, membro fundador da Alianza Social Indígena (ASI), organização política de alcance nacional. Depois, o aval dessa organização seria decisivo para a inscrição do candidato que haveria de ganhar as eleições para a prefeitura em 2000. Em notória manipulação do imaginário colonial que conferiu poderes mágicos às práticas curativas índígenas, o candidato Antanas Mockus encenou com bumbos e pratos um ritual indígena de limpeza para lavar seus pecados civis contra a cidade — abandonara a prefeitura anteriormente para fracassar na disputa pela presidência em 1998 —, ato que mereceu grande difusão nos meios de comunicação e que teve um impacto positivo, com seu avanço nas pesquisas de preferência de voto. Uma vez empossado, multiplicou o uso da encenação ritual em todas as suas campanhas de governo, mas mostrou pouco interesse pelos assuntos indígenas na cidade. Em 2002, por exemplo, durante a cerimônia de posse docabildo ingá, que presidiu como prefeito da cidade, chegou inclusive a impugnar as petições dos vendedores ambulantes desse cabildo para exercerem seu ofício tradicional nas ruas da cidade. Alegou que aceitá-las equivaleria a criar um serviço de transporte de massa só para indígenas.19 Contudo, a presença indígena na política eleitoral da cidade voltaria a ter papel relevante na eleição seguinte do governo da capital. Depois de a ASI aderir à campanha do candidato de centroesquerda durante uma cerimônia especial cadenciada por um ritual indígena, uma de suas representantes foi designada por votação popular como membro do Conselho de Bogotá para o período 2004-07. Assim, Ati Quigua, jovem mulher arhuaca, tornou-se a primeira indígena nascida na cidade a ganhar acesso ao órgão legislativo da capital. Logo perdeu o cargo, pois não cumpria os requisitos de idade exigidos (25 anos, contra os 23 da postulante). Recuperou-o em agosto de 2005, graças a uma decisão

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Pabón, 2004.

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favorável da Corte Suprema de Justiça, que acolheu o argumento apresentado por Quigua de que na cultura arhuaca se alcançava a maioridade aos 15 anos. Alguns meses depois foi nomeada segunda vice-presidenta do órgão legislativo, fato celebrado nos meios de comunicação como uma vitória das mulheres e da pluralidade.20 Como veremos mais adiante, suas intervenções embaralharam novamente a mudança de rumo das políticas do governo central com relação ao reconhecimento étnico na cidade. ❚

Espaços e lugares da mobilidade étnica na cidade

As mobilizações identitárias na cidade, como em outros lugares do país, se articulam com a ratificação da pluriculturalidade consagrada pela Constitução de 1991, mas servem também para ressaltar algumas limitações das perspectivas que privilegiam o quadro constitucional sem contemplar sua inserção internacional e as apropriações e tensões locais na análise da construção multicultural do estado e da cidadania na Colômbia. Como já indiquei, o ressurgimento étnico é um processo amplamente vivenciado na América Latina. Ao mesmo tempo, teve grande ressonância e variadas manifestações no mundo, incluindo a criação de novos Estados-nação, as guerras e a consolidação dos fundamentalismos étnicos. Em todo caso, fez-se acompanhar do processo de reestruturação econômica e social entre países e territórios que configuram a ordem mundial. Nesse contexto, a globalização do direito e o avanço das políticas culturais que advogam pelo reconhecimento planetário da diversidade — por exemplo, a assinatura de convênios internacionais como o 169 da OIT (1989), as conclusões do Congresso de Durban (2001) e as diretrizes do Banco Mundial, entre outras — tiveram influência decisiva na orientação jurídica e nas políticas públicas de muitos países, inclusive nas próprias definições dos povos e grupos étnicos no âmbito nacional.21 Assim, instituições supranacionais como a ONU e suas filiais, como o Pnud, transferem recursos à prefeitura bogotana para fortalecer a diversidade cultural, enquanto, ao mesmo tempo, mas não de maneira

20 Veja-se, por exemplo: Democracia Partidaria. “Ati Quigua, primera mujer indígena en la vicepresidencia del Consejo de Bogotá”. 2005. Disponível em: . Acesso em: maio 2006. 21 Oliveira, 2006; Van Cott, 2000.

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excludente, diversas ONGs nacionais, locais e internacionais passam por cima das instâncias governamentais para estabelecer vínculos financeiros e políticos diretos com coletividades locais. Numa perspectiva comparada, é ilustrativo o caso da etnicidade afro na Costa Chica do México, onde as organizações internacionais têm tido grande impacto na redefinição identitária das populações mestiças e negras.22 Nos dois casos, faz sentido a proposta de Lucie Cheng de 23 (a relação entre entrelaçar o particular (a especificidade do nacional) e o geral países e territórios) na análise dos processos de globalização. O mesmo enfoque serve também para entender as configurações locais, como as que abordo neste capítulo, mediante a consideração simultânea e em tensão da posição da cidade no sistema nacional, e desta e do país em face da reestruturação global, ou seja, dos imbricamentos e interconexões de escalas que operam os cenários étnicos metropolitanos. Portanto, é importante assinalar que, em concordância com os ditames da Carta Magna, a cambiante cartografía das negociações sobre a etnicidade nos âmbitos urbanos tem girado em boa parte em torno da definição de direitos jurídico-culturais e do acesso a bens e serviços diferenciais: tanto territoriais quanto financeiros (transferências de recursos do Estado) e sociais (acesso à educação e a saúde). Mas, à diferença das transações identitárias que predominaram nos velhos e novos imaginários da nação na Colômbia, aquelas reservadas a âmbitos rurais, por sua vez circunscritos a territórios étnicos, a etnicidade na cidade carece precisamente dessa apreciada territorialidade, chave central das políticas públicas do Estado colombiano. Assim, no caso das populações índígenas de Bogotá, por exemplo, trata-se de cabildos sem terra ou sem reserva, quer dizer, sem territorialidade, ao menos não como usualmente a entendemos: sinônimo e base da identidade. Em contrapartida, o lugar onde se desdobram as reivindicações e negociações étnicas urbanas é descontínuo e múltiplo: o distrito-capital, um extenso centro metropolitano de mais de 7 milhões de habitantes. Ali se encontram e

se entrelaçam diversas instâncias e agentes locais, nacionais e transnacionais que convivem e competem pela definição da diversidade e da especificidade cultural e pela distribuição de recursos associados a essas definições. Em particular, como

22 23

Hoffmann, 2005. Cheng, 2002.

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já sugeri, o governo da capital tem papel preponderante tanto na aplicação do quadro constitucional nacional quanto em sua tradução e reinterpretação locais. Pelas instituições do governo da capital fluem e se sobrepõem discursos nacionais e globais sobre a equidade, a igualdade e a diferença, e se captam e se administram fundos que, às vezes, igualam, quando não superam, os do orçamento nacional. Tal é o caso do antigo Instituto de Cultura e Turismo (IDCT), transformado em 2005 empertencimento Secretaria de identitário Cultura, Lazer e Esporte, promotora da cultura e do bogotano que se entidade equipara em sua capacidade financeira ao Ministério Nacional da Cultura. As variadas manifestações cidadãs e políticas da multiculturalidade urbana, ligadas nos últimos anos às reivindicações indígenas e aos cenários abertos pela prefeitura da cidade ou procurados pelos movimentos sociais, encontram, ao mesmo tempo, eco na crescente circulação, sintonizada com canais globalizados, de imagens exotizadas que enaltecem e comercializam práticas e saberes indígenas; práticas que se materializam, no caso bogotano, em expressões estéticas, como as telas de um renomado pintor ingá residente na cidade ou mesmo o artesanato, e no crescente recurso a terapias e rituais xamânicos de cura. ❚

Claro-escuros do campo étnico urbano

Tal efervescência étnica acolhe também matizes mais sombrios. De uma parte, a tangível presença da etnicidade em Bogotá retumba com timbres lúgubres: procedentes da costa Pacífica, da Amazônia, da costa do Caribe e do departamento de Tolima, têm chegado à cidade numerosos contingentes de gente indígena e negra que se somam aos enormes fluxos de desterrados do país, expulsos de seus antigos lugares de habitação pelos promotores do conflito ar mado. De outra parte, o vigoroso fermento inicial de reivindicações urbanas e reconhecimento se estancou anosquedevido à intervenção do governo central, legal que logo reverteuporo vários processo apoiara em seus inícios. Assim, o cabildo urbano de Suba, aprovado como o primeiro órgão de governo indígena urbano na Colômbia em 1991, antes da assinatura da Constituição, perdeu a ratificação oficial em 1999. Por seu lado, o de Bosa, reconhecido em

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1999, logo caiu em interdição e sob investigação.24 E, apesar de cumprir à risca os rígidos critérios linguísticos e culturais que ditam a etnicidade, por muito tempo pareceu impossível que os quíchuas da cidade o obtivessem devido a sua procedência equatoriana. O contragolpe atingiu também os municípios que rodeiam a cidade: o cabildo de Cota, com uma história republicana que se estendia por quase um século, foi dissolvido pela Secretaria de Assuntos Indígenas do 25

Ministério do Interior. Entretanto, os efeitos do movimento pendular do governo da diferença em Bogotá foram atenuados pelas ações da prefeitura de centro esquerda, que, em disputa com a administração nacional de orientação direitista, buscava em contrapartida convocar todos os grupos étnicos urbanos, reconhecidos ou não, para formular políticas de inclusão e reconhecimento cultural, como ocorreu nas reuniões de discussão de políticas públicas mencionadas antes. Mais tarde, os incertos rumos da ressurgência étnica receberiam novo alento graças à ação da concejal índia, que recorreu a seus contatos políticos e redes familiares nos governos central e da capital. Conseguiu convencer Luz Elena Izquierdo, diretora da secretaria de assuntos étnicos do governo central, da justeza da causa dos grupos indígenas citadinos. Assim, em fins de 2005, Izquierdo, indígena aruaque procedente da Sierra Nevada de Santa Marta e mãe da mesma concejal, decidiu engavetar o conjunto de estudos e perícias que desacreditavam as reivindicações dos grupos indígenas da cidade. Pouco depois, numa colorida cerimônia realizada ao ar livre em meados de dezembro do mesmo ano no Jardim Botânico de Bogotá, o prefeito da cidade dava posse a cinco cabildos urbanos. Assim, àqueles reconhecidos anteriormente, o Ingá e o Muísca de Bosa, vieram juntar-se três novos cabildos: o Muísca de Suba e os organizados pelos migrantes quíchua e pijao. Ali, a pedido do prefeito, Ati Quigua, vestida com manta aruaque branca, colares de miçangas e sandálias de salto, ocupou um lugar proeminente no palanque, sempre ao lado do mandatário. Quando chegou sua vez de discursar, chamou Luz Elena Izquierdo para que a acompanhasse, agradecendo-lhe por sua decisão. Nesse momento aconcejal ficou entre o prefeito de esquerda e a aliada do governo de direita, uma composição que ilustra as circunstâncias e as implicações da disputa e da articulação entre instâncias locais Durán, 2004. Wiesner, 1987; Fiquitiva, 1999; entrevista concedida por José Joaquín Fiquitiva a Juan Felipe Hoyos e Marta Zambrano (Bogotá, 2004). 24 25

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e nacionais do governo da diferença na Colômbia, assim como o papel das redes políticas dos indígenas da cidade. ❚

Oscilações locais: da cidadania anônima à etnicidade questionada

Para eexaminar tantodoa governo volatilidade das configurações identitárias quanto as fissuras imbricações da diferença, me deterei a seguir no caso de Suba. No curso da última década, uma antiga comunidade indígena, esparramada num aglomerado mestiço mais amplo e num território fragmentado pela subdivisão da propriedade coletiva e individual, empreendeu “a viagem de volta”,26 alcançando a ratificação oficial como coletivo indígena; logo, contudo, perdeu tal estatuto e, portanto, o acesso aos direitos especiais reservados pela Constituição. Durante o processo, a identidade da gente de Suba oscilou da individuação promovida pela cidadania anônima para a reconstituição do coletivo, primeiro baseado na indigenidade genérica e depois na etnicidade muísca. Como havia ocorrido nos processos de reindigenização na Colômbia nos anos 1980, no início da década de 1990 os antigos habitantes de Suba não ostentavam as marcas distintivas do indígena: idioma, traje e usos rituais. Ao contrário, tinham-se empenhado num processo de desindigenização.27 Como recordariam mais tarde os membros do cabildo, tinham tentado ao longo de várias gerações apagar qualquer estigma índio: nomes de família, práticas próprias e em particular as memórias coletivas.28 Estas regressaram de maneira inesperada num momento de expansão urbana da capital que possibilitou a mudança de vocação das terras rurais de Suba, promovendo seu parcelamento urbano e mercantilização; portanto, agravou também os conflitos por titularidade e propriedade entre os velhos e novos habitantes da populosa localidade. A descoberta de um título do século XIX que registrava a dissolução da reserva colonial de Suba se converteria em peça central na reativação do cabildo dissolvido, na reconstituição da filiação indígena e na obtenção do reconhecimento. Mas, à diferença de outros casos de reindigenização em áreas rurais de Nariño, Tolima e Cauca, não garantiria a propriedade presente, individual ou Nas palavras de Oliveira (1999). Rappaport, 1990; Chaves, 2005; Chaves e Zambrano, 2006 28 Zambrano, 2003 e 2008. 26 27

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coletiva das antigas terras de reserva, apesar dos ingentes esforços do recém-organizado cabildo.29 Este recorreu primeiro às vias de fato. Pouco depois de sua constituição, lançou um apelo à comunidade em 9 de outubro de 1991 para recuperar alguns terrenos invadidos por um urbanizador ilegal. Marcharam de maneira organizada para o lugar, mas foram interceptados pela polícia, que deteve 42 pessoas. Ante os resultados adversos da ocupação, ocabildo escolheu a via do litígio legal para restabelecer as propriedades coletivas, porém sem resultados. Pouco a pouco, mudou de objetivo, empenhando-se dessa vez em obter outros benefícios previstos para os grupos étnicos: transferências econômicas e prestação de serviços educativos e de saúde. Essas reivindicações também haveriam de fracassar. Primeiro, os prestadores de serviços protestaram; depois, os funcionários do governo central reverteram as regulamentações que tinham reconhecido o cabildo. Em 1997, a Secretaria de Saúde de Bogotá denunciou o inusitado incremento de indígenas registrados em Suba. Em seis meses, o número de afiliados ao sistema gratuito havia saltado de 1.836 para 7.456. Seguiram-se acusações por parte de alguns membros do cabildo sobre a frouxidão de suas diretrizes nos critérios de filiação de novos membros e acerca de procedimentos duvidosos em outros assuntos. As denúncias culminaram na dissolução do órgão de governo indígena, ditada pela Diretoria-Geral de Assuntos Indígenas (DGAI) do Ministério do Interior em 1999. A taxativa resposta desse organismo estatal convida ao exame. Enquanto vários dos membros do cabildo haviam solicitado um corretivo, a agência governamental castigou a todos, liquidando o organismo. A decisão reforçou as divisões internas em curso. Os associados se reagruparam em dois cabildos rivais, ambos em busca de reconhecimento. Recorreram, então, à velha tendência legalista instaurada durante a era colonial: ambos promoveram ações jurídicas para que o governo central restabelecesse o reconhecimento. Depois de insistentes petições, conseguiram que o Conselho de Estado ordenasse em 2001 ao antigo DGAI, transformado, então, na Diretoria de Etnias, que realizasse um estudo socioeconômico para determinar “a existência ou não da parcialidade indígena (um termo colonial usado no passado para referir-se a localidades índias) de

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Triana, 1993; Rappaport, 1994.

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Suba”. Assim, o estudo devia certificar a filiação indígena coletiva verificando a presença ou ausência de uma série de requisitos: “uma história comum, além de uma coesão de grupo, arraigamento num território ancestral, cosmovisão, medicina tradicional, relações de parentesco e sistema normativo próprio, que os diferencie do resto da população colombiana”.30 Meses depois, o estudo — que seguira à risca os critérios do Conselho de em suaque investigação, de questionários e realização de visitas — Estado recomendou o cabildo aplicação não deveria ser reconhecido. A argumentação central baseou-se na ausência de uma história comum que ligasse seus membros. Mas, argumentava o estudo, a união havia surgido da voluntária associação de indivíduos que No caso da pretensa parcialidade de Suba […] não compartilham um passado comum, nem têm vínculos reais que os liguem a nenhum povo indígena na atualidade; assim como se nota a carência total de memória histórica enquanto pertencimento étnico e arraigamento num território […] não possuem traços próprios da cultura muísca em aspectos tais como cosmovisão, medicina tradicional, parentesco e sistema normativo próprio.31

Em outras palavras, de acordo com o estudo, os membros do desautorizado cabildo não formavam uma comunidade, mas um recente agregado de indivíduos, carente de profundidade histórica, privado de traços culturais distintivos e sem outra conexão que não os propósitos presentes. Basicamente, não eram “diferentes do resto da população colombiana”. Quer dizer, segundo o parecer, eram demasiado parecidos com as maiorias mestiças na Colômbia para merecer legitimação como outros, como étnicos. Aqui chama a atenção, por um lado, o papel da economia política da diferença, que, como indicou Claudia Briones (2005), constrói e separa os outros nacionais. Nesse caso, interveio ignorando a longa história de interações sociais que uniram os que receberam a distinção ou derrogação étnica e os que a atribuíram ou negaram.32 Por outro lado, sobressai o enrijecimento das fronteiras que separam as maiorias sem direitos diferenciais das minorias que os têm. Ministerio del Interior y Justicia, 2001a. Ministerio del Interior y Justicia, 2001b. 32 Gr imson, 2000. 30 31

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Entretanto, em Suba não se recuou nas demandas por reconhecimento. Vale destacar que, nas renovadas tentativas,o retorno inicial à identidade indígena, genérica e sem nome tornou-se filiação étnica: muísca. Os pareceres de 1999 e 2001, que dissolveram o cabildo e ratificaram as recomendações do estudo, serviram como guias importantes em tal reorientação. Como em outros lugares, as diretrizes do cabildo tentaram amortecer o golpe, proclamando que o que se 33

havia perdido se podia recuperar. Com esse propósito, organizaram um foro de memória muísca em 1999.Ali, anunciaram que haviam iniciado um processo organizativo “para reconstruir as bases culturais do povo muísca”.34 Cabe ressaltar que, em suas respostas e negociações com o governo central, as diretrizes do cabildo buscaram satisfazer os r ígidos critérios do Conselho de Estado. Numa situação comparável à que foi analisada por Elizabeth Povinelli (2001) no multiculturalismo australiano, o estado de direito colombiano levou os membros do cabildo de Suba a apresentarem-se como sujeitos nostálgicos de um passado précolonial, pré-hispânico, e os colocou numa posição de constante suspeita por não serem suficientemente diferentes e traírem o passado srcinal, ignorando que foi deturpado, entre outras coisas, pelas ações de controle estatal colonial e pós-colonial.35 Assim, em busca dos “traços próprios”, da “história comum” e dos “vínculos ancestrais com o território”, os dirigentes, majoritariamente homens, recorreram à indagação letrada, à historiografia, à recriação e uso de vestuário e idioma próprios. Baseando-se nos dicionários e catecismos escritos por missionários católicos coloniais, começaram a aprender o idioma muísca, há muito desaparecido; desenharam ornamentos distintivos inspirados em interpretações contemporâneas das prendas muíscas e organizaram oficinas de artesanato próprio. Nos espaços urbanos de negociação étnica, aderiram a uma prática que nos últimos anos se tornou recorrente: como outros dirigentes dos cabildos indígenas, iniciam seus discursos com algumas palavras em língua própria, que depois traduzem para o público geral. Enquanto isso, nas marchas, nos desfiles e festivais, a carga da representação da identidade muísca recai principalmente sobre os corpos das mulheres das bases, paramentadas com mantas brancas de Sotomayor, 1998. Cabildo Indígena de Suba, 1999:9. 35 Zambrano, 2008. 33 34

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algodão pintadas e toucados dourados. Resta saber se, e como, reformularam a representação de sua etnicidade depois da recente reinstauração do cabildo. ❚

Conclusões

Este capítulo examinou algumas chaves sociais e imbricações supranacionais que subjazem guinada pluralistamodelo dos projetos unitáriosnaderegião naçãonão na América Latina. Sugeri àque o emergente multicultural pode ser separado dos processos de reestruturação das relações entre países e classes sociais. Na Colômbia, a virada se materializou na aparentemente generosa dotação de direitos, terras e transferências econômicas para coletivos indígenas e afros. Contudo, as lógicas que impulsionaram as políticas do reconhecimento se mostram restritivas em dois sentidos. De uma parte, o Estado restringiu o número de beneficiários, definindo-os segundo critérios taxativos ligados a certas formas de territorialidade (a reserva, para os indígenas, e os territórios coletivos da costa do Pacífico, para as populações afro) e ao cumprimento de uma rígida lista de requisitos. De outra, não se tem observado uma concomitante extensão das políticas de redistribuição a outras camadas subalternas, que no país conformam as maiorias. Pelo contrário, estas se viram engrossadas e empobrecidas desde a aprovação da nova Constituição multicultural em 1991. Em tais condições, o pluralismo voltado para as minorias étnicas se converte num pluralismo restritivo. Essa tendência se agrava na Colômbia, pois os direitos humanos, territoriais e culturais dos grupos étnicos reconhecidos estão ainda sob a constante ameaça do fogo cruzado, do deslocamento forçado e da intervenção da empresa privada, o que rearticula em outro plano dois polos, o étnico e o social, separados nos novos rumos da nação. Concentrei-me no ressurgimento étnico e em particular na reindigenização em Bogotá para examinar a instável combinação de lógicas de inclusão e de exclusão que configuram as dinâmicas do governo da diferença cultural na Colômbia. Sugeri que o posicionamento da etnicidade nos espaços metropolitanos não se dá sem dificultades e sobretudo suscita dúvidas, avanços e recuos na definição mesma da etnicidade e na formulação de políticas públicas. Como em outros lugares, na capital se viveu o entusiasmo inicial pelo pluralismo, seguido do movimento pendular e da volatilidade do reconhecimento étnico. A configuração de Bogotá como centro e vanguarda da nação revela, ao mesmo tempo, as imbricações e fissuras do governo da diferença na Colômbia.

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Num contexto nacional que se declara pluriétnico, mas que está marcado pela privatização do acesso aos direitos básicos da cidadania e por crescentes desigualdades econômicas entre agrupamentos sociais, os imigrantes e desterrados indígenas e os raizales desindigenizados têm buscado aliviar um longo legado de discriminação racial e exclusão econômica reforçando ou retornando a sua filiação indígena. Em princípios da década de 1990, durante o período inicial de celebração do multiculturalismo na Colômbia, as primeiras reivindicações de reindigenização e de recolocação indígena em Bogotá tiveram êxito perante o governo central, mas a multiplicação dos casos e das cifras pôs em risco o fechado círculo de privilégios reservados para as minorias étnicas. O risco pressupunha mais que a distribuição restritiva de benefícios. Como observamos em outro trabalho, a reindigenização na Colômbia e o estabelecimento de cabildos urbanos transgrediram uma duradoura ordem simbólica que tem sobrevivido ao embate da nova ordem pluralista.36 De um lado, os processos de recolocação étnica e reindigenização na cidade contrapõem-se à persistente associação hegemônica entre tempo, espaço e identidade. Não só a etnicidade indígena tem estado ancorada em territórios rurais, supostamente estancados na tradição e antes de tudo concebidos como o antípoda de cambiantes cenários modernos como a capital colombiana. O confinamento a territórios assim definidos, o qual disputa com as perduráveis, variadas e cambiantes dinâmicas sociais e de mobilidade espacial de indivíduos e coletivos índios, tem sido um dos principais fundamentos da definição e do reconhecimento étnicos. Essa ordem dialoga com uma duradoura constituição de memória que tem imobilizado as histórias étnicas, situando-as em espaços discretos, imutáveis e antigos. De modo que, como em outros lugares, a reindigenização em Bogotá vai de encontro ao modo de produção hegemônico da diferença na Colômbia. Na capital contemporânea, como no passado, uma heterogênea série de processos de ritmos temporais diversos encontra-se com díspares trajetórias de mobilidade espacial e identitária. Por um lado, cruzam-se redes e estações de viagem e de intercâmbio de bens e saberes de longa data, como as dos

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Chaves e Zambrano, 2006.

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comerciantes e médicos ingás de Putumayo e dos tecelões de Otavalo, com a desarticulação social, o desterro prov ocado em processos de constituição histórica mais recente, a migração maciça e a “Violência” dos anos 1950, com as ondas de ameaças, assassinatos e espoliação pelas mãos dos atores do conflito armado atual iniciadas no decênio de 1980. Por outro lado, a própria expansão demográfica e territorial da cidade e a crescente mercantilização dos prédios urbanos têm funcionado como gatilho para as reivindicações dos despossuídos descendentes dos gr upos nativos da Sabana de Bogotá, que já haviam sofr ido vários embates de fragmentação territorial combinados com os efeitos amnésicos de um projeto nacional que associava indígena com atraso, preconizando a mestiçagem e a cidadania anônima como caminho obrigatório (mas nunca realizado) para a igualdade. No imprevisto caminho de volta da mestiçagem à indianização em Bogotá sobressaem o protagonismo dos que se identificam como indígenas da cidade e as respostas dos que governam a diferença na Colômbia: instituições e funcionários do Estado.Em fins da década de 1990,a secretaria de assuntos étnicos do governo central já havia dado marcha a ré nos processos de reconhecimento que apoiara a princípio. Interveio para controlar a multiplicação de membros dos cabildo e prevenir a proliferação de outras reclamações. Como indiquei, no caso de Suba, valeu-se de listas de requisitos e traçospara definir a etnicidade indígena,algo que 37 também ocorreu em outros lugares do país. Chama a atenção que essas listas se tenham inspirado em duradouras construções coloniais da alteridaderadical e nas perspectivas culturalistas da antropologia de meados do século XX. A intervenção do Estado em busca do controle dos pertencimentos identitários e do governo da diferença não deteve, contudo,os esforços de reindigenização.Antes, levou os que se empenharam em tais esforços a reorientarem suas reivindicações de maneiras que ao mesmo tempo seguem e burlam os ditames dos que governam a visão e a divisão dos assuntos étnicos na Colômbia. Assim, os representantes dos cabildos urbanos responderam à insistência estatal na posse de língua e costumes próprios mediante a autoexotização expressada no uso de trajes distintivos e o recurso estratégico aos idiomas nativos, mas também propuseram novas formas de territorialidade ou de desterritorialização urbana. Nas palavras de Ati Quigua, primeira

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Chaves, 2003.

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concejal índia nascida em Bogotá,“os direitos dos indígenas como sujeitos coletivos 38 vão muito além das reservas indígenas”. Nas contenciosas relações entre o governo nacional e os que se afirmam indígenas da cidade destacam-se, igualmente, o lugar e o papel do governo da capital. De uma parte, os cabildos urbanos, reconhecidos ou não, têm aproveitado os interstícios abertos pela prefeitura para ventilar suas reivindicações e negociar políticas públicas de saúde e educação. De outra, desde 2004, a administração de centro esquerda da capital, a qual atrai, concentra e distribui importantes recursos financeiros e simbólicos, tem promovido algumas políticas favoráveis para os grupos étnicos, num sutil jogo de contraposição ao governo central de direita também instalado na capital. O volátil e polêmico posicionamento do multiculturalismo na cidade ilustra também a articulação de diversas escalas espaciais (nacional, local e global), assim como o encontro e o choque de ritmos temporais, trajetórias diversas e interesses contrários. Ne ssa linha de análise parece pertinente indagar as razões pelas quais as novas categorizações acadêmicas sobre a etnicidade, mais sensíveis aos processos históricos e ao conteúdo político das construções sociais, não produziram impacto na formulação de políticas multiculturais nem serviram para orientar o governo da diferença. Em princípio, não seria tão difícil aceitar que a mola que impulsiona o agrupamento dos coletivos que hoje se pretendem indígenas na cidade não está numa tradição imóvel ou numa essência imanente. Mas bem poderíamos entender que, como exigiu do cabildo de Suba o governo central, existe de fato uma história comum, porém não a das presenças substantivas requeridas pelo gov erno central no caso de Suba (arraigamento num território ancestral, memória de pertencimento étnico, cosmovisão, parentesco, sistema normativo próprio etc.), e, sim, a de um legado de espoliações e recomposições terr itoriais, de fragmentação e reconstituição do coletivo , ligadas a um século de branqueamento e a vár ios de discriminação racial e exclusão econômica. Contudo, num país como a Colômbia, carregado de exclusão, subalternização e fragmentação socialdee histórias cultural, compartilhadas essa sugestiva visão acaba sendo muito difícil de incorporar. Aceitá-la exig iria não só recompor o campo étnico, mas também afrontar sua inserção, choques e encontros com outros sistemas de diferença e profundas desigualdades ai nda não resolvidos. 38

Polo Democrático Alternativo, 2005.

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PARTE V



Culturas políticas no Antigo Regime

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A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José

Batista: notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa (séculos XVII e XVIII) João Fragoso*

Salvo engano, já foi o tempo em que a América lusa seiscentista era percebida como mero refém dos humores do capital mercantil europeu.1 Mais recentemente, as discussões sobre Novo e Velho Mundo na época moderna ganharam mais vigor com o debate internacional, em curso desde pelo menos o final dos anos 1980, sobre a formação do Estado moderno dos séculos XVII e XVIII. Nestas últimas discussões, como se sabe, foi colocada em dúvida a clássica ideia de um absolutismo ceifando o poder das comunidades e dos grupos sociais.2 Na esteira desse debate, Greene (1994) apresentou a ideia de autoridade negociada entre metrópoles e colônias, rompendo com a tradição da inexorável subordinação política das chamadas colônias e suas elites locais à autoridade europeia. Em resumo, diante de tais novidades, abriram-se novas perspectivas de investigação sobre as relações de autoridade entre as monarquias europeias e os seus domínios no além-mar, até então chamados de colônias. Em outras palavras, como ocorria a gestão cotidiano ainda das sociedades até agora coloniais. O mesmo debatedo possibilitara uma rediscussão das chamadas hierarquiasdesociais pre* Este texto faz parte de uma pesquisa financiada pelo CNPq. 1 Sobre a revisão crítica da subordinação da economia dita colonial da América ibérica do século XVII aos desígnios do Velho Mundo e em especial na revolução industrial inglesa ocorrida no século XVIII, ver, entre outros, Stern (1988); O’Brien (1982); O’Brien e Engerman (1991); Garavaglia (1991). 2 Ver, por exemplo, Elliot (1992); Hespanha (1994); e Pujol (1991).

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sentes no Novo Mundo — estas não mais entendidas, espero, como simples crias do capital mercantil. Na qual, por exemplo, o engenho aparece como uma protoempresa capitalista; os senhores, como protoburgueses; e o escravos, como mercadorias humanas, porém sempre mercadorias e, portanto, sem vontades. Este capítulo pretende contribuir para esse debate e tão somente isto. ❚

A reforma monetária feita pelo rei, as reações dos “moradores sem ordem”, o bem comum e a monarquia corporativa

Em finais da década de 1680, a Coroa lusa procurou implementar em seus domínios uma reforma monetária. Diante de tal determinação, o governador do Rio de Janeiro, João Furtado de Mendonça, numa carta de janeiro de 1687, afirmava que buscou se “aconselhar com os homens mais desinteressados e zelosos desta República (...), prelados, oficiais da câmara, e pessoas principais desta cidade”. Isto é, todos aqueles que tinham opinião nessa matéria com desinteresse e zelo do serviço de V. M. e bem deste reino. Passados alguns dias: aqueles “uniformemente aconselharão todos (...) que toda a alteração que houvesse na moeda seria em grande prejuízo desta capitania”. Em razão disso, o governador solicitava instruções a Lisboa: “visto que Vossa Majestade me encomenda tanto que não tome nenhuma resolução sem ser a satisfação de seus vassalos”.3 Em 1689, o Conselho Ultramarino consultava o rei sobre as dificuldades, nas conquistas americanas, para a aplicação da Lei da Moeda, de agosto de 1688. Ministros régios, situados no Brasil, levantaram dúvidas sobre a publicação da lei, e as câmaras de Salvador, Pernambuco e Rio de Janeiro a ela interpuseram embargos. O arcebispo da Bahia, em carta de 11 de julho de 1689 dava conta à Coroa das dificuldades em apregoar tal lei. Declarava diversas dúvidas a respeito dela e, “por saber que a mesma visava a utilidade dos vassalos, pedia esclarecimento a Lisboa e em razão disto não mandara publicar somente parte da dita lei”. O chanceler da Relação da Bahia, Manuel Carneiro de Sá, afirmava que não publicaria a lei de agosto de 1688 sem primeiro representar ao rei “o granAHU (Arquivo Histórico Ultramarino), RJ. CA (Castro Almeida). 9, doc. 1612. 1687. Carta do governador João Furtado de Mendonça, na qual informa sobre o prejuízo que poderia resultar de correrem na capitania do RJ moedas cerceadas. 3

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de inconveniente que se seguia de sua observância”, pois “o estado em que se achava o Brasil era destruí-lo de todo, e nesta consideração não publicava a lei nova até nova resolução de Vossa Majestade”.4 Na mesma Salvador de 1689, e ainda segundo o documento acima citado: “grande parte do povo na Câmara mandara convocar uma junta geral em que assistirão todas as pessoas de todos os estados, que em semelhante caso costu5 a Câmara pediu para mam para ediscutir a dita lei. diversos No Rioembargos. de Janeiro, analisarfazer,” a reforma submeteu ao rei Na ocasião, pareceu ao Conselho Ultramarino, após ter lido aquelas representações, que a lei devia ser respeitada em todos os domínios de Sua Majestade. O procurador da Fazenda Real, em parecer lido no Conselho Ultramarino, afirmava que na América prevaleciam “moradores sem lei e sem ordem [que] tinham dado à moeda valor a seu arbítrio”. 6 Para efeito deste capítulo, mais importante do que discutir o resultado dessa queda de braço — que se prolongou até pelo menos 1691 — entre o Conselho Ultramarino com as autoridades do rei nas conquistas e as câmaras municipais talvez seja atentar para o processo decisório nessa monarquia pluricontinental7 ou, se preferirem, nesse império luso de finais do século XVII.

AHU, RJ. CA. 9, doc. 1739. Ano de 1689. Consulta do Conselho Ultramarino sobre as informações que tinham enviado o governador da Bahia e chanceler da Relação do Brasil e os oficiais das câmaras da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro acerca das dificuldades que oferecia a execução da ordem relativa ao levantamento do valor das moedas. 5 Ver AHU, RJ. CA. 9. Ano de 1691, docs. 1767-1769. Representações dos oficias da Câmara do Rio de Janeiro contra a execução da Lei de 4 de agosto de 1688, sobre o aumento do valor das moedas, 4 de abril e 31 de maio de 1691 (docs. 1767-1768). Autos de embargos que os oficias da Câmara opuseram à execução da referida lei (doc. 1769). 6 Ver nota 4. 7 O conceito de monarquia pluricontinental encontra-se ainda em elaboração, tendo sido sugerido inicialmente por Nuno Gonçalo Monteiro e desenvolvido por Gouvêa e Fragoso (no prelo): “a monarquia pluricontinental é entendida como o produto resultante de uma série de mediações empreendidas por diversos grupos espalhados no interior do império. Se por um lado a noção de monarquia compósita, desenvolvida por John Elliot (...), tem sido muito discutida pela historiografia dos tempos modernos, a questão da monarquia pluricontinental é bastante diversa e apresenta possibilidades muito instigantes para se pensar o caso português. Para Elliot, monarquia compósita — tendo como referência principal o caso espanhol — era algo constituído por vários reinos, sendo que cada um deles preservava em grande medida as características de sua existência institucional prévia quando estando no interior da monarquia. Os vários reinos eram, desse modo, preservados, nos termos de suas formações srcinais, com seus corpos de leis, normas e direitos locais. Cada uma dessas unidades mantém sua capacidade de autogoverno no interior de um complexo monárquico mais amplo. Nesse formato, o rei — o monarca — operava como a cabeça do corpo social constituído pelos vários reinos, regidos por suas regras coadunadas com as leis maiores editadas pela Coroa.A monarquia pluricontinental é aqui entendida de 4

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Sendo mais preciso, a referida lei pode nos fornecer fragmentos e, portanto, pistas das etapas do processo decisório ou gestão desse império ultramarino no que tange a matérias decisivas no cotidiano das conquistas. Antes de continuarmos, cabe lembrar que tal reforma pretendia estabelecer regras mais precisas na circulação de moedas nos domínios de Sua Majestade. Para tanto, entre outras medidas, proibia a circulação de moeda cerceada (cujo valor nacional, srcinal forao adulterado) e elevava em cercano de valor 20% ointrínseco valor nominal da moeda que implicava uma redução ou real da mesma. Essas medidas eram vistas, por diferentes segmentos das elites nas conquistas americanas baseadas na agroexportação, como prejudiciais a seus interesses. Conforme a argumentação da junta nomeada pelo governador do Rio de Janeiro João Furtado de Mendonça, “a alteração que houvesse na moeda seria em grande prejuízo desta capitania [em razão] de resultar [em] reduzir o seu valor intrínseco”. Completava,ainda, a junta: como o dinheiro que hoje há nesta conquista sendo cerceado não pode passar para esse reino porque nele se não há de aceitar conforme ordem de V. M. sem que tenha o peso declarado nela, nem pode passar-se para outra parte por esta mesma razão, e por valerem nesta terra as patacas dois vinténs [a] mais do que é nesse reino.

Com isso, era garantida a saída do açúcar, em vez da moeda. Assim, a reforma proposta pela Coroa acabaria com um dos mecanismos de proteção da produção açucareira diante do capital mercantil e, além disso, implicava a perda de liquidez da conquista.8 Retornando à discussão do processo decisório na monarquia pluricontinental, de imediato se percebe que as decisões emanadas do Paço, ao atravessarem o Atlântico, eram discutidas pelos ministros de Sua Majestade, por conse-

modo bastante diverso. Nela há um só reino — o reino de Portugal —, uma só aristocracia e diversas conquistas. Nela há um grande conjunto de leis, regras e corporações — concelhos, corpos de ordenanças, irmandades, posturas, dentre vários outros elementos constitutivos — que engendram aderência e significado às diversas áreas vinculadas entre si e ao reino no interior dessa monarquia. O sentido do império resulta, assim, do processo de amálgama entre a concepção corporativa e a de pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por principio, a autonomia do poder local”. 8 Sobre o tema, ver Fragoso (2003). Há uma ampla discussão, por diferentes segmentos das elites do Rio de Janeiro, sobre essa lei na documentação do AHU (CA, doc. 1766-1769). Ver também Faria (2000).

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lhos palacianos (Tribunal da Relação) e pelas câmaras municipais, no caso, por autoridades eleitas pelos homens bons da localidade. Portanto, ao que parece, pelo menos no que tange à Lei de 4 de agosto de 1688, não podemos recorrer ao modelo explicativo que vê a América lusa como um simples apêndice do absolutismo europeu. E, ainda, as passagens acima põem em dúvida a própria ideia, no período estudado, seja em Portugal, seja nas conquistas, de um rei comoParece-me um Leviatã. que, para começarmos a tentar entender tal processo decisório, devemos nos ater em como as pessoas dos dois lados do Atlântico se viam, ou melhor, como elas entendiam a sociedade em que viviam. Em Portugal, Espanha e Itália do século XVI, a sociedade concebia a si própria como um corpo. A exemplo deste, aquela provinha da natureza. As diversas instituições sociais (família, Igreja, comunidades, grupos sociais etc.), como órgãos, desempenhavam funções e estavam dispostas hierarquicamente de maneira a garantir o movimento do corpo social. Desse modo, a sociedade era naturalmente desigual e, portanto, estratificada, sendo isso imprescindível para a sua própria existência. No topo de tal sociedade, enquanto sua cabeça, surgia o príncipe. Cabia a ele conectar aquelas diferentes instituições e dirimir as tensões entre os grupos, ou seja, viabilizar a existência da sociedade. O príncipe era a cabeça da sociedade, porém não se confundia com ela. Em outras palavras, ele compartilhava a autoridade com as demais instituições que a compunham: senhorios, comunidades etc. Na prática, isso implicava, por exemplo, a possibilidade ou margens de autogoverno dos senhorios jurisdicionais e dos conselhos municipais, bem como a autonomia dos conselhos palacianos. O príncipe devia respeitar e defender tal direito; ao fazer isso, ele garantia o bem comum. A partir daí começa a ficar mais claro o processo decisório nessa sociedade autopercebida como corporativa. Se é certo que os diferentes corpos da sociedade se sentiam pertencentes à monarquia, e, portanto, a subordinação a Sua Majestade era algo imprescindível à sua própria existência, também era certa a ideia de negociação na produção da autoridade para o bem comum. Na base desse tipo de visão temos a ideia tomista de que a condição natural do homem é social, mas não política.9 Por natureza, o homem vive em comuniEssas ideias adquiriram maior precisão em autores como os jesuítas ibéricos Luis de Molina (15351600) e Francisco Suárez (1548-1617). Cabe destacar que tais autores escreveram em meio ao ambiente das lutas religiosas contra os reformistas. Ver Skinner (2006, cap. 14). Desse modo, parte da filosofia 9

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dade; porém, para viabilizá-la, é necessário que ele ultrapasse o egoísmo em favor do bem comum. Nessa operação surge a sociedade política, e, com ela, a república, como um fenômeno mundano, e não de Deus. Os homens estabelecem um compromisso entre si e, com isso, abrem mão de sua liberdade natural em favor do príncipe como meio de tornar factível a própria sociedade. Em outras palavras, na monarquia de inspiração tomista, a meu ver, aquele compromisso político traduziaReciprocidade num pacto de não vassalagem com base nadádiva reciprocidade entre príncipe see súditos. só entendida como e contradádiva — em que o vassalo recebia mercês por serviços prestados à monarquia —, mas também como acordo político entre o príncipe e os poderes locais. Nesse compromisso temos pelo menos dois movimentos interligados. Primeiro movimento: as elites locais (senhorios e câmaras) reconheciam a hierarquia vinda do centro e viabilizavam o mando do príncipe em suas regiões, algo fundamental para um príncipe desprovido de burocracia civil e militar devidamente profissionalizada, a exemplo do que ocorre no Estado liberal. Segundo movimento: o príncipe reconhecia o autogoverno das comunidades e, portanto, a autoridade da elite local e a estratificação a ela ligada.10 Grosso modo, provavelmente tal concepção de sociedade norteou o processo de constituição do império ultramarino e das sociedades iberoamericanas nos Quinhentos e Seiscentos. Em outras palavras, serviu de aparato teórico do qual foram tiradas as ferramentas políticas para a construção daqueles cenários no ultramar. Porém, não basta apenas levar em conta a concepção corporativa do Velho Mundo para se entender a formação da sociedade na América lusa. As populações indígenas e africanas pensavam e, portanto, possuíam os seus respectivos sistemas normativos. O fato de tais populações terem neurônios e, assim, conduzirem suas práticas conforme determinadas orientações valorativas influenciou decisivamente o processo de constituição da sociedade nas conquistas lusas da América. Numa rápida imagem, acredito que o processo de formação da sociedade americana foi gerado a partir dos jogos entre diferentes agentes sociais,portadores de valores e recursos diferenciados. Os cativos africanos realizavam suas estratégias,

política que informa a elaboração da administração e gestão dos impérios ultramarinos provém da concepção corporativa e tomista, e mais adiante, daquela segunda escolástica, esta, sim, gerada em meio às reformas religiosas dos séculos XVI e XVII. 10 Perez Herrero, 2002:133-137.

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faziam escolhas conforme seus valores, porém com menos recursos do que os europeus. A interferência dos africanos na dinâmica na América lusa, como ainda veremos, pode ser identificada na constituição de relações de compadrio com fidalgos e, ainda, na defesa dos senhores de engenho por cativos armados. Cabe lembrar que, conforme as leis do reino, os escravos eram semoventes:na América, esses semoventes podiam ser afilhados de fidalgos da casa real. PorAntigo seu turno, como bem alembra Annick Lempérière de a ideia de Regime presidir conquista no Novo Mundo(2004), ibérico,apesar a América não conheceria o estabelecimento do Estado aristocrático. Assim, essa sociedade tinha no seu topo o príncipe; contudo, ao contrário do experimentado no Velho Mundo, na base não encontramos o senhorio, mas apenas as comunidades — leia-se o poder local na forma das câmaras, com as suas tradições e hierarquias sociais costumeiras. Os vereadores e juízes eleitos pelos homens bons da terra deviam responder pelos interesses destes últimos e gerir os negócios da república juntamente com os oficiais de Sua Majestade. Cabe insistir, mais uma vez, que a autonomia do poder local não entrava em conflito com a autoridade do príncipe. Na verdade, a própria ideia, presente nas ordenações filipinas e nos tratadistas da época moderna ibérica, de que o poder local devia estar nas mãos dos homens bons da terra, aqueles mais práticos, sábios e honrados, reforça a ideia de autogoverno das comunidades. Ou, ainda, a ideia da existência, em cada uma delas, de uma hierarquia social costumeira. Afinal, quem fala em melhores da terra está se referindo a um cenário necessariamente hierárquico; os melhores da terra ocupavam as posições cimeiras de tal hierarquia social e política. Sendo essa estratificação fabricada consoante as práticas costumeiras de cada comunidade, a partir dela temos os critérios de escolha dos chamados homens bons.11 Em outras palavras, de comunidade para comunidade, esses critérios podiam variar. Enfim, conforme o pacto social acima sublinhado, a monarquia abrigava e respeitava os costumes de comunidades/repúblicas dirigidas por homens bons escolhidos segundo critérios de honra diferentes. Isso é resultado de hierarquias sociais costumeiras distintas. Para tanto, basta lembrar as diferenças entre os conselhos municipais da ilha da Madeira e de São Tomé na primeira metade do século XVI. Na Madeira, prevalecia a pequena nobreza, cavaleiros e escu-

11

Desnecessário dizer que tais práticas costumeiras não podiam ferir as normas da monarquia cristã.

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deiros, que podia estar baseada emplantations açucareiras e escravistas, sendo o seu etos aristocrático revitalizado pelos serviços ao rei nas campanhas do Norte da África.12 Daí a possibilidade de os homens bons,13 designação para as elites locais, coincidirem com estratos da nobreza entendida como derivação do poder central: no caso, hábitos militares da fidalguia.14 Aqui as plantations podiam se transformar em morgados e sustentar as lutas contra o islã. Por conseguinte, uma fazenda um os pouco diferente daquela presente nas cercanias do recôncavo daaçucareira baía de Todos Santos. Já em São Tomé, temos os chamados “brancos da terra”, ou seja, mulatos exercendo a governança da república. Eram filhos de ex-escravos e muitos deles estavam envolvidos com o resgate de escravos entre Benim e Angola. Outros mulatos estavam baseados em plantations açucareiras com mais de 100 cativos.15 Mas, voltando à Lei de 4 de agosto de1688. A partir da percepção corporativa, não é de se estranhar que o governador do Brasil, o chanceler da Relação e, portanto, ministros régios discutissem a lei do rei. Da mesma forma, não era de se espantar que as câmaras na conquista — ou seja, as elites locais das ditas comunidades — apresentassem embargos às ordens régias.16 O conselho municipal estava cumprindo o seu papel, qual seja, negociar com o rei em nome do bem comum da república. Assim como não há de se espantar com o tratamento dado pelo Conselho Ultramarino àquelas queixas. Afinal, conforme o pacto de vassalagem — que viabilizava a gestão da monarquia —, o príncipe realizava sua autoridade de forma unilateral e, portanto, desproporcional diante de seus súditos. Estes últimos, porém, podiam interpretar o governo do rei, existindo mecanismos formais para tanto. Souza, 2005:140-150. Cabe sublinhar que, segundo Alberto Vieira (2004), a plantação de açúcar dominante na Madeira é diferente da brasileira e daquela das Antilhas. Na Madeira, a presença de lavradores de cana (contratos de colônia) é maior do que nas Antilhas, e o emprego de escravos, em média, é inferior ao das plantações do Novo Mundo. Para o autor, na Madeira a produção da cana era possível pela combinação entre escravos e trabalhadores livres. 13 Rodrigues, 2005 e 1998. 14 Monteiro, 2003. 15 Carta de d. João III, 1527 (Arquivo Histórico Ultramarino — S.Tomé e Príncipe — cx 1 - doc. 1, p. 2); carta de d. João III, 12-7-1538 (Arquivo Histórico Ultramarino — S.Tomé e Príncipe — cx 1 - doc. 1, p. 1). Ver também Serafins (2000 e 2005); e Caldeira (2006). 16 Em outras ocasiões, as câmaras ultramarinas, valendo-se de suas prerrogativas, interpretaram as ordens régias oferecendo resistência ao seu cumprimento. Exemplos disso foram as negociações entre as câmaras de Salvador e do Rio de Janeiro com a Coroa na implementação do sistema de comboios nos anos de 1644 e 1645. Ver Boxer (1973:201-203). 12

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O roubo de noivas entre os “moradores sem lei” e a autoridade de Sua Majestade: a hierarquia social costumeira do Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII

Entre os moradores chamados, em 1689, pelo procurador da Fazenda Real de “moradores sem lei e sem ordem” temos o capitão Tomé de Souza Correia, provedor da Fazenda do Rio de Janeiro e um dos oficias consultados pelo governador da capitania, Pedro Gomes, em 1679. Nessa ocasião, Souza Correia foi favorável à permanência das moedas cerceadas na capitania e, portanto, contrário à publicação da Lei de 13 de março de 1676, que previa a elevação das patacas em circulação no Estado do Brasil. 17 Tomé era natural do Rio de Janeiro, cavaleiro da Ordem de Cristo, proprietário do ofício da provedoria da Fazenda da dita região; depois foi vedor da Índia e mais tarde governador de Moçambique. Um senhor com tal carreira nos ofícios de Sua Majestade (poder central) dificilmente pode ser caracterizado como um vassalo “sem ordem”.18 Da mesma for ma, dificilmente ele se encaixava no papel de vítima do capital mercantil. Tomé e sua família estavam promiscuamente ligados a poderosos empresários em negócios como a arrematação de impostos e o tráfico de escravos.19 Seu tio, Martinho Correia Vasques, além de futuro mestre de campo da infantaria paga e fidalgo da casa de Sua Majestade, era potentado na região de Campos, onde possuía vastas cadeias clientelares e escravos armados. Estes últimos, aliás, atacaram e arruinaram, em 1691, as fazendas de seus desafetos da ocasião: os jesuítas.20 Em outras palavras, Tomé Correia pertencia a duas hierarquias distintas: uma imemorial, europeia, e outra mais recente, correspondente aos costumes locais da conquista. A primeira, derivada do poder central, era formada por fidalgos de solar, fidalgos da casa real e cavaleiros da ordem de Cristo etc. Além disso, sua autoridade estendia-se a todos os quadrantes geográficos da monar-

Carta do governador Pedro Gomes sobre o curso e valor das patacas e meias patacas (AHU, RJ. CA, cx. 8, 1427, 1681). Nessa correspondência, está reproduzida a opinião do então provedor da Fazenda Real contra a reforma monetária proposta por Lisboa. 18 ANTT. Chancelaria de d. Pedro II, livro 18, rolo 1.514, p. 172. Serviços de Tomé de Souza Correia. 19 Sobre Tomé de Souza Correia, ver Fragoso (2005). 20 Carta do reitor da Companhia de Jesus, Mateus de Moura, contra as agressões feitas por Martim Correia Vasqueanes e José Barcelos Machado contra as fazendas da Companhia em Campos (AHU, RJ, CA, cx. 9, doc. 1779, 1691). 17

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quia pluricontinetal. A segunda, a exemplo do que ocorria nas comunidades do Velho Mundo, estava ligada ao poder local e resultava das práticas da terra — leia-se, das experiências desenvolvidas pelos moradores do conselho considerado. Naquele momento, porém,Tomé e demais moradores da dita hierarquia guardavam certa distância dos seus homólogos das câmaras lusas. Nos conselhos municipais portugueses, as experiências sociais que criaram as estratificações locais ooupertencimento da terra já tinham longa vida. Por exemplo, os critérios que definiam ou não dedata umadedada família à nobreza da terra em Évora, antigo município luso, provinham do medievo. Portanto, eram critérios devidamente consolidados no tempo. O mesmo não ocorria na comunidade habitada por Tomé: o Rio de Janeiro. Este conselho fora fundado em 1565. Desse modo, nele os costumes tradicionais estavam sendo ainda gerados — e por agentes sociais diferentes daqueles presentes no Velho Mundo. Basta lembrar que tais práticas, no recôncavo da Guanabara, decorriam de jogos entre europeus, índios, pardos e escravos africanos. Assim, nesse recôncavo, a hierarquia da terra fora inspirada nas concepções de mundo vindas da Europa (a exemplo da corporativa), mas também nas provenientes das sociedades africanas, através do tráfico atlântico de escravos. Esta última concepção, por exemplo, se traduzia na experiência dos escravos armados; fenômeno comum em Benim e no Congo Angola.21 Sendo mais preciso, tal hierarquia costumeira da conquista vivia nos Seiscentos segundo juízos provavelmente inimagináveis para as comunidades de Portugal de então. Por exemplo, no recôncavo da Guanabara se tinha como um dos critérios de autoridade e de acesso aos cargos honrados da república o recurso de escravos índios e/ou africanos armados. Por seu turno, esta última informação leva-nos a outro traço da mesma estratificação dos trópicos: a existência de hierarquias no interior das senzalas. Aquela estratificação, ainda no reino das suposições, devia ser uma das derivações das negociações entre senhores e escravos. Afinal, a possibilidade do cativo de defender seus amos e outras atitudes de lealdade para com estes no mínimo resultavam de finas barganhas entre tais grupos. Talvez não seja exagero afirmar que esses entendimentos se traduziam em relações clientelares, nas quais os envolvidos tinham compromissos e obrigações.

21

Silva, 2002; Issacman e Isaacman, 2004; Lovejoy, 2002:119-146.

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Tais informações ajudam-nos entender, por exemplo, as relações de compadrio dos Correia para com algumas famílias escravas. Duas das famílias escravas de Manuel Correia Vasques — filho do mestre-de-campo há pouco citado, futuro juiz da alfândega do Rio de Janeiro e também, como já veremos, raptor de noivas — tiveram por padrinho o seu filho, também chamado Manuel, e por madrinha, respectivamente, uma escrava e uma parda forra.22 Assim, tal distinta família de srcem fidalga e inscrita casa dedeSua Majestade possuía alianças nas senzalas e entre os pardos. Essasna relações compadrio ajudam-nos a compreender a possibilidade de legitimidade dos senhores diante de suas escravarias (e, com isso, a chance dos escravos armados), assim como pode servir de ponto de encontro entre tal fenômeno e as hierarquias no interior das senzalas. Cabe sublinhar que, a exemplo dos escravos armados, não só os Correia recorriam às práticas de compadrio com algumas, provavelmente seletas, famílias de cativos. Diversas outras casas senhoriais nos trópicos tinham a mesma prática. Basta lembrar o exemplo dos engenhos do capitão-mor Manuel Pereira Ramos. Entre os anos de 1728 e 1738, pelo menos cinco crianças de quatro famílias cativas foram batizadas por João e Maria Pereira Ramos, filhos do dito capitão-mor. Em 1738, João tinha 16 anos, ou seja, era um adolescente.23 O fato de jovens senhores apadrinharem rebentos de suas senzalas se verifica em outros casos, como o dos netos do juiz de órfãos Francisco Teles de Menezes na década de 1750.24 Isso sugere um padrão de geração e reprodução de laços de clientela desde a tenra infância dos futuros senhores de homens e de terras. Décadas depois João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho seria o primeiro titular do morgado da família, cavaleiro fidalgo, desembargador e secretário do Conselho do Príncipe.25 Enfim, escravos armados e compadrio com parentelas de cativos afastam ainda mais aquela hierarquia social da terra — da conquista — daquela vivida nas comunidades lusas onde, conforme as ordenações filipinas, os cativos eram Livro de batismos de escravos de freguesia de Jacutinga (1730-39); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. As informações sobre Manuel Correia Vasques foram retiradas de Fragoso (no prelo). 23 Livro 15 de batismos de escravos de freguesia de Marapicu (1730-39); Cúria Metropolitana de Nova Iguaçu-RJ.Ver também Rheingantz (1965, v. 2, p. 645; v. 1, p. 147). 24 Livro de batismos de escravos de freguesia de Jacarepaguá (1750-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. 25 Biblioteca Nacional, seção de obras raras, ms. 5, 3, 13-15.Ver também Fragoso, 2005:53. Sobre outras famílias senhoriais com laços de parentesco ritual, ver Fragoso (no prelo). 22

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semoventes. Nos trópicos, os fidalgos da casa de Sua Majestade eram parentes rituais de seus semoventes. Esta última hierarquia era nova. E, mesmo considerando que fora elaborada sob os auspícios da escolástica, 26 tinha uma dinâmica própria diferente da dos fidalgos de solar. No entanto, ambas, a imemorial europeia e a costumeira da conquista, se encontravam na família dos Correia e tinham a chancela de Sua Majestade. Ou,sentimento sendo maisde preciso, aqueles que viviam tal ehierarquia compartilhavam de um pertencimento à monarquia viam, portanto, no rei a capacidade de dirimir as contendas existentes na mesma hierarquia, como, por exemplo, os conflitos entre potentados — leia-se o confronto entre interesses particulares cuja exacerbação podia pôr em risco o bem comum. É o que se observa no requerimento de José Velho Barreto feito ao rei, depois de 1683, contra Manuel Correia Vasques,27 acusando-o de rapto de sua noiva. José era potentado na região, pertencendo a uma das mais tradicionais famílias da nobreza principal da terra do Rio de Janeiro. A contenda entre os dois girava em torno de Antônia Teresa Maria Pais, viúva e herdeira de Tomé Correia Vasques, irmão de Manuel, e então noiva de José, com quem devia, portanto, contrair segundas núpcias. A família Correia Vasques discordava de tal união e a solução encontrada fora invadir, com 40 escravos armados, o engenho de José e sequestrar a noiva. Por seu turno, Velho Barreto também era potentado com escravos armados, dono de engenho de açúcar; porém, entre os seus consanguíneos, até onde sei, não havia fidalgos da casa real ou cavaleiros de ordens militares — ou seja, insígnias de mando vindas das tradições do centro do reino. Além disso, pertencia a um dos bandos da nobreza da terra representado na Câmara do Rio de Janeiro quando dos embargos à Lei da Moeda de 1689. Na verdade, os desentendimentos dos Velho Barreto com os Correia tiveram no rapto de Ana Teresa um de seus capítulos. Ainda no ano de 1688, osVelho Barreto foram acusados, entre outros, de assassinarem Pedro de Souza Correia, irmão mais novo de Tomé de Souza e na época ocupando a provedoria da Fazenda Real da cidade.Neste últiComo já vimos, a concepção corporativa previa o autogoverno das comunidades conforme os seus costumes locais. 27 Requerimento de José Velho Barreto, natural do Rio de Janeiro, ao rei [d. Pedro II] solicitando ordens para que Manuel Correia Vasques, cunhado de sua noiva,Antonia Teresa Maria Pais, seja preso e remetido para a Corte, por não querer restituir os bens móveis e de raiz e não aceitar o casamento dela (AHU, cx. 5, doc. 489. Avulsos — Rio de Janeiro). 26

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mo confronto,eles foram acusados de participar do ataque com índios flecheiros a engenhos de seus desafetos no recôncavo da cidade.28 O fato de essa família ter séquitos de escravos armados e partilhar relações de compadrio também com cativos29 reafirma a existência de uma hierarquia de mando costumeira cujos critérios passavam por finas negociações com africanos — diferente, portanto, daquela baseada nos foros da fidalguia imemorial. Contudo, o funcionamento da mesma hierarquia da terra, para não perecer no caos, dependia do zeloso cuidado arbitral de Sua Majestade. ❚

O escravo cabra José Batista e os seus: casa e clientela

na hierarquia social costumeira do Rio de Janeiro Outra singularidade de tal hierarquia social costumeira da América lusa diante da reinol é a produção de pardos30 enquanto grupo social — estes entendidos como sujeitos egressos da escravidão, alguns dos quais em virtude de burlas às normas estamentais ou mestiços enquanto resultado de encontros entre escravos e brancos livres. A nova historiografia brasileira tem cada vez mais estudado tal grupo. Basta lembrar o trabalho pioneiro de Hebe Mattos31 (1995) e os mais recentes de Silvia Lara (2007) e Sheila Castro Faria (2005). Não é minha intenção me alongar nesse tema. Por ora, basta-me apresentar algumas questões para discussão. Os quadros a seguir trabalham com a presença de casais de forros nos livros de batismos de algumas freguesias rurais do Rio de Janeiro no século XVIII. Antes de tudo, cabe lembrar que o forro é um sujeito em processo de se livrar da escravidão; um sujeito, portanto, possível pela vontade senhorial. Assim, a alforria decorre de relações pessoais vividas no interior de uma casa senhorial. E, nesse processo temos, além dos escravos e senhores, a ação de ou-

Carta do sindicante Belchior da Cunha Brochado sobre o assassinato de Pedro de Souza Pereira (AHU, CA — Rio de Janeiro, cx. 9, doc. 1621-22, 1687). 29 Sobre essa f amília não possuo informações de suas relações de compadrio no século XVII; porém, no seguinte, seu descendente João Velho Barreto Coutinho, futuro mestre-de-campo das tropas auxiliares, fora padrinho de pardos em Irajá do século XVIII (livro de batismos de escravos da freguesia de Irajá, 1750-59; Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 30 Designação coeva para os egressos da escravidão.Ver Rheingantz (1965, v. 3, p. 130-131). 31 Ver também Viana (2007); Guedes (2008); e Machado (2008). 28

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tros jogadores, também componentes da casa: parentes do senhor, agregados, forros etc. Sendo tal processo desenrolado, a princípio, sem a interferência do príncipe. Quadro 1a Número de casais livres (classicados conforme a condição social da mãe*) e de escravos que batizaram lhos em Irajá (1730-59) — totais por décadas Classicação dos casais

1730-39

Forros

10(7%)

Exposto Outroslivres Total de livres

1740-49

11(9,6%)

0 134

0 104

144

115

Escravos

1750-59

16(11,6%) (10,9%) 15 107(77,5%) 138

159

185

Fontes: Livros de batismos de livres da freguesia de Irajá (1730-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. *batismos Foram aqui classicadas todasNa asdécada mães como livres, nos livros de de livres como forras. de 1730, há excetuando a declaraçãoaquelas de umanomeadas mãe exposta.

Quadro 1b Número de registros livres (classicados conforme a condição social da mãe*) e de escravos que batizaram lhos em Irajá (1730-59) — totais por décadas

Filhos/registros

1730-39

1 7 4 0 -4 9

15

21

Forros Exposto Outroslivres Totalgeraldelivres

(9,6% 22 de a) (12,3% 28 a) de

262 277

180 201

Escravos Totalderegistros

1750-59

178(78,1%dea) 228(a)

218 277

419

245 473

Fontes: Livros de batismos de livres da freguesia de Irajá (1730-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. * Foram aqui classificadas todas as mães como livres, excetuando aquelas nomeadas nos livros de batismos de livres como forras. Na década de 1730, há a declaração de uma mãe exposta.

A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista

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Quadro 1c Relação de registros de batismos (lhos) por casais de livres em Irajá (1730-59) — totais por décadas

Filhos/casais Forros Exposto Outros livres Total de livres Escravos

1730-39 1,5 0 1,9 1,92

1 7 4 0 -4 9 1,75 0 1,73 1,74 1,37

1750-59 1,5 1,87 1,6 1,65 1,32

Fontes: Livros de batismos de livres da freguesia de Irajá (1730-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.

Quadro 2 Número de registros livres (classicados conforme a condição social da mãe*) e de escravos que batizaram lhos em Jacarepaguá, 1750-59

Famílias conjugais Conquistador Exposto Outroslivres

Casais 12(8,3%dea) (4,2% 6 de a) 98(68%)

Forros Totaldelivres Escravos Totalderegistros

28 (19% de a) 144(a) 95 239

Filhos/registros 32 15 163

2,66 2,5 1,66

60 270

2,14 1,87

Média

136 406

1,43 1,7

Fontes: Livros de batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá (1750-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. * Foram aqui classicadas todas as mães como livres, excetuando aquelas nomeadas nos livros de batismos de livres como forras. Em 1730, há a declaração de uma mãe casada exposta.

Quadro 3 Número de registros livres (classicados conforme a condição social da mãe*) e de escravos que batizaram lhos em Campo Grande, 1750-59

FForros amíliasconjugais Total de livres (inclusive forros) Escravos Totalderegistros

Cas16 ais

221

Filh25os

Média

96

132

1,56 1,4

125

193

1,54

325

1,47

Fontes: Livros de batismos de livres da freguesia de Campo Grande (1750-59); Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. * Foram aqui classicados todas as mães como livres, excetuando aquelas nomeadas nos livros de batismos de livres como forras. Em 1730, há a declaração de uma mãe casada exposta.

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Pode-se observar, ao longo da primeira metade do século XVIII, o aumento do número de batismos de filhos de casais forros. De imediato, tal fenômeno sugere a possibilidade de ascensão social na sociedade escravista considerada. Tomando como referência a freguesia de Irajá (quadro 1a), nota-se que tal grupo, na década de 1730, representava 7% do total de casais no livro de batismos de livres. Na década seguinte, esse número passou para 9% e, nos anos de 1750,designados ultrapassoucomo a barreira dois dígitos. Nessa os casais muitos pardos,doscorrespondiam a quasedécada, 12% dos casais forros, livres. Na freguesia de Jacarepaguá, à mesma época (quadro 2), os forros somavam cerca de 1/5 da população de casais nas mesmas condições. Temos assim, como afirmei, um processo de ascensão social numa sociedade estamental, sendo tal movimento particularmente significativo, pois partia da senzala. Além disso, caso comparemos tais casais com os casais de escravos, podese supor que os forros, proporcionalmente, tinham uma taxa de fecundidade maior. Na década de 1740, conforme os quadros 1b e 1c, o número de filhos por casal forro fora 1,75. Na mesma época, a relação filhos/casais para os cativos não passava de 1,37. Algo semelhante se repetiu para os anos de 1750. Entre os forros, tal proporção fora de 1,5; e entre os escravos, de 1,32. Em Jacarepaguá (quadro 2) o mesmo fenômeno ocorrera. Dessa forma, uma vez saídos do cativeiro, os casais tendiam a (epodiam) aumentar a sua taxa de fertilidade. Vale notar que tal diferença talvez não possa ser simplesmente atribuída às péssimas condições de vida nas senzalas ou a uma política senhorial derivada do tráfico atlântico de escravos. Até porque, na freguesia de Campo Grande, ainda na década de 1750 e segundo o mesmo tipo de fontes (quadro 3), os casais escravos apresentavam uma taxa de 1,54, e os livres, de 1,4. Portanto, segundo o quadro 3, na freguesia considerada, aparentemente os cativos tinham uma taxa de fecundidade superior à dos livres e próxima da dos forros. Fenômeno que, mesmo levando em conta uma possível distorção da documentação, nos alerta contra conclusões apressadas. Seja como for, talvez seja mais razoável considerar que também forros e cativos eram capazes de fazer escolhas. Nesse caso, os últimos tinham por estratégia ampliar suas famílias consanguíneas. Assim, além da produção do alforriado, existiam outros jogos sociais que resultavam da população forra, muitas vezes também designada como parda — no caso, o seu crescimento vegetativo. Reforçando este último ponto, não custa voltar ao quadro 2, sobre Jacarepaguá. A elite local — no caso, os descendentes dos conquistadores qui-

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nhentistas 32 — apresentou uma taxa de 2,66, enquanto os forros (2,14) tiveram melhor desempenho do que outros segmentos de livres, com 1,66. Ainda nesse quadro 2, nota-se que os casais cujas mães foram classificadas como expostas (filhas de pais desconhecidos) tiveram o maior número relativo de rebentos (2,5), logo abaixo da elite. Provavelmente, o mesmo resultado poderia ser encontrado para Irajá dos anos de 1750, caso tivéssemos melhores informações sobre elite local. De qualquer forma, a relação filhos/pais entre os aexpostos foi maior nas frações dos nessa livres paróquia conhecidas — expostos: 1,87; total de livres: 1,65 (quadro 1b). A anotação daquele tipo de casal, algo que não ocorre com frequência nos livros de batizados de livres do século XVIII no Rio de Janeiro,33 indica outro viés das estratégias das populações analisadas — no caso, para lidar com os códigos costumeiros de natureza estamentais presentes nas regiões estudadas. Apesar de não existir nenhum preceito legal proibindo casamentos entre pessoas de estatutos sociais diferentes, dificilmente, nos livros de batismos, encontrei casais de pardas com brancos. Ou seja, conforme os códigos costumeiros locais, os matrimônios seguiam preceitos de endogamia social. Tal preceito, porém, podia ser contornado, na prática, com os nubentes expostos. Em 14 de fevereiro de 1760, João Teles de Sá, integrante dos Sá da Rocha, um dos ramos dos Rangel, família de conquistadores quinhentistas,34 registrava em Jacarepaguá um de seus 10 filhos. Todos tidos com a exposta Rosa Maria, que como tal tinha srcem desconhecida. 35 Dois anos depois, Sebastião de Oliveira Sampaio — descendente do capitão Antônio Sampaio, companheiro de Estácio de Sá nas lutas contra os franceses nos anos de 1560 — levava sua filha Inácia para a pia batismal com a esposa Maria dos Anjos, esta exposta na mesma casa dos

32

Ver Fragoso (2007).

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O fatonão deimplica não serem frequentes,denos livrose mães de batismos, notícias casaiso peso em que esposa era exposta a inexistência adultas dessa srcem. Bastasobre lembrar das acrianças expostas nas populações de batizados. Em Irajá, na década de 1730, foram batizadas 249 crianças, das quais 8% eram expostas, na década seguinte, esse número subiu para 14% (36 de 254 batizados). Em Campo Grande dos anos de 1750, os batizados somaram 171, dos quais 21 de expostos ou 12% do total. Algumas dessas crianças provavelmente cresceram e procriaram. 34 Ver Fragoso (2007:67). 35 Registro de batismo de livres de 14-2-1760 — pais: João Teles de Sá e Rosa Maria; livro de batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). Ver também Rheingantz (1965, v. 3, p. 130-131).

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Sampaio.36 Em 8 de julho de 1701, também em Jacarepaguá, o casal Antônio Muniz Tavares e Úrsula de Andrade registrava sua filha sob os olhares atentos dos padrinhos: o capitão João AiresAguirre e sua esposa Francisca Muniz Telo,37 ambos de tradicionais famílias da nobreza principal da terra. Apesar de não constar nenhuma informação sobre a srcem dos pais naquele registro paroquial, Úrsula de Andrade fora exposta na casa do capitão Manuel Pimenta de Carvalho, genropequena numa freguesia tradicional família quinhentistas: Pontes.38 Nessa r ural, ciosadedeconquistadores suas práticas estamentais e ondeos provavelmente todos conheciam as histórias de todos, a exposição de crianças nas melhores casas da terra era um meio de resolver problemas de crianças de srcens de nebulosas (pais com estatutos diferentes, por exemplo). A importância da exposição de crianças na formação de casais pode ser avaliada através dos quadros 1 e 2. Neles se vê que as esposas com tal estatuto correspondem de 4 a 10% da população analisada. Nessa sociedade rural onde conviviam práticas costumeiras — portanto, não referendadas pela pena do príncipe — de natureza estamental e mecanismos de ascensão social, via alforrias e exposição de crianças em casas da nobreza da terra, temos histórias como a de José Batista, escravo cabra do capitão João Pereira Lemos. Este último fora exposto na casa dos Pereira Lemos e em finais 39 José, do século XVIII possuía dois engenhos, somando mais de 300 escravos. no inventário da viúva do capitão, de 1795, tinha mais de 30 anos, era oficial de carpinteiro, estava casado com Efigênia, escrava angola, e possuía um canavial nas terras do engenho de São João Batista do Sapopema. Na verdade, ele pertencia a um seleto grupo das senzalas do Sapopema. No engenho havia 48 homens com mais de 15 anos, assim distribuídos: 27 eram africanos, e os demais, crioulos; 28 estavam aparentados; 23 possuíam ofícios qualificados (carpinteiros, pedreiros etc.); oito tinham lavouras de cana; e somente cinco tinham, ao

36 Registro de batismo de livres de 10-3-1758 — pais: Sebastião de Oliveira Sampaio e Maria dos Anjos; livro de batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 37 Registro de batismo de livres de 8-7-1701 — pais: Antônio Muniz Tavares e Úrsula de Andrade; livro de batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 38 Rheingantz (1965, v. 2, p. 645).Ver também Fragoso (2007:72). 39 Registro de batismo de livres — batizado de João, 1-2-1755; pais: João Pereira Lemos e Ana Maria de Jesus, 10-3-1758; livro de batismos de livres da freguesia de Irajá (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro — Inventário post mortem de Ana Maria de Jesus). Sobre os Pereira Lemos no Rio de Janeiro e suas ligações com a nobreza principal da terra, ver Fragoso (2005).

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mesmo tempo, famílias, ofícios qualificados e lavouras de cana. Destes cinco, quatro eram crioulos e provavelmente pertenciam a famílias com mais de duas gerações na plantation. José pertencia àquelas antigas famílias, tendo nascido em 24 de outubro de 1758, filho de José Batista, forro, e da escrava Perpétua. Seus padrinhos foram o exposto Bento de Souza e sua esposa, que tinham batizado, um ano antes, a irmã José, Eva — fenômeno que provavelmente, insinua fortes laços aliança dois casais.deAssim, o nosso herói nasceu, em de meio a umaentre redeossocial formada por diferentes agentes sociais: forros, livres e escravos. Na década de 1790, conforme os registros de batismos de escravos, essa rede ampliava suas influências. José e esposa batizaram três crianças de duas famílias escravas de diferentes proprietários e que, no entanto, habitavam o mesmo engenho. Num desses casos temos a reincidência de duas práticas presentes em outros batizados, entendidos como celebração de compromisso entre compadres: a reafirmação de alianças entre famílias por meio do parentesco fictício; e pactos entre cativos que compartilhavam o mesmo estrato na hierarquia das senzalas. Essas duas práticas ocorreram com Salvador, cabra, escravo da viúva do capitão João Pereira Lemos, Ana Maria de Jesus. Salvador, que era carpinteiro, mesmo ofício que o de José, escolheu por duas vezes, no espaço de três anos, Efigênia como madrinha de seus filhos,40 com o que os pactos entre os casais foram reativados, algo provavelmente importante diante das incertezas do cativeiro. No mesmo engenho, algo semelhante ocorreu entre os casais Raimundo (crioulo) e Marcela (angola), e Joaquim Domingues (pardo) e Izadora (parda).41 Dois filhos do primeiro casal foram batizados pelo segundo. Ambas as famílias tinham lavouras próprias no Sapopema, e os esposos lidavam com ofícios qualificados. Talvez esse tipo de compromisso tenha de alguma maneira influenciado nas estratégias de ascensão dos cativos Batistas. Seja como for, em 3 de abril de 1790, a mãe de José, Perpétua, e o pai João batizavam uma cria escrava. Nessa oportunidade, foram nomeados pelo pároco como pretos forros. Ou seja, Perpétua saíra da Registro de batismo de escravos de Irajá, 1790; batizado: Leandro; pais: Salvador e Maria do Espírito Santo, cativos de Ana Maria de Jesus; livros de batismos de livres da freguesia de Irajá, 1730-59 (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 41 Registro de batismo de escravos de Irajá, 1793; batizado: Maurício; pais: Raimundo e Marcela, cativos de Ana Maria de Jesus; Irajá, 1793;registro de batismo de escravos de Irajá, 1794; batizado: Eufrásio; pais: Raimundo e Marcela, cativos de Ana Maria de Jesus; livros de batismos de livres da freguesia de Irajá (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 40

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escravidão, tinha se alforriado, mas mantinha laços de parentesco com o cativeiro, não só o consanguíneo, mas também o ritual. Nas terras dos Lemos Pereira, ocorreu também a história de um tal Inácio Pereira, forro. Ele e Josefa, escrava de Miguel Cardoso Castelo Branco (cunhado do nosso capitão exposto), foram padrinhos, em 1783, do filho de Antônio e Florinda, ambos cativos de Antônio Miguel Cardoso Castelo Branco.42 Em 1795, no inventário de Ana Maria de Jesus,Ainda um dosnolavradores de cana tinhae por Inácio Pereira. campo dos indícios das nome conjecturas, temos o nome Batista, coincidentemente o mesmo do engenho ao qual aquela família de escravos e forros estava ligada. Talvez o fato de portar tal apelido indique relações mais próximas ou, ainda, clientelares do velho João e família com o capitão dono do Sapopema. Algum pacto desigual, com certeza, mas compartilhado por ambos. Coincidência ou não, algo similar pode ter acontecido aos pardos Gregório Nazianzeno e Maria Sampaio. A primeira notícia que tenho de Gregório data de 1703, em Jacarepaguá, quando batizou uma escrava do potentado local, o capitão Inácio da Silveira Vilasboas. Acredito que a escolha do nome de Gregório foi uma homenagem ao capitão Gregório da Fonseca Nazianzeno, o Moço, integrante de uma das mais distintas famílias de conquistadores. Na década de 1750, o dito casal de pardos aparece com três filhos, dois netos e, ainda, dono de dois escravos, todos residentes na fazenda do Rio Grande, do capitão Manuel Pimenta Sampaio. A essa história podemos juntar a dos pardos Boaventura de Sampaio e Francisco de Souza Quintanilha e suas respectivas esposas. Ambos portavam nomes da nobreza da terra, saíram da escravidão, transformaram-se em donos de pequenos plantéis e mantinham ainda parentesco ritual com escravos.43 Talvez, a exemplo dos Batista, fossem todos ex-escravos dos Sampaio, tendo permanecido nas terras destes após a alforria e mediante relações clientelares.44 Não sei ao certo, ainda, quais foram os expedientes utilizados pelo casal para sair da senzala e ingressar no grupo de donos de cativos. Entretanto, salvo

Registro de batismo de escravos de Irajá, 3-7-1783; batizada: Maria; pais: Antônio e Florinda, cativos de Antônio Miguel Cardoso Castelo Branco; livros de batismos de livres da freguesia de Irajá, 1730-59 (Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). 43 Sobre o tema, ver Fragoso (no prelo). 44 Um dos traços que caracterizariam tal relação clientelar seria talvez o uso da terra por esses cativos, tendo como contrapartida não o pagamento de uma renda, mas a subordinação política. Essa hipótese parte da suposição de que por essa época tínhamos já um quadro semelhante ao dos “sitiantes” (lavradores pobres com acesso a terras de outrem) descrito por Hebe Mattos (1987) 42

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engano, os pactos estabelecidos com a nobreza principal da terra — simbolizados pela adoção dos seus apelidos e traduzidos no acesso à terra — não devem ter prejudicado o sucesso dos ditos pardos. Estas últimas suposições sobre pardos egressos da escravidão e transformados em lavradores pobres, alguns com cativos, e supostamente com acesso às terras de seus antigos senhores permitem-me voltar ao ponto de partida de nossa discussão: hierarquias sociais costumeiras nalusa. sociedade rural do tal Riosituação de Janeiro, em meio aasuma monarquia pluricontinental Antes de tudo, dos lavradores pardos em relação aos senhores da terra teria sido construída ao longo de gerações e, portanto, em meio a uma estratificação social existente nas senzalas. E a melhor posição em tal hierarquia dependia das suas alianças horizontais e verticais, via compadrio, com outros cativos, com forros e senhores. Aliás, como vimos no caso dos Correia Vasqueane e outros potentados rurais, tal hierarquia se comunicava com a casa-grande mediante o parentesco ritual e os escravos armados. Desse modo, aplantation era mais do que uma empresa agroexportadora, pois nela existia uma verdadeira aldeia colonial onde, por meio do compadrio, do matrimônio e da clientela, encontravam-se cativos, forros, livres e senhores. Essa plantation, como uma casa de Antigo Regime,45 abrigava também códigos de comportamento familiares e talvez um etos que servia de horizonte para os potentados. Refiro-me não só à possibilidade dada pelos senhores de alguns escravos e, depois pardos forros, carregarem os apelidos senhoriais (Batista, Pereira e Sampaio), incorporando-os à dita casa, mas também a uma variação do sistema de transmissão de herança compartilhado nessas famílias de potentados. O exposto capitão João Pereira Lemos casou-se com Ana Maria, sobrinha do antigo dono dos engenhos (o padre Luís Pereira Lemos) que herdara e onde viviam os irmãos de sua esposa.46 Por gerações, os Pimenta Sampaio optaram por casamentos endogâmicos, tendo escolhido um dos seus para ser dono do Rio Grande, onde viviam os demais parentes como lavradores escravistas de cana.47 Essa prática sugere a opção pela integridade do patrimônio fundiário como algo compartilhado por parentes, sendo isso feito, é claro, dentro de padrões hierárquicos: o capitão Manuel Pimenta Sampaio era nomeadosenhor do Gonçalo, 1998. Pedroza (2008) descreve outras situações semelhantes. 47 Inventário post mortem de Ana Maria de Jesus, 1795; inventáriopost mortem de Miguel Cardoso Castelo Branco, 1797 (AH).Ver também Fragoso (no prelo). 45 46

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Rio Grande; portanto, os demais consanguíneos estavam a ele subordinados. De qualquer forma, parece-me algo diferente das práticas sociais do morgadio e dos segundões.48 Por outro lado, a opção dos Pimenta Almeida e dos Pereira Lemos representava estabilidade para os seus respectivos consanguíneos, assim como para os forros e escravos residentes nas mesmas terras. Na verdade, tal estabilidade, sem fragmentação das terras, garantia a estabilidade daquilo que denominei aldeia da hierarquia dassesenzalas, enfim, das relações clientelares. Aquela práticacolonial, talvez seja a chave para entender melhor o que, em outros trabalhos, chamei de nobreza principal da terra.49 ❚

Conclusão

Este capítulo teve somente o objetivo de contribuir para as discussões recentes sobre império ultramarino e hierarquias sociais na América lusa. Uma vez posta em dúvida a antiga ideia de Estado absolutista enquanto Leviatã e reconhecida a possibilidade de autogoverno dos corpos que compunham a monarquia lusa, inevitavelmente surgem perguntas sobre o funcionamento do império luso seiscentista: como eram geradas as decisões no império? Como se configurava o poder local nas chamadas colônias? Como trabalhar com os agentes que compunham as comunidades da conquista americana? Nesse novo cenário teórico, pretendi apresentar indícios da interferência tanto da administração periférica da Coroa nas conquistas quanto das comunidades nela situadas nas leis do rei, sendo isso feito em nome do bem comum. Por seu turno, uma vez constatado este último fenômeno, temos como uma de suas consequências possíveis a hipótese de o príncipe respeitar a dinâmica das comunidades com suas hierarquias sociais da terra. Cabe sublinhar que isso estava previsto no pacto entre súditos e príncipe, conforme os postulados tomistas vividos no Velho Mundo. Em outras palavras, no caso anteriormente analisado, aquele pacto implicava uma reciprocidade entre príncipe e potentados escravistas, e consequentemente a interferência destes

Clavero, 1974; Gonçalo, 1998. Certamente essa opção de transmissão de patrimônio entre gerações é uma possibilidade. Segmentos da nobreza principal da terra tinham, por exemplo, outros horizontes e possibilidades, como a dotação de genros fidalgos com engenhos como forma de franquear foros de nobreza, segundo os padrões do poder central, para determinado ramo da família. Nisso, porém, os demais herdeiros eram preteridos. 48 49

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na gestão do império. Contudo, ao mesmo tempo isso se dava em consonância com a ideia de pertencimento dos mesmos potentados à monarquia e a consequente capacidade do príncipe para dirimir os conflitos locais. Por seu turno, tais potentados existiam também em razão das relações que mantinham com outros sujeitos da América, como os pardos forros e os escravos. Para evitar qualquer equivoco, claro está que devemos ainda muito investigar o reconhecimento pelo príncipe da autoridade elites cujo poder baseava-se em escravos armados e no compadrio comdepretos . Alocais configuração de tal hierarquia não estava prevista nas ordenações e nas tradições das comunidades do reino. Apesar disso, em meio a ela surgiram grupos como os chamados pardos.Ao que parece aquela estratificação da América lusa se apresentava como uma fratura na concepção corporativa vinda do Velho Mundo.A despeito disso, flecheiros e africanos armados foram utilizados em diferentes partes daquela América, ao menos até meados dos Setecentos.50 E isso, muito embora em diversos momentos o rei e seus conselhos palacianos tivessem sinalizado, principalmente depois de 1720, o seu desconforto com tal realidade.51 Da mesma forma, até finais daquele século e no seguinte, os pardos se multiplicaram. Ver Mathias (2005). Em 1744, Gregório de Moraes Castro Pimentel, oficial das tropas regulares e potentado no Rio de Janeiro, valeu-se de seus escravos armados para desbaratar um quilombo com mais de “200 negros” nas redondezas da dita cidade. Provimento de Thomaz José Homem de Brito ao posto de capitão de infantaria, no regimento de que é coronel André Ribeiro Coutinho (AHU, RJ, CA., cx. 66, doc. 15.465, ano de 1752). 51 Sobre este tema, vide a provisão régia remetida ao Rio, em 1722, que ordenava ao governador o zelo da nova lei de proibição do uso de armas em todas as partes de sua jurisdição. Cinco anos depois, a Câmara apelava ao rei contra tal lei, pois ia contra os privilégios do Porto, concedidos ao Rio. AHU, Rio de Janeiro, Avulsos, 5 de fevereiro de 1722 cx. 12, doc. 1.305. PROVISÃO do rei [D. João V] ordenando ao governador do Rio de Janeiro,Aires de Saldanha de Albuquerque,que zele pela observância da nova lei de proibição do uso de armas em todas as partes de sua jurisdição.;AHU,Avulsos do Rio de Janeiro, 1727, Agosto, 13, Rio de Janeiro. cx. 18, doc. 1.997. CARTA dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro, ao rei [D.João V], sobre as dificuldades em fazer cumprir o alvará régio de 10 de fevereiro de 1642, que concedia aos cidadãos do Rio de Janeiro os mesmos privilégios dos da cidade do Porto; permitindo que os moradores daquela praça possuam armas em suas casas, o que contradiz a nova lei régia de proibição do uso de todo o gênero de armas curtas; solicitando a manutenção do privilégio concedido; AHU, Avulsos do Rio de Janeiro, 1730, julho, 7, Rio de Janeiro. cx. 21, doc. 2.355. CARTA do ouvidor-geral do Rio de Janeiro, Manoel da Costa Mimoso, ao rei [D. João V], sobre o cumprimento da novíssima lei de proibição do porte de armas de defesa pelos escravos e negros forros; informando que o governador da capitania, [Luís Vaía Monteiro], demonstrara alguma relutância em cumprir as determinações régias no que concerne à aplicação das medidas punitivas contra os infratores, pelas dúvidas que tinha sobre a jurisdição do ouvidor-geral no cumprimento da referida lei; solicitando ordens régias que certifiquem a autoridade da Ouvidoria-Geral para resolver estas e outras matérias de foro judicial em lugar do governador: AHU, RJ, CA., cx. 55, doc. 12.945, ano de 1745. Requerimento dos pardos e forros da cidade para criação de três tropas auxiliares de cavalo. 50

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Seja como for, parece-me importante, a título de hipótese, ao se estudar a gestão da monarquia pluricontinental, considerar a ideia de pacto de vassalagem enquanto relação de reciprocidade entre os poderes do príncipe e das elites locais americanas. A autoridade do rei era unilateral, mas existiam mecanismos formais para interpretar o seu governo. Em tal monarquia pluricontinental — ao contrário da monarquia compósita de J. H. Elliot52 — não existiam vários reinos e elites organizadas em conselhos,No mascaso ela da possuía mecanismos que viabilizavam, em tese, aquela interpretação. América lusa, esse exercício podia ser feito pelas câmaras e outro lócus de poder. ❚

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Do bem comum dos povos e de Sua Majestade: a criação da Mesa do Bem Comum do Comércio do Rio de Janeiro (1753)

Antônio Carlos Jucá de Sampaio

No dia 8 de dezembro de 1753, nada menos que 138 homens de negócios do Rio de Janeiro se reuniram para firmar o “Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio” da cidade. Misto entidades dos negociantes e irmandades religiosas, tais mesas eramdecomuns nocorporativas império português, mas sua criação tardou consideravelmente no Rio de Janeiro.Salvador, já então a segunda principal praça mercantil da América portuguesa, contava com a sua desde 1723, bem como Recife.1 Tal demora fez com que a Mesa carioca tivesse uma existência efêmera, sendo extinta (como todas as demais) em 1755 por Pombal, com a criação da Junta do Comércio para substituí-la.2 Essa efemeridade, no entanto, não retira a importância da sua criação. Em primeiro lugar, pela representatividade do grupo que a constituiu. Encontrei 201 homens de negócios atuando na praça carioca nesse mesmo ano de 1753. Repare-se que esse é um número mínimo, retirado unicamente do cruzamento de três documentos asdorepetições. Arquivo Histórico 18041, foi 18331), desconsiderando-se Somente Ultramarino o documento(16201, aqui analisado asV erger,1 987:67. A extinção das mesas teve srcem na oposição que a Mesa de Lisboa encabeçou contra a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, mas sua substituição por um órgão vinculado diretamente à Coroa (a Junta) aponta para uma nova forma de atuação da Coroa, que passa a chamar para si atribuições que antes compartilhava com outras instituições. Ver Maxwell (1996:69-71). 1 2

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sinado por 68,7% desse total. São números surpreendentes, sobretudo se considerarmos que a historiografia sempre propugnou quantitativos modestos de grandes comerciantes para as áreas coloniais. William Donovan (1990:256), por exemplo, estimou que não mais que 70 homens de negócios atuassem ao mesmo tempo no Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII, e que esse grupo teria crescido lentamente no período.3 Para Jorge Pedreira (1995:128), mesmo na Janeiro virada do para o seguinte, comunidades mercantis do Rio de e daséculo BahiaXVIII equivaleriam, “quando asmuito”, às do Porto. Não é isso que esse número nos mostra. Veja-se que, em 1762, na primeira lista dos homens de negócios de Lisboa feita pela Junta do Comércio encontramos 287 nomes.4 Pedreira adverte para o caráter incompleto da lista, mas o mesmo vale para nossa tosca estimativa. E, no entanto, as populações das respectivas cidades eram muito diferentes em meados do Setecentos. Lisboa tinha perto de 200 mil habitantes, e o Rio, aproximadamente 30 mil. Na comparação entre população e elites mercantis das respectivas cidades, a diferença mostra-se mais clara. Assim, em 1772 (quando os dados da Junta do Comércio são mais confiáveis, ainda segundo Pedreira) teríamos 640 negociantes em Lisboa, uma proporção de 3,4 por mil habitantes,5 enquanto em 1753 essa proporção alcançava praticamente o dobro na praça carioca: 6,7. Proporção que me parece compatível com o papel do Rio como principal encruzilhada do império português desde pelo menos a década de 1730.6 Temos, portanto, uma elite mercantil bastante considerável em tamanho e extremamente articulada, capaz de reunir aproximadamente dois terços dos seus membros em torno de um projeto comum. A coesão desse grupo ficou clara igualmente quando a Mesa foi substituída pela Junta do Comércio. Dos 12 membros de sua primeira diretoria, nada menos que 10 foram confirmados no novo órgão pombalino.7 A criação da Mesa do Bem Comum do Comércio não pode, assim, ser vista como mera curiosidade ou um “acidente” na trajetória dessa comunidade mercantil. Pelo contrário, coroou um longo processo de amadurecimento da O autor não esclarece como chegou a tais estimativas. Pedreira:1995:126. 5 Ibid., p. 130. 6 Sampaio, 2003, cap. 3. 7 Cavalcanti, 2004:205. 3 4

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mesma, além de marcar o desenvolvimento de um discurso próprio, que enfatizava a importância do comércio para o conjunto da sociedade e, sobretudo, fundava-se na noção de “bem comum”, tão cara aos homens do Antigo Regime.8 É exatamente a articulação entre essa noção e a forma como os negociantes entendiam seu papel na sociedade da época que buscaremos explorar neste capítulo. ❚

O “bem comum” e suas qualicações

Nessa perspectiva, o bem comum pode ser entendido como a manifestação dos interesses comuns ao conjunto da sociedade. Era a manifestação da ordem universal, que abrangia os homens e as coisas, e que orientava todas as criaturas para um objetivo último, que o pensamento cristão identifica com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico quanto o mundo humano não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a essetélos, a essa causa final. 9 A noção de “bem comum” revestia-se, portanto, de um caráter profundamente moral, pois remetia à noção de equilíbrio natural, tão cara à segunda escolástica. Remetia também à noção de justiça tal como era entendida então, ou seja, como a manutenção dos equilíbrios sociais preexistentes. 10 Em outras palavras, o bem comum era a tradução da noção de reciprocidade e buscava normatizar as relações entre os diversos grupos que compunham a sociedade. A preservação de uma ordem social justa era obrigação em primeiro lugar do rei, como cabeça dessa sociedade, mas também de todas as demais instituições da mesma. O partilhamento do cuidado com o bem comum refletia uma estrutura política em que o poder era visto como naturalmente dividido entre diversas instâncias: “e assim é que a realização da justiça (...) se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objetivamente estabelecida”.11 Na sociedade colonial, eram as câmaras as principais responsáveis pelo bem comum. Cabia a elas zelar pelos interesses do conjunto da sociedade, tratando Sampaio, 2006. Xavier e Hespanha, 1998:114. 10 Giovanni Levi (2009) chamou a isso de justiça distributiva: a cada um segundo seu status social. 11 Xavier e Hespanha, 1998:115. 8 9

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de temas como a ordenação urbana (que, numa sociedade eminentemente rural, afetava a poucos) e o abastecimento (que afetava a todos). Além disso, as câmaras funcionavam como poderosos filtros dos interesses locais diante do poder central. Embora representassem de fato os interesses da nobreza da terra, elas apareciam sempre em suas representações e requerimentos como porta-vozes do “bem comum dos povos”. Era, de fato, nesse papel que encontravam sua legitimação última, tanto perantedoa bem Coroacomum quantosignificava, diante da população Por outro lado, a defesa de fato, a local. intervenção da câmara em diversos aspectos da vida econômica, controlando preços e serviços ligados ao abastecimento da população. Além disso, como representante da açucarocracia, imiscuía-se também nos preços dos fretes e dos açúcares. A garantia do abastecimento dos alimentos básicos (o que significava tanto a garantia da quantidade suficiente quanto de um preço razoável) para a população era, sem dúvida, tarefa central dos edis coloniais e talvez a expressão mais clara da defesa do bem comum. Aí aparecia da forma mais clara a busca pelo equilíbrio, que se manifestava na noção de “preço justo”, entendido como aquele que atendia adequadamente tanto aos produtores quanto aos consumidores, considerados seus respectivos estatutos sociais. No caso da defesa dos interesses açucareiros, sua ligação com o bem comum evidenciavase pela importância que o açúcar possuía para os negócios coloniais e para a própria ar recadação da Coroa. 12 Isso não impedia, no entanto, que tais intervenções favorecessem um grupo estrito, composto pelos mesmos setores que detinham o poder político. O controle dos preços dos alimentos beneficiava os que tinham escravos a alimentar, significando de fato uma transferência de renda dos produtores de alimentos para os maiores proprietários de cativos, mormente senhores de engenho.13 Além disso, levava à criação de certos monopólios (para o abastecimento de carne, por exemplo) que possibilitavam uma considerável acumulação àqueles que os detinham. Já a interferência nos preços dos açúcares era sem dúvida fulcral para os senhores de engenho e lavradores de cana. Todo esse contexto representava uma apropriação do excedente social por um grupo restrito, garantindo a reprodução de uma hierarquia social excludente, fenômeno que João Fragoso (2001) denominou “economia do bem comum”. Dificilmente, a relação entre 12 13

Sampaio, 2003. Para uma análise mais detida sobre o agro fluminense no período, ver Sampaio (2003b, cap. 2).

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a defesa do bem comum e a reprodução de uma sociedade desigual poderia ser mais bem explicitada. No século XVII, dada a inexistência de grupos que fizessem frente à nobreza da terra, o papel da câmara como guardiã do bem comum seguiu inquestionável. É somente na centúria seguinte, com o surgimento da elite mercantil como um grupo social autônomo, que tal papel (ou melhor, o cumprimento desse papel) será posto em debate. No que se refere à capitania fluminense, o primeiro exemplo de tais contestações é a representação que diversos negociantes apresentam em 1725, requerendo isenção da dízima da alfândega para os frutos e gêneros da América. 14 Argumentavam que a dízima fora criada para taxar os produtos vindos da Europa e que a entrada dos produtos da América na pauta onerava os moradores das diversas capitanias. No entanto, a parte mais interessante do documento é aquela em que justificam a ausência de reclamações anteriores: E porque até o presente não se tem requerido a Vossa Majestade que Deus guarde seja servido aliviar os povos da dízima imposta nestes gêneros na consideração de que os oficiais da Câmara desta cidade fizessem este requerimento como era justo, e se lhes tem requerido muitas vezes, de que têm recebido grandes prejuízos e atualmente os estão recebendo.

Tal afirmação corrobora o dito acima: a câmara funcionava como poderoso filtro das demandas da sociedade colonial. No entanto, ao afirmar que os reiterados pedidos dos moradores tinham sido sistematicamente ignorados por ela, os comerciantes acabavam por deslegitimá-la, ao menos parcialmente. Embora a câmara apareça no documento como um importante elo entre os interesses locais e o poder central, ela, claramente, não atende aos interesses dos grupos mercantis. A petição surge, nesse contexto, como via para o estabelecimento de um vínculo direto entre a elite mercantil carioca e a Coroa. As vozes se multiplicam. Mais ainda: aos poucos, a defesa do bem comum deixa de ser apanágio exclusivo da instituição camarária e de seus oficiais. Arquivo Histórico Ultramarino — Coleção Castro Almeida (AHU-CA), doc. 5.024. Representação dos comerciantes da Praça do Rio de Janeiro pedindo isenção da Dízima da Alfândega dos frutos e gêneros procedentes da América (1725). 14

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Outro aspecto significativo da atuação do grupo mercantil é a qualificação do bem comum ou, o que significa o mesmo, uma delimitação mais precisa deste. Apenas um ano depois daquela primeira representação, 33 homens de negócios fizeram uma nova manifestação “contra a grande morosidade nos despachos da Alfândega”.15 O centro da argumentação era que tal morosidade afetava o giro do comércio, pois, se não conseguissem vender os produtos vindos na frota, os negociantes não poderiam comercianmandarprejuízos. retorno algum tes lisboetas, causando também a estes grandes Por aos último, a grande afetada seria a Fazenda Real porque, “se as remessas daqui para Portugal forem diminutas, é sem dúvida que virão muito menos fazendas, vindo por este modo a se ter muito menos rendimento da dízima desta alfândega, que suposto se ache contratada, e, sem questão, poderão ter abatimento as arrematações futuras”. Esse documento tem, sem dúvida, uma argumentação bem distinta da encontrada no anterior. A ênfase desloca-se do “bem comum” na sua acepção mais ampla para o “bem comum do comércio”. E, nesse sentido, os homens de negócios cariocas demonstravam consciência de sua importância, ao ressaltarem as repercussões do seu prejuízo na praça lisboeta e nos cofres régios. O poder econômico torna-se um argumento poderoso no convencimento do rei. Mais ainda: a argumentação busca demonstrar que o “bem comum do comércio”, dada sua importância primordial para o conjunto do império, era parte fundamental do “bem comum” em seu sentido mais genérico. Numa sociedade que se enxergava como um corpo, o comércio era, de fato, o sangue que nutria suas diversas partes. Bluteau (1716:429), por exemplo, ressalta seu caráter essencial não só para Portugal, como para as sociedades em geral: Sem ela [a mercancia] no estado da vida temporal, seriam os homens de pior condição que os brutos, porque a natureza lhes deu tudo que lhes convém,e só com o comércio podemos suprir as faltas da natureza. (…) Enobreceram os portugueses a mercancia, prodigalizando o sangue entre as drogas do Oriente.

A própria Coroa, ou sobretudo ela, tinha a clara noção da importância de que se revestia a atividade mercantil. Entre inúmeros exemplos desse reconhecimento podemos citar uma carta régia do mesmo ano da criação da Mesa do AHU-CA, doc. 5.270. Representação dos homens de negócio da praça do Rio de Janeiro contra a grande morosidade nos despachos da Alfândega (1726). 15

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Bem Comum, e que buscava regulamentar as chegadas e partidas das frotas tanto em Portugal quanto na América. Já no preâmbulo, Sua Majestade dizia: “sendome presente os grandes prejuízos que se tem seguido ao bem comum dos meus vassalos destes reinos, e do Estado do Brasil da falta de observância dos decretos e ordens, que regularam a partida das frotas (...)”.16 Aqui é o próprio soberano quem estabelece a relação direta entre o bem do o bembenefício comumdeemunsseue outros sentido mais lato. Era,reinóis afinal,eoamericacomércio quecomércio garantia oe grande (leia-se: vassalos nos). Logo, o bem comum do comércio era de fato fundamental para a manutenção dos equilíbrios sociais. No entanto, numa perspectiva escolástica, o bem comum de um setor específico, por mais importante que ele fosse, não poderia sobrepor-se ao bem comum no seu sentido mais geral, pela ameaça que isso representaria ao status quo. É nesse sentido que a nobreza da terra, ameaçada em sua posição social pelo surgimento dessa nova elite colonial, buscava argumentar em suas reclamações à Coroa. Nestas, as imagens mais frequentes associadas aos homens de negócios eram as de indivíduos ambiciosos, voltados apenas para seus interesses e apartados da busca pelo bem comum. Esse tópos aparece, claramente, numa representação dos senhores de engenho do Rio de Janeiro contrária à fixação dos preços dos açúcares e assinada por nomes das principais famílias fluminenses, como João Aires de Aguirre, 17 Sebastião Gomes Pereira e Miguel Rangel de Souza Coutinho, entre outros. Nesse documento, a fixação do preço do açúcar aparece como causa da ruína dos engenhos e, portanto, contrária ao bem comum, já que afetaria o principal grupo social da colônia e os rendimentos da Real Fazenda. Os beneficiados, por outro lado,seriam os homens de negócios, que poderiam comprar o açúcar pelo preço tabelado e vender os produtos europeus e escravos pelos preços que lhes fossem mais convenientes. Nesse contexto, a criação da Mesa do Bem Comum do Comércio e a redação do seu “Compromisso” representavam não só a afirmação da importância da atividade mercantil, mas, sobretudo, o controle desta (ou melhor, do comércio

AN, Fundo Secretaria do Estado do Brasil, Códice 952, v. 37. Carta Régia de 28 de novembro de 1753. 17 AHU-CA, doc. 15.513 — Representação dos senhores de engenho da capitania do Rio de Janeiro contra a fixação dos preços dos açúcares (1752). 16

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“grosso”) por parte de sua elite, em acordo com a monarquia. Mais ainda, representava o estabelecimento de um discurso que articulava o bem comum no seu sentido mais geral com aquele que era próprio à mercancia e a seus agentes. ❚

O “Compromisso”

“Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio” do Rio de JaneiroO é desses documentos verdadeiramente paradigmáticos da forma de pensar e agir dos homens do Antigo Regime. Mistura de regulamento corporativo de um grupo socioprofissional e estatuto de uma irmandade religiosa, é igualmente um documento político no qual os negociantes cariocas buscam definir uma clara identidade para si no interior da população colonial, além de estabelecer uma relação direta com a monarquia. Tal aparente confusão revela, no entanto, uma visão de mundo holística, em que tais diferenciações cartesianas simplesmente padeciam de sentido. Já no preâmbulo, seus autores relacionavam o bem comum do comércio com o serviço ao monarca e ao próprio Deus,criador e Senhor último de todos: procurando aplicar a uma matéria de tanta consideração [o crescimento do comércio] o meio mais proporcionado em prol do bem comum do comércio, e do Real Serviço do mesmo Senhor, nos resolvemos de uniforme acordo e vontade a estabelecer entre nós uma Mesa com o nome do Bem Comum do Comércio, dedicada ao Divino Espírito Santo e a fundar no tempo que mais oportuno for uma igreja à nossa custa (...).18

O envolvimento na atividade mercantil, “cujo aumento tanto interessa à monarquia”, como não se esquecem de afirmar os autores do “Compromisso”, é portanto serviço ao monarca, dado o seu significado para a sobrevivência do império e para as rendas da Coroa. De fato, a identificação da atuação mercantil como um dos serviços essenciais à monarquia será um dos principais argumentos dos negociantes dos dois lados do Atlântico ao longo de todo o século XVIII.19 AHU-CA, doc. 18.331 — Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio do Rio de Janeiro (1753). 19 Sampaio, 2006, cap. 2. 18

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Outro elemento essencial, e que, sem dúvida, está no centro dessa perspectiva holística, é o religioso. Daí a centralidade do caráter de irmandade dessa corporação de comerciantes. Como todas as suas demais congêneres, ela devia dedicar-se à adoração do Espírito Santo. Nesse sentido, não diferia das irmandades ligadas às corporações de ofício.20 Nada mais natural num contexto em que engenhos e embarcações, por exemplo,não tinham nomes, e sim “invocações”. A escolha da adoração do EspíritoAssim Santocomo também não era fortuita e remetia a uma analogia com a mercancia. a terceira pessoa da Santíssima Trindade é responsável, na teologia católica, pela comunicação de Deus com os homens, também o comércio é o canal de comunicação por excelência dos homens entre si, como já nos advertira Bluteau. Nessa perspectiva, a mercancia não é, portanto, mera atividade econômica voltada para o benefício daqueles que dela participam. Pelo contrário, é também um serviço à monarquia e à religião, ao garantir o desenvolvimento do culto e a adoração do Senhor. A elite mercantil que propugnava a criação da Mesa assumia, assim, sua responsabilidade pela manutenção da ordem social, entendida como aquela desejada por Deus. Nada exemplifica melhor a perspectiva que permeava a atuação dos homens do Antigo Regime, nos trópicos e alhures. Após o preâmbulo, seguem-se 49 capítulos em que os autores buscam dar eficácia aos princípios gerais anunciados. É curioso que nesse extenso documento o comércio seja pouco abordado. Essa é, inclusive, a principal crítica feita pelo chanceler da Relação João Soares Tavares em ofício escrito a Pombal.21 De fato, nada menos que 26 capítulos referiam-se à eleição e/ou funcionamento da Mesa, enquanto somente quatro eram dedicados ao comércio. Em outras partes ele surge lateralmente, como nos capítulos 18 e 19, que tratam da construção da igreja da irmandade. No primeiro, há a referência à construção de bicas, para que mais navios possam fazer aguada ao mesmo tempo. No segundo, a preocupação é com a própria realização da atividade mercante: Como nesta cidade não há onde os homens de negócio dela se ajuntem, e comuniquem seus particulares à imitação das demais praças, por sabermos a utilidade

Ver, por exemplo, Lima (2007). AHU, doc. 18327 — Ofício do chanceler da Relação João Soares Tavares para Sebastião José de Carvalho e Mello, no qual informa acerca do compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio da Praça do Rio de Janeiro (20-5-1755). 20 21

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que disso se segue ao comércio, se nos faz preciso lembrar será conveniente que no âmbito da mesma igreja se edifique cômodo para isso do melhor modo que se puder, aformoseando-se por cima com casa cômoda para o despacho (...).22

Se, como dissemos acima, o crescimento do comércio contribuía para a maior glória de Deus, esse capítulo demonstra que a recíproca também era verdadeira. Que lugar poderia ser melhor que a Casa do Senhor para o ajuntamento e a comunicação dos comerciantes? Seja como for, parece claro que os negociantes cariocas entendiam que, mais do que ao “Compromisso”, caberia à própria Mesa por eles criada regulamentar a atividade mercantil. De qualquer forma, modestamente previam no penúltimo capítulo a possibilidade de revisão do compromisso a partir “dos estatutos que se praticam no bem comum do comércio da cidade da Bahia, Pernambuco, Lisboa e Porto para à vista das mesmas aumentar os desta no que parecer útil e razoável (...)”. A perspectiva do documento é, portanto, fundamentalmente corporativa. Se no preâmbulo há a menção ao bem comum no seu sentido mais geral, entendido tanto como bem comum dos povos quanto de Sua Majestade, nos capítulos são os interesses específicos da elite mercantil que aparecem. Curiosamente, sobre o estabelecimento de melhores condições para o desenvolvimento da atividade há apenas os dois capítulos mencionados acima. Os demais voltam sua atenção para a assistência aos negociantes e suas famílias. Uma preocupação central era com os negociantes falidos. A eles cabia a solidariedade de seus pares, expressa em diversos momentos. No capítulo 24, por exemplo, que trata da nomeação de um secretário para a Mesa, adverte-se que se deve preferir “nesta nomeação algum homem de negócio que por sua infelicidade esteja reduzido à miséria, advertindo que este sendo o nomeado terá mais da metade do que se havia de dar a outro que não o fosse”. Também o escrivão a ser nomeado deve ser, se houver, um negociante “conhecidamente carecido de negócios”.23 No entanto, é sobretudo no capítulo 40 que essa preocupação aparece de forma mais clara. Ao tratar da aplicação dos recursos a serem arrecadados pela Mesa, os negociantes cariocas consideraram importante destinar 25% dos mesmos a 22 23

AHU, doc. 18331, cap. 19. AHU, doc. 18331, cap. 31.

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alguns homens de negócio que por meios ordinários se achem reduzidos à miséria pelas inconstâncias do tempo e negócios, advertindo porém que não serão admitidos neste número senão aqueles que se acharem assentados por irmãos no livro deles, e o mesmo queremos que se pratique com suas mulheres sendo viúvas, e que a Mesa atente para a regularidade às obrigações de cada um, por não ser justo que tendo em algum tempo concorrido para o aumento deixem de ser socorridos no da sua infelicidade. Além disso,outros 25% seriam destinados aos dotes das filhas de alguns homens de negócio totalmente carecidos, ao menos de 400$000 cada um, dados à eleição da Mesa, da qual esperamos gradue aquelas mais necessitadas e beneméritas (...).

Em outras palavras, nada menos que metade do valor a ser arrecadado pela Mesa deveria ser gasto com homens de negócio empobrecidos e suas famílias. Busca va-se com isso minorar os efeitos das “inconstâncias do tempo e negócios”. A ativid ade mercantil, sobretudo o comérci o grosso, era sem dúvida muito lucrativa, mas igualmente sujeita a riscos. Analisando a elite mercantil lisboeta no per íodo pombalino, Jorge Pedreira (1995:133) adverte que mais difícil do que chegar ao topo era lá permanecer. Tal f ato f azia com que, em média, somente 40% dos negociantes lisboetas permanecessem em atividade por 10 anos ou mais. Num contexto tão volúvel, o compromisso dos negociantes cariocas visava reduzir o grau de incerteza que cercava sua atividade. À Mesa caberia criar as regras que uniformizariam as transações, definiriam os estilos mercantis e fiscalizariam a atuação dos agentes comerciais. Àqueles que mesmo assim vi venciassem o insucesso em suas transações reservava-se o auxílio do conjunto do cor po mercantil para que não caíssem na miséria. O “Compromisso” reforçava, portanto, a identidade corporativa dos homens de negócios cariocas. Criava um “corpo” social claramente definido no interior da estrutura colonial, com regras claras de entrada para o mesmo e uma interlocução direta com a Coroa. No que concerne ao bem comum, buscava definir a forma como este, no seu sentido mais estrito (o bem comum do comércio), coadunava-se com o seu sentido mais amplo (o bem comum dos povos). Este era, sem dúvida, um elemento fundamental na definição do status social desse grupo, sobretudo quando, como vimos, ele era questionado exatamente por um alegado desprezo por esse mesmo bem comum.

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A identidade de homem de negócios, tão fluida durante a primeira metade do Setecentos,24 ganha agora uma institucionalização até então desconhecida na urbe carioca. Fruto de uma razoavelmente longa trajetória, que se estendeu desde o final do Seiscentos até aquele momento, essa identidade refletia, de fato, a lenta constituição de uma elite mercantil local, forjada tanto na prática cotidiana de suas atividades quanto nas disputas e alianças estabelecidas com outros grupos sociais, notadamente a nobreza da de terra. O fato denúmeros que, emsignificatimeados do Setecentos, ambos os grupos eram capazes arregimentar vos de assinaturas em suas petições mostra bem como os campos encontravamse bastante delimitados então. A Coroa portuguesa contribuía para esse quadro ao não permitir que qualquer um dos grupos monopolizasse o poder político na colônia.25 Reforçava assim o caráter corporativo da sociedade colonial e, ao mesmo tempo, o seu papel de mediadora e garantidora da ordem social. Em outras palavras, se a primeira metade do Setecentos assistiu à ascensão da elite mercantil como nova elite colonial, cabia à monarquia garantir que tal ascensão não significaria a destruição da antiga elite senhorial. A criação da Mesa do Bem Comum do Comércio pode ser compreendida como um compromisso nesse mesmo sentido. A política pombalina, então em seus inícios, contribuía para que tal aliança se reforçasse. O fato de que os nomes que compunham a primeira Junta do Comércio do Rio de Janeiro eram praticamente os mesmos da natimorta Mesa do Bem Comum é eloquente nesse sentido.26 Para Pombal, era fundamental fortalecer os negociantes dos dois lados do Atlântico para fazer frente ao crescente poderio inglês.27 A partir desse momento, os negociantes coloniais passam não só a controlar a economia, como a participar também do poder político colonial. À antiga nobreza da terra caberia aliar-se ou fenecer. Já estamos agora, em todos os sentidos, mais próximos das estruturas sociais oitocentistas do que do mundo senhorial do Seiscentos.

Sampaio, 2007. Embora a nobreza da ter ra tenha tentado afirmar tal monopólio, brandindo a condição de conquistadora da América para Sua Majestade. O fato de a Coroa não ter aceitado tal argumentação mostra bem que essa era uma nobreza de fato, e não de direito. Ver, por exemplo, Mello (1995). 26 Sobretudo se considerarmos a conjuntura do período, de perseguição aos negociantes da Mesa de Lisboa que ousaram se opor à Companhia do Grão-Pará e Maranhão. 27 Maxwell, 1996, cap. 6. 24 25

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Cultura política, governo e jurisdição no Antigo Regime e na América portuguesa: uma releitura do ofício de vice-rei do Estado do Brasil*

Maria Fernanda Baptista Bicalho

O ofício de vice-rei na América portuguesa tem sido objeto pouco estudado, o que faz do trabalho de Dauril Alden (1968) uma referência para os que se dedicam tema. Contrariamente a umadoplêiade defendia ao o ilimitado poder dos vice-reis Estadodedoantigos Brasil,historiadores Alden afirmaque que, durante todo o século XVIII, quando o título passa a ser sistematicamente concedido, sua autoridade não se exercia além dos limites da capitania-geral para a qual eram nomeados. O primeiro oficial régio na América portuguesa que recebeu o título de vice-rei e capitão-general de mar e guerra e da restauração do Brasil foi d. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão (1640),que desempenhou importante papel no juramento de fidelidade por parte dos vassalos americanos à casa de Bragança. O segundo vice-rei, d.Vasco Mascarenhas, conde de Óbidos, governou entre 1663 e 1667. O terceiro, d. Pedro de Noronha, marquês de Angeja, assumiu o governo em Fernandes 1714, permanecendo até 1718.conde Somente em 1720,—com nomeação de Vasco Cesar de Meneses, de Sabugosa queadesempenhou o ofício até 1735 —, o título de vice-rei foi concedido, ininterruptamente, até

* Este texto faz parte de uma investigação mais ampla, “Governo e administração no império português: o Conselho Ultramarino, as câmaras coloniais e a tessitura da política imperial (1643-1736)”, financiada pelo CNPq nas categorias produtividade em pesquisa e pós-doutorado.

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1808, aos que governaram o Estado do Brasil. É interessante notar que, salvo o marquês de Montalvão, o primeiro conde de Óbidos (1663-67), o primeiro marquês de Angeja (1714-18) e o primeiro conde de Sabugosa (1720-35), respectivamente segundo, terceiro e quarto vice-reis, serviram antes na Índia, para onde foram igualmente nomeados com o título de vice-reis. Todos os demais que lhes sucederam no governo do Estado do Brasil receberam invariavelmente oJaneiro, mesmo vice-reis residiram na Bahia, de 1720 a 1762, e no Rio de detítulo. 1763 aOs 1808. A particularidade da conferição do título de vice-reis aos representantes máximos do rei de Portugal em seus domínios ultramarinos impõe-nos algumas considerações acerca da administração e do governo da América portuguesa. A primeira delas, ressaltada por Francisco Carlos Cosentino (2005), refere-se à ausência de regras uniformes e de um conjunto de leis específicas para o governo do ultramar, no molde do que fizeram, por exemplo,os espanhóis. A ordenação político-administrativa portuguesa privilegiou, ao contrário, a experimentação e uma pluralidade de soluções que variavam de acordo com a região e as diferentes conjunturas. Após o momento inicial de conquista e fixação dos portugueses em pontos descontínuos do litoral, período marcado pela descentralização administrativa e pela doação régia de capitanias hereditárias a particulares,1 a Coroa portuguesa instituiu, em 1549, o governo-geral, com sede na cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, primeiro indício de um processo de centralidade do governo real no extenso território da América. Francisco Cosentino discute o argumento da “centralização monárquica”, defendido por grande parte da historiografia brasileira. Analisando os regimentos dos primeiros governadores-gerais, afirma que a referência aos domínios ultramarinos, até 1612, como “partes do Brasil”, “representou a maneira como era percebida pela monarquia portuguesa a montagem do ordenamento político na sua conquista americana”.2 De acordo com o clássico estudo de Caio Prado Júnior (1977), publicado em 1942, a unidade do Brasil, embora existisse na geografia, aparecia oficialmente apenas nos títulos honoríficos dos vice-reis e no de príncipe do Brasil, que traziam os primogênitos da dinastia de Bragança e herdeiros da Coroa, desde a elevação do Estado do Brasil à condição de principado, por carta régia de 1 2

Saldanha, 2001. Cosentino, 2005:117.

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26 de outubro de 1645. Para Maria de Fátima S. Gouvêa (2001:293), a elevação do Estado do Brasil à condição de principado configurou uma notável inovação na forma de ser da gestão administrativa ultramarina. (…) A condição de principado evocava valores e noções de governabilidade e vassalagem que alçavam o Brasil a uma posição deveras diferenciada no contexto imperialreafirmar de então.a Um rei ausentee os fisicamente, que procurava, por esse expediente, sua presença elos que omas uniam a seus vassalos ultramarinos, e mais especificamente àqueles do complexo Atlântico.

Com evidente exagero, e alguma impropriedade, Caio Prado Júnior (1977:303) afirma que o Brasil não constitui para os efeitos da administração metropolitana uma unidade. O que havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram várias colônias ou províncias, até mesmo “países”,se dizia às vezes, que, sob o nome oficial de capitanias, se integravam no conjunto da monarquia portuguesa, e a constituíam de parceria com as demais partes dela: as províncias do reino de Portugal e as do de Algarve, os estabelecimentos da África e do Oriente.

Segundo Dauril Alden, tanto os governadores-gerais na Bahia quanto os capitães-mores das diferentes capitanias — quer sob a administração direta da Coroa, quer em posse dos donatários — exerciam poderes similares na supervisão da justiça, da fazenda e das milícias, e na doação de terras (sesmarias). 3 Até fins do século XVII, cabia especificamente aos governadores-gerais — e não aos capitães-mores das capitanias — a nomeação para postos civis e militares, submetida à confirmação régia. De 1572 a 1578, e novamente de 1608 a 1612, as capitanias do sul — Porto Seguro (1572-78), Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente — foram subtraídas à autoridade do governador-geral na Bahia e se tornaram subordinadas ao governador do Rio de Janeiro. Em 1621, as capitanias do Ceará, Maranhão e Pará foram desmembradas do Estado do Brasil, formando uma circunscrição político-administrativa distinta, o Estado do Maranhão. Novamente na década de 1640, Salvador Correia de Sá e Benevi-

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Alden, 1968, esp. cap. 16.

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des, governador do Rio de Janeiro, restaurador de Angola contra os holandeses (1648) e vogal do Conselho Ultramarino (a partir de 1644), obteve de d. João IV sua nomeação como superintendente em todas as matérias de guerra na Repartição Sul (1637-41), governador e administrador-geral das minas de São Paulo (1643), e governador e capitão-general das capitanias do sul (1658).Todas essas redefinições administrativas incidiram na diminuição da autoridade do governador-geral o conjunto das capitanias e territórios que formavam, fragmentariamente,sobre o Estado do Brasil. É comum na historiografia atribuir-se o frágil poder dos governadoresgerais e, posteriormente, dos vice-reis à superposição de jurisdições entre os diferentes oficiais régios no distante ultramar. À excessiva centralização do poder e das decisões em Lisboa, Caio Prado Júnior opõe a fluida competência dos funcionários régios na colônia, cujas jurisdições e autoridade eram marcadas pelo hibridismo e pela justaposição, carecendo de definição e limites. Afirma que, embora o vice-rei fosse,“em regra, adstrito a normas muito precisas e rigorosas, traçadas com minúcias até extravagantes”, sua competência e autoridade chocavam-se com as jurisdições dos demais oficiais régios e órgãos administrativos. Alguns desses órgãos — como as juntas da Fazenda, a Mesa de Inspeção, o Tribunal da Relação —, por constituírem entidades coletivas e não serem hierarquicamente submetidos a qualquer outro agente na colônia, funcionavam como contrapeso e, algumas vezes, como limitação à autoridade dos governadores e vice-reis.4 Ao defender a presença marcante do Estado, moldando a realidade a seu gosto e a ela sobrepondo a lei, Raymundo Faoro, em trabalho publicado em 1958, afirma que “o quadro metropolitano da administração como que se extravia e se perde, delira e vaga no mundo caótico, geograficamente caótico, da extensão misteriosa da América”. Refere-se à dispersão “em todos os graus” da administração colonial, cuja aparente simplicidade da linha descendente de autoridade encabeçada pelo rei “engana e dissimula a complexa, confusa e tumultuária realidade” governamental. A seu ver, “os órgãos colegiados e a hierarquia sem rigidez” teriam sido responsáveis pela “fluidez do governo”, composto por um sem-número de funcionários que se perdiam “no exercício de atribuições mal delimitadas”. Se por um lado todos se dirigiam ao rei, atropelando os graus

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Prado Júnior, 1977:307-309.

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intermediários de comando, por outro “a ordem monocrática sofre, com os órgãos colegiados, limitação drástica, retardando as decisões, orientando-as e distorcendo-as, ao sabor das suas deliberações”.5 Mais recentemente, Russell-Wood (1997:171) analisou essa questão por um novo prisma. Voltando-se para as várias partes constituintes do ultramar português, argumenta que, enquanto,em teoria, se tratava de uma estrutura altamente centralizada e dependente de Lisboa, com Goa e Salvador (Rio de Janeiro,a partir de 1763) a atuarem como centros subordinados respectivamente no Estado da Índia e no Bra sil, e com todas as nomeações feitas pela Coroa ou sujeitas à aprovação real, a realidade era uma extraordinária descentralização da autoridade que podemos atribuir a vários fatores.

Um deles era a distância, que concentrava uma excepcional responsabilidade na pessoa dos governadores-gerais e vice-reis. Estes, para tomar decisões, não raro consultavam os demais oficiais régios, civis, militares, judiciais e religiosos, e, ainda, os meros cidadãos, simples vassalos do rei de Portugal nas longínquas paragens ultramarinas. O resultado não era apenas a descentralização sistêmica do governo, mas uma limitação da autoridade efetiva dos representantes máximos do rei no ultramar, independentemente dos poderes de jurisdição concedidos pela Coroa e do fato de lhes caber a responsabilidade pela administração de várias facetas do governo.6 Uma nova perspectiva analítica da administração colonial por parte da historiografia brasileira baseou-se amplamente nos trabalhos de António Manuel Hespanha. Dedicando-se ao estudo das instituições, da cultura política e do poder em Portugal nos tempos modernos, o autor discute a concepção corporativa da sociedade difundida pelo paradigma jurisdicionalista. Ao rei cabia garantir a justiça e a ordem estabelecida, e zelar pela sua conservação; ele era visto como a

Faoro, 1984:176-177. Porém, em certas interpretações, Russell-Wood (1997:171) faz coro com as análises acima: “áreas de jurisdição mal definidas, por meio das quais, por um lado, a responsabilidade por uma área específica era delegada em mais do que um indivíduo, e em que, por outro lado, os funcionários civis individuais tinham múltiplas responsabilidades, contribuíam para o obscurecimento das linhas de comando. Isto poderia ser visto como fazendo parte de um sistema de controle e equilíbrio, mas a realidade era outra: a eficiência da administração via-se diminuída pelas incertezas quanto aos parâmetros de autoridade e aos conflitos provocados por áreas de jurisdição mal definidas ou sobrepostas”. 5 6

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cabeça do reino. Essa metáfora apontava para uma concepção limitada do poder régio, segundo a qual o soberano representava simbolicamente o corpo, não podendo, no entanto, substituir as suas funções. De acordo com essa concepção, longe da concentração total e absoluta na figura do rei, o poder era por natureza repartido. Essa partilha deveria se traduzir na autonomia político-jurídica dos magistrados e das instituições, cabendo ao monarca figurar a unidade do corpo, mantendo seu equilíbrio harmonia, atribuindo a cada um aquilo que lhe era próprio, garantindo dessa eforma a justiça. O fato de as decisões serem tomadas por meio de conselhos,tribunais e juntas configurava, segundo o autor, uma estrutura sinodal — ou polissinodal — de governo. Se, por um lado, a falta de coordenação e de uma rígida hierarquia jurisdicional entre os conselhos e oficiais régios — nãoraro manifestada em conflitos de competência ou precedência — constituía-se em peso ou entrave à agilidade da administração ativa da Coroa, por outro a decisão dos órgãos colegiados, por intermédio de consultas e pareceres, garantia a expressão de diferentes pontos de vista, reafirmando o caráter corporativo do governo e atualizando a imagem do rei enquanto árbitro, mantenedor da harmonia entre as diferentes instituições do 7 corpo político, sem usurpar, no entanto, suas atribuições. Da mesma forma, Hespanha critica a ideia de excessiva centralização aplicada ao império ultramarino português. A seu ver, “a imagem de um império centralizado era a única que fazia suficiente jus ao gênio colonizador da metrópole. Em contrapartida, admitir um papel constitutivo das forças periféricas reduziria o brilho da empresa imperial”. 8 O autor defende a inexistência de um modelo geral para a expansão portuguesa, ou de uma estratégia sistemática abrangendo todas as partes do império, pelo menos até meados do século XVIII. Insiste no argumento da existência um estatuto colonial múltiplo, baseado num direito pluralista, que autorizava governadores e vice-reis a criarem direito, ou, pelo menos, a dispensarem o direito existente. A seu ver, De acordo com a doutrina da época, os governadores gozavam de um poder extraordinário (extraordinaria potestas), semelhante ao dos supremos chefes militares (dux). (…) Nos regimentos que lhes eram outorgados, estava sempre inserida a Hespanha, 1994:278 e segs. Hespanha, 2001:167. Para um trabalho amplamente baseado nas concepções do autor e dedicado especificamente ao Rio de Janeiro, ver Bicalho (2003). 7 8

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cláusula de que poderiam desobedecer às instruções régias aí dadas sempre que uma avaliação pontual do serviço real o justificasse. Daí que, apesar do estilo altamente detalhado das cláusulas regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei ou o Conselho Ultramarino, os vice-reis e governadores gozavam, de fato, de grande autonomia.9

Pelopilares menos séculos XVI e XVII, grande — dacom qual um dos eranos a irredutível distância emessa relação ao autonomia reino, que fazia que em momentos, sobretudo de perigo, governadores e vice-reis devessem convocar juntas, consultar as câmaras e tomar decisões sem recurso à Coroa e a seus conselhos — ganhou maior expressividade e intensidade no Estado da Índia. Segundo Catar ina Madeira dos Santos (1999), em seu estudo sobre a noção de capitalidade assumida pela cidade de Goa, “cabeça de toda a Índia”, a instituição do ofício de vice-rei baseou-se no propósito de dotar os governantes ultramarinos de uma dignidade quase real — permitindo-lhes o exercício da graça, a concessão de mercês, a atribuição de ofícios, a outorga de rendas, o perdão de crimes.10 O mesmo, no entanto, não se deu em relação aos governadores-gerais e vice-reis no Brasil, cuja jurisdição era mais limitada. Em outras palavras, não se transpôs na pessoa, quer dos governadores-gerais, quer dos vice-reis do Estado do Brasil, o conjunto de regalia maiora ou direitos majestáticos considerados inseparáveis do rei, como ocorreu no Estado da Índia. Mesmo assim, o regimento de Francisco Giraldes, de 1588, autorizava-o a conceder tenças até o valor de mil cruzados; enquanto o de Gaspar de Souza, de 1612, permitia-lhe a dispensa do processo devido nos casos civis e criminais, o lançamento de fintas, Hespanha, 2001:174-175. Em seu estudo sobre os governadores-gerais do Brasil, Cosentino (2005) defende a dignidade real do ofício e a natureza superior e avantajada dos poderes por eles detidos, uma 9

vez que seus regimentos e cartas-patentes transferiam-lhes certas regalias, combinando orientações permanentes e instruções que procuravam atender a necessidades conjunturais. 10 Acerca dos regalia maiora, ou direitos majestáticos, transferidos aos vice-reis do Estado da Índia, Santos cita a produção de alvarás vice-reais; a prerrogativa de aplicação da justiça suprema em matérias cíveis e crime, não sendo as sentenças vice-reais sujeitas à apelação ao rei; a cunhagem de moeda; a capacidade de impor tributos; intervenções no padroado régio no Oriente; o estabelecimento e provimento de novos ofícios; a autonomia na gestão dos bens materiais. Essas prerrogativas se mostraram alargadas nos primeiros vice-reinados do Estado da Índia, tendo sido posteriormente cerceadas com a criação de instituições específicas para cuidar da justiça e da fazenda, como o Tribunal da Relação e a Vedoria da Fazenda.

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a atribuição de tenças, o direito de conceder ofícios, em propriedade ou em serventia, embora não pudessem criar novos ofícios ou aumentar os salários dos já existentes. Note-se, no entanto, que os regimentos desses governadores são do período filipino.11 No caso da Índia, parece não ter havido diferenças significativas entre as jurisdições de governadores e vice-reis. Entre 1630 e 1810, só se nomeavam governadores nos interstícios do vice-reinado, ou seja, devido ao falecimento, impedimento temporário e atraso na chegada de um novo vice-rei. Segundo Nuno Monteiro (2001:259), a distinção entre os títulos [de governador e vice-rei] (…) fez-se sentir com maior acuidade ao nível da representação do poder. Em um dos momentos em que o cerimonial o revelava com particular nitidez, era quando da chegada do novo vicerei e da sua tomada de posse (…) os custos acrescidos que implicavam estavam diretamente relacionados com a criadagem, parentela e o prestígio da fidalguia que acompanhavam o vice-rei.

No Brasil, a partir de 1720, o estatuto de vice-rei substituiu literalmente o de governador-geral, sem que as competências respectivas ou outras dimensões se tenham alterado: “os governadores-gerais do Brasil passaram a ser designados sistematicamente por vice-reis, sem que isso correspondesse a uma modificação de suas atribuições”.12 Segundo Maria de Fátima S. Gouvêa (2001:303), embora não haja notícia de nenhum alvará ou qualquer diploma régio que tenha elevado o Estado do Brasil à condição de vice-reino ou de vice-reinado, a atribuição do título de vice-rei aos sucessivamente nomeados para o seu governo a partir de 1720 demonstra, por um lado, uma significativa alteração no perfil dos homens que passaram a ocupar o cargo, e por outro, o reconhecimento da Hespanha, 2001:176-177. Foram, ao todo, cinco os regimentos atribuídos aos governadores-gerais do Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII: os de Tomé de Sousa (1549-53), Francisco Giraldes (1588), Gaspar de Sousa (1612-16), Diogo de Mendonça Furtado (1621-24) e Roque da Costa Barreto (167882). Todos os demais governadores-gerais e vice-reis, até o início do século XIX, se orientaram por este último regimento, assim como por suas cartas patentes e demais legislações específicas. Isso coloca a questão da não diferença entre o ofício e as jurisdições dos governadores-gerais e dos vice-reis no Brasil. No que diz respeito especificamente ao período filipino, ver Cosentino (2005, cap. 7). Ver também Marques (2002). 12 Monteiro, 2001a:258. 11

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importância econômica e política que o Brasil conquistou, desde meados do século XVII, no conjunto da monarquia portuguesa, importância transfigurada no título e na qualidade dos que passaram a assumir o ofício, sistematicamente arregimentados no interior da nobreza titulada. Nuno Monteiro afirma ainda que, comparados aos vice-reis da Índia — em sua grande maioria filhos primeiros das casas nobres do reino —, os governadores-gerais do Brasil, embora provenientes da primeira eram filhos segundos. Poucos se elevaram à grandeza. No entanto, essa nobreza, situação mudaria na primeira metade do século XVIII, quando passou a ser sistemática a atribuição do título de vice-rei aos governantes nomeados para a América portuguesa, o que leva o autor a concluir que “a coincidência entre o vice-reinado e o título condal era claramente assumida na época”. Assim, todos os vice-reis nomeados a partir de 1714 eram ou seriam feitos titulares com grandeza no reino, fossem eles primogênitos e sucessores da casa paterna, fossem secundogênitos. Na verdade, a atribuição do título vice-reinal e a elevação à grandeza constituíam, segundo o autor, “dimensões indissociáveis”.13 Se faltava aos governadores-gerais nomeados para o Brasil no século XVII experiência colonial anterior, o mesmo não se pode dizer dos vice-reis que serviram na centúria seguinte. Em sua grande maioria, haviam governado outras capitanias na América, ou passado pelos governos da Índia e de Angola. Ainda de acordo com Nuno Monteiro, se na Índia os vice-reis continuavam a ser recrutados entre os que haviam bem servido à monarquia no âmbito militar, no Brasil o que parece ter sido um ponto distintivo no curriculum dos escolhidos era possuírem anterior experiência administrativa em outras partes do império. Maria de Fátima S. Gouvêa (2001:306-309) analisa as trajetórias administrativas de homens que assumiram postos governativos em diferentes regiões do Atlântico Sul, especialmente em Angola e no Brasil, e chama a atenção para uma “poderosa estratégia de governo do Império”, a partir de finais do século XVII e por toda a centúria seguinte. De acordo com Monteiro (2001a:266), casos paradigmáticos são os de Vasco Fernandes César, que depois de três anos na Índia esteve 15 no seu vice-reinado brasileiro; de André de Melo e Castro, que permaneceu 14 anos em idênticas funções, depois de três anos nas Minas;

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Monteiro, 2001a:264.

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de António Álvares da Cunha, que passou sucessivamente ao longo de 22 anos pelos governos de Mazagão, Angola, Minas, São Paulo e, por fim, Brasil (agora e pela primeira vez, sediado no Rio de Janeiro); de António Rolim de Moura, que depois de 16 anos no governo do Mato Grosso e da Bahia, subiu a vice-rei; e, por fim, do 2o marquês do Lavradio, que, depois de dois anos na Bahia, permaneceu por mais de uma década no seu, de resto marcante, vice-reinado brasileiro. ❚

Um estudo de caso: o governo “despótico e absoluto” do marquês de Angeja

Em 13 de junho de 1714, tomava posse do governo na Bahia, com a patente de vice-rei e capitão-general de mar e terra, d. Pedro Antônio de Noronha, primeiro marquês de Angeja. Filho de d. Antônio de Noronha, primeiro conde de Vila Verde, e de d. Maria de Menezes, filha de d. Duarte Luiz de Menezes, terceiro conde de Tarouca, e da condessa d. Luiza de Faro, d. Pedro Antônio de Noronha de Albuquerque e Sousa serviu como vice-rei na Índia entre 1692 e 1699. Foi general da cavalaria da província do Alentejo e, como mestre de campo-general, participou da campanha de 1706, “em que o nosso Exército mandado pelo marquês de Minas ocupou Madri, em que o marquês teve grande parte”. Em 1710, assumiu o posto de governador de armas da província do Alentejo e, em 1713, foi nomeado “vice-rei e capitão-general de mar e terra, com intendência, e superioridade em todas as capitanias da América”.14 Uma das principais finalidades de sua escolha — “pela sua qualidade e de tão grande suposição em lugares” — foi estabelecer a dízima da alfândega de 15 De Salvador e o direito dos escravos que passavam “por mercancia” às Minas. acordo com a carta patente, sua nomeação por d. João V foi feita em “consideração ao serviço que me tem feito o marquês de Angeja do meu Conselho de

Sousa, 1742:87-89. Em Consulta do Conselho Ultramarino, de 17-12-1715, sobre a carta do vice-rei, em que pedia dispensa do governo, os conselheiros afirmavam que “como o fim principal que moveu Vossa Majestade a mandá-lo à Bahia, escolhendo a sua pessoa pela sua qualidade e de tão grande suposição em lugares, foi o de estabelecer a dízima da alfândega e o direito dos escravos, e se acham os ditos direitos introduzidos pelo bom modo e suavidade com que o dito vice-rei soube granjear o ânimo daqueles povos, se faz muito digna da Real atenção de Vossa Majestade a sua representação”. No entanto,d. João V limitou-se a responder que já havia mandado agradecer ao marquês vice-rei “o bem que se houve no estabelecimento da dízima”, mantendo-o no posto até 21 de agosto de 1718 (Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro — DH/BNRJ, v. 96, 1952, p. 208-209). 14 15

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Estado nos lugares e postos que ocupou e ao valor com que procedeu em todas as ocasiões da guerra e confiando do seu esforço, boas partes, qualidades, experiências”, inclusive no governo da Índia entre 1692 e 1699.16 A questão que se quer levantar aqui é se a nomeação do marquês de Angeja com o título de vice-rei acarretou maior concentração de poder, jurisdição e prerrogativas, até então exclusivas do rei, na pessoa do governante colonial. Qualquer que seja a resposta, a defesa pelo vice-rei da representação alguns atributos majestáticos inaugurou um quadro de conflituosidade com odeConselho Ultramarino. Os motivos do enfrentamento transparecem nas discussões e nos pareceres do Tribunal. Ao consultar uma carta do marquês de Angeja solicitando ao rei a faculdade de conceder foros de fidalgos e hábitos da Ordem de Cristo aos vassalos americanos, os conselheiros ultramarinos sustentavam que, embora coubessem aos vice-reis da Índia semelhantes concessões, “isto foi por animar aos homens nobres deste Reino que passassem àquele Estado, e para que nele na guerra 17 Diobrassem ações singulares e heroicas, como declara a mesma provisão”. ziam ser o governo da Índia “um governo totalmente militar e guerreiro”, pois os vice-reis estavam sempre em campanha, no mar e na terra, lutando com os governantes da Ásia e com as demais nações da Europa, o que não ocorria no Brasil. Justificavam que a mesma faculdade não havia sido concedida ao conde de Óbidos, que fora vice-rei do Brasil depois de ter governado a Índia. E, se ela fora atribuída, com alguma moderação, a Artur de Sá e Menezes, governador do Rio de Janeiro entre 1697 e 1702, “foi para convidar aos paulistas ao descobrimento das minas, [o negócio] mais útil e importante a este Reino que teve

Registo da car ta patente por que Sua Majestade há por bem nomear ao marquês de Angeja por vicerei e capitão-general de mar e terra do Estado do Brasil para que sirva este cargo por tempo de três anos com o soldo de 12 mil cruzados em cada um deles (DH/BNRJ, v. 61, p. 142, 1943). Segundo José o governador-geral do Estado do Ignácio de Abreu e Lima, o marquês de Angeja, terceiro vice-rei e 37 16

Brasil, “foi o primeiro ordenado deera 48.000$000 réis, virtude da carta régia de 7 de de 1714, quando pela deque 28 teve de abril de 1669 o ordenado dosem governadores-gerais do Brasil tãoabril somente de 1.200$000 réis” S( ynopsis ou...). Já no final de seu governo, o marquês de Angeja representava que, “atendendo a sua pessoa, e aos gastos que se lhe faziam precisos naquela praça, correspondentes ao lugar que ocupa”, e ainda aos que teria com a preparação de sua viagem para o reino, era justo que continuasse recebendo soldo até a data de sua partida. O Conselho foi de parecer que d. JoãoV deferisse ao pedido do marquês,“pois a sua pessoa por quem é e pelos lugares e postos que há ocupado, faz uma grande distinção dos mais governadores, porém que se deve declarar que esta graça não fará exemplo para outros” (Consulta do Conselho Ultramarino, de 15-3-1717.DH/BNRJ, v. 97, p. 57-58, 1952). 17 Consulta do Conselho Ultramar ino, de 15-12-1714 (DH/BNRJ, v. 96, p. 141-142, 1952).

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naquele Estado (...) sendo prêmio com que Vossa Majestade queria animar aos homens para lhe fazerem tamanho serviço”.18 Uma semana mais tarde, o conselho se reuniu para avaliar mais uma pretensão do marquês de Angeja: reformar os oficiais de guerra e prover-lhes os postos. Novamente, o parecer foi contrário, porque imediata e inerentedeà real pessoa(...) de Vossa nem o convémesta quejurisdição se amplieé tanto a jurisdição vice-rei, porqueMajestade, neste Reino Conselho de Guerra nem este tribunal o pode[m] fazer senão por consultas e resolução de Vossa Majestade.19

Nas resoluções tomadas a partir de ambas as consultas d. João V conformou-se com o parecer do conselho. Em duas outras consultas sobre a determinação do vice-rei de criar novos ofícios para a Fazenda Real na Bahia, assim como para a secretaria do mesmo governo, os conselheiros argumentavam, na primeira, que o vice-rei ia “procedendo absolutamente no seu governo, sem reconhecimento de superior e sem atenção aos regimentos, leis, e ordens de Vossa Majestade, nem ao estado em que se acha a Fazenda Real (...) multiplicando despesas de seu moto próprio, criando ofícios novos sem jurisdição”. Aconselhavam o monarca a admoestar o marquês para que não continuasse “nesta forma de governo tão despótico e absoluto”, e não inovasse “a forma em que está disposto aquele governo”. 20 D. João V, contradizendo o parecer do conselho, aprovou a determinação de Angeja, enquanto não resolvesse o contrário.21 Na segunda consulta sobre o mesmo tema, os votos dos magistrados divergiam. O parecer do procurador da Fazenda era que ao vice-rei sem expressa e declarada autoridade ainda em nome de Vossa Majestade não é permitido criar ofícios de novo, porque esta jurisdição é só de Vossa MaConsulta do Conselho Ultramar ino, de 15-12-1714 (DH/BNRJ, v. 96, p. 141-142, 1952). Consulta do Conselho Ultramar ino, de 22-12-1714 (DH/BNRJ, v. 96, p. 147, 1952). 20 Consulta do Conselho Ultramar ino, de 19-1- 1715 (DH/BNRJ, v. 96, p. 150-152, 1952). 21 Resolução, anexa à consulta, de 24-1-1715 ( DH/BNRJ, v. 96, p. 152, 1952). No que diz respeito às matérias relacionadas à Fazenda Real, a patente do marquês de Angeja dispunha que “ele ordenasse o que houver mais por meu serviço, (...) porque para tudo lhe dou inteiro poder e superioridade” (DH/ BNRJ, v. 96, p. 144, 1952). 18 19

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jestade e soberania régia, e que quando parecesse necessário mais alguns oficiais, devia o vice-rei dar conta da necessidade para o dito senhor resolver o que fosse 22 servido, e não criar ele tantos ofícios de novo por sua própria autoridade.

Concluía que o marquês de Angeja devia guardar tão somente o que determinava o regimento dos governadores-gerais.23 No entanto, o ponto da àconflituosidade o Conselho Ultramarino e o vice-rei nãomais diziacrítico respeito jurisdição desteentre último, quer em matérias militares, quer nos assuntos relativos à Fazenda Real. Grande parte das consultas relativas ao governo do marquês de Angeja (1714-18) espelhava o incômodo e a reação dos conselheiros ultramarinos diante da progressiva perda de autoridade sobre os estilos de conduta do vice-rei, ou, dito de outra forma, diante da perda da jurisdição do conselho nos negócios do ultramar. Em dezembro de 1714, os conselheiros se queixavam a d. João V que “o vice-rei escreveu somente oito cartas em direitura a este Conselho e todas as mais que nele se acham, que fazem o número de 57, lhe vieram remetidas pelo secretário de Estado a quem foram escritas pelo vice-rei diretamente”. 24 Afirmavam que, agindo dessa forma, o vice-rei faltou à observância do seu regimento, que lhe recomenda que de todos os negócios do governo dê conta por este Conselho que é tribunal privativo, que pode haver nas conquistas, deputado por Vossa Majestade para este fim, e faltando-se a ele se perturba muito o bom governo das conquistas e do serviço de Vossa Majestade, e do expediente das partes, (...) e não se fazendo assim, se confundirão os negócios, se perturbará a boa ordem e regimento que Vossa Majestade tem dado para os seus domínios.25

Consulta do Conselho Ultramar ino, de 23-2-1715 (DH/BNRJ, v. 96, p. 152-155, 1952). Consulta do Conselho Ultramarino, de 23-2-1715, e resolução anexa, de 20-12-1715 (DH/BNRJ, v. 96, p. 154-155, 1952). 24 Consulta do Conselho Ultramar ino, de 15-12-1714 (DH/BNRJ, v. 96, p. 143-144, 1952). 25 Idem. Em nova consulta (8-1-1715) sobre provimentos militares feitos pelo marquês de Angeja a partir de uma portaria do secretário de Estado, e não de alvará régio, os conselheiros afirmavam ser aquele procedimento contrário à lei “que ordena que se não faça obra alguma por portaria dos secretários”, pois elas não tinham legitimidade para ampliar a jurisdição dos vice-reis, na medida em que o criar novos postos “é só próprio do poder soberano de Vossa Majestade”DH/BNRJ ( , v. 96, p. 149-150, 1952). 22 23

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De forma cada vez mais contundente, os conselheiros voltariam a se pronunciar acerca do “governo despótico e absoluto” do marquês de Angeja, e da falta de notícias das ordens que o vice-rei dizia ter recebido de Lisboa. Consideravam “gravíssimo prejuízo para o bom governo daquela conquista que as ordens que para ela se passarem não sejam todas expedidas por este Conselho, como Vossa Majestade tem disposto no regimento dele”.26 Referiam-se ao respeito por e autoridade quevigor merecia o conselho, para que as ordens queaos se expedissem ele tivessem e eficácia. Lembravam o decoro devido tribunais supremos, por serem “vivas representações do príncipe, que por um modo político se produz para poder eficazmente acudir ao governo de todas as partes da monarquia”. Mencionavam os graves inconvenientes que poderiam resultar ao serviço régio, e a confusão e embaraço do expediente do tribunal, pois receavam que as ordens passadas por outras vias alterassem resoluções anteriores, deixando o conselho “cego, por não ver nem ter notícia do que se tem ordenado”. E advertiam ao monarca que daquele estado de coisas nascerá perturbar-se muito a harmonia daquele governo, que é a base mais firme da conservação dos estados e especialmente necessária para aquele do Brasil, por estar tão distante da cabeça e coração da monarquia, por se achar tão opulento e por se saber e ter experimentado proximamente em quase todos os governos a pouca sujeição e obediência dos seus moradores às ordens reais.27

Essa disputa de jurisdição em torno da representação dos direitos majestáticos personificados no vice-rei e no tribunal régio ao qual cabiam as diretrizes da política ultramarina coloca questões importantes. Recentes estudos têm defendido que, entre finais do século XVII e início do século XVIII, o poder monárquico em Portugal sofreu um lento, porém crescente processo de centralização. Em relação aos fatores internos que o teriam motivado, podemos citar uma diminuição da consulta aos conselhos, substituída, nas principais decisões régias, por um círculo restrito de pessoas e juntas de composição variável, que passaram a aconselhar o monarca. Em 1736, após a morte do secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real, d. João V criou três novas secretarias: a do Reino, a dos Negócios Estrangeiros e Guerra, e a da Marinha e Negócios Ul26 27

Sobre o regimento do Conselho Ultramarino, ver Barros (2004). Consulta do Conselho Ultramar ino, de 2-5-1716 (DH/BNRJ, v. 96, p. 231-236, 1952).

❚ Cultura política, governo e jurisdição no Antigo Regime e na América portuguesa

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tramarinos, que viriam a concentrar mais eficazmente as diferentes matérias até então consultadas nos Conselhos, entre eles o conselho Ultramarino.28 Segundo Nuno Monteiro, o reinado de d. João V testemunhou uma nova configuração do poder central, um novo padrão de relacionamento entre este e os poderes periféricos, um novo estilo de governação e a emergência de uma nova cultura política, o que provocou maior concentração da capacidade decisória e uma restrição do grupo dirigente. A seu ver, a regência e reinado de d. Pedro II caracterizar-se-ão por um modelo de funcionamento da administração central que se prolongará ainda pelos primeiros anos do reinado de d. João V, mas que contrasta com o que foi adotado desde, pelo menos, os anos 20 dos Setecentos, quando o rei passou a despachar com os seus sucessivos secretários de Estado ou outras personagens, em larga medida à margem dos conselhos, ou melhor, do Conselho de Estado.29

Em relação especificamente ao governo e à administração da América portuguesa, a inflexão ocorrida no governo de d. João V em relação aos circuitos de tomada de decisão no reino30 foi acompanhada pela escolha de um novo perfil de governantes ultramarinos. Segundo Jaime Cortesão (2001:349), a década de 1730 seria marcada pela nomeação de “uma plêiade de funcionários excelentes” para o Brasil, entre eles o conde de Galvêas, para o governo de Minas; o conde de Sarzedas, para o de São Paulo; Gomes Freire de Andrade,para o do Rio de Janeiro; Rafael Pires Pardinho, para a Intendência do Serro do Frio; e Martinho de Mendonça de Pina e Proença, para acompanhar o processo de implementação da capitação nas Minas. Em 1735, o conde de Galvêas passa à Bahia com patente de vice-rei do Brasil, e Gomes Freire de Andrade acumula o governo do Rio de Janeiro e das Minas. Por outro lado, a interiorização da colonização portuguesa no século XVIII levou à criação de novas capitanias e à nomeação de novos governadores e capitães-generais para os seus respectivos governos. A reorganização administrativa da América portuguesa e a multiplicação de capitanias levaram à diminuição das atribuições dos antigos governadores-gerais e então vice-reis, Almeida, 1995. Monteiro, 2001b:967. 30 Bicalho, 2007 e no prelo. 28 29

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assim como de seu poder de interferência para além das circunscrições políticoadministrativas para as quais eram nomeados. Em outras palavras, nas primeiras décadas do século XVIII, quando o título de vice-rei passou a ser sistematicamente atribuído aos antigos governadores-gerais, sua superioridade hierárquica em termos político-administrativos e sua capacidade de intervenção nas demais capitanias deixaram de existir. Isso nos remete às argumentações defendidas pela historiografia — inclusive por alguns dos autores acima citados — de que a qualidade de vice-rei no Brasil, além de distinguir os nomeados para o ofício, provenientes da primeira nobreza do reino, não passava de um título que não trazia consigo maiores poderes ou competências. Dauril Alden (1968:40) afirma que uma das mudanças mais significativas ocorridas na passagem da designação de governadores-gerais para a de vice-rei foi o acréscimo de seus salários. De resto, as ordens e deliberações remetidas de Lisboa não se dirigiam mais tão somente aos vice-reis, para serem por eles reencaminhadas aos demais governadores das capitanias. Contrariamente, estes se correspondiam diretamente com a Coroa, não sendo mais obrigados a pedir autorização ou dar satisfação de seus atos ao vice-rei, quer na Bahia, quer, posteriormente, no Rio de Janeiro. No entanto, e em conclusão, se os vice-reis do Estado do Brasil não possuíam as mesmas prerrogativas que os do Estado da Índia, e se ao longo do século XVIII, com a criação de novas capitanias-gerais, seu poder de intervenção nas mesmas era quase inexistente, ao menos simbolicamente continuavam a representar a figura régia e alguns direitos majestáticos nos distantes domínios ultramarinos. Daí a importância do estudo desse ofício a partir de uma perspectiva teórica e historiográfica que privilegie, para entender o governo e a administração ultramarina, a cultura política do Antigo Regime. ❚

Referências

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❚ Cultura política, governo e jurisdição no Antigo Regime e na América portuguesa

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Cultura política, memória e historiograa

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PARTE VI



Cultura e memória no tempo presente

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Ditadura, intelectuais e sociedade: O Bem-Amado de Dias Gomes

Denise Rollemberg Imagino que hoje [1998] a perspectiva do tempo nos tenha levado a uma compreensão menos sectária do papel do intelectual como crítico de seu tempo Gomes, 1998:249 A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz. Camus, 1989:145

O historiador que estuda a última ditadura brasileira (1964-85) e, em particular, a resistência, ao ler o artigo de Pierre Laborie (1994) intitulado “Historiadores sob alta vigilância”, se surpreenderá certamente. Como pode um texto sobre um país e um momento tão diferentes daqueles que pesquisa ter tanto a lhe dizer? A curiosidade do pesquisador o levará a buscar as referências de pé de página, que, por sua vez, o encaminharão a mais e mais autores, testemunhos, documentos. Diante dele, uma significativa historiografia, tanto no que diz respeito à quantidade quanto à qualidade. Autores que a partir dos anos 1970 promoveram a revisão das interpretações dos chamados anostroubles, ou seja, da estranha derrota para a Alemanha nazista (1940) até a Libertação (1944), num debate que em muito ultrapassa os espaços acadêmicos.1 Para além da existência de temáticas e problematizações tão semelhantes às nossas, ele se surpreenderá com o fato de essa historiografia ser raramente conhecida do leitor brasileiro, mesmo do estudioso dos regimes autoritários. Nosso historiador da resistência continuará, talvez, a leitura motivado também por um estranho bem-estar: identificará ali muitos dos obstáculos que 1

Bloch, 1990.

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encontra no seu trabalho; se sentirá acompanhado nas suas dúvidas e angústias. E perceberá o muito que temos a fazer para melhor compreender a experiência autoritária e seus embates, mas se sentirá, antes de tudo, estimulado a prosseguir, encontrando aí importantes referências teóricas e metodológicas; confirmará o quanto as dificuldades que cerceiam o seu estudo têm a dizer, o quanto esses obstáculos lhe servem se transformados em objeto de investigação. Já se pode dizer que existe uma vasta historiografia sobre o período 196485. Essa história vem sendo contada, sobretudo — embora não exclusivamente —, a partir das pesquisas sobre resistência (como foi, aliás, a ênfase inicial também entre os especialistas da França sob a ocupação alemã e Vichy). Mais do que isso, a memória coletiva desses 21 anos se construiu estruturada na ideia da resistência, como constatou Daniel Aarão Reis, há mais de uma década. A 2 sociedade resistiu e “não tem, e nunca teve, nada a ver com a ditadura”. Essa memória se atualiza constantemente desde o final dos anos 1970. Persiste, insiste. A historiografia, significativa em termos quantitativos, contribuiu, em certo sentido, para o desconhecimento do passado recente, resultado do abismo entre memória e história. Um abismo aprofundado com o tempo. Por outro ângulo, a memória se sobrepôs à história, num confronto em que os personagens, os testemunhos assumiram a missão de guardiães da memória, arautos da história. Assim, a perspectiva crítica — que faz da memória objeto de estudo e rompe com mitificações e lendas apaziguadoras — é inaceitável. Uma ofensa.Os historiadores sob alta vigilância. Uma usurpação. Só os que viveram o período — ou o herdaram — sabem. A eles, e só a eles, o direito — e mesmo o dever — de contar a história. A negação da história. Os problemas para o historiador não iniciado, para usar a expressão de Pierre Laborie, não são exclusivos do pesquisador da resistência, mas aí se agravam. Tema sacralizado (Todorov) por excelência. Campo minado no qual só é imune às explosões aquele que ratifica o estatuto do sagrado. Nesse caso, mesmo sem o parentesco das heranças no tempo presente, será bem-vindo. Seu discursolegitimará — e laicizará — essa memória. A historiografia francesa pós-Paxton passará ao largo desse historiador.3

Reis, 2000:9. O livro do historiador norte-americano Robert O. Paxton (1997) é um marco na historiografia sobre a França sob a ocupação e o regime de Vichy (La France de Vichy, 1940-1944) e foi publicado em 1972 nos EUA e na Inglaterra, e, no ano seguinte, na França. Ver também a publicação em homenagem a Paxton (Fishman et al., 2004). 2 3

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A situação tende a piorar — desculpem o pessimismo —, uma vez que, se são muitos os estudos sobre resistência, praticamente inexiste uma pesquisa sobre o que é resistência, o que é resistir; sobre a ideia de resistência e os critérios que definiriam os resistentes. (E aqui, entre parênteses, mais um ponto em paralelo com a historiografia francesa até a década de 1980). Só nas rememorações dos 40 anos do golpe civil-militar, em 2004, dois autores — assim, DanieloAarão Reisera e Marcelo polemizaram a esse respeito. Ainda objetivo discutir Ridenti se a luta— armada foi ou não resistência. O debate nos vários congressos e publicações na época não estimulou outros pesquisadores a conceituar e historicizar a resistência. Enfim, tudo teria sido resistência, em geral democrática: a luta armada e o ato de torcer contra a seleção de futebol na Copa do México de 1970; as citadíssimas receitas de bolo, as informações meteorológicas, os poemas de Camões nos espaços das notícias censuradas na grande imprensa; as não menos referidas ironias do Pasquim; o “ teatro de ocasião” de Gianfrancesco Guarnieri, “cifrado”, “ o possível nas circunstâncias”;4 as substituições das letras ufanistas das músicas de propaganda política por letras debochadas; a introdução de novas matérias nos currículos escolares e universitários, visando formar crianças e jovens segundo os valores do regime e criar espaços de debate sobre os reais problemas do país;5 o aproveitamento do incentivo público na produção de filmeshistóricos (no pior sentido da pior antiga história política dos grandes feitos e grandes heróis) que se referiam a arbítrios passados para falar do arbítrio presente; as telenovelas de Dias Gomes ambientadas num Nordeste síntese do Brasil dos absurdos e desigualdades sociais, dos herdeiros do coronelismo, da política corrupta; as atuações da Associação Brasileira de Imprensa — a trincheira da liberdade —, da Or6 dem dos Advogados do Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; as chamadas músicas de protesto e as bregas; o punho cerrado de Toni Tornado no palco do Festival de Música Popular; os anjos nos tecidos das roupas de Zuzu Angel, em alusão ao filho morto na tortura; a atuação partidária do MDB; votar na oposição consentida, em branco ou no João Gibão (persongem de Saramandaia,

Sobre Guar nieri, ver Marques (2008:48). As matérias eram Educação moral e cívica, Organização social e política do Brasil (OSPB) e Estudos dos problemas brasileiros (EPB). 6 Sobre memória, a OAB e a ABI, ver Rollemberg (2008 e 2009). 4 5

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de Dias Gomes); driblar uma censura supostamente burra7 e considerá-la como tal; surfar no píer de Ipanema, contra a proibição da prática do esporte em determinados períodos do dia...8 Tudo r esistência. Não se trata em absoluto de buscar respostas definitivas, mas de quebrar o monolito, perceber os seus sentidos, virá-lo pelo avesso; pisar em campos minados, romper mitos, desafiá-los, desarmá-los; fazer da memória objeto do historiador ;. entender como um conceito(título a ser definido e redefinido, resistência O percurso “da memória à história” do colóquio sobre a historicizado 9 resistência, em Toulouse, em 1995), quem sabe, levará à reconciliação entre uma (a memória) e outra (a história) — como propunha então Philippe Joutard para a realidade francesa —, d esfazendo-se as confusões (Henry Rousso) entre uma e outra. Reconciliação somente possível, a meu ver, se as fronteiras entre ambas forem mais nítidas e demarcadas. Daí teríamos pontes a viabilizar trocas, diálogos, sem superposições e dominações. Sem interdições. Não seria esse o trabalho do historiador? Não estaria aí o seu sorriso de Sísifo? O nosso sorriso decisivo ?10 A primeira e inevitável pergunta: por que nunca se colocou em questão a definição de resistência? Uma possível e imediata resposta seria: devido, exatamente, à força da ideia segundo a qual a sociedade resistiu — democraticamente — ao arbítrio, à ditadura. Se nada teve a ver com seus valores, muitas perguntas nem sequer são formuladas. Diluem-se também objetos de estudo, como as colaborações. As zonas cinzentas e as ambivalências não são percebidas (conceitos desenvolvidos por historiadores de Vichy e, em particular, Pierre Laborie). Os campos são bem nítidos e demarcados: de um lado, os militares e as elites Em sua autobiografia, Dias Gomes (1998) reproduz a tese do suposto despreparo da censura e dos censores, consideradosburros. Tal interpretação tornou-se insustentável a partir de pesquisas como as de Aquino (1999), Smith (2000) e Kushnir (2004). 8 Samantha Quadrat foi quem me falou dessa “forma de resistência”, segundo um programa de TV 7

sobre o surfe praticado no local que ondeprendia se construía uma ao rede de esgoto.Por Atéser1972, os surfistas desconheciam o strep, cordinha a prancha tornozelo. um lugar muitobrasileiros frequentado pelos banhistas, a prática do esporte fora limitada a antes de 8h e depois das 14h. Com o uso do strep, a interdição acabou e, com ela, oprotesto e a resistência. Ironia à parte, ver o depoimento de Rico, um dos surfistas mais conhecidos da época (disponível em: , acesso em: 8 ago. 2008). 9 Guillon e Labor ie, 1995. 10 O título srcinal da obra de Camus (1989), Le mythe de Sisyphe, propõe um trocadilho, um jogo de palavras que se perde na tradução para o português: o mito de Sisyphe/decisive (decisivo); a mesma pronúncia os iguala, os funde.

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conservadoras; de outro, a imensa maioria da população. Sem interseções, sem pontes de ligação. Em 1995, Philippe Joutard se mostrava otimista em relação ao movimento de historiadores no sentido de historicizar a resistência francesa, de refletir sobre seus signficados, de definir o próprio conceito.11 Formara-se uma geração de historiadores que não carregavam como experiência vivida aqueles anos, assim como com apareciam pesquisadores estrangeiros, em princípio, sem compromissos a memória . Entre nós,todos, entretanto, ocorre fenômeno sacralizada curioso: o distanciamento do tempo nem sempre tem produzido historiadores descompromissados com a missão de guardar a memória. Sem qualquer envolvimento daí herdado, vemos jovens historiadores assumindo esse papel, às vezes até mesmo com maior rigor, comocristãos-novos, saudosistas de um passado não vivido. Um passado que lhes é distante, como distante ficou a memória da história. Sem distinguir onde uma termina e a outra começa, confirmam a confusão — e também a distância — entre ambas, num movimento que impede qualquer conciliação e que deforma o trabalho do historiador. Em Albert Camus, cujas ideias Laborie trabalhou, a brilhante lucidez: o respeito aos resistentes e à resistência não significa — não pode significar — uma atitude de recalcamento e de anestesia, mas exatamente o contrário. É a sacralização dessa memória — a impor tabus, zonas interditas, censuras, amarras, ditaduras, visões acríticas — que é o insulto à resistência, aos resistentes. Respeitá-los é romper as proibições, é trazer à tona uma história marcada — o que não é exclusivo dessa história — por contradições e, sobretudo,ambivalências. Se, como disse Daniel Aarão Reis, resistência foi — e é — a palavra-chave na memória coletiva e nas pesquisas, para se desfazer aconfusão entre memória e história, talvez ambivalência seja, então, a chave para destrancar essa porta. Uma história de homens e mulheres em suas grandezas e misérias. Longe dos heróis e heroínas perfeitos e impossíveis. Respeitá-los é compreender suasimperfeições, e não vêlos à imagem e semelhança dos nossos próprios limites e incompreensões. Em meio a tantos depoimentos, testemunhos, narrativas, memórias, historiografia, a proposição de Laborie (1994) para a França nos seria igualmente bem-vinda: “Face às incômodas crispações, para alguns, pode-se perguntar se 11 Pode-se citar uma vasta historiografia que contribuiu nesse sentido. Destaco aqui apenas alguns títulos: Bédarida (1986); Azéma e Bédarida (1994); Semelin (1994); Laborie (1995); Marcot e Musiedlak (2006); Marcot (2006).

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não é esta espécie de obstinação de querer imobilizar o tempo e decidir lugares 12 de questionamento o que constitui, hoje, a verdadeira falha da memória”. Que o trabalho do historiador — distinto do trabalho do militante, nem melhor nem pior, mas distinto — seja feito. Livre das patrulhas, diríamos nós, do obscurantismo que nega e desqualifica o que não é a sua verdade. Que a experiência da ditadura — da luta contra a ditadura — não tenha disseminado o triste legado da intolerância, e sim o que TzvetanTodorov (2004) chamou de memória exemplar, uma bela resposta à sacralização da memória.13 *** O presente texto insere-se num estudo mais amplo sobreO Bem-Amado, novela de Dias Gomes levada ao ar pela TV Globo entre janeiro e outubro de 1973.14 O objetivo da pesquisa é refletir sobre as relações entre intelectual, ditadura e sociedade.15 Aqui, interessa-nos levantar questões sobre o artista e intelectual de esquerda sob a ditadura e sobre a memória acerca do seu papel como resistente. Não se trata, porém, de abordá-lo pelo viés mais frequente nas pesquisas sobre a ditadura (1964-85), ou seja, segundo a hipótese daincorporação do intelectual no sistema como uma forma de resistir por dentro. Tampouco nos interessa investigar as relações entre intelectual, ditadura e sociedade paraacusar supostas colaborações, ao estilo caça às bruxas. A intenção é compreender a riqueza do universo no qual se encontram o intelectual, a mais poderosa rede de comunicação do país e o grande público.

12 Tradução livre de: “ Face à des crispations devenus, pour certaines, encombrantes, on peut se demander si ce n’est pas cette sorte d’obstination à vouloir figer le temps et décider des lieux de questionnent qui constitue, aujourd’hui, le vrai manquement à la mémoire”. 13 Ver também Rousso (1998). 14 Sprits da novela O Bem-Amado, 198 caps., março a outubro de 1973, disponível no Centro de Documentação da TV Globo, Rio de Janeiro. 15 Agradeço ao CNPq as bolsas de produtividade e de iniciação científica, bem como à Propp/UFF, a concessão de uma bolsa de IC. Sou grata aos estudantes de graduação da UFF pelo trabalho e a dedicação nas atividades de bolsistas: Marco Mazzillo e Giordano Bruno dos Reis Santos (2007-2008), Natália Scheiner e Breno Bersot (2008-2009); Caio Paz, Carolina Bezerra, Andréa Luysa Reis Santos, Juliana Elianay (2009). Agradeço igualmente ao Centro de Documentação da TV Globo o acesso à leitura dos scripts da novela O Bem-Amado.

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As inúmeras pesquisas das últimas décadas demonstram a grande efervescência cultural nos anos 1960 — pré e mesmo pós-golpe —, estando centradas, sobretudo, nas atividades das esquerdas e no seu projeto de construção de nação. O uso do conceito de romantismo revolucionário por Marcelo Ridenti (2000), a partir de Michael Löwy e Robert Sayre (1995), ajuda a compreensão das ideias e práticas de intelectuais quesupunham a existência de valores dopovo brasileiro preciosos construção de uma sociedade aigualitária mesmo socialismo. Entre onapassado e o futuro, o intelectual, vanguarda.ou As até derrotas de do 1964 (o golpe o de Estado) e de 1968 (o Ato Institucional n 5) abortaram esse movimento. Ao longo dos anos 1960 e 1970, porém, o regime ditatorial mostrou preocupação com a elaboração de políticas públicas no campo da cultura. Exemplo disso é a criação do Conselho Federal de Cultura (1966), incorporando ao Estado intelectuais de renome no cenário brasileiro. Ao fazê-lo, assumiu muitas referências caras ao projeto cultural das esquerdas, politizando-as, contudo, em outra direção. O nacionalismo e a crença em referências intrinsicamente positivas da cultura popular, capazes de forjar a grandeza nacional, foram pontos comuns que permitiram essa aproximação.16 A preocupação com a formação do povo a partir de suas próprias referências, uma vez trabalhadas pelo intelectual — princípio arraigado nas esquerdas dos anos 1960 —, não lhes era exclusiva. Ao contrário, fora uma constante nas políticas educacionais e culturais desde os anos 1930, independentemente de posições à direita ou à esquerda. Com perspectivas e projetos próprios, as esquerdas somaram-se a essa tradição. Num certo sentido, uma continuidade. De comum entre famílias políticas tão diversas, a ideia davanguarda, da elite intelectual e seu papel na construção do povo, da nação, do país. Tampouco foi exclusivamente o Estado, no pós-1964, por meio de seu projeto de políticas públicas culturais, que incorporou intelectuais identificados a tais valores. Os meios de comunicação de massas, em particular a Rede Globo, base importante de apoio ao regime, também os absorveram, inclusive intelectuais claramente de esquerda. Os mais conhecidos são os dramaturgos Dias Gomes e OduvaldoVianna Filho, cujas novelas, “casos especiais” e séries fizeram enorme sucesso de crítica e público nos anos de ditadura.17 Lamarão, 2008. O Bem-Amado voltou à TV Globo como série em 1980, só acabando em 1985. Segundo Dias Gomes (1998:276), “nessas histórias, eu sempre buscava inspiração em fatos políticos, satirizando e criticando 16 17

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Dias Gomes, militante filiado ao PCB desde 1945 até início da década de 1970,18 membro de seu comitê cultural e secretário-geral do Instituto Brasil-Cuba, fora demitido da Rádio Nacional, em 1964, pelo primeiro Ato Institucional.19 Quando se iniciou o per íodo mais crítico da ditadura, tornou-se contratado da Globo, na sequência do AI-5, em 1969.20 No governo Médici, sob os encantos do “milagre econômico”, foi ao ar, no início de 1973, sua novela O sobre a vidadominada política e pelo o cotidiano de Sucupira, uma provinciana Bem-Amado cidadezinha, do Nordeste autoritarismo e pela hipocrisia da moral e dos bons costumes, pilares do regime. Sucupira, metáfora do Brasil. Em poucas palavras, a história de O Bem-Amado gira em torno das mil e uma peripécias do prefeito Odorico Paraguaçu para inaugurar a grande e única obra do seu mandato: o cemitério. Mas, como ninguém morria na pequena Sucupira, produtora (e exportadora!) do melhor azeite de dendê nordestino, evidenciava-se, no absurdo, a nulidade de sua administração.21 O Bem-Amado parece escr ito sob medida para afrontar a ditadura. As situações e os personagens desafiam, com ironia, deboche e humor, a imagem de país e povo que o regime pretendeu veicular por meio do seu órgão de propaganda: prosperidade, grandeza, desenvolvimento, união, ordem e harmonia, como o atestavam o estrondoso crescimento econômico e oapaziguamento dos conflitos sociais dos anos 1960.

o ‘sistema’, em tempos que a censura ainda não o permitia. O Bem-Amado [a série] era uma pequena janela aberta no paredão de obscuridade construído pelo regime militar”. Em 2007, o diretor de TV e teatro Enrique Diaz encenou uma adaptação feita por Cláudio Paiva e Guel Arraes da peça srcinal para os dias atuais. Atualmente, está sendo filmada uma versão para o cinema com Marco Nanini encarnando Odorico Paraguaçu. A grande família, também adaptada para a época atual, está no ar desde março de 2001 e foi lançada como filme em 2007. 18 Em Apenas um subversivo (1998:268), Dias Gomes não indica o ano preciso de sua saída do PCB, diz apenas que o deixou no “início da década de 1970”. 19 “Em 64, eu desenvolvia intensa atividade política em várias frentes. Mesmo assim, na virada do ano, aceitei o conviteE de Fróes, superintendente da Rádio Nacional, direção artística da emissora. no Hemílcio tumultuado e fatídico mês de março, por indicação da para classeassumir teatral, aJango nomeou-me diretor do Serviço Nacional do Teatro, nomeação que não chegaria a ser publicada no Diário Oficial, não tendo eu, por isso, chegado a tomar posse” (Gomes, 1998:191-192). Dias Gomes foi indiciado em cinco IPMs, entre eles o da Rádio Nacional, o do Partido Comunista e o da imprensa comunista. 20 “Eu já recebera convite semelhante da TV Rio poucos anos antes e não aceitara. Agora, minha situação econômica não me permitia sequer hesitar.Tinha várias peças proibidas, e as que ainda não estavam sê-lo-iam certamente” (Gomes, 1988:255). 21 Em sua autobiografia, Dias Gomes (1998) refere-se à presença do absurdo em sua obra.

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O Bem-Amado, porém, fora escrito em 1962 como peça de teatro.22 Ou seja, ainda no período democrático e antes do acirramento das tensões do prégolpe. Lá estavam, na peça (e no Brasil), o autorismo e a hipocrisia da moral e dos bons costumes (e o absurdo), moldando a sociedade. Uma linha de continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Em sua autobiografia, Dias Gomes revela Odorico Paraguaçu como caricatura de Carlos ou mais o linguajar do prefeito de Sucupira como alusãoLacerda, ao hiperbólico governador da Guanabara, estiloprecisamente, oratório do então que também pretendia fazer sua obra: transformar o Parque Lage — extravagante floresta em plena cidade, um patrimônio cultural — num cemitério vertical.23 Curiosamente, a peça só foi encenada pela primeira vez em 1969 e, profissionalmente, em 1970,24 já no contexto de fechamento do regime com o AI-5. De liderança golpista, Lacerda tornara-se alijado da nova ordem, motivando Dias Gomes a transformar Odorico no “protótipo do político interiorano, produto do coronelismo”. Na TV, nos anos 1970, o autoritarismo e osbons costumes voltariam a ser explorados como lentes através das quais Dias Gomes enxergava a sociedade, com suas continuidades: elemento importante da nossa cultura política, estivéssemos sob democracia ou ditadura.25 Mas, se O Bem-Amado ironiza o autoritarismo e a hipocrisia da moral e dos bons costumes, a Sucupira rural e atrasada acaso não seria o Brasil a ser superado pela modernização vivida pelo país nos anos 1970, projeto do regime e das forças sociais que o respaldavam?26 Em que medida o sarcasmo com as tradições atrasadas desafia o regime e em que medida o corrobora? Espaços e tempos diferentes, existindo lado a lado, simultaneamente? Situação a ser compreendida ou superada? Gomes, 2001. A peça foi publicada pela primeira vez na revista feminina Cláudia, em 1962. Gomes, 1998:187. 24 Segundo Dias Gomes (1998:274), foi encenada pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) em 1968, e a “primeira montagem rigorosamente profissional” foi no Rio, em 1970, com direção de Gianni Rato e Procópio Ferreira como Odorico Paraguaçu. No site do TAP, consta que a peça estreou em 30-4-1969 (disponível em: ). 25 É interessante notar como a recente montagem teatral de O Bem-Amado (2007) procurou, mais uma vez, adaptar a peça e o personagem às mazelas da realidade atual, sem deixar de centrar-se na nossa antiga cultura política autoritária. 26 Agradeço a Daniel Aarão Reis e Luís Reznik por me chamarem a atenção para essa possível interpretação. 22 23

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O Bem-Amado — a primeira novela em cores, símbolo de modernização — foi ao ar no governo mais repressor e ao mesmo tempo mais popular. Junto ao enorme público das novelas de televisão, Odorico Paraguaçu — o prefeito corrupto, mau-caráter, inescrupuloso, hipócrita, machista, mal-intencionado, carreirista, impiedoso — popularizou-se. O personagem do prefeito incorporou à figura do anti-herói o espírito do ser político e coletivo, atualizado para atrazendo realidade do Brasil dos anos 1960, politizado — à esquerda e à direita —, consigo as mazelas do passado que permaneciam. Mas as características do nosso herói não lhe eram exclusivas. Em Sucupira, quem poderia atirar-lhe a primeira pedra? A oposição, representada por outra família de latifundiários, herdeira dos mesmos valores e práticas? O jornal local, com ela comprometido por laços pessoais e políticos? O povo, que elegeu Odorico? O povo, que assistiu à fraude eleitoral e que dela participou em troca de favores? O povo, que o aplaudia em praça pública e o vaiava depois de uns copos de cachaça? Ao se ver em Odorico, opovo o popularizou — na ficção e na realidade. Não houve problemas em entender a língua criada pelo prefeito. Aliás, não foi a notícia do drama do prefeito de uma pequena cidade do interior do Espírito Santo, que não conseguia inaugurar seu cemitério por falta de defunto, que deu a Dias Gomes a ideia de escrever a peça?27 A vida de Sucupira nos era tão absurda quanto familiar.28 O sucesso da propaganda oficial, entretanto, que pretendeu criar obom brasileiro, ordeiro, trabalhador, ufanista, acrítico — em suposta oposição aos trabalhistas e comunistas do pré-1964 e aos manifestantes rebeldes e/ou revolucionários do nosso 1968 —, convivia lado a lado com o sucesso do anti-herói. Se os personagens de O Bem-Amado ganharam enorme popularidade, e o Odorico de Paulo Gracindo, imortalizou ambos, também os personagens, as expressões e os slogans da propaganda oficial do regime se popularizaram. Quando Dias Gomes começou a escrever a peça O Bem-Amado , em 1962, outro espetáculo, também desse ano,A revolução dos beatos, era duramente rejeitado pelo público. Nele, Dias Gomes expunha uma posição contrária à do PC, repudiada pouco depois não apenas pelo público, mas pela sociedade como um todo: Gomes, 1998:187. Mais uma vez, é inevitável lembrar Albert Camus, que, em sua obra, associa o absurdo ao familiar, como o fizera Sigmund Freud, em 1919 (cf. Freud, 1976). 27 28

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A revolução dos beatos, um texto transparentemente esquerdista, que terminava numa quase-proposta de luta armada (...) chocou a plateia paulistana, que o hostilizou violentamente, até cancelando récitas já compradas, obrigando o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] a retirá-lo de cartaz poucos meses depois.29

Anos mais tarde, o sequestro do embaixador norte-americano, em setembro de 1969, vermelho , na TVencontraria Globo.30 Dias Gomes escrevendo sua primeira novela,Verão Verão vermelho era ambientada na Bahia dos coronéis. Dias Gomes levava para a televisão seu método de trabalho anteriormente usado no teatro, onde começara sua carreira, e no rádio, onde escrevera novelas e criara programas: a pesquisa de temas e personagens do folclore e da cultura popular numa evidente valorização dos elementos nacionais: “precisava de um seguro contra acidentes, e esse seguro era a minha temática, pensei. Arrebanhei minhas pesquisas, meu pequeno universo e, como quem muda de casa, mas conserva a mobília, lanceime à aventura”.31 Da observação e da elaboração desse material nasciam as histórias e os personagens. A imaginação e a criatividade do autor alimentavam-se nessa inesgotável fonte. Dessa elaboração, Dias Gomes extraiu uma visão lúcida do povo brasileiro que, entretanto, não foi capaz de poupá-lo de uma perspectiva do povo típica dos comunistas de sua geração, sobretudo daqueles identificados ao PCB: oprimido, bom, enganado,manipulado, refém dos opressores, da miséria e da ignorância. Assim, ao mesmo tempo em queO Bem-Amado, tal como outras obras de Dias Gomes, trazia à cena figuras populares, interessantes, pois imperfeitas, imperfeitas como as elites,boas e más ao mesmo tempo — uma inovação nas novelas —, também era capaz de limitá-las às dicotomias simplificadoras. No próprio autor, a ambivalência de duas percepções. Quando revela as ambivalências do povo, revela sua maior qualidade — do autor e do povo. Se a obra de Dias Gomes presta uma homenagem ao povo brasileiro, aí está ela. No caso de O Bem-Amado, arriscaria supor que o que agradou ao público não foi ver-se retratado como oprimido (visão também aí presente), mas sim reconhecer-se em Gomes, 1988:185. Verão vermelho foi sua primeira novela; antes, ao ser contratado pela TV Globo, terminaraA ponte dos suspiros, de Glória Magadan, demitida antes de concluí-la. 31 Gomes, 1988:256. 29 30

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suas múltiplas possibilidades. Nesse momento, autor e público encontraram-se numa percepção mais fina da realidade brasileira. A renovação das novelas de televisão, da qual Dias Gomes participou, ou melhor, a renovação que viabilizou novelas e séries como as suas e de outros autores, com programas críticos, criativos e sensíveis à realidade brasileira, deuse durante a ditadura, mais precisamente no contexto do imediato pós-AI-5. No caso de Diasdisponível Gomes,para comatuar sua demissão Rádio Nacional, o intelectual esquerda ficou num setordaprivado como a Rede Globo. de No período democrático e ainda depois do golpe, entre 1964 e 1968, na TV e no rádio predominara um padrão melodramático, no pior estilo dramalhão, com novelasacríticas, mais ao gosto, aliás, do regime que viria a ser implantado e consolidado. À frente da produção de novelas estava Glória Magadan, diretora do departamento de teledramaturgia da Globo, cubana radicada no Brasil desde 1964. Esse modelo não desapareceu da emissora com a sua demissão, como sugere Dias Gomes. Janete Clair, por exemplo, já escritora de novelas da Globo, também vinda do rádio, continuou nos anos seguintes escrevendo melodramas, mesmo que, sem dúvida, haja diferenças em relação às novelas da autora cubana: os enredos e cenários tornavam-se muito mais próximos da realidade brasileira. 32 Em todo caso, o melodrama deixava de ser o padrão exclusivo das emissões. *** Se as esquerdas consideravam a arte um instrumento para a conscientização do povo, privilegiando ou não “a mensagem político-panfletária em detrimento da qualidade artística”,33 como Dias Gomes apontou e rejeitou no Centro Popular de Cultura, elas viam com desprezo a chamada teledramaturgia. As novelas seriam uma subliteratura, segundo os intelectuais, e não apenas os de esquerda. Ocorre que a maior parte do povo não estava nos teatros e sim, e cada vez mais, em frente à televisão, acompanhando com interesse as novelas. Ao mesmo tempo em que essa realidade se explicitava, o público do teatro definia-se mais e mais entre as camadas economicamente privilegiadas e/ou entre intelectuais e as esquerdas, portanto, já conscientizados. 32 33

Para a história e a produção das novelas no Brasil me baseei em Ortiz, Borelli e Ramos (1989). Gomes, 1988:186.

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A presença de Dias Gomes, na mais poderosa emissora colocava em questão, igualmente, a relação do intelectual com o grande público: Minha geração de dramaturgos — a dos anos 60 — erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido com a conquista de uma grande plateia popular; cada vez mais, falávamos para uma plateia a cada dia mais aburguesada, que insultávamos em vez de além conscientizar. ofereciam-me uma plateiacontraditório vedadeiramente popular, muito dos nossosAgora, sonhos. Não seria inteiramente vi34 rar-lhe as costas?

Hoje, essa realidade deve nos levar à reflexão sobre o comportamento do intelectual sob a ditadura e sua relação com o regime, sobre os significados da atuação dessa geração numa rede de TV que colaborou com o arbítrio de um Estado que instituiu o terror. A Globo, na época, por suas ideias e práticas,integrava — e não exclusivamente apoiava — o regime. Haveria aí um paradoxo? Como decifrá-lo? Para além desses questionamentos, seria possível o artista fazer arte na TV? Popularizada, ela ainda seria arte? Em 1985, uma adaptação deO Bem-Amado, em forma de livreto de 94 páginas, foi lançada numa coleção intitulada “As grandes telenovelas”, que vinha como encarte na caixa de Omo.35 Ainda seria arte ao ser vendida com (ou como) sabão em pó? Os primeiros capítulos da novelaO Bem-Amado — e somente após quatro anos na Globo — levariam Dias Gomes a refletir sobre a relação entre arte e TV: seria possível realizar uma verdadeira obra de arte na televisão? Principalmente se estendêssemos o conceito a uma arte de massas? Ou haveria limitações de ordem estética intransponíveis? Essas limitações não seriam mais de ordem conjuntural e extraveículo, localizadas principalmente na forma e nos objetos comerciais da produção? Perguntas para as quais, até aquele momento, não tinha respostas. Entendia o caráter efêmero da televisão, sua linearidade, sua horizontalidade, que rejeitava reflexões profundas, em que pesasse seu fantástico poder de denúncia e abrangência nunca alcançado por qualquer outro meio de expressão. Mas eram limitações que não lhe recusavam o passaporte para o meio das artes. (...) Seriam 34 35

Gomes, 1988:255. Gomes, 1985.

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pertinentes todas essas dúvidas ou, quem sabe, eu estava apenas tentando me justificar e aplacar minha consciência culpada?36

Conflito semelhante já estava colocado para o intelectual de esquerda sob o regime democrático. No programa de O pagador de promessas (1962), Dias Gomes escreveu: “do conflito interior em que me debato permanentemente sabendo que faz o preço sobrevivência a prostituição total ou parcial. Zé do Burro aquiloda queminha eu desejaria fazer —émorre para não conceder. Não 37 se prostitui”. Para Dias Gomes, ao que parece, a questão se coloca mais em função do binômio arte e mercado do que de arte e política ou, mais especificamente para a época, arte e ditadura. Essa discussão mobilizou — uns mais, outros menos — intelectuais e artistas nos anos 1970, muitos deles do meio musical, que então vivenciavam o crescimento do mercado fonográfico, como mostra Luísa Lamarão (2008).38 Nele, o produtor aparecia como o fabricante de um produto: o artista. O talento por si só não bastava para entrar e se manter no concorrido universo de gravadoras, rádios, trilhas sonoras de novelas etc. Pensando as novelas nesse contexto, Renato Ortiz e José Mário Ortiz Ramos (1989) mostram o papel que os produtores e executivos das redes de TV, em particular da Globo, tiveram então, semelhante talvez ao dos produtores musicais. Na década de 1970, as novelas tornaram-se cada vez mais umproduto, elaborado segundo um padrão, uma racionalidade, uma lógica de mercado. Num ritmo fabril, atendiam a objetivos claros e definidos ante um mercado consumidor que se expandia enormemente com a ampliação dos meios de comunicação promovida nos governos militares. Assistidas em quase todo o

Gomes, 1988:275. Dias Gomes fez das contradições — diria eu ambivalências — de um intelectual de esquerda, entre suas ideias e sua prática, o tema da peçaAmor em campo minado (1970), provocando 36

reação de estranheza e indignação . No jargão da época,Oestava dandosob armas inimigo companheirosdúvidas ao propor uma reflexão sobre suasdosincoerências, e angústias. intelectual . alta aovigilância Mas, ali, o intelectual-comunista-personagem não vivia — ainda? — as mesmas ambivalências que o intelectual-comunista-real vivia — já — em 1970, estando voltado para as que teriam marcado a derrota de 1964. 37 E prossegue: “e sua morte não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega seu cadáver como bandeira” (Gomes, 1988:179-180). Esse conflito aparece também na peça Amor em campo minado, de 1970, primeiramente intituladaVamos soltar os demônios (ver Gomes, 1984). 38 Ver também Ferreira (2009).

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território nacional, as novelas tornaram-se, em seguida, produto de exportação. Nos anos 1970, os mercados de música e de novelas encontraram-se. Integrados na lógica do mercado cultural, suas trilhas sonoras vendiam como água, incrementando um e outro mercado. Foi nessa massificação, produzindo em função do mercado, que escritores como Dias Gomes, Lauro César Muniz, Jorge de Andrade e Walter Durst ocuparam o chamado horáriohumanos. das 10 na39 Globo: mais sofisticadas sobre a realidade do país e dramas Cômicasnovelas ou dramáticas, não subestimavam a inteligência do espectador, desafiando-o com reflexões jamais propostas na TV até então. Assim, essa massificação não significou necessariamente a queda da qualidade do trabalho do escritor — mesmo considerando as limitações evidentes das novelas, como seu caráter efêmero e mesmo descartável —, conflito que atingia Dias Gomes e outros autores, cobrados e vigiados, inclusive pelaspatrulhas. Entretanto, o dilema estava lá: de um lado, fazer teatro para um público restrito e sob os contrangimentos da censura; de outro, escrever novela para um público jamais alcançado, submetendo-se à produção regida por índices de audiência, com patrocinadores e produtores que chegavam a encomendar aos autores cenas para vender tal ou qual música do LP.40 Seria o autor de novela um traidor da arte e de seus princípios políticos (que, para alguns, se confundiam nesses anos), de uma geração, de si mesmo, como esbravejavam as patrulhas, sobretudo num veículo difusor de valores e projetos da ditadura? Como fazer sucesso, ser reconhecido — e ganhar dinheiro —, quando outros escritores eram silenciados? No pós-AI-5, a Globo integrou-se à modernização econômica e social — e dela participou — que ocorria simultaneamente à exclusão da população do exercício da democracia e dos direitos civis elementares, para não mencionar a violação dos direitos humanos. O conflito entre arte e mercado desapareceria nas décadas seguintes. E, se voltarmos ao cinema, por exemplo,das décadas anteriores e posteriores aos anos 1960 e 1970, quem negaria sua lógica de mercado, assim como seu estatuto de arte? E foi justamente em 1979, ano decisivo no longo processo de abertura política, que a Globo extinguiu o horário das 10. Segundo José Mário Ortiz 39 40

Ramos e Borelli, 1989. Ortiz e Ramos, 1989.

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Ramos e Silva H. S. Borelli (1989:91), o tipo de novela aí veiculadorespondia à necessidade da emissora de mostrar “legitimidade cultural para o Estado”. Nesse momento, essa necessidade desaparecia. Também no ocaso do regime, “novos dramaturgos” viveriam “um estado de perplexidade que perduraria durante toda a década de 1980”. A falta de criatividade e o desprezo pelos temas políticos “fora de moda” marcariam esses anos, constatacom Dias Gomes Em outras criatividade; o seu fim, a(1988:303). apatia. Umparadoxo ? palavras, sob a ditadura, a Jean-François Sirinelli analisa no segundo capítulo deste livro a trajetória histórica do intelectual francês, a qual teria levado não ao seu desaparecimento, mas à sua mutação. O pensador, o filósofo cedeu lugar ao personagem mediático: músicos, atores conhecidos do público. Desde a década de 1970, eles é que são chamados a se posicionar a respeito das grandes questões, situação que se confirmaria no final do século XX e início do século XXI. Se no Brasil o intelectualpensador jamais desempenhou esse papel, ao menos da maneira como ocorreu na França, o intelectual-escritor brasileiro dos anos 1960 e 1970 certamente viu seus ideais de transformação social — tão caros à sua geração quanto pouco receptíveis pelo povo — sofrerem também uma mutação, para usar o termo de Sirinelli. Muitos desses intelectuais-escritores tornaram-se mediáticos, sendo chamados a opinar sobre as grandes questões. Não por serem intelectuais-escritores, mas por serem mediáticos, autores de novelas, sucesso — novelas e autores — em todo o país. ❚

Paradoxos

Henry Rousso (1990) abre a coletânea A vida cultural sob Vichy,41 resultado do congresso realizado em 1987, visando compreender como foi possível haver uma atividade cultural tão rica durante o regime de Vichy e a ocupação nazista. O historiador propõe a reflexão a partir de paradoxos: como explicar que, sob poderes obcecados pela ordem interior, “puderam se manifestar, inclusive encorajadas por esses mesmos poderes, formas de dinamismo, de criatividade, de inventividade” em setores muito diversos, inclusive estritamente culturais? “Como explicar a existência de ‘espaços (relativos) de liberdade’ numa situação política

41

Rioux, 1990.

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no mínimo liberticida? Como explicar que, apesar das rupturas evidentes, (...) se pode falar de continuidade entre a política cultural conduzida por Vichy e a de seus antecessores, em particular a da Frente Popular?”.42 Mais uma vez, lanço mão da reflexão teórica sobre a experiência francesa para pensar nossa realidade. Muitas analogias com esses paradoxos seriam possíveis. Por limites de espaço, e em se tratando de uma pesquisa em andamento, limito-me a algumas reflexões, sugerindo menos respostas e mais questionamentos a serem explorados. Podemos começar perguntando: como o regime civil-militar pôde, já em seus primeiros anos, promover e incentivar políticas culturais que, mesmo com mudanças, não rompiam com as linhas norteadoras daquelas defendidas pelas esquerdas nos anos 1960? Como explicar que, nesse intuito, incorporou inclusive intelectuais de esquerda e/ou contrários à ditadura e/ou favoráveis ao Estado de Direito, oferecendo-lhes cargos públicos ou financiamento para seus projetos? Como o regime limitava a presença desses intelectuais — ou mesmo a excluía, com demissões, cassações, declarações de bons antecedentes etc. — e ao mesmo tempo abria-lhes espaços de participação? Como entender que a Rede Globo — só para ficar nessa rede de televisão — deu início à modernização de suas novelas também incorporando esses intelectuais no momento de maior fechamento do regime? Como foi possível à emissora abrir espaço para intelectuais a princípio ou supostamente colocados à margem pela ordem que ela própria contribuía para construir, da qual participava e se beneficiava? Como analisaram José Mário Ortiz Ramos e Sílvia Borelli (1989), a adequação da Globo às transformações econômicas e sociais esteve sintonizada com as preocupações e ações dos governos militares no campo da política. Beneficiou-se com a modernização, inclusive em termos dos recursos tecnológicos, a qual não se restringiu às novelas, estendendo-se também aos documentários e demais emissões.43 Como foi possível, no governo Médici e na Globo, a abordagem da nossa cultura política autoritária e da hipocrisia da moral e dos bons costumes da sociedade brasileira? (Entre parênteses, vale lembrar que, por outro lado, exatamente

Rousso, 1990:21-22.Ver também Ory (1990). Agradeço a Ana Maria Mauad e Renato Ortiz por me chamarem a atenção para esse fato. Mauad destacou, por exemplo, o setor de documentários da Globo, com a incorporação de documentaristas que, como Eduardo Coutinho, deram orientação diferente em relação ao que se fazia até então. 42 43

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no período tido como o de maior participação política, o início dos anos 1960, eram as novelas alienantes e escapistas que reinavam absolutas na TV). Ao tentar decifrar seus paradoxos, Henry Rousso os negou como tais. Uma análise mais fina revelou a complexidade da realidade sob a ditadura, plena de ambivalências. As deduções suposta e aparentemente lógicas tornaram-se precárias e insustentáveis. Talvez esse caminho nos leve também a uma melhor compreensão dos anos do regime civil-militar, desfazendo igualmente nossos . paradoxos Entre os aspectos da modernização pela qual o país passou no período, as comunicações são sempre lembradas como um dos setores mais dinâmicos.44 A televisão, nesse sentido, atuou de maneira significativa, unindo regiões, difundindo valores, mostrando ao país a sua cara — ou as suas caras — e ao mesmo tempo “homogeneizando” as diversidades do país, ainda que com muitas aspas. Distantes as ameaças comunista e, sobretudo, trabalhista, o regime respondeu a muitas das demandas sociais dos anos 1960, e não somente as das classes médias. Partilhou a ideia da valorização da cultura popular como meio de construção da nação e a transformou em política pública.45 O Bem-Amado, lembro, fora pensado inicialmente como tema urbano, adaptado depois à realidade do Nordeste. Se os políticos latifundiários (autoritários, violentos, corruptos, herdeiros do coronelismo, temerários da reforma agrária em pauta no pré-1964) eram a base de apoio do regime, encarnavam, ao mesmo tempo, o atraso do país, a ser superado na modernização dosnovos tempos, levada adiante pelo regime que apoiavam.A realidade de Sucupira talvez lembrasse ao espectador esse mundo; talvez o lembrasse quão inútil era a democracia: de que valia o povo votar, se elegia um Odorico Paraguaçu? Certamente, o povo não sabia votar. O país precisava antes superar oatraso para assumir as responsabilidades da democracia. Mas não eram essas regiões atrasadas que davam seus votos à Arena? Nas cidades grandes do Sudeste, onde o atraso supostamente era menor, o eleitor não votava no MDB? Ao falar de um pequeno universo, Dias Gomes se referia exclusivamente ao Brasil atrasado? Ou os vícios de Sucupira e de seu povo transbordavam para todo o país, superando a velha dicotomia dos dois Brasis? Sucupira é o Brasil Ortiz, Borelli e Ramos, 1989; Reis, 2000. Fico (1997) mostra como a propaganda política do governo Médici esteve associada a uma política que visava à educação dos brasileiros, segundo determinados valores caros ao regime. 44 45

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atrasado, a ser superado, ou o Brasil a ser encarado de frente, não para ser superado, mas para ser entendido, aceito e, quem sabe, tranformado? A modernidade da novela consistia também em mostrar as misérias humanas, longe dos heróis e heroínas imaculados dos melodramas e da moral e dos bons costumes inventados — ou alimentados — pelo regime e por uma sociedade conservadora e preconceituosa. A mesma sociedade que ria com O Bem-Amado da própria hipocrisia. Os personagens de O Bem-Amado são cheios de vícios, corruptos e corruptíveis, humanos. A população de Sucupira elegeu prefeito o mau-caráter Odorico. O espectador brasileiro, o herói nacional, o seu bem-amado. Talvez aí esteja o principal êxito da obra de Dias Gomes. ❚

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“Para Tata, com carinho!”: a boa memória do pinochetismo Samantha Viz Quadrat*

Em fevereiro de 2008, estive em Santiago realizando pesquisas para o projeto “Viva, meu general! A boa memória do franquismo e do pinochetismo”, que 1

venho desenvolvendo nos últimos entrar numa livraria, ajuda. fui abordada por uma vendedora querendo saberanos. se euAonecessitava de alguma Ao ver os livros que havia separado (duas biografias de Augusto Pinochet), começou a falar comigo entusiasmadamente sobre o material que eu analisava para decidir se comprava ou não. Diante de tanta gentileza, acabei perguntando se havia um livro de fotos do governo Pinochet. Com um largo sorriso, me informou que não e perguntou se eu queria a edição de luxo ou a comum, pois poderia consegui-las em outra filial. Eu disse que não tinha preferência, e a vendedora, ainda bastante sorridente, me disse que também não era do “outro lado”. Olhei para a jovem, surpresa e confusa: afinal, do que ela estava falando? Diante do meu visível espanto, ela me informou com um sorriso quase cúmplice que também não era comunista e que possuía a “maravilhosa” edição de luxo do livro que eu procurava, dizendo que as fotos eram belíssimas e que adorava ficar olhando para elas. Rapidamente respondi que não era pinochetista, mas, sim, professora de história. O que não quis dizer muita coisa para ela; não fez a menor diferença. * Agradeço aos colegas e participantes do Seminário Internacional Culturas Políticas, Memória e Historiografia pelas sugestões, críticas e debates realizados após a apresentação deste trabalho. 1 O projeto de pesquisa está cadastrado no CNPq e vem sendo desenvolvido desde 2007 no Departamento de História da UFF.

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Saí da loja um tanto quanto preocupada.Teria cara de pinochetista? Admito que já deveria estar acostumada com essas “confusões” após vários trabalhos sobre as direitas e frequentes comentários do mesmo teor. Contudo, passados breves segundos de desânimo, cheguei à conclusão de que a pergunta deveria ser: “qual é a cara de um pinochetista?”. Afinal, certamente a vendedora sabia que eu não era chilena. Será que ela era tão entusiasmada com o general a ponto de pensar que suas obras cruzaram as fronteiras e despertaram paixão em cidadãos de outros países? Pensei mais uma vez sobre a questão e concluí que a pergunta correta deveria ser: “pinochetista tem cara?” Num primeiro momento e no sentido comum, os pinochetistas são identificados como pessoas mais velhas e integrantes das classes médias e altas chilenas. O que obviamente não era o caso da vendedora, uma jovem na casa dos 20 anos. Tampouco do funcionário da Biblioteca Nacional chilena, um homem em torno dos seus 50 anos, o único a quem não contei que não era pinochetista, pois, de tão feliz que ele estava, atendia aos meus pedidos rapidamente — o que, às vezes, despertava olhares de desaprovação dos demais visitantes da biblioteca —, entregando-me os livros, em grande parte de defensores ou integrantes do governo ditatorial, com entusiasmados comentários sobre os autores.Assim, tornou-se para mim uma espécie de guia entre as facções pinochetistas, amigos, desafetos etc. Steve Stern (2004:7) afirma que na figura de Pinochet, a exemplo de outros ditadores, convivem a imagem do sanguinário e a do herói. A grande maioria das pessoas lembrará do Pinochet de uma das primeiras fotos após o golpe de 11 de setembro de 1973. Sentado entre os demais integrantes da Junta Militar, braços cruzados, rosto fechado, grossos óculos escuros. Como um aluno me disse uma vez: “tava de dar medo”. A aparência sisuda levou os assessores a aconselharem-no a evitar o uso dos óculos escuros, a mudar as roupas e a sorrir mais.2 Seria esse homem sorridente, o “general do povo”, cercado por jovens e crianças em grande parte das fotos, inaugurando obras, assistindo a missas ou acompanhando o papa João Paulo II durante a sua viagem ao Chile em 1987, a imagem que muitos chilenos haveriam de guardar do ditador. Este capítulo tem como objetivo discutir a memória do pinochetismo. Não a memória das violações dos direitos humanos, do golpe e da ditadura, mas sim a memória do que seria a vitória contra o comunismo, contra o caos, contra

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Cavallo, Salazar e Sepúlveda, 1997:30-31

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a invasão estrangeira do Chile. A salvação do Chile. O único país do mundo que teria derrotado o comunismo.3 Vitória conduzida por um homem: Augusto Pinochet Ugarte. A memória da prosperidade, da paz e da modernidade que os anos entre 1973 e 1990 representaram para os seus seguidores.4 ❚

Um golpe de Estado. O surgimento de um líder

Entre os golpes da segunda metade do século XX no Cone Sul da América Latina, o 11 de setembro chileno é, sem dúvida alguma, o mais bem-documentado. Além de testemunhos de pessoas que vivenciaram o momento,5 as imagens do ataque ao Palácio La Moneda6 e o áudio do último discurso de Salvador Allende7 podem ser facilmente encontrados. Documentação dos EUA sobre o auxílio da Casa Branca ao golpe também se encontra disponível para consulta, inclusive na internet.8 Além disso, em 1998, vieram a público as gravações clandestinas entre os postos de comando do golpe.9 A presença de estrangeiros no Chile, exilados ou não, correspondentes internacionais, turistas etc., serviu para divulgar ao mundo o que se passava no país, especialmente nos primeiros meses após o golpe. O suicídio de Salvador Allende, presidente legitimamente eleito, o ataque à casa do governo pelas forças que juraram defendê-la, as filas de familiares ao redor do Estádio Nacional (um dos principais centros de detenção e tortura no pós-golpe) em busca de notícias dos parentes, os depoimentos das pessoas que deixavam o país, tudo isso colocou o Chile sob olhos do mundo.10 Voltaremos a esse ponto mais adiante. Sobre o apoio de parte da juventude chilena ao golpe e seu envolvimento com a ditadura, ver Quadrat (2009a). 5 São muitas as referências bibliográficas. Destacamos os livros de brasileiros que estavam então no Chile: Paiva (1986); Rabêlo e Rabêlo (2001); e Sirkis (1981). Ver também Rollemberg (1999). Para os 3 4

chilenos, ver Rivas e Merino (1997). E para uruguaios, Pancera e Huidobro (2003). 6 Uma referência de fácil acesso é a trilogia documental A batalha do Chile, de Patricio Guzmán. 7 Disponível em: . 8 Disponível em: . Uma excelente referência bibliográfica é Kornbluh (2004). 9 Verdugo, 1998. 10 O caso chileno também provocou mudanças na Comissão de Direitos Humanos da ONU, com a criação da figura do relator especial e do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários. Sobre essa questão, ver Quadrat (2008).

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No entanto, internamente, o golpe representou o aprofundamento de antigas divisões e disputas na sociedade chilena. Nesse sentido, o 11 de setembro é uma fratura de que até hoje o Chile tenta se recuperar. Se para os opositores da ditadura pinochetista o golpe representou morte, tortura e o fim das liberdades políticas, para os defensores do ditador e da sua obra significou a defesa dos valores ocidentais e cristãos e a salvação da “chile11

nidade” antecomo a chegada de umaCanessa ideologia “alienígena”, seja,teria o comunismo. Além disso, defendem e Páez (1998), o ou golpe restaurado o consenso nacional que vinha sendo alterado desde a presidência de Eduardo Frei (1964-70), antecessor do governo da Unidade Popular. Para alguns chilenos, as bombas atiradas contra o Palácio La Moneda representaram o fim de um período traumático que se desenrolava desde meados dos anos 1960, quando a agitação política e os confrontos começaram a ganhar as ruas chilenas. Nos três anos ou mil dias do governo da Unidade Popular, tais disputas se acirraram. Nas ruas, partidários pró e contra Allende se enfrentaram, especialmente a partir de 1971. O 11 de setembro transformou-se numa data símbolo dos golpes de Estado ocorridos na América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Entre os chilenos, encontramos diversas memórias sobre esse dia. Para dona Helena, entrevistada por Steve Stern, foi o melhor dia da vida dela e representou o fim de um período de trauma e o início da salvação. 12 Para Gabriela, que tinha apenas oito anos de idade em 1973, o dia do golpe é lembrado de maneira fragmentada como um feriado escolar extraordinário e o fim do medo que sentia durante o governo da Unidade Popular.13 Para outros chilenos, o 11 de setembro é o fim do sonho socialista e o início da busca pela sobrevivência diante da violência desencadeada pelo governo autoritário desde os seus primeiros momentos. As consequências foram tão profundas que Polomer (2005:11) afirma que o 11 de setembro é um dia interminável diante do que representa para a histó-

Houve uma grande campanha contra os estrangeiros no Chile, em grande parte responsabilizando-os pelos confrontos políticos. Entre as primeiras leis do novo governo, osbandos, dois tocavam na questão: o Bando n o 3 advertia a população para não se deixar levar pelas incitações à violência que poderiam emanar de ativistas nacionais ou estrangeiros, devendo estes últimos entenderem que não se aceitavam atitudes violentas no Chile; e oBando no 20 convocava todos os estrangeiros em situação irregular ou ilegal a se apresentarem imediatamente ao novo governo. 12 Stern, 2004:7-8. 13 Ibid., p. 36-37. 11

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ria chilena. Cravado no mês da pátria, em função de datas símbolos da história oficial do país, o 11 de setembro transformou-se em palco de disputas pela memória sobre o que foram o governo da Unidade Popular e os anos ditatoriais.14 Ainda segundo Polomer, até o ano de 1977, a data fora marcada por cerimônias comemorativas e de busca de legitimidade pelo governo autoritário; entre 1978 e 1981, começaram a aparecer as primeiras fissuras e protestos contra a ditadura; eas de 1982 até 1987, fortes15protestos e mobilizações nasdestacar ruas chilenas invadiram comemorações oficiais. No entanto, é importante que somente a 16 partir de 1981 a data foi considerada feriado, o Dia da Liberação Nacional. Aqui o alvo central de nosso interesse são os anos entre 1974 e 1977, quando havia a celebração ostensiva do 11 de setembro, convocada pelo governo e setores da sociedade civil. Para Polomer (2005:13), la celebración del 11 buscaba los siguientes puntos: recuperación de la paz interna y de la libertad perdida durante el gobierno de la Unidad Popular, demostración al país y al mundo del apoyo de la población al gobierno militar ydescalificación del gobierno de laUnidad Popular y del marxismo mediante el recuerdo de lo sucedido en el país durante el período 1970-73.

Esse debate sobre o 11 de setembro é importante, à medida que concordamos com Joignant (2007:53), para quem la celebración del 11 de septiembre hasta el año de 1977, y en seguida su conmemoración, coincidieron y participaron de un trabajo de producción y ratificación periódica de la legitimidad del nuevo orden político, a través de la puesta en escena de la figura providencial, heroica y a menudo sacrificial del general Pinochet.

Setembro é chamado de Mês da Pátria no Chile porque reúne as eleições presidenciais, no dia 4, a independência do país, no dia 18, e o Dia das Glórias do Exército, com a parada militar no dia 19. 14

Comodebem sabemos, a partir retornoda daditadura democracia, 1990, a data consolidou-se como um cenário enfrentamento entre do opositores e seusem partidários. 16 Polomer (2005) mostra que os entrevistados nem sequer se recordavam disso; a lembrança era de um feriado “desde sempre”, ou seja, desde 1974. Convém destacar que em 1998, o dia 11 de setembro deixou de ser feriado e a primeira segunda-feira do mesmo mês foi elevada ao Dia da Unidade Nacional, numa tentativa de reconciliação e de acabar com os confrontos nas ruas.Várias organizações de direitos humanos, como a Codepu, rechaçaram a nova data. Em um comunicado, a Codepu apontou que o maior desafio para a unidade nacional eram os crimes de violações aos direitos humanos e sua impunidade. (Ver: . Acesso em: 25 jul.2008.) Já em 2002, o feriado foi suprimido de vez. O que não impede de haver manifestações nas ruas chilenas. 15

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Ainda segundo Joignant, a partir do ano de 1977, o Chile caminhou para a identificação do dia e seu significado com a imagem de Pinochet, ao mesmo tempo em que se assiste à transformação de Salvador Allende numa figura anônima, silenciada, da história oficial nacional. Sobre a figura de Pinochet, importantes autores como Joignant (2005) e Huneeus (2000) divergem sobre ser ele ou não uma liderança carismática. Para oção. primeiro, reúne todasdeasPinochet características necessáriasum parapoder essa avaliaJá para ooditador segundo, apesar ter construído pessoal, centrado na sua figura, ele não possui nenhuma característica para ser apontado como uma liderança cujo carisma se apresente como um dos eixos centrais. Pinochet não teria as características excepcionais para ser assim considerado. Já Schuffeneger (2001:21-22) defende que a figura de Pinochet foi criada a partir de elementos do messianismo político com que ele construiu a sua legitimidade e, por conseguinte, a da própria ditadura. Ainda segundo Schuffeneger, o golpe foi difundido como um gesto patriótico, em defesa da institucionalidade e dos valores nacionais, e ao mesmo tempo messiânico, por salvar do marxismo ateu a civilização ocidental cristã. Todos esses autores, porém, concordam que o discurso, desde os primeiros momentos do golpe, está baseado na ideia de salvação do Chile, dos seus valores, e de abnegação por parte das lideranças do novo governo. A ideia de um chamado pátrio ao qual chilenos e bons soldados não poderiam se furtar. A pátria merecia esse sacrifício. No Bando no 5, de 11 de setembro de 1973, que depõe o governo da Unidade Popular e explica as razões para tanto, as ideias de sacrifício e missão aparecem claramente: 13. Por todas las razones someramente expuestas, las Fuerzas Armadas han asumido el deber moral que la Patria les impone de destituir al Gobierno que aunque inicialmente legítimo ha caído en la ilegitimidad flagrante, asumiendo el Poder por el solo lapso en que las circunstancias lo exijan, apoyado en la evidencia del sentir de la gran mayoría nacional, lo cual de por sí, ante Dios y ante la Historia, hace justo su actuar y por ende, las resoluciones, normas e instrucciones que se dicten para la consecución de la tarea de bien común y de lato interés patriótico que se dispone cumplir.

Referências a Deus e o uso de parábolas bíblicas são uma constante no discurso dos integrantes do governo, em especial do próprio Pinochet e até mesmo

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de seus familiares, para justificar o golpe e os anos ditatoriais. São fundamentos centrais ainda na busca da necessária legitimidade para o novo governo. Pinochet também usou esses primeiros anos da ditadura para criar (ou recriar) sua figura; afinal, atuara no governo da Unidade Popular, tendo substituído uma figura importante para as Forças Armadas chilenas, o general Carlos Prats.17 Aliás, Pinochet procurou se mostrar um conspirador desde o princípio (ideia que não é apoiadaum porhomem analistas,dehistoriadores ou mesmo pessoas próximas ao ditador) e também visão, um anticomunista ferrenho desde sempre. No livroEl día decisivo, Pinochet se justifica: “como soldado que ha jurado defender la Patria, me sentía inhibido para actuar por el hecho de que el impulsor del caos era el propio Gobierno del señor Allende, al cual yo, por esa misma condición de soldado debía obediencia”.18 No entanto, desde 4 de setembro de 1970, momento da vitória da Unidade Popular, afirma que se reuniu com os seus oficiais, tendo dito: Chile entra a un período que no deseo calificar, pero quien conozca a los marxistas-leninistas comprenderá por qué siento horror al pensar en los sucesos que ocurrirán a muy breve plazo. Esta crisis no tiene salida. Sin embargo, aún espero que los partidos políticos no acepten este azote para el país. Y en cuanto a lo que a mí me respecta, creo que ha llegado el fin de mi carrera, pues el Sr. Allende tuve hace unos años una dificultad conmigo en Pisagua y debe conocer mi actuación con los comunistas en Iquique. Creo que el problema de Chile se agra19 vará día a día, para llegar, finalmente a manos del Ejercito, cuándo todo esté destruido.

Pinochet se apresenta, assim, como um homem que sabia o que iria acontecer com o Chile. “Curiosamente”, afirmava que, num país sem tradição alguma em golpes militares ou no envolvimento das Forças Armadas com questões políticas, o poder cairia nas mãos do Exército. Pinochet temente a Deus, um escolhido de Deus; um homem com uma missão: salvar o Chile; um soldado pronto para defender o país; um pai autoritário, porém acolhedor; com o passar do tempo, um avô; um homemmoderno que abraça novas ideias econômicas como o neoliberalismo; que modernizou Prats foi assassinado em Buenos Aires, em 1974, sendo uma das primeiras vítimas da repressão sem fronteiras no Cone Sul e que culminaria com a montagem do Plano Condor, a partir de 1975. Ver Quadrat (2005). 18 Ugarte, 1982:63. 19 Ibid., p. 13-14. 17

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o Chile e que foi o único a derrotar o comunismo no mundo,20 o primeiro a martelar o muro de Berlim.21 Sob essas várias f aces está a figura de Pinochet para os seus defensores. Para quem até as violações dos direitos humanos são justificáveis. Em alguns casos, algo terrível, mas aceitável. Alguns entrevistados por Stern (2004) chegam a citar como exemplo o uso de bombas atômicas contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, durante a II Guerra Mundial, alegando que foram terríveis, mas necessários, e que por isso os Estados Unidos não acontecimentos foram questionados. Tamanha devoção ao ditador levou à criação da Fundação Augusto Pinochet Ugarte, em 1995, já no período democrático. Foi um presente de empresários e simpatizantes por ocasião do aniversário de 80 anos do general. Pinochet não é o primeiro ditador a ter uma fundação com seu nome. Outros ditadores também já foram homenageados por simpatizantes, como é o caso do espanhol Francisco Franco,22 ou criaram ainda no seu governo uma fundação que levava o seu nome. De maneira geral, são espaços de socialização dos simpatizantes e também uma forma de manter viva a memória ou o legado (como afirmam os chilenos) do ditador homenageado. Na apresentação da fundação está patente essa preocupação: El sueño del ex Presidente Pinochet de “hacer de Chile una gran Nación”sigue pendiente. Este se hará realidad pensando mas en el Chile grande y soberano, aceptando que el odio y la venganza nada positivo traen a nuestro pueblo. Que Dios nos proteja y apoye en esta causa. Agradecemos con mucha sinceridad y reconocida lealtad a todos aquellos que nos han apoyado a que la Fundación Presidente Augusto Pinochet, se mantenga al servicio del país.23

A Fundação Pinochet tem sua sede central em Santiago e filiai s espalhadas pelo Chile e também na Suíça. Nesse espaço de culto à memória do ditador e de suas obras encontram-se simpatizantes de todas as idades. Convém observar que uma das principais ações da Fundação é a distribuição de bolsas escolares, inicialmente, apenas para filhos de militares, e depois, com seleção Ideia recorrente no discurso de vários partidários e já presente em El dia decisivo. Palavras de um jovem no documentário La memoria obstinada, de Patrício Guzmán. 22 Disponível em: . 23 Disponível em: . 20 21

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aberta para civis. Isidora Urrejola, em trabalho sobre os bolsistas, diz que eles utilizam argumentos mais ideológicos, en quanto os ativistas da Fundação pr imam pelo uso de expressões afetivas. Nas palavras do simpatizante Carlos, de apenas 22 anos: El pinochetismo como término suena como “yo amo a Pinochet, es mi líder, es el único que existe Chile”, y es súper respetable esapersonas opinión que perotambién yo creo que va su mucho allá. No hay queenser solo pinochetista, hay muchas dieron vida más trabajando en el gobierno militar para que el país saliera adelante.24

A página da Fundação na internet, além de divulgar as atividades por ela realizadas, serviu de espaço para a confraternização com o ditador nos seus aniversários, quando ainda era vivo, e também para a expressão do luto por sua morte. Demonstrando que o pinochetismo ainda encontra eco na sociedade, com um canal formal para a sua divulgação.25 ❚

A prisão de um ditador. O “sequestro” de um líder

Em 16 de outubro de 1998, recebíamos a notícia da detenção de Pinochet em Londres, Inglaterra. A prisão se deu a partir do pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, que liderava um processo nas cortes do seu país para apurar os crimes ocorridos durante as ditaduras argentinas e chilenas, especialmente aqueles ligados ao Plano Condor, isto é, as ações conjuntas das forças de repressão dos países do Cone Sul. 26 Ao todo, Pinochet ficou detido em prisão domiciliar em Londres por 17 meses, enquanto uma verdadeira batalha judicial era travada. Manifestações pró e contra sua prisão eram vistas em diferentes partes do mundo, ao mesmo tempo em que se discutia a singular questão legal do caso Pinochet; afinal, era um ditador chileno detido em Londres por ordem de um juiz espanhol por crimes cometidos fora do seu país. Ur rejola, 2006:139 Um momento de tensão dentro da Fundação foram as denúncias de corrupção durante o governo de Pinochet. É mais fácil defender violações dos direitos humanos do que a desonestidade num governo que usou desse argumento contra a Unidade Popular. 26 Sobre a prisão de Pinochet e o processo espanhol, ver Quadrat (2009b). 24 25

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Pinochet só regressaria ao Chile em 3 de março de 2000. No aeroporto, alguns simpatizantes o esperavam. Era a volta do líder, do “Tata”, como afetuosamente era chamado por familiares, amigos e simpatizantes.27 A prisão de Pinochet é um momento-chave para avaliarmos a sua influência na história chilena e na própria sociedade daquele país já no período democrático. Manifestantes pró e contra sua prisão rumaram para Londres e se postaram à frente do Parlamento distribuindo panfletos em espanhol e inglês sobre Pinochet. Fotos de britânico, desaparecidos foram divulgadas. Lado a lado, a figura do herói e a do vilão eram vistas em Londres. No Chile, a mesma situação se repetia. A Fundação Augusto Pinochet Ugarte e o grupo Movimento Vitalício Augusto Pinochet Ugarte protestaram contra a prisão do líder, daquele que teria salvado o Chile do comunismo. Em defesa do “Tata”, ocuparam a internet e as ruas chilenas e inglesas, protestando contra o que chamavam de “sequestro”. A prisão era vista também como mais uma provação a ser superada pelo líder. A soltura de Pinochet era também uma “segunda libertação”, uma nova “luta pela independência”, diante do fato de o processo ser movido em instâncias espanholas. No documentárioI love Pinochet(2001), de Marcela Said, é possível acompanhar todas as manifestações de solidariedade e carinho ao ditador, bem como os ressentimentos ainda presentes.28 O título do filme é inspirado na camisa que os simpatizantes de Pinochet usaram duranteo período em que ele esteve preso e,especialmente, na festa pela sua libertação, quando vários deles receberam um diploma de ordem ao mérito,afirmando que a“missão estava cumprida” e que o mundo 29 deveria saber que “a pátria estava completa porque o Tata estava de volta”. Lutar pelo retorno do velho ditador ao país e defender as suas ações eram atos considerados obrigatórios pelos simpatizantes pinochetistas. Para alguns, havia chegado o momento de retribuir tudo o que o “Tata” fizera por eles. O momento de demonstrar lealdade ao líder e de dizer ao mundo que ele não estava só, que o seu governo tinha leg itimidade perante parcelas da sociedade chilena. Tata é o diminutivo carinhoso de abuelo (avô em espanhol). O documentário procura mostrar quem são e o que pensam os pinochetistas que, segundo Said, continuam controlando aspectos importantes da opinião pública nacional. 29 Palavras de ordem repetidas na festa registrada no referido documentário. 27 28

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Na sua decisão de mostrar quem são e o que pensam os pinochetistas, Said visita lares humildes e ricos, negando a visão de que apenas as classes médias e ricas chilenas apoiaram o ditador. É o caso de Israel Arcos, morador de uma casa bastante simples, que afirma ter passado dois Natais tristes e amargos, não por conta de problemas pessoais, pois “não tinha por que sofrer”, mas, sim, por ele (Pinochet), um ser querido, estar preso, sequestrado em Londres. Para a esposa de Arcos, os comunistas sãoamor traidores da pátria,Opessoas enfermas que nãoumacreditam em Deus e não trazem no coração. filho do casal, apenas garoto, chora e relembra a emoção de ter encontrado Pinochet. Para a família Arcos, Pinochet lhes deu o país que se chama Chile. Em outra casa, agora de classe média, Pinochet também é visto como um salvador, um líder, e a oposição ao seu governo, como um grupo de ressentidos e rancorosos. Outro espaço de celebração ao pinochetismo resgatado por Said é o Movimento Vitalício Augusto Pinochet Ugarte, no qual senhoras defendem o “princípio e a obra” do ditador. Devemos observar que é um aspecto importante porque deixa claro que, para além da figura do Pinochet, trata-se da defesa da sua política econômica, das suas ações de violação dos direitos humanos, da pregação de valores morais tradicionais e conservadores e da visão do oponente político como um inimigo a ser banido ou, nas palavras do general Gustavo Leigh, um “câncer a ser extirpado”. Além disso, trata-se também de agradecimentos, de obrigações e laços de lealdade. Para a menina Anita, Pinochet é um avô que libertou a pátria para ser livre e soberana. Essa ideia de libertação, como vimos anteriormente, foi uma das principais justificativas do golpe de 11 de setembro e tornou-se um dos pilares que sustentaram ideologicamente a ditadura comandada por Pinochet. Nos 503 dias em que esteve preso, Pinochet escreveu aCarta a los chilenos (1998), onde voltava a se justificar diante do Chile e a exaltar a sua devoção ao país, bem como a defender sua inocência. Las Fuerzas Armadas y de Orden no destruyeron una democracia ejemplar, ni interrumpieron un proceso de desarrollo y de bienestar, ni era Chile en ese momento un modelo de libertad y justicia.Todo se había destruido y los hombres de armas actuamos como reserva moral de un país que se desintegraba, en manos de quienes lo querían someter a la órbita soviética.

Ainda na carta, Pinochet volta a alegar sua dedicação ao Chile, dizendo abrir mão da sua própria vida em função do bem-estar do país.

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Si con mi sufrimiento se puede poner fin al odio que se ha sembrado en nuestro país, quiero decirles que estoy dispuesto a aceptar todos los designios del destino con la más absoluta confianza de que Dios, en su infinito amor, sabrá hacer fecundo este sacrificio que le ofrezco para que triunfe la paz, y en el amanecer ya del nuevo siglo, sean los chilenos un pueblo unido y reconciliado como el que siempre soñé alcanzar a ver.

Lamentando morte de que,do segundo jamais desejou, ditador se defende afazendo umchilenos, balançocoisa positivo próprioele, governo e lamentao os “infundados” processos que contra ele tramitavam em diferentes tribunais do mundo. ❚

A morte de um ditador. A perda de um líder

Em 10 de dezembro de 2006,Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi noticiada a morte de Pinochet. Grande parte da mídia afirmou que chegávamos ao fim de uma era com a morte de um dos mais cruéis ditadores latino-americanos da segunda metade do século XX, período marcado por ditaduras em toda a região. Pinochet morreu aos 91 anos com a marca da impunidade por seus atos. No entanto, apesar de internacionalmente noticiada e debatida, sua morte demonstrou mais uma vez a divisão da sociedade chilena a respeito do 11 de setembro de 1973 e dos 17 anos de governo pinochetista, contados a partir do golpe. Nas ruas da capital chilena, a exemplo de tantos outros 11 de setembro pós-ditadura, pôde-se ver manifestantes pró e contra o ditador enfrentando-se. Alguns comemoravam a sua morte. Outros choravam a perda do líder, do homem que teria “salvado o Chile do comunismo”. No exterior, somente Margareth Thatcher somou-se às vozes chilenas que lamentavam o falecimento do ex-ditador, declarando que estava “profundamente triste” com a perda de um “grande amigo” da Grã-Bretanha.30 A maioria das vozes lamentou que o ditador tivesse morrido sem ter sido julgado por seus crimes ou dado respostas para os casos de violação dos direitos humanos ocorridos não só no Chile, mas em ou-

Não era a primeira vez que a ex-primeira-ministra voltava à cena pública para externar sua simpatia pelo ex-ditador. Em 1998, quando Pinochet foi detido em Londres e enfrentou uma batalha judicial para ser extraditado e julgado na Espanha por seus crimes, especialmente os vinculados ao Plano Condor,Thatcher pediu por sua libertação, argumentando que os ingleses tinham para com ele uma dívida de gratidão em função do apoio chileno durante a guerra das Malvinas (1982) contra a Argentina. 30

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tros países, como parte do Plano Condor.31 Como afirmou o escritor uruguaio Mario Benedetti, “a morte ganhou da justiça”.32 Debates que em outros países seriam considerados impensáveis no pós-ditadura, durante a construção de uma memória majoritariamente negativa dosanos de chumbo,33 tomaram conta do Chile, despertando comentários dentro e fora do país. Que tipo de enterro deveria ter Pinochet? Deveria a presidente Michelle 34 35 Bachelet funeral? Manteria ela a Pinochet decisão deenterrado? não oferecer honraso de chefe comparecer de Estado aoaoex-ditador? Onde seria Poderia seu túmulo virar palco de homenagens e também ser alvo de ataques?36 Da internação no Hospital Militar, devido a um infarto, até a sua morte foram sete dias, uma semana. Durante todo esse período, pinochetistas postaram-se à frente do hospital para rezar por sua melhora e prestar solidariedade ao líder, para mostrar que o povo estava ali, presente mais uma vez, junto com ele, ao lado dele. No meio do grupo que se revezava na vigília destacava-se Luz Guajardo,37 de 33 anos, a quem podemos considerar “uma filha da ditadura”. Figura emblemática e caricatural do pinochetismo, nascida em 1973, ano do golpe, Luz acompanhara todo o governo ditatorial, a longa transição chilena e os processos movidos contra “Tata”. A notícia da morte de Pinochet levou mais de 2 mil pessoas à porta do hospital, num gesto de homenagem, em busca de consolo ao lado de outros simpatizantes que acreditavam ter uma dívida de gratidão para com o general.

Sobre o Plano Condor e os desdobramentos do processo espanhol, ver Quadrat (2005). A declaração de Benedetti foi bastante divulgada pela imprensa na época, bem como o seu poema Obituario con hurras, no qual convoca a todos para festejar a morte de Pinochet. Disponível em: e . 33 Daniel Aarão Reis (2005) discute de maneira inovadora a construção da memória brasileira associada à ideia de resistência. A ditadura seria algo externo à sociedade, uma longa noite. 34 Nos últimos meses do governo da Unidade Popular, o pai da presidente, general Alberto Bachelet, fora diretor da Direção de Abastecimento. Em 1974, morreu na prisão em consequência de um infarto. Junto com a mãe, Michelle Bachelet foi presa em 10 de janeiro de 1975 e passou pelos centros de detenção Villa Grimaldi e Cuatro Álamos. No final do mês, foram libertadas e seguiram para o exílio. 35 Somente em dependências militares a bandeira chilena pôde ficar a meio mastro. 36 Não foi decretado nenhum luto oficial, mas Pinochet recebeu honras militares e foi velado com a farda de gala, a mesma que usava para fotos oficiais. Seu corpo foi cremado, e as cinzas, entregues à família. 37 Em algumas reportagens o sobrenome de Luz aparece como Gajardo. 31 32

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Ao mesmo tempo, era uma forma de externar a raiva contra os que o criticavam, inclusive os jornalistas que vinham para cobrir os acontecimentos. Pessoas de todas as idades integravam o grupo que instava para que a bandeira chilena fosse baixada a meio mastro, bradando:Pinochet, Pinochet, no se suicido, a él se lo llevó Dios,38 ou ainda: Pinochet, Pinochet, aqui estamos otra vez. Para Luz, contudo, as saudações pareciam ter chegado tarde demais: é“l ya

no escucha, yajornalistas. se fue. La presencia tanta gente ahora debió ser antes, cuando estaba ”, disseélaos E mais: “de vivo tenemos la conciencia tranquila, porque lo apoyamos siempre. Éste es uno de los días más tristes de mi vida”.39 Marcial Sanhuesa, ex-dirigente do Comando do Sim para o plebiscito sobre a continuidade ou não do governo Pinochet, também foi externar a sua dor e aproveitou para saudar o binômio mais defendido pelos simpatizantes do “Tata”: a liberdade e a economia.40 Para Sanhuesa, Pinochet não só entregou a liberdade aos chilenos, como também deixou para os futuros presidentes uma economia em excelentes condições.41 Em meio às declarações, os partidários de Pinochet cantavam na íntegra o Hino Nacional chileno, onde se destaca a terceira estrofe, bastante identificada com os anos ditatoriais.42 Vuestros nombres, valientes soldados/ Que habéis sido de Chile el sostén/ nuestros pechos los llevan grabados/ Los sabrán nuestros hijos también/ Sean ellos el grito de muerte/ que lancemos marchando a lidiar/ y sonando en la boca del fuerte/ hagan siempre al tirano temblar.43

Para os simpatizantes dos anos pinochetistas, saudar os soldados era (e ainda é) uma demonstração de agradecimento pelos serviços prestados ao país.

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El Mercurio online, 11 dic. 2006.

Disponível em: . A questão econômica merece um exame mais atento que, infelizmente, este capítulo não comporta. 41 Disponível em: . 42 O hino passou por modificações desde a sua primeira versão em 1819. A estrofe aqui reproduzida faz parte da versão escrita pelo poeta Eusebio Lillo, em 1847. Oficialmente, com exceção do período ditatorial, cantam-se apenas o refrão e a quinta estrofe. Atualmente, somente os simpatizantes do pinochetismo cantam o hino inteiro, com ênfase na terceira estrofe. Cantá-la ou não continua a ser visto como uma adesão ou repúdio ao pinochetismo. 43 Disponível em: . 39 40

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O corpo de Pinochet ficou exposto na Escola Militar Bernardo O’Higgins Riquelme44 para visitação pública, últimas homenagens e o cerimonial religioso. Bachelet não compareceu, mas estima-se que milhares de pessoas passaram pela escola, que ficou aberta durante a noite para dar conta do alto número de simpatizantes pinochetistas e curiosos. Ao todo, foram 48 horas de despedidas até o encaminhamento do corpo para ser cremado num cemitério em Valparaíso, cidade natal de Pinochet. Muitos ficaram várias horas na fila para ver o corpo do ex-ditador e prestar-lhe homenagem. A dona de casa Leonor Jiménez, de 46 anos,após ficar oito horas na fila esperando a sua vez de entrar na capela da Escola Militar, afirmou ao jornal El Mercúrio (conspirador contra Allende e praticamente um porta-voz oficial da ditadura): lo amo [a Pinochet], porque nos liberó del comunismo. Mi familia pasó mucha hambre con Allende. Como no pertenecíamos a ningún sindicato de vecinos, las GAP no nos daban nada. Pinochet acabó con todo eso, por eso yo estoy aquí, para agradecerlo. Cuando veo su cuerpo, no sé qué va a pasar.45

Já o eletricista Nelson Ruiz, de 50 anos, foi ver “al único mejor soldado de la pátria que há salido después de O’Higgins, no me importa que Bachelet no le haya dado honores como Presidente, la historia se los dará. Yo siempre estaré del lado de los que nos libraron del comunismo”. Contudo, o estudante Alan Rückert, de apenas 17 anos, estava triste porque ao seu general não renderam honras como presidente. Para outro estudante, David Gómez, 21 anos, Pinochet “ fue una gran persona que liberó Bernardo O’Higgins é um nome importante da história chilena. Tido como o “pai da pátria” por sua atuação nas lutas de independência, foi o primeiro chefe de Estado do Chile. No salão de honra da 44

Escola gravadasMilitar em bronze duas frases: uma,del atribuída quando da fundação escola, Militar diz: “en estão ”; esta Academia está basado el porvenir Ejército ay O’Higgins, en este Ejército la grandeza de Chileda e outra: “Dios y la Patria se hicieron presentes en este lugar, al firmarse el acta de constitución de la Junta de Gobierno, 11 de Septiembre de 1973”. Como ressaltou Muzapappa (2005:126-127), no salão estão as “duas libertações” que marcam, desde 1973, simultaneamente a “história nacional” e a “história do Exército”. O’Higgins é a representação do governante-soldado que Pinochet almejava. Em 1975, o ditador deu a O’Higgins o título de “libertador”; em 1982, deu a si mesmo o título de “capitão-geral”, semelhante ao que usara O’Higgins e aplicável àquele que exerce simultaneamente o comando do Exército e a presidência da República. 45 El Mercurio online, 11 dic. 2006.

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a Chile del marxismo, mi familia sufrió mucho con Allende, hicieron muchas filas, es un libertador, un segundo de Bernardo O’Higgins”.46 Em meio a todas essas manifestações, uma foto47 publicada no jornal chamava a atenção em especial: três pessoas, uma moça e dois rapazes, faziam a saudação nazista diante do caixão do ex-ditador. A pergunta que fica ao vermos a cena é: como pôde um ditador, a exemplo outros,humanos, após graves denúncias, prisões e campanhas nismos dededireitos ganhar a simpatia de jovens chilenos?dos Eisorgauma geração que não pode dizer que não sabia de nada do que se passava no Chile. Afinal, é uma geração que tem acesso a o Informe Rettig ,48 presenciou batalhas judiciais pela detenção de Pinochet, assistiu a filmes, documentários, programas de televisão, publicações e, mais recentemente, aos trabalhos da Mesa de Diálogo sobre Direitos Humanos. 49 Uma geração conectada a informações do mundo inteiro através da internet e que portanto não pode e, principalmente, não quer atribuir à censura das notícias o seu comportamento. Jovens que simplesmente se declaram pinochetistas, como esses que estavam presentes no funeral e também na Fundação em homenagem ao ditador, como vimos anteriormente. De fato, as exéquias do ditador demonstraram que o pinochetismo atrai diferentes gerações de chilenos em todas as classes sociais. Homens e mulheres. Adultos e jovens. Todas as citações deste parágrafo são de El Mercurio online, 11 dic. 2006. Disponível em: . 48 Relatór io elaborado pela Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, criada por Patrício Aylwin, primeiro presidente pós-Pinochet, e presidida pelo senador Raul Rettig. A comissão concluiu seus trabalhos em 8-2-1991. 49 A Mesa de Diálogo foi instituída, sob muita polêmica, em agosto de 1999, pelo governo de Ricardo Lagos e encerrou os seus trabalhos em junho de 2000. Estes não tinham função judicial, mas visavam localizar os corpos dos desaparecidos ou, pelo menos, fornecer esclarecimentos sobre as condições do desaparecimento. Apelando aos valores morais e à reconciliação do povo chileno, a Mesa acabou virando palco de uma verdadeira batalha pela memória. O relatório entregue pelo Exército ao presidente Lagos, em janeiro de 2001, pouco serviu para localizar os corpos. Embora explicitasse alguns dos métodos utilizados para se desfazer dos corpos, como jogá-los em alto-mar ou nos rios da Cordilheira, havia muitas informações incorretas e/ou imprecisas, e as lacunas permaneceram. Com a criação da Mesa pretendia-se também assumir o passado, entendendo “que es injusto traspasar a los jóvenes los conflictos y divisiones que han dañado al país. El espíritu que nos anima es legar a las nuevas generaciones de chilenos una cultura de convivencia basada en la libertad, la verdad, la tolerancia y el respeto ” (disponível em: . 46 47

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Finalmente: pinochetista tem cara?

Comecei este capítulo contando um fato que ocorreu comigo numa viagem ao Chile e perguntando se pinochetista tem cara. Sem dúvida alguma, a ditadura dividiu o Chile entre bons e maus, entre nacionalistas e “vendedores da pátria”. Não é uma fratura fácil de superar; embora haja cada vez menos pinochetistas no Chile, as marcas ainda são visíveis. Um dos objetivos deste texto era questionar a ideia de que somente são pinochetistas as pessoas mais velhas e ricas. As várias manifestações aqui comentadas demonstram que o pinochetismo tem raízes mais profundas do que essa visão bastante superficial. Para Huneeus (2003:60), Pinochet consiguió el amplio respaldo de una parte significativa de la población, particularmente perteneciente a los sectores más ricos, que adhirieron a sus políticas porque había logrado derribar al gobierno de Allende y combatir al marxismo; y entre los más pobres, quienes se sintieron cautivados por su discurso agresivo, exaltador del orden y de la seguridad, de gran atractivo para individuos con un bajo nivel de educación.

Segundo recentes pesquisas de opinião, um entre três ou quatro chilenos considera que Pinochet passará para a história como um dos melhores governantes que o Chile teve no século XX. 50 Em 2001 e 2002, 33% dos jovens concordaram com essa visão. Ainda no início do século XX, 51% afirmavam que a ditadura teve coisas boas e ruins; 30% tinham opinião desfavorável, e 16%, positiva. Isso vem quebrar a visão dicotômica de um Chile dividido apenas entre pinochetistas e pró-Unidade Popular, chamando a atenção para a chamada zona cinzenta discutida por Pierre Laborie (2001, 2003) no caso francês. Uma sociedade que ao mesmo tempo oscila entre o apoio e a rejeição à ditadura.51 Para Huneeus, as pesquisas mostram que Pinochet ainda provoca polêmica e divide opiniões num Chile em que a maioria acreditava estarem diluídas as opiniões tão marcadas por ideologia.

As pesquisas, realizadas desde 1985, mostram também a oscilação da opinião pública chilena diante dos acontecimentos. Por exemplo, o ano de 1999 registrou um dos maiores índices de rejeição ao ditador, fato que Huneeus (2003:67-69) atribui à prisão de Pinochet e às constantes denúncias de violações dos direitos humanos. 51 É fundamental lembrar que a vida de todos mudou no Chile nos anos ditatoriais. Exemplo disso é o longo período de toque de recolher, que obrigou os chilenos a modificarem seus hábitos (ver Sagredo e Gamuri, 2007). 50

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No livro de Díaz e Deves (1989:44) intitulado100 chilenos y Pinochet, publicado após a derrota da ditadura no segundo plebiscito, é comum encontrar frases como “Augusto Pinochet fue y será la solución de un caos”. Carismático ou não, Pinochet continua sendo uma figura central na história chilena. Há blogs em sua homenagem, defesas no MySpace e filmes a seu respeito no YouTube e outros canais similares na internet, além de espaços físicos próprios, como Pinochet. A simpatia por aeleFundação só foi abalada com as denúncias de corrupção e desvio de dinheiro público. Questão sensível para os pinochetistas, visto que um dos principais traços do líder era a sua conduta ilibada. Justificar as violações aos direitos humanos parecia fácil, mas defender a corrupção é complicado. Assim, alguns preferiram se calar, enquanto outros, como a Fundação Augusto Pinochet, saíram em sua defesa alegando tratar-se de mais uma campanha para difamá-lo. O Chile talvez seja um caso ímpar no Cone Sul da América Latina. Uma exceção. O golpe de 11 de setembro de 1973, como vimos, foi um divisor da sociedade chilena. É um país onde não se tem vergonha de demonstrar publicamente o apoio e a simpatia aos anos ditatoriais; ao contrário, é um orgulho e uma obrigação externar agradecimento. São diferentes gerações que se dedicam a manter viva a memória positiva desse período, especialmente a do ex-ditador Augusto Pinochet. ❚

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1968 do Rio a Paris, história e memória: registros de sentido e amnésias locais da história

comparada* Denis Rolland

Amanhã está toda esperança… Amanhã apesar de hoje… Caetano Veloso/Guilherme Arantes

O ano de 1968 representa, segundo os estereótipos europeus, uma globalização da revolta estudantil e da juventude, tendo como pano de fundo os protestos contra a guerra Vietnã.noEssa observação vale também para América Latina,norte-americana tanto no Méxiconoquanto Brasil. Nesse subcontinente existea ainda, notadamente entre os apreciadores dos esportes, a lembrança dos atletas dos Estados Unidos erguendo o punho com luva negra, no pódio dos Jogos Olímpicos do México. Porém, mesmo no caso mexicano, raramente é lembrado o massacre de Tlatelolco, cometido pelo exército e a polícia do hegemônico Partido Revolucionário Institucional. O Estado revolucionário mexicano, vestido com os ouropéis da modernidade e envolto no véu equívoco da democracia formal, tem tão pouca simpatia pelo pluralismo, ainda que seja simplesmente desfilando pelas ruas, que faz correr o sangue dessa modernidade tão restrita sobre uma praça que simboliza três culturas: pré-colombiana, colonial e pósindependência. Porém, salvo raríssimas exceções, nada aflora à superfície da memória internacional do maior país da América Latina, o Brasil. Todavia, ao contrário do México e de seus massacres coletivos, nesse Brasil em rápido crescimento dos anos 1960, que acaba de inaugurar a capital mais moderna do mundo,Brasília, as * Tradução de Luiz Alberto Monjardim.

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aparências democráticas não estão absolutamente a salvo. É certo que, em 1968, a Constituição republicana brasileira encontrava-se oficialmente em vigor, mas quatro atos institucionais, decretados após o golpe de Estado militar de 1964, haviam lançado as bases de uma ditadura coroada em dezembro de 1968 por um quinto ato institucional. Após fazermos menção a certos desequilíbrios da historiografia a respeito desse 1968 tropical, ampliaremos rapidamente campo de visão para incluir as representações internacionais de 1968, antes deoexaminarmos a complexa evolução de suas representações. ❚

Sous la plage lês pavés :1 o Brasil e o esquecimento

internacional Tomar como ponto de partida os anos 1960 no Brasil?

Em plena Guerra Fria, o continente americano podia constatar a incrível longevidade da revolução liderada por Fidel Castro em Cuba, às portas dos Estados Unidos. Entre as elites tradicionais sul-americanas, restritas, potencialmente ameaçadas em seu status econômico e social e permeáveis à propaganda vinda de Washington, aumentava o medo da expansão do comunismo pelas vias legais ou pela estratégia dos “focos revolucionários” difundidos ou incentivados 2 Lá, por Havana num Terceiro Mundo que recém-adquirira essa denominação. os “30 anos gloriosos” do Primeiro Mundo alimentavam, com a expansão econômica, o desenvolvimento das classes médias e do operariado. Contribuíam, assim, para o rápido crescimento da população urbana, as migrações internas e as desigualdades. Lá (em particular no Brasil), onde se difundia, com o desenvolvi3 mento econômico evidenciado após os anos 1930, a ideia de “país do futuro”, também germinavam e ganhavam força teorias econômicas contestando a dominação dos países do Norte e das oligarquias locais, tidas como seus prepostos Literalmente, “sob os paralelepípedos, a praia”. Trata-se deslogan cunhado à época das manifestações estudantis em Paris, em 1968, o qual faz referência aos paralelepípedos atirados contra a polícia e ao ideal de liberdade, aqui representado pela praia. (N. do T.) 2 Nas palavras de Alfred Sauvy (1952), “esse terceiro mundo ignorado, explorado, desprezado como o terceiro estado, também quer ser alguma coisa”. 3 Expressão consagrada no Brasil pelo livro de Stefan Zweig, Brasil, país do futuro (1941). 1

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(teoria da dependência), bem como uma teologia propondo uma alternativa para os menos favorecidos (Teologia da Libertação). Nesse contexto, não admira que o Brasil, maior país do subcontinente sul-americano e com maior potencial de desenvolvimento, tenha sido um dos primeiros a conhecer um golpe de Estado militar, inaugurando assim uma longa militarização do poder nacional.4 Em 31 de março de 1964,chega ao fim a “democracia vigiada”, segundo a expressão de Alain Rouquié (1984), e essa é a situação básica de 1968. O poder militar, até então “não ativo” numa democracia ainda restrita, sai da caserna: é preciso — justificou-se então — salvar a democracia e as liberdades, preservar a ordem constitucional ameaçada. A intervenção dos militares, antidemocrática, mas não a priori antiparlamentar (com os parlamentares representando sobretudo as elites), mostra-se inicialmente provisória e, como tal, é vista com bons olhos no exterior.5 Tanto assim que, segundo modalidades e objetivos diversos, desde a proclamação da República em 1889 e, sobretudo, desde os anos 1920, a intervenção dos militares ocorre no Brasil em todos os momentos decisivos da vida nacional: desde 1930,divididas, politizadas, as Forças Armadas “intervieram quatro vezes contra a democracia pluralista (em 1937, 1954, 19616 e 1964) e duas vezes para garantir a legalidade republicana (em 1945 e 1955)”. No Brasil, em meio a um crescimento econômico raramente contestado desde o pós-guerra e a boatos persistentes de ameaça comunista iminente, o golpe de Estado militar, apoiado ao menos passivamente por boa parte da população, põe fim a uma fase de efervescência política considerável e a 20 anos de experiência democrática. Aquele que muito depois se tornaria o presidente Lula, então um simples torneiro mecânico em 1964, declarou de maneira significativa, no final dos anos 1990, a um magistrado que redigia uma tese de história defendida na Sorbonne: Golpes de Estado “preventivos” contra um suposto contágio comunista ou revolucionário: Argentina, 1962; Peru, 1962; Equador, 1963; Brasil, 1964; Bolívia, 1964; Argentina, 1966; Peru, 1968. 5 O golpe de Estado “civil-militar” de 1964 não deu lugar a muitos confrontos. Salvo raríssimas exceções, a “resistência” da sociedade civil não se manifestou. E a grande maioria da população brasileira corroborou a intenção “preservadora” (da ordem) ou “defensiva” (ante a ameaça marxista) do “golpe” desejado pelas elites conservadoras e levado a cabo pelos militares. Em 1968, esse consenso favorável à ditadura civil-militar começa a ruir. Mas essa questão da opinião é um aspecto muito pouco estudado, sobretudo no plano internacional. 6 Rouquié, 1984. 4

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Eu tinha 18 anos, não via nada de errado no golpe de Estado. Entre os operários mais velhos, o Exército tinha muita credibilidade, era intocável, sagrado (...). Em casa, minha mãe ouvia o rádio e dizia: “o Exército vai dar um jeito no Brasil. As coisas vão melhorar para nós”. O segmento mais pobre da população, sem consciência política, pensava assim.7

Menos de uma década após a redemocratização e a hegemonia de uma memória militante e resistente, o trabalho de pesquisa começava a contestar esta última. A derrubada do poder civil, sem a resistência esperada das esquerdas, inaugura um período de 21 anos de ocupação militar — 21 anos de ditadura, embora a pertinência do termo seja discutível para os primeiros tempos. Na América do Sul, a intervenção militar no Brasil, em 1964, contra o poder civil instituído foi o primeiro sinal “importante” de uma militarização duradoura da política. Pois — e poucos perceberam isso então — os militares não devolveram o poder rapidamente. Alguns militares tinham “a ambição de uma verdadeira ‘revolução política’ contra a democracia representativa e a classe política”.8 Após as eleições de 1965, que marcaram a vitória da oposição moderada em cinco estados e a derrota de dois eminentes políticos ligados aos militares, a “linha dura” do Exército imprimiu sua marca na ordem política, contribuindo para protelar sine die (ao menos até as eleições previstas para março de 1967) o retorno à ordem constitucional: em outubro de 1965, o Ato Institucional no 2 aboliu todos os partidos políticos existentes e o pluripartidarismo; estabeleceu eleições indiretas (presidente, vice-presidente, governadores); e restabeleceu a prerrogativa do chefe de governo de cassar qualquer mandato eletivo, bem como os direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos... Aquilo que muitos tinham percebido inicialmente como o “intermédio” militar de um “retorno à ordem” se prolonga, e a ditadura conclui, em 1968, uma construção institucional que a retira do provisório e a instala na permanência. Com esse estado de exceção, dessa vez a ditadura se torna explícita. Em março de 1967, sucedendo ao marechal Castelo Branco, outro marechal, Costa e Silva, é conduzido àAssim, presidência por seus paresingressa sem o assentimento seude predecessor. em 1968, o Brasil em seu quartodeano regime de exceção. Não faremos aqui o histórico desse ano, tarefa já plenamente levada a cabo por outros.

7 8

Apud Couto, 1999. Chirio, 2007.

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Prismas e falhas das representações internacionais: o longínquo Brasil

No final de 1968, os Estados estrangeiros se interrogam sobre suas relações com o governo brasileiro. Como em muitos outros países do mundo, em 1968, os Estados Unidos, símbolo do imperialismo para todas as esquerdas do mundo, são alvo de protestos: contra o seu apoio aos militares (após 1964), contra sua ação no continente (Cuba), contra sua guerra no Vietnã, contra sua contribuição para certas reformas locais, em particular as educacionais etc. Em Fortaleza, a sede do Usis é saqueada em 11 de abril (justo quando, na Alemanha ocidental, promovem-se manifestações em várias cidades). Em outubro, os Estados Unidos designam um representante de alto nível para investigar in loco o assassinato de um funcionário seu pela guerrilha. O presidente Johnson está em final de mandato quando o AI-5 é decretado. Como ele associa o Brasil aos militares e a um autoritarismo pouco recomendável, Washington protela certos empréstimos (a administração Nixon tomaria a mesma atitude num primeiro momento, em 1969). Em 1968, em muitos países do mundo, o Brasil dos governos militares é visto sobretudo como uma boa oportunidade de crescimento, um eldorado a ser explorado pelas empresas nacionais. O país ainda não é publicamente percebido pelas opiniões democráticas como difícil de administrar e preocupa bem menos os governos estrangeiros do que a eventual perda de oportunidades de investimentos. Assim, a rainha da Inglaterra visita o Brasil em novembro, mas, enquanto ela é mostrada ao lado do “povo” do Rio ou em companhia do “Rei 9 Pelé”, parece que se evita qualquer encontro público com o presidente militar. Já a França preocupa-se sobretudo com seu atraso em matéria de investimentos no Brasil, dando pouquíssima atenção à natureza do regime.10 A “essência do tempo”: alguns aspectos de história comparada

Acaso é singular a situação brasileira? Certamente, existem traços em comum entre a situação brasileira e o que se passa em outros lugares no Ocidente. 9

Ver, por exemplo, a revistaFotos e Fotos(Rio de Janeiro, on408, 28 nov. 1968.) Ver Muzart e Rolland (2008a, 2008b) e o trabalho pioneiro de Garot (1994).

10

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Entre os principais aspectos em comum observados, o clima de Guerra Fria, com um grande medo anticomunista (instrumentalizado, por vezes, provocado) no Brasil, nos meios conservadores, e o receio de contágios regionais (embora Che tivesse sido morto na Bolívia em outubro de 1967). A América é um dos corações pulsantes da Guerra Fria, de modo que o Brasil de João Goulart e, depois, dos militares se apresenta como uma peça ao mesmo tempo instável e importante donacionais, quebra-cabeça mundial qual “bloco” convéminternacional preservar, seja para os grupos políticos seja para um oue aoutro e seus partidários e prepostos internos. Há também o crescimento econômico, os chamados 30 anos gloriosos conhecidos pela Europa ocidental: no Brasil, 1967 marca uma inegável arrancada econômica, com o subsequente receio das elites sociais e econômicas (antigo e bastante avivado desde o início dos anos 1960) de que a escalada comunista 11 viesse a perturbar o enriquecimento tanto nacional quanto individual. Há também — antes e depois do maio francês — as manifestações estudantis, sonhos e greves, sentimento de legitimidade universal da revolta dos jovens contra as gerações conservadoras precedentes, sob inspirações bem diversas do marxismo (também em função das traduções e dos mediadores). As coincidências cronológicas existem, certamente. No mesmo dia em que, no Rio, um estudante é morto a tiros pela polícia, nos Estados Unidos, os tumultos ocorridos em Memphis causam a morte de um jovem; na Espanha, a universidade é fechada novamente; no Japão, a Zengakuren (a federação nacional das associações estundantis) enfrenta a polícia durante 10 horas numa verdeira batalha campal; e, quatro dias antes, os estudantes britânicos haviam promovido uma passeata contra a guerra do Vietnã; a Universidade de Roma foi reaberta após ter sido fechada pela segunda vez em março; os estudantes fizeram uma manifestação em Varsóvia no início do mês, e assim por diante. Foi no dia do assassinato de Martin Luther King que se realizou no centro do Rio, na igreja da Candelária, a missa de sétimo dia pelo estudante morto... As coincidências cronológicas existem, certamente, e não isolam o Brasil do resto do planeta. Se tomarmos a criação musical contemporânea, as afinidades ideológicas, as influências ou meros ecos são evidentes; assim, podemos ouvir na canção “É proibido probir”, de CaetanoVeloso, ecos vindos de Paris:

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Como tal ela era percebida nos meios conservadores, embora o fenômeno seja muito maiscomplexo.

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Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes/ As estátuas/ As vidraças/ Louças, livros/ Sim/ Eu digo sim/ Eu digo não ao não/ Eu digo é proibido proibir.

Como último grande elemento transversal entre o Ocidente e esse Extremo Ocidente brasileiro, temos, enfim, a vitória da repressão e/ou da ordem, assim como na Espanha, na Tchecoslováquia, na Polônia, naonda França, nos Estados Unidos, no México etc. Uma vitória acompanhada de uma de extremismo de certas oposições. No Brasil, 1969 seria o ano de uma repressão mais intensa e de maior espectro social; dos primeiros sequestros de diplomatas pela resistência armada e sua troca por prisioneiros; da execução pelo Exército de supostos líderes da guerrilha etc. E, também, de um exílio da oposição bem mais expressivo do que os anteriores. Voltando à esfera musical, em 1969, Chico Buarque teve de prolongar sua estadia na Itália para não ser preso ao voltar. Caetano Veloso e Gilberto Gil, após passarem algumas semanas na prisão, viram-se obrigados a partir e estabelecer-se na Europa. Vendo alguns regressarem, a nostalgia é grande, como canta Chico Buarque noSamba de Orly (1970):12 Vai, meu irmão/ Pega essa avião./ Você tem razão/ De correr assim/ Desse frio,/ Mas beija/ O meu Rio de Janeiro/ Antes que um aventureiro/ Lance mão./ Pede perdão/ Pela duração [pela omissão]/ Dessa temporada [um tanto forçada], / Mas não 13 diga nada/ Que me viu chorando.../ E se puder me manda/ Uma notícia boa.

Pode-se igualmente analisar a situação brasileira em função das influências externas. Em primeiro lugar, existe uma polarização ideológica talvez mais forte que na Europa ocidental, devido ao aumento das desigualdades num país geralmente alheio ao welfare state. Há também o impacto da mudança de regime em

umapelo temporada em Paris Vinicius Moraes, o amigo consideradono umApós irmão compositor, teveem decompanhia regressar aodeBrasil. A de canção é como umToquinho, recado improvisado aeroporto de Orly, antes da decolagem, e exprime a tristeza de Chico Buarque por não poder voltar ao país. 13 Samba de Orly, letra de Chico Buarque e Vinicius de Moraes, música de T oquinho, 1970.As palavras entre colchetes correspondem às modificações impostas pela censura quando do lançamento do disco. No início dos anos 1970, Caetano e Gilberto Gil foram autorizados a voltar de Londres, e o próprio Chico Buarque pôde regressar ao Rio. O poder esperava que eles tivessem aprendido a lição. Além disso, seu sucesso no exterior podia ser ainda mais perigoso para a imagem do regime do que sua presença no país, onde ficariam sob rigorosa vigilância. 12

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Cuba: não somente a viagem dos intelectuais, mas também a formação das ligas camponesas e a viagem de certos líderes a Havana; após a malograda invasão da baía dos Porcos, o temor de uma intervenção norte-americana em Cuba é também muito mais pronunciado num país cujas elites são culturalmente mais (norte-)americanizadas que as da maioria dos países da Europa ocidental (mais de 70% do mercado cinematográfico são dominados pelos Estados Unidos desde antes dadoIIVietnã, Guerradenunciada Mundial)...mais Há, energicamente enfim, nos meios o impacto da guerra do de queesquerda, em muitos países do Ocidente, pelo simples sentimento de se pertencer também ao Sul e de se sentir, na visão de alguns, num mundo neocolonizado. Uma historiograa brasileira ainda em desequilíbrio

Certamente, essa história vai sendo pouco a pouco documentada. Dez anos após 1968, ainda reina a prudência, e raríssimas são as publicações a respeito do ano de 1968. Muito embora, em 1978, o AI-5 tenha sido oficialmente revogado, a Lei de Segurança Nacional (LSN) permanece em vigor, possibilitando a perseguição aos opositores. Assim, quando o funcionário de uma editora publica, em 1977, um romance bem-documentado sobre suas memórias pessoais da guerrilha, ele é detido e encarcerado.14 Mais tarde, em 1988, com o retorno do Brasil à democracia, 1968 (em sua versão brasileira concernente ao país) adquire maior visibilidade: nove títulos são publicados entre 1985 e 1989, dois deles dedicados exclusivamente a 1968.15 Nos anos 1990, vêm somar-se a essa lista 14 novos títulos, seis dos quais referindo-se diretamente a 1968 e incluindo essa data no título. E ainda é cedo para fazer um balanço dos anos 2000 (sete publicações, uma delas com 1968 no título), incluindo 2008, ano que todavia parece fértil em lançamentos, pelo que se pode julgar até a data de redação deste texto. Estaríamos perto de um refluxo? Difícil de garantir, mas pode-se imaginar que, com a memória enfraquecendo-se e os testemunhos envelhecendo, a motivação editorial (e da pesquisa) venha diminuindo. Por outro lado, a progressiva liberação dos arquivos facilitou o trabalho dos pesquisadores. 14 15

Tapajós, 1977. Segundo Vale (2008). De seu primeiro capítulo provém a maioria dos dados aqui referidos.

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Mas essa história continua bastante permeável à memória — do político, sobretudo. A história desse período é hoje muito bem conhecida. Um dos primeiros a tentarem sintetizá-la foi o historiador norte-americano Thomas Skidmore (1994 e 1996); sua obra é notável e há muito se tornou uma referência. Foi ele também um dos primeiros a terem acesso aos arquivos brasileiros do período. Dizem as más línguas que sua condição de cidadão dos Estados Unidos lhe teria facilitado o acesso à documentação de um regime que não teria muito o que recusar a Washington (ao que parece, o acesso era então negado aos nacionais) —, o que em nada diminui o grande valor da pesquisa. Mais tarde, multiplicam-se os trabalhos sobre os governos militares. Mas, sobretudo, em história política e, mesmo nesse campo, de maneira desigual. Há no Brasil uma espécie de hipertrofia, na área de história política (a mais desenvolvida?), do estudo sobre as formas de resistência e as “esquerdas” em geral. Isso não parece a priori incomum nos períodos de conflitos civis (haja vista a França da II Guerra Mundial, por exemplo). Todos os títulos publicados entre 1985 e 1989 evocam a resistência. Ainda hoje, os movimentos revolucionários e a luta armada contra a ditadura, em particular, são tema de numerosos livros de memórias mais ou menos remotas e de muitos trabalhos acadêmicos de ampla circulação: os recônditos da ditadura, sobretudo, e as oposições de esquerda são tema de uma bibliografia acadêmica já extensa (39 títulos). Por outro lado, só mais recentemente se constata a realização de pesquisas sobre, por exemplo, os partidos de direita, seus contornos sociais, os militares e os órgãos de repressão. A bibliografia impressa continua bastante deficiente no que diz respeito às direitas ou mesmo à repressão: os setores mais ativos da ditadura costumam ser pouco estudados (quatro títulos), e existe somente uma tese sobre a Arena, defendida há alguns anos, porém jamais publicada. Aguardase a publicação de uma tese de mestrado de Aline Presot, escrita em 2004, sobre a Marcha da família com Deus pela liberdade e o golpe de 1964, 16 e resta ler o quanto antes os trabalhos complementares em curso, como, por exemplo, os da competente pesquisadora Samantha Viz Quadrat. Denise Rollemberg abre igualmente caminho para um reexame da ABI e da OAB.

16

Enquanto isso, ver Presot (2006).

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Tentando fazer um balanço, após a época dos testemunhos ou das obras organizadas por certos elementos mais atuantes dos anos 1960, muitos estudos recentes procedem, a partir dos anos 1990 e sobretudo 2000, a uma reinterpretação política do período dos governos militares: vários deles abordam a representação estritamente “militar” da ditadura e/ou a doxa da “resistência” hegemônica desses anos, chegando mesmo a discutir o conteúdo ideológico dos movimentos revolucionários: assim, Daniel Aarão Reis — ator e testemunha dos anos de governo militar, antes de tornar-se o importante historiador que hoje conhecemos — evoca sempre que necessário uma ditadura “civil-miliar”. Trata-se de não fazer sumir artificialmente os civis do campo de visão da escrita da história política do período e de não autonomizar (especialmente antes de 1968) os militares: tendo provocado, sustentado, apoiado ou simplesmente aceitado o golpe de Estado dos militares, os civis merecem, pois, não sumir do campo de visão do historiador. Do mesmo modo, o conteúdo ideológico bastante variável dos movimentos “revolucionários” começa a ser analisado mais serenamente, sobretudo em relação à utopia revolucionária. Como era de se esperar, essa representação ainda muito assimétrica da historiografia publicada não corresponde àquilo que se encontra na internet. A rede misturamuito indiscriminadamente militância história, um quadro menos volátil domemória, que se imagina, feitoe de redes compondo de proliferação e miríades de alinhamentos, uma representação em que emergem com força as tendências, os antagonismos dos anos 1960 e as tentativas revisionistas. ❚

1968 no Brasil e internet: uma representação menos desigual do que a bibliograa Referências (páginas) no Google em português (busca por “expressão exata”, 1o de setembro de 2008)

Movimentos e responsáveis clandestinos Vanguarda Popular Revolucionária VanguardaArmada RevolucionáriaPalmares1.590 e VAR-Palmares 160.000 Carlos Lamarca Carlos Marighella UNE (União Nacional dos Estudantes), quando do congresso de Ibiúna Édson Luìs de Lima Souto (vítima)

7.750 161.590 34.300 17.500 9.410 872 Continua

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Personalidades e partidos políticos legais Carlos Lacerda (parte fora do assunto; Carlos Frederico Werneck de Lacerda 561) 108.000 Aliança Renovadora Nacional (Arena) 9.510 Movimento Democrático Brasileiro (MDB) 72 300 Órgãos de repressão e presidentes Dops

Presidente Costa e Silva Presidente Castelo Branco

80 500 125 000 243 000

Os topônimos fornecem uma terceira escala de representações. No Brasil, às vezes até hoje, eles continuam sendo reveladores da “transição” e desse passado que não foi — longe disso — apagado pela redemocratização. Em particular (mas não exclusivamente) nos estados de onde são provenientes as personalidades dos governos militares. Disso não faltam exemplos, e os leitores devem conhecê-los melhor do que o autor deste texto. Assim, entre os 10 primeiros resultados na internet para o presidente “Castelo Branco” podemos encontrar uma estação rodoviária no estado de Minas Gerais, uma escola, uma cidadezinha, uma universidade particular etc.17 Neste caso deve ser considerada também, além do marechal, possíveis referências à região portuguesa que leva o mesmo nome. Mas é digno de nota que, no Rio de Janeiro,a ponte que atravessa a baía ainda traga oficialmente o nome de um general associado ao auge da repressão, a ponte Costa e Silva (e não se veem, como às vezes em outros países, pichações de descontentes nas placas de identificação desses lugares, embora na linguagem corrente o nome “ponte Rio-Niterói” prevaleça sobre a denominação oficial). O desejo de não pôr em causa a suposta “boa vontade” dos militares no processo de redemocratização, de evitar, na medida do possível, despertar os “velhos demônios” e de manter, digamos, a coesão nacional leva os atuais governos brasileiros a se mostrarem por vezes mais “circunspectos” em relação ao trabalho dos historiadores os governos outros paísesaos do arquivos Cone Suldos (a anos Argentina dos Kirchner, emque particular). Alémdedisso, o acesso da ditadura é ainda limitado; há mesmo como que um recuo oficial (no primeiro mandato

17 Terminal Rodoviário Presidente Castelo Branco, em Uberlândia, inaugurado em 1976; Escola Estadual Presidente Castelo Branco, em Belém do Pará; cidade de Presidente Castelo Branco, em Santa Catarina; Fundação Educacional Presidente Castelo Branco (Funcab ).

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de Lula) visando, segundo se diz, preservar a paz civil (ao contrário da Argentina, onde Nestor Kirchner permitiu reabrir o processo de memória). E que é pior, certos sites da internet (como ) dão a entender que o acesso aos arquivos seria diferenciado (em particular de acordo com o grau de proximidade com as instituições militares), e até mesmo que alguns deles seriam excluídos do domínio público.18 As razões de um esquecimento internacional

Por que a situação brasileira é, por exemplo, tão pouco conhecida hoje na Europa e tão ausente da bibliografia francesa? Para muitos, no início de 1968 e mesmo no final do ano após o endurecimento do regime, sob o pano de fundo ensolarado do país do “homem cordial”, do“futebol”19 e do carnaval, os governos militares pareciam ainda “aceitáveis”: assim, em novembro, o casal imperial britânico é recebido com grande pompa no Rio de Janeiro, sendo saudado pela multidão e o “Rei Pelé” sob os flashs de fotógrafos internacionais pouco atentos à situação nacional. Esta é eclipsada, na época, por outros acontecimentos: no contexto da Guerra Fria, a guerra do Vietnã e a famosa ofensiva do Tet, a campanha presidencial nos Estados Unidos, as manifestações doBlack Power e o assassinato de Martin Luther King; os “acontecimentos” do México, aqueles massacres tão “visíveis”, e os Jogos Olímpicos; a “primavera” e depois os tanques soviéticos de Praga, as missões espaciais e, certamente, por um período relativamente curto, a França e seu “alegre mês de maio”... Em tais condições, as esperanças do Rio de Janeiro, de São Paulo ou outros lugares, todas essas esperanças brasileiras e suas violentas desilusões passam muito longe das percepções estrangeiras ou se diluem na dominante global da contestação “mundial”: no Brasil, em 1968, certamente alguns acreditavam que tudo ainda era possível, vendo formarem-se as grandes passeatas estudantis e eclodirem as primeiras greves operárias, quase inacreditáveis no contexto da ditadura e do crescimento econômico; decerto a esquerda derrotada em 1964 ainda pensava que os militares finalmente poderiam ver-se obrigados a devolver o poder aos civis, ou mesmo que seria possível reatar os fios rompidos das Ver em Rolland e Muzart (2008) o artigo final sobre Tenuma.com. Em 1970, a seleção brasileira ganha a Copa do Mundo, dando assim à ditadura um bom motivo para fazer esquecer o cotidiano da repressão e a deterioração dos indicadores econômicos. 18 19

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“reformas de base” e, quem sabe, ir ainda mais longe. Porém, em dezembro, o poder autoritário ostenta mais orgulhosamente do que nunca a sua autoridade (na ausência de suas fardas),20 e a ditadura veste uma “camisa de força” institucional e repressiva numa sociedade preocupada sobretudo com o crescimento e o enriquecimento. Contudo, visto da Europa pelos contemporâneos, o Brasil, em 1968, é geralmente salvo pelos oespecialistas ou militantes, como as uma ditadura , ondeconsiderado, contam especialmente desenvolvimento econômico, oportunidasoft des de desenvolvimento da cooperação econômica e até militar com a França (não esqueçamos a contribuição, direta ou via Estados Unidos, dos militares franceses, calejados pela experiência argelina, para a formação antiguerrilha no Brasil ou mesmo para o Plano Condor). O ano de 1968 é crucial para o Brasil? Sem dúvida. Mas não há convulsão possível: nada de “primavera” ou de “maio”. Nenhum acontecimento no sentido de “ruptura instauradora”, verdadeiramente nenhum “acontecimento críti21 co” (Pierre Bourdieu), muito menos “acontecimento monstro” (Pierre Nora). Também nenhuma “figura de proa” da oposição. E, evidentemente, não mais se acusa 1968 de ser responsável, no Brasil, pela “dissolução dos costumes, da autoridade, do gosto pelo esforço e da vontade de trabalhar”.22 Talvez também seja por isso que, no Brasil, 1968 se acha tão ausente da historiografia comparada sobre os movimentos daquele ano. No Brasil, 1968 é um ano de brutalização dos conflitos. Mas é, sobretudo, um ano de transição: tomando como medida unicamente a repressão, pode-se considerar que se está no início da fase mais dura e, consequentemente, no início de um exílio numericamente mais importante e de categorias menos “protegidas” da população, um exílio das classes médias. Na França, na Tchecoslováquia, nos Estados Unidos etc., 1968 é um mito, em via de desmitificação. Verifica-se o mesmo fenômeno no Brasil, como pretende o historiador Carlos Fico: É preciso desmistificar um pouco esse 1968. (...) aquilo que se caracteriza como 1968 são manifestações sociais que aconteceram num período muito curto, a parO presidente e vários ministros vestiam-se agora à paisana. Ver Nora (1972 e 1974). 22 Zacarini-Fournel, 2008:10. 20 21

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tir da morte do Édson Luís (março daquele ano) e até agosto, setembro, quando, então, tudo isso se dilui. Há uma certa leitura que exagera um pouco a importância desses eventos e que nos conecta de maneira muito genérica com outros ocorridos em outras partes do mundo, como na França e nos Estados Unidos. 1968 ficou um pouco estereotipado, mitificado, como se todos os episódios daquele ano tivessem uma corrente única de transformação revolucionária. Não foi bem assim. (...) Eu não penso que [1968] tenha deixado, propriamente, uma marca, como se algo de espetacular e universal tivesse acontecido. Para mim, o mais importante é justamente pensar por que, em torno desse momento (1968), se constituiu uma memória tão forte. (...) Para mim o que ficou de mais importante foi, realmente, a constituição dessa memória. Em cada um desses países (que viveram ou foram palco de acontecimentos marcantes de 1968) há histórias que têm raízes em problemas muito peculiares, como a questão dos direitos civis e a guerra do Vietnã nos EUA, e o problema da burocratização e do elitismo da universidade na França. Na nossa realidade latino-americana havia as ditaduras militares. O “1968” da Argentina acontece, na verdade, em 1969, com o “cordobazzo”, uma manifestação 23

forte contra a ditadura que havia lá. O “nosso 1968” foi em 1968 mesmo. ❚

1968: primavera moderna. Outono conservador?

Em seu livro sobre O momento 68, Michèle Zancarini-Fournel (2008) propõe “mudar de espaço, de temporalidade e de escala: o mundo, a Europa, a França”. Tal poderia ser o objetivo da referida obra: contribuir para ampliar o campo de visão, mostrando a variedade dos enfoques e dos confrontos geracionais. Trata-se de adotar “uma abordagem mais ampla, menos uniforme, distanciada”24 — como se fez no caso do maio de 1968 na França — para historiar um “momento” particular no mundo, marcado por uma relativa simultaneidade de acontecimentos, por temáticas aparentemente comuns e fluxos transnacionais excepcionalmente visíveis. Assim, analisar 1968 no mundo, especificamente “fora da França”, nos leva a investigar três dimensões: cronológica, temática e geográfica; a examinar a Entrevista com Carlos Fico, 2 ago 2008 (disponível em: ). 24 Paids, 2008. 23

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sincronia de fatos e dinâmicas em curso, osconteúdos, registros e repertórios, enfim, os lugares; e, por último, a formular uma questão metodológica: que tipo de história teremos então? Uma história política e social comparada, uma história de transferências culturais? “1968” é antes de tudo a história de um tempo de tensão, esse “momento 68”, um curto “segmento cronológico” de caráter inédito, claro indício de um processo de globalização, como já se disse a respeito desse ano, comparando-o com a convulsão revolucionária de fins do século XVIII e com a “primavera dos povos” de meados do século XIX.25 Em 1968, a concomitância não se reduz nem à mera coincidência nem à estrita simultaneidade, mas suscita a inevitável e, não raro, insolúvel questão das lógicas e dos móveis. Certamente, a multiplicidade de tempos de 1968 é claramente corroborada por trabalhos recentes.26 Jacques Rupnik (2008) evoca num artigo “as duas primaveras de 1968”. Mas há também, sob muitos outros céus, da Tchecoslováquia ao México ou ao Brasil, um verão e um outono de 1968, marcados pela restauração da ordem, pela repressão. E, para alguns países europeus, “1968” se estende sobre dois anos: o precedente e o seguinte (ver especialmente os artigos sobre a Itália). Escrever sobre 1968 no mundo, fora da França, é refletir tanto sobre os sincronismos quanto sobre os limites de interpretação desses sincronismos. É analisar as contemporaneidades, concordâncias cronológicas e cruzamentos dos fluxos transnacionais, em termos de exportação de modelos, mas também — visto que o uso mecânico do modelo centro-periferia é, no mínimo, insuficiente,27 — em termos de concepções sobrepostas ou de realidades plurais e flutuantes, inscritas numa temporalidade particular. É retomar uma constatação feita há muito para a história das mentalidades, ou seja, que ela “não se confunde unicamente com a história das resistências, como inércias ou tempos de latência, mas que existe também uma real possibilidade de mutações bruscas, de criativi-

Sirinelli, 2008a. Rolland e Faure, 2009. 27 A cronologia não valida necessariamente uma difusão. E qual seria o centro (Vietnã, mundo anglosaxão, Praga etc.)? Também é difícil delimitar as redes exportadores/importadores simples, estáveis ou de sentido único, mesmo no âmbito que vai domaître à penserao imitador aplicado ou ao importador involuntário. 25 26

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dade no calor da hora, de épocas ou momentos em que se cristaliza brutalmente uma sensibilidade nova”.28 Analisar “1968” numa dimensão espacial ampla é examinar uma comunidade de conteúdo e de interpretações e instrumentalizações variáveis de fontes comuns ou vivenciadas como tais. Através do mundo, acontecimentos e posturas não impedem nem a diversidade formal ou de conteúdo, nem, por vezes, asemelhantes contradição. os sinais e símbolos, a linguagem e o léxico ouMas mesmo comuns, os rituaisasereferências, as manifestações estabelecem, mais que analogias, vizinhanças de comunidade sobre as quais é importante refletir. Evidentemente, o autor nada inventa de específico nessa área: existem relações de parentesco entre os diversos casos estudados, notadamente na contestação do mundo tal como ele se apresenta localmente aos contemporâneos; e, decerto, esses sinais de crises em cada Estado não são, nessa segunda metade do século XX, redutíveis unicamente ao seu metabolismo nacional.29 Surgem então questões mais precisas sobre esse conteúdo das crises de 1968. Em que medida pode o ano de 1968 ser caracterizado, em nossas representações contemporâneas, pelo surgimento da juventude como ator social ou por um legado revolucionário (da violência legitimada pelo objetivo revolucionário a uma revolução tomada em seu sentido mais amplo e mais vago)? O conteúdo de “1968” é uma das questões relacionadas à memória que mais despertam interesse, servindo de objeto de análise para vários autores. Como já se escreveu,e para escolher apenas três afirmações recentes, acaso 1968 não seria hoje, aqui e ali, senão um “fantasma” que ainda assombra de maneira mais ou menos homogênea a cena política e social de vários países? 30 Ou então, como se afirmou com relação à França, somente o “deserto como legado” nesse início do século XXI?31 Em outras palavras, como se disse em relação à França, 1968 não seria hoje em toda parte “um astro morto”?32 Ao se empreender esse trabalho historiográfico necessário sobre um “momento”, trata-se igualmente de fazer despontarem no horizonte nacional as

Vovelle,1 982:261. Sirinelli, 2008a. 30 Zacarini-Fournel, 2008:10. 31 Binbaum (2005). Em sua introdução, esse autor constata a não transmissão da esperança revolucionária às gerações mais jovens. 32 Sirinelli, 2008b. 28 29

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opções de paradigma de história-memória-crônica; de investigar certas variáveis importantes, quiçá interesses obsessivos; de compreender, se possível, como (e com que finalidades) se efetuou a discriminação dos acontecimentos nacionais para que estabelecesse finalmente a hierarquia do visível e do invisível nas obras de história ou que se pretendem como tais; de revelar, pois, certos traços dominantes da historiografia, sua eventual evolução. No caso da França, Michelle Zancarini-Fournel brilhante inventário dos lugares historiográficos dessa crônica de maiofezdeum 1968. Escrever a história de 1968 numa dimensão que ultrapasse deliberadamente esse ou aquele caso nacional é trabalhar com um objeto“comum”num perímetro notavelmente vasto, inédito para um acontecimento que não concerne principalmente nem à guerra nem à conquista:33 inclui a Europa, de um lado e outro da cortina de ferro, tanto o mundo comunista quanto o mundo liberal, o Norte como o Sul, esse Terceiro Mundo que então acabara de receber esse nome de batismo.34 O ano de 1968 transgride as fronteiras materiais e ideológicas na Ásia, na Europa e nas Américas, requer essa necessária “mudança de foco”. O espaço estudado é dilatado, não raro descontínuo, em geral disseminado, e a realidade nacional molda e modera o impacto eventual do fato transnacional. É preciso restituir aos anos 1968 sua duração, mas também sua extensão geográfica: Paris não detém o monopólio da contestação na França; e, muito além das fronteiras, o “espaço 1968” se estende no plano internacional. Durante os anos 1960 e 1970, de Berkeley aTóquio, de Amsterdã à Cidade do México, de Roma a Madri e Varsóvia, surgem movimentos de contestação. A juventude faz sua estreia como ator social.35

Já se falou de uma “Internacional da contestação”. 36 Mas, afora isso, 1968 tem as dimensões de um “acontecimento-mundo”, com uma primeira manifestação de uma cultura-mundo em gestação; representa, como disse Jean-François Sirinelli (2008a), “um momento para a world history”. A onda de choque é mundial, os ecos são difusos e rapidamente percebidos graças aos meios de Sirinelli, 2008a. Sauvy, 1952. 35 Dreyfus-Armand, 2008:32. 36 Klimke e Scharloth, 2008. 33 34

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comunicação, à imprensa escrita, mas, sobretudo, ao rádio e à televisão, que transmitem por todo o planeta os reflexos dessa contestação. Em Paris, os estudantes desfilam gritando “Roma, Berlim, Tóquio, Varsóvia!”.37 Para além da diversidade dos contextos nacionais existe uma forma de consciência diversamente partilhada de um “momento” comum, de influências recíprocas e de fraternidade, mesmo “incoerente”.38 Na Cidade do México ou no Rio, evocase Pequim, Praga e Paris. Antes de 2008 e da onda de eventos, pesquisas e obras suscitadas pela comemoração do quadragésimo aniversário,39 já tinham sido publicados na França muitos livros sobre 1968. As comemorações decenais e seu cortejo de instrumentalização política pontuam a relação memorial das comunidades nacionais com seu passado e constituem um dos tempos dominantes da pesquisa histórica, sobretudo quando ela é impelida por uma lógica produtivista e uma relação ambígua com as preocupações políticas contemporâneas. Todavia, poucos estudos adotam uma perspectiva externa à França. Não cabe condenar aqui exclusivamente o — real — egocentrismo editorial nacional francês: a criatividade e a vitalidade do “maio francês” parecem capazes de conferir, na França, uma forma de exemplaridade simbólica ao acontecimento e ao mito do conjunto de 1968; de fato, os fulgores do “maio francês” contribuíram em muito para que se negligenciassem ou ocultassem os “1968 estrangeiros” na historiografia nacional; somam-se a isso os resquícios de uma tradição estrangeira, corrente sem ser geral, que por muito tempo considerou Paris como um espelho intelectual, como o lugar de srcem de todas as reverberações. Entre as publicações que na França40 alargaram bastante o campo de visão destacam-se, em especial, uma exposição (e seu catálogo) da Biblioteca Internacional de Documentação Contemporânea e o produto de um seminário do Instituto de História do Tempo Presente, organizado por Robert Frank, Geneviève Dreyfus-Armand e Michèle Zancarini. 41 Esses trabalhos essenciais Loyer, 2008. Berman, 1999. Ver também Loyer (2008). 39 Em dezembro de 2008, são 604 referências bibliográficas somente para aquele ano (livros, revistas, jornais, brochuras), segundo levantamento feito pelo Codhos (disponível em: ). O levantamento se refere principalmente a publicações francesas, mas inclui também alguns títulos em inglês e alemão. 40 Entre as publicações recentes em inglês, ver Klimke e Scharloth (2008). 41 Dreyfus-Armand e Gervereau, 1988; Frank et al., 2000; Artières e Zacarini-Fournel, 2008. Hom, 2007. Ver também Duwa (2008).Vaïsse (2008) adota a perspectiva do 1968 francês visto do exterior. 37 38

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exploram zonas geográficas interessantes e áreas temáticas pouco distintas ou esquecidas. Enquanto surge espontaneamente a primavera de Praga, começam a esboçar-se mais vagamente os importantes desdobramentos verificados na Polônia. Como apresentar o ano de 1968 a leitores que não testemunharam esses acontecimentos sem evocar certos aspectos como, por exemplo, o contexto econômico e social dos “30 anos gloriosos”? Além do evidente e comum etnocentrismo cultural, alémobras das francesas especificidades da influência considerável do “maio francês”, muitas sobre e1968 negligenciam o mundo anglo-saxão — em particular a Grã-Bretanha, que não conheceu cristalização contestatária42 —, em proveito exclusivo de um pretenso núcleo de história tratando das crises e, em especial, dos acontecimentos parisienses. Seriam as barricadas parisienses mais determinantes que essa atmosfera dos sixties, que a guerra do Vietnã, ou o impacto da ofensiva do Tet, particularmente, ou a revolução maoísta, o assassinato de Martin Luther King, o apelo de figuras como Joan Baez, ou mesmo a midiatização de Woodstock? Sem chegar a dizer, como Daniel Cohn-Bendit (2008), que agora é preciso “esquecer 1968”, não se pode deixar de examinar o impacto do constructo social e das demandas de memória do público sobre os imperativos comerciais da indústria livreira e sobre certas prioridades dos historiadores, as quais contribuem para representações de visão limitada, para certa miopia. Que tipo de histór ia teremos se levar em conta, se examinar mos e compararmos as afinidades, as transferências de ideias, de valores, as representações similares ou divergentes, o modo como se estabelecem as prior idades ou se definem as argumentações? Numa história em que certos sincronismos e analogias temáticas parecem evidentes, mas em que as variações de escala e temporalidades não o são menos, que limites propor entre uma histór ia comparada e uma história de “transferências culturais”? Uma história de transferências culturais de contestação a questões-chave que se entrecruzam? As fronteiras produzidas pelos textos do livro de Zacarini-Fournel (2008) são deliberadamente menos claras do que certas preocupações de classificação historiog ráfica. Sem dúvida, ainda é muito cedo para tentar essa síntese difícil que seria uma história global das circulações e transferências internacionais em torno de 1968.

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Ver a análise do 1968 britânico feita por Scott (2008).

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Na era de uma cultura mundializada, de redes intelectuais globalizadas, fluidas e comunicantes, na era da disseminação rápida da informação e do conhecimento através da mídia impressa e audiovisual, é realmente indispensável examinar “as lógicas de indução, de imitação”; ver, como propõe Emmanuelle Loyer (2008), “o que resiste ao transnacionalismo”; delimitar as “pontes intelectuais” (não somente Berlim-Berkeley, mas também Sorbonne ou École Normale Supérieure-México ou -Rio, em estudar virtude os dosreflexos muitosfiéis, jovens formados em Paris ou pelas ideias vindas de Paris); deformados ou indistintos, formados num complexo jogo de espelhos, às vezes bastante oxidados, no contexto de relações internacionais deterioradas,43 como entre a França e a América Latina, por vezes longamente repetidas quando se trata de americanização ou de antiamericanismo... Portanto, trata-se também de uma história transnacional das formas políticas ampliando “o campo de luta entre os possíveis”, 44 uma história das mediações e representações externas recíprocas. Uma história que põe em causa modelos de srcens múltiplas, reflexos, empréstimos, reproduções ou adaptações e, por vezes, rejeições. Retomando uma afirmação anterior de Lucien Febvre (1955:26), o objeto a ser apreendido é “uma história de idas e vindas, de dar e receber, de empréstimos e recusa de empréstimos, de idas aventureiras e voltas com juros compostos”; uma dinâmica de “doações e transferências de um lado, e aceitação, adoções, adaptações e rejeições de outro”.45 Trata-se, pois, de proceder a uma análise das dinâmicas, dos “processos de capilaridade”,46 sem jamais deixar de se interrogar sobre o que se deve segmentar ou reunir. A partir daí, muitos são os questionamentos que surgem e se inscrevem em filigrana no trabalho do historiador. Qual é parte do conteúdo exógeno nas posturas radicais de modernidade?No meio dos relatos dos acontecimentos verificados alhures (guerra do Vietnã, revolução cultural, maio francês), nos temas de mobilização, nas referências ideológicas, organizacionais, iconográficas etc.,em sua plasticidade, quais são os arquétipos, tópicos e limites dessa circulação transnacional? Qual é a cronologia das percepções, dos “reflexos” dos modelos e contramodelos (forçosamente no plural)? Quais são os sinais de fidelidade a tais modelos? Marès e Milza, 1995. Sartre, 1972. 45 Braudel, 1989. 46 Sirinelli, 2008a. 43 44

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De modo mais geral, como e com que objetivo é instrumentalizada e recebida a referência estrangeira explícita? Que aumento de credibilidade se procura obter com a menção a uma referência ou a uma solidariedade? Ou, para resumir tudo em três questões: como evoluem as referências e os modelos, e por meio de que mecanismos? Em que espaços e por meio de quais mediadores eles se constroem e se difundem? Quando a utilização deixa de ser vistacomo criativa? Maisnacionais, além das emonografias ou do nunca exaustivo das variantes sem jamais coligidas negligenciar nãocatálogo só a pluralidade das relações com a modernidade — essencial para 1968 —, mas também as adaptações e reações a ela, o objetivo deve ser, pois, buscar os registros de sentido, a fim de propor subsídios para uma gramática comum na área da história comparada e das relações internacionais. ❚

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PARTE VII



Culturas políticas e lugares de memória

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Cultura política e lugares de memória Ulpiano T. Bezerra de Meneses

A associação aqui estabelecida entre memória e cultura política não pretende explorar o comportamento político dos indivíduos, sistematizando a forma e os efeitos dostomadas conteúdos culturaisPretende, e o papel daapenas memórdeslocar ia comopara componentes genos das de decisão. sim, a sociedadeendó(sem eliminar o Estado, mas ressaltando os questionamentos em que ele se vê colocado) o foco de exame de certas práticas da memória. Por outro lado, é preciso admitir de antemão uma dimensão inerentemente política no funcionamento da memória, já que seu caráter instituído/instituinte se realiza no campo conflituoso das escolhas, dos valores, dos significados. Trata-se, em suma, de examinar, em nossos tempos, alguns aspectos do funcionamento da memória — sempre politicamente marcado. É uma perspectiva preferencialmente fenomenológica, que poderia se incluir naquilo que está sendo chamado de “memória cultural” e que, como tal, permite melhor entender o status e as implicações dos lugares de memória. O objetivo último é fornecer, a partir de três situações sumariamente caracterizadas, motivação para reconhecer a necessidade de historicizar aspráticas da memória e de formular parâmetros para uma“história da memória”. ❚

Memória cultural

Em que horizonte se situa, afinal, essa memória cultural? Pode-se propor que, nos estudos da memória, tem-se, grosso modo e sucessivamente (mas com

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superposições e combinações várias e sem linearidade cronológica), a valorização da ontologia; depois, da semiótica; e, agora, de uma pragmática. Dito de outra forma, primeiro vieram os estudos voltados para a natureza do fenômeno como faculdade humana (pontificando aí a filosofia e a psicologia). Mais tarde, passaram a interessar os conteúdos que a sociologia e, sobretudo, a antropologia e um pouco a história exploraram. Agora, mais atenção despertam as operações, as da memória no da interior das sociedades, aquilo que se poderia chamarpráticas de “economia política memória”, aumentando a viabilidade dos estudos sociológicos, das ciências da comunicação e, mais que tudo, históricos. É nessa vertente pragmática que se desenvolveu o conceito de memória cultural Um dos teorizadores da memória cultural é o egiptólogo alemão Jan Assman, que publicou vários trabalhos a respeito, da década de 1980 em diante, alguns deles em companhia de sua mulher, Aleida Assman. Ele postula que o ideário da modernidade desenvolveu-se a partir do século XVIII em torno do conceito de humanidades, tendo como foco o espírito, o homem, a história, a arte. As novas disciplinas cristalizadas no século XIX têm aí sua referência: a história, a história da literatura, a estética, a antropologia, a sociologia. No entanto, diz ele, na pós-modernidade as humanidades cedem espaço para a comunicação, os sistemas de registro, a mídia. Assim, partindo das ideias de Maurice Halbwachs sobre a memória como fenômeno social,mas procurando ir além do conceito de memória coletiva, ele procura articular códigos, rituais religiosos, festivais, textos canônicos, assim como o psicodrama freudiano da repressão e ressurreição do passado, para estudar quer o Egito ou a Babilônia antigos, quer os índios osage americanos, quer, ainda, os conflitos entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte ou entre israelenses e palestinos. Para tanto, procura trabalhar uma memória comunicativa que lhe permita describe the social aspect of individual memory identified by Halbwachs. This memory belongs in the intermediary realm between individuals; it grows out of intercourse between people, and the emotions play the crucial role in its process. Love, interest, sympathy, feelings of attachment, the wish to belong, but also hatred, enmity, mistrust, pain, guilt and shame — all of these help to define our memories and provide them with a horizon.1

“[...] descrever o aspecto social da memória individual identificado por Halbwachs. Esta memória se situa no domínio intermediário entre os indivíduos; desenvolve-se a partir da interação entre as pessoas, e as emoções desempenham um papel crucial nesse processo. Amor, interesse, simpatia, sentimentos de 1

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O interesse depositado na definição das culturas pela capacidade de seus vetores de comunicação tem algumas de suas raízes nas décadas de 1920 e 1930, recrudescendo em 1950/60, com a chamada escola de Toronto. Eric Havelock, por exemplo, estudará a revolução cultural do alfabeto, da Antiguidade até nós; Marshall McLuhan se preocupará com a publicidade, que faz do meio a mensagem. Muitas outras contribuições, mesmo com propósitos bem diversos, foram incorporadas a essa ótica, como, por estudo de sobre as comunidades imaginadas e aexemplo, memória onacional, emBenedict que ele Anderson acentua o papel das tecnologias de comunicação trazidas já pela Revolução Industrial (a disseminação dos jornais e o print capitalism). Assim, nesse espaço de convergência, cultura teria tudo a ver com a transmissão de padrões (de comportamentos, coisas, significados). E conviria compreender a memória, no sentido técnico, como componente básico de uma rede de recursos de manutenção e propagação de um padrão geral: textos, filmes publicidade,TV, objetos e monumentos, cerimônias religiosas, culinária, festas e comemorações etc. Fala-se de uma “cultura da memória”: o modo como uma sociedade assegura continuidade cultural, ao preservar, com o auxílio de uma “mnemônica cultural”, seu conhecimento coletivo, de uma geração à seguinte, tornando possível que gerações vindouras possam reconstruir sua identidade cultural. Não se trata de buscar testemunhos do passado, nem mesmo de continuidade cultural, mas de identificar material capaz de assegurar a inteligibilidade do passado, num determinado contexto cultural do presente. O passado, portanto, é ativamente construído. Não importa que ele seja “correto”, o que conta é que seja capaz de inclusão. Referindo-se ao cinema, George Lipsitz (1990:163) especificava que a exigência popular não era a verdade, mas aquelas “true lies, depicitions of the past and present that are comprehensible to us and that locate our own private stories within a larger collective narrative”.2 Há, nessa linha, excelentes estudos. Contudo, há muitos trabalhos de viés reducionista, tal como ocorre no campo paralelo dos “estudos culturais”. O

ligação, o desejo de pertencer, mas também ódio, inimizade, desconfiança, dor,culpa e vergonha – tudo isso ajuda a definir nossas memórias e as dota de um horizonte” (tradução livre), Assmann, 2006:3. Ver também Assmann (1997). 2 “mentiras verdadeiras, representações do passado e do presente que nos são compreensíveis e que situam nossas histórias privadas dentro de uma narrativa coletiva maior” (tradução livre).

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principal reducionismo está na configuração da memória quase tão somente como um componente dos recursos de manutenção e propagação de um padrão cultural geral, o que se faz acompanhar de um hiperdimensionamento da tecnologia (basicamente de comunicação). Não há interação, negociação, apropriação. Marginalizam-se a produção de sentido, o papel das práticas sociais (cujo horizonte é muitíssimo mais amplo que a comunicação — salvo em teorias como a da ação Marginalizam-se, ainda, a dimensão cognitiva da memória e as comunicativa). memórias não midiatizadas — que, no entanto, contam na reprodução social. Há também uma preocupação excessiva com o passado, obscurecendo aquela relação que, segundo propõe François Hartog (2003) ao tratar dos regimes de historicidade, deveria estabelecer-se, de preferência, com o tempo e a temporalidade. Apesar disso, é inegável a presença de aspectos positivos.Têm sido salutares a abertura de horizonte e o surgimento de novos focos, ao se trazer luz sobre a operação dos vetores de memória (indispensáveis para se conhecer sua socialização, marcas específicas e efeitos).Também se realçou o papel crucial da cultura material no funcionamento da memória, assim como do corpo e da corporalidade. A gestualidade, por exemplo, como bem o atestam as culturas africanas, é um dos vetores dessa memória cultural corporificada — embodied memory, no dizer de Paul Connerton (1989), conceito que se poderia quase colocar (sensorializado) ao lado do habitus de Pierre Bourdieu. Por outro lado, o peso, em nossos dias, da comunicação de massas em todos os quadrantes da vida social também foi acentuado na produção da memória. Chegou-se até a identificar mecanismos extraordinários de produção retrospectiva da memória, projetada para o futuro. É o caso de José van Dijck (2008), estudioso do cinema, que formulou o conceito decinematic hindsight — visão cinemática a posteriori, mas antecipada como visão retrospectiva. Ele conta que um colega seu, sociólogo, ao voltar do trabalho, encontrou a filha de 10 anos brincando de caraoquê com a irmã mais nova. Assim que viu o pai, pediu-lhe que buscasse depressa a câmera para filmá-las, pois, quando se tornassem famosas, a televisão poderia mostrar essas passagens de sua vida pregressa. Daí a percepção, a que chegou van Dijck, da filmadora como instrumento de produção de memórias do porvir. Não apenas registro de atividades presentes, mas uma antecipação de seu passado futuro.Tal retrospecção cinemática é constituída, como ele diz, por retrospecções audiovisuais da vida rememorada como um agregado (efetivo ou ficcional) de vídeos caseiros e reconstruções fílmicas

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— recurso, aliás, contemporaneamente muito utilizado em filmes de ficção para criar ilusão de intimidade e autenticidade pessoal. Diante desse quadro, muitos especialistas recomendam que o estudo da história incorpore uma espécie de economia política da memória. O próprio Assmann propõe que a história desenvolva o que ele denomina mnemo-história: o estudo do “passado como é lembrado”, conhecimento do trabalho da memória cultural. há de umamemória” correspondência Pierre Nora, quenovo formulou conceito de Nisso “lugares como a com possibilidade de um modo ode fazer história cultural. Não se quer uma história de eventos do passado tal como teriam acontecido, mas de seus reempregos permanentes, seus usos e desvios, uma “história de segundo grau”. Seja como for, Nora, voluntária ou involuntariamente, trouxe lenha para a fogueira da memória cultural ao acentuar a dimensão externalizada da memória: segundo ele, quando a memória deixa de ser experiência e desaparecem os “ambientes de memória”, ela passa a se refugiar nos “lugares de memória” — que, em última análise, são vetores (e produtos e matrizes) de comunicação.



Os lugares de memória

A expressão “lugares de memória”, todos sabem, é o título das quase 6 mil páginas de uma famosa obra coletiva com 103 colaboradores e 133 capítulos, organizada pelo historiador francês Pierre Nora (1984-93). A expressão logo virou moda prêt-à-porter e se banalizou, apropriada pelo mercado cultural e, sobretudo, pela publicidade turística, muitas vezes hiperdimensionando o mero conteúdo topográfico: “venha visitar os lugares de memória da Sicília!”. A locução está até dicionarizada, pois já consta da edição de 1993 do Grand Robert de la langue française. Lugar de memória, nesse diapasão, foi tomado como lugares físicos que valeria a pena visitar, pois guardavam lembranças do passado. Até mesmo historiadores sacrificaram-se à onda simplificadora, como o atesta uma coletânea paralela organizada por Christian Amalvi (2005), intitulada Os lugares da história, onde simplesmente se elencam os lugares físicos e institucionais e os instrumentos de produção do conhecimento histórico (academia, sociedades, bibliotecas, arquivos, coleções populares etc.). O ponto de partida de Nora é outro. Diz ele que, nas sociedades prémodernas, a memória era experiência vivida, internalizada nos indivíduos, mas experiência coletiva, objeto de práticas comunitárias cotidianas. Essa memória

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desapareceu. Se tanto falamos em memória é porque ela não mais existe, desapareceram os rituais. Agora, a memória está externalizada, artificializada, é uma espécie de memória vicária, à falta da srcinal e espontânea, e por isso se compõe de restos, vestígios. Aquele “ambiente de memória” milieu ( de mémoire) que envolvia os indivíduos se transformou em “lugar de memória”, ponto de condensação, de atividade gravitacional da memória, com sentido material, simbólico funcional, condição eem matriz de memória. se forma naoudistância, transforma-se história, rompendoAomemória liame quemoderna antes as unia. Nesse tom às vezes apocalíptico com que Nora passa o atestado de óbito da memória-experiência há um eco da nostalgia de Platão, segundo o qual, com a escrita, a memória sairia da mente dos homens para se perder fora deles. Mas não existiriam outras formas de sociabilidade diferentes, embora tão legítimas quanto as do molde camponês que lhe serviu de paradigma? Um lugar de memória, para Nora, vai do objeto mais material e concreto, um artefato, uma paisagem, até o objeto mais abstrato e construído intelectualmente. Pode ser um monumento, um arquivo, um museu, uma personagem, uma instituição, uma canção, uma dança, uma gestualidade, a etiqueta, a genealogia, um objeto sígnico, uma personagem, uma paisagem, e assim por diante, desde que funcione como uma unidade significativa, de ordem material ou ideal, movida de preferência voluntariamente, transformando-se em elemento simbólico. ❚

Lugares de memória de nosso tempo

Para exemplificar os lugares de memória de nosso tempo, selecionei apenas três modalidades: a chamada “memória protética”, a memória virtual e o monumento público e suas ambiguidades. Memória protética

Trata-se de uma nova forma de memória cultural pública, de elevada escala. A obra de referência, aqui, é o livro (cheio de boas intuições, mas, às vezes, superficial) de Alison Landsberg (2004),Memória protética: a transformação da rememoração americana numa era de cultura de massas. Ela se apoia consistentemente na análise da tecnologia de comunicação. Pela importância diagnóstica, vale a pena considerar mais detidamente os principais atributos com que Landsberg caracteriza essa verdadeira terceirização da memória.

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Antes de mais nada, é uma memória produzida fora do sujeito, em parte semelhante ao que ocorre com a indústria cultural. A construção dessa memória não vem do próprio contexto de usos e práticas. Não há apropriação, por experiência, de um passado alheio, mas uma seleção e apropriação das memórias em oferta. Ao contrário do que pressupunha, na virada do século XIX, o paradigma lamarckiano da “memória orgânica” (memória recebida dos ancestrais, como com por hereditariedade), e ao contrário, também,a da preocupação Halbwachs a transmissão generacional da memória, memória culturalde decorre de escolha livre, não de uma herança. Já que é objeto de opção, engloba diferentes espaços sociais, práticas, crenças: essas tecnologias de comunicação não são circunscritas geográfica ou nacionalmente. Se as memórias oitocentistas tinham o intento de unificar povos acima de diferenças de classe, etnicidade, gênero, região, com vistas à construção de uma identidade nacional comum, a memória protética não apaga as diferenças nem instaura origens comuns. Consequentemente, ela não é de molde a suscitar reivindicações étnicas ou identitárias. Não foram produzidas por quem as reivindicaria. A questão que motivou candentes debates, nas décadas de 1970 e 1980, principalmente nos museus históricos e antropológicos — “quem é o dono do passado?” —, perde aqui quase toda a sua relevância. Finalmente, e mais importante que tudo, tais memórias são “portáteis”. Circulam sem fronteiras. Numa palavra, sofrem um processo de mercantilização e integram um verdadeiro e complexo mercado da memória (que, lembre-se en passant, não despertara maior atenção de Nora). Um curioso filme de ficção científica, de 1995,Strange days, dirigido por Kathryn Bigelow, dá a medida do que pode ser no futuro esse mercado: a história se passa em Los Angeles, nos últimos dias de 1999, em torno de um operador do mercado negro que comercia wire-trip clips, tecnologia ilegal que permite registrar e fazer circular experiências sensórias (e mnemônicas) de terceiros — e que cria dependência. Questão que se coloca, no âmbito de nosso tema: seria tal memória politicamente desmobilizadora ou progressista? Alison responde pela segunda alternativa, realçando o potencial mobilizador da memória protética, pois esta se baseia na empatia com experiências históricas de outras pessoas, permitindo consciência social e a composição de alianças que transcendam os limites das memórias privatizadas por famílias, grupos sociais ou fronteiras nacionais — e

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que, dessa forma, possam propiciar mudanças de consciência e participação política. Embora reconheça efetivamente um “potencial progressista”, não posso deixar de considerar que os compromissos de mercado atenuam consideravelmente tais virtudes e tendem a favorecer, antes, a despolitização. De todo modo, admito que a memória protética deve merecer atenção, como plataforma de lugares de memória relevantes em nossa sociedade. Memória virtual

Que memória pode existir na cibercultura? Dois exemplos domésticos de estudos pertinentes podem ser citados, para mostrar a necessidade de incorporar (criticamente, é claro) uma nova categoria de memória. Fala-se em “patrimônio digital” — um dos focos de interesse da linha de pesquisa “Memória e patrimônio”, do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Unirio3—, como “hipótese para a representação da memória social, considerando as nuanças de apropriação e construção das memórias que nascem virtuais ou que se duplicam na teia eletrônica mundial”. Para tanto é necessário desenvolver uma “etnografia informacional”, a fim de observar fragmentos informacionais (memórias digitais) na internet, com referência à campanha internacional da Unesco visando salvaguardar a memória digital. Em outra trilha, o grupo de pesquisa da memória social de Porto Alegre, da UFRGS,4 preocupa-se com a preservação cultural da diversidade de pontos de vista que configuram a vida urbana local por meio da informatização e digitalização de uma base de dados analógicos e, mais ainda, do investimento no processo de criação de narrativas etnográficas com base no registro audiovisual (documentários etnográficos), atentando para a dinâmica da produção dos jogos da memória do cotidiano entre os habitantes da cidade. Novas modalidades de narrativas etnográficas em antropologia são elaboradas, a partir de hipertextos multimídia. Mas é possível, efetivamente, memória na internet? A socióloga italiana Elisa Esposito (2004) apresenta três situações de memória em nossos tempos: a coleção privada (e os acervos museológicos, em muitos casos), assinalada por mero armazenamento sem mídia para acesso; o arquivo, que conta com armazenamento e mídia de acesso; e, enfim, a internet, paradoxalmente com o mais 3 4

Dodebei, 2005.Ver também Scheiner (2007). Rocha e Eckert, 2007.

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extraordinário acesso, mas sem armazenamento, nenhum depósito.Assim, à primeira vista, não parecem ser favoráveis as condições para se ter propriamente um lugar de memória, que exige concretude — ainda que para chegar ao abstrato. Poderíamos acrescentar outras reflexões negativas. A simultaneidade com que funciona a web elimina a amnésia programada, que é condição essencial da memória humana: falta a diacronia, domina a sincronia. A superinformação sem hierarquização redunda em desinformação. A pobreza do conteúdo (também essencial na memória) leva a tomar-se frequentemente comocognitivo informação ou conhecimento o dado bruto — por excelência o que mais circula. A dimensão corporal da memória se vê anulada ou consideravelmente reduzida. O próprio modelo textual de memória (conhecimento sobre algo), predominante na internet, marginaliza o conhecimento experiencial (conhecimento de algo). O hipertexto tem limitações para expressar algumas dimensões temporais importantes (por exemplo, a duração ou as sincronias de temporalidades diversas), e assim por diante. No entanto, acredito que muitas dessas objeções derivam não da tecnologia em si, mas de nossa inabilidade para gerir um ambiente que pressupõe estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas consideravelmente diversas daquelas a que nos habituamos e que naturalizamos — como se elas não fossem submetidas à história. Acredito que, como potencial ainda longe de se ter minimamente realizado, a internet dispõe, sim, de credenciais para ser considerada uma plataforma de lugares de memória e, mesmo, de ambientes de memória. Antes de mais nada, porque é preciso admitir a existência de comunidades virtuais como entidades socialmente existentes, como entendia Howard Rheingold (1993): agregados sociais que emergem da rede quando um número suficiente de pessoas mantém discussões públicas suficientemente continuadas e com suficiente sensibilidade humana para formar tramas de relações pessoais no ciberespaço. Por outro lado, se as subjetivações aleatórias e as polissemias das nar rativas hipertextuais são entraves, temos que reconhecer — com Daniel Cohen e Roy Rosenzweig (2006:8), na trilha aberta pelo crítico literár io George Landow — que a hipertextualidade fratura e descentraliza narrativas-mãe tradicionais, de modo benéfico, reconfigurando textos, autores, escrita e narrativa, alterando esquemas conceituais fundados nas ideias de centro, margem, hierarquia, linearidade. Podemos acrescentar que aquilo que se vem chamando de “comunicação distributiva” constitui plataforma favorável à memória coletiva.

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Monumento

É comum lembrar-se o que disse John Q. Adams, segundo presidente da jovem república americana, no final do século XVIII: “na democracia não há monumentos”. A frase expressa o propósito de um igualitarismo radical, mas, ao mesmo tempo, reconhece a potência do monumento como recurso classificatório, produtor de diferenciações. Paradoxalmente, entretanto, o objetivo com que se costuma justificar o monumento é unificar.Assim, a despeito do fundamentalismo do presidente Adams, regimes autoritários ou democráticos erigiram monumentos em abundância, principalmente no século XIX — não por coincidência a era da criação ou consolidação dos Estados-nação. Também não é coincidência que a vinculação do monumento a uma memória coletiva surja num contexto de sedimentação da sociologia e da antropologia, quando a ordem do dia privilegiava a integração social,os liames de coesão e solidariedade. Já o quadro delineado do pós-II Guerra Mundial aos primórdios do século XXI é bem diferente e parece hostil a monumentos. A primazia não está mais no Estado unificador, mas na sociedade em fragmentação — o que se reflete até mesmo, como sabemos, nas modalidades de conhecimento histórico que hoje praticamos e que se distanciam definidamente da história política oitocentista. Já se notou, também, uma “virada cultural”, na sociedade e na pesquisa, a revelar uma inversão significativa: as reivindicações sociais, antes de natureza redistributiva e pautadas em conceitos de justiça social, cederam paulatinamente lugar às reivindicações de reconhecimento, de caráter identitário. Claro está que essa fragmentação abrange diretamente o campo da memória, e com mais razão ainda, pois a memória costuma ser altamente localizada, enraizada, espacializada — quer dizer, singularizada. Por outro lado, as modificações no espaço urbano —locus natural do monumento — foram consideráveis. Os lugares públicos tiveram seu peso reduzido drasticamente nas funções do tecido citadino. Se, num primeiro momento, o fluxo (de bens, informação, pessoas) respondia à lógica abstrata da urbanização fundada na premissa de que a cidade, em última instância, teria que ser uma forma de ordenar a circulação, passou-se agora a um patamar mais estreito ainda: os espaços de lugares se transformaram em espaços desterritorializados de fluxos (sobretudo de informação). O habitante, pedestre que praticava o espaço, degrada-se em transeunte (trans + eo em latim implica ir através de, ou melhor, transpor ou eliminar o espaço entre dois pontos). Como, então, fruir monumen-

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tos? Além disso, surge outro problema crítico do patrimônio ambiental urbano: a maximização funcional da cidade, que gera o conflito entre essa concepção utilitária e seus conteúdos perceptivos, isto é, estéticos, introduzindo, na expressão de Bernard Lepetit (1993), o risco de redução semântica da cidade, o risco de restringir a possibilidade de significar. Nessa operação que confere qualidade à prática da cidade pelo habitante, o monumento público desempenha papel relevante. Paulocaminho Knauss (1999:7) acentua essa dimensão estética do monumento capaz de abrir para “caracterizar a construção social dos sentidos da cidade [no caso, o Rio de Janeiro, num momento em que esse potencial desabrochava], a partir de um dos modos de significar e demarcar simbolicamente o ambiente urbano”. Nessas condições, obviamente, o monumento não teria muita razão de ser. Ainda mais que sua associação aos nacionalismos e totalitarismos gerou marcas negativas — provocando episódios de destruição para apagamento físico da memória (damnatio memoriae, diziam os antigos romanos), como ocorreu no pós-guerra de 1945, no esfacelamento do império soviético, na derrota de Sadam Hussein no Iraque etc. Daí uma crítica rigorosa à monumentalização da memória, principalmente no último quarto de século. Andreas Huyssen (2000) afirma que a multiplicação dos monumentos passou a produzir invisibilidade, e não presença do passado. O psicólogo russo Aleksandr Luria (1968) fornece, pelo avesso, uma ilustração convincente dessa paradoxal invisibilidade. O autor trata do caso clínico de um paciente, o mnemonista “S”, indivíduo dotado de excepcional capacidade de tudo lembrar — quase como Funes, el memorioso, de Jorge Luís Borges — e que se apresentava em espetáculos públicos. Contudo, em crise, desejoso de aprender a esquecer, experimentou várias técnicas, começando por usar a escrita, na suposição de que assim as pessoas tornavam permanentes as memórias que não desejavam esquecer. No seu entender, se escrevesse algo, não precisaria mais lembrá-lo. Como o resultado fosse insatisfatório, passou a descartar as folhas com seus escritos e mesmo a incinerá-las. Se “S” não obteve êxito em seus propósitos, ao menos demonstrou que externalizar a memória (como no monumento) é uma forma de abrir mão dos compromissos de rememoração. Apesar de tudo, os monumentos não deixaram de ser erigidos. Por certo, os mais antigos foram ressemantizados — a ponto de, por vezes, se reduzirem a esculturas públicas, parte do mobiliário urbano. “A presença física do monumento engoliu sua função significante”, diz Valéria Salgueiro (2008:174), ao

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retratar a trajetória simbólica e espacial do monumento a Benjamin Constant no Rio de Janeiro, o qual, de materialização do modelo positivista do soldadocidadão republicano, em 1927, passou a ser hoje mera referência topográfica na praça da República, para onde foi exilado. Mas também novos monumentos vão surgindo em todas as partes — agora, porém, num quadro novo resultante de um severo questionamento, seja estético, seja ideológico. Por volta de 1870, Sergiusz Michalski (1998:8), a construção de monumentos tornou-se um diz domínio artístico, político e social de direito próprio, inclusive com seus cânones artísticos derivados da tradição clássica e preservados pela cultura política e padrões de representação burguesa. Nos últimos 50 anos, a situação mudou consideravelmente. Em 2002, o Museu de Arte Moderna de Nova York, na série “Post-1960 art”, expôs um segmento intitulado “Countermonuments and memory”, com a curadoria de Roxana Marcocci.5 Na década de 60 do século passado, começara a tomar corpo um movimento disperso, principalmente nos Estados Unidos, que declarava a falência do monumento cívico, coincidindo com o período de protestos antiguerra e pelos direitos civis. Barnett Newman (1905-70) e Claes Oldenburg (1929) foram duas referências na exposição. De Newman, que se declarava combatente da burguesia, é significativa a obra “Broken obelisk”, de 1963. Uma das três versões se encontra em Houston, Texas, tendo sido dedicada à memória de Martin Luther King Jr., logo depois de seu assassinato em 1968. Newman utilizou duas formas absolutamente convencionais em monumentos, mas embaralhou sua leitura: fez de uma pirâmide a base em cujo vértice se assentava instavelmente também o vértice de um obelisco invertido,fraturado na outra extremidade. Já Oldenburg, artistapop, difundiu a monumentalização de objetos do cotidiano ou a ressemantização afro da bandeira americana. Para se ter a medida exata do processo de dessacralização do monumento, é exemplar uma obra de Edward Kienholz (1927). Trata-se da instalação “The portable war memorial” (de 1968, hoje no Museum Ludwig, Colônia), que expõe a fachada de uma lanchonete e, ao lado, a representação tridimensional da famosa fotografia da tomada do monte Suribachi, em Iwo Jima, na guerra entre EUA e Japão, esvaziando, porém, todo conteúdo épico da cena em que quatro marines hasteiam a bandeira americana. Mas é na década de 1990 que a contestação ganha consistência, quando a agenda artística

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Disponível em: .

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se deixa penetrar pela problemática ética da memória-trauma, a memória do Holocausto, do terrorismo de Estado, doapartheid e outras catástrofes, inclusive as naturais.6 Um dos focos do debate estético será, então, a figurabilidade. É cabível, ou viável, representar figurativamente o extermínio de 6 milhões de judeus pelo Terceiro Reich? Toda sociedade define o que se pode ou convém dizer, e como eou, quando de dizibilidade), recordar (critérios de memorabilidade) ainda,(critérios ver e figurar (critérios de ou visibilidade/figurabilidade). Marita Sturken (2004), penso, identificou fundamento relevante nos aspectos problemáticos da representação icônica para funcionar como “trabalho de luto”, pois cada figura sempre levantaria questões de exclusão. Analisando os projetos de reurbanização da área afetada pelo atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, que pôs abaixo as “torres gêmeas” de Nova York, ela discorre sobre a “estética da ausência” que caracter iza a solução aprovada em concurso. De fato, seria oportuno lembrar que, muitas vezes, é o desaparecimento que faz de uma estrutura um monumento: Aubin-Louis Millin, que organizou, em 1790, o Recueil des monuments pour servir à l’histoire générale et particulière de l’empire français, colocou em primeiro lugar a Bastilha — a prisão que havia sido demolida na Revolução, um ano antes (é o monument en creux ); o muro de Berlim somente foi tratado como “lugar de memór ia” ao cessar de existir fisicamente. Voltando a Sturken (2004:322), ela não deixa de observar que a estética do vazio não é pacífica: emptiness, in the form of contemplative spaces and voids is a primary aesthetic of the memorial design. Thus, although intended as a memorial to the people who died, its aesthetic of absence seems primarily to evoke the absence of the towers. Much of the criticism of the design has fixed on this quality, calling it “void of honor, truth, emotions and dignity” .7

Três monumentos erigidos na Alemanha — arena por excelência,et pour cause, desses debates — servem de amostra para melhor compreensão da conHomans, 2000 “[...] o vazio, na forma de espaços contemplativos e vácuo, é uma estética básica do projeto do memorial. Assim, embora a intenção seja um memorial dedicado às pessoas que morreram, sua estética da ausência parece, antes de mais nada, evocar a ausência das torres. Muitas, entre as críticas do projeto concentraram-se nesta qualidade, dizendo ser ele ‘vazio de honra, verdade, emoções e dignidade’” (tradução livre). 6 7

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cepção e eficácia, em escala variada, dessa estética antifigurativa. O primeiro é o monumento aos judeus desaparecidos que o artista minimalista americano Sol Lewitt projetou, em 1987, para a praça do Palácio, em Münster: no meio do espaço público, um grande bloco de pedras negras (daí seu nome “Forma negra”) se apresenta como um caixão de defunto extraviado. Coberto de grafites eslogans políticos, ele está intencionalmente em desarmonia com a praça barroca. exemplo, também de 1987, em Kassel, é a fonte Aschrott, 1908,Oemsegundo estilo neogótico, que os nazistas haviam estigmatizado como fonte de de judeus (por ter sido judeu seu patrocinador) e destruído. Horst Hoheisel projetou uma pirâmide, mas a embutiu no solo, tornando-a invisível, representada apenas por uma lápide. É pela ausência que ela mobiliza emoções: está presente pela invisibilidade. O grau mais avançado do que vem sendo chamado de antimonumento é um projeto do mesmo Hoheisel apresentado em Berlim, em 1995, no concurso internacional para o memorial alemão aos judeus europeus assassinados pelo nazismo. (O projeto aprovado, de Peter Eisenman, inaugurado em 2005, distribuiu por um quarteirão inteiro 2.711 blocos de pedra cinza, de vários tamanhos, de aparência tumular e sem qualquer atributo figurado). O que Hoheisel propunha era a demolição da Porta de Brandemburgo, lugar de memória dos mais sagrados para a celebração das glórias prussianas. Demolido o monumento, suas pedras seriam trituradas, e o pó, espalhado no sítio, recobrindo-se o espaço com placas de granito. Assim, aqui não se trataria de, com o vazio, simplesmente evocar uma perda, mas de provocá-la, para exorcizar outra perda. Sem dúvida, Hoheisel estava ciente de que seu projeto seria recusado — como de fato ocorreu —, mas, se a “solução final” nazista era o extermínio dos judeus, ele “não queria fechar o dossiê” e pretendia manter-se alerta. Esta última observação aponta para outro componente dessa estética: “the many iconoclastic waves having successfully destroyed the myth of monumental eternalization, a work-in-progress of unfinished appearance seems more and more desirable”.8 Além do debate estético — e imbricado nele, como já se pôde ver nos casos acima tratados —, abriu-se também um renhido debate político que expressa a evolução dos objetivos do monumento, sintetizada por Simpson e Michalski, 1998:202. “[...] como as numerosas vagas iconoclásticas destruíram com sucesso o mito da imortalização monumental, parece cada vez mais desejável um trabalho em curso, de aparência inacabada” (tradução livre). 8

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Alwis (2008:15) num estudo sobre os memoriais construídos no Sri Lanka e em Gujarat (Índia) para lembrar a devastação provocada respectivamente pelo tsunami de 2004 e pelo terremoto de 2001: “ rather than bringing people together, memorials have frequently exacerbated old conflicts and fostered new social divisions ”. O traço mais evidente dessa evolução está no papel cada vez mais reduzido, ou mesmo contestado, desempenhado pelo Estado. Nos memoriais aos soldados 9 mortos guerras pode-separa perceber claramente a transição do protagonismo, quenaspassa do Estado as famílias. Yves Helois demonstrou que os monumentos aos mortos em campo de batalha, até 1918, se srcinavam de uma troca “biopolítica”: a individualidade do morto, expressa no seu corpo, desaparecia, substituída por uma abstração de que o Estado se apropriava, para celebração de sua glór ia ou leg itimação de sua empreitada. A partir daí (como também se observa nos cemitéri os militares), a glória do Estado não tem precedência. É o luto privado que impera. O caso do Vietnam Veterans Memorial, de Washington, ilumina excelentemente tal situação. Projeto srcinal do governo, as discussões no Congresso deixaram claro o objetivo de legitimar a aventura militar na Ásia e fechar as feridas de uma guerra inócua e sangrenta, fazendo instalar uma complexa imagem escultórica com a tradicional linguagem heroica. Intervêm, contudo, outros agentes: as famílias, que pretendiam compensar as perdas afetivas, e os próprios veteranos, em busca de um sentido para seus sofrimentos. A polêmica arrastouse por longo tempo e terminou em 1983, com um monumento de autoria da então estudante de arquitetura sino-americana Maya Lin. Longe de homologar a interpretação oficial, ela dispensou qualquer figuração e fez construir dois paredões de mármore negro, que se encontram em “V”, com o nome de cada soldado morto (quase 60 mil) inscrito em sua superfície espelhada, capaz de refletir a imagem de cada observador, que passa assim a integrar o conjunto. De novo, o monumento se propõe como espaço de atração de manifestações subjetivas — o trabalho de luto das pessoas envolvidas, e não os interesses do Estado.

A subjetivação do monumento e a privatização da memória chegam a assumir até uma dimensão performática, como ocorre, em alta escala, na obra de Jochen Gerz e Esther Schaler-Gerz (1986) em Harburg, distrito de Hamburgo, Alemanha. Mais uma vez, o que se solicitava era algo destinado a purgar publi-

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Apud Simpson e Alwis, 2008:15.

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camente as culpas do povo alemão em relação ao nazismo. Os artistas instalaram no centro de uma praça uma placa de alumínio com 12 metros de altura sobre um orifício de mesmo diâmetro. Na superfície da placa, revestida de chumbo, os habitantes deixavam gravadas, com um estilete metálico, suas mensagens pessoais. À medida que ia sendo grafitada, a placa enterrava-se cada vez mais no orifício, até que ela desapareceu completamente em 1993. Depois, a abertura foi coberta com uma lápide. Na aparência, o monumento, num função espaço público, desempenhava seu papel tradicional. Contudo, suasituado verdadeira era subjetivar os sentimentos que ele pudesse provocar, sem lhes dar qualquer publicidade. Como em Kassel, a eliminação física é o ápice do antimonumento, que se completa ao se tornar invisível, mas aqui também a carga subjetiva que a ele se agregou precisa seguir o mesmo destino. Instaura-se, assim, certa ambiguidade: ao mesmo tempo em que a participação dos sujeitos é um fator de democratização e politização, é no nível individual que isso se dá, expondo sutilmente fraturas da sociedade e introduzindo o risco do individualismo. Em suma, é paradoxal que o antimonumento seja precisamente um dos fatores de revitalização do monumento cívico, apesar de sua impermanência e da contingência que caracteriza seu significado e os conteúdos de memória. Nas palavras de James Young (2003:245), “by resisting its own reason for being, the counter-monument may paradoxically reinvigorate the very idea of the monument itself”.10 ❚

À guisa de conclusão

Dado que o tratamento do tema, como anunciado, não foi sistemático, não cabem aqui conclusões de validade geral. No entanto, vale a pena procurar alguma observação que articule os três referenciais selecionados (memória protética, memória virtual, monumento) em função da problemática dos lugares de memória. A dimensão política dos lugares de memória contemporâneos pode ser considerada sua marca mais relevante, embora com presença diferencial. O monumento, por excelência, é hoje arena de conflito, reivindicações, realização de interesses de indivíduos, instituições, grupos, movimentos. A memória protética, funcionando como uma espécie de memória coletiva a granel, ilusória ou “[...] ao resistir à sua própria razão de ser, o antimonumento pode paradoxalmente revigorar a ideia mesma de monumento” (tradução livre). 10

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efetivamente oferece aos sujeitos possibilidades de escolhas identitárias personalizadas e de apropriação das memórias convenientes. No horizonte virtual, o potencial de memória é grande, mas sua atualização ainda é reduzida. Em compensação, a dimensão política se expressa aí como crise da autoridade e recusa de hierarquizações, apesar do risco do relativismo epistemológico, mas com a intensificação das formas de interlocução e a formação de comunidades ativas epara motivadas. É na internet memória dispõenão de condições agir socialmente. Nosque trêsacasos, o Estado desaparece,mais masfavoráveis é apenas um ator numa rede de interação, de peso variável, às vezes irrelevante, às vezes considerável, mas passível de contestação eficaz. Seja como for, parece evidente que a polaridade estabelecida por Nora entre os milieux de mémoire e os lieux de mémoire não pode ser considerada, hoje, tão definida. Os três casos brevemente examinados revelam o surgimento, sim, de novos padrões de sociabilidade e solidariedade, de novos ritos irrigando tempos e espaços do cotidiano. Tudo isso faz crer que a memória dos novos lugares de memória não pode ser considerada vicária, mas de direito próprio. Por fim, note-se que novos horizontes, aqui não contemplados, estão-se formando, nos quais a atuação de uma memória como experiência subjetiva e revitalizante, voluntária e involuntária, tem fecundidade suficiente para gerar lugares de memória que não sejam nostálgicos dos ambientes de memória. Penso, por exemplo, no mundo dos esportes, cuja própria viabilidade, em todos os quadrantes, é refém da memória. Parece-me que fica assim confirmada a necessidade de historicizar a memória e desenvolver parâmetros para uma história da memória. ❚

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Culturas políticas e lugares de memória: batalhas identitárias nos EUA Cecília Azevedo

A tarefa de articular dois conceitos tão complexos — culturas políticas e lugares de memória — e tentar aplicá-los ao caso norte-americano é o desafio deste capítulo. Num primeiro momento, procurarei apontar linhas gerais da relação entre identidade nacional e visões do passado, enfatizando alguns contextos. A seguir, meu objetivo será discutir como determinados lugares de memória foram criados e disputados por grupos diversos num movimento que penso expressar o embate entre culturas políticas e históricas distintas no interior dos EUA. Como em todas as nações, nos EUA também se observam verdadeiras guerras culturais que afetam a configuração do imaginário nacional, que não deve ser visto nem como algo que flui inalterado ao longo do tempo, nem como algo compartilhado de modo integral e homogêneo por toda a sociedade. Essa consideração prévia, embora um tanto óbvia, parece ainda necessária, já que o estereótipo sobre os EUA entre nós é um tanto resistente, o que leva a perceber aquela sociedade tão complexa quanto indiferenciada e aferrada a uma leitura sacralizadora da América. É certo que o que se convencionou chamar de credo americano — construído a partir dos mitos da excepcionalidade, virtude transcendente e destino manifesto da nação — motivou a construção de inúmeros lugares de memória de natureza material, simbólica e funcional que poderiam ser elencados em benefício dessa leitura hegemônica. A própria historiografia e os livros escolares,

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ao longo de todo o século XIX e também do século XX, estiveram marcados por uma perspectiva nacionalista e paroquial, seguindo o discurso oficial e reafirmando que o sucesso da experiência republicana na América se assentaria justamente num amplo consenso em torno de instituições e princípios políticos básicos, consenso capaz de esterilizar, quando não inibir, o surgimento de qualquer expressão de dissenso.1 Certamente tais esforços, inclusivenão porimpediram parte da historiografia, para alimentar o sentido que de unidade e consenso que diferentes grupos sociais, étnicos e políticos lutassem também para registrar sua existência, experiência e interpretação particular da história nacional em lugares de memória que Pierre Nora (1993), em sua ampla definição, qualifica como “toda unidade significativa de ordem material ou ideal que a vontade dos homens transformou 2 em patrimônio de uma comunidade”, ou seja, revestiu com uma aura simbólica. Portanto, podem ser assim compreendidos não apenas monumentos, memoriais, museus, arquivos e bibliotecas, mas também artefatos e ícones, como bandeiras e imagens, ou ainda produtos intelectuais, ideias mobilizadoras da ação política. Nesta última categoria temos a já mencionada ideia de destino, de missão, um elemento com certeza amplamente disseminado, porém disputado e também contestado em seus usos variados ao longo da história nacional. Assim sendo, caberia pensar como os diversos símbolos nacionais produzem, como defende Katherine Verdery (2000), um dispositivo de triagem que torna visíveis ou invisíveis os grupos que compõem uma dada sociedade. Portanto, as perguntas que nos devem guiar ao abordarmos esse tema dos lugares de memória devem ser sempre no sentido de identificar os atores que os promovem, bem como os projetos, identidades e culturas políticas que expressam. Mas, recuperar os usos diferenciados da simbologia nacional norte-americana, considerando toda a sua ambiguidade, é uma tarefa gigantesca, um empreendimento ainda em aberto que exigirá grandes esforços de nós historiadores e de outros tantos exumadores de memórias e das lutas em torno dela. Embora ainda não tenha surgido nos EUA nada semelhante à monumental obra coletiva organizada por Pierre Nora, em termos do mapeamento de lugares de memória, a discussão sobre identidade nacional, tradição e memória nos EUA tem fomentado trabalhos importantes, como o célebreMystic chords of 1 2

Ver Sternsher (1975); Bender (1993); e Caminhando para a “desestadunização... Ver também Enders (1993); Neves (2008).

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memory, de Michael Kammen (1993). Nessa e em outras obras,3 esse renomado historiador avalia como a sociedade estadunidense tem se relacionado com seu passado, sob o registro da história, da tradição, do patrimônio. Vale ressaltar que seu inventário criterioso dos diversos sentidos de tempo e tradição na cultura e nas artes o levou a concluir que diferentes percepções sempre coexistiram, em tensão com um discurso nacional unificador. 4 Assim, no processo social de produção da memória, seriadepossível resgatar memórias alternativas, espontâneas e subordinadas, para além memórias oficiais, de mais ampla circulação, que procuraram despolitizar o passado para reforçar o mito do consenso. Além de historiadores, críticos de arte, como Robert Hughes (1999), e também geógrafos, com Wilbur Zelinsky (1988), têm contribuído para esse intento. Zelinsky produziu um significativo inventário de símbolos nacionais, sem no entanto dar relevo a movimentos e lugares de memória que poderíamos qualificar como dissidentes. Seu livro trata em primeiro lugar do que chamou de ídolos públicos — fundamentalmente presidentes da República heroificados, começando pelos pais fundadores. Discute igualmente os inúmeros rituais comemorativos, arquitetura, paisagens, monumentos, produção artística e, ainda, usos linguísticos, mapeando e medindo a frequência da visitação a lugares de memória, da utilização de determinados nomes próprios, em geral de presidentes, ou termos celebrativos como “independência” para nomear cidades e logradouros públicos. Seu objetivo é buscar as srcens e as tendências na média ou longa duração daquilo que considera ser um sistema articulado de símbolos, marcas visíveis de uma “religião civil”.5 Zelinsky, em consonância com vários autores, defende que essa construção simbólica teria dado corpo à nação, cuja criação seria, portanto, em grande parte, obra do Estado. ❚

Identidade nacional e usos do passado

Em comparação com as outras nações que surgiriam na América Latina pouco depois, o Estado oriundo da independência das 13 colônias na América do Norte reunia uma população que apresentava maior heterogeneidade Kammen, 1992 e 1997. Kammen, 1993:8. 5 Essa expressão foi utilizada pela primeira vez por Robert Bellah (1984) para caracterizar a atribuição de um sentido sagrado à história e instituições nacionais. 3 4

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cultural, linguística e religiosa, e um sentido muito mais fraco, para não dizer inexistente, de identidade nacional. Assim, os EUA, a primeira das novas nações criadas na era do nacionalismo, não justificaram sua separação por qualquer sentido de tradição cultural próprio que exigisse a separação da metrópole para sua livre expressão e desenvolvimento.Segundo Jack Greene (2008), pouco antes da independência, os colonos em geral orgulhavam-se de sua ligação com a GrãBretanha, traços eidentitários — oa sistema religiãode protestante, superioridadecujos comercial marítima e,fundamentais especialmente, justiça, noaqual o monarca subordinava-se às leis — foram assumidos como referência e fonte dos fortes vínculos que os uniam. Compreende-se, portanto, que a ruptura com a metrópole tenha tido srcem nos limites que esta pretendeu estabelecer em termos dos direitos dos colonos às leis e privilégios ingleses. É evidente, por outro lado, que a identidade cultural compartilhada pelos colonos em função de sua ligação comum com a metrópole e posteri ormente como nação independente era mediada ou mesmo sofria a concorrência das identidades locais, mais orgânicas, que se mantêm até hoje como referência para correntes políticas que criticam o aumento e a interferência do poder federal. Assim, ao longo do século XIX, enquanto expandiam seu território, constituindo o corpo físico da nação, os norte-americanos viviam disputas políticas e crises identitárias intensas que, por fim, levaram à guerra civil. A fragilidade flagrante do sentido de nacionalidade às vésperas do conflito fez com que um observador afirmasse que o país se parecia não com a águia, eleita símbolo da nação, mas com uma galinha, ave muito mais frágil e, como sabemos, incapaz de voar.6 A vitória da união não representou, apesar de todos os esforços, a eliminação das sensibilidades e identidades estaduais e regionais nas disposições políticas dos norte-americanos, observáveis até hoje, como se teve ocasião de verificar nas últimas eleições presidenciais. Desse modo, a tradição ou herança — termo muito utilizado por correntes conservadoras a partir da década de 1950 7 — nacional, longe de ser o resultado do amálgama das tradições locais, d eve ser compreendida a par tir das apropr iações particuGrant, 2008. O instituto de pesquisa The Heritage Foundation, que teve grande influência na era Bush, encarna essa tendência, que poderia ser denominada nacionalismo fundamentalista no que diz respeito à afirmação dos mitos do destino, da excepcionalidade e do consenso, enfatizando a continuidade em detrimento da transformação cultural. No entanto, o termo herança também vem sendo utilizado por grupos que temem a invisibilidade ou o desaparecimento dos registros de sua história. Ver Kammen (1997). 6 7

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lares ou seletivas do dito credo americano ou “religião civil” pelas diferentes regiões e comunidades políticas. No contexto da independência, foi muito comum no discurso de líderes como Thomas Paine e John Adams a valorização da ausência de memórias que pudessem representar um fardo, um passado a assombrar e limitar experiências inovadoras no futuro, que se abria como dimensão temporal mais importante. O se poderia dizer em da relação à rejeição,depor partesingulares, de alguns integrantes mesmo da geração revolucionária, heroificação figuras vista como francamente contraditória com o espírito democrático e republicano. Ao lado, ou mesmo em contraposição a essa posição, não tardou a despontar a demanda por reconhecimento de srcens e tradições. Em pouco tempo, o passado e a história acabaram sendo admitidos e valorizados no discurso sobre a identidade nacional, com a criação sucessiva de símbolos, heróis e rituais que materializariam a suposta excepcionalidade da nação. Nesse sentido, pode-se compreender o investimento em celebrações cívicas diversas, na construção de monumentos, parques nacionais e de um panteão mítico habitado por presidentes semideuses, mas também, podemos agregar, pelo dito “homem comum”, na figura do pioneiro desbravador, do cowboy ou do soldado-cidadão, retratados e celebrados de mil maneiras na retórica política, na literatura, nas artes. Ao passado se atribuíam, assim, vários sentidos. De um lado, o de prólogo de um futuro no qual o grandioso destino, a profecia americana, se realizaria; 8 de outro, o de uma tradição, associada a uma era primeva de virtude pastoril colonial. Segundo Kammen (1993:8), tais apropriações do passado redundariam numa oposição fundamental entre modernistas e tradicionalistas que atravessaria a história norte-americana e que poderíamos aqui considerar como referências no embate entre diferentes culturas políticas. Ironicamente, Cristóvão Colombo, que nunca pisou o território do que viriam a ser os EUA e empreendeu suas viagens ao Novo Mundo sob os auspícios dos reis católicos da Espanha, foi um dos primeiros personagens a serem celebrados nos EUA. No dia 12 de outubro de 1792, oColumbus Day foi comemorado em Boston, Filadélfia, Baltimore e Nova York, e nesta última cidade foi erigido um monumento que associava o descobridor, desprezado pelos reis, à ciência, à liberdade e aos direitos do homem. A partir daí, as celebrações anu-

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Beau, 1996.

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ais passaram a ocorrer em várias cidades. Na grande exposição de Chicago, em 1893, quando se comemorou o quarto centenário do descobrimento, a imagem de Colombo como um representante do racionalismo do Renascimento que combateu o espírito e a superstição medieval foi adotada como referência do progresso e do espírito empreendedor, marcas da nação que se procurava então afirmar.9 Vale lembrar que, simultaneamente, na reunião da American Historical Association, quesua ocorria emtese, meioanunciando à exposição,o ofechamento historiador da Frederick Turner lançava célebre fronteiraJackson Oeste e afirmando sua importância para conformação da identidade nacional, por oposição à perspectiva ainda dominante na historiografia que valorizava a herança inglesa irradiada pelas 13 colônias srcinais. 10 Merecem destaque como expressões da pluralidade e da disputa entre diferentes correntes políticas os rituais e comemorações públicas. Nesta categoria incluem-se as paradas. Segundo Mary Ryan (1992),os norte-americanos criaram esta modalidade muito característica de manifestação civil, na qual a população urbana, organizada em pelotões, companhias e colunas, desfilava para uma assistência em geral muito numerosa, comemorando datas cívicas e eventos políticos, como a independência, a ratificação da Constituição, ou homenageando diferentes personagens, como GeorgeWashington e o próprio Colombo.Da análise feita pela autora de paradas ocorridas no século XIX em três grandes cidades — São Francisco, Nova York e Nova Orleans — vale recuperar algumas características relevantes: a iniciativa e organização das paradas por indivíduos eleitos para esse fim, ao lado das autoridades constituídas; a ausência de restrições sociais à participação, para além da exclusão de mulheres e negros; a oportunidade que ofereciam para a manifestação e afirmação de identidades específicas e antagônicas ou mesmo para a reivindicação de direitos pelos diversos grupos organizados nos diferentes segmentos da parada, o que, por vezes, conferia ao evento um caráter militante, mesmo que, pela sua própria configuração, o potencial para confrontos físicos fosse pequeno. Através desse ritual, grupos étnicos, categorias profissionais, organizações sindicais e religiosas, sociedades filantrópicas e de fim moral diverso se apresentavam, com alegorias próprias, atribuindo sentidos políticos variados à cerimônia e aos eventos e personagens que a motivavam. Por ocasião do quinto centenário, as revisões historiográficas inverteram os sinais e transformaram Colombo em vilão. Todorov (1991) pode ser citado como exemplo desse revisionismo. 10 Sobre a tese de Turner, ver Knauss (2004); Oliveira (2000); Lopes (2003). 9

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No pós-guerra civil, as batalhas militares e político-partidárias deram lugar a intensas batalhas pela memória. Segundo Susan-Mary Grant (2008), a Guerra de Secessão serviu de estímulo para celebrações, constituição de organizações diversas e releituras do passado. As elites nortistas e veteranos brancos tentaram, sem muito êxito,criar uma nova versão da identidade nacional, evitando discussões então consideradas inconvenientes sobre escravidão e raça, excluindo, por11 tanto, o papel desempenhado afro-americanos e os projetos de sociedade que acalentavam. A indústriapelos memorialista que se seguiu pode servir como um excelente estudo de caso sobre as apropriações seletivas promovidas por diferentes correntes ou culturas políticas e como elas se expressaram também em trabalhos historiográficos que disputaram o significado da guerra para o reforço ou não da identidade nacional. Vale lembrar que foi nesse contexto em que se recorria ao passado para promover a pacificação e afirmação da união que Lincoln estabeleceu o Dia de Ação de Graças (o Thanksgiving) como feriado nacional. Um feriado cívico-religioso que comemorava a primeira colheita e a sobrevivência dos primeiros colonos. O tiro, no entanto, acabou saindo pela culatra. Em 1889, um monumento dedicado aos peregrinos em Plymouth reacendeu forte ressentimento no Sul, que reclamava que a precedência cronológica do assentamento de Jamestown, na Virgínia, teria sido apagada em favor de Plymouth e da tradição puritana da Nova Inglaterra. Esse ressentimento reverberou até as comemorações do terceiro centenário da chegada dos peregrinos, em 1923, quando vários sulistas repetiam que o Sul havia sido conquistado depois da guerra civil e, como consequência, “sua história teria sido roubada”.12 Do mesmo modo, os festejos por ocasião do centenário da independência em 1876 não conseguiram produzir grande entusiasmo. O Sul continuava ocupado por tropas do Norte, e aos americanos de origem africana não se reservou qualquer lugar. Os desfiles e espetáculos patrióticos que apontavam para um passado de glória não foram capazes de atenuar os conflitos daquele presente, que envolviam também uma grande preocupação com a suposta ameaça que o crescente contingente de imigrantes poderia representar para a estabilidade social e política e a coesão nacional. Polêmicas políticas de americanização foram

Sobre as sensibilidades, silenciamentos e embates que atravessaram a comemoração do centenário da guerra civil, ver Isserman (2004:1-3). 12 Só em 1930 é que Jamestown foi declarada monumento nacional (Beau, 1997). 11

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propostas, gerando intenso debate sobre o sentido mesmo de americanidade ao longo de toda a chamada era do progressivismo.13 Antes de tratarmos das disputas em torno de alguns símbolos e lugares de memória, é importante mencionar o fato muito significativo de que, nos EUA, as celebrações públicas não são primárias ou unicamente iniciativas governamentais, podendo ou não, como consequência, receber subsídios das diferentes esferas do poder público. O mesmo vale para construção manutenção de museus e outros lugares de memória. O Congresso sempre se emostrou relutante em despender recursos com monumentos históricos e celebrações. No âmbito do Executivo, é digno de nota que nos EUA não exista algo equivalente a um ministério da cultura e que seja relativamente recente e bastante limitado o âmbito das ações públicas nesse terreno. O National Trust for Historic Preservation, por exemplo, foi criado apenas em 1949 como organização não governamental. O monumento aos mortos no Vietnã pode ilustrar essa relação ambígua: embora integre o National Mall e Memorial Parks, em Washington, administrado pelo Departamento do Interior, foi construído, como outros, com contribuições privadas, e sua inauguração não foi um evento governamental. Nas relações entre governo e patrimônio, vale registrar que a década de 1930 representou um marco. O presidente Franklin Roosevelt buscou não só recuperar a economia, mas a confiança no governo e o sentido patriótico. Assistiu-se, assim, a um crescimento significativo da cooperação entre agências governamentais e instituições privadas na produção de eventos comemorativos, na criação ou recriação de sítios históricos e na construção e recuperação física de parques nacionais, muitos deles administrados por grupos privados. Apesar da recessão, o governo ofereceu a mão de obra recrutada através de programas do New Deal, como o Works Progress Administration e o Civilian Conservation Corps. Vale dizer que a repercussão junto ao público foi muito positiva, com aumento expressivo de visitantes aos diferentes sítios. Nessa mesma linha é possível compreender outras iniciativas. Em 1931, o Congresso concedeu aoThe star spangled banner o estatuto de Hino Nacional. O Federal Theatre Project14 Hansen, 2006; Jacobson, 2000. Esse foi um dos mais polêmicos projetos do New Deal. Duramente atacado pelos conservadores por abrir espaços para peçasde crítica social,foi finalmente fechado,como retrata muito bem o filme O poder vai dançar (1991), dirigido por Tim Robbins.Vale dizer que, naquele contexto,até mesmo o Partido Comunista, perseguindo a construção da chamadaFrente Popular,realizou uma releitura das srcens nacionais,defendendo que no contexto da independência emergiram energias criativas e efetivamente revolucionárias. 13 14

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incentivou a produção de peças que recuperassem o passado, numa linguagem popular, especialmente através do folclore, resgatando uma história que pudesse servir como fonte de estabilidade e produção de coesão política e social. Com o governo Truman e o início da Guerra Fria, os investimentos do governo federal assumiram uma nova feição. Kammen (1993:574-579) narra uma iniciativa extremamente emblemática: uma exposição itinerante de documentos históricos trem, trem dacom liberdade”, promovida em 1947 pelo Departamento denum Justiça em“oparceria a então recém-criada American Heritage Foundation, integrada por empresários de setores diversos, do mercado financeiro à indústria cinematográfica. O objetivo declarado do governo era “vender o americanismo outra vez para os americanos”. Para tanto, ao lado de um planejamento minucioso envolvendo diversas agências governamentais, uma grande campanha publicitária foi lançada, demonstrando uma convergência muito clara de interesses e visões políticas entre esses atores. Apesar do sucesso, o empreendimento não deixou de provocar críticas, dirigidas especialmente ao critério de seleção dos documentos, ou seja,daquilo que deveria integrar a “herança” americana.Apontava-se a exclusão de determinados documentos, como a Lei Wagner de 1935, que reconhecia e garantia a organização sindical,ou as então recentes e ainda tímidas determinações legais relativas aos direitos civis. A justificativa da comissão não deixa margem a dúvidas: documentos que tivessem qualquer sentido partidário ou controverso foram eliminados do “trem da liberdade”, a fim de que o sentido de unidade e consenso não fosse prejudicado. ❚

Símbolos, monumentos e mártires

A bandeira é hoje, sem dúvida, o símbolo nacional mais popular, e seu uso em circunstâncias e locais variados ou mesmo inusitados é sempre assinalado como uma particularidade dos EUA, refletindo um misto de exacerbação nacionalista e arrogância. Assim, segundo Zelinsky, a bandeira orna a entrada de praticamente todos os prédios públicos e está presente também em cerca de 25-30% das lojas e escritórios e em cerca de 50% das indústrias, sem falar em domicílios, cemitérios e jardins. Além de tremular em postes, a bandeira americana adorna vestimentas, inclusive de banho, tecidos e utensílios de decoração doméstica. Mas esses dados não causam tanta surpresa, já que observáveis por qualquer turista que visita os EUA. O que é difícil imaginar, dada toda essa exibição, é que o culto à bandeira seja relativamente recente. Desde o início

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da república e, durante boa parte do século XIX, a águia era a imagem mais popular. Além de se fazer presente na moeda e em documentos governamentais, também tinha aparições surpreendentes em pinturas de parede, mobiliário, livros, jornais, cartas de baralho. É muito significativo o fato de o início da popularização da bandeira ter ocorrido a partir da guerra contra o México, em meados do século XIX, e ter crescido ainda mais no fim do século,com a guerra hispano-americana, quando uma de onda de xenofobia se disseminou tuíram as primeiras organizações veteranos na história dos EUA.e se constiOutro dado que pode nos ajudar a pensar não em um culto nacional indiferenciado, mas em termos de culturas políticas concorrentes, é o fato de o culto à bandeira e sua utilização serem muito diferenciados no Norte e no Sul. Aliás, no chamado “Sul profundo”, os números relativos à sua exposição são mais baixos que a média nacional. É digno de nota que, nas marchas organizadas pela vertente do movimento pelos direitos civis que pregava a não violência, os manifestantes negros empunhassem bandeiras nacionais, não sendo incomum o uso da bandeira confederada por aqueles que os hostilizavam. Deve ser também mencionado o conflito político em torno da manutenção de bandeiras confederadas na entrada de legislativos estaduais em alguns estados do Sul, fato que levou a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), a mais tradicional organização de defesa dos direitos civis do país, a impetrar diversas ações judiciais. Ocartoon abaixo demonstra a grande repercussão desse debate.



© Walt Handelsman and The Times- Picayune. Disponível em:

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Marcha da Ku Klux Klan, com sua bandeira Disponível em:

Início da marcha Selma-Montgomery, Alabama, 1965 © Peter Pettus, Library of Congress Prints and Photographs Division, Lot 13514, n. 25. Disponível em:

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Vale lembrar também a queima de bandeiras durante os protestos contra a guerra do Vietnã nos anos 1960,15 e que veio a se repetir nos anos 90 em meio à batalha constitucional em torno da criminalização ou não de tal ato, bem como o uso comercial, ou supostamente desrespeitoso, de hasteá-la de cabeça para baixo, como ocorreu, entre outros, nos protestos em Seatle contra a Organização Mundial do Comércio, em 1999. É significativo que o Congresso não tenha conseguido aprovar emendasdorestritivas que a Suprema tenha, até o momento, mantido a primazia preceito econstitucional daCorte livre expressão, absolvendo condenados por jurisdições estaduais, como foi o caso de um jovem preso por usar a bandeira nos fundilhos de sua calça na década de 1970. O debate em torno da questão foi extremamente acalorado, como se pode depreender do cartoon abaixo.



© John Trever and The Albuquerque Journal. Disponível em:

Nos momentos imediatamente posteriores ao 11 de setembro, a comoção que atingiu grande parte da população gerou uma demanda muito expressiva A imagem que abre o filme Malcolm X, de Spike Lee, é justamente a de uma bandeira americana sendo consumida pelas chamas, enquanto ao fundo ouve-se o trecho do conhecido discurso de Malcolm X em que ele afirma que não há sonho americano para os negros, e, sim, pesadelo. 15

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por símbolos nacionais, especialmente a bandeira. Consta que um fabricante de Nova Jersey vendeu 27 mil delas num único dia, o que poderia reforçar a ideia de uma disposição nacionalista sem nuanças. Se, após o início da guerra no Iraque, expor a bandeira nas janelas associava-se, na maioria dos casos, certamente à declaração “nós apoiamos nossas tropas”, era possível observar também, embora com menor frequência, o uso de uma outra bandeira nas janelas dos que se opunham à guerra: a bandeira listras naspeace cores arco-íris, ou sem o célebre símbolo circularda dapaz, paz com e a inscrição nodocentro. Umacom nova versão, chamada “bandeira patriótica da paz”, que mantém as cores das listras da bandeira nacional, mas utiliza as 50 estrelas para formar o símbolo circular da paz no canto superior esquerdo, considerada um atentado à bandeira nas leis derrubadas pela Suprema Corte, vem sendo vendida no site de um grupo pacifista na internet para celebrar “os 40 anos do verão do amor”, referindo-se possivelmente ao Festival de Woodstock em 1969.



Disponível em:

Desse modo, podemos pensar que, por meio dos usos diferenciados da bandeira, a perspectiva xenófoba e a missão americana em sua versão militarista sejam defendidas ou questionadas, e que por meio desses usos se expressem diferentes culturas políticas, diferentes leituras do passado, especialmente de acontecimentos que despertaram lealdades e tocaram sensibilidades profundas, como

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a guerra civil, a guerra do Vietnã e, recentemente, o 11 de setembro. Culturas políticas que, no entanto, também não devem ser vistas como estáticas. É ilustrativo, nesse sentido, que líderes da geração que participou das demonstrações contra a guerra do Vietnã denunciando o imperialismo e o patriotismo, tomado como antítese de um internacionalismo cosmopolita, venham-se manifestando, no pós-11 de setembro, em favor de um “patriotismo cívico” baseado nas noções e ajuda mútua,que as quais tido de público antedeo comunidade individualismo atomizante teria resgatariam esterilizado oa senluta política. Alguns têm invocado a necessidade de evitar que os conservadores monopolizem o nacionalismo, conferindo-lhe um sentido unívoco.16 Passando aos monumentos e à estatuária, é importante notar que em todo o país, mesmo em cidades pequenas, sempre é possível encontrar monumentos dedicados a eventos e personagens consagrados pela crônica nacional oficial. Mas, em termos de grandiosidade, vale destacar o famoso monte Rushmore, um monumento colossal com o rosto de quatro presidentes norte-americanos (George Washington, Thomas Jefferson,Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln)17 esculpidos em rocha granítica numa área montanhosa do estado de Dakota do Sul.



Monte Rushmore, Dakota do Sul, EUA Disponível em:

Gitlin, 2003; Gerstle, 2008. Para William Willianmson, representante do estado de Dakota do Sul no Congresso e proponente do projeto,Washington simbolizava a fundação do país e a estabilidade das instituições; Jefferson, o idealismo, a expansão e o amor pela liberdade; Lincoln, o altruísmo e o sentido da indestrutível unidade, enquanto Theodore Roosevelt tipificaria a alma da América, sua energia infinita, rigorosa moralidade e espírito progressista.Ver Kammen (1993:454). 16 17

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A obra começou em 1927 e levou 15 anos para ser terminada. Embora sua localização, definida por questões geológicas, e não históricas, dificulte a visitação, o monte Rushmore é uma das imagens marcantes da mitologia nacional porque parece celebrar não apenas a grandeza desses presidentes, mas a grandiosidade da natureza americana, também ela monumentalizada nos numerosos parques nacionais desde Yellowstone, o primeiro no mundo nessa modalidade, inaugurado em 181872, de ultimada expansão deste territorial em édi-a reção ao Oeste. Mas antes o quemesmo vale destacar para osa objetivos capítulo criação de um outro monumento,19 não incluído no inventário de Zelinsky (1998), situado a 13 km do monte Rushmore e a apenas 4 km de Custer, uma pequena cidade batizada em homenagem ao general George Armstrong Custer, chefe da Sétima Cavalaria dos EUA, dizimada na famosa revolta indígena ocorrida em 1870. É justamente em homenagem a um dos chefes indígenas dessa rebelião que está sendo erigido, desde 1948, um monumento também escavado na pedra, mas de dimensões ainda maiores que as do monte Rushmore. Quando terminado, o monumento representando Cavalo Louco montado num cavalo terá 172 m de altura e 195 m de largura, o que fará com que os rostos dos presidentes norte-americanos, de 20 m de altura, pareçam diminutos. O memorial inclui ainda um Museu do Índio Norte-Americano e um Centro Cultural dos Americanos-Nativos. Black Hills, onde ficam os dois monumentos, é considerada territór io sagrado pelos sioux e pelos oglala-lakota, tribo do Cavalo Louco. Os sioux têm recusado indenizações em dinheiro do governo dos Estados Unidos e reivindicado as terras que integram hoje o Parque Nacional e a Floresta Nacional de Black Hills, os pontos turísticos mais visitados em Dakota do Sul. Os índios exibem uma série de tratados assinados no século XIX, com intermediação do Exército,que nunca foram cumpridos.Vale notar que a construção do monumento foi iniciativa de um escultor que também trabalhara em Rushmore e teria se sensibilizado com uma carta escrita por um chefe indígena afirmando que seu povo também gostaria de celebrar seus heróis. Embora seu idealizador tenha recusado recursos governamentais para levar a obra adiante, alegando não querer conspurcar a memória dos índios americanos, o monumento é objeto de polêmica na comunidade indígena por conta da mudança na paisagem natuJunqueira, 2000. A história desse monumento foi bastante explorada por Robert Hughes numa série exibida pela televisão e baseada no livro American visions: the epic history of art in America. 18 19

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ral que, por sua grandiosidade, produzirá. De todo modo, é significativo que o número de doadores e visitantes, no único dia aberto para visitação, aumente a cada ano. Gosto pela monumentalidade, exotismo, interesse pela história indígena? Quem seriam e o que motivaria esses visitantes e doadores? A recuperação dessas redes sociais nos daria maior clareza em relação ao que Nora qualifica como uma “rede inconsciente da memória coletiva”, uma demanda coletiva por uma reformulação da história nacional.



Crazy Horse Memorial Disponível em:

De todo é evidente que apela construção desseogigantesco monumento representa umamodo, contestação da forma qual, desde século XIX, buscou-se incorporar o índio na narrativa nacional. Momento importante na construção dessa história oficial foi a exposição comemorativa do centenário da independência em Filadélfia, em 1876.20 Naquela altura, quando ainda várias tribos 20

Brier, 1992

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lutavam através das armas, o governo federal facultou aos indígenas confinados em reservas a visita à exposição onde eles eram representados — por meio de utensílios diversos, como vestimentas, adereços, cerâmica, totens e mesmo armas — como o passado vencido pela grande máquina do progresso industrial, mote de toda exposição. Na segunda metade do século XIX, os índios foram submetidos a um sistema de apartheid , ao serem confinados em reservas cada de vezincorporação menores. A àLei da Propriedade Individual, de 1887, instrumento da política nação e que teoricamente transformava o índio em pequeno proprietário, fracassou: os índios perderam as propriedadespara especuladores brancos e continuaram sendo objeto de assimilação coercitiva através da separação de crianças índias de suas 21 famílias e da imposição do ensino em escolas distantes de suas tribos. Apesar disso, nas famosas expedições históricas promovidas pela empresa ferroviária Great Northern Railway que atravessaram o noroeste dos EUA entre 1925 e 1926, as cerimônias e exibições de artesanato das várias tribos objetivavam, segundo Kammen (1997:135), demonstrar o sucesso da missão civilizatória branca, já que o progresso, ao alcançar os povos indígenas, teria permitido o aprimoramento de sua arte. Os índios saíam do passado para o presente, mas o etnocentrismo permanecia gritante. Nos anos 1960, quando a designação native-americans se disseminou no discurso político, muitos grupos repudiaram a inclusão na narrativa nacional22 e afirmaram seu desejo de ser reconhecidos como sujeitos com identidade e história próprias. A tomada da ilha de Alcatraz, em 1964 e 1969, expressa muito bem essa disposição. Em 1964, a ocupação por cinco índiossioux durou apenas poucas horas, mas merece ser mencionada pela reivindicação do grupo de que lá fosse construído um centro cultural e uma universidade indígena. Em 1969, a ocupação foi promovida por cerca de 100 jovens índios estudantes pertencentes a tribos diversas. O grupo reivindicava transformar a ilha em reserva indígena,

Gerstle, 2008. No documento“Poder Rojo: los nuevos índios”, publicado no jornalGuardian, em junho de 1968, o autor Eugene McMechen dá conta do surgimento do Poder Rojo, um grupo militante indígena que denuncia que o genocídio norte-americano não começou no Vietnã, nem sequer em Hiroshima, e, sim, com a exterminação da maior parte da população pelos “colonizadores” norte-americanos. Pouco antes, a organização Survival of American Indians fazia publicar um “Chamado do indígena norteamericano”, em que diferenciam sua postura em relação à do movimento negro: eles não pediam a integração à sociedade norte-americana, mas a preservação de sua identidade.Ver Cohen (1969). 21 22

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mantendo a ideia anterior de construção de um centro de memória. 23 A ocupação se manteve por quase dois anos, contando com apoio dos setores liberais e esquerdistas mais expressivos do período, que também lutavam pelo reconhecimento de suas identidades e pela ampliação de seus direitos.24 Mas os índios foram finalmente desalojados, e a demanda pela construção de um centro de memória indígena não foi atendida.



Foto da segunda ocupação de Alcatraz pelos índios, janeiro de 1970 © Vince Maggiora. Disponível em:

23 Proclamation to the Great White Father. Disponível em: . Acesso em: 1o dez. 2008; 24 Ver Isserman (2004).

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Bandeira utilizada na segunda ocupação de Alcatraz em 1969 © Lacy Atkins, San Francisco Chronicle. Disponível em: .

Hoje, a ilha abriga um Parque Nacional, onde os visitantes podem conhecer o prédio da prisão em que também foram encarcerados inúmeros índios. Há apenas uma exibição da ocupação de 1969, que enaltece seus protagonistas. Esse caso me parece demonstrar com muita clareza a ideia de Nora de que, no momento em que uma tradição, a memória enquanto processo experimentado e vivenciado coletivamente, começa a se esvair e a ser vivida como algo que se perdeu, surge a necessidade de criar marcos, lugares para ancorar vestígios, testemunhos visíveis de um mundo perdido, construindo, assim, uma nova memória que seja capaz de reunificar o que foi fragmentado, mas que, para o autor, não mais seria memória, e, sim, história.25 Hoje existem numerosos museus e outros lugares de memória dedicados aos índios americanos, mas sua incorporação na narrativa nacional ainda parece produzir dificuldades. O grandioso National Museum of the American Indian, que desde 1989 integra o complexo de museus do Smithsonian Institution em Washington, aparentemente buscou fugir desse desconforto ao tomar como referência os povos indígenas de todo o hemisfério ocidental, sinalizando que o chamado índio americano é um habitante de uma América sem fronteiras,

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Arévalo, 2004.

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uma América que antecede à criação das nações, um espaço geográfico, não histórico. De todo modo, constata-se, também no caso dos americanos nativos, que as batalhas memoriais e as leituras concorrentes do passado nacional nelas envolvidas expressam diferentes demandas políticas do presente. Um último caso: a qualificação e o culto dos denominados mártires da nação. Os presidentes assassinados são, sem sombra de dúvida, os mais incensados. O legendário sobre Lincoln é incomparável, motivando uma imensa produção iconográfica e literária, inclusive associando-o à figura do próprio Cristo, e seu assassino, a Caim ou Judas. O Memorial Lincoln é o espaço mais visitado de Washington, e é significativo que diante dele tenham se realizado as manifestações políticas mais importantes da história recente dos EUA, inclusive as que poderíamos incluir na categoria do dissenso, o que nos permite atestar o fato de que os lugares de memória são “signos em ação”, 26 sujeitos a diferentes apropriações e à extensão e alteração de seus sentidos. Assim, os políticos, independentemente de filiação partidária e geração, tentavam e ainda tentam associar sua imagem à de Lincoln, como faz também hoje Barack Obama. Franklin Delano Roosevelt deu grande publicidade à visita que fez em 1936 ao local de nascimento de Lincoln, uma simples cabana no estado de Kentucky transformada em local de peregrinação. A identificação mais intensa ocorreu com Kennedy. Imagens dos funerais de Lincoln teriam sido consultadas pelos que organizaram o velório e o cortejo fúnebre de Kennedy, cuja cobertura pela televisão ajudou a promover uma grande consternação. A visitação a seu túmulo no cemitério de Arlington, apenas durante o primeiro mês após sua morte, superou o número de visitantes do Memorial de Lincoln em todo o ano de 1963. Seu assassinato até hoje rende livros, filmes e debates acadêmicos, denunciando uma difícil assimilação da versão oficial para os fatos, que atri buiu sua morte a um único e desequilibrado assassino. Se é fato que Kennedy transformou-se em um mito nacional, e sua f amília numa paradoxal família real ameri cana, ele é uma referência especialmente para os democratas. Kennedy encarnava uma representação secularizada e liberal da missão americana muito bem representada nos Corpos da Paz, agência criada no início de seu governo com o objetivo

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A expressão é do antropólogo Marshall Sahlins (1990).

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de enviar voluntários para ajudar no desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Os Corpos da Paz, também incorporados ao legendário nacional, se apresentam como “herança viva de Kennedy”, e não é raro que ex-voluntários da década de 1960, especialmente os que se alistaram em 1964, ano posterior à morte do presidente, apresentem seu alistamento como um tr ibuto à sua memória. 27



Hall de entrada do cemitério de Arlington, 1996, por ocasião do 35 o aniversário de criação dos Corpos da Paz © Cecília Azevedo

É digno de nota, também, que Kennedy tenha sido incensado por algumas celebridades da esquerda, como Norman Mailer, recém-falecido novelista e fundador do Village Voice, o mais famoso periódico nova-iorquino da Nova Esquerda. Num de seus romances (Um sonho americano), Mailer expõe sua identificação com Kennedy, ao criar um herói purificador, mergulhado em fantasias de poder, a partir da relação de amizade com um presidente fictício. Adepto da teoria do complô defendida por Oliver Stone no filme JFK,28 Mailer chegou a

27 28

Azevedo,2007. Stone, 1992; Raskin, 1992; Rogin, 1992; Rosentone, 1992; Garrinson, 1992; Chomsky, 1993.

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declarar que o assassinato de Kennedy “foi um enorme e chocante evento no qual deuses se confrontaram e um deus caiu”.29 Toda essa heroificação de Lincoln e Kennedy contrasta com o esquecimento quase que completo dos dois outros presidentes que também foram assassinados: James Garfield e William McKinley. Garfield, republicano que vencera a eleição por margem muito estreita, deve ser hoje menos conhecido nos EUA que do o felino dos cartoons desenhos animados. ocorreu no início seu governo, em e1881, por um motivoSeu um assassinato tanto trivial: foi baleado por um advogado amargurado por não conseguir um posto consular. Já McKinley era um presidente bastante popular, o primeiro a se beneficiar de uma cobertura bastante intensa da imprensa, em meio aos debates políticos em torno das duas guerras que promoveu: a guerra hispano-americana e a subsequente guerra de guerrilhas nas Filipinas, que inaugurou um império no Caribe e no Pacífico para os EUA. Apesar dessas conquistas, dizia-se que, por sua or igem humilde, McKinley ignorava geografi a e se guiava apenas por suas orações. 30 A ocupação das Filipinas, por exemplo, teria sido fruto de uma revelação divina. Nem todos parecem ter-se convencido. Mckinley foi assassinado em 1901, durante uma visita à Exposição Pan-Americana, no estado de Nova York, por um anarquista que confessou o crime. Iniciou-se, então, uma perseguição intensa contra os anarquistas que tinham papel de relevo na luta sindical naquele período. Apesar da perseguição aos anarquistas, é interessante constatar, em contraste com o caso de McKinley, o culto aos chamados mártires do movimento anarcossindicalista, conhecidos como mártires da Haymarket Square, referência obrigatória na memória construída sobre o movimento sindical norteamericano. O caso ocorreu em 1886, quando uma bomba explodiu na Haymarket Square, em Chicago, no momento em que a polícia cercava uma manifestação de trabalhadores a favor da greve geral pela jornada de trabalho de oito horas. Sete policiais e um número muito maior de manifestantes morreram nesse episódio. A identidade de quem lançou a bomba nunca foi esclarecida, mas, após a prisão de dezenas de lideres socialistas e anarquistas, a maioria de ascendência Pronunciamento em fórum na prefeitura de Nova York para debater o filmeJFK (apud Chomsky, 1993:92). 30 Robertson, 1980:311. 29

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germânica, oito deles foram indiciados. Destes, quatro foram enforcados, e um cometeu suicídio na prisão. Do ponto de vista das batalhas pela memória, os acontecimentos subsequentes são emblemáticos. Em 1893, um monumento em memória dos condenados, já transformados em mártires da causa dos trabalhadores, foi inaugurado diante de 8 mil pessoas no cemitério de Waldheim. Quatro anos antes, em 1889, uma estátua bronzeocorreu de um polici al foratentativa erguida na Square. Um anoemdepois, a primeira de própria explosãoHaymarket do monumento; este foi, então, transferido para outro local, e nos pés da imagem do policial foram inscritas as seguintes palavras: “em nome do povo, eu determino a paz”. Mas não houve trégua. No dia 4 de maio de 192 7, um car ro se chocou contra o monumento, forçando nova mudança. Décadas depois, em 1969, uma bomba lançada pelos Weathermen — uma dissidência do Students for a Democratic Society, 31 a mais importante organização da Nova Esquerda dessa década — destruiu boa parte do monumento. Em 1970, outra bomba o danificou novamente, obrigando a uma segunda restauração. O monumento passou, então, a ser vigiado por guardas 24 horas por dia. Por fim, dois anos depois, o prefeito resolveu transferi-lo para a sede da polícia de Chicago, onde ainda se encontra. Por sua vez, o monumento aos mártires no cemitério de Waldheim foi transformado em local de peregrinação da esquerda americana e, em 1997, reconhecido como monumento histórico nacional. Dessa forma, a esquerda norte-americana forçou sua entrada na história nacional. De lugar denominado “santuário de fidelidades espontâneas e peregrinações do silêncio”, o cemitério, para usar mais uma vez as palavras de Nora (1993), transformado em lugar de memória, tornou-se emblema de uma cultura política viva, para desgosto de muitos que a desejavam ver enterrada.

Constituído inicialmente como um departamento estudantil da League for Industrial Democracy (LID), vinculada ao partido Socialista, a SDS não tardaria a romper com ela, assumindo protagonismo nas lutas estudantis e na chamada New Left. Nos seus nove anos de existência, a SDS transitou de uma postura reformista, com base nos princípios da não violência, buscando aproximação com a Students Non-Violent Coordinating Commitee, para a apologia da luta armada revolucionária contra o Estado norte-americano e o capitalismo. Demonizando a “América”, identificaram-se com as revoluções anticoloniais e anti-imperialistas que estouravam no Terceiro Mundo. No âmbito interno, a facção Weathermen propôs-se combater o “sistema” por meio de ações armadas clandestinas. Ver Souza (2009); Gitlin (1993). 31

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Waldheim Cemetery, Forest Park, Chicago, em 1 o de maio de 1986, durante as comemorações dos 100 anos dos episódios na praça de Haymarket © Einar Einarsson Kvaran (imagem licenciada pela Creative Commons e disponível em: ).

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23 ❚

A fotógrafa, a cantora e as imagens da boa vizinhança Ana Maria Mauad Tarsila Pimentel

O objetivo deste capítulo é apresentar o trabalho de releitura das imagens produzidas pela fotógrafa Genevieve Naylor durante a sua estadia no Brasil, em 1941/42, como funcionária do Office of the Coordinator of Interamerican Affairs (Ociaa), órgão do Departamento de Estado dos EUA responsável por fomentar a política da boa vizinhança durante a II Guerra Mundial. A releitura é realizada a partir da escrita videográfica, que tem como princípio a utilização dos recursos da linguagem de vídeo para a produção de uma nova escrita da história. Parte-se de uma pesquisa histórica consolidada, 1 cujos resultados foram discutidos entre a pesquisadora e cineasta, visando à produção de um roteiro alternativo no qual as imagens ganhariam autonomia discursiva. Paralelamente, através da escolha de músicas cantadas por Carmen Miranda e relacionadas ao ciclo da boa vizinhança, buscou-se embutir outros textos do mesmo período das imagens, realizando uma operação intertextual para dar densidade e espessura histórica à nova narrativa. Procurou-se, dessa forma, compreender como foram interpretados e traduzidos visualmente os elementos da cultura política do período associados à lógica da defesa da sociedade liberal e ao advento da indústria cultural e do consumo de massas.

1

Mauad, 2005.

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Primeiramente, apresento a política da boa vizinhança do ponto de vista de uma cultura política visualmente elaborada, destacando a produção da imagem de Carmen Miranda nos Estados Unidos e o investimento, através de Walt Disney, na produção de uma visualidade do Brasil adequada à nova cartografia cultural do continente americano. Depois, traço um breve esboço da trajetória de Naylor como fotógrafa engajada numa determinada cultura fotográfica e mostro as escolhas que figuraram na sua exposição sobre o Brasil nos Estados Unidos, avaliando o perfil de tais escolhas no âmbito dessa “cultura visualmente política”.2 Por fim, apresento uma possível biografia de suas imagens e uma leitura atual de suas fotos, com base na escrita videográfica. ❚

Algumas notas sobre cultura política e a visualidade na era da boa vizinhança

A política da boa vizinhança implementada pelo presidente norte-americano F. D. Roosevelt teve como principal vetor o Ociaa, que aqui ficou conhecido como Birô Interamericano. Esse órgão, dotado de poderes de Secretaria de Estado, investiu na elaboração visual de uma cultura política que traduzisse em imagens aquilo que as palavras em vários idiomas e sotaques não poderiam significar. Contou, para tanto, com uma eficiente estrutura de funcionamento que incluía, entre outros departamentos, o Comunication Department, encarregado de produzir, distribuir e controlar as imagens produzidas por diferentes agências públicas e privadas. Além desse departamento, o próprio Nelson Rockefeller, diretor encarregado do Ociaa, tomava a frente das iniciativas de caráter cultural, como as missões artísticas e intelectuais. Assim, a imaginária da boa vizinhança incluía imagens artísticas associadas aos tradicionais circuitos de galerias e museus de arte, bem como aquele amplo conjunto de imagens técnicas associadas à cultura popular de massa e ao seu desdobramento na “indústria cultural”. 3

Aludimos aqui à possibilidade de as imagens serem agenciadas quer como propaganda política, quer como símbolos de identificação e pertencimento a uma visão de mundo. As imagens técnicas na sociedade contemporânea atuam como arenas políticas, campos de disputa onde entram em jogo sujeitos, instituições e processos sociais. A bibliografia sobre a dimensão política da imagem é extensa. Por exemplo: Batchen (2004); Brothers (1997); Crary(1992 e 2001); Gruzinski (1994); Kosloff (1987); Machado (1984); Mauad (2008); Rosler (2004); Tagg (1993). 3 A noção de cultura popular de massa está sendo utilizada nos termos de Ortiz (1987), especialmente no que se refere à incorporação de elementos da cultura popular pela lógica da produção em massa. 2

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Nas imagens técnicas produzidas pela indústria cultural, comprometida com o esforço de guerra, podem-se estabelecer três conjuntos: imagens em movimento (filmes de ficção, documentários e desenhos animados), imagens publicitárias e imagens fotográficas. A produção de filmes de ficção, desenhos e documentários contou com o apoio direto do Ociaa — direto porque as relações pessoais entre agentes da indústria cinematográfica e o birô eram bem estreitas. A divisão de cinema do órgão era coordenada por John Hay Whitney, milionário refinado e amigo de Rockfeller. Jocky Whitney, como era conhecido, tinha um currículo que justificava a sua escolha, pois reunia entre os seus sucessos de bilheteria como produtor filmes como E o vento levou, gozando pois de grande influência na indústria cinematográfica. A dupla Nelson-Jock conquistou para a “causa da liberdade das Américas” dois grandes trunfos: Walt Disney e Carmen Miranda. Walt Disney, além dos conhecidos desenhos animados encenados na América Latina, foi responsável por curtas-metragens de caráter educativo, nos quais emprestava seus personagens famosos para ensinar e civilizar. Entre os exemplos mais conhecidos está o curta sobre a malária. Assiste-se a um verdadeiro filme de faroeste em que o mosquito transmissor é procurado “vivo ou morto”. Num trecho pode-se ver — graças à mesma técnica utilizada no desenho animado Fantasia (1940), no qual o movimento das imagens seguia o ritmo da sequência musical — um mosquito batendo as asas em sintonia com o allegro dos vi olinos e picando um homem de nacionalidade indefinida, que bem poderia ser um morador do Paraguai ou das favelas do Rio. Após percorrer paisagens exóticas, o inseto chega até a uma casa de fazenda, onde acaba por picar o proprietário que descansava em sua rede na varanda. Uma vez contaminados, o homem, sua família e sua fazenda entram em decadência. O narrador, diante de tal situação, pede ajuda à plateia, e dela saem nada menos do que os sete anões do fi lme Branca de Neve . Didaticamente, os agentes da civilização ensinam a combater a malár ia e a prevenir novos focos. O resultado final é o renascimento de toda uma nação. Essa operação está relacionada ao advento da noção de broadcasting, através da qual as mesmas referências culturais poderiam ser encontradas no cinema comercial hollywoodiano, nos semanários ilustrados e nos programas radiofônicos. Aqui recorremos também à expressão “indústria cultural”, no sentido de Adorno e Horkheimer (2000). Para uma compreensão desse processo associado ao pan-americanismo, ver Mauad (2001, 2002 e 2005).

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Tal como esse filme, outros curtas foram feitos, todos orientados pela nova ordem mundial: bons e maus, bem como pela divisão entre civilização e barbárie. Através dos filmes educativos, aprendíamos o nosso lugar na ordem mundial que se desenhava: os bons selvagens. Comercialmente, Disney produziu em 1941 um “quase documentário” — Alô, amigos — que encenava a vinda de sua equipe à América do Sul. O desenho animado, de 40 minutos, divide-se em quatro histórias curtas, cada uma relativa a um país: a primeira colocava o Donald em pleno lago Titicaca (Peru) bancando o turista sob os cuidados de uma lhama. A segunda contava as aventuras de Pedro, um aviãozinho do correio aéreo chileno enfrentando o Aconcágua para cumprir sua missão de trazer o malote do correio de Córdoba (Argentina). A terceira história transformava o Pateta de texano em gaúcho do pampa argentino, mostrando indumentária, danças e comidas típicas. A última história é sobre o Brasil: ao som de “Aquarela do Brasil”, nasce o papagaio Zé Carioca, síntese da cordialidade malandra frente a frente com a ingenuidade “gringa” do Pato Donald. Cada uma dessas histórias elege o que é típico de cada região do mosaico americano, características que fazem referência de alguma forma aos próprios Estados Unidos, por oposição ou semelhança. Assim, o Peru é a terra das tradições imutáveis e da herança ancestral; o Chile é identificado com a modernização e a eficiência; a Argentina, com a vida no campo; e o Brasil, com o espírito malandro e as riquezas naturais. Carmen Miranda, por sua vez, foi o emblema da americanização, sendo alvo de represálias em seu próprio país. Por exemplo, em 15 de julho de 1940, ao saudar a plateia do Cassino da Urca com um “good night, people”, a cantora recebeu um “sonoro” silêncio em resposta, o que causou grande constrangimento. Dois meses depois, a Pequena Notável deu a resposta com o samba de Vicente Paiva e Luiz Peixoto “Disseram que eu voltei americanizada”. Americanizada não seria o termo mais adequado para definir o tipo encarnado por Carmen Miranda, ou miss Mairanda, como se costumava dizer nos States. As roupas e adereços da artista — com seu indefectível turbante —, que tinham o objetivo de condensar referências culturais brasileiras, ao passarem pelo processo de homogeneização “holiudiana” perderam completamente o seu referente real, produzindo uma imagem exagerada com efeitos caricatos. O comentário de Vinicius de Moraes, quando ainda escrevia crônicas cinematográficas para o jornal A Manhã, sobre a participação de Carmen Miranda no filme Uma noite no Rio evidencia que essa operação não passou despercebida para a sensibilidade da época:

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Carmen Miranda parece como qualquer coisa de exótico, agreste, escarlate. Fala e faz mais trejeitos que um esquizofrênico sob um choque de cardisol. Pensando bem, Carmen Miranda é um hindu, mais que brasileira. São turbantes coloridos, braços como serpentes, mãos como cabeças de najas. É tão prodigioso, que Carmen Miranda não consegue apenas ser o hindu — consegue ser o hindu e a serpente, coisa que em matéria de iogue é da mais alta importância.4

Entretanto, Carmen Miranda foi também o “Brasil que deu certo lá fora”, um Brasil alegre e popular, cuja melodia central era o samba. Foi dessa forma que ela entrou na memória social e se tornou um mito apropriado de diferentes formas em situações diversas. Carmen Miranda e Walt Disney são os exemplos mais emblemáticos da política com fins lucrativos. Uma política que garantiu a hegemonia norte-americana na América Latina, tanto do ponto de vista estratégico quanto comercial.5 Com relação às imagens publicitárias que proliferavam à medida que o mercado brasileiro era invadido pelos produtos vindos dos EUA, vale mencionar o apoio secreto do Ociaa. O Advertising Project foi um projeto desenvolvido pelo birô em parceria com as grandes empresas americanas, visando a veiculação de propaganda política indireta na publicidade de seus produtos. Iniciativa que feria frontalmente o perfil liberal democrático dos EUA e era considerada própria dos países fascistas, estes, sim, promotores de ideologias totalizantes. 6 Ficou acordado secretamente que a publicidade comercial ficaria encarregada de transmitir mensagens favoráveis aos Estados Unidos e à união interamericana. Em geral, as propagandas da General Eletric, Coca-Cola e Standard Oil, entre outras, traziam um selo com as imagens das três Américas e os dizeres “Unidas hoje, unidas sempre”. A variedade dos produtos, no entanto, comportava uma mensagem unificada que ratificava os papéis sociais já definidos no cinema pelos desenhos de Disney e pela estilizada Carmen Miranda: aos trópicos caberia a condição de consumidores de manufaturados e produtores de matéria-prima. Apud Calil, 1991:86. Ver Moura (1988), obra precursora no tratamento da crescente influência cultural norte-americana e seus impactos culturais e políticos. 6 Daniel, 2006. 4 5

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Sem entrar no âmbito propriamente artístico, mesmo integrando exposições abertas ao grande público, as imagens fotográficas, por estarem associadas à noção de reprodutibilidade técnica e à massificação da imprensa ilustrada, ficavam ainda no registro da cultura popular de massa. Em missão pelo Ociaa, vieram ao Brasil três fotógrafos com objetivos distintos: G. E. Kidder Simth, especialista em fotografar arquitetura e responsável pelas fotografias do àlivro do arquiteto Philip no L Goodwinn, , que também deu título exposição do fotógrafo Moma; AlanBrazil Fisher,builds integrante da divisão de Saúde Pública e Higiene do Ociaa, que se concentrou nas condições médicas e instalações militares na região amazônica; e Genevieve Naylor, encarregada de produzir um inventário de tipos, lugares e costumes para mostrar o bom vizinho Brasil à audiência dos Estados Unidos. ❚

Genevieve Naylor, passageira, prossão: fotógrafa

Quando chegou ao Brasil no final de 1940, comissionada pelo Ociaa, Genevieve Naylor tinha como tarefa ratificar fotograficamente o padrão visual hegemônico da cultura visual da boa vizinhança. Em suas imagens, porém, mais do que conformar uma imagem do outro por meio dos protocolos etnográficos da al teridade, Naylor procura definir esse outro pela sua condição humana. Ela parece mais interessada nas possibilidades de estabelecer nexos comuns do que em cr iar diferenças impenetráv eis (ou acessíveis somente pelo discurso científico da etnografia). A forma de compor suas fotografias revela o diálogo que a fotógrafa estabeleceu com as referências visuais de seu tempo. Principalmente aquelas associadas à produção artística dos anos 1930, cuja valorização do indivíduo se fazia em consonância com o papel por ele desempenhado nas relações sociais. O resultado da conjugação dessas referências foi a elaboração de uma alteridade plural dos brasileiros e brasileiras, jovens, crianças e velhos, capaz de ser apreendida pela gente comum dos Estados Unidos, o público-alvo das suas fotografias. O trabalho de Naylor como fotógrafa definiu-se dentro da cultura fotográfica que se forjou nos leste dos Estados Unidos, ao longo das primeiras três décadas do século XX. Essa produção fotográfica foi marcada por duas tendências: camera work, de Alfred Stiglitz, de cunho pictorialista; esocial work, de Louis Hine, que faz da câmera fotográfica uma arma de denúncia social. Ambas as tendências dividiam o campo fotográfico em termos de postura política, mas

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dialogavam em termos de linguagem e de exercícios estéticos.7 Naylor se associaria a uma perspectiva mais engajada politicamente. Genevieve Hay Naylor nasceu em 2de fevereiro de 1915, em Springfield, Massachusetts. Seus pais, Emmett Hay Naylor, um promissor advogado de Boston, e Ruth Houston Cadwell, pertencente à elite local, separaram-se quando ela contava apenas 10 anos, em 1925. nos estabelecidos, padrões da altaestudando burguesiadesenho do Leste,e desde tentou com Criada os padrões pinturacedo numa escolaromper local, onde apaixonou-se pelo professor Misha Reznikoff. Em 1933, mudou-se para Nova York, seguindo o seu amor e o seu instinto artístico. Lá, continuou com seus estudos em pintura até que, em 1934, depois de assistir a uma exposição de fotografias que reunia nomes como Berenice Abbott, Eugene Atget e Henri Cartier-Bresson, mudou o seu foco de interesse, passando a dedicar-se à fotografia. Seu destino: a New School for Social Research, onde lecionava Berenice Abbott. Começava aí uma amizade que só iria interromper-se com a morte de Naylor, em 1989. Convivendo com Abbott,Genevieve Naylor teve a oportunidade de entrar em contato com os fotógrafos da grande depressão norte-americana, organizados na Farm Security Administration e coordenados por Roy Stryker, e com os temas candentes da época: justiça social, integração racial, antifacismo e cultura de vanguarda. A fotografia urbana do nova-iorquino Weegee e as tomadas arriscadas de Robert Capa passaram a integrar o conjunto das suas preferências fotográficas. A mistura dessas influências com sua formação nas artes plásticas resultou num olhar sensível aos temas sociais, mas também treinado na estética visual das formas plásticas, dos claro-escuros, das linhas e das composições. Em 1937, quando tinha somente 22 anos, foi recomendada pela liga profissional de fotógrafos para integrar o Work Progress Administration, instituição governamental criada na época da grande depressão para abrigar o trabalho de artistas e outros profissionais sem trabalho por conta da crise. No WPA, Naylor fotografou diferentes cidades norte-americanas, enfocando temas de caráter social; daí para o fotojornalismo foi uma questão de tempo. As revistas ilustradas eram então as janelas para o mundo, a visualização do que se ouvia nas rádios. Exerciam forte influência na cultura urbana e eram

7

Trachtenberg, 1989.

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um grande canal para a expressão fotográfica de profissionais de peso. Em 1939, Naylor já integrava a Associated Press, sendo a primeira fotógrafa norte-americana a trabalhar numa agência de notícias. Suas fotos passam a circular em importantes revistas internacionais, como Life, Time e Fortune. Aliás, foi nas páginas da Life que Vinicius de Moraes (1941) conheceu o trabalho de Naylor. Sua projeção no fotojornalismo chamou a atenção de Rockefeller, caçador de em concr etizar a vocação paraaculta, unificaçãotalentos culturalinteressado das Américas. É interessante pensar norte-americana como Naylor, jovem bemsucedida em sua profissão, integrada numa Nova York boêmia e vanguardista, assumiria de forma inquestionável a retórica da união das Américas defendida pela agências governamentais. Claro que a luta antifacista unia as distintas correntes do pensamento liberal norte-americano, desde os intelectuais comprometidos com uma tendência mais socialista, como Aldo Frank, atéWalt Disney, um digno representante da indústria cultural. E é justamente esse largo espectro ideológico que vai transformar a “invasão” cultural norte-americana em algo tão ambíguo quanto convincente. É nesse quadro contraditório que podemos entender o fato de que Naylor, digna representante de uma tendência denominada concerned pho8 tographs, tenha aceitado o trabalho de fotógrafa da boa vizinhança. Em 1941, Genevieve Naylor chega ao Brasil como fotógrafa contratada pelo Ociaa, em pleno Estado Novo, regime marcado por uma forte censura e pela ideologia de valorização dos ideais de industrialização e modernização, de viés marcadamente nacionalista. Instruída a se guiar por esses princípios, Genevieve Naylor era obrigada a seguir uma pauta de temas que circunscreviam a imagem de um Brasil oficial, para “americano ver”. Entretanto, a fotógrafa consegue driblar a censura e os protocolos oficiais, construindo uma imagem do Brasil que é muito mais do que o litoral e a zona sul cariocas. Naylor, juntamente com seu companheiro, o artista plástico Misha Reznikoff, experimentam o Brasil, mergulhando no cotidiano carioca. Instalados num apartamento no Leme, bairro litorâneo do Rio de Janeiro, o casal conhece a fina flor da intelectualidade boêmia da cidade. Naylor frequentou

Termo que designa a produção de imagens fotojornalísticas de forte apelo social, a partir dos anos 1930, com a criação de agências por fotógrafos independentes. Entre as mais famosas do século XX estão a Dephot, criada por Eric Solomon, e a Magnum,criada por Roberty Capa (disponível em: ). 8

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lugares em geral interditados aos turistas oficiais, circulando pela Praça XI, reduto do carnaval carioca, pela zona norte e subúrbios. Viajou pelo Brasil, descendo o São Francisco, e em cada cidade descobriu um Brasil multifacetado. Seu itinerário de descobertas orientou a produção de uma geografia sensível, na qual os lugares e rostos brasileiros foram enquadrados na riqueza da sua pluralidade. Tal princípio foi assim sintetizado por Aníbal Machado,crítico e escritor carioca:9 Via-a saindo pela madrugada ou à noite, indiferente às intempéries, obstinada na realização de seu trabalho (...). Mais que a excelência técnica, o que é preciso louvar nos trabalhos de Miss Genevieve é o sentido sociológico com que ela utilizou a objetiva, revelando um espírito corajoso e sincero, e, não raras vezes, comovido diante da realidade brasileira (...). Os assuntos populares, humildes, os tais elementos essenciais que compõem a fisionomia do nosso povo são captados, pela fotógrafa da boa vizinhança. Mas sua maneira de fixar a realidade nada tem de monumental. Nada de cachoeiras, de edifícios monumentais, de paisagens idílicas. Sua visão poético-sarcástica por vezes evoca a arte surrealista. Um país — o Brasil — captado então na sua força real: assim, no carnaval, a alegria é antes uma vibração convulsiva da tristeza que procura atordoar-se (...) como se estivesse procurando o resumo etnográfico. Importante o olhar,a percepção das imagens simples, que permite a recuperação dos tempos históricos acomodados nocotidiano, mas que resgata a vida de cada um em sua profundidade e intensidade. Não raro surge uma imagem agônica, áspera porém silenciosa, sempre densa. Nada de cachoeiras...

Uma estética de documentação que rompe com a matriz oitocentista do pitoresco e do bucólico, inspirando-se nas tendências contemporâneas da fotografia norte-americana para produzir uma representação contrastante do cotidiano dos habitantes da capital, do interior, ricos e pobres. “Rostos e lugares do Brasil”, como foi denominada a sua exposição no Moma-NY, seria inaugurada em 1943, logo depois do seu retorno. A obra de Naylor compõe um acervo de mais de 1.300 fotografias que mostram o Brasil dos anos 40 do século XX. Uma pequena parte desse acervo, pouco mais de 200 fotografias, encontra-se na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, na seção Photos and Prints, arquivadas na rubrica Hispanic American Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 dez. 1941 (versão datilografada encontrada no arquivo pessoal de Peter Reznikoff). 9

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Culture e identificadas como pertencentes ao US State Department. Entretanto, o conjunto mais completo e significativo desse material permanece sob a guarda de seu filho, Peter Reznikoff, que publicou, juntamente com o falecido historiador norte-americano Robert Levine, parte do acervo em 1998, no livro intitulado Brazilian photographs of Genevieve Naylor: 1940-42. ❚

“Faces and places in Brazil” em perspectiva temporal

A exposição de Naylor no Moma-NY foi realizada como mostra paralela à grande exposição sobre a arquitetura moderna brasileira, “Brazil builds”, do fotógrafo Kidder Smith. Naylor participou da montagem da exposição, como se constata pela documentação existente nos arquivos do Moma-NY.10 As 50 fotografias que integraram a exposição foram distribuídas em sete seções, descritas da seguinte forma por seus curadores: 1. Escolares ( school children). Crianças e jovens em idade escolar de vários tipos e raças são mostradas em diferentes situações, entre as quais: primeira comunhão; em paradas cívicas; durante a merenda escolar em escolas públicas. 2. Rio São Francisco (The São Francisco river). Esse grande rio é a mais importante via de acesso ao interior. Depois que a linha de trem termina, os barcos são a única alternativa, além do avião, para se chegar ao Norte, e a alguns lugares do rio o avião não tem acesso. Hoje, com os perigos da navegação oceânica, devido aos submarinos, o transporte fluvial tornou-se mais importante do que nunca. O rio São Francisco foi explorado pelos pioneiros em busca de pasto; depois, para o transporte da safra e de alimentos para as fazendas de açúcar. Até hoje a vida ao longo do rio é primitiva, lembrando as condições de vida do rio Nilo. A mortalidade infantil é alta; entretanto, os brasileiros costumam dizer que os sobreviventes tornam-se os mais fortes e bravos soldados da nação. Os barcos do rio, além de carregarem uma pequena carga, servem de habitação ao longo do ano.Vários barcos são adornados com carrancas na sua proa para assustarem as sereias que vivem no rio e que encantam os pescadores com sua voz melodiosa. Outro pitoresco, mas real habitante da região é ocowboy da Baía (sic) ou vaceiro (sic), provavelmente descendente dos pioneiros da região. Os vaceiros (sic) estão sempre vestidos inteiramente de couro. 10

Ver Silva (2008).

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3. Procissões e festas religiosas (religious festivals). Algumas fotos dessa seção mostram as esculturas de Aleijadinho, cujos melhores trabalhos encontram-se na cidade de Congonhas do Campo, Minas Gerais. Ele viveu por volta do final do século XVIII, e acreditava-se que sofria de lepra, trabalhando com um martelo amarrado na ponta do seu braço. Outras fotografias mostram as procissões e as figuras esculpidas em madeira que as acompanham; procissões de Páscoa, confirmação coletiva das crianças. Em uma das fotos, um padre fala num festival ao ar livre, advertindo contra as mulheres usarem calças compridas, provavelmente porque a fotógrafa, que se ocupava em tirar fotos dele e de sua audiência, usava ela própria calças compridas. 4. Tipos do interior (interior types). As pessoas nessa seção não são provenientes do sertão profundo,mas de lugares perto da costa ou das grandes cidades. Algumas são mostradas no gabinete do prefeito, cujas paredes são adornadas pelos retratos dos prefeitos anteriores, esperando horas por uma audiência. Em outras fotos, os típicos fazendeiros estão nos seus melhores trajes, os homens todos de chapéu, e as mulheres com meias finas (nas grandes cidades, particularmente no Rio, os homens raramente usam chapéus). Mineiros, indígenas e vários tipos são mostrados, incluindo um condutor de trem famoso por seu esplêndido bigode. 5. Rio de Janeiro. A vida dessa agitada cidade é apresentada nessa seção. Jovens carregadores levam, sobre a cabeça e ombros, bens e mercadorias para entrega. Uma fotografia mostra um jovem entregando coroas de flores para funerais: as mais largas se espalham sobre sua cabeça e se penduram pelos ombros. 6. Copacabana. A mais famosa praia do Rio, onde o calçamento das veredas é composto por um mosaico de pedras claras e escuras, em forma de ondas que se estendem por quilômetros. Ao longo da vereda, brasileiros de todos os tipos passeiam; as garotas em grupos de duas ou três (pois uma boa moça não anda sozinha); um vendedor de sorvete carrega sua mercadoria num pequeno refrigerador (sic) sobre a sua cabeça; garotos vestidos com camisas listradas jogam futebol nas areias da praia, e outros brasileiros típicos aproveitam a larga praia. As montanhas que circundam a cidade crescem quase à beira do oceano, formando uma espécie de pano de fundo para a paisagem da praia. 7. Carnaval (Carnival). Essa alegre seção mostra o ponto alto do ano no Brasil, o famoso carnaval (do Rio) do qual toda a nação participa. Das escolas de samba, situadas nos morros onde a população pobre da cidade vive, vêm os grupos de crianças que durante meses ensaiaram sambas para o carnaval, quando prêmios são

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atribuídos aos melhores. As fotografias mostram sambistas trajando fantasias de cetim e seda especialmente feitas para a ocasião; garotos e garotas pela ruas da cidade sambam, girando guarda-sóis de papel; mulheres de todos os tamanhos, formas e cores, carregadas de ornamentos e flores; até nas vitrines das lojas os manequins estão fantasiados e pintados para o Carnaval.11

A exposição de Naylor, inaugurada em 27 de janeiro de 1943, durou até 28 de fevereiro, quando partiu para uma carreira de sucesso em vários outros lugares nos Estados Unidos. O interessante é que a crítica da época ressaltou aspectos em comum do cotidiano entre brasileiros e habitantes das cidades dos Estados Unidos, valorizando em seus comentários os aspectos documentais da mostra, sem considerar a dimensão estética da obra de Naylor. The Museum of Modern Art supplementing its big architectural exhibition,“Brazil builds”, has installed in a narrow corridor gallery on the ground floor a show about fifty photographs by Genevieve Naylor, entitled “Faces and places in Brazil”. This excellent background material for the other show. The camera work is clear, simple, direct and it reveals that Brazil has games and overcrowded trolleys, beautiful girls and puppet shows, festivals and school free lunches and that river vessels play an important part in the life of the interior. There are, furthermore, a number of interesting photographs of façades of buildings along streets conveying more than an impression of Spanish architectural tradition. Miss Naylor worked in South America for the Coordinator of Inter-American Affairs from the Autumn of 1940 until last August. The exhibition will continue synchronously with “Brazil builds” until Feb. 28 — not 12 march 7 as previously announced. Both shows will extensively circulate thereafter. The Museum of Modern Art Achives, NY, CUR 215. O Museu de Arte Moderna, complementando sua grande exposição sobre arquitetura brasileira, Brazil Builds, instalou em uma galeria secundária no primeiro piso uma mostra composta por 50 fotos tirada por Genevieve Naylor, intitulada “Rostos e lugares no Brasil”. Um excelente material de apoio para a exposição principal. O trabalho da câmera é claro, simples, direto e revela um Brasil de jogos e bondes lotados, garotas bonitas e teatro de fantoches, festivais religiosos e merenda escolar gratuita, além das barcas que descem o São Francisco, evidenciando a importância desse rio para a vida do interior. Há, além disso, um número de interessantes fotos de fachadas de prédios ao longo de ruas, que exprimem mais do que uma impressão da tradição arquitetônica espanhola. Miss Naylor trabalhou na América do Sul para o Coordinator of Inter-American Affairs do outono de 1940 até agosto passado. 11 12

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Dessa forma, os comentários sobre as fotografias de Naylor apontam para a forma de recepção das imagens pelo público norte-americano, evidenciando também o conteúdo de propaganda das imagens veiculadas. Das 50 imagens exibidas, a que foi reproduzida em vários jornais mostrava o bonde de São Januário, subúrbio carioca, completamente lotado, reforçando a comunidade imaginada entre as cidades brasileiras e norte-americanas: Fares, please— So you think Pittsburgh street cars and buses are crowded? Here is a street car during the rush hour in Rio, Brazil, another country in which president Roosevelt stopped on his return from Casablanca. Picture is among an exhibit of 50 photographs on Brazil currently in the New York Museum of Modern Art (Sun Telegraph, Pittsburgh, PA, 29 Jan. 1943). Think you are crowded? If you are one of the persons complaining about the overcrowding of street cars and buses, look at this photo of a street car in Rio de Janeiro. Aptly titled:“Rush hour”, it is included in an exhibition of 50 photos by Genevieve Naylor of life and scenes in Brazil at NY Moma (Time & News, 3 Feb. 1943). Rush hour: a cozy ride on a street car going places in Brazilian capital. Passengers jamjacked into an open trolley in Rio de Janeiro, where they don’t seem to mind crowding as much as do our DSR riders.This picture is one of 50 photographs by Genevieve Naylor on 13 exhibit at the NY Moma. (New Era, Hopkinsville, KY, 5 Feb. 1943).

Entre 1943 e 1944, as fotografias de Naylor viajaram pelos EUA: Boston, Rochester, Colorado Springs, São Francisco e toda a costa Oeste, traçando um percurso em que as possibilidades de recepção eram orientadas por comentários como os reproduzidos acima. A ideia de identificação entre os dois países está

A exposição continuará simultaneamente com a Brazil Builds até dia 28 de fevereiro, e não até dia 7 de março, como foi previamente anunciado. Ambas as exposições circularão por várias cidades dos Estados Unidos depois de Nova York (tradução livre). Edward Alden Jewell N ( ew York Times, 27-1-1943). O bilhete, por favor – Então você acha que o bonde e os ônibus da Rua N estão lotados? Aqui está um bonde durante a hora do rush no Rio, Brasil, outro país no qual o presidente Roosevelt parou em seu retorno de Casablanca. A foto está entre as 50 feitas no Brasil e atualmente em exposição no Museu de Arte Moderna de NovaYork. /Você acha que está cheio? Se você é uma dessas pessoas que reclama da superlotação nos bondes e ônibus, olhe para esta foto de um bonde no Rio de Janeiro. Sabiamente intitulada de “Hora do rush”, ela está em uma exposição de 50 fotos tiradas por Genevieve Naylor sobre a vida e as cenas no Brasil, no NY-Moma. / Hora do rush: uma viagem aconchegante em um bonde para diversos lugares da capital brasileira. Passageiros espremidos dentro de um bonde no Rio de Janeiro, e que parecem não se importar com a lotação tanto quanto nossos próprios passageiros. Essa é uma das 50 fotos tiradas por Genevieve Naylor, em exposição no NY-Moma (tradução livre). 13

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na base da doutrina da boa vizinhança. Apesar das diferenças evidenciadas nas imagens, ambos fazem parte da mesma cultura ocidental, e se os norte-americanos sobreviveram à grande depressão, os brasileiros também conseguiriam se modernizar e se integrar à comunidade democrática e liberal. Cerca de 50 anos depois, as fotografias de Naylor foram descobertas pelo público brasileiro. Em 1994, o então diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Emanoel Araújo, através de contatos com o filho de Naylor, Peter Reznikoff, montou uma exposição com as fotos brasileiras de Naylor e os quadros de seu marido Misha Reznikoff. A exposição intitulava-se “Rostos e lugares no Brasil/Monstros da guerra”, e seu catálogo trazia textos de historiadores brasileiros e comentários do curador, além de reproduções das fotografias de Naylor e das pinturas de Reznikoff. Essa mostra deu origem a um ciclo de outras exposições no Brasil e nos Estados Unidos iniciado na década de 1990 e encerrado no ano 2000. O circuito de exibição incluía as seguintes cidades: 1. Rio de Janeiro, 1996 — “Rostos e lugares no Brasil/Monstros da guerra” (Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro). Com 120 fotos de Naylor sobre o Brasil e mais 50 imagens de sua trajetória posterior (1944-80), a mostra incluía também obras de Misha Reznikoff. 2. A exposição do Rio segue para outras cidades, entre as quais Belo Horizonte e Brasília. 3. Nova York, 1996 —— “Naylor in context: the cultural dimension of Brazilian and American relations during WWII” (Columbia University). Com 90 imagens produzidas no Brasil durante os anos 1940 e mais 10 fotos de sua trajetória posterior em revistas famosas dos EUA. O evento contou com a participação de professores e pesquisadores dos Estados Unidos voltados para o estudo das relações interamericanas, como Robert Levine, Catherine Benamou e Kenneth Maxwell, além de Peter Reznikoff, filho de Naylor, e Marcus de Vincenzi, então embaixador do Brasil. 4. Brasília, 1997 — “O Brasil pelos olhos norte-americanos” (Embaixada dos EUA). 5. Belo Horizonte, 1998 — “Cenas do Brasil: Genevieve Naylor, fotografias” (Centro Cultural Yves Alves e Saguão da Reitoria da UFMG). Com 81 fotos e curadoria da estudiosa Ana Lucia Gazolla. 6. Nova York, 2000 — “The Brazilian photos of Genevieve Naylor, 1940-42” (NY Public Library).

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7. São Paulo, 2000 — “Brasil + 500: mostra do redescobrimento”, módulo “Olhar distante”. Com curadoria de Pedro Correia do Lago. No acervo de Peter Reznikoff, que nos facilitou a consulta, foram encontrados recortes de jornais com comentários sobre as exposições, especialmente a do Centro Cultural dos Correios (1995). Num outro contexto de exibição, as fotografias ganharam nova dimensão em termos de recepção. Cinquenta anos depois de serem exibidas nos Estados Unidos, as imagens de Naylor foram valorizadas pela imprensa principalmente por seu ineditismo; afinal, era a primeira vez que estavam sendo exibidas no Brasil, o tema central das imagens. Porém, foram ressaltados não só os aspectos documentais do trabalho da fotógrafa e sua importância em termos de evidência histórica, mas também sua expressividade estética, integrando Naylor à cultura fotográfica de sua época e inserindo a fotografia no campo artístico.14 Isso se deve ao fato de que a própria fotografia, desde os anos 1950, passou a ser tema de reflexão crítica no campo das artes visuais no Brasil, seja em colunas como as de Ferreira Gullar no Jornal do Brasil, seja em publicações específicas, como aRevista Íris, a Revista Brasileira de Foto, Cinema e Artes Gráficas, a Revista Brasileira de Fotocinematografia, a Revista Brasileira de Fotografia, Vídeo e Som, a Revista de Fotografia, Cinema e Som, e a Revista de Imagem.15 Todas essas publicações estavam voltadas para a compreensão da multiplicidade dos usos e funções da fotografia, estabelecendo linhas de debate no campo do documentarismo, da fotografia amadora, da fotografia experimental e da polêmica em relação à imagem digital, bem como difundindo técnicas, produtos e iniciativas de natureza variada, desde exposições em galerias e museus até o trabalho de conservação e constituição de acervos fotográficos. Um espaço de crítica e de debate que contribuiu decisivamente para a consolidação da experiência fotográfica do século XX, anunciando novas questões para o século XXI. Assim, na perspectiva de um campo renovado para o uso da imagem fotográfica como forma de produção de conhecimento histórico é que o Labhoi-UFF vem desenvolvendo suas atividades desde 2002, com a produção

14 15

Por exemplo:Veja Rio, 27 set. 1995;Tribuna Bis, 27 set. 1995;Caderno B, 27 set. 1995. Carvalho et al., 1999:261.

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de um texto videográfico resultante da pesquisa sobre o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói.16 Nesse contexto, propusemo-nos trabalhar com as imagens de Genevieve Naylor em uma nova forma de exposição: a do texto videográfico. Esse texto se apoia nas reflexões acima desenvolvidas, em textos já publicados sobre o tema17 e na trama intertextual de som e imagem. Nesse caso, as músicas de Carmen Miranda escolhidas como apoio da narrativa visual constituem, muito cultura mais dopolítica que uma umadeoutra manifestação expressiva da mesma na trilha qual assonora, imagens Naylor foram concebidas e veiculadas. ❚

Uma leitura videográca das fotograas de Genevieve

Naylor ao som de Carmen Miranda A escrita videográfica vem amparada e inspirada por dois contatos de natureza específica: textos sobre o contexto da produção das fotografias de Genevieve Naylor e sobre a própria trajetória profissional da fotógrafa, bem como reflexões em torno da dualidade pessoas/lugares; efotografias digitalizadas da fotógrafa. Dessa forma, a escolha das fotos que integram o texto videográfico foi orientada pelos dois aspectos mais marcantes da narrativa visual de Naylor: ❚



como a figuração humana é retratada, entendendo as representações do corpo como suporte de relações sociais. O corpo representado nas fotografias de Naylor é o signo através do qual as relações sociais se revelam; como os lugares por onde Naylor viajou foram figurados na elaboração de uma geografia sensível, que busca transgredir os protocolos oficiais para mostrar um Brasil múltiplo.

Tal processo envolveu, num primeiro momento, a seleção de fotografias srcinais, a combinação das mesmas para fins comparativos, a seleção de fotografias para tratamento (recorte figura/fundo, dentro de suas possibilidades técnicas) e o tratamento propriamente dito, uma vez que algumas fotografias foram tratadas para trazer ao espectador a percepção dos lugares sem as pessoas e das pessoas sem os lugares; e, num segundo momento, a edição propriamente dita:

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Mauad, 2006. Mauad, 2005

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criação da ordem, da composição dos planos, do modo de aparição das figuras recortadas, com seus devidos pares e depois com/sem seus respectivos fundos, simultaneamente com a música, e a música com as imagens. As imagens foram tratadas de modo a evidenciar, por meio da intervenção direta, ambos os aspectos. Assim, os recursos visuais do vídeo foram utilizados para produzir uma leitura contemporânea que discutisse a historicidade das imagens. sobre as—estratégias expressivas criadas pelaum fotógrafa e por suasBuscou-se escolhas operar de conteúdo assim, não bastava evidenciar recurso de contra-plongée para compor uma imagem sem evidenciar qual era o objeto desse recurso, ou, ainda, a escolha de um lugar sem ressaltar o modo como esse lugar foi enquadrado. Além disso, algumas fotografias foram tratadas para que se pudessem perceber os lugares sem as pessoas e as pessoas sem os lugares. A separação da figura/fundo vem ao encontro da proposta de marcar simbolicamente a dualidade “lugares e pessoas”. A ideia de decompor a foto para evidenciar sua forma de organização e relações espaciais, no ritmo de uma sonoridade, sem deixar de compará-la às fotos originais, foi o recurso utilizado para provocar um movimento intelectual no espectador. As comparações procuram ressaltar a leitura das fotografias de Naylor segundo um encontro de sentidos e uma revelação contraditória. Podemos, por exemplo, ver lado a lado fotografias onde o mesmo enquadramento, a mesma composição e o mesmo ângulo são utilizados para temas não só diferentes, como também antagônicos. Assim, na narrativa videográfica, ao mesmo tempo em que se apresenta visualmente essa separação, possibilitando a apreensão de uma realidade só possível em vídeo ou num mundo virtual, uma vez que algumas imagens são recriações, preserva-se a referência à fotografia original. 18 As pessoas retratadas nas fotografias de Genevieve Naylor se revelavam pelos lugares, pelos adereços, pelas ocupações; no material audiovisual, descoladas de seu fundo e numa experiência comparativa, tornam-se também outros personagens. Enriquecidas pela leitura de cada espectador, elas nos dizem, contudo, que, mesmo separadas de seus lugares, seus sentidos não podem ser pensados de modo independente do outro. O vídeo interliga as fotografias de Naylor com as músicas de Carmen Miranda que fazem parte do repertório da política de boa vizinhança, contexto no A edição do material visual e sonoro foi feita nos programas Adobe Premiere Pro 2.0 e Adobe After Effects CS3. 18

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qual a fotógrafa realizou seus trabalhos. A escolha das músicas associa-se tanto à operação de construir uma intertextualidade entre sons e imagens de uma mesma época quanto ao ritmo que se queria imprimir à narrativa videográfica. Optou-se por uma grande liberdade de intervenção, entendendo os recursos visuais como recursos cênicos, engendrando uma nova forma de interpretar a história, sem deixar de apresentar a imagem original. Dessa forma, mantém-se também o compromisso a autenticidade fotos da seja, com o mundo real das fotografiascom de Naylor e com adas intenção doautora, gênerooudocumentário de trazer uma parte do real associada à sua própria experiência com esse real. O resultado do encontro da historiadora com a cineasta foi a produção de um texto videográfico de quatro minutos que promoveu um outro encontro: a fotógrafa e a cantora reunidas num novo tempo histórico, o das mídias digitais. 19 ❚

O encontro da cantora com a fotógrafa no ritmo da boa vizinhança

A trajetória das imagens de Genevieve Naylor depois de 1943 pode ser recuperada através da cronologia das exposições de seus trabalhos no Brasil. Cada uma dessas iniciativas celebrou o Brasil pelas lentes da boa vizinhança, não a oficial, mas aquela definida por Naylor ao ampliar as possibilidades de figurar o Brasil para além dos protocolos impostos pelas agências governamentais, em consonância com uma cultura política engajada socialmente na compreensão da diferença. Daí a possibilidade de sua ressiginificação em outros contextos de valorização dos laços de amizade interamericana. A opção de ressaltar na produção de Naylor os aspectos que representassem um Brasil contraditório e plural, delineado pela diversidade de tipos, costumes, lugares e hábitos, foi amplificada pelos versos cantados por Carmen Miranda: E disseram que eu voltei americanizada / Com o “burro” do dinheiro, que estou muito rica / Que não suporto mais o breque de um pandeiro / E fico arrepiada ouvindo uma cuíca / Disseram que com as mãos estou preocupada / E corre por aí que ouvi um certo zum-zum / Que já não tenho molho , ritmo, nem nada / E dos balangandãs já nem existe mais nenhum / Mas pra cima de mim,pra que tan-

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O vídeo está disponível em: .

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to veneno? / Eu posso lá ficar americanizada? / Eu, que nasci com samba e vivo no sereno / Topando a noite inteira a velha batucada / Nas rodas de malandro, minhas preferidas / Eu digo é mesmo “eu te amo” e nuncaI “love you” / Enquanto houver Brasil... na hora das comidas/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu! “Disseram que eu voltei americanizada” (Luiz Peixoto e Vicente Paiva)

Assim, no encontro da cantora com a fotógrafa, conseguido através dos recursos audiovisuais das mídias digitais, criamos uma narrativa na qual buscamos ressaltar os elementos de uma cultura política ainda presente no imaginário político brasileiro. Nessa leitura intertextual com sons e imagens ficam evidentes, por um lado, o modo como o Brasil se simboliza politicamente e constrói uma relação com os seus outros, pelos signos da simpatia, malandragem, graça, feminilidade e espontaneidade; por outro, as contradições de um Brasil marcado pelo trabalho infantil, pela exclusão social, pela falta de infraestrutura. Enfim, um Brasil que não é só litoral, mas muito mais do que qualquer zona sul. ❚

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24 ❚

A memória mutante do peronismo: arte e ideias na Argentina contemporânea Norberto Ferreras

Para o nativo, a objetividade está sempre voltada contra ele. Frantz Fanon, Os condenados da terra

Nos meses de março a julho de 2008, a Argentina atravessou mais um conflito político que assumiu uma feição épica. Dessa vez o governo de Cristina 1

Fernández derurais, Kirchner, tradição peronista, confrontou os proprietários arrendatários assim de como o restante da cadeia de exportação de produtose agrícolas, principalmente os produtores de soja. O motivo inicial foi o destino da renda extraordinária que produziam as commodities agrícolas. Com o correr dos dias, o conflito passou do campo econômico para o político, à medida que diversos setores sociais se mobilizavam. Ao longo do confronto, os diferentes grupos se definiram em relação aos lucros do setor agroexportador assumindo duas posições básicas: a do governo ou a dos produtores. Para sustentar suas posições, ambos os grupos instrumentalizaram o imaginário político existente. Se nos dois grupos tínhamos indivíduos que se posicionavam como peronistas, então era necessário precisar o que era o peronismo para cada um deles. Para o governo, o internos, peronismo permitia falar em “redistribuição paraà os seus adversários o peronismo também permitia falarde emrendas”; “incentivo pro-

Prefiro aqui utilizar a palavra “tradição” a outros termos como ideologia, movimento ou partido político. Nesse caso, a “tradição” refere-se a um conjunto de práticas mais ou menos aceitas que objetivam a incorporação de valores e formas de comportamento. Uma tradição é questionável e atualizada, segundo as circunstâncias, o que em parte é o objeto deste texto. Sobre tradições, e não só as inventadas, ver Hobsbawn (1984). 1

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dução”. Para abreviar, não vou mencionar os conflitos provocados no interior de outras tradições políticas, como o socialismo, o radicalismo etc. A relação que esse conflito tem com este texto está justamente na característica fluida do peronismo e na dificuldade para situá-lo num dos polos habituais da política.2 No desenvolvimento do conflito, o imaginário político do peronismo foi amplamente explorado. Assim, frases, textos e imagens, entre 3

outros elementos peronismo clássico, foram definir o antagonista ou para do compor uma autodefinição . Velhasinstrumentalizados dicotomias entre para intelectuais, como Borges versus Jauretche e Marechal versus Victoria Ocampo,4 ou as definições dos adversários, como gorilas versus cabecitas negras e comandos civiles versus aluvión zoológico,5 foram reeditadas nessa luta pela definição própria e alheia. Insisto em que o conflito havido na Argentina, nos primeiros meses de 2008, não é o eixo desta reflexão, e, sim, o fato de que velhos significantes vieram à tona e que esses significantes entraram em disputa com os seus velhos significados. Os mesmos foram redefinidos de forma brutal. Essa redefinição esteve relacionada à irrupção de velhos debates e oposições que pareciam vencidas, concluídas, mas que retornaram à cena política e social, como, por exemplo, interior versus capital, campo versus cidade; produção agrária versus industrial. Também ressurgiram outros mais antigos, como federalismoversus centralismo, pátria versus colônia, próprios do período independentista; ou outros mais recentes, próprios da Guerra Fria, como liberalismo versus comunismo. Essas referências à historia política argentina devem ser vistas em função da dificuldade

Embora esquerda e direita tenham sido redefinidas nos anos posteriores à queda da União Soviética, acabaram prevalecendo as análises que reduzem essa oposição a liberalismo versus marxismo. Para uma visão menos esquemática, ver Bobbio (1995). 3 Chamamos assim o período 1946-55, que corresponde à primeira presidência de Juan Domingo Perón. 4 As posições desses intelectuais são arquetípicas de posições mais moderadas e dispersas. Jorge Luis Bor2

ges (1899-1986) foi um dos(1901-74) principaisfoiescritores argentinos, de vários livros ensaios, poesias e contos; Arturo Jauretche um ensaísta e poeta autor de origem radical quededesde o primeiro momento filiou-se ao peronismo e foi um dos seus principais intelectuais; Victoria Ocampo (18901979) foi poeta e editora de Sur, a principal revista intelectual da Argentina de 1930 a 1960; Leopoldo Marechal (1900-70) foi o mais destacado escritor que se vinculou ao peronismo. 5 Gorila era a denominação dada aos antiperonistas, produto de uma piada num programa humorístico da época cujo bordão ante situações insólitas era: deven ser los gorilas, deven ser. Os peronistas eram chamados de cabecitas negras por causa de um passarinho que em grandes bandos cisca na bosta. Os comandos civis eram grupos de antiperonistas que realizavam atentados contra os seus adversários. Os peronistas foram denominados aluvión zoológico porque eram vistos como animais que chegavam todos juntos.

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de atualizar o debate político. Mas, se há uma especificidade local, não se pode deixar de ressaltar que a operação de redefinir o presente pelo passado é parte do debate político em qualquer âmbito e lugar. O conflito serviu para definir novos rumos na disputa política e colocar em questão as identidades políticas preexistentes. A principal delas é a do peronismo. Certamente que essa é a identidade desafiada, principalmente por ser a politicamente predominante. é uma identidade como política, mascultura também uma identidade cultural. DevemosEssa definir o peronismo uma política na qual a ação e a razão se complementam, o folclore e as tradições norteiam o comportamento dos seus integrantes. Tanto que os peronistas abarcam todas as variáveis do espectro político argentino, de liberais a socialistas e de conservadores a revolucionários, conformando várias subculturas que partilham elementos simbólicos, praticamente incompreensíveis vistos de fora. É por isso que há um grande esforço da sociedade argentina no sentido de recompor o que é denominado peronismo e que pela sua configuração é um “movimento”,e não um partido político; é uma cultura política, uma ética e uma estética. É justamente na relação entre estética e política no peronismo que vamos centrar o nosso texto. Seria impossível fazer um levantamento das formas pelas quais o peronismo foi analisado desse ponto de vista.6 Farei uma breve apresentação da questão para depois me concentrar num pintor peronista: Daniel Santoro. No fim da ditadura ensaiou-se uma abordagem do peronismo menos apaixonada. Tratava-se de uma tentativa de compreender esse fenômeno político que tinha varrido a cena política argentina e que fora o protagonista exclusivo dos anos anteriores à ditadura. Essa tentativa de deixar de ver o peronismo recorrendo à lógica dicotômica do “amigo-inimigo” se evidenciou no filme de Juan José Jusid Esperame mucho,7 no qual o período do peronismo clássico é apresentado pelos olhos de uma criança. Esse recurso narrativo utilizado pelo diretor permitiu inserir essa experiência política na memória afetiva argentina. Assim, o peronismo foi colocado como um pano de fundo onde algumas coisas que aconteciam não têm a dimensão de conflito que tinham no mundo dos adultos. Essa primeira tentativa de desdramatizar o peronismo e de dotá-lo de outra dimensão não prosperou. Pelo contrário, o filme de Jusid foi uma experiência que não chegou a constituir ou consolidar uma nova linha interpretativa. 6 7

Dois estudos sobre o peronismo clássico devem ser mencionados: Capelato (1998) e Gené (2005). O filme estreou em Buenos Aires em 11-8-1983.

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Outras abordagens mantiveram o clima de antagonismo com o peronismo. Em plena campanha eleitoral de 1983, o peronismo foi apresentado como o responsável pelos problemas da Argentina contemporânea num filme idealizado por intelectuais próximos ao radicalismo. O documentárioLa república perdida narrava a história da Argentina para interpretar especificamente o momento particular do retorno à democracia. Uma segunda parte,La república perdida II, foi lançada parasobre apresentar anos da 8ditadura com acompanharam o objetivo de reforçar política oficial direitososhumanos. Outros efilmes esse mo-a mento de reinterpretação da história Argentina contemporânea, com posições mais ou menos críticas do peronismo, comoNo habrá más penas ni olvidos,9 que fazia do peronismo uma síntese da Argentina. Nesse filme, o peronismo reunia o melhor e o pior da cultura política argentina. A ação acontecia em Colonia Vela, uma pequena cidade do interior, onde o peronismo das bases e o peronismo dos dirigentes competiam pela representatividade local. Um tímido intento de resposta à ofensiva radical foi o docudrama Evita, quien quiera oír que oiga.10 Nele o narrador explorava a ideia de que era impossível explicar o peronismo, sendo a única aproximação possível a do sentimento. Os depoimentos de admiradores ou detratores eram absolutamente subjetivos, colocando Eva Perón mais como um fenômeno do que como uma figura política, concentrando todas as virtudes possíveis do povo argentino. O tema do peronismo esteve presente em outras narrativas, como a da literatura. E entre os principais romances dedicados a essa questão estão os dois de Tomás Eloy Martínez:La novela de Perón e Santa Evita, lançados respectivamente em 1985 e 1995.11 Em ambos os casos, o peronismo é um enigma, impossível de ser decifrado ou mesmo descrito, e o recurso da polifonia proposta pelo autor naufraga na inteligibilidade do mistério central do peronismo que é o casal símbolo: Perón e Eva Perón.A interpretação do filme Evita, quién quiera oír..., mesmo não sendo esse o objetivo da obra de Tomás Eloy Martínez, ressurgia nessa literatura, embora com um sentido contrário, de questionamento do peronismo. Nesse autor, a irracionalidade própria do peronismo é produto da exacerbação Dirigidas por Miguel Pérez, a primeira e segunda partes estrearam em Buenos Aires em 1-9-1983 e 1-1-1986, respectivamente. 9 Dir igido por Héctor Olivera, estreou em Buenos Aires em 22-9-1983. 10 Dirig ido por Eduardo Mignona, estreou em Buenos Aires em 26-4-1984. 11 Martínez, 2001 e 2002. 8

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dos sentimentos. Ou seja, a racionalidade era negligenciada pelo peronismo, e o sentimento em estado puro era antes um fator complicador e de desunião do que de integração. O momento mais interessante dessa sequência foi a filmagem quase simultânea de dois filmes destinados a biografar a vida de Eva Perón, mas já na década de 1990: Evita, dirigido por Alan Parker, e Eva Perón, de Juan Carlos Desanzo.12 O de Desanzo operou umperonismo contraponto filme de Alan Parker foi filme produto da indignação nocomo seio do maisdoconservador e dos pero-e nistas críticos do menemismo. Não é preciso dizer que Carlos Menem, então presidente da Argentina, aproveitou a oportunidade para se fazer passar por um governante moderno e circular com celebridades. O filme hollywoodiano, que tinha no elenco Madonna e Antonio Banderas, baseava-se na ópera-rock de Tim Rice, a qual ficara vários anos em cartaz em teatros do mundo todo antes de ser cogitada a sua adaptação ao cinema. O filme argentino, pelo contrário, era uma tentativa de apresentar uma versão considerada legítima da vida de Evita. Nessa disputa estava em jogo a honra nacional e a interpretação supostamente correta de Evita e, portanto, do peronismo. Mais recentemente, as décadas de 1940 e 1950 deixaram de ser arena de disputa e foram incorporadas com mais delicadeza ao imaginário argentino. Como vemos, essa redefinição do peronismo vem sendo efetuada faz tempo. E, se nos meios de comunicação de massas o peronismo histórico passou a ser interpelado de forma menos agressiva, nem por isso a sociedade aceitou uma visão que integrasse o peronismo. Numa área da comunicação, mais democrática ou íntima, isso se faz mais evidente. Uma delas é a rede mundial de computadores, onde tem aparecido uma série de blogs ou de páginas que se apropriam da cultura política do peronismo, reelaborando-a e fazendo dela um novo ponto de partida para pensar a militância política ou simplesmente uma forma de se posicionar perante a realidade. Essas áreas de comunicação, que vêm contrapor ou questionar as visões divulgadas pela grande imprensa, partem da nostalgia de um tipo de peronismo, o “peronismo de esquerda” ou “peronismo anti-establishment”, utilizando-se largamente das figuras arquetípicas desse setor e do ideário com ele relacionado. Assim, além de militantes conhecidos ou populares, e às vezes não necessariamente peronistas, também é apresentado o arsenal imagétiO pr imeiro estreou em 14-12-1996 em Los Angeles e em 20-2-1997 em Buenos Aires; o segundo, em 24-10-1996 em Buenos Aires. 12

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co do primeiro peronismo e do que na Argentina é denominado progressismo: o industrialismo, Perón, Evita, os trabalhadores urbanos, o imaginário tecnológico, modernista.Também outros imaginários confluem para conformar um espectro mais amplo e reatualizar essa corrente política: o rock, em vertentes tão distintas como o punk ou o “emo”, o anarquismo, os músicos cubanos, o futebol, Boca Juniors, o alfabeto cirílico e suas conotações soviéticas, discos ou música em geral,Esses poesia etc.,e confluem para redefinir o peronismo contemporâneo. blogs seus idealizadores contribuíram significativamente para a reformulação ética e estética do peronismo. Do ponto de vista ético, criando uma mitologia, um passado luminoso e positivo, restabelecendo debates (que são eternos enquanto duram os debates virtuais), comunicando fatos e atos por canais não habituais. Esses grupos podem ou não se organizar fora da rede segundo seus interesses. Mas, de todo modo, contribuíram para o rejuvenescimento e a reformulação estética do peronismo, de uma forma mais livre e eclética, duas características da estética do peronismo clássico.13 Rostos, desenhos, músicas e imagens são reunidos para formar um novo peronismo adequado ao ou compatível com o imaginário blogger. E, mesmo assim, algumas imagens reiteram-se, mas para formar um novo conjunto que mantém elementos dos anos 1950 e outros mais contemporâneos, sempre ressaltando a importância do projeto coletivo, a transcendência e a magnanimidade das lideranças (principalmente das históricas), e a devoção e gratidão dos indivíduos. Os nomes desses blogs são um tema à parte e podem fazer referência aos grandes momentos do peronismo (“Todos unidos triunfaremos”14 ou “Un día peronista”),15 demonstrando lealdade ao peronismo clássico. Também há outros nomes vinculados ao universo juvenil, como “Solo otro emo peronista”,16 “Anarko-peronismo”17 ou “Derek dice: la voz marciana del peronismo”,18 que vinculam a rebeldia geracional à rebeldia política. Também devemos mencionar a existência de outros blogs peronistas que são analíticos e mais voltados para o debate das questões de conjuntura ou do jogo eleitoral ou partidário. Nesses blogs as questões estéticas Sobre a influência múltipla nas representações peronistas, ver Gené (2005:141-142). Disponível em: .Ver figura 1. 15 Disponível em: . Ver figura 2. 16 Disponível em: . Ver figura 3. 17 Disponível em: . Figura 4. 18 Disponível em: .Ver figura 5. 13 14

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não são importantes, e quase todos eles mantêm os formatos-padrão sem tentar nem mesmo uma mínima personalização dos mesmos. De qualquer forma, todos esses blogs e seus usuários e cultivadores merecem uma reflexão própria, mas não podemos esgotar a análise neste espaço.19



Figura 1



Figura 2



Figura 3

Existe uma rede de blogs e páginas peronistas que estão associadas pelo fato de pertencerem a uma mesma corrente no interior do peronismo e se denominaremperonautas . 19

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Figura 4



Figura 5

Fora desse universo que recria pelo cruzamento das imagens clássicas e outros universos imagéticos, temos um pintor que produz outra interpretação do peronismo. Estamos nos referindo a Daniel Santoro.20 Esse artista é um dos mais interessantes representantes das artes plásticas da Argentina contemporânea. Santoro utiliza a iconografia do peronismo clássico unida a elementos exteriores, fazendo com que ela dialogue com outras culturas e representações, como as das religiões orientais, a cultura chinesa e também com o cânone da arte ocidental. O que Santoro tenta na sua obra é recriar o peronismo, adensar o seu arsenal imagético e criar uma nova mítica e mística, palavra cara aos peronistas. O trabalho de Santoro é um esforço para colocar o peronismo como um fenômeno político, cultural e pessoal. Há um esforço para situar o peronismo como um lugar de memória e centro político da sociedade. Se a Argentina é anterior ao peronismo, a história do povo argentino começa com o peronismo e só pode ser, ontologicamente falando, se for peronista. Daniel Santoro nasceu em Buenos Aires em 1954, estudou na Escuela de Bellas Artes Prilidiano Pueyrredón e trabalhou como cenógrafo no Teatro Colón de 1980 a 1991. Sua obra foi compilada em vários livros, como Mundo peronista e Manual del niño peronista, e em catálogos de suas exposições. 20

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Na obra de Santoro,21 o peronismo foi criado, mas, à diferença dos mitos clássicos de criação, geralmente ex nihilo, como na Bíblia, os elementos que conformaram o peronismo preexistem.22 Ao entrarem em contato uns com os outros, esses elementos se combinam para produzir uma civilização que inclui aqueles que estavam à margem da sociedade tradicional: o soldado, a mulher e o povo. A criação dessa forma é ex nunc (nada será o que era). Na figura 623 vemos Perónnocomo o herói civilizador.naEle abandona a civilização se aventura terreno desconhecido, floresta, no lugar inculto, existente para podere civilizá-lo.A escuridão da floresta é o local da ameaça, dos medos ancestrais, que só podem ser redimidos pela cultura. É por isso que Perón embrenha-se na floresta, para poder dominá-la e criar a sua civilização. Eva, no caso, por ser o lado feminino da deidade, tem como missão guiar os filhos, os peronistas, o povo até essa nova cidade. Na figura 7 podemos vê-la nessa função, guiando a criança com uniforme escolar, a qual simbolizará o povo em construção.



Figura 6. Historia del bosque justicialista: el general Perón se interna en la selva oscura, 2004

O universo externo ao peronismo é associado à ameaça de desolação. É uma ameaça que está à espreita, preparada para dar o bote e atingir o povo. O mundo exterior tem conotações sinistras, nada de bom pode vir de fora do peronismo, pelo contrário, o inimigo é desleal, abusa do seu poder (figura 8), da sua esperteza (figura 9) ou do seu prestígio social (figura 10). Nesta última figura temos a escritora Victória O. Campo, editora da revistaSur e ferrenha Parte da volumosa e múltipla obra de Santoro pode ser apreciada na página web do autor. Embora eu tenha trabalhado com outras reproduções, remeto as citações àquela página. 22 A referência mais imediata para esse mito criacionista do peronismo não é bíblica; entendo que é andina e mais pontualmente incaica. O casal criador da civilização incaica, Manco Capác e Mama Ocllo, foi enviado por Inti (o Sol) para formar uma civilização com os povoadores dos Andes centrais. Ver Vega (1991, caps. 3 e 4). 23 Todas as obras de Daniel Santoro tiveram sua reprodução neste capítulo autorizada pelo autor, e estão disponíveis para consulta em: . 21

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Figura 7. Invierno en la ciudad infantil 2 , 2004

Figura 8. Niños peronistas combatiendo al Capital, 2005

opositora do peronismo. Por outro lado, essa mítica criacionista do peronismo, onde do caos surge a ordem, implica que o peronismo é também parte da bar-

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bárie e do caos. E essa é uma das principais acusações feitas por seus adversários. Portanto, se civiliza o caos, também encerra parte dessa matéria. O peronismo cria uma civilização; na realidade, uma nova civilização, a civilização do povo, contraposta à civilização das elites. Ambas são antípodas, irreconciliáveis, mas fazem parte de um mesmo universo. Podem ser contrapostas, mas fazem parte de uma mesma realidade.





Figura 9. Niños peronistas combatiendo al Capital (esboço), 2004

Figura 10. Evita protege al niño peronista, 2002

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Figura 11. La mamá de Juanito es atacada en los alrededores de la ciudad justicialista, 2004

Selecionei a figura 11 para comentar um par de questões que merecem esclarecimento. Nesse caso, a “barbárie” ataca na forma de uma pantera, representando a brutalidade dos antiperonistas, e o faz nos arredores da cidade justicialista, mostrando a temeridade dos inimigos. Mas há alguns elementos que merecem ser destacados. Por um lado, as Evas da parte inferior do quadro são a Eva Mãe, que tanto castiga como alimenta, de dia e de noite. Eva se encontra na casa típica dos programas de moradias populares construídas pela Fundação Eva Perón ou por programas sociais do governo peronista. As casas têm o sugestivo nome de mi casita, o que destaca a importância do acesso à casa própria no imaginário dos operários argentinos de meados do século passado, reafirmando que isso foi possível no decênio peronista. Na parte principal temos, à direita, a civilização peronista representada pela cidade e o carro; e à esquerda, a barbárie, representada pela pantera negra. O título também é interessante: se o quadro é protagonizado por uma criança, por que, então, amamá de Juanito? Juanito é uma figura de outro pintor argentino, Antonio Berni, surrealista, vinculado ao Partido Comunista, e que abordou temáticas sociais. Nos anos 1960, criara um personagem chamado Juanito Laguna (figura 12), que era o símbolo da pobreza existente na Argentina, resultado da desintegração social e do crescimento desorganizado. Juanito foi uma figura descontínua na obra de Berni, não tinha uma biografia específica. Para Santoro, Juanito era o filho de uma prostituta que era ainda uma criança no período peronista. Como a desintegração social e a pobreza eram resultado do antiperonismo, Santoro recria o mundo da mãe de

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Juanito, o mundo da dignidade e da integração social. Eis como ele defende a sua apropriação de Juanito:



Figura 12. Juanito bañándose, 196124

Es interesante que Juanito Laguna, con cinco o seis años de edad, haya aparecido en 1960 abandonado en un basural, un lugar donde pocos años antes el peronismo había conocido los fusilamientos sumarios.Y también que Antonio Berni haya elegido borrar los rastros de aquel movimiento de masas, rastros con los que seguramente se cruzó buscando por el conurbano bonaerense chapas y residuos para sus excelentes obras de montaje. Sospecho incluso que Ramona Montiel fue peronista y que en algún rincón de su habitación guardaría un altarcito dedicado a Evita. ¿O acaso era una rara prostituta “marxista-leninista?25

Voltemos à questão anterior. A ameaça do inimigo é constante, de modo que, para Santoro, os peronistas devem estar preparados. Essa luta entre peronistas e antiperonistas é eterna, como eterna é a luta entre Eros e Tânatos, entre civilização e barbárie (dicotomia fundadora da Argentina moderna e, portanto,

Disponível em: . 25 Santoro, 2006:47. 24

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da Argentina das elites),26 que bem pode ser representada num ciclo perpétuo, como o yin e o yang, como o Ouroboros.27 A luta de classes, novamente, é o confronto entre partes de igual força, que se debatem com a mesma intensidade. É uma disputa perpétua e circular (figura 13).



Figura 13. Lucha de clases, 2006

Como é que os peronistas poderiam defender-se desse exterior hostil? A resposta novamente está nas figuras fundadoras, Perón e Eva, embora caiba a esta o papel ativo na missão. Assim, Eva assumirá as mais variadas formas na defesa dos seguidores. Na figura 14, Eva aparece decapitando o embaixador americano Spruille Braden, arqui-inimigo do peronismo. Santoro nos remete aqui à conhecida história de Judite e Holofernes. Eva e Braden reeditam o duelo de opostos. O Livro de Judite é um dos que compõem o Antigo Testamento. Essa narração bíblica refere-se a uma viúva, Judite, que finge estar apaixonada pelo general do exército assírio, Holofernes, para poder chegar até ele. Ela decapita

A primeira edição da obra de Sarmiento (1999) tinha por subtítulo “civilização e barbárie”. Para uma análise mais detalhada dessa dicotomia, ver Ferreras (2004). 27 Ser da mitologia grega que foi adotado pelos alquimistas; significa a eternidade e é representado por um dragão ou uma cobra que morde a própria cauda. 26

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Holofernes e dá a vitória ao exército de Israel. O livro tem forte conotação patriótica, mas também apresenta a tensão sexual implícita no relacionamento entre esses inimigos. No caso, Eva e Spruille Braden, o embaixador americano que organizou uma campanha contra Perón. Das múltiplas Judites da pintura, como as de Goya, Caravaggio e Artemisia Gentileschi, entre outros, a citação estética é da escultura de Donatello, feita inicialmente para Siena, mas comprada pelos Médicis e colocada no Palazzo em Florença. Judite de Ufizzi, sobre Donatello representava o triunfo do fracodegli e virtuoso o forte eAluxurioso, mas também a vitória da organização da polis contra os tiranos, do povo contra opressores externos. É importante ressaltar que, de todas as representações de Judite, Santoro escolheu a de Donatello. A de Caravaggio é sensual e voluptuosa, e a de Donatello, assexuada. Porém, Eva, apresentada aqui como um anjo vingador, é (o presente é proposital) vista de uma forma totalmente diferente pelos seus adversários. Sua trajetória prévia de atriz e as acusações de leviandade do seu caráter são desafiadas por essa representação. Por isso, Santoro dilui a tensão sexual e acentua a superioridade da Eva-Judite sobre o agressor externo.



Figura 14. Eva Perón decapita al embajador S.B., 2002

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Essa escolha tem sua razão de ser. Como lembra Daniel James (1990:136), o peronismo posterior ao golpe de 1955 caracteriza-se por ser literal nas suas leituras dos princípios ideológicos. Se Eva é santa, não pode ser pública. A escolha dessa imagem de Eva como representação icônica pr incipal de Santoro se deve à necessidade de apresentá-la em sua única face pública possível,a da Eva que recebe os seus seguidores na Fundação Eva Perón, vestida com um tailleur. A outra representação possível de Evareflexões na obra de Santoronecessárias. é a da EvaEm morta, com alugar, mortalha. Algumas se fazem primeiro vemos que os peronistas, ou melhor, o povo é representado por crianças, que não têm condições de se defenderem sozinhas. Precisam de Eva ou do general para tomar conta delas. Ambos são figuras paternais e organizadoras dessa sociedade. A liderança é externa ao povo. A questão da minoridade é fundamental para compreender por que a sociedade argentina está sempre numa situação de confronto. Sem as suas lideranças criadoras e míticas só resta o caos, porque não existem mais os princípios organizadores, seja para o povo, seja para os seus inimigos. Já não é mais possível reconhecer os verdadeiros interesses e perigos. Essa minoridade em que se encontra o povo faz dele uma presa fácil. A outra figura que pode defender o povo é o próprio povo organizado. E a organização fundamental é a organização sindical, encarnada na figura do “descamisado”. Ele é capaz de enfrentar o inimigo, como podemos ver nas figuras 15 e 16.



Figura 15. El descamisado gigante irrumpe en un jardín cultivado, 2006

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O jardim tem os bustos dos ícones culturais da burguesia, Borges e Victoria Ocampo, e o descamisado o invade sem qualquer constrangimento. Mas ele é vulnerável, e sua vulnerabilidade se manifesta no exterior hostil, no terreno da barbárie (figura 17). Os únicos capazes de dominar esse espaço são Eva e Perón.



Figura 16. El descamisado gigante ayuda a cruzar el riachuelo a la mamá de Juanito Laguna, 2006



Figura 17. El descamisado emboscado, 2006

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Embora estejamos deixando de lado uma enorme quantidade de material produzido por esse pintor, temos que concluir. A utopia de Santoro, à diferença dos blogs mencionados, é uma utopia reativa, que olha para trás, e não para frente. Para ele, essa civilização criada pelo peronismo é uma civilização que está morta. É um mundo desaparecido para sempre, e o luto por Eva Perón e por Perón representa o luto pela perda de um mundo idealizado e, portanto, irreal. Como diz Santoro (2006:308): Un marxista leninista te va a decir que el marxismo leninismo nunca existió. Que cuando se aplique realmente el marxismo leninismo ahí va a estar la felicidad del pueblo presente, la armonía universal. Entonces hay que seguir luchando para obtener aquello que nunca fue. El verdadero capitalismo tampoco fue aplicado. No lo impusieron ni Martínez de Hoz ni Cavallo. Y los capitalistas dicen que cuando se aplique realmente el capitalismo puro va a haber armonía en la sociedad. El peronismo es al revés. Su vigencia actual se da porque la gente cree en aquel peronismo al que se puede retornar; o sea: el peronismo no es una promesa en el futuro sino una pérdida en el pasado. Retomando Daniel James (1990:140), a nostalgia prima nas representações que os peronistas fazem do próprio peronismo. Um mundo que acabou e não pode voltar mais. Qualquer coisa que venha será um arremedo daquilo, porque suas principais figuras estão mortas, e ninguém pode interpretar cabalmente o povo como eles o fizeram. Como Santoro menciona, não é unicamente uma queixa pelo passado perdido. James define essa ação como uma “fantasia regressiva”, uma seleção de tropos e interpretações que sirvam para atender às necessidades atuais e apontem ações futuras. Isso definitivamente não implica a negação da racionalidade por parte de Santoro, mas a construção de outra racionalidade em que a afetividade e o sentimento são tão importantes quanto o intelecto. Por isso, aqui acompanhamos Ernesto Laclau (2005:32) no seuLa razón populista, que nos sugere ver o populismo como um ato performativo dotado de racionalidade própria, com sua leveza v( aguedad, em espanhol) e sua capacidade para construir significados políticos relevantes. Negar a racionalidade a Santoro e ao seu peronismo é pensar que o fenômeno que continua despertando polêmicas intelectuais e norteando os debates políticos na Argentina é simplesmente uma identidade. Pelo contrário, entendemos que continua a ser um sistema de pensamento com a sua lógica interna que cria suas próprias representações da realidade e a partir delas opera politicamente.

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Para concluir, apresentarei aqui duas imagens, mesmo sendo um recorte muito limitado da amplitude da obra. A primeira delas mostra como Santoro, dialogando com a nostalgia, a literalidade, as iconografias religiosas e orientais, entre tantas outras, reivindica para o peronismo o direito à razão, à civilização e a civilizar a sociedade. Para tanto, uma última exploração de um tema clássico nas artes plásticas desde o Iluminismo: o confronto entre a razão e o irracionalismo. Em 1799que —Napoleão poucos anos depois da Revolução Francesa eo no momento mo em assumia como cônsul, derrubando Diretório —, mesGoya, assumindo o espírito hegeliano, nos advertia para os riscos de menosprezar a razão.28 Quase um século depois, o desenhista socialista inglês Walter Crane dava uma nova virada nessa temática.29 O lugar do burguês passou a ser ocupado pelo operário. Sua racionalidade era agredida pelo capitalismo, em forma de vampiro, que o explorava em prol da civilização do capital, para além de suas forças e do recomendável. Santoro retoma essa temática e consagra a civilização e a barbárie (figura 18) como elementos interligados, como vimos em Lucha de clases. Novamente a civilização, ou a razão, dorme, enquanto a barbárie está de olhos bem abertos, pronta para um novo confronto.



28 29

Figura 18. Civilización y barbarie, 2006

Ver El sueño de la razón produce monstruos, da série Caprichos (1799). Ver The capitalist vampire (1895).

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A última imagem (figura 19) demonstra que sua visão não é simplesmente nostálgica do peronismo, mesmo quando ele assim o coloque. É uma posição militante que busca compreender e atuar sobre o presente. Nessa imagem vemos que ele estava delineando um campo de conflitos entre o seu peronismo e um setor da sociedade argentina que se mostrava ameaçador e prestes a se tornar antagônico. Ela mostra um descamisado — em sintonia com os descamisados anteriores e já analisados — enfrentando um novo inimigo: o setor agroexportador da Argentina, que concentrou suas produções na soja. Esse quadro é de 2007, meses antes do conflito mencionado no início deste capítulo. O confronto era entre os que se apropriavam do lucro extraordinário e o Estado. Porém, para Santoro, o conflito era outro e se dava entre as forças do capital, agora na pele de uma nova burguesia beneficiada pela elevação dos preços da soja, e a utilização sem controle dos recursos naturais e humanos, representada no campo de soja e nos trabalhadores prejudicados por essa mudança na cadeia produtiva, que assim não apenas deixava de produzir os itens de consumo básico dos trabalhadores urbanos, como também explorava sem controle os trabalhadores rurais. O único vencedor possível deveria ser o trabalhador organizado.



Figura 19. El descamisado gigante arrasa un campo de soja transgénica, 2008

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Referências

BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp, 1995. CAPELATO, Maria Helena.Multidões em cena — propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998. FERRERAS, Norberto O. Facundo no sertão: Gustavo Barroso e o cangaceirismo. História e Perspectivas, Uberlândia, no 29/30, 2004. GENÉ, Marcela.Um mundo feliz. Imágenes de los trabajadores en el primer peronismo, 1946-1955. Buenos Aires: FCE,2005. HOBSBAWM, Eric. Introdução. In: _____; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.9-10. JAMES, Daniel. Resistencia e integración. El peronismo y la clase trabajadora argentina, 1946-76. Buenos Aires:Sudamericana, 1990. LACLAU, Ernesto.La razón populista. Buenos Aires: FCE, 2005. MARTÍNEZ, Tomás Eloy.La novela de Perón. Buenos Aires: Biblioteca La Nación, 2001. _____. Santa Evita. Bue nos Aires: Alfaguara, 2002. MORENO, María. Pintar por Perón. Entrevista con Daniel Santoro. In: SANTORO, Daniel. Mundo peronista. Buenos Aires: La Marca, 2006. SARMIENTO, Domingo Faustino.Facundo. Buenos Aires: Losada, 1999. VEGA, Inca Garcilaso de la.Comentarios reales de los incas. México: FCE, 1991.

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Cultura política, memória e historiograa



Anexo

Os manifestos programáticos de dois blogs “jovens” Um dia peronista

1-5-2007 Um dia como hoy... se nos ocurrió hacer un blog con historias del peronismo. “Nuestras clases dominantes han procurado siempre que los trabajadores no tengan historia, no tengan doctrina, no tengan héroes y mártires” dijo Rodolfo Walsh. Entonces hoy, en este lugar, nuestra historia, nuestra doctrina, nuestros héroes y nuestros mártires son recordados, difundidos, exagerados y hasta inventados para recuperar lo nuestro y también —¿por qué no? — para romperle un poco las pelotas a los gorilones de siempre... Hay algunas entradas que están fundadas en investigaciones históricas, otras que no tienen nada que ver con la realidad, otras que son mita’ y mita’, otras que se basan en un hecho histórico cualquiera para disparar una reflexión peroncha. El objetivo es ser una puerta a la historia de los movimientos populares. Pero semejante cosa sólo puede ser abordada seriamente con un poco de humor (continua). Anarko-Peronismo

23-6-2008 Cooke dijo alguna vez que el peronismo es el hecho maldito del país burgués. Ricky Espinosa (músico punk argentino) en cambio dijo “los peronistas somos las ovejas negras de la sociedad careta”. El peronismo es ese elemento que el aparato cultural de la superestructura tilinga del coloniaje, no logra asimilar. Le es ajena, le es agresiva. Insulta a los patrones de buen gusto de la sociedad más careta. Cantar la marcha peronista causa mucho más desagrado que cantar la internacional. (…). Por eso, el verdadero peronista, en su estado más puro y natural, es el Anarko-Peronista. Esa persona contradictoria, esa fuerza de cambio social, ese elemento cuestionador de la realidad establecida. El verdaderoAnarkista es a la vez el Verdadero Peronista. Celebremos el Anarko-Peronismo, ya que todo lo demás es peronismo tibio que termina militando en las filas de la sociedad conservadora. Anarko-Peronistas del mundo, ¡¡¡Uníos y Marchad a la Plaza!!!



Sobre os autores



Ana Maria Mauad

Doutora em história social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora de teoria e metodologia da história da UFF, pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi-UFF) e do CNPq. Autora de Poses e flagrantes: estudos sobre história e fotografias (Eduff, 2008) e “Imagens de um acontecimento: imprensa e história na análise dos atentados de 11 de Setembro de 2001”, publicado em Imprensa, história e literatura (Org. Isabel Lustosa, Edições Casa Rui Barbosa, 2008). ❚

Andréa Telo da Corte

Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Centro dedo Referência, Pesquisa e Documentação do das Museu História e Arte do Estado Rio de Janeiro. Autora de “A relevância fontesde orais no estudo do fenômeno imigratório”, publicado em Portugueses no Brasil (Orgs. Ismênia de Lima Martins e Fernando de Souza, Muiraquitã, 2006), e “A imigração madeirense em Niterói, 1930-1990. Histórias de vidas”, publicado em A madeira e o Brasil (Org. Alberto Vieira, Centro de Estudos de História do Atlântico, 2004).

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Cultura política, memória e historiograa



Antônio Carlos Jucá de Sampaio

Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor de história do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Autor de Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro, c.1650-c.1750(Arquivo Nacional, 2003) e organizador, João Fragoso Almeida, de Conquistadores negociantes: (Civilização Brasileira, e2007). histórias de elitescom no Antigo Regime enosCarla trópicos ❚

Cecília Azevedo

Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), professora de história da América da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em História Cultural (Nupehc-UFF) e do CNPq. Autora de Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil(Alameda, 2007) e organizadora, com Rebeca Gontijo, Rachel Soihet e Maria Regina Celestino de Almeida, de Mitos, projetos e práticas políticas. Memória e historiografia (Civilização Brasileira, 2009). ❚

Daniel Aarão Reis

Doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF) e do CNPq. Autor de Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético (Fundação Perseu Abramo, 1997) e organizador, com Denis Rolland, deModernidades alternativas (FGV, 2008).



Denis Rolland

Professor de história das relações internacionais contemporâneas do Institut d’Études Politiques de Strasbourg da Universidade Robert Schuman, membro do Institut Universitaire de France, pesquisador do Centre d’Histoire de Sciences Po. Autor deA crise do modelo francês: a França e a América Latina (UnB, 2005) e organizador, com Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, deL’Exil brésilien en France (L’Harmattan, 2008).

Sobre os autores





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Denise Rollemberg

Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora de história contemporânea da UFF, pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF) e do CNPq.Autora de Exílio. Entre raízes e radares (Record, 1999) e organizadora, com Samantha Viz Quadrat, deA construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX (Civilização Brasileira, 2010). ❚

Eliane Cantarino O’Dwyer

Doutora em antropologia social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora de antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Grupo de Estudos Amazônicos (Geam). Autora de Quilombo: identidade étnica e territorialidade (FGV/ABA, 2002) e Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar antropológico (Eduff, 1998). ❚

Hebe Mattos

Doutora em histór ia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora titular de história do Brasil da UFF, pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi-UFF) e do CNPq. Autora de Das cores do silêncio: significados da liberdade no Sudeste escravista (Arquivo Nacional, 1995) e Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo (FGV, 2009, 2. ed. rev. ampl.). ❚

Ismênia de Lima Martins

Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Organizadora, com Fernando de Sousa, deEmigração portuguesa para o Brasil. Porto, Portugal (Universidade do Porto/Cepese, Afrontamento, 2007) e, com Vitor Manoel Fonseca, deD. João VI e a Biblioteca Nacional: um legado em papel (FBN, 2008).

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Cultura política, memória e historiograa



Jean-François Sirinelli

Professor de história contemporânea do Institut d’Études Politiques de Paris. Autor, com Pascal Ory, de Les intellectuels en France. De l’ Affaire Dreyfus à nos jours (Perrin, 2004), e organizador de Histoire des droites en France(Gallimard, 2006, 3v.). ❚

João Fragoso

Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor titular de teoria da história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Autor, com Manolo Florentino, de O arcaísmo como projeto: mercado Atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia (Civilização Brasileira, 2001) e coorganizador de Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos (Civilização Brasileira, 2007). ❚

João Pacheco de Oliveira

Doutor em antropologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro professor titular mesma instituição e pesquisador do CNPq. Autor,(UFRJ), com Carlos Augusto da na Rocha Freire, deA presença indígena na formação do Brasil (MEC, 2007) e organizador deA viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena (Contracapa, 2004). ❚

Jorge Ferreira

Doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), professor titular de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do Núcleo de Pesquisas em História Cultural (Nupehc-UFF) e do CNPq. Autor de O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-1964 (Civilização Brasileira, 2005) e organizador, com Lucília Neves de A. Delgado, deO Brasil republicano (Civilização Brasileira, 2003). ❚

Juan Suriano

Professor de história da Universidad Nacional de San Martin. Autor de Anarquistas: cultura y política libertaria en Buenos Aires, 1890-1910 (Manantial, 2001) e Dictadura y democracia, 1976-2001(Sudamericana, 2005).

Sobre os autores





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Maria Fernanda Baptista Bicalho

Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), professora de história do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em História Cultural (Nupehc-UFF) e do CNPq. Autora de A cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII (Civilização 2003) e organizadora, com João Fragoso e Maria de Fátima S. Gouvêa,Brasileira, de O Antigo Brasileira, 2001). Regime nos trópicos (Civilização ❚

María Inés Mudrovcic

Doutora em filosofia pela Universidad de Buenos Aires, professora de filosofia da história na Universidad Nacional del Comahue (UNCo) e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas (Conicet). Autora de Historia, narracion y memoria: los debates actuales en filosofia de la historia (Akal Ediciones, 2005) e Pasados en conflicto. Representación, mito y memoria(Prometeo, 2009). ❚

Maria Regina Celestino de Almeida

Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora de história da América da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em História Cultural (Nupehc-UFF) e do CNPq. Autora de Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro (Arquivo Nacional, 2003) e organizadora, com Rebeca Gontijo, Rachel Soihet e Cecília Azevedo, deMitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia (Civilização Brasileira, 2009).



Marta Zambrano

Doutora em antropologia pela Universidade de Illinois, professora da Universidad Nacional de Colômbia, membro do Grupo Interdisciplinario de Estúdios de Gênero da mesma universidade. Autora deTrabajadores, villanos y amantes: encuentros entre indígenas y españoles en la ciudad letrada. Santa Fe de Bogotá 1550-1650 (Icanh, 2008) e,coorganizadora de Memorias hegemónicas, memorias disidentes: el pasado como política de la historia (Icanh, 2000).

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Cultura política, memória e historiograa



Norberto Ferreras

Doutor em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor de história da América da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF). Autor deO cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires, 1880-1920(Eduff, 2006) e “A ditadura militaralternativas na Argentina: doDaniel esquecimento à história publicado em Moderni(Orgs. Aarão Reis e Denistotal”, Rolland, FGV, 2008). dades ❚

Paulo Knauss

Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor de teoria e metodologia da história da UFF e pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi). Organizador de Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro (7 Letras, 1999) e de Oeste americano: quatro ensaios de história dos EUA de Frederick Jackson Turner (Eduff, 2004). ❚

Philippe Joutard

Professor da Universidade de Provence (Aix-Marseille I) e da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Autor deLa légende des camisards: une sensibilité au passe (Gallimard, 1977) e Ces voix qui nous viennent du passe (Hachette, 1983). ❚

Pierre Laborie

Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Autor de Les Français des années troubles. De la guerre d’Espagne à la Libération. (Seuil, 2003) e L’opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d’identité nationale. 1936-1944 (Seuil, 2001). ❚

Rachel Soihet

Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), professora titular de história moderna e contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em História Cultural

Sobre os autores



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(Nupehc) e do CNPq. Autora de O feminismo tático de Bertha Lutz (Mulheres, 2006) e A subversão pelo riso: estudos sobre o Carnaval carioca da belle epoque ao tempo de Vargas (FGV, 1998, e Eduff, 2008). ❚

Samantha Viz Quadrat

Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora de história da América da UFF e pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF). Organizadora, com Carlos Fico, Marieta de Moraes Ferreira e Maria Paula Nascimento Araújo, de Ditadura e democracia na América Latina (FGV, 2008) e, com Denise Rollemberg,A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX(Civilização Brasileira, 2010). ❚

Serge Berstein

Professor emérito de história do Institut d´Études politiques de Paris. Autor de Histoire du gaullisme. (Perrin, 2001) e Démocraties, régimes autoritaires et totalitarismes au XXe siècle. Pour une histoire politique comparée du monde développé (Hachette, 1992). ❚

Tarsila Pimentel

Pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi-UFF). Autora de Antônio Nery: o fotógrafo da Bossa Nova (Obra de artes visuais/Vídeo, 2008) e, com Ana Maria Mauad, A longa viagem de volta, Getúlio Vargas na fazenda de Itu (com fotos de Flávio Damm, Obra de artes visuais/Vídeo, 2008). ❚

Ulpiano T. Bezerra de Meneses

Doutor em arqueologia clássica pela Universidade de Paris I, Sorbonne, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de “Os paradoxos da autoria”, “Rumos para uma história visual” e “A paisagem como fato cultural”, publicados em Estudos de cultura material (CosacNaify, 2010).

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Cultura política, memória e historiograa



Pesquisadores do Programa de Núcleos de Excelência (Pronex), CNPq e Faperj — Culturas Políticas e Usos do Passado: Memória, Historiograa e Ensino da História

Adriana Barreto de Souza (UFRRJ) Alessandra Frota Martinez de Schueler (Uerj) Ana Maria Mauad Antonio Carlos Jucá(UFF) de Sampaio (UFRJ) Daniel Aarão Reis Filho (UFF) Denise Rollemberg (UFF) Caetana Damasceno (UFRRJ) Cecília da Silva Azevedo (UFF) Hebe Mattos (UFF) Helenice Aparecida Bastos Rocha (Uerj) Ismênia Martins (UFF) João Luis Ribeiro Fragoso (UFRJ) João Pacheco de Oliveira (UFRJ) Jorge Ferreira (UFF) Luis Edmundo de Souza Moraes (UFRRJ) Luiz Jorge Werneck Vianna (Iuperj) Luís Reznik (Uerj) Magali Gouveia Engel (Uerj) Marcelo Bittencourt (UFF) Marcelo de Souza Magalhães (Uerj) Marcelo Ridenti (Unicamp) Márcia de Almeida Gonçalves (Uerj) Maria Alice Rezende de Carvalho (Iuperj) Maria Fernanda Baptista Bicalho (UFF) Maria Regina Celestino de Almeida (UFF) Norberto Ferreras (UFF) Paulo Knauss (UFF) Rachel Soihet (UFF) Rebeca Gontijo (UFRRJ) Samantha Viz Quadrat (UFF) Suely Gomes Costa (UFF/Nupehc)

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